Você está na página 1de 450

Copyright © 2023 LÁIZA DE OLIVEIRA

Todos os direitos reservados.


Criado no Brasil.

Diagramação e Editoração de capa: Láiza de Oliveira


Revisão: Mayara Machado (@revisoesdamay)
Ilustração: Nanda (@calorethorn_arts)

Esta é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as pessoas.


Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são
produtos da imaginação da autora.
Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é
mera coincidência.

Esta obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua


Portuguesa.

São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer


parte dessa obra, através de quaisquer meios — tangível ou
intangível — sem o consentimento por escrito da autora.

A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei n°.


9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Aponte para o QR CODE e ouça a playlist

Ou clique aqui
NOTA DA AUTORA
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
CAPÍTULO 37
CAPÍTULO 38
CAPÍTULO 39
CAPÍTULO 40
EPÍLOGO
BÔNUS
AGRADECIMENTOS
OUTRAS OBRAS
SOBRE A AUTORA
a cada infância perdida.
a cada menina maculada.
a cada menino molestado.
a cada criança julgada.

que os seus opressores queimem no inferno, assim como todos


aqueles que optaram pelo silêncio. eles são tão responsáveis
quanto os próprios abusadores.

nem todo anjo é mau, mas todo anjo conhece Lúcifer.


“Basta despertar o mal no coração, que qualquer um pode se tornar
um assassino.”
Copycat Killer – Netflix
NOTA DA AUTORA
Obrigada por ter escolhido Nêmesis para te acompanhar nos
próximos dias, para alguns são horas rs
Preciso deixá-los avisados sobre todos os assuntos abordados
durante a história. Se algum dos temas abaixo gerar qualquer
incômodo ou gatilho, peço que não prossiga para o bem da sua
saúde mental!
Dito isso, em Nêmesis você vai encontrar: abuso físico e
psicológico; necrofilia; abuso infantil não gráfico; tortura
explícita; heresia; blasfêmia; assassinato; uso de
entorpecentes; menção e tentativa de suicídio; relacionamento
conturbado e nenhum pouco saudável; sexo explícito e
palavras de baixo calão.

Vale ressaltar que não corroboro com grande parte das decisões
dos personagens. Mas quem manda nessa história é Lilith e Athos e
eles podem tudo, inclusive fazer justiça com as próprias mãos.

Boa leitura.
PARTE 1
Antigo Testamento
ressentimento
1. ato ou efeito de ressentir-se
2. mágoa que se guarda de uma ofensa ou de um mal que
se recebeu; rancor.
PRÓLOGO
PASSADO

“Deus está aqui, aleluia...”


