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Livro: Uma filha para o CEO

Autora: Ângela Maria


Capa: Jaque Summer Designer
Revisão: Pat Sue Revisões
1ª Edição
 
Copyright © 2022 Ângela Maria
Todos os direitos reservados. Proibida, dentro dos limites
estabelecidos pela lei, a reprodução total ou parcial desta obra, o
armazenamento ou a transmissão por meios eletrônicos ou mecânicos,
fotocópias ou qualquer outra forma de cessão, sem prévia autorização da
autora Ângela Maria.
SINOPSE:
 
Lauro Trajano deseja ser pai. O empresário, bem-sucedido no ramo
automobilístico e filho de uma família abastada do Rio Grande do Sul, é
conhecido por ser implacável nos negócios e levar uma vida regrada na
grande São Paulo. Mas tudo muda quando ele percebe que ainda falta
alguma coisa para completar o plano perfeito de vida que traçou para si
próprio. Talvez, filhos.
Antes de completar 39 anos, ele está disposto a encontrar um meio
conveniente de ter herdeiros, a fim de darem continuidade a tudo que ele
construiu, mesmo que para isso tenha que contratar uma barriga de aluguel
em outro país.
 
Sol não tem medo de pegar no pesado!
 
Nascida e criada na Paraíba, Solange leva uma vida cheia de altos e
baixos com a mãe gestante, que leva uma gravidez de risco.
Antes de falecer na sala de parto, sua mãe revela o nome do pai
biológico de Solange, até então desconhecido para a garota, e implora para
que ela e a irmã peçam ajuda a ele.
Sozinha e sobrecarregada, Sol, a princípio, se recusa ir atrás do pai,
mas quando as coisas apertam e se tornam cada vez mais difíceis para ela e
a irmã, a jovem batalhadora se rende e admite que precisa de ajuda,
gastando suas últimas economias em uma passagem de ônibus para São
Paulo.
Chegando à metrópole, tudo conspira para dar errado, e Solange se
vê mais uma vez sem saída com um bebê de colo nos braços, até o destino
das duas esbarram com o de um bilionário disposto a se tornar pai.
Sol já não seria a mesma.
Tampouco, Lauro.
Serão eles capazes de superar as tantas diferenças e barreiras que os
separam? Serão capazes de amar um ao outro?
 
 
 
 
 
 
 
Aviso:
A presente história contém regionalismo, portanto, algumas falas
não estão de acordo com a norma padrão da Língua Portuguesa, a fim de
preservar a verossimilhança nos diálogos dos personagens.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Sumário:
 
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64
Capítulo 65
Capítulo 66
Capítulo 67
Capítulo 68
Capítulo 69
Capítulo 70
Capítulo 71
Capítulo 72
Capítulo 73
Capítulo 74
Capítulo 75
Capítulo Final
Epílogo
 
 
PRÓLOGO

Passado
 
— Quem me dera ter sua vida, Vera! — exclamou a amiga da minha
mãe, sentada no banco da frente.
— Não é bom desejar a grama do vizinho, minha amiga. Nunca
sabemos quando o solo pode estar podre por baixo.
Olhei para Conrado, meu irmão mais velho, desmaiado de sono no
outro canto do banco de trás do carro, e concluí que somente eu escutava a
conversa dos mais velhos, então voltei a fechar meus olhos e tentei pegar
num sono de novo.
Enquanto minha mãe dirigia para a fazenda na cidadezinha onde
meu pai cresceu, a conversa continuava.
— Não me importaria com os defeitos do meu marido se ele me
mimasse como Afonso faz com você. — Ela sorri. — Jatos particulares,
carros importados, bolsas da Gucci e festas incríveis, tudo isso parece bom
demais para eu me importar com as manias do meu marido.
— E as humilhações frequentes? As incontáveis traições? Ainda
assim, sabendo de tudo, você pagaria o preço? — A voz de mamãe estava
mais curiosa do que acusativa, como se quisesse arrancar da amiga uma
resposta que fizesse sentido para si.
— Tem razão, Vera! — Cássia pareceu mais compreensiva. — Mas
não entendo o motivo. Por que não se separa logo de Afonso e põe um
ponto final nisso? Já não vivemos como no tempo das nossas mães, o
divórcio está cada vez mais comum por aí. Por que não se livra desse
homem de uma vez por todas?
O silêncio se arrastou pelo carro por alguns instantes, mas tão logo
mamãe respondeu:
— É difícil tomar uma decisão dessas quando se tem quatro filhos e
o seu marido é Afonso Trajano. Ele não é qualquer homem, Cássia. Ele
faria de tudo para arrancar o que é mais valioso para mim, para apenas
provar que sou nada perante ele.
— Acha que Afonso seria capaz mesmo disso?
— Não tenho dúvidas, minha amiga.
— Se você pensa isso do seu próprio marido, não sei como ainda
tem estômago para dormir na mesma cama que ele.
— Ele quase nunca está na nossa cama. Por que você acha que ele
vem tanto para esse interior?
— Meu Deus!
Senti minha mãe olhar pra trás, a fim de conferir se estávamos
mesmo dormindo, então apertei os olhos imediatamente, recostando a
cabeça na lateral da porta do carro.
Depois de alguns segundos, escutei a voz da mamãe mais baixa.
— Nós raramente temos relações. — Mamãe parecia falar em
código.
— É pior do que eu pensava! Você tem que pedir o divórcio o
quanto antes, Vera. Quem garante que agora ou no futuro ele não a trocará
por outra?
— Você acha que não penso nisso todos os dias, minha amiga?
Quando estiver mais velha, é provável que Afonso me troque por uma moça
mais jovem de rosto enxuto e seios firmes. Talvez pobre como quando me
conheceu, para depois alegar pelo resto da vida que a tirou da lama.
— E você vai esperar até que esse dia chegue? Desperdiçará sua
vida com medo da possibilidade de ele arrancar seus filhos? Vai mesmo
esperar isso para só depois aproveitar a vida?
— Quem disse que não aproveito, Cássia?
A amiga da minha mãe emudeceu com o seu comentário.
— Não vai dizer que você também...
— Foi apenas uma única vez, anos atrás. — Mamãe foi mais rápida
em falar, antes que Cássia terminasse a frase. E, suspirosa, completou: —
Mas foi o suficiente para me fazer lembrar todos os dias.
Houve um longo e denso silêncio, como se mamãe se lembrasse de
algo.
— Nunca em todos esses anos de casada, me senti tão viva como
naquela noite.
— Meu senhor Jesus! — soprou a amiga da minha mãe, espantada.
— Mas também, como eu disse, foi apenas uma única vez.
— Você tem que me contar melhor. Com quem? Onde?
— Agora não, Cássia!
Mamãe fez uma pausa.
— Os meninos podem acordar.
 
CAPÍTULO 1

São Paulo
 
Tempos atuais
 
— Como assim não fomos o primeiro em vendas? — brado ao
telefone enquanto caminho pelo saguão de entrada do escritório a passos
largos.
Tinha tudo para ser um dia perfeito: céu aberto, dia morno como eu
gosto, treino pago e uma lista do ranking dos carros mais vendidos do ano
em minha mesa.
Mas parece que Sebastião fez questão de me dar a notícia por
telefone e estragar meu dia.
— Desculpa, mano. Mas não é sempre que conseguiremos ser os
primeiros em vendas, desencana disso.
— Desencana disso? — Cesso os passos na frente do elevador e
inspiro fundo, tentando manter a calma. — Você sabe o quanto investi neste
último ano, porra?
— Para ser sincero, isso não depende muito da sua empresa.
— Claro que depende. Sempre depende. Eu deveria ter seguido
minha intuição e contratado outro publicitário. As linhas de carros lançados
neste ano foram muito acima da média, aquela propaganda mediana que
não convenceu muita gente... — As portas do elevador se abrem e caminho
em direção à cabine. — Vou desligar agora. Me encontre na reunião de
hoje, vou precisar do diretor financeiro nela.
— Sim, senhor.
— E larga desse rabo de saia agora, não vou mais tolerar atrasos.
— O quê... como sabe? — Ele titubeia quase gaguejando.
— Acha que não sei por qual motivo você está me ligando ao invés
de encontrá-lo na minha sala com a pachorra de dizer que não estarei
sempre no primeiro lugar?
— E estou errado? Você tem que se conformar com isso.
Inspiro fundo mais uma vez. Se eu não trabalhasse tanto e não desse
meu sangue nesta porra, talvez até me conformaria facilmente.
— Vista logo a merda da cueca e esteja aqui antes das nove. Não é
porque você é meu irmão que não vou te colocar no olho da rua. Ou você
quer pedir emprego para o nosso papai?
— Não. Tudo menos isso, cara. — Escuto-o se mover. — Você foi
incrível, Raissa.
— Raissa? Meu nome é Angélica.
— Ah, é Angélica? Foi exatamente isso o que eu quis dizer. Vamos
indo, benzinho, antes que eu perca meu emprego.
— Ontem você me disse que trabalhava para o seu irmão.
— Justamente. Queria eu trabalhar para alguém que não fosse da
minha família, todos aqueles desgraçados são doidos por dinheiro, capazes
até de demitir o próprio parente... Porra, o que é isso? O que você está
fazendo?
Escuto a voz fina demais dizer do outro lado da linha.
— O que foi, docinho? Não é você que gosta de ser algemado?
— Não uma dessas, gatinha. Venha aqui e me solte.
— Será que eu solto, Lucas?
— Meu nome não é Lucas, mas sim Sebastião. Sebá, lembra? Você
gemeu meu nome a noite inteira.
— Ah, desculpe, é que às vezes tenho crises de amnésia com
homens escrotos.
— Que seja, gracinha. Sei que está ressentida, pois confundi seu
nome primeiro, mas agora venha aqui e me solte. Anda.
Antes de cansar da conversa deplorável do meu irmão com a mulher
que ele trepou na noite passada, ouço-a dizer maléfica para Sebá.
— Ops. Eu acho que ela caiu.
— Porra! Você arremessou a merda da chave pela janela?
— Fale baixo, Sebá. Seus vizinhos podem escutar. — Ela amacia a
voz para proferir a última frase e depois se despede —  Tchauzinho,
bonitinho. Boa sorte aí.
— Ei! Não vai embora. Ei, volte aqui, diaba! Porra. Alô? Lauro,
ainda tá na linha? Eu preciso que me ajude, brow.
— Esteja no escritório estourando às nove.
— O quê? Aconteceu um imprevisto, cara, eu fui algemado.
— Acho bom não se atrasar — digo, impaciente, caminhando para
fora do elevador.
— Como vou sair daqui sozinho?
— Como? Está me perguntando como? — ironizo, perdendo a
pouca paciência que tenho.
— Eu não vou ter como chegar aí às 09h. É quase impossível.
— Então cerra o punho, caralho! — ralho e desligo a porra da
chamada.
CAPÍTULO 2

— Solange, minha filha! Ainda sobrou caldo de ovos? — A


senhorinha de quase 80 anos anda pela calçada vindo ao meu encontro, com
uma nota de dois reais na mão, toda bonitinha.
— Oh, dona Mãezinha! Tem não. Acabou quase neste instante —
digo, colocando a tampa de volta na boca do vasilhame. 
— Não me diga! — Ela suspira, decepcionada.
Embora saiba que dona Mãezinha compra caldo todos os dias na
minha mão para me ajudar em casa, ela parece também gostar do sabor do
tempero que eu mesma preparo cedinho para vender na rua de Santana. 
— Amanhã tem mais! — asseguro, plantando um beijo na sua
cabeça quente e ela abre um sorrisinho engraçado.
— Vou ser a primeira a chegar. Mas hoje ainda dá tempo para aquela
conversa de sempre?
Coloco o vasilhame em cima da cabeça e olho para o relógio no meu
punho.
— Só se for rapidinho, pois pode ser que eu não chegue na hora do
meu expediente na barraca do seu Antônio.
— Ah, tudo bem! Não quero atrapalhar uma menina bonita e
trabalhadeira feito você. Vá, minha filha. Vá. E mande um beijo para
Lourdes.
— Pode deixar que eu mando, meu anjo.
Sorrio, despedindo-me da senhora simpática e começo meu trajeto
de volta para casa.
— Oh, que delícia de morena! — Escuto o gracejo abusado vindo de
dentro de uma das lojas, enquanto atravesso a rua, e como de costume,
ignoro e sigo o meu caminho.
Não é raro ouvir comentários desse tipo andando pelas ruas de
Campina Grande, mas, mesmo assim, sempre fico desconfortável como se
fosse a primeira vez.
Minha mãe costuma dizer que tantos comentários é consequência da
boa aparência que herdei do meu pai – que, aliás, nunca o conheci o sujeito,
mas já sei que não é boa peça e mora pelas bandas do Sul do Brasil, onde
minha mãe nasceu –, no entanto, prefiro achar que todos esses homens são
mesmo uns porcos sem-vergonhas que não sabem respeitar e como tratar
uma mulher.
Apresso o passo, andando pela calçada com o vasilhame em cima da
cabeça, ansiosa para chegar à quitinete em que vivo com a minha mãe no
centro da cidade.
Por muitos anos, tem sido apenas eu e ela naquele quartinho. Mas
em alguns dias, seremos três. Minha mãe, no auge dos seus quarenta e
poucos anos, está grávida e dará à luz a uma criança, filha de Juscelino, o
sapateiro da esquina da rua com quem minha mãe teve um breve romance
no ano passado.

Desde que me entendo por gente, mainha [1]nunca foi namoradeira,


porém, sempre se mostrou romântica demais e iludida com as falsas boas
intenções das pessoas, embora já tenha quebrado a cara com essa besteira
de amor, eu mesma sou prova viva disso, visto que sou fruto de um erro do
passado – como ela bem me fala. Mas isso, como já disse, é passado, e com
a vida corrida que levo, mal dá tempo para pensar nestas coisas.
Caminho feliz para cama, louca para poder contar a ela que todo o
caldo foi vendido mais rápido no dia de hoje, arrecadando mais um dinheiro
para o enxoval de Maria Alice, a pitica[2] prestes a vir a este mundo doido.
— Ai, Solange de Deus! Ainda bem que você chegou, filha! —
Dona Edite, nossa vizinha de parede, aparece na porta de minha casa.
— Oxe! O que foi, dona Edite? Que cara é essa, hein?
Ela inspira fundo, como o ar lhe faltasse, e logo também me vejo
apreensiva.
— O que houve, mulher? Desembuche! É alguma coisa com
mainha?
— Sua mãe... — Ela ofega. — Levaram sua mãe para a
maternidade, minha filha. Ela estava sentindo muita dor e sangrando, e eu
não estava conseguindo falar com você...
— Para qual maternidade ela foi, dona Edite?
— Essa, pertinho daqui, próxima ao mercado.
Coloco imediatamente o vasilhame no chão e digo:
— Eu estou indo para lá agora.
— Eu vou com você, Sol.
Descemos até a rua às pressas, em seguida caminhamos em direção
à avenida que leva à maternidade em que mainha está.
Suando em bicas, chego à recepção da maternidade e reconheço
alguns dos meus vizinhos da vila, entre os acompanhantes sentados nos
bancos de plástico azul.
— E aí, gente? — Dona Edite se aproxima. — Como a Lourdes
está?
Seu Domingos responde:
— Ainda não sabemos, dona Edite. Lourdes entrou aí com a dona
Conceição e não saiu mais. — Ele aponta para a porta, que,
coincidentemente, se abre e vejo dona Conceição saindo ao lado de uma
mulher alta de cabelos ondulados pretos, que presumo ser uma médica,
julgando pelo conjunto verde que ela veste.
Ver dona Conceição aplaca meu desespero, porém, nem de longe me
deixa tranquila, visto que logo percebo sua expressão torturada no rosto.
A mulher de verde pergunta:
— Quem aí é a Solange?
— Sou eu, doutora.
Dou um passo à frente, agonizando de ansiedade.
— Preciso conversar com você.
— Conversar o quê? Aconteceu alguma coisa com mainha?
Ela se aproxima e fala diretamente comigo em um tom mais baixo e
receoso.
— Olha, eu não costumo fazer esse tipo de coisa, mas é melhor você
entrar para ver sua mãe. Do jeito que ela, não resistirá por muito tempo e
me deixou claro que entre ela e a vida da sua irmã, prefere que a criança
venha ao mundo.
Paraliso com as palavras da doutora, sentindo meus olhos pinicarem
e minha visão embaçar, ao passo que o chão desaparece sob meus pés.
— Não pode ser — balbucio.
— Sol, minha filha, faça o que a doutora disse. Acompanhe-a. —
Sinto a mão da dona Edite pousar em minhas costas ao escutar sua voz
mortificada.
Esfrego os olhos, afastando o excesso de lágrimas e sigo a doutora.
Durante o trajeto até a sala de parto, sinto meu corpo em choque,
minhas pernas dormentes se movendo no automático.
Vislumbro o corpo lânguido da minha mãe em cima da maca e a
doutora me avisa antes que eu me aproxime:
— Preciso que seja rápida para que possamos também salvar a
criança.
Engulo em seco e meneio a cabeça em concordância.
— Solange... — Escuto meu nome sendo pronunciado em um
sussurro sofrido, como se estivesse tendo uma alucinação, e tão logo me
aproximo da maca, inclinando o corpo ao lado de mainha.
Seguro sua mão gelada e encaro o seu rosto pálido.
— Eu estou aqui, mainha. — Beijo o dorso de sua mão, com o
cérebro quase entrando em colapso, mas não deixo transparecer. — Vai dar
tudo certo. Vai dar certo — repito as palavras para mim mesma também
como um mantra, porém, não faço a mínima ideia de como dar certo depois
do que a doutora disse. Mas ainda tenho fé de que Deus possa nos conceder
um milagre, pois sem mainha, eu não sou nada.
Oh, Deus. Não a tome de mim agora. Eu preciso tanto da minha
mãe, Senhor! — rogo em pensamento.
A mão de minha mãe aperta o meu braço, chamando minha atenção.
— Solange minha menina. Ela resfólega, os olhos arregalados.
— Não diga nada, mainha. Estamos cuidando de tudo. Logo, logo
conheceremos o rostinho dessa pitica dentro da sua barriga... — digo,
demonstrando-me otimista mesmo que o medo me mastigue por dentro.
Ela puxa o ar com muita força e sua mão toca meu rosto.
— Sempre tão linda — ela diz, com dificuldade. 
— Mainha...
— Eu não tenho mais tempo, minha filha. — Sua voz está fanha,
como se suas cordas vocais estivessem comprimidas. — Eu... eu quero que
cuide da tua irmã e procure teu pai.
— Procurar meu pai? Por que está dizendo isso agora, mainha? Eu
nem sei direito quem é esse sujeito...
Ela respira pesadamente apertando meus braços com força.
— Eu sei onde ele mora... — ela grita, um som opaco, cansado, sem
força.  Ela inspira fundo e retoma. — Ele vive em São Paulo com a família.
Tem um papel com seu endereço na gaveta da cozinha. Seu nome é... Zé
Corvo.  — Ela engole em seco. — Procure... ele... Você e Maria Alice
precisarão quando eu não estiver mais aqui...
— A senhora não pode me deixar, mainha.
— A vida não é fácil, minha menina. Nós duas sabemos bem disso.
Passo a língua entre os lábios trêmulos e pisco copiosamente.
— Meu tempo está acabando. — Ela ofega. — Eu sei que está.
— Mainha, mulher! — exclamo, minha visão embaçada com as
lágrimas.
— Sol... eu te amo. Você foi. O. Meu. Melhor. Presente. Em. Vida
— balbucia pausadamente ao fechar os olhos, a voz e a mão em meu braço
perdendo gradualmente a rigidez, até que não resta nenhum resquício de
força.
— Mainha? — desespero-me. — Mainha? Mainha? Não faz isso
comigo não, mulher — digo em meio ao choro, sentindo um buraco se abrir
em meu peito.
Abraço-a e deito minha cabeça em seu peito, chorando de maneira
descontrolada, enquanto ouço vozes abafadas ao meu redor, pedindo para
que eu me afaste.
Uma mão toca as minhas costas e escuto a voz da doutora dizer:
— Preciso que você saia para que façamos o parto da sua irmã.
Abro meus olhos, quando ouço suas palavras e me obrigo a dar um
passo para trás, sentindo meu mundo inteiro ruir. Minha mãe era a única
pessoa que tenho neste mundo e sua partida inesperada é um baque enorme
para mim. Como uma criança que se perde da mãe, estou completamente
apavorada e desnorteada, incapaz de raciocinar.
CAPÍTULO 3

 
Finalizo a reunião e os colaboradores se levantam no mesmo
momento em polvorosa ao redor da mesa oval. Guardo minha caneta no
bolso na parte de dentro do paletó cinza, conforme me preparo para me
levantar também para voltar à minha sala, porém, sou surpreendido com o
aviso baixinho da minha secretária, Vivian, ao pé do meu ouvido.
— Dona Vera está aí, seu Lauro.
Minha mãe? Confesso que fico um pouco surpreso, pois a última
vez que nos falamos, ela estava em uma viagem a passeio pelo Chile com
uma amiga de longa data.
— Ela disse que veio almoçar com o senhor e está o esperando na
sua sala.
— Ok, Vivian! Estou indo para lá.
A jovem de traços asiáticos assente e se apressa em sair pela porta
lateral da sala de reunião.
O que minha mãe quer comigo? — Levanto o questionamento
dentro da minha cabeça, no entanto, logo chego à conclusão de que ela não
tem motivos para vir almoçar comigo, a não ser para desfrutar da
companhia do seu filho.
A senhora Vera sempre foi uma mãe muito presente e atenciosa,
encorajadora de quem eu sou hoje e a quem devo tudo. Foi ela quem me
ensinou a ter disciplina para correr atrás das coisas que quero, apesar de ter
crescido em uma família abastada do Rio Grande Sul e meu pai ser um
homem de muitas posses, um empresário agropecuário de renome no país.
Minha mãe nunca nos deu moleza, sempre deixou claro que eu e
meus irmãos deveríamos correr atrás do que é nosso e que em hipótese
nenhuma nos garantíssemos por conta da fortuna de nosso pai.
Talvez, ela desde cedo já previsse o iminente divórcio, que
aconteceu no auge da minha adolescência. Naquela época, em questão de
meses, meu pai se casou novamente com uma de suas amantes, de nome
Daniela, uma mulher que na época tinha idade para ser sua filha.
Claro, na época, foi um baque para mim e para os meus irmãos,
principalmente para Sebastião, que ainda era uma criança e não entendia
por qual motivo tínhamos de mudar de casa e de rotina. No entanto, aquele
rompimento me deu ainda mais gás para querer ser alguém na vida e
conquistar meu espaço no mundo. Desde criança, sempre tive muita
ambição. Encare esta palavra como quiser, mas nunca tive problema em
sonhar alto e verbalizar isto, pois na minha mente, eu sempre fui o melhor.
Abro a porta da sala da presidência e encontro minha mãe sentada
atrás da minha mesa, os cabelos curtinhos em corte chanel, que ela tanto
adora.
Não ficamos por muito tempo nos encarando, mas é suficiente para
ela analisar.
— Que cara é essa?
Caminho sala adentro, despretensiosamente.
— Como assim? — questiono, sentando-me na cadeira à sua frente
e lhe dando minha total atenção.
— Parece tenso — ela responde estudando o meu rosto.
— Pensei que todos me conhecessem por ter essa cara — caçoo,
esboçando um meio-sorriso sério.
— Eu sou sua mãe, Lauro. Sei bem diferenciar as coisas e perceber
quando algo está o incomodando.
Nunca duvidei disso, porém, tento disfarçar minha insatisfação em
saber que saí do top da lista dos carros mais vendidos dos anos, pois não
quero conversar sobre isso.
— Ossos do ofício. — Dou de ombros. — Vez ou outra, as coisas
não saem como planejamos, mãe.
Ela suspira e busca minha atenção com os olhos.
— Dê um desconto a você mesmo, Lauro. Ser tão rígido consigo
mesmo pode te fazer mal com o tempo, meu filho.
— Não acredito que essas palavras saíram da sua boca. — Sorrio
fracamente. — Deixe só Sebastião ouvir um conselho desses.
— Quer dizer, isto não vale para Sebastião, que é um irresponsável.
Mas quanto a você, acho que deve relaxar de vez em quando. Sair, fazer
amigos, namorar, constituir uma família e ter filhos, também faz parte da
vida de homem bem-sucedido.
— Quem disse que não quero constituir uma família, mãe? Na
verdade, ter filhos está na minha lista de prioridades dos próximos anos, já
que vou completar 39 anos no próximo ano.
— É mesmo? Pois quase não me lembro de quando foi a última vez
que me apresentou uma mulher, ou suposta namorada.
Minha mãe tem razão, minha relação com as mulheres é
estritamente casual, por isso não tenho motivo para apresentá-las, ainda
mais por passarem pouco tempo comigo.
— Porque ainda não apareceu ninguém que demonstre ser uma boa
esposa. Quero me casar apenas uma vez, a senhora sabe disso.
Um divórcio em minha vida é algo incogitável. Além da dor de
cabeça que os trâmites de um processo como esse acarretará devido ao meu
patrimônio, as coisas podem ficar ainda piores se eu tiver que dividir a
guarda, caso tenhamos filhos.
— Se sempre for exigente demais, acabará sozinho.
— Que seja, então. — Aprecio muito as mulheres, posso afirmar
que sou um grande admirador delas, mas sei que posso viver muito bem
levando uma vida de solteiro por longos anos.
— Então, como pretende ter filhos? Vai contratar uma barriga de
aluguel, como essas celebridades fazem? — Ela se empertiga impaciente na
poltrona, zangada pelo desinteresse pelo matrimônio.
Calo-me, ainda a encarando sem negar nada.
— Não vai me dizer que está pensando realmente nesta
possibilidade, Lauro? — pergunta, escandalizada.
Dou de ombros.
— Por que não, mãe? Talvez criar um filho sozinho é a solução dos
meus problemas.
Ela abre a boca como quem vai dizer algo, mas a fecha quase no
mesmo instante.
Dou tempo para ela respirar, até que, finalmente, possa replicar:
— Isso é loucura, Lauro. Você é um homem saudável, bonito e
muito capaz de encontrar uma mulher decente que o ame...
— Essa não é a questão, mãe.
— Mas é claro que é a questão. Meu Deus! O que as pessoas
diriam?
— Está mais preocupada com o que os outros vão dizer, do que com
o meu sentimento em relação a isso?
Ela emudece, respirando fundo.
— Não estou dizendo que nunca me casarei, mãe. Só que ainda não
apareceu uma mulher certa. Mas caso ela demore a aparecer, já estou
estudando bons métodos para deixar meu herdeiro neste mundo. E, também,
não posso perder tanto tempo, nunca sabemos o dia de amanhã, não sei se
estarei aqui daqui a dez anos, por exemplo.
— Lauro, isto é tão frio, tão meticuloso e calculista — ela lamenta.
— Então, não foge daquilo o que sou.
CAPÍTULO 4

Dez meses depois


 
Termino de ajeitar a mochila de Maria Alice, apoiando tudo em
cima da mesinha de madeira na cozinha, e encaixo a mamadeira no
bolsinho lateral, certificando-me de que não está faltando nada.
Desde que mainha se foi — que Deus a tenha —, tive de assumir o
controle da casa e cuidar da minha irmãzinha mais nova, que apesar de
pequena, tem o apetite de um rinoceronte faminto.
Nunca vi criança para comer tanto e para me fazer gastar rios de
dinheiro com fraldas, sem falar no leite sem lactose, que foi prescrito pelo
médico e que custa uma fortuna.
Aliás, ainda estamos no meio de mês e falta pouco para o leite
acabar, o que me deixa apreensiva, pois sempre fico entre comprar o leite
caríssimo ou pagar as contas de casa — então preciso trabalhar em dobro
para poder dar conta.
Ainda bem que dona Edite se disponibilizou para ficar com Maria
Alice, pois sem sua ajuda, não saberia como teria dado conta de tanta coisa
ao mesmo tempo.
Deus Amado! Às vezes, no auge do desespero, eu só quero sentar no
meio da rua e chorar em posição fetal. Não sei mais o que é dormir direito
ou parar para comer tranquilamente. Até dar atenção para Maria Alice, já
não faço como deve ser. Em minha cabeça só passa duas coisas: dar de
comer para minha irmã e sobreviver.
Mas mesmo sem parar nem por um minuto, ao final do dia, olhar
para o sorrisinho contagiante de Maria Alice ao me ver, faz tudo valer a
pena. Minha irmãzinha herdou os olhos castanhos da minha mãe e o
semblante alegre de Juscelino, que vive nos bares ao redor do bairro,
torrando seu mísero salário em cachaça.
Embora Juscelino tenha deixado claro que não tem o menor
interesse de arcar com as despesas da própria filha, isto não me afetou. Na
verdade, acho até melhor que ele desapareça das nossas vidas para sempre,
assim não estragará a infância de Maria Alice, mesmo que tenha tão pouco
a oferecer.
Bati com os nós dos dedos na porta de madeira da nossa vizinha de
frente e esperei pacientemente dona Edite nos atender, com as pernas de
Maria Alice escanchadas na lateral do meu tronco, o alvorecer acontecendo
sobre nossas cabeça e o cheiro úmido de lodo adentrando minhas narinas
naquele corredor molhado da vila.
Quando não obtive retorno, bati mais uma vez.
— Sol?
Dona Conceição, outra moradora da vila, aproxima-se, abraçando o
próprio corpo por cima de uma camisola bege de tecido grosso.
— Bom dia, dona Conceição! Como a senhora está?
Ela olha para a porta da dona Edite e me pergunta:
— Está procurando por Edite?
— Sim. Ela não está aí? — questiono, estranhando sua expressão de
quem tem algo a me dizer.
— Não, filha. Na verdade, ontem à noite ela saiu às pressas para o
interior, a mãezinha sofreu um acidente doméstico. Parece que ela caiu e
fraturou o fêmur.
— Minha Nossa Senhora! — exclamo, assustada.
— Edite foi para ficar com a mãe no hospital e me pediu para avisar
que não poderá ficar com Maria Alice nas próximas semanas.
— Ah, tudo bem, dona Conceição! — digo de pronto, morrendo de
pena da mãezinha de dona Edite. — O importante é que ela se recupere. Eu
me viro com Maria Alice.
— Mesmo?
— Sim, claro.
Engulo em seco, não sabendo ainda como farei para vender caldo
hoje, mas darei meu jeito. Eu sempre dou.
Dona Conceição me olha com um semblante de pesar e começa a
dizer:
— Se eu fosse aposentada igual à Edite, você sabe que cuidaria de
Maria Alice durante a semana, né, filha?
— Não, tudo bem, dona Conceição. — Balanço a cabeça
copiosamente. — Vocês têm sido boas demais para nós duas nos últimos
meses. Eu, na verdade, nem sei como agradecer pelo tanto que fizeram por
mim.
— E nem precisa. Sua mãe foi muito boa para nós em vida, Sol.
Espero que um dia eu possa retribuir todas as vezes que desabafei com ela,
quando tudo o que mais precisava era de um abraço.
Abro um sorriso terno para aquela senhora e me lembro do jeito
amoroso com que minha mãe tratava as pessoas.
Deus! Eu tive a melhor mãe e, principalmente, nestas horas, bate um
medo de não poder suprir isso na vida da minha irmã.
— Olha só! Esse anjinho caiu em sono profundo. — Dona
Conceição sorri e se aproxima para passar a mão de maneira delicada na
cabeça de Maria Alice, que dorme e baba em meu ombro, em um sono
profundo. — Que Deus abençoe vocês, filha.
— Amém, dona Conceição. Amém! — Sorvo uma boa quantidade
de ar e suspiro. — Nós vamos precisar.

Três dias depois


Entrego mais uma sacola de pescada para o Seu Márcio, proprietário
de uma barraca de temperos secos, e agradeço pela preferência.
Logo após, espicho meu corpo para trás, conferindo se Maria Alice
está bem, visto que a coloquei sentada dentro de um caixote grande que
forrei com bastante pano embaixo da bancada de concreto.
Ela me olha, com as bochechas babadas de tanto morder o pato
amarelo de borracha, e sorri quando nossos olhares se encontram. Nunca a
vi tão radiante como hoje. Para ela, sair para trabalhar comigo está sendo
uma grande brincadeira e isso de alguma forma alivia o fardo que carrego
nos ombros.
— Vou fechar a barraca mais cedo, Solange.
— Tá bem, seu Antônio!
Suspiro internamente, feliz em saber que sairei antes de o pôr de sol.
Caminho para o outro lado da barraca para guardar as coisas antes
de sair e seu Antônio vem atrás.
— Sol, mas antes precisamos conversar.
Viro-me e encontrar uma expressão aflita em seu rosto, os sulcos em
sua testa mais profundos do que o normal.
— Sim?
Ele esfrega as mãos no avental branco, que está sujo de sangue de
peixe, e me encara com uma expressão que me deixa pessimista sobre o
assunto.
— Não posso continuar com você aqui.
Pisco duas vezes e abro a boca para falar algo, mas apenas me limito
a dizer:
— Por quê? — quase gaguejo. — Eu-eu fiz algo de errado, seu
Antônio?
— Não, Sol. É só que... — ele continua me olhando aquela
expressão torturada no rosto e depois alterna o olhar para Maria Alice. —
Não posso continuar com você trabalhando com sua irmã aqui. Você se
dispersa demais enquanto está atendendo os clientes, o que é natural, já que
se trata de um bebê, mas...
— Seu Antônio, por favor, não...
— Você encontrará coisa melhor do que essa barraca, Solange.
Talvez isto que estou fazendo seja até para o seu bem. É uma moça boa e
bonita...
Sorrio amargurada.
— Beleza não conta para isso, seu Antônio.
— Claro que conta — replica. — Talvez você só não saiba como
tirar proveito disso. Ouça bem, sair daqui pode ser um divisor de águas na
sua vida.
— Por favor, não me demita, seu Antônio.
Ele suspira e diz:
— Sinto muito, Solange.
— Eu não preciso de um divisor de águas na minha vida agora.
Preciso apenas deste salário para continuar alimentando minha irmã. A
fome tem pressa, seu Antônio. O senhor acha que eu já não procurei outros
empregos? Ninguém está contratando fácil assim, ainda mais eu que não
tenho muito estudo. Se está me demitindo, por favor, não diga que é para o
meu bem, pois realmente preciso do emprego para sobreviver.
— Desculpe. — Ele franze o cenho e explica, dessa vez com
franqueza: — Estou a demitindo, pois não tenho como pagar você. Acabei
me enrolando com os fornecedores e estou por um triz de fechar a barraca.
Engulo em seco, cambaleio um passo para trás e fico em silêncio.
— Eu sinto muito, Solange. Depois de muitos anos trabalhando
nesta feira, você foi a melhor funcionária que já tive, no entanto, não há
nada que eu possa mais fazer.
Meu peito contrai e a única coisa que me resta fazer é lamentar.
Arrumo as coisas na barraca pela última vez e seu Antônio me dá
uma quantia, referente aos últimos dias que trabalhei. Apesar de o gosto
amargo na boca, agradeço por ter me dado emprego quando precisei e
despeço do senhorzinho calvo, carregando minha irmã na cintura.
Retorno à quitinete e preparo uma sopa de legumes para Maria
Alice. Enquanto levo as colheradas na boca dela, em movimento de
aviãozinho, ela coça o olhinho dando sinais de cansaço.
— É, pitica. Somos apenas nós duas — digo, meio anestesiada com
tudo o que tem acontecido nas nossas vidas, e ela abre um sorrisinho, como
se tivesse dito algo engraçado. — Para sempre nós duas — completo em
um sussurro, à medida que esboço um meio-sorriso para o meu pequeno
ponto de luz.
Maria Alice dorme e  fico sozinha na cozinha, pensando em como
vou arranjar outro emprego em tão pouco tempo. O dinheiro que ganho
vendendo caldo é essencial para complementar a renda, mas nem longe dá
para pagar o aluguel.
A quantia que seu Antônio me pagou é pouca e, provavelmente,
acabará logo, por isso começo a pensar que preciso arrumar um jeito de
conseguir dinheiro urgentemente. Mas como?
Olho para a gaveta de contas do armário da cozinha e me lembro das
minhas palavras de mainha naquele hospital.
Respiro pesadamente e passo as mãos na cabeça, ainda fitando a
gaveta.
Prometi a mim mesma que nunca precisaria ir atrás desse homem,
no entanto, agora, parece cada vez mais perto de engolir meu próprio
orgulho e pedir por sua ajuda. Mas até que isso aconteça, farei de tudo para
resolver as coisas do meu jeito.
CAPÍTULO 5

Duas semanas depois


 
— Todos os documentos da Maria Alice estão na mala, Sol? —
pergunta dona Conceição pela segunda vez, ela está mais nervosa do que eu
na rodoviária de Campina Grande.
— Estão sim, dona Conceição. Eu já conferi ao menos umas três
vezes.
— Ainda bem, filha. Vocês irão precisar.
O moço do ônibus faz a última chamada ao lado de um ônibus de
dois andares e eu me apresso para dar um beijo na cabeça da senhora
baixinha.
— Agora temos que ir.
— Prometa que ligará quando estiver acomodada lá.
— Eu prometo sim, dona Conceição.
Ela estatela um beijo da testa de Maria Alice e faz o mesmo comigo.
— Que a virgem santíssima as proteja.
— Vai dar certo, dona Conceição.
Tem que dar, penso comigo mesma.
Após ficar sem alternativas e completamente sem saída, decidi
procurar pelo meu pai biológico antes que Maria Alice e eu passássemos
fome.
— Tome isso! É pouco, mas é o único dinheiro que tenho sobrando
e pode ajudar você a comprar um lanchinho na estrada.
Ela me dá um bolo azul de notas de dois reais e eu replico quase no
mesmo instante:
— Não posso aceitar, dona Conceição.
— Claro que pode — ela diz, empurrando-me o dinheiro. — Agora
vá, antes que o ônibus parta sem você.
— Muito obrigada, dona Conceição.
— Por nada, meu bem.
— Eu ligo assim que chegar lá.
— Eu estarei esperando.
Despeço-me e caminho até a entrada do ônibus, onde o funcionário
confere nossos nomes. Aceno para dona Conceição pela última vez e entro
no ônibus. O ar estava gelado, levando-me a fechar mais os meus braços ao
redor de Maria Alice.
Sento-me na minha poltrona com Maria Alice que olha para os
lados, parecendo assustada. Ela me abraça forte e permanece assim por um
longo tempo, enquanto massageio suas costas.
Por dentro, estou morrendo de medo do que está por vir. Mas por
fora, mantenho uma postura segura para não deixar que Maria Alice
perceba que há algo de estranho na situação e se assuste.
Preciso me manter firme, segura. Por mim e pela minha irmã.
CAPÍTULO 6

São Paulo
 
Após uma viagem longa e cansativa, finalmente chegamos a São
Paulo no fim de uma tarde de céu alaranjado.
Saímos da rodoviária, pegamos um metrô e paramos na avenida
Paulista, depois de mostrar o endereço no papel escrito pela minha mãe para
pessoas que encontro pelo caminho, em seguida sigo suas informações.
Andar por esta cidade é mais difícil do que imaginava, ainda mais
com Maria Alice no colo, estranhando tudo e chorando sem parar.
Paro em um banheiro público para trocar sua fralda suja, tomando o
maior cuidado para não tocarmos nas paredes que estão mais nojentas do
que o conteúdo da fralda da minha pequena.
Tentando me equilibrar em meus próprios pés, minha bolsa de
ombro esbarra na divisória da parede e vejo por reflexo algo cair entre as
grades do ralo sob mim.
No início, não dou muita importância, até lembrar que o papel
estava em minha bolsa.
— O papel! — grito, desesperada, depois viro-me rapidamente para
trás, olhando pelas brechas do ralo meu papel absorvendo a água lá
embaixo.
— O que houve, moça? — questiona uma mulher de farda cinza que
também está no banheiro.
— Eita, mulinga! [3]Como é que vou tirar esse papel desse buraco aí?
— digo não sabendo como proceder com Maria Alice no meu braço e uma
bolsa no outro ombro, sem contar com a mala atrás de nós.
— Esse papel é muito importante para você?
— Muito! — respondi, nervosamente.
Não sei se é pela minha cara de espanto ou pelo bom coração da
moça, mas ela rapidamente pega uma caneta da bolsa e desencaixa o ralo.
Ela até tenta tirar o papel inteiro, mas ele se partiu ao meio e pelo
estado, é quase impossível ler o que está escrito. As letras viram um grande
borrão incompleto e eu só quero chorar de desespero.
E, agora, como é que vou achar o homem?
CAPÍTULO 7

 
Agarro um punhado do cabelo da morena ofegante e a forço a fim
de serpentear o corpo para cima, após me levar ao ápice pela terceira vez
nesta tarde de domingo.
Bianca me encara com aquele par de olhos grandes acastanhados e
sexys, em seguida encaixa o queixo no vão do meu peito, abraçando meu
tronco como se quisesse outra rodada.
— Você é o melhor — ela sussurra, manhosa.
— Conte-me algo que eu não sei.
Ela enfeza imediatamente, mudando o tom de voz
— Dá para parar ao menos um minuto de ser um babaca soberbo,
Lauro?
— Não posso, é maior do que eu.
Em resposta, ela me fulmina com o olhar e dá um soco no meu
tórax. 
Bianca é uma mulher deslumbrante, não posso negar. A tentação
encarnada. Além de linda, sabe exatamente do seu valor e tem uma mente
brilhante, motivos suficientes para desejá-la em minha cama para mais de
uma noite.
De repente, o celular toca mais uma vez em cima da mesinha ao
lado da minha cama e ela suspira, desgostosa.
— Atenda! — digo, satisfeito com nossa transa de hoje. — Pode ser
algo importante.
Ela revira os olhos e engatinha para fora do colchão.
— Enquanto isso, vou tomar banho.
Levanto-me da cama e caminho nu até a porta do banheiro,
enquanto escuto ela falar ao telefone:
— Alô, mãe... Eu já não disse que não era para me ligar esta tarde.
Qual a parte do “não ligar de forma alguma” foi difícil para entender?
Apesar de desejá-la para mais de uma noite, Bianca nunca seria uma
mulher com quem me relacionaria. Embora seja inteligente e segura de si, o
modo com que trata a mãe nunca me agradou.
Não sou santo, tenho plena consciência disso. Mas há um princípio
basilar enraizado em mim que jamais desconsiderarei, se você não é capaz
de respeitar a mulher que lhe pôs no mundo e que, por via de regra, deveria
ser a pessoa a quem mais deve respeito, logo você não é confiável para
respeitar genuinamente qualquer pessoa ou relacionamento.
Por essas e outras, minha relação com Bianca azeda antes mesmo de
tomar qualquer rumo em direção a um relacionamento mais duradouro.
Entro no banheiro, tomo uma ducha demorada e volto ao quarto,
encontrando-a ainda nua sobre os lençóis brancos. Seu corpo perfeito
ostenta seios fartos e empinados, cobertos pelos cabelos lisos que batem na
cintura fina e quase alcançam a bunda avantajada que me deixa louca de
tesão.
— Eu vou correr agora — aviso, fechando a toalha ao redor do meu
quadril e caminhando em direção à cabeceira da cama.
— Não dá para faltar a caminhada hoje?
— Não.
— Eu vou com você.
Pego meu relógio de cima da cabeceira e nego inexpressivamente.
— Vou sozinho.
— Ok.
Ela assente facilmente, porque ela conhece e segue bem as regras da
relação que temos: sem afeto ou sentimentos, logo sem muito envolvimento
fora da cama. Isto evita muitas coisas, inclusive, apego desnecessário e
situações desagradáveis.
— Deveria tratar bem sua mãe — comento, colocando em meu
pulso com um dos Rolex mais caros da minha coleção.
— Isto é um conselho?
— Talvez, sim.
— Então deveria saber que não aceito conselhos de homens que não
me tratam com exclusividade.
— Mas este você deveria aceitar.
Encaro seu rosto rígido por um breve momento, observo o brilho em
seus olhos se esvanecendo e saio para dentro do closet, espero que quando
voltar não a encontre mais aqui.
Meu celular vibra em cima da cômoda ilhada no meio do closet e o
pego, analisando o número desconhecido na tela.
Embora não faça muito isso, atendo.
— Alô?
— Boa tarde! Com quem eu falo? — A voz feminina
demasiadamente aguda me pergunta.
— Não seria eu lhe fazer esta pergunta, já que a senhora ligou para o
meu número? 
— Claro — ela parece agora desconcertada. — Perdão por não ter
me apresentado antes. Aqui é da clínica Fertlife de inseminação artificial
da Flórida. Sou a Dra. Tábata Vieira, tudo bem?
Inseminação artificial?
Aquelas palavras me fazem engolir em seco.
— Tudo bem.
— Na verdade, estou entrando em contato, pois um amigo, o Carlos
Alexandre, me indicou o senhor e espero que eu não esteja sendo
inconveniente...
Inspiro fundo e a encorajo:
— Estou sendo ciente do assunto. Alexandre me falou também
sobre vocês, então pode continuar, por favor.
— Certo.
Tábata me fala um pouco mais sobre a clínica e me propõe uma
videochamada para me explicar mais sobre os procedimentos que eles
realizam nos Estados Unidos e os valores.
Embora tenha conversado abertamente com meu amigo, Alexandre,
sobre o assunto, confesso que a ligação de Tábata me pegou um pouco
desprevenido. No entanto, quanto mais a mulher fala ao telefone, mais certo
eu fico da ideia de acelerar o processo e arranjar alguém para conceber meu
herdeiro.
Quanto mais o tempo passa, mais velho eu fico, em consequência
descrente que um dia construirei uma família com uma mulher em que
poderei confiar meus sentimentos, filhos e bens. Por isso, mais do que
nunca, estou pronto para pular e ir direto ao próximo passo, traçando o
plano que julgo perfeito para mim e meu futuro herdeiro.
CAPÍTULO 8
 

 
O céu escureceu há algumas horas, mas a cidade ao redor ainda
continua frenética, talvez mais barulhenta do que quando chegamos e muito
mais fria.
— Deus! Que frio é esse? — Cubro Maria Alice com uma manta
que tiro da mala, mas não parece resolver muito.
Não pensei que fizesse tanto frio em São Paulo como está fazendo
esta noite. Talvez, por ter saído de um lugar em que o calorzão do verão é o
clima conhecido por mim, eu esteja penando com pouca coisa, já que essas
pessoas na rua parecem indiferentes ao frio com suas camisas de manga
curta.
Após dar o último pote de papinha de mocotó para Maria Alice,
como um cachorro-quente em uma barraquinha de rua, economizando o
dinheiro para o hotel.
— Sinto muito. Não temos disponível nenhuma diária no valor de
quarenta reais.
— Tem certeza, mulher? Não tem nenhum quartinho menor ou um
espacinho que esteja sobrando? Não nos importamos de ficar...
— Não. Eu bem que queria ajudar, mas são ordens da dona do
albergue.
A atendente de rosto pequeno e cabelos pretos ondulados me explica
com o rosto torturado ao olhar para Maria Alice.
— Tudo bem. Não quero causar problemas a vocês. Mas você não
sabe de nenhum outro lugar mais barato que posso pagar com esse valor?
— Sinceramente? Não. Este buraco deve ter a diária mais barata da
região. — Ela pausa quando o barulho no teto faz soltar um pó cinzento
entre os cantos das vigas de madeira e uma voz feminina grita por um nome
que presumo ser o da atendente em nossa frente, a julgar pela careta que ela
faz ao escutar. Ela inspira fundo, fechando os olhos e resmunga baixinho:
— Eu odeio este lugar. Só não torço para esse sobrado ser demolido, pois
preciso do emprego.
Maria Alice sorri e a garota arregala os olhos para minha irmã.
— Desculpe — digo imediatamente, morrendo de vergonha.
— Não, eu quem peço desculpas por me queixar na frente de vocês.
— Ela olha para a janela ao lado e volta a me fitar. — Ok. Sendo sincera,
acho pouco provável que encontrem uma diária por menos de cinquenta
reais nesta região e nem conheço um lugar em São Paulo que cobre tão
barato. Mas sei de um lugar em que vocês podem ser ajudadas e não
cobram absolutamente nada para passar a noite lá, se quiser saber... — ela
diz em tom de segredo.
— Claro, mulher. Onde fica este lugar? É perto daqui? — quase
atropelo as palavras.
Prendo a respiração em expectativa, ansiosa para saber logo onde é
esse tal lugar.

Alguns minutos depois


 
Paro em frente do que parece ser um ginásio, soltando a alça da
minha mala e olho para a faixa enorme em cima da entrada.
— Centro de acolhimento para pessoas em situação de rua da
Comunidade Vida — leio pausadamente.
Maria Alice gargalha do nada em meu braço fatigado de tanto
carregá-la pelas ruas e eu a encaro seriamente.
— Onde está a graça, Maria Alice?
Ela me sorri mugindo.
— Quero ver essa alegria toda quando estiver comendo sopa azeda
ao invés da sua deliciosa papinha de mocotó, mocinha — resmungo,
cutucando o lado da sua barriga e ela solta um gritinho animado.
Não me aguento e sorrio também, antes que comece a chorar. Olho
para o carrinho de supermercado abandonado na calçada e tenho uma ideia.
Arrasto minha mala até o carrinho e faço um esforço para colocá-la
dentro do cesto gradeado. Coloco Maria Alice sentada em cima da mala,
que parece adorar ainda mais a brincadeira, enquanto a empurro para dentro
do ginásio.
Logo que adentro a quadra, noto a porção de pessoas em situações
piores que a minha e de Maria Alice. A maioria, homens, que usam roupas
amassadas e amareladas.
Mesmo com medo dos olhares estranhos que alguns deles me
lançam, prossigo caminhando em direção ao fim da fila em frente à mesa de
voluntários no fundo do ginásio, em que parecem entregar sopa quente e
cobertores.
Pego Maria Alice no colo e aguardo nossa vez chegar.
Quando finalmente somos atendidas, pego nossas sopas, encaixando
no espaço vago do carrinho, e nego educadamente os cobertores, já que
tenho alguns dentro da mala.
— Ei! Isso é meu! — Um careca de rosto oleoso puxa abruptamente
o carrinho com minha mala para si.
Não sei de onde esse homem surgiu, mas replico no mesmo instante:
— Claro que não.
— Mas é claro que sim — ele retruca, rispidamente, e eu reivindico
o carrinho.
— Esta mala é minha! — ralho, perdendo a paciência com aquele
cara.
Ele me toma de volta o carrinho e vocifera:
— Mas o carrinho é meu!
Ele joga minha mala no chão e derruba as sopas.
— Ah, cabra[4] véi ruim da peste!
Injuriada, assisto-o marchar com o carrinho para longe, enquanto
ouço as risadas na fila atrás de mim. Maria Alice começa a chorar no meu
braço e fico perdida sobre o que fazer.
— Por favor, venham comigo. — Uma mulher atarracada toca
minhas costas e me conduz para um corredor recluso atrás do ginásio,
enquanto tento acalmar Maria Alice.
Ao chegarmos a uma sala semiescura, a mulher de cabelos curtos e
bochechas rechonchudas estaciona minha mala ao meu lado.
— Quer um pouco de água? — ela pergunta, preocupada.
— Não, senhora.
— Vou pegar outra sopa para vocês.
— Não precisa, senhora.
Ela olha para Maria Alice e questiona:
— O que vieram fazer em um lugar como este?
— O que todos os outros vieram fazer, procurar por um teto para
passar a noite.
Ela me estuda da cabeça aos pés e me diz:
— Presumo que seja a primeira noite de vocês na rua.
— Sim, senhora.
Um silêncio perdura entre nós.
— Quer me contar sua história?
— É um pouco longa, não sei se a senhora tem tempo. Nós
acabamos de chegar em São Paulo...
— Então não são daqui.
— Viemos da Paraíba. Na verdade, não temos onde ficar, moça, e
conheço quase nada na cidade. Eu pensei que ficaríamos na casa de um
conhecido, mas acabei me enrolando e perdi o endereço e também não
tenho dinheiro suficiente para pagar a diária de um hotel.
— Meu Deus! — Ela me olha com compaixão e logo após
resmunga: — O que deu na sua cabeça para sair com sua filha tão pequena
para um lugar que mal conhece, menina?
Sorrio mortificada.
— Maria Alice não é minha filha, ela é minha irmã mais nova.
— Pior ainda. Como é que a mãe de vocês autorizou uma loucura
dessas?
Engulo em seco e digo baixinho:
— Mainha faleceu há alguns meses no parto de Maria Alice.
Ela suspira pesadamente, e eu prossigo receosa:
— Na verdade, viemos atrás do meu pai biológico. Eu ainda não o
conheço, mas mainha antes de morrer me pediu para que eu o procurasse.
— Respiro fundo e sou franca: — Maria Alice e eu passaríamos fome caso
ficássemos em Campina Grande. Não tínhamos muitas alternativas,
mulher...
Ela passa a mão na testa e diz, irredutível:
— Não podem ficar aqui.
— Não? — pergunto, apreensiva.
— Hoje o abrigo está tomado por homens e não posso deixar vocês
duas tão vulneráveis em um lugar como este.
— Perdão, mas nós não temos muitas opções, lá fora está
congelando...
— Vocês vêm comigo — a senhora me interrompe. — Pelo menos
esta noite, eu as receberei em minha casa.
CAPÍTULO 9

 
Alguns dias depois
 
— Que tal adotar uma criança ao invés de simplesmente contratar
uma mulher para servir de barriga de aluguel nos Estados Unidos?
— A senhora conhece o processo de adoção no Brasil, mãe? É
demorado e frustrante.
— Uma gestação também é demorada, Lauro.
Levanto-me da poltrona e contorno a mesa da minha sala no
escritório.
— Pelo menos não corro o risco de uma mãe desnaturada vir atrás
de mim reivindicando a criança.
— Isso não aconteceria. O processo de adoção é sigiloso.
— Eu não duvido de mais nada, ainda mais ultimamente em que
coisas que antes eram absurdas estão cada vez mais suscetíveis a acontecer.
Ela suspira, sua chateação com a minha decisão é nítida, mas tento
persuadi-la que esta é a melhor opção.
— Sem contar que um filho por inseminação teria o nosso sangue,
mãe.
— Tem certeza de que é isso que quer, Lauro? — Sua expressão
amolece.
Inspiro fundo e me aproximo dela, acariciando o lado do seu rosto.
— Absoluta, mãe.
— Sei que está saindo com Bianca. Será que não poderia lhe propor
um namoro, e, quem sabe depois, um noivado. Não teria todo esse
estresse...
Não me surpreende que a informação tenha chegado aos seus
ouvidos, já que Bianca é filha de uma de suas melhores amigas. Para falar a
verdade, até que demorou.
— Bianca e eu apenas temos uma relação casual, mãe. Não tenho
nenhum interesse em propor uma relação duradoura, e ela sabe
perfeitamente disso.
CAPÍTULO 10

 
Era para ser apenas uma noite, mas Claudia nos acolheu para mais
de uma semana em seu barraco.
A mulher que encontramos naquela noite no abrigo nos ofereceu um
teto e deixou que comêssemos da sua comida sem ao menos me conhecer
direito — motivo suficiente para ser eternamente grata pela sua bondade e
generosidade no momento em que mais precisei em toda minha vida.
Mas não posso viver assim para sempre, afinal, ela também tem seus
compromissos e sinto todos os dias que Maria Alice e eu estamos
incomodando de alguma forma, mesmo que ela nunca tenho dito isso, mas
meu bom senso alerta que devemos voltar à Paraíba o quanto antes, para
tentar outros meios de reorganizar nossa vida na terra que já conheço.
Por isso, nesta tarde, resolvo procurar um serviço na 25 de março,
para conseguir ao menos o dinheiro da passagem de volta.
— Tem certeza de que Maria Alice não vai atrapalhar, Claudia? —
pergunto na porta do barraco de madeira.
— De forma alguma, Sol. Vou levar comigo essa boneca para a
mansão em que trabalho.
— Seu chefe pode não gostar...
— Besteira! Seu Lauro mal aparece por lá. Fica tranquila, que Maria
Alice e eu vamos nos divertir bastante. Não é, bonequinha? — Claudia sorri
para Maria Alice, que retribui com um sorriso banguela. — Vá tranquila.
— Se é assim... — Aproximo-me da minha irmãzinha e dou um
beijo demorado em sua bochecha. — Comporte-se no trabalho da tia
Claudia, mocinha.
Ela bate palmas animada, e eu e Claudia sorrimos.
CAPÍTULO 11

Algumas horas depois


 
— Não sei por qual motivo, quando se trata deste cara, você sempre
leva a reunião para sua casa — reclama Sebá no banco do carona, enquanto
dirijo pelas ruas enroladoras de São Paulo.
— Porque Alberto é o meu amigo.
— Amigo? — Sebá sorri irônico. — Desde quando interesse é
amizade?
— É assim no mundo dos negócios, Sebastião. Já deveria saber
disso. Ele acredita que somos amigos e eu o trato como tal.
— Tá certo. Mas mudando de assunto, é sério essa história que você
quer ser pai?
Aperto as mãos no volante e dobro na primeira esquina.
— Pelo visto, a mamãe e você tem conversado.
— Então, é sério.
— Alguém tem de ficar com o que construí quando eu me for.
— Cara, você é muito bizarro.
— Bizarro?
— Você ainda é novo pra caralho, tem dinheiro pra caralho, é gato
pra caralho e o plano é arranjar um guri pra criar? Vá se foder, cara! —
Gargalha caçoando de mim.
— Talvez quando você tomar jeito e juízo, conseguirá me entender.
— Talvez em um futuro bem distante – ele ainda continua sorrindo.
— Na outra vida, quem sabe.
Chegando à minha casa, informo a Lúcia, a governanta, para que
prepare a sala de reunião ao lado do meu escritório, pois receberemos um
convidado especial. De início, ela estranha minha presença tão cedo, mas
faz o que peço.
— Vou à cozinha tomar água — digo a Sebastião, na sala.
— Vou contigo.
Caminhamos até a cozinha e sou surpreendido com algo no chão,
que por um triz não atropelo.
Levanto o braço imediatamente para impedir que Sebastião avance
mais um passo e olho para o chão, encarando uma cabeleira pequena
sustentada por um corpinho minúsculo e os braços repleto de dobras.
— O que isso? Um bebê? — Sebastião parece tão surpreso quanto
eu, à medida que a criança ergue o rosto para me encarar, as duas
sobrancelhas arqueadas como se tivesse sido pega no flagra. — Caramba!
Não acredito. Já arranjou o filho, Lauro? Eu sou titio?
Dou um soco no estômago do meu irmão e declino.
— Tá louco? Claro que não. Eu nem sei quem é essa criança.
— Ah, não? — Ele coça o topo da cabeça. — Acho que me
emocionei.
Sinto a barra da minha calça sendo puxada e encontro a menininha
reivindicando atenção para ela.
— De onde ela surgiu então? — pergunta Sebastião olhando para os
lados.
— Não sei. — Abaixo-me para pegar a menina no colo.
— Será que é filha de alguma funcionária? — questiona Sebastião.
Encarando a menina banguela, respondo ao meu irmão:
— Não faço a mínima ideia. — Eu não tenho muito tempo para me
atualizar nem da vida da minha própria família, quanto mais me atualizar da
vida dos meus funcionários.
Sei apenas o básico de suas fichas, o suficiente para não sofrer uma
tentativa de assalto organizado.
— Maria Alice? Cadê você, Maria Alice? — A voz aflita se
aproxima da cozinha e Claudia, uma funcionária antiga, aparece na porta de
acesso à área do jardim. Ela petrifica ao me ver com a menina no braço. —
Patrão?
A menina abre um sorriso sapeca para a mulher espantada diante de
nós.
— Maria Alice! Você quase me mata de susto, menina! — Claudia
vem até mim e pega a garotinha dos meus braços.
— Então o nome da tartaruguinha é Maria Alice? — Sebastião
comenta, brincalhão.
— Perdão, patrão. — Claudia ignora Sebastião, me direcionando o
olhar. — Maria Alice está passando estes dias na minha casa e hoje ela não
teve com quem ficar hoje, então acabei a trazendo comigo e acabei me
distraindo no jardim enquanto regava as plantas.
— Tudo bem. — Assinto, não me envolvendo muito no assunto. —
Mas tome cuidado para que ela não passeie sozinha pelos cômodos. Não
quero que uma criança se machuque debaixo do meu teto.
— Sim, senhor. Eu vou indo então. Estou cheia de coisas para fazer,
mas não permitirei que Maria Alice perambule sozinha pelos cômodos
outra vez.
— Certo. — Aquiesço.
Quando Claudia está prestes a sair pela porta do jardim, Sebastião
intervém:
— Espera aí, moça.
Olho para Sebastião e ele me fita de modo estranho.
— Já que está ocupada hoje e a menina não tem com quem ficar,
que tal a deixar com o meu irmão, Lauro. Ele nem está tão ocupado assim
hoje. 
— Endoidou? Qual é a tua? — resmungo em tom mais baixo.
— Quero que tenha uma oportunidade de sentir o drama de ser pai
— ele responde no mesmo tom mais baixo e depois pigarreia, falando com
a mulher do outro lado da cozinha. — Mas, claro, somente se confiar no
meu irmão para deixar a criança.
— Por mim, tudo bem. Eu confio plenamente em seu Lauro.
— Maravilha, então! — Sebastião caminha até Claudia e pega a
criança no colo, parecendo querer testar minha paciência. — Pode ir,
Claudia. Fica tranquila que a segunda vocação do meu irmão depois de
ganhar dinheiro é ser pai.
Claudia levanta as sobrancelhas, surpresa.
— É verdade, é verdade. Sabia que o plano dele para esse ano é ser
papai? — Ele continua, conforme aperto o punho desejando enfiar um soco
no nariz do infeliz por estar abrindo minha vida pessoal a uma funcionária.
— Isso é verdade? — Ela parece desacredita.
— É verdade, é verdade. A paternidade é algo que meu irmão tem
sonhado ultimamente. Acho que ele e a Maria Alice se darão bem nesta
tarde. — A menina parece reconhecer o próprio nome e gargalha. — Tá
vendo? — Sebastião sorri. — Ela está animada para passar a tarde com o tio
Lauro, não é, princesa?
— Sendo assim... — Claudia sorri também da gargalhada da menina
nos braços de Sebastião. — Eu vou indo. Qualquer coisa, é só me chamar
no jardim.
— Tá certo. Vá com Deus, Claudia. Dá tchau para a titia. Tchau!
Filho da mãe!
Claudia sai pela porta do jardim, ao passo que tento controlar meu
tom de voz para gritar com o infeliz.
— Posso saber o que raio passou pela sua cabeça em achar que
tenho tempo para cuidar de uma criança desconhecida, com um parceiro
prestes a chegar para uma reunião?
— Ué? Você não quer ser pai? Ser pai tem dessas, conciliar o
trabalho com cuidar do filho. Está certo de que o nosso pai sempre foi um
desnaturado e deixava o serviço todo para nossa mãe, mas você não é igual
ao papai, não é?
— Você só pode ter bebido.
— Qual é, Lauro? Se não é capaz de cuidar de uma criança por uma
tarde, acha que está preparado para cuidar de outra por uma vida inteira?
— O intuito é diferente, eu quero criar um herdeiro... — Ele me
ignora, interrompendo-me:
— Duvido!
— Duvida, o que, caralh... caramba? — pondero as palavras na
frente da menina.
— Duvido você cuidar da Maria Alice por esta tarde.
Bufo pousando as mãos na cintura e o idiota do meu irmão continua:
— Se conseguir aguentar ao menos a pressão de estar com uma
criança dependendo de você por algumas horas, me dou por convencido de
que você pode dar conta mesmo do recado.
Fito o chão e depois olho para o irmão, que sabe que odeio ser
desafiado. Olho para a criança, ela me encara com uma expressão que posso
jurar que é de curiosidade. Ela não parece ser o tipo de bebê que estranha
pessoas, muito pelo contrário, ela parece animada com nossa presença.
Caminho até Sebastião e estendo os braços.
— Maria Alice, vem para o tio.
Pego-a no colo e Sebastião parece se divertir.
— Aposto que essa tarde será um fiasco e você pela primeira vez na
vida dará razão a alguém como eu.
— Maria Alice será uma boa garota, não é, princesa? — Jogo uma
piscadela para a pequena, que sorri para dentro me encarando
corajosamente.
 
