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Embora não tenha sido escrito com a intenção de ser uma história
‘pesada’, este livro aborda temas sensíveis, incluindo: transtorno de estresse
pós-traumático, crise de ansiedade, agressão física, menções a violência
doméstica, abuso sexual, aborto espontâneo, luto e depressão.
Todos os temas abordados fazem parte desta obra de ficção, e embora
tenham sido cuidadosamente estudados e avaliados antes de serem incluídos
na narrativa, eles não refletem a realidade. Se qualquer um destes temas traz
lembranças dolorosas, gatilhos ou provoca desconforto em você, considere
não ler.
Além disso, o livro contém cenas de sexo explícito, uso de palavras de
baixo calão, consumo de drogas lícitas e menções ao uso de drogas ilícitas.
Entenda seus limites e preserve sua saúde mental. Caso decida continuar,
não hesite em interromper a leitura se sentir desconforto em qualquer
momento.
"Hold your head up (movin' on) Keep your head up (movin' on) Hold
your head up (movin' on) Keep your head up"
Sweet Dreams (Are Made Of This (Alt. Version)) - Marilyn Manson
Eu sentia aquilo de novo; como uma avalanche atingindo meu peito e me
soterrando naquele sentimento doloroso. O medo descia em espiral pela
minha espinha, congelando meu coração e fazendo com que cada fibra do
meu corpo se endurecesse diante do perigo.
Os olhos dele me causavam arrepios, levando-me a um ponto escuro e
sobrecarregado da minha alma; um ponto que tinha medo de encarar. Tanto
medo, que me fazia incapaz de manter meus olhos nele por mais do que
alguns segundos.
Quando afastei-me do muro de pedra, minutos atrás, soube que seguiria
os gritos exasperados da garota que brigava com um homem muito mais
alto e que parecia bem alterado. A rua principal estava movimentada, mas
as pessoas pareciam indiferentes à situação, ou simplesmente não queriam
se envolver.
Ele a puxou para uma rua lateral e, se minha memória não falhava, era
um beco sem saída.
Minha mãe sempre me dizia que eu não tinha medo do perigo e que
perdia totalmente a noção de até onde podia me meter nas discussões dos
outros.
E ela sempre esteve certa.
Não tinha controle dos meus pés enquanto eles me levavam, sem
nenhuma cautela, até o mesmo ponto onde os dois discutiam.
Pude ouvir as vozes alteradas dos dois quando me aproximei da esquina
da rua e estendi a cabeça, na intenção de ver o que acontecia entre eles. O
cara continuava segurando o braço dela com uma força desnecessária,
tentando forçá-la a entrar em um carro de vidros escuros. O ímpeto de não
deixar nenhuma atrocidade acontecer à garota, me fez andar a passos largos
até eles.
E agora estava aqui, fugindo daquele olhar.
— Ei! O que você pensa que está fazendo? — gritei, chamando a
atenção deles.
— Me ajuda? — a garota pediu desesperada. — Não deixe ele me levar
daqui.
— Quem, diabos, é você? — o cara perguntou irritado e por um instante,
seu olhar repleto de ira me fez questionar se aquela havia sido mesmo uma
boa decisão.
— Vai colocar a menina a força no seu carro? — Precisei me esforçar
muito para não deixar minha voz falhar.
— Você não faz ideia do que está rolando aqui. — O cara voltou a focar
na garota, gritando para que ela fosse com ele. Claramente, minha presença
não o incomodava.
Um flash do meu passado fez com que um arrepio subisse pela minha
espinha. Os sinais eram os mesmos da outra vez. O cara transtornado, a voz
cheia de raiva, o descontrole.
O desespero no rosto daquela garota me atingiu no instante em que as
lembranças voltaram. Minha visão não era muito clara, deturpada pelo
medo. Aquele medo me atingia em algum lugar da alma, tão escuro e fácil
de me perder, que às vezes, era quase impossível voltar.
— Não precisa falar assim com ela — minha voz soou mais calma e
baixa do que deveria.
Talvez fosse apenas uma tentativa falha de fazê-lo se acalmar, mas a
verdade é que tive medo de encará-lo. Seu rosto transtornado e tomado pela
raiva, me fazia desviar o olhar dele a cada segundo em que o desespero em
sua voz ficava mais estridente.
Nervosa e com medo do que podia acontecer, olhei para os lados
procurando alguma solução, qualquer sinal de algo que pudesse me ajudar.
E como se fosse providenciado pelo destino, nesse segundo, a luz vermelha
de uma viatura de polícia passou na rua transversal.
Ao ver o cara continuar tentando colocar a menina a força no carro, tive
meio segundo para sair correndo atrás da viatura e gritar aos policiais que
pararam um pouco mais a frente.
— Você é louca? — o cara perguntou irritado, finalmente soltando o
braço da loira que veio correndo para trás de mim. — Já viu como ela está
chapada?
— Isso não te dá o direito de obrigá-la a nada.
Disposta a não deixar que ela sofresse o mesmo que sofri, projetei meu
corpo para frente, como um escudo entre eles. Precisava protegê-la por mais
uns segundos, enquanto a viatura estacionava atrás do carro do cara.
Dois policiais saíram pelas portas da frente. Um deles era mais magro e
franzino, enquanto o outro deveria ter uns dois metros de altura e uns
sessenta quilos só de músculo.
— O que está acontecendo aqui? — a voz grave do policial grandão
interrompeu qualquer coisa que o cara fosse começar a falar.
O timbre frio e cortante me atingiu no fundo da alma, quase me
transportando para uma lembraça perigosa. Tentei não pensar no arrepio
que aquele tom me causava.
— Esse cara estava tentando colocar essa menina a força no carro —
respondi ainda protegendo a garota com meu corpo.
— Não deixa ele me levar, por favor — a menina pediu chorosa ao
policial.
— Eu não estou acreditando nisso — um riso irônico escapou do cara,
visivelmente revoltado com a situação. Seu olhar continha uma súplica
silenciosa para a garota parada atrás de mim.
— Você precisa de ajuda? Quer que eu a leve para casa? — O policial
menor perguntou a ela, que negou com a cabeça, enquanto seu companheiro
de ronda já estava algemando o cara, que agora falava sem parar, tentando
se justificar.
— Eu cuido dela — avisei, percebendo sua agitação para sair dali.
— Moça, preciso saber se você vai registrar uma ocorrência sobre o
episódio — o policial avisou.
Olhei especulativa para a loira, que negou com a cabeça.
— Tem certeza?
— Sim — sua voz embargada me fez pensar que ela precisava mesmo
sair dali. Da presença dele.
— Vamos conversar com esse rapaz, então — o policial grandão que o
mantinha algemado, avisou.
Assenti, sentindo o desespero e a ansiedade dela, e só então percebi
como meu corpo também tremia, tomado pela adrenalina de me aventurar
no desconhecido.
— Qual seu nome? — perguntei enquanto a acompanhava de volta ao
bar.
— Muito obrigada pela ajuda, de verdade, mas tem uma amiga minha
me esperando ali.
— Ok! — Olhei confusa para ela. — Tem certeza de que não precisa de
mais nada?
A menina, no entanto, saiu correndo alguns metros na minha frente,
abraçando outra garota que vinha a seu encontro.
— Obrigada mesmo — disse novamente para mim — minha amiga vai
me levar para casa agora.
Assenti, sorrindo para ela, e logo depois as duas saíram conversando.
Pelo menos naquele momento, pude impedir que algo pior acontecesse.
12 de janeiro de 2019
Era sábado à noite, e meu coração insistia no alerta irritante; a previsão,
dessa vez, indicava uma grande tempestade.
Olívia já tinha me ligado quatro vezes na última hora, insistindo que
fosse terminar de me arrumar na casa dela, mas o medo da rejeição já quase
tinha me feito desistir por duas vezes. Tinha mais de uma hora que estava
trocando de roupa em frente ao espelho.
Em cima da cama, tinham várias peças de roupa amontoadas, e eu
simplesmente não conseguia me decidir. Olhei-me pela trigésima vez no
espelho; meu cabelo loiro escuro estava com algumas ondas naturais nas
pontas, batendo um pouco abaixo dos meus ombros. A maquiagem clara e
leve, destacava meus olhos, deixando-os ainda mais azuis.
Minha mãe foi a primeira pessoa a reparar como meu estado de espírito
influenciava na forma como me vestia, antes mesmo que eu pudesse
reparar.
Senti meu coração doer com a lembrança e a falta que ela me fazia.
Meu conflito de personalidade hoje estava incrível. Estava nervosa,
ansiosa, queria beber e ser a Liah que sempre desejei ser, mas tinha medo
de conhecer pessoas novas.
Voltei a encarar o amontoado de roupas, soltando um suspiro audível, e
resolvi ser mais prática, optando por um jeans escuro e uma blusa preta de
mangas cumpridas largas. Era básico e bonito. Enfiei meus pés em uma
sandália de tiras preta com um salto alto, e depois do meu surto com a
roupa, saí correndo da mansão de vovó em direção ao centro da cidade.
O carro de aplicativo me deixou na porta do Republic, um bar conhecido
e super frequentado da cidade. Era daquele tipo que tinha mesas para quem
quisesse sentar e conversar, pista de dança para os que queriam dançar, e
cantos escuros suficientes, utilizados pela galera da GVU que abarrotava o
bar todas as noites.
A Greenville University era a faculdade da cidade e um nome renomado
na Flórida. Vinham pessoas de fora estudar aqui, embora a cidade não
tivesse grandes atrativos.
Eu nasci aqui. E normalmente, todo mundo se conhecia nesse tipo de
cidade.
A verdade é que, talvez, eu devesse conhecer mais pessoas, mas vivi
reclusa e quieta em casa por toda a minha infância e adolescência.
Minha avó tinha uma mania irritante de manter a mim e mamãe longe de
todos os holofotes que ela tinha virados para ela. Era uma forma de
proteção, então cursei a faculdade tendo frequentado poucas festas,
conhecido poucas pessoas, e quase saí ilesa de qualquer namoro.
Uma amiga da época me chamava para esse mesmo bar com frequência,
mas detestava a atmosfera que encontrava na maior parte das vezes que
vinha. Olivia insistiu muito até me convencer a estar aqui hoje, mas seus
apelos convenceram uma parte minha que desejava se libertar das amarras e
dos freios.
Ansiosa, procurei por Olie na entrada até que avistei seus cabelos pretos
junto a outras duas meninas.
— Oi, Olie! — chamei-a um pouco sem jeito pela presença das outras
duas.
— Ei! — Olivia me abraçou, checando meu rosto e minha roupa em
seguida. — Você está linda, Liah!
— Obrigada! — Sorri, reparando no quanto as três mulheres eram lindas.
Olie usava um vestido preto não muito curto, e a maquiagem só a
deixava ainda mais bonita. A garota loira, a menor das três, estava com um
vestido floral mais solto e seus olhos eram muito verdes. A ruiva, era o tipo
de mulher que faria um homem bater um carro. Sua calça de couro e o top
preto, contrastavam com o vermelho de seu cabelo.
— Vocês também estão lindas.
— Essas são a Evie e Karol. — Olie me apresentou às meninas, que
agora me abraçavam e sorriam simpáticas.
— Prazer te conhecer, Liah! A Olie fala de você o tempo todo — Karol
respondeu me olhando carinhosamente.
Karoline e Evie foram muito simpáticas comigo desde que cheguei.
Pegamos nossas bebidas e nos sentamos à mesa enquanto elas me contavam
mais de como foram de amigas a namoradas e viraram amigas de novo.
A próxima hora passou tão rápido, que nem mesmo percebemos. As
meninas eram pessoas incríveis, e fazia tanto tempo que eu não socializava
daquela forma com alguém, que nem lembrava como era me sentir leve
daquele jeito. Era como se tivesse me desafogado da solidão constante que
habitava meu coração. Estava valendo a pena aceitar a proposta que minha
sócia e melhor amiga fazia a mais de um ano: conhecer seus amigos.
— Tommy mandou uma mensagem perguntado onde estávamos sentadas
— Karol avisou. — Eles acabaram de estacionar o carro.
— Quem está dirigindo hoje? — Olie perguntou à amiga.
Evie e Karol se encararam, trocando um olhar apreensivo.
— Acho que é o Nathan. — Evie revirou os olhos. — Ele fica louco
quando não pode beber.
— Ultimamente, quando é a vez dele, são as melhores noites. — Olivia
parecia aliviada.
As meninas concordaram, voltando a conversar sobre um evento que
Evie estava organizando.
— Esse é o cara que você falou mais cedo? — Olhei para Olie, falando
para que só ela pudesse ouvir. — O que está passando por problemas?
Olívia já havia me contado algumas vezes sobre seus amigos, inclusive
que um deles estava enfrentando problemas há algum tempo. No entanto,
ela sempre se limitava a contar as coisas superficialmente, nunca entrando
em detalhes sobre o que o afetava tanto.
— Sim. Às vezes ele desconta na bebida. Eles podem simplesmente
pegar um Uber e vir, mas os três cabeças dura gostam de manter a tradição
e detestam que a gente vá embora sozinha com um motorista estranho na
madrugada.
Era fofo o cuidado que eles tinham com elas. Olívia sempre falava deles
com muito carinho e admiração.
— Os meninos chegaram — Evie avisou, levantando um dos braços,
acenando para os caras que deviam estar atrás de nós.
Virei o pescoço para trás, olhando para a entrada do bar e encarei as três
figuras vindo em nossa direção.
De onde eles haviam saído?
Meu queixo caiu enquanto meu cérebro tentava processar a imagem. Os
três eram incrivelmente lindos, e eram o tipo de homem que não se vê todo
dia andando pela rua.
Como Olie não tinha me preparado para aquilo?
Um deles, era mais baixo e mais musculoso. Tinha os cabelos loiro-
escuros, pele bronzeada e os olhos muito negros. O outro, andando ao lado
dele, era um pouco mais alto, tinha os cabelos pretos, um tom de pele pálido
e olhos tão escuros quanto o primeiro. O terceiro cara, andando mais atrás,
era o mais alto dos três. Seus cabelos eram pretos e um pouco bagunçados e
jogados para o lado. Ele tinha o olhar mais profundo dos três. E mesmo de
longe, era fácil notar o tom azul ainda mais claro que os meus, e isso fazia o
contraste com sua pele branca ainda mais intenso.
— Fecha a boca — ouvi a risada disfarçada de Olívia para meu estado de
torpor ao vê-los parando ao lado da mesa, começando a cumprimentar as
meninas com beijos no topo das cabeças delas.
— Quem é ela? — o cara mais baixo, vestido de Jeans claro e camisa
vermelha perguntou, apontando o queixo em minha direção.
— Liah! — Karol respondeu como se meu nome fosse uma explicação
óbvia de quem eu era e do que estava fazendo no meio do grupo deles.
Pela forma que assentiram, meu nome realmente era uma explicação
óbvia. Olie devia falar de mim para eles na mesma proporção que falava
deles para mim.
— Sou o Thommas, mas pode me chamar de Tommy — disse sentando-
se ao lado de Evie;
— A famosa Liah! — o outro cara de olhos escuros e cabelos pretos, um
pouco mais alto que Thommas, respondeu sentando-se ao meu lado. —
Olívia disse que ainda te convenceria a sair com a gente. A propósito, sou o
Ethan.
— Ela tentou mesmo, várias vezes. — Sorri, gostando da simpatia deles.
O terceiro cara, vestido de Jeans escuro e camisa branca, sentou-se na
outra ponta da mesa, quase de frente para onde eu estava. Ele não se
apresentou, apenas manteve um olhar analítico sobre mim, como se
buscasse uma resposta, me deixando intimidada o suficiente para desviar
meus olhos dele.
Claramente, era o menos simpático dos três.
— Esses são Ethan, Tommy e Nate. — Evie apontou, respectivamente,
para o cara ao meu lado, o cara ao lado dela e o cara na ponta da mesa.
Tommy deu uma cotovelada disfarçada em Nathan, que ainda me
encarava especulativo. O cara antipático abaixou a cabeça, olhando alguma
coisa na tela do celular, apoiado na mesa.
— Então Liah, você é tão louca quanto essas garotas, ou já está sofrendo
com as loucuras delas? — Tommy perguntou.
— A gente se deu bem — respondi sorrindo para ele.
— Louca como elas! — Ethan constatou, encarando feio o amigo que
voltou a me encarar.
Um garçom trouxe mais bebidas enquanto os cinco engatavam uma
conversa animada sobre algum cliente da empresa dos meninos que ligou
dando um ataque no telefone. Nathan não disse uma palavra desde que
chegou. Eu tentava participar da conversa, e percebi que eles faziam
questão de me incluir, mas a frieza do cara do outro lado me incomodava.
Qual era o problema dele, afinal?
Todos perceberam.
Olie olhava a todo momento para Tommy ao lado de Nathan, pedindo
ajuda para trazer o amigo de volta para a Terra. Tommy parecia preocupado,
perguntando constantemente ao outro se estava tudo bem, mas ele se
limitava a acenar com a cabeça. Ethan tirava assunto de todos os cantos
para me incluir na conversa com as meninas, mas depois de um tempo, a
situação começou a ficar insustentável. Nathan parecia cada vez mais
irritado, e eu evitava a todo momento direcionar meus olhos para o canto
onde ele estava sentado.
— Os garçons daqui parecem conhecer bem vocês — comentei, tentando
me distrair da análise minuciosa do cara a minha frente.
— Na época da faculdade, a gente começou a vir aqui e era meio que
nosso ponto de encontro. Acabou que virou rotina. Estamos aqui quase
todos os fins de semana — Evie explicou.
— Eu também costumava vir muito aqui quando fazia faculdade —
respondi, lembrando da época que Tiffany queria me arrastar para aquele
bar todo fim de semana.
— Preciso sair daqui — a voz grave e irritada nos cortou, e Nathan
levantou, seguindo em direção à saída do bar.
Todos os olhares se concentraram em ver o cara alto saindo apressado de
lá. Ethan e Tommy se olharam preocupados, enquanto as meninas
encaravam a porta do bar surpresas.
— O problema dele é comigo? — perguntei a todos na mesa, sem
entender aquela reação exagerada.
— Não, claro que não, Liah — Tommy respondeu confuso, ainda
olhando para Ethan. Os dois se levantaram, indo atrás do amigo.
— Não mesmo? — perguntei às meninas, tendo a certeza dos vincos
profundos que se formavam em minha testa.
— Parecia que ele te conhecia. — Evie manteve o olhar analítico sobre
mim, como se esperasse uma afirmação minha sobre aquilo.
Olivia e Karol também fizeram silêncio, esperando uma resposta.
— Nunca vi esse cara antes — falei, tentando puxar na memória
qualquer situação em que pudesse tê-lo encontrado antes, mas realmente
não lembrava de já tê-lo visto.
— Acho que o problema não é você — Olie amenizou. — Normalmente,
ele é o mais educado e simpático dos três. Mas ele se fechou para muita
coisa depois da Camille.
Educado e simpático eram adjetivos que não combinavam muito com
ele.
— Quem é Camille? — perguntei curiosa.
— Ex-namorada dele — foi Karol quem respondeu; o desdém em sua
voz era evidente. — Ela meio que o abandonou em um momento ruim. Mas
Nate não gosta de falar disso.
— Vamos mudar de assunto, então, né? — disse, sem graça, tentando
quebrar o clima ruim.
Passamos mais alguns minutos tentando iniciar alguma conversa, mas os
olhares preocupados das meninas indicavam que a noite havia acabado.
Karol ficava encarando a tela do celular, esperando algum contato de Ethan
e Tommy. Evie esticava o pescoço a cada dez segundos para enxergar a
porta do bar, e Olivia se remexia inquieta na cadeira.
— Melhor a gente ir ver se está tudo bem. — Olie virou-se para mim,
com um olhar suplicante. — Desculpa amiga. Eu não queria que isso
acontecesse logo no dia que você veio conhecer meus amigos, mas tenho
certeza que o problema não é com você.
— Tudo bem, Olie. — Abracei-a, sabendo que ela estava sendo sincera,
ainda que eu não acreditasse na parte do problema não ser comigo.
Karol, que descobri ser Diretora Financeira da empresa deles, pagou toda
a conta com o cartão corporativo, avisando que isso era o castigo de Nathan
por acabar com a noite de todo mundo. Quando saímos do bar, encontramos
os meninos parados no outro lado da rua, sentados na calçada.
— Acho melhor eu pedir um táxi aqui — avisei às meninas quando
percebi que elas seguiam em direção a eles.
Evie puxou meu pulso até a calçada do outro lado, sem me dar chance de
contestar.
— Vamos só nos despedir dos meninos e vamos embora todas juntas.
Mantive minha cabeça baixa, evitando olhar para Nathan. Normalmente,
eu não tinha medo de encarar problemas, mas o curto olhar que trocamos
quando eles chegaram, me intimidou de verdade.
— Você está bem? — ouvi Karol perguntar ao amigo, sentado no meio
fio da calçada, ofegante como se tivesse corrido uma maratona.
— Vou ficar — foi a única coisa que saiu da boca dele.
— O que está acontecendo, cara? — Ethan pediu, preocupado. — Você
precisa falar com a gente.
Nathan ergueu o corpo do chão, e agora, mais próxima dele, pude
perceber o quanto ele era alto. Ethan segurou o ombro do amigo, cobrando
uma resposta com o olhar.
— Só umas lembranças ruins — a voz rouca e baixa cortou o ar. — Uma
boa noite de sono resolve.
— Bem, você leva as meninas então? — Ethan perguntou ao amigo. —
A gente pega um táxi aqui para ir embora.
— Todas elas? — Nathan questionou irritado, me olhando com ironia.
Ok! O problema era mesmo comigo.
Por que diabos eu estava com medo de enfrentá-lo? Ele podia ter
milhões de problemas na vida, mas não tinha o direito de ser grosso comigo
de graça.
— Eu vou de Uber, não precisa se preocupar — cuspi as palavras, já
virando o corpo em direção à rua, mas Ethan segurou meu pulso.
— Não mesmo! — cobrou, como se lembrasse uma regra estabelecida ao
amigo. — A gente vem de carro, e quem estiver dirigindo leva as meninas
em casa.
Olivia semicerrou os olhos, encarando Nathan com descrédito.
— Eu nem faço parte do grupo — avisei, tentando puxar meu pulso de
volta.
— Faz sim! — Olie quase gritou, voltando o olhar para mim. — Eu
demorei mais de um ano a te convencer a sair com a gente. Vocês três são
minhas melhores amigas e eu tenho certeza de que você precisa estar neste
grupo! — A morena baixinha ergueu o corpo apontando o dedo na cara de
Nathan. — Qual o seu problema?
Nathan olhou para mim mais uma vez, como se buscasse alguma
resposta. Deixei que meus olhos reparassem no quanto seu semblante estava
fechado e seu corpo tenso; os braços cruzados numa pose carrancuda, quase
me fazendo querer reparar nas tatuagens que escapavam pela manga da
blusa e desciam até seu cotovelo esquerdo.
Ele era um cara sério.
Sério demais.
Resiliente, o vi acenar levemente com a cabeça, concordando com Ethan.
— Sem tempestade por pouca merda. Vamos logo que estou a fim de
dormir.
As meninas o seguiram para dentro do estacionamento adjacente ao
Republic, e uma a uma, se acomodaram nos bancos do carro dele. Entrei no
único espaço vago, o banco atrás do motorista, sentindo meu coração
disparar ao notar que podia facilmente ver seu rosto pelo espelho retrovisor.
Sua feição era um misto de irritação e descontentamento, o semblante
fechado e a testa quase mantendo os vincos permanentes. Em alguns
momentos, parecia que ele discutia internamente com ele próprio,
balançando levemente a cabeça em negação ou deixando seus lábios se
curvarem em um sorriso triste no canto da boca.
Karol e Evie seguraram minhas mãos, me lançando olhares acolhedores
no percurso para casa, mas os minutos dentro daquele carro seguiram sendo
os mais constrangedores da minha vida. Nathan deixou Olie em casa
primeiro, e perguntou onde me deixaria, mas Evie se intrometeu dizendo ser
mais fácil ele deixá-las primeiro, já que era o caminho mais próximo.
Contrariado, Nathan deixou as meninas no prédio onde dividiam
apartamento.
Assim como minha decisão de sair com Olie e os amigos foi inesperada
e do nada, ficar sozinha naquele espaço com ele também aconteceu do
nada.
— Onde deixo você? — perguntou.
Seus olhos encontraram os meus pelo retrovisor do carro e um arrepio
me subiu pela espinha.
— Sabe onde fica a mansão Vittorino? — minha voz quase não saiu.
— Mansão Vittorino? Você é uma Vittorino? — Seu sorriso irônico
aumentou e sua voz saiu carregada de sarcasmo. — Eu não podia esperar
outra coisa de você.
— Qual seu problema comigo? — as palavras saíram antes mesmo de
pensá-las.
Mesmo sentada atrás do banco do motorista, consegui ver quando seus
dedos cumpridos apertaram com mais força o volante, fazendo com que os
nós ficassem brancos.
— Sério que você está me perguntando isso? — Seu sorriso sarcástico
pelo retrovisor me dava medo.
— Sério, cara, eu nem conheço você — rebati irritada com a ironia e a
grosseria dele. — Não faço ideia do que fiz para você me odiar sem nem
me conhecer.
— Você tem toda razão, cara! Você nem me conhece.
— Quer saber? — Saí do carro batendo a porta com força. — Eu vou
pedir um Uber aqui e vou para casa. Pode ir.
Por um segundo, pensei que se ele fosse mesmo o cara amigo e incrível
que Olívia descrevia quando falava deles, jamais me deixaria ali, sozinha
àquela hora da noite. As meninas já tinham sumido porta adentro do prédio
e aquela rua era deserta o suficiente para esperar que fosse totalmente
segura.
— Você quem sabe! — Nathan me lançou mais um olhar de escárnio
antes de partir com o carro.
Olhei em choque o carro se afastando até sumir no declive lá adiante.
Ele tinha mesmo me deixado sozinha àquela hora da noite, em uma rua
totalmente deserta e escura.
12 de janeiro de 2019
Eu estava errado, eu sabia. Só tinha uma coisa que deixava Ethan e
Tommy putos de verdade comigo, e era pegar nossas clientes. Chegamos a
esse acordo porque sempre acontecia o mesmo; nenhum de nós queria se
envolver, mas elas sim.
— Eu te avisei — Ethan reclamou quando o busquei em casa à noite e
contei sobre a aventura do dia.
— Estou cansando de saber o que vocês acham — expliquei de novo. —
Não fiz por mal, quando vi já tinha rolado.
Patrícia era uma mulher envolvente e bem convincente. Quando saí da
empresa com ela para almoçar, estava convencido de que não teria nenhum
problema. Era só sexo, afinal. Mas acho que estava totalmente errado,
porque quando a deixei em casa ao fim da tarde, a mulher já estava me
cobrando um próximo encontro.
— Você não é mais um moleque de quinze anos, cara. Não dá para
deixar rolar e pronto.
— Não vai mais acontecer… juro! — Eu realmente precisava tomar
cuidado com isso. A empresa era a única coisa que funcionava bem na
minha vida, e não dava para arriscar perder a credibilidade por tão pouco.
— O Tommy pediu para pegar ele na App.
Desviei o caminho para nossa empresa. A AppCorporation.
Nós três nos conhecemos ainda nos primeiros anos da escola, e ficamos
amigos logo de cara. Nós gostávamos das mesmas coisas, curtíamos os
mesmos desenhos, os mesmos vídeo games e adorávamos tecnologia. Foi
assim que fomos parar na mesma universidade e decidimos abrir nossa
empresa.
Eles eram os caras que estiveram comigo em todos os momentos da
minha vida, bons ou ruins; se é que existiram bons.
Ethan sempre estava presente para ouvir e tinha tanta responsabilidade,
que talvez Thommas e eu tenhamos nos aproveitado disso para nos livrar de
vez de qualquer juízo que pudéssemos ter.
— Ele ainda está trabalhando? — perguntei ao verificar o horário no
relógio do carro. Já passava das 20:00h.
— Tommy está fazendo suspense de algum contato de empresa grande
que recebemos, disse que só vai falar depois que tudo estiver certo.
— Empresa grande? De fora da cidade? — perguntei confuso.
As maiores empresas da cidade já usavam softwares1 consolidados no
mercado. Eram contratos difíceis de conseguir, mas Tommy sempre
surpreendia com os contatos que arrumava.
— Se você convencer Tommy a falar…
Estacionei em frente ao prédio em que mantínhamos a empresa, puxando
o celular no descanso ao lado do banco para avisar que chegamos.
22 de fevereiro de 2019
— Liah, me deixa ajudar? — Triss pediu pela décima vez.
— Triss, eu não posso — sorri para o seu descontentamento. — Está
cheio de gente da assistência social aqui hoje. Não posso colocar uma
jovem para trabalhar.
Triss era uma adolescente de dezesseis anos. A conheci em uma das
minhas ações em um abrigo do Estado que pegou fogo recentemente, e
consegui puxá-la para uma das vagas na ONG. Foi uma das minhas maiores
realizações, pois éramos realmente apegadas, e embora a ONG ainda não
estivesse efetivamente funcionando, tive permissão para abrigá-la devido ao
incêndio.
Não era segredo que eu havia tentado um processo de adoção dela,
quando ainda estava nesse abrigo do Estado, mas o processo foi negado sem
muita explicação por duas vezes. Diziam que eu ainda era nova demais ou
que o ideal seria a adoção por um casal. A verdade é que queriam que eu
desse grana para ganhar o processo, e em algum momento, cheguei a
considerar a possibilidade.
— Odeio ficar sem o que fazer. As aulas começam quando? —
perguntou irritada.
— Acredito que no início de março, vai depender das autorizações
dessas vistorias. — Bufei irritada e largada em uma das cadeiras
amontoadas no que seria meu escritório. — Hoje é praticamente o primeiro
dia de operação da ONG e tem gente demais aqui.
Assim que vi os corredores lotados de repórteres da mídia local e os
assistentes sociais que vistoriavam tudo, me tranquei na sala cheia de medo
de algo dar errado. Olívia lidava com toda aquela atenção melhor que eu,
então deixei o trabalho para ela. No entanto, Triss, que rodeava a gente pelo
corredor, logo percebeu meu incômodo e veio atrás de mim.
— Tinham dois caras muito gatos lá na porta com a Olie quando vim
para cá — a garota soltou um risinho nervoso. — Eles são voluntários?
— Triss! — a repreendi, olhando seu sorriso travesso. — Eles são Ethan
e Thommas, nossos amigos, e tem quase o dobro da sua idade, mocinha.
— Pode ficar tranquila que ainda não me interesso por caras velhos —
brincou.
— É bom mesmo, Triss! — respondi rindo. — Tudo que não preciso é
de um processo administrativo por conduta indevida dos meus voluntários
agora.
Uma batida na porta chamou nossa atenção. Olie enfiou a cabeça na sala,
conferindo se estava ali e logo entrou seguida por Ethan, Tommy, Karol e
Evie.
— Oi, Triss.
— Oi, Olie. — Triss encarou os outros quatro com ela. — Vocês também
vão voluntariar? — perguntou a eles.
— Se essas duas chatas deixarem — Ethan respondeu, reclamando das
nossas restrições.
Desde que souberam da ONG, eles tentavam de tudo para ajudar com
trabalho ou dinheiro. Mas, felizmente, a gente já tinha voluntários
suficientes e dinheiro de sobra.
— E quem é você? — Karol perguntou a ela, enquanto se acomodava
sobre a mesa de madeira.
— Sou Beatriss Stacy, mas podem me chamar de Triss — a menina se
apresentou toda orgulhosa a eles. — Vou morar aqui na ONG — completou.
— A Triss veio de um abrigo do Estado que eu já voluntariei — contei a
eles. — É uma das meninas mais inteligentes que já conheci. Inclusive, ela
gosta de programar.
Triss gostava muito de tecnologia. A menina tinha dezesseis anos e já
tinha alguns jogos em algumas lojas de aplicativos online. Lembro de como
me impressionei com a inteligência dela quando a conheci.
— Sério? A gente tem uma empresa de tecnologia — Tommy contou
enquanto se encostava na parede.
— Quero estudar Sistemas de Informação quando sair — Triss contou
empolgada.
A menina engatou uma conversa animada com Tommy e Ethan enquanto
eu voltava a prestar atenção no que as garotas conversavam.
— … não aguento mais o humor dele… hoje quase o mandei se foder na
frente dos funcionários — Karol terminou de falar irritada.
— Deixa eu adivinhar: Nathan? — Embora tenha soado como uma
pergunta, era claro que eu estava certa.
— Sério, Liah. Ele está com o humor cada dia pior. Estou quase pedindo
uma intervenção a Mia ou Olívia.
— Intervenção?
Olívia e Karol se olharam, rindo de alguma piada interna delas.
— Mia e Olie são as únicas pessoas que conseguem colocar o Nathan na
linha de volta — explicou.
— Que bom que alguém consegue isso. — Levantei da cadeira indo até
o filtro de água instalado na parede, ao lado porta. — Seria pior se ele não
escutasse ninguém, não é? Ainda não entendo como a Olie sempre falou
bem dele para mim. — Sabia que tinha soado como deboche no momento
em que Olie me olhou com a cara fechada.
— Para de implicar com ele, Liah — defendeu o amigo. — Vocês se
viram uma única vez. Daqui a uns dias esse humor ruim dele passa, você
vai ver.
Embora todos eles sempre justificassem sua grosseria com os problemas
pelos quais passou, era muito claro que Nathan simplesmente não gostava
de mim. Não precisava vê-lo mais uma vez para ter certeza disso. Tinha o
jeito como me tratou na noite em que nos conhecemos e o fato de que
sempre fugia deles quando eu estava junto.
Agradeci quando Ethan apareceu perto da gente, me puxando para um
canto da sala enquanto procurava Tommy e Triss com os olhos.
— Liah, eu estava pensando numa coisa. A Triss gosta de tecnologia, e é
muito inteligente. A gente podia levar alguns jovens para estagiar na App —
propôs baixinho para que a menina não ouvisse.
— Ethan, é uma ideia incrível! — eu estaria realmente animada com sua
proposta se não fosse por um único motivo complicado. — Mas você não
acha que o Nathan poderia se opor a isso? — minha voz soou receosa, com
medo de como ele poderia interpretar minha desconfiança com o amigo,
afinal, era sempre assim que Olie recebia meus incômodos com ele.
Ethan apertou os olhos em minha direção, me recriminando
silenciosamente pela iniciativa de crítica.
— Ele nunca se oporia. Por maior que seja o motivo dele para te odiar,
ele nunca descontaria isso privando a nossa empresa de ajudar.
— Ok! Não está mais aqui quem falou — reclamei, levantando as mãos
em sinal de rendição. — Mas só para deixar claro, Nathan não tem motivo
nenhum para me odiar, além de ser um grande idiota.
— E qual o seu motivo para odiá-lo? — Ethan me olhou desconfiado.
Tive dificuldade em entender seu olhar atravessado e escrutinador naquele
momento.
— Eu não odeio ninguém, odiar é uma palavra muito forte. Eu não gosto
dele porque ele nunca se importou em ser, ao menos, educado comigo. Mas
eu não me importo nem um pouco com ele, ainda mais para dizer que o
odeio — reclamei, mesmo sabendo que algo no meu âmago me alertava o
tempo inteiro que eu me incomodava, sim, com a forma que me tratou.
— Tudo bem, Liah! O assunto Nathan nunca deveria ter sido abordado
nessa conversa — Ethan exalou, relaxando o corpo enquanto passava um
braço pelos meus ombros, me abraçando. — Vou conversar com meus
sócios e talvez a gente marque uma reunião para ver como seria o trâmite
de ter um jovem em poder do Estado como estagiário na empresa. Vamos
fazer isso acontecer.
— Nem sei como agradecer por isso. Mesmo que seja só uma tentativa,
Ethan.
— Tem mais uma coisa. O que acha de montarmos uma grade de cursos
de tecnologia para oferecer aqui?
— Isso é sério? — perguntei surpresa.
— Claro. Eu e Tommy falamos disso semana passada, quando contaram
da ONG. A Triss só deixou a gente ainda mais empolgado.
Sorrindo, voltei a abraçar Ethan. Ele estava se tornando um grande
amigo e apoiador do meu trabalho. Eu podia entender o motivo dele mexer
tanto com Olie.
06 de março de 2019
Olhei uma última vez meu reflexo no espelho; a roupa de hoje era um
vestido azul soltinho, com detalhes pretos. A cor ajudava no astral alegre
que estava desde cedo, comemorando a abertura oficial do projeto depois de
recebermos a última confirmação de vistoria.
O grupo todo ia para o Republic hoje. Mais cedo, Olívia tinha me
perguntado se eu me oporia aos meninos levarem Nathan para lá. Eu sabia
que era um momento tão importante para ela quanto era para mim. Por isso
não me opus. No entanto, duvidava muito que ele aparecesse por lá,
sabendo que eu estaria presente. Ainda tinha a sensação de que ele me
odiava, e eu realmente queria tirar aquela história a limpo.
— Vovó! — gritei enquanto descia as escadas da mansão. — Estou
saindo.
Dona Sylvia apareceu na porta da cozinha, vestida em seu roupão de
seda, me olhando sorrateira.
— Posso saber aonde vai toda arrumadinha? — perguntou sorrindo.
— Vou a um barzinho no Centro, encontrar Olívia e as meninas. Vamos
comemorar a abertura oficial da ONG.
Fui até ela, deixando um beijo estalado em seu rosto antes de ir para a
cozinha e abrir a geladeira para pegar a jarra de água.
— Olívia não aparece aqui tem tempo — reclamou, vindo atrás de mim.
Vovó conhecia Olívia desde quando começou a trabalhar comigo, anos
atrás. Aquelas duas juntas conseguiam causar dor de cabeça em qualquer
um. Viviam confabulando para me arrumar algum romance e me tirar de
casa aos fins de semana à noite.
— Ela estava ocupada com a ONG também, mas vou avisar que está
com saudades — falei, dando outro beijo nela enquanto me dirigia para a
porta de saída.
— Amanhã quero falar com você sobre a porcaria daquele sistema velho
das lojas — avisou da cozinha.
— Está bem! — respondi, já saindo de casa.
Ainda não entendia a necessidade dela mexer na estrutura dos negócios
quando pretendia vender tudo. O trabalho em excesso que eu tinha, não me
deixava dar a atenção devida aos negócios dela, então vovó decidiu vender
o clube e as lojas, mas enquanto isso não acontecia, ela continuava me
levando a loucura com as ideias insanas que tinha diariamente.
Quando cheguei ao Republic, quase uma hora depois, as meninas já
tinham se instalado em uma mesa perto das janelas.
— Ei, Liah! — Karol e Evie vieram me abraçar. — Estamos tão felizes
que deu tudo certo.
— Nem fala, estou sonhando acordada com isso — suspirei feliz.
— Ethan e Tommy já devem estar chegando, passaram para buscar
Nathan — Olie comentou quando me sentei ao seu lado.
— Sério que ele parou de fugir? Será que vai me explicar o motivo da
grosseria da outra noite?
— Liah, hoje faz três anos do acidente dele. Evita esse confronto, por
favor! — pediu triste.
Encarei Olívia espantada. Acidente? Aquela informação era nova para
mim.
— Ele sofreu um acidente?
— Nathan passou por coisas complicadas — contou num tom muito
triste. — Ficou em coma induzido quase um mês. Todo mundo achou que
ele não fosse sobreviver, mas foi maravilhoso quando ele começou a se
recuperar. Ele sempre fica mal nessa época do ano.
— Eu não sabia disso, Olie. Desculpa se fui insensível, juro que não vou
confrontá-lo hoje — prometi sincera.
— Só vamos aproveitar a noite juntas — pediu, me puxando para a pista
de dança.
Quando voltamos para a mesa, os meninos já tinham chegado. Ethan e
Tommy nos abraçaram sorrindo e nos dando os parabéns pelo início oficial
do projeto. Nathan falou com Olie cheio de sorrisos e abraços e como
esperado, fingiu que eu não existia. Eu realmente gostaria de entender o
problema dele comigo, mas havia prometido a Olívia que não o
confrontaria hoje.
Quando me dirigi ao balcão para pegar uma longneck de heineken, foi
inevitável encarar o cara alto encostado na pilastra afastada da mesa,
conversando com Ethan. Fiquei pensando no tal acidente, curiosa para saber
o que havia acontecido com ele para deixá-lo tão fechado e antipático
daquela forma.
Na volta para a mesa, meu olhar cruzou com o dele o no mesmo instante
Nathan fechou a cara, irritado pela minha escrutinação. Dei de ombros e
voltei a encostar na janela, conversando e bebendo com as meninas.
Existia alguma coisa irritante que puxava meus olhos a todo momento na
direção que os meninos conversavam. Mamãe sempre me disse, antes de
morrer, que minha curiosidade sobre as pessoas ainda me traria sérios
problemas um dia.
Ela não podia estar mais certa.
E minha curiosidade ficava mais intensa a cada segundo.
As horas passaram e Ethan e Tommy voltaram para a mesa, brincando e
conversando com a gente. Nathan permaneceu sozinho ao lado da pilastra,
de costas para a mesa, até que um cara parou ao seu lado. Era gato, tinha a
pele negra e era só um pouco mais baixo que Nathan. Os dois conversaram
um pouco e logo depois o cara veio para onde a gente estava, deixando o
outro sozinho de novo.
— Ei, Olívia, quanto tempo! — o cara se aproximou, abraçando minha
amiga.
— Gabe! — Olie sorriu ao vê-lo. — Tinha tempo que não te via por
aqui.
Atenta, percebi o rosto de Ethan corar e desviar o olhar irritado quando
Olie abraçou o cara cheia de intimidade. Pelo visto, não era só Olívia que
tinha uma queda pelo amigo.
O tal Gabe cumprimentou todo mundo na mesa antes de seguir até a
janela, onde eu conversava com Karol.
— Ei, Karol, me apresenta sua amiga? — pediu me olhando de cima a
baixo.
— Essa é a Liah… Liah esse é o Gabriel… — Karol revirou os olhos
para ele. — E sua sorte é que ela gosta de homem.
— Isso deveria ser ruim? — Gabriel brincou, arrancando um sorriso
dela. — Prazer, Liah.
— Oi, Gabriel — respondi tímida.
— Pode me chamar de Gabe — ele pediu, fazendo uma careta pelo nome
completo.
Pela próxima hora, ele engatou numa conversa divertida e descontraída
com a gente. Gabe parecia uma cara legal, ao menos. Aquela conversa
bastou para tirar meu foco da curiosidade sobre Nathan e o tal acidente,
embora em alguns momentos meus olhos continuassem fugindo para onde
ele estava.
Quando Gabe foi embora, percebi um padrão de divisão entre nossos
amigos. Nathan e eu nunca ocupamos o mesmo metro quadrado naquele
bar. Ele mantinha uma distância considerável de mim e eu evitava me
aproximar.
Nossos amigos, percebendo o padrão de distanciamento, se revesavam
entre grupos que conversavam comigo, e em outro momento, com ele.
A verdade é que aquele tratamento dele me incomodava. Nunca, em toda
minha vida, encontrei alguém que não gostasse de mim simplesmente ao
me olhar uma única vez.
Ainda não conseguia entender o que fiz e o que eu despertava nele para
que me odiasse daquela forma. Olívia insistia em dizer que era coisa da
minha cabeça, mas só eu sabia o jeito que ele me olhou na outra noite.
Mesmo pelo retrovisor, eu podia sentir seu pesar e sua repulsa por estar
naquele carro comigo.
— Está tudo bem? — Evie perguntou ao me flagrar encarando por tempo
demais o cara sentado na mesa, conversando com Olívia.
— Acho que sim. Vai ser sempre assim, Evie? — questionei apontando
com a cabeça para onde eles estavam. — O pior é que nem tenho o direito
de tentar entender o que fiz de errado. Me sinto uma intrusa no meio de
vocês.
Evie suspirou, me lançando um olhar compreensivo.
— Deixa isso para lá. E todo mundo aqui gosta de você. — Arqueei uma
sobrancelha em sua direção. — Está bem! Quase todo mundo — respondeu
rindo. — Olívia nunca deixaria você sair desse grupo agora.
Era verdade. Olie passou mais de um ano tentando me convencer a sair
com eles, e quando finalmente aconteceu, eu sabia que realmente precisava
daquilo. Me sentia vivendo de novo, depois de tanto tempo.
— E você? — Troquei o assunto, cheia de pensar na mesma coisa. —
Empolgada para assumir a diretoria da Consultoria?
— Minhã mãe está surtada — contou satisfeita. — Ela não consegue
acreditar que você se recusou a atender a ligação dela. E eu ainda recusei a
festa de aniversário ridícula que ela queria fazer para mim. Então, já sabe,
não é?! A mulher está surtada.
Evie tinha me avisado do risco da mãe interferir na contratação dela, por
isso, no dia que me ligou, simplesmente mandei dizer que não estava. A
questão é que a mãe dela era Emília Sanders, dona da fábrica de tecido mais
importante do Estado.
— Falei que isso não ia colar comigo. Mas da próxima vez, atendo a
ligação só para dizer que vou te contratar mesmo assim.
A garota riu abertamente enquanto saía em direção a Karol no balcão do
outro lado. Olívia ainda conversava com Nathan na mesa, Ethan e Tommy
estavam desaparecidos desde que Gabe se juntou com a gente.
Pela primeira vez na noite, eu estava sozinha. Mesmo assim, eu
começava a me sentir totalmente aceita por eles, me sentia parte daquele
grupo, mesmo que uma peça não me aceitasse muito bem.
06 de março de 2019
As coisas mudaram drasticamente na minha vida nos últimos anos.
Todos que me conheciam sabiam que os meus esforços foram todos
direcionados à AppCorporation. Todo aquele meu nível de exigência fazia
com que a empresa caminhasse bem, pelo menos.
Mas era o único ponto da minha vida que ia bem.
Ethan estava puto comigo porque Olie estava puta comigo. Era tão
ridículo eles não enxergarem o que rolava entre eles. Tommy, Karol e Evie
até tentavam ficar ao meu lado, mas era difícil quando eu não permitia que
eles se aproximassem.
Fazia três anos hoje.
Três anos que tudo aconteceu.
Três anos com as crises de ansiedade e acesso de raiva.
Tia Sophia me ligou pela manhã e eu não atendi. Sabia que não
adiantaria mentir, por mais que eu sempre dissesse estar bem, ela sabia que
era mentira.
Tinham muitas mensagens no meu celular, de Tommy, Karol, e mesmo
puto, Ethan também havia enviado. Eles queriam saber como eu estava,
mas eu não tinha vontade de responder nenhuma delas.
Eu já tinha lidado com muita merda na vida, e superei cada uma delas,
mas aquilo era diferente de tudo.
No início de 2016, quando Camille foi embora, o cara inocente e bobo
que eu era partiu junto. O sexo, o desapego, a bebida; essas foram as coisas
que se tornaram minha válvula de escape.
Depois de um tempo, percebi que estava magoando as únicas pessoas
que sempre tiveram ao meu lado na vida, e resolvi tomar meu controle de
volta. Não foi fácil, e até hoje não tenho certeza de que tenho cem por cento
dele. As crises apareciam com menos frequência, mas em dias como hoje,
preferia ficar em casa e não correr riscos.
— Nathan, você precisa parar! — Tommy pediu irritado ao atravessar a
porta do meu loft. Olhei para o relógio digital no canto inferior direito da
tela; 20:37h. — Está tarde, encerra por hoje.
— Comecei a trabalhar tarde hoje — justifiquei, esperando que fosse
suficiente para ele ir embora e me deixar quieto. — E minha cabeça está
funcionando bem. Acho que nunca escrevi tantas linhas de código num
único dia.
Tommy sentou-se no sofá ao meu lado, fechando a tela do meu laptop.
— Você só está transferindo sua frustração. Chega por hoje!
— Meu porteiro precisa parar de deixar vocês subirem — reclamei,
apoiando o rosto em minhas mãos e suspirando exasperado. — Tommy, é
melhor se eu não pensar nisso tudo.
— Você precisa se curar disso. Fugir não te levou em lugar nenhum nos
últimos três anos.
— O que você espera que eu faça? — perguntei irritado, encarando seu
rosto cansado.
— Reage, porra! — Tommy gritou, abrindo os braços. — Você só tem
vinte e sete anos, tem muita vida pela frente. Você ainda pode se casar, ter
filhos, ser feliz com alguém.
Senti o sorriso irônico habitual nascer em meus lábios. Casar? Ter
filhos? Aquilo definitivamente não era para mim. Não fazia parte do meu
histórico de vida.
— Nathan, você precisa reagir. — Tommy levantou-se irritado,
carregando meu laptop, numa tentativa insana de me fazer parar de
trabalhar. — A gente está há três anos vendo você se afundar cada vez mais
nesse luto. Ninguém aguenta mais te ver assim. Sophia sofre todos os dias
por você e até Mia tem me ligado para saber como você está.
Recostei as costas na poltrona macia, jogando o pescoço para trás.
Deixei o peso dos últimos três anos subir à superfície e precisei segurar as
lágrimas pesadas que insistam em querer sair.
— Eu estou perdido, Tommy, não sei nem por onde começar a fazer isso
— assumi.
— O que está acontecendo aqui? — Ethan apareceu, atravessando a
porta de entrada.
Pronto, minha desgraça era total agora.
— A gente precisa fazer ele reagir — Tommy declarou para Ethan. —
Não aguento mais vê-lo assim.
— Sabe como ele vai reagir? — a voz cortante de Ethan denunciava que
ainda estava puto comigo. — Ele vai sair para algum lugar de merda, pegar
a primeira mulher que ver pela frente, encher a cara e acordar de ressaca
amanhã.
— Não fode, Ethan! — reclamei, movendo o corpo no sofá. — Eu não
faço isso tem tempo.
— Ah, é! Esqueci! Agora você é grosso e descuidado com as meninas e
desconta em quem nem conhece.
— Você não tem o hábito de ser irônico. Está trocando de personalidade
com o Tommy agora? — acusei, sentindo suas palavras ácidas me
atingirem. — Nunca fui grosso e descuidado com elas.
Ethan apoiou o indicador no queixo, me olhando pensativo, como se
tentasse se lembrar de algo.
— Engraçado, podia jurar que você deixou Liah na porra de uma rua
escura e deserta no meio da madrugada, sabe lá Deus o porquê.
Eu não queria lidar com toda a merda dela agora e contar a verdade para
todo mundo só ia piorar as coisas. Lianah era amiga de Olivia, e esteve com
ela durante um tempo que eu não era mais próximo de Olie. Aquela garota
supriu a minha presença. Minha amizade com Olie era muito forte, quase
tão forte quanto o próprio vínculo que tinha com os caras, mas quando
estava vivendo toda a merda que aconteceu, me afastei de todo mundo.
Olivia precisava de alguém; ela odiava não ter com quem conversar ou
desabafar, e foi Lianah quem cumpriu esse papel quando eu estava fora de
mim.
Em um estalo mental, percebi que essa poderia ser a desculpa perfeita.
— Acho que eu me precipitei — falei receoso. — Pode parecer ridículo,
mas talvez eu tenha sentido ciúme de Olie ter uma nova amiga, mais
presente que eu.
— Você? Com ciúme da Olivia? — a voz de Ethan soou desacreditada.
— Vocês venceram — declarei irritado. — Vou para a cama dormir.
— Não vai, não! — Tommy segurou meu braço quando tentei passar por
eles. — Vai com a gente para o Republic.
— Hoje é quarta. — Ergui uma sobrancelha para ele, como se fosse
óbvio o fato de que temos que trabalhar amanhã.
Ethan sorriu, claramente feliz em me desestabilizar.
— Liah e Olie conseguiram as licenças e aprovações para colocar a
ONG para funcionar. Saiu hoje, e elas resolveram comemorar.
— ONG? — perguntei confuso.
— Pois é. Quanto tempo tem que você não fala com Olivia? — Ethan
debochou.
Pensei por um segundo, e percebi que não falava com Olie desde o dia
que nos encontramos no bar.
— Vai ou não? — Ethan perguntou impaciente.
— Não vou dirigir — avisei antecipadamente, até porque havia passado
o dia bebendo.
— Não vou deixar você encher a cara hoje — Tommy me repreendeu
ácido.
— Eu não vou. Preciso só tomar um banho — avisei, subindo correndo
as escadas até meu quarto.
Vinte minutos depois, quando desci arrumado, Ethan e Thommas ainda
estavam sentados no meu sofá, conversando.
— Vamos?
— Já falou com sua tia ou Mia hoje? — Tommy perguntou quando
saímos do loft. — Elas passaram o dia atrás da gente.
— Só estou falando com vocês porque se intrometeram vindo até aqui.
— E era verdade, se eles não aparecessem, eu passaria o dia quieto na
minha, sem dar nenhum sinal de vida.
Apertei o botão do elevador, impaciente ao ver que ainda estava no
segundo andar.
— Olie não perdoaria você se não aparecesse lá hoje — Ethan interveio,
explicando os motivos deles terem vindo.
— E você se doeria porque ela ficou chateada, não é? — provoquei,
apertando o botão novamente.
— Vai se foder, Nathan! — Ethan disse exasperado, embora estivesse
sorrindo pela provocação.
Apertei o botão outra vez, irritado pela demora do elevador.
— Se apertar mais de uma vez, chega mais rápido mesmo — ri, sabendo
o quanto Ethan se irritava com essa minha mania.
Por algum motivo, saber que eles sempre me resgatavam quando o fundo
do poço era mais sombrio, me deixava mais tranquilo. Eles ainda não
haviam desistido de mim.
09 de março de 2019
O olhar que encontrei quando atravessei a porta de entrada da casa onde
vivi por toda minha infância e adolescência, era exatamente o que eu sabia
que ia encontrar: a recriminação estampada no rosto de Tia Sophia, me
repreendendo por não atender suas ligações e não ter dado notícias minhas
nos últimos dias.
— Oi, seu desnaturado! — tia Sophia me abraçou.
— Oi, Tia!
Tia Soph me olhou feio ao sentir o cheiro no meu pescoço.
— Nathan Petterson. Você está com cheiro de álcool.
Eu não havia enchido a cara, mas criei um hábito beber alguns copos de
whisky todos os dias pela manhã.
— Eu não estou bêbado, tia — me defendi.
— Você precisa parar de beber sem motivo — sacudindo a cabeça em
reprovação, a mulher mais velha saiu da cozinha gritando por Mia.
Na sala, vi Mia descer as escadas com um papel em suas mãos. Minha
irmã pulou em cima de mim, me abraçando assim que me viu.
— Que saudade, Nate!
A abracei, vendo-a querer me mostrar, ansiosa, o papel em suas mãos.
Olhei o folheto de propaganda estampado com a foto de umas crianças e o
título bem grande em elegantes letras cursivas 'Recomeços'.
— A Olívia está trabalhando nesse projeto com aquela amiga dela. Você
conhece a ONG, né?
— Sei, a Olie me contou. — Até aqui eu encontrava a porra daquela
mulher.
Isso era um pesadelo.
Lianah Vittorino era uma intrometida do caralho. Pelo visto, se
intrometia onde não era chamada, se intrometia na vida dos outros, se
intrometia entre os amigos alheios e até em famílias alheias.
— A Olie disse que posso ajudar lá. O trabalho não é remunerado, mas é
tão lindo o que elas estão fazendo com aquelas crianças — Mia contou
empolgada.
— Isso é muito nobre — respondi feliz em ver o esforço da minha tia
refletido no caráter da filha, ainda mais depois de uma pré-adolescência tão
rebelde. — Qual é a dessa ONG?
— A Olie não te contou?
— Não no detalhe — contei uma meia mentira.
Olívia passou horas me contando sobre as dificuldades de conseguir
todas as licenças e liberações necessárias e como ela estava feliz em poder
ajudar as crianças, mas tive medo de perguntar mais e acabar voltando para
o assunto que queria evitar.
— Eles resgatam crianças abandonadas das ruas e de outros abrigos,
crianças a partir de cinco anos, com chances de adoção reduzida. É um
projeto bem completo, com escola, cursos profissionalizantes. Elas
conseguiram até parceria para estágio com outras empresas. — Os olhos de
Mia brilhavam.
Talvez a frase da minha vida devesse ser: 'seria cômico, se não fosse tão
dramático'.
Então quer dizer que Lianah dava uma nova oportunidade de vida às
crianças abandonadas? Se isso não era irônico, não sei mais o que era.
— É um projeto e tanto — disse com o pensamento disperso.
Eu precisava evitar qualquer coisa sobre ela. A simples menção de seu
nome, estava sendo suficiente para me levar de volta ao lugar mais sombrio
daquele poço.
— Ia te perguntar se quer ir comigo ao shopping. Queria comprar um
presente para a tia Sophia — mudei o assunto, focando no que havia vindo
fazer aqui.
— Só se você comprar um para mim também. — Mia me lançou aquele
olhar típico de menininha triste.
— Ok. Feito! — ri de sua cara de felicidade ao subir correndo as escadas
para trocar de roupa.
Segui pelo corredor, em direção à sala de costura da Tia Sophia.
— TIA! — gritei.
Entrei no quarto sentindo o cheiro de linha e poeira que atingiu minhas
narinas no mesmo segundo. Torcendo o nariz, incomodado com o cheiro,
me aproximei da máquina onde minha tia estava sentada.
Tia Sophia desenhava e costurava desde que me entendo por gente.
Quando minha mãe me largou com ela, Sophia já tinha sua pequena lojinha
de roupas desenhadas por ela própria. Era dali que ela sempre tirou todo o
nosso sustento.
Houve um período difícil, quando Ralph chegava bêbado e tirava tudo
que podia dela; mas logo Carlton entrou nessa equação e fez tudo melhorar.
— Vou levar Mia comigo ao shopping — avisei, puxando a cadeira da
outra máquina, sentando-me ao seu lado.
— Ela vai abusar de você.
Mia sempre abusava. Mas eu não me importava nem um pouco em
gastar meu dinheiro com ela. Nos últimos anos, a AppCorporation gerou
tanto dinheiro que eu seria incapaz de gastar tudo aquilo sozinho mesmo.
— Como estão as coisas? — Minha tia sempre sabia quando as coisas
não estavam bem. A intensidade de seu olhar deixava isso claro.
— Na mesma — me limitei a responder.
Ela soltou um suspiro descontente com minha resposta evasiva. Eu sabia
que toda vez que me abria com Olie, ela contava como eu estava de verdade
para minha tia, mas eu não podia falar com Olie agora. Talvez devesse
pensar em alguma outra pessoa que pudesse me ouvir.
— Até quando você vai se afundar nesses sentimentos?
— Eu estou bem, tia. De verdade! — afirmei, tentando fazer soar real.
— Você tem ido ao psicólogo? — ela já sabia a resposta. — Você é um
homem extremamente inteligente, e sabe que é para o seu bem.
— Eu sei — suspirei. — Prometo que vou procurar um profissional —
avisei, incluindo uma nota mental de me cobrar para fazer mesmo isso
depois.
No geral, ir ao psicólogo até me fazia algum bem. Mas eu tinha medo de
me abrir e dizer tudo aquilo que eu realmente pensava; isso implicaria em
reviver situações e sentimentos que eu tentava a todo custo manter
afastados de mim.
— Vou ligar para Olie e pedir a ela para te cobrar de fazer isso. — Tia
Sophia me lançou um olhar atravessado.
Se ela ligasse mesmo, não precisaria me preocupar em esquecer a nota
mental.
30 de março de 2019
Como se não bastasse o fardo de passar o mês de março inteiro
remoendo meu passado trágico, ainda tinha a porra do dia do meu
aniversário. Eu nunca gostei de grandes comemorações, mas depois que
tudo aconteceu, isso só ficou pior.
O problema é que Ethan e Tommy jamais deixavam a data passar; Olivia
sempre tentava fazer um grande evento; Evie e Karol apoiavam Olie e,
conscientes do meu desespero, exerciam um terror psicológico gigante
sobre mim.
O dia 30 de março caía exatamente em um sábado este ano. Olivia usou
a pior desculpa de todas ao dizer que não era uma comemoração, era apenas
um encontro casual entre amigos, no bar que a gente sempre ia quase todo
fim de semana.
O pior é que eu já tinha tentado fugir de todo jeito das comemorações
naquele mês. Evie tinha feito aniversário no dia doze, e por sorte foi numa
terça. Aproveitei que ela encontrou Karol e almoçou com a gente durante o
trabalho, para me isentar de qualquer comemoração que tenha rolado no fim
de semana. Mas seria difícil me isentar por hoje.
Tia sophia insistiu a semana inteira para que eu fosse almoçar com ela. A
mulher sabia me comprar da pior maneira possível para mim — e melhor
para ela: com comida. Se tinha uma coisa nesse mundo que eu amava, era a
comida de tia Soph. Mas nunca era só um almoço.
Mia estava confeitando um bolo assim que passei pela porta da frente,
com as mãos no bolso do moletom. Revirei meus olhos, me preparando
psicologicamente para toda a animação dela. Uns anos atrás, apesar de
nunca gostar dessa data pelo remorso do abandono, eu me permitia
participar de toda aquela encenação para ver minha tia e Mia felizes. Mas
hoje eu não conseguia mais enxergar muito sentido na minha vida.
Para que comemorar algo tão sem sentido?
— Sério, Mia? — choraminguei olhando o bolo redondo coberto de
creme de manteiga.
— Por favor, não corta a felicidade da minha mãe hoje — pediu, me
olhando torto. — Ela está feliz demais por você aceitar o convite para
almoçar aqui.
Nos últimos dois anos eu tinha me enfiado em casa e passado o dia
inteiro trancafiado no quarto. Mesmo assim, Olivia sempre dava um jeito de
aparecer a noite com o pessoal e me tirar a pouca paciência que já tinha.
— Onde ela está? — estiquei o pescoço para a sala, procurando algum
sinal da mulher que me criou.
Mia terminou de passar uma espátula no bolo, correndo o dedo por ela
para tirar o excesso de creme.
— Tomando banho — disse lambendo o dedo.
Já que teria que aturar aquilo de qualquer jeito, puxei a tigela com o resto
de confeito, ouvindo Mia resmungar.
— Ah, não, Nate! — Mia me seguiu até a bancada. — É meu.
Tirei duas colheres da gaveta entregando uma a ela.
— Não seja egoísta. É meu aniversário hoje.
— E você nunca gostou disso, mas para fazer chantagem emocional a
data serve, não é?
Mia pegou a colher irritada, mergulhando-a no pote e enfiando uma
quantidade absurda de creme na boca. Não contive uma risada alta,
sacudindo a cabeça em reprovação ao seu exagero, o que fez Mia enfiar os
dedos no pote, esfregando o creme no meu rosto em seguida. Tia Sophia
chegou na cozinha bem na hora, olhando a filha de cara de feia.
— Mia, que coisa feia — ela revirou os olhos para a mãe. — Que bom
que veio, Nate.
Tia Soph me entregou um pano para limpar o rosto e me abraçou por
alguns segundos logo depois, evitando todos aqueles comprimentos e
desejos característicos da data. Ela sempre soube ser compreensiva comigo
de uma forma que ninguém mais sabia.
Após me abraçar, abriu um dos armários da cozinha e pegou um
envelope branco sem identificação, estendendo em minha direção.
Abri o envelope, tirando um cartão postal de dentro. A Torre de Pisa
estampava o papel brilhante.
Era da Itália.
Meu coração perdeu uma batida quando senti minha respiração falhar.
— É da sua mãe — tia Soph avisou, vendo a confusão estampada no
meu rosto. — Chegou ontem pelo correio.
Apesar de não gostar dessas manifestações da mulher que me colocou no
mundo, senti o alívio no mesmo segundo. Não era tão ruim quanto
imaginei.
Olhei o envelope vendo que ainda tinha uma nota de cinquenta dólares
dentro. Deixei escapar uma gargalhada alta, mostrando a nota à minha tia.
Elise, você é insana!
— Que tipo de pessoa ela é? — questionei incrédulo.
— Ela só quis lembrar de você — Sophia defendeu a irmã.
— Me mandando cinquenta dólares, tia? — ergui uma sobrancelha. —
Se ela quisesse mesmo lembrar de mim, teria escrito, pelo menos, meu
nome nessa porcaria de cartão.
Elise não sabia muito sobre minha vida, mas não precisava ser um gênio
para saber que eu não precisava, nem de longe, de cinquenta dólares.
— Vamos esquecer isso e almoçar? — propôs, abrindo o forno na
cozinha.
Um cheiro incrível de lasanha subiu no ar, fazendo meu estômago roncar.
Eu estava com péssimos hábitos alimentares nos últimos meses, ter aceitado
almoçar com eles hoje, foi a melhor coisa que eu podia ter feito.
Mais tarde, quando saí do banho em casa, caía uma chuva torrencial lá
fora. Raios cortavam o céu escurecendo, e trovões altos já podiam ser
escutados. Preocupado com a tempestade e a queda da temperatura, puxei
uma jaqueta grossa do armário.
Ciente de que beberia, pedi um Uber na porta do prédio onde morava. O
aplicativo ficou procurando um carro nas proximidades por alguns minutos,
mas pela chuva exagerada, não encontrou nada. Antes que eu pudesse tentar
de novo, meu celular tocou.
— Oi, Tommy.
— Onde você está? Vai furar com a gente logo na comemoração do seu
aniversário?
Bufei. Algo dentro da minha cabeça gritava para que eu ficasse em casa
dormindo hoje.
— Não estou conseguindo Uber. Vou ligar para algum táxi — avisei.
— Me espera aí, está chovendo muito. Vou te buscar.
Desliguei, voltando para dentro da portaria. Esperei Tommy sentado no
sofá do hall de entrada, com minha mente ainda gritando, tentando me
convencer a subir e me trancar no quarto.
Ouvi a buzina de Tommy quando parou o carro em frente ao prédio,
vinte minutos depois. Atravessei a portaria sentindo alguns pingos gelados
atingirem meu rosto. A chuva estava ainda mais forte. Tommy dirigiu bem
abaixo da velocidade da pista, com a chuva impedindo quase toda a visão
da estrada.
Coloquei meus pés no Republic já irritado. Chegamos muito tarde, e
totalmente ensopados pela chuva. Olívia levantou seus braços, acenando
alegremente para que eu os visse assim que entrei no salão mais para dentro
do bar. Era essa a empolgação que queria evitar; meus amigos super dóceis
me desejando coisas que jamais teria.
Para completar minha irritação, Lianah estava entre eles.
Estou dizendo. Intrometida.
— Ao menos, cumprimenta a Liah — Tommy falou baixo ao meu lado,
antes que chegássemos à mesa. — Ela não queria vir, já que é seu
aniversário, mas Olie a arrastou para cá.
— Pelo menos ela tem alguma noção, apesar de intrometida — soltei,
sentindo uma leve cotovelada de Tommy na minha costela.
Apesar das minhas reclamações e ressalvas, todos eles foram muito
discretos. Sem grandes cumprimentos ou desejos falsos. As meninas me
abraçaram evitando qualquer cumprimeto exagerado e Ethan me deu uns
tapinhas nas costas, desejando apenas um feliz aniversário.
Sentei na cadeira livre, na beirada da mesa, vendo Lianah desviar o foco
de mim. Virei para Tommy, que me encarava recriminador. Sacudi a cabeça,
revirando os olhos.
— Oi, Lianah — disse a contra gosto.
— Oi — sua voz soou muito baixa.
Durante o resto da noite, escutei as conversas de Olívia, Ethan e Lianah
sobre a ONG e como estavam empolgados com os projetos que se
iniciariam nos próximos meses.
Apesar de estar incomodado com a teia da garota, que ficava cada vez
maior, prestei atenção em tudo que eles falavam, percebendo o quanto
estava de fora dos acontecimentos da vida deles agora.
Aquele vazio no peito só se intensificou.
Se as coisas estavam ruins, ficaram piores depois que deitei para dormir
aquela noite. Eu havia perdido o controle da minha vida e por algum surto,
achei que tinha recuperado. Mas a verdade é que perdi tudo: o controle,
minha segurança, minha paz e agora ainda estava perdendo meus amigos.
03 de abril de 2019
Ethan me encarou quando os gritos vindos da sala ao lado ficaram mais
altos.
Karol estava tendo alguns problemas com a mãe há algumas semanas, e
estavam ficando mais sérios nos últimos dias. Os pais dela queriam que ela
fosse ao casamento de uma prima e levasse um acompanhante. Eles pediam
essas coisas à filha, mesmo sabendo que ela gostava de mulheres.
O barulho de algo caindo no chão nos chamou atenção. Ethan levantou,
esticando o corpo para fora do corredor, observando o vidro transparente da
sala do outro lado.
— Acho que vou com ela a esse casamento. Quem sabe assim eles não a
deixem em paz.
— Se eles querem insistir em uma mentira, não vejo motivo para não ir
— incentivei.
Karol atravessou a porta da sala de Ethan feito um furacão, apoiando as
mãos na cintura. A garota crispou os lábios, pensando nas palavras que ia
dizer.
— Eu queria ter pais diferentes. Me sinto uma péssima filha dizendo
isso, mas queria que eles não fossem meus pais.
Ethan e eu trocamos um olhar compreensivo. Se tinha uma coisa que
aquele grupo quase todo podia entender, era sobre ter pais complicados ou
simplesmente não ter.
— Posso ir com você a essa casamento — Ethan propôs.
— Nesse caso, vou aceitar sua proposta, porque eles ameaçaram me
deserdar se eu não fosse.
A ruiva largou-se sobre o sofá de couro preto do outro lado,
massageando suas têmporas de olhos fechados.
— Acabou a gritaria?
Tommy também apareceu, questionando Karol sobre a ligação. O loiro
sentou-se ao lado dela no sofá, dando uns tapinhas em sua perna.
— Avisa sua mãe que você vai levar alguém — Ethan sorriu
maliciosamente. — Mas se eu fosse você, a deixava nervosa sobre a
possibilidade de ser uma mulher.
Era uma sugestão e tanto. Podia imaginar a elegante Sarah Carter
surtando ao imaginar a filha aparecendo no casamento, com toda sua
família presente, acompanhada de uma mulher.
— Você também pode levar a Liah — Ethan brincou. — Ela é a única
das meninas que sua mãe não conhece. Seria engraçado brincar com a
cabeça dela.
— Duvido que ela aceitaria isso — afirmei de repente.
— Você é a última pessoa que pode falar isso. Você nem a conhece
direito — Karol reclamou.
Bem, isso era verdade. Mas a curiosidade ainda falava mais forte.
— Ela também gosta de mulheres?
Tommy riu alto, encarando Karol com um olhar malicioso.
— Se ela gostasse, já tinha caído nas investidas de Karoline Carter —
Tommy pareceu lembrar de algo. — Falando em Liah, tenho que falar com
você sobre uma coisa.
Comigo? Eu, definitivamente, não queria falar sobre Lianah.
— O que foi? — perguntei impaciente.
Ethan e Karol soltaram uns risinhos enquanto Tommy me olhou
apreensivo. Parecia que eu era o único que não sabia de algo relevante ali.
— Isso vai ser divertido — ouvi bem quando Karol cochichou com
Ethan.
— Vou direto ao ponto — Tommy sentou-se na cadeira vaga ao meu
lado. — Eu e Ethan aceitamos algumas parcerias da ONG para dar uns
cursos lá. Enfiei um curso de desenvolvimento de jogos no planejamento
que dei a Liah.
Sorri de lado, entendendo exatamente onde ele queria chegar. De nós
três, eu era o único que tinha experiência com desenvolvimento de jogos. E
eu também era, realmente, o único que não sabia de algo relevante.
— E você acha que vou dar um curso na ONG, só por que você montou
um planejamento sem meu consentimento?
Karol soltou uma risadinha e Ethan um assobio baixo. Apertei os olhos
na direção dos dois, vendo suas expressões debochadas aumentarem.
Tommy tirou o celular do bolso, me mostrando algo na tela. Eram fotos
de várias crianças, em idades diferentes.
— Quando você começa a se envolver com algo assim, consegue
entender como qualquer ajuda faz diferença na vida dessas crianças — disse
ainda passando mais fotos em sua galeria. — Imagina o que seria de você,
caso Sophia não tivesse te criado e Carlton aparecido em suas vidas.
Chantagem. Era isso o que ele estava fazendo. E essa era bem pesada.
Esfreguei meu rosto pensativo. Há dois meses eu me via cada vez mais
afastado da vida deles. Todos eles estavam envolvidos naquela teia sem fim,
e eu tinha cada vez menos noção do que acontecia.
Não havia mal nenhum em ajudar, não é?
Ethan e Karol me olhavam em expectativa, aguardando o momento em
que eles sabiam que eu cederia. Tudo relacionado a abandono mexia
comigo de uma forma inexplicável.
— Eu posso, pelo menos, conhecer esse lugar antes? — pedi, sentindo
minhas barreiras sendo derrubadas.
É, Nathan! A porra da teia não tinha mesmo limites.
04 de abril de 2019
05 de abril de 2019
Sabe aquele tipo de coisa que acontece depois de você avisar trinta e sete
mil vezes que vai acontecer? Vovó enfiou na cabeça que queria trocar os
sistemas das lojas o mais rápido possível.
Eu estava com a agenda cheia na sexta-feira, precisei adiar uma reunião
de parcerias da ONG para buscá-la na loja do Centro e levá-la a alguma
reunião que marcou com outra empresa; segundo ela, essa prometia
softwares descomplicados e fáceis para qualquer um operar.
Tentei convencê-la a manter o sistema atual até que vendesse as lojas, já
que ela estava com a decisão tomada. Mas vovó reclamava diariamente
sobre tudo que podia e como queria um sistema fácil de operar e fosse
seguro para ela.
Eu tinha a sensação que ela estava adiando a venda das lojas
propositalmente. Eu precisava pressionar Walter sobre isso e descobrir o
que existia realmente por trás dessa troca de sistema.
— Dona Sylvia, eu espero que a senhora sossegue com essas mudanças
— avisei, entrando na loja.
— Até eu estar pronta para vender minhas lojas e minha marca, tudo
aqui tem que estar adaptado para mim, Liah. Esse sistema não é seguro,
sabia? — reclamou carrancuda enquanto procurava algo no celular. —
Aqui, achei o endereço. — Vovó me estendeu o celular me mostrando o
endereço da empresa do software novo.
— AppCorporation — disse surpresa. — Essa empresa é de uns amigos
meus. Com quem é sua reunião? — perguntei enquanto me apressava em
digitar uma mensagem para Ethan.
— Não tenho ideia, meu amor. — Vovó pegou apressada sua bolsa, me
chamando para irmos.
Uma resposta de Ethan apitou em meu celular na sequência.
Nathan conseguia ser irritante até mesmo quando não estava presente.
Dona Sylvia era uma traíra, isso sim!
Enviei a última mensagem, esperando que fosse suficiente para encerrar
o assunto e larguei o celular sobre a mesinha.