Será?
Caminho pelas calçadas sujas do centro da cidade, tomando
cuidado para não pisar em nada que possa me levar a uma queda,
enquanto ouço a cantoria dentro da pequena igreja.
Mais à frente vejo o ponto de ônibus, ao lado do pequeno
templo, com umas dez pessoas aguardando a chegada do
transporte coletivo, e elas parecem cansadas, estão com os ombros
curvados ao tempo em que a impaciência as consome, uns com os
pés batendo no chão de maneira insistente, outros esticando os
pescoços, alongando os braços e verificando se o ônibus se
aproxima.
Nem a menção sobre a presença d'Ele, através da música
entoada em desarmonia, mas repleta de vigor, as deixam felizes.
O sol do meio-dia queima, atravessando a fina camada de
roupas que uso, deixando-me suada em poucos segundos, a
mancha acentuada na camiseta branca, logo abaixo das axilas,
torna evidente o clima desértico da cidade, porém nem esse verão
escaldante é capaz de tirar a alegria que carrego dentro de mim.
Um sorriso toma meus lábios diante dos incontáveis
pensamentos que surgem em minha mente, o que destoa das
pessoas no ponto de ônibus.
Segunda-feira começo a trabalhar em uma grande empresa de
advocacia, tudo bem que o cargo é para Jovem Aprendiz e o
salário… bom, não é nada animador, mas é meu primeiro emprego.
O passo inicial para conquistar minha independência e, se tudo
correr bem, dar uma infância melhor para minha irmã.
Foi por causa dela que decidi ir atrás de um trabalho decente,
antes de aceitar o convite de dona Lourdes para me tornar uma de
suas meninas.
Foi por Daiane que andei mais de sete quilômetros para poupar
o dinheiro da volta.
É por ela, minha irmã, a pessoa que mais amo na vida.
Diferente de mim, não quero que Dai veja cada homem que
mamãe leva para casa em troca de mais uma picada no braço, nem
que repare que, enquanto a substância percorre as veias dela
rápida e certeiramente como os atletas na São Silvestre, o amigo
dela me obriga a brincar com ele.
As memórias me puxam para o fundo de um oceano denso e
obscuro, ainda que contra a minha vontade. É como se eu estivesse
assistindo à pequena Suiane, separada por uma fina camada de
vidro, enquanto permaneço em meio às águas, encarando a
imagem do ser indefeso, socando a frágil parede com as bolhas de
ar escapando da minha boca e subindo para a superfície.
Na primeira vez que aconteceu, contei para mamãe o que o
homem fez comigo, ainda sentindo dor e com sangue escorrendo
entre as pernas, recebi um tapa em resposta, por ter aberto a boca.
Ela disse que deveríamos agradecer já que o amigo estava
bancando a casa e, a partir daquela semana, depois que a porta do
meu quarto era fechada por ele e mamãe viajava em alucinações no
sofá esburacado da sala, acreditei que essa era a vida que eu
merecia.
Que mamãe e eu merecíamos, afinal, até o papai tinha nos
abandonado.
Até que Daiane nasceu e os homens maus continuaram
visitando nossa casa. Eu entrava no banheiro encardido de chão de
barro e fazia uma prece tão forte que até hoje funcionava.
“Papai do céu, não deixe os amigos da mamãe brincarem com a
Dai, machuca e eu não quero ver a minha irmãzinha sentindo dor.
Por favor, amém!”
Eles nunca mexeram com ela, o que significa que a prece
funcionou.
Paro ao lado de uma senhora agarrada em sua sombrinha,
tentando se esconder do sol enquanto eu tento fugir das terríveis
memórias, acompanho uma gota de suor que escorre em seu rosto
enquanto segura a alça da sacola plástica.
O logo da farmácia popular brilha contra a claridade, sondo o
conteúdo quase certa de que metade da aposentadoria dela está ali,
gasta com remédios.
Envelhecer deveria vir acompanhado de um vale, um benefício
gordo o bastante para arcar com as despesas médicas:
Vale Fratura.
Vale Remédios.
Vale Fralda Geriátrica.
Vale Cuidador, Enfermeiro, Hospital, etc...
Até para morrer somos cobrados pelo governo.
Fiquei sabendo que o caixão aonde dona Sebastianinha foi
enterrada, que morreu semana passada, com quase noventa e oito
anos, não teria saído por menos de três mil reais se a prefeitura não
custeasse o enterro para a população mais humilde.
Claro que foi o mais simples, por que pagar caro em algo que
será comido pelos insetos? Que vai apodrecer e servir de casulo
para ossos envelhecidos e esquecidos?
Paro de encarar a sacola plástica no momento que ouço o
chacoalhar de um chaveiro, de imediato prendo a respiração,
mesmo sabendo que não há motivos para temer, pelo menos não
aqui, no centro da cidade, no meio dessas pessoas e,
principalmente, em frente à pequena igreja.
Contudo, a sensação agoniante, uma velha conhecida, parece
me cercar, envolvendo braços e pernas em seu aperto mortal e me
carregando para o abismo.
Puxo o precário ar embaixo desse sol terrível, minha visão
misturando as águas do profundo oceano com o deserto da cidade e
viro o rosto para a entrada do templo.
Na porta, um senhor todo vestido de preto cumprimenta os fiéis
que saem sorrindo, a mão livre continua a balançar o molho de
chaves e as peças de metal batem umas nas outras, produzindo o
som mais doloroso do mundo.
A melodia mortal...
Não preciso perguntar para mais ninguém no ponto de ônibus
para ter a certeza que apenas eu consigo ouvir essa maldição.
Está tudo bem, não é ele. Não é o anjo mau.
Sondo o rosto do obreiro, vasculhando qualquer vestígio do
homem que me assombra mais do que qualquer um e não encontro
nada.
Noto minhas costas empapadas de suor enquanto assisto a cena
através das grades enferrujadas do portão da igrejinha.
Não é ele, eu sei, mas identifico certas semelhanças...
Aqui eu estou protegida. Daiane está segura em casa, Ele
prometeu!
A primeira semelhança: o maldito chaveiro balançando.
Depois de quatro anos, só é preciso um mero chacoalhar das
chaves para que eu saiba de sua presença em casa.
O barulho se tornou o meu aviso de perigo, ele nunca mostra o
molho, mas o sacode dentro do bolso da calça enquanto entra em
meu quarto.
O homem faz questão de reparar em todos os detalhes do corpo
infantil de Daiane antes de ela ser convidada a se retirar do cômodo.
“Ela vai ficar ainda mais bonita do que você, anjinho.” Fecho os
olhos diante da lembrança de sua voz asquerosa, dos lábios finos e
ressecados, carregando o sorriso de um vencedor.
Dou um passo para trás, trombando em alguém, e volto a
encarar a porta do templo. No entanto, a confusão mental me faz
observar tudo ainda através da parede de vidro dentro do oceano.
A segunda semelhança faz meu estômago embrulhar: o obreiro
abre os botões das mangas da camisa social antes de fechar a
igreja.
A cena é idêntica, toda vez que o anjo mau está pronto para
brincar, ele dobra as mangas com tanta tranquilidade que parece
estar se preparando para entrar em um parque de diversões.
Nunca fui em um, mas ele prometeu me levar por meu excelente
comportamento.
Apoio a mão no muro assim que a última semelhança parece
sugar o restante das minhas forças.
Depois de fechar a igreja, ele caminha pelo curto espaço entre a
porta e o portão, mas o que faz uma lágrima involuntária escorrer
em meu rosto é a visão da bíblia embaixo do braço.
“— Anjinho, hoje você vai aprender sobre Efésios, capítulo dez
— o anjo mau diz que é um livro sagrado, por isso, sempre que eu
leio preciso estar de joelhos.
— Quan-quantos versículos, senhor? — Com cuidado para não
derrubar o objeto valioso, o coloco em cima da cama antes de me
ajoelhar no chão áspero.
As cicatrizes em meus joelhos se tornaram tão fortes que é
possível sentir uma elevação no local.
— Só pare de ler quando eu mandar, anjinho.”
Às vezes terminava de ler o livro indicado, mas ele não havia
terminado ainda, então eu começava o próximo, sussurrando as
palavras estranhas, sentindo dor na garganta e nos joelhos...
... e no meio das pernas.
Não sei em que momento comecei a entender o que acontecia
comigo, que aquilo era errado, quando foi que compreendi que era
diferente das outras crianças toda vez que mamãe recebia seus
inúmeros namorados, não sei quando percebi que a minha infância
foi roubada no segundo em que invadiram meu corpo pequeno e
frágil e me machucaram...
... me usaram e abusaram...
... me engravidaram e assassinaram as crianças que mal
puderam se desenvolver dentro do meu corpo infantil.
Por mais que eu tente, não consigo desviar os olhos do obreiro,
que agora sorri para uma menininha no portão.
Enquanto os sons ao meu redor se tornam dolorosos aos meus
ouvidos, assisto ao homem acariciar a cabeça da criança e ela não
parece ter medo ou repulsa, talvez ele seja diferente dos outros, ou
quem sabe a menina ainda não entenda, como aconteceu comigo.
Mas ela não está com medo. Não, não, não... Nem todo mundo é
um monstro, nem todo anjo é mau.
A menina me lembra Daiane, tão inocente e cheia de vida,
enquanto minha irmã sorrir e estiver em segurança, cada dia
vivendo naquele inferno valerá a pena.
Puxo o ar quente para os meus pulmões e limpo o rosto, ainda
de olho neles.
Pai e filha?
Nem todo anjo é mau.
Balanço a cabeça, envergonhada por ter julgado o homem, mas
não tenho culpa, minha vida foi moldada dessa maneira: desconfiar
e depois, a muito custo, acreditar.
Arrasto as pernas, voltando para perto da senhora com a velha
sombrinha e sua sacola cheia de remédios, ouvindo a menina rir.
Sua risada dura cinco segundos no total.
Para a maioria das pessoas, esses segundos não são nada, mas
no primeiro segundo, por ainda estar com a mente soterrada em
medo e insegurança, não ouço os pneus cantarem.
No segundo seguinte, não presto atenção na sirene berrando em
algum lugar, apenas encaro o céu.
Fogos de artifício a essa hora?
No terceiro segundo, busco pelas luzes brilhantes no céu, mas
os sons se tornam barulhentos e anormais, o sol do meio-dia não dá
trégua e queima meus olhos assim que varro a imensidão acima de
mim.
No quarto segundo, a risada eufórica dá lugar para um grito de
terror.
Não, gritos...
Para outros, cinco segundos é o preço de uma vida.
Ou, nesse caso, de doze vidas.
No quinto e último segundo, meus olhos cruzam com os de um
homem segurando uma arma, seu corpo quase todo para fora da
janela se estica, ao tempo em que acerta cada pessoa no ponto de
ônibus.
O disparo em meu peito é forte como um soco, o suficiente para
me empurrar para trás, fazendo com que eu bata as minhas costas
no muro antes de cair no chão.
O céu limpo e sem nuvens é tudo o que meus olhos enxergam
antes de uma escuridão anormal pedir passagem.
As águas do oceano imaginário invadem cada parte, afogando-
me, e meu peito queima com o ar que chega em meus pulmões, não
é o suficiente...
Maldito sol do meio-dia!
Acima de todo o barulho e confusão ao meu redor, um choro
sufocado arrepia minha pele, então tombo o pescoço para o lado em
busca do dono da voz e me arrependo na mesma hora.
A visão turva não me impede de assistir a cena de horror.
Nem todo anjo é mau.
— Daiane... — sussurro o nome da minha irmã enquanto
observo o obreiro caído e sangrando, usando seu corpo como um
escudo de proteção para a menina.
Uma pena a bala ter atingido a cabeça dela. Seus olhos sem
vida, fixos no céu quente e azul, carregam o desespero de
segundos atrás.
— Dai... — Tusso sangue, me sentindo sufocar enquanto chamo
por ela.
Quem vai cuidar da minha irmã?
Mamãe nunca nos protegeu, sua maior preocupação sempre foi
ter uma agulha furando seu braço para sentir a droga tirando os
resquícios de consciência, podendo fingir viver em um mundo
diferente.
— O a-anjo mau... — não consigo terminar a frase porque minha
boca é preenchida por sangue.
Sou empurrada para uma escuridão opressora, avisto a bíblia
sagrada suja de carmesim.
Deus está aqui, aleluia...
Só que agora eu tenho certeza de uma coisa, Ele nunca esteve!
Nem aqui, nem naquele banheiro anos atrás quando murmurei
uma prece, nem no mundo.
Dai...
Afinal, que tipo de Deus permitiria que uma criança em frente à
igreja fosse assassinada? Ou que milhares de outras, assim como
eu, fossem abusadas a vida toda?
A bíblia tem sessenta e seis livros, centenas de histórias
narradas em mais de mil páginas, e nenhuma delas conseguiu
salvar as pessoas daqui.
Nenhuma dessas mil páginas vale o preço de uma vida.
Por quê?
A resposta chega a ser tão simples que me dá vontade de
chorar...
Pena eu estar morrendo.
Deus nunca esteve aqui, só o anjo mau...
E agora ele vai atrás da minha irmã.
Eu sinto muito, Dai, mas a vida é injusta.
nojo
1. sentimento de repulsa que algo desperta num indivíduo,
que o faz evitá-lo, não querer tocá-lo; repugnância;
asco.
2. pesar; desgosto.
CAPÍTULO 1
DIAS ATUAIS

— Você sabe o que o Diabo fala quando alguém chega ao inferno?


