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Copyright © 2023 por Jessie Lobo

MINHA CURA - SÉRIE RECOMEÇOS


1ª Edição
Todos os direitos reservados.

Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios,


sem o consentimento do(a) autor(a) desta obra. A violação dos direitos
autorais é crime estabelecido por lei (Lei n °9.610/98).

Título: Minha Cura


Capa: Bruna Silva (@capistabrunasilva)
Ilustrações: Ursula Gomes (@ilustradoradesenharte)
Betagem: Angélica Amaral, Fabiana Lima, Helaine Barros, Jéssica
Batista, Samira Goes e Thatiana Ferreira.
Revisão Ortográfica: Jessie Lobo
Diagramação: Jessie Lobo

Esta é uma obra de ficção. Todos os nomes, lugares, acontecimentos e


descrições são frutos da mente da autora. Qualquer semelhança com a
realidade é mera coincidência.

TEXTO REVISADO SEGUNDO O ACORDO ORTOGRÁFICO DA


LÍNGUA PORTUGUESA.
Dedico este livro, meu primeiro publicado, ao homem que há 16 anos é
toda a minha luz…
e o motivo dos meus surtos.
Essa é minha primeira publicação. Nesse momento, não existem palavras
que expressem o quão gratificante é a concretização de um sonho.
Lembro de quando eu ainda era só uma menininha e lia os livros que
garimpava na biblioteca da escola, ou de quando, encantada com o filme,
me aventurei no meio do Universo de Harry Potter e me encantei com a
ideia do mundo literário. E principalmente, recordo-me do momento exato
em que a escrita deixou de ser um sonho e passou a ser um objetivo.
Nessa jornada intensa, conheci algumas pessoas maravilhosas que me
trouxeram coragem, incentivo, muita alegria e se tornaram grandes amigas.
E quando digo grandes, quero dizer que tomaram um espaço enorme no
meu coração.
Não existe forma de expressar o tamanho da minha gratidão por esses
Anjos: Angelica, Bie, Helaine, Jessica, Samira e Thati. Vocês têm uma
parcela gigante nisso tudo, e Nathan e Liah estão prontos para o mundo
graças ao incentivo de vocês.
E já que estamos falando deles, queria contar sobre como Nathan e Liah
dominaram meus pensamentos antes de se tornarem “reais”.
Quando Nathan e Liah nasceram (sim, meus personagens nascem — do
nada — na minha cabeça), eu tive muita dificuldade de entender o que eles
realmente estavam falando. Foi um processo longo. Conhecê-los, entendê-
los e, acima de tudo, aceitá-los.
Perdi as contas de quantas vezes me peguei discutindo com eles no
banho, ou brigando pelos erros que cometiam. Também perdi as contas de
quantas vezes precisei apagar parágrafos inteiros por não aceitar logo o que
eles queriam mostrar, e em alguns momentos, posso jurar que escutava as
risadas vitoriosas quando eu voltava ao trecho do conflito e escrevia
exatamente como eles queriam.
Queria dizer que, apesar de serem personagens, são pessoas comuns.
Eles erram, me irritam muito (grande parte das vezes), mas também
aprendem com os erros. No final, os dois têm um coração gigante e só
precisavam se curar de suas feridas. Então tenham paciência com minhas
crianças, ok?! Hahaha
Quando as primeiras palavras surgiram, nunca imaginei que trariam
junto uma família perfeita, baseada na amizade de todos eles, e que me
renderia uma série. Nathan é tão unido a Ethan e Thommas que, ao ver a
dinâmica entre eles, tornou-se impossível não criar um universo para cada
um. Logo surgiu a ideia de escrever mais um livro para cada um dos
meninos — então, sim, Thommas e Ethan vão ter seus livros na sequência.
E tem umas coisinhas mais planejadas aí…
Mas foi assim que Greenville, a cidade do caos, onde meus personagens
aprontam suas histórias, se tornou um lugar fixo na minha cabeça e esse
grupinho levou meu coração embora. Espero que vocês possam se encantar
por todos eles na mesma proporção que eu me encantei.
Cada personagem que vocês vão encontrar aqui tem um pedacinho
especial de mim, pensado com carinho e construído com cuidado. Todos
eles têm seus traumas, são quebrados de formas diferentes, mas buscam
incessantemente por formas de se reconstruírem e recomeçarem suas vidas.
Escolhi o nome da série após perceber que eles realmente buscavam
novos começos, novas chances e cura.
Tudo que vão encontrar, não só nesse livro como na série toda, são frutos
da minha imaginação, fértil demais na maior parte do tempo, e não
correspondem à realidade. (Infelizmente?!)
Tem tanto de mim nesse livro e na construção destes personagens… e
espero que possam surtar tanto quanto eu surtei enquanto escrevia.
Com amor, Jessie.
Por favor, não pulem essa parte. É fundamental para a saúde mental de
todos e para estarmos na mesma página.
Esse livro contém gatilhos e não é recomendado para menores de 18
anos.

Embora não tenha sido escrito com a intenção de ser uma história
‘pesada’, este livro aborda temas sensíveis, incluindo: transtorno de estresse
pós-traumático, crise de ansiedade, agressão física, menções a violência
doméstica, abuso sexual, aborto espontâneo, luto e depressão.
Todos os temas abordados fazem parte desta obra de ficção, e embora
tenham sido cuidadosamente estudados e avaliados antes de serem incluídos
na narrativa, eles não refletem a realidade. Se qualquer um destes temas traz
lembranças dolorosas, gatilhos ou provoca desconforto em você, considere
não ler.
Além disso, o livro contém cenas de sexo explícito, uso de palavras de
baixo calão, consumo de drogas lícitas e menções ao uso de drogas ilícitas.
Entenda seus limites e preserve sua saúde mental. Caso decida continuar,
não hesite em interromper a leitura se sentir desconforto em qualquer
momento.

No mais, desejo uma ótima leitura!


Nota da Autora
Avisos
Playlist
Ilustração
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Epílogo
Acompanhe a playlist de Minha Cura durante sua leitura. Clique aqui ou
escaneie o código abaixo com a câmera do spotify.
Março de 2016

"Hold your head up (movin' on) Keep your head up (movin' on) Hold
your head up (movin' on) Keep your head up"
Sweet Dreams (Are Made Of This (Alt. Version)) - Marilyn Manson
Eu sentia aquilo de novo; como uma avalanche atingindo meu peito e me
soterrando naquele sentimento doloroso. O medo descia em espiral pela
minha espinha, congelando meu coração e fazendo com que cada fibra do
meu corpo se endurecesse diante do perigo.
Os olhos dele me causavam arrepios, levando-me a um ponto escuro e
sobrecarregado da minha alma; um ponto que tinha medo de encarar. Tanto
medo, que me fazia incapaz de manter meus olhos nele por mais do que
alguns segundos.
Quando afastei-me do muro de pedra, minutos atrás, soube que seguiria
os gritos exasperados da garota que brigava com um homem muito mais
alto e que parecia bem alterado. A rua principal estava movimentada, mas
as pessoas pareciam indiferentes à situação, ou simplesmente não queriam
se envolver.
Ele a puxou para uma rua lateral e, se minha memória não falhava, era
um beco sem saída.
Minha mãe sempre me dizia que eu não tinha medo do perigo e que
perdia totalmente a noção de até onde podia me meter nas discussões dos
outros.
E ela sempre esteve certa.
Não tinha controle dos meus pés enquanto eles me levavam, sem
nenhuma cautela, até o mesmo ponto onde os dois discutiam.
Pude ouvir as vozes alteradas dos dois quando me aproximei da esquina
da rua e estendi a cabeça, na intenção de ver o que acontecia entre eles. O
cara continuava segurando o braço dela com uma força desnecessária,
tentando forçá-la a entrar em um carro de vidros escuros. O ímpeto de não
deixar nenhuma atrocidade acontecer à garota, me fez andar a passos largos
até eles.
E agora estava aqui, fugindo daquele olhar.
— Ei! O que você pensa que está fazendo? — gritei, chamando a
atenção deles.
— Me ajuda? — a garota pediu desesperada. — Não deixe ele me levar
daqui.
— Quem, diabos, é você? — o cara perguntou irritado e por um instante,
seu olhar repleto de ira me fez questionar se aquela havia sido mesmo uma
boa decisão.
— Vai colocar a menina a força no seu carro? — Precisei me esforçar
muito para não deixar minha voz falhar.
— Você não faz ideia do que está rolando aqui. — O cara voltou a focar
na garota, gritando para que ela fosse com ele. Claramente, minha presença
não o incomodava.
Um flash do meu passado fez com que um arrepio subisse pela minha
espinha. Os sinais eram os mesmos da outra vez. O cara transtornado, a voz
cheia de raiva, o descontrole.
O desespero no rosto daquela garota me atingiu no instante em que as
lembranças voltaram. Minha visão não era muito clara, deturpada pelo
medo. Aquele medo me atingia em algum lugar da alma, tão escuro e fácil
de me perder, que às vezes, era quase impossível voltar.
— Não precisa falar assim com ela — minha voz soou mais calma e
baixa do que deveria.
Talvez fosse apenas uma tentativa falha de fazê-lo se acalmar, mas a
verdade é que tive medo de encará-lo. Seu rosto transtornado e tomado pela
raiva, me fazia desviar o olhar dele a cada segundo em que o desespero em
sua voz ficava mais estridente.
Nervosa e com medo do que podia acontecer, olhei para os lados
procurando alguma solução, qualquer sinal de algo que pudesse me ajudar.
E como se fosse providenciado pelo destino, nesse segundo, a luz vermelha
de uma viatura de polícia passou na rua transversal.
Ao ver o cara continuar tentando colocar a menina a força no carro, tive
meio segundo para sair correndo atrás da viatura e gritar aos policiais que
pararam um pouco mais a frente.
— Você é louca? — o cara perguntou irritado, finalmente soltando o
braço da loira que veio correndo para trás de mim. — Já viu como ela está
chapada?
— Isso não te dá o direito de obrigá-la a nada.
Disposta a não deixar que ela sofresse o mesmo que sofri, projetei meu
corpo para frente, como um escudo entre eles. Precisava protegê-la por mais
uns segundos, enquanto a viatura estacionava atrás do carro do cara.
Dois policiais saíram pelas portas da frente. Um deles era mais magro e
franzino, enquanto o outro deveria ter uns dois metros de altura e uns
sessenta quilos só de músculo.
— O que está acontecendo aqui? — a voz grave do policial grandão
interrompeu qualquer coisa que o cara fosse começar a falar.
O timbre frio e cortante me atingiu no fundo da alma, quase me
transportando para uma lembraça perigosa. Tentei não pensar no arrepio
que aquele tom me causava.
— Esse cara estava tentando colocar essa menina a força no carro —
respondi ainda protegendo a garota com meu corpo.
— Não deixa ele me levar, por favor — a menina pediu chorosa ao
policial.
— Eu não estou acreditando nisso — um riso irônico escapou do cara,
visivelmente revoltado com a situação. Seu olhar continha uma súplica
silenciosa para a garota parada atrás de mim.
— Você precisa de ajuda? Quer que eu a leve para casa? — O policial
menor perguntou a ela, que negou com a cabeça, enquanto seu companheiro
de ronda já estava algemando o cara, que agora falava sem parar, tentando
se justificar.
— Eu cuido dela — avisei, percebendo sua agitação para sair dali.
— Moça, preciso saber se você vai registrar uma ocorrência sobre o
episódio — o policial avisou.
Olhei especulativa para a loira, que negou com a cabeça.
— Tem certeza?
— Sim — sua voz embargada me fez pensar que ela precisava mesmo
sair dali. Da presença dele.
— Vamos conversar com esse rapaz, então — o policial grandão que o
mantinha algemado, avisou.
Assenti, sentindo o desespero e a ansiedade dela, e só então percebi
como meu corpo também tremia, tomado pela adrenalina de me aventurar
no desconhecido.
— Qual seu nome? — perguntei enquanto a acompanhava de volta ao
bar.
— Muito obrigada pela ajuda, de verdade, mas tem uma amiga minha
me esperando ali.
— Ok! — Olhei confusa para ela. — Tem certeza de que não precisa de
mais nada?
A menina, no entanto, saiu correndo alguns metros na minha frente,
abraçando outra garota que vinha a seu encontro.
— Obrigada mesmo — disse novamente para mim — minha amiga vai
me levar para casa agora.
Assenti, sorrindo para ela, e logo depois as duas saíram conversando.
Pelo menos naquele momento, pude impedir que algo pior acontecesse.
12 de janeiro de 2019
Era sábado à noite, e meu coração insistia no alerta irritante; a previsão,
dessa vez, indicava uma grande tempestade.
Olívia já tinha me ligado quatro vezes na última hora, insistindo que
fosse terminar de me arrumar na casa dela, mas o medo da rejeição já quase
tinha me feito desistir por duas vezes. Tinha mais de uma hora que estava
trocando de roupa em frente ao espelho.
Em cima da cama, tinham várias peças de roupa amontoadas, e eu
simplesmente não conseguia me decidir. Olhei-me pela trigésima vez no
espelho; meu cabelo loiro escuro estava com algumas ondas naturais nas
pontas, batendo um pouco abaixo dos meus ombros. A maquiagem clara e
leve, destacava meus olhos, deixando-os ainda mais azuis.
Minha mãe foi a primeira pessoa a reparar como meu estado de espírito
influenciava na forma como me vestia, antes mesmo que eu pudesse
reparar.
Senti meu coração doer com a lembrança e a falta que ela me fazia.
Meu conflito de personalidade hoje estava incrível. Estava nervosa,
ansiosa, queria beber e ser a Liah que sempre desejei ser, mas tinha medo
de conhecer pessoas novas.
Voltei a encarar o amontoado de roupas, soltando um suspiro audível, e
resolvi ser mais prática, optando por um jeans escuro e uma blusa preta de
mangas cumpridas largas. Era básico e bonito. Enfiei meus pés em uma
sandália de tiras preta com um salto alto, e depois do meu surto com a
roupa, saí correndo da mansão de vovó em direção ao centro da cidade.
O carro de aplicativo me deixou na porta do Republic, um bar conhecido
e super frequentado da cidade. Era daquele tipo que tinha mesas para quem
quisesse sentar e conversar, pista de dança para os que queriam dançar, e
cantos escuros suficientes, utilizados pela galera da GVU que abarrotava o
bar todas as noites.
A Greenville University era a faculdade da cidade e um nome renomado
na Flórida. Vinham pessoas de fora estudar aqui, embora a cidade não
tivesse grandes atrativos.
Eu nasci aqui. E normalmente, todo mundo se conhecia nesse tipo de
cidade.
A verdade é que, talvez, eu devesse conhecer mais pessoas, mas vivi
reclusa e quieta em casa por toda a minha infância e adolescência.
Minha avó tinha uma mania irritante de manter a mim e mamãe longe de
todos os holofotes que ela tinha virados para ela. Era uma forma de
proteção, então cursei a faculdade tendo frequentado poucas festas,
conhecido poucas pessoas, e quase saí ilesa de qualquer namoro.
Uma amiga da época me chamava para esse mesmo bar com frequência,
mas detestava a atmosfera que encontrava na maior parte das vezes que
vinha. Olivia insistiu muito até me convencer a estar aqui hoje, mas seus
apelos convenceram uma parte minha que desejava se libertar das amarras e
dos freios.
Ansiosa, procurei por Olie na entrada até que avistei seus cabelos pretos
junto a outras duas meninas.
— Oi, Olie! — chamei-a um pouco sem jeito pela presença das outras
duas.
— Ei! — Olivia me abraçou, checando meu rosto e minha roupa em
seguida. — Você está linda, Liah!
— Obrigada! — Sorri, reparando no quanto as três mulheres eram lindas.
Olie usava um vestido preto não muito curto, e a maquiagem só a
deixava ainda mais bonita. A garota loira, a menor das três, estava com um
vestido floral mais solto e seus olhos eram muito verdes. A ruiva, era o tipo
de mulher que faria um homem bater um carro. Sua calça de couro e o top
preto, contrastavam com o vermelho de seu cabelo.
— Vocês também estão lindas.
— Essas são a Evie e Karol. — Olie me apresentou às meninas, que
agora me abraçavam e sorriam simpáticas.
— Prazer te conhecer, Liah! A Olie fala de você o tempo todo — Karol
respondeu me olhando carinhosamente.
Karoline e Evie foram muito simpáticas comigo desde que cheguei.
Pegamos nossas bebidas e nos sentamos à mesa enquanto elas me contavam
mais de como foram de amigas a namoradas e viraram amigas de novo.
A próxima hora passou tão rápido, que nem mesmo percebemos. As
meninas eram pessoas incríveis, e fazia tanto tempo que eu não socializava
daquela forma com alguém, que nem lembrava como era me sentir leve
daquele jeito. Era como se tivesse me desafogado da solidão constante que
habitava meu coração. Estava valendo a pena aceitar a proposta que minha
sócia e melhor amiga fazia a mais de um ano: conhecer seus amigos.
— Tommy mandou uma mensagem perguntado onde estávamos sentadas
— Karol avisou. — Eles acabaram de estacionar o carro.
— Quem está dirigindo hoje? — Olie perguntou à amiga.
Evie e Karol se encararam, trocando um olhar apreensivo.
— Acho que é o Nathan. — Evie revirou os olhos. — Ele fica louco
quando não pode beber.
— Ultimamente, quando é a vez dele, são as melhores noites. — Olivia
parecia aliviada.
As meninas concordaram, voltando a conversar sobre um evento que
Evie estava organizando.
— Esse é o cara que você falou mais cedo? — Olhei para Olie, falando
para que só ela pudesse ouvir. — O que está passando por problemas?
Olívia já havia me contado algumas vezes sobre seus amigos, inclusive
que um deles estava enfrentando problemas há algum tempo. No entanto,
ela sempre se limitava a contar as coisas superficialmente, nunca entrando
em detalhes sobre o que o afetava tanto.
— Sim. Às vezes ele desconta na bebida. Eles podem simplesmente
pegar um Uber e vir, mas os três cabeças dura gostam de manter a tradição
e detestam que a gente vá embora sozinha com um motorista estranho na
madrugada.
Era fofo o cuidado que eles tinham com elas. Olívia sempre falava deles
com muito carinho e admiração.
— Os meninos chegaram — Evie avisou, levantando um dos braços,
acenando para os caras que deviam estar atrás de nós.
Virei o pescoço para trás, olhando para a entrada do bar e encarei as três
figuras vindo em nossa direção.
De onde eles haviam saído?
Meu queixo caiu enquanto meu cérebro tentava processar a imagem. Os
três eram incrivelmente lindos, e eram o tipo de homem que não se vê todo
dia andando pela rua.
Como Olie não tinha me preparado para aquilo?
Um deles, era mais baixo e mais musculoso. Tinha os cabelos loiro-
escuros, pele bronzeada e os olhos muito negros. O outro, andando ao lado
dele, era um pouco mais alto, tinha os cabelos pretos, um tom de pele pálido
e olhos tão escuros quanto o primeiro. O terceiro cara, andando mais atrás,
era o mais alto dos três. Seus cabelos eram pretos e um pouco bagunçados e
jogados para o lado. Ele tinha o olhar mais profundo dos três. E mesmo de
longe, era fácil notar o tom azul ainda mais claro que os meus, e isso fazia o
contraste com sua pele branca ainda mais intenso.
— Fecha a boca — ouvi a risada disfarçada de Olívia para meu estado de
torpor ao vê-los parando ao lado da mesa, começando a cumprimentar as
meninas com beijos no topo das cabeças delas.
— Quem é ela? — o cara mais baixo, vestido de Jeans claro e camisa
vermelha perguntou, apontando o queixo em minha direção.
— Liah! — Karol respondeu como se meu nome fosse uma explicação
óbvia de quem eu era e do que estava fazendo no meio do grupo deles.
Pela forma que assentiram, meu nome realmente era uma explicação
óbvia. Olie devia falar de mim para eles na mesma proporção que falava
deles para mim.
— Sou o Thommas, mas pode me chamar de Tommy — disse sentando-
se ao lado de Evie;
— A famosa Liah! — o outro cara de olhos escuros e cabelos pretos, um
pouco mais alto que Thommas, respondeu sentando-se ao meu lado. —
Olívia disse que ainda te convenceria a sair com a gente. A propósito, sou o
Ethan.
— Ela tentou mesmo, várias vezes. — Sorri, gostando da simpatia deles.
O terceiro cara, vestido de Jeans escuro e camisa branca, sentou-se na
outra ponta da mesa, quase de frente para onde eu estava. Ele não se
apresentou, apenas manteve um olhar analítico sobre mim, como se
buscasse uma resposta, me deixando intimidada o suficiente para desviar
meus olhos dele.
Claramente, era o menos simpático dos três.
— Esses são Ethan, Tommy e Nate. — Evie apontou, respectivamente,
para o cara ao meu lado, o cara ao lado dela e o cara na ponta da mesa.
Tommy deu uma cotovelada disfarçada em Nathan, que ainda me
encarava especulativo. O cara antipático abaixou a cabeça, olhando alguma
coisa na tela do celular, apoiado na mesa.
— Então Liah, você é tão louca quanto essas garotas, ou já está sofrendo
com as loucuras delas? — Tommy perguntou.
— A gente se deu bem — respondi sorrindo para ele.
— Louca como elas! — Ethan constatou, encarando feio o amigo que
voltou a me encarar.
Um garçom trouxe mais bebidas enquanto os cinco engatavam uma
conversa animada sobre algum cliente da empresa dos meninos que ligou
dando um ataque no telefone. Nathan não disse uma palavra desde que
chegou. Eu tentava participar da conversa, e percebi que eles faziam
questão de me incluir, mas a frieza do cara do outro lado me incomodava.
Qual era o problema dele, afinal?
Todos perceberam.
Olie olhava a todo momento para Tommy ao lado de Nathan, pedindo
ajuda para trazer o amigo de volta para a Terra. Tommy parecia preocupado,
perguntando constantemente ao outro se estava tudo bem, mas ele se
limitava a acenar com a cabeça. Ethan tirava assunto de todos os cantos
para me incluir na conversa com as meninas, mas depois de um tempo, a
situação começou a ficar insustentável. Nathan parecia cada vez mais
irritado, e eu evitava a todo momento direcionar meus olhos para o canto
onde ele estava sentado.
— Os garçons daqui parecem conhecer bem vocês — comentei, tentando
me distrair da análise minuciosa do cara a minha frente.
— Na época da faculdade, a gente começou a vir aqui e era meio que
nosso ponto de encontro. Acabou que virou rotina. Estamos aqui quase
todos os fins de semana — Evie explicou.
— Eu também costumava vir muito aqui quando fazia faculdade —
respondi, lembrando da época que Tiffany queria me arrastar para aquele
bar todo fim de semana.
— Preciso sair daqui — a voz grave e irritada nos cortou, e Nathan
levantou, seguindo em direção à saída do bar.
Todos os olhares se concentraram em ver o cara alto saindo apressado de
lá. Ethan e Tommy se olharam preocupados, enquanto as meninas
encaravam a porta do bar surpresas.
— O problema dele é comigo? — perguntei a todos na mesa, sem
entender aquela reação exagerada.
— Não, claro que não, Liah — Tommy respondeu confuso, ainda
olhando para Ethan. Os dois se levantaram, indo atrás do amigo.
— Não mesmo? — perguntei às meninas, tendo a certeza dos vincos
profundos que se formavam em minha testa.
— Parecia que ele te conhecia. — Evie manteve o olhar analítico sobre
mim, como se esperasse uma afirmação minha sobre aquilo.
Olivia e Karol também fizeram silêncio, esperando uma resposta.
— Nunca vi esse cara antes — falei, tentando puxar na memória
qualquer situação em que pudesse tê-lo encontrado antes, mas realmente
não lembrava de já tê-lo visto.
— Acho que o problema não é você — Olie amenizou. — Normalmente,
ele é o mais educado e simpático dos três. Mas ele se fechou para muita
coisa depois da Camille.
Educado e simpático eram adjetivos que não combinavam muito com
ele.
— Quem é Camille? — perguntei curiosa.
— Ex-namorada dele — foi Karol quem respondeu; o desdém em sua
voz era evidente. — Ela meio que o abandonou em um momento ruim. Mas
Nate não gosta de falar disso.
— Vamos mudar de assunto, então, né? — disse, sem graça, tentando
quebrar o clima ruim.
Passamos mais alguns minutos tentando iniciar alguma conversa, mas os
olhares preocupados das meninas indicavam que a noite havia acabado.
Karol ficava encarando a tela do celular, esperando algum contato de Ethan
e Tommy. Evie esticava o pescoço a cada dez segundos para enxergar a
porta do bar, e Olivia se remexia inquieta na cadeira.
— Melhor a gente ir ver se está tudo bem. — Olie virou-se para mim,
com um olhar suplicante. — Desculpa amiga. Eu não queria que isso
acontecesse logo no dia que você veio conhecer meus amigos, mas tenho
certeza que o problema não é com você.
— Tudo bem, Olie. — Abracei-a, sabendo que ela estava sendo sincera,
ainda que eu não acreditasse na parte do problema não ser comigo.
Karol, que descobri ser Diretora Financeira da empresa deles, pagou toda
a conta com o cartão corporativo, avisando que isso era o castigo de Nathan
por acabar com a noite de todo mundo. Quando saímos do bar, encontramos
os meninos parados no outro lado da rua, sentados na calçada.
— Acho melhor eu pedir um táxi aqui — avisei às meninas quando
percebi que elas seguiam em direção a eles.
Evie puxou meu pulso até a calçada do outro lado, sem me dar chance de
contestar.
— Vamos só nos despedir dos meninos e vamos embora todas juntas.
Mantive minha cabeça baixa, evitando olhar para Nathan. Normalmente,
eu não tinha medo de encarar problemas, mas o curto olhar que trocamos
quando eles chegaram, me intimidou de verdade.
— Você está bem? — ouvi Karol perguntar ao amigo, sentado no meio
fio da calçada, ofegante como se tivesse corrido uma maratona.
— Vou ficar — foi a única coisa que saiu da boca dele.
— O que está acontecendo, cara? — Ethan pediu, preocupado. — Você
precisa falar com a gente.
Nathan ergueu o corpo do chão, e agora, mais próxima dele, pude
perceber o quanto ele era alto. Ethan segurou o ombro do amigo, cobrando
uma resposta com o olhar.
— Só umas lembranças ruins — a voz rouca e baixa cortou o ar. — Uma
boa noite de sono resolve.
— Bem, você leva as meninas então? — Ethan perguntou ao amigo. —
A gente pega um táxi aqui para ir embora.
— Todas elas? — Nathan questionou irritado, me olhando com ironia.
Ok! O problema era mesmo comigo.
Por que diabos eu estava com medo de enfrentá-lo? Ele podia ter
milhões de problemas na vida, mas não tinha o direito de ser grosso comigo
de graça.
— Eu vou de Uber, não precisa se preocupar — cuspi as palavras, já
virando o corpo em direção à rua, mas Ethan segurou meu pulso.
— Não mesmo! — cobrou, como se lembrasse uma regra estabelecida ao
amigo. — A gente vem de carro, e quem estiver dirigindo leva as meninas
em casa.
Olivia semicerrou os olhos, encarando Nathan com descrédito.
— Eu nem faço parte do grupo — avisei, tentando puxar meu pulso de
volta.
— Faz sim! — Olie quase gritou, voltando o olhar para mim. — Eu
demorei mais de um ano a te convencer a sair com a gente. Vocês três são
minhas melhores amigas e eu tenho certeza de que você precisa estar neste
grupo! — A morena baixinha ergueu o corpo apontando o dedo na cara de
Nathan. — Qual o seu problema?
Nathan olhou para mim mais uma vez, como se buscasse alguma
resposta. Deixei que meus olhos reparassem no quanto seu semblante estava
fechado e seu corpo tenso; os braços cruzados numa pose carrancuda, quase
me fazendo querer reparar nas tatuagens que escapavam pela manga da
blusa e desciam até seu cotovelo esquerdo.
Ele era um cara sério.
Sério demais.
Resiliente, o vi acenar levemente com a cabeça, concordando com Ethan.
— Sem tempestade por pouca merda. Vamos logo que estou a fim de
dormir.
As meninas o seguiram para dentro do estacionamento adjacente ao
Republic, e uma a uma, se acomodaram nos bancos do carro dele. Entrei no
único espaço vago, o banco atrás do motorista, sentindo meu coração
disparar ao notar que podia facilmente ver seu rosto pelo espelho retrovisor.
Sua feição era um misto de irritação e descontentamento, o semblante
fechado e a testa quase mantendo os vincos permanentes. Em alguns
momentos, parecia que ele discutia internamente com ele próprio,
balançando levemente a cabeça em negação ou deixando seus lábios se
curvarem em um sorriso triste no canto da boca.
Karol e Evie seguraram minhas mãos, me lançando olhares acolhedores
no percurso para casa, mas os minutos dentro daquele carro seguiram sendo
os mais constrangedores da minha vida. Nathan deixou Olie em casa
primeiro, e perguntou onde me deixaria, mas Evie se intrometeu dizendo ser
mais fácil ele deixá-las primeiro, já que era o caminho mais próximo.
Contrariado, Nathan deixou as meninas no prédio onde dividiam
apartamento.
Assim como minha decisão de sair com Olie e os amigos foi inesperada
e do nada, ficar sozinha naquele espaço com ele também aconteceu do
nada.
— Onde deixo você? — perguntou.
Seus olhos encontraram os meus pelo retrovisor do carro e um arrepio
me subiu pela espinha.
— Sabe onde fica a mansão Vittorino? — minha voz quase não saiu.
— Mansão Vittorino? Você é uma Vittorino? — Seu sorriso irônico
aumentou e sua voz saiu carregada de sarcasmo. — Eu não podia esperar
outra coisa de você.
— Qual seu problema comigo? — as palavras saíram antes mesmo de
pensá-las.
Mesmo sentada atrás do banco do motorista, consegui ver quando seus
dedos cumpridos apertaram com mais força o volante, fazendo com que os
nós ficassem brancos.
— Sério que você está me perguntando isso? — Seu sorriso sarcástico
pelo retrovisor me dava medo.
— Sério, cara, eu nem conheço você — rebati irritada com a ironia e a
grosseria dele. — Não faço ideia do que fiz para você me odiar sem nem
me conhecer.
— Você tem toda razão, cara! Você nem me conhece.
— Quer saber? — Saí do carro batendo a porta com força. — Eu vou
pedir um Uber aqui e vou para casa. Pode ir.
Por um segundo, pensei que se ele fosse mesmo o cara amigo e incrível
que Olívia descrevia quando falava deles, jamais me deixaria ali, sozinha
àquela hora da noite. As meninas já tinham sumido porta adentro do prédio
e aquela rua era deserta o suficiente para esperar que fosse totalmente
segura.
— Você quem sabe! — Nathan me lançou mais um olhar de escárnio
antes de partir com o carro.
Olhei em choque o carro se afastando até sumir no declive lá adiante.
Ele tinha mesmo me deixado sozinha àquela hora da noite, em uma rua
totalmente deserta e escura.
12 de janeiro de 2019
Eu estava errado, eu sabia. Só tinha uma coisa que deixava Ethan e
Tommy putos de verdade comigo, e era pegar nossas clientes. Chegamos a
esse acordo porque sempre acontecia o mesmo; nenhum de nós queria se
envolver, mas elas sim.
— Eu te avisei — Ethan reclamou quando o busquei em casa à noite e
contei sobre a aventura do dia.
— Estou cansando de saber o que vocês acham — expliquei de novo. —
Não fiz por mal, quando vi já tinha rolado.
Patrícia era uma mulher envolvente e bem convincente. Quando saí da
empresa com ela para almoçar, estava convencido de que não teria nenhum
problema. Era só sexo, afinal. Mas acho que estava totalmente errado,
porque quando a deixei em casa ao fim da tarde, a mulher já estava me
cobrando um próximo encontro.
— Você não é mais um moleque de quinze anos, cara. Não dá para
deixar rolar e pronto.
— Não vai mais acontecer… juro! — Eu realmente precisava tomar
cuidado com isso. A empresa era a única coisa que funcionava bem na
minha vida, e não dava para arriscar perder a credibilidade por tão pouco.
— O Tommy pediu para pegar ele na App.
Desviei o caminho para nossa empresa. A AppCorporation.
Nós três nos conhecemos ainda nos primeiros anos da escola, e ficamos
amigos logo de cara. Nós gostávamos das mesmas coisas, curtíamos os
mesmos desenhos, os mesmos vídeo games e adorávamos tecnologia. Foi
assim que fomos parar na mesma universidade e decidimos abrir nossa
empresa.
Eles eram os caras que estiveram comigo em todos os momentos da
minha vida, bons ou ruins; se é que existiram bons.
Ethan sempre estava presente para ouvir e tinha tanta responsabilidade,
que talvez Thommas e eu tenhamos nos aproveitado disso para nos livrar de
vez de qualquer juízo que pudéssemos ter.
— Ele ainda está trabalhando? — perguntei ao verificar o horário no
relógio do carro. Já passava das 20:00h.
— Tommy está fazendo suspense de algum contato de empresa grande
que recebemos, disse que só vai falar depois que tudo estiver certo.
— Empresa grande? De fora da cidade? — perguntei confuso.
As maiores empresas da cidade já usavam softwares1 consolidados no
mercado. Eram contratos difíceis de conseguir, mas Tommy sempre
surpreendia com os contatos que arrumava.
— Se você convencer Tommy a falar…
Estacionei em frente ao prédio em que mantínhamos a empresa, puxando
o celular no descanso ao lado do banco para avisar que chegamos.

— Olívia acabou de mandar mensagem avisando que as meninas já estão


no Republic — Ethan avisou.
— Odeio quando é minha vez de dirigir — reclamei, pensando em como
a noite seria maçante e demorada.
— E a gente ama, Nathan. Não tem nada melhor do que ficar livre, sem
precisar tomar conta de você.
Exagero. Eu nem fazia mais tanta merda assim. Ultimamente, era
Tommy quem sempre aparecia caindo de bêbado no fim da noite.
A gente sabia a barra que ele enfrentava com a mãe internada e uma
cidade inteira sem saber o que realmente acontecia por trás da família
perfeita, mas Tommy não era muito de aceitar ajuda, não importa o quanto a
gente tentasse.
O avistamos atravessar as portas automáticas do prédio, com a
empolgação estampada na cara. Ele mal se conteve ao abrir a porta e entrar
no banco de trás do carro.
— Os lucros desse ano vão ser incríveis, acabei de preparar uma nova
projeção para Karol na segunda — contou empolgado. — Ela vai ficar
animada.
— Vai contar que cliente misterioso é esse? — perguntei.
— Na hora certa vocês vão saber.
Arranquei com o carro, pegando a rua em direção ao centro, me
concentrando no caminho e no trânsito intenso daquelas ruas no sábado à
noite.
Quando a ideia da App surgiu na minha cabeça, Ethan e Tommy nem
sequer hesitaram em entrar nessa comigo. Chegamos a ganhar prêmios de
jovem empreendedorismo com um pouco mais de um ano de empresa, e
agora que já tínhamos mais experiência e tempo de mercado, estávamos
ganhando mais espaço.
A empresa rendia um bom dinheiro; o que não fazia muita diferença para
eles, mas era absurdo para mim.
Os dois vinham de famílias tradicionais, podres de ricas, mas também
queriam crescer pelo seu próprio esforço. Acho que foi por isso que deu tão
certo.
Já a minha família, que se resumia a minha tia Sophia, minha irmã Mia e
meu tio Carlton, não tinha nenhum luxo e extravagância.
Os colégios caros e a faculdade foram a única coisa que Elise, a mulher
que me pôs no mundo, fez de bom na vida para mim, e mesmo assim,
depois que me formei, suas visitas ficaram ainda mais espaçadas.
— Nathan, viu isso? — Ethan me tirou de meus devaneios, me
mostrando a tela do celular quando parei num sinal bem perto do
estacionamento do Republic.
Era uma foto de Mia com algumas amigas da faculdade numa festa. Mia
era minha prima, na verdade. Mas sempre nos consideramos irmãos, já que
fui criado pela mãe dela.
Minha irmã tinha dezenove anos e estava naquela fase de descoberta da
vida. Todos tivemos essa fase, mas confesso que era difícil aceitar quando
se tratava dela.
— Minha tia até tenta, mas é quase impossível segurar ela — reclamei.
— Ela tem dezenove anos, Nathan — Tommy me repreendeu. — Não
surta, ela já é adulta.
— Queria ver se fosse sua irmã.
— Ainda bem que não tenho uma. E não lembro de você pensar nos
irmãos das garotas mais novas que pega.
O sinal abriu e voltei a andar, virando o carro no estacionamento aberto
do bar.
— Eu não pego garotas de dezenove anos, Thommas. Tudo tem um
limite na vida. — Afinal, eu tinha vinte e sete anos na cara agora.
— Karol avisou que a Olie está com uma amiga no bar hoje — Tommy
disse quando saímos do carro. — É amiga da Olívia — completou me
encarando, em tom de aviso.
— Vocês têm uma péssima visão de mim, e devem achar que eu transaria
até com a tampa da lata do lixo se me desse mole — reclamei irritado.
— Se você estivesse bêbado, não duvido nada — Ethan disse rindo.
— Idiota!
Entramos no Republic procurando as meninas. Evie estava com os
braços levantados, acenando para gente, numa mesa próxima ao balcão.
Nos aproximamos delas, passando entre as pessoas pelo caminho apertado
até lá.
— Parece gata — Tommy disse baixinho para mim.
— É amiga da Olie, esqueceu? — avisei sorrindo, vendo seu sorriso
morrer. No entanto, mais alguns passos e foi a vez do meu sorriso morrer.
Eu conhecia aquela garota.
— Quem é ela? — Tommy perguntou ao ver a garota nos encarando,
curiosa.
— Liah! — Karol respondeu o que já era uma informação óbvia para
mim.
Olívia passou meses falando da tal amiga, contando o quanto ela tinha se
tornado importante na vida dela e deixando claro a necessidade de enturmar
a garota e unir suas melhores amigas e amigos.
O nome dela passou a ser uma constante naquele grupo, e Olie até
chegou a insinuar algumas vezes que a gente ficaria babando quando a
conhecêssemos.
Só se fosse espumando de raiva…
Nunca me preocupei sequer em ver alguma foto dela, até porque Olie
nunca postava nada nas redes sociais. Lembro de Ethan comentar uma vez
que ela era realmente bonita. Mas agora, tudo que eu conseguia ver, era
meu passado emergindo do poço escuro.
— A famosa Liah! — Ethan respondeu sentando-se ao lado dela. —
Olívia disse que te convenceria a sair com a gente.
— Ela tentou mesmo, várias vezes. — Senti meu corpo se arrepiar, tendo
a certeza de quem ela era até pela voz.
A garota me encarou, esperando alguma reação minha. No entanto, tudo
que eu conseguia fazer era encará-la sem acreditar. De tantas pessoas no
mundo que eu poderia encontrar nessa mesa, tinha que ser uma que tivesse
afetado tanto minha vida?
Ainda sem reação, sentei na única cadeira vaga na mesa, na ponta,
praticamente de frente para ela, o que me permitia ter uma visão bem clara
do seu rosto.
— Esses são Ethan, Tommy e Nate. — Evie apontou para a gente
enquanto nos apresentava.
Levei um susto ao sentir o cotovelo de Thommas me atingir na altura da
costela. Olhei feio para ele e voltei minha atenção para o celular que estava
em cima da mesa. Merda, eu odiava quando meu coração começava a bater
acelerado daquele jeito, era sempre assim que as crises vinham.
— Então Liah, você é tão louca quanto essas garotas, ou já está sofrendo
com as loucuras delas? — Tommy perguntou.
— A gente se deu bem.
Levantei a cabeça encarando-a mais uma vez.
Ela ia mesmo se fazer de sonsa?
— Louca como elas! — Ethan brincou com a garota e me olhou de cara
fechada em seguida.
Tentei me manter o mais distante possível daquela conversa, tentei me
controlar todo o tempo em que estava sentado àquela mesa, mas as
lembranças emergiam a cada segundo. Tommy me encheu o saco o tempo
todo perguntando se estava tudo bem, Olívia me olhava de cara feia a cada
minuto e Ethan só dava de ombros, me questionando sobre o meu estado.
Eu me conhecia o suficiente para identificar uma crise chegando. Às
vezes, eu conseguia segurar a ansiedade até que meu coração voltasse a
bater normalmente.
Controlar minha ansiedade e a raiva eram coisas que aprendi nesses anos
todos com as crises. Mas tinham outras vezes que eu simplesmente escolhia
me entregar às lembranças e à dor. Era mais forte que eu, e quando
acontecia, sabia que só precisava me afastar de quem nada tinha a ver com
meus sentimentos ruins.
Quando a garota falou sobre as noites que ia ao Republic na época da
faculdade, eu sabia que estava no meu limite. Tinha que sair dali antes de
ter uma crise no bar e na frente das meninas, de novo.
— Preciso sair daqui — avisei, levantando da mesa apressado.
Quando saí, atravessei a rua rápido, ciente de que precisava descontar
minha frustração em alguma coisa; mal cheguei ao outro lado e já soquei a
parede cimentada, com muita raiva e uma força desmedida, sentindo a
ardência satisfatória em romper a pele que revestia os nós dos meus dedos.
Mesmo com todos os meus dilemas, o abandono da minha mãe e a
violência doméstica que vivenciei, eu cresci sendo um cara calmo. Mas
depois que acordei do coma, tudo havia mudado na minha cabeça
drasticamente, a ponto de me tornar alguém agressivo.
— Porra! — gritei, socando a parede de novo e de novo, até sentir que a
dor era intensa o suficiente para me fazer parar.
— Nathan, para. O que houve? — Ethan segurou meu punho no ar,
chamando minha atenção de volta à realidade.
— O que aconteceu lá dentro? — Tommy também perguntou nervoso.
Sacudi a cabeça em negação. Eu não queria ter que falar sobre aquilo
depois de tanto tempo, depois de ter finalmente deixado meu coração
adormecido para aquela dor, mas as lembranças me atingiam em
avalanches.
' — Como assim, grávida? — minha voz soou mais alta que o normal.
Apertei o volante com força, sem conseguir olhar para Camille ao meu
lado. Minha mente não funcionava direito.
Desde que entrou no carro em frente ao ginásio, a percebi ainda mais
inquieta. Camille desviou seus olhos dos meus durante todo o percurso,
onde trocamos meia dúzia de palavras aleatórias sobre como o evento foi
legal. Mas logo que estacionei em frente à casa dela, as palavras foram
despejadas sobre mim: “Estou grávida!”
— Não é só responsabilidade minha. — Ela estava chorando. Suas mãos
tremulas limpavam as lágrimas que escorriam pelo seu rosto. — Eu não fiz
esse filho sozinha.
Tentei me controlar e por minha cabeça no lugar antes de continuar. Ela
havia interpretado minha surpresa como uma reação negativa à sua
gravidez.
— Eu não estou irritado com você, só estou surpreso com isso. —
Respirando fundo, segurei suas mãos, esticando meus dedos para limpar as
lágrimas restantes em seus olhos. — Esse filho também é meu. E embora
acredite que não era o certo agora, cuidarei dessa criança com você. Não
vou deixar você.
Ter um filho, definitivamente, não estava nos meus planos. Mas se o
destino quis assim, quem sou eu para negar. Jamais abandonaria um filho
meu.
— Nate, você não está com raiva? — Camille perguntou receosa. Seus
olhos cor de mel, avermelhados e inchados pelo choro. — Achei que você
não ia querer essa criança.
Soltei meu cinto e o dela, puxando seu corpo pequeno com cuidado para
meu colo. Aninhei sua cabeça sobre meu ombro, afastando seus cabelos do
rosto antes de continuar.
— Eu nunca ficaria com raiva de você por isso. Você me conhece o
suficiente para saber que jamais rejeitaria um filho meu.
Ela não tinha culpa. Era nossa responsabilidade. E embora nosso
relacionamento estivesse abalado, ter um filho mudava tudo. Eu podia
continuar tentando pela criança. Queria que meu filho tivesse um lar
estruturado.
Um pequeno sorriso amedrontado surgiu em seus lábios inchados.
Camille levantou seus olhos, buscando meu rosto. Sorri em resposta,
tentando passar a segurança que precisava a ela. Não a deixaria sozinha
nesse momento.
Como se precisasse de algo mais palpável para acreditar, Camille me
beijou como há um tempo não fazia. Depois de semanas, senti a mesma
vontade que costumava ter de beijá-la, de estar com ela. Agora ela era mãe
de um filho meu.'
— Não aconteceu nada — respondi depois de uns segundos, decidido a
me fazer de idiota, do mesmo jeito que ela fez.
— Por que você foi tão mal-educado com a Liah? — Ethan perguntou
desconfiado.
— Só não fui com a cara dela. — Não era exatamente uma mentira.
— E teve uma crise por quê?
— Que saco, Ethan. Vai ficar me pressionando? Estou tentando me
controlar aqui — reclamei.
— A gente só está preocupado com você — Tommy disse, sentando-se
no meio fio.
Sentei-me ao seu lado, afundando a cabeça nas mãos.
— Hoje é um dia que as lembranças estão piores. — Também não era
mentira. Foi um dos motivos pelos quais aceitei o convite de Patrícia mais
cedo. — Nem eu sei explicar direito.
Eles ainda ficaram conversando comigo um tempo, até que eu estivesse
realmente calmo. No entanto, essa calma estava fadada a acabar quando vi
as meninas atravessando a rua.
Todas elas.
— Você está bem? — Karol perguntou ao se aproximar de mim.
— Vou ficar.
— O que está acontecendo, cara? — Ethan insistiu. — Você precisa falar
com a gente.
Levantei-me do chão, considerando ir embora. Precisava de uma boa
noite de sono.
— Só umas lembranças ruins, mas uma boa noite de sono resolve.
— Bem, você leva as meninas então? — Ethan pediu. — A gente pega
um Uber aqui para ir embora.
— Todas elas? — Encarei a garota, soltando um riso nervoso.
— Eu vou de Uber, não precisa se preocupar — respondeu toda
irritadinha, já virando o corpo em direção à rua, mas Ethan segurou seu
pulso.
— Não mesmo — lembrou-me de nossas regras e cuidado com as
garotas. — Sempre foi assim. A gente vem de carro, e quem estiver
dirigindo leva as meninas em casa.
Olivia semicerrou os olhos, me encarando de um jeito que sabia que só
fazia quando estava muito puta comigo.
— Eu nem faço parte do grupo — a garota falou, se desvencilhando de
Ethan.
— Faz sim! — Olivia quase gritou, olhando para a amiga. — Demorei
mais de um ano a te convencer a sair com a gente. Vocês três são minhas
melhores amigas e eu tenho certeza de que você precisa estar neste grupo!
— Então Olie virou para mim, esticando o corpo pequeno e apontando o
dedo na minha cara. — Qual o seu problema?
Olhei mais uma vez para a garota, sem acreditar que ela não lembrasse
mesmo de mim. Vencido pelo cansaço, acenei com a cabeça, concordando
em levá-las para casa.
— Sem tempestade por pouca merda. Vamos logo que estou a fim de
dormir.
Saí pisando duro até o estacionamento, entrando no carro e batendo a
porta com força. Esperei que elas entrassem e se acomodassem para dar
partida no motor.
Dirigi incomodado e me sentindo sufocado até a casa de Olívia,
pensando que se essa situação tivesse acontecido logo depois de eu ter saído
do hospital, eu estaria em crise agora, totalmente descontrolado; os anos me
ajudaram a controlar minhas emoções, ainda que eu não tivesse cem por
cento desse controle ainda.
Logo que deixei Olie em casa, perguntei a porra da garota onde a
deixaria, mas Karol e Evie se intrometeram dizendo ser mais fácil deixá-las
primeiro.
Levei as meninas para o prédio onde moravam, tentando manter meu
coração calmo com a ideia de ter que ficar naquele espaço apertado só com
ela.
— Onde deixo você? — perguntei quando só sobrou Lianah no carro.
Meus olhos encontraram os dela pelo retrovisor, e um segundo depois,
desviou, vermelha.
Não tem coragem de me encarar agora?
— Sabe onde fica a mansão Vittorino? — perguntou com a voz fraca.
— Mansão Vittorino? Você é uma Vittorino? — Não contive o sarcasmo.
Não podia fazer mais sentido aquele jeito de garota mimada que se achava a
dona da razão. — Eu não podia esperar outra coisa de você.
— Qual seu problema comigo? — ela quase gritou irritada.
Apertei o volante com força, não era possível que ela manteria esse
teatro por mais tempo. Só estávamos nós dois no carro agora.
— Sério que você está me perguntando isso?
— Sério, cara, eu nem conheço você. Não faço ideia do que fiz para você
me odiar sem nem me conhecer — suas palavras eram rápidas e num tom
agudo, irritado.
— Você tem toda razão, cara! Você nem me conhece.
E mesmo assim achou que sabia algo sobre mim.
Achou que tinha razão quando não tinha.
— Quer saber? — A garota saiu do carro batendo a porta com força. —
Eu vou pedir um Uber aqui e vou para casa. Pode ir.
Tive pouco tempo para pensar no quanto aquilo poderia ser perigoso
para ela. No entanto, me parecia muito mais atraente a alternativa onde a
deixava numa rua escura e seguia meu caminho… livre.
— Você quem sabe! — Olhei uma última vez para a garota antes de
arrancar com o carro.
Eu tinha mesmo deixado uma mulher sozinha, àquela hora da noite, em
uma rua deserta e escura.
Nathan, você é um merda.
13 de fevereiro de 2019
Os móveis pesados passavam por mim, sendo carregados pelos
entregadores. Lentamente, as salas e os cômodos iam tomando forma,
exatamente como Olie e eu planejamos por meses. Foi difícil conter a
língua grande e inquieta de Olívia, doida para contar aos amigos sobre o
projeto da minha vida, mas queria ter certeza de que tudo daria certo antes
de espalhar a notícia.
Desde que me entendo por gente, minha mãe e minha avó me ensinaram
a importância de atuar em causas sociais. Se tinha uma coisa com a qual
elas gastavam dinheiro sem pena, eram as instituições sociais da cidade.
Sylvia Vittorino, minha avó, era conhecida em todo a cidade de Greenville e
provavelmente no Estado da Flórida por ser uma grande incentivadora da
caridade.
Quando veio da Itália, no início da década de cinquenta, abriu uma rede
de clubes e restaurantes italianos, se tornando uma verdadeira celebridade
local. Isso rendeu rios de dinheiro e muitos caminhos para ajudar pessoas
que precisavam.
Quando completei dezoito anos, já sabia que queria trabalhar investindo
no futuro de jovens sem perspectiva de vida, e então idealizei a ONG2
Recomeços. Foram anos tentando obter todas as licenças até que estivesse
aqui hoje. Olie me ajudou com toda a organização desde que veio trabalhar
comigo há dois anos.
— Consegue acreditar que está acontecendo? — minha amiga perguntou,
olhando o lugar tão admirada quanto eu.
— Parece um sonho ainda — minha voz saiu mais empolgada do que
esperava. Sorrimos uma para outra.
— Eu já posso contar para os meus amigos sobre isso? — perguntou
ansiosa, batendo palminhas. — Acho que essa é a coisa mais legal que já fiz
na vida.
— Pode — ri de seu jeito ansioso. — Em breve, deve sair em todos os
canais de comunicação sobre o novo projeto social da cidade mesmo. Acho
melhor eles saberem pela gente antes.
— Também, o que esperava? Essa ONG tem estrutura melhor que muita
escola particular e vai ser motivo de falatório na cidade por muito tempo.
Tinha uma estrutura incrível mesmo. Idealizei o projeto pensando numa
educação de primeiro mundo para minhas crianças. Sorri, olhando em volta.
O prédio tinha a estrutura perfeita para o que planejei. Depois, foi só injetar
dinheiro. Era fácil quando você tinha de sobra e entendia a real necessidade
de fazer diferença no mundo. E Minha avó tinha dinheiro para algumas
gerações viverem esbanjando, e ainda assim, seria difícil gastar tudo aquilo.
Isso me lembrava o sufoco que era conciliar todas as atividades que
precisavam da minha atenção. Não daria conta de tudo sozinha, já que ainda
tinham os negócios de Dona Sylvia.
— Estou pensando em nomear um presidente interino na Consultoria.
Não vou conseguir cuidar da empresa e da ONG ao mesmo tempo —
comentei preocupada com o volume de trabalho que estava tendo que
encarar diariamente. — Você seria minha primeira opção, mas é minha
sócia aqui.
— Bem, prefiro mesmo trabalhar aqui com você. Pensou em alguém de
confiança? — Olie perguntou pensativa.
— Não consigo pensar em ninguém na empresa.
— Bom… — começou, dando de ombros. — Evie tem uma bagagem
boa da empresa dos pais e está doida para sair de lá. Os pais dela usam o
cargo de diretora para pressioná-la sobre sua orientação sexual. Sei que
você a conhece pouco, mas posso garantir que ela é totalmente confiável.
— Com certeza confio nela. — Mordi o interior da bochecha pensando
na possibilidade. Evie era mesmo alguém que eu gostava, e embora a
conhecesse pouco, sabia que era amiga de Olivia há muitos anos. — Acho
que vou falar com ela sobre isso.
Olie sorriu satisfeita. Eu sabia da sua ânsia em unir todos seus amigos, e
fazer com que eu estivesse no meio deles, era algo que ela tentava há muito
tempo.
— Você já decidiu se vai pedir ao Ethan o orçamento do software deles
para a ONG? — perguntou ao lembrar dos amigos.
— Fechei essa semana aquele contrato que analisamos do software
escolar, mas para a parte corporativa ainda não vi nada — sorri sem graça
para ela. — Não queria misturar as coisas, só que acho tão injusto não
incluí-los no orçamento. Sem contar que eu teria que resolver toda a parte
de contrato com Nathan. Ethan já me abriu os olhos para isso quando pensei
em trocar o software da consultoria semana passada.
Olívia soltou uma gargalhada alta antes de me olhar sacudindo a cabeça
em reprovação.
— Nunca vi alguém ter tanta aversão ao Nathan, Liah.
— Eu não tenho aversão a ele — reclamei. — Ele não gosta de mim,
Olie, e nem sei o motivo.
Desde o dia em que me deixou sozinha naquela rua escura durante a
madrugada, eu não o havia visto mais. A única coisa que sabia, era que ele
fugia, propositalmente, de onde for que eu estivesse. E toda vez que isso
acontecia, eu ficava ainda mais irritada com ele.
— Eu vou pedir o orçamento ao Ethan e deixa que resolvo o contrato
com Nathan — Olie ponderou.
— Não deixa o Ethan cobrar mais barato da gente — avisei. — Não seria
justo para eles.
— Sim, senhora! — Olie brincou batendo uma continência rápida. —
Agora vamos terminar de por ordem nesse lugar — pediu, já seguindo atrás
de um entregador que colocava uma mesa no lugar errado.
Satisfeita, sorri abertamente ao notar o quanto tudo já estava arrumado.
Meu sonho estava, finalmente, se tornando realidade.
16 de fevereiro de 2019

A garota à minha frente pulava de um lado a outro feliz, enquanto Olívia


ria dela com Ethan e Tommy.
— Tem certeza que ela é irmã do Nathan? — perguntei pela terceira vez
seguida, totalmente desacreditada.
— Prima, na verdade — Evie me respondeu baixinho. — Ele foi criado
pela tia, que é mãe da Mia, então se consideram irmãos.
Chegamos ao Republic no sábado à noite, e logo as meninas pararam
para falar com uma garota que parecia mais nova, saltitando de um lado a
outro, comemorando uma vaga na produção de um desfile local. Evie me
explicou que ela cursava Moda na GVU, mas o que me deixou surpresa
mesmo, foi a informação de que ela era irmã do Nathan.
Mia era o total oposto dele. Alegre, divertida, simpática e educada.
— … e eles me deram responsabilidades de verdade, acreditam? — a
menina contava quase sem respirar como havia sido seu primeiro dia na tal
organização. — E Tommy, vou precisar muito da sua ajuda num
aplicativo que estou pensando em montar.
— Mia, o Nathan sabe que você está aqui? — Tommy perguntou
preocupado, mesmo sem esconder o riso pelo estado elétrico dela.
— Nathan não é meu pai, Tommy — a garota revirou os olhos. — Nem
Carlton me segura em casa. Por falar em irmão chato e desnaturado, cadê o
Nate? — perguntou olhando para os lados.
— Tem um tempo que ele não vem aqui — Ethan comentou tentando
soar despreocupado. — Como está tia Soph?
— Reclamando que Nathan aparece pouco e que estava com saudades de
vocês. — Mia me encarou divertida. — Eles sempre foram sem educação
mesmo, vou me apresentar porque se depender deles… Sou Mia, irmã do
Nate. E você?
— Liah — respondi sorrindo. — Sou amiga da Olívia há alguns anos, e
conheci o restante do pessoal tem pouco tempo.
A garota praticamente se pendurou no meu pescoço para me abraçar. Ri
divertida, um pouco assustada com o jeito rápido dela criar intimidade.
— Mia, vai assustar a garota — Tommy repreendeu.
— Imagina. É um prazer te conhecer! — disse, devolvendo o abraço
dela.
— Aparece lá em casa com eles, minha mãe adora todos os amigos do
Nate — pediu sorrindo quando me soltou.
Devolvi o sorriso sem graça, incerta sobre falar a verdade ou não. Eu
estava bem longe de ser amiga do irmão dela, e provavelmente seria uma
situação bem estranha aparecer na casa dele. Mesmo assim, me limitei a
assentir sem falar mais nada.
— Vou lá para dentro encontrar a galera da faculdade. — Mia sorriu de
um jeitinho cúmplice para eles e saiu saltitante para dentro do bar. — Se
virem meu irmão por aí, não contem que estou aqui, a não ser que queiram
ver um Nathan surtado entre vocês.
— Sério que ela é irmã do Nathan? — comentei desacreditada vendo seu
corpo pequeno sumir porta adentro.
— Todo mundo se pergunta isso o tempo todo — Tommy respondeu
sorrindo. — Nathan ainda vai perder a cabeça com ela um dia. Ele a trata
como se fosse uma criança.
— Quantos anos ela tem? — perguntei curiosa.
— Dezenove. Acabou de entrar na faculdade.
— Talvez a fase mais ativa da vida de uma pessoa — soltei divertida. Se
ele esperava que ela fosse sempre a irmãzinha inocente, estava bem perdido
agora.
Tommy retorceu a boca numa careta insatisfeita, soltando um suspiro em
seguida. Pelo visto, ele e Ethan também a consideravam assim. Ri,
desaprovando sua insatisfação.
— Vai dizer que com dezenove anos você era um santo, Tommy? —
Olívia perguntou, percebendo o mesmo que eu.
— Ethan e eu somos amigos do Nathan desde o ensino fundamental,
crescemos com eles — justificou.
— E cadê aquele papo de que Mia cresceu e Nathan precisa deixar ela
em paz? — Ethan provocou.
— Só tentei ser consciente quando falei isso — reclamou.
— Está bem. Podemos entrar? Estou louca por um drink gelado e preciso
beber até esquecer meus pais me enchendo o saco — Evie reclamou.
— Continua complicado com eles? — Karol perguntou à amiga quando
entramos no salão.
— O mesmo sufoco de sempre — respondeu chateada. — Ainda me
recriminam por continuar morando com você.
— Evie você tem vontade de trabalhar em outro lugar? — perguntei,
pensando que talvez não tivesse outro momento para introduzir o assunto.
Evie deu de ombros, mas o brilho no olhar entristecido indicava que sim.
Pelo pouco que Olie me contou, os pais faziam de tudo para que ela não
tornasse público à família sua verdadeira orientação sexual. Só os pais dela
souberam do namoro com Karol.
— Às vezes, acho que nunca vou ter outra oportunidade nessa cidade,
Liah — contou triste. — Acredita que eles já deram referências ruins de
mim?
— Eu e Olie estamos procurando um diretor interino para a minha
consultoria. Precisamos ficar focadas na ONG por um tempo…
— ONG? — perguntou curiosa e só então lembrei que Olívia ainda não
havia contado a ninguém.
— Finalmente chegou a hora — Olie quase gritou satisfeita, atraindo a
atenção de todos que se acomodavam na mesa. — Liah e eu estamos
iniciando uma ONG na cidade e o projeto é simplesmente a coisa mais
sensacional que vocês vão ver. Semana que vem já devem ter reportagens
na TV e jornal local.
Ethan arqueou as sobrancelhas na direção dela, numa expressão surpresa,
e Tommy alternou o olhar entre nós duas, curioso para saber mais detalhes.
— Pois é! Era meu sonho de vida e finalmente conseguimos fazer
acontecer — expliquei. — Essa semana estamos ajeitando o lugar, e mês
que vem as crianças já devem chegar. Vai funcionar como um abrigo, a
princípio, para crianças mais velhas. Teremos escola e cursos
profissionalizantes para que eles possam sair do abrigo com alguma chance
real de emprego no mercado.
— Que máximo, Liah! — Ethan sorriu em aprovação. — A gente não
sabia de nada disso.
— Nossa, eu me segurei para não contar nada a vocês até que desse certo
— Olie me cortou nervosa.
Todos riram do jeito ansioso dela. O mais difícil era fazer Olívia não
contar a Ethan, aqueles dois viviam compartilhando informações e fofocas
um com o outro.
— Nem para mim você contou — Ethan reclamou, estreitando os olhos
para a amiga.
Olívia ficou toda vermelha com o jeito que ele a olhou. Existia uma
paixão platônica dela, embora escondesse isso muito bem dele. Por diversas
vezes já tinha a confrontado sobre isso, mas tudo que a garota fazia era
negar, sem graça.
— Mas e aí, Evie? Topa? — Olie mudou totalmente de assunto,
desviando o olhar de Ethan.
— Você confia mesmo em mim para isso, Liah? — a loira perguntou,
trazendo o foco da conversa de volta para mim.
Eu a conhecia pouco, mas se Olívia confiava, eu também confiaria de
olhos fechados. Evie parecia mesmo ser uma mulher determinada e muito
inteligente, sem contar que tinha a experiência de alguns anos como
Diretora Financeira e Operacional da fábrica de tecido dos pais.
— Claro que sim! — respondi encorajando-a a aceitar a oferta.
— Então eu realmente vou aceitar a oportunidade — a garota sorriu
sincera. — Mas pode ser que meus pais entrem em contato para fazer uma
propaganda negativa minha.
Era um absurdo pensar em pais que fizessem isso apenas para manter o
controle de uma filha que tinha praticamente trinta anos nas costas. E tudo
por um preconceito idiota e infundado.
— Pode ficar tranquila, porque isso não vai colar comigo, Evie —
tranquilizei-a.
O garçom apareceu com cerveja para os meninos e um drink que Karol
sempre tomava. Pedimos nossas bebidas enquanto Olie contava mais
detalhes da ONG a eles.
Cada vez que nos encontrávamos, me tornava mais próxima deles. Evie e
Karol estavam sempre nos encontrando para almoçar durante a semana.
Ethan e Thommas apareciam todo fim de semana no Republic.
Em nenhum dos fins de semana seguintes, Nathan apareceu. Os meninos
sempre tinham alguma explicação sobre a ausência dele, uma hora era
trabalho demais e novos contratos que estavam fechando, outra hora era
alguma coisa na casa da tal tia dele. Era a desculpa de hoje, inclusive, mas
Mia foi bem clara sobre a chateação da mãe porque Nathan não aparecia
por lá tinha tempo. Olívia até tentava disfarçar a chateação dela pelas
recusas silenciosas do amigo, mas era evidente que ela ficava mais chateada
a cada fim de semana que ele não estava presente.
— Seria legal se vocês aparecessem para conhecer o espaço da ONG —
Olívia os convidou. — Se conseguissem convencer Nathan a ir, seria
incrível também.
— Essa época do ano é complicada para ele, Olie — Tommy disse
pensativo. — Todos nós sabemos disso.
— Complicada por quê? — Não consegui conter a curiosidade.
Tommy suspirou, me encarando pensativo antes de responder.
— O Nathan passou por coisas complicadas uns anos atrás…
— Anos atrás? — Olie interrompeu consternada. — O Nathan passa por
coisas complicadas desde que nasceu, Tommy.
— Mas a gente sabe que o que aconteceu foi o que realmente deixou ele
assim — rebateu a amiga.
— O que aconteceu? — perguntei confusa pelo clima que começava a
ficar pesado.
— O que vocês acham de deixar o assunto Nathan de lado e voltarmos a
falar da ONG das meninas? — Karol propôs, se irritando com o clima
pesado e cortando qualquer resposta que pudessem me dar.
Eu odiava ser curiosa, porque sabia que iria ficar remoendo a porcaria de
informação que algo tinha acontecido com ele anos atrás. Não tinha
intimidade, muito menos direito de questioná-los sobre, por isso, preferi
deixar mesmo o assunto para lá.

22 de fevereiro de 2019
— Liah, me deixa ajudar? — Triss pediu pela décima vez.
— Triss, eu não posso — sorri para o seu descontentamento. — Está
cheio de gente da assistência social aqui hoje. Não posso colocar uma
jovem para trabalhar.
Triss era uma adolescente de dezesseis anos. A conheci em uma das
minhas ações em um abrigo do Estado que pegou fogo recentemente, e
consegui puxá-la para uma das vagas na ONG. Foi uma das minhas maiores
realizações, pois éramos realmente apegadas, e embora a ONG ainda não
estivesse efetivamente funcionando, tive permissão para abrigá-la devido ao
incêndio.
Não era segredo que eu havia tentado um processo de adoção dela,
quando ainda estava nesse abrigo do Estado, mas o processo foi negado sem
muita explicação por duas vezes. Diziam que eu ainda era nova demais ou
que o ideal seria a adoção por um casal. A verdade é que queriam que eu
desse grana para ganhar o processo, e em algum momento, cheguei a
considerar a possibilidade.
— Odeio ficar sem o que fazer. As aulas começam quando? —
perguntou irritada.
— Acredito que no início de março, vai depender das autorizações
dessas vistorias. — Bufei irritada e largada em uma das cadeiras
amontoadas no que seria meu escritório. — Hoje é praticamente o primeiro
dia de operação da ONG e tem gente demais aqui.
Assim que vi os corredores lotados de repórteres da mídia local e os
assistentes sociais que vistoriavam tudo, me tranquei na sala cheia de medo
de algo dar errado. Olívia lidava com toda aquela atenção melhor que eu,
então deixei o trabalho para ela. No entanto, Triss, que rodeava a gente pelo
corredor, logo percebeu meu incômodo e veio atrás de mim.
— Tinham dois caras muito gatos lá na porta com a Olie quando vim
para cá — a garota soltou um risinho nervoso. — Eles são voluntários?
— Triss! — a repreendi, olhando seu sorriso travesso. — Eles são Ethan
e Thommas, nossos amigos, e tem quase o dobro da sua idade, mocinha.
— Pode ficar tranquila que ainda não me interesso por caras velhos —
brincou.
— É bom mesmo, Triss! — respondi rindo. — Tudo que não preciso é
de um processo administrativo por conduta indevida dos meus voluntários
agora.
Uma batida na porta chamou nossa atenção. Olie enfiou a cabeça na sala,
conferindo se estava ali e logo entrou seguida por Ethan, Tommy, Karol e
Evie.
— Oi, Triss.
— Oi, Olie. — Triss encarou os outros quatro com ela. — Vocês também
vão voluntariar? — perguntou a eles.
— Se essas duas chatas deixarem — Ethan respondeu, reclamando das
nossas restrições.
Desde que souberam da ONG, eles tentavam de tudo para ajudar com
trabalho ou dinheiro. Mas, felizmente, a gente já tinha voluntários
suficientes e dinheiro de sobra.
— E quem é você? — Karol perguntou a ela, enquanto se acomodava
sobre a mesa de madeira.
— Sou Beatriss Stacy, mas podem me chamar de Triss — a menina se
apresentou toda orgulhosa a eles. — Vou morar aqui na ONG — completou.
— A Triss veio de um abrigo do Estado que eu já voluntariei — contei a
eles. — É uma das meninas mais inteligentes que já conheci. Inclusive, ela
gosta de programar.
Triss gostava muito de tecnologia. A menina tinha dezesseis anos e já
tinha alguns jogos em algumas lojas de aplicativos online. Lembro de como
me impressionei com a inteligência dela quando a conheci.
— Sério? A gente tem uma empresa de tecnologia — Tommy contou
enquanto se encostava na parede.
— Quero estudar Sistemas de Informação quando sair — Triss contou
empolgada.
A menina engatou uma conversa animada com Tommy e Ethan enquanto
eu voltava a prestar atenção no que as garotas conversavam.
— … não aguento mais o humor dele… hoje quase o mandei se foder na
frente dos funcionários — Karol terminou de falar irritada.
— Deixa eu adivinhar: Nathan? — Embora tenha soado como uma
pergunta, era claro que eu estava certa.
— Sério, Liah. Ele está com o humor cada dia pior. Estou quase pedindo
uma intervenção a Mia ou Olívia.
— Intervenção?
Olívia e Karol se olharam, rindo de alguma piada interna delas.
— Mia e Olie são as únicas pessoas que conseguem colocar o Nathan na
linha de volta — explicou.
— Que bom que alguém consegue isso. — Levantei da cadeira indo até
o filtro de água instalado na parede, ao lado porta. — Seria pior se ele não
escutasse ninguém, não é? Ainda não entendo como a Olie sempre falou
bem dele para mim. — Sabia que tinha soado como deboche no momento
em que Olie me olhou com a cara fechada.
— Para de implicar com ele, Liah — defendeu o amigo. — Vocês se
viram uma única vez. Daqui a uns dias esse humor ruim dele passa, você
vai ver.
Embora todos eles sempre justificassem sua grosseria com os problemas
pelos quais passou, era muito claro que Nathan simplesmente não gostava
de mim. Não precisava vê-lo mais uma vez para ter certeza disso. Tinha o
jeito como me tratou na noite em que nos conhecemos e o fato de que
sempre fugia deles quando eu estava junto.
Agradeci quando Ethan apareceu perto da gente, me puxando para um
canto da sala enquanto procurava Tommy e Triss com os olhos.
— Liah, eu estava pensando numa coisa. A Triss gosta de tecnologia, e é
muito inteligente. A gente podia levar alguns jovens para estagiar na App —
propôs baixinho para que a menina não ouvisse.
— Ethan, é uma ideia incrível! — eu estaria realmente animada com sua
proposta se não fosse por um único motivo complicado. — Mas você não
acha que o Nathan poderia se opor a isso? — minha voz soou receosa, com
medo de como ele poderia interpretar minha desconfiança com o amigo,
afinal, era sempre assim que Olie recebia meus incômodos com ele.
Ethan apertou os olhos em minha direção, me recriminando
silenciosamente pela iniciativa de crítica.
— Ele nunca se oporia. Por maior que seja o motivo dele para te odiar,
ele nunca descontaria isso privando a nossa empresa de ajudar.
— Ok! Não está mais aqui quem falou — reclamei, levantando as mãos
em sinal de rendição. — Mas só para deixar claro, Nathan não tem motivo
nenhum para me odiar, além de ser um grande idiota.
— E qual o seu motivo para odiá-lo? — Ethan me olhou desconfiado.
Tive dificuldade em entender seu olhar atravessado e escrutinador naquele
momento.
— Eu não odeio ninguém, odiar é uma palavra muito forte. Eu não gosto
dele porque ele nunca se importou em ser, ao menos, educado comigo. Mas
eu não me importo nem um pouco com ele, ainda mais para dizer que o
odeio — reclamei, mesmo sabendo que algo no meu âmago me alertava o
tempo inteiro que eu me incomodava, sim, com a forma que me tratou.
— Tudo bem, Liah! O assunto Nathan nunca deveria ter sido abordado
nessa conversa — Ethan exalou, relaxando o corpo enquanto passava um
braço pelos meus ombros, me abraçando. — Vou conversar com meus
sócios e talvez a gente marque uma reunião para ver como seria o trâmite
de ter um jovem em poder do Estado como estagiário na empresa. Vamos
fazer isso acontecer.
— Nem sei como agradecer por isso. Mesmo que seja só uma tentativa,
Ethan.
— Tem mais uma coisa. O que acha de montarmos uma grade de cursos
de tecnologia para oferecer aqui?
— Isso é sério? — perguntei surpresa.
— Claro. Eu e Tommy falamos disso semana passada, quando contaram
da ONG. A Triss só deixou a gente ainda mais empolgado.
Sorrindo, voltei a abraçar Ethan. Ele estava se tornando um grande
amigo e apoiador do meu trabalho. Eu podia entender o motivo dele mexer
tanto com Olie.

06 de março de 2019
Olhei uma última vez meu reflexo no espelho; a roupa de hoje era um
vestido azul soltinho, com detalhes pretos. A cor ajudava no astral alegre
que estava desde cedo, comemorando a abertura oficial do projeto depois de
recebermos a última confirmação de vistoria.
O grupo todo ia para o Republic hoje. Mais cedo, Olívia tinha me
perguntado se eu me oporia aos meninos levarem Nathan para lá. Eu sabia
que era um momento tão importante para ela quanto era para mim. Por isso
não me opus. No entanto, duvidava muito que ele aparecesse por lá,
sabendo que eu estaria presente. Ainda tinha a sensação de que ele me
odiava, e eu realmente queria tirar aquela história a limpo.
— Vovó! — gritei enquanto descia as escadas da mansão. — Estou
saindo.
Dona Sylvia apareceu na porta da cozinha, vestida em seu roupão de
seda, me olhando sorrateira.
— Posso saber aonde vai toda arrumadinha? — perguntou sorrindo.
— Vou a um barzinho no Centro, encontrar Olívia e as meninas. Vamos
comemorar a abertura oficial da ONG.
Fui até ela, deixando um beijo estalado em seu rosto antes de ir para a
cozinha e abrir a geladeira para pegar a jarra de água.
— Olívia não aparece aqui tem tempo — reclamou, vindo atrás de mim.
Vovó conhecia Olívia desde quando começou a trabalhar comigo, anos
atrás. Aquelas duas juntas conseguiam causar dor de cabeça em qualquer
um. Viviam confabulando para me arrumar algum romance e me tirar de
casa aos fins de semana à noite.
— Ela estava ocupada com a ONG também, mas vou avisar que está
com saudades — falei, dando outro beijo nela enquanto me dirigia para a
porta de saída.
— Amanhã quero falar com você sobre a porcaria daquele sistema velho
das lojas — avisou da cozinha.
— Está bem! — respondi, já saindo de casa.
Ainda não entendia a necessidade dela mexer na estrutura dos negócios
quando pretendia vender tudo. O trabalho em excesso que eu tinha, não me
deixava dar a atenção devida aos negócios dela, então vovó decidiu vender
o clube e as lojas, mas enquanto isso não acontecia, ela continuava me
levando a loucura com as ideias insanas que tinha diariamente.
Quando cheguei ao Republic, quase uma hora depois, as meninas já
tinham se instalado em uma mesa perto das janelas.
— Ei, Liah! — Karol e Evie vieram me abraçar. — Estamos tão felizes
que deu tudo certo.
— Nem fala, estou sonhando acordada com isso — suspirei feliz.
— Ethan e Tommy já devem estar chegando, passaram para buscar
Nathan — Olie comentou quando me sentei ao seu lado.
— Sério que ele parou de fugir? Será que vai me explicar o motivo da
grosseria da outra noite?
— Liah, hoje faz três anos do acidente dele. Evita esse confronto, por
favor! — pediu triste.
Encarei Olívia espantada. Acidente? Aquela informação era nova para
mim.
— Ele sofreu um acidente?
— Nathan passou por coisas complicadas — contou num tom muito
triste. — Ficou em coma induzido quase um mês. Todo mundo achou que
ele não fosse sobreviver, mas foi maravilhoso quando ele começou a se
recuperar. Ele sempre fica mal nessa época do ano.
— Eu não sabia disso, Olie. Desculpa se fui insensível, juro que não vou
confrontá-lo hoje — prometi sincera.
— Só vamos aproveitar a noite juntas — pediu, me puxando para a pista
de dança.
Quando voltamos para a mesa, os meninos já tinham chegado. Ethan e
Tommy nos abraçaram sorrindo e nos dando os parabéns pelo início oficial
do projeto. Nathan falou com Olie cheio de sorrisos e abraços e como
esperado, fingiu que eu não existia. Eu realmente gostaria de entender o
problema dele comigo, mas havia prometido a Olívia que não o
confrontaria hoje.
Quando me dirigi ao balcão para pegar uma longneck de heineken, foi
inevitável encarar o cara alto encostado na pilastra afastada da mesa,
conversando com Ethan. Fiquei pensando no tal acidente, curiosa para saber
o que havia acontecido com ele para deixá-lo tão fechado e antipático
daquela forma.
Na volta para a mesa, meu olhar cruzou com o dele o no mesmo instante
Nathan fechou a cara, irritado pela minha escrutinação. Dei de ombros e
voltei a encostar na janela, conversando e bebendo com as meninas.
Existia alguma coisa irritante que puxava meus olhos a todo momento na
direção que os meninos conversavam. Mamãe sempre me disse, antes de
morrer, que minha curiosidade sobre as pessoas ainda me traria sérios
problemas um dia.
Ela não podia estar mais certa.
E minha curiosidade ficava mais intensa a cada segundo.
As horas passaram e Ethan e Tommy voltaram para a mesa, brincando e
conversando com a gente. Nathan permaneceu sozinho ao lado da pilastra,
de costas para a mesa, até que um cara parou ao seu lado. Era gato, tinha a
pele negra e era só um pouco mais baixo que Nathan. Os dois conversaram
um pouco e logo depois o cara veio para onde a gente estava, deixando o
outro sozinho de novo.
— Ei, Olívia, quanto tempo! — o cara se aproximou, abraçando minha
amiga.
— Gabe! — Olie sorriu ao vê-lo. — Tinha tempo que não te via por
aqui.
Atenta, percebi o rosto de Ethan corar e desviar o olhar irritado quando
Olie abraçou o cara cheia de intimidade. Pelo visto, não era só Olívia que
tinha uma queda pelo amigo.
O tal Gabe cumprimentou todo mundo na mesa antes de seguir até a
janela, onde eu conversava com Karol.
— Ei, Karol, me apresenta sua amiga? — pediu me olhando de cima a
baixo.
— Essa é a Liah… Liah esse é o Gabriel… — Karol revirou os olhos
para ele. — E sua sorte é que ela gosta de homem.
— Isso deveria ser ruim? — Gabriel brincou, arrancando um sorriso
dela. — Prazer, Liah.
— Oi, Gabriel — respondi tímida.
— Pode me chamar de Gabe — ele pediu, fazendo uma careta pelo nome
completo.
Pela próxima hora, ele engatou numa conversa divertida e descontraída
com a gente. Gabe parecia uma cara legal, ao menos. Aquela conversa
bastou para tirar meu foco da curiosidade sobre Nathan e o tal acidente,
embora em alguns momentos meus olhos continuassem fugindo para onde
ele estava.
Quando Gabe foi embora, percebi um padrão de divisão entre nossos
amigos. Nathan e eu nunca ocupamos o mesmo metro quadrado naquele
bar. Ele mantinha uma distância considerável de mim e eu evitava me
aproximar.
Nossos amigos, percebendo o padrão de distanciamento, se revesavam
entre grupos que conversavam comigo, e em outro momento, com ele.
A verdade é que aquele tratamento dele me incomodava. Nunca, em toda
minha vida, encontrei alguém que não gostasse de mim simplesmente ao
me olhar uma única vez.
Ainda não conseguia entender o que fiz e o que eu despertava nele para
que me odiasse daquela forma. Olívia insistia em dizer que era coisa da
minha cabeça, mas só eu sabia o jeito que ele me olhou na outra noite.
Mesmo pelo retrovisor, eu podia sentir seu pesar e sua repulsa por estar
naquele carro comigo.
— Está tudo bem? — Evie perguntou ao me flagrar encarando por tempo
demais o cara sentado na mesa, conversando com Olívia.
— Acho que sim. Vai ser sempre assim, Evie? — questionei apontando
com a cabeça para onde eles estavam. — O pior é que nem tenho o direito
de tentar entender o que fiz de errado. Me sinto uma intrusa no meio de
vocês.
Evie suspirou, me lançando um olhar compreensivo.
— Deixa isso para lá. E todo mundo aqui gosta de você. — Arqueei uma
sobrancelha em sua direção. — Está bem! Quase todo mundo — respondeu
rindo. — Olívia nunca deixaria você sair desse grupo agora.
Era verdade. Olie passou mais de um ano tentando me convencer a sair
com eles, e quando finalmente aconteceu, eu sabia que realmente precisava
daquilo. Me sentia vivendo de novo, depois de tanto tempo.
— E você? — Troquei o assunto, cheia de pensar na mesma coisa. —
Empolgada para assumir a diretoria da Consultoria?
— Minhã mãe está surtada — contou satisfeita. — Ela não consegue
acreditar que você se recusou a atender a ligação dela. E eu ainda recusei a
festa de aniversário ridícula que ela queria fazer para mim. Então, já sabe,
não é?! A mulher está surtada.
Evie tinha me avisado do risco da mãe interferir na contratação dela, por
isso, no dia que me ligou, simplesmente mandei dizer que não estava. A
questão é que a mãe dela era Emília Sanders, dona da fábrica de tecido mais
importante do Estado.
— Falei que isso não ia colar comigo. Mas da próxima vez, atendo a
ligação só para dizer que vou te contratar mesmo assim.
A garota riu abertamente enquanto saía em direção a Karol no balcão do
outro lado. Olívia ainda conversava com Nathan na mesa, Ethan e Tommy
estavam desaparecidos desde que Gabe se juntou com a gente.
Pela primeira vez na noite, eu estava sozinha. Mesmo assim, eu
começava a me sentir totalmente aceita por eles, me sentia parte daquele
grupo, mesmo que uma peça não me aceitasse muito bem.
06 de março de 2019
As coisas mudaram drasticamente na minha vida nos últimos anos.
Todos que me conheciam sabiam que os meus esforços foram todos
direcionados à AppCorporation. Todo aquele meu nível de exigência fazia
com que a empresa caminhasse bem, pelo menos.
Mas era o único ponto da minha vida que ia bem.
Ethan estava puto comigo porque Olie estava puta comigo. Era tão
ridículo eles não enxergarem o que rolava entre eles. Tommy, Karol e Evie
até tentavam ficar ao meu lado, mas era difícil quando eu não permitia que
eles se aproximassem.
Fazia três anos hoje.
Três anos que tudo aconteceu.
Três anos com as crises de ansiedade e acesso de raiva.
Tia Sophia me ligou pela manhã e eu não atendi. Sabia que não
adiantaria mentir, por mais que eu sempre dissesse estar bem, ela sabia que
era mentira.
Tinham muitas mensagens no meu celular, de Tommy, Karol, e mesmo
puto, Ethan também havia enviado. Eles queriam saber como eu estava,
mas eu não tinha vontade de responder nenhuma delas.
Eu já tinha lidado com muita merda na vida, e superei cada uma delas,
mas aquilo era diferente de tudo.
No início de 2016, quando Camille foi embora, o cara inocente e bobo
que eu era partiu junto. O sexo, o desapego, a bebida; essas foram as coisas
que se tornaram minha válvula de escape.
Depois de um tempo, percebi que estava magoando as únicas pessoas
que sempre tiveram ao meu lado na vida, e resolvi tomar meu controle de
volta. Não foi fácil, e até hoje não tenho certeza de que tenho cem por cento
dele. As crises apareciam com menos frequência, mas em dias como hoje,
preferia ficar em casa e não correr riscos.
— Nathan, você precisa parar! — Tommy pediu irritado ao atravessar a
porta do meu loft. Olhei para o relógio digital no canto inferior direito da
tela; 20:37h. — Está tarde, encerra por hoje.
— Comecei a trabalhar tarde hoje — justifiquei, esperando que fosse
suficiente para ele ir embora e me deixar quieto. — E minha cabeça está
funcionando bem. Acho que nunca escrevi tantas linhas de código num
único dia.
Tommy sentou-se no sofá ao meu lado, fechando a tela do meu laptop.
— Você só está transferindo sua frustração. Chega por hoje!
— Meu porteiro precisa parar de deixar vocês subirem — reclamei,
apoiando o rosto em minhas mãos e suspirando exasperado. — Tommy, é
melhor se eu não pensar nisso tudo.
— Você precisa se curar disso. Fugir não te levou em lugar nenhum nos
últimos três anos.
— O que você espera que eu faça? — perguntei irritado, encarando seu
rosto cansado.
— Reage, porra! — Tommy gritou, abrindo os braços. — Você só tem
vinte e sete anos, tem muita vida pela frente. Você ainda pode se casar, ter
filhos, ser feliz com alguém.
Senti o sorriso irônico habitual nascer em meus lábios. Casar? Ter
filhos? Aquilo definitivamente não era para mim. Não fazia parte do meu
histórico de vida.
— Nathan, você precisa reagir. — Tommy levantou-se irritado,
carregando meu laptop, numa tentativa insana de me fazer parar de
trabalhar. — A gente está há três anos vendo você se afundar cada vez mais
nesse luto. Ninguém aguenta mais te ver assim. Sophia sofre todos os dias
por você e até Mia tem me ligado para saber como você está.
Recostei as costas na poltrona macia, jogando o pescoço para trás.
Deixei o peso dos últimos três anos subir à superfície e precisei segurar as
lágrimas pesadas que insistam em querer sair.
— Eu estou perdido, Tommy, não sei nem por onde começar a fazer isso
— assumi.
— O que está acontecendo aqui? — Ethan apareceu, atravessando a
porta de entrada.
Pronto, minha desgraça era total agora.
— A gente precisa fazer ele reagir — Tommy declarou para Ethan. —
Não aguento mais vê-lo assim.
— Sabe como ele vai reagir? — a voz cortante de Ethan denunciava que
ainda estava puto comigo. — Ele vai sair para algum lugar de merda, pegar
a primeira mulher que ver pela frente, encher a cara e acordar de ressaca
amanhã.
— Não fode, Ethan! — reclamei, movendo o corpo no sofá. — Eu não
faço isso tem tempo.
— Ah, é! Esqueci! Agora você é grosso e descuidado com as meninas e
desconta em quem nem conhece.
— Você não tem o hábito de ser irônico. Está trocando de personalidade
com o Tommy agora? — acusei, sentindo suas palavras ácidas me
atingirem. — Nunca fui grosso e descuidado com elas.
Ethan apoiou o indicador no queixo, me olhando pensativo, como se
tentasse se lembrar de algo.
— Engraçado, podia jurar que você deixou Liah na porra de uma rua
escura e deserta no meio da madrugada, sabe lá Deus o porquê.
Eu não queria lidar com toda a merda dela agora e contar a verdade para
todo mundo só ia piorar as coisas. Lianah era amiga de Olivia, e esteve com
ela durante um tempo que eu não era mais próximo de Olie. Aquela garota
supriu a minha presença. Minha amizade com Olie era muito forte, quase
tão forte quanto o próprio vínculo que tinha com os caras, mas quando
estava vivendo toda a merda que aconteceu, me afastei de todo mundo.
Olivia precisava de alguém; ela odiava não ter com quem conversar ou
desabafar, e foi Lianah quem cumpriu esse papel quando eu estava fora de
mim.
Em um estalo mental, percebi que essa poderia ser a desculpa perfeita.
— Acho que eu me precipitei — falei receoso. — Pode parecer ridículo,
mas talvez eu tenha sentido ciúme de Olie ter uma nova amiga, mais
presente que eu.
— Você? Com ciúme da Olivia? — a voz de Ethan soou desacreditada.
— Vocês venceram — declarei irritado. — Vou para a cama dormir.
— Não vai, não! — Tommy segurou meu braço quando tentei passar por
eles. — Vai com a gente para o Republic.
— Hoje é quarta. — Ergui uma sobrancelha para ele, como se fosse
óbvio o fato de que temos que trabalhar amanhã.
Ethan sorriu, claramente feliz em me desestabilizar.
— Liah e Olie conseguiram as licenças e aprovações para colocar a
ONG para funcionar. Saiu hoje, e elas resolveram comemorar.
— ONG? — perguntei confuso.
— Pois é. Quanto tempo tem que você não fala com Olivia? — Ethan
debochou.
Pensei por um segundo, e percebi que não falava com Olie desde o dia
que nos encontramos no bar.
— Vai ou não? — Ethan perguntou impaciente.
— Não vou dirigir — avisei antecipadamente, até porque havia passado
o dia bebendo.
— Não vou deixar você encher a cara hoje — Tommy me repreendeu
ácido.
— Eu não vou. Preciso só tomar um banho — avisei, subindo correndo
as escadas até meu quarto.
Vinte minutos depois, quando desci arrumado, Ethan e Thommas ainda
estavam sentados no meu sofá, conversando.
— Vamos?
— Já falou com sua tia ou Mia hoje? — Tommy perguntou quando
saímos do loft. — Elas passaram o dia atrás da gente.
— Só estou falando com vocês porque se intrometeram vindo até aqui.
— E era verdade, se eles não aparecessem, eu passaria o dia quieto na
minha, sem dar nenhum sinal de vida.
Apertei o botão do elevador, impaciente ao ver que ainda estava no
segundo andar.
— Olie não perdoaria você se não aparecesse lá hoje — Ethan interveio,
explicando os motivos deles terem vindo.
— E você se doeria porque ela ficou chateada, não é? — provoquei,
apertando o botão novamente.
— Vai se foder, Nathan! — Ethan disse exasperado, embora estivesse
sorrindo pela provocação.
Apertei o botão outra vez, irritado pela demora do elevador.
— Se apertar mais de uma vez, chega mais rápido mesmo — ri, sabendo
o quanto Ethan se irritava com essa minha mania.
Por algum motivo, saber que eles sempre me resgatavam quando o fundo
do poço era mais sombrio, me deixava mais tranquilo. Eles ainda não
haviam desistido de mim.

Lianah Vittorino não parava de me encarar.


Ethan queria que eu pedisse desculpa a ela, e isso seria cômico se não
fosse tão dramático.
Ela me devia desculpas. Intrometida do caralho.
Desde que cheguei, percebi o quanto todos eles estavam envolvidos por
ela. Eles riam e brincavam com a garota o tempo inteiro. A insegurança
demonstrada por Lianah naquela primeira vez que nos vimos, não existia
mais. A garota estava solta e feliz com eles, e isso me incomodava muito.
Às vezes, acho que a vida gosta de brincar comigo. Ela apareceu naquele
bar, no meio dos meus amigos e foi quase como se tomasse todos eles de
mim, começando pela Olivia; da mesma forma que fez anos atrás.
Lianah havia envolvido todos eles em sua teia.
— Nathan! — Escutei alguém me chamar, tirando-me do meu transe. —
Como está, cara?
Gabe, um cara que fez faculdade com a gente, apareceu em minha frente.
— Fala, Gabe! — o cumprimentei, vendo seu olhar perdido atrás de
mim. — Tudo bem? — Olhei para trás tentando ver o que ele via.
— Quem é a loira com seu pessoal? — perguntou interessado. — Nunca
a vi com vocês antes.
— Está de sacanagem?
Será que todas as pessoas na face da Terra se interessariam por ela?
— Ah, cara, desculpa. Não sabia que vocês estavam juntos… — não
consegui deixá-lo terminar de falar, porque uma risada estrondosa irrompeu
meu peito.
– Eu e aquela garota? Nunca, Gabe! — avisei irritado. — É uma amiga
da Olie. Mas vai por mim, ela não é uma boa pessoa.
— Por que você diz isso?
Embora parecesse interessado no que tinha a dizer, seus olhos nunca
deixaram a garota segurando uma longneck, recostada no parapeito da
janela baixa e grande que tomava quase toda a altura da parede.
Irritantemente intrometida!
— Deixa isso para lá. — Nada que eu dissesse o afastaria dela mesmo.
— Fique à vontade se quiser se aproximar.
E foi o que aconteceu. Pela próxima hora, Lianah e Gabe conversaram
animadamente. Olie, pelo menos, sentou-se junto comigo à mesa ao lado da
janela.
— Você está bem? — perguntou receosa.
— Por que não estaria?
— Sei lá, você está mais quieto do que o normal — acusou.
— Olie, desculpa pelo que fiz com sua amiga naquele dia, acho que meio
que estava com ciúme dela com você. E sei que isso é ridículo, porque
tenho vinte e sete anos na cara, mas essa época do ano é mais complicada
para mim. Você sabe.
— Eu sei. Ethan me contou isso mais cedo. — Olie deitou a cabeça no
meu ombro, me abraçando. Retribui o abraço, sentindo o quanto era bom tê-
la ali novamente. — Nós amamos você. Você sabe disso.
— Eu também amo você. Mas eu não gosto dela, Olie! — A morena
levantou a cabeça, me olhando confusa. — Da Lianah. Não gosto da
arrogância e da prepotência dela, não gosto da forma como ela age, como se
soubesse tudo sobre todos e não gosto do jeito intrometido dela.
Seus olhos tristes demonstravam o quanto ela queria que eu gostasse da
garota, mas nenhum deles sabia sobre o passado dela.
— Definitivamente, essa não é a Liah, Nathan. E você só a viu duas
vezes. Como pode dizer isso? Vocês se conhecem de algum lugar?
— Não — menti!
— Com o tempo, tenho certeza de que vocês vão se dar bem.
Duvidava disso. Mas não queria iniciar uma discussão com Olie agora.
— Me conta sobre a ONG — pedi, sabendo que ela se empolgaria e
poderíamos esquecer o assunto 'Lianah'.
O resto da noite serviu para me distrair. Passei quase o tempo todo
sentado com Ethan, Tommy e Olie, jogando conversa fora, enquanto Karol
e Evie conversavam animadas com Lianah e Gabe.
Um novo acordo silencioso se formava, o grupo sempre se dividia entre
mim e Lianah. Estávamos no mesmo ambiente, mas sempre em polos
opostos. Parte do grupo com cada um, e às vezes, eles trocavam. Talvez,
sabendo da necessidade de Olie em ter a amiga por perto, eu poderia fazer
um esforço para aquilo funcionar.
Eu poderia estar presente, se Lianah mantivesse distância de mim.

09 de março de 2019
O olhar que encontrei quando atravessei a porta de entrada da casa onde
vivi por toda minha infância e adolescência, era exatamente o que eu sabia
que ia encontrar: a recriminação estampada no rosto de Tia Sophia, me
repreendendo por não atender suas ligações e não ter dado notícias minhas
nos últimos dias.
— Oi, seu desnaturado! — tia Sophia me abraçou.
— Oi, Tia!
Tia Soph me olhou feio ao sentir o cheiro no meu pescoço.
— Nathan Petterson. Você está com cheiro de álcool.
Eu não havia enchido a cara, mas criei um hábito beber alguns copos de
whisky todos os dias pela manhã.
— Eu não estou bêbado, tia — me defendi.
— Você precisa parar de beber sem motivo — sacudindo a cabeça em
reprovação, a mulher mais velha saiu da cozinha gritando por Mia.
Na sala, vi Mia descer as escadas com um papel em suas mãos. Minha
irmã pulou em cima de mim, me abraçando assim que me viu.
— Que saudade, Nate!
A abracei, vendo-a querer me mostrar, ansiosa, o papel em suas mãos.
Olhei o folheto de propaganda estampado com a foto de umas crianças e o
título bem grande em elegantes letras cursivas 'Recomeços'.
— A Olívia está trabalhando nesse projeto com aquela amiga dela. Você
conhece a ONG, né?
— Sei, a Olie me contou. — Até aqui eu encontrava a porra daquela
mulher.
Isso era um pesadelo.
Lianah Vittorino era uma intrometida do caralho. Pelo visto, se
intrometia onde não era chamada, se intrometia na vida dos outros, se
intrometia entre os amigos alheios e até em famílias alheias.
— A Olie disse que posso ajudar lá. O trabalho não é remunerado, mas é
tão lindo o que elas estão fazendo com aquelas crianças — Mia contou
empolgada.
— Isso é muito nobre — respondi feliz em ver o esforço da minha tia
refletido no caráter da filha, ainda mais depois de uma pré-adolescência tão
rebelde. — Qual é a dessa ONG?
— A Olie não te contou?
— Não no detalhe — contei uma meia mentira.
Olívia passou horas me contando sobre as dificuldades de conseguir
todas as licenças e liberações necessárias e como ela estava feliz em poder
ajudar as crianças, mas tive medo de perguntar mais e acabar voltando para
o assunto que queria evitar.
— Eles resgatam crianças abandonadas das ruas e de outros abrigos,
crianças a partir de cinco anos, com chances de adoção reduzida. É um
projeto bem completo, com escola, cursos profissionalizantes. Elas
conseguiram até parceria para estágio com outras empresas. — Os olhos de
Mia brilhavam.
Talvez a frase da minha vida devesse ser: 'seria cômico, se não fosse tão
dramático'.
Então quer dizer que Lianah dava uma nova oportunidade de vida às
crianças abandonadas? Se isso não era irônico, não sei mais o que era.
— É um projeto e tanto — disse com o pensamento disperso.
Eu precisava evitar qualquer coisa sobre ela. A simples menção de seu
nome, estava sendo suficiente para me levar de volta ao lugar mais sombrio
daquele poço.
— Ia te perguntar se quer ir comigo ao shopping. Queria comprar um
presente para a tia Sophia — mudei o assunto, focando no que havia vindo
fazer aqui.
— Só se você comprar um para mim também. — Mia me lançou aquele
olhar típico de menininha triste.
— Ok. Feito! — ri de sua cara de felicidade ao subir correndo as escadas
para trocar de roupa.
Segui pelo corredor, em direção à sala de costura da Tia Sophia.
— TIA! — gritei.
Entrei no quarto sentindo o cheiro de linha e poeira que atingiu minhas
narinas no mesmo segundo. Torcendo o nariz, incomodado com o cheiro,
me aproximei da máquina onde minha tia estava sentada.
Tia Sophia desenhava e costurava desde que me entendo por gente.
Quando minha mãe me largou com ela, Sophia já tinha sua pequena lojinha
de roupas desenhadas por ela própria. Era dali que ela sempre tirou todo o
nosso sustento.
Houve um período difícil, quando Ralph chegava bêbado e tirava tudo
que podia dela; mas logo Carlton entrou nessa equação e fez tudo melhorar.
— Vou levar Mia comigo ao shopping — avisei, puxando a cadeira da
outra máquina, sentando-me ao seu lado.
— Ela vai abusar de você.
Mia sempre abusava. Mas eu não me importava nem um pouco em
gastar meu dinheiro com ela. Nos últimos anos, a AppCorporation gerou
tanto dinheiro que eu seria incapaz de gastar tudo aquilo sozinho mesmo.
— Como estão as coisas? — Minha tia sempre sabia quando as coisas
não estavam bem. A intensidade de seu olhar deixava isso claro.
— Na mesma — me limitei a responder.
Ela soltou um suspiro descontente com minha resposta evasiva. Eu sabia
que toda vez que me abria com Olie, ela contava como eu estava de verdade
para minha tia, mas eu não podia falar com Olie agora. Talvez devesse
pensar em alguma outra pessoa que pudesse me ouvir.
— Até quando você vai se afundar nesses sentimentos?
— Eu estou bem, tia. De verdade! — afirmei, tentando fazer soar real.
— Você tem ido ao psicólogo? — ela já sabia a resposta. — Você é um
homem extremamente inteligente, e sabe que é para o seu bem.
— Eu sei — suspirei. — Prometo que vou procurar um profissional —
avisei, incluindo uma nota mental de me cobrar para fazer mesmo isso
depois.
No geral, ir ao psicólogo até me fazia algum bem. Mas eu tinha medo de
me abrir e dizer tudo aquilo que eu realmente pensava; isso implicaria em
reviver situações e sentimentos que eu tentava a todo custo manter
afastados de mim.
— Vou ligar para Olie e pedir a ela para te cobrar de fazer isso. — Tia
Sophia me lançou um olhar atravessado.
Se ela ligasse mesmo, não precisaria me preocupar em esquecer a nota
mental.

No Shopping, Mia me ajudava a achar qualquer coisa que a mãe


quisesse, enquanto comprava um monte de roupa e bolsa para ela. Eu não
me importava mesmo com aquilo, e ficava feliz de vê-la satisfeita. Mia
também havia passado por muita merda quando era mais nova.
Nos últimos dois anos em que Tia Sophia esteve casada com Ralph, ele
também batia na Mia. Tudo que eu pudesse fazer para vê-la feliz, eu faria,
porque Mia era uma irmã para mim.
Após comprar quase o shopping inteiro, nos sentamos em uma cafeteria
que sempre íamos. Mia pediu sorvete e eu um suco de laranja.
— O Carl continua virando noite na delegacia? — perguntei.
Depois de ter se separado, tia Soph casou-se novamente com Carlton
Stuart. O homem era um policial investigador e foi ele quem ajudou minha
tia quando fiz a denúncia contra Ralph.
— Ele sempre está enrolado com alguma investigação maluca — Mia
contou, revirando o sorvete na taça. — Mas tem uma coisa me
incomodando.
— O que é? — perguntei preocupado.
— Carlton está estranho desde a notícia que Eliot foi preso e
assassinado.
— Eu realmente prefiro não falar desse assunto, Mia. — Aquele era um
passado que eu não tinha força e nem estrutura para reviver.
— Desculpa te fazer lembrar disso — pediu.
— Só esquece esse… — parei de falar ao perceber que Mia não estava
mais prestando atenção em mim.
Seus olhos estavam focados em algo além do corredor, onde um grupo
de meninos adolescentes estavam aglomerados. Apertei os olhos em sua
direção.
— Tem alguém que te interessa ali?
— Me deixa, Nate! — reclamou, me olhando de lado. — Sou
praticamente adulta.
— Nunca disse o contrário — sorri, mesmo sentindo o pesar de vê-la
crescer. — Mas isso não quer dizer que não tenha direito de sentir ciúme de
você.
— Nate, você ficaria muito puto se eu beijasse um dos seus amigos? —
Engasguei com o suco que puxava pelo canudo. Por pouco, o líquido ácido
não saiu pelas minhas narinas.
— Que porra de pergunta é essa, Mia? — as palavras saíram
entrecortadas pela tosse recente.
— Calma, acho que me expressei mal — Mia apressou-se em explicar.
— Uma amiga minha beijou um amigo do irmão mais velho, e ele meio que
nem ligou para isso. Achei estranho, exatamente porque tenho a certeza que
você surtaria se eu fizesse isso.
Desconfiado, apertei os olhos em sua direção.
— Mia, Mia. Nem pense em se envolver com um cara mais velho. Você
tem idade suficiente para saber o que esses caras querem — avisei.
— Você sabe que eu não sou mais virgem, certo? — perguntou
despreocupada, brincando com o sorvete.
— Caralho, Mia. Eu não preciso saber dessas coisas. — Eu estava
aterrorizado em pensar na minha irmã como qualquer coisa que não fosse
uma criança.
— Você está falando muito palavrão, Nate. Deixa minha mãe saber
disso. — Ri de sua provocação.
— Você vai mesmo trabalhar na ONG? — perguntei, me recriminando
no segundo seguinte por voltar nesse assunto.
Quando Mia me mostrou o panfleto da ONG mais cedo, me senti um
péssimo amigo. Provavelmente, Olívia estava surtando de felicidade por
fazer parte de algo tão grande, e eu nem sequer sabia qualquer detalhe sobre
aquilo.
— Sim. Amanhã vou ligar para Olie e ver quando posso começar.
— O que você vai fazer lá?
Qual seu problema, Nathaniel? Por que insistir nesse assunto?
— Acho que vou dar aula de costura.
Depois de conversarmos mais um pouco sobre a ONG, levei Mia para
casa. Era sábado e Ethan me enviou mensagem dizendo que todos iam se
encontrar no Republic.
Ethan era o cara que a gente sempre procurava quando precisava
desabafar. Ele sempre guardava tudo, embora eu desconfiasse que Olie
sabia de mais coisa do que falava por causa dele. Mas pensando que ainda
precisava de alguém para falar, decidi mandar uma mensagem de volta.
Não esperei outra resposta. Dei partida no carro, esperando que Ethan
não me deixasse na mão.
Considerando a eminente infiltração silenciosa de Lianah na minha vida,
eu precisava da visão de alguém neutro de toda a merda. Se um dia nossos
amigos soubessem sobre o que aconteceu, as coisas podiam ficar piores
para mim e para ela. Foi pensando nisso que tomei a decisão de contar a
Ethan.
Quando estacionei no meu prédio, avistei seu carro na garagem. Ele
estava encostado no capô, com um engradado de heineken na mão.
— Sabia que a gente ia precisar de uma cerveja. — Me mostrou o
engradado sorrindo. — O que te deu para querer falar?
— Você precisa me jurar que não vai falar com Olie sobre nada que a
gente conversar — pedi ao entrarmos no elevador e apertei o botão da
cobertura.
— Por que eu falaria com Olie? — Ethan questionou confuso.
— Vocês vivem grudados — acusei.
— Vai ficar com ciúme dela agora comigo também? — O tom irônico
que Ethan vinha assumindo me irritava profundamente.
— É sério, Ethan! — suspirei.
O elevador apitou ao chegar no andar da cobertura.
— Relaxa, você sabe que vai ficar entre a gente.
Entramos no meu loft, e Ethan foi direto para a geladeira colocando as
garrafas de cerveja no freezer. Larguei minha jaqueta em cima do sofá,
buscando meu copo de whisky.
— Você não perde essa mania, né? — criticou, apontando o copo com
líquido âmbar em minha mão.
— Vou precisar disso — disse, sentando-me na ponta do sofá.
Ethan sentou-se no sofá da frente, arqueando as sobrancelhas espessas
enquanto largava os pés sobre a mesa de centro.
— Que porra está acontecendo? E por que acho que tem a ver com a
Liah?
Ele sempre foi o cara mais observador do grupo. Também foi o primeiro
a deduzir que a gente se conhecia.
— Porque tem a ver com ela — assumi, respirando fundo enquanto
criava coragem para contar tudo a ele.

30 de março de 2019
Como se não bastasse o fardo de passar o mês de março inteiro
remoendo meu passado trágico, ainda tinha a porra do dia do meu
aniversário. Eu nunca gostei de grandes comemorações, mas depois que
tudo aconteceu, isso só ficou pior.
O problema é que Ethan e Tommy jamais deixavam a data passar; Olivia
sempre tentava fazer um grande evento; Evie e Karol apoiavam Olie e,
conscientes do meu desespero, exerciam um terror psicológico gigante
sobre mim.
O dia 30 de março caía exatamente em um sábado este ano. Olivia usou
a pior desculpa de todas ao dizer que não era uma comemoração, era apenas
um encontro casual entre amigos, no bar que a gente sempre ia quase todo
fim de semana.
O pior é que eu já tinha tentado fugir de todo jeito das comemorações
naquele mês. Evie tinha feito aniversário no dia doze, e por sorte foi numa
terça. Aproveitei que ela encontrou Karol e almoçou com a gente durante o
trabalho, para me isentar de qualquer comemoração que tenha rolado no fim
de semana. Mas seria difícil me isentar por hoje.
Tia sophia insistiu a semana inteira para que eu fosse almoçar com ela. A
mulher sabia me comprar da pior maneira possível para mim — e melhor
para ela: com comida. Se tinha uma coisa nesse mundo que eu amava, era a
comida de tia Soph. Mas nunca era só um almoço.
Mia estava confeitando um bolo assim que passei pela porta da frente,
com as mãos no bolso do moletom. Revirei meus olhos, me preparando
psicologicamente para toda a animação dela. Uns anos atrás, apesar de
nunca gostar dessa data pelo remorso do abandono, eu me permitia
participar de toda aquela encenação para ver minha tia e Mia felizes. Mas
hoje eu não conseguia mais enxergar muito sentido na minha vida.
Para que comemorar algo tão sem sentido?
— Sério, Mia? — choraminguei olhando o bolo redondo coberto de
creme de manteiga.
— Por favor, não corta a felicidade da minha mãe hoje — pediu, me
olhando torto. — Ela está feliz demais por você aceitar o convite para
almoçar aqui.
Nos últimos dois anos eu tinha me enfiado em casa e passado o dia
inteiro trancafiado no quarto. Mesmo assim, Olivia sempre dava um jeito de
aparecer a noite com o pessoal e me tirar a pouca paciência que já tinha.
— Onde ela está? — estiquei o pescoço para a sala, procurando algum
sinal da mulher que me criou.
Mia terminou de passar uma espátula no bolo, correndo o dedo por ela
para tirar o excesso de creme.
— Tomando banho — disse lambendo o dedo.
Já que teria que aturar aquilo de qualquer jeito, puxei a tigela com o resto
de confeito, ouvindo Mia resmungar.
— Ah, não, Nate! — Mia me seguiu até a bancada. — É meu.
Tirei duas colheres da gaveta entregando uma a ela.
— Não seja egoísta. É meu aniversário hoje.
— E você nunca gostou disso, mas para fazer chantagem emocional a
data serve, não é?
Mia pegou a colher irritada, mergulhando-a no pote e enfiando uma
quantidade absurda de creme na boca. Não contive uma risada alta,
sacudindo a cabeça em reprovação ao seu exagero, o que fez Mia enfiar os
dedos no pote, esfregando o creme no meu rosto em seguida. Tia Sophia
chegou na cozinha bem na hora, olhando a filha de cara de feia.
— Mia, que coisa feia — ela revirou os olhos para a mãe. — Que bom
que veio, Nate.
Tia Soph me entregou um pano para limpar o rosto e me abraçou por
alguns segundos logo depois, evitando todos aqueles comprimentos e
desejos característicos da data. Ela sempre soube ser compreensiva comigo
de uma forma que ninguém mais sabia.
Após me abraçar, abriu um dos armários da cozinha e pegou um
envelope branco sem identificação, estendendo em minha direção.
Abri o envelope, tirando um cartão postal de dentro. A Torre de Pisa
estampava o papel brilhante.
Era da Itália.
Meu coração perdeu uma batida quando senti minha respiração falhar.
— É da sua mãe — tia Soph avisou, vendo a confusão estampada no
meu rosto. — Chegou ontem pelo correio.
Apesar de não gostar dessas manifestações da mulher que me colocou no
mundo, senti o alívio no mesmo segundo. Não era tão ruim quanto
imaginei.
Olhei o envelope vendo que ainda tinha uma nota de cinquenta dólares
dentro. Deixei escapar uma gargalhada alta, mostrando a nota à minha tia.
Elise, você é insana!
— Que tipo de pessoa ela é? — questionei incrédulo.
— Ela só quis lembrar de você — Sophia defendeu a irmã.
— Me mandando cinquenta dólares, tia? — ergui uma sobrancelha. —
Se ela quisesse mesmo lembrar de mim, teria escrito, pelo menos, meu
nome nessa porcaria de cartão.
Elise não sabia muito sobre minha vida, mas não precisava ser um gênio
para saber que eu não precisava, nem de longe, de cinquenta dólares.
— Vamos esquecer isso e almoçar? — propôs, abrindo o forno na
cozinha.
Um cheiro incrível de lasanha subiu no ar, fazendo meu estômago roncar.
Eu estava com péssimos hábitos alimentares nos últimos meses, ter aceitado
almoçar com eles hoje, foi a melhor coisa que eu podia ter feito.
Mais tarde, quando saí do banho em casa, caía uma chuva torrencial lá
fora. Raios cortavam o céu escurecendo, e trovões altos já podiam ser
escutados. Preocupado com a tempestade e a queda da temperatura, puxei
uma jaqueta grossa do armário.
Ciente de que beberia, pedi um Uber na porta do prédio onde morava. O
aplicativo ficou procurando um carro nas proximidades por alguns minutos,
mas pela chuva exagerada, não encontrou nada. Antes que eu pudesse tentar
de novo, meu celular tocou.
— Oi, Tommy.
— Onde você está? Vai furar com a gente logo na comemoração do seu
aniversário?
Bufei. Algo dentro da minha cabeça gritava para que eu ficasse em casa
dormindo hoje.
— Não estou conseguindo Uber. Vou ligar para algum táxi — avisei.
— Me espera aí, está chovendo muito. Vou te buscar.
Desliguei, voltando para dentro da portaria. Esperei Tommy sentado no
sofá do hall de entrada, com minha mente ainda gritando, tentando me
convencer a subir e me trancar no quarto.
Ouvi a buzina de Tommy quando parou o carro em frente ao prédio,
vinte minutos depois. Atravessei a portaria sentindo alguns pingos gelados
atingirem meu rosto. A chuva estava ainda mais forte. Tommy dirigiu bem
abaixo da velocidade da pista, com a chuva impedindo quase toda a visão
da estrada.
Coloquei meus pés no Republic já irritado. Chegamos muito tarde, e
totalmente ensopados pela chuva. Olívia levantou seus braços, acenando
alegremente para que eu os visse assim que entrei no salão mais para dentro
do bar. Era essa a empolgação que queria evitar; meus amigos super dóceis
me desejando coisas que jamais teria.
Para completar minha irritação, Lianah estava entre eles.
Estou dizendo. Intrometida.
— Ao menos, cumprimenta a Liah — Tommy falou baixo ao meu lado,
antes que chegássemos à mesa. — Ela não queria vir, já que é seu
aniversário, mas Olie a arrastou para cá.
— Pelo menos ela tem alguma noção, apesar de intrometida — soltei,
sentindo uma leve cotovelada de Tommy na minha costela.
Apesar das minhas reclamações e ressalvas, todos eles foram muito
discretos. Sem grandes cumprimentos ou desejos falsos. As meninas me
abraçaram evitando qualquer cumprimeto exagerado e Ethan me deu uns
tapinhas nas costas, desejando apenas um feliz aniversário.
Sentei na cadeira livre, na beirada da mesa, vendo Lianah desviar o foco
de mim. Virei para Tommy, que me encarava recriminador. Sacudi a cabeça,
revirando os olhos.
— Oi, Lianah — disse a contra gosto.
— Oi — sua voz soou muito baixa.
Durante o resto da noite, escutei as conversas de Olívia, Ethan e Lianah
sobre a ONG e como estavam empolgados com os projetos que se
iniciariam nos próximos meses.
Apesar de estar incomodado com a teia da garota, que ficava cada vez
maior, prestei atenção em tudo que eles falavam, percebendo o quanto
estava de fora dos acontecimentos da vida deles agora.
Aquele vazio no peito só se intensificou.
Se as coisas estavam ruins, ficaram piores depois que deitei para dormir
aquela noite. Eu havia perdido o controle da minha vida e por algum surto,
achei que tinha recuperado. Mas a verdade é que perdi tudo: o controle,
minha segurança, minha paz e agora ainda estava perdendo meus amigos.

03 de abril de 2019
Ethan me encarou quando os gritos vindos da sala ao lado ficaram mais
altos.
Karol estava tendo alguns problemas com a mãe há algumas semanas, e
estavam ficando mais sérios nos últimos dias. Os pais dela queriam que ela
fosse ao casamento de uma prima e levasse um acompanhante. Eles pediam
essas coisas à filha, mesmo sabendo que ela gostava de mulheres.
O barulho de algo caindo no chão nos chamou atenção. Ethan levantou,
esticando o corpo para fora do corredor, observando o vidro transparente da
sala do outro lado.
— Acho que vou com ela a esse casamento. Quem sabe assim eles não a
deixem em paz.
— Se eles querem insistir em uma mentira, não vejo motivo para não ir
— incentivei.
Karol atravessou a porta da sala de Ethan feito um furacão, apoiando as
mãos na cintura. A garota crispou os lábios, pensando nas palavras que ia
dizer.
— Eu queria ter pais diferentes. Me sinto uma péssima filha dizendo
isso, mas queria que eles não fossem meus pais.
Ethan e eu trocamos um olhar compreensivo. Se tinha uma coisa que
aquele grupo quase todo podia entender, era sobre ter pais complicados ou
simplesmente não ter.
— Posso ir com você a essa casamento — Ethan propôs.
— Nesse caso, vou aceitar sua proposta, porque eles ameaçaram me
deserdar se eu não fosse.
A ruiva largou-se sobre o sofá de couro preto do outro lado,
massageando suas têmporas de olhos fechados.
— Acabou a gritaria?
Tommy também apareceu, questionando Karol sobre a ligação. O loiro
sentou-se ao lado dela no sofá, dando uns tapinhas em sua perna.
— Avisa sua mãe que você vai levar alguém — Ethan sorriu
maliciosamente. — Mas se eu fosse você, a deixava nervosa sobre a
possibilidade de ser uma mulher.
Era uma sugestão e tanto. Podia imaginar a elegante Sarah Carter
surtando ao imaginar a filha aparecendo no casamento, com toda sua
família presente, acompanhada de uma mulher.
— Você também pode levar a Liah — Ethan brincou. — Ela é a única
das meninas que sua mãe não conhece. Seria engraçado brincar com a
cabeça dela.
— Duvido que ela aceitaria isso — afirmei de repente.
— Você é a última pessoa que pode falar isso. Você nem a conhece
direito — Karol reclamou.
Bem, isso era verdade. Mas a curiosidade ainda falava mais forte.
— Ela também gosta de mulheres?
Tommy riu alto, encarando Karol com um olhar malicioso.
— Se ela gostasse, já tinha caído nas investidas de Karoline Carter —
Tommy pareceu lembrar de algo. — Falando em Liah, tenho que falar com
você sobre uma coisa.
Comigo? Eu, definitivamente, não queria falar sobre Lianah.
— O que foi? — perguntei impaciente.
Ethan e Karol soltaram uns risinhos enquanto Tommy me olhou
apreensivo. Parecia que eu era o único que não sabia de algo relevante ali.
— Isso vai ser divertido — ouvi bem quando Karol cochichou com
Ethan.
— Vou direto ao ponto — Tommy sentou-se na cadeira vaga ao meu
lado. — Eu e Ethan aceitamos algumas parcerias da ONG para dar uns
cursos lá. Enfiei um curso de desenvolvimento de jogos no planejamento
que dei a Liah.
Sorri de lado, entendendo exatamente onde ele queria chegar. De nós
três, eu era o único que tinha experiência com desenvolvimento de jogos. E
eu também era, realmente, o único que não sabia de algo relevante.
— E você acha que vou dar um curso na ONG, só por que você montou
um planejamento sem meu consentimento?
Karol soltou uma risadinha e Ethan um assobio baixo. Apertei os olhos
na direção dos dois, vendo suas expressões debochadas aumentarem.
Tommy tirou o celular do bolso, me mostrando algo na tela. Eram fotos
de várias crianças, em idades diferentes.
— Quando você começa a se envolver com algo assim, consegue
entender como qualquer ajuda faz diferença na vida dessas crianças — disse
ainda passando mais fotos em sua galeria. — Imagina o que seria de você,
caso Sophia não tivesse te criado e Carlton aparecido em suas vidas.
Chantagem. Era isso o que ele estava fazendo. E essa era bem pesada.
Esfreguei meu rosto pensativo. Há dois meses eu me via cada vez mais
afastado da vida deles. Todos eles estavam envolvidos naquela teia sem fim,
e eu tinha cada vez menos noção do que acontecia.
Não havia mal nenhum em ajudar, não é?
Ethan e Karol me olhavam em expectativa, aguardando o momento em
que eles sabiam que eu cederia. Tudo relacionado a abandono mexia
comigo de uma forma inexplicável.
— Eu posso, pelo menos, conhecer esse lugar antes? — pedi, sentindo
minhas barreiras sendo derrubadas.
É, Nathan! A porra da teia não tinha mesmo limites.
04 de abril de 2019

Estacionei atrás do carro de Ethan e soltei o cinto de segurança, olhando


através da janela para o prédio recém reformado com dois andares. Devia
funcionar como a sede de alguma empresa antes. Era um lugar bem grande,
com janelas enormes gradeadas no segundo andar.
A ONG tinha um estilo industrial bem moderno. As paredes, do lado de
fora, eram revestidas de pequenos tijolos numa cor predominante que
lembrava barro. As grandes janelas envidraçadas tomavam uma boa altura
das paredes, em destaque pelas frisas pretas de alumínio que as
contornavam. O arquiteto fez um excelente trabalho; ninguém diria que ali
funcionava uma ONG.
Saí do carro, parando ao lado de Ethan. Receoso, encarei a entrada do
prédio, vendo a movimentação de algumas pessoas entrando e saindo.
— Não se preocupa, Liah não está qui hoje. Está na empresa dela.
— Já desisti de manter distância — revirei os olhos. — E do jeito que
essa garota é intrometida, daqui a pouco aparece aqui só para tirar meu
juízo.
Ethan riu, virando o pescoço de lado.
— Vem. Vou te mostrar o lugar e te apresentar a uma pessoa que eu
queria muito que você conhecesse.
Segui Ethan até a grande porta de vidro. No balcão da recepção, uma
moça baixinha que aparentava ter uns quarenta anos, sorriu para ao cara o
meu lado.
— Ethan, que bom que veio hoje. Isso aqui fica um caos quando Olívia e
Liah não estão.
— Dinna, esse é o Nathan. Ele é um dos meus sócios e melhores amigos.
A moça simpática sorriu para mim, me entregando um crachá escrito
'visitante'.
— É um prazer, Nathan. Thommas também chegou agora há pouco.
Ethan assentiu, seguindo pela porta de acesso ao corredor cumprido no
primeiro andar. Dentro, o lugar era ainda mais bonito, bastante arejado e
claro. O piso de madeira envernizada contrastava com as paredes de
cimento queimado. Quadros pintados pelas crianças, eu acredito,
enfeitavam o corredor.
— Aqui no início ficam as salas administrativas. — Ethan apontou para
as portas de madeira que se seguiam nos primeiros metros do corredor. —
Essas aqui são as salas de aula do ensino médio. — Apontou para umas
portas mais a frente.
Curioso, estiquei a cabeça para em uma das salas abertas, alguns jovens
estavam em pé em grupinhos conversando, outros sentados sobre as mesas.
Tudo parecia muito novo; as mesas e cadeiras confortáveis, o quadro branco
muito limpo, os projetores no teto.
— Isso tem uma estrutura ótima — observei.
— Você nem viu nada ainda. — Ethan sorriu.
Continuamos andando pelo corredor até uma porta que tinha o nome de
Olívia numa plaquinha.
— A Olie costuma ficar aqui.
Era uma sala grande e muito bem arrumada. Uma mesa com tampo de
vidro no meio, em frente à janela, a cadeira giratória alta e confortável.
Tinham algumas estantes com livros e pastas nos cantos e um tapete
marrom-claro gigante que cobria o chão.
— Ela também é Diretora aqui. Olivia gosta de luxo, você sabe. A sala
da Liah é mais bagunçada — explicou ao me ver olhar confuso o escritório.
Andamos mais alguns passos até a próxima porta. A placa indicava que
ali era a sala de Lianah. Ethan abriu a porta, entrando no lugar. Era tão
bonita quanto a outra, embora fosse realmente mais bagunçada; tinham
pilhas e pilhas de papéis sobre a mesa de madeira. Uma pilha de pastas com
elástico quase estourando estava escorada sobre a lateral de uma estante. A
única diferença é que, nessa sala, tinha um sofá grande de couro marrom no
canto da parede.
— Liah fica mais tempo aqui do que em casa. Olívia praticamente
obrigou a garota a comprar esse sofá para que ela pudesse descansar às
vezes.
Eu sabia como era isso; se afogar em trabalho e esquecer do resto da
vida.
Saímos da sala, seguindo pelo corredor. Uma escada se iniciava logo à
frente da porta.
— Essa parte do segundo andar ainda está em obra. Liah vai abrir vagas
para crianças mais novas também. Se subir pela escada da frente, lá em
cima tem os dormitórios, o refeitório e banheiros com chuveiro.
— Ela banca tudo isso? — perguntei chocado. — Não existem
patrocinadores?
— Alguns. Mas Liah banca a maior parte. Esse projeto sempre foi o
sonho da vida dela.
Encarei meu amigo, pensando que aquilo era totalmente novo para mim.
Aquela mulher realmente se preocupava em dar uma vida melhor àquelas
crianças.
Santa ironia do destino.
Um sinal soou alto pelo corredor e Ethan conferiu a hora no relógio em
seu pulso.
— É o intervalo da Triss. Quero que a conheça.
— Quem é Triss?
— Uma menina de dezesseis anos que quero colocar num estágio na
App.
— Sério isso? — Ele costumava ser o mais chato de nós com os
estagiários que contratávamos, e geralmente eles já estavam na faculdade.
Ethan sorriu de lado, apontando uma porta de madeira que dava acesso a
um pátio atrás do prédio. Passamos por ela e logo avistamos Tommy, que
estava sentado ao lado de uma garota adolescente. A menina sorriu ao ver
Ethan se aproximar.
Triss era uma menina magrinha, com pele negra e cabelos enrolados. Seu
sorriso era o que mais chamava atenção no seu rosto pequeno.
— Provavelmente, essa é a garota mais inteligente que você vai ver na
sua vida — avisou antes de se aproximar deles.
— Oi, Ethan! — Triss cumprimentou. — Tommy está me contando
sobre como criaram a empresa de vocês.
— E provavelmente ele está falando que foi ideia dele, não é?
Tommy fechou a cara. Ele sempre contava que foi ideia dele. No fim,
isso não importava muito. A AppCorporation jamais teria existido sem
qualquer um de nós.
— Está bem. A ideia inicial foi do Nathan. — Ri ao perceber seu
desgosto em contar aquilo. — Mas os melhores ajustes foram os meus.
Ethan gargalhou alto, sentando ao lado de Triss no banco de pedra.
— Triss, esse é o Nathan, nosso sócio e o mais chato de nós três.
Sacudi a cabeça negando.
— Sua sorte é que eu não acredito nem um pouco nesses dois — disse
divertida me olhando.
— Já gostei dela — avisei aos dois idiotas.
— Triss, conta ao Nathan o que você quer estudar.
Os olhos da garota brilharam enquanto ela abria um sorriso enorme. A
menina tirou um papel de dentro da mochila, estendendo-o para mim.
Era um fôlder dos cursos de tecnologia que Tommy programou para a
ONG. Na lista de módulos abaixo, programação de jogos estava marcado
com um círculo vermelho.
— Um dia, vou conseguir criar um jogo ainda melhor que The Sims3 —
disse esperançosa. — As pessoas vão poder simular carreiras reais e
aprender remotamente nele, com direito a diplomas e tudo.
Arqueei uma sobrancelha, encarando a garota.
— Você já programou alguma coisa antes? — perguntei curioso.
Os caras riram. Ethan tirou seu celular do bolso me mostrando a tela
aberta da loja de aplicativos com vários joguinhos relacionados.
— Ela já ganha algum dinheiro com essas porcarias. Imagina quando
programar algo bom de verdade.
Olhei chocado para os jogos, que por mais bobos que fossem, eram
daquele tipo que viciava as pessoas.
— Onde aprendeu a programar? — perguntei surpreso.
— Nos computadores velhos do abrigo que eu morava antes.
— Não é uma coisa fácil — comentei ainda avaliando a lista de jogos no
celular de Ethan.
— Para uma adolescente sem ter muito o que fazer, eu só precisava
arrumar distração e ocupar minha cabeça — a menina comentou sorrindo
triste.
Meu coração acelerou ao entender o motivo de Ethan ter me levado ali.
Triss não teve a mesma oportunidade que tive quando tia Sophia se
prontificou a ficar comigo. Eu teria parado num abrigo se dependesse de
Elise.
— Você vive em abrigos há muito tempo? — perguntei enquanto me
sentava no lugar vago ao seu lado.
— Desde que meus pais morreram, quando eu tinha nove anos —
respondeu de forma compassiva.
Suspirei, evitando estender o assunto ao notar o quanto isso a deixava
desconfortável.
— Esses jogos são incríveis — disse a ela sorrindo, tentando apagar as
lembranças que eu sabia que se formavam em seus olhos. — Tem gente na
faculdade que não faz isso.
— E se você viesse trabalhar para a gente? Podemos te dar um estágio.
— Thommy disse.
Encarei o idiota revoltado. Ele não deveria ter dito isso a ela. Se, por
algum motivo, não conseguíssemos fazer isso funcionar, a garota teria suas
esperanças esmagadas.
— Vocês fariam mesmo isso?
Assenti. Não dava mais para voltar atrás mesmo.
Tommy tinha razão sobre se envolver naquilo tudo. Quando a gente
começa a entender a diferença que pode fazer, é impossível parar.
Ficamos por horas conversando com Triss sobre nossa empresa e nossa
infância. Em determinado momento, ela resolveu se abrir e nos contou
sobre seu passado e o acidente de carro que matou seus pais e a deixou em
coma por algum tempo.
Definitivamente ela tinha uma história parecida com a minha. Eu só não
estava preparado para aquela conexão.
Quando saí da ONG com Ethan no final da tarde, eu sabia que não tinha
mais como deixar de fazer parte daquilo, ainda que trouxesse à tona partes
do meu passado que me despedaçavam e me enviavam direto para o poço
escuro.
04 de abril de 2019
Meu celular não parava de tocar. Precisei participar de duas reuniões
com Evie na Consultoria durante a tarde de quinta, e em todas as três horas
que ficamos em reunião, meu celular dava apenas alguns minutos de paz
entre uma tentativa de contato e outra.
Para Walter ter me ligado tantas vezes, Dona Sylvia havia aprontado
alguma coisa. Preocupada, retornei a ligação assim que saí da sala de
reunião.
— Liah, até que enfim consegui falar com você — atendeu nervoso.
— Aconteceu alguma coisa com minha avó? — perguntei preocupada.
Walter era seu assessor, vivia com Sylvia aonde quer que ela fosse e
ajudava em qualquer coisa que ela precisasse. Depois de tantos anos, eu e
vovó o considerávamos quase como alguém da família.
— Vou enlouquecer hoje, Liah! — reclamou quase chorando. — Sua avó
acabou de me avisar que está desde janeiro levantando orçamentos com
empresas de softwares. Ela decidiu trocar os sistemas. Aquele tal de Dr.
Philipe a convenceu a usar o mesmo sistema que ele usa.
— Walter, quando Sylvia coloca algo na cabeça é quase impossível fazê-
la voltar atrás — achei graça de seu desespero, mas entendia o que ele devia
estar passando com ela. Vovó era uma mulher muito difícil de lidar. — Eu
vou tentar conversar com ela hoje.
— Tudo bem, Liah. Eu só não aguento mais escutá-la reclamar das lojas
e do sistema velho por horas. Achei que você deveria saber sobre essa
decisão louca dela.
— Obrigada por avisar, Walter.
— Está tudo bem? — Evie perguntou logo que desliguei o telefone.
— Minha avó está aprontando, de novo — ri, balançando a cabeça em
negação. — Mas isso não é nada novo para mim.
— Como estão as coisas na ONG?
— Correndo bem melhor do que o esperado. Estamos tendo tanta ajuda
nesse momento que é até difícil agradecer todo mundo.
Evie sorriu enquanto puxava a cadeira da mesa na sala que era minha até
dias atrás.
— Me sinto tão importante sentando na sua mesa — brincou.
— Agora é sua — avisei. — Eu não posso demorar muito aqui hoje.
Tenho muita coisa para resolver na ONG ainda, e preciso ter uma conversa
com dona Sylvia quando chegar em casa.
— Liah, sou doida para conhecer sua avó. Ela deve ser aquele tipo de
senhora arretada que adora uma bagunça.
— Acertou em cheio! — ri, lembrando de suas confusões.
— Tem só uma coisa que eu queria falar com você em particular — Evie
começou, me olhando preocupada. — Essa semana a gente recebeu uma
notificação de vistoria do IRS4, e isso não é muito normal acontecer.
Franzi a testa confusa, esticando a mão para pegar o papel que Evie me
entregou. Realmente era uma notificação de fiscalização local, e isso só
acontecia quando existia alguma denúncia ou quando alguém estava
envolvido em coisa errada. O que, definitivamente, não era o meu caso.
— Bem, entrega tudo que pedirem, não fazemos nada errado aqui —
avisei a ela dando de ombros.
Se tinha alguma coisa errada, uma hora íamos descobrir.
No fim da tarde, resolvi adiantar algumas coisas na ONG. Na última
semana, eu havia resolvido alguns problemas da Consultoria, por isso o
trabalho aqui ficou um pouco parado.
— Liah, eu posso falar com você? — Triss perguntou, batendo à porta da
minha sala.
— Claro que pode, entra e senta aqui — falei indicando a cadeira à
minha frente.
— Desculpa vir te procurar tão tarde, mas fiquei sabendo que você
estava aqui agora e queria te perguntar uma coisa — Triss começou meio
tímida.
— Pode falar, meu amor — incentivei, largando o teclado e dando total
atenção a ela. Triss se ajeitou desconfortável na cadeira antes de continuar.
— O Tommy me falou sobre um estágio na empresa dele. Isso é
verdade?
— Por mim e por ele seria — expliquei. — Mas estamos esperando uma
autorização da assistente social para isso. Ele não deveria ter te falado isso.
Eu havia pedido a eles que não contassem a Triss ainda. Existia uma
grande chance de não conseguirmos a autorização para isso. Contar a Triss
só aumentaria a expectativa da menina.
Na última semana, Tommy havia me procurado para dizer que eles
aceitariam criar estágios para a ONG na empresa deles, mas eu ainda
aguardava uma assistente social fixa e consequentemente, todo o trâmite
legal para que isso pudesse acontecer.
— Eu não quero criar expectativa sobre isso. É uma possibilidade de
mudar de vida, e ele, o Ethan e o Nathan pareceram gostar de mim.
— O Nathan? — Franzi a testa tentando me lembrar em que momento o
Nathan esteve aqui.
— Sim. O Ethan trouxe o outro sócio deles aqui hoje mais cedo. Eu
adorei conhecê-lo! — Triss contou empolgada.
— Bem, que bom que eles gostaram de você — sorri sem conseguir
esconder o meu choque ao saber que Nathan esteve na ONG.
— Eu até me inscrevi no curso que o Nathan vai dar aqui. Já que gosto
tanto dessa área… — Eu podia ouvir a voz de Triss ao fundo, mas minha
atenção tinha se perdido quando a menina mencionou um curso que Nathan
daria.
Sacudi a cabeça para tentar fazer minha mente funcionar melhor.
— Que curso é esse que você está falando?
— O curso de programação de jogos. — Triss arqueou uma sobrancelha,
provavelmente me achando louca.
— Quem ia dar esse curso não era o Tommy? — Onde eu tinha me
perdido nessa história?
— Posso ter me confundido, mas havia entendido que era o Nathan. —
A garota me olhou confusa. — De qualquer forma, queria te agradecer por
fazer esse papel de mãe-irmã tão bem.
— Mãe-irmã? — perguntei sorrindo, esquecendo do assunto Nathan por
um instante.
— Você não tem idade para ser minha mãe, mas cuida da gente como se
fosse. Como uma irmã mais velha mesmo. A gente tem pouco para se
apegar aqui, então pessoas assim são o mais próximo de família e amor que
temos.
Triss sorriu sem graça pela confissão enquanto levantava da cadeira e me
abraçava apertado. Abracei a menina de volta, sentindo que a ONG estava
cumprindo seu papel, até que saiu da sala me deixando com as lágrimas
escorrendo pelos olhos.

05 de abril de 2019
Sabe aquele tipo de coisa que acontece depois de você avisar trinta e sete
mil vezes que vai acontecer? Vovó enfiou na cabeça que queria trocar os
sistemas das lojas o mais rápido possível.
Eu estava com a agenda cheia na sexta-feira, precisei adiar uma reunião
de parcerias da ONG para buscá-la na loja do Centro e levá-la a alguma
reunião que marcou com outra empresa; segundo ela, essa prometia
softwares descomplicados e fáceis para qualquer um operar.
Tentei convencê-la a manter o sistema atual até que vendesse as lojas, já
que ela estava com a decisão tomada. Mas vovó reclamava diariamente
sobre tudo que podia e como queria um sistema fácil de operar e fosse
seguro para ela.
Eu tinha a sensação que ela estava adiando a venda das lojas
propositalmente. Eu precisava pressionar Walter sobre isso e descobrir o
que existia realmente por trás dessa troca de sistema.
— Dona Sylvia, eu espero que a senhora sossegue com essas mudanças
— avisei, entrando na loja.
— Até eu estar pronta para vender minhas lojas e minha marca, tudo
aqui tem que estar adaptado para mim, Liah. Esse sistema não é seguro,
sabia? — reclamou carrancuda enquanto procurava algo no celular. —
Aqui, achei o endereço. — Vovó me estendeu o celular me mostrando o
endereço da empresa do software novo.
— AppCorporation — disse surpresa. — Essa empresa é de uns amigos
meus. Com quem é sua reunião? — perguntei enquanto me apressava em
digitar uma mensagem para Ethan.
— Não tenho ideia, meu amor. — Vovó pegou apressada sua bolsa, me
chamando para irmos.
Uma resposta de Ethan apitou em meu celular na sequência.

Sem entender a surpresa dele, digitei de volta, esperando que meu


pressentimento estivesse errado.

Me apressei em sair da loja ao ver vovó voltar e me empurrar rua afora.


Assim que entrei no carro, uma nova mensagem chegou.
Desconfiada, considerei enviar uma mensagem perguntando com quem
seria a reunião, mas preferi acreditar em Deus e pedir aos céus que tudo
desse certo.
Logo que cheguei no prédio comercial, não muito afastado do Centro,
uma recepcionista muito simpática e educada nos recebeu. A mulher nos
indicou um caminho até uma sala de reunião.
Enquanto caminhava pelo corredor, reparei no quanto o lugar era
incrível. Havia grandes janelas que iam do chão ao teto, e todas as salas
tinham paredes de vidro, deixando o grande escritório com uma aparência
elegante e muito clara.
Ficamos sentadas por menos de dois minutos naquela sala, até que ouvi a
risada característica de Karol soar pelos corredores. Por um instante, havia
esquecido de que ela era Diretora Financeira deles.
Virei meu pescoço para trás, em direção a grande parede de vidro,
sentindo meu estômago embrulhar ao ver o homem ao lado dela. Pela forma
como seu rosto se contorceu, Nathan deve ter sentido algo parecido ao me
ver ali.
Onde eu estava com a cabeça quando não confirmei minha desconfiança
com Ethan? Agora, estávamos minha avó, Nathan e eu sentados em uma
sala de reunião.
Minha avó encarava Nathan como se ele fosse um alienígena. Nathan,
que ajustava o cabo de projeção da grande televisão em seu laptop, nos
olhava de tempos em tempos, incomodado com o olhar de águia de vovó.
Suspirei desacreditada, afundando meu corpo na cadeira. Vovó me
olhava como se quisesse falar alguma coisa e eu podia sentir o clima ficar
mais tenso a cada segundo naquela sala fechada.
Quando Nathan finalmente terminou de ajustar os cabos, uma imagem
com a logo da empresa deles apareceu na tela da TV grande ao mesmo
tempo que Tommy entrou na sala.
Senti o alívio imediato.
— Ei, Liah! — Tommy disse animado, segurando a mão de vovó e
deixando um beijo singelo ali. — Dona Sylvia, que prazer ter uma mulher
tão elegante aqui — cumprimentou piscando um olho para ela.
Ela suspirou encantada enquanto eu revirava meus olhos. Tommy, sendo
o Tommy.
— Que tipo de empresa é essa? — vovó cochichou em meu ouvido. —
Onde arrumam esses homens musculosos e elegantes? — chocada, arregalei
os olhos para minha avó, sem acreditar em seu comentário. — Ah, Liah. Se
eu tivesse sua idade e esses dois homens fossem meus amigos…
Apertei o cotovelo dela vendo que Tommy poderia facilmente escutar o
que ela falava.
— Só um deles é meu amigo — afirmei, irritada com sua indiscrição.
— Sabia! — vovó gritou! Olhei feio para ela, que reduziu novamente o
tom de voz a um cochicho. — Essa tensão entre você e o bonitão de olho
azul não é mesmo coisa de amigos.
Revirei os olhos. Nada que eu falasse convenceria a mulher ao meu lado
de que a gente só se odiava.
Esperei que Tommy iniciasse aquela porcaria de reunião, mas para
minha surpresa, foi Nathan quem tomou a frente e começou a apresentar a
empresa e o software para vovó. Sylvia estava encantada com eles, com o
software e, aparentemente, hipnotizada pela voz de Nathan.
Ok! Ele era um puta homem de negócios. Eu podia odiá-lo, mas jamais
poderia dizer que ele não era bom naquilo. Seu aspecto sério e a voz,
incomumente simpática, faziam aquele software complicado parecer
simples e acessível até para vovó, que sorria ridiculamente olhando para os
homens a sua frente. Apesar da roupa não muito formal, jeans claro e
camisa social, Nathan tinha muita presença e dominava aquela sala; era seu
habitat.
E por que diabos você está reparando nele, Liah?
Revirei os olhos pela milésima vez naquela hora, olhando o relógio
impaciente. Quando Nathan finalmente terminou de falar, vovó me
surpreendeu mais uma vez.
— Quero esse programa em todas as minhas lojas — avisou, tirando a
caneta da bolsa, esperando que um contrato fosse aparecer magicamente em
sua frente para assinatura.
Tommy sorriu vitorioso, sabendo que esse seria, certamente, um contrato
valioso para eles.
— Vamos preparar toda a documentação, mas precisamos discutir
detalhes mais técnicos para entender as adaptações necessárias ao sistema
— Tommy avisou à vovó.
— Ah, Liah resolve essa parte. Ela gosta da parte chata e burocrática. —
Vovó fez um gesto com as mãos, indicando a porta de saída da sala de
reunião. — Você me acompanha num café, querido? — Sorrindo, Tommy
levantou-se em direção à vovó, ajudando-a a levantar-se. Em seguida,
caminharam de braços dados até a saída, e quando chegaram à porta, vovó
me olhou maliciosa. — Lianah, você resolve os detalhes com o seu amigo?
Abri a boca revoltada, sem acreditar que ela tinha me deixado naquela
sala, com aquele homem. Olhei assustada para Nathan, que olhava a cena
tão desacreditado quanto eu.
— Só pode ser brincadeira — ouvi seu murmurar baixo, mas nem tanto
para que eu não pudesse escutar.
— Não pense você que estou feliz com isso — reclamei.
— Você não cansa de se intrometer em tudo, não?
Me intrometer? Agora eu tinha culpa pela minha avó querer usar aquela
porcaria de sistema?
— Um dia você vai me dizer porque me odeia tanto?
— Só vamos terminar logo com isso. — Nathan sentou-se à cadeira em
minha frente, afundando a cara no computador enquanto me perguntava
uma série de detalhes superficiais sobre os processos das lojas de vovó.
Tentei responder da forma mais objetiva possível, querendo que aquela
sessão de tortura terminasse logo.
Depois de uns quinze minutos de perguntas chatas, quando finalmente ia
sair daquela sala, ouvi Nathan me chamando.
— Lianah — virei meu pescoço para encará-lo. — Sua avó vai mesmo
vender as lojas e os restaurantes? — Franzi o cenho para sua pergunta,
tentando entender seu interesse naquilo.
— Não sei, mas acredito que sim — respondi desconfiada. — Por quê?
Aliás, como você sabe disso?
— O homem que trabalha com ela, o que pediu a proposta… ele
comentou…
— Walter? — interrompi.
Nathan assentiu.
Eu precisava falar com Walter sobre isso, não tinha certeza se era seguro
comentar sobre a venda das lojas por aí. Isso podia atrair gente trambiqueira
para o negócio e acho que vovó não saberia lidar bem com isso.
— Mas por que você quer saber? — questionei incomodada.
— Acredito que você esteja analisando isso para ela. Como funcionaria?
Quem comprasse poderia dar continuidade a marca Vittorino?
Quem ouvisse de fora não acreditaria que nós nos conhecíamos. Seu tom
formal em excesso, deixava claro que aquela era uma pergunta estritamente
de negócios.
— Qual seu interesse nisso, Nathan? — Voltei dois passos para o interior
da sala ao perceber seu interesse repentino.
Uma respiração profunda tomou seu peito, enquanto ele cruzava os
braços e recostava na cadeira em que permaneceu sentado.
— Se eu fizesse uma proposta, você consideraria? Mas quero o direito de
manter o nome da marca.
— Por incrível que pareça, minha avó é quem toma qualquer decisão
sobre as lojas e a marca — respondi sincera. — As lojas do centro ficam
sob os cuidados dela, e nas outras regiões ela tem gerentes especializados.
Mas pelo que entendi, vovó quer vender as unidades e cobrar royalties5
sobre a utilização da marca.
— E o Clube?
— Vovó pretende fechar e vender o espaço.
— Ela estaria aberta a negociar isso?
Franzi a sobrancelha para ele.
— Não sei, Nathan. É melhor você perguntar isso diretamente para ela.
Mas qual seu interesse em lojas de artigos e restaurantes italianos?
— Se é sua avó quem está cuidando disso, eu explico meu interesse a
ela. Você já é intrometida demais para o meu gosto.
— Intrometida? — cobrei irritada. — Essas lojas e o Clube são toda a
vida da minha avó, então vou me intrometer mesmo. Qual a merda do seu
interesse?
Nathan levantou-se colocando o computador embaixo do braço enquanto
passava rapidamente por mim e saía da sala.
— Nenhum. Esquece! — Que homem louco!
— Nathan, espera! — gritei ao vê-lo seguir pelo corredor. Ele parou e
virou-se me olhando irritado.
— Você conheceu a Triss ontem na ONG. Ela me falou sobre um curso
que você ia dar. O que perdi nessa história? — questionei irritada.
— O Tommy me pediu para fazer isso, porque jogo não é muito a praia
dele. — Nathan cerrou os olhos em minha direção. — Você não sabia disso,
não é?
Não. Eu não sabia.
— Não — afirmei.
— Eu também não. Soube dois dias atrás, quando Tommy veio me
contar que havia planejado um curso de programação de jogos. Nem ele,
nem Ethan programam jogos, acho que fizeram de propósito — explicou.
Mordi a bochecha pensando que não havia forma de reverter aquilo, se
não cancelar o curso. Mas eu tinha jovens muito empolgados com ideia de
aprender algo que pudesse dar um futuro a eles.
— Olha, se você não estiver bem com isso, pode cancelar esse curso…
— disse impaciente.
— Quem sou eu para prejudicar as crianças por algo assim. Se você for
mesmo fazer isso, eu te agradeço.
— Não precisa agradecer, porque com certeza não é por você que estou
fazendo isso. — Nathan sacudiu a cabeça em reprovação antes de continuar
seu trajeto pelo corredor principal, ignorando totalmente meu choque com
sua grosseria repentina.

— Quando eles instalam o novo programa? — vovó perguntou pela


quarta vez seguida.
— Não tem uma data específica ainda — revirei meus olhos para suas
tentativas ridículas de descobrir o que houve na sala entre mim e Nathan. —
Um funcionário deles ainda vai fazer algumas visitas às lojas e entender
todas as especificações necessárias.
Um riso irritado escapou de mim enquanto eu virava o volante para
atravessar o portão da mansão.
— E o que você precisou responder àquele bonitão?
— Coisas do tipo: quantos terminais tem em cada loja, o volume das
operações… — Antes que pudesse terminar meus exemplos, vovó já fazia
caras e bocas para minha resposta evasiva.
— Qual o problema entre você e ele? — perguntou desconfiada.
Soltei o cinto, abrindo a porta do carro e a batendo com força em
seguida. Falar de Nathan me tirava do sério.
— Ele me odeia. Eu o odeio. E é isso!
— E onde esse ódio se originou? — Indignada, estanquei no caminho,
olhando para minha avó que já me seguia pelos poucos degraus antes da
porta de entrada.
— Virou psicóloga agora, Dona Sylvia? — Sua feição determinada, me
fez suspirar. — Eu não sei. Ethan disse algo como ciúme da minha amizade
com Olívia. Deve ter ficado preocupado de perder a amizade de Olie —
respondi rendida, sabendo que ela não desistiria.
Os olhos de vovó me olharam sérios, como se tentassem ler a minha
alma.
— Lianah, o que vi hoje, naquele rapaz, era mais do que ciúme por uma
amizade. Eu podia jurar que vocês magoaram um ao outro. Era isso o que vi
nos olhos daquele rapaz; uma mágoa profunda.
— Mas eu nem o conhecia — ri irritada. — Nem mesmo o vi antes de
Olie me apresentar aos amigos. — A forma como vovó me olhava, fez com
que um arrepio frio percorresse meu corpo.
Sem dar tempo para ela continuar seu escrutínio, entrei em casa subindo
as escadas, procurando o refúgio do meu quarto.
Já passava das 23:00h quando deitei na cama e ativei o despertador no
meu celular. Uma notificação na tela, mostrava que uma mensagem de
Ethan havia chegado mais cedo.
Antes que pudesse cair no sono, o celular apitou com outra resposta dele

Nathan conseguia ser irritante até mesmo quando não estava presente.
Dona Sylvia era uma traíra, isso sim!
Enviei a última mensagem, esperando que fosse suficiente para encerrar
o assunto e larguei o celular sobre a mesinha.