 
 
 
 
 

CAPÍTULO 12

 
— Então, Alberto, podemos fechar negócio? — arremato a conversa
após apresentar o projeto de uma linha de carros elétricos para importação
em seu país.
Ele olha para a menininha em cima de uma das minhas pernas,
enquanto que ela se distrai com minha caneta e diz, em seu sotaque
espanhol:
— Claro. Mas somente porque hoje tivemos a presença ilustre dessa
pequenina conosco. — Ele sorri abertamente, admirado com a criança. —
Estou encantado com seu ótimo comportamento. Já sou avô de sete e nunca
me deparei com uma criança tão... educada.
Sorrio de orelha a orelha, em seguida olho para o infeliz do meu
irmão outro lado da mesa, visivelmente decepcionado com o desfecho desta
tarde.
— Agora eu tenho que ir, antes que fique tarde demais para jantar
com minha esposa. Ela está adorando São Paulo.
Levanto-me com Maria Alice no colo e me despeço de Alberto, que
assente para Sebastião e sai em direção ao jardim, onde seu motorista o
espera com o carro.
— Acho que o dia que eu darei razão a você ainda não chegou —
digo, inexpressivamente, não perdendo a oportunidade de contar vitória.
— Você só se deu bem, pois Maria Alice é uma lady. Queria ver
essa facilidade toda com uma criança berrando no seu ouvido a tarde
inteira...
Antes que Sebastião termine, sinto algo sendo respingar em meu
rosto, o que me faz fechar os olhos por reflexo.
— Merda. O que foi isso? — pergunto, sentindo gotas geladas no
meu rosto e pescoço.
Abro os olhos lentamente e vejo a caneta estourada na mão pequena
suja de tinta.
Maria Alice sorri e resmungo ao ver que o colarinho está todo sujo
de tinta azul.
— Essa camisa não.
— Isso, Maria Alice. É disso que estou falando, garota.
Sebastião se diverte e avisa:
— Tô voltando agora para pegar meu carro no escritório.
— Levo você de volta.
— Não precisa. Uma colega está vindo me buscar.
Sebá se aproxima e beija a mãozinha de Maria Alice,
cumprimentando-a:
— Foi um prazer, milady.
Ela abre um sorriso largo e assistimos ao meu irmão se afastar pela
sala, sumindo através da porta de vidro.
Suspiro demoradamente e olho para a criança em meu braço, que
continua olhando para a porta, com as sobrancelhas levantadas.
— Parece que restou apenas nós dois, moça.
De repente, seu rosto se fecha e explode em um choro violento.
— Ei. Ei. Ei. O que foi? — pergunto, confuso, tentando acalmá-la.
Vou atrás de outra caneta no escritório, faço barulho com a boca,
levanto-a no ar, mas nada parece funcionar. É como se um botão tivesse
sido acionado e ela não para de chorar.
Em última instância, recorro a Claudia no jardim, que a leva para a
cozinha e amassa uma banana com o garfo com uma mão enquanto a outra
segura Maria Alice, que chega a ficar vermelha de tanto chorar.
Claudia dá uma garfada na boca de Maria Alice, que logo silencia,
parecendo milagrosamente se acalmar.
Suspiro aliviado.
— Era fome — balbucio, pousando a mão na cintura.
— Eu deveria ter avisado que ela ainda não tinha lanchado —
explica Claudia. — Ela atrapalhou muito o senhor hoje?
— Na verdade, não. Ela foi uma boa garota. Pensei que crianças do
tamanho delas estranhassem com mais facilidade...
— E estranham. Mas Maria Alice não é como as outras crianças.
Ela, desde que nasceu, tem o costume de ficar na casa da vizinha. A pobre
da irmã, que é a responsável legal dela, mal tem tempo para ficar com
Maria Alice. Hoje mesmo a coitada foi procurar emprego, mas não tenho
ideia de como fará para dar conta. Para falar a verdade, seu Lauro, tenho
tanta pena dessas meninas.
— E onde está a mãe delas?
— Faleceu quando deu à luz a Maria Alice lá no nordeste. Elas
vieram de uma realidade muito sofrida, seu Lauro.
— Tão nova e encarando problemas tão difíceis — penso alto,
olhando para a menininha inocente no braço de Claudia.
— Mas é verdade mesmo que o senhor quer ser pai?
Calo-me, não sabendo como reagir à pergunta de Claudia, pois não
estou habituado a comentar sobre minha vida pessoal com meus
funcionários, mas graças ao infeliz do Sebastião, Claudia me questiona
despretensiosamente.
Para não causar um mal-estar depois da tarde que partilhei com
Maria Alice, respondo:
— Sim. Estou pensando em ter um filho.
— O senhor já tem uma mãe em mente? — Claudia parece cruzar a
linha de discrição com sua pergunta, mas se dá conta no mesmo minuto. —
Perdão, patrão. Isso não é da minha conta.
— Na verdade, estou pensando em ter um filho sozinho.
— Sozinho? — Suas sobrancelhas se curvam em um arco. — O
senhor vai adotar?
— Na verdade, estou estudando algumas alternativas, mas não tenho
nada definido. — A menina se agita em seu colo e digo por fim: — De toda
forma, espero que meu herdeiro seja tranquilo como Maria Alice.
A garota esboça um sorriso ao ouvir seu próprio nome e Claudia
comenta:
— Acho que ela também gostou do senhor.
Não sou do tipo que sorri com frequência, mas neste momento sinto
o canto da minha boca se esticar automaticamente ao escutar as palavras de
Claudia, sendo contagiado pela energia doce daquela pequena criatura pura.
 
 

CAPÍTULO 13

Alguns dias depois


 
— Eu consegui um emprego, Claudia. Consegui! — dou a boa
notícia ao vê-la entrando no barraco com Maria Alice dormindo em seu
ombro.
Seu rosto parece apático, como se não tivesse tido um dia bom.
Imediatamente, pego Maria Alice do seu colo, envergonhada de estar dando
tanto trabalho a ela.
— Aconteceu alguma coisa na mansão?
— Não. Nada, menina. Apenas coloque Maria Alice na cama lá no
quarto.
Faço o que ela pede e depois volto para a sala a fim de
conversarmos.
— Aconteceu alguma coisa, Cláudia? — insisto em perguntar,
desconfiada, mas ela não quer me falar nada. — Seu chefe pode não ter
gostado da presença de Maria Alice lá... É isso, não é?
— Não. Seu Lauro, na verdade, até gosta da Maria Alice, mas hoje
levei uma bronca da governanta e não posso mais levá-la comigo. — Ela
muda de assunto: — Você disse que conseguiu um emprego. Foi isso
mesmo que eu escutei? — O tom de voz de Claudia, que normalmente é
otimista, está mais amuado.
— Sim, de vendedora em um camelô na 25 de março.
— Vendedora? — Ela une as sobrancelhas como se isso fosse um
péssimo emprego.
— Algum problema?
— Já pensou com quem a Maria Alice vai ficar?
— Ela vai comigo.
— Para a 25 de março? Naquela loucura? Eu não posso deixar uma
coisa dessas.
— Nós não temos alternativas.
Ela ergue o dedo em riste e agora parece zangada.
— E quem vai ficar olhando a criança quando você estiver
atendendo os clientes? Isso é perigoso demais para sua irmã, Sol.
Retraio, um pouco assustada com sua bronca inesperada.
Claudia suspira e depois pousa as mãos na cintura, soltando o ar
pela boca.
— Me desculpe, Sol. Eu realmente não tive um dia bom e também
não quero que nada de mal aconteça a vocês, meninas. Maria Alice é apenas
um bebê e você, apenas uma criança.
— Não me leve a mal, mas não sei o que é ser criança há muito
tempo, Claudia. Eu quem peço desculpa. Não deveria ter a sobrecarregado
tanto com Maria Alice. Agora, eu não consigo raciocinar direito como vou
fazer para trabalhar e cuidar da minha irmã ao mesmo tempo, mas essa é
uma responsabilidade somente minha.
— Sol... — Claudia passa a mão pelos cabelos e me pergunta: —
por acaso já pensou em entregar a Maria Alice para alguém com mais
condição?
— Como assim? — analiso suas palavras e me ofendo. — Como
entregar minha irmã para a adoção?
— Sim. Para pessoas em condições melhores, com tempo e padrão
de vida melhores... — Ela gesticula com as mãos.
— Não, Claudia. Isso nunca passou pela minha cabeça — respondo
sem pensar. — Mas de jeito nenhum eu cometeria um absurdo desses.
— Desculpe. Eu não queria ofendê-la, apenas estou tentando achar
uma solução para essa situação, Solange. Meu chefe, por exemplo, é um
homem muito rico e está interessado em ser pai, eu penso que...
— Espera aí... Você está pensando que vou dar minha irmã para seu
chefe criar? — pergunto, exasperada com o rumo que a conversa está
tomando.
— Não necessariamente para o seu Lauro, não sei se ele se
interessaria, mas podemos encontrar outra família... Mas sendo bem
sincera, eu no seu lugar, Sol...   — ela suspira — não pensaria duas vezes.
Balanço a cabeça em negativa, respirando fundo, e digo por fim:
— Eu vou dormir com a Maria Alice aqui na sala. Amanhã mesmo
vamos procurar outro lugar para ficar.
— Sol...
— Sou muito grata por tudo que fez por nós. Mas não posso
continuar debaixo do mesmo teto que a senhora depois de me sugerir algo
tão desprezível.
CAPÍTULO 14

 
— Tem esse fone de ouvido na cor preta? 
— Acho que sim. Vou dar uma olhadinha rapidinho no estoque para
você — digo ao cliente de rosto escuro devido à sombra do seu boné sob o
sol escaldante que faz em São Paulo.
— Chefe, a senhora pode olhar minha irmã rapidinho enquanto vou
até a kombi ver se tem esse fone de ouvido na cor preta?
Ela me olha com cara de poucos amigos, mas assente:
— Vá lá.
— Volto já, mocinha. Comporte-se — aviso a Maria Alice sentada
no chão forrado de papelão ao lado da nossa mala com roupas e planto um
beijo no alto da sua cabecinha.
Apresso-me em chegar ao carro branco estacionado na rua ali perto
e faço tudo muito rápido, ficando feliz por ter ainda disponível um fone na
versão preta. Faço o caminho de volta correndo e procuro pelo cliente, mas
encontro somente a mulher de traços asiáticos do lado de fora da barraca,
distraída com seu telefone.
Meu olhar recai automaticamente para o chão onde estava Maria
Alice e meu estômago gela quando não a encontro.
— Onde ela está? — Vou até a minha chefe.
— Ela quem?
— Minha irmã, mulher! — digo, desesperada.
— Não sei. Ela não está na barraca?
— Merda! — Passo a mão no cabelo e me jogo no meio da rua,
olhando para os lados.
Avisto o homem de boné dobrando a esquina com Maria Alice no
colo e meu coração dispara ao mesmo tempo em que corro até eles, como se
minha vida dependesse disso, minha pulsação martelando em meus ouvidos
e as pernas formigando. Quando estou quase perto, o desgraçado olha para
trás, mas sou mais rápida ao gritar.
— Socorro! Ele está levando minha irmã!
Ele tenta fugir, mas um grupo de trabalhadores o cerca.
— Ela é minha irmã, ele quer fugir com ela — grito, a voz
embargada.
— Entregue a criança! — Escuto o homem corpulento exigir.
Sem saída, ele joga Maria Alice para os braços de um dos
trabalhadores e, ardilosamente, ele se enfia entre a brecha de dois homens e
escapa sozinho entre a multidão.
Tremendo muito, o medo esmagando meu peito e se alastrando pelo
meu corpo, assisto ao homem caminhar em minha direção com a Maria
Alice nos braços, quando ele me entrega, abraço-a forte e ajoelho no chão,
não controlando as lágrimas que pulam incessantemente dos meus olhos. Só
sei chorar, assustada, amedrontada, sendo consumida por uma sensação
ruim que jamais pensei que sentiria, enquanto escuto a voz masculina
comentar ao meu redor:
— Esses urubus sempre estão à espreita de um vacilo para roubarem
nossas crianças. Por muito pouco essa menina não foi vítima da maldade
dessa gente.
Algumas horas depois
Sol
 
— O que ainda estão fazendo aqui?
Retornamos ao barraco de Claudia minutos depois do ocorrido na 25
de março e, como não tinha mais as chaves, ficamos sentadas na calçada até
que anoitecesse e ela voltasse da mansão.
Levanto minha cabeça para a mulher parada na rua a um metro de
distância, que parece surpresa com nossa presença, imediatamente me
coloco de pé com Maria Alice no colo.
Com o corpo anestesiado, a cabeça pesada de tanto pensar e o medo
consumindo, reúno coragem para dizer, com o tom de voz meio arredio,
olhando para baixo.
— Eu pensei no que me falou ontem à noite... e eu... — Encaro-a e
sinto o ar me faltar e inspiro fundo para não me asfixiar em pensar no que
estou prestes a fazer. — Eu quero procurar uma família melhor para minha
irmã. Não quero que por minha causa, algo aconteça a Maria Alice. Não
quero.
Balanço minha cabeça em negativa, segurando o corpinho da minha
irmã contra mim, enquanto meus olhos embaçam com as lágrimas, ao passo
que minha garganta se comprime com a pressão dentro do meu peito.
Mesmo receosa, prossigo:
— Não quero que ela viva essa vida miserável que o destino nos
reservou, mulher. Não quero que ela cresça e viva apenas para sobreviver
como eu. Quero que ela cresça e tenha uma vida de verdade, sabe? Boa.
Tranquila. Uma vida que vale a pena ser vivida.
CAPÍTULO 15

Um dia depois
 
Ajusto o nó da gravata no pescoço ao chegar à cozinha, em seguida
encontro Claudia logo pela manhã cedo ajeitando os armários superiores.
— Bom dia.
— Bom dia, patrão.
Retiro meu suplemento proteico de umas das portas da geladeira e
logo procuro pela menina ao redor da cozinha.
— Ela não veio hoje?
— Maria Alice? — ela questiona me olhando por cima do ombro.
— Sim.
— Não estou mais a trazendo faz uns dias, dona Lúcia me pediu
para que não a trouxesse mais, para não me distrair enquanto realizo minhas
obrigações.
Embora seja tentador anular uma ordem de Lúcia, não o faço, pois
ela apenas levou o trabalho a sério, como espero de todos que trabalham
para mim.
— Aliás, queria conversar com você, Claudia. Não sei se Lúcia já
comentou algo, mas ela está prestes a se aposentar e preciso de alguém que
conheça as coisas aqui para assumir o seu lugar. Como a conheço há anos e
confio no seu trabalho, pensei em você.
— Oh, patrão! Muito obrigada! — Ela une as mãos em um gesto de
agradecimento.
— Por nada. Sei que desempenhará um ótimo trabalho.
Contudo, mesmo assim, subitamente sou tentado a perguntar:
— Mas como ela está?
— Dona Lúcia?
— Não, a criança.
— Ah... — Ela sorri, sem jeito. — Ela está com a irmã mais velha
agora. Mas não tem com quem ficar. A irmã, coitada, não tem como
trabalhar e mal tem como dar conta de si mesma. Ontem, ela decidiu que
procurará uma família para cuidarem de Maria Alice.
— Ela está pensando em dar a irmã? — Confesso que fico um
pouco surpreso com a informação.
— Isso mesmo, patrão.
— Que tipo de gente é a irmã de Maria Alice? — penso alto.
— Não a julgue, patrão. Ela é apenas uma menina também.
— Quantos anos tem a menina?
— Não sei. Acho que vinte ou vinte e dois. Algo assim.
— Já tem idade suficiente para discernir o certo do errado.
— Perdão, seu Lauro, mas o senhor sabe como é amar uma criança
do seu mesmo sangue, matar um leão todos os dias apenas para manter o
seu sustento e, mesmo assim, não ter dinheiro suficiente para lhe garantir o
básico?
Claudia faz o improvável, deixa-me sem argumentos.
— Desculpe. Apenas fiquei preocupado com o destino da criança e
não tenho nada a ver com a situação.
— Eu quem peço desculpas, senhor.
Aquiesço e abro a garrafa de suplemento em minha mão.
— Vou indo, então. Tenha um bom dia, senhora.
Ela assente de volta: — Bom dia, patrão.
— Espero que Maria Alice encontre uma boa família — digo, sem
jeito. De alguma maneira, torço muito por aquela menininha. Ela me
cativou tanto, que me sinto um pouco mal com sua situação.
— Amém.
Tranquilamente, Claudia se vira para o armário e faço meu caminho
de volta, mas acabo estancando os passos na soleira da porta.
Porra. Por que de repente tão comovido com a história dessa
criança?
Giro o corpo novamente, em direção à Claudia, perguntando em alto
e bom som:
— A irmã de Maria Alice... — A senhora se vira para me escutar e
termino: — Ela está ciente de que nunca mais poderá procurar a irmã
novamente? Quero dizer... ela está disposta a assinar todos os papéis para
sumir para sempre da vida da garota ao entregá-la para uma nova família?
 

CAPÍTULO 16

Alguns dias depois


 
— Você tem que assinar mais estes papéis que o advogado pediu —
diz Claudia, entregando-me mais três folhas sobre a mesa branca de plástico
em sua cozinha, enquanto Maria Alice dorme no quarto ao lado.
— Pra que tantos?
— Ele quer garantir que não volte atrás e a tome dele no futuro.
— Já disse que voltarei ao nordeste.
— Palavras não valem nada no mundo do seu Lauro, Sol.
Respiro fundo e assino novamente.
Cada assinatura que deixo nestes papéis é como se uma parte de
mim morresse gradualmente.
Mas eu não desistirei, está decidido! Maria Alice viverá uma vida
digna e promissora, enquanto eu voltarei para o nordeste assim que
conseguir dinheiro para comprar a passagem de volta. Estou disposta a
desaparecer da vida de Maria Alice, para que assim não haja sofrimento em
sua história, mesmo que eu não tenha a mesma sorte, pois provavelmente eu
nunca a esquecerei.
Termino de assinar tudo e entrego os papéis para Claudia.
— O motorista está chegando, é melhor se despedir agora, Sol.
Meneio a cabeça em negativa e passo a língua entre os lábios,
prendendo o choro.
— Não vou conseguir — confesso, sentindo meu coração arder,
acertado por uma dor esmagadora. — Não vou conseguir me despedir dela.
Claudia toca minha mão, como quem consola e encoraja alguém.
— Tudo bem, Sol. Eu acho que compreendo. Você tomou a decisão
certa. Maria Alice agora viverá dignamente, eu prometo.
 

CAPÍTULO 17

 
— Você só pode ter enlouquecido, Lauro. Enlouquecido! Como
você simplesmente pega uma criança para criar assim de repente?
— A senhora mesmo me disse que eu deveria adotar ao invés de
procurar por uma barriga de aluguel. Acho que sou eu quem não estou mais
entendendo a senhora, mãe.
— Como eu imaginaria que de repente você pegaria uma criança
para cuidar? Assim, do nada. Sem processo de adoção... E os pais dela,
Lauro? — ela pergunta, acusativa.
— Claudia me contou que a mãe faleceu, e o pai não quer saber da
criança. Sua guardiã legal, que é a irmã, está assinando uma procuração me
garantindo a guarda total de Maria Alice.
— Meu Deus!
— Escute, mãe. Não a chamei aqui para discutirmos, mas sim para
pedir sua ajuda.
— Ajuda?
— Sim. Maria Alice está chegando com Claudia e o motorista, e,
embora ela seja uma criança tranquila, achei que precisaria de uma figura
feminina para não existir qualquer estranhamento em sua adaptação.
— Quer que more aqui, com vocês?
— Ao menos até que Lúcia contrate uma babá.
Ela me olha como se ainda quisesse cortar minha cabeça fora, e
completo:
— Se quiser, pode fazer suas coisas pela manhã, sair com suas
amigas, ir ao salão, pode continuar com sua rotina normal, mas preciso que
durma aqui nestas primeiras noites.
Ela encara, ainda silêncio, e a encaro em expectativa, esperando pela
sua resposta positiva.
— Eu achava que você tinha juízo, Lauro. Mas pelo visto eu estava
enganada —confessa, suspirosa e, por fim, como previ, ela se rende. — Eu
dormirei com a menina, por enquanto. Mas você tem que contratar uma
babá o mais rápido possível. Eu já cuidei de quatro crianças e acredite, não
foi nada fácil. Se quer tanto um herdeiro, que arque com tudo,
principalmente com os ônus que uma criança traz, como Conrado faz muito
bem. — Conrado é o meu irmão mais velho, um homem diferente de mim
em muitos quesitos, porém, temos o mesmo senso de responsabilidade, o
que já falta em demasia em Sebá. — Não serei a vovozinha boazinha que
cuida de neto.
— Seu Lauro? — a voz familiar adentra o escritório e encontro
Claudia na porta com Maria Alice no colo. — Chegamos.
Ela caminha até mim e me entrega, cuidadosamente, em meus
braços a menina vestida com um conjuntinho rosa-chiclete. Maria Alice
está com um ar de quem acordou há pouco tempo, mas seus olhinhos estão
espertos e sua carinha tranquila.
— Essa é a Maria Alice? — sussurra minha mamãe à minha frente.
— A própria — sussurro de volta.
— Mas que criança linda! — ela sorri, encantada.
Minha mãe se aproxima devagar e toca a mão gorducha de Maria
Alice, que encara com curiosidade arregalando os olhos. Minha mãe
gargalha com a expressão que faz ao olhá-la e sussurra com a voz mais fina:
— É a vovó?
Quando dou por mim, minha mãe já está rendida por este par de
bochechas sorridentes e irresistíveis.
Raras são às vezes que presenciei com os olhos brilhando e um
sorriso largo no rosto. Talvez, devido ao casamento conturbado com meu
pai e as traições incessantes, dona Vera havia se tornado uma mulher
amarga com pessoas que não conhecia e reservava afeto apenas para os
filhos e amigas mais próximas. Mas parece que a pequena Maria Alice
havia conseguido um feito inédito: conquistar minha mãe à primeira vista.
“Não serei a vovozinha boazinha que cuida de neto”? Mal posso
esperar para ver minha mãe pagar a língua.
CAPÍTULO 18

No dia seguinte
 
— Eu vou devolver este dinheiro assim que conseguir um bico em
Campina Grande, Claudia — prometo na rodoviária, com o ônibus atrás de
mim prestes a sair.
— Não precisa, Sol. Já disse que expliquei ao seu Lauro que queria
voltar ao nordeste, ele fez questão de dar a quantia para pagar sua
passagem. Acredite, o homem não quer esse dinheiro de volta.
Não conheço seu Lauro pessoalmente, embora Claudia tenha me
contado sobre sua boa índole e sua família abastada proveniente do Rio
Grande do Sul, nunca vi nem fotos. E pela forma com que as coisas foram
feitas, algo me diz que ele me quer bem longe de Maria Alice – o que era
compreensível –, afinal, esse é o acordo.
— Agora vá, Sol. Seja feliz, menina.
Quero dizer que isso não será possível, mas apenas abro um meio-
sorriso triste e me despeço antes que eu volte a chorar.
Caminho até a porta do ônibus e aceno com a mão para Claudia, que
faz o mesmo atrás da grade.
Sorvo uma boa quantidade de ar e tomo coragem para subir pelos
degraus para dentro do ônibus. Esfrego meus próprios braços com as mãos,
devido ao frio que fazia em seu interior e me direciono a última fileira ao
lado do banheiro, a única que restava quando comprei o bilhete mais cedo.
Sento-me ao lado da janela e fico reflexiva em meu canto. O ônibus
finalmente dá partida e agradeço por não ninguém ter ocupado o lugar ao
meu lado, embora todas as outras poltronas restantes estejam com seus
respectivos donos.
Ao longo que o ônibus se afasta da rodoviária, perco-me em
devaneios, perguntando-me se Maria Alice já jantou uma hora dessas. Ela
sempre dorme mal quando come muito tarde e prefere sempre o leite morno
antes de dormir.
Deus!
Se eu continuar pensando nela, aos poucos definharei com a culpa.
No entanto, aplacar meus pensamentos é quase impossível.
Minha cabeça não consegue parar de imaginar se as coisas tivessem
sido feitas diferentes. É como se estivesse começando a pagar minha
sentença por ter aberto mão de Maria Alice, mesmo não tendo outra opção
diante do medo que me paralisou dias atrás.
Droga!
A voz da minha mãe invade meus pensamentos e meu peito se
comprime ao me lembrar de suas últimas palavras pedindo para cuidar de
Maria Alice e procurar pelo meu pai.
Eu já não tenho como encontrar esse sujeito em uma cidade tão
grande como essa, mas...
Merda!
O que eu estou fazendo? — Como se eu recobrasse o juízo, levanto-
me em um rompante.
Eu não posso.
Não posso!
Não posso deixar Maria Alice nesta cidade. Não posso deixar
minha irmã para sempre.
Arrasto meu corpo para o corredor e me apresso em caminhar para a
porta de saída na frente do ônibus, mas sou barrada por um homem alto de
camisa branca e crachá metálico.
— Não pode entrar nesta área, é restrita.
— Eu preciso sair agora, moço!
— Como? Acabamos de sair da rodoviária. Não podemos
simplesmente interromper a viagem agora. Vai dar um trabalhão abrir o
bagageiro para encontrar sua mala. Isso atrasaria o todo o percurso.
— Você vai me obrigar a ficar no ônibus sem eu querer? Eu pulo
pela janela, viu? — ameaço.
Ele sorri.
— Está duvidando de mim? Eu pulo mesmo!
Ele me olha como se fosse uma passageira problemática, mas talvez
eu seja mesmo.
— Tudo bem, vamos parar o ônibus.
Ele abre a porta e pede para que o motorista pare no acostamento.
O homem de farda sai assim que o ônibus para, em seguida abre o
bagageiro para procurar minha mala, que é atirada no chão assim que ele a
encontra.
— Pronto. Algo mais?
— Não, senhor.
— Tenha uma boa noite, senhorita – ele me cumprimenta, a
contragosto.
— Obrigada.
Ele me dá as costas e volta para dentro do veículo, que dá partida
logo em seguida.
Olho para o lado, na direção em que o ônibus veio e abraço o meu
próprio corpo quando um carro passa em alta velocidade ao meu lado e os
meus cabelos levantam com o vento.
— A rodoviária não deve ser tão longe daqui – murmuro comigo
mesma, abaixando os braços e pescando a alça da minha mala no chão,
decidida a voltar atrás e buscar minha irmã.

Voltando à rodoviária, como era de se imaginar, Claudia já foi


embora. Então, decido seguir as instruções de algumas pessoas que cruzam
meu caminho e comprar uma passagem de metrô com os últimos trocados
que tenho no bolso, com destino ao bairro dela.
Caminho por mais alguns metros, confusa sobre seu endereço, mas
acabo achando sua casa quando eu já não tenho mais forças para carregar
minha mala sozinha.
Bato à porta algumas vezes e escuto sua voz desconfiada, indagar:
— Quem é?
— Sou eu, mulher.  Solange.
— Sol? — Rapidamente escuto a chave virar no trinco e dou de cara
com seu rosto em espanto. — O que você ainda está fazendo aqui, menina?
Ofegante, respondo:
— Eu não vou embora de São Paulo. Não sem minha irmã.
— Crendeuspai! Você perdeu o juízo?
— Perdi o ônibus também, mas isso não importa agora. Eu quero
minha irmã de volta.
— Não pode fazer isso, Sol. Você assinou os papéis, é tarde
demais...
— Que dane esses papéis. Eu quero minha irmã de volta, antes que
seja realmente tarde demais — exalto-me.
— E como vai fazer para sustentar sua irmã? Você se esqueceu de
que não tem dinheiro nem para se sustentar, Sol. Lembra da razão que a
levou fazer o que fez, menina. Seu Lauro dará um futuro melhor a Maria
Alice. Ela ficará bem...
— E como eu fico? Me diz como posso viver essa culpa rasgando o
meu peito a todo instante?
— Isso vai passar com o tempo, você vai esquecendo...
— Não, não vai passar — rosno, limpando as lágrimas dos olhos
com o antebraço. — É pesado demais para passar. Sabe quando vou
esquecer de Maria Alice? Mas é nunca! Nem que eu viva um milhão de
anos, nunca vou me esquecer da minha irmã. Não posso simplesmente
abandoná-la e agir como se ela nunca tivesse existido, pois ela sempre vai
estar aqui. — Encosto a ponta do dedo na minha têmpora e murmuro: — Na
minha cabeça. Martelando. Me lembrando do tipo de irmã que me tornei.
Agora, me fale, onde seu patrão mora? Eu irei lá agora mesmo.
— Eu não posso. — Ela balança a cabeça em negativa, com os olhos
assombrados.
Limpo as lágrimas dos olhos, dando-me conta de que eu realmente
perdi minha irmã e desabo no chão, ficando de joelhos perante Claudia.
— Por favor... — desespero-me, iniciando um choro violento. —
Foi um erro. Por favor, mulher! Eu não posso viver sem Maria Alice...
— Levanta daí, Solange.
Deito minha cabeça nos seus pés e rogo sem cessar.
— Tá bem. Eu digo.
Levanto a cabeça, ainda soluçando muito.
— Primeiro, levante-se.
Faço o que ela pede, colocando-me de pé e cambaleio para trás.
— Agora, acalme-se. Não tente fazer nada de cabeça quente, isso
pode complicar ainda mais a situação. Que tal entrarmos, lavarmos esse
rosto e pensamos em alguma coisa juntas?
Reluto um pouco, ainda com o peito subindo e descendo, mas chego
à conclusão de que ela pode estar certa, posso piorar ainda mais a situação
no estado em que me encontro. Então decido novamente confiar naquela
senhora, pois, afinal de contas, não tenho tantas opções.
CAPÍTULO 19

 
Às quatro da manhã, espio mais uma vez pela fresta da porta e
avisto a criança, já mais calma e em sono profundo, agarrada a minha mãe
em cima da cama de casal, de um dos quartos que até dias atrás estava
desocupado.
Suspiro em alívio, já que a noite de hoje não foi das mais fáceis.
Não consegui sequer pregar os olhos, enquanto ouvia o choro incessante da
garotinha. Se não fosse pela boa experiência da minha mãe com
maternidade, acharia até que Maria Alice estaria sentindo algum tipo de dor
física, mas, pelo visto, não foi o caso. 
Ao perceber minha presença, minha mãe desliza para o outro lado
da cama, deixando um urso de pelúcia marrom para ocupar o lugar vago ao
lado de Maria Alice, em seguida faz uma barreira de travesseiros do outro
lado da cama.
Ela caminha até mim e fecha a porta, para que possamos conversar.
— Finalmente, ela dormiu. — Ela suspira.
— Vou providenciar que agilizem a obra do quarto dela...
— Não acho que a falta de sono de Maria Alice esteja atrelada a um
quarto.
— Então?
— Acho que ela deve estar sentindo falta de alguma pessoa com
quem convivia. Talvez, a irmã.
Respiro pesadamente, pousando as mãos nos quadris.
— Mas não se preocupe. Na idade dela, é provável que se esqueça
logo.
— Tomara, mãe.
— Mas deixa de ser uma situação complicada. Confesso, que o
conhecendo da forma que conheço, não arriscaria prever que um dia você se
meteria em uma situação complicada como essa, Lauro.
Fico em silêncio, pois, de certa forma, concordo com suas palavras.
Nem mesmo eu sei bem o que me levou a querer Maria Alice como filha.
Mas, nesta posição, não me arrependo de nenhuma forma de ter feito o que
fiz e estou disposto a torná-la minha herdeira — uma parte de mim que
poderá dar continuidade a tudo que ergui e o que ainda vou construir.
Minha mãe respira fundo e diz por fim:
— Só espero que não tenha pegado esta criança apenas para fazer
dela uma herdeira. Criar um filho vai muito além do que isso, Lauro. Muito
além disso.
— Deveria saber que assumo os compromissos quando tomo uma
decisão, mamãe. Maria Alice será criada como uma filha legítima e me
esforçarei para que nada lhe falte, inclusive, afeto.
— Sendo assim, fico mais aliviada. — Ela suspira. — E a babá
dela? Já resolveu esta questão? Eu gosto muito dos meus netos, mas já disse
que não vou servir de funcionária para você, garoto.
CAPÍTULO 20

Dois dias depois


 
— Primeiro, preciso que você aja como se não me conhecesse. Pelo
menos na mansão, não fale comigo. É de extrema importância que
pareçamos totais desconhecidas.
Claudia explica em minha frente, enquanto presto atenção aos
detalhes sentada em seu sofá.
— Entendido.
— Segundo, leve isso consigo.
Ela me entrega um papel na cor verde-claro.
— O que é isso?
— Sua identidade...
— Identidade?
Ela completa:
— Falsa. Consegui com um dos moradores que sempre ajudo nas
ações comunitárias. Ele disse que essa é de boa qualidade.
Arregalo os olhos para o papel verde-claro em minhas mãos e minha
boca se abre em espanto. Nunca pensei que Claudia fosse capaz de ser
complacente com esse tipo de coisa.
— Mulher, que doidice! Se me pegam com isso, vou direto para o
xilindró.
Claudia bufa, impaciente.
— Você não pode se apresentar como Solange, menina. Meu patrão
não é bobo. Para falar a verdade, é justamente o contrário, ele é bem esperto
e tem um olhar clínico para erros. Ele reconheceria o seu nome facilmente
se o dissesse, sendo assim logo seríamos descobertas. E também é capaz
que eu fique em uma situação difícil por causa dessa mentira e perca o meu
emprego. E, outra, já não estava tudo certo? — Dessa vez, ela perde a
paciência.
— Mas usar uma identidade falsa parece demais para mim, mulher.
Não! Isso pode terminar muito mal — nego veemente, devolvendo o papel.
Ela resmunga baixinho consigo mesma penalizada:
— Maldita hora em que fui me meter no destino dessas duas, meu
Deus! Eu deveria ter ficado quietinha.
— Sinto muito por estar envolvida nesta situação, Claudia.
— Tudo bem. Não me eximo da culpa que tenho nesta confusão. —
Suspira pesarosa.
Claudia parece pensar por alguns segundos e retoma:
— Sol, já não tínhamos conversado sobre a situação e combinado
que você tentaria a vaga da babá de Maria Alice? — fala como se eu tivesse
dificuldade para entender. — Você não precisará voltar para a rua com sua
irmã e ainda continuará em um lugar seguro e tranquilo.
— Sim, mas se eu não conseguir essa vaga? Existe também essa
possibilidade.
Para começo de conversa, a sugestão de me infiltrar na casa do
patrão de Claudia pareceu absurda demais, mas diante de tudo o que Maria
Alice e eu passamos nos últimos dias, nada parece tão ruim quanto a
possibilidade de ficarmos sem teto e não ter o que comer.
— Você vai conseguir essa vaga — insiste Claudia.
— Como tem tanta certeza?
— Por que eu conheço todos os pré-requisitos para essa vaga.
Dificilmente alguém falará tudo o que Lúcia quer ouvir, mas, você sim, terá
em vantagem em relação às outras candidatas. – Ela suspira. — Eu só
preciso que aja como se não me conhecesse e a enrole quanto abrir uma
conta bancária, pelo menos, até Lúcia finalmente se aposente e eu assuma
estas questões. Posso contar com você?
Reluto em responder, mas, sem muitas alternativas, assinto com um
menear de cabeça. É como se estivesse em uma sinuca de bico.
CAPÍTULO 21

 
Paro na calçada de frente para o portão, do muro cinza e alto da
mansão que ocupa quase todo o quarteirão, e libero o ar preso em meu
pulmão de uma só vez.
De todas as vezes que me peguei nervosa em enfrentar uma
determinada situação, está sem sombras de dúvidas é a mais desafiadora e
assustadora. Minhas pernas estão moles feito geleia de mocotó e sinto cada
batida do meu coração martelar em meus ouvidos, de tão altas.
A última vez que ultrapassei o portão de alumínio, foi há dois dias,
para uma entrevista que demorou quase uma hora, mas que não me deu o
direito de ver minha irmã, embora a senhora que me entrevistasse não
fizesse a mínima ideia do que significo para Maria Alice.
Felizmente, o plano deu certo e cá estou eu, no meu primeiro de dia
de trabalho, como babá da minha própria irmã. Não vejo a hora de sentir
seu cheirinho doce e abraçá-la como se não houvesse amanhã. Tudo com
máxima discrição, Sol – a voz de Claudia reverbera em minha mente,
lembrando-me de que devo evitar levantar qualquer suspeita.
Tomo um pouco de coragem e finalmente atravesso a rua. Toco a
campainha e sou recebida por Claudia, que me recebe de modo indiferente,
seguindo o nosso combinado.
Da entrada da mansão, é possível vislumbrar quase toda a área
externa, que é composta de um charmoso deck na cor marfim,
espreguiçadeiras de um material chique e uma piscina de água cristalina.
Caminhamos pelo caminho de pedras achatadas pelo enorme jardim
de grama viçosa até a construção moderna de enormes vidraças no centro
do terreno, de longe avisto um homem jovem bem-apessoado de cabelos
pretos e de paletó escuro surge entre arbustos, com isso imediatamente
curvo minha cabeça respeitosamente.
Ele assente também, mas prossegue andando pelo jardim até o
portão por onde entrei.
Quando ele está longe o suficiente, pergunto curiosa:
— Aquele é o seu Lauro?
Claudia parece conter uma risada.
— Não, menina — ela cochicha. — Aquele é Fernando, o motorista.
Ele auxilia os funcionários com questões internas, já que seu Lauro costuma
dirigir no dia a dia.
— Ah, entendi.
Claro que não era o seu Lauro. Devia ter imaginado, embora
Claudia tenha comentado que seu patrão é um homem honrado na casa dos
trinta, provavelmente não deve ter a aparência jovial, muito menos, ser um
cabra bonito feito o Fernando. Caso contrário, não estaria desesperado
procurando por uma criança para tornar sua herdeira. Ao invés disso, já
teria engravidado uma mulher, a não ser que o pobre... Ah, tadinho. Será
que o seu Lauro é capado? 
— Lúcia me deu ordens para te levar direto para o quarto de Maria
Alice, onde ela está com a avó.
— Eu vou ver minha pitica agora? — pergunto, não me aguentando
de ansiedade.
— Sua pitica? Pelo amor de Deus, Sol — ela resmunga baixinho. —
O que foi que nós combinamos, menina?
— Só estamos nós duas aqui, qual o problema, mulher?
Ela respira pesadamente e olha para o lado, onde uma garota de
cabelos da cor de piche parece cuidar das flores no canteiro do terraço.
Devido ao meu nervosismo, nem reparei nela ali.
— Esta casa tem mais ouvidos do que paredes — cochicha Claudia 
ao meu lado. — Por favor, você tem que lembrar disso a todo momento. Eu
também preciso muito do meu emprego.
— Me desculpe, Claudia. Você tem razão. Isso não irá mais se
repetir — retrato-me, envergonhada.
— Certo. Agora vamos, que a filha do seu Lauro está a esperando
—ela diz, em um tom de voz um pouco mais alto.
— Sim, senhora! — respondo na mesma altura de sua voz.
Adentramos a sala da mansão e novamente a sensação de parecer
estar em outro mundo me acomete como no primeiro dia em  coloquei os
pés aqui.
Mas diferente daquele dia, agora estou subindo as escadas em vez
de pegar o caminho até a área de serviço, onde fui entrevistada pela
governanta. Naquele dia, eu também estava nervosa como agora, só que a
diferença é que a ansiedade de rever o rostinho de Maria Alice faz com que
meu peito se encha de um sentimento bom, não torturado.
Paramos em frente a uma das primeiras portas do corredor do
segundo andar e Claudia anuncia minha chegada:
— Senhora, a babá de Maria Alice está aqui.
— Peça para que entre. Uma outra voz feminina recende do quarto
na frente de Claudia, que me dá espaço para que eu possa passar.
— Boa sorte — ela sussurra, enquanto faço o caminho para dentro
do quarto iluminado pela luz natural que sai das enormes vidraças da parede
rosa-claro.
O cheirinho de madeira nova invade minhas vias respiratórias e se
mistura com a ansiedade em meu peito, ao procurá-la pelos cantos daquele
espaço cheio de brinquedos e móveis planejados. Direciono meu olhar para
cama ao lado de um berço de madeira clara e encontro Maria Alice sentada
no colo de uma senhora, que, a princípio, não consigo encará-la nos olhos,
pois só tenho olhos para minha irmã, que parece diferente dentro de
roupinhas em tons pastéis e tecido delicado, coisa de gente fina.
Quando seu olhar cruza com o meu, um sorriso banguela desabrocha
iluminando seu rostinho perfeito. Meu Deus! Eu quero chorar, mas disfarço
desviando o olhar para a senhora que me analisa da cabeça aos pés.
Pigarreio e a cumprimento lembrando do nome que Claudia havia
mencionado:
— Boa tarde, dona Vera.
— Boa tarde — diz ela sem muita emoção na voz e continua me
encarando estranho.
— Sou a babá de Maria Alice...
— Eu sei. Como é mesmo o seu nome? Lúcia me disse, mas
esqueci.
Engulo em seco, mas a respondo:
— Natália.
Ela fixa o olhar em minhas sapatilhas gastas e retraio, um tanto
constrangida.
— Algum problema? — pergunto, sem jeito com seus olhares
demorados.
Deslizo as mãos para o bolso de trás da calça jeans, para ela não me
perceber tremendo. 
— Não. — Ela levanta com Maria Alice no colo e pega uma fralda
de dentro do berço para forrar o ombro. — Apenas pensei que Lúcia
contrataria alguém com mais idade. Quantos anos você tem? Parece ser tão
novinha.
— Vinte e dois, senhora.
— Tem experiência com crianças?
— Já trabalhei como babá no ano passado... — engulo em seco,
tendo que fazer o que sei fazer de pior; mentir –, e também eu cuidava das
minhas primas.
— Espero que não cuide de Maria Alice como cuidava das suas
primas — ela diz, tornando o clima desagradável.
Não preciso de muito para desconfiar de que a mãe do seu Lauro
seja a antipatia encarnada.
— Para falar a verdade eu cuidava muito bem delas, senhora —
retruco.
Embora seja mentira, sei que trataria minhas sobrinhas muito bem
caso tivesse.
— De todo modo, você cuidará da minha neta. Não quero que a trate
como se fosse qualquer criança, ela requer um tratamento diferenciado.
Oxe! Mas que mulherzinha mais preconceituosa!
Maria Alice terá um tratamento diferente de pessoas pobres só por
que a intitulou como sua neta?
Ela novamente lança um olhar de desprezo para minhas sapatilhas e
completa:
— E tente vir mais apresentável.
— Sim, senhora. — Assinto, a contragosto.
— Eu não deveria ter saído desta casa no dia das entrevistas.
Deveria ter ficado para selecionar melhor essa gente — ela pensa alto,
mesmo sabendo que estou escutando tudo.
Distraio-me com o sorriso de Maria Alice para mim, estendendo os
bracinhos agitados para que eu a pegue.
Como se nós tivéssemos ligados por ímã, aproximo-me e a pego dos
braços da senhora rabugenta.
Maria Alice me abraça sob os olhares da sua nova avó e tenho a
constante sensação de que estamos sendo observadas.
— Ao menos tem carisma — ela analisa, balançando a cabeça em
seguida. —Escute, Natália, precisarei sair agora para ver os preparativos da
minha festa de aniversário.
— A senhora faz aniversário hoje? Meus parabéns, senhora! —
digo, rapidamente.
— Não, meu aniversário não é hoje, mas sim daqui a quatro meses.
Eu só gosto de organizar tudo com antecedência.
E bota antecedência nisto!
— Espero que se dê bem com minha neta. O pai dela chegará no fim
da tarde, já eu provavelmente demorarei a voltar. Qualquer dúvida ou algo
que precise, pergunte a Lúcia ou qualquer funcionária desta casa. Elas
saberão o que fazer.
— Sim, senhora, dona Vera.
Volto a encarar minha pitica e escuto a senhora respirar fundo à
nossa frente.
— Bem... então vou indo. Cuide bem desta princesinha — orienta,
olhando para minha irmã com amor.
Parece que com Maria Alice, ela deixa a antipatia de lado e dá vazão
a uma versão mais amorosa. E eu gosto disso, lógico, pois reforça ainda
mais o que Claudia me garantiu alguns dias atrás, que Maria Alice seria
muito amada nesta casa.
Dona Vera se despede de Maria Alice, quando finalmente nos
encontramos sozinhas, cubro minha pitica de beijinhos e mordo sua
barriguinha rechonchuda, enquanto ela solta um gritinho de alegria.
— Eu senti tanta, tanta, tanta saudade sua, minha pitica — não
contenho a emoção ao passo que ela regulariza a respiração depois de dar
tantas risadas. — Eu prometo que nunca mais vou ficar mais tantos dias
longe. Eu prometo. — Ela cola minha testa na sua e abre o sorriso banguelo
mais lindo do lindo, lembrando-me de que estamos juntas outra vez. — Que
roupinha linda é essa que você está usando? Mas esta moça tá muito
chique.

A manhã foi uma verdadeira festa naquele quartinho.


Maria Alice engatinhava de um lado para o outro pegando seus
brinquedos novos para me mostrar e se animava quando recitava um
repente, batendo palminhas fora de ritmo, ultrapassando todos os limites de
fofura possíveis quando solavancava o corpinho para frente e para trás
dançando.
Quando eu me pegava olhando para os lados, era como se todos
aqueles móveis me lembrassem de que a vida que levamos na rua, dias
atrás, estava longe demais de ser o apropriado para uma criança, e isso até
me consolava, porque de agora em diante Maria Alice terá acesso a uma
vida confortável que sempre sonhei em dar a ela.
— Aí não, mocinha!
A noite já caiu lá fora quando retornamos ao andar superior, após
Maria Alice jantar na cozinha, enquanto segui as instruções de dona Lúcia,
assim como foi durante o almoço de hoje. 
Agora, a danadinha engatinha explorando no corredor em outra ala
da mansão, como se procurasse por algo nos quartos, puxando consigo o
seu inseparável ursinho marrom de pelúcia.
Ela adentra um dos quartos no final do corredor, entro em alerta ao
sentir a presença de uma essência marcante de um perfume masculino
exalando dos cantos.
— Vixi. Porta errada, chefe — brinco e me abaixo imediatamente
para pegá-la no colo, observando a cama espaçosa no centro do quarto e a
decoração monocrática ao redor. — Vamos cair fora antes que o dono
apareça.
Não é difícil deduzir de quem o quarto é, por isso recuo alguns
passos e fecho a porta, retornando à ala onde fica o quarto de Maria Alice.
— Onde vocês estavam? — pergunta dona Lúcia, parecendo estar
nos esperando. — Já está quase passando da hora do último banho dela.
Ela pega Maria Alice do meu colo e a carrega até a banheira com
água morna armada perto da janela.
Subitamente, Maria Alice começa a chorar e dou um passo para
frente instintivamente.
— Que é isso, princesinha? Por que está chorando? — Dona Lúcia
assobia meio constrangida, olhando-me de rabo de olho. — Onde está o
ursinho dela? — ela me pergunta.
— O quê?
— Sim, o urso de pelúcia dela que ela gosta. Onde ele está? — ela
me pergunta como se tivesse cometido um erro horrível.
— Não sei. Eu acho que ela deixou cair no meio do caminho —
respondo em meio ao choro de Maria Alice.
— Volte e o pegue de volta! Acho que a menina está sentindo falta.
Não acho que esse seja o problema, mas não ouso me opor a ordem
da governanta. Como minha mãe sempre dizia; manda quem pode, obedece
quem tem juízo, e normalmente, eu sempre tenho muito juízo.
— Tudo bem. Eu já volto — digo, nervosa.
Saio rapidamente pela porta, fazendo o caminho contrário,
procurando por todos os cantos pelos quais passamos há pouco tempo.
— Onde você se meteu, cabra?
Fecho mais uma porta e sigo para a próxima.
— Ah, aí está você, danado! — digo baixinho, finalmente achando a
pelúcia marrom de barriga para cima.
Entro no quarto e o pesco do chão.
Em seguida, olho em volta e noto que estou no quarto monocrático
novamente.
Sorvo o cheiro delicioso impregnado naquele cômodo e o inspiro
sem pressa, enquanto passo os olhos pelos cantos, tentando colher alguma
informação sobre o dono daquele quarto.
É muito provável que seja o quarto do seu Lauro, fazendo dele uma
pessoa com um ótimo gosto para perfumes. A essência é simplesmente
viciante e extasiante quando penetrada nas vias respiratórias e apreciada
com mais calma.  Um verdadeiro estímulo sensorial atordoante.
De repente, o ar-condicionado apita em cima das cortinas pesadas na
parede ao meu lado e escuto o som dos passos firmes se aproximando no
corredor atrás.
— Jesus Maria José! O que está acontecendo? — Arregalo os olhos
e sussurro baixinho olhando para a porta atrás de mim. Será que é o patrão
chegando?
Eita, diacho! E se ele me pega aqui no quarto dele? O que ele vai
pensar? — penso torturada, incapaz de ver com clareza a situação e, ao
mesmo tempo, nervosa com a possibilidade de dar de cara com o seu Lauro,
sem sermos antes apresentados e ele achar que estou marocando[5] seu
quarto logo no primeiro dia de trabalho.
Em um rompante, olho para os lados e avanço para a porta que
parece dar acesso ao banheiro, fechando-a atrás de mim.
Com o peito subindo e descendo, escuto alguém adentrando o quarto
e se movendo pelo cômodo até a mesinha ao lado da cama, a julgar pelo
tilintado que as chaves fazem ao encontrar a superfície de madeira maciça.
— Que ele não venha ao banheiro. Que ele não venha ao banheiro
— repito baixinho como um mantra, de olhos bem fechados.
No entanto, seus passos parecem que tomam uma direção diferente
da cama e, antes que ele abra a porta atrás de mim, saio em disparada para a
cortina atrás da banheira ao lado do boxe.
Escondo-me atrás do tecido espesso e escuto o ranger da porta se
abrindo.
Que ele não abra a cortina. Que esse cara nem lembre o que é
cortina. Que eu suma de vez na cortina, meu Pai.
O som da porta de vidro do boxe deslizando faz com que eu arregale
os olhos e espie pela fenda entre as duas tiras de tecido.
Escondida, vislumbro a calça social na cor cinza e as mãos másculas
desabotoando o cinto. Isto é o suficiente para cobrir os olhos, mas como se
eu estivesse hipnotizada, subo o olhar para os membros superiores, o
antebraço repleto de veias salientes, o peitoral largo e o rosto angulado com
uma barba por fazer, emoldurado pelos cabelos curtos loiro-escuros.
Continuo assistindo ao strip-tease involuntário do homem, que suponho ser
o patrão, que para minha surpresa, não tem nada de feio, muito pelo
contrário, é um [6]galalau bonitão de quase dois metros de altura.
Ele se desfaz da camisa branca e, seguidamente, da calça.
Quando dou por mim, estou secando o seu corpo malhado, puxo a
cabeça para o lado e me repreendo, lembrando-me do quão ferrada estarei
se me pegarem no banheiro.
Ele parece soltar um suspiro pesado e, finalmente, entra no boxe
quando ouço a porta de vidro rolar pelo trilho pela segunda vez
Escorrego meus olhos para o lado novamente e espio sua silhueta no
vidro temperado.
O chuveiro é acionado, e automaticamente traço uma rota para sair
dali, mas antes, preciso me certificar de que ele está concentrado no banho.
Ou será melhor esperar mais alguns minutos até que ele saia do banho e
desça para o andar inferior? Ele ainda não deve ter jantado, não?
E se ele já jantou, assim não sairá do quarto tão cedo?
Choramingo internamente com as possibilidades, não querendo
tomar nenhuma decisão precipitada.
No entanto, após muito pensar, opto por sair de fininho, deslizando
meu corpo em movimento letárgico para fora da cortina aproveitando que
ele está de costas para mim.
Prendo a respiração e caminho em passos furtivos em direção à
porta, mas antes que eu chegue mais perto do destino, o banheiro é
preenchido por um toque monocórdico, cuja fonte é totalmente
desconhecida por mim.
A porta de vidro logo a frente se abre, e meu corpo inteiro petrifica
ao assistir o homem de rosto e tórax ensaboado colocar metade do corpo
para fora e lançar o braço enorme para a superfície da cuba de mármore ao
lado, levando o aparelho celular para dentro do boxe.
Para minha sorte, seus olhos permaneceram fechados devido à
espuma que cobre suas pálpebras, por isso não consegue perceber que estou
aqui, pelo menos, não neste momento.
E agora, meu Jesus?
Será que eu saio correndo daqui ou volto para de trás da cortina?
Por que ele não fecha a porta do boxe de novo?
Penso aperreada, mas quando o tom grave de uma voz trovejante
reverbera entre as paredes do banheiro, decido voltar para o meu
esconderijo.
— O que houve dessa vez, Bianca?
— O que está fazendo agora?
Parece que agora ele está em uma ligação no viva-voz com uma
mulher.
— Neste exato momento, tomando banho. Mas pelo visto nem isso
você me deixa fazer hoje – ele responde, ríspido.
Nossa, que grosso.
— Doce como um limão — debocha a mulher do outro lado da
linha.
— Pra que me ligou? Já não basta ter se metido na minha mesa hoje
e me feito perder minha tarde de trabalho?
— Espera aí, docinho. Eu me meti na sua mesa, mas foi você que se
lambuzou.
De repente, a conversa começa a ficar interessante e me pego
curiosa em saber de mais detalhes, mesmo que seja errado e deixe as
minhas bochechas quentes.
— Ligou para me provocar, é isso? — reclama o sr. Azedume,
ameaçando desligar.
— Estou ligando para avisar que você esqueceu hoje o de trás?
De trás, o quê?
— Não se preocupe, Bianca, que em uma outra hora terei gosto de
foder a sua bunda com força.
Meu Jesus!
O que estou fazendo aqui?
Se esse homem me pega escutando esse tipo de conversa, ele me
escorraça daqui a pontapés.
Cubro os ouvidos, girando o corpo para a janela de vidro atrás da
cortina.
Entretanto, para minha desgraçada, dou de cara com o segurança
que vi mais cedo me encarando do jardim lá embaixo com um olhar de
curiosidade.
Droga!
Mil vezes, droga!
Em um rompante, giro nervosamente meu corpo de volta em direção
à cortina, numa tentativa inútil de esconder meu rosto, mas acabo batendo
com as costas no vidro, provocando um barulho indesejado que faz todo o
meu corpo gelar.
— O que foi isso? – escuto a mulher do telefone perguntar.
— Não sei, acho que foi no vidro da janela aqui do lado. Vou lá
ver... Até outro dia, Bianca.
— Espera, Laur... A ligação encerra e ouço os passos firmes saírem
do boxe, vindo em minha direção.
Eita. Agora eu me ferrei, choramingo mentalmente.
Aperto os olhos e todos os músculos do meu corpo tensionam
devido ao medo que toma de conta de mim, ao pensar que estou prestes a
enfrentá-lo. Começo a rezar o pai-nosso, na esperança de receber alguma
ajuda divina dos céus e, como se meu pedido fosse atendido, seus passos
estancam no meio do caminho.
Com as pernas formigando e o coração ainda batendo alto, espero
por aquele sinal de que indique o que está ao lado de fora da cortina, mas
não recebo nada mais do que um suspiro demorado.
 