— questiono em meia voz, deliciando-me com a cena em minha
frente.
O desgraçado, que está envolto por imundícies, eleva o queixo
como se estivesse no controle da situação.
Esses ratos malditos desdenham de nós, mulheres, até mesmo
na hora da morte.
— Bom trabalho? — provoca-me, passando a língua nos lábios
enrugados e ri da própria piada tediosa, contudo seu nariz franze
diante do odor tenebroso.
O imito, deixando meus dentes brancos à mostra, o contraste
com o batom vermelho sempre desperta desejo e luxúria.
Seus olhos acinzentados se fixam em minha boca, como havia
previsto, então dou um passo, aproximando-me do corpo preso às
garras de ferros nas paredes do carrinho.
Desço meu tronco até que esteja na mesma altura que o infeliz e
seguro em seu queixo, a barba por fazer pinica contra a palma da
minha mão.
— Bom trabalho? — repito, fazendo um muxoxo com a garganta,
decepcionada. — Acredito mais em algo do tipo: “Que miserável,
morreu pelas mãos daquela puta!” — O homem cospe em meu
rosto, enquanto puxa as correntes, tentando avançar contra mim.
— Vadia! Meus homens vão chegar em breve e você vai pagar
por tudo isso, putinha de merda — ouço suas ameaças vazias ao
mesmo tempo que tiro um lenço do bolso do traje. De maneira
metódica limpo os vestígios de saliva deixados por ele, calculando
quantos minutos ainda tenho antes do próximo trabalhador bater o
ponto. Confiro a hora no relógio de pulso e sorrio. — Um por um
eles vão te humilhar da mesma forma que está fazendo comigo, sua
vaca. Quando acabarem, quero te ver implorando para morrer.
Apenas dois minutos para a troca de turno, levanto-me então,
disposta a colocar um ponto final nisso.
Depois de horas sondando-o, é fato que não sabe de nada e,
sendo assim, não tem mais nenhuma serventia para mim.
— Sabe por que você vai implorar pra morrer? — O desespero
ao me ver segurando o respirador facial acentua as rugas em sua
pele branca. Dou de ombros, o incentivando a continuar. — Depois
que os meus homens te usarem do jeito que quiserem, sua única
vontade será essa. Ouviu isso, vadia?
— Dizem que pessoas perto da morte costumam falar demais. —
Com o respirador posicionado na testa permito que o infeliz veja o
meu rosto e todo o asco que carrego. — Provavelmente minha irmã
não teve tempo para implorar — balbucio antes de pegar as luvas
nitrílicas e envolver meus dedos, o toque do material gelado
arrepiando a pele.
— Eu já disse que não matei a merda da sua irmã, porra! —
grita, forçando as algemas, a face vermelha de raiva. Quanto mais
ele se move, mais o odor de podridão se sobressai.
— Não, mas você foi um dos que abusaram dela — rebato,
trincando os dentes enquanto as batidas do meu coração se
descompassam. Entretanto, para que todo o meu plano dê certo,
preciso me concentrar. Respiro fundo, permitindo que a frieza
comande outra vez. — Como pôde? Suiane só tinha oito anos
quando você a estuprou. — Agarro o respirador, tampando
parcialmente o meu rosto no instante em que noto meus olhos
lacrimejarem. Aproveito e coloco os óculos pretos de segurança. —
Nenhum de vocês merece perdão.
— Eu vou acabar com a sua vida, sua puta nojenta! — Como um
animal, o homem a minha frente espuma pela boca, puxando as
correntes que o prendem ao seu destino patético. — Vou tirar tudo o
que ama e...
— Minha vida acabou anos atrás, depois daquela chacina. —
Aproximo-me dele, as mãos em punho, contendo a ira fervente
dentro de mim. Minha voz sai abafada pelo respirador e não faço
questão de elevar o tom para que me ouça melhor. — Jamais
encontrarão algo que possa ser usado para me fazer mal, para me
quebrar ou me matar.
Confiro o relógio de pulso outra vez: cinquenta e cinco segundos.
Encaro a figura nojenta ajoelhada e não sinto mais raiva, ou
dor...
Nem ao menos tristeza.
Sinto apenas indiferença diante do que irei fazer, afinal, não é a
minha primeira vez e nem vai ser a última.
— Quando se encontrar com o Diabo, mande lembranças. Diga
a ele que só aceito ir para lá depois que enviar todos os homens
que molestaram Suiane. — Seguro seu queixo com força,
observando-o através da lente dos óculos. Sei que não pode ver
meus lábios, mesmo assim sorrio. — Queime no inferno, maldito.
Ignoro seus gritos, repletos de xingamentos atrelados a pedidos
de desculpas, e caminho até os botões.
Ligo o primeiro, deixando que todo o restante do lixo desça ao
redor dele, enchendo o espaço aonde está ajoelhado.
Aciono o próximo, acompanhando o objeto se mover para dentro
da câmara.
Agora a cabeça do homem é a única parte de seu corpo para
fora, o que foi proposital, eu quero que ele veja a morte quando ela
chegar.
Assim que a porta de proteção é fechada, selando o local e
cortando a voz asquerosa do maldito, aceno e deixo o riso tomar
conta de mim.
— Nos vemos no inferno! — Sem perder tempo, aperto o botão
principal.
As chamas, em seus mais de novecentos graus celsius,
começam a incinerar todo o lixo que encontra pela frente. Nessa
temperatura, ainda que o procurem, não será fácil encontrar
vestígios do molestador, da mesma forma que aconteceu com os
dois anteriores.
Quatro homens entraram naquele quarto anos atrás, três já
estão com o Diabo.
Puxo o capuz, cobrindo o restante do rosto no momento em que
o trabalhador chega, batendo o ponto. Viro-me para ele, estendendo
o braço em cumprimento.
— Noite tranquila? — Todo trajado para o seu turno, identifico
apenas o timbre grosso por baixo do respirador.
— Demais. — Olho para o incinerador que permanece
consumindo os dejetos sem trégua. — Esse foi o último, o mais
nojento de todos.
O trabalhador ri, assumindo o posto.
— Os últimos sempre são. — Ele deposita uma garrafa térmica
cinza na prateleira, acostumado com o dia a dia, então levanta a
tampa, que se torna um copo, em minha direção, oferecendo o
líquido preto que imagino ser café.
— Valeu, mas tô indo nessa. — Finjo um bocejo escandaloso e
ele ri ainda mais. — Preciso de um bom banho pra tirar toda essa
sujeira, e depois de algumas horas de sono.
— Bom descanso, até o próximo turno.
Aceno com a cabeça, distanciando-me dele.
— Até...
... nunca mais.
Antes de sair da câmara, olho para as chamas incessantes
sabendo que o maldito já está nas mãos do Diabo agora. Deixo o
lugar com um sorriso vitorioso nos lábios, passo direto pelo ponto e
pelo vestiário.
Vestida com o traje de segurança, caminho um longo percurso,
passando por diversos trabalhadores em seus setores, que não
fazem questão de olhar duas vezes para mim.
No estacionamento, abro a porta do velho carro e dou partida,
tamborilando os dedos no volante, tiro somente os óculos de
proteção. O sol está nascendo e, com isso, consigo apreciar toda a
vista, a estrada rodeada pelo canavial é tão linda quanto ver aqueles
homens morrerem.
— Que espetáculo... — sussurro, aumentando a velocidade.
Três quilômetros depois, entro no caminho estreito feito semanas
antes e uma euforia toma conta de mim assim que avisto minha
moto, uma Kawasaki Z1000 ABS, em seus cento e quarenta e dois
cavalos de potência.
Estaciono o carro alguns metros à frente e deixo a porta aberta,
me desfaço de todo o traje, jogando as peças no banco do
motorista, chacoalho minha cabeça para que os longos fios
amassados se soltem, sentindo a brisa fria da manhã acariciando
meu rosto.
Troco as luvas, vestindo as minhas de couro, e pego o galão de
gasolina no banco traseiro.
Em um saco plástico junto toda a roupa que usei essa noite, até
mesmo as chaves do carro, e o fecho, afasto-me do veículo
procurando um espaço no solo e jogo o conteúdo na grama baixa.