05 de abril de 2019
O Sol atravessou o vidro da janela, iluminando a cama e esquentando
meu rosto.
Passei a noite em claro. Sonhei várias vezes com minha mãe e com o
cemitério. Essas eram lembranças que eu queria arrancar de mim, não
importa o que custasse.
Depois de rolar várias vezes na cama, esperei pacientemente amanhecer
para que pudesse levantar e iniciar meu dia.
Foi o primeiro fim de semana, depois de quase dois meses, que eu
realmente descansei. Fiquei em casa durante todo o sábado e domingo,
recuperando minha energia.
Me olhei no espelho antes de sair do quarto; avaliando o preto em
excesso presente nas minhas roupas. Era uma retratação do meu atual
estado de espírito: quebrado pelas lembranças.
Quando desci para tomar café, Dona Sylvia já estava toda arrumada e,
aparentemente, feliz demais, sentada à mesa.
— Bom dia, Liah! — seu tom meloso e feliz não escondia sua
empolgação.
— Bom dia, vovó. Está feliz assim por quê? — perguntei sentando-me à
mesa.
— Dr. Philipe e eu temos um encontro hoje à noite — contou levando a
xícara de café aos lábios elegantemente.
— Dona Sylvia, não acredito que até a senhora arruma um encontro.
Desse jeito, eu vou virar uma velha encalhada mesmo — brinquei.
— Aquele seu amigo de ontem, como é mesmo o nome? — Vovó coçou
a testa tentando se lembrar. — Ah, sim, Thommas… ele parece um bom
rapaz.
— E é só meu amigo, Dona Sylvia.
— E o outro? Nathaniel, não é? — Pelo olhar sorrateiro da matriarca, eu
sabia que a intenção dela era falar de Nathan desde o início.
Alguns bons anos vivendo com Sylvia, me fizeram conhecê-la como
ninguém. Quando Dona Sylvia Vittorino colocava uma coisa na cabeça, não
haveria argumentos ou provas que tirassem.
— Eu já falei para a senhora ontem que eu e ele não nos damos bem —
avisei.
— Sabia que eu e seu avô vivíamos brigando antes de namorarmos?
— Ok! Chega desse assunto — olhei feio para vovó, esperando que ela
esquecesse essa história louca que criou na cabeça dela.
— Dr. Philipe vai me buscar na loja à tarde, e vamos àquele bistrô na
quinta avenida, tomar um café — vovó avisou batendo palminhas. —
Quando imaginei sair com um médico bonitão quase nos meus setenta?
Dr. Philipe era cardiologista da vovó, e eu já suspeitava dessa interação
extra consultório deles há meses. O único problema era que Philipe sempre
vinha com alguma ideia inovadora e vovó se empolgava. Na última
consulta dela, veio com a maldita ideia de trocar os sistemas da loja.
— Que bom, vovó. Fico feliz por você. Se precisar de qualquer coisa, só
precisa me ligar. Vou estar na ONG o dia todo. — Levantei-me da mesa,
ainda mastigando um pedaço de torrada, com medo de me atrasar para a
reunião com a assistente social.
Antes de sair com o carro, liguei para Olie para ter certeza de que ela
também estava a caminho. A reunião de hoje era para definir se poderíamos
ou não colocar nossos adolescentes em estágios de empresas privadas.
A ONG estava sendo uma das coisas mais comentadas em Greenville e
nas cidades vizinhas nos últimos meses. Programas de TV, jornais locais, e
diversos jornalistas pediam horários para entrevistas e filmagens. O projeto
havia tomado uma proporção gigantesca em pouco tempo.
Ao chegar na ONG, Olie me apresentou a assistente social que havia
chegado quase junto comigo. Joanna era uma mulher elegante que parecia
ter seus cinquenta anos, com a pele negra e grandes olhos marrons. No
pouco tempo que conversamos antes da reunião com sua equipe, pareceu
uma mulher muito acolhedora e simpática. A última coisa que precisávamos
era de uma assistente social carrasca.
— Bem, Liah, o projeto de vocês é uma coisa incrível. Fazia tempo que
não víamos nada assim — Joanna comentou, sentando-se à mesa de reunião
na sala de conferências. — Mas preciso perguntar, é um projeto caro. Essa
ONG requer recursos que talvez sejam complicados de levantar somente
com parcerias e doações. Você está disposta mesmo a investir nisso aqui
pelo resto da vida?
— Joanna, eu não tenho dúvidas sobre isso. Minha família possui mais
dinheiro do que possa imaginar investido. O suficiente para que gerações
possam viver sem nunca pensar em ganhar um centavo a mais sequer —
ponderei, sabendo que esse também era o desejo de vovó.
— Nesse caso, eu não vejo motivo para não confiar no sistema de
estágio que querem implantar. Eu só preciso que vocês me apresentem
formalmente um plano com empresas e diretrizes. E claro, que todas as
empresas assinem um termo de compromisso com cláusulas básicas de
segurança com vocês. Por medida de precaução, todas que forem participar
desse programa, precisam ser aprovadas previamente por mim após uma
reunião com a Administração delas.
— Isso é ótimo, Joanna! — Olie respondeu animada. — Claro que temos
esse plano, e está pronto, inclusive. Podemos te enviar por e-mail o projeto.
Sobre as empresas, já temos algumas parcerias e em breve agendaremos
algumas reuniões.
— Bem, meninas, é isso — Joanna sorriu, parecendo satisfeita com a
conversa. — Espero que meu trabalho aqui possa ajudá-las.
— Ficamos felizes por ser você — sorri de volta, feliz em saber que
estávamos recebendo alguma atenção.
Assim que Joanna foi embora, Olívia e eu nos olhamos aliviadas pela
aceitação inicial da mulher.
— A gente podia avisar ao Ethan para marcar logo a reunião com a
Joanna. A AppCorporation deveria ser nossa primeira parceira. Os meninos
iam ficar super felizes.
— Tem razão. Você quer falar com ele? — perguntei.
— A Triss vai ficar super empolgada. O Tommy abriu o bocão para ela
sobre a possibilidade do estágio.
Aquela era uma grande preocupação. Eu estava envolvida a tempo
demais nesses projetos para saber as desvantagens de se criar expectativas
naquelas crianças, mas todos eles eram iniciantes nesse mundo. E eu sabia
bem como era ser iniciante. Normalmente, toda pessoa que se envolvia com
isso, tentava abraçar o mundo logo de cara.
Mesmo sabendo de tudo isso, eu tinha me apegado.
Triss tinha uma personalidade única, e eu realmente a considerava como
alguém da minha família, ainda que nunca tivessem me concedido a guarda
dela.
Precisava aproveitar e conversar com Joanna sobre isso, talvez já fosse
tempo de tentar de novo.
15 de abril de 2019

Algo muito errado estava acontecendo. Tinha uma reunião de quatro


horas com Sylvia Vittorino na minha agenda. Os sistemas nem sequer
começaram a ser implementados, então não fazia muito sentido termos
quatro… quatro… horas de reunião com a mulher.
Abri o Skype no laptop e me apressei em digitar uma mensagem para
Thommas.

Despluguei o cabo de energia, pegando o laptop em seguida e caminhei


até a sala de Tommy, do outro lado do corredor.
— Por que, caralhos, temos quatro horas de reunião com Sylvia hoje?
Thommas ergueu os olhos de sua tela, me encarando com um meio
sorriso.
— Ela mandou um e-mail para o pós-venda com uma lista de dúvidas
que encontrou na demo6 que rodei no computador dela. Como eu disse que
era para fazerem de tudo para atender a mulher bem, acharam que quatro
horas de reunião resolveria.
Olhei desacreditado para ele. Um e-mail encaminhado por Tommy
chegou à minha caixa com as tais dúvidas e sentei em uma das cadeiras
livres em frente sua mesa, lendo o que tinha ali.
— Por que não colocaram ninguém do suporte para passar essas coisas
com ela? — choraminguei, vendo o tipo de dúvida relacionada no texto. —
Ninguém avisou que vai ter um treinamento quando fizerem a migração do
sistema?
— Ela exigiu que fosse com a gente — disse rindo maldosamente. — E
sim, isso foi avisado. Mas Sylvia disse que gosta de se antecipar e preparar
para tudo.
Lembrei dos comentários nada discretos dela na apresentação que
fizemos. Tommy também não ajudava em nada dando uma de galanteador
barato para impressionar a mulher.
— Ela vai trazer a neta a tira colo nessa reunião também? — perguntei
preocupado, vendo faltarem apenas quinze minutos para começar.
Quatro horas numa sala tendo que encarar a porra da garota seria quase
como suicídio para mim. Talvez eu atingisse um nível de irritação tão
grande a ponto do meu coração parar.
— Não. Acabei de falar com a Liah para avisar que não ia poder passar
na ONG hoje.
Respirei aliviado e Tommy cerrou os olhos me recriminando.
Você não entende, Thommas.
Assim que deu a hora da reunião, seguimos pelo corredor entre as portas
de vidro, vendo a mulher espalhafatosa entrar na sala mais a frente. Sylvia
era uma senhora elegante e extravagante também; vestida naquelas roupas
caras e com tantos acessórios dourados espalhados pelo corpo, que poderia
ser capaz de reluzir no escuro.
— Boa tarde, Dona Sylvia! — cumprimentei ao passar pela porta da
sala.
O contraste entre seu sorriso educado e o olhar ameaçador era claro.
Assim como minha tia, ela odiava quando usávamos qualquer pronome de
tratamento que a fizesse se sentir mais velha.
— Só Sylvia, querido — reclamou educadamente.
— É um prazer passar um tempo com você — Thommas disse enquanto
beijava a mão da mulher.
Olhei irritado para ele. Quanto mais ele fazia aquele tipo de coisa, mais a
mulher se encantava com ele. Desse jeito, ela nunca nos deixaria em paz. E
horas depois, eu tive a certeza de que aquela estava sendo a reunião mais
improdutiva de toda minha vida. Passamos mais de duas horas ensinando
Sylvia a operar o sistema.
No fim, até que foi engraçado. Ela claramente entendia muito bem o que
a gente falava, mas usava da desculpa de não ter mais a cabeça jovem para
manter Thommas ao seu lado o tempo inteiro.
O ponto alto da tarde foi ver Tommy se segurando para não perder a
paciência com a mulher, que perguntava pela terceira vez a mesma coisa.
Ele me olhou com uma súplica estampada na cara e tive que prender uma
gargalhada.
— Sylvia, lembrei que preciso ajudar a Liah a resolver um problema na
ONG — Tommy soltou ao me ver rindo dele. — Acho que vou deixar o
Nathan com você agora.
Filho da puta. Eu sabia que ainda ia sobrar para mim.
— Claro, querido — Sylvia sorriu ao me encarar. — Vou estar bem
assistida de qualquer forma.
Deus. Eu tinha muita coisa para fazer. O trabalho acumulado estava todo
me esperando em cima da minha mesa e eu teria que esticar várias noites
para compensar isso.
Quando Tommy saiu, Sylvia puxou a cadeira para mais perto de mim,
puxando seu celular da bolsa.
— Querido, você está com o tempo corrido? — a mulher perguntou,
pressentindo minha irritação. — Posso pedir a Liah para vir e me ajudar
com isso. Ela aprende bem mais rápido que eu…
— Não! — a interrompi quase gritando. — Tenho todo o tempo do
mundo. — Vesti meu melhor sorriso, desesperado com a ideia de ter que
ficar por mais de uma hora nessa sala com a neta dela.
— Nesse caso, vamos continuar — ela sorriu, me indicando uma nova
tela no notebook a sua frente.
Usei todo o autocontrole e paciência que não costumo ter no resto
daquela reunião. Ethan e Tommy teriam que me aturar de mau-humor por
um bom tempo agora.

17 de abril de 2019
— Nathan, estou falando sério — Ethan reclamou pela décima vez em
uma hora. — A gente precisa de uma agenda urgente para marcar a reunião
com a assistente social da ONG.
Abri minha agenda no computador, vendo minha disponibilidade para a
maldita reunião. Por mais que eu tentasse, com todo meu afinco, era quase
impossível excluir Lianah da minha vida. Nem sei onde estava com a
cabeça quando topei dar um curso na ONG, arriscando esbarrar com a
garota ao menos uma vez na semana.
— Pode ser sexta-feira, às 10:00h da manhã? Se não for nesse horário, só
vou ter agenda no final da próxima semana — avisei.
— Você está irritado com o que exatamente? — Ethan arqueou uma
sobrancelha.
Era coisa demais acontecendo ao mesmo tempo. Desde que Lianah
apareceu, aqueles sentimentos voltavam com mais intensidade e eu não
sabia lidar com aquela merda toda.
— Tem muita coisa me deixando irritado — desabafei. — Começando
que assumi a responsabilidade de um curso que eu nem consegui preparar e
organizar ainda. A gente tem um contrato milionário com a Vittorino
Companny e a Dona Sylvia Vittorino está enlouquecendo a mim e ao
Tommy desde segunda. Tenho três propostas para apresentar ainda essa
semana, e eu preciso de férias. — terminei, respirando fundo, apoiando os
cotovelos sobre a mesa e afundando a cabeça em minhas mãos.
Ethan pareceu pensar, preocupado.
— Posso falar com a Liah para ela colocar um freio na Dona Sylvia, ela
sabe que a avó não é fácil. Deixa que faço as apresentações das propostas
essa semana, e vai preparar seu curso.
— Pela primeira vez na vida, Ethan, eu não vou negar sua ajuda. —
Suspirei sobrecarregado.
— Você está bem? — perguntou, estendendo a mão até minha testa para
sentir minha temperatura. — Deve estar doente.
Antes que eu pudesse responder, meu celular tocou e reclamei ao ver o
nome aparecendo no visor.
Sylvia Vittorino.
— Você podia me ajudar e atender para mim — pedi ao ver Ethan
reclinar a cabeça rindo para o celular.
— Já estou te ajudando demais.
Ele levantou os braços em sinal de rendição, saindo da sala. Suspirei
antes de atender o telefone.
— Oi, Dona Sylvia! — tentei demonstrar alguma empolgação.
— Dona faz eu me sentir velha, meu querido. Me chame só de Sylvia.
— Ok, Sylvia. Como posso te ajudar agora?
Se ela me perguntasse sobre o sistema de novo, eu surtaria. A gente
investiu rios de dinheiro num atendimento virtual para dúvidas, mas ela
insistia em ligar para mim ou para Tommy toda vez que não sabia onde
`clicar`. Mesmo depois de quatro horas ininterruptas de treinamento
personalizado.
— Na verdade, estou ligando para falar de outro assunto. Não é sobre o
sistema.
— Sobre o que seria? — perguntei desconfiado.
— Carlton Stuart é seu tio, certo?
— Aconteceu alguma coisa com ele? — questionei preocupado.
— Não, filho, pode se despreocupar. Você tem o contato pessoal dele?
Ele é policial investigador, não é?
— Sim, ele é. Dona Sylvia, está tudo bem? Você precisa fazer alguma
denúncia ou algo assim? — como raios ela sabia que Carlton era meu tio?
— Não. Gostaria apenas de tirar algumas dúvidas com alguém
competente. Mas gostaria de um contato pessoal para isso.
A polidez e elegância na fala da mulher me deixava ansioso.
Seria muito desrespeitoso perguntar a ela se estava investigando a porra
da minha vida?
— Vou fazer o seguinte. Dou o seu número a ele e peço para que entre
em contato. Podemos fazer assim?
Eu nunca daria o número pessoal de Carlton a qualquer um que fosse,
não importa quanto dinheiro tivesse. Existiam milhares de motivos para que
meu tio mantivesse uma separação mínima entre a vida profissional e
pessoal.
— Imaginei que não me daria o número fácil assim. Mas por favor, peça
para ele não deixar de entrar em contato.
— Pode deixar, farei isso — avisei, ainda incerto sobre aquela ligação.
— Obrigada, Nathaniel.
— Imagina, Sylvia.
Agradeci quando a mulher desligou a ligação. Embora tenha passado o
restante da tarde inquieto, tentando entender por que ela queria o contato de
Carlton.
Ao fim da tarde, Tommy e Ethan entraram no meu escritório.
— Ethan contou que Sylvia ligou de novo. Queria ajuda para que agora?
— Tommy perguntou rindo. — Parece que ela tem um preferido, não é?
Revirei meus olhos para sua piada. Por alguma razão, Sylvia estava
ligando para mim em noventa por cento do tempo.
— Na verdade, ela queria o telefone pessoal do Carlton — franzi a testa,
ainda sem entender.
— Seu tio? — Ethan perguntou curioso.
— Sim. Ela sabe que ele é policial investigador. Achei muito estranho.
Aliás, como ela sabe quem ele é?
— Ela deve ter ouvido a Liah falar alguma coisa sobre você — Tommy
ponderou.
— A Lianah sabe que o Carlton é meu tio? Não tenho certeza se ela sabe
tanto sobre mim.
Era uma opção, mas porque Lianah falaria sobre mim se ela não gostava
de mim tanto quanto não gosto dela?
— Será que não é melhor falarmos com Liah, sobre isso? — Ethan
questionou.
— Nem pensar! — Interrompi qualquer que fosse sua intenção. — Se
Lianah não sabe sobre isso, melhor continuar assim. Depois a avó dela
ainda vai dizer que foi a gente que falou demais, e nós sabemos bem como
a mulher é difícil.
Ethan levantou uma sobrancelha, me lançando um olhar debochado.
— Está falando da Liah ou da avó dela?
Estreitei meus olhos, sacudindo a cabeça. Eu estava falando de Sylvia,
mas Lianah era tão irritante e difícil quanto a avó.
— Das duas! — disse, por fim.
Tommy puxou a cadeira na frente da mesa, sentando-se em seguida.
Ethan sentou-se ao seu lado, me encarando.
— Realmente é estranho Sylvia procurar Carl. Talvez você devesse falar
com ele.
— Inclusive, vou fazer isso agora — avisei desligando o computador.
— Tira esses dias de folga, e prepara seu curso. Deixa que a gente segura
as pontas por aqui — Ethan avisou. — E não esquece que marcamos a
reunião com a assistente social sexta pela manhã.
— Não vou esquecer — me despedi dos caras e segui em direção à
garagem do prédio.

Estacionei o carro em frente à casa de tia Sophia. Encarei a grama bem


cuidada, lembrando de quantas vezes precisei sair pela janela e atravessar
aquele jardim para fugir de casa. As lembranças de épocas ruins, voltaram a
me atormentar nos últimos meses com certa frequência.
Mia abriu a porta da frente, acenando para mim quando saí do carro,
sentindo o vento frio do anoitecer cortar minha pele.
— Oi, Mia! — abracei minha irmã. — Tia Soph saiu?
— Saiu, foi comprar alguns panos que precisava — avisou enquanto se
jogava no sofá ao meu lado, logo que entramos. — Você estava sumido.
Tudo bem?
Tia Sophia e Mia odiavam quando eu passava semanas sem dar notícia.
Isso acontecia quando me sentia sobrecarregado e resolvia me isolar em
trabalho. Nesse período, só Ethan e Tommy costumavam ter notícias de
mim.
— Só sobrecarregado com a App. Carlton continua trabalhando?
— Não. Ele está lá em cima. Chegou ainda pouco.
— Vou subir para falar com ele então — avisei, levantando-me do sofá.
— Depois queria que você me ajudasse a planejar minhas aulas de
costura para o curso que vou dar na ONG — pediu chorosa.
A ONG.
Tudo na minha vida estava sendo tomado pela atmosfera daquela mulher.
Era como a porra de uma erva daninha que crescia e tomava conta de todo
meu muro de proteção.
— Ah, sério? De uns meses para cá, parece que tudo gira em torno dessa
ONG e dessa garota — reclamei frustrado.
— Você está falando da Liah? Não sabia que você não gostava dela! —
exclamou surpresa pela minha reação.
— Esquece, Mia. Eu só ando sobrecarregado demais e eu também tenho
um curso para preparar para ONG. Estou enlouquecendo com o trabalho e a
avó da Lianah está a ponto de me enlouquecer com a instalação dos
sistemas nas lojas dela… — Mia soltou um risinho irritante. — O que foi?
— Sabe aquelas histórias que vão de zero a cem muito rápido? Eu nem
sabia que vocês estavam instalando sistema nas lojas Vittorino. A avó da
Liah é um doce de pessoa, Nate, a conheci na organização do desfile anual
de Greenville. E é tão estranho alguém chamando a Liah de Lianah. — Mia
balançou a cabeça, reprovando meu descontentamento.
Sorri debochado para ela, irritado com sua crítica. Sylvia Vittorino podia
ser um doce com todos, mas Tommy concordaria comigo nessa que a
mulher podia enlouquecer qualquer um. E eu não tinha intimidade nenhuma
com Lianah para chamá-la de Liah. Mas nesse momento, a última coisa que
eu queria era debater com Mia sobre o assunto.
— Vou falar com o Carlton lá em cima — avisei, começando a subir as
escadas, deixando Mia e seu deboche para trás.
— Carlton! — chamei alto do corredor.
— Ei, Nathan! — ele apareceu na porta do pequeno escritório no andar
de cima. — Tudo bem?
— Tudo indo — o cumprimentei com um tapinha de leve nas costas. —
Precisava falar com você sobre algo bem estranho.
Carlton era um homem alto e tinha um porte atlético, resultado de seu
treinamento para a academia de polícia. Embora fosse um pouco mais velho
que minha tia, podia ser facilmente confundido com um dos meus amigos.
Não havia um fio de cabelo branco sequer entre os fios pretos e grossos de
seu cabelo curto.
Entramos no escritório e sentei-me na cadeira em frente à mesa de
madeira velha. Carlton sentou-se atrás da mesa, apoiando as costas na
cadeira giratória.
— Algo estranho? Aconteceu alguma coisa? — seu semblante mostrou-
se preocupado.
— Na verdade, nem eu sei. Sylvia Vittorino me ligou hoje pedindo seu
contato. Falou algo sobre você ser um policial investigador e querer tirar
dúvidas com alguém competente.
Carlton me olhou confuso.
— Que estranho. Eu só conheço essa mulher de nome por ser quem é.
Não faço ideia do que ela possa querer comigo. Mas considerando o poder
que essa família tem, provavelmente quer investigar algo.
Levei um segundo para deixar que minha mente traiçoeira me levasse
por um caminho obscuro. Num estalo, pensei numa possível investigação e
o resultado disso poderia não ser bom.
… se Lianah tivesse lembrado…
— Carlton, talvez a gente possa ter um problema — contei apreensivo.
Pela próxima hora, contei a ele tudo que me deixava ansioso nessa
história e que me preocupava. Em seguida, Carlton me garantiu que entraria
em contato com Sylvia para entender o que ela queria com ele, e me
avisaria caso fosse algum assunto que me envolvesse.
Aproveitei o momento para contar a ideia que tive quando soube que
Sylvia tinha interesse em vender a Vittorino Companny
— Aproveitando, soube que Sylvia planeja vender a empresa. Tia Sophia
teria uma grande oportunidade de exposição de suas roupas se a gente
tivesse a marca Vittorino. Você acha que eu deveria fazer uma proposta?
Carlton me olhou pensativo.
— Você está considerando usar o dinheiro da herança do seu pai, Nate?
Suspirei, baixando os ombros.
Por alguma razão, aquele homem me reconheceu. Seu nome estava na
minha certidão de nascimento, mesmo que eu não tivesse uma lembrança
sequer dele. O que eu sabia era que, da mesma forma que Elise sumiu no
mundo, ele deixou de me visitar quando eu era apenas um bebê.
Alguns anos atrás, um advogado me procurou dizendo que eu era um dos
herdeiros vivos daquele homem. Um homem que eu sequer conhecia, com
uma quantidade absurda de dinheiro guardado.
Apesar de manter esse dinheiro guardado comigo, me prometi que
jamais usaria um centavo, depois que Carlton descobriu que ele era um
político corrupto. Mas eu repensaria se fosse para fazer minha tia feliz.
— Se for para ajudar tia Soph, usaria sim.
— Vamos com calma. Preciso descobrir primeiro o que Sylvia Vittorino
quer comigo. Depois, vejo o que consigo de informação sobre o negócio
dela. — Carlton explicou calmo.
Ele tinha toda essa veia investigativa, o que fazia dele a pessoa com mais
discernimento para me ajudar nesse momento.

18 de abril de 2019
Na quinta-feira à noite, Olívia me enviou uma mensagem pedindo para
passar no meu loft, com a desculpa de que queria alinhar uns pontos para a
reunião de sexta. Mas eu sabia que ela que tinha algum motivo oculto nessa
visita.
— Eu estava com saudade de você, seu idiota — reclamou, dando um
tapinha no meu braço logo após me abraçar.
— Ei! — reclamei do tapa que estalou em minha pele. — Tenho estado
tão sobrecarregado com trabalho que não tenho tido tempo para respirar
direito.
— Eu sei. Você e Liah são iguais. Enfiam a cara no trabalho e não tem
mais quem tire. — Olie largou a jaqueta no sofá, se jogando no puff macio
no meio da sala.
De repente, me senti sufocado.
Passei meu dia resolvendo problemas do sistema das lojas Vittorino e
tive que atender Sylvia várias vezes. Mia falou sobre Lianah, minha
conversa com Carl envolvia Lianah, e agora Olivia também me comparava
a ela.
Como se não bastasse, descobri quando cheguei em casa, que ao invés de
colocar três horas de curso em um só dia, Thommas dividiu em três. Eu
teria que estar na ONG por uma hora inteira, três vezes na semana. A
justificativa fajuta, era de que como CEO, eu não poderia ficar tanto tempo
afastado da App.
TRÊS!
— Será que só por hoje, a gente pode não tocar no nome da Lianah? —
pedi quase chorando. — Eu estava até agora terminado o planejamento da
semana do curso que começa na segunda, e a cada segundo do dia pensei
em como seria estar três vezes na semana na ONG. Por favor, eu preciso de
um descanso dessa garota e tudo que gira em torno dela.
Olie levantou os braços, pedindo desculpa.
— Eu nunca vou entender esse comportamento de vocês, mas está bem.
Não está mais aqui quem falou.
Ela foi até a geladeira e tirou uma longneck de lá.
— Nate, você tem se alimentado direito? Só tem porcaria nessa
geladeira.
— Não reclama, Olivia, eu não tenho conseguido nem respirar direito —
tirei a longneck de sua mão, abri e bebi um longo gole. A garota pegou
outra cerveja e voltou para o sofá.
— Marquei um psicólogo para você.
Cuspi a cerveja, tossindo assim que ouvi suas palavras.
— Sabia que você não tinha vindo aqui só me ver — as palavras saíram
entrecortadas pela tosse excessiva.
— Lógico que vim só te ver. Se fosse só para avisar isso, eu teria feito
por mensagem.
— Tia Sophia ligou mesmo para você, não é?
— Ligou sim. E você sabe que ela tem razão. Você não se abre mais
comigo, precisa conversar com alguém.
Sentei-me ao seu lado no sofá, passando as mãos nervosamente pelo
cabelo.
— Olie, é muito difícil falar sobre tudo o que aconteceu. Isso me faz
reviver coisas que me fazem muito mal.
Olivia me lançou um olhar compreensivo. Minha amiga passou um braço
pelo meu pescoço, me puxando para trás e deitou a cabeça sobre meu
ombro.
— Você não quer mais se abrir comigo?
— Tem merda demais nessa história — tentei me esquivar. — Não seria
justo despejar tudo em cima de você.
— O que não é justo é você guardar todos esses sentimentos ruins com
você. Se não se sente confortável em conversar comigo, conversa com
alguém que não tenha envolvimento emocional com você. Um profissional
pode te ajudar, Nate. — Olie acariciou meu cabelo, me fazendo fechar os
olhos e relaxar pela primeira vez naquela semana.
— Olie, você é a melhor pessoa de todas, sabe disso, né? — sorri, tendo
a certeza de que eu tinha os melhores amigos desse mundo.

19 de abril de 2019
— O que te traz aqui, Nathaniel? — Aquela era a pergunta que vinha
tentando evitar em todas as consultas. Ter que explicar o que me fazia mal
pela primeira vez era a pior parte de ir a um psicólogo.
— Pode me chamar de Nathan? Ou Nate? Detesto que me chamem de
Nathaniel — pedi.
— Claro, Nathan. Existe algum motivo especial para não gostar que te
chame pelo nome inteiro?
A voz de todo psicólogo tinha esse mesmo tom especulativo, e a do Dr.
Emerson era exatamente assim, monótona e pausada. Mas eu havia me
prometido tentar responder sempre com a maior verdade possível. Eu sabia
que o processo era para o meu bem, embora não quisesse reviver aqueles
sentimentos.
— O ex-marido da minha tia me chamava assim sempre.
— Quer falar sobre ele? — Dr. Emerson apoiou um cotovelo sobre o
braço alto da poltrona de couro. Me remexi, desconfortável, sobre o sofá
macio e encarei o homem na casa dos cinquenta anos, com cabelo grisalho,
sentando na poltrona a minha frente.
— Não. Mas sei que preciso falar.
— A gente pode tentar começar por qualquer outro assunto que você se
sinta mais confortável. — A proposta do analista me fez pensar. — Quer me
falar sobre você? Sobre as coisas que te fazem bem.
— A gente pode começar falando sobre a minha tia e a Mia então? —
propus.
— Claro. Sinta-se à vontade para falar sobre qualquer coisa que quiser.
A primeira consulta aconteceu na sexta bem cedinho, antes da reunião da
ONG. Falei bem mais que o normal para uma sessão, mas falei apenas
coisas boas. Contei a ele sobre todas as coisas boas que Tia Soph fez por
mim e por Mia, contei sobre como foi bom quando Mia chegou a esse
mundo, contei sobre Carlton e sobre como ele me apoiou a fazer faculdade.
Falei sobre Ethan, Tommy e Olie e como Evie e Karol apareceram. Contei
sobre todas as coisas boas da minha vida, e saí de lá com a certeza de que
eram muitas, e de que eu nunca poderia dizer que só tive desgraça na vida.
Olie escolheu um bom profissional dessa vez.
Quando cheguei na ONG por volta de 09:50h da manhã, eu nem estava
pensando no quanto seria ruim e difícil encarar Lianah mais uma vez.
Tommy e Ethan já estavam sentados à mesa, conversando com Olívia e
Lianah quando entrei na sala de reunião.
— Oi, pessoal — cumprimentei todos e reparei Lianah me olhar com
alívio.
— A gente tentou te ligar, achamos que você não vinha — Olie explicou.
— Eu não atendi porque estava na consulta que você marcou para mim.
— Havia desligado o celular logo que entrei no consultório.
— Você foi? — Olie me olhou surpresa.
— Claro que fui — confirmei ressentido. — Não ia fazer você perder
seu tempo marcando uma consulta para não ir.
— Você foi ao psicólogo? — Tommy perguntou curioso.
— Vocês vão fazer uma tempestade agora em cima disso? — Irritado,
tirei o blazer e coloquei sobre as costas da cadeira aonde ia me sentar, ao
lado de Ethan, exatamente de frente para Lianah.
Ethan virou sua cadeira de lado para me encarar melhor. Devolvi seu
olhar irônico, esperando a provocação.
— Qual o problema desse? Invasivo demais? Estranho demais?
Opinador demais? — disse prendendo um riso, enquanto mantinha dois
dedos apoiados sobre os lábios, disfarçando seu deboche.
— Eu gostei dele. — Quatro pares de olhos me olharam curiosos. — O
que foi? — perguntei mais alto e irritado. — Eu estava super bem até agora.
A garota loira murmurou alguma coisa que fez Olívia rir, erguendo as
sobrancelhas em repreensão à amiga. Os olhos dela se prenderam em mim
ao notar que eu havia percebido as piadinhas idiotas trocadas.
— Perdeu alguma coisa aqui? — questionei irritado, querendo que ela
simplesmente evaporasse no ar.
Lianah franziu a testa e mordeu o interior da bochecha para manter o que
quer que tenha pensado só para ela.
— Nervosinho — escutei sua voz quando me acomodei na cadeira.
— Intrometida do caralho! — soltei e logo senti o cotovelo de Ethan me
atingir as costelas, por baixo da mesa.
A vibração da chamada em um celular tomou o silêncio, e Lianah o
pegou para olhar a notificação que se acendeu na tela.
— A Joanna acabou de chegar. Vou buscá-la na recepção e venho direto
para cá. Por favor, tentem não brigar nesse tempo.
A loira saiu apressada da sala enquanto os três pares de olhos restantes
insistiam em me encarar. Bufei irritado puxando o laptop aberto da frente
de Ethan, repassando uma última vez nossa apresentação.
Lianah retornou apresentando a mulher de meia-idade para a gente. A
assistente social, chamada Joanna, aparentava ser uma mulher amigável e
compreensiva, embora estivesse bem visível para todos que ela não trazia
boas notícias.
Apresentei nossa proposta de estágio e ao final, Joanna parecia bem
impressionada com o profissionalismo que colocamos naquela
apresentação, já que se tratava apenas de uma iniciativa social.
— Fico realmente encantada com todo o empenho de vocês. Ficou claro
para mim o quanto vocês estão preocupados em investir no futuro desses
jovens — a mulher elogiou a apresentação e o projeto. — Mas Liah, vocês
já não estão com uma grade de cursos de tecnologia na ONG?
— Sim, mas as parcerias para os estágios são parte do projeto. Falamos
sobre isso quando fizemos nossa reunião.
— Nós temos um problema — Joanna soltou um suspiro, testando a
reação de Lianah. — Estou sendo pressionada a não permitir esse tipo de
projeto. Podem entender que esses jovens não deveriam estagiar, e alegar
coisas ruins sobre a ONG. — Conheço o suficiente as pessoas que geram
essa pressão, para saber que existe um motivo por trás disso — Joanna
explicou chateada a ela.
Corri os olhos pela sala, vendo os rostos chateados e desentendidos.
Todos achávamos que era só uma questão de formalização. Aquela negação
pegou a todos de surpresa.
— Dinheiro? — supus.
Quando criamos nossa empresa, precisamos envolver alguns advogados
conhecidos e que cobravam um rim pelo processo para conseguir funcionar
legalmente. Era isso ou aceitar todos os subornos a que fomos submetidos.
Aquela cidade estava tomada de gente corrupta, em todas as esferas.
Joanna assentiu.
— Sinceramente, e espero que isso fique entre nós, as pessoas que
deveriam, não estão se importando muito com esse tipo de programa. Vocês
não geram verba para eles, se é que me entendem, eles só liberam vagas de
crianças mais velhas para cá, para poderem receber crianças mais novas nas
instituições públicas da cidade. É um problema a menos arrumar lar
temporário para esses jovens. — A mulher parecia derrotada em ter que nos
contar isso assim. — Quanto mais crianças nos abrigos públicos, mais
dinheiro para eles.
— Isso é um absurdo! — Lianah reclamou com os olhos se enchendo de
lágrimas. — A Triss vai ficar arrasada. Ela tinha uma vaga garantida na
empresa deles.
— Não tem nada que a gente possa fazer, Joanna? — perguntei uma
última vez, sabendo que insistir não faria diferença agora.
A assistente deu de ombros. Sua expressão derrotada.
— Vocês podem pressionar. Esse é o tipo de informação que seria muito
mal vista pelo público local. Mas arrumar um espaço nos meios de
comunicação locais, pode chamar uma atenção indesejada para vocês.
Thommas soltou uma reclamação baixa e Ethan sacudiu a cabeça
inconformado. A verdade é que todos naquela sala estavam revoltados.
— E se a gente pagar? — perguntei. Era uma merda pensar em fazer
parte disso, mas eu só conseguia pensar em Triss e em como ela ficaria
chateada.
— Nem pensar! — Lianah quase gritou. — Eu não quero e não vou
entrar nesse sistema, Nathan. Essas pessoas vão querer cada vez mais da
gente, e será impossível sair depois.
— Vocês podem trazer as vagas para trabalho aqui dentro — Joanna
tentou amenizar a situação. — Dessa forma, eu posso autorizar. Eu sei que a
experiência não seria completa para esses jovens, mas já seria alguma coisa.
Tommy intercalou os olhos entre mim e Ethan.
— Pela gente não seria um problema — respondi, já pensando nas
formas de fazer o programa acontecer remotamente.
Lianah e Ethan ainda debaterem um tempo sobre o estágio, mas minha
mente estava distante. Algo dentro de mim queria muito ajudar Beatriss. Sei
que os caras também sentiram uma espécie de conexão diferente com a
adolescente. Ela lembrava tanto a gente nessa idade, com aquela vontade de
aprender, de crescer e toda a necessidade de querer descobrir o mundo e
todo o gosto pela tecnologia.
— Tem espaço para a gente trazer uma operação intera para cá? —
perguntei a Lianah.
— Tem espaço de sobra — ela respondeu. — Tem umas duas alas desse
prédio que ainda estou reformando.
— A gente faz o programa interno então. Podemos fazer assim? —
Tommy perguntou.
— Claro! — Apesar do sorriso, Lianah estava visivelmente chateada.
Joanna nos deu um termo de responsabilidade para assinar e em seguida
saiu da sala com Lianah e Olie, deixando Tommy, Ethan e eu na sala
analisando o documento.
— Não consigo parar de pensar na Triss — Ethan comentou.
— Eu avisei que não deveriam ter falado com ela antes de estar tudo
certo — reclamei.
— Cara, essa menina é um gênio. Ela tem um QI7 absurdo, e é mais
inteligente que você, Tommy e eu juntos na idade dela, fora que ela é super
meiga e doce — Ethan comentou pensativo.
— Vou procurar a Triss, quero falar com ela — avisei assinando o termo
e deixando a via em cima da mesa.
Saí da sala de reunião e avistei Olie no corredor, conversando com
Lianah. Fui até elas notando o quanto a negação havia afetado às duas.
— A Triss está em aula agora? — elas confirmaram com a cabeça,
chateadas.
— Posso esperar para falar com ela?
— Pode sim — Lianah respondeu. — A aula dela deve acabar em alguns
minutos.
— Eu queria explicar a situação a ela, se vocês não se incomodarem.
Acho que o Thommas não deveria ter falado sobre isso com Triss antes de
estar tudo certo, mas já que falou, queria poder dar a notícia.
— Até prefiro poupar meu coração mesmo. — Lianah virou de costas e
seguiu pelo corredor cumprido.
— Ela está chateada — Olie comentou. — Pela Triss e pela confirmação
de que o governo não dá a mínima pra quem precisa, nem quando não
precisa investir dinheiro nisso.
— Ela tem razão de estar chateada — concordei. Embora não gostasse
de Lianah, era compreensível sua chateação nessa situação.
— Mas me conta, como foi a consulta? — Olie perguntou curiosa.
— Foi estranho — dei de ombros, recostando o corpo na parede ao seu
lado. — Falei mais do que o habitual. A abordagem dele é um pouco
diferente, menos agressiva.
Em todos esses anos, nunca senti vontade de voltar a algum psicólogo. E
não foram poucos. Eles eram sempre invasivos, frios e impessoais demais.
— Você vai voltar? — Olívia recostou-se ao meu lado.
— Sim, marcamos todas às terças e quintas pela manhã. — Virei o rosto
sabendo que encontraria um sorriso no rosto da morena.
— Sophia merece saber disso — afirmou abrindo ainda mais o sorriso.
Sophia e Olivia juntas eram um perigo. Minha tia sempre recorria à ela
quando queria me repreender ou colocar algum juízo na minha cabeça. Eu
conseguia fugir de Olivia, ou de Sophia, mas era impossível fugir das duas
juntas.
— Ela vai ficar orgulhosa de você. — Baguncei os cabelos de Olie
enquanto ela soltava pequenos gritinhos.
O toque do sinal de intervalo das aulas soou através dos alto-falantes no
corredor.
— A aula terminou. A Triss deve estar no pátio ou no refeitório. Pode ir
procurar por ela.
— Obrigada, Olie — disse, enquanto a abraçava forte. — Mesmo!
Segui em direção ao pátio, procurando Triss entre os adolescentes que
corriam e formavam filas no refeitório. Avistei a garota sentada com um
grupo de amigas e me surpreendi ao ver minha irmã no meio delas.
— Mia! — chamei me aproximando.
— Oi, Nate! — A mais nova me abraçou, me apresentando às meninas.
— Esse é o meu irmão. Bonitão ele, né?
— Mia! — repreendi, mas sorri porque amava a forma que ela falava de
mim como seu irmão. — Vim falar com a Triss.
— É sobre o estágio? Foi aprovado? — Triss perguntou empolgada e
senti meu coração apertar.
— Foi, mas tem alguns pontos que precisamos falar. — Era melhor olhar
o copo sempre meio cheio, certo? — A gente pode conversar um pouco?
— Claro, vamos sentar ali — apontou para umas mesas distribuídas no
meio do pátio.
— Triss, me conta um pouco sobre como é viver aqui? — pedi assim que
nos sentamos, querendo criar algum vínculo maior com ela.
— Isso é uma entrevista para o estágio? — perguntou preocupada.
— Não! — Ri de sua preocupação. — Isso sou eu querendo conhecer
melhor sua vida.
— Ah, sei lá. Eu passei por alguns lares temporários antes, mas depois
fui morar num abrigo público. Lá não tinha metade do que tenho aqui. —
Triss mexia em uns fiapos de linha soltando da mochila sempre que falava.
— Como você estudava lá? Você é bem inteligente. Na verdade, mais
inteligente que muita gente que teve oportunidade de estudar em escolas
particulares — pontuei curioso sobre sua formação.
— A gente tinha uns computadores velhos, mas que funcionavam e
tinham internet liberada para estudo. Era a única coisa que tinha para fazer,
então foquei nisso — explicou, dando de ombros.
Analisei a garota tímida. Ela tinha mesmo uma mente brilhante para uma
menina de dezesseis anos.
— E você gosta daqui? — perguntei.
— Está brincando? — Triss se empolgou, sorrindo abertamente. — Eu
amo isso aqui. De todos os abrigos que já passei esse é de longe o melhor.
A Liah é a pessoa mais maravilhosa que já conheci na vida.
Definitivamente, Lianah estava envolvida em tudo que acontecia na
minha vida. Todos falavam dela, o tempo todo. Todos gostavam dela. E era
impossível ignorar que todos estavam enrolados na teia dela.
— E se você fosse adotada? — especulei.
— A essa altura? Duvido, Nate. Sá faltam dois anos para eu ser maior de
idade e ninguém se preocuparia comigo agora. E convenhamos, eu não sou
o padrão da sociedade. Ninguém adota jovens negros. — Seu semblante se
tornou triste.
Eu também duvidaria, se a ideia não tivesse partido de mim. Mas esse
era um assunto para outro momento.
— Triss, a gente teve hoje a reunião com a assistente social para aprovar
o estágio, mas não foi cem por cento como a gente esperava — comecei a
entrar no assunto, sentindo meu coração se esmagar por acabar com a
empolgação dela.
— Como assim? — Triss voltou a mexer nos fiapos da mochila.
— Não tivemos autorização para que vocês saíssem daqui de dentro para
trabalhar. Então vamos ter que montar as estações de trabalho aqui — tentei
suavizar a questão.
— Mas eu ainda vou poder fazer o estágio? — perguntou preocupada.
— Vai sim. Você vai aprender da mesma forma que aprenderia lá.
Tommy, Ethan e eu vamos nos revezar para estar sempre por aqui, e vamos
mandar pessoas de confiança para te ensinar as coisas aqui também. E isso
é só temporário — completei. — Assim que fizer dezoito anos, você vai ter
uma vaga garantida na empresa.
— Nem sei como agradecer a vocês — a menina sorriu.
Ainda conversei com Triss por mais uns minutos, e ela me contou sobre
o que se lembrava da morte de seus pais e como ela era grata por ir parar na
ONG e ter conhecido pessoas como Lianah, Ethan e eu. Claro que me senti
tocado por aquilo. Aquela conversa só reforçou ainda mais minha ideia
inicial.
Ao chegar em casa na sexta à tarde, fiquei encarando por alguns
segundos o cartão que Joanna havia nos entregado na reunião mais cedo.
Sim, eu era impulsivo.
Dessa vez, nem me dei muito tempo para pensar sobre aquilo antes de
discar os números e esperar o Alô do outro lado da linha.
19 de abril de 2019
Nenhum conto de fadas conta o que acontece depois do viveram felizes
para sempre. Existe um depois, e muito provavelmente, esse depois não é
feliz todo o tempo.
Eu havia realizado um sonho. A ONG foi idealizada por tanto tempo,
que nunca me dei o trabalho de pensar em como seria depois que realizasse.
Mas havia acabado de perceber que a luta continuava.
Permaneci trancada no escritório pela próxima hora. Eu queria me isolar
de tudo e de todos. Ainda assim, precisava deixar meu orgulho de lado, e
admitir que os meninos foram excepcionais em manter o projeto, mesmo a
distância. Só não sabia se teríamos a mesma sorte com as outras empresas
parceiras.
Estava afogada em trabalho, tentando esquecer a frustração do dia, até
que ouvi a batida na porta. Levantei os olhos dos papéis em minha mesa
para ver Ethan entrar e sentar-se à minha frente.
— Como você está? — perguntou receoso.
— Chateada, mas vai passar — respondi.
— Você comeu alguma coisa hoje?
— Ainda não. — A simples menção a comida fez meu estômago roncar.
— Nem reparei que estava com fome.
— O refeitório está bem vazio agora. Quer almoçar? Preciso aproveitar
esse tempo para conversar dois assuntos importantes com você — avisou
preocupado.
— São coisas ruins? — choraminguei. — Não estou legal para ouvir
mais coisa ruim hoje.
— Não são necessariamente ruins — Ethan riu do meu desespero. —
São importantes.
— Não tenho certeza sobre o que isso quer dizer — brinquei,
levantando-me da mesa, indo direção à porta. — Vamos?
Ethan passou por mim, apreensivo, e caminhou em silêncio até o
refeitório. Pegamos nossa comida e nos sentamos em uma mesa afastada, ao
canto da parede. Seu olhar cauteloso, com receio de falar.
— Fala logo, Ethan. Melhor arrancar o curativo de uma vez só — pedi,
perdendo totalmente o interesse no prato à minha frente.
— Sua avó está deixando os caras loucos.
— Como assim? — franzi a testa sem entender exatamente o que ele
queria dizer.
— Dona Sylvia liga para o Nathan e para o Tommy umas dez vezes ao
dia para tirar dúvidas sobre a demo do sistema e pedir adaptações novas.
Semana passada ela teve uma reunião de quatro horas com eles para isso.
— Ethan olhou para o lado como se lembrasse de alguma cena engraçada,
sem conter o riso.
— Mas contratei uma consultora de TI especializada em migração de
sistema para ajudá-la com isso assim que ela fechou o contrato com vocês
— reclamei desacreditada.
— Tommy está enlouquecendo — Ethan sorriu antes de continuar. —
Mas Nathan… ele está a ponto de surtar com tudo. Ele precisa de férias e
está super sobrecarregado com trabalho e o curso na ONG. E parece que
entre ele e Tommy, sua avó tem uma preferência platônica por ele.
— Eu já entendi — sacudi a cabeça, pensando em como vovó era
teimosa e difícil. — Vou levantar a bandeira vermelha para ela ainda hoje.
Ethan mastigou a comida, assentindo divertido. Fiquei pensando em
como Dona Sylvia deveria estar tentando enlouquecer os meninos. Por um
momento, me diverti com a imagem de um Nathan irritado com as loucuras
da vovó.
— Mas não eram dois assuntos?
— O segundo é mais delicado — Ethan pontuou. — Você conhece a
família do Nathan?
— Não — franzi o cenho, tentando entender por que todos os assuntos
na minha vida tinham alguma relação com esse cara. — Quero dizer,
conheço a Mia.
— Você sabia que o tio do Nathan é um policial que trabalha como
investigador?
— Lógico que não, Ethan — reclamei impaciente. — Tenta ser mais
objetivo. Esse tipo de conversa com perguntas me deixa extremamente
nervosa. Esse investigador é pai da Mia, é isso?
— Padrasto — explicou. — Liah, o ponto é que sua avó ligou para o
Nathan essa semana para perguntar sobre o Carlton, ela sabia que ele era
policial investigador e pediu o contato dele, frisou várias vezes para ele que
era importante que ela falasse com Carl. — Ethan cerrou os olhos, tentando
buscar alguma resposta em mim.
— O que minha avó ia querer com um policial investigador? — Embora
tenha perguntado alto, aquele questionamento foi muito mais para mim do
que para ele.
— Thommas e Nathan não queriam te contar isso porque estão mesmo
com medo da sua avó. Então, só para avisar… — Ethan esticou o garfo em
minha direção como se me ameaçasse. — Não conta para a Dona Sylvia
que sabe sobre isso. Você ferra com eles, e me ferra em consequência.
Encarei o olhar preocupado do homem à minha frente, esperando uma
confirmação para confiar em mim. No entanto, minha mente ainda estava
processando aquela informação. Dona Sylvia tinha suas loucuras e sempre
aprontava coisas que me deixavam maluca, mas se envolver com um
investigador, era demais até para ela. Que merda vovó estaria aprontando
agora?
— Ethan? — chamei pensativa. — O tio do Nathan não pode dizer a ele
o que ela queria?
— Não sei se Carlton falaria, pode ser que sua avó exija sigilo. — Ethan
deu de ombros.
— E se você falasse com o Nathan para tentar descobrir? — perguntei.
— Com qual justificativa? Ele saberia na hora que te contei.
— Estou preocupada de verdade. Isso está fora de todos os limites que
ela já quebrou. Você podia me ajudar a descobrir umas senhas dela, para ver
se descubro algo. — Eu mesmo estava em choque com o que havia acabado
de pedir.
— Ah, Liah. Temos outro problema. Essa é a especialidade do Nathan.
Eu sou só o cara da infra8. O Nathan entende de segurança muito melhor
que a gente.
Se Nathan não podia saber que eu sabia, eu não poderia pedir ajuda a ele.
— Você precisa convencer o Nathan a me contar sobre isso — exigi.
— Ele nem fala com você direito, Liah. Como vou convencê-lo a te
contar sobre isso? — reclamou.
— Eu preciso descobrir o que Dona Sylvia está tramando, Ethan. Vou
dar um jeito nisso.

Cheguei em casa tarde na sexta-feira. O dia na ONG tinha sido puxado, e


minha cabeça insistia em voltar a todo momento na conversa com Ethan e
as loucuras de vovó.
Dona Sylvia já estava recolhida em seu quarto quando cheguei, mas o
som da ópera italiana soando baixo pela porta, me fez crer que ainda estava
acordada.
— Vovó! — chamei do lado de fora da porta. — Posso entrar? — tentei
chamar mais alto para que ela pudesse escutar por cima da música.
Uns segundos depois escutei a maçaneta girar e a porta abriu, revelando
a senhora elegante coberta por um roupão de seda verde.
— Oi, Liah.
— Vovó, queria falar com a senhora sobre uma coisa — avisei enquanto
sentava na cama ao seu lado. — A consultora de TI me falou que tudo está
andando às mil maravilhas e a equipe não tem muitas dúvidas, mas Tommy
e Nathan estão cheios de ajustes no sistema que nem foi migrado ainda.
Quer me explicar?
Dona Sylvia me olhou sorrindo.
— Seus amigos são fofoqueiros também?
— Não vovó — sorri de volta. — Sou esperta e posso ligar os pontos
sozinha.
— Por que vou tirar dúvidas com aquela mulher chata ou com um robô,
se posso falar com aqueles homens maravilhosos?
— Dona Sylvia, aqueles homens maravilhosos a quem você se refere,
tem muito trabalho para fazer. E eles também tem pessoas especializadas
para isso, exatamente porque eles gerenciam a empresa. Eles não fazem
mais esse trabalho operacional — expliquei, tentando fazê-la entender.
— Liah, você está ficando chata e desgostosa igual sua mãe — vovó
emburrou a cara, fazendo um biquinho fofo com os lábios. — Vou parar de
perturbar aqueles meninos — sentenciou, dando-se por vencida.
— E você já decidiu alguma coisa sobre a venda das lojas? — Se minhas
desconfianças sobre ela estar desistindo de vender as lojas estivessem
certas, ela fugiria do assunto.
Vovó seguiu até a cabeceira para despejar um pouco de água do bule de
cerâmica branca no copo transparente apoiado na mesa.
— Não recebi nenhuma proposta interessante ainda.
— Nathan chegou a comentar comigo sobre um interesse na marca
Vittorino. Ele fez alguma proposta? — Lembrei-me do dia em que ele
perguntou sobre a venda na AppCorporation.
— Não. Mas seria interessante receber uma proposta de Nathaniel. —
Dona Sylvia levou o copo à boca, pensativa. — Você acha que eu deveria
falar com ele sobre isso?
— Não sei, vó — suspirei, pensando se teria algum problema. — Nathan
não pediu segredo sobre isso, então acho que não haveria problema.
Vovó pegou rapidamente um bloco de anotações sobre a escrivaninha
abaixo da janela, anotando alguma coisa ali.
— Pronto, amanhã não esquecerei de ligar para ele.
Por um instante, pensei no desespero de Nathan ao ver vovó ligar para
ele mais uma vez. Se eu pudesse saber a hora exata que isso aconteceria,
daria um jeito de estar perto dele, só para ver sua cara de sofrimento.
Sorrindo, despedi-me de vovó e segui para o meu quarto.
Antes de dormir, resolvi enviar uma mensagem à Ethan avisando que
havia falado com ela.

Ainda esperei alguns segundos para ver se Ethan responderia, no


entanto, ele parecia estar offline aquele horário.

20 de abril de 2019
A noite foi agitada mais uma vez. Aqueles sonhos ruins insistiam em
voltar a minha mente. Algumas imagens me deixaram confusa entre a
realidade e os sonhos vívidos. Um par de olhos brilhantes e cheios de ira me
encaravam a todo instante, e por algumas vezes, senti que revivia todo o
terror do passado.
Acordei assustada às 04:30h da manhã, com meu corpo extremamente
molhado de suor. Incomodada, resolvi tomar um banho e iniciar meu dia
mais cedo
Embora tudo estivesse sobre controle na Consultoria, eu tinha trabalho
acumulado na ONG. Precisava prestar conta de algumas parcerias na
semana seguinte, e não tinha nenhum relatório pronto, então resolvi usar o
sábado para fechar essas pendências.
Sai de casa às 06:00h da manhã, tentando organizar meu dia
mentalmente, e ao chegar no meu escritório na ONG, meu celular apitou
com uma mensagem de Ethan.
Não tinha tocado no assunto por um único motivo. Eu continiava sendo
boba e pensando nas pessoas, mesmo as que eu odiava, antes de pensar em
mim.

Todas as vezes que Ethan e Olie falavam sobre Nathan, costumavam


defender o amigo. Eu sabia que ele tinha passado por algumas coisas
complicadas na vida. Até onde eu sabia, ele tinha sido abandonado pelos
pais.
De algum jeito, eu tentava ter empatia por ele. Mas da mesma forma que
entendia, qualquer sentimento bom em relação a ele, ia embora no segundo
em que me tratava mal; ou seja, todas as vezes que nos encontrávamos.
Querendo cortar esses pensamentos, me concentrei no trabalho que tinha
para hoje, pedindo a Deus que terminasse tudo logo.
Os relatórios levaram mais tempo do que eu esperava, e quando olhei o
relógio, já passava das 15:00h. Meu estômago remexeu, reclamando de
fome e resolvi encerrar o trabalho por hoje.
As meninas passaram a semana me convencendo a sair com elas hoje, e
foi só quando Olie ameaçou bloquear minhas senhas de acesso ao sistema
da ONG, que me dei por vencida.
Mais tarde, estacionei o carro próximo ao Republic. Não sabia quem
estaria dirigindo hoje, mas não ia arriscar ser forçada a pegar carona com
Nathan novamente. Já bastava aquela maldita carona mal sucedida, onde
seu ódio por mim era quase palpável.
Pelas minhas contas mentais, hoje era o dia dele novamente. Não pensei
duas vezes para decidir entre não beber e voltar naquele carro de novo.
Passei a mão na chave do meu carro e decidi manter minha sanidade ao
menos por aquela noite.
— Veio de carro? — Evie perguntou assim que me viu guardar as chaves
na bolsa, quando cheguei à mesa.
— Não estou bebendo hoje — expliquei.
— Você está grávida? — Olie perguntou alto demais, brincando e rindo
de mim.
— Você está grávida? — gelei ao ouvir a voz grave e irritada atrás de
mim, repetindo a pergunta de Olívia.
Perto demais.
Virei meu corpo devagar e engoli seco quando meus olhos focaram o
peitoral grande e musculoso à minha frente. Subi o olhar e encontrei os
olhos azuis mais gelados que já vi. Precisei me concentrar para buscar uma
resposta.
— Isso te interessa? Depois eu que sou intrometida.
— Seria bem irônico — Nathan comentou debochado, e foi a primeira
vez que vi um esboço de sorriso em seus lábios. Mas não era um sorriso
aberto ou feliz, era tão fechado e irônico que aumentava ainda mais minha
raiva dele.
— Não entendi onde você quer chegar. Por que seria irônico? —
perguntei irritada.
— Quando te interessa, você quer uma explicação, não é?
— Qual é o seu problema, Nathan?
— Odeio gente intrometida.
Para me contrariar ainda mais, ele apenas sacudiu a cabeça e me deu as
costas. Bufei irritada, sem saber se corria atrás dele e o socava ou se só o
xingava. Abri a boca algumas vezes, sem emitir qualquer som, até que
decidi virar novamente para as meninas.
As três me encaravam com suas sobrancelhas erguidas.
— O que foi?
— Qual o problema de vocês dois? — Foi Evie quem quebrou o silêncio.
— Se eu soubesse, Evie, já teria tentando resolver isso a muito tempo —
reclamei, puxando uma cadeira e me jogando nela. Eu não podia nem beber
para descontar a frustração.
Apesar da minha irritação inicial, a noite estava transcorrendo bem até
que Ethan ligou preocupado para Olie. Os meninos sumiram fazia uns
quarenta minutos e quando Ethan ligou, avisou a Olívia que eles estavam do
lado de fora com Nathan. As meninas vestiram a mesma preocupação
daquela primeira vez que vim até aqui com elas.
— Tinha tempo que ele não tinha outra crise — Evie soltou distraída.
— Vocês estão falando do Nathan? — perguntei curiosa.
Olívia lançou um olhar preocupado à Evie, incerta de até onde poderia
me falar alguma coisa. Evie assentiu em resposta e voltou a olhar o visor do
celular.
O clima na mesa era meio fúnebre. As meninas não falavam nada e
ficavam o tempo todo esperando mensagem dos meninos com atualização
sobre o estado do amigo. Karol parecia a mais incomodada com tudo
quando resolveu abrir a boca para falar alguma coisa.
— Desde que a Camille perdeu o bebê, Nathan tem umas crises de
ansiedade e pânico que tiram totalmente a sanidade dele. Estão acontecendo
mais esporadicamente agora, mas ainda acontecem. Às vezes é mais forte,
às vezes é mais leve. Mas quando ele tem, nem os meninos conseguem
segurá-lo direito. Ele fica agressivo e totalmente fora de si. Nate já se
machucou várias vezes por isso.
— O problema não foi a Camille perder o bebê, foi a forma como
aconteceu. — Olie cobrou a amiga. — E ela o abandonou depois, em coma,
Karol.
Eu sabia que Nathan tinha passado por algumas coisas, mas aquilo era
realmente pesado.
— Eu não sabia sobre isso — comentei triste por ele. — Ela abortou?
— Ela perdeu o bebê quando quase teve uma overdose — Karol contou.
— Ele ficou mal depois de tudo e se fechou para o mundo, acertei? Por
isso ele é assim?
— Nathan se culpa, Liah – Olivia apertou os lábios, sorrindo triste. —
Na noite em que Camille quase teve a overdose, ele tentou impedir, mas não
conseguiu. Nathan acha que as coisas poderiam ter sido diferentes se ele
tivesse tido a chance de impedir.
Um arrepio estranho me atingiu. Encarei Olívia sentindo meus
batimentos acelarando aos poucos, até que senti a necessidade de puxar o ar
com mais força.
Por que isso me afeta tanto?
Por alguma razão, eu não queria mais falar sobre aquilo.
Alguns segundos depois, Ethan apareceu na mesa avisando que iria levar
Nathan para casa. Tommy estava com ele do lado de fora e ao que parece,
dessa vez Nathan não tinha causado grandes estragos.
Confesso que fiquei um pouco preocupada com essa informação.
Ele ficava tão agressivo a esse ponto?
Karol ainda perguntou a Ethan sobre o que teria causado a crise, e o
olhar preocupado que o moreno lançou para a amiga deixou todo mundo
arrepiado.
— Ele recebeu uma mensagem da Emma.
— Quem é Emma? — perguntei baixinho para Evie.
— A mãe da Camille — a voz de Evie soou assustada e me perguntei o
quão estranha essa história ainda poderia ficar.
O nó ainda estava aumentando em minha garganta. Aquela informação
me atingiu da forma errada.
De repente, eu podia sentir a dor dele.

22 de abril de 2019
Meu humor estava péssimo, e eu detestava estar de mau-humor logo na
segunda pela manhã. Mas estava afetada desde sábado, quando Olívia falou
sobre Nathan e a forma que se culpava.
Minha cabeça já não aguentava mais enfiar Nathan no meio de qualquer
processo do meu cérebro. Eu queria só um dia de distância mental dele,
fingir que ele ao menos não existia, mas teria que fazer a apresentação do
curso dele à tarde.
Almocei no refeitório com Olie e Mia. Ainda não conseguia entender
como a garota podia ser quase irmã de Nathan. A menina era educada,
meiga e engraçada.
— Chamei o Nate para almoçar com a gente, mas ele nem viu minha
mensagem — Mia soltou distraída no meio do almoço.
Encarei Olívia suprimindo um grito. Mia distribuiu sua atenção entre nós
duas e então apertou seus olhos em minha direção.
— Então você também não gosta dele?
— Isso quer dizer que ele já declarou que não gosta de mim, certo? Qual
o problema dele comigo?
A garota balançou a cabeça me repreendendo, soltou o garfo sobre o
prato, cruzando os braços em frente ao peito.
— Liah, o que houve entre vocês dois? — me cobrou como se eu tivesse
alguma culpa. Por que todo mundo achava que tinha acontecido alguma
coisa entre a gente? Ninguém conseguia acreditar que ele simplesmente era
babaca comigo, e ponto?
— Mia, seu primo é um babaca! — acusei. — Ele simplesmente decidiu
que não ia gostar de mim, e foi isso — expliquei.
A morena suspirou, demorando seus olhos em mim, e notei o quanto Mia
lembrava Nathan com a expressão irritada. Pelo tempo que manteve seus
olhos atentos, estava pensando se deveria ou não intervir a favor dele. Mia
abaixou a cabeça, voltando a segurar o garfo, mas uma revolta repentina
tomou a menina.
— Quer saber?! Lá em casa, quando Nathan começou a falar de você, ele
se limitou a dizer que não gostava de você, exatamente porque ele não é o
tipo de cara que fala mal de qualquer mulher que seja. Eu não sei qual o
motivo dele não gostar de você, Liah. Mas Nathan não é, e nunca foi o tipo
de cara que decide não gostar de alguém e pronto. — Mia empurrou o prato
na mesa, levantando apressada. A garota já se afastava quando voltou dois
passos em nossa direção. — Eu adoro você e essa ONG. Acho você uma
mulher incrível, mas nem de você eu aceito dizer que Nate é babaca. Ele foi
a única pessoa que cuidou de mim e me protegeu por anos quando minha
mãe estava com a cabeça ferrada pelo Ralph e não conseguia fazer esse
papel. Nathan não é meu primo, ele é meu irmão. Então, por favor, se quiser
falar dele, faz isso longe de mim.
Do mesmo jeito que levantou segundos atrás, Mia saiu do refeitório;
apressada e batendo os saltos grossos da bota coturnada no chão. Ela tinha
personalidade, não podia negar. Ainda estava em choque quando Olivia
gargalhou ao meu lado.
— Mia deixa qualquer um assim mesmo. Ela tem um amor incondicional
pelo irmão.
— Ok! — Empurrei meu prato, ciente de que havia perdido toda a minha
fome. — Não esperava essa reação dela. Foi errado falar dele assim, eu sei.
— Ah, Liah, não se estressa com isso. Mia não vai guardar nenhuma
mágoa de você. Mas por via das dúvidas… — Olie levantou, recolhendo os
três pratos da mesa — Evita falar do Nate na frente dela, ok? Não queremos
Mia realmente estressada aqui dentro.
Olívia seguiu até o balcão com os pratos, me deixando rindo sozinha.
Mia devia ser incontrolável quando chegava ao seu limite. Ela também era
do tipo que defendia todos que gostava com unhas e dentes. Eu gostava de
gente assim, que não se impedia de defender os amigos, que não media
esforços para fazer qualquer coisa que tivesse ao seu alcance pelos outros.
— Falando em Nathan… tenho que apresentá-lo à turma do curso. Você
podia fazer isso por mim — disse assim que Olie me alcançou na porta do
refeitório.
— Eu vou com você até lá, te dou um apoio moral nessa árdua missão de
passar uns minutos muito longos do seu dia ao lado de um dos caras mais
bonitos que você vai ver na sua vida.
Foi inevitável sorrir para ela. Olívia sabia reverter um clima ruim como
ninguém.
— Ethan sabe que você acha o Nathan bonito? — Suas bochechas
coraram e Olie revirou os olhos, mal acreditei que aquela simples
provocação causava algum efeito nela.
— O Nathan é lindo, Liah. Isso é um fato. — Olie chegou mais perto,
puxando meu corpo pelo corredor. — Mas Ethan é... o Ethan, sabe?!
— O que isso quer dizer, Olívia? — ri do jeito fofo que ela confessou
aquilo.
— Você sabe o que quero dizer, não me faz ficar falando sobre isso —
pediu fazendo biquinho.
— Está bem, Olie, vou parar de provocar. A gente está atrasada e Nathan
já deve estar no auditório, melhor a gente ir logo.
Seguimos pelas escadas até o auditório lá embaixo. Alguns adolescentes
já se aglomeravam em frente a porta, ansiosos para entrarem. Como
imaginava, Nathan já estava lá dentro, conversando com Triss em frente ao
telão.
Quando eles ficaram próximos assim?
Tentando espantar o ciúme evidente pela atenção dela, entrei na sala
pronta para iniciar o curso. Observei Triss sentar-se na fileira de cadeiras na
frente, tentando entender o que até ela via nele.
Ele está dando um curso aqui, Liah. Não podia ser tão ruim, não é?
22 de abril de 2019

Meu pulso ainda doía quando conectei o cabo HDMI no notebook e a


tela inicial da apresentação do curso apareceu no telão do auditório. Ali
seria minha sala de aula, por uma hora ininterrupta, às segundas, quartas e
sextas à tarde.
Flexionei o pulso direito, tentando obter algum alívio. Os nós dos meus
dedos ainda estavam inchados e machucados dos socos que desferi na
parede de cimento no sábado, resultado da última crise que tive.
Preciso falar com você sobre Camille.
Era a única coisa que aquela mensagem dizia.
Nunca me preocupei em bloquear os números dos pais dela, já que eles
nunca me procuraram novamente depois de tudo. Eu nem sequer me
lembrava que tinha aquela porra de número salvo nos meus contatos, por
isso fiquei tão surpreso.
No início, só queria entender o que Emma queria comigo depois de três
anos, e curioso, acabei respondendo à mensagem.
Camille tinha voltado da Itália. Depois de três anos, era a primeira
notícia que tinha dela.
Uma fisgada de dor me trouxe de volta à realidade. Olhei novamente a
vermelhidão em meus dedos, tentando afastar as memórias ruins.
Olívia apareceu na porta direcionando algumas crianças e adolescentes
para o auditório.
— Nate! — Triss gritou, correndo para me abraçar.
— Oi, Triss — cumprimentei devolvendo o abraço da garota. — Como
você está?
— Estou tão feliz que a gente vai ter esse curso — Triss sorriu. —
Acabei de encontrar a Mia, ela vai dar um curso aqui.
— Que bom, Triss. A Mia está bem feliz de ajudar aqui também —
contei, sorrindo pela empolgação da menina.
Os olhos dela fugiram rapidamente para a porta da sala, quando um
garoto que aparentava ter a mesma idade dela entrou. Suas bochechas
coraram e a menina forçou o foco de volta para mim. Sorri, lembrando de
como era ser adolescente e todos os constrangimentos de um primeiro amor.
Triss pigarreou, e sorriu sem graça antes de procurar um lugar para sentar-
se.
Depois que toda a turma entrou, Lianah e Olivia se juntaram a mim em
frente ao telão, me apresentando à eles.
A primeira aula foi ótima e muito divertida. Era um pouco difícil
explicar conceitos tecnológicos mais complexos para adolescentes e
crianças mais novas da mesma forma, por isso separei a turma em dois
grupos.
As crianças mais novas precisavam de mais atenção e maior base de
lógica e matemática, enquanto os mais velhos já se viravam melhor. Triss
era visivelmente fora da curva. Ela era uma extensão do meu braço, e
ajudava todos os amigos a fazerem as atividades.
Tinham uns quinze alunos na sala. Àquela altura, Lianah e Olie tinham
mais de sessenta crianças alojadas na ONG. Olívia tinha me contado que as
duas alas do prédio em reforma, serviriam para alojar mais crianças. Era
inegável que aquela ONG era um projeto e tanto.
Desde que conheci Lianah, alguns meses atrás, aquela era a primeira vez
que enxergava um lado bom nela. Pena que esse pensamento morria logo
que lembrava quem ela era e o que representava para mim.

23 de abril de 2019
Sentei-me no sofá macio, encarando Doutor Emerson. Terça-feira havia
chegado muito rápido, e eu não tinha ideia do que iria falar hoje. Eu havia
contado coisas boas da minha vida na última consulta, não teria desculpas
para não falar das ruins hoje.
— Como passou esses dias? — Doutor Emerson perguntou sorrindo.
— Foi estranho — me limitei a responder.
— Posso presumir que aconteceram coisas não usuais, então? —
perguntou divertido.
Eu gostava da forma dele conduzir aquelas conversas. Nunca era de uma
forma invasiva. Até seu tom de voz tinha deixado de ser especulativo e
monótono para mim.
— De sexta para cá aconteceu coisa demais, de uma vez só — informei.
— Sexta tive uma reunião numa ONG que estou me envolvendo. Minha
empresa vai participar de um projeto social, empregando jovens estagiários,
mas a assistência social não aprovou o modelo inicial do projeto. Então eu
simplesmente decidi tentar um processo de adoção de uma das jovens.
Soava estranho até para mim. Ninguém sabia sobre aquilo ainda, nem
mesmo Tommy ou Ethan.
— É uma decisão importante, Nathan — Doutor Emerson me olhou
pensativo. — Você pensou em tudo que isso implicava antes de tomá-la?
Pensei por um instante. Na verdade, eu não havia pensado nas
implicações daquilo até agora.
— Sendo bem honesto, tomei essa decisão impulsivamente, no ímpeto
de querer dar a Triss um futuro melhor. Mas isso não quer dizer que eu
esteja errado, ou quer? — perguntei confuso.
— De forma alguma — o homem mais velho pontou. — Acredito que
financeiramente você não tenha problema algum com isso. Mas já se
perguntou se está preparado para cuidar de outra pessoa?
Eu já estive um dia.
Esse mero pensamento foi o suficiente para começar a me empurrar de
volta ao fundo daquele poço escuro. Senti o suor começar a brotar em
minhas têmporas, e minha respiração falhou por alguns segundos. Engoli
seco, tentando controlar minhas emoções.
— Que tipo de lembranças isso te traz? — Doutor Emerson levantou-se
buscando uma garrafa de água no frigobar e me entregando.
Aí estava a parte invasiva. Meus problemas começavam quando
perguntavam sobre meu passado, sobre as lembranças.
— Nathan — ouvi sua voz ao longe me chamando, mas a essa altura
minha cabeça estava muito distante dali. Eu não podia ter uma crise agora,
dentro daquele consultório. — Você é mais forte que isso, falar sobre o que
está sentindo vai te fortalecer — o homem me observou por alguns
segundos até entender que precisava mudar o foco daquela conversa. — Me
conte sobre a Triss.
Fechei meus olhos, tentando controlar minha respiração. Observei o
desenho da Íris tatuada em meu antebraço por um segundo. Eu já havia
conseguido recuperar o controle da minha vida uma vez, eu podia fazer isso
de novo agora.
A consulta terminou e eu ainda contava sobre como me apaguei a garota
e sua inteligência. Contei sobre o desejo que tinha de mudar a vida daquelas
crianças, e pelo sorriso satisfeito do homem a minha frente, eu sabia que ele
tinha feito alguma ligação daquilo com o meu passado. Agradeci
mentalmente por ele não insistir em outros assuntos por hoje.
Antes de sair do consultório, Doutor Emerson me chamou.
— Nathan, se me permite um conselho… todas as vezes que você
começar a sentir essas sensações ruins, quando alguma lembrança ruim te
atormentar… foque na sua respiração, pense que você consegue manter o
controle sobre você e sobre o que sente. Se ainda assim isso não funcionar,
pense em todas as coisas boas que você tem em sua vida. Você conseguiu
falar comigo por mais de duas horas sobre momentos felizes e pessoas que
te fazem bem, tenho certeza de que vai achar várias âncoras que possam
manter sua sanidade.
Ainda absorvendo suas palavras, acenei atravessando a porta. Saí do
consultório com o coração um pouco mais leve, pronto para encarar mais
um dia de trabalho.
— Como foi a primeira aula? — Tommy perguntou quando entramos na
sala de reunião pela manhã.
— Foi boa, estou ainda mais impressionado com a Triss. — Tirei meu
blazer, largando sobre a cadeira ao lado.
Hoje tínhamos mais uma reunião com Sylvia. Dessa vez, ela queria
incluir uma profissional de TI na discussão dos sistemas. Parece que
finalmente teríamos algum sossego.
A mulher chegou com a Ana, a profissional que iria ajudá-la na migração
dos sistemas.
— Olá, rapazes — Tommy e eu nos entreolhamos confusos.
Sylvia tinha um semblante triste e abatido. O brilho usual em seus olhos
e a felicidade que a mulher costumava exalar, estavam totalmente apagados.
— Está tudo bem, Dona Sylvia? — arrisquei, perguntando preocupado.
— Dona me faz sentir velha, querido — respondeu com sua frase usual,
e embora tenha sorrido em minha direção, aquele sorriso nunca alcançou
seus olhos.
— Me desculpe, Sylvia — corrigi tentando confortá-la de alguma forma.
— Como vão os sistemas?
— Bem, essa moça aqui é a Ana. Ela vai ficar responsável por toda essa
parte de TI nas minhas unidades. — Dona Sylvia parecia chateada em ter
que ceder o controle à mulher.
— Bem, nesse caso, vamos começar então — disse, iniciando a reunião e
explicando a Ana todas suas dúvidas e pontuações sobre os sistemas.
A reunião não durou muito, a especialista tinha um bom conhecimento
sobre sistemas de pontos de venda, o que facilitou nossa vida. Quando as
mulheres foram embora, Tommy fechou a porta, esperando que se
afastassem no corredor.
— Ela parecia bem triste. Será que é porque está tendo que deixar a Ana
tomar conta de tudo? — Tommy questionou.
— Não sei, mas definitivamente é estranho ver essa mulher abatida
assim. Duvido muito que seja somente por isso — comentei, desconectando
o laptop dos cabos. — Tenho algumas coisas de outros clientes para
adiantar hoje. Vai precisar de mim para alguma coisa?
Tommy negou com a cabeça, pensativo.
— Será que aconteceu alguma coisa com a Liah? Ethan disse que ela
precisava de ajuda mais cedo.
Bem, é o que dizem, noticias ruins correm rápido. Se tivesse acontecido
algo, nós já estaríamos sabendo, certo?
— Olie ou as meninas já teriam falado alguma coisa, não? — perguntei.
— Vou ligar para o Ethan para saber como estão as coisas por lá —
Tommy avisou saindo da sala.
Exalei, pensando na quantidade de trabalho acumulado que me esperava.
Tirar as tardes de segunda, quarta e sexta para trabalhar na ONG me trariam
um prejuízo enorme no meu tempo.
Saí da sala de reunião dando de cara com Sylvia, parada na entrada do
meu escritório. Cerrei meus olhos, pensando no que ela poderia querer
comigo agora que os sistemas estavam sob a responsabilidade de Ana.
— Posso ajudar em mais alguma coisa, Sylvia? — perguntei, indicando a
porta da sala para ela entrar.
A mulher entrou em meu escritório se acomodando sobre a cadeira
estofada em frente minha mesa.
— Veja, Nathaniel, minha neta falou sobre um interesse seu em comprar
minhas lojas.
— Sim. Comentei sobre isso com ela. É só uma ideia embrionária,
gostaria de dar um negócio à minha tia, Sylvia. Achei que as lojas e o clube
poderiam ser algo interessante.
Seus olhos me encararam de um jeito estranho e senti um arrepio na
espinha. Aquela mulher tinha uma energia misteriosa.
— Receio que isso não será possível.
Claro. Lianah já deveria ter dito a avó que eu era a pior pessoa do mundo
e que não prestava. Sylvia, apesar da cordialidade, devia achar que eu era
uma espécie de cara machista e escroto.
— Não que eu me incomode verdadeiramente, mas gostaria de saber o
motivo — pedi, na intenção de confirmar meus pensamentos.
— Eu desisti de vender as lojas e o clube, mas se eu fosse vender a
alguém, certamente seria a você, Nathaniel. — Sylvia continuava me
encarando profundamente.
— Lianah sabe que não vai mais vender?
Algo me dizia que Sylvia escondia coisas da neta. A garota não devia
saber sobre a curiosidade da avó a respeito de Carl, e provavelmente não
sabia que tinha desistido de vender as lojas.
— Não — Sylvia suspirou triste. — E preciso te pedir que não fale sobre
isso com ela. Liah já tem preocupações demais na vida.
— Não quero me intrometer, mas a senhora sabe que uma hora ela vai
precisar saber, não é?
— Senhora não. Já pedi, Nathaniel. — Um esboço de sorriso apareceu
em seus lábios enrugados.
— Perdão. Então me chame de Nathan, ok?
Sylvia sorriu mais abertamente, levantando-se devagar da cadeira. A
mulher seguiu até a porta de vidro e quando estava prestes a sair da minha
sala, virou seu corpo novamente para mim.
— Nathan, posso pedir uma coisa a você?
— Claro.
Uma expressão preocupada tomou seu rosto quando deu dois passos de
volta para dentro da sala.
— Liah vai precisar da ajuda de vocês em breve. Eu não sei o que houve
no passado entre vocês dois, mas sinto que você tem a chave para que ela se
abra para o mundo.
Ok! Chave para se abrir para o mundo?
Segurei um riso irritado junto de alguns palavrões, em respeito a mulher
mais velha.
— Sylvia, sinceramente, isso só faria sentido se fosse a chave para
despertar mais raiva nela — ri, desacreditado. — Eu não sei se sua neta
sabe exatamente o motivo que me faz não gostar dela, mas posso garantir
que é uma coisa meio irreversível.
— Existem poucas coisas irreversíveis nesse mundo, Nathan — Sylvia
apoiou os braços na minha mesa, abaixando sua cabeça para falar mais
baixo. — A morte é irreversível; palavras lançadas podem ser irreversíveis;
uma confiança quebrada pode ser irreversível. Mas como nos sentimos
sobre tudo isso, pode mudar dependendo da perspectiva que temos dos
fatos.
“Se tem uma coisa que aprendi com minha mãe ainda na infância, é que
existem alguns tipos de vínculos que são inquebráveis, mas são mutáveis.
Amor e ódio caminham lado a lado, e do mesmo jeito que o amor pode
virar ódio; o ódio também pode virar amor.”
Pisquei, confuso para suas palavras, mas antes que eu pudesse questioná-
la, a mulher seguiu a passos rápidos pelo corredor, sumindo ao virar para a
saída.
Ignorei totalmente as palavras malucas de Sylvia, e me questionei por
uns segundos se eu teria mais algum dia na vida sem ouvir ou falar sobre
Lianah; mas envolvido da forma que eu estava com a ONG agora, eu
precisava admitir que era impossível.
Derrotado com esse pensamento, resolvi me afogar no trabalho aquele
dia.

24 de abril de 2019
Um barulho irritante insistia em agredir meus ouvidos, e meu cérebro
levou alguns segundos para entender que meu celular tocava no fundo.
Droga, eu dormi não tem nem uma hora.
Abri meus olhos lentamente, vendo que nenhuma claridade atravessava
as grandes janelas de vidro do loft.
Relutante, tirei o celular da mesa de cabeceira me esforçando para
enxergar a tela com a visão turva de sono.
Ethan me ligando às 02:30h da manhã?
— Oi, Ethan — minha voz soou grossa e senti a garganta seca.
— Nathan, desculpa a hora cara, mas preciso de ajuda e não consigo
falar com o Tommy. — Embora o tom de Ethan parecesse ameno, eu podia
ouvir alguém chorando ao fundo.
— O que aconteceu? — Sentei na cama, sentindo-me totalmente
desperto agora.
— Eu estou no hospital com a Olie…
— Ela está bem? — interrompi preocupado.
— A Olie sim. É uma história complicada. Houve um incêndio na
Mansão Vittorino, e a Olie estava lá. Liah e a avó também estão aqui — o
leve tremor em sua fala indicava alguma preocupação. — Olie me ligou
quando estava vindo para cá na ambulância. Parece que avó da Liah teve
ferimentos graves. Você sabe como sou ruim para lidar com essas coisas,
com a Olie mal, não sei nem como começar a ajudar.
— Relaxa, eu estou indo para aí. Em qual hospital vocês estão? —
perguntei correndo para o banheiro, jogar uma água no rosto.
— No Hospital Metropolitano, no Centro. A Olie e a Liah estão em
observação. Vou te esperar na recepção.
Desliguei o celular preocupado, querendo ter certeza de que Olie estava
bem.
O ar frio da noite atingiu minha pele, me fazendo perceber que na pressa,
não consegui nem pegar um casaco. Mas chegar no hospital em pouco
tempo era a prioridade agora.
Dirigi como um louco e logo que cheguei, avistei Ethan sentado em um
dos bancos acolchoados na sala de espera principal.
— Ei, cara — chamei, sentando-me ao seu lado, percebendo seu olhar
derrotado e os olhos marejados.
— Porra, Ethan, não me diz que aconteceu algo pior com a Olie… —
meu coração disparou enquanto uma sensação gelada tomava minha
espinha.
— Ela está bem — me garantiu, apontando o dedo para o outro lado da
sala, onde um senhor baixinho e barrigudo abraçava Lianah. A menina
estava aos prantos. — A avó dela teve uma parada cardiorrespiratória pela
quantidade de fumaça em seu pulmão. Sylvia não resistiu.
Cocei a cabeça nervoso. Lianah estava longe de ser alguém por quem eu
teria qualquer sentimento bom, mas naquele momento tive empatia por ela.
Mesmo sem poder enxergar seu rosto, sua dor ficava evidente em cada
soluço alto que podia ser escutado na sala de espera.
— Não sei se eu era a melhor pessoa para vir te ajudar — avisei a Ethan.
— Eu entendo o que você sente, Nate. Mas pensa no que você sentiu
naquela noite. Você e eu entendemos bem a dor de perder alguém, sabe o
que ela está sentindo agora.
Pensei em tudo que Lianah desencadeou na minha vida. Perder alguém
era, de longe, a pior dor que eu já tinha sentido. Eu tive tantas pessoas boas
que me apoiaram quando precisei, imaginei se ela teria a mesma sorte.
— Quem é aquele senhor?
— Um amigo da família, era meio que um assessor da Sylvia. É a pessoa
mais próxima delas pelo que entendi. A família só queria saber do dinheiro.
— Ethan explicou.
— Esse é o tal Walter? — perguntei, lembrando das poucas vezes que
falamos com ele por telefone quando estavam avaliando nossa proposta
para o sistema das lojas.
Ethan assentiu enquanto um homem alto e de meia-idade, usando um
jaleco branco, atravessou a porta grande que dividia a recepção da parte
interna do hospital.
— É o médico que está atendendo a Olie. — Ethan pôs-se de pé
rapidamente, acenando para o médico.
— Sou o Doutor Richard, vim dar notícias da sua amiga — o médico
olhou para Lianah abraçada ao homem antes de continuar. — Olívia está
bem. Vocês podem entrar para vê-la se quiserem, mas sua amiga ainda não
sabe sobre a Sylvia, não tenho nenhuma restrição caso queiram contar.
Olivia está em observação, mas das três é a que está melhor.
— Liah está bem? — Ethan perguntou voltando o olhar para a garota que
agora estava sentada em um dos bancos, com a cabeça afundada entre as
mãos.
— Ela inspirou bastante fumaça tentando tirar a avó de lá antes dos
bombeiros chegarem, mas ela vai ficar bem sim — o médico garantiu,
dando um tapinha no ombro de Ethan. — Querem entrar para ver Olivia
agora? Seria melhor se fosse um de cada vez.
— Ela não deveria estar de repouso? — perguntei, observando a menina
junto ao senhor do outro lado.
— Liah estava muito nervosa lá dentro, mas já avisei que deve passar a
noite aqui em observação. Não precisa se preocupar com sua amiga,
estamos de olho nela — o médico chamou uma das enfermeiras que
passava na hora e informou algo a ela apontando para Lianah.
— Pode ir Ethan, eu entro depois, vou falar com ela — apontei para a
garota.
— Nathan, tem certeza disso? — Ethan perguntou preocupado.
— Não vou brigar com ela, só quero ajudar de alguma forma — Revirei
meus olhos para sua preocupação exagerada.
Ethan deu de ombros, seguindo pela porta com o médico. Suspirei e dei
alguns passos em direção à loira. O homem barrigudo percebeu minha
aproximação e abriu espaço, imaginado que eu conhecia a menina.
Ajoelhei-me a sua frente, tentando ficar na mesma altura que ela.
— Lianah — chamei baixinho.
— Vou buscar uma água para ela — o homem avisou saindo de perto.
— Liah — tentei novamente, vendo a garota levantar a cabeça e me
encarar. Seus olhos, extremamente azuis, estavam vermelhos e inchados
pelo choro. Várias lágrimas desciam pelo seu rosto. Vim tentar ajudá-la de
alguma forma, mas agora que estava aqui, não sabia o que dizer. — Eu sinto
muito! — foi tudo o que saiu da minha boca.
Um suspiro profundo cortou seu choro e a menina voltou a afundar a
cabeça em suas mãos.
— Tem alguma coisa que eu possa fazer para te ajudar agora? —
perguntei querendo ser útil, mas Liah apenas negou com a cabeça, deixando
escapar alguns soluços.
Exalei, sabendo exatamente o que ela estava sentindo. Parte de mim se
incomodava profundamente por vê-la assim, tão exposta e triste.
Normalmente, aquela mulher tinha um ar tão alegre, que chegava a ser
irritante.
Sentei-me na cadeira ao seu lado, tentado a abraçá-la. No entanto, meu
lado racional me alertava o quão estranho seria isso, dada a nossa situação.
O homem que a acompanhava retornou com um copo descartável cheio
de água, tentando oferecer a ela, embora sua reposta fosse apenas uma
negação de cabeça.
— Liah, minha filha, o médico disse que você precisa ingerir muita água.
A garota parecia nem ouvir o homem, totalmente inerte e absorta em seu
choro contido. O homem me olhou pedindo algum tipo de ajuda silenciosa.
Cara, sou a última pessoa que ela ouviria.
A contra gosto, levantei-me da cadeira e peguei o copo de sua mão.
Ajoelhei-me novamente em frente a ela, puxando devagar uma de suas
mãos de seu rosto. Lianah me encarou com os olhos inchados e vermelhos,
enquanto limpava algumas lágrimas com o dorso da outra mão.
— Liah, você inalou muita fumaça. Bebe essa água… — ofereci o copo
a ela.
Ela franziu os olhos confusa, mas pegou o copo em seguida, tomando em
poucos segundos todo o conteúdo. Sua mão tremula me devolveu o copo.
— O que você está fazendo aqui?
Sua voz soou muito baixa, entrecortada pelo choro sentido.
— Ethan me ligou pedindo ajuda, mas se você preferir posso ir embora
— avisei, tentando evitar qualquer briga ou deixá-la ainda mais
desconfortável.
— Não precisa fazer isso, Nathan — ela voltou a me olhar nos olhos. —
Você nem gosta de mim.
Respirei fundo, desviando meus olhos dela. Liah tinha razão, mas eu não
era tão babaca a ponto de tratá-la mal nessa situação.
— É difícil acreditar às vezes, eu sei, mas eu também tenho um coração,
Lianah — tentei um sorriso fraco, disfarçando meu incomodo.
— Só por hoje, seria possível me chamar de Liah? — ela pediu, voltando
a enterrar a cabeça em suas mãos.
Voltei a me sentar na cadeira ao lado dela, incerto sobre deixá-la aqui
sozinha ou não. O homem que estava com ela havia sumido desde que
peguei o copo de água dele. Ficamos sentados em silêncio por mais alguns
minutos. Os únicos sons ouvidos eram os pequenos soluços e suspiros da
garota, enquanto chorava ao meu lado.
— Isso que você está sentindo agora… — disse quando percebi seu
choro mais calmo. — Você aprende a controlar com o tempo.
— Claro, porque é muito fácil aprender a viver com a dor — Liah
respondeu ácida, secando algumas lágrimas com o dorso da mão direita. —
Eu sei bem o que é conviver com essa porcaria de dor, Nathan. Desde os
meus dezessete anos eu lido com a porra da dor de ter perdido minha mãe.
Eu sabia que a mãe dela tinha morrido, ouvi isso em alguma conversa
dos caras em algum momento. Não tinha ideia do que aconteceu com o pai
dela e também não perguntaria. Mas a questão é que nunca pensei que ela
também conhecia essa dor, que ela entendia o que era perder alguém, perder
a esperança.
A verdade é que eu me afundava tão intensamente naquele poço sem
fim, que já era quase incapaz de enxergar a superfície. Tudo que eu podia
ver e sentir era a água escura e espessa na qual me afogava diariamente.
— Eu também perdi alguém — desabafei, totalmente incerto do motivo
de estar falando aquilo. Ela não ia querer saber das minhas merdas logo
agora que estava vivendo o luto dela.
— Ainda dói? — Lianah perguntou me surpreendendo.
Dói! Dói para caralho, Liah!
— É mais fácil lidar com o tempo — tentei uma resposta mais otimista,
sem querer que a garota se afundasse como fiz naquele poço escuro.
— Não precisa mentir. — Liah mordeu o canto do lábio, mantendo o
olhar perdido a sua frente. — Eu ainda sinto falta da minha mãe todos os
dias. Sinto meu coração doer toda vez que penso que nunca mais vou
escutar a voz dela.
Era no mínimo curioso que das únicas pessoas que podiam me entender,
ela fosse uma delas. Lianah nunca entenderia a parcela de culpa que tinha,
mas ela entendia exatamente como eu tinha sido afetado e as reações que
aquela perda acarretou na minha vida.
Pela primeira vez, parecia fazer sentido falar, porque alguém do outro
lado me entenderia de verdade.
— Eu ainda sinto como se meu coração fosse arrancado do meu peito
todos os dias — soltei arfando.
Liah ajeitou o corpo, recostando as costas na cadeira desconfortável da
recepção e voltou a secar mais lágrimas com as pontas dos dedos.
— Eles nunca entenderam essa dor, não é? — uma risadinha triste e
inconformada escapou dela. — Por mais que as pessoas queiram ajudar, por
mais que desejem que tudo vá ficar bem, nenhum deles consegue entender o
que você sente.
A última frase não era uma pergunta. Liah sabia tão bem quanto como
era guardar esse tipo de sentimento, porque ninguém conseguia entender
aquela dor. Ethan havia perdido a irmã mais nova de um forma bem
dolorida, ele me entendia, mas evitava falar tanto quanto eu.
Eu nunca havia conversado diretamente com ela antes. Tinha meus
motivos para manter a maior distância possível, e mesmo assim, com duas
perguntas ela conseguia me entender. Liah conseguia entender a
profundidade do que eu sentia.
— Se eu puder fazer qualquer coisa para ajudar… de verdade… — tentei
desviar o foco daquela conversa. Me incomodava muito falar do que
aconteceu, ainda mais com ela.
— Mia e sua tia te ajudaram, não foi? — não tinha certeza sobre o que
ela queria saber, mas minha expressão confusa quando seus olhos
avermelhados me encararam, deixou isso claro a ela. — A superar tudo.
Ajudaram. Elas haviam sido uma parte importante da minha superação,
assim como todos os meus amigos. Mas tinha outra peça, alguém que me
puxava do fundo do poço com mais frequência do que eu esperava.
— Elas foram importantes para mim o tempo todo. Minha tia teve um
período ruim pelo tempo que fiquei no hospital — não sei o quanto ela
sabia sobre aquilo, mas acreditava que Olie já deveria ter soltado alguma
coisa para a amiga. — E Mia ainda era um pouco imatura para entender
tudo que estava acontecendo. Carlton, o marido da minha tia, foi a pessoa
que não me deixou definhar de verdade.
— Você teve alguém — duas lágrimas grossas escaparam de seus olhos e
eu quase podia ver a dor que brilhava neles. — Eu não tenho mais ninguém,
Nathan. A vida me tirou todo mundo.
O desespero não levou nem dois segundos para tomar conta de mim.
Eu desejei isso.
Desejei que a vida tirasse tudo dela quando nem sabia quem ela era de
verdade.
A dormência que começava a subir pela minha espinha era conhecida.
Meu ar começou a faltar…
— Liah! — um grito alto ecoou na porta quando Karol e Evie entraram
correndo até a amiga. — Você está bem? — Karol abraçou Lianah e a
garota apertou os braços em volta do pescoço da ruiva, chorando ainda
mais.
— O que houve? — Evie me perguntou baixinho.
— A avó dela morreu — contei, tentando me afastar dali. Aquelas
imagens me traziam lembranças ruins. Evie me olhou aterrorizada. — Eu
preciso sair daqui, Evie, esse clima não me faz bem — avisei, já seguindo
em direção à saída do hospital.
Eu me segurei por muito tempo para não deixá-la ali sozinha, mas sua
última constatação me fez perder o controle das minhas emoções de novo.
Passei pela grande porta de entrada do hospital e sentei-me em um dos
degraus da escada de acesso, puxando o ar com força. Aquela sensação de
vazio no meu coração e o aperto no meu estômago estavam ficando mais
intensos. Era o início de uma crise.
Sem que eu tivesse controle, algumas lágrimas escaparam de meus
olhos.
Porra, Nathan. Ninguém precisa que você tenha uma crise agora.
Fechei meus olhos, focando na minha respiração, quando alguém me
abraçou pelo pescoço.
— Vai ficar tudo bem — Karol estava sentada no degrau de cima, com
os braços em volta de mim.
— Esse clima de merda me afeta muito — confessei. — Até o cheiro de
hospital me faz mal.
Eu desejei aquilo. Quando fiquei tão sem coração?
— Eu sei, Nate — ela deixou um beijo na minha bochecha antes de me
soltar e sentar no degrau da escada ao meu lado. — Você tem conseguido
controlar melhor suas crises.
Eu precisava agradecer ao Doutor Emerson por ter me ensinado a
controlar a respiração e focar sempre nas coisas boas da minha vida, caso
contrário, já estaria quebrando o hospital agora.
— Acho que fiz mais progresso em uma única sessão com o Doutor
Emerson do que todas as outras juntas que já tentei — tentei esboçar um
sorriso.
— Quem é esse? — Karol perguntou com um vinco em sua testa. — Não
me diga que é um psicólogo?
— Pior que é — confirmei. — A Olie que encontrou o cara e
praticamente me obrigou a ir. Mas gostei dele.
— Isso é mesmo algo incomum — Karol me lançou um sorriso aberto,
então olhou para dentro do hospital. — Liah está bem mal. Eu e Evie vamos
tentar ajudar com a burocracia necessária para o velório e o enterro da Dona
Sylvia. Você e Ethan podem ficar de olho nela e na Olie essa noite?
— Karol, não tenho certeza sobre conseguir me envolver nessa situação
toda. Tenho medo do quanto isso me afeta. Lidar com hospital, morte e esse
drama todo… — respirei fundo, passando as mãos pelo cabelo. A
inquietação voltava a tomar conta de mim. — Ninguém conseguiu falar
com Tommy?
— A Evie conseguiu na hora que estávamos vindo para cá. Ele estava
com alguém, então atrapalhamos um encontro. — Karol riu baixinho,
sabendo o quanto Tommy odiava ser interrompido nesses momentos. —
Mas nesse caso, ele concordou que foi por uma boa causa.
— Vou esperar Thommas chegar e ver se ele pode ficar aqui com Ethan.
Se quiser, pode ficar lá dentro com as meninas. A Lianah vai precisar de
companhia — avisei.
— Tem um tempo que a gente não conversa, me conta como você está
— pediu, ignorando o que disse sobre ficar lá dentro. Ela não entraria
enquanto não tivesse certeza sobre eu estar bem. — Soube que você
também está dando um curso na ONG.
— Pois é. Parece que a teia da Lianah envolveu todo mundo. Desisti de
tentar manter distância — contei a contra gosto. — Na verdade, parece que
na ONG eu raramente encontro com ela, e a gente nunca se fala mesmo.
Está mais fácil manter distância dela lá do que fugindo.
— Nathan, ainda não consigo entender essa sua implicância com ela —
reclamou, sacudindo a cabeça.
Encostei a cabeça no corrimão de ferro da escada, fechando meus olhos.
— Esquece isso, Karol. Eu me sinto péssimo em falar mal dela nessa
situação. A garota está lá dentro chorando pela morte da avó.
— Bem, você está certo sobre a teia dela envolver a todos. A Evie está
trabalhando com ela, a Mia com um curso de moda na ONG, e eu estou
planejando um de educação financeira para jovens — abri os olhos, vendo
Karol sorrir orgulhosa.
— Que bom que essa menina esteja fazendo algo de bom uma vez na
vida — reprovei.
— Definitivamente, você está bem — ela riu antes de levantar. — Vou
estar lá dentro se precisar de mim.
— Ok! — acenei para ela, vendo-a retornar para a recepção.
Uns minutos mais tarde, Tommy estacionou o carro em frente ao
hospital, correndo até mim.
— Como estão as coisas?
— Complicadas — suspirei irritado por ter que dar aquela notícia
novamente. — Olie está bem… — comecei pela parte boa. — Lianah
inspirou alguma fumaça tentando tirar a avó de casa, mas Dona Sylvia não
resistiu à fumaça tóxica no pulmão.
Tommy me olhou assustado, girando o corpo para os lados algumas
vezes.
— Isso é sério?
— Claro que é, Thommas. Eu ia brincar com isso? — Levantei
apressado, segurando seu ombro no lugar. — Para de girar de um lado para
o outro. Isso me deixa nervoso.
— As meninas estão lá dentro? — Tommy levou a mão a cabeça,
esfregando a nuca preocupado.
— Estão sim. Estava esperando você chegar para ver se pode ficar aqui
com o Ethan essa noite, de olho nelas. A Karol e a Evie vão ajudar a Lianah
com o que for necessário para o velório e enterro, mas eu não tenho
estômago, nem emocional para essa situação toda. — Sentei de volta na
escada, pedindo a Deus que Tommy assumisse isso por mim.
— Eu fico aqui, sem problema — Tommy sentou-se ao meu lado, me
empurrando com o ombro. — Quer companhia um pouco?
— Vou para casa. Preciso descansar, esses dias foram muito pesados para
mim. Acho que a pouca energia que eu tinha foi totalmente sugada por esse
lugar. Avisa a Olie que amanhã passo aqui para vê-la. — Apoiei a cabeça
nos joelhos, sentindo o cansaço acumulado.
— Se precisar de mim, sabe que é só me ligar. — Tommy levantou-se,
deixando um tapinha sobre minha cabeça e seguiu para a porta do hospital.
Eu precisava mesmo descansar, mas por alguma razão, não queria ficar
sozinho.
Qual a chance de Mia me atender a essa hora? Peguei o celular no bolso;
03:50h. Arrisquei uma mensagem.
Estacionei o carro em frente à casa da minha tia e vi Mia abrir a porta da
cozinha, me chamando com a mão. Entrei em silêncio, pedindo que
conversássemos apenas lá em cima.
— Ok, pode começar a me contar o que aconteceu? — Mia pediu assim
que fechou a porta do quarto.
Joguei meu corpo em sua cama, tentando me livrar do cansaço
excessivo.
— A casa da Lianah pegou fogo. Olie estava lá.
— Cacete! Está tudo bem com elas? — Mia se jogou ao meu lado
impaciente.
— Elas estão bem. Vão passar a noite em observação no hospital. Mas a
Dona Sylvia morreu — era a terceira vez que dava aquela notícia em menos
de duas horas. Em todas elas, senti meu estômago se revirando
desconfortavelmente.
— A Liah deve estar péssima, coitada — Mia me olhou confusa. — E
por que você está aqui agora?
Sim, ela estava. E por alguma merda de empatia que eu insistia em ter,
aquilo me incomodava mais do que deveria. No hospital, ao vê-la chorar tão
sentida daquela forma, uma parte de mim me repreendia por pensar na
garota como alguém ruim. Na verdade, uma parte de mim queria
reconfortá-la de algum jeito.
— Resumindo, Ethan me ligou e eu cheguei lá um pouco depois da
morte dela. Lianah estava arrasada. Nem preciso te explicar todos os
gatilhos que isso me causou.
— Ah, Nate! — Mia me abraçou, deitando a cabeça em meu peito. —
Você teve uma crise?
— Por incrível que pareça, não — acariciei seus cabelos da mesma
forma que fazia desde que ela era criança. — Só não queria ficar sozinho
agora.
— Estamos fazendo muito progresso. Você veio para cá ao invés de
encher a cara — senti o tremor de sua risada abafada contra meu peito.
— Você está muito engraçadinha, Mia. Precisa parar de dar ouvidos para
o que Olie e as meninas ficam falando de mim por aí — brinquei. — Aliás,
o que você estava fazendo acordada essa hora?
Alguns segundos de silêncio foram suficientes para entender que Mia
estava pensando em uma desculpa.
— Mia, você sabe que está demorando para responder, não é?
— Eu ia dormir na casa de um amigo, mas mudei de ideia — Mia falou
rápido demais, tentando esconder o rosto no travesseiro.
— Ah, nem vem, Mia — puxei seu pulso, levantando seu corpo do
travesseiro — Me conta isso direito, desistiu por quê?
— Ele é um cara complicado, Nate. E eu também prefiro fugir de
confusão.
— Tia Sophia sabia que você ia passar a noite fora? — perguntei
preocupado.
— Eu tenho quase vinte anos, Nathaniel — Mia bufou.
— Ok, senhora madura. Não está mais aqui quem falou — me joguei na
cama novamente. — Posso dormir aqui?
— Pode, claro — Mia se aconchegou mais uma vez em meu peito e
voltei a acariciar seus cabelos. — Quando você faz isso, eu sempre lembro
de você me protegendo do Ralph — Mia suspirou. — Queria que você
fosse meu irmão de verdade.
— Eu sou seu irmão de verdade, Mia — afirmei, beijando sua testa.
Liah
Capitulo 10

26 de abril de 2019

A música suave do violino havia atingido um grau de irritação absurdo na


minha cabeça. As imagens a minha frente eram confusas e embaçadas. A
verdade é que tinham alguns dias que minha mente não funcionava direito.

Remexi o corpo na cadeira desconfortável, cambaleando com meu peso


sem firmeza alguma na grama molhada da chuva. O cheiro da terra e das
flores golpeando minhas narinas, me causavam náuseas.

Eu odiava o cheiro do cemitério com todas as minhas forças.

Era difícil entender tudo que estava acontecendo. Olívia estava sentada do
meu lado direito, Walter do lado esquerdo. A minha frente, a caixa
envernizada de madeira estava fechada.

Algum padre que eu não conhecia, dizia palavras desconexas para mim.
Várias pessoas apertavam meus ombros, me abraçavam ou seguravam
minhas mãos, mas não podia distinguir nenhuma delas. Minha mente era só
um borrão vazio.

— Liah? — Olívia chamou minha atenção.

Olhei para ela sem entender o que estava acontecendo. Algumas pessoas
presentes no enterro me encaravam, esperando uma reação minha. Dei de
ombros, sem ter ouvido sequer uma palavra do que tinha sido dito.

— Você quer dizer alguma coisa? Algumas palavras antes de enterrarem o


caixão? — perguntou compreensiva apertando minhas mãos.

Apenas neguei com um movimento da cabeça. Não tinha força e nem


vontade de falar agora.
O padre seguiu falando mais algumas coisas até que alguns homens se
prontificaram a preparar o enterro. Olhei mais uma vez em volta, vendo
muitas pessoas sentadas e em pé ao redor. Tinha gente que nunca vi na
minha vida, talvez fossem funcionários dela e do clube. Muitos começaram
a se mover até o caixão, deixando flores sobre a tampa.

Olhei em choque a Íris que segurava, sabendo que no momento que


largasse a flor que ela tanto amava sobre o caixão, ela seria enterrada. Vovó
não estava mais aqui. Não estava mais comigo. Mais lágrimas grossas
desceram pelo meu rosto, me fazendo questionar como ainda não estava
desidratada pelo choro que se seguiu por dias.

Não consegui mover um músculo que fosse desde aquela noite para
resolver qualquer coisa. O velório, o enterro, tudo foi organizado pelos
meus amigos. Eu estaria perdida sem eles.

— Vem, Liah — Ethan me puxou pela mão, me ajudando a levantar quando


todos já haviam retornado aos seus lugares. — Eu te ajudo — segurei a
mão de Olie, puxando-a junto comigo.

Me abraçando, Ethan praticamente me empurrou até a frente da caixa de


madeira. Engoli seco, sentindo meu coração bater na garganta. Um soluço
mais alto e inevitável escapou de mim quando larguei a Íris, me afundando
em um abraço duplo em seguida.

Levou alguns minutos até que eu me acalmasse novamente, Ethan e Olivia


permaneceram abraçados comigo até que os soluços fossem quase
inexistentes. Ao olhar para trás, vi que já tinham descido o caixão e
jogavam terra por cima.

— Preciso ir embora — minha voz saiu arranhando a garganta. Eu quase


não havia falado nos últimos dias.

— Vamos, Nathan vai deixar a gente na minha casa — Olívia avisou.

Na rua do cemitério, Tommy, Evie e Karol esperavam a gente. Cada um


deles me abraçou dizendo o mesmo que todos diziam; que tudo ia ficar
bem.
Não ia!

Mais a frente, Nathan estava encostado em uma árvore de braço cruzado,


observando tudo de longe. Seu semblante era pesado em uma expressão
cheia de dor, perceptível mesmo com o óculos escuro que ele mantinha no
rosto. Também notei a forma diferente dele se vestir.

Nos enterros, usualmente, todo mundo usava preto numa simbologia ao


luto. Eu estava de preto, meus amigos estavam de preto, as pessoas que
vieram estavam de preto. Mas Nathan estava de jeans claro e camisa
branca, e exceto pela jaqueta e o coturno preto, ele era o ponto fora da
curva. Se não tivesse assistido tudo de longe, estaria se destacando entre as
pessoas.

— Tudo bem se a gente pegar uma carona com Nathan? — Olívia me


perguntou baixinho ao me ver encará-lo do outro lado. Apenas assenti.
Tudo que eu queria era um lugar para fechar os olhos, dormir e fugir de
toda aquela dor.

Andamos até ele, acompanhadas de Ethan. Nathan, destravou o carro


estacionado logo a frente, abrindo a porta de trás quando nos aproximamos.

— Obrigada — Olie agradeceu a ele quando entrou no carro, seguida por


mim.

Nathan fechou a porta, dando a volta e entrando no carro sem dizer uma
palavra que fosse. Sua expressão agora era indecifrável pelo óculos que
nunca deixava seu rosto e pela falta de comunicação.

Olhei a paisagem que passava voando pela janela, as lembranças ainda


eram muito vívidas em minha cabeça.

Quando chegamos a casa de Olívia, Nathan voltou a sair do carro e abrir a


porta para gente. Saí do carro com a mente funcionando no automático. Já
ia seguindo em direção à entrada da casa, quando um toque leve no meu
braço me fez parar. Virei para trás com calma, vendo Nathan parado ao meu
lado.
— Eu sinto muito, Liah, de verdade — disse calmo.

Assenti, sem conseguir encará-lo por muito tempo. Não queria que
ninguém me visse daquele jeito.

— Mia queria estar aqui hoje, mas ficou presa em Westville, por causa de
um curso. Ela me pediu para pedir desculpa por ela.

Voltei a assentir de cabeça baixa. Era difícil e cansativo ouvir as


condolências de todo mundo quando sua mente nem processava o que
havia acontecido direito.

— Vou levá-la para dentro. Ela precisa descansar. — Olie avisou, puxando
minha mão em direção a sua casa.

Apesar do meu estado aéreo, meu coração estava agitado. Eu não tive pai,
minha mãe morreu quando tinha dezessete anos e agora minha avó também
tinha me deixado. Eu estava sozinha, perdida no mundo, e se não fosse
pelos meus amigos, estaria totalmente sem apoio agora.

Sentia meu coração vazio, dilacerado. O pior de tudo era encarar que o
aviso constante de que as coisas ainda iam piorar, não me deixava em paz
nenhum segundo.

Separador

03 de maio de 2019

— Tem certeza, Liah? — Olívia perguntou de novo, preocupada.

Eu estava a uma semana hospedada na casa dela. Olívia morava com os


pais, e eles eram uns amores; me trataram muito bem nesse tempo. Mas
precisava de um espaço para mim.

Decidi ficar em um Apart hotel mais próximo da ONG. Também tinham


dias que eu não trabalhava. Aliás, mal consegui levantar da cama nos
últimos dias. Era incrível a capacidade de uma pessoa dormir por tantas
horas naquele estado depressivo constante.
— Tenho — respondi. — Preciso de um tempo e um espaço para mim.

— Você vai voltar para ONG? — perguntou, sentando ao meu lado na cama
do quarto de hóspedes.

— Acho que vou trabalhar do hotel por um tempo. Ainda é difícil encontrar
as pessoas e ter todo mundo tentando te animar o tempo todo — expliquei,
sorrindo triste.

— Eu entendo. A gente passou por isso com Nathan quando Camille


perdeu o bebê — contou.

Eu não ouvia falar de Nathan desde o dia que nos trouxe aqui. Olívia tinha
cuidado em tudo que falava comigo, mas eu tinha muita coisa na cabeça
agora para me preocupar com a implicância dele comigo.

— Isso é realmente algo que deixa alguém fechado — eu conseguia


entender agora. — No dia que minha avó morreu, Nathan me contou sobre
a noite em que perdeu o filho.

— O que ele te contou exatamente? — Olívia perguntou cuidadosamente.

Eu sabia que todas elas tinham medo de me dar mais informação do que
deveriam quando o assunto era ele e esse mistério todo que o rondava.

— Ele disse que entendia o que eu estava sentindo — retorci o rosto,


tentando afastar a dor que era moradora fiel do meu peito agora. — Disse
que ele ainda sentia que estavam arrancando o coração dele do peito toda
vez que pensava no filho que nem chegou a nascer.

— Me surpreende, ele ter contado isso a você — Olie me olhou de lado,


confusa. — Ele nunca toca no assunto com ninguém. Ele contou uma única
vez o que aconteceu aquela noite, em todos os detalhes, para a gente. Desde
então todo mundo evita tocar no assunto porque dói na gente também.

Pensei na pouca informação que tinha sobre tudo que aconteceu com ele.
Lembro que Tommy mencionou um acidente uma vez. Eu tinha muita
curiosidade e vontade de perguntar, mas sentia que estava invadindo um
espaço que Nathan não gostava de compartilhar.—

— Ele quase morreu mesmo? — não contive a curiosidade.

— Foi um acidente, Liah. Uma confusão sem tamanho… — Olie suspirou


chateada. — Mas não me faz dizer mais que isso porque não quero mentir
para você, nem contar algo tão pessoal dele.

— Tem razão. Nem sei porque perguntei isso… — tentei sorrir, mas meus
músculos do rosto estavam desacostumados com o movimento tinha alguns
dias.

— Bom. E você já sabe quando vai para o hotel?

— Amanhã — suspirei. — Já reservei o apartamento, acho que vai ser


melhor para mim agora.

— O aniversário da Karol é hoje, vamos ao Republic. Você deveria ir para


espairecer um pouco.

— Não — neguei. — Não tenho cabeça para isso, Olie. Pede desculpa a ela
por mim, mas realmente não consigo pensar em ir para um bar agora.

Olívia sorriu compreensiva, me abraçando em seguida.

09 de maio de 2019

Estava sentada no sofá de couro com Evie ao meu lado, encarando as três
figuras à minha frente. Doutor Estevem representava minha avó e o grupo
Vittorino. Doutora Penne, era minha advogada e da empresa. O terceiro
homem era Carlton Stuart, o tal tio do Nathan.

Eles tentavam me explicar o motivo do saldo das contas da minha avó e das
empresas dela terem amanhecido bloqueados.
Assim que Walter me telefonou pela manhã, percebi que todo o dinheiro da
Vittorino Company estava mesmo bloqueado. Não recebi nenhuma
notificação ou intimação que fosse sobre aquilo.

Evie havia dito que o IRS esteve na Consultoria, olhou alguns documentos
e se deram por satisfeitos, mas tirando aquilo, nada de estranho havia
acontecido.

— Liah, as contas foram bloqueadas por causa de um esquema que vem


sendo investigado há um tempo. Alguns caminhões da rede Vittorino foram
parados nas estradas transportando drogas. — Doutor Estevem explicou
mais devagar dessa vez.

— Minha avó jamais se envolveria com isso — rebati, sem acreditar em


qualquer palavra que ele dizia.

— Era uma quantidade excessiva de entorpecentes variados. Há algum


tempo o DEA9 e o FBI estão tentando descobrir a origem da saída de
drogas para o Estado, e chegaram à Vittorino Company através de uma
denúncia. Esses caminhões saíam semanalmente do Clube Vittorino.

— Minha avó? Enfiado no meio de um esquema de tráfico? — Era


totalmente inacreditável.

— Acredite em mim, Lianah, ela não fez por vontade própria — o tal do
Carlton me respondeu.

— O que ela queria com você? — perguntei exaltada. — Sei que ela te
procurou antes de morrer.

— Sim. Ela me procurou e foi para pedir ajuda para se livrar desse
problema — disse suspirando.

— Isso é inacreditável — soltei uma risada nervosa. — Tem algo que eu


possa fazer agora? — perguntei, levantando da cadeira nervosa, abrindo os
braços em desespero.
— Se tiver qualquer informação relevante que deva compartilhar, é melhor
fazer agora — Doutor Estevem explicou.

Ignorei sua insinuação, preocupada de verdade em como iria fazer com os


custos da ONG.

— Penne, eu preciso do dinheiro para a ONG. O que faço agora?

Se eu não tivesse acesso à fonte do dinheiro da minha avó, seria difícil


manter meu projeto. Nem a herança poderia ser distribuída até que o
processo fosse encerrado.

— A gente segura com a Consultoria até resolvermos isso — a advogada


tentou me ajudar.

Doutor Estevem trocou um olhar preocupado com Carlton, soltando um


pigarro alto para chamar nossa atenção.

— Liah, se prepara para o risco de que suas contas sejam bloqueadas em


breve também. Os bens de Sylvia e os que estavam em nome da empresa
devem ser apreendidos em breve.

Senti o peso nos meus ombros e minha garganta se fechar, impedindo que
eu absorvesse qualquer quantidade de ar. Ouvi Penne me chamando
algumas vezes antes de ter certeza de que minha mente estava tendo um
blackout total.

— Graças a Deus! — Evie colocou a mão na minha testa. — Ela acordou.

Abri os olhos devagar, sentindo as pálpebras pesadas. Olhei pela janela


vendo o carro parar em frente ao hospital.

Droga.

— Eu só desmaiei de nervoso — avisei, tentando ajeitar meu corpo no


banco estreito. — Não preciso de um hospital.
— Precisa sim! — me assustei ao ouvir a voz irritada de Olivia no banco da
frente do carro. — Você mal tem se alimentado e está passando por coisa de
mais, passar por um médico não vai te fazer mal nenhum.

— Quem avisou a ela? — perguntei irritada para Evie, que sem me


responder, saiu do carro abrindo a porta para mim.

Me arrastei até a recepção do hospital, sentindo meu corpo realmente


pesado. Parecia que eu havia sido atropelada por um caminhão.

Entramos e em pouco tempo, Olie voltou do balcão de atendimento com


um papel na mão.

— Vamos entrar. Você vai ver um médico agora e começar a se cuidar.

Seguimos pelo corredor até a sala que a enfermeira nos orientou. Um


homem que aparentava ter uns trinta anos nos cumprimentou com um
aceno de cabeça.

— Sou o Doutor Raphael. A que devo a honra de uma Vittorino nesta


emergência?

Sorri sem jeito pelo sorriso aberto dele. Ou por ele ser bonito, não tive
certeza naquele momento. Seus músculos eram visíveis mesmo sobre o
jaleco branco, tinha a pela bronzeada e um cabelo loiro que denunciava seu
gosto pela praia. Provavelmente era surfista ou algo assim, o que me fazia
perguntar porque ele não estava em uma cidade litorânea.

— Minha amiga aqui desmaiou por não estar se alimentando direito — Olie
se adiantou em explicar.

— Na verdade, eu desmaiei porque minha pressão deve ter subido —


revirei meus olhos. — Recebi uma notícia não muito agradável.

Doutor Raphael me lançou um sorriso compreensível antes de retirar o


estetoscópio e o aparelho de pressão de uma gaveta.

— Vou aferir sua pressão e solicitar alguns exames de sangue, ok?


Assenti, vendo-o dar a volta na mesa e ajustar o velcro do aparelho em meu
braço, enquanto mantinha seu olhar atento sobre mim. Olhei para Olivia
que mantinha um sorrisinho travesso no rosto, percebendo os olhares dele.

Só mantenha a boca fechada, Olivia. Por favor!

— Você está com a pressão normal, Lianah — avisou, retirando o


estetoscópio do ouvido. — Talvez um exame de sangue ajude a entender o
que ocorreu. Tem alguma chance de você estar grávida?

— Claro que não!

— Ela é muito bem solteira, doutor. Posso garantir. — Olívia soltou um


risinho irônico. — E não transa tem tempo também.

— Olívia! — repreendi.

— O quê? — Olie levantou as mãos. — Vou ficar quieta.

— Só perguntei porque desmaios são normais no início de uma gravidez,


mas vamos fazer esse exame e ver se encontramos algo — Doutor Raphael
me entregou uma folha com alguns exames descritos. — No fim do
corredor, tem um laboratório que irá retirar seu sangue e em uma hora
teremos todos os resultados. Vou pedir que fique em observação na
enfermaria até lá, ok?

Assenti, me preparando para sair da sala com Olivia.

— Ah, Lianah… — virei-me encarando o médico. — Bom saber que você


está solteira. — O homem piscou para mim, me deixando totalmente
vermelha.

Senti o sorriso divertido de Olivia por todo o tempo ao meu lado, enquanto
aguardávamos na enfermaria. Olie aproveitou para me dar uma longa
bronca sobre a importância de me alimentar, já que, aparentemente, eu não
estava fazendo isso direito.

Os exames não acusaram nada. Doutor Raphael me receitou apenas um


calmante para melhorar o sono e diminuir o estresse.
Quando saímos na recepção, Ethan e Tommy estavam aguardando sentados
na sala de espera.

— Quer chamar o Papa também, Olivia? — me irritei com a proporção que


aquilo havia tomado.

— Sua sorte é que Nathan não veio junto.

Talvez ele viesse, se fosse para me enterrar de vez.

— Você está bem? — Tommy perguntou, juntando-se a nós duas.

— Estou bem gente. Acho que foi só uma queda de pressão. Tem muita
coisa acontecendo agora. — expliquei calmamente a eles.

Percebi o olhar de Ethan fixado num ponto atrás de mim e virei o pescoço
de leve, vendo Doutor Raphael parado no balcão da recepção, olhando
atento para nós quatro. O médico direcionou um leve sorriso para mim
quando me pegou o encarando. Sorri de volta, com o rosto quente.

— Achei que ele estava olhando para a Olivia — Ethan comentou


distraído.

— Para mim? — Olie quase gritou. — Ele quase comeu a Liah com os
olhos lá dentro.

Por um momento, achei que Ethan ia soltar um suspiro aliviado na frente de


todos. Mas limitou-se a arquear as sobrancelhas me encarando.

— Lá dentro eu não sei, mas aqui, ele não para mesmo de te olhar.

Senti meu rosto ficar ainda mais quente.

— Vamos embora — pedi já seguindo para a saída.

A última coisa que eu precisava agora era me preocupar com homens.


10 de maio de 2019
Maio chegou e nada havia mudado. As aulas estavam correndo bem, mas
as consultas com o Doutor Emerson pareciam não ter uma evolução,
embora eu pudesse perceber o esforço do homem em juntar migalhas para
me entender.
Eu estava evitando ir ao Republic às sextas ou sábados, tentando
aproveitar o pouco tempo que tinha para mim nos últimos dias, mas Olívia
tinha me feito prometer sair com eles hoje. Foi mais fácil aceitar, pensando
que Lianah não estaria presente, já que a garota tinha se isolado do mundo
desde a morte de sua avó.
— Vou passar para pegar o Ethan e a Olie — Tommy avisou assim que
entrei em seu Jeep.
— Ethan não tá em casa? — perguntei ao perceber o percurso diferente
que Tommy fazia.
— Ele tá no hotel da Liah. Ele e Olie tem tentado de tudo para ela se
recuperar, mas Liah tá se afundando cada vez mais naquele estado
depressivo. — Tommy deu de ombros, chateado.
Desde o incêndio, Lianah estava ficando em um hotel próximo a ONG,
embora ela não tivesse aparecido por lá desde então. Olívia, Evie e Karol já
tinham tentado de tudo para tirar a garota do quarto, mas nenhuma delas
teve algum sucesso nisso.
Depois que tive alta do hospital há três anos, também me enfiei no meu
loft e nada me fazia sair de lá nos primeiros meses. Talvez, nesse grupo
desajustado, eu fosse a única pessoa capaz de realmente entender Lianah.
— Não tem muito o que eles possam fazer se ela não quiser ajuda. —
Podia dizer aquilo por experiência própria.
— Você tem mudado, Nathan. Acho que o tal Doutor Emerson tem te
feito bem. — Tommy me deu um soquinho no braço e eu sorri sem graça.
Não costumava saber lidar com esses elogios deles.
— Vai levar um tempo para ela se recuperar. — Lembrei da última tarde
que a vi, quando a levei com Olívia para casa depois do enterro.
— Ethan estava tentando convencer a Liah a ir com a gente, mas ela
acha que é uma afronta à memória da avó. — Tommy permanecia
concentrado na estrada. — Ontem ela foi parar no hospital por um pico de
pressão.
— Sério isso? O que houve?
Antes que pudesse me responder, Tommy parou o carro em frente ao
hotel e Ethan já esperava na calçada com uma cara péssima.
— Tudo bem? — perguntei quando ele entrou no carro, batendo a porta
com uma força exagerada.
— Olie não vai e a porra da situação só piora.
Pelo soco que ele desferiu nas costas do meu banco, ele estava mesmo
com raiva. Virei o corpo para trás, tentando entender o motivo de sua ira.
— O que houve? — perguntei.
— Descobri porque Liah foi parar no hospital ontem. Bloquearam todos
os bens da Sylvia, incluindo os bens da Vittorino Company. A empresa da
Liah e a ONG estão sob investigação. — Ethan contou revoltado.
— Como assim bloquearam? — Tommy me olhou assustado.
— Liah continua tentando entender. Parece que a rede de logística da
empresa estava sendo usada para transporte de drogas e acharam transações
de dinheiro ilegal nas contas dela. O que é bizarro, porque duvido que
Sylvia se envolveria em algo assim. — Ethan esfregou o rosto.
— Pera aí… — um flash de memória me fez ter um estalo. — Será que
foi por isso que ela me procurou para saber do Carlton?
Ethan me olhou surpreso, como se eu tivesse descoberto a pólvora.
— Como não pensei nisso antes?
— Liga para o Carlton, ele pode saber de alguma coisa pra ajudar a Liah
— Tommy pediu nervoso.
— Vai, liga! — Ethan incentivou agitado.
Pressionado, tirei o celular do bolso e digitei o número do meu tio.
Tommy e Ethan ficaram me olhando cheios de expectativa enquanto levava
o aparelho ao ouvido.
— Oi, Nate — Carlton atendeu no segundo toque.
— Carl, como andam as coisas?
— Tudo bem por aqui. Preciso me preocupar com você me ligando numa
sexta à noite? — coloquei no alto-falante, pedindo silêncio aos caras.
— Na verdade, queria saber se você chegou a ter aquela conversa com a
Sylvia Vittorino.
— Que diferença faz isso agora? A mulher morreu, não foi? — Carlton
questionou um pouco impaciente.
— Você sabia que os bens dela e das empresas foram bloqueados por
algum envolvimento com droga? Queria saber se você tinha alguma
informação que pudesse ajudar.
Um suspiro exagerado pode ser ouvido do outro lado da linha.
— Nathan, eu quero você fora desse assunto, tá legal? Não se envolve
nisso. Eu nem deveria estar te falando isso, mas o incêndio que matou a
Sylvia foi criminoso.
Nós três nos olhamos em choque.
Criminoso?
Parece que só piorava mesmo.
— A neta dela sabe disso? — Senti minha garganta seca de repente.
— Ninguém sabe, Nathan. É uma investigação sigilosa. Só te contei isso
pra você entender o perigo de se envolver nessa história, ok?
— Pode deixar, Carl, vou ficar fora disso — concordei sem ter muita
certeza.
— Se precisar de alguma coisa, sabe onde me achar. — Carl desligou em
seguida.
Tommy e Ethan ainda me encaravam surpresos. Bufei, apoiando a
cabeça no encosto do banco.
— Desculpa se coloquei vocês numa situação ruim com essa informação.
— Se eu soubesse que Carlton me contaria aquilo, nunca teria colocado o
celular no viva voz.
— O que a gente faz agora? Conta pra Liah? — Tommy perguntou
apreensivo.
— Não! — Ethan e eu quase gritamos ao mesmo tempo.
— Tá maluco, Tommy? Se o Carl pediu para o Nathan não se envolver
nisso preocupado desse jeito, a gente vai colocar a Liah em perigo pra
quê? — Ethan explicou exatamente o que eu pensava.
— Assassinaram a Sylvia?! Nathan, e se a Liah estiver correndo perigo?
— Tommy apertou o volante do carro com mais força, respirando pesado.
— Acho melhor a gente ficar mesmo fora disso — avisei. — Sei que
vocês querem ajudar a Lianah de alguma forma, mas às vezes, não se meter
já é uma forma de ajudar.
Os dois concordaram silenciosamente comigo, mas Tommy ainda
parecia revoltado quando saiu com o carro da frente do hotel.
Milhares de perguntas giravam na minha cabeça. Claro que eu teria uma
conversa com Carlton assim que tivesse oportunidade, até porque, queira
saber qual a razão para assassinarem a mulher. Até onde eu sabia, Sylvia
não parecia o tipo de pessoa que colecionava desafetos.
Eu odiava a sensação do meu estômago revirando. Um aperto estranho
no peito me fez puxar o ar com mais força quando processei a preocupação
de Tommy. Se Lianah estivesse em perigo, a gente precisava fazer alguma
coisa, certo?!
Sacudi a cabeça tentando me livrar da imagem daquela garota e do quão
desconfortável era a sensação de me sentir preocupado com ela.

20 de maio de 2019
— Nate, me leva pra ver a Liah? — Triss pediu chorosa.
Estávamos sentados a uma das mesas de cimento no pátio da ONG, no
intervalo das aulas de Triss. Ao que parece, Mia havia contado para ela tudo
que aconteceu com Lianah e Olívia na noite do incêndio.
Todos os dias Triss tentava, insistentemente, que um de nós a levasse
para ver a amiga mais velha.
— A Lianah está super ocupada com alguns problemas de família. Daqui
a pouco ela volta a aparecer por aqui — tentei explicar, ciente da
impaciência da mais nova.
Agora que eu tinha uma relação mais próxima com Triss, eu conseguia
entender o quanto as duas tinham uma ligação diferente.
A garota suspirou irritada, voltando a se concentrar em seu lanche,
mantendo seu semblante triste.
Não era só Triss quem perguntava por ela. Joanna também vinha se
mostrando bem incomodada pela Diretora não aparecer na ONG por quase
dois meses, afinal já era fim de maio e Lianah continuava vivendo reclusa.
Olivia tinha tomado conta de toda a administração da ONG nos últimos
dias, mas seu estresse era evidente, já que tinha que conciliar todos os
problemas sozinha. Eu só soube depois disso, que apesar da empresa dela
ser bem lucrativa, o dinheiro que mantinha a ONG era de doações feitas
mensalmente por Sylvia Vittorino. Lianah e a avó tinham essas ações como
algo constante em suas vidas.
Era mais uma das informações da série: cômico, se não fosse tão
dramático.
— Nathan, por que você não gosta da Liah? — Saí de meus devaneios,
pigarreando pela pergunta direta de Triss, que me analisava com as
sobrancelhas erguidas.
— De onde você tirou que não gosto dela? — devolvi sua pergunta.
Triss arqueou ainda mais as sobrancelhas, com um deboche evidente
estampado em seu sorriso.
— Assim como ela não gosta de você. Você a chama de Lianah.
Ninguém na vida a chama assim. — Triss voltou a encarar seu sanduíche,
mas parou uma mordida no meio do caminho, lembrando de completar suas
colocações. — Ah, e você ignora propositalmente qualquer coisa que eu
fale sobre ela.
— São só suposições suas — sorri, mesmo sabendo que Triss nunca
engoliria essa minha resposta.
A garota largou o sanduíche sobre a mesa e me encarou pensativa.
— Sabe, Nate, antes da minha mãe morrer, mesmo quando eu era bem
pequenininha, ela sempre me dizia o quanto eu era observadora. Isso
sempre ficou muito forte na minha memória, e acho que comecei a observar
ainda mais as coisas. — Triss olhou para baixo, mexendo nervosamente as
mãos. — Tem coisas que, às vezes, eu não consigo acreditar que as pessoas
não vejam. Tipo o Ethan e a Olie e como eles se gostam, mas fingem que
não existe nada entre eles…
— Triss, para… — interrompi, pensando que sua linha de raciocínio
seguiria por um caminho onde ela achasse que eu tivesse sentimentos por
Lianah. — Se você está querendo dizer que tenho alguma paixão platônica
por ela, está totalmente errada.
Um sorriso crescente tomou seus lábios enquanto sacudia a cabeça.
— Eu nem ia dizer isso, mas só o fato de você se preocupar que alguém
pense algo assim, já diz muito coisa.
— Você é louca, Triss. Sabe disso, não é? — brinquei, fugindo do
assunto. Era mais fácil do que explicar meu real problema com a garota.
— Eu só ia dizer que, assim como é óbvio que Ethan e Olie se gostam, é
evidente que você e Liah tem um problema sério um com o outro — a
garota sorriu divertida. — Se eu contasse tudo que observo por aqui, você
surtaria, inclusive.
— Você tá falando do seu amigo do curso? Aquele que você não para de
olhar? — provoquei, me sentindo a porra de um adolescente por implicar
com uma menina de dezesseis anos.
Triss ficou vermelha e desconcertada, fazendo com que me arrepende-se
da brincadeira, mas ao contrário do que imaginei, ela não deixou o assunto
de lado.
— Você acha que olho demais pra ele? Será que ele percebeu? —
perguntou preocupada.
— Sabe que eu não deveria falar com você sobre isso, não é? Como seu
professor, e colaborador da ONG, eu deveria no mínimo dizer que você é
muito nova pra pensar nessas coisas. — Se Lianah e Olivia soubessem
disso, arrancariam minha cabeça fora.
— Com quantos anos você começou a namorar? — Triss estreitou os
olhos para mim. — Duvido que com dezesseis anos você fosse virgem
sequer.
Tossi, desacreditado.
— Triss, você precisa parar de andar pra cima e pra baixo com a Mia.
Sério! Você não pode ouvir as coisas que ela diz.
Devia estar muito louco quando resolvi me meter num processo de
adoção de uma garota de dezesseis anos. Não tinha saúde mental para
cuidar de mim, quem dirá de uma adolescente descobrindo o mundo agora.
Eu tinha uma reunião marcada com Joanna, para falar sobre a adoção e
alguma complicação que tinha surgido; o que já era esperado, mas me fazia
temer não conseguir no fim de tudo. Quanto mais tempo passava com Triss,
mais tinha certeza de que eu queria poder dar uma vida melhor a ela.
Acompanhei a mais nova até sua sala quando o sinal tocou, e logo ela
estava me surpreendendo de novo.
— Já que ninguém pode me levar pra ver a Liah. Você poderia pelo
menos dizer uma coisa por mim a ela?
— Ok, você venceu. — Rendido, notei seu sorriso mais satisfeito. — O
que você quer que eu fale com ela?
— Diz a ela que posso ser nova, e que sei que ninguém acha que tô
preparada pra falar sobre isso, mas perdi todo mundo que tinha muito cedo.
Sei pelo que ela tá passando. Se ela quiser conversar comigo, eu vou
entender tudo que ela quiser dizer. — A garota suspirou triste, sentindo
verdadeiramente a perda de Lianah.
— Vou dizer a ela.
Triss sorriu e seguiu para dentro da sala de aula, me deixando pensativo.
Engoli seco, pensando que eu também entendia a dor de perder pessoas
importantes, mas mesmo tendo algum tipo de empatia por Lianah, fui
incapaz de me mover para tentar ajudá-la de alguma forma.
Triss, sem saber, estava me ensinando mais sobre a vida do que fui capaz
de compreender sozinho em vinte e oito anos.
Encarei Joanna, ainda estático e pensativo sobre sua última informação.
Não esperava que um processo de adoção tendo vinte e oito anos apenas
seria fácil, tinha consciência de que iria encontrar complicadores no
caminho; mas era no mínimo estranho que um juiz de fora de Greenville
quisesse falar comigo pessoalmente.
— Você disse que seria mais fácil — comentei distraído, observando a
mulher retorcer o rosto.
— Uma adoção por Foster Care costuma ser rápida e fácil. A ONG é um
projeto privado que ajuda o Estado a desafogar custos, mas essas crianças e
jovens geram um custo alto para o Estado quando estão no sistema.
Arrumar tutores é sempre bom. — Joanna explicou nervosa. — Você
preenche todos os pré-requisitos, Nathan.
— E por que não foi aprovado? — Viollet, nossa advogada na App,
questionou por mim.
Eu havia feito de tudo nos últimos dois meses. Tive uma habilitação para
a adoção, havia preenchido milhares de formulários e memorandos
contando minha vida, dando referências de mim, e ainda tinha a parte
horrível de ter participado daquelas palestras com jovens que sofreram
maus tratos e abuso. Era meu pior gatilho.
Joanna, no entanto, já estava totalmente inclinada a me certificar como
Foster parent desde o início, quando contei a ela minhas motivações para
adotar Triss.
Um suspiro longo escapou da mulher a nossa frente, indicando que ela
tinha muito mais ainda a contar.
— Sei porque ele quer conversar com você pessoalmente, Nathan. Não
faz sentido ter uma pessoa certificada, com tantos jovens precisando de lar
temporário, e não autorizar.
Como tudo que acontecia nessa cidade, ele também queria a parte dele.
Era fácil prever o que ele realmente queria.
— Eu vou falar com ele.
— Nathan! — Viollet me repreendeu.
— Tem outro jeito? — perguntei a Joanna quando me lançou um sorriso
triste.
Sua cabeça maneou numa negativa ressentida.
— Então eu vou até lá…
— Nathan, isso é crime — Viollet insistiu. — Você pode ser associado
ao tráfico humano, exploração de menor…
— Viollet! — a interrompi consternado. — O que quer que eu faça? Que
eu deixe esses babacas rindo da nossa cara enquanto impedem essas
crianças de ter uma vida melhor?
— É crime! — voltou a dizer.
— Que está sendo encoberto pelas próprias pessoas que deveriam julgá-
lo.
— Meu Deus, como você é teimoso.
— Se ele quer dinheiro pra assinar essa merda de autorização, eu vou dar
dinheiro a ele, mas não vou desistir enquanto não conseguir a tutela da Triss
— levantei da cadeira irritado, pronto para sair da sala, mas travei meu
olhar em Joanna antes de continuar. — Como faço pra falar com esse
homem?
— Eu vou agendar uma reunião — ela garantiu reticente, amedrontada
pelo olhar repreendedor de Viollet.
— Me avisa quando estiver marcado — pedi, saindo da sala de Olie.
Olívia deveria estar naquela reunião, já que era a única pessoa que sabia
da minha solicitação, mas estava tão sobrecarregada que não podia cobrá-la
sobre o que quer que fosse.
No fim, havia sido bom, porque eu podia imaginar suas repreensões e
reclamações quando soubesse que eu estava disposto a contribuir para a
corrupção daquela cidade. Se Lianah soubesse disso, então, seria meu fim.
Me enfiei no auditório pelo resto da tarde, com meus pensamentos
totalmente tomados pela confusão que minha vida tinha se tornado.
Também tinha o choque de realidade que Triss me deu mais cedo. Eu
precisava aceitar que mesmo por cima de todo o ódio e ressentimento, o
estado de Lianah me lembrava muito o meu quando saí do hospital.
E se eu tentasse conversar com ela?
Desacreditado com meus pensamentos, sacudi a cabeça tentando me
livrar deles.
— Pelo visto, você estava bem longe agora — Olivia comentou, sentada
em uma das cadeiras do auditório.
— Há quanto tempo está aí? — perguntei assustado.
— Uns dois minutos. Mas te chamei duas vezes e você nem percebeu
que eu estava aqui.
Suspirei. Talvez eu estivesse mesmo enlouquecendo.
— Veio falar comigo? — perguntei ao me dar conta de que Olivia ainda
aguardava minha atenção.
Olie me entregou uma pasta com alguns documentos, me lançando um
olhar preocupado.
— Estamos com um sério problema financeiro. Não queria preocupar a
Liah com isso agora. Sylvia ainda não havia mandado o dinheiro do mês
quando morreu, e agora estamos apertados.
Encarei a garota confuso. Eu não era muito bom em finanças, por isso
contratamos Karol. Mesmo assim, abri a pasta olhando os extratos e boletos
bancários ali, mostrando as contas no cheque especial e muitos boletos com
valores altos.
— Lianah não está aportando nada, não é? Mesmo sem entender, isso
aqui parece bem feio, Olie.
Eu já imaginava que a ONG tivesse um custo alto. Olivia manteve seu
olhar preocupado no rosto, dando de ombros.
— Eu já tentei parceria com muitas empresas que tinha contato, e
consegui uma boa ajuda. Mas precisamos de muito pra manter o padrão.
Vou precisar cortar muita coisa daqui pra frente — contou triste.
— Esse é o custo médio mensal? — perguntei ao conferir o comparativo
de gastos nos documentos.
Olie assentiu, mordendo o lábio inferior.
— Vocês conseguem ajudar? — pediu desconcertada. — Evie pediu
ajuda aos pais, mas claro que eles negaram.
— Eu não sei quanto tempo vai levar pra Lianah resolver essa situação
da avó dela. — avisei tirando meu celular do bolso. Tirei uma foto do
extrato, onde estavam o número de conta e agência delas. — Vou ver o que
consigo fazer de imediato e vemos como fica depois.
Talvez eu tivesse finalmente arrumado uma finalidade para o dinheiro
podre do meu pai. Pelo olhar de Olie, ela sabia exatamente da onde eu
tiraria esse dinheiro.
— Liah não vai aceitar isso fácil — Olívia suspirou chateada.
Ela não tinha muita opção, na verdade. Elas precisavam de dinheiro, e eu
tinha dinheiro. Um dinheiro que não me importaria nada em gastar dessa
forma. Era uma equação básica.
— Diz a ela que a gente está doando nossos lucros da App. Vou falar
com o Ethan e o Tommy sobre isso.
Olie sorriu e me abraçou em seguida. Passei meus braços por seus
ombros, sentindo o alívio da garota.
— Você é uma pessoa incrível, Nathan. Queria que se lembrasse disso de
novo.
Fechei meus olhos, sentindo o conforto do abraço da minha melhor
amiga. Talvez eu estivesse finalmente disposto a lembrar.
27 de maio de 2019
Minha cabeça estava explodindo enquanto os barulhos altos do salto
batendo no chão martelavam em meu cérebro.
— Liah, você tá ouvindo?
— Estou!
Precisei manter a mente lúcida pela última hora, ouvindo Olívia me
atualizar sobre a empresa e sobre a ONG.
Na última semana, os bens e as contas da consultoria também haviam
sido bloqueados na investigação.
Eu estava numa maldita montanha-russa, em queda livre infinita.
— Liah, estou preocupada. Sei que você tem muita coisa para pensar e
resolver agora, mas precisa reagir. Você precisa sair desse quarto de hotel,
pegar um sol, caminhar um pouco.
Olie correu até a janela, abrindo as cortinas cumpridas, deixando que a
luz do sol entrasse no quarto. Cobri os olhos doloridos e afetados pela
claridade repentina.
Relutante, tirei os cobertores de cima de mim, forçando-me a levantar.
Eu tinha que ir para a ONG, Joanna já havia me ligado umas dez vezes essa
semana, querendo que eu aparecesse por lá para resolver alguns assuntos.
— Eu vou pra ONG com você — avisei a Olie, ignorando seu início de
sermão.
— Ótimo. Quem sabe assim você começa a reagir. Aquele lugar está um
caos sem você, amiga — sua voz esbanjando alívio ao me ver querendo sair
daquele quarto.
Eu só conseguia fazer um caminho nos últimos dois meses, e era um
caminho com menos de dez metros entre a cama e o banheiro.
— Olie, e como estão as coisas financeiramente? Sem os aportes que
fazíamos… o custo da ONG é caro… Eu já tentei pensar em formas de
levantar dinheiro… — talvez esse fosse mesmo meu primeiro momento de
lucidez desde que vovó morreu.
— Relaxa, Liah. Vários parceiros nossos estão cientes da situação e
estão ajudando. Os meninos estão cobrindo todos os custos necessários.
Fizemos alguns cortes, sim, mas a essência da ONG está mantida.
— Os meninos? — perguntei confusa.
Olivia sorriu preocupada, parecendo pensativa em me contar alguma
coisa.
— Olha, você pode até não gostar, mas Nathan propôs aos meninos
doarem todo o lucro deles do ano passado que seria distribuído entre eles
agora. Temos fundo pra segurar a ONG por alguns meses.
Refleti por alguns segundos. Minha mente era um emaranhado de
informações e preocupações que estavam me enlouquecendo, e não me
parecia saudável ou válido brigar sobre isso agora; não quando a ajuda
deles estava mantendo a vida daquelas crianças enquanto eu não podia.
Assenti, ainda surpresa, antes de seguir para o banheiro tomar um banho.
A água quente me fez relaxar um pouco, embora fosse suficiente apenas
para mandar embora a dor física que acometia meus músculos. Nada era
bom o suficiente para mandar embora a dor que rondava meu coração.
“Sua avó não resistiu. Sinto muito, Lianah. Ela inalou muita fumaça…”
Aquelas palavras não saíram da minha cabeça por nenhum momento
sequer pelos últimos quase dois meses.
Ainda era difícil imaginar um mundo onde Dona Sylvia não estaria mais
presente para me encher de sermões, ou me fazer passar raiva com
pequenas coisas do dia a dia. Vovó tinha tanta vitalidade e era uma das
pessoas mais divertidas que conheci em toda minha vida. A cada dia,
parecia que meu luto só aumentava.
Mesmo com todo o peso da perda e aquelas lembranças martelando
minha cabeça, terminei de me arrumar, resistindo a vontade de voltar para a
cama e dormir.
Quando me aproximei da porta que separava o quarto da pequena sala do
apartamento do hotel, ouvi Olie conversar com alguém, em e surpreendi
com a voz que escutei, abrindo a porta em seguida. Nathan estava sentado
no sofá ao lado de Olivia.
— Você era a última pessoa que esperava encontrar aqui — falei sem
pensar. — Aconteceu alguma coisa?
— Posso ir embora se preferir — avisou irritado, apontando a porta. —
Mas só vim aqui porque a Triss me pediu muito pra falar com você.
Reprimi a vontade de mandar que ele fosse embora. Ou para algum lugar
bem pior. Abri o frigobar, tirando uma garrafa de água de lá.
— A Olie me disse que ela está chateada porque eu não tenho aparecido
por lá.
— Não é só isso, Liah — Olívia explicou. — A Triss sabe o que você
está sentindo. Ela tem um coração enorme e acha que você pode desabafar
com ela.
— É lógico que a gente explica a ela que tem coisas que ainda é muito
nova pra entender, mas ela insiste em querer falar com você, diz que ela tem
idade suficiente pra entender essas coisas da vida — Nathan completou. —
A Olie me disse que você vai estar na ONG hoje. É bom você saber que ela
vai tocar no assunto com você.
Pensei no quanto não queria e não estava pronta para falar sobre a morte
de vovó. Debater incessantemente o assunto dentro da minha cabeça, já era
suficiente para me fazer mal. Triss já tinha passado por isso, e esse era o
motivo pelo qual não gostaria de falar com ela sobre o assunto. Dizer tudo
que queria para alguém que me entendia, parecia ser ainda mais dolorido.
— Liah, tá tudo bem? — Olie me olhou preocupada.
— Está sim — peguei minha bolsa sobre o sofá, conferindo se tudo
estava dentro dela. — Vamos logo. A Joanna marcou uma reunião comigo
às 10:00h — abri a porta do quarto, já me dirigindo ao corredor.
— Lianah — a voz grave e rouca de Nathan me fez parar na porta. Virei
novamente, vendo-o dar alguns passos em minha direção. — Sei que deve
ser difícil pra você falar sobre isso. Eu também guardei muita coisa comigo,
por muito tempo. Minha vida toda foi uma sucessão de perdas e
acontecimentos ruins e guardar essas coisas só me tornou uma pessoa
amargurada e triste. Não guarda esses sentimentos dentro de você, existe
uma probabilidade enorme de você se tornar o que eu me tornei assim.
Engoli seco, sem ter uma resposta. Algumas lágrimas começaram a se
acumular em meus olhos. Nathan complacente era uma evidência de que
todos tinham pena de mim. E eu odiava que tivessem pena de mim. No
entanto, não poderia culpá-lo ou ser grossa com ele por isso. Apenas
assenti, tomando meu caminho de volta ao elevador.
Fui para ONG de carona com Olivia, já que até meu carro havia sido
apreendido. Meus dias seriam corridos, embora Olie tivesse se virando para
manter tudo no lugar e funcionando, eu tinha alguns assuntos a resolver
com Joanna e muitas reuniões por fazer com os advogados da minha
empresa e da família para tentar resolver os bloqueios da Vittorino
Company.
A segunda reunião com o advogado da vovó, aconteceu na segunda a
tarde. Doutor Steven era um advogado especializado em causas
empresariais e tinha um bom conhecimento sobre causas corporativas. Vovó
trocou os advogados dela a cerca de uns três anos atrás, e eu começava a
desconfiar que ela sabia que tinha algo errado com o grupo Vittorino.
Doutor Steven me colocou a par de todos os detalhes da investigação, me
deixando bastante surpresa com tudo. Hoje, bem mais calma do que em
nossa primeira reunião, era mais fácil entender o que ele falava.
— Lianah, sua avó me procurou há alguns anos, pedindo uma auditoria
nas contas das empresas do grupo. De fato, encontramos muitas
irregularidades e sanamos a maioria delas. Acontece que sua avó escondeu
algumas coisas de nós. — o homem serviu-se de mais uma xícara de café
antes de continuar. — Depois que as contas foram bloqueadas, iniciamos
uma investigação interna e descobrimos que existiam transações ilícitas
relevantes nas contas da Companhia. E sua avó sabia disso.
— Desculpa, Doutor, mas eu não acredito que minha avó faria algo
errado nesse nível — reclamei, com medo de estar errada.
— Eu também duvido, Lianah — o advogado pegou uma pasta sobre sua
mesa, entregado em minhas mãos. — São documentos que mostram uma
série de pagamentos irregulares feitos em nomes que nem existem. Existe
uma investigação acontecendo, pelo FBI, por se tratar de um crime que
envolve lavagem de dinheiro, e essas provas vão ser atreladas. Só o que
sabemos é que ela procurou o Carlton antes de morrer, e contou que sempre
foi coagida a participar desse sistema de tráfico.
Suspirei, sem entender como isso havia tomado uma proporção tão
grande. Em um dia, eu era feliz e tinha dinheiro para nunca mais precisar
me preocupar na vida. No outro, minha avó estava morta e todo o dinheiro
não existia mais. Embora o dinheiro não fosse prioridade em minha vida,
preciso confessar que me sentia insegura pela primeira vez.
— E como as coisas ficam agora? — perguntei com receio da resposta.
— Existe alguma coisa, algum lugar que você ache que sua avó poderia
guardar alguma prova, alguma evidência sobre estar sendo coagida? A
gente precisa explorar tudo que for possível pra achar algo a seu favor.
— Não tenho ideia — confessei. — Preciso pensar um pouco sobre isso.
— Fique à vontade pra me ligar em qualquer momento. Saiba que
estaremos aqui fazendo tudo que estiver ao nosso alcance pra resolver esse
caso.
— Obrigada. Se eu pensar em alguma coisa, volto a entrar em contato —
despedi-me dele e sai de lá com a cabeça ainda mais cheia do que antes.