CAPÍTULO 22

 
Mas que inferno!
Bianca além de conseguir me distrair com sexo durante a tarde, ela
ainda queria tirar onda com minha cara em meu momento sagrado de
descanso.
Por que mesmo atendi a porra do telefone?
Deveria ter o deixado tocando até cair na caixa postal, assim
preservava minha santa paz à noite.
O barulho na janela me parece o momento perfeito para encerrar a
ligação, sem que ela fique puta comigo e faça de cu doce quando eu quiser
sexo.
Tiro o celular do nicho do banheiro e o coloco de volta em cima da
cuba fora do boxe. Aproveito que já estou ali e caminho em direção à janela
para fechá-la, que provavelmente deva estar aberta.
No entanto, estanco os passos quando me deparo com o par de
sapatilhas azuis despontando no limite entre a cortina e o chão, ao lado de
um urso de pelúcia marrom.
Que porra é essa?
Olho por cima do ombro a porta fechada atrás e volto a encarar o
par de calçados envelhecidos diante de mim.
Subo o olhar pela cortina e percebo que a infeliz atrás da cortina está
tremendo mais que vara verde. Seria alguma funcionária?
Mas que merda ela anda fazendo aqui?
Lembro-me da minha conversa com Bianca e imagino que ela tenha
escutado tudo. Caralho! Eu não tenho um minuto de paz, nem na minha
própria casa.
Sem me importar que estou sem roupa, agarro o tecido na lateral e o
arrasto para o lado de uma vez, revelando a garota encolhida contra a
janela.
Continuo observando seu rosto apavorado emoldurado pelos cabelos
cacheados que batem logo abaixo dos seios pequenos por baixo de camiseta
branca. Ela tem a pele dourada e os lábios delicados estão entreabertos em
espanto.
Franzo o cenho tentando recobrar na minha memória de esta casa ter
uma funcionária com esse rosto e infelizmente não obtenho sucesso.
Certamente, eu me lembraria dela caso fosse uma funcionária. É difícil este
rosto bonito passar despercebido, mesmo que eu seja veementemente contra
qualquer envolvimento com mulheres que trabalham para mim. Mesmo
assim, eu me lembraria do rosto delicado e da inocência que exala ao me
olhar amedrontada, como faz agora.
Assisto ao seu olhar embasbacado descer pelo meu corpo e suas
mãos cobrirem a boca, que, antes disso, vejo-a fazer um “O”.
Olho na mesma direção e praguejo ao ver meu pau ereto já batendo
no umbigo.
— Porcaria!
Devo ter me excitado ao ficar encarando demais a morena
misteriosa de cabelos selvagens.
Vou atrás da toalha em passos pesados até o gancho do outro lado do
banheiro, já irritado com a situação.
— Quem é você? — pergunto, impaciente, enrolando a toalha no
quadril.
Viro-me para ela de novo, que permanece imóvel em seu lugar.
— Não ouviu? Quem é você?
Ela abre a boca, mas não sai nada que satisfaça minha pergunta.
— O gato comeu sua língua...
— So...
— So?
— Sou a Naty. Mas o meu é Natália — ela, finalmente, fala algo que
entendo, em seguida quase atropela as palavras. — Eu sou a babá
contratada de Maria Alice.
Babá?
Merda. Deveria ter me lembrado de que ela começaria hoje.
— E por que raios está no meu banheiro ao invés de estar cuidando
da minha filha? — questiono, sem um pingo de paciência.
— É porque... Por-porque....
— Dá para completar pelo uma frase sem gaguejar?
— O senhor é muito ignorante, sabia? — Parece que ela também
perde a paciência e ousa me desafiar.
— Olha só, ela parou de gaguejar rapidinho. Bem melhor assim.
— Devia ter mais paciência com seus funcionários...
— Agora quer me ensinar como devo tratar os meus funcionários?
Quer também mudar a forma que os demito por insolência também?
Seu corpo retrai e ela recua.
— Não, senhor. Eu só...
— Diga-me, por que e como veio parar aqui?
— O senhor não acreditaria em mim, mas eu vim atrás do urso que a
Maria Alice perdeu em seu quarto hoje mais cedo. — Ela olha para as
próprias mãos e se desespera em ver que elas estavam vazias. — Onde ele
está? — Ela olha para os lados, desesperada. — Acredita em mim, seu
Lauro, eu não sou uma mentirosa. Eu não vim espiar as suas coisas, muito
menos o senhor tomando banho... — A mulher se apavora mais a cada
palavra dita, balançando as mãos nervosas e antes que ela comece a chorar,
aviso-a, pois não sou um filho da puta que sente prazer em assistir o
desespero dos outros:
— O urso de pelúcia é esse ao lado do seu pé?
Ela desce o olhar para a pelúcia como se fosse sua salvação e o
apanha imediatamente do chão.
— É esse mesmo, senhor.
Encaro-a por alguns longos segundos e depois solto o ar pelas
narinas, pousando as mãos nos quadris.
— Saia agora.
— Mas, senhor...
— Eu entendi a situação. Apenas saia.
— O senhor não vai me demitir, não é? — pergunta com receio na
voz e me aborreço por ainda estar duro em sua presença.
— Se não desaparecer da minha frente agora, talvez sim.
Ela arregala os olhos e gagueja:
— Já-já estou saindo, patrão.
A garota finalmente salta do lugar que está, passando por mim
rapidamente alcançando a porta atrás.
— Espere só um momento — interrompo antes que ela atravesse o
batente.
— O quê?
— Qual é mesmo o seu nome? — Giro o corpo para perguntar e a
vejo respirando fundo.
— Natália.
Fito fixamente seus olhos e assinto.
— Muito prazer, Natália. Espero que cuide bem de Maria Alice.
— Eu cuidarei, senhor.
Um silêncio ensurdecedor preenche novamente o espaço entre nós
dois.
— Sua mãe já me avisou que o senhor é bastante exigente. Farei o
possível para me dedicar ao máximo a esse emprego — completa com o
sotaque que ainda não consegui identificar de onde é exatamente e, apesar
de sua tremedeira, algo me diz que ela é uma moça realmente séria e
dedicada.
Passo a língua entre os lábios e anuo.
— Perfeito. Não espero nada menos dos meus funcionários.
Ela emudece mais uma vez, ainda plantada na soleira da porta, e
apenas se movimenta quando dou a ordem:
— Agora, pode sair, Srta. Natália.
— Obrigada, patrão. — Aquiesce com um acenar de cabeça e
desaparece pelo batente logo em seguida.
Com a saída da garota do banheiro, é para eu me sentir mais
relaxado e calmo, mas, de alguma maneira, ainda estou puto, pois outra
pessoa escutou a minha    conversa com Bianca. Não estou puto com a
garota, logicamente, já que ela não pareceu apresentar sequer resquícios de
malícia em seu jeito e, pode acreditar, eu reconheço gente dissimulada de
longe, e, a meu ver, a garota não tem nada disso. Tremia tanto que quase
fiquei com dó por ela ter me pegado em um péssimo dia. Para falar a
verdade, estou puto comigo mesmo, também não tinha como saber que uma
funcionária estava escondida atrás das cortinas em uma tentativa inútil de
sua presença não ser percebida, mas, mesmo assim, quero socar a parede
por ter passado por esse constrangimento inesperadamente e desnecessário.
CAPÍTULO 23

 
Que homem grosseirão!
— Eu, hein! Nunca vi tanta arrogância em uma só pessoa. Parecia
que ia me engolir a qualquer momento com aqueles olhos enormes para
cima de mim — murmuro comigo mesma lembrando do seu Lauro no
caminho de volta para a casa de Claudia.
Ao retornar para o quarto de Maria Alice, recebi uma bronca por ter
demorado tanto, em seguida fui dispensada para ir embora.
Dona Lúcia me explicou que não preciso dormir na mansão nos
primeiros dias até Maria Alice se acostumar com a presença da nova babá.
Mas avisou que é para eu me preparar, que um dos requisitos que me
fizeram passar à frente das outras candidatas foi justamente a
disponibilidade de dormir durante a semana num quartinho ao lado de
Maria Alice — o que para mim não tem problema algum, pelo contrário, é
perfeito para mim.
No entanto, o que me preocupa agora é ter que conviver com o
“novo” pai de Maria Alice todos os dias. Aquele homem, apesar de o rosto
bonito, chegou a me dar calafrios mais cedo. Acho que nunca me senti tão
nervosa diante de alguém como hoje, talvez por não ter a opção de
responder às suas grosserias como fazia em Campina Grande, quando um
babaca arrogante cruzava o meu caminho. Agora tenho que andar
pianinho[7] para não ser demitida, ou pior, descoberta.
Até me pego pensando como uma criatura arrogante daquelas, que
parece ter o rei na barriga, queria tanto ter um filho.
Na minha terra, homem assim quer distância de menino[8]. Mas
como ainda estou conhecendo essa gente, não posso afirmar nada. Claudia
me afirmou que ele estava em busca de um herdeiro e simpatizou de cara
com Maria Alice — talvez minha pitica tenha amolecido mesmo o coração
do carrasco.
CAPÍTULO 24

 
Tomo um gole espesso de café, enquanto abro o jornal on-line pelo
tablet na bancada da cozinha, sentindo meu couro cabeludo dolorido de
tanto Maria Alice puxá-lo durante a noite.
Ontem foi minha vez de passar a madrugada com a pequena e só a
coloquei no berço no meio da noite, quando pegou num sono profundo, e
retornei ao meu quarto para aproveitar o resto da noite para descansar.
— Maria Alice ainda está dormindo? — pergunto a Lúcia.
— Está acordada desde cedo, patrão.
— E onde ela está?
Presumo que não esteja com minha mãe, já que ela não costuma
levantar antes das nove.
— No jardim, com a babá.
— A babá? Ela já chegou?
Franzo o cenho, confiro as horas no meu relógio de pulso e vejo que
ainda não são nem sete horas.
— Parece que demos sorte de contratar alguém que chega antes do
horário. Ela também está disposta a dormir aqui para acompanhar Maria
Alice em tempo integral, patrão — ela fala como se isso tivesse sido uma
vitória. — Hoje em dia, quase ninguém aceita mais o serviço sob essa
condição.
O que é perfeitamente compreensível.
Quem hoje em dia quer morar no local de trabalho?
Ainda mais jovem, como aquela moça.
Realmente, pensando por esse lado, tiramos a sorte grande, o que
significa que tenho que evitar problemas com a babá se eu a quiser aqui por
muito tempo, já que é de meu total interesse que alguém me ajude com as
noites de sono.
Embora nosso primeiro contato não tenha sido lá dos melhores,
estou disposto a fazê-la ficar.
— Onde mesmo você falou que elas estão, Lúcia?
— No jardim. Ela está tomando o banho de sol antes de às dez com
Maria Alice, faz bem para os ossos, principalmente nesta fase.
— Claro. — Desligo meu tablet e aviso: — Estou indo para lá.
Lúcia assente com um menear de cabeça e me direciono ao jardim,
observando de longe a mulher de cabelos esvoaçantes encaixando os óculos
de sol no rosto pequeno de Maria Alice, que está recostada de barriga para
cima em uma das espreguiçadeiras.
Mal amanheceu, mas Maria Alice parece estar gostando muito da
brincadeira, abrindo aquele sorrisinho de gengiva à mostra.
Inclino o rosto para o lado a fim de sorrir, achando um máximo
aquela cena, pois Maria Alice simplesmente ficou uma gracinha com o
adereço no rosto — o que provoca em mim um sentimento estranhamente
indescritível, mas, sem dúvidas, muito agradável.
Escorrego o olhar para a sua companhia matinal e não demoro muito
até me pegar hipnotizado pelo rosto bonito e risonho de sua babá, que, sob
os primeiros raios solares do dia, é impactante.
Os cabelos castanhos longos e ondulados vazam por todos os lados
dos ombros estreitos, emoldurando seu rosto e tronco esguio, remetendo-me
a imagem de um anjo, talvez, um anjo tentador para homem feito eu —
sinal de que eu devo passar bem longe da moça, se minha intenção
realmente é fazê-la ficar. Por isso, mudo de ideia e apenas as observo de
longe nesta manhã.
CAPÍTULO 25

 
O dia teria sido perfeito, se não fosse pela visita de Bianca
novamente no final do expediente, disposta a voltar para casa comigo e me
encher com indiretas, que ela sabe muito bem que eu odeio.
Mas que porra.
Ela está achando o quê?
Que de um dia para o outro eu mudarei de ideia e farei uma
proposta de namoro?
Sei que o dia de dar um basta na nossa relação está próximo, só não
imaginei que ela adiantaria ainda mais coisas.
— Se não se importa, eu reservei duas diárias para gente em um
chalé de Recife.
— Detesto praias.
— Pensei que você gostasse do calor, coração.
— Não quando somado a areia grudando no meu corpo. Prefiro as
serras.
Dou-lhe um sorriso amarelo quando estaciono no jardim de casa e
salto para fora do carro, levando comigo apenas o básico.
Ela sai logo em seguida e vem em meu encalço pelo caminho de
pedras que corta o jardim entre arbustos altos.
— Ok. Já entendi, nada de praias. Que tal combinarmos algo na
Serra Gaúcha então...
Paro imediatamente de caminhar e massageio a têmpora com a mão,
que ao mesmo tempo segura a chave do carro.
— Acho que precisamos conversar, Bianca.
Consigo fazê-la calar a boca pela primeira vez desde que saímos da
porra do escritório.
— Conversar? Que tipo de conversa? — sua voz está receosa e isso
automaticamente me aciona o sinal de alerta.
Bianca não costuma demonstrar insegurança, para falar a verdade, a
Bianca que conheço é justamente o contrário, uma mulher muito
autoconfiante, que não liga para nada além do prazer, por isso eu gosto dela.
Mas nas últimas semanas, isso vem mudando e me alertando de que nossa
conversa está mais próxima do que nunca, e, agora, depois desse papo de
viagem a dois, vejo que tenho que resolver ainda hoje.
— Eu não...
— Espera. Podemos conversar lá em cima? — ela pergunta,
aproximando-se e beijando minha boca.
— Não há necessidade. Podemos conversar aqui mesmo, eu só
queria...
— Não diz mais nenhuma palavra. — Ela segura minha mão
esquerda e me puxa para frente. — Eu acho que tenho o direito de decidir
onde nós vamos resolver nossas questões... — completa, ofegante, nos
arrastando pelo caminho de pedras, no entanto, uma jorrada de água nos
atinge pela lateral, e, antes que eu entenda o que aconteceu, praguejo:
— Porra.
Procuro saber de onde veio aquela caralhada de água suja e encontro
a garota entre as colunas de folhas, com os olhos arregalados e um balde na
mão. Não posso deixar de citar que ela está com a mesma expressão de
medo misturada a “fiz merda de novo” cravada no rosto, o que já está
começando a me deixar puto.
— Ai, droga! Isso tem cheiro de água sanitária suja — comenta
Bianca numa situação bem pior do que a minha. A água parece ter a
acertado primeiro antes de me atingir. — Foi você!
Bianca acusa a babá da minha filha, apontando o seu dedo indicador
enquanto choraminga olhando para o próprio vestido preto.
— Me desculpe, me desculpe. — Natália solta o balde preto e
balança as mãos nervosamente.
— Você estragou o meu vestido!
— Eu posso lavar se a senhora quiser...
— Lavar?
Bianca sorri com sarcasmo de Natália.
— Acha que pode tirar manchas de água sanitária de um vestido
preto? Só pode estar de gozação comigo. Aliás, quem é ela, Lauro? —
Bianca interpela bramindo ao meu lado. — Quem é ela?
Inferno!
— Ela é a babá da minha filha.
— O quê? Filha?
— Bianca, deixaremos esta conversa para outra hora — digo,
controlando-me, pois minha vontade é simplesmente a colocá-la dentro de
um táxi e a mandar embora.
— Qual foi o episódio da sua vida que eu perdi? Até duas semanas
atrás, você não tinha filhos...
— E eu não tinha.
— Essa voz? Ela é... — os olhos da garota voltam a crescer e ela
começa a falar como se lembrasse de alguma coisa. Porcaria! Era só o que
me faltava.
— Nada — interrompo-a, antes que cite a noite passada.
— Ela, o quê? — Bianca exige.
Atrás da mulher que já está soltando fogos pelas ventas, semicerro
os olhos para a garota, que parece entender o meu recado.
— Nada. Eu acho que me confundi. — Ela engole em seco
recuando. Ótimo.
Seguro o antebraço de Bianca e chamo sua atenção.
— Que tal terminarmos a conversa lá dentro?
— Não. Eu vou embora. Não posso fazer nada neste estado e
também não quero mais escutar sua voz, Lauro — ela ralha, com desprezo
na voz.
— Tudo bem.
— Não vai tentar me impedir?
— Por que eu deveria? Você mesma disse que não pode fazer nada
neste estado.
— Imbecil! Não me ligue mais. Não quero saber de mais nada sobre
você, muito menos da sua vida.
— É uma pena terminarmos assim, Bianca, mas farei o que está me
pedindo. Boa noite.
Ela me fita com a raiva aflorada nos olhos, abre a boca para desferir
um insulto, mas engole antes que o faça.
— Adeus, Lauro! — diz por fim e a assisto, como um reles
espectador, traçar o caminho volta até o portão de alumínio no final do
jardim.
Libero o suspiro de alívio entalado na minha garganta e volto a olhar
para o lado.
— Para onde pensa que está indo?
A morena, que antes caminhava de fininho em direção a área de
serviço, para, e me olha por cima do ombro.
— Eu pensei que o senhor não me quisesse mais aqui.
— Você não acha que me deve uma explicação?
— Me desculpe por isto. Eu realmente não tive a intenção, nem
ontem e muito menos hoje.
— Parece que já está virando costume nos encontrarmos em meio a
uma confusão. — Escorrego as mãos para os bolsos e giro meu corpo para
que fiquemos frente a frente. — O que está fazendo aqui ao invés de ficar
com minha filha?
Ela me encara com uma expressão de quem olha para um filha puta
babaca, mas disfarça logo em seguida, pois o filho da puta babaca para sua
desgraça é o seu chefe.
— É que a dona Lúcia me liberou. Mas antes passei na área de
serviço e uma das funcionárias que estava limpando o chão me pediu um
favor, para que eu jogasse a água suja fora.
— E você resolveu despejar o balde de água suja aqui?
— Como eu saberia que estava passando gente? Não foi minha
intenção — ela começa falar mais rápido, quase atropelando as palavras,
como se o nervosismo voltasse a imperar em sua voz.
— Este não é um lugar adequado para se jogar água suja, mesmo
que ninguém passe por aqui.
— É que eu estava com preguiça de atravessar essa penca de terra.
— Como pôde admitir isto com tanta naturalidade? — Aposto que o
senhor no meu lugar também faria o mesmo.
Seus olhos parecem escorregar despretensiosamente para o meu
peitoral e declina, sem graça.
— Se bem que o senhor tem esse porte atlético, não deve ser ter
tanta fadiga como eu. Acho que deve ter muito tutano nos ossos.
Quero sorrir, mas me controlo para não fazer desta situação uma
piada e perder o respeito de uma funcionária, no entanto, admito que me
divirto muito do modo como ela se expressa.
— De qualquer maneira, nunca mais faça isso — instruo,
firmemente.
— Sim, senhor.
— E sobre ontem à noite, eu quero que esqueça o que ouviu.
— Eu nem me lembro mais.
— Ótimo.
Ela escorrega as mãos para os bolsos, esperando-me encerrar o
assunto e eu digo por fim:
— No mais, até que não foi de todo mal.
— Não? — Ela aumenta os olhos, surpresa.
— Talvez esse banho de água suja tenha salvado minha noite —
penso alto, olhando para os pontos molhados na minha própria camisa.
A garota não entende nada e eu a dispenso:
— Pode ir, se quiser.
Encaro-a por cima dos olhos por um longo momento, que me
observa sem respirar, a pele das bochechas coradas.
Segundos depois, ela solta o ar dos pulmões e me cumprimenta por
fim:
— Boa noite, patrão.
— Boa noite.
Ela faz o caminho reverso e não consigo desviar o olhar dela, até
que suma do meu campo de visão. Sinto uma onda de calor me atravessar
ao direcionar meus olhares à sua calça jeans, folgada nas pernas, mas
colada na curvatura da sua bunda redonda. Nunca transei com uma babá,
nem dos filhos dos meus amigos. Será como... Porra. O que eu estou
fazendo?
Ela dobra o canto da parede, desaparecendo por completo da minha
frente, e eu solto um suspiro pesado. Sempre soube guardar muito bem o
pau dentro das calças e controlar meu interesse por mulheres proibidas e
indisponíveis, no entanto, a garota desperta em meu subconsciente umas
fantasias impertinentes que me fazem até esquecer que tenho que me
comportar se quiser mantê-la por muito tempo aqui.
CAPÍTULO 26

 
— Você fez o quê?! — exclama Claudia horrorizada na volta para
casa.
Após deixarmos a mansão separadamente, combinamos de nos
encontrar no ponto de ônibus a algumas quadras de distância da casa do seu
Lauro, fora de alcance dos olhares de qualquer pessoa do trabalho.
— Fala baixo, mulher — digo ao ganhar olhares feios das pessoas
ao nosso redor.
— Você jogou água suja no seu Lauro? Você perdeu o juízo,
Solange? — cochicha, escandalizada. — Eu te avisei para não se meter em
encrenca, menina.
— Não foi por querer. Sabe a Marcinha? Aquela moça que trabalha
na limpeza, me pediu que eu jogasse a água fora e não tive como negar. Eu
só não tenho culpa se o seu Lauro apareceu na hora errada com a namorada.
— Namorada?
— É uma morena alta, de olhos grandes e expressivos. A bicha é
bonita, viu? Até parece aquelas moças de capa de revista, só que em carne e
osso.
— Está falando da dona Bianca?
— Esta mesma. — Lembro-me no mesmo instante quando Claudia
cita seu nome. — A bichinha ficou toda molhada. E furiosa, com razão.
— Ela não é namorada do seu Lauro, pelo que eu sei. Apenas
mantém um relacionamento sem compromisso, coisas da modernidade.
— E é? Como é que tu sabe disso, mulher?
— Sabe aquele ditado, as paredes têm ouvidos?
— Pelo que parece, têm muitas bocas também — comento,
pensativa. — Sabe, eu fiquei com pena dela, aquele desalmado a tratou tão
mal, que a bichinha terminou o que eles tinham com a cabeça erguida e sem
derramar uma lágrima, mas sabia que por dentro ela estava destruída.
— E o patrão? Como ele ficou quando isto aconteceu? — questiona,
curiosa.
— Como você acha? Com o diabo nos couro [9]também.
— Você não tentou rebater, não é mesmo? — pergunta, receosa.
— E eu sou doida? Claro que não.
Ela suspira, aliviada.
— Eu sei qual é o meu lugar naquela casa, mulher. Se ele disser que
2+2 é 5, eu concordo e assino embaixo.
Ela sorri.
Pelo menos eu a divirto.
— Eu não sou boba, Claudia. Sei que o mundo é injusto o suficiente
para nos obrigar a agir contra nossa vontade para não darmos com os burros
n’água. Ainda mais quando eu tenho a oportunidade de ficar perto de Maria
Alice que está em jogo.
Assisto Claudia suspirar e depois levantar a mão para esfregar
minhas costas.
— Fico aliviada em saber disso, Sol.
— Oh, mas é besta. Vem cá, mulher!
Aconchego-a em um abraço e ela sussurra:
— Eu às vezes me sinto culpada.
Por momento, ficamos em silêncio, pensativas.
— Não se sinta assim, mulher. Eu também concordei, lembra? —
Beijo o topo da sua cabeça e nos balanço enquanto o ônibus não chega. —
Maria Alice está bem. Tem um berço para dormir, um quartinho só para ela
e a tranquilidade de uma vida farta. Se ela está bem, eu também estou. Vai
ficar tudo bem — sussurro. — Vai ficar tudo bem — repito mais uma vez,
só que agora, é para mim.
CAPÍTULO 27

 
Após o banho, fecho delicadamente a aba da fralda de Maria Alice e
deixo um beijinho na sua barriga.
— Só um instantinho.
Desloco meu corpo para o lado e procuro uma roupa em seu guarda-
roupa cheio de opções, uma mais linda que a outra.
Opto por um macacão rosa-chá, que ela fica uma gracinha.
Volto para a cama ao lado do berço, enquanto escorrego a abertura
da roupa pela sua cabecinha, comento:
— Finalmente hoje nós dormiremos juntas como nos velhos tempos,
mocinha — revelo baixinho em tom de segredo. — Eu até trouxe aquela
nossa mala, mas com somente com as minhas roupas, pois você não vai
mais precisar das suas antigas, agora você é uma madame cheia de looks.
De repente, ouço alguém bater à porta e desvio o meu olhar para o
lado. Em seguida, a porta se abre, antes que diga qualquer coisa, e a
imagem do homem alto e másculo se revela aos poucos para mim.
Era ele. O Sr. Azedume me encarando parado no batente, como se
ainda estivesse decidindo se entra ou sai.
— Você está aí — ele diz o óbvio, franzindo o cenho.
E por que não estaria? Agora sou a babá de Maria Alice, e, por
mais que ele sempre me encontre nesta casa metida em problemas, eu ainda
sou uma das pessoas mais prováveis de se encontrar naquele quarto.
Não digo nada.
— Queria um momento com minha filha antes de ir ao escritório.
Caramba! Soa estranho demais para mim quando ele a chama de
filha, mesmo que eu saiba que ele não está errado. De qualquer forma, ele é
o pai da minha irmã agora e terei de me habituar a isso. Mas, ao mesmo
tempo, o fato de nunca termos realmente ninguém por nós duas nos últimos
meses, tampouco um homem, faz com que me sinta que perdi totalmente as
rédeas das nossas vidas e a cada dia que passa, fica mais difícil de me
reconhecer como sua irmã.
— Posso? — pede ao se aproximar de nós duas, Maria Alice atira os
braços para ele alegremente.
— Claro — respondo baixinho, assistindo a ele pegá-la no colo, um
tanto desengonçado. — Tem que segurá-la bem.
— E não estou segurando? — retruca olhando para minha irmãzinha
de sorriso frouxo. Nunca vi uma criaturinha para gostar tanto de sorrir como
Maria Alice. Até com o Sr. Azedume, ela parece bastante animada em plena
sete horas da manhã.
— Se ela continuar por muito tempo com a coluna torta do jeito que
está, com o senhor, não vai demorar para desenvolver um problema de
coluna.
Ele tenta ajeitar Maria Alice no colo e instruo:
— Sustente melhor o braço esquerdo e segura suas costas com o
outro braço.
Ele tenta fazer, em seguida pergunta:
— Assim está melhor?
— Agora não está tão ruim.
Ele me olha com uma cara de “qual é o seu problema”? E respondo
com outro olhar de “vê se aprende e não erre da próxima vez”.
Somos dispersados da nossa pequena guerra velada com a
gargalhada alta de Maria Alice.
— Acho que ela gostou do meu braço — ele comenta, vitorioso.
— Impressão sua, patrão. Ela sorri para todo mundo.
— Eu não sou todo mundo — replica quase imediatamente.
Deu para perceber. Poucas pessoas têm o ego tão grande como o do
senhor.
— Mas é claro que o senhor não é todo mundo. — Abro um sorriso,
mas seus olhos não sabem acompanhar minha falsidade descarada.
— Sou o pai dela. — Ele direciona sua atenção para Maria Alice e
afaga sua bochecha com os nós dos dedos, parecendo observar
demoradamente seu rostinho, como se conferisse se está tudo bem por ali.
— Cairia bem um brinco aqui? — ele pensa alto, segurando a pontinha da
orelha dela.
— Brinco?
— Sim. Na idade dela, me surpreende que não tenha um.
— Você não acha que ela é muito nova para furar a orelha? —
pergunto, incomodada, pois sempre poupei Maria Alice desses tipos de
sofrimentos desnecessários, que podem ser adiados para quando ela tiver
mais entendida para decidir se usará ou não esses acessórios.
— Não a acho muito nova. Na verdade, todas minhas sobrinhas
furaram a orelha muito cedo.
— E se a bichinha se danar de dor?
— Nunca soube de alguém que morreu por ter furado a orelha...
— Então fure a sua!
Droga. Foi maior do que eu.
Ele arqueia as sobrancelhas para mim, como se tivesse desacatado o
capiroto no próprio inferno.
— Desculpa, senhor. Eu não quis...
— Só para deixar as coisas claras, apenas estou comentando com
você, nada mais do que isso. Amanhã mesmo pedirei para que alguém
venha e coloque um brinco na orelha da minha filha — ele fala, irredutível.
Engulo o sapo e assinto antes que as coisas piorem para mim, mas
minha vontade mesmo é de me rebelar e bater o pé, pois meu instinto como
sua irmã ainda está muito aflorado. Mas simplesmente não posso fazer isto.
— Tudo bem. — Olho para os meus próprios pés, escondendo o
meu rosto.
— Agora eu tenho que ir, antes que eu me atrase para o trabalho —
avisa, olhando para os lados.
Ergo a cabeça e ofereço meus braços imediatamente.
— Me dê ela aqui.
Seu Lauro me entrega Maria Alice, com isso nossos olhares se
esbarram involuntariamente enquanto empertigo minha irmã nos braços.
Espero-o desviar o olhar, mas não o faz. Seus olhos castanho-escuros são
profundos, duros e asfixiantes. Como se uma força estivesse me
controlando, não consigo sair até que ele desvie o olhar. E é o que ele faz,
desliza as mãos para os próprios bolsos da calça social e esgueira o olhar
para o lado, como se fugisse de mim.
— Espero que tenham um bom dia hoje.
Ele fita o chão como quem exige mais energia do que possui para
deter algo, então, não demora muito para os seus calcanhares girarem,
assim desaparecendo pela porta ao nosso lado.
Puxo uma boa dose de ar pela boca e expiro pelas narinas, indignada
comigo mesma por me sentir deste jeito.
Embora, às vezes, seja um arrogante, seu Lauro é um tipão
charmoso e muito bonitão. Devo tomar cuidado para não ficar o encarando
demais, pois sinto que fazer isso não é boa coisa.
CAPÍTULO 28

 
O que ela estava tentando fazer? Me dizer o que devo fazer?
Francamente!
Tento me concentrar nos papéis à frente em cima da mesa de
mogno, mas minha mente se dispersa facilmente, recobrando os olhos
daquela morena afrontosa me fitando mais cedo.
Se os olhos são as janelas da alma, certamente aquela mulher me
odeia.
Mas eu, estranhamente, gosto disso.
Seu rosto parece ser incapaz de esconder seus verdadeiros
pensamentos, sua boca, às vezes, deixa escapar um aperitivo do que ela
realmente quer me dizer. Isto me leva a crer que talvez alguns palavrões já
me tenham sido dirigidos no silêncio da sua mente — nada que os
funcionários deste escritório já não tenham feito.
Porra. Devia estar assinando essas merdas de papéis, mas, ao
mesmo tempo, não consigo tirar a babá da minha filha da cabeça, e o pior
nesta situação toda é o meu interesse sexual por babás, que vem crescendo
exponencialmente desde que pousei os olhos nela atrás daquela cortina do
meu banheiro naquela noite.
Aprecio a forma como Natália desperta em mim os desejos mais
impuros que um homem pode ter por uma mulher, mesmo que tenha atiçado
sua antipatia e prometido a mim mesmo que ela está fora do meu alvo.
Pelo menos, assim a afastarei e não correrei o risco de torná-la o
meu mais novo desafio, o que não agrada a ideia, pois quando tomo uma
mulher como desafio, não há nada que me possa parar até tê-la em minha
cama.
Massageio as têmporas e volto à minha atenção para os documentos,
antes que minha secretária entre cobrando.
CAPÍTULO 29

 
— Dê minha neta aqui. — Dona Vera estende os braços e caminha
para o jardim no colo. — Vamos pegar um pouco desse sol de fim de tarde,
meu doce.
— A senhora precisa de ajuda? — pergunto, seguindo-as.
— Leve os brinquedos dela para o jardim, por favor.
— Sim, senhora.
Faço o que dona Vera orienta e vou até o quarto de Maria Alice.
Reúno alguns brinquedos de borrada em um cestinho colorido e o carrego
comigo.
Chegando ao jardim, avisto dona Vera balançando Maria Alice no
colo atrás de uma mesa de madeira maciça próxima à piscina. De longe,
surpreendo-me com o homem alto caminhando do outro lado do jardim.
O que ele faz em casa tão cedo?
Ao lado do seu Lauro, há outro homem de óculos escuros e cabelos
castanho-claros, também tão bonito quanto o meu chefe e com um ótimo
porte físico.
— Aqui estão os brinquedos, dona Vera.
— Ok, querida. Deixe-os aqui do lado — diz, olhando para os
homens que se aproximam.
Deixo o cesto ao lado e escuto dona Vera exclamar:
— Aconteceu alguma coisa, Lauro?!
— Não, mãe.
Levanto o olhar para o homem sério, que, por coincidência, está
olhando em minha direção.
Merda.
Minhas bochechas esquentam no  mesmo instante, por isso me sinto
uma tola por me intimidar com um simples olhar.
No entanto, ele parece não se importar. Desvia o olhar com
indiferença e encara a mãe.
— Saí mais cedo para dar mais atenção à minha filha. Estava
falando sério quando disse que serei um bom pai.
Um silêncio se alastra momentaneamente entre eles e continuo a
observar.
— Desculpe. Confesso que estou impressionada, meu filho.
O homem de cabelos castanhos sorrir.
— Vocês são tão engraçados. Quando penso que meu irmão
finalmente vai sair um pouco daquele escritório, meter o louco e curtir a
vida, ele resolve ser pai. — Eles são irmãos? O moreno olha para minha
irmã e tira os óculos do rosto. — Nada contra você, princesinha. Aliás,
tenho que parabenizar a senhorita, deste tamanho e transformando a vida de
um homem chato pra caralho...
— Sebastião! — Dona Vera arregala os olhos. — Controle essa sua
boca sua suja na frente da minha neta, por favor. 
— Foi mal, mãe. Mas “pra caralho” não é palavrão.
— Não? — a pergunta escapa entre os meus lábios e atraio o olhar
do homem que responde por Sebastião.
— Claro que não. É advérbio de intensidade. — Ele parece me
estudar com os olhos de cima a baixo. — Aliás, quem é você?
— Ela é a babá de Maria Alice — responde seu Lauro, visivelmente
incomodado com algo.
— Que gos... — ele cochicha ao lado do irmão, mas meu patrão o
interrompe:
— Por favor, pode me deixar a sós com minha família, Natália?
Demoro a raciocinar que o meu chefe está falando comigo, pois
ainda não me esqueço que Natália é o meu novo nome.
Eu hesito e clareio minha garganta.
— Sim, senhor.
Dou alguns passos para trás e faço o que ele me pede.
Enquanto me direciono para dentro de casa, sinto-me mal pela
forma fria como ele me tratou. Não que alguma vez ele tenha me tratado
com carinho, ainda assim, sinto que seu Lauro pode estar chateado comigo
por algo que eu disse mais cedo.
Besteira, garota!
Ele só deve estar tendo um dia ruim — uma voz em minha cabeça
tenta me fazer olhar por outra perspectiva e relaxar.
CAPÍTULO 30

Algumas semanas depois


 
Após o escritório, decido passar pela academia para descontar
minhas tensões em um treino intenso e demorado.
Sem muita conversa, subo todos os dias para o segundo piso, tomo
uma ducha relaxante e coloco uma roupa mais leve para ir ao quarto de
Maria Alice devidamente limpo e lhe dar um beijo de boa-noite, mas hoje,
em específico, demorei mais no treino.
— Posso entrar?
— Já entrou, mãe — digo, penteando os cabelos molhados para trás
e olho para a porta do meu quarto. — Algum problema?
— Vim avisar que amanhã mesmo estou de mudança para o meu
apartamento. Não tenho mais o que fazer nesta casa, agora que Natália
dorme aqui. Pensei que ela não fosse dar conta do recado, mas até que está
se saindo muito bem e acho que não terá problemas durante a noite.
Faz algumas semanas desde a última vez que troquei mais do que
duas palavras com a babá da minha filha. Quando estou em casa, peço para
que Lúcia a traga para mim e juntos nos entretemos com seus brinquedos
pela casa. E quando estamos no mesmo ambiente, torna-se inevitável a
tensão no ar, evito ir mais além do que um bom-dia ou boa-noite.
Eu me conheço e sei que não resistiria a tentação de cortejá-la cedo
ou tarde se continuássemos conversando frequentemente.
— Pedirei para que Fernando se encarregue de ajudá-la com as
malas durante a manhã, mãe.
— Não, vou amanhã à noite. Eu marquei um jantar com Bianca e
sua mãe amanhã nesta casa.
— Espero que meu nome não esteja envolvido nesse jantar.
— Esteja aqui antes das 19h. Isto não é um pedido, é uma ordem,
Lauro.
Bufo contrariado.
— Soube que estão brigados. Veja esse jantar como uma ótima
oportunidade de conciliação.
É exatamente o contrário do que eu quero, mas não ouso negar um
pedido dela e concordo para tornar aquela situação ainda mais conflituosa.
— Para onde está indo? — pergunta ao me ver colocando o relógio.
— Ao quarto de Maria Alice.
— Acho melhor deixar para vê-la apenas amanhã.
— Por quê?
— A babá já está a colocando para dormir, acho melhor não
atrapalhar.
— Está tão cedo assim?
— Não é tão cedo assim, Lauro. Você que passou um bom tempo na
academia lá embaixo, talvez lhe dê essa sensação.
Retiro o celular do bolso e comento:
— A senhora tem razão. Está tarde, é melhor não atrapalhar.
Minha mãe me lança um sorriso terno e me deseja boa-noite ao sair
pela porta do meu quarto.
Aproveito para esparramar meu corpo sobre o colchão e ligo a
televisão, em busca de um programa bom a essa hora da noite, mas não
encontro nada que prenda minha atenção por mais de dois minutos.
Olho para os botões do controle e sou tentado a conectar o televisor
com as câmeras de segurança, que já estão instaladas na programação da
minha televisão.
Um insight me ocorre.
Será que a câmera do quarto de Maria Alice já está funcionando?
Percorro pelas opções na tela e paro na imagem do quarto cor-de-
rosa com um berço no meio e uma cama ao lado.
As luzes ainda estão acesas e elas se encontram deitadas em cima da
cama, uma de frente para a outra, enquanto Natália acaricia delicadamente a
cabecinha da minha pequena, que parece estar à beira de cair em um sono
profundo.
Natália a encara com um olhar amoroso, porém, há algo a mais ali.
Como se existisse uma história triste se passando dentro dela, enquanto fita
minha filha com ternura.
De repente, fico curioso para saber que tipo de vida ela levava antes
de aceitar trabalhar nesta casa. Imagino que exista um bom motivo para ter
aceitado dormir durante a semana no trabalho, mesmo sendo tão jovem.
Ela tem um namorado?
Não me surpreenderia, pois é uma mulher muito bonita, passível de
despertar o desejo masculino de muitos.
Moraria com os pais?
Embora tenha a aparência de moça criada com os pais, seu sotaque
não é daqui e o seu semblante é de quem sabe se virar sozinha, embora ache
que seja ingênua para certos tipos de coisas. Caso contrário, seus olhos não
se arregalariam escandalizados ao ver meu pau como se nunca tivesse visto
um na vida. Talvez ainda seja virgem — o que elimina em cinquenta por
cento a possibilidade de ela ter um namorado.
Continuo observando o quarto por mais alguns minutos, talvez por
mais de meia hora, não sei, mas algo faz com que eu permaneça olhando
para elas por um longo tempo.
Quando dou por mim, percebo que Maria Alice se remexe para o
lado, perto do limite do colchão. Olho para Natália, porém, ela também
fechou os olhos, provavelmente adormeceu.
O corpinho de Maria Alice escorrega inconscientemente mais para o
lado e temo que ela caia da cama.
Droga!
Levanto-me no mesmo instante e saio do meu quarto, antes que
Maria Alice sofra uma queda.
Caminho apressadamente para o corredor da outra ala, tão logo
adentro o quarto no fim do corredor, observando que nada mudou desde que
deixei o televisor no outro cômodo.
Com extremo cuidado, pego Maria Alice no colo e a transfiro para o
berço ao lado, cobrindo suas pernas com um lençol fino.
— Durma bem, princesinha — sussurro, inclinando meu corpo para
frente e beijo sua cabecinha ainda ausente de cabelos.
Endireito o tronco, olho para o lado e vejo a imagem do que se
parece muito a de um anjo adormecido.
Ela está deitada de lado, com a cabeça apoiada em cima do seu
braço direito, os cabelos castanhos longos vazando pela superfície lisa do
colchão, formando caminhos que cintilam como ouro. Sua orelha é ausente
de qualquer brinco ou piercing e, aparentemente, não há nenhum furo nelas,
o que me leva a acreditar que não gosta desses tipos de acessórios. Tudo
nela é simples e puro. Talvez, por isso se opôs à minha decisão naquele dia,
que acabei até esquecendo ou simplesmente deixando de fazer, influenciado
por alguma razão desconhecida.
Sua pele aparenta ser sedosa e macia, levando minhas mãos a
formigarem desejando tocá-la, mas me detenho, pois sei exatamente o que
não devo fazer.
Deslizo meu olhar pelo seu corpo levemente curvado, em seguida
fito suas pernas sobrando para fora da cama, analisando que o espaço é
muito pequeno para o seu corpo, visto que a cama é para uma criança de no
máximo dez anos.
Pela forma com que ela dorme e não move nenhum centímetro do
seu corpo desde que cheguei ao quarto, acredito que esteja muito cansada, o
que é de se imaginar, já que pelo horário que a encontrei pela manhã,
suponho que estava acordada desde às 6 horas, para falar no mínimo.
Se não dormisse assim a noite inteira, provavelmente acordaria com
o corpo dolorido na manhã seguinte.
Imaginando que ela não pese tanto, prendo a respiração e decido
colocá-la nos braços para levá-la para o quarto ao lado, que Lúcia comentou
ter separado para a babá de Maria Alice. 
Faço tudo com o máximo de cuidado também e puxo seu corpo do
colchão para o meu colo, acomodando-o contra o meu peito. Ela solta um
suspiro involuntário, mas não acorda, reforçando meu pensamento sobre o
cansaço que a domina.
Seu corpo é mais pesado do que eu imaginei, ainda assim, não me
sinto desconfortável carregando-a.
Movo pernas para fora do quarto, traçando o pequeno trajeto até a
próxima porta do corredor enquanto inalo o cheiro de lavanda que exala
dela.
Entro no quarto de decoração simples, opto por não acender a
lâmpada, apenas sigo o caminho até a cama sob os reflexos fracos da luz no
corredor.
Tenho o maior cuidado em colocá-la sobre a cama, mas quando me
sento para ajeitar o travesseiro atrás da sua cabeça, ela acorda de supetão e
se senta no colchão de frente para mim.
Sob a penumbra ao redor, seus olhos se arregalam e as sobrancelhas
ralas se unem quase em uma única linha, mas depois se desfazem quando
ela parece me reconhecer.
O ar fica rarefeito entre nós e o seu peitoral sobe e desce
pausadamente, quando percebo o quanto estamos perto.
CAPÍTULO 31

 
Não sei como ou quando vim parar neste quarto semiescuro, mas, de
fato, acabei acordando com aqueles olhos castanhos viscerais me
encarando.
Ele sussurra algo, mas não entendo muito bem, pois meu estômago
se comprime, talvez de nervoso.
O Sr. Azedume se tornou nos últimos dias um homem mais
indiferente daquele que conheci, e, ironicamente, sua versão anterior me
parece mais simpática e menos intimidante do que a que está aqui à minha
frente.
Ele continua me contemplando e embora esteja sentado, sinto sua
energia perto demais da minha pele, condensando o sangue em minhas
veias em combustão.
Meu peito sobe e desce, acompanhando o ritmo do meu coração
desenfreado, como consequência minha espinha gela no mesmo instante em
que esbarro meus dedos nos seus.
— Onde está Maria Alice?
— No berço dela. Eu mesmo a coloquei e trouxe você para esta
cama.
Sua voz está mais grave e levemente enrouquecida, contribuindo
para que eu desça o olhar para os seus lábios sexys, em seguida medindo
com os olhos a amplitude dos meus ombros largos em sua camisa azul-
marinho.
— O que está procurando? — questiona tocando com as pontas dos
dedos o dorso da minha mão apoiada no colchão, traçando um caminho pela
carne do meu braço como uma pluma leve e macia, arrepiando-me a pele
inteira.
Sua mão desliza para o meu pescoço, depois segura a lateral do meu
rosto, afagando os cabelos ali. Simplesmente me derreto com o seu toque e
sinto que terei uma convulsão a qualquer momento com o aumento da
temperatura.
Tento olhá-lo dentro dos olhos, mas não passo do queixo.
— Estou curioso.
— Sobre o quê? — pergunto baixinho, apertando os olhos,
embevecida com o seu carinho em meus cabelos.
Jesus. Eu tô é lascada. Mas, mesmo assim, não consigo me livrar
dos seus toques, que agem sobre mim como o efeito de alguma droga.
— Você mora com alguém?
Levanto meus olhos para ele.
— Como?
— Quero saber se mora com algum homem com quem se relacione.
— Não. Eu não sou casada.
Ele aproxima o rosto e roça o nariz na minha bochecha, seu hálito
mentolado ventilando meu rosto.
— Talvez tenha um namorado?
Eu? Com um namorado? Prendo a risada, pois nunca sequer tive um
na vida.
Ele afasta o rosto para que possamos nos olhar, com o semblante
duro e interrogativo.
Responde que sim — uma voz no meu subconsciente suplica.
Contudo, ao invés disso, aperto os olhos e meneio a cabeça em
negativa.
Ai, ai. O que eu estou fazendo da minha vida?
— Mas por que isso interessa ao senhor?
— Não gosto que me chame de senhor.
— Não me parece educado chamar meu chefe pelo primeiro nome
— provoco —, e o senhor parece ter idade para ser o meu pai.
Ele franze o cenho e passa a língua entre os lábios, visivelmente
contrariado. Quero sorrir, mas me lembro de que ainda estou em campo
minado quando se trata do Sr. Azedume.
— Só se eu tivesse começado minha vida sexual muito cedo —
defende-se contrariado, mas não me aguento e deixo um sorriso escapar dos
meus lábios cerrados. — Me chame somente pelo o meu primeiro nome.
Encare isso com uma ordem.
Mordo o canto da boca abafando a risada, enquanto ele me olha
seriamente, tão sisudo, a ponto de fazer minha espinha arrepiar.
— Eu sinceramente não entendo o s... você.
Ele se endireita em seu lugar, como se estivesse aberto para essa
conversa.
— Como assim?
— Você passou todos esses dias mal me dando bom-dia, e agora fala
comigo se fôssemos bons amigos? O senhor é bem confuso, hein.
— Amigos?
Sério que ele só reparou nesse detalhe?
Ele cruza os braços fortes contra o peito e arqueia uma sobrancelha,
como se exigisse algo de mim, ficando incrivelmente lindo e sexy.
— Eu sei que está dando em cima de mim, patrão. Não sou boba
não.
— Não disse que não.
— O senhor nem tem vergonha de confessar uma bobagem dessas?
A coisa começa a ficar mais séria, quando ele descruza os braços e
passa a mão na minha cintura e me puxa para mais perto dele, de forma que
nossas respirações se misturam, de tão perto que seu rosto está do meu.
— Você quer que eu me afaste?
— É-é — gaguejo, sem jeito. — Isso só deve ser obra do inimigo
para tirar o meu juízo.
Pela primeira vez, vejo-o abrir um sorriso mostrando todos os
dentes. E não é que a peste tem um sorriso lindo? O brilha chega a se
alastrar, iluminando todo o seu rosto perfeito e másculo.
— Se me pedir agora, eu me afasto.
— Tome vergonha na sua cara, homem.
— Essas não são as palavras — ele diz baixinho perto da minha
boca.
Embora eu tente, não consigo negar.
Ele pega a ponta do meu queixo e sussurra em tom de segredo:
— Quer saber por que evitei você nos últimos dias?
— Por que eu sou a babá e não me deve muitas palavras?
Ele meneia a cabeça em negativa.
— Então por quê?
— Porque eu estava louco para provar o sabor dessa boca e sabia
que não iria resistir se ficássemos de papo furado toda vez que nos
encontrássemos.
Seus olhos me analisam sob a penumbra e sinto minha boca se
entreabrir com sua revelação um tanto inesperada.
— Então...
— Queria te manter longe de mim. Mas só agora me dei conta de
que ainda não perguntei sua opinião sobre o assunto.
Tento pensar em algo coerente, mas nenhum pensamento lógico
atravessa minha mente no momento. Já o meu corpo está quente e ansioso,
dando sinais claros do que quer.
Esqueça, Solange!
Isto será uma enorme e imperdoável burrice. Por todos os motivos
óbvios que o envolve e nos envolve, até mesmo aqueles que ele
desconhece.
— Não quero me envolver com você, senhor, não tenho interesse em
ser seu caso de...
Antes que eu termine de formular qualquer outra palavra, seus
lábios cobrem os meus em um selinho prolongado, o suficiente para provar
da maciez e da quentura de sua boca.
Ele separa nossos rostos, como se me desse a oportunidade de detê-
lo, mas, ao invés disso, espalmo minha mão em seu peitoral e agarro sua
camisa, ansiando por mais.
Ele segura minha nuca com firmeza, à medida que devora minha
boca de modo delicioso, experiente e preciso. Ele enfia a língua na minha
boca, provando-me em longas e gostosas lambidas, ao passo que meu
coração bate desenfreado dentro do peito e a vergonha toma conta das
minhas bochechas.
No momento em que sinto todo o meu juízo parece ter ido pelo ralo,
crio um pouco de coragem e ouso subir minhas mãos para os seus ombros,
e, agindo por puro instinto, puxo seu corpo contra o meu.
Em resposta, Lauro grunhe e torna o beijo ainda mais intenso,
afundando-se em meu corpo, apertando a carne da minha coxa coberta pelo
jeans da calça.
Quando dou por mim, minhas costas tocam a superfície macia do
colchão, e o diabo loiro se afasta para poder ficar por cima.
Ele abre minhas pernas e as desliza para baixo, encontrando o
encaixe perfeito para os nossos corpos.
Imediatamente, sinto seu volume enorme apontando contra o meio
das minhas pernas e meu ponto sensível se retesa de desejo, sob a camada
grossa de jeans naquela área.
Conforme ele devora minha boca, tento descer minha mão para sua
bunda, mas sou detida no meio do caminho, quando ele suspende meus
braços no alto da minha cabeça.
Vixi Maria!
Será que eu fiz algo de errado?
Ele me encara todo sério e marrento, por isso fico ainda mais
excitada com o seu olhar duro e quente. 
Ele torna a me beijar, sua língua entra de novo na minha boca ao
mesmo tempo em que ele se movimenta de modo indecente sobre o meu
corpo, de forma que sua ereção friccione meu ponto de prazer entre as
pernas, úmido  por completo e durinho. Meu Deus do céu, isto é tão bom!,
choramingo internamente.
Sua mão passeia pelos botões da minha blusa, em seguida desabotoa
os dois primeiros, tendo acesso aos meus seios cobertos pelo meu sutiã sem
graça cor de pele. Coro de imediato, imaginando que devia ter vestido algo
melhor.
Ele escorrega o bojo para o lado e o chupa o bico intumescido do
meu seio, provocando uma série de espasmos em meu corpo. Tenho
vontade de gemer, mas penso que isso arruinaria ainda mais minha
reputação com o seu Lauro. Depois que isso acabar, ele provavelmente me
achará uma vadia, mas, para falar a verdade, está tão bom que eu pouco me
importo com o que acontecerá em seguida. Eu só quero sentir aquela
sensação deliciosa que é ser tomada por suas mãos e boca. Deus. Nunca
pensei que fosse tão bom!
— Preciso saber de mais uma coisa.
— O quê? — gemo.
— Você já fez isso antes?
— Não.
Ele para de lamber o bico do meu seio e ergue a cabeça para mim.
— Nunca?
Pela sua expressão, ele está bastante surpreso. Diria até um pouco
assombrado.
Engulo em seco e respondo, apertando os lábios:
— Nunca.
— Patrão? — Uma voz familiar veio do corredor atravessa o quarto
e vejo Lúcia parada logo à nossa frente forçando a visão. Só assim que
percebo que não fechamos a porta.
— Porra! — Lauro fecha meus botões rapidamente e sai de cima de
mim.
— É o senhor mesmo. — Ela parece escandalizada e com razão.
Onde já se viu o chefe enfiado no quarto de uma funcionária e ainda por
cima dela?
Sento-me na cama, não sabendo onde enfiar minha cara.
— Está tudo bem aqui, Natália? — ela pergunta com preocupação
na voz, mas receosa na frente dele.
— Sim, senhora — quase gaguejo. — Eu e o seu Lauro estamos
apenas conversando.
Conversando, Solange? É claro que não foi isso que ela viu.
— Sendo que está bem e ciente dos seus atos, me desculpem o
inconveniente. — Ela nos entreolha e diz por fim: — Mas preciso conversar
com você depois, garota.
— Sim, senhora.
A senhora de cabelos brancos nos olha mais uma vez e desaparece
na porta.
Solto um suspiro de alívio e choramingo.
— Que vergonha!
— Conversarei com Lúcia amanhã cedo. Ela é uma mulher muito
justa e íntegra, deve ter ficado preocupada com você e também espantada,
por me ver com uma funcionária, já que isso nunca me ocorreu.
— Você nunca ficou com uma funcionária?
— Nunca. E esse foi um dos motivos que fez com eu quisesse te
manter longe nas últimas semanas.
O silêncio toma conta do espaço e ele se aproxima da cama.
— Não se preocupe com isso. Você não sofrerá nenhum tipo de
desconforto ou retaliação por minha causa, não tenho essa pretensão.
Ele se afasta e diz, por fim, meio indiferente:
— Eu a deixarei em paz também. Até mais ver.
— Até. — Minha voz sai fraca.
Ele me olha pela última vez, caminha para fora do quarto e fecha a
porta.
Caio para trás na cama, levo as mãos para a cabeça e sussurro
martirizada olhando para o teto:
— Será que ele não gostou de saber que sou virgem? — Meu
subconsciente dá voz aos meus pensamentos e me repreendo logo em
seguida: Isso é o que menos importa, Solange! Ai, meu Deus! O que eu fiz
da minha vida?
Debato meu corpo contra o colchão, indignada comigo mesma.
Como é que você se mete nesta cilada, mulher?
Isso ainda vai resultar em uma confusão daquelas!

 
Algumas horas depois
 
Solange
 
— O quê?
Ajeito o corpo de Maria Alice nos braços e olho para os lados,
conferindo que estamos mesmo a sós com Claudia na lavanderia.
— Isso mesmo que você ouviu, Sol. Parece que a dona Lúcia voltou
atrás hoje pela manhã e disse que vai esperar mais um tempinho para se
aposentar — cochicha Claudia, também olhando para os lados.
— Agora, lascou! Como é que vamos continuar enrolando a mulher
desse jeito? Ela vai começar a desconfiar quando perceber que não tenho
como abrir uma conta no banco, pois meu nome não é Natália, mas sim
Solange. Ai, meu Deus! Sabia que essa ideia de jerico ainda poderia dar
muito errado.
— Calma, menina. Vou achar um jeito de resolver esta situação.
Confie em mim, que vou encontrar um jeito. Seu Lauro não vai descobrir
nada, pelo nosso bem, ele nunca vai descobrir que você, na verdade, é a
irmã de Maria Alice.
Minha irmã sorri e tenho a impressão de que ela está se divertindo
com o meu desespero.
— Papá — ela balbucia.
— Como? O que você falou? — Arregalo os olhos.
Ela me encara com seus olhinhos espertos, mas não me diz nada.
— Acho que ela disse “papá”. Ela sabe que estamos falando do pai
dela.
Pai dela?
Já era para ter acostumado, mas toda vez que algo assim acontece,
embora estejamos sempre juntas, sinto-me estranha e cada vez mais distante
da minha própria irmã.
Acordo dos meus devaneios ao ouvir Cláudia comentar:
— O que eu estou tentando entender é por que Lúcia mudou de ideia
tão rápido?
Engulo em seco, lembrando do flagra de ontem e coro
violentamente ao recordar da burrada que cometi com o patrão. Deus, perdi
completamente o juízo. Onde é que eu estava com a cabeça para aceitar, e,
pior, gostar tanto daqueles amassos? Estava claro que ele só queria se
aproveitar de mim e, mesmo assim, aceitei.
Droga!
Isso nunca mais pode acontecer, se eu quiser manter meu emprego
nesta casa e ficar mais perto de Maria Alice. Nunca mais!
Talvez a razão dessa mudança repentina de planos esteja atrelada ao
que aconteceu na noite passada, mas, por sorte, dona Lúcia não chegou a
comentar nada comigo e, pelo visto, também não comentou com mais
ninguém.
— Boa tarde, gente!
Meu coração quase salta para fora quando me viro para ver a garota
de cabelos da cor de piche parada no canto da lavanderia.
Ela é a Sarah, a garota responsável pela área externa da casa.
Embora nos esbarremos pouco pela casa, trocamos algumas palavras nos
últimos dias e acabei me identificando por ela ter quase minha mesma
idade.
— Oi, Sarah. Precisa de algo? — pergunta Claudia, gentilmente,
despistando-a.
— Na verdade, não. É que eu já terminei meu trabalho lá no jardim
e como costumo vir sempre aqui para descansar um pouco... — explica,
timidamente, riscando um círculo no chão com a ponta do pé.
— Tudo bem. — Claudia assente. — Já estávamos de saída.
— O que tem aí nesta cesta? — pergunto ao observar o acessório
feito de palha em suas mãos.
— Isso? — Sarah olha para a cestinha que segura. — Na verdade,
não é nada. São apenas os bombons de chocolate que minha mãe faz para
vender.
— Que ideia bacana! — Meu espírito de pequena empreendedora
grita neste momento, perguntando-se por qual motivo eu não tive uma ideia
como essa antes. Seria muito bom fazer uma renda extra enquanto não
recebo meu primeiro salário.
— Ela pediu para que eu vendesse aqui no trabalho e nas
redondezas do bairro, mas sou tímida demais, sabe? Não levo jeito como
vendedora.
— E quanto está o bombom? — pergunta Claudia.
— 2 reais — responde Sarah com as bochechas vermelhas.
— Você quer um? — oferece Claudia.
— Não, eu ainda não recebi meu primeiro salário. Não posso
gastar...
— Depois você me paga. — Ela abre um sorriso e tira algumas
moedas do bolso enquanto Maria Alice bate palminhas. — Vou querer um,
Sarah!
— Mesmo? — A menina abre um sorriso enorme.
— Qual você quer, So... — Ela engole meu verdadeiro nome e se
corrige: — Natália?
— Tem de brigadeiro, Sarah?
— Claro que sim. Ainda resta muito deles.
Ela abre a cesta e vejo que ainda está lotada de bombons.
— Você ainda tem muito o que vender, menina — observa Claudia.
— Nem sei como eu vou fazer pra vender tudo.
Sarah me entrega o bombom em uma embalagem marrom e
vermelha, coloco imediatamente no bolso antes que Maria Alice o agarre,
pois ela ainda não está na idade de provar dessas perdições açucaradas.
— Eu tenho uma ideia — digo, chamando a atenção de Sarah. —
Que tal você me entregar esta cesta no final da tarde? Eu posso vendê-los
aqui pelas redondezas no meu horário livre das 17h.
— Sério? Quer dizer, você faria isso mesmo por mim?
— Claro, eu tenho muita experiência com vendas. Na verdade,
vendedora é meu segundo nome. Não será muito difícil oferecer os
bombons da sua mãe por aí.
— Eu não acredito. — Sarah só falta pular de tão animada. — Posso
te dar até uma comissão por isso.
— Imagina! Não precisa.
— Eu faço questão. Minha mãe vai me dar uma porcentagem por
cada bombom vendido, então faço questão de repassar a você já que não
tenho muito jeito pra isso.
— Olha, se você insistir, vou acabar aceitando — brinco, nos
levando a cair na risada.
CAPÍTULO 32

 
Enquanto espero o sinal abrir, sinto meus pensamentos se perdendo
novamente na lembrança da noite passada.
Ainda posso sentir gosto doce da boca de Natália na minha língua e
minhas mãos passeando pelas curvas do seu corpo, por cima do jeans,
imaginando como seria tocar livremente sua pele quente por baixo da roupa
e me enterrar em seu corpo esguio, que ultimamente tem alugado um tríplex
na minha cabeça.
Preciso de fato foder. Não com ela, mas com alguém mais
experiente.
Não dá para transar com uma funcionária, ainda mais virgem, e
depois fingir que nada aconteceu.
Ao me contar sobre sua virgindade na noite anterior, foi como se eu
voltasse a pensar automaticamente com a cabeça de cima.
Há um nível de canalhice que um homem jamais deve ultrapassar, se
aproveitar da inocência de uma mulher é uma das linhas proibidas para
mim, ainda mais agora que sou pai de uma menina. Não quero que em um
futuro distante, Maria Alice seja vítima de uma canalhice feito essa.
Mas... tem alguma coisa naquela criatura de cabelos selvagens e
pele dourada que me instiga, remexe meus sentidos e me tira do eixo, capaz
de me levar a imaginar variáveis loucuras que eu posso fazer com ela na
cama. Ah, são tantas opções! Não sei exatamente o que ela tem para me
deixar assim tão atiçado, mas estou ciente de que devo manter meu pau bem
guardado dentro das calças quando a vir pela casa.
Quando estou perto de casa, paro novamente em um sinal vermelho
e começo a ficar impaciente com a porra dos semáforos. Apoio meu
cotovelo na porta e instintivamente olho para o lado, onde fica as mesas na
calçada de uma conveniência. Há muitos clientes esse horário, o que é
normal nas proximidades da rua em que eu moro. Quando estou mudando
meu foco para minha frente, meus olhos esbarram na morena de cabelos
rebeldes de blusa amarela e calça jeans. Ela sorri para um casal sentado à
mesa, enquanto segura uma cesta na mão.
O que diabos ela faz aqui?
Continuo olhando, mas sou chamado a atenção pelo motorista em
uma Lamborghini do mesmo modelo da minha logo atrás. Ele buzina mais
uma vez e saio da frente, estacionando logo na primeira vaga que encontro.
Vejo o imbecil do carro atrás passar por mim, mostrando o dedo do meio e
praguejo destravando o cinto:
— Ah, vá se foder.
Ponho-me para fora do carro e caminho até a conveniência,
procurando-a entre as mesas, o que não é uma tarefa difícil, visto que ela é a
única pessoa que está em pé na calçada, parada de frente para a mesa de um
grupo de homens.
Enquanto fala e mostra um bombom para os idiotas que parecem
secá-la com os olhos, observo tudo de longe.
— Quais sabores você tem aí, Paraíba?
Ela parece respirar fundo com o modo que o loiro a chama, como se
estivesse prestes a explodir.
— Seu São Paulo, eu tenho de brigadeiro, coco, morango e cupuaçu.
— Se eu compro um de coco, eu levo você de brinde, docinho?
— Oh, cabra vei saliente. Me respeite, viu?
Não penso duas vezes antes de ir lá e puxar sua mão, fazendo seu
corpo girar para mim.
— Eita, peste! — Ela se assusta e me encara, ofegante. — Patrão?
— O que está fazendo aqui? — murmuro, impaciente. — Você não
devia estar cuidando da minha filha?
Eu juro que tento ser mais delicado com as palavras, mas parece que
sai no automático.
Ela endurece o olhar e larga minha mão de imediato. Pela sua
expressão, desconfio que tenha a ofendido.
— Desculpe informar, patrão, mas estou em meu horário de
descanso.
Os imbecis da mesa continuam nos encarando atentamente e tenho a
impressão que estão apenas esperando para eu cair fora para prosseguirem
com a conversa com ela.
— Se me der licença... Como está vendo, estou ocupada.
Pouso as mãos nos quadris e olho para o lado, impaciente.
— Será que podemos conversar ali no canto?
Ela me encara no modo de defesa, porém, não nega e me segue
meio, a contragosto, até o outro lado da calçada.
— O que senhor deseja? Eu posso ajudar com alguma coisa? —
pergunta, formalmente.
— Você não pode simplesmente largar o serviço e vir fazer bico na
esquina.
— Desculpe, mas ninguém me avisou que não posso fazer o que
quiser no meu horário de descanso.
— Horário de descanso não serviria para descansar?
— O senhor vai querer mandar no meu tempo agora? — replica,
impulsiva, empinando o nariz, visivelmente incomodada. Porém, recua logo
após, como se lembrasse de algo.
Ela morde o canto do lábio inferior, como se reprimisse a coragem
com que me enfrenta. Porra. Ficar olhando demais para esta boca carnuda
me dá um gatilho absurdo e de repente, quero mordê-la.
— Precisamos conversar sobre o que aconteceu ontem à noite –
digo, instintivamente.
— Pensei que não precisássemos conversar, já que me pareceu tão
indiferente quando me deixou sozinha ontem.
— Eu...
Merda. Por que me sinto tão tentado a quebrar as barreiras entre
mim e ela?
— Desculpe, não leve a mal, mas não tenho interesse em servir de
brinquedo na sua mão. Foi até melhor assim, a noite de ontem foi um erro,
na verdade, quase um desastre.
Desastre?
Como assim? A que exatamente ela está se referindo como
desastre?
Esta é a primeira vez que ouço algo assim vindo de alguém que
fiquei na noite anterior, mas ao invés de me sentir aliviado por ela estar me
rejeitado e facilitar minha vida, sinto o oposto, pois a porra do meu ego está
comandando meus sentimentos.
— Está me dizendo que não gostou da noite de ontem? — sussurro,
aproximando-me dela para não correr o risco de ganharmos uma plateia de
beira de esquina.
Ela parece prender a respiração com nossa aproximação, mas neste
instante seus olhos se arregalam, como se percebesse algo. Seus ombros,
antes curvados, se abrem confiantes, e ela inspira fundo antes de me
responder:
— É, foi um beijinho meio paia.
— Paia?
— É, fraquinho. Vale a pena repetir não, homem. É melhor
esquecermos da noite de ontem, que é a melhor coisa que nós fazemos...
— Você só pode estar de brincadeira comigo. — Meneio a cabeça
em negativa, ela recua voltando para o tom de subserviência, que sempre
exijo dos meus funcionários, mas dispenso nela:
— Tô não, seu Lauro. Não leve para o lado pessoal, vai ver nossas
bocas apenas não se encaixaram bem... — ela começa a explicar,
visivelmente preocupada.
— Pois achei que se encaixaram muito bem.
Ela enrubesce com minhas palavras, apertando os lábios carnudos.
Deus. Ela fica muito sexy envergonhada. Desço o olhar para aquela boca,
cujo gosto ficou marcado na minha memória, mergulhando mais uma vez
em uma espécie de frenesi.
A vontade que tenho é puxar aquela boca para um beijo duro e
enterrar minha língua entre aqueles lábios, enquanto minha mão pressiona
seu corpo contra o meu corpo.
Os lábios se abrem e argumento antes que ela fuja de mim:
— Estou realmente surpreso. Pois ontem, jurei que os gemidos eram
de prazer.
Ela abre a boca, olhando para os lados, o rosto pegando fogo.
— Ninguém escutou. — Aproximo-me mais ainda dela, pegando o
queixo pequeno entre os dedos, reivindicando aquele par de olhos castanho-
claros, quase mel, hipnotizantes.
Sinto o calor vir do seu corpo e sua respiração descompassada
atingir a pele do pescoço, deixando-me ainda mais vidrado em seus lábios.
Mantenho contato visual por alguns intensos segundos, como se um ímã
nos atraísse, pouco a pouco, porém, em um rompante, ela me empurra com
a mão livre.
— Fique longe de mim, patrão — ralha, ofegante. — Não importa
se eu gostei ou não do aconteceu, eu sei exatamente qual é o meu lugar e sei
perfeitamente que não é este. E como eu disse, não quero ser o brinquedo
de uma noite do senhor. Sou pobre, mas não sou fácil. Não ache vai fazer o
que quiser comigo.
Automaticamente, volto para a realidade.
— Tudo bem, tem razão. Não vou mais importuná-la — Olho para a
cesta em um dos seus braços e completo: — Nem mesmo em seu horário de
descanso.
Ela me olha, ainda com a expressão alterada e insegura.
Dou um passo para o lado e deixo um espaço para que ela possa
tomar o próprio caminho, sentindo-me um idiota por ter insistido, mesmo
sabendo dos riscos.
Natália respira fundo e passa por mim, voltando a fazer o percurso
entre as mesas da conveniência.
Solto o ar pelas narinas, embrenhando os dedos nos cabelos e encaro
a movimentação na avenida ao lado, digerindo o fora que acabei de levar.
Embora colocar uma distância entre nós seja o mais razoável a se
fazer, algumas questões rondam minha mente, dentre elas é se ela gosta de
outro cara. Droga! Por que de repente eu estou ficando puto com esta
hipótese?
Inspiro fundo e respondo minha própria questão, talvez por ser a
primeira vez que não posso conquistar livremente o que quero, sem peso na
consciência, pois, ao mesmo tempo que é tentador, seria muito egoísta da
minha parte levar uma garota inexperiente para cama, ser seu primeiro e
tratá-la com a frieza com que trato as mulheres com que me relaciono. Mas,
ao mesmo tempo, saber que outro cara pode usufruir do que jamais tocarei,
deixa-me puto pra caralho.
 