Despejo toda a gasolina encarando o sol ficar cada segundo
mais destacado no horizonte. Saco o isqueiro do bolso da jaqueta e,
depois de acendê-lo, lanço a caixinha metálica em direção aos
objetos.
Não espero para ver o fogo consumindo os itens descartáveis,
estou ansiosa para correr, então ando em direção a minha moto
com a adrenalina pedindo passagem, querendo ser extravasada.
Enfio o capacete na cabeça, sentindo o cheiro familiar de couro,
e sorrio. Acaricio o tanque preto, limpando as gotículas que a
neblina deixou.
— Vamos nessa, belezinha? — Ligo o motor, apreciando o som
que produz e, de forma inevitável, jogo a cabeça para trás. O vibrar
harmonioso me dando boas-vindas é quase orgástico, junto à
sensação de prazer que a máquina me passa. Aprumo a postura,
fechando a viseira escura, ainda sorrindo como uma boba. —
Vamos pra casa.
Avanço pela estrada com o vento frio da manhã encontrando
lugares em minha roupa para tocar na pele. Acelero acima de cento
e cinquenta por hora assim que entro na estadual, afastando-me da
pequena cidade.
Inclino a coluna para frente e piloto com tranquilidade já que são
quase três horas de viagem e o trânsito está baixo.
É longe o suficiente dos restos mortais do desgraçado.
Entretanto, ainda falta um.
Os últimos sempre são mais difíceis.
As palavras de Suiane no surrado diário invadem minha mente.
Infelizmente, o último será o mais difícil de encontrar, enquanto com
os outros ela detalhou feições, trabalhos e até mesmo os nomes,
nesse ele deixou uma singela frase:
Anjo mau.
Não importa quantos anos demore, encontrarei o desgraçado e o
farei sangrar, implorar para permanecer vivo.
Hoje não me chamo Lilith à toa.
Bufo dentro do capacete quando penso que, na verdade, são
dois alvos: o denominado “anjo mau” e o mandante daquela horrível
chacina.
Fodam-se as outras pessoas mortas no crime, meu único
objetivo é vingar Suiane e, se eu quiser que a justiça aconteça, farei
com as próprias mãos. Não confio na polícia, nem em advogados ou
juízes.
Por causa deles a investigação foi encerrada meses após a
tragédia, eles ignoraram as denúncias anônimas da época,
indicando o cabeça de uma facção criminosa.
As mãos desses homens foram lavadas com dinheiro. Muito
dinheiro...
Estou há anos buscando por qualquer pista que me leve para
perto do mandante, para dentro da facção, mas a maioria foi um tiro
no escuro e só me estressou, até a última que encontrei.
Entro no estacionamento do prédio, depois de percorrer mais de
trezentos quilômetros em um tempo recorde, e desligo a moto,
alongando os braços e sondando o local, contando os carros aqui.
Tiro o capacete e desço da minha máquina, andando até o
elevador, porém, ao invés de apertar o botão para cima, aciono o
subsolo 2.
Minha casa, meu trabalho, o lugar aonde encontrarei o maldito
mandante, o cabeça por trás daquela chacina.
— Bem-vinda de volta, senhorita Lilith. — Sorrio para o
segurança, atravessando o extenso corredor vermelho.
— Alguma pendência? — questiono-o, abrindo o zíper da minha
jaqueta e sendo seguida por ele.
— Nenhuma, senhorita. — Paramos em frente a outro elevador,
o privativo. O segurança gesticula mais uma vez, afastando-se. —
Bom descanso.
Retribuo o aceno, parando no meio da caixa de ferro e
aguardando as portas se fecharem.
Olho para os números na tela acima, depois para o nome do
lugar, refletindo sobre meus próximos passos.
Enquanto o elevador se move para baixo, permaneço encarando
o letreiro dourado neon piscando.
— Espero que você não me decepcione — falo baixo, como se o
nome escrito ali pudesse me responder. Chego ao meu destino,
aguardando as portas se abrirem e, antes de sair desse pequeno
espaço, sussurro com asco e uma centelha de impaciência: —,
Babilônia.
CAPÍTULO 2
O melodioso som do despertador obriga meus olhos a se
abrirem. Através da neblina do sono, encaro a hora em tom
vermelho no visor do aparelho em cima da mesa de cabeceira.
19:00hrs.
Tenho três horas até o início do meu turno no trabalho.
Gosto de ser a primeira a chegar e a última a sair da Babilônia,
no caso, a deixar os andares superiores e retornar para o subsolo.
Desligo o alarme, cessando o barulho persistente, e me deito de
barriga para cima, observando o teto decorado com algumas
pinturas, a cena remete às antigas imagens de anjos seminus.
Contudo, nessa decoração, as criaturas celestiais estão com os
seus semblantes frios e quase diabólicos.
Só faltam os chifres.
Reviro os olhos diante de tais pensamentos, é bem provável que
o Diabo tenha uma aparência angelical, dessa forma, enganar a
nós, meros e miseráveis mortais, ficaria mais fácil, quase como
roubar o doce de uma pobre criança perdida em um parque de
diversões.
Empurro o sofisticado edredom carmesim de setecentos fios
para o lado, sentindo o ambiente frio devido ao ar-condicionado
ligado no mínimo.
— Alexa, frase desmotivacional.
“Frase desmotivacional do dia: se você não consegue perdoar e
esquecer, escolha um. - Robert Brault.”
Solto um riso fraco diante da porcaria que ouvi. Todo dia faço
isso: permito que Alexa encontre essas babaquices para deixar
minha noite melhor.
— Sabe de uma coisa, Alexa? — Viro-me para o aparelho, como
se ele fosse meu melhor amigo e prestasse atenção em mim. — Eu
escolho outros dois: me vingar e não esquecer. O perdão é para os
fracos, para os que ainda acreditam em algum tipo de salvação. —
Bem, foi nisso que me apeguei nos últimos anos, ou não estaria
aqui hoje. Jogo as pernas para fora da cama, prendendo meus
cabelos em um coque desleixado enquanto me levanto. — Quando
a gente vive no inferno há mais tempo do que a consciência dos
próprios anos de vida, essa porcaria de pensamento não faz
sentido. A palavra perdão não existe, apenas vingança e morte.
Retiro a camisola de seda preta enquanto caminho até o
banheiro conectado ao quarto, largando-a no chão lustroso. O frio
arrepia os pelos dos meus braços desnudos, provocando um
choque contra o calor de segundos atrás, quando estava envolvida
com o edredom.
— Alexa, recomende uma música. — Paro em frente à bancada
de granito cinza do banheiro, observando minha pele bem hidratada.
“Tocando: Oh, Lord, da banda estadunidense, In This Moment,
no Amazon Music.”
— Sério esse nome? Puta merda! — Gargalho, atenta à
introdução.
A letra passeia entre uma crítica a um ser superior e a certeza de
estar lutando sozinha.
Tive que me deitar com o Diabo e olhar diretamente em seus
olhos para procurar e, verdadeiramente conhecer, a graça de Deus
e toda a glória dela...
— Você só pode estar de brincadeira com a minha cara hoje,
Alexa — sussurro, apreciando o começo da canção.
Oh, senhor, você não me salvará?
Não me salvará de mim mesma?
— Até parece que foi feita para mim, mas e se eu tiver que
perdoar para ganhar a tal salvação? — Estico os lábios, a
animosidade desenhada na cara. — Nem fodendo!
Pego o bálsamo em cima da pia, abrindo a tampa e, com a ajuda
de uma espátula, aplico uma quantidade generosa no rosto.
Faço meu skincare sem pressa, cuidando do cartão de visitas
que é a minha aparência. Foi por causa dela que consegui chegar
até aqui, mas de nada adianta possuir uma beleza diferenciada se
não souber como aproveitá-la, como usá-la contra os seus inimigos.
Abro a boca, cada instante mais surpresa com o que ouço,
principalmente essa parte em específico:
Oh, senhor, diga que você me ama, sou a Lillith ou sou a Eva?
— Acho que encontrei minha música favorita do momento —
falo, sem parar a limpeza facial. Abro a torneira com água morna e
lavo os vestígios do produto, satisfeita.