31 de maio de 2019

A montanha-russa em queda infinita era real, e meus problemas


pareciam não ter mais fim.
Na sexta pela manhã, Joanna estava sentada em frente à minha mesa,
dizendo que tínhamos uma solicitação de mais quinze crianças para a ONG,
já que informamos que teríamos essas vagas disponíveis. O problema é que
a obra da ala infantil estava parada. Esse era um dos custos que seguramos
pela falta de dinheiro.
— E se a gente pedir pra segurar essas vagas? — perguntei preocupada,
esfregando as têmporas com força. — Eu não tenho onde colocar essas
crianças. Já reconfigurei todo o espaço dos quartos que temos pra
comportar o maior número possível de jovens.
— Não tem problema, podemos justificar, mas essas crianças vão ser
alocadas em outros abrigos — Joanna avisou.
— Em quanto tempo teria que recebê-las aqui? — questionei, tentando
pensar em uma solução.
A obra estava bem encaminhada, só precisava de uma força tarefa para
finalizar pintura, colocar os pisos e montar os móveis novos. Eu podia dar
um jeito.
Joanna abriu a pasta novamente, buscando com os olhos uma
informação, virando a folha em seguida para mim.
— Trinta dias, elas seriam movidas em trinta dias.
— Vou dar um jeito, Joanna — assinei a folha à minha frente,
entregando a mulher de meia-idade.
— Liah, você tem certeza disso? Vão mandar assistentes aqui pra
vistoriar as instalações…
— Eu sei — meu tom saiu bem mais rude que o usual. — Desculpa,
estou nervosa com muita coisa, mas tenho certeza sim.
A assistente social suspirou, vestindo aquele olhar de pena que me
matava.
— Liah, tem alguma coisa que eu possa fazer pra ajudar você?
As pessoas me perguntavam aquilo com mais frequência do que eu
gostaria ultimamente. O que ninguém entendia é que nada poderia resolver
meu problema. Mesmo que todo o dinheiro fosse liberado, que a ONG
continuasse tendo seus recursos e todos os problemas desaparecessem, eu
continuaria quebrada.
Mas tinha sim uma coisa para a qual eu precisava da ajuda dela.
— Na verdade, eu precisava conversar com você sobre a Triss. Não sei
se você conhece o histórico dos abrigos em que ela passou, mas eu tentei
por duas vezes conseguir a tutela dela e foi negado. Queria tentar de novo.
— Calma aí. A Triss? — Joanna me encarou confusa, sua testa criando
vincos profundos até que seus olhos estivessem totalmente arregalados.
— Sim, a Triss — respondi tão confusa quanto ela. — Por que o susto?
A mulher continuou me olhando surpresa e então sorriu sem graça.
— Liah, você está ciente de que o Nathan entrou com uma solicitação de
tutela da Triss, não está?
Congelei por alguns segundos, sentindo um formigamento estranho na
espinha.
Sinceramente, eu duvidava que tivesse controle de qualquer merda na
minha vida. Olivia não esconderia nada assim de mim, certo?
— Certamente alguém deve ter esquecido de me contar sobre algumas
coisas que aconteceram na minha ausência — suspirei, me esforçando para
não deixar as lágrimas escaparem. — Quando isso aconteceu?
— Ele entrou em contato comigo no mesmo dia que fizeram aquela
reunião aqui, para falar sobre os estágios. O processo está bem avançado,
Liah.
— Vou conversar com ele sobre isso — avisei, mesmo sem saber
exatamente o que eu poderia falar com ele.
— Bem, eu conversei com ele e a advogada uns dias atrás. E precisava
que preenchesse esse formulário. Também será necessária uma avaliação
para eu incluir nos documentos finais e ver se o juiz responsável assina a
liberação.
— Uma avaliação? — olhei para Joanna desacreditada e precisei morder
a carne do lado de dentro da bochecha para conter a raiva. — Vou conversar
com a Olie sobre isso. — Guardei a folha na gaveta da mesa, olhando
irritada para a mulher a minha frente. — Joanna, se tiver mais alguma
surpresa pra mim, agora é a hora de falar. Duvido que alguma coisa possa
me afetar ainda mais que isso.
— Liah, eu realmente achei que você soubesse sobre isso. Vocês são
todos tão amigos… — Nathan não era meu amigo, tão pouco alguém que
eu tivesse qualquer coisa a favor, mas não envolveria Joanna nessa
discussão.
— Sem problema — mordi a bochecha com mais força, preferindo sentir
a dor.
Esperei Joanna sair da sala para socar a mesa com força. Sem poder
conter mais as lágrimas, abri a gaveta da mesa tirando a garrafinha de ferro
que vovó mantinha em sua biblioteca. Sabia que ia precisar dela um dia
quando a trouxe comigo no início da semana, mas não imaginei que seria
tão rápido. Senti o álcool da tequila queimando minha garganta, pensando
na loucura que era estar bebendo em pleno dia útil, na ONG.
Eu tinha perdido o controle de toda a porra da minha vida.

Na sexta à tarde, Olivia já tinha marcado uma reunião para falarmos


sobre a força tarefa da reforma da ala infantil. Para completar minha
sucessão de problemas e surpresas, na sala de conferência estavam todos os
nossos amigos, incluindo Nathan.
— Liah, a gente tem um plano perfeito pra receber as crianças antes dos
trinta dias — Olivia contou empolgada, assim que entrei na sala, alguns
minutos atrasada.
— Ótimo! Se eu tiver um resquício de notícia boa esse mês, estarei
quebrando uma maldição infinita de coisas ruins — sorri irônica,
percebendo Nathan me encarar. Olhei furiosa de volta.
— Eu avisei que guardar toda essa mágoa era um caminho sem volta —
Nathan se defendeu, levantando uma sobrancelha.
— Não ouse me comparar a você — reclamei. — Aliás, quando você
pretendia me falar que pediu a tutela da Triss?
Uma série de assobios e risinhos sem graça dos nossos amigos tomaram
a sala, transformando a atmosfera num pequeno caos. Pelas reações e
perguntas voltadas a Nathan, nenhum deles sabia sobre isso, exceto por
Olivia. A morena se remexeu incomodada, me olhando com um pedido de
desculpas nos olhos.
— Eu só não queria falar nada antes de ter certeza de que isso iria
funcionar — Nathan deixou o corpo afundar na cadeira, ouvindo a
enxurrada de comentários e reclamações de seus amigos. Sorri satisfeita
com a cobrança deles sobre o idiota. — Eu só quero poder dar
oportunidades melhores a ela. — Tentou se explicar mais uma vez.
— No que depender de mim, isso nunca vai acontecer — soltei irritada.
— Claro, porque você não cansa de se intrometer na porra da minha
vida. Eu só quero dar mais oportunidades à Triss, sua intrometida do
caralho.
— Para de me chamar de intrometida — reclamei. — E ela tem ótimas
oportunidades aqui. E pelo pouco que sei, você é um cara totalmente
instável e que pode oferecer risco a ela. Se você tiver uma dessas crises
malucas perto dela…
Evie, sentada ao meu lado, deu um pisão no meu pé, me recriminando.
— Liah, você não tem ideia do que está falando — falou entre dentes
para mim.
Um silêncio repentino se instaurou naquela sala. Vi todos os olhos
voltados para mim, assustados e preocupados. Um brilho estranho e triste
tomou os olhos de Nathan, adotando uma expressão totalmente abatida.
— Você pode ter toda raiva do mundo de mim, Lianah. Nada do que
você sente por mim é pior do que o que sinto por você! — Nathan levantou-
se abruptamente da cadeira, puxando sua jaqueta. — Não sei em que mundo
achei que poderia passar por cima disso e ter um bom convívio. Você já
destruiu minha vida uma vez, não seria diferente agora.
Nathan passou por mim feito um furacão, batendo a porta da sala com
força. Não tive tempo de pensar em suas palavras antes de Karol questionar
o que havia acontecido.
— Liah, você e Nate se conheciam? Por que ele disse que você destruiu
a vida dele? — todos me olhavam confusos, embora ninguém estivesse
mais confuso que eu.
— Eu já respondi isso algumas vezes. Eu nunca vi esse cara antes
daquela noite no Republic. Eu não tenho ideia do que possa ter feito pra
ele…
Ethan levantou-se, também pegando seu casaco. Provavelmente ia atrás
do amigo, com medo dele ter uma crise. No entanto, parou ao meu lado me
olhando especulativo.
— Nathan pode ter todos os problemas do mundo, mas ele é o cara mais
centrado e mais guerreiro que conheço na vida. Você não deve ter ideia das
coisas que ele já enfrentou pra ser assim. Falar sobre as crises dele e dizer
que ele é um risco pra Triss, deve ter afetado a cabeça dele de uma forma
que você não vai compreender sem conhecer a história toda.
Engoli seco, vendo Ethan seguir porta afora. Entendi que peguei pesado
com ele na mesma hora que as palavras saíram da minha boca, mas era
orgulhosa demais para admitir.
Depois que Ethan saiu, Olivia retomou a reunião com Karol, Evie e
Thommy, explicando o plano deles para terminar a obra. Foi difícil prestar
atenção, já que minha cabeça insistia em pensar em Nathan e suas palavras.
Aquele aviso insistente de que as coisas estavam erradas, martelava no
fundo do meu cérebro. Eu tinha a sensação de que algo estava sendo
deixado totalmente para trás, mas minha mente bloqueava o que quer que
fosse.
— Você ouviu alguma coisa? — Olie perguntou depois de explicar sobre
as parcerias para o material e os voluntários para a mão de obra.
— Ouvi o principal — confessei. — Eu vou olhar tudo com mais calma
depois. Estou me sentindo péssima pela forma que falei com o Nathan.
— Não esquenta, Liah — Thommy segurou minha mão sobre a mesa,
sorrindo para mim. — Aparece hoje à noite lá no Republic. Conversa com
ele e tenho certeza de que Nathan vai entender que você não falou por mal.
— Eu tenho tanta coisa pra arrumar. Amanhã tem a festa que as crianças
organizaram e ainda vão chegar dois caminhões de doações pela manhã —
avisei, pensando que teria que correr muito para a festa estar pronta a tarde.
— A gente já tinha marcado de vir pra cá amanhã bem cedo ajudar —
Tommy avisou.
— Vou pensar no caso de vocês — suspirei. — Nem sei se o Nathan vai
querer falar comigo depois disso.
Se fosse ao contrário, eu não ia querer falar com ele depois daquilo. Eu
havia usado um problema sério dele contra ele mesmo, e isso era totalmente
errado. Mesmo tendo motivos para não gostar do cara, não era certo
confrontá-lo dessa forma.
A verdade, é que eu estava mesmo chateada com a ideia de levarem Triss
para longe de mim, ainda mais quando esse alguém me odiava por algo que
nem eu entendia.
O Republic estava bem mais cheio que o habitual. Alguma banda famosa
da cidade ia se apresentar essa noite. Precisei procurar por alguns minutos
até achar Karol debruçada sobre o balcão, conversando com um barman.
— Karol! — gritei, tentando alcançá-la.
— Oi, Liah! — ela me abraçou assim que cheguei até ela. — Está muito
cheio aqui hoje, a gente está numa mesa lá atrás. — Apontou para uma
mesinha na parte de trás do bar, me puxando pelo pulso até lá.
As meninas me abraçaram assim que me viram, enquanto uma expressão
insatisfeita tomou o rosto de Nathan.
— Sério? O que ela tá fazendo aqui? — perguntou irritado a Ethan. —
Parece que aonde quer que eu vá, essa garota me persegue. — Nathan falou
alto suficiente para que eu escutasse.
— Você pode me ouvir um segundo?
Achei que teria algum tempo antes de conversar com ele. Mas dada sua
reação, era melhor pedir desculpas e acabar com isso logo.
— Vai dizer que sou um louco instável de novo? — perguntou
ressentido.
— Não, Nathan — revirei os olhos irritada. — Quero te pedir desculpas
pelo que falei e tentar entender essa história da tutela da Triss. Será que a
gente pode conversar um segundo? — pedi, inquieta pelos olhares
julgadores dos nossos amigos.
Nathan suspirou, passando por mim em direção ao corredor dos
banheiros, onde o som era mais baixo. Segui atrás dele, nervosa, sem saber
ao certo como começar aquela conversa. A única coisa que pensava em
dizer era 'desculpa'.
— Fala logo, Lianah — Nathan pediu impaciente, encostando na parede
do corredor.
— Detesto que me chamem de Lianah — deixei escapar, ofendida pela
forma repugnante que ele dizia meu nome.
— Até onde sei, não tenho a menor intimidade com você pra te chamar
de 'Liah' — Nathan revirou os olhos.
Ia soar muito infantil se eu o chamasse de Nathaniel por pura
implicância? Sacudi a cabeça, tentando ser madura agora.
— Eu queria te pedir desculpas pela forma que falei hoje.
— Você já disse isso, Lianah. — Não pude deixar de perceber a forma
que ele deu ênfase no meu nome.
— Você é um babaca! — devolvi irritada, apertando os olhos em sua
direção. — Vim até aqui pedir desculpa e é assim que você fala comigo,
Nathaniel? — dei a mesma ênfase em seu nome.
Nathan sorriu debochado, e eu odiava aquele sorriso convencido
ridículo.
— Me chamar de Nathaniel não me afeta em nada.
— Sabe o que é engraçado? — Levantei as mãos irritada, me segurando
para não socar a cara dele. — Ethan veio me falar que eu nunca entenderia
você sem conhecer sua história. Deixei o meu orgulho de lado pra te pedir
desculpa e tentar entender isso, mas é isso que recebo em troca.
Nathan se mexeu desconfortável, fechando as mãos em punho, irritado.
— Você não conhece mesmo minha história? — perguntou, apertando os
olhos em minha direção.
— Nathan, se você tem algum problema comigo, me fala! — Respirei
fundo, tentando controlar a minha voz ao perceber um grupo de pessoas
próximas nos olhando. — Não fica jogando essas piadinhas ridículas. Eu
nunca te vi na minha vida, não sei qual a porra do seu problema comigo.
Estou começando a achar que você é mesmo uma ameaça para a vida da
Triss.
Merda, Liah!
Eu sabia que estava indo pelo caminho errado de novo, mas Nathan
insistia em me irritar e me levar ao meu limite.
Sua cabeça estava abaixada, respirando fundo, e pelo ritmo da sua
respiração, eu sabia que ele estava irritado.
— Lianah, não começa uma discussão que você nem sabe aonde vai te
levar.
— Numa crise sua, talvez? Essa não é a prova de que estou certa?
Que merda, Liah. Deixa a raiva de lado.
— Sai daqui. Por favor! — Nathan pediu baixo, virando o corpo e
apoiando a testa na parede.
Respirei fundo, tentando colocar a cabeça no lugar. Eu não podia perder
a oportunidade de tentar entendê-lo.
— Nathan, eu estou com raiva e você também. Vamos tentar conversar
direito…
— Lianah, qual a parte do sai daqui você não entendeu? — Nathan falou
mais alto. — Você não tem direito de vir aqui, continuar falando suas
merdas pra mim e achar que está tudo bem. — Ele estava furioso. Nathan
virou novamente em minha direção, os punhos fechados com força ao lado
do corpo. Os nós dos dedos cada vez mais brancos. — Vai embora!
Olhei em seus olhos e me assustei com a escuridão e profundidade que
eles conseguiam passar. Nem parecia mais que eram de um azul tão intenso;
estavam escuros e vazios. Sua expressão estava totalmente tomada pela
raiva e algo que parecia dor.
— Nathan…
— Você quer que eu volte atrás na adoção? Eu volto! — Um sorriso
sombrio tomou seu rosto.
— Não é isso… — tentei falar, mas parei assim que ele virou novamente
o corpo, socando a parede com uma força exagerada.
— Nathan! — Toquei seu ombro tentando acalmá-lo, mas ele virou-se
depressa, segurando meu pulso com força.
— Até quando você vai continuar me impedindo de ser feliz?
Era como se aquele fosse outro Nathan. Por mais que ele fosse
normalmente grosso comigo, aquele Nathan que eu olhava agora, parecia
sentir por mim todo o ódio do mundo.
— Eu… — senti seu aperto no meu pulso ficar mais forte, e pela
primeira vez tive medo dele.
Olhei em seus olhos, engolindo seco.
Algo naquele olhar era familiar…
E foi como uma avalanche.
Todas as lembranças daquele dia apareceram de novo. Um episódio do
passado que eu jamais associaria a ele, mas que parecia fazer todo sentido
agora.
Nathan me olhou assustado, parecendo acordar de algum transe, ainda
buscando alguma coisa em meus olhos. Senti seus dedos soltando meu
pulso, e o sangue voltando a circular por ali.
— Avisa as meninas que precisei ir embora — falei, saindo dali o mais
rápido que eu podia.

01 de junho de 2019
Só ontem à noite tinha me dado conta de onde conhecia aquele olhar
aterrorizado. Um episódio totalmente esquecido na minha mente, mas que
explicava todo o conceito babaca que ele mesmo criou para si.
Passei a noite me convencendo de que estava errada, mas ao olhar para
ele assim que cheguei na ONG, eu tive certeza. Faria todo sentido, já que
ele insistia em me odiar por algum passado que ele mesmo não queria falar.
Nathan continuava carregando as caixas, escada acima, até a cozinha.
Olie estava junto do amigo quando me aproximei deles.
— Olie! — chamei inquieta. — Será que você consegue me ajudar com
a conferência das lembrancinhas das crianças? — supliquei, esperando que
eu pudesse falar com ele a sós.
Olie olhou de mim para Nathan, como se precisasse obter uma
confirmação de que não nos mataríamos, mas devido as últimas
descobertas, não tinha certeza de que podia confirmar aquilo.
— Vai, Olie! — Nathan apontou a saída com o queixo para ela, que
mesmo desconfiada, seguiu para a salão principal.
Ótimo! Só tínhamos nós dois na cozinha.
Como se pressentisse toda a merda, Nathan desceu a escada em busca de
mais caixas no caminhão.
Fui atrás dele.
— Você nunca disse por que me odeia — apontei, empurrando de volta a
caixa que ele puxava no chão.
— Qual é Lianah? Por que isso agora? — Nathan respondeu irritado,
puxando a caixa com força novamente, mas antes que ele pudesse levantar
o papelão grosso do chão, sentei por cima dela.
— É por que você tem medo de que eu conte a seus amigos que você é
um grande babaca? — provoquei despretensiosa, vendo seus olhos muito
azuis se arregalarem para mim.
— Então agora você lembra? — sorriu irônico, cruzando os braços e me
dando toda a sua atenção.
— Lembrei ontem à noite — confidenciei. — Quando você agarrou meu
braço, lembra? — Mostrei a ele a pequena marca vermelha em meu pulso.
— Eu estava quase tendo uma crise, Lianah! — Nathan desviou seus
olhos envergonhados do meu pulso, visivelmente abalado pelo pedaço de
pele marcado. — Não me orgulho disso.
— Mas se orgulhou naquela noite? Quando tentou colocar a garota no
carro a força? — provoquei-o.
Nathan descruzou os braços e apertou as mãos em punho ao lado do
corpo. Os nós de seus dedos estavam esbranquiçados devido à força com
que mantinha os punhos fechados; seus olhos perderam a profundidade, da
mesma forma que aconteceu ontem à noite. Ele estava irritado, mas eu
precisava entender o que fiz de errado, quando tudo apontava que o errado
era ele.
— Eles sabem o que você fez? — voltei a sondar.
— Cala a boca, Lianah! Você não tem noção da merda que está falando!
— sua voz exasperada atraiu a atenção de Karol, que saía pela porta dos
fundos naquele exato momento.
A ruiva voltou para o interior do prédio, provavelmente pedindo ajuda
para tirar a gente um de perto do outro.
— Me explica então — gritei. — Que merda foi que eu fiz? Porque a
única coisa que fiz foi ajudar aquela garota.
— Liah! — Mais rápido do que imaginei, senti o braço de Ethan
atravessar minha cintura enquanto me puxava para trás, preocupado. — Sai
de perto dele, agora.
— Sair? Por quê? — olhei para Nathan ainda estático a minha frente. —
Qual é Nathan? Fala pra eles porque você me odeia. Diz de onde me
conhece! — implorei, acreditando que depois disso, eles iam parar de
pensar que nossos conflitos são infantilidades. Afinal, eles saberiam o
babaca que o amigo é.
— Liah, não faz isso — Ethan me sacudiu, tentando me fazer entender
que deveria parar. — Sério, melhor deixar isso quieto.
— Você nem sabe do que eu tô falando, Ethan — gritei, me soltando
dele. — Fala logo, Nathan.
— Quer saber?! Você tem razão! — O tom de Nathan me assustou. Sua
voz era baixa, grave e cansada. E mesmo assim, nunca me pareceu tão
ameaçadora antes. — Eu conto para eles, Lianah! Sou um babaca, machista
e abusivo porque tentei enfiar uma garota a força no meu carro. É isso, não
é?
Seu sorriso cínico cresceu à medida que vi a compreensão atingir os
olhos de cada um de nossos amigos ali.
— Era você e eu só lembrei disso ontem à noite, quando você ficou
transtornado. Nunca me esqueceria dos olhos daquele cara. — Meu corpo
inquieto insistia em peitá-lo, mas era impedido pelo braço de Ethan, que
continuava me mantendo a uma distância segura de Nathan.
— Caralho! — ouvi a voz de Olie interrompendo a discussão. — A Liah
é a garota que apareceu no dia que Nathan foi buscar a Camille.
Uma sucessão de palavrões começou a ser dita por Tommy que, até
então, parecia o único sem entender o ponto.
— Quer saber mesmo o que aconteceu, Lianah?
O tom de voz de Nathan continuava me amedrontando. Nunca o vi usar
um tom tão contido e sério antes. Seu rosto, usualmente bonito, estava
contorcido por uma dor que não podia entender. A escuridão de seus olhos
se tornou mais intensa, e o brilho mais opaco. Ele estava entrando em crise,
de novo. Mesmo assim, sua voz continuou soando assustadoramente
tranquila enquanto meu coração começava a bater mais forte.
— Eu devia ter morrido naquela noite. A vida de todo mundo seria mais
fácil se tivesse sido assim. A garota que eu tentava colocar no carro era a
Camille, minha ex-namorada, mas você já deve saber disso. O que você não
sabe é que eu tinha autorização da mãe dela, tinha a intervenção assinada
pelo psiquiatra e pelo juiz no porta-luvas do meu carro, mas não deu tempo
de pegar nada antes de me colocarem a força naquela viatura.
A dor em seus olhos era evidente, até seu tom de voz era mais sofrido
agora. E na mesma hora entendi o que aconteceu. Todas as histórias que
ouvi sobre a Camille e como aquilo tinha o afetado, como ele se culpava
por não conseguir impedir… tudo passou a fazer sentido.
— A mãe dela sabia que ela não estava bem. Todo mundo sabia que ela
não estava bem. Prometi que ia cuidar dela e da criança… eu só queria meu
filho bem… — Nathan respirou fundo, adiando sua irritação para que
pudesse me contar o que aconteceu. — Eu estava desesperado porque ela
tinha se drogado aquela noite; uma amiga dela me avisou. Emma me deu os
papéis da intervenção e pediu pra eu ir atrás dela. Mas você apareceu.
Podia sentir seus olhos em mim, mas a essa altura, não tinha mais
coragem de olhar para ele.
— Depois que me colocaram na viatura, a Camille teve o caminho livre
pra continuar se drogando pela noite toda. Ela quase teve uma overdose e
perdeu o bebê.
— Eu não sabia que ela estava se drogando — parei de falar ao perceber
que nada que eu pudesse explicar, apagaria o que causei. — Você sofreu um
acidente aquela noite?
— Acidente? — Nathan soltou um riso ácido, apontando para o meu
pulso, fazendo a marca vermelha de seu aperto latejar na minha pele. —
Transtorno de estresse pós-traumático, seguido de acesso de raiva. Essa é a
porra da consequência de ter sido espancado por aqueles policiais até que
eu estivesse praticamente morto.
— Esse foi o acidente? Eles bateram em você? — minha voz saiu
entrecortada e muito baixa pelo horror que sentia agora.
Senti seus olhos cravados em mim, enquanto ainda mantinha minha
cabeça baixa, e outro suspiro longo escapou dele, seguido pelo silêncio
dramático de alguns segundos até que ele resolvesse responder.
— Três costelas quebradas, fratura exposta da tíbia, rompimento dos
ligamentos nos dois pulsos, traumatismo craniano e duas paradas cardíacas
antes mesmo de chegar ao hospital. Todos os médicos disseram que foi um
milagre.
O nó em minha garganta aumentou e não pude mais conter as lágrimas
que segurava desde que tinha me dado conta de como influenciei a história
dele. Ele tinha mesmo motivo para me odiar. Eu havia entendido tudo
errado, mas parecia tão ridículo pedir desculpas agora.
Podia sentir a tensão de todos. O silêncio total me incomodava, e me
fazia pensar que todos achavam o mesmo.
Eu era culpada de tudo.
— Eu não sei o que dizer — estava em choque. — Eu entendi tudo
errado. Sinto muito… — minhas palavras morreram quando vi Nathan
seguir em direção à parte da frente do prédio.
No segundo seguinte, meus joelhos penderam no chão e chorei como
nunca havia chorado antes em toda minha vida.
— Liah, você não tem culpa. — Ethan ajoelhou-se ao meu lado tentando
me consolar.
— Claro que tenho. Você ouviu… — não conseguia falar sobre o choro
que saía copiosamente de meu peito.
— Você não tinha como saber — senti seus braços envolta de mim —
Foi uma fatalidade. Ele sabe que perdeu a cabeça naquele dia.
— Ele podia ter impedido se eu não… — tentei dizer, mas os soluços
não permitiam.
Ethan me levantou enquanto Karol o ajudava. Vi que todos ainda
estavam ali, com exceção de Tommy, que foi atrás de Nathan no instante
em que ele saiu correndo.
— Liah, eu nunca imaginei que essa confusão toda era só falta de
comunicação. Você não tem culpa, ele vai perceber isso. — Karol tentava
me acalmar enquanto os soluços vinham cada vez mais fortes. — Ethan,
deixa que eu e Evie ficamos aqui com ela, vai ver como está o Nathan. O
Tommy não vai dar conta dele sozinho.
Evie me abraçou enquanto Ethan corria atrás de Thommy e Nathan. As
meninas me levaram para dentro da cozinha, tentando me convencer de que
eu não tinha culpa sobre aquilo.
Mas naquele momento, eu só pensava em como poderia fazer para juntar
todos os cacos quebrados do que ia sobrar de mim depois de todos os
últimos acontecimentos.
Nathan
Capitulo 13

01 de junho de 2019

— Eu estou bem — avisei pela trigésima vez a Ethan, sentado ao meu lado
na calçada em frente ao prédio da ONG.

— Você tá todo arrebentado — Ethan apontou para minhas mãos,


machucadas dos últimos socos. Alguns machucados eram da última crise e
nem tiveram tempo de cicatrizar ainda. — Fora o carro que você quebrou
inteiro — completou apontando para meu carro sem os vidros.

— Eu vou ficar bem — reformulei.

— Pelo menos agora todo mundo sabe o que aconteceu — Ethan pontuou.
— Eu não tô defendendo ela, mas a Liah realmente não lembrava de você.

Eu podia acreditar que ela não se lembrava do que aconteceu. Não foi a
vida dela que foi totalmente afetada por aquilo.

— Eu sei — concordei.

— Como vai ser agora? — Ethan suspirou, me encarando.

— Não tenho ideia — continuei olhando o horizonte, pensativo. — Já tem


uns dias que pensei em sair do país. Eu tentaria recomeçar em outro lugar
se não fosse a ONG.

— Achei que você ia deixar a ONG pra trás agora — meu amigo me olhou
especulativo.

Sacudi a cabeça negando.

— A ONG me faz bem. Acho que faz pra todo mundo. E não quero desistir
da Triss.
— E tudo bem pra você conviver com a Liah por aqui? Quero dizer, você
não está com raiva dela? — Ethan perguntou preocupado.

Era uma preocupação minha também, mas a crise de hoje foi por reviver as
dores e traumas daquele dia. Por mais que eu odiasse a garota, tinha
conseguido me virar com esse sentimento nos últimos meses.

— Posso conviver com isso.

Ethan me olhou preocupado, mas deu de ombros.

— Você precisa cuidar desses ferimentos…

— Nathan! — Um grito estridente me fez olhar para trás. Merda… — Que


merda aconteceu com você? — Mia parou à minha frente, cravando os
olhos nos nós dos meus dedos. — Que porra…

— Mia, Tia Soph sabe que você está se acabando em palavrões? — Ethan
perguntou.

— Cala a boca, Ethan! Vocês falam palavrão a merda do dia todo — Mia
reclamou, me puxando pela mão.

Resmunguei, puxando a mão de volta.

— Cheguei agora e isso aqui está um caos. A Liah está se acabando de


chorar lá dentro. O que você fez com ela hoje? — Mia perguntou irritada,
examinando os machucados em minha mão.

— Mia, eu acabei de ter uma crise e você me pergunta o que eu fiz com
ela? — desaprovei. — Nem sabia que você estava aqui hoje — avisei.

Mia olhou para Ethan, coagindo o homem com quase o dobro do seu
tamanho a falar alguma coisa. Ethan me olhou pedindo socorro com os
olhos, porque ele sabia que eu não queria que Mia soubesse.

— Vocês são muito frouxos — voltei a olhar para Mia. — Eu não fiz nada
com sua amiga, Mia. É uma história longa e complicada.
— A Liah é a garota que impediu o Nate de levar a Camille aquele fatídico
dia — Ethan me cortou, falando o óbvio. — Esconder essa merda até agora,
não te fez bem nenhum — justificou, dando de ombros.

Ela me olhou espantada, abrindo a boca em descrédito.

— Foi ela quem chamou a polícia? — Maneei a cabeça afirmando,


querendo parar de falar sobre isso. — Droga! Nunca imaginaria isso. Por
isso você a detesta tanto?

— A gente pode ir pra casa? — pedi a Mia, esperando que ela entendesse
que eu precisava de companhia. — Preciso descansar um pouco e limpar
isso — apontei para as manchas vermelhas em minha mão.

— Você não pretende usar esse carro cheio de caco de vidro espalhado nos
bancos, não é? — Mia perguntou arqueando as sobrancelhas. — Você se
superou dessa vez.

— Só tinha o carro e a cara do Ethan ou do Thommas na minha frente —


justifiquei.

— Cadê o idiota três? — Mia perguntou esticando o pescoço para os lados.

— Entrou para ver como Liah estava — Ethan avisou tirando a chave de
seu carro do bolso. — Vem, vou levar vocês pra casa.

Separador

04 de junho de 2019

Passei todo o fim de semana evitando todos os meus amigos. Eu não queria
ter que falar ou me explicar sobre toda a situação com Lianah. Esse era um
assunto que me consumia e me esgotava intensamente, e mesmo assim
estava sentado na poltrona do consultório do Doutor Emerson, decidido a
falar sobre isso.

— Então você teve outra crise?


— Tive — assumi. — Mas tem algo me incomodando mais que isso —
nem eu entendia bem ainda.

Doutor Emerson ajeitou-se inquieto na cadeira, em expectativa à finalmente


tirar alguma informação relevante de mim.

— Você quer me contar o que há de errado?

Pensei por onde seria melhor começar. Talvez o ponto central de todos os
meus problemas.

— No dia que Sylvia Vittorino morreu, eu deveria ter ficado satisfeito em


ver Lianah sentir a mesma dor que senti por causa dela. Mas tudo que
consegui foi me solidarizar pela perda que ela teve. Só tem uma pessoa
nesse mundo pior que ela, mas Camille está totalmente fora dos meus
limites agora. — Doutor Emerson me olhou surpreso.

— Sylvia Vittorino? Esse é sem dúvida um grande nome. Mas não posso
deixar de notar que temos três nomes novos aqui. Quem são Lianah e
Camille, Nathan?

Relutante, tomei folego para contar toda a história para ele. Contei sobre
minha relação com Camille, como Lianah apareceu a primeira vez, como
ela reapareceu anos depois no meio dos meus amigos, e contei sobre ela ser
a cabeça por trás da ONG.

— Lianah era neta de Sylvia Vittorino, então? — assenti, vendo que o


homem não parava de anotar o que quer que fosse em seu bloco. Nunca o
vi tão compenetrado em suas anotações. — E você acha que tem algo de
errado consigo por não gostar de vê-la sofrer a perda da avó? — assenti
novamente.

— Eu não sou um monstro — pontuei tentando explicar meu lado. — Mas


eu jamais imaginei me colocar tanto no lugar dela. Se eu pudesse
escolher… se eu tivesse esse poder, optaria pela opção que avó dela
vivesse, mesmo querendo que ela entendesse a dor que senti.

O psicólogo me olhou analítico, sorrindo compreensivo.


— Ela sentiu e entende a dor que você sentiu, Nathan. E isso te incomoda
exatamente porque você não quer que ninguém sinta essa dor. Não há nada
de errado com você. Haveria se você gostasse de vê-la sofrer.

— Na verdade, eu desejei isso — confessei alarmado. — Desejei que ela


sentisse tudo que senti, desejei que ela perdesse tudo que mais amava.
Desejei tudo isso quando estava afundado na minha raiva pela intromissão
dela. Mas eu senti o peso disso quando ela me disse que não tinha ninguém,
que a vida tirou tudo dela…

— Você precisa acalmar esses pensamentos antes de continuar… — Doutor


Emerson levantou da poltrona indo buscar uma garrafa de água no frigobar.
— Você realmente desejou isso ou foi só um pensamento raivoso, Nathan?

Eu desejei. Eu realmente desejei.

Eu não consigo me perdoar por isso.

— Eu deveria odiá-la. Eu quero odiá-la… — confessei. — Mas não


consigo parar de me culpar.

— Você quer alguém a quem culpar, e isso se torna interessante, já que no


mesmo momento você também se sente culpado. Mas nem toda situação
tem um culpado. — Ele anotou mais algumas coisas em seu bloco. — Você
prefere falar sobre esse seu sentimento em relação a Lianah, ou sobre seus
traumas com Camille e a perda de seu filho?

Ele fazia isso constantemente, me dava um falso poder de escolha me


persuadindo a falar sobre algum assunto. Geralmente, eu respondia que
preferia falar de um terceiro assunto mais confortável para mim, mas hoje
eu estava disposto a tirar tudo isso de dentro de mim.

— Doutor Emerson, estou disposto a falar sobre o que quer que seja, e não
sei se em nossa próxima sessão vou estar também, então sugiro que
pergunte tudo que achar necessário agora.

— Então me conte tudo que se lembrar desde o momento em que acha que
seus problemas começaram.
Sorri triste, sendo obrigado a voltar à minha infância, quando minha mãe
me abandonou. Em algum momento do meu monólogo, ele pediu à
secretária para remarcar a próxima consulta dele, ciente de que os minutos
restantes não seriam suficientes para contar tudo.

Pela primeira vez nos últimos três anos, eu me sentia leve de verdade. Saí
do consultório na terça pela manhã com a sensação de que eu podia respirar
novamente.

O psicólogo não disse uma palavra enquanto eu contava toda minha


história, embora sua caneta tivesse tido um grande déficit de tinta,
trabalhando freneticamente nas folhas de seu bloco. Na quinta-feira, viriam
enxurradas de perguntas, disso eu tinha certeza.

O dia no trabalho foi intenso. Estávamos com bastante trabalho acumulado


devido ao tempo que a gente passava na ONG. Com o afastamento de
Lianah nos dias após a morte de sua avó, ficou pior ainda, e agora ainda
tínhamos o plano da Olie de ajudar na finalização da obra da ala infantil
para eles receberem as crianças menores. Resumindo, eu estava sem muito
tempo para pensar em qualquer coisa que não fosse trabalho. Isso me
ajudava bastante a afastar os problemas da minha mente.

Tommy também havia vindo para a App hoje. Trabalhamos da sala de


reunião, preparando algumas apresentações e revisando alguns contratos.
Ele era o mais distraído de nós três, ainda assim reparou em como eu estava
leve.

— Você está mais calmo. Achei que ia estar uma pilha de nervos, puto com
a vida pela merda que aconteceu no sábado.

— A merda não aconteceu no sábado — expliquei calmo. — Aconteceu há


três anos. Sábado só não deu mais pra esconder a relação da Lianah com
isso.

Thommy me olhou confuso, parecendo decidir se continuava ou não o


assunto. O encarei arqueando uma sobrancelha, o incentivando a falar logo.
O loiro tirou o notebook da minha frente, numa mania irritante de fechar
minha tela toda vez que queria minha atenção ou de Ethan.
— Odeio quando você faz isso — avisei.

— Odeio muitas coisas que você faz — Tommy debruçou o corpo sobre a
mesa, tentando se aproximar de mim para falar baixo. — Você vai
continuar ajudando a ONG financeiramente?

— Claro que vou. Mas ainda não consegui desinvestir a outra parte do
dinheiro, e só vou ter essa grana disponível mês que vem, porque estava
tudo aplicado em investimento de longo prazo. Até lá, a gente vai ter que
colocar a mão na massa — avisei, ciente do plano de colaboração que
Olivia havia montado.

— Você não odeia a Liah?

— Eu não odeio ninguém. Estou evitando guardar esse tipo de rancor —


avisei, puxando meu notebook de volta.

Thommas estendeu a mão, encostando as costas dela na minha testa.

— Você deve estar delirando. — Bati em sua mão, a afastando de mim.

— Caralho, Tommy. Num dia você e Ethan enchem a porra do meu saco
pra reagir e parar de me culpar por tudo. No outro acham que estou doente
por fazer exatamente isso. Vocês precisam se decidir! — reclamei irritado,
voltando a atenção para tela do computador.

Tommy riu antes de também voltar sua atenção para a tela diante de si.

Um tempo depois, ainda estávamos concentrados em nosso trabalho


quando meu celular vibrou sobre a mesa com o nome de Carlton brilhando
na tela.

— Oi, Carl.

— Nathan, você está na empresa agora?

— Estou sim — respondi preocupado.


— Ótimo. Te encontro aí em quinze minutos. Preciso da sua ajuda com um
reconhecimento.

— Reconhecimento? — perguntei confuso, atraindo a atenção de Tommy.

— Explico melhor aí — ouvi o clique apressado do celular sendo


desligado.

— Carl disse que precisa de ajuda com um reconhecimento — expliquei


vendo a cara de preocupação de Tommy.

Meu tio chegou quase vinte minutos depois, entrando na sala de reunião
afobado e irritado.

— Ainda bem que achei você aqui. Estava aqui por perto.

— Está tudo bem, cal? Mia me falou que você tem trabalhado muito.

Ele se jogou na cadeira, tirando um envelope de um dos bolsos de sua


farda. Em seguida, olhou para Tommy desconfiado.

— A gente pode falar a sós? — Tommy assentiu, saindo da sala após me


lançar mais um olhar preocupado. — Essa investigação da Sylvia está
acabando comigo. Preciso que olhe essas fotos. Alguma dessas pessoas
trabalha ou já trabalhou pra você?

Carlton espalhou algumas fotos sobre a mesa. Todas de policiais. Olhei as


fotos com atenção mais de uma vez. Reconheci alguns rostos da delegacia,
eram policiais que trabalhavam com Cal. Mas nenhum deles já havia
trabalhado aqui.

— O que tá rolando, Carl? Por que você está preocupado com isso?

— Eu não posso te responder isso agora. — O policial recolheu as fotos


enfiando-as novamente no envelope. — Não quero você envolvido nisso.

— Carl, você não pode vir aqui me perguntar se uma dessas pessoas já
trabalhou pra gente e não me contar nada sobre isso — me exaltei, irritado
pelo mistério que vinha fazendo sobre essa história.
— Qual seu envolvimento com a neta da Sylvia? — ele me olhou
pensativo.

— Eu não tenho nenhum envolvimento com ela. Ela é amiga dos meus
amigos, e diretora na ONG que trabalho, só isso. Vai me dizer o motivo
dessas perguntas?

Carlton suspirou, pensando no que deveria me dizer.

— Estou preocupado de que alguma dessas pessoas se aproximem dela.


São policiais investigados no mesmo esquema de tráfico e lavagem que
Sylvia estava envolvida. Você reconheceria essas pessoas se elas
estivessem trabalhando na ONG?

— Se tiver alguém suspeito por lá, eu te aviso — comentei desconfiado.


Tinha mais coisa nessa história, mas ia ser difícil arrancar tudo de Carlton
agora.

— Obrigada, Nathan. E vê se aparece lá em casa, sua tia não para de


reclamar que você sempre esquece que ela existe. — Carlton saiu da sala
com a mesma pressa que entrou.

Logo que saiu, um Tommy confuso voltou a atravessar a porta.

— O que tá rolando, Nathan?

— Não tenho ideia. Carlton está totalmente misterioso com isso. —


comentei, com medo de falar mais coisas e envolver Tommy em algo que
não deveria. — Vamos voltar ao trabalho?

Quando estávamos desligando tudo para sair, meu celular apitou


novamente. Olhei o visor, vendo duas mensagens recentes. Uma era da
concessionária; meu carro novo finalmente estava pronto. A outra era da
Joanna, avisando que a reunião com o tal Juiz estava marcada.

Ainda que eu soubesse o quanto podia ser errado, estava a disposto a pagar
o que fosse para que aquele bendito papel fosse assinado.
As luzes do jardim estavam todas acesas quando o Uber me deixou em
frente à casa de Tia Sophia. Estranhei a luminosidade, pois tia Soph sempre
reclamava do preço alto da conta de luz, mesmo que o dinheiro não fosse
mais uma preocupação. Toquei a campainha, tentando observar pela janela
alguma movimentação na casa. Uns segundos depois, uma Mia sorridente e
agitada abriu a porta para mim.

— Nathan! — A garota pulou no meu pescoço, sorrindo. — Não sabia que


vinha hoje.

— Carlton reclamou que tenho vindo pouco aqui, e é verdade — expliquei.

— Ainda tá sem carro? — Mia perguntou ao perceber que o Jeep não


estava estacionado no jardim.

— Comprei outro. Chegou hoje na concessionária, mas não busquei ainda.

— Não podia ter consertado o Jeep?

Até podia. Mas quebrar os vidros daquele carro na base do soco, foi quase
como apagar um pedaço ruim do passado. Lianah podia não lembrar de
nada, mas foi naquele carro que tentei levar Camille embora do Republic
anos atrás. Me livrar dele, fazia parte do meu processo de renovação.

— Comprei a BMW — contei a ela, vendo seu sorriso crescer.

— Vai me deixar dirigir? — Mia perguntou fazendo um biquinho fofo.

— Talvez eu não deixe nem Ethan e Thommas encostarem nesse carro, Mia
— avisei, vendo-a me olhar ressentida. Aquela BMW X6 era meu sonho de
consumo a muitos anos.

— Mamãe está costurando. Ela não faz outra coisa. — Mia revirou os olhos
me puxando pelo pulso, corredor adentro. — Mãe, olha quem está aqui —
gritou batendo à porta do quarto de costura.

Tia Soph estava sentada em frente a uma das máquinas, e sorriu


abertamente quando me viu.
— Nathan, lembrou que eu existo? — Sorri, indo abraçá-la.

— Desculpa, tia. Tenho andando sobrecarregado com a empresa e a ONG.


Muita coisa na cabeça.

Tia Soph me abraçou apertado, cheirando meu pescoço e minha roupa.

— Sem cheiro de whisky?

— Nem me lembro da última vez que bebi.

A informação foi uma surpresa para mim também. Os últimos meses


estavam sendo os mais loucos que já tinha vivido, e era tanta coisa para
processar que eu nem me lembrava mais da dose diária de whisky.

— Tia porque está tudo aceso nessa casa? — perguntei vendo que as luzes
do interior também estavam todas acesas.

— Mania do Carl agora. Ele sai deixando tudo acesso. Esse trabalho vai
acabar deixando seu tio maluco. — Tia Sophia saiu do quarto junto
comigo, me levando para a cozinha. — Fiz aquele macarrão que você
adora. Janta com a gente?

— Claro! — Embora tenha concordado, minha cabeça estava longe daquela


cozinha. Carlton estava misterioso demais e andava deixando as luzes pela
casa acesas à noite. — O Carl está em casa?

— Está tomando banho — Minha tia respondeu, tirando alguns pratos do


armário. — Me ajuda com a mesa? — assenti, pegando os pratos do balcão
e levando para a mesa redonda.

Olhei para Mia debruçada sobre o balcão com a cara enfiada no celular,
sorrindo para a tela.

— Mia, queria ver umas coisas da ONG com você. Podemos falar lá em
cima depois? — pedi, querendo saber se Mia tinha alguma informação que
pudesse me ajudar a entender essa história.
— A Mia não sai mais desse celular. O tempo inteiro que está em casa só
sabe ficar nesse celular — tia Soph reclamou.

— Mãe, eu quase não passo tempo em casa — Mia se defendeu. Sorri,


percebendo como sentia falta desses pequenos momentos em família. — E
quando o Nathan vivia na rua atrás de mulher, a senhora não reclamava
com ele.

— Ei, me deixa fora disso — reclamei, tirando o celular da mão dela.

Mia arregalou os olhos desesperada.

— Nate, me devolve — pediu pulando em cima de mim, tirando o celular


da minha mão.

Encarei seu rosto desesperado, seus dedos agitados bloqueando a tela do


celular.

— O que tinha aí que eu não podia ver, Mia? — perguntei apertando os


olhos em sua direção.

— Não gosto que invadam meu espaço — gritou, deixando o celular


bloqueado sobre o balcão.

— Nathan, o que houve com sua mão? — Tia Soph perguntou vendo os
machucados ainda evidentes nos nós dos meus dedos.

Porra.

Explicar para ela era sempre mais difícil. Tia Sophia sentia demais tudo a
meu respeito. Ela costumava se envolver demais emocionalmente com os
meus problemas. Eu ainda estava tentando buscar palavras para explicar a
ela, quando Mia intercedeu.

— Mãe, lembra da menina que impediu o Nate de levar a Camille e


chamou a polícia? É a Liah, da ONG que estou trabalhando. Ela e o Nate
brigaram e ele ficou puto, quebrou o carro dele todo na base do soco.

Tia Sophia me olhou aterrorizada.


— Valeu, Mia — reclamei.

Era um resumo bem real dos acontecimentos, embora impactante demais


para tia Soph.

— Nate, isso é verdade? — minha tia perguntou preocupada, pegando


minha mão e avaliando os machucados.

— Qual parte, tia? — Não tinha certeza se ela falava sobre Lianah, ou
sobre eu ter socado o carro.

— Alguma parte do que Mia falou, não é? — tia Soph sacudiu a cabeça,
reprovando o sorriso orgulhoso estampado no rosto da filha. — Mia, você é
péssima dando notícias. Deus queira que nunca precise anunciar a morte de
alguém.

— Credo, mãe! — Mia sacudiu o corpo, como se espantasse a ideia de dar


essa notícia um dia.

— Vamos esquecer isso e jantar? — propus. — Vou lá em cima chamar o


Carlton.

— Vou com você, Nate — Mia avisou, me seguindo pela escada.

— Por que essa história das luzes acesas agora? Carlton anda preocupado
com alguma coisa? — perguntei assim que chegamos lá em cima, esticando
o pescoço para ter certeza de que meu tio não saía do quarto.

Mia me olhou nervosa, eu sabia que ela sabia de alguma coisa.

— Ele diz que é a cabeça dele, que está muito cheia e simplesmente se
esquece de apagar. Ele pode enganar minha mãe com essa história da
carochinha, mas a mim não. — Mia também olhou em direção à porta do
quarto. — Ele anda mesmo preocupado, mas nunca fala nada. Então não
consigo te ajudar com mais que isso.

Ouvimos alguns barulhos no quarto e interrompemos a conversa. Caminhei


até a porta dando duas batidinhas.
— Carl! — chamei. Alguns segundo depois a porta se abriu.

— Ei, Nathan. Não sabia que ia aparecer hoje. Foi bom eu ter te cobrado —
Carlton riu, me cumprimentando. — Sua tia deve estar muito feliz agora.

— Claro — foi Mia quem respondeu. — Minha presença ela não valoriza.
E olha que eu que sou a filha.

— Cheguei aqui bem antes de você, pirralha — avisei, dando um tapinha


em sua cabeça. — Vamos descer pra jantar, você vem?

Descemos e a mesa já estava toda pronta. O cheiro do macarrão da tia Soph


era suficiente para me trazer aquela sensação antiga de lar.

Era a primeira vez em muito tempo que consegui aproveitar o tempo em


família de verdade.

05 de junho de 2019

Olivia estava a meia hora me explicando a importância de uma alimentação


saudável e uma rotina de exercícios na vida. Olie marcou comigo na quarta
à noite no meu loft para gente conversar sobre a adoção da Triss.

— Como você planeja manter uma adolescente aqui? — Olivia revirava os


olhos para cada embalagem de congelado que ela retirava do meu freezer.
— A Triss está numa fase crucial do crescimento. Ela não pode comer
lasanha e nugget, Nate. Amanhã a gente vai fazer compras, entendeu?

Ri de sua irritação, o que só serviu para deixá-la ainda mais irritada.


Apenas os fios escuros de cabelo eram visíveis por trás das portas largas da
geladeira.

— Olie, eu não como essas coisas todos os dias. Eu sempre almoço na rua,
e juro por Deus que como coisas saudáveis.

— Aí chega em casa à noite, e come essas porcarias — Olivia juntou todos


os congelados em um saco grande de lixo. — Vou dar todas essas coisas
para o porteiro. Você está proibido de colocar essas porcarias aqui. E eu
vou tomar conta da alimentação de vocês.

Suspirei resignado, sabendo que nada que eu dissesse a faria mudar de


ideia. Olivia passou por mim, me lançando um olhar analítico e irritado.

— O que foi agora? — perguntei.

— Como vocês conseguem isso? Se eu comer metade dessas porcarias,


minha saúde já era. Você, Tommy e Ethan comem porcarias, vão à
academia quando querem e continuam magros e sarados. — Olivia me deu
um tapa no ombro, como se eu tivesse culpa do meu metabolismo. — O
Tommy deve ter programado algum sistema capaz de desenvolver músculo
enquanto trabalha, só pode ser isso. Como ele tem todos aqueles músculos?

— Olie, não surta — ri alto, vendo sua indignação. — Prometo que vou
comprar coisas mais saudáveis, ok?

Olivia suspirou, mas concordou. A garota deixou o saco de congelados


separado sobre a pia.

— Pretende continuar morando aqui? Esse loft é grande, mas só tem um


quarto, que nem é quarto, e uma adolescente precisa de privacidade. Logo
que a adaptação for aprovada, você deve receber uma visita da Joanna. Se
ela souber que você mora num loft, por maior que seja, ela volta atrás
rapidinho nessa história. Sua sorte é que ela sabe que você tem muito
dinheiro.

Eu deveria me questionar se estava mesmo preparado para isso. Nem


pensar que eu não tinha um quarto para Triss, pensei.

— Não pensei nisso, Olie. Nem sei se vou conseguir esse processo de
adoção. A Lianah deixou claro que por ela eu não tiraria a Triss da ONG.

— Eu vou conversar com ela, Nathan. Liah não vai travar a adoção. Não
depois de ter entendido seu lado — Olie apoiou os braços sobre o balcão,
impulsionando o corpo para cima. — Você está bem com isso? Hoje você
esteve na ONG.
Eu ainda ministrava um curso e não queria deixar meus alunos na mão.
Além disso, a ONG era uma terapia para mim também.

— Estou bem, sim. — Pensei em Lianah, e por algum motivo, eu me


preocupava com a reação dela. — Como ela está?

— A Liah? — assenti. — Bem, dentro do possível. Ela se sente muito


culpada. Acha que merece todo o ódio que você pode sentir por ela.

O discurso do Doutor Emerson voltou à minha cabeça. Eu conseguia


enxergar e entender que a garota não tinha todas as informações para
entender o contexto geral aquela noite. Lianah reagiu como provavelmente
eu também teria reagido na mesma situação. No entanto, certa ou não, ela
havia causado consequências na minha vida.

— Eu sei que não é racional, Olie. Ela não tinha consciência do que estava
realmente acontecendo aquela noite, mas ainda assim não consigo deixar de
pensar em como as coisas seriam se ela não tivesse aparecido ali e me
impedido de levar Camille embora. — Expliquei meu lado para um de
meus amigos pela primeira vez desde o sábado.

Olie desceu do balcão e me abraçou.

— Eu entendo, Nate. De verdade.

— Juro que não tenho intenção de ser grosso ou cruel com ela, Olie. Só tem
sido bem difícil, pra mim, encarar todo esse passado desde que Lianah
surgiu na minha frente.

— Você podia ter contado isso antes pra gente — a morena me encarou
insatisfeita, soltando os braços do meu pescoço. — Todo mundo entendeu,
ninguém ia ficar contra você ou ela. Ethan me disse que você tinha medo
disso e por isso não contou. Mas a gente podia ter ajudado a melhorar essa
coisa entre vocês.

Enfiei as mãos no bolso do jeans e recostei o corpo no balcão, encarando


Olívia.
Eu entendia o ímpeto deles em querer que isso funcionasse, mas mesmo
que eu tivesse falado, meu temperamento difícil jamais me permitiria
conviver pacificamente com ela, sentindo toda aquela aversão pelo que
Lianah representava.

— Independentemente de ter ou não contado, eu preciso tirar esses


sentimentos ruins de mim antes, Olie. Eu já tive mais ódio dela do que
tenho hoje. Saber que existe uma Lianah que se preocupa com o mundo e,
principalmente, com crianças que não tiveram a mesma sorte que eu,
atenua um pouca as coisas ruins que pensava dela — expliquei o que vinha
pensando desde a última seção de terapia.

— Pensava? No passado? — perguntou divertida.

— Lianah me irrita, Olívia. De um jeito que você jamais entenderia. Além


do que ela me causou, ela age o tempo todo como se fosse dona da razão —
respondi irritado. — Acho que ela e eu nunca nos daríamos bem.

Olívia me olhou de um jeito estranho, balançando a cabeça em negação em


seguida.

— Tudo bem, posso entender isso. Mas não quer dizer que eu concorde
com isso. Vocês se surpreenderiam um com o outro se dessem a
oportunidade de se conhecer — reclamou, dando de ombros. — Mas vamos
voltar ao foco do que viemos fazer aqui…

O resto da noite foi uma sucessão de instruções, recomendações e


reclamações de Olie sobre meu loft, minha comida, a quantidade de bebida
alcoólica nos meus armários e a necessidade de saber lidar com uma
adolescente. Pelo menos nesse último ponto eu tinha alguma experiência.
Geralmente eu era a única pessoa que Mia escutava, aprendi meio que na
marra a lidar com uma adolescente rebelde em seus plenos dezesseis anos,
a mesma idade de Triss.

Olivia havia me prometido conversar com Lianah para que preenchessem o


tal formulário de indicação que estava pendente no meu processo de
adoção. E eu havia prometido a Olivia procurar um novo apartamento o
mais rápido possível. Afinal, conforme Olie falou diversas vezes, uma
adolescente precisava de privacidade.

06 de junho de 2019

— Está disposto a falar hoje? — Dr. Emerson me perguntou assim que


relaxei na poltrona na quinta pela manhã.

— Na verdade, estou com preguiça de falar — brinquei, embora fosse


verdade. Falar sobre toda a minha vida por mais de duas horas na terça, me
deixou exausto de falar de problemas.

Dr. Emerson pegou seu bloco, buscando algumas informações.

— Vamos fazer o seguinte, eu tenho algumas perguntas, eu faço e você


responde se sentir à vontade.

— Imaginei que tivesse. Te dei informação demais na terça, não foi? —


sorri envergonhado.

— Confesso que me surpreendi, Nathan. Não esperava toda aquela


avalanche saindo de você. Claro que fiquei imensamente feliz, pois muita
coisa passou a fazer sentido para mim. — o psicólogo sorriu complacente
antes de olhar novamente seu bloco. — Como você se sentiu depois que
saiu daqui na terça?

— Bem. Como há muito tempo não me sentia, na verdade — confessei.

Doutor Emerson anotou algumas palavras.

— Você viu Lianah alguma vez nesse tempo? — neguei com a cabeça. —
Você está evitando um embate?

Não havia pensado sobre isso.

— Acho que não. Eu estive na ONG ontem, mas não cruzei com ela em
nenhum momento. Ontem também perguntei para Olie sobre ela, mas não
tenho certeza sobre o motivo de querer saber como ela está.

— Isso me leva a próxima pergunta. Você comentou sobre a reação da


Lianah, sobre ela se sentir culpada. Como você se sente sabendo que ela se
sente culpada?

— Mas ela é culpada, não é? — perguntei confuso.

Lianah apareceu aquela noite e me tirou a única oportunidade de salvar


meu filho.

— Nathan, eu perguntei apenas como você se sentia em relação a isso. Não


se você concordava com o fato dela ser culpada ou não — Dr. Emerson
tirou os óculos, apontando o indicador para mim. — Percebe que isso gerou
um incômodo em você?

Pensei por um momento, sem ter certeza sobre onde ele queria chegar.

— Não sei se entendi.

— Eu formulei uma pergunta para saber como você se sentia em relação a


Lianah se achar culpada. Seu senso de julgamento falou mais alto e
instaurou um incômodo em você sobre a afirmação dela se sentir culpada.
— o homem explicou.

— Acho que entendi — me forcei a pensar um pouco mais sobre aquilo. —


A gente poderia desviar o foco da Lianah hoje? — pedi, incomodado com o
rumo da conversa.

— Nosso próximo ponto é Camille — o homem mais velho voltou a olhar


o bloco. — Você consegue me dizer por que seu incomodo é menos
evidente com a Camille?

Camille era a pior pessoa no mundo para mim. Ela havia matado meu filho.
Mas desde que Lianah voltou a aparecer na minha vida, parece que eu só
alimentava a raiva que sentia dela e esquecia a que sentia por Camille.

— Nunca pensei nisso — confessei. — Talvez por Lianah estar mais


presente na minha vida hoje.
— Racionalmente, quem teve a atitude pior? — relutante em responder,
percebi o jogo daquele médico.

— Dr. Emerson, você está querendo dizer que eu deveria ter mais raiva da
Camille do que da Lianah? — questionei.

O homem negou com a cabeça, largando o bloco sobre a cadeira e apoiando


os cotovelos sobre os joelhos.

— Nathan, o ponto aqui é que a Camille teve atitudes que levaram a perda
do filho de vocês num momento que, você acha que poderia ser evitado, se
Lianah não tivesse aparecido. Se ela não tivesse aparecido, você acha que
tudo estaria solucionado. Camille estaria internada, teria médicos e
enfermeiros para mantê-la sã, e consequentemente seu filho nasceria bem.
E claro, isso poderia ter realmente acontecido. Mas e se não acontecesse? E
se Camille tivesse bebido e se drogado em outro momento, sem ninguém
por perto para avisar?

— Eu ainda teria os mesmos problemas — concluí. — Só não existira a


Lianah nesse rolo todo.

— O que te afeta mais, Nathan? Ter sido abandonado por seus pais, ter
perdido seu filho ou ter conhecido a Lianah dessa forma?

A pergunta era complexa. Precisei estabelecer uma linha de raciocínio para


entender.

Embora o abandono dos meus pais me doesse, eu superei isso com o amor
e a família que minha tia me deu. Aquele abandono só serviu de
combustível para me fazer querer dar a melhor vida possível ao meu filho.
Incluindo uma família estruturada.

A felicidade que tomou conta de mim quando descobri que Camille estava
grávida, não tinha explicação. Mesmo com todos os problemas do nosso
relacionamento, eu já amava aquele bebê incondicionalmente.

Lianah estava diretamente ligada à perda do meu filho pelas circunstâncias.


— Lógico que a perda do meu filho me afeta mais. Mas Lianah está
diretamente ligada a isso.

— Não, Nathan — Dr. Emerson discordou. — Lianah está indiretamente


ligado a isso. Ela foi só um meio para que tudo acontecesse. Camille está
mais ligada a isso que Lianah. Até mesmo a Camille, já se perguntou se ela
tinha a intenção de matar o bebê quando se drogou? O que quero dizer aqui
é que a culpa é relativa.

— Não tenho certeza se entendi — falei, tentando buscar o mesmo


entendimento que ele. O homem cruzou as pernas, me encarando com um
meio sorriso no rosto.

— A culpa é relativa. Na cabeça da Lianah, ela estava interferindo em uma


situação entendendo que estava praticando uma boa ação. Mas todas as
nossas ações desencadeiam reações. Culpa não necessariamente é algo
ruim. O que você chama de culpa, pode ser substituído pelo termo
responsabilidade. Nesse caso, Lianah desencadeou um fato que permitiu
Camille continuar se drogando noite adentro e, consequentemente, perder o
bebê, então, sim, ela tem responsabilidade por isso. Mas quem drogou
Camille no fim das contas?

— A própria Camille — respondi baixo, começando a entender onde ele


estava chegando. — Lianah é responsável por não me deixar levar a
Camille embora. Mas Camille é culpada por decidir se drogar até a
inconsciência.

— Estamos chegando lá — Dr. Emerson seguiu com uma grande


explicação sobre o conceito de culpa relativa e como não necessariamente
ser culpado era uma coisa ruim. Ele mesmo deu o exemplo de eu ser
culpado por querer dar um futuro melhor a Triss. Os conceitos começaram
a clarear em minha mente.

Quando saí do consultório, tinha sensação de que meu cérebro era uma
máquina de lavar roupa, batendo em todo sua potência. Era informação
demais para um dia só.
08 de junho de 2019

Acordei no sábado pela manhã com meu celular tocando na mesa de


cabeceira. Olhei a hora, vendo que já passava das 07:00h. Que merda! Eu
estava muito atrasado para tudo.

— Alô — atendi sem reparar no nome de quem me ligava.

— Oi, meu amor! — Gemi frustrado ao reconhecer a voz enjoativa e


dramática do outro lado da linha. — Estou morrendo de saudade de você.

Uma irritação profunda dominou meu corpo. Parece que todos os


problemas da minha vida resolveram ressuscitar e me assombrar.

— O que você quer, Elise? — questionei impaciente.

— Eu sou sua mãe, Nathaniel. Não pode me tratar com um pouco mais de
consideração?

Revirei meus olhos, prevendo o show de drama que se seguiria. Era sempre
assim, ela ligava e se fazia de vítima toda vez que não conseguia me
manipular.

— Elise, eu estou super atrasado hoje. Diz logo o que você quer. Preciso
desligar em um minuto.

— Vou ficar na casa de Sophia por uns dias, querido. Queria ver meu filho.

Eu quis, por muitas vezes, ver minha mãe. Até que a frustração fizesse com
que essa vontade desaparecesse totalmente da minha vida. Nesse momento,
tinham coisas demais acontecendo para arrumar mais um estresse.

— Se eu tiver algum tempo, passo lá — minha voz soou ainda mais


cansada do que eu realmente me sentia.

Desliguei o telefone antes que ela pudesse me pressionar mais.

Eu conhecia aquela situação tão bem a ponto de poder descrever, com


segurança, os próximos acontecimentos. Tia Sophia me ligaria pedindo que
eu fosse a um almoço ou jantar em sua casa e Elise reclamaria que eu sou
incapaz de procurá-la sequer para saber se está viva ou morta. Eu jogaria
alguma verdade em sua cara e o clima pesaria. Por fim, ela iria embora e
ficaria sumida por quase um ano até que resolvesse sentir minha falta
novamente.

Meu celular tocou de novo, quase me fazendo chorar. Respirei aliviado


quando vi o nome de Ethan na tela.

— Estou atrasado — avisei assim que atendi.

Ethan e Tommy passariam aqui as 08:00h para me buscar. Hoje iríamos


para a ONG ajudar Lianah com o material das obras que seria entregue.
Preciso admitir que a ideia de olhar para ela, depois de todo o show de
sábado passado, me deixava ansioso.

Eu não queria mais levar aquela situação para frente. As brigas recorrentes
com ela me tiravam o sono. Depois da conversa com meu psicólogo na
quinta, eu estava disposto a entender o lado dela, e só essa atitude já era
suficiente para me deixar com a sensação de que havia tirado cinquenta
quilos das minhas costas.

— Quanto tempo? Estou quase aí. — Ethan perguntou.

— Uns trinta minutos. Preciso de café! — exigi.

Talvez depois da ligação de Elise, nem fosse tão necessário assim.

Desliguei o telefone, correndo para o chuveiro. Tomei um banho rápido


vestindo a primeira bermuda de moletom preto que achei na gaveta. O dia
hoje estava mais quente que o normal, e provavelmente a gente ia suar
carregando todo aquele peso. Vesti uma blusa de malha branca e peguei um
boné no armário. Calcei meu tênis e borrifei perfume. Me olhei no espelho
uma última vez, lembrando que precisava cortar o cabelo e dar um jeito
naquela bagunça.

Ethan já estava estacionado em frente ao meu prédio. Thommas estava ao


seu lado no banco do carona. Entrei no banco de trás, ajeitando o boné para
trás na cabeça. Ethan me estendeu o copo do Starbucks e o cheiro de café
me atingiu.

— Bom dia — disse pegando o copo da mão dele.

Os dois olharam para trás, me encarando.

— Bom dia? — Thommas perguntou arqueando a sobrancelha.

— O que foi? — confuso, encarei os dois estreitando meus olhos.

— Nada de não aguento mais a Lianah ou espero não ter que olhar para a
cara da Lianah ou não sei onde estava com a cabeça quando me envolvi
nessa ONG… ? — Ethan dizia numa tentativa ridícula de imitar minha voz.

Passei a língua pelos lábios, soltando um riso fraco. Tudo bem, talvez o
'Bom dia' não fosse o meu usual nessa condição. Mas eu estava mais leve
do que podia me lembrar em muito tempo.

— Quem vai reclamar dela, é você, se atrasarmos mais, quando ela te


encher o saco porque não chegou na hora.

— Já entendi — Ethan deu partida no carro, pegando a avenida em direção


a ONG.

Descansei as costas no banco do carro, voltando a me concentrar no meu


café. Sorri ao perceber que nem Elise conseguiu me tirar do sério hoje.
07 de junho de 2019
Olivia digitava sem parar a tal carta de avaliação sobre Nathan. Não, eu
ainda não concordava com aquilo. A verdade é que estava sendo
diariamente bombardeada por Ethan e Olie, tentando me convencer que
aquela era a melhor opção.
— Não vou assinar — reclamei pela trigésima vez. — Eu ainda nem
conversei com ele sobre isso.
— Liah, por favor! — Ethan pediu irritado. — Achei que depois de saber
a verdade você entenderia o motivo dele ser assim.
— Eu entendo, Ethan. Isso não muda o fato de que uma adoção tem que
ser algo pensado e bem feito…
— Liah, a verdade é que o problema é a Triss. Você se apegou a ela, não
foi? — Olie me interrompeu.
Sim, eu me apaguei.
Ethan me entregou o papel que havia acabado de sair da impressora.
— Se você gosta tanto dela, sabe que é o melhor para ela, Liah. Assina
isso e manda para a Joanna. — peguei o papel relutante, bufando.
— Vou querer ler o que está escrito aqui? — perguntei.
Queria me privar do trabalho de não concordar com as referências de
Olie sobre o amigo. Olivia negou, sorrindo. Revirei os olhos enquanto
pegava a caneta e assinava no lugar indicado.
— Se acontecer alguma coisa com a Triss a culpa é de vocês,
entenderam?
Ethan e Olie bateram as mãos num high five, sorrindo ridiculamente uma
para o outro.—
— Qualquer coisa você mata o Nathan — Ethan jogou a
responsabilidade para o amigo.
— Não esquece que amanhã temos o recebimento das mercadorias da
obra. Vocês vêm me ajudar? — perguntei.
— Tommy e Nate vem também — avisou.
Pensei em como seria vê-lo depois de tudo. Desde sábado eu não
esbarrava com Nathan na ONG. Uma parte de mim tinha bastante receio
dele apontar o dedo e me culpar novamente, e eu já estava me sentindo
bastante culpada sozinha.
— Nem sei o que eu faria sem vocês — ainda não conseguia acreditar
como eles eram capazes de ajudar em qualquer coisa da ONG.
Ethan se envolveu com tudo desde o início, Tommy veio um pouquinho
depois. Mas minha surpresa maior foi ver Nathan se aproximar e acabar
ficando. Mesmo com seus problemas comigo e seu ódio por mim, Nathan
ficou e ajudou nos momentos mais difíceis.
— A gente vai fazer qualquer coisa que estiver ao nosso alcance —
Ethan avisou. — E como está o processo da sua avó?
— Um caos, Ethan. — Deixei meus ombros caírem. — Não tem
nenhuma prova concreta de que vovó estivesse sendo coagida. Só temos
boatos e alguns testemunhos contraditórios. Estevem agendou uma reunião
semana que vem, querendo algumas informações.
— Quer ir para o Republic com a gente hoje? Distrair um pouco a
cabeça? — Olívia ofereceu, se aproximando da gente.
— Nem pensar! Preciso descansar, e o Republic só tem me feito ter
estresse ultimamente — avisei pegando minha bolsa e me preparando para
sair.
08 de junho de 2019
No sábado pela manhã cheguei bem cedo à ONG. Estava tendo muita
dificuldade para dormir durante a noite. Às 05:00h já costumava estar
acordada e resolvi sair mais cedo para adiantar o trabalho. Fiquei lendo
alguns documentos até que ouvi os risos altos de Tommy pelo corredor.
Atravessai a porta da minha sala, olhando o extenso corredor e vi Ethan,
Tommy e Nathan brincando um com o outro, os três sorrindo abertamente
enquanto caminhavam.
Não era uma visão muito usual, considerando a cara emburrada que
Nathan carregava sempre que estava perto de mim. Mas era inegável o
quanto ele ficava diferente sorrindo.
Ah, Nathan. Você deveria sorrir mais.
Os três amigos estavam de bermuda e blusas de malha, o que também
era bem diferente do usual, quase formal, deles.
Mas tinha algo mais intenso diferente nos três; havia uma conexão entre
eles, que eu nunca havia visto antes. Sorri me sentindo contagiada com a
cena.
— Oi, Liah! — Tommy me abraçou quando chegou em mim, deixando
um beijo no meu rosto. Em seguida, Ethan fez o mesmo.
— Oi, meninos — cumprimentei, evitando olhar para Nathan e o
constrangimento que isso traria.
— O caminhão acabou de chegar — Ethan avisou. — Chegou junto com
a gente. Vamos ajudar o pessoal a descarregar.
— Eu vou ajudar vocês — falei enquanto fechava a porta da sala.
Arrisquei uma olhada de lado para Nathan, que estava encostado na
parede do corredor, distraído e olhando para o chão enquanto girava uma
chave na mão. Seus olhos estavam baixos, seu cabelo bagunçado mal
escondido por um boné que o deixava com o rosto ainda mais novo e
bonito.
— Não precisa carregar peso, a gente dá conta — Tommy mostrou os
músculos do braço e ri, lembrando de Olivia reclamando do metabolismo
deles.
— Claro que dão — debochei. — Sua sorte é que Olivia não está aqui
para reclamar do quanto vocês são ingratos com os corpos de vocês.
Para minha surpresa, Nathan riu, olhando para o amigo.
— Vai por mim, Tommy, você nunca vai querer escutar um sermão de
meia hora da Olie sobre alimentação saudável e rotina de exercícios.
— Isso chega a me dar arrepios — Tommy brincou, sacudindo a cabeça.
— Vamos lá pegar as coisas.
— Vou abrir a porta lá em cima e desço para ajudar vocês — avisei,
tomando a direção contrária deles.
A escada que levava ao corredor de cima estava entulhada de sacos de
cimento e latas de tinta que chegaram durante a semana, dificultando a
passagem de quem subisse. Comecei a levar os itens pesados para o grande
salão lá em cima, pensando em deixar o caminho livre para os meninos
subirem. Graças a Deus resolvi sair de casa de legging e tênis, caso
contrário seria bem difícil poder ajudar.
Depois de quase vinte minutos, percebi que eu mal havia conseguido
liberar os primeiros degraus da escada. O suor e o cansaço já começavam a
me incomodar, reflexo da péssima alimentação e dias consecutivos
dormindo. Respirei fundo, olhando os inúmeros degraus cheios de coisas
pesadas, sequei o suor da testa com as costas da mão e me abaixei para
pegar o galão de tinta mais próximo, fazendo um esforço exagerado para
levantá-lo do chão.
— Quer ajuda? — Levei um susto ao notar Nathan, subindo a escada
atrás de mim. — Ethan me pediu para ver se estava tudo bem aqui. —
Larguei o galão no chão, encarando o homem a minha frente surpresa. —
Você não voltou pra lá, Ethan e Tommy ficaram preocupados — Nathan
justificou, percebendo meu semblante confuso.
Na última vez que o vi, aqui mesmo na ONG, ele estava tendo uma crise
e me acusando de ter destruído a vida dele, então era natural pensar que
falar comigo, seria a última coisa que ele faria. E também tinha o fato do
meu constrangimento.
Sem saber, mesmo que minha intenção não fosse aquela, eu interferi
significativamente na vida dele, causando seus maiores traumas e tristezas.
Senti meu rosto esquentar e sabia que estava vermelha em vários níveis.
Desviei o olhar, encarando o chão e o galão aos meus pés.
— Estava liberando a escada pra vocês — expliquei, voltando a levantar
o galão com dificuldade.
— Deixa que faço isso — Nathan esticou o braço para tirar a alça do
galão da minha mão sem muita dificuldade, pegando um segundo galão no
degrau acima.
Por um instante, meus olhos se prenderam no desenho tatuado em seu
antebraço direito. Era uma flor de Íris; a preferida da minha avó.
Automaticamente meus olhos fugiram para os músculos do seu bíceps
esquerdo, na figura parcialmente encoberta pela manga da blusa; as asas de
anjo cercadas por flores e alguns outros desenhos que não pude identificar,
fechando toda a metade de cima do seu braço.
— Deixo no salão aqui em cima? — assenti desconcertada, vendo
Nathan subir as escadas sem dificuldade.
Quando já estava alguns degraus para cima, algumas linhas em alto-
relevo se tornaram mais evidentes em sua perna esquerda, me fazendo
reparar em como aquelas feridas deveriam ter sido graves, dado o tamanho
de suas cicatrizes. Engoli seco, tentando afastar a culpa de mim pela
milésima vez, desde que descobri o que tinha realmente acontecido com ele.
Me preocupei em levar algumas caixas mais leves enquanto Nathan
levava todo o material pesado. Passamos algumas vezes um pelo outro na
escada, tendo o cuidado de não nos esbarrarmos. Também não trocamos
mais nenhuma palavra durante todo o tempo. Faltavam só mais algumas
caixas quando Ethan e Tommy apareceram, subindo os degraus.
— Trouxemos todo o material para o corredor — Tommy avisou
chegando até mim. — Assim vai ficar mais fácil de subir — o loiro olhou
para mim e então para Nathan, voltando a olhar para mim. — Tudo bem por
aqui?
Revirei meus olhos, entendendo que Tommy queria saber se a gente não
tinha se matado nesse tempo. Nathan direcionou um olhar irritado ao
amigo, passando por mim em seguida.
— Vou começar a subir com as coisas. — Então desceu as escadas
correndo, deixando um rastro de um cheiro amadeirado no ar.
Sorriso. Perfume. Dois pontos a seu favor.
— Tudo bem, Liah? — Ethan me olhou de um jeito estranho e só então
me dei conta de que ainda estava parada, com a testa franzida por não
entender meus últimos pensamentos.
— Acho que sim — respondi aérea, voltando a subir com as caixas que
faltavam.
Os meninos subiram com todo o material em pouco tempo. Nathan e
Tommy estavam analisando o salão e entrando em acordo como fariam para
colocar os pisos e pintar em seguida, enquanto Ethan ligava para alguma
pizzaria e pedia comida para todos.
— Liah, quanto tempo a gente tem pra terminar isso? — Tommy
perguntou alto do outro canto do salão.
— Temos que receber as crianças até o dia trinta desse mês, mas ainda
tem a vistoria antes — contei nos dedos, indo até eles. — Então são vinte
dias mais ou menos.
Nathan suspirou me encarando.
— Vamos contratar alguém pra colocar os pisos mais rápido. Na próxima
semana, a gente mesmo ajuda a pintar.
— Mas os custos da ONG estão sendo extremamente controlados —
reclamei preocupada. — Um profissional vai cobrar caro pra fazer isso em
pouco tempo.
— A gente vai pagar — Tommy avisou.
Olhei para os lados, consternada com a situação. Não era justo quando
eles já faziam tanto pelo meu projeto.
— Vocês já estão ajudando muito financeiramente, e dedicando tempo
demais a isso, eu não…
— Isso não está em negociação, Lianah! — Nathan me cortou sério. —
A gente vai demorar bem mais que um profissional para colocar o piso. Pra
falar a verdade, a gente nunca fez isso na vida. Esse salão é enorme e a
chance de estourarmos o prazo é maior ainda. Tem que dar tempo da tinta
secar, colocar as paredes divisórias e montar as camas das crianças e os
restantes dos móveis… isso tudo em vinte dias… — terminou me
encarando ainda mais sério.
Eles tinham razão. A chance de estourarmos o prazo era enorme. Era um
esforço que valeria a pena.
— Eu ainda tenho algum dinheiro guardado…
— Liah, não é tão caro assim. A gente consegue ajudar tranquilamente.
— Foi Tommy quem me cortou dessa vez.
— Vocês doaram todo o lucro de vocês de um ano inteiro — não podia
exigir mais nada deles. Os dois trocaram um olhar estranho e vi Tommy
suspirar.
— E a gente vai doar mais o que for necessário pra manter a ONG ativa
e essas crianças abrigadas. Não sei até onde você consegue perceber isso,
Lianah, mas a ONG pode até ser um projeto idealizado e criado por você,
só que a gente se envolveu demais nisso a ponto de ser uma parte da gente
também. — Me senti ansiosa com o olhar intenso de Nathan.
— Nathan, o custo dessa ONG é muito alto. Idealizei isso aqui para ser
um projeto de primeiro mundo para essas crianças. Minha avó tinha uma
fortuna inestimável capaz de manter tudo tranquilamente. Só minha
empresa seria incapaz de manter tudo sozinha. Comecei me
responsabilizando por uma quantidade grande de crianças, e manter isso é
difícil. O que vocês doaram vai segurar a ONG por alguns meses, mas não
posso esperar que vocês me entreguem tudo que tem. Vão fazer o quê?
Doar os investimentos de vocês? Comprometer os lucros do próximo ano?
Tentei explicar meu lado. A ONG tinha mesmo um custo caro. Hoje já
tínhamos mais de cem crianças e jovens abrigados.
— Porra, e o que acontece se não conseguir manter tudo funcionando?
— Nathan perguntou preocupado.
— Olha, eu não sei exatamente o motivo das coisas nessa cidade serem
assim, mas levei anos pra conseguir as licenças pra funcionar, e mesmo
assim, só aconteceu quando briguei na justiça em instâncias superiores. Mas
o teor das reclamações que recebo, me fazem pensar que tudo que acontece
aqui, por menor que seja o problema, pode ser usado pra justificar um
encerramento das minhas atividades.
Tommy e Nathan trocaram um olhar preocupado quando Ethan juntou-se
a eles.
— Nossa, vocês estão com uma cara de enterro.
— Vamos precisar contratar alguém para colocar os pisos. Estou
preocupado com o prazo. — Nathan avisou ao amigo.
Ethan passou um braço pelo ombro de Nathan e o outro pelo de Tommy.
— Estou de acordo. Vamos descer para comer? — pediu, empurrando os
amigos em direção ao corredor.

10 de junho de 2019
Dois pares de olhos me encaravam intensamente. Pigarreei chamando
atenção das duas meninas sentadas a minha frente, enquanto eu escrevia.
Arrisquei uma olhada de lado, e Mia e Triss continuavam me encarando.
Não contive uma risada nervosa.
— Vocês duas vão me dizer o que vieram fazer aqui, ou pretendem ficar
me olhando trabalhar o dia inteiro?
— Sabe o que é, Liah? — Mia ajustou o tom uma oitava abaixo do
normal, adotando um jeito fofo não muito usual para seu modo jovem
adulta rebelde. — A gente queria muito te pedir uma liberação para a Triss
ir a minha festa de aniversário.
— Mia, eu não posso autorizar isso, você sabe, não é? — Ri de seu olhar
pidão, em uma tentativa clara de imitar o famoso gatinho do Shrek.
As duas trocaram um olhar cúmplice e sorriram diabolicamente uma
para a outra.
— Mas você pode autorizar um passeio com algum tutor, não pode? —
Triss perguntou me entregando uma folha impressa com algumas normas do
estatuto da ONG. A garota era mesmo esperta.
— Ainda que você tenha um tutor para propor um passeio, a festa da Mia
precisaria ser durante o dia — expliquei, devolvendo o papel a ela.
— Você não pode autorizar um final de semana? O Nathan poderia ser o
tutor dela. — Mia pediu, insistindo na carinha fofa.
Neguei com um aceno de cabeça. Nathan não poderia tirá-la da ONG até
que o processo de adaptação da garota fosse aprovado. Mas eu não podia
contar isso a elas ainda, já que Triss não sabia do processo de adoção.
— Mia, você conversou com o Nathan sobre isso?
Ela negou com a cabeça, suspirando.
— Você não tem nenhuma solução? Liah, sei que você jamais negaria
por negar. Você é jovem e legal, sabe que proibir diversão não é o caminho.
— Você só está tentando puxar meu saco, Triss — afirmei sorrindo. —
Onde e quando seria essa festa?
— É só em agosto e vai ser na casa da minha mãe, mas não sei quanto
tempo esse tipo de autorização leva — Mia me olhou esperançosa. — Vai
ser à noite, mas será uma coisa bem família.
— Família? — Encarei a garota sem conter uma risada. — Mia, você
sabia que suas festas são famosas?
Perdi as contas de quantas vezes ouvi as meninas falando que se tinha
alguém que sabia como dar uma festa, era Mia.
— Sério? — a garota perguntou toda orgulhosa. — Você já escutou falar
das minhas festas?
— E a última coisa que falam delas e que são uma coisa bem família —
concluí.
— Ai, Liah, por favor — Triss pediu chorosa. — Eu tenho dezesseis
anos e meio e nunca fui em uma festa de verdade na vida.
Avaliei a expressão cheia de expectativa das duas. Até agosto, muita
coisa podia acontecer. Inclusive, a autorização para a adaptação da Triss, e
então Nathan poderia levá-la com ele. Caso não acontecesse até lá, eu
poderia avaliar com Joanna uma forma de liberação.
— Vou pensar em alguma coisa. — As duas explodiram em gritinhos e
abraços. Mia seria uma boa companhia para Triss, afinal de contas.
— Que felicidade toda é essa? — Olie atravessou a porta, vendo a
alegria das mais novas.
— Liah vai me liberar para ir à festa da Mia — Triss contou empolgada.
Olie me olhou confusa, sabendo que era difícil obter esse tipo de
liberação.
— Eu disse que ia pensar em alguma coisa — expliquei.
Olivia sorriu vendo a alegria das duas enquanto saiam animadas da sala.
— Sabia que você e Mia fazem aniversário no mesmo dia? — Olívia
perguntou, virando o pescoço para me olhar.
Neguei. Não tinha ideia daquilo. Não tinha muitos motivos para
comemorar mesmo, aniversário era a última coisa da qual me lembraria.
— Desculpa não ter vindo sábado. Minha mãe inventou um café da
manhã em família que foi um saco.
— Relaxa, os meninos deram conta de tudo super rápido — contei.
A garota puxou a cadeira para o meu lado, tirando os documentos da
minha frente.
— Me conta como foi. O Nathan veio? Vocês conversaram?
Larguei o corpo na cadeira, sentindo o cansaço pelo assunto me açoitar
antes mesmo de falar qualquer palavra.
— Não, Olie. Não falamos sobre o que aconteceu.
— Que droga! — Olívia apoiou o cotovelo na mesa, me olhando irritada.
— Queria tanto que vocês dois se dessem bem.
Mordi a bochecha pensando em Nathan e nas palavras que trocamos.
— Na real, a gente se falou melhor do que se falava antes.
Seus olhos estudaram meu rosto, adotando uma expressão preocupada.
— Vocês fingiram que nada aconteceu? — Olívia tirou os documentos
que analisava da minha mão e largou sobre a mesa.
— Não exatamente. Não é como se a gente tivesse se tornado amigo. Ele
continua sendo sério e meio seco comigo, mas pelo menos não brigamos
dessa vez.
— Acho que isso é falta de sexo — Olivia soltou tranquilamente,
enquanto mordia a ponta do dedo. Soltei um riso alto.
— Do que você tá falando, Olie? Você conhece bem minha vida pessoal
para saber que no meu caso, a falta é real — Observei ainda rindo.
Olie me encarou e um sorriso malicioso surgiu em seu rosto.
— Ethan me contou que acha que Nathan não transa há vários meses. —
A encarei desacreditada.
— Tem noção de como isso soa fofoca, Olie? Ethan te contou que
ACHA… — Balancei a cabeça, apertando os olhos em reprovação e voltei
a pegar as folhas sobre a mesa.
— Você não acha estranho? — Olivia puxou novamente os documentos,
querendo minha atenção.
— O que é estranho? — perguntei sem paciência, tentando puxar
novamente as folhas, mas a garota as jogou sobre o sofá ao lado da porta,
do outro lado da mesa.
— Nathan é um cara extremamente gato. A quantidade de mulher que dá
mole pra ele é enorme, e nos últimos anos ele foi até galinha e babaca
demais para um cara educado como ele…
Ergui uma sobrancelha sem conseguir esconder o sarcasmo.
— Nathan educado? — Olivia riu.
— Sempre foi, apesar de não estar na melhor forma dele ultimamente.
Mas o que quero dizer é que ele estava vindo numa rotina de ser galinha
demais e do nada ele para.
— Você é amiga dele. Preferia que ele continuasse sendo galinha e
babaca? — Olivia mantinha o olhar distante, enquanto eu quase podia ouvir
as engrenagens trabalhando em sua cabeça. — O que você tá tentando
descobrir, Olie?
A garota me encarou pensativa enquanto batia as pontas dos dedos sobre
o tampo da mesa. Olivia mordeu o lábio e um vinco se formou em sua testa.
— Não sei se faz sentido — soltou baixinho, falando com ela mesmo.
Sem paciência para aquela conversa, levantei-me na intenção de pegar os
documentos sobre o sofá, mas parei com a próxima afirmação dela.
— Eu tenho uma teoria!
— Nunca imaginaria isso — minha voz soava a puro sarcasmo. — O
quão louca essa sua teoria é?
Voltei para a mesa com os documentos na mão, dessa vez, realmente
interessada na teoria dela. Olivia conseguia ser tão absurda às vezes, a
ponto de entreter qualquer um.
— Você virou a válvula de escape dele — Olie falou como se fosse a
coisa mais óbvia do mundo, me deixando chocada.
— Olivia! — Larguei os documentos, virando o corpo em sua direção.
Olhei para a garota com o queixo caído pela sua loucura. — Me corrija, se
eu estiver errada. Válvula de escape não seria uma coisa na qual podemos
descontar nossas frustrações positivamente?
— Desde quando a gente desconta frustração positivamente? — Olie
levantou-se, indo até o filtro de água. — Ele descontava no sexo. Agora é
como se ele descontasse em você. — A louca bebeu um gole de água do
copinho de plástico, me encarando.
Pensei no quão absurdo aquela teoria era. Olivia conseguia me
surpreender cada vez mais.
— Nesse caso eu seria um verdadeiro saco de pancada, né? Se bobear,
ele deve ter mesmo um saco de box com uma foto minha nele — brinquei.
— Estranho seria ele ter uma foto sua, não? — Olhei feio para ela.
— Olivia, vamos encerrar esse assunto? — pedi irritada. — Eu tenho
que revisar esses documentos e ainda tenho uma reunião com o advogado
da vovó hoje.
Nem esperei uma resposta dela e me preparei para voltar a atenção aos
contratos quando alguém bateu à porta.
— Entra! — gritei.
Ethan entrou na sala com um envelope na mão e cumprimentou primeiro
Olie, que estava largada no sofá agora.
— Liah, estou com o contrato da obra. Você pode ler e assinar? — disse
me entregando a pasta.
— Preciso de descanso e vocês só me dão trabalho — reclamei.
— Sexo resolve — Olivia soltou.
Olhei, pela trigésima vez naquela hora, irritada para ela. Estava prestes a
dar uma resposta grossa quando uma nova batida soou na porta, e para meu
total desespero Nathan apareceu atrás dela.
Porra. Hoje o dia iria ser difícil. Olivia apertou os olhos para mim, e eu
podia jurar que tinha algum tipo de ameaça escondida ali. Esfreguei os
olhos, tentando controlar minha respiração e a frustração acumulada
durante a manhã.
— Nathan, chegou na hora certa, as meninas estavam falando de sexo —
Ethan sorriu de lado, enquanto Nathan nos olhou confuso, sem entender
nada do que acontecia.
A cena era mesmo cômica. Olivia largada no sofá, com deboche
estampado na cara. Ethan sorrindo orgulhoso, achando que entendeu o
assunto. E eu quase chorando na mesa, esfregando insistentemente minhas
têmporas.
— Olivia, você não tem merda nenhuma pra fazer não? — perguntei
irritada. — Ethan, eu vou ler e assinar a porra do contrato. — Joguei o
envelope na pilha de papéis em minha mesa e olhei para Nathan, me
olhando assustado. — E que caralho você quer aqui?
Nathan arqueou uma sobrancelha, assumindo um meio sorriso.
— A mocinha perfeita fala palavrão?
Precisei respirar e contar até dez antes de surtar. Apoiei a testa na mesa,
reprimindo os milhares de xingamentos presos em minha garganta.
— Nathan, se você não tem nada de importante pra fazer aqui, vai
embora — minha voz soou abafada pelos cabelos que caiam nas laterais do
meu rosto afundado na madeira da mesa.
— Eu até iria, mas preciso falar com você sobre a Triss. — Escutei
quando ele deu alguns passos, sentando-se em uma das cadeiras em frente a
minha mesa.
Levantei o rosto encarando os três. Ethan e Olie trocavam alguns olhares
curiosos.
— Bem, eu vou com a Olie procurar alguma merda pra fazer, enquanto
você lê a porra do contrato e resolve algum caralho com o Nathan — Ethan
riu de sua própria fala, puxando Olivia pelo braço para fora da sala.
Eu não tinha mais força, nem vontade de rebater as piadinhas idiotas.
— O que você quer falar? — perguntei para o homem sentado à minha
frente.
— Mia acabou me falar que te pediu uma autorização para a Triss ir à
festa dela. Você sabe como está o andamento da adoção dela? — perguntou
apoiando os antebraços na mesa.
Por um segundo, fiquei tentada a perguntar da tatuagem quando o
desenho se tornou visível.
— Joanna me ligou semana passada e disse que deve sair em breve —
avisei. — Nathan, a gente não conversou sobre isso. Você tem certeza de
que quer fazer isso?
O moreno me olhou irritado antes de responder.
— O que decido ou não fazer, não é da sua conta.
— Deixa de ser nervosinho, só estou preocupada com essa adoção
repentina…
— Você é uma intrometida, Lianah. Não preocupada.
Respirei fundo, precisando contar até dez de novo, para não pular no
pescoço do idiota.
— Vou te perguntar uma última vez, tem certeza que tá preparado pra
isso?
— Todo mundo me pergunta isso o tempo inteiro. Se você vai criar
algum problema com isso agora, fala de uma vez Lianah. A gente teve essa
conversa no Republic e não terminou nada bem.
— Claro que não — quase gritei. — Você surtou e apertou meu pulso,
lembra?
— Você sempre vai usar esses argumentos baixos contra mim? —
Nathan levantou-se irritado, apoiando as mãos na mesa. — Você sabe que
isso me afeta e mesmo assim faz questão de jogar isso na minha cara o
tempo todo — seu tom foi subindo lentamente.
Irritada pela forma grosseira dele falar, também me levantei e apoiei as
mãos sobre a mesa da mesma forma que ele, encarando-o com ódio.
— Você sempre faz questão de ser grosso comigo.
— Lianah, se alguém tem motivo pra ser grosso, esse alguém sou eu —
embora seu tom tenha baixado, sua voz tornou-se ainda mais ameaçadora.
— Eu só vim até aqui saber como andava o processo. Vou aproveitar pra
deixar bem claro que você não pode fazer nada para me impedir de adotar a
Triss, nem que eu tenha que ir pra justiça resolver isso.
Um riso desacreditado escapou dos meus lábios.
— Você é louco? Eu nunca disse que ia fazer alguma coisa pra impedir.
EU assinei a porra da indicação que te permitiu seguir com esse processo.
Eu só perguntei se você tinha certeza disso, mas seu ódio por mim sempre
vai falar mais alto e vai fazer com que você entenda tudo da forma como
você quer.
Nathan esfregou o rosto e depois passou as mãos nervosamente em seus
cabelos. Um suspiro exagerado escapou dele, mas diante de seu silêncio,
continuei a falar.
— Você acha que estou tentando jogar alguma coisa na sua cara, mas
minha reação é só um reflexo dos seus ataques, Nathan. Todas as vezes que
você aparece diante de mim, tenho medo de vê-lo apontar o dedo e me
acusar de ter causado a morte do seu filho e de ter arruinado sua vida. —
Meus olhos encheram-se de lágrimas. — Eu nunca tive a intenção de te
fazer mal, porra! Isso dói em mim. Eu nunca vou saber a dor que você
sentiu por perder seu filho, mas você também nunca vai saber a dor que é se
sentir uma assassina, ou como é ruim ver alguém sofrer e saber que você
teve culpa por isso.
Minha garganta doía pelos gritos. Provavelmente, qualquer um que
estivesse passando pelo corredor teria ouvido essa última parte. As lágrimas
desciam livres pelo meu rosto, embaçando minha visão. Mesmo assim,
pude ver Nathan me encarar uma última vez antes de abrir a porta.
— É exatamente isso! Ainda que doa em você se sentir uma assassina,
não chega nem perto da dor que tive por perder minha única chance de
reverter tudo que eu conhecia de errado sobre ser pai.
Não foi surpresa ver Ethan e Olie parados do outro lado; suas bocas
abertas em espanto ao escutar a última frase de Nathan.
Ethan seguiu pelo corredor com ele enquanto Olie entrou na sala me
abraçando.
— Por isso vocês deveriam ter conversado no sábado — disse
compreensiva. — Uma hora vocês iriam estourar de novo…
— Agora não, Olie. Por favor! — pedi, tentando conter os soluços em
minha garganta.

Mais uma vez estava sentada na cadeira alta de couro do escritório do


Doutor Estevem. Me remexi desconfortável, ouvindo o homem me explicar
como Carlton poderia nos ajudar com essa investigação. Aparentemente ele
era um dos últimos policiais não corruptos daquela cidade.
— A investigação é particular, Liah — Penne me informou. — Carlton
tem acesso a muita informação pela polícia, e isso nos facilitaria a chegar
em alguma prova.
— Existe um ponto de interrogação gigante na minha cabeça — tentei
explicar. — Me recuso a acreditar que minha avó estaria envolvida,
propositalmente, num esquema desses.
Estevem e Carlton trocaram um olhar misterioso.
— Ela não estava, já te falei isso antes — Carlton declarou me
encarando em seguida. — Sua avó me procurou um tempo atrás pedindo
ajuda para se livrar de uma chantagem, mas o buraco que ela havia se
metido era bem maior do que ela esperava.
— Como assim? — Senti meu coração disparar. Devia ter ido atrás de
mais informação quando Ethan me contou sobre ela ir atrás do investigador.
— Liah, quase tudo nessa cidade funciona porque as pessoas pagam para
isso. A polícia, a prefeitura, os hospitais, os jornais e todo o resto são
extremamente corruptos. Sua avó desembolsou alguma grana pra eles
durante um tempo, sem se preocupar muito em esconder isso. — Carlton
mexeu em alguns papéis na mesinha a sua frente, me entregando um
relatório com a logo da polícia local. — São alguns documentos que
comprovam esses pagamentos.
— Então temos alguma prova — afirmei, sem entender por que ainda
não havíamos usado aquilo.
Estevem e Carlton trocaram mais alguns olhares. Penne levantou-se
irritada olhando para os homens.
— Não vai resolver, não é? Não existe motivo pra que as contas da
empresa de Liah tenham sido bloqueadas. Embora Liah prestasse alguns
serviços administrativos para a avó, todo o envolvimento empresarial delas
termina aí.
— Sem provas que possamos levar ao FBI, nada vai ser liberado. A
verdade é que na investigação interna, estão construindo uma relação de
envolvimento da Liah com todo o tráfico e lavagem de dinheiro da
Vittorino Company. Alguns policiais envolvidos estão convencendo as
autoridades do caso que a ONG é um veículo de lavagem de dinheiro. —
Carlton parecia inconformado de contar aquilo assim.
— Isso é um absurdo. Eu nunca fiz nada de errado, neguei todos os
pedidos de suborno que recebi da prefeitura na época do licenciamento da
ONG.
— Eu sei, Lianah. Eu sei! — Carlton me interrompeu. — Esse é
exatamente o problema. Se eles não podem tirar de você, te tiram do
esquema. Sua avó tentou sair porque estavam persuadindo-a a te convencer
a fazer parte disso. Consegue imaginar quantas coisas eles poderiam
esconder por trás de uma ONG tão bem falada pela mídia?
— Eu não tenho ideia do que posso fazer para ajudar — desabafei
chateada.
Antes que pudesse me responder, o celular de Carlton tocou e o homem
pediu licença, se afastando para atender.
— Eu te perguntei se havia algum lugar que Sylvia pudesse guardar algo
importante da outra vez. Você pensou em algo? — Estevem voltou a falar.
Eu podia dizer que estava com o computador e celular dela na pasta que
carregava, mas apenas neguei com a cabeça. Não conseguia pensar ainda
em minha vó escondendo coisas relevantes de mim. Achei que eu tivesse
total controle sobre ela e as coisas que aprontava, mas pelo visto, estava
totalmente errada.
— Lianah… — Carlton voltou para o sofá, exasperado. — Nathan
acabou de me ligar pra dizer que tem uns agentes do FBI na ONG. Estão
com um mandado de busca e apreensão. Evie avisou a ele que também
estão na sua empresa.
Senti o gelo que subiu pela minha espinha se acumulando no meu
estômago e no meu coração. O quão pior isso ainda podia ficar?
— Tem alguma coisa que eles não possam encontrar? — Penne me
perguntou preocupada.
— Não. Nunca fiz nada de errado, já falei! — Mesmo assim, o medo
tomava conta de mim.
— Acho melhor vocês se dividirem e irem para as empresas dela e de
Sylvia. Devem estar com mandados nas lojas e no clube também. —
Carlton sugeriu.
— Estão mesmo. Walter acabou de me enviar uma mensagem para dizer
que estão no clube. — Estevem avisou.
Desde que vovó morreu, Walter ficou responsável por toda a
administração da Rede Vittorino. Ninguém conhecia aquelas lojas e o clube
tão bem quanto ele.
— Eu vou pra ONG — avisei nervosa.
— Eu te levo lá — Carlton ofereceu. — Também estou preocupado com
Nathan.
Assenti, aceitando a carona. Era mais fácil e mais rápido do que esperar
um Uber ou um táxi, só não esperava que Carlton estivesse com uma
viatura da polícia local. Sentei no banco do carona com o coração apertado,
totalmente petrificada ao pensar no que havia causado na vida do sobrinho
dele.
— Tudo bem com você, Lianah? — O homem perguntou ao perceber
meu incômodo, logo que partiu com o carro. — Já esteve numa viatura
policial antes? — perguntou sorrindo, tentando quebrar o clima ruim.
— Não! — respondi, mas era só um fio de voz.
— Sério, está tudo bem? — perguntou preocupado, alternando os olhos
entre mim a estrada movimentada. — Você parece pálida.
— Carlton, Nathan já te contou sobre eu ser a responsável pelo que
aconteceu com ele anos atrás? — Ele saberia mesmo uma hora ou outra.
O homem arregalou os olhos, mantendo seu foco na direção enquanto
assentia de leve.
— Tenho minhas ressalvas sobre você ter sido responsável ou não. Mas
sim, ele contou à tia dele, na verdade, e ela me contou sobre isso. É por isso
que ficou assim quando entrou na viatura?
— Me sinto culpada. Ele quase morreu por minha culpa.
— Foi um acidente de carro, Lianah. Você não tem culpa. Ninguém tem.
— Acidente de carro? — perguntei confusa. — Não foi isso que ele
dis…
— Nathan contou sobre o que realmente aconteceu? — Carlton
perguntou chocado, tirando os olhos da estrada.
O encarei confusa. Será que Nathan não deveria ter contado? Preferi
ficar calada e esperar o que ele falaria para não prejudicar ainda mais
Nathan.
— O que Nathan te contou, Lianah?
— Carlton, por favor, pode me chamar de Liah? Odeio que me chamem
de Lianah. E não sei se devo te falar o que Nathan contou — disse receosa.
— Ele falou sobre os policiais? — seu tom era muito preocupado e
nervoso agora.
— Você tem algo a ver com isso?
Carlton era policial, mas não lembrava dele na viatura aquele dia. Por
mais que minhas memórias daquela noite fossem muito deturpadas e
nubladas pelo medo, definitivamente ele não era um dos homens naquele
carro.
— Claro que não. Mas Liah, ninguém sabe disso. Ainda existem
situações complicadas na delegacia pelo processo que tentei mover contra
os dois policiais na época. Eles causaram um acidente com a viatura pra
justificar a morte do Nathan, mas nenhum deles contava que ele estivesse
vivo. — contou inconformado.
Engoli seco, pensando no terror que ele havia passado. Por minha causa.
— Que horror! Nenhum deles foi punido?
— Um deles, Eliot, foi assassinado por uma gangue em Westville poucos
meses atrás. O outro ainda trabalha na corporação, tem as costas quentes —
explicou. — Por favor, não conte a ninguém o que sabe.
— Nem tenho a quem contar, pode ficar despreocupado — o tranquilizei,
vendo-o parar o carro em frente ao prédio da ONG.
Antes de descer, olhei para a pasta em minhas mãos. Por algum acaso do
destino, eu havia pegado o computador e celular pessoal da minha avó entre
as coisas que ela havia deixado na loja que sempre ficava, no Centro da
cidade. Tinha esperança de achar alguma coisa naqueles aparelhos, mas
seriam apreendidos com certeza. Num ato totalmente insano, deixei a pasta
na viatura de Carlton, rezando para que ninguém procurasse nada ali.
Desci apressada quando ele deu duas batidinhas no vidro, me chamando
com a cabeça. Haviam dois carros do FBI parados no recuo do prédio e
Dinna me olhava ansiosa na porta da recepção.
— As crianças estão assustadas, esses caras são uns bárbaros —
reclamou.
— Estão fazendo o trabalho deles. Fica tranquila que eles não vão
encontrar nada aqui.
— Liah! — Olívia veio correndo pelo corredor. — Bagunçaram tudo.
Pegaram todos os nossos computadores.
— Não tem problema — disse calma, vendo um agente com uniforme do
FBI andar até mim.
— Senhorita Vittorino? — confirmei. O homem me entregou um papel
que acreditei ser o mandado de busca. — Estamos fazendo uma busca na
intenção de colher provas para a investigação que bloqueou as contas e bens
da Vittorino Company e da Consultoria Vittorino.
— Estou sabendo — disse, encarando o homem friamente. — Posso
ajudar vocês com alguma coisa?
— Só permitindo que nossos homens façam o seu trabalho — disse
olhando para Olívia com a cara fechada.
— Olie, colabora — pedi baixinho a ela. Nós não havíamos feito nada
errado, então não tinha motivo para não deixar que levassem o que quer que
fosse. — Ninguém vai interferir — avisei ao homem.
Segui pelo corredor com Olívia e Carlton, vendo todas as salas vazias e
reviradas. Pela hora, deveriam ter turmas em aula regular e alguns cursos
acontecendo.
— Cadê todo mundo? — perguntei preocupada, olhando em volta.
— No pátio de trás com Thommas e Nathan. Joanna estava aqui quando
chegaram, ela subiu com as crianças menores para os quartos de cima. —
Olívia explicou.
Levei Carlton até o pátio atrás de Nathan. Os meninos estavam
praticamente de guarda na porta para que nenhum dos jovens saíssem de lá.
— Liah! — Triss me abraçou nervosa, assim que me viu na entrada.
— Ei, calma — retribui seu abraço. — Tá tudo bem.
Nathan apareceu logo atrás dela, encarando a menina preocupado.
— Obrigada por avisar ao Carlton. Deu tempo de chegar aqui pelo
menos — agradeci, incerta de como ele reagiria, já que a gente vivia numa
espiral de brigas. No entanto, Nathan só acenou com a cabeça.
— Estava na reunião com os advogados de Sylvia agora — Carlton
explicou ao sobrinho.
— Conseguiram evoluir com alguma coisa?
— Nada ainda. Mas vamos achar algo. — Carlton sorriu para mim, numa
tentativa meio falha de me animar.
— Eles estão levando quase todos os computadores da administração,
mas os backups do sistema rodam na nuvem, então vocês só vão precisar de
algumas máquinas novas pra voltar a acessar os dados — Nathan disse,
voltando a me encarar.
Pelo menos tínhamos a vantagem de estar usando o sistema deles. Isso
facilitaria na hora de acessar nossos dados.
— Obrigada — agradeci sincera. Era algo que nem teria conseguido
pensar se eles não estivessem aqui.
Nathan estava se tornando alguém totalmente presente na minha vida.
Fosse de uma maneira ruim ou não. Era impossível fugir de qualquer
assunto que o envolvesse. Ele estava sempre nos assuntos de Olívia, nas
confusões dos meninos, na ONG e até na investigação do caso da minha
avó.
Mas a questão é que ultimamente, ele estava sempre envolvido nas
soluções para os meus problemas, mesmo quando eu havia sido a causadora
dos dele.
Nathan
Capitulo 15

10 de junho de 2019

— Você não acha uma merda gostar da garota e reprimir isso?

Não contive a pergunta ao ver Ethan olhando feito um idiota para uma foto
da Olívia no meu aparador. Ele fechou a cara me mostrando o dedo do
meio. Arqueei uma sobrancelha.

— Ethan, é sério. Você gosta da Olie, não gosta?

— Claro que gosta — Tommy respondeu por ele, bebericando sua cerveja.
— Mas Ethan é babaca demais pra se permitir ter uma vida feliz.

— Então somos três babacas — Ethan apoiou os pés sobre a mesa de centro
a sua frente. — Ou vocês querem que eu lembre dos problemas de vocês o
tempo inteiro?

Tommy e eu continuamos rindo de sua reação exagerada. Era muito mais


fácil ele responder apenas 'não'. A questão é que Ethan realmente gostava
de Olie.

Nos juntamos na segunda à noite em meu loft, simplesmente para jogar


conversa fora, já que não fazíamos isso a um tempo. Essa era uma das
vantagens de ser dono de seu próprio negócio.

— Qual é a sua e da Liah? — Ethan perguntou, atirando uma almofada em


mim. — Você pretende continuar com raiva da garota até quando? Vocês só
sabem brigar.

Olhei para ele revirando os olhos. Nem aqui eu conseguia não falar dessa
garota.

— Estou tentando me livrar desse sentimento, Ethan. É complicado.


Sinceramente, eu já consigo enxergar que ela não teve intenção sobre o que
aconteceu. Meu problema com ela é ela mesmo, Lianah não colabora muito
comigo, então…

— Normalmente você é bem grosso com ela — Tommy acusou. — Você


não tem nenhuma empatia pelo que a garota tá passando?

— Claro que eu tenho, Tommy — rebati. — Hoje mesmo movi Deus e o


mundo pra arrumar vinte computadores para a ONG voltar a trabalhar.
Tenho feito mais por aquele lugar do que fiz em toda minha vida pra ajudar
pessoas.

— Não estou falando da ONG, estou falando dela mesmo — Tommy


explicou. — Ela é uma boa pessoa, Nathan.

— Eu tô quase convencido disso — confessei. — Mas isso não muda o fato


dela ter me causado toda aquela merda. De qualquer forma, tô tentando
trabalhar nesse ódio.

— Ah, se for do mesmo jeito que o Ethan trabalha nesses sentimentos


incompreendidos por Olívia, vai levar tempo — brincou, tacando uma
tampinha de garrafa na cabeça de Ethan.

— Porra, Thommas, seu idiota — o outro reclamou. — Sabiam que Olívia


tinha planos de empurrar a Liah pra um de vocês antes de toda a merda
acontecer? — soltou como se desse bom dia.

Tommy interrompeu um gole em sua cerveja, me olhando surpreso. Dei de


ombros, sem saber nada sobre aquilo.

— Não tinha ideia disso — respondi. — A Olívia odeia quando a gente se


aproxima das amigas dela.

— A Olie podia ter contado isso naquela noite que a gente conheceu a Liah
— Tommy soltou pensativo. — Me evitaria um problemão. Sem contar
que, com certeza, eu investiria nela.

— Você é a fim da Lianah? — perguntei surpreso a Tommy. — E que tipo


de problema isso evitaria?
Tommy nos olhou de um jeito estranho, como se tivesse falado mais do que
deveria naquele momento.

— Deixa pra lá. Mas não, não sou a fim da Liah, apesar dela ser bem gata e
gostosa. Achei que a Liah estivesse pegando o Gabe.

— Olívia cortou o Gabe, achando que ainda tinha alguma esperança da


Liah se entender com o Nathan. — Cuspi a cerveja que bebia. Ethan tinha o
péssimo hábito de dizer coisas absurdas com a maior naturalidade do
mundo. — Ela ainda não sabia sobre quem Liah realmente era — defendeu
a amiga ao ver minha reação agitada.

— Não sei quem é mais absurdo, você ou Olívia. Definitivamente vocês se


merecem. — comentei, voltando a me concentrar na garrafa em minha
mão.

Tommy levantou para pegar outra cerveja na geladeira.

— Pega outra pra mim também? — pedi, largando a garrafa vazia ao lado
do sofá.

— Mas sejamos sinceros, se a Liah não fosse a garota que apareceu aquela
noite, você seria o primeiro a cercá-la aquele dia no Republic. Olívia nem
foi tão absurda assim — Tommy acusou me entregando a cerveja.

A verdade, é que por mais absurdo que possa parecer, eu nunca havia
reparado verdadeiramente na garota. Desde que bati meus olhos nela aquela
noite, tudo que senti foi raiva e frustração. Claro que eu sabia que Lianah
era bonita, mas isso não queria dizer nada pra mim.

— Ela não faz meu tipo — comentei, dando de ombros.

— A Liah?! — Ethan ergueu as sobrancelhas desacreditado. — Desde


quando mulher bonita não faz seu tipo? Aliás, desde que Camille foi
embora, não lembro de você ser um cara tão seletivo.

— Ah, qual é, Ethan?! Vocês não acham a Lianah certinha demais? Aquela
garota cheira a regra e bom comportamento, e você me conhece o
suficiente pra saber que eu tenho uma aversão a regras. Sem falar no quanto
ela é intrometida. — rebati irritado.

— Claro, porque o Nathan certinho morreu quando Camille foi embora.

Não era bem assim. Mas uma parte de mim havia entendido de uma vez por
todas que eu sempre poderia esperar o pior da vida, e ainda assim me
surpreender em como tudo podia ser pior do que eu esperava.

Sorri mordendo o lábio, maneando minha própria cabeça em uma negação.

— Na verdade, o Nathan quebrado nasceu quando Camille foi embora —


afirmei.

— Mas só pra você saber, você se surpreenderia com a Liah.

— Sabe o que acho engraçado, a Olie conta a porra toda pra você, não é?
— provoquei, querendo tirar o foco da conversa de mim.

Ethan deu de ombros, sorrindo cheio de ego.

— O que posso fazer? Ela confia em mim.

— Ela gosta de você, isso sim — Tommy pontoou muito bem, voltando a
atenção para o celular em seguida.

— Quem você está comendo? — perguntei, observando seu sorriso idiota


para o celular.

— Ninguém — respondeu apressado, largando o aparelho. — Estava


falando com a Evie. Ela e Karol estão pensando em marcar uma viagem
para a praia em julho. Querem distrair a Liah.

Deus. Eu realmente teria que aceitar que Lianah se entranhou muito fundo
entre todos os meus amigos. Evitei comentar qualquer coisa sobre aquilo,
escondendo minha frustração comigo.

— Nathan, você descobriu o que Sylvia queria com Carlton antes de


morrer? — Ethan perguntou despretensioso.
Voltei a pensar no mistério que Carl vinha fazendo com aquela
investigação. Primeiro a informação de que o incêndio foi criminoso;
depois apareceu na empresa querendo que eu o ajudasse a identificar alguns
policiais. Ah, claro, ainda tinha a história de deixar todas as luzes acesas na
casa da minha tia.

Encarei Ethan, apenas negando com a cabeça. Não tinha certeza sobre
querer me envolver nesse assunto. Carlton já tinha se metido em alguns
problemas sérios ao longo dos anos, a ponto de colocar seguranças atrás da
Mia e Tia Sophia com receio de que pudessem usá-las contra ele.

— De quem eram aquelas fotos que ele te mostrou semana passada? —


Tommy questionou.

— De uns policiais. Se entendi bem, estão sendo investigados no mesmo


esquema da Sylvia. — não fazia muito sentido esconder aquilo deles, de
qualquer forma.

Os dois trocaram um olhar confuso. Ethan se levantou agitado do sofá,


parando a minha frente.

— E qual o motivo dele ter te mostrado essas fotos?

— Ele queria saber se já tinha visto algum deles na App ou na ONG —


expliquei. Ethan soltou uma lufada de ar, me encarando como se eu fosse a
pessoa mais idiota do universo. — O que foi?

— Você sabe que Liah tá correndo risco, não seja idiota. E se Liah está,
Olivia também está. — suas mão se mexiam exageradamente. — Nathan,
se Carl foi te procurar pra saber se já tinha visto aquelas pessoas,
provavelmente todos estamos em risco.

Aquela era a verdade que estava evitando enxergar. Era exatamente aquele
tipo de pensamento que eu tentava empurrar de volta pra um canto
escondido da minha mente toda vez que insistia em aparecer.

Eu já tinha pensado sobre essa possibilidade. Mas por que raios todos
estaríamos em perigo? Eu até entendia o motivo de irem atrás de Lianah,
talvez quisessem que ela parasse de tentar resolver a questão dos bens da
avó. Mas de todos nós?

— Talvez você até tenha razão sobre Lianah. Mas sobre todos nós? Acho
que não faz muito sentido. — cerrei os olhos, confuso.

— Pensa comigo, Nathan! — Ethan voltou a sentar-se no sofá, dessa vez,


apoiando o cotovelo sobre os joelhos. — Olie é sócia da Liah na ONG. No
cenário dessa cidade, se a ONG está sob algum tipo de investigação, é
porque tem alguém tentando tirar as meninas e a ONG da jogada.

Absorvi suas palavras percebendo que seu ponto fazia sentido.

— Isso explicaria o motivo do Carl querer saber se já tinha visto alguma


daquelas pessoas na ONG — concluí.

— Mas Carl também te perguntou se viu aquelas pessoas na App, não foi?
— assenti. — Desde o que aconteceu com você, todos os policiais dessa
cidade sabem que você é como um filho para Carl.

E viriam atrás de mim para fazer com que Carl parasse de investigar.

Mantive o pensamento comigo.

— E vocês são meus sócios, se quiserem envolver a App, sobra pra todo
mundo — comentei, finalmente entendendo o raciocínio rápido de Ethan.

Tommy, que até então se manteve calado, soltou uma risada nervosa,
coçando a cabeça.

— Acho que você precisa falar com Carl sobre o que está acontecendo de
verdade — Tommy me cobrou.

Respirei fundo, sentindo o embrulho no estômago começar a crescer de


novo. Carlton precisaria me contar qual risco corríamos, só assim eu
conseguiria acalmar meu coração. Só a ideia de que meus amigos
estivessem em risco, já me fazia querer surtar.
— Acho que enquanto o Nathan não fala com Cal, precisamos ficar de olho
nas meninas na ONG, principalmente na Liah! — Tommy intercalou um
olhar entre mim e Ethan.

Levantei-me do sofá irritado. Aquela porra de frio que subia pela minha
coluna me alertava de que tinha muito mais coisa por trás disso. Esse
medo… Tommy tinha razão sobre Liah. Eu só não sabia lidar com a
sensação de que havia preocupação com ela em mim.

Antes de morrer, Sylvia veio com todo aquele discurso estranho sobre não
vender as lojas para mim. Talvez ela soubesse muito bem no que estava
metida. Lembrei das palavras dela aquele dia…

— Porra! — chamei a atenção dos caras ainda largados no sofá ao ter mais
clareza sobre o que Sylvia quis dizer. — Acho que Sylvia sabia que ia
morrer.

Alarmado, tentei relembrar de tudo que ela havia me dito, exatamente no


dia em que morreu. Sylvia estava abatida e cansada. Quando entrou na
minha sala, depois da reunião, falou sobre Lianah precisar da gente em
breve.

— Como assim, Nathan? — Tommy perguntou assustado.

— No dia que ela morreu, a gente teve aquela reunião na App. Depois ela
foi até minha sala, falar que não ia vender as lojas dela pra mim.

Tommy sacudiu a cabeça, sem entender.

— E você acha que por isso ela sabia que ia morrer?

— Não. Ela me disse que a neta ia precisar da gente em breve. Veio com
um discurso sobre ela precisar se abrir para o mundo, e tal… — omiti,
propositalmente, a parte onde disse sentir que eu era a chave para aquilo.

Ethan largou a garrafa de cerveja em cima da mesa de centro preocupado.


Nós três nos encaramos. Talvez a gente estivesse ficando completamente
maluco e imaginando coisas, mas provavelmente, a gente só não estava
enxergando o óbvio antes.

— Eu vou pra ONG amanhã bem cedo. Vou colar na Olie e na Liah e evitar
deixá-las sozinhas até a gente ter certeza do que esta acontecendo. — Ethan
avisou, engolindo seco.

— Talvez você devesse falar com Carl para colocar uns seguranças na cola
de Mia e Sophia também — Tommy comentou. — Se forem atrás de
alguém pra parar o Carl, podem ir atrás delas.

Tommy tinha razão. Eu teria aquela conversa com Carlton quanto antes
pudesse. Ele não podia esconder da gente essas informações para sempre.
Senti meu sangue esquentar com a adrenalina.

Talvez Carl estivesse certo quando me disse anos atrás que eu gostava, mais
do que deveria, de investigações e mistérios.

Separador

11 de junho de 2019

Logo que sai da terapia da terça, liguei para Carlton e pedi que me
encontrasse em um café próximo da App. Precisa entender o que estava
acontecendo e tirar aquela história a limpo.

Eu havia passado a noite relutante em aceitar que os caras pudessem ter


razão, mas a minha lógica era evidente demais para deixar passar que
Carlton não estava me contando algo. E era natural, dada a sua profissão,
mas ainda assim, o conhecia bem o suficiente para saber que ele andava
mais preocupado que o normal.

Mas a verdade é que eu tinha medo daquela conversa. Medo de descobrir


que meus amigos e minha família estivessem em perigo; medo daquela
preocupação exagerada que começava a ter ao saber que nesse momento,
Olivia e Lianah estavam na ONG sem um de nós por perto.
O barulho do sino na porta anunciou quando Carlton entrou na cafeteria.
Meu tio cumprimentou o homem atrás do balcão com um aceno de cabeça
e veio direto para a mesa em que eu estava.

— Eu sempre fico desconfiado quando você me liga dizendo que quer


conversar.

Sorri de lado, lembrando de todas as merdas que Carlton já tinha aturado.

— Mas tenho certeza que você sabe porque te chamei aqui — soltei
enquanto ele sentava à mesa.

— Sei. E você sabe que eu não vou te dar as respostas que quer. Mandei
você ficar fora disso, não foi?

Eu sabia que não seria fácil, mas tinha meus meios de fazer Carlton falar.
Ajeitei meu corpo na cadeira, recostando minhas costas na poltrona
acolchoada atrás de mim.

— Você sabe que posso ajudar. Posso ficar de olho na Lianah na ONG, e no
que acontece por lá. Ethan e Thommas acham que podemos estar todos em
risco, por isso preferi falar com você.

Carlton sacudiu a cabeça em reprovação, inclinando seu corpo para frente


enquanto apoiava os braços sobre a mesa.

— Nathan, o que Ethan e Thommas sabem sobre tudo isso?

— Eu estava com o celular no viva voz no dia que me contou sobre a morte
da Sylvia, e Thommas viu você me mostrar aquelas fotos.

— Vocês três entendem o risco dessas informações, certo?

Assenti, engolindo seco. Em todos os anos em que esteve casado com


minha tia, nunca vi Carlton falar tão sério comigo antes.

— Carl, se a gente ou as meninas estiverem correndo algum perigo, você


precisa me contar — pedi, com medo da resposta.
Carlton suspirou derrotado, tirando o distintivo de policial do bolso de trás
de seu jeans e me encarou profundamente antes de voltar a recostar em sua
poltrona.

— Eu ainda não sei a proporção disso. O FBI é o responsável pelo bloqueio


dos bens de Sylvia, mas isso ocorreu porque denunciaram. E eu sei que a
denúncia partiu de um policial da corporação.

Tentei entender suas palavras. Apoiei o corpo na mesa, cruzando os braços


enquanto encarava Carl.

— Acho que a gente precisa voltar um passo atrás para entender. Porque
colocaram fogo na mansão? — questionei, tentando fazer a conexão entre
as informações que tinha.

— Sylvia me procurou porque queria sair do esquema que estava sendo


coagida a participar. Acho que as pessoas envolvidas nisso queriam mandar
um recado, mas não tenho certeza se a intenção era que alguém morresse.
— Carl explicou.

— Qual foi a denúncia? Por que bloquearam os bens da Sylvia e das


empresas dela e de mais ninguém? Quero dizer, se Sylvia pagava dinheiro
sujo para alguém, por que esse alguém não sofreu nada?

Carl me deu um sorriso de lado. Seu semblante indicando que aquela era
uma boa pergunta.

— Sylvia precisou emitir algumas notas frias entre filiais dela mesmo.
Logo depois uma carga ilegal foi apreendida em nome da Vittorino
Company. Sylvia era só uma das pontas que emitia notas fiscais para a
mercadoria poder transitar até o destino. A Vittorino Company sempre teve
muito crédito no Estado, nunca pararam um dos caminhões deles nas
estradas, até essa denúncia… O FBI iniciou uma investigação e identificou
muito dinheiro ilegal transitado pelas contas das empresas. O problema é
que o dinheiro se perde em milhares de transferências.

— Por isso bloquearam tudo — concluí.


Esses caras eram podres. Só em pensar terem policiais envolvidos nisso…
assim como aqueles que me espancaram, aquela cidade estava tomada por
gente assim.

— Qual sua preocupação com aqueles policiais da foto? — Peguntei.

— Acredito que alguns deles possam ir atrás da neta da Sylvia, tentar


envolvê-la nisso. Até porque, essa ONG está sendo muito comentada na
mídia, é um verdadeiro parque de diversão para eles. Ali eles poderiam
mexer com coisas ainda maiores.

Tive medo de perguntar a que coisas Carlton se referia. Engoli seco,


pensando nela sozinha lá.

— A gente vai ficar de olho nelas, Carl — avisei. — Minha tia e Mia estão
correndo perigo?

— Elas têm vigilância suficiente — Carlton estreitou os olhos para mim. —


Nem pense em abrir a boca para elas sobre isso.

Neguei. Jamais colocaria em risco a segurança delas, e a primeira coisa que


fariam se soubessem, seria gritar que não precisavam daquilo.

— E esses caras não sabem ainda que estou investigando. Já tentei duas
vezes abrir um inquérito junto ao FBI, tentando investigar a corrupção e os
esquemas dessa cidade, mas acho que eles têm alguém grande lá dentro
também. Eles acreditam que eu não tenha força para isso sozinho, mas
também tenho meus contatos lá dentro.

Talvez não sozinho. Mas se a gente juntasse nossos esforços para isso,
podíamos arrumar uma maneira de levar aquilo para frente.

— Você acha que Lianah está correndo algum perigo de verdade? —


perguntei querendo confirmar nossa desconfiança.

— Não que ela esteja correndo risco, mas podem se aproximar para coagi-
la a entrar no esquema — Carl comentou agitado. — Por favor, preciso
pedir a vocês três que não façam nada sem falar comigo. Evitem se
envolver nisso, tudo que eu não preciso agora é de mais gente envolvida ou
correndo risco.

Assenti. Estava claro que existia mesmo algum risco nessa investigação
dele. Não sabíamos ao certo, sequer, o tipo de gente que estávamos lidando
ou a que ponto essas pessoas podiam chegar para manter seu esquema
intacto.

O fato é que Carl saiu da cafeteria me deixando um nó na garganta e um


embrulho no estômago. Aquelas informações haviam ficado impregnadas
nos meus ouvidos e fizeram uma bagunça na minha cabeça pela próxima
hora.

Encarei Violet mais uma vez; a mulher estava irritada e inconformada com
minha decisão.

Eu não esperava que a reunião com o tal Juiz pudesse acontecer tão rápido,
mas quando Joanna me ligou no início da tarde, eu não precisei pensar
muito para pedir que a advogada viesse comigo.

Joanna me enviou um endereço de um clube de golfe em Westville, onde o


tal Juiz iria encontrar a gente, mas Violet insistiu que eu não fosse. Depois
de muito esforço, estávamos aqui, junto de Joanna, aguardando o homem
em um dos restaurantes finos daquele clube.

— Ele chegou — a assistente avisou, acendendo para alguém atrás de mim.

O homem elegante e de postura polida, puxou uma das cadeiras de madeira


e sentou-se à mesa, desdobrando o guardanapo de pano para apoiá-lo em
seu colo.

— Espero que todos estejam indo bem — então levantou a cabeça para me
dar uma boa encarada. — Nathaniel Petterson. Você não acha que é muito
novo para querer a guarda de uma adolescente de dezesseis anos?
— Achei que já tínhamos passado da fase de entrevistas — respondi
objetivo, querendo resolver logo o ponto.

— Não sei se você tem um histórico tão impecável assim. Até onde sei,
você é diagnosticado com TEPT.

— Achei que estávamos aqui justamente para resolver essas coisas.

O homem arqueou uma sobrancelha, me olhando em desafio enquanto


retirava o guardanapo de seu colo e o jogava em cima da mesa.

— Pelo visto, isso vai ser mais rápido do que imaginei. Gosto da sua
objetividade.

— Excelência, o Nathan sabe…

— Não precisa dessa formalidade aqui, Joanna — o homem a cortou,


voltando a me olhar. — Sou o Juiz Gomez, e sou o cara que vai assinar a
autorização para a tutela da garota.

— Eu já sei disso — suspirei irritado. — Quero saber o que você precisa


pra fazer isso.

O Juiz sorriu amargamente, puxando um papel do bolso do seu terno


impecavelmente passado, e o colocou sobre a minha frente sobre à mesa.

— Tudo na vida exige algum esforço, ainda mais quando temos um sistema
que funciona perfeitamente se partindo.

— Se partindo? — questionei confuso.

— Às vezes, acontecem coisas fora do esperado, que exigem esforço em


dobro de todos nós.

Ainda sem entender, estiquei a mão para pegar o papel e avaliar o que havia
escrito ali. Arregalei os olhos ao verificar a cifra e a quantidade de zeros.

U$ 2.000.000,00.
— Dois milhões? Isso é sério?

— É um esforço, Nathaniel! Você está disposto a se esforçar de verdade?

Encarei o homem com o ódio conhecido me corroendo o peito. Minha


vontade, era de levantar daquela mesa e socar a cara daquele filho da puta
até que ele assinasse a porcaria do papel.

Uma parte do dinheiro que desinvesti já estava comigo. Era para a ONG,
mas eu teria muito mais dinheiro disponível nos próximos dias.

— Nathan, é muito dinheiro — Violet voltou a me repreender. — É fácil


identificar esse tipo de transação nas contas da App.

— Não vou transferir de nenhuma conta da App.

— Tem certeza de que vai fazer isso?

— Tenho, Violet! — afirmei decidido. — Pra onde transfiro?

Gomez me olhou sorridente, me entregando um novo papel com alguns


dados bancários.

— Você é sobrinho daquele policial chato, não é? Carlton Stuart?

Porra. Senti meu coração gelar. Se Carlton soubesse que eu estava fazendo
isso…

— Sou — dei a resposta limitada.

— Assim que o dinheiro estiver nessa conta, a autorização será liberada —


ele avisou enquanto já se levantava da mesa.
— Como vou saber que não está mentindo?

— Eu nunca precisei mentir sobre minhas intenções, garoto, e por pior que
elas sejam, eu tenho palavra.

O homem se afastou sem dizer mais nada.


Joanna mantinha a feição preocupada, me analisando com vincos profundos
na testa. Violet continuava resmungando alguma coisa sobre eu estar sendo
impulsivo e não pensar nas consequências de tudo aquilo.

— Nathan, ele vai ter provas contra você para o resto da sua vida — a
advogada insistiu.

O que ninguém entendia é que cresci em uma casa onde eu precisava


descobrir maneiras novas de fugir e tirar Mia de lá quase todos os dias;
onde eu precisava enganar e convencer Ralph todas as vezes de que estava
tudo bem para que parasse de bater nelas; e com quatorze anos, sem
aguentar mais ver aquilo, tive que intervir procurando Carlton.

Desde muito cedo, eu fui forçado a usar a cabeça para sair das piores
situações possíveis, e não ia ser agora que deixaria de prestar atenção nos
detalhes do que eu fazia.

Existia mais de uma forma de fazer esse dinheiro chegar naquele homem
sem que eu precisasse me envolver, sem que ele tivesse qualquer prova
contra mim.

— Ele não vai ter provas, Violet, pode confiar em mim.

15 de junho de 2019

Ainda existiam sensações boas nesse mundo. A última vez que senti meu
coração bater extasiado dessa forma foi quando Camille ainda estava
grávida. Mas hoje, nem a associação de sentimento me faria mal.

Joanna havia acabado de me ligar para contar que o Juiz havia assinado o
documento que me dava direito ao processo de adaptação da Triss. Eu
podia tirá-la de lá a qualquer momento.

Logo que saí do clube dias atrás, pedi ajuda de Olivia para achar um
apartamento novo, já que era só questão de tempo até Triss estar comigo.
Consegui um apartamento no mesmo prédio em que eu morava, com três
quartos e uma sala enorme, e eu mal podia esperar para que ele estivesse
pronto.

Olívia tinha me perguntado sobre o loft, se iria vender o lugar que morei
nos últimos anos.

Não mesmo, aquele lugar tinha a minha cara em cada canto. Pensaria nele
agora como um lugar de refúgio. A ideia me agradava bastante, inclusive.

Resolvi desviar a rota no fim do dia, até a casa da Tia Sophia. Queria contar
a ela e Mia sobre a adoção. Podia imaginar a cara desacreditada que minha
tia faria e a empolgação de Mia que vivia grudada em Triss na ONG.

Estacionei na garagem, vendo que Carl ainda não havia chegado. Ansioso,
bati na porta algumas vezes até que finalmente ela foi aberta.

— Tenho uma coisa incrível para contar… — minha voz ficou travada.

— Nathan, não sabia que você viria hoje.

Elise estava de pé, por trás da porta, sorrindo para mim. Havia esquecido
totalmente que ela estava aqui.

— Elise, quem é? — tia Soph perguntou aparecendo na porta.

— Sou eu, tia — disse chateado, sentindo toda a empolgação de minutos


atrás indo embora.

Minha tia arregalou os olhos, alternando olhares entre a mulher ao seu lado
e eu. Respirei fundo tentando me controlar. Elise vivia me tirando do sério,
mas não daria a ela esse direito hoje.

— Vim contar uma coisa para você e para Mia — disse por fim, sorrindo
para a mulher que me criou.

— Entra querido, Mia acabou de chegar da faculdade.


Tia Sophia abriu mais a porta, puxando o pulso da irmã para abrir passagem
para mim. Entrei em casa, evitando olhar de novo a outra mulher.

— Tudo bem com você, meu amor? — Elise encostou no meu ombro,
fazendo uma leve pressão para eu virar para ela.

Encarei a mulher. Odiava quando ela usava aquele tom meloso e enjoativo
para falar comigo, como se eu ainda fosse uma criança de cinco anos.
Reparei no rosto dela e no quanto ela e Sophia eram parecidas; mas
qualquer semelhança entre elas terminava aí.

— Nathan. — Mia apareceu na escada, me chamando receosa.

— Oi, Mia — virei meu corpo para ela, ignorando totalmente a mulher
atrás de mim. — Vem cá, quero contar uma coisa pra vocês.

Arrastei Sophia e Mia comigo até a sala, me acomodando no sofá. As duas


fizeram o mesmo, me olhando curiosas. A última vez que chamei as duas
assim, foi para dizer que Camille estava grávida. Ironicamente, eu estava
arrumando uma espécie de filha agora.

— Entrei com um pedido de adoção da Triss a um tempo atrás — disse


calmo.

— Sério isso? — Mia abriu um sorriso enorme.

— Quem é Triss? — tia Sophia perguntou confusa.

— É uma adolescente da ONG da Olivia e da Lianah — expliquei. — A


gente tentou um projeto de estágio em parceria, mas negaram que esses
jovens pudessem sair de lá para estagiar na empresa. A Triss é uma menina
incrível que precisa de oportunidades na vida, tia.

Tia Sophia sorriu, embora seu semblante estivesse tomado por


preocupação.

— Você tem certeza de que está preparado para cuidar de uma criança,
Nathan? — me perguntou calma com sua voz doce.
— Ela não é bem uma criança — mordi os lábios, nervoso. — Ela tem
dezesseis anos, tia.

— Que loucura é essa, meu filho? — Elise nos interrompeu.

Encarei a mulher parada na porta entre o hall e a sala. Seus braços cruzados
e a cara fechada. Quem ela achava que era para julgar minha decisão?

— Nathan, não foi uma decisão impulsiva? — tia Sophia chamou minha
atenção.

— Foi, tia — concordei sincero, voltando minha atenção para ela. — Mas
foi a melhor decisão impulsivava que tive em muito tempo. Nem consigo
me lembrar da última vez que me senti assim.

— Nate, você vai perceber logo que isso é loucura, você tem a vida toda
pela frente ainda — Elise andou a passos largos até que estivesse
totalmente entre mim e minha tia no outro sofá. — Confia em mim, é
melhor se você desistir disso agora.

Meu Deus, essa mulher era totalmente louca. Revirei meus olhos para a
cena dramática que fazia, me permitindo dirigir a palavra a ela pela
primeira vez desde que cheguei.

— Confiar em você? Que tipo de confiança você acha que devo ter na
mulher que aparece uma vez a cada ano achando que tem algum tipo de
autoridade na minha vida? — Elise abriu a boca, mas continuei antes que
ela pudesse falar. — Se você ao menos soubesse o mínimo do que é ou não
melhor para mim, teria se poupado de me enviar cinquenta dólares no meu
aniversário.

Tia Sophia levantou-se puxando a irmã porta afora, sem dar tempo para
iniciarmos mais uma discussão.

— Nathan. Eu estou tão feliz com isso. — Mia pulou para o sofá ao meu
lado, sorrindo feito uma criança. — Quando você vai poder levá-la da
ONG?
— Não sei ainda. Preciso me mudar primeiro, não posso levar a Triss para
o loft.

— Verdade, seria prudente um lugar com um quarto de verdade — Mia riu.

Escutei um barulho vindo da cozinha e segundos depois, Elise passou pelo


corredor subindo as escadas chateada.

— Ela vai maneirar — minha tia voltou para a sala. — Você podia pelo
menos ter dado oi quando chegou.

Sophia sempre tentava remediar a situação entre a gente. Ela entendia que
eu nunca a veria como uma mãe, mas não concordava com o jeito frio que
eu a tratava. Eu não conseguia ser indiferente a tudo que a mulher me
causou, e ainda lidava com o medo do abandono, mesmo tendo tido uma
família maravilhosa com minha tia e Cal.

— Me conta, você está mesmo feliz com isso? — perguntou ao me ver


relutante em falar sobre Elise.

— Claro que estou. — Abri um sorriso verdadeiro, me esforçando para


manter o foco em Triss. — Vou ter que me mudar para receber a Triss, mas
assim que isso acontecer, quero que você vá conhecê-la.

— Claro que vou. Posso considerar como minha primeira neta?

Ri dela, vendo como ficou boba de repente.

— Não conta pra maluca lá em cima… — falei baixinho, inclinando o


corpo em sua direção. — Mas você sabe que é minha verdadeira mãe.

Minha tia sentou-se do meu outro lado, esticando os braços para me


envolver em um abraço e Mia também nos abraçou. Elas eram o que eu
tinha de mais importante na vida.

— O apartamento é ótimo — Olie disse, enquanto avaliava a vista do


janelão da sala. — Já decidiu o que você vai fazer com o loft?
— Acho que vai ser uma espécie de lugar de refúgio para mim, sabe? Um
lugar pra descansar a cabeça, pra fugir do mundo.

Comprei o loft logo nos primeiros anos da App, quando a coisa toda
começou a deslanchar e crescemos absurdamente. Aquele lugar foi meu
primeiro patrimônio, além de ser meu primeiro canto fora da casa de Tia
Soph. Transformei o lugar todo, coloquei nele um pouco de mim e de tudo
aquilo que gostava.

Desde o primeiro momento senti uma conexão profunda com a ONG


porque ela me lembrava muito meu loft. O estilo industrial, as paredes de
tijolos, os tons de preto e os detalhes em madeira. Até os móveis tinham
estilos parecidos.

Por mais louco que pudesse ser, assim como Thommas e Ethan, eu curtia a
maioria das coisas nerds. Minhas paredes estavam lotadas de quadros da
Marvel e da DC. Eu tinha coleções de revistas em quadrinhos e bonecos de
super-heróis espalhados pelos móveis. Era parte de quem eu era. Nós três
crescemos assim, curtindo essas coisas, e manter essas lembranças no loft
me fazia lembrar diariamente de quem eu era e dos laços que ainda me
mantinham são. A última coisa que pensaria na vida, seria vender ou me
desfazer do loft.

— Pelo menos aqui você vai ter um quarto de verdade — Olie riu. Eles
sempre reclamavam do 'quarto'. — E Triss vai ter privacidade, claro.

— Eu ainda não contei a ela sobre a adoção — suspirei. — Tenho medo


dela não gostar da ideia, Olie.

— Duvido que isso aconteça, Nathan — Olivia puxou meu braço, se


jogando no sofá junto comigo. — Triss vai amar saber que você está
fazendo isso por ela.

— Lianah já sabe? — perguntei preocupado.

Olivia tinha me contado que disse a Joanna que ela mesma contaria a
amiga. Mas por algum motivo, Olie estava adiando esse momento.
— Vou contar na segunda — avisou sorrindo amarelo.

Olie, se até você está com receio de falar com ela…

— Ótimo, Ethan e eu vamos estar pintando a ala do segundo andar, já


prevejo sua amiga querendo arrancar minha cabeça fora — reclamei.

— Falando nisso…

— Olivia, conheço essa cara. O que você vai pedir?


Nathan
Capitulo 16

15 de junho de 2019

Os exercícios mentais de Dr. Emerson estavam fazendo bastante efeito. Me


livrar da carga emocional que eu carregava há anos, estava me fazendo
ficar cada vez mais leve. Foi só por isso que aceitei o convite de Olie.

Olivia me intimou a aparecer no Republic a noite. Segundo ela, todos


precisavam estar presentes para apoiar Lianah, incluindo eu. Claro que ri
abertamente quando ela disse aquilo. A garota limitou-se a me lançar um
olhar repreendedor, dizendo que eu não estragaria a noite planejada por ela.

Eu odiava ser o motorista da vez, e pelo tempo que eu não vinha, Ethan e
Tommy praticamente me obrigaram a vir de carro quando souberam que
estaria aqui. Aquilo seria sufocante para mim; sem poder beber; tendo que
lidar com um sentimento de preocupação totalmente novo; e ainda tendo
que levar Lianah para casa no fim da noite.

Ultimamente, o bar estava ficando mais lotado que o normal, desde que
resolveram colocar bandas locais se apresentando todo fim de semana.
Miles, um dos garçons, sempre reservava uma mesa para gente, mas hoje
estávamos no pior lugar possível.

O salão de trás do Republic era a parte onde ficava um dos bares da casa
mais movimentados e a música rolava mais alta. Era gente por todo o canto
bebendo e gritando, dançando e se pegando em cantos mais afastados e
escuros. O problema de ficar ali era que um de nós sempre acabava a noite
muito bêbado ou atacando alguém num dos cantos escuros.

E toda vez que isso acontecia, alguém brigava.

Olivia ficava chateada quando via Ethan com outra mulher, mesmo que não
assumisse isso; Evie e Karol se estranhavam quando uma ou outra conhecia
alguém; Tommy sempre sumia e aparecia quase inconsciente, dando
trabalho para todo mundo. E claro que eu não era o cara mais comportado
do mundo, e por isso Olivia e as meninas passavam a noite toda de olho em
mim, me impedindo de fazer merda… mesmo que eu as fizesse sempre
escondido.

Surpreendentemente, hoje, nada disso estava acontecendo. As frustrações


tinham outra origem.

Tommy estava alheio a tudo, preocupado com alguma coisa que acontecia
no outro salão do bar. Olívia estava radiante com o que via, mas irritada
porque estava convencida de que precisava arrumar alguém para passar a
noite também; o que Ethan tentava evitar disfarçadamente. Karol estava
incomodada; e Evie estava chateada porque Karol tinha outras intenções
além de passar a noite com a amiga; o que me fazia pensar que Evie ainda
era apaixonada por ela.

Estávamos os seis sentados nas cadeiras altas do balcão, mal-humorados e


sem vontade até de conversar. Tudo isso porque Lianah estava do outro
lado do bar, se atacando com um cara que, segundo Olivia, era médico dela.

— Vocês conseguem perceber o que essa garota causa? — perguntei a eles,


vendo os semblantes fechados e emburrados.

— Do que você está falando? — Olie me encarou irritada.

Sacudi a cabeça, sabendo que não adiantaria explicar. Isso implicaria em ter
que falar sobre a suposta paixão de Evie e Karol e Ethan e Olie. Só me
traria dor de cabeça no fim das contas.

— Preciso admitir que tinha esperança da Liah querer experimentar coisas


novas — Karol comentou despreocupada.

Evie suspirou, fingindo prestar atenção em algo no seu celular.

— Alguém nesse grupo não tem algum interesse nessa garota? — perguntei
impaciente.

— Você?! — Tommy me encarou com um vinco na testa.

— Isso devia ser uma afirmação e não uma pergunta — avisei.


— Eu não tenho nenhum interesse nela, Nathan — Ethan respondeu. —
Liah é uma grande amiga. Mas é só isso.

Tommy concordou com ele, afirmando que também não tinha nenhum
interesse nela. Mesmo assim, acho que eu era o único que conseguia
enxergar os fios brancos daquela teia em volta de todos eles.

Quando ela apareceu com essa ONG, todos eles foram correndo para lá.
Quando Sylvia morreu, todos eles viveram o luto com ela. E agora parecia
que todos eles estavam incomodados por ter um cara enfiando a língua na
garganta dela.

— Então por que está todo mundo de cara feia vendo aquela cena? —
apontei para o outro lado, onde agora os dois conversavam cheios de
sorrisinhos.

Olivia me encarou de um jeito estranho. Por alguns segundos, manteve


aquele olhar gelado em cima de mim, até que virou sua cabeça de lado
sorrindo.

— Pensa pelo lado positivo, Nate. Pelo menos você não vai precisar dar
carona pra Liah hoje.

Eu conhecia Olivia por tempo suficiente para saber que tinha muito mais
por trás das palavras dela. Por hora, desisti daquele assunto, pensando em
aproveitar um pouco mais a noite. Saí do bar com uma garrafa de água na
mão, disposto a tentar reverter aquele clima de merda.

Olhei uma última vez para onde Lianah estava, vendo a garota totalmente
alheia a tudo, cheia de carinhos com o médico.

A primeira coisa que reparei quando cheguei ao Republic foi no quanto ela
estava diferente. Não que eu tivesse o hábito de reparar nela, mas a
diferença era gritante demais para não perceber a maquiagem mais forte e a
quantidade de pele exposta pelo vestido preto curto.

Olie tinha razão. Deveria estar aliviado por não ter que levá-la para casa
hoje, mas tudo que eu conseguia fazer, era me achar um idiota por ainda
sentir aquele fio de preocupação por ela.

Ethan se apressou em me seguir pelo bar. Ouvi seus passos atrás de mim e
de repente já estava ao meu lado, me olhando de um jeito analítico demais.

— Eu estava falando sério, não sou a fim dela e você sabe disso.

— Sério, Ethan?! — Estanquei meus passos, olhando irado para ele. — Saí
de lá pra evitar toda essa vibe sou fã da Liah e você me segue pra falar
dela?

Ethan continuou me analisando, sua sobrancelha esquerda se erguendo


lentamente. Um sorrisinho ridículo, cheio de deboche, começou a nascer
repuxando o canto de seus lábios.

— Parece que isso incomoda você também.

— Claro que incomoda! — Abri meus braços exasperado. — Parece que


essa garota está em cada partícula de ar de qualquer ambiente que eu piso.
Ethan, tá todo mundo com cara de merda por causa dessa garota e do cara
que tá enfiando a língua na garganta dela.

— Nathan… — Ethan empurrou meu ombro, movendo meu corpo para


fora do caminho até o corredor dos banheiros. — Se não fosse da Liah que
a gente está falando, diria que você está com ciúmes.

Porra! Era impressionante tudo que estava sendo obrigado a passar por
causa dela. Minha irritação só aumentava mais a cada segundo. Ciúmes
dela? Era só o que me faltava. Cruzei meus braços vestindo minha melhor
cara irritada, recusando-me a responder Ethan sobre aquilo.

— Eu nem preciso te dar uma resposta sobre isso. Mas sabe o que me deixa
puto de verdade? A gente preocupado com ela e essa história da
investigação do Carlton, enquanto ela só causa todo esse mal-estar…

— “A gente”? — interrompeu fazendo sinal de aspas com os dedos. — Eu


devo estar na porra de um universo alternativo. Desde quando você se
preocupa com ela? E ela só tá beijando um cara, Nathan. Liah não tem
culpa se as pessoas só percebem o que estão perdendo na vida quando
veem a felicidade alheia. Mas ninguém tá puto por causa disso, além de
você.

Fechei ainda mais a cara. Porra, eu tinha que admitir minha preocupação
em voz alta? Ethan não me deixaria mais em paz por causa disso.

— Eu tô vivendo uma verdadeira oscilação de sanidade. Eu sou humano, é


claro que me preocupo com ela. Querendo ou não, essa garota já intoxicou
demais a minha vida. Bem ou mal, ela é a mente por trás da ONG e isso
deveria dizer alguma coisa sobre ela. Tenho um problema com ela, sim, um
que quase custou a minha vida. E se quer saber, me acho completamente
insano por não conseguir tirar esse caralho de preocupação de dentro de
mim. Se tem uma coisa que odeio ainda mais do que ela, é o fato de me
preocupar com ela. E isso não tem nada a ver com o fato dela estar beijando
um cara.

Aquele jeito especulativo que ele me olhava, me tirava do sério. Eu sabia o


que ele estava pensando porque eu sabia exatamente como aquilo soava
estranho. Meu lado racional insistia, gritando a plenos pulmões que eu
estava entrando numa estrada sem retorno, descendo em queda livre o
desfiladeiro.

— Talvez você devesse deixar as coisas boas sobre ela falarem mais alto
dentro de você, Nate. — Ethan me deu um tapinha no ombro antes de
continuar. — Você se fechou demais depois da Camile, deixar as pessoas
entrarem nessa sua fortaleza, às vezes, é uma cura e tanto.