 
À noite
Lauro
 
— Não acredito que você se esqueceu de que hoje receberíamos
Bianca e Cássia! — fala minha mãe baixinho na frente das visitas, após
demonstrar sincera surpresa ao encontrar mãe e filha na minha sala. — Não
seja indelicado, mas sim educado, por favor.
— Certo. — Assinto, cumprimentando a senhora de cabelos
grisalhos com um beijo de lado no rosto. — Boa noite.
Faço o mesmo com Bianca, em meio a um clima chato entre nós.
— Quanto tempo, Lauro! — Cássia exclama ao lado de Bianca. —
Impressionante como o tempo só faz bem a você, menino.
— Obrigado! — Aquiesço educadamente, conforme minha mãe
anuncia atrás de mim:
— Vamos, meninas. O jantar está na mesa e já que o anfitrião
chegou, não há porque esperar mais, não é? — Ela sorri para a amiga de
longa data, que retribui com um sorriso largo e se coloca ao lado de mãe.
— Eu vou subir para ver Maria Alice.
— Agora não é um bom momento, querido. Ela caiu num sono com
Lúcia e está dormindo. Você não quer acordá-la, não é mesmo?
Ela me olha como se eu estivesse fazendo alguma desfeita com
aquelas mulheres e meneio a cabeça em negativa.
— Tudo bem.
Assinto e caminho ao lado Bianca, em encalço das senhoras à nossa
frente.
O jantar mal começou e eu já estou farto, tanto do filé de peixe
quanto da conversa recheada de indiretas sobre um possível relacionamento
entre mim e Bianca, sem contar a dorzinha chata que toma de conta da
minha cabeça aos poucos.
Já que minha mãe parece mesmo disposta em fazer daquele jantar
uma ocasião desagradável para mim, arranjo uma desculpa para sair dali.
— Com licença, tenho que fazer uma ligação — dou a desculpa
antes de me retirar da mesa e subir para o andar de cima, tomando um
pouco de ar, pois aquela conversa já estava me sufocando.
Paro em frente da porta branca de madeira lisa e a encaro por alguns
minutos.
Com máximo cuidado, giro a maçaneta e entro no quarto rosa que
está à meia luz. Paro no canto do berço e fico assistindo ao seu rosto
minúsculo em sono profundo entre as grades de madeiras polidas.
Caramba! Dormindo a essa hora, é provável que essa criaturinha
passe a noite inteira acordada.
Esse sim é um problemão para ela, sua babá.
Maria Alice solta um suspiro involuntário e estica genuinamente o
canto da boca, como se estivesse tendo algum sonho bom. Meus lábios se
curvam no automático em um meio-sorriso.
Ela é tão linda, tão pura, que enche meu peito de um sentimento
indescritível, que nunca me acometeu antes. Com toda a correria dos
últimos dias no trabalho, acho que ainda não consegui digerir isso, mas, de
alguma forma, embora o meu sangue não corra em suas veias, sinto que ela
a cada dia se torna parte de mim, a quem eu devo todo o meu amor,
proteção e dedicação pelo resto dos meus dias.
É assim que um pai deve ser.
A despeito da experiência conflituosa que tive com meu pai, nunca
nos faltou nada. Nem para mim, ou para os meus irmãos. Talvez, um pouco
de afeto, porém, este é um ciclo que quero quebrar. No que depender de
mim, Maria Alice terá o melhor de mim, em todos os aspectos.
Fico mais um pouco e depois me retiro com o mesmo cuidado com
que entrei.
Decido voltar para a sala de jantar, no entanto, estanco os passos
ainda no alto da escada quando tenho visão da sala embaixo.
Bianca está em pé, ao lado do sofá, parecendo esperar por alguém
com o celular na mão. Inspiro fundo e me preparo para enfrentar a situação,
porém, antes disso, em um ímpeto, ela sai do lugar que está e caminha em
passos largos em direção a porta, que dá acesso ao jardim, no entanto, ela
sofre uma parada brusca quando o colide com Natália, que parece ter
chegado com aquela cesta pendurada no braço.
— Eita, mulinga!
— Você não olha por onde anda, garota?
— Pelo visto, nem a senhora está prestando atenção. 
— O que você disse? — Bianca lança um olhar repressor para a
mulher de cabelos ondulados.
— Nada não — responde Natália, nervosa, enquanto Bianca só falta
engoli-la com os olhos. — A senhora não vai querer um chocolatinho?
Estou vendendo estes por apenas dois reais.
— Não. — Bianca passa as mãos nos cabelos impacientemente,
ajeitando-se.
— A senhora gosta de que sabor? Eu tenho de coco, brigadeiro,
morango... — Bianca só falta explodir olhando para a menina, uma súbita
vontade de sorrir me acerta ao ver que a garota está disposta a fazer Bianca
Vasconcelos sair da sua rigorosa dieta de vegetais e carne branca por um
chocolate provavelmente cheio de gordura hidrogenada.
— Eu já disse não quero — ralha Bianca entredentes.
— E se eu fizer uma promoção?
— Já falei que não quero!
Natália perde a fala.
— Você não tem nada para fazer nesta casa, garota? O seu chefe
sabe que te contratou para ficar vendendo essas porcarias por aqui?
Os ombros de Natália murcham, o sorriso em meu rosto desaparece.
— Desculpa, eu não vou mais oferecer — ela diz, escondendo a
cesta.
— Agora, saia da minha frente. Saia! — Bianca faz um sinal de
chispa e Natália faz o que ela manda, saindo pela lateral da sala, em direção
à cozinha.
Desço as escadas imediatamente, mas não alcanço a mulher de
cabelos cacheados. Ao invés disso, atraio os olhares de Bianca, ainda
parada em pé ao lado da porta de entrada.
— Onde você estava? — ela me questiona.
— No andar de cima — respondo, seco, sem fornecer muitos
detalhes. Tenho a impressão de que a dorzinha chata na minha cabeça
parece aumentar.
A fim de evitar uma conversa desagradável e frustrante para nós
dois, volto para a sala de jantar.
— Lauro, sente-se aqui. Estávamos combinando um fim de semana
em um resort em Trancoso... — minha mãe me recebe com a informação no
mínimo revoltante.
Mas que porra é essa? Ela queria foder mesmo com minha noite?
— Mãe, por favor, a senhora pode vir comigo um minuto?
Ela percebe o tom de seriedade que coloco nas palavras e logo se
coloca no canto da sala comigo.
— No que a senhora está pensando? — resmungo baixinho para que
elas não escutem.
— Tentando ajudar sua relação com Bianca.
— Já não temos mais nenhum tipo de relação...
— Por Deus, Lauro. Não criei você para ser um canalha.
— Canalha? — Arqueio uma sobrancelha, já puto com essa merda
toda.
— E outra, você acha que pode criar essa criança sozinho? E quando
ela começar a perguntar pela mãe? O que pretende fazer? Contratar uma
mãe de aluguel! — ela ironiza.
— Basta, mãe. Não vou tolerar qualquer tipo de interferência deste
tipo na minha vida pessoal e muito menos deixar que essas mulheres criem
esperanças em algo infértil, elas não merecem serem feitas de palhaças.
Nunca dei esperanças a Bianca e sempre deixei tudo às claras. Então, por
favor, não complique a situação e não as deixe passar ridículo.
Ela arregala os olhos e antes que rebata, sou incisivo em dizer:
— Vou me despedir delas agora. E, por favor, não faça mais nada
para impedir que eu tenha um pouco de paz na minha própria casa, ok?
Ela engole as palavras, que estava prestes a dizer, e enfeza o rosto.
— Faça como quiser. Afinal, já é um homem feito e, em tese, acho
que deve saber o que está fazendo, sem seguir os conselhos de uma mãe —
ela dramatiza. — Espero que também nunca mais me chame para se
aproveitar de mim e ajudá-lo a cuidar da minha neta, não sou sua
empregada!
— Eu pedi humildemente para que me auxiliasse com Maria Alice
por um momento, que, aliás, já acabou, e sou grato por isso, mas não posso
admitir que a senhora controle minha vida como se ela fosse um joguete em
suas mãos. — Inspiro fundo e direciono meu olhar para as mulheres
sentadas à mesa. — Senhoritas — digo em um tom mais alto para que elas
possam escutar com clareza —, gostaria muito de ficar mais um pouco, mas
estou com uma dor de cabeça infernal. Se não se importam, subirei para o
meu quarto.
— Claro! Já estamos indo, não é, mamãe? — Bianca parece me
entender e se levanta de imediato.
— Foi uma noite maravilhosa. Obrigada, Vera. Fiquei muito feliz
em revê-lo, Lauro.
— Igualmente. — Assinto, respeitosamente, e me despeço, saindo
pela porta lateral, em direção a minha paz de espírito.
 

 
— Essa foi uma das noites mais vergonhosas que já tive o desprazer
de participar. Nunca me esquecerei da desfeita que fez com minha amiga
Cássia e sua filha, Bianca.
Minha mãe se lamuria, enquanto carrego sua mala até o carro
estacionado no jardim.
— Não convidei ninguém para vir a minha casa — lembro, abrindo
a porta traseira da Mercedes branca. — Não é justo me responsabilizar por
uma frustração causada por uma expectativa sua.
— É um ingrato mesmo. Deveria ter ao menos consideração por
mim, já que sou sua mãe.
— E tenho. Pode acreditar, você é a mulher por quem tenho mais
consideração.
— Coitadas das outras mulheres então, pois se isso é o que tem de
melhor para oferecer, não quero imaginar como é sua relação com as moças
com quem se relaciona.
— São relações bastante transparentes, eu diria. No geral, elas
gostam do prazer que eu as proporciono.
— Poupe-me dos detalhes, Lauro! — brada, com os olhos
semicerrados, e eu comprimo os lábios em arrependimento, pois minha
intenção não foi constrangê-la com minha honestidade. — Até outro dia,
seu delinquente.
— Quando vai vir nos visitar?
— Provavelmente depois do meu aniversário. Estarei muito ocupada
com os preparativos da festa — responde, abrindo a porta traseira e se
acomodando no banco de couro caramelo.
Todos os anos é a mesma coisa, a festa de aniversário da minha mãe
já se tornou  uma tradição de família, em que eu e meus irmãos nos
reunimos todos no mesmo local — algo muito difícil de organizar desde
que tomamos nossos próprios caminhos depois que saímos de casa.
— Ok. Eu a visitarei com Maria Alice antes disso — digo em tom
mais sedoso, numa tentativa de amolecer seu coração.
— Não está tentando usar minha neta para me fazer esquecer da
desfeita de noite de hoje, não é? — Ela arqueia uma sobrancelha, olhando-
me de cima a baixo.
— Eu seria incapaz — respondo, engolindo em seco.
— Safado — pragueja.
Ela fecha a porta e abre o vidro:
— Cuide bem da minha neta, e, por favor, não traga mais mulheres
para sua casa, a não ser que esteja em um relacionamento sério. A partir de
agora, você é um pai de família. Portanto, dê-se o respeito!
Pigarreio limpando a garganta e assinto.
— Sim, senhora. Nunca passou pela minha cabeça trazer uma
mulher aqui depois da chegada de Maria Alice. Então, quanto a isso, pode ir
em paz, minha mãe.
— Certo.
Ela me olha mais uma vez, com uma mistura de decepção
adicionada a raiva, em seguida levanta o vidro.
Fernando, o motorista, dá partida e leva minha mãe para casa. Fico
ali observando de longe, até inspirar fundo e me recolher. Eu precisava
urgentemente de uma ducha demorada e um comprimido analgésico.
 

Horas depois
 
Não sei exatamente quando desmaiei de sono na cama em meu
quarto, provavelmente depois de tomar um banho gelado prolongado,
colocar uma calça de moletom e me esparramar pela cama, esperando o
efeito do analgésico fazer efeito.
Abro os olhos em ritmo letárgico, sendo acertado pela luz da
lâmpada ainda acesa. Olho para a janela e concluo que ainda é noite.
Verifico o celular na mesinha ao lado e na tela marca exatamente 3h45.
Droga. Deveria ter apagado as lâmpadas antes de dormir.
Levanto-me sentindo minha garganta ressecada e decido ir até a
cozinha em busca de um copo d’água.
Caminho pelos cômodos semiescuros e silenciosos, sem camisa, da
forma que sempre costumo andar pela minha casa quando os funcionários já
foram embora ou se recolheram.
Uma das desvantagens de ter tanta gente trabalhando para você é
que é raro se sentir totalmente à vontade dentro da sua própria casa.
Vou primeiro ao quarto de Maria Alice e, pela brecha da porta, vejo
que ela ainda está dormindo em seu berço, de bruços. Dou uma olhada no
sofá ao lado vago e percebo que sua babá também provavelmente já foi
dormir há um bom tempo.
Faço o caminho até a escada principal e alcanço o corredor que dá
acesso à área de serviço, estranho a luz acesa àquela hora da noite.
Talvez alguém tenha esquecido de desligar quando saiu.
Quando passo pelo batente, sou pego de surpresa.
O rosto delicado deitado em cima da pedra da bancada está em sono
profundo, enquanto os cabelos cacheados caem em ondas sobre a superfície
polida. Ela parece ter adormecido aqui, sem que ninguém tivesse percebido.
Inspiro fundo, lembrando-me da discussão que tivemos mais cedo e
balanço a cabeça, a fim de afastar toda a situação da minha mente.
No entanto, sua mão estendida sobre o mármore branco me chama a
atenção. Ela segura um papel, que de longe parece ser uma foto.
De repente, sinto-me incomodado. Porra. No que estou pensando?
Movido pela curiosidade, pego-me me aproximando e paro ao seu
lado, observando a foto de uma senhora sentada em uma cadeira de balanço
na frente do que parece uma casa humilde.
Solto levemente o ar pelas narinas, não sabendo o porquê me senti
aliviado em ver que ela segura uma foto de uma senhora e não de um cara.
Neste instante, ela se mexe como se sentisse minha presença e abre
os olhos em ritmo letárgico, percebendo-me ao seu lado. Da forma como ela
me olha, tenho a impressão de que ela ainda está tentando entender se ainda
está dormindo ou acordada, mas na hora que ela compreende a situação,
arregala os olhos e joga o corpo para trás, equilibrando-se na banqueta.
— Patrão?! — exclama, estupefata. — Há quanto tempo o senhor
está aí?
Solto um suspiro e respondo honestamente:
— Um pouco menos de um minuto.
— Que horas são?
Ela leva a outra mão para a cabeça.
— Deve estar dando quatro horas. Da manhã.
— Ai, meu Deus! Maria Alice! — Ela solavanca para o lado da
banqueta.
— Ela está dormindo. Não se preocupe, acabei de passar lá.
— Passou?
— Uhum.
Deslizo o olhar para a fotografia que ela esqueceu em cima da mesa
e indago:
— É a sua mãe?
— Quem?
Ela olha para os lados e se assusta, quando vê a foto em cima do
mármore.
— Ai, meu Deus! — sussurra, parecendo martirizada, pegando o
papel e o guardando no bolso traseiro da calça jeans. — O que senhor
deseja exatamente?
— Não respondeu à minha pergunta primeiro. A mulher na foto é
sua mãe?
Ela engole em seco.
— Sim, senhor. Por quê?
Tenho a impressão de que por alguma razão ela está na defensiva,
talvez por causa do nosso pequeno desentendimento mais cedo na esquina
de casa, no entanto, respondo com sinceridade a fim de desfazer o clima
tenso desnecessário entre nós.
— Por nada. Apenas curiosidade. Ela é uma mulher muito bonita.
Ela mora com você? — pergunto com sincera curiosidade.
— Não.
— Então, ela não mora em São Paulo. Talvez no...
— Deus já a levou.
As palavras somem da minha boca.
— Sinto muito — limito-me a dizer, respeitosamente. — Não queria
ser invasivo ao perguntar...
— O senhor não tinha como adivinhar. Tudo bem.
Seu olhar, que costuma carregar um otimismo ingênuo, agora está
coberto por uma fina camada de água, por isso percebo que o assunto ainda
a machuca muito.
— Ainda sente muita falta dela.
Ela assente com um menear de cabeça, esfrega os olhos com o dorso
da mão e cai o olhar para os próprios sapatos gastos.
— Preferia ter ido no lugar dela. — Ela ergue a cabeça, inspira
fundo e olha para o lado, como se prendesse o choro. — Desculpe pelo
desabafo, é que sempre foi mainha e eu, não tive a presença de um pai por
perto e nem parentes, já que minha vó, Ana, morreu muito nova. E desde
que mainha se foi, sinto que perdi a única pessoa que estava neste mundo
por mim. Talvez quando eu envelhecer essa sensação de solidão melhore,
mas agora isso acaba diariamente comigo.
— Quer conversar sobre isso?
Ela me encara, comprimindo os lábios, e balança a cabeça em
negativa.
— Não. — Ela inspira fundo e desconversa: — Mas o que o senhor
veio fazer aqui?
Balanço a cabeça despertando de uma espécie de transe, tentando
lembrar do que vim fazer na cozinha, conforme percebo que ela faz o
mesmo e olha para o peitoral nu. Suas bochechas coram, levo a mão para o
meu peito inutilmente, como se fosse cobrir muita coisa.
Desisto de me cobrir, deslizando as mãos para os bolsos e respondo:
— Estava com sede e acabei descendo para pegar um copo com
água.
— Ah, sim.
Ela faz um gesto positivo, olhando-me dentro dos olhos, como se
refreasse de algo.
— O que foi?
— O senhor não tem nem uma camisa para cobrir os couros, não?
— reclama.
Sorrio do seu constrangimento, pousando minhas mãos na cintura e
me direcionando para a geladeira atrás dela, antes que o seu pescoço
endureça de tanto se concentrar em manter os olhos presos aos meus.
— Quer um pouco de água também?
Retiro a garrafa d’água e pego um copo no armário.
— Eu? Não.
— Você deve estar com calor.
— Engraçadinho.
Volto para o seu lado, atrás da bancada, sentando-me em uma das
cadeiras.
— Eu também já me senti muito sozinho — comento, fitando a
porta da cozinha enquanto sinto seu olhar se voltar para mim.
— Já?
Capturo certa incredulidade em seu tom de voz.
— Por que está surpresa?
— Sei lá. O senhor com esse jeito durão e com todos esses
funcionários, não imaginava que se sentisse sozinho. Aliás, o senhor todo
gostosão desse jeito, também deve chover de mulheres querendo sua
companhia, sem contar que você parece vir de uma família estruturada e
perfeita.
Encaro-a seriamente para perguntar:
— Você me acha gostosão?
Ela fica visivelmente sem graça com a distância dos nossos rostos,
já que estou sentado na banqueta e ela, em pé ao meu lado.
— Sé-sério que ouviu só o gostosão?
Seu rosto pega fogo e a vejo unir as mãos trêmulas, visivelmente
envergonhada, prestes a fugir do meu olhar. Ela é só uma garota — uma
sirene em meu cérebro ecoa como um segundo aviso.
Pigarreio e retorno ao assunto:
— Ter muitos funcionários não isenta ninguém da solidão. Mas você
tem razão, hoje não me sinto tão sozinho. Me referi a uma época turbulenta
em minha adolescência, em especial na época em que meu pai pediu o
divórcio a minha mãe para assumir uma de suas amantes.
Um silêncio perdura entre nós e brinco em seguida, tentando
quebrar o gelo:
— Agora você pode riscar também a “família estruturada e
perfeita”.
Ela me olha com seriedade, não dando sequer sinal de que achou
graça da situação.
— Me desculpe, não vou te encher com os problemas da minha
família uma hora dessas.
— Não, não. Eu estou gostando de escutar. Escutar me faz bem.
— Tem certeza de que não prefere dormir?
— O sono até sumiu. Pode continuar.
Respiro pesadamente, olhando para este par de olhos castanho-
claros inocentes. Caralho! Como ela é linda. A beleza dela não é enjoativa,
muito pelo contrário, é daquelas que dá vontade de ficar olhando por um
longo tempo, como me hipnotizasse. Ela me olha com aquele olhar pidão, e,
porra, não consigo resistir aquilo.
— Honestamente, nunca tive uma família perfeita, nem quando os
meus pais ainda estavam juntos, pelo contrário, era um inferno. Toda
semana era uma briga diferente e tudo o que me lembro dessa época é o frio
na barriga ao escutar os gritos altos do meu pai com minha mãe, ameaçando
deixá-la sem nada.
— E os seus irmãos?
— Eles conseguiam pôr para fora suas angústias melhor do que eu.
— Observo a forma compassiva enquanto me escuta, com isso sinto uma
confiança descomunal em abrir detalhes da minha vida que jamais contei a
nenhum outro funcionário, nem para amigos próximos que me inspirasse
tanta confiança como ela. Bufo e prossigo com o desabafo de uma
madrugada: — A verdade é que eu sempre fui péssimo em demonstrar
meus sentimentos e isso acabava me sufocando em doses homeopáticas, até
me esgotar por completo e me isolar de todos que se aproximavam de mim,
inclusive dos meus próprios irmãos, embora ninguém parecesse enxergar o
que se passava comigo. Afinal, já tínhamos problemas demais na família. E
até preferia assim, pois nunca gostei da ideia de estar no lugar do pobre
coitado, pois sempre exigi muito de mim desde muito novo. Mas felizmente
consegui superar essa fase tempo depois e fiquei bem melhor.
— O que você fez para superar essa fase? — ela pergunta, curiosa.
— Talvez sirva para mim também.
— O que foi que eu fiz? Terapia.
— Terapia? Tipo ir ao psiquiatra e tudo mais?
— Inclusive, recomendo a você um bom psiquiatra.
— Não, não. — Ela sorri, sem graça. — Eu só estou me sentindo
solitária ultimamente, mas ainda estou batendo bem das bolas — ela fala e
não consigo controlar a risada, que sai um pouco alta pela minha garganta.
— O que foi? Hum. Qual foi a graça? — Natália fecha o semblante.
Recomponho-me aos poucos, ainda sorrindo levemente.
— Eu sei disso, menina. Psiquiatra não é “médico para loucos”
como deve estar se passando na sua cabeça.
Suas bochechas enrubescem.
— Desculpe. Não quis ofender o senhor, mas não preciso de tanto.
Pelo visto, saúde mental ainda é um tabu para ela. Respiro fundo e
tento explicar de uma forma gentil:
— Da mesma forma que você vai ao médico quando sente uma dor
física, é perfeitamente normal procurar um psiquiatra quando nossa mente
adoce.
— O senhor pode até está certo, mas isso deve ser coisa de rico. Não
tenho como bancar uma consulta de um profissional desses, visse? Eu
pensei que o senhor iria me passar algo mais caseiro.
— Caseiro? — Tenho certeza de que meus lábios estão separados
em surpresa. Que diabos estava passando pela cabeça dela? Que eu
passaria uma simpatia ou uma planta milagrosa?

— Mas tudo bem, seu Lauro. — Ela sacode as mãos se levantando.


— Obrigada por se abrir comigo. — Ela guarda a cadeira ao meu lado e
seus lábios se curvam em um sorriso tímido, o rubor se arrastando
lentamente pela sua pele dourada outra vez. — Eu acho que depois dessa
conversa eu estou bem melhor. Acho que vou dormir. Boa noite.

— Espere.

Levanto-me em um ímpeto, impedindo que ela deixe a cozinha. Ela


recai o olhar para minha mão segurando a sua, à medida que morde o lábio
inferior com força.
Ela levanta o rosto e enfia atrás da orelha uma mecha de cabelo
solta, fitando-me.

— Está fugindo de mim? — pergunto, num sussurro enrouquecido.

— É o que devo fazer, não? — Sua voz é suave como seda e seus
lábios se entreabrem.

Seus olhos redondos brilham, transbordando uma combinação


estranha de ansiedade e excitação, enquanto uma voz autoritária martela em
meu cérebro: ela é apenas uma menina, porra. Eu estou avisando.

Solto sua mão e pigarreio em seguida.


— Você irá se consultar com meu psiquiatra. Direi a Lúcia para que
marque uma consulta para você o mais rápido possível. Não se preocupe
com valor, eu cobrirei isso para você.
Ela pisca os olhos freneticamente, dando um passo para trás.
— Desculpe. Não lembro de ter pedido algo ao senhor.

— Não precisa pedir.


— Essa não é a questão. Você deveria me perguntar antes para saber
se quero alguma coisa, não apenas dizer que vai fazer algo por mim.

— Você acabou de me dizer...

— Não preciso que o senhor pague as coisas para mim.

Sorrio do seu orgulho tolo.


— Não vai aceitar, não é mesmo? — Pouso as mãos na cintura.

Ela parece ser aquela que perde oportunidades valiosas apenas para
se mostrar justa e correta, como isso fosse uma regra a ser sempre seguida.
Ela me encara, irredutível.

— Então, faça assim, aceite como uma prerrogativa para continuar


trabalhando aqui. Não é do meu interesse manter funcionários com o
emocional fragilizado.

— Eu estava gostando mais da sua versão de ainda agora.


— Que versão? Ainda sou o mesmo, não?

— Não é não. O senhor agora voltou a ser o tipo de homem que eu


pensei que era. Você me obrigar a aceitar sua ajuda não o faz uma pessoa
boa, mas sim um arrogante que acha que pode controlar tudo, só por ter
poder para tal.
Mesmo que eu ignore, tenho de admitir que suas palavras me
incomodam, pois sei que ela está certa.
Sou predador por natureza. Nos negócios, em casa ou em qualquer
aspecto da minha vida. Uso o poder que tenho para que todos ajam de
acordo com as minhas vontades e não tenho nenhum pouco de remorso em
fazer isso.
— Se desde o início você pensa isso sobre mim, por que está
surpresa agora?

— Eu confesso que eu tinha um pouco de esperanças do senhor ser


lá, no fundo, um cara mais gente boa... Ah, esquece! Quer saber, eu vou é
dormir. Isto é besteira... — ela fala dando de costas para mim, mas a
interrompo:
— Qual diferença faria se fosse um cara mais... — dou de ombros
—, simpático ou relativamente humilde?

Ela para no batente, porém, não se vira para mim.


— Você pararia de fugir de mim?

— Não sei do que o senhor está falando – diz ela, com a voz rouca.
Dou alguns passos e me aproximo da porta, onde a babá da minha
filha está virada de costas para mim. Seus cabelos caindo encaracolados em
cascatas, fazem-me querer mergulhar meu rosto ali e sorver o delicioso
cheiro de rosas que emana dela.

— Não consigo esquecer de quando toquei seu corpo naquela noite


— confesso, lutando contra a tentação.
— Pensei que já tivéssemos dado por encerrado este assunto.

— Seja franca, você tem alguém?

O silêncio toma conta do espaço entre nós.


— Naquele dia, em seu quarto, não me respondeu claramente
quando lhe perguntei.
Ela reluta em responder, porém, o faz:

— Não. Não me relaciono com ninguém.


— Tem alguém em mente, então?

— Onde o senhor quer chegar? — Ela se vira para me perguntar e


percebo que sua respiração está um pouco ofegante.

— Em lugar algum. De repente, me senti curioso sobre o assunto.

— Por quê?

Inspiro fundo, compenetrando seu doce par de olhos castanhos


agressivos e depois, analisando seus lábios.

— Porque... — perco-me na abertura da sua boca carnuda e torno


novamente a me concentrar nos seus olhos — Porque, honestamente, nunca
me senti tão atraído por nenhuma outra mulher como estou agora, em
contrapartida, sinto que este desejo está esmagando aos poucos todo o meu
autocontrole.
— Precisa se controlar quando está perto de mim? — pergunta,
arregalando levemente os olhos.

— A todo instante. Mas tenho consciência de que não sou homem


para você, garota. Então, se está tentando usar algum joguinho de
desinteresse para brincar com fogo, sugiro que pare...

— Não estou fazendo jogo algum, eu realmente não tenho interesse


em ir para a cama com o senhor.
O silêncio retorna, um pouco mais áspero. Observo-a tomar uma
boa dose de ar e prosseguir:
— Pretendo ficar por muitos anos trabalhando para o senhor e não
quero nem sonhar em correr o risco de perder este emprego. Ele é muito
importante para mim.

De repente, ela deixa de ser uma garota diante dos meus olhos,
dando voz ao que parece ser uma mulher forte e decidida.

— E já que o senhor foi sincero, acho justo retribuir sua


honestidade. Naquela noite, eu também senti muito desejo pelo senhor. Mas
não se preocupe, que da mesma forma que meu corpo pega fogo, eu
também sei apagar. Não preciso que o senhor se controle ou que me diga
que não é homem para mim, pois sei me dar o respeito e lhe dizer não.

— Desculpe, não quis parecer pretensioso.


— Se pretensioso quer dizer arrogante, o senhor foi sim pretensioso.

Dou um passo para trás e enfio as mãos nos bolsos.


— Me desculpe por isso também. Eu meio que faço sem perceber.

— Pedir desculpas me parece ser um bom caminho para superar


nossos erros.
Embora sua expressão seja rígida, suas palavras soam complacentes.
Continuo a fitando, tenho a impressão de que ela fica mais bonita a
cada segundo que se passa e não consigo evitar o desejo irracional que se
apodera do meu corpo.

Após algum tempo nos encarando fixamente, ela desvia o olhar para
o lado.
— Boa noite, seu Lauro.
— Boa noite — balbucio, fotografando cada canto do seu rosto
perfeito nos meus pensamentos, pois pelo jeito é o único lugar em que vou
poder tê-la exclusivamente para mim.
CAPÍTULO 33

Meu coração está disparado. Caminho pelos corredores fazendo o


trajeto até o meu quarto, sentindo minhas pernas moles e meus joelhos
trêmulos, como se ele ainda estivesse perto. Meu pescoço está coberto por
suor, grudando meus cabelos na pele.
Entro em meu quarto e fecho a porta, apoiando minhas costas na
superfície gélida da madeira polida, enquanto sinto o fogo incendiar meu
corpo inteiro ao me lembrar do peitoral nu e toda a boa forma daquele
homem, capaz de desorientar qualquer mulher em suas completas
capacidades mentais. O que raios acabou de acontecer? Ele admitiu que me
deseja em sua cama?

— Não foi bem isso, Maria Solange — converso comigo mesma,


mas meu subconscientemente logo me refuta veementemente. Mas é claro
que foi, menina.

Oh, ele é tão provocante!

Por mais que eu saiba como essa história terminará, é tentador


demais pensar em como seria se, por um descuido meu, nós fôssemos para
cama por uma noite.

E colocar em risco minha chance de ficar perto de Maria Alice


pelos próximos anos?
— Ô fogo da molesta! Quem vê, pensa que tenho experiência na
cama. — Atravesso o quarto e me sento na beira da cama, conversando com
os meus próprios botões. — Mas quem disse que virgem não sente fogo? O
negócio só está lacrado, não está congelado não.

Ainda mais quando lembro do gosto e da textura do toque daquela


língua percorrendo boca, pele e ossos, contornando sem pressa os bicos dos
meus seios, como se tivesse perícia no assunto.

— Ô céus. — Arfo, sentindo meu corpo incendiar e minha garganta


secar.
Em um rompante, levanto-me e passo a mão em minha nuca.

— Preciso de água — digo, tentando afugentar aqueles pensamentos


impróprios.

Acabei de dar um fora nele com todas as letras. É ridículo agora


ficar pensando no que aconteceria se eu tivesse cedido. Além de ser uma
tolice da minha parte, é perigoso achar que isso terminaria bem. Mas parece
que meu corpo é desobediente aos comandos da minha mente, ainda mais
quando se trata daquele homem.

Retorno para o corredor e paro abruptamente quando o encontro


parado em frente ao quarto de Maria Alice, apoiado na parede, com as duas
mãos enfiadas nos bolsos do moletom, o tronco perfeito à mostra e com
uma expressão impenetrável no rosto.

— O que está fazendo aqui? — pergunto na defensiva.

Ele me olha com olhos sérios e eu estremeço em meu lugar.

— Vim conferir pela última vez se Maria Alice está bem. — Tenho
a impressão de que sua voz está mais grave e mais rouca que o normal e
arrepio involuntariamente. — E você?

— Eu... — Droga. O que vim fazer mesmo aqui?

Tenho dificuldade em me lembrar o que me trouxe aqui, mas, graças


a Deus, tão logo me recordo.

— Estou com sede. — Ele me olha fixamente e tenho a impressão


de que é uma tortura para o meu chefe fazer isso. — Eu vou descer agora.

Ele aquiesce, desviando o olhar.

Dou um passo à frente e passo por ele, aspirando um pouco da


essência almiscarada deliciosa. Paro e o olho por cima do ombro.

— Se por acaso... — aperto os lábios, fugindo-me a coragem.

— Se por acaso? — Ele endireita a coluna e me incentiva a


continuar.

Inspiro fundo, reunindo uma coragem tola e prossigo:


— Se por acaso, eu quisesse o mesmo que o senhor... — Minha voz
é suave e hesitante. — Você me demitiria depois?
— Não sei do que está falando. Pode ser mais claro.

Viro-me lentamente nossos olhos fixos uns nos outros.

— Se nós transássemos... Eu correria o risco de perder o meu


emprego?

— Por que eu faria isso? — Ele franze o cenho.


— Sei lá. Por várias razões.

— Tem medo de transar comigo, por que não quer perder seu
emprego? — Sua voz é baixa e grave, junto a uma pitada de surpresa.
— Do que mais eu deveria temer?

Sua expressão muda repentinamente e a atmosfera no corredor fica


mais densa, impassível. Ele gira os calcanhares para que fiquemos frente a
frente e me responde em um tom ainda mais grave:

— Não transo com mulheres virgens.


— Espera aí. Está tentando se vingar pelo que eu disse lá embaixo...

— Também não costumo me vingar de mulheres. Nunca precisei me


vingar de uma — interrompe-me, falando seriamente.

— Então?

— Então o que eu quero dizer é que não sou homem pra você,
menina. Respondendo à sua pergunta, não a demitiria caso continuasse
fazendo seu trabalho direito, mas não poderia dar a você aquilo que as
garotas na sua idade querem.
— O que garotas na minha idade querem? — Aproximo-me,
questionando-o, mas ele se cala. — Estou curiosa para saber.

Ele hesita, mas me responde:


— Carícias, esperanças e flores.
Sorrio.

— Não se preocupe, que mal conheço essas coisas. Ele arqueia uma
sobrancelha, e prossigo:
— Fui criada para sobreviver. Essas coisas são para meninas que
vivem.

Ele tenta falar algo e digo antes que o faça:


— Não quero que sinta pena de mim, não estou me vitimizando.
Mas é ridículo achar que eu espero flores de um homem feito você.

— Um homem feito eu? E como seria um homem feito eu? — Ele


arqueia a sobrancelha, visivelmente contrariado.

— Soberbo, rude e controlador.


— Controlador? — Ele sorri, olhando para o lado.

— Vou pegar minha água, seu Lauro. É a melhor coisa que eu faço.

— Me faça um favor? Nunca mais dê a entender que quer também.

— Por quê? É torturante demais para o senhor? — provoco,


aproximando-me, até que fiquemos rosto a rosto. — Pensei que o senhor
tivesse mais controle sobre si próprio.
Ele dá um passo à frente e quase tromba o nariz no meu, tamanha a
proximidade entre nossos rostos.

— Não sou moleque para ficar neste chove não molha — vocifera,
seriamente, e eu estremeço.
— Então, por favor, nunca mais me beije como naquele dia em meu
quarto — digo, nervosamente, preparando-me para sair da sua frente.
— Se isso te preocupa, fique tranquila, nunca mais a beijarei.

— Obrigada! — respondo, girando os calcanhares para sair dali,


mas sou impedida pela sua mão em meu braço, que me puxa para o lado e
me encurrala contra a parede. Ele une nossos lábios em um beijo duro e
demorado.
Sua pélvis me pressiona contra a parede atrás de mim, aumentando
minha temperatura drasticamente.
Nosso beijo é tão intenso que perco o ar ao mesmo tempo em que
sinto que preciso mais do calor daqueles lábios.
Nossas mãos, braços e corpos se atracam em uma dança assíncrona
de desejo e necessidade.
 Lauro me segura pela bunda e gemo contra a boca, respirando o seu
hálito mentolado. Dessa forma, retomamos o beijo com mais fôlego
enquanto sou erguida por ele. Minhas pernas engancham em sua cintura, e
minha nossa! Posso sentir o seu negócio duro feito pedra roçando em minha
entrada, por cima do jeans e, automaticamente, meu sexo se contrai
pegando fogo.
— Porra. Preciso estar dentro de você agora.
Ele caminha comigo, no colo, até o corredor da casa em que já
estive antes e me coloca de pé no chão ao chegarmos em seu quarto. Olho
em volta com o corpo quente e tento acalmar minha respiração irregular.
Ele tira a camisa em minha frente, e eu não fico para trás, faço o
mesmo com a minha camiseta e sapatos.
Ele carrega no colo, só que, dessa vez, é para me deitar cama de
forma que eu tenha uma visão dele de pé em minha frente. Ele se livra da
calça de moletom, ficando apenas de boxer e Deus! Que corpo perfeito!
— Está certa disso?
Poucas vezes tive tanta certeza do que quero como agora.
— Sim... — respiro fundo, meneando a cabeça em positivo —, eu
quero.
Ele vem para cima de mim e me arrasto para mais perto da
cabeceira, sob o olhar flamejante do meu chefe.
Minha pele arrepia quando as pontas dos seus dedos acariciam o
meu braço esquerdo e gaguejo, insegura:
— O-o que fazemos agora?
— Vou fazer você relaxar primeiro, bebê — ele sussurra.
— Você vai me fazer uma massagem nas costas? — pergunto no
automático, e ele abre um meio-sorriso. A propósito, ele fica um espetáculo
com aquele meio-sorriso.
— Algo similar. Mas com a língua e em outro lugar.
Coro com meus pensamentos, pois não sou tão ingênua quanto
aparento ser. Afinal, as informações vêm de muitos lugares hoje em dia e
sei muito bem onde um homem pode meter a língua além da boca, embora
isso nunca tenha me ocorrido.
Ele mordisca minha orelha e me avisa em um sussurro:
— Quanto mais relaxada estiver, mais prazeroso será.
Recebo mais um olhar seu antes de ele descer pelo meu corpo.
Fecho os olhos ao sentir sua respiração percorrer minha barriga e suas mãos
abrirem o fecho da minha calça jeans surrada, arrastando-a junto a minha
calcinha rosa-clara sem graça pelas pernas.
Estou sem nenhuma peça e encaro o teto, pois morro de vergonha só
de imaginar os seus olhares em minha direção neste momento. Mas não ele
me não me dá tempo para imaginar, pois sua boca gélida encosta na testa da
minha vagina delicadamente, depositando um beijo demorado ali.
Para meu total desespero, ele separa minhas coxas, e todos os meus
membros formigam com a adrenalina de saber que estou com as pernas
abertas na cara do meu chefe. Ele arrasta a língua pelo meu vértice e me
surpreende sugando meu clitóris como se fosse um saboroso pedaço de
carne
— Jesus! — Ofego cravando meus dedos instintivamente em seus
ombros, tentando afastá-lo.
— Calma. — Ele respira, segurando minhas nádegas de forma que
minha pélvis continua perto do seu rosto. — Quero suas pernas continuem
bem abertas, meu bem. Posso contar com você?
Uma gota de suor escorrega pela minha têmpora e tomo coragem
para encarar o seu rosto entre minhas pernas.
Hesito um pouco, pois não sei se consigo me controlar, mas faço
que sim com a cabeça.
— Vou me esforçar.
Ele volta a olhar minha intimidade e comenta em um tom de voz
tranquilo:
— Esses espasmos são normais. Suas terminações nervosas ainda
não estão acostumadas a magia que é uma língua chupando sua boceta.
Então vamos recomeçar... com mais delicadeza.
Sua língua volta a acariciar meu clitóris e me lambe toda minha
extensão preguiçosamente. Eita! Jogo a cabeça para trás e abro mais as
pernas, onde acontece um enorme incêndio.
Ele chupa meu clitóris e gemo sôfrega, sendo deliciosamente
castigada com sua língua, que parece saber exatamente o que está fazendo.
Estou em chamas, em completo êxtase pelo sabor daquela tortura,
mas se me perguntarem se eu quero que ele pare, negarei veementemente.
Eu preciso de mais e mais. Até chegar ao meu limite, montada em seu rosto
e com sua língua me possuindo da mesma forma que ele faz quando beija
minha boca.
Quando dou por mim, estou rebolando em seu rosto, a fim de
alcançar uma onda cada vez mais forte de prazer.
— Lauro — um gemido esganiçado escapa entre os meus lábios
quando sinto meu corpo convulsionando. Sei que estou em meu limite e,
por puro instinto, peço arfando: — Mais rápido. Por favor.
Subitamente, ele para e desliza para fora da cama.
— O que está fazendo? — pergunto, quase num tom indignado,
assistindo-o ir até a cômoda ao lado da cama e pegando um pacotinho
prateado de uma das gavetas.
— Eu poderia passar horas chupando sua doce boceta, Natália, mas
quero te fazer gozar de outra forma.
Ele volta a se colocar à minha frente, desce a boxer preta e seu
membro pula para fora, batendo no umbigo. Ele é grosso, ereto e repleto de
veias. Ele é visivelmente muito bonito, até mesmo para uma virgem como
eu.
Suas mãos vestem seu membro com a camisinha e ele volta a me
encarar.
— Você vai gozar comigo dentro de você.
— Com você dentro de mim?
Inevitavelmente, analiso mais uma vez o seu comprimento e
grossura, à medida que sinto minha espinha gelar.
Ele não me dar mais tempo para pensar, apenas vem para cima de
mim, faminto e necessitado, puxando minha boca para um beijo voraz,
enquanto sinto a cabeça macia e grossa encostar na minha entrada, prestes a
me penetrar.
Meu coração dispara.
E, em um ímpeto, empurro seu peito e desgrudo nossas bocas.
— Espera, seu Lauro.
— O que foi? — Ele ofega, com uma expressão confusa armada no
rosto.
— E se... — mordo o lábio, com vergonha de expor meus
pensamentos —, e se...
— E se?
— E se o seu galalau não couber na minha... bem... — por que é tão
difícil dizer boceta? — Florzinha?
— Galalau? — Ele arqueia uma sobrancelha e raspa a língua entre
os lábios. — Florzinha?
Ele pisca os olhos, como se tentasse processar e depois explode uma
gargalhada ruidosa.
— O quê? Qual a graça? Qual é? Isto é sério. O senhor já viu o
tamanho do seu negócio aí e minha...
— Desculpe. É que isto foi fofo e, ao mesmo tempo, engraçado.
Nenhuma outra mulher antes chamou meu pau assim — ele diz entre risos,
tentando voltar a ficar sério, com os cotovelos apoiados em cada lado meu.
— Eu devo ser uma piada mesmo — comento, tensa, olhando para o
lado.
Ele finalmente para de sorrir e afasta uma mecha de cabelo solta
para trás da minha orelha, abaixando o rosto e roçando nossos narizes.
— Não vai acontecer nada, ok?
Inspiro fundo, hipnotizada com os seus olhos e assinto.
— Ok.
— É sua primeira vez e é normal que haja algumas gotas de sangue,
mas prometo que sua boceta sairá inteira depois dessa noite. — Ele franze a
testa e passa a língua entre os lábios, completando: — Ou pelo menos,
quase inteira.
Minhas mãos se abrem em seu peito e ele me pergunta:
— Ainda está certa disso?
Sim. Eu ainda quero muito aquilo, então balanço a cabeça em
positivo.
— Ok. — Ele respira e naquele momento parece decidir abrir o meu
sutiã.
Ele joga a peça preta para o lado, libertando meus seios e me
deixando completamente nua diante dos seus olhos.
— Eu vou fazer tudo com o máximo cuidado, tá bem?
Aperto os lábios e depois confirmo em seguida:
— Tá bem.
— Se doer muito, bata aqui. — Ele indica com os olhos o próprio
braço, e entendo seu recado.
Continuamos nos encarando por mais alguns segundos, depois
iniciamos um beijo profundo e cheio de desejo, ao passo que ele se enterra
em mim em uma cadência controlada.
Ele tenta pelo menos três vezes romper minha virgindade e me fazer
abafar um grito em seus ombros quando o finalmente o faz.
— Quer que eu volte?
Uma lágrima escapa pela minha bochecha e cerro os lábios,
meneando a cabeça em positivo e peço com o olhar para que ele continue.
Ele retrocede e penetra mais uma vez, só que, dessa vez, mais
fundo.
Lauro permanece dentro de mim, quente, grosso e pulsante, como se
desse tempo para as paredes do meu sexo se acostumarem ao seu tamanho.
Ele sai de mim e entra de novo, a dor lancinante invade todo o meu
corpo, mas em nenhum momento me rendo e bato em seu braço.
Suas mãos escorregam pela minha lombar e seguram minha bunda.
Ele faz, mais algumas vezes, até que a dor se misture com uma sensação
indescritível de prazer.
Minha boca escorrega para o lado e gemo um pouco mais alto. Ele
me estoca em uma velocidade deliciosamente rápida, em seguida engole
meus gemidos com a boca, entrelaçando nossas línguas em um beijo
delicioso.
Nossos corpos ficam completamente banhados de suor, no entanto,
nem por um segundo ele para, como se ele tivesse a energia de uma
britadeira.
Estou novamente quase em meu limite e como se ele soubesse ler os
meus espasmos involuntários, amplia o sorriso no rosto e eleva a velocidade
a um ritmo descomunal. Céus! Sinto que vou explodir de prazer.
— Ahhh...
Em um dado momento, ele suspende minhas pernas em torno da sua
cinta e me estoca acelerando o ritmo até minhas pernas tremerem e o centro
entre elas transbordar de prazer.
A camisinha fica quente, sinto-o sair de dentro de mim e cair ao
meu lado, enquanto sinto meu corpo flutuando.
É como se tivesse ido e voltado ao céu, milhares de vezes, em
poucos segundos.
Minha nossa! Isto é fazer sexo?

Uma vez ouvi falar que a segunda vez é sempre mais prazerosa que
a primeira, agora não consigo imaginar o quanto deve ser bom transar
depois da primeira vez, pois, por ora, eu não consigo pensar em nenhuma
outra sensação mais prazerosa do que essa.
CAPÍTULO 34

Meus olhos se abrem lentamente e me reviro pela enorme cama de


casal vazia. Escuto o som do chuveiro ligado vindo da porta lateral e inspiro
o cheiro delicioso e másculo que exala dos lençóis macios que envolvem
meu corpo e, de repente, sinto o corpo mole e um desconforto entre minhas
pernas.

Droga! Por que estou aqui?


Demoro até recobrar a consciência, com isso me lembro de que a
noite passada foi real, mas assim que a porta se abre e vejo o meu chefe me
encarando apenas de toalha, confirmo aquilo que ainda tinha esperanças de
ser apenas um sonho.

Eu perdi a virgindade. Não, perdi a virgindade com meu chefe. E


agora que o juízo voltou, não sei onde enfiar minha cara.

— Bom dia!

Ele caminha pelo quarto, secando o cabelo com uma toalha menor.

— Que horas são? — pergunto, anestesiada de vergonha. — Maria


Alice...
— Ela está dormindo — interrompe-me.
— Como tem tanta certeza?

Ele caminha até a mesinha ao lado da cama e pega uma espécie de


controle remoto extremamente fino. Ele aponta para a TV presa na parede à
minha frente e a tela se abre no quarto de Maria Alice.

— Como vê, Maria Alice ainda está dormindo.


— O quarto dela tem câmera?

Ai, meu Deus! Será que eu falei algo demais?


— A câmera fica acoplada em um urso de pelúcia na estante
superior.

— Por acaso... — começo hesitante —, dá para ouvir o som...


— Não. Não tem áudio, mas não quero falar sobre a câmera de
segurança. — Ele dá alguns passos e para de frente para mim. —
Precisamos conversar.

Engulo em seco.
— Precisamos?

— Sim. Precisamos.

— Não sei o que o senhor deve estar pensando sobre mim, mas seja
o que for o assunto, eu entendo.

— Entende?

— Sim. Eu entendo. Ontem, eu fiz sexo pela primeira vez, mas para
o senhor foi só mais uma transa. Não se preocupe, não ficarei em seu pé ou
cobrarei algo. Sei o lugar e posso garantir que isso nunca mais vai
acontecer.
— O quê? Do que você está falando? — Ele semicerra os olhos e se
aproxima da cama. — Eu quero justamente o contrário.

— Como assim o contrário? — Encolho-me, segurando o lençol


contra o meu corpo.

Ele sorri, olhando para o lado, mordendo o canto do lábio inferior.


Oh, meu Jesus! Esse é a perdição encarnada.
— Uma noite não será o suficiente para mim.

Abro a boca, um tanto surpresa.


— Pensei que não transasse com virgens.

— Tem razão. Você foi uma exceção, mas presumo que não seja
mais virgem depois do aconteceu conosco horas atrás.
Com pesar, tenho de admitir que ele tem razão.

— Isso faz diferença?


— Isso faz toda diferença, Natália. — A forma sexy com que
aquelas palavras escapam em sua boca, faz meu corpo estremecer. Ele faz a
volta na cama e senta na beira do colchão olhando para mim, enquanto
tento não ter um colapso nervoso ou parecer vulnerável em sua frente. —
Vou precisar transar com você de novo.

— Precisar? — Arqueio uma sobrancelha.

— A não ser que você não queira.

Desvio o olhar para o lado, respirando fundo e tento raciocinar


direito, sem ter que encarar seus olhos inebriantes outra vez e parecer uma
menina boba.
— Desculpe. Mas o que o senhor quer realmente dizer? — viro o
rosto para perguntar.
— Quero fazer uma proposta.

— Proposta?

Ele abre um meio-sorriso e me responde:

— Sexo sem compromisso.

Solto o ar pelas narinas e o encaro seriamente.

— Foi assim que fez com a senhorita Bianca?


Ele rola os olhos e passa a língua entre os lábios, é nítida sua
contrariedade.

— Bianca e eu somos parecidos. Não fui um babaca como ela fez


parecer ter sido.

Ele suspira, em seguida me compenetra com o olhar.


— Não precisa me dar uma resposta agora, ok?

Pisco os olhos e ele prossegue:

— Olha, eu não estou transando com ninguém e imagino que você


também não.

— Isto é óbvio.
— Foi o que eu quis dizer. Mas continuando... Penso que nós dois
podemos nos ajudar a suprir essa necessidade, porém, se não quiser, tudo
bem. — Ele dá de ombros.

Como ele é bonito, meu Deus!


Ele se levanta e avança em minha direção. Tento jogar meu corpo
para trás, mas ele é rápido em se aproximar e beijar o canto da minha boca,
quase tirando junto todo o ar dos pulmões.

— Vou deixar você sozinha para que possa se trocar.

— Ok. — É a única coisa que consigo dizer, enquanto ele se afasta e


entra no que imagino ser o closet.
Volto a respirar e sussurro comigo mesma:

— Tudo o que é traiçoeiro é lindo, Solange. Ô mulher! Lembra


disso, pelo amor de Deus.
 

No dia seguinte
— Só me dê mais uma semana, dona Lúcia? Eu prometo que
resolverei essa questão o quanto antes.

— Mais uma semana? Já era para você ter resolvido essa questão
faz tempo, menina. Onde já se viu pagar salário de funcionária por
envelope, porque ela não tem uma conta bancária? Você que é nova deveria
estar bem mais à frente do que eu.

Oh, mulher. Se tu souber que não tenho como é abrir uma conta
bancária em um falso...

— Quer saber, eu vou com você!

Arregalo os olhos, jogando o corpo para trás.


— Vai? Vai comigo pra onde?
 

Será que ela está desconfiando de algo? Eita! É só o que me


faltava.

— Pelo visto, é melhor resolver este problema agora do que deixar


nas suas mãos, garota. Não quero correr o risco de ficar imprimindo
dinheiro e nem deixar você sem salário este mês, já que você precisa desse
dinheiro para comprar ao menos um par de sapatos novos. — Ela olha para
os meus pés e enrubesço um tanto constrangida com a situação dos meus
calçados.

Ela tem razão. Eu preciso de um par de sapatos novos. Mas por que
não me pagar em um envelope?
— Dá muito trabalho ir todos os meses ao banco sacar dinheiro,
além do perigo. Ainda bem que essa época já passou e estamos na era da
tecnologia, não é mesmo? — ela comenta, sentindo-me ainda mais
encurralada. — Eu vou pegar minha bolsa lá dentro, enquanto isso, organize
seus documentos. Saímos daqui a dez minutos.

Ai, meu Deus!

— Tá bom. Mas a senhora sabe me dizer se a dona Claudia está aí?


             

— Ela me avisou que faltaria hoje. Que não está se sentindo muito
bem. Mas o que a Claudia tem a ver com isso?

— Nada, não. — Sorrio nervosamente e invento qualquer coisa: —


É que tenho uma coisa para entregar para ela.

Ela semicerra os olhos, desconfiada.

— Pa-pai. — Ouço a voz grossa e rouca se aproximar e me viro


para ver Lauro com Maria Alice no colo, entrando pela porta principal da
cozinha e sinto meu corpo estremecer.

Sua gravata cinza se destaca entre camisa e paletó pretos que


parecem que foram encomendados sob medida. Os cabelos loiro-escuros
também estão perfeitamente alinhados, denunciando que ele está de saída
para o escritório. Já Maria Alice usa o vestidinho floral que vesti nela hoje
mais cedo, conforme dona Lúcia me pediu para que fizesse.

— Tátai! — balbucia Maria e o homem balança a cabeça em


negativa e repete:

— Pa-pai.
— Ba-bá.
Não consigo conter uma risada baixa, pois Maria Alice é expert em
frustrar expectativas quando quer.

Lauro joga a cabeça para trás momentaneamente, depois torna a


insistir mais pausadamente:

— Pa... pai!

— Totó!

Lauro suspira e rola os olhos, parecendo ter se dado por vencido,


pelo menos, agora.
— Sei que ela logo o chamará de pai. É só questão de tempo —
comenta dona Lúcia e o deus grego de terno desvia o olhar para ela e,
sequencialmente, para mim. Então, estremeço.

Por mais que a noite passada não tenha envolvido sentimentos, não
consigo controlar como meu corpo reage a ele. Simplesmente é quase
impossível ignorar minha pulsação acelerando em uma cadência esfuziante,
enquanto sinto minhas mãos suando. O que não faz sentido, pois fomos
para cama ontem à noite. Tecnicamente, devia me sentir mais à vontade na
frente dele, mas meu sistema nervoso parece ir contra a lógica.

— Bom dia — ele nos cumprimenta.

— Bom dia — dona Lúcia e eu falamos quase em uníssono, se não


fosse pelo nervosismo.

— Natália... Preciso que nos acompanhe agora.

— Perdão, senhor. Mas Natália e eu precisamos ir ao banco agora.


Você me disse anteontem que iria sozinho ao hospital com Maria Alice, que
não precisava da companhia da babá.
— Hospital? — pergunto, confusa.

— Isso foi anteontem, Lúcia. — Ele me encara e eu prendo a


respiração. — Hoje vejo que preciso da companhia de Natália. Acho que
essa visita ao banco pode ficar para outro dia, já que adiei duas reuniões
importantes amanhã para poder faltar hoje no escritório.

Lúcia reluta, mas assente.


— Tudo bem, senhor. — Escuto-a sussurrar ao meu lado: — Está
livre por hoje, mas amanhã você não me escapa, menina. Vai ter que abrir
uma conta no banco se quiser continuar trabalhando aqui.

— Está bem — respondo, baixinho, com a corda no pescoço.

— Vamos? — Lauro me questiona.

Engulo em seco e faço que sim com a cabeça.


Enquanto sinto a corda em meu pescoço cada vez mais se fechando,
lembro-me do dia em que pensei que ser babá de Maria Alice seria uma
tarefa mais fácil do que está sendo. Entretanto, esse não é motivo para eu
desistir. Não mesmo! Para estar ao lado dela, levarei a mentira até o fim se
for necessário. Como? Eu ainda não sei, mas será como todos os dias da
minha vida: matando um leão por dia.
CAPÍTULO 35

 
— Por que estamos indo ao hospital com Maria Alice? Tem alguma
coisa de errado com ela?
Por mais que eu tenha quase certeza da resposta, não consigo evitar
a preocupação, enquanto caminhamos pelo jardim em direção à garagem e
rompo o silêncio constrangedor entre nós.
— Estou levando Maria Alice para completar a carteira de
vacinação —  responde. — Parece que a irmã biológica de Maria Alice não
cuidava bem dela enquanto estava sob sua proteção.
Em um rompante, paro de caminhar e ele me olha por cima do
ombro, segurando minha irmã no colo.
— O que foi?
De repente, todo o nervosismo e síndrome de Cinderela que me
acometia desaparece e tenho dificuldade de processar suas palavras.
É a primeira vez que eu o ouço falar sobre mim de verdade e não me
sinto nem um pouco feliz.
Inspiro fundo duas vezes e repito comigo mesma como um mantra:
controla tua língua, mulher. Controla tua língua.
— Aconteceu algo? — pergunta, olhando para minhas pernas. —
Uma formiga a picou?
Expiro o ar dos meus pulmões, sorrio e caminho até eles:
— Nada. — Administro meu tom de voz a fim de que ele não
desconfie de nada. — Como tem tanta certeza de que a irmã de Maria Alice
não cuidava bem dela?
Retomamos nosso trajeto pelo jardim.
— Pra começar, dar a própria irmã para um completo desconhecido
não é atitude de uma pessoa com uma boa índole, não concorda?
Pigarreio, tentando ficar alheia ao assunto, mas é quase impossível.
— Talvez ela não tivesse escolhas. O senhor não sabe o que ela
passou até tomar essa decisão.
— Quais motivos levariam alguém abandonar uma criança?
— Fome — digo quase no mesmo instante que ele termina a
pergunta. — Falta de dinheiro. Falta de emprego. Falta de oportunidades.
— Um mundo está cheio de oportunidades. — Ele pensa alto.
— Para alguém que cresceu com tudo, o mundo está sim cheio de
oportunidades, seu Lauro. Mas com uma criança de colo dependendo de
você, pode acreditar que se torna tudo mais difícil. — Tenho cuidado para
despistar a acidez nas palavras, mas obtenho muito sucesso.
— Vejo que cria rápido empatia por pessoas que mal conhece — ele
desdenha.
Limpo a garganta novamente.
— Eu tinha uma vizinha com um caso parecido. — Ergo o olhar e
fito Maria Alice em seu colo, com o semblante despreocupado e calmo. —
E essa moça não é como se fosse uma total desconhecida. Ela é a irmã
biológica de Maria Alice. — Desvio o olhar para o homem sério e digo: —
Deve saber que as babás criam vínculos fortes com os filhos dos patrões.
Apesar de o pouco tempo, Maria Alice já é como se fosse da minha família.
Continuamos nos encarando, em completo silêncio, até ele desviar o
olhar e falar:
— Seja qual for seus motivos, ela abdicou de qualquer contato com
Maria Alice, e, de qualquer maneira, sou grato por isso. Maria Alice é
minha filha agora e darei a ela tudo o que há de bom em mim. — Ele me
olha incisivamente e depois desvia o olhar. — Quanto a sua irmã biológica,
que espero nunca a conhecer... ela só tem o meu desprezo.
Meu estômago embrulha com a forma com que suas palavras
reverberam dentro de mim.
Paramos em frente ao carro e para disfarçar o meu mal-estar, me
distancio para abrir a porta traseira do modelo sedan preto que ele costuma
usar em dias normais e encontro uma cadeirinha posicionada no banco de
trás. Quando foi que ele comprou esta cadeira?
Ah, não importa! Eu ainda estava zonza demais para raciocinar
direito, com as palavras dele se reproduzindo em espiral em minha cabeça
feito um eco.
— Com licença! — fala atrás de mim e dou espaço para que ele
possa posicionar Maria Alice na cadeirinha.
Após passar o cinto de segurança, ele fecha a porta traseira e eu dou
um passo para trás.
— Mas mudando de assunto e entrando em uma pauta que
realmente nos interessa: você pensou no assunto?
— Que assunto? — Minha voz não sai mansa.
Ele estreita os lábios em uma linha fina e olha para minha boca.
— Sobre nós dois.
— Ah! — exclamo e sorrio olhando para o lado com escárnio. —
Naquela sua proposta?
— Isso. Então?
Sorvo uma boa quantidade de ar e o respondo duramente:
— Não.
— Não?
— Isso mesmo, senhor. Eu não quero transar casualmente com o
senhor.
Ele me olha seriamente, com a expressão coberta por confusão e
decepção, mas estou pouco me lascando para o que ele está sentindo. Ele
me despreza e nada mais justo retribuir o seu desprezo.
Ele solta um sorriso amargo e desliza as mãos para os bolsos,
curvando os ombros que sempre estão alinhados em uma postura de ferro.
— Ok. Eu estava ciente que estava lidando com uma garota.
Acredito que queira um relacionamento, mas eu...
— Aí dentro! Relacionamento? Com o senhor? Faça-me o favor! A
última coisa que quero é ter um trelelê com um homem rude, egoísta, que
vive numa bolha e pensa que pode controlar o mundo ao redor para
satisfazer sua própria vontade.
— Ok. O que mudou de ontem para hoje?
— Nada. Mudou para o senhor quando transou com uma virgem?
— Você está diferente. — Ele semicerra os olhos, aproximando-se.
— É, talvez eu esteja, no entanto, isso não anula o fato de que eu
não quero me envolver com o senhor, muito menos ser seu objeto de
satisfação sexual.
— Não seja tão direta com as palavras.
— Por quê? Vai querer controlar minha boca também?
Ele dá um passo à frente e ficamos cara a cara.
— Bem que eu queria, mas de outra maneira.
Minha expressão estremece com a forma sexy e mandona com que
ele me encara.
— Eu quero você. Não importa o que pense de mim, estou disposto
a repetir a noite passada. Só que do meu modo.
— Você é tão...
— Presunçoso? Eu me descreveria como um homem com uma
tenacidade impressionante.
Aperto os lábios e, em um ímpeto, saio da sua frente indo em
direção ao carro novamente, abrindo a porta traseira.
— É melhor entrarmos, antes que Maria Alice se aborreça com a
demora e comece a chorar.
Ele se vira, ainda com as mãos enfiadas nos bolsos da calça social e
assente, por fim.
— Você tem toda razão.