Assim que a música recomendada finaliza, comando o aparelho:
— Alexa, incluir Oh, Lord no Inferno. — Não preciso completar
para que o sistema entenda, já que tenho apenas uma lista de
músicas.
“Incluindo Oh, Lord na playlist Inferno.”
Paro entre o vidro do box e a área da ducha, avaliando o que ela
disse.
— É pecado colocar Deus e o Diabo no mesmo lugar? — Estico
a mão, ligando o chuveiro em temperatura alta, quase queimando a
pele, indo de encontro com o ar frio do quarto.
Entretanto, é somente um reflexo do que sinto ou de quem sou:
um coração tão frio quanto as geleiras presentes no Alasca e com
os desejos tão quentes quanto as profundezas do inferno.
Pensar nisso, me traz à memória o objetivo de estar aqui, na
Babilônia. Quando entrei, meu trabalho era no terceiro andar, um
dos mais leves: foder em cenários provocantes enquanto era
assistida, e isso me excitava.
Não foi ruim e, por conta disso, dava o meu melhor.
Dava mesmo...
Sorrio, encarando minha imagem no vidro ficar embaçada.
Precisava me destacar a qualquer custo. Patrícia, a antiga dona,
enxergou potencial em mim, então o convite para começar
auxiliando na administração veio rápido. Aos poucos, subi alguns
degraus, conquistando a liberdade para conhecer melhor como a
empresa funciona.
O décimo andar não existia no comando de Patrícia, até o novo
dono chegar, um homem que nenhum dos funcionários viu.
Roberta, uma mulher mesquinha e ambiciosa, é a única a vir
aqui, uma vez por mês.
Tudo mudou, e agora... A Babilônia esconde segredos.
Quanto mais alto você consegue subir, mais do seu caráter e da
podridão que carrega dentro de si fica aparente.
Saio do banho, secando o corpo no processo, e paro em frente
ao extenso mapa do edifício na parede do quarto, como se não
soubesse o que cada um esconde.
No térreo tem um gigantesco restaurante ou, como Roberta
disse na primeira vez: “Nosso cartão de visitas.”
No primeiro andar fica a Boate Babel, um strip club leve,
daqueles típicos para despedidas de solteiro.
Ignoro os outros andares e entro no closet com a roupa ideal
para essa noite já em mente. Tiro do cabide o elegante vestido preto
da Fendi, depois escolho um colar dourado da Cartier, assim como
os brincos, e, por último, pego meu scarpin preto Jimmy Choo.
Deixo tudo na mesa de centro, avaliando a combinação
impecável.
Gosto do luxo e não escondo isso, afinal, uma das promessas
que fiz a mim mesma anos atrás foi a de usar o que tem de melhor
no mundo. Matar aqueles pedófilos me causa dor de cabeça.
Mereço mimos por enviá-los ao Capeta, nada menos do que isso.
Satisfeita, começo a me arrumar para a longa noite de trabalho.
Ao atravessar as portas do elevador, sou recebida por Silas, meu
braço direito e guarda-costas particular, como se eu precisasse
disso, mas tive que aceitar muitas coisas e uma delas é tê-lo em
meu encalço enquanto trabalho.
— A noite promete casa cheia, Lilith — diz, mostrando-me a tela
do IPad. Nossos clientes VIPs costumam confirmar presença
através do site exclusivo da Babilônia.
Franzo o cenho diante de algo que chama minha atenção.
— Vai ter alguma coisa diferente no nono andar? Nunca o vi tão
requisitado.
— As pessoas estão cada vez mais devassas, digamos assim.
Encaro Silas, movendo a cabeça em negativa.
— Para uma coisa tão nojenta? — Afasto-me, caminhando pelo
restaurante com ele junto.
— Elas não acham nada disso nojento — ri baixo, bloqueando a
tela do aparelho. — Quanto maior for a perversão, mais a Babilônia
fatura.
— Dinheiro nenhum no mundo consegue deixar isso menos
nojento.
Para mim, pelo menos.
— Prefiro isso à encomenda especial — Silas sussurra e não
precisa acrescentar mais nada, ao menos nisso concordamos. —
Faz mais de uma semana que não há procura.
— Eles não estão na cidade. — Paro ao lado de uma mesa,
conferindo os detalhes e ajeitando o vaso central, que estava
minimamente fora do lugar. — Não sinto falta.
Silas respira fundo, passando as mãos pelos braços cobertos
pelo terno.
— Nem eu.
Olho para sua imagem, também analisando se está bem vestido.
Silas é alto, quase dois metros, tem a pele clara, é careca e seus
olhos são verdes. Se eu não soubesse, diria que ele nasceu na
Rússia, Letônia ou na Noruega.
Me aproximo do seu corpo avantajado e posiciono a gravata
vermelha no lugar correto.
— Assim está melhor.
Dou as costas para ele, indo em direção ao elevador, e ouço
seus passos atrás de mim, tão obediente quanto um cachorro
adestrado ganhando pedigree. Assim que as portas se fecham,
Silas abre a boca, o que me faz revirar os olhos.
— Ficou a noite toda fora, Lil — usa o apelido, que diz ser
carinhoso, apenas quando estamos assim, sozinhos. Por mais que
tente estreitar nosso laço, corto qualquer tentativa de amizade. Não
devo envolvê-lo em meus planos, agora que está namorando uma
das nossas dançarinas, menos ainda. — Se a Roberta tivesse
aparecido...
— Mas não veio! — Seu olhar reprovador causa medo na
maioria das pessoas aqui. Dou de ombros, saindo do elevador
quando chegamos ao nosso destino. — Sorte a minha, não acha?
— Lilith...
— Não perca seu tempo se preocupando comigo, Silas. — Um
traço de desapontamento toma sua face, poderíamos ter uma
relação de irmãos se o cenário fosse outro. — Se um dia ela
descobrir, eu mesma resolvo.
Ele assente, desistindo. Silas, melhor do qualquer pessoa aqui,
compreende que há algo obscuro que escondo e nem por isso me
intimido, na verdade, seu silêncio chega a ser uma dádiva.
— Lilith — essa voz aguda me faz suspirar alto e Silas sorri,
afastando-se ao dar de ombros.
— Desgraçado — digo entredentes.
— Oi, Lilith! — Ella se posta em minha frente, dentro do seu
roupão vermelho. Essa é outra que tenta se aproximar sem
sucesso. A garota, já que é alguns anos mais nova do que eu, cobre
a boca com as mãos, de olhos arregalados. — Você está impecável.
— Eu sei. — Começo a caminhar pelo primeiro andar da
Babilônia e Ella vem junto.
Contratada antes da mudança de proprietário, a garota trabalha
um andar acima desse.
— Então, quando vou poder subir até o último andar?
Sua pergunta me faz estancar os passos, atenta. Sondo Ella
com cuidado, procurando alguma informação que tenha passado
despercebida.
— Por que mudou de ideia? Antes você queria ir até o nível seis.
— Aproximo-me dela, encostando nossos corpos e a garota
demonstra medo. — O que sabe sobre o décimo andar?
— Na-nada... — Elevo minha sobrancelha enquanto coloco as
mãos na cintura. — Quer dizer, desde que a Patrícia vendeu o lugar,
a gente sabe que muitas coisas mudaram...
— E? — rosno contra o seu rosto, ficando impaciente com essa
lenga-lenga.
— E-e... a minha curiosidade é maior do que meu senso de
perigo — responde, dando um passo para trás. — Para de fazer
isso, me assusta, credo!
— Você não tem o perfil daquele andar, Ella.
— E o que eu preciso fazer pra conseguir? — A garota é mais
corajosa do que muitos homens.
— Morrer — digo, cruzando os braços. Os lábios de Ella tremem
enquanto suas mãos se esfregam pelo corpo, então começo a rir da
sua cara de assombração. — É brincadeira.
— Fiquei gelada agora, Lilith! — exclama, como se estivesse em
posição de reclamar.
— Esqueça essas ideias idiotas e permaneça no segundo andar,
Ella, entendeu?
Assente, os olhos castanhos escuros brilhando contra o reflexo
das luzes no teto. Como fiz com Silas, dou as costas para a
tagarela, indo conferir o local.
— Espera! — O revirar dos meus olhos quase faz as órbitas
oculares saírem do lugar. — Aqui, fiz isso pra você — diz, pegando
algo do bolso do roupão vermelho.
Alterno a atenção entre seu rosto e o objeto em mãos.