— Acredita em mim, Ethan. Odeio o fato da minha consciência enxergar


essa garota como uma pessoa boa, porque ela é culpada por tudo que
aconteceu aquela noite comigo. Essa desgraçada parece um vírus, eu tento
manter distância, tento tirar a garota da minha cabeça, mas sempre aparece
alguma coisa que me coloca de volta em frente a ela. Eu tô quase… quase
desistindo de lutar contra isso… — respirei fundo, precisando recuperar
meu ar. Levei a mão direita aos meus cabelos, puxando os fios nervoso e
ansioso com o que estava sentindo agora — … mas só a ideia de deixá-la
entrar… isso revira feridas que nunca fecharam, e a dor é quase
insuportável.
Ethan arregalou os olhos após meu desabafo, cruzou os braços e encostou
na parede ao meu lado, suspirando. Ficamos em silêncio por alguns
segundos até que a pergunta que já esperava veio. Atenuadamente, mas
veio.

— O que isso significa exatamente?

— Eu não sei. Eu realmente não sei. E confesso que tenho medo de


descobrir.

Mas eu sabia.

Era uma constatação. A constatação de que existia uma parte de mim que
vinha ganhando força e que se metia a besta em querer lutar com toda a
raiva que sentia de Lianah. E mesmo escolhendo diariamente a parte que a
odiava, eu sabia que ela estava perdendo força a cada batalha.

— Você sabe que está fodido, não sabe?

Esfreguei meus olhos cansado daquela sensação dúbia. Eu precisava de


umas boas horas de sono para esquecer completamente dos meus
problemas.

— Vou embora. Vocês vão comigo? — perguntei desencostando da parede.

— As meninas devem ir. Vou ver se acho a Olie para avisar. — Ethan deu
um tampinha no meu ombro, seguindo pelo corredor de volta ao salão do
bar.

Sentindo o peso dos pensamentos estranhos da vez, entrei no banheiro para


jogar um pouco de água no rosto. Demorei um tempo por lá, tentando me
livrar daquele sentimento de que tinha algo errado comigo e com o rumo
que minha mente vinha tomando. Quando finalmente saí, meu celular
apitou no bolso do moletom e distraído, peguei o aparelho destravando a
tela.

Cap16a
A mensagem de Elise me irritou profundamente. Era absurdo pensar que
aquela mulher ainda tinha alguma expectativa sobre mim como filho.
Bloqueie a tela, enfiando o celular no bolso do jeans.

Um suspiro exasperado me chamou a atenção e senti duas mãos agarrarem


meus braços me puxando para o final do corredor, depois da porta dos
banheiros.

— Que merda é essa? Ficou maluca? — quase gritei pelo susto, totalmente
surpreso ao ver Lianah na minha frente.

— Me ajuda, Nathan, não o deixa me ver aqui — pediu esticando o


pescoço para olhar por cima do meu ombro e falhando totalmente pela
nossa diferença de altura.

Nervosa, suas mãos me puxaram de novo, me posicionando para ficar a sua


frente e não deixar quem passasse pelo bar vê-la ali.

Virei meu pescoço para trás, tentando entender o que estava acontecendo e
de quem ela estava se escondendo. O tal médico estava no bar, de costas
para o corredor, virando a cabeça em várias direções com uma expressão
confusa no rosto.

— Está fugindo do cara que estava quase te comendo minutos atrás? —


arqueei uma sobrancelha, quase não conseguindo esconder minha
satisfação em vê-la assim.

— Presta atenção na maneira que fala comigo — reclamou, fechando seu


semblante e dando um tapa no meu braço. — Ele quer me levar pra casa —
justificou por fim, deixando os ombros cederem.

— E? Qual o problema nisso? E você veio pedir ajuda logo pra mim?

— Você foi a única pessoa que conheço que encontrei. Nem de longe seria
minha primeira opção.

Soltei um riso irritado ao perceber que sua mão direita ainda segurava a
manga do meu moletom.
— Pode me soltar?

— Vai me ajudar? — perguntou enquanto baixava a mão constrangida.

— Como pretende que eu faça isso? Não é mais fácil entrar no banheiro e
ficar por lá?

— Eu quero ir embora, mas não com ele. Se ele me vir aqui, vai querer me
levar em casa. — A garota se encolheu ainda mais ao perceber que o cara
estava mais perto do corredor agora.

Com o pescoço virado para trás, percebi quando ele olhou mais atento para
o corredor, tentando enxergar através das várias pessoas circulando ali.
Provavelmente só nos veria aqui se estivesse bem mais perto.

— O que ele te fez? — perguntei curioso.

— Ele é… rápido demais… ansioso demais… eu não… — começou a


dizer nervosa, voltando a puxar meus braços quando o cara parou no início
do corredor.

Meu corpo quase colou no dela, me causando um arrepio estranho. Exalei


irritado pela proximidade que não era bem-vinda.

— Nathan, por favor, fica parado aqui. — A garota encolheu o corpo,


dando mais um puxão na manga do moletom.

— Lianah, eu realmente não gosto de você — avisei, precisando apoiar o


braço direito na parede, ao lado da cabeça dela, para não cair. — E tá
ficando bem estranho você me puxando desse jeito — olhei sugestivamente
nossos corpos quase colados.

— Desculpa! — Seu rosto atingiu um tom de vermelho intenso ao notar a


proximidade e logo abaixou as mãos novamente. — Ele tá aqui —
completou nervosa.

Contrariando totalmente minha racionalidade, dei dois passos para trás e


estiquei os braços para tirar o moletom preto que usava. Estendi o casaco
para ela e voltei a apoiar os braços na parede, fechando o corpo dela com o
meu. Lianah era pequena o suficiente para que ninguém a visse ali, desde
que não chegasse perto demais.

— Veste o casaco e coloca o capuz. Se ele chegar perto demais, pode ser
que isso disfarce — expliquei, vendo sua cara de interrogação. — Mas se
ele perceber, você vai se virar pra explicar isso.

Ela fez o que falei, passando o casaco pela cabeça, encolhida no espaço
entre a parede e meu corpo. Seus dedos puxaram o capuz sobre os cabelos,
amarrando a cordinha logo abaixo do pescoço. O moletom quase engoliu
seu corpo, evidenciando o quão pequena ela era perto de mim, e se não
tivesse com a sandália de salto, ficaria ainda menor.

Engoli seco ao perceber a porra de clima pesado quando Lianah baixou os


braços, se encolhendo no casaco e me encarou. Meus olhos desceram
involuntariamente pelo corpo dela, o vestido sumindo totalmente por baixo
do meu casaco e precisei sacudir a cabeça para espantar a porra da imagem
dela só de calcinha dentro dele.

Nathan, você tá doente! Você odeia essa mulher.

— Obrigada — sua voz soou baixinho.

— Consegue ver onde ele está? — perguntei revirando os olhos enquanto


pensava quanto tempo levaria para poder me livrar do problema.

— Na porta do banheiro feminino ali na frente — disse ao esticar um


pouquinho a cabeça por baixo do meu braço, ainda apoiado na parede. —
Ele já deve desistir e ir embora.

Duvidava muito, embora torcesse para que aquela afirmação fosse real.
Mesmo depois de tirar o casaco, já estava começando a sentir o calor da
proximidade com seu corpo e isso me incomodava para caralho. Seus olhos
voltaram a me encarar e um vinco profundo cortou sua testa.

— É bom desistir mesmo, não pretendo perder minha noite toda aqui,
escondendo você — reclamei, totalmente irritado pela proximidade dela.
— Você é um ogro! — A garota continuava me encarando de um jeito
estranho, e eu não conseguia desviar daquela merda de olhar.

— O que foi? Não gostou do jeito que ele te pegou? — provoquei, tentando
quebrar aquela maldita conexão.

— Deixa de ser idiota, Nathan. Só me assusta essa coisa de querer ficar


próximo demais num primeiro encontro, ele é meio pegajoso.

— Porra, Lianah, não acredito que você é o tipo de mulher que não curte
romance. — Deixei um riso desacreditado escapar.

— Romance? — Seus olhos se estreitaram e um sorrisinho debochado


tomou seus lábios. — Porra, Nathan, Não acredito que você é tipo de cara
que curte romance — devolveu no mesmo tom.

Prendi o ar por alguns segundos, sendo obrigado a desviar meus olhos para
cima. Minha mente traidora começou a projetar imagens do corpo dela sob
o meu, imprensado na parede… Caralho, Nathan. Não surta.

Olhei para trás, doido para sair dali, mas o cara ainda a procurava mais
próximo da gente.

— Não podia simplesmente dizer pra ele que não quer mais, Lianah? Que
prefere ir embora sozinha? — Era só ela dizer não.

— Eu não sei como fazer isso.

— Dizer não? — perguntei desacreditado.

— Eu travo, tá legal? Toda vez que estou com um cara, eu travo e não sei
dizer pra parar.

— Sério que a garota intrometida não sabe dizer um não? — provoquei.

— Para de me chamar assim — mandou irritada.

— Intrometida.
— Nervosinho.

— Lianah, você é absurdamente maluca.

— Pode parar de me chamar de Lianah?

— Não me sinto confortável em te chamar de Liah agora.

— Por que não?

Baixei meus olhos voltando a encará-la. Onde eu tinha me metido? Uma


agitação estranha subiu pelo meu estômago, virando uma bola intragável na
garganta.

Não confio em mim mesmo perto demais de você.

— Eu…

— Merda, ele tá andando pra cá. — Agradeci a Deus por ele ter se movido
e não ter me deixado falar nenhuma merda sem lógica. — E agora? Ele tá
perto demais — sussurrou, quase petrificada.

Uma respiração agitada cortou seu peito enquanto seu corpo se encolhia
cada vez mais no canto da parede. Arrisquei uma olhada sútil para o lado,
vendo que ele falava com uma garota, gesticulando algo que parecia ser a
altura de Lianah. Se ele desse mais alguns passos para a direita do corredor,
poderia perceber que ela estava ali comigo. Observei quando seus pés
fizeram exatamente esse caminho; um passo; dois… nada que eu pudesse
fazer a ajudaria agora. A não ser que…

— Ele vai me ver a...

Joguei meu corpo para frente, interrompendo sua fala quando praticamente
a esmaguei na parede, descendo minha boca sobre a dela.

Porra. Que ideia de merda.

Liah se manteve imóvel, assustada com minha reação, mas segundos depois
senti suas mãos pequenas espalmadas sobre meu peito e sua respiração sair
com mais dificuldade. Quando permitiu que minha língua invadisse sua
boca, tentei me convencer de que era só uma forma de ajudar a garota.

Lógico que era só isso, eu odiava Lianah, certo?

Não tive muito tempo para pensar, sendo tomado pela sensação de nossas
línguas resvalando uma na outra. Ela tinha gosto de álcool misturado a algo
doce, e a cada vez que empurrava a língua para dentro de sua boca a
necessidade de sentir aquele gosto aumentava.

Tirei uma das mãos da parede, enfiando-a para dentro da abertura do capuz,
procurando seu pescoço e prendi meus dedos por baixo dos fios de cabelo
de sua nuca, a puxando para mais perto. Agora, não existia mais espaço
nenhum entre nossos corpos.

Uma espécie de gemido sôfrego escapou dela, vibrando contra minha


língua, e aquele som me atingiu, enviando uma pontada dolorida direto
para o meu pau. Que merda. Descolei a outra a mão da parede, descendo
pelo seu corpo até achar o pedaço de pele quente da sua coxa, e a puxei
para cima, encaixando-a na minha cintura, apertando meus dedos em sua
pele. Essa filha da mãe era gostosa para cacete.

Uma exalação intensa escapou dela quando mordi seu lábio inferior, me
fazendo projetar meus quadris contra ela, mas segundos depois ela se soltou
de mim abruptamente, me encarando desacreditada.

Liah estendeu o braço, definindo uma distância segura entre a gente.

— Por que fez isso? — perguntou relutante, desviando os olhos. Mesmo


com o rosto baixo, podia ver suas bochechas vermelhas e o peito arfante.

— Ele ia te ver — justifiquei, ainda tentando recuperar meu ar.

— Ele foi embora — apontou com o queixo para o corredor e a figura que
se distanciava de nós.

Obriguei meu corpo a se afastar ainda mais dela, tomado por aquela
sensação errada. Meu batimento totalmente descompassado. Que merda
havia feito? Não dava nem para dizer que aquele havia sido um beijo
qualquer, não quando me acendeu daquele jeito. Você tá muito fodido,
Nate.

— Agora você pode ir também — avisei, dando espaço para ela passar.

— Vou precisar de carona — uma expressão nervosa tomou seu rosto.

— Porra! — Eu tinha mesmo feito merda. — Avisa a Olie que já estou


indo. Espero vocês no carro.

— Achei vocês!

Foi só falar que ela apareceu no corredor a nossa frente, seguida de Ethan.
Meio segundo antes e eles nos veriam numa situação, no mínimo,
comprometedora.

— Estou indo embora, Olívia — avisei.

— Está tudo bem? — Olie perguntou confusa ao perceber a amiga com


meu moletom. Nós dois assentimos.

Ouvi o riso abafado de Ethan atrás de Olivia. Encarei meu amigo, vendo
suas sobrancelhas erguidas em uma tirada muda. Eu quase podia ouvir os
pensamentos dele. Sacudi a cabeça, puxando o ar com mais força que
deveria.

— Eu realmente gostaria de ir agora. Vou esperar vocês no carro.

— Vou querer saber o que rolou? — Ethan veio atrás de mim.

— Definitivamente, não. Sinto muito se quiser ir embora, mas o carro vai


estar cheio. — expliquei, vendo-o me seguir até a saída.

— Liah vai com você?

— Pois é. Comemorei cedo demais.


— Nathan, eu cheguei naquele corredor antes da Olie, essa foi sua sorte —
soltou, sorrindo maldosamente.

— Cala a boca, Ethan. Antes que eu perca totalmente minha pouca


paciência.

Merda. Tudo que eu não precisava era ter que explicar para ele aquela
situação. Meus neurônios deviam ter congelado no tempo que fiquei em
coma, essa era a única explicação para o tanto de merda que eu fazia na
vida. Beijar Lianah havia sido, sem sombra de dúvida, a pior delas.

Deixei Ethan para trás, saindo do Republic o mais rápido possível, na


tentativa de aproveitar os poucos minutos de sossego que teria até que as
meninas resolvessem sair. E foram mesmo poucos minutos, logo elas
entraram no carro.

Eu me sentia sufocado. Era como se o ar naquele carro fosse escasso e todo


tomado por ela, sem deixar nada para mim. Olívia estava ao meu lado e
Evie, Karol e Lianah no banco de trás. Sabia que se olhasse pelo retrovisor,
cruzaria meus olhos com os dela, o que evitei todo o percurso. Pelo menos
dessa vez, era mais fácil deixá-la no hotel primeiro.

Assim que saiu do carro, incrivelmente, o ar ficou mais leve. Mas o alerta
vermelho na minha cabeça gritava uma nova descoberta; tinha algo que eu
odiava mais que me preocupar com Lianah, e era simplesmente o fato de
tê-la beijado.

Talvez, só talvez, além do suposto perigo daquela investigação de Carlton,


existisse outro tipo de perigo nessa história.

Aqueles malditos fios que ela tecia, já estavam em volta de mim também.
15 de junho de 2019
No meio de junho, resolvi acompanhar meus amigos ao Republic. Desde
o falecimento da minha avó, só fui até lá uma vez; quando lembrei do
episódio com Nathan. Essa seria a primeira vez em meses, que tentaria me
distrair de verdade.
Olívia me avisou que todo mundo estaria lá, mas vi o pedido empolgado
em seus olhos e fui incapaz de negar. Aceitei, mesmo sabendo que
possivelmente me estressaria com Nathan mais uma vez.
Ethan me deu carona até o hotel na sexta, ele e Tommy estavam sempre
se revesando para não me deixar ir embora de Uber. O problema é que isso
me irritava, já que eles ficavam em cima de mim para saber a que horas eu
iria embora e se pretendia ficar na ONG até mais tarde.
Me prometi o sábado de folga, queria dormir até tarde e depois pensaria
em comer em algum restaurante bonito da cidade. Precisava de um tempo
para mim.
Quando estava saindo do hotel, quase na hora do almoço, meu celular
tocou. Não consegui identificar de quem era o número.
— Alô.
— Liah? — Não reconheci a voz.
— Quem é?
— Raphael. Atendi você um tempo atrás no hospital, lembra de mim?
Claro que eu lembrava. Olie me fez passar uma vergonha absurda na
frente dele. E o cara era gato, precisava admitir.
— Tem algo errado com meus exames? — perguntei preocupada,
pensando no motivo dele ter me ligado.
— Não, querida. Desculpe a invasão, mas peguei seu número na sua
ficha. Estou ligando, na verdade, para perguntar se você tem algum
compromisso hoje à noite.
Ele estava me chamando para sair? Arregalei os olhos, evitando um
gritinho animado.
— Hum, marquei com Olivia e uns amigos num barzinho no Centro —
avisei. Não ia furar com Olie, mesmo que fosse para sair com o médico
bonitão.
— Bem, nessa caso, você aceitaria jantar comigo qualquer dia desses?
— Na verdade — hesitei por alguns segundos. — Você gostaria de me
encontrar lá hoje?
— Claro! — Sorri com sua empolgação. — Ia adorar encontrar você
hoje.
— Eu te passo a hora e o lugar por mensagem, pode ser?
— Claro, Liah. Mal vejo a hora de te ver.
Desliguei sorrindo para a tela. Vovó adoraria saber que eu sairia com um
médico. Ela com certeza faria alguma piada sobre o fato de nós duas termos
pretendentes médicos.
Dispensei a carona de Ethan ou Tommy, agradecida que Raphael iria me
buscar no hotel. Desci até a recepção ansiosa, vendo o carro dele parar logo
em seguida do lado de fora.
— Oi — disse tímida ao entrar em seu carro.
— Obrigada por aceitar meu convite. — Raphael beijou minha mão,
fazendo meu rosto esquentar. Era isso que Tommy fazia com as mulheres?
Vovó corava horrores quando ele fazia isso com ela.
Conversamos um pouco no caminho até o Republic. Raphael me contou
sobre como sua família era unida e sobre seu trabalho no hospital.
Quando chegamos ao bar, Olívia avisou que estávamos no pior lugar
possível. Ficamos um pouco com as meninas na mesa mal localizada, vendo
o lugar encher cada vez mais.
Raphael me puxou pelo pulso para a pista, quando começou a ficar
lotada. Ethan, Tommy e Nathan ainda não haviam chegado e não queria
deixar as meninas sozinhas. Mesmo assim, não resisti a carinha bonita do
médico, me levando com ele.
O cara era meio apressado em tudo. Minutos depois ele estava me
beijando, e resolvi me permitir ao menos dessa vez. O problema é que a
cada beijo, ele soltava alguma coisa sobre como a gente tinha química, ou
sobre como eu era bonita. Só ficou pior depois, quando Raphael começou a
falar sobre como nosso beijo se encaixou ou como ele queria terminar a
noite comigo em outro lugar.
Rápido demais. Rápido demais.
Se continuasse nessa loucura de compatibilidade, Raphael ia querer sair
daqui com destino à sua casa, ou a minha.
Eu não estava preparada para isso.
Não hoje.
Embora estivesse me permitindo estar ali, beijando aquele homem, era
cedo demais para deixá-lo me tocar assim. Sacudi a cabeça tentando
espantar as memórias ruins.
Eu queria fugir. Mas o grito de “PARA” estava preso na minha garganta.
Eu não tinha ideia do que faria, mas queria fugir. Mia e Tommy
conversavam no balcão do outro lado e Nathan e Ethan haviam sumido há
um tempo. Se ao menos uma das meninas viesse até aqui.
Com muito custo, consegui fugir para o banheiro e encontrar a última
pessoa para quem pensaria em pedir ajuda. Os minutos seguintes
consistiram na conversa mais louca e cheia de tensão que já tive na vida.
Que Nathan não gostava de mim, era um fato conhecido por todos os
nossos amigos, mas o quanto ele era capaz de me irritar, só eu sabia. Bem,
pela cara dele, ele também sabia, já que fazia deliberadamente.
As coisas só pioraram quando, numa tentativa maluca de me ajudar,
Nathan me beijou.
Ele simplesmente me beijou.
Me beijou de um jeito que ninguém nunca tinha me beijado antes.
— Você está tão distraída. Tá fazendo o que com a blusa do Nathan? —
A voz de Olívia me chamou de volta para a órbita.
— Ele me ajudou a fugir do Raphael — contei, omitindo a parte do
beijo.
— Como assim fugir? Você tá fugindo daquele Deus grego? — Olívia
me encarou desacreditada, me puxando pelo pulso até o banheiro feminino.
— Longa história. Fugi para cá e encontrei o Nathan, e acabei pedindo
ajuda a ele. — Encostei o corpo na parede, sentindo o cansaço me tomar.
— E ele te ajudou de boa? — perguntou enquanto abria a torneira e
passava as mãos molhadas no pescoço.
— De boa é um termo bem relativo. — Ri, lembrando da cara fechada
dele quando reclamou de estar puxando seu corpo.
Olie me olhou de um jeito engraçado pelo espelho. Sacudi a cabeça,
reprovando e afastando minhas memórias recentes. No entanto, minha
imagem no espelho chamou a atenção dos meus olhos; o moletom preto
quase me engolia.
Abaixei a cabeça, analisando as mangas cumpridas demais para mim.
Subi uma das mãos, e inconscientemente inspirei o pano preto, sentindo o
cheiro do perfume dele impregnado no tecido.
— Liah!
— Que susto — reclamei ao ver Olívia me chamando na porta de saída
do banheiro. Fingi que não vi seus olhos curiosos em cima de mim quando
passei por ela.
Aquela havia sido uma noite e tanto, e com muitas frustrações
acumuladas. Como se não bastasse a frustração pelo encontro mal sucedido,
terminei a noite no carro de Nathan.
Pelo menos dessa vez, era vantagem me deixar no hotel primeiro, assim
não teria que passar por algum momento constrangedor sozinha com ele.
De novo.

19 de junho de 2019
Meu humor estava péssimo essa semana. Parece que tudo contribuía para
as coisas ficarem pior. Raphael me ligou desde o domingo inúmeras vezes,
me deixando no limite do estresse. Como se não bastasse a obsessão
repentina dele, mesmo após eu ter fugido, tinha muito trabalho da ONG e
infinitos documentos da minha empresa que precisava ler e assinar. Me
tranquei no escritório, decidida a focar em todo o trabalho que tinha e fazer
a quarta ser mais produtiva.
Funcionou por quase uma hora, quando meu telefone tocou sobre a
mesa. Soltei uma reclamação chorosa antes de atender o ramal da recepção.
— O que foi Dinna?
— Tem uma moça aqui na frente com doações para a ONG e ela gostaria
de falar com você.
Suspirei. Era um bom motivo, pelo menos. Saí do escritório em direção à
recepção.
Ao chegar na entrada principal, avistei uma mulher uniformizada com
farda policial, sentada na poltrona em frente ao balcão.
— Liah, essa é a Rose. Ela veio até aqui para entender como pode
auxiliar na ONG. — Dinna apresentou a mulher.
— Oi, Rose — a cumprimentei sorrindo. — Vamos até minha sala?
Podemos conversar melhor lá.
— Claro — a policial sorriu simpática, seguindo-me pelo corredor.
Logo que entramos no corredor, Tommy e Nathan entraram em meu
campo de visão, descendo as escadas na outra ponta.
Senti meu coração disparar. Ainda não havia esbarrado com ele desde
sábado, quando me beijou daquele jeito.
Os meninos estavam vindo direto para a ONG, finalizar a pintura para
recebermos as crianças nos próximos dias. Desviei meu olhar deles,
desconcertada pela forma como meu corpo reagiu.
Percebi que a policial ao meu lado também estreitou os olhos para eles,
me olhando nervosa.
— Aquele é o sobrinho do Carlton? — perguntou baixinho.
— O Nathan? Sim. Você provavelmente conhece o tio dele, certo?
A mulher mordeu o lábio, parecendo agitada. Franzi a testa, sem
entender aquela reação. Será que ela e Nathan já tinham tido um caso? Ela
era nova e bonita, talvez tivesse rolado algo entre eles.
Tommy levantou a mão, acenando para mim. Em alguns segundos, os
dois estavam parados ao nosso lado, em frente a porta da minha sala. Quase
congelei ao sentir o braço direito de Nathan resvalar na lateral do meu
corpo.
— Tudo bem aqui? — Nathan perguntou para mim, mas encarando a
policial.
— Sim — alternei o olhar entre os dois. — Tudo bem? — foi minha vez
de perguntar.
Nathan assentiu. Ele e Tommy ainda estavam estudando a mulher ao
meu lado.
— A Rose veio conversar comigo sobre formas de ajudar na ONG…
— Claro que veio — Nathan interrompeu. — A gente pode ajudar com
isso, não é Thommas?
— Com certeza, Nathan. A gente tem muita experiência em ajudar na
ONG.
Tommy também encarou a mulher com o semblante fechado. Qual o
problema deles? Sacudi a cabeça, reprovando a atitude dos dois enquanto
olhava feio para eles.
Abri minha sala, indicando a cadeira estofada para que Rose se sentasse.
A mulher entrou desconfortável, mas acomodou-se em frente minha mesa.
Andei até minha cadeira, vendo os dois homens me seguirem para dentro
e apertei meus olhos, indicando a porta com o queixo. Que merda eles
estavam fazendo?
Audacioso, Nathan sentou-se na cadeira ao lado de Rose, totalmente
largado e Tommy fechou a porta apoiando as costas nela, cruzando os
braços numa postura defensiva. Minha vontade de esfolá-los vivos só
aumentava. Seria muito errado brigar com eles na frente de uma possível
colaboradora?
— É tão bom quando a gente vê uma pessoa pública, que cuida da nossa
segurança tão bem, se envolver com uma ONG, não é Thommas? —
Nathan disse debochado. Tommy assentiu.
Se eu arrancasse a cabeça deles na frente de Rose, seria presa em
flagrante? Rose poderia me acobertar, talvez.
— Então, Rose. Você já atuou em algum projeto social alguma vez? —
perguntei a ela, tentando soar simpática.
— Ainda… não… — a mulher encarou Nathan ao seu lado. — Vocês
são, tipo, seguranças delas?
Nathan abriu um sorriso malicioso e Tommy se limitou a sacudir a
cabeça em negação. Eles poderiam ser, pelo tamanho deles. Mas na atual
circunstância, Nathaniel era só um cara que me odiava e gostava de me
irritar.
— Eles são meus… amigos… e trabalham aqui também — expliquei,
mesmo sabendo que Nathan estava longe disso.
— Rose, você conhece o Carlton? — Tommy perguntou atrás dela. O
timbre dele alterado, num tom grave e ameaçador.
— Nossa! — Rose bateu na testa, constatando algo em seu celular. —
Tem uma ocorrência próxima daqui. Desculpa mesmo, Liah. — a mulher
levantou-se apressada, estancando ao dar de cara com Tommy bloqueando a
porta.
Rose girou novamente para mim, dessa vez, encontrando o peito de
Nathan, já de pé atrás dela. Levantei apressada, empurrando Tommy da
porta e abrindo-a para a mulher passar.
— Sem problemas, Rose — disse preocupada com aquela atitude deles.
— Volte quando quiser.
A mulher saiu a passos largos pelo corredor e voltei a encarar os dois
idiotas dentro da minha sala.
— Que merda foi essa? — perguntei.
Os dois se encararam numa conversa muda. Tommy deu de ombros,
evitando responder e Nathan bufou, cedendo à pressão silenciosa do amigo.
— Eu não gosto dessa mulher. Ela trabalha com meu tio. Não a quero
aqui.
Não a quer aqui? Aquela ONG era minha e de Olie. Quem ele pensava
que era?
Uma irritação intensa começou a crescer em meu peito. Podia sentir meu
corpo tremer. Encarei Nathan, quase decidida a pular em seu pescoço e
enfiar as unhas nele.
— Você não pode ter tudo que quer — avisei entre dentes. — Minha
vontade é de ir atrás dela só pra jogar na sua cara que quem decide as coisas
aqui, sou eu.
Nathan mordeu a parte interna da bochecha, de um jeito muito parecido
com o que eu fazia. O homem deu alguns passos até a porta, virando a
cabeça para me encarar.
— Acho melhor você se acostumar então. A vida já tirou demais de
mim. Hoje em dia, eu corro atrás de tudo o que quero, e costumo conseguir.
Aliás, não esquece que você também está me devendo uma.
Soltei um urro raivoso, pegando a primeira coisa que achei pela frente e
tacando contra ele, mas a porta já estava se fechando. Um baque alto se
seguiu quando o grampeador se chocou contra a madeira. Tommy, que
ainda estava na sala, levantou uma sobrancelha sorrindo.
— Vocês dois tem sérios problemas de controle emocional.
— Sai daqui, Thommas. Antes que eu jogue algo na sua cabeça também.
Tommy se apressou em sair da minha sala. Que merda toda foi aquela?
Nathan estava beirando o limite do aceitável. Ele tinha todos os motivos do
mundo para não gostar de mim, mas não tinha o direito de interferir na
ONG daquele jeito. Muito menos jogar a tal ajuda de sábado na minha cara.
Encarei o relógio no meu pulso, não eram nem dez horas da manhã
ainda. Pelo visto, o dia seria muito agitado.

E eu estava certa. Poucas vezes na vida me senti tão pressionada em um


espaço tão curto de tempo.
Eu estava indo ver o progresso da obra no segundo andar quando avistei
Dinna e Dr. Raphael seguindo pelo corredor da ONG, mas eu ainda não
estava preparada para justificar minha fuga de sábado, muito menos para
me aproximar dele.
Me apressei em subir os degraus, ofegante devido à corrida curta.
Entrei em um dos quartos que já estava pronto, me jogando sobre o
colchão ainda sem lençóis, mas uma risadinha chamou minha atenção e
virei meu rosto para o lado, vendo Ethan e Nathan jogados nas camas do
outro lado, me encarando confusos.
— Que susto! — reclamei, levando a mão ao meu coração que batia
acelerado. — O que vocês estão fazendo aqui?
— A gente estava descansando um pouco — Ethan respondeu. — O que
houve, Liah?
Eles me olharam de um jeito estranho e percebi os dois trocarem um
olhar preocupado. Nathan levantou-se do colchão, ajeitando a blusa de
malha branca que havia subido um pouco e foi até a porta, pronto para abri-
la e olhar o que for que estivesse acontecendo lá fora.
— Não abre — quase gritei, tapando a boca com minha própria mão. —
Se alguém me procurar aqui, diz que eu não estou na ONG, por favor. —
Falei, correndo para o outro lado da sala, me escondendo atrás de Ethan em
cima do colchão.
Mesmo com meu pedido, Nathan abriu a porta saindo do quarto. Ele
voltou uns segundo depois, rindo abertamente enquanto fechava a porta. Da
ponta da escada dava para ver diretamente a entrada da minha sala, e pela
cara dele, havia visto o médico lá em baixo.
— Seu namorado está lá em baixo — avisou.
— Raphael não é meu namorado, e você sabe muito bem disso —
reclamei fechando a cara. — Ele vai querer saber porque fui embora sábado
sem dar nenhuma explicação.
Ethan levantou rindo, me dirigindo um olhar sorrateiro.
— Liah, você tava se pegando com esse cara no sábado. O que houve?
— Eu simplesmente não consigo… — a sensação do estrangulamento
começou a me tomar, querendo me transportar de novo para um lugar frio e
dolorido. — Eu não posso…
Nathan voltou a abrir a porta, encostando no batente de madeira com os
braços cruzados. Apertei meus olhos numa ameaça para que ele fechasse,
mas tudo que fez foi me voltar um olhar malicioso.
— Eu devia gritar que você está aqui. — Seu olhar afiado alcançando o
fundo da minha alma.
— Não faz isso — pedi, sentindo as lágrimas se acumularem em meus
olhos.
Eu não conseguiria lidar com aquilo. Era sempre assim, depois que eu
travava com alguém, não conseguia mais nem olhar para o cara, que eu me
sentia daquele jeito; estrangulada, afogada no medo.
O idiota deu dois passos para fora da sala ao mesmo tempo que ouvi
Dinna gritando por mim, já no corredor de cima.
— A Liah está com vocês? — sua voz soou mais perto.
Queria me enfiar em baixo da cama para fugir daquilo. Deixei escapar
um gemido desesperado quando Nathan olhou para o canto do quarto e me
encarou, decidindo qual seria sua resposta. Filho da puta. Ele tinha me
beijado para me ajudar, ele não me entregaria assim depois de ter cruzado
todos os limites no sábado, certo?
— Acho que ela precisou buscar um grampeador novo lá na empresa
dela — disse por fim, me deixando aliviada.
— Grampeador? A gente tem um estoque dessas coisas aqui. — Dinna
respondeu confusa.
— Sabe como é, Lianah tem umas manias estranhas. Ela só gosta
daquele tipo e quebrou o dela mais cedo. — Nathan voltou a me encarar,
seus olhos brilhavam com um riso que ele não podia deixar escapar.
Desgraçado. Havia quebrado mesmo, tentando acertar a cabeça dele horas
atrás.
Ethan estava segurando uma gargalhada, quase vermelho pelo esforço
que fazia. E meu coração agora começava a se acalmar com a nova ajuda de
Nathan.
— Nossa, que desencontro. Acabei de vir de lá e me disseram que ela
não estava.
Gelei ao ouvir a voz de Raphael. Ele devia estar com Dinna enquanto me
procurava. Se um deles resolvesse enfiar a cabeça dentro daquela sala, eu
estaria perdida. Apertei os punhos nervosa, pedindo a Deus que eles fossem
embora rápido.
— Que azar, cara — Nathan respondeu num tom totalmente irônico.
Merda, Nathan. Se me descobrirem aqui por causa de você…
— Amanhã ela deve estar aqui — Dinna avisou. — Vou falar com ela
que você a procurou hoje.
— Ah, ela vai adorar saber que você veio — Nathan completou; sua voz
soando puro sarcasmo.
Ouvi as vozes se afastarem pelo corredor e fechei meus olhos exalando
alto, sentindo o alívio instantâneo. Nathan ainda levou alguns segundos
para voltar para o quarto e fechar a porta.
— Eles desceram — avisou.
Ethan explodiu em uma gargalhada alta. Encarei o idiota sacudindo a
cabeça. Eles haviam tirado o dia para me irritar.
— Ethan, você é ridículo, não acredito que ia deixar ele me entregar
assim — reclamei. — E você é um idiota, Nathan — encarei o babaca que
me olhava atentamente.
Ele manteve seus olhos sobre mim, andando perigosamente até onde eu
estava. Me esqueci de respirar e só conseguia lembrar da forma como ele
me colou contra a parede e me beijou. Porra, eu sei que foi um beijo fake,
mas ainda assim, foi intenso para cacete.
— Sua sorte é que sei perceber quando algo realmente faz mal a alguém.
Mas você não tem noção do clima de merda que ficou entre todo mundo no
sábado por causa do seu romancezinho. Vê se da próxima vez, escolhe
melhor, pelo menos. — Seu semblante tornou-se mais irritado à medida que
dizia aquelas palavras. Sua respiração irregular em rajadas quentes
atingindo a pele do meu rosto pela proximidade perigosa dele, praticamente
debruçado sobre mim na cama.
— Sai de perto de mim — soltei nervosa quando esticou o braço por trás
do meu corpo.
— Você está em cima do meu celular — disse com um sorriso
convencido estampado no rosto. — Intrometida.
Idiota!
— De que clima de merda você tá falando? — perguntei, entregando o
celular a ele.
Busquei o olhar de Ethan, mas ele arregalou os olhos, repreendendo
Nathan com um gesto negativo da cabeça.
— Se você fosse um pouco menos egoísta, teria percebido — Nathan
respondeu.
— Do que ele tá falando, Ethan? — pedi, na esperança de que um dos
dois pudesse me esclarecer aquilo.
Os dois continuaram em silêncio, enquanto Nathan se dirigia à saída do
quarto.
— Tudo tem que ser sempre do seu jeito mesmo, não é Lianah? — disse
antes de atravessar a porta.
Senti meu sangue esquentar. Ele era um grande idiota. Primeiro quase
me entregava para o médico, depois me acusava de criar um clima ruim
entre nossos amigos, sem contar que esse filho da puta me beijou - foi pra
me ajudar, eu sei - e agora vinha dizer que tudo tinha que ser do meu jeito?
Quem ele pensava que era?
— Você é um idiota, Nathan!
Antes que meu corpo pudesse dar dois passos na direção dele, Ethan já
estava me segurando.
— Relaxa, Liah. Ele só tá te provocando. O único que sentiu esse clima
de merda, foi ele.
Tentei me acalmar, mas eu ainda queria arrancar a cabeça dele fora.
Nathan despertava uma irritação em mim totalmente contrária a minha
personalidade. Não lembro de me irritar assim com alguém em nenhum
outro momento da minha vida.
Desci as escadas batendo os pés com força no chão. Sei que parecia uma
criança mimada, mas aquele era o efeito que Nathan causava em mim.
Olivia e Tommy estavam na minha sala quando entrei. Encarei os dois,
pedindo a Deus que não fossem mais problemas, eu já estava tomada por
eles em todos os lados da minha vida.
— A adoção da Triss saiu — Olie disse de uma vez só.
Joguei o corpo no sofá e fechei meus olhos tentando entender o impacto
daquela informação.
Eu já tinha assinado a tal recomendação, eu já tinha concordo em dar
essa chance a Nathan, então já deveria esperar que mais cedo ou mais tarde
o Juiz assinaria a autorização.
Tentei manter minha cabeça no lugar. Estava muito cansada de brigar
com Nathan, mas minha vontade era de subir e arrancar a cabeça dele. De
novo.
— Preciso conversar com Nathan.
A gente ainda não havia tido aquela conversa, e eu precisava garantir que
ele sabia muito bem o que estava fazendo. Independente de quem ele era ou
da péssima relação que a gente tinha, Nathan ainda era uma pessoa
adotando uma criança minha.
— Liah, acho melhor não…
Antes que Olívia pudesse me deter, refiz o caminho de segundos atrás,
subindo as escadas, lembrando das palavras dele pela manhã.
Nathaniel Petterson era irritante. Ele gostava de me desafiar e, pelo visto,
esfregar na minha cara que ele sempre tinha o que queria. Olie e Ethan
demoraram a me convencer de que ele tinha razão dessa vez, e ajudar Triss
a crescer profissional e pessoalmente seria algo ótimo para evolução da
garota, ainda mais agora que eu não tinha mais recursos para aportar a todo
tempo na ONG.
Mesmo com todos falando que ele só queria o bem dela, eu precisava
avisá-lo de que se algo acontecesse à menina, ele estaria muito ferrado.
Queria falar com Nathan sem que ninguém estivesse perto, freando minhas
tentativas de ameaçá-lo, mas Olie não saiu do meu lado por todo o percurso
de escadas e corredores até lá.
— Liah, você tem certeza de que vai falar com ele? — Olie perguntou
preocupada em ter que remediar mais um confronto.
— Estou disposta a conversar sem levantar a voz ou criticá-lo, ok? —
Bufei, atordoada com suas reclamações sobre minha necessidade de tirar a
história a limpo.
Se Nathan queria mesmo a tutela de Triss para ajudá-la a trabalhar e
estudar em lugares melhores, ele teria que me jurar que nunca deixaria nada
acontecer a ela.
Com mais força do que deveria, puxei a porta balcão que separava o
corredor da Ala das crianças, mas estanquei no lugar, processando a
imagem a seguir.
Ethan e Nathan já tinham voltado a pintar as paredes opostas, de costas
para a porta de entrada, sem camisa. Os dois conversavam, rindo de algo,
enquanto tensionavam os músculos dos braços, subindo e descendo os rolos
de pintura na parede. Mas o que me chamou atenção foi outra coisa.
O braço esquerdo de Nathan era todo fechado com desenhos de flores
que contornavam as asas de anjos, do cotovelo até o ombro.
Continuei analisando, até que meus olhos se prenderam no emaranhado
de traços desenhados nas costas e braços de Nathan. Eu já tinha reparado
em algumas tatuagens dele antes, mas nada era tão imponente como aquilo.
Olie me olhava atenta, e eu podia sentir seus olhos me queimando.
Franzi a testa, tentando entender onde as nuvens vermelhas começavam a
formar o leão em preto e branco do lado direito de suas costas.
Mesmo com a ausência de cores, o animal era tão real, que parecia que
pularia rugindo de suas costas a qualquer momento. Perdida na imagem,
senti uma leve cotovelada de Olie, me trazendo de volta para a realidade.
— Lindo, não é? — perguntou despreocupada.
Encarei minha amiga com os olhos arregalados.
— O Leão! A Tatuagem! Pelo amor de Deus, Liah! — apressou-se em se
explicar ao me ver corar. Sentia meu rosto quente. E outras partes também.
— Bonito mesmo. — Eu só não tinha certeza se falava sobre a tatuagem
ou sobre ele.
Engolindo seco com o rumo dos meus pensamentos, entrei na sala,
finalmente atraindo a atenção dos dois homens ali.
— Oi, meninas, a gente tá quase acabando. — Ethan sorriu deixando um
beijo estalado na bochecha de Olie, que me olhou corando. — Atrasou um
pouco porque tivemos que buscar mais tinta ontem e...
— Na verdade — interrompi, querendo terminar logo o que havia ido
fazer ali — eu queria falar com o Nathan sobre a Triss. — Avisei,
finalmente encontrando os olhos dele.
— Lianah… — Nathan suspirou, largando o rolo de pintura sobre a
bandeja com tinta. — Eu não vou voltar nesse assunto, eu já tenho
autorização…
— Eu não vim brigar — avisei interrompendo seu discurso, antes que eu
me irritasse e desistisse de não brigar.
— Isso é novo — acusou, arqueando uma sobrancelha, deixando aquele
maldito sorriso debochado aparecer.
— Só quero conversar. Mas a sós. Pode ser?
— Vocês dois pretendem se matar? — Ethan perguntou sorrindo, embora
preocupado.
Lancei um olhar irritado em sua direção, que fez com que puxasse Olie
para fora da sala com ele.
Voltei meus olhos para Nathan, que seguiu até a caixa de isopor no meio
do salão, pegando uma garrafinha de água. Depois, caminhou até o canto da
sala, sentado-se no chão, apoiando as costas na parede que ainda não estava
pintada.
— E então?
— Se alguma coisa acontecer a Triss, eu vou até o inferno atrás de você
— ameacei, maneirando no tom de voz para que ele entendesse que,
embora a ameaça fosse real, eu não queria brigar.
— Sinceramente, Lianah? Se depois de tudo que vivi na vida, eu for para
o inferno no final, é porque não existe Deus, muito menos Céu. — O
pequeno sorriso que estampava sua face não alcançou seus olhos. — Nada
pode ser pior do que o inferno que vivi aqui.
Minha intenção ao ameaçá-lo nunca foi feri-lo ainda mais. Sentindo o
pesar que emanava dele, sentei-me ao seu lado e soube, naquele instante,
que se me aproximasse dele, poderia ver o cara que as meninas falavam.
— Eu detesto que me chamem de Lianah — contei, sem entender o
motivo de estar tirando aquilo de dentro de mim depois de tanto tempo.
Alguns segundos se passaram sem uma resposta dele, então resolvi
continuar. — Quando eu tinha dezessete anos, fui ao cemitério sozinha
numa noite, visitar o túmulo da minha mãe. Pulei o muro e chorei sobre a
lápide dela até pegar no sono. Quando acordei, me senti estranha. Eu tentei
levantar, mas eu não tinha mais coordenação e meu corpo não respondia
bem aos meus comandos. Eu não lembro de muita coisa, pra falar a
verdade.
Senti minhas entranhas se revirarem e o nó na garganta aumentar. O
cheiro, o frio, a dor. Falar sobre aquilo era quase como sentir tudo
novamente. Meus olhos se encheram de lágrimas.
— Lembro do cheiro de álcool e daqueles olhos escuros que me
encaravam com muita raiva, como se ele pudesse descontar tudo de ruim da
vida dele em mim. Lembro até do gosto horrível do produto que ele usou
pra me sedar na mão dele, quando me impediu de gritar. Mas lembro,
principalmente, da voz aterrorizante dele… me chamando de Lianah o
tempo inteiro. — Engolindo seco, fechei os olhos contendo as lágrimas que
começavam a se acumular.
As lembranças me invadindo dolorosamente, fazendo com que a dor
fosse quase tão intensa como quando aconteceu. Uma parte de mim, insistia
em me jogar naquele espaço sufocante da minha alma toda vez que eu
escutava alguém me chamar de Lianah.
— Lembro de como eu pedia a Deus que aquilo acabasse rápido. Em
algum momento vi minha mãe. Claro que era uma alucinação, mas seu
olhar carinhoso, foi ao que me apaguei até o cara sair de cima de mim e ir
embora. — Sequei uma lágrima persistente que desceu sem permissão pela
minha bochecha. — Acordei no cemitério pela manhã, e minha carteira e
documentos estavam espalhados no chão, talvez o cara tivesse visto meu
nome ali. Fui embora para casa com a roupa rasgada e toda machucada…
nunca contei a minha avó ou qualquer outra pessoa o que aconteceu. —
Receosa, virei a cabeça para o lado e me deparei com os olhos azuis
intensos, vidrados em mim. — Até hoje!
— Por que tá me contando isso? — Nathan engoliu seco.
— Não sei — respondi sem desviar meus olhos dele pela primeira vez
desde que nos conhecemos. — Talvez pra mostrar que a gente nunca sabe
pelo que as outras pessoas passaram. Eu errei quando julguei você e não
deixei sair de lá com a Camille. Mas ver aquela cena me trouxe uma das
piores lembranças da minha vida. Eu nem sequer conseguia olhar direito
pra você aquela noite.
Nathan me encarou, estudando meu rosto enquanto parecia pensar em
algo.
— Liah, eu não sei o que dizer.
Liah.
Não Lianah.
Ele já havia me chamado assim uma vez, na noite em que minha avó
morreu.
— Não precisa dizer nada, não foi com essa intenção que te contei. Não
quero que tenha pena. — Desviei meu olhar, incomodada com a forma
diferente que Nathan me encarava.
— Não é pena. Odeio que sintam pena de mim. Sei qual é o efeito dessa
sensação — explicou apoiando os cotovelos sobre os joelhos e a testa sobre
suas mãos.
— Você ainda me culpa? — perguntei esperando que uma trégua
estivesse se instaurando entre nós.
Nathan virou seu corpo de lado, diminuindo um pouco a distância segura
que mantínhamos.
— Racionalmente, eu sei que você não tem culpa, Liah. — Meu coração
disparou com sua proximidade e com sua declaração. — Mas eu sempre
vou buscar alguém pra culpar, porque eu nunca consegui conviver com a
realidade de não ter meu filho comigo.
— Então você sabe que eu não tenho culpa, mas me culpa mesmo assim?
Nathan pareceu pensar por alguns instantes.
Pelo menos dessa vez estávamos dialogando como duas pessoas decentes
e adultas.
— Você tem medo de alguma coisa? Tipo, medo mesmo, de não ter
controle sobre isso?
Franzi a testa sem entender muito bem sua pergunta.
— Tenho medo do mar. Não consigo entrar de jeito nenhum, parece que
o mundo vai me engolir quando chego perto. Não consigo chegar nem na
borda.
— Mas racionalmente, você sabe que não vai se afogar na borda, não é?
Sabe que o mundo não vai te engolir.
— Sim. — Busquei seus olhos sem entender muito bem onde ele queria
chegar.
Seu olhar era muito intenso, como costumava ser quando ele
demonstrava a raiva que sentia de mim. Mas dessa vez era como uma
chama controlada.
— Quando penso no que aconteceu, é exatamente assim que me sinto.
Minha mente não funciona racionalmente perto de você. — Seus olhos não
desviaram dos meus por um segundo sequer enquanto ele falava. — Eu sei
que você não teve culpa, mas não consigo deixar de pensar em como a
minha vida seria se você não tivesse aparecido naquela rua, se eu não
tivesse entrado naquela viatura…
Suas palavras foram morrendo a medida que seus olhos foram desviando
dos meus. Nathan passou as mãos pelos cabelos num gesto meio
desesperado.
— Não foi só a perda do meu filho. — Ele estava chorando, mesmo com
a cabeça baixa apoiada nas mãos, eu podia sentir em sua voz — Muita coisa
mudou dentro de mim. Minha cabeça ficou muito fodida depois daquilo.
O silêncio tinha se instaurado novamente, e eu não sabia se deveria falar
qualquer coisa. Eu realmente não sabia como, e nem seria a melhor pessoa
para consolá-lo nesse momento. Minha visão periférica captou seus
movimentos enquanto levantava a cabeça e pude ouvir pequenas fungadas,
resultado de seu choro silencioso. Mantive meu corpo virado para frente,
com medo do que podia encontrar em seus olhos.
— Houve um momento aquela noite que podia jurar que estava morto.
— Suas palavras cortaram o silêncio, lançando um arrepio gelado já
conhecido em meu corpo. Não respondi. Embora tenha certeza de que seu
silêncio era uma brecha para que eu falasse algo. Mas logo Nathan resolveu
continuar seu monólogo. — Eu havia aceitado que ia morrer. Eu nem sentia
mais a dor, e a cada vez que eles me batiam eu pedia por mais, queria que
eles fossem mais rápidos e mais fortes, pra acabar logo, sabe!? — Claro que
eu sabia, e Nathan era a única pessoa no mundo que sabia que eu entendia
perfeitamente aquela situação.
Embora distante e aparentemente frio, Nathan não estava se importando
muito em esconder os sentimentos dele sobre aquela noite. Novamente o
silêncio proposital, na busca de uma interrupção minha. Mais uma vez
continuei em silêncio, incerta de que conseguiria falar alguma coisa.
— Acordei dias depois no hospital com minha tia ao meu lado. Eu não
entendia como podia estar vivo. Tentei perguntar do meu filho, mas minha
voz não saía, tinha um tubo horrível na minha garganta e milhares de fios
ligados no meu corpo. — Nathan soltou uma risada triste e sacudiu a cabeça
levemente, como se aquelas lembranças o atormentassem. — Eu queria ter
morrido, Liah. E quando me dei conta disso, uma raiva fodida tomou conta
de mim. Eu tirei todos os fios e o tubo na minha boca, mesmo com as mãos
enfaixadas da cirurgia que havia feito… tentei sair daquele quarto, mas eu
tinha uma perna quebrada e muita dor no corpo inteiro. Claro que cai no
chão segundos depois. Mesmo nesse estado, foram necessários três
enfermeiros para me segurar e me sedar de novo.
Nathan suspirou erguendo seu corpo do chão, travei, esperando seus
próximos passos. Vi quando seus joelhos apareceram em meu campo de
visão e seus braços se estenderam como se me mostrasse algo.
As tatuagens.
— Tá vendo? — Levantei meus olhos até o ponto onde seu indicador
esquerdo mostrava as tatuagens em seu antebraço direito. — São para
cobrir as marcas daquele dia. — Nathan apontou a sucessão de rabiscos que
cobriam sua costela na lateral direita do corpo. — São todas para cobrir as
marcas daquela noite e das cirurgias. Só não consegui cobrir a da perna toda
e das mãos. — Como se fosse para evidenciar sua fala, ele estendeu as
mãos me mostrando as linhas finas em seus dois pulsos.
Eu estava em choque, parecia haver uma trava em minha garganta me
impedindo de falar qualquer coisa. Olhei novamente para o rosto dele e vi
sua tristeza, seus olhos estavam mais cinzas do que azuis e vermelhos pelo
choro de pouco tempo atrás.
— Eu não sei o que dizer — disse com o fio de voz que me restou.
— Não precisa dizer nada. — Seus olhos desviaram mais uma vez dos
meus. Era muito intenso para manter aquela conexão muito tempo. — Isso
é só pra tentar te explicar que não importa o que eu faça ou o que aconteça,
essas marcas sempre vão estar comigo. Quando olho para essas cicatrizes
ou para essas tatuagens, eu sempre me lembro daquela noite e penso como a
minha vida teria sido se nada tivesse acontecido. — Nathan sentou-se
novamente ao meu lado, dessa vez ainda mais próximo de mim. Inspirei e
seu cheiro forte e amadeirado me invadiu. — É por isso que eu nunca vou
conseguir olhar pra você e não pensar que as cosias poderiam ser diferentes
se você não tivesse aparecido lá. — Completou após alguns segundos,
fazendo com que toda a dor e culpa que vinha tentando afastar, voltassem
com toda intensidade ao meu peito.
Não pude mais conter as lágrimas, talvez as mais dolorosas que já teria
deixado escapar na vida. A confissão racional e livre de um ataque de fúria
dele, doía ainda mais. Talvez por saber que dessa vez, ele queria mesmo
dizer aquilo e que não era só para me ferir.
— Mas eu sei que a gente não pode conviver assim para o resto da vida.
Você também é amiga deles, Liah. — Nathan terminou, me dando brecha
para falar, mas minha voz continuava presa na garganta. — Aprendi a
conviver com essas marcas, e posso aprender a conviver com você. Sei
como você é importante para a Olie e o quanto a ajudou enquanto eu não
podia. Eles são as únicas pessoas que sempre tiveram do meu lado. Estou
vivo hoje por causa deles, então acho que posso fazer esse esforço. Desde
que você prometa que não vai mais tocar nesse assunto e vai fingir que essa
conversa nunca aconteceu. — Senti seus olhos sobre mim, esperando uma
resposta.
— Acho que posso prometer isso — disse tentando sorrir sobre as
lágrimas, com esperança de que um dia ele pudesse me perdoar de verdade.
— Trégua, então! — Nathan subiu o corpo novamente, estendendo a
mão para mim.
Sorri com o pequeno gesto gentil, enquanto meu coração acelerava,
sentindo o calor da mão dele.

Uma batida soou na porta.


— Entra!
— Oi, Liah — Triss apareceu sorridente. — Queria falar comigo?
— Queria, sim, meu amor. Entra aqui, fica à vontade. Só estou esperando
o Nathan para a gente falar com você.
Depois de nossa conversa, Nathan e eu combinamos de contar a Triss
sobre a adoção no fim dia. Eu estava tão nervosa e ansiosa para aquilo, que
parecia até que eu era a pessoa quem estava adotando a menina.
Triss sentou-se na cadeira a minha frente, franzindo a sobrancelha
preocupada.
— Aconteceu alguma coisa com o estágio?
— Não, pode ficar tranquila — sorri, tentando tranquilizá-la.
Ela, provavelmente, ficaria radiante com a oportunidade de sair da ONG
por um tempo e levar uma vida normal. Uma nova batida na porta soou e no
segundo seguinte, Nathan apareceu por trás dela.
— Posso entrar?
— Claro — fiz sinal para que ele sentasse na outra cadeira ao lado de
Triss. — Prefere que eu saia? — perguntei sem saber se ele preferia
conversar com a menina sozinho.
— Não, prefiro que você fique — pediu apreensivo.
Triss nos olhou preocupada, esperando que um de nós explicasse o que
estava acontecendo.
— O que está havendo?
Um silêncio incomodo se seguiu por alguns instantes. Olhei para Nathan,
tentando incentivá-lo a falar. Um suspiro nervoso saiu dele e não pude
deixar de rir. Tão irritado e bruto para brigar comigo e agora estava todo
apreensivo para contar a uma adolescente que estava tentando adotá-la.
— Triss, quando eu não consegui a autorização para o seu estágio, eu
fiquei realmente muito chateado por não poder te proporcionar todas as
experiências que eu imaginava. Eu tive quem fizesse isso por mim e sempre
quis retribuir ao mundo de alguma forma.
Triss sorriu, tentando confortá-lo, tomando a iniciativa de segurar a mão
dele. Sorri com a cena.
— Eu sei, Nate. Mas o que vocês estão fazendo por mim agora, já é
maravilhoso.
Nathan sorriu de volta para a garota, me encarando em seguida. Assenti
para ele, o incentivando a continuar.
— O que você acha de sair daqui? De ter uma vida mais livre, ir a uma
boa escola, estagiar de verdade numa empresa, ter como frequentar uma boa
faculdade?
— Eu te disse uma vez, Nate. Não fantasio com isso a essa altura. — A
garota abaixou os olhos tristes. Quando eles tiveram essa conversa? —
Acho que até posso conseguir uma boa Universidade, mas só depois que
sair daqui e começar a construir minha vida.
— E se eu te disser que tenho uma autorização do Estado pra assumir
sua tutela? Que podemos tentar um período de adaptação e que se tudo der
certo, você pode viver comigo até completar dezoito anos e depois decidir o
que quer da sua vida.
A garota alternou o olhar de mim para Nathan algumas vezes, confusa.
— Você não brincaria com isso, não é? — perguntou assustada, olhando
para suas mãos nervosamente.
— Claro que não, Triss. Isso é tão sério pra mim quanto é para você.
— Vocês estão falando de adoção? — o brilho nos olhos dela denunciava
o acúmulo de lágrimas se formando. — Você está me adotando?
A garota finalmente voltou a encarar Nathan. Os dois estavam muito
apreensivos. Nathan por ter medo de que Triss não recebesse bem a notícia,
e Triss por não ter certeza se devia acreditar naquilo.
— Se você também quiser isso, sim — Nathan puxou um pedaço de
papel amassado do bolso e entregou a ela.
A garota desdobrou o papel com os dedos trêmulos. Era uma cópia do
documento que autorizava o período de adaptação dela.
— Por que não me falaram nada antes?
— Não queríamos criar falsas expectativas em você de novo —
expliquei, vendo a menina tremer com o papel na mão.
— Posso ir hoje? — perguntou confusa a Nathan. — Quero dizer… hoje
é quarta… eu poderia ir para empresa amanhã?
— Tenho que resolver algumas coisas hoje e preparar tudo, mas prometo
que venho te buscar amanhã a tarde — Nathan avisou, começando a sorrir
para a empolgação da garota.
— Meu Deus, eu vou ficar tão ansiosa até lá. Você vai ser tipo meu pai
agora? — Triss olhou divertida para ele e todos rimos com a pequena
constatação.
— Não sou tão velho assim — Nathan reclamou sorrindo.
Triss levantou-se rapidamente, fazendo uma espécie de dancinha de
comemoração antes de puxar o pulso de Nathan para levantá-lo e pular no
seu colo. A cena era típica de uma adolescente feliz abraçando um pai que
não via a tempos.
Nathan apertou os braços ao redor dela, e pude jurar que ele tentava,
desesperadamente, secar algumas lágrimas teimosas que escorriam de seu
rosto.
Nathan
Capitulo 18

20 de junho de 2019

— Ela foi abusada — minha voz soou distante, sem ter certeza de como
aquilo me afetava, e Doutor Emerson me olhou curioso.

— De quem exatamente estamos falando?

— Da Liah — respondi.

— Liah é a Lianah, certo? — Aquele homem não dava ponto sem nó. —
Como descobriu que ela foi abusada?

Mordi o lábio nervoso. Ninguém além de mim sabia sobre aquilo. Me


sentia mal em contar para ele.

— Ela me contou. Sou a única pessoa além dela que sabe sobre isso. Não
sei se deveria falar para outra pessoa.

— Sou uma extensão sua aqui, Nathan. Nada que me contar sairá daqui.

— Liah me contou sobre isso pra explicar a forma que se afetou quando
meu viu naquela noite, tentando enfiar a Camille no meu carro. Nunca
pensei em como aquilo soou pra ela.

O homem anotou algumas coisas em seu bloco e voltou a me encarar.

— E isso te fez compreender o lado dela?

Eu tinha essa resposta. Pensei nisso a noite inteira.

— Me fez entender seu conceito de que a culpa é relativa. Ela nunca teve a
intenção de me fazer mal. — Remexi o corpo, incomodado.

— O que está te incomodando tanto nessa história? Consigo perceber você,


inquieto. — Doutor Emerson esperou alguns segundo por uma resposta que
estava travada em minha garganta. — Estou especulando, claro. Mas saber
que ela foi violentada te incomoda. Estou certo?

— Deveria incomodar qualquer um — afirmei. — Mas me afeta sim. —


continuei pensativo. — É um pouco difícil aceitar que isso tenha
acontecido com alguém próximo. Eu conseguia ver a dor nos olhos dela,
enquanto me contava.

O homem me encarou por alguns segundos, tentando buscar alguma


resposta, que a julgar pela sua expressão, era óbvia.

— Nathan, você trocou Lianah por Liah e acabou de se referir a ela como
alguém próximo. O que mudou entre vocês?

Eu a beijei sob o pretexto de estar ajudando-a.

Eu vinha me perguntando o mesmo o fim de semana inteiro. Mas essa era


uma resposta que eu ainda não tinha.

— Acho que entender o lado dela me fez perceber que ela também é
humana. Ficou mais fácil aceitar as coisas boas que já vinha vendo nela.

— Esse é um ponto, com toda certeza. Entender o lado de alguém nos abre
muitas portas para uma possível aproximação. — Doutor Emerson
explicou. — Fico feliz que tenha tido a iniciativa de conversar com a
Lianah.

— Liah. Ela não gosta que a chamem de Lianah. — Doutor Emerson


anotou alguma coisa sorrindo. — E não fui eu que tive a iniciativa. Ela veio
atrás de mim, me ameaçar caso alguma coisa aconteça com a Triss. O
período de adaptação foi liberado pelo Juiz.

O psicólogo virou uma página do bloco pensativo. Mais algumas anotações


foram feitas até que levantou os olhos em minha direção.

— Eu gostaria de saber mais sobre essa sua conversa com Liah, mas me
fale sobre a Triss. Você se sente preparado para recebê-la finalmente?
Quem, em sã consciência, estaria preparado para receber uma adolescente
de dezesseis anos em sua casa? Eu sabia que o trabalho seria árduo e que,
logicamente, teria algumas dificuldades. Mas o resultado valeria a pena.

— Sinto que estou pronto para passar por isso — me limitei a responder. O
homem me estudou por alguns segundos.

— Gosto da segurança com que afirmou isso — Doutor Emerson sorriu.

Separador

Alegria e paz eram dois sentimentos quase nulos na minha vida há um


tempo. Nessa última semana eu tinha me livrado de grande parte da mágoa
de Liah e até do meu sentimento de culpa própria. A adaptação de Triss
havia sido aprovada e a garota gostou da notícia.

Eu tinha passado alguns dias apreensivo, com medo da reação que ela
pudesse ter. Hoje, finalmente, eu a levaria para minha casa, que seria a casa
dela também. Depois que contei a Triss, acordamos que voltaria hoje para
buscá-la, para que Liah tivesse tempo de arrumar a documentação e as
coisas dela.

Como nada era tão perfeito, Elise continuava atrás de mim, mandando
mensagens e ligando quase diariamente, decidida a me convencer a tratá-la
como mãe. Só o pensamento já era suficiente para ameaçar tirar toda a paz
que senti nos últimos dias.

Joguei esses pensamentos para o fundo da minha mente quando entrei na


ONG, cumprimentando Dinna na recepção.

— Liah já chegou? — perguntei, sabendo que ela só viria na parte da tarde


hoje.

— Chegou ainda pouco. Está com uma nova voluntária na sala dela.

Assenti, seguindo até lá. No corredor, avistei Liah conversando com uma
morena que estava de costas na porta de sua sala. Me aproximei delas,
sentindo um arrepio estranho na espinha.
Acho que a conheço de algum lugar.

A outra mulher tinha algo muito familiar. Liah sorriu por cima do ombro da
morena, ao me ver caminhar até elas.

— Oi, Liah — disse quando estava quase ao seu lado. — Desculpa


interromper, eu cheguei um pouco adiant…

Minha voz se perdeu quando finalmente encarei a outra garota. Minha


mente parou de processar qualquer coisa.

Será que eu tinha enlouquecido?

— Porra! — engoli seco.

Meu coração estava disparado. Foquei na minha respiração, tentando


lembrar das palavras do meu psicólogo, mas minhas mãos já estavam
fechadas, concentrando toda a minha força em me manter são até que eu
pudesse falar novamente.

— Oi, Nate — sua voz cortou meus ouvidos me fazendo fechar os olhos.

Passei os últimos meses culpando Liah por algo que não deveria,
esquecendo totalmente a real causadora dos meus traumas. Antes que eu
pudesse fazer qualquer merda ali dentro, virei as costas e segui de volta em
direção à saída. Passei pela porta de vidro na recepção ainda lutando com a
raiva que crescia em meu peito.

Estava com a visão embaçada e a mente confusa, mas vi quando um carro


parou em frente a porta do prédio e Evie desceu, me vendo parado na
calçada. Nervoso, passei as mãos pelo meu cabelo, desconcertado, sentindo
minha respiração mais alterada a cada segundo.

— Nate, está tudo bem? — Ela veio até mim, percebendo o meu estado. —
O que aconteceu?

Precisei puxar o ar com toda a força para que aquelas palavras fossem ditas,
e quando saíram de mim, levaram cada partícula de oxigênio com elas.
— Camille está aqui!

Dizer aquilo em voz alta só fazia a situação ficar ainda mais real. Ela tinha
mesmo voltado da Itália, e estava aqui. Infiltrada na minha vida de novo.

Puxei os fios ainda mais desesperado. Eu nunca consegui me controlar tão


bem para não ter uma crise antes, mas a hora que eu estourasse seria feio.
Dessa vez, algo tinha se aberto profundamente em mim.

— Vem comigo — Evie me puxou, me arrastando pelo pulso até o corredor


lateral do prédio. Segui a garota sem reclamar pelo caminho estreito entre o
prédio e o muro que o cercava.

— Evie, eu tô tentando me segurar, mas se eu tiver uma crise agora…

— Se você segurar, vai ser pior, Nate — Evie avisou.

A garota me largou num pátio que desconhecia, logo atrás do prédio,


abrindo um portão de ferro grande. Depois voltou a puxar minha mão para
dentro do galpão que tinha ali.

— Pode gritar e socar o que você quiser aqui dentro.

Era um galpão gigante, cheio de caixas e ferramentas velhas. Não sabia da


existência daquele lugar.

O desespero no meu peito ainda crescia. Era surreal acreditar que tanta
coisa estava sendo remexida ao mesmo tempo. Elise trazendo meus
traumas de volta, Camille me fazendo lembrar da morte do meu filho. As
feridas ainda estavam abertas e expostas demais para serem remexidas
dessa forma agora. Não era justo que isso apagasse todas as coisas boas.

— Coloca isso pra fora, Nathan, você precisa disso.

— Evie, eu tô tentando me controlar…

Ela olhou em volta, até que correu em direção a um balcão velho e tirou
uma barra de ferro grande e pesada do monte de ferramentas espalhado em
cima dele.
Mais lembranças ruins me atingiram.

— Ela matou o Theo, Nathan.

Porra!

Era sempre uma avalanche quando alguém falava o nome dele. Meu
coração perdeu uma batida e levei o punho fechado até a boca, travando os
dentes na pele da minha mão, com medo de perder o controle. Evie puxou
minha outra mão, me entregando a barra de ferro.

— Tem um monte de coisa aqui pra você descontar. Coloca a raiva pra fora.
— pediu, me mostrando os grandes caixotes de madeira e as estantes velhas
de alumínio.

— Evie, não é seguro…

— A Camille matou seu filho, Nate. Elise está infernizando sua vida. Você
vai levar uma adolescente pra sua casa hoje, é melhor descontar isso aqui e
não correr o risco de ter uma crise em casa.

Alguns segundos se passaram, enquanto minha mente tentava processar as


palavras dela.

A pior coisa em tentar ganhar uma batalha interna é quando você percebe
que vai perder. Em todas as minhas crises eu tentei de alguma forma manter
controle, ou ao menos manter o fio frágil que segurava minha sanidade,
nunca me permiti estourar de verdade. Mas não dessa vez. Deixei tudo
aquilo subir a superfície, enquanto apertava os dedos com mais força ao
redor do ferro gelado.

O medo do abandono, a dor da ausência dos meus pais, a impotência de ver


minha tia apanhar, a dor física de ser espancado… o desespero de saber que
meu filho estava morto.

Nada era como o luto que nunca me permiti viver.

Quando o último fio de controle se partiu, um grito desesperado irrompeu


do meu peito. Senti minha garganta reclamar no mesmo instante.
Totalmente inconsciente, o cano de ferro passou a acertar as caixas,
quebrando os pedaços de madeira frágil à medida que eu movia os braços
com mais força.

Era libertador!

Eu podia ver e sentir a raiva saindo em cada golpe. A dor lacerante


deixando meu corpo a cada baque surdo que estourava no galpão.

O suor começou a escorrer pelo meu rosto, enquanto aquela avalanche de


sentimento só ficava pior a cada vez que eu acertava o pedaço de ferro
contra a madeira velha; mas as caixas de madeira se quebravam fácil
demais, me fazendo perceber que era pouco.

Desesperado, passei a bater contra as estantes de alumínio, precisando


colocar mais força nos braços para ver o material amassar sob meus golpes.

Eu estava ferido, machucado, quebrado. Aquelas porras de feridas nunca


curaram. Dentro de mim só existia ódio e mágoa. Eu sentia tudo aquilo a
cada golpe, porque era quase como bater em mim mesmo.

Tinha uma pequena parte, por menor que fosse, que queria ser melhor…
que queria dar uma vida melhor para Triss, que queria ser exemplo para
Mia; essa parte crescia e ficava mais forte a cada gota de ressentimento que
eu conseguia colocar para fora.

Meus braços reclamavam, minha respiração falhava excessivamente, meu


corpo gritava pela dor e exigência impostas, mas minha mente se deliciava
com a sensação do esgotamento.

Eu sentia que, finalmente, podia respirar de novo.

Quando atingi a exaustão e meu corpo cambaleou para trás, soltei o ferro
aos meus pés, virando de volta para Evie na entrada do galpão. Liah estava
com ela, me olhando em choque. Senti meus joelhos cederem e uma
fisgada aguda de dor quando atingi o chão.
Enterrei o rosto nas minhas mãos, deixando que os soluços tomassem conta
de mim e chorei como nunca havia chorado antes, em toda a minha vida.

As duas correram até onde eu estava, me abraçando.

Eu permiti.

Me permiti colocar aquilo pra fora; me permiti sentir a dor que deveria ter
sentido quando tudo aconteceu; me permiti aceitar que não era minha culpa
ou de Liah; Me permiti chorar e deixei que elas me consolassem.

Evie e Liah tentaram me acalmar, sussurrando todo o tempo que tudo ia


ficar bem. Era difícil acreditar naquilo, mas pela primeira vez, mesmo no
meio de todo o caos, eu sentia um fio de esperança.

— O que é isso? — Encarei Liah, ciente de que estava fazendo uma careta
típica de criança.

— É um chá, Nathan. Em que mundo você vive? — A garota sacudiu a


cabeça em reprovação. — Bebe isso logo.

Um suspiro profundo escapou do meu peito. Enfiei o nariz na caneca de


novo, sentindo o cheiro forte de planta. Aquilo devia ter um gosto pior
ainda.

— Queria minha garrafa de whisky agora — reclamei vendo Liah segurar


um sorriso. — O que foi?

— Você parece uma criança. — Ela tirou a caneca da minha frente, abrindo
a gaveta da mesa. — Se contar pra alguém que tenho isso aqui, mato você.

Liah me entregou uma garrafinha de ferro. Peguei o objeto frio da mão


dela, franzindo a testa enquanto abria a tampa e cheirava o conteúdo, me
surpreendendo. Arqueei uma sobrancelha, encarando a garota.

— Tequila?
— Às vezes, eu me estresso também — confessou divertida.

Definitivamente, aquela era uma versão dela que jamais imaginaria existir.
Liah era o tipo de pessoa que só de bater o olho, você entende que é
fanática em regras e nunca faz nada errado. Mas talvez eu estivesse errado,
afinal.

Dei um longo gole na bebida, sentindo minha garganta esquentar.

Liah e Evie haviam ficado comigo, ajoelhadas no chão, até que eu parasse
de chorar. Quando finalmente me acalmei, Evie precisou voltar para a
Consultoria e Liah me trouxe para sua sala.

De todas as pessoas possíveis, nunca pensaria em Lianah como alguém que


pudesse me acalmar durante uma crise.

Aquela não tinha sido uma crise normal. Foi a pior e a melhor de todas que
eu já tive. Pior porque eu nunca estive tão fora de controle, e melhor porque
foi libertador. E por mais inacreditável que fosse, foi a única na qual não
me machuquei fisicamente. Bem, provavelmente eu ficaria com uma dor
absurda nos braços mais tarde, mas não poderia esperar nada diferente
considerando a força que coloquei naqueles golpes.

— O que Camille estava fazendo aqui? — perguntei devagar, com receio


do que podia me despertar tocar naquele assunto de novo.

— Eu não sabia que ela era a mesma Camille da sua história — explicou.
— Eu podia jurar que a garota que estava com você aquela noite era loira.

— E ela era. Deve ter pintado o cabelo. — Também não a reconheci


quando estava de costas. — Mas o que ela queria com você?

— Ela marcou uma reunião comigo por telefone na semana passada. Queria
ser voluntária aqui. Eu só soube quem ela realmente era quando você saiu
sem falar nada. — Liah abaixou os olhos pesarosa, mordendo a parte
interna da bochecha direita.
Cerrei os olhos, prestando mais atenção nela. Seus olhos pesarosos demais,
a falta do sorriso habitual, a cortina dourada que caia em volta do seu rosto
triste. Liah era… viva… demais para estar chateada daquele jeito. Por um
problema que era meu.

— Desculpa te fazer presenciar aquele meu descontrole lá no galpão —


falei bebendo outro longo gole do líquido na garrafa.

Liah me encarou apertando os lábios. Um sorriso compreensivo me


alcançou uns segundos depois, embora não tivesse atingido seus olhos.

— Que bom que você não se machucou dessa vez. — Seus olhos desceram
para as marcas vermelhas ainda evidentes nas minhas mãos.

— A Evie me ajudou com isso — expliquei, mantendo meus olhos na


garrafa entre meus dedos. — Ela sabe, como ninguém, despertar a raiva de
qualquer um.

Eu sabia que Evie não tinha feito por mal; mas ela tocou exatamente nas
minhas piores feridas. Um suspiro exagerado cortou meu peito e voltei a
beber o líquido ardente.

— Você não vai dirigir agora? — Liah arqueou a sobrancelha, apertando os


olhos em minha direção.

— Vou pedir a Mia pra levar a gente. — Na verdade, eu teria dirigido se


Liah não tivesse tocado no assunto. Mas por algum motivo, ela despertava
um senso ético muito forte em mim. — A Triss está ajudando a Mia no
curso dela hoje.

Liah girou na cadeira inquieta, assentindo lentamente. Os dentes brancos


prenderam o lábio inferior enquanto mantinha o olhar em seus pés. Minha
mente automaticamente me transportou para um momento onde era eu
quem mordia aqueles lábios. Meus olhos acompanharam cada movimento,
registrando a imagem como o efeito de uma câmera lenta.

Que porra, Nathan…


— Ansioso pra levar a Triss? — a voz baixa cortou o silêncio e meus
pensamentos errantes. — Ela não via a hora de você chegar.

— Acho que estou mais nervoso que ela. Quero muito que isso dê certo,
Liah. Mas tenho medo de não saber lidar com ela, de não conseguir ser
responsável o bastante pra nós dois.

Essa era praticamente a segunda vez que estabelecia uma conversa decente
com a mulher a minha frente. Assim como aconteceu na primeira, era quase
impossível não me abrir com ela. Havia um padrão comum entre a primeira
e a segunda vez que falamos, onde Liah dizia ou perguntava algo profundo
e eu respondia totalmente sincero, para logo depois um clima mais pesado
se instaurar entre a gente.

Era exatamente isso que acontecia agora. Liah teve receio de me responder
e minha mente traiçoeira insistia em me dizer que era porque a garota ainda
não confiava em mim. Nem você mesmo confia, Nathan.

— Você vai se sair bem, Nathan. — Seus olhos finalmente encontraram os


meus. — É só olhar o que você representa para a Mia. Se você for algo
próximo para a Triss, provavelmente vai ser a melhor pessoa no mundo pra
ela.

— Mia fala de mim com você? — perguntei curioso.

Liah repuxou o canto do lábio num sorriso divertido, a diversão alcançando


seus olhos dessa vez.

— Sua irmã brigou comigo por falar mal de você umas semanas atrás. Você
precisava ver como ela te defendeu. Mas foi por causa disso que tive
certeza que você seria bom para a Triss.

Sorri abertamente, contagiado pelo sorriso grande da mulher à minha frente


e pela imagem de uma Mia totalmente brava, me defendendo. Eu realmente
gostaria de ter visto a cena, por dois motivos: primeiro, Mia brava era
engraçada, mas deixava todo mundo com medo; e segundo… Lianah
irritada, mexia comigo.
De onde saiu isso mesmo?

Meu cérebro voltou a processar as imagens em câmera lenta. Meus olhos


captavam detalhes jamais percebidos antes; as duas pequenas covinhas na
lateral de seus lábios esticados enquanto sorria; a pontinha do nariz
levemente arrebitada; o brilho dourado da franja, caída na lateral dos olhos,
quando a luz do sol que entrava pela janela batia ali. Mais lembranças
vívidas do seu corpo prensado pelo meu me atingiram.

Que caralho você está pensando, Nathaniel?

— Nate! — Um barulho alto me fez respirar de novo. Olhei para trás vendo
Mia e Triss entrarem na sala empolgadas. — Evie avisou que estava aqui.

Voltei a olhar para frente, vendo Liah com os olhos vidrados na garrafa em
minha mão. Fechei o frasco o mais rápido que pude, entregando para ela
em menos de dois segundos. A loira mantinha seus olhos arregalados, com
medo de descobrirem seu segredinho sujo, mas as meninas estavam tão
distraídas em sua animação que nem perceberam.

— Oi, meninas — respondi totalmente aliviado.

Triss abriu um sorriso gigante me mostrando a pequena mala que


carregava. Sorri de volta, indo até elas e abraçando as duas, satisfeito com
minha decisão. Eu estava começando a ter mais motivos para querer estar
vivo, e a cada vez que percebia isso, eu tinha mais certeza que Liah
precisava ter cruzado meu caminho.

— Nate, a Mia pode ir com a gente? Ela vai me ajudar a arrumar meu
quarto, tem noção de que eu nem sei o que é ter um quarto só pra mim? Eu
tenho um armário? As roupas que tenho não devem ocupar nem uma
gaveta…

— Triss… — chamei ao perceber que as perguntas seriam infinitas. —


Você vai ter um quarto, com uma cama gigante e um armário que a Mia já
lotou de roupa essa semana. Vai ter um computador só seu também, e todas
essas coisas que garotas tem. — Sorri orgulhoso por vê-la feliz.
Mia tinha feito a festa com meu cartão quando comprou tudo que, segundo
ela, uma adolescente precisava para viver bem.

— A gente pode ir logo? Tô ansiosa. — pediu fazendo um biquinho fofo.


Assenti, sabendo que estava ferrado sempre que a garota fizesse aquela
cara.

— Você sabe dizer não pra Mia? — Liah perguntou baixinho, parando ao
meu lado. Podia sentir a diversão sádica presa em sua voz.

— Não! — Soltei um riso desesperado.

— Você sabe que vai ter que aprender a dizer não, não é?

Virei meu pescoço encontrando o olhar sorrateiro dela. Me peguei


mordendo o interior da bochecha, do mesmo jeito que Liah fazia às vezes.

— Como faço isso? — perguntei nervoso.

Mia e Triss tinham a personalidade muito parecida, e para piorar eram


muito amigas. Liah tinha razão, eu precisava aprender a dizer não, ou iria
ser feito de bobo fácil pelas duas. Mas por hora, eu me permitiria ser só o
cara babão que cuidava da irmã e da ́filha ́ fazendo todas as vontades delas.
Sorri para as duas.

— Meu Deus, você tá tão ferrado! — Liah sacudiu a cabeça, os lábios


crispados enquanto segurava para não rir. A loira puxou meu pulso, abrindo
minha mão e colocando algumas balinhas de hortelã na palma. — Acredite
em mim, Mia sente o cheiro da tequila de longe.

Olhei desacreditado para ela. Quantas vezes Liah tinha me surpreendido


hoje?

Saímos da ONG no meio da tarde. Triss entrou no carro, sentando no banco


de trás, empolgada, enquanto Mia me lançou um olhar repreendedor ao
tirar as chaves da minha mão, e só então lembrei das balas de hortelã no
bolso do meu jeans. Sorri, lembrando de Liah e das surpresas de hoje.
— Tá tudo bem com você? — Mia perguntou me encarando de um jeito
engraçado.

— Tá — foi tudo que respondi, fugindo de seu julgamento.

Mia saiu com o carro da ONG, e olhei Triss pelo retrovisor. A adolescente
olhava, encantada, as ruas de Greenville com alguns prédios altos no centro
e muitas casas residenciais nas ruas mais afastadas. Eu morava num prédio
próximo ao Centro da cidade, com vista para um grande lago no parque
central. Triss desceu do carro na garagem, ainda mais ansiosa do que
quando saiu da ONG, minutos atrás.

— Triss, você vai amar a vista e seu quarto. — Mia puxou a garota em
direção aos elevadores, me deixando para trás. Tirei a mala pequena do
porta-malas, subindo logo depois delas.

As duas já estavam dando gritinhos no quarto quando atravessei a porta da


sala. Sorri pela empolgação delas, levando a mala até lá. Percebi os olhos
marejados de Mia, só então reparando que várias lágrimas desciam pelo
rosto de Triss que andava de um lado a outro do quarto, sem acreditar que
tudo aquilo era dela.

— Ei! — chamei a atenção dela, mesmo que fosse impossível fazê-la se


concentrar em mim agora. — Triss, tá tudo bem?

— Eu não consigo acreditar, Nate. — A garota veio correndo até mim,


passando os braços pela minha cintura e afundando o rosto em meu peito.
— Eu tenho medo de você me mandar embora a qualquer segundo.

— Eu não vou fazer isso, Triss. — Passei meus braços em volta dela. Mia
sentou na cama, olhando a gente com um sorriso emocionado no rosto. —
Essa é sua casa agora, e vai ser até o dia que você quiser e se sentir bem
com isso.

Era incrível como algo assim podia revitalizar qualquer um. Triss acendia
uma parte de mim que pensei estar totalmente morta, uma parte que estava
se aquecendo e transbordando de felicidade. Por um segundo, imaginei
como seria ter meu filho aqui, correndo e gritando pela casa. Geralmente,
esse pensamento me levaria a um lugar mais fundo no poço que era minha
mente. Mas hoje, foi só uma sensação de nostalgia, uma memória projetada
de algo que queria ter vivido, e por algum motivo, senti meu coração bater
mais forte. Mais vivo.

Deixei as meninas no quarto ainda agitadas, arrumando as coisas de Triss.


Precisava focar em algumas coisas da App que estavam paradas, e lembrei
de agradecer Olívia por incluir um escritório para mim em um dos quartos.
Eu estaria perdido sem ela e Mia.

Quando finalmente sai do escritório no início da noite, Mia já estava pronta


para ir embora.

— Obrigada pela ajuda hoje. — A abracei na porta do apartamento. —


Acho que vou precisar mais de você do que você de mim agora —
brinquei.

— Claro que vai. Você vai me gritar a cada hora para te salvar de alguma
situação com a Triss, mas eu vou gostar disso.

Sorri, pensando que Mia não tinha ideia do que ela representava para mim.
Mia era minha irmã e Sophia era minha mãe. E embora tivesse crescido
com o hábito de chamá-la de tia, esse não era meu real sentimento.

— Sério que você brigou com a Liah por minha causa? — perguntei
lembrando do que Liah me contou mais cedo.

— Eu não briguei com ela. Só disse que não ia aceitar que ela falasse de
você na minha frente. — Mia sorriu travessa. — Ninguém fala de você na
minha frente esperando que eu fique quieta.

— Eu queria ter visto isso — confidenciei. — Daria tudo pra ver a cara
dela quando você me defendeu.

— Ela que te contou isso? — Mia apertou os olhos confusa.

Assenti, dando de ombros. Também não entendia muito bem como estavam
as coisas entre a gente agora. Mas, sim. Estávamos falando bem um com o
outro.

Mia foi embora me deixando com Triss. Quando fechei a porta e me virei
em direção à sala, Triss mantinha os olhos curiosos sobre mim.

— Qual o problema de vocês dois?

— De quem você tá falando? — Joguei-me no sofá, me fazendo de


desentendido. Claro que Triss havia escutado minha conversa com Mia.

— Da Liah, Nate. O que houve de tão ruim entre vocês?

Apertei os olhos em direção a Triss. Às vezes, podia jurar que essa menina
lia meus pensamentos.

— Não tenho problema com ela. Ela que tem comigo.

Triss sentou-se ao meu lado, roubando a almofada do meu colo para logo
em seguida tacá-la no meu rosto. Olhei irritado para a garota que pegou
outra almofada e jogou em mim de novo, rindo. Em poucos segundos,
havíamos iniciado uma pequena guerra de almofadas na sala do
apartamento.

Apesar dos esforços de todos em me manter são e consciente nos últimos


três anos, fazia tempo que não me sentia tão completo quanto agora. Era
como se quase todas as peças estivessem no lugar de novo. Ainda havia
alguns buracos na minha história, mas as coisas estavam ficando cada vez
mais leves. A inocência de Triss me ajudava a manter uma parte essencial
de mim intacta.

Me joguei no chão inspirando o ar com força. Precisava voltar à academia,


meu condicionamento estava péssimo.

— Chega, Triss. Pelo amor de Deus.

— Você está ficando velho — ela riu, se jogando ao meu lado. — Mas você
tinha razão, você é bem mais legal que um pai chato. É tipo um irmão mais
velho.
— Considero isso um elogio?

— Como você quiser. — Triss me lançou um sorriso divertido. — Sério, o


que houve entre você e a Liah?

Pensei por um segundo. Triss estaria sempre em nossas vidas agora, uma
hora ela ficaria sabendo de qualquer forma. Me surpreendia por Mia ainda
não ter contado nada a ela.

— Eu e a Liah nos conhecemos em uma situação complicada, Triss. Ela


achava que eu estava tentando fazer mal a uma garota e saiu em defesa
dela. Essa garota era minha ex-namorada e estava grávida de um filho meu.

— A garota que perdeu o bebê?

— Você sabe disso?

Triss assentiu e me contou o que sabia da história, a parte que Mia havia
contado. Contei a ela sobre Lianah e até sobre os policiais que me
espancaram. Triss ficou bem abalada com a história.

— Sei que é complicado dizer isso, Nate. Mas você sabe que a Liah não
teve culpa, não é?

— Tô trabalhando nisso, Triss. Juro que tento não culpar a Liah. A gente
briga o tempo inteiro, mas até que ultimamente a gente tem sido mais
civilizado um com o outro.

— Se você desse uma chance pra conhecer a verdadeira Liah, você iria se
surpreender. Ela é uma pessoa sensacional, Nate. Uma das melhores
pessoas que já conheci. Acho até que vocês combinam. — disse sorrindo.

— Engraçadinha — reclamei. — Triss, você sabe que isso é um pouco


impossível, né?

— Se fosse impossível mesmo, você diria que era totalmente impossível e


não um pouco. — A garota tacou uma almofada novamente em mim.

— Você parece meu psicólogo falando agora.


Devolvi a almofada, reiniciando nossa guerra.

21 de junho de 2019

Ethan e Tommy estavam totalmente fascinados com Triss e a forma esperta


que a garota tinha de entender e processar todas as informações. Era a
primeira vez que ela vinha para a App, e da mesma forma que ela olhava
tudo curiosa, os outros dois se entusiasmavam mostrando tudo ela.

Aproveitei para passar o dia matando minhas pendências. Tinha um tempo


que não trabalhava tão focado sem estar movido a algum ódio ou
sentimento ruim. No fim do dia, estava concentrado em tentar terminar um
contrato quando uma batida soou na porta. Levantei a cabeça a tempo de
ver Evie sentando-se na cadeira em frente minha mesa.

— Oi, Nate — cumprimentou receosa.

— Oi, Evie. Aconteceu alguma coisa?

— Vim te pedir desculpa — disse apressada. — Estou com um peso


enorme na consciência pelas coisas que te falei no galpão ontem.

Larguei o computador, dando total atenção a ela. Sim, Evie havia tocado
nas piores feridas, mas eu sabia que era a melhor estratégia dela para me
fazer estourar.

— Eu não pensei, nem por um momento, em colocar qualquer peso em


você, Evie. Na verdade, o que você fez ontem me ajudou de uma forma que
nem podia imaginar. Eu nunca me senti tão leve nesses três últimos anos —
confessei, sorrindo amigavelmente para ela.

— Ninguém concorda comigo sobre isso, mas sempre achei que se você
colocasse para fora de um jeito seguro, as coisas podiam melhorar para
você. Acho que fui um pouco egoísta ao testar minha hipótese dessa forma.

Evie já havia me dito isso uma vez; que eu precisava colocar para fora
esses sentimentos ruins que me faziam mal. Eu só nunca encontrei a melhor
forma de fazer isso, até que ela mesmo me mostrou ontem. Olhei atento
para ela, vendo suas mãos mexerem nervosamente sobre seu colo. Ela
costumava ser a mais tímida das meninas, e talvez a mais afastada de mim,
mas o que Evie fez por mim ontem, jamais sairia da minha memória.

— Egoísta ou não, funcionou de verdade, então, obrigado por tentar —


agradeci sincero.

— Vai para o Republic hoje? — perguntou, finalmente mudando de


assunto.

— Tenho que levar a Triss para a casa ainda. A Mia deve ficar com ela hoje
— avisei, lembrando de confirmar com Mia se iria mesmo passar a noite
com Triss. — Você já está indo para lá?

Evie balançou a cabeça confirmando. Olhei a hora no relógio do


computador, vendo que já passava das 19:00h. Triss devia estar louca para
ir embora.

— Vou embora agora. Se quiser passar lá em casa comigo, te dou carona


para o bar.

— Ótimo. Queria mesmo saber como a Triss está. Ela deve estar amando
ter uma casa.

Sorri, contando a ela o quanto a menina estava feliz e emocionada ontem


quando chegou.

Deixei Triss em casa e tomei um banho rápido enquanto Evie e ela


conversavam na sala. Quando sai, Mia já estava com elas, de cara fechada e
emburrada com alguma coisa.

— O que houve? — perguntei ao perceber os lábios projetados num bico


exagerado.

— Deixa isso quieto, melhor esquecer — reclamou.


Triss deixou uma risadinha baixa escapar, me fazendo intercalar o olhar
entre as duas. E eu achando que ainda era muito cedo para me preocupar
com os segredos dessas duas.

— Preciso me preocupar com vocês duas e esses segredinhos? — ergui


uma sobrancelha, encarando as duas, preocupado.

Triss apertou os lábios, segurando um riso. Seus olhos esperando uma


iniciativa de Mia, que por sua vez, só mantinha o bico no rosto me
encarando irritada.

— Vai embora, Nathan, aproveita sua noite e vê se não apronta —


respondeu nervosa.

Ela estava mesmo estressada com alguma coisa. Resolvi não provocar mais
e me despedi das duas, saindo de casa com Evie.

— Você acha que é errado deixar a Triss com a minha irmã logo na
segunda noite dela comigo? — perguntei preocupado enquanto descíamos
no elevador até a garagem.

— Não vejo isso como um problema, Nathan. E a Triss é quase adulta, não
é como se ela fosse uma criança. Você está preocupado com isso?

Destravei o carro assim que saímos do elevador.

— Liah vai estar lá, não vai? Provavelmente ela vai pensar que deixei Triss
sozinha quando me ver — expliquei. — Às vezes, acho que ela tem alguma
razão sobre mim e como posso ser nocivo a ela.

Entramos no carro, e Evie me olhou confusa.

— Nate, tenho duas coisas para te falar. Primeiro, você não é nocivo de
forma nenhuma pra Triss. Segundo, desde quando você se importa com o
que Liah pensa de você? Todo mundo já sabe do problema de vocês, ela
implica com você e você com ela. Isso é um fato.

Dei partida no carro, saindo da garagem. Antes que eu pudesse responder, a


luz forte do farol do carro de trás refletiu no retrovisor, ofuscando
totalmente minha visão. Liguei a seta, tomando a pista da direita para o
carro me ultrapassar.

— Não estou preocupado com o que ela pensa exatamente, mas confesso
que gostaria que ela tivesse uma visão melhor de mim — respondi.

Ando mais preocupado com ela do que você possa imaginar, Evie.

— As coisas estão melhorando entre vocês, não estão?

— Estão sim… — parei de falar olhando irritado pelo retrovisor a porcaria


da luz do carro que não me ultrapassava, e estava quase colado na traseira
do meu carro. — Esse cara está de sacanagem?

Evie virou o pescoço para trás, tentando entender do que eu reclamava.

— Por que ele está com o farol assim? — questionou ao perceber o exagero
no farol alto.

Virei o volante, pegando a rua à direita, que dava acesso ao Centro de


Greenville. O carro continuava atrás de mim. Acelerei um pouco, tentando
fugir da luz incomoda na vista, finalmente conseguindo alguma distância
do carro.

— Nathan, ele tá acelerando também — Evie disse preocupada, ainda com


o pescoço virado para trás. — Esse carro tá seguindo a gente?

Olhei a imagem no retrovisor, vendo o farol se aproximando. Minha mente,


acelerada, começou a procurar algum meio de descobrir se estávamos ou
não sendo seguidos. Diminuí a velocidade, quase parando o carro na lateral
da pista. O farol diminuiu quando o carro de trás começou a parar um
pouco mais afastado da gente.

— Porra! — Soquei o volante, voltando a acelerar o carro. O carro de trás


acelerou, quase colando na minha traseira, de novo.

— Nathan, por que esse carro esta seguindo a gente? — Evie perguntou
desesperada.
Sacudi a cabeça. Eu imaginava o motivo, mas não queria tornar aquilo
ainda mais real. Pisei mais fundo no acelerador, tentando ganhar alguma
distância dele. Mais um pouquinho e estaríamos entrando na rua do
Republic, que devia estar lotada de gente. Precisava chegar lá em
segurança.

Voltei a olhar o retrovisor, vendo o carro preto ainda na nossa cola. Que
merda. O velocímetro subia rápido, chegando a 140 km/H, numa estrada
onde o limite era 90 km/H. Pisei mais fundo, o velocímetro chegando aos
160 km/H. Meu coração martelava forte no peito e minha respiração
acelerou até estar descompassada.

— Nathan, por Deus. Se a gente não for assassinado, a gente vai bater o
carro — Evie gritou.

— Dei chance dele me ultrapassar lá atrás, Evie. Ele não fez. Se quisesse
parar a gente, já teria feito isso. — Avisei, alternando minha atenção entre a
estrada e o retrovisor.

Finalmente conseguia ver a curva que dava acesso à parte mais


movimentada do Centro. Mantive o pé afundado no acelerador, mantendo a
velocidade acima do permitido. A adrenalina tomando meu corpo a medida
que tentava ganhar alguma distância do carro. Por mais que estivesse
mantendo aquele ritmo, o carro de trás algumas vezes quase grudava em
mim, me fazendo aumentar ainda mais a velocidade.

Tentei raciocinar em meio ao caos, seja quem for, podia ter me parado na
hora que saí do prédio, mas preferiu manter a perseguição pela estrada.
Talvez só quisessem saber aonde eu iria. Será que tinha alguém vigiando
meus passos?

Quando finalmente virei na rua principal, vários carros e luzes entraram em


nosso campo de visão e fui obrigado a diminuir a velocidade ao ver a fila
de carros preparados para entrar em alguns estacionamentos da rua. O carro
de trás colou em mim de novo.

— Merda, Nathan. Ele tá colado na gente. — Evie espalmou uma mão na


porta do carro e outra no encosto do meu banco, impulsionando o corpo a
virar ainda mais para trás. — Não dá pra ver nada, o vidro é muito preto.

— Tira o cinto — pedi, já tirando o meu. Se a gente precisasse sair


correndo, poderia nos atrapalhar.

Evie fez o que mandei, segurando atenta na trava da porta. Olhei pelo
retrovisor quando o vidro na lateral do motorista abaixou e uma mão
repousou na janela do carro. O trânsito totalmente parado pelo excesso de
carros. Meu coração batia ainda mais descontrolado agora.

— Vou parar no fim da rua. Assim que eu passar em frente ao Republic,


você sai do carro e corre pra dentro, entendeu? — avisei a ela.

Seria mais fácil me livrar do problema tendo que me preocupar somente


comigo.

— Não vou te deixar sozinho — reclamou.

— Vai sim. Isso não é uma opção, Evie. Você vai sair e pronto. — Encarei
a garota assustada no banco ao lado. — Por favor, não comenta com
ninguém sobre isso, tá? Eu te explico depois, mas não toca nesse assunto.
Não quero deixar ninguém preocupado.

Evie assentiu preocupada, se preparando para sair do carro. Assim que


alinhei o carro com a entrada estreita do bar, gritei para que ela saísse.

— Sai, Evie! — A garota abriu a porta, e seguiu direto para a entrada. O


segurança que já nos conhecia abriu espaço para que ela entrasse. Suspirei
aliviado por ela estar segura.

Voltei meus olhos para o retrovisor vendo que o carro continuava colado no
meu. Porra, o que faço agora? Tentei olhar a placa do carro, mas não foi
uma surpresa constatar que não tinha placa, pelo menos, não na frente.

Eu tinha poucas opções; continuar correndo pelas ruas escuras da cidade,


fugindo de quem quer que seja, estava fora de cogitação. Eu poderia parar
em um dos estacionamentos privados, ou na rua sem saída na lateral do bar,
mas considerando meu histórico naquele lugar, descartei a ideia. Perdido,
resolvi entrar em um dos estacionamentos mais próximos do Republic e
deixar o que quer que fosse acontecer.

O carro preto parou na entrada, travando o trânsito por alguns segundos.


Alguns carros começaram a buzinar insistentemente ao perceberem que ele
não pretendia entrar no estacionamento. Estacionei numa das primeiras
vagas, ainda segurando o volante com força. Meu peito subia e descia
acelerado enquanto meus olhos estavam vidrados no carro ainda parado na
entrada do estacionamento.

Levou alguns segundos para que quem quer que fosse, finalmente seguisse
seu caminho, acelerando devagar pela rua. Eu até tentei, mas não consegui
ver nada através dos vidros escuros.

Quem tinha me seguido?

Sem pensar muito, tirei o celular do bolso, digitando o número de Carlton.


Os bipes soaram seguidos no alto-falante até que a chamada fosse
redirecionada para a caixa postal.

Merda.

Saí do carro ainda preocupado que essas pessoas estivessem por perto.
Devagar e totalmente desconfiado, segui meu caminho até o Republic,
incerto sobre o rumo daquela história.

Evie estava sentada num dos bancos de ferro, ainda do lado de fora do
salão. A garota correu desesperada até mim assim que atravessei a porta de
entrada.

— Eles foram embora? — perguntou nervosa.

— Acho que sim. Entrei no estacionamento e eles devem ter ficado


receosos de entrar também. — Tinham testemunhas demais por ali.

— Quem eram aquelas pessoas, Nathan? Por que seguiram a gente?

— Não sei — respondi me sentindo exausto de repente. — Acho que pode


ter alguma ligação com a investigação da avó da Liah. Carlton está
envolvido nisso, podem ter vindo atrás de mim também. — Tentei resumir,
querendo apagar esse assunto da minha mente.—– Não quero preocupar
ninguém. Não conta para as meninas sobre isso, por favor.

Ela assentiu, ainda me olhando preocupada. Mas logo seus olhos fugiram
para o portão atrás de mim. Virei meu pescoço vendo Liah e Karol
entrarem juntas. Evie revirou os olhos, balançando a cabeça chateada.

— Você ainda gosta dela? — perguntei baixinho.

A garota me olhou por alguns segundos antes de confirmar levemente com


a cabeça.

— A Karol não percebe o óbvio na maior parte das vezes — disse


abaixando o rosto.

— Você já disse isso para ela?

Evie negou, indicando alguma coisa atrás de mim com o queixo. As outras
duas se juntaram a nós.

— Oi! — Karol disse animada, me abraçando. — Como foi com a Triss?

— Muito bem. — Tentei sorrir ainda sob o efeito da adrenalina de minutos


atrás.

Karol sorriu e logo desviou seus olhos para Evie, parada ao meu lado. A
tensão entre as duas era quase palpável. Poderia supor que as duas estavam
brigadas. Troquei um olhar rápido com Liah, percebendo que ela também
havia reparado naquilo.

— Segunda a gente precisa falar sobre a Triss. — Liah mudou o assunto,


chamando minha atenção.

— Mia está com ela, não deixei Triss sozinha — me justifiquei apressado.

— Eu sei que ela está com a Mia, Nathan — Liah riu. — Estou falando
sobre a escola. A gente precisa definir como vai ficar o estudo dela, só isso.
— Ah, ok! — respondi confuso.

Ela não ia mesmo brigar comigo?

— Aconteceu alguma coisa? — Liah perguntou alternando os olhos entre


mim e Evie. — Vocês pareciam agitados quando a gente chegou.

Por um segundo, achei que Evie falaria de uma vez tudo que tinha
acontecido, já que seus olhos estavam arregalados e as pupilas muito
dilatadas. Mas a garota se limitou a fazer uma careta confusa para a
pergunta da amiga, negando com a cabeça. Liah buscou meus olhos,
desacreditando da amiga. Dei de ombros, também negando.

Aquela perseguição era algo que não precisava afetar mais ninguém.
Provavelmente, eu já passaria noites sem dormir pensando nisso, e estava
exausto de confusão por enquanto.

Ilustra Triss
04 de julho de 2019
Milhares de luzes vermelhas refletiam através do vidro. Os freios
ativados a cada cinquenta metros de estrada. O som infernal das buzinas
irritantes não parava. Pelo amor de Deus! Buzinar não ia fazer o trânsito
andar mais rápido. Esfreguei os olhos cansado, vendo a fila de carros
parados na estrada escura. Maldita a hora que aceitei vir dirigindo e
carregando tanta gente comigo.
— Que inferno! — reclamei pela décima vez.
— Tem um acidente ali na frente, a três quilômetros daqui — Tommy
estava olhando o aplicativo do GPS no celular, sentado no banco do carona.
No banco de trás estavam Evie, Karol e Triss, gritando e rindo o tempo
inteiro. Normalmente eu gostava das bagunças nas nossas viagens, mas hoje
minha cabeça estava explodindo pelo dia pesado.
O toque do meu celular soou pelo alto-falante do carro me causando
ondas de dor. Pressionei o botão no volante para atender Ethan.
— Tá no viva voz — avisei antes que ele falasse alguma merda, já que
eu tinha uma adolescente atrás.
— Tem um posto a quinhentos metros. A Olie precisa fazer xixi e Liah
está com fome. Vamos parar ali? — Pensei em sua proposta. O trânsito não
parecia andar tão cedo mesmo.
— Espero que tenha uma farmácia, preciso de um remédio pra dor de
cabeça. Ninguém aqui tem um — reclamei.
— Incluindo você — Evie gritou atrás de mim. Uma pontada aguda me
fez fechar os olhos com força.
Ethan estava logo atrás da gente, com Mia, Olívia e Liah. Eu podia ouvir
as meninas rindo e brincando lá também.
— A Liah tem uma farmácia na bolsa — escutei a voz de Olie pelo alto-
falante.
— Ótimo. Eu só preciso de um remédio. Vou parar no posto então —
avisei, desligando o celular.
Ainda levamos alguns minutos até a entrada no posto de conveniência. O
estacionamento estava bem cheio, muita gente também estava parando aqui
para evitar o trânsito. Saí do carro, esticando as pernas, quando Ethan
estacionou ao meu lado. —
Assim só vamos chegar lá amanhã pela manhã — Olie reclamou, se
encostando ao meu lado no capô. — Falei pra gente ir cedo.
Eu até queria ter saído de manhã, mas tinha muito trabalho acumulado na
App, e por isso trabalhei na quarta até tarde. Eu sabia que era loucura pegar
a estrada para o litoral em pleno 4 de julho, mas mesmo assim aceitei a
loucura.
— Ninguém está mais irritado que eu, Olie — avisei.
— Nathan, você está voltando ao normal aos poucos, mas continua tão
chato e implicante com tudo. Isso é falta de sexo, não é? — Olhei pra Olie,
apertando meus olhos. Enfiei minhas mãos no bolso da bermuda, sacudindo
a cabeça.
Em que mundo estou vivendo? Não penso em sexo há quase seis meses.
— Olívia, não vou discutir minha vida sexual com você — avisei. —
Vocês têm uma mania irritante de me recriminar pelas coisas que faço e
depois continuam me recriminando quando paro de fazer.
Olie começou a rir, me dando uns tapinhas no ombro.
— Ninguém nunca falou pra você parar de fazer sexo, Nate. Tudo na
vida precisa de equilíbrio. — Olie saiu, sacudindo a cabeça, me deixando
irritado.
Olívia, além de enxerida, era totalmente maluca as vezes. Andei até o
carro de Ethan, vendo Liah sair pela porta de trás. A garota estendeu a mão
me entregando uma cartela de remédio. Esperava que aquilo me aliviasse.
— Valeu — agradeci e Liah assentiu, seguindo as meninas para dentro
da lojinha do posto.
Voltei ao carro pegando minha garrafa de água no descanso ao lado do
câmbio. Tomei dois comprimidos de uma vez. Eu não estava com fome,
preferia passar meu tempo descansando até que todos voltassem da loja,
mas Tommy voltou cedo demais.
— Não vai comer nada?
— Não estou com fome e minha cabeça vai explodir daqui a pouco.
Preciso que esse remédio faça efeito logo. — reclinei meu banco, deitando
mais o corpo. — Você acha que eu me tornei um cara chato e implicante?
— perguntei antes que ele pudesse sair.
Tommy me olhou segurando um riso. Claro que ele achava. Todos eles
achavam.
— A vida foi mais dura com você do que com a gente — Tommy
recostou o banco dele na mesma altura que o meu, relaxando o corpo e
fechando a porta do carro. — Você é chato e implicante, sim, mas não seria
você se não fosse.
— Olivia disse que estou voltando ao normal e agora não consigo parar
de pensar sobre isso.
Eu queria ser o Nathan de antes, mesmo com todos os traumas que tinha
agora. Essa vontade só aumentava depois que Evie tinha me ajudado a
colocar tudo aquilo para fora de mim.
— Concordo com ela. Você tem sorrido e brincado mais com a gente. Há
um tempo, acho que você nem iria nessa viagem, ainda mais com Liah indo
também.
Era verdade. Se eu não estivesse aprendendo a entender a relação de
Liah com minha vida, provavelmente eu ainda a culparia sem nenhuma
razão, mas já fazia uns dias que eu considerava minha situação com ela
'resolvida'.
— Lembra daquela noite quando conhecemos a Liah? — A pergunta era
retórica, apenas para iniciar meu verdadeiro ponto. — Foi em janeiro,
depois que a gente fechou aquele contrato com a fábrica de chocolates. Eu
transei com a Patrícia aquele dia.
— Sabia! — Tommy deu um soquinho no ar. — Vou cobrar cinquenta
paus do Ethan. Apostei com ele que você ia pegar aquela mulher, ela te deu
mole a reunião toda. — Seu riso descontraído me fez rir. — Mas tá me
contando isso agora por quê?
— Foi a última vez que transei — confessei.
O estranho para mim não era o tempo sem transar, e sim que não pensei
sequer por um momento nisso, em todos esses meses. Tirando o dia em que
beijei Lianah no Republic…
Tommy me encarou apertando os olhos. Percebi a confusão em seu rosto
ao abrir a boca diversas vezes e não consegui falar nada, soltando um riso
desacreditado logo em seguida.
— Tá me zoando, né? — Neguei com a cabeça.—– Me explica isso.
Resolveu virar celibatário?
— Minha vida virou um caos desde que conheci a Liah. — Olhei para o
teto do carro suspirando. A dor de cabeça finalmente estava passando. —
Toda a merda que vivi ficou ainda mais intensa desde aquele dia. Ter que
conviver com ela quase diariamente me fazia sentir raiva de tudo a cada
cinco segundos. Quando ela se lembrou de mim foi pior ainda. Depois
começou a rolar toda essa coisa com a ONG e a investigação. Foi quase
como se não tivesse tempo pra pensar nisso.
Olhei pela janela do carro, esperando uma resposta dele, mas Tommy
parecia absorver minhas palavras ainda. A porta da loja se abriu e vi Liah e
Olivia saindo de lá. As duas pararam na porta, rindo de algo em uma revista
que a loira segurava. Suspirei encarando a garota. Liah tinha tantos
problemas quanto eu agora, e mesmo assim aquele sorriso aberto nunca saía
de seu rosto.
— Eu nunca reparei nela de verdade antes — falei sem pensar. Tommy
levantou o corpo, procurando a direção do meu olhar.
— Na Liah? Porque você é um idiota, né?
Continuei encarando a garota pelo vidro. Tommy tinha razão, ela era
mesmo linda.
— Ela é gata — concordei. E gostosa. Pra Caralho.
Tommy me deu um soquinho no braço, rindo da minha afirmação.
— Vou buscar alguma coisa pra você comer — avisou saindo do carro.
Fechei meus olhos tentando descansar um pouco antes deles voltarem.
Não sei quanto tempo se passou até que ouvi a porta do carro ser aberta
de novo. Abri os olhos vendo Karol e Evie se acomodarem no carro.
— Cadê a Triss? — perguntei, preocupado, quando Lianah apareceu ao
lado delas.
— Pediu pra ir com a Mia no carro do Ethan. Mas tem duas malas no
banco de trás, então posso ir aqui? Vai ficar muito apertado lá. — A loira
perguntou já entrando ao lado de Evie.
Assenti, vendo Tommy entrar no carro.
— Tem comida aqui, se quiser — avisou largando a sacola ao lado da
porta.
Ethan arrancou com o carro e saí logo atrás dele. Pelo retrovisor, percebi
que podia cruzar com os olhos de Liah, sentada atrás de mim. Algumas
vezes, parecia que ela também me encarava.
A estrada já estava liberada e em um pouco mais de uma hora chegamos
à casa de praia de Evie. Nós já tínhamos vindo aqui algumas vezes antes.
Era uma casa enorme, de frente para o mar em um dos municípios vizinhos
de Greenville. As meninas saíram disparadas na frente para escolher os
melhores quartos, mas tinham tantos quartos naquela casa que duvidava que
alguém reclamasse.
Ethan e eu descarregamos as malas das folgadas do carro, enquanto
Tommy ia levando as compras para dentro.
— Você tá melhor? — Ethan me perguntou quando entramos com todas
as malas.
— Estou sim. O remédio que Liah me deu ajudou. Só preciso dormir um
pouco e vou estar cem por cento. — Não via a hora de deitar numa cama e
apagar.
— Perdi cinquenta paus para o Tommy depois de quase seis meses. —
Ethan riu. — Você tinha que abrir a porra da boca? Ethan sabia que eu tinha
transado com Patricia aquele dia. Contei a ele no mesmo dia por receio do
apego aparente da mulher.
— Você deveria ter mais palavra — brinquei, socando seu ombro. —
Vou buscar algum quarto lá em cima e dormir um pouco. — avisei, subindo
a enorme escada de madeira em direção ao andar de cima.
Passei por Mia e Triss no corredor, encantadas com a vista das grandes
janelas de vidro. Na porta de um quarto mais para frente, Karol e Olie
conversavam apontando os quartos e fazendo alguma divisão nos dedos.
— Já escolheram os quartos? — perguntei arrastando a mala. — Preciso
dormir.
— Sim. Todas as meninas pegaram seus quartos. Os últimos desse
corredor estão vazios. — Karol avisou.
— Ótimo! — Tudo que eu precisava era de um quarto que tivesse a
janela para a parte de trás da casa, longe de todo o barulho.
Caminhei até o fim do corredor. Já estava pensando nas formas de
conseguir dormir com todo o barulho que sei que eles fariam. Abri a porta
do quarto, acendendo a luz. Era maior e ainda mais bonito que um quarto de
hotel luxuoso. Os pais de Evie tinham bom gosto.
Larguei a mala no chão, ponderando se gastaria tempo tomando um
banho antes de dormir. Seria um pecado deitar sujo e suado naquela roupa
de cama impecável. A contra gosto, peguei uma cueca e a necessaire na
mala, cedendo à necessidade de um banho quente. Deixei a água quente
levar minha tensão embora. Estaríamos seguros aqui pelo menos durante o
feriado.

Tive um sono pesado por algumas boas horas, mesmo assim, quando
acordei por volta de 04:00h da manhã, eu não conseguia mais dormir.
Tinham muitas coisas na minha cabeça que me impediam de descansar de
verdade, e eu basicamente precisa esperar pelo cansaço excessivo para
relaxar.
Estava quente e meu corpo um pouco úmido pelo suor. Levantei só com
a calça de moletom fino e sai do quarto tendo cuidado para não fazer
barulho. Desci as escadas sem muita paciência para o meu próprio drama e
fui direto para a cozinha pegar um pouco de água gelada.
Tinham várias garrafas vazias de cerveja em cima de uma das mesas de
centro da sala e muitas outras em cima da ilha, no meio da cozinha gigante.
O povo deve ter ficado acordado até bem tarde bebendo, pelo visto.
Abri a geladeira e tirei uma garrafa de água bem gelada, despejando uma
boa quantidade em um copo grande. Suspirando, fui até a pia e apoiei o
braço na bancada, encarando a lua pela janela. Se eu pudesse, fugiria de
todos aqueles problemas até que eles evaporassem pelo mundo. Minha vida
continuava sendo a mesma sucessão de tragédias de sempre.
O rumo dos meus pensamentos foi alterado quando percebi a sombra
projetada no reflexo fraco da janela de vidro. Escutei quando uma das
cadeiras altas da ilha foi arrastada com cuidado e, pelo vidro, vi o corpo
pequeno se ajeitando sobre a bancada.
— Suas tatuagens são legais.
Voltei a beber minha água, ainda encarando Liah pelo vidro a minha
frente.
— Não gosto de falar sobre elas.
Elas estavam ali para tentar apagar marcas que estavam sendo bem
reviradas ultimamente, e isso me fazia sentir ainda mais dor que o habitual.
— No hospital, quando minha avó morreu, você disse que era mais fácil
lidar com o tempo. — Liah pegou a garrafa de cima da ilha, puxando um
dos copos do descanso e despejou o líquido nele. — Era só pra tentar me
deixar melhor ou era algum tipo de desejo seu?
Virei o corpo em direção à ilha, apoiando a lombar na pia, ainda
segurando meu copo. Liah me encarou especulativa, curiosa por aquela
resposta.
— Já descartou a possibilidade de ser verdade? — perguntei sério e um
sorriso pequeno apareceu em seu rosto. Liah era inteligente o suficiente
para saber que não era mesmo uma possibilidade.
— É verdade? — perguntou, levantando os olhos para mim.
— Acho que preciso me esforçar mais se eu quiser que seja — assumi,
voltando a beber minha água.
Sem me responder, Liah bebeu sua água e deixou o copo sobre o balcão,
voltando a me olhar daquele jeito curioso.
O olhar dela me deixava nervoso, principalmente quando aquela coisa
estranha acontecia e quase não permitia mais que eu desviasse. Larguei o
copo sobre a pia e cruzei meus braços sobre o peito, esperando a próxima
pergunta cheia de intensão de me entender que eu sabia que viria.
— Quando eu era pequena, as crianças na escola sempre perguntavam
sobre meu pai. Elas não tinham pena, muito menos filtro para perguntar
coisas como o motivo do meu pai ter abandonado minha mãe grávida de
mim. Eu sentia tanta raiva no início, mas depois entendi que eu não
precisava de um. Minha mãe nunca deixou me faltar nada. Nem amor. —
Liah mordeu a parte interna da bochecha e então abaixou os olhos.
Eu nunca conseguia entender muito bem o motivo dela me contar essas
coisas. Pelo pouco que conhecia de Liah, sempre tinha algo que ela queria
me mostrar com isso. O curioso, é que agora eu tinha interesse em tudo que
ela me contava. Eu também queria entender quem ela era, o que ela sentia.
Até pouco tempo, jamais imaginaria que Liah teria uma história de vida
tão parecida com a minha em alguns aspectos. Eu também vivi sem pai.
Sem pai e sem mãe, diferente dela que teve uma mãe que a amava.
Mas ela entendia o meu problema.
Mais uma vez.
— Sei que tem um motivo para estar falando isso, mesmo que eu ainda
não tenha entendido. — Saí do balcão e fui até uma das cadeiras da ilha, ao
lado dela, me acomodando ali.
— Foi a primeira vez na vida que senti um vazio no meu peito. Minha
mãe me ajudou a curar esse sentimento. — Liah remexeu as mãos sobre o
balcão, nervosa. — Quando minha mãe morreu, meu coração ficou
dilacerado. Minha avó supriu tudo que eu precisava e me ajudou a curar
isso…
— Agora que sua avó morreu, não tem ninguém que te ajude a fechar
esse buraco de novo — concluí por ela, entendendo onde ela queria chegar.
Liah havia dito isso aquela noite. Lembro claramente do quanto me senti
afetado por saber que eu já tinha desejado aquilo.
— Eu não consigo mais pensar direito, Nathan. Desculpa desabafar isso
assim, com você. Eu só… — Liah abaixou os olhos, brincando com as
unhas curtas. — As pessoas acham que não falar sobre isso é melhor, ou
que se elas me derem dois tapinhas nas costas, vou ficar milagrosamente
bem.
— Eu realmente consigo te entender. — Assim como na noite em que
Sylvia morreu, eu sentia que podia falar. — Tive que aprender a lidar com
todas as minhas frustrações muito cedo. Minha tia me ensinou a lidar com a
ausência de um pai que nunca conheci e com a negligência da minha mãe.
Mas quando ela casou com o Ralph e ele começou a bater nela e na Mia, eu
me vi sozinho pela primeira vez. Foi difícil pra um garoto de dez anos
suportar tudo aquilo, sem ter uma forma de ajudar. Tia Soph era tudo que eu
tinha, minha única referência de família, e Ralph fodeu a cabeça dela.
— Ele também batia em você? — Liah perguntou sem me encarar,
embora seu tom demonstrasse seu interesse na história.
— Só aconteceu uma vez, porque me intrometi pra defender a Mia, mas
Elise apareceu de surpresa aquela semana e me viu todo roxo — dei de
ombros, lembrando de uma das únicas vezes que aquela mulher foi útil na
minha vida. — Ele ficou com medo dela perceber e nunca mais tentou
encostar em mim.
— Elise é sua mãe? — Olhei para o lado vendo Liah me olhar curiosa.
— Sim.
— Por que não a chama de mãe?
Intrometida.
Respirei mais fundo, incomodado por ter que falar de um passado que
me causava tanto mal. Eu teria simplesmente cortado o assunto em qualquer
outra ocasião, mas por algum motivo, eu queria que Liah soubesse.
— Ela nunca foi mãe de verdade. Elise me deixou com a irmã quando eu
tinha uns dois anos, pra ir embora, viajar pelo mundo com um cara
milionário que ela conheceu. Ela aparecia uma vez por ano, alegando estar
com saudades do filho. No início, eu ficava ansioso pela época que ela
apareceria. Hoje em dia prefiro que ela nem se manifeste mais.
Elise era só mais um ponto que me deixava ainda mais ansioso. Eu só
nunca conseguia entender porque tudo de errado tinha que acontecer ao
mesmo tempo, na minha vida.
— Eu também pensava assim sobre meu pai. Ficava ansiosa com a ideia
de um dia conhecê-lo. Mas hoje, prefiro pensar que ele nunca existiu. Ele
nunca me procurou de qualquer forma…
— De todos os meus amigos, nunca pensei que seria logo você a pessoa
que entenderia esses sentimentos confusos sobre a minha vida — brinquei e
Liah me olhou de um jeito engraçado.
— Mas não somos amigos. A gente nem mesmo se gosta.
Não tinha certeza do nível de sarcasmo daquela afirmação, mas eu
precisava concordar. Mesmo que meu ódio pelo que ela me causou tivesse
diminuído consideravelmente, e eu não a culpasse mais da mesma forma,
Liah sempre seria a pessoa que me impediu de levar Camille embora. De
repente, o clima havia pesado de novo.
— Pelo menos concordamos em alguma coisa. — Tentei deixar as coisas
mais leves, mas confesso que ainda sentia o peso daquela afirmação.
Às vezes, no meu surto de irracionalidade e interesse repentino, era fácil
esquecer que a odiava e pensar em Liah como alguém que poderia gostar de
ter na minha vida.
— Você acha que as coisas pioraram pra você desde que me conheceu?
— perguntou de repente, me fazendo voltar a olhá-la confuso.
— Você diz agora, ou a anos atrás, quando me enfrentou para ajudar a
Camille?
— Agora — Liah deu de ombros. — Camille reapareceu, escutei Olie
falar que sua mãe também. Eu trouxe todos os sentimentos de volta… sei
lá…
— Você é uma intrometida do caralho, Liah — soltei uma risada
nervosa. — Nada que eu pudesse fazer te manteria afastada. As coisas
pioraram, sim, mas estão melhorando aos poucos. Parece que toda vez que
uma ferida se abre mais, ela cura mais rápido.
Não sei mais o que poderia responder a ela. Doutor Emerson dizia o
tempo todo que a única forma de curar as feridas mais profundas era revirá-
las. Se eu não cuidasse, se eu não tirasse tudo que as cobria, jamais teria a
oportunidade de vê-las cicatrizando. Eu queria mesmo que ele estivesse
certo sobre isso.
— Eu posso ver? — Seu pescoço caiu de lado, me encarando com uma
espécie de careta de dor.
A olhei confuso. Liah esticou a mão, puxando meu braço de cima do
balcão devagar. Engoli seco quando virou minha palma para cima e as
pontas dos dedos quentes contornaram a linha fina que rasgava meu pulso
direito. Aquele corte foi feito pela algema, quando um dos policiais usou
uma barra de ferro pesado para me atingir. Lembro que tentei parar o golpe,
mas tudo que consegui foi inutilizar minhas mãos depois disso.
— Dói? — Seus olhos não saíram por nenhum segundo dali. A ponta do
indicador continuava a sentir a textura áspera e em alto-relevo daquela
marca.
— Fisicamente? — Liah negou, com os olhos ainda vidrados na cicatriz.
Engoli seco de novo, sentindo o nó na minha garganta aumentar. Estava
exposto, bem mais do que me permitia, mas eu não conseguia puxar minha
mão de volta.
— Dói quando olha pra elas? — Seus olhos subiram por alguns
segundos para mim. Virei meu pescoço de lado, encarando-a. Suas
bochechas coraram e ela voltou a olhar para o meu pulso. — Dói quando
olha pra mim? — sua voz quase não saiu na última pergunta.
— Dói! — assumi, mordendo o canto da boca. — Mas também acelera
minha cura.
Sem me responder, Liah subiu os dedos pelo meu braço, contornando os
traços da Íris. Um sorriso triste cresceu em seu rosto.
— Minha avó tinha uma plantação de Íris no jardim da mansão, eram as
preferidas dela — contou ainda perdida no desenho do meu antebraço.
— Eu vi que você estava com uma. No dia… — parei de falar, com
receio de tocar num assunto que ainda era delicado para ela.
— Um dia vai me contar sobre elas? — perguntou deixando meus olhos
encontrarem os dela.
Permiti aquela conexão por alguns segundos e eu quase podia ver a
curiosidade brincando nos olhos azuis. Meu peito subiu numa respiração
profunda enquanto assentia devagar, decidindo falar.
Olhei para o desenho no meu braço, pensando em tudo que ele
significava. Era uma única flor de três pétalas, ligada por um caule grosso
ao que era um pequeno pedaço de chão de terra. O desenho parecia tão
vivo, que os finos traços espalhados ao redor lembravam mesmo uma leve
brisa sobre a flor solitária. Poucos centímetros acima, tinha um sol se
pondo, e a única cor que coloquei no desenho era uma mancha avermelhada
bem fraquinha na sombra do sol caindo distante.
— A Íris é um símbolo de recomeço e esperança — expliquei. — É
como a representação da necessidade de renovação que tenho na vida.
Depois de tudo… — era difícil falar, mas Liah havia entendido o que eu
realmente dizia. — Alguns povos antigos acreditavam que as três pétalas
significavam coragem, sabedoria e fé. Tudo que eu precisava na vida após
ter ficado por um longo tempo no fundo de um poço escuro. E o sol se
pondo, representa a esperança de um novo tempo. É pra me lembrar que
todos os dias podem nascer novas oportunidades.
Liah se remexeu na cadeira, soltando meu braço. Pensei que teria algum
alívio, mas logo seus olhos desceram pela lateral do meu corpo. A garota
desceu da banqueta alta, dando a volta por trás dela sem vergonha nenhuma
de analisar os desenhos na lateral das minhas costelas.
— E as outras? — perguntou apontando para os traços expostos em
minha pele.
Seus olhos subiram de novo para os meus. Todas as vezes que isso
acontecia, uma espécie de conexão se instalava. Era difícil desviar depois
que aquela conexão começava. Respirando fundo, levantei os braços,
mostrando os desenhos ali.
— Essas são uma representação da confusão que era minha cabeça logo
depois que saí do hospital — agitado, percebi Liah inquieta, perto demais
de mim, analisando os desenhos confusos.
A tatuagem toda contava minha história.
— Sua cabeça era bem confusa, então — Liah tentou brincar.
— Na verdade, essa é bem mais complexa que isso. Ela inteira é meio
que como a transformação atual da minha vida. — Levantei da banqueta e
Liah deu um passo para trás, me dando espaço para virar o corpo. — Está
vendo?
Apontei para onde a nuvem de fumaça escura ganhava um tom mais
avermelhado, lembrando labaredas de fogo, exatamente no ponto das
minhas costelas que fazia a junção com as costas. Tinham cortes bem feios
por baixo daqueles desenhos.
— Por que a fumaça é vermelha? — Seu rosto transbordava curiosidade.
Ninguém nunca teve tanta curiosidade sobre elas.
— É uma analogia a fênix e seu renascimento das cinzas, é a fase da
minha vida onde percebi que precisava ter controle sobre minha cabeça de
novo.
— Acho que é a tatuagem mais conceitual que já vi — Liah arfou,
surpresa.
Virei o corpo devagar, para que ela pudesse entender melhor a junção das
três fases daquele desenho inteiro. A fumaça vermelha ganhava mais
definição no início das minhas costas, onde os traços se tornavam vivos e
desenhavam o leão que tomava quase toda a área das costas.
— Por que o Leão? — Percebi sua voz falhar mais do que deveria. De
alguma forma, aqueles desenhos a afetavam.
— Por vários motivos — soltei depois de um longo suspiro. — Depois
que entendi que precisava recuperar o controle da minha vida, eu precisei
vencer muitas batalhas internas. Os leões andam em bando onde sempre
tem um macho alfa, se um leão de fora quiser fazer parte daquele bando, ele
tem que matar ou expulsar o Alfa. Eu estava totalmente de fora da minha
própria vida. Precisei matar muita coisa ruim dentro de mim pra entrar de
novo. Entende?
— Por que só os olhos têm cor? — Queria rir de sua curiosidade e da
sequência de perguntas inusitadas que jamais haviam sido feitas, sequer
pelos meus amigos mais próximos. — E se me chamar de intrometida de
novo, vou tacar esse copo na sua cabeça.
Não contive um sorriso sincero.
Ela era, mas ia guardar para mim dessa vez.
— Quando decidi assumir o controle da minha vida, a raiva era mais
equilibrada. Por isso os olhos do leão são azuis com o contorno vermelho.
O contorno vermelho é porque por mais que eu tenha controle sobre isso
agora, está tudo adormecido no meu peito. A dor sempre vai estar lá. Mas
agora é uma pequena chama controlada — terminei de falar, voltando a
encará-la.
— Tipo nossa relação? A gente evita brigar, mas por dentro você sempre
quer me matar? — embora fosse uma brincadeira, ela tinha certa razão
sobre isso.
— Tipo isso — concordei sorrindo abertamente.
Liah me encarou por alguns segundos e então fez a última coisa que
imaginei que faria. Senti a tensão no músculo do abdômen quando seus
dedos tocaram a parte da fumaça escura que cobria um rasgo grande na
pele.
— Liah… — fechei os olhos, sentindo minha garganta fechada. O ar que
eu conseguia puxar, quase não era suficiente para abastecer meus pulmões.
— Nem eu consigo gostar de mim quando vejo essas marcas em você —
sua voz soou distante, porque eu estava praticamente afogado na parte mais
funda do poço de novo, agarrando com tudo de mim nas pedras úmidas para
não deixar a ansiedade me invadir.
— Liah, isso me faz mal… — era difícil falar quando a ausência de ar
começava a me tomar.
Normalmente, eu não tinha nenhuma ressalva com qualquer tipo de
toque sobre aquelas marcas. Ninguém sabia do que se tratavam aquelas
cicatrizes, pelo menos não as pessoas que costumavam me tocar ali. Mas
essa mulher me fazia sentir coisas novas a todos os momentos. Existia algo
muito íntimo naquele toque bobo. Liah entendia, mais do que qualquer
outra pessoa, o que aquilo significava.
— Se eu não estivesse lá aquela noite, você seria meu amigo agora? —
Seus dedos finalmente abandonaram minha pele e imediatamente eu sentia
que podia respirar de novo. No entanto, agora era sua pergunta que me
surpreendia. — Camille seria minha amiga e das meninas?
Cocei a nuca, incomodado pelo rumo daquela conversa. Apesar de ter
parado de me tocar, Liah ainda mantinha os olhos sobre minhas cicatrizes, e
isso me fazia sentir exposto demais. Cruzei meus braços, tentando tampar a
visão dela e apoiei as costas na bancada da ilha.
— Na real, acho que não estaria mais com a Camille hoje, não tínhamos
um relacionamento saudável — confessei. — Não dá pra dizer que o Theo
teria nascido e que hoje seríamos uma família perfeita. Isso podia ter
acontecido, sim, Liah. Mas e se não acontecesse?
— Mas você seria meu amigo? — ela insistiu na pergunta, fazendo
exatamente o que fiz; cruzou os braços e se encostou na bancada ao meu
lado. Agradeci pela falta de contato visual daquela posição.
— Por que você quer saber isso?
— Preciso saber que me odeia só pelo que te fiz. — Liah soltou uma
exalação profunda.
Nem eu tinha uma resposta para aquilo. Eu seria amigo dela? Tinham
tantos cenários na minha cabeça. Doutor Emerson havia passado algumas
sessões me explicando o sentido do E se…, e consequentemente, como não
era bom pensar nesses cenários. Eles costumavam me deixar ansioso. Mas
uma coisa era certa, se não houvesse um passado, independente da forma
que eu esbarrasse nela depois, sabia que Liah me despertaria atenção por
um monte de razões.
Só que em nenhum desses cenários eu consigo me enxergar como amigo
dela, porque eu tinha certeza… iria querer mais que isso.
— Talvez — foi tudo que me permiti dizer.
O clima mudou totalmente. Havia uma tensão absurda entre a gente.
Aquele sentimento era uma mistura de ódio, frustração e a porra de um
interesse repentino que estava me tirando o juízo totalmente.
— Vou tentar dormir — Liah desencostou do balcão, me lançando um
sorriso triste. — Passei a noite acordada tentando ler alguns documentos do
processo da Rede Vittorino, isso está me tirando o sono.
— Nada ainda? — perguntei, aproveitando a mudança de assunto, mas
realmente interessado no andamento da investigação. Ainda mais depois de
ter sido perseguido daquela forma.
Liah só sacudiu a cabeça, negando. A garota levou o copo em que bebeu
água para a pia e voltou arrastando os pés pelo chão numa pantufa de
pelúcia. Isso me fez reparar no short do pijama curto que ela usava. Virei o
corpo para frente, apoiando os braços na ilha, acompanhando todo o
movimento do corpo dela. Desviei os olhos rápido quando ela se aproximou
de mim, tentando não ser um idiota. Eu odiava Liah, ou ao menos, não
gostava dela, então não fazia sentido ficar olhando. Precisava colocar isso
na porra da minha cabeça.
— Boa noite, Nathan. — Liah passou por mim apertando meu ombro de
leve.
— Boa noite — desejei em resposta, virando o pescoço para trás
inconscientemente quando seu cheiro de canela me atingiu. Eu senti aquele
cheiro uma vez, quando a beijei no Republic.
Deixei meus olhos por tempo demais sobre o corpo pequeno sumindo
pela porta da cozinha. Passei os minutos seguintes tentando fazer meu
cérebro entender que eu não deveria ficar reparando ou encarando Liah.
Você não pode, Nathaniel. Simplesmente não pode deixar seus olhos por
tempo demais em cima dela. Sabe o que isso vai causar.
05 de julho de 2019
— Para alguém que nunca reparou nela, você tem reparado bem
ultimamente.
Quase pulei da cadeira com o susto.
— Porra, Tommy, quer me matar do coração? — reclamei. Ele e Ethan
se sentarem ao meu lado.
Quando acordei e vim para a piscina distraído, Olie e Liah já estavam
por lá, deitadas de bruços no chão, por cima de suas saídas de praia. Elas
conversavam animadas, balançando os pés no alto. Minhas afirmações da
madrugada sumiram no mesmo instante da minha cabeça.
— Que merda! — Ethan sacudiu a cabeça me encarando depois de
avaliar as mesmas imagens que eu. — Eu não conseguiria ficar aqui nem
um minuto olhando a Olie desse jeito.
— Está assumindo que gosta dela? — perguntei, vendo Ethan virar de
costas para elas.
— Estou dizendo que ela é gostosa. Só isso. — Ele nunca assumiria. —
Que história é essa de reparar na Liah?
Me surpreendi ao saber que Tommy não tinha falada nada. Olhei
novamente para as meninas, me forçando a desviar os olhos.
— Também não sei — tentei me desvencilhar do assunto.
— Nathan ontem disse que nunca reparou na Liah — Tommy contou,
chegando sua cadeira mais próxima da gente. — Mas está aqui a mais de
dez minutos com o olhar fixo ali — apontou para as meninas.
Meus olhos fugiram para lá de novo.
Porra Nathan. Se controla.
Ethan também voltou a olhar para as meninas.
— Se vocês soubessem a força que faço todos os dias pra não confundir
as coisas com Olívia. Tento manter meus olhos longe dela, mas é quase
impossível. — Tommy e eu nos encaramos, sorrindo vitoriosos. Ele
finalmente estava assumindo. — E você? Qual sua justificativa pra estar
sentado aqui, olhando pra Liah?
Engoli seco, vendo o brilho traiçoeiro no rosto de Ethan. Ele tinha me
visto beijar Liah no Republic semanas atrás. Mesmo assim, Ethan era
consciente demais para me confrontar sobre isso. Aliás, nem eu mesmo
entendia isso. Meu interesse por Liah aumentava na mesma medida que
meu ódio por ela ia sumindo.
— Não estou olhando da forma que vocês estão pensando. A terapia tem
me feito ver muita coisa de forma diferente. Às vezes, me pego olhando
pensando no que ela representa. Sei lá… é difícil explicar.
— Isso não tem nada a ver com o fato de você não transar desde janeiro?
— Como assim? — Ethan me encarou boquiaberto.
— Não tem nada a ver com isso. — Revirei os olhos, recostando o corpo
de novo na espreguiçadeira.
— Desde janeiro? — Ethan insistiu. — Isso tem quase seis meses,
Nathan.
Afirmei com a cabeça, desconcertado em ter que voltar nesse assunto de
novo. Já era uma merda perceber a confusão que foi minha vida desde que
Liah reapareceu.
— Seu pau parou de funcionar?
— Porra, Thommas — reclamei de sua pergunta invasiva. —
Considerando que estou precisando me controlar nesse exato momento,
acho que a resposta pra isso ainda é não — respondi após alguns segundos
de expectativa deles.
— Tá se controlando? Por causa da cena ali? — apontou para as meninas
do outro lado. — Achei que Liah estivesse fora dos seus limites.
Suspirei transtornado, sentindo uma vontade crescente de soltar meia
dúzia de xingamentos nada legais. Ethan e Tommy quando queriam me
irritar, era quase impossível não conseguirem.
— Ela está. Isso é um fato. Não preciso reafirmar isso a cada vez que
conversamos. E não estava olhando com a intenção que você está pensando,
Tommy. Mas é complicado explicar isso para o meu corpo.
— Para o seu pau, você quer dizer.
Ethan soltou uma risada alta, arqueando uma sobrancelha em seguida.
Ele tinha um ponto. Não consegui evitar rir com eles.
Ficamos em silêncio por um tempo. Aproveitei a trégua na escrutinação
deles para tentar entender a confusão de sentimentos que me rondavam nos
últimos dias. O problema é que todos eles tinham alguma ligação com
Lianah. Desde a raiva, agora adormecida, até o interesse sem lógica.
Nós ainda estávamos olhando as meninas, quando Olivia e Lianah
ajustaram a posição em que estavam. As duas deitaram de frente, cobrindo
os olhos com o ante braço enquanto conversavam.
— Ok. Vou deixar vocês aqui olhando sem intenção pra elas, e vou lá
dentro ver se as meninas precisam de algo. — Tommy saiu, deixando nós
dois na borda da piscina.
— Você já decidiu se deixa ou não ela entrar? — Ethan suspirou ao meu
lado, virando a cabeça para mim, relutante.
— Você tá falando da Liah? — perguntei confuso.
— Aquela noite no Republic, você disse que não entendia como podia se
preocupar com ela. Disse que lutava contra isso, e pelo que entendi você
estava quase cedendo — explicou, voltando a olhar para o outro lado da
piscina.
Quando disse aquilo, eu sentia que a mínima abertura que desse seria
suficiente para Liah entrar em minha cabeça e tomar conta de partes que
estavam bloqueadas há muito tempo. Só não imaginava que isso fosse
acontecer minutos depois.
No dia que entrei na ONG a primeira vez, inexplicavelmente, me senti
parte daquilo. O problema de estar lá diariamente, era enxergar Liah em
cada pedaço daquele lugar. As crianças falavam dela, Triss falava dela, e até
na App ela foi parar, quando a avó decidiu usar nosso sistema. A
investigação de Carl era sobre ela. E mesmo naquela loucura de ódio e
tensão, a gente tinha se beijado de um jeito totalmente louco. De repente,
nossas vidas estavam totalmente cruzadas. Não era uma questão que tivesse
muito escolha de qualquer jeito.
Então, sim. Eu tinha decidido.
— Ela já entrou. Sem permissão nenhuma, do mesmo jeito que sempre
fez desde a primeira vez.
Ethan me encarou, sorrindo orgulhoso por eu admitir aquilo.
Uma risada mais alta chamou nossa atenção e viramos nossas cabeças de
volta para o outro lado, onde Liah e Olie riam brincando uma com a outra.
— Nathan, no fim da noite, me lembra que a Olie é só minha amiga? —
Ethan pediu preocupado.
Olhei para ele com o olhar vidrado na borda do outro lado e deixei
escapar um riso meio desesperado.
— Só se você me lembrar que eu deveria odiar a Liah.
Liah
Capitulo 20

05 de julho de 2019

Olivia era aquele tipo de amiga totalmente indiscreta. A garota não parava
de rir, lançando vários olhares para o outro lado da piscina.

— Olie para de rir desse jeito — supliquei. — Eles vão perceber.

— É óbvio que eles estavam falando da gente. Você não viu? Estavam os
três idiotas olhando para cá o tempo todo, Liah. Tommy saiu e os dois ali
cravaram os olhos aqui sem vergonha nenhuma.

Olivia enfiou na cabeça que os meninos estavam do outro lado falando da


gente, só porque Ethan olhou algumas vezes para trás.

— Você é louca, Olie!

— Louca eu fico vendo Ethan daquele jeito.

Olhei discretamente por baixo do meu braço sobre o rosto. Ethan e Nathan
continuavam sentados nas espreguiçadeiras do outro lado, conversando. Os
dois de bermuda. Bom, teria que concordar com Olivia, era uma visão e
tanto.

— Nossa, Liah, você não sabe ser discreta — Olivia reclamou, me dando
um tapinha no braço. — Dá pra ver que você tá olhando.

— Não me enche, Olivia. — Ri dela, voltando a olhar para o outro lado.

Depois de alguns minutos torrando no sol, resolvemos entrar na água.


Ethan e Nathan também já estavam na piscina, conversando apoiados na
borda do outro lado.

Assim que entramos, Ethan virou-se em nossa direção sorrindo para Olie e
Nathan comentou alguma coisa próximo ao ouvido do amigo que o fez
fechar a cara na hora.

Dei mais alguns mergulhos antes de sentar ao lado de Olivia no degrau


gigante na piscina. Evie, karol, Mia e Triss estavam chegando na área
externa com uma bacia cheia de biscoitos e petiscos.

— Trouxemos comida. — Tommy apareceu logo atrás trazendo um cooler


cheio de cerveja.

Depois que todos pegaram suas bebidas, as meninas entraram na piscina


junto de Tommy. Durante a próxima hora todos ficaram conversando e
brincando sobre vários assuntos.

Em algum momento, me peguei pensando em toda a merda que estava


acontecendo na ONG. Sem perceber, acabei me isolando do restante deles,
escondida na borda da piscina. Eu sabia que precisava me distrair, mas me
sentia impotente de estar aqui com tanta coisa acontecendo por lá.

Uma movimentação na água me fez olhar para o lado quando Nathan parou
perto de mim, apoiando os braços na borda da mesma forma que eu.

— Eu sei em que você está pensando — disse me encarando de um jeito


estranho. — Não tem nada que você pudesse fazer lá agora. É só um fim de
semana, Liah.

— Como sabe que estou pensando nisso?

Ethan e Olie eram as pessoas mais próximas de mim ali. Se eu esperasse


que alguém reparasse na minha preocupação, seriam eles, e não Nathan.

Um sorriso compreensivo me alcançou quando me passou a garrafa de


cerveja em sua mão. Olhei pensativa para ele, antes de pegar a cerveja e dar
um longo gole.

— Não é difícil perceber — respondeu apenas.

Devolvi a garrafa, reparando nos desenhos do seu braço enquanto ele


esticava a mão. Nathan havia sido bem claro naquela madrugada, sobre não
gostar de falar sobre elas. O problema é que aquelas tatuagens me
instigavam. Não eram só desenhos, elas estavam carregadas de significado
e eu tive certeza disso quando o persuadi a falar sobre elas.

— Ainda quer saber alguma coisa sobre elas? — ele perguntou sorrindo ao
perceber meu olhar fixado na Íris.

Neguei, me sentindo sem graça pela fixação que eu tinha naqueles


desenhos. Não conseguia deixar de pensar nas coisas que falamos noite
passada.

— Intrometida.

Um sorrisinho divertido se desenhou na lateral de seus lábios, e eu sabia


que ele não estava falando para me atingir. Nathan gostava de como aquela
porcaria de adjetivo me atingia.

— Nervosinho — devolvi, sorrindo do mesmo jeito.

Um silêncio estranho pairou entre a gente. Nathan ainda ficou um tempo ao


meu lado, sem dizer nada. Não foi desconfortável, era mais como se a gente
estivesse se acostumando com a presença um do outro.

Separador

07 de julho de 2019

Nossa mente é mesmo uma coisa incrível. Pequenas distrações costumam


ser suficientes para desafogar dias de estresse acumulado.

Embora as meninas tentassem me distrair a maior parte do tempo, minha


cabeça irritante tornava a me mandar de volta para os meus problemas.

Voltaríamos hoje para Greenville e a rotina normal de trabalho. Passei o


feriado todo agitada, preocupada com a ONG e tudo que deixei por lá, mas
hoje acordei mais leve.

Nathan e eu estávamos nos acertando. Era uma grande evolução não termos
discutido ou nos irritado um com o outro por todo o feriado. Preciso admitir
que havia ficado mais difícil brigar com ele depois de presenciar sua última
crise. Às vezes, parecia que ainda podia ouvir seu grito e o choro
compulsivo. Era estranho como o cara raivoso que sempre me tirava do
sério, havia caído de joelhos frágil e acessível à minha frente. Aquele era o
reflexo de um homem totalmente quebrado.

Pensar em Nathan me fazia lembrar de que ainda teria que dispensar


Camille quando retornasse a ONG. Ela não dava as caras desde que a
interroguei sobre sua intenção por trás de querer trabalhar na ONG, mas
antes do feriado, a garota me ligou para perguntar se sua colaboração ainda
estava de pé. Eu queria dispensá-la, não havia feito ainda formalmente por
que queria conversar com Joanna, já que Camille foi indicada por ela.

Quando a garota me procurou para se envolver na ONG, jamais imaginei


que ela era a mesma Camille que causou tudo aquilo. E nada me tirava da
cabeça que ela sabia muito bem onde estava se metendo.

— LIAH!

Dei um pulo na borda da piscina com o susto repentino. Tommy saia


correndo da sala envidraçada só de bermuda. O desgraçado me agarrou
enquanto pulava na água gelada e me arrastava junto.

Senti a água tomar minhas narinas enquanto me debatia e voltei a superfície


encarando Tommy com raiva.
— Porra, Tommy, não acredito — gritei, sentindo o jeans molhado pesar o
triplo no meu corpo. Para piorar, minha blusa era branca.

Ainda bem que você colocou um sutiã pela manhã, Liah!

Irritada, cruzei os braços em frente meus seios e andei resmungando até as


escadas da piscina, enquanto Thommas ria na água. Ethan e Nathan
também saíram para a área externa, rindo. Se fossem eles, estariam os dois
irritados.

— Me ajuda? — chamei, estendendo uma mão para Ethan.

A intenção era jogá-lo na piscina também, mas quando segurou minha mão,
Ethan me olhou apertando os olhos.
— Se você me jogar na piscina, eu vou esperar você entrar, se arrumar de
novo, e vou te jogar mais uma vez.

Antes que eu pudesse pensar se valia a pena ou não, Nathan empurrou as


costas de Ethan, fazendo com que ele caísse na água também.

Ethan levantou a cabeça ofegante, olhando abismado para o amigo em pé


na borda.

— Nathan, acho melhor você sumir daqui — reclamou, tirando o celular


encharcado do bolso da calça.

— Se eu fosse você, iria atrás dele — provoquei, vendo Ethan soltar


fumaça pelas orelhas.

— Liah, eu tenho o dobro do seu tamanho — Nathan avisou, sorrindo


malicioso.

Arqueei a sobrancelha, procurando Ethan na piscina.

— Mas o Ethan e Tommy tem o mesmo tamanho que você. — Entendendo


a brincadeira, Tommy impulsionou o corpo na borda, saindo da piscina.

Antes que eles pudessem chegar até o amigo, Nathan tirou a camisa e a
calça jeans, se jogando na piscina só de bóxer preta.

Porra. Que gato!

Fechei a boca rápido para esconder minha reação repentina a ele.

Tommy se jogou de novo na piscina, e os três ficaram rindo e brincando


enquanto jogavam água e afogavam um ao outro. Eram raras as vezes que
os tinha visto assim. Estiquei meu braço, puxando meu celular que ainda
estava na borda. Abri a câmera tirando algumas fotos dos três juntos.

— Ei — Ethan reclamou, vendo a câmera apontada para eles.

— Depois vocês vão me agradecer — respondi, sorrindo por trás do


aparelho.
Pela imagem na tela, percebi o olhar analítico de Nathan enquanto se
aproximava calmamente. Só me dei conta de sua proximidade exagerada,
quando seu peito exposto e malhado tomou a câmera e seus braços
surgiram ao lado do meu corpo, me cercando enquanto tentava alcançar
alguma coisa atrás de mim. Merda.

Engoli seco, subindo os olhos da tela para ele. Seu olhar estava vidrado em
mim, mais especificamente no pedaço de pano transparente, expondo o
sutiã de renda preto, enquanto tateava na borda. Nathan puxou o braço com
seu celular na mão, finalmente se afastando de mim.

Filho da puta! Desgraçado! Idiota! … Gato! Lindo! Gostoso!

— O que foi? — perguntou com um sorriso malicioso ao perceber meu


rosto vermelho.

Sem responder, subi os degraus da piscina ao meu lado, incomodada com a


forma que ele conseguia mexer comigo.

Eu sempre travava.

Travava quando um cara me beijava, travava quando um cara me tocava,


travava sempre que existia alguma insinuação sexual por menor que fosse.
Mas tinha a sensação, totalmente errada, que Nathan me desbloqueava.

Tive que tomar outro banho e lavar o cabelo para tirar o cloro da piscina e
para apagar o resquício do choque que ainda percorria meu corpo ao
desejar que ele me tocasse.

Quando desci as escadas, todos já estavam prontos para sair. Olivia, Mia e
Evie conversavam na sala; os meninos colocavam as várias malas nos
carros; Triss e Karol raspavam uma panela de brigadeiros que Mia fez
ontem a noite.

Foi um fim de semana divertido. Tudo o que fizemos foi ficar por horas na
piscina, comer como loucos e passar as noites bebendo e jogando conversa
fora.
— A gente podia terminar a noite no Republic — Karol propôs, chamando
a atenção de todos. — Vamos chegar ao anoitecer na cidade.

— Preciso estar na ONG muito cedo amanhã — avisei.

Havia marcado às 07:00h com Joanna. Queria sua autorização para


dispensar Camille no primeiro horário da segunda.