05 de abril de 2019
O Sol atravessou o vidro da janela, iluminando a cama e esquentando
meu rosto.
Passei a noite em claro. Sonhei várias vezes com minha mãe e com o
cemitério. Essas eram lembranças que eu queria arrancar de mim, não
importa o que custasse.
Depois de rolar várias vezes na cama, esperei pacientemente amanhecer
para que pudesse levantar e iniciar meu dia.
Foi o primeiro fim de semana, depois de quase dois meses, que eu
realmente descansei. Fiquei em casa durante todo o sábado e domingo,
recuperando minha energia.
Me olhei no espelho antes de sair do quarto; avaliando o preto em
excesso presente nas minhas roupas. Era uma retratação do meu atual
estado de espírito: quebrado pelas lembranças.
Quando desci para tomar café, Dona Sylvia já estava toda arrumada e,
aparentemente, feliz demais, sentada à mesa.
— Bom dia, Liah! — seu tom meloso e feliz não escondia sua
empolgação.
— Bom dia, vovó. Está feliz assim por quê? — perguntei sentando-me à
mesa.
— Dr. Philipe e eu temos um encontro hoje à noite — contou levando a
xícara de café aos lábios elegantemente.
— Dona Sylvia, não acredito que até a senhora arruma um encontro.
Desse jeito, eu vou virar uma velha encalhada mesmo — brinquei.
— Aquele seu amigo de ontem, como é mesmo o nome? — Vovó coçou
a testa tentando se lembrar. — Ah, sim, Thommas… ele parece um bom
rapaz.
— E é só meu amigo, Dona Sylvia.
— E o outro? Nathaniel, não é? — Pelo olhar sorrateiro da matriarca, eu
sabia que a intenção dela era falar de Nathan desde o início.
Alguns bons anos vivendo com Sylvia, me fizeram conhecê-la como
ninguém. Quando Dona Sylvia Vittorino colocava uma coisa na cabeça, não
haveria argumentos ou provas que tirassem.
— Eu já falei para a senhora ontem que eu e ele não nos damos bem —
avisei.
— Sabia que eu e seu avô vivíamos brigando antes de namorarmos?
— Ok! Chega desse assunto — olhei feio para vovó, esperando que ela
esquecesse essa história louca que criou na cabeça dela.
— Dr. Philipe vai me buscar na loja à tarde, e vamos àquele bistrô na
quinta avenida, tomar um café — vovó avisou batendo palminhas. —
Quando imaginei sair com um médico bonitão quase nos meus setenta?
Dr. Philipe era cardiologista da vovó, e eu já suspeitava dessa interação
extra consultório deles há meses. O único problema era que Philipe sempre
vinha com alguma ideia inovadora e vovó se empolgava. Na última
consulta dela, veio com a maldita ideia de trocar os sistemas da loja.
— Que bom, vovó. Fico feliz por você. Se precisar de qualquer coisa, só
precisa me ligar. Vou estar na ONG o dia todo. — Levantei-me da mesa,
ainda mastigando um pedaço de torrada, com medo de me atrasar para a
reunião com a assistente social.
Antes de sair com o carro, liguei para Olie para ter certeza de que ela
também estava a caminho. A reunião de hoje era para definir se poderíamos
ou não colocar nossos adolescentes em estágios de empresas privadas.
A ONG estava sendo uma das coisas mais comentadas em Greenville e
nas cidades vizinhas nos últimos meses. Programas de TV, jornais locais, e
diversos jornalistas pediam horários para entrevistas e filmagens. O projeto
havia tomado uma proporção gigantesca em pouco tempo.
Ao chegar na ONG, Olie me apresentou a assistente social que havia
chegado quase junto comigo. Joanna era uma mulher elegante que parecia
ter seus cinquenta anos, com a pele negra e grandes olhos marrons. No
pouco tempo que conversamos antes da reunião com sua equipe, pareceu
uma mulher muito acolhedora e simpática. A última coisa que precisávamos
era de uma assistente social carrasca.
— Bem, Liah, o projeto de vocês é uma coisa incrível. Fazia tempo que
não víamos nada assim — Joanna comentou, sentando-se à mesa de reunião
na sala de conferências. — Mas preciso perguntar, é um projeto caro. Essa
ONG requer recursos que talvez sejam complicados de levantar somente
com parcerias e doações. Você está disposta mesmo a investir nisso aqui
pelo resto da vida?
— Joanna, eu não tenho dúvidas sobre isso. Minha família possui mais
dinheiro do que possa imaginar investido. O suficiente para que gerações
possam viver sem nunca pensar em ganhar um centavo a mais sequer —
ponderei, sabendo que esse também era o desejo de vovó.
— Nesse caso, eu não vejo motivo para não confiar no sistema de
estágio que querem implantar. Eu só preciso que vocês me apresentem
formalmente um plano com empresas e diretrizes. E claro, que todas as
empresas assinem um termo de compromisso com cláusulas básicas de
segurança com vocês. Por medida de precaução, todas que forem participar
desse programa, precisam ser aprovadas previamente por mim após uma
reunião com a Administração delas.
— Isso é ótimo, Joanna! — Olie respondeu animada. — Claro que temos
esse plano, e está pronto, inclusive. Podemos te enviar por e-mail o projeto.
Sobre as empresas, já temos algumas parcerias e em breve agendaremos
algumas reuniões.
— Bem, meninas, é isso — Joanna sorriu, parecendo satisfeita com a
conversa. — Espero que meu trabalho aqui possa ajudá-las.
— Ficamos felizes por ser você — sorri de volta, feliz em saber que
estávamos recebendo alguma atenção.
Assim que Joanna foi embora, Olívia e eu nos olhamos aliviadas pela
aceitação inicial da mulher.
— A gente podia avisar ao Ethan para marcar logo a reunião com a
Joanna. A AppCorporation deveria ser nossa primeira parceira. Os meninos
iam ficar super felizes.
— Tem razão. Você quer falar com ele? — perguntei.
— A Triss vai ficar super empolgada. O Tommy abriu o bocão para ela
sobre a possibilidade do estágio.
Aquela era uma grande preocupação. Eu estava envolvida a tempo
demais nesses projetos para saber as desvantagens de se criar expectativas
naquelas crianças, mas todos eles eram iniciantes nesse mundo. E eu sabia
bem como era ser iniciante. Normalmente, toda pessoa que se envolvia com
isso, tentava abraçar o mundo logo de cara.
Mesmo sabendo de tudo isso, eu tinha me apegado.
Triss tinha uma personalidade única, e eu realmente a considerava como
alguém da minha família, ainda que nunca tivessem me concedido a guarda
dela.
Precisava aproveitar e conversar com Joanna sobre isso, talvez já fosse
tempo de tentar de novo.
15 de abril de 2019
17 de abril de 2019
— Nathan, estou falando sério — Ethan reclamou pela décima vez em
uma hora. — A gente precisa de uma agenda urgente para marcar a reunião
com a assistente social da ONG.
Abri minha agenda no computador, vendo minha disponibilidade para a
maldita reunião. Por mais que eu tentasse, com todo meu afinco, era quase
impossível excluir Lianah da minha vida. Nem sei onde estava com a
cabeça quando topei dar um curso na ONG, arriscando esbarrar com a
garota ao menos uma vez na semana.
— Pode ser sexta-feira, às 10:00h da manhã? Se não for nesse horário, só
vou ter agenda no final da próxima semana — avisei.
— Você está irritado com o que exatamente? — Ethan arqueou uma
sobrancelha.
Era coisa demais acontecendo ao mesmo tempo. Desde que Lianah
apareceu, aqueles sentimentos voltavam com mais intensidade e eu não
sabia lidar com aquela merda toda.
— Tem muita coisa me deixando irritado — desabafei. — Começando
que assumi a responsabilidade de um curso que eu nem consegui preparar e
organizar ainda. A gente tem um contrato milionário com a Vittorino
Companny e a Dona Sylvia Vittorino está enlouquecendo a mim e ao
Tommy desde segunda. Tenho três propostas para apresentar ainda essa
semana, e eu preciso de férias. — terminei, respirando fundo, apoiando os
cotovelos sobre a mesa e afundando a cabeça em minhas mãos.
Ethan pareceu pensar, preocupado.
— Posso falar com a Liah para ela colocar um freio na Dona Sylvia, ela
sabe que a avó não é fácil. Deixa que faço as apresentações das propostas
essa semana, e vai preparar seu curso.
— Pela primeira vez na vida, Ethan, eu não vou negar sua ajuda. —
Suspirei sobrecarregado.
— Você está bem? — perguntou, estendendo a mão até minha testa para
sentir minha temperatura. — Deve estar doente.
Antes que eu pudesse responder, meu celular tocou e reclamei ao ver o
nome aparecendo no visor.
Sylvia Vittorino.
— Você podia me ajudar e atender para mim — pedi ao ver Ethan
reclinar a cabeça rindo para o celular.
— Já estou te ajudando demais.
Ele levantou os braços em sinal de rendição, saindo da sala. Suspirei
antes de atender o telefone.
— Oi, Dona Sylvia! — tentei demonstrar alguma empolgação.
— Dona faz eu me sentir velha, meu querido. Me chame só de Sylvia.
— Ok, Sylvia. Como posso te ajudar agora?
Se ela me perguntasse sobre o sistema de novo, eu surtaria. A gente
investiu rios de dinheiro num atendimento virtual para dúvidas, mas ela
insistia em ligar para mim ou para Tommy toda vez que não sabia onde
`clicar`. Mesmo depois de quatro horas ininterruptas de treinamento
personalizado.
— Na verdade, estou ligando para falar de outro assunto. Não é sobre o
sistema.
— Sobre o que seria? — perguntei desconfiado.
— Carlton Stuart é seu tio, certo?
— Aconteceu alguma coisa com ele? — questionei preocupado.
— Não, filho, pode se despreocupar. Você tem o contato pessoal dele?
Ele é policial investigador, não é?
— Sim, ele é. Dona Sylvia, está tudo bem? Você precisa fazer alguma
denúncia ou algo assim? — como raios ela sabia que Carlton era meu tio?
— Não. Gostaria apenas de tirar algumas dúvidas com alguém
competente. Mas gostaria de um contato pessoal para isso.
A polidez e elegância na fala da mulher me deixava ansioso.
Seria muito desrespeitoso perguntar a ela se estava investigando a porra
da minha vida?
— Vou fazer o seguinte. Dou o seu número a ele e peço para que entre
em contato. Podemos fazer assim?
Eu nunca daria o número pessoal de Carlton a qualquer um que fosse,
não importa quanto dinheiro tivesse. Existiam milhares de motivos para que
meu tio mantivesse uma separação mínima entre a vida profissional e
pessoal.
— Imaginei que não me daria o número fácil assim. Mas por favor, peça
para ele não deixar de entrar em contato.
— Pode deixar, farei isso — avisei, ainda incerto sobre aquela ligação.
— Obrigada, Nathaniel.
— Imagina, Sylvia.
Agradeci quando a mulher desligou a ligação. Embora tenha passado o
restante da tarde inquieto, tentando entender por que ela queria o contato de
Carlton.
Ao fim da tarde, Tommy e Ethan entraram no meu escritório.
— Ethan contou que Sylvia ligou de novo. Queria ajuda para que agora?
— Tommy perguntou rindo. — Parece que ela tem um preferido, não é?
Revirei meus olhos para sua piada. Por alguma razão, Sylvia estava
ligando para mim em noventa por cento do tempo.
— Na verdade, ela queria o telefone pessoal do Carlton — franzi a testa,
ainda sem entender.
— Seu tio? — Ethan perguntou curioso.
— Sim. Ela sabe que ele é policial investigador. Achei muito estranho.
Aliás, como ela sabe quem ele é?
— Ela deve ter ouvido a Liah falar alguma coisa sobre você — Tommy
ponderou.
— A Lianah sabe que o Carlton é meu tio? Não tenho certeza se ela sabe
tanto sobre mim.
Era uma opção, mas porque Lianah falaria sobre mim se ela não gostava
de mim tanto quanto não gosto dela?
— Será que não é melhor falarmos com Liah, sobre isso? — Ethan
questionou.
— Nem pensar! — Interrompi qualquer que fosse sua intenção. — Se
Lianah não sabe sobre isso, melhor continuar assim. Depois a avó dela
ainda vai dizer que foi a gente que falou demais, e nós sabemos bem como
a mulher é difícil.
Ethan levantou uma sobrancelha, me lançando um olhar debochado.
— Está falando da Liah ou da avó dela?
Estreitei meus olhos, sacudindo a cabeça. Eu estava falando de Sylvia,
mas Lianah era tão irritante e difícil quanto a avó.
— Das duas! — disse, por fim.
Tommy puxou a cadeira na frente da mesa, sentando-se em seguida.
Ethan sentou-se ao seu lado, me encarando.
— Realmente é estranho Sylvia procurar Carl. Talvez você devesse falar
com ele.
— Inclusive, vou fazer isso agora — avisei desligando o computador.
— Tira esses dias de folga, e prepara seu curso. Deixa que a gente segura
as pontas por aqui — Ethan avisou. — E não esquece que marcamos a
reunião com a assistente social sexta pela manhã.
— Não vou esquecer — me despedi dos caras e segui em direção à
garagem do prédio.
18 de abril de 2019
Na quinta-feira à noite, Olívia me enviou uma mensagem pedindo para
passar no meu loft, com a desculpa de que queria alinhar uns pontos para a
reunião de sexta. Mas eu sabia que ela que tinha algum motivo oculto nessa
visita.
— Eu estava com saudade de você, seu idiota — reclamou, dando um
tapinha no meu braço logo após me abraçar.
— Ei! — reclamei do tapa que estalou em minha pele. — Tenho estado
tão sobrecarregado com trabalho que não tenho tido tempo para respirar
direito.
— Eu sei. Você e Liah são iguais. Enfiam a cara no trabalho e não tem
mais quem tire. — Olie largou a jaqueta no sofá, se jogando no puff macio
no meio da sala.
De repente, me senti sufocado.
Passei meu dia resolvendo problemas do sistema das lojas Vittorino e
tive que atender Sylvia várias vezes. Mia falou sobre Lianah, minha
conversa com Carl envolvia Lianah, e agora Olivia também me comparava
a ela.
Como se não bastasse, descobri quando cheguei em casa, que ao invés de
colocar três horas de curso em um só dia, Thommas dividiu em três. Eu
teria que estar na ONG por uma hora inteira, três vezes na semana. A
justificativa fajuta, era de que como CEO, eu não poderia ficar tanto tempo
afastado da App.
TRÊS!
— Será que só por hoje, a gente pode não tocar no nome da Lianah? —
pedi quase chorando. — Eu estava até agora terminado o planejamento da
semana do curso que começa na segunda, e a cada segundo do dia pensei
em como seria estar três vezes na semana na ONG. Por favor, eu preciso de
um descanso dessa garota e tudo que gira em torno dela.
Olie levantou os braços, pedindo desculpa.
— Eu nunca vou entender esse comportamento de vocês, mas está bem.
Não está mais aqui quem falou.
Ela foi até a geladeira e tirou uma longneck de lá.
— Nate, você tem se alimentado direito? Só tem porcaria nessa
geladeira.
— Não reclama, Olivia, eu não tenho conseguido nem respirar direito —
tirei a longneck de sua mão, abri e bebi um longo gole. A garota pegou
outra cerveja e voltou para o sofá.
— Marquei um psicólogo para você.
Cuspi a cerveja, tossindo assim que ouvi suas palavras.
— Sabia que você não tinha vindo aqui só me ver — as palavras saíram
entrecortadas pela tosse excessiva.
— Lógico que vim só te ver. Se fosse só para avisar isso, eu teria feito
por mensagem.
— Tia Sophia ligou mesmo para você, não é?
— Ligou sim. E você sabe que ela tem razão. Você não se abre mais
comigo, precisa conversar com alguém.
Sentei-me ao seu lado no sofá, passando as mãos nervosamente pelo
cabelo.
— Olie, é muito difícil falar sobre tudo o que aconteceu. Isso me faz
reviver coisas que me fazem muito mal.
Olivia me lançou um olhar compreensivo. Minha amiga passou um braço
pelo meu pescoço, me puxando para trás e deitou a cabeça sobre meu
ombro.
— Você não quer mais se abrir comigo?
— Tem merda demais nessa história — tentei me esquivar. — Não seria
justo despejar tudo em cima de você.
— O que não é justo é você guardar todos esses sentimentos ruins com
você. Se não se sente confortável em conversar comigo, conversa com
alguém que não tenha envolvimento emocional com você. Um profissional
pode te ajudar, Nate. — Olie acariciou meu cabelo, me fazendo fechar os
olhos e relaxar pela primeira vez naquela semana.
— Olie, você é a melhor pessoa de todas, sabe disso, né? — sorri, tendo
a certeza de que eu tinha os melhores amigos desse mundo.
19 de abril de 2019
— O que te traz aqui, Nathaniel? — Aquela era a pergunta que vinha
tentando evitar em todas as consultas. Ter que explicar o que me fazia mal
pela primeira vez era a pior parte de ir a um psicólogo.
— Pode me chamar de Nathan? Ou Nate? Detesto que me chamem de
Nathaniel — pedi.
— Claro, Nathan. Existe algum motivo especial para não gostar que te
chame pelo nome inteiro?
A voz de todo psicólogo tinha esse mesmo tom especulativo, e a do Dr.
Emerson era exatamente assim, monótona e pausada. Mas eu havia me
prometido tentar responder sempre com a maior verdade possível. Eu sabia
que o processo era para o meu bem, embora não quisesse reviver aqueles
sentimentos.
— O ex-marido da minha tia me chamava assim sempre.
— Quer falar sobre ele? — Dr. Emerson apoiou um cotovelo sobre o
braço alto da poltrona de couro. Me remexi, desconfortável, sobre o sofá
macio e encarei o homem na casa dos cinquenta anos, com cabelo grisalho,
sentando na poltrona a minha frente.
— Não. Mas sei que preciso falar.
— A gente pode tentar começar por qualquer outro assunto que você se
sinta mais confortável. — A proposta do analista me fez pensar. — Quer me
falar sobre você? Sobre as coisas que te fazem bem.
— A gente pode começar falando sobre a minha tia e a Mia então? —
propus.
— Claro. Sinta-se à vontade para falar sobre qualquer coisa que quiser.
A primeira consulta aconteceu na sexta bem cedinho, antes da reunião da
ONG. Falei bem mais que o normal para uma sessão, mas falei apenas
coisas boas. Contei a ele sobre todas as coisas boas que Tia Soph fez por
mim e por Mia, contei sobre como foi bom quando Mia chegou a esse
mundo, contei sobre Carlton e sobre como ele me apoiou a fazer faculdade.
Falei sobre Ethan, Tommy e Olie e como Evie e Karol apareceram. Contei
sobre todas as coisas boas da minha vida, e saí de lá com a certeza de que
eram muitas, e de que eu nunca poderia dizer que só tive desgraça na vida.
Olie escolheu um bom profissional dessa vez.
Quando cheguei na ONG por volta de 09:50h da manhã, eu nem estava
pensando no quanto seria ruim e difícil encarar Lianah mais uma vez.
Tommy e Ethan já estavam sentados à mesa, conversando com Olívia e
Lianah quando entrei na sala de reunião.
— Oi, pessoal — cumprimentei todos e reparei Lianah me olhar com
alívio.
— A gente tentou te ligar, achamos que você não vinha — Olie explicou.
— Eu não atendi porque estava na consulta que você marcou para mim.
— Havia desligado o celular logo que entrei no consultório.
— Você foi? — Olie me olhou surpresa.
— Claro que fui — confirmei ressentido. — Não ia fazer você perder
seu tempo marcando uma consulta para não ir.
— Você foi ao psicólogo? — Tommy perguntou curioso.
— Vocês vão fazer uma tempestade agora em cima disso? — Irritado,
tirei o blazer e coloquei sobre as costas da cadeira aonde ia me sentar, ao
lado de Ethan, exatamente de frente para Lianah.
Ethan virou sua cadeira de lado para me encarar melhor. Devolvi seu
olhar irônico, esperando a provocação.
— Qual o problema desse? Invasivo demais? Estranho demais?
Opinador demais? — disse prendendo um riso, enquanto mantinha dois
dedos apoiados sobre os lábios, disfarçando seu deboche.
— Eu gostei dele. — Quatro pares de olhos me olharam curiosos. — O
que foi? — perguntei mais alto e irritado. — Eu estava super bem até agora.
A garota loira murmurou alguma coisa que fez Olívia rir, erguendo as
sobrancelhas em repreensão à amiga. Os olhos dela se prenderam em mim
ao notar que eu havia percebido as piadinhas idiotas trocadas.
— Perdeu alguma coisa aqui? — questionei irritado, querendo que ela
simplesmente evaporasse no ar.
Lianah franziu a testa e mordeu o interior da bochecha para manter o que
quer que tenha pensado só para ela.
— Nervosinho — escutei sua voz quando me acomodei na cadeira.
— Intrometida do caralho! — soltei e logo senti o cotovelo de Ethan me
atingir as costelas, por baixo da mesa.
A vibração da chamada em um celular tomou o silêncio, e Lianah o
pegou para olhar a notificação que se acendeu na tela.
— A Joanna acabou de chegar. Vou buscá-la na recepção e venho direto
para cá. Por favor, tentem não brigar nesse tempo.
A loira saiu apressada da sala enquanto os três pares de olhos restantes
insistiam em me encarar. Bufei irritado puxando o laptop aberto da frente
de Ethan, repassando uma última vez nossa apresentação.
Lianah retornou apresentando a mulher de meia-idade para a gente. A
assistente social, chamada Joanna, aparentava ser uma mulher amigável e
compreensiva, embora estivesse bem visível para todos que ela não trazia
boas notícias.
Apresentei nossa proposta de estágio e ao final, Joanna parecia bem
impressionada com o profissionalismo que colocamos naquela
apresentação, já que se tratava apenas de uma iniciativa social.
— Fico realmente encantada com todo o empenho de vocês. Ficou claro
para mim o quanto vocês estão preocupados em investir no futuro desses
jovens — a mulher elogiou a apresentação e o projeto. — Mas Liah, vocês
já não estão com uma grade de cursos de tecnologia na ONG?
— Sim, mas as parcerias para os estágios são parte do projeto. Falamos
sobre isso quando fizemos nossa reunião.
— Nós temos um problema — Joanna soltou um suspiro, testando a
reação de Lianah. — Estou sendo pressionada a não permitir esse tipo de
projeto. Podem entender que esses jovens não deveriam estagiar, e alegar
coisas ruins sobre a ONG. — Conheço o suficiente as pessoas que geram
essa pressão, para saber que existe um motivo por trás disso — Joanna
explicou chateada a ela.
Corri os olhos pela sala, vendo os rostos chateados e desentendidos.
Todos achávamos que era só uma questão de formalização. Aquela negação
pegou a todos de surpresa.
— Dinheiro? — supus.
Quando criamos nossa empresa, precisamos envolver alguns advogados
conhecidos e que cobravam um rim pelo processo para conseguir funcionar
legalmente. Era isso ou aceitar todos os subornos a que fomos submetidos.
Aquela cidade estava tomada de gente corrupta, em todas as esferas.
Joanna assentiu.
— Sinceramente, e espero que isso fique entre nós, as pessoas que
deveriam, não estão se importando muito com esse tipo de programa. Vocês
não geram verba para eles, se é que me entendem, eles só liberam vagas de
crianças mais velhas para cá, para poderem receber crianças mais novas nas
instituições públicas da cidade. É um problema a menos arrumar lar
temporário para esses jovens. — A mulher parecia derrotada em ter que nos
contar isso assim. — Quanto mais crianças nos abrigos públicos, mais
dinheiro para eles.
— Isso é um absurdo! — Lianah reclamou com os olhos se enchendo de
lágrimas. — A Triss vai ficar arrasada. Ela tinha uma vaga garantida na
empresa deles.
— Não tem nada que a gente possa fazer, Joanna? — perguntei uma
última vez, sabendo que insistir não faria diferença agora.
A assistente deu de ombros. Sua expressão derrotada.
— Vocês podem pressionar. Esse é o tipo de informação que seria muito
mal vista pelo público local. Mas arrumar um espaço nos meios de
comunicação locais, pode chamar uma atenção indesejada para vocês.
Thommas soltou uma reclamação baixa e Ethan sacudiu a cabeça
inconformado. A verdade é que todos naquela sala estavam revoltados.
— E se a gente pagar? — perguntei. Era uma merda pensar em fazer
parte disso, mas eu só conseguia pensar em Triss e em como ela ficaria
chateada.
— Nem pensar! — Lianah quase gritou. — Eu não quero e não vou
entrar nesse sistema, Nathan. Essas pessoas vão querer cada vez mais da
gente, e será impossível sair depois.
— Vocês podem trazer as vagas para trabalho aqui dentro — Joanna
tentou amenizar a situação. — Dessa forma, eu posso autorizar. Eu sei que a
experiência não seria completa para esses jovens, mas já seria alguma coisa.
Tommy intercalou os olhos entre mim e Ethan.
— Pela gente não seria um problema — respondi, já pensando nas
formas de fazer o programa acontecer remotamente.
Lianah e Ethan ainda debaterem um tempo sobre o estágio, mas minha
mente estava distante. Algo dentro de mim queria muito ajudar Beatriss. Sei
que os caras também sentiram uma espécie de conexão diferente com a
adolescente. Ela lembrava tanto a gente nessa idade, com aquela vontade de
aprender, de crescer e toda a necessidade de querer descobrir o mundo e
todo o gosto pela tecnologia.
— Tem espaço para a gente trazer uma operação intera para cá? —
perguntei a Lianah.
— Tem espaço de sobra — ela respondeu. — Tem umas duas alas desse
prédio que ainda estou reformando.
— A gente faz o programa interno então. Podemos fazer assim? —
Tommy perguntou.
— Claro! — Apesar do sorriso, Lianah estava visivelmente chateada.
Joanna nos deu um termo de responsabilidade para assinar e em seguida
saiu da sala com Lianah e Olie, deixando Tommy, Ethan e eu na sala
analisando o documento.
— Não consigo parar de pensar na Triss — Ethan comentou.
— Eu avisei que não deveriam ter falado com ela antes de estar tudo
certo — reclamei.
— Cara, essa menina é um gênio. Ela tem um QI7 absurdo, e é mais
inteligente que você, Tommy e eu juntos na idade dela, fora que ela é super
meiga e doce — Ethan comentou pensativo.
— Vou procurar a Triss, quero falar com ela — avisei assinando o termo
e deixando a via em cima da mesa.
Saí da sala de reunião e avistei Olie no corredor, conversando com
Lianah. Fui até elas notando o quanto a negação havia afetado às duas.
— A Triss está em aula agora? — elas confirmaram com a cabeça,
chateadas.
— Posso esperar para falar com ela?
— Pode sim — Lianah respondeu. — A aula dela deve acabar em alguns
minutos.
— Eu queria explicar a situação a ela, se vocês não se incomodarem.
Acho que o Thommas não deveria ter falado sobre isso com Triss antes de
estar tudo certo, mas já que falou, queria poder dar a notícia.
— Até prefiro poupar meu coração mesmo. — Lianah virou de costas e
seguiu pelo corredor cumprido.
— Ela está chateada — Olie comentou. — Pela Triss e pela confirmação
de que o governo não dá a mínima pra quem precisa, nem quando não
precisa investir dinheiro nisso.
— Ela tem razão de estar chateada — concordei. Embora não gostasse
de Lianah, era compreensível sua chateação nessa situação.
— Mas me conta, como foi a consulta? — Olie perguntou curiosa.
— Foi estranho — dei de ombros, recostando o corpo na parede ao seu
lado. — Falei mais do que o habitual. A abordagem dele é um pouco
diferente, menos agressiva.
Em todos esses anos, nunca senti vontade de voltar a algum psicólogo. E
não foram poucos. Eles eram sempre invasivos, frios e impessoais demais.
— Você vai voltar? — Olívia recostou-se ao meu lado.
— Sim, marcamos todas às terças e quintas pela manhã. — Virei o rosto
sabendo que encontraria um sorriso no rosto da morena.
— Sophia merece saber disso — afirmou abrindo ainda mais o sorriso.
Sophia e Olivia juntas eram um perigo. Minha tia sempre recorria à ela
quando queria me repreender ou colocar algum juízo na minha cabeça. Eu
conseguia fugir de Olivia, ou de Sophia, mas era impossível fugir das duas
juntas.
— Ela vai ficar orgulhosa de você. — Baguncei os cabelos de Olie
enquanto ela soltava pequenos gritinhos.
O toque do sinal de intervalo das aulas soou através dos alto-falantes no
corredor.
— A aula terminou. A Triss deve estar no pátio ou no refeitório. Pode ir
procurar por ela.
— Obrigada, Olie — disse, enquanto a abraçava forte. — Mesmo!
Segui em direção ao pátio, procurando Triss entre os adolescentes que
corriam e formavam filas no refeitório. Avistei a garota sentada com um
grupo de amigas e me surpreendi ao ver minha irmã no meio delas.
— Mia! — chamei me aproximando.
— Oi, Nate! — A mais nova me abraçou, me apresentando às meninas.
— Esse é o meu irmão. Bonitão ele, né?
— Mia! — repreendi, mas sorri porque amava a forma que ela falava de
mim como seu irmão. — Vim falar com a Triss.
— É sobre o estágio? Foi aprovado? — Triss perguntou empolgada e
senti meu coração apertar.
— Foi, mas tem alguns pontos que precisamos falar. — Era melhor olhar
o copo sempre meio cheio, certo? — A gente pode conversar um pouco?
— Claro, vamos sentar ali — apontou para umas mesas distribuídas no
meio do pátio.
— Triss, me conta um pouco sobre como é viver aqui? — pedi assim que
nos sentamos, querendo criar algum vínculo maior com ela.
— Isso é uma entrevista para o estágio? — perguntou preocupada.
— Não! — Ri de sua preocupação. — Isso sou eu querendo conhecer
melhor sua vida.
— Ah, sei lá. Eu passei por alguns lares temporários antes, mas depois
fui morar num abrigo público. Lá não tinha metade do que tenho aqui. —
Triss mexia em uns fiapos de linha soltando da mochila sempre que falava.
— Como você estudava lá? Você é bem inteligente. Na verdade, mais
inteligente que muita gente que teve oportunidade de estudar em escolas
particulares — pontuei curioso sobre sua formação.
— A gente tinha uns computadores velhos, mas que funcionavam e
tinham internet liberada para estudo. Era a única coisa que tinha para fazer,
então foquei nisso — explicou, dando de ombros.
Analisei a garota tímida. Ela tinha mesmo uma mente brilhante para uma
menina de dezesseis anos.
— E você gosta daqui? — perguntei.
— Está brincando? — Triss se empolgou, sorrindo abertamente. — Eu
amo isso aqui. De todos os abrigos que já passei esse é de longe o melhor.
A Liah é a pessoa mais maravilhosa que já conheci na vida.
Definitivamente, Lianah estava envolvida em tudo que acontecia na
minha vida. Todos falavam dela, o tempo todo. Todos gostavam dela. E era
impossível ignorar que todos estavam enrolados na teia dela.
— E se você fosse adotada? — especulei.
— A essa altura? Duvido, Nate. Sá faltam dois anos para eu ser maior de
idade e ninguém se preocuparia comigo agora. E convenhamos, eu não sou
o padrão da sociedade. Ninguém adota jovens negros. — Seu semblante se
tornou triste.
Eu também duvidaria, se a ideia não tivesse partido de mim. Mas esse
era um assunto para outro momento.
— Triss, a gente teve hoje a reunião com a assistente social para aprovar
o estágio, mas não foi cem por cento como a gente esperava — comecei a
entrar no assunto, sentindo meu coração se esmagar por acabar com a
empolgação dela.
— Como assim? — Triss voltou a mexer nos fiapos da mochila.
— Não tivemos autorização para que vocês saíssem daqui de dentro para
trabalhar. Então vamos ter que montar as estações de trabalho aqui — tentei
suavizar a questão.
— Mas eu ainda vou poder fazer o estágio? — perguntou preocupada.
— Vai sim. Você vai aprender da mesma forma que aprenderia lá.
Tommy, Ethan e eu vamos nos revezar para estar sempre por aqui, e vamos
mandar pessoas de confiança para te ensinar as coisas aqui também. E isso
é só temporário — completei. — Assim que fizer dezoito anos, você vai ter
uma vaga garantida na empresa.
— Nem sei como agradecer a vocês — a menina sorriu.
Ainda conversei com Triss por mais uns minutos, e ela me contou sobre
o que se lembrava da morte de seus pais e como ela era grata por ir parar na
ONG e ter conhecido pessoas como Lianah, Ethan e eu. Claro que me senti
tocado por aquilo. Aquela conversa só reforçou ainda mais minha ideia
inicial.
Ao chegar em casa na sexta à tarde, fiquei encarando por alguns
segundos o cartão que Joanna havia nos entregado na reunião mais cedo.
Sim, eu era impulsivo.
Dessa vez, nem me dei muito tempo para pensar sobre aquilo antes de
discar os números e esperar o Alô do outro lado da linha.
19 de abril de 2019
Nenhum conto de fadas conta o que acontece depois do viveram felizes
para sempre. Existe um depois, e muito provavelmente, esse depois não é
feliz todo o tempo.
Eu havia realizado um sonho. A ONG foi idealizada por tanto tempo,
que nunca me dei o trabalho de pensar em como seria depois que realizasse.
Mas havia acabado de perceber que a luta continuava.
Permaneci trancada no escritório pela próxima hora. Eu queria me isolar
de tudo e de todos. Ainda assim, precisava deixar meu orgulho de lado, e
admitir que os meninos foram excepcionais em manter o projeto, mesmo a
distância. Só não sabia se teríamos a mesma sorte com as outras empresas
parceiras.
Estava afogada em trabalho, tentando esquecer a frustração do dia, até
que ouvi a batida na porta. Levantei os olhos dos papéis em minha mesa
para ver Ethan entrar e sentar-se à minha frente.
— Como você está? — perguntou receoso.
— Chateada, mas vai passar — respondi.
— Você comeu alguma coisa hoje?
— Ainda não. — A simples menção a comida fez meu estômago roncar.
— Nem reparei que estava com fome.
— O refeitório está bem vazio agora. Quer almoçar? Preciso aproveitar
esse tempo para conversar dois assuntos importantes com você — avisou
preocupado.
— São coisas ruins? — choraminguei. — Não estou legal para ouvir
mais coisa ruim hoje.
— Não são necessariamente ruins — Ethan riu do meu desespero. —
São importantes.
— Não tenho certeza sobre o que isso quer dizer — brinquei,
levantando-me da mesa, indo direção à porta. — Vamos?
Ethan passou por mim, apreensivo, e caminhou em silêncio até o
refeitório. Pegamos nossa comida e nos sentamos em uma mesa afastada, ao
canto da parede. Seu olhar cauteloso, com receio de falar.
— Fala logo, Ethan. Melhor arrancar o curativo de uma vez só — pedi,
perdendo totalmente o interesse no prato à minha frente.
— Sua avó está deixando os caras loucos.
— Como assim? — franzi a testa sem entender exatamente o que ele
queria dizer.
— Dona Sylvia liga para o Nathan e para o Tommy umas dez vezes ao
dia para tirar dúvidas sobre a demo do sistema e pedir adaptações novas.
Semana passada ela teve uma reunião de quatro horas com eles para isso.
— Ethan olhou para o lado como se lembrasse de alguma cena engraçada,
sem conter o riso.
— Mas contratei uma consultora de TI especializada em migração de
sistema para ajudá-la com isso assim que ela fechou o contrato com vocês
— reclamei desacreditada.
— Tommy está enlouquecendo — Ethan sorriu antes de continuar. —
Mas Nathan… ele está a ponto de surtar com tudo. Ele precisa de férias e
está super sobrecarregado com trabalho e o curso na ONG. E parece que
entre ele e Tommy, sua avó tem uma preferência platônica por ele.
— Eu já entendi — sacudi a cabeça, pensando em como vovó era
teimosa e difícil. — Vou levantar a bandeira vermelha para ela ainda hoje.
Ethan mastigou a comida, assentindo divertido. Fiquei pensando em
como Dona Sylvia deveria estar tentando enlouquecer os meninos. Por um
momento, me diverti com a imagem de um Nathan irritado com as loucuras
da vovó.
— Mas não eram dois assuntos?
— O segundo é mais delicado — Ethan pontuou. — Você conhece a
família do Nathan?
— Não — franzi o cenho, tentando entender por que todos os assuntos
na minha vida tinham alguma relação com esse cara. — Quero dizer,
conheço a Mia.
— Você sabia que o tio do Nathan é um policial que trabalha como
investigador?
— Lógico que não, Ethan — reclamei impaciente. — Tenta ser mais
objetivo. Esse tipo de conversa com perguntas me deixa extremamente
nervosa. Esse investigador é pai da Mia, é isso?
— Padrasto — explicou. — Liah, o ponto é que sua avó ligou para o
Nathan essa semana para perguntar sobre o Carlton, ela sabia que ele era
policial investigador e pediu o contato dele, frisou várias vezes para ele que
era importante que ela falasse com Carl. — Ethan cerrou os olhos, tentando
buscar alguma resposta em mim.
— O que minha avó ia querer com um policial investigador? — Embora
tenha perguntado alto, aquele questionamento foi muito mais para mim do
que para ele.
— Thommas e Nathan não queriam te contar isso porque estão mesmo
com medo da sua avó. Então, só para avisar… — Ethan esticou o garfo em
minha direção como se me ameaçasse. — Não conta para a Dona Sylvia
que sabe sobre isso. Você ferra com eles, e me ferra em consequência.
Encarei o olhar preocupado do homem à minha frente, esperando uma
confirmação para confiar em mim. No entanto, minha mente ainda estava
processando aquela informação. Dona Sylvia tinha suas loucuras e sempre
aprontava coisas que me deixavam maluca, mas se envolver com um
investigador, era demais até para ela. Que merda vovó estaria aprontando
agora?
— Ethan? — chamei pensativa. — O tio do Nathan não pode dizer a ele
o que ela queria?
— Não sei se Carlton falaria, pode ser que sua avó exija sigilo. — Ethan
deu de ombros.
— E se você falasse com o Nathan para tentar descobrir? — perguntei.
— Com qual justificativa? Ele saberia na hora que te contei.
— Estou preocupada de verdade. Isso está fora de todos os limites que
ela já quebrou. Você podia me ajudar a descobrir umas senhas dela, para ver
se descubro algo. — Eu mesmo estava em choque com o que havia acabado
de pedir.
— Ah, Liah. Temos outro problema. Essa é a especialidade do Nathan.
Eu sou só o cara da infra8. O Nathan entende de segurança muito melhor
que a gente.
Se Nathan não podia saber que eu sabia, eu não poderia pedir ajuda a ele.
— Você precisa convencer o Nathan a me contar sobre isso — exigi.
— Ele nem fala com você direito, Liah. Como vou convencê-lo a te
contar sobre isso? — reclamou.
— Eu preciso descobrir o que Dona Sylvia está tramando, Ethan. Vou
dar um jeito nisso.
20 de abril de 2019
A noite foi agitada mais uma vez. Aqueles sonhos ruins insistiam em
voltar a minha mente. Algumas imagens me deixaram confusa entre a
realidade e os sonhos vívidos. Um par de olhos brilhantes e cheios de ira me
encaravam a todo instante, e por algumas vezes, senti que revivia todo o
terror do passado.
Acordei assustada às 04:30h da manhã, com meu corpo extremamente
molhado de suor. Incomodada, resolvi tomar um banho e iniciar meu dia
mais cedo
Embora tudo estivesse sobre controle na Consultoria, eu tinha trabalho
acumulado na ONG. Precisava prestar conta de algumas parcerias na
semana seguinte, e não tinha nenhum relatório pronto, então resolvi usar o
sábado para fechar essas pendências.
Sai de casa às 06:00h da manhã, tentando organizar meu dia
mentalmente, e ao chegar no meu escritório na ONG, meu celular apitou
com uma mensagem de Ethan.
Não tinha tocado no assunto por um único motivo. Eu continiava sendo
boba e pensando nas pessoas, mesmo as que eu odiava, antes de pensar em
mim.
22 de abril de 2019
Meu humor estava péssimo, e eu detestava estar de mau-humor logo na
segunda pela manhã. Mas estava afetada desde sábado, quando Olívia falou
sobre Nathan e a forma que se culpava.
Minha cabeça já não aguentava mais enfiar Nathan no meio de qualquer
processo do meu cérebro. Eu queria só um dia de distância mental dele,
fingir que ele ao menos não existia, mas teria que fazer a apresentação do
curso dele à tarde.
Almocei no refeitório com Olie e Mia. Ainda não conseguia entender
como a garota podia ser quase irmã de Nathan. A menina era educada,
meiga e engraçada.
— Chamei o Nate para almoçar com a gente, mas ele nem viu minha
mensagem — Mia soltou distraída no meio do almoço.
Encarei Olívia suprimindo um grito. Mia distribuiu sua atenção entre nós
duas e então apertou seus olhos em minha direção.
— Então você também não gosta dele?
— Isso quer dizer que ele já declarou que não gosta de mim, certo? Qual
o problema dele comigo?
A garota balançou a cabeça me repreendendo, soltou o garfo sobre o
prato, cruzando os braços em frente ao peito.
— Liah, o que houve entre vocês dois? — me cobrou como se eu tivesse
alguma culpa. Por que todo mundo achava que tinha acontecido alguma
coisa entre a gente? Ninguém conseguia acreditar que ele simplesmente era
babaca comigo, e ponto?
— Mia, seu primo é um babaca! — acusei. — Ele simplesmente decidiu
que não ia gostar de mim, e foi isso — expliquei.
A morena suspirou, demorando seus olhos em mim, e notei o quanto Mia
lembrava Nathan com a expressão irritada. Pelo tempo que manteve seus
olhos atentos, estava pensando se deveria ou não intervir a favor dele. Mia
abaixou a cabeça, voltando a segurar o garfo, mas uma revolta repentina
tomou a menina.
— Quer saber?! Lá em casa, quando Nathan começou a falar de você, ele
se limitou a dizer que não gostava de você, exatamente porque ele não é o
tipo de cara que fala mal de qualquer mulher que seja. Eu não sei qual o
motivo dele não gostar de você, Liah. Mas Nathan não é, e nunca foi o tipo
de cara que decide não gostar de alguém e pronto. — Mia empurrou o prato
na mesa, levantando apressada. A garota já se afastava quando voltou dois
passos em nossa direção. — Eu adoro você e essa ONG. Acho você uma
mulher incrível, mas nem de você eu aceito dizer que Nate é babaca. Ele foi
a única pessoa que cuidou de mim e me protegeu por anos quando minha
mãe estava com a cabeça ferrada pelo Ralph e não conseguia fazer esse
papel. Nathan não é meu primo, ele é meu irmão. Então, por favor, se quiser
falar dele, faz isso longe de mim.
Do mesmo jeito que levantou segundos atrás, Mia saiu do refeitório;
apressada e batendo os saltos grossos da bota coturnada no chão. Ela tinha
personalidade, não podia negar. Ainda estava em choque quando Olivia
gargalhou ao meu lado.
— Mia deixa qualquer um assim mesmo. Ela tem um amor incondicional
pelo irmão.
— Ok! — Empurrei meu prato, ciente de que havia perdido toda a minha
fome. — Não esperava essa reação dela. Foi errado falar dele assim, eu sei.
— Ah, Liah, não se estressa com isso. Mia não vai guardar nenhuma
mágoa de você. Mas por via das dúvidas… — Olie levantou, recolhendo os
três pratos da mesa — Evita falar do Nate na frente dela, ok? Não queremos
Mia realmente estressada aqui dentro.
Olívia seguiu até o balcão com os pratos, me deixando rindo sozinha.
Mia devia ser incontrolável quando chegava ao seu limite. Ela também era
do tipo que defendia todos que gostava com unhas e dentes. Eu gostava de
gente assim, que não se impedia de defender os amigos, que não media
esforços para fazer qualquer coisa que tivesse ao seu alcance pelos outros.
— Falando em Nathan… tenho que apresentá-lo à turma do curso. Você
podia fazer isso por mim — disse assim que Olie me alcançou na porta do
refeitório.
— Eu vou com você até lá, te dou um apoio moral nessa árdua missão de
passar uns minutos muito longos do seu dia ao lado de um dos caras mais
bonitos que você vai ver na sua vida.
Foi inevitável sorrir para ela. Olívia sabia reverter um clima ruim como
ninguém.
— Ethan sabe que você acha o Nathan bonito? — Suas bochechas
coraram e Olie revirou os olhos, mal acreditei que aquela simples
provocação causava algum efeito nela.
— O Nathan é lindo, Liah. Isso é um fato. — Olie chegou mais perto,
puxando meu corpo pelo corredor. — Mas Ethan é... o Ethan, sabe?!
— O que isso quer dizer, Olívia? — ri do jeito fofo que ela confessou
aquilo.
— Você sabe o que quero dizer, não me faz ficar falando sobre isso —
pediu fazendo biquinho.
— Está bem, Olie, vou parar de provocar. A gente está atrasada e Nathan
já deve estar no auditório, melhor a gente ir logo.
Seguimos pelas escadas até o auditório lá embaixo. Alguns adolescentes
já se aglomeravam em frente a porta, ansiosos para entrarem. Como
imaginava, Nathan já estava lá dentro, conversando com Triss em frente ao
telão.
Quando eles ficaram próximos assim?
Tentando espantar o ciúme evidente pela atenção dela, entrei na sala
pronta para iniciar o curso. Observei Triss sentar-se na fileira de cadeiras na
frente, tentando entender o que até ela via nele.
Ele está dando um curso aqui, Liah. Não podia ser tão ruim, não é?
22 de abril de 2019
23 de abril de 2019
Sentei-me no sofá macio, encarando Doutor Emerson. Terça-feira havia
chegado muito rápido, e eu não tinha ideia do que iria falar hoje. Eu havia
contado coisas boas da minha vida na última consulta, não teria desculpas
para não falar das ruins hoje.
— Como passou esses dias? — Doutor Emerson perguntou sorrindo.
— Foi estranho — me limitei a responder.
— Posso presumir que aconteceram coisas não usuais, então? —
perguntou divertido.
Eu gostava da forma dele conduzir aquelas conversas. Nunca era de uma
forma invasiva. Até seu tom de voz tinha deixado de ser especulativo e
monótono para mim.
— De sexta para cá aconteceu coisa demais, de uma vez só — informei.
— Sexta tive uma reunião numa ONG que estou me envolvendo. Minha
empresa vai participar de um projeto social, empregando jovens estagiários,
mas a assistência social não aprovou o modelo inicial do projeto. Então eu
simplesmente decidi tentar um processo de adoção de uma das jovens.
Soava estranho até para mim. Ninguém sabia sobre aquilo ainda, nem
mesmo Tommy ou Ethan.
— É uma decisão importante, Nathan — Doutor Emerson me olhou
pensativo. — Você pensou em tudo que isso implicava antes de tomá-la?
Pensei por um instante. Na verdade, eu não havia pensado nas
implicações daquilo até agora.
— Sendo bem honesto, tomei essa decisão impulsivamente, no ímpeto
de querer dar a Triss um futuro melhor. Mas isso não quer dizer que eu
esteja errado, ou quer? — perguntei confuso.
— De forma alguma — o homem mais velho pontou. — Acredito que
financeiramente você não tenha problema algum com isso. Mas já se
perguntou se está preparado para cuidar de outra pessoa?
Eu já estive um dia.
Esse mero pensamento foi o suficiente para começar a me empurrar de
volta ao fundo daquele poço escuro. Senti o suor começar a brotar em
minhas têmporas, e minha respiração falhou por alguns segundos. Engoli
seco, tentando controlar minhas emoções.
— Que tipo de lembranças isso te traz? — Doutor Emerson levantou-se
buscando uma garrafa de água no frigobar e me entregando.
Aí estava a parte invasiva. Meus problemas começavam quando
perguntavam sobre meu passado, sobre as lembranças.
— Nathan — ouvi sua voz ao longe me chamando, mas a essa altura
minha cabeça estava muito distante dali. Eu não podia ter uma crise agora,
dentro daquele consultório. — Você é mais forte que isso, falar sobre o que
está sentindo vai te fortalecer — o homem me observou por alguns
segundos até entender que precisava mudar o foco daquela conversa. — Me
conte sobre a Triss.
Fechei meus olhos, tentando controlar minha respiração. Observei o
desenho da Íris tatuada em meu antebraço por um segundo. Eu já havia
conseguido recuperar o controle da minha vida uma vez, eu podia fazer isso
de novo agora.
A consulta terminou e eu ainda contava sobre como me apaguei a garota
e sua inteligência. Contei sobre o desejo que tinha de mudar a vida daquelas
crianças, e pelo sorriso satisfeito do homem a minha frente, eu sabia que ele
tinha feito alguma ligação daquilo com o meu passado. Agradeci
mentalmente por ele não insistir em outros assuntos por hoje.
Antes de sair do consultório, Doutor Emerson me chamou.
— Nathan, se me permite um conselho… todas as vezes que você
começar a sentir essas sensações ruins, quando alguma lembrança ruim te
atormentar… foque na sua respiração, pense que você consegue manter o
controle sobre você e sobre o que sente. Se ainda assim isso não funcionar,
pense em todas as coisas boas que você tem em sua vida. Você conseguiu
falar comigo por mais de duas horas sobre momentos felizes e pessoas que
te fazem bem, tenho certeza de que vai achar várias âncoras que possam
manter sua sanidade.
Ainda absorvendo suas palavras, acenei atravessando a porta. Saí do
consultório com o coração um pouco mais leve, pronto para encarar mais
um dia de trabalho.
— Como foi a primeira aula? — Tommy perguntou quando entramos na
sala de reunião pela manhã.
— Foi boa, estou ainda mais impressionado com a Triss. — Tirei meu
blazer, largando sobre a cadeira ao lado.
Hoje tínhamos mais uma reunião com Sylvia. Dessa vez, ela queria
incluir uma profissional de TI na discussão dos sistemas. Parece que
finalmente teríamos algum sossego.
A mulher chegou com a Ana, a profissional que iria ajudá-la na migração
dos sistemas.
— Olá, rapazes — Tommy e eu nos entreolhamos confusos.
Sylvia tinha um semblante triste e abatido. O brilho usual em seus olhos
e a felicidade que a mulher costumava exalar, estavam totalmente apagados.
— Está tudo bem, Dona Sylvia? — arrisquei, perguntando preocupado.
— Dona me faz sentir velha, querido — respondeu com sua frase usual,
e embora tenha sorrido em minha direção, aquele sorriso nunca alcançou
seus olhos.
— Me desculpe, Sylvia — corrigi tentando confortá-la de alguma forma.
— Como vão os sistemas?
— Bem, essa moça aqui é a Ana. Ela vai ficar responsável por toda essa
parte de TI nas minhas unidades. — Dona Sylvia parecia chateada em ter
que ceder o controle à mulher.
— Bem, nesse caso, vamos começar então — disse, iniciando a reunião e
explicando a Ana todas suas dúvidas e pontuações sobre os sistemas.
A reunião não durou muito, a especialista tinha um bom conhecimento
sobre sistemas de pontos de venda, o que facilitou nossa vida. Quando as
mulheres foram embora, Tommy fechou a porta, esperando que se
afastassem no corredor.
— Ela parecia bem triste. Será que é porque está tendo que deixar a Ana
tomar conta de tudo? — Tommy questionou.
— Não sei, mas definitivamente é estranho ver essa mulher abatida
assim. Duvido muito que seja somente por isso — comentei, desconectando
o laptop dos cabos. — Tenho algumas coisas de outros clientes para
adiantar hoje. Vai precisar de mim para alguma coisa?
Tommy negou com a cabeça, pensativo.
— Será que aconteceu alguma coisa com a Liah? Ethan disse que ela
precisava de ajuda mais cedo.
Bem, é o que dizem, noticias ruins correm rápido. Se tivesse acontecido
algo, nós já estaríamos sabendo, certo?
— Olie ou as meninas já teriam falado alguma coisa, não? — perguntei.
— Vou ligar para o Ethan para saber como estão as coisas por lá —
Tommy avisou saindo da sala.
Exalei, pensando na quantidade de trabalho acumulado que me esperava.
Tirar as tardes de segunda, quarta e sexta para trabalhar na ONG me trariam
um prejuízo enorme no meu tempo.
Saí da sala de reunião dando de cara com Sylvia, parada na entrada do
meu escritório. Cerrei meus olhos, pensando no que ela poderia querer
comigo agora que os sistemas estavam sob a responsabilidade de Ana.
— Posso ajudar em mais alguma coisa, Sylvia? — perguntei, indicando a
porta da sala para ela entrar.
A mulher entrou em meu escritório se acomodando sobre a cadeira
estofada em frente minha mesa.
— Veja, Nathaniel, minha neta falou sobre um interesse seu em comprar
minhas lojas.
— Sim. Comentei sobre isso com ela. É só uma ideia embrionária,
gostaria de dar um negócio à minha tia, Sylvia. Achei que as lojas e o clube
poderiam ser algo interessante.
Seus olhos me encararam de um jeito estranho e senti um arrepio na
espinha. Aquela mulher tinha uma energia misteriosa.
— Receio que isso não será possível.
Claro. Lianah já deveria ter dito a avó que eu era a pior pessoa do mundo
e que não prestava. Sylvia, apesar da cordialidade, devia achar que eu era
uma espécie de cara machista e escroto.
— Não que eu me incomode verdadeiramente, mas gostaria de saber o
motivo — pedi, na intenção de confirmar meus pensamentos.
— Eu desisti de vender as lojas e o clube, mas se eu fosse vender a
alguém, certamente seria a você, Nathaniel. — Sylvia continuava me
encarando profundamente.
— Lianah sabe que não vai mais vender?
Algo me dizia que Sylvia escondia coisas da neta. A garota não devia
saber sobre a curiosidade da avó a respeito de Carl, e provavelmente não
sabia que tinha desistido de vender as lojas.
— Não — Sylvia suspirou triste. — E preciso te pedir que não fale sobre
isso com ela. Liah já tem preocupações demais na vida.
— Não quero me intrometer, mas a senhora sabe que uma hora ela vai
precisar saber, não é?
— Senhora não. Já pedi, Nathaniel. — Um esboço de sorriso apareceu
em seus lábios enrugados.
— Perdão. Então me chame de Nathan, ok?
Sylvia sorriu mais abertamente, levantando-se devagar da cadeira. A
mulher seguiu até a porta de vidro e quando estava prestes a sair da minha
sala, virou seu corpo novamente para mim.
— Nathan, posso pedir uma coisa a você?
— Claro.
Uma expressão preocupada tomou seu rosto quando deu dois passos de
volta para dentro da sala.
— Liah vai precisar da ajuda de vocês em breve. Eu não sei o que houve
no passado entre vocês dois, mas sinto que você tem a chave para que ela se
abra para o mundo.
Ok! Chave para se abrir para o mundo?
Segurei um riso irritado junto de alguns palavrões, em respeito a mulher
mais velha.
— Sylvia, sinceramente, isso só faria sentido se fosse a chave para
despertar mais raiva nela — ri, desacreditado. — Eu não sei se sua neta
sabe exatamente o motivo que me faz não gostar dela, mas posso garantir
que é uma coisa meio irreversível.
— Existem poucas coisas irreversíveis nesse mundo, Nathan — Sylvia
apoiou os braços na minha mesa, abaixando sua cabeça para falar mais
baixo. — A morte é irreversível; palavras lançadas podem ser irreversíveis;
uma confiança quebrada pode ser irreversível. Mas como nos sentimos
sobre tudo isso, pode mudar dependendo da perspectiva que temos dos
fatos.
“Se tem uma coisa que aprendi com minha mãe ainda na infância, é que
existem alguns tipos de vínculos que são inquebráveis, mas são mutáveis.
Amor e ódio caminham lado a lado, e do mesmo jeito que o amor pode
virar ódio; o ódio também pode virar amor.”
Pisquei, confuso para suas palavras, mas antes que eu pudesse questioná-
la, a mulher seguiu a passos rápidos pelo corredor, sumindo ao virar para a
saída.
Ignorei totalmente as palavras malucas de Sylvia, e me questionei por
uns segundos se eu teria mais algum dia na vida sem ouvir ou falar sobre
Lianah; mas envolvido da forma que eu estava com a ONG agora, eu
precisava admitir que era impossível.
Derrotado com esse pensamento, resolvi me afogar no trabalho aquele
dia.
24 de abril de 2019
Um barulho irritante insistia em agredir meus ouvidos, e meu cérebro
levou alguns segundos para entender que meu celular tocava no fundo.
Droga, eu dormi não tem nem uma hora.
Abri meus olhos lentamente, vendo que nenhuma claridade atravessava
as grandes janelas de vidro do loft.
Relutante, tirei o celular da mesa de cabeceira me esforçando para
enxergar a tela com a visão turva de sono.
Ethan me ligando às 02:30h da manhã?
— Oi, Ethan — minha voz soou grossa e senti a garganta seca.
— Nathan, desculpa a hora cara, mas preciso de ajuda e não consigo
falar com o Tommy. — Embora o tom de Ethan parecesse ameno, eu podia
ouvir alguém chorando ao fundo.
— O que aconteceu? — Sentei na cama, sentindo-me totalmente
desperto agora.
— Eu estou no hospital com a Olie…
— Ela está bem? — interrompi preocupado.
— A Olie sim. É uma história complicada. Houve um incêndio na
Mansão Vittorino, e a Olie estava lá. Liah e a avó também estão aqui — o
leve tremor em sua fala indicava alguma preocupação. — Olie me ligou
quando estava vindo para cá na ambulância. Parece que avó da Liah teve
ferimentos graves. Você sabe como sou ruim para lidar com essas coisas,
com a Olie mal, não sei nem como começar a ajudar.
— Relaxa, eu estou indo para aí. Em qual hospital vocês estão? —
perguntei correndo para o banheiro, jogar uma água no rosto.
— No Hospital Metropolitano, no Centro. A Olie e a Liah estão em
observação. Vou te esperar na recepção.
Desliguei o celular preocupado, querendo ter certeza de que Olie estava
bem.
O ar frio da noite atingiu minha pele, me fazendo perceber que na pressa,
não consegui nem pegar um casaco. Mas chegar no hospital em pouco
tempo era a prioridade agora.
Dirigi como um louco e logo que cheguei, avistei Ethan sentado em um
dos bancos acolchoados na sala de espera principal.
— Ei, cara — chamei, sentando-me ao seu lado, percebendo seu olhar
derrotado e os olhos marejados.
— Porra, Ethan, não me diz que aconteceu algo pior com a Olie… —
meu coração disparou enquanto uma sensação gelada tomava minha
espinha.
— Ela está bem — me garantiu, apontando o dedo para o outro lado da
sala, onde um senhor baixinho e barrigudo abraçava Lianah. A menina
estava aos prantos. — A avó dela teve uma parada cardiorrespiratória pela
quantidade de fumaça em seu pulmão. Sylvia não resistiu.
Cocei a cabeça nervoso. Lianah estava longe de ser alguém por quem eu
teria qualquer sentimento bom, mas naquele momento tive empatia por ela.
Mesmo sem poder enxergar seu rosto, sua dor ficava evidente em cada
soluço alto que podia ser escutado na sala de espera.
— Não sei se eu era a melhor pessoa para vir te ajudar — avisei a Ethan.
— Eu entendo o que você sente, Nate. Mas pensa no que você sentiu
naquela noite. Você e eu entendemos bem a dor de perder alguém, sabe o
que ela está sentindo agora.
Pensei em tudo que Lianah desencadeou na minha vida. Perder alguém
era, de longe, a pior dor que eu já tinha sentido. Eu tive tantas pessoas boas
que me apoiaram quando precisei, imaginei se ela teria a mesma sorte.
— Quem é aquele senhor?
— Um amigo da família, era meio que um assessor da Sylvia. É a pessoa
mais próxima delas pelo que entendi. A família só queria saber do dinheiro.
— Ethan explicou.
— Esse é o tal Walter? — perguntei, lembrando das poucas vezes que
falamos com ele por telefone quando estavam avaliando nossa proposta
para o sistema das lojas.
Ethan assentiu enquanto um homem alto e de meia-idade, usando um
jaleco branco, atravessou a porta grande que dividia a recepção da parte
interna do hospital.
— É o médico que está atendendo a Olie. — Ethan pôs-se de pé
rapidamente, acenando para o médico.
— Sou o Doutor Richard, vim dar notícias da sua amiga — o médico
olhou para Lianah abraçada ao homem antes de continuar. — Olívia está
bem. Vocês podem entrar para vê-la se quiserem, mas sua amiga ainda não
sabe sobre a Sylvia, não tenho nenhuma restrição caso queiram contar.
Olivia está em observação, mas das três é a que está melhor.
— Liah está bem? — Ethan perguntou voltando o olhar para a garota que
agora estava sentada em um dos bancos, com a cabeça afundada entre as
mãos.
— Ela inspirou bastante fumaça tentando tirar a avó de lá antes dos
bombeiros chegarem, mas ela vai ficar bem sim — o médico garantiu,
dando um tapinha no ombro de Ethan. — Querem entrar para ver Olivia
agora? Seria melhor se fosse um de cada vez.
— Ela não deveria estar de repouso? — perguntei, observando a menina
junto ao senhor do outro lado.
— Liah estava muito nervosa lá dentro, mas já avisei que deve passar a
noite aqui em observação. Não precisa se preocupar com sua amiga,
estamos de olho nela — o médico chamou uma das enfermeiras que
passava na hora e informou algo a ela apontando para Lianah.
— Pode ir Ethan, eu entro depois, vou falar com ela — apontei para a
garota.
— Nathan, tem certeza disso? — Ethan perguntou preocupado.
— Não vou brigar com ela, só quero ajudar de alguma forma — Revirei
meus olhos para sua preocupação exagerada.
Ethan deu de ombros, seguindo pela porta com o médico. Suspirei e dei
alguns passos em direção à loira. O homem barrigudo percebeu minha
aproximação e abriu espaço, imaginado que eu conhecia a menina.
Ajoelhei-me a sua frente, tentando ficar na mesma altura que ela.
— Lianah — chamei baixinho.
— Vou buscar uma água para ela — o homem avisou saindo de perto.
— Liah — tentei novamente, vendo a garota levantar a cabeça e me
encarar. Seus olhos, extremamente azuis, estavam vermelhos e inchados
pelo choro. Várias lágrimas desciam pelo seu rosto. Vim tentar ajudá-la de
alguma forma, mas agora que estava aqui, não sabia o que dizer. — Eu sinto
muito! — foi tudo o que saiu da minha boca.
Um suspiro profundo cortou seu choro e a menina voltou a afundar a
cabeça em suas mãos.
— Tem alguma coisa que eu possa fazer para te ajudar agora? —
perguntei querendo ser útil, mas Liah apenas negou com a cabeça, deixando
escapar alguns soluços.
Exalei, sabendo exatamente o que ela estava sentindo. Parte de mim se
incomodava profundamente por vê-la assim, tão exposta e triste.
Normalmente, aquela mulher tinha um ar tão alegre, que chegava a ser
irritante.
Sentei-me na cadeira ao seu lado, tentado a abraçá-la. No entanto, meu
lado racional me alertava o quão estranho seria isso, dada a nossa situação.
O homem que a acompanhava retornou com um copo descartável cheio
de água, tentando oferecer a ela, embora sua reposta fosse apenas uma
negação de cabeça.
— Liah, minha filha, o médico disse que você precisa ingerir muita água.
A garota parecia nem ouvir o homem, totalmente inerte e absorta em seu
choro contido. O homem me olhou pedindo algum tipo de ajuda silenciosa.
Cara, sou a última pessoa que ela ouviria.
A contra gosto, levantei-me da cadeira e peguei o copo de sua mão.
Ajoelhei-me novamente em frente a ela, puxando devagar uma de suas
mãos de seu rosto. Lianah me encarou com os olhos inchados e vermelhos,
enquanto limpava algumas lágrimas com o dorso da outra mão.
— Liah, você inalou muita fumaça. Bebe essa água… — ofereci o copo
a ela.
Ela franziu os olhos confusa, mas pegou o copo em seguida, tomando em
poucos segundos todo o conteúdo. Sua mão tremula me devolveu o copo.
— O que você está fazendo aqui?
Sua voz soou muito baixa, entrecortada pelo choro sentido.
— Ethan me ligou pedindo ajuda, mas se você preferir posso ir embora
— avisei, tentando evitar qualquer briga ou deixá-la ainda mais
desconfortável.
— Não precisa fazer isso, Nathan — ela voltou a me olhar nos olhos. —
Você nem gosta de mim.
Respirei fundo, desviando meus olhos dela. Liah tinha razão, mas eu não
era tão babaca a ponto de tratá-la mal nessa situação.
— É difícil acreditar às vezes, eu sei, mas eu também tenho um coração,
Lianah — tentei um sorriso fraco, disfarçando meu incomodo.
— Só por hoje, seria possível me chamar de Liah? — ela pediu, voltando
a enterrar a cabeça em suas mãos.
Voltei a me sentar na cadeira ao lado dela, incerto sobre deixá-la aqui
sozinha ou não. O homem que estava com ela havia sumido desde que
peguei o copo de água dele. Ficamos sentados em silêncio por mais alguns
minutos. Os únicos sons ouvidos eram os pequenos soluços e suspiros da
garota, enquanto chorava ao meu lado.
— Isso que você está sentindo agora… — disse quando percebi seu
choro mais calmo. — Você aprende a controlar com o tempo.
— Claro, porque é muito fácil aprender a viver com a dor — Liah
respondeu ácida, secando algumas lágrimas com o dorso da mão direita. —
Eu sei bem o que é conviver com essa porcaria de dor, Nathan. Desde os
meus dezessete anos eu lido com a porra da dor de ter perdido minha mãe.
Eu sabia que a mãe dela tinha morrido, ouvi isso em alguma conversa
dos caras em algum momento. Não tinha ideia do que aconteceu com o pai
dela e também não perguntaria. Mas a questão é que nunca pensei que ela
também conhecia essa dor, que ela entendia o que era perder alguém, perder
a esperança.
A verdade é que eu me afundava tão intensamente naquele poço sem
fim, que já era quase incapaz de enxergar a superfície. Tudo que eu podia
ver e sentir era a água escura e espessa na qual me afogava diariamente.
— Eu também perdi alguém — desabafei, totalmente incerto do motivo
de estar falando aquilo. Ela não ia querer saber das minhas merdas logo
agora que estava vivendo o luto dela.
— Ainda dói? — Lianah perguntou me surpreendendo.
Dói! Dói para caralho, Liah!
— É mais fácil lidar com o tempo — tentei uma resposta mais otimista,
sem querer que a garota se afundasse como fiz naquele poço escuro.
— Não precisa mentir. — Liah mordeu o canto do lábio, mantendo o
olhar perdido a sua frente. — Eu ainda sinto falta da minha mãe todos os
dias. Sinto meu coração doer toda vez que penso que nunca mais vou
escutar a voz dela.
Era no mínimo curioso que das únicas pessoas que podiam me entender,
ela fosse uma delas. Lianah nunca entenderia a parcela de culpa que tinha,
mas ela entendia exatamente como eu tinha sido afetado e as reações que
aquela perda acarretou na minha vida.
Pela primeira vez, parecia fazer sentido falar, porque alguém do outro
lado me entenderia de verdade.
— Eu ainda sinto como se meu coração fosse arrancado do meu peito
todos os dias — soltei arfando.
Liah ajeitou o corpo, recostando as costas na cadeira desconfortável da
recepção e voltou a secar mais lágrimas com as pontas dos dedos.
— Eles nunca entenderam essa dor, não é? — uma risadinha triste e
inconformada escapou dela. — Por mais que as pessoas queiram ajudar, por
mais que desejem que tudo vá ficar bem, nenhum deles consegue entender o
que você sente.
A última frase não era uma pergunta. Liah sabia tão bem quanto como
era guardar esse tipo de sentimento, porque ninguém conseguia entender
aquela dor. Ethan havia perdido a irmã mais nova de um forma bem
dolorida, ele me entendia, mas evitava falar tanto quanto eu.
Eu nunca havia conversado diretamente com ela antes. Tinha meus
motivos para manter a maior distância possível, e mesmo assim, com duas
perguntas ela conseguia me entender. Liah conseguia entender a
profundidade do que eu sentia.
— Se eu puder fazer qualquer coisa para ajudar… de verdade… — tentei
desviar o foco daquela conversa. Me incomodava muito falar do que
aconteceu, ainda mais com ela.
— Mia e sua tia te ajudaram, não foi? — não tinha certeza sobre o que
ela queria saber, mas minha expressão confusa quando seus olhos
avermelhados me encararam, deixou isso claro a ela. — A superar tudo.
Ajudaram. Elas haviam sido uma parte importante da minha superação,
assim como todos os meus amigos. Mas tinha outra peça, alguém que me
puxava do fundo do poço com mais frequência do que eu esperava.
— Elas foram importantes para mim o tempo todo. Minha tia teve um
período ruim pelo tempo que fiquei no hospital — não sei o quanto ela
sabia sobre aquilo, mas acreditava que Olie já deveria ter soltado alguma
coisa para a amiga. — E Mia ainda era um pouco imatura para entender
tudo que estava acontecendo. Carlton, o marido da minha tia, foi a pessoa
que não me deixou definhar de verdade.
— Você teve alguém — duas lágrimas grossas escaparam de seus olhos e
eu quase podia ver a dor que brilhava neles. — Eu não tenho mais ninguém,
Nathan. A vida me tirou todo mundo.
O desespero não levou nem dois segundos para tomar conta de mim.
Eu desejei isso.
Desejei que a vida tirasse tudo dela quando nem sabia quem ela era de
verdade.
A dormência que começava a subir pela minha espinha era conhecida.
Meu ar começou a faltar…
— Liah! — um grito alto ecoou na porta quando Karol e Evie entraram
correndo até a amiga. — Você está bem? — Karol abraçou Lianah e a
garota apertou os braços em volta do pescoço da ruiva, chorando ainda
mais.
— O que houve? — Evie me perguntou baixinho.
— A avó dela morreu — contei, tentando me afastar dali. Aquelas
imagens me traziam lembranças ruins. Evie me olhou aterrorizada. — Eu
preciso sair daqui, Evie, esse clima não me faz bem — avisei, já seguindo
em direção à saída do hospital.
Eu me segurei por muito tempo para não deixá-la ali sozinha, mas sua
última constatação me fez perder o controle das minhas emoções de novo.
Passei pela grande porta de entrada do hospital e sentei-me em um dos
degraus da escada de acesso, puxando o ar com força. Aquela sensação de
vazio no meu coração e o aperto no meu estômago estavam ficando mais
intensos. Era o início de uma crise.
Sem que eu tivesse controle, algumas lágrimas escaparam de meus
olhos.
Porra, Nathan. Ninguém precisa que você tenha uma crise agora.
Fechei meus olhos, focando na minha respiração, quando alguém me
abraçou pelo pescoço.
— Vai ficar tudo bem — Karol estava sentada no degrau de cima, com
os braços em volta de mim.
— Esse clima de merda me afeta muito — confessei. — Até o cheiro de
hospital me faz mal.
Eu desejei aquilo. Quando fiquei tão sem coração?
— Eu sei, Nate — ela deixou um beijo na minha bochecha antes de me
soltar e sentar no degrau da escada ao meu lado. — Você tem conseguido
controlar melhor suas crises.
Eu precisava agradecer ao Doutor Emerson por ter me ensinado a
controlar a respiração e focar sempre nas coisas boas da minha vida, caso
contrário, já estaria quebrando o hospital agora.
— Acho que fiz mais progresso em uma única sessão com o Doutor
Emerson do que todas as outras juntas que já tentei — tentei esboçar um
sorriso.
— Quem é esse? — Karol perguntou com um vinco em sua testa. — Não
me diga que é um psicólogo?
— Pior que é — confirmei. — A Olie que encontrou o cara e
praticamente me obrigou a ir. Mas gostei dele.
— Isso é mesmo algo incomum — Karol me lançou um sorriso aberto,
então olhou para dentro do hospital. — Liah está bem mal. Eu e Evie vamos
tentar ajudar com a burocracia necessária para o velório e o enterro da Dona
Sylvia. Você e Ethan podem ficar de olho nela e na Olie essa noite?
— Karol, não tenho certeza sobre conseguir me envolver nessa situação
toda. Tenho medo do quanto isso me afeta. Lidar com hospital, morte e esse
drama todo… — respirei fundo, passando as mãos pelo cabelo. A
inquietação voltava a tomar conta de mim. — Ninguém conseguiu falar
com Tommy?
— A Evie conseguiu na hora que estávamos vindo para cá. Ele estava
com alguém, então atrapalhamos um encontro. — Karol riu baixinho,
sabendo o quanto Tommy odiava ser interrompido nesses momentos. —
Mas nesse caso, ele concordou que foi por uma boa causa.
— Vou esperar Thommas chegar e ver se ele pode ficar aqui com Ethan.
Se quiser, pode ficar lá dentro com as meninas. A Lianah vai precisar de
companhia — avisei.
— Tem um tempo que a gente não conversa, me conta como você está
— pediu, ignorando o que disse sobre ficar lá dentro. Ela não entraria
enquanto não tivesse certeza sobre eu estar bem. — Soube que você
também está dando um curso na ONG.
— Pois é. Parece que a teia da Lianah envolveu todo mundo. Desisti de
tentar manter distância — contei a contra gosto. — Na verdade, parece que
na ONG eu raramente encontro com ela, e a gente nunca se fala mesmo.
Está mais fácil manter distância dela lá do que fugindo.
— Nathan, ainda não consigo entender essa sua implicância com ela —
reclamou, sacudindo a cabeça.
Encostei a cabeça no corrimão de ferro da escada, fechando meus olhos.
— Esquece isso, Karol. Eu me sinto péssimo em falar mal dela nessa
situação. A garota está lá dentro chorando pela morte da avó.
— Bem, você está certo sobre a teia dela envolver a todos. A Evie está
trabalhando com ela, a Mia com um curso de moda na ONG, e eu estou
planejando um de educação financeira para jovens — abri os olhos, vendo
Karol sorrir orgulhosa.
— Que bom que essa menina esteja fazendo algo de bom uma vez na
vida — reprovei.
— Definitivamente, você está bem — ela riu antes de levantar. — Vou
estar lá dentro se precisar de mim.
— Ok! — acenei para ela, vendo-a retornar para a recepção.
Uns minutos mais tarde, Tommy estacionou o carro em frente ao
hospital, correndo até mim.
— Como estão as coisas?
— Complicadas — suspirei irritado por ter que dar aquela notícia
novamente. — Olie está bem… — comecei pela parte boa. — Lianah
inspirou alguma fumaça tentando tirar a avó de casa, mas Dona Sylvia não
resistiu à fumaça tóxica no pulmão.
Tommy me olhou assustado, girando o corpo para os lados algumas
vezes.