— Que brincadeira é essa?
Ella ri, totalmente à vontade. A garota tem a capacidade de se
recuperar de um susto em segundos, a mudança em sua fisionomia
é drástica, o riso fácil, o corpo relaxado.
— Não é brincadeira, eu mesma fiz isso. Levou algumas
semanas, mas ficou do jeito que imaginei. — Sem avisos, a garota
coloca o objeto em minha cabeça, bagunçando meus cabelos
perfeitamente alinhados. — Uma verdadeira princesa das trevas.
Veja!
Meu corpo é virado para o local aonde há um gigantesco espelho
e vejo minha imagem dentro do vestido justo, além dos acessórios
escolhidos e do batom vermelho, transformando o objeto em algo
elegante.
Objeto não, uma maldita coroa tingida em tons carmesins enfeita
a minha cabeça. Para piorar toda a situação, ela é linda e diferente.
— Desde que te vi pela primeira vez, pensei na coroa. — Ella
joga algumas mechas para frente, cobrindo parte dos meus ombros.
— Gosto de nomes simbólicos e o seu é um dos mais fortes e
significativos. — A garota, centímetros mais baixa do que eu,
aproxima os lábios do meu ouvido, sussurrando: — A bíblia tentou
apagar a primeira mulher de Adão só porque ela se recusou a ser
submissa.
Observo as duas saliências na parte de cima da coroa, imitando
chifres. Sei que não deveria, mas é interessante me encarar dessa
forma.
— Lilith! — A voz de Silas corta esses pensamentos idiotas.
Elevo o braço no mesmo instante em que me viro para o homem
e pauso meus gestos. Atrás dele, vejo Roberta saindo do elevador,
encarando-me com o seu desdém habitual.
No entanto, o que de fato chama a minha atenção, é a figura
taciturna que a acompanha.
A camiseta larga e com vários rasgos deixa à mostra partes do
peito tomado por tatuagens e ele para ao lado de Roberta,
descendo seus olhos azuis por cada parte do meu corpo, como se
eu estivesse nua.
Tiro o objeto da cabeça, arrumando a postura e retribuindo seu
gesto, avalio as roupas feias e fora de moda que usa.
— Quanto tempo, Lilith — a voz doce de Roberta esconde a
verdadeira cobra que é. Perto de completar sessenta anos, o rosto
repleto de plásticas não consegue esconder o avançar da idade, sua
boca com preenchimento exagerado mais parece com a Barbie
humana.
— Oi, Rorô — uso o apelido que detesta e, mesmo com o rosto
tomado por Botox, um leve franzir se torna visível em sua testa.
Silas segura meu antebraço em um aviso silencioso para ir com
calma. — A que devo a honra da sua visita em nosso antro de
perdição? — Ignoro-a, voltando minha inspeção para o homem ao
seu lado. O sujeito, com as mãos dentro dos bolsos, permanece
atento a mim, sorrindo fraco. — Por um acaso eu pareço uma
palhaça para você? — Cruzo os braços em frente ao corpo,
enquanto troco o peso da perna. Ele ergue as sobrancelhas,
inclinando levemente a cabeça e ri com vontade. Reviro os olhos,
cansada dessa merda. — Conheço muitas formas agradáveis de
tirar essa risada idiota da sua cara, sabia?
— Se eu fosse você... — Roberta se cala apenas com um sinal
da mão dele.
— Lilith... — Degusta o meu nome com evidente prazer e sua
voz grossa e baixa ressoa com força entre nós, até Ella, que fala
pelos cotovelos, está em silêncio. — Gostei do... adereço. — Aponta
para o objeto entre os meus dedos. — Coloque outra vez —
comanda com tranquilidade.
Que petulante.
— Quem você pensa que é? — rebato alguns tons acima do que
geralmente uso, perdendo parte da compostura diante desse
canalha atrevido.
— A partir de hoje, eu serei o rei desse lugar — compartilha
enquanto pega a coroa da minha mão sem avisos. O sorriso de
satisfação que toma seus lábios apenas aumenta a irritação em meu
interior. — E você, querida Lilith — Seu hálito quente toca meu rosto
quando se inclina, aproximando-se de mim, sinto o cheiro de menta
exalando. O objeto é colocado no topo da minha cabeça outra vez.
Estico os braços ao redor do corpo, fechando as mãos em punho —,
minha submissa — sussurra em meu ouvido antes de se afastar, a
ponta do seu nariz resvalando no meu. — Nos vemos por aí, Queen.
Demoro alguns segundos digerindo o que acabou de acontecer,
ainda sem acreditar em tal ousadia. Abro a boca, pronta para
colocar esse sujeito no lugar dele, quando a mão de Roberta me
segura.
— Cuidado, Lilith! — Pela primeira vez desde que conheci a
mulher noto uma centelha de medo em sua voz. A encaro, sem
esconder a repulsa em meu rosto. — Esse é o braço direito do chefe
e vai ficar um tempo por aqui.
— Por quê? — consigo questionar, sentindo meus batimentos
acelerados pela raiva que irradia por minhas veias. Acompanho o
olhar de Roberta na direção do homem e travo os dentes.
— Quem sabe? Ordens são ordens. — Roberta me solta, porém
permanece ao meu lado. — Olha, se eu puder te dar um conselho...
— Enfia essa merda no rabo!
— Lil! — Silas se posta em minha frente, escondendo a imagem
do desgraçado mais adiante.
— Que seja, então. — A mulher começa a caminhar e, mesmo
de costas, fala com prazer, retomando antigos costumes: — Boa
sorte sob a direção de Athos.
Athos.
Então esse é o nome do meu mais novo... chefe?
Volto minha atenção para o homem e, antes de virar o corredor,
os olhos dele se fixam nos meus, sua arrogância exalando a
quilômetros e o riso frouxo e cheio de segundas intenções.
Retribuo ao sorriso, mostrando o dedo do meio para o infeliz e
imaginando dezenas de cenários aonde acabo com a vida dele.
Athos não faz ideia de como mexeu com a pessoa errada.
O lado bom é que estou disposta e animada para lhe apresentar
a verdadeira Lilith.
Afinal, não escolhi esse nome à toa.
impetuosidade
1. qualidade, condição ou característica de impetuoso.
2. ato, dito ou gesto impetuoso.
3. característica de quem é rude; rompante.
CAPÍTULO 3
“Seja meus olhos no Paraíso, filho.”
Entro no elevador, acompanhado de Roberta, sondando todo o
espaço e a decoração. No painel, aonde deveria estar os números
dos andares, há somente um leitor digital.
Cada centímetro desse lugar exala luxo, pago com o dinheiro
daqueles pobres coitados.
— É todo seu — Roberta diz cantarolando ao me entregar um
cartão com a logo da Babilônia em destaque. — Faça as honras,
Athos. — Ela nunca perde tempo, jogando aquilo que chama de
charme para cima de mim, mesmo tendo idade suficiente para ser
minha mãe.
Avalio por segundos o objeto em mãos, tentando enxergar
através dele, do plástico duro e tão disputado por muitos.
“Você sabe que não posso ir até lá, então cuide do meu
empreendimento como se fosse seu, Black Horse.”
Aproximo o cartão do leitor e, no mesmo instante, todos os níveis
ficam disponíveis ao meu bel prazer. Aciono o primeiro número na
tela touchscreen, decidido a dar uma geral com calma e entender na
prática como a empresa funciona.
Na época em que ele comprou a Babilônia da antiga dona eu
não me encontrava no país, estava sendo um dos seus inúmeros
peões e minha presença foi solicitada no México.
Peão está errado, acho que em seu jogo doentio sou o cavalo
preto no tabuleiro de xadrez e, cada vez que sou escolhido para
uma partida, fica impossível prever aonde vou parar.
— Ela está aqui — Roberta fala com amargor em seu tom assim
que as portas do elevador são abertas e não preciso questionar
sobre quem é a pessoa que está insinuando.
A figura imponente, parada em frente ao espelho, poderia
chamar a atenção até mesmo do papa, provavelmente ele se
ajoelharia, suplicando por sua benção.
O projeto de coroa no topo da sua cabeça é algo curioso e muito
interessante, contudo são os seus olhos, fixados nos meus, que
me... incomodam.
Mantenho o semblante neutro enquanto me aproximo, ouvindo