Karol revirou os olhos andando até mim. A ruiva passou um braço pela
minha cintura, apoiando a cabeça em meu ombro.

— Liah, a não ser que você tenha um excelente motivo para estar na ONG
muito cedo numa segunda-feira pós-feriado, eu vou mandar internar você
por chatice aguda.

Soltei um riso alto, vendo Tommy, Nathan e Ethan me olharem curiosos


assim que entraram na sala.

— Preciso da autorização da Joanna pra dispensar um voluntário da ONG


— avisei a ela, sorrindo. Todos sabiam de quem eu estava falando.

— Nesse caso, eu nem me importaria de estar na ONG às 05:00h da manhã


pra te acompanhar — Nathan soltou, me surpreendendo.

Ethan deu um tapa no ombro do amigo e os dois voltaram a colocar as


últimas malas no carro. Saímos de lá um pouco depois do almoço. A
viagem de volta foi bem diferente da de ida, quando ficamos horas parados
no trânsito.

— Nos vemos no Republic às 20:00h? — Olivia perguntou quando Ethan


me deixou na porta do hotel.

Assenti, vendo o carro seguir pela rua movimentada. Meu celular tocou,
mostrando um número desconhecido assim que passei pelas portas
giratórias do prédio.

— Alô.
— Oi, Lianah! É a Camille. Como você vai? — a voz animada demais soou
do outro lado.

O que essa garota queria em um domingo a noite?

— Bem — respondi incerta. — Aconteceu alguma coisa?

— Achei que a gente deveria conversar sobre o que aconteceu na semana


passada.

— A gente tem uma conversa marcada pra amanhã. Não podemos esperar?

Ela devia imaginar que a conversa era para isso.

— Na verdade, queria poupar seu tempo e explicar meu lado nessa história,
antes que me dispense.

Lado dela? Camille havia se drogado a ponto de matar o filho dela e de


Nathan. Depois foi embora sem ter tido sequer a coragem de contar a ele o
que havia feito. A não ser que houvesse algo muito mal contado nessa
história, nada mudaria minha visão sobre ela.

— Camille, não quero me meter e nem tenho nada a ver com essa história.
Mas Nathan e todos os outros são peças fundamentais na minha ONG. Você
sabe que não posso manter você por lá — disse logo de uma vez. Quem
sabe não pouparia mesmo o meu tempo.

— Liah, eu sei que você é uma mulher inteligente, então vai me entender
— um suspiro profundo cortou a linha.

Sentei em uma das poltronas confortáveis do saguão do hotel, esperando


que ela falasse.

— Eu sempre fui totalmente apaixonada pelo Nathan. Engravidei num


descuido, e tive muito medo de perdê-lo. Ele tinha um amor incondicional
por uma criança que ainda nem havia nascido. Consegue imaginar como
era olhar o homem da sua vida conversando com sua barriga, sorrindo
abertamente, e esse mesmo sorriso sumir quando ele olhasse pra você?
Era isso? Camille tinha ciúme do bebê?

— Era filho dele, Camille, você queria que não o amasse? — exalei,
sentindo uma raiva que não deveria dela.

— Ele ia me trocar pela criança. Mas tive que aprender da pior forma que
sem a criança eu não teria mais Nathan.

— Foi uma escolha sua — disse dura, percebendo que Camille ainda tinha
sérios problemas psicológicos.

— Eu tentei adotar uma criança da mesma idade um tempo atrás. Mas por
conta do registro da minha overdose, não me permitiram.

— Você é louca? Camille, nenhuma criança mudaria o fato de que você foi
embora quando ele mais precisava de apoio.

— Mas eu voltei, posso dar apoio a ele agora. Pode avisá-lo? Pode dizer
que estou aqui pra isso?

Os bipes seguidos soando pelo celular indicavam que ela havia desligado.
Olhei o aparelho desacreditada.

Camille era louca.

Totalmente.

Entrei no elevador apertando o botão do décimo quarto andar, com a mente


ainda enevoada. Parece que a cada semana um surto diferente tomava
minha vida.

Assim que entrei no quarto, meu celular tocou de novo. Número


desconhecido outra vez.

— Camille, eu não quero mais falar com você — atendi irritada.

— Lianah Vittorino? — a voz de um homem tomou meu ouvido.


— Desculpa — pedi ao perceber que não era ela. — Sim, é ela. Quem
deseja?

— Você teria um tempo para falar?

— Claro.

Larguei o tênis pelo caminho, me jogando na cama grande.

— Tem uma folha do lado de fora do seu quarto. Sugiro que leia com calma
a proposta. É sua melhor saída agora.

A ligação foi encerrada.

Quantas ligações estranhas alguém poderia receber em um mesmo dia?

Ansiosa, corri até a porta, vendo que realmente tinha um papel ali.

Tinha alguém me seguindo? Isso não estava aqui há poucos segundos


quando entrei.

Fechei a porta, voltando para a cama. Foquei nas letras impressas no papel
sem nenhuma identificação.

“Quer seu dinheiro de volta? Podemos ajudá-la com a liberação de todas as


contas das empresas do Grupo Vittorino e as suas. Uma fortuna de três
bilhões de dólares pode ser facilmente repartida. Tudo que precisa fazer é
escrever um sim no verso dessa folha e deixar no mesmo lugar.”

Que merda era essa? Era muita ousadia me enviar uma proposta de
suborno. Aquilo era ridículo.

Peguei uma caneta na bolsa e rabisquei um 'NÃO' bem grande na parte de


trás. Joguei a folha pela fresta da porta, sentindo as primeiras lágrimas
descerem.

Carlton e Estevem deviam estar certos sobre aquele esquema corrupto.


Minha avó estava sendo coagida a se manter naquilo.
Ah, Dona Sylvia. Por que foi se meter com essa gente?

Levei um tempo para me acalmar em baixo da água quente e quando


finalmente terminei de me arrumar, senti medo de sair sozinha.

Essas pessoas estavam me espiando?

Me encarei no espelho uma última vez, notando o quanto aquela proposta


tinha me afetado. Embora o dia tivesse sido tranquilho e divertido, no fim
da tarde as coisas mudaram. Uma névoa sombria me alcançou.

As meninas, Ethan e até Tommy já tinham percebido. Era claro como a


forma que eu me sentia, era refletida nas minhas roupas. Meu reflexo no
espelho era exatamente a imagem de como me sentia. Confusa e agitada, já
que meu corpo não parava quieto por um instante.

A calça jeans preta justa, o top preto e curto, a maquiagem mais escura e
marcada. Eu conseguia imaginar o sorriso de Karol quando eu entrasse no
Republic aquela noite.

Eu estava colecionando momentos quase impossíveis de acreditar. Estar


sentada numa mesa do Republic ao lado de Nathan, era um deles. E nós
estávamos interagindo, o que era ainda mais estranho.

— Ethan, você é um idiota — Olivia reclamou ao ver Ethan trocar o drink


dela por uma garrafa de água. A garota já tinha passado da cota dela de
bebidas a algum tempo.

— Quem está dirigindo hoje sou eu, e não vou te levar vomitando no meu
carro — Ethan reclamou, empurrando a garrafa de água na mão dela.

— O que houve com ela? — perguntei a Nathan ao meu lado.

Quando cheguei, Olie já estava se afogando em copos altos e grandes de


drinks com vodca.
— Chegou aqui e viu Ethan beijando uma garota — Nathan mal acabou de
falar e arregalou os olhos em minha direção. — Esquece que falei isso.

— Por quê? — franzi a testa para ele. — Você nem falou nada demais.

— Achei que ninguém além de mim e Tommy percebia essa coisa entre
eles — explicou.

— Olivia é louca nele, Nathan — foi a minha vez de arregalar os olhos. —


Não fala com ela que eu te falei isso.

Vi um sorriso malicioso nascer em seu rosto. Ele ficava lindo sorrindo


assim. Voltei a olhar para a frente sacudindo a cabeça. Olivia e Ethan me
olhavam com suas caras fechadas. Será que eles escutaram alguma coisa?

Tentei beber minha cerveja para disfarçar minha cara de culpada, mas não
saiu nenhuma gota quando virei a garrafa. Droga! Nathan deixou escapar
um riso baixo enquanto estendia a mão com sua garrafa para mim. Aceitei
sem olhar para ele, virando todo o conteúdo em poucos segundos.

— Você demorou a chegar aqui — Olivia acusou, ainda me olhando


estranho.

— Alguém me seguiu até o hotel — contei.

Um silêncio repentino se abateu sobre a mesa. Todos eles me encararam,


esperando que eu explicasse aquilo.

— E você não achou importante contar isso? — Nathan reclamou.

— Alguém queria me subornar a dar parte da herança da minha avó em


troca da liberação das contas dela — expliquei. — Não tem nada a ver com
vocês. Na verdade, acho até melhor ficarem fora disso, não sei quem são
essas pessoas.

Ethan e Tommy se olharam. Nathan virou de lado na cadeira, me


analisando. Me senti estranha com aqueles olhares.

— O que foi? — perguntei a ele, começando a me irritar.


— Uma pessoa te procura pra te subornar, e você acha a coisa mais normal
do mundo? — Nathan sacudiu a cabeça me reprovando.

— Não acho normal, mas quem vai acreditar em mim? Vou parar de viver
por causa disso?

— Lianah, você é absurda.

— Vai começar a me irritar e apontar o dedo pra mim de novo? — Eu


odiava quando Nathan começava a falar daquele jeito, como se eu não
soubesse de nada e ele sempre tivesse razão sobre tudo.

— Talvez eu devesse realmente fazer isso.

Suspirei cansada. Minha mente confusa e cheia de álcool me fez questionar


se ele falava sobre o episódio de horas atrás ou sobre sua vida, a qual ele
me acusou várias vezes de destruir. Só Deus sabe o quanto me sentia
culpada pela morte do filho dele.

— Pode fazer. Sou culpada por toda sua desgraça mesmo — disse triste,
levantando da mesa.

Todos nos olhavam estáticos, com suas bocas abertas. Evie pigarreou e
tossiu quando encarei ela e Karol no fim da mesa. Isso era um saco. Todos
eles deviam achar que eu era culpada, afinal.

Me enfiei no banheiro cheio, arrumando um espaço entre as garotas que se


olhavam no espelho retocando o batom ou ajeitando o cabelo. Joguei um
pouco de água no rosto, tomando cuidado para que o rímel e o delineador
não escorressem.

Um feriado inteiro sem estresse, arruinado por um fim de domingo.


Chegava a ser irônico. Esperei aquela agitação no meu peito passar para
finalmente sair do banheiro. Mas tudo voltou como uma avalanche, quando
vi Nathan no corredor em frente a porta, me esperando sair.

Exalei, mordendo o interior da bochecha em seguida. Eu não queria mais


brigar com ele, mas era quase como um ímã.
— Liah, eu não estava te acusando de nada — disse quando encostei ao
lado dele na parede. — A gente só estava preocupado com você.

— Você preocupado comigo?

Eu até entenderia Ethan ou Tommy preocupados, mas Nathan, no máximo,


me suportava.

— Deixa de ser teimosa, Liah. Você sabe que isso tá se tornando perigoso
e...

Nathan parou de falar para encarar de cara fechada um homem que havia
saído do banheiro. O cara parou no corredor, encostado na parede do outro
lado, me olhando de cima abaixo, soltando alguma gracinha.

— Não precisa fazer isso — falei bufando. — Sei me defender.

Se aquele cara resolvesse mexer comigo, provavelmente eu não daria conta


dele sozinha. Mas nunca admitiria isso para Nathan.

— O que foi? — perguntei irritada ao perceber Nathan virar o pescoço de


lado, analisando minha roupa.

— A Karol te ajudou a se arrumar?

— Não — franzi a testa, estalando os dedos em frente o rosto dele. — Vai


ficar me olhando igual ao cara que saiu do banheiro?

Nathan voltou a olhar para o homem parado do outro lado, que me olhava
sem nenhum pudor. O cara soltou um sorrisinho debochado, encarando
Nathan de volta. Revirei os olhos ao perceber o concurso de quem mijava
mais longe ali. Uma piscada de olho do cara fez Nathan bufar, se movendo
rápido para ficar a minha frente. Um déjà vu automático me atingiu quando
ele usou os braços para se escorar na parede, impedindo que o cara pudesse
continuar me olhando daquela forma.

— Por que você sempre faz isso? — reclamei, percebendo seu peito
próximo demais de mim.
— Não é seu estilo. — Encarou confuso minha roupa, ignorando
totalmente minha pergunta.

— E desde quando você sabe qual é o meu estilo, Nathan?

— Estilo é tipo um cartão de visita — voltou os olhos para os meus. —


Todo mundo deveria perceber quando algo está fora do padrão em alguém.

— E desde quando fora do padrão é ruim? Não sabia que você tinha esse
tipo de preconceito — acusei.

— Eu não disse que era ruim. As pessoas têm mania de interpretar a


palavra padrão como o certo, quando, na verdade, é só algo de uso mais
comum. Não quer dizer que seja certo ou errado, feio ou bonito.

Encarei o homem, a minha frente, segurando a vontade de rir. Eu sabia do


ódio dele por mim, mas pela forma que me olhava, definitivamente não
enxergava aquilo como algo ruim.

— Está ruim ou feio? — perguntei atrevida.

— Deve ser uma merda lidar com esse tipo de cara sem noção — apontou a
cabeça para trás, onde o cara ainda estava parado, ignorando totalmente
minha pergunta de novo.

Nathan baixou os olhos mantendo o foco na pele da minha cintura, exposta


pelo top curto.

Senti meu corpo arder.

— Preciso te incluir nessa lista de caras sem noção?

— Talvez devesse — respondeu engolindo com dificuldade.

Um arquejo involuntário escapou de mim ao perceber que em algum


momento dessa conversa, nossos rostos de aproximaram demais. Não. De
novo, não. Mas meio segundo depois seu cheiro amadeirado me atingiu em
cheio, me fazendo perder toda a compostura ao projetar meu pescoço para
frente, puxando a gola da camisa branca para mim. Nathan passou o braço
pela minha cintura nua ao mesmo tempo que sua língua invadia minha
boca.

Como você é idiota, Liah.

Senti quando uma de suas mãos subiu para o meu pescoço, embrenhando
os dedos entre os fios de cabelo na minha nunca, puxando meu cabelo e
mordendo meu lábio em seguida.

Da outra vez que ele me beijou, fiquei tão surpresa que mal conseguia
lembrar do que fiz durante aqueles segundos, mas agora, conscientemente
enfiei minhas mãos por dentro da barra de sua camisa, sentindo o calor da
pele dele. Ele era uma combinação perigosa de mistério e beleza, capaz de
me tirar de órbita facilmente, ainda mais quando as pontas dos meus dedos
identificaram o desenho marcado do abdômen dele. Ele tinha que ser tão…
gostoso?

Seus dedos se fechavam na minha cintura, apertando e me puxando para


ele. Algo dentro de mim se acendeu de um jeito novo, fazendo um tremor
descer pelo meu estômago até morrer em um choque gostoso entre minhas
pernas. Era totalmente novo. Não existia trava. Nathan só me fazia querer
mais.

Beijar Nathan era uma insanidade, e tinha algo na forma que a língua dele
se movia sobre a minha… Isso é tão errado.

— Nathan, para! — pedi, me desgrudando dele e empurrando seu peito


para longe de mim. — A gente se odeia…

— Foi você quem me beijou — acusou, ofegando enquanto dava alguns


passos para trás.

— Você puxou meu cabelo, mordeu meu lábio e apertou minha cintura.
Nada disso me parece uma atitude de resistência — reclamei, sentindo meu
rosto pegar fogo.

Nathan levou as mãos ao rosto, consternado. Um arquejo irritado saiu dele


enquanto uma expressão confusa e cansada tomava seu rosto.
— Tem razão, a gente não se gosta — disse assentindo com a cabeça. —
Isso não deveria acontecer entre a gente.

Nathan voltou a encostar na parede ao meu lado e um silêncio estranho se


estabeleceu. O homem que gerou toda essa confusão não estava mais ali.

— Estou começando a odiar esse corredor — brinquei, tentando aliviar o


clima.

— Eu odeio beijar você! — disse sério, mantendo os olhos na parede a sua


frente.

— Nossa… — Foi como um soco no estômago. — Eu sei que você não


gosta de mim, mas precisa jogar na minha cara que é ruim me beijar?

— Eu não disse que era ruim beijar você. Eu disse que odeio beijar você.
Tem uma diferença bem grande. É como usar droga, a sensação é
maravilhosa, mas o efeito disso depois é o verdadeiro problema. — Depois
que terminou de falar, Nathan virou o pescoço, me encarando.

— Você sempre tem uma respostinha pronta pra tudo? — Apertei meus
olhos em sua direção.

— Não é uma resposta pronta. Pensa comigo, Liah, toda droga funciona
exatamente assim, ela te atrai de todas as formas possíveis, mesmo você
sabendo que é nocivo e o estrago que pode te causar. Na hora, a sensação é
a melhor do mundo, você se sente incrível e imbatível… até que o efeito
passe.

Seus olhos estavam cravados nos meus. Tinha a sensação de que milhares
de agulhas pinicavam meu estômago e o faziam se revirar. Mordi a
bochecha, desviando meus olhos dele.

Que merda ele queria dizer com isso? Nathan me odiava, não fazia sentido
se sentir atraído logo por mim. Foi isso que ele quis dizer, não foi?

— Você já usou droga? — minha voz soou totalmente alarmada, na


tentativa ridícula de desviar o foco do assunto e de mim.
— Você não? — Seus olhos ganharam um brilho entristecido diferente
quando neguei com a cabeça. — Teve um tempo que era a única coisa que
me fazia parar de sentir culpa.

Engoli seco. Não queria continuar aquela conversa. Não quando eu havia
causado os acontecimentos que o deixaram assim. Aliás, estava bem difícil
estabelecer uma conversa não constrangedora com ele. Acho que Nathan
percebeu meu constrangimento e presumiu o rumo dos meus pensamentos,
porque logo em seguida começou a rir abertamente.

— O que foi? — questionei sem entender sua reação.

— Estava pensando no que falou sobre o corredor, mas não posso dizer o
mesmo. A maior parte dos meus momentos mais intensos no Republic, foi
exatamente aqui. Nem esses incidentes com você conseguem apagar isso.

Sacudi a cabeça em reprovação. Sabia que ele estava só me provocando,


mesmo assim não consegui deixar de pensar em quantas mulheres Nathan
tinha beijado ali, encostado naquelas paredes.

— Vim até aqui pra falar com você sobre alguém ter te seguido até o hotel.

— Ah, isso.

— É! Isso. Me explica direito o que aconteceu, por favor — pediu,


tentando soar mais calmo.

— Recebi uma ligação de um número desconhecido. Me mandaram olhar


um papel na porta e tinha uma proposta para entregar parte da herança da
minha avó. Eles sabem o valor da herança dela — contei assustada.

— Tem o número que te ligou salvo, aí? — perguntou enquanto tirava seu
celular do bolso da calça jeans.

Peguei meu celular, buscando o número do histórico de chamadas.

— Esse aqui. — Mostrei a tela a ele, enquanto Nathan se apressava em


digitar algo em seu celular.
— Que porra Camille queria com você hoje? — perguntou quando seus
olhos pararam na chamada logo abaixo do número desconhecido.

Droga. Havia esquecido daquele detalhe.

— Ela sabe que vou dispensar ela amanhã. Queria me explicar as coisas
pelo lado dela. — Omiti a parte em que ela dizia poder dar apoio a ele
agora. Não tinha certeza de que efeitos isso desencadearia nele.

Nathan sacudiu a cabeça, consternado.

— Algo me diz que ela tem outras intenções na ONG, Liah. Eu não tenho
autoridade nenhuma pra te pedir isso, mas por favor, dispensa mesmo ela
amanhã. Não suporto a ideia dela perto de mim — pediu num tom quase
desesperado.

— Vou fazer isso, pode ficar tranquilo. — E faria mesmo que Joanna não
concordasse. Todos estávamos passando por coisas demais, não tinha
sentido trazer mais um problema para nossas vidas.

Nathan assentiu, me lançando um olhar agradecido.

— Sobre esse suborno, eu mandei uma mensagem para o Carl tentar


descobrir algo sobre o número que te ligou — avisou, me mostrando a
mensagem enviada no celular. — Só toma cuidado, tá? — pediu exalando.
— Se achar que tem algo estranho, liga pra mim ou para os caras.

— E você vai correndo salvar a mocinha em perigo? — Era inacreditável


pensar que Nathan estivesse realmente preocupado comigo.

— Você e eu sabemos muito bem que é melhor não ter perigo, Liah. Ainda
mais quando a gente não faz a miníma ideia do que essas pessoas são
capazes.

Engoli seco, sentindo a mudança de tom e a seriedade do pedido dele.


Talvez ele estivesse mesmo preocupado.
12 de julho de 2019

Na primeira vez que beijei Lianah no Republic, eu já sabia que estava


enlouquecendo. Lembro claramente de ter a certeza de que tê-la beijado foi
uma atitude estúpida e impulsiva, além de ter se tornado o fato que mais me
trazia ódio em relação a ela. Então por que caralhos eu não conseguia tirar
a porra da mulher da minha cabeça?
Ainda tinha a merda daquele gosto que não saía da minha memória. Ela
tinha que ter a boca gostosa daquele jeito? Eu estava doente, essa era a
única explicação.
Minha mente, fértil demais para o meu próprio bem, me fazia lembrar a
cada minuto da textura da pele macia dela na minha mão, do cheiro
apimentado que só ela tinha, e da forma despudorada que se esfregou em
mim no Republic. Eu estava prestes a surtar com esses pensamentos.
Quando Ethan me ligou pela manhã, eu não tinha noção de como o
trabalho da App estava acumulado. Eu estava passando mais tempo na ONG
do que na empresa, então precisei usar toda a manhã de sexta para focar no
trabalho acumulado, já que a tarde teria que ir para a ONG dar aula e ainda
não havia repassado o plano de hoje.
Antes de viajarmos, aconteceu todo aquele episódio com Camille e eu
esperava, com todo meu afinco, que Liah tivesse dispensado a mulher.
Ainda não tinha certeza sobre minha reação caso a encontrasse de novo,
mas para meu desespero usual, Joanna, Liah e Camille conversavam na
recepção logo que cheguei.
Liah arregalou os olhos ao me ver entrar um pouco mais cedo que o
normal na ONG. Suspirei resignado, decidido a vencer mais aquela batalha.
Acenei com a cabeça para Joanna, que sorriu ao me ver, seguindo meu
caminho em direção à porta que dividia a recepção do corredor principal.
Quando estava quase atravessando-a, aquela voz contida e falsamente
melosa me chamou.
— Nathan! — Estanquei meus passos, relutante em virar para trás. — A
gente pode conversar?
A gente nunca teve essa chance. Camille foi embora sem nunca ter me
encarado uma vez mais depois de perder o bebê. Nunca tive o direito de
acusá-la, ou de exigir que me explicasse o motivo de ter feito aquilo. Eu
teria a perdoado. Teria escolhido perdoa-lá porque Camille havia sido uma
das partes mais importantes da minha vida.
Eu só queria entender os motivos dela.
— Camille, acho que não é uma boa — Liah interviu, vendo minha
demora em expressar qualquer reação.
— Não. — Virei devagar, encarando as três mulheres a minha frente. —
Quer saber!? A gente precisa mesmo disso. Você quer conversar? A gente
vai conversar. Tenho mesmo algumas perguntas para você — avisei
encarando os olhos frios dela. Camille mordeu os lábios nervosa,
demonstrando que não esperava que aquela fosse minha reação.
— Tem certeza? — Liah me perguntou preocupada. Assenti para ela,
totalmente decidido a tirar aqueles sentimentos de mim.
Segui pelo corredor até o auditório mais a frente, sem fazer menção
nenhuma a olhar para trás e ver se ela me seguia. Eu sentia, pelo aperto no
meu peito e a forma que meus pelos se arrepiavam, que ela estava ali,
acompanhando meus passos até lá.
Larguei minha mochila sobre a mesa a frente da sala, finalmente virando
meu corpo para a entrada. Camille estava em pé, apoiada no batente da
porta, incerta sobre o que fazer.
— Quer começar a falar, ou posso te dizer tudo que guardei e vivi esses
anos por sua causa? — perguntei, segurando a irritação constante e
crescente no meu peito.
A garota desceu a rampa do auditório, sentando-se em uma das cadeiras
na primeira fila. Engoliu seco umas duas vezes antes de abrir a boca.
— Eu estava totalmente fora de mim, Nathan. Eu tinha tanto medo de
perder você. — Suas palavras se perderam por alguns segundos. Mantive
meus braços cruzados sobre o peito, apoiando o corpo na mesa até que ela
voltasse a falar. — Você não me desejava mais, não sorria mais para mim…
— Camille… — interrompi, consternado. — Em todos os nossos anos de
relacionamento, aqueles meses foram nossa melhor fase. Eu nunca me senti
tão completo e feliz, como quando soube que você esperava um filho meu.
Voltei a desejar você, eu me sentia feliz com você. Como pode dizer isso?
Algumas lágrimas começaram a descer pelo rosto abatido enquanto
balançava levemente a cabeça, negando alguma coisa para ela mesma.
— Não era a mesma coisa com o bebê. Você sorria para ele ainda na
minha barriga, falava com ele que o amava incondicionalmente, dizia que
ele era a coisa que você mais amava no mundo. Você fazia isso tudo mesmo
sabendo que eu estava ali, ouvindo o que você dizia.
Olhei desacreditado para ela. Não era uma comparação justa. Amei
Camille por muito tempo, e mesmo que muita coisa estivesse diferente
entre a gente, eu ainda a amava quando engravidou. Theo se tornou a forma
mais real que tive de ressignificar a maior parte dos acontecimentos da
minha vida, e por isso, existia um sentimento muito maior por trás dele.
Isso não queria dizer que eu não a amava ou que parei de desejá-la.
— Você devia estar totalmente cega pelo ciúme que sentia dessa criança,
Camille. Isso não te dava o direito de querer se matar daquela forma…
— Eu nunca quis matar o bebê! — me interrompeu chorando. — Eu só
queria esquecer meus problemas aquela noite. Por mais superficiais que
você ache que eles pudessem ser, eu só queria esquecer… Se eu soubesse
que isso mataria a criança, teria ido embora com você.
Engoli todas as minhas respostas, sentindo a espiral de culpa me alcançar
e tomar meu âmago feito uma lança afiada. Eram os questionamentos sobre
a nossa relação, sobre como eu me sentia, sobre como ela se sentia.
Camille queria aquele bebê? Eu queria. Com todas as minhas forças e tão
absurdamente que jamais me perguntei sobre como era para ela. Talvez
Camille nunca tenha tido coragem de me contar que não queria o filho,
talvez ela quisesse e só tivesse se afundado no seu ciúme doentio. Mas de
qualquer jeito, nós nunca tivemos a chance de resolver, de conversar.
Isso teria mudado toda a porra da minha vida. Era difícil imaginar, mas
talvez hoje estivéssemos até casados, cuidando de uma criança de três anos.
Mas desde aquela noite, tudo ficou muito pior para mim.
— Você sabe o que aconteceu comigo aquela noite? — perguntei.
— Você quase morreu depois do acidente daquele carro. Fiquei muito
preocupada com você, Nate…
— Não, Camille, eu não sofri um acidente de carro aquela noite — a
cortei nervoso. Quase ninguém sabia sobre aquilo, mas um lado cruel meu,
queria que ela se sentisse culpada. — Aqueles policiais que apareceram, me
espancaram até que eu estivesse praticamente morto. Foi isso o que
aconteceu aquela noite.
Seu semblante foi tomado por surpresa e horror enquanto sua boca se
abria em espanto. Mais lágrimas desceram pelo rosto dela.
— Eu nunca soube disso — disse chorosa.
— Claro que não. Você foi embora para a Itália sem nunca ter me dado
uma explicação sequer sobre o que você fez — acusei virando de costas
para ela. Queria socar a mesa, mas precisava segurar a raiva para conter
uma crise.
— Nate…
Antes que ela pudesse continuar, o som das vozes das crianças e
adolescentes entrando no auditório a fez se calar. Virei para frente vendo
Triss entrar, conversando com o garoto que ela gostava. Mesmo irritado
com Camille, sorri para a cena. Ela me ajudaria no curso já que aguardava a
transferência do colégio.
— Acho melhor você ir embora — avisei a mulher ainda sentada no
mesmo lugar.
— Nathan, quero te mostrar o que fiz — um dos meninos, Juan, veio
correndo com o laptop aberto apontando para a tela. — Acho que estou
quase conseguindo fazer um jogo da cobrinha10.
Olhei encantado o traço que se mexia na tela. Ele estava mesmo no
caminho. Um suspiro profundo chamou minha atenção e olhei para o lado
vendo Camille levantar-se e andar até a gente.
— Se tem alguém capaz de fazer isso é você — disse para mim, mas
sorrindo para a criança. — Por que você não ajuda esse menino lindo a
terminar o jogo e deixá-lo ainda melhor? — continuou, tentando ser
simpática com o menino.
Será que só eu percebia o quento ela precisava forçar para não soar falsa
até com a criança?
Apertei meus olhos para ela, reprovando sua simpatia exagerada.
— Você pode? — Juan me perguntou empolgado. — O Martín também
queria ter o jogo. A gente pode ficar mais tarde hoje? Podemos terminar?
Assenti para Juan, ciente de que ele não tinha culpa da empolgação
repentina. O menino saiu correndo para dar a notícia ao amigo.
— Vai embora, Camille — pedi.
— Você não vai me dizer o que queria? Sobre tudo que viveu nesses três
anos?
— Acredita em mim, você não vai querer que eu faça isso aqui agora, na
frente dessas crianças. — Embora estivesse controlando minha raiva, minha
voz soou assustadoramente ameaçadora até para mim.
Camille finalmente se deu por vencida, assentindo de leve antes de
seguir pelo corredor entre as cadeiras, em direção à saída.
Dei minha aula em paz, tentando esquecer aquela conversa. Combinei
com Juan e Martín de nos encontrarmos mais tarde no auditório para ver o
jogo deles. Enquanto isso, ia focar no trabalho da App.
Passei as próximas horas afundado no computador em trabalho, até que
ouvi a porta do auditório sendo aberta.
— Nathan, você viu a Liah? — Dinna perguntou, entrando na sala.
— Não vi, não, acho… — parei de falar ao ver o tal médico que Liah
fugiu uns dias atrás.
Dinna dirigiu um olhar amigável ao homem, negando que ela estivesse
ali. O sorriso esperançoso dele morria conforme seus olhos corriam a sala,
quase não acreditando que não tinha achado a garota. Que homem louco!
Ele continuava atrás de Liah.
— A Liah tem a agenda difícil mesmo — Dinna mentiu, me pedindo
socorro com o olhar.
— Pois é, ela estava aqui até ainda pouco, mas teve um problema pessoal
e precisou sair — completei, segurando a irritação repentina.
— Achei que ela avisaria, pelo menos, já que ela marcou comigo aqui —
o cara disse cabisbaixo.
— Liah marcou com você? — as palavras saíram antes que eu pudesse
perceber.
O médico assentiu, dando de ombros. Liah e ele estavam juntos de novo?
Lembrei daquela merda de sábado quando os dois se atracaram no
Republic. Senti um nó crescer na minha garganta; a gente tinha se beijado
duas vezes depois daquilo.
Dinna e o médico saíram da sala, me deixando sozinho com meus
pensamentos. Lianah não ficaria com ele de novo, não é? Lembro
claramente dela fugir dele por não conseguir dizer um não, mas um
pensamento estranho invadiu minha mente. E se Liah quisesse isso? Se ela
quisesse ficar com ele?
Porque você tá preocupado com isso, Nathan?
— Nathan — Dinna voltou a entrar na sala correndo enquanto fechava a
porta. — Esse cara é insistente.
Seu desespero me fez rir. Dinna tirou o celular do bolso, discou alguns
números e levou o aparelho ao ouvido.
— Pode vir, ele já foi — disse ao telefone uns segundos depois. — No
auditório com o Nathan.
— Liah continua fugindo dele? Achei que ele tivesse dito que ela
marcou com ele aqui. — perguntei ao vê-la desligar.
— Ela não ia vir para ONG hoje — explicou.
A porta do auditório se abriu a Liah entrou devagar, escorando o corpo
na madeira logo em seguida.
— Esqueci totalmente que avisei a ele que estaria aqui — reclamou,
descendo o corredor entre as cadeiras.
Sacudi a cabeça, começando a ficar preocupado com aquela situação. O
cara era insistente e chegava a ser engraçado, mas aquilo já estava beirando
a perseguição.
— Quantas vezes você já disse a ele que não vai mais rolar? — Estreitei
os olhos em sua direção.
— Eu não consigo nem falar com ele. — Liah sentou em uma das
cadeiras na primeira fila. — Tem alguma coisa que me trava… ele vai
querer mais do que posso dar… e…
Então a compreensão me atingiu. Lianah travava em qualquer
relacionamento, por medo de seguir em frente. Vi o desespero nos olhos
dela das outras vezes, quando fugiu dele. Provavelmente, tinha alguma
relação com o que aconteceu com ela no passado.
Mas o cara era insistente demais. A essa altura, já deveria ter se ligado
que Liah estava desconfortável, mas ele queria ganhar espaço.
Encarei a garota loira. Claro que ele queria uma chance. Lianah era gata,
inteligente e tinha um coração enorme. E ele já tinha a beijado. Porra, ele
sabia como era bom.
— Ele tá te perseguindo — avisei. — É melhor cortar essas visitas dele
logo.
— Não é pra tanto, Nathan.
— Você vive fugindo dele, Liah. Acha mesmo que isso é saudável?
— Uma hora ele vai entender.
— Nathan tem razão, Liah — Dinna interviu a meu favor. — É, no
mínimo, estranho esse cara aparecer aqui toda hora. Deveria estar claro pra
ele que você tá fugindo.
— Acho que vocês estão exagerando.
Apesar de sua fala tentar amenizar a situação, eu podia ver a
preocupação nos olhos dela. Liah engoliu seco, dando meia volta e saindo
do auditório. Dinna seguiu atrás dela, me lançando um olhar preocupado no
caminho.
Aquele era mais um para ficar de olho. Já não bastavam os policiais
aparecendo na ONG e Liah sendo seguida até o hotel, ela também tinha que
atrair um louco psicopata para sua vida.
O problema, é que tinha aquele instinto insano em mim.
Eu me preocupo com ela. Mais do que deveria.
Isso me fazia lembrar que precisava contar a Carlton sobre o carro que
me seguiu. Se tivesse alguma relação com a investigação de Cal, talvez as
pessoas por trás disso já soubessem que ele estava envolvido. Tirei o celular
do bolso, discando seu número.
— Nathan — atendeu no terceiro toque.
— Oi, Carl. Como estão as coisas?
— Corridas e intensas. Tem alguma informação para mim? — Ouvi uma
sirene ao fundo, talvez ele estivesse na delegacia.
— Está na delegacia? Pode falar agora? — perguntei preocupado em
dizer algo na hora errada.
— Pode falar. Estou na minha sala.
— Antes do feriado, fui seguido de carro — contei de uma vez. — Logo
que saí do meu prédio, o carro já estava atrás de mim. Só pararam porque
entrei num estacionamento no Centro, perto do Republic. Acho que ficaram
receosos de fazer qualquer coisa em público.
— Merda — Carl esbravejou do outro lado. — Qual carro era?
— Um SUV preto, sem placa. A única coisa que consegui ver foi o braço
de um homem na janela do motorista — expliquei. — A Evie estava
comigo no carro, ela tentou olhar alguma coisa, mas os vidros eram muito
escuros.
Um silêncio desconfortável pairou na linha. Carl devia estar processando
a informação. Depois de um segundos, exalou alto.
— Nathan, escuta bem o que vou te falar — ele abaixou um pouco o
tom. — Essa investigação está muito acelerada no FBI. Tem gente demais
envolvida nisso, inclusive na corporação. Tenho alguns contatos no FBI que
acreditam na minha tese, mas estão tomando tanto cuidado quanto eu. Se te
seguiram, já sabem que estou investigando por fora.
— Talvez a Rose tenha ligado os fatos quando esteve aqui na ONG.
Tommy e eu não a deixamos sozinha com a Liah — disse tentando construir
um raciocínio. — Conseguiu achar algo sobre o número que ligou para
Liah?
— Nada. Sempre são números registrados em nomes de pessoas mortas
ou que nem existem.
— Carl, qual a situação real? — perguntei preocupado, escutando sua
risada triste do outro lado.
— Nathan, eu realmente não gostaria de te contar isso, mas se não
acharmos nada que possa ser usado a favor da Lianah, a ONG pode ser
fechada em breve.
Uma onda gelada tomou meu coração, congelando as batidas por alguns
segundos. Como assim fechada? O que aconteceria com essas crianças?
— Mas a ONG está metida em problemas? — perguntei.
Pelo pouco que sabia, Liah tinha uma aversão a esses sistemas de
lavagem de dinheiro e corrupção.
— Não que eu saiba, mas estão construindo essa tese junto ao FBI e sua
amiga sabe disso. Eu e o advogado dela explicamos isso na última reunião
que tivemos.
Suspirei. Seria muito injusto a ONG ser fechada dessa forma.
— Ok, Carl. Se precisar da minha ajuda para qualquer coisa, é só me
avisar.
— Pode deixar. Mas fica fora disso, Nathan. Não quero você correndo
ainda mais risco.
Desliguei o telefone chateado, mas não tive muito tempo para pensar
nisso, porque Juan e Martín chegaram no auditório cheios de empolgação
para terminar o tal jogo.

O relógio do auditório marcava 20:30h quando resolvi dar um corte. As


crianças estavam cansadas, mas lutavam contra o sono e o cansaço pela
empolgação com o desenvolvimento do jogo. Juan e Martín voltaram para o
dormitório acompanhados de Dinna, enquanto reclamavam que já tinham
idade para ficar mais tempo acordados. Sorrindo, fiquei observando
enquanto eles sumiam no corredor, ainda agitados.
Há alguns meses eu disse a Tommy que estava perdido, que não sabia o
que fazer para tentar me curar de todas as feridas. Se alguém me dissesse
que seria voluntariar numa ONG de Lianah, provavelmente eu riria como se
não houvesse amanhã, totalmente desacreditado.
Sem saber, Liah estava dando uma chance de cura para aquelas crianças
e para todos que estavam envolvidos na ONG. Ethan sorria com mais
frequência, Tommy confessou que se sentia mais completo, Evie e karol
não tinham mais o semblante triste pela rejeição da família, porque segundo
elas, a ONG tinha se tornado a família delas. Era um processo de cura para
todo o grupo.
Juntei minhas coisas, enfiando o laptop na pasta de couro. Apaguei a luz
do auditório e ao sair do prédio, vi Liah encostada ao lado da porta da
frente, com o celular na mão.
— Ainda por aqui? — perguntei, enquanto ela me mostrava o visor do
celular com o aplicativo do Uber aberto. — Tá sem carro?
— Estava no nome da empresa. — Seu suspiro triste foi suficiente para
entender que o carro também havia sido apreendido. — A única coisa que
não bloquearam foram minhas contas pessoais. Essa semana vou procurar
um carro para alugar, não precisei nos últimos meses porque fiquei
enfurnada naquele hotel.
— Quer carona? — ofereci.
Ali não costumava ser uma região perigosa, mas da última vez que a
deixei sozinha a noite, muita gente ficou irritada comigo. E também tinha
toda aquela merda de investigação. Não podia deixá-la sozinha, ainda mais
depois de ter sido seguido daquela forma.
Desculpas, Nathan, você sabe que são só desculpas.
— Não precisa — Liah sorriu tímida. — Ainda vou até a loja do centro,
preciso pegar uns documentos da vovó.
— Aquela parte do centro é escura e deserta a essa hora — avisei,
preocupado. — Eu te levo.
Agora mesmo que não a deixaria sozinha. Ir a uma loja no Centro da
cidade, a noite, sabendo que existiam pessoas nos observando, estava
totalmente fora de questão.
— É bem contramão do seu caminho.
— Isso não está em negociação — avisei, tirando o celular de sua mão e
cancelando a solicitação da corrida no celular. — Vamos! — Puxei seu
pulso enquanto tirava a chave do carro do bolso, apertando o botão que
destrava a porta em seguida.
Abri a porta do carro para Liah e percebi seu olhar espantado para o
ponto em que meus dedos tocavam sua pele. Olhei para o mesmo ponto,
tentando entender sua reação quando já tínhamos feito bem mais que
aquilo. Sem graça com seu desconforto, soltei seu pulso, esboçando um
sorriso amigável para ela. Liah entrou no carro, puxando o cinto sobre seu
corpo. Entrei logo em seguida, pensando numa forma de amenizar o clima
desconfortável.
— Viu Liah? — Busquei seus olhos, esperando encontrar uma recepção
menos desconfortável neles. — Também sei fazer boas ações — brinquei,
recebendo um sorriso verdadeiro em troca.
— Tem certeza que isso não é um plano para me abandonar numa rua
escura e deserta de novo? — Seu olhar apertado em minha direção e o
sorriso leve, trouxeram a tranquilidade que eu precisava.
— Depende — avisei enquanto saia com o carro da vaga em direção à
estrada que levava ao Centro da cidade. — Você ainda acha que vou para o
inferno?
Liah sorriu, puxando seu lábio inferior com os dentes. Precisei sacudir a
cabeça para retomar meu foco na estrada.
Maldita hora que decidiu beijá-la. Você é um idiota Nathan.
— Não acho que vai ser necessário ir atrás de você lá. Mas minha
ameaça continua valendo, se algo acontecer com a Triss, te acho aonde quer
que seja. — Seu tom de voz autoritário e mandão me fez sorrir.
— Não acho que vai ser necessário — reclamei de sua ameaça. —
Embora eu consiga pensar em algumas dezenas de pecados na minha lista.
Alguns segundos de silêncio se seguiram até que Liah se sobressaltou no
banco do carona, virando seu corpo de lado em minha direção.
— Você não acha que o que vale é a intenção?
Olhei confuso para o lado, alternando a atenção entre ela e a estrada
escura.
— Sobre os pecados de cada um. Às vezes a gente comete erros sem
intenção — explicou.
Entendi que ela se referia ao erro dela; a noite em que julgou errado o
que acontecia e culminou em mais desgraça na minha vida. Talvez eu
estivesse superando tudo melhor que ela.
— Na minha cabeça, funciona como se fosse uma lista de pontuação…
— mantive meus olhos na estrada enquanto falava. — Tipo, se você mata
alguém, o pecado vale mil pontos, e se você… sei lá… trata alguém mal,
vale dez.
Liah tornou a virar seu corpo para frente, levantando os dedos como se
os usasse para contabilizar algo.
— Acho que eu te tratei mal mais de cem vezes. Isso quer dizer que
tenho uma bagagem de pecado maior do que um assassino? — Seus olhos
aterrorizados encontraram os meus. Não consegui segurar uma gargalhada.
— Liah, você sabe que isso é só uma coisa louca que criei na minha
cabeça, né? — avisei, sacudindo a cabeça para seu desespero. — Se Céu e
Inferno existem mesmo, provavelmente não é assim que decidem pra onde
cada um vai.
— Será que o arrependimento atenua a pena? — sua voz soou tão baixa,
a ponto de me questionar se ela queria mesmo que eu escutasse aquilo.
— Não tenho dúvida disso — respondi mesmo sem a certeza de que o
questionamento era para mim. — Eu também acho que o que vale é a
intenção.
Liah virou seu rosto em direção a sua janela, parecendo disposta a
encerrar o assunto, mas uma curiosidade sobre ela me fez estendê-lo um
pouco mais.
— Tirando seus maus tratos recorrentes comigo… — provoquei. —
Quais são os pecados na sua lista? Duvido que você tenha uma pontuação
alta. — Liah me encarou antes de responder.
A garota parecia relutante em querer falar. Mantive o silêncio, sem
querer pressioná-la, mas alguns segundos depois, Liah resolveu falar.
— Pequenas mentiras que crianças contam… — ela deu de ombros
pensando em seus pecados. — Vivia desobedecendo minha avó depois que
minha mãe morreu; pensamentos ruins sobre algumas pessoas… — seu
semblante se tornou mais sombrio antes de continuar. — Eu já desejei a
morte de alguém um dia, de uma maneira bem dolorida. E acho que nunca
me arrependi disso.
Eu sabia de quem ela estava falando. Eu entendia a dor dela, desejei que
ela mesma nunca tivesse existido até pouco tempo atrás. A diferença é que
eu me arrependia. A ONG foi a única coisa que iniciou meu processo de
cura, e se Liah não tivesse aparecido novamente em minha vida, eu nunca
teria começado a melhorar.
O clima havia pesado de novo; era sempre assim com Liah. Era estranho
como a gente acabava se abrindo um com o outro, estávamos até nos
beijando ultimamente, e de repente o clima leve havia virado um clima
merda.
— Sexo antes do casamento — falei, na tentativa de abrandar a tensão.
Liah apertou os olhos e um pequeno sorriso nasceu em sua face enquanto
os vincos em sua testa diminuíam.
— Você está falando de você ou de mim? — um sorriso divertido
iluminando seu rosto.
— Estava falando de mim, mas serve para você também. A não ser que
me diga que é virgem — provoquei.
Me arrependi no segundo seguinte pela brincadeira, ao pensar que eu
tinha aquela resposta. Ela não era virgem, e era num contexto nada bom.
— Desculpa, eu sou um idiota! — pedi alarmado, me sentindo
envergonhado pela minha falta de cuidado.
— Você acha mesmo que isso é pecado? — Liah riu, me fazendo respirar
mais aliviado por ela entrar na brincadeira.
— Se for, eu estou muito ferrado — constatei. — Minha tia acha que é.
Ela não me enche o saco por isso, porque sabe que é uma causa perdida,
mas não esconde que não concorda — completei, explicando o assunto
repentino.
— Minha avó era super católica, mas não perdia a chance de se insinuar
para os homens. Acho que ela nunca enxergou isso como pecado. — Liah
sorriu com a lembrança da avó.
Sorri em resposta, lembrando dos comentários de Sylvia na primeira
reunião que tivemos. Mas eu tinha quase certeza que ela fez aquilo de
propósito.
Estacionei o carro na Quinta Avenida, em frente a loja Vittorino.
— Te espero aqui — avisei, liberando a trava da porta do carro.
— Devo demorar. — Seus olhos receosos indicavam que não era apenas
um documento o que ela veio buscar.
— Esse lado do Centro é bem escuro e deserto a essa hora. Eu não vou te
deixar aqui. — Cruzei meus braços, encarando o rosto vermelho da garota.
— O que você veio fazer aqui, de verdade?
— Quem é que tá sendo intrometido agora?
— Vai ver é contagioso. Não vou sair daqui até te levar em segurança
para o seu hotel.
— Droga! — Liah virou o rosto para a calçada, buscando alguma saída.
— Você não se preocupou aquele dia quando me deixou sozinha.
E todo mundo ficou puto com isso. Até eu fiquei com puto com isso.
Saí do carro dando a volta e abrindo a porta dela.
— Vou esperar aqui até você sair — sentenciei.

— Eu tenho alergia — reclamei pela terceira vez, esfregando meu nariz.


Liah tinha me contado sobre a ideia do advogado de encontrar qualquer
prova que incriminasse os caras que chantageavam sua avó. Sinceramente,
duvidava que ela encontrasse qualquer coisa naquela loja; esse tipo de gente
não deixava evidência assim. Se fosse algo tão óbvio, Carl já teria
encontrado.
Estávamos em uma sala lotada de papéis no andar de cima da loja. O
lugar pequeno tinha apenas um basculante mínimo e a iluminação fraca.
Aquele lugar fedia a poeira.
— Foi você que quis fazer isso junto comigo — Liah respondeu irritada.
— Olha, eu sei que essa coisa de ser intrometida está na sua natureza de
alguma forma, mas a chance de você encontrar algo aqui é ínfima — avisei,
pegando mais uma caixa em cima da estante de ferro. Uma crise de espirros
me alcançou. — O que você acha que ela poderia guardar aqui? Um recibo
assinado a mão?
Ergui uma sobrancelha para ela, tentando fazê-la perceber o quão
ridículo era aquilo.
— Estou tentando começar por algum lugar, Nathan! Se eu não tentar,
como vou ter a chance de reverter isso?
Liah revirava mais uma pilha de papéis, olhando minuciosamente cada
um deles, enquanto eu espirrava a cada dez segundos. Rendido, puxei a gola
da camisa cobrindo meu nariz. O cheiro do meu perfume era bem melhor
que aquilo.
— Nathan, me ajuda aqui. — Ela estava tentando abrir uma escada de
alumínio que parecia emperrada.
Fui até ela mantendo a blusa segura no meu nariz. Seus olhos focaram na
minha barriga; olhei na mesma direção que ela e percebi que a blusa havia
subido um pouco quando cobri o nariz, deixando a pele da minha barriga
exposta perto do cós da calça. Apertei os olhos em sua direção.
Ela estava mesmo me secando daquele jeito?
Não consegui conter um sorriso descarado quando ergui uma
sobrancelha para ela. Liah desviou os olhos sem graça, com o rosto
vermelho, apontando a escada em suas mãos.
— Vai me ajudar?
A estudei por mais alguns segundos antes de tirar a escada das mãos dela
e colocar mais força para abri-la. Testei os degraus que pareciam bem
frágeis e bambos.
— O que você quer pegar? — perguntei, já subindo os primeiros degraus
quando senti Liah puxar minha camisa para baixo.
— Eu vou subir — avisou, empurrando meu corpo da escada. — Vou
abrir o cofre da vovó lá em cima, e não vou te passar a senha dele.
— Tem um cofre lá em cima? — Olhei para a prateleira mais alta
desesperado, e só via mais caixas empoeiradas.
Essa poeira vai acabar comigo!
— Atrás da caixa — explicou enquanto começava a subir nas escadas. O
alumínio velho sacudia mais a cada degrau que ela subia. — Pode segurar a
escada?
— Você está de vestido — acusei.
— Estou pedindo para você segurar a escada, não para olhar embaixo do
meu vestido — advertiu.
Gostosa desse jeito? Impossível!
Irritado, me aproximei e segurei as laterais da escada, tentando manter
meus olhos no chão, mas era tão difícil quanto estava sendo manter minhas
mãos longe do corpo dela ultimamente.
Lembrei de Triss me dizendo que quando eu percebesse que ela não
tinha culpa do que aconteceu, eu poderia conhecer um lado de Liah que me
surpreenderia. Mas Liah me surpreendia mesmo antes de eu entender isso.
A forma como comecei a reparar nela era diferente de tudo que já tinha
vivenciado.
Normalmente, quando eu olhava para uma mulher, reparava se ela era
gostosa e se tinha um rosto bonito. Escroto, eu sei. Mas o que vinha me
chamando atenção em Liah eram outras coisas. Não que ela não fosse
bonita e gostosa; porque era. Muito! Mas a bondade que brilhava em seus
olhos, repletos de amor por aquelas crianças, a forma como ficava vermelha
em quase qualquer ocasião que conversávamos, o tom alegre que usava
para falar da ONG, ou o jeito irritado que tinha para brigar comigo, eram as
coisas que estavam acelerando meu batimento cardíaco nas últimas
semanas. Sem falar na porra dos beijos que trocamos do nada, ultimamente.
— Eu tô descendo. — Distraído com meus pensamentos, olhei para cima
no mesmo segundo que Liah olhou para baixo. — Que merda Nathan. Você
ficou olhando esse tempo todo?
— Olhei para cima agora. E Nem dá pra ver nada. — E não dava
mesmo.
Nathan, você precisa por a cabeça no lugar. Vocês não se gostam. Isso
aqui é só cordialidade.
Liah me encarou carrancuda enquanto largava a pasta que tirou do cofre
em cima da mesa.
— Acho melhor eu enfiar isso em uma sacola e abrir só no hotel. Tem
mais poeira aqui do que nessa sala toda.
Concordei vendo a camada cinza que cobria o material de plástico.
Ela passou por mim, saindo do cômodo em direção às escadas. Segui a
garota, desesperado para respirar um ar livre de poeira. Enquanto ela
pegava algumas sacolas para colocar a pasta, eu me enfiei no banheiro
lavando o rosto para tirar os resquícios daquele pó fino do meu rosto e das
minhas mãos.
— Acho que chega por hoje — Liah avisou encostando na porta do
banheiro. Olhei meu reflexo no espelho, mas outra imagem projetada ali
chamou minha atenção. Eu podia ver o balcão daqui.
— Liah, você tem as senhas dos computadores? — perguntei enquanto
saia do banheiro e pegava a chave da loja largada em cima do balcão.
Busquei o laptop no carro torcendo para ter um cabo USB naquela loja.
— O que você vai fazer? — Liah perguntou confusa enquanto me via
revirar as gavetas e os armários embaixo do balcão.
— Tem algum cabo USB aqui? — pedi ligando meu laptop e o
computador da loja.
— Você vai hackear o sistema?
Mesmo assustada, Liah abriu um armário mais para o lado e tirou um
cabo de lá.
— Teoricamente, esse sistema é meu. Eu tenho acesso a ele — informei,
conectando o cabo às duas máquinas. — Faria muito mais sentido achar
algo aqui.
— No sistema? — Liah suspendeu o corpo com os braços, sentando-se
no balcão da loja.
— Não no sistema exatamente. A loja tem algum e-mail? Você tem
algum e-mail pessoal da sua avó?
— Isso não é hackear? — sua voz divertida indicava que ela gostava da
ideia.
— Não se você me autorizar.
— Isso vai ser divertido — Liah sorriu buscando seu celular na bolsa. —
Vou pedir comida, você quer?
— Pode ser. Deve demorar um pouco aqui.
Liah pediu comida japonesa. Passamos os próximos trinta minutos
comendo enquanto ela me contava sobre sua mãe e como as duas eram
amigas antes dela morrer. Também contei a ela sobre a relação que tinha
com minha tia, e sobre a ausência de uma relação com Elise.
Quando terminamos, Liah juntou o lixo em uma sacola enquanto eu
continuava minha busca no computador.
— Nada ainda? — a garota perguntou impaciente.
— Nada que possa ser usado — suspirei enquanto tentava pensar numa
forma de ajudar. — Ela tinha algum computador pessoal?
— Se ficar entre a gente, deixo você acessar o laptop e o celular dela.
Estou com eles ilegalmente, escondi dos policiais que levaram tudo naquele
mandado de busca — Liah ofereceu.
Olhei para ela surpreso. Nunca imaginei que Liah teria coragem de fazer
algo assim.
— Como conseguiu fazer isso? Eles devem ter vasculhado tudo na ONG
e nas empresas. — perguntei curioso.
— Estavam na pasta que carrego comigo. Deixei na viatura do seu tio
quando chegamos na ONG e peguei depois que todos os oficiais foram
embora. — contou orgulhosa.
— Tô impressionado, Liah, preciso confessar — disse desligando os
computadores. — Quando quer fazer isso?
— Amanhã? — Seus olhos buscaram os meus. Aquela conexão estava
ficando cada vez mais forte entre a gente.
— Como amanhã o pessoal não vai se encontrar no Republic, passo a
noite no hotel, ok? — propus.
— Combinado! — Liah sorriu, balançando os pés suspensos. —
Obrigada pela ajuda hoje, Nate!
Nate!
Liah nunca tinha se dirigido a mim pelo apelido mais curto e íntimo. Não
consegui conter um sorriso enquanto terminava de guardar o laptop na case.
Fizemos muito progresso desde que decidi cuidar da Triss. Deixei meus
olhos buscarem a figura pequena e sorridente sobre o balcão.
Liah tentou descer com dificuldade, puxando o vestido para que o tecido
não ficasse preso entre o mármore branco e a carne de suas coxas, o que
deixaria grande parte de sua pele à mostra.
— Quer ajuda? — ofereci, rindo de seu desespero.
Antes que pudesse responder, fui até ela encaixando minhas mãos em
sua cintura pequena e sustentando seu corpo com os braços para colocá-la
no chão.
Quando seus pés tocaram o piso, o espaço entre o corpo dela e o meu era
quase inexistente. Eu não calculei mal o espaço; foi de propósito, embora
inconsciente. Liah soltou um pequeno arquejo quando meus olhos focaram
nos dela.
O calor insistente em minhas mãos me fez perceber que eu ainda não
havia soltado sua cintura. Eu queria beijá-la de novo, mas combinamos de
não deixar mais que isso acontecesse. Mesmo assim, aquela vontade
latente…
Meu coração disparou enquanto uma eletricidade desconhecida varreu
meu corpo. Subi uma mão para seu pescoço, encaixando-a por baixo dos
cabelos loiros sobre seus ombros. Meus olhos focaram em seus lábios
vermelhos e entreabertos, enquanto acariciava sua bochecha com o polegar.
— Nate… — Liah engoliu seco enquanto minha mente processava o
som do meu nome daquela forma saindo dos lábios dela. Porra. — Você
acha que é pecado desejar alguém que não deveria?
— Se for, eu também estou pecando pra caralho agora! — Minha voz
soou tão rouca, que era quase irreconhecível.
Quando os olhos de Liah focaram na minha boca, entendi como um
consentimento de sua parte, e finalmente colei meus lábios nos dela.
12 de julho de 2019

Deus! Nate estava me beijando.


EU estava beijando Nate de volta.
De novo.
Os primeiros segundos em que seus lábios grudaram nos meus, foram
totalmente sem reação da minha parte, até que sua língua atrevida
invadindo minha boca, me despertou do estado de torpor. Meu corpo passou
a responder, quase que automaticamente, a cada movimentação dele.
Mesmo dispersa e absorta no beijo envolvente, conseguia sentir cada
detalhe daquele momento. Sua língua se movimentava de uma forma
totalmente pecaminosa contra a minha, deixando um rastro gostoso de
maracujá do suco que bebemos.
Aquele beijo já era quase conhecido.
Nathan pressionou ainda mais meu corpo contra o balcão, enfiando uma
perna no meio das minhas. Sua mão apertando minha cintura enquanto
mantinha minha cabeça segura para seu acesso.
A maneira como segurava meu cabelo, entrelaçando os dedos entre os
fios da minha nuca, o leve puxão para manter meu rosto com acesso
perfeito a ele, a forma como seu corpo se moldava ao meu a cada respiração
descompassada… tudo isso estava me levando à loucura.
Aquele homem, definitivamente, sabia como pegar uma mulher. Percebi
isso no primeiro segundo que me beijou no Republic semanas atrás, ainda
que minha experiência fosse completamente limitada.
Sem controle sobre meus atos, minhas mãos embrenharam-se pelos fios
sedosos do seu cabelo, tentando ao máximo colar nossos corpos ainda mais.
Um arquejo totalmente descompassado escapou dos meus lábios quando
Nathan soltou minha boca, enganchando as mãos na minha cintura e me
colocando sentada novamente sobre o balcão. Dessa vez, fiquei um pouco
mais alta que ele, embora ele tivesse muito mais acesso à carne exposta das
minhas coxas.
Como se pedisse autorização, Nate me lançou um olhar profundo,
tentando buscar uma resposta no fundo da minha alma. Um arrepio
percorreu minha espinha quando ele levou os olhos para baixo, subindo
meu vestido pelas coxas.
— Sei que a gente combinou de não deixar mais isso acontecer, mas se
você não disser não, eu não vou conseguir parar — avisou passando a
língua pelos lábios.
— Você quer que eu diga não? — provoquei, sabendo que nada poderia
nos parar agora.
Não dessa vez.
Ainda que algo insistisse em me puxar para o buraco fundo do medo, eu
sabia que não tinha mais volta agora. Não quando meu corpo inteiro gritava
pelo toque dele.
Um sorriso malicioso surgiu no canto de sua boca quando subiu a mão
direita para minha bochecha e acariciou levemente meus lábios com o
polegar. A mão esquerda entre minhas pernas, passeando com a ponta dos
dedos sobre o interior da minha coxa, cada vez mais para cima.
Aquele carinho leve, provocativo, arrepiava cada canto da minha pele.
— Não gosto desse joguinho de quero e não quero. Se eu subir mais a
mão, tenho certeza do que vou encontrar, e acho que isso é mais do que uma
resposta positiva pra mim. — Seus olhos desceram novamente, enquanto
seus dedos beiravam as bordas da minha calcinha. — Vai dizer sim agora,
ou preciso conferir aqui pra saber?
Nathan raspou os dedos pelo tecido encharcado que nos separava,
evidenciado o aqui. Um sorriso ladino e vitorioso apareceu em seu rosto
lindo enquanto seus olhos escureciam ainda mais.
— Acho que vou deixar você conferir.
Mordendo os lábios para sua provocação, abri mais ainda as pernas sobre
o balcão e joguei a cabeça para trás, apertando meus olhos.
Eu devia estar ficando louca. Não era uma decisão normal; deixar que
ele me tocasse assim. Mas esse era o efeito que Nathan tinha me causado
desde que me beijou no Republic pela primeira vez.
Um desejo absurdo consumiu meu corpo, me fazendo desejar o tipo de
toque que me afetava num lugar tão escuro, que era sufocante.
Mas não agora.
Não com ele.
Nathan me fazia querer e não ser levada para aquele buraco sem fim.
— Você é gostosa demais para o seu próprio bem — sua voz me fez
subir o rosto para olhá-lo.
— Desde quando me acha gostosa?
Não era uma provocação. Era realmente a curiosidade de saber em que
momento ele havia me notado. Até porque nos odiávamos há apenas alguns
dias. No entanto, ficou evidente na forma que seu olhar escureceu e no
pomo de adão que se moveu numa engolida dura dele, que Nathan entendeu
como uma.
— Desde o dia que fiz a merda de te beijar no Republic. Não consigo
mais tirar seu cheiro e o gosto da sua boca da minha cabeça. — Ele enrugou
a testa, como se lembrasse de algo e então sorriu abertamente. — Isso é
uma grande mentira minha. Te acho gostosa desde o dia que te vi pela
primeira vez naquele bar e precisei te odiar pelo que tinha me causado.
Soltei uma risada nervosa, entendendo que ele não havia dito aquilo para
começar uma briga. Era como se ele só quisesse desabafar sobre um
conflito que o tomava tinha tempo. Assim como me tomava.
— Não me odeia mais?
Agora era, de fato, uma provocação, e nem preciso dizer que me
surpreendi com a facilidade com que a frase saiu de mim, ainda olhando em
seus olhos, sorrindo de um jeito que não me pertencia.
— Te odeio ainda mais por me fazer desejar te foder aqui, em cima desse
balcão.
Meu Deus! Era isso que eu podia sentir? Era isso que estava perdendo
esse tempo todo? Podia ser bom?
Fechei os olhos, me deliciando com a corrente elétrica que percorreu
meu corpo, me esquentando até morrer no baixo ventre. Me fazendo
contrair de desejo.
— Nathan… eu… — eu queria dizer a ele, queria explicar, mas a bola
intragável e amarga na minha garganta não me deixava cuspir aquelas
palavras.
— Você?! — incentivou, voltando a passear com a ponta dos dedos pela
minha calcinha molhada.
Foda-se!
Eu o queria tanto. Por isso decidi me permitir.
— Me beija! — pedi, soltando o ar com força.
Nathan sorriu uma última vez para mim antes de colar os lábios de novo
nos meus. Dessa vez, seu corpo estava totalmente encaixado no meu.
Minhas coxas apertavam sua cintura, buscando uma fricção quase
impossível pela posição que estávamos. Seus lábios desceram pelo meu
maxilar, deixando pequenas mordidas pelo caminho até meu pescoço. Meus
arquejos estavam se tornando pequenos gemidos, e pareciam incentivar
cada vez mais Nathan em sua missão de me torturar.
Disposta a também participar da brincadeira, puxei sua camisa para
cima, tendo ajuda dele para se livrar da peça. Beijar Nate era bom.
Beijar Nate sem camisa, era ainda melhor. Sua pele estava quente como
a chama da fumaça vermelha desenhada em suas costelas. Aqueles
desenhos o deixavam ainda mais apelativo.
Os braços fortes e musculosos pareciam conseguir envolver meu corpo
inteiro de uma só vez. Ele era bem grande perto de mim. Suas mãos,
espalmadas em minhas coxas, apertavam uma grande quantidade de carne.
Nathan envolveu o braço grande em minha cintura, me impulsionando
para cima para puxar o tecido preso embaixo de mim, e o levantou até a
cintura. Em meio segundo o vestido já passava pelos meus braços, deixando
meu corpo. Seus olhos quentes e extremamente azuis me varreram,
analisando cada parte minha.
Me senti exposta, invadida, com medo.
Era um muro inteiro desmoronando, levando todas as minhas barreiras e
proteções. Ele estava invadindo um espaço que ninguém nunca havia
estado.
Algo em seus olhos e no sorriso compreensivo que me lançou, me fez
perceber que ele entendia, que ele sabia.
Sem tirar os olhos dos meus, Nate desabotoou meu sutiã, deixando que
ele caísse no chão. Senti meus mamilos endurecerem ainda mais, se é que
era possível. Meu coração disparou quando seu polegar passou levemente
por um deles, me fazendo ter a certeza de que a forma como me olhava,
deveria ser crime.
Seus dedos beliscaram de leve um dos mamilos e precisei morder os
lábios com mais força para conter um gemido alto.
Todas aquelas sensações eram novas demais. Conflitantes. Eu precisava
me segurar a todo segundo para que não fosse lançada de novo para o
buraco escuro. Mas seu sorriso e o jeito doce que me olhava, funcionavam
como uma corda de resgate para o meu desespero.
— Você tem ideia do quanto é linda? — Tive dúvida se ele perguntava
realmente para mim, já que seus olhos nunca deixaram meus seios. — Eu
realmente não queria, mas se eu não fizer isso aqui agora, provavelmente
vou entrar em combustão.
— Não precisa se explicar.
— Preciso! Você nunca fez isso, não é? — Seus olhos me alcançaram,
penetrando minha alma. — Quero dizer… você nunca esteve com alguém
consentido…
— Não fala disso — o interrompi, com medo de que toda minha
coragem fosse embora. — Nunca consegui chegar tão longe, por favor.
Meu peito subia e descia numa respiração intensa diante do olhar
acolhedor dele. Nathan ia desistir, podia ver a decisão se formando em seu
cérebro.
— Acho melhor a gente não…
Travei meus pés em volta de sua cintura, impedindo-o de se afastar de
mim.
— Não desiste agora — pedi, passando meus braços em volta de seu
pescoço. — Preciso mesmo de você. — Olhei em seus olhos, sentindo toda
a tensão que nos rondava há dias se dissipando à medida que íamos nos
perdendo um no outro. — Dentro de mim! — completei.
Nathan respirou fundo, seus olhos brilhando por um acúmulo de
lágrimas repentinas.
— Aqui? — Um vinco se formou em sua testa enquanto varria o salão da
loja.
— Você disse que queria me foder aqui, nesse balcão. Eu quero, Nate.
Quero você de um jeito que nunca quis ninguém na vida. Quero que você
consuma meu corpo e minha alma. Preciso me libertar disso.
Mais uma vez me surpreendi em como foi fácil deixar que a afirmação
saísse de mim.
— E você vai entregar sua única chance de primeira vez pra um cara que
você odeia?
— Odiando ou não, você foi o único cara que já me fez pulsar desse
jeito.
— Porra, Liah! — Nathan suspirou, e algo no seu olhar mudou. — Juro
que estava tentando ser cavalheiro com você. Mas, você desperta coisas em
mim que nem eu entendo.
No segundo seguinte senti o puxão sobre minha pele e olhei em choque
para a calcinha rasgada em suas mãos.
— Merda! — esbravejou, me olhando ressentindo, arrependido. — Não
quero ser um ogro com você.
— Por que rasgou minha calcinha? — perguntei sorrindo. — Não quero
que seja gentil comigo. Quero que seja quem você é, sem ressalvas, sem
máscaras.
Depois disso, as coisas acontecerem rápido demais. Nate se debruçou
sobre o balcão, alcançando sua carteira ao lado do computador e tirando um
pacote de camisinha de lá. Acho que foram menos de quinze segundos até
que ele estivesse colocando a camisinha nele próprio.
Minha boca salivou quando o vi descer a calça e a cueca. Tudo nele era
grande. E isso me assustava.
Era a primeira vez que eu via, de fato, um homem totalmente nu. Claro
que já tinha visto em filmes e vídeos, mas ao vivo, era totalmente diferente.
A expectativa de ser tomada por ele era surreal, mas ainda para me
torturar, Nate alinhou seu pau em minha entrada e antes de se mover, levou
seus dedos aos cabelos na minha nuca, enrolando a mão e puxando minha
cabeça para trás.
Porra, isso é tão bom.
— Sem ressalvas? Certeza?
— Anda logo, Nate, por favor! — choraminguei, sentindo ele se esfregar
em mim.
— Olha pra mim — exigiu, forçando um pouco mais minha cabeça para
trás. Daquele jeito, ele poderia mover minha cabeça em qualquer direção.
— Quero olhar pra você quando entrar.
Um gemido mais alto escapou da minha garganta. Esse jeito mandão
dele era delicioso.
Nate forçou seu corpo, entrando em mim da forma mais lenta possível.
Foi bom para me acostumar com seu tamanho grande, mas eu sabia que ele
só tinha feito daquele jeito para não me machucar, para não me assustar.
— Se precisar, é só dizer não e eu vou parar. Você sabe, não sabe?!
Assenti, me concentrando no movimento gostoso de nossos corpos.
Era desconfortável, mas só no início. Nos primeiros segundos, o prazer
era mais pela ideia do que estávamos fazendo do que pelo atrito de nossos
sexos. Mas não levou muito tempo até que eu estivesse acostumada.
Ainda me olhando nos olhos, ele começou um vai e vem lento e firme.
Gemidos mais altos começavam a escapar à medida que ele ia aumentado o
ritmo. Sua respiração estava tão alterada quanto a minha.
Sorri, sendo inundada pela vontade de chorar. Chorar pelo alívio, chorar
pela queda do muro, pelo medo se esvaindo. Eu podia gostar, podia aceitar
que era bom, que Nathan não me faria mal. E principalmente, que se eu
pedisse, ele pararia na hora.
— Liah… — Nate tentou se afastar quando a primeira lágrima escorreu.
Travei meus pés de novo em sua lombar, mantendo-o preso dentro de
mim.
— Você tá me ajudando a quebrar um muro de anos — avisei, segurando
seu rosto entre minhas mãos. — Só continua, por favor. Eu nem acredito
que isso pode ser bom.
— Pode — sua voz atravessou meus ouvidos, baixa e rouca, deixando
um beijo plantado atrás da minha orelha. — Pode ser muito bom.
Seu polegar limpou a lágrima solitária e então deixou um beijo cálido
sobre o lugar onde a gota salgada esteve segundos antes, descendo seus
lábios abertos até alcançar meu pescoço, distribuindo beijos de boca aberta,
deixando toda minha pele arrepiada.
Minha alma também.
Cada beijo era um fôlego para o pedaço quebrado, me fazendo subir à
superfície e respirar finalmente aliviada.
— Juro que vou fazer ser bom, Liah! — subiu o pescoço para me olhar
nos olhos. — Juro que vou fazer você se sentir bem.
— Só continua… — minha voz não passava de um fio sufocado.
Era ridículo o quanto eu estava excitada com ele. Fora de mim, joguei a
cabeça para trás, sentindo seus lábios explorarem toda a pele do meu
pescoço enquanto mantinha o ritmo com que entrava em mim. Acelerando e
diminuindo toda vez que eu chegava perto de explodir.
— Você é linda! — voltou a dizer no meu ouvido, sua voz rouca me
fazendo ficar inteiramente arrepiada. — Perfeita! — soltou antes de prender
meu lóbulo entre os dentes suavemente. — Tudo que você merece é ser
adorada — sua língua agora desenhava círculos de fogo na curva do ponto
onde meu pescoço encontrava minha mandíbula. — Cuidada!
Suspirei, espremendo meus dedos entre os fios do seu cabelo, tentando
me ancorar em qualquer parte dele que me fizesse continuar lúcida, porque
tinha a impressão de que poderia morrer a qualquer momento.
— Sem ressalvas — disse em seu ouvido, ao perceber que ele mantinha
por tempo demais o ritmo leve, voltando para dentro de mim com certo
cuidado, travando seus movimentos. — Eu quero você inteiro.
Seus dedos voltaram a se fechar nos cabelos da minha nuca, e com um
puxão firme, Nathan me afastou um pouco dele, buscando meus olhos.
Uma estocada mais forte me atingiu, me fazendo gemer mais alto. Porra!
Fechei meus olhos com força, absorvendo o que podia, quase não
conseguindo lidar com toda aquela intensidade.
— Se for demais, me avisa? — Nathan pediu enquanto voltava para
dentro de mim mais uma vez, com ainda mais força.
Porra!
Ele fez de novo. De novo. E quando fez a terceira vez, eu já não podia
mais conter meus gemidos.
— Liah! — chamou minha atenção, puxando a raiz dos meus cabelos
com mais força. — Promete que vai dizer…
— Eu vou… — disse sobre minha respiração cortante.
Nathan aumentou o ritmo, extinguindo qualquer intervalo entre suas
investidas, e parecia que eu ruir, porque o muro não existia mais, o medo
não existia mais. O lugar escuro, agora, era pacífico, quente, aconchegante.
Tudo se tornou tão intenso, que em pouco tempo eu já sentia um
orgasmo intenso se aproximar. As contrações dos meus músculos internos
ficaram mais fortes, me fazendo senti-lo ainda mais fundo em mim.
— Sou o primeiro homem a te fazer gozar, e vou fazer isso tão gostoso,
que nunca mais vai esquecer de mim, Liah! — disse, me obrigando a
manter a visão sobre ele. — Vou te fazer lembrar de mim para o resto da
sua vida.
Sua mão desceu entre nossos corpos, encontrando o nervo sensível acima
do meu canal estreito. Seus dedos pressionaram um pouco, me fazendo
engasgar com um gemido estrangulado, as ondas de prazer aumentando a
medida que ele circulava meu clitóris, cuidando de mim, fazendo ser bom,
cumprindo sua promessa de que eu jamais me esqueceria dele.
— Nathan…
— Isso, Liah! — Como se quisesse me quebrar, passou a investir ainda
mais forte, enquanto eu me sentia latejar ao redor dele.—– É desse nome
que você tem que lembrar. Goza pra mim, linda!
A espiral que me tomou fez a minha visão ficar turva, meu coração
disparando enquanto o ar se tornava quase inexistente em meus pulmões.
Ainda consegui ver um sorriso divertido brincar nos lábios dele antes de
fechar os olhos e me entregar totalmente à sensação e à dormência do meu
clímax. Nathan não parou até que ele também tivesse seu ápice, o que não
levou mais do que alguns segundos após o meu.
Seus braços me mantiveram segura até que minha respiração se
acalmasse e eu finalmente pudesse me firmar sozinha, e logo que me
deixaram, meu corpo reclamou pela falta do calor.
— Isso foi intenso — disse ao se afastar para sentar na cadeira ao lado
do balcão.
— É. Foi! — confirmei, vendo-o tirar a camisinha e subir novamente a
calça.
— Te machuquei? — Ele subiu um olhar preocupado para mim, me
analisando descer do balcão.
— Não — neguei, sem poder conter um sorriso divertido. — Eu nunca
estive com outro homem antes, mas tenho meus brinquedos. — Avisei a ele,
querendo que ele entendesse que não me machucaria.
— Não fisicamente — seus olhos fugindo de mim. — Estar com outro
homem… isso não deveria te fazer lembrar de coisas ruins?
Deveria. Sempre lembrava. Por isso não conseguia ir tão longe nunca.
Mas com ele tudo era diferente. Com Nathan eu queria, desejava, perdia o
medo.
— Vamos fazer um acordo? — propus, chamando sua atenção para mim.
— Aconteça o que acontecer, não vamos falar sobre o que aconteceu
comigo.
Um aceno leve de cabeça indicava que ele havia entendido o recado.
— Fui seu primeiro?! — A constatação dele foi uma surpresa para ele
próprio. — Acho que a gente está se odiando do jeito errado — Nate
arqueou as sobrancelhas, me pressionando a falar sobre aquilo.
— Nathan! — repreendi, me sentindo envergonhada pela intimidade
repentina entre a gente. — Meu Deus, a gente se odiava uns dias atrás.
Como chegamos tão rápido ao ponto de transar no balcão da loja da
minha falecida avó?
— Pois é, estou pagando minha língua — Me mostrou a calcinha rasgada
caída no chão. — Acho que você não vai conseguir vestir isso de novo.
Suspirei, finalmente saindo de onde eu estava e pegando o vestido
largado sobre o chão. Meu corpo ainda pulsava, sentindo o toque dele
marcado na minha pele.
Provavelmente eu nunca mais me esqueceria dele na vida. Não depois de
tê-lo permitido me marcar daquela forma.
Talvez essa tenha sido a maior loucura que já fiz na vida. Primeiro,
sempre achei que nunca transaria num primeiro encontro. Segundo, a gente
nem podia chamar aquilo de encontro.
— Nathan… — comecei, incerta do que falar para que não ficasse um
clima estranho entre a gente.
— Preferia quando estava me chamando de Nate — interrompeu,
sorrindo de lado para mim.
— Ok, Nate… — Sorri de volta, passando o vestido pela minha cabeça.
— A gente precisa falar sobre isso?
— Você quer falar sobre isso? — Nathan também vestia a camisa
enquanto me respondia.
— A gente não pode só aceitar que aconteceu?
Eu realmente não queria falar.
— Se um dia quiser falar, eu vou estar pronto pra te ouvir.
Isso queria dizer para deixar rolar ou que não ia rolar mais? De uma
forma ou de outra, não precisar falar sobre aquilo parecia bem mais atrativo
agora. Vendo a expectativa estampada nos olhos azuis, assenti de leve para
o alívio imediato dele.
— Acho melhor eu pedir um Uber aqui para ir embora — avisei,
enfiando a mão na bolsa para pegar meu celular.
Nathan bufou, revirando os olhos. Senti seus dedos longos puxando o
aparelho da minha mão sem muita cerimônia.
— Eu vou te levar, Liah, seja boazinha pelo menos dessa vez — pediu
balançado a cabeça em reprovação.
Boazinha? Sério isso? Parece que a irritação usual estava de volta.
Nathan conseguia despertar uma ira profunda em mim, mesmo depois de
termos transado loucamente no balcão da loja.
A ficha finalmente caindo. Eu não era virgem; me tiraram isso da pior
maneira possível, mas Nathan foi o primeiro homem para quem me
entreguei.
Sem ter muito para onde correr, entrei no carro ao lado dele, esperando
que me levasse de volta para o hotel. Um silêncio um pouco incomodo se
estabeleceu no início. Estava totalmente perdida nos meus devaneios, com a
cara enfiada no vidro, vendo as árvores altas passarem pela estrada quando
Nathan chamou minha atenção de volta.
— Liah. — Olhei para ele, vendo sua atenção no retrovisor do carro. —
Esse carro atrás da gente, consegue ver se tem placa?
Olhei confusa para trás, tentando enxergar o tal carro. Era um carro
pequeno vermelho, e daqui não podia ler as letras e números, mas sim, o
carro tinha placa.
— Não consigo enxergar a placa direito, mas tem sim. Por que não teria?
— franzi o cenho, ainda sem entender a pergunta dele.
Nathan manteve a atenção no retrovisor até que o carro virou a direita
numa bifurcação mais para trás, deixando somente a gente naquela parte da
estrada.
— Graças a Deus, achei que estava sendo seguido de novo — ele
respirou aliviado.
— Você foi seguido? — perguntei assustada, dando total atenção a ele
agora.
Nathan sacudiu a cabeça e ficou em silêncio por alguns segundos.
Claramente, ele não queria ter soltado aquilo.
— Fui — disse, por fim. — Naquela sexta antes da viagem, quando
estava indo para o Republic com a Evie.
— Evie foi seguida e não falou nada com a gente? Você sabe porque
seguiram vocês?
— Ela não falou porque eu pedi para não falar. Não queria preocupar
ninguém. Você já tem muita coisa na cabeça agora…
— Nathan, tem algo a ver com a investigação da minha avó? —
interrompi, começando a me sentir verdadeiramente preocupada com
aquilo. — Digo, Carlton é seu tio, certo? O advogado da minha avó já tinha
me dito que podiam ir atrás deles por isso.
Uma respiração profunda saiu dele, fazendo com que soltasse o ar com
mais força, exasperado. Ele estava relutante em falar qualquer coisa que
fosse e como se tivesse perdido alguma batalha interna, Nathan finalmente
interrompeu o silêncio.
— Eu não tenho certeza, mas acho que pode ter a ver sim. Por isso fiquei
tão preocupado quando contou que te seguiram até o hotel, quando
voltamos de viagem.
Engoli seco. Tinham me seguido até o hotel para fazer uma proposta
bizarra, seguiram Nathan e Evie sabe-se lá Deus o motivo. Eu estava
mesmo envolvida em algo perigoso?
Depois disso, o silêncio entre a gente ficou ainda mais desconfortável.
Eu queria perguntar mais sobre o que aconteceu, mas sabia que ele estava
totalmente desconfortável em falar sobre aquilo. Fiquei remoendo minha
curiosidade até que chegamos a entrada do Hotel.
— Você vai me ajudar a achar alguma coisa amanhã? — perguntei
tímida e incerta sobre como ficaram as coisas entre a gente.
— Vou sim — Nathan me encarou por alguns segundos, aquela conexão
em nossos olhos se tornava cada vez mais forte e intensa. — Eu te mando
uma mensagem amanhã combinando direitinho.
Assenti. Eu sairia do carro como se nada tivesse acontecido? Tentei
buscar uma resposta nos olhos dele, mas Nathan parecia tão confuso quanto
eu sobre aquilo.
— Eu vou indo então — avisei, indicando a porta com a cabeça.
Nathan permaneceu me olhando, inseguro do que fazer. Decidida a evitar
mais constrangimento entre a gente, virei o corpo devagar, destravando a
porta do carro já pronta para sair.
— Espera, Liah — senti a mão quente dele segurando meu pulso. Voltei
o corpo para o carro e meus olhos para os dele. — Sei que o que aconteceu
hoje foi um passo grande pra você.Tá tudo bem? Entre a gente?
— Desconforto pós-sexo é melhor que a raiva e as brigas intensas que
tínhamos, não? — brinquei, tentando aliviar a tensão recém descoberta.
Nate assentiu devagar, abrindo um pequeno sorriso travesso. Seus olhos
brilharam de um jeito intenso, alguma coisa escondida ali, diferente do
habitual. Era difícil entender, mas poderia ficar horas olhando para ele
daquele jeito.
— A gente se vê amanhã, então — disse, esticando o rosto para deixar
um beijo casto na minha bochecha, perto demais da minha boca. Suspirei,
desejando secretamente que ele tivesse me beijado na boca mais uma vez.
Sorri para ele uma última vez antes de sair do carro. Acho que eu
dormiria muito bem essa noite, pelo menos.

13 de julho de 2019
Eu não dormi nada bem. Fiquei pensando e remoendo toda aquela
história de Nathan e Evie serem seguidos. Tive sonhos estranhos e
desconexos. Sonhei com a ONG sendo fechada, com pessoas atrás de mim,
com minha avó no meio das chamas e até com policiais batendo em todos
os meus amigos. Acho que tinha passado por coisa demais nos últimos
meses.
Quando o dia chegou, estava com um péssimo humor, nada usual para
mim. Passei toda a manhã pensando em alguma forma de me livrar
daqueles problemas, tentando arrumar qualquer coisa que me ajudasse na
investigação e me permitisse seguir minha vida. Vasculhei o computador e
o celular de vovó várias vezes, mesmo sabendo que Nathan me ajudaria
com aquilo, mas aparentemente, não tinha nada ali que pudesse me ajudar.
Logo depois do horário do almoço, recebi uma mensagem de Nathan,
perguntando a que horas poderia passar aqui para ver o computador e o
celular. Não respondi, voltando na ideia que me ocorreu mais cedo. Talvez
tivesse um lugar, o mais óbvio de todos, onde poderiam ter evidências a
meu favor.
Pensei em pedir a Nathan que me ajudasse nisso também, mas se ele
tinha sido seguido antes, podia ser agora. Digitei uma mensagem para a
única pessoa que confiava a esse ponto.

Era loucura, eu sabia. Mas precisava explorar todas minhas chances de


ter algum sucesso no processo. Vovó estava misteriosa demais antes de
morrer, me escondendo coisas, inclusive. Talvez ela tivesse mantido
qualquer prova mais próxima a ela.

Depois de confirmar para Olivia, corri para tomar um banho. Agitada,


deixei minha mente pensar em todos os lugares onde Dona Sylvia poderia
esconder alguma coisa. Se nem tudo tivesse se perdido no fogo, existia uma
chance grande de achar alguma coisa lá.
Quando estava praticamente pronta, meu celular apitou sobre a comoda
grande, corri até ele vendo a mensagem de Nathan aparecer na tela.

Eu até queria, até porque Nathan tinha muito mais conhecimento


tecnológico que eu. Mas como não achei nada na minha primeira passada
de olho, talvez aquilo pudesse esperar. Algo me dizia que a mansão
escondia muito mais coisa.
Digitei algumas vezes, apagando todo o conteúdo em seguida. Não
queria soar grossa ou parecer que estivesse dispensando-o depois de ontem.

Cap 22 d

Quando finalmente enviei a mensagem, ainda fiquei com a sensação de


que era exatamente isso que ela soava; que eu estava tentando me livrar
dele. Suspirei chateada. Eu tinha coisa demais na cabeça para pensar em
Nathan e nossa tensão pós-sexo agora.
Uma nova mensagem apitou, chamando minha atenção de volta ao visor.
Olívia estava chegando.
Calcei meu tênis, e me olhei uma última vez no espelho, antes de descer
até a entrada principal. Minha amiga já estava parada no recuo mais a
frente. Entrei no carro satisfeita pela minha decisão, embora minha cabeça
insistisse em voltar a Nathan e na ideia de que eu tinha soada como fugitiva.
— O que vamos fazer? — Olie perguntou enquanto eu puxava o cinto
sobre meu corpo.
— Vou até a mansão ver se consigo achar alguma coisa que possa usar a
meu favor no processo — contei.
Olie assentiu, saindo com o carro em direção à estrada. Terminei de
explicar minha ideia de que, talvez, vovó guardasse alguma coisa mais
próxima dela. O fogo havia se concentrado do lado direito, onde ficavam os
quartos, e embora muita coisa tivesse perdida, talvez ainda tenha sobrado
algum material no grande escritório ou na biblioteca que Sylvia vivia
enfiada em casa.
— Você acha mesmo que sua avó poderia guardar alguma prova contra
essas pessoas em casa? — Olívia perguntou desacreditada.
— Talvez, Olie. Preciso tentar todas as minhas opções.
— Mas a polícia teria levado qualquer coisa suspeita no mandado de
busca, não?
Já havia pensado nisso. Mas, por outro lado, vovó tinha seus
esconderijos, e eu conhecia grande parte deles. Preferi guardar essa
informação comigo, por enquanto.
Quando o Jeep de Olie entrou na rua arborizada que vivi durante anos,
senti meu coração apertar. A parte visível da mansão do início da rua, era
logo a parte mais destruída pelo fogo. As paredes altas e agora pretas,
tomadas pela fumaça e fogo, destruídas, os vidros quebrados, o aspecto
sinistro e sem vida do lugar. Mordi a bochecha tentando afastar as
lembranças ruins e as lágrimas acumuladas nos meus olhos.
— Está tudo bem? Quer mesmo fazer isso? — Olie perguntou ao
perceber meu corpo tenso ao seu lado.
Balancei a cabeça devagar, confirmando. Era uma chance, por menor e
mais irreal que fosse, eu ainda tinha esperança.
Soltei meu cinto antes mesmo dela estacionar em frente a porta de
entrada, quebrada na metade de sua altura. Foquei meus olhos no que era
visível através da abertura. A escada também destruída, as paredes abertas,
mostrando a fiação arrebentada.
Caminhei em passos lentos até lá, puxando a fita amarela que interditava
a porta com calma. Empurrei o que sobrou da madeira, projetando meu
corpo para dentro do que antes era um bonito hall de entrada. Respirei
fundo, inundada pelas lembranças.
— Liah — escutei Olivia me chamar baixinho. — A gente pode voltar
outra hora…
— Não — interrompi. Estava decidida a buscar alguma coisa. — Posso
fazer isso.
— Por onde você quer começar? — perguntou condescendente.
— Escritório e biblioteca lá em cima. Ela tinha alguns esconderijos —
contei, enquanto testava os degraus da escada destruída.
A madeira, apodrecida e frágil pelas queimaduras, rangeu sob meus pés.
Devagar, subi os degraus, chegando até a parte onde o fogo foi maior. O
piso de madeira já não existia mais. Os móveis, ou o que sobrou deles,
virou um amontoado de panos e madeira velha. Segui devagar pelo
corredor, sentindo os passos de Olie atrás de mim. Passei direto pela porta
do quarto à esquerda, sem me permitir ceder àquelas memórias todas.
Quando parei em frente a biblioteca, empurrei a grande porta ainda inteira.
O fogo também chegou ali, mas em menor proporção, já que só a parte
esquerda da estante de livros estava destruída pelas chamas. Tinham muitos
papéis queimados pelo chão. Logo na parede de entrada, ao lado da estante,
um grande sofá de couro preto quase virou poeira.
— Ela costumava guardar coisas importantes e dinheiro aqui. — Falei,
indo até um pedaço da estante quase intacto. Puxei a estrutura de livros
falsos, que eram, na verdade, a cobertura de um cofre embutido na parede.
— Sylvia tinha seus mistérios, não? — Olie sorriu.
Sim, ela tinha. Inclusive mistério demais no fim da vida dela. Digitei a
senha, uma combinação totalmente aleatória, feita por números que tinham
algum significado para ela. Para variar, a mulher ainda era supersticiosa. O
cofre abriu, puxei a portinha de ferro sentindo meu corpo acelerado.
Tinha um único envelope de papel pardo ali dentro. Tirei de lá, abrindo
rápido para olhar seu conteúdo. Puxei o bolo de papel, lendo as primeiras
palavras no documento da frente. Parecia um laudo de inquérito policial. O
de trás era um laudo de perícia. Joguei a folha para trás das outras, olhando
o terceiro documento. Desci meus olhos pelo papel, entrando em choque
com a foto no fim da página.
Ofegante, deixei as folhas caírem no chão ao sentir meu corpo perdendo
a força. Foi impossível segurar o choro sentido que vinha prendendo desde
que atravessei o hall de entrada.
Ela sabia?
Olie correu até as folhas no chão, olhando o conteúdo enquanto vinha até
mim.
— Liah, o que é isso? — perguntou sem entender o que exatamente
estava naquelas páginas.
Eu nunca me perguntei que fim deu minha roupa naquele dia. Tirei tudo
no banheiro do meu quarto e deixei a água me acalentar por horas. Depois
alternei minha rotina entre dormir e chorar por dias.
— Ela sabia, Olie — exclamei sentindo minhas entranhas reviradas. Meu
coração apertado, doendo.
— Sabia o que Liah? Que fotos… — Olivia parou de falar quando a
compreensão atingiu seus olhos. — Você... Você foi...
Fechei meus olhos, horrorizada com a sensação de mais pessoas saberem
sobre aquilo. A dor voltando a me atingir num lugar quebrado da minha
alma. Quando contei a Nathan sobre isso, semanas atrás, precisei de dias
para me livrar da sensação de novo. Achei que estivesse livre...
— Eu nunca contei para ela — disse, permitindo que as lágrimas
descessem em maior quantidade. — Nunca quis que ela soubesse sobre
isso.
Olivia largou os documentos sobre a madeira queimada da mesa,
estendendo seus braços sobre mim. Chorei por mais alguns minutos
abraçada a ela.
— Quando isso aconteceu, Liah? — perguntou receosa, quando
finalmente me separei dela, secando algumas gotas teimosas que ainda
rolavam pelo meu rosto.
— Quando eu tinha dezessete anos, no cemitério — contei. — Mas não
quero ter que reviver isso, Olie. Falar é difícil demais para mim.
A morena assentiu, voltando a pegar as folhas sobre o balcão. A foto
estampada naquele documento, importunando minha mente. Era a calcinha
que usei naquele dia, suja de sangue e manchada de algum reagente
químico. Olivia repassou cada uma das folhas, com calma. Até que
estendeu uma em minha direção.
— Acho que sua avó tentou descobrir quem foi. Mas o caso foi
arquivado.
O aperto no meu coração aumentou.
— Vamos esquecer isso — reclamei, retirando os papéis de sua mão e
enfiando de volta no cofre de qualquer jeito.
— Tem mais algum lugar aqui que ela possa guardar alguma coisa? —
Olie perguntou preocupada.
Neguei. Mesmo abalada pela recém-descoberta, saí da biblioteca,
seguindo mais a frente no corredor até o escritório que ela ocupava em casa.
Ali, o fogo parecia não ter chegado. Estava tudo intacto, embora revirado
pela busca que devem ter feito.
— Tem outro buraco na parede? — Olie perguntou, testando os quadros
e estantes dali.
Vovó gostava desses esconderijos inusitados. Aqui, ela tinha um fundo
secreto na mesa de carvalho antigo. Passei os dedos pela parte inferior do
tampo, sentindo o grampo que o abria. Pressionei o dedo e a parte superior
da mesa subiu. Não tinha nada. Totalmente vazio.
— Não é possível — reclamei irritada. — Vamos lá, Sylvia, sei que você
estava guardando alguma coisa aqui.
Andei de um lado a outro, tentando pensar onde mais ela poderia guardar
algo realmente importante. Encarei Olivia atordoada, sabendo que
precisaria encarar as lembranças ruins. Sai do escritório com pressa,
caminhando em direção ao quarto que ela ocupava.
Parei na porta, dando um único suspiro antes de me atrever a empurrar a
porta queimada.
Meus olhos percorreram o lugar, quase todo destruído. Cama, comodas,
poltronas, cortinas, baús... pouca coisa era reconhecível. Abri as gavetas
que sobraram, vasculhei as prateleiras quebradas do closet, as gavetas do
banheiro. Nada. Não achei nada que pudesse me ajudar. Refiz todos os
meus passos, voltando a olhar desde a primeira gaveta.
— Não tem nada aqui, Liah. — Olívia me chamou a atenção. O
desespero começando a tomar conta de mim. Eu precisava achar. Precisava
de alguma coisa.
— LIAH! — Olie chamou mais alto quando não dei atenção a ela.
Cansada, frustrada e ainda abalada pela descoberta de minutos atrás,
senti meu corpo fraquejar. Apoiei as costas na parede, escorregando até que
estivesse sentada no chão. As lágrimas escorrendo livremente, mesmo sem
permissão. Olivia sentou ao me lado, segurando minha mão com força.
— Eu preciso achar alguma coisa, Olie — chorei. Meu controle sendo
retomado gradualmente.
— A gente vai achar, Liah. A gente vai achar. Mas você precisa ter
calma. Te seguiram até o hotel aquele dia, e se te seguirem até aqui? —
ponderou preocupada. — Eu não devia ter trazido você.
— Eu já pensei em aceitar a chantagem deles — confessei sentida. —
Tenho medo que envolvam a ONG nisso, Olie. Eles estão tentando, sem
receio nenhum de prejudicar todas aquelas crianças.
— Eu sei, Liah. Mas a gente precisa ter calma, está bem? — Olie
levantou, estendendo a mão para me ajudar a levantar. — Se você acha que
pode ter algo aqui, a gente pode pedir a ajuda do Carl para investigar.
Carlton também estava sendo vigiado. O próprio Nathan me contou que
havia sido seguido, e que provavelmente, era por conta da investigação do
tio. Mas Olie não precisava de mais essa preocupação. Havia sido
irresponsável da minha parte pedir que viesse comigo aqui, já que eu podia
mesmo estar sendo seguida. Não tinha ideia do real motivo, ou o que essas
pessoas queriam, além de dinheiro, é claro.
— Você tem razão, Olie. — Sequei o restante das lágrimas. — É melhor
a gente ir embora.
Descemos os degraus devagar, ainda os escutando ranger, reclamando
pelo peso. Não consegui deixar de pensar que foi em vão. Fugi de Nathan
porque jurava que encontraria algo relevante aqui. Me senti um pouco
culpada ao pensar que estar mexida com nossa tensão pós-sexo era algo
fútil e sem importância perto dos meus problemas e da morte de vovó. Mas
por algum motivo, a decisão em vão me incomodava muito. Não queria que
ele tivesse essa impressão de mim. Se as coisas fossem mais simples,
entraria na ONG na segunda, surtando com a ideia de ter que olhar para ele
e relembrar do meu corpo colado no dele naquele balcão.
— Está longe, Liah. Está preocupada? — Olie me chamou ao abrir a
porta do carro.
Suspirei alto. Nathan tinha esse poder, de mesmo longe, me transportar
para totalmente longe de tudo. Se Olívia soubesse o que aconteceu entre a
gente, surtaria tanto quanto eu estava surtando?
— Olie, eu vou só dar uma volta na casa, tá? — pedi, desconversando e
lembrando das tardes de domingo em que caminhava com Sylvia pelo
jardim lá atrás.
Segui pela lateral do terreno, sem esperar uma resposta dela. Sabia que
ela me seguiria, de qualquer forma. Fiquei um tempo parada no jardim,
olhando cada detalhe das flores, agora mal cuidadas. Algumas ainda
brilhando, vivas e vibrantes. Outras, sem muita vitalidade. Eu quase podia
ouvir vovó esbravejando com o jardineiro sobre como ele não cuidava
direito delas, ou dava água demais, ou de menos. Sorri.
Quando finalmente estava pronta para ir embora, vi Olie estancada em
frente a uma das faixas de flores que vovó adorava.
— O que tem aqui, Liah? — perguntou curiosa.
— Não sei — corri até ela, tentando ver o que ela via. — O que é isso?
Sob as flores no chão, havia uma faixa de madeira grossa. Olivia me
olhou apertando os olhos.
— Tem uma corrente aqui — me abaixei com ela, puxando algumas
raízes com a mão. — Parece uma porta.
Era mesmo uma grande porta de madeira, cravada no chão e coberta por
flores e falsas plantações. Uma corrente grossa de ferro se estendia sobre
ela, fechada por um grande cadeado antigo.
— Você tem a chave desse lugar? — perguntou.
— Nem sabia que esse lugar existia — disse assustada.
Morei ali por toda a minha vida, e nunca reparei naquela entrada no
chão.
— Como a gente faz para abrir esse cadeado? Tem algum alicate?
— Olie, acho que um alicate qualquer não corta essa corrente. — Os elos
eram grandes e muito grossos, feitos de ferro puro. — Vamos embora,
depois penso numa forma de voltar aqui e ver isso — pedi, com medo de
que estivessem nos observando. Talvez ali, tivesse alguma coisa.
Entramos no carro quando o sol já começava a baixar no horizonte.
Olivia estava tensa, querendo falar alguma coisa. Eu sabia disso, porque ela
ameaçava abrir a boca várias vezes e fechava de repente, batucando os
dedos longos no volante do carro. Totalmente impaciente.
— Fala logo, Olie — ri de sua impaciência.
— Ai, Liah — a garota suspirou. — Desculpa voltar nesse assunto. Mas
se você precisar conversar com alguém sobre o que aconteceu, eu estou
aqui, tá bem? Posso imaginar como deve ser complicado nunca ter contado
isso para ninguém.
Encarei a morena, alternando seu olhar entre mim e a rua a sua frente.
Nervosa, olhei para o vidro ao meu lado, mordendo minha bochecha.
— Na verdade, eu contei para o Nathan algumas semanas atrás — disse
receosa.
Olivia enfiou o pé no freio, parando o carro abruptamente na estrada.
Meu corpo se projetou para frente, parando com o baque nada suave do
cinto de segurança.
— Como assim para o Nathan? — Seus olhos quase saltaram do rosto ao
me encarar revoltada.
— Eu contei a ele para explicar o motivo de ter defendido Camille
aquela noite — expliquei, olhando para trás preocupada. Se viesse outro
carro, teria batido na gente fácil. — Anda logo, Olie. Você não pode ficar
parada aqui — reclamei.
— Ok. Eu preciso começar a ter ciúme dessa sua amizade repentina com
o Nate? Vocês tem conversado bastante ultimamente.
Não consegui esconder um sorrido. Olívia ia me matar quando soubesse
que transei com ele e ainda não contei a ela. Nathan reclamaria se os
amigos soubessem?
— Você prefere que a gente volte a brigar? — arqueei uma sobrancelha
quando ela voltou a acelerar o carro.
— Eu tenho um pressentimento sobre vocês. Mas vocês vão negar até a
morte, então vou me poupar o esforço.
Ah, Olie. Se você soubesse!
— Nathan ainda fala alguma coisa sobre o que aconteceu no passado? —
perguntei a ela preocupada.
Um sentimento estranho crescia dentro de mim. Nathan tinha muito
ressentimento pelo que causei a ele, e ele tinha razão para isso. Ele mesmo
disse uma vez que nunca poderia me olhar sem lembrar das coisas ruins que
aconteceram na vida dele.
Aquela intensidade toda de ontem era reflexo da tensão acumulada de
dias. A gente não se gostava e de repente estava transando em cima daquele
balcão.
Eu nunca fiz sexo na vida, não de forma consentida. Raramente beijei
um cara sem algum envolvimento antes, inclusive. Era uma das coisas que
me assustavam em Raphael… aquela pressa nas coisas. No entanto, ontem à
noite, a única coisa que se passava em minha mente, era o desejo insano
que Nathan estava me despertando.
— Ele evita falar. Quando fala, é sobre como ele se esforça para não
culpar você pelo que aconteceu. — Olie deu de ombros, com os olhos
direcionados para a rua.
Eu não queria correr o risco de ser julgada por ele de novo. Aquilo ainda
me doía na alma; ter sido apontada como causadora da morte do filho e pela
quase morte dele. Senti meu peito apertado. Era tão errado me sentir
envolvida.
Liah, você precisa esquecer isso. Precisa esquecer o que aconteceu
ontem.
15 de julho de 2019
Vinte e oito anos. Vinte e oito anos nas costas e eu ainda sentia a porra
do meu estômago revirado pela ansiedade quando atravessei a porta da
ONG na segunda, depois do almoço.
Ficou claro, Liah me evitou no sábado. Depois de ter entregado para
mim sua única chance de ter uma primeira vez decente. Ela permitiu que eu
a pegasse de qualquer jeito em cima daquele balcão.
Quando a deixei no hotel, na sexta, eu não tinha ideia do que ela estaria
pensando sobre a gente ou sobre como deveria agir. Era um comportamento
estranho para mim, já que nesses três anos, apesar de ser totalmente fechado
a sentimentos, eu não era nada inseguro ou indeciso na minha forma de agir.
Mas Liah... Liah me deixava inseguro, confuso e até meio insano às
vezes. E era por isso que eu precisava entender que ela estava certa em
manter distância. Eu precisava tirar aquela mulher da minha cabeça.
Obriguei meus pés a continuarem seus passos direto até o auditório. Uma
parte de mim, covarde o suficiente para fugir, queria evitar encontrá-la. Mas
tinha outra parte; aquela que já fazia uns dias que vinha ganhando as
batalhas, que queria mudar o caminho e seguir o rumo até o escritório dela.
Confrontá-la. Colocá-la contra a parede.
Literalmente, talvez.
Uma lufada de ar, exasperada, escapou de mim assim que entrei no
grande salão onde dava minhas aulas. Tinha conseguido chegar até aqui ao
menos. Caminhei até a mesa lá na frente, largando minha mochila no tampo
de madeira e esfreguei meus olhos, antecipando meu cansaço.
A aula de hoje seria difícil, já que minha mente insistiria em me levar a
pensar em Lianah, sentada em sua mesa, a algumas salas de distância,
naquele mesmo corredor.
Deus. Eu preciso tirar essa mulher da minha cabeça.
Estava voltando, com rapidez, àquela camada da nossa relação, onde eu
a via como a maior ironia da minha vida. E mais uma vez, pensei em quão
ilógico era estar surtando pelo afastamento repentino dela. Liah, mesmo que
sem intensão, havia fodido a porra da minha vida há três anos.
— Porra, Nathaniel, você só se mete em confusão — murmurei
baixinho, para mim mesmo.
Resiliente, comecei a tirar o laptop da mochila, preparando a projeção no
telão. Mantive minha cabeça focada na aula de hoje por alguns minutos,
repassando todo material que havia preparado.
Um tempo depois, ouvi a porta se destravando e ainda levei alguns
segundos para levantar a cabeça e olhar para a entrada. Um alívio repentino
me tomou ao perceber que era Mia, caminhando até mim.
— Ei, Nate! — Minha irmã impulsionou o corpo com os braços,
sentando-se em cima da minha mesa. — Como estão as coisas?
— Bem — limitei-me a responder, sabendo que Mia me conhecia muito
bem para saber quando eu mentia.
— Triss está bem?
— Sim — disse enquanto plugava o computador no HDMI do projetor.
— Evie ia buscá-la na App pra mim e trazê-la pra cá. Ela vai me ajudar aqui
no curso.
Mia assentiu, repuxando os lábios num biquinho que sempre fazia
quando queria me falar alguma coisa, mas tinha medo da minha reação.
Cruzei meus braços, apertando os olhos para ela. A garota suspirou me
lançando um sorriso desanimado.
— Camille está aqui, conversando com Liah e Joanna. Ela está tentando
convencer as duas de que precisa da chance de ajudar na ONG.
Merda. Era tudo que eu não precisava agora; uma convivência forçada
com Camille. De repente, sentia que o caminho de volta ao fundo do poço
estava se desobstruindo; e eu não queria voltar para aquele lugar.
— Mia, se meus alunos chegarem, avisa que eu já volto, por favor —
pedi, seguindo a passos duros e precisos para o único lugar que queria
evitar desde que entrei na ONG.
Sentia meu coração acelerado, quase rachando minha caixa torá xica à
medida que me aproximava da sala dela. Como se não bastasse ter que
encarar Liah assim, ainda teria que confrontar Camille e essa porcaria de
ideia de voluntariar na ONG. Eu tinha certeza de que ela não teria o mínimo
interesse nisso se eu não estivesse aqui também.
Estanquei em frente a porta de madeira escura, ouvindo algumas vozes
mais altas lá dentro. Camille estava alterada. Eu podia perceber sua voz
agitada se sobrepondo sobre as das outras duas. Respirei fundo uma única
vez antes de meter a mão na maçaneta e entrar sem aviso nenhum.
— ... Nate não tem nada a ver com minha decisão. Eu realmente preciso
disso, o trabalho voluntário vai me ajudar... — Camille se interrompeu
quando virou o pescoço para trás ao ouvir o barulho da porta e me viu
parado ali.
As três mulheres me olharam confusas; a diretora e a assistente, sentadas
atrás da mesa, de frente para mim. Corri os olhos entre elas e senti meu
coração perder uma batida ao esbarrar com o olhar profundo e cortante de
Liah. Desviei rápido, voltando minha atenção para a real razão de estar ali.
— Que porra você tá fazendo aqui, Camille? — cobrei, fechando a porta
atrás de mim.
Camille suspirou enquanto revirava os olhos. Seu corpo agitado levantou
da cadeira andando de um lado a outro da sala, e então levou os braços à
cabeça, evidenciando seu desespero.
— Vocês não podem tirar isso de mim — um tom choroso, falso,
anunciava o drama. — Estou tentando ser uma pessoa melhor.
— E não pode ser em outro projeto, ou outra ONG? — questionei
irritado, vendo Liah fechar a boca antes que eu a deixasse falar. — Tem que
ser aqui?
A garota, agora morena, me encarou profundamente. Seu peito subindo e
descendo rápido, adotando uma postura vitimista que não condizia em nada
com ela. Camille nunca foi frágil desse jeito. Anos de relacionamento me
fizeram saber exatamente o momento em que ela começava a encenar.
— Isso não é justo. Quer dizer que não posso voluntariar aqui porque
você não sabe lidar com o que aconteceu?
Baixa! Ela estava sendo baixa.
— Liah, eu acho que vou deixar vocês conversarem melhor sobre isso.
Depois a gente conversa sobre sua decisão. Mas o poder é seu. Ninguém
pode intervir em como você aceita ou não seus voluntários. — Joanna
avisou, recolhendo sua bolsa para sair da sala. — Nathan, tenta manter a
cabeça no lugar, ok? — A assistente pediu baixinho ao passar por mim na
saída.
— Vou deixar vocês conversarem. — Liah também levantou-se para sair
da sala, mas segurei seu braço assim que ia passar por mim.
— Fica! — pedi. Ela era a única coisa que servia de âncora para mim ali
dentro. — Por favor — deixei nossos olhos se encontrarem.
Por alguns segundos, me senti em queda livre naquela conexão intensa.
Liah arfou baixinho, os olhos correndo para o ponto onde meus dedos ainda
seguravam seu pulso. Observei as maçãs de seu rosto coradas e, de repente,
aquela sala estava quente como o inferno.
A garota assentiu devagar, tentando retomar a consciência. Larguei seu
braço, sentindo minha respiração mais acelerada. Vi seu corpo pequeno
voltar a cadeira onde estava antes, atento a todos os movimento que ela
fazia, e precisei de mais alguns segundos para desviar minha atenção de
cima dela. Ao virar para o outro lado, Camille estava estática, os olhos
vidrados, intercalando seu foco entre mim e Liah e nossa interação de
segundos atrás. Uma curvatura irônica e maldosa tomando seus lábios.
Ela percebeu.
— Você nunca vai me deixar voluntariar aqui. Não é, Liah? — Um olhar
afiado foi trocado entre elas.
Não sei se Liah percebeu Camille notar nossa interação, mas sustentou o
olhar dela, desafiando-a. Aquele brilho nas orbes azuis quase gritava que
aquele era território dela, que ela estava ali para defender a ONG e todos
seus amigos, e isso me incluía. Liah sorriu levemente, de uma forma que
podia definir como maldosa, até. Seus olhos buscaram os meus, num pedido
silencioso de compreensão, antes de responder a ela.
— Você quer voluntariar aqui? Eu posso permitir. — Apertei meus
olhos, confuso, mesmo que ela tivesse sua atenção na outra mulher. — Mas
vai ser do meu jeito. E nos dias que Nathan não estiver aqui.
— Eu aceito. Quando posso vir? — A garota, agora morena, quase
pulava eufórica com a permissão.
— Você vem duas vezes na semana; às terças e quintas. Agora acho
melhor você ir, porque preciso conversar com o Nathan.
Camille assentiu, buscou sua bolsa pendurada nas costas da cadeira onde
estava antes e caminhou para a porta. Antes de sair, me olhou de cima
abaixo, sorrindo de um jeito falsamente amável.
Sacudi a cabeça em reprovação enquanto sentava na cadeira que ela
estava antes. Encarei Lianah e um bolo se formou no meu estômago ao
perceber que estava sozinho com ela, e não estava preparado para isso.
— Acho que assim vocês não vão se esbarrar — comentou, evitando me
olhar.
— Obrigada por pensar nisso tão rápido — agradeci, sincero. — Não
seria nada fácil ter que encontrar com ela por esses corredores quase todo
dia.
Liah balançou a cabeça confirmando. Seus olhos ainda evitando os meus
a todo custo.
Será que ela também sentia essa tensão, ou se perguntava como agir,
agora que havíamos transpassado uma barreira de intimidade sem volta?
— Eu tenho que voltar para o auditório — avisei, me sentindo
desconcertado. — Saí de lá cego de raiva quando Mia me contou que
Camille estava aqui. Devia ter começado a aula cinco minutos atrás.
A loira arriscou um olhar rápido na minha direção, logo voltando a
atenção para o computador à sua frente. Frustrado, deixei um suspiro longo
escapar.
Eu realmente não tinha a mínima ideia do que deveria falar com ela.
Levantei, relutante em encerrar a conversa daquela forma.
— Me avisa se a Camille te perturbar — pediu, antes que eu pudesse
sair. — Dou um jeito de cortá-la do voluntariado se passar dos limites.
Assenti ainda de costas, saindo da sala. Segui pelo corredor, de volta ao
auditório, me sentindo totalmente covarde por não tocar no assunto nós.
Confesso que por um segundo, pensei em voltar e jogar sobre Liah tudo que
estava preso na minha garganta desde sexta. Mas o medo da reação que ela
poderia ter, foi o que me fez manter o caminho até minha aula.

16 de julho de 2019
— Que porra aconteceu que te deixou de mau-humor? — Ethan
questionou após eu reclamar pela décima vez da apresentação de um
cliente. — Achei que você, finalmente, estava melhorando.
— Eu estou melhorando — retruquei.
Levantei da cadeira, indo até a grande janela da minha sala. O dia estava
quente e bonito, o céu muito azul enquanto o sol brilhava alto. Mordi a
bochecha inconscientemente, me lembrando de Liah no mesmo segundo.
Deixei escapar um ruído raivoso, sacudindo a cabeça.
Sai da minha cabeça.
— Nathan…
— Eu transei com a Liah! — soltei de uma vez, sentindo um peso
enorme sair das minhas costas por contar algo que escondi até do meu
psicólogo na terapia de hoje pela manhã. — E a gente se beijou duas vezes
no Republic, antes disso.
Virei devagar, vendo Ethan me encarar estarrecido. Sua boca se abrindo
em espanto enquanto caminhava para sentar na cadeira em frente à minha
mesa.
— Uau! Duas vezes? Podia jurar que sabia de tudo por ver uma dessas
vezes. — Ethan me olhou confuso. — Sei que você estava confuso sobre
ela, mas não achei que chegaria a esse ponto tão rápido.
Nem eu. Foi tudo rápido demais mesmo. Em pouco tempo, estava
totalmente envolvido e tomado por aquela maldita teia. Liah insistia em
aparecer no meu caminho a todo momento, até que eu estivesse totalmente
fadado a me entregar a esses sentimentos malucos.
— Aconteceu na sexta — contei, voltando inquieto para minha cadeira.
— Agora pareço um adolescente virgem que não sabe como agir na frente
da garota. Pra piorar, acho que ela tá sendo educada demais pra me
dispensar abertamente.
Lembrei de como ela agiu com o tal médico que a cercou nas semanas
anteriores. Liah era condescendente demais para ser grossa ou direta num
fora.
— Tá me zoando? — Ethan segurava um riso debochado. Revirei meus
olhos, sendo obrigado a engolir a zombaria dele. Neguei sua pergunta, me
sentindo totalmente de fora do controle da minha vida de novo. — Tá me
dizendo que vocês transaram, e agora tá com medo dela te dar um fora?
— Isso, realmente, soa ridículo — concordei. — Na verdade, seria
melhor mesmo se ela me dispensasse logo. Meu cérebro precisa desse
choque pra entender que eu tenho que tirar isso da minha cabeça. Ethan,
essa garota vai me deixar maluco. Eu vivo na borda do precipício desde o
dia que a vi no Republic com Olívia. Eu deveria odiar Lianah por tudo que
ela me causou na vida, tendo intensão ou não. Mas tudo que consigo fazer é
pensar nela a todo momento... sei lá, parece que sempre acontecem coisas
que me fazem esbarrar nela de novo, e de novo, e de novo. — Afundei a
cabeça nas minhas mãos.
Eu sabia que estava na merda quando vi Ethan levantar-se e ir, por
decisão dele mesmo, até meu aparador, despejando o whisky caro que eu
mantinha ali em dois copos. Seu braço me alcançou, estendendo o
recipiente com uma dose generosa do líquido âmbar.
— Eu não acho que Liah transaria com você e te dispensaria depois —
tentou me acalmar. — Na verdade, duvido que Liah transaria com você sem
ter algum tipo de sentimento.
Onde você se meteu, Nathan? Engoli todo o líquido do copo num único
gole, sentindo minha garganta queimar no processo.
— Sentimento, Ethan? A gente nem se conhece direito. — disse nervoso,
levantando para me servir de outra dose.
— E você tá aqui me contando isso porque, então? — jogou
despreocupado. — O que você sente por ela?
— Ah, não faz essas porcarias de perguntas difíceis de responder agora.
Eu mal consigo processar o fato da gente ter transado, quem dirá explicar o
que sinto pela garota. — engoli o líquido do copo, sem me preocupar com o
julgamento dele, quando enchi de novo.
Bebi a terceira dose, rezando para o relaxamento conhecido atingir meu
corpo e desacelerasse meus batimentos.
— E você não quer mais, então? — um sorriso malicioso projetado no
rosto dele. — Se é tão confuso assim, é só deixar pra lá. Esquece ela.
— Esquecer quem?
Virei rápido, vendo Tommy se jogar em uma das cadeiras. Eu estava
morto e enterrado agora.
Ethan me encarou, incerto sobre responder a pergunta de Thommas com
a verdade, mas dei de ombros. Se ele soubesse que contei a Ethan e não
contei a ele, ficaria puto comigo por meses.
— A Liah. Eles transaram.
— O QUÊ? — Thommas perguntou quase gritando, levantando da
cadeira agitado.
— Foi um erro. Aconteceu e não vai acontecer mais.
— Então é só esquecer — Ethan insistiu enquanto trocava um olhar
suspeito com Tommy.
Ele estava me provocando, eu sabia. Mas era inevitável reagir. Eu queria
mais. Queria mais dela a cada segundo que pensava em Liah e como nossos
corpos se encaixaram perfeitamente naquele balcão. Queria mais a cada vez
que minha mente, traidora, projetava o sorriso perfeito dela na minha frente.
Queria mais toda vez que sentia meu coração acelerar só com a ideia de que
iria vê-la.
Não, Nathan. Não vai por esse caminho.
Era confuso para caralho, mas eu não queria deixar para lá. Minha razão
berrava para que eu esquecesse, mas minha pulsação me fazia lembrar dela
a cada batimento desenfreado.
— Vocês são muito iguais, Nathan — Thommas começou me
surpreendendo. — E totalmente diferentes ao mesmo tempo. O que difere
você dela, é a forma de conduzir as coisas, mas vocês tem pensamentos
parecidos, ideais parecidos, são teimosos da mesma forma e absurdamente
orgulhosos. Vocês não viram acontecer porque são orgulhosos demais pra
admitir. Mas eu vi, Ethan viu, Olívia viu, Triss viu… Qualquer um que
preste alguma atenção podia ver a faísca no olhar de vocês mesmo nas
pequenas interações.
Aquilo era loucura. O quão submerso eu estava no meu falso ódio para
não perceber isso? Eu mal conhecia Lianah, não sabia muita coisa sobre a
vida dela.
— Eu não sei se concordo com isso, Tommy — ainda em frente ao
aparador, despejei a quarta dose no meu copo, bebendo logo em seguida. —
Eu e Liah somos o exemplo perfeito do que foi feito pra nunca ficar junto.
Odeio a ideia de me sentir atraído de alguma forma.
— Liah tem uma alma pura, Nate, e isso é o tipo de coisa que sempre te
atraiu. Talvez seja isso o que te faz baixar as barreiras pra ela. Esse deve ser
o tipo de sentimento mais puro que existe. — Ethan veio até o meu lado,
enchendo o copo dele mais uma vez. — Se você acha isso loucura, imagina
se apaixonar por alguém que você sequer já teve a oportunidade de beijar.
Olívia. Ethan era apaixonado por Olívia e ninguém entendia o motivo
deles não estarem juntos. Olie, claramente tinha sentimentos por ele
também. Os dois eram amigos desde que nos conhecemos, não existiam
complicadores para eles, como algum ódio infundado.
— Por que você nunca tentou nada com ela? — Thommas perguntou o
que seguramos por anos.
— Porque destruo todos que se envolvem comigo. Vocês sabem. Deixei
minha irmã morrer e destruí a vida dela. Destruí a vida da minha mãe e do
meu pai em consequência. Fui escroto a ponto de largar Liza no meu luto e
deixá-la em depressão. — Ethan manteve seu olhar perdido através da
janela. Era isso. Ele ainda se culpava profundamente pela morte da irmã. —
Destruo tudo que eu tenho e perco tudo que amo. Prefiro manter Olívia
como minha amiga e ainda tê-la em minha vida, do que assumir o risco de
destruí-la também.
Três anos perdido no meu luto, incapaz de enxergar o problema das
pessoas a minha volta. De repente, era como se eu pudesse enxergar de
novo, ou como se acordasse, lúcido, de uma bebedeira. Eu sentia e
enxergava coisas que não me permitia antes. Ethan tinha Olívia para
desabafar, mas não sobre aquilo.
— Você não pode se culpar por isso — disse, levando o foco da conversa
para ele. — Foi um acidente, Ethan. Houve um julgamento, esqueceu? Foi
um acidente horrível, mas ninguém teve culpa. — garanti a ele, tentando
amenizar aquele sentimento.
— Esquece isso, Nathan — pediu despejando outra dose em seu copo.
— É melhor a gente voltar a falar da apresentação.
Ethan bebeu o líquido em seu copo, deixando o vidro sobre a bandeja no
aparador. Voltamos a sentar à mesa, dessa vez com Tommy, levando a
atenção para a apresentação que estávamos preparando, esquecendo dos
problemas por algum tempo.
Quando finalmente terminamos, agradeci por poder encerrar o dia e ir
para casa. Detestava fazer Triss ficar até mais tarde na App por minha
causa. As segundas, quartas e sextas, Ethan ou Tommy a levavam para casa.
Mas as terças e quintas ela saía bem tarde daqui comigo, por conta do meu
trabalho acumulado.
— O que houve com você de sábado pra cá? — a garota perguntou no
meio do caminho para casa.
— Você também? — mantive meus olhos na estrada escura. — Não
houve nada.
— Então não fui a única que percebeu? Você estava de bom humor na
sexta a noite e no sábado pela manhã, de um jeito que nunca vi antes, Nate.
O que aconteceu?
Triss era mesmo observadora como dizia. Era quase impossível esconder
as coisas dela, porque além de observar, tinha um sexto sentido super
apurado.
— Não houve nada — respondi seco.
— Brigou com a Liah de novo?
— Não, Triss. Não briguei com ela.
Na verdade, transei com ela. E depois fiquei irritado porque ela me
dispensou e porque não consigo tirá-la da porra da minha cabeça.
Um silêncio satisfatório se manteve pelos próximos minutos até que o
toque do meu celular soou pelo alto-falante do carro. Olhei para o painel
multimídia, vendo o número desconhecido que aparecia.
— Não vai atender? — Triss perguntou quando o toque parou de soar.
— Não costumo atender número desconhecido — expliquei.
— E se for alguma urgência? Pode ser de algum hospital…
— Eu tenho os números dos hospitais da cidade salvos no celular — a
interrompi. Desviei os olhos da estrada para ela rapidamente. — Você acha
que eu deveria atender?
Triss balançou a cabeça positivamente, me olhando como se eu fosse um
idiota por não pensar em quantas coisas importantes poderiam querer falar
comigo. Se me ligassem de novo, talvez eu atendesse.

20 de julho de 2019
Mordi o canto do lábio, sacudindo a perna por baixo da mesa, ansioso.
Era difícil para caralho manter meus olhos longe dela, e eu só conseguia
pensar em como aquilo entre a gente era errado. Liah e eu não fazíamos
sentido nenhum. Era a porra da falta de sexo, só podia ser.
Quem mandou esquecer que sexo existe por quase sete meses, Nathan?
Seu Idiota!
Desde sexta passada, Lianah mal me encarava. Eu também não tive
coragem de tocar no assunto. De qualquer forma, era melhor que as coisas
voltassem ao normal mesmo entre a gente.
A quem quer enganar, Nathan? Você está se corroendo pela indiferença
dela.
— O que está rolando entre você e a Liah? — Olívia esticou o pescoço
ao meu lado, arrastando a cadeira para mais perto de mim.
— Não tem nada rolando entre mim e a Liah — disse irritado, sem fazer
questão nenhuma de olhar para o lado e encontrar o olhar curioso dela.
Olívia se remexeu inquita, e eu podia sentir que seus olhos ainda
estavam atentos sobre mim. Suspirei irritado e levantei da mesa, abrindo
caminho entre as pessoas que lotavam o Republic, até o bar. Precisava de
algo mais forte.
— Miles, me dá uma dose de whisky — pedi ao garçom que estava
atendendo no bar hoje.
O homem colocou o copo baixo e largo sobre o balcão, virando para
pegar a garrafa de Black Label na prateleira alta de vidro.
— Não tenho nada com isso, mas todos vocês estão tão estranhos
ultimamente — Miles comentou, levantando os olhos para mim enquanto
despeja o líquido no copo.
— Pois é. Se até você percebeu… — peguei o copo virando a dose num
único gole. — Acho que vou precisar de outra.
— Ele não vai não! — Olívia subiu na cadeira alta ao meu lado,
empurrando o braço de Miles que já ia encher novamente meu copo. —
Você está dirigindo hoje, seu idiota.
Revirei os olhos sem paciência. Olívia estava no meu pé desde que
cheguei, sondando e reclamando o tempo todo da minha cara fechada. Eu já
tinha decidido que não ia embora dirigindo, nem que tivesse que levar todas
elas de táxi em casa antes.
— Pode encher — encarei Miles apertando os olhos. — Vou embora de
táxi — avisei aos dois ao perceber que o barman traíra estava pendendo
para o lado de Olívia.
Miles virou a dose, olhando desconfiado para mim. Peguei o copo e girei
o corpo, apoiando as costas no balcão. Automaticamente meus olhos
fugiram para a mulher encostada na janela do outro lado, rindo junto de
Karol.
— Vai me explicar o motivo de estar olhando pra Liah desse jeito? —
Olívia pressionou de novo.
— Que jeito? — perguntei sem tirar meus olhos da garota do outro lado.
— Do mesmo jeito que olha pra uma mulher quando quer tirar a calcinha
dela.
Eu quero tirar a calcinha dela, Olie. Quero fazer coisas que você nem
imagina…
Me remexi incomodado, tentando não ter uma ereção na frente de tanta
gente. Virei o resto do whisky, deixando o copo sobre o balcão.
— Você não sabe o jeito que olho pra uma mulher quando quero tirar a
calcinha dela. — Senti meu coração martelando no peito enquanto tentava
distrair Olívia.
Olie soltou um riso baixo, beliscando minha costela de um jeito dolorido.
— Ai! Precisa disso? — reclamei, esfregando a lateral do corpo.
— Vamos! Me explica porque não tira os olhos de cima dela, então —
pediu, puxando a barra da minha camisa para atrair minha atenção.
— Porra, Olívia, está pra nascer amiga mais chata e intrometida que
você — reclamei, voltando a virar de frente para o balcão. — Miles! —
Chamei o garçom que estava do outro lado, mostrando o copo vazio a ele.
— Vai beber mais? — a morena perguntou ao meu lado, preocupada.
— Tenho duas opções. Posso continuar aqui bebendo ou sumir o resto da
noite e acabar do mesmo jeito que acontecia quando eu ainda estava
afundado na merda.
— Vai atrás de outra mulher só pra negar seu interesse na loira do outro
lado? — perguntou atrevida, erguendo as duas sobrancelhas pra mim.
Eu tinha que tirar aquela mulher da minha cabeça. Eu tinha que parar de
pensar nela. Tinha que parar de repassar em detalhes o que aconteceu na
sexta passada entre a gente. Tinha que esquecer como a indiferença dela me
corria por dentro.
Miles voltou com a garrafa de whisky, despejando a terceira dose nele.
— Não tenho ideia do que você tá falando — respondi irritado, doido pra
me livrar daquela conversa.
— Miles — Olívia atraiu a atenção do homem atrás do balcão. — Tá
vendo aquela loira do outro lado conversando com a Karol? — O homem
olhou para a mesma direção de Olie. — O que acha dela?
Sua atenção permaneceu por tempo demais em cima de Liah. Miles
sorriu de lado, erguendo uma sobrancelha para mim em desafio.
— Gata!
Eu sei, Miles. Eu sei!
Era uma merda ter que passar por isso. Não era pra ter acontecido. Eu
ainda não conseguia entender porque Liah me atraía tanto. Não fazia
sentido nenhum. Tudo bem que eu não a culpava mais da mesma forma
pelo que aconteceu no passado, mas a gente era simplesmente incompatível.
Peguei o copo, saindo do balcão irritado. Me enfiei de novo entre as
pessoas, atravessando o salão até a mesa. Para o meu desespero, Olívia veio
atrás de mim com um sorrisinho cheio de deboche.
— Sabe o que Liah me contou sábado passado?
Meu batimento acelerou quando sentei de novo à mesa.
Liah não tinha contado a ela, tinha? Merda. Contei para os caras.
— O quê? — Minha voz saiu quase estrangulada pela ansiedade.
Olívia me encarou muito séria, estudando minha reação antes de
responder.
— Fiquei sabendo sobre algo muito sério que aconteceu com ela no
passado. E eu sei que você também sabe, porque ela te contou. Ela te
contou uma coisa que nunca tinha contado pra ninguém na vida, Nathan.
Sim. Ela tinha me contado.
— Se você também sabe, ela não contou só pra mim — respondi
emburrado, tentando de todo jeito fugir daquele assunto.
— Vocês estão muito amiguinhos, de repente — acusou.
— Olívia, pelo amor de Deus, eu e Liah não temos nada. Só estou
tentando ser menos idiota com ela — rebati exasperado, apoiando o copo
com força na mesa. — Tira essas loucuras da sua cabeça. Eu e ela, não vai
rolar.
Já rolou, seu mentiroso!
Saí da mesa, agradecendo por Olívia ficar por lá dessa vez.
Onde Ethan e Thommas tinham se enfiado? Desde que chegamos os dois
simplesmente desapareceram. Procurei por eles do lado de fora e achei
Ethan conversando com uma garota baixinha ao lado da porta.
Frustrado, voltei para dentro do bar sem querer interromper o que quer
que estivesse acontecendo entre eles.
Decidi ir embora, mas queria ter certeza de que as meninas iriam embora
em segurança também. A contra gosto, voltei até a mesa, e agora Olivia
conversava com Liah e Karol próximas da janela. Suspirei indo até elas.
— O quanto você bebeu? — perguntei a minha amiga, vendo-a me
devolver um olhar surpreso.
— Nada — respondeu franzindo a testa.
— Ótimo! — Tirei a chave do carro do bolso e entreguei a ela. — Leva
as garotas pra casa. Estou indo embora.
Olívia segurou meu braço logo que virei na intenção de sair dali. Soltei
uma lufada de ar, irritado quando virei o corpo de volta para elas. Karol e
Liah me olhavam confusas.
— Vai deixar sua BMW comigo? — Ela arregalou os olhos me
mostrando a chave que deixei em sua mão.
Sim. Eu ia. Mesmo que eu tivesse um ciúme doentio da BMW desde que
a comprei quando quebrei os vidros do Jeep no dia que Liah lembrou de
mim. O carro tinha localizador e era blindado, ficaria menos preocupado
com elas assim. Acenei com a cabeça confirmando, vendo a garota abrir um
sorriso radiante.
— Olívia, se você bater ou arranhar meu carro…
— Pode ficar tranquilo que isso não vai acontecer — ela avisou
mostrando a chave para as amigas, animada.
— Nathan, a gente pode falar rapidinho? — Senti um arrepio gelado
quando a voz de Liah atraiu minha atenção.
Olívia me encarou, analisando minha reação à amiga. Engoli seco,
sentindo meu corpo inteiro responder ao pedido dela. Assenti com um
aceno da cabeça e Karol e Olívia saíram juntas em direção ao bar.
— Queria saber se você ainda está disposto a me ajudar a tentar
encontrar alguma coisa no computador e no celular da minha avó — ela
disse baixinho, mordendo a bochecha.
— Achei que você tivesse desistido disso. — Cruzei meus braços,
encostando no parapeito da janela, ao lado dela.
Liah me mandou aquela mensagem no sábado passado, inventando
algum compromisso para fugir de mim. Na segunda, ao contrário do que ela
mesmo escreveu, mal me olhou nos olhos e não tocou mais no assunto
sobre os aparelhos.
— Eu não desisti — disse desconcertada, apertando as mãos a frente do
corpo. — É só que… — A loira suspirou cansada. — Eu realmente tinha
um compromisso.
— Tudo bem, Liah. Você não precisa inventar desculpas pra não ter que
me encontrar. — virei o pescoço, olhando irritado para a mulher que eu não
conseguia tirar da cabeça. Suas bochechas ficaram muito vermelhas e ela
desviou os olhos envergonhada. — Sou mais inteligente que seu médico
preferido.
— Você acha que era uma desculpa? — perguntou ainda com a cabeça
baixa, encarando seus saltos.
Permiti que meus olhos voltassem para ela mais uma vez, dessa vez
numa análise minuciosa sobre seu corpo bonito dentro daquele vestido
preto e curto o suficiente para me lembrar o que aconteceu na sexta
passada. Merda!
— Não era? — Joguei meu pescoço para trás, apoiando a cabeça no
batente da janela. Liah ia tirar toda minha sanidade antes que me desse
conta.
Ficamos em silêncio por alguns segundos até que senti seus olhos sobre
mim. Olhei de lado para ela e algo em seu rosto bonito me chamou atenção.
Medo.
Liah tinha medo de mim?
— Você tem medo de mim? — perguntei confuso.
— Tenho medo do que fiz a você. — Seu peito subiu e desceu numa
respiração profunda. — Medo da hora que você vai gritar comigo de novo e
perceber que eu ainda sou a mesma Liah que você odeia.
— Eu não odeio você — afirmei, ainda mantendo estabelecida aquela
conexão que só a gente tinha.
Liah suspirou mordendo o lábio e no segundo seguinte se jogou em cima
de mim, me beijando. Demorei a processar o que estava acontecendo, mas
assim que meu cérebro recebeu as sensações do corpo dela colado no meu e
sua língua entrando em minha boca, eu reagi.
Passei o braço envolta da cintura pequena, puxando seu corpo até que
tivesse quase sentada em meu colo naquela janela. Liah suspirou, subindo
as mãos e puxando os fios curtos do meu cabelo.
Era difícil para caralho manter a consciência de que estávamos num
lugar público, quando tudo que eu queria fazer era descer minha mão pelo
seu corpo e tirar o pano do vestido do meu caminho. Queria apertar a carne
da sua bunda gostosa e finalmente ceder a vontade que me atormentava
desde sexta passada.
As mãos pequenas puxaram meu cabelo com mais força, me fazendo
respirar com mais dificuldade e puxar os cabelos da nuca dela mais para
trás em resposta. Liah passou a língua pelos meus lábios e então se afastou
de mim depressa, arregalando seus olhos azuis em seguida.
— A gente não pode ficar se beijando assim — reclamou alarmada.
— Foi você quem me beijou, Liah. De novo. Só pra constar. — Avisei,
inconformado com seu afastamento repentino.
A garota esticou o pescoço nervosa, olhando na direção do bar,
procurando algum sinal das amigas.
— Se elas tivessem visto, já estariam aqui agora — disse suspirando.
— Precisamos estabelecer limites — Liah me encarou, colocando as
mãos na cintura.
Não contive o riso ao ver sua postura autoritária. Ela apertou os olhos
para mim, num aviso mudo de que estava falando sério comigo.
— Ok. Vamos estabelecer limites. — Cruzei meus braços, erguendo as
sobrancelhas. — Quer começar com: não devemos nos beijar?
— Nem transar — soltou rápido, olhando para os lados com medo de
alguém escutar.
— Vamos fingir que nada aconteceu na sexta passada — acrescentei à
lista.
— Você tem que parar de me olhar desse jeito — disse nervosa.
Ia ser difícil. Mas concordei, era um item vital para manter minha
sanidade.
— Você pode parar de ter medo de mim? — pedi, sem ter certeza que
aquele item cabia na lista.
— Você vai me ajudar com o computador da minha avó? — Liah
perguntou também confusa.
Ainda estávamos estabelecendo limites? Aquela merda de conexão que
ligava a gente pelo olhar… não conseguia desviar.
— Essa coisa entre a gente… — apontei de mim para ela. — Não
podemos deixar isso acontecer.
— Do que você tá falando? — Liah perguntou ainda presa na conexão.
— Essa coisa quando a gente se olha — continuei sem desviar. — Não
podemos manter essa conexão.
— Tem razão — concordou ainda sem desviar os olhos.
Engoli seco, incapaz de mover meus olhos. Era forte demais, intenso
demais. Também parecia para ela, já que Liah não moveu seus olhos de
cima de mim em momento nenhum.
— Liah — chamei nervoso. — A gente precisa parar.
— Pode dizer que me odeia?
— Você vai parar de me olhar assim se eu disser? — perguntei confuso.
Liah assentiu, mordendo o lábio inferior ainda sem desviar os olhos um
centímetro que fosse dos meus.
— Eu odeio você! — afirmei, mesmo sabendo que aquela era a maior
mentira do Universo.
A garota finalmente abaixou a cabeça e só então respirei aliviado.
— Falei sério na sexta, Nathan — começou sem me olhar nos olhos
dessa vez. — Tá tudo bem entre a gente, é só que… não é certo isso…
— Eu sei — a interrompi, entendendo exatamente o que ela sentia. Eu
pensava assim também. Deveria ser recíproco.
Então por que eu sentia meu ego totalmente ferido com a rejeição dela?

24 de julho de 2019
— Nathan, você ouviu alguma coisa? — Mia perguntou irritada,
estalando os dedos na frente do meu rosto.
Olhei atento para as duas mulheres sentadas em frente à mesa. Estava
longe por longos minutos, não tinha ideia do que elas estavam falando.
Ajeitei minha postura na cadeira, pigarreando sem graça.
— Cara, o que tá te tirando o sono? — Ethan perguntou na cadeira ao
meu lado.
Você sabe, Ethan.
— Tem certeza que eles podem fazer isso, Liah? — perguntei nervoso,
mesmo sabendo que ela já tinha explicado aquilo segundos antes.
Liah estava nos contando sobre a nova conversa que teve com o
advogado da avó. Ela mencionou que a App havia doado seus lucros e ele
levantou a possibilidade de envolverem nossa empresa na investigação
também, já que o valor doado era bem alto e levantaria suspeitas. A questão
é que o dinheiro doado era meu. Nunca foi da App.
— Segundo Doutor Estevem e a Doutora Penne, sim. — Liah suspirou
alto, nos olhando triste. — Não queria prejudicar vocês.
— Não está — tentei tranquilizá-la.
Não podia contar sobre aquele dinheiro ser meu. Embora não fosse um
item explícito na nossa lista de limites, tenho certeza que ela entenderia isso
como uma transgressão às suas regras bem elaboradas.
— Já tem alguma coisa que possa te ajudar? — Thommas perguntou
chateado.
— Nada. Você pode me ajudar amanhã com o computador? — Liah me
perguntou envergonhada. — Tenho um pouco de receio do que posso achar
ali, mas preciso fazer isso.
Eu jamais diria não. Mesmo que meu lado racional, que ainda não queria
dar o braço a torcer, gritasse para que eu ficasse longe dela. A gente
precisava daqueles limites.
Por que mesmo? A gente nem se odiava mais…
— Claro — foi só o que consegui responder.
Deveria ter adicionado mais um item àquela lista. Esse, sim, me
garantiria sanidade. Deveria ter exigido que nunca, em hipótese alguma,
Liah e eu poderíamos estar sozinhos no mesmo lugar. Porque agora, mesmo
com todos os nossos amigos sentados à mesa grande do refeitório, estava
deixando meus pensamentos tomarem forma. Estava assumindo que minha
resistência a ela já chegava a me causar dor física.
Nathan
Capitulo 24

25 de julho de 2019

Nossa lista de limites não durou uma semana sequer. Na segunda, eu já


havia quebrado uma das regras assim que cruzei a entrada da ONG,
olhando para Liah do jeito que ela me pediu para não olhar. Isso a fez
quebrar outra regra, permitindo que aquela coisa que prendia a gente
olhando um para o outro se estabelecesse.

Agora eu estava aqui, sentado à sua frente com a atenção toda na tela do
laptop aberto sobre a mesa, mas era difícil me concentrar em achar
qualquer coisa ali com os olhos dela em cima de mim.

— O que foi, Liah? — perguntei divertido ao flagrar seu olhar analítico por
tempo demais sobre mim.

— Nada — respondeu apressada enquanto corava absurdamente. — Achou


alguma coisa?

— Acabei de conseguir o acesso ao e-mail. O e-mail salvo no computador,


sem senha, é diferente do e-mail que vimos logado no celular dela. — virei
a tela para ela. — Você sabe melhor do que eu o que está buscando, quer
procurar?

Liah puxou o laptop mais para perto, lendo os assuntos dos primeiros e-
mails na caixa de entrada.

— Sabe a senha? — perguntei enquanto pegava o smartphone com a tela


bloqueada sobre a mesa.

— 1708.

— Seu aniversário?

— Isso é um chute?
— Você faz aniversário exatamente no mesmo dia que a Mia — respondi
sem olhar para ela.

— E como você sabe disso?

Sorri de lado ainda com os olhos baixos, focados no celular em minha mão.

— Escutei Olívia comentando com Mia quando estavam falando da festa


dela. — Subi os olhos, olhando de esguelha para ela. — A informação
ficou na minha memória.

Liah passou a língua pelos lábios, com os olhos presos em mim.

— Para de me olhar desse jeito — pedi nervoso. — É quase impossível me


concentrar nisso, fechado nessa sala com você, se ficar me olhando assim,
não vou responder por mim e vou quebrar essas merdas de limites que você
inventou.

A loira engoliu seco, desviando seus olhos corada. A gente tinha uma
conexão bem intensa, era como se toda a raiva de antes tivesse se
transformado nessa atração bizarra.

Passei longos minutos concentrado em verificar o conteúdo do celular, até


que algo no e-mail chamou minha atenção.

— Liah, achei uma coisa estranha aqui — avisei, puxando a cadeira para
trás da mesa. — Tem um laudo de inquérito policial nesse e-mail.

Mostrei a tela a ela, clicando para abrir o arquivo anexado. O documento


carregou e quando finalmente abriu, Liah se apressou em tirar o celular da
minha mão e correr para o canto da parede.

— O que foi? — perguntei confuso.

— Não quero que veja isso.

— Por quê? — levantei devagar, caminhando a passos curtos até o canto da


sala, preocupado com a reação dela. — O que tem aí?
Liah sacudiu a cabeça em negação, e logo seus olhos se encheram de
lágrimas, me fazendo ficar ainda mais confuso.

— O que foi, Liah? — perguntei nervoso, incerto de me aproximar mais.

— Ela sabia — sussurrou chorando quando tirei o aparelho de sua mão


devagar. — Minha avó sabia sobre o que aconteceu comigo no cemitério.

Olhei surpreso para a garota; um sentimento estranho e dolorido tomando


meu coração ao vê-la chorar sentida daquela jeito.

— Você contou a ela? — perguntei calmamente ao lembrar de quando me


contou que ninguém sabia.

— Não tenho ideia de como ela descobriu. Talvez pelas roupas que ficaram
no meu banheiro e o meu estado depressivo na semana seguinte.

Voltei minha atenção ao laudo na tela, analisando os detalhes mais


evidentes. A narrativa do caso, contado por alguém que nem presenciou, já
era o suficiente para me quebrar ainda mais. A constatação do que foi fácil
observar nela, também estava ali; Lianah era virgem. Mas foram as fotos
das roupas rasgadas e molhadas no chão daquele box, sujas de sangue, e a
foto da calcinha de algodão com algum reagente químico ao sêmen que me
destruíram.

Sem pensar muito no que eu fazia, passei meus braços envolta dela e a
garota voltou a chorar apoiada no meu peito.

Apoiei meu queixo em cima de sua cabeça, a mantendo segura no meu


abraço até que seu choro se acalmasse.

— Você tá melhor? — perguntei me afastando um pouco para olhar em


seus olhos.

— Eu tô bem — respondeu se afastando de mim. — A gente precisa


terminar de olhar esses e-mails.

Olhei para o relógio em meu pulso, vendo que já eram quase 12:00h.
— A gente pode terminar outra hora. Talvez você prefira…

— A gente vai terminar agora — avisou. — Odeio que me coloquem na


figura de frágil e quebrável.

Meu Deus, Liah era louca. Só podia.

— Tommy tem razão, sabia!? — olhei para ela arqueando a sobrancelha


sugestivamente.

— Sobre o quê Tommy tem razão? — perguntou confusa.

— A gente é mais parecido do que imagina. — Sacudi a cabeça debochado.

Liah sorriu, balançando a cabeça em discordância, embora não tenha dito


mais nada sobre isso.

— Desculpa, eu não queria ser grossa. Mas não gosto de ser colocada numa
posição de quebrável ou frágil, Nate. Isso me mata.

— Anotado! — Voltei a sentar na cadeira ao seu lado. — Como sabia que


sua avó descobriu sobre isso? Quando abri o arquivo você já sabia o que
era.

— Sábado, quando te mandei aquela mensagem, eu achei que seria uma


boa ideia ir até a mansão procurar alguma coisa lá. Minha avó tinha alguns
cofres e esconderijos pela casa, e como o fogo tinha se concentrado só de
um lado, tinha esperança de achar alguma coisa. — contou receosa,
testando minha assimilação. — Encontrei esse laudo em um dos cofres na
biblioteca.

— Você foi até a mansão sozinha? — perguntei calmo demais.

— Com a Olívia, na verdade.

— Eu não sei qual de vocês duas tem menos juízo — reclamei baixo. — Eu
te falei duas vezes sobre não andar por aí dando mole para o perigo, Liah.
No Republic depois que você disse que foi seguida até o hotel, e na sexta
quando contei que alguém me seguiu de carro. Mas parece que você gosta
mesmo de se meter onde não deve.

— Olívia não tem ideia que pode existir algum perigo nessa história —
defendeu a amiga. — Eu é que não deveria tê-la envolvido nisso assim.

— E se alguém seguiu vocês? — perguntei exasperado, levantando da


cadeira enquanto levava as mãos ao meu cabelo.

— A gente achou uma porta de madeira estranha do lado de fora, atrás da


casa. Estava fechada por uma corrente muito grossa e um cadeado gigante e
velho de ferro maciço. Se alguém viu a gente, já tentou entrar lá.

— Liah, eu tô falando sério! — A olhei com a expressão mais dura que eu


podia. — Não se coloca em risco dessa forma. Se quiser fazer uma loucura
dessa, me avisa que vou com você, mas não faz isso sozinha. Você deve
saber que Carlton está investigando pelo lado da polícia também. Aquela
policial que esteve aqui, a Rose, ela está entre os suspeitos dele. Por isso
Tommy e eu agimos daquele jeito, espantando a mulher. E eu desconfio que
tenha muito mais nessa história, coisas que Carl evita me contar com medo
de que eu me envolva ainda mais nisso. Existe um risco de verdade nessa
situação. Um risco que não quero que você corra, Liah.

A garota arfou e seus olhos voltaram a se encher de lágrimas.

— Desculpa, Nathan. Eu não vou mais fazer essas loucuras, tá? Uma parte
de mim recusa enxergar esse perigo. Não sei como cheguei a esse ponto.

Suspirei, mordendo meus lábios nervoso.

— Essa porta que vocês acharam, acha que pode ter algo lá? — perguntei,
incerto sobre tocar no assunto.

— Acho que sim. Morei lá por toda a minha vida e nunca tinha visto aquela
entrada.

— Vou falar com Carl sobre isso e ver o que ele acha, tudo bem?

Liah negou nervosa, se agitando antes de falar.


— A gente pode manter isso entre a gente por enquanto?

— Você não cogita voltar lá sozinha, não é? — Apertei meus olhos


desconfiado.

— Não, não pretendo — negou, mordendo a bochecha, enquanto eu sentia


a tensão aumentar. — Não quero que ninguém na polícia saiba ainda desse
lugar.

— Ok! — respondi devagar, a encarando pensativo. — Não vou falar nada,


por enquanto.

— Acho melhor a gente ir almoçar. Ainda vai pra App hoje?

— Não. Vou pra casa ficar um pouco com a Triss, acho que a gente só
passa um tempo junto quando ela está no estágio.

Um sorriso aberto se projetou em seus lábios bonitos, quando fui até a


porta, abrindo e esperando por ela.

— Você seria um ótimo pai — deixou escapar enquanto levantava,


tampando a boca em seguida. — Desculpa, não quis…

— Liah, relaxa — sorri divertido, satisfeito em saber que ela pensava isso.
— Normalmente eu ficaria puto por isso, mas até gosto de saber que essa é
a sua opinião.

A loira passou por mim e seguimos pelo corredor até o refeitório no andar
de cima. Ethan, Thommas, Olie, Evie e Karol estavam aqui hoje.

Será que Liah percebia a teia que ela criou? A forma que essa mulher atraía
as pessoas para sua vida, deveria ser estudada.

Nos juntamos aos nossos amigos na mesa grande do refeitório enquanto


eles nos olhavam como se fossemos dois extraterrestres, simplesmente por
estarmos conversando civilizadamente.

Mas toda a animação durou pouco tempo.


A sensação gelada que me tomou logo que sentei e duas mãos frias
apertaram meus ombros, fez meu estômago se embrulhar e toda a fome ir
embora.

— Quanto tempo não vejo vocês todos juntos.