— Isso é sério?
— Claro que é, Thommas. Eu ia brincar com isso? — Levantei
apressado, segurando seu ombro no lugar. — Para de girar de um lado para
o outro. Isso me deixa nervoso.
— As meninas estão lá dentro? — Tommy levou a mão a cabeça,
esfregando a nuca preocupado.
— Estão sim. Estava esperando você chegar para ver se pode ficar aqui
com o Ethan essa noite, de olho nelas. A Karol e a Evie vão ajudar a Lianah
com o que for necessário para o velório e enterro, mas eu não tenho
estômago, nem emocional para essa situação toda. — Sentei de volta na
escada, pedindo a Deus que Tommy assumisse isso por mim.
— Eu fico aqui, sem problema — Tommy sentou-se ao meu lado, me
empurrando com o ombro. — Quer companhia um pouco?
— Vou para casa. Preciso descansar, esses dias foram muito pesados para
mim. Acho que a pouca energia que eu tinha foi totalmente sugada por esse
lugar. Avisa a Olie que amanhã passo aqui para vê-la. — Apoiei a cabeça
nos joelhos, sentindo o cansaço acumulado.
— Se precisar de mim, sabe que é só me ligar. — Tommy levantou-se,
deixando um tapinha sobre minha cabeça e seguiu para a porta do hospital.
Eu precisava mesmo descansar, mas por alguma razão, não queria ficar
sozinho.
Qual a chance de Mia me atender a essa hora? Peguei o celular no bolso;
03:50h. Arrisquei uma mensagem.
Estacionei o carro em frente à casa da minha tia e vi Mia abrir a porta da
cozinha, me chamando com a mão. Entrei em silêncio, pedindo que
conversássemos apenas lá em cima.
— Ok, pode começar a me contar o que aconteceu? — Mia pediu assim
que fechou a porta do quarto.
Joguei meu corpo em sua cama, tentando me livrar do cansaço
excessivo.
— A casa da Lianah pegou fogo. Olie estava lá.
— Cacete! Está tudo bem com elas? — Mia se jogou ao meu lado
impaciente.
— Elas estão bem. Vão passar a noite em observação no hospital. Mas a
Dona Sylvia morreu — era a terceira vez que dava aquela notícia em menos
de duas horas. Em todas elas, senti meu estômago se revirando
desconfortavelmente.
— A Liah deve estar péssima, coitada — Mia me olhou confusa. — E
por que você está aqui agora?
Sim, ela estava. E por alguma merda de empatia que eu insistia em ter,
aquilo me incomodava mais do que deveria. No hospital, ao vê-la chorar tão
sentida daquela forma, uma parte de mim me repreendia por pensar na
garota como alguém ruim. Na verdade, uma parte de mim queria
reconfortá-la de algum jeito.
— Resumindo, Ethan me ligou e eu cheguei lá um pouco depois da
morte dela. Lianah estava arrasada. Nem preciso te explicar todos os
gatilhos que isso me causou.
— Ah, Nate! — Mia me abraçou, deitando a cabeça em meu peito. —
Você teve uma crise?
— Por incrível que pareça, não — acariciei seus cabelos da mesma
forma que fazia desde que ela era criança. — Só não queria ficar sozinho
agora.
— Estamos fazendo muito progresso. Você veio para cá ao invés de
encher a cara — senti o tremor de sua risada abafada contra meu peito.
— Você está muito engraçadinha, Mia. Precisa parar de dar ouvidos para
o que Olie e as meninas ficam falando de mim por aí — brinquei. — Aliás,
o que você estava fazendo acordada essa hora?
Alguns segundos de silêncio foram suficientes para entender que Mia
estava pensando em uma desculpa.
— Mia, você sabe que está demorando para responder, não é?
— Eu ia dormir na casa de um amigo, mas mudei de ideia — Mia falou
rápido demais, tentando esconder o rosto no travesseiro.
— Ah, nem vem, Mia — puxei seu pulso, levantando seu corpo do
travesseiro — Me conta isso direito, desistiu por quê?
— Ele é um cara complicado, Nate. E eu também prefiro fugir de
confusão.
— Tia Sophia sabia que você ia passar a noite fora? — perguntei
preocupado.
— Eu tenho quase vinte anos, Nathaniel — Mia bufou.
— Ok, senhora madura. Não está mais aqui quem falou — me joguei na
cama novamente. — Posso dormir aqui?
— Pode, claro — Mia se aconchegou mais uma vez em meu peito e
voltei a acariciar seus cabelos. — Quando você faz isso, eu sempre lembro
de você me protegendo do Ralph — Mia suspirou. — Queria que você
fosse meu irmão de verdade.
— Eu sou seu irmão de verdade, Mia — afirmei, beijando sua testa.
Liah
Capitulo 10
26 de abril de 2019
Era difícil entender tudo que estava acontecendo. Olívia estava sentada do
meu lado direito, Walter do lado esquerdo. A minha frente, a caixa
envernizada de madeira estava fechada.
Algum padre que eu não conhecia, dizia palavras desconexas para mim.
Várias pessoas apertavam meus ombros, me abraçavam ou seguravam
minhas mãos, mas não podia distinguir nenhuma delas. Minha mente era só
um borrão vazio.
Olhei para ela sem entender o que estava acontecendo. Algumas pessoas
presentes no enterro me encaravam, esperando uma reação minha. Dei de
ombros, sem ter ouvido sequer uma palavra do que tinha sido dito.
Não consegui mover um músculo que fosse desde aquela noite para
resolver qualquer coisa. O velório, o enterro, tudo foi organizado pelos
meus amigos. Eu estaria perdida sem eles.
Nathan fechou a porta, dando a volta e entrando no carro sem dizer uma
palavra que fosse. Sua expressão agora era indecifrável pelo óculos que
nunca deixava seu rosto e pela falta de comunicação.
Assenti, sem conseguir encará-lo por muito tempo. Não queria que
ninguém me visse daquele jeito.
— Mia queria estar aqui hoje, mas ficou presa em Westville, por causa de
um curso. Ela me pediu para pedir desculpa por ela.
— Vou levá-la para dentro. Ela precisa descansar. — Olie avisou, puxando
minha mão em direção a sua casa.
Apesar do meu estado aéreo, meu coração estava agitado. Eu não tive pai,
minha mãe morreu quando tinha dezessete anos e agora minha avó também
tinha me deixado. Eu estava sozinha, perdida no mundo, e se não fosse
pelos meus amigos, estaria totalmente sem apoio agora.
Sentia meu coração vazio, dilacerado. O pior de tudo era encarar que o
aviso constante de que as coisas ainda iam piorar, não me deixava em paz
nenhum segundo.
Separador
03 de maio de 2019
— Você vai voltar para ONG? — perguntou, sentando ao meu lado na cama
do quarto de hóspedes.
— Acho que vou trabalhar do hotel por um tempo. Ainda é difícil encontrar
as pessoas e ter todo mundo tentando te animar o tempo todo — expliquei,
sorrindo triste.
Eu não ouvia falar de Nathan desde o dia que nos trouxe aqui. Olívia tinha
cuidado em tudo que falava comigo, mas eu tinha muita coisa na cabeça
agora para me preocupar com a implicância dele comigo.
Eu sabia que todas elas tinham medo de me dar mais informação do que
deveriam quando o assunto era ele e esse mistério todo que o rondava.
Pensei na pouca informação que tinha sobre tudo que aconteceu com ele.
Lembro que Tommy mencionou um acidente uma vez. Eu tinha muita
curiosidade e vontade de perguntar, mas sentia que estava invadindo um
espaço que Nathan não gostava de compartilhar.—
— Tem razão. Nem sei porque perguntei isso… — tentei sorrir, mas meus
músculos do rosto estavam desacostumados com o movimento tinha alguns
dias.
— Não — neguei. — Não tenho cabeça para isso, Olie. Pede desculpa a ela
por mim, mas realmente não consigo pensar em ir para um bar agora.
09 de maio de 2019
Estava sentada no sofá de couro com Evie ao meu lado, encarando as três
figuras à minha frente. Doutor Estevem representava minha avó e o grupo
Vittorino. Doutora Penne, era minha advogada e da empresa. O terceiro
homem era Carlton Stuart, o tal tio do Nathan.
Eles tentavam me explicar o motivo do saldo das contas da minha avó e das
empresas dela terem amanhecido bloqueados.
Assim que Walter me telefonou pela manhã, percebi que todo o dinheiro da
Vittorino Company estava mesmo bloqueado. Não recebi nenhuma
notificação ou intimação que fosse sobre aquilo.
Evie havia dito que o IRS esteve na Consultoria, olhou alguns documentos
e se deram por satisfeitos, mas tirando aquilo, nada de estranho havia
acontecido.
— Acredite em mim, Lianah, ela não fez por vontade própria — o tal do
Carlton me respondeu.
— O que ela queria com você? — perguntei exaltada. — Sei que ela te
procurou antes de morrer.
— Sim. Ela me procurou e foi para pedir ajuda para se livrar desse
problema — disse suspirando.
Senti o peso nos meus ombros e minha garganta se fechar, impedindo que
eu absorvesse qualquer quantidade de ar. Ouvi Penne me chamando
algumas vezes antes de ter certeza de que minha mente estava tendo um
blackout total.
Droga.
Sorri sem jeito pelo sorriso aberto dele. Ou por ele ser bonito, não tive
certeza naquele momento. Seus músculos eram visíveis mesmo sobre o
jaleco branco, tinha a pela bronzeada e um cabelo loiro que denunciava seu
gosto pela praia. Provavelmente era surfista ou algo assim, o que me fazia
perguntar porque ele não estava em uma cidade litorânea.
— Minha amiga aqui desmaiou por não estar se alimentando direito — Olie
se adiantou em explicar.
— Olívia! — repreendi.
Senti o sorriso divertido de Olivia por todo o tempo ao meu lado, enquanto
aguardávamos na enfermaria. Olie aproveitou para me dar uma longa
bronca sobre a importância de me alimentar, já que, aparentemente, eu não
estava fazendo isso direito.
— Estou bem gente. Acho que foi só uma queda de pressão. Tem muita
coisa acontecendo agora. — expliquei calmamente a eles.
Percebi o olhar de Ethan fixado num ponto atrás de mim e virei o pescoço
de leve, vendo Doutor Raphael parado no balcão da recepção, olhando
atento para nós quatro. O médico direcionou um leve sorriso para mim
quando me pegou o encarando. Sorri de volta, com o rosto quente.
— Para mim? — Olie quase gritou. — Ele quase comeu a Liah com os
olhos lá dentro.
— Lá dentro eu não sei, mas aqui, ele não para mesmo de te olhar.
20 de maio de 2019
— Nate, me leva pra ver a Liah? — Triss pediu chorosa.
Estávamos sentados a uma das mesas de cimento no pátio da ONG, no
intervalo das aulas de Triss. Ao que parece, Mia havia contado para ela tudo
que aconteceu com Lianah e Olívia na noite do incêndio.
Todos os dias Triss tentava, insistentemente, que um de nós a levasse
para ver a amiga mais velha.
— A Lianah está super ocupada com alguns problemas de família. Daqui
a pouco ela volta a aparecer por aqui — tentei explicar, ciente da
impaciência da mais nova.
Agora que eu tinha uma relação mais próxima com Triss, eu conseguia
entender o quanto as duas tinham uma ligação diferente.
A garota suspirou irritada, voltando a se concentrar em seu lanche,
mantendo seu semblante triste.
Não era só Triss quem perguntava por ela. Joanna também vinha se
mostrando bem incomodada pela Diretora não aparecer na ONG por quase
dois meses, afinal já era fim de maio e Lianah continuava vivendo reclusa.
Olivia tinha tomado conta de toda a administração da ONG nos últimos
dias, mas seu estresse era evidente, já que tinha que conciliar todos os
problemas sozinha. Eu só soube depois disso, que apesar da empresa dela
ser bem lucrativa, o dinheiro que mantinha a ONG era de doações feitas
mensalmente por Sylvia Vittorino. Lianah e a avó tinham essas ações como
algo constante em suas vidas.
Era mais uma das informações da série: cômico, se não fosse tão
dramático.
— Nathan, por que você não gosta da Liah? — Saí de meus devaneios,
pigarreando pela pergunta direta de Triss, que me analisava com as
sobrancelhas erguidas.
— De onde você tirou que não gosto dela? — devolvi sua pergunta.
Triss arqueou ainda mais as sobrancelhas, com um deboche evidente
estampado em seu sorriso.
— Assim como ela não gosta de você. Você a chama de Lianah.
Ninguém na vida a chama assim. — Triss voltou a encarar seu sanduíche,
mas parou uma mordida no meio do caminho, lembrando de completar suas
colocações. — Ah, e você ignora propositalmente qualquer coisa que eu
fale sobre ela.
— São só suposições suas — sorri, mesmo sabendo que Triss nunca
engoliria essa minha resposta.
A garota largou o sanduíche sobre a mesa e me encarou pensativa.
— Sabe, Nate, antes da minha mãe morrer, mesmo quando eu era bem
pequenininha, ela sempre me dizia o quanto eu era observadora. Isso
sempre ficou muito forte na minha memória, e acho que comecei a observar
ainda mais as coisas. — Triss olhou para baixo, mexendo nervosamente as
mãos. — Tem coisas que, às vezes, eu não consigo acreditar que as pessoas
não vejam. Tipo o Ethan e a Olie e como eles se gostam, mas fingem que
não existe nada entre eles…
— Triss, para… — interrompi, pensando que sua linha de raciocínio
seguiria por um caminho onde ela achasse que eu tivesse sentimentos por
Lianah. — Se você está querendo dizer que tenho alguma paixão platônica
por ela, está totalmente errada.
Um sorriso crescente tomou seus lábios enquanto sacudia a cabeça.
— Eu nem ia dizer isso, mas só o fato de você se preocupar que alguém
pense algo assim, já diz muito coisa.
— Você é louca, Triss. Sabe disso, não é? — brinquei, fugindo do
assunto. Era mais fácil do que explicar meu real problema com a garota.
— Eu só ia dizer que, assim como é óbvio que Ethan e Olie se gostam, é
evidente que você e Liah tem um problema sério um com o outro — a
garota sorriu divertida. — Se eu contasse tudo que observo por aqui, você
surtaria, inclusive.
— Você tá falando do seu amigo do curso? Aquele que você não para de
olhar? — provoquei, me sentindo a porra de um adolescente por implicar
com uma menina de dezesseis anos.
Triss ficou vermelha e desconcertada, fazendo com que me arrepende-se
da brincadeira, mas ao contrário do que imaginei, ela não deixou o assunto
de lado.
— Você acha que olho demais pra ele? Será que ele percebeu? —
perguntou preocupada.
— Sabe que eu não deveria falar com você sobre isso, não é? Como seu
professor, e colaborador da ONG, eu deveria no mínimo dizer que você é
muito nova pra pensar nessas coisas. — Se Lianah e Olivia soubessem
disso, arrancariam minha cabeça fora.
— Com quantos anos você começou a namorar? — Triss estreitou os
olhos para mim. — Duvido que com dezesseis anos você fosse virgem
sequer.
Tossi, desacreditado.
— Triss, você precisa parar de andar pra cima e pra baixo com a Mia.
Sério! Você não pode ouvir as coisas que ela diz.
Devia estar muito louco quando resolvi me meter num processo de
adoção de uma garota de dezesseis anos. Não tinha saúde mental para
cuidar de mim, quem dirá de uma adolescente descobrindo o mundo agora.
Eu tinha uma reunião marcada com Joanna, para falar sobre a adoção e
alguma complicação que tinha surgido; o que já era esperado, mas me fazia
temer não conseguir no fim de tudo. Quanto mais tempo passava com Triss,
mais tinha certeza de que eu queria poder dar uma vida melhor a ela.
Acompanhei a mais nova até sua sala quando o sinal tocou, e logo ela
estava me surpreendendo de novo.
— Já que ninguém pode me levar pra ver a Liah. Você poderia pelo
menos dizer uma coisa por mim a ela?
— Ok, você venceu. — Rendido, notei seu sorriso mais satisfeito. — O
que você quer que eu fale com ela?
— Diz a ela que posso ser nova, e que sei que ninguém acha que tô
preparada pra falar sobre isso, mas perdi todo mundo que tinha muito cedo.
Sei pelo que ela tá passando. Se ela quiser conversar comigo, eu vou
entender tudo que ela quiser dizer. — A garota suspirou triste, sentindo
verdadeiramente a perda de Lianah.
— Vou dizer a ela.
Triss sorriu e seguiu para dentro da sala de aula, me deixando pensativo.
Engoli seco, pensando que eu também entendia a dor de perder pessoas
importantes, mas mesmo tendo algum tipo de empatia por Lianah, fui
incapaz de me mover para tentar ajudá-la de alguma forma.
Triss, sem saber, estava me ensinando mais sobre a vida do que fui capaz
de compreender sozinho em vinte e oito anos.
Encarei Joanna, ainda estático e pensativo sobre sua última informação.
Não esperava que um processo de adoção tendo vinte e oito anos apenas
seria fácil, tinha consciência de que iria encontrar complicadores no
caminho; mas era no mínimo estranho que um juiz de fora de Greenville
quisesse falar comigo pessoalmente.
— Você disse que seria mais fácil — comentei distraído, observando a
mulher retorcer o rosto.
— Uma adoção por Foster Care costuma ser rápida e fácil. A ONG é um
projeto privado que ajuda o Estado a desafogar custos, mas essas crianças e
jovens geram um custo alto para o Estado quando estão no sistema.
Arrumar tutores é sempre bom. — Joanna explicou nervosa. — Você
preenche todos os pré-requisitos, Nathan.
— E por que não foi aprovado? — Viollet, nossa advogada na App,
questionou por mim.
Eu havia feito de tudo nos últimos dois meses. Tive uma habilitação para
a adoção, havia preenchido milhares de formulários e memorandos
contando minha vida, dando referências de mim, e ainda tinha a parte
horrível de ter participado daquelas palestras com jovens que sofreram
maus tratos e abuso. Era meu pior gatilho.
Joanna, no entanto, já estava totalmente inclinada a me certificar como
Foster parent desde o início, quando contei a ela minhas motivações para
adotar Triss.
Um suspiro longo escapou da mulher a nossa frente, indicando que ela
tinha muito mais ainda a contar.
— Sei porque ele quer conversar com você pessoalmente, Nathan. Não
faz sentido ter uma pessoa certificada, com tantos jovens precisando de lar
temporário, e não autorizar.
Como tudo que acontecia nessa cidade, ele também queria a parte dele.
Era fácil prever o que ele realmente queria.
— Eu vou falar com ele.
— Nathan! — Viollet me repreendeu.
— Tem outro jeito? — perguntei a Joanna quando me lançou um sorriso
triste.
Sua cabeça maneou numa negativa ressentida.
— Então eu vou até lá…
— Nathan, isso é crime — Viollet insistiu. — Você pode ser associado
ao tráfico humano, exploração de menor…
— Viollet! — a interrompi consternado. — O que quer que eu faça? Que
eu deixe esses babacas rindo da nossa cara enquanto impedem essas
crianças de ter uma vida melhor?
— É crime! — voltou a dizer.
— Que está sendo encoberto pelas próprias pessoas que deveriam julgá-
lo.
— Meu Deus, como você é teimoso.
— Se ele quer dinheiro pra assinar essa merda de autorização, eu vou dar
dinheiro a ele, mas não vou desistir enquanto não conseguir a tutela da Triss
— levantei da cadeira irritado, pronto para sair da sala, mas travei meu
olhar em Joanna antes de continuar. — Como faço pra falar com esse
homem?
— Eu vou agendar uma reunião — ela garantiu reticente, amedrontada
pelo olhar repreendedor de Viollet.
— Me avisa quando estiver marcado — pedi, saindo da sala de Olie.
Olívia deveria estar naquela reunião, já que era a única pessoa que sabia
da minha solicitação, mas estava tão sobrecarregada que não podia cobrá-la
sobre o que quer que fosse.
No fim, havia sido bom, porque eu podia imaginar suas repreensões e
reclamações quando soubesse que eu estava disposto a contribuir para a
corrupção daquela cidade. Se Lianah soubesse disso, então, seria meu fim.
Me enfiei no auditório pelo resto da tarde, com meus pensamentos
totalmente tomados pela confusão que minha vida tinha se tornado.
Também tinha o choque de realidade que Triss me deu mais cedo. Eu
precisava aceitar que mesmo por cima de todo o ódio e ressentimento, o
estado de Lianah me lembrava muito o meu quando saí do hospital.
E se eu tentasse conversar com ela?
Desacreditado com meus pensamentos, sacudi a cabeça tentando me
livrar deles.
— Pelo visto, você estava bem longe agora — Olivia comentou, sentada
em uma das cadeiras do auditório.
— Há quanto tempo está aí? — perguntei assustado.
— Uns dois minutos. Mas te chamei duas vezes e você nem percebeu
que eu estava aqui.
Suspirei. Talvez eu estivesse mesmo enlouquecendo.
— Veio falar comigo? — perguntei ao me dar conta de que Olivia ainda
aguardava minha atenção.
Olie me entregou uma pasta com alguns documentos, me lançando um
olhar preocupado.
— Estamos com um sério problema financeiro. Não queria preocupar a
Liah com isso agora. Sylvia ainda não havia mandado o dinheiro do mês
quando morreu, e agora estamos apertados.
Encarei a garota confuso. Eu não era muito bom em finanças, por isso
contratamos Karol. Mesmo assim, abri a pasta olhando os extratos e boletos
bancários ali, mostrando as contas no cheque especial e muitos boletos com
valores altos.
— Lianah não está aportando nada, não é? Mesmo sem entender, isso
aqui parece bem feio, Olie.
Eu já imaginava que a ONG tivesse um custo alto. Olivia manteve seu
olhar preocupado no rosto, dando de ombros.
— Eu já tentei parceria com muitas empresas que tinha contato, e
consegui uma boa ajuda. Mas precisamos de muito pra manter o padrão.
Vou precisar cortar muita coisa daqui pra frente — contou triste.
— Esse é o custo médio mensal? — perguntei ao conferir o comparativo
de gastos nos documentos.
Olie assentiu, mordendo o lábio inferior.
— Vocês conseguem ajudar? — pediu desconcertada. — Evie pediu
ajuda aos pais, mas claro que eles negaram.
— Eu não sei quanto tempo vai levar pra Lianah resolver essa situação
da avó dela. — avisei tirando meu celular do bolso. Tirei uma foto do
extrato, onde estavam o número de conta e agência delas. — Vou ver o que
consigo fazer de imediato e vemos como fica depois.
Talvez eu tivesse finalmente arrumado uma finalidade para o dinheiro
podre do meu pai. Pelo olhar de Olie, ela sabia exatamente da onde eu
tiraria esse dinheiro.
— Liah não vai aceitar isso fácil — Olívia suspirou chateada.
Ela não tinha muita opção, na verdade. Elas precisavam de dinheiro, e eu
tinha dinheiro. Um dinheiro que não me importaria nada em gastar dessa
forma. Era uma equação básica.
— Diz a ela que a gente está doando nossos lucros da App. Vou falar
com o Ethan e o Tommy sobre isso.
Olie sorriu e me abraçou em seguida. Passei meus braços por seus
ombros, sentindo o alívio da garota.
— Você é uma pessoa incrível, Nathan. Queria que se lembrasse disso de
novo.
Fechei meus olhos, sentindo o conforto do abraço da minha melhor
amiga. Talvez eu estivesse finalmente disposto a lembrar.
27 de maio de 2019
Minha cabeça estava explodindo enquanto os barulhos altos do salto
batendo no chão martelavam em meu cérebro.
— Liah, você tá ouvindo?
— Estou!
Precisei manter a mente lúcida pela última hora, ouvindo Olívia me
atualizar sobre a empresa e sobre a ONG.
Na última semana, os bens e as contas da consultoria também haviam
sido bloqueados na investigação.
Eu estava numa maldita montanha-russa, em queda livre infinita.
— Liah, estou preocupada. Sei que você tem muita coisa para pensar e
resolver agora, mas precisa reagir. Você precisa sair desse quarto de hotel,
pegar um sol, caminhar um pouco.
Olie correu até a janela, abrindo as cortinas cumpridas, deixando que a
luz do sol entrasse no quarto. Cobri os olhos doloridos e afetados pela
claridade repentina.
Relutante, tirei os cobertores de cima de mim, forçando-me a levantar.
Eu tinha que ir para a ONG, Joanna já havia me ligado umas dez vezes essa
semana, querendo que eu aparecesse por lá para resolver alguns assuntos.
— Eu vou pra ONG com você — avisei a Olie, ignorando seu início de
sermão.
— Ótimo. Quem sabe assim você começa a reagir. Aquele lugar está um
caos sem você, amiga — sua voz esbanjando alívio ao me ver querendo sair
daquele quarto.
Eu só conseguia fazer um caminho nos últimos dois meses, e era um
caminho com menos de dez metros entre a cama e o banheiro.
— Olie, e como estão as coisas financeiramente? Sem os aportes que
fazíamos… o custo da ONG é caro… Eu já tentei pensar em formas de
levantar dinheiro… — talvez esse fosse mesmo meu primeiro momento de
lucidez desde que vovó morreu.
— Relaxa, Liah. Vários parceiros nossos estão cientes da situação e
estão ajudando. Os meninos estão cobrindo todos os custos necessários.
Fizemos alguns cortes, sim, mas a essência da ONG está mantida.
— Os meninos? — perguntei confusa.
Olivia sorriu preocupada, parecendo pensativa em me contar alguma
coisa.
— Olha, você pode até não gostar, mas Nathan propôs aos meninos
doarem todo o lucro deles do ano passado que seria distribuído entre eles
agora. Temos fundo pra segurar a ONG por alguns meses.
Refleti por alguns segundos. Minha mente era um emaranhado de
informações e preocupações que estavam me enlouquecendo, e não me
parecia saudável ou válido brigar sobre isso agora; não quando a ajuda
deles estava mantendo a vida daquelas crianças enquanto eu não podia.
Assenti, ainda surpresa, antes de seguir para o banheiro tomar um banho.
A água quente me fez relaxar um pouco, embora fosse suficiente apenas
para mandar embora a dor física que acometia meus músculos. Nada era
bom o suficiente para mandar embora a dor que rondava meu coração.
“Sua avó não resistiu. Sinto muito, Lianah. Ela inalou muita fumaça…”
Aquelas palavras não saíram da minha cabeça por nenhum momento
sequer pelos últimos quase dois meses.
Ainda era difícil imaginar um mundo onde Dona Sylvia não estaria mais
presente para me encher de sermões, ou me fazer passar raiva com
pequenas coisas do dia a dia. Vovó tinha tanta vitalidade e era uma das
pessoas mais divertidas que conheci em toda minha vida. A cada dia,
parecia que meu luto só aumentava.
Mesmo com todo o peso da perda e aquelas lembranças martelando
minha cabeça, terminei de me arrumar, resistindo a vontade de voltar para a
cama e dormir.
Quando me aproximei da porta que separava o quarto da pequena sala do
apartamento do hotel, ouvi Olie conversar com alguém, em e surpreendi
com a voz que escutei, abrindo a porta em seguida. Nathan estava sentado
no sofá ao lado de Olivia.
— Você era a última pessoa que esperava encontrar aqui — falei sem
pensar. — Aconteceu alguma coisa?
— Posso ir embora se preferir — avisou irritado, apontando a porta. —
Mas só vim aqui porque a Triss me pediu muito pra falar com você.
Reprimi a vontade de mandar que ele fosse embora. Ou para algum lugar
bem pior. Abri o frigobar, tirando uma garrafa de água de lá.
— A Olie me disse que ela está chateada porque eu não tenho aparecido
por lá.
— Não é só isso, Liah — Olívia explicou. — A Triss sabe o que você
está sentindo. Ela tem um coração enorme e acha que você pode desabafar
com ela.
— É lógico que a gente explica a ela que tem coisas que ainda é muito
nova pra entender, mas ela insiste em querer falar com você, diz que ela tem
idade suficiente pra entender essas coisas da vida — Nathan completou. —
A Olie me disse que você vai estar na ONG hoje. É bom você saber que ela
vai tocar no assunto com você.
Pensei no quanto não queria e não estava pronta para falar sobre a morte
de vovó. Debater incessantemente o assunto dentro da minha cabeça, já era
suficiente para me fazer mal. Triss já tinha passado por isso, e esse era o
motivo pelo qual não gostaria de falar com ela sobre o assunto. Dizer tudo
que queria para alguém que me entendia, parecia ser ainda mais dolorido.
— Liah, tá tudo bem? — Olie me olhou preocupada.
— Está sim — peguei minha bolsa sobre o sofá, conferindo se tudo
estava dentro dela. — Vamos logo. A Joanna marcou uma reunião comigo
às 10:00h — abri a porta do quarto, já me dirigindo ao corredor.
— Lianah — a voz grave e rouca de Nathan me fez parar na porta. Virei
novamente, vendo-o dar alguns passos em minha direção. — Sei que deve
ser difícil pra você falar sobre isso. Eu também guardei muita coisa comigo,
por muito tempo. Minha vida toda foi uma sucessão de perdas e
acontecimentos ruins e guardar essas coisas só me tornou uma pessoa
amargurada e triste. Não guarda esses sentimentos dentro de você, existe
uma probabilidade enorme de você se tornar o que eu me tornei assim.
Engoli seco, sem ter uma resposta. Algumas lágrimas começaram a se
acumular em meus olhos. Nathan complacente era uma evidência de que
todos tinham pena de mim. E eu odiava que tivessem pena de mim. No
entanto, não poderia culpá-lo ou ser grossa com ele por isso. Apenas
assenti, tomando meu caminho de volta ao elevador.
Fui para ONG de carona com Olivia, já que até meu carro havia sido
apreendido. Meus dias seriam corridos, embora Olie tivesse se virando para
manter tudo no lugar e funcionando, eu tinha alguns assuntos a resolver
com Joanna e muitas reuniões por fazer com os advogados da minha
empresa e da família para tentar resolver os bloqueios da Vittorino
Company.
A segunda reunião com o advogado da vovó, aconteceu na segunda a
tarde. Doutor Steven era um advogado especializado em causas
empresariais e tinha um bom conhecimento sobre causas corporativas. Vovó
trocou os advogados dela a cerca de uns três anos atrás, e eu começava a
desconfiar que ela sabia que tinha algo errado com o grupo Vittorino.
Doutor Steven me colocou a par de todos os detalhes da investigação, me
deixando bastante surpresa com tudo. Hoje, bem mais calma do que em
nossa primeira reunião, era mais fácil entender o que ele falava.
— Lianah, sua avó me procurou há alguns anos, pedindo uma auditoria
nas contas das empresas do grupo. De fato, encontramos muitas
irregularidades e sanamos a maioria delas. Acontece que sua avó escondeu
algumas coisas de nós. — o homem serviu-se de mais uma xícara de café
antes de continuar. — Depois que as contas foram bloqueadas, iniciamos
uma investigação interna e descobrimos que existiam transações ilícitas
relevantes nas contas da Companhia. E sua avó sabia disso.
— Desculpa, Doutor, mas eu não acredito que minha avó faria algo
errado nesse nível — reclamei, com medo de estar errada.
— Eu também duvido, Lianah — o advogado pegou uma pasta sobre sua
mesa, entregado em minhas mãos. — São documentos que mostram uma
série de pagamentos irregulares feitos em nomes que nem existem. Existe
uma investigação acontecendo, pelo FBI, por se tratar de um crime que
envolve lavagem de dinheiro, e essas provas vão ser atreladas. Só o que
sabemos é que ela procurou o Carlton antes de morrer, e contou que sempre
foi coagida a participar desse sistema de tráfico.
Suspirei, sem entender como isso havia tomado uma proporção tão
grande. Em um dia, eu era feliz e tinha dinheiro para nunca mais precisar
me preocupar na vida. No outro, minha avó estava morta e todo o dinheiro
não existia mais. Embora o dinheiro não fosse prioridade em minha vida,
preciso confessar que me sentia insegura pela primeira vez.
— E como as coisas ficam agora? — perguntei com receio da resposta.
— Existe alguma coisa, algum lugar que você ache que sua avó poderia
guardar alguma prova, alguma evidência sobre estar sendo coagida? A
gente precisa explorar tudo que for possível pra achar algo a seu favor.
— Não tenho ideia — confessei. — Preciso pensar um pouco sobre isso.
— Fique à vontade pra me ligar em qualquer momento. Saiba que
estaremos aqui fazendo tudo que estiver ao nosso alcance pra resolver esse
caso.
— Obrigada. Se eu pensar em alguma coisa, volto a entrar em contato —
despedi-me dele e sai de lá com a cabeça ainda mais cheia do que antes.
31 de maio de 2019
01 de junho de 2019
Só ontem à noite tinha me dado conta de onde conhecia aquele olhar
aterrorizado. Um episódio totalmente esquecido na minha mente, mas que
explicava todo o conceito babaca que ele mesmo criou para si.
Passei a noite me convencendo de que estava errada, mas ao olhar para
ele assim que cheguei na ONG, eu tive certeza. Faria todo sentido, já que
ele insistia em me odiar por algum passado que ele mesmo não queria falar.
Nathan continuava carregando as caixas, escada acima, até a cozinha.
Olie estava junto do amigo quando me aproximei deles.
— Olie! — chamei inquieta. — Será que você consegue me ajudar com
a conferência das lembrancinhas das crianças? — supliquei, esperando que
eu pudesse falar com ele a sós.
Olie olhou de mim para Nathan, como se precisasse obter uma
confirmação de que não nos mataríamos, mas devido as últimas
descobertas, não tinha certeza de que podia confirmar aquilo.
— Vai, Olie! — Nathan apontou a saída com o queixo para ela, que
mesmo desconfiada, seguiu para a salão principal.
Ótimo! Só tínhamos nós dois na cozinha.
Como se pressentisse toda a merda, Nathan desceu a escada em busca de
mais caixas no caminhão.
Fui atrás dele.
— Você nunca disse por que me odeia — apontei, empurrando de volta a
caixa que ele puxava no chão.
— Qual é Lianah? Por que isso agora? — Nathan respondeu irritado,
puxando a caixa com força novamente, mas antes que ele pudesse levantar
o papelão grosso do chão, sentei por cima dela.
— É por que você tem medo de que eu conte a seus amigos que você é
um grande babaca? — provoquei despretensiosa, vendo seus olhos muito
azuis se arregalarem para mim.
— Então agora você lembra? — sorriu irônico, cruzando os braços e me
dando toda a sua atenção.
— Lembrei ontem à noite — confidenciei. — Quando você agarrou meu
braço, lembra? — Mostrei a ele a pequena marca vermelha em meu pulso.
— Eu estava quase tendo uma crise, Lianah! — Nathan desviou seus
olhos envergonhados do meu pulso, visivelmente abalado pelo pedaço de
pele marcado. — Não me orgulho disso.
— Mas se orgulhou naquela noite? Quando tentou colocar a garota no
carro a força? — provoquei-o.
Nathan descruzou os braços e apertou as mãos em punho ao lado do
corpo. Os nós de seus dedos estavam esbranquiçados devido à força com
que mantinha os punhos fechados; seus olhos perderam a profundidade, da
mesma forma que aconteceu ontem à noite. Ele estava irritado, mas eu
precisava entender o que fiz de errado, quando tudo apontava que o errado
era ele.
— Eles sabem o que você fez? — voltei a sondar.
— Cala a boca, Lianah! Você não tem noção da merda que está falando!
— sua voz exasperada atraiu a atenção de Karol, que saía pela porta dos
fundos naquele exato momento.
A ruiva voltou para o interior do prédio, provavelmente pedindo ajuda
para tirar a gente um de perto do outro.
— Me explica então — gritei. — Que merda foi que eu fiz? Porque a
única coisa que fiz foi ajudar aquela garota.
— Liah! — Mais rápido do que imaginei, senti o braço de Ethan
atravessar minha cintura enquanto me puxava para trás, preocupado. — Sai
de perto dele, agora.
— Sair? Por quê? — olhei para Nathan ainda estático a minha frente. —
Qual é Nathan? Fala pra eles porque você me odeia. Diz de onde me
conhece! — implorei, acreditando que depois disso, eles iam parar de
pensar que nossos conflitos são infantilidades. Afinal, eles saberiam o
babaca que o amigo é.
— Liah, não faz isso — Ethan me sacudiu, tentando me fazer entender
que deveria parar. — Sério, melhor deixar isso quieto.
— Você nem sabe do que eu tô falando, Ethan — gritei, me soltando
dele. — Fala logo, Nathan.
— Quer saber?! Você tem razão! — O tom de Nathan me assustou. Sua
voz era baixa, grave e cansada. E mesmo assim, nunca me pareceu tão
ameaçadora antes. — Eu conto para eles, Lianah! Sou um babaca, machista
e abusivo porque tentei enfiar uma garota a força no meu carro. É isso, não
é?
Seu sorriso cínico cresceu à medida que vi a compreensão atingir os
olhos de cada um de nossos amigos ali.
— Era você e eu só lembrei disso ontem à noite, quando você ficou
transtornado. Nunca me esqueceria dos olhos daquele cara. — Meu corpo
inquieto insistia em peitá-lo, mas era impedido pelo braço de Ethan, que
continuava me mantendo a uma distância segura de Nathan.
— Caralho! — ouvi a voz de Olie interrompendo a discussão. — A Liah
é a garota que apareceu no dia que Nathan foi buscar a Camille.
Uma sucessão de palavrões começou a ser dita por Tommy que, até
então, parecia o único sem entender o ponto.
— Quer saber mesmo o que aconteceu, Lianah?
O tom de voz de Nathan continuava me amedrontando. Nunca o vi usar
um tom tão contido e sério antes. Seu rosto, usualmente bonito, estava
contorcido por uma dor que não podia entender. A escuridão de seus olhos
se tornou mais intensa, e o brilho mais opaco. Ele estava entrando em crise,
de novo. Mesmo assim, sua voz continuou soando assustadoramente
tranquila enquanto meu coração começava a bater mais forte.
— Eu devia ter morrido naquela noite. A vida de todo mundo seria mais
fácil se tivesse sido assim. A garota que eu tentava colocar no carro era a
Camille, minha ex-namorada, mas você já deve saber disso. O que você não
sabe é que eu tinha autorização da mãe dela, tinha a intervenção assinada
pelo psiquiatra e pelo juiz no porta-luvas do meu carro, mas não deu tempo
de pegar nada antes de me colocarem a força naquela viatura.
A dor em seus olhos era evidente, até seu tom de voz era mais sofrido
agora. E na mesma hora entendi o que aconteceu. Todas as histórias que
ouvi sobre a Camille e como aquilo tinha o afetado, como ele se culpava
por não conseguir impedir… tudo passou a fazer sentido.
— A mãe dela sabia que ela não estava bem. Todo mundo sabia que ela
não estava bem. Prometi que ia cuidar dela e da criança… eu só queria meu
filho bem… — Nathan respirou fundo, adiando sua irritação para que
pudesse me contar o que aconteceu. — Eu estava desesperado porque ela
tinha se drogado aquela noite; uma amiga dela me avisou. Emma me deu os
papéis da intervenção e pediu pra eu ir atrás dela. Mas você apareceu.
Podia sentir seus olhos em mim, mas a essa altura, não tinha mais
coragem de olhar para ele.
— Depois que me colocaram na viatura, a Camille teve o caminho livre
pra continuar se drogando pela noite toda. Ela quase teve uma overdose e
perdeu o bebê.
— Eu não sabia que ela estava se drogando — parei de falar ao perceber
que nada que eu pudesse explicar, apagaria o que causei. — Você sofreu um
acidente aquela noite?
— Acidente? — Nathan soltou um riso ácido, apontando para o meu
pulso, fazendo a marca vermelha de seu aperto latejar na minha pele. —
Transtorno de estresse pós-traumático, seguido de acesso de raiva. Essa é a
porra da consequência de ter sido espancado por aqueles policiais até que
eu estivesse praticamente morto.
— Esse foi o acidente? Eles bateram em você? — minha voz saiu
entrecortada e muito baixa pelo horror que sentia agora.
Senti seus olhos cravados em mim, enquanto ainda mantinha minha
cabeça baixa, e outro suspiro longo escapou dele, seguido pelo silêncio
dramático de alguns segundos até que ele resolvesse responder.
— Três costelas quebradas, fratura exposta da tíbia, rompimento dos
ligamentos nos dois pulsos, traumatismo craniano e duas paradas cardíacas
antes mesmo de chegar ao hospital. Todos os médicos disseram que foi um
milagre.
O nó em minha garganta aumentou e não pude mais conter as lágrimas
que segurava desde que tinha me dado conta de como influenciei a história
dele. Ele tinha mesmo motivo para me odiar. Eu havia entendido tudo
errado, mas parecia tão ridículo pedir desculpas agora.
Podia sentir a tensão de todos. O silêncio total me incomodava, e me
fazia pensar que todos achavam o mesmo.
Eu era culpada de tudo.
— Eu não sei o que dizer — estava em choque. — Eu entendi tudo
errado. Sinto muito… — minhas palavras morreram quando vi Nathan
seguir em direção à parte da frente do prédio.
No segundo seguinte, meus joelhos penderam no chão e chorei como
nunca havia chorado antes em toda minha vida.
— Liah, você não tem culpa. — Ethan ajoelhou-se ao meu lado tentando
me consolar.
— Claro que tenho. Você ouviu… — não conseguia falar sobre o choro
que saía copiosamente de meu peito.
— Você não tinha como saber — senti seus braços envolta de mim —
Foi uma fatalidade. Ele sabe que perdeu a cabeça naquele dia.
— Ele podia ter impedido se eu não… — tentei dizer, mas os soluços
não permitiam.
Ethan me levantou enquanto Karol o ajudava. Vi que todos ainda
estavam ali, com exceção de Tommy, que foi atrás de Nathan no instante
em que ele saiu correndo.
— Liah, eu nunca imaginei que essa confusão toda era só falta de
comunicação. Você não tem culpa, ele vai perceber isso. — Karol tentava
me acalmar enquanto os soluços vinham cada vez mais fortes. — Ethan,
deixa que eu e Evie ficamos aqui com ela, vai ver como está o Nathan. O
Tommy não vai dar conta dele sozinho.
Evie me abraçou enquanto Ethan corria atrás de Thommy e Nathan. As
meninas me levaram para dentro da cozinha, tentando me convencer de que
eu não tinha culpa sobre aquilo.
Mas naquele momento, eu só pensava em como poderia fazer para juntar
todos os cacos quebrados do que ia sobrar de mim depois de todos os
últimos acontecimentos.
Nathan
Capitulo 13
01 de junho de 2019
— Eu estou bem — avisei pela trigésima vez a Ethan, sentado ao meu lado
na calçada em frente ao prédio da ONG.
— Pelo menos agora todo mundo sabe o que aconteceu — Ethan pontuou.
— Eu não tô defendendo ela, mas a Liah realmente não lembrava de você.
Eu podia acreditar que ela não se lembrava do que aconteceu. Não foi a
vida dela que foi totalmente afetada por aquilo.
— Eu sei — concordei.
— Achei que você ia deixar a ONG pra trás agora — meu amigo me olhou
especulativo.
— A ONG me faz bem. Acho que faz pra todo mundo. E não quero desistir
da Triss.
— E tudo bem pra você conviver com a Liah por aqui? Quero dizer, você
não está com raiva dela? — Ethan perguntou preocupado.
Era uma preocupação minha também, mas a crise de hoje foi por reviver as
dores e traumas daquele dia. Por mais que eu odiasse a garota, tinha
conseguido me virar com esse sentimento nos últimos meses.
— Mia, Tia Soph sabe que você está se acabando em palavrões? — Ethan
perguntou.
— Cala a boca, Ethan! Vocês falam palavrão a merda do dia todo — Mia
reclamou, me puxando pela mão.
— Mia, eu acabei de ter uma crise e você me pergunta o que eu fiz com
ela? — desaprovei. — Nem sabia que você estava aqui hoje — avisei.
Mia olhou para Ethan, coagindo o homem com quase o dobro do seu
tamanho a falar alguma coisa. Ethan me olhou pedindo socorro com os
olhos, porque ele sabia que eu não queria que Mia soubesse.
— Vocês são muito frouxos — voltei a olhar para Mia. — Eu não fiz nada
com sua amiga, Mia. É uma história longa e complicada.
— A Liah é a garota que impediu o Nate de levar a Camille aquele fatídico
dia — Ethan me cortou, falando o óbvio. — Esconder essa merda até agora,
não te fez bem nenhum — justificou, dando de ombros.
— A gente pode ir pra casa? — pedi a Mia, esperando que ela entendesse
que eu precisava de companhia. — Preciso descansar um pouco e limpar
isso — apontei para as manchas vermelhas em minha mão.
— Você não pretende usar esse carro cheio de caco de vidro espalhado nos
bancos, não é? — Mia perguntou arqueando as sobrancelhas. — Você se
superou dessa vez.
— Entrou para ver como Liah estava — Ethan avisou tirando a chave de
seu carro do bolso. — Vem, vou levar vocês pra casa.
Separador
04 de junho de 2019
Passei todo o fim de semana evitando todos os meus amigos. Eu não queria
ter que falar ou me explicar sobre toda a situação com Lianah. Esse era um
assunto que me consumia e me esgotava intensamente, e mesmo assim
estava sentado na poltrona do consultório do Doutor Emerson, decidido a
falar sobre isso.
Pensei por onde seria melhor começar. Talvez o ponto central de todos os
meus problemas.
— Sylvia Vittorino? Esse é sem dúvida um grande nome. Mas não posso
deixar de notar que temos três nomes novos aqui. Quem são Lianah e
Camille, Nathan?
Relutante, tomei folego para contar toda a história para ele. Contei sobre
minha relação com Camille, como Lianah apareceu a primeira vez, como
ela reapareceu anos depois no meio dos meus amigos, e contei sobre ela ser
a cabeça por trás da ONG.
— Doutor Emerson, estou disposto a falar sobre o que quer que seja, e não
sei se em nossa próxima sessão vou estar também, então sugiro que
pergunte tudo que achar necessário agora.
— Então me conte tudo que se lembrar desde o momento em que acha que
seus problemas começaram.
Sorri triste, sendo obrigado a voltar à minha infância, quando minha mãe
me abandonou. Em algum momento do meu monólogo, ele pediu à
secretária para remarcar a próxima consulta dele, ciente de que os minutos
restantes não seriam suficientes para contar tudo.
Pela primeira vez nos últimos três anos, eu me sentia leve de verdade. Saí
do consultório na terça pela manhã com a sensação de que eu podia respirar
novamente.
— Você está mais calmo. Achei que ia estar uma pilha de nervos, puto com
a vida pela merda que aconteceu no sábado.
— Odeio muitas coisas que você faz — Tommy debruçou o corpo sobre a
mesa, tentando se aproximar de mim para falar baixo. — Você vai
continuar ajudando a ONG financeiramente?
— Claro que vou. Mas ainda não consegui desinvestir a outra parte do
dinheiro, e só vou ter essa grana disponível mês que vem, porque estava
tudo aplicado em investimento de longo prazo. Até lá, a gente vai ter que
colocar a mão na massa — avisei, ciente do plano de colaboração que
Olivia havia montado.
— Caralho, Tommy. Num dia você e Ethan enchem a porra do meu saco
pra reagir e parar de me culpar por tudo. No outro acham que estou doente
por fazer exatamente isso. Vocês precisam se decidir! — reclamei irritado,
voltando a atenção para tela do computador.
Tommy riu antes de também voltar sua atenção para a tela diante de si.
— Oi, Carl.
Meu tio chegou quase vinte minutos depois, entrando na sala de reunião
afobado e irritado.
— Ainda bem que achei você aqui. Estava aqui por perto.
— Está tudo bem, cal? Mia me falou que você tem trabalhado muito.
— O que tá rolando, Carl? Por que você está preocupado com isso?
— Carl, você não pode vir aqui me perguntar se uma dessas pessoas já
trabalhou pra gente e não me contar nada sobre isso — me exaltei, irritado
pelo mistério que vinha fazendo sobre essa história.
— Qual seu envolvimento com a neta da Sylvia? — ele me olhou
pensativo.
— Eu não tenho nenhum envolvimento com ela. Ela é amiga dos meus
amigos, e diretora na ONG que trabalho, só isso. Vai me dizer o motivo
dessas perguntas?
Ainda que eu soubesse o quanto podia ser errado, estava a disposto a pagar
o que fosse para que aquele bendito papel fosse assinado.
As luzes do jardim estavam todas acesas quando o Uber me deixou em
frente à casa de Tia Sophia. Estranhei a luminosidade, pois tia Soph sempre
reclamava do preço alto da conta de luz, mesmo que o dinheiro não fosse
mais uma preocupação. Toquei a campainha, tentando observar pela janela
alguma movimentação na casa. Uns segundos depois, uma Mia sorridente e
agitada abriu a porta para mim.
Até podia. Mas quebrar os vidros daquele carro na base do soco, foi quase
como apagar um pedaço ruim do passado. Lianah podia não lembrar de
nada, mas foi naquele carro que tentei levar Camille embora do Republic
anos atrás. Me livrar dele, fazia parte do meu processo de renovação.
— Talvez eu não deixe nem Ethan e Thommas encostarem nesse carro, Mia
— avisei, vendo-a me olhar ressentida. Aquela BMW X6 era meu sonho de
consumo a muitos anos.
— Mamãe está costurando. Ela não faz outra coisa. — Mia revirou os olhos
me puxando pelo pulso, corredor adentro. — Mãe, olha quem está aqui —
gritou batendo à porta do quarto de costura.
— Tia porque está tudo aceso nessa casa? — perguntei vendo que as luzes
do interior também estavam todas acesas.
— Mania do Carl agora. Ele sai deixando tudo acesso. Esse trabalho vai
acabar deixando seu tio maluco. — Tia Sophia saiu do quarto junto
comigo, me levando para a cozinha. — Fiz aquele macarrão que você
adora. Janta com a gente?
Olhei para Mia debruçada sobre o balcão com a cara enfiada no celular,
sorrindo para a tela.
— Mia, queria ver umas coisas da ONG com você. Podemos falar lá em
cima depois? — pedi, querendo saber se Mia tinha alguma informação que
pudesse me ajudar a entender essa história.
— A Mia não sai mais desse celular. O tempo inteiro que está em casa só
sabe ficar nesse celular — tia Soph reclamou.
— Nathan, o que houve com sua mão? — Tia Soph perguntou vendo os
machucados ainda evidentes nos nós dos meus dedos.
Porra.
Explicar para ela era sempre mais difícil. Tia Sophia sentia demais tudo a
meu respeito. Ela costumava se envolver demais emocionalmente com os
meus problemas. Eu ainda estava tentando buscar palavras para explicar a
ela, quando Mia intercedeu.
— Qual parte, tia? — Não tinha certeza se ela falava sobre Lianah, ou
sobre eu ter socado o carro.
— Alguma parte do que Mia falou, não é? — tia Soph sacudiu a cabeça,
reprovando o sorriso orgulhoso estampado no rosto da filha. — Mia, você é
péssima dando notícias. Deus queira que nunca precise anunciar a morte de
alguém.
— Por que essa história das luzes acesas agora? Carlton anda preocupado
com alguma coisa? — perguntei assim que chegamos lá em cima, esticando
o pescoço para ter certeza de que meu tio não saía do quarto.
— Ele diz que é a cabeça dele, que está muito cheia e simplesmente se
esquece de apagar. Ele pode enganar minha mãe com essa história da
carochinha, mas a mim não. — Mia também olhou em direção à porta do
quarto. — Ele anda mesmo preocupado, mas nunca fala nada. Então não
consigo te ajudar com mais que isso.
— Ei, Nathan. Não sabia que ia aparecer hoje. Foi bom eu ter te cobrado —
Carlton riu, me cumprimentando. — Sua tia deve estar muito feliz agora.
— Claro — foi Mia quem respondeu. — Minha presença ela não valoriza.
E olha que eu que sou a filha.
05 de junho de 2019
— Olie, eu não como essas coisas todos os dias. Eu sempre almoço na rua,
e juro por Deus que como coisas saudáveis.
— Olie, não surta — ri alto, vendo sua indignação. — Prometo que vou
comprar coisas mais saudáveis, ok?
— Não pensei nisso, Olie. Nem sei se vou conseguir esse processo de
adoção. A Lianah deixou claro que por ela eu não tiraria a Triss da ONG.
— Eu vou conversar com ela, Nathan. Liah não vai travar a adoção. Não
depois de ter entendido seu lado — Olie apoiou os braços sobre o balcão,
impulsionando o corpo para cima. — Você está bem com isso? Hoje você
esteve na ONG.
Eu ainda ministrava um curso e não queria deixar meus alunos na mão.
Além disso, a ONG era uma terapia para mim também.
— Eu sei que não é racional, Olie. Ela não tinha consciência do que estava
realmente acontecendo aquela noite, mas ainda assim não consigo deixar de
pensar em como as coisas seriam se ela não tivesse aparecido ali e me
impedido de levar Camille embora. — Expliquei meu lado para um de
meus amigos pela primeira vez desde o sábado.
— Juro que não tenho intenção de ser grosso ou cruel com ela, Olie. Só tem
sido bem difícil, pra mim, encarar todo esse passado desde que Lianah
surgiu na minha frente.
— Você podia ter contado isso antes pra gente — a morena me encarou
insatisfeita, soltando os braços do meu pescoço. — Todo mundo entendeu,
ninguém ia ficar contra você ou ela. Ethan me disse que você tinha medo
disso e por isso não contou. Mas a gente podia ter ajudado a melhorar essa
coisa entre vocês.
— Tudo bem, posso entender isso. Mas não quer dizer que eu concorde
com isso. Vocês se surpreenderiam um com o outro se dessem a
oportunidade de se conhecer — reclamou, dando de ombros. — Mas vamos
voltar ao foco do que viemos fazer aqui…
06 de junho de 2019
— Você viu Lianah alguma vez nesse tempo? — neguei com a cabeça. —
Você está evitando um embate?
— Acho que não. Eu estive na ONG ontem, mas não cruzei com ela em
nenhum momento. Ontem também perguntei para Olie sobre ela, mas não
tenho certeza sobre o motivo de querer saber como ela está.
Pensei por um momento, sem ter certeza sobre onde ele queria chegar.
Camille era a pior pessoa no mundo para mim. Ela havia matado meu filho.
Mas desde que Lianah voltou a aparecer na minha vida, parece que eu só
alimentava a raiva que sentia dela e esquecia a que sentia por Camille.
— Dr. Emerson, você está querendo dizer que eu deveria ter mais raiva da
Camille do que da Lianah? — questionei.
— Nathan, o ponto aqui é que a Camille teve atitudes que levaram a perda
do filho de vocês num momento que, você acha que poderia ser evitado, se
Lianah não tivesse aparecido. Se ela não tivesse aparecido, você acha que
tudo estaria solucionado. Camille estaria internada, teria médicos e
enfermeiros para mantê-la sã, e consequentemente seu filho nasceria bem.
E claro, isso poderia ter realmente acontecido. Mas e se não acontecesse? E
se Camille tivesse bebido e se drogado em outro momento, sem ninguém
por perto para avisar?
— O que te afeta mais, Nathan? Ter sido abandonado por seus pais, ter
perdido seu filho ou ter conhecido a Lianah dessa forma?
Embora o abandono dos meus pais me doesse, eu superei isso com o amor
e a família que minha tia me deu. Aquele abandono só serviu de
combustível para me fazer querer dar a melhor vida possível ao meu filho.
Incluindo uma família estruturada.
A felicidade que tomou conta de mim quando descobri que Camille estava
grávida, não tinha explicação. Mesmo com todos os problemas do nosso
relacionamento, eu já amava aquele bebê incondicionalmente.
Quando saí do consultório, tinha sensação de que meu cérebro era uma
máquina de lavar roupa, batendo em todo sua potência. Era informação
demais para um dia só.
08 de junho de 2019
— Eu sou sua mãe, Nathaniel. Não pode me tratar com um pouco mais de
consideração?
Revirei meus olhos, prevendo o show de drama que se seguiria. Era sempre
assim, ela ligava e se fazia de vítima toda vez que não conseguia me
manipular.
— Elise, eu estou super atrasado hoje. Diz logo o que você quer. Preciso
desligar em um minuto.
— Vou ficar na casa de Sophia por uns dias, querido. Queria ver meu filho.
Eu quis, por muitas vezes, ver minha mãe. Até que a frustração fizesse com
que essa vontade desaparecesse totalmente da minha vida. Nesse momento,
tinham coisas demais acontecendo para arrumar mais um estresse.
Eu não queria mais levar aquela situação para frente. As brigas recorrentes
com ela me tiravam o sono. Depois da conversa com meu psicólogo na
quinta, eu estava disposto a entender o lado dela, e só essa atitude já era
suficiente para me deixar com a sensação de que havia tirado cinquenta
quilos das minhas costas.
— Nada de não aguento mais a Lianah ou espero não ter que olhar para a
cara da Lianah ou não sei onde estava com a cabeça quando me envolvi
nessa ONG… ? — Ethan dizia numa tentativa ridícula de imitar minha voz.
Passei a língua pelos lábios, soltando um riso fraco. Tudo bem, talvez o
'Bom dia' não fosse o meu usual nessa condição. Mas eu estava mais leve
do que podia me lembrar em muito tempo.
10 de junho de 2019
Dois pares de olhos me encaravam intensamente. Pigarreei chamando
atenção das duas meninas sentadas a minha frente, enquanto eu escrevia.
Arrisquei uma olhada de lado, e Mia e Triss continuavam me encarando.
Não contive uma risada nervosa.
— Vocês duas vão me dizer o que vieram fazer aqui, ou pretendem ficar
me olhando trabalhar o dia inteiro?
— Sabe o que é, Liah? — Mia ajustou o tom uma oitava abaixo do
normal, adotando um jeito fofo não muito usual para seu modo jovem
adulta rebelde. — A gente queria muito te pedir uma liberação para a Triss
ir a minha festa de aniversário.
— Mia, eu não posso autorizar isso, você sabe, não é? — Ri de seu olhar
pidão, em uma tentativa clara de imitar o famoso gatinho do Shrek.
As duas trocaram um olhar cúmplice e sorriram diabolicamente uma
para a outra.
— Mas você pode autorizar um passeio com algum tutor, não pode? —
Triss perguntou me entregando uma folha impressa com algumas normas do
estatuto da ONG. A garota era mesmo esperta.
— Ainda que você tenha um tutor para propor um passeio, a festa da Mia
precisaria ser durante o dia — expliquei, devolvendo o papel a ela.
— Você não pode autorizar um final de semana? O Nathan poderia ser o
tutor dela. — Mia pediu, insistindo na carinha fofa.
Neguei com um aceno de cabeça. Nathan não poderia tirá-la da ONG até
que o processo de adaptação da garota fosse aprovado. Mas eu não podia
contar isso a elas ainda, já que Triss não sabia do processo de adoção.
— Mia, você conversou com o Nathan sobre isso?
Ela negou com a cabeça, suspirando.
— Você não tem nenhuma solução? Liah, sei que você jamais negaria
por negar. Você é jovem e legal, sabe que proibir diversão não é o caminho.
— Você só está tentando puxar meu saco, Triss — afirmei sorrindo. —
Onde e quando seria essa festa?
— É só em agosto e vai ser na casa da minha mãe, mas não sei quanto
tempo esse tipo de autorização leva — Mia me olhou esperançosa. — Vai
ser à noite, mas será uma coisa bem família.
— Família? — Encarei a garota sem conter uma risada. — Mia, você
sabia que suas festas são famosas?
Perdi as contas de quantas vezes ouvi as meninas falando que se tinha
alguém que sabia como dar uma festa, era Mia.
— Sério? — a garota perguntou toda orgulhosa. — Você já escutou falar
das minhas festas?
— E a última coisa que falam delas e que são uma coisa bem família —
concluí.
— Ai, Liah, por favor — Triss pediu chorosa. — Eu tenho dezesseis
anos e meio e nunca fui em uma festa de verdade na vida.
Avaliei a expressão cheia de expectativa das duas. Até agosto, muita
coisa podia acontecer. Inclusive, a autorização para a adaptação da Triss, e
então Nathan poderia levá-la com ele. Caso não acontecesse até lá, eu
poderia avaliar com Joanna uma forma de liberação.
— Vou pensar em alguma coisa. — As duas explodiram em gritinhos e
abraços. Mia seria uma boa companhia para Triss, afinal de contas.
— Que felicidade toda é essa? — Olie atravessou a porta, vendo a
alegria das mais novas.
— Liah vai me liberar para ir à festa da Mia — Triss contou empolgada.
Olie me olhou confusa, sabendo que era difícil obter esse tipo de
liberação.
— Eu disse que ia pensar em alguma coisa — expliquei.
Olivia sorriu vendo a alegria das duas enquanto saiam animadas da sala.
— Sabia que você e Mia fazem aniversário no mesmo dia? — Olívia
perguntou, virando o pescoço para me olhar.
Neguei. Não tinha ideia daquilo. Não tinha muitos motivos para
comemorar mesmo, aniversário era a última coisa da qual me lembraria.
— Desculpa não ter vindo sábado. Minha mãe inventou um café da
manhã em família que foi um saco.
— Relaxa, os meninos deram conta de tudo super rápido — contei.
A garota puxou a cadeira para o meu lado, tirando os documentos da
minha frente.
— Me conta como foi. O Nathan veio? Vocês conversaram?
Larguei o corpo na cadeira, sentindo o cansaço pelo assunto me açoitar
antes mesmo de falar qualquer palavra.
— Não, Olie. Não falamos sobre o que aconteceu.
— Que droga! — Olívia apoiou o cotovelo na mesa, me olhando irritada.
— Queria tanto que vocês dois se dessem bem.
Mordi a bochecha pensando em Nathan e nas palavras que trocamos.
— Na real, a gente se falou melhor do que se falava antes.
Seus olhos estudaram meu rosto, adotando uma expressão preocupada.
— Vocês fingiram que nada aconteceu? — Olívia tirou os documentos
que analisava da minha mão e largou sobre a mesa.
— Não exatamente. Não é como se a gente tivesse se tornado amigo. Ele
continua sendo sério e meio seco comigo, mas pelo menos não brigamos
dessa vez.
— Acho que isso é falta de sexo — Olivia soltou tranquilamente,
enquanto mordia a ponta do dedo. Soltei um riso alto.
— Do que você tá falando, Olie? Você conhece bem minha vida pessoal
para saber que no meu caso, a falta é real — Observei ainda rindo.
Olie me encarou e um sorriso malicioso surgiu em seu rosto.
— Ethan me contou que acha que Nathan não transa há vários meses. —
A encarei desacreditada.
— Tem noção de como isso soa fofoca, Olie? Ethan te contou que
ACHA… — Balancei a cabeça, apertando os olhos em reprovação e voltei
a pegar as folhas sobre a mesa.
— Você não acha estranho? — Olivia puxou novamente os documentos,
querendo minha atenção.
— O que é estranho? — perguntei sem paciência, tentando puxar
novamente as folhas, mas a garota as jogou sobre o sofá ao lado da porta,
do outro lado da mesa.
— Nathan é um cara extremamente gato. A quantidade de mulher que dá
mole pra ele é enorme, e nos últimos anos ele foi até galinha e babaca
demais para um cara educado como ele…
Ergui uma sobrancelha sem conseguir esconder o sarcasmo.
— Nathan educado? — Olivia riu.
— Sempre foi, apesar de não estar na melhor forma dele ultimamente.
Mas o que quero dizer é que ele estava vindo numa rotina de ser galinha
demais e do nada ele para.
— Você é amiga dele. Preferia que ele continuasse sendo galinha e
babaca? — Olivia mantinha o olhar distante, enquanto eu quase podia ouvir
as engrenagens trabalhando em sua cabeça. — O que você tá tentando
descobrir, Olie?
A garota me encarou pensativa enquanto batia as pontas dos dedos sobre
o tampo da mesa. Olivia mordeu o lábio e um vinco se formou em sua testa.
— Não sei se faz sentido — soltou baixinho, falando com ela mesmo.
Sem paciência para aquela conversa, levantei-me na intenção de pegar os
documentos sobre o sofá, mas parei com a próxima afirmação dela.
— Eu tenho uma teoria!
— Nunca imaginaria isso — minha voz soava a puro sarcasmo. — O
quão louca essa sua teoria é?
Voltei para a mesa com os documentos na mão, dessa vez, realmente
interessada na teoria dela. Olivia conseguia ser tão absurda às vezes, a
ponto de entreter qualquer um.
— Você virou a válvula de escape dele — Olie falou como se fosse a
coisa mais óbvia do mundo, me deixando chocada.
— Olivia! — Larguei os documentos, virando o corpo em sua direção.
Olhei para a garota com o queixo caído pela sua loucura. — Me corrija, se
eu estiver errada. Válvula de escape não seria uma coisa na qual podemos
descontar nossas frustrações positivamente?
— Desde quando a gente desconta frustração positivamente? — Olie
levantou-se, indo até o filtro de água. — Ele descontava no sexo. Agora é
como se ele descontasse em você. — A louca bebeu um gole de água do
copinho de plástico, me encarando.
Pensei no quão absurdo aquela teoria era. Olivia conseguia me
surpreender cada vez mais.
— Nesse caso eu seria um verdadeiro saco de pancada, né? Se bobear,
ele deve ter mesmo um saco de box com uma foto minha nele — brinquei.
— Estranho seria ele ter uma foto sua, não? — Olhei feio para ela.
— Olivia, vamos encerrar esse assunto? — pedi irritada. — Eu tenho
que revisar esses documentos e ainda tenho uma reunião com o advogado
da vovó hoje.
Nem esperei uma resposta dela e me preparei para voltar a atenção aos
contratos quando alguém bateu à porta.
— Entra! — gritei.
Ethan entrou na sala com um envelope na mão e cumprimentou primeiro
Olie, que estava largada no sofá agora.
— Liah, estou com o contrato da obra. Você pode ler e assinar? — disse
me entregando a pasta.
— Preciso de descanso e vocês só me dão trabalho — reclamei.
— Sexo resolve — Olivia soltou.
Olhei, pela trigésima vez naquela hora, irritada para ela. Estava prestes a
dar uma resposta grossa quando uma nova batida soou na porta, e para meu
total desespero Nathan apareceu atrás dela.
Porra. Hoje o dia iria ser difícil. Olivia apertou os olhos para mim, e eu
podia jurar que tinha algum tipo de ameaça escondida ali. Esfreguei os
olhos, tentando controlar minha respiração e a frustração acumulada
durante a manhã.
— Nathan, chegou na hora certa, as meninas estavam falando de sexo —
Ethan sorriu de lado, enquanto Nathan nos olhou confuso, sem entender
nada do que acontecia.
A cena era mesmo cômica. Olivia largada no sofá, com deboche
estampado na cara. Ethan sorrindo orgulhoso, achando que entendeu o
assunto. E eu quase chorando na mesa, esfregando insistentemente minhas
têmporas.
— Olivia, você não tem merda nenhuma pra fazer não? — perguntei
irritada. — Ethan, eu vou ler e assinar a porra do contrato. — Joguei o
envelope na pilha de papéis em minha mesa e olhei para Nathan, me
olhando assustado. — E que caralho você quer aqui?
Nathan arqueou uma sobrancelha, assumindo um meio sorriso.
— A mocinha perfeita fala palavrão?
Precisei respirar e contar até dez antes de surtar. Apoiei a testa na mesa,
reprimindo os milhares de xingamentos presos em minha garganta.
— Nathan, se você não tem nada de importante pra fazer aqui, vai
embora — minha voz soou abafada pelos cabelos que caiam nas laterais do
meu rosto afundado na madeira da mesa.
— Eu até iria, mas preciso falar com você sobre a Triss. — Escutei
quando ele deu alguns passos, sentando-se em uma das cadeiras em frente a
minha mesa.
Levantei o rosto encarando os três. Ethan e Olie trocavam alguns olhares
curiosos.
— Bem, eu vou com a Olie procurar alguma merda pra fazer, enquanto
você lê a porra do contrato e resolve algum caralho com o Nathan — Ethan
riu de sua própria fala, puxando Olivia pelo braço para fora da sala.
Eu não tinha mais força, nem vontade de rebater as piadinhas idiotas.
— O que você quer falar? — perguntei para o homem sentado à minha
frente.
— Mia acabou me falar que te pediu uma autorização para a Triss ir à
festa dela. Você sabe como está o andamento da adoção dela? — perguntou
apoiando os antebraços na mesa.
Por um segundo, fiquei tentada a perguntar da tatuagem quando o
desenho se tornou visível.
— Joanna me ligou semana passada e disse que deve sair em breve —
avisei. — Nathan, a gente não conversou sobre isso. Você tem certeza de
que quer fazer isso?
O moreno me olhou irritado antes de responder.
— O que decido ou não fazer, não é da sua conta.
— Deixa de ser nervosinho, só estou preocupada com essa adoção
repentina…
— Você é uma intrometida, Lianah. Não preocupada.
Respirei fundo, precisando contar até dez de novo, para não pular no
pescoço do idiota.
— Vou te perguntar uma última vez, tem certeza que tá preparado pra
isso?
— Todo mundo me pergunta isso o tempo inteiro. Se você vai criar
algum problema com isso agora, fala de uma vez Lianah. A gente teve essa
conversa no Republic e não terminou nada bem.
— Claro que não — quase gritei. — Você surtou e apertou meu pulso,
lembra?
— Você sempre vai usar esses argumentos baixos contra mim? —
Nathan levantou-se irritado, apoiando as mãos na mesa. — Você sabe que
isso me afeta e mesmo assim faz questão de jogar isso na minha cara o
tempo todo — seu tom foi subindo lentamente.
Irritada pela forma grosseira dele falar, também me levantei e apoiei as
mãos sobre a mesa da mesma forma que ele, encarando-o com ódio.
— Você sempre faz questão de ser grosso comigo.
— Lianah, se alguém tem motivo pra ser grosso, esse alguém sou eu —
embora seu tom tenha baixado, sua voz tornou-se ainda mais ameaçadora.
— Eu só vim até aqui saber como andava o processo. Vou aproveitar pra
deixar bem claro que você não pode fazer nada para me impedir de adotar a
Triss, nem que eu tenha que ir pra justiça resolver isso.
Um riso desacreditado escapou dos meus lábios.
— Você é louco? Eu nunca disse que ia fazer alguma coisa pra impedir.
EU assinei a porra da indicação que te permitiu seguir com esse processo.
Eu só perguntei se você tinha certeza disso, mas seu ódio por mim sempre
vai falar mais alto e vai fazer com que você entenda tudo da forma como
você quer.
Nathan esfregou o rosto e depois passou as mãos nervosamente em seus
cabelos. Um suspiro exagerado escapou dele, mas diante de seu silêncio,
continuei a falar.
— Você acha que estou tentando jogar alguma coisa na sua cara, mas
minha reação é só um reflexo dos seus ataques, Nathan. Todas as vezes que
você aparece diante de mim, tenho medo de vê-lo apontar o dedo e me
acusar de ter causado a morte do seu filho e de ter arruinado sua vida. —
Meus olhos encheram-se de lágrimas. — Eu nunca tive a intenção de te
fazer mal, porra! Isso dói em mim. Eu nunca vou saber a dor que você
sentiu por perder seu filho, mas você também nunca vai saber a dor que é se
sentir uma assassina, ou como é ruim ver alguém sofrer e saber que você
teve culpa por isso.
Minha garganta doía pelos gritos. Provavelmente, qualquer um que
estivesse passando pelo corredor teria ouvido essa última parte. As lágrimas
desciam livres pelo meu rosto, embaçando minha visão. Mesmo assim,
pude ver Nathan me encarar uma última vez antes de abrir a porta.
— É exatamente isso! Ainda que doa em você se sentir uma assassina,
não chega nem perto da dor que tive por perder minha única chance de
reverter tudo que eu conhecia de errado sobre ser pai.
Não foi surpresa ver Ethan e Olie parados do outro lado; suas bocas
abertas em espanto ao escutar a última frase de Nathan.
Ethan seguiu pelo corredor com ele enquanto Olie entrou na sala me
abraçando.
— Por isso vocês deveriam ter conversado no sábado — disse
compreensiva. — Uma hora vocês iriam estourar de novo…
— Agora não, Olie. Por favor! — pedi, tentando conter os soluços em
minha garganta.
10 de junho de 2019
Não contive a pergunta ao ver Ethan olhando feito um idiota para uma foto
da Olívia no meu aparador. Ele fechou a cara me mostrando o dedo do
meio. Arqueei uma sobrancelha.
— Claro que gosta — Tommy respondeu por ele, bebericando sua cerveja.
— Mas Ethan é babaca demais pra se permitir ter uma vida feliz.
— Então somos três babacas — Ethan apoiou os pés sobre a mesa de centro
a sua frente. — Ou vocês querem que eu lembre dos problemas de vocês o
tempo inteiro?
Olhei para ele revirando os olhos. Nem aqui eu conseguia não falar dessa
garota.
— A Olie podia ter contado isso naquela noite que a gente conheceu a Liah
— Tommy soltou pensativo. — Me evitaria um problemão. Sem contar
que, com certeza, eu investiria nela.
— Deixa pra lá. Mas não, não sou a fim da Liah, apesar dela ser bem gata e
gostosa. Achei que a Liah estivesse pegando o Gabe.
— Pega outra pra mim também? — pedi, largando a garrafa vazia ao lado
do sofá.
— Mas sejamos sinceros, se a Liah não fosse a garota que apareceu aquela
noite, você seria o primeiro a cercá-la aquele dia no Republic. Olívia nem
foi tão absurda assim — Tommy acusou me entregando a cerveja.
A verdade, é que por mais absurdo que possa parecer, eu nunca havia
reparado verdadeiramente na garota. Desde que bati meus olhos nela aquela
noite, tudo que senti foi raiva e frustração. Claro que eu sabia que Lianah
era bonita, mas isso não queria dizer nada pra mim.
— Ah, qual é, Ethan?! Vocês não acham a Lianah certinha demais? Aquela
garota cheira a regra e bom comportamento, e você me conhece o
suficiente pra saber que eu tenho uma aversão a regras. Sem falar no quanto
ela é intrometida. — rebati irritado.
Não era bem assim. Mas uma parte de mim havia entendido de uma vez por
todas que eu sempre poderia esperar o pior da vida, e ainda assim me
surpreender em como tudo podia ser pior do que eu esperava.
— Sabe o que acho engraçado, a Olie conta a porra toda pra você, não é?
— provoquei, querendo tirar o foco da conversa de mim.
— Ela gosta de você, isso sim — Tommy pontoou muito bem, voltando a
atenção para o celular em seguida.
Deus. Eu realmente teria que aceitar que Lianah se entranhou muito fundo
entre todos os meus amigos. Evitei comentar qualquer coisa sobre aquilo,
escondendo minha frustração comigo.