como Roberta e ela se tratam.
Aproveito o curto embate para observar sua íris, sentindo meu
sangue esquentar por eu ser esse inútil. Solto um riso fraco em sua
direção, analisando como se comporta e varrendo para longe
minhas inquietações.
— Por um acaso eu pareço uma palhaça para você? — Ela
cruza os braços em frente ao corpo, movendo a perna. Ergo as
sobrancelhas, inclinando levemente a cabeça e o riso aumenta com
facilidade, seu revirar de olhos, demonstrando tédio, é ainda melhor.
— Conheço muitas formas agradáveis de tirar essa risada idiota da
sua cara, sabia?
— Se eu fosse você... — Impeço Roberta de continuar a ameaça
implícita em seu tom de voz, apreciando cada momento.
— Lilith... — seu nome dito de maneira arrastada é como uma
carícia em minha boca. — Gostei do... adereço — Aponto o objeto
que segura com força. — Coloque outra vez.
Estou acostumado a ser obedecido, então o comando sai com
naturalidade.
— Quem você pensa que é? — Ela franze o cenho, arregalando
levemente os olhos já bem expressivos.
Seus orbes...
— A partir de hoje, serei o rei desse lugar — anuncio, o que
parece deixá-la surpresa. Pego o projeto de coroa, satisfeito com
nossa humilde apresentação, entretanto, ainda não terminei. — E
você, querida Lilith — Inclino o corpo, me aproximando dela e o
perfume que usa invade minhas narinas. Encaixo o objeto no topo
da sua cabeça, admirando a imagem quase celestial. —, minha
submissa — sussurro ao pé do seu ouvido antes de me afastar, meu
nariz raspando no seu. — Nos vemos por aí, Queen.
Volto a caminhar pelo ambiente luxuoso, a sola do meu sapato
tocando o chão acarpetado, olho para Lilith por cima do ombro e
vejo que a coroa ainda está no lugar em que deixei.
Assim que estico meus lábios em um sorriso provocativo, ela tem
a ousadia de fazer o mesmo, mostrando o dedo do meio em
seguida.
— Ela vai te dar dor de cabeça, Athos — diz Roberta, segurando
em meu braço, e um suspiro teatral escapa de sua boca. — Não
perca o seu tempo com essa mimada.
— Sei me cuidar muito bem, Rorô — imito a fala de Lilith e sinto
o corpo dela se empertigar, aproveito para me afastar do seu toque
não solicitado. — Você pode ir embora.
Paro na entrada da Boate Babel, assistindo aos funcionários
correrem de um lado para o outro, preparando o local para os
clientes que, em breve, encherão o espaço.
— Mas a gente mal chegou, Athos...
— Se quiser curtir a noite, tô nem aí — Viro-me de frente para
ela e seu rosto está tomado por decepção —, só que agora tenho
Lilith para me acompanhar.
— Mas...
— Não vou precisar repetir tudo o que falei, não é mesmo,
Roberta? — Toco seu rosto repuxado, como se estivesse fazendo
um inocente carinho, até envolver seu pescoço usando de uma
força calculada. Ela nega, balançando a cabeça sem emitir qualquer
som, seus lábios exagerados tremem e percebo os olhos
lacrimejarem. Sorrio e deixo uma carícia real em sua face. —
Agora, suma da minha frente. — Roberta dá um passo para trás, se
afastando de mim com o semblante magoado, mas antes que se vá
de uma vez, dou o último comando: — Mande Lilith vir aqui, preciso
da minha guia particular essa noite.
Ando pela boate, gostando do ambiente mais do que imaginei,
cada espaço foi muito bem aproveitado e a esplêndida decoração
parece avisar aos frequentadores o quão sortudos eles são por
estarem aqui.
Um palco extenso toma toda a parte mais distante da entrada
com diversos aparelhos eletrônicos, espalhadas ao redor da boate
noto mesas e cadeiras, que proporcionam o momento de descanso
dos clientes.
Paro no imponente bar, sondando a gigante parede abarrotada
de bebidas, são centenas de garrafas, cada uma com diferentes
quantidades de líquido, formando um cenário muito bonito. Os
rótulos me ajudam a identificar cada uma delas com facilidade.
— Qual delas vai ser seu esquenta? — O barman encara as
garrafas e depois a mim, enquanto passa um pano no balcão
extremamente limpo. O cabelo Black Power que coroa sua cabeça é
majestoso. — Recomendo começar com um Campari Negroni, se
estiver com dúvidas, senhor.
Leio seu nome no crachá preso ao avental.
— Leonardo — Estico a mão, inclinando o corpo em sua direção.
O barman retribui o gesto, atento a mim —, gostei da sua
recomendação, pode ter certeza de que mais tarde venho atrás
dela.
— Nunca te vi por aqui. — Une as sobrancelhas, fazendo uma
varredura em minhas roupas e, diferente de Lilith, não encontro
desagrado em seu rosto. — Bem-vindo a Babel, acredito que vá
gostar.
— Obrigado, mas não pretendo passar a noite enfiado nessa
boate. — Dou de ombros, colocando as mãos nos bolsos. Olho para
a entrada, ainda sem sinal dela.
Vou ter que te buscar, Queen?
— Conseguiu o VIP... — o homem diz, encaro-o e noto que é
mais para si mesmo ao afirmar com a cabeça. — Até qual andar?
Eu posso ir até o quinto — compartilha com uma pontada de orgulho
na voz.
— Liberado até o décimo.
— Caralho! — Leonardo bate no balcão no instante em que a
música é ligada. Sua voz sai mais alta, quase gritando. — Um dia
vou ter o VIP e descobrir o que fazem nos andares superiores.
— Boa sorte, e... — pauso minha fala quando sinto a ardência
quase diária tomar meus olhos, o incômodo indesejável presente.
Coço com força, mesmo sabendo não ser o ideal, e ignoro tanto
o barman quanto o seu chamado, indo para um canto vazio da
boate.
Detesto plateias quando isso acontece. As luzes piscando com
exagerada velocidade apenas pioram tudo e os flashes me deixam
tonto.
— Mas que porra... — reclamo dessa merda enquanto tiro do
bolso da calça o pequeno vidro com o medicamento.
Abro a tampa com muita pressa, o que me faz derrubar o objeto
no chão. Encaro o teto da boate, enxergando as luzes, e direciono a
ponta do vidro no meu olho direito, então pingo mais gotas do que o
recomendado, sentindo um alívio imediato e afastando a teimosa
coceira.
Apoio as costas na parede com a cabeça inclinada para cima e
os olhos fechados.
Aperto o vidro entre meus dedos, sentindo meu coração
acelerado.
— Porra! — grunho irritado.
— Por um acaso isso é seu? — Contra a minha vontade, fito
Lilith, seu braço está esticado em minha direção, entregando a
tampa do colírio. Pego o objeto, cortando nossa conexão, mas as
luzes da boate, parecendo com as das árvores de Natal, continuam
a me incomodar. — O que aconteceu?
— Não é da sua conta — retruco enquanto guardo o vidro no
bolso.
— Você tá chapado? — A repulsa em sua voz não passa batida.
A mão dela segura meu queixo, me fazendo encará-la de perto. —
Seus olhos estão vermelhos.
Sondo as sobrancelhas bem desenhadas se franzindo e, outra
vez, seu perfume me atinge com o cheiro cítrico no ar.
Meus batimentos permanecem acelerados e saber que,
justamente a mulher perto de mim presenciou parte da minha
agonia, é uma merda.
Então, irritado após o ocorrido, agarro seu pescoço delicado,
empurrando-a contra a parede, mudando nossas posições. Uma
cadeira cai aos nossos pés, o som abafado por conta da música
alta.
— Você é intrometida pra caralho — falo contra o seu rosto e
aumento a pressão. De boca aberta, Lilith tenta se livrar de mim,
batendo suas mãos pequenas em meu peito.
— Me solta... desgraçado, ou...
— Ou o quê? Vai me matar? — Grudo nossos corpos, sentindo o
dela trêmulo. Ou seria o meu? Com a mão livre, tiro algumas
mechas de cabelos do rosto marcante. — Entra na fila.
A ponta de algo gelado pressionando contra o meu pescoço me
põe em alerta, então afrouxo a pegada e é nesse instante que Lilith
ri, descendo a lâmina da faca de forma perigosa perto da minha
carótida.
— Tenho uma ideia melhor — sua voz sai rouca, mas mesmo