 
Nunca gostei de vacinas.
Na verdade, a ideia de ter uma agulha perfurando minha pele me
causa calafrios e dor de estômago.
Talvez por essa razão, eu tenha deixado algumas vacinas da minha
irmã atrasarem, por não querer vê-la sofrer, mesmo que por alguns instantes
—  o que não diminui a minha irresponsabilidade neste quesito, já que a
longo prazo, vacinas existem para nos imunizar contra possíveis grandes
sofrimentos.
— Posso? — Escuto Lauro perguntar ao meu lado quando a
enfermeira ruiva se aproxima, à medida que aperto os olhos com minha
irmã no braço, talvez percebendo meu desconforto.
Maria Alice vai para os braços dele com facilidade e quando a
enfermeira desencapa a seringa, encolho-me logo no canto da salinha de
vacinação.
— Ai!
Abro os olhos e vejo Maria Alice gritar, passando os bracinhos em
torno dos ombros de Lauro, que parece afagá-la com uma mão.
— Shhhhh!
— Papá! — ela balbucia em meio a um choro sofrido.
Ele encara a enfermeira e questiona parecendo confirmar algo:
— O que ela acabou de dizer?
— Papá! — repete Maria Alice, limpando as lágrimas com o dorso
da mão direita e voltando a abraçá-la.
— Oh! É a primeira vez que ela o chama de papai? — pergunta a
ruiva, aparentemente comovida.
Ele assente com a cabeça, afagando as costas de Maria Alice.
— Parabéns então, papai! Daqui pra frente, ela não vai tirar esse
nome da boca.
A alegria de Lauro é facilmente perceptível para qualquer um que o
assista, mesmo que encoberta pela postura de ferro que detém.
Odeio admitir, mas ele me parece ter grandes chances de vir a se
tornar um pai perfeito para Maria Alice, embora tenha inúmeros defeitos
como homem.
Quanto mais o vínculo deles se estreita, mais o sentimento de
afastamento me consome e não posso fazer nada a respeito.
Nunca mais será como antes.
Eu nunca mais serei sua irmã.
Eu, provavelmente, também nunca mais serei seu porto seguro,
porque, agora, ela tem a ele, e eu, o meu segredo guardado e trancado a sete
chaves. Esta é a sentença que eu devo carregar.
 

CAPÍTULO 36

À noite
 
— Onde estão seus documentos? — Dona Lúcia invade meu quarto
no início da noite.
— Por que a senhora precisa deles agora? — questiono, secando
meu cabelo com a toalha pequena de rosto.
— Não precisamos ir amanhã presencialmente ao banco. Sarah me
contou que podemos resolver tudo por aqui. — Ela ergue a tela do celular
que está amarela. — É um aplicativo.
— Eu sei o que é um aplicativo, dona Lúcia.
— Desculpe-me. Pensei que não soubesse, já que nunca te vi com
um celular. Mas então, onde estão seus documentos?
— A senhora quer mesmo fazer isso agora? Eu estou tão cansada!
— Por que tenho a impressão de que está sempre fugindo?
Pigarreio, tendo uma crise de tosse nervosa.
— Mulher! Mas por que eu fugiria? Você está achando o quê? Que
sou uma vigarista?
Sorrio nervosamente, sendo seguida de um silêncio ensurdecedor.
— Não sei. Você pode me contar o porquê. — Ela me analisa por
cima dos olhos e eu gaguejo:
— A-amanhã. Sem falta. Me dê esse tempo. Prometo que resolverei
esta questão e esse mal-entendido também.
Ela continua me encarando, fazendo um breve suspense, mas
assente sob uma ressalva:
— Tudo bem, porém, de amanhã não passa. Caso contrário, pode
fazer suas malas. Não vou sustentar alguém que pode causar problemas
futuros nesta casa. — ela pensa alto: — Mesmo que esteja perto de me
aposentar.
Engulo em seco e anuo.
— Sim, senhora.
— Outra coisa, o patrão sairá hoje à noite e eu também dormirei na
casa da minha mãe. Então, atenção redobrada em Maria Alice. Serão apenas
vocês duas.
— Pode deixar comigo, dona Lúcia. — Pode ficar tranquila, que
isso não é problema para mim. Nós sempre fomos sozinhas antes de
pararmos aqui. Mas para onde ele vai?
Ah, esquece, Solange!
Isso não é da sua conta.
— Você pode me ligar do telefone do escritório. Em cima da mesa
do patrão tem uma lista telefônica, o meu número de celular está lá, caso
você precise.
— Ok.
Ela me olha pela última vez, com certa ameaça no olhar. Quando ela
sai pela porta do meu quarto, esvazio o pulmão de uma só vez, jogando-me
contra a cama.
— O que eu vou fazer agora? — choramingo. — Ai, Claudia. Onde
você está, mulher? Por você foi faltar justo hoje?
Horas depois
 
— Droga! Por que essa febre não baixa?
Entro quase em colapso ao ouvir Maria Alice chorar sem pausa após
acordar com o corpo quase pegando fogo de tão quente.
Maria Alice nunca teve uma febre tão alta desde que nasceu e isto já
estava começando a me assustar.
— Vai passar, pitica. Vai passar, meu amorzinho! Eu prometo.
Tento acalmá-la em meus braços, após procurar inutilmente por um
antitérmico na gaveta de remédios na cozinha, que me foi apresentada nos
primeiros dias nesta casa.
— Droga! Por que está dando tudo errado? — praguejo, não
encontrando nada apropriado.
Coloco o termômetro novamente debaixo do bracinho dela e
percebo que a febre só aumenta.
— Eu preciso fazer alguma coisa — penso alto, martirizada.
Automaticamente, lembro-me de Fernando, o motorista. Ele pode
nos levar a um hospital. Mas não sabia ao certo se ele ainda está na casa,
então recorro à lista telefônica no escritório.
— Lúcia. Lúcia. Lúcia. — Meu dedo passa pela agenda telefônica
antiga e encontro seu nome entre os muitos outros de emergência.
Digo o número com uma mão desocupada, espero, espero, mas cai
na caixa postal.
— Mas que droga!
Maria Alice se espanta com meu desespero e começa a chorar mais
alto.
— Não. Não. Não é com você, pitica. Ô meu Deus! O que eu faço?
— Estou quase chorando, pensando em sair na rua com ela no colo atrás de
ajuda. No entanto, antes recorro à minha última alternativa, a ele.
Digito o número grafado em letras garrafais na primeira página da
lista e suspiro um pouco aliviada ao ouvir que não caiu na caixa posta.
— Alô? — Uma voz feminina familiar atende.
Não respondo, mas ela insiste:
— Alô? Tem alguém aí? Que choro é esse?
É a senhorita Bianca.
Engulo em seco e crio coragem para responder:
— Alô! O seu Lauro está com a senhora?
— Quem é?
— É a So... Natália. Babá da Maria Alice. É que ela está com uma
febre muito alta e não tem ninguém aqui para nos levar para o hospital.
— Ele está chegando aqui no quarto. Vou passar o celular para ele.
Meu estômago embrulha, mas ignoro completamente qualquer
pensamento que não seja relacionado a Maria Alice.
— É a babá da sua filha. Ela disse que Maria Alice está com febre.
— Alô? – a voz grave atravessa o telefone e um suspiro asfixiado
entre meus lábios. — O que houve com Maria Alice, Natália?
— Ela está pegando fogo, seu Lauro. Ela precisa ir para o hospital
urgentemente.
— Cacete. Onde Lúcia está?
— Ela foi dormir fora... Eu não lembro exatamente onde...
— Me esperem aí. Estou a caminho. Em quinze minutos eu estou de
volta. 
— Lauro, eu dirijo por você. É perigoso sair daqui desse jeito —
sugere a mulher do outro lado da linha e ele recusa.
— Você não está em condições. — É a última que escuto antes da
chamada ser encerrada.
Coloco o telefone de volta no gancho e começo a embalar Maria
Alice, até ele chegar.
Volto para o andar de cima, ajeito rapidamente sua bolsa e desço
novamente, com Maria Alice já mais calma. Não demora muito e escuto o
motor do carro entrando na garagem.
— Como ela está? — Ele aparece entrando em passos largos na sala
e eu o respondo rapidamente:
— Mais calma do que antes, mas a temperatura só aumenta.
— Ela sente dor em algum lugar?
Penso e respondo de pronto:
— Ela está tocando muito as coxas.
— É a vacina.
— Como tem tanta certeza?
— Meu irmão mais velho tem muitos filhos. Lembro-me de uma
vez minha sobrinha ter tido a mesma reação quando estava em sua casa.
— E o que o seu irmão fez?
— Não consigo me recordar. De toda forma, vamos ao hospital. —
Ele se aproxima do sofá e pergunta: — Essas são as coisas dela?
Anuo com um menear de cabeça e ele leva a bolsa para as costas,
enquanto caminho com Maria Alice para o jardim.
CAPÍTULO 37

 
Encaro o rosto pequeno angelical em sono profundo, conforme
suspiro aliviado quando a enfermeira me avisa baixinho que sua febre
passou.
Quando Natália me ligou desesperada pedindo por ajuda mais cedo,
meus músculos não conseguiram relaxar desde então.
No entanto, agora no hospital, observando aquelas duas criaturas
dormirem pacificamente, permito-me respirar aliviado.
— Com licença, senhor!
A enfermeira de cabelos negros me cumprimenta e se retira do
pequeno apartamento de hospital, onde fomos transferidos para passar a
noite em observação.
Desvio meu olhar de Maria Alice para a mulher, com os cachos
presos em um coque em cima da cabeça, também desacordada em uma
poltrona ao lado da maca de Maria Alice
É impressionante como ela pode ficar tão linda em um momento
casual, mesmo que usando roupas simples e dormindo de maneira relaxada.
Cacete! Eu não deveria estar mais pensando nela desta forma.
Não depois de ela ter me dado um fora na manhã de ontem e ter
agido como se a transa que tivemos não tivesse significado nada, mesmo
que tenha sido sua primeira vez.
Mas que porra! Estamos em um hospital.
Reorganizo meus pensamentos e continuo ali, parado, observando
aquelas duas dormirem.
Quando Natália se revira na cadeira e resmunga, avalio que talvez o
lugar não seja tão confortável para dormir, já que há um sofá mais espaçoso
no quarto, apropriado para passar a noite.
Sem pensar duas vezes, aproximo-me dela e cuidadosamente pego-a
no colo.
Seu corpo esguio não é tão pesado, mas sua estrutura óssea é
comprida em comparação às mulheres paulistas, o que particularmente acho
sexy. Ela tem uma fragrância fresca, algo como rosas, que me lembra um
perfume antigo que eu já eventualmente encontrei em minha infância.
Deslizo seu corpo para o sofá, com o mesmo cuidado com que eu o
peguei, mas algo parece acordá-la, então a mulher instintivamente abraça o
próprio corpo ao me ver.
— O que está fazendo? — pergunta, um tanto sobressalta.
— Pensei que o sofá lhe serviria melhor.
— Onde está Maria Alice?
Olho para a maca e a respondo em um tom mais baixo:
— Está dormindo. A enfermeira acabou de passar para avisar que a
febre cessou por completo.
Ela solta um suspiro de alívio e se senta no sofá.
— Sobre ainda mais cedo, não interprete mal. Bianca passou mal em
casa e sua família não está na cidade, então fui ver se estava tudo bem.
— Eu não tenho nada a ver com sua vida pessoal, senhor. — Porra.
Odeio quando ela me chama de senhor. — Para falar a verdade, isso em
nenhum momento se passou pela minha cabeça, enquanto sua filha estava
queimando em febre. 
— Claro. Só achei que a situação precisava de uma explicação.
— Não, não precisa.
— Dá para parar de me interromper?
— E o senhor dá para parar de falar de assuntos que não me
interessam enquanto sua filha está doente? — Ela se levanta e se senta de
volta na poltrona, enquanto tento não socar a porra do sofá por estar me
sentindo um idiota. — Eu vou dormir aqui. É mais seguro e assim fico mais
perto dela.
Respiro fundo, encaro-a com um sorriso forçado no rosto e me deito
no sofá, com as mãos apoiadas na cabeça.
— Ok. Faça como quiser.
— Ótimo! — ela ironiza.
— Maravilha! — revido.
— Perfeito.
— Sensacional!
Ela me lança uma cara feia e depois se vira, segurando a mãozinha
de Maria Alice e ficando de costas para mim, sentada na poltrona.
E assim passamos a noite no hospital, com ela ignorando minha
presença como se eu fosse uma peste bubônica.
CAPÍTULO 38

 
Morta.
É exatamente assim que me sinto em plena dez horas da manhã,
morta de cansaço. Completamente destruída, com dores inimagináveis
espalhadas por todo o meu corpo, por ter dormido em uma só posição em
uma poltrona não reclinável. Sem contar que já estou no horário de
expediente e sou obrigada a sorrir, a contragosto, para aquele babaca na
frente de dona Lúcia só porque ele é o meu chefe.
Depois que o médico liberou Maria Alice, voltamos para a mansão
ainda pela manhã, e logo encontramos a senhora na porta da sala.
Claro que ela me encheu de perguntas e não consegui responder
metade delas, pois àquela hora eu só queria dormir. E foi o que fiz. Mesmo
com ela me pressionando com aquela história de conta no banco, desmaiei
assim que me deitei no colchão com ela falando no pé da minha cama.
Tenho a impressão de que dormi por horas e horas.
Quando acordo, sinto meu corpo ainda sonolento, mas me obrigo a
levantar quando o sol quente me acerta o rosto.
— Está na hora de acordar, menina. Já dormiu demais!
Levanto, coçando os olhos com o dorso da mão.
— Onde está Maria Alice?
— Com o pai, no escritório do andar de baixo.
— Com ele?
Ele não deveria estar trabalhando?
— Sim. Ele resolveu tirar uma folga para cuidar da filha, porém,
isso não importa agora. Preciso que você resolva um problema. — Ela
levanta a tela do celular. — O número de identidade que você colocou na
sua ficha de admissão não existe, conforme o aplicativo do banco diz. Será
que não teria errado ao preencher? Por acaso, você pode me dar sua
identidade para que eu mesma possa criar sua conta?
Puta merda.
— É que...
— Cuida, menina. Seja rápida. Pegue sua identidade agora.
— O que é isso? — pergunto, assustada. — Um mandado de busca e
apreensão, mulher?
— Se não me entregar sua identidade, eu mesma descerei e darei
suas contas hoje mesmo.
— Calma, dona Lúcia. A senhora está muito nervosa.
— Nervosa vou estar se não me der essa identidade agora, dona
Natália —  ironiza, aumentando os olhos. — Cuida! Procure logo essa
identidade.
Agora, eu me lasquei pra valer.
Inspiro fundo e assinto:
— Tá bom. Eu vou pegar para a senhora.
Dou um passo para trás e vou até a cômoda marfim, depois abro a
última gaveta da fileira, onde estão meus documentos pessoais. Quer dizer,
meus documentos falsos pessoais.
Pego a identidade e a aperto na mão.
— Aqui está. — Sorrio nervosamente, levantando o papel verde nas
mãos.
— Me dê aqui.
Hesito um pouco, mas o faço, caminhando até ela.
Porém, quando entrego o papel para ela, não consigo soltar.
— Larga! — ela ordena puxando o papel.
Mas que merda. O que eu estou fazendo? Não posso fazer isso.
— Já disse para largar, garota.
— Não posso! — puxo o papel de uma vez e saio em disparada pela
porta aberta ao nosso lado.
— Garota, volte aqui.
— Eu tenho que fazer uma coisa primeiro — grito de volta.
— A única coisa que você deve fazer é me entregar a porcaria desse
papel. — Escuto sua voz se afastar, pois sou mais rápida em correr e descer
as escadas, pulando de lance em lance.
Ofego ao chegar à sala, apoiando as mãos nas pernas e encaro a
porta do escritório. Não demoro muito e caminho até ela, abrindo a porta
em um rompante.
Prendo a respiração e observo as atenções naquela sala se voltarem
para mim. Maria Alice, Claudia e Lauro.
Minha irmã está no colo da mulher e me olha apreensiva, talvez
tentando decifrar o pavor em minha feição, enquanto Maria Alice abre um
sorriso ao me ver.
Direciono meu olhar para ele e o encaro seriamente, ao passo que
normalizo minha respiração ofegante.
— Preciso falar com o patrão.
— Menina... — Claudia tenta intervir, mas acrescento incisivamente
olhando em direção a ele.
— A sós.
— Garota! — o grito cansado de dona Lúcia me alcança, no entanto,
não me viro para vê-la. — Você está...
— Lúcia e Claudia... — diz Lauro firmemente para duas —, para
fora. As duas. Agora!
— Eu levo Maria Alice? — pergunta Claudia e Lauro me olha,
como se pedisse minha autorização, então meneio a cabeça em positivo.
— Pode a levar consigo enquanto ouço o que sua babá tem a me
dizer.
Claudia reluta, mas aquiesce, saindo em seguida com Maria Alice
no colo.
Escuto a porta se fechar atrás de mim e eu tremo com o som.
Torno a erguer o olhar para o homem à minha frente, que me encara
fixamente, enquanto sinto meu coração martelar em meus ouvidos.
— Então... o que tem de tão urgente para me contar?

— Já estamos parados há cinco minutos aqui e você não me disse


nada durante esse tempo. Tem certeza de que tem algo para me dizer? Olha,
eu posso ter parecido alguém arrogante, mas a verdade é que costumo ser
bem menos tolerante com meus funcionários. Então, se não tem nada a me
dizer... — ele fala enquanto aperto o punho, tomo coragem e atravesso a
sala indo até ele. Mais especificamente, em direção à sua boca, meu ponto
alvo.
Pego-o desprevenido e engulo suas palavras com minha própria
boca, em um beijo rápido, mas intenso.
Ele segura meus ombros e me afasta, então disparo:
— Eu aceito.
— Mas que porra é essa? — ele rosna.
Recupero o fôlego e replico:
— Eu acabo de dizer que aceito transar casualmente com você e
tudo o que me diz é: que porra é essa?
Ele me dá as costas e caminha em direção à mesa, enfiando a mão
nos cabelos.
— Não mudam tão rápido de ideia.
— Mas eu mudei.
— Vem cá, acho que eu tenho cara de idiota? — Ele gira os
calcanhares, ficando de frente para mim.
— Nenhum pouco.
— Então?
— Então, o quê?
— Pode começar a falar.
— Eu não tenho nada a falar.
— A Lúcia me pareceu estar atrás de você quando chegou. Devo
perguntar a ela?
Droga! Definitivamente, ele está tão longe de ser um idiota.
Lauro não é o tipo de homem que fica satisfeito com qualquer
desculpa, então tenho que me esforçar para tentar convencê-lo.
Olho para minhas próprias mãos e me concentro.
— Quando transamos... na manhã seguinte... quando me fez a
proposta pela primeira vez... — Levanto o rosto e sou sincera ao dizer: —
eu cogitei seriamente aceitar sua proposta.
— Por que depois a recusou, então?
— Porque... porque... porque eu tenho um passado que eu não me
orgulho.
— Como assim?
— Eu não tenho documentos.
O silêncio invade o ambiente, como se ele estivesse processando as
informações.
— Não vai me dizer que é foragida da polícia.
— Não.
— Matou alguém?
— Mas é claro que não! — respondo, agora ofendida.
— Então o quê? Qual é o seu problema?
Reluto, mas improviso pensando em algo.
— Tem um cara.
— Um cara?
— Um agiota para ser mais específico.
— Um agiota? — Ele sorri. — Que tipo de mulher se mete com
agiota na sua idade?
— Alguém que precisa de muito dinheiro para pagar as dívidas da
minha família. – Meu Deus! A que ponto eu cheguei para mentir desta
forma? — Eu... eu peguei o dinheiro do agiota e paguei as dívidas da minha
mãe. O plano era trabalhar para pagar o dinheiro para ele, mas acabei não
arranjando emprego e quando a situação apertou, fugi para São Paulo.
— E sua mãe?
Olho para o lado, penso em qual resposta dar e opto pela verdade:
— Ela morreu. Morte natural.
O silêncio se alastra pelo escritório e, em seguida, ele sussurra
seriamente:
— Sinto muito.
— E o seu pai?
— Nunca tive pai. Sempre fomos apenas eu e minha mãe.
Abro os ombros, soprando o ar melancólico que se formou entre nós
e o fito.
— É por isso que não tenho documentos. Eu os queimei... Os que
tenho comigo são falsos. Não posso deixar que aquele desgraçado me
encontre...
— Espera aí. Você tem documentos falsos? — Ele ergue um dedo
em riste e bufa. — Isto está indo muito longe. Você... você ao menos se
chama Natália?
Faço que não com a cabeça, sentindo os nervos tomarem conta dos
meus membros.
Ele olha para o lado e passa a mão pelos cabelos, impaciente.
— Qual o seu nome?
Em um momento, tempo atrás, quando Claudia me sugeriu entregar
Maria Alice para um homem muito rico, ela citou que ele não queria nada
de mim, nem mesmo o meu nome. Entretanto, tive de deixar minha
assinatura naquele documento e não sabia exatamente se ele tem ou terá
algum interesse em rever aquela papelada, ou talvez nem esteja mais com
ele, mas sim com o advogado, para quem ela disse ter entregado todos
aqueles papéis.
— Solange... Meu nome é Solange.
E pelo que eu sei, ele cultiva uma enorme indiferença e desprezo
pela irmã biológica da sua filha, o suficiente para não querer revirar
qualquer papel em busca de seu nome.
— Esse nome...
Ele estreita os olhos pensando em algo, ao passo que prendo a
respiração.
Por fim, ele diz em seu mesmo tom sério:
— Engraçado. Esse nome combina mais com você.
Solto o ar pelas narinas e ele me pergunta:
— É por isso que está aceitando? Está aceitando transar casualmente
comigo por que está encurralada?
— Não exatamente.
— Ouça, quando propus sexo sem compromisso, eu queria alguém
com os mesmos objetivos que os meus. Não uma mulher que me usasse de
escudo como está tentando fazer agora...
— Eu tenho os mesmos objetivos.
— Como?
— Eu gostei daquela noite.
— E como fica sua situação nesta casa?
— Você me fez uma proposta, porém, não dei minhas condições.
Ele se apoia na mesa atrás e cruza os braços contra o peito,
arqueando as sobrancelhas.
— Estou curioso para saber quais são suas condições.
Solto o ar pelas narinas.
— Como eu já disse antes, tenho receio de perder o meu emprego se
você enjoar de mim e decidir colocar um fim no nosso relacionamento
casual.
— Já disse que pode confiar em mim.
— Quero um documento por escrito atestando isso. Na verdade,
quero que neste documento me assegure dezoito anos de trabalho como
babá.
— Dezoito anos? Não acha tempo demais? — Arqueia uma
sobrancelha. — Creio que na adolescência minha filha não vai precisar de
uma babá.
— Pode me remanejar para outro cargo. Não importa. O importante
é que eu tenha um emprego.
— Tem certeza de que quer trabalhar dezoito anos da sua vida nesta
casa?
Dezoito anos é tempo suficiente para eu vê-la crescer.
— Não tenho muita perspectiva de vida.
— Ok, Solange. É apenas essa sua condição?
— Também preciso que fale com dona Lúcia e peça para ela parar
de pegar no meu pé.
— Então foi ela que descobriu? — Ele sorri. — O trabalho dela
nunca me decepcionou.
— Ela não descobriu nada, mas vim aqui falar com você antes de
perder o meu emprego. Então, trato feito?
Ele me encara como se me analisasse pela última vez.
Caminha até mim e me oferece um aperto de mão.
Olho para sua mão e a encaro brevemente, pois a seguro em
seguida.
— Não sou bobo de deixar uma oportunidade como essa passar —
ele diz isso olhando dentro dos meus olhos.
Eu sei que tudo é arriscado demais, mas não tive saída, Lúcia
acabaria descobrindo se não agisse logo, então resolvi improvisar. Sempre
foi assim durante minha vida inteira e não seria diferente agora que a
oportunidade de ficar perto da minha irmã está em jogo.
CAPÍTULO 39

 
Não fiz muito esforço em pensar sobre aceitar ou não suas
condições, mas confesso que meu impulso soa como um sinal de aviso, do
poder que ela exerce sobre meu senso de controle.
A babá da minha filha, em um primeiro momento, pode parecer
ingênua quando não instigada mais a fundo, mas é boa quando se trata em
se defender, é uma garota muito valente, o que me deixa fascinado. Isto
combinado a um corpo delicioso e uma boca macia, que me deixa duro
apenas de imaginar aqueles lábios se fechando em torno do meu pau.
No entanto, algo ainda me incomoda nesta história e é por isso que
continuo encarando a piscina, sentando na beirada da espreguiçadeira em
plena.
— Devia estar dormindo — digo, sem desviar o olhar da água à
minha frente.
— Estou sem sono — sua voz está suave.
Viro o rosto e ergo os meus olhos para ela, que agora abraça o
próprio corpo devido ao frio que faz na área externa. Ela está linda em uma
camisola velha que cobre seu corpo até os joelhos. Seus cabelos estão soltos
e rebeldes, conferindo-lhe um ar doce e selvagem na mesma medida.
— Falei com Lúcia no início da noite. Expliquei a situação e ela me
prometeu que não a questionará mais sobre seus documentos, então não se
preocupe mais. Ninguém a ameaçará de deixar esta casa.
Escuto seu suspiro de alívio.
— Obrigada.
Embora eu tenha tido dificuldade para convencer Lúcia de que é
seguro mantê-la nesta casa, no final ela sempre segue minhas ordens.
— Por que está aqui a esta hora da noite?
Torno a encarar a piscina.
— Também estou sem sono.
— Me parece muito pensativo. — Ela se senta na espreguiçadeira ao
lado. — Há algo que esteja o incomodando?
— Precisa esclarecer algo antes que possamos dar início ao nosso
acordo.
Vejo-a engolir em seco.
— Claro. O que quer saber?
Demoro um pouco a perguntar, mas o faço.
— Hoje mais cedo, você estava sob pressão, com toda aquela
história de documentação. O que quero saber é, você aceitou minha
proposta por medo de perder o emprego?
— Essa resposta é muito importante para você agora?
— Obviamente. Posso ser, às vezes, um cavalo, mas nunca transaria
com uma mulher se essa não fosse sua vontade, então preciso que me
responda a essa questão.
Sinto ela desviar o olhar para a piscina e pensar.
— Em outras circunstâncias, eu não teria aceitado sua proposta. Tem
razão — ela confessa o que eu imaginava. — Isto porque eu sempre tive
decência antes de pisar nesta cidade. Mas... — ela respira fundo. — Mas é
inquestionável a atração e desejo que sinto por você. Sabe, nunca cruzei a
linha antes daquela noite, no entanto, eu gostei. Naquela manhã me senti
tentada a aceitar sua proposta, já que você nunca me prometeu flores e
sempre foi transparente, mas no final das contas eu não acabaria desistindo
de aceitar.
— Ainda há tempo de desistir. — Dou de ombros. — Posso garantir
a você alguns anos de trabalho. Não acho que devo me utilizar disso para
prender você...
— Eu quero — ela me interrompe.
Olho para ela e a vejo estremecer. Ela se levanta, caminha até mim e
se senta no espaço vago ao meu lado. O cheiro delicioso que sai dos seus
cabelos me inebria e me esforço para raciocinar direito.
— Assim como você precisa disso para satisfazer suas próprias
necessidades, eu percebi que também preciso de um pouco de prazer. — O
tom de sua voz é firme e decidido. — Já que vou trabalhar a metade da
minha vida aqui, por que não? A não ser que esteja se apaixonando por
mim.
Sorrio com suas últimas palavras.
— Não se preocupe, não estou apaixonado.
— Ótimo, porque essa também é uma das minhas condições, não se
apaixone por mim.
— Não se preocupe, isso não acontecerá.
O sorriso desaparece em meus lábios e continuo a olhando com
seriedade.
— Seria uma tragédia se você se apaixonasse por mim — ela
comenta.
Tragédia define bem a paixão. Ela cega e faz as pessoas agirem
como idiotas. Uma merda para alguém como eu, que é obcecado por
controle e poder. Não que tenha evitado esse sentimento durante todos esses
anos, a verdade é que ele nunca me ocorreu. Eu sempre perco o interesse
depois de um tempo e nunca me apeguei às mulheres com quem já transei.
Ficaria de fato surpreso muito se eu chegasse perto de me apaixonar dessa
vez, pois ela foi a única que me pediu uma coisa dessas.
— Quer dizer, eu sou a babá da sua filha, é por isso que é uma
tragédia — comenta exasperada, talvez tímida, com aqueles lábios se
movendo freneticamente ao começar a tagarelar. Estou hipnotizado, sedento
por eles. Eu quero muito essa boca. — Eu não sei o senhor, mas eu...
Chego ao meu limite e capturo seus lábios macios antes que ela
profira a próxima palavra. Agarro a base da sua coluna, trazendo seu corpo
para mais perto.
Solange parece estar em choque nos primeiros dez segundos, no
entanto, depois amolece em minhas mãos quando minha língua pede
passagem, em um beijo lento e cheio de tesão.
Puxo-a para o meu colo pelas ancas, sem desgrudarmos nossas
bocas. Devoro sua boca com toda a fome que estou dela e ela corresponde
na mesma intensidade. 
Mordo seu lábio inferior e ela geme em minha boca, uma doce
melodia para os meus ouvidos.
— Tire a camisola — ordeno.
Ela olha para os lados e replica:
— E se alguém aparecer?
— Todos já foram dormir — sussurro, embebido pelo desejo fodido
que estou dela.
Ela faz o que eu peço, ficando apenas de calcinha em meu colo.
Solange não usa rendas e nada requintado por baixo das roupas,
porém, seu corpo é a própria luxúria encarnada, com suas curvas suaves e
os seios pequenos que parecem duas maçãs viçosas e maduras, esperando
apenas pela primeira mordida.
— Perfeita — sussurro olhando dentro dos seus olhos ansiosos.
Percorro seu corpo com minha mão e toco a ponta dos seus seios,
estimulando até que eles fiquem rijos.
Estou louco para fodê-la e não prolongarei tanto isso, então a puxo
para mais pela bunda e volto a beijá-la ardentemente, descendo meus beijos
para o seu pescoço, clavículas e o par de seios perfeitos. Chupo e mordisco
cada, arrancando-lhe gemidos sôfregos.
Completamente duro, levanto com ela e a coloco de volta em pé no
chão enquanto nos encaramos com as respirações entrecortadas.
— Preciso que deite de bruços na espreguiçadeira.
— Por quê? — Ela ofega.
Arrasto uma mecha do seu cabelo para da orelha e sussurro:
— Vou estragar o momento se eu contar o porquê.
Ela me olha um tanto desconfiada, mas me obedece com as
bochechas vermelhas feito beterrabas, deitando-se costas, enquanto
desbotoo minha camisa.
Poderia ficar assim por horas, apenas admirando o bumbum perfeito
que ela tem.
— Oh, seu Lauro. O senhor vai demorar muito? — pergunta,
arrancando-me um sorriso com sua preocupação.
Livro-me da minha calça pegando camisinha de um dos bolsos e
depois avanço para cima dela, dando-lhe um tapa firme em seu bumbum e
todo o seu corpo estremece.
— Nada de formalidades quando estivermos a sós — sussurro em
seu ouvido. — Entendido?
Vejo-a engolir em seco e assentir.
— Entendido.
— Boa garota — digo, afastando seus cabelos para o lado e chupo
sua nuca, sentindo maciez da sua pele eriçar. Desço minha boca pela sua
espinha e paro na sua lombar, entre o limite de pele e tecido.
Pela lateral, arrasto sua calcinha pelas pernas e ela estremece.
— Olha, se alguém aparecer...
— Shhhh... Não se preocupe com isso, não tem ninguém aqui. —
Avanço novamente para o seu pescoço e mordisco o lóbulo da orelha,
enquanto enfio os dedos entre suas pernas.
Seu gemido é angustiado e seu corpo se contorce sob mim, mas não
paro. Massageio seu clitóris com o dedão até que esteja completamente
molhada, rebolando na minha mão.
Saio de cima dela, abaixo a cueca e coloco a proteção pela minha
extensão dolorosamente rija.
Puxo seus quadris para que fique de quatro para mim, em seguida
afasto suas pernas. Posso ver a adrenalina se espalhando por cada célula do
seu corpo e admiro sua boceta quase pingando.
Sem aviso, meto duro na sua boceta molhada e apertada, arrancando
um gemido alto dela.
Observo suas mãos se fecharem as laterais da espreguiçadeira e seu
corpo fica imóvel, enquanto está empalada no meu pau.
Sua bunda é muito sensual vista daquele ângulo, mas não perco o
controle e início lento, a fim de saborear cada resposta do seu corpo às
minhas estocadas.
Escorrego a mão pelo seu ventre e a estimulo seu clitóris por baixo
enquanto estoco sua boceta no meu ritmo preferido.
— Isso é golpe baixo — ela geme alto e rebola em meus dedos.
Perco o controle e soco sua boceta com mais força feito um animal até
minha semente encher a camisinha.
Dessa vez, gozamos juntos, ofegantes e molhados a suor.
Os joelhos de Solange afrouxam e seu corpo derrete na
espreguiçadeira.
Ela recosta o rosto no estofado e dessa forma tenho uma visão
privilegiada do orgasmo se alastrando por cada uma de suas expressões.
Aqui, assistindo ao prazer tomar o seu corpo, tenho a certeza de que
quero fazer isso muito mais vezes.
Cacete! Acho que viciei.
CAPÍTULO 40

 
Sacrifício não é de longe o que define minha relação com o pai da
minha irmã. Eu o desejo muito, e quando aceitei esse tipo de
relacionamento só conseguia pensar em como seria um alívio unir o útil ao
agradável.
No entanto, confesso que não pensei em como isso poderia mudar
completamente a minha vida.
— Claudia, preciso muito conversar com você — digo ao encontrá-
la, colocando Maria Alice na cadeirinha na cozinha.
Ela olha para os lados e cochicha:
— Já falei que não podemos nos falar pela casa desse jeito?
— Não nos falamos há dias. Aliás, o que aconteceu com você nos
últimos dias?
— Coloque uma roupa bonita em Maria Alice e depois se arrume,
garota. Vocês vão sair daqui a uma hora — dona Lúcia fala ao chegar à
cozinha e eu dou um passo para trás.
Ela nos estuda com o olhar e pergunta:
— O que foi? Por que essas caras de espanto?
— É que a senhora assim do nada, mulher. Nem diz boa-tarde, nem
nada.
Ela me olha por cima dos olhos e pousa as mãos na cintura.
— Boa tarde! Como eu disse... Srta. Solange...
Claudia me olha com os olhos arregalados como se perguntasse:
Mas que merda aconteceu? E eu correspondo seu olhar com uma expressão:
eu disse que tinha algo muito importante para falar.
— Sair? Para onde? — pergunto pegando Maria Alice no colo e
despistando.
— Não sei. Pergunte à secretária do patrão. Ela está chegando para
acompanhá-las.
— Secretária?
— Pelo visto, alguma coisa tem entre vocês dois.
Recebo outro olhar de Claudia, só dessa vez, condenador.
— Seja lá no que você está metida, garota, espero que não se
arrependa no futuro.
— Não sei do que a senhora está falando — replico, envergonhada.
— Tudo bem. De toda forma, não sou de meter o bedelho nos
assuntos do patrão. Eu já o avisei uma vez, creio que tenha sido o
suficiente. Com licença!
Lúcia nos entreolha, depois sai pela porta da área de serviço.
— Será que você pode me explicar por que Lúcia a chamou pelo seu
nome verdadeiro? — Claudia avança em minha direção.
Fecho os olhos, apreensiva.
— Eu posso explicar, Claudia.
— Meu Deus do céu! Eu deveria ter imaginado que isso ia dar muito
errado...
— Calma, mulher. Ainda está tudo sob controle. Vou explicar tudo
agora, tá bom?
Ela suspira martirizada e assente.
— Tá bom.
 
Sentadas no sofá da sala e devidamente bem-vestidas, Maria Alice e
eu esperamos uma mulher que nunca vimos na vida, pelo barulho do motor
de carro entrando no jardim, ela acabou de chegar.
Escuto os saltos tinindo no chão da sala e observo a mulher de
traços asiáticos se aproximar em uma camisa social e saia envelope, ambos
impecáveis.
Ela tem o cabelo curto e é muito bonita, tão bonito que chega a ser
intimidante ficar a encarando por muito tempo.
— Boa tarde! Estou atrás de Maria Alice e Solange? Eu creio que a
Maria Alice seja você — ela diz, aproximando-se. — Oh, que gracinha! Ela
é a cara do pai. Ela só pode estar de brincadeira.
— Quer dizer, às vezes os pais adotivos dão sorte, não é? — Ela
sorri para mim. — Você é a...
— A babá. Sou a babá de Maria Alice.
— E onde está a tal Solange?
Mas que brincadeira é essa?
— Sou eu.
— Você é a Solange? — Ela me parece muito surpresa.
— Algum problema?
— Não, nenhum. Só não imaginava que a Solange fosse a babá dele.
— Ela pensa alto: — Ah, chefe! Pelo visto, você adora um bom e velho
fetiche. 
— Perdão, do que você está falando exatamente?
— Nada! A bonequinha já está preparada para passar a tarde com a
gente? — pergunta a mulher, fazendo um carinho no queixo de Maria Alice,
que lhe dá as costas e fecha os bracinhos em torno do meu pescoço.
— Sim, a bolsa dela está aqui no canto.
— Maravilha. Sendo assim, já podemos ir.
Ela pega a bolsa da Maria Alice e eu me levanto, seguindo aquela
mulher sobre quem eu não sei nada.

— Aliás, meu nome é Vivian. Sou secretária do seu Lauro Trajano,


mais conhecida como faz-tudo no escritório.
A moça se apresenta, olhando-me pelo retrovisor, enquanto faço
companhia a Maria Alice no banco de trás.
— Quando ele me designou para a missão de hoje, não sabia que
seria algo tão pessoal.
— Para onde estamos levando Maria Alice?
— Para onde estamos levando Maria Alice? Não, não estamos
levando Maria Alice a lugar algum. Na verdade, somos nós que estamos
levando você.
— Eu?
— Sim, você, docinho.
— E para onde está me levando? Posso saber?
— Calma, meu doce. É surpresa — ela canta a última parte, com um
sorriso empolgado nos lábios. — Mas posso garantir, você vai amar. Pelo
menos, toda mulher amaria.
Olho mais uma vez para ela e me pergunto o que ele está
aprontando.
CAPÍTULO 41

Horas antes
 
— Bom dia, cachorrão!
Sebá entra no meu escritório e o cumprimento sem tirar os olhos da
tela do computador.
— Quem é vivo sempre aparece, né? — debocha, aproximando-se e
sentando em uma das cadeiras à minha frente. — Senti sua falta. O que
aconteceu? Até pensei que tivesse se aposentado para cuidar da menina.
— Eu passo o dia fora e você acha que me aposentei? — rebato,
concentrado no meu serviço, que, aliás, está acumulado pra caralho.
— Sei lá, vai que você foi restaurado pelo espírito de família e tenha
virado um novo, talvez, menos obcecado pelo trabalho.
— Engraçadinho. Por que ainda não está na porra da sua sala
imprimindo os malditos relatórios que faltam ao invés de estar aqui falando
asneiras? — Bato a mão na mesa e o encaro.
— É este o meu irmãozinho. Ufa! Pensei que você tinha o
enterrado! — Ele folga a gravata fazendo cena.
— Se veio aqui só para fazer graça, sugiro que dê o fora.
— Ê! O que foi? Não transou ontem?
— Transei. Transei bem gostoso por sinal, mas as pendências da
minha empresa não resolvem sozinhas e, pelo que está vendo, estou
tentando, mas você não cala a porra da boca.
— Desculpe, tá? — Ele levanta as mãos em rendição e eu suspiro.
— Queria avisar que vou ter que sair hoje mais cedo. Conrado está na
cidade e prometi que tomaria sorvete com nossas sobrinhas. Tá vendo? Eu
também faço parte do clube da Xuxa.
— O que Conrado está fazendo aqui? Ele quase nunca vem a São
Paulo.
Sebastião fica calado e percebo que tem algo aí.
— O que foi? Por que ficou calado. Por que Conrado veio à cidade
com as garotas?
— Ele veio para o jantar do nosso pai. O Júlio também tentou vir,
mas ficou preso no trabalho em Madrid.
— Jantar?
— É, parece que ele quer reunir todos os filhos, mas como sei que
ainda guarda rancor pelo que aconteceu com nossa mãe e não fala com
nosso pai há anos, pensei que seria inútil avisar sobre esse jantar. 
— O que o velho quer?
— Ele não disse nada. Apenas nos chamou e disse que é importante.
— Esse velho está aprontando alguma coisa.
— Pega leve, Lauro. Ele ainda continua sendo nosso pai mesmo
tendo se separado da nossa mãe.
— Nunca foi a separação, Sebastião. Nosso pai fez nossa mãe sofrer
por anos, mas você nunca vai lembrar disso, pois não passava de uma
criança chorona e birrenta.
— Birrenta? Olha quem fala, alguém que não consegue perdoar os
erros do próprio pai. Se você fosse tão maduro como se diz ser, passaria por
cima desse rancor e levaria Maria Alice para conhecer nosso pai. Isto sim é
maturidade, cara? Nem tudo é sobre dinheiro, ganhar e manter o controle.
Às vezes, é apenas sobre perdoar e amar quem é realmente importante para
nós. Quer saber? Fica aí. Atolado no trabalho, talvez quando o nosso velho
estiver a um suspiro da morte, você se arrependa, porém, aí será tarde
demais.
Sebastião sai da minha sala em passos largos e suas palavras ficam
comigo, reverberando na minha mente.
CAPÍTULO 42

 
— Esta, essa e aquela! Por favor, traga todas as peças no tamanho da
minha amiga aqui. Ela vai provar a loja toda — a Srta. Vivian fala para a
vendedora, que sai toda entusiasmada em busca das peças em meu tamanho,
enquanto seguro minha irmã no colo. 
— Já falei que não é necessário comprar todas essas roupas para
mim. Esquece isso, mulher.
Ela me mede dos pés à cabeça e me pergunta:
— Tem certeza?
— Absoluta. Nem se eu trabalhasse o ano inteiro, não teria como
pagar essas roupas de grife.
Ela sorri de um jeito elegante.
— Você não entendeu mesmo, não é? — Ela arqueia uma
sobrancelha. — Este é um presente do nosso chefe, para você.
— Para mim? Ele não me contou nada.
— Porque provavelmente está muito ocupado hoje. Por isso me
pediu para que eu viesse ajudar a escolher.
Olho para o lado, atordoada, e ela prossegue:
— Ah, quase ia me esquecendo. Ele pediu para que comprasse isso
e entregasse a você. — Ela tira uma caixa branca da bolsa e me entrega.
— O que é isso?
— Um celular? — responde em um tom como se fosse óbvio.
Ele está pensando que eu sou o quê? Uma sanguessuga?
— Não posso aceitar. — Entrego de volta no mesmo instante.
— Tarde demais, eu já comprei, docinho.
— Então devolva para ele — digo, irredutível. — Se eu quiser um
telefone, eu compro com o meu próprio salário.
Vivian revira os olhos e respira fundo:
— Ai, ai! O tal do feminismo. Está tão fora de moda.
— As roupas já estão no provador.
A vendedora retorna animada, e me preparo para dizer que ninguém
vai provar roupa alguma, mas Vivian se coloca ao meu lado, passa o braço
pelos meus ombros e sussurra baixinho:
— Está vendo esse brilho no olhar dela? É alegria pura em saber que
talvez esteja prestes a cobrir a cota do mês, ou quem sabe seja a primeira
venda grande que está prestes a fazer. Provavelmente, quando passarmos o
cartão de crédito black do nosso chefe multimilionário, ela ficará tão
radiante que quando chegar em casa abrirá uma cerveja para comemorar
com o marido ou o namorado. Você não vai querer estragar a felicidade
dessa moça, não é mesmo, Solange?
Droga! O que essa mulher é? Uma chantagista profissional?
Volto a fitar a moça de olhos sorridentes e meu coração aperta. Ela
realmente está muito contente com essa compra.
— Ela está indo, queridinha. Minha amiga aqui mal pode esperar
para levar a loja inteira — diz Vivian,  olhando-me e sorrindo. — Me dê
Maria Alice aqui.
Ela pega Maria Alice do meu colo e com uma mão, empurra-me em
direção ao provador.
 
Nunca estive em roupas e sapatos tão caros como agora e, para falar
a verdade, ao invés de me sentir bonita, o desconforto com a situação se
sobressai muito mais.
Entro e saio do provador, repetidas vezes, e apenas relaxo quando
vejo o sorriso de Maria Alice se abrir toda vez que saio com uma roupa
nova.
Para ela, tudo não passa de uma brincadeira, mas para mim, não tem
nada de engraçado em ele me enviar sua secretária para escolher roupas
para mim.
Nunca precisei que homem comprasse as coisas para mim. Não vai
ser agora que estou transando sem compromisso que vou permitir uma coisa
dessas.
— Deu vinte oito mil trezentos e sessenta reais.
— Tudo isso? — exclamo, assombrada.
— Caladinha, docinho! — Ela levanta a mão e depois entrega o
cartão para a atendente do caixa. — Passe tudo no débito, meu amorzinho.
— Sim, senhora.
Ela coloca a senha e enquanto a máquina processa o pagamento,
Vivian pousa o cotovelo na pedra de mármore e com a mão esquerda,
coloca uma mecha de cabelo pra trás da orelha como se exibisse seus belo
par de brincos.
— Lindos brincos — elogia a atendente.
— Obrigada. Presente de um ficante. — Ela sorri com o seu mesmo
sorriso carismático.
Quem seria o ficante de Vivian?
Lauro?
A dúvida se instala na minha cabeça e fico ainda mais possessa com
ele.
— Muito obrigada pela compra, senhoritas! Voltem sempre. — A
vendedora que nos atendeu nos acompanha até a porta com sacolas e nos
entrega.
— Não fala assim que eu volto mesmo. — Vivian sorri para a moça
e lança uma piscadela.
Noto que a tarde passou voando dentro da loja, tanto que o sol já
está pondo lá fora.
Quando estamos longe o suficiente da loja que saímos, desabafo:
— Vinte e oito mil reais é muito dinheiro. É o valor de um carro.
Ela ergue o dedo em riste e retifica:
— Um carro caindo aos pedaços. Mas quer saber? Esquece isso.
Vinte e oito mil reais para o Lauro são trocados. Na verdade, menti para
você hoje mais cedo.
— Mentiu?
— Sim. Menti. Lauro não é multimilionário.
— Não?
— Claro que não. Ele tem uma fábrica de carros. Acha que ele é só
milionário? Ele é mais. Ele é bi, bilionário! Meu amorzinho, nosso chefe é
o próprio tio Patinhas de São Paulo. Acorda! Acha mesmo que o Sr. Lauro
Trajano me deu seu cartão para gastar menos de vinte mil reais?
Pela forma como Vivian fala, presumo que seria perda de tempo
entrar numa discussão com ela, por essa razão permaneço calada e guardo
minhas palavras para o próprio Sr. Lauro Trajano.
— Falando no tio Patinhas, parece que ele próprio veio buscar suas
donzelas.
Olho em volta pelo estacionamento e o encontro encostado em um
carro preto a alguns metros adiante, com o entardecer como pano de fundo
e sua beleza protagonizando aquela cena que faz o mundo ao meu redor
parar.
Não posso deixar de citar que está lindo em seu paletó cinza
elegante e as mãos enfiadas nos bolsos.
Confesso que a beleza de Lauro Trajano quase cega minha raiva por
alguns instantes, mas Maria Alice me traz de volta à realidade e balbucia:
— Papá.
É, Maria Alice. Parece que seu papai vai se ver comigo agora.
Vivian caminha na direção, faço o mesmo, com a diferença que
estou quase marchando ao seu encontro.
— Como foi a tarde, garotas? Compraram muito?
— Toma! — Lanço as sacolas contra ele e olho para as outras nas
mãos de Vivian. — Ainda tem mais. Pode doar para alguma madame que
precise.
Ele e Vivian se entreolham, confusos.
— Docinho, o que é isso? Crise de histerismo agora?
Ignoro as perguntas de sua secretária e me direciono ao único que
tem que me ouvir.
— Não preciso do seu dinheiro, visse? Se está pensando que vou me
tornar uma boneca que pode controlar, está muito enganado.
— Coração, qual o seu problema? — Vivian insiste.
— Vivian, por favor! — ele pede numa calma irritante, a mulher
parece entender seu recado apenas com um olhar.
— Tá bem, chefe. Entendi. Já estou me retirando.
— Obrigado.
Ela entrega as sacolas pretas a ele e faz o caminho de volta para o
interior do shopping.
Lauro se vira para mim e pergunta olhando para Maria Alice no meu
colo.
— Ao menos podemos entrar para conversar?
Hesito um pouco, mas logo concordo pensando na minha irmã, que
está entre nós naquela briga.
— Ok.
Ele abre a porta traseira do carro e me ajuda a colocar Maria Alice
na cadeirinha no banco de trás. No instante seguinte, entro pela porta do
carona enquanto ele coloca as sacolas no porta-malas e depois, finalmente,
retorna para o carro.
— Olha, sei que está chateada, mas não vejo razão para tanto.
— Não estou chateada, estou ofendida. Você me ofendeu.
— Desde quando presentar uma mulher é uma ofensa?
— Desde quando eu não pedi nada. Não entende? Estou trabalhando
na sua casa e agora temos um caso, mas não estou me prostituindo — digo
a última parte baixinho em respeito a minha irmã, pois mesmo que ela não
entenda nada do que dizíamos, sinto meu estômago embrulhar ao
pronunciar aquelas palavras.
— Solange, eu nunca disse que está se prostituindo — ele também
responde em um tom mais baixo e comedido.
— Mas é o que você faz parecer. Quando eu teria dinheiro para
comprar esse celular, essas roupas e sapatos caros? Eu precisaria de dois
anos economizando para reunir tanto dinheiro e, ainda assim, passaria fome
para isso.
— Mas a questão é que eu posso pagar e quero fazer isso.
— Pois eu dispenso, obrigada!
Ele aperta os olhos, como se estivesse irritado, e não dou a mínima
para o seu mau humor, pois, com certeza, a minha raiva é maior do que
qualquer capricho dele.
— Então, me diga, como pretende continuar vivendo sem um
celular? Porque, pelo que sei, você não tem um. Ou tem e está me
escondendo? Naquele dia que Maria Alice adoeceu você estava em casa e
se vocês estivessem na rua? Como você faria para se comunicar ou pedir
socorro?
Não o respondo, pois em parte ele tem razão.
— Fique ao menos com o celular, até juntar dinheiro para comprar
outro aparelho.
Sorrio amargurada, pois o modo como ele fala é como se soubesse o
melhor para mim.
— Em relação às roupas, peço perdão. Hoje irei a um jantar na casa
do meu pai e não o vejo há muito tempo, então pensei que levar minha filha
e você comigo seria uma boa ideia, por isso pensei que você quisesse
comprar algo novo para a ocasião. Não imaginei que se ofenderia dessa
forma e apenas pedi a ajuda de Vivian, pois foi a única mulher que me veio
à mente para ajudá-la com isso.
— Não sabia desse jantar — penso alto.
— Na verdade, nem eu. Fiquei sabendo hoje pela manhã.
Continuo pensativa e um arrepio me atravessa quando senti sua mão
abraçar a minha coxa.
— Sei que não prometi flores, mas nunca a tratarei com desrespeito.
Essa não é e nem foi minha intenção. — Ergo o olhar para seu rosto,
fazendo todo aquele fogo se acender dentro de mim. — Pode me perdoar
dessa vez?
Engulo em seco e assinto.
— No entanto, nunca mais faça uma coisa dessas sem antes me
consultar.
— Ok. Mas pode ao menos aceitar as roupas e os sapatos também?
— pergunta com aquele tom sedoso.
— Elas já foram compradas — argumenta.
Olho através do para-brisa e respiro fundo.
— Se você fizer isso de novo...
— Não farei — ele reforça em seu tom irresistível.
— Tudo bem. — Aquiesço, carrancuda, sem encará-lo e ceder ao
seu poder de sedução.
— Obrigado.
Depois disso, Lauro liga o carro e dá partida, nos levando de volta
para casa.
Já Maria Alice agarra num sono no meio percurso, enquanto ele
parece aproveitar o  momento para tocar minha perna com ternura, no
entanto, rechaço imediatamente sua mão, pois não consigo esquecer sua
secretária exibindo aqueles par de brincos cintilantes.
— O que foi? Ainda está com raiva? — pergunta com a atenção no
trânsito.
— Não. Só não quero muito contato agora.
— Tudo bem.
Ficamos os dois em um silêncio sério, mas simplesmente não
consigo controlar minha boca.
— Você tem alguma coisa com a Vivian?
— Com Vivian? Claro que não. Você acha que se eu tivesse um caso
com minha secretária eu a enviaria para ajudá-la?
— Parece-me um tanto ilógico, mas nem tudo nesta vida tem lógica.
— Espera aí. Você está com ciúme? — questiona, sério.
— Mas é claro que não — respondo, constrangida. — Só quero
saber onde estou me metendo.
— Fica tranquila. Eu não tenho e nunca tive nada com a Vivian. Ela
e eu somos apenas bons colegas de trabalho e mais nada.
Ele me envia um olhar duro e tenho a sensação de que ele está
falando a verdade.
 

CAPÍTULO 43

 
— Onde está Maria Alice?
— Lá em cima com a Solange, patrão. A menina está tão animada
que até parece que estava adivinhando que sairia agora à noite — informa
Lúcia.
— Por que ainda não desceram?
Fito as horas em meu relógio de pulso e fico um pouco impaciente.
Eu odeio me atrasar.
— Parece que a Solange ainda está se arrumando. Quer que eu suba
e fale com ela?
— Por favor, Lúcia.
Antes que a senhora ao meu lado se mova, elas aparecem no alto da
escada. Maria Alice Trajano está vestida em um vestido rosa-pastel com um
daqueles laços no mesmo tom, esbanjando fofura e beleza, fazendo jus ao
seu sobrenome. E Solange... Ah, Solange!
Folgo a gravata, o calor me fazendo começar a suar, e observo a
deusa de faces coradas descer a escada em um vestido rosé curto e colado
ao corpo, com uma fenda que mostra um pouco da pele da sua perna direita.
Ela está deslumbrante e espero me lembrar de agradecer a Vivian por isso.
Ela desce parece ter dificuldade em descer as escadas com aqueles
saltos altos e Maria Alice no colo, então vou até elas e tento ajudar, pego
Maria Alice no colo e oferecendo meu braço para lhe servir de apoio.
— Obrigada — agradece por cima dos olhos, visivelmente
desconcertada e insegura, no entanto, finjo que não percebo.
— Papá! — Maria Alice me abraça fortemente e baba na minha
bochecha.
— Depois que ela aprendeu a falar papai, ela não tira mais essa
palavra da boca — ela comenta entre risos, enquanto me baba todo.
— Comporte-se, mocinha — advirto cutucando sua barriguinha
gorducha e ela cai na risada.
Uma das coisas genuínas que podemos escutar é a risada de uma
criança, no entanto, quando essa criança é a sua filha, tudo se torna mais
especial. É como se aquele pequeno se tornasse o seu mundo inteiro e tudo
o que você conhecia sobre o amor, cai por terra ao sentir seu peito se
aquecer com um simples sorriso.
— Bem, estou indo dormir. Divirtam-se!
Lúcia acena para nós e cumprimento de volta gentilmente.
— Está pronta para conhecer parte da minha família? — sussurro
para Solange.
— Não estou indo conhecer sua família. Estou apenas fazendo meu
trabalho e acompanhando sua filha.
— De todo o modo, você os conhecerá e estou ansioso pelo seu
parecer ao final da noite. — Envio-lhe um sorriso gentil e ela o retribui com
um olhar confuso.
 
Solange
 
Saltos altos, nunca os use se não tem confiança suficiente para o
fazer.
Onde tu estava com cabeça para achar que usar saltos altos seria
uma boa ideia, mulher?
Eu não tinha nada que combinasse com aquele vestido e quando vi
aquele par de saltos com as tiras brilhantes, pensei que fosse uma boa ideia.
Mas, agora, com minhas pernas em frangalhos e prestes a pedir
arrego, travo uma luta interna para não os tirar no meio da sala da mansão
da família de Lauro, que, aliás, consegue ser mais elegante e ostensiva que
a casa do meu patrão.
— Tem algo a incomodando? — pergunta Lauro, quando deixo
escapar minha décima careta.
— Nada, não. Está tudo bem.
Mantenha a pose, mulher. Respire fundo e mantenha a pose. Se tu
resolveu vir com um salto quinze, agora aguenta.
Caminhamos para uma espécie de sala de jantar, onde há uma lareira
no fundo e uma enorme mesa de mármore no meio do ambiente, em que
algumas pessoas estão sentadas ao redor.
— Lauro! — Um homem extremamente alto e viril se levanta da
mesa e vem ao encontro do meu chefe, abraçando-o de lado e olhando para
Maria Alice. — Quanto tempo, meu irmão. Como está?
— Bem, Conrado.
— Então essa é a famosa Maria Alice? — o homem que responde
por Conrado pega sua mão e ela simpatiza de imediato com ele, abrindo um
sorriso banguela. — Meninos, venham cá conhecer a priminha de vocês.
Pelo menos seis crianças se levantam da mesa e cercam Lauro,
distribuindo carinhos e sorrisos para Maria Alice, que fica muito animada e
começa a bater palminhas ao ver tantas crianças em volta dela.
— Confesso que estou surpreso. Não imaginei que viria — comenta
Conrado.
— Nem eu — uma mulher que aparenta ter no mínimo trinta e cinco
anos aparece logo atrás. — Quanto tempo, Lauro!
— Quanto tempo, Raquel! — Pelo torpor na voz dele, Raquel não é
alguém que o meu chefe goste. Talvez, seja ela sua madrasta.
— Onde está o meu pai?
— Tomando café por aí.
— Ele reúne os filhos e nem sequer vem nos receber?
— Você sabe como é o seu pai. E também, nem todos chegaram. 
Ainda faltam dois dos seus irmãos para começarmos a nos reunir. Como
pode ver, o Jorginho já está na mesa.
Automaticamente, olho para o garoto que não para de mexer no
celular.
— Filho, dê um oi para o seu irmão Lauro?
O garoto desvia o olhar da tela e acena com uma mão.

— E aí, cara?
Lauro não responde e o garoto não se importa, apenas volta a se
concentrar no que estava fazendo.
— Desculpe não ter notado antes. Mas quem é a moça? — Conrado
pergunta com os olhos em mim.
— Solange. Ela é a babá de Maria Alice e uma amiga íntima. —
Desde quando viramos amigos íntimos? Se bem que já íntimos, nós já
somos. — Solange esse é o meu irmão mais velho, Conrado, e seus filhos:
Alex, Lion, Laura, Aime e Júlia. E essa é... — Garganta dele parece travar
na vez daquela senhora — Raquel Gandía.
— A atual esposa do pai deles — ela completa, deixando o clima
pesado.
Neste momento, não me importo muito se esse povo tem muita
roupa suja para lavar, eu apenas não estou mais aguentando ficar pé em
cima dessas duas estacas mortíferas.
— Que legal! Quer dizer, muito prazer em conhecê-los, pessoal.
Mas será que alguém poderia me dizer onde fica o banheiro?
— Descendo o corredor transversal, a primeira porta à esquerda — a
mulher me responde.
— Muito obrigada. Estou indo lá.
— Quer companhia?
— Não, não. — Sorrio, nervosamente. — É que não quero
atrapalhar. Deixa, que eu me viro sozinha.
Ele aquiesce, e eu fico feliz da vida, sabendo que terei um momento
de alívio, respirando fora daqueles saltos, longe dos olhares de toda aquela
gente bonita.