Encarei Ethan, apenas negando com a cabeça. Não tinha certeza sobre
querer me envolver nesse assunto. Carlton já tinha se metido em alguns
problemas sérios ao longo dos anos, a ponto de colocar seguranças atrás da
Mia e Tia Sophia com receio de que pudessem usá-las contra ele.
— Você sabe que Liah tá correndo risco, não seja idiota. E se Liah está,
Olivia também está. — suas mão se mexiam exageradamente. — Nathan,
se Carl foi te procurar pra saber se já tinha visto aquelas pessoas,
provavelmente todos estamos em risco.
Aquela era a verdade que estava evitando enxergar. Era exatamente aquele
tipo de pensamento que eu tentava empurrar de volta pra um canto
escondido da minha mente toda vez que insistia em aparecer.
Eu já tinha pensado sobre essa possibilidade. Mas por que raios todos
estaríamos em perigo? Eu até entendia o motivo de irem atrás de Lianah,
talvez quisessem que ela parasse de tentar resolver a questão dos bens da
avó. Mas de todos nós?
— Talvez você até tenha razão sobre Lianah. Mas sobre todos nós? Acho
que não faz muito sentido. — cerrei os olhos, confuso.
— Mas Carl também te perguntou se viu aquelas pessoas na App, não foi?
— assenti. — Desde o que aconteceu com você, todos os policiais dessa
cidade sabem que você é como um filho para Carl.
E viriam atrás de mim para fazer com que Carl parasse de investigar.
— E vocês são meus sócios, se quiserem envolver a App, sobra pra todo
mundo — comentei, finalmente entendendo o raciocínio rápido de Ethan.
Tommy, que até então se manteve calado, soltou uma risada nervosa,
coçando a cabeça.
— Acho que você precisa falar com Carl sobre o que está acontecendo de
verdade — Tommy me cobrou.
Levantei-me do sofá irritado. Aquela porra de frio que subia pela minha
coluna me alertava de que tinha muito mais coisa por trás disso. Esse
medo… Tommy tinha razão sobre Liah. Eu só não sabia lidar com a
sensação de que havia preocupação com ela em mim.
Antes de morrer, Sylvia veio com todo aquele discurso estranho sobre não
vender as lojas para mim. Talvez ela soubesse muito bem no que estava
metida. Lembrei das palavras dela aquele dia…
— Porra! — chamei a atenção dos caras ainda largados no sofá ao ter mais
clareza sobre o que Sylvia quis dizer. — Acho que Sylvia sabia que ia
morrer.
— No dia que ela morreu, a gente teve aquela reunião na App. Depois ela
foi até minha sala, falar que não ia vender as lojas dela pra mim.
— Não. Ela me disse que a neta ia precisar da gente em breve. Veio com
um discurso sobre ela precisar se abrir para o mundo, e tal… — omiti,
propositalmente, a parte onde disse sentir que eu era a chave para aquilo.
— Eu vou pra ONG amanhã bem cedo. Vou colar na Olie e na Liah e evitar
deixá-las sozinhas até a gente ter certeza do que esta acontecendo. — Ethan
avisou, engolindo seco.
— Talvez você devesse falar com Carl para colocar uns seguranças na cola
de Mia e Sophia também — Tommy comentou. — Se forem atrás de
alguém pra parar o Carl, podem ir atrás delas.
Tommy tinha razão. Eu teria aquela conversa com Carlton quanto antes
pudesse. Ele não podia esconder da gente essas informações para sempre.
Senti meu sangue esquentar com a adrenalina.
Talvez Carl estivesse certo quando me disse anos atrás que eu gostava, mais
do que deveria, de investigações e mistérios.
Separador
11 de junho de 2019
Logo que sai da terapia da terça, liguei para Carlton e pedi que me
encontrasse em um café próximo da App. Precisa entender o que estava
acontecendo e tirar aquela história a limpo.
— Mas tenho certeza que você sabe porque te chamei aqui — soltei
enquanto ele sentava à mesa.
— Sei. E você sabe que eu não vou te dar as respostas que quer. Mandei
você ficar fora disso, não foi?
Eu sabia que não seria fácil, mas tinha meus meios de fazer Carlton falar.
Ajeitei meu corpo na cadeira, recostando minhas costas na poltrona
acolchoada atrás de mim.
— Você sabe que posso ajudar. Posso ficar de olho na Lianah na ONG, e no
que acontece por lá. Ethan e Thommas acham que podemos estar todos em
risco, por isso preferi falar com você.
— Eu estava com o celular no viva voz no dia que me contou sobre a morte
da Sylvia, e Thommas viu você me mostrar aquelas fotos.
— Acho que a gente precisa voltar um passo atrás para entender. Porque
colocaram fogo na mansão? — questionei, tentando fazer a conexão entre
as informações que tinha.
Carl me deu um sorriso de lado. Seu semblante indicando que aquela era
uma boa pergunta.
— Sylvia precisou emitir algumas notas frias entre filiais dela mesmo.
Logo depois uma carga ilegal foi apreendida em nome da Vittorino
Company. Sylvia era só uma das pontas que emitia notas fiscais para a
mercadoria poder transitar até o destino. A Vittorino Company sempre teve
muito crédito no Estado, nunca pararam um dos caminhões deles nas
estradas, até essa denúncia… O FBI iniciou uma investigação e identificou
muito dinheiro ilegal transitado pelas contas das empresas. O problema é
que o dinheiro se perde em milhares de transferências.
— A gente vai ficar de olho nelas, Carl — avisei. — Minha tia e Mia estão
correndo perigo?
— E esses caras não sabem ainda que estou investigando. Já tentei duas
vezes abrir um inquérito junto ao FBI, tentando investigar a corrupção e os
esquemas dessa cidade, mas acho que eles têm alguém grande lá dentro
também. Eles acreditam que eu não tenha força para isso sozinho, mas
também tenho meus contatos lá dentro.
Talvez não sozinho. Mas se a gente juntasse nossos esforços para isso,
podíamos arrumar uma maneira de levar aquilo para frente.
— Não que ela esteja correndo risco, mas podem se aproximar para coagi-
la a entrar no esquema — Carl comentou agitado. — Por favor, preciso
pedir a vocês três que não façam nada sem falar comigo. Evitem se
envolver nisso, tudo que eu não preciso agora é de mais gente envolvida ou
correndo risco.
Assenti. Estava claro que existia mesmo algum risco nessa investigação
dele. Não sabíamos ao certo, sequer, o tipo de gente que estávamos lidando
ou a que ponto essas pessoas podiam chegar para manter seu esquema
intacto.
Encarei Violet mais uma vez; a mulher estava irritada e inconformada com
minha decisão.
Eu não esperava que a reunião com o tal Juiz pudesse acontecer tão rápido,
mas quando Joanna me ligou no início da tarde, eu não precisei pensar
muito para pedir que a advogada viesse comigo.
— Espero que todos estejam indo bem — então levantou a cabeça para me
dar uma boa encarada. — Nathaniel Petterson. Você não acha que é muito
novo para querer a guarda de uma adolescente de dezesseis anos?
— Achei que já tínhamos passado da fase de entrevistas — respondi
objetivo, querendo resolver logo o ponto.
— Não sei se você tem um histórico tão impecável assim. Até onde sei,
você é diagnosticado com TEPT.
— Pelo visto, isso vai ser mais rápido do que imaginei. Gosto da sua
objetividade.
— Tudo na vida exige algum esforço, ainda mais quando temos um sistema
que funciona perfeitamente se partindo.
Ainda sem entender, estiquei a mão para pegar o papel e avaliar o que havia
escrito ali. Arregalei os olhos ao verificar a cifra e a quantidade de zeros.
U$ 2.000.000,00.
— Dois milhões? Isso é sério?
Uma parte do dinheiro que desinvesti já estava comigo. Era para a ONG,
mas eu teria muito mais dinheiro disponível nos próximos dias.
Porra. Senti meu coração gelar. Se Carlton soubesse que eu estava fazendo
isso…
— Eu nunca precisei mentir sobre minhas intenções, garoto, e por pior que
elas sejam, eu tenho palavra.
— Nathan, ele vai ter provas contra você para o resto da sua vida — a
advogada insistiu.
Desde muito cedo, eu fui forçado a usar a cabeça para sair das piores
situações possíveis, e não ia ser agora que deixaria de prestar atenção nos
detalhes do que eu fazia.
Existia mais de uma forma de fazer esse dinheiro chegar naquele homem
sem que eu precisasse me envolver, sem que ele tivesse qualquer prova
contra mim.
15 de junho de 2019
Ainda existiam sensações boas nesse mundo. A última vez que senti meu
coração bater extasiado dessa forma foi quando Camille ainda estava
grávida. Mas hoje, nem a associação de sentimento me faria mal.
Joanna havia acabado de me ligar para contar que o Juiz havia assinado o
documento que me dava direito ao processo de adaptação da Triss. Eu
podia tirá-la de lá a qualquer momento.
Logo que saí do clube dias atrás, pedi ajuda de Olivia para achar um
apartamento novo, já que era só questão de tempo até Triss estar comigo.
Consegui um apartamento no mesmo prédio em que eu morava, com três
quartos e uma sala enorme, e eu mal podia esperar para que ele estivesse
pronto.
Olívia tinha me perguntado sobre o loft, se iria vender o lugar que morei
nos últimos anos.
Não mesmo, aquele lugar tinha a minha cara em cada canto. Pensaria nele
agora como um lugar de refúgio. A ideia me agradava bastante, inclusive.
Resolvi desviar a rota no fim do dia, até a casa da Tia Sophia. Queria contar
a ela e Mia sobre a adoção. Podia imaginar a cara desacreditada que minha
tia faria e a empolgação de Mia que vivia grudada em Triss na ONG.
Estacionei na garagem, vendo que Carl ainda não havia chegado. Ansioso,
bati na porta algumas vezes até que finalmente ela foi aberta.
— Tenho uma coisa incrível para contar… — minha voz ficou travada.
Elise estava de pé, por trás da porta, sorrindo para mim. Havia esquecido
totalmente que ela estava aqui.
Minha tia arregalou os olhos, alternando olhares entre a mulher ao seu lado
e eu. Respirei fundo tentando me controlar. Elise vivia me tirando do sério,
mas não daria a ela esse direito hoje.
— Vim contar uma coisa para você e para Mia — disse por fim, sorrindo
para a mulher que me criou.
— Tudo bem com você, meu amor? — Elise encostou no meu ombro,
fazendo uma leve pressão para eu virar para ela.
Encarei a mulher. Odiava quando ela usava aquele tom meloso e enjoativo
para falar comigo, como se eu ainda fosse uma criança de cinco anos.
Reparei no rosto dela e no quanto ela e Sophia eram parecidas; mas
qualquer semelhança entre elas terminava aí.
— Oi, Mia — virei meu corpo para ela, ignorando totalmente a mulher
atrás de mim. — Vem cá, quero contar uma coisa pra vocês.
— Você tem certeza de que está preparado para cuidar de uma criança,
Nathan? — me perguntou calma com sua voz doce.
— Ela não é bem uma criança — mordi os lábios, nervoso. — Ela tem
dezesseis anos, tia.
Encarei a mulher parada na porta entre o hall e a sala. Seus braços cruzados
e a cara fechada. Quem ela achava que era para julgar minha decisão?
— Nathan, não foi uma decisão impulsiva? — tia Sophia chamou minha
atenção.
— Foi, tia — concordei sincero, voltando minha atenção para ela. — Mas
foi a melhor decisão impulsivava que tive em muito tempo. Nem consigo
me lembrar da última vez que me senti assim.
— Nate, você vai perceber logo que isso é loucura, você tem a vida toda
pela frente ainda — Elise andou a passos largos até que estivesse
totalmente entre mim e minha tia no outro sofá. — Confia em mim, é
melhor se você desistir disso agora.
Meu Deus, essa mulher era totalmente louca. Revirei meus olhos para a
cena dramática que fazia, me permitindo dirigir a palavra a ela pela
primeira vez desde que cheguei.
— Confiar em você? Que tipo de confiança você acha que devo ter na
mulher que aparece uma vez a cada ano achando que tem algum tipo de
autoridade na minha vida? — Elise abriu a boca, mas continuei antes que
ela pudesse falar. — Se você ao menos soubesse o mínimo do que é ou não
melhor para mim, teria se poupado de me enviar cinquenta dólares no meu
aniversário.
Tia Sophia levantou-se puxando a irmã porta afora, sem dar tempo para
iniciarmos mais uma discussão.
— Nathan. Eu estou tão feliz com isso. — Mia pulou para o sofá ao meu
lado, sorrindo feito uma criança. — Quando você vai poder levá-la da
ONG?
— Não sei ainda. Preciso me mudar primeiro, não posso levar a Triss para
o loft.
— Ela vai maneirar — minha tia voltou para a sala. — Você podia pelo
menos ter dado oi quando chegou.
Sophia sempre tentava remediar a situação entre a gente. Ela entendia que
eu nunca a veria como uma mãe, mas não concordava com o jeito frio que
eu a tratava. Eu não conseguia ser indiferente a tudo que a mulher me
causou, e ainda lidava com o medo do abandono, mesmo tendo tido uma
família maravilhosa com minha tia e Cal.
Comprei o loft logo nos primeiros anos da App, quando a coisa toda
começou a deslanchar e crescemos absurdamente. Aquele lugar foi meu
primeiro patrimônio, além de ser meu primeiro canto fora da casa de Tia
Soph. Transformei o lugar todo, coloquei nele um pouco de mim e de tudo
aquilo que gostava.
Por mais louco que pudesse ser, assim como Thommas e Ethan, eu curtia a
maioria das coisas nerds. Minhas paredes estavam lotadas de quadros da
Marvel e da DC. Eu tinha coleções de revistas em quadrinhos e bonecos de
super-heróis espalhados pelos móveis. Era parte de quem eu era. Nós três
crescemos assim, curtindo essas coisas, e manter essas lembranças no loft
me fazia lembrar diariamente de quem eu era e dos laços que ainda me
mantinham são. A última coisa que pensaria na vida, seria vender ou me
desfazer do loft.
— Pelo menos aqui você vai ter um quarto de verdade — Olie riu. Eles
sempre reclamavam do 'quarto'. — E Triss vai ter privacidade, claro.
Olivia tinha me contado que disse a Joanna que ela mesma contaria a
amiga. Mas por algum motivo, Olie estava adiando esse momento.
— Vou contar na segunda — avisou sorrindo amarelo.
— Falando nisso…
15 de junho de 2019
Eu odiava ser o motorista da vez, e pelo tempo que eu não vinha, Ethan e
Tommy praticamente me obrigaram a vir de carro quando souberam que
estaria aqui. Aquilo seria sufocante para mim; sem poder beber; tendo que
lidar com um sentimento de preocupação totalmente novo; e ainda tendo
que levar Lianah para casa no fim da noite.
Ultimamente, o bar estava ficando mais lotado que o normal, desde que
resolveram colocar bandas locais se apresentando todo fim de semana.
Miles, um dos garçons, sempre reservava uma mesa para gente, mas hoje
estávamos no pior lugar possível.
O salão de trás do Republic era a parte onde ficava um dos bares da casa
mais movimentados e a música rolava mais alta. Era gente por todo o canto
bebendo e gritando, dançando e se pegando em cantos mais afastados e
escuros. O problema de ficar ali era que um de nós sempre acabava a noite
muito bêbado ou atacando alguém num dos cantos escuros.
Olivia ficava chateada quando via Ethan com outra mulher, mesmo que não
assumisse isso; Evie e Karol se estranhavam quando uma ou outra conhecia
alguém; Tommy sempre sumia e aparecia quase inconsciente, dando
trabalho para todo mundo. E claro que eu não era o cara mais comportado
do mundo, e por isso Olivia e as meninas passavam a noite toda de olho em
mim, me impedindo de fazer merda… mesmo que eu as fizesse sempre
escondido.
Tommy estava alheio a tudo, preocupado com alguma coisa que acontecia
no outro salão do bar. Olívia estava radiante com o que via, mas irritada
porque estava convencida de que precisava arrumar alguém para passar a
noite também; o que Ethan tentava evitar disfarçadamente. Karol estava
incomodada; e Evie estava chateada porque Karol tinha outras intenções
além de passar a noite com a amiga; o que me fazia pensar que Evie ainda
era apaixonada por ela.
Sacudi a cabeça, sabendo que não adiantaria explicar. Isso implicaria em ter
que falar sobre a suposta paixão de Evie e Karol e Ethan e Olie. Só me
traria dor de cabeça no fim das contas.
— Alguém nesse grupo não tem algum interesse nessa garota? — perguntei
impaciente.
Tommy concordou com ele, afirmando que também não tinha nenhum
interesse nela. Mesmo assim, acho que eu era o único que conseguia
enxergar os fios brancos daquela teia em volta de todos eles.
Quando ela apareceu com essa ONG, todos eles foram correndo para lá.
Quando Sylvia morreu, todos eles viveram o luto com ela. E agora parecia
que todos eles estavam incomodados por ter um cara enfiando a língua na
garganta dela.
— Então por que está todo mundo de cara feia vendo aquela cena? —
apontei para o outro lado, onde agora os dois conversavam cheios de
sorrisinhos.
— Pensa pelo lado positivo, Nate. Pelo menos você não vai precisar dar
carona pra Liah hoje.
Eu conhecia Olivia por tempo suficiente para saber que tinha muito mais
por trás das palavras dela. Por hora, desisti daquele assunto, pensando em
aproveitar um pouco mais a noite. Saí do bar com uma garrafa de água na
mão, disposto a tentar reverter aquele clima de merda.
Olhei uma última vez para onde Lianah estava, vendo a garota totalmente
alheia a tudo, cheia de carinhos com o médico.
A primeira coisa que reparei quando cheguei ao Republic foi no quanto ela
estava diferente. Não que eu tivesse o hábito de reparar nela, mas a
diferença era gritante demais para não perceber a maquiagem mais forte e a
quantidade de pele exposta pelo vestido preto curto.
Olie tinha razão. Deveria estar aliviado por não ter que levá-la para casa
hoje, mas tudo que eu conseguia fazer, era me achar um idiota por ainda
sentir aquele fio de preocupação por ela.
Ethan se apressou em me seguir pelo bar. Ouvi seus passos atrás de mim e
de repente já estava ao meu lado, me olhando de um jeito analítico demais.
— Eu estava falando sério, não sou a fim dela e você sabe disso.
— Sério, Ethan?! — Estanquei meus passos, olhando irado para ele. — Saí
de lá pra evitar toda essa vibe sou fã da Liah e você me segue pra falar
dela?
Porra! Era impressionante tudo que estava sendo obrigado a passar por
causa dela. Minha irritação só aumentava mais a cada segundo. Ciúmes
dela? Era só o que me faltava. Cruzei meus braços vestindo minha melhor
cara irritada, recusando-me a responder Ethan sobre aquilo.
— Eu nem preciso te dar uma resposta sobre isso. Mas sabe o que me deixa
puto de verdade? A gente preocupado com ela e essa história da
investigação do Carlton, enquanto ela só causa todo esse mal-estar…
Fechei ainda mais a cara. Porra, eu tinha que admitir minha preocupação
em voz alta? Ethan não me deixaria mais em paz por causa disso.
— Talvez você devesse deixar as coisas boas sobre ela falarem mais alto
dentro de você, Nate. — Ethan me deu um tapinha no ombro antes de
continuar. — Você se fechou demais depois da Camile, deixar as pessoas
entrarem nessa sua fortaleza, às vezes, é uma cura e tanto.
Mas eu sabia.
Era uma constatação. A constatação de que existia uma parte de mim que
vinha ganhando força e que se metia a besta em querer lutar com toda a
raiva que sentia de Lianah. E mesmo escolhendo diariamente a parte que a
odiava, eu sabia que ela estava perdendo força a cada batalha.
— As meninas devem ir. Vou ver se acho a Olie para avisar. — Ethan deu
um tampinha no meu ombro, seguindo pelo corredor de volta ao salão do
bar.
Cap16a
A mensagem de Elise me irritou profundamente. Era absurdo pensar que
aquela mulher ainda tinha alguma expectativa sobre mim como filho.
Bloqueie a tela, enfiando o celular no bolso do jeans.
— Que merda é essa? Ficou maluca? — quase gritei pelo susto, totalmente
surpreso ao ver Lianah na minha frente.
Virei meu pescoço para trás, tentando entender o que estava acontecendo e
de quem ela estava se escondendo. O tal médico estava no bar, de costas
para o corredor, virando a cabeça em várias direções com uma expressão
confusa no rosto.
— E? Qual o problema nisso? E você veio pedir ajuda logo pra mim?
— Você foi a única pessoa que conheço que encontrei. Nem de longe seria
minha primeira opção.
Soltei um riso irritado ao perceber que sua mão direita ainda segurava a
manga do meu moletom.
— Pode me soltar?
— Como pretende que eu faça isso? Não é mais fácil entrar no banheiro e
ficar por lá?
— Eu quero ir embora, mas não com ele. Se ele me vir aqui, vai querer me
levar em casa. — A garota se encolheu ainda mais ao perceber que o cara
estava mais perto do corredor agora.
Com o pescoço virado para trás, percebi quando ele olhou mais atento para
o corredor, tentando enxergar através das várias pessoas circulando ali.
Provavelmente só nos veria aqui se estivesse bem mais perto.
— Veste o casaco e coloca o capuz. Se ele chegar perto demais, pode ser
que isso disfarce — expliquei, vendo sua cara de interrogação. — Mas se
ele perceber, você vai se virar pra explicar isso.
Ela fez o que falei, passando o casaco pela cabeça, encolhida no espaço
entre a parede e meu corpo. Seus dedos puxaram o capuz sobre os cabelos,
amarrando a cordinha logo abaixo do pescoço. O moletom quase engoliu
seu corpo, evidenciando o quão pequena ela era perto de mim, e se não
tivesse com a sandália de salto, ficaria ainda menor.
Duvidava muito, embora torcesse para que aquela afirmação fosse real.
Mesmo depois de tirar o casaco, já estava começando a sentir o calor da
proximidade com seu corpo e isso me incomodava para caralho. Seus olhos
voltaram a me encarar e um vinco profundo cortou sua testa.
— É bom desistir mesmo, não pretendo perder minha noite toda aqui,
escondendo você — reclamei, totalmente irritado pela proximidade dela.
— Você é um ogro! — A garota continuava me encarando de um jeito
estranho, e eu não conseguia desviar daquela merda de olhar.
— O que foi? Não gostou do jeito que ele te pegou? — provoquei, tentando
quebrar aquela maldita conexão.
— Porra, Lianah, não acredito que você é o tipo de mulher que não curte
romance. — Deixei um riso desacreditado escapar.
Prendi o ar por alguns segundos, sendo obrigado a desviar meus olhos para
cima. Minha mente traidora começou a projetar imagens do corpo dela sob
o meu, imprensado na parede… Caralho, Nathan. Não surta.
Olhei para trás, doido para sair dali, mas o cara ainda a procurava mais
próximo da gente.
— Não podia simplesmente dizer pra ele que não quer mais, Lianah? Que
prefere ir embora sozinha? — Era só ela dizer não.
— Eu travo, tá legal? Toda vez que estou com um cara, eu travo e não sei
dizer pra parar.
— Intrometida.
— Nervosinho.
— Eu…
— Merda, ele tá andando pra cá. — Agradeci a Deus por ele ter se movido
e não ter me deixado falar nenhuma merda sem lógica. — E agora? Ele tá
perto demais — sussurrou, quase petrificada.
Uma respiração agitada cortou seu peito enquanto seu corpo se encolhia
cada vez mais no canto da parede. Arrisquei uma olhada sútil para o lado,
vendo que ele falava com uma garota, gesticulando algo que parecia ser a
altura de Lianah. Se ele desse mais alguns passos para a direita do corredor,
poderia perceber que ela estava ali comigo. Observei quando seus pés
fizeram exatamente esse caminho; um passo; dois… nada que eu pudesse
fazer a ajudaria agora. A não ser que…
Joguei meu corpo para frente, interrompendo sua fala quando praticamente
a esmaguei na parede, descendo minha boca sobre a dela.
Liah se manteve imóvel, assustada com minha reação, mas segundos depois
senti suas mãos pequenas espalmadas sobre meu peito e sua respiração sair
com mais dificuldade. Quando permitiu que minha língua invadisse sua
boca, tentei me convencer de que era só uma forma de ajudar a garota.
Não tive muito tempo para pensar, sendo tomado pela sensação de nossas
línguas resvalando uma na outra. Ela tinha gosto de álcool misturado a algo
doce, e a cada vez que empurrava a língua para dentro de sua boca a
necessidade de sentir aquele gosto aumentava.
Tirei uma das mãos da parede, enfiando-a para dentro da abertura do capuz,
procurando seu pescoço e prendi meus dedos por baixo dos fios de cabelo
de sua nuca, a puxando para mais perto. Agora, não existia mais espaço
nenhum entre nossos corpos.
Uma exalação intensa escapou dela quando mordi seu lábio inferior, me
fazendo projetar meus quadris contra ela, mas segundos depois ela se soltou
de mim abruptamente, me encarando desacreditada.
— Ele foi embora — apontou com o queixo para o corredor e a figura que
se distanciava de nós.
Obriguei meu corpo a se afastar ainda mais dela, tomado por aquela
sensação errada. Meu batimento totalmente descompassado. Que merda
havia feito? Não dava nem para dizer que aquele havia sido um beijo
qualquer, não quando me acendeu daquele jeito. Você tá muito fodido,
Nate.
— Agora você pode ir também — avisei, dando espaço para ela passar.
— Achei vocês!
Foi só falar que ela apareceu no corredor a nossa frente, seguida de Ethan.
Meio segundo antes e eles nos veriam numa situação, no mínimo,
comprometedora.
Ouvi o riso abafado de Ethan atrás de Olivia. Encarei meu amigo, vendo
suas sobrancelhas erguidas em uma tirada muda. Eu quase podia ouvir os
pensamentos dele. Sacudi a cabeça, puxando o ar com mais força que
deveria.
Merda. Tudo que eu não precisava era ter que explicar para ele aquela
situação. Meus neurônios deviam ter congelado no tempo que fiquei em
coma, essa era a única explicação para o tanto de merda que eu fazia na
vida. Beijar Lianah havia sido, sem sombra de dúvida, a pior delas.
Assim que saiu do carro, incrivelmente, o ar ficou mais leve. Mas o alerta
vermelho na minha cabeça gritava uma nova descoberta; tinha algo que eu
odiava mais que me preocupar com Lianah, e era simplesmente o fato de
tê-la beijado.
Aqueles malditos fios que ela tecia, já estavam em volta de mim também.
15 de junho de 2019
No meio de junho, resolvi acompanhar meus amigos ao Republic. Desde
o falecimento da minha avó, só fui até lá uma vez; quando lembrei do
episódio com Nathan. Essa seria a primeira vez em meses, que tentaria me
distrair de verdade.
Olívia me avisou que todo mundo estaria lá, mas vi o pedido empolgado
em seus olhos e fui incapaz de negar. Aceitei, mesmo sabendo que
possivelmente me estressaria com Nathan mais uma vez.
Ethan me deu carona até o hotel na sexta, ele e Tommy estavam sempre
se revesando para não me deixar ir embora de Uber. O problema é que isso
me irritava, já que eles ficavam em cima de mim para saber a que horas eu
iria embora e se pretendia ficar na ONG até mais tarde.
Me prometi o sábado de folga, queria dormir até tarde e depois pensaria
em comer em algum restaurante bonito da cidade. Precisava de um tempo
para mim.
Quando estava saindo do hotel, quase na hora do almoço, meu celular
tocou. Não consegui identificar de quem era o número.
— Alô.
— Liah? — Não reconheci a voz.
— Quem é?
— Raphael. Atendi você um tempo atrás no hospital, lembra de mim?
Claro que eu lembrava. Olie me fez passar uma vergonha absurda na
frente dele. E o cara era gato, precisava admitir.
— Tem algo errado com meus exames? — perguntei preocupada,
pensando no motivo dele ter me ligado.
— Não, querida. Desculpe a invasão, mas peguei seu número na sua
ficha. Estou ligando, na verdade, para perguntar se você tem algum
compromisso hoje à noite.
Ele estava me chamando para sair? Arregalei os olhos, evitando um
gritinho animado.
— Hum, marquei com Olivia e uns amigos num barzinho no Centro —
avisei. Não ia furar com Olie, mesmo que fosse para sair com o médico
bonitão.
— Bem, nessa caso, você aceitaria jantar comigo qualquer dia desses?
— Na verdade — hesitei por alguns segundos. — Você gostaria de me
encontrar lá hoje?
— Claro! — Sorri com sua empolgação. — Ia adorar encontrar você
hoje.
— Eu te passo a hora e o lugar por mensagem, pode ser?
— Claro, Liah. Mal vejo a hora de te ver.
Desliguei sorrindo para a tela. Vovó adoraria saber que eu sairia com um
médico. Ela com certeza faria alguma piada sobre o fato de nós duas termos
pretendentes médicos.
Dispensei a carona de Ethan ou Tommy, agradecida que Raphael iria me
buscar no hotel. Desci até a recepção ansiosa, vendo o carro dele parar logo
em seguida do lado de fora.
— Oi — disse tímida ao entrar em seu carro.
— Obrigada por aceitar meu convite. — Raphael beijou minha mão,
fazendo meu rosto esquentar. Era isso que Tommy fazia com as mulheres?
Vovó corava horrores quando ele fazia isso com ela.
Conversamos um pouco no caminho até o Republic. Raphael me contou
sobre como sua família era unida e sobre seu trabalho no hospital.
Quando chegamos ao bar, Olívia avisou que estávamos no pior lugar
possível. Ficamos um pouco com as meninas na mesa mal localizada, vendo
o lugar encher cada vez mais.
Raphael me puxou pelo pulso para a pista, quando começou a ficar
lotada. Ethan, Tommy e Nathan ainda não haviam chegado e não queria
deixar as meninas sozinhas. Mesmo assim, não resisti a carinha bonita do
médico, me levando com ele.
O cara era meio apressado em tudo. Minutos depois ele estava me
beijando, e resolvi me permitir ao menos dessa vez. O problema é que a
cada beijo, ele soltava alguma coisa sobre como a gente tinha química, ou
sobre como eu era bonita. Só ficou pior depois, quando Raphael começou a
falar sobre como nosso beijo se encaixou ou como ele queria terminar a
noite comigo em outro lugar.
Rápido demais. Rápido demais.
Se continuasse nessa loucura de compatibilidade, Raphael ia querer sair
daqui com destino à sua casa, ou a minha.
Eu não estava preparada para isso.
Não hoje.
Embora estivesse me permitindo estar ali, beijando aquele homem, era
cedo demais para deixá-lo me tocar assim. Sacudi a cabeça tentando
espantar as memórias ruins.
Eu queria fugir. Mas o grito de “PARA” estava preso na minha garganta.
Eu não tinha ideia do que faria, mas queria fugir. Mia e Tommy
conversavam no balcão do outro lado e Nathan e Ethan haviam sumido há
um tempo. Se ao menos uma das meninas viesse até aqui.
Com muito custo, consegui fugir para o banheiro e encontrar a última
pessoa para quem pensaria em pedir ajuda. Os minutos seguintes
consistiram na conversa mais louca e cheia de tensão que já tive na vida.
Que Nathan não gostava de mim, era um fato conhecido por todos os
nossos amigos, mas o quanto ele era capaz de me irritar, só eu sabia. Bem,
pela cara dele, ele também sabia, já que fazia deliberadamente.
As coisas só pioraram quando, numa tentativa maluca de me ajudar,
Nathan me beijou.
Ele simplesmente me beijou.
Me beijou de um jeito que ninguém nunca tinha me beijado antes.
— Você está tão distraída. Tá fazendo o que com a blusa do Nathan? —
A voz de Olívia me chamou de volta para a órbita.
— Ele me ajudou a fugir do Raphael — contei, omitindo a parte do
beijo.
— Como assim fugir? Você tá fugindo daquele Deus grego? — Olívia
me encarou desacreditada, me puxando pelo pulso até o banheiro feminino.
— Longa história. Fugi para cá e encontrei o Nathan, e acabei pedindo
ajuda a ele. — Encostei o corpo na parede, sentindo o cansaço me tomar.
— E ele te ajudou de boa? — perguntou enquanto abria a torneira e
passava as mãos molhadas no pescoço.
— De boa é um termo bem relativo. — Ri, lembrando da cara fechada
dele quando reclamou de estar puxando seu corpo.
Olie me olhou de um jeito engraçado pelo espelho. Sacudi a cabeça,
reprovando e afastando minhas memórias recentes. No entanto, minha
imagem no espelho chamou a atenção dos meus olhos; o moletom preto
quase me engolia.
Abaixei a cabeça, analisando as mangas cumpridas demais para mim.
Subi uma das mãos, e inconscientemente inspirei o pano preto, sentindo o
cheiro do perfume dele impregnado no tecido.
— Liah!
— Que susto — reclamei ao ver Olívia me chamando na porta de saída
do banheiro. Fingi que não vi seus olhos curiosos em cima de mim quando
passei por ela.
Aquela havia sido uma noite e tanto, e com muitas frustrações
acumuladas. Como se não bastasse a frustração pelo encontro mal sucedido,
terminei a noite no carro de Nathan.
Pelo menos dessa vez, era vantagem me deixar no hotel primeiro, assim
não teria que passar por algum momento constrangedor sozinha com ele.
De novo.
19 de junho de 2019
Meu humor estava péssimo essa semana. Parece que tudo contribuía para
as coisas ficarem pior. Raphael me ligou desde o domingo inúmeras vezes,
me deixando no limite do estresse. Como se não bastasse a obsessão
repentina dele, mesmo após eu ter fugido, tinha muito trabalho da ONG e
infinitos documentos da minha empresa que precisava ler e assinar. Me
tranquei no escritório, decidida a focar em todo o trabalho que tinha e fazer
a quarta ser mais produtiva.
Funcionou por quase uma hora, quando meu telefone tocou sobre a
mesa. Soltei uma reclamação chorosa antes de atender o ramal da recepção.
— O que foi Dinna?
— Tem uma moça aqui na frente com doações para a ONG e ela gostaria
de falar com você.
Suspirei. Era um bom motivo, pelo menos. Saí do escritório em direção à
recepção.
Ao chegar na entrada principal, avistei uma mulher uniformizada com
farda policial, sentada na poltrona em frente ao balcão.
— Liah, essa é a Rose. Ela veio até aqui para entender como pode
auxiliar na ONG. — Dinna apresentou a mulher.
— Oi, Rose — a cumprimentei sorrindo. — Vamos até minha sala?
Podemos conversar melhor lá.
— Claro — a policial sorriu simpática, seguindo-me pelo corredor.
Logo que entramos no corredor, Tommy e Nathan entraram em meu
campo de visão, descendo as escadas na outra ponta.
Senti meu coração disparar. Ainda não havia esbarrado com ele desde
sábado, quando me beijou daquele jeito.
Os meninos estavam vindo direto para a ONG, finalizar a pintura para
recebermos as crianças nos próximos dias. Desviei meu olhar deles,
desconcertada pela forma como meu corpo reagiu.
Percebi que a policial ao meu lado também estreitou os olhos para eles,
me olhando nervosa.
— Aquele é o sobrinho do Carlton? — perguntou baixinho.
— O Nathan? Sim. Você provavelmente conhece o tio dele, certo?
A mulher mordeu o lábio, parecendo agitada. Franzi a testa, sem
entender aquela reação. Será que ela e Nathan já tinham tido um caso? Ela
era nova e bonita, talvez tivesse rolado algo entre eles.
Tommy levantou a mão, acenando para mim. Em alguns segundos, os
dois estavam parados ao nosso lado, em frente a porta da minha sala. Quase
congelei ao sentir o braço direito de Nathan resvalar na lateral do meu
corpo.
— Tudo bem aqui? — Nathan perguntou para mim, mas encarando a
policial.
— Sim — alternei o olhar entre os dois. — Tudo bem? — foi minha vez
de perguntar.
Nathan assentiu. Ele e Tommy ainda estavam estudando a mulher ao
meu lado.
— A Rose veio conversar comigo sobre formas de ajudar na ONG…
— Claro que veio — Nathan interrompeu. — A gente pode ajudar com
isso, não é Thommas?
— Com certeza, Nathan. A gente tem muita experiência em ajudar na
ONG.
Tommy também encarou a mulher com o semblante fechado. Qual o
problema deles? Sacudi a cabeça, reprovando a atitude dos dois enquanto
olhava feio para eles.
Abri minha sala, indicando a cadeira estofada para que Rose se sentasse.
A mulher entrou desconfortável, mas acomodou-se em frente minha mesa.
Andei até minha cadeira, vendo os dois homens me seguirem para dentro
e apertei meus olhos, indicando a porta com o queixo. Que merda eles
estavam fazendo?
Audacioso, Nathan sentou-se na cadeira ao lado de Rose, totalmente
largado e Tommy fechou a porta apoiando as costas nela, cruzando os
braços numa postura defensiva. Minha vontade de esfolá-los vivos só
aumentava. Seria muito errado brigar com eles na frente de uma possível
colaboradora?
— É tão bom quando a gente vê uma pessoa pública, que cuida da nossa
segurança tão bem, se envolver com uma ONG, não é Thommas? —
Nathan disse debochado. Tommy assentiu.
Se eu arrancasse a cabeça deles na frente de Rose, seria presa em
flagrante? Rose poderia me acobertar, talvez.
— Então, Rose. Você já atuou em algum projeto social alguma vez? —
perguntei a ela, tentando soar simpática.
— Ainda… não… — a mulher encarou Nathan ao seu lado. — Vocês
são, tipo, seguranças delas?
Nathan abriu um sorriso malicioso e Tommy se limitou a sacudir a
cabeça em negação. Eles poderiam ser, pelo tamanho deles. Mas na atual
circunstância, Nathaniel era só um cara que me odiava e gostava de me
irritar.
— Eles são meus… amigos… e trabalham aqui também — expliquei,
mesmo sabendo que Nathan estava longe disso.
— Rose, você conhece o Carlton? — Tommy perguntou atrás dela. O
timbre dele alterado, num tom grave e ameaçador.
— Nossa! — Rose bateu na testa, constatando algo em seu celular. —
Tem uma ocorrência próxima daqui. Desculpa mesmo, Liah. — a mulher
levantou-se apressada, estancando ao dar de cara com Tommy bloqueando a
porta.
Rose girou novamente para mim, dessa vez, encontrando o peito de
Nathan, já de pé atrás dela. Levantei apressada, empurrando Tommy da
porta e abrindo-a para a mulher passar.
— Sem problemas, Rose — disse preocupada com aquela atitude deles.
— Volte quando quiser.
A mulher saiu a passos largos pelo corredor e voltei a encarar os dois
idiotas dentro da minha sala.
— Que merda foi essa? — perguntei.
Os dois se encararam numa conversa muda. Tommy deu de ombros,
evitando responder e Nathan bufou, cedendo à pressão silenciosa do amigo.
— Eu não gosto dessa mulher. Ela trabalha com meu tio. Não a quero
aqui.
Não a quer aqui? Aquela ONG era minha e de Olie. Quem ele pensava
que era?
Uma irritação intensa começou a crescer em meu peito. Podia sentir meu
corpo tremer. Encarei Nathan, quase decidida a pular em seu pescoço e
enfiar as unhas nele.
— Você não pode ter tudo que quer — avisei entre dentes. — Minha
vontade é de ir atrás dela só pra jogar na sua cara que quem decide as coisas
aqui, sou eu.
Nathan mordeu a parte interna da bochecha, de um jeito muito parecido
com o que eu fazia. O homem deu alguns passos até a porta, virando a
cabeça para me encarar.
— Acho melhor você se acostumar então. A vida já tirou demais de
mim. Hoje em dia, eu corro atrás de tudo o que quero, e costumo conseguir.
Aliás, não esquece que você também está me devendo uma.
Soltei um urro raivoso, pegando a primeira coisa que achei pela frente e
tacando contra ele, mas a porta já estava se fechando. Um baque alto se
seguiu quando o grampeador se chocou contra a madeira. Tommy, que
ainda estava na sala, levantou uma sobrancelha sorrindo.
— Vocês dois tem sérios problemas de controle emocional.
— Sai daqui, Thommas. Antes que eu jogue algo na sua cabeça também.
Tommy se apressou em sair da minha sala. Que merda toda foi aquela?
Nathan estava beirando o limite do aceitável. Ele tinha todos os motivos do
mundo para não gostar de mim, mas não tinha o direito de interferir na
ONG daquele jeito. Muito menos jogar a tal ajuda de sábado na minha cara.
Encarei o relógio no meu pulso, não eram nem dez horas da manhã
ainda. Pelo visto, o dia seria muito agitado.
20 de junho de 2019
— Ela foi abusada — minha voz soou distante, sem ter certeza de como
aquilo me afetava, e Doutor Emerson me olhou curioso.
— Da Liah — respondi.
— Liah é a Lianah, certo? — Aquele homem não dava ponto sem nó. —
Como descobriu que ela foi abusada?
— Ela me contou. Sou a única pessoa além dela que sabe sobre isso. Não
sei se deveria falar para outra pessoa.
— Sou uma extensão sua aqui, Nathan. Nada que me contar sairá daqui.
— Liah me contou sobre isso pra explicar a forma que se afetou quando
meu viu naquela noite, tentando enfiar a Camille no meu carro. Nunca
pensei em como aquilo soou pra ela.
— Me fez entender seu conceito de que a culpa é relativa. Ela nunca teve a
intenção de me fazer mal. — Remexi o corpo, incomodado.
— Nathan, você trocou Lianah por Liah e acabou de se referir a ela como
alguém próximo. O que mudou entre vocês?
— Acho que entender o lado dela me fez perceber que ela também é
humana. Ficou mais fácil aceitar as coisas boas que já vinha vendo nela.
— Esse é um ponto, com toda certeza. Entender o lado de alguém nos abre
muitas portas para uma possível aproximação. — Doutor Emerson
explicou. — Fico feliz que tenha tido a iniciativa de conversar com a
Lianah.
— Eu gostaria de saber mais sobre essa sua conversa com Liah, mas me
fale sobre a Triss. Você se sente preparado para recebê-la finalmente?
Quem, em sã consciência, estaria preparado para receber uma adolescente
de dezesseis anos em sua casa? Eu sabia que o trabalho seria árduo e que,
logicamente, teria algumas dificuldades. Mas o resultado valeria a pena.
— Sinto que estou pronto para passar por isso — me limitei a responder. O
homem me estudou por alguns segundos.
Separador
Eu tinha passado alguns dias apreensivo, com medo da reação que ela
pudesse ter. Hoje, finalmente, eu a levaria para minha casa, que seria a casa
dela também. Depois que contei a Triss, acordamos que voltaria hoje para
buscá-la, para que Liah tivesse tempo de arrumar a documentação e as
coisas dela.
Como nada era tão perfeito, Elise continuava atrás de mim, mandando
mensagens e ligando quase diariamente, decidida a me convencer a tratá-la
como mãe. Só o pensamento já era suficiente para ameaçar tirar toda a paz
que senti nos últimos dias.
— Chegou ainda pouco. Está com uma nova voluntária na sala dela.
Assenti, seguindo até lá. No corredor, avistei Liah conversando com uma
morena que estava de costas na porta de sua sala. Me aproximei delas,
sentindo um arrepio estranho na espinha.
Acho que a conheço de algum lugar.
A outra mulher tinha algo muito familiar. Liah sorriu por cima do ombro da
morena, ao me ver caminhar até elas.
— Oi, Nate — sua voz cortou meus ouvidos me fazendo fechar os olhos.
Passei os últimos meses culpando Liah por algo que não deveria,
esquecendo totalmente a real causadora dos meus traumas. Antes que eu
pudesse fazer qualquer merda ali dentro, virei as costas e segui de volta em
direção à saída. Passei pela porta de vidro na recepção ainda lutando com a
raiva que crescia em meu peito.
— Nate, está tudo bem? — Ela veio até mim, percebendo o meu estado. —
O que aconteceu?
Precisei puxar o ar com toda a força para que aquelas palavras fossem ditas,
e quando saíram de mim, levaram cada partícula de oxigênio com elas.
— Camille está aqui!
Dizer aquilo em voz alta só fazia a situação ficar ainda mais real. Ela tinha
mesmo voltado da Itália, e estava aqui. Infiltrada na minha vida de novo.
O desespero no meu peito ainda crescia. Era surreal acreditar que tanta
coisa estava sendo remexida ao mesmo tempo. Elise trazendo meus
traumas de volta, Camille me fazendo lembrar da morte do meu filho. As
feridas ainda estavam abertas e expostas demais para serem remexidas
dessa forma agora. Não era justo que isso apagasse todas as coisas boas.
Ela olhou em volta, até que correu em direção a um balcão velho e tirou
uma barra de ferro grande e pesada do monte de ferramentas espalhado em
cima dele.
Mais lembranças ruins me atingiram.
Porra!
Era sempre uma avalanche quando alguém falava o nome dele. Meu
coração perdeu uma batida e levei o punho fechado até a boca, travando os
dentes na pele da minha mão, com medo de perder o controle. Evie puxou
minha outra mão, me entregando a barra de ferro.
— Tem um monte de coisa aqui pra você descontar. Coloca a raiva pra fora.
— pediu, me mostrando os grandes caixotes de madeira e as estantes velhas
de alumínio.
— A Camille matou seu filho, Nate. Elise está infernizando sua vida. Você
vai levar uma adolescente pra sua casa hoje, é melhor descontar isso aqui e
não correr o risco de ter uma crise em casa.
A pior coisa em tentar ganhar uma batalha interna é quando você percebe
que vai perder. Em todas as minhas crises eu tentei de alguma forma manter
controle, ou ao menos manter o fio frágil que segurava minha sanidade,
nunca me permiti estourar de verdade. Mas não dessa vez. Deixei tudo
aquilo subir a superfície, enquanto apertava os dedos com mais força ao
redor do ferro gelado.
Era libertador!
Tinha uma pequena parte, por menor que fosse, que queria ser melhor…
que queria dar uma vida melhor para Triss, que queria ser exemplo para
Mia; essa parte crescia e ficava mais forte a cada gota de ressentimento que
eu conseguia colocar para fora.
Quando atingi a exaustão e meu corpo cambaleou para trás, soltei o ferro
aos meus pés, virando de volta para Evie na entrada do galpão. Liah estava
com ela, me olhando em choque. Senti meus joelhos cederem e uma
fisgada aguda de dor quando atingi o chão.
Enterrei o rosto nas minhas mãos, deixando que os soluços tomassem conta
de mim e chorei como nunca havia chorado antes, em toda a minha vida.
Eu permiti.
Me permiti colocar aquilo pra fora; me permiti sentir a dor que deveria ter
sentido quando tudo aconteceu; me permiti aceitar que não era minha culpa
ou de Liah; Me permiti chorar e deixei que elas me consolassem.
— O que é isso? — Encarei Liah, ciente de que estava fazendo uma careta
típica de criança.
— Você parece uma criança. — Ela tirou a caneca da minha frente, abrindo
a gaveta da mesa. — Se contar pra alguém que tenho isso aqui, mato você.
— Tequila?
— Às vezes, eu me estresso também — confessou divertida.
Definitivamente, aquela era uma versão dela que jamais imaginaria existir.
Liah era o tipo de pessoa que só de bater o olho, você entende que é
fanática em regras e nunca faz nada errado. Mas talvez eu estivesse errado,
afinal.
Liah e Evie haviam ficado comigo, ajoelhadas no chão, até que eu parasse
de chorar. Quando finalmente me acalmei, Evie precisou voltar para a
Consultoria e Liah me trouxe para sua sala.
Aquela não tinha sido uma crise normal. Foi a pior e a melhor de todas que
eu já tive. Pior porque eu nunca estive tão fora de controle, e melhor porque
foi libertador. E por mais inacreditável que fosse, foi a única na qual não
me machuquei fisicamente. Bem, provavelmente eu ficaria com uma dor
absurda nos braços mais tarde, mas não poderia esperar nada diferente
considerando a força que coloquei naqueles golpes.
— Eu não sabia que ela era a mesma Camille da sua história — explicou.
— Eu podia jurar que a garota que estava com você aquela noite era loira.
— Ela marcou uma reunião comigo por telefone na semana passada. Queria
ser voluntária aqui. Eu só soube quem ela realmente era quando você saiu
sem falar nada. — Liah abaixou os olhos pesarosa, mordendo a parte
interna da bochecha direita.
Cerrei os olhos, prestando mais atenção nela. Seus olhos pesarosos demais,
a falta do sorriso habitual, a cortina dourada que caia em volta do seu rosto
triste. Liah era… viva… demais para estar chateada daquele jeito. Por um
problema que era meu.
— Que bom que você não se machucou dessa vez. — Seus olhos desceram
para as marcas vermelhas ainda evidentes nas minhas mãos.
Eu sabia que Evie não tinha feito por mal; mas ela tocou exatamente nas
minhas piores feridas. Um suspiro exagerado cortou meu peito e voltei a
beber o líquido ardente.
— Acho que estou mais nervoso que ela. Quero muito que isso dê certo,
Liah. Mas tenho medo de não saber lidar com ela, de não conseguir ser
responsável o bastante pra nós dois.
Essa era praticamente a segunda vez que estabelecia uma conversa decente
com a mulher a minha frente. Assim como aconteceu na primeira, era quase
impossível não me abrir com ela. Havia um padrão comum entre a primeira
e a segunda vez que falamos, onde Liah dizia ou perguntava algo profundo
e eu respondia totalmente sincero, para logo depois um clima mais pesado
se instaurar entre a gente.
Era exatamente isso que acontecia agora. Liah teve receio de me responder
e minha mente traiçoeira insistia em me dizer que era porque a garota ainda
não confiava em mim. Nem você mesmo confia, Nathan.
— Sua irmã brigou comigo por falar mal de você umas semanas atrás. Você
precisava ver como ela te defendeu. Mas foi por causa disso que tive
certeza que você seria bom para a Triss.
— Nate! — Um barulho alto me fez respirar de novo. Olhei para trás vendo
Mia e Triss entrarem na sala empolgadas. — Evie avisou que estava aqui.
Voltei a olhar para frente, vendo Liah com os olhos vidrados na garrafa em
minha mão. Fechei o frasco o mais rápido que pude, entregando para ela
em menos de dois segundos. A loira mantinha seus olhos arregalados, com
medo de descobrirem seu segredinho sujo, mas as meninas estavam tão
distraídas em sua animação que nem perceberam.
— Nate, a Mia pode ir com a gente? Ela vai me ajudar a arrumar meu
quarto, tem noção de que eu nem sei o que é ter um quarto só pra mim? Eu
tenho um armário? As roupas que tenho não devem ocupar nem uma
gaveta…
— Você sabe dizer não pra Mia? — Liah perguntou baixinho, parando ao
meu lado. Podia sentir a diversão sádica presa em sua voz.
— Você sabe que vai ter que aprender a dizer não, não é?
Mia saiu com o carro da ONG, e olhei Triss pelo retrovisor. A adolescente
olhava, encantada, as ruas de Greenville com alguns prédios altos no centro
e muitas casas residenciais nas ruas mais afastadas. Eu morava num prédio
próximo ao Centro da cidade, com vista para um grande lago no parque
central. Triss desceu do carro na garagem, ainda mais ansiosa do que
quando saiu da ONG, minutos atrás.
— Triss, você vai amar a vista e seu quarto. — Mia puxou a garota em
direção aos elevadores, me deixando para trás. Tirei a mala pequena do
porta-malas, subindo logo depois delas.
— Eu não vou fazer isso, Triss. — Passei meus braços em volta dela. Mia
sentou na cama, olhando a gente com um sorriso emocionado no rosto. —
Essa é sua casa agora, e vai ser até o dia que você quiser e se sentir bem
com isso.
Era incrível como algo assim podia revitalizar qualquer um. Triss acendia
uma parte de mim que pensei estar totalmente morta, uma parte que estava
se aquecendo e transbordando de felicidade. Por um segundo, imaginei
como seria ter meu filho aqui, correndo e gritando pela casa. Geralmente,
esse pensamento me levaria a um lugar mais fundo no poço que era minha
mente. Mas hoje, foi só uma sensação de nostalgia, uma memória projetada
de algo que queria ter vivido, e por algum motivo, senti meu coração bater
mais forte. Mais vivo.
— Claro que vai. Você vai me gritar a cada hora para te salvar de alguma
situação com a Triss, mas eu vou gostar disso.
Sorri, pensando que Mia não tinha ideia do que ela representava para mim.
Mia era minha irmã e Sophia era minha mãe. E embora tivesse crescido
com o hábito de chamá-la de tia, esse não era meu real sentimento.
— Sério que você brigou com a Liah por minha causa? — perguntei
lembrando do que Liah me contou mais cedo.
— Eu não briguei com ela. Só disse que não ia aceitar que ela falasse de
você na minha frente. — Mia sorriu travessa. — Ninguém fala de você na
minha frente esperando que eu fique quieta.
— Eu queria ter visto isso — confidenciei. — Daria tudo pra ver a cara
dela quando você me defendeu.
Assenti, dando de ombros. Também não entendia muito bem como estavam
as coisas entre a gente agora. Mas, sim. Estávamos falando bem um com o
outro.
Mia foi embora me deixando com Triss. Quando fechei a porta e me virei
em direção à sala, Triss mantinha os olhos curiosos sobre mim.
Apertei os olhos em direção a Triss. Às vezes, podia jurar que essa menina
lia meus pensamentos.
Triss sentou-se ao meu lado, roubando a almofada do meu colo para logo
em seguida tacá-la no meu rosto. Olhei irritado para a garota que pegou
outra almofada e jogou em mim de novo, rindo. Em poucos segundos,
havíamos iniciado uma pequena guerra de almofadas na sala do
apartamento.
— Você está ficando velho — ela riu, se jogando ao meu lado. — Mas você
tinha razão, você é bem mais legal que um pai chato. É tipo um irmão mais
velho.
— Considero isso um elogio?
Pensei por um segundo. Triss estaria sempre em nossas vidas agora, uma
hora ela ficaria sabendo de qualquer forma. Me surpreendia por Mia ainda
não ter contado nada a ela.
Triss assentiu e me contou o que sabia da história, a parte que Mia havia
contado. Contei a ela sobre Lianah e até sobre os policiais que me
espancaram. Triss ficou bem abalada com a história.
— Sei que é complicado dizer isso, Nate. Mas você sabe que a Liah não
teve culpa, não é?
— Tô trabalhando nisso, Triss. Juro que tento não culpar a Liah. A gente
briga o tempo inteiro, mas até que ultimamente a gente tem sido mais
civilizado um com o outro.
— Se você desse uma chance pra conhecer a verdadeira Liah, você iria se
surpreender. Ela é uma pessoa sensacional, Nate. Uma das melhores
pessoas que já conheci. Acho até que vocês combinam. — disse sorrindo.
21 de junho de 2019
Larguei o computador, dando total atenção a ela. Sim, Evie havia tocado
nas piores feridas, mas eu sabia que era a melhor estratégia dela para me
fazer estourar.
— Ninguém concorda comigo sobre isso, mas sempre achei que se você
colocasse para fora de um jeito seguro, as coisas podiam melhorar para
você. Acho que fui um pouco egoísta ao testar minha hipótese dessa forma.
Evie já havia me dito isso uma vez; que eu precisava colocar para fora
esses sentimentos ruins que me faziam mal. Eu só nunca encontrei a melhor
forma de fazer isso, até que ela mesmo me mostrou ontem. Olhei atento
para ela, vendo suas mãos mexerem nervosamente sobre seu colo. Ela
costumava ser a mais tímida das meninas, e talvez a mais afastada de mim,
mas o que Evie fez por mim ontem, jamais sairia da minha memória.
— Tenho que levar a Triss para a casa ainda. A Mia deve ficar com ela hoje
— avisei, lembrando de confirmar com Mia se iria mesmo passar a noite
com Triss. — Você já está indo para lá?
— Ótimo. Queria mesmo saber como a Triss está. Ela deve estar amando
ter uma casa.
Ela estava mesmo estressada com alguma coisa. Resolvi não provocar mais
e me despedi das duas, saindo de casa com Evie.
— Você acha que é errado deixar a Triss com a minha irmã logo na
segunda noite dela comigo? — perguntei preocupado enquanto descíamos
no elevador até a garagem.
— Não vejo isso como um problema, Nathan. E a Triss é quase adulta, não
é como se ela fosse uma criança. Você está preocupado com isso?
— Liah vai estar lá, não vai? Provavelmente ela vai pensar que deixei Triss
sozinha quando me ver — expliquei. — Às vezes, acho que ela tem alguma
razão sobre mim e como posso ser nocivo a ela.
— Nate, tenho duas coisas para te falar. Primeiro, você não é nocivo de
forma nenhuma pra Triss. Segundo, desde quando você se importa com o
que Liah pensa de você? Todo mundo já sabe do problema de vocês, ela
implica com você e você com ela. Isso é um fato.
— Não estou preocupado com o que ela pensa exatamente, mas confesso
que gostaria que ela tivesse uma visão melhor de mim — respondi.
Ando mais preocupado com ela do que você possa imaginar, Evie.
— Por que ele está com o farol assim? — questionou ao perceber o exagero
no farol alto.
— Nathan, por que esse carro esta seguindo a gente? — Evie perguntou
desesperada.
Sacudi a cabeça. Eu imaginava o motivo, mas não queria tornar aquilo
ainda mais real. Pisei mais fundo no acelerador, tentando ganhar alguma
distância dele. Mais um pouquinho e estaríamos entrando na rua do
Republic, que devia estar lotada de gente. Precisava chegar lá em
segurança.
Voltei a olhar o retrovisor, vendo o carro preto ainda na nossa cola. Que
merda. O velocímetro subia rápido, chegando a 140 km/H, numa estrada
onde o limite era 90 km/H. Pisei mais fundo, o velocímetro chegando aos
160 km/H. Meu coração martelava forte no peito e minha respiração
acelerou até estar descompassada.
— Nathan, por Deus. Se a gente não for assassinado, a gente vai bater o
carro — Evie gritou.
— Dei chance dele me ultrapassar lá atrás, Evie. Ele não fez. Se quisesse
parar a gente, já teria feito isso. — Avisei, alternando minha atenção entre a
estrada e o retrovisor.
Tentei raciocinar em meio ao caos, seja quem for, podia ter me parado na
hora que saí do prédio, mas preferiu manter a perseguição pela estrada.
Talvez só quisessem saber aonde eu iria. Será que tinha alguém vigiando
meus passos?
Evie fez o que mandei, segurando atenta na trava da porta. Olhei pelo
retrovisor quando o vidro na lateral do motorista abaixou e uma mão
repousou na janela do carro. O trânsito totalmente parado pelo excesso de
carros. Meu coração batia ainda mais descontrolado agora.
— Vai sim. Isso não é uma opção, Evie. Você vai sair e pronto. — Encarei
a garota assustada no banco ao lado. — Por favor, não comenta com
ninguém sobre isso, tá? Eu te explico depois, mas não toca nesse assunto.
Não quero deixar ninguém preocupado.
Voltei meus olhos para o retrovisor vendo que o carro continuava colado no
meu. Porra, o que faço agora? Tentei olhar a placa do carro, mas não foi
uma surpresa constatar que não tinha placa, pelo menos, não na frente.
Levou alguns segundos para que quem quer que fosse, finalmente seguisse
seu caminho, acelerando devagar pela rua. Eu até tentei, mas não consegui
ver nada através dos vidros escuros.
Merda.
Saí do carro ainda preocupado que essas pessoas estivessem por perto.
Devagar e totalmente desconfiado, segui meu caminho até o Republic,
incerto sobre o rumo daquela história.
Evie estava sentada num dos bancos de ferro, ainda do lado de fora do
salão. A garota correu desesperada até mim assim que atravessei a porta de
entrada.
Ela assentiu, ainda me olhando preocupada. Mas logo seus olhos fugiram
para o portão atrás de mim. Virei meu pescoço vendo Liah e Karol
entrarem juntas. Evie revirou os olhos, balançando a cabeça chateada.
Evie negou, indicando alguma coisa atrás de mim com o queixo. As outras
duas se juntaram a nós.
Karol sorriu e logo desviou seus olhos para Evie, parada ao meu lado. A
tensão entre as duas era quase palpável. Poderia supor que as duas estavam
brigadas. Troquei um olhar rápido com Liah, percebendo que ela também
havia reparado naquilo.
— Mia está com ela, não deixei Triss sozinha — me justifiquei apressado.
— Eu sei que ela está com a Mia, Nathan — Liah riu. — Estou falando
sobre a escola. A gente precisa definir como vai ficar o estudo dela, só isso.
— Ah, ok! — respondi confuso.
Por um segundo, achei que Evie falaria de uma vez tudo que tinha
acontecido, já que seus olhos estavam arregalados e as pupilas muito
dilatadas. Mas a garota se limitou a fazer uma careta confusa para a
pergunta da amiga, negando com a cabeça. Liah buscou meus olhos,
desacreditando da amiga. Dei de ombros, também negando.
Aquela perseguição era algo que não precisava afetar mais ninguém.
Provavelmente, eu já passaria noites sem dormir pensando nisso, e estava
exausto de confusão por enquanto.
Ilustra Triss
04 de julho de 2019
Milhares de luzes vermelhas refletiam através do vidro. Os freios
ativados a cada cinquenta metros de estrada. O som infernal das buzinas
irritantes não parava. Pelo amor de Deus! Buzinar não ia fazer o trânsito
andar mais rápido. Esfreguei os olhos cansado, vendo a fila de carros
parados na estrada escura. Maldita a hora que aceitei vir dirigindo e
carregando tanta gente comigo.
— Que inferno! — reclamei pela décima vez.
— Tem um acidente ali na frente, a três quilômetros daqui — Tommy
estava olhando o aplicativo do GPS no celular, sentado no banco do carona.
No banco de trás estavam Evie, Karol e Triss, gritando e rindo o tempo
inteiro. Normalmente eu gostava das bagunças nas nossas viagens, mas hoje
minha cabeça estava explodindo pelo dia pesado.
O toque do meu celular soou pelo alto-falante do carro me causando
ondas de dor. Pressionei o botão no volante para atender Ethan.
— Tá no viva voz — avisei antes que ele falasse alguma merda, já que
eu tinha uma adolescente atrás.
— Tem um posto a quinhentos metros. A Olie precisa fazer xixi e Liah
está com fome. Vamos parar ali? — Pensei em sua proposta. O trânsito não
parecia andar tão cedo mesmo.
— Espero que tenha uma farmácia, preciso de um remédio pra dor de
cabeça. Ninguém aqui tem um — reclamei.
— Incluindo você — Evie gritou atrás de mim. Uma pontada aguda me
fez fechar os olhos com força.
Ethan estava logo atrás da gente, com Mia, Olívia e Liah. Eu podia ouvir
as meninas rindo e brincando lá também.
— A Liah tem uma farmácia na bolsa — escutei a voz de Olie pelo alto-
falante.
— Ótimo. Eu só preciso de um remédio. Vou parar no posto então —
avisei, desligando o celular.
Ainda levamos alguns minutos até a entrada no posto de conveniência. O
estacionamento estava bem cheio, muita gente também estava parando aqui
para evitar o trânsito. Saí do carro, esticando as pernas, quando Ethan
estacionou ao meu lado. —
Assim só vamos chegar lá amanhã pela manhã — Olie reclamou, se
encostando ao meu lado no capô. — Falei pra gente ir cedo.
Eu até queria ter saído de manhã, mas tinha muito trabalho acumulado na
App, e por isso trabalhei na quarta até tarde. Eu sabia que era loucura pegar
a estrada para o litoral em pleno 4 de julho, mas mesmo assim aceitei a
loucura.
— Ninguém está mais irritado que eu, Olie — avisei.
— Nathan, você está voltando ao normal aos poucos, mas continua tão
chato e implicante com tudo. Isso é falta de sexo, não é? — Olhei pra Olie,
apertando meus olhos. Enfiei minhas mãos no bolso da bermuda, sacudindo
a cabeça.
Em que mundo estou vivendo? Não penso em sexo há quase seis meses.
— Olívia, não vou discutir minha vida sexual com você — avisei. —
Vocês têm uma mania irritante de me recriminar pelas coisas que faço e
depois continuam me recriminando quando paro de fazer.
Olie começou a rir, me dando uns tapinhas no ombro.
— Ninguém nunca falou pra você parar de fazer sexo, Nate. Tudo na
vida precisa de equilíbrio. — Olie saiu, sacudindo a cabeça, me deixando
irritado.
Olívia, além de enxerida, era totalmente maluca as vezes. Andei até o
carro de Ethan, vendo Liah sair pela porta de trás. A garota estendeu a mão
me entregando uma cartela de remédio. Esperava que aquilo me aliviasse.
— Valeu — agradeci e Liah assentiu, seguindo as meninas para dentro
da lojinha do posto.
Voltei ao carro pegando minha garrafa de água no descanso ao lado do
câmbio. Tomei dois comprimidos de uma vez. Eu não estava com fome,
preferia passar meu tempo descansando até que todos voltassem da loja,
mas Tommy voltou cedo demais.
— Não vai comer nada?
— Não estou com fome e minha cabeça vai explodir daqui a pouco.
Preciso que esse remédio faça efeito logo. — reclinei meu banco, deitando
mais o corpo. — Você acha que eu me tornei um cara chato e implicante?
— perguntei antes que ele pudesse sair.
Tommy me olhou segurando um riso. Claro que ele achava. Todos eles
achavam.
— A vida foi mais dura com você do que com a gente — Tommy
recostou o banco dele na mesma altura que o meu, relaxando o corpo e
fechando a porta do carro. — Você é chato e implicante, sim, mas não seria
você se não fosse.
— Olivia disse que estou voltando ao normal e agora não consigo parar
de pensar sobre isso.
Eu queria ser o Nathan de antes, mesmo com todos os traumas que tinha
agora. Essa vontade só aumentava depois que Evie tinha me ajudado a
colocar tudo aquilo para fora de mim.
— Concordo com ela. Você tem sorrido e brincado mais com a gente. Há
um tempo, acho que você nem iria nessa viagem, ainda mais com Liah indo
também.
Era verdade. Se eu não estivesse aprendendo a entender a relação de
Liah com minha vida, provavelmente eu ainda a culparia sem nenhuma
razão, mas já fazia uns dias que eu considerava minha situação com ela
'resolvida'.
— Lembra daquela noite quando conhecemos a Liah? — A pergunta era
retórica, apenas para iniciar meu verdadeiro ponto. — Foi em janeiro,
depois que a gente fechou aquele contrato com a fábrica de chocolates. Eu
transei com a Patrícia aquele dia.
— Sabia! — Tommy deu um soquinho no ar. — Vou cobrar cinquenta
paus do Ethan. Apostei com ele que você ia pegar aquela mulher, ela te deu
mole a reunião toda. — Seu riso descontraído me fez rir. — Mas tá me
contando isso agora por quê?
— Foi a última vez que transei — confessei.
O estranho para mim não era o tempo sem transar, e sim que não pensei
sequer por um momento nisso, em todos esses meses. Tirando o dia em que
beijei Lianah no Republic…
Tommy me encarou apertando os olhos. Percebi a confusão em seu rosto
ao abrir a boca diversas vezes e não consegui falar nada, soltando um riso
desacreditado logo em seguida.
— Tá me zoando, né? — Neguei com a cabeça.—– Me explica isso.
Resolveu virar celibatário?
— Minha vida virou um caos desde que conheci a Liah. — Olhei para o
teto do carro suspirando. A dor de cabeça finalmente estava passando. —
Toda a merda que vivi ficou ainda mais intensa desde aquele dia. Ter que
conviver com ela quase diariamente me fazia sentir raiva de tudo a cada
cinco segundos. Quando ela se lembrou de mim foi pior ainda. Depois
começou a rolar toda essa coisa com a ONG e a investigação. Foi quase
como se não tivesse tempo pra pensar nisso.
Olhei pela janela do carro, esperando uma resposta dele, mas Tommy
parecia absorver minhas palavras ainda. A porta da loja se abriu e vi Liah e
Olivia saindo de lá. As duas pararam na porta, rindo de algo em uma revista
que a loira segurava. Suspirei encarando a garota. Liah tinha tantos
problemas quanto eu agora, e mesmo assim aquele sorriso aberto nunca saía
de seu rosto.
— Eu nunca reparei nela de verdade antes — falei sem pensar. Tommy
levantou o corpo, procurando a direção do meu olhar.
— Na Liah? Porque você é um idiota, né?
Continuei encarando a garota pelo vidro. Tommy tinha razão, ela era
mesmo linda.
— Ela é gata — concordei. E gostosa. Pra Caralho.
Tommy me deu um soquinho no braço, rindo da minha afirmação.
— Vou buscar alguma coisa pra você comer — avisou saindo do carro.
Fechei meus olhos tentando descansar um pouco antes deles voltarem.
Não sei quanto tempo se passou até que ouvi a porta do carro ser aberta
de novo. Abri os olhos vendo Karol e Evie se acomodarem no carro.
— Cadê a Triss? — perguntei, preocupado, quando Lianah apareceu ao
lado delas.
— Pediu pra ir com a Mia no carro do Ethan. Mas tem duas malas no
banco de trás, então posso ir aqui? Vai ficar muito apertado lá. — A loira
perguntou já entrando ao lado de Evie.
Assenti, vendo Tommy entrar no carro.
— Tem comida aqui, se quiser — avisou largando a sacola ao lado da
porta.
Ethan arrancou com o carro e saí logo atrás dele. Pelo retrovisor, percebi
que podia cruzar com os olhos de Liah, sentada atrás de mim. Algumas
vezes, parecia que ela também me encarava.
A estrada já estava liberada e em um pouco mais de uma hora chegamos
à casa de praia de Evie. Nós já tínhamos vindo aqui algumas vezes antes.
Era uma casa enorme, de frente para o mar em um dos municípios vizinhos
de Greenville. As meninas saíram disparadas na frente para escolher os
melhores quartos, mas tinham tantos quartos naquela casa que duvidava que
alguém reclamasse.
Ethan e eu descarregamos as malas das folgadas do carro, enquanto
Tommy ia levando as compras para dentro.
— Você tá melhor? — Ethan me perguntou quando entramos com todas
as malas.
— Estou sim. O remédio que Liah me deu ajudou. Só preciso dormir um
pouco e vou estar cem por cento. — Não via a hora de deitar numa cama e
apagar.
— Perdi cinquenta paus para o Tommy depois de quase seis meses. —
Ethan riu. — Você tinha que abrir a porra da boca? Ethan sabia que eu tinha
transado com Patricia aquele dia. Contei a ele no mesmo dia por receio do
apego aparente da mulher.
— Você deveria ter mais palavra — brinquei, socando seu ombro. —
Vou buscar algum quarto lá em cima e dormir um pouco. — avisei, subindo
a enorme escada de madeira em direção ao andar de cima.
Passei por Mia e Triss no corredor, encantadas com a vista das grandes
janelas de vidro. Na porta de um quarto mais para frente, Karol e Olie
conversavam apontando os quartos e fazendo alguma divisão nos dedos.
— Já escolheram os quartos? — perguntei arrastando a mala. — Preciso
dormir.
— Sim. Todas as meninas pegaram seus quartos. Os últimos desse
corredor estão vazios. — Karol avisou.
— Ótimo! — Tudo que eu precisava era de um quarto que tivesse a
janela para a parte de trás da casa, longe de todo o barulho.
Caminhei até o fim do corredor. Já estava pensando nas formas de
conseguir dormir com todo o barulho que sei que eles fariam. Abri a porta
do quarto, acendendo a luz. Era maior e ainda mais bonito que um quarto de
hotel luxuoso. Os pais de Evie tinham bom gosto.
Larguei a mala no chão, ponderando se gastaria tempo tomando um
banho antes de dormir. Seria um pecado deitar sujo e suado naquela roupa
de cama impecável. A contra gosto, peguei uma cueca e a necessaire na
mala, cedendo à necessidade de um banho quente. Deixei a água quente
levar minha tensão embora. Estaríamos seguros aqui pelo menos durante o
feriado.
Tive um sono pesado por algumas boas horas, mesmo assim, quando
acordei por volta de 04:00h da manhã, eu não conseguia mais dormir.
Tinham muitas coisas na minha cabeça que me impediam de descansar de
verdade, e eu basicamente precisa esperar pelo cansaço excessivo para
relaxar.
Estava quente e meu corpo um pouco úmido pelo suor. Levantei só com
a calça de moletom fino e sai do quarto tendo cuidado para não fazer
barulho. Desci as escadas sem muita paciência para o meu próprio drama e
fui direto para a cozinha pegar um pouco de água gelada.
Tinham várias garrafas vazias de cerveja em cima de uma das mesas de
centro da sala e muitas outras em cima da ilha, no meio da cozinha gigante.
O povo deve ter ficado acordado até bem tarde bebendo, pelo visto.
Abri a geladeira e tirei uma garrafa de água bem gelada, despejando uma
boa quantidade em um copo grande. Suspirando, fui até a pia e apoiei o
braço na bancada, encarando a lua pela janela. Se eu pudesse, fugiria de
todos aqueles problemas até que eles evaporassem pelo mundo. Minha vida
continuava sendo a mesma sucessão de tragédias de sempre.
O rumo dos meus pensamentos foi alterado quando percebi a sombra
projetada no reflexo fraco da janela de vidro. Escutei quando uma das
cadeiras altas da ilha foi arrastada com cuidado e, pelo vidro, vi o corpo
pequeno se ajeitando sobre a bancada.
— Suas tatuagens são legais.
Voltei a beber minha água, ainda encarando Liah pelo vidro a minha
frente.
— Não gosto de falar sobre elas.
Elas estavam ali para tentar apagar marcas que estavam sendo bem
reviradas ultimamente, e isso me fazia sentir ainda mais dor que o habitual.
— No hospital, quando minha avó morreu, você disse que era mais fácil
lidar com o tempo. — Liah pegou a garrafa de cima da ilha, puxando um
dos copos do descanso e despejou o líquido nele. — Era só pra tentar me
deixar melhor ou era algum tipo de desejo seu?
Virei o corpo em direção à ilha, apoiando a lombar na pia, ainda
segurando meu copo. Liah me encarou especulativa, curiosa por aquela
resposta.
— Já descartou a possibilidade de ser verdade? — perguntei sério e um
sorriso pequeno apareceu em seu rosto. Liah era inteligente o suficiente
para saber que não era mesmo uma possibilidade.
— É verdade? — perguntou, levantando os olhos para mim.
— Acho que preciso me esforçar mais se eu quiser que seja — assumi,
voltando a beber minha água.
Sem me responder, Liah bebeu sua água e deixou o copo sobre o balcão,
voltando a me olhar daquele jeito curioso.
O olhar dela me deixava nervoso, principalmente quando aquela coisa
estranha acontecia e quase não permitia mais que eu desviasse. Larguei o
copo sobre a pia e cruzei meus braços sobre o peito, esperando a próxima
pergunta cheia de intensão de me entender que eu sabia que viria.