— Acabou o clima. — Olie afastou o prato de sua frente, pronta para


levantar.

— Sei que não sou bem-vinda, Olívia — Camille disse apertando meus
ombros com mais força.

Só tira a mão de mim.

— E tá fazendo o que aqui ainda? — Tommy perguntou revirando os olhos


para ela.

Percebi que Liah me encarava atentamente, estudando minha reação


enquanto tudo que podia fazer era ficar parado, congelado, rezando para
que ela me soltasse antes que eu tivesse outra crise.

Nunca iria lembrar que às quintas Camille estava aqui. A ONG era um
refúgio, era injusto que estivesse corrompido por ela agora.

— Só vim falar com o Nathan uma coisa importante. — Antes que eu


pudesse raciocinar, senti sua respiração próxima demais do meu pescoço. E
então sua voz sussurrada no meu ouvido quase me afogou de vez no poço
escuro. — A gente pode recomeçar. Nos dávamos bem, Nate. Podemos
adotar uma criança juntos. Ainda lembro das suas mãos em mim, Nathan.

Fechei meus olhos com força, sentindo a repulsa me atingir à medida que
suas mãos se fechavam com mais força nos meus ombros.

— Sai de perto de mim — mandei, sentindo minha voz firme pela raiva
repentina.

Camille se afastou e percebi todos os olhares atentos sobre nós dois. Sem
me conter, empurrei a cadeira com o corpo e saí do refeitório às pressas,
sem olhar para trás.
Eu precisava respirar e esquecer a loucura dela antes que começasse a me
afogar de novo. Eu não queria mais visitar aquele poço, não agora que
havia passado tanto tempo na superfície.

Separador

Triss foi uma boa distração durante a tarde. Ao menos, eu tinha me livrado
da sensação sufocante quando passamos horas jogando vídeo game juntos
no loft. Tinham anos que eu não fazia nada assim.

Tia Sophia também tinha passado aqui, me cobrando aparecer mais vezes e
reclamando que agora também sentia falta de ver Triss.

Foi só quando deitei para dormir, de banho tomado, que a ansiedade voltou
a me assolar.

Revirei na cama, agitado e com todo o sono extinto. Tentei ler algumas
páginas de um livro, mas ansiedade não me deixava concentrar. Tentei ver
TV, mas o som estava me irritando. Liguei o laptop para trabalhar, mas as
lembranças da tarde me atingiram.

Não as lembranças da fala ensandecida de Camille, mas a lembrança das


fotos no laudo do inquérito do abuso de Liah.

Senti meu coração se contrair ao lembrar da dor nos olhos dela.

Eu já não aguentava mais manter aqueles limites. Não aguentava mais


fingir que Liah não mexia comigo e me fazia querer desesperadamente me
afundar em seu corpo. Mas ela tinha medo. E eu tinha medo por ela.

Não queria abrir ainda mais as feridas dela, e tinha medo de fazê-la lembrar
o que aconteceu. Não costumava ser um cara muito controlado no sexo, e
Deus sabe a força que fiz para não ser um babaca naquele dia na loja.
Ainda não conseguia entender como Liah teve a coragem de entregar sua
primeira vez para mim.

Eu deveria aceitar aquela distância, deveria manter em mente que Liah


estava fragilizada, mas tudo que eu queria era mandar aqueles limites para
a casa do caralho e fodê-la do meu jeito, até ter certeza de que estava
saciado.

Meu celular vibrou sobre a cômoda, me tirando do rumo dos pensamentos


errados. Fui até ele, e sorri desacreditado ao ver o nome na tela.

Aquela praga tinha acesso à minha cabeça, só podia.

— Oi — atendi desconfiado.

— Oi — sua voz soou baixinho do outro lado. — Desculpa a hora. Te


acordei?

— Não, estava acordado. Tá tudo bem? — perguntei preocupado ao sentir


seu tom receoso.

— Camille me contou o que te disse hoje, queria saber se está tudo bem
com você.

Senti meu rosto doer com o sorriso que rasgou minha boca.

Ela estava preocupada comigo?

— Você é intrometida mesmo, né? — Não contive o riso sarcástico.

— Eu só fiquei preocupada, idiota!

— Esquece isso, Liah. Eu tô bem.

Um suspiro profundo cortou a ligação.

— Ela tá proibida de entrar na ONG.

— Não precisa fazer isso por minha causa.

Mais um suspiro.

— Tô fazendo por todos nós. Ninguém quer te ver naquele estado.


— Obrigado — agradeci sincero, enquanto deitava na cama de qualquer
jeito, olhando para o teto.

— Nathan…

Alguns segundos de silêncio total se seguiram.

— Ainda tá aí? — perguntei ansioso.

— Aquele dia na loja… você perguntou se eu iria mesmo entregar minha


única chance de primeira vez pra um cara que eu odiava.

Meu coração acelerou a ponto de parecer uma britadeira no meu peito. Ela
tinha se arrependido… sabia que isso ia acontecer.

— Você se arrependeu, não foi? — confirmei chateado.

— Não — quase podia ouvir o receio em sua voz. — É que você disse
alguém que você odeia, quando poderia ter dito alguém que odeia você.

Era isso?! Eu nunca teria permitido que ela se entregasse daquele jeito se
eu a odiasse. Nunca faria isso com ela sabendo o que tinha passado.

— Liah, eu não od…

— Não diz! — pediu desesperada, me interrompendo.

— Por que não? — questionei confuso.

— Porque toda vez que você diz, uma parte de mim quer se agarrar a isso
com todas as minhas forças. E por alguma razão maluca, tudo que consigo
pensar é em pular no seu pescoço e te beijar.

Caralho.

Eu gostava dessa Liah direta. O problema é que isso me afetava tanto, que
era capaz de me deixar duro até no meio de uma conversa séria.
— Pelo telefone não existe esse risco — comentei, tentando entender se
isso me afetava de uma forma positiva ou negativa.

Escutei sua risadinha do outro lado, seguida de um suspiro mais longo.

— Vou dormir — sua voz soou calma. — Boa noite, Nate.

Nate.

— Boa noite, Liah — respondi, engolindo seco ao ouvir o som da chamada


encerrada.

Nem preciso dizer que depois disso foi impossível dormir. Lianah dava um
jeito de atormentar ainda mais minha cabeça todos os dias.

Incomodado com minha agitação, resolvi ir para a cozinha atrás de um chá


ou qualquer outra merda que pudesse me fazer dormir.

— Perdeu o sono? — Triss perguntou ao me ver atravessar para trás do


balcão.

A menina estava sentada em uma das banquetas altas, mexendo no celular


com um pote de biscoito de chocolate aberto à sua frente.

— Acho que nem cheguei a ter — respondi, sentando ao seu lado.

Enfiei a mão no pote, pegando um dos biscoitos.

— Com fome?

— É só ansiedade. — Olhei para ela, e então para o pote de biscoito. — Se


Olívia souber que tô te deixando comer esses biscoitos cheios de açúcar
quase na madrugada, ela me mata.

— A melhor coisa de estar aqui é que não preciso mais contrabandear


biscoitos do lanche para o quarto — deu de ombros, rindo.

— Ah, então quer dizer que a melhor coisa de eu ter te adotado é minha
comida, Beatriss?
A garota riu, deitando a cabeça no meu ombro.

— Me conta o que tá acontecendo.

— Eu até queria, mas excede o limite do tipo de conversa que posso ter
com você.

Triss levantou a cabeça me analisando.

— Não quer nem tentar?

Mordi o biscoito, pensativo. Como falar para uma adolescente de dezesseis


anos que eu tinha um conflito entre raiva e tesão dentro de mim?

— Você já quis tanto uma coisa mesmo sabendo que era errado?

A garota me deu um sorriso grande enquanto me entregava outro biscoito.

— Todo mundo já quis algo errado na vida, ao menos uma vez, Nate.

— Eu já quis muitas — dei de ombros. — Mas essa me assusta.

— Você não é o tipo de pessoa que deixa passar o que quer.

Eu realmente não era. Mas o ponto é que era difícil aceitar que eu
realmente queria ir atrás dela. Toda aquela intensidade estava me
consumindo.

— E se ela se assustar?

A pergunta foi para mim, nem era para ter saído em voz alta, mas Triss
soltou uma risadinha empurrando meu ombro.

— Vai atrás dela logo, Nathan.

Analisei sua feição incentivadora. Triss tinha razão, eu devia mesmo ir.

Liah disse que pularia no meu pescoço se eu dissesse. Era só isso que eu
tinha que fazer, porque eu tinha certeza que aquela tensão a estava
consumindo da mesma forma que fazia comigo.

— Tudo bem se eu te deixar sozinha aqui por algumas horas?

— Tenho quase dezessete anos, Nathan. Vai logo.

Nervoso, levantei da banqueta e analisei minha roupa. A calça de moletom


e a blusa de malha iam ter que servir. Não pretendia ficar com elas de
qualquer forma.

Tive menos de um minuto para correr até o quarto e abrir a gaveta da


cômoda. Eu estava sendo pretensioso, eu sei. Mas se ela estivesse falando a
verdade sobre o efeito que aquelas palavras causavam nela, eu realmente
precisaria das camisinhas.

Voltei para a sala e enfiei meu celular no bolso da calça, peguei a chave do
carro em cima do aparador e abri a porta da sala agitado, voltando minha
atenção para a garota que me olhava segurando uma risada.

— Não abre a porta pra estranhos e mantêm trancada. Você tem a senha da
fechadura no aplicativo…

— Só vai, Nate.

Eu fui.

Dirigi pelas ruas de Greenville, quase cruzando a cidade toda até o hotel
que estive um tempo atrás.

Chegar ali era fácil, difícil seria Liah me atender sem saber que eu estava
na porta. Eu faria o que afinal? Bateria em sua porta quase às 02:00h da
manhã, sem nenhuma explicação?

Eu poderia ligar antes. A acordaria sem pena, porque eu precisava me


afogar nela pelo menos mais uma vez, precisava tirar aquela necessidade de
mim. Mas eu queria que ela abrisse a porta e ficasse surpresa ao me ver ali.
Queria que ela escutasse as exatas palavras que eu deveria ter dito mais
cedo ao telefone. Eu precisava ver o momento em que suas pupilas se
dilatariam e seus olhos se tornariam negros, tomados pelo desejo. Queria
que o tempo congelasse no exato segundo em que ela tomaria sua decisão e
escolheria pular no meu pescoço.

Deixei o carro com o manobrista, e atravessei o saguão do hotel direto para


os elevadores, sem me preocupar se precisava ou não me identificar na
recepção. Apenas entrei naquele elevador e apertei o botão do décimo
quarto andar.

Contei, ansioso, todos os andares até que a caixa cromada apitou e as portas
se abriram quase de frente para o número que brilhava na porta: 1406.

Agora que estava parado ali, no silêncio do corredor escuro, eu podia ouvir
o barulho da televisão ligada lá dentro, me fazendo questionar se ela
também não havia conseguido dormir. Respirei fundo antes de dar duas
batidinhas e apoiar meus braços nos batentes da porta.

Esperei pacientemente por uns quinze segundos - quem é que estava


contando? - até que o barulho no trinco fez meu coração parar e minha
respiração ficar travada na garganta. A porta abriu devagar, até que eu
tivesse a visão total de seu rosto, me encarando em choque.

Liah não disse nada, apenas engoliu seco e abriu um pouco a boca em
espanto. Nos perdemos totalmente naquela conexão segundos antes de
fazer o que realmente me trouxe aqui.

— Eu não odeio você!

Deixei as palavras escaparem, minha voz rouca denunciando toda a tensão


que me consumia.

As orbes azuis desceram dos meus olhos para a minha boca, e voltaram
quando mordeu os lábios de um jeito sexy.

Deixei meus olhos analisarem seu corpo, mal escondido por uma camisola
verde clarinha que mal cobria suas coxas.

Gostosa.
Não contive um sorriso safado quando voltei a olhar em seus olhos e eles
estavam muito mais escuros que o normal. Liah sorriu quando tomou sua
decisão, esticando o braço para puxar a gola da minha camisa para baixo,
fazendo exatamente o que disse que faria.

Suas pernas se enroscaram em minha cintura quando pulou no meu colo, e


a segurei pela bunda, beijando sua boca com tudo de mim, entrando com
ela em seu quarto.

Suas coxas ficariam com a marca dos meus dedos só por aquele beijo e o
jeito que eu a mantinha enroscada em mim. Se eu estivesse de jeans, meu
pau estaria completamente dolorido e torturado agora.

Caminhei direto para o sofá da ante sala, sentando com ela no meu colo.
Liah afastou sua boca da minha só para poder puxar minha camisa para
fora. A ajudei a tirar a peça de mim enquanto ela ainda rebolava no meu
colo.

Sua respiração quente atingiu a pele do meu pescoço quando deixou alguns
beijos por ali. Deixei que ela brincasse comigo como quisesse, tentando
entender do que ela gostava.

Soltei um grunhido quando seus lábios se fecharam, chupando a pele do


meu pescoço com vontade e se esfregou ainda mais intensamente no meu
colo. Eu tinha certeza que meu pau ia rasgar a bóxer se continuasse
apertado daquele jeito lá dentro, e ela também sentiu isso, porque logo
chegou o corpo um pouco para trás.

— Você tá tão… tão… — Liah arfou, encarando o volume da minha calça.

— Duro? — Ergui uma sobrancelha para ela. — Eu atravessei essa cidade


com um tesão do caralho porque você disse que queria pular no meu
pescoço e me beijar, Liah.

Agarrei o tecido fino da camisola, passando pelo seu corpo e pelos seus
braços até que ela estivesse apenas de calcinha em cima de mim.

— Eu quero mais que isso agora.


Sorri do jeito mais safado que eu podia, descendo minha boca pelo seu
queixo, pelo seu pescoço, pelo seu colo, até chegar no bico intumescido do
seu seio redondo.

Passei a língua devagar sobre cada um deles, vendo o olhar vidrado de Liah
por todo o caminho que fazia. Mordi de leve, puxando o bico entre meus
dentes e um gemido gostoso escapou dela.

— Preciso que me diga do que gosta — avisei, com medo de assustá-la.

— Eu não tenho ideia, Nathan… — um gemido longo cortou sua fala


quando chupei o bico com mais força — isso, eu gosto disso.

Liah puxou meu cabelo desesperada, me fazendo voltar a beijá-la.


Aproveitei para infiltrar meus dedos para dentro da calcinha pequena,
espalhando sua lubrificação.

— E disso? — perguntei em sua boca quando enfiei dois dedos em sua


boceta gostosa, movendo-os devagar.

— É bom — respondeu com dificuldade quando usei o polegar para


estimular seu clitóris inchado. — Muito bom.

Eu tinha tudo planejado para ensiná-la a explorar aquelas sensações, mas


perdi totalmente meu rumo quando suas mãos pequenas se infiltraram para
dentro da minha calça, ultrapassando a barreira da bóxer e seus dedos
quentes se fecharam ao redor do meu pau.

Arfei, ainda com a boca dela grudada na minha. Suas mãos se encarregando
de puxar minha calça e a cueca para baixo enquanto eu levantava o corpo
como podia para ajudar.

Liah se afastou de mim, me obrigando a tirar meus dedos de dentro dela,


melados e impregnados com seu cheiro apimentado. A garota se contorceu
no meu colo, dando um jeito de tirar a calcinha dela mesma, e então se
ajeitou mais para a frente, voltando a se esfregar em mim.
Senti meu pau se molhando com sua lubrificação e a afastei no mesmo
segundo, com medo de fazer merda.

— Camisinha — avisei, retirando o fardo que trouxe comigo do bolso da


calça.

— Você veio mal-intencionado? — Liah perguntou de um jeito engraçado,


quando pegou as embalagens, olhando as cinco camisinhas conectadas em
sequência.

Sorri de lado, percebendo sua provocação. A loira destacou uma das


embalagens e rasgou a parte de cima retirando o círculo de látex de dentro.

Mesmo insegura, Liah massageou meu pau devagar, esfregando o dedão


sobre o líquido brilhante em minha glande. Meus olhos seguiram o
caminho do seu dedo sujo até a boca, quando chupou formando um
biquinho com os lábios e fechou os olhos sentindo meu gosto.

— Porra, Liah — Joguei a cabeça para trás, tentando manter o controle.—–


Eu preciso te foder.

Senti suas mãos deslizarem o látex pelo meu pau devagar, se enrolando um
pouco por ser a primeira vez que fazia aquilo.

— Você se controla tanto. — Levantei a cabeça, buscando seus olhos ao


escutar a voz suave. — Por quê? Aquele dia na loja, você não me fodeu de
verdade.

— Como pode ter tanta certeza?

Me surpreendendo ainda mais, Liah se encaixou no meu colo, sentando


devagar em mim, apertando meu pau à medida que ia descendo.

— Seus olhos — disse quando eu estava completamente dentro dela. — Eu


te vi perder o controle mais de uma vez, sei exatamente quando está se
controlando.

Fechei os olhos, arfando desacreditado quando Liah se contraiu ao redor do


meu pau, me fazendo sentir completamente esmagado dentro dela.
— Não faz isso — pedi, apertando meus dedos na carne da sua bunda,
fazendo-a rebolar sobre mim.

— Não faz o quê? — perguntou confusa.

— Porra, como você faz isso sem… — caralho! Perdi totalmente o


raciocínio quando ela fez de novo. — Para! — avisei.

A garota franziu a testa, tentando se afastar de mim, mas a puxei de volta.

— Quando você se contrai desse jeito envolta do meu pau — expliquei,


engolindo seco. — Você é capaz de me fazer gozar só desse jeito.

Liah me olhou corada, afundando o rosto no meu pescoço quando a ajudei


a subir e descer em mim.

Desesperado, e mantendo todo o controle que ainda era possível, subi uma
mão para seus cabelos, agarrando os fios dourados de sua nuca e puxei sua
cabeça para trás sem muita força. Sabia que ela gostava daquilo, porque a
filha da mãe contraiu a boceta de novo, esmagando meu pau.

Com seu pescoço exposto, raspei meus dentes por sua pele, deixando beijos
e alguns chupões pelo caminho enquanto a fazia subir e descer mais rápido.
Seus gemidos no meu ouvido eram como música, uma que tocava no meu
âmago e me fazia sentir totalmente satisfeito por pensar que eu era o cara
que estava fazendo aquilo com ela.

Liah estava totalmente entregue, de olhos fechados e ofegante; os dedos


travados no estofado do sofá às minhas costas.

— Abre os olhos pra mim — pedi, quase colando nossas bocas de novo.

A garota obedeceu, me encarando cheia de desejo, contraindo de novo seus


músculos internos.

— Desculpa, não é intencional — se ela não tivesse se contraído de novo e


sorrido daquele jeito, eu até teria acreditado.

Que safada.
Tentando manter minha sanidade, a tirei de cima de mim, levantando com
ela ainda no meu colo. A coloquei de pé no chão no meio da ante sala, a
beijando enquanto a empurrava em direção ao aparador do outro lado.

Virei-a para a parede, colando minha boca em seu pescoço e inclinando seu
corpo sobre o tampo de vidro do móvel luxuoso.

Liah arfou e soltou um gemido baixinho quando afastei suas pernas com as
minhas e me enfiei de qualquer jeito em sua boceta ainda mais apertada
pela posição.

Eu não podia perder meu controle, mas podia brincar um pouco e explorá-
la até entender suas limitações.

Puxei seus cabelos com um pouco mais de força, colando suas costas no
meu peito enquanto estabelecia um ritmo mais rápido das minhas
investidas.

— Quer mesmo que eu te foda? — perguntei em seu ouvido.

Liah se contraiu ainda mais forte e soltou um gemido alto.

Era uma forma interessante de encontrar o padrão dela. Ela se contraía mais
e não segurava os gemidos quando gostava de alguma coisa.

Quando transamos na loja, eu só achei que ela era extremamente apertada e


que aquelas contrações, era o resultado da primeira vez aguardada por tanto
tempo. Mas ainda que ela não tivesse ideia, aquilo era gostoso pra caralho.

— Você gosta quando falo essas coisas sujas, não é?

Outro gemido mais alto escapou dela, e a garota projetou os quadris para
trás rebolando a bunda gostosa enquanto eu metia mais fundo.

— Responde, linda, você gosta? — sussurrei em seu ouvido, descendo


minha mão pela sua barriga até alcançar seu clitóris.

— Gosto — respondeu com um fio de voz apenas.


— Eu sei que gosta. — Esfreguei seu nervo sensível com mais força — sua
boceta aperta meu pau pra caralho toda vez que eu falo.

Liah gemeu se contraindo, me levando à beira do orgasmo. Sorri, enfiando


meu rosto em seu pescoço e aspirando seu cheiro apimentado de canela.
Ela não tinha ideia do quanto aquele cheiro tinha me viciado.

— E se eu te pedir pra falar pra mim? — perguntei baixinho, diminuindo o


ritmo que a fodia.

— Falar o quê? — apesar de seu tom envergonhado, continuou se


contraindo em volta do meu pau.

— Me diz o que quer que eu faça com você.

— Não consigo… — Liah ofegou quando voltei a investir mais rápido,


sentindo-a ficar mais molhada. — Eu não sei o que…

Sua voz se perdeu na vergonha, me fazendo entender que a timidez ainda


era uma questão para ela. Não era um problema, com o tempo ela se
soltaria.

— Shiiii — disse baixinho em seu ouvido quando ainda tentou se justificar.


— Tá tudo bem, eu posso falar por nós dois.

Com a mão direita travada em seus cabelos e a esquerda trabalhando


freneticamente em seu clitóris, passei a investir ainda mais forte, mantendo
um ritmo cadenciado sobre ela. Liah ficou ainda mais apertada e ofegante,
denunciando que seu orgasmo também estava próximo.

— Goza pra mim — pedi, beijando seu pescoço.

— Nate…

— Eu disse que não ia te deixar mais esquecer meu nome.

Sua boceta apertou tão forte meu pau que foi impossível não gozar. Liah
gemeu mais alto, arfando e se contorcendo enquanto gozava junto comigo.
Praticamente sem ar e com as pernas tremendo, enlacei seu corpo e beijei
sua bochecha, vendo seu sorriso aumentar. Saí de dentro dela, virando seu
corpo pequeno para mim.

— Tá tudo bem? — perguntei ao vê-la corada.

— Não vou quebrar, fica tranquilo — respondeu sorrindo e afundou o rosto


em meu peito me abraçando.

Passei meus braços em volta de sua cintura, puxando seu corpo para o meu
colo.

— Sono? — perguntei ao vê-la bocejar.

A loira assentiu, se aninhando com as pernas em volta da minha cintura.

— Vai ficar? — perguntou cheirando meu pescoço.

— Não posso, a Triss tá sozinha em casa — avisei enquanto a carregava


para a cama.

Soltei seu corpo devagar sobre o colchão, e me separei dela sorrindo antes
de ir até o banheiro me livrar da camisinha.

Quando voltei para o quarto, Liah estava encolhida sobre a cama me


encarando com os olhos brilhando.

— Estamos bem? — perguntei a ela, me sentando ao seu lado.

— O que estamos fazendo, Nathan? Temos uma lista de limites, lembra?

Soltei uma gargalhada alta, sacudindo a cabeça.

Um tempo atrás havia dito a ela que beijar sua boca era como uma droga; e
eu não poderia estar mais certo. Só que era uma droga leve, porque depois
de ter descoberto o efeito do que podia sentir quando me afundava em seu
corpo quente, tive certeza de que havia outra, trilhões de vezes mais
potente.
E eu estava viciado.

— Acabamos de mandar essa lista inteira para o espaço. Mas vou dar um
tempo pra você colocar essa cabeça no lugar e aceitar que, isso aqui… —
fiz um gesto, apontando de mim para ela — não tem mais jeito.

Liah arregalou os olhos, mas antes que ela pudesse retrucar, fechei minha
mão no seu queixo, apertando sua bochecha de leve e deixei um beijo
estalado em sua boca.

— Boa noite, linda. Sonha comigo, tá?!

Liah sorriu quando pisquei um olho para ela, e segui para a sala pronto para
vestir minha roupa e ir dormir tranquilo.
26 de julho de 2019
Alguns sentimentos podem ser desastrosos, principalmente quando são
intensos a ponto de enlouquecer alguém.
Me corroí por dentro desde o sábado anterior, culpada pela forma que
enviei aquela mensagem a Nathan. Precisava admitir que aquela fuga era
consequência de uma parte medrosa de mim. Eu continuava tendo receio de
que ele me acusasse da destruição da sua vida, porque eu não tinha
argumentos contra aquilo. Aconteceu, e, portanto, era um fato.
A fuga, no entanto, não foi calculada. Eu realmente queria ir à mansão e
tentar achar qualquer coisa que me ajudasse o mais rápido possível. Depois
veio o medo de sempre, a culpa pelo que tinha acontecido a ele. Só não
imaginava que passaria a semana inteira remoendo o medo de Nathan
perder o interesse em mim e tratar o que aconteceu como faria mais sentido;
sendo apenas uma noite de sexo.
Nossa lista de limites não durou uma semana sequer. Na segunda,
Nathan já havia quebrado uma das regras assim que cruzou a entrada da
ONG, me olhando de um jeito que deveria ser pecado. Isso me fez quebrar
outra regra, permitindo que aquela coisa que prendia a gente olhando um
para o outro se estabelecesse.
Passei o resto da noite em claro depois dele ter me deixado deitada na
cama do mesmo jeito que chegou naquele hotel; do nada.
Nathaniel Petterson simplesmente apareceu na minha porta e disse “eu
não odeio você”.
Ainda não tinha muita certeza do que ele quis dizer quando falou que a
gente não tinha mais jeito; meu cérebro gritava um alerta de que eu estava
me deixando levar rápido demais, mas aquilo entre a gente não podia ser
normal. Era tudo tão intenso e tão gostoso quando estávamos juntos.
Nathan foi o único cara que tinha me feito desejar sexo na vida, mas era
muito mais que isso. Eu não tinha medo dele, não tinha receio do que podia
me fazer e sabia que mesmo com todas aquelas crises, nunca faria mal a
alguém intencionalmente.
— Está distraída, amiga — Olívia comentou ao perceber que não tinha
prestado a mínima atenção ao que ela falava.
— Desculpa.
Senti meu rosto esquentar ao lembrar da última noite e prendi meu
cabelo num coque alto para voltar minha atenção ao documento sobre a
mesa.
Olívia soltou um risinho, me fazendo olhar para ela irritada.
— Liah, por que tem uma marca roxa no seu pescoço?
Merda. Senti meu rosto esquentar e tinha certeza que estava parecendo
um tomate ambulante. Nathan deixou meu pescoço marcado?
Com os olhos arregalados, levantei da cadeira correndo até o banheiro da
minha sala, esticando meu pescoço para analisar o pedaço de pele marcada.
Filho da mãe.
A marca estava quase abaixo da minha orelha e tinha uma coloração
roxo claro, mas tinha certeza que ainda ia ficar pior depois. Nem era tão
grande, mas o contraste com minha pele clara demais fazia com que
chamasse atenção para aquele ponto.
— O médico é tão bom assim? — Olie perguntou alto demais lá da sala.
Se ela soubesse quem tinha realmente feito aquela marca…
— Acho que tenho uma base na bolsa — comentei enquanto buscava
minha bolsa largada no sofá. — Vou cobrir isso.
Assim que encontrei a base, Olívia a tirou da minha mão dizendo para eu
sentar no sofá e que ia me ajudar.
A morena despejou uma quantidade grande no meu pescoço e começou a
bater a esponja para espalhar.
Um barulho na porta chamou nossa atenção quando foi aberta e Mia e
Triss apareceram.
— Que houve? — Mia perguntou franzindo a testa para o meu pescoço
esticado e a provável marca ainda evidente.
— Parece que alguém resolveu brincar de sangue suga com o pescoço da
Liah — Olie respondeu rindo, enquanto mostrava minha nuca a elas. — É
melhor não prender o cabelo, porque atrás está bem pior.
— Sério? — Soltei um gemido raivoso, usando as mãos para esconder
meu pescoço.—
— A noite foi boa, pelo visto — Triss comentou, me encarando com um
sorrisinho traiçoeiro.
Ela sabia. Ela sabia que Nathan saiu de madrugada. Eu podia ver na
cara dela que ela sabia.
Desviei do seu olhar analítico, me sentindo desesperada de vergonha.
Se eu soubesse que aqueles beijos iam me deixar marcada desse jeito,
nunca teria deixado que ele fizesse. Como ia explicar isso agora?
— Vou procurar alguns amigos que queria dizer um oi — Triss avisou,
saindo da sala na mesma hora que Evie, Karol, Ethan, Thommas e Nathan
entraram um atrás do outro.
Senti meu corpo gelar.
— Por que está todo mundo aqui? — perguntei desesperada a Olívia.
— Convoquei uma reunião para a gente falar do orçamento da ONG, já
que os meninos estão ajudando e tem toda a questão da investigação.
— Está tudo bem? — Ethan perguntou ao reparar no amontoado das
meninas em volta de mim.
— Tá! — saí do meio delas, soltando o coque e ajeitando meu cabelo
para cobrir as marcas.
— Porque tá todo mundo na minha sala e não na de reunião? —
questionei Olívia, começando a me sentir irritada.
— A gente vai fazer a reunião aqui — Olie virou de costas, encarando as
pessoas se acomodando de qualquer jeito pela minha sala. — A sala de
reunião está ocupada com uma reunião dos professores do nono ano e…
ESPERA AÍ!
Dei um pulo com o susto pelo seu grito repentino. Olivia apertou os
olhos para mim, e abriu a boca desacreditada. Toda a atenção da sala agora
era dela.
— O que foi, garota? — perguntei assustada.
Olie me puxou pelo braço apontando para a figura do homem que havia
acabado de virar em nossa direção, onde duas marcas roxas também
estavam evidentes na lateral de seu pescoço. Merda. Merda. Merda.
Deixei minha cabeça cair de lado, analisando as marcas, tentando
lembrar em que momento fiz aquilo.
Mia soltou um chiado, apertando os olhos para mim. Deus. A garota
chegou perto da gente para soltar baixinho:
— Parece que resolveram brincar de sangue suga no pescoço do meu
irmão também. Que coincidência.
As pessoas do outro lado da sala nos olhavam confusas, totalmente
alheias ao que estava sendo cochichado entre nós três.
Evitei, de todas as formar possíveis, deixar que meu olhar cruzasse com
o de Nathan, porque eu sabia que ficaria ainda mais vermelha e jogaria pelo
ralo qualquer chance de justificar uma improvável coincidência.
— Você sabe o que estou pensando, não sabe? — Olie perguntou
cruzando os braços para me encarar.
— Algum absurdo que nunca seria verdade?!
Saí de perto delas, indo pegar os últimos relatórios financeiros sobre
minha mesa, tentando desviar do assunto. Por sorte, Olívia se limitou a
soltar um suspiro e me ajudar a encontrar os relatórios na minha bagunça.
Quando larguei meu corpo na cadeira estofada, percebi que todos já
estavam acomodados. Ethan e Thommas, sentaram nas cadeiras em frente à
mesa; Nathan, Evie e Karol sentaram amontoados no sofá e Mia se jogou
no colo do irmão. A garota sussurrou alguma coisa no ouvido dele, que
arqueou as sobrancelhas para ela e sorriu sem graça, quando me forcei a
desviar o foco deles, prestando atenção no que Olívia tinha para dizer.
Quando terminamos, Evie avisou que ia almoçar porque precisava voltar
para a consultoria e ela e Karol foram as primeiras a deixar minha sala.
Mia voltou a dizer alguma coisa no ouvido do irmão e então me olhou
sorrindo maliciosa antes de ir embora. Desviei sentindo meu rosto
esquentar.
Ethan e Thommas também avisaram que iam almoçar e voltar para a App
por causa de alguma reunião e Ethan perguntou se Nathan ia com eles.
Evitei prestar atenção demais naquela interação porque eu sabia que Olívia
estava de olho em mim, mas acho que não deu muito certo, porque a
maluca chamou Ethan e Thommy e saíram os dois da sala com ela.
Logo que percebi a situação, me apressei em sair da sala também, mas
Nathan já estava fechando a porta e me empurrando pelos ombros.
— Qual seu problema? Vai mesmo fingir que eu não existo agora? —
perguntou, levantando meu queixo para encará-lo.
— A gente tinha uma lista… — minha voz foi morrendo conforme a
minha ficha ia caindo.
Eu ainda tinha medo, ainda acreditava que ele ia sair me acusando e
validar toda minha culpa.
— Tenho medo de…
— Sério que depois de tudo você ainda vai ter medo de mim? — me
interrompeu chateado.
— O que a gente está fazendo? Isso aqui, Nathan… nós dois, não faz
sentido nenhum…
— Me dá um motivo — seus olhos intensos me perfuraram, e Nathan
cruzou os braços assumindo um tom mais sério. — Eu tô há dias tentando
me convencer que não faz sentido, Liah. Mas toda vez que te vejo parece
que a única coisa que não faz sentido é estabelecer um limite que nos
mantenha afastado quando tudo que quero é me aproximar.
Engoli seco, travando minha respiração na garganta. Eu não estava
preparada para aquela declaração tão explícita dele. Não pareceu, sequer
por um segundo, que fosse difícil para ele dizer aquelas palavras. Nathan
estava decidido, e era fácil enxergar isso em seu rosto bonito.
Meu corpo parecia uma gelatina chacoalhada de tão mole e de tanto
tremor. Senti que meu coração podia parar a qualquer segundo.
— É um sistema de autodefesa. Tenho medo de você culpar pra mim de
novo, dizer que sou culpada da morte do seu filho. Essa culpa é o que me
corrói todos os dias.
— Não foi sua intenção.
— Então agora você não me culpa mais?
Nathan deu alguns passos para frente, invadindo meu espaço pessoal.
Uma de suas mãos subiu de volta para o meu queixo, levantando meu rosto;
seus dedos acariciando minha bochecha.
— Juro que tento manter distância de você desde o primeiro dia que te vi
naquele bar — seus olhos se apertaram e um sorrisinho de canto levantou
seus lábios. — Mas você me atrai de um jeito tão inexplicável. Você tomou
conta de tudo, da minha cabeça, dos meus pensamentos, até dos meus
pesadelos. Eu tentei te odiar, Liah. Tentei me convencer de que você era a
pior pessoa do mundo, mas tudo que consegui foi me afundar ainda mais
em você.
Cada pelo do meu corpo se arrepiou com aquela confissão. Nathan não
era o tipo de cara que fazia rodeio para falar o que sentia.
Seus olhos me alcançavam de um jeito tão profundo que chegava a
pensar que ele podia ver minha alma daquele jeito.
Ele me deu tempo suficiente para pensar antes que estivesse me puxando
pela cintura. Sua boca encontrou a minha, me beijando de um jeito
totalmente novo. Não era só desejo, não era só para suprir toda aquela
tensão que vivia nos rondando. Nathan me beijou como se precisasse
daquele beijo para sobreviver.
Foi lento, exploratório, cheio de um sentimento novo.
Seu braço direito me mantinha segura contra seu corpo; a mão esquerda
ainda acariciando meu pescoço e minha bochecha. Meu estômago se
revirou, e eu tinha certeza que aquela era a tal sensação de borboletas
batendo as asas.
Não sei dizer por quanto tempo ficamos daquele jeito, e só nos
separamos pela ausência de ar que nos tomou.
— A gente está bem? — Nathan perguntou encostando a testa na minha.
— Quer dizer, isso que aconteceu… acho que agora a gente precisa falar
sobre isso, certo? Estamos abandonando os limites?
— Nathaniel Petterson inseguro? — sorri involuntariamente. — Vivi
para ver isso.
— Você é uma aranha traiçoeira, Liah! — Nathan revirou os olhos,
afastando o rosto do meu. — Fica envolvendo todo mundo nessa porra de
teia e depois não sabe porque me deixa inseguro.
— Aranha? — franzi a testa confusa sem entender nada.
— Você enrola todo mundo nessa teia que você constrói, nunca percebeu
isso?
— Aranha? — Voltei a perguntar segurando um riso.
— Uma aranha intrometida, o que é pior ainda.
— Como eu queria entender esse conflito na sua cabeça — brinquei. —
Acho que você gosta de sentir raiva de mim, não é possível.
— Sinto mais raiva ainda quando te beijo e percebo que tô ficando
viciado nisso. — Nathan abriu um sorriso lindo. — Estou falando sério,
Liah. Só quero entender em que pé a gente está.
— A gente precisa rotular isso agora? — Eu nem conseguia entender o
que ele queria comigo de verdade. — Estamos nos conhecendo ainda, não
é?
— Se te conhecer incluir poder te beijar… — senti meu rosto esquentar
absurdamente.
— Acho que consigo conviver com isso — concordei sem conter um
sorriso.
Nathan sorriu largamente, deixando mais alguns beijos estalados na
minha boca.
— A gente podia ir almoçar também.
Passei por ele constrangida, abrindo a porta e andei devagar, esperando
que ele chegasse ao meu lado, mas Nathan era o tipo de cara que gostava de
surpreender. Arfei, assustada e agitada, quando o senti passar o braço pelos
meus ombros e seguir pelo corredor até as escadas assim, abraçado comigo.
— Está todo mundo no refeitório — avisei, totalmente incerta sobre o
motivo de me preocupar com aquilo.
— Hum — murmurou sem me olhar.
— O que hum significa?
— Depende. O que o fato de estar todo mundo no refeitório significa?
— Não tem receio de que eles vejam a gente?
— Não tenho intenção nenhuma de esconder isso deles — seu tom sério
me alertou sobre estar indo por um caminho errado, de novo. — Aliás, não
tenho intenção nenhuma de esconder isso de qualquer pessoa que seja. Eu
nunca fui do tipo que tem problema em falar o que quer, eu demorei a
entender e aceitar isso, mas nesse momento tenho certeza de que quero te
conhecer de verdade. Isso é um problema pra você?
— O que aconteceu com nossa lista de limites? — perguntei brincando.
— Deveríamos estar mantendo distância um do outro, lembra?
— Estou a alguns dias tentando me convencer disso, mas ainda não achei
um motivo bom o suficiente pra ficar longe — senti seu sorriso mesmo que
não pudesse vê-lo. — Você já tem certeza que eu não te odeio. Aliás, você
não me respondeu. É um problema?
Começamos a subir as escadas até o refeitório e senti seu corpo mais
tenso ao meu lado. Não tinha intenção e nem queria esconder aquilo de
ninguém. Rendida, passei meu braço pela cintura dele, feliz em sentir o
calor de seu corpo.
— Não, Nate, não é um problema. Acho que Olívia e Mia já tem certeza
sobre isso, de qualquer forma.
— Se não tem… — ele apontou com a mão que me abraçava para uma
mesa do refeitório assim que passamos pela porta — vão ter agora.
Sorri abertamente. Evie e Karol, Ethan, Olie e Thommas estavam lá.
Todos nos olhando como se fossemos seres de outro mundo.

Depois de enfrentar uma hora ininterrupta de interrogatório no refeitório


sobre como tudo tinha se desenrolado entre a gente, Nathan foi para a App
com Ethan e Tommy.
Eu e Olívia voltamos a trabalhar, focadas em fechar o planejamento do
próximo mês. Claro que minha amiga aproveitou para me encher o saco
sobre minha situação com Nathan.
Na situação atual, eu preferia passar horas respondendo às perguntas
invasivas dela do que estar nessa sala de novo, olhando para as caras
desanimadas dos advogados da Vittorino Company.
Nada!
Essa era a palavra que definia a evolução do processo. Não existia nada
que eles pudessem fazer, a não ser esperar que o FBI terminasse suas
investigações e desbloqueasse o que entendesse que era lícito.
Estevem não me contava tudo; eu tinha certeza. Suas perguntas eram
sempre evasivas e superficiais. Carlton ficou calado a reunião inteira, e às
vezes, parecia olhar para o advogado o alertando sobre estar falando
demais.
— A situação no clube está complicada — Walter comentou chateado.
— Recebemos uma notificação proibindo as atividades de jogos e o
funcionamento noturno.
Carlton e Estevem trocaram um olhar preocupado. O investigador
suspirou erguendo as sobrancelhas.
— Vamos falar sobre isso em outro momento — avisou a Walter.
— Eu quero saber o que está acontecendo — exigi. — A Vittorino
Company vai ser minha quando o inventário terminar, e eu preciso saber o
que estão me escondendo.
— Liah, tudo que precisa saber agora, você sabe — Carlton explicou
calmamente. — Nem todas as informações que a polícia tem podem ser
compartilhadas. Eu nem deveria estar aqui pra início de conversa.
— Então é isso? — perguntei revoltada. — Vim até aqui só pra escutar
de vocês que não temos nada?
— Liah…
Levantei da poltrona, puxando minha bolsa comigo. Encarei os dois
homens e sacudi a cabeça em reprovação. Que merda de investigação era
aquele onde nunca tinham nada novo?
Antes que o advogado pudesse se justificar, já estava saindo de lá,
decidida a pedir ajuda a alguém que eu tinha acesso agora.
Horas mais tarde nem eu estava acreditando no endereço que coloquei no
aplicativo do Uber. Dias atrás seria totalmente impossível.
Eu só queria pedir ajuda a Nathan para que tentasse descobrir alguma
coisa com Carlton, mas fiquei tão nervosa com minha visita repentina à
casa dele, que acabei me atrasando.
Continuava achando que tinha me arrumado demais. Qual a necessidade
de colocar um vestido preto, ainda que básico, para ir até lá? Reli a
mensagem de mais cedo assim que entrei no Uber.

Meu Deus, ele tinha enviado uma carinha fofa. Olhei em choque para a
tela, totalmente desacreditada que existia mesmo um lado todo fofo dele.
Nathan não cansava de me surpreender.
Quando cheguei ao seu prédio, o porteiro me liberou indicando o
elevador. Apertei o botão do oitavo andar, sentindo meu coração errar
algumas batidas. Sacudi o corpo sentindo as tais borboletas no estômago de
novo.
Quando sai do elevador no andar indicado, Triss me esperava na porta
com um sorriso enorme no rosto. O porteiro deve ter avisado que eu estava
subindo.
— Liah! — A garota me deu um abraço apertado que retribuí com
vontade. — Nem acredito que está aqui. — Disse afastando o corpo para
me dar passagem para entrar.
A primeira coisa que reparei foi a vista da grande janela de vidro da sala.
Dava para ver o parque central e o lago da cidade; era lindo. Deixei meus
olhos correrem pela grande sala, nem parecia o apartamento de um homem,
era organizado e bonito.
— Nathan já vem, ele tá saindo do banho.
— Tô aqui.
Olhei para trás vendo-o aparecer pelo corredor cumprido que dava
acesso à sala. Lindo, de moletom e camiseta branca ele ficava ainda mais
leve. O cheiro amadeirado, característico dele, preenchendo todo o
ambiente.
Nathan sorriu de lado, estendendo a mão para mim. Aceitei, sentindo-o
me puxar para ele e deixar um beijo casto em meus lábios. Sorri de volta,
me perdendo nos olhos dele.
— Que lavagem cerebral foi essa? — Triss perguntou chocada. — Vocês
parecem outras pessoas um com o outro.
— Não foi você que disse que se eu permitisse, conheceria uma Liah que
me surpreenderia? — perguntou a garota.
— Disse. Mas nesse caso, esse Nathan e essa Liah estão é me
surpreendendo — disse apontando para nós dois. — Vou tomar banho e
dormir. Seu quarto tem abafador de som?
— Beatriss! — Nate reclamou, repreendendo a menina.
— Agora é assim, Liah, toda vez que ele briga comigo me chama de
Beatriss. — A menina fez um biquinho bonitinho, mandando um beijo no ar
para ele.
— Boa noite para vocês. — Boa noite, Triss.
— É quase como voltar no tempo, quando Mia entrou na adolescência —
Nathan riu, vendo a menina sumir pelo corredor. — Acredita que eu já tô
sofrendo em pensar que Triss já tem idade pra namorar? Eu nem tive tempo
de me acostumar com a ideia ainda.
— É bom preparar seu coração — avisei, começando a rir.
Nathan suspirou, passando a mão pelo cabelo. O moreno apertou os
olhos em minha direção, desconfiado, abrindo um sorriso lindo logo depois.
— A reunião? O que rolou?
Nathan sabia que eu tinha ido à reunião com os advogados hoje, contei a
eles mais cedo. Provavelmente havia ligado os pontos e sabia que eu queria
alguma ajuda.
— Seu tio e o advogado da Vittorino Company estão escondendo coisas
de mim — expliquei.
Nathan esticou o braço, me puxando pela mão em direção ao seu sofá
grande e confortável. Nos sentamos acomodados antes dele começar a falar.
— Carlton também não me conta tudo, Liah. Mas acho que ele sabe
muito mais do que aparenta sobre essa investigação toda.
— Consegue me ajudar a tirar alguma coisa dele?
Seus olhos se apertaram em duas fendas e seus lábios se crisparam.
Nathan apoiou os cotovelos nos joelhos e me olhou de lado.
— Se isso for te colocar em risco, não.
— Nathan, eu tô totalmente no escuro — reclamei pela recusa dele.
— Eu confio no Carl com toda a minha vida, Liah — disse voltando a
me olhar nos olhos. — Se ele não te contou alguma coisa, é pra não te
expor a algum risco desnecessário.
Minha irritação nos últimos dias estava atingindo um nível astronômico.
Não saber nada sobre aquela investigação, junto da possibilidade da ONG ir
parar no meio de tudo, me deixava a ponto de enlouquecer.
Esfreguei meu rosto, me sentindo cansada e decepcionada comigo
mesma, tentando afastar as lágrimas que insistiam em se empoçar nos meus
olhos. Ainda não entendia como minha avó tinha se metido numa situação
dessas.
— E se envolverem a ONG? — minha voz soou cansada demais.
— Vou falar com o Carlton e tentar entender o que está acontecendo, tá
bem? Mas não te prometo nada.
Assenti, me conformando e querendo acreditar que Nathan ia conseguir
alguma informação.
— Pode me arrumar um copo de água? — pedi com a voz embargada.
Nathan levantou do sofá e estendeu a mão para mim. Levantei junto dele
e o segui até a cozinha anexa à sala, dividida pelo balcão enorme da ilha de
mármore.
Abrindo a porta da geladeira, retirou uma garrafa de vidro cheia de água
e colocou em cima da bancada da pia, pegando um copo no armário.
Seus olhos desceram pelo meu corpo, encostado no balcão da pia. Olhei
de volta nervosa para ele.
— Às vezes, eu tenho a impressão de que você muda de personalidade
conforme a roupa que veste — comentou, olhando sugestivamente meu
vestido, enquanto enchia o copo com a água.
— Na verdade, eu mudo a roupa que visto de acordo com minha
personalidade do momento. Sempre foi assim, mas não sei explicar o
motivo. — contei.
Ele me entregou o copo, e o peguei sentindo minhas mãos tremerem. Era
sempre assim quando eu estava perto dele.
— Ainda tô tentando entender você, mas parece que todas essas suas
versões me atraem de um jeito diferente.
— Já decidiu de qual gosta mais? — perguntei brincando e virei o copo,
bebendo a água.
Nathan deu de ombros, cruzando os braços para me analisar.
— Seus olhos estão tensos, seus ombros mais caídos… arriscaria dizer
que essa é a Liah tímida. Mas sua roupa… — ele apontou para o meu
vestido — Não é a roupa que a Liah tímida usa.
Engoli seco, sentindo meu corpo esquentar. Precisei puxar o ar pela boca
para compensar o jeito que ele me deixava ofegante.
Aquele sorriso era um crime de tão malicioso e bonito. Como fui imune
a ele por tanto tempo? Não que nunca tivesse reparado em sua beleza,
lembro bem de quando o vi a primeira vez no Republic.
— Talvez eu não seja tão frágil e inocente quanto você pensa.
— Eu tô pensando em coisas nada inocentes desde a hora que te vi nessa
sala, com esse vestido — disse, desencostando do balcão e vindo até mim.
Nathan apoiou as mãos na pia atrás de mim, me prendendo contra o corpo
quente dele. — Porra, você tem um cheiro viciante — disse passando o
nariz pelo meu pescoço.
Como se o dele também não fosse. Foi uma das primeiras coisas que
reparei nele, aquele cheiro amadeirado e meio cítrico que era totalmente
diferente de tudo que já tinha sentido.
Mordi os lábios com força, um arrepio potente subindo pela minha
espinha. Porra, Nate era quente como o inferno. Seus lábios desceram nos
meus, invadindo minha boca com sua língua quente. Quase gemi pelo
contato inicial, descobrindo que beijar Nathan estava se tornando meu mais
novo vício.
Levei minhas mãos para seus cabelos, puxando alguns fios, tentando
trazer seu corpo para mais perto de mim, mesmo que isso só fosse possível
se a gente se fundisse um no outro.
— Por mais que eu queira fazer isso aqui, a gente precisa ir para o quarto
— avisou, se separando de mim abruptamente. — Triss pode aparecer.
Um surto de consciência me atingiu. A gente estava se agarrando feito
dois loucos na pia da cozinha. Quando fiquei tão sem juízo assim? Assenti
para ele, meu rosto corado e muito quente.
Nathan me puxou pelo pulso, corredor adentro até a porta do que deveria
ser seu quarto. Entrei atrás dele, vendo o cômodo arrumado e uma cama
king size muito confortável se destacando no meio da parede. A decoração
predominante era preta e branca, com alguns tons mais terrosos e a
iluminação baixa e quente. Típica decoração masculina elegante.
— Você é bem organizado e limpo pra um homem — comentei distraída,
reparando na decoração. Aquilo me fazia entender mais sobre ele.
— Minha diarista é. Se dependesse de mim, isso aqui viraria uma
bagunça em um dia. — riu enquanto tirava meu cabelo do ombro, abrindo
espaço para sua boca por trás de mim.
Arfei ao sentir o calor de sua língua e estiquei mais o pescoço,
melhorando seu acesso à minha pele. Suas mãos me puxaram pelo quadril,
grudando minhas costas ao seu peito. Impaciente, Nathan puxou meu
vestido para cima, passando o tecido pelos meus braços e cabeça.
— Ter você aqui assim… — me virou de frente, seus olhos percorrendo
meu corpo de cima abaixo — … é demais pra minha sanidade. — Nathan
voltou a me beijar, descendo as mãos devagar pela minha coluna, pelo meu
quadril, pela curva da minha bunda. Sua língua brincando com a minha
deliciosamente. Quando terminou de me beijar, olhou no fundo dos meus
olhos. — Sei que tô sendo irresponsável de fazer isso aqui, com Triss no
quarto ao lado — disse sorrindo lindamente. — Mas se você soubesse como
tira meu juízo, Liah. Se você soubesse tudo que quero fazer com você.
Isso era muita sacanagem. Ele não podia falar desse jeito e esperar que
eu me comportasse. Um calor inesperado me fez pular em seu colo,
afundando minha língua na boca dele. Em pouco tempo estava com as
costas coladas na parede do quarto, minhas pernas presas em volta de sua
cintura. Uma mão me segurava pela coxa enquanto a outra subiu até minha
nuca, puxando meu cabelo do mesmo jeito que fez da outra vez. Gemi. Ele
tinha poder demais sobre mim.
Sem nenhuma dificuldade, Nathan me carregou para a cama, ajeitando
meu corpo no colchão macio com delicadeza, deitando por cima de mim
sem deixar seu peso me pressionar.
Sua boca continuou no meu corpo, me beijando desde a boca até o
pescoço.
— Você me deixou marcada — avisei, quando senti seus lábios
chupando minha pele de novo.
— Deixei, é? — Nathan afastou meu cabelo, examinando meu pescoço.
— Posso marcar outros lugares também.
— Outros lugares? — perguntei nervosa, vendo um sorriso malicioso
nascer em seu rosto, quando ele tirou a própria camisa.
Nathan desceu os beijos pelo meu colo, até que estivesse fechando os
lábios sobre um dos meus mamilos doloridos. Não consegui evitar um
gemido quando ele sugou mais forte, usando a outra mão para apertar o
outro mamilo de leve.
— Baixinho, linda. A Triss tá aqui do lado.
Era quase impossível não gemer. Joguei minha cabeça para trás,
encarando o teto e puxei um dos travesseiros, para abafar os sons que saiam
da minha boca involuntariamente.
Nathan soltou um risinho safado antes de descer a boca pela pele da
minha barriga até meu ventre. Meu corpo inteiro se contorceu em
antecipação, prevendo a direção que sua boca tomava.
Suas mãos se engancharam nas laterais da minha calcinha, e quase
levantei meus quadris para ajudá-lo a tirar, mas Nathan foi mas rápido,
puxando as tiras com força e rasgando o tecido. De novo.
— Nathan! — bradei. — Se continuar assim, eu vou ter que renovar meu
estoque de calcinha — reclamei, recebendo um sorriso malicioso em troca.
Ignorando minha reclamação, ele usou as mãos para afastar minhas
pernas, me deixando totalmente aberta e exposta para ele. Senti meu rosto
corar e minha respiração acelerar ainda mais.
— Eu tô doido pra sentir seu gosto.
— Meu gosto? — perguntei, sentindo meu coração disparar.
— É, linda! Vou chupar você até te fazer gozar. Depois vou te comer
bem gostoso sentada naquela cômoda, porque amei te sentir daquele jeito
no balcão daquela loja.
Gemi. Alto.
Nathan apertou os olhos me repreendendo outra vez antes de descer seus
lábios sobre a pele das minhas coxas. Ele beijava com a boca aberta,
raspando a língua em toda a carne das minhas pernas, evitando a área
sensível em que eu realmente queria sua boca.
— Nate… — tentei pedir, mas não sabia o que falar e nem o que eu
queria realmente.
Quando sua boca passou a beijar a dobra entre minha virilha e minhas
coxas, eu pensei que poderia morrer. Meu clitóris chegava a doer querendo
sentir sua língua sobre ele, imaginando o quanto aquilo deveria ser bom.
Uma lufada de ar atingiu o nervo sensível, me fazendo ir ao céu e voltar.
Se ele fizesse isso mais algumas vezes, eu gozaria fácil. Achei que não
poderia ficar melhor, mas quando sua língua quente massageou meu clitóris
a primeira vez, eu precisei morder o travesseiro para conter meus gemidos.
— Isso… isso…
— Isso o quê? — sua voz vibrando contra meu sexo. — É bom?
Eu estava no céu, havia chegado lá quando sua língua passou a desenhar
círculos sobre o ponto mais sensível, e vez ou outra descer por toda a
extensão da minha intimidade.
Como podia ser tão gostoso? E intenso? E…
O orgasmo me atingiu rápido quando Nathan usou dois dedos para me
penetrar, atingindo algum ponto dentro de mim que me fez explodir em
segundos.
Ele me chupou ainda mais, limpando tudo que podia, enquanto eu
gozava forte em sua boca.
Sem me dar tempo para me recuperar, Nathan se colocou de pé,
passando o braço pela minha cintura para me levantar com ele, em seu colo.
— Tudo bem se a gente fizer isso aqui? — perguntou quando me
colocou sentada na cômoda de madeira.
Não contive um sorriso ao notar a forma fofa que ele perguntou. Nathan
tinha uma preocupação exagerada comigo e em me machucar.
— Eu gosto da ideia de ter uma coisa nossa — respondi. — Balcões,
pias, mesas, cômodas… Eu gosto da ideia da Liah má se sobressaindo à
Liah tímida de sempre. Ele arqueou a sobrancelha para mim, repuxando o
lábio numa expressão quase malvada.
— Sabe o que isso desperta em mim? — perguntou no meu ouvido. —
Posso ter sido grosso e babaca com você por um tempo, mas me apaixono
fácil, Liah — avisou, mordendo meu ombro. — E tenho um fraco por
meninas más.
— Ótimo. Acabei de descobrir que tenho um fraco por caras que sabem
despertar a Liah má.
Nathan sacudiu a cabeça, me reprovando antes de voltar a me beijar
daquele jeito que só ele fazia, enquanto eu tentava descer sua calça de
moletom. Quando se afastou, terminou de descer a calça e a bóxer liberando
seu pau.
Não contive um sorriso ao deixar meus olhos varrerem todo seu corpo
magro e definido. Nathan era tão gostoso que chegava a doer meus olhos.
As tatuagens em seu torso e nos braços davam um ar meio badboy que ele
não tinha quando estava vestido.
Suas mãos abriram a gaveta da cômoda ao meu lado, tirando um
pacotinho de camisinha de lá. Não pude deixar de notar que tinham muitas
camisinhas ali dentro. Olhei para ele com a sobrancelha erguida.
— Não é como você está pensando — justificou. — Em minha defesa,
tem um tempo que nem abro essa gaveta.
Deixaria o incomodo com aquilo para depois. Era muito mais sexy ver
suas mãos deslizarem a camisinha nele mesmo. Nathan puxou minha
cintura, apoiando meu corpo na borda da comoda. Seus olhos buscaram os
meus antes dele entrar em mim devagar. Deus, como isso era gostoso. A
gente se encaixava de um jeito perfeito.
— Eu poderia morar em você, Liah — disse, me deixando totalmente
vermelha, aumentando seu ritmo aos poucos.
Tentei manter a consciência de que tinha uma adolescente no quarto ao
lado, mas minha garganta brigava comigo, quase emitindo sons por conta
própria. Eu queria gritar toda vez que ele voltava mais forte para dentro de
mim, me atingindo naquele ponto perfeito. Só ficou pior quando Nathan
puxou meu cabelo atrás da nuca, afundando os lábios na curva do meu
pescoço.
Tentei compensar minha agitação apertando os músculos de suas costas,
mas os apertões viraram arranhões cada vez mais fortes. Ouvi quando ele
arfou de um jeito mais intenso no meu ouvido, no momento exato que
minhas unhas curtas rasparam com mais força a lateral das costelas dele.
— Você tem que ficar quietinha — determinou ofegante, me olhando nos
olhos antes de voltar a beijar minha boca.
Nathan aumentou o ritmo, ajeitando meu corpo mais na borda do móvel.
Podia senti-lo me atingir ainda mais profundo naquele ponto. Eu podia
sentir cada músculo interno se contraindo em volta dele, me fazendo querer
gritar. Eu precisava gritar.
— Para de me apertar desse jeito — não era um pedido em sua voz.
Eu amava esse jeito dele falar comigo. Meio mandão, meio
descontrolado. Eu estava totalmente perdida. Era insano, e quanto mais
insano, mais gostoso era.
— Não consigo controlar… — outro gemido mais alto escapou quando
seus dedos alcançaram meus seios, beliscando um dos meus mamilos com
um pouco mais de força, quase que como uma punição pela forma que eu
me contraía ao redor dele.
Percebendo meus gemidos soarem mais altos mesmo através da boca
dele, Nate tapou minha boca com a mão, colocando um pouco mais de força
no seu aperto, buscando meus olhos.
— Se continuar gemendo desse jeito, Triss vai escutar a gente — disse
mantendo a mão em minha boca.
E aquele jeito mais bruto dele foi o suficiente para me levar até a borda,
transbordando naquela sensação perfeita que ele me causava. Ofegante,
suada, satisfeita.
— Caralho, Liah — disse baixinho quando o senti pulsar dentro de mim.
— Você nasceu com a missão de foder a minha vida — riu desesperado
enquanto afundava a cabeça no meu pescoço, gozando.
Esperei nossos corpos finalmente se acalmarem para me afastar e olhar
nos olhos dele.
— Foder sua vida? Você ainda acha que eu…
— Não. Não tô falando disso. — me interrompeu. — Isso que acontece
entre a gente… — seus olhos perfurando minha alma. — Como se não
bastasse me arrastar para o seu mundo, tá condicionando minha mente a
ficar viciada em você. Não sei mais se sou capaz de transar com outra
mulher um dia sem pensar em você.
Desviei meus olhos nervosa. Nathan não costumava esconder ou fazer
rodeio para dizer o que ele sentia. Eu gostava disso, mas também me
assustava bastante. Desci da comoda, empurrando um pouco o corpo dele
para pegar meu vestido do chão.
— Como pode dizer isso? Essa é a segunda vez que a gente transa —
argumentei nervosa.
Encarei estarrecida seu corpo de costas para mim, enquanto ele subia
uma calça de moletom fino pelas pernas. Passei meu vestido pela cabeça
preocupada, embora também estivesse pensando que seria quase impossível
sentir aquilo de novo, com outro.
— Dorme aqui? — pediu, comigo ainda de costas, ignorando meu
questionamento.
Nathan tinha uma mania irritante de ignorar minhas perguntas.
— Acho melhor não, tem a Triss…
— E ela sabe exatamente o que está acontecendo entre a gente.
— Tá bem — Fácil demais, Liah. Cuidado!
Virei para ele, seus olhos tentando entender minha reação, ou a falta dela
quando explicou porque eu estava 'fodendo' a vida dele.
— Você pode me emprestar uma roupa?
Não pensei que a noite pudesse terminar assim, então nem me preocupei
em sair de casa com alguma muda de roupa, nem calcinha pra usar eu tinha;
a minha estava rasgada no chão.
Nathan foi até o closet do outro lado do quarto e voltou de lá me
entregando uma camisa de algodão azul e uma cueca bóxer branca.
— Deve ficar grande, mas… — apontou para minha calcinha rasgada.
Não consegui evitar um sorriso.
— Você precisa parar de fazer isso — avisei, sacudindo a cabeça.
— Eu gosto do jeito que você fica ofegante quando faço isso —
justificou e foi suficiente para entender que ele não ia parar.
— Vou usar seu banheiro — avisei já entrando no banheiro do quarto e
fechando a porta.
Respirei um pouco de ar desintoxicado dele, tentando me fazer pensar
racionalmente. As coisas entre a gente estavam acontecendo rápido demais.
Rápido de um jeito que realmente me assustava. Até que ponto eu podia me
permitir?
Nathan despertava um lado meu que nem sabia que tinha. Eu costumava
ter medo dos homens, receio do jeito bruto de alguns deles, nojo das
palavras sujas. Tudo em consequência do que aconteceu comigo. Mas eu
gostava de tudo isso nele.
Nathan disse que eu o arrastei para o meu mundo, mas ele estava me
afundando no dele, e eu quase podia sentir meu ar faltar toda vez que ele
estava perto. Meu coração batia descompassado, acelerado. Minhas mãos
suavam e meu estômago revirava. Eu sabia que estava me apaixonando pelo
cara que quase destruí a vida, e isso tirava meu sono.
Liah, esse é o tipo de coisa que só poderia acontecer com você mesmo.
Me limpei e vesti a roupa que ele me emprestou. Aquela camisa estava
impregnada com um cheiro que era dele. Uma mistura de sabonete e sabão
em pó que ajudava a formar seu cheiro único. Dormir com o cheiro dele no
meu nariz era quase um apelo para não sair mais de perto.
Saí do banheiro, tímida e constrangida, vendo Nathan sentando na cama
com as pernas cruzadas, digitando alguma coisa no celular. Ele tinha uma
mania bonitinha de morder os cantos do lábio quando estava concentrado
em alguma coisa, que só o fazia ainda mais interessante.
— Tá tudo bem? — perguntou ao me ver parada no meio do quarto,
encarando-o por tempo demais.
— Está sim — respondi indo até ele. — Talvez eu tenha me assustado
um pouco com o que disse — preferi ser sincera.
Sentei ao seu lado na cama, vendo-o me analisar antes de dar uma
resposta.
— Tenho uma mania complicada de ser sincero demais. Para o bem ou
para o mal. — riu nervoso.
Eu sabia bem daquilo. Nathan, por várias vezes, foi grosso e me atingiu
de formas bem doloridas. Em outras vezes ele era tão direto sobre o que
sentia que me deixava com a respiração presa na garganta.
— Tudo bem. Eu não sou tão aberta quanto você, e talvez não tenha
tanta clareza sobre o que sinto, mas tenho a mesma sensação com você,
Nate. Você desperta coisas em mim que nunca senti antes, em toda minha
vida.
— Isso te incomoda? — perguntou ao ver a confusão que devia estar
estampada no meu rosto.
— O que é isso entre a gente? Sei que eu mesma te falei hoje que a gente
não precisava rotular, mas é que é tão estranho. — ponderei, sentindo meu
coração inquieto, acelerado. — A gente tem um passado complicado,
Nathan. Você não acha estranho estarmos… assim… — apontei de mim
para ele, sem saber exatamente explicar como estávamos.
Nathan suspirou, mantendo seus olhos atentos sobre mim. Uns segundos
depois, largou o celular que ainda estava em sua mão na cama, puxando
minha mão entre as dele.
— Vamos com calma. A gente não precisa apressar nada. Temos todo
tempo do mundo pra se conhecer e entender isso entre a gente, não é? —
perguntou devagar.
Confirmei com a cabeça vendo Nathan assentir devagar em resposta,
respirando mais fundo. Seus braços envolveram meu corpo, me fazendo
deitar junto dele no colchão macio. Nos aconchegamos na cama, com os
corpos totalmente colados.
Nathan esticou o braço, pressionando o interruptor acima da cabeceira da
cama. A luz apagou, deixando uma única faixa iluminada entrar pela janela,
vinda da luz da lua.
— Nathan — chamei rindo ao sentir o volume atrás de mim.
— A culpa é sua. Tem noção de como fica gostosa dentro de uma camisa
minha?
Segundos depois, estávamos emaranhados em nossa confusão
novamente.

27 de julho de 2019
Abri meus olhos demorando a entender onde estava. Algumas imagens
voltando com força para minha mente. Nathan e eu, uma noite tórrida de
sexo. Sorri involuntariamente.
Olhei ao redor, percebendo que o dia estava claro lá fora, e estava
sozinha no quarto. Virei o pescoço buscando meu celular sobre a mesa de
cabeceira. Droga, já é tarde. Eram mais de 09:00h. Eu tinha me prometido
que usaria o sábado para resolver o trabalho acumulado.
Levantei meu corpo sentindo dores em lugares inimagináveis. Parecia
que tinha feito uma série de três horas na academia.
Entrei no banheiro jogando uma água no rosto, lavei a boca com um
pouco da pasta de dente que estava sobre a pia. Olhei no espelho reparando
que a bóxer dele parecia um short em mim. Resolvi sair assim e procurá-lo.
Precisava de café para acordar.
Logo que sai do quarto ouvi a agitação que vinha da sala. Mia estava
aqui; a voz dela era inconfundível.
— Não acredito no que estou vendo — a garota quase gritou ao me ver
apontar no corredor. — Nathan, você está doente? — questionou divertida.
— Quê? — ouvi a voz dele vindo da cozinha.
— É impressão minha ou a Liah está aqui, vestida com uma roupa sua?
— Ah… — Nate me olhou de um jeito engraçado quando apareci na
sala. — A gente não queria te acordar.
— Não acordei com o barulho — o tranquilizei. — Tinha tempo que não
dormia até tão tarde.
— Mas se considerar que vocês foram dormir quando estava quase
amanhecendo, nem dormiu tanto assim.
Olhei chocada para Triss, sentindo vergonha até minha sétima geração.
Meu Deus, será que ela escutou alguma coisa?
— O quê? Sério que vocês acham mesmo que são silenciosos? — A
garota saiu da cozinha rindo.
— Que vergonha. — Afundei meu rosto no peito dele ao me aproximar.
— A gente não pode mais fazer isso aqui.
Nathan riu baixinho, deixando um beijo estalado na minha testa. Ele era
tão fofo.
— Preciso ir para o Hotel. Tenho muito trabalho pra adiantar.
— Posso te levar — avisou me entregando uma xícara de café.
— Nathan, meu amor, seu apartamento está incrível… — a voz da
mulher que voltava do banheiro morreu ao me ver junto dele na cozinha.
Seus olhos tinham o mesmo tom azul que os de Nathan e Mia, seus
cabelos eram castanhos quase num tom chocolate, em cumprimento médio
e muito cheios. Era uma mulher incrivelmente bonita e bem cuidada,
embora as pequenas ruguinhas ao redor dos olhos denunciasse que ela tinha
mais idade.
Uma sensação desesperadora me abateu ao processar tudo que estava
acontecendo e concluir o óbvio. Era a tia dele, mãe da Mia.
— Não vai me apresentar sua amiga, filho? — perguntou sorrindo
agradavelmente para mim.
Arregalei meus olhos para ele, sentindo meu estômago se revirar. Meus
olhos correram para baixo, me fazendo lembrar que estava vestindo uma
roupa dele.
Que merda!
— Essa é a Liah, tia — ele disse calmo demais. — Liah, essa é minha
tia; Sophia.
— Liah? — a mulher perguntou espantada. — A mesma Liah da ONG?
— voltou a questionar, procurando Mia assustada.
— Longa história — Mia se limitou a responder, sacudindo a cabeça em
reprovação.
Percebi o olhar que os três trocavam. Nathan já deveria ter falado mal de
mim alguma vez com ela, porque pela sua expressão surpresa, a mulher
certamente sabia que eu era eu. Mesmo assim, Sophia sorriu para mim,
dando alguns passos até estar atrás do balcão.
— É um prazer conhecer você, Liah — Sophia estendeu os braços para
me abraçar, e retribui, mesmo sem jeito pela condição e pela roupa que
vestia. — Mia fala de você o tempo todo — contou.
— É um prazer também — respondi, cruzando os braços para disfarçar a
falta de um sutiã. — Eles falam de você o tempo todo também.
— Pena que não posso ficar mais tempo aqui com a Triss — a mulher
disse chorosa. — Mas em breve eu a levo pra ficar comigo uns dias.
Nate revirou os olhos para a tia, abrindo um sorriso perfeito e cheio de
covinhas.
— Você não vai estragar minha filha com seus mimos exagerados, Dona
Sophia — disse e logo começou a rir da cara de desafio que Sophia fez.
Você teve a quem puxar, Nathan.
— A gente vai indo — a mulher mais velha apertou os olhos na direção
dele, num aviso mudo. — Mas você e eu vamos ter uma conversinha em
breve.
Por um segundo, o semblante de Nathan mudou para algo que me
parecia medo, e seu corpo estremeceu ao meu lado. Quase não consegui
segurar o riso ao vê-lo estremecido pelo aviso da tia. As duas logo saíram,
nos deixando sozinhos com Triss no apartamento.
— Meu. Deus. — disse, caindo no sofá assim que fechou a porta. — Que
vergonha, Nathan!
— Não achei que você fosse acordar agora — brincou, sentando-se ao
meu lado. — Mas não tem nada demais, Liah.
— Sua tia deve me achar uma pecadora sem juízo — disse, lembrando
de quando ele me contou que Sophia achava que era pecado transar antes do
casamento. — E continuo com uma boxer sua — reclamei, escondendo o
rosto numa almofada.
Sacudi a cabeça, ainda desacredita. Nathan era absurdo, como não tinha
nada demais? A tia dele me pegou na cozinha pela manhã vestindo uma
roupa dele. Liah, você se mete em cada uma.
Mas meus pensamentos não duraram muito tempo. Logo em seguida,
Nathan me abraçou rindo do meu desespero, aninhando minha cabeça em
seu peito enquanto acariciava minha nuca.
Imaginei como seria estar sempre assim com ele, me sentindo protegida,
bem tratada. Eu podia me acostumar fácil com aquilo.
27 de julho de 2019
Eu estava ferrado. Tia Soph só dizia que precisamos conversar
seriamente quando o assunto era sério de verdade.
Deixei Liah no hotel mais cedo, e ela me lembrou de tentar tirar alguma
informação de Carlton, por isso, mesmo com medo da conversa de Sophia,
fui atrás dele na casa da minha tia.
— O que você quer realmente aqui? — Carlton me perguntou
desconfiado, quando disse que não precisava tirar tia Soph do quarto de
costura.
— Você teve uma reunião com Liah ontem, não foi? — perguntei
despretensioso.
Carl me encarou, segurando um sorriso julgador.
— Sua tia me disse uma coisa curiosa mais cedo, acredita?
— Ah, foi? — cocei a nuca, sem graça. — O que ela disse?
— Que Lianah estava na sua casa, vestindo uma roupa sua. Lembro de te
perguntar e você dizer que não tinha nenhum envolvimento com a neta da
Sylvia, Nathan. — disse, apertando os olhos para mim.
— E eu não tinha mesmo quando você perguntou — dei de ombros. —
Aconteceu, Carl.
— Essa menina não é a mesma que apareceu naquela noite, Nathan? —
Carlton perguntou preocupado. — Achei que você a culpasse…
— Era exatamente sobre isso que queria falar com você! — Tia Sophia
apareceu na cozinha de repente.
— Que susto, tia! — reclamei, colocando a mão no coração em um
drama exagerado.
— Que história é essa de estar envolvido com essa menina, Nathan? —
ela me perguntou sendo direta. — Se eu souber que você está fazendo isso
pra se vingar dela de alguma forma… — ameaçou.
Era isso que ela pensava?
Nada parecido com isso passou pela minha cabeça. Nem mesmo quando
minha raiva estava no auge. Jamais faria algo tão baixo e insano.
— Não é isso, tia. E sinceramente, me entristece pensar que a senhora
acredita que eu faria uma coisa dessas — reclamei, chateado de verdade.
— Você apareceu aqui semanas atrás, todo arrebentado depois de ter uma
crise porque brigou com ela, Nate. O que quer que eu pense? — disse, me
encarando profundamente.
— Essa coisa com ela é complicada, tia — contei. Era difícil explicar
aquilo. Só tinham duas semanas que transamos na loja. Embora aquela
tensão estivesse presente entre a gente desde o dia que a beijei no Republic.
— Olha, eu não sei explicar isso, eu juro que minha intenção com ela não é
ruim, mas a gente mal se conhece ainda. Então não pensem que estamos
num relacionamento sério ou algo assim — avisei de uma vez.
Minha tia me encarou com as duas sobrancelhas erguidas me desafiando.
— Ela estava na sua cozinha vestindo uma roupa sua, Nathaniel — seu
semblante acusatório me intimidou. — Como você tem coragem de levar
alguém com quem não está em um relacionamento sério pra dentro da sua
casa? Esqueceu que agora tem a Triss?
— Triss adora a Liah, tia. Ela não se incomodou com isso…
— Pode parar por aí — me interrompeu, adquirindo uma postura ainda
mais desafiadora. — É esse o exemplo que você quer dar a ela? Triss só tem
dezesseis anos e nunca esteve fora de um abrigo, se ela achar que isso é
normal, daqui a pouco você vai surtar quando ela quiser levar um
namoradinho com quem não tem um relacionamento sério pra dormir com
ela.
Porra! Era difícil pensar nisso, mas ela tinha alguma razão. A encarei em
choque, sentindo meu estômago se revirar com a ideia que muito em breve
eu estaria sofrendo com isso.
— Ok, você tem razão, tia! — assumi, vencido pelos argumentos
terroristas dela. — Não vou mais levar alguém sem ter um relacionamento
sério pra casa.
Tenho o loft para isso.
Havia esquecido totalmente do meu lugar de refúgio.
— E essa cara de quem tá aprontando? — Tia Soph perguntou
desconfiada.
— Credo, tia, nem fiz nada agora — não segurei o riso.
— Deixa o menino, Sophia — Carlton me defendeu, finalmente abrindo
a boca. Ele não era louco de enfrentar minha tia numa discussão. — Vamos
falar lá em cima? — pediu, finalmente cedendo em me dar algumas
explicações.
Subi as escadas atrás dele, ansioso para perguntar tudo que vinha me
atormentando nos últimos dias. Mas antes que pudesse entrar em seu
escritório, reparei na porta do quarto de tia Sophia aberta e nas malas que
podia ver abertas no chão.
— Elise ainda não foi embora? — perguntei em choque.
— Ela está certa em te convencer a conversar com ela dessa vez — Carl
avisou preocupado enquanto entravamos em seu escritório, onde era meu
quarto alguns anos atrás. Sentei-me na cadeira em frente sua mesa gasta. —
O que quer saber? — Carl perguntou exalando.
— Descobriu alguma coisa sobre o carro que me seguiu ou sobre quem
ligou pra Liah?
— Nada — Carl sacudiu a cabeça negando. — Os registros das câmeras
de rua foram, claramente, alterados. Tentei todas as câmeras antes e depois,
mas o carro aparece e some do nada.
Joguei a cabeça para trás, irritado e preocupado com essa história toda.
Tinha tanto medo que algo acontecesse com qualquer um dos meus amigos
ou minha família.
— Acha que isso está realmente perigoso, Carl? — perguntei devagar,
com medo da resposta.
— Está. Por isso peço tanto que não se meta nisso. Eu e Estevem, o
advogado da Rede Vittorino, estamos nos limitando no que contamos ou
não a Lianah. A verdade é que Sylvia estava numa enrascada tremenda
antes de morrer — confessou pesaroso.
— Liah ainda não sabe que o incêndio foi premeditado? — encarei meu
tio, preocupado em manter aquela informação escondida dela.
— Se ela souber, provavelmente vai querer que a polícia investigue isso
abertamente. A informação vai virar pública. Nesse momento, poucas
pessoas sabem de verdade o que aconteceu e isso pode nos dar uma
vantagem na investigação — explicou, descansando as costas na cadeira
alta.
Suspirei, jogando ainda mais o pescoço para trás e encarando o teto
branco. Sentia meu coração apertado pela preocupação.
— Acharam alguma coisa no material apreendido? — perguntei, sem
encará-lo.
— Não. Desconfio que Sylvia mantinha essas informações sobre o
esquema em outro lugar. Não tinha nada em nenhum e-mail ou computador
dela, ou da neta. — Carl bufou inconformado. — Tem alguém grande
envolvido nessa merda, Nathan. Não faz sentido terem envolvido Lianah e
sua empresa no processo.
— Parece que nada faz sentido nessa história — reclamei, me sentindo
ainda mais cansado.
— Nathan, a última informação que tive do FBI foi que estavam
investigando algumas doações feitas para a ONG, inclusive umas da sua
empresa.
— Liah comentou sobre isso, disse que podiam querer investigar a gente
também, mas pode ficar tranquilo que declaramos todas as doações e
fizemos tudo legalmente.
Carlton suspirou, me analisando calmamente antes de tirar um
documento da gaveta de sua mesa.
— Então me diz porque o FBI está tentando rastrear uma transação
milionária de uma conta sua para uma conta privada em Mônaco.
Merda.
Porra.
Esfreguei o rosto nervoso, sentindo meu coração acelerar. Não tinha
nenhuma chance de sair daqui sem que ele soubesse da verdade.
— Isso não é ilegal — afirmei.
— Ilegal seria se comprovassem que um juiz em Westville recebeu uma
transação milionária de uma conta restrita de Mônaco, que é um paraíso
fiscal, na mesma época que você resolveu abrir uma lá e ele assinou um
processo de adoção pra você.
Peguei o documento de sua mão; a aflição me tomando aos poucos. Não
tinha muita coisa ali, só uma cópia apagada da transferência que foi feita.
— Tem como me ligar a isso? — perguntei preocupado.
— Não diretamente — Carl bufou, entendendo minha pergunta como
uma confissão. — Que merda você fez?
— Paguei pela adoção da Triss — confessei, me sentindo horrível de
repente.
— Porra, Nathaniel! — Carlton deu um saquinho na mesa irritado.
— Abri a conta pra transferir esse dinheiro para o tal Juiz. Não ia
transferir direto da minha — expliquei.
— Você é inteligente demais para o seu próprio bem. — Meu tio sacudiu
a cabeça, me repreendendo. — Meu contato do FBI me alertou sobre seu
envolvimento, porque é uma investigação séria.
— Como assim? — perguntei prevendo que a merda era ainda maior.
— É uma investigação de tráfico humano, Nathan. Se você não tivesse
feito dessa forma, já estaria preso agora, associado ao crime.
— Tem chance de ainda dar merda?
Porra, com toda a investigação acontecendo com a ONG, a App sendo
envolvida, me preocupar com mais essa agora era demais para minha
cabeça.
— Não quero nem imaginar o favor que vou ficar devendo pra limpar
sua barra dessa vez.
Respirei aliviado, sorrindo amarelo pelo semblante fechado do meu tio.
— Eu só queria que a Triss tivesse uma chance melhor na vida, Carl —
tentei me justificar, mas Carlton levantou um dedo, como se algo tivesse
estalado em sua cabeça.
— Espera aí! — pediu, pegando seu celular em cima da mesa.
Seus dedos se apressaram em digitar um número, e logo levou o aparelho
ao ouvido.
— Sou eu…
Carlton me olhou desconfiado.
— Qual era o nome da menina que Lianah Vittorino tentou adotar por
duas vezes?
Seu punho acertou a mesa num soco raivoso. O que estava rolando?
— Te aviso…
O homem encerrou a ligação e se pôs de pé, andando de um lado a outro
do escritório. Meus olhos o acompanharam por todo o caminha de ida e
vinda, mas tive medo que perguntar o que estava acontecendo. Nunca vi
Carlton tão nervoso daquele jeito.
— Carl…
— Você sabia que Lianah tentou adotar a Triss duas vezes e negaram?
— Não…
Liah nunca tinha me contado sobre isso, mas faria todo sentido,
considerando toda a raiva que a garota demonstrou quando descobriu que
havia entrado com o processo.
Se negaram pelo mesmo motivo que me negaram, Liah não iria mesmo
ceder. Nem que ela quisesse muito tirar Triss dos abrigos. Lianah era
totalmente contra qualquer tipo de suborno.
Isso me fazia pensar em como seriam as coisas quando ela descobrisse a
merda que eu havia feito.
— Existe um motivo pra ela nunca ter conseguido, Nathan.
— Eles queriam dinheiro? — arrisquei, mesmo com meu instinto me
alertando que tinha muito mais por trás.
Carlton estancou seus passos, seus olhos encontraram os meus; sua
expressão séria, fria. Me senti quase no fundo do poço de novo, dessa vez,
pelo medo antecipado.
— Sylvia.
— Sylvia? — perguntei totalmente confuso.
— Sylvia estava no sistema, Nathan. Querendo sair ou não, ela fazia
parte. Sylvia pediu que as solicitações da neta fossem negadas, porque se a
menina fizesse parte da família ela estaria correndo o mesmo risco que Liah
está.
E agora Triss estava comigo. Tinham me seguido, estavam envolvendo a
App, e sabe-se lá Deus o motivo, alguém estava realmente tentando nos
prejudicar.
— Eu não acredito nisso — soltei um riso nervoso. — Acabei chamando
atenção pra ela, não foi?
— Vamos torcer que não. Se não me ameaçaram ainda, ainda não
chegaram em vocês. Mas eu vou alertar o FBI sobre isso.
— Essa cidade é uma vergonha — reclamei pensando em toda a sujeira
que devia ter por baixo dos panos.
— Se eu te contasse todos que estão envolvidos na investigação do FBI,
você se assustaria — Carl comentou sério.
Mas por um momento, pensei que essa seria uma informação importante
ter caso alguém tentasse se aproximar da gente.
— Me fala quem são essas pessoas — pedi, me remexendo na cadeira
enquanto ajeitava a postura para encará-lo. — Se alguém aparecer na ONG
ou cercar qualquer um de nós, posso ao menos ficar de olho.
Carlton me olhou desconfiado, apertando seus olhos em minha direção.
— Promete que não vai se meter nisso? Se alguém aparecer, tudo que
precisa fazer é me avisar.
Confirmei com a cabeça, sem ter coragem de proferir a mentira em voz
alta. Carlton não precisava saber que eu já estava decidido a me envolver
nessa merda até que tivesse a certeza de que a ONG não corria risco de ser
fechada e que Liah e Triss não estavam mais em perigo.
— Os policias da corporação você já sabe quem são. Mas além deles,
vocês precisam ter cuidado com o prefeito de Westville, com os grandes
empresários da cidade e com os médicos fundadores do Hospital Connor,
Mathew e Valéria Connor, são dois irmãos traiçoeiros. Foram eles que
fraudaram seus lados no acidente. — Carlton finalmente parou de falar.
Lembrava bem daquela merda. Não deveria ser difícil provar que fui
espancado e não sofri um acidente de carro, mas todos os laudos indicavam
fraturas ocorridas em função de uma falsa batida.
— Grandes empresários? Qualquer um? Os pais dos meus amigos estão
nessa merda? — perguntei ainda mais assustado.
Carlton deu de ombros, tirando um arquivo da sua gaveta e me
entregando.
— Não achei nada sobre eles… ainda — o olhei desacreditado. — Aqui
tem todos os envolvidos, se quiser olhar com calma depois. Mas toda vez
que investigo a fundo, encontro mais sujeira, Nathan. Não conte a ninguém
sobre isso — pediu, me encarando muito sério.
Eu realmente não poderia contar. Seria difícil explicar a qualquer um dos
meus amigos a merda que estava fazendo e o buraco que estava me
metendo, mas precisava de Ethan e Tommy comigo para tomar conta da
ONG e das meninas. Eu só tinha certeza de que precisava fazer isso, porque
depois de três longos anos vivendo no luto, eu finalmente tinha um motivo
para lutar de novo.

30 de julho de 2019
— Eu e Liah estamos tendo… um relacionamento? — parecia mais
difícil explicar a cada vez que eu tentava.
O homem, sentando na poltrona, me encarou surpreso. Seu indicador
alisando o queixo pontudo e fino enquanto mantinha seus olhos em mim
por um tempo.
— Você está me perguntado isso ou me contando? — perguntou agora
que segurava um riso.
— A gente se beija e transa. É um relacionamento, não é? — perguntei
confuso.
— Você e Liah estão juntos — Doutor Emerson presumiu.
— Não sei. Estamos nos conhecendo. Saindo, nos beijando, transando. A
gente não rotulou o que quer que seja que está acontecendo entre nós dois
— tentei explicar.
— Há quanto tempo isso está acontecendo? — perguntou daquele jeito
analítico.
Me remexi no sofá, inquieto e irritado por decidir contar isso a ele.
— Tem cerca de três semanas que a gente transou a primeira vez, mas
antes disso a gente já tinha se beijado algumas vezes. Sempre no meio de
uma discussão. — Dei de ombros, quase tendo vontade de rir ao ver a
surpresa estampada no rosto do homem.
— E como isso aconteceu? — o homem me olhou curioso. — Você tem
estado bem mais aberto nas sessões, mas não comentou nada sobre essa
aproximação repentina de vocês.
— Tentei negar isso por um tempo. As coisas entre a gente são… —
tentei pensar na melhor palavra para descrever aqueles sentimentos. —
Intensas e complicadas. Acho que nos aproximamos por causa da ONG e...
sei lá…
Doutor Emerson ficou me encarando do jeito analítico que eu odiava,
tentando desvendar alguma coisa em mim.
— Você gosta dela? — perguntou depois de um tempo.
Eu podia mentir para ele. Podia mentir para mim também. A verdade é
que eu não tinha mais motivo e nem argumento para negar aquilo.
— Gosto! — Era a resposta mais simples e confortável.
— Por que gosta dela?
Era sério? Ele estava mesmo me perguntando aquilo?
Engoli seco ao perceber que o homem falava sério, e tentei me fazer
entender o que fazia com que eu gostasse dela.
— Liah tem uma vivacidade invejável. Ela é altruísta, tem a
personalidade forte e é justa em todas as situações. Até o jeito dela brigar
comigo me encanta. Ela é exatamente o tipo de mulher que me encantaria e
me deixaria louco de cara. Mas as circunstâncias não estavam a nosso favor.
— E como você se sente assumindo que gosta dela? — ele me
perguntou, mantendo a porra do olhar analítico em cima de mim.
— Eu estou me cagando de medo — admiti, rindo nervoso. — A
Camille foi a única mulher na vida que me envolvi com algum sentimento,
e saí dessa merda todo machucado e destruído — pela primeira vez desde
que comecei a terapia, deixei meu corpo cair de costas no sofá macio, quase
deitado, relaxado. Encarei a claraboia gigante no teto, vendo que o céu
estava muito azul, me fazendo lembrar dos olhos dela. Enfiei as mãos
embaixo da cabeça, deixando o peso daquele sentimento sair. — Se eu for
muito sincero, eu não estou me permitindo sentir de verdade o que minha
cabeça grita toda vez que estou com a Liah. Se eu me machucar, acho que
dessa vez pode não ter volta.
— Já pensou como ela se sente em relação a isso? — o analista
questionou, me fazendo virar o pescoço de lado para encará-lo. Apenas
neguei com a cabeça, voltando a olhar o céu azul pelo vidro. Suspirei,
fechando meus olhos e deixando algumas lembranças invadirem minha
mente.
— Acha que sou egoísta por causa disso? — perguntei preocupado.
— Você se acha egoísta por causa disso? — ele devolveu a pergunta.
Irritado, voltei a sentar no sofá, encarando o homem de cabelos brancos.
Era uma merda pagar um puta dinheiro num psicólogo que só me deixava
ainda mais confuso.
— Doutor Emerson, você não está me ajudando hoje — reclamei
irritado. — Perguntei porque não sei a resposta.
O homem riu, sacudindo a cabeça em reprovação.
— Nathan, provavelmente você só está na defensiva com medo de se
machucar. Mas não posso te dar uma resposta sobre algo que você sente. O
máximo que posso fazer é te ajudar a entender esses sentimentos. Por que
perguntou se eu o achava egoísta? — o homem jogou, me fazendo pensar.
— Liah também pode estar com medo de se machucar, e não pensei
nisso porque estava preocupado demais com meus medos — admiti.
— E o que planeja fazer em relação a isso?
— Conversar com ela? — joguei inseguro.
— Está me perguntado ou afirmando que fará isso?
Revirei meus olhos, irritado para o jeito que ele rebatia minhas
inseguranças hoje.
— Estou afirmando — disse, me sentindo mais seguro sobre isso.
— E o que vai fazer se ela disser que também tem medo?
Ele ia mesmo insistir em milhares de perguntas seguidas e complicadas
de responder? Olhei o relógio no meu pulso, vendo que ainda faltavam
vinte minutos para a seção terminar. Merda!
— Se nós dois temos medos, é sinal que tem sentimento dos dois lados,
certo? — questionei, vendo que ele ia rebater novamente. Antes que ele
pudesse abrir a boca, voltei a falar. — Foi só retórica! — o adverti irritado.
— A gente pode pensar numa forma de resolver isso junto, talvez. Eu
ficaria mais seguro se tivesse certeza de que ela sente algo além de desejo
por mim. Porque com certeza sinto algo além de desejo por ela.
— E você acha que isso que acabou de descrever é uma atitude egoísta?
— perguntou por fim, erguendo sua sobrancelha ironicamente.
— Não — concluí, satisfeito com o resultado daquela discussão, mesmo
que tivesse me irritado com ele antes.

10 de agosto de 2019
Eu estava de férias a duas semanas, e por duas semanas eu estive todos
os dias na ONG. Existiam alguns motivos para isso; Triss adorava estar na
ONG; Olívia e Liah estavam sempre ocupadas com alguma porcaria
burocrática, e isso fazia Dinna sempre pedir ajuda desesperada para mim ou
para Ethan e Tommy; Mia também esteve bastante aqui nos últimos dias.
Mas no fim, eu sabia que tudo isso era desculpa para estar mais perto de
Liah.
Não dava para dizer que a gente tinha uma relação perfeita, porque Liah
e eu continuávamos brigando por tudo. Qualquer opinião diferente era
motivo de implicância dela ou minha. Mas eu gostava de vê-la irritada, não
tinha muito o que fazer em relação a isso.
— Como você vai comemorar seu aniversário? — Olívia chamou a
atenção de Liah, sentando ao meu lado em uma das mesas do Republic.
Era a primeira vez que vinhamos aqui desde que nos acertamos, e por
acaso, nas últimas vezes que viemos nos beijamos como loucos.
— Mia vai fazer a festa dela no próximo sábado, e provavelmente vai
acabar tarde — Liah tentou fugir do assunto.
— Não foi isso que perguntei — Olie reclamou, me encarando em
seguida.
— O que foi? — perguntei sem entender seu olhar ameaçador.
— Pode fazer o favor de convencê-la a comemorar com a gente? — a
morena pediu ansiosa.
Assim como eu, Liah claramente não gostava de comemorar seu
aniversário. Eu a entendia melhor que qualquer um, por isso jamais a
pressionaria daquele jeito, ainda mais sabendo o tipo de tortura psicológica
que Olívia era capaz de fazer.
— Você quer comemorar seu aniversário com eles? — perguntei a ela
erguendo uma sobrancelha.
— Não! — Liah respondeu seca.
— Ela não quer — avisei a Olívia que nos encarava de boca aberta.
— Isso é ridículo, sabia? — ela reclamou, levantando-se exasperada. —
Vocês dois juntos é a coisa mais ridícula que já vi — a garota acusou e saiu
batendo o pé.
— Vou tentar controlar a fera — Ethan levantou rindo, indo atrás da
garota.
— Não era ela que passava os dias falando que vocês deveriam ficar
juntos? — Evie sorriu, reprovando o drama exagerado de Olie.
— Sabe o que eu acho? — Karol se levantou, dando a volta na mesa e
puxando Liah pelo pulso. — Que a gente deveria começar a comemorar
agora. Vamos dançar.
No caminho, Karol também agarrou o braço de Evie, puxando as duas
com ela para o espaço pequeno e abarrotado de gente dançando perto do
palco.
Suspirei, rendido pela visão da mulher loira que tomava todos os meus
pensamentos. Liah era linda pra caralho, e hoje devia estar numa vibe mais
fechada já que voltou a aparecer toda de preto, com a porra do top preto que
me deixava quase insano perto dela.
— Você está tão ferrado — Tommy começou a rir, sentado a minha
frente. — Sério, nunca te vi olhar assim nem para a Camille.
— Você tinha que estragar minha noite falando de fantasma? —
reclamei, mas não consegui evitar um sorriso. Liah estava mesmo me
fazendo sentir coisas que jamais tinha sentido antes, nem por Camille. E
olha que ficamos juntos por anos. Levantei da mesa decidido a pegar uma
cerveja. Por sorte, hoje não estava dirigindo. — Vou pegar uma cerveja,
você quer?
Tommy negou com a cabeça, já saindo da mesa. Provavelmente ia correr
atrás de mulher agora que estava sozinho. Saí em direção ao balcão e passei
perto de onde as meninas estavam no caminho, tentando não surtar pela
atenção que sei que Liah e as meninas tinham sobre elas. Alguém tocou
meu ombro assim que abri a long neck no bar. Olhei para trás vendo Gabe
parado ao meu lado.
— E aí? — ele me cumprimentou com um tapinha nas costas. — Essa
garota fica mais gata a cada noite que a vejo aqui — disse, encarando as
meninas.
Levei alguns segundos para perceber que ele estava falando de Liah.
— Então… — comecei desconcertado, lembrando o que havia dito a ele
quando me perguntou sobre a Liah a primeira vez. — Ela não está
sozinha…
— Sério? Ela está namorando? — perguntou sem tirar os olhos dela.
Senti o incomodo repentino por ver aquela cena.
— Namorando?
A gente estava?
Nunca falamos sobre isso de verdade.
— Se ela não está namorando, talvez não tenha exclusividade — Gabe
apertou os olhos no exato momento que Liah virou de costas, rebolando
com Karol.
E porra! Eu nem lembrava mais a última vez que senti ciúme de alguém
na vida. Provavelmente foi em algum momento da minha relação
conturbada com Camille, mas não chegava nem perto do que eu estava
sentindo agora.
— Porra, Gabe! — entrei na frente dele, tampando totalmente sua visão.
— Tem exclusividade sim. Pode ter certeza que tem. E essa exclusividade é
minha, entendeu?
Gabe me olhou assustado, finalmente desistindo de olhar a pista de
dança.
— Achei que você tinha dito que você e ela nunca…
— Eu sei o que eu disse — reclamei. — E estou pagando a língua tem
um tempo já.
— Foi mal, cara. Não queria olhar pra sua mulher. — pediu, estendendo
as mãos em frente ao peito em rendição. — Não está mais aqui quem falou.
Suspirei resignado, puto da vida pelo sentimento filho da puta de ver
outro homem olhando para o que era meu.
Liah é minha, não é?
— Vocês só andam com mulheres gatas pra porra, é até difícil saber se
são só amigos mesmo — Gabe soltou de repente, rindo em minha direção.
— Sinceramente, sinto te informar que estão todas fora dos seus limites.
Evie e Karol são gays. E se engraçar com Olívia te traria um problema que
não é comigo. — avisei sincero, começando a me irritar com a maneira que
ele falava das meninas. Elas não eram pedaços de carne.
Gabe me lançou um sorriso falsamente triste antes de me dar outro
tapinha nas costas e sumir na multidão. Cuzão!
O pior de tudo era perceber que Liah e eu nunca conversamos sobre
exclusividade. Falamos que deixaríamos tudo acontecer com calma, mas
nunca colocamos limites ou regras nessa relação.
Sem pensar muito, larguei a cerveja no balcão, caminhando a passos
rápidos até Liah na pista. A garota arregalou os olhos quando me viu parado
a sua frente, e sem dar tempo para qualquer questionamento, puxei seu
pulso pelo salão do Republic até o corredor dos banheiros.
— O que houve? — perguntou assim que me movi para colar seu corpo a
parede. E sem dar tempo para mais nada, a beijei como um louco.
Liah soltou um gemido abafado contra minha boca pela surpresa do meu
gesto afobado. Agitado, desci minha mão pela cintura exposta, sentindo a
carne macia e quente dela. Eu estava perdendo meu juízo por causa dela,
perdendo toda a minha sanidade.
Enfiei minha língua em sua boca, sentindo o gosto doce de algum drink
que ela havia bebido. Liah mordeu meu lábio inferior, puxando-o entre seus
dentes enquanto enfiava as mãos pequenas por dentro da minha camisa.
Porra. Puxei seus cabelos, virando sua cabeça mais para trás, descendo
minha boca pelo pescoço cheiroso.
— O que está acontecendo? — ela perguntou ofegante no meu ouvido.
— A gente é exclusivo! — afirmei ainda beijando seu pescoço, ouvindo
um risinho escapar dela.
— Eu deveria achar que não éramos? — perguntou segurando minha
cabeça com as duas mãos para me olhar nos olhos.
— A gente nunca falou sobre isso — disse, movendo minhas mãos de
volta para a pele de sua cintura fina.
— OK! — ela respondeu desconfiada. — Preciso me preocupar que não
tenha sido exclusivo até agora?
— Claro que não. Só queria deixar claro pra você que, enquanto estiver
comigo, não gostaria que outro homem te tocasse — confessei.
— E por que você se preocupou com isso agora? — Liah franziu a testa,
entrelaçando os braços no meu pescoço, me puxando mais para perto de
novo. — Você está com ciúme? — perguntou divertida.
— Se você visse outra mulher me secando, não sentiria também? —
devolvi a pergunta, envergonhado por não conseguir negar.
— Com certeza não gostaria nada de ver essa cena — ela respondeu
pensativa, me encarando. — Mas quem estava me secando? — perguntou
apertando os olhos.
Suspirei, pensando se respondia ou não aquela pergunta.
— Deixa isso pra lá — tive medo dela reagir de alguma forma que
indicasse que gostava de estar sendo secada pelo Gabe. Eles ficaram
conversando por horas naquela noite, meses atrás. Liah sorriu, mas sacudiu
a cabeça me repreendendo. Sorri de volta, tomando sua boca novamente. —
Ainda odeia esse corredor? — perguntei sorrindo maliciosamente ao
lembrar de quando Liah disse aquilo.
— Acho que você vai precisar me beijar um pouco mais aqui pra eu ter
certeza — brincou, voltando a me olhar daquele jeito que deveria ser
proibido.
— Liah, Liah. A gente pode começar a incluir os corredores do Republic
na lista de lugares íntimos? — provoquei, apertando sua cintura.
Liah puxou minha camisa, voltando a me beijar provocativa. Pelo visto,
as coisas seriam sempre assim entre a gente por muito tempo. Intensas e
complicadas.

12 de agosto de 2019
Segunda-feira já estava de volta a minha rotina agitada. A manhã na App
foi um caos, cheia de contratos intermináveis, pedidos de orçamento e
análise, milhares de reuniões que podiam ter sido resolvidas num e-mail, e
isso me deixava puto para caralho. Precisei sair correndo da App para
chegar a tempo de dar minha aula na ONG. Dessa vez, oficialmente como
professor.
Liah tinha me incluído na grade do terceiro ano do ensino médio para dar
uma aula de tecnologia. Nunca me imaginei nessa posição antes, mas até
que curtia a ideia. A aula foi corrida e por um milagre divino, todos os
alunos no auge da adolescência pareciam ter gostado de mim. No fim da
aula, finalmente tive um tempo para encontrar Liah na sala dela.
— Como foi? — me perguntou sorrindo assim que atravessei a porta.
— Foi ótimo — passei meus braços pela cintura pequena, subindo seu
corpo sem nenhuma dificuldade, a colocando sentada sobre a mesa de
madeira. — Estava com saudade de você.
Desci minha boca sobre a dela devagar, sentindo seus lábios macios e
doces antes de enfiar minha língua em sua boca com vontade. Nós até
aproveitávamos algum tempo no hotel dela, mas Liah estava negando todos
os meus pedidos para ir até minha casa desde que soube da bronca que tia
Soph me deu depois que a flagrou na minha cozinha, vestindo minha boxer.
O problema é que eu estava praticamente em abstinência da sensação que
só tinha quando estava dentro dela.
— Nathan, você não pode me beijar assim aqui — disse rindo enquanto
tentava me afastar dela. — Se alguém entra nessa sala…
— Liah, finalmente te encontrei aqui…
Liah se separou de mim rapidamente, me fazendo sentir a ausência da
sua boca na minha. Virei devagar ao ver os olhos arregalados dela para
quem quer que fosse que estivesse na porta.
— O que foi? — perguntei baixinho, antes de virar.
— Era por isso que estava me evitando todo esse tempo, então?
O médico que vivia aparecendo aqui mantinha a expressão séria, os
olhos demonstrando sua chateação ao ver a garota ainda abraçada a mim.
— Sério que você ainda não desistiu? — reclamei sem conter um riso
desacreditado.
Liah soltou minha cintura, se aproximando cuidadosamente dele. Seu
desconforto era bem evidente.
— Raphael, eu realmente sinto muito. Já faz algum tempo que venho
tentando te falar que não ia rolar nada…
— Tudo bem, Liah — o homem a interrompeu, sacudindo a cabeça. —
Não precisa me explicar, acho que só não quis enxergar o que era óbvio.
Meu pai batalhou muito para fundar o hospital, e sempre me ensinou a não
desistir do que queria, mas…
Milhares de sirenes vermelhas foram acionadas no meu cérebro, eu
conseguia enxergar a boca dele se movendo, proferindo palavras avulsas,
mas minha cabeça estava longe, pensando na informação mal digerida de
segundos atrás.
— Quem é seu pai? — interrompi a fala excessiva dele. — De que
hospital você está falando?
Raphael me olhou confuso e irritado pelo meu corte repentino.
— Mathew Connor. Hospital Metropolitano Connor. — respondeu como
se fosse óbvio.
— Nathan, o que houve? — Liah questionou confusa ao meu lado,
vendo o choque transpassar meu rosto.
Agir no impulso era algo normal no meu dia a dia, mas estava bem
lúcido quando me movi até estar quase colado no cara que era bem mais
baixo que eu.
— Some daqui — precisei apertar minhas mãos em punho com toda a
minha força, me controlando para não socar a cara dele. — Se eu te vir aqui
de novo, atrás dela, não vou responder por mim.
— Vai com calma. Ela disse que não vai rolar. — disse, levantando as
mãos. Embora sua fala fosse amigável, seus olhos diziam outra coisa
quando ele sorriu ironicamente para mim. — Está com medo de não dar
conta dela?
— O que está acontecendo aqui? — ouvi Ethan perguntar da porta.
Tommy estava logo atrás dele.
— Eu sei o que você está tentando fazer — avisei, andando mais para
frente, forçando Raphael a andar para trás até estar totalmente fora da sala.
— Sei onde você e seu pai estão metidos.
Raphael arregalou os olhos, abalado pela minha informação. Sempre
achei estranho essa insistência dele em se aproximar de Liah, mesmo
quando era óbvio que ela o evitava. A perseguição era real, Raphael só
queria estar próximo para manipulá-la.
— Do que você tá falando? — perguntou assustado, embora fosse
incapaz de negar.
— Nathan — Ethan chamou minha atenção.
Olhei em volta vendo que tinha muita gente no corredor, incluindo
funcionários e jovens da ONG, encarando curiosos a cena que se
desenrolava.
— Ele é filho do Mathew Connor — disse, sabendo que era suficiente
para que Tommy e Ethan entendessem a situação.
Entreguei uma cópia do relatório de Carl a eles, para que eles soubessem
exatamente de quem defender as meninas quando eu não estivesse por
perto.
Ethan parou ao meu lado, cruzando os braços e fechando a cara para ele,
enquanto Tommy tirava Liah de perto, porque ela estava quase grudada em
mim tentando me afastar dele.
— O que isso importa? — Raphael perguntou nervoso.
Sem paciência, puxei-o pela gola da blusa, empurrando seu corpo na
parede. Involuntariamente, apontei o dedo na cara dele, puxando o ar com
força para não socá-lo.
— Não me faz de idiota, Raphael — avisei.
— Eu só queria conversar com a Liah, eu realmente acho que ela e eu
poderíamos dar certo…
— A Liah é minha. Escutou bem? Minha! Se você aparecer aqui de
novo, eu não vou tentar me controlar como estou fazendo agora. Fica longe
dela, e avisa a sua corja que é pra fazer o mesmo, ou eu vou acabar com
cada um de vocês.
Mesmo abalado pela ameaça, o homem riu descaradamente, ainda se
debatendo para soltar o corpo do meu aperto em seu pescoço.
— Você tem alguma ideia do que essa sua ameaça representa? Você é
sobrinho daquele investigador, não é?
— É exatamente por isso que você deveria ter o mínimo de cuidado. —
Já estava afundado até o pescoço nessa merda, não tinha porque me sentir
ameaçado por ele agora. — Some daqui!
Voltei a puxar sua camisa, jogando seu corpo no corredor. Raphael se
escorou na parede para não cair, encarando a mim e os caras enfurecido.
Consternado, ajeitou a blusa e ainda nos lançou alguns olhares raivosos
antes de sair pelo corredor.
— Eu não sei porque ainda me surpreendo com essas merdas que vocês
fazem aqui, mas alguém pode me explicar o que foi isso? — Liah reclamou,
dispersando a multidão que se formava no corredor. — E que porra
territorialista foi essa? — cobrou, me encarando furiosa.
— Mathew Connor está envolvido nas merdas dessa cidade e no mesmo
esquema da sua avó. Ele e o filho.
— Ele devia estar atrás de você pra tentar te usar de alguma forma —
Ethan completou a explicação e Liah finalmente pareceu entender, mas
virou-se para mim em seguida.
— Sua? — perguntou me encarando séria. — Desde quando virei posse
de alguém?
— Sério que de tudo que falei é com isso que está preocupada, Liah?
— Estou saindo fora — Ethan declarou, puxando Tommy junto pelo
braço.
Liah continuou me encarando, esperando uma resposta que eu não tinha.
Pelo menos, nada além de 'sim, você é minha'.
— Eu tô esperando, Nathan.
— O que quer que eu diga? É uma porra territorialista mesmo. Nunca
disse que eu era perfeito, e enquanto você quiser ficar comigo, vou fazer
questão de dizer pra qualquer babaca que se aproximar de você com
segundas intenções que você é minha, sim. Do mesmo jeito que sou seu.
— Vai querer mijar em mim também? — Seu sorriso de lado entregava
que ela não ia mais brigar comigo por causa disso. — Já que está querendo
marcar território mesmo.
Sacudi a cabeça, reprovando sua brincadeira boba. Era impossível não
sorrir para ela daquela jeito, linda, irritada e com as maçãs do rosto coradas
pela raiva.
— Tem outras formas bem melhores de marcar território — brinquei,
empurrando seu corpo de volta para a sala, fechando a porta com o pé logo
que passamos. — É sério, eu sabia que ele estar atrás de você desse jeito era
bem estranho.
— Eu sei — Liah suspirou, afundando o rosto no meu peito. — Nunca
imaginei que ele poderia estar envolvido nisso. Me sinto tão boba por não
perceber.
— Você só tem o hábito de enxergar o melhor nas pessoas — afaguei
seus cabelos. — Menos comigo, você costumava preferir enxergar o pior
em mim.
Liah levantou os olhos, me olhando de lado com um sorriso travesso no
rosto. Seus braços envolveram meu pescoço enquanto apoiava o queixo no
meu peito.
— Você não ficava muito atrás, não é? Quantas vezes mesmo você disse
que destruí sua vida.
— Ah, mas você destruiu mesmo — apertei meus olhos, segurando seu
queixo e apertando de leve sem conter um sorriso aberto. — Eu tinha
planos pra permanecer solteiro e aproveitar a vida assim por um bom
tempo, sabia?
— A culpa é minha, então, que você é emocionado demais e se apega
fácil?
Deixei um pequeno beijo em seus lábios, sabendo que ela tinha toda
razão, eu estava totalmente apegado. Em pouco tempo, aquela mulher tinha
feito uma bagunça enorme em mim.
— A culpa é sua sim. Ninguém mandou ser linda desse jeito, ter essa
boquinha esperta e esse jeito nervosinho. É como se tivessem pegado todos
os meus fracos e colocado em você. É impossível resistir, e olha que tentei
bastante.
Continuamos sorrindo abertamente um para o outro, como dois bobos
apaixonados. Apaixonado? Senti meu sorriso morrer a medida que a certeza
sobre aquilo me abateu. Era cedo demais, nos conhecíamos pouco, mas me
sentia totalmente perdido no que sentia por ela.
— O que foi? — perguntou ao me ver sério de repente.
— Tenho medo disso, Liah — confessei, pensando que era melhor ser
sincero com ela. — Da intensidade do que eu sinto. Tudo sobre você
sempre foi intenso, bom ou ruim, sempre foi intenso.
Me separei dela, sentindo a ansiedade tomar minha cabeça. Fui até o sofá
no canto da sala, sentando na beirada e apoiei os cotovelos sobre meus
joelhos.
— Eu sinto o mesmo, Nate — Liah contou, sentando-se ao meu lado. —
Tenho medo de você se dar conta de que destruí sua vida, e perder todo o
interesse em mim — confessou de cabeça baixa.
— Eu não penso assim já tem um tempo. — E era verdade. Não tinha
mais um pingo de ressentimento em mim em relação a ela e o que
aconteceu no passado. — Estou começando a achar que a gente devia
mesmo ter se conhecido de um jeito ou de outro.
Liah deu de ombros, sorrindo para mim e descendo a cabeça para
descansar sobre meu ombro. Passei meus, braço envolta dela, beijando o
topo da sua cabeça.
— E não é que a versão fofa e educada do Nathan existe mesmo? — ela
brincou, apertando seus braços em volta de mim.
— Com você, não teria como não existir, Liah.
17 de agosto de 2019

O Sábado já tinha começado agitado de um jeito que me causava


arrepios. Eu odiava quando tinha qualquer evento relacionado a Mia,
porque minha adorável irmã simplesmente surtava e me fazia comer o pão
que o diabo amassou. Eu era, praticamente, seu escravo nesse dia. Tinha
que levar e buscar nos lugares, salão, lojas, e o que mais fosse. Eu faria tudo
isso super tranquilo, se não fosse o humor do cão dela. Nada podia dar
errado; se desse, ela gritava com Deus e o mundo e descontava em mim.
Mas bastava o evento começar para que ela voltasse a ser um doce de
pessoa de novo.
Avisei a ela várias vezes que tinha combinado de buscar Liah no hotel
para almoçar, afinal era aniversário dela também. Claro que ela ignorou as
trezentas e quarenta e sete vezes que avisei.
— Eu tô indo buscar a Liah — avisei mais uma vez.
— Mas Nate, ainda tem que buscar o bolo…
Suspirei tirando o celular do bolso. Liguei primeiro para Ethan que não
me atendeu, depois para Tommy.
— Fala — atendeu no terceiro toque.
— Preciso de ajuda. Pode ir com a Mia buscar um bolo? —
provavelmente ela o faria ir em muitos lugares mais, mas omitiria essa
parte.
— Com a Mia? — perguntou nervoso.
— É, Tommy. Depois você vai direto para a casa da minha tia. É
aniversário da Liah também e fiquei de passar no hotel pra gente almoçar.
— Tá bem — suspirou. Provavelmente, ele já sabia o que enfrentaria. —
Onde ela tá?
— No salão da mãe da Olie.
— Chego aí em uns vinte minutos.
— Obrigada.
— Tommy vai com você — avisei. — Vou buscar a Liah pra almoçar e
mais tarde estarei lá.
— É tão estranho te ver namorando de novo.
Olhei para Mia, vendo o jeito sorrateiro dela me encarar. Não era como
ela estava pensando, até porque Liah havia ficado bastante assustada
quando falei sobre o que sentia em relação a ela.
— A gente não tá namorando, Mia — afirmei.
— Vocês estão transando direto — levantou as sobrancelhas me
desafiando.
— Você é inocente demais. Onde isso faz do que existe entre a gente, um
relacionamento sério?
— Você tem razão — admitiu fácil. — Se fosse assim, eu estaria
namorando agora.
Mia adorava me dar flash’s da vida dela que não eram nada bem vindos.
Era terrível ter que pensar nela como algo diferente de uma criança, mesmo
que ela já fosse uma mulher. Contrariado, deixei Mia no salão e dirigi para
o Hotel de Liah, pensando em como as coisas realmente estavam
acontecendo rápidas demais.
Estacionei em frente a entrada principal do hotel, e sai esticando as
pernas, esperando que Liah descesse. Encostei na lateral do carro e tirei o
celular do bolso, conferindo as notificações.

Revirei os olhos para a mensagem ridícula de Elise. Ela não iria embora
mesmo?
Desde que Triss chegou na minha casa, minha tia estava aparecendo
direto por lá, ela ou Mia sempre ficavam com Triss nas poucas vezes que
fui para o Republic, mas ela nunca falava sobre a irmã ainda estar por aqui.

Mandei a mensagem sabendo que isso a afetaria. Ela odiava o fato de eu


tratar a sobrinha como minha irmã, já que isso fazia alusão à minha tia
como minha mãe. Também tinha o fato de que Elise nunca estava presente
nos meus aniversários.
— Tudo bem? — levantei os olhos do celular, vendo Liah me encarar de
um jeito estranho.
— Pronta pra conhecer minha mãe? — perguntei ironicamente.
— Sua tia, você quer dizer? Achei que…
— Minha mãe. A mulher que me deu à luz — a interrompi, ainda
irritado pela mensagem dela. — Elise está na casa da minha tia.
Liah me encarou confusa, percebendo minha irritação mais intensa que o
normal.
— Sinceramente, não sei se tô pronta pra isso — a loira riu, me fazendo
rir com ela. — Sua sorte é que minha avó não está mais viva — completou
sorrindo triste.
— Acho que ela gostaria de me ver com você — joguei, tentando animá-
lá. — Sylvia apareceu na App uma vez e veio com um discurso de ódio que
se transformava em amor, algo assim — contei a ela sorrindo.
— Dona Sylvia tinha um crush em você — ela sorriu lindamente. —
Quem não gostaria de você, Nathan?
— Ei! — Puxei seu pulso até que ela tivesse totalmente colada em mim.
—– Feliz aniversário — desejei, colando minha testa na dela.
Liah sorriu, suspirando baixinho. Seus olhos se encheram de lágrimas
quando apertou minha mão com força sobre o meu peito.
— Sinto falta dela — disse com a voz falha e uma lágrima escapou,
escorrendo pela sua bochecha.
— Eu sei, linda. — Limpei a lágrima solitária com o dedão e passei
meus braços pelo seu corpo. Liah se aconchegou em meu peito. — O que
você quer fazer hoje? Faço qualquer coisa pra animar você.
Ela se afastou de mim, abrindo um sorriso inocente e traiçoeiro ao
mesmo tempo.
— Qualquer coisa? — levantou uma sobrancelha, me olhando de um
jeitinho doce.
— Qualquer coisa… — respondi com receio do que ela pediria.
— Tem um projeto da faculdade de cinema, eles estão exibindo uns
filmes da Disney essa semana…
— Disney? — perguntei começando a rir.
— Eu amo um desenho que vai passar hoje…
— Desenho? — arqueei minhas sobrancelhas, vendo seu sorriso lindo
aumentar.
— E sabe o que é curioso? — ela perguntou sapeca.
— O que, Liah?
— Eles vivem brigando no início e depois se apaixonam um pelo outro
— disse baixinho, como se me contasse um segredo.
Encarei seus olhos, perdido nas palavras dela. Meu coração estava
batendo acelerado, quase podia senti-lo na garganta.
— Se apaixonam, é? — perguntei, virando meu pescoço de lado para
analisar melhor os traços do seu rosto bonito.
— Não foi isso que eu quis dizer. — Ela corou absurdamente, tampando
o rosto com as mãos. — Não quis dizer que a gente está… — suas palavras
morreram, desistindo de tentar se explicar.
Tudo bem, Liah. Eu também sinto isso…
— Qual é o filme? — perguntei sorrindo pelo seu jeito tímido.
— Enrolados — ela respondeu, ainda escondendo o rosto.
— Dá tempo da gente almoçar antes? — perguntei, puxando seu pulso
para poder olhar em seus olhos azuis.
Liah afirmou com a cabeça, saindo do meu abraço e dando a volta no
carro para entrar no lado do carona. Sorri, desaprovando seu lado fujão toda
vez que o assunto ficava mais sério entre a gente.
Ah, Liah, se você soubesse…
— Tem certeza que é uma boa? — sua voz soou preocupada. Seu corpo
estava travado, com receio até de soltar o cinto.
Apertei o botão da trava do cinto dela, escutando o estalo e o tecido
grosso se afrouxar sobre seu corpo em seguida. Olhei para a mulher que era
tão decidida para tudo e que agora estava cheia de receio de entrar na casa
da minha tia.
— Você já conhece minha tia, o Carl e a Mia. São só eles que me
importam — disse, tentando explicar pela milésima vez que não me
interessava em nada o que Elise acharia dela.
— Ela é sua mãe — disse, corando pela décima vez nos últimos dois
minutos.
— Não, Liah. Ela é a mulher que me gerou, e ponto. Você vai perceber,
em menos de cinco minutos, que ela é absurda de tão insana — avisei,
tentando ser sincero com ela. — Eu não a considero minha mãe. Pra falar a
verdade, não a considero sequer uma pessoa próxima de mim.
— Ainda assim, ela é minha… — Liah se segurou, me encarando
nervosa. — Ela é sua mãe — disse, por fim.
Pode falar, Liah. Ela é sua sogra.
A gente não havia oficializado nada, mas para mim, era claro como água
que eu e Liah tínhamos uma relação de verdade.
— Vem — chamei, saindo do carro e dando a volta para abrir a porta pra
ela. — Vai dar tudo certo — disse baixinho em seu ouvido, entrelaçando
meus dedos nos dela.
Não consegui conter um sorriso ao caminharmos assim, de mãos dadas
até a entrada da casa de tia Sophia. Dei duas batidinhas na porta, já
conseguindo ouvir a música que rolava no gramado na parte de trás. A porta
se abriu e senti o corpo de Liah tenso ao meu lado.
— Oi, meu amor. — Tia Sophia abriu um sorriso gigante ao me ver ao
lado de Liah.
— Oi, tia. — Usei o braço livre para abraçá-la, sem soltar Liah que
estava quase petrificada ao meu lado.
— Oi, Liah — minha tia a puxou para um abraço apertado e as
bochechas da loira ficaram quase incandescentes de vergonha.
— Oi, Dona Sophia — respondeu sorrindo e não contive o riso ao saber
o que vinha em seguida.
— Pelo amor de Deus — tia Soph quase gritou nervosa. — Me chama de
Sophia, Tia Sophia, Tia Soph… qualquer coisa, menos de Dona ou Senhora.
Liah abriu um sorriso tímido, me pedindo socorro com os olhos. Dei de
ombros, num pedido de desculpas mudo por esquecer de contar isso a ela.
Minha tia odiava qualquer tratamento que a fizesse se sentir mais velha.
— Desculpa — ela pediu toda vermelhinha. — Seu sobrinho podia ter
me livrado dessa vergonha, mas… — ela me encarou apertando os olhos.
— Imagina, querida, não é vergonha nenhuma. — Tia Soph abriu mais a
porta, nos dando espaço para passar. — Seus amigos já chegaram, estão
todos lá atrás.
Já ia andando com Liah em direção ao jardim quando minha tia segurou
meu braço.
— Queria falar com você, querido.
— Liah, é só sair naquela porta ali — avisei a ela, mostrando o caminho.
— O que foi? — perguntei, vendo o semblante curioso da mulher que me
criou.
— Então agora é sério entre vocês? — ela perguntou logo que Liah
sumiu em direção ao jardim.
— Acho que sim — assumi, sorrindo ao vê-la suspirar aliviada. — Eu
nunca faria mal a ela, tia.
— Acredito em você, meu amor. Só fiquei preocupada quando Mia falou
que a garota que era responsável por você ser espancado estava na sua vida
— ela explicou, acariciando meu rosto. — Eu quase morri quando te vi
naquele estado, Nathan. Tive medo que você ainda estivesse magoado com
isso.
— Fiquei por um tempo, tia. Quando Liah apareceu, aquela raiva toda
voltou. Mas acho que era só porque ela me fez reviver esses sentimentos.
Na verdade, Liah e aquela ONG estão me fazendo muito bem — contei,
vendo-a sorrir verdadeiramente para mim.
Um barulho na porta da geladeira chamou nossa atenção, e virei para trás
assim que vi o olhar preocupado de tia Soph.
— Então essa é mulher que chamou os policiais que te espancaram? —
Elise estava de pé, atrás do balcão me encarando.
— O que você tem a ver com isso? — perguntei irritado.
Esse era o tipo de coisa que mais me irritava nela. Elise vivia dizendo
que eu a tratava mal, que não dava uma chance para que ela fosse minha
mãe, mas tudo que ela fazia era me questionar e julgar minhas decisões.
Nunca podia ser um 'Oi filho, como está?' quando me via. Era sempre
algum questionamento ou julgamento.
— Você está namorando essa garota? — devolveu inconformada.
— É, eu tô — afirmei, mesmo que Liah ainda não soubesse disso.
— E você vai respeitar isso. — Eu te vi naquele estado, Nathan. Não seja
ingrato. Você não sabe o que eu e sua tia passamos quando achamos que
você estava morto — disse num drama exagerado.
— Liah não tem culpa daquilo — adverti seu pensamento. — Elise, juro
por Deus que se você destratar a Liah, eu não vou responder por mim.
— Está vendo isso, Sophia? — a mulher colocou a mão no coração,
afinando ainda mais a voz. — Meu próprio filho me ameaçando desse jeito.
— Elise, pelo amor de Deus — reclamei, revirando meus olhos. —
Deixa de ser dramática. Liah é minha namorada e espero que você a trate
bem, se tentar se aproximar. Você não quer tanto que eu te reconheça como
mãe? Começa pensando naquilo que me faz bem…
Sem esperar uma resposta, saí em direção ao jardim, respirando aliviado
o ar fresco do anoitecer.

Beberiquei minha cerveja, mantendo o olhar focado na rodinha das


meninas conversando animadamente. Triss estava radiante ao ver a
empolgação de Mia e das meninas juntas; era a primeira festa que ela ia.
Liah cruzou o olhar comigo de longe, então abriu um sorriso enorme,
indicando Triss com a cabeça. Acenei, percebendo como a adolescente
ficava mais alegre no meio delas. Mia puxou o braço da amiga, correndo até
outro grupo de amigos, provavelmente da faculdade, apresentando a menor
a eles. Fiz uma nota mental para lembrar a Mia de ir devagar com Triss; ela
só tinha dezesseis anos ainda.
Ethan e Tommy se juntaram as meninas logo em seguida; continuei
observando sentado no parapeito da janela da sala. Tommy parecia
desconfortável desde a hora que chegou; suas caretas aumentavam toda vez
que alguma amiga histérica de Mia gargalhava alto ou soltava um gritinho
agudo. Num passado não tão distante, era esse o tipo que ele gostava; “as
expressivas”, segundo ele mesmo.
Ethan e Olivia, em qualquer que fosse a situação, sempre estavam ao
lado um do outro. Toques ocasionais, como um leve esbarrão de ombros ou
uma mão nas costas, eram detalhes corriqueiros nas interações deles. Dois
idiotas.
Evie e Karol sempre foram mais na delas. Elas eram calmas no geral, e
não tinham nenhum histórico duvidoso na vida. Tirando as rebeldias
propositais de Karol com os pais. Mas ultimamente elas estavam sorrindo
mais, longe da pressão de suas famílias.
Tudo tinha sido perfeito até aqui, e por um milagre divino, Elise resolveu
sair depois do sermão que minha tia deu nela. Pelo menos hoje, ela não
incomodaria Liah com nenhuma loucura.
Meus olhos estavam focados nela, vendo que ainda mantinha aquele
sorriso aberto no rosto o tempo inteiro. Ela brincava e ria com os outros
cinco, me lançando alguns olhares de vez em quando; e toda vez que nossos
olhos se encontravam, era difícil desfazer aquela conexão. Era quase como
se a gente pudesse enxergar a alma um do outro. Um arrepio subiu pela
minha espinha quando me deu um olhar mais demorado e deixei meus
olhos varrerem todo seu corpo. Como não reparei nisso tudo antes?
A loira estava incrivelmente linda quando a peguei no hotel mais cedo.
Liah era uma pessoa totalmente diferente fora do ambiente de trabalho. Ela
sorria mais, não tinha ressalvas em beber, falava mais palavrão do que eu
esperava, e até se vestia diferente, dependendo do seu humor. Hoje, por
exemplo, aquele vestido curto e florido a deixava ainda mais evidente para
mim.
Liah me olhou arqueando uma sobrancelha ao perceber minha análise
minuciosa sobre ela. Sorri, mordendo o interior da bochecha; mania que
estava pegando dela, inclusive.
Uma ideia louca passou pela minha cabeça, mas… Nathan, você está
mesmo perdendo a cabeça.
Acenei com a cabeça, indicando a escada a ela, que apertou os olhos em
minha direção sacudindo a cabeça. 'Por favor'. Mexi os lábios sem, de fato,
emitir som. Liah sorriu, suspirando em seguida, com um leve acenar de
cabeça.
Larguei a garrafa de cerveja sobre o parapeito da janela e entrei em casa,
subindo as escadas. Esperei, encostado na parede do corredor, por alguns
segundos até que pude ouvir seus saltos subindo os degraus.
— Você é louco? — Liah perguntou assim que me viu.
Puxei sua cintura, virando seu corpo de costas na parede, me encaixando
entre suas pernas.
— Você tem me deixado assim — sussurrei em seu ouvido, vendo-a se
arrepiar inteira.
Encaixei nossas bocas, enfiando minha língua na dela em seguida. A
garota soltou um som baixo, deixando evidente sua satisfação. Eu estava
viciado naquela boca. Aliás, nela inteira. Que porra, Nate.
Liah enfiou a mão por baixo da minha camisa, arranhando a pele perto
do cós da calça, me fazendo suspirar em sua boca, desesperado para sentir
mais daquele corpo.
Interrompi o beijo, olhando para os lados. Maldita hora que Carl
transformou meu antigo quarto num escritório. Puxei Liah para a única
porta disponível para o que eu tinha em mente.
— Nate, que droga. Você tá maluco? — Ignorei sua reclamação,
enganchando sua cintura e a colocando sentada sobre a pia do banheiro. —
Se alguém precisar usar o banheiro?
— Tem dois banheiros lá embaixo — avisei, esperando que fosse
suficiente para ela relaxar.
Liah engoliu seco quando enfiei as mãos para dentro do seu vestido e
puxei sua calcinha, sem perder tempo.
— Consegue ficar quietinha? — pedi, imaginando que se alguém
subisse, as paredes finas do banheiro não dariam conta de abafar todo o
som.
Liah assentiu com o olhar me perfurando, enquanto abaixava em frente a
ela e puxava suas coxas mais para a frente.
— Você vai mesmo… vai mesmo fazer isso… aqui… — Beijei o interior
de sua coxa, enquanto mal conseguia concluir sua fala.
— Isso o que, Liah? — continuei beijando suas coxas, deixando minha
língua brincar com a carne macia e doce dela. — O que eu tô fazendo aqui?
— perguntei.
A loira gostava bastante quando eu falava aquelas coisas safadas para
ela, mas ainda morria de vergonha até de pedir o que queria.
Soprei o monte rosado a minha frente, recebendo um pequeno gemido
curto em troca. Liah arregalou os olhos, levando a mão à boca em seguida.
— Não vou conseguir ficar quieta — avisou preocupada.
— Então a gente vai ter que contar com a sorte de ninguém subir agora
— sorri, vendo suas bochechas corarem fortemente.
Sem aviso, afundei minha língua na carne macia e molhada dela. Tudo
sobre ela era intenso demais para mim, até seu gosto. Eu nunca mais me
esqueceria daquele gosto na vida.
Liah jogou a cabeça para trás, arquejando surpresa. Seus dedos se
prenderam às laterais da pia, apertando fortemente o mármore enquanto se
contorcia sem parar. Seus suspiros estavam cada vez mais altos.
Intensifiquei meus beijos e lambidas sobre ela, deixando que minha
língua explorasse sua boceta inteira. Liah começou a se desesperar e a soltar
gemidos baixos, mesmo com sua mão tapando a própria boca.
— Nate, por favor…
— O que você quer? — perguntei sem tirar meus lábios dela.
— Você.
— Eu tô aqui — sorri, diminuindo a intensidade com que a chupava.
— Eu quero você agora… — Liah tentava conter os gemidos em vão.
— Me quer como? — provoquei, finalmente levantando-me do chão. —
Me fala como você me quer — pedi em seu ouvido, mordendo seu lóbulo.
Liah me olhou nos olhos enquanto corava.
— Quero você dentro de mim.
— Vai precisar ser mais específica que isso, gata — sorri, puxando seu
lábio com os dentes.
— Você é um filho da puta. Odeio você, Nathan.
— Achei que já tínhamos passado dessa fase. — Desci meus lábios pelo
seu pescoço, abaixando as alças finas do vestido, liberando seus seios para
mim. — Me fala o que você quer — pedi de novo, passando a língua por
um de seus mamilos.
Liah soltou um rosnado irritado, descendo da pia enquanto me
empurrava. Por um segundo, pensei que ela ia acabar com a brincadeira por
eu ter forçado demais. Mas o que Liah fez, me tirou totalmente do eixo e
me deixou duro num nível totalmente inimaginável.
A garota virou de costas para mim, apoiando as mãos na pia e reclinando
o corpo, empinando totalmente aquela bunda gostosa em minha direção.
— Quer que eu te peça pra me comer, ou me foder?
Porra. Engoli seco, totalmente sem reação. Encarei Liah pelo espelho
acima da pia. Apesar de estar corada pela timidez, seu sorriso era vitorioso.
Ela sabia que tinha mexido comigo.
— Você realmente vai precisar ficar quieta agora — avisei, encarando
seu reflexo no espelho.
Peguei minha carteira no bolso da calça, tirando uma camisinha de lá.
Abaixei minha calça, vestindo a camisinha enquanto mantinha meus olhos
fixos nela. Liah sustentou o olhar, me olhando de um jeito que quase me
fazia perder o controle todo.
— Não tenho certeza de que vou conseguir ser carinhoso com você
agora — avisei, me encaixando nela devagar.
— Não quero que seja. — Suspirou fechando os olhos assim que entrei
todo nela, rebolando em mim.
Me afundei totalmente em seu corpo, aumentando o ritmo das minhas
investidas à medida que o prazer ia me consumindo. Cravei meus dedos em
sua cintura, puxando seu quadril ao encontro do meu.
Embora Liah estivesse fazendo um esforço enorme para não gemer,
qualquer um poderia escutar o barulho dos nossos corpos se chocando do
lado de fora. Enlacei minha mão nos cabelos de sua nuca, puxando seu
corpo para cima.
— Você ainda vai me tirar todo o juízo — confessei, beijando seu
pescoço. Liah soltou um gemido mais alto quando meus dentes rasparam
com mais força a curva de sua clavícula, contraindo de um jeito delicioso
em volta do meu pau. — Você precisa ficar quietinha — pedi, sem tirar os
lábios do pescoço dela.
Olhei pelo espelho e vi Liah com o olhar vidrado na imagem reproduzida
ali. Nossos corpos se chocando; meus dedos afundados do lado direito do
seu quadril; a outra mão segurando sua cabeça para trás, pelos cabelos;
minha boca encaixada em seu pescoço; era mesmo uma imagem e tanto. As
paredes internas dela começaram a me apertar ainda mais, dando um sinal
de que ela estava muito próxima do orgasmo. Aumentei o ritmo das
investidas, mantendo o olhar dela pelo espelho.
— Era assim que você queria que eu te fodesse? — perguntei baixinho
em seu ouvido.
Liah soltou um gemido muito alto, e não contive um sorriso. Amava
saber que tinha esse poder sobre ela. Pena que não poderia fazê-la gritar de
verdade aqui.
— Baixinho linda, se não lá fora todo mundo vai saber que eu tô te
fodendo gostoso nesse banheiro.
Antes que ela pudesse soltar outro gemido, tampei sua boca com minha
mão, pressionando de leve para abafar os sons que saiam dela.
Sua boceta se apertou tanto que em mais algumas investidas, Liah
fechou os olhos soltando um gemido inevitável abafado pela minha mão,
largando todo o peso do corpo sobre meus braços. Vê-la assim, era ainda
mais satisfatório que o ato em si. O Jeito que sorriu para mim pelo espelho
quando tirei a mão de sua boca, me impulsionou a chegar ao orgasmo logo
depois dela.
Essa garota vai me matar um dia.
Saí de dentro dela, respirando com dificuldade. Liah também respirava
ofegante, apoiada na pia.
— Será que alguém ouviu a gente? — perguntou preocupada.
— Se ouviu, valeu a pena — brinquei, beijando seu rosto. Olhei para a
bancada lembrando de um ponto sobre nós. — A gente gosta mesmo de
uma superfície, não é?
Liah riu alto, tapando a boca em seguida.
— Se pensar que estamos sempre por cima de bancadas, pias e cômodas,
é um ponto e tanto.
— Ou você só precisa aceitar com mais frequência meus convites pra ir à
minha casa — brinquei.
— Você tem a Triss lá agora, esqueceu? — reprovou, como se fosse
óbvio o motivo de não ter aceitado meus últimos convites.
Me encostei na parede, ainda um pouco ofegante, e tirei a camisinha
enquanto Liah vestia sua calcinha e ajeitava o vestido no corpo.
Abri a tampa do lixo para jogar o látex embrulhado em papel, mas algo
me chamou a atenção. Uma embalagem laminada da mesma marca que
estava no papel em minha mão, brilhava no cesto.
Franzi a testa, pensando em quem teria estado ali antes da gente. Não
faltavam jovens amigos da Mia aqui hoje. Se minha tia pegasse alguém
nesse banheiro, não importa quem ou a idade que tivesse, estaria morto.
— Melhor eu descer na frente. Você desce uns minutos depois. — Liah
avisou abrindo a porta do banheiro e esticando o pescoço para fora. — Não
tem ninguém. Tô descendo.
Saí do banheiro uns minutos depois, dando de cara com Carl na porta do
escritório, de braços cruzados. Olhei sem graça para o homem, sem saber se
ele estava ali o tempo todo.
— Oi, Carl.
Carlton apertou os olhos para mim, sacudindo a cabeça em reprovação.
— Achei que você não arriscaria ter a cabeça arrancada pela sua tia.
Droga. Ele havia escutado. Passei as mãos pelo cabelo, nervoso, sem
saber o que dizer.
— Se a sua tia tivesse subido… — Carlton entrou de volta no escritório,
sem concluir a frase. Segui atrás dele, suspirando, me jogando no sofá velho
de pano.
— Em minha defesa, isso entre a gente está bem mais sério agora —
justifiquei.
— Achei que poderia te manter afastado de tudo — Carl me olhou
preocupado, se jogando ao meu lado em seguida. — Mas vou precisar te
contar algumas coisas importantes. Preciso que me prometa que aconteça o
que acontecer, não vai contar a Liah nada que eu te disser agora.
Engoli seco, encarando seu semblante sério. Independentemente do que
fosse, senti um frio estranho na coluna enquanto Carl se preparava para
falar.
— Pode falar…
— As coisas pioraram. O FBI vai solicitar uma cópia dos arquivos das
câmeras de segurança das lojas de Sylvia. A ONG foi incluída no processo,
Liah deve ser acionada em breve pra passar por uma auditoria — disse tudo
de uma vez.
— O que isso significa? — minha mente não estava processando direito
todas aquelas afirmações.
— Ela pode perder tudo, Nathan. A ONG, os bens, a herança da Sylvia.
— Carlton suspirou, me encarando com cuidado. — E se derem um jeito de
envolvê-la nessa fraude, ela pode ser presa.
Meu coração perdeu uma batida. Senti minha respiração ficando mais
pesada a medida que o medo de ver Liah sofrendo tomou conta de mim. Já
era bem dolorido ver a garota chorando sentida com a saudade da avó. Liah
ficaria destruída se perdesse a ONG.
Eu ficaria destruído se ela fosse presa.
Ainda tinham coisas que eu precisava falar com Carlton. Estava
guardando a informação para tentar tirar alguma coisa dele, mas as
informações vieram de graça, quase arrancando meu coração do peito.
— Nessa loucura toda, quase esqueci de te contar. O filho de Mathew
Connor estava atrás da Liah direto — contei nervoso.
— Eles saíram um tempo atrás, depois ele meio que começou a perseguir
a Liah, aparecendo na ONG e na empresa dela direto. Acho que ele meio
que sabe que você está investigando… — Eles sabem — Carl disse,
desviando seus olhos de mim. — Eles já voltaram a me ameaçar, Nathan.
— Carl, acha que vale mesmo a pena continuar essa investigação? Não
tem medo que possam fazer algum mal a minha tia e a Mia? — perguntei
nervoso, levantando do sofá.
— Eu não tenho mais escolha, Nathan — avisou chateado. — E se eu
parar de investigar, eles não vão deixar barato pra Liah. Ela vai parar na
cadeia como bode expiatório deles. Esses caras vão fazer de tudo para
manter o esquema deles seguro. Rola um dinheiro absurdo por baixo dos
panos, você nem faz ideia.
Assenti, mordendo o lábio nervoso. Segurei um grito irritado, preso na
garganta. Queria socar a cara de cada um desses merdas. Fazia um bom
tempo que eu não tinha nenhum sinal de uma crise de ansiedade, mas nesse
momento, eu explodiria fácil se pudesse acabar com a raça de todos eles.
Revoltado, saí do escritório de Carlton doido para abraçar Liah e achar
algum conforto no colo dela, mas dei de cara com Triss, sentada em um dos
degraus da escada.
— Tá tudo bem? — perguntei vendo a chateação no seu rosto.
— Liah vai ser presa? Merda. O quanto ela havia escutado?
— O que você ouviu? — questionei, nervoso só de pensar em ter que
explicar isso a ela.
— Tudo. Desde que Carl falou que as coisas pioraram — contou triste.
— Triss — sentei ao seu lado na escada, segurando sua mão. — Isso é
uma situação muito complicada. Por favor, não conta nada a Liah.
— Não pretendia fazer isso. Mas queria saber o que está acontecendo de
verdade. — Triss me olhou triste, abaixando a cabeça.
Rendido, sabia que não adiantaria esconder dela. Triss era mais esperta
que muita gente da minha idade, e era muito mais fácil controlar o que ela
sabia se ela entendesse a situação e se sentisse menos ansiosa em relação
aquilo. Por isso, passei quase uma hora contando todos os detalhes daquela
história a ela.
— Não fica triste assim — pedi ao vê-la segurando algumas lágrimas. —
Não vou deixar nada acontecer a ela.
— Queria ajudar de alguma forma.
— Todos nós queremos ajudar. Mas preciso que você entenda que não
pode contar isso a ninguém, sei que você entende o risco que isso envolve.
— Eu sei — ela respondeu, secando uma lágrima. — Pode ficar
tranquilo.
Sorri, abraçando a garota. Triss era uma parte importante de mim, e
também ficava triste ao vê-la assim. Apertei mais meus braços em volta
dela, querendo confortá-la e encontrar algum conforto também.
— Seu celular tá tocando — avisou, sentindo a vibração do aparelho em
meu bolso.
Tirei o celular do bolso, olhando o mesmo número desconhecido de
antes me ligando. Rejeitei a ligação.
— De novo com essa história de não atender? — Triss me repreendeu.
— Não conheço o número — justifiquei mesmo sabendo que já
havíamos falado sobre aquilo.
Triss deu de ombros, puxando meu braço para voltarmos ao jardim.
17 de agosto de 2019

— Seu aniversário ainda não acabou — Nathan disse assim que


entramos no carro.
— Acabou sim — mostrei o relógio na tela do meu celular a ele. —
Quase duas da manhã.
— A gente ainda não dormiu, então ainda é hoje — concluiu sorrindo
satisfeito.
Ri do seu jeito cheio de razão, sabendo que não ia adiantar em nada
discutir com ele. Estávamos saindo agora da casa da tia dele, e a festa ainda
rolava com música baixa e os amigos de Mia. Triss ia ficar aqui hoje, o que
nos dava liberdade para aproveitar o resto da noite.
— Seu apartamento ou meu hotel? — perguntei, ligando o carro. Eu ia
dirigir, já que ele tinha bebido bastante durante toda a noite.
— Meu prédio — disse. — Mas vou te levar pra conhecer outro lugar.
— Que lugar? — perguntei curiosa, querendo saber mais dele.
— O loft que eu morava antes da Triss vir morar comigo — contou
sorrindo de lado.
Eu amava aquele sorriso convencido.
— E aonde fica? — perguntei animada demais.
— Na cobertura do meu prédio — Nathan sorriu ainda mais. — É um
dos lugares que mais gosto no mundo.
— E posso saber por quê? — era difícil manter meus olhos na estrada
quando tudo que queria era saber mais dele, do que ele gostava e o que ele
sentia.
— Tem uma parte de mim que você não conhece ainda — declarou sério.
Olhei assustada para o lado, parando o carro no sinal vermelho. Nathan
prendia um riso divertido.
— Vai me dizer que você tem um lado meio Christian Grey? —
perguntei nervosa, sentindo meu rosto esquentar.
— Teoricamente, eu tenho um quarto de jogos — respondeu sério.
— Está me zoando? — Precisei desviar os olhos para a estrada, sem
saber se acreditava ou não naquilo.
— É sério. Pode perguntar ao Ethan e ao Tommy.
Porra. Meti o pé no freio, e nossos corpos foram projetados para frente,
sendo freados pelo cinto de segurança.
— Ai, Liah! — Nathan reclamou olhando para os lados, preocupado.
— Vocês fazem essas coisas juntos? — perguntei horrorizada.
Nathan começou a rir alto alguns segundos depois, me deixando
totalmente confusa.
— É um quarto de jogos de verdade, Liah. Cheio de vídeo games, mesa
de sinuca, dardo, essas coisas…
Apertei meus olhos para ele irritada enquanto arrancava com o carro.
Nathan adorava me irritar e me deixar sem graça com tudo.
— Você é um idiota — acusei.
— Acha mesmo que se eu tivesse um quarto desses, Ethan e Tommy
saberiam? — perguntou sorrateiro.
— Vai saber… — dei de ombros, com medo de desviar meus olhos da
estrada de novo.
— A única coisa diferente que vai encontrar no meu loft são minhas
coisas de nerd.
— Nerd?
Nathan era do tipo nerd? Bem, ele era mais inteligente que a maioria das
pessoas que conhecia. E claro, era programador. Por que nunca pensei nele
como um nerd?
— Tommy, Ethan e eu crescemos sendo nerds, acredita? — Nathan riu,
se divertindo ao lembrar. — Você vai ver quando chegarmos.