— Para onde mesmo ela disse que é o banheiro? — pergunto-me


trincando os saltos no chão. — Droga! Não interessa! Qualquer porta serve
desde que não me vejam.
Abro a primeira porta que encontro e adentro, no que parece ser um
jardim de inverno coberto.
Dou alguns passos para frente e sou cercada por plantas e
orquídeas.  Um aroma de terra molhada me acerta por todos os lados e
inspiro profundamente, pois o cheiro é muito bom.
Olho para cima e dou de cara com a lua, só sendo possível pelo fato
do teto ser de vidro.
Este lugar com certeza se assemelha a uma grande estufa, com a
diferença que, no fundo, é possível ver as paredes brancas em granizo.
Quando desperto do meu encantamento, retiro os saltos.
— Enfim, só!
Gemo em alívio ao pisar descalça no chão gelado e noto que no meu
tornozelo está machucado, quase na carne viva.
— Você é muito perversa para uma sandália cara, hein? Arruinou
meus tornozelos, minha senhora — resmungo choramingando e mancando
para o centro da estufa.
Encontro uma cadeira de ferro, daquelas pintadas de branco no meio
da estufa, e me sento dobrando o espinhaço para minhas mãos alcançarem
os tornozelos para uma massagem.
Em um ímpeto, levanto a cabeça e quase tenho um treco quando dou
de cara um senhor de cabelos grisalhos adiante em um macacão de
jardinagem, também sentado em uma cadeira como a que estou sentada e
segurando uma xícara de porcelana.
— Meu padre Cícero! Misericórdia! — exclamo com o coração na
goela. — Você me assustou, homem! — reclamo, com a mão no peito.
Recupero-me do susto e disparo:
— E quem é o senhor?
Ele não me responde e apenas dá um gole do líquido em sua xícara.
— O gato comeu sua língua, foi?
Tranquilamente, ele põe a xícara na mesa e continua me analisando
com o olhar, fazendo-me começar a acreditar que aquele homem é mesmo
uma assombração.
Vai de ré, Satanás!
— Sou eu quem devo fazer essa pergunta, não? Já estou sempre por
aqui — ele finalmente responde, em um tom que me faz achar que ele é
parente dos mestres dos magos, aquele velhinho do desenho que surge do
nada.
— Meu nome é Solange. Sou babá de Maria Alice.
— Maria Alice? Não me lembro de nenhuma Maria Alice nesta
casa.
— Ah, ela é filha do meu patrão, Lauro. Ele disse que não vem aqui
há anos, deve ser por isso. Além de Maria Alice ser um bebê e estar com o
meu chefe há pouco.
— Então, Lauro teve uma filha?
— Você o conhece?
— Como não o conheceria?
— É jardineiro desse lugar há bastante tempo?
— Jardineiro? — Ele sorri e, a princípio, tenho a sensação de que
falei alguma besteira.
— Parece que o senhor conhece o meu chefe.
— Como ninguém. Sempre foi um menino arrogante e doente por
perfeição.
— Nossa, não precisa ser tão sincero.
— Então você também acha isso.
— Eu não acho nada, o senhor é quem está dizendo.
Ele explode uma gargalha grotesca.
— Não se preocupe. Não contarei ao seu chefe que estava aqui
falando mal dele comigo.
— Ótimo. Acho que seu patrão também não iria gostar de ver um
funcionário falando mal do filho dele.
— Tem razão.
Ele volta a levar a xícara à boca e me estuda em silêncio por alguns
segundos.
— Me diga, Solange! Quantos anos você tem?
— Vinte e dois.
— Como imaginei, muito jovem. Faz faculdade?
— Ih! Parei de estudar faz muito tempo.
— Mas deveria estudar. Às vezes, a única saída para jovens feito
você é por meio dos estudos.
— Minha mãe sempre me falava isso, mas também sempre me
esquecia quando lembrava que tinha que ajudar a pôr comida na mesa,
senão não comíamos no dia seguinte.
— Falava — ela pensa alto. — Então sua mãe...
— Ela faleceu.
— Meus sentimentos.
— Obrigada.
O silêncio perdura novamente e percebo que minhas pernas estão
quase novas em folha. Pelo visto, eu só precisava de um tempo fora das
sandálias mortíferas.
— Você não me parece ser daqui de São Paulo — o homem retoma
a conversa.
— É que sou do nordeste — respondo, não fornecendo muitos
detalhes.
— Claro, esse sotaque não é estranho — ela comenta. — Então veio
a São Paulo em busca de emprego?
— Na verdade, não. Vim em busca do meu pai.
— E o encontrou?
— Não. É difícil encontrar alguém nesta selva de pedras sem ao
menos saber o endereço do sujeito e apenas ter um nome, que parece mais
um apelido. — Sorrio.
— Me fale qual é o nome do sujeito que digo se é apelido ou não. —
Ele sorri, como se estivesse tentando quebrar o gelo.
— Zé Corvo.
Por alguma razão, o sorriso morre nos lábios dele.
— Onde já se viu uma pessoa se chamar Zé Corvo? — agora é a
minha vez de quebrar o gelo. — É possível que eu morra antes de encontrar
um homem com esse nome.
— É possível sim — ele concorda, só, dessa vez, mais sério. —
Solange, qual era mesmo o nome da sua mãe?
— De mainha? Lourdes. Mas todos a chamavam de Lourdinha —
digo pegando minhas sandálias, sentindo que estou pronta para retornar. —
Senhor, foi um prazer, no entanto, agora eu preciso ir.
Ele parece paralisado em seu canto.
— Tudo bem? — Sorrio enquanto coloco calço o primeiro pé.
— Sim. Tudo bem. — Assente, um pouco estranho. Mas se bem que
não tem como saber se uma pessoa que acabei de conhecer está estranha ou
não. Pode ser apenas o jeito dele
Levanto-me, meio desengonçada nos saltos e antes de sair da sua
frente, me lembro:
— Ah! Nós conversando aqui, eu nem mesmo perguntei o seu
nome. Me desculpe. 
— Afonso.
— Foi um prazer, Afonso. Quando eu estiver em uma condição mais
tranquila, acho que vou seguir o seu conselho.
— Até breve, querida!
Ele aquiesce com um menear de cabeça e saio apressadamente entre
as plantas, imaginando que Lauro esteja precisando de mim.
CAPÍTULO 44

 
— Aconteceu alguma coisa? — pergunta Lauro, quando me sento
ao seu lado na gigante na sala de estar.
— É que me perdi no meio caminho — cochicho pegando Maria
Alice no meu colo e ela parece estar muito feliz rodeada de novos
amiguinhos. Ou melhor, primos.
Após minha chegada, esperamos pelo menos mais trinta minutos.
Outro irmão de Lauro adentra a sala de jantar, o mesmo que vi
naquele dia na piscina e fomos apresentados, e se senta ao lado do filho
mais novo, cuja mãe é Raquel.
Sebastião parece desferir uma ofensa no ouvido do tal Jorginho, que
se exalta e vocifera:
— Vá se foder, cuzão!
— Cuzão! Tio Jorginho chamou o tio Sebá de cuzão! — Um dos
filhos de Conrado gargalha em tom zombeteiro.
— O que é cuzão, papai? — a menininha de cabelos loiros questiona
o pai inocentemente.
— O que é isso, Jorginho? Temos crianças à mesa! — Raquel
repreende o filho, que rapidamente rebate:
— Ele acabou de me chamar de bastardo, mãe!
Sebastião parece se divertir em seu assento com o caos que
provocou, e Lauro, sentado ao meu lado, fulmina o irmão engraçadinho
apenas com um olhar.
Percebo que Raquel fica desconfortável com a situação e Conrado
se irrita.
— Onde está nosso pai que não chega, hein? Já estamos todos aqui.
Ele por acaso acha que somos palhaços?
— Já enviei uma mensagem e ele está se arrumando no quarto —
responde Raquel tentando tomar o controle daquele jantar. — Enquanto
isso, você tenta uma videoconferência com Júlio, e eu vou pedir que sirvam
a entrada. Esperem mais um pouco.
— Não precisam esperar mais. Eu cheguei! — Todos os olhares da
mesa se voltam para a voz que parece vir do meu lado esquerdo.
Viro o meu rosto para a porta da sala de jantar e olho para o senhor
de paletó e gravata parado no batente, com os braços abertos.
— Sejam bem-vindos, meus queridos filhos e netos.
Minha boca se abre em circunferência e tenho a sensação de bater
com o queixo no chão. Meu Senhor, é ele!
O jardineiro!
O jardineiro é o pai deles.
Você não disse nada de mais, Solange. Fica tranquila! Não há nada
que eu tenha dito que me comprometa.
Sebastião e Conrado se levantam para cumprimentar o pai com
abraços calorosos, menos Lauro, que permanece em seu lugar calado.
— Lauro, que surpresa vê-lo por aqui.
— Pois é. Sebastião disse que tinha um assunto para tratar com
todos os filhos.
— É verdade. Só não imaginei que você fosse mesmo aceitar o
convite — ele fala com a mesma mansidão com que conversou comigo
minutos atrás.
Ele olha para os dois homens em pé e pede, educadamente:
— Vamos todos nos sentar.
Em poucos segundos, o senhor ocupa a cabeceira da mesa e olha
para os netos, um por um, até parar em mim e na minha irmã.
— Boa noite, Solange! Que bom revê-la.
Lauro me olha com confusão e eu explico baixinho:
— Eu o conheci no caminho para o banheiro.
— Nós nos conhecemos na estufa — explica o senhor para todos
ouvirem. — Solange definitivamente é uma moça educada e adorável.
— Adorável? O que o velho bebeu? Nem sabia que existia essa
palavra no vocabulário dele — caçoa Sebastião em tom de troça para os
irmãos, que estão sérios e nenhum pouco disponíveis para suas
brincadeiras.
— Cale a boca, Sebastião. Não é possível que ainda fale tantas
besteiras com a idade que tem! — Seu pai é duro ao advertir.
— Desculpe... pai. — Sebastião engole em seco.
Um silêncio sepulcral se faz na mesa, mas não por muito tempo,
pois seu Afonso retoma a conversa.
— E essa jovenzinha? — Ele se concentra em Maria Alice.
Lauro, imóvel ao meu lado, fala:
— Ela é minha filha. Maria Alice.
— Filha?
— Sim.
— Me despreza tanto que não fez questão de me avisar sobre o
nascimento de minha neta.
— É um assunto mais complexo do que parece ser, então, não creio
que isso deva ser discutido agora. Mas confesso que estou curioso para
saber a pauta deste jantar.
— Todos estamos — retifica Sebastião, tamborilando os dedos sobre
a mesa.
— Eu não estou. Eu quero é comer — reclama um dos filhos de
Conrado, o mesmo que alarmou o palavrão do tio, cruzando os braços
contra o peito.
— Quieto, Alex! — Conrado rosna.
— Eu também estou com fome, papai — repete a menininha ao seu
lado,  mas Conrado parece ser mais complacente em falar com ela.
— Falta pouco para jantarmos, meu amor.
— Ele já está on-line, querido — avisa Raquel, levantando ao lado
do próprio rosto a tela de um celular, em que um homem de traços finos e
moletom aparece sorrindo.
— Boa noite, pessoal!
— Este é o meu outro irmão, Júlio — comenta Lauro ao meu lado.
Olho com mais atenção e concluo que nesta família só tem homens
bonitos.
— Agora que estamos todos aqui, o senhor pode começar, papai! —
Conrado se pronuncia, já impaciente com a demora.
Alterno o olhar para o senhor de cabelos grisalhos, que parece
sorver uma boa quantidade de ar antes de iniciar.
— Bem, queridos filhos e netos... eu os reuni aqui por uma razão
que é de extremo interesse para todos. — Seu Afonso faz uma breve pausa,
talvez faça parte do suspense, e diz de uma só vez: — Eu fiz meu
testamento e amanhã mesmo irão receber suas respectivas heranças.
— Como assim? — Sebastião exclama. — Mas o senhor ainda nem
bateu as botas.
— Tem razão, Sebastião. Este é o ponto. Quero fazer isso em vida,
aqui, com vocês.
Lauro se remexe na cadeira e sinto que ele está pegando algo
estranho no ar.
— Quer dizer que eu vou ficar milionário amanhã? — Sebastião
indaga.
Afonso assente com menear de cabeça.
— Caralho! Isso é muito bom para ser verdade — comenta
Sebastião com um sorriso de orelha a orelha, os olhos brilhando.
— Amanhã mesmo depositarei em suas respectivas contas dez
milhões de reais. — Ele olha para o filho mais novo e continua: — Menos,
na de Jorginho.
Lauro sorri, chamando a atenção de todos.
— Qual a graça, garoto? — Afonso o questiona, um tanto
incomodado com a risada do meu chefe.
— Acha que somos idiotas, velho?
— Como é? — Afonso desafia, parecendo não ter gostado nada da
forma como Lauro se reportou a ele.
— Você tem um império bilionário e apenas quer nos dar misérias.
— Onde dez milhões é miséria, caralho? Se você é bilionário, eu
ainda não sou. Não dê ouvidos ao Lauro, papai. Eu amei a sua ideia.
Lauro olha para Conrado, que está pensativo, mas também se
manifesta:
— Concordo com Sebastião, Lauro. Dez milhões é bastante dinheiro
para mim. Posso viver na fazenda cultivando como sempre fiz. Não me
importo se vou receber dez milhões ou quinze, o importante é que não me
tirem de onde estou.
— Ele tem muito mais do que isso. Parem de serem idiotas, não
consegue ver além do próprio nariz? O pai de vocês está propondo isso para
não podermos contestar seu testamento quando morrer, pois vai deixar tudo
para o filho da Raquel. 
Meu Deus! Isto o que o Lauro está dizendo... é injusto demais!
— Isso é verdade, pai? — Conrado pergunta e seu Afonso emudece.
— Nada disso importa. Eu vou ficar milionário amanhã e acabou a
história. — Sebastião bate a mão na mesa.
— E você, Júlio? Qual sua opinião sobre isso? — Lauro pergunta
para o homem do outro lado da tela do celular.
Ele parece pensar antes de falar.
— Concordo com você, irmão. Nosso pai não está sendo justo com
os filhos de seu primeiro casamento...
— Chega! — vocifera Afonso e eu abraço Maria Alice, tampando
seus ouvidos e me encolhendo.
Em questão de segundos, a imagem de um senhor pacífico dá
espaço a outro, com um olhar mais incisivo e irritadiço. Quase nem parece a
mesma pessoa que conheci naquela estufa momentos antes.
— Este é o meu dinheiro e sou eu quem decide o que faço com ele.
Todos os quatro vão receber os dez milhões amanhã e não se fala mais
nisto.
Novamente, o silêncio impera pela mesa, apenas sendo audível a
respiração cansada de seu Afonso.
— Raquel, peça que nos sirvam agora.
— Com licença. — Lauro se levanta e me chama: — Vamos,
Solange.
— O que pensa que está fazendo, Lauro? — seu pai pergunta, ainda
irritado.
— Vamos, Solange! — Lauro repete e eu me coloco de pé ao seu
lado imediatamente.
Ele me ajuda a sair pela lateral da cadeira e circunda meu corpo com
seu braço.
Antes de sairmos da mesa, seu pai provoca:
— É um malcriado mesmo. Merece não ganhar nada, mas, mesmo
assim, pode conferir sua conta amanhã. Seus dez milhões estarão lá.
— Deposite essa esmola na conta de Sebastião — Lauro dá o recado
e me conduz para fora da sala de jantar. — Nem se você me entregasse tudo
o que tem, eu não aceitaria nenhum centavo do seu maldito dinheiro.
— Lauro! Volte aqui, moleque. Lauro!
Ele ignora os chamados do pai, nos acompanhando e o deixando
para trás.
— Lauro? Lauro.
CAPÍTULO 45

 
— Ela dormiu.
Solange me avisa, e no momento seguinte, junta-se a mim no
pequeno sofá do quarto de Maria Alice.
Ficamos em silêncio por alguns instantes, mas acabo falando:
— Então, o que achou?
— Achei o quê?
— Da minha família. Eu disse hoje mais cedo que ia querer um
parecer seu sobre eles.
— Ah, é isso. — Ela parece pensar e diz com cuidado: — Eles são...
normais. São pessoas bonitas e muito chiques.
Sorrio.
— Você falou com o meu pai?
Ela fisga o canto do lábio inferior e responde:
— Bem pouco.
— O que conversaram? — Franzo o cenho.
— Coisas triviais que nem me lembro mais — comenta
rapidamente, quase atropelando as palavras.
— Você simpatizou com ele?
Ela parece estar sendo encurralada com as minhas perguntas então
suspiro.
— Pode ser sincera.
— A princípio, sim. Ele parecia ser um senhorzinho legal. Mas
depois que começou a gritar na mesa e agir de esperteza para o lado de
vocês, eu o detestei.
Sorrio.
— Sério. Como pode um pai fazer distinção de filhos?
— Ah, se eu fosse filha do seu pai, armava uma confusão tão
grande. Não pelo dinheiro, isso não, porém, pela consideração. Isto não é
coisa que se faça com os filhos.
Libero o ar dos pulmões e apoio as mãos nas pernas.
— Finalmente, alguém que entende o meu lado.
— O seu irmão Júlio também ficou do seu lado.
— Bem lembrado.
— Isto faz dele o meu integrante preferido da sua família. Lógico,
depois do senhor.
Ela levanta as sobrancelhas e abre um sorriso lindo para mim. Sei
que está apenas tentando me animar, no entanto, ao ver todo o seu rosto se
iluminar, não posso esquecer que ela está fazendo isso depois daquela
discussão mais cedo.
Solange me parece ser o tipo de pessoa que não se intimida em falar
o que a incomoda e até briga por isso. Mas esquece toda mágoa depois de
uma discussão se for preciso, só para apoiar o outro quando ele precisa.
Parece ser uma coisa tão simples de se fazer, mas conheci poucas
Solanges na vida.
— Obrigado.
— Por que, homem? Não precisa me agradecer por uma opinião.
— Por ficar do meu lado neste embate. — O clima entre nós parece
se transformar em algo mais intenso e profundo, no entanto, por instinto,
me esquivo. — Mesmo que hoje mais cedo você tenha quase cortado minha
cabeça fora na frente da minha secretária.
— Você sabe que mereceu!
— Mas ficou linda no vestido e com as sandálias.
— Fala sério! Estas sandálias quase cortaram meus pés fora.
— Sério? — pergunto, surpreso.
— Sério. Por que você acha que estava andando que nem uma pata
manca? Aliás, com todo o respeito com as patas, especialmente as mancas.
Gargalho, pois quando ela começa a falar, simplesmente não
consegue mais parar.
Ouço Maria Alice se mexer no berço e fazer um barulho
indecifrável.
— Shhhhh! — Grudo o dedo indicador nos lábios dela e sussurro:
— Vamos sair, antes que minha filha acorde.
Ela aquiesce, balançando a cabeça, e me levanto, pegando sua mão e
nos conduzindo para fora do quarto.
Quando fecho a porta, manuseio sua cintura e a levo para parede,
capturando seus lábios em um beijo ardente.
— Quer mesmo fazer isto? — Ela ofega.
— Por que eu não ia querer? — replico, confuso, pressionando
nossos corpos.
— É que você parecia tão borocoxô até há pouco.
Sorrio levemente do seu vocabulário e lambo toda a extensão do seu
lábio.
— Todo problema desaparece quando estou enterrado no seu corpo,
menina. — Afasto uma mecha para trás da sua orelha e digo baixinho,
unindo nossas testas: — Você é a dopamina perfeita em qualquer momento,
bebê.
O canto dos seus lábios carnudos se estica em um sorriso tímido, ao
passo que retomo nosso beijo, com mais força e intensidade.
Ela retribui com o mesmo desejo, lançando seus braços em torno do
meu pescoço e abre a boca para que eu possa chupar a sua língua. 
Ah, Sol! Como a desejo, menina.
CAPÍTULO 46

Semanas depois
 
Os dias iam passando, à medida que eu mudava.
A cada dia, sentia que eu dava adeus a uma parte da velha Solange,
aquela menina ingênua da Paraíba que mal sabia beijar, e me tornava uma
mulher experiente, certa de meus desejos.
Lauro e eu transamos sagradamente todos os dias, aperfeiçoando
aquilo que ele chama de foda perfeita.
Nunca fui santa, mas também nunca imaginei que eu pudesse gostar
tanto de fazer sexo como agora. É como se fosse uma espécie de vício que
estimula o seu corpo e eletriza suas terminações nervosas, até que os seus
músculos relaxassem completamente.
No entanto, nem tudo é perfeito! O sexo também é uma conexão
entre corpos e, de alguma maneira, sinto que essa conexão pode vir a me
destroçar no futuro.
Encosto meus joelhos no chão gelado de seu quarto e amarro meus
cabelos em um rabo de cavalo.
— Amo quando faz isso.
— Ah, é? Por quê? — provoco, entrando no clima.
— Quando você amarra os cabelos é como um aviso prévio de que
irá se lambuzar.
— Tem razão, Sr. Trajano. Acho que hoje quero me lambuzar —
sussurro.
Toco sua pélvis com as pontas dos dedos e ele geme com aquela voz
deliciosa e rouca. Adoro seus gemidos, porque eles simplesmente estragam
minhas calcinhas, isso quando eu estou com elas.
Mas, agora, estou sem nada. Sem calça ou blusa, muito menos
calcinha. Exatamente como vim ao mundo.
Faço tudo com uma paciência excepcional, admirando o seu pau
duro feito aço, apenas esperando que eu o domine.
Desço minha mão e o seguro pela base, trazendo para minha boca.
— Gosta quando faço isso? — pergunto arqueando uma
sobrancelha.
Toco os meus lábios com delicadeza em cima da cabeça rosada,
beijando-o, e levanto os olhos para encará-lo. Ele solta o ar pela boca, como
se respirasse com dificuldade.
A primeira vez que coloquei seu pau na minha boca, lembro-me do
estranhamento ao sentir sua umidade se misturar com minha saliva. No
entanto, após alguns segundos o devorando com minha boca, foi como se
um fogo tivesse subido pelas minhas entranhas e sua umidade se
transformado em mel em meus lábios.
Lambo toda extensão e depois faço movimentos circulares com a
língua pela glande, deixando-o ainda mais duro de tesão.
Lauro geme correspondendo à minha demanda e o coloco todo
dentro da minha boca, resvalando minhas mãos para sua bunda durinha.
— Que delícia – rosna. - Isso aí! Engole todo, meu anjo.
Chupo e o masturbo ao mesmo tempo, a combinação que age feito
rastilho de pólvora em seu corpo. Quando sinto que ele está prestes a gozar,
ele me levanta e me fode na cama.
Amo quando ele está se enterrando na minha abertura quente, pois
ela sempre está faminta por ele.
— Está com saudade desse calor — ele geme, mordendo meu
ombro enquanto me preenche e sai de mim, repetidas vezes. — Passei o dia
inteiro esperando pela nossa foda.
— Eu também — gemo sofregamente.
— Sou louco por essa boceta. Você sabe disso, não é?
— Sei sim. — Dessa vez, abafo um gemido alto quando ele estoca
mais forte, metendo mais fundo.
Ele nos eleva a um ritmo animalesco, friccionando meu clitóris.
Deus!
Minhas unhas ficam suas costas e meu corpo ondula.
— Goza para mim, meu bem.
Não demora muito para que meu corpo estremeça e ele arremate
minha boceta com ainda mais intensidade, como se fosse humanamente
possível. Lauro tem um porte atlético e desconfio que isso o favorece muito
na cama. Instantes seguintes, gozo deliciosamente sob ele, sentindo meu
corpo inteiro relaxar.
Tão logo o seu gozo o arrebata, em seguida ele cai ao meu lado,
com a respiração entrecortada.
Surpreendo-me quando sua mão me puxa pela cintura para mais
perto e deposita um beijo no topo da minha cabeça. A última vez que fez
isso foi na noite em que perdi minha virgindade, mas, mesmo assim,
naquele dia senti que era um gesto empático, não algo que partisse
espontaneamente dele.
— Queria lhe fazer um convite — comenta baixinho.
Engulo em seco, pois não estou acostumada a receber carinhos dele
após o sexo.
— Sim?
— Quer jantar fora amanhã à noite?
— Como assim, jantar? — Levanto o rosto para ele e semicerro os
olhos: — Eu disse para você não se apaixonar por mim, homem.
Ele me dá aquele sorriso que sempre me deixa com as pernas
bambas.
— É apenas um jantar, eu prometo.
— Levava as outras mulheres para jantar também, bonitão?
Ele franze o cenho.
— Importa-se de não falarmos sobre o meu passado?
— Claro que não importo. Mas não tem motivos para jantarmos
fora, isto soa como se fosse um encontro e não estou interessada em
envolvimento fora da cama.
— Não consigo entender por qual razão um simples jantar...
— Para falar a verdade, nós juramos que seria apenas sexo e não
posso correr o risco de me apaixonar por você — confesso e o clima fica
estranho entre nós.
— Eu não me importo que se apaixone por mim — ele sussurra.
— Não se importa, é?! — Faço uma careta, resmungando: — Quer
me ver igual um cachorrinho atrás de você, né, esperto? Pimenta nos olhos
dos outros é refresco, bonito!
Ele gargalha.
— Poderíamos ir apenas como bons amigos, então. — Ele me
persuade cutucando minha barriga. — Lúcia dormirá aqui amanhã e ficará
com Maria Alice enquanto isso.
Penso um pouco e o respondo:
— Tudo bem, eu aceito. Mas com uma condição! — Ergo meu dedo
em riste.
— Qual?
— Sem safadeza no final da noite.
Ele joga a cabeça para trás, decepcionado.
— Tem certeza disso?
— Mas é claro. Desde quando amigos ficam de safadeza?
— Amigos com benefícios?
— Pegar ou largar. — Bato o pé.
Ele reluta, mas inspira fundo e diz por fim:
— Ok. Condição aceita!
CAPÍTULO 47

Não há nada mais excitante que sair à noite com uma mulher.
No entanto, essa teoria melhora ainda mais quando vejo Solange em
um vestido tubinho preto combinando com batom vermelho, que tinge seus
lábios carnudos.
Ela está sexy para caralho e parece ter feito isso para me provocar,
mesmo não precisando de muito.
— Boa noite, amigo! — ela me cumprimenta, beijando os dois lados
do meu rosto.
— Me chame de tudo, menos de amigo — reprovo, apertando sua
bunda.
— Quer que eu desista do nosso jantar, bonito? — Ela arqueia uma
sobrancelha e me ameaça, então, não vejo outra alternativa a não ser
abaixar minha mão. — Mais uma gracinha dessa e eu nunca mais visito a
sua cama, visse?
Reviro os olhos e dou de ombros, olhando para o lado.
— Não vai mais se repetir.
— Se é assim, podemos ir — ela diz e, finalmente, seguimos para o
meu carro.
O trajeto para o restaurante, nem por um segundo é tedioso. Com
Solange, nunca falta assunto.
Falamos sobre a rua, sobre a noite, as estrelas e até mesmo sobre as
pichações que encontramos ao redor da cidade. Qualquer coisa é motivo de
conversa.
Ao chegarmos ao Itaim Bibi, somos direcionados para a mesa que
reservei no restaurante italiano localizado em um famoso edifício da região.
— A vista é linda! — ela comenta, maravilhada com os fluxos de
luzes lá fora.
— Sabia que ia gostar — digo à sua frente, após pedir uma entrada
de cogumelos tostados.
— Sabia que essa é a primeira vez que vou comer cogumelos?
— Que maravilha, então. Espero que aprecie.
— Com certeza eu vou apreciar — ela entona a última palavra mais
que as outras e escancara um sorriso no rosto, como uma criança em um
parque de diversões.
Não posso negar que também sorrio com sua notória felicidade e,
neste momento, não estou pensando em sexo ou em qualquer outra coisa,
apenas no quanto é satisfatório fazê-la feliz.
— Lauro?
Viro o rosto para o lado, e encontro Ferraz e sua esposa.
— Que surpresa vê-lo por aqui, meu jovem.
Ferraz é meu advogado e velho amigo. Levanto-me para
cumprimentar ele e sua esposa.
— É sempre bom dar uma pausa no trabalho e descontrair, meu
amigo.
— Claro. — Ele sorri. — Como vai a paternidade?
— Uma maravilha. Aquela garotinha vem se tornado o meu mundo.
— Sei como é isso, rapaz. Afinal, eu tenho três, mas estão todos
crescidos e bem criados.
Ele desvia o olhar para Solange e pergunta:
— Quem é a moça?
— Esta é Solange. — Apresento-lhe e prossigo: — Solange, este é
um velho amigo meu, Ferraz.
— Solange? Esse nome não me é estranho. Solange de quê?
— Solange de Oliveira. Ah, mas Solange é um nome bem comum,
homem, principalmente no nordeste. Com certeza devem existir muitas
outras Solanges por aí — Sol fala com um sorriso gentil nos lábios.
— Então, é do Nordeste?
— Sim, senhor.
— Que maravilha, eu amo a culinária nordestina. — Ele sorri e
torna a me olhar. — Pois foi um prazer, rapaz.
— O prazer foi todo o meu.
Despeço-me com um aperto de mão e, de repente, Ferraz para e
torna a fitar Solange, empurrando os óculos de fundo garrafa para mais
perto dos olhos, como se a estranhamente e a avaliasse.
Sua esposa, por vez, segura o braço do marido e o apressa.
— Vamos, querido?
— Claro, querida.
Os dois saem pelo corredor de mesas ao nosso lado e volto a me
sentar à mesa.
— Ele parece ser um senhorzinho simpático — comenta Sol.
— Ele é!
Sorrimos juntos e tão logo nossa entrada de cogumelos chega, para
alegria da minha recém-entusiasta da culinária paulista.
 
 
De todas as maneiras que imaginei como seria o final desta noite,
contar estrelas no jardim da minha mansão foi a única que não passou pela
minha cabeça.
No começo, eu estava louco para ela desistir desse papo bobo de
restrição e pararmos em minha cama nos beijando feito loucos.
No entanto, quando estávamos voltando do restaurante e
atravessando o jardim, simplesmente caímos na grama aos risos, como dois
adolescentes no caminho de volta para casa e, em um dado momento,
comecei a apresentar a ela as estrelas no céu.
— Você era um bom aluno na escola? — ela me pergunta sem
desviar o olhar do céu.
— Hum... digamos que eu era aceitável. E você?
— Ih, sempre fui péssima aluna. Mas não porque tirava notas
baixas, não. Até que eu era danada em responder qualquer questão, porém,
sempre fui conversadeira, sabe? Eu era daquelas que o professor mandava
calar a boca, pois o pobre não aguentava mais.
— Eu até imagino — sorrio, fracamente.
— E eu acho que tu mentiu!
— Ah, é?
— Embora tu tenha cara daqueles playboy com mais de trinta anos,
acho que na escola tu foi um aluno aplicado.
— Obrigado pelo playboy com mais de trinta... — ironizo e ela abro
um sorriso para dentro. Adoro quando ela faz isso.
Ficamos em silêncio por alguns instantes até ela perguntar, curiosa:
— Será quantas estrelas existem no céu?
— No céu eu não sei, mas no universo, uma centena de milhares e
milhares e milhares.
— Isto é bom — ela sorri.
Viro o rosto e a questiono, curioso:
— Por quê?
Ela deita o rosto em minha direção e explica, mas me controlo para
não deter o olhar apenas nos lábios perfeitamente carnudos se movendo.
— De alguma forma, isto me dá a sensação de que meus problemas
são insignificantes perto de toda a existência no universo.
— É uma boa lógica.
De repente, o clima entre nós parece esquentar e não sei se isso é em
razão da taça de vinho tinto que bebi mais cedo, ou do olhar castanho-claro
cuja intensidade me deixa aéreo.
Ela pigarreia e torna a fitar o céu.
— Qual é a sua preferida? A que você acha mais brilhante e bonita?
— Dentre essas? — Aponto com dedo para o céu e,
automaticamente, ela o puxa com sua mão em desespero. — O que foi? 
— Endoidou? Não pode apontar, dá verruga no dedo, menino!
Gargalho, pensando em como faz tempo que não ouço essa besteira.
— Tudo bem. Obrigado por poupar meu dedo, senhora.
— Mas, então, qual sua estrela preferida?
Penso por alguns segundos e concluo:
— É o Sol. — Aproximo-me do seu corpo e sussurro contra sua
orelha baixinho: — Ou talvez, a Sol. É uma estrela brilhante e quente, a
combinação perfeita para mim.
Ela rola o corpo pela grama e fica pelo menos a um passo de
distância de mim.
— Engraçadinho. Eu disse as que tem agora no céu — ela
desconversa com as bochechas em brasa.
Apesar de os nossos encontros íntimos, percebo que situações como
estas a deixam tímida. E, porra, ela fica tão fofa tímida.
— Claro. Então, eu escolho a Alpha Carine — digo em um tom
mais alto para que possa escutar.
— Qual delas é a Alpha Carine?
— A segunda à sua direita.
— Ela me parece mesmo muito linda!
— Não mais que a Sol — falo baixinho, seduzindo-a.
Ela pigarreia mais uma vez, limpando a garganta e se levanta em um
rompante, alisando a barra do vestido.
— Já está tarde, acho que vou entrar.
— Espera, Sol. — Coloco-me de pé e subtraio o espaço entre nós,
pegando os dois lados do seu rosto e, automaticamente, ela se esquiva.
— O que deu em você? Nosso acordo, lembra? — Ela ofega.
— Você disse sem safadeza.
— Eu disse que sairíamos apenas como amigos, e amigos não se
beijam na boca.
— Tem razão, nunca quis ser apenas um amigo.
— Mas é claro que não. Você me quis para foder.
De certa forma, suas palavras me incomodam, pois Solange não é
apenas alguém para foder, de alguma maneira, ela significa mais do que
isso para mim.
— E está tudo bem, sem flores, lembra? — ela sussurra.
— Não está tudo bem — digo, apertando os lábios e me aproximo.
— E se em algum momento eu quiser lhe entregar flores?
Ela arregala os olhos suavemente e dá um passo para trás.
— Não foi esse o combinado.
— Podemos esquecer o combinado e tentarmos uma vez.
— Por Deus! Do que você está falando? — Seus olhos se enchem
d’água, mas sua voz está indiferentemente fria. — Não estou entendendo
onde quer chegar. Poderia falar fora das entrelinhas, por favor?
— Saia comigo mais vezes — acabo falando aquilo que está
entalado na minha garganta. — Podemos iniciar um relacionamento
comum, como qualquer outro.
— Está me pedindo em namoro?
— Não sou ligado a termos convencionais, mas se quiser um, sim,
eu pretendo namorar você.
Ela desvia o olhar para o lado, como se estivesse aturdida. Ela
esfrega os olhos com os antebraços e quase posso escutar sua mente
barulhenta, somente pelas suas expressões faciais.
— Então... quer ir adiante comigo?
— Não!
— Não?
Ela me encara e reforça:
— Mas é claro que não. Que tipo de pessoa propõe sexo sem
compromisso e depois muda de ideia? Não posso mudar o plano, então
minha resposta é não.
— Solange...
— Eu disse a você que não rolaria sentimentos — ela fala com a voz
embargada.
— Você não sente o mesmo?
Ela engole em seco e me responde sem me olhar nos olhos:
— Não.
— Não é o que está parecendo.
— Não importa o que está parecendo, não posso quebrar esse
acordo.
— Eu acabei de quebrar, não está vendo? — Agora sou eu que fico
impaciente. — Eu praticamente disse que me apaixonei e você,
simplesmente, está pouco se fodendo para o que eu disse.
— Minha resposta é não, ok? Se você foi capaz de manter sua
palavra em relação aos seus sentimentos, então, por favor, mantenha o meu
emprego nesta casa.
— A única coisa que importa é o seu emprego?
Ela respira fundo e me responde firme:
— Sim.
Dou alguns passos para trás e embrenho a mão nos cabelos.
— Ok, Solange. Pode entrar, não vou mais te incomodar.
— Obrigada e boa noite!
— Boa noite!
Assisto-a se afastar e quando some entre os arbustos, soco o ar,
grunhindo.
Porra. A primeira vez que me apaixono por uma mulher, ela me
dispensa.
— Mas que porra! — grunho, sentindo a raiva esquentar o meu
sangue e depois respiro fundo, tentando não deixar a caralhada de
sentimentos conflitantes dentro de mim me dominar.
CAPÍTULO 48

Uma semana depois


 
Já era para eu estar no escritório, mas simplesmente fiquei preso
pela manhã entre os brinquedos da minha filha, que não para de emitir sons
indecifráveis como se estivéssemos em uma longa e séria conversa.
— Estou ansioso para quando você aprender a falar português,
mocinha, pois sinceramente estou muito curioso para saber o que tanto quer
me dizer.
— Ah! Aaaah! Êeeeo!
Sorrio dos balbucios e ela espalma as mãos em cada lado das
minhas bochechas, apertando-me.
— Papá!
Não é a primeira e nem a segunda, mas meu coração se aquece
quando ela me chama assim.
A porta ao nosso lado se abre e olho para a garota de cabelos
encalorados nos fitando parada no batente, como se estivesse entrado no
quarto errado.
Desde aquela noite, Solange e eu demos uma pausa em nossos
encontros sorrateiros pela casa e tudo pareceu voltar à estaca zero, em que
ela finge que não me vê e eu que não me importo.
— Mamá!
Quase engasgo com saliva quando ouço a palavra sair da boca da
minha pequena.
— Mamá!
Maria Alice repete e atira os braços em direção a Solange, pedindo
colo.
Ela entra no quarto sem jeito e pega minha menina no colo.
— Dona Lúcia pediu que eu subisse, pois já era para o senhor ter
saído.
— Ah, claro! — Levanto-me do chão e apanho alguns brinquedos.
— Pode deixar aí, depois eu organizo. O senhor deve estar atrasado.
— Voltou a me chamar de senhor?
— Me parece respeitoso chamar o chefe assim.
— Já não temos mais uma relação meramente de chefe e
funcionário, mesmo que você tenha me rejeitado.
Ela se cala, desviando o olhar e embalando Maria Alice no colo.
Olho para os brinquedos espalhados pelo chão e digo:
— Bem, estou indo, então.
Aproximo-me delas e acaricio a bochecha da minha pequena, que
sorri em resposta.
— À noite eu brinco mais com você, princesa.
Alterno meu olhar para ela, que continua fitando a parede atrás de
mim.
— Tchau, Solange.
— Tchau! — responde, seca.
O mais estranho em todo esse rolo entre mim e a babá da minha
filha é que sinto que algo a impede de me dizer sim. Orgulho, talvez, pois é
provável que tenha se ofendido com minha proposta, a princípio, e queira
me dar uma lição.
Ao mesmo tempo, não creio que Solange seja do tipo que faça esses
joguinhos de indiferença. Ela já me provou diversas vezes que é
transparente, até demais, e isso me deixa ainda mais confuso com toda essa
porra, pois simplesmente estou entrando em abstinência da boca carnuda
que costumava devorar. Porra! Eu preciso transar, não com qualquer uma,
tem a dela. E se para tê-la de novo eu tenha que ativar uma versão de mim
que nunca veio à público, eu o farei.
 

Algumas horas depois


 
Minha tarde no escritório foi lotada de compromissos e documentos
para assinar. Apenas assim para parar de pensar naquela mulher e focar em
algo que também me dá tanto prazer quanto o sexo, os meus negócios.
Quando a tarde termina, estou exausto, mas, ao mesmo tempo,
satisfeito com meu desempenho, mesmo tendo atrasado algumas horas pela
manhã.
— Com licença, chefe. O seu Ferraz está aqui na porta querendo
falar com o senhor. Disse que tem assunto importante para tratar com o
senhor.
— Peça para que ele entre, Vivian — digo em minha mesa,
assinando o último papel da pilha de contratos.
Ouço uma batida à porta, seguida da voz madura:
— Boa tarde ou boa noite, meu jovem.
— Boa noite, Ferraz. Posso ajudá-lo com algo?
— Na verdade, sim. Eu queria apenas bater um papinho com você.
— Então, sente-se! — aceno para a cadeira à minha frente.
— Obrigado.
Ele se senta e eu o questiono:
— Então, sobre o que quer conversar?
— Eu pensei muito antes de vir conversar com o senhor, pois não
quero que pense que estou me metendo na sua vida.
— Está me deixando curioso, Ferraz. Por que você se meteria na
minha vida?
— Na verdade, quero falar sobre o contrato que fez com a irmã da
sua filha.
Confesso que não entendo muito por qual motivo ele está retomando
esse assunto, mas escuto atentamente.
— Sei que você é jovem e cheio de hormônios, mas certas relações
deveriam ser muito bem pensadas antes.
— Desculpa, Ferraz. Mas não estou entendendo.
Ele respira fundo e prossegue:
— Quando você me apresentou aquela moça no restaurante,
confesso que fiquei instigado a rever o documento que a irmã de Maria
Alice passa a guarda para você, pela questão de os nomes serem iguais. Eu
peço até perdão a você por ter ido além e investigado a identidade dessa
garota, por meios até não convencionais, e confirmar minhas suspeitas. O
que eu quero dizer com isso é que... é muito arriscado manter um
relacionamento com a irmã biológica da sua filha. Isso pode acarretar
problemas futuros e não será muito difícil travar uma batalha judicial tão
complexa feito essa.
— O que é isso, Ferraz? Está achando que estou saindo com a irmã
biológica de Maria Alice? — Sorrio com toda aquela confusão que ele
armou na própria cabeça. — Solange é a babá da minha filha e não sua
irmã.
— Quer dizer que ainda não sabe da verdade? — divaga, parecendo
assombrado.
— Que verdade?
— Você precisa ver alguns documentos com os próprios olhos, meu
jovem — ele diz, antes de abrir sua pasta.
Foi no início da noite que a verdade chegou acidentalmente até
mim. Minutos antes, eu não tinha a mínima ideia de que algo acontecia bem
debaixo do meu nariz, mas, de uma hora para outra, a verdade apareceu e
talvez ela não contasse que apareceria tão cedo.
CAPÍTULO 49

 
Tento colocá-lo fora da minha mente, mas é inútil, pois até mesmo
Claudia me faz lembrar quando me repreende.
— Isso é extremamente arriscado, Solange.
— Mulher, acabou tudo entre mim e ele. Confie em mim.
— Você jura que nunca mais vai se envolver com o patrão?
Fico em silêncio.
— Me jure, Solange! — ela sussurra, agoniada, na porta dos fundos
da mansão. 
— Tá bom. Eu juro!
— Você não me apronte outra dessa, viu, menina? Não é só o seu
emprego que está em jogo.
— Mulher, eu já jurei.
— Você gosta dele?
— Por que disso agora, mulher?
— Me responda, Solange, você está gostando do patrão?
Olho dentro dos seus olhos e não consigo mentir.
— Mais do que eu deveria — admito esmorecida, pois o sentimento
simplesmente está me matando nos últimos dias. — Mas não se preocupe,
eu não vou deixar que esse sentimento arruíne nossas vidas. Não vou
estragar tudo outra vez. Eu prometo. — Uma súbita vontade de chorar me
acomete e desvio o olhar para o lado. — Agora eu tenho que voltar lá para o
quarto de Maria Alice, que dona Lúcia tá com ela. Se eu demorar muito é
capaz dela abrir outra investigação contra mim.
— Então, vá, menina.
Despeço-me de Claudia e caminho para dentro de casa. Estanco os
passos quando ouço a voz grave do homem que chega à sala. É ele, Lauro.
— Solange.
Aperto os olhos quando ele chama pelo nome e tomo coragem para
ficar de frente com ele.
— Senhor?
— Vamos ao escritório agora, temos algo a acertar.
— Mas não pode ser outra hora, não?
— Não — responde com uma estranha indiferença na voz e mesmo
que nós tenhamos passado a semana sem nos falar, não é a mesma coisa.
Tem algo errado com ele.
— Tá bem!
Giro meus calcanhares e caminho até o escritório, com ele em meu
encalço.
— O que quer tanto conversar? — pergunto, ao vê-lo fazer a volta e
ficar frente a frente comigo.
— Como pôde me enganar? — rosna. — Como pôde ser tão baixa
todo esse tempo se infiltrando na minha casa?
— Do que você está falando? — Dou um passo para trás,
estremecendo com suas perguntas.
— Já sei que você é a porra da irmã biológica de Maria Alice. Não
precisa mais fingir na minha frente, que já sei que merda é você.
— Como?
— Por acaso... — Ele embrenha os dedos nos cabelos, os olhos
repletos de ódio e repulsa. — Por acaso eu tenho cara de imbecil? Mentindo
para mim na minha própria casa, como se eu fosse um idiota. Me fala,
quando a gente transava, você sorria depois? Pois imagino que devo ter
servido de piada na boca de uma vigarista feito você.
— Para, por favor! — peço, com os olhos empoçados de lágrimas e
começando a viver o pesadelo que sempre temi. — Por favor, para. Deixa
eu explicar primeiro.
— Por que disso, cacete? Tinha planos de me chantagear depois?
Era esse o seu plano? Pra diabos se meter nesta casa?
— Eu não me importo com o seu dinheiro. Nunca me importei.
— É meio difícil acreditar em uma pessoa que dá a própria irmã,
não concorda?
— O que você sabe sobre mim? Sobre os meus motivos para chegar
a fazer o que fiz?
— Esta é a questão, eu sei nada sobre você. Exatamente, nada! 
— Dei Maria Alice, pois eu não tinha outra alternativa – digo com
dificuldade, as lágrimas pululando freneticamente dos meus olhos. — Eu
não tinha dinheiro, tínhamos acabado de chegar em uma cidade
desconhecida e sem passagem de volta para nossa terra e, naquela época,
quando consegui um emprego, quase a roubaram de mim. — Fungo
tentando me acalmar. — Foi aí que eu percebi que não tinha condições de
criar minha irmã... que uma hora ou outra a situação ficaria insustentável e
passaríamos fome.
Ele caminha para o lado do escritório, soca a beira da mesa e meu
corpo fica trêmula com o impacto.
— Você tinha que dar um jeito, era sua responsabilidade.
Aperto os lábios, sentindo os meus olhos arderem.
— Você sabe o que é sentir fome? — pergunto com dificuldade. —
Você sabe o que é acordar todos os dias e batalhar por um prato de comida?
Você sabe o que é não poder conseguir suprir o básico de uma filha ou
filho? Pois era assim que eu me sentia em relação à Maria Alice. Desde que
mainha morreu, eu assumi o papel de mãe da minha irmã... e droga! Eu não
estava preparada para isso, mas mesmo assim achei que fosse possível,
pensava que onde uma come, duas bocas comem. Mas não foi assim.
Quando me vi sem saída, em um ato de puro desespero, aceitei a proposta
de Claudia...
— Claudia. Claudia. Claudia. Ela sabe de tudo?
— Por favor, não a demita. Ela fez apenas para me ajudar, mas
depois que vi que não tinha volta, eu me arrependi amargamente e pedi para
me dizer onde era sua casa, que eu mesma falaria e buscaria Maria Alice,
porém, não tinha volta. — Limpo as lágrimas e continuo: — Então, surgiu a
ideia de trabalhar como babá, pois havia aberto vaga com a chegada da
Maria Alice. E a partir de então, você conhece a história.
— Pretendia mentir para mim até quando?
Reluto, fungando, mas o respondo:
— Até que ela completasse dezoito anos, no mínimo.
— Foi por isso que me pediu um contrato de dezoito anos — ele
pensa alto.
— Eu queria saber se ela estava crescendo bem e saudável.
— Mesmo assim, ela nunca a chamaria de irmã.
— Eu estava disposta a pagar o preço por isso.
— Sacrificaria dezoito anos da sua vida por uma irmã que
abandonou?
— Até mais. — Fungo enquanto ele parece me analisar
meticulosamente.
— Eu preciso pensar.
— Tudo bem. Eu não esperava que me dissesse algo a meu favor,
mas precisava me explicar.
Novamente, limpo o rosto e saio pela porta que entrei, com o
coração dilacerado. É como se meu mundo tivesse ruído em menos de dez
minutos, e, mesmo que isso tenha acontecido com frequência na minha
vida, eu ainda não me acostumei.
Mas, agora, eu preciso agir.
Preciso fazer alguma coisa antes de que qualquer atitude dele possa
ser irreversível para nós duas.
Está mais que claro que ele sente repulsa por mim e que não
demorará muito para me expulsar desta casa, então sem consultar ninguém,
nem mesmo Claudia, subo para o andar de cima, limpando as lágrimas com
a barra da minha blusa.
Sorvo uma boa quantidade de ar e abro a última porta do corredor
sorrindo.
— Cheguei!
— Onde você estava, menina? — dona Lúcia questiona. — Por que
demorou?
— É... É que a Sara me pediu para que jogasse o lixo fora, pois
havia esquecido e já estava de saída — minto, rezando para que ela
acredite.
— Limpou bem essas mãos?
— Claro que sim. Elas estão impecáveis. — Forço um sorriso
aberto.
— Estranho. Seus olhos estão vermelhos.
— Ah, estão? — sorrio. — Deve ter sido o odor. Mulher, ô cheiro
forte, hein? Ave Maria! Não sei o que tinha naquelas sacolas para feder
tanto.
Ela me mede dos pés à cabeça e depois me entrega Maria Alice nos
braços.
— Sendo assim, eu vou dormir agora. Cuide bem da princesinha.
Ela se despede e, nos instantes seguintes, some pelo batente.
Respiro fundo e olho para o rostinho tranquilo dela.
— Vamos ter que fazer uma longa viagem hoje, pitica. Eu prometo
que ficaremos bem, viu? Confia em mim? — sussurro em tom de
confidência, pensando no que levarei com a gente.
 

Não são muitas coisas que levo conosco. Apenas algumas mudas de
roupas de Maria Alice, o dinheiro que recebi como salário recentemente e
os nossos documentos antigos, que estavam guardados embaixo do colchão.
Em passos sorrateiros, saímos da mansão sem que ninguém nos veja
e caminhamos até um ponto de táxi da região.
Agi com tanta rapidez que é provável que quando ele se dê conta, já
estejamos no ônibus com destino à Paraíba. Foi a única solução que
encontrei para evitar que nos separássemos para sempre.
— Para a rodoviária, senhor — peço, com Maria Alice no colo.
— Sim, senhora.
Enquanto o moço dirige no banco da frente, lembro-me dos
momentos que vivi naquela casa, imaginando o quanto demorará para
esquecê-lo e aceitar que tudo não passou de uma grande e perigosa ilusão.
Após um tempo percorrendo pelas avenidas de São Paulo, o carro
solanca e bate com a suspensão do chão.
— Merda! Parece que o pneu furou.
O taxista para no acostamento e sai do carro.
— Vai ter que pegar outro carro, menina — avisa, analisando a
situação de fora.
— Como assim, moço?
— Como imaginei, o pneu furou. Mas se quiser esperar eu trocar.
Saio do carro com Maria Alice em meu colo e pego a bolsa em
minhas costas.
— Demora quantos minutos a troca? — pergunto.
— Cerca de 30 a 40 minutos.
Droga! Eu não posso perder esse tempo assim.
Pego o dinheiro de dentro da bolsa e pago o valor da viagem.
— Moço, o senhor sabe onde fica o posto de táxi mais próximo?
Ele olha para os lados e me aponta para o lado.
— Cruzando esses dois quarteirões, tem um posto e você chega
mais rápido indo por essa rua, porém, não aconselho, moça. Você não é
daqui, não é mesmo?
— Não, sou da Paraíba.
— Como imaginei, esse sotaque nordestino é inconfundível. — Ele
me olha com compaixão e continua falando: — Essa área aqui é conhecida
por ter muitos viciados.
— Viciados?
— Viciados em crack e outras porcarias. Tanto que chamam essa
região da Cracolândia.  Não recomendo muito uma moça com um bebê
atravessar essa região andando, então sugiro que espere um táxi aqui na
avenida mesmo. Pode demorar, no entanto, é o mais seguro.
— Tá bem. Eu acho que vou esperar. — Forço-lhe um sorriso e ele
assente, começando a fazer a troca de pneus.
Fico pelo menos uns quinze minutos esperando outro táxi aparecer,
impaciente.
Olho para trás e penso no que aquele moço falou. Ele disse que é
rápido indo por esse caminho, então o que nos poderá acontecer de mal?
Estou com pressa e não deixarei que Lauro ganhe tempo e de
alguma maneira, venha atrás de nós, por isso tomo coragem e sem avisar o
senhor taxista, caminho em direção aquela rua, sendo engolida pela
penumbra em meio às construções abandonadas.
Ao passo que me enveredo pela calçada, algumas pessoas surgem,
umas bem-vestidas, mas a maioria delas estão rasgadas e são acompanhadas
de um cheiro pútrido, que não sei decifrar do que seja.
Os chãos estão lotados de lixo, panos e restos de comidas, e meio
disso, pessoas sentadas no chão sujo fumando.
Recebo alguns olhares estranhos, mas os ignoro, concentrando-me
em apenas caminhar depressa para alcançar logo o ponto de táxi,
escondendo o rosto de Maria Alice para que ela não veja nada. Entretanto,
somos abordadas por uma mulher de olhos esbugalhados e assustadores.
Ela tem olheiras fundas, usa cacarecos e um corpo extremamente
magro, embora tenha uma proeminência na barriga, que parecia aparentar
ser criança ali dentro.
— Gostei da sua bolsa, tia.
Seguro a alça da minha bolsa e tento ignorá-la, saindo da frente, mas
ela insiste me barrando.
— Eu quero ela.
Percebo que suas mãos tremem e ela repete novamente:
— Eu quero ela, tia.
— Não ouviu? Dê a bolsa para ela — um homem brame atrás de
mim.
— Eu não posso. São minhas coisas...
— Dê logo isso a ela. — Uma outra mulher arranca a bolsa das
minhas costas e entrega a outra.
— Isso é meu. Eu preciso disso. Vocês não podem me roubar dessa
forma!
A mulher começa a rir e todos os outros desencadeiam uma
gargalhada de embrulhar o estômago.
— Que engraçado, né, gente? — zomba a mulher exibindo os dentes
amarelados cheio de tártaro.
Ela começa a vasculhar minha bolsa e jogar as roupas de Maria
Alice no chão, que caem nas poças de restos de comida. Ela encontra o
envelope com o meu salário e me desespero.
— O que tem aqui dentro?
— Ei, isso é meu.
Ela sorri e o abre.
— Dinheiro. É dinheiro — ela sussurra.
— Dinheiro? Eu ouvi bem. É dinheiro? — pergunta outro homem
com a voz faminta.
— É todo meu. — Ela guarda dentro da blusa rapidamente, mas o
senhor grita como se avisasse a todos:
— Dinheiro!
De repente, uma pequena multidão se aglomera em torno daquela
mulher e recuo alguns passos, sem ação, horrorizada.
— O que estão fazendo? Devolvam meu dinheiro, imundos, ladrões!
— Os gritos daquela mulher ecoam em meus ouvidos, Maria Alice se
assusta com a zoada e começa a chorar. Um choro alto e sofrido.
— Não, pitica. Não chora agora! — tento embalá-la, mas não
adianta muito.
O inferno bem diante dos olhos me paralisa completamente,
enquanto minha irmã se desespera em meus braços. Estou completamente
em choque e rogo a Deus que nos tire dali, mas simplesmente não consigo,
pois toda a esperança parece escapar entre os meus dedos.
Como eu farei para pagar a corrida de táxi até a rodoviária se me
roubaram o único dinheiro? Como eu farei para pagar a passagem?
Estamos encurraladas nesta cidade infernal, para sempre, todos estes
pensamentos invadem brutalmente minha cabeça, que fica zonza e pesada.
As lágrimas escorrem silenciosamente pelas minhas bochechas e
fecho os meus olhos quase entrando em colapso. Quando perco o chão por
completo, uma mão parece me resgatar girando o meu corpo para trás.
Meu rosto afunda no vão do seu peito e sorvo aquele cheiro de
roupa limpa e perfume masculino, que reconheceria em qualquer lugar do
mundo, pois ele nunca se apagará da minha memória.
O mundo ao meu redor parece sumir e o volume dos gritos
diminuem gradualmente, como se existisse apenas nós neste inferno.
Parece saber que estava perdendo o chão segundos atrás, por isso,
esgueira os braços para minhas costas e abraça meu corpo com firmeza,
como se dissesse: está tudo bem. Não há o que temer.
Nunca acreditei muito em anjos da guarda e, talvez, eles de fato não
existam, mas, aqui, neste momento, ele é a definição mais próxima do que é
um anjo guarda e, simplesmente, nada mais importa, pois entendi que é o
único que pode nos salvar.
 
 

CAPÍTULO 50

Uma hora antes


 
Minha cabeça está a mil.
Por mais que eu tente, não consigo sentir ódio, pois, no fundo, para
mim, ela é apenas uma garota.
Chuto a cadeira atrás da mesa e praguejo:
— Porra!
Tenho que pôr minha cabeça no lugar e manter o controle da
situação, mas a verdade é que não consigo decifrar nem meus próprios
sentimentos.
Como ficaremos agora? Como eu explicarei isso a Maria Alice no
futuro?
Puta que pariu! Parece que o meu cérebro vai explodir.
Respiro fundo e tento me acalmar, pois não sou de agir de cabeça
quente, se eu tivesse feito isso durante minha vida toda, decerto não teria
chegado onde cheguei.
Depois de alguns minutos pensando nas variáveis desta relação
conturbada, resolvo ir atrás da minha filha.
Vou até o seu quarto e não a encontro por lá, procuro-as no quarto
dela e não há o menor sinal de que ela teve aqui recentemente, então, desço
para a área de serviço, atrás de Lúcia.
Encontro-a na cozinha e questiono:
— Onde elas estão?
— Elas quem?
— Solange e Maria Alice. Quem mais?
— Eu as deixei lá em cima.
— Elas não estão lá. — De repente, um mau pressentimento me
acomete.
— Olhou o quarto da Solange?
— Sim, não tem ninguém lá em cima.
— Estranho. Elas quase nunca descem durante a noite.
Se ela está acontecendo o que estou pensando...
— Cacete!
— O que foi, Lauro? Aconteceu alguma coisa?
— Eu acho que Solange foi embora com a Maria Alice.
— Por que ela fugiria com sua filha?
— Depois eu explico, Lúcia. Tem ideia de como elas sairiam daqui?
— Não sei. Provavelmente pelo portão menor e a pé, não tenho
certeza. Talvez, pegaria um táxi no caminho.
— Obrigado.
Apresso-me em correr e deixo Lúcia para trás.
Eu não deixarei que ela leve minha filha de mim, isso nunca
aceitarei.
Corro para a rua e caminho até a esquina, procurando-as pelos
cantos. Quando vejo o ponto de táxi perto ao lado de uma lanchonete,
lembro-me das palavras de Lúcia e vou até lá.
— Boa noite. Sabe me falar se uma garota de cabelos cacheados
passou com um bebê de colo por aqui? — pergunto ao careca sentado em
uma cadeira ao lado do carro branco.
— A garota tem um sotaque meio puxado?
— Sim, ela tem sim.
Ele olha para o lado e diz:
— Elas saíram faz um tempo no carro de um colega.
— Tem o número desse colega?
— Tenho sim.
— Então ligue para ele, preciso encontrá-las.
Ele me olha atentamente e me questiona, receoso:
— O que você é para ela, rapaz?
Respiro fundo e respondo firme:
— Sou pai da criança que ela carrega.
Minha resposta parece convencê-lo e faz o que eu peço, afastando-
se para ligar para o outro taxista enquanto espero impacientemente.
Ele volta e me informa:
— Parece que eles ficaram no prego pela Santa Efigênia e ela está
esperando outro carro para levá-las para a rodoviária.
— Sabe o lugar exato onde eles estão agora?
— Sim, senhor. Quer que o leve até lá? — pergunta, destravando o
carro ao lado.
— Sim. — Assinto, abrindo a porta traseira. — Rápido!
Tão logo, o homem entra no carro e dá partida, enquanto torço para
que elas permaneçam na rua para eu ganhar tempo.
Chegando ao local, salto para fora do carro e avisto o motorista
embaixo da suspensão, que imagino ser o homem que as trouxe.
— Onde elas estão? — pergunto imediatamente, não perdendo
tempo.
Ele me olha com confusão no olhar e explico melhor:
— A garota e a criança que você trouxe na última corrida. Onde elas
estão?
Ele parece olhar para o seu colega que vinha em meu encalço após
estacionar no acostamento e me responde:
— Não sei. Elas estavam aqui até quase agora.
Olho para os lados e questiono:
— Acha que elas podem ter pegado outro táxi.
— Talvez. Elas estavam com pressa para chegar à rodoviária.
— Cacete! — praguejo, olhando em volta. — Vamos para a
rodoviária — digo para o motorista que me trouxe e ele assente,
prontamente.
Quando estou prestes a voltar para o carro, minha visão passa pela
rua ao meu lado, onde muitos vagabundos vagam sem rumo. No entanto,
algo me chama a atenção ao olhar mais longe, não os viciados que estão
mais, mas sim uma mulher em específico.
Suas roupas.
Dificilmente me esqueceria daquelas roupas, pois a vi horas antes.
— Espera um pouco. Tenho que ir a um lugar primeiro.
— O quê? Eu não posso ficar muito tempo parado aqui, cara.
Tiro duzentos reais da carteira e pago a corrida imediatamente.
— Pode ir, então. Não precisa me devolver o troco. Fica para ti,
irmão — digo apressadamente, caminhando em passos largos em direção
àquela rua imunda.
Quando estou perto delas o suficiente, diminuo a velocidade e a
observo recuar alguns passos.
Maria Alice chora ao ouvir os gritos daqueles vândalos e sinto que
Solange está com medo, perdida. Antes que ela tropece sem se dar conta no
lixo atrás dela, encurto o espaço entre nós e puxo seu corpo para mim.
Ao notar que ela treme, enquanto minha pequena não para de chorar,
sinto seu desespero se alastrar pelo meu peito, o que dói em mim, como se
fosse minha obrigação mantê-las a salvo.
Tempo atrás, lembro-me como era fácil odiar a irmã de Maria Alice,
pois naquela época, eu sabia que ela é a mesma mulher por quem me
apaixonei.
CAPÍTULO 51

Game over.
É assim que me sinto ao voltar para sua casa em sua companhia,
como se eu não pudesse fazer mais nada a respeito.
Eu estava sem dinheiro e sem forças para fugir, então, apenas me
deixei ser conduzida pelos seus passos.
— Eu posso dormir com Maria Alice esta noite — murmura Lúcia
para ele, no canto da sala.
— Não se preocupe, eu mesmo estarei com ela durante toda a noite.
— Tem certeza? Amanhã você pode acordar cansado.
— Não se preocupe comigo, Lúcia.
— Tudo bem.
— Enquanto isso, suba com ela — Lauro transfere minha irmã para
o colo da governanta. — Eu subirei daqui alguns minutos, preciso conversar
com a Solange.
Lúcia faz o que o seu chefe pede sem pestanejar, deixando-nos a sós
na sala.
Ele se vira para mim com as mãos enfiadas nos bolsos e rompe o
silêncio entre nós.
— O que você fez hoje foi perigoso demais — ele fala com cuidado
e firmeza. — Você colocou a sua vida e a Maria Alice com essa atitude
impensada.
— Tenho consciência disso, mas eu tive de fazer isso — tento
colocar força na minha voz, mas é inútil, ela sai tão fraca que mal posso
escutá-la.
— Pra quê? Para levar minha filha para o nordeste?
— Ela não é sua filha.
— Mas é claro é! — grita, eu estremeço. — O que você achou? Que
todo esse tempo eu estava brincando de casinha? Acha que pode brincar
assim com a vida das pessoas?
Meu coração acelera a um ritmo estratosférico e minha respiração
pesa.
— Eu não tive a intenção — digo baixinho, sentindo falta de ar.
— Nunca mais faça isso. Se tentar tirar minha filha da minha casa
novamente... — de repente, tudo começa a girar e uma sensação de morte
invade o meu peito. — Solange?
Minha cabeça pende para o lado e tento voltar ao normal, mas
simplesmente perco a força nas pernas.
— Solange!
A última coisa que me lembro são suas mãos me amparando, antes
que eu caia de joelho no chão e o seu rosto tensionando. A partir daí, tudo
se apagou.
 