— Quando eu era pequena, as crianças na escola sempre perguntavam
sobre meu pai. Elas não tinham pena, muito menos filtro para perguntar
coisas como o motivo do meu pai ter abandonado minha mãe grávida de
mim. Eu sentia tanta raiva no início, mas depois entendi que eu não
precisava de um. Minha mãe nunca deixou me faltar nada. Nem amor. —
Liah mordeu a parte interna da bochecha e então abaixou os olhos.
Eu nunca conseguia entender muito bem o motivo dela me contar essas
coisas. Pelo pouco que conhecia de Liah, sempre tinha algo que ela queria
me mostrar com isso. O curioso, é que agora eu tinha interesse em tudo que
ela me contava. Eu também queria entender quem ela era, o que ela sentia.
Até pouco tempo, jamais imaginaria que Liah teria uma história de vida
tão parecida com a minha em alguns aspectos. Eu também vivi sem pai.
Sem pai e sem mãe, diferente dela que teve uma mãe que a amava.
Mas ela entendia o meu problema.
Mais uma vez.
— Sei que tem um motivo para estar falando isso, mesmo que eu ainda
não tenha entendido. — Saí do balcão e fui até uma das cadeiras da ilha, ao
lado dela, me acomodando ali.
— Foi a primeira vez na vida que senti um vazio no meu peito. Minha
mãe me ajudou a curar esse sentimento. — Liah remexeu as mãos sobre o
balcão, nervosa. — Quando minha mãe morreu, meu coração ficou
dilacerado. Minha avó supriu tudo que eu precisava e me ajudou a curar
isso…
— Agora que sua avó morreu, não tem ninguém que te ajude a fechar
esse buraco de novo — concluí por ela, entendendo onde ela queria chegar.
Liah havia dito isso aquela noite. Lembro claramente do quanto me senti
afetado por saber que eu já tinha desejado aquilo.
— Eu não consigo mais pensar direito, Nathan. Desculpa desabafar isso
assim, com você. Eu só… — Liah abaixou os olhos, brincando com as
unhas curtas. — As pessoas acham que não falar sobre isso é melhor, ou
que se elas me derem dois tapinhas nas costas, vou ficar milagrosamente
bem.
— Eu realmente consigo te entender. — Assim como na noite em que
Sylvia morreu, eu sentia que podia falar. — Tive que aprender a lidar com
todas as minhas frustrações muito cedo. Minha tia me ensinou a lidar com a
ausência de um pai que nunca conheci e com a negligência da minha mãe.
Mas quando ela casou com o Ralph e ele começou a bater nela e na Mia, eu
me vi sozinho pela primeira vez. Foi difícil pra um garoto de dez anos
suportar tudo aquilo, sem ter uma forma de ajudar. Tia Soph era tudo que eu
tinha, minha única referência de família, e Ralph fodeu a cabeça dela.
— Ele também batia em você? — Liah perguntou sem me encarar,
embora seu tom demonstrasse seu interesse na história.
— Só aconteceu uma vez, porque me intrometi pra defender a Mia, mas
Elise apareceu de surpresa aquela semana e me viu todo roxo — dei de
ombros, lembrando de uma das únicas vezes que aquela mulher foi útil na
minha vida. — Ele ficou com medo dela perceber e nunca mais tentou
encostar em mim.
— Elise é sua mãe? — Olhei para o lado vendo Liah me olhar curiosa.
— Sim.
— Por que não a chama de mãe?
Intrometida.
Respirei mais fundo, incomodado por ter que falar de um passado que
me causava tanto mal. Eu teria simplesmente cortado o assunto em qualquer
outra ocasião, mas por algum motivo, eu queria que Liah soubesse.
— Ela nunca foi mãe de verdade. Elise me deixou com a irmã quando eu
tinha uns dois anos, pra ir embora, viajar pelo mundo com um cara
milionário que ela conheceu. Ela aparecia uma vez por ano, alegando estar
com saudades do filho. No início, eu ficava ansioso pela época que ela
apareceria. Hoje em dia prefiro que ela nem se manifeste mais.
Elise era só mais um ponto que me deixava ainda mais ansioso. Eu só
nunca conseguia entender porque tudo de errado tinha que acontecer ao
mesmo tempo, na minha vida.
— Eu também pensava assim sobre meu pai. Ficava ansiosa com a ideia
de um dia conhecê-lo. Mas hoje, prefiro pensar que ele nunca existiu. Ele
nunca me procurou de qualquer forma…
— De todos os meus amigos, nunca pensei que seria logo você a pessoa
que entenderia esses sentimentos confusos sobre a minha vida — brinquei e
Liah me olhou de um jeito engraçado.
— Mas não somos amigos. A gente nem mesmo se gosta.
Não tinha certeza do nível de sarcasmo daquela afirmação, mas eu
precisava concordar. Mesmo que meu ódio pelo que ela me causou tivesse
diminuído consideravelmente, e eu não a culpasse mais da mesma forma,
Liah sempre seria a pessoa que me impediu de levar Camille embora. De
repente, o clima havia pesado de novo.
— Pelo menos concordamos em alguma coisa. — Tentei deixar as coisas
mais leves, mas confesso que ainda sentia o peso daquela afirmação.
Às vezes, no meu surto de irracionalidade e interesse repentino, era fácil
esquecer que a odiava e pensar em Liah como alguém que poderia gostar de
ter na minha vida.
— Você acha que as coisas pioraram pra você desde que me conheceu?
— perguntou de repente, me fazendo voltar a olhá-la confuso.
— Você diz agora, ou a anos atrás, quando me enfrentou para ajudar a
Camille?
— Agora — Liah deu de ombros. — Camille reapareceu, escutei Olie
falar que sua mãe também. Eu trouxe todos os sentimentos de volta… sei
lá…
— Você é uma intrometida do caralho, Liah — soltei uma risada
nervosa. — Nada que eu pudesse fazer te manteria afastada. As coisas
pioraram, sim, mas estão melhorando aos poucos. Parece que toda vez que
uma ferida se abre mais, ela cura mais rápido.
Não sei mais o que poderia responder a ela. Doutor Emerson dizia o
tempo todo que a única forma de curar as feridas mais profundas era revirá-
las. Se eu não cuidasse, se eu não tirasse tudo que as cobria, jamais teria a
oportunidade de vê-las cicatrizando. Eu queria mesmo que ele estivesse
certo sobre isso.
— Eu posso ver? — Seu pescoço caiu de lado, me encarando com uma
espécie de careta de dor.
A olhei confuso. Liah esticou a mão, puxando meu braço de cima do
balcão devagar. Engoli seco quando virou minha palma para cima e as
pontas dos dedos quentes contornaram a linha fina que rasgava meu pulso
direito. Aquele corte foi feito pela algema, quando um dos policiais usou
uma barra de ferro pesado para me atingir. Lembro que tentei parar o golpe,
mas tudo que consegui foi inutilizar minhas mãos depois disso.
— Dói? — Seus olhos não saíram por nenhum segundo dali. A ponta do
indicador continuava a sentir a textura áspera e em alto-relevo daquela
marca.
— Fisicamente? — Liah negou, com os olhos ainda vidrados na cicatriz.
Engoli seco de novo, sentindo o nó na minha garganta aumentar. Estava
exposto, bem mais do que me permitia, mas eu não conseguia puxar minha
mão de volta.
— Dói quando olha pra elas? — Seus olhos subiram por alguns
segundos para mim. Virei meu pescoço de lado, encarando-a. Suas
bochechas coraram e ela voltou a olhar para o meu pulso. — Dói quando
olha pra mim? — sua voz quase não saiu na última pergunta.
— Dói! — assumi, mordendo o canto da boca. — Mas também acelera
minha cura.
Sem me responder, Liah subiu os dedos pelo meu braço, contornando os
traços da Íris. Um sorriso triste cresceu em seu rosto.
— Minha avó tinha uma plantação de Íris no jardim da mansão, eram as
preferidas dela — contou ainda perdida no desenho do meu antebraço.
— Eu vi que você estava com uma. No dia… — parei de falar, com
receio de tocar num assunto que ainda era delicado para ela.
— Um dia vai me contar sobre elas? — perguntou deixando meus olhos
encontrarem os dela.
Permiti aquela conexão por alguns segundos e eu quase podia ver a
curiosidade brincando nos olhos azuis. Meu peito subiu numa respiração
profunda enquanto assentia devagar, decidindo falar.
Olhei para o desenho no meu braço, pensando em tudo que ele
significava. Era uma única flor de três pétalas, ligada por um caule grosso
ao que era um pequeno pedaço de chão de terra. O desenho parecia tão
vivo, que os finos traços espalhados ao redor lembravam mesmo uma leve
brisa sobre a flor solitária. Poucos centímetros acima, tinha um sol se
pondo, e a única cor que coloquei no desenho era uma mancha avermelhada
bem fraquinha na sombra do sol caindo distante.
— A Íris é um símbolo de recomeço e esperança — expliquei. — É
como a representação da necessidade de renovação que tenho na vida.
Depois de tudo… — era difícil falar, mas Liah havia entendido o que eu
realmente dizia. — Alguns povos antigos acreditavam que as três pétalas
significavam coragem, sabedoria e fé. Tudo que eu precisava na vida após
ter ficado por um longo tempo no fundo de um poço escuro. E o sol se
pondo, representa a esperança de um novo tempo. É pra me lembrar que
todos os dias podem nascer novas oportunidades.
Liah se remexeu na cadeira, soltando meu braço. Pensei que teria algum
alívio, mas logo seus olhos desceram pela lateral do meu corpo. A garota
desceu da banqueta alta, dando a volta por trás dela sem vergonha nenhuma
de analisar os desenhos na lateral das minhas costelas.
— E as outras? — perguntou apontando para os traços expostos em
minha pele.
Seus olhos subiram de novo para os meus. Todas as vezes que isso
acontecia, uma espécie de conexão se instalava. Era difícil desviar depois
que aquela conexão começava. Respirando fundo, levantei os braços,
mostrando os desenhos ali.
— Essas são uma representação da confusão que era minha cabeça logo
depois que saí do hospital — agitado, percebi Liah inquieta, perto demais
de mim, analisando os desenhos confusos.
A tatuagem toda contava minha história.
— Sua cabeça era bem confusa, então — Liah tentou brincar.
— Na verdade, essa é bem mais complexa que isso. Ela inteira é meio
que como a transformação atual da minha vida. — Levantei da banqueta e
Liah deu um passo para trás, me dando espaço para virar o corpo. — Está
vendo?
Apontei para onde a nuvem de fumaça escura ganhava um tom mais
avermelhado, lembrando labaredas de fogo, exatamente no ponto das
minhas costelas que fazia a junção com as costas. Tinham cortes bem feios
por baixo daqueles desenhos.
— Por que a fumaça é vermelha? — Seu rosto transbordava curiosidade.
Ninguém nunca teve tanta curiosidade sobre elas.
— É uma analogia a fênix e seu renascimento das cinzas, é a fase da
minha vida onde percebi que precisava ter controle sobre minha cabeça de
novo.
— Acho que é a tatuagem mais conceitual que já vi — Liah arfou,
surpresa.
Virei o corpo devagar, para que ela pudesse entender melhor a junção das
três fases daquele desenho inteiro. A fumaça vermelha ganhava mais
definição no início das minhas costas, onde os traços se tornavam vivos e
desenhavam o leão que tomava quase toda a área das costas.
— Por que o Leão? — Percebi sua voz falhar mais do que deveria. De
alguma forma, aqueles desenhos a afetavam.
— Por vários motivos — soltei depois de um longo suspiro. — Depois
que entendi que precisava recuperar o controle da minha vida, eu precisei
vencer muitas batalhas internas. Os leões andam em bando onde sempre
tem um macho alfa, se um leão de fora quiser fazer parte daquele bando, ele
tem que matar ou expulsar o Alfa. Eu estava totalmente de fora da minha
própria vida. Precisei matar muita coisa ruim dentro de mim pra entrar de
novo. Entende?
— Por que só os olhos têm cor? — Queria rir de sua curiosidade e da
sequência de perguntas inusitadas que jamais haviam sido feitas, sequer
pelos meus amigos mais próximos. — E se me chamar de intrometida de
novo, vou tacar esse copo na sua cabeça.
Não contive um sorriso sincero.
Ela era, mas ia guardar para mim dessa vez.
— Quando decidi assumir o controle da minha vida, a raiva era mais
equilibrada. Por isso os olhos do leão são azuis com o contorno vermelho.
O contorno vermelho é porque por mais que eu tenha controle sobre isso
agora, está tudo adormecido no meu peito. A dor sempre vai estar lá. Mas
agora é uma pequena chama controlada — terminei de falar, voltando a
encará-la.
— Tipo nossa relação? A gente evita brigar, mas por dentro você sempre
quer me matar? — embora fosse uma brincadeira, ela tinha certa razão
sobre isso.
— Tipo isso — concordei sorrindo abertamente.
Liah me encarou por alguns segundos e então fez a última coisa que
imaginei que faria. Senti a tensão no músculo do abdômen quando seus
dedos tocaram a parte da fumaça escura que cobria um rasgo grande na
pele.
— Liah… — fechei os olhos, sentindo minha garganta fechada. O ar que
eu conseguia puxar, quase não era suficiente para abastecer meus pulmões.
— Nem eu consigo gostar de mim quando vejo essas marcas em você —
sua voz soou distante, porque eu estava praticamente afogado na parte mais
funda do poço de novo, agarrando com tudo de mim nas pedras úmidas para
não deixar a ansiedade me invadir.
— Liah, isso me faz mal… — era difícil falar quando a ausência de ar
começava a me tomar.
Normalmente, eu não tinha nenhuma ressalva com qualquer tipo de
toque sobre aquelas marcas. Ninguém sabia do que se tratavam aquelas
cicatrizes, pelo menos não as pessoas que costumavam me tocar ali. Mas
essa mulher me fazia sentir coisas novas a todos os momentos. Existia algo
muito íntimo naquele toque bobo. Liah entendia, mais do que qualquer
outra pessoa, o que aquilo significava.
— Se eu não estivesse lá aquela noite, você seria meu amigo agora? —
Seus dedos finalmente abandonaram minha pele e imediatamente eu sentia
que podia respirar de novo. No entanto, agora era sua pergunta que me
surpreendia. — Camille seria minha amiga e das meninas?
Cocei a nuca, incomodado pelo rumo daquela conversa. Apesar de ter
parado de me tocar, Liah ainda mantinha os olhos sobre minhas cicatrizes, e
isso me fazia sentir exposto demais. Cruzei meus braços, tentando tampar a
visão dela e apoiei as costas na bancada da ilha.
— Na real, acho que não estaria mais com a Camille hoje, não tínhamos
um relacionamento saudável — confessei. — Não dá pra dizer que o Theo
teria nascido e que hoje seríamos uma família perfeita. Isso podia ter
acontecido, sim, Liah. Mas e se não acontecesse?
— Mas você seria meu amigo? — ela insistiu na pergunta, fazendo
exatamente o que fiz; cruzou os braços e se encostou na bancada ao meu
lado. Agradeci pela falta de contato visual daquela posição.
— Por que você quer saber isso?
— Preciso saber que me odeia só pelo que te fiz. — Liah soltou uma
exalação profunda.
Nem eu tinha uma resposta para aquilo. Eu seria amigo dela? Tinham
tantos cenários na minha cabeça. Doutor Emerson havia passado algumas
sessões me explicando o sentido do E se…, e consequentemente, como não
era bom pensar nesses cenários. Eles costumavam me deixar ansioso. Mas
uma coisa era certa, se não houvesse um passado, independente da forma
que eu esbarrasse nela depois, sabia que Liah me despertaria atenção por
um monte de razões.
Só que em nenhum desses cenários eu consigo me enxergar como amigo
dela, porque eu tinha certeza… iria querer mais que isso.
— Talvez — foi tudo que me permiti dizer.
O clima mudou totalmente. Havia uma tensão absurda entre a gente.
Aquele sentimento era uma mistura de ódio, frustração e a porra de um
interesse repentino que estava me tirando o juízo totalmente.
— Vou tentar dormir — Liah desencostou do balcão, me lançando um
sorriso triste. — Passei a noite acordada tentando ler alguns documentos do
processo da Rede Vittorino, isso está me tirando o sono.
— Nada ainda? — perguntei, aproveitando a mudança de assunto, mas
realmente interessado no andamento da investigação. Ainda mais depois de
ter sido perseguido daquela forma.
Liah só sacudiu a cabeça, negando. A garota levou o copo em que bebeu
água para a pia e voltou arrastando os pés pelo chão numa pantufa de
pelúcia. Isso me fez reparar no short do pijama curto que ela usava. Virei o
corpo para frente, apoiando os braços na ilha, acompanhando todo o
movimento do corpo dela. Desviei os olhos rápido quando ela se aproximou
de mim, tentando não ser um idiota. Eu odiava Liah, ou ao menos, não
gostava dela, então não fazia sentido ficar olhando. Precisava colocar isso
na porra da minha cabeça.
— Boa noite, Nathan. — Liah passou por mim apertando meu ombro de
leve.
— Boa noite — desejei em resposta, virando o pescoço para trás
inconscientemente quando seu cheiro de canela me atingiu. Eu senti aquele
cheiro uma vez, quando a beijei no Republic.
Deixei meus olhos por tempo demais sobre o corpo pequeno sumindo
pela porta da cozinha. Passei os minutos seguintes tentando fazer meu
cérebro entender que eu não deveria ficar reparando ou encarando Liah.
Você não pode, Nathaniel. Simplesmente não pode deixar seus olhos por
tempo demais em cima dela. Sabe o que isso vai causar.
05 de julho de 2019
— Para alguém que nunca reparou nela, você tem reparado bem
ultimamente.
Quase pulei da cadeira com o susto.
— Porra, Tommy, quer me matar do coração? — reclamei. Ele e Ethan
se sentarem ao meu lado.
Quando acordei e vim para a piscina distraído, Olie e Liah já estavam
por lá, deitadas de bruços no chão, por cima de suas saídas de praia. Elas
conversavam animadas, balançando os pés no alto. Minhas afirmações da
madrugada sumiram no mesmo instante da minha cabeça.
— Que merda! — Ethan sacudiu a cabeça me encarando depois de
avaliar as mesmas imagens que eu. — Eu não conseguiria ficar aqui nem
um minuto olhando a Olie desse jeito.
— Está assumindo que gosta dela? — perguntei, vendo Ethan virar de
costas para elas.
— Estou dizendo que ela é gostosa. Só isso. — Ele nunca assumiria. —
Que história é essa de reparar na Liah?
Me surpreendi ao saber que Tommy não tinha falada nada. Olhei
novamente para as meninas, me forçando a desviar os olhos.
— Também não sei — tentei me desvencilhar do assunto.
— Nathan ontem disse que nunca reparou na Liah — Tommy contou,
chegando sua cadeira mais próxima da gente. — Mas está aqui a mais de
dez minutos com o olhar fixo ali — apontou para as meninas.
Meus olhos fugiram para lá de novo.
Porra Nathan. Se controla.
Ethan também voltou a olhar para as meninas.
— Se vocês soubessem a força que faço todos os dias pra não confundir
as coisas com Olívia. Tento manter meus olhos longe dela, mas é quase
impossível. — Tommy e eu nos encaramos, sorrindo vitoriosos. Ele
finalmente estava assumindo. — E você? Qual sua justificativa pra estar
sentado aqui, olhando pra Liah?
Engoli seco, vendo o brilho traiçoeiro no rosto de Ethan. Ele tinha me
visto beijar Liah no Republic semanas atrás. Mesmo assim, Ethan era
consciente demais para me confrontar sobre isso. Aliás, nem eu mesmo
entendia isso. Meu interesse por Liah aumentava na mesma medida que
meu ódio por ela ia sumindo.
— Não estou olhando da forma que vocês estão pensando. A terapia tem
me feito ver muita coisa de forma diferente. Às vezes, me pego olhando
pensando no que ela representa. Sei lá… é difícil explicar.
— Isso não tem nada a ver com o fato de você não transar desde janeiro?
— Como assim? — Ethan me encarou boquiaberto.
— Não tem nada a ver com isso. — Revirei os olhos, recostando o corpo
de novo na espreguiçadeira.
— Desde janeiro? — Ethan insistiu. — Isso tem quase seis meses,
Nathan.
Afirmei com a cabeça, desconcertado em ter que voltar nesse assunto de
novo. Já era uma merda perceber a confusão que foi minha vida desde que
Liah reapareceu.
— Seu pau parou de funcionar?
— Porra, Thommas — reclamei de sua pergunta invasiva. —
Considerando que estou precisando me controlar nesse exato momento,
acho que a resposta pra isso ainda é não — respondi após alguns segundos
de expectativa deles.
— Tá se controlando? Por causa da cena ali? — apontou para as meninas
do outro lado. — Achei que Liah estivesse fora dos seus limites.
Suspirei transtornado, sentindo uma vontade crescente de soltar meia
dúzia de xingamentos nada legais. Ethan e Tommy quando queriam me
irritar, era quase impossível não conseguirem.
— Ela está. Isso é um fato. Não preciso reafirmar isso a cada vez que
conversamos. E não estava olhando com a intenção que você está pensando,
Tommy. Mas é complicado explicar isso para o meu corpo.
— Para o seu pau, você quer dizer.
Ethan soltou uma risada alta, arqueando uma sobrancelha em seguida.
Ele tinha um ponto. Não consegui evitar rir com eles.
Ficamos em silêncio por um tempo. Aproveitei a trégua na escrutinação
deles para tentar entender a confusão de sentimentos que me rondavam nos
últimos dias. O problema é que todos eles tinham alguma ligação com
Lianah. Desde a raiva, agora adormecida, até o interesse sem lógica.
Nós ainda estávamos olhando as meninas, quando Olivia e Lianah
ajustaram a posição em que estavam. As duas deitaram de frente, cobrindo
os olhos com o ante braço enquanto conversavam.
— Ok. Vou deixar vocês aqui olhando sem intenção pra elas, e vou lá
dentro ver se as meninas precisam de algo. — Tommy saiu, deixando nós
dois na borda da piscina.
— Você já decidiu se deixa ou não ela entrar? — Ethan suspirou ao meu
lado, virando a cabeça para mim, relutante.
— Você tá falando da Liah? — perguntei confuso.
— Aquela noite no Republic, você disse que não entendia como podia se
preocupar com ela. Disse que lutava contra isso, e pelo que entendi você
estava quase cedendo — explicou, voltando a olhar para o outro lado da
piscina.
Quando disse aquilo, eu sentia que a mínima abertura que desse seria
suficiente para Liah entrar em minha cabeça e tomar conta de partes que
estavam bloqueadas há muito tempo. Só não imaginava que isso fosse
acontecer minutos depois.
No dia que entrei na ONG a primeira vez, inexplicavelmente, me senti
parte daquilo. O problema de estar lá diariamente, era enxergar Liah em
cada pedaço daquele lugar. As crianças falavam dela, Triss falava dela, e até
na App ela foi parar, quando a avó decidiu usar nosso sistema. A
investigação de Carl era sobre ela. E mesmo naquela loucura de ódio e
tensão, a gente tinha se beijado de um jeito totalmente louco. De repente,
nossas vidas estavam totalmente cruzadas. Não era uma questão que tivesse
muito escolha de qualquer jeito.
Então, sim. Eu tinha decidido.
— Ela já entrou. Sem permissão nenhuma, do mesmo jeito que sempre
fez desde a primeira vez.
Ethan me encarou, sorrindo orgulhoso por eu admitir aquilo.
Uma risada mais alta chamou nossa atenção e viramos nossas cabeças de
volta para o outro lado, onde Liah e Olie riam brincando uma com a outra.
— Nathan, no fim da noite, me lembra que a Olie é só minha amiga? —
Ethan pediu preocupado.
Olhei para ele com o olhar vidrado na borda do outro lado e deixei
escapar um riso meio desesperado.
— Só se você me lembrar que eu deveria odiar a Liah.
Liah
Capitulo 20
05 de julho de 2019
Olivia era aquele tipo de amiga totalmente indiscreta. A garota não parava
de rir, lançando vários olhares para o outro lado da piscina.
— É óbvio que eles estavam falando da gente. Você não viu? Estavam os
três idiotas olhando para cá o tempo todo, Liah. Tommy saiu e os dois ali
cravaram os olhos aqui sem vergonha nenhuma.
Olhei discretamente por baixo do meu braço sobre o rosto. Ethan e Nathan
continuavam sentados nas espreguiçadeiras do outro lado, conversando. Os
dois de bermuda. Bom, teria que concordar com Olivia, era uma visão e
tanto.
— Nossa, Liah, você não sabe ser discreta — Olivia reclamou, me dando
um tapinha no braço. — Dá pra ver que você tá olhando.
Assim que entramos, Ethan virou-se em nossa direção sorrindo para Olie e
Nathan comentou alguma coisa próximo ao ouvido do amigo que o fez
fechar a cara na hora.
Uma movimentação na água me fez olhar para o lado quando Nathan parou
perto de mim, apoiando os braços na borda da mesma forma que eu.
— Ainda quer saber alguma coisa sobre elas? — ele perguntou sorrindo ao
perceber meu olhar fixado na Íris.
— Intrometida.
Separador
07 de julho de 2019
Nathan e eu estávamos nos acertando. Era uma grande evolução não termos
discutido ou nos irritado um com o outro por todo o feriado. Preciso admitir
que havia ficado mais difícil brigar com ele depois de presenciar sua última
crise. Às vezes, parecia que ainda podia ouvir seu grito e o choro
compulsivo. Era estranho como o cara raivoso que sempre me tirava do
sério, havia caído de joelhos frágil e acessível à minha frente. Aquele era o
reflexo de um homem totalmente quebrado.
— LIAH!
A intenção era jogá-lo na piscina também, mas quando segurou minha mão,
Ethan me olhou apertando os olhos.
— Se você me jogar na piscina, eu vou esperar você entrar, se arrumar de
novo, e vou te jogar mais uma vez.
Antes que eles pudessem chegar até o amigo, Nathan tirou a camisa e a
calça jeans, se jogando na piscina só de bóxer preta.
Engoli seco, subindo os olhos da tela para ele. Seu olhar estava vidrado em
mim, mais especificamente no pedaço de pano transparente, expondo o
sutiã de renda preto, enquanto tateava na borda. Nathan puxou o braço com
seu celular na mão, finalmente se afastando de mim.
Eu sempre travava.
Tive que tomar outro banho e lavar o cabelo para tirar o cloro da piscina e
para apagar o resquício do choque que ainda percorria meu corpo ao
desejar que ele me tocasse.
Quando desci as escadas, todos já estavam prontos para sair. Olivia, Mia e
Evie conversavam na sala; os meninos colocavam as várias malas nos
carros; Triss e Karol raspavam uma panela de brigadeiros que Mia fez
ontem a noite.
Foi um fim de semana divertido. Tudo o que fizemos foi ficar por horas na
piscina, comer como loucos e passar as noites bebendo e jogando conversa
fora.
— A gente podia terminar a noite no Republic — Karol propôs, chamando
a atenção de todos. — Vamos chegar ao anoitecer na cidade.
Karol revirou os olhos andando até mim. A ruiva passou um braço pela
minha cintura, apoiando a cabeça em meu ombro.
— Liah, a não ser que você tenha um excelente motivo para estar na ONG
muito cedo numa segunda-feira pós-feriado, eu vou mandar internar você
por chatice aguda.
Assenti, vendo o carro seguir pela rua movimentada. Meu celular tocou,
mostrando um número desconhecido assim que passei pelas portas
giratórias do prédio.
— Alô.
— Oi, Lianah! É a Camille. Como você vai? — a voz animada demais soou
do outro lado.
— A gente tem uma conversa marcada pra amanhã. Não podemos esperar?
— Na verdade, queria poupar seu tempo e explicar meu lado nessa história,
antes que me dispense.
— Camille, não quero me meter e nem tenho nada a ver com essa história.
Mas Nathan e todos os outros são peças fundamentais na minha ONG. Você
sabe que não posso manter você por lá — disse logo de uma vez. Quem
sabe não pouparia mesmo o meu tempo.
— Liah, eu sei que você é uma mulher inteligente, então vai me entender
— um suspiro profundo cortou a linha.
— Era filho dele, Camille, você queria que não o amasse? — exalei,
sentindo uma raiva que não deveria dela.
— Ele ia me trocar pela criança. Mas tive que aprender da pior forma que
sem a criança eu não teria mais Nathan.
— Foi uma escolha sua — disse dura, percebendo que Camille ainda tinha
sérios problemas psicológicos.
— Eu tentei adotar uma criança da mesma idade um tempo atrás. Mas por
conta do registro da minha overdose, não me permitiram.
— Você é louca? Camille, nenhuma criança mudaria o fato de que você foi
embora quando ele mais precisava de apoio.
— Mas eu voltei, posso dar apoio a ele agora. Pode avisá-lo? Pode dizer
que estou aqui pra isso?
Os bipes seguidos soando pelo celular indicavam que ela havia desligado.
Olhei o aparelho desacreditada.
Totalmente.
— Claro.
— Tem uma folha do lado de fora do seu quarto. Sugiro que leia com calma
a proposta. É sua melhor saída agora.
Ansiosa, corri até a porta, vendo que realmente tinha um papel ali.
Fechei a porta, voltando para a cama. Foquei nas letras impressas no papel
sem nenhuma identificação.
Que merda era essa? Era muita ousadia me enviar uma proposta de
suborno. Aquilo era ridículo.
A calça jeans preta justa, o top preto e curto, a maquiagem mais escura e
marcada. Eu conseguia imaginar o sorriso de Karol quando eu entrasse no
Republic aquela noite.
— Quem está dirigindo hoje sou eu, e não vou te levar vomitando no meu
carro — Ethan reclamou, empurrando a garrafa de água na mão dela.
— Por quê? — franzi a testa para ele. — Você nem falou nada demais.
— Achei que ninguém além de mim e Tommy percebia essa coisa entre
eles — explicou.
Tentei beber minha cerveja para disfarçar minha cara de culpada, mas não
saiu nenhuma gota quando virei a garrafa. Droga! Nathan deixou escapar
um riso baixo enquanto estendia a mão com sua garrafa para mim. Aceitei
sem olhar para ele, virando todo o conteúdo em poucos segundos.
— Não acho normal, mas quem vai acreditar em mim? Vou parar de viver
por causa disso?
— Pode fazer. Sou culpada por toda sua desgraça mesmo — disse triste,
levantando da mesa.
Todos nos olhavam estáticos, com suas bocas abertas. Evie pigarreou e
tossiu quando encarei ela e Karol no fim da mesa. Isso era um saco. Todos
eles deviam achar que eu era culpada, afinal.
— Deixa de ser teimosa, Liah. Você sabe que isso tá se tornando perigoso
e...
Nathan parou de falar para encarar de cara fechada um homem que havia
saído do banheiro. O cara parou no corredor, encostado na parede do outro
lado, me olhando de cima abaixo, soltando alguma gracinha.
Nathan voltou a olhar para o homem parado do outro lado, que me olhava
sem nenhum pudor. O cara soltou um sorrisinho debochado, encarando
Nathan de volta. Revirei os olhos ao perceber o concurso de quem mijava
mais longe ali. Uma piscada de olho do cara fez Nathan bufar, se movendo
rápido para ficar a minha frente. Um déjà vu automático me atingiu quando
ele usou os braços para se escorar na parede, impedindo que o cara pudesse
continuar me olhando daquela forma.
— Por que você sempre faz isso? — reclamei, percebendo seu peito
próximo demais de mim.
— Não é seu estilo. — Encarou confuso minha roupa, ignorando
totalmente minha pergunta.
— E desde quando fora do padrão é ruim? Não sabia que você tinha esse
tipo de preconceito — acusei.
— Deve ser uma merda lidar com esse tipo de cara sem noção — apontou a
cabeça para trás, onde o cara ainda estava parado, ignorando totalmente
minha pergunta de novo.
Senti quando uma de suas mãos subiu para o meu pescoço, embrenhando
os dedos entre os fios de cabelo na minha nunca, puxando meu cabelo e
mordendo meu lábio em seguida.
Da outra vez que ele me beijou, fiquei tão surpresa que mal conseguia
lembrar do que fiz durante aqueles segundos, mas agora, conscientemente
enfiei minhas mãos por dentro da barra de sua camisa, sentindo o calor da
pele dele. Ele era uma combinação perigosa de mistério e beleza, capaz de
me tirar de órbita facilmente, ainda mais quando as pontas dos meus dedos
identificaram o desenho marcado do abdômen dele. Ele tinha que ser tão…
gostoso?
Beijar Nathan era uma insanidade, e tinha algo na forma que a língua dele
se movia sobre a minha… Isso é tão errado.
— Você puxou meu cabelo, mordeu meu lábio e apertou minha cintura.
Nada disso me parece uma atitude de resistência — reclamei, sentindo meu
rosto pegar fogo.
— Eu não disse que era ruim beijar você. Eu disse que odeio beijar você.
Tem uma diferença bem grande. É como usar droga, a sensação é
maravilhosa, mas o efeito disso depois é o verdadeiro problema. — Depois
que terminou de falar, Nathan virou o pescoço, me encarando.
— Você sempre tem uma respostinha pronta pra tudo? — Apertei meus
olhos em sua direção.
— Não é uma resposta pronta. Pensa comigo, Liah, toda droga funciona
exatamente assim, ela te atrai de todas as formas possíveis, mesmo você
sabendo que é nocivo e o estrago que pode te causar. Na hora, a sensação é
a melhor do mundo, você se sente incrível e imbatível… até que o efeito
passe.
Seus olhos estavam cravados nos meus. Tinha a sensação de que milhares
de agulhas pinicavam meu estômago e o faziam se revirar. Mordi a
bochecha, desviando meus olhos dele.
Que merda ele queria dizer com isso? Nathan me odiava, não fazia sentido
se sentir atraído logo por mim. Foi isso que ele quis dizer, não foi?
Engoli seco. Não queria continuar aquela conversa. Não quando eu havia
causado os acontecimentos que o deixaram assim. Aliás, estava bem difícil
estabelecer uma conversa não constrangedora com ele. Acho que Nathan
percebeu meu constrangimento e presumiu o rumo dos meus pensamentos,
porque logo em seguida começou a rir abertamente.
— Estava pensando no que falou sobre o corredor, mas não posso dizer o
mesmo. A maior parte dos meus momentos mais intensos no Republic, foi
exatamente aqui. Nem esses incidentes com você conseguem apagar isso.
— Vim até aqui pra falar com você sobre alguém ter te seguido até o hotel.
— Ah, isso.
— Tem o número que te ligou salvo, aí? — perguntou enquanto tirava seu
celular do bolso da calça jeans.
— Ela sabe que vou dispensar ela amanhã. Queria me explicar as coisas
pelo lado dela. — Omiti a parte em que ela dizia poder dar apoio a ele
agora. Não tinha certeza de que efeitos isso desencadearia nele.
— Algo me diz que ela tem outras intenções na ONG, Liah. Eu não tenho
autoridade nenhuma pra te pedir isso, mas por favor, dispensa mesmo ela
amanhã. Não suporto a ideia dela perto de mim — pediu num tom quase
desesperado.
— Vou fazer isso, pode ficar tranquilo. — E faria mesmo que Joanna não
concordasse. Todos estávamos passando por coisas demais, não tinha
sentido trazer mais um problema para nossas vidas.
— Você e eu sabemos muito bem que é melhor não ter perigo, Liah. Ainda
mais quando a gente não faz a miníma ideia do que essas pessoas são
capazes.
13 de julho de 2019
Eu não dormi nada bem. Fiquei pensando e remoendo toda aquela
história de Nathan e Evie serem seguidos. Tive sonhos estranhos e
desconexos. Sonhei com a ONG sendo fechada, com pessoas atrás de mim,
com minha avó no meio das chamas e até com policiais batendo em todos
os meus amigos. Acho que tinha passado por coisa demais nos últimos
meses.
Quando o dia chegou, estava com um péssimo humor, nada usual para
mim. Passei toda a manhã pensando em alguma forma de me livrar
daqueles problemas, tentando arrumar qualquer coisa que me ajudasse na
investigação e me permitisse seguir minha vida. Vasculhei o computador e
o celular de vovó várias vezes, mesmo sabendo que Nathan me ajudaria
com aquilo, mas aparentemente, não tinha nada ali que pudesse me ajudar.
Logo depois do horário do almoço, recebi uma mensagem de Nathan,
perguntando a que horas poderia passar aqui para ver o computador e o
celular. Não respondi, voltando na ideia que me ocorreu mais cedo. Talvez
tivesse um lugar, o mais óbvio de todos, onde poderiam ter evidências a
meu favor.
Pensei em pedir a Nathan que me ajudasse nisso também, mas se ele
tinha sido seguido antes, podia ser agora. Digitei uma mensagem para a
única pessoa que confiava a esse ponto.
Cap 22 d
16 de julho de 2019
— Que porra aconteceu que te deixou de mau-humor? — Ethan
questionou após eu reclamar pela décima vez da apresentação de um
cliente. — Achei que você, finalmente, estava melhorando.
— Eu estou melhorando — retruquei.
Levantei da cadeira, indo até a grande janela da minha sala. O dia estava
quente e bonito, o céu muito azul enquanto o sol brilhava alto. Mordi a
bochecha inconscientemente, me lembrando de Liah no mesmo segundo.
Deixei escapar um ruído raivoso, sacudindo a cabeça.
Sai da minha cabeça.
— Nathan…
— Eu transei com a Liah! — soltei de uma vez, sentindo um peso
enorme sair das minhas costas por contar algo que escondi até do meu
psicólogo na terapia de hoje pela manhã. — E a gente se beijou duas vezes
no Republic, antes disso.
Virei devagar, vendo Ethan me encarar estarrecido. Sua boca se abrindo
em espanto enquanto caminhava para sentar na cadeira em frente à minha
mesa.
— Uau! Duas vezes? Podia jurar que sabia de tudo por ver uma dessas
vezes. — Ethan me olhou confuso. — Sei que você estava confuso sobre
ela, mas não achei que chegaria a esse ponto tão rápido.
Nem eu. Foi tudo rápido demais mesmo. Em pouco tempo, estava
totalmente envolvido e tomado por aquela maldita teia. Liah insistia em
aparecer no meu caminho a todo momento, até que eu estivesse totalmente
fadado a me entregar a esses sentimentos malucos.
— Aconteceu na sexta — contei, voltando inquieto para minha cadeira.
— Agora pareço um adolescente virgem que não sabe como agir na frente
da garota. Pra piorar, acho que ela tá sendo educada demais pra me
dispensar abertamente.
Lembrei de como ela agiu com o tal médico que a cercou nas semanas
anteriores. Liah era condescendente demais para ser grossa ou direta num
fora.
— Tá me zoando? — Ethan segurava um riso debochado. Revirei meus
olhos, sendo obrigado a engolir a zombaria dele. Neguei sua pergunta, me
sentindo totalmente de fora do controle da minha vida de novo. — Tá me
dizendo que vocês transaram, e agora tá com medo dela te dar um fora?
— Isso, realmente, soa ridículo — concordei. — Na verdade, seria
melhor mesmo se ela me dispensasse logo. Meu cérebro precisa desse
choque pra entender que eu tenho que tirar isso da minha cabeça. Ethan,
essa garota vai me deixar maluco. Eu vivo na borda do precipício desde o
dia que a vi no Republic com Olívia. Eu deveria odiar Lianah por tudo que
ela me causou na vida, tendo intensão ou não. Mas tudo que consigo fazer é
pensar nela a todo momento... sei lá, parece que sempre acontecem coisas
que me fazem esbarrar nela de novo, e de novo, e de novo. — Afundei a
cabeça nas minhas mãos.
Eu sabia que estava na merda quando vi Ethan levantar-se e ir, por
decisão dele mesmo, até meu aparador, despejando o whisky caro que eu
mantinha ali em dois copos. Seu braço me alcançou, estendendo o
recipiente com uma dose generosa do líquido âmbar.
— Eu não acho que Liah transaria com você e te dispensaria depois —
tentou me acalmar. — Na verdade, duvido que Liah transaria com você sem
ter algum tipo de sentimento.
Onde você se meteu, Nathan? Engoli todo o líquido do copo num único
gole, sentindo minha garganta queimar no processo.
— Sentimento, Ethan? A gente nem se conhece direito. — disse nervoso,
levantando para me servir de outra dose.
— E você tá aqui me contando isso porque, então? — jogou
despreocupado. — O que você sente por ela?
— Ah, não faz essas porcarias de perguntas difíceis de responder agora.
Eu mal consigo processar o fato da gente ter transado, quem dirá explicar o
que sinto pela garota. — engoli o líquido do copo, sem me preocupar com o
julgamento dele, quando enchi de novo.
Bebi a terceira dose, rezando para o relaxamento conhecido atingir meu
corpo e desacelerasse meus batimentos.
— E você não quer mais, então? — um sorriso malicioso projetado no
rosto dele. — Se é tão confuso assim, é só deixar pra lá. Esquece ela.
— Esquecer quem?
Virei rápido, vendo Tommy se jogar em uma das cadeiras. Eu estava
morto e enterrado agora.
Ethan me encarou, incerto sobre responder a pergunta de Thommas com
a verdade, mas dei de ombros. Se ele soubesse que contei a Ethan e não
contei a ele, ficaria puto comigo por meses.
— A Liah. Eles transaram.
— O QUÊ? — Thommas perguntou quase gritando, levantando da
cadeira agitado.
— Foi um erro. Aconteceu e não vai acontecer mais.
— Então é só esquecer — Ethan insistiu enquanto trocava um olhar
suspeito com Tommy.
Ele estava me provocando, eu sabia. Mas era inevitável reagir. Eu queria
mais. Queria mais dela a cada segundo que pensava em Liah e como nossos
corpos se encaixaram perfeitamente naquele balcão. Queria mais a cada vez
que minha mente, traidora, projetava o sorriso perfeito dela na minha frente.
Queria mais toda vez que sentia meu coração acelerar só com a ideia de que
iria vê-la.
Não, Nathan. Não vai por esse caminho.
Era confuso para caralho, mas eu não queria deixar para lá. Minha razão
berrava para que eu esquecesse, mas minha pulsação me fazia lembrar dela
a cada batimento desenfreado.
— Vocês são muito iguais, Nathan — Thommas começou me
surpreendendo. — E totalmente diferentes ao mesmo tempo. O que difere
você dela, é a forma de conduzir as coisas, mas vocês tem pensamentos
parecidos, ideais parecidos, são teimosos da mesma forma e absurdamente
orgulhosos. Vocês não viram acontecer porque são orgulhosos demais pra
admitir. Mas eu vi, Ethan viu, Olívia viu, Triss viu… Qualquer um que
preste alguma atenção podia ver a faísca no olhar de vocês mesmo nas
pequenas interações.
Aquilo era loucura. O quão submerso eu estava no meu falso ódio para
não perceber isso? Eu mal conhecia Lianah, não sabia muita coisa sobre a
vida dela.
— Eu não sei se concordo com isso, Tommy — ainda em frente ao
aparador, despejei a quarta dose no meu copo, bebendo logo em seguida. —
Eu e Liah somos o exemplo perfeito do que foi feito pra nunca ficar junto.
Odeio a ideia de me sentir atraído de alguma forma.
— Liah tem uma alma pura, Nate, e isso é o tipo de coisa que sempre te
atraiu. Talvez seja isso o que te faz baixar as barreiras pra ela. Esse deve ser
o tipo de sentimento mais puro que existe. — Ethan veio até o meu lado,
enchendo o copo dele mais uma vez. — Se você acha isso loucura, imagina
se apaixonar por alguém que você sequer já teve a oportunidade de beijar.
Olívia. Ethan era apaixonado por Olívia e ninguém entendia o motivo
deles não estarem juntos. Olie, claramente tinha sentimentos por ele
também. Os dois eram amigos desde que nos conhecemos, não existiam
complicadores para eles, como algum ódio infundado.
— Por que você nunca tentou nada com ela? — Thommas perguntou o
que seguramos por anos.
— Porque destruo todos que se envolvem comigo. Vocês sabem. Deixei
minha irmã morrer e destruí a vida dela. Destruí a vida da minha mãe e do
meu pai em consequência. Fui escroto a ponto de largar Liza no meu luto e
deixá-la em depressão. — Ethan manteve seu olhar perdido através da
janela. Era isso. Ele ainda se culpava profundamente pela morte da irmã. —
Destruo tudo que eu tenho e perco tudo que amo. Prefiro manter Olívia
como minha amiga e ainda tê-la em minha vida, do que assumir o risco de
destruí-la também.
Três anos perdido no meu luto, incapaz de enxergar o problema das
pessoas a minha volta. De repente, era como se eu pudesse enxergar de
novo, ou como se acordasse, lúcido, de uma bebedeira. Eu sentia e
enxergava coisas que não me permitia antes. Ethan tinha Olívia para
desabafar, mas não sobre aquilo.
— Você não pode se culpar por isso — disse, levando o foco da conversa
para ele. — Foi um acidente, Ethan. Houve um julgamento, esqueceu? Foi
um acidente horrível, mas ninguém teve culpa. — garanti a ele, tentando
amenizar aquele sentimento.
— Esquece isso, Nathan — pediu despejando outra dose em seu copo.
— É melhor a gente voltar a falar da apresentação.
Ethan bebeu o líquido em seu copo, deixando o vidro sobre a bandeja no
aparador. Voltamos a sentar à mesa, dessa vez com Tommy, levando a
atenção para a apresentação que estávamos preparando, esquecendo dos
problemas por algum tempo.
Quando finalmente terminamos, agradeci por poder encerrar o dia e ir
para casa. Detestava fazer Triss ficar até mais tarde na App por minha
causa. As segundas, quartas e sextas, Ethan ou Tommy a levavam para casa.
Mas as terças e quintas ela saía bem tarde daqui comigo, por conta do meu
trabalho acumulado.
— O que houve com você de sábado pra cá? — a garota perguntou no
meio do caminho para casa.
— Você também? — mantive meus olhos na estrada escura. — Não
houve nada.
— Então não fui a única que percebeu? Você estava de bom humor na
sexta a noite e no sábado pela manhã, de um jeito que nunca vi antes, Nate.
O que aconteceu?
Triss era mesmo observadora como dizia. Era quase impossível esconder
as coisas dela, porque além de observar, tinha um sexto sentido super
apurado.
— Não houve nada — respondi seco.
— Brigou com a Liah de novo?
— Não, Triss. Não briguei com ela.
Na verdade, transei com ela. E depois fiquei irritado porque ela me
dispensou e porque não consigo tirá-la da porra da minha cabeça.
Um silêncio satisfatório se manteve pelos próximos minutos até que o
toque do meu celular soou pelo alto-falante do carro. Olhei para o painel
multimídia, vendo o número desconhecido que aparecia.
— Não vai atender? — Triss perguntou quando o toque parou de soar.
— Não costumo atender número desconhecido — expliquei.
— E se for alguma urgência? Pode ser de algum hospital…
— Eu tenho os números dos hospitais da cidade salvos no celular — a
interrompi. Desviei os olhos da estrada para ela rapidamente. — Você acha
que eu deveria atender?
Triss balançou a cabeça positivamente, me olhando como se eu fosse um
idiota por não pensar em quantas coisas importantes poderiam querer falar
comigo. Se me ligassem de novo, talvez eu atendesse.
20 de julho de 2019
Mordi o canto do lábio, sacudindo a perna por baixo da mesa, ansioso.
Era difícil para caralho manter meus olhos longe dela, e eu só conseguia
pensar em como aquilo entre a gente era errado. Liah e eu não fazíamos
sentido nenhum. Era a porra da falta de sexo, só podia ser.
Quem mandou esquecer que sexo existe por quase sete meses, Nathan?
Seu Idiota!
Desde sexta passada, Lianah mal me encarava. Eu também não tive
coragem de tocar no assunto. De qualquer forma, era melhor que as coisas
voltassem ao normal mesmo entre a gente.
A quem quer enganar, Nathan? Você está se corroendo pela indiferença
dela.
— O que está rolando entre você e a Liah? — Olívia esticou o pescoço
ao meu lado, arrastando a cadeira para mais perto de mim.
— Não tem nada rolando entre mim e a Liah — disse irritado, sem fazer
questão nenhuma de olhar para o lado e encontrar o olhar curioso dela.
Olívia se remexeu inquita, e eu podia sentir que seus olhos ainda
estavam atentos sobre mim. Suspirei irritado e levantei da mesa, abrindo
caminho entre as pessoas que lotavam o Republic, até o bar. Precisava de
algo mais forte.
— Miles, me dá uma dose de whisky — pedi ao garçom que estava
atendendo no bar hoje.
O homem colocou o copo baixo e largo sobre o balcão, virando para
pegar a garrafa de Black Label na prateleira alta de vidro.
— Não tenho nada com isso, mas todos vocês estão tão estranhos
ultimamente — Miles comentou, levantando os olhos para mim enquanto
despeja o líquido no copo.
— Pois é. Se até você percebeu… — peguei o copo virando a dose num
único gole. — Acho que vou precisar de outra.
— Ele não vai não! — Olívia subiu na cadeira alta ao meu lado,
empurrando o braço de Miles que já ia encher novamente meu copo. —
Você está dirigindo hoje, seu idiota.
Revirei os olhos sem paciência. Olívia estava no meu pé desde que
cheguei, sondando e reclamando o tempo todo da minha cara fechada. Eu já
tinha decidido que não ia embora dirigindo, nem que tivesse que levar todas
elas de táxi em casa antes.
— Pode encher — encarei Miles apertando os olhos. — Vou embora de
táxi — avisei aos dois ao perceber que o barman traíra estava pendendo
para o lado de Olívia.
Miles virou a dose, olhando desconfiado para mim. Peguei o copo e girei
o corpo, apoiando as costas no balcão. Automaticamente meus olhos
fugiram para a mulher encostada na janela do outro lado, rindo junto de
Karol.
— Vai me explicar o motivo de estar olhando pra Liah desse jeito? —
Olívia pressionou de novo.
— Que jeito? — perguntei sem tirar meus olhos da garota do outro lado.
— Do mesmo jeito que olha pra uma mulher quando quer tirar a calcinha
dela.
Eu quero tirar a calcinha dela, Olie. Quero fazer coisas que você nem
imagina…
Me remexi incomodado, tentando não ter uma ereção na frente de tanta
gente. Virei o resto do whisky, deixando o copo sobre o balcão.
— Você não sabe o jeito que olho pra uma mulher quando quero tirar a
calcinha dela. — Senti meu coração martelando no peito enquanto tentava
distrair Olívia.
Olie soltou um riso baixo, beliscando minha costela de um jeito dolorido.
— Ai! Precisa disso? — reclamei, esfregando a lateral do corpo.
— Vamos! Me explica porque não tira os olhos de cima dela, então —
pediu, puxando a barra da minha camisa para atrair minha atenção.
— Porra, Olívia, está pra nascer amiga mais chata e intrometida que
você — reclamei, voltando a virar de frente para o balcão. — Miles! —
Chamei o garçom que estava do outro lado, mostrando o copo vazio a ele.
— Vai beber mais? — a morena perguntou ao meu lado, preocupada.
— Tenho duas opções. Posso continuar aqui bebendo ou sumir o resto da
noite e acabar do mesmo jeito que acontecia quando eu ainda estava
afundado na merda.
— Vai atrás de outra mulher só pra negar seu interesse na loira do outro
lado? — perguntou atrevida, erguendo as duas sobrancelhas pra mim.
Eu tinha que tirar aquela mulher da minha cabeça. Eu tinha que parar de
pensar nela. Tinha que parar de repassar em detalhes o que aconteceu na
sexta passada entre a gente. Tinha que esquecer como a indiferença dela me
corria por dentro.
Miles voltou com a garrafa de whisky, despejando a terceira dose nele.
— Não tenho ideia do que você tá falando — respondi irritado, doido pra
me livrar daquela conversa.
— Miles — Olívia atraiu a atenção do homem atrás do balcão. — Tá
vendo aquela loira do outro lado conversando com a Karol? — O homem
olhou para a mesma direção de Olie. — O que acha dela?
Sua atenção permaneceu por tempo demais em cima de Liah. Miles
sorriu de lado, erguendo uma sobrancelha para mim em desafio.
— Gata!
Eu sei, Miles. Eu sei!
Era uma merda ter que passar por isso. Não era pra ter acontecido. Eu
ainda não conseguia entender porque Liah me atraía tanto. Não fazia
sentido nenhum. Tudo bem que eu não a culpava mais da mesma forma
pelo que aconteceu no passado, mas a gente era simplesmente incompatível.
Peguei o copo, saindo do balcão irritado. Me enfiei de novo entre as
pessoas, atravessando o salão até a mesa. Para o meu desespero, Olívia veio
atrás de mim com um sorrisinho cheio de deboche.
— Sabe o que Liah me contou sábado passado?
Meu batimento acelerou quando sentei de novo à mesa.
Liah não tinha contado a ela, tinha? Merda. Contei para os caras.
— O quê? — Minha voz saiu quase estrangulada pela ansiedade.
Olívia me encarou muito séria, estudando minha reação antes de
responder.
— Fiquei sabendo sobre algo muito sério que aconteceu com ela no
passado. E eu sei que você também sabe, porque ela te contou. Ela te
contou uma coisa que nunca tinha contado pra ninguém na vida, Nathan.
Sim. Ela tinha me contado.
— Se você também sabe, ela não contou só pra mim — respondi
emburrado, tentando de todo jeito fugir daquele assunto.
— Vocês estão muito amiguinhos, de repente — acusou.
— Olívia, pelo amor de Deus, eu e Liah não temos nada. Só estou
tentando ser menos idiota com ela — rebati exasperado, apoiando o copo
com força na mesa. — Tira essas loucuras da sua cabeça. Eu e ela, não vai
rolar.
Já rolou, seu mentiroso!
Saí da mesa, agradecendo por Olívia ficar por lá dessa vez.
Onde Ethan e Thommas tinham se enfiado? Desde que chegamos os dois
simplesmente desapareceram. Procurei por eles do lado de fora e achei
Ethan conversando com uma garota baixinha ao lado da porta.
Frustrado, voltei para dentro do bar sem querer interromper o que quer
que estivesse acontecendo entre eles.
Decidi ir embora, mas queria ter certeza de que as meninas iriam embora
em segurança também. A contra gosto, voltei até a mesa, e agora Olivia
conversava com Liah e Karol próximas da janela. Suspirei indo até elas.
— O quanto você bebeu? — perguntei a minha amiga, vendo-a me
devolver um olhar surpreso.
— Nada — respondeu franzindo a testa.
— Ótimo! — Tirei a chave do carro do bolso e entreguei a ela. — Leva
as garotas pra casa. Estou indo embora.
Olívia segurou meu braço logo que virei na intenção de sair dali. Soltei
uma lufada de ar, irritado quando virei o corpo de volta para elas. Karol e
Liah me olhavam confusas.
— Vai deixar sua BMW comigo? — Ela arregalou os olhos me
mostrando a chave que deixei em sua mão.
Sim. Eu ia. Mesmo que eu tivesse um ciúme doentio da BMW desde que
a comprei quando quebrei os vidros do Jeep no dia que Liah lembrou de
mim. O carro tinha localizador e era blindado, ficaria menos preocupado
com elas assim. Acenei com a cabeça confirmando, vendo a garota abrir um
sorriso radiante.
— Olívia, se você bater ou arranhar meu carro…
— Pode ficar tranquilo que isso não vai acontecer — ela avisou
mostrando a chave para as amigas, animada.
— Nathan, a gente pode falar rapidinho? — Senti um arrepio gelado
quando a voz de Liah atraiu minha atenção.
Olívia me encarou, analisando minha reação à amiga. Engoli seco,
sentindo meu corpo inteiro responder ao pedido dela. Assenti com um
aceno da cabeça e Karol e Olívia saíram juntas em direção ao bar.
— Queria saber se você ainda está disposto a me ajudar a tentar
encontrar alguma coisa no computador e no celular da minha avó — ela
disse baixinho, mordendo a bochecha.
— Achei que você tivesse desistido disso. — Cruzei meus braços,
encostando no parapeito da janela, ao lado dela.
Liah me mandou aquela mensagem no sábado passado, inventando
algum compromisso para fugir de mim. Na segunda, ao contrário do que ela
mesmo escreveu, mal me olhou nos olhos e não tocou mais no assunto
sobre os aparelhos.
— Eu não desisti — disse desconcertada, apertando as mãos a frente do
corpo. — É só que… — A loira suspirou cansada. — Eu realmente tinha
um compromisso.
— Tudo bem, Liah. Você não precisa inventar desculpas pra não ter que
me encontrar. — virei o pescoço, olhando irritado para a mulher que eu não
conseguia tirar da cabeça. Suas bochechas ficaram muito vermelhas e ela
desviou os olhos envergonhada. — Sou mais inteligente que seu médico
preferido.
— Você acha que era uma desculpa? — perguntou ainda com a cabeça
baixa, encarando seus saltos.
Permiti que meus olhos voltassem para ela mais uma vez, dessa vez
numa análise minuciosa sobre seu corpo bonito dentro daquele vestido
preto e curto o suficiente para me lembrar o que aconteceu na sexta
passada. Merda!
— Não era? — Joguei meu pescoço para trás, apoiando a cabeça no
batente da janela. Liah ia tirar toda minha sanidade antes que me desse
conta.
Ficamos em silêncio por alguns segundos até que senti seus olhos sobre
mim. Olhei de lado para ela e algo em seu rosto bonito me chamou atenção.
Medo.
Liah tinha medo de mim?
— Você tem medo de mim? — perguntei confuso.
— Tenho medo do que fiz a você. — Seu peito subiu e desceu numa
respiração profunda. — Medo da hora que você vai gritar comigo de novo e
perceber que eu ainda sou a mesma Liah que você odeia.
— Eu não odeio você — afirmei, ainda mantendo estabelecida aquela
conexão que só a gente tinha.
Liah suspirou mordendo o lábio e no segundo seguinte se jogou em cima
de mim, me beijando. Demorei a processar o que estava acontecendo, mas
assim que meu cérebro recebeu as sensações do corpo dela colado no meu e
sua língua entrando em minha boca, eu reagi.
Passei o braço envolta da cintura pequena, puxando seu corpo até que
tivesse quase sentada em meu colo naquela janela. Liah suspirou, subindo
as mãos e puxando os fios curtos do meu cabelo.
Era difícil para caralho manter a consciência de que estávamos num
lugar público, quando tudo que eu queria fazer era descer minha mão pelo
seu corpo e tirar o pano do vestido do meu caminho. Queria apertar a carne
da sua bunda gostosa e finalmente ceder a vontade que me atormentava
desde sexta passada.
As mãos pequenas puxaram meu cabelo com mais força, me fazendo
respirar com mais dificuldade e puxar os cabelos da nuca dela mais para
trás em resposta. Liah passou a língua pelos meus lábios e então se afastou
de mim depressa, arregalando seus olhos azuis em seguida.
— A gente não pode ficar se beijando assim — reclamou alarmada.
— Foi você quem me beijou, Liah. De novo. Só pra constar. — Avisei,
inconformado com seu afastamento repentino.
A garota esticou o pescoço nervosa, olhando na direção do bar,
procurando algum sinal das amigas.
— Se elas tivessem visto, já estariam aqui agora — disse suspirando.
— Precisamos estabelecer limites — Liah me encarou, colocando as
mãos na cintura.
Não contive o riso ao ver sua postura autoritária. Ela apertou os olhos
para mim, num aviso mudo de que estava falando sério comigo.
— Ok. Vamos estabelecer limites. — Cruzei meus braços, erguendo as
sobrancelhas. — Quer começar com: não devemos nos beijar?
— Nem transar — soltou rápido, olhando para os lados com medo de
alguém escutar.
— Vamos fingir que nada aconteceu na sexta passada — acrescentei à
lista.
— Você tem que parar de me olhar desse jeito — disse nervosa.
Ia ser difícil. Mas concordei, era um item vital para manter minha
sanidade.
— Você pode parar de ter medo de mim? — pedi, sem ter certeza que
aquele item cabia na lista.
— Você vai me ajudar com o computador da minha avó? — Liah
perguntou também confusa.
Ainda estávamos estabelecendo limites? Aquela merda de conexão que
ligava a gente pelo olhar… não conseguia desviar.
— Essa coisa entre a gente… — apontei de mim para ela. — Não
podemos deixar isso acontecer.
— Do que você tá falando? — Liah perguntou ainda presa na conexão.
— Essa coisa quando a gente se olha — continuei sem desviar. — Não
podemos manter essa conexão.
— Tem razão — concordou ainda sem desviar os olhos.
Engoli seco, incapaz de mover meus olhos. Era forte demais, intenso
demais. Também parecia para ela, já que Liah não moveu seus olhos de
cima de mim em momento nenhum.
— Liah — chamei nervoso. — A gente precisa parar.
— Pode dizer que me odeia?
— Você vai parar de me olhar assim se eu disser? — perguntei confuso.
Liah assentiu, mordendo o lábio inferior ainda sem desviar os olhos um
centímetro que fosse dos meus.
— Eu odeio você! — afirmei, mesmo sabendo que aquela era a maior
mentira do Universo.
A garota finalmente abaixou a cabeça e só então respirei aliviado.
— Falei sério na sexta, Nathan — começou sem me olhar nos olhos
dessa vez. — Tá tudo bem entre a gente, é só que… não é certo isso…
— Eu sei — a interrompi, entendendo exatamente o que ela sentia. Eu
pensava assim também. Deveria ser recíproco.
Então por que eu sentia meu ego totalmente ferido com a rejeição dela?
24 de julho de 2019
— Nathan, você ouviu alguma coisa? — Mia perguntou irritada,
estalando os dedos na frente do meu rosto.
Olhei atento para as duas mulheres sentadas em frente à mesa. Estava
longe por longos minutos, não tinha ideia do que elas estavam falando.
Ajeitei minha postura na cadeira, pigarreando sem graça.
— Cara, o que tá te tirando o sono? — Ethan perguntou na cadeira ao
meu lado.
Você sabe, Ethan.
— Tem certeza que eles podem fazer isso, Liah? — perguntei nervoso,
mesmo sabendo que ela já tinha explicado aquilo segundos antes.
Liah estava nos contando sobre a nova conversa que teve com o
advogado da avó. Ela mencionou que a App havia doado seus lucros e ele
levantou a possibilidade de envolverem nossa empresa na investigação
também, já que o valor doado era bem alto e levantaria suspeitas. A questão
é que o dinheiro doado era meu. Nunca foi da App.
— Segundo Doutor Estevem e a Doutora Penne, sim. — Liah suspirou
alto, nos olhando triste. — Não queria prejudicar vocês.
— Não está — tentei tranquilizá-la.
Não podia contar sobre aquele dinheiro ser meu. Embora não fosse um
item explícito na nossa lista de limites, tenho certeza que ela entenderia isso
como uma transgressão às suas regras bem elaboradas.
— Já tem alguma coisa que possa te ajudar? — Thommas perguntou
chateado.
— Nada. Você pode me ajudar amanhã com o computador? — Liah me
perguntou envergonhada. — Tenho um pouco de receio do que posso achar
ali, mas preciso fazer isso.
Eu jamais diria não. Mesmo que meu lado racional, que ainda não queria
dar o braço a torcer, gritasse para que eu ficasse longe dela. A gente
precisava daqueles limites.
Por que mesmo? A gente nem se odiava mais…
— Claro — foi só o que consegui responder.
Deveria ter adicionado mais um item àquela lista. Esse, sim, me
garantiria sanidade. Deveria ter exigido que nunca, em hipótese alguma,
Liah e eu poderíamos estar sozinhos no mesmo lugar. Porque agora, mesmo
com todos os nossos amigos sentados à mesa grande do refeitório, estava
deixando meus pensamentos tomarem forma. Estava assumindo que minha
resistência a ela já chegava a me causar dor física.
Nathan
Capitulo 24
25 de julho de 2019
Agora eu estava aqui, sentado à sua frente com a atenção toda na tela do
laptop aberto sobre a mesa, mas era difícil me concentrar em achar
qualquer coisa ali com os olhos dela em cima de mim.
— O que foi, Liah? — perguntei divertido ao flagrar seu olhar analítico por
tempo demais sobre mim.
Liah puxou o laptop mais para perto, lendo os assuntos dos primeiros e-
mails na caixa de entrada.
— 1708.
— Seu aniversário?
— Isso é um chute?
— Você faz aniversário exatamente no mesmo dia que a Mia — respondi
sem olhar para ela.
Sorri de lado ainda com os olhos baixos, focados no celular em minha mão.
A loira engoliu seco, desviando seus olhos corada. A gente tinha uma
conexão bem intensa, era como se toda a raiva de antes tivesse se
transformado nessa atração bizarra.
— Liah, achei uma coisa estranha aqui — avisei, puxando a cadeira para
trás da mesa. — Tem um laudo de inquérito policial nesse e-mail.
— Não tenho ideia de como ela descobriu. Talvez pelas roupas que ficaram
no meu banheiro e o meu estado depressivo na semana seguinte.
Sem pensar muito no que eu fazia, passei meus braços envolta dela e a
garota voltou a chorar apoiada no meu peito.
Olhei para o relógio em meu pulso, vendo que já eram quase 12:00h.
— A gente pode terminar outra hora. Talvez você prefira…
— Desculpa, eu não queria ser grossa. Mas não gosto de ser colocada numa
posição de quebrável ou frágil, Nate. Isso me mata.
— Eu não sei qual de vocês duas tem menos juízo — reclamei baixo. — Eu
te falei duas vezes sobre não andar por aí dando mole para o perigo, Liah.
No Republic depois que você disse que foi seguida até o hotel, e na sexta
quando contei que alguém me seguiu de carro. Mas parece que você gosta
mesmo de se meter onde não deve.
— Olívia não tem ideia que pode existir algum perigo nessa história —
defendeu a amiga. — Eu é que não deveria tê-la envolvido nisso assim.
— Desculpa, Nathan. Eu não vou mais fazer essas loucuras, tá? Uma parte
de mim recusa enxergar esse perigo. Não sei como cheguei a esse ponto.
— Essa porta que vocês acharam, acha que pode ter algo lá? — perguntei,
incerto sobre tocar no assunto.
— Acho que sim. Morei lá por toda a minha vida e nunca tinha visto aquela
entrada.
— Vou falar com Carl sobre isso e ver o que ele acha, tudo bem?
— Não. Vou pra casa ficar um pouco com a Triss, acho que a gente só
passa um tempo junto quando ela está no estágio.
— Liah, relaxa — sorri divertido, satisfeito em saber que ela pensava isso.
— Normalmente eu ficaria puto por isso, mas até gosto de saber que essa é
a sua opinião.
A loira passou por mim e seguimos pelo corredor até o refeitório no andar
de cima. Ethan, Thommas, Olie, Evie e Karol estavam aqui hoje.
Será que Liah percebia a teia que ela criou? A forma que essa mulher atraía
as pessoas para sua vida, deveria ser estudada.
— Sei que não sou bem-vinda, Olívia — Camille disse apertando meus
ombros com mais força.
Nunca iria lembrar que às quintas Camille estava aqui. A ONG era um
refúgio, era injusto que estivesse corrompido por ela agora.
Fechei meus olhos com força, sentindo a repulsa me atingir à medida que
suas mãos se fechavam com mais força nos meus ombros.
— Sai de perto de mim — mandei, sentindo minha voz firme pela raiva
repentina.
Camille se afastou e percebi todos os olhares atentos sobre nós dois. Sem
me conter, empurrei a cadeira com o corpo e saí do refeitório às pressas,
sem olhar para trás.
Eu precisava respirar e esquecer a loucura dela antes que começasse a me
afogar de novo. Eu não queria mais visitar aquele poço, não agora que
havia passado tanto tempo na superfície.
Separador
Triss foi uma boa distração durante a tarde. Ao menos, eu tinha me livrado
da sensação sufocante quando passamos horas jogando vídeo game juntos
no loft. Tinham anos que eu não fazia nada assim.
Tia Sophia também tinha passado aqui, me cobrando aparecer mais vezes e
reclamando que agora também sentia falta de ver Triss.
Foi só quando deitei para dormir, de banho tomado, que a ansiedade voltou
a me assolar.
Revirei na cama, agitado e com todo o sono extinto. Tentei ler algumas
páginas de um livro, mas ansiedade não me deixava concentrar. Tentei ver
TV, mas o som estava me irritando. Liguei o laptop para trabalhar, mas as
lembranças da tarde me atingiram.
Não queria abrir ainda mais as feridas dela, e tinha medo de fazê-la lembrar
o que aconteceu. Não costumava ser um cara muito controlado no sexo, e
Deus sabe a força que fiz para não ser um babaca naquele dia na loja.
Ainda não conseguia entender como Liah teve a coragem de entregar sua
primeira vez para mim.
— Oi — atendi desconfiado.
— Camille me contou o que te disse hoje, queria saber se está tudo bem
com você.
Senti meu rosto doer com o sorriso que rasgou minha boca.
Mais um suspiro.
— Nathan…
Meu coração acelerou a ponto de parecer uma britadeira no meu peito. Ela
tinha se arrependido… sabia que isso ia acontecer.
— Não — quase podia ouvir o receio em sua voz. — É que você disse
alguém que você odeia, quando poderia ter dito alguém que odeia você.
Era isso?! Eu nunca teria permitido que ela se entregasse daquele jeito se
eu a odiasse. Nunca faria isso com ela sabendo o que tinha passado.
— Porque toda vez que você diz, uma parte de mim quer se agarrar a isso
com todas as minhas forças. E por alguma razão maluca, tudo que consigo
pensar é em pular no seu pescoço e te beijar.
Caralho.
Eu gostava dessa Liah direta. O problema é que isso me afetava tanto, que
era capaz de me deixar duro até no meio de uma conversa séria.
— Pelo telefone não existe esse risco — comentei, tentando entender se
isso me afetava de uma forma positiva ou negativa.
Nate.
Nem preciso dizer que depois disso foi impossível dormir. Lianah dava um
jeito de atormentar ainda mais minha cabeça todos os dias.
— Com fome?
— Ah, então quer dizer que a melhor coisa de eu ter te adotado é minha
comida, Beatriss?
A garota riu, deitando a cabeça no meu ombro.
— Eu até queria, mas excede o limite do tipo de conversa que posso ter
com você.
— Você já quis tanto uma coisa mesmo sabendo que era errado?
— Todo mundo já quis algo errado na vida, ao menos uma vez, Nate.
Eu realmente não era. Mas o ponto é que era difícil aceitar que eu
realmente queria ir atrás dela. Toda aquela intensidade estava me
consumindo.
— E se ela se assustar?
A pergunta foi para mim, nem era para ter saído em voz alta, mas Triss
soltou uma risadinha empurrando meu ombro.
Analisei sua feição incentivadora. Triss tinha razão, eu devia mesmo ir.
Liah disse que pularia no meu pescoço se eu dissesse. Era só isso que eu
tinha que fazer, porque eu tinha certeza que aquela tensão a estava
consumindo da mesma forma que fazia comigo.
Voltei para a sala e enfiei meu celular no bolso da calça, peguei a chave do
carro em cima do aparador e abri a porta da sala agitado, voltando minha
atenção para a garota que me olhava segurando uma risada.
— Não abre a porta pra estranhos e mantêm trancada. Você tem a senha da
fechadura no aplicativo…
— Só vai, Nate.
Eu fui.
Dirigi pelas ruas de Greenville, quase cruzando a cidade toda até o hotel
que estive um tempo atrás.
Chegar ali era fácil, difícil seria Liah me atender sem saber que eu estava
na porta. Eu faria o que afinal? Bateria em sua porta quase às 02:00h da
manhã, sem nenhuma explicação?
Contei, ansioso, todos os andares até que a caixa cromada apitou e as portas
se abriram quase de frente para o número que brilhava na porta: 1406.
Agora que estava parado ali, no silêncio do corredor escuro, eu podia ouvir
o barulho da televisão ligada lá dentro, me fazendo questionar se ela
também não havia conseguido dormir. Respirei fundo antes de dar duas
batidinhas e apoiar meus braços nos batentes da porta.
Liah não disse nada, apenas engoliu seco e abriu um pouco a boca em
espanto. Nos perdemos totalmente naquela conexão segundos antes de
fazer o que realmente me trouxe aqui.
As orbes azuis desceram dos meus olhos para a minha boca, e voltaram
quando mordeu os lábios de um jeito sexy.
Deixei meus olhos analisarem seu corpo, mal escondido por uma camisola
verde clarinha que mal cobria suas coxas.
Gostosa.
Não contive um sorriso safado quando voltei a olhar em seus olhos e eles
estavam muito mais escuros que o normal. Liah sorriu quando tomou sua
decisão, esticando o braço para puxar a gola da minha camisa para baixo,
fazendo exatamente o que disse que faria.
Suas coxas ficariam com a marca dos meus dedos só por aquele beijo e o
jeito que eu a mantinha enroscada em mim. Se eu estivesse de jeans, meu
pau estaria completamente dolorido e torturado agora.
Caminhei direto para o sofá da ante sala, sentando com ela no meu colo.
Liah afastou sua boca da minha só para poder puxar minha camisa para
fora. A ajudei a tirar a peça de mim enquanto ela ainda rebolava no meu
colo.
Sua respiração quente atingiu a pele do meu pescoço quando deixou alguns
beijos por ali. Deixei que ela brincasse comigo como quisesse, tentando
entender do que ela gostava.
Agarrei o tecido fino da camisola, passando pelo seu corpo e pelos seus
braços até que ela estivesse apenas de calcinha em cima de mim.
Passei a língua devagar sobre cada um deles, vendo o olhar vidrado de Liah
por todo o caminho que fazia. Mordi de leve, puxando o bico entre meus
dentes e um gemido gostoso escapou dela.
Arfei, ainda com a boca dela grudada na minha. Suas mãos se encarregando
de puxar minha calça e a cueca para baixo enquanto eu levantava o corpo
como podia para ajudar.
Senti suas mãos deslizarem o látex pelo meu pau devagar, se enrolando um
pouco por ser a primeira vez que fazia aquilo.
Desesperado, e mantendo todo o controle que ainda era possível, subi uma
mão para seus cabelos, agarrando os fios dourados de sua nuca e puxei sua
cabeça para trás sem muita força. Sabia que ela gostava daquilo, porque a
filha da mãe contraiu a boceta de novo, esmagando meu pau.
Com seu pescoço exposto, raspei meus dentes por sua pele, deixando beijos
e alguns chupões pelo caminho enquanto a fazia subir e descer mais rápido.
Seus gemidos no meu ouvido eram como música, uma que tocava no meu
âmago e me fazia sentir totalmente satisfeito por pensar que eu era o cara
que estava fazendo aquilo com ela.
— Abre os olhos pra mim — pedi, quase colando nossas bocas de novo.
Que safada.