Parei em frente a grande estante de ferro que fechava quase toda a parede
lateral, ao lado da escada. Coleções de revistas em quadrinho e livros
fantasiosos enchiam algumas prateleiras; Game of Trones; Senhor dos
Anéis e até Harry Potter estavam ali. Numa prateleira mais baixa tinham
alguns bonecos em miniatura do Star Wars, incluindo o carinha verde que
eu não sabia o nome. Peguei o boneco, segurando uma gargalhada.
— Vai em frente. Pode rir, Liah. — Nathan me olhou divertido, apoiando
um ombro na coluna de ferro da estante.
— Meu Deus! você é Nerd mesmo. — Não consegui segurar o riso.
— Eu avisei que era — ele estreitou os olhos, tirando o bonequinho
verde da minha mão. — Cuidado com isso.
Dei mais uma olhada em volta; os quadros da Marvel e DC que
adornavam as paredes de tijolos da grande sala; as decorações que eram
sempre algum objeto de filme nerd ou bonecos de personagens. Mas apesar
das nerdisses dele, o loft lembrava muito o estilo da ONG. Os móveis
modernos, mesclados entre preto e um marrom avermelhado, deixavam o
lugar ainda mais bonito.
Olhei para o homem ainda parado a minha frente, de braços cruzados,
esperando uma reação minha. Era divertido pensar que o cara que me tirava
do sério, super grosso e mal-humorado, tinha um lado assim, que curtia
filmes de heróis e histórias em quadrinhos.
Apesar de sua cara emburrada, Nate segurava um sorriso engraçado
quando veio até mim, puxando minha mão entre as dele.
— Tenho uma coisa pra você.
Subi meus olhos para o seu rosto surpresa, vendo-o tirar um saquinho
aveludado do bolso da calça. A embalagem pequena era elegante e
sofisticada. Nathan abriu o lacinho virando o saquinho em sua mão. Uma
correntinha dourada caiu na sua palma e ele a esticou no alto em frente aos
meus olhos, me mostrando o pingente na ponta.
— Nathan… — Segurei o pingente entre meus dedos, e não podia mais
conter o sorriso enorme que insistiu em aparecer no meu rosto. — Não
precisava disso…
— Eu não tinha ideia do que poderia te dar de presente, mas vi isso
numa vitrine quando fui ao shopping com Triss e Mia semana passada. É
como se estivesse ali me esperando passar — ele disse sorrindo.
Nathan empurrou meu ombro de leve, pedindo que me virasse de costas
para ele. Seus dedos correram delicadamente meu pescoço, tirando meu
cabelo do caminho para soltar a correntinha pendurada e prender o fecho.
Virei de frente para ele, segurando o pingente com os dedos e sorrindo
de um jeito bobo. Olhei para baixo e encarei a flor de Íris pendurada no
meu pescoço, pensando que não poderia ser mais perfeito.
— Obrigada, Nate. — Ele sorriu de volta. Aquele sorriso de canto que
deixava a covinha dele aparecendo de um lado só.
Senti meu coração acelerar. Como fomos de inimigos àquilo tão rápido?
Fazia o que… um mês desde que transamos na loja da minha avó? Mesmo
assim, aquele sentimento que me tomava mais a cada dia, era sufocante.
Existia um magnetismo muito forte entre mim e ele, e isso me assustava.
— Você não acha que isso entre a gente está errado? — perguntei sem
graça.
Nathan me olhou de um jeito estranho.
— Como assim?
— A gente não sabe quase nada um do outro. Eu não sei o que você
gosta de fazer no seu tempo livre, o que gosta de comer, que música gosta
de escutar ou que filme gosta de assistir. Você não sabia sobre minha mania
de me vestir de acordo com meu humor até pouco tempo atrás, o que
qualquer um sabe sobre mim. Quero dizer, que tipo de sentimento é esse?
— parei por um segundo, puxando o ar. — A gente não se conhece de
verdade…
Talvez fosse só meu medo gritando agora, mas até que ponto aquele
sentimento poderia chegar, sem beirar o limite da insanidade? Nathan e eu
nos conhecemos em uma situação, no mínimo, catastrófica. Causei impacto
suficiente na vida dele para que nos tratássemos como inimigos até o fim de
nossos dias. No entanto, estava aqui, no loft que ele morava, disposta a me
perder mais uma vez nele.
Nathan mordeu os lábios suspirando enquanto desencostava da estante e
sentava num dos sofás de tecido cinza mega confortáveis daquela sala.
Ele se ajeitou no sofá, chegando o corpo para frente para apoiar os
cotovelos sobre os joelhos.
— Meses atrás, quando aceitei dar o curso na ONG, pedi a Ethan que me
levasse lá. Existe uma coisa lá dentro impossível de explicar; você se sente
parte de algo grande e importante. Aqueles jovens sabem que tem uma vida
e oportunidades que talvez não tivessem fora dali, nem se estivessem com
suas famílias. A parte mais frágil da porra do muro que ergui em relação a
você, caiu naquele dia sem que eu me desse conta disso. Caiu porque existia
uma parte sua, incontestável, que dava vida àquele lugar. — Nate subiu os
olhos me encarando profundamente. — Dá pra enxergar você em cada
canto daquela ONG, em cada sala de aula, em cada quarto, em cada uma
daquelas crianças. — Seu peito subiu e desceu numa exalação profunda. —
Eu não sei o que você gosta de comer ou o que gosta de vestir, mas sei que
você faria qualquer coisa pra manter a ONG funcionando. Sei que você
daria a roupa do seu corpo pra uma daquelas crianças se precisasse. Sei que
você usaria até o último centavo do seu dinheiro para ajudar alguém. Sei de
tudo isso, porque todos os dias eu vejo como você se dedica ao que faz. A
gente pode descobrir essas pequenas coisas um do outro no dia a dia, mas
conheço sua essência. Isso não deveria importar mais?
Nos encaramos por longos segundos. Meu peito subindo e descendo
mais rápido.
É loucura demais se apaixonar por alguém tão rápido.
— Nathan — minha voz soou rouca e entrecortada. — Essa é só a parte
bonita. Existe uma parte de mim, aquela que se veste de preto e usa
maquiagem pesada, que é totalmente quebrada.
Um brilho triste tomou conta do azul intenso dos olhos dele.
— Mais quebrada que eu?
Não. Nathan era quebrado de formas que eu nunca entenderia, sua vida
era uma coleção de catástrofes. Mas eu tinha sim uma parte quebrada.
Quebrada de uma forma que ele, homem, jamais entenderia também.
— Tem dias que as lembranças daquela noite me afetam mais. Nesses
dias posso jurar que minha dor é a pior do mundo. Nesses momentos, Nate,
não existe sanidade pra entender que existem problemas maiores que o
meu.
Caminhei até a mesa de madeira redonda baixa no centro da sala,
sentando na superfície, de frente para Nathan no sofá.
— Aquele dia no Republic, era um desses dias? — Nathan engoliu seco,
se esforçando para manter seus olhos nos meus.
Assenti. Aquele bilhete com o pedido de suborno me fez lembrar da
forma como pessoas com algum tipo de poder, e isso inclui maior força
física, são capazes de tomar qualquer coisa das outras sem pensar na parte
que vão deixar quebrada para trás.
— Quando uma coisa assim acontece com uma mulher, uma parte da
nossa alma se quebra. — Quebrei nossa conexão. Detestava ver qualquer
resquício de pena no olhar das pessoas. Foquei nos dedos das minhas mãos
antes de continuar. — Me tiraram a pior coisa que podiam tirar aquela noite.
Eu enxergava a vida como a coisa mais maravilhosa que existia. Mesmo
com a morte da minha mãe, eu conseguia ver como a vida era incrível em
cada coisa que existia. Mas quando acordei pela manhã, eu enxergava
maldade em tudo. Literalmente, levaram embora minha inocência aquele
dia.
Voltei a encará-lo, vendo seus olhos brilharem pelo excesso de água que
se acumulava ali. Ele estava chorando? Nathan afundou o rosto nas palmas
das mãos, sacudindo a cabeça enquanto esfregava os olhos.
— Se eu pudesse, mataria quem fez isso com você — sua voz soou
ameaçadora.
Nathan levantou a cabeça me olhando consternado.
— Eu mataria, se tivesse a chance — confessei.
Nathan se colocou de pé a minha frente, estendendo a mão para mim.
Aceitei, levantando da mesa. Seus braços me envolveram e permiti que
minha cabeça descansasse em seu peito e aspirei seu cheiro amadeirado.
Aquele cheiro me trazia uma sensação gostosa de segurança.
— Eu prometo, Liah. — Seus lábios macios deixaram um beijo no topo
da minha cabeça. — Nunca mais vou deixar alguém te fazer mal.
Apertei meus braços em volta dele.
Nunca mais.
Isso me remetia àquele sentimento sufocante. Será que a gente era para
sempre, afinal?
Decidida a sair do assunto pesado, soltei a única coisa que iria distraí-lo
agora.
— Quero ver seu quarto — sorri maliciosa com o rosto colado em seu
peito.
Nathan me afastou um pouco, procurando meus olhos, mantendo seu
semblante sério. Por um instante, pensei que estivesse tentando entender
como aquilo me afetava e se tinha um sinal verde para subirmos.
— A gente pode só dormir… — neguei com a cabeça, interrompendo
sua frase.
— E perder a chance de transar na sua colcha de sabre de luz? — arqueei
uma sobrancelha, passando os braços pelo seu pescoço.
— Eu não tenho uma colcha de sabre de luz — avisou, me tirando do
chão quando passou um dos braços pelas minhas costas e outro por trás dos
meus joelhos. Dei um gritinho assustado, percebendo a facilidade com que
me levantou.
Nathan subiu os degraus de madeira, me soltando assim que alcançou o
piso lá em cima. Seu quarto não tinha nem dez por cento das nerdisses lá de
baixo. Era apenas uma cama king size no meio do piso de madeira com as
mesas de cabeceira ao lado. No canto da parede no fundo, tinha a entrada
para o que parecia um closet.
— Nada de esquisitices nerds? — sorri para ele.
Ele negou com a cabeça, andando perigosamente até mim. Dei dois
passos para trás, sentindo meus joelhos colarem no colchão alto atrás de
mim.
— Você quer mesmo saber mais sobre mim? — Nathan espalmou uma
mão na curva entre minhas costas e minha bunda, me puxando para ele.
— Quero — respondi rápido, afetada pelo calor de seu corpo.
Sua cabeça se encaixou na curva do meu pescoço. Senti seus lábios se
entreabrirem e o hálito quente soprar por trás da minha orelha. Estremeci.
— O que quer saber? — perguntou baixo em meu ouvido.
Inclinei a cabeça, dando mais acesso a ele. Uma risada leve atingiu meus
ouvidos.
— Qual sua cor favorita? — Foi ele mesmo quem perguntou.
Cerrei os olhos confusa. Ele ia mesmo fazer isso? Me fazer pensar e
responder perguntas nesse momento? Nathan adorava fazer essas porcarias
de jogos.
Apertei meus dedos na pele da cintura dele, deixando minhas unhas
rasparem de leve. Nathan se afastou.
— Nathaniel, se você começar com essa merda de parar porque não
respondi alguma coisa, eu juro que vou me trancar no seu banheiro e me
tocar até gozar. E vou gemer alto o suficiente pra você escutar.
Nathan engoliu seco, abrindo um sorriso quase predatório.
— A gente deixa a brincadeira pra depois — avisou rindo.
Seus braços voltaram a me puxar, dessa vez girando nossos corpos até
que eu caísse sobre ele no colchão macio. Encaixei minhas pernas ao lado
de seu quadril, permitindo que nos encaixássemos melhor. Nathan capturou
meus lábios num beijo intenso. Sem perder tempo, levou suas mãos a minha
bunda, por baixo do vestido, me esfregando contra seu jeans. Deixei
escapar um gemido sufocado pela sua boca.
— Quero ir devagar — avisou, diminuindo a intensidade com que a
gente se beijava e virando nossos corpos sobre a cama, ficando por cima de
mim. Nate deixou um beijo na minha testa e depois um sobre cada lado da
minha bochecha. — Eu quero ser o cara que vai apagar todas essas marcas
ruins do seu corpo e da sua alma, Liah. — Meu coração batia
freneticamente e logo perdi o ar com a maneira que ele me olhava.
Nathan tinha o hábito de tornar as coisas entre a gente sempre muito
intensas. Sem me dar tempo para pensar numa resposta, levantou da cama
puxando meu vestido para cima e jogando em algum lugar no chão do
quarto. Tirou sua camisa, a calça e a cueca muito rápido, voltando para
cima de mim.
Sua boca voltou para minha, dessa vez, num beijo mais calmo e cheio de
sentimento. Suas mãos exploravam todo meu corpo com calma e suavidade.
— Eu quero te fazer esquecer cada segundo daquela noite. Me diz o que
preciso fazer para que só exista você e eu na sua cabeça — pediu com a voz
rouca, enquanto sua língua brincava no meu pescoço.
Você não precisa fazer nada, Nate.
Ele já consumia meu corpo e minha mente de um jeito inexplicável.
Quando Nathan e eu estávamos juntos, nada mais no mundo existia.
— Você já faz isso, Nate. — Usei toda minha força para nos virar na
cama, ficando por cima dele de novo. Olhei para baixo, vendo que já
estávamos quase encaixados. — Camisinha? — Mordi a bochecha, sorrindo
de lado para ele. Nathan olhou para a gaveta da mesinha ao lado da cama,
arregalando os olhos.
— Porra! Eu não tenho aqui. — esticou o braço abrindo a gaveta
totalmente vazia. — Levei tudo para o apartamento novo.
— Na sua carteira? — Me joguei ao seu lado na cama, sentindo a
frustração começar a crescer em mim.
— Usei no banheiro na minha tia, mais cedo — explicou suspirando.
Isso não implicaria em muita coisa se eu pudesse confiar nele. Eu usava
DIU, sempre usei. Não ia engravidar.
— Você fez algum exame recente? — perguntei preocupada.
— Não. — Nathan virou a cabeça de lado, me olhando confuso.
— Uso DIU11. Coloquei depois do que aconteceu… — avisei.
— Ah! — sua expressão de compreensão indicava que ele tinha
entendido meu ponto.
Nathan voltou a me puxar para cima dele, sorrindo abertamente.
— A última vez que transei antes de você, foi exatamente no dia que te
conheci — confessou.
Arregalei meus olhos, espantada com a informação. Isso tinha quase uns
sete meses.
Nathan riu da minha cara assustada, me ajeitando em seu colo. Suas
mãos puxaram minhas pernas mais para cima, me encaixando perfeitamente
sobre ele.
— Pois é, garota. Parece que você tomou conta de tudo mesmo, não foi?
Desde aquela maldita primeira noite.
Nathan mal acabou de falar e se lançou contra mim. Uma única investida
firme me fazendo estremecer. Pele com pele. Porra!
— Nate! — respirei fundo, contendo um grito no fundo da garganta.
Ele voltou a se movimentar, dessa vez estabelecendo um ritmo constante,
mas calmo. Aproveitando a sensação do atrito causado pelo contato de
nossas peles. Suas mãos apertavam firmemente as laterais do meu quadril,
me ajudando com os movimentos para cima e para baixo.
Ok. A gente precisa fazer isso mais vezes na cama.
Apoiei as mãos na cabeceira de madeira, usando todo meu esforço para
manter meu corpo erguido, ainda me movimentando sobre ele. Nathan me
deixava fraca com a forma que se movia em baixo de mim, atingindo algum
ponto que me fazia revirar os olhos toda vez que voltava para dentro.
— Sentir você assim é um caminho sem volta — um sorriso malicioso
brincou nos lábios rosados. — É como dar doce a uma criança. Vicia.
Mordi os lábios, sentindo ele aumentar um pouco mais o ritmo de suas
investidas. Sorri travessa, abaixando a cabeça para passar a língua sobre os
lábios dele e depois deixar uma pequena mordida. De propósito, fiz questão
de contrair meus músculos internos em volta dele. Agora que conseguia
controlar um pouco, adorava usar isso para provocar. Ele fechou os olhos,
controlando sua respiração sem parar seus movimentos. Quando tornou a
abrir, um brilho perverso me perfurou.
Em um único movimento, Nathan nos virou na cama, me colocando de
bruços dessa vez. Perdi o ar quando voltou a entrar em mim, puxando meu
cabelo até que tivesse acesso ao meu pescoço. Cacete.
— O que eu faço com você? — sua voz era só um sussurro.
Embora fosse uma pergunta retórica, eu tinha a resposta perfeita para ela.
— Você sempre me faz esquecer, Nathan — contei com a voz chorosa
pelo prazer intenso que sentia. — Toda vez que estamos juntos, eu não
consigo pensar em nada além de você e em como você me faz sentir.
— Porra! — Nate rosnou em meu ouvido, aumentando ainda mais seu
ritmo. Seus lábios passaram a atacar meu pescoço e minha nuca.
Quando sua respiração ficou descompassada, chegamos os dois juntos ao
ápice. Eu podia senti-lo se despejar dentro de mim, fazendo com que aquele
orgasmo fosse muito mais intenso que todos os outros.
Nathan manteve seus braços em volta de mim, deixando que nossos
corpos caíssem um em cima do outro na cama. Ficamos um tempo assim,
deitados de lado, trocando olhares e alguns carinhos. Observei suas
tatuagens enquanto erguia o corpo, correndo a ponta dos dedos por elas.
— Por que você gosta tanto dessas tatuagens? — sua voz suave chamou
minha atenção depois de um tempo.
Eu realmente gostava. Nathan tinha uma história cheia de desvios, e
ainda assim tinha um coração gigante.
— Elas são parte de você, da sua história — falei enquanto contornava
os traços do leão em suas costas.
Nathan esboçou um leve sorriso, fechando os olhos em seguida. Um
pequeno suspiro escapou de seus lábios.
— Elas escondem marcas que eu quero esquecer, Liah.
Ele já havia me falado sobre isso antes. Toda vez que olhava para elas,
lembrava das marcas por trás. Mas eu acreditava que ele só olhava por uma
perspectiva errada.
— Eu sempre gostei de arte. Toda arte representa um tempo, um espaço
e uma emoção. É isso que eu vejo sempre que olho pra elas. — Voltei a
deitar meu corpo de lado na cama, encarando seus olhos azuis. — Elas são
uma espécie de conexão com todas as versões do Nathan que você já foi.
Representam um tempo da sua vida, uma época onde talvez você quisesse
ser outra pessoa, quando emoções ruins dominavam sua mente. Elas contam
sua história e sua evolução, Nate. — Mesmo deitada, voltei a correr a ponta
dos dedos sobre as chamas avermelhadas em sua costela. — Elas são tão
fortes quanto você é.
Vi seu pomo de adão subir e descer quando engoliu seco, mantendo os
olhos fixos em mim. Nathan virou o corpo de lado, me puxando para dentro
seus braços. Senti seus lábios deixarem um beijo no topo da minha cabeça.
— Às vezes acho que a gente realmente deveria se encontrar. Eu tentei te
odiar até pouco tempo atrás, e agora você enxerga coisas em mim que
chegam a me assustar.
Não contive um sorriso. Eu gostava muito desse lado dele, que me falava
sem ressalvas sobre seus sentimentos. Na verdade, nesses sete meses que a
gente se conhecia, tivemos cerca de um mês agindo civilizadamente um
com o outro. Mesmo assim, eu tinha a sensação de que nos conhecíamos a
séculos.
— Você também acha que parece que a gente se conhece há muito
tempo? — perguntei.
Nathan ficou em silêncio por alguns instantes, acariciando meus cabelos
enquanto minha cabeça descansava em seu ombro.
— Eu namorei a Camille por anos. Acho que nunca tive uma conversa
com ela da mesma forma que tenho com você. Pra mim, a conexão entre
duas pessoas nasce da profundidade e intensidade do que elas mostram uma
pra outra…
Embora suas palavras tenham morrido aí, eu tinha entendido bem o que
ele queria dizer. Desde o dia em que conversamos na ONG, quando a
adoção de Triss saiu, eu tinha me aberto com Nate de uma forma que nunca
fiz na minha vida. Ele sabia de coisas sobre mim que ninguém jamais
soube.
— Você tem razão, Nate. Talvez a gente conheça uma parte muito mais
importante um do outro — assumi.
— Quando alguém perguntar, a gente pode dizer que tem sete meses que
namoramos — brincou, considerando o tempo que a gente se conhecia.
Levantei a cabeça depressa, buscando seus olhos.
— Está colocando um rótulo na gente?
Nathan puxou minha cabeça de volta para seu ombro enquanto sorria
abertamente.
— E se eu estiver? — perguntou depois de alguns segundos.
Eu queria aquele rótulo. Por mais louco que fosse, eu queria estar com
ele de todas as formas possíveis.
Senti seus músculos tensionarem com minha demora. Mordi os lábios,
sabendo que ele me observava. Sorri internamente, imaginando quanto
tempo levaria para que ele perdesse a paciência e surtasse achando que eu
negaria.
Um suspiro exagerado fez seu peito subir mais alto. Nathan bufou
irritado, achando que eu não tinha entendido ou simplesmente ignorado seu
pedido disfarçado. Mas eu estava feliz demais para segurar por muito
tempo, e deixei um riso alto sair dos meus lábios.
Nathan me encarou confuso, apertando os olhos quando percebeu que fiz
de propósito. Ele virou por cima de mim, segurando meus pulsos acima da
minha cabeça contra o colchão.
— Você sabe exatamente como mexer comigo, não é?
Apertei os lábios, tentando ficar séria. Seus lábios desceram sobre os
meus e em pouco tempo já podia sentir o calor dele mais uma vez.
— Só pra constar, você é minha namorada — disse antes de voltar a me
beijar loucamente outra vez.
Em pouco tempo recomeçamos todo aquele ritual de joguinhos e
pegação.
20 de agosto de 2019
Ainda não conseguia entender como a minha vida havia tido tantas
reviravoltas nos últimos meses. Coisas muito boas e muito ruins
aconteceram. Mas aquela sensação de que minha vida era uma montanha-
russa, nunca ia embora. E a cada dia, eu enfrentava um loop novo.
— Eu te avisei que ela não podia mais entrar aqui, Dinna — reclamei
com a mulher atrás do balcão da recepção quando me contou que Camille
esperava na minha sala para falar comigo.
— Liah, foi impossível segurar aquela mulher, ela ia fazer um escândalo
— Dinna explicou, tentando me acalmar.
Ainda bem que Nathan não vinha para a ONG nas terças. Seria outro
caos se ele estivesse aqui e desse de cara com a ex maluca.
— Tudo bem — disse vencida. — Vou ver o que essa garota quer. Olívia
já chegou?
— Ainda não.
— Assim que ela chegar, pede a ela pra ir na minha sala. Talvez eu
precise de ajuda pra não surtar — avisei, já sentindo o peso do dia quando
avancei pelo corredor.
Atravessei minha porta, vendo os cabelos cumpridos pintados da figura
sentada de costas para a porta. Suspirei, largando meu casaco sobre a
poltrona ao lado da porta e seguindo para o meu lugar atrás da mesa.
— Bom dia — disse, evitando encará-la. — Posso saber o que veio fazer
aqui?
— Você e Nathan estão namorando? — perguntou direta, me encarando
com algo que parecia ódio nos olhos.
— Sim, estamos juntos — respondi após encarar a mulher por alguns
segundos. Ela saberia de uma forma ou de outra mesmo.
— Eu avisei que iria ter o Nathan de volta, Lianah. Eu estou quase
conseguindo a adoção de um menininho que acabou de fazer três anos —
revelou orgulhosa. — Nathan vai amar a ideia.
— Você é louca? — Não era possível que ela realmente achava que
Nathan ia gostar disso. — Você precisa de um psiquiatra, Camille — avisei,
me sentindo irritada pela loucura dela.
A maluca levantou-se da cadeira, correndo os dedos pela tela de seu
celular e estendeu o aparelho para mim, me mostrando uma foto. Era um
menininho moreno e de olhos azuis, devia ser a tal criança que ela estava
falando.
— Ele é lindo. E parece com o Nathan até. — Ela suspirou, puxando a
tela para de volta. — Imagina quando ele puder chamar o Leo de filho.
— Leo? — perguntei confusa.
— Esse menino. Ele é de outro abrigo da cidade. Um pouco de dinheiro
sempre resolve tudo por aqui — disse, explicando como conseguiria passar
por cima de sua overdose.
— Você tá subornando autoridades pra adotar uma criança? — perguntei
horrorizada a ela.
— Liah — Olívia chamou da porta, entrando na sala. — O que está
acontecendo aqui?
Camille sorriu para ela, mostrando a mesma foto no celular.
— Quem é essa criança?
— Eu vou adotar esse menino — Camille contou nervosa. — Olie, você
é amiga dele a tanto tempo. Acha que Nathan vai me aceitar de volta se eu
der um filho a ele?
Olívia me encarou de queixo caído, voltando a olhar de olhos
arregalados para a maluca.
— Você realmente acredita nisso? Está louca a esse ponto? — Olie
perguntou, desacreditando do que via.
— Eu não estou maluca. Sei muito bem que Nathan me odeia agora. Mas
ele só me odeia porque perdi o bebê. — Camille me encarou por alguns
segundos. — Você e ele… isso não vai durar muito.
— E posso saber o porquê? — perguntei irritada, cruzando meus braços.
— Nathan gosta de mulheres mais… vulgares, talvez seja a palavra —
disse me analisando inteira.
— Camille desde quando Nathan gosta de mulheres vulgares? — Olívia
franziu a testa, reprovando a afirmação da menina.
— Ele nunca curtiu as inocentes — rebateu Olívia e voltou a me analisar.
— E você está presumindo que eu não sou o tipo de mulher que ele
gosta, porque me acha inocente? — ergui uma sobrancelha, sem acreditar
na falta de noção dela.
Camille riu amargamente, debochando de mim. Uma raiva intensa
dominou minha mente. Quem essa mulher pensava que era para vir aqui
tirar minha paz depois de toda a merda que fez com Nathan?
— Camille, eu vou pedir educadamente a você uma última vez. Sai
daqui e não volta nunca mais — avisei, sentindo meu corpo vibrar.
— Não tenho pretensão nenhuma de deixar Nathan em paz, se é isso que
você quer dizer — ela disse rindo.
— Ok. Você pediu… — sai de trás da mesa, dando a volta até a cadeira
onde ela estava. — Sei que vou me arrepender disso, mas…
Deixei a raiva descontrolada tomar minha mente e sem pensar, agarrei os
cabelos cumpridos dela, vendo seu rosto tomado pela surpresa. Puxei a
garota pelos fios, arrastando seu corpo para fora da minha sala. Olívia me
encarava em choque, congelada ao lado da porta enquanto Camille se
debatia, tentando se soltar.
— Você vai sair daqui e não vai voltar mais, ouviu? — quase gritei, a
empurrando pelos cabelos para ocorredor.
— TÁ MALUCA? — Camille gritou voltando para cima de mim. —
Quem você pensa que é pra colocar essas patas sujas em mim?
— PATAS SUJAS? — gritei de volta para ela, enfiando minhas unhas
em seu rosto para não deixar que ela chegasse até mim. — SE ALGUÉM
TEM PATAS AQUI, É VOCÊ. SUA CADELA.
Meu Deus, Liah. Você nunca foi tão baixa.
— Ei! — escutei Ethan gritar, correndo pelo corredor e me tirando de
cima dela. — Para com isso.
Sacudi meus braços e pernas, esperneando para que Ethan me soltasse,
mas ele me mantinha no alto, me segurando pela cintura. Tommy fazia o
mesmo, segurando Camille.
— O que deu em vocês? — Ethan perguntou, tentando me acalmar. —
Você não pode sair brigando no corredor da ONG.
— Ela é maluca, Ethan — reclamei, respirando com dificuldade. — Ela
tá falando que vai adotar uma criança pra ser filho do Nathan. Entende isso?
Ethan franziu a testa, encarando Camille desacreditado. Tommy
mantinha a mesma expressão inconformada no rosto.
— Tommy, leva a Camille pra fora — Olívia pediu, sacudindo a cabeça.
— Se ela tentar entrar no prédio de novo, chama a polícia.
Para completar a desgraça, Nathan vinha caminhando pelo corredor,
olhando a cena atento. Camille abriu um sorriso doentio ao vê-lo se
aproximar.
Que merda ele estava fazendo aqui?
— O que tá acontecendo aqui? — perguntou confuso, alternando os
olhos entre mim e Camille, mas parou o foco em Olívia, esperando uma
resposta da única mulher que parecia sensata nesse momento.
— Você não vai querer saber — Olívia garantiu, soltando um riso
inconformado. — Tommy, leva essa garota pra fora.
— NÃO! — a louca gritou, ainda se debatendo para se soltar do aperto
de Thommas. — Nathan, me escuta. Por favor.
Voltei a me sacudir, tentando me soltar de Ethan. Se essa louca pensava
que ia chegar perto dele, estava totalmente surtada.
— ME SOLTA, ETHAN! — gritei para ele, tentando acertar uma
cotovelada nele, mas Ethan desviava de mim sem grandes dificuldades.
— Controla sua mulher — Ethan pediu, encarando Nathan de um jeito
engraçado, ainda desviando dos meus golpes.
Nathan veio para o meu lado, me tirando do aperto de Ethan ainda com o
cenho franzido.
— O que houve aqui? — me perguntou quando finalmente estava livre.
— Ela tá surtadinha com medo de que eu queira você de volta… —
Camille se intrometeu, debochando.
— ESSA VAGABUNDA… — parti de volta para cima dela, mas o
braço grande de Nathan me segurou no lugar, me prendendo pela cintura.
— Pelo amor de Deus, Liah. Nunca te vi descontrolada assim… —
Nathan arqueou as sobrancelhas, tentando me controlar, sem permitir que
eu tivesse ao menos a visão de Camille, que ainda se debatia, presa no
aperto de Tommy. — O que ela fez?
— Essa garota é surtada — disse quase sem ar pela agitação em tentar
me soltar e chegar até ela. — Tira ela daqui, Thommas. Eu quero essa
garota fora da minha ONG.
— Liah, chega! — Olie pediu desesperada ao perceber que já apareciam
várias pessoas pelo corredor, analisando a cena curiosas. — Acontece de
tudo nesse corredor, gente.
Nathan me puxou para mais longe dela, enquanto Thommas puxava
Camille porta afora. Esperava de todo o coração que ela nunca mais
tentasse aparecer aqui ou ia acabar perdendo a cabeça com ela. Perder ainda
mais.
— Alguém vai me explicar? — Nathan pediu, cruzando os braços assim
que percebeu que eu não tentaria mais sair correndo atrás dela.
— Seria bom procurar a Emma e contar a loucura que a filha dela está
planejando — Ethan avisou preocupado ao amigo. — Pelo que entendi,
Camille está planejando adotar uma criança pra ser o filho de vocês.
— O quê? — Nathan perguntou totalmente confuso. Era tão louco que
ninguém entendia de primeira.
— Ela me mostrou uma foto de um menino de três anos. Disse que ia
adotá-lo e devolver seu filho, e aí você a aceitaria de volta — expliquei, me
sentindo mais calma.
Nathan me encarou por alguns segundos e então, surpreendendo todo
mundo, soltou uma gargalhada alta.
— Sério? — Nathan esfregou o rosto e seu riso se tornou mais
desesperado. — Quando penso que já passei pelas coisas mais absurdas na
vida, o destino me prova totalmente o contrário.
— Ela foi sempre assim ou só enlouqueceu depois que engravidou? —
perguntei cruzando os braços, irritada só de pensar que Nathan passou anos
de sua vida com ela.
Nathan sacudiu a cabeça inconformado e me lançou um olhar irritado,
embora tentasse esconder a vontade de rir.
— Não sabia desse seu lado nervosinha — acusou sem conter um
sorrisinho de canto. — Achei que só perdia a cabeça comigo — provocou.
— Liah tirou Camille da sala dela pelos cabelos — Olívia contou
orgulhosa. — Se fosse eu, ainda tinha dado uns tapas naquela cara falsa
dela.
— Perdi isso? — Ethan reclamou alarmado, me encarando com a boca
aberta. — Liah, eu achei que você era super da paz…
— Nem vem com isso — reclamei, apontando o dedo na cara dele. —
Essa maluca disse que Nathan gostava de mulheres vulgares e que eu era
inocente demais pra ele — eu sabia que estava fazendo um bico infantil,
mas a raiva ainda borbulhava dentro de mim.
Nathan passou o braço pelos meus ombros, rindo alto.
— E aí você teve a brilhante ideia de puxar a garota pelos cabelos pra
mostrar que não é tão inocente quanto ela pensava — concluiu, rindo com
os amigos enquanto reprovava falsamente minha atitude, balançado a
cabeça.
— Não vai negar? — perguntei ressentida a ele.
— Negar o quê? — devolveu a pergunta me olhando confuso.
— Você gosta mesmo de mulheres vulgares?
— Claro que não, Liah — ele respondeu me encarando incrédulo.
— E nem pense em se comparar com ela. Camille é totalmente diferente
de você. — E eu não deveria me preocupar com isso? — Nathan tinha
ficado com ela por anos, afinal. — Você a amou por anos.
— Hoje tenho minhas dúvidas sobre isso — rebateu me encarando
profundamente. — Esquece isso…
Nathan voltou a me abraçar e vi que Ethan, Tommy e Olívia ainda nos
encaravam no corredor.
— O que vieram fazer aqui? Achei que iam para a App agora de manhã.
— perguntei a eles, lembrando que eles nunca estavam por aqui nas terças
pela manhã.
— Tinham duas viaturas policiais paradas na porta quando passei aqui
em frente — Nathan explicou baixinho, me olhando preocupado. — Liguei
pra eles e resolvemos passar só pra ver se estava tudo bem.
— E por que vocês passaram por aqui? — foi Olívia quem se atentou ao
detalhe. — Não é caminho de nenhum de vocês.
Ethan levantou uma sobrancelha, preocupado, desafiando Nathan a
responder à pergunta. Percebi ter algo errado no segundo em que ele
desviou o olhar do amigo, demorando mais do que o normal para responder.
— Talvez eu esteja passando por aqui todos os dias pela manhã, só pra
me certificar de que tudo esteja bem — comentou, tentando soar
despreocupado.
— Talvez? — Ergui minhas sobrancelhas, entendendo que ele estava
começando a ficar paranoico com tudo.
Os meninos viviam na ONG, sempre tinha um deles aqui. Ethan e
Thommas nunca me deixavam voltar para o hotel sozinha quando Nathan
não estava comigo. Ethan estava na cola de Olívia ainda mais que o normal.
Agora meu namorado simplesmente resolvia passar a quilômetros de casa
todos os dias pela manhã só para se certificar de que tudo estava bem.
Nathan sabia de alguma coisa que eu não sabia. Eu tinha certeza disso.
— Se acontecer algo estranho aqui, a gente avisa vocês — Olívia
determinou. — Mas não precisamos de babás.
— Não mesmo — Tommy interviu rindo. — Se Liah ficar irritadinha
assim toda vez que aparecer alguém indesejável por aqui, vocês vão estar
seguras.
— Ah, Tommy, muito engraçado — reclamei de sua piadinha idiota. —
É melhor a gente sair do corredor — avisei ao perceber alguns voluntários,
que ainda disfarçavam pelos corredores, prestando atenção na nossa
conversa.
Entramos todos em minha sala, fazendo com que o espaço grande se
tornasse pequeno para todo mundo.
Por que essas confusões só aconteciam na minha sala e nunca na de
Olívia?
— O que você sabe que eu não sei? — perguntei assim que fechei a
porta atrás de mim, buscando Nathan com os olhos.
— Eu? — ele perguntou assustado.
— É, Nathan! Você! — apontei pra ele, vendo Ethan e Thommas
prenderem uma risada. — Não comecem a rir não, vocês são cúmplices um
do outro.
Os dois ficaram sérios na mesma hora, encarando Nathan pedindo
socorro com os olhos. Nathan, por sua vez, balançou a cabeça
desacreditado, bufando.
— Tá bem… O que vocês sabem?
— Nada! — responderam os três juntos.
Encarei Olívia e ela tinha exatamente a mesma expressão que eu.
Mentira deles.
— Podem começar a falar — pedi calmamente.
— Eu já falei sobre isso com você — Nathan começou sério. — Fui
seguido, tentaram te subornar e Carlton sabe que tem policiais envolvidos
nesse esquema que Sylvia não conseguia sair. A gente só fica preocupado.
Suspirei. Eram todos pontos relevantes, mas eram pontos conhecidos há
um tempo. Então não conseguia entender por que toda essa paranoia deles
só aumentava.
— Promete que vai me contar qualquer coisa que souber? — pedi, me
sentindo receosa.
Se tinha mesmo mais alguma coisa acontecendo, a gente podia estar
correndo perigo?
— Prometo — Nathan desviou os olhos de mim.
Ele não estava mentindo para mim, certo?
Ia confrontá-lo sobre isso no mesmo segundo que meu celular tocou
sobre a mesa de madeira.
Estiquei o braço para ver o número na tela. Doutor Estevem.
— Oi — atendi depressa, atraindo os olhares curiosas dos meus amigos.
— Liah, acabei de receber uma notícia boa, pelo menos — avisou um
tanto alarmado. — Preciso que você vá comigo à loja do Centro agora. A
equipe da empresa das câmeras de segurança quer os números das câmeras
e vão liberar as filmagens antigas.
— Graças a Deus — um alívio instantâneo me fez relaxar sobre a
cadeira. — Tomara que a gente encontre alguma coisa nas imagens. Que
horas preciso estar lá?
— Às 12:30h.
— Obrigada, Estevem.
Encerrei a ligação, apoiando o celular sobre a mesa. Quatro pares de
olhos me encararam em expectativa, aguardando uma explicação minha.
— Consegui as filmagens antigas da loja do Centro — contei sorrindo.
Os quatro também adotaram expressões aliviadas. Todos sabíamos que
havia alguma chance de encontrarmos algo ali a nosso favor. Só esperava
que realmente encontrasse algo, porque minhas apostas eram muito
limitadas agora.

— Aonde a gente vai? — Triss perguntou assim que entrou no carro de


Nathan.
Quando sai da ONG para vir para o Centro, Nathan me entregou a chave
do carro dele, pedindo que eu não fosse de Uber ou de táxi. Ele foi para a
App de carona com Thommas e me pediu para buscar Triss na escola e levá-
la para o estágio depois.
Triss já estava estudando em uma escola particular perto de casa, e agora
estava estagiando no período da tarde com eles.
— Preciso passar na loja da Rede Vittorino, aqui no Centro mesmo —
avisei. — Juro que vai ser rápido.
— Tudo bem. — A garota me olhou de lado, ansiosa com alguma coisa.
— O que foi? — perguntei, desviando minha atenção rapidamente para
as rugas em sua testa franzida.
— Vocês conseguiram achar alguma coisa que ajude você na
investigação? — ela perguntou chateada.
— Triss, como sabe disso?
Senti meu coração pesado. A gente precisava mesmo tomar cuidado com
o que falávamos nos corredores da ONG. Essa não era uma informação que
a garota deveria ter.
— Escutei uma conversa do Tio Carl com o Nate no dia do aniversário
seu e da Mia — ela contou, desviando os olhos para o vidro de sua janela.
— Pressionei-o a me contar o que estava acontecendo.
— Nathan te contou? — Apertei o volante, suspirando alarmada. — Ele
não devia ter feito isso.
— Nate não fez por mal, Liah — defendeu o tutor. — Eu que o
pressionei.
— Ainda assim, ele não deveria ter falado sobre isso com você —
reclamei, sentindo minha irritação com ele voltar com tudo. Triss só tinha
dezesseis anos, não tinha que estar envolvida nisso.
A garota voltou a me olhar, pensando se continuava ou não o assunto.
Meio segundo depois ela se exasperou, virando o corpo no banco agitada.
— Agora eu sei, e é isso. Pronto. Me conta, acharam alguma coisa? —
pediu nervosa.
— Não, Triss, não achei nada ainda — respondi vencida, tentando
manter meu foco na direção. — Nathan tentou até hackear o computador e
o celular da minha avó, mas não achamos nada.
— Não estão apreendidos? — perguntou confusa.
Olhei para a pasta largada aos seus pés, pensando na besteira que fiz ao
esconder os aparelhos no dia da busca do FBI. Se soubessem disso, eu
estava perdida. Triss não precisava saber disso.
— Estão — menti, me sentindo mal por isso. — Foi antes do mandado
de busca.
A garota voltou a ficar em silêncio e agradeci por isso. No entanto, por
diversas vezes vi seus olhos desviando para a mesma pasta que olhei alguns
segundo atrás. Merda. Triss era esperta o suficiente para entender o que
estava acontecendo ali.
Alguns minutos depois, estacionei em frente à loja, vendo que o
advogado já estava com uma equipe de segurança me aguardando. Saí do
carro junto de Triss, estendendo a mão para um dos homens com uniforme
da empresa.
— Desculpem a demora, precisei buscar Triss no colégio — avisei.
Tirei o chaveiro pesado da bolsa, abrindo a porta de vidro na frente da
loja.
— Fiquem à vontade — disse a eles, fazendo sinal para que entrassem.
— Nós vamos apenas identificar as câmeras e os números de segurança
delas — o homem que liderava a equipe explicou. — Vocês devem receber
um link por e-mail pra baixar o backup das gravações. É bem pesado,
devem receber um link para cada ano de filmagem.
Enquanto ele falava, os outros homens iam preenchendo formulários
para cada uma das câmeras da loja. Triss estava inquieta, observando cada
detalhe ao redor. Me perguntei o que ela tanta pensava e olhava.
— São cinco câmeras no total, chefe — um dos homens gritou do fundo
da loja.
— Tem mais duas lá em cima — avisei.
— Cinco? Tem nove câmeras aqui — Triss apontou para algumas outras
câmeras espalhadas pelo grande salão da loja de artigos.
— As nossas são essas identificadas com logo da empresa — o chefe da
equipe avisou, dando de ombros. — Essas pretas me parecem câmeras
falsas. Quase todas as lojas colocam umas dessas. Devem ser de antes da
instalação das nossas.
Era bem típico de vovó mesmo. Lembro do quanto a perturbei para
colocar as câmeras de segurança nas lojas e no clube quando uma onda de
assaltos abateu a cidade, alguns anos atrás.
Os homens subiram, procurando pelas câmeras no andar de cima
enquanto o chefe deles me entregava as fichas para conferir os dados e
assinar, autorizando a liberação.
Quando finalmente estávamos todos prontos para sair da loja, ainda vi
Triss olhar uma última vez intrigada para as câmeras pretas no alto das
paredes.
— Vamos? — a chamei, sem querer pressioná-la ou incentivá-la em
qualquer ideia absurda que tivesse a respeito daquilo.
No caminho para a App, Triss esqueceu-se do assunto investigação e
começou a me contar como haviam sido seus primeiros dias numa escola
fora de um abrigo. Ela estava super empolga e feliz com os amigos que
estava fazendo e a vida que estava tendo.
Existia um carinho enorme na forma como ela falava e se referia a
Nathan, e isso era muito bonito de ver. Sorri ao pensar que já tinha sido
contra àquela adoção.
Já estávamos esperando o elevador na recepção do prédio da App quando
Triss colocou a mão na cabeça, nervosa.
— Meu Deus, Liah. Esqueci minha mochila no carro e meu notebook
está lá.
— Tudo bem. — Entreguei a chave a ela. — Vou subir porque quero dar
um oi para o Nate. Só não esquece de trancar o carro, por favor. — Pedi
assim que o elevador chegou ao térreo.
Só estive aqui uma vez antes, quando vim na reunião com Sylvia. Nessa
época, não tão distante, eu e Nathan ainda tínhamos um ódio platônico um
pelo outro.
Cheguei na recepção e a mulher jovem e bonita era a mesma que me
atendeu da outra vez.
— Boa tarde. Eu queria falar com o Nathan — avisei sorrindo para ela.
— Você tem hora marcada? — A moça perguntou sorrindo
educadamente de volta.
— Sou namorada dele, na verdade — disse sem graça. Nem sabia se
Nathan estava muito ocupado agora para me receber. — Mas tudo bem se
ele não puder agora…
— Meu Deus. Você é a Liah? — A mulher perguntou surpresa, saindo de
seu posto para me acompanhar até a porta de vidro que dava acesso ao
interior da App.
Apenas afirmei com a cabeça, vendo a mulher ficar vermelha de repente.
— Nathan avisou que você poderia entrar a qualquer momento. Mil
perdões, não sabia que você era… você — a mulher estava verdadeiramente
nervosa.
— Tudo bem — Tranquilizei-a. — Eu nem me identifiquei quando
cheguei.
A mulher, que agora via no crachá em seu peito, se chamava Victória.
Ela me indicou o caminho entre os corredores de vidro até a última sala,
onde uma plaquinha mostrava o nome de Nathan com o título de CEO
embaixo.
Nathan estava sentando atrás de sua mesa, e sorriu ao me ver através do
vidro transparente.
— Oi — disse sorrindo ao entrar na sua sala. Nunca estive ali antes. —
O escritório de vocês é lindo.
— Oi — Nathan empurrou a cadeira para trás, me puxando pelo pulso
até que eu estivesse sentada de lado em seu colo. Seus lábios deixaram um
beijo carinhoso nos meus. — Como foi na loja?
— Nate — olhei preocupada pelo corredor cheio de salas transparentes e
podia ver as pessoas que trabalhavam atrás das telas. — A gente está na sua
sala, e todas as paredes aqui são de vidro.
— O que tem?
— A gente não pode ficar assim aqui — reclamei tentando me levantar
do colo dele.
— O lado bom é que sou dono da empresa — riu divertido, me
segurando no lugar.
— Por isso mesmo. Você tem que dar o exemplo — voltei a reclamar, e
dessa vez ele me deixou levantar.
— Como foi na loja? — perguntou emburrado como uma criança que
tem o doce negado.
— A empresa de segurança deve entregar as filmagens na próxima
semana — avisei. — Espero que a gente consiga encontrar alguma coisa lá.
Os olhos de Nathan correram para fora da sala, vendo Triss caminhar
pelo corredor. A menina entrou na sala, me devolvendo a chave do carro e
deixando um beijinho estalado na bochecha dele. Era tão fofo ver a
interação dos dois.
— Depois queria falar com você sobre um erro que achei no sistema —
Triss pediu com um jeitinho meio conspiratório.
Nathan olhou para ela sem entender muito bem o que a menina queria
dizer, mas assentiu mesmo assim. Triss acenou, jogando um beijinho para
mim no ar antes de voltar pelo mesmo corredor.
— Como está indo o estágio dela?
— Comprovadamente, ela é um gênio — Nate sorriu orgulhoso. — Pena
que ela não vai ficar aqui muito tempo. A App é pequena demais pra ela.
Estou tentando arrumar um estágio melhor pra ela.
— Sério isso? — perguntei de boca aberta. Nathan assentiu, mordendo o
interior da boca. Sorri ao perceber que ele começou a fazer isso pouco
tempo atrás.
— Tenho que voltar para a ONG. Joanna quer repassar os relatórios de
desenvolvimento das turmas do terceiro ano ainda hoje — avisei,
entregando a chave do carro a ele.
— Deixa com você. — Nathan empurrou a chave de volta na minha
mão. — Eu te pego mais tarde na ONG e deixo você no hotel.
— Tem certeza? — perguntei preocupada em deixá-lo sem carro.
— Não quero você por aí em carro de aplicativo — reclamou me
olhando sério. — E meu carro tem localizador.
Suspirei, irritada pela proteção exagerada que ele estava tendo, mas
preferi não reclamar e aceitei a chave.
— Só uma última coisa — lembrei da minha conversa com Triss. —
Triss não deveria saber sobre a investigação, Nathan.
— Ela escutou uma conversa minha com Carlton — disse se
justificando.
— E o que vocês falaram? — perguntei curiosa.
Nathan negou com a cabeça, me olhando inconformado.
— A gente conversa sobre isso mais tarde, pode ser?
Dei de ombros, cedendo a esperar até mais tarde, mas perturbaria Nathan
até que ele me dissesse palavra por palavra no fim do dia. Eu sabia que ele
tinha muito mais informação do que dizia, só não conseguia entender os
motivos dele para querer esconder aquilo de mim.

— Sophia?
Tinha acabado de voltar da App e me surpreendi ao ver a tia de Nathan
sentada em minha sala. A mulher tinha uma postura impecável, destoante
de seu olhar doce e acolhedor.
— Oi, Liah. — Sophia levantou-se me abraçando em seguida.
— É um prazer ter você aqui — disse retribuindo o abraço aconchegante
dela. — Como posso te ajudar?
— Almocei com Olívia hoje e ela me contou sobre seu desentendimento
com Camille, hoje cedo.
Encarei a mulher à minha frente, suspirando. Tudo que eu não precisava
era que Olie saísse por aí espalhando sobre minha briga com a ex de Nate.
Sophia retirou um papel de sua bolsa, estendo-o em minha direção.
— Eu não tive a oportunidade sequer de falar com Camille antes dela
sumir três anos atrás. Ela fugiu pra Itália antes mesmo que Nathan pudesse
confrontá-la. E agora ela aparece aqui e acha que pode virar a vida de vocês
de cabeça para baixo.
Olhei as palavras escritas no pedaço de papel. Era um endereço, perto da
ONG inclusive.
— De quem é esse endereço, Sophia?
— Camille. — Sophia me encarou apertando os olhos. — Quero saber se
me acompanharia até lá.
Sophia queria ir à casa de Camille? Essa era uma grande novidade.
Mesmo tentada a dar uns tapas na garota de novo, provavelmente eu
perderia minha razão se a encontrasse novamente.
— O que exatamente você planeja fazer lá? — perguntei preocupada
com o sorriso malicioso que ela me dava.
— Mandar essa garota de volta para Itália. Quero ela longe daqui.
Arregalei meus olhos, ciente de que aquele tom não era o usual dela.
Sophia realmente estava com raiva de Camille. Mordi o interior da minha
bochecha, extremamente tentada a ceder.
Eu não podia imaginar que argumentos ou ameaça aquele mulher,
aparentemente amorosa, poderia usar para que a garota fosse embora, mas
eu conseguia pensar em uns bons tapas que a fariam ao menos se afastar da
ONG e de Nate.
Analisei minha roupa, pensando ser sempre uma vantagem vir para a
ONG de jeans e tênis, o que eu vinha fazendo já tinha umas semanas. Isso
facilitava minha vida quando eu precisava correr ou carregar caixas
pesadas. Ou puxar Camille pelos cabelos.
— Vou com você — disse por fim, vendo o sorriso de Sophia crescer. —
Mas não me responsabilizo se perder a cabeça e descer a mão na cara dela
— avisei.
Sophia riu abertamente, jogando a cabeça para trás.
— Liah, querida, provavelmente eu vou perder a cabeça e fazer isso —
avisou me olhando em cumplicidade.
Joanna estava chegando na ONG com Olívia assim que eu estava saindo,
de novo. Ela me encarou confusa, franzindo o cenho.
— Joanna, tudo bem se passar os relatórios com a Olívia hoje? — pedi,
vendo Olívia virar o pescoço para mim com os olhos questionadores.
— Aonde vocês vão? — perguntou ao perceber Sophia do meu lado. —
Aconteceu alguma coisa com Nathan ou Mia?
Sophia negou, abraçando Olívia.
— Vamos tomar um café — desconversou, com medo que Olívia
tentasse refrear nossa saída.
Mas Olívia me conhecia o suficiente para saber que eu não deixaria a
ONG e uma reunião com Joanna apenas para tomar um café, mesmo que
fosse com a tia do Nathan. Por isso, a garota me deu uma olhada
desconfiada deixando claro que não acreditava na mentira fajuta.
Saí da ONG com Sophia sem dar muito tempo a elas para questionarem
o que realmente iríamos fazer. Tirei a chave do carro de Nathan do bolso,
seguindo para onde a BMW estava estacionada. Nathan devia ser bem
desapegado com seus bens para deixar aquele carro na minha mão.
— Podemos ir no carro do Nathan? — perguntei a ela.
— Claro! — Sophia sorriu, abrindo a porta do lado do carona. — Nathan
deixou com você?
Balancei a cabeça em afirmação, entrando do lado do motorista.
— Ele estava preocupado em me deixar de Uber pra cima e pra baixo —
disse, sorrindo boba pela preocupação que ele tinha comigo.
— Nathan deve gostar mesmo de você — Sophia afirmou quando saí do
estacionamento. — Ele tem um ciúme desse carro.
Tinha? Não parecia. Nathan nunca foi do tipo que ficava falando do
carro e dizendo o quanto ninguém podia encostar no seu. Mesmo assim,
sabia que Sophia não diria aquilo só por dizer. Sorri involuntariamente.
Quase vinte minutos depois estacionei em frente ao endereço que Sophia
tinha me dado, com a barriga doendo de tanto rir. Ela era uma mulher muito
carinhosa e tinha um amor incondicional pela filha e pelo sobrinho. Viemos
todo o caminho com ela me contando sobre as coisas que Nathan e Mia
aprontavam na infância e depois, na adolescência.
— Sério, Liah. Nathan me deixava de cabelo de branco e eu não tinha
nem quarenta anos ainda — disse logo após me contar que Nathan, Ethan e
Tommy quase foram presos por importunação da ordem pública, ao
chegarem bêbados em casa no aniversário de vinte e um anos dele, e que
Carl salvou a pele dos três.
Descemos do carro ainda rindo e meu celular vibrou com uma
mensagem. Olhei o aparelho vendo o nome de Nathan piscar na tela.

— Olívia não segura a língua — reclamei.


— O que foi querida? — Sophia perguntou ao ver minha preocupação.
— Nathan sabe que a gente está aqui. — Suspirei. — Esqueci que o
carro tem localizador.
Sophia deu de ombros, como se aquilo não representasse nada para ela.
A mulher saiu a passos duros, tocando o interfone no muro elegante.
Alguns segundo depois a voz da louca podia ser ouvida.
— Pronto
— Camille, não acredito que voltou mesmo — Sophia disse simpática.
— Tive que vir até aqui pra comprovar com meus próprios olhos.
— Sophia! — Camille exclamou animada. — Meu Deus, que saudade de
você. Entra.
O portão automático se abriu e Sophia me chamou com a cabeça,
atravessando para dentro do jardim da casa comigo.
Será que Camille surtaria muito quando me visse aqui?
Uma mulher muito alta e elegante apareceu na porta enorme da casa,
sorrindo ao ver Sophia.
— Sophia, quanto tempo, minha querida — cumprimentou abraçando a
mulher na porta.
— Emma — Sophia tentou sorrir, mas aquela energia contagiante não
estava mais presente nela.
Então essa era a mãe de Camille. Por algum motivo, não parecia que as
duas mulheres se davam bem. Existia uma irritação no fundo dos olhos de
Sophia muito parecida com a irritação que costumava ver nos olhos de
Nathan quando ele ia ter uma crise.
— Mãe… — Camille apareceu atrás da mãe e estancou na porta ao me
ver ao lado de Sophia. — O que essa mulher está fazendo aqui? —
perguntou já exaltada.
— Liah? — Sophia apontou para mim, sorrindo falsamente para a ex-
nora. — Ela é namorada do Nathan. Achei que vocês gostariam de conhecê-
la.
Emma me encarou quase me fulminando com os olhos, qualquer esboço
de sorriso havia sumido totalmente do rosto esticado pelas plásticas
evidentes.
— Ora, Sophia. Não entendi o que viria fazer aqui trazendo a namorada
do Nathan com você. — Emma encarou friamente a mulher a sua frente.
— Viemos ter uma conversinha sobre o comportamento de Camille —
avisou, entrando na casa sem mesmo ter sido convidada.
As duas mulheres encararam Sophia, pasmas com a audácia da tia de
Nathan. Sorri, pensando que ela era das minhas e passaria por cima de todos
para defender aqueles com que se preocupava.
— Liah, você vem? — Sophia gritou lá de dentro.
Encarei as duas mulheres na porta de cara fechada e Emma abriu
passagem para que eu passasse, repreendendo a filha com um olhar ao
perceber que ela viria para cima de mim. Ergui uma sobrancelha, me
aproveitando do fato que a mãe a repreendeu para atingi-la ainda mais.
— Posso saber do que se trata tudo isso? — Emma perguntou para
Sophia, que já estava confortavelmente sentada no enorme sofá daquela
mansão.
— Você sabia que sua filha está tentando adotar uma criança? — Sophia
perguntou a ela.
— Não desistiu dessa história Camille? — perguntou séria a filha.
Cruzei meus braços, recostando o corpo na lateral da grande lareira
embutida na parede. Observei o clima tenso entre mãe e filha e preferi ficar
calada por enquanto.
— Já conversamos sobre isso, mãe — Camille abaixou os olhos
insegura.
— Você me disse que tinha desistido — a mulher cobrou a ela. —
Acreditei em você. Você me pediu para voltar e eu deixei.
— Só pra finalizar, até porque não posso me estender muito aqui —
Sophia levantou-se do sofá, caminhando até que estivesse ao meu lado. —
Camille esteve na ONG para dizer a Liah que estava adotando essa criança
na intenção de devolver ao meu filho, o bebê que ela perdeu. Espero que
isso tenha sido apenas uma brincadeira de mal gosto.
— Camille… — Emma repreendeu, olhando a filha escandalizada.
— Eu avisei a você, Camille — resolvi me pronunciar e deixar claro
minha indignação quanto aquilo. — Você se meteu com as pessoas que são
importantes para mim, e mexer com a cabeça do Nathan desse jeito não é
nada justo. Eu não te julgo pelo que aconteceu no passado, ninguém sabe o
que se passava na sua cabeça. Mas você sumiu e deixou Nathan sem
nenhum apoio quando ele mais precisava de alguém, quando ele mais
precisava de você.
Camille me encarou com os olhos pegando fogo de ódio, mas não ousou
dizer uma palavra sequer para rebater o que eu disse.
— Sua filha precisa de tratamento, Emma. Espero que seu orgulho não
seja tão grande a ponto de deixá-la sem assistência. — Sophia terminou
encarando a mulher com piedade.
Sem esperar nenhuma resposta, a mulher me puxou pelo braço para fora
da casa. O portão foi aberto automaticamente assim que chegamos a saída
da casa. Respirei aliviada por estar fora daquele ambiente, mas meu coração
voltou a bater acelerado quando meus olhos captaram a figura do homem de
braços cruzados, encostado na BMW, esperando que a gente saísse de
dentro da casa.
— Eu tenho merda pra caralho na cabeça e agora tenho que me
preocupar com vocês duas aprontando juntas?
20 de agosto de 2019
— Eu tenho merda pra caralho na cabeça e agora tenho que me
preocupar com vocês duas aprontando juntas? — meu tom soou mais
irritado do que deveria, mas era inevitável.
Mantive meus braços cruzados sobre o peito, encostado na minha BMW
agradecendo a ideia de Tommy de colocar um localizador no carro. Assim
que Olívia me ligou contando sobre a atividade suspeita das duas, fiquei
preocupado, e mesmo pensando estar invadindo a privacidade dela, olhei no
aplicativo onde Liah estava indo. Só não esperava o choque quando vi o
destino.
Liah arregalou os olhos ao me ver, e minha tia riu. Ela simplesmente riu.
Tia Sophia adorava dar uma de durona na maior parte do tempo.
— O que vieram fazer aqui? — perguntei, quando nenhuma das duas
proferiu qualquer palavra.
As duas se olharam e quase podia ouvir a conversa muda delas. Era
incrível a capacidade que as mulheres tinham de se comunicar só por
intuição.
— Como chegou aqui? — minha tia perguntou curiosa.
— Ah! Não senhora! — Quase não segurei o riso, sabendo que era
exatamente assim que ela começava a mudar de assunto. — Vocês não estão
em posição de fazer perguntas. Podem começar a falar… o que vieram fazer
aqui?
— Vai dirigir? — Liah perguntou, usando um tom ainda mais doce do
que nos momentos que ela estava mais calma, esticando a mão para me
entregar a chave do carro.
Erro seu. Tirei a chave da mão dela e enfiei no bolso da calça, voltando a
olhar feio para as duas.
— Ninguém entra nesse carro antes de me responder. O que vocês duas
vieram fazer aqui? — perguntei, sentindo que estava ficando cada vez mais
irritado.
Liah me olhou desacreditada soltando uma lufada de ar. A loira bateu o
pé no chão, se encostando no carro com um certa distância de mim.
— É isso? Vão ficar mudas então? — perguntei ao perceber que
nenhuma das duas cederia.
— Nathan, eu tenho hora para buscar uma encomenda na fábrica de
tecido — minha tia avisou, olhando o relógio em seu pulso.
— Que pena — disse, vendo-a apertar seus olhos em minha direção.
Normalmente, eu tinha medo desse olhar dela. Não dessa vez, tia. Sinto
muito! — Não vamos sair daqui até que uma de vocês resolva me explicar
exatamente o que aconteceu aí dentro.
— Eu vou ligar para o Carl buscar a gente, querida — minha tia avisou a
Liah, sorrindo de um jeito atrevido para minha namorada.
As duas mal se conheciam, quando eles passaram a ter essa interação
uma com a outra? Era demais ter que lidar com a união de Olie e Sophia.
Quando elas se juntavam, não tinha quem se segurasse. Com Liah nessa
equação, era exatamente como montar um time imbatível. Não era nem
justo que houvesse essa possibilidade.
Minha tia pegou o celular na bolsa e já ia desbloquear a tela quando
precisei agir rápido e pegar o celular da mão dela. Ela me encarou nervosa.
— Nathan, que falta de educação é essa? — perguntou irritada. — Não
te criei assim.
— Exatamente, Sophia. Você me criou me ensinando sobre não esconder
as coisas de vocês. Então me diz porque vocês duas não querem me contar
o que vieram fazer aqui. — reclamei.
— Ai, Nathan! — Liah interviu, se colando na minha frente. — A gente
veio falar com Emma sobre as loucuras da filha dela e avisar que ela precisa
de tratamento. Pronto. Foi só isso.
— Só isso? — Abri a boca surpreso. — Isso é um problema meu.
Camille está atrás de mim e não de vocês duas. Quem tem que resolver
meus problemas sou eu. Eu já pretendia fazer isso, mas pelo visto eu sou
uma criança de cinco anos que precisa de babá pra resolver as coisas.
Liah avançou alguns passos até que estivesse quase colada no meu peito.
A garota me olhou de um jeitinho irritado que só ela tinha.
— Eu queria era dar uns bons tapas na cara falsa dela. Mas não fiz por
respeito a sua tia e a mãe dela, que parecia horrorizada com a ideia dela
adotar uma criança — confessou sem conter uma risada. Minha tia também
riu atrás da gente, e fui obrigado a sorrir com elas. Eram duas loucas, isso
sim.
— Vocês não têm juízo? — perguntei desaprovando o que elas fizeram.
— Tia, você arrastou minha namorada pra bater na minha ex namorada —
acusei.
— Eu mesma teria batido, querido — ela respondeu erguendo a
sobrancelha. — Mas devido às circunstâncias, acredito que Emma vai
mandá-la para mais uma temporada na Itália sobre ameaça de intervenção
psiquiátrica.
— Olha, eu não tenho condição mental de lidar com vocês duas juntas
— assumi, quase desesperado pela ideia delas se unindo contra mim. —
Isso é demais pra mim. — Soltei um riso nervoso.
— Jamais revele suas fraquezas para o inimigo — Liah brincou, mas eu
sabia que ela tinha razão. Não deveria ter dado essa munição a elas. As duas
se encaram, sorrindo de um jeito cúmplice uma para outra. Eu estava
mesmo muito fodido.
As últimas horas foram uma sucessão de loucuras na minha vida. Aliás,
tudo estava sendo louco na minha vida já tinham dias. Eu estava realmente
sem tempo para mim. A investigação de Carlton não saia da minha cabeça
por um segundo sequer. Todas as vezes que ele me ligava, sentia meu
coração disparar, com medo de que algo pudesse acontecer com ele, com
minha tia e Mia, ou até com Liah e Triss; Carl estava se metendo em um
beco sem saída.
Ainda tinham as aulas na ONG, o trabalho acumulado na App e Triss.
Desde que ela mudou para minha casa, as coisas ficaram ainda mais
corridas.
Minha manhã de terça foi exatamente assim, muito corrida. Fui para a
terapia logo após deixar Triss no colégio. Em seguida, passei na ONG e me
deparei com Liah e Camille brigando. Passei o resto da manhã entre
milhares de reuniões e só consegui parar para comer super tarde. Mal voltei
do almoço, já estava tendo que correr atrás das malucas da minha tia e Liah.
Voltei correndo para a App porque ainda tinha mais reuniões no fim da
tarde. Ainda estava na sala de reunião com Tommy quando o relógio
marcava 17:30h.
Triss apareceu na porta de vidro, batendo de leve.
— Posso entrar?
— Oi, Triss. Como foi o dia? — Indiquei a cadeira ao lado de Tommy
para se sentar.
— Bom, mas queria falar com você sobre uma coisa. — A garota me
olhou desconfiada. — Acho que você pode se irritar, mas juro que fiz por
uma boa causa — olhei feio para ela.
Tommy soltou um risinho irônico, me encarando.
— Você virou mesmo um pai ranzinza.
— Vai se foder, Tommy — reclamei vendo Triss arregalar os olhos.
Merda. Você não pode falar palavrão assim na frente dela, Nathaniel.
— Desculpa, Triss.
A garota deixou escapar um riso divertido antes de me mostrar uma
pasta em sua mão.
— Peguei isso aqui escondido da Liah hoje. É a pasta com o laptop e o
celular da avó dela.
— Por que pegou isso? — Franzi a sobrancelha para ela, sem entender
direito o porquê dela estar com aquilo.
— Liah passou na loja do centro pra encontrar uns agentes da empresa
das câmeras de segurança. Ela foi fazer a vistoria das câmeras pra entregar
acesso a gravações mais antigas ao advogado dela — contou.
— E qual a relação com o fato de ter pego a pasta?
— Tinham quatro câmeras pretas naquela loja que não eram dessa
empresa. O agente falou pra Liah que deveriam ser fakes, já que não tinham
marca ou logo de nenhuma empresa nelas. — Triss sacudiu a cabeça em
negação, me olhando astuciosa. — Aquelas quatro câmeras estavam
dispostas de forma que não houvesse ponto cego na loja. Tinha uma por
cima da porta de entrada, uma atrás do balcão, uma por cima da porta do
banheiro e uma que pegava o acesso às escadas do andar de cima. E se
essas câmeras foram colocadas lá pra tentar pegar alguma coisa?
Tommy olhou para Triss abrindo a boca em espanto. Olhei para a garota
tão surpreso quanto ele.
Digitei uma mensagem rápida para Ethan, pedindo que viesse até a sala.
— Você é um gênio — Tommy exclamou.
— Obrigada. — Um sorriso orgulhoso brilhou no rosto da garota.
— O que houve? — Ethan entrou na sala, sentando-se ao lado de Triss.
— Você sempre teve razão. Triss é mais inteligente que nós três juntos.
— Tommy continuava assustado com a percepção dela.
Resumi a história para Ethan enquanto ligava o laptop roubado. Liah ia
ficar uma fera quando soubesse disso.
— Talvez tivesse algum acesso aqui que não vi da outra vez.
Ethan ligou o celular verificando se teria algo ali também.
— Vou olhar o celular.
— Talvez eu tenha deixado passar o óbvio. Se ela tem câmeras lá, deve
ter algum programa aqui que abre o sistema de monitoramento.
Puxei uma lista de todos os programas e aplicativos instalados no
computador; tinham muitos que nunca ouvi falar antes. Mas nenhum
parecia um programa de câmeras, até que achamos uma pasta com
aplicativos ocultos.
— Triss, me ajuda pesquisando esses programas…
— ESSE! — Triss gritou, apontando para a tela. A menina já estava com
o celular na mão, buscando os nomes dos programas antes mesmo de eu ter
pedido. — É um programa vagabundo de câmera privada. Você pode ligar
qualquer câmera por 12bluetooth13 nele.
Abri o programa e a tela a seguir era realmente bem simples. Tinha uma
opção que acessava as câmeras em tempo real e uma onde bastava digitar
uma data e um intervalo de hora.
— Quanto tempo será que ele guarda? — Testei uma data de três meses
atrás e nada. Merda.
— Tenta semana passada — Triss pediu ansiosa. Tentei a data e uma
pasta com imagens divididas por intervalo de hora foi aberta.
— Mês passado… — Imputei a data e a pasta apareceu novamente.
— Sylvia morreu tem meses, não vamos ter nada importante aqui —
comentei chateado, largando o computador.
Triss assumiu a tela, tentando mais datas no programa. Ethan ainda
estava tentando achar alguma coisa no celular junto de Tommy. Me recostei
na cadeira, suspirando. Por que era tão difícil conseguir alguma coisa para
ajudar Liah?
— Que merda! — Um arquejo chocado escapou de Triss, chamando
nossa atenção.
Um barulho de algo caindo no chão soou pelo computador enquanto ela
fechava os olhos, virando a tela para a gente.
Gemidos altos começaram a soar na sala. Olhei aterrorizado a tela do
computador, enquanto Tommy e Ethan gargalhavam alto. Era a noite que
fomos até a loja da avó de Liah. Estávamos transando no balcão.
— Como você acessou isso, Triss? — Ethan perguntou sem conter as
risadas.
— Porra! — Fechei a tela do computador com força. — Com tanta data
pra colocar aí, foi colocar logo essa?
— Isso é quase como ver meus pais transando — Triss comentou em
choque.
Olhei para ela apertando os olhos, sendo obrigado a ver os dois idiotas
explodirem em mais risadas altas.
— Vocês estão transando desde aquela noite? Por isso você chegou em
casa todo felizinho.
— Triss… — repreendi.
A garota conteve um riso, trocando algumas piadinhas com os dois
idiotas.
— Posso voltar a olhar o computador? — perguntou receosa.
Abri a tela, fechando o arquivo da filmagem daquele dia e Triss puxou o
laptop de volta, enquanto Ethan continuava a mexer no celular.
— Liah vai me matar quando souber que estamos com isso aqui…
Meu celular vibrou em cima da mesa e o número desconhecido que
vinha me ligando apareceu no visor.
Aquela porra de número de novo.
Eu não costumava atender números sem identificação, mas dada todas as
circunstâncias atuais, resolvi ver se era algo importante. Saí da sala com o
aparelho na mão, deixando os caras e Triss vasculhando os dispositivos de
Sylvia.
— Alô — atendi a ligação, encostando o corpo na parede do corredor.
— Nathaniel. Finalmente resolveu atender.
Não reconheci a voz do outro lado.
— Quem é? — perguntei irritado.
— É um absurdo você não lembrar de mim, mas esse não é o motivo da
minha ligação…
— Quem tá falando? E o que você quer? — cortei o cara, já me
preparando para encerrar aquela ligação.
— Quero que você pare de se meter onde não é chamado. Eu sei que
você gosta, já se ferrou uma vez por causa disso, mas para o seu bem e da
sua namoradinha, acho que é melhor avisar ao seu tio pra ficar fora do
nosso caminho.
Era bem óbvio sobre o que esse cara estava falando, assim como era
evidente que não me respondeu quem estava falando. Carlton já havia me
alertado sobre todos os riscos dessa investigação, por isso ele me queria
fora desse assunto.
— Quem tá falando? — perguntei de novo, mais irritado dessa vez.
Ethan e Tommy me encararam pela parede de vidro. Provavelmente
escutaram meu tom irritado e mais alto.
— Eu sei que sua namoradinha está ajudando seu tio numa investigação
particular. Sei também que ela e a garotinha gênio que você colocou no
lugar do seu filho morto, estavam na loja hoje, levantando as imagens das
câmeras de segurança. Vocês todos precisam parar com isso. Esse é meu
último aviso, entendeu?
— Cara, eu não sei quem é você. Mas seja lá que porra você estiver
pensando, você vai se foder. Carlton vai concluir essa investigação e foder
com a vida de vocês. Pode ter certeza disso — avisei irritado, socando a
parede.
— Se eu me foder, Nathaniel… Beatriss, Lianah e quem mais atravessar
nosso caminho vai junto comigo.
Soquei a parede com mais força. Em menos de dois segundos, Ethan e
Tommy apareceram do meu lado. A linha do outro lado ficou muda.
— Ele desligou. — Joguei o celular contra o vidro, deixando meu corpo
cair sentado no chão.
Uma pequena aglomeração de funcionários se acumulou na entrada do
corredor, e logo Ethan se apressou em dissipar aquelas pessoas, as
mandando de volta aos seus lugares.
Meu coração estava disparado. Desde que Evie e eu fomos seguidos, eu
sabia que isso podia acontecer. Carlton me alertou sobre isso a todo
momento. Agora todos nós estávamos afundados nessa merda.
— Quem era?
— Não sei, Tommy. — Sacudi a cabeça, pegando o celular com a tela
trincada e vendo o número. — Vou ver se o Carlton identifica o número.
— O que esse cara te falou? — Ethan olhou preocupado para Triss, que
nos olhava nervosa ainda na sala.
— Ele ameaçou a Liah, a Triss e quem mais entrasse no caminho dele —
contei baixo, com medo da garota escutar.
— Merda! — Eles disseram praticamente juntos.
Pelo vidro, vi quando Triss deu um soquinho na mesa, chamando nossa
atenção agitada.
— Tem uns arquivos aqui — avisou quando entramos correndo, trazendo
a tela para meu campo de visão. — São na mesma extensão dos arquivos da
câmera.
A garota clicou num arquivo que executou pelo mesmo programa. Uma
imagem do clube Vittorino apareceu na tela. Era um escritório onde Sylvia
aparecia conversando com um homem.
— Não tem som? — perguntei.
Triss tentou ativar algum som na filmagem, mas pelo visto era só vídeo
mesmo. Tinham muitos arquivos, e não parecia ter uma lógica para os
arquivos e datas. Mas todos que abrimos mostravam Sylvia em alguma loja
ou clube conversando com alguém.
— São todos de antes dela morrer — Triss observou.
— Ela salvou esses vídeos por algum motivo. — Encarei a tela, tentando
entender a interação entre Sylvia e o homem com farda policial. — Carlton
deve conhecer esse cara. Vou copiar esses vídeos e entregar a ele. Isso aqui
pode ajudar na investigação.
— Liah precisa saber disso, Nathan — Ethan me avisou, enquanto ainda
encarava a tela ao meu lado.
— Eu sei.
Eu precisava contar a ela que Triss pegou a case com o computador e
celular. Também teria que explicar como achamos aqueles vídeos. Suspirei,
recostando meu corpo na cadeira.
— Talvez devesse contar sobre o incêndio também. Liah está correndo
perigo, e você sabe disso.
Encarei Ethan, engolindo seco. Os olhos questionadores de Triss
focaram em mim. Mesmo que eu quisesse, agora seria impossível manter
aquilo só entre a gente. Liah ainda não sabia sobre o incêndio ter sido
criminoso, e eu me sentia um merda, um filho da puta mentiroso por não ter
tido coragem de contar a ela.
Cansado, joguei a cabeça sobre o encosto alto da cadeira, fechando meus
olhos. Tudo que eu queria eram uns dias tranquilos em que pudesse
aproveitar meu tempo com Liah e, finalmente, curtir a vida que não me
permiti ter em muito tempo. Mas tudo era sempre conturbado comigo.
— Contar o que, Nate? — Triss perguntou, ainda mantendo seus olhos
em mim.
— Triss, eu vou contar isso a ela logo, então por favor, mantêm essa
informação com você e não solta nem pra Mia — pedi incomodado. — O
incêndio que matou a avó dela, foi criminoso.
Ela abriu a boca em um perfeito O, arqueando as sobrancelhas.
— Liah não tem ideia disso?
Neguei com a cabeça. O cansaço acumulado dos últimos dias me fazia
querer largar tudo e ir para casa dormir. As noites mal dormidas estavam
cobrando a conta agora, mas eu precisava ver Carlton.
— Vou levar uma cópia disso para o Carl. — Espetei um pen drive vazio
no laptop, jogando os arquivos pra dentro dele. — Um de vocês pode levar
a Triss pra casa?
— Posso ir sozinha.
— Não pode, não! — Encarei os caras na sala.
Eles sabiam de todas as minhas preocupações. A gente estava afundado
nisso até o pescoço, e não faltavam evidências de que, seja lá quem matou
Sylvia, estava atrás da gente também.
— Você vai com eles — sentenciei.
Triss me encarou confusa. Eu não costumava ser autoritário com ela,
nem impor nenhuma coisa desnecessária, mas não ia deixar que ela corresse
qualquer risco agora.
— Eu a levo — Tommy me tranquilizou.
— Nate, o que tá acontecendo de verdade? — A garota puxou a cadeira
para mais perto de mim, me encarando com medo.
— Também não sei, Triss. — Afundei a cabeça nas minhas mãos,
nervoso e cansado demais para pensar no que podia acontecer com ela ou
qualquer um dos nossos amigos. — Até a gente resolver isso, só por favor,
faz o que eu falar, tá?
Triss assentiu, abaixando a cabeça. Voltei a encarar Ethan e Tommy,
vendo seus olhares pesarosos e preocupados.
— Fico com a Triss lá no seu apartamento até você chegar — a voz de
Tommy soou repleta de preocupação.
— Talvez você devesse ficar com as meninas na ONG, Ethan.
— Estou indo pra lá agora. E de agora em diante, é melhor a gente ter
um plano pra não deixá-las sozinhas. — Ethan me encarou. — Seria bom
pedir aqueles seguranças ao Carl agora.
Concordei, vendo o choque transpassar ainda mais o rosto de Triss.
Tentei não encarar a garota, o choque em seu rosto me fazia sentir a mesma
impotência de quando Camille perdeu o bebê. Conferi se minha carteira e
chave do carro estavam no bolso da calça. Peguei o pendrive e murmurei
um tchau rápido, saindo de lá.

Estacionei em frente à delegacia, sem ter certeza sobre Carlton estar ali.
Tentei ligar para ele assim que sai do estacionamento do prédio, e umas
duas vezes no caminho para cá. Puxei novamente o celular do banco ao
lado e disquei seu número.
Porra. Atende Cal.
Nada!
Eu odiava estar na delegacia. Senti o arrepio na espinha que me dava
certeza de que eu esbarraria com aquele cara por lá. O mesmo que me
espancou naquela noite. Já tinha acontecido uma vez, e o resultado foi uma
das minhas piores crises.
Respirei fundo, tomando coragem para descer do carro. Meu celular
começou a vibrar na mesma hora que abri a porta.
— Carlton, graças a Deus — atendi aliviado.
— Você me ligou várias vezes. Aconteceu alguma coisa?
— Está na delegacia?
— Sim, cheguei aqui ainda pouco.
— Ótimo, estou aqui na frente e preciso falar com você. — Saí do carro,
seguindo em direção à porta principal.
— Nathan, acho melhor não — Carl avisou receoso. — Jasper está aqui.
— Carl, eu tenho um assunto sério para falar. — Atravessei a grande
porta de vidro, procurando por algum rosto conhecido.
Avistei Bob, Xerife e chefe do Cal, conversando com um homem
próximo ao balcão de atendimento.
— Vou pedir ao Bob pra me levar até você.
— Nathan, não faz isso. Aqui não é o melhor…
Desliguei o celular, sem dar chance a Carl de me travar. Eu sabia que ele
não me queria envolvido nisso, mas era tarde demais.
— Ei, Bob — chamei o homem velho e barrigudo, vendo-o me olhar
surpreso. Fazia anos que não entrava na delegacia ou o via. — Quanto
tempo.
— Nathan. Os últimos anos te fizeram bem, parece. — O homem me
estendeu a mão, cumprimentando em um aperto firme. — Veio ver o
Carlton, presumo.
— Sim, ele está me esperando — avisei.
— JASPER! — Porra, Bob. — Vou pedir ao Jasper pra te levar lá
dentro.
O homem grande e loiro atravessou a porta que levava ao interior da
delegacia, parando ao lado do chefe. Um sorriso irônico e frio cortou seu
rosto ao me ver ali.
— Nathaniel — um leve aceno de cabeça junto de suas sobrancelhas
arqueadas. Ele não estava surpreso de me ver ali.
— Jasper, o Carlton está nos arquivos. Mostra o caminho ao Nathan, por
favor.
Bob saiu em direção à porta junto ao homem que conversava, me
deixando sozinho com o filho da puta.
— Você ouviu — disse, me indicando a porta.
Jasper não seria louco a ponto de me pressionar ou tentar me agredir na
delegacia, mas isso não fazia dele menos perigoso.
— Vai na frente — falei, nem um pouco convencido da sua intenção.
Eu não era mais o menino idiota e inocente de três anos atrás. Jasper riu
erguendo uma sobrancelha, mas seguiu na frente, indicando o caminho.
Carlton nos encontrou no corredor, assim que terminamos de subir a escada.
Ele e Jasper se encararam antes de cada um seguir uma direção.
— Eu avisei pra não vir aqui — Carl me repreendeu, me puxando pelo
braço em direção a uma sala.
— Eu consegui umas imagens no computar da Sylvia — avisei logo,
tirando o pen drive do bolso. — Tem uns policiais conversando com ela.
Não consegui reconhecer nenhum.
— Que computador? Nathan tudo isso deveria estar apreendido.
— Não me faz te explicar isso agora, Carl…
— Nathan, você precisa parar. — Carlton me empurrou sobre uma
cadeira de interrogatório, sentando do outro lado da mesa e desativando um
botão em baixo dela.
— Ninguém vai escutar a gente aqui, mas você precisa parar com isso,
Nathan. Não quero mais você e seus amigos se metendo nessa merda.
— Carl, a investigação é sobre a ONG da Liah. Ela pode ser acusada de
fraude e até ser presa. Não sei o que está acontecendo ou o que você sabe.
Mas a gente não vai deixar de se meter.
Carlton olhou para os lados, como se alguém pudesse estar nos
observando. Seus olhos demonstravam toda sua agitação e preocupação.
— Nathan, você não entende a gravidade disso. Eu tenho dois policiais
mortos e a Sylvia Vittorino assassinada. Vocês estão indo por um caminho
sem volta.
Meu tio levantou-se da cadeira, passando as mãos pelo cabelo nervoso
antes de voltar a me encarar.
Tinham policiais assassinados?
— Um cara me ligou hoje, ameaçou a Triss e a Liah. Disse que você
tinha que parar de investigar — contei preocupado.
— Ele se identificou? — Neguei com a cabeça. — Nathan, por favor!
— Carl, seja lá quem for, isso precisa acabar. A ONG não pode ser
fechada, essas crianças vão ser transferidas para os piores lugares possíveis.
Isso vai destruir a Liah.
Carlton voltou a se sentar, me encarando transtornado.
— Jasper não podia ter te visto aqui.
— O que ele tem a ver com isso? — perguntei confuso.
— Ele tá envolvido nisso até o pescoço, Nathan. Ele é um dos principais
braços de seja lá quem for que comanda esse sistema inteiro — seu tom de
voz estava bem abaixo do normal. — Isso tudo começou quando Eliot
morreu no início do ano. Ele era uma das principais cabeças dessa porra
quando te deu aquela surra junto do Jasper. Ele tentou sair do esquema
Nathan, tentou ter uma vida decente.
— Acho melhor me contar o que você sabe. Pelo pouco que entendi,
todo mundo tá correndo perigo agora, e já é tarde demais pra gente não
estar envolvido nisso.
Carlton suspirou, dando-se por vencido.
— Vem, vamos sair. Aqui não.
Concordei, seguindo meu tio para fora da delegacia. Entramos no meu
carro e Carlton pediu que eu o levasse para a casa.
— Vai me contar o que sabe? — pedi, dando partida no carro.
— Bob confia cegamente em Jasper, Nathan. — Carlton suspirou. — Eu
não consigo seguir a porra da investigação porque Bob acha que estou
ficando louco e surtando por alguma competição idiota com ele.
— Bob também é corrupto? — perguntei confuso.
— Não. Longe disso. Mas ele é totalmente influenciado pelo Jasper, que
é afilhado dele. Bob o criou como se fosse um filho.
— Por isso ele nunca acreditou quando disse que foi Jasper e Eliot que
me espancaram?
Quando eu saí do hospital, Carlton tentou iniciar uma investigação sobre
o incidente. Lógico que nada foi para frente. Carl ainda era só um policial
iniciante e Jasper e Eliot já eram policiais seniores e prestigiados.
— Bob é totalmente cego em relação a Jasper. E o pior é que ele aparece
no centro de todas as minhas investigações. O FBI está fechando o cerco
sobre tudo que acontece nessa cidade, mas ainda não temos nada que seja
concreto, uma prova que realmente incriminasse esse desgraçado.
— Foi ele quem causou o incêndio? — Meu coração disparou. Se tivesse
sido, Liah e Triss realmente corriam perigo.
— Não tenho certeza. Mas ele é quem costuma fazer os trabalhos sujos.
Não foi ele quem te ligou?
Pensei por um instante. Eu reconheceria a voz dele, definitivamente, não
havia sido Jasper.
— O que mais você sabe, Carl?
Carlton me olhou por um instante, tirando uma chave do bolso da frente.
— Sylvia Vittorino era uma mulher excepcionalmente inteligente,
Nathan. Ela me procurou para me entregar a chave de uma sala cheia de
provas contra essa quadrilha.
Estacionei o carro em frente a casa de Tia Sophia, olhando Carlton
chocado.
— E por que não tem ninguém preso ainda?
— Porque eu ainda não descobri onde essa sala fica. Ela tinha medo de
me contar. — Carlton contou pesaroso, deixando os ombros caírem. —
Sylvia descobriu as principais cabeças por trás do esquema. Ela quis sair
porque começaram a ameaçar Lianah.
Meu peito disparou com o medo de que algo acontecesse a ela. Fechei os
olhos, encostando a cabeça no banco.
— O clube Vittorino era a base de muito coisa errada nessa cidade —
Carl continuou. — Sylvia quis sair quando entendeu que mesmo dentro, não
poderia mais proteger a neta. Sylvia não conseguiu deter a ONG, era o
sonho da neta dela, mas com a ONG em evidência na mídia, eles perdiam
aquelas crianças. A principal investigação dessa cidade não é tráfico de
drogas ou lavagem de dinheiro. É tráfico humano, Nathan.
— Puta que pariu! — Bufei desacreditado, apertando o volante com mais
força. — Sylvia te contou isso?
— No mesmo dia em que ela morreu e me entregou essa chave. Ela me
pediu para ficar de olho na neta caso algo acontecesse com ela. Sylvia sabia
que eles iam atrás de Liah em seguida por que querem a ONG fechada, ou
Liah contribuindo para o tráfico humano.
— Eu nem sei o que dizer. — Esfreguei o rosto, sentindo uma revolta
enorme crescer em mim.
— Nathan, eles não vão deixar passar. Nem que tenham que me apagar
para isso. Eu preciso quebrar esses caras antes que eles façam mal a
alguém. — O desespero na voz de Carl era o suficiente para me fazer
entender, finalmente, a gravidade daquela situação.
— Minha tia e a Mia estão seguras? — olhei para a casa a nossa frente.
— Tem mais seguranças e policiais nas proximidades do que você possa
imaginar. Tenho dois amigos trabalhando na ONG e vocês nem imaginam o
quão armados eles estão. O FBI está mais envolvido do que imagina. Mas a
verdade é que estamos todos envolvidos nessa merda até o pescoço. Não
tem mais volta.
Apesar da gravidade da informação, saber que ele tinha pessoas as
protegendo me deixou um pouco mais aliviado.
— O que posso fazer para ajudar?
— Encontre qualquer coisa que possa usar contra ele legalmente,
Nathan. Jasper é o ponto-chave dessa investigação. Ele é tão covarde que
entregaria todos que estão com ele em troca de umas vantagens na cadeia.
Se eu colocar Jasper na cadeia, isso acaba.
Assenti. Carlton sempre me disse que eu tinha uma veia investigativa tão
boa quanto a dele. Sinceramente, nunca tive interesse em testar. Mas agora,
pedia a Deus que fosse verdade, porque usaria cada porra de segundo dos
meus dias para encontrar qualquer coisa que colocasse esse filho da puta
atrás das grades.

Estacionei em frente a ONG, esperando Liah e Olivia. Combinei de


buscá-las e levá-las em segurança para casa. Embora Ethan tivesse passado
o dia na ONG, ainda ia em um jantar de aniversário da mãe dele hoje e não
poderia levá-las.
Alcancei o celular no apoio ao lado do banco, verificando as últimas
notificações na tela e me assustei ao ver a mensagem de Elise brilhando.

— Merda, Elise! — Tirei o cinto apressado, saindo do carro e correndo


para dentro da ONG. Ela ainda não tinha ido embora? Eu precisava
conversar seriamente com Tia Sophia sobre isso.
Dinna não estava mais na recepção quando entrei, já havia trocado o
turno com o segurança que ficava a noite e também já me conhecia. Entrei
sem precisar me identificar, e segui pelo corredor cumprido até a porta no
fim dele. Olie estava parada no corredor, encarando com muita atenção o
que quer que fosse que acontecia na sala de Liah.
— O que houve? — perguntei preocupado ao me aproximar.
Sem esperar a resposta de Olie, enfiei a cara na sala vendo Liah e Elise
se encararem de um jeito bem ameaçador.
— O que tá rolando aqui?
— Vim perguntar a sua namoradinha o que ela realmente quer com você
depois de ter te feito tanto mal.
Soltei um riso consternado. Só podia ser brincadeira. Alternei minha
atenção entre as duas; Liah estava irritada, com os braços cruzados e os
olhos apertados em direção a Elise. Essa, por sua vez, mantinha a expressão
sonsa de sempre, achando que tinha algum direito de mãe sobre mim.
— Elise, você acha mesmo que Liah me faz algum mal? — Dei a volta
na mesa, passando o braço sobre o ombro e Liah.
Sim, era ridículo, mas era a forma que tinha de demonstrar que ela
estaria protegida de qualquer coisa comigo.
— O que ela te disse? — perguntei baixinho só para Liah ouvir.
— Ela acabou de chegar aqui. Só me perguntou o que eu realmente
queria com você.
— Nathan, você não está enxergando direito…
— O que eu não estou enxergando direito?
— Essa garota só deve estar interessada no seu dinheiro. Sua tia me
contou que anda tirando dinheiro da herança do seu pai pra sustentar essa
daí.
Merda, Elise! Não era pra Liah saber assim.
— Que história é essa? — Liah perguntou confusa.
— Elise, você é insana — reclamei.
— Seria possível me chamar de mãe, ao menos uma vez? — reclamou.
Abri a boca para responder, mas Liah se adiantou, saindo do meu abraço
e andando até encarar Elise de perto.
— Se você tivesse se prestado ao papel de mãe ao menos uma vez, seria
mais fácil pra ele, não acha?
— Quem você pensa que é pra falar comigo assim?
Irritado, puxei Liah pelo braço, trazendo-a para mais perto de mim de
novo.
— Minha namorada, Elise. E Liah tem razão. Perdi as contas de quantas
vezes te pedi para ser minha mãe no passado, agora não preciso mais. Eu
tenho que lidar com as consequências do seu abandono, e você tem que
lidar com a perda de um filho que nunca existiu pra você.
Senti o leve apertão de Liah na minha cintura, tentando me reconfortar
de alguma forma. Mas Elise não me afetava mais, não dessa forma. Hoje só
conseguia achar graça das atitudes absurdas dela, tentando chamar minha
atenção ao perceber que não tinha nenhuma autoridade de mãe sobre mim.
Esse papel já era ocupado na minha vida, pela irmã da mulher a minha
frente.
— Estou tentando, Nate. Apareço sempre que posso, peço pra te ver,
tento passar um tempo com você. Mas estou cansada de fazer isso sozinha,
você não dá a mínima para mim…
— Para! — quase gritei, a raiva irrompendo de mim. — Você é insana.
Você acha que está cansada? Passei anos durante minha infância te ligando
diariamente. Eu perturbava sua irmã todos os dias pra tentar falar com você.
Eu aceitava qualquer migalha sua, qualquer demostração de afeto, qualquer
interação forçada. Fui atrás de você diariamente por meses, anos. —
Precisei parar e puxar o ar com mais força, forçando as lágrimas a se
manterem dentro de mim. Me recusava a chorar na frente dela. — Você
passou sua vida viajando, com dinheiro do seu marido milionário, e acha
que era esforço aparecer uma vez por ano ou falar comigo no telefone uma
vez a cada três meses? Você nunca tentou, Elise. Você nunca quis ser mãe
de verdade, e nunca nem se esforçou pra ser. Você cansou? Porque eu
cansei. Cansei de verdade. E quando finalmente abri mão, você surtou por
não ter mais minha atenção. Ação e reação, conhece? Eu tenho a cabeça
fodida pelo seu abandono e tenho que lidar com isso diariamente. Eu não
amo você, não reconheço você como mãe e te quero fora da minha vida.
Essa é a sua consequência. Então, lide com isso.
Pela primeira vez na vida, vi aquela mulher vacilar. Elise esboçou um
sorriso triste e talvez aquela tenha sido a expressão mais sincera que já vi
em seu rosto em toda minha vida. Seus lábios tremeram e os olhos
encheram-se de lágrimas.
Sei que fui duro demais com ela, mas não sentia remorso pela forma
como falei. A frustração que vivi por muitos anos com a negligência dela
não me permitia ter empatia naquele momento. Liah não movia um
músculo sequer ao meu lado, sabendo que não deveria interferir naquela
conversa. Olie ainda estava encostada na porta, agora com um olhar cheio
de pena direcionado a mulher.
— Eu entendi, Nathan — respondeu com a voz embargada pelo choro
preso em sua garganta. — Independente do que pense ou do que fiz, eu
sempre vou amar você. Se um dia precisar de mim, sabe como me
encontrar. Até lá, vou viver minha vida longe de você.
Sem dizer mais nenhuma palavra, Elise saiu da sala a passos largos.
Algo me dizia que dessa vez era real, ela ia mesmo se afastar, e uma
parte grande de mim só conseguia sentir alívio com isso.
— Tá tudo bem? — Olivia perguntou preocupada ao me ver parado
ainda sem reação no meio da sala.
Assenti. Havia uma calma absurda em minha mente, o que era muito
estranho para a situação. Eu arriscaria dizer que eu deveria estar surtando
agora, entrando em uma crise de ansiedade, destruindo a sala de Liah. Mas
minha mente estava calma, meu corpo meio adormecido, a vontade de
chorar foi embora e aquele buraco insistente no meu peito parecia ter sido
cimentado.
Confuso, fui até a gaveta da mesa de madeira, tirando a mesma
garrafinha de ferro que Liah me deu meses atrás. Sacudi para ter certeza de
que estava cheia e então abri conferindo o cheiro; tinha sido reabastecida.
Entornei quase todo o conteúdo em poucos goles sob os olhares analíticos
de Olívia e da minha namorada.
— Achei que só eu sabia desse seu segredinho — ouvi Olie brincar com
Liah. — Ele já precisou disso outras vezes. Mas é melhor ir com calma, né?
— reclamou, tirando a garrafa da minha mão.
— Eu devia estar me sentindo culpado agora — confessei.
— Acho que você deveria se permitir não ficar mal por ela mais vezes,
Nate. Não se culpe por um erro que não é seu. Você só foi honesto sobre
seus sentimentos.
Encarei Liah por algum tempo. Ela costumava me reconfortar a maior
parte do tempo, só que era mais fácil ouvi-la quando era parcial na história,
agora Liah sempre me incluía na sua lista de defesa e tinha se tornado
imparcial a mim.
— Sobre que dinheiro ela estava falando? — Liah perguntou, entrando
no assunto que queria evitar. Entretanto, já estava na hora de contar a ela
mesmo.
— Há uns anos, um advogado me procurou pra falar do testamento do
meu pai. Eu nunca conheci esse homem, mas ele deixou uma herança
bilionária para mim. — soltei um suspiro cansado antes de continuar. —
Nunca mexi nesse dinheiro. É um dinheiro podre. Mas quando a ONG
precisou, eu finalmente tinha uma motivação.
— Não foi o lucro da App? — ela perguntou me olhando atenta.
— Não. A App tem um resultado incrível, mas não foi de lá que tirei o
dinheiro — confessei.
— Eu vou te devolver cada centavo, Nathan — Liah disse com os olhos
cheios se enchendo de lágrimas.
— Acredita em mim, não vai fazer diferença nenhuma — deixei escapar
um riso triste. Mesmo que fizesse, nunca usaria esse dinheiro para mim.
— Acho melhor a gente ir — Olivia nos chamou, apontando para o
relógio.
— Deixa que eu dirijo — Liah avisou, enfiando a mão no bolso do meu
jeans e pegando a chave do meu carro. Não ia adiantar discutir com ela
agora, até porque eu tinha bebido o equivalente a umas seis doses de tequila
em menos de um minuto. — A gente deixa a Olie em casa e depois te levo
para o seu apartamento.
— Vai ficar lá? — perguntei na esperança de ter sua companhia durante
a noite.
— Não precisa de um tempo sozinho?
— Na verdade, eu não quero um tempo sozinho — respondi estendendo
os braços sobre seu pescoço, puxando seu corpo para mim. — Você me
acostumou mal. — Beijei sua boca, apertando os braços com mais
intensidade sobre ela.
— Nossa, vocês estão nojentos demais desse jeito — Olivia reclamou,
sorrindo para gente. — Eu sabia que isso ia acontecer. Vocês nasceram um
para o outro.
— Não surta, Olie. — Liah empurrou de leve a amiga, sorrindo
lindamente.
— Sério, gente. Era tão visível as faíscas entre vocês. Sabe aquele tipo
de casal que briga com a vibe que a coisa vai pegar fogo na cama? — Olie
se interrompeu por meio segundo, me olhando divertida em seguida. —
Quanto tempo você ficou sem transar?
Sacudi a cabeça, reprovando sua pergunta. Não daria essa informação a
ela de jeito nenhum, seria motivo de piada para o resto da vida. Olivia não
tinha filtro, muito menos limite. Liah segurava o riso ao meu lado, ela sabia
bem o que tinha causado na minha vida desde que chegou e fez da minha
cabeça uma verdadeira bagunça.
— Vai cuidar da sua vida, Olívia.
A morena soltou uma gargalhada alta, ajustando a alça da bolsa sobre
seu ombro. As duas saíram juntas da sala, seguindo pelo corredor à minha
frente. Elas eram mesmo muito amigas, fiquei parado observando a
interação delas, lembrando de quando tudo que queria era que Camille fosse
tão amiga deles quanto Liah era.
Todos os nossos amigos adoravam Lianah, e ainda me surpreendia ao
pensar como aquela mulher se encaixou em nosso grupo sem esforço
nenhum. Era quase como se ela já pertencesse ao grupo quando chegou.
— Você não vem? — Liah chamou quase da porta da recepção ao me ver
parado no mesmo lugar. Sorri para elas.
Iria pra qualquer lugar que você estivesse, Liah!
Liah

Capitulo 31

31 de agosto de 2019
— Você prometeu. — Tinha total consciência de que estava emburrada e
fazendo birra exatamente como uma criança faria.
— Não prometi — Nathan negou, sem tirar os olhos da estrada.
Estávamos discutindo a quase dez minutos sobre o fato dele ter
prometido que me acompanharia nas minhas loucuras. OK. Ele não
prometeu. Mas ele disse que se eu quisesse voltar a fazer alguma loucura,
deveria falar com ele primeiro.
— Eu vou voltar lá sozinha, então — ameacei e Nathan estreitou os
olhos, balançando a cabeça em repreensão.
Ele não disse mais uma palavra até que estivesse entrando com a BMW
em seu prédio. Nathan estacionou o carro na vaga pré-determinada e me
encarou com os olhos preocupados.
— Você não vai voltar lá — disse num tom autoritário que me fez erguer
as sobrancelhas em desafio.
— Vai me impedir?
Eu sei que estava sendo teimosa e atrevida, mas eu precisava fazer isso.
Estava de saco cheio e desacreditada de qualquer chance de salvar a ONG.
Ia entrar naquele porão da mansão com ou sem Nathan. Eu tinha certeza
que minha avó guardava alguma coisa ali.
Já tinham se passado mais duas semanas naquela enrolação de
investigação, reuniões, e agora até depoimentos o FBI estava colhendo.
Doutor Estevem me alertou sobre a possibilidade de fecharem a ONG,
mas Nathan não pareceu muito surpreso, e isso só me fez ter mais certeza
que ele sabia de mais coisa do que admitia.
— Quer pagar pra ver? — Ele saiu do carro, dando a volta muito rápido
para abrir minha porta. — Nem que eu tenha que te trancar no meu loft,
Liah — disse baixinho no meu ouvido quando passei por ele, saindo do
carro.
Senti um arrepio gelado na minha espinha, absorvendo o teor erótico que
ele colocou naquela ameaça. Eu já conhecia bem algumas artimanhas dele,
e usar sexo a seu favor era algo que ele sabia fazer bem. O problema é que
mesmo sabendo disso, eu caia na maior parte do tempo. Até porque era bem
difícil resistir a ele.
A gente até transava no quarto dele, no apartamento que morava com
Triss. Mas toda vez que a gente estava a fim de alguma coisa mais intensa,
subíamos para o loft. Então eu sabia que a intensão dele em falar sobre me
trancar no loft era exatamente essa. Usar o sexo a favor dele.
— Não vai colar — avisei, saindo de perto dele o mais rápido possível
para chamar o elevador. — A gente precisa resolver isso.
— Eu não vou te levar na mansão e você não vai até lá — determinou
quando entramos no elevador.
— Você não é meu pai — avisei, batendo o pé no chão e cruzando o
braço.
— Quem é que parece uma criança agora? — Nathan sorriu de lado,
daquele jeito convencido que me matava.
— Eu vou! — Sentenciei assim que o elevador chegou no oitavo andar.
Nathan sacudiu a cabeça exasperado me seguindo para o corredor. Seus
dedos digitaram a senha na fechadura digital e ele abriu a porta do
apartamento, esperando que eu entrasse. Virei o pescoço olhando irritada
para ele quando passei pela porta.
— Você não vai — disse mais uma vez, largando a chave do carro e a
carteira no aparador espelhado antes de sumir pelo corredor. Idiota!
Apoiei minha bolsa em cima do móvel e tirei meus saltos, largando-os
por ali mesmo. Meus pés já estavam me matando.
Passamos a manhã de sábado em uma recepção de renovação de votos de
casamento de Dinna. Ela morava numa casa próximo à rua da mansão, e
assim que passamos de carro em frente, eu decidi que ia voltar lá.
Nathan voltou pelo corredor sem camisa, vestindo só uma calça de
moletom fino. Ele passou direto por mim, sem sequer me olhar e foi para a
cozinha abrindo a geladeira. Quando voltou, estava com uma long neck na
mão e se jogou no sofá, ligando a TV. Só então ele me encarou uma única
vez, descendo os olhos pelo meu corpo, demorando o olhar nas minhas
coxas expostas pelo vestido justo. Senti meu corpo ardendo com sua
atenção.
Apertei meus olhos, sabendo exatamente o que ele estava fazendo.
Num gesto totalmente insano, entrei na frente da TV e tirei meu vestido,
atraindo a atenção total dele. A lingerie de renda azul que estava usando era
uma das que ele mais havia gostado.
— Tá vendo isso? — Apontei para o meu corpo, vendo seus olhos
escurecerem com o desejo repentino. Nathan subiu os olhos para os meus,
me encarando com o esboço de um sorriso malicioso. — Quer? —
perguntei provocativa.
Meu namorado suspirou, sabendo que não seria fácil assim. Ele me
encarou sério, esperando o que quer que fosse que eu estava planejando.
— Sério? — Nathan riu nervoso, entendo exatamente o que eu estava
fazendo. — Vai me proibir de tocar em você?
— Não. — Dei de ombros, sorrindo inocentemente para ele. — É só me
levar na mansão.
— E se eu não te levar? — perguntou rindo.
— Então isso tudo aqui… — apontei de novo para o meu corpo. — Vai
dormir no hotel até você decidir que vai me levar.
— Eu ainda posso voltar a te odiar? — Nathan levantou do sofá irritado,
virando quase todo o conteúdo da garrafa em sua mão em questão de
segundos. — Não posso dirigir — disse fingindo tristeza ao me mostrar a
garrafa.
— Eu dirijo — sorri para ele. — Problema resolvido.
— Você não vai! — Voltou a dizer me olhando ainda mais sério agora.
— Eu vou, Nathan. A decisão é minha. — Abri os braços agitada,
sentindo minha irritação com ele aumentar.
Peguei meu vestido no chão, passando o pano pela minha cabeça em
alguns segundos. Ajeitei a roupa dando umas batidinhas e caminhei em
direção à porta, vendo Nathan pegar, calmamente, o celular no bolso da
calça de moletom e digitar alguma coisa. Se ele não se importava, não ia
ficar aqui tentando convencê-lo a me ajudar.
Me olhei no espelho acima do aparador ajeitando alguns fios de cabelo
soltos, enfiei meus pés de volta no salto e peguei minha bolsa pronta para
sair. Sem olhar para trás, girei a maçaneta puxando a porta.
Nada. Puxei de novo. A porta sempre abria pelo lado de dentro…
— NATHANIEL! — gritei nervosa ao perceber o que ele tinha feito. —
ABRE ESSA PORTA!
Nathan me deu um sorriso debochado me mostrando a tela do celular.
Filho da puta que tinha que usar tecnologia para tudo na vida.
— Eu avisei que ia te trancar. A sua sorte é que não foi no loft — disse
rindo abertamente.
Grunhi irritada, e saí andando em direção ao quarto dele.
Era muito alto para pular a janela?
Bati a porta com força, esquecendo completamente que estava na casa
dele. Ainda bem que Triss não estava em casa para ver a cena ridícula que o
tutor dela estava fazendo. Passei a chave na porta, agradecendo por ali
também não ter uma fechadura eletrônica. Nathan ia pagar caro por isso.
Tomei um banho bem demorado, tentando me acalmar, mas nada estava
funcionando. Nenhuma técnica de concentração na respiração, nenhuma
música cantarolada, nenhuma tentativa de meditação. Eu continuava com
raiva.
Saí do banheiro depois de longos minutos e vesti uma camisa e uma
cueca boxer dele. Estava passando bastante tempo aqui ultimamente, mais
tempo que no hotel. Espantei o receio de estarmos indo rápido demais,
ainda irritada com o jeito controlador e protetor em excesso que ele tinha
comigo e com as meninas.
Peguei meu celular na bolsa e abri o aplicativo da Netflix no celular. Me
joguei na cama dele, iniciando um episódio de Gray`s Anatomy.
Assisti quatro episódios inteiros. Ia iniciar o próximo quando escutei
umas batidinhas na porta. Ignorei totalmente o idiota. Depois de alguns
segundos, ele tentou abrir a porta forçando a maçaneta algumas vezes. Vai
ficar do lado de fora.
— Liah! — ouvi sua voz me chamando baixinho. — Queria tomar um
banho — justificou, achando que eu abriria a porta para ele.
— Tem banheiro aí fora — gritei, pausando meu episódio.
— Minhas coisas estão todas aí dentro — reclamou.
Levantei da cama indo até seu banheiro. Sorri maliciosa ao pensar em
como o deixaria irritado agora. Peguei o frasco de xampu e um sabonete
fechado na gaveta do armário. Já ia saindo do banheiro, mas voltei uns
passos para trás e tirei a toalha dele do gancho. Joguei a tolha em cima da
cama e o sabonete e o xampu por cima dela. Depois fui até o closet e peguei
uma boxer limpa também jogando em cima da toalha, fazendo uma
trouxinha.
Fui até a porta com a toalha embolada na mão.
— Nathan — chamei baixinho.
— Tô esperando você abrir a porta — avisou.
Abri a porta bem devagar, só uma frestinha para olhar do lado de fora.
Nathan estava encostado na parede de braços cruzados me olhando com a
sobrancelha erguida. Ergui a minha de volta e joguei a toalha do lado de
fora com as coisas dele dentro. Fechei a porta e voltei a trancar.
— Sério? — Gritou revoltado. — Sabe que esse é o meu quarto, não é?
— Você tirou meu poder de decisão, então estou tirando seu quarto —
disse começando a rir de sua respiração alterada pela indignação
momentânea. — Durma no seu sofá essa noite.
— Vai ficar trancada aí sem comer? — ele perguntou nervoso.
— Vou pedir a Triss pra trazer comida pra mim, quando ela chegar — eu
já tinha pensado em tudo.
Alguns segundos depois já não podia ouvir mais nada no corredor, então
voltei a assistir minha série.

Separador

01 de setembro de 2019

Eu estava louca de fome. Triss contrabandeou um sanduíche para mim


ontem a noite, mas era pouco para quem havia passado a tarde e a noite
toda sem comer. O lado bom é que segui firme e forte na minha decisão e
não deixei Nathan entrar em seu próprio quarto.
Vencida pela fome, destranquei a porta e fui calmamente em direção à
cozinha. Ainda não passava de 08:00h da manhã de domingo. Triss ainda
devia estar dormindo, assim como Nathan estava apagado no sofá da sala.
Segurei o riso quando passei por ele, indo até a ilha da cozinha e abri a
geladeira devagar, evitando fazer barulho.
Tirei o pote de cream cheese de lá e a garrafa de suco de laranja, fechei a
porta com o pé e quase deixei tudo cair quando virei para deixar as coisas
em cima do balcão.
— Que susto! — reclamei, vendo Nathan apoiado no balcão com os
olhos muito azuis vidrados em mim. — Você estava dormindo uns segundos
atrás.
— Estava acordado — ele estreitou os olhos para mim. — Acabou o
drama?
— Vai me levar na mansão? — perguntei, condicionando meu drama à
decisão dele, enquanto pegava um copo no armário atrás de mim.
— Vou.
— Então não… Pera aí. Vai? — perguntei surpresa, virando meus olhos
para ele.
— Pensei melhor durante a noite — disse, sentando numa das banquetas
altas do outro lado do balcão, roubando o copo que havia pegado para mim.
— Vou fazer o quê? Te trancar aqui dentro até quando?
Nathan abriu a garrafa de suco, despejando o líquido laranja no copo.
— Eu estava prestes a denunciar você por sequestro — brinquei.
— Que tipo de sequestrador deixa a vítima com o celular? — ele riu,
bebendo o suco. — Tenho algumas condições.
— Pra quê?
— Pra te levar até lá — avisou.
— Quais? — revirei meus olhos, sabendo que ia começar a cobrança e
proteção exagerada.
— Basicamente, você vai fazer o que eu disser. Se eu disser que acabou
e vamos voltar, é porque vamos voltar — ele disse sério. — Se eu achar, por
um segundo sequer, que estamos correndo mais perigo que deveria, vamos
entrar no carro e voltar na mesma hora, tudo bem?
Assenti. Era um pedido plausível ao menos. Olhei para ele esperando as
próximas regras.
— Carlton precisa saber que estamos indo até lá. Se acontecer alguma
coisa, ele vai saber como agir — explicou.
Eu tinha minhas ressalvas com a polícia local, mas Carl era tio do
Nathan e eu confiava nele. Acenei, também concordando com essa regra.
— A gente vai conversar antes. Tem algumas coisas que você precisa
saber antes de irmos até lá — avisou. — Acho que Carl tem a chave que
abre o cadeado do porão que você e Olie acharam.
— Como assim? — perguntei surpresa.
— Eu vou explicar com calma — Nathan voltou a beber seu suco.
— Tem mais alguma condição? — questionei começando a ficar ansiosa.
— Só mais uma. — Nate sorriu diabolicamente, correndo o olhar pelo
meu corpo. — Hoje a noite quero você com aquela lingerie azul rendada.
Não contive o sorriso. Adorava o jeito que ele me olhava, me fazia sentir
desejada e bonita.
— Vamos para o loft? — perguntei mordendo o interior da bochecha,
sentindo a ansiedade da noite chegar logo.
Nathan era muito mais intenso lá. Aliás, tudo era mais intenso lá.
Começou na noite depois da festa de Mia, quando Nate me levou até seu
antigo lar pela primeira vez. Aquela noite mudou tudo entre a gente. Tenho
quase certeza que foi exatamente quando ele disse que mataria alguém por
mim que me apaixonei de uma vez por todas. Meio mórbido, eu sei. Mas
isso me fazia entender a profundidade dos sentimentos dele.
— Liah — Nathan me chamou, sorrindo divertido ao perceber que deixei
meus olhos descerem demais pelo seu corpo malhado. — Foca aqui —
apontou para o seu rosto.
Revirei meus olhos, recuperando meu foco e voltando minha atenção
para o que importava agora.
— O que precisamos conversar?
Nathan suspirou, saindo do balcão e me chamando para segui-lo até o
sofá. Nos sentamos e me acomodei nos seus braços, esquecendo que estava
irritada com ele.
— Tem umas coisas que queria te contar — Nathan começou a falar,
acariciando meus cabelos enquanto mantinha a cabeça jogada para trás,
apoiada nas costas do sofá e encarava o teto acima dele. — Imagino que a
essa altura você saiba que Sylvia procurou Carl antes do incêndio para pedir
ajudar.
— Sim. Eu sei. — Só omiti a parte em que Ethan havia me contado isso
bem antes do incêndio.
— Sua avó queria que Carlton a ajudasse a se livrar desse esquema —
disse pensativo. — Ela queria sair do esquema porque queriam envolver
você nele.
Nathan ficou em silêncio por alguns segundos, me dando a oportunidade
de questioná-lo sobre aquilo. Mas eu não queria falar. Não queria perguntar
o motivo e tinha medo de saber até onde o buraco que estava era fundo.
— O que eu teria pra oferecer a eles? — perguntei sentindo minha voz
falhar pelo medo.
— A ONG. — Nathan deu de ombros como se fosse óbvio. — O
disfarce perfeito para coisas ainda piores do que tráfico de drogas e
lavagem de dinheiro.
— Do que você está falando? — levantei agitada de seu ombro,
buscando seus olhos. Mas Nathan tinha tanto receio de falar que evitava me
olhar.
— Tráfico humano — respondeu ainda sem me encarar. — Carl me
pediu pra ficar de olho em você e na ONG, caso alguém envolvido nesse
esquema tentasse se aproximar. Rose, por exemplo, queria te convencer a
entrar nisso.
— Por que você está tão preocupado? Essas pessoas são perigosas? —
perguntei baixinho.
— Carlton recebeu ameaças. Recebi uma ligação uns dias atrás de
alguém que mandou a gente parar de investigar. Ameaçaram você e a Triss
— sua voz estava pesada, era difícil para ele me contar isso. — Se a gente
adicionar a perseguição de carro e o bilhete no seu hotel, esses caras sabem
exatamente o que estão fazendo. E estão de olho na gente — avisou.
— Eu tô com medo, Nathan! — Soltei em choque, sentindo meu
estômago se revirando.
— Eu sei. — Ele tentou me tranquilizar, me puxando de volta para seu
peito enquanto beijava minha testa. — Sua avó também sabia que isso
aconteceria e foi por isso que procurou meu tio. Carl acha que Sylvia sabia
muito mais do que contou. Ele acredita que ela tenha descoberto todo esse
esquema e as principais cabeças por trás disso. Ela entregou uma chave a
ele antes do incêndio, e eu acho que essa chave pode abrir o cadeado do
porão que você falou ter achado na mansão.
Fazia sentido. Minha avó sempre foi uma mulher muito inteligente, o
que me surpreendia nessa história toda, era o fato dela me esconder isso por
tanto tempo.
— Não consigo acreditar que ela escondia isso de mim. Vovó me criou
ensinando que nunca deveríamos esconder as coisas uma da outra — contei,
incomodada.
— Ela fez isso pra te proteger dessa história, Liah.
— Eu odeio que façam isso — avisei, voltando a me levantar agitada,
dessa vez erguendo o corpo do sofá e abrindo os braços para reclamar. —
Desteto que me coloquem numa posição de frágil e quebrável. Odeiam que
escondam as coisas de mim por me acharem fraca. Se eu soubesse de tudo,
poderia tê-la ajudado e talvez hoje essa investigação nem existisse…
— Liah, calma — Nathan me interrompeu, vendo que estava mais
agitada a cada palavra dita. — Se ela fez isso, foi com o intuito de te
proteger e não por achar que era fraca.
— É isso que ninguém entende. Quando as pessoas pensam que eu
preciso de proteção, ainda mais uma proteção exagerada assim, a ponto de
esconder algo tão importante de mim, é porque elas acreditam que eu não
daria conta. Essa proteção é resultado de uma visão frágil sobre mim. —
Estava nervosa, mas mesmo assim tentei explicar como enxergava aquilo.
— Odeio que sintam pena.
Nathan sacudiu a cabeça, levantando atrás de mim e me puxando de
novo para seu abraço. Eu esperava que ele, de todas as pessoas, entendesse
o efeito daquelas atitudes exageradas sobre mim. Odiava a ideia de que
tivessem pena, que acreditassem que eu precisava de mais cuidados do que
o normal porque tudo isso me remetia às lembranças daquele passado que
me atormentava.
— Não esconde mais nada de mim, Nathan, por favor — pedi contendo
as lágrimas que se acumulavam em meus olhos e senti seus braços me
apertarem ainda mais. — Não me coloca nessa posição também.
Nathan apenas manteve os braços em volta de mim, me acalmando
daqueles sentimentos ruins.
— E você quer que eu te entregue a chave? — Carlton perguntou
surpreso ao sobrinho, que apenas assentiu, concordando.
Assim que saímos de sua casa, Nathan disse que íamos passar na casa
dos tios para pegar a tal chave com Carlton. Ele tinha certeza que aquela
chave abria o cadeado. No entanto, acho que Nate não esperava encontrar
um Carl tão resistente quanto aquele. Carlton não nos queria envolvidos
nisso e já havia dito isso ao sobrinho algumas vezes.
— Só por curiosidade… — Carl olhou de mim para Nathan, apertando
os olhos. — O que pretendem fazer se alguém seguir vocês? Já pararam
para pensar que policiais tem armas e bandidos também?
Nathan ergueu as duas sobrancelhas suspirando, encarando o tio
enquanto esboçava um sorrisinho convencido.
— Na verdade… — ele puxou a cadeira em frente a mesa do escritório
de Cal, acomodando-se confortavelmente nela. — Tive a madrugada toda
pra pensar nisso — contou orgulhoso.
Podia jurar que Mia aprendeu a fazer essa carinha com ele. Os dois eram
tão parecidos…
— A vida não é um filme, Nathan — Carlton alertou e os dois riram de
alguma piada interna.
— Só escuta antes de julgar — Nathan pediu, jogando o corpo para
frente para apoiar os antebraços na mesa. — Carl, você e eu sabemos que é
mais fácil ter alguém te vigiando do que a mim. Seria um problema você
tentar, mas para mim, estar lá com Liah, não levantaria tanta suspeita assim.
Eu posso fazer isso.
Carlton soltou um arquejo cansado, mas focou sua atenção no sobrinho,
fazendo um gesto para ele falar logo o que estava pensando.
— Você entende o risco, não entende?
— Vamos no meu carro, se alguém seguir a gente, voltamos na mesma
hora. Liah vai me deixar lá, vou entrar no porão e ela vem embora. Meu
carro é blindado, Carl, ela vai voltar pra cá em segurança.
— Seu carro é blindado? — perguntei surpresa, quase caindo para trás
com o susto. Por isso ele deixou o carro comigo aqueles dias, semanas
atrás.
— É. Troquei de carro depois que quebrei o meu na ONG no dia que
lembrou de mim. Achei que assim ia parar de quebrar meus vidros socando
— foi tudo que ele me respondeu antes de voltar sua atenção para o tio e
continuar. — Qualquer coisa, avisamos você. Eu sei o que tô fazendo, cal.
Eu e você sabemos que estamos sem saída.
— E eu ainda me pergunto de onde vem essa sua necessidade de se
intrometer em assuntos que não deve, Nathan. — Carlton suspirou cansado.
Não contive uma risada sarcástica e Nathan apertou os olhos para mim
em repreensão.
— Eu falei que devia ser contagioso — ele disse rindo. — Liah não vai
estar correndo perigo, Carl. E não é como se tivesse alguém vinte e quatro
horas vigiando aquele lugar.
— Eu não vou deixar você entrar lá sozinho — reclamei.
— Eu avisei que ia ser do meu jeito, não foi? — Nathan me encarou
profundamente.
— Nathan, eu não…
— Nathan — Carl interrompeu o início da discussão, olhando abismado
para o sobrinho. — A. vida. não. é. a. porra. de. um. filme. — Carlton
voltou a dizer irritado, pontuando cada palavra. — Não vou colocar vocês
dois em perigo assim. E se aparece alguém que esteja armado…
— Mas a gente também tem armas…
— EU tenho armas, Nathan, você não. Existe uma diferença grande aí.
— Eu sei atirar — Nathan pontuou a ser favor. — Não vou ser
irresponsável.
Os dois se encararam numa conversa muda. Nathan sustentou o olhar do
tio, quase suplicando pela ajuda do homem. Os olhos de Carlton se
suavizaram e seus lábios se crisparam levemente. E aquele foi exatamente o
momento em que ele cedeu.

Tinha uma arma na minha bolsa. Tinha a porcaria de um revólver na


minha bolsa.
Que merda estava acontecendo? Carlton tinha muito mais informação do
que Nathan tinha me dado. Ele estava com medo, e tinha certeza que ele só
cedeu à pressão do sobrinho porque não tinha outra saída.
Eu não precisava ser uma pessoa muito inteligente para concluir que ele
estava tão afundado nisso, que arriscar a própria pele e a do sobrinho era o
único meio de não arriscar a pele de Mia e Sophia.
Assim que atravessamos os portões de ferro pesados da mansão, senti
meu coração gelar. Não podia acontecer nada com ele. Eu ainda não
concordava com essa merda de deixar Nathan aqui sozinho. Como ele iria
embora?
Saímos do carro, e encarei a casa onde vivi por toda a minha vida. Parte
degradada pelo fogo, exalando todo aquele aspecto fantasmagórico. A
grama mal cuidado, os canteiros de flores ressecados e sem cor.
Nathan apareceu do meu lado, segurando minha mão. Olhei para ele
suspirando.
— O que faço agora? — perguntei nervosa.
— Onde fica a porta que você falou? — perguntou baixinho no meu
ouvido enquanto me abraçava.
— Na lateral direita da casa. Tá embaixo de um canteiro de Íris. —
Soltei seu abraço, olhando triste para ele. — Devem estar todas mortas
agora.
Puxei seu braço, virando a palma para cima enquanto corria meus dedos
pelo desenho que ele tinha marcando a pele do antebraço. Nathan puxou
meu queixo para cima, sorrindo amorosamente para mim. Ele deixou um
pequeno beijo nos meus lábios antes de esticar os braços por trás e puxar a
minha bolsa para o meio dos nossos corpos, e me puxou até que ele
estivesse com as costas coladas na BMW.
Devagar, ele tirou a arma da minha bolsa, e enfiou no cós de seu jeans
sem que ninguém pudesse ver.
— A gente vai dar uma volta ao redor da casa, não precisa fingir nada. É
só me contar as coisas boas que você viveu aqui — ele explicou.
— Acha mesmo que pode ter alguém vigiando a gente? — perguntei
preocupada.
— Sinceramente, acho que não — ele respondeu sem tirar os olhos de
mim. — Mas Carlton acha que o tom das ameaças que ele tá sofrendo está
piorando.
— Como vai fazer para ir embora? — Senti a ansiedade e o medo
crescendo em mim.
— Eu me viro. — Nathan me soltou, saindo comigo em direção à frente
da mansão. — Me conta sobre sua vida aqui.
Suspirei, rendida ao plano louco dele e morrendo de medo que algo
pudesse acontecer. Mesmo assim, contei a ele sobre os melhores momentos
que vivi naqueles jardins pelos próximos minutos.
Quando passei em frente a plantação de Íris, comentei que eram as
preferidas da minha avó e ele havia entendido que a porta estava ali.
— Deve ser difícil entrar aí, as raízes e a terra cobriram a porta quase
toda — comentei baixinho.
Nathan pareceu pensar por alguns segundos, olhando a terra a nossa
frente. A corrente quase não era visível sobre tapete de grama que a cobria.
— Tem uma garagem? Algum lugar com ferramentas?
— Odeio o jeito que sua cabeça funciona — reclamei, indicando o
caminho a ele. — Eu tô com vontade de socar você agora.
— Guarda essa energia toda pra mais tarde, gata — ele deixou um beijo
na minha bochecha antes de andar ao meu lado até a garagem.
Perdida nos meus pensamentos, segurei o pingente pendurado em meu
pescoço. Nathan já teve a vida afetada por mim uma vez, não seria justo se
meter em problemas de novo por minha causa. Apertei sua mão, entrelaçada
na minha e engoli seco com o medo da possibilidade de que estivéssemos
mesmo correndo perigo ali, na casa onde vivi minha vida toda.
— Sabe por que escolhi esse colar pra você? — ele perguntou ao
perceber que ainda segurava o pingente quando chegamos a porta
entreaberta da garagem, e ele me abraçou.
Neguei vendo que seus olhos podiam chegar à minha alma. Ele me
olhava daquele jeito que só ele tinha, tão intensamente, toda vez que eu
sabia que sairiam enxurradas de confissões sinceras dele.
— Uma parte de mim morreu de verdade aquela noite. O que ficou aqui
foi só a casca de um homem totalmente destruído e amargurado. — Nathan
soltou minha cintura e voltou a entrelaçar os dedos das duas mãos nas
minhas, caídas ao lado do meu corpo. — Mas uma parte minha ainda
gritava desesperada por uma chance de renascer. Tatuei a Íris no braço pra
me lembrar disso, que mesmo no fundo do poço, quando não parecesse ter
mais saída nenhuma, ainda existiria um fio de esperança. A chance de um
recomeço. — Sua mão largou a minha, subindo até minha bochecha e
deixando um carinho suave enquanto me olhava com um meio sorriso. —
Só quando você apareceu é que eu entendi que nunca poderia recomeçar
fugindo do que aconteceu. Eu precisei reviver tudo, todas as sensações,
todos os medos… pra deixar o passado onde ele deveria ter ficado. E do
nada tinha um mundo inteiro na minha frente… Um mundo que você
trouxe. Você é minha Íris, Liah. Meu fio de esperança.
A primeira lágrima escorreu exatamente no momento em que Nathan
terminou de falar e deixou um beijo estalado em meus lábios. Minha voz
estava presa na garganta e minha cabeça ainda processava todas aquelas
palavras. Eu sentia que a qualquer momento meu coração rasgaria meu
peito, batendo tão forte a ponto de me deixar tonta.
— Nathan… — eu não sabia o que responder a ele. Não conseguiria
pensar em palavras tão bem elaboradas. As que rondavam a minha mente
agora, eram só as mais clichês possíveis.
Eu amava Nathan
Estava totalmente apaixonada por ele.
— Deixa pra falar qualquer coisa em casa, quando eu voltar pra você —
antes que eu pudesse entender o que ele estava fazendo, Nathan me olhou
intensamente e soltou minha mão. — Vai. Daqui a pouco estou com você.
— Eu vou te esperar aqui…
— Você vai pra casa da minha tia, Carlton está esperando você. Não tem
ninguém aqui, Liah. Sinceramente, toda a minha vida tá em jogo agora.
Carlton aceitou isso porque estão ameaçando Mia e Sophia. Já ameaçaram a
você e Triss. Não vou sobreviver se alguma coisa acontecer a qualquer um
de vocês.
Ainda me sentia tonta e sem chão quando fiz exatamente o que ele me
pediu, fui para o carro e saí de lá, dando a volta por trás da casa e peguei a
estrada de volta em direção à casa de Carlton e Sophia.
Não conseguia pensar direito, dirigi totalmente no automático, sem tirar
minha cabeça da mansão e de Nathan que tinha ficado lá, exposto.
Quando estacionei em frente a casa da qual tínhamos saído, ainda estava
totalmente distraída. Desci do carro e entrei na sala de Sophia pela porta
que já estava aberta quando cheguei.
Sophia me encarou com o semblante cheio de preocupação, me
entregando um recado de Carlton escrito numa folha de papel.
“Não deixa Liah sair daqui quando chegar”.
— Cadê o Carlton? — perguntei assustada.
— Achei que você saberia me dizer.
Ele tinha ido atrás do Nathan. Tinha certeza disso.
Eu não podia assustar Sophia contando a verdade. Era loucura demais
que eles estivessem se arriscando daquele jeito.
Nathan achava que era exagero, que ninguém andava por aí seguindo a
gente a todo momento, mas mesmo assim não queria me deixar sozinha na
mansão.
— O Nathan pediu pra eu esperá-lo aqui — menti.
— Eu preciso ir para a loja, mas tá tudo bem mesmo, Liah?
Sorri devagar, com medo de não sustentar a mentira. Sophia suspirou e
assentiu, me deixando sozinha na sala grande.
Perdi a noção de quanto tempo se passou comigo sentada naquele sofá.
Muito tempo depois, Mia e Triss apareceram, vindo da cozinha e me
olharam confusas.
— Cadê o Nate? — Triss perguntou, esticando o pescoço para ver se ele
apareceria em algum lugar da casa.
— Pediu pra eu esperá-lo aqui — insisti na mentira.
Mia me encarou de um jeito estranho, mas deu de ombros. As duas
subiram as escadas, e fiquei sozinha de novo. Por horas.
O relógio já marcava mais de 21:00h, quando resolvi que tudo já tinha
passado dos limites. Ansiosa, disquei o número de Ethan, ainda sem saber
como diria a ele a merda que estava acontecendo.
— Oi, Liah.
— Ethan, eu preciso de ajuda — pedi nervosa.
— O que aconteceu?
— Pode vir pra casa da Sophia?
— Aconteceu alguma coisa com Nathan? — seu tom ficando mais
agitado.
— Eu não sei… — perdi a voz quando o choro repentino me tomou. —
Ele… ele…
— Calma, Liah. Já tentou localizar o carro dele?
— Tá comigo — respondi por cima do choro.
— Eu tô indo pra aí. Chego em quinze minutos.
Nathan
Capitulo 32

31 de agosto de 2019

A chave girou perfeitamente no cadeado de ferro maciço. Sorri de lado,


imaginando que Sylvia sabia muito bem o que estava fazendo.

Puxei a porta de madeira velha que rangeu, resistindo às poucas raízes que
ainda estavam por cima. Uma poeira espessa se levantou, me fazendo
sacudir as mãos no ar para afastar o pó do meu rosto.

Olhei pela porta, vendo a escada escura que levava a algum lugar embaixo
da casa. Peguei minha mochila no chão, e desci o primeiro degrau devagar,
testando a resistência da madeira velha.

Alguns degraus para baixo, avistei a cordinha de uma lâmpada pendurada


quase na frente dos meus olhos. Puxei o fio, mas nenhuma luz se acendeu.
O quadro de energia devia estar todo desligado por causa do incêndio. Tirei
da mochila a lanterna grande que Carlton havia me dado em casa, antes de
sairmos.

Iluminei o corredor frio e úmido, e logo vi uma porta bonita de carvalho no


fim da escada.

Desci até lá, ultrapassando o portal de madeira para dentro da sala super
elegante. Era um escritório muito bonito. Outro acesso, pelo lado oposto da
parede, parecia levar a uma escada para o interior da casa.

Olhei em volta, sentindo o calor pelo lugar abafado e cocei meu nariz
irritado pela alergia à poeira.

Só a Liah pra me meter nisso mesmo.

A sala estava quase toda vazia, a única coisa aparente era um computador
velho em cima da mesa de mogno. Só não tinha ideia de como ia fazer para
conseguir ligar aquilo.
Deixei a mochila em cima da mesa, indo até o aparelho, testando se ligava
de alguma forma.

Nada!

Um rangido na escada, me fez ficar em estado de alerta. O som


característico da madeira velha estalando deixava claro que tinha mais
alguém aqui.

Merda!

Sem pensar muito, tirei o revólver da mochila e travei meus dedos ao redor
do ferro frio. Se alguém tivesse nos seguido, tinha uma probabilidade
enorme de nem sair daqui vivo. Corri até a parede na lateral da escada, me
escondendo nas sombras e sentindo minha respiração falhar à medida que
escutava os passos descendo.

Com as costas coladas na parede, mantive a arma firme ao lado do meu


corpo, pronto para atirar caso fosse necessário.

A sombra do que parecia um homem grande tomou a pequena luz que


ainda chegava ali, vindo da escada.

Nathan, seu idiota. Você deixou a porta aberta.

Fechei meus olhos, respirando fundo e me preparando para o embate


inevitável.

Calculei os passos restantes do intruso, sabendo do risco que eu estava


realmente correndo. Quando a sombra diminuiu totalmente e a silhueta do
homem se tornou visível ao meu lado, fiz a única coisa que veio a minha
mente.

Passei a perna na frente dos pés dele, empurrando suas costas para o chão.
Puxei suas mãos para trás, engatilhando o revólver colado à nuca do cara.

— Sabe que você só conseguiu fazer isso porque eu não ia revidar contra
você, certo? — A voz sussurrada me fez suspirar de alívio.
— Porra, Cal! Quer me matar do coração?

Caí para trás, sentando no chão de qualquer jeito e me permitindo soltar


todo o ar que estava prendendo.

— Você deixou a porta aberta — reclamou, se colocando de pé. — Erro


primário.

— Não sou policial, nem investigador — me justifiquei.

— Ainda acho que você se encaixaria bem nisso.

— E mesmo assim veio atrás de mim, né? — Ergui minhas sobrancelhas,


vendo meu tio analisar o lugar.

— Achou alguma coisa? — perguntou curioso.

— Acabei de entrar — contei. — Só vi esse computador, mas acho que a


energia está desligada.

— Temos que achar os disjuntores da casa — avisou, já seguindo para a


escada.

Segui atrás dele, dando graças a Deus por respirar um pouco de ar livre
daquela poeira.

Com o dia ainda claro, era fácil identificar uma das janelas quebradas da
lateral da casa para entrarmos. Carlton procurou nos lugares mais óbvios,
até achar o quadro numa garagem interna, quase do outro lado da casa. A
energia não estava cortada, ao menos, só desligada. Carlton deu de ombros,
dando um giro de trezentos e sessenta graus pela sala.

— Quero dar uma olhada no restante da casa antes — meu Tio avisou,
quando saímos da garagem.

— Acha que pode encontrar alguma coisa? — perguntei a ele, sentindo


meu coração se agitar.

— Sylvia tinha muitos mistérios, Nathan.


— Percebi isso — comentei sem segurar um riso nervoso.

Carlton andou pela sala principal assim que entramos no interior da casa.
Com certeza era uma mansão num estilo bem clássico. Muitos quadros de
pintores conhecidos, e esculturas diferentes adornavam a sala.

Parecia que o fogo não tinha chegado em grande escala ali. Em cima de
uma lareira, ainda tinham algumas portas retratos inteiros. Em um deles,
uma menininha loira de olhos azuis abraçava uma mulher muito bonito
pelo pescoço; as duas se pareciam muito. Peguei o objeto, sorrindo para a
imagem.

— Você está mesmo apaixonado por ela, não é? — Carl perguntou


cruzando os braços para me encarar.

Suspirei, devolvendo o porta retrato para o lugar.

— Eu nem sei como Liah se infiltrou tanto no meu sistema — admiti. —


Não seria justo deixar que ela pague pelos erros da avó.

— Sylvia não tinha ideia de onde estava se metendo quando entrou nisso
— Carlton defendeu a mulher.

— Não muda o fato que Liah está em perigo por causa disso agora —
reclamei.

— Também não seria justo te deixar pagar pelos meus erros — Carlton
engoliu seco. — Por isso vim atrás de você.

Assenti devagar, tentando assimilar a postura retraída e receosa dele. Era


algo totalmente novo.

— O que você não tá me contando, Carl?

Meu tio apenas maneou a cabeça em uma negativa, voltando a olhar


atentamente tudo que estava naquela sala.

— Acho melhor eu olhar aquele computador sozinho — comentou


distraído.
— Nem pensar — neguei, indo até ele. — Quero saber exatamente o que
Sylvia sabia.

— Ela sabia de tudo, Nathan. — Carlton suspirou alto.

— Sylvia me contou tudo antes do incêndio. Eu só não sabia onde estavam


as provas.

— Tudo? — Ergui minhas sobrancelhas. — Que tudo? O que ela sabia?

O mais velho sentou em um dos sofás velhos, fazendo um sinal para que eu
sentasse também.

— Pode falar — pedi ansioso.

Calmamente, o homem apoiou os cotovelos sobre os joelhos e focou em


um ponto a sua frente para começar a falar.

— Existe um esquema de tráfico humano que acontecesse há anos nessa


cidade. O Clube Vittorino era o ponto de venda e entrega das crianças e
jovens. Mesmo com as recusas da Sylvia em se envolver.

— Ela sabia disso? — perguntei preocupado.

— Sabia. Sylvia tinha total conhecimento de tudo que rolava, e ameaçavam


sua família sempre que tentava sair. Mas as coisas mudaram quando Liah
abriu a ONG.

— Por quê? — soltei mesmo sentindo o medo subir em espiral até meu
coração.

— Porque as crianças e jovens da ONG são mercadoria perdida pra eles —


explicou fazendo sinal de aspas com os dedos.

Claro que eram. Liah nunca daria o braço a torcer sobre aquilo; nunca
cairia no papo escroto desses caras. Por um segundo, pensei em toda merda
que seria quando Liah descobrisse o que fiz para adotar Triss. Eu tinha que
contar a ela.
— É por isso que querem tanto Liah no esquema?

— Ou fora do caminho deles — Carlton completou.

— Vou me poupar o estresse de perguntar o que isso significa — suspirei


chateado. — Mas não entendo o motivo de Sylvia ter deixado a ONG ir pra
frente então. Se ela bloqueava a adoção da Triss, por que não fez o mesmo
com a ONG?

— Liah tem ótimos advogados, que tinham os contatos certos pra fazer a
ONG acontecer. Até esses também serem ameaçados. Se dependesse só da
polícia local, isso nunca se resolveria. Mas já te falei que temos
investigação sigilosa no FBI.

Esfreguei meu rosto cansado, pensando no quanto a situação ainda podia se


complicar. Às vezes parecia que nada se resolveria tão cedo.

Carlton levantou do sofá, batendo as mãos na calça antes de indicar o


caminho de volta para o porão. Saímos pela mesma janela que entramos, e
voltamos para aquele porão velho e apertado.

A mesma cordinha que puxei antes, dessa vez, fez com que uma lâmpada
fraca iluminasse ao menos um pouco daquele escritório escondido.

— Como chegou aqui? — perguntei a ele enquanto ligava o computador.


— Não vi nenhum carro lá fora.

— Que amigo? — questionei desconfiado. — E você ainda confia em


alguém nessa cidade?

— Ele não é daqui — meu tio respondeu tão desconfiado quanto eu. — E
sim, confio nele.

O computador apitou quando a tela iniciou, mostrando um sistema


operacional antigo. — Um amigo de confiança me deixou na estrada aqui
perto.

— Vamos ver o que Sylvia escondia — falei, puxando a cadeira para


explorar o que tivesse naquele computador.
Carlton veio para o meu lado, apoiando os braços na mesa, olhando para a
tela cheio de expectativa.

No canto superior esquerdo, um ficheiro com o nome “Esquema”, era o


único ícone além da lixeira. Cliquei sobre a pasta, e milhares de
documentos e novas pastas foram listados.

— Tem muita coisa aqui — reclamei, descendo a tela aos poucos.

— São nomes conhecidos — Carlton disse em choque ao notar os


sobrenomes nas pastas. — Connor, Mackaleen, Reynolds… todos já
apareceram na minha investigação.

— Aqui tem Sanders e Carter também. A família das meninas está metida
nisso? — perguntei assustado.

— Abre um desses — orientou.

Abri o arquivo com o nome dos Carter e uma série de documentos que
mostravam transferências bancárias milionários foi listado.

Carlton soltou um assobio alto, rindo nervoso.

— Sylvia estava cavando a própria morte. — Olhou mais atento para a tela,
tirando o mouse da minha mão.

Ele gastou um tempo tentando entender a organização dos documentos, até


que um estalo pareceu se formar na sua cabeça.

— O que foi? — perguntei ao notar o sorriso vitorioso que deu.

— Olha isso — respondeu, abrindo um organograma com vários nomes.

Era fácil entender quem comprava, quem financiava, quem falsificava


documentação e fazia se tornar original. Médicos, políticos, empresários
que financiavam o tráfico. Policiais que recebiam grandes quantias para
executar trabalhos sujos. Dentro de cada pasta com os sobrenomes, tinham
evidências daqueles crimes.
— Como Sylvia conseguiu isso? — perguntei desacreditado.

— Anos de investigação, desde que…

— Desde o quê? — perguntei ao notar sua fala cortada.

— Desde que ela começou a perceber aonde tinha se enfiado.

Apesar de parecer que não era aquilo que ele falaria, resolvi não insistir por
enquanto.

— Esses caras subestimaram a mulher, não foi? — Tive vontade de rir ao


perceber que Sylvia não era nada daquilo que demonstrava.

— Mexeram com a família errada — foi tudo que Carlton respondeu.

— Tá sentindo o cheiro de queimado? — perguntei ao notar que o cheiro


estava ficando mais forte.

Enfiei o nariz na CPU do computador, avaliando se o cheiro vinha dali, mas


Carlton já estava correndo até a escada no mesmo instante em que ouvimos
as primeiras sirenes ao longe.

— Porra, tá pegando fogo de novo — Carlton gritou nervoso. — A gente


precisa tirar esse computador daqui.

— Como? — Esfreguei o cabelo, sentindo a ansiedade subir pelo meu


sangue, esquentando meu corpo.

Carlton tirou o celular do bolso, digitando alguns números rapidamente.

— Max — sua voz cortou o silêncio incomodo que tinha se formado. —


Preciso de ajuda.

Silêncio

— Acho que foi porque ligamos o quadro de energia — explicou.

Silêncio.
— Nenhuma polícia ou bombeiro pode ver a gente aqui.

Silêncio.

— Estamos bem. O fogo tá concentrado do outro lado da casa. Mas temos


que sair daqui a muito rápido.

Silêncio.

— Eu sei, porra! — Carlton reclamou alto demais.

Silêncio.

— Vou esperar seu sinal.

Assim que desligou, percebi seus olhos se arregalaram para a tela do


celular.

— Nathan, eles sabem que alguém esteve na casa — Carlton avisou me


olhando preocupado. — Onde a Triss está agora?

— Em casa com a Mia e minha tia. O que foi?

O braço longo me estendeu o celular, a tela acesa com uma imagem de


Triss saindo do prédio da App. Mas foi o texto abaixo que fez meu coração
gelar.

“Seria uma pena se a baby Petterson sumisse de repente”

Eu odiava aquele calor, a sensação do sufocamento. O caminho para o poço


era sempre desgastante. E eu descia em queda livre, sentindo as paredes
úmidas me arranharem à medida que ia batendo nelas e tudo se tornava
mais escuro.

— Nathan, preciso de você aqui inteiro agora — Carlton me alertou.

— Eu não consigo — tentei explicar, usando todas as minhas forças para


me manter são. — É culpa minha. Sempre é culpa minha.
— Para, Nathan! — Carlton segurou meus braços, me mantendo parado no
lugar. Nem eu havia percebido que estava andando feito um louco. — Olha
pra mim.

— Se fizerem alguma coisa com ela…

— NATHAN! — Carl voltou a gritar, me sacudindo. — Não vão fazer


nada. Preciso da sua ajuda pra sair daqui. Precisamos dos dados desse
computador e sair daqui sem que ninguém nos veja, antes que o fogo
chegue aqui.

Tentei me concentrar na minha respiração, tentei acalmar meus batimentos.

— O HD. Tira o HD do computador — mandei, tentando raciocinar.

— Como vou fazer isso?

— Tem alguma chave aí?

Carlton me entregou um chaveiro com as chaves da casa de tia Sophia.


Mesmo com as mãos tremendo, usei uma delas para abrir os parafusos e
tirei o HD de qualquer jeito, entregando a ele.

Dentro da CPU tinha um caderno pequeno, de capa preta, amontoado por


entre os fios.

— O que é isso?

— A gente não tem tempo — reclamou, me puxando pelo braço.

Peguei o caderno e enfiei na mochila do jeito que deu e nos afastamos.

— Espero que a gente saia vivo daqui — soltei nervoso quando chegamos a
escada e já era possível respirar o ar consumido pela fumaça tóxica.

— Tá cheio de bombeiro do outro lado, não podemos sair agora. — Carlton


tentou ligar de novo para alguém, mas desistiu quando ninguém atendeu.
— A floresta — contei, agradecendo por passar a noite avaliando rotas de
fuga se desse merda. — Deve ter uns dois quilômetros de mata até a estrada
da fábrica antiga de tecido.

— Tá anoitecendo, sabe chegar lá? — Carlton perguntou, colocando a


cabeça para o lado de fora da escada.

— Só seguir pelo leste, qualquer coisa a gente usa um aplicativo de bússola


— dei de ombros.

Em silêncio, seguimos pela lateral da casa ainda escura, escondidos das


chamas e dos policiais e bombeiros que cercavam a entrada principal e o
lado que pegava fogo.

Nos enfiamos para dentro da floresta fechada, procurando pelas brechas


que poderiam ser um caminho. Eu só queria chegar em casa bem, e voltar
para Liah.

E dessa vez, não ia ter medo de dizer o que realmente sentia.

Liah

Meu coração estava comprimido, batendo fraco, doendo, quase me


deixando sem ar pelo sentimento esmagador.

Ethan me mostrava a reportagem ao vivo, onde vários carros de polícia e


bombeiros cercavam a mansão. Um novo foco de incêndio.

Eu estava petrificada, totalmente em choque. O noticiário dizia que o


incêndio havia sido causado por uma tentativa de religamento da
eletricidade e consequentemente um curto-circuito na fiação já fragilizada.

— Eles estavam lá — falei de novo, num fio de voz. — Nathan e Carlton.

— O incêndio foi controlado, Liah — Tommy me explicou. — Não tinha


ninguém lá dentro.

— Eles entraram em um porão, pode ter acontecido alguma coisa, eu


preciso ir pra lá — agitada, peguei minha bolsa, pensando em como faria
para entrar lá com tanta polícia cercando o local. — Sophia vai me matar se
souber que permiti que ele ficasse sozinho lá, Tommy. Meu Deus, se
acontecer alguma coisa com Nathan…

— Por que tá todo mundo aqui?

Levei um susto ao virar para trás e ver as figuras atravessando a porta da


sala.

Nathan franziu a testa, nos olhando com um meio sorriso no rosto. Ele é tão
lindo. Aquele jeitinho meio despojado dele acabava comigo. Eu amava
quando ele estava assim… jeans, camisa de malha, e o coturno preto que
ele usava sempre que não era obrigado a formalidades. Aquilo era tão…
ele!

A sensação de alívio nunca foi tão grande na minha vida. Corri até ele, me
pendurando em seu pescoço.

— Ei, calma. Eu disse que ia voltar pra você.

— Eu juro que vou matar você — disse, afundando meu rosto em seu
pescoço.

— O que houve na mansão? — Ethan perguntou, encarando os dois


homens assim que me desgrudei do pescoço de Nathan.

— O que tinha naquele porão? — emendei a pergunta, ansiosa para saber o


que havia acontecido.

— Um computador velho. Era um escritório, aparentemente. A gente


tentou ligar a energia, mas teve um curto. A sorte é que foi do outro lado da
casa — Nathan explicou, sentando no sofá e me puxando com ele.

Carlton sacudiu a cabeça em repreensão, incomodado com a quantidade de


gente envolvida naquela história.

— Então não tinha nada útil? Nathan tirou um HD da mochila, nos


mostrando o objeto.
— Tiramos o HD do computador, vamos ver o que achamos aqui. Carlton
vai levar para o FBI.

— Também achei isso aqui, Liah — me entregou um caderninho de capa


preta, parecido com um diário. — Tem uma nota dizendo que é pra você.

Assenti, pegando o caderninho de sua mão.

— Onde você estava? — A voz de Sophia soou quase num grito quando a
mulher entrou em casa. — Liah chegou aqui mais cedo, Carlton deixou um
recado para não deixá-la sair daqui e agora os noticiários estão tomados por
essa movimentação na mansão Vittorino.

— Relaxa, tia — Nathan pediu, abraçando a mulher enquanto sorria pra


mim. — Só estava resolvendo um problema.

Era isso!

Desde que apareceu na minha vida, Nathan tinha a solução para tudo,
mesmo quando as soluções dele ainda me irritavam e me levavam a um
nível extremo de raiva. Foi difícil aceitar no começo, pois não queria dar o
braço a torcer que suas soluções eram boas e úteis.

Nathan estava usando um dinheiro que ele abominava para segurar a ONG.
Ele havia adotado a Triss para tirá-la das garras complicadas do Estado e
dar um futuro melhor a ela. Ele se manteve presente na ONG até para o
trabalho braçal quando ainda não tinha o dinheiro em mãos.

Nathan estava cuidando de mim de alguma forma, antes mesmo de


pararmos de brigar pelo que causei a ele no passado. Ele me protegia
mesmo quando ainda dizia me odiar. E agora arriscava a própria pele para
me ajudar nessa loucura toda. Ele vivia resolvendo meus problemas, até
quando eu não sabia.

Por muito tempo não permiti que nenhum homem sequer se aproximasse de
mim. Eu tinha medo deles, medo do que poderiam fazer comigo. Me fechei
para a vida até encontrá-lo, mas Nate estava derrubando todos os meus
muros e alcançando todos as portas.
Nathaniel Petterson era a chave que eu precisava para me abrir para o
mundo.
01 de setembro de 2019
O silêncio no carro era sepulcral. Liah tinha medo de perguntar, e eu
tinha medo de falar.
A necessidade de dopamina me corroendo, me lembrando do vício,
quase me fazendo perder o controle.
— O que aconteceu lá de verdade, Nathan?
Apertei meus dedos em volta do volante, sentindo meu sangue ferver.
— A gente conseguiu ver o que tinha naquele computador, antes do
curto — contei, tentando controlar minha respiração.
— E o que tinha? — Liah insistiu.
— Tudo que o FBI precisa, Liah. Sua avó tinha uma investigação inteira
resolvida naquele computador.
Carlton mal acreditou quando viu todo o esquema desenhado. Todos os
nomes expostos, todos os vídeos, todas as provas. Sylvia sabia sobre o
tráfico humano, e esse foi o gatilho para que ela quisesse sair do esquema.
Empresários, médicos, advogados, políticos… todos expostos. Jasper era
mesmo o cara por trás das ações daquele esquema. Assim que o FBI tivesse
acesso àquele HD, muita coisa viria a tona.
— E por que você está com esse humor horrível então? — perguntou
preocupada.
— Porque sabem que estivemos lá. Enviaram uma mensagem para o
Carlton?
— Ameaçaram de novo?
Soquei o volante, sentindo meu coração se esmagar. A sensação do
sufocamento cada vez mais forte.
— Enviaram uma foto da Triss, saindo da App.
— Da Triss? — Liah quase gritou, se agitando no banco do carona.
— Você tentou adotar a Triss, não foi?
— Nathan, para o carro!
— Liah…
— PARA O CARRO! — gritou. — Antes que você bata essa merda.
Engoli seco, jogando o carro para o acostamento.
— O que tá rolando? Me conta o que está acontecendo de verdade.
Suspirei, me sentindo exausto de toda aquela merda. Encarei a mulher ao
meu lado, ciente de que não podia esconder aquelas coisas dela, mas tinha
tanto que podia machucá-la, e eu não queria vê-la sofrer ainda mais.
— Sua avó é o motivo pra nunca ter adotado a Triss, Liah. Ela não
queria mais uma pessoa correndo riscos — contei.
Liah sorriu triste, a decepção varrendo seu rosto, me deixando com um
gosto amargo na boca. Era isso que queria evitar, a mesma dor que vi em
seus olhos lindos quando me contou do seu estupro.
— O que mais está me escondendo?
— Eu sou o culpado pela Triss estar em risco. Você sempre teve razão,
eu nunca deveria ter tentado essa adoção…
— Nathan, calma — pediu, segurando meu rosto. — Você não tem culpa
de nada.
— Eu paguei pela adoção dela, Liah — contei de uma vez. — Dei o que
aquele juiz queria só pra ele assinar o papel.
Liah me encarou por alguns segundos, tentando compreender minha fala.
— Como assim você pagou?
— Ele pediu dois milhões de dólares para assinar a autorização, e eu
paguei porque não podia deixar que isso ficasse dessa forma…
— Você sabe que contribuir com esse sistema não é uma forma de
resolver, certo?
Estudei sua reação, esperando o momento em que ela ia surtar comigo e
dizer que nunca mais queria me ver.
— Eu sei, é só que… não era justo com a Triss… — tentei me justificar,
mas era difícil quando tudo que seus olhos gritavam era que eu estava
errado.
— Contribuir com esse sistema é um caminho sem volta, Nathan. Eles
devem ter provas contra você agora.
— Não tem — afirmei. — O Carlton tá devendo algum favor grande a
alguém por causa disso.
— Tem mais alguma coisa? — perguntou irritada. — Se tiver, melhor
falar logo.
Queria contar que o incêndio foi proposital, mas isso a deixaria ainda
mais ferida. Eu podia esperar um pouco mais, ao menos para que ela não
sofresse tudo de uma vez.
— Só o que sei, é que nesse momento, esses caras devem estar
desesperados, com medo do que Carlton tem contra eles. Triss vai ficar na
minha tia hoje, tem agentes vigiando a casa, ela vai estar mais segura lá.
— Ela vai estar segura lá.
— Tô esperando a hora que você vai gritar comigo e dizer que sou
perigoso pra ela de novo.
— Eu tô morrendo de raiva de você agora, mas não vou fazer isso. Você
tá quase tendo outra crise. — Liah observou, subindo as mãos para acariciar
meu rosto.
Engoli seco, fechando meus olhos ao sentir meu corpo arrepiado até com
o toque leve.
— No ano seguinte do meu coma, acho que vivi os piores momentos da
minha vida. Tudo que eu fazia era me meter em confusão e brigas, porque
eu gostava da sensação do perigo, gostava da adrenalina. Eu bebia até estar
quase inconsciente e me drogava o tempo inteiro. Quando Mia me fez sentir
culpado pelas drogas, eu troquei droga por sexo. Isso diminuía minha
ansiedade, reduzia minhas crises.
— Você precisa disso agora? Sexo?
Neguei. Nunca encostaria nela nesse estado. Não com toda aquela
adrenalina em mim.
— Eu preciso de você.
Liah me abraçou e deixei que meus braços a envolvessem, sentindo as
lágrimas grossas que se formavam nos meus olhos. Era um misto da
ansiedade, medo, desejo, preocupação. E também tinha a certeza de toda
aquele sentimento improvável que nunca deveria ter me invadido daquele
jeito.
— Fiquei desesperada com medo de alguma coisa ter te acontecido,
porque eu nem tive a chance de dizer que…
A interrompi, afastando seu corpo do meu para olhar em seus olhos.
— Eu amo você.
— Achei que eu ia dizer primeiro. — Liah sorriu mordendo a bochecha.
— Eu te amo pra caralho, Liah.
— Eu achei que meu coração ia parar no dia que você apareceu no meu
hotel e disse que não me odiava — seu sorriso podia iluminar aquele carro
inteiro. — Mas eu não tinha ideia do que poderia sentir quando você diz
que me ama. Eu também amo você, Nathan. E isso me assusta.
— Então estamos no mesmo barco, porque morro de medo desse
sentimento — admiti, voltando a abraçá-la.