No dia seguinte
 
Acordo com o corpo dolorido e a garganta ressecada. Sento-me na
cama ainda sonolenta e tento processar o que aconteceu, mas minha cabeça
é acertada por uma pontada forte de dor.
Olho para o lado e encontro uma bandeja com analgésico e água.
Sem pensar muito, coloco o comprimido na boca e bebo um gole espesso de
água.
— Pensei que não acordaria nunca. — Sigo a voz masculina e o
encontro encostado no batente com os braços cruzados contra o peitoral
bem esculpido.
Pelas roupas formais, ele está indo trabalhar ou até mesmo já voltou
do escritório, não sei dizer ao certo, pois não tenho a mínima noção de
tempo no momento.
— Maria Alice — murmuro.
— Ela está brincando com Lúcia no jardim.
— Por quantas horas eu dormi? — pergunto olhando para o meu
antigo quarto naquela casa.
— Umas doze horas. Você desmaiou ontem — diz, aproximando-se
da cama. — Um médico veio e a examinou, mas aparentemente não é nada
grave. Ele sugeriu que fosse um esgotamento emocional ou algo do tipo.
— Eu preciso ir embora.
— Para onde?
— Para qualquer lugar que não seja nesta casa, não posso continuar
depois de tudo que aconteceu. — Levanto-me de uma vez e minhas pernas
falham no mesmo instante, caindo de bunda na cama.
— Para de ser teimosa, ok? Você está fraca e sem condições para ir
a lugar algum?
— Por que ainda me mantém aqui? Por que não me expulsou
ontem? — Ergo o olhar e o encaro. — Eu me lembro como você falou de
mim naquele dia no jardim, quando não sabia quem eu era. Havia ódio e
desprezo na sua voz. Você me despreza, Lauro. Então, por que ainda me
mantém aqui?
— Porque naquela época eu não sabia que a mulher que eu
desprezava era, ironicamente, a mesma por quem viria a me apaixonar.
Ele me rouba todas as palavras da boca, pois simplesmente as
esperava depois de tudo.
— Talvez eu esteja pagando todos os meus pecados ao me apaixonar
justo pela irmã biológica da minha filha. E, caralho, isso é uma merda!
— Logo esquecerá isso — digo, olhando para minhas próprias
mãos.
— Sente o mesmo por mim? — ele pergunta, firmemente.
— Que diferença isso faria? — questiono, levantando o rosto.
— Responda a minha pergunta — exige.
— Sim — confesso, frustrada. — Eu não podia falar isso para você,
pois não queria me complicar ainda mais, mas...
— Mas?
— Eu adorava estar com você. Quando estávamos juntos, eu me
sentia de alguma forma livre. Livre de mim mesma, de todas as pressões e,
principalmente, me sentia viva. — Umedeço meus lábios e coloco para
fora: — Eu me apaixonei por você, Lauro, da forma mais brutal. Mas não
podia falar para você, pois complicaria ainda mais nossa situação, entende?
E também não espero que acredite em mim, pois não pareço ser a pessoa
mais confiável para você agora.
Suas mandíbulas estão trincadas e seus olhos encobertos por uma
fina camada de água.
Ele sem dúvidas agora não parece nenhum pouco com o homem
rude e soberbo que conheci, ao invés disso, uma pessoa sensível, que
compartilha do mesmo sentimento que o meu.
Ele esconde o rosto olhando para o lado e diz:
— Não saia mais desta casa, por favor. Tenho que passar no
escritório agora, mas à noite estou de volta para terminarmos esta conversa.
— Tá bem! — Assinto, sem jeito.
— Se precisar de algo, remédios, peça a Lúcia.
— Obrigada.
Ele escorrega as mãos para os bolsos e dá um passo para trás.
— Então, vou indo.
Ele me olha pela última vez, prendo a respiração e sinto minha
espinha gelar, então, só depois quando ele some pelo corredor, volto a
respirar.
CAPÍTULO 52

 
Tive de ir ao escritório apenas para comparecer a uma reunião
importante com exportadores ao final da tarde, no entanto, apenas meu
corpo estava presente entre aqueles senhores, pois minha mente e alma
ficaram em casa.
Saindo da reunião, volto para casa e, para minha alegria, sou
recepcionado pela minha filha que brinca com Lúcia no chão da sala.
Sento-me no sofá e vem engatinhando até mim, com aqueles dois
dentinhos sapecas. Puxo e a sento em minha frente, dou uma fungada em
sua cabecinha, sorvendo de um aroma gostoso de bebê.
— Como foi a tarde, Lúcia?
— Tranquila, patrão. Nós brincamos a tarde inteira — responde
Lúcia, espreguiçando-se e gemendo. — Acho que estou velha demais para
ser babá.
— Obrigada por ficar com Maria Alice, Lúcia, mesmo não sendo
esta a sua função. — Maria Alice toca meu rosto como se pedisse minha
atenção. — Sim, princesa?
— Dêdê!
— Dêdê?
— Ah! — ela grita e baba minha testa, levando Lúcia a cair na
risada.
— Ela gosta muito do senhor, patrão.
— Você acha?
— Sim, há um abismo de diferença quando você não está em casa e
quando está.
Sorrio, orgulhoso.
— Ela fica também muito feliz quando está com a Solange.
— A propósito, onde ela está?
— No quarto, ainda.
— Ela comeu alguma coisa?
— Claudia levou uma sopa para ele e, desde então, as duas ainda
não saíram do quarto. Quer que eu a chame?
— Não, Lúcia. Obrigado.
— Aliás, o que houve ontem entre vocês? Eu não entendi nada e
também não quis perguntar na hora, pois o senhor parecia estar com os
nervos à flor da pele.
— Podemos não falar sobre o assunto, Lúcia?
— Claro. Só perguntei, pois havia dito que conversaríamos depois.
— Tudo bem.
Não quero expor nada a ninguém antes de resolvermos nossas
pendências.
— Olha, parece que a Claudia está descendo?
Olho para a escada ao lado, em que senhora desce e para ao meu
lado.
— Boa noite, patrão! — ela me cumprimenta sem me olhar nos
olhos.
— Boa noite, Claudia — respondo mais sério do que o normal.
— O senhor poderia me dar alguns minutos do seu tempo? — Sua
voz está receosa.
Alterno o olhar para Lúcia, que se dispõe:
— Eu fico com a Maria Alice. Vem para a vovó, princesinha —
Lúcia pega Maria Alice no colo e me levanto.
— Me acompanhe! — digo para Claudia, que me segue para o
escritório.
Sento-me e peço para que ela faça o mesmo.
— Então, o que tem para me falar?
Claudia hesita alguns segundos, ainda não conseguindo me olhar
dentro dos olhos, no entanto, ela parece tomar coragem e o fazer.
— A culpa é toda minha.
Franzo o cenho, não entendendo onde aquela senhora quer chegar.
— Foi eu que tive a ideia, tanto de doar Maria Alice, tanto como
trazer Solange para esta casa. Se tem alguém que o senhor tem que
responsabilizar, este alguém sou eu. A coitada da Solange sempre quis
proteger a irmã e eu, pensando que estava ajudando, bolei um plano para
que Maria Alice não caísse na desgraça do mundo.
Estudo-a em silêncio por alguns segundos.
— Confesso que quando ela citou o seu nome, fiquei surpreso, pois
não esperava isso de você, porque sempre me pareceu uma senhora de
caráter.
Ela limpa o rosto, envergonhada.
— Não costumo errar, senhor. Mas quem nunca errou?
— Há limites para se errar?
— Não tiro a sua razão. Na verdade, vim aqui pedir demissão,
embora precise muito deste emprego. E também vim lhe fazer um pedido.
— Pedido?
— Por favor, deixe que a menina leve a irmã. Por favor.
— Não posso lhe conceder este pedido, senhora. Solange é sua irmã,
mas eu sou o seu pai.
Ela me encara com um olhar torturado.
— Resolverei com Solange tudo o que tem para ser resolvido da
forma mais justa e sensata, não se preocupe quanto a isso. Se é tudo o que
tem para falar comigo, acho que estamos conversados.
— Isto é tudo. — Ela assente, abaixando a cabeça. — Vou indo,
então.
Assisto àquela senhora se afastar em passos sofridos, então balanço
a cabeça e me pergunto por que a porra da minha consciência me perturba
tanto ultimamente, sendo tomado pelo sentimento de compaixão.
— Espere, Claudia!
Ela vira e me olha, confusa:
— Se precisa tanto desse emprego, não precisa se demitir. Pense
com mais calma e apenas depois tome uma decisão.
Seu semblante parece ficar menos martirizado e ela agradece:
— Obrigada, patrão.
— E outra coisa, se puder subir e avisar a Solange que quero
conversar com ela, ficarei agradeço.
— Sim, senhor. — Ela aquiesce timidamente e sai da minha frente.
Horas depois
 
Retorno à sala e brinco mais um pouco com Maria Alice e os
brinquedos espalhados pelo chão. Lúcia me auxilia a dar o seu jantar, uma
papinha quente de legumes, o que faço com máxima atenção, só para o caso
de ter que fazer amanhã sozinho.
Enquanto isso, espero por Solange, mas ela não aparece. Opto por
respeitar o seu espaço e coloco Maria Alice para dormir em seu quarto.
Não demora muito para ela pegar no sono e a deito, admirando seu
rostinho por alguns minutos no cerco do seu berço.
Caralho! Como pode não termos o mesmo sangue e mesmo assim
sentir que ela é tão minha?
Faço um carinho em seu pezinho e ela se remexe, aprumando-se no
colchão.
Espero até me certificar que ela entrou em sono profundo e depois
me recolho para o meu quarto, desabotoando as mangas da camisa e
caminhando para o banheiro.
Olho-me no espelho e vejo o cansaço refletido em meu rosto. O dia
foi cheio para mim, mentalmente, no entanto, ainda não consigo relaxar por
completo.
Livro-me de minhas roupas e ligo a banheira de hidromassagem,
pretendo ficar longas horas na água.
No entanto, as batidas à porta do quarto me fazem virar o rosto.
Será que Lúcia esqueceu de me dizer alguma coisa?
Pego a toalha de um dos armários do banheiro, enrolo nos quadris e
saio para o quarto, abrindo a porta.
Para minha surpresa, Solange está parada no corredor, abraçando o
próprio corpo.
Sua pele está lânguida e seu corpo parece fraco, como se suas pernas
estivessem fracas demais para sustentar o próprio corpo.
— Claudia me disse antes de sair que o senhor queria falar comigo
— ela diz, meio sem jeito.
— Pensei que não queria fazer isso ainda hoje.
— É que eu passei o dia sonolenta... vejo que agora não é um bom
momento para o senhor? — comenta, olhando rapidamente para a toalha e
desviando o olhar.
— Não, tudo bem.
Ficamos em silêncio, nos olhando, apenas escutando as batidas em
meu peito ganharem uma força maior.
— Então? — ela pergunta, hesitante.
Passo a língua entre os lábios e tento ser o mais claro possível e fiel
a mim mesmo.
— Eu pensei hoje sobre nossa situação, a minha situação com Maria
Alice e cheguei à conclusão de que não abdicarei de nada.
— Como assim? — ela pergunta baixinho.
— Isso que acabou de ouvir. Não abdicarei nem de Maria Alice... —
desço meu olhar para sua boca bem na hora que ela fisga o lábio inferior e
prossigo —, nem de você.
Ela arregala levemente os olhos e, neste momento, caminha devagar
suprimindo o espaço entre nós. Seguro o seu rosto com minhas duas mãos e
recebo seu olhar inseguro, porém, ela ainda continua linda como sempre,
com os seus cabelos crespos emoldurando aquele rosto perfeito.
Enterro minha boca em seus lábios quentes e naquele momento
tenho a certeza de que quero arriscar. Sei que me arrependerei se não
arriscar e, para falar a verdade, nunca tive problemas quanto a arriscar.
Eu sempre lidei muito bem com os riscos.
Passei quase uma vida inteira sem conhecer alguém que de fato
acelerasse minha pulsação e, quando a conheço, descubro que ela cometeu
um erro imperdoável no passado que fodeu com sua vida. Mas, porra, não
sou perfeito. Eu também erro para caralho, então por que não fazer um
esforço para entender suas razões?
Ela ainda continua sendo ela apesar da sua falha e eu não sou nem
um moleque para não perceber isso.
— Tem certeza de que quer isso? — Ela me afasta um pouco para
me perguntar.
— Nunca tive tanta certeza de que querer assumir um risco,
Solange. — Beijo sua boca com delicadeza e concluo: — talvez você seja o
grande risco da minha vida que vale a pena correr.
Ela me abre um sorriso fraco, esperançoso e, ao mesmo tempo,
aliviado.
— Eu não vou mais mentir para você. Prometo — sussurra,
enquanto sou atraído pela sua boca, consumindo-a em beijo calmo, mas
repleto de desejo.
Resvalo minha mão para o seu corpo e ela geme contra minha boca,
sentindo meu pau inchado roçar contra sua barriga. Seu corpo parece fraco
e tenho o cuidado de apertá-la tanto.
— Quer tomar banho comigo? — faço a proposta entre beijos.
Ela hesita um pouco, porém, abre um meio-sorriso contra minha
boca e balança a cabeça em concordância.
Sorrio em resposta e passo minha mão pela sua lombar, carregando
em meu colo.
— Seu louco! — Ela sorri e eu volto a beijá-la, conduzindo-nos para
o banheiro e a coloco de pé ao lado da banheira, que já está cheia d’água.
Desligo a torneira e ordeno:
— Tire a sua roupa.
Ela faz o que mando, enquanto me livro da toalha. Entramos juntos
na hidromassagem, sento-me primeiro e ela se senta no meu colo de frente
para mim. Minhas mãos passeiam pela cintura fina e por um longo tempo
apenas contemplo o seu corpo perfeito.
Enfio uma mão naqueles cachos perfeitos e aperto sua bunda com a
outra, ao passo que ela joga a cabeça para o lado e geme, com o corpo mole.
Eu já estou completamente duro, pronto e ansioso para penetrá-la,
mas sinto que devo fazer isso com cuidado nesta noite, por isso inverto
nossas posições, de forma para que ela fique com as costas apoiadas na
parede da banheira.
Desço meus dedos para seus seios e chupo o bico cor de café,
arrancando-lhe um gemido sôfrego. Seus seios ainda ficam empinados para
mim, enquanto seu peito sobe e desce.
Deslizo minha mão para sua boceta quente e estimulo o seu pedaço
de carne, que está durinho. Torno a capturar sua boca ao passo que a
estimulo embaixo d’água.
— Por favor, Lauro. Preciso de dentro de mim — ela implora,
contorcendo-se, manhosa, fincando as pontas dos dedos em cada lado meu.
Meu pau lateja com seu pedido e tão logo me posiciono em sua
entrada morna, penetrando seu corpo devagar, sentindo suas paredes
quentes me receberem.
Engulo seu gemido com a boca, entrando e saindo da sua boceta em
um ritmo controlado.
— Como eu estava com fome dessa boceta — murmuro, enquanto
ela desce a boca para minha garganta e depois lambe todo o meu peitoral,
segurando-se em meus ombros para não cair.
Fodo sua boceta sem pressa e aprecio cada momento como se fosse
uma espécie de dança contemporânea dramática. Nossos gemidos se
misturam e minha ânsia aumenta a cada investida. Passo a socar sua boceta
até seus gemidos aumentarem de volume.
— Goze para mim — sussurro. — Goze, Sol!
Meus quadris se movem em um ritmo frenético, até que gememos
alto e atingimos o clímax juntos.
Caio ao seu lado, no encosto da banheira, e trago o seu corpo para
mim, aprumando-o sobre o meu peito.
Solange havia se tornado o meu vício, e ali, com ela em meus braços
enquanto nossas respirações cansadas se misturam, não me restavam
dúvidas de que queria isso bom e longo um tempo.
CAPÍTULO 53

Dias depois
Encaro minha antiga mala e várias lembranças invadem minha
cabeça.
Claudia trouxe para mim todos os pertences que deixei em seu
barraco meses atrás e isso me deixa muito feliz e, ao mesmo tempo, aliviada
em saber que não vou ter mais que mentir pelos próximos dezoito anos.
Embora mentir fosse minha única saída, nunca fiquei confortável
em relação a isso.
Mexo nos bolsos da mala e encontro o número de dona Edite
gravado em um papel rasgado.
— Meu Deus! Elas devem ter ficado doidinhas sem notícia — penso
alto.
Desde que cheguei a São Paulo, estive tão ocupada em sobreviver
que não tive tempo de pensar em ligar para os meus vizinhos da Paraíba, e
talvez tenha sido melhor assim. Não queria preocupá-los e muito menos que
tirassem do seu dinheiro suado para me ajudar.
Pego meu celular no bolso, não penso duas vezes e digito aquele
número.
— Alô?
Aquela vozinha fina me inunda de um sentimento bom de nostalgia.
— Dona Edite, sou eu, mulher. Solange?
— Solange? Mulher, onde tu está?
— Estou em São Paulo — respondo com os olhos marejados e um
sorriso no rosto.
— Tu tá bem?
— Estou sim. Maria Alice está bem. E como está o pessoal aí,
mulher?
— Pelo amor de Deus. Tava mundo aqui preocupado com vocês,
mulher.
— Nós estamos bem, dona Edite. — Sorrio entre lágrimas. —
Agora estamos muito bem.
Não sabia que eu precisava dessa ligação até fazê-la. Falar com
dona Edite me dá uma injeção de alegria, pois, no final, sei que tudo deu
certo. Não da forma que eu imaginava, porém, muito melhor. Lauro e eu
estamos no início de um relacionamento tranquilo, as coisas caminham bem
e não sei mais nem como agradecer por tantas coisas boas. Parece até um
sonho que fico até com medo de acordar.
CAPÍTULO 54

Dias depois
— Não posso acreditar que esteja em relacionamento sério com essa
garota, Lauro! Não depois de tudo o que me contou — minha mãe reprova
em meu escritório domiciliar.
— Este é um problema que só cabe a mim, mãe. Mas acho que a
situação pede uma explicação.
— Claro, você sempre me pede conselhos, mas nunca seguiu um.
Não me surpreendo que leve em conta minha opinião sobre esse assunto.
— Escute, mãe, eu nunca me interessei por nenhuma outra mulher
da mesma forma que me interessei por Solange.
— Por quê? O que tem demais nesta caipira, meu filho?
— Algo que a senhora nunca entenderia.
— Por que eu não entenderia? Não entendi. É por que não sou
referência de relacionamento para você, é isso? Por causa do meu
casamento fracassado com Afonso?
— Não quero entrar neste assunto agora, mãe. Por favor, não me
encha a paciência.
— Ok. Só vim trazer pessoalmente meu convite de aniversário. —
Ela me entrega o envelope bordado e eu o abro. — E, por favor, não leve
essa caipira a festa.
— Então não conte com minha presença — respondo
tranquilamente.
— O quê? — ela exclama, escandalizada.
— Se minha mulher não pode ir a uma festa, também não
comparecerei. Lamento!
— Você já viu a forma como essa mulher se expressa, Lauro? Por
Deus! Não posso apresentar uma mulher dessas como minha nora, não para
minhas amigas.
— Por isso que não vou. Prefiro passar a noite escutando o sotaque
de Solange do que as conversas fúteis de dondocas que nunca trabalharam.
— Você é o meu filho, Lauro...
— Mãe, quer um conselho? Se quiser que eu vá a essa festa, comece
respeitando quem está comigo. Não vou à festa alguma sem Solange e
Maria Alice.
— Solange já conheceu o seu pai?
— Por incrível que pareça já. Mas em outra situação, ainda não
estávamos juntos para valer.
— Foi naquela reunião em que o infeliz do seu pai dividiu a
herança?
— Sim. — Assinto, sem me aprofundar muito no assunto. Sei que
ainda dói falar sobre meu pai com ela e não quero vê-la ver triste ou
estressada agora.
— Sebastião havia me contado sobre essa reunião — ela comenta.
Ela parece ficar pensativa e depois bufa, rendendo-se:
— Ok. Mas vou ter que dar um jeito na sua namorada antes da
minha festa.
— Jeito? — Levanto as sobrancelhas e me pergunto que capricho
está se passando agora em sua cabeça.
CAPÍTULO 55

No dia seguinte
 
Sentada na cadeira do jardim encaro dona Vera, não entendendo
nada do que ela quer comigo.
— Bem, Solange. Hoje eu vim, como posso dizer... digamos que eu
darei uma aula de etiqueta para você.
Pisco duas vezes e me seguro para não sorrir.
— Mulher, mas pra que isso?
— Digamos que você como namorada de um grande empresário
deve se portar como uma dama em ocasiões especiais.
— E eu já não sou uma dama? — brinco.
— É quase.
— Mulher, assim tu me ofende — digo novamente em tom de
brincadeira, tentando arrancar um sorriso da bicha, mas não obtenho
sucesso.
— Começando por aí, sem chamar as mulheres de mulher. Nós duas
sabemos que somos do sexo feminino, não precisamos ressaltar essa
característica, pois acaba se tornando redundante.
Mas num é que ela tem razão?
— Tá bem, dona Vera.
— Dona também não, pois não sou tão velha assim para me chamar
de dona.
— E como é que tu quer te chame, mulher? — pergunto, batendo as
mãos nas coxas.
— Vera, apenas Vera. — Ela me encara como se eu fosse o próprio
patinho feio largado na lagoa e pensa alto, suspirosa: — Pelo visto, nós
duas teremos um longo caminho a percorrer até o meu aniversário.
 

Dias depois
— Até que você está se saindo bem! — Vera me elogia ao me ver
caminhar com três livros na cabeça no jardim da mansão.
— Jura?
— Contando que você não me chame mais de mulher e deu uma
amenizada no seu sotaque, acho sua evolução promissora.
Ouvir finalmente a Vera pela primeira vez me elogiar desde que nos
conhecemos me deixa feliz, pois ela é a mãe dele e, no fundo, eu quero que
ela goste de mim.
Olho para minha pequena em pé, apoiada nas pernas de Vera, que,
embora pareça durona como o filho, tem se mostrado uma vovó devota com
a neta.
— Vamos, deixe esses livros agora e venha tomar café comigo!
Faço o que me pede e me sento à sua frente, pegando Maria Alice
no colo.
— Soube que já conheceu o meu ex–marido.
— Ah, o seu Afonso! — exclamo, ficando desconfortável, pois não
sei exatamente como é a relação deles.
Pego a garrafa de café ao lado e despejo em minha xícara, quando
sou surpreendida:
— De quem você gosta mais, de mim ou ele?
Volto a olhar e fico entre a cruz e a espada. Aquele senhor
demonstrou que não é boa peça naquele dia, mas Vera também não é lá uma
das pessoas mais simpáticas que já conheci, porém, entre ela e ele, eu
escolho ela.
Mas como eu vou dizer isso sem parecer uma babona?
— Em um primeiro momento, eu gostei do seu Afonso... — começo
me lembrando daquele dia —, pensei que fosse uma pessoa simpática e boa,
mas ao final da noite não saí com a mesma impressão.
— Sei como é que é. Ele sempre se faz de bonzinho no começo, mas
é só para disfarçar o crápula que é.
— Minha mãe costumava dizer para ter cuidado com certos tipos de
gente, pois primeiro se cuida e alimenta as galinhas, depois torcem seu
pescoço.
Vera gargalha e, pela primeira vez, vejo-a assim, sorrindo
abertamente.
Ele tampa os lábios com o guardanapo, recompondo-se elegante.
— Ai, ai! Essa foi boa. Mas preciso dizer que meus filhos não são
assim, principalmente o Lauro, apesar de aparentar ser um homem difícil.
— Eu conheço o seu filho. Ele é justamente o oposto disso. Sei que
ele pode parecer um homem egoísta, a princípio, mas simplesmente é capaz
de dar a vida por um filho. Ele também aparenta ser homem frio, mas sabe
muito mais sobre as estrelas do que qualquer um possa imaginar. E quando
se trata de justiça, ele não é nenhum algoz que castiga os outros sem
analisar todos os lados, ele é capaz de ver além, pois é um homem justo e
bom, embora às vezes acorde com um mau humor infernal — sorrio.
— Que bom que pensa assim — comenta Vera, com os olhos cheios
d’água. — Sabe, meses atrás, eu estava preocupada, pois ele queria ser pai
sem antes encontrar uma parceira e comecei a desconfiar que minha relação
com Afonso tivesse afetado sua visão sobre a relação e até mesmo o amor
entre homem e mulher. Mas, agora, ao ver você descrevendo tão bem o meu
filho, fico feliz em ver que eu estava enganada.
Inclino meu corpo para o lado com Maria Alice no colo e seguro sua
mão com ternura, enquanto ela parece fazer um esforço para não chorar.
CAPÍTULO 56

Semanas depois
 
O aniversário da minha mãe sempre foi marcado por grandes
comemorações e este ano não será diferente. E, finalmente, o seu grande dia
chegou.
Para falar a verdade, nunca esperei com ansiedade por este evento,
embora seja um dos poucos motivos para reunir todos os meus irmãos em
um único lugar.
Mas, neste ano, é especialmente diferente.
Solange treinou tantas coisas nas últimas semanas que me levam a
torcer para que ela surpreenda a todos, apesar de achar que ela não precisa
mudar para surpreender alguém.
No entanto, ela e minha mãe treinaram tanto, que sinto que até
minha namorada agora quer se sair bem, pois se tornou uma questão de
honra, como ela mesmo  mencionou.
— Está deslumbrante, meu amor! — Beijo seus lábios ao vê-la em
um vestido preto que se ajusta perfeitamente ao seu corpo.
— Você também não fica para trás neste smoking, hein, gatinho. —
Pisca e olha de cima a baixo com uma expressão sapeca armada no rosto
que me arrastaria até o inferno se ela quisesse. — Promete fazer strip-tease
para mim quando chegarmos e formos para cama?
— Prometo tirar a minha roupa e depois tiro sua calcinha com a
boca — sussurro contra os seus lábios.
— Mal posso esperar, tigrão. — Ela arqueia uma sobrancelha e me
controlo para não tirar sua roupa e encerramos a noite ali mesmo.
Adoro como Solange pode ser incrivelmente fofa e safada ao
mesmo tempo. Talvez isso tenha me conquistado e me feito um homem
rendido, pois seu jeito singular me enlaçou de uma forma irreversível. Só há
uma dessa no mundo e, agora, ela me pertence, e me esforçarei para
merecê-la.
— A princesinha está descendo! — Lúcia anuncia ao descer as
escadas com Maria Alice no colo. Ela está muito fofa com um vestido de
poá e um laço gigante em cima da cabecinha.
Chegando ao piso, Lúcia a coloca no chão e atravessa a sala
corredor com um sorriso encantador. Solange se abaixa e abre os braços
para recebê-la.
— Meu Deus, que princesa mais cheirosa! — Solange exclama,
fungando no pescocinho de Maria Alice.
Aproximo-me das duas e beijo a mãozinha gordinha de Maria Alice,
que gargalha alto.
— E essa felicidade, hein? Meu Deus, que delícia! Está animada
para o aniversário da vovó, é? — Sol e eu sorrimos, sendo contagiados pela
energia daquela mocinha.
CAPÍTULO 57

 
Nunca imaginei que uma festa de aniversário pudesse ser tão...
grandiosa e luxuosa.
Com Maria Alice no colo de Lauro, caminho ao lado deles pelo
salão, onde muitas mesas estão espalhadas ao redor de um palco que reúne
alguns músicos que tocam MPB.
Olho em volta e noto que a maioria daquela gente são mulheres
mais velhas acompanhadas de seus maridos e filhos, que aparentam serem
da alta sociedade — se é que existe isso mesmo hoje em dia.
Algumas pessoas cumprimentavam Lauro como se o conhecesse
desde criança e fazemos o trajeto para a mesa ao lado do palco.
— Meu irmão! — Um homem de terno azul-escuro extremamente
elegante se levanta para cumprimentar Lauro.
— Júlio.
Os dois se abraçam e noto que ele é o homem por trás da câmera
naquela noite na casa de seu pai.
— Chegou quando?
— Hoje mesmo. Vim somente para a festa, afinal, não iria perder a
oportunidade de comparecer a mais uma festa da nossa mãe. Quem é a
mocinha? — ele pergunta olhando encantado para Maria Alice.
— É minha filha.
— Sério? — Ele levanta as sobrancelhas em surpresa. — Como foi
isso?
— Acho que temos que separar um tempo para atualizá-lo sobre
minha vida.
Os dois sorriem e percebo o olhar de Júlio alternar para mim.
— E quem é a moça?
— Ah, esta é minha namorada, Solange.
Ele me cumprimenta com um beijo no rosto.
— Prazer, Solange. É uma moça muito bela.
— Obrigada!
Ele volta a abraçar Lauro e exclama com felicidade:
— Quem diria, hein? Você namorando. Acho que as coisas no Brasil
estão mudando.
— Quando volta?
— Talvez, no próximo ano. Pretendo abrir um novo restaurante no
Rio de Janeiro. Não será um negócio tão grande feito o seu, mas certamente
atrairá bons clientes.
— Muito bem, meu caro. É sempre bom ampliar os horizontes. Se
precisar de qualquer, só me ligar.
— Obrigado, irmão.
— Então, somos apenas nós?
— Por enquanto, sim. Sebastião já chegou também e está dando
uma volta. A última vez que o vi, estava com a filha do senador, a
Marcinha.
Ele olha com malícia para Lauro e sorri.
— Ele nunca muda.
— Parece que não. — Lauro parece mais sério que o seu irmão
Júlio.
— Olha, parece que a aniversariante chegou — avisa Júlio, quando
se dá conta da chegada de Vera, que está acompanhado do filho mais velho,
Conrado, e seus netos. — E ela veio com a tropa.
Vera cumprimenta mesa a mesa até chegar à nossa. As crianças
fazem um círculo ao redor de Maria Alice e disputam sua atenção. Sorrio de
suas vestimentas, pois eles pareciam todos minis duques e duquesas com
aquelas roupas de gala.
— Vamos nos sentar, crianças! Já lhe foi servido algo? — Vera
pergunta, radiante.
— Acabamos de chegar, mãe — informa Lauro, puxando a cadeira
para que eu me sente e tão logo ocupa o espaço ao meu lado, sentando
Maria Alice em sua perna.
— Ah, que maravilha! — Ela chama o garçom e pede algo em seu
ouvido.
Tão logo, tartare de carne é servido para todos à mesa e quando olho
para os vários talheres enfileirados ao lado do prato, sua voz ecoa em minha
cabeça dizendo: de fora para dentro.
Pego o garfo à minha esquerda e percebo que recebo um olhar
orgulhoso da minha mentora do outro lado da mesa.
— Boa noite, família!
A voz masculina que reverbera atrás de mim me soa familiar,
mesmo assim, não a reconheço de imediato. Seguindo os olhares de todos à
minha frente, que parecem perplexos, viro o rosto em busca do dono
daquela voz e dou de cara com aquele senhor de cabelos alvos e olhar
confiante.
— Não vão me convidar para sentar?
Sebastião chega logo em seguida, olhando para o seu pai parado
perto de nossa mesa. Ele está tão surpreso quanto os seus irmãos e mãe, e
tão logo, se defende:
— Sei que ninguém perguntou, mas vou logo dizendo, eu não tenho
nada a ver com isso.
CAPÍTULO 58

A festa mal começou e a presença repentina daquele velho azeda


qualquer clima existente.
É palpável a revolta no olhar da minha mãe em rever meu pai, no
entanto, em nenhum momento ela perde a compostura.
— O que veio fazer aqui, Afonso?
Ele retira o guardanapo do bolso do paletó e a sacode no ar.
— Bandeira branca. — Ele sorri guardando o tecido no bolso da
calça. — Hoje eu acordei lembrando dos seus aniversários, Vera, e fiquei
com saudade de comemorar este dia.
— Raquel sabe que está aqui?
— Não sabe e nem saberá. Ninguém aqui contará, não é? — Ele
gargalha e só não soco a cara do infeliz, pois ainda é o meu pai. — Aliás, já
estão servidos o whisky?
— Acho que tem uma mesa vaga do outro lado do salão, pai. Por
que não ficamos lá e bebemos alguns copos de whisky?
Entendendo o que deve ser feito, Júlio se levanta e conduz nosso pai
para o outro lado do salão. Tomara que ele fique por lá mesmo.
— Tudo bem, mamãe? — Conrado a questiona.
— Está tudo bem sim, querido! — Ela força um sorriso, não dando
o braço a torcer, pois ela é forte demais para isso.
Diversas vezes a presenciei sofrendo com as traições do meu pai e
em nenhuma vez, a vi perdendo o controle. Sempre aguentou tudo calada e
de cabeça erguida, e talvez isso tenha lhe feito mal com o tempo.
— Lauro, dê Maria Alice aqui. Vou apresentá-la para todos! —
Minha mãe se levanta radiante, fingindo que nada aconteceu, então, entrego
minha filha para ela e observo as duas se afastarem pelos corredores de
mesa.
Olho para Solange, ao meu lado, e noto que ela faz uma careta ao
abandonar o prato.
— Está se sentindo bem, Sol?
— Sim, amor. Eu só estou um pouco enjoada.
— Quer ir ao banheiro ou tomar uma água?
— Quero sim ir ao banheiro. Me acompanha? É que eu não faço a
mínima ideia como andar por esse local.
— Claro que sim.
Nós nos levantamos e atravessamos o salão de mãos dadas, tendo o
desprazer de passar perto da mesa daquele homem.
— Espero você aqui, bebê.
— Tá bem, amor.
Selamos um beijo rápido e logo após ela caminha para dentro do
banheiro feminino.
— Parece que você seguiu mesmo em frente. — A voz feminina
atrás de mim chama minha atenção.
— Bianca.
A mulher de vestido vermelho está parada a alguns metros,
encarando-me com um olhar magoado.
— Boa noite, Lauro. Confesso que estou surpresa. Logo ela. A babá
da sua filha...
— Olha, eu e Solange estamos em um relacionamento faz um
tempo...
— Então estou atrasada no assunto? — ela sorri. — Talvez tenha
terminado comigo, pois já estava de olho nela...
— Não faz sentido conversarmos sobre isso depois de todo esse
tempo.
— Tudo bem, não vim até aqui reivindicar o que tivemos, afinal, foi
apenas sexo. Espero que essa garota saiba lidar bem com os próprios
sentimentos, pois em se tratando de você, nenhuma mulher deve esperar
nada.
Suspiro, deslizando as mãos para os bolsos.
— Mas pensando bem, para transar com o patrão, deve ser uma
vadia. Deve...
— Chega, Bianca! Não ouse falar da minha namorada dessa forma.
— Namorada? — Ela arregala os olhos. — Todo aquele tempo em
que ficamos juntos, você nunca sequer cogitou em me pedir em namoro...
— O que tenho com Solange é diferente. Não sei explicar e também
não quero que pense que o problema é com você. Muito pelo contrário,
você é uma mulher muito bonita, pode encontrar um homem que ame...
Antes que eu termine, meu rosto esquenta com seu tapa.
— Não me diga que posso encontrar um homem que me ame, sei
muito bem disso e não preciso que um homem feito você me lembre.
— Perdão.
Abaixo a cabeça e massageio o meu rosto.
— Espero nunca mais te ver, Lauro. Nunca mais.
Ela sai da minha frente, amargurada, fincando os saltos pelo chão de
porcelanato.
Assisto-a se afastar e, ao mesmo tempo, noto meu pai parado no
canto, ali perto.
— O que tem com essa garota, Lauro? – ele me pergunta.
— Quem? Bianca? Nada.
— Não essa mulher. Estou falando da garota, a Solange.
Estranho o seu interesse e ele rosna:
— Me responda!
— Saia daqui, velho.
— Responda-me, moleque! Qual a relação entre você e essa moça?
Pela forma com que ele me inquire, percebo que há algo o
incomoda.
— Por que está tão interessado?
— Me responda! — brada entredentes.
Estudo sua expressão e digo:
— Solange é a minha namorada. Por que de repente o interesse?
— Você não pode namorar essa garota, Lauro.
Sorrio com sarcasmo.
— Veio até aqui para dizer com quem não posso me relacionar...
— Ela é a sua irmã! — revela com a face tremendo e petrifico com
suas palavras.
Tento processar aquela informação no meu cérebro, mas
simplesmente não consigo, pois isso é inconcebível.
— O que deu em ti, velho? Bebeu?
— Ela é filha de uma amiga de infância, tivemos um casinho de
uma noite quando fui à fazenda.
— Que porra é essa? Isso não tem lógica alguma.
— Ela me contou que veio com a irmã a São Paulo em busca do pai,
Zé Corvo, apelido que só quem me conhece há muitos anos tem
conhecimento.
— Para de falar besteira!
Ele continua:
— Naquela noite, em que nós fomos apresentados, havíamos nos
esbarrado no jardim de inverno. Ela me contou tudo e eu apenas juntei o
quebra-cabeça.
— Está me dizendo que isso é uma suposição?
— Lourdes nunca mentiria assim. Aquela mulher sempre foi uma
santa!
— Você só pode estar louco!
— Louco estará você se permanecer neste incesto — ele diz
duramente. — Quer uma prova? Estou disposto a fazer o DNA. Pensei que
eu nunca teria que mexer neste assunto, mas sabendo que está se
relacionando com a própria irmã, não vejo outra alternativa a não ser tirar
todas nossas dúvidas. 
Dou um passo para trás, pousando as mãos nos quadris, inspiro
fundo, sentindo minha cabeça ir a mil.
— Está falando sério?
— Lamentavelmente, estou.
CAPÍTULO 59

— Está tudo bem, amor? — pergunto ao Lauro após voltarmos do


toalete estranhando o fato de ele não dizer uma sequer palavra desde então.
— Sim. Claro — ele sorri, secamente, e concluo que algo o aflige.
Talvez a presença do seu pai esteja o deixando de mau humor, mas
eu não posso afirmar nada.
Tento alegrá-lo durante a noite, porém, não recebo nada além de
sorrisos encabulados, abraços e beijos na testa.
Quando Maria Alice desmaia de sono em seu ombro, decidimos que
é a hora de retornarmos para casa.
Nós nos despedimos de todos e fazemos o caminho de volta em
completo silêncio. Não falo nada, apenas respeito o seu espaço.
Ao chegarmos em casa, troco Maria Alice e a coloco para dormir,
beijando o alto da sua testa e lhe desejando boa-noite baixinho.
— Durma com os anjos, meu amor!
Venho notando que o meu amor por Maria Alice tem se distanciado
do fraterno e se transformando a cada dia em um amor de mãe.
É assim que me sinto em relação a ela, uma mãe. E também sinto
que onde mainha estiver, ela está feliz por termos conseguido superar nossa
fase ruim.
Inspiro fundo e saio de seu quarto em passos furtivos, fechando a
porta lentamente.
Lauro e eu passamos a dormir juntos há alguns dias, por isso,
direciono-me para o seu quarto na outra ala do segundo andar.
— Estava penteando os cabelos uma hora dessa? — sorrio ao flagrá-
lo colocando minha escova de volta no armário ao lado da cama e guardar
um plástico no bolso.
Corro até ele e enlaço meus braços em torno do tórax, apoiando meu
queixo no vão do seu peito e olhando para cima.
— Hoje foi incrível.
— Você achou?
— Aham! Mas não pense que me esqueci do meu strip-tease —
cantarolo, ansiosa por isso.
Beijo seu peitoral e ele desfaz meus braços, afastando-se.
— Você está estranho — concluo.
— É impressão sua. — Ele desvia o olhar.
— Não fiz uma pergunta. Você está estranho. Pensei que talvez
fosse a presença do seu pai na festa que o tivesse incomodado, mas parece
que não. É alguma coisa comigo?
— É que estou um pouco estressado, só isso. Será que podemos ter
essa conversa amanhã?
Respiro fundo, sentindo que talvez eu vendo coisa onde não tem e
aquiesço:
— Desculpe. Tudo bem — sussurro, subtraindo o espaço entre nós e
volto a abraçá-lo. — Se está cansado, podemos apenas nos deitar e dormir,
amor.
Ele fica imóvel, com o olhar está impenetrável.
— Lauro?
Ele parece desperta e toca cada lado do meu rosto com as mãos e
une nossas testas.
— Escuta, não quero que sinta que tem algo de errado com você.
Você é perfeita, ok? — Ele beija o alto da minha cabeça e automaticamente
fecho os olhos.
No instante seguinte, ele se afasta e pega o terno de cima da cama.
— Vou dormir hoje no quarto de hóspedes, mas isso não tem nada a
ver com o que você tenha feito ou deixado de fazer. Essa é uma vontade
minha. Confie em mim?
Fisgo o lado de dentro da bochecha, querendo não ficar ansiosa, mas
já estou.
No entanto, meneio a cabeça em positiva.
— Ótimo. Boa noite, Sol! — ele se despede e depois some pela
porta, deixando-me sozinha no quarto com aquela cama enorme, sem
entender nada.
O que está acontecendo?
Ele enjoou de mim, é isso?
Caio de peito na cama e murmuro para mim mesma:
— Não pira, Solange. Não pira.
CAPÍTULO 60

Na manhã seguinte
 
— Lúcia, sabe onde o Lauro está? — pergunto pela manhã, entrando
na cozinha.
— Ele saiu bem cedinho hoje e avisou que ficaria o dia todo no
escritório.
— Estranho. Ele sempre espera Maria Alice antes de sair.
— Também notei que ele está estranho, meio aéreo. Aconteceu
alguma coisa na festa de ontem?
— Ainda não sei — digo, recobrando na memória a noite de ontem.
— Fique tranquila. Às vezes, é apenas muito trabalho acumulado e
ele não quer preocupar você.
— É, talvez seja isso, Lúcia! — sorrio e depois me perco em meus
próprios pensamentos. — Obrigada!
CAPÍTULO 61

 
— Meu pai irá hoje entregar a amostra. Em quanto tempo vocês
conseguem me enviar o resultado? — converso ao telefone com a atendente
da clínica.
— Após o recebimento da amostra do seu pai, conseguimos liberar
o resultado em cinco dias.
— Cinco dias? Mencionei que preciso disso com urgência,
senhorita?
— Mencionou sim, senhor. Normalmente entregamos com um prazo
de até duas semanas. Com menos de cinco dias não é viável para nós.
Inspiro fundo, tamborilando os dedos na mesa e aceito.
— Certo. Tudo bem.
— Posso lhe ajudar com mais alguma coisa, senhor?
— Não, obrigado.
— Tudo bem. Então, obrigada por escolher SpaceLife e tenha um
bom dia, senhor.
Encerro a chamada jogando o celular em cima da mesa.
Cinco dias? Isso é mais tempo do que eu esperava. Droga! Como
vou passar esses dias perto dela sabendo da possibilidade de termos vivido
um incesto?
— Chefe! — Vivian aparece na minha sala avisando: — Os chineses
já estão na sala de reunião apenas o esperando.
— Diga a eles que estou indo.
— Tudo bem.
— Vivian! — chamo antes de sair da sala.
— Sim?
Franzo o cenho e elaboro aquela pergunta:
— Se tivesse que se afastar de uma pessoa com quem mora por
cinco dias, o que você faria?
— Depende.
— Depende do quê?
— Se fosse eu, tentaria ficar na casa de uma amiga. Mas se eu
tivesse a sua conta bancária, meu amor, facilmente passaria uma temporada
nas Maldivas sem desgrudar da minha taça de Sex on the beach.
Penso em sua resposta e balbucio:
— Até que não é uma má ideia. — Olho para minha secretária e
digo, levantando-me: — Viajarei hoje mesmo, Vivian.
— Para as Maldivas?
— Não. — Aperto os lábios. — Um lugar com menos areia e sol
seria o ideal.
— Tudo bem, chefinho.
CAPÍTULO 62

 
— Como assim ele viajou? — exclamo, perplexa, ao chegar da
farmácia após ter uma crise de enjoo. — Assim? Do nada?
— Ele apenas chegou, fez as malas e saiu com o motorista. Só deu
tempo de se despedir de Maria Alice e mais nada.
— Ele disse para onde ia?
— Disse que tem um negócio para fechar em Buenos Aires, mas não
me deu muitos detalhes.
Embrenho as mãos nos cabelos, confusa. Tem algo de errado com
ele? Com certeza, tem.
— Tudo bem, Lúcia. Vou enviar uma mensagem para ele.
Aquiesço para a senhora na minha frente e subo para o quarto de
Maria Alice, onde Claudia brinca com ela.
Tento não me desestabilizar com a mudança de comportamento
repentina de Lauro, mas é quase impossível.
— Aconteceu alguma coisa, Solange? — Claudia me pergunta
quando retorno para o quarto e pego Maria Alice no colo.
— Não, Claudia.
— Parece tão anêmica.
— É que minha pele é assim mesmo, Claudia. Meio amarelada —
sorrio, tentando não a preocupar.
— Deveria fazer uns exames. Não é normal ficar tão amarela assim
e tendo esses enjoos.
— Obrigada, Claudia. Verei isso depois.
Meu bolso vibra, e, com uma mão, retiro o celular do bolso traseiro
e abro a mensagem.
 
Sol, tive de viajar hoje para uma série de reuniões de última
hora em Buenos Aires. Ficarei alguns dias fora. Me perdoe por não ter
conseguido me despedir.
Adoro você!
 
Suspiro me acalmando um pouco e tento convencer a mim mesma
de que está tudo bem.

Seis dias depois


Por mais que eu tente fingir que está tudo bem, no fundo, eu sei que
não está.
Os últimos dias foram mais longos, mais escuros. Parecem saber
que a ansiedade me matava por dentro.
Olho a tela do meu celular em intervalos menores dos quais estou
acostumada a fazer e, muitas vezes, não recebo nada, quando uma
mensagem sua chega, as palavras estão cada vez mais opacas e indiferentes,
apenas se limitando a perguntar se Maria Alice está bem.
Ele está me evitando. É claro que está.
Não sou nenhuma boba para não perceber o que acontece e por essa
razão, comecei a me fechar e me preparar para quando ele retornasse.
— Parece que o patrão chegou. — Lúcia se levanta para espiar pela
janela que dá acesso ao jardim. — É ele mesmo.
Maria Alice já dormiu e apenas resta eu e Lúcia na sala durante a
noite.
 De repente, minhas mãos estão suando e meu coração acelerado, no
entanto, permaneço sentada à espera dele.
E quando ele passa pela porta da sala, tenho uma estranha sensação
de asfixia.
— Boa noite.
— Boa noite, patrão. Que bom tê-lo de volta. Como foi? Quer que
eu o ajude com as malas?
— Não precisa, Lúcia. Eu mesmo as levo. Obrigado.
Ele direciona o olhar a mim, e engulo em seco.
Lúcia nos entreolha e parece perceber algo no ar.
— Ai, que sono! Com licença, gente. Acho que vou dormir agora.
— Ela nos cumprimenta e sai para a área de serviço.
Continuamos nos olhando por um breve momento e meu cérebro me
ordena a voltar a respirar.
— Onde está Maria Alice?
— No quarto. Dormindo.
Ele faz a volta e se senta no sofá à minha frente, apoiando os
antebraços nas pernas, como se fosse difícil iniciar aquela conversa.
— Solange...
— Oi? — digo, nervosa.
— Eu... Eu...
— Tudo bem. Eu aceito, se é isso que você quer, terminamos aqui
— adianto-me em dizer.
— O quê?
— Não é isso que quer me dizer? Que quer terminar comigo?
— Solange, por favor. Apenas pare e me escute. Tenho algo de
importante para lhe falar, mas preciso que me ouça com atenção.
Ele não vai terminar comigo?
Inspiro fundo e conto um, dois, três.
— Ok.
Agora é a vez de ele inspirar fundo e começar a falar:
— Solange, nós não podemos ficar juntos.
— Só pode estar de brincadeira com minha cara — esbravejo.
— Dá para parar de me interromper?
— Claro, senhor. Continue — ironizo.
O que ele queria? Terminar primeiro? Ah, que filho da mãe!
— Na semana passada, eu tive uma revelação que jamais esperei
receber na minha vida.
— Ah, é? — debocho.
— Sim.
— E qual foi essa tal revelação? — sorrio.
Ele me olha como se soubesse algo de muito sério e me diz:
— Que somos irmãos, de sangue.
Paro de sorrir e tento pensar logicamente no que ele acabou de me
dizer.
— Você enlouqueceu?
— Entendo sua reação agora. Eu tive a mesma quando soube — ele
fala com seriedade. — Meu pai falou que vocês conversaram na estufa e ele
me contou que você veio a cidade atrás de um homem cujo nome é Zé
Corvo.
Ele faz uma pausa enquanto paraliso no meu lugar.
— O apelido de infância do meu pai é Zé Corvo.
— Isso não pode ser possível... — pisco copiosamente.
— Meu pai me contou que sua mãe foi sua amiga de infância em
Boa Ventura e tiveram um caso extraconjugal de uma noite. Ele mencionou
também o fato da sua mãe ter sido incapaz de mentir ou enganá-lo...
— Isso tudo é uma loucura. Nós... Nós somos mesmo irmãos?
Ele suspira e tira um envelope do terno.
— Como sempre fui cético com essas coisas, resolvi tirar minhas
próprias dúvidas.
— O que é isso?
— Um exame de DNA.
— Exame de DNA? — Minha cabeça a essa altura já está girando.
— Eu me dei liberdade pegar alguns fios de cabelos seus em sua
escova e mandei compararem com a amostra do meu pai. Ele sabe de tudo,
inclusive do resultado.
— E qual é o resultado? — pergunto baixinho, apreensiva.
Seu olhar foge para o lado momentaneamente e o assisto seu rosto
tremer.
Em seguida, ele encara o chão, balançando a cabeça em afirmativa e
me diz:
— Somos irmãos.
Uma lágrima escapa por um dos olhos molhando minha bochecha.
Abaixo a cabeça e cubro o rosto com as mãos.
— Por isso não podemos continuar com o que temos. Acho que nós
fomos longe demais. Mas, afinal, como saberíamos? — Ele se levanta e
caminha para o outro lado da sala enquanto choro silenciosamente.
— Eu preciso sair daqui.
— Não precisa fazer nada de precipitado, ok?
— Não, eu preciso sair daqui. Eu acho que vou vomitar. — Levanto-
me e corro para o banheiro mais próximo.
Ajoelho-me ao lado da privada e vomito até colocar todo o meu
jantar para fora. Limpo minhas lágrimas, ainda choque com o pesadelo que
minha vida acabou de virar.

Na manhã seguinte
Minha mãe costumava dizer que tudo que está reservado para
alguém está destinado a encontrá-lo. Mas somente agora isso fez tanto
sentido para mim.
Dentre milhares de pessoas nesta cidade, apaixonei-me justamente
por quem eu não devia.
Também cheguei a pensar que nunca encontraria o meu pai e, cá
estou, preferindo com todas as forças não ter um pai, como sempre foi na
minha vida.
— Solange! — Lúcia me chama à porta do quarto de Maria Alice.
— Tem alguém esperando por você lá embaixo.
— Quem?
— Acho melhor ver por você mesma.
Estranho, pois não conheço ninguém na cidade que não more ou
trabalhe nesta casa. Mas mesmo assim, pego Maria Alice no colo e desço
para a sala.
Encontro o senhor de cabelos grisalhos de costas, que se vira ao
perceber minha presença.
É ele. Afonso.
O que esse homem quer comigo?
— Sim? — pergunto, indiferente.
Ele se aproxima, parecendo me investigar com os olhos.
— Imagino que saiba quem sou eu.
— Sim, senhor.
— Sabe, naquela noite, eu fiquei com uma enorme vontade de falar
a verdade quando me contou sua história, mas não pude falar nada naquele
momento. Me desculpe.
Permaneço calada, enquanto Maria Alice se inquieta em meu colo.
— Permita-me dizer, eu sinto muito pela sua mãe. Em suma, ela foi
uma boa mulher, apenas cometeu o erro de se deitar comigo naquela noite.
Ela foi embora de Boa Ventura meses depois, não me contou nada, então
pensei que estava tudo certo. Nunca passou pela minha cabeça ela ter
engravidado.
— Por que veio aqui? — indago, impaciente.
— O que vim fazer aqui? O que acha? Conhecer melhor minha filha
mais nova e também minha herdeira.
— Me poupe! Eu vi você como tratou os seus filhos naquele dia. A
última coisa que o senhor quer é mais um herdeiro.
— Está me julgando mal.
— Não vou ficar de conversa fiada mais. Quando resolvi sair do
meu estado para vir atrás de você, não imaginei o que fosse encontrar. Mas
agora que sei que tipo de pessoa é o senhor, não estou interessada em ouvir
seus discursos egoístas...
— Me acha egoísta?
— Sim. Afinal, o que é uma pessoa que não tem consideração e
destrata os próprios filhos?
— Se soubesse o que vim fazer aqui, não estava me lançando esses
desaforos, menina.
— Então, o que veio fazer aqui? — exijo.
— Vim buscá-la para morar comigo.
Engulo minhas próximas palavras e me calo, por um momento,
sendo pega de surpresa.
— Já falei com o seu irmão, sei que não tem para onde ir, então, vim
buscá-la para ficar em minha casa.
— Você falou com o Lauro?
— Sim, Sol! — Lauro surge de uma das portas ao lado e o olho,
confusa. — Imagino que não ficaremos mais confortáveis morando na
própria casa.
Sorrio com sarcasmo.
— Então você resolveu chamar seu pai aqui e me mandar embora?
— Não é bem isso — replica Lauro.
— Então, o quê? Você fica minha irmã enquanto eu vou com o
nosso paizinho gente boa aqui? — ironizo. — Por Deus! Isso não existe. Eu
vou embora com minha irmã.
— Não, você não vai! — Lauro rebate, incisivo.
Ele inspira fundo e continua a falar:
— Solange, veja, ainda não tivemos tempo para digerir tudo o que
aconteceu. É perigoso sair com uma criança agora no estado que você está.
Deixe Maria Alice nesta casa e pedirei para Lúcia a leve para visitar você,
pelo menos, até pensarmos com mais calma e chegarmos a um acordo sobre
sua guarda. Prometo que serei flexível quanto ao assunto.
Em parte, ele tem razão.
Eu não estou em condições de cuidar de ninguém.
Tenho me sentido fraca ultimamente e, por experiência própria, sei
que nós corremos riscos vagando por essas ruas desconhecidas.
Mas, ao mesmo tempo, sinto-me muito confusa.
— Por favor — ele pede com a respiração pesada.
— Mas quem vai cuidar de Maria Alice enquanto você estiver no
escritório? —Embora nos últimos ele tenha insistido em contratar alguém
para cuidar da minha irmã, nunca aceitei e ela ainda passa a maior parte do
tempo comigo.  — Por que não posso a levar comigo?
— Já conversei com Lúcia. Maria Alice sempre será bem assistida
nesta casa, convenhamos que nada é bom para uma criança mudar
abruptamente de casa e rotina dessa forma. Estou pensando no seu bem-
estar e no dela, Solange, então, por favor, peço que faça o mesmo também.
Sem muitas alternativas disponíveis para mim, sou persuadida a
aceitar.
— Tudo bem.
No entanto, meu coração se comprime só de pensar no futuro. Havia
tantas incertezas e tantos problemas na minha cabeça que temo que uma
hora minhas energias se esgotem e eu surte de vez.
CAPÍTULO 63

 
— Aceita um café? Um lanche, talvez?
— Não, senhora.
Sou recebida por Raquel, esposa de Afonso, após aquele senhor
praticamente me soltar em sua casa e sair em seguida.
Aquela senhora me parece muito prestativa, mas faço conclusões
precipitadas sobre sua pessoa, já que não tive muito contato com ela, nem
agora e nem naquele jantar. Ao invés disso, pergunto:
— Desculpa. Mas onde eu ficarei?
Olho em volta imaginando que aquele casarão deveria ter muitos
quartos vagos.
— Lá em cima, em um dos quartos de hóspedes. Acompanhe-me!
Caminho em seu encalço, subindo com minha mala, parando em
degrau por degrau.
— Vá desculpando a simplicidade, mas não imaginei que meu
marido fosse ganhar mais uma filha nesta altura do campeonato — ela
comenta abrindo a porta do quarto enorme, que com certeza é maior que a
quitinete que eu morava com minha mãe na Paraíba.
— Me parece muito confortável. Obrigada — agradeço adentro o
quarto.
— Ótimo! Então, eu vou indo. Se precisar de alguma coisa, é só me
chamar ou pedir para algum empregado. Vou deixar até a porta aberta.
— Obrigada.
— Por nada. — Assente com um sorriso no rosto e me deixa
sozinha em seguida. 
Caminho até a cama e me sento na beira do colchão, respirando
fundo. Fixo o olhar na minha mala perto da porta e minha mente recobra os
últimos meses que passei nesta cidade, como se um filme se passasse em
minha cabeça. A primeira vez que o vi, as brigas, os beijos... Meu Deus, nós
transamos. Tudo aquilo embrulha meu estômago e bagunça minha cabeça.
O som de batidas à porta me acorda dos meus devaneios, então
levanto a cabeça. Encontro o adolescente alto parado ao lado da porta
aberta, o mesmo que estava naquele jantar.
Ele veste uma jaqueta de moletom vermelha e óculos escuros.
Como era mesmo o seu nome? Jotinha? Ah, lembrei. Jorginho.
— Eu acho que já vi você aqui antes.
Analiso se eu o respondo ou não, mas assinto.
— Sim, naquele dia do jantar.
— Ah, sim! E o que está fazendo aqui de novo? Não me diga que
aqueles montes de saco de lixo estão aqui de novo?
— Não. Vim com o seu pai — digo sem ânimo.
— É hóspede do meu pai?
— Parece que sim.
— Sim ou não?
— Sim — respondo sem paciência.
— Sim, mas por que ele está hospedando você em nossa casa, posso
saber? — pergunta com desconfiança.
Bufo e ralho com ele:
— Olha aqui, pirralho, se você quer saber de alguma coisa, pergunte
para o seu pai, ok?
— Pirralho? Você não parece ser muito mais velha do que eu para
me chamar de pirralho, gatinha — ele diz, irritante. — Quantos anos você
tem?
— Não te interessa.
Ele revira os olhos e repete a pergunta:
— Quantos anos você tem?
— Dá para me deixar sozinha?
— Quantos você tem?
— Olha, eu estou tendo um difícil...
— How old are you?
— Quê?
— Significa quantos anos você tem em inglês.
Pisco duas vezes e depois sorrio, piscando os olhos.
— Viu? Sempre funciona.
Ele se senta ao lado e me oferece a mão.
— Creio que ainda não fomos apresentados formalmente. Meu
nome é Jorginho Ferreira Trajano.
Olho para sua mão, como quem ainda analisa se quer ou não a
apertar.
— É só uma mão, juro que não tem pregos.
Dou-me por vencida e aperto.
— Prazer, Jorge. Me chamo Solange. Aliás, por que usa esses óculos
escuros dentro de casa?
— Não gostou? Estou estiloso, não? Faz parte do meu mindset.
— É o que, menino?
— Mindset. É a mentalidade que incorporo e guio meus
comportamentos. Se quero ser um homem de estilo, por que não ser um
homem de estilo em casa também?
Sorrio daquela besteira.
— Então, Solange, como você veio parar nesta masmorra?
— Você ficaria surpreso se soubesse.
— Olha que não é fácil me surpreender. — Ele sorri ternamente e
levanta os óculos para o alto da cabeça.
Ali, fitando seus olhos risonhos, tenho um presságio de que Jorginho
e eu podemos nos tornar grandes amigos. Mas ainda é cedo para afirmar
alguma coisa. 
CAPÍTULO 64

Dois dias depois


 
— Sabe do que você precisa? Beber, irmão! Sim, beber. Afogar as
mágoas na cachaça e sair do bar com uma gostosa do lado — comenta
Sebastião, seguindo-me para dentro de casa.
— Muito obrigado pelo seu sábio conselho, mas eu tenho uma filha
para cuidar. E outra, por que me seguiu até em casa?
— Cara, eu estou aqui para apoiar meu irmão em seus dias ruins. É
nítido que você está mal, Lauro.
— Desde quando você virou meu psicólogo?
— Assim eu me ofendo, cara. Eu poderia estar torrando a grana que
recebi do papai agora, mas estou aqui, dando meu apoio moral e buscando
soluções para te tirar da merda, e você tá debochando?
Lúcia me recebe na sala com Maria Alice no colo e, pela primeira
vez no dia, tenho uma dose de alegria.
Trabalhar nos últimos dias tem sido um verdadeiro martírio, quase
não me reconheço mais, pois houve um tempo em que o trabalho era o meu
bálsamo diário.
Mas quando elas chegaram a minha vida e as coisas mudaram.
Desde que me afastei de Solange, não fico um segundo sequer sem
pensar no que vivemos, e, porra, uma tristeza fodida me atravessa toda vez
quando lembro que em suas veias corre o mesmo sangue do meu pai.
No entanto, ver o rostinho de Maria Alice colore um pouco o meu
dia e me lembra que ainda tenho motivos para voltar para casa.
— Ei, princesa! — Pego minha filha no colo. — Como foi o dia
dela, Lúcia?
— Foi um dia tranquilo, fomos visitar Solange na casa de seu pai e
ela adorou rever a irmã.
Só de tocar no nome dela, meus músculos tensionam.
— Ela já jantou? — pergunto fugindo do assunto.
— Já jantou e tomou banho também. Praticamente está pronta para
dormir.
— Obrigado, Lúcia!
— Por nada, patrão. Estou indo agora.
Lúcia se afasta, e Sebastião se aproxima fazendo cócegas nos
pezinhos gorduchos. Maria Alice se contorce inteira sorrindo.

— Acho que está já deu a minha hora — avisa Sebastião com o


choro de Maria Alice sobressaindo sua voz.
— Pensei que estivesse aqui para me apoiar — lembro-o antes que
ele me deixe sozinho, e Maria Alice grita mais alto.
— Coloca ela sentada na poltrona — ele pede, voltando para o meu
lado.
— O quê?
— Só faz o que eu digo.
Hesitante, coloco minha filha na poltrona ao lado do berço e Sebá se
posiciona em sua frente, começando a cantar com aquela voz de ganso.
— Lá na casa da galinha pintadinha, no quintal tem um monte de
bichinhos...
Maria Alice milagrosamente para de chorar e com os olhos
molhados, espera ansiosamente o tio continuar a canção.
— Viu? Funcionou — cochicha Sebastião para mim.
— Não para. Não para.
Ele pigarreia e volta a cantar:
— Tem aniversário quase todo dia, é uma bagunça a casa da galinha.
Pó! Pó! Pó! Pó! Pó...
Maria Alice abre um sorriso enorme com os poucos dentes que tem
na boca, à medida que Sebastião estala os dedos para mim, pedindo para
que eu acompanhe com refrão.
Limpo a garganta e tento seguir o ritmo:
— Pó! Pó! Pó! Pó! Pó! Pó!
Maria Alice gargalha e eu me divirto.
— A galinha e galo carijó! — finaliza Sebastião, depois volta a
cantar novamente até os olhinhos dela cansarem e sua cabecinha cair
gradualmente para o lado, mergulhando em sono profundo.
 