Tentando manter minha sanidade, a tirei de cima de mim, levantando com
ela ainda no meu colo. A coloquei de pé no chão no meio da ante sala, a
beijando enquanto a empurrava em direção ao aparador do outro lado.
Virei-a para a parede, colando minha boca em seu pescoço e inclinando seu
corpo sobre o tampo de vidro do móvel luxuoso.
Liah arfou e soltou um gemido baixinho quando afastei suas pernas com as
minhas e me enfiei de qualquer jeito em sua boceta ainda mais apertada
pela posição.
Eu não podia perder meu controle, mas podia brincar um pouco e explorá-
la até entender suas limitações.
Puxei seus cabelos com um pouco mais de força, colando suas costas no
meu peito enquanto estabelecia um ritmo mais rápido das minhas
investidas.
Era uma forma interessante de encontrar o padrão dela. Ela se contraía mais
e não segurava os gemidos quando gostava de alguma coisa.
Outro gemido mais alto escapou dela, e a garota projetou os quadris para
trás rebolando a bunda gostosa enquanto eu metia mais fundo.
— Nate…
Sua boceta apertou tão forte meu pau que foi impossível não gozar. Liah
gemeu mais alto, arfando e se contorcendo enquanto gozava junto comigo.
Praticamente sem ar e com as pernas tremendo, enlacei seu corpo e beijei
sua bochecha, vendo seu sorriso aumentar. Saí de dentro dela, virando seu
corpo pequeno para mim.
Passei meus braços em volta de sua cintura, puxando seu corpo para o meu
colo.
Soltei seu corpo devagar sobre o colchão, e me separei dela sorrindo antes
de ir até o banheiro me livrar da camisinha.
Um tempo atrás havia dito a ela que beijar sua boca era como uma droga; e
eu não poderia estar mais certo. Só que era uma droga leve, porque depois
de ter descoberto o efeito do que podia sentir quando me afundava em seu
corpo quente, tive certeza de que havia outra, trilhões de vezes mais
potente.
E eu estava viciado.
— Acabamos de mandar essa lista inteira para o espaço. Mas vou dar um
tempo pra você colocar essa cabeça no lugar e aceitar que, isso aqui… —
fiz um gesto, apontando de mim para ela — não tem mais jeito.
Liah arregalou os olhos, mas antes que ela pudesse retrucar, fechei minha
mão no seu queixo, apertando sua bochecha de leve e deixei um beijo
estalado em sua boca.
Liah sorriu quando pisquei um olho para ela, e segui para a sala pronto para
vestir minha roupa e ir dormir tranquilo.
26 de julho de 2019
Alguns sentimentos podem ser desastrosos, principalmente quando são
intensos a ponto de enlouquecer alguém.
Me corroí por dentro desde o sábado anterior, culpada pela forma que
enviei aquela mensagem a Nathan. Precisava admitir que aquela fuga era
consequência de uma parte medrosa de mim. Eu continuava tendo receio de
que ele me acusasse da destruição da sua vida, porque eu não tinha
argumentos contra aquilo. Aconteceu, e, portanto, era um fato.
A fuga, no entanto, não foi calculada. Eu realmente queria ir à mansão e
tentar achar qualquer coisa que me ajudasse o mais rápido possível. Depois
veio o medo de sempre, a culpa pelo que tinha acontecido a ele. Só não
imaginava que passaria a semana inteira remoendo o medo de Nathan
perder o interesse em mim e tratar o que aconteceu como faria mais sentido;
sendo apenas uma noite de sexo.
Nossa lista de limites não durou uma semana sequer. Na segunda,
Nathan já havia quebrado uma das regras assim que cruzou a entrada da
ONG, me olhando de um jeito que deveria ser pecado. Isso me fez quebrar
outra regra, permitindo que aquela coisa que prendia a gente olhando um
para o outro se estabelecesse.
Passei o resto da noite em claro depois dele ter me deixado deitada na
cama do mesmo jeito que chegou naquele hotel; do nada.
Nathaniel Petterson simplesmente apareceu na minha porta e disse “eu
não odeio você”.
Ainda não tinha muita certeza do que ele quis dizer quando falou que a
gente não tinha mais jeito; meu cérebro gritava um alerta de que eu estava
me deixando levar rápido demais, mas aquilo entre a gente não podia ser
normal. Era tudo tão intenso e tão gostoso quando estávamos juntos.
Nathan foi o único cara que tinha me feito desejar sexo na vida, mas era
muito mais que isso. Eu não tinha medo dele, não tinha receio do que podia
me fazer e sabia que mesmo com todas aquelas crises, nunca faria mal a
alguém intencionalmente.
— Está distraída, amiga — Olívia comentou ao perceber que não tinha
prestado a mínima atenção ao que ela falava.
— Desculpa.
Senti meu rosto esquentar ao lembrar da última noite e prendi meu
cabelo num coque alto para voltar minha atenção ao documento sobre a
mesa.
Olívia soltou um risinho, me fazendo olhar para ela irritada.
— Liah, por que tem uma marca roxa no seu pescoço?
Merda. Senti meu rosto esquentar e tinha certeza que estava parecendo
um tomate ambulante. Nathan deixou meu pescoço marcado?
Com os olhos arregalados, levantei da cadeira correndo até o banheiro da
minha sala, esticando meu pescoço para analisar o pedaço de pele marcada.
Filho da mãe.
A marca estava quase abaixo da minha orelha e tinha uma coloração
roxo claro, mas tinha certeza que ainda ia ficar pior depois. Nem era tão
grande, mas o contraste com minha pele clara demais fazia com que
chamasse atenção para aquele ponto.
— O médico é tão bom assim? — Olie perguntou alto demais lá da sala.
Se ela soubesse quem tinha realmente feito aquela marca…
— Acho que tenho uma base na bolsa — comentei enquanto buscava
minha bolsa largada no sofá. — Vou cobrir isso.
Assim que encontrei a base, Olívia a tirou da minha mão dizendo para eu
sentar no sofá e que ia me ajudar.
A morena despejou uma quantidade grande no meu pescoço e começou a
bater a esponja para espalhar.
Um barulho na porta chamou nossa atenção quando foi aberta e Mia e
Triss apareceram.
— Que houve? — Mia perguntou franzindo a testa para o meu pescoço
esticado e a provável marca ainda evidente.
— Parece que alguém resolveu brincar de sangue suga com o pescoço da
Liah — Olie respondeu rindo, enquanto mostrava minha nuca a elas. — É
melhor não prender o cabelo, porque atrás está bem pior.
— Sério? — Soltei um gemido raivoso, usando as mãos para esconder
meu pescoço.—
— A noite foi boa, pelo visto — Triss comentou, me encarando com um
sorrisinho traiçoeiro.
Ela sabia. Ela sabia que Nathan saiu de madrugada. Eu podia ver na
cara dela que ela sabia.
Desviei do seu olhar analítico, me sentindo desesperada de vergonha.
Se eu soubesse que aqueles beijos iam me deixar marcada desse jeito,
nunca teria deixado que ele fizesse. Como ia explicar isso agora?
— Vou procurar alguns amigos que queria dizer um oi — Triss avisou,
saindo da sala na mesma hora que Evie, Karol, Ethan, Thommas e Nathan
entraram um atrás do outro.
Senti meu corpo gelar.
— Por que está todo mundo aqui? — perguntei desesperada a Olívia.
— Convoquei uma reunião para a gente falar do orçamento da ONG, já
que os meninos estão ajudando e tem toda a questão da investigação.
— Está tudo bem? — Ethan perguntou ao reparar no amontoado das
meninas em volta de mim.
— Tá! — saí do meio delas, soltando o coque e ajeitando meu cabelo
para cobrir as marcas.
— Porque tá todo mundo na minha sala e não na de reunião? —
questionei Olívia, começando a me sentir irritada.
— A gente vai fazer a reunião aqui — Olie virou de costas, encarando as
pessoas se acomodando de qualquer jeito pela minha sala. — A sala de
reunião está ocupada com uma reunião dos professores do nono ano e…
ESPERA AÍ!
Dei um pulo com o susto pelo seu grito repentino. Olivia apertou os
olhos para mim, e abriu a boca desacreditada. Toda a atenção da sala agora
era dela.
— O que foi, garota? — perguntei assustada.
Olie me puxou pelo braço apontando para a figura do homem que havia
acabado de virar em nossa direção, onde duas marcas roxas também
estavam evidentes na lateral de seu pescoço. Merda. Merda. Merda.
Deixei minha cabeça cair de lado, analisando as marcas, tentando
lembrar em que momento fiz aquilo.
Mia soltou um chiado, apertando os olhos para mim. Deus. A garota
chegou perto da gente para soltar baixinho:
— Parece que resolveram brincar de sangue suga no pescoço do meu
irmão também. Que coincidência.
As pessoas do outro lado da sala nos olhavam confusas, totalmente
alheias ao que estava sendo cochichado entre nós três.
Evitei, de todas as formar possíveis, deixar que meu olhar cruzasse com
o de Nathan, porque eu sabia que ficaria ainda mais vermelha e jogaria pelo
ralo qualquer chance de justificar uma improvável coincidência.
— Você sabe o que estou pensando, não sabe? — Olie perguntou
cruzando os braços para me encarar.
— Algum absurdo que nunca seria verdade?!
Saí de perto delas, indo pegar os últimos relatórios financeiros sobre
minha mesa, tentando desviar do assunto. Por sorte, Olívia se limitou a
soltar um suspiro e me ajudar a encontrar os relatórios na minha bagunça.
Quando larguei meu corpo na cadeira estofada, percebi que todos já
estavam acomodados. Ethan e Thommas, sentaram nas cadeiras em frente à
mesa; Nathan, Evie e Karol sentaram amontoados no sofá e Mia se jogou
no colo do irmão. A garota sussurrou alguma coisa no ouvido dele, que
arqueou as sobrancelhas para ela e sorriu sem graça, quando me forcei a
desviar o foco deles, prestando atenção no que Olívia tinha para dizer.
Quando terminamos, Evie avisou que ia almoçar porque precisava voltar
para a consultoria e ela e Karol foram as primeiras a deixar minha sala.
Mia voltou a dizer alguma coisa no ouvido do irmão e então me olhou
sorrindo maliciosa antes de ir embora. Desviei sentindo meu rosto
esquentar.
Ethan e Thommas também avisaram que iam almoçar e voltar para a App
por causa de alguma reunião e Ethan perguntou se Nathan ia com eles.
Evitei prestar atenção demais naquela interação porque eu sabia que Olívia
estava de olho em mim, mas acho que não deu muito certo, porque a
maluca chamou Ethan e Thommy e saíram os dois da sala com ela.
Logo que percebi a situação, me apressei em sair da sala também, mas
Nathan já estava fechando a porta e me empurrando pelos ombros.
— Qual seu problema? Vai mesmo fingir que eu não existo agora? —
perguntou, levantando meu queixo para encará-lo.
— A gente tinha uma lista… — minha voz foi morrendo conforme a
minha ficha ia caindo.
Eu ainda tinha medo, ainda acreditava que ele ia sair me acusando e
validar toda minha culpa.
— Tenho medo de…
— Sério que depois de tudo você ainda vai ter medo de mim? — me
interrompeu chateado.
— O que a gente está fazendo? Isso aqui, Nathan… nós dois, não faz
sentido nenhum…
— Me dá um motivo — seus olhos intensos me perfuraram, e Nathan
cruzou os braços assumindo um tom mais sério. — Eu tô há dias tentando
me convencer que não faz sentido, Liah. Mas toda vez que te vejo parece
que a única coisa que não faz sentido é estabelecer um limite que nos
mantenha afastado quando tudo que quero é me aproximar.
Engoli seco, travando minha respiração na garganta. Eu não estava
preparada para aquela declaração tão explícita dele. Não pareceu, sequer
por um segundo, que fosse difícil para ele dizer aquelas palavras. Nathan
estava decidido, e era fácil enxergar isso em seu rosto bonito.
Meu corpo parecia uma gelatina chacoalhada de tão mole e de tanto
tremor. Senti que meu coração podia parar a qualquer segundo.
— É um sistema de autodefesa. Tenho medo de você culpar pra mim de
novo, dizer que sou culpada da morte do seu filho. Essa culpa é o que me
corrói todos os dias.
— Não foi sua intenção.
— Então agora você não me culpa mais?
Nathan deu alguns passos para frente, invadindo meu espaço pessoal.
Uma de suas mãos subiu de volta para o meu queixo, levantando meu rosto;
seus dedos acariciando minha bochecha.
— Juro que tento manter distância de você desde o primeiro dia que te vi
naquele bar — seus olhos se apertaram e um sorrisinho de canto levantou
seus lábios. — Mas você me atrai de um jeito tão inexplicável. Você tomou
conta de tudo, da minha cabeça, dos meus pensamentos, até dos meus
pesadelos. Eu tentei te odiar, Liah. Tentei me convencer de que você era a
pior pessoa do mundo, mas tudo que consegui foi me afundar ainda mais
em você.
Cada pelo do meu corpo se arrepiou com aquela confissão. Nathan não
era o tipo de cara que fazia rodeio para falar o que sentia.
Seus olhos me alcançavam de um jeito tão profundo que chegava a
pensar que ele podia ver minha alma daquele jeito.
Ele me deu tempo suficiente para pensar antes que estivesse me puxando
pela cintura. Sua boca encontrou a minha, me beijando de um jeito
totalmente novo. Não era só desejo, não era só para suprir toda aquela
tensão que vivia nos rondando. Nathan me beijou como se precisasse
daquele beijo para sobreviver.
Foi lento, exploratório, cheio de um sentimento novo.
Seu braço direito me mantinha segura contra seu corpo; a mão esquerda
ainda acariciando meu pescoço e minha bochecha. Meu estômago se
revirou, e eu tinha certeza que aquela era a tal sensação de borboletas
batendo as asas.
Não sei dizer por quanto tempo ficamos daquele jeito, e só nos
separamos pela ausência de ar que nos tomou.
— A gente está bem? — Nathan perguntou encostando a testa na minha.
— Quer dizer, isso que aconteceu… acho que agora a gente precisa falar
sobre isso, certo? Estamos abandonando os limites?
— Nathaniel Petterson inseguro? — sorri involuntariamente. — Vivi
para ver isso.
— Você é uma aranha traiçoeira, Liah! — Nathan revirou os olhos,
afastando o rosto do meu. — Fica envolvendo todo mundo nessa porra de
teia e depois não sabe porque me deixa inseguro.
— Aranha? — franzi a testa confusa sem entender nada.
— Você enrola todo mundo nessa teia que você constrói, nunca percebeu
isso?
— Aranha? — Voltei a perguntar segurando um riso.
— Uma aranha intrometida, o que é pior ainda.
— Como eu queria entender esse conflito na sua cabeça — brinquei. —
Acho que você gosta de sentir raiva de mim, não é possível.
— Sinto mais raiva ainda quando te beijo e percebo que tô ficando
viciado nisso. — Nathan abriu um sorriso lindo. — Estou falando sério,
Liah. Só quero entender em que pé a gente está.
— A gente precisa rotular isso agora? — Eu nem conseguia entender o
que ele queria comigo de verdade. — Estamos nos conhecendo ainda, não
é?
— Se te conhecer incluir poder te beijar… — senti meu rosto esquentar
absurdamente.
— Acho que consigo conviver com isso — concordei sem conter um
sorriso.
Nathan sorriu largamente, deixando mais alguns beijos estalados na
minha boca.
— A gente podia ir almoçar também.
Passei por ele constrangida, abrindo a porta e andei devagar, esperando
que ele chegasse ao meu lado, mas Nathan era o tipo de cara que gostava de
surpreender. Arfei, assustada e agitada, quando o senti passar o braço pelos
meus ombros e seguir pelo corredor até as escadas assim, abraçado comigo.
— Está todo mundo no refeitório — avisei, totalmente incerta sobre o
motivo de me preocupar com aquilo.
— Hum — murmurou sem me olhar.
— O que hum significa?
— Depende. O que o fato de estar todo mundo no refeitório significa?
— Não tem receio de que eles vejam a gente?
— Não tenho intenção nenhuma de esconder isso deles — seu tom sério
me alertou sobre estar indo por um caminho errado, de novo. — Aliás, não
tenho intenção nenhuma de esconder isso de qualquer pessoa que seja. Eu
nunca fui do tipo que tem problema em falar o que quer, eu demorei a
entender e aceitar isso, mas nesse momento tenho certeza de que quero te
conhecer de verdade. Isso é um problema pra você?
— O que aconteceu com nossa lista de limites? — perguntei brincando.
— Deveríamos estar mantendo distância um do outro, lembra?
— Estou a alguns dias tentando me convencer disso, mas ainda não achei
um motivo bom o suficiente pra ficar longe — senti seu sorriso mesmo que
não pudesse vê-lo. — Você já tem certeza que eu não te odeio. Aliás, você
não me respondeu. É um problema?
Começamos a subir as escadas até o refeitório e senti seu corpo mais
tenso ao meu lado. Não tinha intenção e nem queria esconder aquilo de
ninguém. Rendida, passei meu braço pela cintura dele, feliz em sentir o
calor de seu corpo.
— Não, Nate, não é um problema. Acho que Olívia e Mia já tem certeza
sobre isso, de qualquer forma.
— Se não tem… — ele apontou com a mão que me abraçava para uma
mesa do refeitório assim que passamos pela porta — vão ter agora.
Sorri abertamente. Evie e Karol, Ethan, Olie e Thommas estavam lá.
Todos nos olhando como se fossemos seres de outro mundo.
Meu Deus, ele tinha enviado uma carinha fofa. Olhei em choque para a
tela, totalmente desacreditada que existia mesmo um lado todo fofo dele.
Nathan não cansava de me surpreender.
Quando cheguei ao seu prédio, o porteiro me liberou indicando o
elevador. Apertei o botão do oitavo andar, sentindo meu coração errar
algumas batidas. Sacudi o corpo sentindo as tais borboletas no estômago de
novo.
Quando sai do elevador no andar indicado, Triss me esperava na porta
com um sorriso enorme no rosto. O porteiro deve ter avisado que eu estava
subindo.
— Liah! — A garota me deu um abraço apertado que retribuí com
vontade. — Nem acredito que está aqui. — Disse afastando o corpo para
me dar passagem para entrar.
A primeira coisa que reparei foi a vista da grande janela de vidro da sala.
Dava para ver o parque central e o lago da cidade; era lindo. Deixei meus
olhos correrem pela grande sala, nem parecia o apartamento de um homem,
era organizado e bonito.
— Nathan já vem, ele tá saindo do banho.
— Tô aqui.
Olhei para trás vendo-o aparecer pelo corredor cumprido que dava
acesso à sala. Lindo, de moletom e camiseta branca ele ficava ainda mais
leve. O cheiro amadeirado, característico dele, preenchendo todo o
ambiente.
Nathan sorriu de lado, estendendo a mão para mim. Aceitei, sentindo-o
me puxar para ele e deixar um beijo casto em meus lábios. Sorri de volta,
me perdendo nos olhos dele.
— Que lavagem cerebral foi essa? — Triss perguntou chocada. — Vocês
parecem outras pessoas um com o outro.
— Não foi você que disse que se eu permitisse, conheceria uma Liah que
me surpreenderia? — perguntou a garota.
— Disse. Mas nesse caso, esse Nathan e essa Liah estão é me
surpreendendo — disse apontando para nós dois. — Vou tomar banho e
dormir. Seu quarto tem abafador de som?
— Beatriss! — Nate reclamou, repreendendo a menina.
— Agora é assim, Liah, toda vez que ele briga comigo me chama de
Beatriss. — A menina fez um biquinho bonitinho, mandando um beijo no ar
para ele.
— Boa noite para vocês. — Boa noite, Triss.
— É quase como voltar no tempo, quando Mia entrou na adolescência —
Nathan riu, vendo a menina sumir pelo corredor. — Acredita que eu já tô
sofrendo em pensar que Triss já tem idade pra namorar? Eu nem tive tempo
de me acostumar com a ideia ainda.
— É bom preparar seu coração — avisei, começando a rir.
Nathan suspirou, passando a mão pelo cabelo. O moreno apertou os
olhos em minha direção, desconfiado, abrindo um sorriso lindo logo depois.
— A reunião? O que rolou?
Nathan sabia que eu tinha ido à reunião com os advogados hoje, contei a
eles mais cedo. Provavelmente havia ligado os pontos e sabia que eu queria
alguma ajuda.
— Seu tio e o advogado da Vittorino Company estão escondendo coisas
de mim — expliquei.
Nathan esticou o braço, me puxando pela mão em direção ao seu sofá
grande e confortável. Nos sentamos acomodados antes dele começar a falar.
— Carlton também não me conta tudo, Liah. Mas acho que ele sabe
muito mais do que aparenta sobre essa investigação toda.
— Consegue me ajudar a tirar alguma coisa dele?
Seus olhos se apertaram em duas fendas e seus lábios se crisparam.
Nathan apoiou os cotovelos nos joelhos e me olhou de lado.
— Se isso for te colocar em risco, não.
— Nathan, eu tô totalmente no escuro — reclamei pela recusa dele.
— Eu confio no Carl com toda a minha vida, Liah — disse voltando a
me olhar nos olhos. — Se ele não te contou alguma coisa, é pra não te
expor a algum risco desnecessário.
Minha irritação nos últimos dias estava atingindo um nível astronômico.
Não saber nada sobre aquela investigação, junto da possibilidade da ONG ir
parar no meio de tudo, me deixava a ponto de enlouquecer.
Esfreguei meu rosto, me sentindo cansada e decepcionada comigo
mesma, tentando afastar as lágrimas que insistiam em se empoçar nos meus
olhos. Ainda não entendia como minha avó tinha se metido numa situação
dessas.
— E se envolverem a ONG? — minha voz soou cansada demais.
— Vou falar com o Carlton e tentar entender o que está acontecendo, tá
bem? Mas não te prometo nada.
Assenti, me conformando e querendo acreditar que Nathan ia conseguir
alguma informação.
— Pode me arrumar um copo de água? — pedi com a voz embargada.
Nathan levantou do sofá e estendeu a mão para mim. Levantei junto dele
e o segui até a cozinha anexa à sala, dividida pelo balcão enorme da ilha de
mármore.
Abrindo a porta da geladeira, retirou uma garrafa de vidro cheia de água
e colocou em cima da bancada da pia, pegando um copo no armário.
Seus olhos desceram pelo meu corpo, encostado no balcão da pia. Olhei
de volta nervosa para ele.
— Às vezes, eu tenho a impressão de que você muda de personalidade
conforme a roupa que veste — comentou, olhando sugestivamente meu
vestido, enquanto enchia o copo com a água.
— Na verdade, eu mudo a roupa que visto de acordo com minha
personalidade do momento. Sempre foi assim, mas não sei explicar o
motivo. — contei.
Ele me entregou o copo, e o peguei sentindo minhas mãos tremerem. Era
sempre assim quando eu estava perto dele.
— Ainda tô tentando entender você, mas parece que todas essas suas
versões me atraem de um jeito diferente.
— Já decidiu de qual gosta mais? — perguntei brincando e virei o copo,
bebendo a água.
Nathan deu de ombros, cruzando os braços para me analisar.
— Seus olhos estão tensos, seus ombros mais caídos… arriscaria dizer
que essa é a Liah tímida. Mas sua roupa… — ele apontou para o meu
vestido — Não é a roupa que a Liah tímida usa.
Engoli seco, sentindo meu corpo esquentar. Precisei puxar o ar pela boca
para compensar o jeito que ele me deixava ofegante.
Aquele sorriso era um crime de tão malicioso e bonito. Como fui imune
a ele por tanto tempo? Não que nunca tivesse reparado em sua beleza,
lembro bem de quando o vi a primeira vez no Republic.
— Talvez eu não seja tão frágil e inocente quanto você pensa.
— Eu tô pensando em coisas nada inocentes desde a hora que te vi nessa
sala, com esse vestido — disse, desencostando do balcão e vindo até mim.
Nathan apoiou as mãos na pia atrás de mim, me prendendo contra o corpo
quente dele. — Porra, você tem um cheiro viciante — disse passando o
nariz pelo meu pescoço.
Como se o dele também não fosse. Foi uma das primeiras coisas que
reparei nele, aquele cheiro amadeirado e meio cítrico que era totalmente
diferente de tudo que já tinha sentido.
Mordi os lábios com força, um arrepio potente subindo pela minha
espinha. Porra, Nate era quente como o inferno. Seus lábios desceram nos
meus, invadindo minha boca com sua língua quente. Quase gemi pelo
contato inicial, descobrindo que beijar Nathan estava se tornando meu mais
novo vício.
Levei minhas mãos para seus cabelos, puxando alguns fios, tentando
trazer seu corpo para mais perto de mim, mesmo que isso só fosse possível
se a gente se fundisse um no outro.
— Por mais que eu queira fazer isso aqui, a gente precisa ir para o quarto
— avisou, se separando de mim abruptamente. — Triss pode aparecer.
Um surto de consciência me atingiu. A gente estava se agarrando feito
dois loucos na pia da cozinha. Quando fiquei tão sem juízo assim? Assenti
para ele, meu rosto corado e muito quente.
Nathan me puxou pelo pulso, corredor adentro até a porta do que deveria
ser seu quarto. Entrei atrás dele, vendo o cômodo arrumado e uma cama
king size muito confortável se destacando no meio da parede. A decoração
predominante era preta e branca, com alguns tons mais terrosos e a
iluminação baixa e quente. Típica decoração masculina elegante.
— Você é bem organizado e limpo pra um homem — comentei distraída,
reparando na decoração. Aquilo me fazia entender mais sobre ele.
— Minha diarista é. Se dependesse de mim, isso aqui viraria uma
bagunça em um dia. — riu enquanto tirava meu cabelo do ombro, abrindo
espaço para sua boca por trás de mim.
Arfei ao sentir o calor de sua língua e estiquei mais o pescoço,
melhorando seu acesso à minha pele. Suas mãos me puxaram pelo quadril,
grudando minhas costas ao seu peito. Impaciente, Nathan puxou meu
vestido para cima, passando o tecido pelos meus braços e cabeça.
— Ter você aqui assim… — me virou de frente, seus olhos percorrendo
meu corpo de cima abaixo — … é demais pra minha sanidade. — Nathan
voltou a me beijar, descendo as mãos devagar pela minha coluna, pelo meu
quadril, pela curva da minha bunda. Sua língua brincando com a minha
deliciosamente. Quando terminou de me beijar, olhou no fundo dos meus
olhos. — Sei que tô sendo irresponsável de fazer isso aqui, com Triss no
quarto ao lado — disse sorrindo lindamente. — Mas se você soubesse como
tira meu juízo, Liah. Se você soubesse tudo que quero fazer com você.
Isso era muita sacanagem. Ele não podia falar desse jeito e esperar que
eu me comportasse. Um calor inesperado me fez pular em seu colo,
afundando minha língua na boca dele. Em pouco tempo estava com as
costas coladas na parede do quarto, minhas pernas presas em volta de sua
cintura. Uma mão me segurava pela coxa enquanto a outra subiu até minha
nuca, puxando meu cabelo do mesmo jeito que fez da outra vez. Gemi. Ele
tinha poder demais sobre mim.
Sem nenhuma dificuldade, Nathan me carregou para a cama, ajeitando
meu corpo no colchão macio com delicadeza, deitando por cima de mim
sem deixar seu peso me pressionar.
Sua boca continuou no meu corpo, me beijando desde a boca até o
pescoço.
— Você me deixou marcada — avisei, quando senti seus lábios
chupando minha pele de novo.
— Deixei, é? — Nathan afastou meu cabelo, examinando meu pescoço.
— Posso marcar outros lugares também.
— Outros lugares? — perguntei nervosa, vendo um sorriso malicioso
nascer em seu rosto, quando ele tirou a própria camisa.
Nathan desceu os beijos pelo meu colo, até que estivesse fechando os
lábios sobre um dos meus mamilos doloridos. Não consegui evitar um
gemido quando ele sugou mais forte, usando a outra mão para apertar o
outro mamilo de leve.
— Baixinho, linda. A Triss tá aqui do lado.
Era quase impossível não gemer. Joguei minha cabeça para trás,
encarando o teto e puxei um dos travesseiros, para abafar os sons que saiam
da minha boca involuntariamente.
Nathan soltou um risinho safado antes de descer a boca pela pele da
minha barriga até meu ventre. Meu corpo inteiro se contorceu em
antecipação, prevendo a direção que sua boca tomava.
Suas mãos se engancharam nas laterais da minha calcinha, e quase
levantei meus quadris para ajudá-lo a tirar, mas Nathan foi mas rápido,
puxando as tiras com força e rasgando o tecido. De novo.
— Nathan! — bradei. — Se continuar assim, eu vou ter que renovar meu
estoque de calcinha — reclamei, recebendo um sorriso malicioso em troca.
Ignorando minha reclamação, ele usou as mãos para afastar minhas
pernas, me deixando totalmente aberta e exposta para ele. Senti meu rosto
corar e minha respiração acelerar ainda mais.
— Eu tô doido pra sentir seu gosto.
— Meu gosto? — perguntei, sentindo meu coração disparar.
— É, linda! Vou chupar você até te fazer gozar. Depois vou te comer
bem gostoso sentada naquela cômoda, porque amei te sentir daquele jeito
no balcão daquela loja.
Gemi. Alto.
Nathan apertou os olhos me repreendendo outra vez antes de descer seus
lábios sobre a pele das minhas coxas. Ele beijava com a boca aberta,
raspando a língua em toda a carne das minhas pernas, evitando a área
sensível em que eu realmente queria sua boca.
— Nate… — tentei pedir, mas não sabia o que falar e nem o que eu
queria realmente.
Quando sua boca passou a beijar a dobra entre minha virilha e minhas
coxas, eu pensei que poderia morrer. Meu clitóris chegava a doer querendo
sentir sua língua sobre ele, imaginando o quanto aquilo deveria ser bom.
Uma lufada de ar atingiu o nervo sensível, me fazendo ir ao céu e voltar.
Se ele fizesse isso mais algumas vezes, eu gozaria fácil. Achei que não
poderia ficar melhor, mas quando sua língua quente massageou meu clitóris
a primeira vez, eu precisei morder o travesseiro para conter meus gemidos.
— Isso… isso…
— Isso o quê? — sua voz vibrando contra meu sexo. — É bom?
Eu estava no céu, havia chegado lá quando sua língua passou a desenhar
círculos sobre o ponto mais sensível, e vez ou outra descer por toda a
extensão da minha intimidade.
Como podia ser tão gostoso? E intenso? E…
O orgasmo me atingiu rápido quando Nathan usou dois dedos para me
penetrar, atingindo algum ponto dentro de mim que me fez explodir em
segundos.
Ele me chupou ainda mais, limpando tudo que podia, enquanto eu
gozava forte em sua boca.
Sem me dar tempo para me recuperar, Nathan se colocou de pé,
passando o braço pela minha cintura para me levantar com ele, em seu colo.
— Tudo bem se a gente fizer isso aqui? — perguntou quando me
colocou sentada na cômoda de madeira.
Não contive um sorriso ao notar a forma fofa que ele perguntou. Nathan
tinha uma preocupação exagerada comigo e em me machucar.
— Eu gosto da ideia de ter uma coisa nossa — respondi. — Balcões,
pias, mesas, cômodas… Eu gosto da ideia da Liah má se sobressaindo à
Liah tímida de sempre. Ele arqueou a sobrancelha para mim, repuxando o
lábio numa expressão quase malvada.
— Sabe o que isso desperta em mim? — perguntou no meu ouvido. —
Posso ter sido grosso e babaca com você por um tempo, mas me apaixono
fácil, Liah — avisou, mordendo meu ombro. — E tenho um fraco por
meninas más.
— Ótimo. Acabei de descobrir que tenho um fraco por caras que sabem
despertar a Liah má.
Nathan sacudiu a cabeça, me reprovando antes de voltar a me beijar
daquele jeito que só ele fazia, enquanto eu tentava descer sua calça de
moletom. Quando se afastou, terminou de descer a calça e a bóxer liberando
seu pau.
Não contive um sorriso ao deixar meus olhos varrerem todo seu corpo
magro e definido. Nathan era tão gostoso que chegava a doer meus olhos.
As tatuagens em seu torso e nos braços davam um ar meio badboy que ele
não tinha quando estava vestido.
Suas mãos abriram a gaveta da cômoda ao meu lado, tirando um
pacotinho de camisinha de lá. Não pude deixar de notar que tinham muitas
camisinhas ali dentro. Olhei para ele com a sobrancelha erguida.
— Não é como você está pensando — justificou. — Em minha defesa,
tem um tempo que nem abro essa gaveta.
Deixaria o incomodo com aquilo para depois. Era muito mais sexy ver
suas mãos deslizarem a camisinha nele mesmo. Nathan puxou minha
cintura, apoiando meu corpo na borda da comoda. Seus olhos buscaram os
meus antes dele entrar em mim devagar. Deus, como isso era gostoso. A
gente se encaixava de um jeito perfeito.
— Eu poderia morar em você, Liah — disse, me deixando totalmente
vermelha, aumentando seu ritmo aos poucos.
Tentei manter a consciência de que tinha uma adolescente no quarto ao
lado, mas minha garganta brigava comigo, quase emitindo sons por conta
própria. Eu queria gritar toda vez que ele voltava mais forte para dentro de
mim, me atingindo naquele ponto perfeito. Só ficou pior quando Nathan
puxou meu cabelo atrás da nuca, afundando os lábios na curva do meu
pescoço.
Tentei compensar minha agitação apertando os músculos de suas costas,
mas os apertões viraram arranhões cada vez mais fortes. Ouvi quando ele
arfou de um jeito mais intenso no meu ouvido, no momento exato que
minhas unhas curtas rasparam com mais força a lateral das costelas dele.
— Você tem que ficar quietinha — determinou ofegante, me olhando nos
olhos antes de voltar a beijar minha boca.
Nathan aumentou o ritmo, ajeitando meu corpo mais na borda do móvel.
Podia senti-lo me atingir ainda mais profundo naquele ponto. Eu podia
sentir cada músculo interno se contraindo em volta dele, me fazendo querer
gritar. Eu precisava gritar.
— Para de me apertar desse jeito — não era um pedido em sua voz.
Eu amava esse jeito dele falar comigo. Meio mandão, meio
descontrolado. Eu estava totalmente perdida. Era insano, e quanto mais
insano, mais gostoso era.
— Não consigo controlar… — outro gemido mais alto escapou quando
seus dedos alcançaram meus seios, beliscando um dos meus mamilos com
um pouco mais de força, quase que como uma punição pela forma que eu
me contraía ao redor dele.
Percebendo meus gemidos soarem mais altos mesmo através da boca
dele, Nate tapou minha boca com a mão, colocando um pouco mais de força
no seu aperto, buscando meus olhos.
— Se continuar gemendo desse jeito, Triss vai escutar a gente — disse
mantendo a mão em minha boca.
E aquele jeito mais bruto dele foi o suficiente para me levar até a borda,
transbordando naquela sensação perfeita que ele me causava. Ofegante,
suada, satisfeita.
— Caralho, Liah — disse baixinho quando o senti pulsar dentro de mim.
— Você nasceu com a missão de foder a minha vida — riu desesperado
enquanto afundava a cabeça no meu pescoço, gozando.
Esperei nossos corpos finalmente se acalmarem para me afastar e olhar
nos olhos dele.
— Foder sua vida? Você ainda acha que eu…
— Não. Não tô falando disso. — me interrompeu. — Isso que acontece
entre a gente… — seus olhos perfurando minha alma. — Como se não
bastasse me arrastar para o seu mundo, tá condicionando minha mente a
ficar viciada em você. Não sei mais se sou capaz de transar com outra
mulher um dia sem pensar em você.
Desviei meus olhos nervosa. Nathan não costumava esconder ou fazer
rodeio para dizer o que ele sentia. Eu gostava disso, mas também me
assustava bastante. Desci da comoda, empurrando um pouco o corpo dele
para pegar meu vestido do chão.
— Como pode dizer isso? Essa é a segunda vez que a gente transa —
argumentei nervosa.
Encarei estarrecida seu corpo de costas para mim, enquanto ele subia
uma calça de moletom fino pelas pernas. Passei meu vestido pela cabeça
preocupada, embora também estivesse pensando que seria quase impossível
sentir aquilo de novo, com outro.
— Dorme aqui? — pediu, comigo ainda de costas, ignorando meu
questionamento.
Nathan tinha uma mania irritante de ignorar minhas perguntas.
— Acho melhor não, tem a Triss…
— E ela sabe exatamente o que está acontecendo entre a gente.
— Tá bem — Fácil demais, Liah. Cuidado!
Virei para ele, seus olhos tentando entender minha reação, ou a falta dela
quando explicou porque eu estava 'fodendo' a vida dele.
— Você pode me emprestar uma roupa?
Não pensei que a noite pudesse terminar assim, então nem me preocupei
em sair de casa com alguma muda de roupa, nem calcinha pra usar eu tinha;
a minha estava rasgada no chão.
Nathan foi até o closet do outro lado do quarto e voltou de lá me
entregando uma camisa de algodão azul e uma cueca bóxer branca.
— Deve ficar grande, mas… — apontou para minha calcinha rasgada.
Não consegui evitar um sorriso.
— Você precisa parar de fazer isso — avisei, sacudindo a cabeça.
— Eu gosto do jeito que você fica ofegante quando faço isso —
justificou e foi suficiente para entender que ele não ia parar.
— Vou usar seu banheiro — avisei já entrando no banheiro do quarto e
fechando a porta.
Respirei um pouco de ar desintoxicado dele, tentando me fazer pensar
racionalmente. As coisas entre a gente estavam acontecendo rápido demais.
Rápido de um jeito que realmente me assustava. Até que ponto eu podia me
permitir?
Nathan despertava um lado meu que nem sabia que tinha. Eu costumava
ter medo dos homens, receio do jeito bruto de alguns deles, nojo das
palavras sujas. Tudo em consequência do que aconteceu comigo. Mas eu
gostava de tudo isso nele.
Nathan disse que eu o arrastei para o meu mundo, mas ele estava me
afundando no dele, e eu quase podia sentir meu ar faltar toda vez que ele
estava perto. Meu coração batia descompassado, acelerado. Minhas mãos
suavam e meu estômago revirava. Eu sabia que estava me apaixonando pelo
cara que quase destruí a vida, e isso tirava meu sono.
Liah, esse é o tipo de coisa que só poderia acontecer com você mesmo.
Me limpei e vesti a roupa que ele me emprestou. Aquela camisa estava
impregnada com um cheiro que era dele. Uma mistura de sabonete e sabão
em pó que ajudava a formar seu cheiro único. Dormir com o cheiro dele no
meu nariz era quase um apelo para não sair mais de perto.
Saí do banheiro, tímida e constrangida, vendo Nathan sentando na cama
com as pernas cruzadas, digitando alguma coisa no celular. Ele tinha uma
mania bonitinha de morder os cantos do lábio quando estava concentrado
em alguma coisa, que só o fazia ainda mais interessante.
— Tá tudo bem? — perguntou ao me ver parada no meio do quarto,
encarando-o por tempo demais.
— Está sim — respondi indo até ele. — Talvez eu tenha me assustado
um pouco com o que disse — preferi ser sincera.
Sentei ao seu lado na cama, vendo-o me analisar antes de dar uma
resposta.
— Tenho uma mania complicada de ser sincero demais. Para o bem ou
para o mal. — riu nervoso.
Eu sabia bem daquilo. Nathan, por várias vezes, foi grosso e me atingiu
de formas bem doloridas. Em outras vezes ele era tão direto sobre o que
sentia que me deixava com a respiração presa na garganta.
— Tudo bem. Eu não sou tão aberta quanto você, e talvez não tenha
tanta clareza sobre o que sinto, mas tenho a mesma sensação com você,
Nate. Você desperta coisas em mim que nunca senti antes, em toda minha
vida.
— Isso te incomoda? — perguntou ao ver a confusão que devia estar
estampada no meu rosto.
— O que é isso entre a gente? Sei que eu mesma te falei hoje que a gente
não precisava rotular, mas é que é tão estranho. — ponderei, sentindo meu
coração inquieto, acelerado. — A gente tem um passado complicado,
Nathan. Você não acha estranho estarmos… assim… — apontei de mim
para ele, sem saber exatamente explicar como estávamos.
Nathan suspirou, mantendo seus olhos atentos sobre mim. Uns segundos
depois, largou o celular que ainda estava em sua mão na cama, puxando
minha mão entre as dele.
— Vamos com calma. A gente não precisa apressar nada. Temos todo
tempo do mundo pra se conhecer e entender isso entre a gente, não é? —
perguntou devagar.
Confirmei com a cabeça vendo Nathan assentir devagar em resposta,
respirando mais fundo. Seus braços envolveram meu corpo, me fazendo
deitar junto dele no colchão macio. Nos aconchegamos na cama, com os
corpos totalmente colados.
Nathan esticou o braço, pressionando o interruptor acima da cabeceira da
cama. A luz apagou, deixando uma única faixa iluminada entrar pela janela,
vinda da luz da lua.
— Nathan — chamei rindo ao sentir o volume atrás de mim.
— A culpa é sua. Tem noção de como fica gostosa dentro de uma camisa
minha?
Segundos depois, estávamos emaranhados em nossa confusão
novamente.
27 de julho de 2019
Abri meus olhos demorando a entender onde estava. Algumas imagens
voltando com força para minha mente. Nathan e eu, uma noite tórrida de
sexo. Sorri involuntariamente.
Olhei ao redor, percebendo que o dia estava claro lá fora, e estava
sozinha no quarto. Virei o pescoço buscando meu celular sobre a mesa de
cabeceira. Droga, já é tarde. Eram mais de 09:00h. Eu tinha me prometido
que usaria o sábado para resolver o trabalho acumulado.
Levantei meu corpo sentindo dores em lugares inimagináveis. Parecia
que tinha feito uma série de três horas na academia.
Entrei no banheiro jogando uma água no rosto, lavei a boca com um
pouco da pasta de dente que estava sobre a pia. Olhei no espelho reparando
que a bóxer dele parecia um short em mim. Resolvi sair assim e procurá-lo.
Precisava de café para acordar.
Logo que sai do quarto ouvi a agitação que vinha da sala. Mia estava
aqui; a voz dela era inconfundível.
— Não acredito no que estou vendo — a garota quase gritou ao me ver
apontar no corredor. — Nathan, você está doente? — questionou divertida.
— Quê? — ouvi a voz dele vindo da cozinha.
— É impressão minha ou a Liah está aqui, vestida com uma roupa sua?
— Ah… — Nate me olhou de um jeito engraçado quando apareci na
sala. — A gente não queria te acordar.
— Não acordei com o barulho — o tranquilizei. — Tinha tempo que não
dormia até tão tarde.
— Mas se considerar que vocês foram dormir quando estava quase
amanhecendo, nem dormiu tanto assim.
Olhei chocada para Triss, sentindo vergonha até minha sétima geração.
Meu Deus, será que ela escutou alguma coisa?
— O quê? Sério que vocês acham mesmo que são silenciosos? — A
garota saiu da cozinha rindo.
— Que vergonha. — Afundei meu rosto no peito dele ao me aproximar.
— A gente não pode mais fazer isso aqui.
Nathan riu baixinho, deixando um beijo estalado na minha testa. Ele era
tão fofo.
— Preciso ir para o Hotel. Tenho muito trabalho pra adiantar.
— Posso te levar — avisou me entregando uma xícara de café.
— Nathan, meu amor, seu apartamento está incrível… — a voz da
mulher que voltava do banheiro morreu ao me ver junto dele na cozinha.
Seus olhos tinham o mesmo tom azul que os de Nathan e Mia, seus
cabelos eram castanhos quase num tom chocolate, em cumprimento médio
e muito cheios. Era uma mulher incrivelmente bonita e bem cuidada,
embora as pequenas ruguinhas ao redor dos olhos denunciasse que ela tinha
mais idade.
Uma sensação desesperadora me abateu ao processar tudo que estava
acontecendo e concluir o óbvio. Era a tia dele, mãe da Mia.
— Não vai me apresentar sua amiga, filho? — perguntou sorrindo
agradavelmente para mim.
Arregalei meus olhos para ele, sentindo meu estômago se revirar. Meus
olhos correram para baixo, me fazendo lembrar que estava vestindo uma
roupa dele.
Que merda!
— Essa é a Liah, tia — ele disse calmo demais. — Liah, essa é minha
tia; Sophia.
— Liah? — a mulher perguntou espantada. — A mesma Liah da ONG?
— voltou a questionar, procurando Mia assustada.
— Longa história — Mia se limitou a responder, sacudindo a cabeça em
reprovação.
Percebi o olhar que os três trocavam. Nathan já deveria ter falado mal de
mim alguma vez com ela, porque pela sua expressão surpresa, a mulher
certamente sabia que eu era eu. Mesmo assim, Sophia sorriu para mim,
dando alguns passos até estar atrás do balcão.
— É um prazer conhecer você, Liah — Sophia estendeu os braços para
me abraçar, e retribui, mesmo sem jeito pela condição e pela roupa que
vestia. — Mia fala de você o tempo todo — contou.
— É um prazer também — respondi, cruzando os braços para disfarçar a
falta de um sutiã. — Eles falam de você o tempo todo também.
— Pena que não posso ficar mais tempo aqui com a Triss — a mulher
disse chorosa. — Mas em breve eu a levo pra ficar comigo uns dias.
Nate revirou os olhos para a tia, abrindo um sorriso perfeito e cheio de
covinhas.
— Você não vai estragar minha filha com seus mimos exagerados, Dona
Sophia — disse e logo começou a rir da cara de desafio que Sophia fez.
Você teve a quem puxar, Nathan.
— A gente vai indo — a mulher mais velha apertou os olhos na direção
dele, num aviso mudo. — Mas você e eu vamos ter uma conversinha em
breve.
Por um segundo, o semblante de Nathan mudou para algo que me
parecia medo, e seu corpo estremeceu ao meu lado. Quase não consegui
segurar o riso ao vê-lo estremecido pelo aviso da tia. As duas logo saíram,
nos deixando sozinhos com Triss no apartamento.
— Meu. Deus. — disse, caindo no sofá assim que fechou a porta. — Que
vergonha, Nathan!
— Não achei que você fosse acordar agora — brincou, sentando-se ao
meu lado. — Mas não tem nada demais, Liah.
— Sua tia deve me achar uma pecadora sem juízo — disse, lembrando
de quando ele me contou que Sophia achava que era pecado transar antes do
casamento. — E continuo com uma boxer sua — reclamei, escondendo o
rosto numa almofada.
Sacudi a cabeça, ainda desacredita. Nathan era absurdo, como não tinha
nada demais? A tia dele me pegou na cozinha pela manhã vestindo uma
roupa dele. Liah, você se mete em cada uma.
Mas meus pensamentos não duraram muito tempo. Logo em seguida,
Nathan me abraçou rindo do meu desespero, aninhando minha cabeça em
seu peito enquanto acariciava minha nuca.
Imaginei como seria estar sempre assim com ele, me sentindo protegida,
bem tratada. Eu podia me acostumar fácil com aquilo.
27 de julho de 2019
Eu estava ferrado. Tia Soph só dizia que precisamos conversar
seriamente quando o assunto era sério de verdade.
Deixei Liah no hotel mais cedo, e ela me lembrou de tentar tirar alguma
informação de Carlton, por isso, mesmo com medo da conversa de Sophia,
fui atrás dele na casa da minha tia.
— O que você quer realmente aqui? — Carlton me perguntou
desconfiado, quando disse que não precisava tirar tia Soph do quarto de
costura.
— Você teve uma reunião com Liah ontem, não foi? — perguntei
despretensioso.
Carl me encarou, segurando um sorriso julgador.
— Sua tia me disse uma coisa curiosa mais cedo, acredita?
— Ah, foi? — cocei a nuca, sem graça. — O que ela disse?
— Que Lianah estava na sua casa, vestindo uma roupa sua. Lembro de te
perguntar e você dizer que não tinha nenhum envolvimento com a neta da
Sylvia, Nathan. — disse, apertando os olhos para mim.
— E eu não tinha mesmo quando você perguntou — dei de ombros. —
Aconteceu, Carl.
— Essa menina não é a mesma que apareceu naquela noite, Nathan? —
Carlton perguntou preocupado. — Achei que você a culpasse…
— Era exatamente sobre isso que queria falar com você! — Tia Sophia
apareceu na cozinha de repente.
— Que susto, tia! — reclamei, colocando a mão no coração em um
drama exagerado.
— Que história é essa de estar envolvido com essa menina, Nathan? —
ela me perguntou sendo direta. — Se eu souber que você está fazendo isso
pra se vingar dela de alguma forma… — ameaçou.
Era isso que ela pensava?
Nada parecido com isso passou pela minha cabeça. Nem mesmo quando
minha raiva estava no auge. Jamais faria algo tão baixo e insano.
— Não é isso, tia. E sinceramente, me entristece pensar que a senhora
acredita que eu faria uma coisa dessas — reclamei, chateado de verdade.
— Você apareceu aqui semanas atrás, todo arrebentado depois de ter uma
crise porque brigou com ela, Nate. O que quer que eu pense? — disse, me
encarando profundamente.
— Essa coisa com ela é complicada, tia — contei. Era difícil explicar
aquilo. Só tinham duas semanas que transamos na loja. Embora aquela
tensão estivesse presente entre a gente desde o dia que a beijei no Republic.
— Olha, eu não sei explicar isso, eu juro que minha intenção com ela não é
ruim, mas a gente mal se conhece ainda. Então não pensem que estamos
num relacionamento sério ou algo assim — avisei de uma vez.
Minha tia me encarou com as duas sobrancelhas erguidas me desafiando.
— Ela estava na sua cozinha vestindo uma roupa sua, Nathaniel — seu
semblante acusatório me intimidou. — Como você tem coragem de levar
alguém com quem não está em um relacionamento sério pra dentro da sua
casa? Esqueceu que agora tem a Triss?
— Triss adora a Liah, tia. Ela não se incomodou com isso…
— Pode parar por aí — me interrompeu, adquirindo uma postura ainda
mais desafiadora. — É esse o exemplo que você quer dar a ela? Triss só tem
dezesseis anos e nunca esteve fora de um abrigo, se ela achar que isso é
normal, daqui a pouco você vai surtar quando ela quiser levar um
namoradinho com quem não tem um relacionamento sério pra dormir com
ela.
Porra! Era difícil pensar nisso, mas ela tinha alguma razão. A encarei em
choque, sentindo meu estômago se revirar com a ideia que muito em breve
eu estaria sofrendo com isso.
— Ok, você tem razão, tia! — assumi, vencido pelos argumentos
terroristas dela. — Não vou mais levar alguém sem ter um relacionamento
sério pra casa.
Tenho o loft para isso.
Havia esquecido totalmente do meu lugar de refúgio.
— E essa cara de quem tá aprontando? — Tia Soph perguntou
desconfiada.
— Credo, tia, nem fiz nada agora — não segurei o riso.
— Deixa o menino, Sophia — Carlton me defendeu, finalmente abrindo
a boca. Ele não era louco de enfrentar minha tia numa discussão. — Vamos
falar lá em cima? — pediu, finalmente cedendo em me dar algumas
explicações.
Subi as escadas atrás dele, ansioso para perguntar tudo que vinha me
atormentando nos últimos dias. Mas antes que pudesse entrar em seu
escritório, reparei na porta do quarto de tia Sophia aberta e nas malas que
podia ver abertas no chão.
— Elise ainda não foi embora? — perguntei em choque.
— Ela está certa em te convencer a conversar com ela dessa vez — Carl
avisou preocupado enquanto entravamos em seu escritório, onde era meu
quarto alguns anos atrás. Sentei-me na cadeira em frente sua mesa gasta. —
O que quer saber? — Carl perguntou exalando.
— Descobriu alguma coisa sobre o carro que me seguiu ou sobre quem
ligou pra Liah?
— Nada — Carl sacudiu a cabeça negando. — Os registros das câmeras
de rua foram, claramente, alterados. Tentei todas as câmeras antes e depois,
mas o carro aparece e some do nada.
Joguei a cabeça para trás, irritado e preocupado com essa história toda.
Tinha tanto medo que algo acontecesse com qualquer um dos meus amigos
ou minha família.
— Acha que isso está realmente perigoso, Carl? — perguntei devagar,
com medo da resposta.
— Está. Por isso peço tanto que não se meta nisso. Eu e Estevem, o
advogado da Rede Vittorino, estamos nos limitando no que contamos ou
não a Lianah. A verdade é que Sylvia estava numa enrascada tremenda
antes de morrer — confessou pesaroso.
— Liah ainda não sabe que o incêndio foi premeditado? — encarei meu
tio, preocupado em manter aquela informação escondida dela.
— Se ela souber, provavelmente vai querer que a polícia investigue isso
abertamente. A informação vai virar pública. Nesse momento, poucas
pessoas sabem de verdade o que aconteceu e isso pode nos dar uma
vantagem na investigação — explicou, descansando as costas na cadeira
alta.
Suspirei, jogando ainda mais o pescoço para trás e encarando o teto
branco. Sentia meu coração apertado pela preocupação.
— Acharam alguma coisa no material apreendido? — perguntei, sem
encará-lo.
— Não. Desconfio que Sylvia mantinha essas informações sobre o
esquema em outro lugar. Não tinha nada em nenhum e-mail ou computador
dela, ou da neta. — Carl bufou inconformado. — Tem alguém grande
envolvido nessa merda, Nathan. Não faz sentido terem envolvido Lianah e
sua empresa no processo.
— Parece que nada faz sentido nessa história — reclamei, me sentindo
ainda mais cansado.
— Nathan, a última informação que tive do FBI foi que estavam
investigando algumas doações feitas para a ONG, inclusive umas da sua
empresa.
— Liah comentou sobre isso, disse que podiam querer investigar a gente
também, mas pode ficar tranquilo que declaramos todas as doações e
fizemos tudo legalmente.
Carlton suspirou, me analisando calmamente antes de tirar um
documento da gaveta de sua mesa.
— Então me diz porque o FBI está tentando rastrear uma transação
milionária de uma conta sua para uma conta privada em Mônaco.
Merda.
Porra.
Esfreguei o rosto nervoso, sentindo meu coração acelerar. Não tinha
nenhuma chance de sair daqui sem que ele soubesse da verdade.
— Isso não é ilegal — afirmei.
— Ilegal seria se comprovassem que um juiz em Westville recebeu uma
transação milionária de uma conta restrita de Mônaco, que é um paraíso
fiscal, na mesma época que você resolveu abrir uma lá e ele assinou um
processo de adoção pra você.
Peguei o documento de sua mão; a aflição me tomando aos poucos. Não
tinha muita coisa ali, só uma cópia apagada da transferência que foi feita.
— Tem como me ligar a isso? — perguntei preocupado.
— Não diretamente — Carl bufou, entendendo minha pergunta como
uma confissão. — Que merda você fez?
— Paguei pela adoção da Triss — confessei, me sentindo horrível de
repente.
— Porra, Nathaniel! — Carlton deu um saquinho na mesa irritado.
— Abri a conta pra transferir esse dinheiro para o tal Juiz. Não ia
transferir direto da minha — expliquei.
— Você é inteligente demais para o seu próprio bem. — Meu tio sacudiu
a cabeça, me repreendendo. — Meu contato do FBI me alertou sobre seu
envolvimento, porque é uma investigação séria.
— Como assim? — perguntei prevendo que a merda era ainda maior.
— É uma investigação de tráfico humano, Nathan. Se você não tivesse
feito dessa forma, já estaria preso agora, associado ao crime.
— Tem chance de ainda dar merda?
Porra, com toda a investigação acontecendo com a ONG, a App sendo
envolvida, me preocupar com mais essa agora era demais para minha
cabeça.
— Não quero nem imaginar o favor que vou ficar devendo pra limpar
sua barra dessa vez.
Respirei aliviado, sorrindo amarelo pelo semblante fechado do meu tio.
— Eu só queria que a Triss tivesse uma chance melhor na vida, Carl —
tentei me justificar, mas Carlton levantou um dedo, como se algo tivesse
estalado em sua cabeça.
— Espera aí! — pediu, pegando seu celular em cima da mesa.
Seus dedos se apressaram em digitar um número, e logo levou o aparelho
ao ouvido.
— Sou eu…
Carlton me olhou desconfiado.
— Qual era o nome da menina que Lianah Vittorino tentou adotar por
duas vezes?
Seu punho acertou a mesa num soco raivoso. O que estava rolando?
— Te aviso…
O homem encerrou a ligação e se pôs de pé, andando de um lado a outro
do escritório. Meus olhos o acompanharam por todo o caminha de ida e
vinda, mas tive medo que perguntar o que estava acontecendo. Nunca vi
Carlton tão nervoso daquele jeito.
— Carl…
— Você sabia que Lianah tentou adotar a Triss duas vezes e negaram?
— Não…
Liah nunca tinha me contado sobre isso, mas faria todo sentido,
considerando toda a raiva que a garota demonstrou quando descobriu que
havia entrado com o processo.
Se negaram pelo mesmo motivo que me negaram, Liah não iria mesmo
ceder. Nem que ela quisesse muito tirar Triss dos abrigos. Lianah era
totalmente contra qualquer tipo de suborno.
Isso me fazia pensar em como seriam as coisas quando ela descobrisse a
merda que eu havia feito.
— Existe um motivo pra ela nunca ter conseguido, Nathan.
— Eles queriam dinheiro? — arrisquei, mesmo com meu instinto me
alertando que tinha muito mais por trás.
Carlton estancou seus passos, seus olhos encontraram os meus; sua
expressão séria, fria. Me senti quase no fundo do poço de novo, dessa vez,
pelo medo antecipado.
— Sylvia.
— Sylvia? — perguntei totalmente confuso.
— Sylvia estava no sistema, Nathan. Querendo sair ou não, ela fazia
parte. Sylvia pediu que as solicitações da neta fossem negadas, porque se a
menina fizesse parte da família ela estaria correndo o mesmo risco que Liah
está.
E agora Triss estava comigo. Tinham me seguido, estavam envolvendo a
App, e sabe-se lá Deus o motivo, alguém estava realmente tentando nos
prejudicar.
— Eu não acredito nisso — soltei um riso nervoso. — Acabei chamando
atenção pra ela, não foi?
— Vamos torcer que não. Se não me ameaçaram ainda, ainda não
chegaram em vocês. Mas eu vou alertar o FBI sobre isso.
— Essa cidade é uma vergonha — reclamei pensando em toda a sujeira
que devia ter por baixo dos panos.
— Se eu te contasse todos que estão envolvidos na investigação do FBI,
você se assustaria — Carl comentou sério.
Mas por um momento, pensei que essa seria uma informação importante
ter caso alguém tentasse se aproximar da gente.
— Me fala quem são essas pessoas — pedi, me remexendo na cadeira
enquanto ajeitava a postura para encará-lo. — Se alguém aparecer na ONG
ou cercar qualquer um de nós, posso ao menos ficar de olho.
Carlton me olhou desconfiado, apertando seus olhos em minha direção.
— Promete que não vai se meter nisso? Se alguém aparecer, tudo que
precisa fazer é me avisar.
Confirmei com a cabeça, sem ter coragem de proferir a mentira em voz
alta. Carlton não precisava saber que eu já estava decidido a me envolver
nessa merda até que tivesse a certeza de que a ONG não corria risco de ser
fechada e que Liah e Triss não estavam mais em perigo.
— Os policias da corporação você já sabe quem são. Mas além deles,
vocês precisam ter cuidado com o prefeito de Westville, com os grandes
empresários da cidade e com os médicos fundadores do Hospital Connor,
Mathew e Valéria Connor, são dois irmãos traiçoeiros. Foram eles que
fraudaram seus lados no acidente. — Carlton finalmente parou de falar.
Lembrava bem daquela merda. Não deveria ser difícil provar que fui
espancado e não sofri um acidente de carro, mas todos os laudos indicavam
fraturas ocorridas em função de uma falsa batida.
— Grandes empresários? Qualquer um? Os pais dos meus amigos estão
nessa merda? — perguntei ainda mais assustado.
Carlton deu de ombros, tirando um arquivo da sua gaveta e me
entregando.
— Não achei nada sobre eles… ainda — o olhei desacreditado. — Aqui
tem todos os envolvidos, se quiser olhar com calma depois. Mas toda vez
que investigo a fundo, encontro mais sujeira, Nathan. Não conte a ninguém
sobre isso — pediu, me encarando muito sério.
Eu realmente não poderia contar. Seria difícil explicar a qualquer um dos
meus amigos a merda que estava fazendo e o buraco que estava me
metendo, mas precisava de Ethan e Tommy comigo para tomar conta da
ONG e das meninas. Eu só tinha certeza de que precisava fazer isso, porque
depois de três longos anos vivendo no luto, eu finalmente tinha um motivo
para lutar de novo.
30 de julho de 2019
— Eu e Liah estamos tendo… um relacionamento? — parecia mais
difícil explicar a cada vez que eu tentava.
O homem, sentando na poltrona, me encarou surpreso. Seu indicador
alisando o queixo pontudo e fino enquanto mantinha seus olhos em mim
por um tempo.
— Você está me perguntado isso ou me contando? — perguntou agora
que segurava um riso.
— A gente se beija e transa. É um relacionamento, não é? — perguntei
confuso.
— Você e Liah estão juntos — Doutor Emerson presumiu.
— Não sei. Estamos nos conhecendo. Saindo, nos beijando, transando. A
gente não rotulou o que quer que seja que está acontecendo entre nós dois
— tentei explicar.
— Há quanto tempo isso está acontecendo? — perguntou daquele jeito
analítico.
Me remexi no sofá, inquieto e irritado por decidir contar isso a ele.
— Tem cerca de três semanas que a gente transou a primeira vez, mas
antes disso a gente já tinha se beijado algumas vezes. Sempre no meio de
uma discussão. — Dei de ombros, quase tendo vontade de rir ao ver a
surpresa estampada no rosto do homem.
— E como isso aconteceu? — o homem me olhou curioso. — Você tem
estado bem mais aberto nas sessões, mas não comentou nada sobre essa
aproximação repentina de vocês.
— Tentei negar isso por um tempo. As coisas entre a gente são… —
tentei pensar na melhor palavra para descrever aqueles sentimentos. —
Intensas e complicadas. Acho que nos aproximamos por causa da ONG e...
sei lá…
Doutor Emerson ficou me encarando do jeito analítico que eu odiava,
tentando desvendar alguma coisa em mim.
— Você gosta dela? — perguntou depois de um tempo.
Eu podia mentir para ele. Podia mentir para mim também. A verdade é
que eu não tinha mais motivo e nem argumento para negar aquilo.
— Gosto! — Era a resposta mais simples e confortável.
— Por que gosta dela?
Era sério? Ele estava mesmo me perguntando aquilo?
Engoli seco ao perceber que o homem falava sério, e tentei me fazer
entender o que fazia com que eu gostasse dela.
— Liah tem uma vivacidade invejável. Ela é altruísta, tem a
personalidade forte e é justa em todas as situações. Até o jeito dela brigar
comigo me encanta. Ela é exatamente o tipo de mulher que me encantaria e
me deixaria louco de cara. Mas as circunstâncias não estavam a nosso favor.
— E como você se sente assumindo que gosta dela? — ele me
perguntou, mantendo a porra do olhar analítico em cima de mim.
— Eu estou me cagando de medo — admiti, rindo nervoso. — A
Camille foi a única mulher na vida que me envolvi com algum sentimento,
e saí dessa merda todo machucado e destruído — pela primeira vez desde
que comecei a terapia, deixei meu corpo cair de costas no sofá macio, quase
deitado, relaxado. Encarei a claraboia gigante no teto, vendo que o céu
estava muito azul, me fazendo lembrar dos olhos dela. Enfiei as mãos
embaixo da cabeça, deixando o peso daquele sentimento sair. — Se eu for
muito sincero, eu não estou me permitindo sentir de verdade o que minha
cabeça grita toda vez que estou com a Liah. Se eu me machucar, acho que
dessa vez pode não ter volta.
— Já pensou como ela se sente em relação a isso? — o analista
questionou, me fazendo virar o pescoço de lado para encará-lo. Apenas
neguei com a cabeça, voltando a olhar o céu azul pelo vidro. Suspirei,
fechando meus olhos e deixando algumas lembranças invadirem minha
mente.
— Acha que sou egoísta por causa disso? — perguntei preocupado.
— Você se acha egoísta por causa disso? — ele devolveu a pergunta.
Irritado, voltei a sentar no sofá, encarando o homem de cabelos brancos.
Era uma merda pagar um puta dinheiro num psicólogo que só me deixava
ainda mais confuso.
— Doutor Emerson, você não está me ajudando hoje — reclamei
irritado. — Perguntei porque não sei a resposta.
O homem riu, sacudindo a cabeça em reprovação.
— Nathan, provavelmente você só está na defensiva com medo de se
machucar. Mas não posso te dar uma resposta sobre algo que você sente. O
máximo que posso fazer é te ajudar a entender esses sentimentos. Por que
perguntou se eu o achava egoísta? — o homem jogou, me fazendo pensar.
— Liah também pode estar com medo de se machucar, e não pensei
nisso porque estava preocupado demais com meus medos — admiti.
— E o que planeja fazer em relação a isso?
— Conversar com ela? — joguei inseguro.
— Está me perguntado ou afirmando que fará isso?
Revirei meus olhos, irritado para o jeito que ele rebatia minhas
inseguranças hoje.
— Estou afirmando — disse, me sentindo mais seguro sobre isso.
— E o que vai fazer se ela disser que também tem medo?
Ele ia mesmo insistir em milhares de perguntas seguidas e complicadas
de responder? Olhei o relógio no meu pulso, vendo que ainda faltavam
vinte minutos para a seção terminar. Merda!
— Se nós dois temos medos, é sinal que tem sentimento dos dois lados,
certo? — questionei, vendo que ele ia rebater novamente. Antes que ele
pudesse abrir a boca, voltei a falar. — Foi só retórica! — o adverti irritado.
— A gente pode pensar numa forma de resolver isso junto, talvez. Eu
ficaria mais seguro se tivesse certeza de que ela sente algo além de desejo
por mim. Porque com certeza sinto algo além de desejo por ela.
— E você acha que isso que acabou de descrever é uma atitude egoísta?
— perguntou por fim, erguendo sua sobrancelha ironicamente.
— Não — concluí, satisfeito com o resultado daquela discussão, mesmo
que tivesse me irritado com ele antes.
10 de agosto de 2019
Eu estava de férias a duas semanas, e por duas semanas eu estive todos
os dias na ONG. Existiam alguns motivos para isso; Triss adorava estar na
ONG; Olívia e Liah estavam sempre ocupadas com alguma porcaria
burocrática, e isso fazia Dinna sempre pedir ajuda desesperada para mim ou
para Ethan e Tommy; Mia também esteve bastante aqui nos últimos dias.
Mas no fim, eu sabia que tudo isso era desculpa para estar mais perto de
Liah.
Não dava para dizer que a gente tinha uma relação perfeita, porque Liah
e eu continuávamos brigando por tudo. Qualquer opinião diferente era
motivo de implicância dela ou minha. Mas eu gostava de vê-la irritada, não
tinha muito o que fazer em relação a isso.
— Como você vai comemorar seu aniversário? — Olívia chamou a
atenção de Liah, sentando ao meu lado em uma das mesas do Republic.
Era a primeira vez que vinhamos aqui desde que nos acertamos, e por
acaso, nas últimas vezes que viemos nos beijamos como loucos.
— Mia vai fazer a festa dela no próximo sábado, e provavelmente vai
acabar tarde — Liah tentou fugir do assunto.
— Não foi isso que perguntei — Olie reclamou, me encarando em
seguida.
— O que foi? — perguntei sem entender seu olhar ameaçador.
— Pode fazer o favor de convencê-la a comemorar com a gente? — a
morena pediu ansiosa.
Assim como eu, Liah claramente não gostava de comemorar seu
aniversário. Eu a entendia melhor que qualquer um, por isso jamais a
pressionaria daquele jeito, ainda mais sabendo o tipo de tortura psicológica
que Olívia era capaz de fazer.
— Você quer comemorar seu aniversário com eles? — perguntei a ela
erguendo uma sobrancelha.
— Não! — Liah respondeu seca.
— Ela não quer — avisei a Olívia que nos encarava de boca aberta.
— Isso é ridículo, sabia? — ela reclamou, levantando-se exasperada. —
Vocês dois juntos é a coisa mais ridícula que já vi — a garota acusou e saiu
batendo o pé.
— Vou tentar controlar a fera — Ethan levantou rindo, indo atrás da
garota.
— Não era ela que passava os dias falando que vocês deveriam ficar
juntos? — Evie sorriu, reprovando o drama exagerado de Olie.
— Sabe o que eu acho? — Karol se levantou, dando a volta na mesa e
puxando Liah pelo pulso. — Que a gente deveria começar a comemorar
agora. Vamos dançar.
No caminho, Karol também agarrou o braço de Evie, puxando as duas
com ela para o espaço pequeno e abarrotado de gente dançando perto do
palco.
Suspirei, rendido pela visão da mulher loira que tomava todos os meus
pensamentos. Liah era linda pra caralho, e hoje devia estar numa vibe mais
fechada já que voltou a aparecer toda de preto, com a porra do top preto que
me deixava quase insano perto dela.
— Você está tão ferrado — Tommy começou a rir, sentado a minha
frente. — Sério, nunca te vi olhar assim nem para a Camille.
— Você tinha que estragar minha noite falando de fantasma? —
reclamei, mas não consegui evitar um sorriso. Liah estava mesmo me
fazendo sentir coisas que jamais tinha sentido antes, nem por Camille. E
olha que ficamos juntos por anos. Levantei da mesa decidido a pegar uma
cerveja. Por sorte, hoje não estava dirigindo. — Vou pegar uma cerveja,
você quer?
Tommy negou com a cabeça, já saindo da mesa. Provavelmente ia correr
atrás de mulher agora que estava sozinho. Saí em direção ao balcão e passei
perto de onde as meninas estavam no caminho, tentando não surtar pela
atenção que sei que Liah e as meninas tinham sobre elas. Alguém tocou
meu ombro assim que abri a long neck no bar. Olhei para trás vendo Gabe
parado ao meu lado.
— E aí? — ele me cumprimentou com um tapinha nas costas. — Essa
garota fica mais gata a cada noite que a vejo aqui — disse, encarando as
meninas.
Levei alguns segundos para perceber que ele estava falando de Liah.
— Então… — comecei desconcertado, lembrando o que havia dito a ele
quando me perguntou sobre a Liah a primeira vez. — Ela não está
sozinha…
— Sério? Ela está namorando? — perguntou sem tirar os olhos dela.
Senti o incomodo repentino por ver aquela cena.
— Namorando?
A gente estava?
Nunca falamos sobre isso de verdade.
— Se ela não está namorando, talvez não tenha exclusividade — Gabe
apertou os olhos no exato momento que Liah virou de costas, rebolando
com Karol.
E porra! Eu nem lembrava mais a última vez que senti ciúme de alguém
na vida. Provavelmente foi em algum momento da minha relação
conturbada com Camille, mas não chegava nem perto do que eu estava
sentindo agora.
— Porra, Gabe! — entrei na frente dele, tampando totalmente sua visão.
— Tem exclusividade sim. Pode ter certeza que tem. E essa exclusividade é
minha, entendeu?
Gabe me olhou assustado, finalmente desistindo de olhar a pista de
dança.
— Achei que você tinha dito que você e ela nunca…
— Eu sei o que eu disse — reclamei. — E estou pagando a língua tem
um tempo já.
— Foi mal, cara. Não queria olhar pra sua mulher. — pediu, estendendo
as mãos em frente ao peito em rendição. — Não está mais aqui quem falou.
Suspirei resignado, puto da vida pelo sentimento filho da puta de ver
outro homem olhando para o que era meu.
Liah é minha, não é?
— Vocês só andam com mulheres gatas pra porra, é até difícil saber se
são só amigos mesmo — Gabe soltou de repente, rindo em minha direção.
— Sinceramente, sinto te informar que estão todas fora dos seus limites.
Evie e Karol são gays. E se engraçar com Olívia te traria um problema que
não é comigo. — avisei sincero, começando a me irritar com a maneira que
ele falava das meninas. Elas não eram pedaços de carne.
Gabe me lançou um sorriso falsamente triste antes de me dar outro
tapinha nas costas e sumir na multidão. Cuzão!
O pior de tudo era perceber que Liah e eu nunca conversamos sobre
exclusividade. Falamos que deixaríamos tudo acontecer com calma, mas
nunca colocamos limites ou regras nessa relação.
Sem pensar muito, larguei a cerveja no balcão, caminhando a passos
rápidos até Liah na pista. A garota arregalou os olhos quando me viu parado
a sua frente, e sem dar tempo para qualquer questionamento, puxei seu
pulso pelo salão do Republic até o corredor dos banheiros.
— O que houve? — perguntou assim que me movi para colar seu corpo a
parede. E sem dar tempo para mais nada, a beijei como um louco.
Liah soltou um gemido abafado contra minha boca pela surpresa do meu
gesto afobado. Agitado, desci minha mão pela cintura exposta, sentindo a
carne macia e quente dela. Eu estava perdendo meu juízo por causa dela,
perdendo toda a minha sanidade.
Enfiei minha língua em sua boca, sentindo o gosto doce de algum drink
que ela havia bebido. Liah mordeu meu lábio inferior, puxando-o entre seus
dentes enquanto enfiava as mãos pequenas por dentro da minha camisa.
Porra. Puxei seus cabelos, virando sua cabeça mais para trás, descendo
minha boca pelo pescoço cheiroso.
— O que está acontecendo? — ela perguntou ofegante no meu ouvido.
— A gente é exclusivo! — afirmei ainda beijando seu pescoço, ouvindo
um risinho escapar dela.
— Eu deveria achar que não éramos? — perguntou segurando minha
cabeça com as duas mãos para me olhar nos olhos.
— A gente nunca falou sobre isso — disse, movendo minhas mãos de
volta para a pele de sua cintura fina.
— OK! — ela respondeu desconfiada. — Preciso me preocupar que não
tenha sido exclusivo até agora?
— Claro que não. Só queria deixar claro pra você que, enquanto estiver
comigo, não gostaria que outro homem te tocasse — confessei.
— E por que você se preocupou com isso agora? — Liah franziu a testa,
entrelaçando os braços no meu pescoço, me puxando mais para perto de
novo. — Você está com ciúme? — perguntou divertida.
— Se você visse outra mulher me secando, não sentiria também? —
devolvi a pergunta, envergonhado por não conseguir negar.
— Com certeza não gostaria nada de ver essa cena — ela respondeu
pensativa, me encarando. — Mas quem estava me secando? — perguntou
apertando os olhos.
Suspirei, pensando se respondia ou não aquela pergunta.