Eu estava tentando me manter calmo, concentrado na euforia que invadia


meu peito e quase me fazia parar de respirar. Apesar de todas aquelas
ameaças, tínhamos uma luz no fim do túnel.
Também tinha o fato que assumi que amava Liah, e ela tinha dito o
mesmo. Eu só pedia a Deus, com todo meu coração, que nada mais desse
errado agora.
— Loft? — Liah perguntou segurando um risinho divertido, quando
passou por mim na cozinha.
Eu estava fugindo dela. Estava fugindo porque não tinha nem duas horas
que estávamos em casa e eu ainda sentia a adrenalina correndo nas minhas
veias.
— Você não tem ideia da quantidade de adrenalina no meu organismo
agora. — Encostei a lombar na bancada da cozinha e cruzei meus braços,
tentando refrear a vontade insana de pegá-la de qualquer jeito ali mesmo. —
Tô a ponto de cometer uma loucura aqui mesmo na cozinha.
Liah sorriu de um jeito travesso, me olhando sobre a borda do copo
enquanto bebia sua água calmamente. Antes de tirar o copo da boca, seus
olhos desceram dos meus, focando no volume já evidente no meu jeans.
— Eu tô vendo. — A garota mordeu a bochecha interna. — Você disse
que uma das condições para ir até a mansão era que você me queria hoje a
noite, com a lingerie azul…
A garota subiu os dedos pelo colo e abaixou a alça da camiseta, me
mostrando a renda colada em sua pele.
— Não vou encostar em você agora — avisei sério.
— Eu vou te esperar lá em cima — disse, largando o copo na pia.
— Vai ficar lá sozinha — sorri em resposta.
— Seria uma pena desperdiçar meu tempo e essa adrenalina toda só com
as minhas próprias mãos.
Sacudi a cabeça em repreensão, sorrindo para o jeito provocador dela.
A verdade é que Liah me despertava as nuances do cara que sempre fui
antes de tudo que se desenrolou anos atrás. Eu conseguia ser controlado
com ela.
Depois do coma, eu chegava a ser até meio inconsequente quando o
assunto era aqueles que eu amava. Aquela era minha forma de refletir no
mundo o amor e a proteção que nunca tive daqueles que deveriam ter me
dado.
Era uma forma de retribuir o amor que tia Sophia me deu. Era por isso
que a perda do meu filho me afetava tanto. Eu seria para ele tudo o que eu
sempre senti falta na vida. Nunca o deixaria, nunca o abandonaria, não
importa o que acontecesse ou onde iríamos parar.
O ponto é que desde que essa coisa toda com Liah começou, a
necessidade latente que me atormentava, estava sendo alimentada. Liah me
fez preencher os buracos e ocupou minha cabeça com as crianças na ONG,
com Triss e com ela própria.
— Nathan!
Soltei uma risada nervosa ao perceber que ela me chamava, apertando os
olhos para minha distração repentina.
— Esse é o efeito que você causa — acusei sorrindo. — Me deixa
distraído à toa.
— Você parecia longe.
Seus braços se moveram para o meu pescoço, e Liah precisou ficar na
ponta do pé para deixar um beijo estalado na minha boca.
— Estava pensando em como você invadiu minha cabeça.
— Se tem uma coisa que você gosta de fazer, é me acusar.
— Talvez eu goste mesmo.
Passei meus braços por sua cintura, descendo minhas mãos pelo tecido
grosso do jeans que envolvia suas coxas e puxei seu corpo para cima,
fazendo com que ela trançasse suas pernas em volta de mim.
— Parou de resistir? — perguntou ao notar que eu caminhava em direção
à porta.
— Vou me controlar, prometo!
— Não quero que se controle — pediu, beijando meu pescoço. — Vai
sair daqui comigo no seu colo?
— Sairia até dentro de você se não tivesse o risco de esbarrar em alguém
no corredor.
— Nathaniel! — Liah me repreendeu, mas sorriu abertamente para mim.
Abri a porta sem muita dificuldade, ainda mantendo seu corpo agarrado
no meu. Saímos do apartamento assim, colados e nos olhando de um jeito
meio bobo.
— Odeio que me chamem de Nathaniel — assumi. — Mas alguma coisa
dentro de mim se revira toda vez que você me chama assim.
Apertei o botão do elevador, fugindo do olhar astuto de Liah. A garota
me estudava de um jeito diferente, como se tentasse desvendar mais coisas
sobre mim.
O toque do elevador soou, e as portas começaram a se abrir. Liah se
remexeu, tentando descer do meu colo, mas mantive meu braço firme sobre
sua cintura, sem deixar que ela descesse.
— Nate… — sua reclamação morreu ao perceber que o elevador estava
vazio. — Meu Deus, se tivesse alguém aqui?
— A gente podia dizer que você estava com a perna machucada —
brinquei, prensando suas costas contra o espelho.
Apoiei o peso dela sobre o corrimão de segurança, levando minhas mãos
para o seu pescoço.
— Você precisa apertar o botão da cobertura — disse sorrindo ao
perceber o meu esquecimento.
— Já te disse hoje o quanto você me distrai?
Estiquei o braço para o lado, apertando o botão que levava até a
cobertura do prédio.
— Tenho a impressão que estou te distraindo com frequência demais,
Nathaniel.
Suspirei, sendo tomado por uma onda daquela eletricidade que não
deixava meu corpo desde que saí da mansão mais cedo.
O elevador apitou ao chegar na cobertura e caminhei para fora dele,
sustentando o corpo de Liah pela bunda. Digitei o código da porta de
entrada, e atravessei com ela para dentro do Loft.
— O jeito que você me olha me dá arrepio às vezes — Liah soltou
envergonhada quando a coloquei sobre o balcão da cozinha.
Tudo que pude fazer, foi sorrir abertamente antes de descer minha boca
sobre a dela.
Liah soltou um gemido sufocado contra minha boca, projetando o corpo
para frente. Suas pernas voltaram a se enroscar em minha cintura e suas
mãos passaram a puxar os fios curtos do meu cabelo.
— Eu amo um balcão, mas a gente pode subir? — pediu respirando com
dificuldade quando largou minha boca.
— Pode, até porque não consigo parar de pensar em você naquela cama
comigo.
— Ah, é? — Liah perguntou afastando-se um pouco de mim para poder
olhar em meus olhos. — Achei que você gostasse das superfícies.
— Eu gosto, Liah, não se engane. Mas também gosto da ideia do seu
corpo inteiro na minha cama, esperando por tudo que só eu posso dar a ele.
A garota soltou um suspiro alto, sorrindo largamente antes de puxar a
gola da minha camisa e grudar a boca na minha de novo. Dessa vez, seu
beijo já se iniciou mais exigente, com sua língua exploradora invadindo
minha boca e brincando comigo de um jeito insano.
Era fácil demais me perder nela daquela forma. Eu realmente estava
falando sério quando disse sobre o nível de adrenalina no meu corpo. Correr
todo aquele risco só me fez perceber o quanto eu estava tomado pelo que eu
sentia por Liah. Não que eu não tivesse ideia antes sobre o que eu sentia,
mas ter certeza sobre a profundidade de todos aqueles sentimentos me
deixava ansioso. De um jeito gostoso e bem diferente da ansiedade que
costumava me perturbar.
O único problema de me permitir sentir tudo aquilo, era que eu também
me afogava em uma vontade surreal de fazer com que ela sentisse o mesmo.
Foi pensando nisso que aproveitei para travar suas coxas em volta da minha
cintura e ergui seu corpo do balcão para seguir em direção às escadas.
— Você nunca vai me deixar subir essas escadas sozinha? — sua voz
soou bem baixinho no meu ouvido logo depois de seus dentes rasparem de
leve no meu pescoço.
Deixei uma risada baixa escapar ao perceber que eu sempre levava Liah
lá para cima no meu colo, fosse enroscada em mim como agora, ou
carregada nos meus braços.
— Gosto demais de ter você assim pra deixar.
— Você sabe que eu sou uma mulher independente e que posso subir
duas dezenas de degraus sozinha, não é?
— Prefiro pensar que assim tô fazendo você economizar energia pra
gastar comigo.
Soltei seu corpo assim que chegamos ao quarto, permitindo que suas
pernas se desenrolassem da minha cintura para que pudesse se sustentar em
pé.
Liah sorriu e mordeu seu lábio inferior, me olhando sorrateiramente
antes de virar de costas para mim e tirar sua blusa devagar. A renda azul do
sutiã, adornava suas costas, desenhando seu corpo. Mas tudo que eu
ansiava, era que aquele pano tivesse fora do meu caminho.
Seguindo sua provocação descarada, Liah me olhou por cima do ombro,
levando suas mãos até o botão do jeans. A garota inclinou o corpo um
pouco para frente, passando os polegares para dentro do cós, empurrando só
um pouquinho o tecido grosso para baixo. As tiras extremamente finas da
calcinha azul ficaram visíveis, me fazendo decidir que queria aquela na
minha coleção de calcinhas rasgadas dela.
— Vai mesmo me provocar desse jeito? — perguntei ainda parado no
topo da escada, dando tempo e corda suficiente para ela se enrolar.
— Só tô tirando minha roupa pra ajudar e andar mais rápido — disse
com uma inocência fingida, terminando de descer o jeans pelas pernas.
Suspirei, encarando seu corpo gostoso dentro da lingerie azul rendada,
seria uma pena ela não usar mais.
A garota virou de frente para mim, sorrindo largamente, ciente de como
estava me deixando duro com seu showzinho. Suas mãos subiram em
direção à sua calcinha, prontas para removerem a peça.
— Não tira! — determinei, recostando o ombro na parede para continuar
a assisti-lá.
— Vai rasgar essa também? — perguntou apertando os olhos em
reprovação.
— Você sabe a resposta — dei de ombros. — Vou guardar com as outras.
Já tinha perdido as contas de quantas calcinhas de Liah eu tinha rasgado.
Eu nem sequer sabia que eu tinha uma propensão a isso, mas na primeira
vez que fiz, tomado pela urgência de tê-la para mim, quase gozei só pela
cara de surpresa e tesão que ela fez.
Seu sorriso se abriu ainda mais quando caminhou decidida até onde eu
estava. Mas o que fez, na sequência, foi minha ruína.
Por causa da nossa diferença de altura, estava acostumado com o jeito
que ela me olhava, levantando os olhos azuis repletos de expectativa. Mas
nada poderia ter me preparado para vê-la se ajoelhar à minha frente e
levantar os olhos daquele jeito, enquanto mantinha o lábio inferior entre os
dentes.
— Quero experimentar uma coisa — disse baixinho, mantendo seus
olhos nos meus.
A encarei por alguns segundos, sem ter muita certeza sobre o que eu
havia entendido.
— Não precisa fazer isso — avisei, sem coragem de me mover.
— Eu quero fazer isso.
Liah levou as mãos, tremulas, até o botão da minha calça, abrindo e
descendo o zíper em seguida. Senti o alívio instantâneo do meu pau inchado
ganhando espaço.
— Não precisa fazer nada que te deixe desconfortável — voltei a dizer,
segurando suas mãos suavemente.
— Eu quero, e não estou desconfortável — garantiu sorrindo antes de
voltar os olhos para o meu zíper e descer minha calça e a boxer até o meio
das minhas coxas.
Meu pau saltou para fora, duro de um jeito que nem sabia que era
possível.
Sua mão direita me envolveu, enquanto segurava com a esquerda em
minha coxa, quase fincando as unhas na minha pele. Liah passou a língua
pelos lábios, seu olhar totalmente preso aos movimentos que fazia, para
baixo e para cima, primeiro devagar e depois mais rápido.
Arfei, me sentindo rendido por ela e lutando para não fechar meus olhos
e acabar perdendo algum detalhe importante.
— Liah… — eu queria garantir que ela estava mesmo bem em fazer
isso, mas era quase impossível raciocinar quando ela me masturbava
daquele jeito, tão concentrada no que fazia, mordendo a porra da bochecha.
— Me ajuda? — ela pediu, subindo os olhos para mim.
— Te ajudar? — questionei confuso, totalmente sem ar.
— Me ensina a te chupar.
— Pelo amor de Deus, não me olha desse jeito! — pedi desesperado,
fechando os olhos para evitar perder o controle.
O hálito quente de Liah atingiu minha glande, e meu corpo inteiro se
retesou. Se eu abrisse os olhos agora, provavelmente ia entrar em
combustão instantânea, mas se os mantivesse fechados, perderia a imagem
perfeita do que seria Liah com meu pau na boca.
Decidi abrir os olhos devagar, testando o impacto da imagem dela
ajoelhada, prestes a me colocar na boca. Senti meu pau latejar em
antecipação.
Liah colocou só a pontinha da língua para fora, testando a textura e o
meu gosto ao passar pela minha glande. Travei minha respiração, refreando
o ímpeto de agarra-lá pelos cabelos e me enfiar de uma vez na boca dela.
Não podia ser assim com ela.
— Cuidado com o que vai fazer a partir de agora — avisei sério, sem
medo de ser rude, porque se eu perdesse o controle, aí, sim, ela ficaria
assustada.
Eu precisava ter em mente que Liah não conhecia aquelas experiências, e
as que teve, aconteceram da pior forma possível. Mas a quantidade de
adrenalina no meu sangue, quase me fazia mandar todo o controle para a
casa do caralho.
Só que nada com ela era simples ou fácil. Eu disse uma vez que ela havia
nascido com a missão de foder minha vida. E ela estava mesmo. Fodendo
minha cabeça de um jeito insano. Me levando à beirada do precipício
quando olhou no fundo dos meus olhos e finalmente seus lábios se
fecharam ao meu redor.
Um gemido rouco me escapou, me fazendo dobrar um pouco o corpo.
— Porra!
Apoiei a mão esquerda na cômoda ao meu lado, precisando de qualquer
resquício de equilíbrio para não cair.
Liah se movimentou, me tirando e colocando de novo em sua boca
devagar, testando até onde poderia ir e as formas que poderia mover sua
língua para me torturar ainda mais.
Quase tive uma síncope quando ela olhou para cima, com uma boa parte
do meu pau em sua boca. Era estímulo demais para quem já estava agitado
como eu desde cedo.
— Se meu coração parar, a culpa é totalmente sua — avisei a ela,
tentando manter minha sanidade.
— Você não é tão fraco assim — ela sorriu e logo voltou a me chupar.
Filha da puta. Provocadora do caralho!
— Você me deixa fraco — confessei, precisando me controlar para não
tomar o controle e ditar o ritmo com que ela me chupava.
Mas Liah era esperta demais, e nem precisou de muito tempo para
perceber que meu autocontrole estava por um fio.
— Não tem que se segurar assim — ela me tirou da boca para falar. —
Eu gosto do jeito que você perde o controle comigo.
Ela não tinha a mínima ideia do impacto das coisas que ela falava sobre
mim. Se soubesse, nunca me provocaria desse jeito.
— Sabe o jeito que você puxa meu cabelo quando me beija? — sua voz
baixa me fez abrir os olhos para olhá-la. — Faz isso agora! — pediu e logo
em sequência me colocou na boca de novo, me olhando de baixo para cima.
— Eu te avisei pra tomar cuidado — disse enquanto deixava meus dedos
embrenharem-se por entre os fios de sua nuca, puxando sua cabeça num
tranco firme enquanto me permitia foder sua boca.
Fechei meus olhos, jogando a cabeça para trás, totalmente tomado pelas
sensações que ela me causava, aproveitando o máximo do que ela me dava.
— Caralho, Liah! Você ainda vai me deixar louco um dia.
Ela permitiu que eu fodesse sua boca daquele jeito bruto, sem reclamar,
tomando tudo que podia de mim. Quando achei que poderia morrer, puxei
seu cabelo a afastando de mim. Um fio de saliva ainda ligava seus lábios à
minha glande.
— O que foi? — perguntou preocupada.
— Não dá pra continuar — avisei, usando um pouco mais de força para
fazê-la levantar. — Hoje não. Tô com um tesão do caralho e quero gozar
dentro de você.
Sem dar tempo para qualquer outra reclamação dela, a beijei, enfiando
minha língua em sua boca.
Aproveitei sua aceitação para abrir o fecho do sutiã em suas costas,
liberando seus seios para o meu acesso, fazendo Liah ofegar contra minha
boca. Mas logo a garota se separou de mim, me olhando de um jeito
curioso.
— Eu adoro beijar você e sentir meu gosto na sua boca — disse, ficando
muito vermelha pela declaração. — Mas é ainda mais gostoso te beijar com
o seu gosto na minha boca.
— Eu nunca deveria ter te dado corda — soltei desacreditado, sentindo
cada veia do meu corpo latejar pela forma que sua declaração me atingiu.
Desci minhas mãos pelo seu corpo, explorando a pele macia e cheirosa
dela, até alcançar o tecido azul da calcinha. Enlacei os indicadores nas tiras
finas laterais, puxando de uma só vez o tecido que arrebentou fácil demais.
Mesmo sabendo que eu faria aquilo, Liah arfou, observando o pano
rasgado em minhas mãos, brilhando por sua lubrificação excessiva. Olhei o
tecido, tendo a ideia perfeita.
— Sabe de uma coisa?! — larguei a calcinha rasgada no chão,
infiltrando minha mão entre suas pernas, só para ter certeza do quanto ela
também estava excitada e molhada. — Tem uma forma de deixar esse beijo
infinitamente melhor.
Um arquejo alto escapou de seus lábios quando usei meus dedos para
explorá-la, espalhando sua lubrificação ainda mais. A garota fechou os
olhos, se segurando com força nos meus antebraços.
Tirei meus dedos dela, totalmente encharcados, levando-os à sua boca
entre aberta. Liah arregalou os olhos quando passei os dedos molhados por
seus lábios, deixando toda a lubrificação acumulada em meus dedos neles.
— Nathan…
Passei a língua devagar sobre a carne macia de sua boca, sentindo seu
gosto único, limpando tudo que deixei ali, só para poder repetir o processo.
Liah soltou um gemido sôfrego quando voltei a estimulá-la com os
dedos, apoiando a testa em meu peito, respirando com dificuldade. Enlacei
minha mão em seus cabelos de novo, puxando sua cabeça para trás e voltei
com meus dedos ainda mais molhados para sua boca, dessa vez, forçando-
os por entre seus lábios.
— Abre a boca!
Sua resistência não durou mais do que alguns segundos, abrindo a boca
arfante.
— Quer saber o quanto você é gostosa? — perguntei, vendo seus olhos
se escurecerem pelo desejo intenso.
Seus lábios se fecharam ao redor dos meus dedos, enquanto fazia uma
leve sucção para deixá-los limpos. Sem tirá-los de sua boca, colei meus
lábios nos dela, enfiando minha língua junto, querendo compartilhar de seu
gosto.
— Nathan… — murmurou por entre o beijo, indecisa sobre parar de me
beijar. — Preciso de você…
Eu também sentia a necessidade de mais, a vontade de me afundar em
seu corpo e matar todo o desejo que chegava a me causar dor. Por isso,
soltei sua boca, só para chutar meu coturno para um canto e me livrar da
calça que ainda estava abaixada nas minhas coxas.
Voltei a beijá-la com urgência, deixando que nossos corpos caíssem no
colchão macio, ajeitando-a sobre a cama, descendo meus beijos pelo seu
pescoço e por todo seu colo.
Enquanto a beijava, passei a estimular seu clitóris, ouvindo seus
pequenos gemidos agoniados. Aproveitei para recolher o máximo de
lubrificação possível mais uma vez, e limpei os dedos sobre os bicos
rosados de seus seios.
Liah fechou os olhos, arfando e gemendo deliciosamente.
— É uma pena que não possa sentir seu gosto aqui — disse enquanto
passava a língua sobre um de seus mamilos, limpando-o com vontade.
— Isso não é justo! — reclamou quase sem fôlego.
— Tem razão. É gostoso demais pra ser justo.
— Nate…
— Olha pra mim — pedi desesperado, enquanto afastava suas pernas
com meus joelhos.
Liah me puxou para cima, me beijando avidamente, raspando as unhas
curtas nas minhas costas. Suas pernas se enroscaram na minha cintura, me
deixando com o acesso perfeito a ela.
Sem muito esforço, entrei de uma só vez, soltando um gemido longo e
baixo. Nossa respiração parecia unificada, nossos peitos subindo e descendo
na mesma frequência.
Os gemidos que escapavam dela, quase me faziam gozar, extasiado com
a forma que Liah se movia e se entregava a mim. Existia uma conexão
diferente entre a gente. Uma que envolvia tanto sentimento, que
transbordava no físico.
— O que você tá fazendo comigo? — Sem me mover, busquei seus
olhos, me sentindo sufocado pelo êxtase de estar dentro dela. Era sempre
assim.
— Talvez o mesmo que você tem feito comigo — sua voz era apenas um
sussurro baixo.
Puxei seus pulsos para cima, a segurando abaixo de mim, presa contra a
cama. Passei a me mover devagar, com os olhos cravados nos dela, tentando
manter minha sanidade e não perder o controle. Mas era tão difícil com ela
me olhando daquele jeito.
— O que eu tenho feito com você? — perguntei provocando, mantendo
o ritmo lento das minhas investidas.
— Você adora isso, né!? — disse, se contorcendo deliciosamente abaixo
de mim. — Esse joguinho de falar coisas sujas.
— Adoro o jeito que você fica quando eu falo.
— Maluca?
— Com tesão!
Liah sorriu, mordendo o lábio, e porra… ela não poderia ficar mais linda.
Era o tipo de imagem que acabava comigo.
Investir mais rápido era inevitável, perder o controle era inevitável,
sentir meu corpo sucumbir ao desejo ensandecido de me afundar ainda mais
nela era inevitável.
— Isso é muita loucura… — um gemido sôfrego escapou por entre seus
lábios, interrompendo sua fala, quando passei a investir mais duro em seu
corpo.
Seus olhos estavam cerrados, me impedindo de ver o desespero usual
neles. Os lábios inferiores fortemente apertados pelos dentes brancos.
Inconscientemente, seu corpo ondulava em pequenos espasmos, tentando
soltar os pulsos ainda presos por mim.
— Abre os olhos — mandei.
Um espasmo mais intenso tomou seu corpo, mas ela continuou com os
olhos fechados.
— Liah, eu mandei abrir os olhos! — disse mais sério.
— Não fala desse jeito — pediu manhosa.
Era inevitável. Eu gostava de ver o que podia causar nela. E vê-lá tão
liberta, tão sem pudores, me fazia criar um orgulho próprio de ser o
responsável em fazer com que ela esquecesse, que ela não se importasse, e
principalmente, que minha brutalidade nunca mais causaria um gatilho nela.
Tomado pelo torpor momentâneo, saí de dentro dela, puxando seu corpo
comigo. A pus de pé no chão ao lado da cama, virando-a de costas. Segurei
suas mãos, direcionando seus braços ao corrimão do guarda corpo de vidro
fumê, que dividia meu quarto lá no alto do restando do Loft.
Liah se agarrou nele, fazendo com que os nós de seus dedos ficassem
brancos. A bunda gostosa levemente inclinada para mim.
Me encaixei nela, sentindo-a mais resistente daquele jeito. Puxei seu
cabelo, trazendo sua cabeça para trás, colando suas costas no meu peito,
antes de fazer qualquer movimento dentro dela.
Percebi seus lábios travados entre os dentes, tentando conter os gemidos.
— Aqui você pode gritar a vontade, gata! — avisei quando sai e entrei
numa estocada profunda.
— Merda! — Não foi exatamente um grito, mas soou como um
verdadeiro desabafo dela.
Sorri, pensando que ela poderia facilmente usar um “porra” ou um
“caralho”. Mas era bem típico dela usar o “merda”.
Me afastei só um pouquinho, apostando comigo mesmo o tempo que
levaria para ela começar a lamuriar palavrões de verdade.
Puxei seu quadril, a deixando mais inclinada e sem que esperasse, desci
um tapa forte em sua bunda. Um gritinho assustado escapou dela e então
olhou para trás, assustada.
— Que porra! — Seus lábios se escancararam num O engraçado.
Esperei alguns segundos para tentar entender sua reação, e tudo que vi
era o desejo que só aumentava em seus olhos.
Fiz de novo, descendo um tapa do outro lado de sua bunda, ainda mais
forte que o primeiro.
— Caralho, Nate…
Sorri satisfeito e voltei a investir contra sua boceta, sem nenhum pudor,
de um jeito que ainda não tinha me permitido fazer com ela.
Liah manteve suas mãos seguras no corrimão, como se segurasse sua
própria sanidade.
Acho que nunca me senti tão satisfeito na vida como ao vê-la olhar para
trás e sorrir daquele jeito, vitoriosa por ter me feito perder o controle.
A gente não levou muito mais tempo do que os próximos dois minutos
para gozar, um seguido do outro, me extasiando com a forma que ela gritou
meu nome quando atingiu seu orgasmo.
— Te avisei uma vez que você nunca mais ia esquecer o nome do cara
que te fez gozar naquele balcão.
— Nem que eu quisesse seria possível te esquecer, Nathaniel.
Nathan

Capitulo 34

02 de setembro de 2019
Ethan e Thommas nem sequer piscavam, mantendo os olhos atentos
sobre a mesa de centro do meu loft. Os dois me escutaram atentamente,
enquanto contava sobre a ida à mansão e as ameças que Carlton vinha
recebendo. Resolvemos matar a tarde de trabalho dado a gravidade do tema
e a necessidade de contar aquilo a eles.
— Como convenceu Carl a deixar isso com você? — Thommas
perguntou, subindo os olhos da mesa de vidro e logo voltando a olhar para o
mesmo lugar.
— Já sabem que ele está investigando. Carlton voltou a receber ameaças
e acha que estou em evidência por ter me metido onde não devia —
expliquei.
Ethan subiu a mão com a long neck, bebendo sua cerveja e me encarando
sério por cima do gargalo.
— Você sabe usar isso? — perguntou depois de soltar um longo suspiro.
Confirmei sacudindo a cabeça num sinal positivo. Carlton havia me
ensinado a atirar quando havia completado vinte e um anos. Voltei a olhar
nervoso o revólver sobre o vidro à minha frente.
— Liah sabe disso? — Thommas perguntou.
— Sabe. Contei tudo a ela ontem. A única coisa que não tive coragem de
contar foi sobre a morte de Sylvia e o incêndio.
Tinha medo do tipo de sofrimento que encontraria nos olhos dela,
quando descobrisse que a avó morreu num ato criminoso. Me sentia
péssimo quando pensava que Liah me fez prometer que não esconderia
mais nada dela. Só de pensar na ideia dela me deixando quando soubesse a
verdade, sentia meu peito se apertar.
Cansado, joguei minha cabeça para trás, descansando o pescoço nas
costas do sofá macio. Coloquei as mãos atrás da cabeça, pensando em tudo
que estava acontecendo.
— Deveria ter contado — Ethan me alertou.
— Eu sei — suspirei.
— Mas tudo isso vai acabar, certo? Carlton já tem as provas — Ethan
perguntou calmo, voltando a beber sua cerveja.
— Espero que sim, Ethan — desejava com todas as minhas forças que
sim. — Carlton ainda vai precisar analisar tudo que achei lá, tem muita
coisa que não pode ser usada porque são consideradas provas ilegais pela
lei. Mas ele já me adiantou que Sylvia tinha evidência de como o esquema
inteiro funcionava. Na pior das hipóteses, ele consegue abrir a investigação.
Na melhor, o FBI vai fazer um arrastão na cidade e vão ter que construir
celas novas.
— Mia e Sophia? Estão seguras? — Thommy perguntou preocupado.
— Carlton está de olho nelas o tempo inteiro.
Eu também estava preocupado. O tempo inteiro ficava pensando que
precisava manter todo mundo no meu campo de visão. Mia e tia Sophia,
Triss, Liah, Olívia…
A campainha do loft tocou, me deixando surpreso.
— Tá esperando alguém? — Ethan perguntou com a testa franzida.
— Não. — Levantei do sofá indo até a porta para olhar pelo olho
mágico.
— É o Carlton — avisei a eles, estranhando o fato do meu tio aparecer
aqui.
Abri a porta, encarando o homem do outro lado. Sua expressão era
preocupada, quase derrotada. Senti um arrepio estranho e gelado na
espinha.
— O que aconteceu? — perguntei, vendo-o atravessar a porta e olhar de
mim para os caras largados no sofá.
— Ainda bem que estão todos aqui, assim já falo com os três de uma
vez. — Carl foi direto para a geladeira, que agora vivia abarrotada de
cerveja. Tirou uma de lá, abrindo a tampa com a mão. — Triss avisou que
vocês estavam aqui em cima.
— O que tá acontecendo? — perguntei de novo começando a ficar
ansioso.
— O cara que te ligou e ameaçou Triss e Liah era o Raphael Connor —
disse me encarando sério.
— O médico? — soltei um riso nervoso. Como não reconheci a voz dele
no telefone? Agora parecia fazer total sentido.
Ethan e Tommy se entreolharam preocupados quando Carlton tirou a
arma da cintura e colocou sobre a mesa ao lado da que ele me entregou
ontem. Meu tio se jogou no sofá, respirando pesado, encarando nós três de
um jeito irritado.
— Vocês se meteram nisso, mesmo quando eu insisti pra que não
fizessem — Carl reclamou erguendo as sobrancelhas. — Agora vão me
ajudar a segurar a barra. Bob pressionou Jasper mais do que deveria, ele
sabe que vai ser indiciado e talvez até preso. Eles vão agir, precisamos nos
preparar.
Engoli seco, sentindo meu corpo fraco. Minha respiração estava
acelerada de um jeito que não sentia tinha bastante tempo, senti a
dormência que começava na parte baixa da espinha e ia subindo devagar,
fazendo meu sangue esquentar e minha visão ficar turva. Desde o dia que
revi Camille, eu não tinha uma crise.
— Nathan!
Ethan me chamou, levantando e vindo até mim preocupado. Mas antes
que ele pudesse chegar até onde eu estava, já tinha me permitido acertar a
lateral da estante de ferro com meu punho. Senti a dor me atingir no mesmo
segundo.
— Para! — Carl me segurou pelo braço antes que eu pudesse acertar
outro soco. — Preciso de vocês conscientes para ficarem de olho nelas,
Nathan. Liah e Triss precisam de você.
— Você tá certo — disse, fazendo uma força astronômica para me
acalmar. — Liga para as meninas, Tommy, pede a elas pra virem pra cá.
Agora.
Maldita a hora que deixei Liah sozinha na ONG. Claro que isso não ia
acabar fácil assim.
— As provas não serviram, Carl? — Ethan perguntou alarmado. Por
mais que tentasse manter a sanidade, podia ver o terror estampado na cara
dele.
— Acabei de entregar o HD ao meu contato no FBI. É só questão de
tempo. O problema é que gente grande sabe que tenho esse material na mão
agora. Estão aumentando o tom de ameaça pra me fazer desistir.
— Não fizeram nada até agora, Carl. Acha mesmo que eles podem fazer
algo sério a elas? — perguntei desconfiado.
— Já fizeram uma vez, Nathan. — Meu tio me olhou de um jeito que
nunca tinha me olhado antes.
Seus ombros caíram e pude jurar que vi seus olhos brilharem pelo
acúmulo de água. Carlton permaneceu me olhando por longos segundos,
parecendo decidir se contava ou não alguma coisa. Uma careta incomoda
tomou seu rosto antes dele suspirar e abrir a boca para falar.
— Há quase quatro anos comecei a mexer nesse vespeiro, só que eu não
tinha preparo nenhum pra isso — Carl desviou os olhos de mim,
envergonhado. — Eles avisaram a primeira vez, avisaram a segunda e ainda
tiveram a misericórdia de avisar a terceira. O quarto aviso foi um vídeo seu
praticamente morto dentro daquele carro capotado.
Nada. Só silêncio. Nem a respiração de qualquer um que fosse era
ouvida no loft. Acho que era porque todos seguramos o ar, parando de
respirar por alguns segundos.
Eu tinha sido um aviso?
— Nathan, fala alguma coisa, por favor? — Carlton pediu nervoso.
Eu tinha sido a porra de um aviso?
— Nathan — Ethan tentou atrair minha atenção.
Eles quase me mataram para mandar um aviso ao Carlton?
— Cara — Ethan insistiu, sacudindo meu braço.
“… Te ensinando a não mexer mais com quem não deve…” Foi isso que
eles disseram.
Não era pra mim?
— NATHAN! — Tommy gritou na frente do meu rosto, me fazendo
encará-lo assustado.
Encarei Carlton, minha cabeça trabalhando a todo vapor, tentando
processar aquilo.
— O que teria acontecido se eu não tivesse dito a eles que era seu
sobrinho? — perguntei ansioso.
— Teriam ido atrás de Mia ou Sophia, talvez — Carl respondeu
inseguro, com a voz embargada. — Mas, provavelmente, você não teria
quase morrido aquela noite.
Minha cabeça estava muito cheia, quase sem capacidade de processar
novas informações. Mesmo assim, dois pensamentos tomaram conta de
tudo, sendo repetidos incessantemente na minha mente.
Primeiro: Das três opções para atingir Carlton, eu teria me jogado como
isca na frente de qualquer uma das outras duas.
Segundo: Liah nunca teve culpa.
— Quanto tempo até estarem todos seguros? — perguntei ao meu tio,
sentando-me no sofá.
— Acredito que amanhã no fim do dia a gente já tenha alguns mandados
de prisão preventiva e a coisa vai começar a feder. Mas todos aqueles
documentos são passíveis de contestação e investigação. Não vai ser algo
rápido. — Carlton avisou. — São suficientes pra liberar as contas e os bens
das empresas da Liah ainda essa semana, mas não da Vittorino Company.
Sugiro que avisem as meninas do perigo. Seria bom se todos ficassem
juntos por alguns dias, até a gente saber como vão reagir a isso tudo.

Separador

Abri a porta quando a campainha soou, vendo Evie, Karol, Olie e Liah
entrarem uma atrás da outra. Liah me deu um beijo rápido na boca, olhando
desconfiada para mim e para os meninos.
— O que está rolando? — perguntou assim que nos viu apreensivos.
— Melhor vocês sentarem. E já aviso que é coisa demais para absorver
de uma vez só — foi Ethan quem explicou.
Evie e Olie sentaram no tapete, puxando almofadas para cima delas. Liah
sentou-se na poltrona menor, próxima a grande janela e Karol só cruzou os
braços encostando o corpo na parede ao lado do sofá, me encarando.
— Por que acho que vocês fizeram merda?
— Não é merda exatamente — nos defendi. — Conversei com o Carl
sobre a investigação da ONG.
— As provas serviram? — Liah perguntou esperançosa.
Merda. Eu não queria tirar as últimas esperanças dela. Respirei fundo,
tomando coragem para contar de novo toda a história que Carl havia me
contado.
Expliquei a elas sobre o tal esquema que envolvia gente grande na
polícia e na prefeitura, e sobre como esses caras pressionavam Sylvia para
aceitar tudo que eles impusessem. Liah já sabia da maior parte dessas
informações.
Também contei sobre as ameaças, elas precisavam saber sobre o perigo
que estávamos correndo.
— Carlton sabia disso tudo? — Olie perguntou em choque.
— O HD que achamos ontem, Liah, foi entregue hoje ao FBI — contei.
— Mas até que tudo se desenrole, precisamos ficar juntos. Carl vai arrumar
uns seguranças para a gente também.
— Isso é tão absurdo — Liah se jogou de costas no sofá. — Que justiça
de merda, tudo demora nesse mundo.
— Por isso o ideal seria ter alguma coisa incontestável, que botasse
alguém deles na cadeia na hora — expliquei. — Carlton queria prender
Jasper, um dos policiais mais antigos da cidade. Ele acha que Jasper é
covarde a ponto de entregar todo mundo acima ou abaixo dele nesse
esquema.
As meninas suspiraram, entendendo o quanto seria difícil nos livrarmos
daquele risco.
— Tem mais uma coisa que preciso te contar, Liah. — Olhei para Ethan
e para Tommy. Eles tentavam me incentivar com o olhar, mas nada do que
eles pudessem me dizer, me faria ficar tranquilo com aquilo.
— E pelo seu tom, é uma coisa ruim. Estou certa? — Liah voltou a
sentar, me encarando ansiosa.
Nathan, você é um idiota.
Ela me fez prometer. Tive inúmeras oportunidades de contar isso a ela,
não queria estar fazendo só para que elas entendessem a dimensão do
problema. Liah ia ficar arrasada, e isso me faria ficar arrasado também.
— Porra. Juro que só não te contei isso antes porque Carlton pediu para
não fazer — avisei antes mesmo de dizer a ela a verdade. — Depois fiquei
com medo de como ia reagir…
— Nathan, por favor, fala de uma vez — Liah pediu, mordendo a parte
interna da bochecha.
— O incêndio que matou sua avó, não foi um acidente. Colocaram fogo
na mansão premeditadamente — soltei de uma vez.
— Como assim, Nathan? — Vi a confusão estampada em seu rosto. —
Você está dizendo que colocaram fogo na minha casa? De propósito?
— Foi — engoli seco, vendo o acumulo de lágrimas nos olhos dela.
Senti meu coração se partir à medida que a dor foi ficando mais evidente.
— A polícia achou dois galões de gasolina jogados na entrada da floresta,
atrás da casa. Não existe outro motivo evidente para o fogo ter tomado tudo.
Não foi curto na fiação como disseram. — tive vergonha de continuar
olhando em seus olhos. Eu deveria ter contado isso a ela quando soube.
Um longo silêncio se estabeleceu na sala. As meninas me encaravam
sem piscar. E eu não tinha nem ideia do que fazer.
— A quanto tempo você sabe disso, Nathan? — Liah perguntou incerta.
— Eu soube no dia que fez um mês da morte da Sylvia — contei sincero.
Liah se levantou da poltrona com calma, conferiu alguma coisa na tela
do celular e puxou sua bolsa largada no chão ao lado do sofá.
— Eu preciso sair daqui — disse baixo, seguindo até a porta.
— Liah, espera — pedi, indo até ela.
— Não, Nathan, para! — a garota me olhou com raiva. — Você me
escondeu isso por meses. Eu te pedi ontem, implorei pra não esconder mais
nada de mim. Você sabe o efeito que isso causa em mim, sabe que odeio
que me escondam as coisas nessas tentativas ridículas de proteção. Você
concordou. Você prometeu, Nathan. E você só está me contando isso agora,
por causa de um risco que está crescendo.
— Liah…
— Acha justo eu saber que minha avó foi assassinada na mesma noite
que vocês contam que estamos todos sendo ameaçados de verdade? — Liah
fechou os olhos e duas lágrimas escorreram pelo seu rosto. — Minha avó
morreu há meses, assassinada. Ela era tudo que eu tinha na vida e agora me
tiraram isso também. Eu estou sozinha, Nathan. Sozinha.
Você não está sozinha, Liah. Você me tem. Mesmo que não me queira
mais, eu sou seu!
— Liah, eu…
— Eu preciso de ar.
Liah saiu do loft, batendo a porta da frente com força.
— Eu sabia que isso ia acontecer — reclamei, socando a parede de tijolo
da sala.
Evie levantou do tapete correndo, segurando meu punho antes que eu
pudesse socar mais uma vez a parede.
— Não sei como você ainda tem mão, Nathan. Você precisa parar de sair
por aí socando as coisas…
— Um de vocês precisa ir atrás dela — avisei a Ethan e Tommy,
cortando o sermão de Evie. — Ela não pode ficar sozinha por aí…
— NATE! NATE! — antes que eu pudesse continuar, Triss apareceu no
loft, atravessando a porta correndo. — Sei que você pediu para que eu
ficasse lá embaixo, mas você precisa ver isso.
A garota largou o notebook em cima do Home Teather, tirando um cabo
de trás da TV e conectando no computador, atraindo a atenção de todo
mundo.
Triss tremia quando finalmente pegou o controle, ligando a televisão.
Uma rua escura apareceu na tela. Alguns segundo depois, um carro de
polícia parou em frente a um poste, no fim da rua, e então eu tinha
intendido tudo.
Por alguns segundos, sete pares de olhos se perderam nas imagens. Os
dois caras descendo a porrada sem dó ou qualquer peso na consciência em
mim.
— Caralho, Triss — olhei em choque para a tela. Acho que todo mundo
estava em choque. — Onde você conseguiu isso?
— Estava com os vídeos da Sylvia. Eu trouxe uma cópia pra casa e
resolvi assistir todos eles. Olha isso. — Triss apontou para um número de
identificação no canto inferior direito da tela. — São números diferentes pra
câmeras diferentes. Tem mais câmeras além daquelas da loja. Essa estava
instalada naquela rua, num prédio que funciona um estacionamento.
Triss me mostrou um papel impresso que estava em sua mão. Era o
registro de uma empresa.
— Pesquisei os dados do estacionamento, e o proprietário é Walter
Thompson. Ele trabalhava pra Sylvia.
Olhei para o registro da empresa, e o nome do proprietário. Esse era
aquele assistente que vivia com a Sylvia para todo lado.
— Bem, pelo menos agora você pode colocar esses caras na cadeia. —
Olie comentou. — A gente precisa achar algo que acelere a investigação do
Carlton…
— Isso ajuda — Interrompi. Eu não havia contado a elas que Jasper era
um dos caras que me espancou há três anos. — Esse cara, o grandão, é o
Jasper.
— Irmão, como você sobreviveu a isso? — Ethan perguntou, engolindo
seco quando uma barra de ferro pesada acertou minha cabeça.
— Nate! — Olivia suspirou, se encolhendo embaixo do braço de Ethan.
— Tira isso, Triss — pedi, sentindo uma queimação estranha no
estômago.
Triss correu para fechar a janela do vídeo, antes que a situação ficasse
pior, porque acredite, ficava ainda pior.
As seis pessoas na sala me encaravam aterrorizadas. Eu odiava essa
sensação, quando as pessoas me olhavam sabendo sobre algo tão íntimo e
difícil que eu tivesse passado. Ver, de fato, aquelas imagens, só faria com
que a pena que sentiam de mim, aumentasse.
— O cara que te bateu, é o mesmo cara que está por trás de tudo isso? —
Tommy perguntou, sentando no sofá totalmente desnorteado. — Por isso
Carl estava tão preocupado quando contou que você foi um aviso anos
atrás. Esse cara pode fazer isso de novo.
Assenti, escorando o corpo, no balcão da cozinha. Senti a sensação
conhecida do formigamento na espinha começar a tomar conta de mim.
Respira, Nathan.
Ethan e Thommy estavam aqui quando Carlton contou, mas as meninas
não sabiam daquilo, até então. Olie e Karol arregalaram os olhos,
entendendo como aqueles fatos todos se ligavam. Meu coração acelerou
ainda mais, me deixando ofegante e precisei fechar meus olhos para conter
a agitação. Respira, porra!
— Evie, vai com a Triss lá pra baixo — Ethan pediu, sacando meu
estado. — Agora! — brigou quando nenhuma das duas se moveu.
Evie finalmente puxou o pulso de Triss, saindo pela porta e senti que
podia estourar. Mas, imprevisivelmente, me senti lúcido e calmo de repente.
— É uma prova válida — o peso daquela afirmação me atingiu. — A
gente tem que levar isso pro Carl agora.
Peguei o notebook de Triss e a chave do carro jogada no balcão.
Aproveitei para conferir se o revólver ainda estava preso no cós da minha
calça. Carl tinha me feito prometer que deixaria no porta-luvas do carro,
mas de que adiantaria se viessem atrás de mim?
— Nate, você está bem para dirigir? — Tommy questionou desconfiado.
— Pode acreditar que sim — afirmei. — Olie, pede ajuda da Triss, reúne
tudo que vocês puderem que seja válido. Eu estou indo falar com o Cal.

Tinha vindo na delegacia só essa semana, mais vezes que vim em toda
minha vida. Desci do carro, consciente de que poderia dar de cara com
Jasper de novo. Mas dessa vez, eu tinha controle das minhas emoções. Ia
colocar esse filho da puta na cadeia de uma vez por todos.
Carlton estava me esperando na porta. Liguei para ele me encontrar aqui,
já que não estava em horário de trabalho.
— Bob está nos esperando — avisou.
Quando liguei no caminho, contei ao meu tio o que Triss achou entre os
vídeos de Sylvia.
— Se Bob não fizer nada dessa vez, vou jogar o vídeo na internet —
afirmei, decidido sobre aquilo.
Se não tivesse o apoio das autoridades, teria do povo da cidade e talvez
até do mundo se o vídeo ganhasse repercussão.
Ao contrário do que esperava, Carlton não me repreendeu por aquilo.
Apenas suspirou, passando seu cartão no leitor que dava acesso à área
restrita da delegacia.
Caminhamos em silêncio até a sala no fim do corredor estreito. Bob
estava em pé em frente a mesa branca cheia de papel empilhado, analisando
algum documento.
— O que aconteceu? — perguntou quando percebeu nossa presença no
corredor. — Me ligou nervoso, Carlton.
— Vou economizar minhas palavras, Bob. Nathan vai nos mostrar um
vídeo. — Carlton me indicou a cadeira em frente a mesa.
Sentei, esperando Bob dar a volta e sentar em seu lugar. O homem me
olhou em expectativa enquanto eu ligava o notebook e acessava a pasta com
o vídeo que Triss havia achado. Senti meus dedos tremerem quando apertei
o play, virando a tela para ele.
Graças a Deus, aqueles vídeos não tinham som. Só de imaginar o que
eles poderiam ouvir se tivesse.
O Xerife ficou alguns bons segundos olhando as imagens que
transcorriam pela tela. Em algum momento, uma careta de desgosto tomou
a face gorducha dele e logo foi substituída por um pequeno sorriso.
— Desgraçado! — Bob começou a gargalhar alto. — Que grande filho
da puta.
O homem continuava rindo, olhando atentamente as cenas que se
seguiam. Procurei Carlton com os olhos, sem entender a reação dele.
— Bob…
— Ele me jurou, em nome da mãe dele, que nunca encostou um dedo em
Nathan, Carl — Bob disse sério, voltando a rir de repente. — Criei esse
garoto, Carlton — disse com dificuldade em meio aos risos exagerados. —
Aonde conseguiram isso? — perguntou enquanto me olhava intrigado,
finalmente se acalmando.
— Sylvia tinha umas câmeras caseiras nas lojas e espalhadas em
propriedades que eram dela — expliquei. — Essa, especificamente, estava
num estacionamento nessa rua que é do Walter Thompsom. Ele era
assistente dela, vivia com Sylvia por aí.
— Vamos precisar do depoimento dele.
— Consegue falar com esse Walter? — Bob me perguntou.
— Posso tentar
— Eu falo com ele — Carl avisou, tirando seu celular do bolso.
— Você tem contato com ele? — perguntei confuso.
— Quem você acha que me ajuda a descobrir essas coisas que Sylvia
deixou sem explicação?
Aproveitei sua distração para tentar falar com Liah e saber se estava
segura, mas a chamada sempre era redirecionada.
'O número que você ligou está desligado ou fora da área de cobertura'.
A voz robotizada soou do outro lado. Merda, Liah!
Digitei o número de Olívia, esperando que ao menos ela me atendesse.
— Oi, Nathan — escutei a gritaria de fundo. Provavelmente, eles ainda
estavam no loft.
— Alguém sabe da Liah? — perguntei nervoso. — Ela está com o
celular desligado, não consigo falar com ela.
— Ela tá no hotel. Me avisou assim que chegou por lá.
— Estou preocupado com ela sozinha, Olie — reclamei.
— Liah tá bem, Nathan. Tá trancada no quarto e deve ter desligado o
celular pra evitar falar com você.
Era horrível ter que concordar com Olívia, mas era verdade. Liah saiu do
loft muito puta comigo por esconder aquilo por tanto tempo dela.
— Me avisa se ela der notícia, por favor — pedi.
— Tá bem — Olie desligou.
Suspirei preocupado, vendo Bob e Carlton discutirem sobre o vídeo.
Tudo que eu queria era ver Jasper atrás das grades com todo mundo que
havia ameaçado minha família, minha namorada e meus amigos.
— Carl, consegue algum segurança pro hotel da Liah? — pedi
preocupado. — Ela está irritada comigo e saiu apressada lá de casa mais
cedo.
— O que você aprontou com ela? — perguntou me olhando desconfiado.
— Contei a ela sobre o incêndio da Sylvia ter sido criminoso —
expliquei. — Acho que escondi dela por tempo demais.
— Bob, vou mandar alguns homens pra lá, ok?
Bob concordou, voltando a olhar os documentos que Carl havia
espalhado em cima da mesa dele.
— Jasper está mesmo envolvido nessa porra toda? — Bob olhou Carl
por cima do óculos.
— Eu entendo você, Bob. De verdade. — Meu tio o tranquilizou com
uns tapinhas no ombro. — Agora precisamos recuperar o tempo perdido.
— Nathan, desculpa não ter dado o crédito que devia a Carlton anos
atrás — Bob pediu, levantando os olhos em minha direção. — Nunca
imaginei que Jasper seria mesmo capaz disso.
Dei de ombros, aceitando suas desculpas. Se tinha uma coisa que havia
aprendido nos últimos meses era a não culpar mais as pessoas sem entender
o lado delas.

Depois de toda a correria e agitação do dia, eu finalmente me permiti


descansar.
Carlton havia me contato que a investigação no FBI seguia de forma
altamente sigilosa. Seu contato filtrava muito bem as informações que
levava para dentro, mas o que tinha naquele HD era relevante demais para
deixarem passar.
Fiquei mais algumas horas na delegacia, ajudando Carlton e Bob a
preparem um relatório que iam enviar ao FBI. Era uma esperança pequena,
mas estava me agarrando a esse fio frágil, esperando que tudo se resolvesse
para Liah.
Tentei ligar três vezes para ela, e todas as chamadas foram direcionadas
para a caixa postal. O arrependimento tardio estava me corroendo, e
infelizmente, só me restava esperar que a mágoa dela dispersasse.
— Não sabia que estava em casa — Triss apareceu na porta aberta do
meu quarto enquanto eu puxava o lençol da cama.
— Cheguei ainda pouco. Achei que a Mia ainda estaria aqui. Desculpa te
deixar sozinha.
— Sei me virar melhor do que vocês pensam. — A menina deu de
ombros enquanto dava alguns passos para o interior do quarto e sentava na
beirada da cama. — Olie e Ethan ficaram aqui um tempão. A gente
organizou o máximo de vídeos possíveis e eles levaram as cópias com eles.
— Obrigado, Triss — suspirei, sentando ao seu lado na cama.
— Acho que eu entendo porque você não gostava da Liah agora.
Olhei para a garota ao meu lado, com os olhos baixos brincando com as
unhas, nervosa. Se fosse algo ao meu alcance, apagaria cada memória de
todos eles relacionada àquele vídeo. Nunca teria permitido que qualquer um
deles visse aquelas imagens. Mas Triss tinha visto, e possivelmente revisto,
cada um daqueles segundos.
— A Liah não tem culpa daquilo, Triss. Eu a culpei por muito tempo sim
— engoli seco, lembrando das confissões de Carlton hoje. — Se não tivesse
sido eu aquela noite, poderia ter sido algo pior com Mia ou Sophia.
— Como assim? — me perguntou confusa.
— Eles me bateram pra mandar um recado pro Carl. Se não fosse isso,
só teriam me levado pra delegacia e Carlton teria dado um jeito de resolver.
— Joguei meu corpo para trás, apoiando os braços atrás da cabeça. Encarei
o teto por alguns segundos, quase podendo sentir a ansiedade de Triss pelo
restante da explicação. — Eu não sei o quanto você acreditaria nisso,
porque envolve crença e muitas outras coisas, mas tenho quase certeza que
Theo já estava morto quando encontrei Camille no Republic totalmente
chapada. Tive muito tempo pra pensar nisso todos esses anos, mas essa
certeza veio nos últimos meses. Foi ele que me fez conseguir sobreviver
àquela noite. Eu o vi. Theo me deu permissão pra fechar os olhos e eu achei
que fosse morrer. Mas acho que ele só estava me acalmando, me distraindo
da dor e do trauma. — puxei o ar numa longa respiração antes de continuar.
— Theo já estava morto e Jasper e Eliot me espancaram porque queriam
mandar um recado para Carlton. Liah estava no lugar errado, na hora
errada. Só foi muito mais fácil culpá-la por anos.
— Eu acredito em você, Nate — Triss deitou ao meu lado, colocando as
mãos atrás do pescoço, na mesma posição que eu. — Se Theo quis que você
vivesse, existe algum motivo pelo qual você precisa lutar.
Ficamos em silêncio por longos segundos, e apesar da calmaria aparente,
minha mente estava uma bagunça. Eu só conseguia pensar que se eu não
tivesse dito que era sobrinho de Cal, aqueles homens poderiam ter ido atrás
de Mia ou Sophia e sabe-se lá o que fariam com elas. E
surpreendentemente, eu queria agradecer por terem feito aquilo comigo.
Eu sobrevivi; aquele trauma era meu.
Só eu sabia o quão difícil era suportar aquilo, mas por tudo que é mais
sagrado, seria ainda mais dolorido ver Mia ou tia Sophia passarem por algo
assim.
— O que você quis dizer quando disse que eles te bateram pra mandar
um recado para o Carl? — Triss perguntou minutos depois.
— Carl já investigava as merdas dessa cidade naquela época. Deixaram
claro pro meu tio que era um aviso.
— Ele não tem mais medo de investigar? Eles não podem ir atrás de Mia
ou Sophia agora?
— Ameaças não faltam. Mas amanhã, quando iniciarem o inquérito no
FBI, esses caras vão ter que agir com cuidado. — expliquei o mesmo que
Carl havia me dito.
Ouvi meu celular tocar sobre a comoda, Triss levantou rápido, indo até o
aparelho e esticou a cabeça para olhar o visor.
— Carl está te ligando.
Peguei o celular de sua mão, olhando o nome na tela e estranhando o fato
dele ligar pouco tempo depois que saí da delegacia. Rezei para não ser mais
problema enquanto levava o aparelho ao ouvido.
— Oi, Cal.
— Me diz que você está em casa.
— Estou — sentei na cama, nervoso.
— Eu e Bob precisamos de você. Pode parecer loucura, mas estamos
indo até a casa da Juíza Marion.
— Agora? — exclamei nervoso. — Isso não pode esperar até amanhã?
— Nathan, Jasper a convenceu de que Liah está interferindo na
investigação. Ele pediu ao Bob pra assinar um documento liberando duas
viaturas amanhã para a operação na ONG. Marion expediu um mandado de
prisão preventiva contra Liah.
— Que porra — soquei o colchão, sentindo a raiva crescer. — Não faz
sentido, Carl. A gente achou todas aquelas provas…
— Nathan, Marion e nem o FBI viram nada disso ainda. Estamos indo
até lá tentar convencê-la de reverter a decisão.
— Me passa o endereço — pedi enquanto entrava no closet atrás de uma
roupa.
— O que houve? — Triss perguntou atrás de mim.
— Nathan, melhor não dirigir nervoso. Eu tô chegando aí em cinco
minutos. Você vai com a gente.
— Espero vocês lá em baixo — avisei, seguindo para o banheiro trocar
de roupa.
— O que houve? — Triss perguntou de novo, ao me ver desligar o
celular.
— Vou precisar fazer uma coisa com o Carlton agora — avisei. —
Tranca todas as portas e não abre pra ninguém, tá bem? — pedi.
Triss assentiu com a cabeça, me olhando correr pelo quarto nervoso.
— O que aconteceu, Nate?
— Eu te explico depois, Triss.
Entrei no banheiro e em menos de dois minutos sai de lá já vestido com a
roupa que tinha separado. Triss ainda estava estancada no quarto, me
encarando confusa. Não queria envolvê-la ainda mais naquela situação.
— Juro que explico com calma depois.
— Se você não estiver de volta até meia-noite, vou ligar pro Tommy e
pro Ethan — avisou cruzando os braços em frente ao corpo, adotando uma
expressão preocupada.
— Ok. Virei a Cinderela agora — brinquei, tentando deixá-la menos
preocupada. — Eu te aviso se for passar disso.
Deixei um pequeno beijo estalado em sua testa antes de sair de casa.
Assim que entrei no elevador, uma mensagem de Carlton apitou no celular
avisando que já estava lá embaixo. Recostei na parede de ferro gelada do
elevador, respirando fundo.
A imagem projetada no espelho, que ocupava meia parede, era de um
homem cansado e abatido. Esfreguei meus olhos, sentindo meu corpo
reclamar do descanso que não tinha a algumas noites, mas era difícil ceder
quando tinha tanto em jogo.
Carl estava parado com o carro um pouco mais a frente da entrada do
prédio, um carro preto de vidros escuros estava logo atrás, e deduzi ser de
Bob. Entrei no lado do carona, vendo Carl arrancar logo em seguida.
— A juíza concordou em receber vocês agora? — perguntei irritado pelo
silêncio dele.
— Não. É uma medida desesperada.
— Cal, sou a última pessoa que quer ver Liah presa. Mas não sou idiota,
ele podia prendê-la e vocês soltarem logo em seguida. O que está me
escondendo?
Não tive muito tempo para ligar os pontos, mas ficou claro que tinha
muito mais quando vi a expressão aflita no rosto dele. Ir à casa de uma
Juíza tarde da noite de uma segunda, era com certeza uma medida
desesperada.
— Bob fez algumas perguntas a Jasper hoje que o deixaram desconfiado.
Ele está desesperado, Nate. Sabe como as pessoas somem no esquema de
tráfico que está sendo investigado pelo FBI?
— Como assim somem?
— Querem a Liah fora, Nathan. Eles querem a ONG fechada, porque
acham que estão perdendo mercadoria, se é que me entende. Se Liah for
presa, temo que ela nunca chegue a um presídio de verdade.
— Acha que ela seria traficada? — Supus. Minha voz saiu quase
estrangulada pelo terror repentino.
Carlton assentiu de leve, sem tirar os olhos da estrada. Meu peito
disparou e quase podia sentir meu corpo congelado pelo medo.
— Nathan, você precisa se acalmar — seu tom duro me fez perceber que
me exaltava a cada palavra que saía da minha boca. — Nenhum de nós sabe
como funciona a cabeça de um criminoso. Não sei qual a intenção dele por
trás disso, mas estamos tentando evitar qualquer coisa que ele tente. Bob
está irritado comigo, acha que estamos dando um tiro no pé. Eu não estaria
fazendo isso se não soubesse que você está apaixonado por Liah, Nathan.
— Qual a chance de reverter essa decisão?
— Se Marion nos receber, conseguimos reverter.
— Como assim? Se receber?
— Ela é uma mulher difícil. Embora justa na maior parte das vezes, pode
ficar realmente irritada com essa nossa invasão de privacidade.
Porra. Definitivamente, minha vida era um trem descarrilado. O Nathan
que eu era agora, daria quase tudo pra voltar a infância, quando o único
problema era a ausência de uma mãe que nunca fez falta de verdade.
Aquele foi o único período da minha vida que conseguia dormir tranquilo.
Então teve Ralph, Camille, Theo, Jasper e Eliot, Liah, a ONG, Sylvia
assassinada, a investigação…
— Chegamos — Carl me trouxe de volta a realidade quando estacionou
colado ao meio fio, em frente a entrada de uma casa realmente grande e
bonita.
Desafivelei o cinto, saindo do carro. Puxei uma grande quantidade de ar,
precisando respirar o ar limpo e puro dali. Bob desceu do carro logo atrás,
vindo me cumprimentar.
— Nathan.
— Bob.
— Carl insistiu em trazer você. Ele acha que pode ser um apelo
emocional pra Marion. Mas acho melhor ficar de boca fechada, ok? —
avisou, carrancudo.
— Tudo bem.
Sem dizer mais nada, Bob seguiu em direção ao interfone acoplado ao
muro coberto de planta, ao lado do enorme portão de entrada. Ouvimos três
toques antes de uma voz masculina arrastada e grossa atender.
Olá!
— Frank? Mil desculpas pela hora, mas preciso falar urgente com
Marion.
— Bob? — o homem do outro lado parecia confuso
— É um caso urgente, Frank. Tentei ligar, mas os celulares de Marion
estavam todos desligados.
— Talvez por já passar das 22:00h.
Bob suspirou incomodado com a antipatia do homem que o atendeu, mas
não havia muito que pudesse fazer em relação a isso.
— Frank, por favor. Estou falando de algo realmente perigoso.
— Vou ver se ela pode te atender.
Um estalo foi ouvido, indicando que o homem havia batido o fone com
alguma força no gancho. Bob nos encarou em expectativa, ficamos em um
silêncio desconfortável pelo próximo minuto até que outro estalo soou no
interfone, e uma voz feminina atendeu.
— Bob.
— Doutora Marion, mil desculpa pela hora avançada…
— Sem falsas desculpas, Bob. O que lhe traz a minha casa numa
segunda tão tarde? — cortou Bob sem cerimônia.
— A Doutora expediu um mandado de prisão preventiva em nome de
Lianah Vittorino hoje…
— Avisei ao Jasper que o mandado assinado estará na mão dele amanhã
cedo, Bob. Não precisava ter vindo até aqui me cobrar.
Bob dirigiu um olhar confuso ao Carl.
— Não vim lhe cobrar. Me desculpe a hora, de verdade, mas vim pedir
que reverta essa decisão.
— Jasper me deu provas contundentes de que essa moça está interferindo
na investigação de um incêndio criminoso, Bob.
A mulher era mesmo curta e grossa, e falar pelo interfone não estava
ajudando em nada.
— Olha, Dona, ou seja, lá qual for o tratamento que tenha que dirigir a
você… — Bob arregalou os olhos para mim e Carl me deu uma cotovelada
na costela, mas continuei mesmo assim. — Liah não está interferindo em
nada. Jasper está tentando acusá-la injustamente…
Carlton praticamente me puxou da frente do interfone, cobrindo minha
boca com a mão.
Mas que merda, eles não podiam simplesmente ser mais claros com ela?
— Quem mais está com você, Bob? — a mulher perguntou irritada.
— Carlton e o sobrinho dele.
Mas uma vez a falta de clareza. Por que Bob não explicava tudo de uma
vez? Dessa forma a tal Juíza nunca entenderia o motivo de estarmos aqui.
— Com base em que eu deveria reverter essa decisão?
— Me dá cinco minutos, Marion. Por favor. Tenho provas.
Um estalo nos fez perceber o portão de ferro abrir automaticamente.
Graças a Deus. A gente só precisava desse tempo.
— Controla seu sobrinho, Carlton — Bob pediu irritado quando
atravessamos o portão em direção à entrada da casa.
Uma mulher elegante de meia-idade nos aguardava parada na porta,
vestida com um robe de seda por cima do que deveria ser uma roupa de
dormir. Olhei o relógio no meu pulso, vendo que já eram quase 23:00h.
— Espero que eu não esteja perdendo meu tempo. Jasper tinha muitas
provas contra a moça, Bob. — avisou quando paramos em frente a ela.
— Não sei que provas ele poderia ter. Liah não fez nada de errado. —
outra cotovelada de Carl me atingiu. — Tem que ser muito idiota pra não
perceber isso.
O olhar profundo e cortante da mulher me atingiu cheio de ira. As
bochechas estavam vermelhas e os olhos apertados em minha direção.
— Carlton, me surpreende você não ter ensinado sequer modos de
tratamento a seu sobrinho. Realmente não gostaria de usar minhas últimas
horas do dia ocupada com uma voz de prisão por desacato.
— Nathan, cala a boca — Carl pediu nervoso.
Sacudi a cabeça, consternado. Só porque ela era Juíza eu não podia dizer
a verdade? A contra gosto, segui os outros dois homens para dentro da casa,
totalmente calado.
Era melhor me segurar um pouco do que acabar preso, sem poder ajudar
Liah.
A mulher nos guiou até um escritório no longo corredor da mansão,
sentou-se atrás da mesa, elegante de madeira, fazendo sinal para nos
sentarmos também. Carl e Bob ocuparam as cadeiras em frente a mesa,
enquanto me sentei numa poltrona ali perto.
— Presumo que exista uma certa parcialidade nesse seu pedido — disse,
encarando Carl profundamente. — Qual a relação desse rapaz com a moça?
— Você pode perguntar pra mim — reclamei. Odiava quando alguém
falava de mim como se não estivesse presente.
Mais um olhar cortante dela me atravessou. Relaxa, Nathan. Não faz
merda.
— Muito bem, qual sua relação com essa moça?
— Ela é minha namorada.
Nem sei mais se era. Senti meu peito doer.
Carl suspirou encarando Bob preocupado.
— Jasper esteve aqui hoje pela manhã e me mostrou vídeos da senhorita
Vittorino entrando numa das lojas da rede Vittorino uma noite,
acompanhada por você inclusive. O que foram fazer lá?
— Nathan, melhor ficar quieto — meu tio se antecipou desesperado.
Neguei com a cabeça, ciente de que essa mulher só aceitaria reverter se
apelássemos para seu emocional.
— Fomos procurar provas que pudessem comprovar que Sylvia estava
sendo coagida.
— Nathan, vamos parar por aqui…
— Não, Carl — disse sério. — O que mais precisa saber? — perguntei a
Juíza.
— A senhorita Vittorino e sua sócia, a senhorita Miller, tem mostrado
resistência a aceitar voluntários policiais na ONG. Por quê?
— Porque a maioria deles está envolvido nesse esquema de tráfico, ou
seja, lá o que for essa merda que acontece na cidade.
Marion arqueou as sobrancelhas para mim, desviando o olhar para Bob e
Carl a sua frente. Um suspiro profundo foi ouvido e então a mulher pegou
uma foto na gaveta da mesa, estendendo para nós. Liah e Olie estavam em
pé no jardim da mansão Vittorino.
Devia ter sido tirada no dia que foram até lá, procurar provas.
— Deve ter uma boa explicação também para alterarem o cenário de um
crime, não é?
— Liah não sabia que foi um crime — respondi rápido, atraindo
novamente a atenção da juíza. — Ninguém contou a ela. Liah não sabia que
aquele incêndio foi causado propositalmente. Contei isso a ela só hoje.
Bob e Carl trocaram olhares desconfiados. Um brilho de compreensão
tomou o semblante de Marion, que parecia finalmente mais aberta ao nosso
pedido.
— Marion, quero que veja isso — Bob tirou o celular do bolso, abriu a
galeria de vídeo e estendeu o aparelho para a mulher. Seus olhos se
estreitaram ao finalmente perceber o que acontecia naquela cena.
— São Jasper e Eliot?
— Você deve se lembrar que Carlton tentou mover uma investigação
contra eles no passado por terem...
— Sim, eu sei — a mulher me encarou. — É você aqui?
Assenti. Nervoso e me sentindo exposto mais uma vez, voltei a
descansar o corpo no encosto do sofá, afundando a cabeça entre as mãos.
— De onde esse vídeo surgiu e porque não tivemos acesso a ele no
passado?
— Nathan e Liah acharam esse vídeo em um dos computadores de
Sylvia, ontem — Carl respondeu.
— Os computadores dela deveriam estar apreendidos, Carlton.
— Achei o computador na loja da Sylvia, no dia que fui até lá com Liah
— puxei a culpa pra mim. Se essa mulher entendesse que Liah escondeu os
aparelhos durante o mandado de busca, nunca reverteria a tal prisão
preventiva. — A gente nunca quis atrapalhar a investigação, só ajudar.
Marion assentiu devagar, vendo Bob deixar a pasta que trazia em frente a
ela na mesa.
— Existiam laudos médicos que comprovavam o acidente na época…
— Entregamos um HD ao FBI hoje com evidências de todos os
envolvidos no processo de tráfico humano. Incluindo os médicos, os mesmo
que fraudaram os laudos do meu sobrinho — Carlton a interrompeu, se
pondo de pé numa postura firme. — Aqui tem todas as provas que ligam
Jasper a esse esquema, Marion. Pode olhar com calma, mas por favor, não
mande prender uma menina inocente. Ela é tão vítima quanto Nathan foi há
anos atrás.
— Se isso for verdade, essa cidade vai virar um caos…
— Já tem uma operação sendo preparada para amanhã, até onde sei,
temos dezenas de mandados e solicitações de apoio da polícia local
chegando. O FBI vai chegar aqui chutando tudo.
— Bob, de qualquer forma, vou expedir um mandado de prisão
preventiva para o Jasper — Marion voltou a me encarar pesarosa. — Fui a
Juíza responsável pelo seu processo anos atrás. Eu decidi por inocentar
Jasper e Eliot mediante a ausência de provas. Você pode me perdoar por
isso, Nathaniel?
Senti o choque me atingir. Tirando as poucas vezes que precisei depor e
testemunhar, tive pouco envolvimento no caso. Nem lembrava dela como
juíza. Era mais um caso onde racionalmente eu sabia que a mulher não
tinha culpa, afinal, nem provas haviam naquela época. Ainda olhando em
seus olhos, assenti devagar, incomodado com a exposição.
— Não vou expedir o mandado de prisão da senhorita Vittorino. Mas
sugiro que parem de procurar por conta própria e deixem os profissionais
fazerem isso. Vocês dois podem se enrolar feio com a justiça dessa forma.
Estamos entendidos?
— Não vamos mais nos meter nisso — não tinha tanta certeza sobre
aquela afirmação, mas me pareceu o melhor para dizer no momento.
03 de setembro de 2019
— O quanto posso confiar nesse sigilo profissional?
Doutor Emerson me encarou estarrecido. Acho que o homem estava
quase tendo uma síncope pelos detalhes que contei a ele.
— Você deve ser um dos meus pacientes mais intrigantes — o homem
assumiu, rindo abertamente pela primeira vez desde nossa primeira sessão.
— Acho que você vai precisar de terapia também por minha causa —
brinquei.
— Vale a pena quando a gente percebe que o paciente de agora é
totalmente diferente do paciente que passou pela porta na primeira vez —
ele disse sorrindo amigavelmente. — Você está satisfeito, Nathan?
— Com o quê? — perguntei confuso.
— Com sua vida atual? Com o homem que está se tornando?
Nas últimas sessões ele havia começado a me fazer esse tipo de
pergunta. Eu não sabia nem definir quem estava me tornando ainda, quem
dirá dizer se estava ou não satisfeito com isso. Mas ele sempre me fazia
pensar quando eu fugia das perguntas.
— Nesse momento, não estou satisfeito. Acho que ainda não cheguei
aonde quero. Ainda tenho medo de assumir meus sentimentos, ainda me
sinto covarde por não ter coragem de ir atrás da Liah ontem à noite... —
encarei o homem apreensivo. — Posso ficar a manhã inteira aqui falando as
coisas que tenho feito de errado.
— Não deveria sugerir isso, mas também acho que poderia — Doutor
Emerson começou a me olhar daquele jeito analítico. — No entanto,
também acho que poderia passar a manhã inteira falando das coisas que tem
feito certas.
Eu poderia? Era difícil pensar nelas assim. Era sempre mais fácil
lembrar das coisas ruins.
— Você tem movido montanhas para ajudar Liah a achar uma solução
para os problemas da ONG. Lembro de me contar também que se arriscou
para achar as provas que avó dela deixou. Você afirmou que se jogaria na
frente de qualquer perigo no lugar de sua tia e sua irmã. Você adotou uma
adolescente pensando na diferença que poderia fazer na vida dela. Você se
esforçou para dividir seu tempo entre a sua empresa e as aulas na ONG.
Você nunca tirou um centavo do dinheiro do seu pai, por acreditar ser um
dinheiro sujo, mas não hesitou em ajudar Olívia quando a ONG estava com
os problemas financeiros.
— Eu já entendi… — interrompi o analista, ficando sem graça pela
atenção inesperada.
— Entendeu mesmo? Posso ficar aqui a manhã toda listando as coisas
certas, Nathan.
Esse homem merecia um prêmio por conseguir me fazer sair bem de seu
consultório mesmo nos meus piores dias. Graças a ele, eu estava
aprendendo a entender as coisas antes de julgar e me estressar.

Ethan e Olívia tinham me ligado, pedindo que eu fosse até a ONG para
me mostrarem todos os vídeos que acharam e que entendiam poderem ser
provas.
Passei quase uns trinta minutos entendendo o material, preocupado com
o fato de Liah ainda não ter aparecido na ONG. A esse horário,
normalmente, ela já estaria aqui a bastante tempo. Eu já tinha ligado
algumas vezes para ela desde que acordei, mas em todas ela ignorou
totalmente minhas chamadas. Estava começando a ficar desesperado com o
silêncio dela.
— Vou pegar um café — avisei a eles, saindo da sala. Precisava de um
pouco de ar puro.
Caminhei pelos corredores, me corroendo por dentro. Estava quase
decidindo ir atrás dela no hotel. Era uma merda tentar dar tempo para ela
pensar. E se Liah decidisse que não queria estar com alguém que escondia
coisas dela?
Porra. Não posso pensar nisso.
— Está tudo bem, Nathan? — Dinna perguntou ao me ver encostar na
porta de entrada da ONG, totalmente perdido em pensamentos.
— Tá sim. — Tentei sorrir para ela, mas acho que foi meio falho. Não
conseguia colocar o mínimo esforço naquilo.
— Liah acabou de chegar.
— Agora? Eu não a vi. — Só tinha um corredor, como Liah passou por
mim e eu não vi?
— Ela estava conversando com a professora de Artes. Devem ter se
desencontrado no corredor.
Uma movimentação do lado de fora, chamou minha atenção. Duas
viaturas estacionaram do outro lado da rua, e Jasper saiu de uma delas.
Que merda ele estava fazendo aqui?
Dei alguns passos de volta para trás, voltando para dentro da recepção.
Precisava avisar ao Carl sobre isso. Bati a mão no bolso percebendo que
deixei meu celular na sala de Liah.
— Dinna, posso usar o telefone? — pedi, já me enfiando atrás do balcão,
tirando o telefone do gancho.
Disquei o número de Carlton, pedindo a Deus que ele atendesse rápido.
Jasper e os dois homens que estavam com ele atravessaram a rua em
direção a ONG. Virei de costas esticando o fio do telefone até que tivesse
na sala da secretária.
— Alô — Carl atendeu, confuso. Provavelmente por um número
desconhecido ter seu contato pessoal.
— É o Nathan. Jasper está na ONG — avisei, quase num sussurro ao
perceber que eles já estavam aqui dentro.
— Merda, ele foi rápido. Nathan escuta bem, fica longe dele, tá me
ouvindo?! Não quero você envolvido nessa merda. Ele vai tentar levar a
Liah.
— E você quer que eu fique longe? — questionei alarmado. — Tá de
sacanagem?
— Escuta, o FBI tá movendo uma operação gigante pra ONG agora, só
fica longe dele até eu chegar aí.
— Sinto muito, Carl. Mas não vou nem me dar ao trabalho de mentir pra
você dessa vez.
— Porra, Nathan…
Desliguei o telefone, sem dar muita atenção ao que ele ainda reclamava
do outro lado e pude ouvir Dinna estressada com os homens na recepção.
— ... Mas não posso deixar vocês entrarem aqui sem um mandado...
— A senhora gostaria de ser presa por desacato a autoridade? — o idiota
perguntou a ela, cheio de ego.
Ah, Jasper. Você não sabe o que te espera.
Dinna se deu por vencida, andando depressa pelo corredor e os três
homens seguiram atrás dela.
Mal entrei no corredor e percebi que as pessoas já se aglomeravam ali
para ver o que estava acontecendo. Os dois policiais que estavam com
Jasper montaram guarda na porta enquanto ele e Dinna sumiam na sala de
Liah.
Meu coração começou a bater alucinado. Eu estava cego pelo medo, mas
tentava me manter lúcido e calmo, precisava raciocinar e pensar no que
faria para que ninguém saísse daqui machucado e Jasper fosse preso.
Também tinha receio dos meus sentimentos, porque se ele pensava que ia
encostar a mão em Liah e sair daqui vivo para contar a história, ele estava
muito enganado. Nem sei o que seria capaz de fazer se ele a machucasse.
Os dois policiais me encararam de cara fechada quando parei em frente a
eles. A porta estava fechada, mas podia ouvir a agitação e os gritos
nervosos de Dinna lá dentro.
— Eu vou entrar — avisei calmamente aos dois policiais que sempre via
na delegacia.
Estendi a mão até a maçaneta e um deles esticou o braço travando o
caminho. O outro policial me encarou por alguns segundos, até que deu um
empurrão leve no braço do colega, acenando com a cabeça em confirmação
para ele, que abaixou o braço me dando acesso à porta. Devia ser um dos
que estavam no lado de Cal.
Assim que eles saíram da frente da porta, escutei Ethan reclamando com
alguém que estava machucando Liah. A irritação e a raiva subiram à cabeça
e abri a porta, batendo a madeira com força contra a parede.
— Tira a mão dela, Jasper! — Quando meus olhos bateram nas mãos
dele, segurando os pulsos delicadas de Liah para trás, eu sabia que só
existiam duas possibilidades para ele.
Ou ele saía daqui preso, ou saía morto.
Liah

Capitulo 36

03 de setembro de 2019
Carlton foi até meu hotel ontem à noite. Confesso que fiquei com a
consciência pesada quando me contou que Nathan tinha ficado horas na
delegacia ajudando a montar as provas do inquérito. Ele também me contou
que acharam um vídeo de quando Nathan foi espancado, e isso destruiu
meu coração.
Mas ainda me incomodava o fato dele ter me escondido todo esse tempo
a verdade por trás do incêndio que matou minha avó.
Ontem à noite, recebi três ligações dele, mas não consegui atender. Não
tinha certeza ainda sobre como estava me sentindo com aquilo. Na verdade,
eu estava muito cansada das pessoas tentarem me proteger de tudo. Me
manter no escuro não era, nem de longe, a melhor forma de me manter em
segurança.
Olhei para o diário antigo em cima da mesa. Carlton havia me entregado
quando voltaram da mansão dizendo estar no meio das coisas que acharam.
Na primeira página tinha uma espécie de dedicatória, escrita na letra
elegante e bonita de vovó.
“ Para Liah, minha neta amada.
Espero que eu não esteja morta, mas se esse for o caso, você está lendo
isso.
Me perdoe. Sei que você odeia quando escondo as coisas de você, mas
dessa vez, preferi te ver chateada do que machucada ou morta.
Aqui você encontrará todas as respostas.
Não esqueça que te amo, e que o amor é irreversível. Só não o deixe
virar ódio.
Mas não esqueça que o ódio também pode virar amor.”
Não tive coragem de ler o conteúdo. Só a mensagem inicial já tinha sido
suficiente para acabar comigo. Joguei o caderninho na bolsa e saí super
atrasada para o dia.
Assim que cheguei na ONG, sabia que o dia seria difícil e complicado.
Pelo menos você conseguiu dormir, Liah.
Olívia já estava na minha sala, junto de Ethan e Karol quando atravessei
a porta da minha sala.
— Bom dia, Liah. Finalmente tivemos algo a nosso favor, não é?
— Uma vitória no meio de tanto caos precisa ser reconhecida —
reconheci, tomando meu lugar à mesa. — Chegaram cedo — observei os
papéis espalhados sobre minha mesa, tentando compreender o que eles já
estavam tramando logo pela manhã.
Ethan me encarou sorrindo orgulhoso.
— Estamos montando toda uma linha temporal com as imagens que
temos. A gente está funcionando bem junto aqui desde muito cedo. Vamos
entregar um relatório mastigado e completo ao Carlton.
— Uau! — soltei espantada. — Eu tenho os melhores amigos desse
mundo — brinquei.
De qualquer forma, era verdade mesmo, eu tinha os melhores comigo.
— Nate foi buscar café — Karol avisou. — Achei até que vocês teriam
se esbarrado no corredor.
Engoli seco. Não estava preparada para lidar com ele tão cedo hoje.
Tentando não pensar nisso, comecei a olhar a documentação e as anotações
de Ethan sobre a mesa. Alguns minutos depois, um tumultuo do lado de
fora nos chamou atenção.
Dinna entrou correndo em minha sala, respirando pesado enquanto
apoiava a mão no coração.
— Liah, tem uns oficiais aqui fora…
— Lianah Vittorino? — um homem alto e muito grande atravessou a
porta, tirando um distintivo do bolso e quase esfregando no meu rosto.
Assenti, vendo todos olharem assustados para o brutamontes. — Sou Jasper
Mackaleen, da polícia local. Você está presa, em caráter preventivo! — O
homem veio até mim, me puxando pelo pulso.
Senti meu corpo congelar.
Eu quase não podia me mover. Algo na forma como aquele homem
chamou meu nome, me fez desenterrar lembranças doloridas que me
atingiram num lugar escuro e profundo da parte mais quebrada da minha
alma.
— Porque ela está sendo presa? — ouvi Dinna perguntar alto demais.
Como assim presa?
Eu havia acabado de conseguir todas aquelas provas… minha cabeça não
conseguia funcionar direito. O homem me levantou de forma bruta,
puxando uma algema do bolso de trás. Olhei horrorizada para Ethan.
— Calma, cara, vai machucá-la assim — Ethan pediu.
Todos eles estavam sem reação. O homem puxou meus braços para trás,
colocando força demais no processo.
— Tá me machucando… — reclamei.
— Tira a mão dela, Jasper! — Um baque alto soou quando a porta foi
aberta bruscamente e Nate entrou na sala irritado. Seu semblante
demonstrava um ódio que não via ali a algum tempo. — Juro por Deus que
se você encostar um dedo nela… — ele caminhou rapidamente até mim e
me puxou pelo braço, me abraçando em seguida.
Os dois homens se encararam durante alguns segundos, até que um
sorriso nojento e sarcástico começou a crescer no rosto do policial.
— Vai fazer o que, Nathaniel? Estou prendendo essa mocinha em caráter
preventivo. Ela está interferindo na investigação…
— Cadê o mandado? — Nathan interrompeu o homem. Me agarrei ainda
mais a ele, afundando o rosto em seu peito, com medo de que o policial
realmente me levasse. — Carlton está muito à frente de vocês, Jasper. Você
só está desesperado porque sabe que vai cair.
Levantei os olhos, encontrando o olhar cheio de ira dele. Nathan
mantinha os olhos cravados no homem às minhas costas. Ouvi a risada
sinistra do homem e um brilho estranho passar pelos olhos de Nathan. Eu
conhecia aquela reação.
— Nathan — chamei baixo, esperando que ele olhasse para mim, mas
Nate continuou a encarar o policial.
— O Bob sabe que você está aqui pra prender a Liah? — Nathan me
afastou um pouco, olhando para Ethan em seguida. — Ethan tira a Liah
daqui. O Carlton já deve estar chegando. — Ethan me puxou com
delicadeza, dando alguns passos em direção à porta da sala comigo.
— Nate, não — reclamei, me agarrando a sua blusa. — Por favor, não
fica aqui — Algo me dizia que esse cara era perigoso. Ainda mais se ele
estava mesmo tentando me prender ilegalmente.
Os dois homens continuavam se encarando com ódio. Poucas vezes vi
Nathan olhar alguém dessa forma. Ele costumava olhar assim para mim no
início, quando ainda me culpava por tudo.
— Petterson, Petterson. A surra que eu te dei alguns anos atrás não foi
suficiente pra você aprender? — Ethan, que ainda tentava me tirar da sala,
estancou no lugar, me soltando totalmente.
Filho da puta! Aquele maldito era um dos policiais na viatura aquela a
noite.
Nathan mantinha seu rosto compassivo. Nenhuma expressão aparecia ali,
além daquele brilho perigoso no olhar.
— O garoto que você espancou aquela noite não existe mais, Jasper.
Olivia e Karol correram para o meu lado, me olhando em choque,
quando Ethan parou na defensiva ao lado de Nathan.
— Vocês precisam sair daqui. Agora.
As meninas praticamente se atiraram comigo para fora da sala, fechando
a porta logo em seguida. — Vocês estão malucas? — gritei, desesperada.
— Vocês vão mesmo deixar aquele homem lá dentro com eles? Ele tem
uma arma. Vocês não viram isso? — tentei voltar para a porta, mas Olie me
agarrou pelo braço, precisando usar muita força para me segurar.
— LIAH, PARA! — Olívia gritou, apontando o corredor.
Carlton estava correndo em nossa direção junto de um homem barrigudo
que nunca tinha visto.
— Onde está o Nathan? — Carl perguntou preocupado.
— Ele e o Ethan estão lá dentro com aquele homem… — tentei explicar
nervosa, mas Carl já estava abrindo a porta da sala feito um louco.
Tentei espiar o que estava acontecendo lá dentro quando o homem
barrigudo me olhou feio, entrando na sala e fechando a porta com força.
Outro policial se prostrou a minha frente, mantendo guarda na entrada.
Que merda. Eu precisava entrar lá.
Nathan

Capitulo 37

03 de setembro de 2019
— Você continua não passando de um garotinho pra mim, Nathaniel. Eu
devia ter acabado com você quando tive a chance.
Devia mesmo.
— Vai fazer o que, Jasper? — Passei as mãos no cabelo nervoso,
preocupado com Liah e as meninas do lado de fora. — Atirar em mim? —
perguntei ao vê-lo levar a mão ao coldre em sua cintura. — Vai fundo.
Acaba de vez com sua carreira.
O homem bufou irritado, soltando a mão da arma. Ethan me olhou de
esguelha, com uma pergunta silenciosa nos olhos. Eu sabia o que ele queria
descobrir, mas estava tentando ganhar tempo para que fosse flagrante.
Assenti de leve, esperando que ele percebesse.
Os olhos de Ethan desceram até o volume quase invisível por baixo da
minha blusa. Desde que Carlton me entregou aquela arma, ela vivia comigo
para onde quer que eu fosse.
Jasper sentou-se na cadeira atrás de si, apoiando os pés sobre a mesa.
— Você sabe que é questão de tempo até eu convencer o Bob que essa
garota é corrupta igual à avó, não é?
Timing perfeito. A porta do escritório foi aberta num estrondo, enquanto
a raiva tomava alguma proporção desmedida em mim.
— Nathan, para — Carl segurou meu punho pronto para acertar o rosto
do babaca a minha frente, distraído pela confusão na porta. — Não vale a
pena.
Jasper arregalou os olhos no segundo seguinte, quando Bob também
entrou na sala pequena.
— Bob?!
— Eu tentei não acreditar no Carl, Jasper. Era absurdo demais pensar
que um dos meus melhores agentes era a cabeça por trás desse esquema
sujo — Bob sacudiu a cabeça decepcionado.
— O quê? Não Bob… eu consegui que a Juíza expedisse um mandado
preventivo de prisão. Eles não vão mais poder interferir na nossa
investigação, a gente está tão perto de acabar com essa farra.
— Jasper! — Bob interrompeu o outro. — Para com isso. Eu vi o vídeo
onde você e o Eliot espancavam Nathan. Sylvia deixou milhares de vídeos
seus e de seus amigos em atividades ilícitas no clube.
— Você entendeu errado, Bob… — Jasper tentou se explicar,
levantando-se depressa da cadeira. — Eu não sei o que esse homem te
falou, mas…
— Acabou, Jasper — Bob anunciou mais ríspido. — Me entrega a arma
e o distintivo…
Antes que Bob pudesse terminar, Jasper sacou a arma apontando para
ele.
— Você não pode acreditar nele, Bob!
Droga. Aquele homem era totalmente louco e sem limites. Pelo menos
Liah e as meninas estavam fora da sala. Ethan me olhou preocupado, e olhei
para os lados, tentando pensar em alguma saída onde ele não atirasse em
ninguém.
Merda, Nathan. Pensa em alguma coisa.
Jasper começou a se desesperar, apontando a arma para todos os lados
enquanto falava.
— O que está acontecendo, Bob? Já te falei que não existe prova
nenhuma contra mim…
— O FBI tem todas as provas, Jasper. Vocês subestimaram demais
Sylvia Vittorino.
— Então é isso. A velha entregou mesmo a gente? — Jasper socou a
mesa, andando de um lado a outro nervoso. — Você acha que o salário de
um policial de merda aqui é capaz de sustentar alguém? Se eu não ajudasse
a criar esse esquema, nunca teria dado uma vida melhor a minha família,
Bob.
— Você ameaçou e matou pessoas, Jasper. Você quase matou o
Nathaniel alguns anos atrás. E eu suspeitava disso a um tempo, mas preferi
acreditar em você. — Bob levantou os braços, se protegendo, dando alguns
passos em direção ao homem.
— Não se aproxima. Quero sua arma e do Carlton em cima dessa mesa,
agora — o homem gritou, mantendo a mira da arma sobre Bob. — Eu não
vou sair daqui preso. Quero uma garantia de que vou poder sair daqui. Se
não, eu vou atirar. — Jasper engatilhou e apontou a arma para mim quando
terminou de falar.
— Não precisa disso — Carlton retirou sua arma do coldre, pegando a de
Bob logo em seguida. As duas armas foram deixadas em cima da mesa
enquanto Carl se afastava a passos curtos para trás. — Você só vai piorar
ainda mais sua situação, Jasper.
— Eu não vou ser preso! — Jasper grunhiu, sua respiração cada vez
mais irregular. — Aquela putinha da neta da Sylvia só precisava ter
aceitado o esquema — sua constatação baixa e desesperada parecia mais
uma conversa com ele mesmo.
— Lava sua boca pra falar da Liah, seu merda! — Ethan me segurou no
lugar quando tentei ir para cima dele.
Jasper riu, erguendo uma sobrancelha em deboche.
— Sylvia foi coagida por vocês, não foi? Você causou o incêndio? —
Bob questionou encarando o homem a sua frente.
Ele continuou a rir perversamente enquanto encaixava as outras duas
armas, deixadas sobre a mesa, no cós de sua calça.
— Aquela velha queria sair do esquema depois de anos. Não fui eu quem
decidiu apagar a riquinha. Tem gente muito mais acima de mim nisso.
— Jasper, se você…
— CALA A BOCA! — Jasper berrou socando a mesa. — Bob, você não
está numa posição de liderança aqui, caso ainda não tenha percebido. Quero
vocês quatro juntos, fica mais fácil decidir em que direção atirar primeiro.
O policial fez sinal para que nos juntássemos em um canto da sala. Olhei
apreensivo para Ethan tentando achar alguma saída.
— Jasper, você pode colaborar…
— Eu não sou idiota, Carlton. Sei muito bem como esses acordos
funcionam. E é por isso que eu vou ditar o único acordo possível aqui. Eu
vou sair daqui com um de vocês, pegar um carro lá fora, e vou até algum
ponto seguro sem ninguém me seguindo, a partir daí, vou fugir e seguir
minha vida. Se algum de vocês vier atrás de mim ou se eu for preso, tem
gente muito maior que eu, que pode terminar isso para mim. Aliás, só nesse
prédio tem duas provas do que pode acontecer se tentarem nos parar. E a
terceira acabou a sete palmos do chão.
— Duas? O que quer dizer com isso? — perguntei nervoso.
Eu era uma, sabia disso. Sylvia estava morta. Será que tinha acontecido
alguma coisa com as meninas do lado de fora?
— Não te contaram, Nathaniel? Os crimes nessa cidade costumam ser
bem comentados. Se você não sabe, é sinal de que nossos subornos
funcionam bem. A velha Vittorino colaborou pra abafar dessa vez, mas
confesso nunca ter imaginado que Carlton esconderia algo tão relevante de
você. É no mínimo curioso que você esteja com essa garota agora,
resolveram chorar os traumas do passado um no ombro do outro?
— Do que ele tá falando, Carl? — Minha mente anuviada não me
permitia pensar direito, embora meu instinto praticamente gritasse na minha
cabeça a última coisa que queria escutar agora.
— Conta a ele, Carl.
— Jasper, cala a porra dessa boca! — Carl gritou, socando a parede atrás
dele.
Encarei os dois homens, desejando com tudo que tinha que eu estivesse
ficando louco. Eu estava lutando para não deixar nenhum daqueles
pensamentos tomarem forma em minha cabeça.
Claro que eu estava errado, eu tinha que estar.
Jasper me encarou por alguns segundos, sorrindo amargamente, numa
resposta muda que fez meu corpo inteiro vibrar com a raiva repentina.
— Foi você? — As palavras saíram arranhando minha garganta.
— Nathan, é melhor não…
— Para, Carl! — gritei a plenos pulmões. — Foi você? — perguntei de
novo a Jasper.
Um sorriso imundo se abriu em seu rosto, me fazendo ter a certeza de
que ele merecia mesmo a morte.
— Tenho certeza que você já contou pra ela como foi ter a cara quebrada
por mim. Mas ela já te contou como foi bom gemer de dor pra mim
enquanto eu transformava aquela garotinha em uma puta de verdade?
Vermelho.
Aquela era cor que eu enxergava agora. Ethan nem sequer sabia o que
tinha acontecido, mas segurou meu braço ao entender o que estava rolando.
— Se você for pra cima dele agora, ele vai atirar. Usa a cabeça.
Você vai morrer, Jasper. Eu mesmo vou te matar.
— Nathan — Carl me chamou confuso, a surpresa de não ter partido
para cima dele ainda, estava estampada em seu rosto.
Evie havia feito a melhor coisa possível para mim quando me fez
entender como era bom direcionar a raiva. Eu nunca quis tanto explodir
como queria agora. A raiva crescia em espiral pelo meu corpo, tomando
cada célula minha. De repente, meu corpo inteiro tinha consciência do
revólver preso no cós da minha calça.
Jasper continuava me encarando com o sorriso debochado e maldoso.
Sustentei seu olhar, sentindo que aquele homem era louco e cometeria uma
loucura sem precisar de muito. Por hora, só precisava que Carlton e Ethan
estivessem longe daqui e daquele perigo. Então eu poderia me resolver com
ele.
— Só vocês chegaram? — perguntei a ele baixinho, mesmo com Jasper
reclamando do meu questionamento sussurrado.
Se a operação do FBI já estivesse aqui, ele não iria muito longe, mesmo
que eu já estivesse morto.
Carlton fez um sinal negativo com a cabeça, e eu esperava que tivesse
entendido certo.
— Vamos lá, então — avisei, indo até ele.
— Nathan, não faz isso — Ethan pediu ao me ver andar até o homem.
— Sai comigo — falei. Jasper me olhou com um vinco na testa.
— Sai daqui comigo. Você vai precisar de um refém, não vai?
— Nathan, que porra você está fazendo? — Carl perguntou desesperado.
Mas Jasper já tinha passado um braço pelo meu pescoço pressionando a
arma na lateral da minha cabeça.
— Seu carro está lá fora? — Jasper me perguntou baixo. Confirmei,
sentindo o seu alívio imediato. — Ótimo. Abre a porta. — gritou para
Ethan, pressionando mais ainda o cano da arma em minha têmpora.
Ethan abriu a porta nervoso, e então já podia ouvir a gritaria e o falatório
do lado de fora. Liah tentava a todo custo passar pelos policiais de guarda,
esticando o pescoço para olhar dentro da sala. Meu coração perdeu uma
batida quando seus olhos assustados viram a arma grudada na minha
cabeça.
— Sai os três da sala — Jasper comandou e os três homens saíram com
as mãos para o alto. — Se tentarem qualquer coisa, Carlton, qualquer coisa
mesmo, eu não vou pensar duas vezes antes de atirar nele. TÁ OUVINDO?
Carlton assentiu, pedindo aos policiais do lado de fora que abrissem
caminho e abaixassem as armas.
Jasper caminhou comigo até a porta, mantendo seu braço em volta do
meu pescoço. Quando saímos no corredor, vi um policial tentar conter as
meninas num canto. Liah estava abaixada no chão agora, chorando
desesperada. Mas que porra. Meu coração quebrava mais a cada soluço
dela, e eu só conseguia imaginar como esse filho da puta tinha afetado a
vida dela, da mesma forma que fez com a minha.
Ele voltou a andar comigo pelo corredor, ficando de costas para a porta,
sem tirar o olhar atento dos policiais aglomerados na entrada da sala de
Liah.
Se tinha uma coisa que senti na pele todos esses anos, era que a raiva te
impede de pensar.
O medo e o desespero também.
O corpo de Jasper estava tencionado e trêmulo. Eu quase podia sentir o
cano da arma tremendo grudado na minha cabeça. Jasper nunca deveria ter
aceitado sair daquela sala comigo, não depois que entendi que minha mente
era minha maior arma.
Eu tinha tantos planos desenhados na cabeça, que em algum momento
ficou até difícil decidir qual deles usaria. Mas as coisas ficaram ainda mais
fáceis quando atravessamos a porta principal da ONG.
Assim que senti o ar fresco do dia na pele, vários estalos de armas sendo
engatilhadas foram ouvidos. Ele virou depressa, puxando meu corpo com
ele. Tinham dezenas de viaturas policiais paradas na rua e na entrada do
prédio. Um helicóptero sobrevoava a área um pouco mais distante.
— Filhos da puta! — sussurrou.
Naquele momento, nada do que ele pudesse fazer, faria com que saísse
vivo dali. Alguns carros eram do FBI, outros da polícia local, outros das
forças especiais. Provavelmente havia atiradores de elite muito bem
posicionados agora, esperando um mínimo afastamento dele de mim para
um tiro certeiro ser desferido.
Não sei em que momento decidiram mover toda essa operação para cá
logo pela manhã, mas uma coisa era certa, Sylvia tinha provas muito
concretas contra aquele esquema. A proporção daquela operação era de um
crime realmente grande.
Jasper olhou para os lados, apertando ainda mais o cano da arma em
minha têmpora, embora seu aperto sobre meu pescoço tenha se afrouxado
um pouco.
— Você sabe que acabou — avisei, ouvindo seu grunhido irritado.
— Nathan! — Um grito aterrorizado me fez arregalar os olhos. Liah
apareceu correndo, saindo do corredor lateral do prédio. — Ele não tem
nada a ver com isso, por favor…
— Liah, que merda. Sai daqui — pedi desesperado, sentindo Jasper se
irritar ainda mais com tudo.
Aquele imbecil sabia que o cerco estava totalmente fechado. Ele sairia
dali preso ou sem vida, mas ele não deixaria de tentar levar alguém para o
inferno com ele, e eu tinha esperança que esse alguém fosse eu, até Liah
aparecer ali.
— Eu devia ter ido atrás dessa putinha quando tive a chance. Ou no
mínimo ter a certeza de que ela havia morrido com a velha aquela noite.
Não tinha certeza de que Jasper falava comigo. Mas aquilo bastou para
me atingir, e só ficou pior quando o homem transtornado apontou a arma
em direção a ela. Achei que era pura diversão dele, mas o filho da puta
destravou a arma, posicionando o dedo no gatilho e pelos próximos três
segundos, muitas coisas se passaram pela minha cabeça. Liah naquela noite,
Jasper e Eliot me espancando, minha tia me contando que Camille havia
abortado, Liah reaparecendo três anos depois, Liah tomando conta da minha
vida e da minha cabeça. Liah chorando no chão do corredor.
Liah sendo abusada…
Quando as crises vinham, eu perdia totalmente minha cabeça. Algumas
vezes eu lembrava de tudo, em outras, era difícil ter noção da dimensão que
as coisas tomavam.
Essa era uma dessas vezes.
Jasper caiu na armadilha de Carlton porque era prepotente demais para
perceber o mundo ruir ao seu redor. Ele também era ignorante demais para
entender o que tinha me causado na vida.
A experiência de quase morte naquela noite, foi suficiente para me fazer
entender que eu morreria em qualquer momento da minha vida, no lugar de
qualquer um que eu amava. E eu aprendi amar Liah de uma forma
totalmente diferente e nova para mim.
O olhar assustado dela para a arma bastou para que em menos de cinco
segundos, Jasper estivesse no chão, longe da arma, cuspindo sangue pela
boca enquanto eu o acertava repetidas vezes no rosto. E embora eu fizesse
parte da cena, não sentia nada.
Dormência.
Não era uma dormência muscular ou física; essa me atingia na alma. Não
sentia nada no meu corpo, na minha mente ou no meu coração. Mas não
pense que a sensação não era bem-vinda; ela me transportava para um lugar
onde nada podia me atingir.
Durante aqueles momentos curtos, eu esquecia de tudo. Esquecia de
Theo. Esquecia da minha quase morte. Esquecia de todas as minhas dores
do passado, do abandono por parte dos meus pais, dos abusos e dos maus
tratos de Ralph com minha tia. Esquecia até de quem eu era, e isso incluía o
que tinha de bom em mim também.
Embora minha visão estivesse turva pela raiva e embaçada pelas
lágrimas, eu ainda podia ver o borrão vermelho evidente sobre os nós dos
meus dedos, e ainda assim isso não era suficiente para me fazer parar. A
força dos meus punhos fechados sobre o homem abaixo de mim, não
condizia com a força que, normalmente, eu socaria alguém em uma briga.
Era algo um tanto autodepreciativo. Eu também queria me machucar, eu
queria sentir a dor, mas nada me atingia, e então eu colocava mais força
naqueles golpes repetidamente.
A possibilidade de dar o troco nele, depois de toda a merda que passei,
brincava à minha frente como se fosse um letreiro piscando em neon.
Eu queria matá-lo.
Pelos meus traumas, pela Sylvia, e por Liah.
Eu o mataria se pudesse…
As palavras doloridas de Liah não saíam da minha cabeça. Eu podia.
Podia matá-lo agora se mantivesse aquele ritmo por mais algum tempo.
Ou…
Ainda controlado pela raiva, parei de socar a cara dele, tirando o
revólver da cintura.
Mesmo com os olhos praticamente fechados pelo inchaço imediato,
Jasper os arregalou assim que viu o cano apontado para o seu rosto.
Destravei a arma, pronto para atirar.
Eu podia ouvir algumas coisas; os gritos que soaram mais altos quando
saquei a arma. Eu queria atirar, queria ver o medo nos olhos dele, a vida se
esvaindo do mesmo jeito que ele tinha feito comigo. Do mesmo jeito que
ele tirou a inocência de Liah.
Em algum lugar da minha mente, podia escutar vozes familiares me
chamando, o choro de alguém tentando, fracassadamente, chamar minha
atenção. Mas no meu lugar seguro, era quase impossível alguém me
alcançar.
Exceto por ela.
A única voz que sobressaia sobre toda a lamentação atrás de mim. No
momento que ela pronunciou meu nome mais alto, meu corpo reagiu.
Lianah Vittorino me alcançaria em qualquer Universo, em qualquer
estado de catatonia, de ira… acho que até mesmo morto chegaria até mim.
O som do meu nome, soado seco e alto na voz doce dela, foi o que me fez
retesar.
A visão do meu rosto transtornado e vermelho no reflexo do vidro da
porta de entrada, ofegante e contraído pela dor que consumia minha alma,
me fez desabar.
Alguém me puxou de cima do homem quase desacordado, arrancando a
arma da minha mão. Ainda debati-me tentando sair do aperto deles, mas os
braços de Liah me envolveram, lutando para não me deixar sair dali.
03 de setembro de 2019
— Alguém precisa ajudar Mia com Sophia e Triss — a voz de Tommy
cortou o silêncio. — Eu e Ethan precisamos ir pra delegacia atrás do
Nathan. Ele vai precisar da gente.
— Eu vou — Olívia se prontificou, secando algumas lágrimas que ainda
desciam pelo seu rosto.
— Liah? — Ethan me chamou. Não conseguia olhar para eles.
Não conseguia acreditar que tudo tinha chegado àquele ponto. A imagem
daquele cara apontando o revólver para a cabeça de Nathan não saía da
minha cabeça. Era um terrorismo contínuo dentro da minha mente.
Permaneci parada, estática, sentada no meio fio da calçada. Os carros da
polícia ainda passavam por todos os lados, a ONG estava cheia de gente
estranha, revirando todos os lugares. Eu só queria que aquilo tudo acabasse.
Mas e se não tivesse acabado? E se mais gente viesse atrás de nós? Eu tinha
perdido minha mãe, minha avó, quase perdi a ONG e agora tinha Nathan
também.
Meu Deus, se alguma coisa acontecesse com ele…
— Liah? — Ethan voltou a me chamar. — Mia está indo com Sophia
para o hospital, elas acompanharam a cobertura no jornal local e Sophia
passou mal. Preciso te levar para um lugar seguro com Triss — tentou
explicar ao perceber que mesmo sem olhar para ele, tentava prestar atenção
no que ele dizia.
Assenti devagar, mas não tinha certeza de que eu era a melhor pessoa
para ficar com Triss agora.
— Nathan vai ser preso? — perguntei limpando as lágrimas que
escorriam sem parar dos meus olhos.
— Carl vai dar um jeito nisso, tenho certeza — ele disse, fazendo um
carinho nos meus cabelos.
Levantei do chão, tentando controlar o medo de perder Nathan também.
Sentia meu coração doer, queria correr para delegacia, onde ele estava, mas
Carlton e o Xerife me proibiram de ir até lá.
Ethan buscou Triss no hospital para nos levar para o apartamento de
Nathan. Triss também estava arrasada quando entrou no carro.
— Se eu tivesse aceitado a primeira proposta que me fizeram…
— Nem fala uma coisa dessa, Liah — Ethan me cortou, usando um tom
sério que nunca tinha visto ele usar antes.
— Vocês estariam seguros…
— Liah, Nathan se esqueceu totalmente que tem uma empresa nas
últimas semanas. Ele passou todo esse tempo indo atrás de qualquer coisa
que pudesse te ajudar e até se colocou em risco pra isso. E todos sabemos
muito bem porque ele fez isso… — Ethan tirou a atenção da estrada, me
encarando com o semblante fechado por alguns segundos. — Achei que ele
fosse parar quando soube que o que aconteceu há três anos foi um aviso pra
Carl parar, mas isso só fez ele ter ainda mais medo de que algo acontecesse
com você…
— Como assim foi um aviso? — perguntei nervosa.
— Aquele cara que estava com a arma na cabeça dele — foi Triss quem
respondeu inquieta. — Ele deu uma surra no Nathan pra mandar um aviso
para o Tio Cal. Nathan falou pra eles que era sobrinho dele naquela noite.
Olhei para a garota no banco de trás em dúvida sobre o quanto ela sabia.
Triss estava sempre entre a gente, escutava tudo sempre atenta.
— Triss… — Ethan chamou a atenção dela. — Você tá ficando
igualzinha a Mia. Não pode contar as coisas assim às pessoas sem nenhum
preparo antes.
Ela deu de ombros sorrindo triste.
— Desculpa, Liah.
— Tudo bem — suspirei, voltando a relaxar no banco.
— Liah, aconteceu uma coisa com você no passado, não foi? — Ethan
perguntou baixinho com medo de tocar no assunto.
— Foi ele, Ethan — disse decidida. — Eu senti quando ele chamou meu
nome daquele jeito.
— Nathan perdeu a cabeça quando descobriu.
— Ele quase morreu de novo. — Mais lágrimas grossas voltaram a
descer pelo meu rosto. — Eu teria atirado — confessei.
— Ele também, se você não tivesse interrompido.
— Eu sei. Mas não seria justo deixá-lo carregar essa culpa.
Nathan tinha se arriscado de verdade por mim. O cara que julguei como
um abusador, machista e mal-educado um dia. O mesmo cara que me odiou
e me culpou por anos pela desgraça da sua vida.
Esse cara tinha arriscado a vida por mim.

— Vai ficar aqui? — Triss perguntou da entrada do corredor ao aparecer


de pijama esfregando os olhos pelo cansaço.
— Vou esperar Nathan chegar — avisei, desviando os olhos da tela do
celular.
Triss caminhou devagar até o sofá, setando ao meu lado. A menina
apoiou a cabeça no meu ombro e a abracei forte, sentindo ela se aconchegar
mais em mim.
— Nathan não te culpa mais — ela disse baixinho.
Eu sei, Triss. Ele não arriscaria a vida por mim se me odiasse.
— Vai ficar tudo bem agora — disse, deixando um beijo sobre os
cabelos dela.
— Aquele vídeo foi tão horrível, Liah, uma das piores coisas que vi na
vida — ela contou baixinho, fungando algumas vezes.
Eu não tinha visto, mas podia imaginar o quão feio tinha sido. A imagem
de hoje ainda não saía da minha cabeça. Eram flashs o tempo todo daquela
arma, do olhar agonizante de Jasper quase disparando contra mim. E
algumas vezes, minha mente projetava a imagem daquela arma disparada
contra a cabeça de Nathan. Sacudi a cabeça tentando espantar o horror.
Triss ficou quase toda a tarde conversando comigo, tentando distrair a
ela e a mim. A menina ainda estava bastante abalada, e vez ou outra, uma
lágrima escorria dela.
Mia ligou do hospital avisando que Sophia estava bem e já estava indo
para casa. Só conseguia imaginar o desespero de sua tia quando viu aquelas
imagens pela televisão.
No fim da tarde, Triss se rendeu ao cansaço e foi para o quarto dormir.
Andei por toda a casa ansiosa, quase sem conter a necessidade de sair
correndo daqui atrás dele.
Lembrei do caderno na bolsa e considerei ler o que a vovó queria me
contar, mas tinha medo de mais surpresas num dia tão conturbado. Por isso,
abri o laptop largado na mesa de centro, resolvendo ver qualquer coisa que
pudesse me distrair.
O computador já estava ligado, com o aviso de bateria fraca piscando na
tela, mas foi a imagem na tela reduzida que chamou minha atenção. Sem
pensar nas consequências, cliquei em cima do triangulo deitado, e o vídeo
começou a rolar.
Meu Deus!
Aquilo me atingia num nível da alma totalmente diferente do que já tinha
experimentado. Eu quase podia sentir a dor física que ele sentiu a cada
golpe… a cada soco. Fechei os olhos em choque quando atingiram a cabeça
dele.
Abaixei a tela do laptop e um soluço mais alto me escapou quando
deixei meu corpo escorregar pelo sofá, caindo sentada no chão.
Depois de alguns minutos chorando, sem acreditar em tudo aquilo, só
queria acabar com aquelas sensações ruins. Se eu ficasse postergando,
deixando para descobrir as coisas num ritmo devagar, todos os dias eu
sentiria aquelas dores.
Irritada, segui até minha bolsa tirando o caderno de lá. Se tinha mais
coisa nessa história, eu descobriria tudo isso hoje.
Abri na página logo após a mensagem inicial e comecei minha leitura.
Praticamente tudo que ela contava, Carlton e Nathan já tinham me falado
no decorrer da investigação. Tinham outros detalhes, coisas como os
motivos pelos quais me escondeu tudo. E da mesma forma que eu me
preocupava, vovó tinha muito medo de me perder.
Alguns trechos me chamavam mais atenção porque não pareciam ter
sido escritos para mim, eram mais como uma confusão mental dela. Tinham
situações em que ela achava que o seu cardiologista era um homem incrível,
outras em que ela o julgava por erros bobos. Descobri, naquelas páginas,
que vovó e ele já estavam enrolados há um tempo, e que no dia que me
contou sobre ele ter a convidado para um café, ela queria me contar que eles
planejavam oficializar um namoro.
Um trecho mais a frente, fez meu coração doer.
“Liah, eu quase tive um ataque cardíaco no dia que Walter me
confirmou que você foi abusada naquele cemitério. Eu chorei por dias
quando deveria ter lhe acalentado, lhe cuidado. Mas eu me prometi que iria
atrás do desgraçado que machucou você. Nunca consegui achar um
culpado.
A dificuldade que achei com as autoridades locais, me alertaram de que
não foi um acaso.
Por favor, não me julgue, sou somente uma velha desatualizada da
tecnologia que jamais pensou em se meter na confusão que me meti.
Eu tentei sair a primeira vez desse horror quando você havia acabado
de completar dezesseis anos. Eu não aguentava mais as atrocidades que
cometiam dentro do meu clube. Quando sua mãe morreu naquela viagem,
eu não tinha forças para mais nada, e minhas tentativas de me livrar
daquele problema também ficaram adormecidas.
Um tempo depois, eu cometi o pior erro que poderia ter cometido e eles
descobriram que eu tinha uma neta, adolescente, e que a mãe tinha
morrido recentemente. Você sabe como sempre quis manter minha família
afastada dos holofotes, vocês precisavam usufruir da vida sem toda a
pressão que a sociedade impõe.
Mas falhei em te manter afastada, logo eles sabiam e te usavam contra
mim o tempo todo. O que aconteceu naquele cemitério, Liah, foi uma forma
deles me avisarem que eu jamais poderia sair.
Foi por isso que nunca te contei sobre a investigação que movi por anos
junto de Walter, para que quando eu não estivesse mais aqui, você ainda
tivesse alguma chance.”
Engoli seco, sentindo o efeito de cada palavra amarga escrita naquela
folha. Foram aqueles caras, eles causaram meu trauma. Por uns segundos
fiquei pensando em como gostaria que Nathan tivesse apertado aquele
gatilho e metido uma bala na cara daquele babaca.
Sylvia também sabia sobre o que aqueles policiais fizeram ao Nathan.
Isso era uma surpresa para mim. Ontem no hotel, Carlton havia me contado
que o vídeo estava entre os arquivos que minha avó mantinha em seu
computador.
“Jasper, mais uma vez, me proibiu de mostrar aqueles vídeos à polícia.
Eles sabiam que havia câmeras que eu mantinha nas minhas propriedades.
Walter viu tudo acontecer da janela do apartamento que ele mantinha em
cima daquele estacionamento.
Ele também sabia que se meter com Jasper era um problema sem
solução. Por isso, mesmo agoniado, ele não interviu.
Eu não conhecia o rapaz que estava sendo espancado até que o vi
naquela reunião. Um dos seus amigos. Você sabe que eu sempre tive um
sexto sentido para essas coisas, meu amor. Vocês dois tinham uma história
mal resolvida e eu juro que quase podia enxergar o cordão que ligava
vocês um ao outro.
Era uma história esquecida para mim também, mas logo que tive meu
primeiro contato com Carlton Stuart, desvendei o problema de vocês. Não
lhe parece curioso que vocês dois tenham sido vítimas de um aviso a
pessoas que não deveriam ter se metido onde se meteram?
Vocês dois pagaram pelos erros de outras pessoas. Tiveram suas vidas
afetadas de formas que só vocês conseguem entender. É por isso que
sempre acreditei que foram feitos um para o outro. Vocês se compreendem,
e como já te disse várias vezes, não pode existir amor sem compreensão.”
Era meu passado, minha vida. Minhas maiores dores tinham uma relação
direta com as de Nathan.
Sim, vovó, é no mínimo curioso.
Eu achava que Dona Sylvia era só uma senhora implicante quando fazia
suas piadinhas sobre minha relação de ódio com Nathan. Mas ela sempre
esteve certa. A gente tinha uma ligação mesmo antes de termos nos visto a
primeira vez. Sylvia Vittorino realmente tinha um sexto sentido apurado.
Terminei de ler o diário, sentindo meu coração um pouco mais calmo.
Assim como Nathan, eu também tinha sido um alerta. Um alerta para
pararem de se meter no caminho deles. Se tinham mais pessoas nesse
esquema, eu só pedia a Deus que essa investigação pudesse colocar todas
elas na cadeia. Minha avó não podia ter morrido em vão. Nathan não podia
ter sido quase morto em vão. Eu não podia ter sido abusada em vão.
A compreensão me atingiu segundos depois e as palavras de Ethan no
carro fizeram finalmente sentido. Nathan moveu mundos e fundos para me
ajudar, sem pensar nele ao menos uma vez. Se eu tivesse cedido, teria sido
uma afronta a memória da minha avó, uma afronta aos meus traumas e aos
dele.
Era isso que precisávamos fazer. Lutar. Lutar por algo que quase nos
tiraram por toda a vida. Eu nunca cederia, porque precisava honrar o que
minha avó batalhou por tantos anos. Ia fazer isso mesmo com medo da dor
que podia me causar, porque foi isso que Nathan fez. Batalhou por mim,
sem pensar na dor dele.
A dor sempre ia existir de qualquer jeito…
03 de setembro de 2 carl 19
Nota: Este capítulo contém uma cena gráfica de violência física. Ao
escrevê-la, estive tão fundo na mente do Nathan, que senti que precisava
deixá-la neste livro. Se preferir, pule a parte em itálico que refere-se às
lembranças de Nathan.
Senti a náusea aumentar. Não conseguia me livrar daquele cheiro
ferruginoso que insistia em subir pelas minhas narinas. Minhãs mãos
estavam tomadas por aquele líquido pegajoso vermelho. Sangue. Meu e de
Jasper.
Sempre acreditei que um dia poderia fazê-lo pagar por tudo que me fez,
mas nunca imaginei que também poderia fazê-lo pagar pelo que fez a Liah.
Olhei atento os nós dos meus dedos; a pele cortada e as feridas abertas.
Talvez aquelas marcas entrassem para minha coleção de marcas fixas, já
que tinham meses que não dava tempo para que elas cicatrizassem
totalmente.
Bob parou a viatura em frente a delegacia com um único som consistente
da sirene. Apoiei a cabeça no banco, esperando Carl decidir o que fazer
comigo. Pelo menos, não era um hospital dessa vez.
Voltei a olhar as manchas vermelhas em minhas mãos. Fiquei tão cego
de raiva por Lianah que nunca consegui enxergar o óbvio. Muita coisa
poderia ter sido diferente aquela noite há três anos. Liah foi a menor delas.
Talvez se eu nunca tivesse dito que era sobrinho de Carl e tivesse oferecido
dinheiro a eles, o rumo da minha vida poderia ser outro.
Se eu tivesse que culpar alguém por aquilo, todos eram culpados. Carl
por se meter com o esquema de lavagem de dinheiro deles, Liah por
impedir que eu saísse dali, Jasper e Eliot por mandarem um aviso para Carl
através de mim. Até Emma por me enviar atrás da filha, ao invés dela
mesmo ir.
Mas nada disso teria importância se Camille não tivesse decidido se
drogar em excesso. A decisão sempre foi dela.
Mas eu teria conhecido Lianah se fosse assim?
Lembrar daquela noite abria feridas profundas. Mas eu havia aprendido
que revirá-las estava acelerando a cicatrização.
“ — Cara, me escuta, por favor! — pedi ao policial maior, esperando
que ele me desse a chance de explicar.
— Você estava tentando violentar uma garota indefesa — o policial
menor acusou.
— Isso não é verdade…
Uma sensação de desespero me tomou. Se eles não me liberassem, não
conseguiria levar Camille embora dali, ela já estava totalmente fora de
controle.
Tentei me debater, puxando meus pulsos daquela algema. O policial
grandão me puxou de volta para trás com mais força.
— Acho melhor você ficar quietinho — avisou enquanto abaixava minha
cabeça e me empurrava para dentro da viatura.
Sentei no banco contra minha vontade, vendo Camille sumir na esquina
ao lado da garota maluca. Porra, ela nem sequer me deu uma chance de
explicar. Será que não percebeu que Camille estava grávida? A barriga
ainda estava bem pequena, o que ela conseguia disfarçar facilmente com
uma blusa mais larga.
Os dois policiais entraram no carro, dando partida no motor.
— Meu tio trabalha com vocês. Por favor, me deixem falar com ele. Ele
pode explicar tudo. — tentei, acreditando que Carlton poderia me ajudar.
— Seu tio? — o policial menor olhou para trás, me encarando com
ironia. — Sabe quantas pessoas falam que tem parentes na polícia pra se
livrarem de um problema?
— Eu não tô mentindo. O nome dele é Carlton Stuart, podem ligar para
ele e confirmar.
O outro policial parou o carro antes mesmo que pudessem virar a curva
da rua principal. Os dois se encararam, sorrindo sombriamente um para o
outro.
— Essa rua é perfeita — o maior disse, ligando o carro novamente e
voltando de ré até o fim da rua sem saída, parando em frente a um
estacionamento velho.
Respirei aliviado, imaginando que eles iriam ligar para Carl e me
liberar. O policial menor me tirou da viatura, me deixando em pé em frente
ao paredão de pedra do prédio escuro.
O grandão abriu o porta mala do carro, indicando alguma coisa ao
outro.
— Vira de costas — disse, puxando meu pulso e me jogando contra o
muro.
Senti a pele do meu rosto arranhando quando ele pressionou minha
cabeça contra as pedras pontiagudas.
— Calma, cara — reclamei. — Eu não estou nem reagindo.
— E nem vai poder.
Tentei olhar para trás no mesmo segundo que senti um soco me atingir
na costela.
Porra!
Outra porrada me atingiu nas costas.
— O que vocês estão fazendo? — tentei perguntar. Minha voz soando
rouca e entrecortada pela dor alucinante.
— Te ensinando a não mexer mais com quem não deve — um deles
respondeu rindo alto.
Pela visão periférica, vi quando o maior deles tirou uma barra de ferro
do porta-malas.
Caralho!
Eles iam me matar.
Eu ia morrer sem a chance de parar Camille.
— Cara, pelo amor de Deus. Aquela garota tá grávida e descontrolada.
Vocês precisam parar. — Me debati desesperado, e senti o ferro gelado da
algema cortando meus pulsos quando coloquei toda minha força para
tentar sair delas.
A barra de ferro pesado atingiu a lateral do meu corpo. O ar fugir de
mim no mesmo instante em que pude ouvir e sentir o estalo de algo se
quebrando. Aquela pancada dura devia ter quebrado algumas costelas.
Meus joelhos cederam pela dor cruciante. Levantei o braço na tentativa
desesperada de parar a barra que voltava ao encontro do meu corpo, mas
uma dor aguda tomou meus pulsos que se chocaram contra o ferro maciço.
Porra!
Antes de processar qualquer outra coisa, senti o impacto do punho duro
se chocando contra meu rosto. Merda. Aquilo doía pra caralho. O gosto de
sangue tomou minha língua, formando um acúmulo espesso e nojento de
saliva. Cuspi, vendo uma quantidade grande de sangue sair da minha boca.
Soltei um riso desesperado percebendo que seria só mais um número,
viraria estatística.
Curvei mais a coluna, tomado pela dor em todo o corpo, tossindo
excessivamente pelo aperto no pulmão e a dificuldade de respirar. Mais
sangue escorria pela minha boca.
O policial que estava atrás de mim largou a barra no chão, chutando
minhas costas até que eu estivesse totalmente caído. Uma série de chutes
dos dois me atingiram em todos os lugares.
A barra voltou a me acertar. Eu podia diferenciar os chutes das
pancadas da barra pela desproporção de dor que me causavam. Perdi
qualquer resquício de força para levantar ou falar qualquer coisa.
Um baque forte atingiu minha cabeça, me deixando num estado entre a
inconsciência e a alucinação. Então eu aceitei. Aceitei porque eu conseguia
ver o rosto de Theo. Meu filho estava ali.
Theo estava morto?
Se eu morresse, pelo menos encontraria Theo em algum lugar.
Talvez morrer seja bom, afinal.
Eu ainda podia sentir as pancadas pelo meu corpo, embora já estivesse
totalmente anestesiado. Não havia mais dor. A única coisa que eu ainda
sentia e me fazia pensar que ainda estava vivo, era aquele cheiro forte.
Ferrugem. E pela forma que o cheiro tomava meu corpo, devia ter muito
sangue por ali.
Idiotas. Não serviam nem para matar uma pessoa rápido. Por que não
batiam mais forte e acabavam logo com isso?
Eu sentia o líquido que escorria da minha cabeça descer pelo meu rosto,
embaçando a pouca visão que tinha. Mas mesmo depois que o sangue
tomou conta de tudo, eu ainda enxergava Theo. Ele estendeu a mãozinha
para mim, me dando permissão para fechar os olhos.
Eu estava morto, então. Era isso? Eu podia aceitar, desde que estivesse
com meu filho.”
Engoli seco, permitindo, pela primeira vez, que minha mente lembrasse
de todos os detalhes daquela noite.
Carl me chamou, entrando comigo pelos corredores da delegacia até a
sala de Bob. A Juíza Marion também estava lá, de pé, diante deles.
Um home alto e loiro, vestido de terno preto, também estava lá, me
encarando com as sobrancelhas erguidas, como se eu fosse uma criança de
cinco anos. Apesar de aparentar ser jovem, sua postura era de um homem
sério e certinho demais.
Mal entrei na sala e esse homem estendeu um papel em frente seus
olhos, pontuando os crimes que cometi.
— Associação ao tráfico humano; suborno; obstrução de justiça; invasão
e modificação de cena de crime; ocultação de provas; porte ilegal de armas;
agressão física a um policial. — O homem me olhou intensamente. — Sabe
quantos anos de cárcere privado isso somaria?
Suspirei, desviando meus olhos, irritado demais para pensar em quantos
anos poderia ficar preso por todas aquelas merdas.
— Vou ficar preso? — perguntei impaciente. — Se for, poderiam me
levar logo pra uma cela? Preciso dormir.
— Sua sorte, Nathaniel, é que sou uma pessoa com influência suficiente
para segurar sua barra.
O homem estendeu a mão, me cumprimentado. Estendi a minha
desconfiando de suas intenções.
— E por qual motivo faria isso? — questionei desacreditado.
— Carlton já salvou a minha vida algumas vezes. E a sua também. Max
Backwood. Diretor do FBI.
Encarei meu tio abismado. O contato dele era um diretor do FBI? Mas
algo em sua fala me fez voltar a atenção rapidamente para ele.
Um arrepio atingindo meu corpo e impedindo meu cérebro de funcionar
totalmente.
— Backwood? — indaguei assustado, soltando a mão dele.
O homem assentiu, me entregando uma pasta.
— Se alguém te procurar pra qualquer depoimento, seja da polícia local
ou do FBI, só precisa decorar o que está aí dentro.
Olhei a pasta em minhas mãos, entendendo estarem me livrando de tudo.
De novo.
— Você é irmão dele? — perguntei, voltando a analisá-lo e percebendo
algumas semelhanças com o homem que só tinha visto por fotos.
Max, no entanto, parecia novo demais para ser irmão daquele homem.
— Filho — ele sorriu amigavelmente. — Aí dentro também tem um
formulário do FBI. Nunca é demais recrutarmos agentes que tenham a
cabeça estrategista como a sua.
— Quê? — soltei um riso nervoso, tentando processar todas as
informações.
Max apertou a mão de Carl e Bob, trocou um leve aceno com Marion e
passou por mim me dando um tapinha nas costas.
— É de família, Nathan. Não adianta muito lutar contra isso, irmão.
O homem saiu da sala, me deixando totalmente incrédulo. Abri a pasta
em minhas mãos, olhando os documentos e um formulário com meu nome
completo no campo de identificação.
Nathaniel Petterson Backwood.
Aquele sobrenome vinha de Alexander Backwood, o homem que tinha
me registrado como pai e que nunca conheci pessoalmente.
Engoli seco, fechando a pasta. O bolo na minha garganta e a vontade de
chorar crescendo.
— Você disse que ele era corrupto — acusei, encarando meu tio.
— E ele era — Carlton confirmou. — Mas isso não o fato de que a
família Backwood é uma das mais tradicionais no FBI.
Arfei, totalmente surpreso. Não existia mais nada nesse mundo que
pudesse me impressionar.
— A ficha dele já tá limpa — Bob confidenciou, se aproximando e
apontando para mim. — É o mínimo que podemos fazer depois de Nathan
quase ter sido morto por Jasper e ainda salvar o dia.
Salvar o dia? Eu quase matei um homem, embora Jasper merecesse
sofrer.
Fiquei um tempo sentado no banco desconfortável da delegacia de frente
para eles, enquanto combinavam com Marion algum depoimento mentiroso
sobre Jasper.
Descobri que foi Marion quem moveu a operação do FBI para a ONG
depois de ter passado a madrugada analisando as provas que levamos ontem
à noite. A mulher ficou fora de si quando soube que Jasper tentaria prender
Liah com um mandado falso.
Voltei a olhar para baixo. Minhas mãos doíam absurdamente, os nós dos
meus dedos estavam totalmente arrebentados. Olhei para a minha camisa
branca manchada de sangue, sentindo meu estômago se revirar.
— Isso foi totalmente irresponsável, Nathan — Carlton me repreendeu
mais uma vez. Já tinha perdido as contas de quantas vezes ele iniciou
aquele mesmo discurso nas últimas horas. — Ele podia ter atirado em
você…
— Cal, chega — pedi cansado. — Eu não fiz aquilo consciente, e você
sabe. O que esperava que fosse acontecer quando eu soubesse do que ele
fez a Liah? Você sabia disso e não me contou, Carl. Aliás, quantas coisas
mais sobre a minha vida eu não sei?
— Nathan, eu soube pela Sylvia o que fizeram à neta dela. Mas eu não
tinha certeza se Liah já havia contado isso a você em algum momento…
— Esquece isso — o interrompi. — Mas não vou esconder isso dela, já
fiz merda demais escondendo sobre o incêndio.
Carlassentiu, suspirando relutante. Levantei da cadeira dura, louco para
ir embora e tirar aquele sangue todo de mim.
— Thommas e Ethan estão lá fora te esperando — Carl avisou. — Ainda
precisamos ter uma conversa extensa aqui. Você pode ir.
Assenti, me levantando louco para sair dali, e irritado pensando nas
perguntas intermináveis dos caras quando eu entrasse no carro.
— Nathan, se me permite um conselho… — Marion me parou, puxando
meu ombro devagar de volta para o meio da sala. — Mesmo se o tivesse
matado hoje, eu entenderia. Estou nessa vida tempo demais pra entender
que nem sempre um crime é um crime. Não se puna pelo que fez… O que
Jasper fez a você e a Senhorita Vittorino não tem perdão.
Um acúmulo de lágrimas incomodo me fez morder o interior da
bochecha com mais força. Eu devia ter cumprido o que falei com Liah,
devia ter matado aquele desgraçado no soco, vingado a dor dela. Mas fui
fraco até para isso. Saí de lá com o emocional totalmente abalado.
Durante o pequeno percurso que fiz da sala do Bob até a saída da
delegacia, me senti totalmente constrangido com a quantidade de olhos me
encarando. As pessoas não tinham nenhum pudor em esconder sua
curiosidade sobre o que quer que tivesse acontecido comigo.
Provavelmente, a maioria delas já sabia que eu tinha socado a cara de um
policial até a inconsciência.
Senti o alívio imediato do ar fresco do dia assim que coloquei meus pés
para fora daquele lugar. Ethan e Tommy estavam encostadas no carro, do
outro lado da rua.
— Não quero falar sobre isso — avisei assim que parei em frente a eles e
os dois viraram as cabeças curiosas em minha direção. — Juro que amanhã
respondo qualquer coisa. Agora só preciso de um banho e dormir.
— Liah está na sua casa, com a Triss — Ethan avisou.
Eu estava com vergonha de encarar Liah depois do que fiz, mas confesso
que seu colo era a única coisa que poderia me fazer bem agora.
Um silêncio imperou naquele carro por todo o caminho.
Entendendo minha necessidade de tranquilidade, eles só se despediram
de mim, avisando que me encontrariam amanhã.

— Nate! — Liah exclamou assim que atravessei a porta do apartamento,


vindo me abraçar, mas parou a poucos metros de mim, vendo o estado da
minha camisa.
— Preciso de um banho — avisei, sorrindo triste. — A Triss está bem?
— Está dormindo. Ela viu praticamente tudo pela televisão, mas está
bem sim.
— Ótimo — suspirei, seguindo pelo corredor em direção ao quarto. Senti
seus passos atrás de mim, mas preferi ficar quieto a ter que pedir que ela se
afastasse.
No caminho, fiquei repensando se Liah não tinha alguma razão sobre eu
ser perigoso de alguma forma para elas. Eu quase matei um homem hoje.
Eu ainda me arrependia de não ter feito.
— Precisa de um tempo sozinho? — perguntou ao perceber meu
incomodo.
Assenti. Precisava acalmar meus pensamentos e demorar um bom tempo
no banho quente, deixando que a água levasse toda aquela sujeira.
Tirei a camisa, jogando o pano imundo num canto do quarto. Entrei no
banheiro tirando o Jeans e a cueca e chutando o tênis em qualquer canto.
Liguei o chuveiro esperando a água esquentar. Pelo reflexo do espelho, vi
Liah parada no mesmo lugar.
Teimosa.
— Você vai me afastar, não vai? — perguntou ao encontrar meu olhar
pelo espelho. Desviei meus olhos.
Como você me enxerga tão bem?
Eu não queria. Mas era inevitável pensar nas coisas horríveis que poderia
fazer quando estava em crise. E se um dia eu colocasse Liah ou Triss em
perigo? Ela tinha razão, afinal de contas, eu era um cara totalmente instável.
Como se soubesse exatamente o que eu estava pensando, Liah entrou no
banheiro e começou a tirar o vestido.
— O que você tá fazendo? — perguntei ansioso.
— Não vou deixar você fazer isso. Sei exatamente o que está pensando,
Nathan. — Suas mãos me empurraram para dentro do box. O primeiro
contato da água quente com meus músculos foi como uma onda de alívio
imediato.
Suspirei, me rendendo à garota. Abracei seu corpo pequeno, deixando
um beijo em sua testa, com as lágrimas já se formando em meus olhos.
— Vi o vídeo — sua voz soou baixa e ansiosa.
— Que vídeo? — afastei seus ombros, buscando seus olhos.
Liah desviou o olhar. Embora tivesse perguntado, eu sabia a qual vídeo
ela se referia.
— Eu consigo entender você ter me odiado por tanto tempo. — Uma
lágrima escapou de seus olhos.
— Você não teve culpa daquilo. Já falamos sobre isso.
Liah grudou o corpo de novo em mim, apertando seus braços pequenos
com mais força ao redor da minha cintura.
— Eu não me orgulho do que fiz hoje — soltei cansado, sentindo a água
me acalmar. — Ele ia atirar em você. — Dizer aquilo em voz alta era
doloroso demais, porque me fazia ter a certeza do quanto eu estava afogado
naquele sentimento.
Liah não disse nenhuma palavra sequer antes de deixar um pequeno
beijo casto em meu peito, segurando suavemente minha mão e então
começou a esfregar com cuidado as feridas abertas durante a tarde. Não
interrompi seu processo, apenas fechei meus olhos, encostando a cabeça na
parede fria.
Mesmo com toda a dor, deixei que ela me ajudasse a varrer todo aquele
sangue grudado em mim.
— Tá doendo? — perguntou quando puxei a mão ao sentir uma fisgada.
— Não chega nem perto do meu constrangimento — confessei sem
graça. — Eu queria matar Jasper, Liah. Eu desejei matá-lo, mas fui covarde
demais pra ir até o fim.
— Nathan — Liah espalmou a mão em meu peito, colando-se em mim.
Nossos olhos estabeleceram aquela conexão de sempre. — Você teve uma
crise. E não importa o quão errado seja quebrar a cara de alguém, você fez o
que qualquer um lá queria ter feito. Se eu pudesse, teria arrebentado a cara
dele da mesma forma que você fez, só pra dar o troco pelo que ele fez com
você antes. E você só foi humano demais pra parar na hora certa.
Encarei o azul intenso de seus olhos, querendo me perder neles e na paz
que me traziam, mas precisava contar a ela. Precisei enfrentar a dor intensa
no peito para que pudesse falar.
— O que aconteceu com você no cemitério, foi um aviso para Sylvia.
— Eu sei. Li o diário que ela deixou pra mim. Vovó me contou sobre
isso lá.
Liah abaixou a cabeça, sorrindo triste. Suas mãos voltaram a limpar
cuidadosamente minhas feridas.
— Eu perdi a cabeça quando tive a certeza de que foi ele — contei
irritado.
— Você está chateado porque quase o matou, ou porque não o matou? —
perguntou confusa.
— Eu não queria carregar isso nas minhas costas, mas eu disse a você
que mataria o cara se pudesse…
— Você não vai carregar essa culpa — Liah me interrompeu.
— Eu queria carregar essa culpa.
— Vamos esquecer isso, tá!? — Liah pediu sorrindo leve. — Acabou
essa confusão toda. As contas das empresas vão ser liberadas, e a ONG está
recebendo mais ajuda que nunca. Tudo vai voltar ao normal.
— Você tem razão — sorri, abraçando seu corpo.
— Eu estava disposta a morrer por você hoje, mas você queria dar o
troco nele — gelei ao ouvir suas palavras. Afastei seu corpo, olhando
assustado para a garota.
— Nem brinca com isso. Eu não queria dar o troco, Liah. Ele ia atirar em
você, e eu não consigo imaginar um mundo onde você não atormentasse
mais minha vida. — Passei minhas mãos por sua cintura, trazendo seu
corpo de volta para perto.
— Eu te atormento? — perguntou sorrindo, sentindo o clima ficar mais
leve.
— Todos os dias da minha vida. Desde que eu te conheci, sua
intrometida.
— Sério isso?
— Mas é uma intrometida linda! — Sorri abertamente.
Virei nossos corpos, pressionando o dela no azulejo frio do box. Colei
minha boca na dela, me perdendo totalmente em sua língua. Liah suspirou
quando desci as mãos até a curva de sua bunda, subindo suas pernas e as
prendendo em volta do meu quadril. Soltei seus lábios, encarando seus
olhos. Eu nem precisava tocá-la para saber. Ela estava totalmente pronta.
Liah sabia que eu precisava daquilo. A adrenalina nunca esteve tão alta
nas minhas veias.
— Fiquei totalmente louco quando vi Jasper apontar aquela arma pra
você. Se alguma coisa acontecesse com você… Porra! — Afundei meu
rosto em seu pescoço, pronto para me enterrar nela. Aquele cheiro acabava
comigo. — Eu já te disse isso uma vez. Você tomou conta de tudo, Liah. —
Entrei nela devagar, sentindo suas paredes me apertarem e cederam à
medida que impulsionava meu corpo para cima. — Até do meu coração.
Liah fechou os olhos sorrindo, deixando um pequeno gemido de
satisfação escapar.
— Droga, Nathan. Você não pode falar assim entrando em mim. É tão
injusto.
— Metendo em você? — provoquei, incentivando-a a usar palavras
sujas. Seu sorriso indicava que ela havia entendido. — Você pode trocar o
droga por porra também. É bem mais sexy — falei baixo em seu ouvido,
enquanto aumentava o ritmo das minhas investidas.
Liah suspirou cravando as unhas em meus ombros. Um sorriso malicioso
crescendo em seus lábios. A garota colou os lábios em minha orelha e então
usou o tom mais provocativo que podia.
— Porra, Nate. Você não pode falar assim metendo em mim. É tão
injusto. Você pode conseguir qualquer coisa que quiser assim, sabia?
Para completar minha desgraça, Liah ainda contraiu a boceta em volta do
meu pau, me levando ao céu em menos de dois segundos.
Um calor inesperado se apossou de mim. A filha da mãe aprendia rápido.
Sem que eu tivesse controle, gozei dentro dela feito um adolescente
desesperado. Ouvi sua risadinha orgulhosa no meu ouvido enquanto eu
respirava com dificuldade.
— Droga, Liah, não era pra ser tão rápido — reclamei saindo de dentro
dela.
— Porra é bem mais sexy. — Liah levantou uma sobrancelha, me
olhando divertida. Não contive um sorriso. — Vou te esperar na cama, vou
cobrar esse com juros. Quero pelo menos dois orgasmos hoje pra esquecer
essa loucura toda.
Segurei seu queixo com cuidado, olhando no fundo dos olhos azuis mais
lindos que já tinha visto na vida.
— Eu amo você. Sabe disso, não sabe?
Puxei sua cintura, grudando minha boca na dela. Senti Liah se derreter
em meu abraço, travando uma batalha de língua comigo.
— Eu também amo você, Nathan. — Liah tirou alguns fios dourados
grudados em seu rosto molhado. — De todas as coisas mais improváveis
que podiam acontecer na minha vida, te amar era a mais louca delas.
Estudei seu rosto bonito, lembrando da primeira vez que a vi. Tão
decidida a fazer o bem, a ajudar Camille, mesmo sem saber o que estava
realmente acontecendo. Aquela era a essência dela. Fazer o bem era a
missão de vida de Lianah Vittorino.
E ela nem sabia disso, mas tinha se tornado minha cura.
Epilogo
Nathan

Março de 2021

Liah tinha me mandado calar a boca e ficar quieto umas cinco vezes na
última hora; Olívia tinha gritado comigo para parar de dar pitaco umas três
vezes; Evie só me olhava de cara feia; e Karol me ameaçou com a faca uma
infinidade de vezes.

Elas estavam surtadas.

Hoje à noite era nosso jantar de noivado. Liah aceitou meu pedido há dois
meses, quando comemoramos dois anos de namoro.

Sim. A gente contava desde o dia em que nos conhecemos.

Tanta coisa aconteceu. A investigação daquele esquema de merda da cidade


foi concluída. Bem, era o que diziam, mas da mesma forma que muita
gente foi presa, muita gente se livrou. De qualquer foram, todos vivíamos
em paz desde aquele dia.

A ONG se tornou uma referência em todo o Estado. Liah tinha muitos


projetos sendo concluídos e entre eles, ela e Mia iam começar um projeto
de Artes, no mesmo galpão em que Evie me fez colocar toda a raiva para
fora dois anos atrás. O lugar tinha sido reformado e virou um lindo teatro.

Todos nós nos sentíamos mais vivos, mais inteiros, cada um com suas
limitações, mas ainda, sim, estávamos bem. A ONG nos unia agora, mais
do que qualquer coisa, nos uniu um dia. Por isso decidimos fazer um jantar
para comemorar no teatro, com todas as pessoas que eram importantes para
nós.

Eu só não tinha ideia do quanto essas coisas de casamento mexiam com as


mulheres. Liah queria que tudo estivesse perfeito, e as meninas estavam
empenhadas nessa missão. Ethan e Tommy estavam tão assustados quanto
eu.
No meio da tarde, deixei Liah no apartamento que Mia e Triss estavam
dividindo. Sim, isso tinha acontecido, para o meu desespero.

Assim que fez dezoito anos, Triss decidiu dividir um apartamento com Mia,
pois segundo ela, ela precisava de um ambiente feminino e não aguentava
mais me encontrar em alguma situação embaraçosa com Liah. Ok, ela
pegou a gente transando algumas vezes, precisava admitir.

Por volta das 20:00h da noite estava estacionando novamente na frente da


ONG. Liah me proibiu de ir buscá-la, e olha que nem era o casamento
ainda. Me juntei aos caras no teatro, esperando ansioso que Liah chegasse.

Embora ela já tivesse aceitado meu pedido, hoje seria o dia em que,
oficialmente, todos saberiam que ela seria minha pelo resto da vida.

Quando Liah atravessou a porta do salão com as meninas ao lado, nada


mais parecia existir no mundo. Ela estava ainda mais linda, se é que isso
era possível. Seu vestido tinha um tom rosé brilhante, e era mais curto do
que eu esperava. Não curto do tipo vulgar, mas do tipo que deixava suas
pernas perfeitas a mostra. Era meio justo na cintura, mas folgado nas coxas
e no corpo. O decote era bem profundo, marcando deliciosamente seus
seios e sustentado por alças finas. Ah, Liah.

— A baba está escorrendo — ouvi Tommy resmungar. Não era só pra mim,
Ethan também estava visivelmente abalado com Olívia.

— Você tá linda! — falei depositando um beijo em sua bochecha assim que


chegou ao meu lado.

— Você também — sorriu, aprovando a roupa que ela mesmo escolheu.


Um jeans claro e uma camisa social rosa-claro. Agora entendia que
combinava perfeitamente com a roupa dela.

Olhei o colar pendurado em seu pescoço. Liah ainda usava a Íris que dei a
ela. Minha noiva fazia questão de sair de casa todos os dias com ela no
pescoço para me lembrar de que ela era minha esperança.

— Eu te amo tanto — disse, envolvendo seu corpo pequeno com os braços.


— Eu também te amo, Nathan — Liah respondeu passando seus braços
pela minha cintura.

Beijei sua boca devagar, ciente de que todos estavam olhando para a gente
no meio do salão. Sorri em meio ao beijo, sabendo que Liah seria sempre
assim para mim, trazendo toda aquela intensidade que só ela despertava na
minha vida.

— Tem criança olhando — Olívia passou por trás de mim, esbarrando nas
minhas costas com o braço.

— A gente vai para o loft hoje? — Liah perguntou sorridente.

— Acho que criei um monstro — brinquei, e Liah me deu um tapinha no


braço indo em direção às meninas.

Aproveitamos a noite entre amigos, família, equipe e crianças da ONG.


Liah estava sorrindo abertamente, daquele jeito que me fazia sorrir de volta
para ela sempre. Era oficial, a gente ia mesmo casar em alguns meses e isso
não podia me fazer mais feliz.

— Viu a Mia? — Liah perguntou largando a bolsinha pequena sobre uma


mesa. — Queria pegar meu batom que ficou ela.

— Ela subiu a escada ainda pouco — Evie respondeu, bebendo sua taça de
espumante.

— Ah, Nate, vai lá pra mim? — Liah pediu chorosa. — Meus pés estão me
matando nesse salto — reclamou fazendo biquinho.

Apertei os olhos para ela.

— A gente nem casou ainda e você já está se aproveitando de mim.

— Ah, Nathan. Sinto avisar, mas ela se aproveita de você desde o dia que
você cedeu — Ethan riu, me empurrando com o ombro.

Sacudi a cabeça, enquanto já seguia em direção à escada que levava aos


corredores de cima. Subi os degraus sorrindo, sem conter minha felicidade.
Era incrível como minha vida havia mudado tanto nos últimos dois anos.
Eu nem lembrava mais como era ter uma crise. Liah tinha mesmo se
tornado minha tábua da salvação.

Abri a porta da sala de artes procurando pela minha irmã, mas nem sinal
dela. Será que ela foi ao banheiro?

Segui até o banheiro no fim do corredor, cantarolando a música que soava


baixo lá embaixo, mas um barulho estranho me fez parar. Levei a mão a
maçaneta da porta a minha frente, sem ter certeza sobre o que ouvia.

Que merda.

Um gemido mais alto soou atrás da porta. Tinha alguém ali dentro. Os sons
abafados chegaram aos meus ouvidos distorcidos.

Porra! Não podia ser.

Abri a porta devagar, esticando o pescoço lentamente só para ter certeza de


que meu cérebro tinha processado aquilo direito.

Mia estava sobre o balcão da pia do banheiro, com o vestido levantado


enquanto Thommas investia nela sem nenhum pudor.

— Puta que pariu! — soltei assustado. — Que caralho tá acontecendo aqui?


Notes
1. Sistema de processamento de dados; programa, rotina ou conjunto de
instruções que controlam o funcionamento de um computador; suporte
lógico.
2. Organizações não governamentais, são entidades que não têm fins
lucrativos e realizam diversos tipos de ações solidárias para públicos
específicos.
3. The Sims é uma série de jogos eletrônicos de simulação de vida real
criado pelo designer de jogos Will Wright e produzida pela Maxis.
4. IRS (Internal Revenue Service) é um braço do Departamento do
Tesouro Americano, e é responsável por recolher os impostos federais sobre
a receita das empresa.
5. Royalties são uma quantia paga por alguém a um proprietário pelo
direito de uso, exploração e comercialização de um bem. São exemplos de
bens produtos, obras, marcas e terrenos.
6. Termo na informática utilizado para expressar algo que é feito para
demonstração ou apresentação comercial.
7. A sigla QI significa “quociente de inteligência” e foi criada pelo
psicólogo alemão William Stern em 1912. Derivada do alemão
“Intelligenzquotient”, é como se fosse uma medida da capacidade de
raciocínio de um indivíduo.
8. Infra - Abreviação de infraestrutura: Conjuntos de componentes
necessários para executar e gerenciar ambientes de Tecnologia de
Informação empresarial.
9. DEA significa Drug Enforcement Administration (Gestão de
Repressão a Drogas), no Estados Unidos.
10. Termo popular para um jogo chamado Serpente. Serpente é um jogo
que ficou conhecido por diversas versões cuja versão inicial começou com
o jogo Blockade de 1976, sendo feitas várias imitações em vídeo-games e
computadores.
11. O dispositivo intrauterino (DIU) é um pequeno objeto de plástico
em formato de T inserido no útero para atuar como contraceptivo.
12. Bluetooth é um padrão de tecnologia sem fio de curto alcance usado
para troca de dados entre dispositivos fixos e móveis em distâncias curtas e
construção de redes de área pessoal.
13. Bluetooth é um padrão de tecnologia sem fio de curto alcance usado
para troca de dados entre dispositivos fixos e móveis em distâncias curtas e
construção de redes de área pessoal.

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