 
— Onde foi que aprendeu a cantar música infantil? — questiono
meu irmão, dando mais um gole da bebida forte amadeirada que sai
rasgando minha garganta.
Após colocarmos Maria Alice para dormir, nos reunimos no jardim
para bebermos um pouco.
— Aprendi quando passei um tempo com Conrado. Os meninos
haviam acabado de perder a mãe e fui lá dar uma força para nosso irmão,
quando tirei minhas férias. E, caralho, eles escutavam muito essa Galinha
Pintadinha, precisava ver.
— Nunca mencionou isso comigo.
— Pois é. Houve uma época que você era mais obcecado por
trabalho. Talvez por isso não tenha encontrado abertura para falar disso
contigo.
— Agora você me fez sentir um péssimo irmão.
— Que felicidade a minha, então.
Sorrimos juntos.
— Agora, voltando a falar sério — Sebastião retoma a conversa —,
acho que esse choro de Maria Alice tem a ver com a ausência da irmã.
— Acha mesmo?
Ele assente dando mais um gole do whisky.
— Ela provavelmente está sentindo muito a falta de convivência
durante o dia. Por mais que você tenha se apegado a essa criança e ela a
você, os laços com Solange sempre serão mais fortes.
— Então, o que me sugere?
— Você sabe o que exatamente fazer — diz Sebá, por fim, e suas
palavras se reproduzem feito ecos dentro meu cérebro.
Fecho-me em minha própria mente, com um vazio ocupando o meu
peito. Depois olho para o céu e me pergunto o que ela está fazendo agora,
se também está assistindo a lua cheia ou apenas está deitada na cama
esperando o sono aparecer. Mesmo que minha cabeça me repreenda por
pensar nela, a porra do meu coração parece invadir e dominar o meu
cérebro e tenho uma estranha impressão de que vou levar uma eternidade
para superar essa porra toda.
CAPÍTULO 65

Após ficar muito tempo dentro do quarto e saindo apenas para


receber a visita da minha pitica, resolvo sair para a área da piscina e pegar
um pouco de sol.
Avisto Jorginho lendo um livro em uma das espreguiçadeiras, sigo
até ele e me sento ao seu lado.
— Que menino culto! Gostei de ver — comento tentando olhar a
capa do livro. — O que está lendo?
Ele vira para que eu possa ler em voz alta:
— Como perder amigos e irritar pessoas. Nada mal!
Ele sorri sem tirar a atenção do livro. Ele ainda está com aqueles
óculos escuros, só que agora eles parecem muito úteis.
— Estou orgulhoso de você, irmãzinha. — Ele já sabe da verdade.
— Saindo da toca e vindo tomar um sol.
— É que estou muito anêmica. Preciso um pouco de vitamina D —
digo fechando os olhos e levantando o rosto para o alto, sentindo minha
pele queimar.
Logo em seguida, volto a olhá-lo e puxo conversa de novo.
— Vem cá, por que não gosta dos seus irmãos mais velhos?
— Ficou tão nítido assim?
— Ninguém chama os outros de lixo sem um motivo, não é?
— Você tem razão. Mas eles que não gostam de mim.
— Por quê?
— Porque eu sou o filho bastardo do pai deles — revela, enfim, e
me encara.
— Bem-vinda ao clube.
Sorrio.
— O Lauro não parece odiar você. Parece que o problema dele é
com o seu pai. Os outros, já não posso opinar, pois não os conheço muito
bem.
— Mas ele nunca se interessou em se aproximar, por isso não faço a
mínima questão também.
— Justo. Eu faria o mesmo. — Assinto voltando a encarar o sol.
— Solange! — Uma voz ao lado me chama e vejo que se trata de
Raquel. Meu coração acelera de felicidade, quando vejo que ela segura
Maria Alice no braço e Claudia vem logo atrás arrastando uma mala.
Não preciso nem pedir logo, Maria Alice já vem se jogando para
mim.
— Oh, meu Deus! Que delícia de abraço! — Abro um sorriso de
orelha a orelha, e Claudia se aproxima deixando a mala ao meu lado.
— O que é isso, Lúcia?
— As roupas e pertences de Maria Alice. Ainda tem mais lá no
carro e o patrão disse que enviará mais coisas, como berço, cadeirinha,
carrinho...
— Como assim, Claudia?
— Ele não lhe disse? Parece que ele pensou melhor e acha que o
mais certo a se fazer é deixar Maria Alice com você.
— Ai, meu Deus! — Meu coração para com a descarga de alegria
que invade o meu peito e olho para minha pitica, desacreditada que
finalmente ficaremos juntos. Obrigada, meu Deus! Obrigada!
CAPÍTULO 66

Três dias depois


 
Os dias são longos e maçantes.
Tento enganar o vazio em meu peito quando chego à minha casa e
não encontro ninguém além dos meus funcionários, mas tudo parece ser
inútil perto da escuridão que me alcançou.
Três dias foram o suficiente para essa falta quebrar minhas pernas.
Porra, eu ainda a amo, pra caralho! E sufocar isso dentro de mim só
aumenta minha revolta.
Decidido a não ficar em casa, pego novamente as chaves do carro e
vou em busca de um lugar que pudesse me distrair. Talvez Sebastião tenha
razão em sugerir álcool.
Paro em um bar no centro da cidade, peço algumas doses de tequilas
e viro todas em fileiras. Consumo quase toda a carta de bebidas e demoro
um pouco para ficar ébrio.
— Ei, estamos fechando. Vá embora! — Ouço a voz me chamar e
percebo que dormi com a cabeça em cima da mesa.
— Me deixa em paz, caralho!
— Já falei para sair, vagabundo.
— É o quê? Está me chamando do quê? — Levanto o dedo em riste
e vejo tudo girar.
— Paulão, dá um jeito neste bêbado aqui.
Um sujeito me puxa pela camisa e eu o empurro seu peito.
— Tá maluco, porra? — ralho, desequilibrando-me.
— Ou você dá o fora, ou eu caio em você de porrada.
— Então vem, caralho! — Estufo o peito, os ânimos alterados. —
Vem!
— Eu avisei.
O maluco vem para cima e me enterra um soco tão forte que caio no
chão. Passo a mão na boca e ela sai suja de sangue.
— Filho da puta — praguejo.
Com dificuldade, me levanto e o desafio:
— Vem agora, porra! Vem!
Ele me acerta outro rosto na cara, só que dessa vez, caio sobre as
cadeiras, machucando minhas costas.
Levanto-me mais uma vez e depois do terceiro soco, não consigo
mais contar quantos golpes levo, repetidas vezes.
Quando o tal Paulão termina o serviço, permaneço largado no chão
gelado da calçada, sentindo o gosto metálico do meu próprio sangue e
minha memória retornar para os dias em que não havia escuridão ao lado
delas. Eles nunca mais voltarão.
CAPÍTULO 67

Dois dias depois


 
Maria Alice se levanta cambaleando e caminha em minha direção
com o seu sorriso banguela preferido enquanto abro os braços para recebê-
la.
— Oh, meu amor! — Dou um cheiro na dobra do seu pescoço,
quase morrendo de tanta fofura.  — Mas é linda essa criança, meu Deus! —
Volto a cheirar seu cangote e ela gargalha alto.
— Solange — Raquel me chama aparecendo no terraço. — Vocês
têm visita.
— Visita? Oxente, é a Claudia?
Antes que Raquel me responda, Lauro passa pela porta de vidro do
terraço e meu coração dispara dentro do peito.
Como de costume durante às tardes, ele está com um terno escuro de
três peças feito sob medida. Ele ainda continua escandalosamente lindo e,
embora seja pecado, não consigo evitar esses pensamentos inadequados.
O canto da sua boca está machucado e no alto da sobrancelha
esquerda há um pequeno band-aid da cor da pele, quase imperceptível.
Ele se meteu em uma briga?
— Papá! — Maria Alice exclama e joga o corpinho para frente.
Coloco-a no chão e ela corre quase caindo para os braços de Lauro,
que a ampara e a coloca nos braços antes que ela tropece nos próprios
pezinhos.
Ele abre um sorriso, enquanto fala com Maria Alice e observo
Raquel se afastar e nos deixar a sós em seguida.
— Como ela está? — ele me pergunta.
— Bem. Está comendo bem, dormindo bem no berço dela que
trouxeram e parece estar gostando da nova casa. Enfim, acho que é isso —
limito-me a dizer e levanto do chão, alisando a barra do meu vestido que
está abarrotada. — Aliás, obrigada por enviar as coisas dela, ela já estava
acostumada com aquele cantinho — completo, sem jeito.
— Não há o que agradecer.
Ele me responde sem desviar o olhar de Maria Alice, que balbucia
algumas palavras para ele.
— Aliás, o que é isso em seu rosto?
Ele me olha de canto de olho e dispara:
— Não é nada.
— Você se meteu em alguma briga?
Não obtenho respostas.
Cruzo os braços e percebo que estou sobrando ali, então, aviso me
retirando:
— Vou deixá-los sozinhos, por um instante.
Quando passo por eles, sua mão segura o braço fazendo meu corpo
inteiro arrepiar.
Levanto os olhos para o seu rosto e encaro o rosto tensionado e
sério, o que é bastante difícil de se fazer agora, mesmo assim, não desvio o
olhar, sentindo meu corpo eletrizar com seus olhos passeando por cada
canto meu rosto.
Ao mesmo tempo em que sinto meu corpo quente, percebo uma
espécie de melancolia na forma com que ele me direciona esses olhares. De
repente me lembro como era bom acariciar seu rosto e depois beijá-lo sem
pressa para acabar.
No entanto, uma voz na minha cabeça grita me lembrando do
quanto isso é errado e me solto de sua mão.
— Com licença!
Apresso-me em sair dali e fujo para o primeiro cômodo que
encontro, trancando-me e sentando no chão inspirando fundo. Meu coração
afunda e as lágrimas rolam facilmente pelo meu rosto, desencadeando em
um choro violento.
Ali percebo o quanto sinto sua falta, mesmo tentando agir com
frieza e negando todo resquícios de sentimento nos últimos dias.
Mas revê-lo só abriu ainda mais a ferida em meu peito e serviu para
ter certeza de que esse sentimento nunca passará, por mais tente, ele sempre
estará aqui, dentro de mim.
CAPÍTULO 68

 
— O que é isso no seu rosto, Lauro? — pergunta minha mãe,
escandalizada, adentrando a sala do meu escritório com Sebastião em seu
encalço.
— A senhora não ficou sabendo? Ele se meteu em uma briga faz uns
dias, mãe. Tive que buscar ele, caído na sarjeta da calçada.
— Quê? Eu não acredito nisto, Sebastião. Isso é verdade, Lauro?
Fulmino Sebastião com o olhar e sou obrigado a assentir para ela.
— Sim, mãe. Mas tudo já está resolvido.
— Mas por que você brigou? A Solange estava com você?
Desde que eu soube que Solange é filha do meu pai, tenho evitado
minha mãe, pois sei que alimentaria ainda mais ódio pelo meu pai. Sei
também que uma hora ou outra ela bateria em meu escritório, ou na minha
casa e tomaria conhecimento da verdade, ao que parece o dia chegou.
— Ih, parece que a senhora está atrasada, mãe! — comenta
Sebastião, sorrindo e sentando em uma das cadeiras em minha frente.
— Como assim atrasada?
— Conta para ela, Lauro.
Olho para minha mãe, que espera por uma explicação e confesso:
— Solange e eu não estamos mais juntos.
— Por que, não? — Seu tom triste me surpreende. — Quer dizer, no
começo eu não gostava dela, mas sabe, com a convivência, até que ela me
pareceu uma ótima pessoa para você. O que aconteceu? Ela terminou?
— Não, o que tínhamos terminou por si só.
— Que história é essa? Como um namoro termina assim, por si só?
Inspiro fundo e decido abrir o jogo.
— Mãe, é que aconteceram muitas coisas nos últimos dias
envolvendo o meu pai.
— Não mude de assunto.
— Não estou mudando.
— O que o seu pai tem a ver com seu namoro e a Solange?
Sorvo uma boa quantidade de ar e solto.
— Ele descobriu que Solange é filha dele. Eu e ela... — engulo em
seco e um nó se forma em minha garganta. — Eu e ela somos irmãos —
completo.
— Não pode ser. Isto não tem cabimento, Lauro.
— Nós fizemos o teste de paternidade e deu positivo.
— Meu Deus! — Ela leva a mão para a cabeça e se vira, em choque.
— Sempre soube que Afonso me traía muito, mas nunca imaginei que
saísse transando com o Brasil inteiro.
— Parece que a mãe da Solange também morava em Boa Ventura e
eles eram amigos de infância, algo assim — explico tudo, pois minha
vontade é encerrar a conversa e nunca mais tocar no assunto.
— Aquele desgraçado!
Assisto à indignação da minha mãe e, honestamente, era
superprevisível que ela ficasse assim. No entanto, ela se vira em meio a
raiva e me olha.
— Desculpe, meu filho. Nem perguntei como você se sente quanto a
isso.
— Como acha que estou, mãe? — Minha voz está mais densa que o
habitual. — Eu estava tendo um relacionamento com minha própria irmã e,
o pior, ela foi a única mulher por quem me apaixonei.
— Perdão — diz.
— Não tem motivos para pedir perdão, mãe. E o pior é que ninguém
tem culpa de eu ter me relacionado com ela, nem mesmo o meu pai. Como
saberíamos?
— Você ainda a ama?
— Isso não importa.
— Me diga, Lauro. Você ainda a ama?
Desvio o olhar e Sebastião a responde em um tom quase inaudível:
— Ele era gamadão nela. É claro que ele não está bem, mãe.
Neste instante, endireito-me na cadeira e ordeno:
— Preciso voltar ao trabalho. Saiam os dois!
— Lauro! — recebo compassivo de minha mãe, mas tento
tranquilizá-la:
— Ficará tudo bem.
— Tem certeza?
Aquiesço com um menear de cabeça, não vendo a hora de sair da
prisão que é os meus próprios pensamentos e ingerir um pouco de álcool.
CAPÍTULO 69

 
Diversas vezes tentei contar a Lauro a verdade, mas desisti em
todas, por medo dos outros iriam falar. No entanto, nunca pensei que um dia
eu me sentiria pressionada a contar a verdade, mas este dia chegou.
Mas como vou contar a eles a verdade?
Como vou me sujeitar a um papel tão humilhante perante Afonso,
depois de tantos? Depois de tudo o que ele me fez passar.
Foi apenas uma noite.
Uma noite, meu Deus!
Ele sempre foi um traidor. É apenas ele quem deve carregar a
desonra da nossa família, não eu.
Caminho até a varanda do meu apartamento e respiro fundo,
lembrando-me da forma como aquela moça falava do meu filho. Seus olhos
chegavam a brilhar. Meu Deus! Ele gosta tanto dela!
Nunca antes tinha o visto tão apaixonado.
No entanto, não posso contar que Afonso não é o seu pai biológico.
Não posso!
CAPÍTULO 70

Bebo mais uma dose de whisky em minha banheira, onde


costumávamos fazer amor. Porra, ela está em todos os cantos e
simplesmente não consigo afastar estes pensamentos. Chego a um nível que
é difícil para mim ficar sóbrio na minha própria casa.
O meu organismo parece saber que preciso um pouco de álcool para
tornar as coisas mais fáceis e não demora muito para a embriaguez me
alcançar.
Levanto–me da banheira, ébrio e tropeço feio tentando alcançar o
chão, batendo com a cabeça no vidro do boxe do banheiro. Passo minha
mão pela testa, que sai suja de sangue. Tento me levantar, mas o chão
parece sugar minhas costas e escorrego de novo, desistindo e ficando ali,
encarando a lâmpada no teto e sentindo minhas pálpebras se fecharem.
CAPÍTULO 71

 
Acordo pela manhã ao som do toque do meu celular que fica cada
vez mais alto, à medida que retomo a consciência, após dormir sob efeitos
de calmantes.
— Droga! Quem é uma hora dessas?
Viro-me pela cama e atendo a droga daquele telefone, que não para
de tocar.
— Alô?
— Dona Vera? Que bom que a senhora atendeu! 
— Quem é?
— É a Lúcia.
— Lúcia? — me lembro da sua voz e imediatamente pergunto: —
Aconteceu alguma coisa, Lúcia? O Lauro dormiu em casa hoje?
— Aconteceu, sim, senhora. O seu Lauro dormiu em casa, mas é
que Fernando e eu acabamos de encontrá-lo estirado no chão do banheiro.
Já chamamos a ambulância, mas achei melhor também avisar a senhora.
— Meu Deus. Meu filho está respirando, Lúcia? — Salto para fora
da cama, tirando meu pijama.
— O Fernando conferiu e está sim, senhora.
— Lúcia, eu estou me arrumando. Por favor, me mantenha
informada — peço com o coração na boca.
— Sim, senhora.
Desligo o telefone e as lágrimas molham os meus olhos.
Meu Deus! O que você fez, meu filho?
CAPÍTULO 72

 
Acordo com os feixes de luzes agredindo os meus olhos e com uma
puta dor de cabeça excruciante.
Cacete!
— Ele está acordando — a voz inconfundível reverbera em um tom
aflito.
Deito a cabeça e dou de cara com uma mulher ruiva cujo rosto é
completamente desconhecido para mim. Noto que estamos em meu quarto e
minha mãe também está aqui perto.
— Está conseguindo falar, Lauro? — pergunta a ruiva, que parece
usar uma farda azul, em que tem bordado o nome “Laís Campos — médica
socorrista”.
— Sim. O que houve? — Levanto-me rapidamente e ela espalma a
mão no peito.
— Com calma aí, bonitão. Você levou uma queda. Preciso que me
diga se está enxergando bem ou se sente algum tipo de tontura.
— Sinto dor de cabeça.
— Talvez não esteja atrelada à queda. Você bebeu ontem?
— Um pouco.
Ela arqueia a sobrancelha e me inquire:
— Não minta.
Respira fundo e respondo de uma vez:
— Uma garrafa de whisky.
— Whisky é uma bebida muito concentrada para beber dessa forma
— ela fala e examina meus olhos com uma lanterna de bolso. — Parece que
foi apenas um susto. Ah, e você ganhou mais um ferimento novo na testa,
mas isso não precisará de pontos. Só desinfetar e colocar um band-aid. —A
médica se levanta e fala com minha mãe: — Está tudo bem, senhora. Seu
filho apenas precisa descansar.
— Obrigada, doutora.
— Por nada.
Procuro por um espelho na mesinha ao lado da minha cama e aquela
ruiva me chama novamente.
— Ei, bonitão. Bebida e banheiro é uma péssima combinação.
— Ok.
Ela me joga uma piscadela e depois cumprimenta minha mãe,
despedindo-se.
Neste momento, saio da cama e caminho para o meu closet, vestindo
um short preto.
— A médica é uma moça bonita e simpática, não achou?
— Não reparei — digo meio indiferente, procurando por uma
camisa.
— Por que bebeu dessa forma, Lauro?
— Dessa forma, como?
— Você bebeu novamente por causa da Solange...
— Não bebi por causa de ninguém. Bebi porque eu estava com
vontade de beber.
— Sabe que se continuar assim, vai acabar se afogando, não é?
— Por favor, mãe...
— Por favor, você, Lauro! — vocifera e, pela primeira vez desde
que ela se separou, presencio minha mãe chorar novamente. — Eu vim
dirigindo como uma louca pensando que algo de grave tinha acontecido
com você. Então, não aja como se não tivesse acontecendo nada.
— O que a senhora quer que eu diga? Que eu abra meus
sentimentos? Ou melhor, que eu diga que lembro dela em cada canto dessa
casa? Que eu tenho pensamentos imundos com a minha própria irmã
mesmo sabendo que essa porra é muito errada? Eu estou puto! Estou puto
com a vida, com o destino que me roubou tudo, até a filha que escolhi amar.
Eu perdi tudo. Tudo! Você não sabe o que estou sentindo, ninguém pode
entender como essa merda dói. — Meus olhos enchem d’água e me viro,
apoiando-me minhas mãos em um dos armários.
— Lauro...
— Me deixe sozinho. Por favor.
Limpo as lágrimas com os antebraços e ela assente em seguida.
— Tudo bem. Mas eu vou ficar aqui nesta manhã. Você precisa de
mim.
CAPÍTULO 73

— Me chamou? — pergunto, encostada no batente da porta de seu


escritório.
— Sim. Entre.
Confesso que quando Raquel disse que meu pai queria conversar
comigo em seu escritório, fiquei tensa e ansiosa pelo assunto.
Desde que me mudei para esta casa, Afonso Trajano vem se tornado
uma incógnita para mim. Ao mesmo tempo em que me sinto acolhida por
ele e sua família, tenho dificuldade em pensar nele como um pai. Talvez,
aquela noite tenha influenciado em nosso relacionamento, já que sinto que
ainda não sei do que ele é capaz de fazer.
— Sente-se nessa cadeira, por favor.
É inegável que ele é um homem muito elegante e polido. Imagino
que deva ter sido muito desconfortável para minha mãe ter estado com ele,
já que ela foi uma mulher muito simples.
Olho em volta e observo as estantes altas de madeira envernizada,
com livros e estátuas dentro dos nichos, tudo de muito bom gosto.
Faço que ele me pede e me sento na cadeira de design antigo.
— Chamei você até aqui para lhe dizer que quero que estude.
— Como?
— Mais especificamente, você vai escolher um curso que a agrade.
Você vai se formar, Solange. Eu como pai, tenho a obrigação de colocá-la
para seguir um bom caminho. Mas antes fará alguns cursos como inglês,
um pouco de português...
— Mas eu sei falar português.
— Corretamente.
— Mas eu sei falar português corretamente sim, senhor. Não como o
povo daqui é habituado a falar, mas de onde eu vim e cresci, é exatamente
assim que nos comunicamos. Este é o meu português.
— Solange, você é uma Trajano agora. Entenda! Você não é mais
uma garota da Paraíba perdida que...
— Não, o senhor que tem que entender. Sou da Paraíba sim, senhor.
Engraçado, o senhor fala como se ser um Trajano é muita coisa, mas a
desconsideração que teve com os seus filhos naquele dia me mostrou outra
coisa.
— Você está enganada. Você não sabe nada sobre mim.
— O senhor praticamente subornou os seus próprios filhos para eles
ficarem sem nada depois da sua morte. Deve ser de verdade uma honra ser
uma Trajano — ironizo.
— Nunca afirmei que eles não receberiam nada.
— Mas deu a entender...
— Nem tudo que parece é, Solange. Confesso que nunca fui um
bom marido e errei diversas vezes com minha ex–mulher, a mãe do Lauro,
que foi o filho que mais absorveu nossas crises conjugais. Talvez seja por
isso que esse moleque tenha crescido com tanta raiva de mim. Confesso
também que não sou um santo e já fiz muita coisa errada. Mas sempre amei
os meus filhos, todos eles, sem nenhuma distinção.
— Então?
— Então, é um teste, Solange. — Ele respira fundo como se tivesse
estragado seu plano. — Como vê, estou velho e alguém tem que herdar o
que eu construí. Eu tenho que ter certeza qual filho estará apto a administrar
meus negócios quando eu morrer. Alguns deles, como o Lauro, é um gavião
nos negócios, imponente e implacável. Não é à toa que ele construiu o seu
próprio império, assim como Júlio está fazendo com os seus restaurantes.
No entanto, Lauro não tem o mínimo de interesse no que é meu e isso
apenas se confirmou naquela noite. Seria quase perfeito se ele assumisse,
mas ele é um gavião solitário. Nada que não esteja em seu território, não
enche seus olhos. Júlio, assim como o Lauro, também é um homem
dedicado. Já Sebastião — ele suspira —, é um homem que ainda tem muito
a amadurecer, mas até lá, observarei a forma como lidar com o dinheiro.
Minha grande aposta é Conrado. Ele é o filho que está mais próximo das
minhas raízes, ele mora na sede da minha fazenda Boa Ventura com os
filhos e conhece bem como ninguém os meus negócios. No entanto, é um
homem muito caseiro e detesta a cidade. Se ainda não sabe, os negócios
podem até começar no campo, mas eles nunca crescem se não os trazermos
para a cidade. Conrado terá de sair da toca para se sair bem.
Ele bufa.
— Como pode ver, tenho uma escolha importante a fazer e
colocando dinheiro nas mãos de cada um, terei mais clareza sobre qual
decisão tomar em meu testamento.
— E o Jorginho?
— Jorginho está fora do baralho, por enquanto. Ainda é muito novo,
mas também não é muito promissor, pois me diz desde novo que a última
coisa que ele quer é ter que brigar com os irmãos depois da minha morte.
Ele tem pavor dos irmãos e para assumir um CNPJ como o meu, tem que
ter coragem.
Agora é minha vez de respirar fundo e desviar o olhar para a estante,
sem jeito por ter o julgado mal.
— Agora, entende, Solange? Posso não ser ou ter sido o pai perfeito,
mas não sou o crápula que você pintou na sua cabeça.
— Desculpa.
Ele demora, mas aquiesce:
— Tudo bem. Mas você vai ter que estudar...
De repente, o seu celular toca e ele o retira do bolso, ergue o dedo
em riste, pedindo por um minuto.
— Alô? ... Vera? ... Como assim conversar comigo agora? ... O quê?
Lauro caiu e bateu a cabeça no boxe? Como ele está?
Ele me olha e o meu coração aperta.
— Em vinte minutos eu chego aí.
Afonso encerra a chama, e eu disparo, aflita:
— O que aconteceu com o Lauro?
— Parece que ele bateu a cabeça e o encontraram desacordado.
— Ai, meu Jesus!
— Não se preocupe, parece que agora ele está bem. Vera apenas me
ligou, pois quer conversar algo agora, não faço a mínima ideia do que seja.
— Ele se levanta e me diz: — Com licença, vou ter que sair agora, Solange.
Se importa se terminarmos essa conversa mais tarde?
— Não, senhor.
— Ótimo. Até mais, Solange!
Afonso sai pela porta, conforme um sentimento ruim enche o meu
peito, uma mistura de impotência e dor por não poder me aproximar desde
que descobrimos que somos irmãos. Estes sentimentos estão me matando,
dia após dia, e eu não consigo simplesmente ignorar a existência deles.
CAPÍTULO 74

 
Tomo uma ducha gelada e volto para o meu quarto, colocando
camisa e calça social.
Embora a médica tenha prescrito repouso, eu não conseguirei ficar
neste quarto com os próprios pensamentos. Eu preciso sair. O escritório
ocupa minha mente como nenhuma outra atividade durante o dia.
Desço as escadas, fechando o paletó e me deparo com minha mãe na
sala e me surpreendo com a pessoa ao seu lado.
— O que ele faz aqui? — questiono seriamente, não entendo o
motivo da visita repentina.
— Eu o chamei para conversarmos, Lauro.
— Que tipo de conversa? — indago.
— Também estou curioso. Aliás, vejo que está bem melhor. Sua mãe
me disse que tinha se machucado.
— Estou indo trabalhar.
— Você deve repousar, Lauro.
— Já estou ótimo, mãe. O repouso é desnecessário. Se puder
adiantar o assunto, eu ficaria grato.
Ela me olha como se estivesse aflita, respirando fundo. Pelo que a
conheço, não está confortável com essa situação, o que não faz sentido, pois
foi ela que a criou.
— Eu reuni vocês dois aqui pois tenho uma confissão a fazer.
— Confissão? Estou curioso para saber que tipo confissão quer
fazer a mim, Vera.
Minha mãe o ignora e fala diretamente comigo:
— Filho, por muitos anos pensei bastante em lhe contar e desisti
diversas vezes. Foi muito difícil para mim essa tomar a decisão, mas não
posso ficar simplesmente assistindo você se autodestruir por algo que não
faz mais sentido manter em segredo.
Ela respira fundo mais uma vez e a espero, ansioso.
— Lauro, meu filho... você não é filho do pai que sempre pensou
que fosse.
— Como? Do que está falando, Vera? — ele indaga, tão confuso
quanto eu.
— Você não tem nenhum laço sanguíneo com esse senhor. Você é
apenas o meu filho, com outro homem que me envolvi no passado.
O silêncio toma conta da sala e antes que diga qualquer coisa, ele se
adianta.
— Ora! Como ousa?
— Como ousa? Sinceramente, agora olhando dentro dos seus olhos
me arrependo de não ter contado isso antes. Passamos uma vida casados e
durante todos esses anos tudo o que recebi foi traições, indiferença e mais
traições.
— Você é uma vadia, Vera. Com quem foi, hein? Me diga quem foi
o desgraçado — ele rosna.
— Cale a boca! Você nunca mereceu uma explicação minha e não
vai ser agora que não ter...
— Sua vag....
— Chega! — vocifero, sendo incapaz de pensar racionalmente com
essa guerra de farpas e xingamentos.
Dou um passo para trás e minha cabeça começa a processar tudo
muito rápido e, neste momento, as lembranças de infância invadem minha
cabeça e toda minha vida parece ser reconfigurada sob uma nova
perspectiva.
— Eu não sou irmão dela. — Meus olhos ardem e os pesos em meus
ombros parecem caírem.
— Não, Lauro. Você não é filho desse senhor, apenas Solange é
filha dele.
— E os meus outros filhos? Não vai me dizer que...
— Infelizmente, Júlio, Sebastião e Conrado são os seus filhos
biológicos. Se fosse da minha vontade, nenhum deles teria o seu sangue
ruim.
— Eu tenho que ir... — digo, embrenhando os dedos nos cabelos e
os puxando.
— Lauro, para onde você vai?
— Eu tenho que encontrar alguém?
Tiro a chave do bolso e corro para o jardim sentindo meu corpo em
adrenalina. Quando estou no meio do caminho, flagro a mulher de cabelos
cacheados entrando pela porta de garagem.
— Sol?
Sua respiração está cansada como se tivesse percorrido cinquenta
quarteirões a pé.
— O que está fazendo aqui?
Ela corre até mim e parece analisar cada detalhe do meu rosto e
corpo.
— Você se machucou?
— Como chegou até aqui? — pergunto, confuso.
— Eu ouvi o seu pai falando com sua mãe hoje mais cedo ao
telefone. Ele disse que você sofreu um acidente doméstico e saiu logo em
seguida. Aí... aí eu pedi para que Jorginho chamasse um táxi e conseguisse
seu endereço com alguém... isso não importa agora. Você está bem?
— Quer dizer que veio por que se preocupou?
— Como eu não iria me preocupar, homem? — pergunto,
impaciente.
Ela dá um passo à frente, mas não avança, pois parece que algo a
impede de se aproximar. Suas sobrancelhas formam um arco perfeito com
os olhos preocupados.
Sorrio, embora eu não deva, mas simplesmente ela fica muito fofa
com aquela cara.
Abro os meus braços pedindo por um braço e a encaro.
A princípio, ela me olha com receio, no entanto, mesmo não
sabendo da verdade, ela caminha em direção e tromba contra o meu peito,
circundando os braços em meu tronco.
— Não quero que se machuque — ela fala com a cabeça afundada
no meio peito, enquanto toco seus cabelos e os acaricio com cuidado. —
Podemos esquecer tudo e começar de novo, como irmãos.
Sorrio da besteira que ela diz.
— Ok. Então, podemos tomar um café juntos agora?
Ela levanta a cabeça e fica confusa, então arqueio uma sobrancelha,
então, pigarreio.
— Como irmãos.
— Lauro, nós não podemos...
— Você acabou de me dizer que quer ser minha irmã e agora se
nega a tomar um café comigo. Que tipo de irmã é você? — caçoo.
Ela me solta e assente, envergonhada.
— Tá bem. Mas tem que ser rápido, pois deixei Maria Alice com o
Jorginho e não sei se isso é foi uma boa ideia.

— Como assim não somos mais irmãos? — ela pergunta, afastando


o café para o lado.
Seguro suas duas mãos pequenas em cima da mesa e explico:
— Sei que parece loucura, mas hoje minha mãe confessou que teve
um caso extraconjugal no passado quando estava insatisfeita com o seu
antigo casamento. Eu fui o resultado desse caso, Sol. É insano pensar, mas
nunca realmente me senti filho do meu pai e, de repente, tudo está fazendo
sentido na minha cabeça.
— Não sei o que dizer, eu sinto muito. — Ele acaricia minhas mãos
com um olhar de compassivo. — Como está se sentido?
— Eu estou... — Franzo o cenho, tentando entender o emaranhado
de sentimentos dentro de mim e chego à conclusão. — Feliz. Sei que é
loucura, pois realmente não é uma notícia que ninguém quer receber, mas
não estou pensando no que passou ou que tipo de homem é o meu pai
biológico, todos esses são detalhes para depois. Só consigo ser grato por
não ter mais nada tão forte que nos separe, pois simplesmente não consigo
mais viver longe de você.
Espero qualquer reação sua.
Ela morde o canto da boca e olha para nossas mãos como se tentasse
afugentar os olhos do meu campo de visão.
— Eu te amo, Sol. Sei que nunca verbalizei isso a você quando
estávamos juntos, mas agora percebi que não quero passar um dia sequer
sem dizer isso. Eu te amo.
Ela levanta os olhos brilhantes para mim e um sorriso enorme
ilumina seu rosto.
— Eu te amo. Me perdoe se não tenho tanto a dizer, mas apenas
estou apenas tentando recuperar o fôlego, pois nestes últimos dias longe de
você, cheguei a pensar que teria que conviver com essa dor pra sempre.
— Acabou. Estamos livres para nos amar. Isso é o que eu mais
quero neste momento, amar você livremente, meu amor — digo, enquanto
um sorriso se abre em meus lábios e beijo as costas da sua mão.
Ela faz o mesmo com minhas mãos e observo atentamente, devoto
de cada movimento seu, pois é isso que sou, um completo devoto dessa
mulher.
CAPÍTULO 75

 
Sentada em seu colo, dentro do seu carro parado no estacionamento
da cafeteria, Lauro acaricia meu corpo da perna até o bumbum, descendo e
subindo com as mãos, enquanto sua língua escorrega para minha boca em
uma dança sincrônica repleta de desejo e saudade.
A forma como ele me beija não é igual a qualquer uma que tenha
feito. É um beijo calmo e sem pressa, apenas para matar aos poucos a
necessidade que estamos um do outro. Deus! Como senti falta desse hálito
mentolado e da textura desses lábios.
Embebido pelo desejo, chupo seu lábio inferior e ele separa nossas
bocas, gemendo.
— Eita. Eu te machuquei? — pergunto, preocupada, tocando o seu
rosto.
— Não foi nada. É apenas o hematoma antigo.
Analiso o ponto roxo no canto direito da sua boca e o repreendo:
— Não está sangrando, mas ainda não sarou completamente, Lauro.
Você deveria ter me falado que estava doendo.
— Não me importo. Deixo que chupo seu lábio, ok? — Ele me puxa
pela parte de trás do pescoço e retoma o nosso beijo, sugando minha língua
de forma obscena, levando-me a recordar de seu apetite sexual inesgotável
e da forma que ele me levou à exaustão, diversas vezes.
— Lauro, não podemos fazer isso aqui, meu amor — digo entre
beijos.
Ele finaliza com um selinho, recostando-se na poltrona do motorista.
— Você tem toda razão — ele concorda, olhando-me com aqueles
olhos brilhantes. — Vamos para outro lugar?
— Bem que queria, mas não posso agora — digo pousando minhas
mãos em seus ombros largos e admirando seu rosto perfeito por alguns
segundos. — Deixei Maria Alice sob os cuidados de Jorginho, mas não sei
bem se o Jorginho sabe cuidar de uma criança.
— Ele ainda é um adolescente, certo?
— Parece que ele completou dezoito anos este ano, mas com certeza
não deve ter nenhuma experiência com crianças. Uma hora dessas, Maria
Alice deve estar arrancando os seus óculos escuros do rosto dele — sorrio,
internamente.
— Dezoito anos? Nossa, quando foi que eu dormi? Parece que foi
ontem que soube da notícia do nascimento desse garoto.
— Amor, aproveitando que estamos neste assunto, por que você e
seus irmãos não o tratam melhor? Sei que ele é filho de outro casamento,
mas Jorginho é apenas um garoto e, conversando com ele, percebo que ele
se sente mal com essa indiferença dos irmãos.
Ele enrola o dedo em uma mecha de cabelo minha e diz com toda
paciência:
— Não sei se percebeu, mas não sou mais irmão do Jorginho.
— Mas você pode falar com os seus irmãos, não é?
— Não sei se notou também, mas os meus irmãos também são seus
irmãos — fala, franzindo o cenho. — Isso é mais complicado do que
parece.
— Mais complicado que matemática e eu sou um fiasco em
matemática — digo, mordendo o canto do lábio inferior, ele sorri com
minha cara em confusão.
— Retomando o assunto, posso fazer isso por você, mas não
prometo que eles irão mudar com o garoto. 
Sorrio enchendo o seu pescoço de beijinhos.
— Sabia que você é o melhor homem por quem eu poderia ter me
apaixonado? — digo afastando o meu rosto e o olhando dentro dos olhos.
Ele chega mais perto da minha orelha e sussurra:
— E você a mulher mais generosa, linda e gostosa que já cruzou o
meu caminho. Eu tenho muito orgulho de você, meu amor. — Ele beija
minha bochecha e completa: — Vamos indo? Estou louco para reencontrar
minha filha.
— Só se for agora.
Planto um selinho em seus lábios e saio do seu colo, pulando para o
banco do carona.
Puxo o cinto de segurança e no instante seguinte aliso meu vestido
abarrotado na barra, quando meus olhos recaem para o sangue que escorre
pelas minhas pernas.
Minha espinha gela. Toco a minha pele e atesto que é sangue
mesmo, e Lauro me pergunta ao lado:
— Tudo bem, amor?
— Eu estou sangrando — digo, envergonhada.
— Você não está em seus dias? Quer ir ao banheiro agora?
— Mas está longe... — Minha cabeça dá um nó e de repente, aquele
enjoo chato que me persegue nos últimos dias me acerta novamente. —
Licença.
Abro a porta e salto para fora do carro, vomitando tudo em meu
estômago. Lauro sai do carro e me ajuda segurando os meus cabelos.
Depois de colocar todo o meu almoço para fora, ele me oferece seu
lenço de bolso, e eu limpo minha boca.
— Está tudo bem?
— Sim... não se preocupe, é apenas um enjoo, já vai passar.
— Costuma ter esses tipos de enjoos? — pergunta, confuso.
— Ultimamente, sim.
Viro-me para ele, que está com o rosto sério.
— E você já foi ao médico, Sol?
— Com toda essa adaptação na casa nova, eu ainda não tive cabeça
para sair... espera! Você não está pensando que estou...
— Estou, isso é possível. Sabe disso.
— Meu Deus! E estou sangrando.
— Eu e você vamos agora ao hospital ver isso. Maria Alice vai ter
que ficar com o Jorginho mais algumas horas.

 
— Eu tenho duas notícias, casal. Uma é boa. Outra é ruim. Qual
vocês querem que eu diga primeiro? — pergunta a médica loira.
— Comece pela boa. Por favor, doutora — respondo, ansiosa.
— Solange Oliveira, parabéns! Você está grávida de quase dois
meses.
Olho para a médica esperando que ela comece a rir pela piada, mas
a vejo bem séria para alguém que faz esse tipo de coisa.
Sabia que existia a possibilidade de estar grávida, no entanto, um
profissional me confirmar isso me dá um pouco de medo e frio na espinha,
pois não nunca imaginei que fosse engravidar aos vinte e dois anos.
Lauro cobre minha mão para que eu me acalme e me fita com um
olhar tranquilo. Somente assim, meu coração se acalma.
— E a outra notícia? — Lauro pergunta.
— Solange está com um sangramento. Durante as primeiras
semanas de gestação, 20% a 30% das mulheres têm sangramento vaginal.
Em média, metade dessas mulheres, a gravidez termina em aborto
espontâneo.
— Isso significa que vou perder o bebê, doutora? — Meu coração
aperta lembrando do aconteceu com minha mãe no passado.
— Não necessariamente, Solange. Isso quer dizer que precisará de
repouso absoluto, nada de exercícios físicos, festas, álcool ou sexo — ele
cita a última palavra nos entreolhando por cima dos óculos. — Tem uma
série de cuidados que irei prescrever agora em um papel e preciso que siga
tudo à risca.
— Ela seguirá, doutora. Meu filho nascerá com vida e muita saúde
— assegura Lauro, encorajando-me com o olhar e me passando a segurança
de que preciso.
— Que bom escutar isso. Geralmente os parceiros que vêm aqui
ficam esmorecidos ao receber a notícia de que ficarão meses em
abstinência.
— Alguns meses são insignificantes perto de uma vida inteira que
pretendo levar ao lado dessa mulher — ele diz, levantando minha mão e a
beijando, com a felicidade brilhando em seus olhos.
Deus! O que foi que fiz de tão bom para merecer esse homem?
CAPÍTULO FINAL

O grande dia.
 
Dois anos se passaram desde que Lauro e eu decidimos viver juntos
nossa história e, desde então, passamos por uma gravidez difícil e acabamos
adiando o casamento para nos dedicarmos ao nascimento de João Manuel,
nosso outro tesouro e milagre.
No entanto, finalmente, o dia de trocarmos aliança chegou e pareço
tão nervosa, que nem parece que já vivo há alguns anos ao lado do meu
noivo.
— Estamos indo na frente com Fernando, Sol — diz Cláudia,
levando meu João no braço e segurando a mãozinha da minha doce Maria
Alice, que esticou muito nos últimos dois anos e se tornou um anjinho de
franjinha.
Ela está igual a uma princesa dentro daquela roupa de dama de
honra e tenho vontade de morder suas bochechas, de tão fofa que ela está.
— Vou com a senhola. — Maria Alice corre para mim e se agarra na
barra do meu vestido estilo princesa.
— Fiquei sabendo que lá na igreja tem uma brinquedoteca para
crianças que esperam a noiva chegar, Alicinha.
— Brinqueloteca?
— É um espaço repleto de brinquedos — Claudia convence.
— Tem escorrega?
— Nossa! Lá tem um bem legal. Então, vamos?
Olho para minha princesa e sorrio ao vê-la se render, correndo de
volta para o lado de Claudia, a mulher que virou algo mais próximo do que
uma mãe para mim.
Caminho até elas e estalo um beijo nas bochechas das minhas duas
princesas.
— Eita, povo cheiroso! — exclamo e Maria Alice sorri.
— Saia daqui a dez minutos, Sol. Acho que não cai bem a noiva
chegar antes do noivo — Claudia me aconselha.
— Mas espera, mulher. E eu vou com quem?
— O Jorginho já está lá embaixo esperando você, também a dona
Vera me contou por telefone que o Lauro já está a caminho.
— Obrigada, Claudia.
Trocamos olhares e tento não me emocionar.
— Não vá chorar, hein?
Olho para cima, controlando minhas lágrimas e engulo o choro.
— Não chorarei. Prometo — digo com a voz embargada, feito
manteiga mole.
Ela beija o dorso da minha mão, que transpira de nervoso.
— Você será muito feliz, menina. Ou melhor, você já é muito feliz e
merece tudo isso.
Sorrimos juntos. Ela me lança um beijo no ar e sai com os meus
pequenos para a capela em um sítio, onde escolhemos casar.
Volto a me olhar no espelho e sorrio, não acreditando que vou me
casar com o amor da minha vida.
Após alguns minutos, desço e encontro com Jorginho, que me
espera pacientemente perto da porta com um paletó cinza e seus
inseparáveis óculos escuros.
Ele abre um sorriso encantador assim me olha vestida de noiva e
elogia ao seu modo:
— Você está... formidável.
— Obrigada, irmãozinho!
— Nada mal para uma plebeia.
Sorrimos juntos e tão logo nos direcionamos para a Mercedes
branca parada no jardim. Ele me ajuda com a cauda do vestido e depois
adentra o carro pelo banco do motorista.
— Você tem mesmo liberação para dirigir?
— Mas é lógico. — Ele me mostra o papel verde e completa: —
Chegou semana passada lá em casa.
Sinto todo o sangue sendo drenado do meu corpo.
— Mas você dirige bem, não é?
— Dá para o gasto! — diz, por cima do ombro e dando partida —,
se segura!
Agarro a alça no teto e ele zomba da minha cara.
— Ah, peste! Não vai correr, hein? Eu tenho dois filhos para criar.
Ele arranca com tudo, enquanto o portão automático se abre e rezo
para chegar viva ao meu casamento.

 
Tento não me desesperar, quando vejo aquele pneu furado no meio
da rodovia e Jorginho sorri envergonhado coçando o topo da cabeça.
— Eu disse para você correr!
— Eu não corri, o buraco simplesmente entrou na minha frente.
— Ai, meu pai! Só pode ser uma praga que jogaram em mim. Toda
vez que entro num carro, acontece alguma coisa de errado.
— Então, o problema está com você!
Vou para cima dele e o seguro pela orelha.
— Olha aqui, menino! Se eu não casar hoje, vai se preparando para
o enterro.
Ele se solta de mim e massageia a orelha.
— Calma, Sol. Eu vou dar um jeito. — Ele tira o celular do bolso e
disca um número, mas bufa em seguida. — Droga! Está sem sinal.
— Ai, meu Deus! — desespero-me.
— Calma. Nada de pânico. Eu vou trocar o pneu. — Ele caminha
para o porta-malas e para no meio do caminho.
—  Mas, eu não sei trocar um pneu.
— Ai, meu Jesus! — Volto a choramingar. — Eu já estou até
suando.
— Fica aqui. Vou pedir para um carro parar.
Jorginho vai para o lado da pista e faz sinal com os braços, mas é
inútil, ninguém para. Parece que hoje ninguém mais se compadece do
próximo.
Já se passaram ao menos meia hora desde quando Jorginho desistiu
e abaixou os braços de vez. Porventura, neste exato momento noto um
carroceiro se aproximando pelo acostamento.
— Me desculpe, Solange. Pode preparar o meu enterro.
— Tenho uma ideia — disparo, observando aquele senhorzinho se
aproximar numa carroça modesta.
— Quê?
Caminho mais para frente e paro em frente da carroça, obrigando-o
a parar.
— Oh, mulher! Você está maluca? — resmunga alto o senhor de
camisa verde e chapéu de palha. Ele analisa o meu vestido e logo
questiona:  — O que é isso? Você vai casar?
— Sim, senhor. Nosso carro quebrou no meio caminho e como o
senhor está vendo, tenho uma festa importante para comparecer. Tem como
o senhor nos alugar sua carroça?
Noto que ele se alegra quando coloco dinheiro no meio.
— O senhor mora aqui perto?
Ele aponta para frente e me diz:
— Na fazenda depois daquela placa.
Ele olha para o nosso carro e diz:
— Se quiserem alugar a carroça, não cobro menos de mil reais.
—Dois mil reais? Mas o senhor é muito careiro, visse?
— Então saia da frente que eu sigo o meu caminho.
— Não, não, não! — Abro os braços e concordo: — Tudo bem.
Pagamos esse valor.
Olho para Jorginho e pergunto se ele tem algum dinheiro.
— Desculpa. Tenho apenas no cartão.
— Dá o seu celular para ele.
— O quê?
— É uma garantia de que você vai voltar com a carroça dele mais
tarde e pagar o dinheiro. Dá logo!
— O meu, não. Dá o seu.
— Eu não trouxe celular, cristãozinho. Cuida, dá logo esse celular e
dá a chave do carro também.
A contragosto, ele faz o que eu mando.
— Que horas vocês voltam?
— Apenas ele vai voltar. Espero estar na minha lua de mel daqui a
algumas horas, tranquilamente com o meu futuro marido tomando sorvete
com nossos filhos.
O moço sai da carroça e me ajuda a sentar na estrutura de madeira
que serve como banco.
— Sendo assim, felicidades!
— Obrigada, moço! Pro senhor também. Bora, Jorginho!
O menino se senta ao meu lado e ele seguro as cordas de couro.
— Você tem habilitação para pilotar isso aí? — Jorginho pergunta.
— Não tenho, mas aprendo é agora!
Balanço as cordas com força e a carroça dá um solavanco, então,
dou um grito:
— Ihuuul! É hoje que eu caso. De hoje, não passa — sorrio,
enquanto Jorginho se segura na cadeira de pau, borrando-se de medo. É
agora que ele me paga!

Lauro
Olho para o relógio em meu pulso mais uma vez. Decerto, ele teve
um contratempo. É isso.
Entretanto, quando os convidados começam a se dissipar pelos
arredores da capela, percebo que tenho que fazer algo a respeito.
Desço os degraus do altar, folgando um pouco a gravata azul-
marinho e me direciono para a Claudia, que está cuidando dos meus filhos.
— Sabe por que ela está demorando tanto?
— Não, senhor. Quando saí de casa com os meninos, ela ficou de vir
alguns minutos depois com o irmão mais novo, o Jorginho.
Pego o celular do meu bolso e ligo para ela, mas não obtenho
sucesso.
— Calma, Lauro. É normal que a noiva se atrase — comenta minha
mãe atrás de mim, esfregando sua mão em meu ombro.
— Já passou uma hora, mãe — digo, impaciente. — Alguma coisa
deve ter acontecido no caminho. Preciso do número do garoto. 
— Eu tenho o número dele. — Olho para o lado e noto que a dona
da voz é Raquel. Minha mãe logo se enfeza, dando alguns passos pra trás.
Entrego meu celular para aquela senhora, que digita o número do
filho. Levo o aparelho para a orelha e espero.
— A...
— Jorginho?
— Aqui é... O celular...
— Não consigo ouvir. A ligação está ruim.
— Só um momento, que estou chegando num lugar bom aqui perto.
Está me escutando agora?
— Sim. No entanto, você não é o Jorginho, não?
— Ah, não. — O homem sorri do outro lado da linha. — Meu nome
é Aluísio. Sou carroceiro aqui nesta região perto da rodovia e encontrei
com esse tal Jorginho aí que você está falando. Ele estava acompanhado de
uma mulher maluca, vestida de noiva, que saiu daqui na minha carroça
dizendo que vai casar, e que de hoje, não passa.
Neste mesmo momento, o som de parafusos soltos e rodas se
movendo me levam a erguer a cabeça para a porta de entrada da igreja e
fico perplexo com que vejo.
Uma dama de branco conduzindo uma carroça debaixo do sol
quente.
Desgrudo o celular da orelha, incrédulo com a cena.
— Alô? Ainda aí? Alô?
Encerro a chama e minha mãe caminha apressadamente pelo
corredor na capela dando ordens e resmungando.
— Fechem a porta. Meu Deus, onde está o senso dessa garota? Ela
quer me matar. Eu estou dizendo, ela quer me matar.
As portas se fecham quando nossos olhares se cruzam e não tenho
nenhuma reação imediatamente. Ao invés disso, sou conduzido a dar início
a cerimônia.
Seguindo a tradição, saio e entro na igreja com minha mãe, depois
espero pacientemente Sebastião entrar como padrinho e Vivian como
madrinha.
Sol aparece logo em seguida, ao lado do homem que um dia chamei
de pai. Embora nunca fôssemos tão próximos, é louco saber pensar que
agora ele é o meu sogro. No entanto, meus pensamentos se perdem
exclusivamente na bela selvagem da minha mulher.
Seus cabelos estão inchados e sua pele, reluzente.
Ela está deslumbrante, provavelmente, a noiva mais linda e sexy que
já vi em toda minha vida.
Cumprimento Afonso, como pede a tradição, e direciono toda minha
atenção a Solange, que subtrai o espaço entre nós e captura meus lábios em
um beijo intenso e a pequena plateia na capela suspira em uníssono.
— Pensei que eu não fosse chegar a tempo — comenta contra meus
lábios.
O padre pigarreia atrás da gente e resmunga:
— O beijo é reservado para o final da cerimônia. Por favor,
comporte-se até lá, senhorita.
— Eita! Mil desculpas, padre — ela diz, envergonhada, ajeitando-se
ao meu lado, e me controlo para não sorrir ao notar que há pedaços de feno
no seu cabelo.
O padre dá início à cerimônia, no entanto, lembro das palavras
daquele homem ao telefone e, pela primeira vez, tento reproduzir aquela
cena e caio na risada.
O padre para de falar e me lança o olhar acusativo.
— Desculpe, padre. Pode continuar.
O padre retoma a cerimônia de onde parou, e como se me viesse
uma incontrolável vontade de sorrir em um momento sério, tento me manter
concentrado no que o padre diz, mas falho miseravelmente e explodo uma
risada alta.
— Mas o que está acontecendo aqui? — o padre perde a paciência
comigo, com razão.
— Qual é a graça, amor? — Olho para Sol e ela está com aquele
mesmo olhar doce inocente como quando não entende nada.
— Nada, amor. É que estou muito feliz — sussurro entre risos. —
Eu não poderia escolher alguém melhor para passar o resto da minha vida.
Minha mulher me dá um sorriso enorme, o mais lindo desse mundo.
Atraídos feito ímãs, nossas bocas selam um beijo rápido, em meio
ao suspiro furioso do padre à nossa frente.
— Querem deixar essa cerimônia para um outro dia, talvez?
— Não, padre. Temos que nos casar hoje mesmo. Nós esperamos
tanto por isso.
— Então controlem a boca de vocês, meus filhos!
— Tudo bem. Não vai mais se repetir. — Assinto respirando fundo e
me concentrando para não rir de novo.
Dessa vez, enfim, temos êxito e o resto da cerimônia acontece sem
interferências.
Quando chega a hora dos votos, escuto atentamente as palavras que
escreveu para mim.
— Lauro, meu amor. Assim que o conheci, pensei, minha nossa,
esse homem vai me engolir viva! — ela fala arrancando alguns risos da
plateia. — Criei inúmeras impressões erradas sobre você, mas paguei com a
língua todas elas. Você é um homem honesto e mais justo que conheci. E o
mais sensível também, mesmo que muitos não conheçam esse lado, mas o
conheço e é lindo. Eu te amo, meu amor, e quero viver para sempre com
nossos filhos dentro dos seus braços. — Ela termina com os olhos
marejados. Seguro suas mãos e beijo o dorso delas.
— Eu te amo — balbucio e pego o papel dentro do meu bolso, sem
largar sua outra mão.
— Sol... Tempos atrás, antes de te conhecer, pensava que o amor
verdadeiro era para poucos e eu não estava nesta seleta lista, pois
simplesmente ninguém acendeu o meu peito da forma que você fez, meu
amor. Não é à toa que o seu nome é Sol. O silêncio foi o meu som favorito
por anos, mas com pouco tempo após sua chegada, sua voz passou a se
tornar o que mais queria escutar quando chegava em casa. Essa voz de anjo
falando essas gírias, que muitas vezes não sabia o que significava, mas
venho adorando aprender em sua companhia. Eu prometo fazer você sorrir
todos os dias da nossa vida, pois foi você quem me ensinou a sorrir. Eu te
amo, meu amor, minha luz, meu sol, minha vida.
Uma lágrima escorre pela sua bochecha e a limpo com meus dedos.
Ela segura minha mão e a beija, não me restando dúvidas de que esse é só o
começo de uma vida regada a amor ao seu lado.
— Por favor, as alianças!
A porta de entrada se abre mais uma vez e meu primeiro amor entra
na igreja, em seus quase um metro de altura e pura fofura em um vestido de
princesa.
Maria Alice segura uma cesta e, é perceptível a vergonha ao fazer o
trajeto até o altar. Ela para no meio do caminho, olhando para os
convidados, provocando risos na capela.
— Aqui, pitica. Estamos aqui! — chama Solange, abrindo os braços
para nossa filha.
Maria Alice vira o rostinho em nossa direção e um sorriso ilumina o
seu rostinho perfeito e, em instantes, ela corre até nós.
Solange a ampara com os braços e a enche de beijos, enquanto afago
sua cabecinha.
Pegamos as alianças da cestinha, e Lúcia se aproxima para pegando
Maria Alice nos braços.
Deslizo a aliança em sua mão trêmula e ela faz o mesmo com a
minha, beijando minha mão, o suficiente uma lasciva atravessar me
atravessar.
—Agora sim, o noivo pode beijar a noiva.
Ela sorri levantando os ombros e me aproximo, puxando seu corpo
pela cintura e unindo nossos corpos em um rompante, inspirando a
respiração mais doce.
— Finalmente, minha. Para sempre.
EPÍLOGO

Um ano depois
 
Esgotado.
É assim que me sinto depois de passar um fim de semana inteiro
sem a mãe dos meus filhos.
Solange se matriculou em uma faculdade no início do ano e desde
que começou a cursar Serviço Social, nossas vidas começaram a ficar ainda
mais corridas. Especialmente agora, quando ela teve de ir a um congresso
no Rio de Janeiro e descobri que sou completamente dependente da mãe
dos meus filhos.
Sem ela, tudo se torna mais difícil.
Carrego João Manuel em um braço e seguro a mão da Alicinha com
a outra mão, esperando de frente para o portão de desembarque.
— Pai, como a mamãe vai descer do avião lá de cima?
Sorrio internamente de sua inocência.
— Não, filha. O avião primeiro pousa para depois os passageiros
saírem pela porta lateral que dá acesso a uma escada ou uma passarela.
— O que é passarela, pai?
— Neste caso, uma ponte que liga o avião e o aeroporto.
— Ah! Tendi, papai.
As perguntas de Maria Alice me levam a pensar que devemos viajar
mais vezes. A última vez que andamos de avião já faz alguns anos e ela era
muito pequena.
Lembro-me de que fomos à Brasília naquela época, para que Sol se
consultasse uma obstetra de renome, a mesma que veio a São Paulo trazer o
meu filho ao mundo.
Provavelmente, Maria Alice não lembre dessa viagem devido a sua
curta memória infantil.
— Lá está a mamãe! A mamãe chegou! — Ela começa a pular
animadamente avistando a mulher mais linda do aeroporto saindo pela porta
de desembarque. — Mamãe!
Maria Alice escapa da minha mão e corre em direção a Sol, que abre
os braços e pega nossa menina para no colo.
Sol me avista no instante seguinte e caminha, espalhando beijinhos
pelo rosto de Alicinha. Nós nos encontramos todos em um único abraço, e é
o este o momento que tenho certeza de que sou o homem mais realizado e
feliz desse mundo.
— Como foi a viagem? — pergunto.
— Foi muito boa. Mas melhor ainda é poder reencontrar meu
marido gato e os meus pentelhos lindos. — Ela me beija rapidamente. — E
foi tranquilo passar esse final de semana sem mim?
— Tudo sob controle — limito-me a dizer.
— Mãe, a senhola nem sabe. A chupeta do João Manuel caiu no
chão e o papai nem colocou na água quente, só lavou com água mesmo e
deu de volta — Maria Alice me denuncia.
—Você fez mesmo isso, amor? — Solange pergunta, escandalizada.
— Fez sim, mãe. Também tenho outras coisas para contar do papai.
A senhola quer saber?
— Ah, eu quero muito saber, filha.
— O que é isso? Uma delação? — brinco.
Solange joga a cabeça para trás gargalhando, após Alicinha contar
todas as coisas que pedi para ela guardar segredo, voltamos para casa.

Minha mulher sai do banheiro com os cabelos molhados e aquela


camisola preta curta que eu adoro.
— Os meninos dormiram? — ela pergunta, secando os cabelos.
— Sim, acabei de voltar do quarto deles.
Ela larga a toalha e engatinha sobre o colchão, beijando minha boca.
— Muito obrigada, amor. Você tem sido incrível.
— Mesmo com todos aqueles depoimentos da Alice no aeroporto?
— caçoo e ela se diverte, sentando-se ao meu lado na cama.
— Eu fiquei feliz em ter ido a esse evento, eu me senti muito bem,
enquanto estava ouvindo toda aquela gente falando sobre assuntos
importantes. Se não fosse pelo seu apoio, não teria coragem de largá-los
com uma babá em um final de semana. Não agora que o João Manuel é tão
pequeno.
Aliso sua coxa e digo:
— Você tem o tempo que precisar, meu amor. Você foi maravilhosa
dedicando todo o seu tempo aos nossos filhos nos últimos anos. Está na
hora de pensar mais em você e priorizar também os estudos.
— Está até parecendo o Sr. Afonso Trajano falando desse jeito.
— Ah, é? — pergunto, inexpressivo, pois mesmo que esse seja um
assunto superado, sinto-me desconfortável em falar abertamente sobre ele.
— Anos atrás, ele me disse que eu teria que me formar para me
tornar uma Trajano.
— E o que ele lhe disse recentemente quando soube que está na
faculdade? — pergunto com curiosidade.
— Eu percebi que ele ficou meio decepcionado por eu ter escolhido
Ciências Sociais. Ele disse que Administração seria o curso mais adequado
para mim.
— Não ligue para isso, amor. Faça o que você gosta.
— Por isso que eu adoro você, marido.
Ela sorri e monta em cima de mim.
— Não é essa a hora que as crianças dormem e os papais fazem a
festa? — pergunta ela.
Minha esposa espalma as duas mãos em meu peitoral e me olha com
aquela carinha de safada que sabe que não resisto.
— Tenho esperado por essa hora ansiosamente.
Seguro seu bumbum com posse e fito sua boca entreaberta. Roço
nossos lábios e a puxo pela nuca, provando do gosto doce da boca da minha
mulher.
— Sou viciado nesse gosto.
— Lauro...
Escorrego minha língua para a abertura entre os seus lábios,
explorando cada pedacinho da sua boca quente e receptiva.
Resvalo minha boca para o seu pescoço, deslizando as alças da
camisola para o lado, deixando os seus seios à mostra.
Abocanho-o um dos seios com tanto vigor, que minha esposa geme
sofregamente. Faço movimentos circulares em suas aréolas marrons,
provocando-a, saboreando-a e testando os seus limites. Afasto o rosto e
admiro os bicos estão duros e empinados, pedindo por mais.
Neste instante, o som do meu celular recende pelo quarto, mas o
ignoro completamente, concentrado no corpo delicioso da minha mulher.
No entanto, a pessoa que me liga é insistente e liga uma segunda
vez.
— Lauro... — Solange diz entre gemidos. — Pode ser importante.
— Cacete! — Levanto o meu rosto, irritado, com o pau
completamente duro.
Acho bom o filho da puta que está me ligando tenha um bom motivo
para interromper a foda de um casal pais de crianças pequenas.
Leio no visor o nome do desgraçado, enfezo a cara e atendo.
— Alô! Lauro? Irmão?
— O que foi, cacete? Seja rápido, Sebastião!
— Eu preciso da sua ajuda, cara! — noto o desespero em sua voz e
temo que algo de muito ruim tenha acontecido.
— Ajuda?
Olho para minha esposa que está com uma expressão de
interrogação no rosto, então, decido pôr no viva-voz para ela possa ouvir
também.
— Cara, não sei como aconteceu, mas acabaram de deixar um bebê
em um cesto na porta da minha casa.              
— Como assim? — Solange balbucia, tão surpresa quanto eu.
— Não sei se isso é algum tipo de brincadeira de algum amigo ou
alguma maldição, mas eu não vou ser pai — o desespero se apodera da sua
voz e posso reproduzir na minha cabeça a imagem daquele cagão quase
chorando. — Quem quer que tenha deixado esse bebê aqui, vai ter que
pegar de volta. Eu, pai? A pessoa que fez isso só pode ter merda na cabeça.
Quem em sã consciência daria uma criança para eu cuidar? Isso não pode
estar acontecendo comigo. Amanhã mesmo procurarei a polícia, o conselho
tutelar e o escambau, mas não fico com essa criança. Eu não vou ser pai,
ouviu? Isso, nunca. Nunca!
NOTA DA AUTORA
 
Querida leitora, muito obrigada por acompanhar esta história até
aqui. Como previsto nas últimas linhas do epílogo, a próxima história a ser
contada da família Trajano será a de Sebastião, um mulherengo indomável
com os dias contados. Espero você nesta próxima aventura, e gostaria de
pedir para que deixasse sua avaliação. Ela é muito importante para o
meu trabalho.
 
Muito obrigada por ler meu livro!
Um enorme beijo. Ângela Maria.
 

[1]
Maneira carinhosa de se relacionar com a mãe
[2]
Pequena. Forma carinhosa da Sol chamar Maria Alice.
[3]
Expressão de espanto, que equivale a “Ai, meu Deus!”
[4]
Expressão popular do Nordeste para se referir a uma pessoa do sexo masculino
[5]
Xeretar
[6]
Homem muito alto
[7]
Calada, quieta.
[8]
Criança
[9]
Muito zangado

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