— Deixa isso pra lá — tive medo dela reagir de alguma forma que
indicasse que gostava de estar sendo secada pelo Gabe. Eles ficaram
conversando por horas naquela noite, meses atrás. Liah sorriu, mas sacudiu
a cabeça me repreendendo. Sorri de volta, tomando sua boca novamente. —
Ainda odeia esse corredor? — perguntei sorrindo maliciosamente ao
lembrar de quando Liah disse aquilo.
— Acho que você vai precisar me beijar um pouco mais aqui pra eu ter
certeza — brincou, voltando a me olhar daquele jeito que deveria ser
proibido.
— Liah, Liah. A gente pode começar a incluir os corredores do Republic
na lista de lugares íntimos? — provoquei, apertando sua cintura.
Liah puxou minha camisa, voltando a me beijar provocativa. Pelo visto,
as coisas seriam sempre assim entre a gente por muito tempo. Intensas e
complicadas.
12 de agosto de 2019
Segunda-feira já estava de volta a minha rotina agitada. A manhã na App
foi um caos, cheia de contratos intermináveis, pedidos de orçamento e
análise, milhares de reuniões que podiam ter sido resolvidas num e-mail, e
isso me deixava puto para caralho. Precisei sair correndo da App para
chegar a tempo de dar minha aula na ONG. Dessa vez, oficialmente como
professor.
Liah tinha me incluído na grade do terceiro ano do ensino médio para dar
uma aula de tecnologia. Nunca me imaginei nessa posição antes, mas até
que curtia a ideia. A aula foi corrida e por um milagre divino, todos os
alunos no auge da adolescência pareciam ter gostado de mim. No fim da
aula, finalmente tive um tempo para encontrar Liah na sala dela.
— Como foi? — me perguntou sorrindo assim que atravessei a porta.
— Foi ótimo — passei meus braços pela cintura pequena, subindo seu
corpo sem nenhuma dificuldade, a colocando sentada sobre a mesa de
madeira. — Estava com saudade de você.
Desci minha boca sobre a dela devagar, sentindo seus lábios macios e
doces antes de enfiar minha língua em sua boca com vontade. Nós até
aproveitávamos algum tempo no hotel dela, mas Liah estava negando todos
os meus pedidos para ir até minha casa desde que soube da bronca que tia
Soph me deu depois que a flagrou na minha cozinha, vestindo minha boxer.
O problema é que eu estava praticamente em abstinência da sensação que
só tinha quando estava dentro dela.
— Nathan, você não pode me beijar assim aqui — disse rindo enquanto
tentava me afastar dela. — Se alguém entra nessa sala…
— Liah, finalmente te encontrei aqui…
Liah se separou de mim rapidamente, me fazendo sentir a ausência da
sua boca na minha. Virei devagar ao ver os olhos arregalados dela para
quem quer que fosse que estivesse na porta.
— O que foi? — perguntei baixinho, antes de virar.
— Era por isso que estava me evitando todo esse tempo, então?
O médico que vivia aparecendo aqui mantinha a expressão séria, os
olhos demonstrando sua chateação ao ver a garota ainda abraçada a mim.
— Sério que você ainda não desistiu? — reclamei sem conter um riso
desacreditado.
Liah soltou minha cintura, se aproximando cuidadosamente dele. Seu
desconforto era bem evidente.
— Raphael, eu realmente sinto muito. Já faz algum tempo que venho
tentando te falar que não ia rolar nada…
— Tudo bem, Liah — o homem a interrompeu, sacudindo a cabeça. —
Não precisa me explicar, acho que só não quis enxergar o que era óbvio.
Meu pai batalhou muito para fundar o hospital, e sempre me ensinou a não
desistir do que queria, mas…
Milhares de sirenes vermelhas foram acionadas no meu cérebro, eu
conseguia enxergar a boca dele se movendo, proferindo palavras avulsas,
mas minha cabeça estava longe, pensando na informação mal digerida de
segundos atrás.
— Quem é seu pai? — interrompi a fala excessiva dele. — De que
hospital você está falando?
Raphael me olhou confuso e irritado pelo meu corte repentino.
— Mathew Connor. Hospital Metropolitano Connor. — respondeu como
se fosse óbvio.
— Nathan, o que houve? — Liah questionou confusa ao meu lado,
vendo o choque transpassar meu rosto.
Agir no impulso era algo normal no meu dia a dia, mas estava bem
lúcido quando me movi até estar quase colado no cara que era bem mais
baixo que eu.
— Some daqui — precisei apertar minhas mãos em punho com toda a
minha força, me controlando para não socar a cara dele. — Se eu te vir aqui
de novo, atrás dela, não vou responder por mim.
— Vai com calma. Ela disse que não vai rolar. — disse, levantando as
mãos. Embora sua fala fosse amigável, seus olhos diziam outra coisa
quando ele sorriu ironicamente para mim. — Está com medo de não dar
conta dela?
— O que está acontecendo aqui? — ouvi Ethan perguntar da porta.
Tommy estava logo atrás dele.
— Eu sei o que você está tentando fazer — avisei, andando mais para
frente, forçando Raphael a andar para trás até estar totalmente fora da sala.
— Sei onde você e seu pai estão metidos.
Raphael arregalou os olhos, abalado pela minha informação. Sempre
achei estranho essa insistência dele em se aproximar de Liah, mesmo
quando era óbvio que ela o evitava. A perseguição era real, Raphael só
queria estar próximo para manipulá-la.
— Do que você tá falando? — perguntou assustado, embora fosse
incapaz de negar.
— Nathan — Ethan chamou minha atenção.
Olhei em volta vendo que tinha muita gente no corredor, incluindo
funcionários e jovens da ONG, encarando curiosos a cena que se
desenrolava.
— Ele é filho do Mathew Connor — disse, sabendo que era suficiente
para que Tommy e Ethan entendessem a situação.
Entreguei uma cópia do relatório de Carl a eles, para que eles soubessem
exatamente de quem defender as meninas quando eu não estivesse por
perto.
Ethan parou ao meu lado, cruzando os braços e fechando a cara para ele,
enquanto Tommy tirava Liah de perto, porque ela estava quase grudada em
mim tentando me afastar dele.
— O que isso importa? — Raphael perguntou nervoso.
Sem paciência, puxei-o pela gola da blusa, empurrando seu corpo na
parede. Involuntariamente, apontei o dedo na cara dele, puxando o ar com
força para não socá-lo.
— Não me faz de idiota, Raphael — avisei.
— Eu só queria conversar com a Liah, eu realmente acho que ela e eu
poderíamos dar certo…
— A Liah é minha. Escutou bem? Minha! Se você aparecer aqui de
novo, eu não vou tentar me controlar como estou fazendo agora. Fica longe
dela, e avisa a sua corja que é pra fazer o mesmo, ou eu vou acabar com
cada um de vocês.
Mesmo abalado pela ameaça, o homem riu descaradamente, ainda se
debatendo para soltar o corpo do meu aperto em seu pescoço.
— Você tem alguma ideia do que essa sua ameaça representa? Você é
sobrinho daquele investigador, não é?
— É exatamente por isso que você deveria ter o mínimo de cuidado. —
Já estava afundado até o pescoço nessa merda, não tinha porque me sentir
ameaçado por ele agora. — Some daqui!
Voltei a puxar sua camisa, jogando seu corpo no corredor. Raphael se
escorou na parede para não cair, encarando a mim e os caras enfurecido.
Consternado, ajeitou a blusa e ainda nos lançou alguns olhares raivosos
antes de sair pelo corredor.
— Eu não sei porque ainda me surpreendo com essas merdas que vocês
fazem aqui, mas alguém pode me explicar o que foi isso? — Liah reclamou,
dispersando a multidão que se formava no corredor. — E que porra
territorialista foi essa? — cobrou, me encarando furiosa.
— Mathew Connor está envolvido nas merdas dessa cidade e no mesmo
esquema da sua avó. Ele e o filho.
— Ele devia estar atrás de você pra tentar te usar de alguma forma —
Ethan completou a explicação e Liah finalmente pareceu entender, mas
virou-se para mim em seguida.
— Sua? — perguntou me encarando séria. — Desde quando virei posse
de alguém?
— Sério que de tudo que falei é com isso que está preocupada, Liah?
— Estou saindo fora — Ethan declarou, puxando Tommy junto pelo
braço.
Liah continuou me encarando, esperando uma resposta que eu não tinha.
Pelo menos, nada além de 'sim, você é minha'.
— Eu tô esperando, Nathan.
— O que quer que eu diga? É uma porra territorialista mesmo. Nunca
disse que eu era perfeito, e enquanto você quiser ficar comigo, vou fazer
questão de dizer pra qualquer babaca que se aproximar de você com
segundas intenções que você é minha, sim. Do mesmo jeito que sou seu.
— Vai querer mijar em mim também? — Seu sorriso de lado entregava
que ela não ia mais brigar comigo por causa disso. — Já que está querendo
marcar território mesmo.
Sacudi a cabeça, reprovando sua brincadeira boba. Era impossível não
sorrir para ela daquela jeito, linda, irritada e com as maçãs do rosto coradas
pela raiva.
— Tem outras formas bem melhores de marcar território — brinquei,
empurrando seu corpo de volta para a sala, fechando a porta com o pé logo
que passamos. — É sério, eu sabia que ele estar atrás de você desse jeito era
bem estranho.
— Eu sei — Liah suspirou, afundando o rosto no meu peito. — Nunca
imaginei que ele poderia estar envolvido nisso. Me sinto tão boba por não
perceber.
— Você só tem o hábito de enxergar o melhor nas pessoas — afaguei
seus cabelos. — Menos comigo, você costumava preferir enxergar o pior
em mim.
Liah levantou os olhos, me olhando de lado com um sorriso travesso no
rosto. Seus braços envolveram meu pescoço enquanto apoiava o queixo no
meu peito.
— Você não ficava muito atrás, não é? Quantas vezes mesmo você disse
que destruí sua vida.
— Ah, mas você destruiu mesmo — apertei meus olhos, segurando seu
queixo e apertando de leve sem conter um sorriso aberto. — Eu tinha
planos pra permanecer solteiro e aproveitar a vida assim por um bom
tempo, sabia?
— A culpa é minha, então, que você é emocionado demais e se apega
fácil?
Deixei um pequeno beijo em seus lábios, sabendo que ela tinha toda
razão, eu estava totalmente apegado. Em pouco tempo, aquela mulher tinha
feito uma bagunça enorme em mim.
— A culpa é sua sim. Ninguém mandou ser linda desse jeito, ter essa
boquinha esperta e esse jeito nervosinho. É como se tivessem pegado todos
os meus fracos e colocado em você. É impossível resistir, e olha que tentei
bastante.
Continuamos sorrindo abertamente um para o outro, como dois bobos
apaixonados. Apaixonado? Senti meu sorriso morrer a medida que a certeza
sobre aquilo me abateu. Era cedo demais, nos conhecíamos pouco, mas me
sentia totalmente perdido no que sentia por ela.
— O que foi? — perguntou ao me ver sério de repente.
— Tenho medo disso, Liah — confessei, pensando que era melhor ser
sincero com ela. — Da intensidade do que eu sinto. Tudo sobre você
sempre foi intenso, bom ou ruim, sempre foi intenso.
Me separei dela, sentindo a ansiedade tomar minha cabeça. Fui até o sofá
no canto da sala, sentando na beirada e apoiei os cotovelos sobre meus
joelhos.
— Eu sinto o mesmo, Nate — Liah contou, sentando-se ao meu lado. —
Tenho medo de você se dar conta de que destruí sua vida, e perder todo o
interesse em mim — confessou de cabeça baixa.
— Eu não penso assim já tem um tempo. — E era verdade. Não tinha
mais um pingo de ressentimento em mim em relação a ela e o que
aconteceu no passado. — Estou começando a achar que a gente devia
mesmo ter se conhecido de um jeito ou de outro.
Liah deu de ombros, sorrindo para mim e descendo a cabeça para
descansar sobre meu ombro. Passei meus, braço envolta dela, beijando o
topo da sua cabeça.
— E não é que a versão fofa e educada do Nathan existe mesmo? — ela
brincou, apertando seus braços em volta de mim.
— Com você, não teria como não existir, Liah.
17 de agosto de 2019
Revirei os olhos para a mensagem ridícula de Elise. Ela não iria embora
mesmo?
Desde que Triss chegou na minha casa, minha tia estava aparecendo
direto por lá, ela ou Mia sempre ficavam com Triss nas poucas vezes que
fui para o Republic, mas ela nunca falava sobre a irmã ainda estar por aqui.
Parei em frente a grande estante de ferro que fechava quase toda a parede
lateral, ao lado da escada. Coleções de revistas em quadrinho e livros
fantasiosos enchiam algumas prateleiras; Game of Trones; Senhor dos
Anéis e até Harry Potter estavam ali. Numa prateleira mais baixa tinham
alguns bonecos em miniatura do Star Wars, incluindo o carinha verde que
eu não sabia o nome. Peguei o boneco, segurando uma gargalhada.
— Vai em frente. Pode rir, Liah. — Nathan me olhou divertido, apoiando
um ombro na coluna de ferro da estante.
— Meu Deus! você é Nerd mesmo. — Não consegui segurar o riso.
— Eu avisei que era — ele estreitou os olhos, tirando o bonequinho
verde da minha mão. — Cuidado com isso.
Dei mais uma olhada em volta; os quadros da Marvel e DC que
adornavam as paredes de tijolos da grande sala; as decorações que eram
sempre algum objeto de filme nerd ou bonecos de personagens. Mas apesar
das nerdisses dele, o loft lembrava muito o estilo da ONG. Os móveis
modernos, mesclados entre preto e um marrom avermelhado, deixavam o
lugar ainda mais bonito.
Olhei para o homem ainda parado a minha frente, de braços cruzados,
esperando uma reação minha. Era divertido pensar que o cara que me tirava
do sério, super grosso e mal-humorado, tinha um lado assim, que curtia
filmes de heróis e histórias em quadrinhos.
Apesar de sua cara emburrada, Nate segurava um sorriso engraçado
quando veio até mim, puxando minha mão entre as dele.
— Tenho uma coisa pra você.
Subi meus olhos para o seu rosto surpresa, vendo-o tirar um saquinho
aveludado do bolso da calça. A embalagem pequena era elegante e
sofisticada. Nathan abriu o lacinho virando o saquinho em sua mão. Uma
correntinha dourada caiu na sua palma e ele a esticou no alto em frente aos
meus olhos, me mostrando o pingente na ponta.
— Nathan… — Segurei o pingente entre meus dedos, e não podia mais
conter o sorriso enorme que insistiu em aparecer no meu rosto. — Não
precisava disso…
— Eu não tinha ideia do que poderia te dar de presente, mas vi isso
numa vitrine quando fui ao shopping com Triss e Mia semana passada. É
como se estivesse ali me esperando passar — ele disse sorrindo.
Nathan empurrou meu ombro de leve, pedindo que me virasse de costas
para ele. Seus dedos correram delicadamente meu pescoço, tirando meu
cabelo do caminho para soltar a correntinha pendurada e prender o fecho.
Virei de frente para ele, segurando o pingente com os dedos e sorrindo
de um jeito bobo. Olhei para baixo e encarei a flor de Íris pendurada no
meu pescoço, pensando que não poderia ser mais perfeito.
— Obrigada, Nate. — Ele sorriu de volta. Aquele sorriso de canto que
deixava a covinha dele aparecendo de um lado só.
Senti meu coração acelerar. Como fomos de inimigos àquilo tão rápido?
Fazia o que… um mês desde que transamos na loja da minha avó? Mesmo
assim, aquele sentimento que me tomava mais a cada dia, era sufocante.
Existia um magnetismo muito forte entre mim e ele, e isso me assustava.
— Você não acha que isso entre a gente está errado? — perguntei sem
graça.
Nathan me olhou de um jeito estranho.
— Como assim?
— A gente não sabe quase nada um do outro. Eu não sei o que você
gosta de fazer no seu tempo livre, o que gosta de comer, que música gosta
de escutar ou que filme gosta de assistir. Você não sabia sobre minha mania
de me vestir de acordo com meu humor até pouco tempo atrás, o que
qualquer um sabe sobre mim. Quero dizer, que tipo de sentimento é esse?
— parei por um segundo, puxando o ar. — A gente não se conhece de
verdade…
Talvez fosse só meu medo gritando agora, mas até que ponto aquele
sentimento poderia chegar, sem beirar o limite da insanidade? Nathan e eu
nos conhecemos em uma situação, no mínimo, catastrófica. Causei impacto
suficiente na vida dele para que nos tratássemos como inimigos até o fim de
nossos dias. No entanto, estava aqui, no loft que ele morava, disposta a me
perder mais uma vez nele.
Nathan mordeu os lábios suspirando enquanto desencostava da estante e
sentava num dos sofás de tecido cinza mega confortáveis daquela sala.
Ele se ajeitou no sofá, chegando o corpo para frente para apoiar os
cotovelos sobre os joelhos.
— Meses atrás, quando aceitei dar o curso na ONG, pedi a Ethan que me
levasse lá. Existe uma coisa lá dentro impossível de explicar; você se sente
parte de algo grande e importante. Aqueles jovens sabem que tem uma vida
e oportunidades que talvez não tivessem fora dali, nem se estivessem com
suas famílias. A parte mais frágil da porra do muro que ergui em relação a
você, caiu naquele dia sem que eu me desse conta disso. Caiu porque existia
uma parte sua, incontestável, que dava vida àquele lugar. — Nate subiu os
olhos me encarando profundamente. — Dá pra enxergar você em cada
canto daquela ONG, em cada sala de aula, em cada quarto, em cada uma
daquelas crianças. — Seu peito subiu e desceu numa exalação profunda. —
Eu não sei o que você gosta de comer ou o que gosta de vestir, mas sei que
você faria qualquer coisa pra manter a ONG funcionando. Sei que você
daria a roupa do seu corpo pra uma daquelas crianças se precisasse. Sei que
você usaria até o último centavo do seu dinheiro para ajudar alguém. Sei de
tudo isso, porque todos os dias eu vejo como você se dedica ao que faz. A
gente pode descobrir essas pequenas coisas um do outro no dia a dia, mas
conheço sua essência. Isso não deveria importar mais?
Nos encaramos por longos segundos. Meu peito subindo e descendo
mais rápido.
É loucura demais se apaixonar por alguém tão rápido.
— Nathan — minha voz soou rouca e entrecortada. — Essa é só a parte
bonita. Existe uma parte de mim, aquela que se veste de preto e usa
maquiagem pesada, que é totalmente quebrada.
Um brilho triste tomou conta do azul intenso dos olhos dele.
— Mais quebrada que eu?
Não. Nathan era quebrado de formas que eu nunca entenderia, sua vida
era uma coleção de catástrofes. Mas eu tinha sim uma parte quebrada.
Quebrada de uma forma que ele, homem, jamais entenderia também.
— Tem dias que as lembranças daquela noite me afetam mais. Nesses
dias posso jurar que minha dor é a pior do mundo. Nesses momentos, Nate,
não existe sanidade pra entender que existem problemas maiores que o
meu.
Caminhei até a mesa de madeira redonda baixa no centro da sala,
sentando na superfície, de frente para Nathan no sofá.
— Aquele dia no Republic, era um desses dias? — Nathan engoliu seco,
se esforçando para manter seus olhos nos meus.
Assenti. Aquele bilhete com o pedido de suborno me fez lembrar da
forma como pessoas com algum tipo de poder, e isso inclui maior força
física, são capazes de tomar qualquer coisa das outras sem pensar na parte
que vão deixar quebrada para trás.
— Quando uma coisa assim acontece com uma mulher, uma parte da
nossa alma se quebra. — Quebrei nossa conexão. Detestava ver qualquer
resquício de pena no olhar das pessoas. Foquei nos dedos das minhas mãos
antes de continuar. — Me tiraram a pior coisa que podiam tirar aquela noite.
Eu enxergava a vida como a coisa mais maravilhosa que existia. Mesmo
com a morte da minha mãe, eu conseguia ver como a vida era incrível em
cada coisa que existia. Mas quando acordei pela manhã, eu enxergava
maldade em tudo. Literalmente, levaram embora minha inocência aquele
dia.
Voltei a encará-lo, vendo seus olhos brilharem pelo excesso de água que
se acumulava ali. Ele estava chorando? Nathan afundou o rosto nas palmas
das mãos, sacudindo a cabeça enquanto esfregava os olhos.
— Se eu pudesse, mataria quem fez isso com você — sua voz soou
ameaçadora.
Nathan levantou a cabeça me olhando consternado.
— Eu mataria, se tivesse a chance — confessei.
Nathan se colocou de pé a minha frente, estendendo a mão para mim.
Aceitei, levantando da mesa. Seus braços me envolveram e permiti que
minha cabeça descansasse em seu peito e aspirei seu cheiro amadeirado.
Aquele cheiro me trazia uma sensação gostosa de segurança.
— Eu prometo, Liah. — Seus lábios macios deixaram um beijo no topo
da minha cabeça. — Nunca mais vou deixar alguém te fazer mal.
Apertei meus braços em volta dele.
Nunca mais.
Isso me remetia àquele sentimento sufocante. Será que a gente era para
sempre, afinal?
Decidida a sair do assunto pesado, soltei a única coisa que iria distraí-lo
agora.
— Quero ver seu quarto — sorri maliciosa com o rosto colado em seu
peito.
Nathan me afastou um pouco, procurando meus olhos, mantendo seu
semblante sério. Por um instante, pensei que estivesse tentando entender
como aquilo me afetava e se tinha um sinal verde para subirmos.
— A gente pode só dormir… — neguei com a cabeça, interrompendo
sua frase.
— E perder a chance de transar na sua colcha de sabre de luz? — arqueei
uma sobrancelha, passando os braços pelo seu pescoço.
— Eu não tenho uma colcha de sabre de luz — avisou, me tirando do
chão quando passou um dos braços pelas minhas costas e outro por trás dos
meus joelhos. Dei um gritinho assustado, percebendo a facilidade com que
me levantou.
Nathan subiu os degraus de madeira, me soltando assim que alcançou o
piso lá em cima. Seu quarto não tinha nem dez por cento das nerdisses lá de
baixo. Era apenas uma cama king size no meio do piso de madeira com as
mesas de cabeceira ao lado. No canto da parede no fundo, tinha a entrada
para o que parecia um closet.
— Nada de esquisitices nerds? — sorri para ele.
Ele negou com a cabeça, andando perigosamente até mim. Dei dois
passos para trás, sentindo meus joelhos colarem no colchão alto atrás de
mim.
— Você quer mesmo saber mais sobre mim? — Nathan espalmou uma
mão na curva entre minhas costas e minha bunda, me puxando para ele.
— Quero — respondi rápido, afetada pelo calor de seu corpo.
Sua cabeça se encaixou na curva do meu pescoço. Senti seus lábios se
entreabrirem e o hálito quente soprar por trás da minha orelha. Estremeci.
— O que quer saber? — perguntou baixo em meu ouvido.
Inclinei a cabeça, dando mais acesso a ele. Uma risada leve atingiu meus
ouvidos.
— Qual sua cor favorita? — Foi ele mesmo quem perguntou.
Cerrei os olhos confusa. Ele ia mesmo fazer isso? Me fazer pensar e
responder perguntas nesse momento? Nathan adorava fazer essas porcarias
de jogos.
Apertei meus dedos na pele da cintura dele, deixando minhas unhas
rasparem de leve. Nathan se afastou.
— Nathaniel, se você começar com essa merda de parar porque não
respondi alguma coisa, eu juro que vou me trancar no seu banheiro e me
tocar até gozar. E vou gemer alto o suficiente pra você escutar.
Nathan engoliu seco, abrindo um sorriso quase predatório.
— A gente deixa a brincadeira pra depois — avisou rindo.
Seus braços voltaram a me puxar, dessa vez girando nossos corpos até
que eu caísse sobre ele no colchão macio. Encaixei minhas pernas ao lado
de seu quadril, permitindo que nos encaixássemos melhor. Nathan capturou
meus lábios num beijo intenso. Sem perder tempo, levou suas mãos a minha
bunda, por baixo do vestido, me esfregando contra seu jeans. Deixei
escapar um gemido sufocado pela sua boca.
— Quero ir devagar — avisou, diminuindo a intensidade com que a
gente se beijava e virando nossos corpos sobre a cama, ficando por cima de
mim. Nate deixou um beijo na minha testa e depois um sobre cada lado da
minha bochecha. — Eu quero ser o cara que vai apagar todas essas marcas
ruins do seu corpo e da sua alma, Liah. — Meu coração batia
freneticamente e logo perdi o ar com a maneira que ele me olhava.
Nathan tinha o hábito de tornar as coisas entre a gente sempre muito
intensas. Sem me dar tempo para pensar numa resposta, levantou da cama
puxando meu vestido para cima e jogando em algum lugar no chão do
quarto. Tirou sua camisa, a calça e a cueca muito rápido, voltando para
cima de mim.
Sua boca voltou para minha, dessa vez, num beijo mais calmo e cheio de
sentimento. Suas mãos exploravam todo meu corpo com calma e suavidade.
— Eu quero te fazer esquecer cada segundo daquela noite. Me diz o que
preciso fazer para que só exista você e eu na sua cabeça — pediu com a voz
rouca, enquanto sua língua brincava no meu pescoço.
Você não precisa fazer nada, Nate.
Ele já consumia meu corpo e minha mente de um jeito inexplicável.
Quando Nathan e eu estávamos juntos, nada mais no mundo existia.
— Você já faz isso, Nate. — Usei toda minha força para nos virar na
cama, ficando por cima dele de novo. Olhei para baixo, vendo que já
estávamos quase encaixados. — Camisinha? — Mordi a bochecha, sorrindo
de lado para ele. Nathan olhou para a gaveta da mesinha ao lado da cama,
arregalando os olhos.
— Porra! Eu não tenho aqui. — esticou o braço abrindo a gaveta
totalmente vazia. — Levei tudo para o apartamento novo.
— Na sua carteira? — Me joguei ao seu lado na cama, sentindo a
frustração começar a crescer em mim.
— Usei no banheiro na minha tia, mais cedo — explicou suspirando.
Isso não implicaria em muita coisa se eu pudesse confiar nele. Eu usava
DIU, sempre usei. Não ia engravidar.
— Você fez algum exame recente? — perguntei preocupada.
— Não. — Nathan virou a cabeça de lado, me olhando confuso.
— Uso DIU11. Coloquei depois do que aconteceu… — avisei.
— Ah! — sua expressão de compreensão indicava que ele tinha
entendido meu ponto.
Nathan voltou a me puxar para cima dele, sorrindo abertamente.
— A última vez que transei antes de você, foi exatamente no dia que te
conheci — confessou.
Arregalei meus olhos, espantada com a informação. Isso tinha quase uns
sete meses.
Nathan riu da minha cara assustada, me ajeitando em seu colo. Suas
mãos puxaram minhas pernas mais para cima, me encaixando perfeitamente
sobre ele.
— Pois é, garota. Parece que você tomou conta de tudo mesmo, não foi?
Desde aquela maldita primeira noite.
Nathan mal acabou de falar e se lançou contra mim. Uma única investida
firme me fazendo estremecer. Pele com pele. Porra!
— Nate! — respirei fundo, contendo um grito no fundo da garganta.
Ele voltou a se movimentar, dessa vez estabelecendo um ritmo constante,
mas calmo. Aproveitando a sensação do atrito causado pelo contato de
nossas peles. Suas mãos apertavam firmemente as laterais do meu quadril,
me ajudando com os movimentos para cima e para baixo.
Ok. A gente precisa fazer isso mais vezes na cama.
Apoiei as mãos na cabeceira de madeira, usando todo meu esforço para
manter meu corpo erguido, ainda me movimentando sobre ele. Nathan me
deixava fraca com a forma que se movia em baixo de mim, atingindo algum
ponto que me fazia revirar os olhos toda vez que voltava para dentro.
— Sentir você assim é um caminho sem volta — um sorriso malicioso
brincou nos lábios rosados. — É como dar doce a uma criança. Vicia.
Mordi os lábios, sentindo ele aumentar um pouco mais o ritmo de suas
investidas. Sorri travessa, abaixando a cabeça para passar a língua sobre os
lábios dele e depois deixar uma pequena mordida. De propósito, fiz questão
de contrair meus músculos internos em volta dele. Agora que conseguia
controlar um pouco, adorava usar isso para provocar. Ele fechou os olhos,
controlando sua respiração sem parar seus movimentos. Quando tornou a
abrir, um brilho perverso me perfurou.
Em um único movimento, Nathan nos virou na cama, me colocando de
bruços dessa vez. Perdi o ar quando voltou a entrar em mim, puxando meu
cabelo até que tivesse acesso ao meu pescoço. Cacete.
— O que eu faço com você? — sua voz era só um sussurro.
Embora fosse uma pergunta retórica, eu tinha a resposta perfeita para ela.
— Você sempre me faz esquecer, Nathan — contei com a voz chorosa
pelo prazer intenso que sentia. — Toda vez que estamos juntos, eu não
consigo pensar em nada além de você e em como você me faz sentir.
— Porra! — Nate rosnou em meu ouvido, aumentando ainda mais seu
ritmo. Seus lábios passaram a atacar meu pescoço e minha nuca.
Quando sua respiração ficou descompassada, chegamos os dois juntos ao
ápice. Eu podia senti-lo se despejar dentro de mim, fazendo com que aquele
orgasmo fosse muito mais intenso que todos os outros.
Nathan manteve seus braços em volta de mim, deixando que nossos
corpos caíssem um em cima do outro na cama. Ficamos um tempo assim,
deitados de lado, trocando olhares e alguns carinhos. Observei suas
tatuagens enquanto erguia o corpo, correndo a ponta dos dedos por elas.
— Por que você gosta tanto dessas tatuagens? — sua voz suave chamou
minha atenção depois de um tempo.
Eu realmente gostava. Nathan tinha uma história cheia de desvios, e
ainda assim tinha um coração gigante.
— Elas são parte de você, da sua história — falei enquanto contornava
os traços do leão em suas costas.
Nathan esboçou um leve sorriso, fechando os olhos em seguida. Um
pequeno suspiro escapou de seus lábios.
— Elas escondem marcas que eu quero esquecer, Liah.
Ele já havia me falado sobre isso antes. Toda vez que olhava para elas,
lembrava das marcas por trás. Mas eu acreditava que ele só olhava por uma
perspectiva errada.
— Eu sempre gostei de arte. Toda arte representa um tempo, um espaço
e uma emoção. É isso que eu vejo sempre que olho pra elas. — Voltei a
deitar meu corpo de lado na cama, encarando seus olhos azuis. — Elas são
uma espécie de conexão com todas as versões do Nathan que você já foi.
Representam um tempo da sua vida, uma época onde talvez você quisesse
ser outra pessoa, quando emoções ruins dominavam sua mente. Elas contam
sua história e sua evolução, Nate. — Mesmo deitada, voltei a correr a ponta
dos dedos sobre as chamas avermelhadas em sua costela. — Elas são tão
fortes quanto você é.
Vi seu pomo de adão subir e descer quando engoliu seco, mantendo os
olhos fixos em mim. Nathan virou o corpo de lado, me puxando para dentro
seus braços. Senti seus lábios deixarem um beijo no topo da minha cabeça.
— Às vezes acho que a gente realmente deveria se encontrar. Eu tentei te
odiar até pouco tempo atrás, e agora você enxerga coisas em mim que
chegam a me assustar.
Não contive um sorriso. Eu gostava muito desse lado dele, que me falava
sem ressalvas sobre seus sentimentos. Na verdade, nesses sete meses que a
gente se conhecia, tivemos cerca de um mês agindo civilizadamente um
com o outro. Mesmo assim, eu tinha a sensação de que nos conhecíamos a
séculos.
— Você também acha que parece que a gente se conhece há muito
tempo? — perguntei.
Nathan ficou em silêncio por alguns instantes, acariciando meus cabelos
enquanto minha cabeça descansava em seu ombro.
— Eu namorei a Camille por anos. Acho que nunca tive uma conversa
com ela da mesma forma que tenho com você. Pra mim, a conexão entre
duas pessoas nasce da profundidade e intensidade do que elas mostram uma
pra outra…
Embora suas palavras tenham morrido aí, eu tinha entendido bem o que
ele queria dizer. Desde o dia em que conversamos na ONG, quando a
adoção de Triss saiu, eu tinha me aberto com Nate de uma forma que nunca
fiz na minha vida. Ele sabia de coisas sobre mim que ninguém jamais
soube.
— Você tem razão, Nate. Talvez a gente conheça uma parte muito mais
importante um do outro — assumi.
— Quando alguém perguntar, a gente pode dizer que tem sete meses que
namoramos — brincou, considerando o tempo que a gente se conhecia.
Levantei a cabeça depressa, buscando seus olhos.
— Está colocando um rótulo na gente?
Nathan puxou minha cabeça de volta para seu ombro enquanto sorria
abertamente.
— E se eu estiver? — perguntou depois de alguns segundos.
Eu queria aquele rótulo. Por mais louco que fosse, eu queria estar com
ele de todas as formas possíveis.
Senti seus músculos tensionarem com minha demora. Mordi os lábios,
sabendo que ele me observava. Sorri internamente, imaginando quanto
tempo levaria para que ele perdesse a paciência e surtasse achando que eu
negaria.
Um suspiro exagerado fez seu peito subir mais alto. Nathan bufou
irritado, achando que eu não tinha entendido ou simplesmente ignorado seu
pedido disfarçado. Mas eu estava feliz demais para segurar por muito
tempo, e deixei um riso alto sair dos meus lábios.
Nathan me encarou confuso, apertando os olhos quando percebeu que fiz
de propósito. Ele virou por cima de mim, segurando meus pulsos acima da
minha cabeça contra o colchão.
— Você sabe exatamente como mexer comigo, não é?
Apertei os lábios, tentando ficar séria. Seus lábios desceram sobre os
meus e em pouco tempo já podia sentir o calor dele mais uma vez.
— Só pra constar, você é minha namorada — disse antes de voltar a me
beijar loucamente outra vez.
Em pouco tempo recomeçamos todo aquele ritual de joguinhos e
pegação.
20 de agosto de 2019
Ainda não conseguia entender como a minha vida havia tido tantas
reviravoltas nos últimos meses. Coisas muito boas e muito ruins
aconteceram. Mas aquela sensação de que minha vida era uma montanha-
russa, nunca ia embora. E a cada dia, eu enfrentava um loop novo.
— Eu te avisei que ela não podia mais entrar aqui, Dinna — reclamei
com a mulher atrás do balcão da recepção quando me contou que Camille
esperava na minha sala para falar comigo.
— Liah, foi impossível segurar aquela mulher, ela ia fazer um escândalo
— Dinna explicou, tentando me acalmar.
Ainda bem que Nathan não vinha para a ONG nas terças. Seria outro
caos se ele estivesse aqui e desse de cara com a ex maluca.
— Tudo bem — disse vencida. — Vou ver o que essa garota quer. Olívia
já chegou?
— Ainda não.
— Assim que ela chegar, pede a ela pra ir na minha sala. Talvez eu
precise de ajuda pra não surtar — avisei, já sentindo o peso do dia quando
avancei pelo corredor.
Atravessei minha porta, vendo os cabelos cumpridos pintados da figura
sentada de costas para a porta. Suspirei, largando meu casaco sobre a
poltrona ao lado da porta e seguindo para o meu lugar atrás da mesa.
— Bom dia — disse, evitando encará-la. — Posso saber o que veio fazer
aqui?
— Você e Nathan estão namorando? — perguntou direta, me encarando
com algo que parecia ódio nos olhos.
— Sim, estamos juntos — respondi após encarar a mulher por alguns
segundos. Ela saberia de uma forma ou de outra mesmo.
— Eu avisei que iria ter o Nathan de volta, Lianah. Eu estou quase
conseguindo a adoção de um menininho que acabou de fazer três anos —
revelou orgulhosa. — Nathan vai amar a ideia.
— Você é louca? — Não era possível que ela realmente achava que
Nathan ia gostar disso. — Você precisa de um psiquiatra, Camille — avisei,
me sentindo irritada pela loucura dela.
A maluca levantou-se da cadeira, correndo os dedos pela tela de seu
celular e estendeu o aparelho para mim, me mostrando uma foto. Era um
menininho moreno e de olhos azuis, devia ser a tal criança que ela estava
falando.
— Ele é lindo. E parece com o Nathan até. — Ela suspirou, puxando a
tela para de volta. — Imagina quando ele puder chamar o Leo de filho.
— Leo? — perguntei confusa.
— Esse menino. Ele é de outro abrigo da cidade. Um pouco de dinheiro
sempre resolve tudo por aqui — disse, explicando como conseguiria passar
por cima de sua overdose.
— Você tá subornando autoridades pra adotar uma criança? — perguntei
horrorizada a ela.
— Liah — Olívia chamou da porta, entrando na sala. — O que está
acontecendo aqui?
Camille sorriu para ela, mostrando a mesma foto no celular.
— Quem é essa criança?
— Eu vou adotar esse menino — Camille contou nervosa. — Olie, você
é amiga dele a tanto tempo. Acha que Nathan vai me aceitar de volta se eu
der um filho a ele?
Olívia me encarou de queixo caído, voltando a olhar de olhos
arregalados para a maluca.
— Você realmente acredita nisso? Está louca a esse ponto? — Olie
perguntou, desacreditando do que via.
— Eu não estou maluca. Sei muito bem que Nathan me odeia agora. Mas
ele só me odeia porque perdi o bebê. — Camille me encarou por alguns
segundos. — Você e ele… isso não vai durar muito.
— E posso saber o porquê? — perguntei irritada, cruzando meus braços.
— Nathan gosta de mulheres mais… vulgares, talvez seja a palavra —
disse me analisando inteira.
— Camille desde quando Nathan gosta de mulheres vulgares? — Olívia
franziu a testa, reprovando a afirmação da menina.
— Ele nunca curtiu as inocentes — rebateu Olívia e voltou a me analisar.
— E você está presumindo que eu não sou o tipo de mulher que ele
gosta, porque me acha inocente? — ergui uma sobrancelha, sem acreditar
na falta de noção dela.
Camille riu amargamente, debochando de mim. Uma raiva intensa
dominou minha mente. Quem essa mulher pensava que era para vir aqui
tirar minha paz depois de toda a merda que fez com Nathan?
— Camille, eu vou pedir educadamente a você uma última vez. Sai
daqui e não volta nunca mais — avisei, sentindo meu corpo vibrar.
— Não tenho pretensão nenhuma de deixar Nathan em paz, se é isso que
você quer dizer — ela disse rindo.
— Ok. Você pediu… — sai de trás da mesa, dando a volta até a cadeira
onde ela estava. — Sei que vou me arrepender disso, mas…
Deixei a raiva descontrolada tomar minha mente e sem pensar, agarrei os
cabelos cumpridos dela, vendo seu rosto tomado pela surpresa. Puxei a
garota pelos fios, arrastando seu corpo para fora da minha sala. Olívia me
encarava em choque, congelada ao lado da porta enquanto Camille se
debatia, tentando se soltar.
— Você vai sair daqui e não vai voltar mais, ouviu? — quase gritei, a
empurrando pelos cabelos para ocorredor.
— TÁ MALUCA? — Camille gritou voltando para cima de mim. —
Quem você pensa que é pra colocar essas patas sujas em mim?
— PATAS SUJAS? — gritei de volta para ela, enfiando minhas unhas
em seu rosto para não deixar que ela chegasse até mim. — SE ALGUÉM
TEM PATAS AQUI, É VOCÊ. SUA CADELA.
Meu Deus, Liah. Você nunca foi tão baixa.
— Ei! — escutei Ethan gritar, correndo pelo corredor e me tirando de
cima dela. — Para com isso.
Sacudi meus braços e pernas, esperneando para que Ethan me soltasse,
mas ele me mantinha no alto, me segurando pela cintura. Tommy fazia o
mesmo, segurando Camille.
— O que deu em vocês? — Ethan perguntou, tentando me acalmar. —
Você não pode sair brigando no corredor da ONG.
— Ela é maluca, Ethan — reclamei, respirando com dificuldade. — Ela
tá falando que vai adotar uma criança pra ser filho do Nathan. Entende isso?
Ethan franziu a testa, encarando Camille desacreditado. Tommy
mantinha a mesma expressão inconformada no rosto.
— Tommy, leva a Camille pra fora — Olívia pediu, sacudindo a cabeça.
— Se ela tentar entrar no prédio de novo, chama a polícia.
Para completar a desgraça, Nathan vinha caminhando pelo corredor,
olhando a cena atento. Camille abriu um sorriso doentio ao vê-lo se
aproximar.
Que merda ele estava fazendo aqui?
— O que tá acontecendo aqui? — perguntou confuso, alternando os
olhos entre mim e Camille, mas parou o foco em Olívia, esperando uma
resposta da única mulher que parecia sensata nesse momento.
— Você não vai querer saber — Olívia garantiu, soltando um riso
inconformado. — Tommy, leva essa garota pra fora.
— NÃO! — a louca gritou, ainda se debatendo para se soltar do aperto
de Thommas. — Nathan, me escuta. Por favor.
Voltei a me sacudir, tentando me soltar de Ethan. Se essa louca pensava
que ia chegar perto dele, estava totalmente surtada.
— ME SOLTA, ETHAN! — gritei para ele, tentando acertar uma
cotovelada nele, mas Ethan desviava de mim sem grandes dificuldades.
— Controla sua mulher — Ethan pediu, encarando Nathan de um jeito
engraçado, ainda desviando dos meus golpes.
Nathan veio para o meu lado, me tirando do aperto de Ethan ainda com o
cenho franzido.
— O que houve aqui? — me perguntou quando finalmente estava livre.
— Ela tá surtadinha com medo de que eu queira você de volta… —
Camille se intrometeu, debochando.
— ESSA VAGABUNDA… — parti de volta para cima dela, mas o
braço grande de Nathan me segurou no lugar, me prendendo pela cintura.
— Pelo amor de Deus, Liah. Nunca te vi descontrolada assim… —
Nathan arqueou as sobrancelhas, tentando me controlar, sem permitir que
eu tivesse ao menos a visão de Camille, que ainda se debatia, presa no
aperto de Tommy. — O que ela fez?
— Essa garota é surtada — disse quase sem ar pela agitação em tentar
me soltar e chegar até ela. — Tira ela daqui, Thommas. Eu quero essa
garota fora da minha ONG.
— Liah, chega! — Olie pediu desesperada ao perceber que já apareciam
várias pessoas pelo corredor, analisando a cena curiosas. — Acontece de
tudo nesse corredor, gente.
Nathan me puxou para mais longe dela, enquanto Thommas puxava
Camille porta afora. Esperava de todo o coração que ela nunca mais
tentasse aparecer aqui ou ia acabar perdendo a cabeça com ela. Perder ainda
mais.
— Alguém vai me explicar? — Nathan pediu, cruzando os braços assim
que percebeu que eu não tentaria mais sair correndo atrás dela.
— Seria bom procurar a Emma e contar a loucura que a filha dela está
planejando — Ethan avisou preocupado ao amigo. — Pelo que entendi,
Camille está planejando adotar uma criança pra ser o filho de vocês.
— O quê? — Nathan perguntou totalmente confuso. Era tão louco que
ninguém entendia de primeira.
— Ela me mostrou uma foto de um menino de três anos. Disse que ia
adotá-lo e devolver seu filho, e aí você a aceitaria de volta — expliquei, me
sentindo mais calma.
Nathan me encarou por alguns segundos e então, surpreendendo todo
mundo, soltou uma gargalhada alta.
— Sério? — Nathan esfregou o rosto e seu riso se tornou mais
desesperado. — Quando penso que já passei pelas coisas mais absurdas na
vida, o destino me prova totalmente o contrário.
— Ela foi sempre assim ou só enlouqueceu depois que engravidou? —
perguntei cruzando os braços, irritada só de pensar que Nathan passou anos
de sua vida com ela.
Nathan sacudiu a cabeça inconformado e me lançou um olhar irritado,
embora tentasse esconder a vontade de rir.
— Não sabia desse seu lado nervosinha — acusou sem conter um
sorrisinho de canto. — Achei que só perdia a cabeça comigo — provocou.
— Liah tirou Camille da sala dela pelos cabelos — Olívia contou
orgulhosa. — Se fosse eu, ainda tinha dado uns tapas naquela cara falsa
dela.
— Perdi isso? — Ethan reclamou alarmado, me encarando com a boca
aberta. — Liah, eu achei que você era super da paz…
— Nem vem com isso — reclamei, apontando o dedo na cara dele. —
Essa maluca disse que Nathan gostava de mulheres vulgares e que eu era
inocente demais pra ele — eu sabia que estava fazendo um bico infantil,
mas a raiva ainda borbulhava dentro de mim.
Nathan passou o braço pelos meus ombros, rindo alto.
— E aí você teve a brilhante ideia de puxar a garota pelos cabelos pra
mostrar que não é tão inocente quanto ela pensava — concluiu, rindo com
os amigos enquanto reprovava falsamente minha atitude, balançado a
cabeça.
— Não vai negar? — perguntei ressentida a ele.
— Negar o quê? — devolveu a pergunta me olhando confuso.
— Você gosta mesmo de mulheres vulgares?
— Claro que não, Liah — ele respondeu me encarando incrédulo.
— E nem pense em se comparar com ela. Camille é totalmente diferente
de você. — E eu não deveria me preocupar com isso? — Nathan tinha
ficado com ela por anos, afinal. — Você a amou por anos.
— Hoje tenho minhas dúvidas sobre isso — rebateu me encarando
profundamente. — Esquece isso…
Nathan voltou a me abraçar e vi que Ethan, Tommy e Olívia ainda nos
encaravam no corredor.
— O que vieram fazer aqui? Achei que iam para a App agora de manhã.
— perguntei a eles, lembrando que eles nunca estavam por aqui nas terças
pela manhã.
— Tinham duas viaturas policiais paradas na porta quando passei aqui
em frente — Nathan explicou baixinho, me olhando preocupado. — Liguei
pra eles e resolvemos passar só pra ver se estava tudo bem.
— E por que vocês passaram por aqui? — foi Olívia quem se atentou ao
detalhe. — Não é caminho de nenhum de vocês.
Ethan levantou uma sobrancelha, preocupado, desafiando Nathan a
responder à pergunta. Percebi ter algo errado no segundo em que ele
desviou o olhar do amigo, demorando mais do que o normal para responder.
— Talvez eu esteja passando por aqui todos os dias pela manhã, só pra
me certificar de que tudo esteja bem — comentou, tentando soar
despreocupado.
— Talvez? — Ergui minhas sobrancelhas, entendendo que ele estava
começando a ficar paranoico com tudo.
Os meninos viviam na ONG, sempre tinha um deles aqui. Ethan e
Thommas nunca me deixavam voltar para o hotel sozinha quando Nathan
não estava comigo. Ethan estava na cola de Olívia ainda mais que o normal.
Agora meu namorado simplesmente resolvia passar a quilômetros de casa
todos os dias pela manhã só para se certificar de que tudo estava bem.
Nathan sabia de alguma coisa que eu não sabia. Eu tinha certeza disso.
— Se acontecer algo estranho aqui, a gente avisa vocês — Olívia
determinou. — Mas não precisamos de babás.
— Não mesmo — Tommy interviu rindo. — Se Liah ficar irritadinha
assim toda vez que aparecer alguém indesejável por aqui, vocês vão estar
seguras.
— Ah, Tommy, muito engraçado — reclamei de sua piadinha idiota. —
É melhor a gente sair do corredor — avisei ao perceber alguns voluntários,
que ainda disfarçavam pelos corredores, prestando atenção na nossa
conversa.
Entramos todos em minha sala, fazendo com que o espaço grande se
tornasse pequeno para todo mundo.
Por que essas confusões só aconteciam na minha sala e nunca na de
Olívia?
— O que você sabe que eu não sei? — perguntei assim que fechei a
porta atrás de mim, buscando Nathan com os olhos.
— Eu? — ele perguntou assustado.
— É, Nathan! Você! — apontei pra ele, vendo Ethan e Thommas
prenderem uma risada. — Não comecem a rir não, vocês são cúmplices um
do outro.
Os dois ficaram sérios na mesma hora, encarando Nathan pedindo
socorro com os olhos. Nathan, por sua vez, balançou a cabeça
desacreditado, bufando.
— Tá bem… O que vocês sabem?
— Nada! — responderam os três juntos.
Encarei Olívia e ela tinha exatamente a mesma expressão que eu.
Mentira deles.
— Podem começar a falar — pedi calmamente.
— Eu já falei sobre isso com você — Nathan começou sério. — Fui
seguido, tentaram te subornar e Carlton sabe que tem policiais envolvidos
nesse esquema que Sylvia não conseguia sair. A gente só fica preocupado.
Suspirei. Eram todos pontos relevantes, mas eram pontos conhecidos há
um tempo. Então não conseguia entender por que toda essa paranoia deles
só aumentava.
— Promete que vai me contar qualquer coisa que souber? — pedi, me
sentindo receosa.
Se tinha mesmo mais alguma coisa acontecendo, a gente podia estar
correndo perigo?
— Prometo — Nathan desviou os olhos de mim.
Ele não estava mentindo para mim, certo?
Ia confrontá-lo sobre isso no mesmo segundo que meu celular tocou
sobre a mesa de madeira.
Estiquei o braço para ver o número na tela. Doutor Estevem.
— Oi — atendi depressa, atraindo os olhares curiosas dos meus amigos.
— Liah, acabei de receber uma notícia boa, pelo menos — avisou um
tanto alarmado. — Preciso que você vá comigo à loja do Centro agora. A
equipe da empresa das câmeras de segurança quer os números das câmeras
e vão liberar as filmagens antigas.
— Graças a Deus — um alívio instantâneo me fez relaxar sobre a
cadeira. — Tomara que a gente encontre alguma coisa nas imagens. Que
horas preciso estar lá?
— Às 12:30h.
— Obrigada, Estevem.
Encerrei a ligação, apoiando o celular sobre a mesa. Quatro pares de
olhos me encararam em expectativa, aguardando uma explicação minha.
— Consegui as filmagens antigas da loja do Centro — contei sorrindo.
Os quatro também adotaram expressões aliviadas. Todos sabíamos que
havia alguma chance de encontrarmos algo ali a nosso favor. Só esperava
que realmente encontrasse algo, porque minhas apostas eram muito
limitadas agora.
— Sophia?
Tinha acabado de voltar da App e me surpreendi ao ver a tia de Nathan
sentada em minha sala. A mulher tinha uma postura impecável, destoante
de seu olhar doce e acolhedor.
— Oi, Liah. — Sophia levantou-se me abraçando em seguida.
— É um prazer ter você aqui — disse retribuindo o abraço aconchegante
dela. — Como posso te ajudar?
— Almocei com Olívia hoje e ela me contou sobre seu desentendimento
com Camille, hoje cedo.
Encarei a mulher à minha frente, suspirando. Tudo que eu não precisava
era que Olie saísse por aí espalhando sobre minha briga com a ex de Nate.
Sophia retirou um papel de sua bolsa, estendo-o em minha direção.
— Eu não tive a oportunidade sequer de falar com Camille antes dela
sumir três anos atrás. Ela fugiu pra Itália antes mesmo que Nathan pudesse
confrontá-la. E agora ela aparece aqui e acha que pode virar a vida de vocês
de cabeça para baixo.
Olhei as palavras escritas no pedaço de papel. Era um endereço, perto da
ONG inclusive.
— De quem é esse endereço, Sophia?
— Camille. — Sophia me encarou apertando os olhos. — Quero saber se
me acompanharia até lá.
Sophia queria ir à casa de Camille? Essa era uma grande novidade.
Mesmo tentada a dar uns tapas na garota de novo, provavelmente eu
perderia minha razão se a encontrasse novamente.
— O que exatamente você planeja fazer lá? — perguntei preocupada
com o sorriso malicioso que ela me dava.
— Mandar essa garota de volta para Itália. Quero ela longe daqui.
Arregalei meus olhos, ciente de que aquele tom não era o usual dela.
Sophia realmente estava com raiva de Camille. Mordi o interior da minha
bochecha, extremamente tentada a ceder.
Eu não podia imaginar que argumentos ou ameaça aquele mulher,
aparentemente amorosa, poderia usar para que a garota fosse embora, mas
eu conseguia pensar em uns bons tapas que a fariam ao menos se afastar da
ONG e de Nate.
Analisei minha roupa, pensando ser sempre uma vantagem vir para a
ONG de jeans e tênis, o que eu vinha fazendo já tinha umas semanas. Isso
facilitava minha vida quando eu precisava correr ou carregar caixas
pesadas. Ou puxar Camille pelos cabelos.
— Vou com você — disse por fim, vendo o sorriso de Sophia crescer. —
Mas não me responsabilizo se perder a cabeça e descer a mão na cara dela
— avisei.
Sophia riu abertamente, jogando a cabeça para trás.
— Liah, querida, provavelmente eu vou perder a cabeça e fazer isso —
avisou me olhando em cumplicidade.
Joanna estava chegando na ONG com Olívia assim que eu estava saindo,
de novo. Ela me encarou confusa, franzindo o cenho.
— Joanna, tudo bem se passar os relatórios com a Olívia hoje? — pedi,
vendo Olívia virar o pescoço para mim com os olhos questionadores.
— Aonde vocês vão? — perguntou ao perceber Sophia do meu lado. —
Aconteceu alguma coisa com Nathan ou Mia?
Sophia negou, abraçando Olívia.
— Vamos tomar um café — desconversou, com medo que Olívia
tentasse refrear nossa saída.
Mas Olívia me conhecia o suficiente para saber que eu não deixaria a
ONG e uma reunião com Joanna apenas para tomar um café, mesmo que
fosse com a tia do Nathan. Por isso, a garota me deu uma olhada
desconfiada deixando claro que não acreditava na mentira fajuta.
Saí da ONG com Sophia sem dar muito tempo a elas para questionarem
o que realmente iríamos fazer. Tirei a chave do carro de Nathan do bolso,
seguindo para onde a BMW estava estacionada. Nathan devia ser bem
desapegado com seus bens para deixar aquele carro na minha mão.
— Podemos ir no carro do Nathan? — perguntei a ela.
— Claro! — Sophia sorriu, abrindo a porta do lado do carona. — Nathan
deixou com você?
Balancei a cabeça em afirmação, entrando do lado do motorista.
— Ele estava preocupado em me deixar de Uber pra cima e pra baixo —
disse, sorrindo boba pela preocupação que ele tinha comigo.
— Nathan deve gostar mesmo de você — Sophia afirmou quando saí do
estacionamento. — Ele tem um ciúme desse carro.
Tinha? Não parecia. Nathan nunca foi do tipo que ficava falando do
carro e dizendo o quanto ninguém podia encostar no seu. Mesmo assim,
sabia que Sophia não diria aquilo só por dizer. Sorri involuntariamente.
Quase vinte minutos depois estacionei em frente ao endereço que Sophia
tinha me dado, com a barriga doendo de tanto rir. Ela era uma mulher muito
carinhosa e tinha um amor incondicional pela filha e pelo sobrinho. Viemos
todo o caminho com ela me contando sobre as coisas que Nathan e Mia
aprontavam na infância e depois, na adolescência.
— Sério, Liah. Nathan me deixava de cabelo de branco e eu não tinha
nem quarenta anos ainda — disse logo após me contar que Nathan, Ethan e
Tommy quase foram presos por importunação da ordem pública, ao
chegarem bêbados em casa no aniversário de vinte e um anos dele, e que
Carl salvou a pele dos três.
Descemos do carro ainda rindo e meu celular vibrou com uma
mensagem. Olhei o aparelho vendo o nome de Nathan piscar na tela.
Estacionei em frente à delegacia, sem ter certeza sobre Carlton estar ali.
Tentei ligar para ele assim que sai do estacionamento do prédio, e umas
duas vezes no caminho para cá. Puxei novamente o celular do banco ao
lado e disquei seu número.
Porra. Atende Cal.
Nada!
Eu odiava estar na delegacia. Senti o arrepio na espinha que me dava
certeza de que eu esbarraria com aquele cara por lá. O mesmo que me
espancou naquela noite. Já tinha acontecido uma vez, e o resultado foi uma
das minhas piores crises.
Respirei fundo, tomando coragem para descer do carro. Meu celular
começou a vibrar na mesma hora que abri a porta.
— Carlton, graças a Deus — atendi aliviado.
— Você me ligou várias vezes. Aconteceu alguma coisa?
— Está na delegacia?
— Sim, cheguei aqui ainda pouco.
— Ótimo, estou aqui na frente e preciso falar com você. — Saí do carro,
seguindo em direção à porta principal.
— Nathan, acho melhor não — Carl avisou receoso. — Jasper está aqui.
— Carl, eu tenho um assunto sério para falar. — Atravessei a grande
porta de vidro, procurando por algum rosto conhecido.
Avistei Bob, Xerife e chefe do Cal, conversando com um homem
próximo ao balcão de atendimento.
— Vou pedir ao Bob pra me levar até você.
— Nathan, não faz isso. Aqui não é o melhor…
Desliguei o celular, sem dar chance a Carl de me travar. Eu sabia que ele
não me queria envolvido nisso, mas era tarde demais.
— Ei, Bob — chamei o homem velho e barrigudo, vendo-o me olhar
surpreso. Fazia anos que não entrava na delegacia ou o via. — Quanto
tempo.
— Nathan. Os últimos anos te fizeram bem, parece. — O homem me
estendeu a mão, cumprimentando em um aperto firme. — Veio ver o
Carlton, presumo.
— Sim, ele está me esperando — avisei.
— JASPER! — Porra, Bob. — Vou pedir ao Jasper pra te levar lá
dentro.
O homem grande e loiro atravessou a porta que levava ao interior da
delegacia, parando ao lado do chefe. Um sorriso irônico e frio cortou seu
rosto ao me ver ali.
— Nathaniel — um leve aceno de cabeça junto de suas sobrancelhas
arqueadas. Ele não estava surpreso de me ver ali.
— Jasper, o Carlton está nos arquivos. Mostra o caminho ao Nathan, por
favor.
Bob saiu em direção à porta junto ao homem que conversava, me
deixando sozinho com o filho da puta.
— Você ouviu — disse, me indicando a porta.
Jasper não seria louco a ponto de me pressionar ou tentar me agredir na
delegacia, mas isso não fazia dele menos perigoso.
— Vai na frente — falei, nem um pouco convencido da sua intenção.
Eu não era mais o menino idiota e inocente de três anos atrás. Jasper riu
erguendo uma sobrancelha, mas seguiu na frente, indicando o caminho.
Carlton nos encontrou no corredor, assim que terminamos de subir a escada.
Ele e Jasper se encararam antes de cada um seguir uma direção.
— Eu avisei pra não vir aqui — Carl me repreendeu, me puxando pelo
braço em direção a uma sala.
— Eu consegui umas imagens no computar da Sylvia — avisei logo,
tirando o pen drive do bolso. — Tem uns policiais conversando com ela.
Não consegui reconhecer nenhum.
— Que computador? Nathan tudo isso deveria estar apreendido.
— Não me faz te explicar isso agora, Carl…
— Nathan, você precisa parar. — Carlton me empurrou sobre uma
cadeira de interrogatório, sentando do outro lado da mesa e desativando um
botão em baixo dela.
— Ninguém vai escutar a gente aqui, mas você precisa parar com isso,
Nathan. Não quero mais você e seus amigos se metendo nessa merda.
— Carl, a investigação é sobre a ONG da Liah. Ela pode ser acusada de
fraude e até ser presa. Não sei o que está acontecendo ou o que você sabe.
Mas a gente não vai deixar de se meter.
Carlton olhou para os lados, como se alguém pudesse estar nos
observando. Seus olhos demonstravam toda sua agitação e preocupação.
— Nathan, você não entende a gravidade disso. Eu tenho dois policiais
mortos e a Sylvia Vittorino assassinada. Vocês estão indo por um caminho
sem volta.
Meu tio levantou-se da cadeira, passando as mãos pelo cabelo nervoso
antes de voltar a me encarar.
Tinham policiais assassinados?
— Um cara me ligou hoje, ameaçou a Triss e a Liah. Disse que você
tinha que parar de investigar — contei preocupado.
— Ele se identificou? — Neguei com a cabeça. — Nathan, por favor!
— Carl, seja lá quem for, isso precisa acabar. A ONG não pode ser
fechada, essas crianças vão ser transferidas para os piores lugares possíveis.
Isso vai destruir a Liah.
Carlton voltou a se sentar, me encarando transtornado.
— Jasper não podia ter te visto aqui.
— O que ele tem a ver com isso? — perguntei confuso.
— Ele tá envolvido nisso até o pescoço, Nathan. Ele é um dos principais
braços de seja lá quem for que comanda esse sistema inteiro — seu tom de
voz estava bem abaixo do normal. — Isso tudo começou quando Eliot
morreu no início do ano. Ele era uma das principais cabeças dessa porra
quando te deu aquela surra junto do Jasper. Ele tentou sair do esquema
Nathan, tentou ter uma vida decente.
— Acho melhor me contar o que você sabe. Pelo pouco que entendi,
todo mundo tá correndo perigo agora, e já é tarde demais pra gente não
estar envolvido nisso.
Carlton suspirou, dando-se por vencido.
— Vem, vamos sair. Aqui não.
Concordei, seguindo meu tio para fora da delegacia. Entramos no meu
carro e Carlton pediu que eu o levasse para a casa.
— Vai me contar o que sabe? — pedi, dando partida no carro.
— Bob confia cegamente em Jasper, Nathan. — Carlton suspirou. — Eu
não consigo seguir a porra da investigação porque Bob acha que estou
ficando louco e surtando por alguma competição idiota com ele.
— Bob também é corrupto? — perguntei confuso.
— Não. Longe disso. Mas ele é totalmente influenciado pelo Jasper, que
é afilhado dele. Bob o criou como se fosse um filho.
— Por isso ele nunca acreditou quando disse que foi Jasper e Eliot que
me espancaram?
Quando eu saí do hospital, Carlton tentou iniciar uma investigação sobre
o incidente. Lógico que nada foi para frente. Carl ainda era só um policial
iniciante e Jasper e Eliot já eram policiais seniores e prestigiados.
— Bob é totalmente cego em relação a Jasper. E o pior é que ele aparece
no centro de todas as minhas investigações. O FBI está fechando o cerco
sobre tudo que acontece nessa cidade, mas ainda não temos nada que seja
concreto, uma prova que realmente incriminasse esse desgraçado.
— Foi ele quem causou o incêndio? — Meu coração disparou. Se tivesse
sido, Liah e Triss realmente corriam perigo.
— Não tenho certeza. Mas ele é quem costuma fazer os trabalhos sujos.
Não foi ele quem te ligou?
Pensei por um instante. Eu reconheceria a voz dele, definitivamente, não
havia sido Jasper.
— O que mais você sabe, Carl?
Carlton me olhou por um instante, tirando uma chave do bolso da frente.
— Sylvia Vittorino era uma mulher excepcionalmente inteligente,
Nathan. Ela me procurou para me entregar a chave de uma sala cheia de
provas contra essa quadrilha.
Estacionei o carro em frente a casa de Tia Sophia, olhando Carlton
chocado.
— E por que não tem ninguém preso ainda?
— Porque eu ainda não descobri onde essa sala fica. Ela tinha medo de
me contar. — Carlton contou pesaroso, deixando os ombros caírem. —
Sylvia descobriu as principais cabeças por trás do esquema. Ela quis sair
porque começaram a ameaçar Lianah.
Meu peito disparou com o medo de que algo acontecesse a ela. Fechei os
olhos, encostando a cabeça no banco.
— O clube Vittorino era a base de muito coisa errada nessa cidade —
Carl continuou. — Sylvia quis sair quando entendeu que mesmo dentro, não
poderia mais proteger a neta. Sylvia não conseguiu deter a ONG, era o
sonho da neta dela, mas com a ONG em evidência na mídia, eles perdiam
aquelas crianças. A principal investigação dessa cidade não é tráfico de
drogas ou lavagem de dinheiro. É tráfico humano, Nathan.
— Puta que pariu! — Bufei desacreditado, apertando o volante com mais
força. — Sylvia te contou isso?
— No mesmo dia em que ela morreu e me entregou essa chave. Ela me
pediu para ficar de olho na neta caso algo acontecesse com ela. Sylvia sabia
que eles iam atrás de Liah em seguida por que querem a ONG fechada, ou
Liah contribuindo para o tráfico humano.
— Eu nem sei o que dizer. — Esfreguei o rosto, sentindo uma revolta
enorme crescer em mim.
— Nathan, eles não vão deixar passar. Nem que tenham que me apagar
para isso. Eu preciso quebrar esses caras antes que eles façam mal a
alguém. — O desespero na voz de Carl era o suficiente para me fazer
entender, finalmente, a gravidade daquela situação.
— Minha tia e a Mia estão seguras? — olhei para a casa a nossa frente.
— Tem mais seguranças e policiais nas proximidades do que você possa
imaginar. Tenho dois amigos trabalhando na ONG e vocês nem imaginam o
quão armados eles estão. O FBI está mais envolvido do que imagina. Mas a
verdade é que estamos todos envolvidos nessa merda até o pescoço. Não
tem mais volta.
Apesar da gravidade da informação, saber que ele tinha pessoas as
protegendo me deixou um pouco mais aliviado.
— O que posso fazer para ajudar?
— Encontre qualquer coisa que possa usar contra ele legalmente,
Nathan. Jasper é o ponto-chave dessa investigação. Ele é tão covarde que
entregaria todos que estão com ele em troca de umas vantagens na cadeia.
Se eu colocar Jasper na cadeia, isso acaba.
Assenti. Carlton sempre me disse que eu tinha uma veia investigativa tão
boa quanto a dele. Sinceramente, nunca tive interesse em testar. Mas agora,
pedia a Deus que fosse verdade, porque usaria cada porra de segundo dos
meus dias para encontrar qualquer coisa que colocasse esse filho da puta
atrás das grades.
Capitulo 31
31 de agosto de 2019
— Você prometeu. — Tinha total consciência de que estava emburrada e
fazendo birra exatamente como uma criança faria.
— Não prometi — Nathan negou, sem tirar os olhos da estrada.
Estávamos discutindo a quase dez minutos sobre o fato dele ter
prometido que me acompanharia nas minhas loucuras. OK. Ele não
prometeu. Mas ele disse que se eu quisesse voltar a fazer alguma loucura,
deveria falar com ele primeiro.
— Eu vou voltar lá sozinha, então — ameacei e Nathan estreitou os
olhos, balançando a cabeça em repreensão.
Ele não disse mais uma palavra até que estivesse entrando com a BMW
em seu prédio. Nathan estacionou o carro na vaga pré-determinada e me
encarou com os olhos preocupados.
— Você não vai voltar lá — disse num tom autoritário que me fez erguer
as sobrancelhas em desafio.
— Vai me impedir?
Eu sei que estava sendo teimosa e atrevida, mas eu precisava fazer isso.
Estava de saco cheio e desacreditada de qualquer chance de salvar a ONG.
Ia entrar naquele porão da mansão com ou sem Nathan. Eu tinha certeza
que minha avó guardava alguma coisa ali.
Já tinham se passado mais duas semanas naquela enrolação de
investigação, reuniões, e agora até depoimentos o FBI estava colhendo.
Doutor Estevem me alertou sobre a possibilidade de fecharem a ONG,
mas Nathan não pareceu muito surpreso, e isso só me fez ter mais certeza
que ele sabia de mais coisa do que admitia.
— Quer pagar pra ver? — Ele saiu do carro, dando a volta muito rápido
para abrir minha porta. — Nem que eu tenha que te trancar no meu loft,
Liah — disse baixinho no meu ouvido quando passei por ele, saindo do
carro.
Senti um arrepio gelado na minha espinha, absorvendo o teor erótico que
ele colocou naquela ameaça. Eu já conhecia bem algumas artimanhas dele,
e usar sexo a seu favor era algo que ele sabia fazer bem. O problema é que
mesmo sabendo disso, eu caia na maior parte do tempo. Até porque era bem
difícil resistir a ele.
A gente até transava no quarto dele, no apartamento que morava com
Triss. Mas toda vez que a gente estava a fim de alguma coisa mais intensa,
subíamos para o loft. Então eu sabia que a intensão dele em falar sobre me
trancar no loft era exatamente essa. Usar o sexo a favor dele.
— Não vai colar — avisei, saindo de perto dele o mais rápido possível
para chamar o elevador. — A gente precisa resolver isso.
— Eu não vou te levar na mansão e você não vai até lá — determinou
quando entramos no elevador.
— Você não é meu pai — avisei, batendo o pé no chão e cruzando o
braço.
— Quem é que parece uma criança agora? — Nathan sorriu de lado,
daquele jeito convencido que me matava.
— Eu vou! — Sentenciei assim que o elevador chegou no oitavo andar.
Nathan sacudiu a cabeça exasperado me seguindo para o corredor. Seus
dedos digitaram a senha na fechadura digital e ele abriu a porta do
apartamento, esperando que eu entrasse. Virei o pescoço olhando irritada
para ele quando passei pela porta.
— Você não vai — disse mais uma vez, largando a chave do carro e a
carteira no aparador espelhado antes de sumir pelo corredor. Idiota!
Apoiei minha bolsa em cima do móvel e tirei meus saltos, largando-os
por ali mesmo. Meus pés já estavam me matando.
Passamos a manhã de sábado em uma recepção de renovação de votos de
casamento de Dinna. Ela morava numa casa próximo à rua da mansão, e
assim que passamos de carro em frente, eu decidi que ia voltar lá.
Nathan voltou pelo corredor sem camisa, vestindo só uma calça de
moletom fino. Ele passou direto por mim, sem sequer me olhar e foi para a
cozinha abrindo a geladeira. Quando voltou, estava com uma long neck na
mão e se jogou no sofá, ligando a TV. Só então ele me encarou uma única
vez, descendo os olhos pelo meu corpo, demorando o olhar nas minhas
coxas expostas pelo vestido justo. Senti meu corpo ardendo com sua
atenção.
Apertei meus olhos, sabendo exatamente o que ele estava fazendo.
Num gesto totalmente insano, entrei na frente da TV e tirei meu vestido,
atraindo a atenção total dele. A lingerie de renda azul que estava usando era
uma das que ele mais havia gostado.
— Tá vendo isso? — Apontei para o meu corpo, vendo seus olhos
escurecerem com o desejo repentino. Nathan subiu os olhos para os meus,
me encarando com o esboço de um sorriso malicioso. — Quer? —
perguntei provocativa.
Meu namorado suspirou, sabendo que não seria fácil assim. Ele me
encarou sério, esperando o que quer que fosse que eu estava planejando.
— Sério? — Nathan riu nervoso, entendo exatamente o que eu estava
fazendo. — Vai me proibir de tocar em você?
— Não. — Dei de ombros, sorrindo inocentemente para ele. — É só me
levar na mansão.
— E se eu não te levar? — perguntou rindo.
— Então isso tudo aqui… — apontei de novo para o meu corpo. — Vai
dormir no hotel até você decidir que vai me levar.
— Eu ainda posso voltar a te odiar? — Nathan levantou do sofá irritado,
virando quase todo o conteúdo da garrafa em sua mão em questão de
segundos. — Não posso dirigir — disse fingindo tristeza ao me mostrar a
garrafa.
— Eu dirijo — sorri para ele. — Problema resolvido.
— Você não vai! — Voltou a dizer me olhando ainda mais sério agora.
— Eu vou, Nathan. A decisão é minha. — Abri os braços agitada,
sentindo minha irritação com ele aumentar.
Peguei meu vestido no chão, passando o pano pela minha cabeça em
alguns segundos. Ajeitei a roupa dando umas batidinhas e caminhei em
direção à porta, vendo Nathan pegar, calmamente, o celular no bolso da
calça de moletom e digitar alguma coisa. Se ele não se importava, não ia
ficar aqui tentando convencê-lo a me ajudar.
Me olhei no espelho acima do aparador ajeitando alguns fios de cabelo
soltos, enfiei meus pés de volta no salto e peguei minha bolsa pronta para
sair. Sem olhar para trás, girei a maçaneta puxando a porta.
Nada. Puxei de novo. A porta sempre abria pelo lado de dentro…
— NATHANIEL! — gritei nervosa ao perceber o que ele tinha feito. —
ABRE ESSA PORTA!
Nathan me deu um sorriso debochado me mostrando a tela do celular.
Filho da puta que tinha que usar tecnologia para tudo na vida.
— Eu avisei que ia te trancar. A sua sorte é que não foi no loft — disse
rindo abertamente.
Grunhi irritada, e saí andando em direção ao quarto dele.
Era muito alto para pular a janela?
Bati a porta com força, esquecendo completamente que estava na casa
dele. Ainda bem que Triss não estava em casa para ver a cena ridícula que o
tutor dela estava fazendo. Passei a chave na porta, agradecendo por ali
também não ter uma fechadura eletrônica. Nathan ia pagar caro por isso.
Tomei um banho bem demorado, tentando me acalmar, mas nada estava
funcionando. Nenhuma técnica de concentração na respiração, nenhuma
música cantarolada, nenhuma tentativa de meditação. Eu continuava com
raiva.
Saí do banheiro depois de longos minutos e vesti uma camisa e uma
cueca boxer dele. Estava passando bastante tempo aqui ultimamente, mais
tempo que no hotel. Espantei o receio de estarmos indo rápido demais,
ainda irritada com o jeito controlador e protetor em excesso que ele tinha
comigo e com as meninas.
Peguei meu celular na bolsa e abri o aplicativo da Netflix no celular. Me
joguei na cama dele, iniciando um episódio de Gray`s Anatomy.
Assisti quatro episódios inteiros. Ia iniciar o próximo quando escutei
umas batidinhas na porta. Ignorei totalmente o idiota. Depois de alguns
segundos, ele tentou abrir a porta forçando a maçaneta algumas vezes. Vai
ficar do lado de fora.
— Liah! — ouvi sua voz me chamando baixinho. — Queria tomar um
banho — justificou, achando que eu abriria a porta para ele.
— Tem banheiro aí fora — gritei, pausando meu episódio.
— Minhas coisas estão todas aí dentro — reclamou.
Levantei da cama indo até seu banheiro. Sorri maliciosa ao pensar em
como o deixaria irritado agora. Peguei o frasco de xampu e um sabonete
fechado na gaveta do armário. Já ia saindo do banheiro, mas voltei uns
passos para trás e tirei a toalha dele do gancho. Joguei a tolha em cima da
cama e o sabonete e o xampu por cima dela. Depois fui até o closet e peguei
uma boxer limpa também jogando em cima da toalha, fazendo uma
trouxinha.
Fui até a porta com a toalha embolada na mão.
— Nathan — chamei baixinho.
— Tô esperando você abrir a porta — avisou.
Abri a porta bem devagar, só uma frestinha para olhar do lado de fora.
Nathan estava encostado na parede de braços cruzados me olhando com a
sobrancelha erguida. Ergui a minha de volta e joguei a toalha do lado de
fora com as coisas dele dentro. Fechei a porta e voltei a trancar.
— Sério? — Gritou revoltado. — Sabe que esse é o meu quarto, não é?
— Você tirou meu poder de decisão, então estou tirando seu quarto —
disse começando a rir de sua respiração alterada pela indignação
momentânea. — Durma no seu sofá essa noite.
— Vai ficar trancada aí sem comer? — ele perguntou nervoso.
— Vou pedir a Triss pra trazer comida pra mim, quando ela chegar — eu
já tinha pensado em tudo.
Alguns segundos depois já não podia ouvir mais nada no corredor, então
voltei a assistir minha série.
Separador
01 de setembro de 2019
31 de agosto de 2019
Puxei a porta de madeira velha que rangeu, resistindo às poucas raízes que
ainda estavam por cima. Uma poeira espessa se levantou, me fazendo
sacudir as mãos no ar para afastar o pó do meu rosto.
Olhei pela porta, vendo a escada escura que levava a algum lugar embaixo
da casa. Peguei minha mochila no chão, e desci o primeiro degrau devagar,
testando a resistência da madeira velha.
Desci até lá, ultrapassando o portal de madeira para dentro da sala super
elegante. Era um escritório muito bonito. Outro acesso, pelo lado oposto da
parede, parecia levar a uma escada para o interior da casa.
Olhei em volta, sentindo o calor pelo lugar abafado e cocei meu nariz
irritado pela alergia à poeira.
A sala estava quase toda vazia, a única coisa aparente era um computador
velho em cima da mesa de mogno. Só não tinha ideia de como ia fazer para
conseguir ligar aquilo.
Deixei a mochila em cima da mesa, indo até o aparelho, testando se ligava
de alguma forma.
Nada!
Merda!
Sem pensar muito, tirei o revólver da mochila e travei meus dedos ao redor
do ferro frio. Se alguém tivesse nos seguido, tinha uma probabilidade
enorme de nem sair daqui vivo. Corri até a parede na lateral da escada, me
escondendo nas sombras e sentindo minha respiração falhar à medida que
escutava os passos descendo.
Passei a perna na frente dos pés dele, empurrando suas costas para o chão.
Puxei suas mãos para trás, engatilhando o revólver colado à nuca do cara.
— Sabe que você só conseguiu fazer isso porque eu não ia revidar contra
você, certo? — A voz sussurrada me fez suspirar de alívio.
— Porra, Cal! Quer me matar do coração?
Segui atrás dele, dando graças a Deus por respirar um pouco de ar livre
daquela poeira.
Com o dia ainda claro, era fácil identificar uma das janelas quebradas da
lateral da casa para entrarmos. Carlton procurou nos lugares mais óbvios,
até achar o quadro numa garagem interna, quase do outro lado da casa. A
energia não estava cortada, ao menos, só desligada. Carlton deu de ombros,
dando um giro de trezentos e sessenta graus pela sala.
— Quero dar uma olhada no restante da casa antes — meu Tio avisou,
quando saímos da garagem.
Carlton andou pela sala principal assim que entramos no interior da casa.
Com certeza era uma mansão num estilo bem clássico. Muitos quadros de
pintores conhecidos, e esculturas diferentes adornavam a sala.
Parecia que o fogo não tinha chegado em grande escala ali. Em cima de
uma lareira, ainda tinham algumas portas retratos inteiros. Em um deles,
uma menininha loira de olhos azuis abraçava uma mulher muito bonito
pelo pescoço; as duas se pareciam muito. Peguei o objeto, sorrindo para a
imagem.
— Sylvia não tinha ideia de onde estava se metendo quando entrou nisso
— Carlton defendeu a mulher.
— Não muda o fato que Liah está em perigo por causa disso agora —
reclamei.
— Também não seria justo te deixar pagar pelos meus erros — Carlton
engoliu seco. — Por isso vim atrás de você.
O mais velho sentou em um dos sofás velhos, fazendo um sinal para que eu
sentasse também.
— Por quê? — soltei mesmo sentindo o medo subir em espiral até meu
coração.
Claro que eram. Liah nunca daria o braço a torcer sobre aquilo; nunca
cairia no papo escroto desses caras. Por um segundo, pensei em toda merda
que seria quando Liah descobrisse o que fiz para adotar Triss. Eu tinha que
contar a ela.
— É por isso que querem tanto Liah no esquema?
— Liah tem ótimos advogados, que tinham os contatos certos pra fazer a
ONG acontecer. Até esses também serem ameaçados. Se dependesse só da
polícia local, isso nunca se resolveria. Mas já te falei que temos
investigação sigilosa no FBI.
A mesma cordinha que puxei antes, dessa vez, fez com que uma lâmpada
fraca iluminasse ao menos um pouco daquele escritório escondido.
— Ele não é daqui — meu tio respondeu tão desconfiado quanto eu. — E
sim, confio nele.
— Aqui tem Sanders e Carter também. A família das meninas está metida
nisso? — perguntei assustado.
Abri o arquivo com o nome dos Carter e uma série de documentos que
mostravam transferências bancárias milionários foi listado.
— Sylvia estava cavando a própria morte. — Olhou mais atento para a tela,
tirando o mouse da minha mão.
Apesar de parecer que não era aquilo que ele falaria, resolvi não insistir por
enquanto.
Silêncio
Silêncio.
— Nenhuma polícia ou bombeiro pode ver a gente aqui.
Silêncio.
Silêncio.
Silêncio.
— O que é isso?
— Espero que a gente saia vivo daqui — soltei nervoso quando chegamos a
escada e já era possível respirar o ar consumido pela fumaça tóxica.
Liah
Nathan franziu a testa, nos olhando com um meio sorriso no rosto. Ele é tão
lindo. Aquele jeitinho meio despojado dele acabava comigo. Eu amava
quando ele estava assim… jeans, camisa de malha, e o coturno preto que
ele usava sempre que não era obrigado a formalidades. Aquilo era tão…
ele!
A sensação de alívio nunca foi tão grande na minha vida. Corri até ele, me
pendurando em seu pescoço.
— Eu juro que vou matar você — disse, afundando meu rosto em seu
pescoço.
— Onde você estava? — A voz de Sophia soou quase num grito quando a
mulher entrou em casa. — Liah chegou aqui mais cedo, Carlton deixou um
recado para não deixá-la sair daqui e agora os noticiários estão tomados por
essa movimentação na mansão Vittorino.
Era isso!
Desde que apareceu na minha vida, Nathan tinha a solução para tudo,
mesmo quando as soluções dele ainda me irritavam e me levavam a um
nível extremo de raiva. Foi difícil aceitar no começo, pois não queria dar o
braço a torcer que suas soluções eram boas e úteis.
Nathan estava usando um dinheiro que ele abominava para segurar a ONG.
Ele havia adotado a Triss para tirá-la das garras complicadas do Estado e
dar um futuro melhor a ela. Ele se manteve presente na ONG até para o
trabalho braçal quando ainda não tinha o dinheiro em mãos.
Por muito tempo não permiti que nenhum homem sequer se aproximasse de
mim. Eu tinha medo deles, medo do que poderiam fazer comigo. Me fechei
para a vida até encontrá-lo, mas Nate estava derrubando todos os meus
muros e alcançando todos as portas.
Nathaniel Petterson era a chave que eu precisava para me abrir para o
mundo.
01 de setembro de 2019
O silêncio no carro era sepulcral. Liah tinha medo de perguntar, e eu
tinha medo de falar.
A necessidade de dopamina me corroendo, me lembrando do vício,
quase me fazendo perder o controle.
— O que aconteceu lá de verdade, Nathan?
Apertei meus dedos em volta do volante, sentindo meu sangue ferver.
— A gente conseguiu ver o que tinha naquele computador, antes do
curto — contei, tentando controlar minha respiração.
— E o que tinha? — Liah insistiu.
— Tudo que o FBI precisa, Liah. Sua avó tinha uma investigação inteira
resolvida naquele computador.
Carlton mal acreditou quando viu todo o esquema desenhado. Todos os
nomes expostos, todos os vídeos, todas as provas. Sylvia sabia sobre o
tráfico humano, e esse foi o gatilho para que ela quisesse sair do esquema.
Empresários, médicos, advogados, políticos… todos expostos. Jasper era
mesmo o cara por trás das ações daquele esquema. Assim que o FBI tivesse
acesso àquele HD, muita coisa viria a tona.
— E por que você está com esse humor horrível então? — perguntou
preocupada.
— Porque sabem que estivemos lá. Enviaram uma mensagem para o
Carlton?
— Ameaçaram de novo?
Soquei o volante, sentindo meu coração se esmagar. A sensação do
sufocamento cada vez mais forte.
— Enviaram uma foto da Triss, saindo da App.
— Da Triss? — Liah quase gritou, se agitando no banco do carona.
— Você tentou adotar a Triss, não foi?
— Nathan, para o carro!
— Liah…
— PARA O CARRO! — gritou. — Antes que você bata essa merda.
Engoli seco, jogando o carro para o acostamento.
— O que tá rolando? Me conta o que está acontecendo de verdade.
Suspirei, me sentindo exausto de toda aquela merda. Encarei a mulher ao
meu lado, ciente de que não podia esconder aquelas coisas dela, mas tinha
tanto que podia machucá-la, e eu não queria vê-la sofrer ainda mais.
— Sua avó é o motivo pra nunca ter adotado a Triss, Liah. Ela não
queria mais uma pessoa correndo riscos — contei.
Liah sorriu triste, a decepção varrendo seu rosto, me deixando com um
gosto amargo na boca. Era isso que queria evitar, a mesma dor que vi em
seus olhos lindos quando me contou do seu estupro.
— O que mais está me escondendo?
— Eu sou o culpado pela Triss estar em risco. Você sempre teve razão,
eu nunca deveria ter tentado essa adoção…
— Nathan, calma — pediu, segurando meu rosto. — Você não tem culpa
de nada.
— Eu paguei pela adoção dela, Liah — contei de uma vez. — Dei o que
aquele juiz queria só pra ele assinar o papel.
Liah me encarou por alguns segundos, tentando compreender minha fala.
— Como assim você pagou?
— Ele pediu dois milhões de dólares para assinar a autorização, e eu
paguei porque não podia deixar que isso ficasse dessa forma…
— Você sabe que contribuir com esse sistema não é uma forma de
resolver, certo?
Estudei sua reação, esperando o momento em que ela ia surtar comigo e
dizer que nunca mais queria me ver.
— Eu sei, é só que… não era justo com a Triss… — tentei me justificar,
mas era difícil quando tudo que seus olhos gritavam era que eu estava
errado.
— Contribuir com esse sistema é um caminho sem volta, Nathan. Eles
devem ter provas contra você agora.
— Não tem — afirmei. — O Carlton tá devendo algum favor grande a
alguém por causa disso.
— Tem mais alguma coisa? — perguntou irritada. — Se tiver, melhor
falar logo.
Queria contar que o incêndio foi proposital, mas isso a deixaria ainda
mais ferida. Eu podia esperar um pouco mais, ao menos para que ela não
sofresse tudo de uma vez.
— Só o que sei, é que nesse momento, esses caras devem estar
desesperados, com medo do que Carlton tem contra eles. Triss vai ficar na
minha tia hoje, tem agentes vigiando a casa, ela vai estar mais segura lá.
— Ela vai estar segura lá.
— Tô esperando a hora que você vai gritar comigo e dizer que sou
perigoso pra ela de novo.
— Eu tô morrendo de raiva de você agora, mas não vou fazer isso. Você
tá quase tendo outra crise. — Liah observou, subindo as mãos para acariciar
meu rosto.
Engoli seco, fechando meus olhos ao sentir meu corpo arrepiado até com
o toque leve.
— No ano seguinte do meu coma, acho que vivi os piores momentos da
minha vida. Tudo que eu fazia era me meter em confusão e brigas, porque
eu gostava da sensação do perigo, gostava da adrenalina. Eu bebia até estar
quase inconsciente e me drogava o tempo inteiro. Quando Mia me fez sentir
culpado pelas drogas, eu troquei droga por sexo. Isso diminuía minha
ansiedade, reduzia minhas crises.
— Você precisa disso agora? Sexo?
Neguei. Nunca encostaria nela nesse estado. Não com toda aquela
adrenalina em mim.
— Eu preciso de você.
Liah me abraçou e deixei que meus braços a envolvessem, sentindo as
lágrimas grossas que se formavam nos meus olhos. Era um misto da
ansiedade, medo, desejo, preocupação. E também tinha a certeza de toda
aquele sentimento improvável que nunca deveria ter me invadido daquele
jeito.
— Fiquei desesperada com medo de alguma coisa ter te acontecido,
porque eu nem tive a chance de dizer que…
A interrompi, afastando seu corpo do meu para olhar em seus olhos.
— Eu amo você.
— Achei que eu ia dizer primeiro. — Liah sorriu mordendo a bochecha.
— Eu te amo pra caralho, Liah.
— Eu achei que meu coração ia parar no dia que você apareceu no meu
hotel e disse que não me odiava — seu sorriso podia iluminar aquele carro
inteiro. — Mas eu não tinha ideia do que poderia sentir quando você diz
que me ama. Eu também amo você, Nathan. E isso me assusta.
— Então estamos no mesmo barco, porque morro de medo desse
sentimento — admiti, voltando a abraçá-la.
Capitulo 34
02 de setembro de 2019
Ethan e Thommas nem sequer piscavam, mantendo os olhos atentos
sobre a mesa de centro do meu loft. Os dois me escutaram atentamente,
enquanto contava sobre a ida à mansão e as ameças que Carlton vinha
recebendo. Resolvemos matar a tarde de trabalho dado a gravidade do tema
e a necessidade de contar aquilo a eles.
— Como convenceu Carl a deixar isso com você? — Thommas
perguntou, subindo os olhos da mesa de vidro e logo voltando a olhar para o
mesmo lugar.
— Já sabem que ele está investigando. Carlton voltou a receber ameaças
e acha que estou em evidência por ter me metido onde não devia —
expliquei.
Ethan subiu a mão com a long neck, bebendo sua cerveja e me encarando
sério por cima do gargalo.
— Você sabe usar isso? — perguntou depois de soltar um longo suspiro.
Confirmei sacudindo a cabeça num sinal positivo. Carlton havia me
ensinado a atirar quando havia completado vinte e um anos. Voltei a olhar
nervoso o revólver sobre o vidro à minha frente.
— Liah sabe disso? — Thommas perguntou.
— Sabe. Contei tudo a ela ontem. A única coisa que não tive coragem de
contar foi sobre a morte de Sylvia e o incêndio.
Tinha medo do tipo de sofrimento que encontraria nos olhos dela,
quando descobrisse que a avó morreu num ato criminoso. Me sentia
péssimo quando pensava que Liah me fez prometer que não esconderia
mais nada dela. Só de pensar na ideia dela me deixando quando soubesse a
verdade, sentia meu peito se apertar.
Cansado, joguei minha cabeça para trás, descansando o pescoço nas
costas do sofá macio. Coloquei as mãos atrás da cabeça, pensando em tudo
que estava acontecendo.
— Deveria ter contado — Ethan me alertou.
— Eu sei — suspirei.
— Mas tudo isso vai acabar, certo? Carlton já tem as provas — Ethan
perguntou calmo, voltando a beber sua cerveja.
— Espero que sim, Ethan — desejava com todas as minhas forças que
sim. — Carlton ainda vai precisar analisar tudo que achei lá, tem muita
coisa que não pode ser usada porque são consideradas provas ilegais pela
lei. Mas ele já me adiantou que Sylvia tinha evidência de como o esquema
inteiro funcionava. Na pior das hipóteses, ele consegue abrir a investigação.
Na melhor, o FBI vai fazer um arrastão na cidade e vão ter que construir
celas novas.
— Mia e Sophia? Estão seguras? — Thommy perguntou preocupado.
— Carlton está de olho nelas o tempo inteiro.
Eu também estava preocupado. O tempo inteiro ficava pensando que
precisava manter todo mundo no meu campo de visão. Mia e tia Sophia,
Triss, Liah, Olívia…
A campainha do loft tocou, me deixando surpreso.
— Tá esperando alguém? — Ethan perguntou com a testa franzida.
— Não. — Levantei do sofá indo até a porta para olhar pelo olho
mágico.
— É o Carlton — avisei a eles, estranhando o fato do meu tio aparecer
aqui.
Abri a porta, encarando o homem do outro lado. Sua expressão era
preocupada, quase derrotada. Senti um arrepio estranho e gelado na
espinha.
— O que aconteceu? — perguntei, vendo-o atravessar a porta e olhar de
mim para os caras largados no sofá.
— Ainda bem que estão todos aqui, assim já falo com os três de uma
vez. — Carl foi direto para a geladeira, que agora vivia abarrotada de
cerveja. Tirou uma de lá, abrindo a tampa com a mão. — Triss avisou que
vocês estavam aqui em cima.
— O que tá acontecendo? — perguntei de novo começando a ficar
ansioso.
— O cara que te ligou e ameaçou Triss e Liah era o Raphael Connor —
disse me encarando sério.
— O médico? — soltei um riso nervoso. Como não reconheci a voz dele
no telefone? Agora parecia fazer total sentido.
Ethan e Tommy se entreolharam preocupados quando Carlton tirou a
arma da cintura e colocou sobre a mesa ao lado da que ele me entregou
ontem. Meu tio se jogou no sofá, respirando pesado, encarando nós três de
um jeito irritado.
— Vocês se meteram nisso, mesmo quando eu insisti pra que não
fizessem — Carl reclamou erguendo as sobrancelhas. — Agora vão me
ajudar a segurar a barra. Bob pressionou Jasper mais do que deveria, ele
sabe que vai ser indiciado e talvez até preso. Eles vão agir, precisamos nos
preparar.
Engoli seco, sentindo meu corpo fraco. Minha respiração estava
acelerada de um jeito que não sentia tinha bastante tempo, senti a
dormência que começava na parte baixa da espinha e ia subindo devagar,
fazendo meu sangue esquentar e minha visão ficar turva. Desde o dia que
revi Camille, eu não tinha uma crise.
— Nathan!
Ethan me chamou, levantando e vindo até mim preocupado. Mas antes
que ele pudesse chegar até onde eu estava, já tinha me permitido acertar a
lateral da estante de ferro com meu punho. Senti a dor me atingir no mesmo
segundo.
— Para! — Carl me segurou pelo braço antes que eu pudesse acertar
outro soco. — Preciso de vocês conscientes para ficarem de olho nelas,
Nathan. Liah e Triss precisam de você.
— Você tá certo — disse, fazendo uma força astronômica para me
acalmar. — Liga para as meninas, Tommy, pede a elas pra virem pra cá.
Agora.
Maldita a hora que deixei Liah sozinha na ONG. Claro que isso não ia
acabar fácil assim.
— As provas não serviram, Carl? — Ethan perguntou alarmado. Por
mais que tentasse manter a sanidade, podia ver o terror estampado na cara
dele.
— Acabei de entregar o HD ao meu contato no FBI. É só questão de
tempo. O problema é que gente grande sabe que tenho esse material na mão
agora. Estão aumentando o tom de ameaça pra me fazer desistir.
— Não fizeram nada até agora, Carl. Acha mesmo que eles podem fazer
algo sério a elas? — perguntei desconfiado.
— Já fizeram uma vez, Nathan. — Meu tio me olhou de um jeito que
nunca tinha me olhado antes.
Seus ombros caíram e pude jurar que vi seus olhos brilharem pelo
acúmulo de água. Carlton permaneceu me olhando por longos segundos,
parecendo decidir se contava ou não alguma coisa. Uma careta incomoda
tomou seu rosto antes dele suspirar e abrir a boca para falar.
— Há quase quatro anos comecei a mexer nesse vespeiro, só que eu não
tinha preparo nenhum pra isso — Carl desviou os olhos de mim,
envergonhado. — Eles avisaram a primeira vez, avisaram a segunda e ainda
tiveram a misericórdia de avisar a terceira. O quarto aviso foi um vídeo seu
praticamente morto dentro daquele carro capotado.
Nada. Só silêncio. Nem a respiração de qualquer um que fosse era
ouvida no loft. Acho que era porque todos seguramos o ar, parando de
respirar por alguns segundos.
Eu tinha sido um aviso?
— Nathan, fala alguma coisa, por favor? — Carlton pediu nervoso.
Eu tinha sido a porra de um aviso?
— Nathan — Ethan tentou atrair minha atenção.
Eles quase me mataram para mandar um aviso ao Carlton?
— Cara — Ethan insistiu, sacudindo meu braço.
“… Te ensinando a não mexer mais com quem não deve…” Foi isso que
eles disseram.
Não era pra mim?
— NATHAN! — Tommy gritou na frente do meu rosto, me fazendo
encará-lo assustado.
Encarei Carlton, minha cabeça trabalhando a todo vapor, tentando
processar aquilo.
— O que teria acontecido se eu não tivesse dito a eles que era seu
sobrinho? — perguntei ansioso.
— Teriam ido atrás de Mia ou Sophia, talvez — Carl respondeu
inseguro, com a voz embargada. — Mas, provavelmente, você não teria
quase morrido aquela noite.
Minha cabeça estava muito cheia, quase sem capacidade de processar
novas informações. Mesmo assim, dois pensamentos tomaram conta de
tudo, sendo repetidos incessantemente na minha mente.
Primeiro: Das três opções para atingir Carlton, eu teria me jogado como
isca na frente de qualquer uma das outras duas.
Segundo: Liah nunca teve culpa.
— Quanto tempo até estarem todos seguros? — perguntei ao meu tio,
sentando-me no sofá.
— Acredito que amanhã no fim do dia a gente já tenha alguns mandados
de prisão preventiva e a coisa vai começar a feder. Mas todos aqueles
documentos são passíveis de contestação e investigação. Não vai ser algo
rápido. — Carlton avisou. — São suficientes pra liberar as contas e os bens
das empresas da Liah ainda essa semana, mas não da Vittorino Company.
Sugiro que avisem as meninas do perigo. Seria bom se todos ficassem
juntos por alguns dias, até a gente saber como vão reagir a isso tudo.
Separador
Abri a porta quando a campainha soou, vendo Evie, Karol, Olie e Liah
entrarem uma atrás da outra. Liah me deu um beijo rápido na boca, olhando
desconfiada para mim e para os meninos.
— O que está rolando? — perguntou assim que nos viu apreensivos.
— Melhor vocês sentarem. E já aviso que é coisa demais para absorver
de uma vez só — foi Ethan quem explicou.
Evie e Olie sentaram no tapete, puxando almofadas para cima delas. Liah
sentou-se na poltrona menor, próxima a grande janela e Karol só cruzou os
braços encostando o corpo na parede ao lado do sofá, me encarando.
— Por que acho que vocês fizeram merda?
— Não é merda exatamente — nos defendi. — Conversei com o Carl
sobre a investigação da ONG.
— As provas serviram? — Liah perguntou esperançosa.
Merda. Eu não queria tirar as últimas esperanças dela. Respirei fundo,
tomando coragem para contar de novo toda a história que Carl havia me
contado.
Expliquei a elas sobre o tal esquema que envolvia gente grande na
polícia e na prefeitura, e sobre como esses caras pressionavam Sylvia para
aceitar tudo que eles impusessem. Liah já sabia da maior parte dessas
informações.
Também contei sobre as ameaças, elas precisavam saber sobre o perigo
que estávamos correndo.
— Carlton sabia disso tudo? — Olie perguntou em choque.
— O HD que achamos ontem, Liah, foi entregue hoje ao FBI — contei.
— Mas até que tudo se desenrole, precisamos ficar juntos. Carl vai arrumar
uns seguranças para a gente também.
— Isso é tão absurdo — Liah se jogou de costas no sofá. — Que justiça
de merda, tudo demora nesse mundo.
— Por isso o ideal seria ter alguma coisa incontestável, que botasse
alguém deles na cadeia na hora — expliquei. — Carlton queria prender
Jasper, um dos policiais mais antigos da cidade. Ele acha que Jasper é
covarde a ponto de entregar todo mundo acima ou abaixo dele nesse
esquema.
As meninas suspiraram, entendendo o quanto seria difícil nos livrarmos
daquele risco.
— Tem mais uma coisa que preciso te contar, Liah. — Olhei para Ethan
e para Tommy. Eles tentavam me incentivar com o olhar, mas nada do que
eles pudessem me dizer, me faria ficar tranquilo com aquilo.
— E pelo seu tom, é uma coisa ruim. Estou certa? — Liah voltou a
sentar, me encarando ansiosa.
Nathan, você é um idiota.
Ela me fez prometer. Tive inúmeras oportunidades de contar isso a ela,
não queria estar fazendo só para que elas entendessem a dimensão do
problema. Liah ia ficar arrasada, e isso me faria ficar arrasado também.
— Porra. Juro que só não te contei isso antes porque Carlton pediu para
não fazer — avisei antes mesmo de dizer a ela a verdade. — Depois fiquei
com medo de como ia reagir…
— Nathan, por favor, fala de uma vez — Liah pediu, mordendo a parte
interna da bochecha.
— O incêndio que matou sua avó, não foi um acidente. Colocaram fogo
na mansão premeditadamente — soltei de uma vez.
— Como assim, Nathan? — Vi a confusão estampada em seu rosto. —
Você está dizendo que colocaram fogo na minha casa? De propósito?
— Foi — engoli seco, vendo o acumulo de lágrimas nos olhos dela.
Senti meu coração se partir à medida que a dor foi ficando mais evidente.
— A polícia achou dois galões de gasolina jogados na entrada da floresta,
atrás da casa. Não existe outro motivo evidente para o fogo ter tomado tudo.
Não foi curto na fiação como disseram. — tive vergonha de continuar
olhando em seus olhos. Eu deveria ter contado isso a ela quando soube.
Um longo silêncio se estabeleceu na sala. As meninas me encaravam
sem piscar. E eu não tinha nem ideia do que fazer.
— A quanto tempo você sabe disso, Nathan? — Liah perguntou incerta.
— Eu soube no dia que fez um mês da morte da Sylvia — contei sincero.
Liah se levantou da poltrona com calma, conferiu alguma coisa na tela
do celular e puxou sua bolsa largada no chão ao lado do sofá.
— Eu preciso sair daqui — disse baixo, seguindo até a porta.
— Liah, espera — pedi, indo até ela.
— Não, Nathan, para! — a garota me olhou com raiva. — Você me
escondeu isso por meses. Eu te pedi ontem, implorei pra não esconder mais
nada de mim. Você sabe o efeito que isso causa em mim, sabe que odeio
que me escondam as coisas nessas tentativas ridículas de proteção. Você
concordou. Você prometeu, Nathan. E você só está me contando isso agora,
por causa de um risco que está crescendo.
— Liah…
— Acha justo eu saber que minha avó foi assassinada na mesma noite
que vocês contam que estamos todos sendo ameaçados de verdade? — Liah
fechou os olhos e duas lágrimas escorreram pelo seu rosto. — Minha avó
morreu há meses, assassinada. Ela era tudo que eu tinha na vida e agora me
tiraram isso também. Eu estou sozinha, Nathan. Sozinha.
Você não está sozinha, Liah. Você me tem. Mesmo que não me queira
mais, eu sou seu!
— Liah, eu…
— Eu preciso de ar.
Liah saiu do loft, batendo a porta da frente com força.
— Eu sabia que isso ia acontecer — reclamei, socando a parede de tijolo
da sala.
Evie levantou do tapete correndo, segurando meu punho antes que eu
pudesse socar mais uma vez a parede.
— Não sei como você ainda tem mão, Nathan. Você precisa parar de sair
por aí socando as coisas…
— Um de vocês precisa ir atrás dela — avisei a Ethan e Tommy,
cortando o sermão de Evie. — Ela não pode ficar sozinha por aí…
— NATE! NATE! — antes que eu pudesse continuar, Triss apareceu no
loft, atravessando a porta correndo. — Sei que você pediu para que eu
ficasse lá embaixo, mas você precisa ver isso.
A garota largou o notebook em cima do Home Teather, tirando um cabo
de trás da TV e conectando no computador, atraindo a atenção de todo
mundo.
Triss tremia quando finalmente pegou o controle, ligando a televisão.
Uma rua escura apareceu na tela. Alguns segundo depois, um carro de
polícia parou em frente a um poste, no fim da rua, e então eu tinha
intendido tudo.
Por alguns segundos, sete pares de olhos se perderam nas imagens. Os
dois caras descendo a porrada sem dó ou qualquer peso na consciência em
mim.
— Caralho, Triss — olhei em choque para a tela. Acho que todo mundo
estava em choque. — Onde você conseguiu isso?
— Estava com os vídeos da Sylvia. Eu trouxe uma cópia pra casa e
resolvi assistir todos eles. Olha isso. — Triss apontou para um número de
identificação no canto inferior direito da tela. — São números diferentes pra
câmeras diferentes. Tem mais câmeras além daquelas da loja. Essa estava
instalada naquela rua, num prédio que funciona um estacionamento.
Triss me mostrou um papel impresso que estava em sua mão. Era o
registro de uma empresa.
— Pesquisei os dados do estacionamento, e o proprietário é Walter
Thompson. Ele trabalhava pra Sylvia.
Olhei para o registro da empresa, e o nome do proprietário. Esse era
aquele assistente que vivia com a Sylvia para todo lado.
— Bem, pelo menos agora você pode colocar esses caras na cadeia. —
Olie comentou. — A gente precisa achar algo que acelere a investigação do
Carlton…
— Isso ajuda — Interrompi. Eu não havia contado a elas que Jasper era
um dos caras que me espancou há três anos. — Esse cara, o grandão, é o
Jasper.
— Irmão, como você sobreviveu a isso? — Ethan perguntou, engolindo
seco quando uma barra de ferro pesada acertou minha cabeça.
— Nate! — Olivia suspirou, se encolhendo embaixo do braço de Ethan.
— Tira isso, Triss — pedi, sentindo uma queimação estranha no
estômago.
Triss correu para fechar a janela do vídeo, antes que a situação ficasse
pior, porque acredite, ficava ainda pior.
As seis pessoas na sala me encaravam aterrorizadas. Eu odiava essa
sensação, quando as pessoas me olhavam sabendo sobre algo tão íntimo e
difícil que eu tivesse passado. Ver, de fato, aquelas imagens, só faria com
que a pena que sentiam de mim, aumentasse.
— O cara que te bateu, é o mesmo cara que está por trás de tudo isso? —
Tommy perguntou, sentando no sofá totalmente desnorteado. — Por isso
Carl estava tão preocupado quando contou que você foi um aviso anos
atrás. Esse cara pode fazer isso de novo.
Assenti, escorando o corpo, no balcão da cozinha. Senti a sensação
conhecida do formigamento na espinha começar a tomar conta de mim.
Respira, Nathan.
Ethan e Thommy estavam aqui quando Carlton contou, mas as meninas
não sabiam daquilo, até então. Olie e Karol arregalaram os olhos,
entendendo como aqueles fatos todos se ligavam. Meu coração acelerou
ainda mais, me deixando ofegante e precisei fechar meus olhos para conter
a agitação. Respira, porra!
— Evie, vai com a Triss lá pra baixo — Ethan pediu, sacando meu
estado. — Agora! — brigou quando nenhuma das duas se moveu.
Evie finalmente puxou o pulso de Triss, saindo pela porta e senti que
podia estourar. Mas, imprevisivelmente, me senti lúcido e calmo de repente.
— É uma prova válida — o peso daquela afirmação me atingiu. — A
gente tem que levar isso pro Carl agora.
Peguei o notebook de Triss e a chave do carro jogada no balcão.
Aproveitei para conferir se o revólver ainda estava preso no cós da minha
calça. Carl tinha me feito prometer que deixaria no porta-luvas do carro,
mas de que adiantaria se viessem atrás de mim?
— Nate, você está bem para dirigir? — Tommy questionou desconfiado.
— Pode acreditar que sim — afirmei. — Olie, pede ajuda da Triss, reúne
tudo que vocês puderem que seja válido. Eu estou indo falar com o Cal.
Tinha vindo na delegacia só essa semana, mais vezes que vim em toda
minha vida. Desci do carro, consciente de que poderia dar de cara com
Jasper de novo. Mas dessa vez, eu tinha controle das minhas emoções. Ia
colocar esse filho da puta na cadeia de uma vez por todos.
Carlton estava me esperando na porta. Liguei para ele me encontrar aqui,
já que não estava em horário de trabalho.
— Bob está nos esperando — avisou.
Quando liguei no caminho, contei ao meu tio o que Triss achou entre os
vídeos de Sylvia.
— Se Bob não fizer nada dessa vez, vou jogar o vídeo na internet —
afirmei, decidido sobre aquilo.
Se não tivesse o apoio das autoridades, teria do povo da cidade e talvez
até do mundo se o vídeo ganhasse repercussão.
Ao contrário do que esperava, Carlton não me repreendeu por aquilo.
Apenas suspirou, passando seu cartão no leitor que dava acesso à área
restrita da delegacia.
Caminhamos em silêncio até a sala no fim do corredor estreito. Bob
estava em pé em frente a mesa branca cheia de papel empilhado, analisando
algum documento.
— O que aconteceu? — perguntou quando percebeu nossa presença no
corredor. — Me ligou nervoso, Carlton.
— Vou economizar minhas palavras, Bob. Nathan vai nos mostrar um
vídeo. — Carlton me indicou a cadeira em frente a mesa.
Sentei, esperando Bob dar a volta e sentar em seu lugar. O homem me
olhou em expectativa enquanto eu ligava o notebook e acessava a pasta com
o vídeo que Triss havia achado. Senti meus dedos tremerem quando apertei
o play, virando a tela para ele.
Graças a Deus, aqueles vídeos não tinham som. Só de imaginar o que
eles poderiam ouvir se tivesse.
O Xerife ficou alguns bons segundos olhando as imagens que
transcorriam pela tela. Em algum momento, uma careta de desgosto tomou
a face gorducha dele e logo foi substituída por um pequeno sorriso.
— Desgraçado! — Bob começou a gargalhar alto. — Que grande filho
da puta.
O homem continuava rindo, olhando atentamente as cenas que se
seguiam. Procurei Carlton com os olhos, sem entender a reação dele.
— Bob…
— Ele me jurou, em nome da mãe dele, que nunca encostou um dedo em
Nathan, Carl — Bob disse sério, voltando a rir de repente. — Criei esse
garoto, Carlton — disse com dificuldade em meio aos risos exagerados. —
Aonde conseguiram isso? — perguntou enquanto me olhava intrigado,
finalmente se acalmando.
— Sylvia tinha umas câmeras caseiras nas lojas e espalhadas em
propriedades que eram dela — expliquei. — Essa, especificamente, estava
num estacionamento nessa rua que é do Walter Thompsom. Ele era
assistente dela, vivia com Sylvia por aí.
— Vamos precisar do depoimento dele.
— Consegue falar com esse Walter? — Bob me perguntou.
— Posso tentar
— Eu falo com ele — Carl avisou, tirando seu celular do bolso.
— Você tem contato com ele? — perguntei confuso.
— Quem você acha que me ajuda a descobrir essas coisas que Sylvia
deixou sem explicação?
Aproveitei sua distração para tentar falar com Liah e saber se estava
segura, mas a chamada sempre era redirecionada.
'O número que você ligou está desligado ou fora da área de cobertura'.
A voz robotizada soou do outro lado. Merda, Liah!
Digitei o número de Olívia, esperando que ao menos ela me atendesse.
— Oi, Nathan — escutei a gritaria de fundo. Provavelmente, eles ainda
estavam no loft.
— Alguém sabe da Liah? — perguntei nervoso. — Ela está com o
celular desligado, não consigo falar com ela.
— Ela tá no hotel. Me avisou assim que chegou por lá.
— Estou preocupado com ela sozinha, Olie — reclamei.
— Liah tá bem, Nathan. Tá trancada no quarto e deve ter desligado o
celular pra evitar falar com você.
Era horrível ter que concordar com Olívia, mas era verdade. Liah saiu do
loft muito puta comigo por esconder aquilo por tanto tempo dela.
— Me avisa se ela der notícia, por favor — pedi.
— Tá bem — Olie desligou.
Suspirei preocupado, vendo Bob e Carlton discutirem sobre o vídeo.
Tudo que eu queria era ver Jasper atrás das grades com todo mundo que
havia ameaçado minha família, minha namorada e meus amigos.
— Carl, consegue algum segurança pro hotel da Liah? — pedi
preocupado. — Ela está irritada comigo e saiu apressada lá de casa mais
cedo.
— O que você aprontou com ela? — perguntou me olhando desconfiado.
— Contei a ela sobre o incêndio da Sylvia ter sido criminoso —
expliquei. — Acho que escondi dela por tempo demais.
— Bob, vou mandar alguns homens pra lá, ok?
Bob concordou, voltando a olhar os documentos que Carl havia
espalhado em cima da mesa dele.
— Jasper está mesmo envolvido nessa porra toda? — Bob olhou Carl
por cima do óculos.
— Eu entendo você, Bob. De verdade. — Meu tio o tranquilizou com
uns tapinhas no ombro. — Agora precisamos recuperar o tempo perdido.
— Nathan, desculpa não ter dado o crédito que devia a Carlton anos
atrás — Bob pediu, levantando os olhos em minha direção. — Nunca
imaginei que Jasper seria mesmo capaz disso.
Dei de ombros, aceitando suas desculpas. Se tinha uma coisa que havia
aprendido nos últimos meses era a não culpar mais as pessoas sem entender
o lado delas.
Ethan e Olívia tinham me ligado, pedindo que eu fosse até a ONG para
me mostrarem todos os vídeos que acharam e que entendiam poderem ser
provas.
Passei quase uns trinta minutos entendendo o material, preocupado com
o fato de Liah ainda não ter aparecido na ONG. A esse horário,
normalmente, ela já estaria aqui a bastante tempo. Eu já tinha ligado
algumas vezes para ela desde que acordei, mas em todas ela ignorou
totalmente minhas chamadas. Estava começando a ficar desesperado com o
silêncio dela.
— Vou pegar um café — avisei a eles, saindo da sala. Precisava de um
pouco de ar puro.
Caminhei pelos corredores, me corroendo por dentro. Estava quase
decidindo ir atrás dela no hotel. Era uma merda tentar dar tempo para ela
pensar. E se Liah decidisse que não queria estar com alguém que escondia
coisas dela?
Porra. Não posso pensar nisso.
— Está tudo bem, Nathan? — Dinna perguntou ao me ver encostar na
porta de entrada da ONG, totalmente perdido em pensamentos.
— Tá sim. — Tentei sorrir para ela, mas acho que foi meio falho. Não
conseguia colocar o mínimo esforço naquilo.
— Liah acabou de chegar.
— Agora? Eu não a vi. — Só tinha um corredor, como Liah passou por
mim e eu não vi?
— Ela estava conversando com a professora de Artes. Devem ter se
desencontrado no corredor.
Uma movimentação do lado de fora, chamou minha atenção. Duas
viaturas estacionaram do outro lado da rua, e Jasper saiu de uma delas.
Que merda ele estava fazendo aqui?
Dei alguns passos de volta para trás, voltando para dentro da recepção.
Precisava avisar ao Carl sobre isso. Bati a mão no bolso percebendo que
deixei meu celular na sala de Liah.
— Dinna, posso usar o telefone? — pedi, já me enfiando atrás do balcão,
tirando o telefone do gancho.
Disquei o número de Carlton, pedindo a Deus que ele atendesse rápido.
Jasper e os dois homens que estavam com ele atravessaram a rua em
direção a ONG. Virei de costas esticando o fio do telefone até que tivesse
na sala da secretária.
— Alô — Carl atendeu, confuso. Provavelmente por um número
desconhecido ter seu contato pessoal.
— É o Nathan. Jasper está na ONG — avisei, quase num sussurro ao
perceber que eles já estavam aqui dentro.
— Merda, ele foi rápido. Nathan escuta bem, fica longe dele, tá me
ouvindo?! Não quero você envolvido nessa merda. Ele vai tentar levar a
Liah.
— E você quer que eu fique longe? — questionei alarmado. — Tá de
sacanagem?
— Escuta, o FBI tá movendo uma operação gigante pra ONG agora, só
fica longe dele até eu chegar aí.
— Sinto muito, Carl. Mas não vou nem me dar ao trabalho de mentir pra
você dessa vez.
— Porra, Nathan…
Desliguei o telefone, sem dar muita atenção ao que ele ainda reclamava
do outro lado e pude ouvir Dinna estressada com os homens na recepção.
— ... Mas não posso deixar vocês entrarem aqui sem um mandado...
— A senhora gostaria de ser presa por desacato a autoridade? — o idiota
perguntou a ela, cheio de ego.
Ah, Jasper. Você não sabe o que te espera.
Dinna se deu por vencida, andando depressa pelo corredor e os três
homens seguiram atrás dela.
Mal entrei no corredor e percebi que as pessoas já se aglomeravam ali
para ver o que estava acontecendo. Os dois policiais que estavam com
Jasper montaram guarda na porta enquanto ele e Dinna sumiam na sala de
Liah.
Meu coração começou a bater alucinado. Eu estava cego pelo medo, mas
tentava me manter lúcido e calmo, precisava raciocinar e pensar no que
faria para que ninguém saísse daqui machucado e Jasper fosse preso.
Também tinha receio dos meus sentimentos, porque se ele pensava que ia
encostar a mão em Liah e sair daqui vivo para contar a história, ele estava
muito enganado. Nem sei o que seria capaz de fazer se ele a machucasse.
Os dois policiais me encararam de cara fechada quando parei em frente a
eles. A porta estava fechada, mas podia ouvir a agitação e os gritos
nervosos de Dinna lá dentro.
— Eu vou entrar — avisei calmamente aos dois policiais que sempre via
na delegacia.
Estendi a mão até a maçaneta e um deles esticou o braço travando o
caminho. O outro policial me encarou por alguns segundos, até que deu um
empurrão leve no braço do colega, acenando com a cabeça em confirmação
para ele, que abaixou o braço me dando acesso à porta. Devia ser um dos
que estavam no lado de Cal.
Assim que eles saíram da frente da porta, escutei Ethan reclamando com
alguém que estava machucando Liah. A irritação e a raiva subiram à cabeça
e abri a porta, batendo a madeira com força contra a parede.
— Tira a mão dela, Jasper! — Quando meus olhos bateram nas mãos
dele, segurando os pulsos delicadas de Liah para trás, eu sabia que só
existiam duas possibilidades para ele.
Ou ele saía daqui preso, ou saía morto.
Liah
Capitulo 36
03 de setembro de 2019
Carlton foi até meu hotel ontem à noite. Confesso que fiquei com a
consciência pesada quando me contou que Nathan tinha ficado horas na
delegacia ajudando a montar as provas do inquérito. Ele também me contou
que acharam um vídeo de quando Nathan foi espancado, e isso destruiu
meu coração.
Mas ainda me incomodava o fato dele ter me escondido todo esse tempo
a verdade por trás do incêndio que matou minha avó.
Ontem à noite, recebi três ligações dele, mas não consegui atender. Não
tinha certeza ainda sobre como estava me sentindo com aquilo. Na verdade,
eu estava muito cansada das pessoas tentarem me proteger de tudo. Me
manter no escuro não era, nem de longe, a melhor forma de me manter em
segurança.
Olhei para o diário antigo em cima da mesa. Carlton havia me entregado
quando voltaram da mansão dizendo estar no meio das coisas que acharam.
Na primeira página tinha uma espécie de dedicatória, escrita na letra
elegante e bonita de vovó.
“ Para Liah, minha neta amada.
Espero que eu não esteja morta, mas se esse for o caso, você está lendo
isso.
Me perdoe. Sei que você odeia quando escondo as coisas de você, mas
dessa vez, preferi te ver chateada do que machucada ou morta.
Aqui você encontrará todas as respostas.
Não esqueça que te amo, e que o amor é irreversível. Só não o deixe
virar ódio.
Mas não esqueça que o ódio também pode virar amor.”
Não tive coragem de ler o conteúdo. Só a mensagem inicial já tinha sido
suficiente para acabar comigo. Joguei o caderninho na bolsa e saí super
atrasada para o dia.
Assim que cheguei na ONG, sabia que o dia seria difícil e complicado.
Pelo menos você conseguiu dormir, Liah.
Olívia já estava na minha sala, junto de Ethan e Karol quando atravessei
a porta da minha sala.
— Bom dia, Liah. Finalmente tivemos algo a nosso favor, não é?
— Uma vitória no meio de tanto caos precisa ser reconhecida —
reconheci, tomando meu lugar à mesa. — Chegaram cedo — observei os
papéis espalhados sobre minha mesa, tentando compreender o que eles já
estavam tramando logo pela manhã.
Ethan me encarou sorrindo orgulhoso.
— Estamos montando toda uma linha temporal com as imagens que
temos. A gente está funcionando bem junto aqui desde muito cedo. Vamos
entregar um relatório mastigado e completo ao Carlton.
— Uau! — soltei espantada. — Eu tenho os melhores amigos desse
mundo — brinquei.
De qualquer forma, era verdade mesmo, eu tinha os melhores comigo.
— Nate foi buscar café — Karol avisou. — Achei até que vocês teriam
se esbarrado no corredor.
Engoli seco. Não estava preparada para lidar com ele tão cedo hoje.
Tentando não pensar nisso, comecei a olhar a documentação e as anotações
de Ethan sobre a mesa. Alguns minutos depois, um tumultuo do lado de
fora nos chamou atenção.
Dinna entrou correndo em minha sala, respirando pesado enquanto
apoiava a mão no coração.
— Liah, tem uns oficiais aqui fora…
— Lianah Vittorino? — um homem alto e muito grande atravessou a
porta, tirando um distintivo do bolso e quase esfregando no meu rosto.
Assenti, vendo todos olharem assustados para o brutamontes. — Sou Jasper
Mackaleen, da polícia local. Você está presa, em caráter preventivo! — O
homem veio até mim, me puxando pelo pulso.
Senti meu corpo congelar.
Eu quase não podia me mover. Algo na forma como aquele homem
chamou meu nome, me fez desenterrar lembranças doloridas que me
atingiram num lugar escuro e profundo da parte mais quebrada da minha
alma.
— Porque ela está sendo presa? — ouvi Dinna perguntar alto demais.
Como assim presa?
Eu havia acabado de conseguir todas aquelas provas… minha cabeça não
conseguia funcionar direito. O homem me levantou de forma bruta,
puxando uma algema do bolso de trás. Olhei horrorizada para Ethan.
— Calma, cara, vai machucá-la assim — Ethan pediu.
Todos eles estavam sem reação. O homem puxou meus braços para trás,
colocando força demais no processo.
— Tá me machucando… — reclamei.
— Tira a mão dela, Jasper! — Um baque alto soou quando a porta foi
aberta bruscamente e Nate entrou na sala irritado. Seu semblante
demonstrava um ódio que não via ali a algum tempo. — Juro por Deus que
se você encostar um dedo nela… — ele caminhou rapidamente até mim e
me puxou pelo braço, me abraçando em seguida.
Os dois homens se encararam durante alguns segundos, até que um
sorriso nojento e sarcástico começou a crescer no rosto do policial.
— Vai fazer o que, Nathaniel? Estou prendendo essa mocinha em caráter
preventivo. Ela está interferindo na investigação…
— Cadê o mandado? — Nathan interrompeu o homem. Me agarrei ainda
mais a ele, afundando o rosto em seu peito, com medo de que o policial
realmente me levasse. — Carlton está muito à frente de vocês, Jasper. Você
só está desesperado porque sabe que vai cair.
Levantei os olhos, encontrando o olhar cheio de ira dele. Nathan
mantinha os olhos cravados no homem às minhas costas. Ouvi a risada
sinistra do homem e um brilho estranho passar pelos olhos de Nathan. Eu
conhecia aquela reação.
— Nathan — chamei baixo, esperando que ele olhasse para mim, mas
Nate continuou a encarar o policial.
— O Bob sabe que você está aqui pra prender a Liah? — Nathan me
afastou um pouco, olhando para Ethan em seguida. — Ethan tira a Liah
daqui. O Carlton já deve estar chegando. — Ethan me puxou com
delicadeza, dando alguns passos em direção à porta da sala comigo.
— Nate, não — reclamei, me agarrando a sua blusa. — Por favor, não
fica aqui — Algo me dizia que esse cara era perigoso. Ainda mais se ele
estava mesmo tentando me prender ilegalmente.
Os dois homens continuavam se encarando com ódio. Poucas vezes vi
Nathan olhar alguém dessa forma. Ele costumava olhar assim para mim no
início, quando ainda me culpava por tudo.
— Petterson, Petterson. A surra que eu te dei alguns anos atrás não foi
suficiente pra você aprender? — Ethan, que ainda tentava me tirar da sala,
estancou no lugar, me soltando totalmente.
Filho da puta! Aquele maldito era um dos policiais na viatura aquela a
noite.
Nathan mantinha seu rosto compassivo. Nenhuma expressão aparecia ali,
além daquele brilho perigoso no olhar.
— O garoto que você espancou aquela noite não existe mais, Jasper.
Olivia e Karol correram para o meu lado, me olhando em choque,
quando Ethan parou na defensiva ao lado de Nathan.
— Vocês precisam sair daqui. Agora.
As meninas praticamente se atiraram comigo para fora da sala, fechando
a porta logo em seguida. — Vocês estão malucas? — gritei, desesperada.
— Vocês vão mesmo deixar aquele homem lá dentro com eles? Ele tem
uma arma. Vocês não viram isso? — tentei voltar para a porta, mas Olie me
agarrou pelo braço, precisando usar muita força para me segurar.
— LIAH, PARA! — Olívia gritou, apontando o corredor.
Carlton estava correndo em nossa direção junto de um homem barrigudo
que nunca tinha visto.
— Onde está o Nathan? — Carl perguntou preocupado.
— Ele e o Ethan estão lá dentro com aquele homem… — tentei explicar
nervosa, mas Carl já estava abrindo a porta da sala feito um louco.
Tentei espiar o que estava acontecendo lá dentro quando o homem
barrigudo me olhou feio, entrando na sala e fechando a porta com força.
Outro policial se prostrou a minha frente, mantendo guarda na entrada.
Que merda. Eu precisava entrar lá.
Nathan
Capitulo 37
03 de setembro de 2019
— Você continua não passando de um garotinho pra mim, Nathaniel. Eu
devia ter acabado com você quando tive a chance.
Devia mesmo.
— Vai fazer o que, Jasper? — Passei as mãos no cabelo nervoso,
preocupado com Liah e as meninas do lado de fora. — Atirar em mim? —
perguntei ao vê-lo levar a mão ao coldre em sua cintura. — Vai fundo.
Acaba de vez com sua carreira.
O homem bufou irritado, soltando a mão da arma. Ethan me olhou de
esguelha, com uma pergunta silenciosa nos olhos. Eu sabia o que ele queria
descobrir, mas estava tentando ganhar tempo para que fosse flagrante.
Assenti de leve, esperando que ele percebesse.
Os olhos de Ethan desceram até o volume quase invisível por baixo da
minha blusa. Desde que Carlton me entregou aquela arma, ela vivia comigo
para onde quer que eu fosse.
Jasper sentou-se na cadeira atrás de si, apoiando os pés sobre a mesa.
— Você sabe que é questão de tempo até eu convencer o Bob que essa
garota é corrupta igual à avó, não é?
Timing perfeito. A porta do escritório foi aberta num estrondo, enquanto
a raiva tomava alguma proporção desmedida em mim.
— Nathan, para — Carl segurou meu punho pronto para acertar o rosto
do babaca a minha frente, distraído pela confusão na porta. — Não vale a
pena.
Jasper arregalou os olhos no segundo seguinte, quando Bob também
entrou na sala pequena.
— Bob?!
— Eu tentei não acreditar no Carl, Jasper. Era absurdo demais pensar
que um dos meus melhores agentes era a cabeça por trás desse esquema
sujo — Bob sacudiu a cabeça decepcionado.
— O quê? Não Bob… eu consegui que a Juíza expedisse um mandado
preventivo de prisão. Eles não vão mais poder interferir na nossa
investigação, a gente está tão perto de acabar com essa farra.
— Jasper! — Bob interrompeu o outro. — Para com isso. Eu vi o vídeo
onde você e o Eliot espancavam Nathan. Sylvia deixou milhares de vídeos
seus e de seus amigos em atividades ilícitas no clube.
— Você entendeu errado, Bob… — Jasper tentou se explicar,
levantando-se depressa da cadeira. — Eu não sei o que esse homem te
falou, mas…
— Acabou, Jasper — Bob anunciou mais ríspido. — Me entrega a arma
e o distintivo…
Antes que Bob pudesse terminar, Jasper sacou a arma apontando para
ele.
— Você não pode acreditar nele, Bob!
Droga. Aquele homem era totalmente louco e sem limites. Pelo menos
Liah e as meninas estavam fora da sala. Ethan me olhou preocupado, e olhei
para os lados, tentando pensar em alguma saída onde ele não atirasse em
ninguém.
Merda, Nathan. Pensa em alguma coisa.
Jasper começou a se desesperar, apontando a arma para todos os lados
enquanto falava.
— O que está acontecendo, Bob? Já te falei que não existe prova
nenhuma contra mim…
— O FBI tem todas as provas, Jasper. Vocês subestimaram demais
Sylvia Vittorino.
— Então é isso. A velha entregou mesmo a gente? — Jasper socou a
mesa, andando de um lado a outro nervoso. — Você acha que o salário de
um policial de merda aqui é capaz de sustentar alguém? Se eu não ajudasse
a criar esse esquema, nunca teria dado uma vida melhor a minha família,
Bob.
— Você ameaçou e matou pessoas, Jasper. Você quase matou o
Nathaniel alguns anos atrás. E eu suspeitava disso a um tempo, mas preferi
acreditar em você. — Bob levantou os braços, se protegendo, dando alguns
passos em direção ao homem.
— Não se aproxima. Quero sua arma e do Carlton em cima dessa mesa,
agora — o homem gritou, mantendo a mira da arma sobre Bob. — Eu não
vou sair daqui preso. Quero uma garantia de que vou poder sair daqui. Se
não, eu vou atirar. — Jasper engatilhou e apontou a arma para mim quando
terminou de falar.
— Não precisa disso — Carlton retirou sua arma do coldre, pegando a de
Bob logo em seguida. As duas armas foram deixadas em cima da mesa
enquanto Carl se afastava a passos curtos para trás. — Você só vai piorar
ainda mais sua situação, Jasper.
— Eu não vou ser preso! — Jasper grunhiu, sua respiração cada vez
mais irregular. — Aquela putinha da neta da Sylvia só precisava ter
aceitado o esquema — sua constatação baixa e desesperada parecia mais
uma conversa com ele mesmo.
— Lava sua boca pra falar da Liah, seu merda! — Ethan me segurou no
lugar quando tentei ir para cima dele.
Jasper riu, erguendo uma sobrancelha em deboche.
— Sylvia foi coagida por vocês, não foi? Você causou o incêndio? —
Bob questionou encarando o homem a sua frente.
Ele continuou a rir perversamente enquanto encaixava as outras duas
armas, deixadas sobre a mesa, no cós de sua calça.
— Aquela velha queria sair do esquema depois de anos. Não fui eu quem
decidiu apagar a riquinha. Tem gente muito mais acima de mim nisso.
— Jasper, se você…
— CALA A BOCA! — Jasper berrou socando a mesa. — Bob, você não
está numa posição de liderança aqui, caso ainda não tenha percebido. Quero
vocês quatro juntos, fica mais fácil decidir em que direção atirar primeiro.
O policial fez sinal para que nos juntássemos em um canto da sala. Olhei
apreensivo para Ethan tentando achar alguma saída.
— Jasper, você pode colaborar…
— Eu não sou idiota, Carlton. Sei muito bem como esses acordos
funcionam. E é por isso que eu vou ditar o único acordo possível aqui. Eu
vou sair daqui com um de vocês, pegar um carro lá fora, e vou até algum
ponto seguro sem ninguém me seguindo, a partir daí, vou fugir e seguir
minha vida. Se algum de vocês vier atrás de mim ou se eu for preso, tem
gente muito maior que eu, que pode terminar isso para mim. Aliás, só nesse
prédio tem duas provas do que pode acontecer se tentarem nos parar. E a
terceira acabou a sete palmos do chão.
— Duas? O que quer dizer com isso? — perguntei nervoso.
Eu era uma, sabia disso. Sylvia estava morta. Será que tinha acontecido
alguma coisa com as meninas do lado de fora?
— Não te contaram, Nathaniel? Os crimes nessa cidade costumam ser
bem comentados. Se você não sabe, é sinal de que nossos subornos
funcionam bem. A velha Vittorino colaborou pra abafar dessa vez, mas
confesso nunca ter imaginado que Carlton esconderia algo tão relevante de
você. É no mínimo curioso que você esteja com essa garota agora,
resolveram chorar os traumas do passado um no ombro do outro?
— Do que ele tá falando, Carl? — Minha mente anuviada não me
permitia pensar direito, embora meu instinto praticamente gritasse na minha
cabeça a última coisa que queria escutar agora.
— Conta a ele, Carl.
— Jasper, cala a porra dessa boca! — Carl gritou, socando a parede atrás
dele.
Encarei os dois homens, desejando com tudo que tinha que eu estivesse
ficando louco. Eu estava lutando para não deixar nenhum daqueles
pensamentos tomarem forma em minha cabeça.
Claro que eu estava errado, eu tinha que estar.
Jasper me encarou por alguns segundos, sorrindo amargamente, numa
resposta muda que fez meu corpo inteiro vibrar com a raiva repentina.
— Foi você? — As palavras saíram arranhando minha garganta.
— Nathan, é melhor não…
— Para, Carl! — gritei a plenos pulmões. — Foi você? — perguntei de
novo a Jasper.
Um sorriso imundo se abriu em seu rosto, me fazendo ter a certeza de
que ele merecia mesmo a morte.
— Tenho certeza que você já contou pra ela como foi ter a cara quebrada
por mim. Mas ela já te contou como foi bom gemer de dor pra mim
enquanto eu transformava aquela garotinha em uma puta de verdade?
Vermelho.
Aquela era cor que eu enxergava agora. Ethan nem sequer sabia o que
tinha acontecido, mas segurou meu braço ao entender o que estava rolando.
— Se você for pra cima dele agora, ele vai atirar. Usa a cabeça.
Você vai morrer, Jasper. Eu mesmo vou te matar.
— Nathan — Carl me chamou confuso, a surpresa de não ter partido
para cima dele ainda, estava estampada em seu rosto.
Evie havia feito a melhor coisa possível para mim quando me fez
entender como era bom direcionar a raiva. Eu nunca quis tanto explodir
como queria agora. A raiva crescia em espiral pelo meu corpo, tomando
cada célula minha. De repente, meu corpo inteiro tinha consciência do
revólver preso no cós da minha calça.
Jasper continuava me encarando com o sorriso debochado e maldoso.
Sustentei seu olhar, sentindo que aquele homem era louco e cometeria uma
loucura sem precisar de muito. Por hora, só precisava que Carlton e Ethan
estivessem longe daqui e daquele perigo. Então eu poderia me resolver com
ele.
— Só vocês chegaram? — perguntei a ele baixinho, mesmo com Jasper
reclamando do meu questionamento sussurrado.
Se a operação do FBI já estivesse aqui, ele não iria muito longe, mesmo
que eu já estivesse morto.
Carlton fez um sinal negativo com a cabeça, e eu esperava que tivesse
entendido certo.
— Vamos lá, então — avisei, indo até ele.
— Nathan, não faz isso — Ethan pediu ao me ver andar até o homem.
— Sai comigo — falei. Jasper me olhou com um vinco na testa.
— Sai daqui comigo. Você vai precisar de um refém, não vai?
— Nathan, que porra você está fazendo? — Carl perguntou desesperado.
Mas Jasper já tinha passado um braço pelo meu pescoço pressionando a
arma na lateral da minha cabeça.
— Seu carro está lá fora? — Jasper me perguntou baixo. Confirmei,
sentindo o seu alívio imediato. — Ótimo. Abre a porta. — gritou para
Ethan, pressionando mais ainda o cano da arma em minha têmpora.
Ethan abriu a porta nervoso, e então já podia ouvir a gritaria e o falatório
do lado de fora. Liah tentava a todo custo passar pelos policiais de guarda,
esticando o pescoço para olhar dentro da sala. Meu coração perdeu uma
batida quando seus olhos assustados viram a arma grudada na minha
cabeça.
— Sai os três da sala — Jasper comandou e os três homens saíram com
as mãos para o alto. — Se tentarem qualquer coisa, Carlton, qualquer coisa
mesmo, eu não vou pensar duas vezes antes de atirar nele. TÁ OUVINDO?
Carlton assentiu, pedindo aos policiais do lado de fora que abrissem
caminho e abaixassem as armas.
Jasper caminhou comigo até a porta, mantendo seu braço em volta do
meu pescoço. Quando saímos no corredor, vi um policial tentar conter as
meninas num canto. Liah estava abaixada no chão agora, chorando
desesperada. Mas que porra. Meu coração quebrava mais a cada soluço
dela, e eu só conseguia imaginar como esse filho da puta tinha afetado a
vida dela, da mesma forma que fez com a minha.
Ele voltou a andar comigo pelo corredor, ficando de costas para a porta,
sem tirar o olhar atento dos policiais aglomerados na entrada da sala de
Liah.
Se tinha uma coisa que senti na pele todos esses anos, era que a raiva te
impede de pensar.
O medo e o desespero também.
O corpo de Jasper estava tencionado e trêmulo. Eu quase podia sentir o
cano da arma tremendo grudado na minha cabeça. Jasper nunca deveria ter
aceitado sair daquela sala comigo, não depois que entendi que minha mente
era minha maior arma.
Eu tinha tantos planos desenhados na cabeça, que em algum momento
ficou até difícil decidir qual deles usaria. Mas as coisas ficaram ainda mais
fáceis quando atravessamos a porta principal da ONG.
Assim que senti o ar fresco do dia na pele, vários estalos de armas sendo
engatilhadas foram ouvidos. Ele virou depressa, puxando meu corpo com
ele. Tinham dezenas de viaturas policiais paradas na rua e na entrada do
prédio. Um helicóptero sobrevoava a área um pouco mais distante.
— Filhos da puta! — sussurrou.
Naquele momento, nada do que ele pudesse fazer, faria com que saísse
vivo dali. Alguns carros eram do FBI, outros da polícia local, outros das
forças especiais. Provavelmente havia atiradores de elite muito bem
posicionados agora, esperando um mínimo afastamento dele de mim para
um tiro certeiro ser desferido.
Não sei em que momento decidiram mover toda essa operação para cá
logo pela manhã, mas uma coisa era certa, Sylvia tinha provas muito
concretas contra aquele esquema. A proporção daquela operação era de um
crime realmente grande.
Jasper olhou para os lados, apertando ainda mais o cano da arma em
minha têmpora, embora seu aperto sobre meu pescoço tenha se afrouxado
um pouco.
— Você sabe que acabou — avisei, ouvindo seu grunhido irritado.
— Nathan! — Um grito aterrorizado me fez arregalar os olhos. Liah
apareceu correndo, saindo do corredor lateral do prédio. — Ele não tem
nada a ver com isso, por favor…
— Liah, que merda. Sai daqui — pedi desesperado, sentindo Jasper se
irritar ainda mais com tudo.
Aquele imbecil sabia que o cerco estava totalmente fechado. Ele sairia
dali preso ou sem vida, mas ele não deixaria de tentar levar alguém para o
inferno com ele, e eu tinha esperança que esse alguém fosse eu, até Liah
aparecer ali.
— Eu devia ter ido atrás dessa putinha quando tive a chance. Ou no
mínimo ter a certeza de que ela havia morrido com a velha aquela noite.
Não tinha certeza de que Jasper falava comigo. Mas aquilo bastou para
me atingir, e só ficou pior quando o homem transtornado apontou a arma
em direção a ela. Achei que era pura diversão dele, mas o filho da puta
destravou a arma, posicionando o dedo no gatilho e pelos próximos três
segundos, muitas coisas se passaram pela minha cabeça. Liah naquela noite,
Jasper e Eliot me espancando, minha tia me contando que Camille havia
abortado, Liah reaparecendo três anos depois, Liah tomando conta da minha
vida e da minha cabeça. Liah chorando no chão do corredor.
Liah sendo abusada…
Quando as crises vinham, eu perdia totalmente minha cabeça. Algumas
vezes eu lembrava de tudo, em outras, era difícil ter noção da dimensão que
as coisas tomavam.
Essa era uma dessas vezes.
Jasper caiu na armadilha de Carlton porque era prepotente demais para
perceber o mundo ruir ao seu redor. Ele também era ignorante demais para
entender o que tinha me causado na vida.
A experiência de quase morte naquela noite, foi suficiente para me fazer
entender que eu morreria em qualquer momento da minha vida, no lugar de
qualquer um que eu amava. E eu aprendi amar Liah de uma forma
totalmente diferente e nova para mim.
O olhar assustado dela para a arma bastou para que em menos de cinco
segundos, Jasper estivesse no chão, longe da arma, cuspindo sangue pela
boca enquanto eu o acertava repetidas vezes no rosto. E embora eu fizesse
parte da cena, não sentia nada.
Dormência.
Não era uma dormência muscular ou física; essa me atingia na alma. Não
sentia nada no meu corpo, na minha mente ou no meu coração. Mas não
pense que a sensação não era bem-vinda; ela me transportava para um lugar
onde nada podia me atingir.
Durante aqueles momentos curtos, eu esquecia de tudo. Esquecia de
Theo. Esquecia da minha quase morte. Esquecia de todas as minhas dores
do passado, do abandono por parte dos meus pais, dos abusos e dos maus
tratos de Ralph com minha tia. Esquecia até de quem eu era, e isso incluía o
que tinha de bom em mim também.
Embora minha visão estivesse turva pela raiva e embaçada pelas
lágrimas, eu ainda podia ver o borrão vermelho evidente sobre os nós dos
meus dedos, e ainda assim isso não era suficiente para me fazer parar. A
força dos meus punhos fechados sobre o homem abaixo de mim, não
condizia com a força que, normalmente, eu socaria alguém em uma briga.
Era algo um tanto autodepreciativo. Eu também queria me machucar, eu
queria sentir a dor, mas nada me atingia, e então eu colocava mais força
naqueles golpes repetidamente.
A possibilidade de dar o troco nele, depois de toda a merda que passei,
brincava à minha frente como se fosse um letreiro piscando em neon.
Eu queria matá-lo.
Pelos meus traumas, pela Sylvia, e por Liah.
Eu o mataria se pudesse…
As palavras doloridas de Liah não saíam da minha cabeça. Eu podia.
Podia matá-lo agora se mantivesse aquele ritmo por mais algum tempo.
Ou…
Ainda controlado pela raiva, parei de socar a cara dele, tirando o
revólver da cintura.
Mesmo com os olhos praticamente fechados pelo inchaço imediato,
Jasper os arregalou assim que viu o cano apontado para o seu rosto.
Destravei a arma, pronto para atirar.
Eu podia ouvir algumas coisas; os gritos que soaram mais altos quando
saquei a arma. Eu queria atirar, queria ver o medo nos olhos dele, a vida se
esvaindo do mesmo jeito que ele tinha feito comigo. Do mesmo jeito que
ele tirou a inocência de Liah.
Em algum lugar da minha mente, podia escutar vozes familiares me
chamando, o choro de alguém tentando, fracassadamente, chamar minha
atenção. Mas no meu lugar seguro, era quase impossível alguém me
alcançar.
Exceto por ela.
A única voz que sobressaia sobre toda a lamentação atrás de mim. No
momento que ela pronunciou meu nome mais alto, meu corpo reagiu.
Lianah Vittorino me alcançaria em qualquer Universo, em qualquer
estado de catatonia, de ira… acho que até mesmo morto chegaria até mim.
O som do meu nome, soado seco e alto na voz doce dela, foi o que me fez
retesar.
A visão do meu rosto transtornado e vermelho no reflexo do vidro da
porta de entrada, ofegante e contraído pela dor que consumia minha alma,
me fez desabar.
Alguém me puxou de cima do homem quase desacordado, arrancando a
arma da minha mão. Ainda debati-me tentando sair do aperto deles, mas os
braços de Liah me envolveram, lutando para não me deixar sair dali.
03 de setembro de 2019
— Alguém precisa ajudar Mia com Sophia e Triss — a voz de Tommy
cortou o silêncio. — Eu e Ethan precisamos ir pra delegacia atrás do
Nathan. Ele vai precisar da gente.
— Eu vou — Olívia se prontificou, secando algumas lágrimas que ainda
desciam pelo seu rosto.
— Liah? — Ethan me chamou. Não conseguia olhar para eles.
Não conseguia acreditar que tudo tinha chegado àquele ponto. A imagem
daquele cara apontando o revólver para a cabeça de Nathan não saía da
minha cabeça. Era um terrorismo contínuo dentro da minha mente.
Permaneci parada, estática, sentada no meio fio da calçada. Os carros da
polícia ainda passavam por todos os lados, a ONG estava cheia de gente
estranha, revirando todos os lugares. Eu só queria que aquilo tudo acabasse.
Mas e se não tivesse acabado? E se mais gente viesse atrás de nós? Eu tinha
perdido minha mãe, minha avó, quase perdi a ONG e agora tinha Nathan
também.
Meu Deus, se alguma coisa acontecesse com ele…
— Liah? — Ethan voltou a me chamar. — Mia está indo com Sophia
para o hospital, elas acompanharam a cobertura no jornal local e Sophia
passou mal. Preciso te levar para um lugar seguro com Triss — tentou
explicar ao perceber que mesmo sem olhar para ele, tentava prestar atenção
no que ele dizia.
Assenti devagar, mas não tinha certeza de que eu era a melhor pessoa
para ficar com Triss agora.
— Nathan vai ser preso? — perguntei limpando as lágrimas que
escorriam sem parar dos meus olhos.
— Carl vai dar um jeito nisso, tenho certeza — ele disse, fazendo um
carinho nos meus cabelos.
Levantei do chão, tentando controlar o medo de perder Nathan também.
Sentia meu coração doer, queria correr para delegacia, onde ele estava, mas
Carlton e o Xerife me proibiram de ir até lá.
Ethan buscou Triss no hospital para nos levar para o apartamento de
Nathan. Triss também estava arrasada quando entrou no carro.
— Se eu tivesse aceitado a primeira proposta que me fizeram…
— Nem fala uma coisa dessa, Liah — Ethan me cortou, usando um tom
sério que nunca tinha visto ele usar antes.
— Vocês estariam seguros…
— Liah, Nathan se esqueceu totalmente que tem uma empresa nas
últimas semanas. Ele passou todo esse tempo indo atrás de qualquer coisa
que pudesse te ajudar e até se colocou em risco pra isso. E todos sabemos
muito bem porque ele fez isso… — Ethan tirou a atenção da estrada, me
encarando com o semblante fechado por alguns segundos. — Achei que ele
fosse parar quando soube que o que aconteceu há três anos foi um aviso pra
Carl parar, mas isso só fez ele ter ainda mais medo de que algo acontecesse
com você…
— Como assim foi um aviso? — perguntei nervosa.
— Aquele cara que estava com a arma na cabeça dele — foi Triss quem
respondeu inquieta. — Ele deu uma surra no Nathan pra mandar um aviso
para o Tio Cal. Nathan falou pra eles que era sobrinho dele naquela noite.
Olhei para a garota no banco de trás em dúvida sobre o quanto ela sabia.
Triss estava sempre entre a gente, escutava tudo sempre atenta.
— Triss… — Ethan chamou a atenção dela. — Você tá ficando
igualzinha a Mia. Não pode contar as coisas assim às pessoas sem nenhum
preparo antes.
Ela deu de ombros sorrindo triste.
— Desculpa, Liah.
— Tudo bem — suspirei, voltando a relaxar no banco.
— Liah, aconteceu uma coisa com você no passado, não foi? — Ethan
perguntou baixinho com medo de tocar no assunto.
— Foi ele, Ethan — disse decidida. — Eu senti quando ele chamou meu
nome daquele jeito.
— Nathan perdeu a cabeça quando descobriu.
— Ele quase morreu de novo. — Mais lágrimas grossas voltaram a
descer pelo meu rosto. — Eu teria atirado — confessei.
— Ele também, se você não tivesse interrompido.
— Eu sei. Mas não seria justo deixá-lo carregar essa culpa.
Nathan tinha se arriscado de verdade por mim. O cara que julguei como
um abusador, machista e mal-educado um dia. O mesmo cara que me odiou
e me culpou por anos pela desgraça da sua vida.
Esse cara tinha arriscado a vida por mim.
Março de 2021
Liah tinha me mandado calar a boca e ficar quieto umas cinco vezes na
última hora; Olívia tinha gritado comigo para parar de dar pitaco umas três
vezes; Evie só me olhava de cara feia; e Karol me ameaçou com a faca uma
infinidade de vezes.
Hoje à noite era nosso jantar de noivado. Liah aceitou meu pedido há dois
meses, quando comemoramos dois anos de namoro.
Todos nós nos sentíamos mais vivos, mais inteiros, cada um com suas
limitações, mas ainda, sim, estávamos bem. A ONG nos unia agora, mais
do que qualquer coisa, nos uniu um dia. Por isso decidimos fazer um jantar
para comemorar no teatro, com todas as pessoas que eram importantes para
nós.
Assim que fez dezoito anos, Triss decidiu dividir um apartamento com Mia,
pois segundo ela, ela precisava de um ambiente feminino e não aguentava
mais me encontrar em alguma situação embaraçosa com Liah. Ok, ela
pegou a gente transando algumas vezes, precisava admitir.
Embora ela já tivesse aceitado meu pedido, hoje seria o dia em que,
oficialmente, todos saberiam que ela seria minha pelo resto da vida.
— A baba está escorrendo — ouvi Tommy resmungar. Não era só pra mim,
Ethan também estava visivelmente abalado com Olívia.
Olhei o colar pendurado em seu pescoço. Liah ainda usava a Íris que dei a
ela. Minha noiva fazia questão de sair de casa todos os dias com ela no
pescoço para me lembrar de que ela era minha esperança.
Beijei sua boca devagar, ciente de que todos estavam olhando para a gente
no meio do salão. Sorri em meio ao beijo, sabendo que Liah seria sempre
assim para mim, trazendo toda aquela intensidade que só ela despertava na
minha vida.
— Tem criança olhando — Olívia passou por trás de mim, esbarrando nas
minhas costas com o braço.
— Ela subiu a escada ainda pouco — Evie respondeu, bebendo sua taça de
espumante.
— Ah, Nate, vai lá pra mim? — Liah pediu chorosa. — Meus pés estão me
matando nesse salto — reclamou fazendo biquinho.
— Ah, Nathan. Sinto avisar, mas ela se aproveita de você desde o dia que
você cedeu — Ethan riu, me empurrando com o ombro.
Abri a porta da sala de artes procurando pela minha irmã, mas nem sinal
dela. Será que ela foi ao banheiro?
Que merda.
Um gemido mais alto soou atrás da porta. Tinha alguém ali dentro. Os sons
abafados chegaram aos meus ouvidos distorcidos.