assim ela não deixa barato. — Eu posso acabar com essa fila agora
e te mandar pro inferno, de onde jamais deveria ter saído, filho da
puta.
Olho para ela, presa contra a parede, a minha mão envolvendo
seu pescoço e ela não se intimida, pelo contrário, a mulher revida
sem um pingo de medo.
Ela aperta a lâmina, então um fio de sangue escorre, entrando
em minha camiseta, grudando tecido e pele.
— Parece que teremos um excitante jogo pela frente, Queen. —
Suas sobrancelhas se juntam, sem entender a que me refiro. A
irritação que me consumia segundos atrás por conta dos olhos é
deixada em segundo plano. Passo a ponta da língua nos lábios e
ela acompanha o gesto. — O Cavalo vai destruir a Rainha.
Nunca senti tanto prazer em carregar esse apelido e agora farei
jus a ele.
Black Horse.
CAPÍTULO 4
O aperto em meu pescoço cessa no instante em que o
desgraçado agarra minha mão, ignorando o perigo da lâmina.
Sou praticamente arrastada para o elevador mais próximo,
enquanto ouço o burburinho ao redor, sem entender o que acontece,
os funcionários apenas fofocam entre si sem ousar se intrometer.
Athos usa um cartão preto igual ao meu assim que entramos na
caixa de ferro, puxo meu braço, livrando-me da sua pegada nojenta
e meu corpo treme de ódio pela ousadia do canalha, as bochechas
quentes afirmam meu mal humor.
Só não o mato agora pois seria fácil demais. A mancha de
sangue cobrindo parte das tatuagens é a única coisa que me deixa
menos irritada.
Vejo o momento que aciona o décimo andar, encarando-me com
desdém.
— Está vazio, não tem nada para ser visto lá — aviso
entredentes.
— Não pedi sua opinião, Queen. — Fecho os dedos com mais
força no cabo da faca, pronta para ignorar a facilidade de cortar a
garganta dele. — Vamos fazer um tour diferente essa noite. — Se
aproxima de mim e noto a vermelhidão presente em seus olhos, a
parte branca tomada pelo carmesim, contudo seu hálito não carrega
nenhum cheiro além do de menta. — Quero conhecer a Babilônia,
começando pelo lugar mais alto e descendo até o subsolo.
Encaro-o de frente, sem abaixar a minha cabeça, e também dou
um passo, nossos corpos quase colados.
— Cuidado ao se aproximar da parte aberta, nunca se sabe
quando um acidente pode acontecer.
Athos passa a língua nos lábios sacanas, sorrindo como se eu
tivesse contado uma piada, e esse gesto estúpido faz as batidas do
meu coração vacilarem, o que me causa ainda mais raiva dele.
— Gostei de você, Lilith — provoca, alternando a atenção entre
meus olhos e minha boca. O elevador para, anunciando o andar em
que estamos, e ele se afasta, andando de costas sem me perder de
vista. — Logo aprende a obedecer, adestramentos são fascinantes.
Como é possível odiar alguém em questão de minutos?
— Vá para o inferno, desgraçado — rebato, ciente de que ele
jamais conseguiria isso, afinal, a vida fez questão de me adestrar
desde o dia em que nasci.
— E já não estamos nele? — Aponta ao redor e a sua imagem
sombria combina com o ambiente cinzento.
Engolindo, por hora, o meu orgulho, guardo a pequena faca na
tira presa em minha coxa, sentindo seus olhos acompanharem cada
gesto. Ele merece uma morte tão quente quanto a do molestador
por me provocar com essa arrogância, e eu sou muito paciente
quando quero.
Saio do elevador trombando nossos corpos, meus saltos fazendo
barulho no piso de porcelanato preto. Avanço pelo extenso corredor,
verificando as dez portas fechadas, em cada uma há um leitor digital
e somente clientes autorizados possuem acesso.
No final, viro-me para Athos, cruzando os braços e aponto com o
queixo.
— Fique à vontade, chefe, estão todas vazias.
— Uma pena — debocha, indo para a primeira porta, ele usa o
cartão e o painel libera a entrada. Seu corpo grande para no batente
após acender as luzes. — Uma pena mesmo — suspira.
Reviro os olhos e vou abrindo as outras portas conforme ando
pelo local, em uso do meu próprio retângulo de plástico.
— Mesmo que alguma estivesse ocupada, você não poderia
estar presente. É a regra. — Abro a última, iluminando o espaço. —
Diferente dos outros clubes — Mostro a minúscula câmera presa em
um lugar estratégico —, aqui só acompanhamos se está tudo bem
através das imagens.
— E você gosta de assistir, Queen? — Athos passa por mim,
entrando no quarto com as mãos dentro dos bolsos da calça jeans
rasgada. Os intensos olhos azuis se fixam nos meus e noto que a
vermelhidão começou a desaparecer aos poucos. — Ou participou
de...
— Pare com essa merda de Queen. — Aperto os dedos ao redor
dos meus braços para não pular na garganta dele e provocar uma
morte na frente da câmera.
Não encontraria dificuldades para excluir as imagens, entretanto,
sem conhecer quem de fato manda em tudo isso, é melhor me
precaver.
— Por quê? Combina com você e esse seu ar autoritário, como
se fosse a dona da porra toda — ri, balançando os ombros. Sua
cabeça tomba para o lado direito, curioso. — Responda a minha
pergunta, Lilith.
Respiro fundo sem desfazer nosso contato visual. Avalio seus
cabelos lisos na altura do queixo e o loiro escuro brilha em algumas
partes que a luz toca, ao menos o desgraçado cuida dos fios,
porque do resto...
Desço o olhar, conferindo a contragosto as roupas horríveis que
usa e ele aproveita para mudar o foco da conversa com mais
palavras inúteis.
— Você é bonita, Lilith, mas não faz o meu tipo, então nem perca
o seu tempo.
Volto a olhar para cima, deparando-me com a perversão em seu
rosto. Alguém precisa acabar com o ego desse idiota e eu adoraria
fazer isso, confesso.
— O que disse? — questiono com uma delicadeza teatral,
ignorando a provocação.
— O que você ouviu. — Athos sai do quarto e tromba em mim,
reproduzindo meu feito, entretanto ele tem a ousadia de parar ao
meu lado, inclinando-se. Seu sussurrar mexe comigo e não é de
uma forma boa. — Estou apenas me certificando, Lilith, não quero
atrapalhar a nossa excelente convivência de chefe e funcionária. —
Trinco os dentes quando Athos afasta meu cabelo, as pontas dos
dedos deslizando por meu ombro nu, eriçando os pelos da nuca. —
Fria e tensa demais, Queen. Por um acaso já gozou alguma vez
essa semana?
Não dou tempo para ele se preparar, viro-me de frente para o
desgraçado enquanto minha mão acerta o seu rosto.
O estalo reverbera pelo corredor e apenas as nossas
respirações se tornam nítidas. Athos toca o local em que bati, o
semblante com uma centelha de choque.
E... diversão?
— Se você quer continuar com a merda do seu pau entre as
pernas, pense melhor antes de falar. — Espalmo as mãos em seu
peito, empurrando-o, e Athos começa a rir enquanto o empurro
outra vez, conduzida pela fúria que o canalha provocou. — Não me
importo se é o braço direito da porra do dono, na próxima te entrego
para o Capeta, ou melhor, entrego sua cabeça em uma bandeja de
prata com o seu pau enfiado na própria boca.
Afasto-me da sua presença repugnante e chamo o elevador.
Fecho os dedos, enfiando as unhas nas palmas em busca de
controle, mas ouço seu andar atrás de mim, parando perto das
minhas costas.
— Vamos continuar o tour, Queen — diz baixinho.
O Diabo deve estar bem descontente comigo para ter enviado
esse demônio.
Acompanhei o desgraçado em cada nível, optando por apenas
observar enquanto ele checava tudo nos mínimos detalhes.
Minhas noites na Babilônia nunca foram tão longas como a de
hoje.
Cansada e com dor de cabeça, não vejo a hora de me livrar
desse lixo, nem o meu curto intervalo, que aproveito para comer
algo no restaurante da empresa, consegui.
Paro no luxuoso corredor, abrindo os braços, me sentindo a cada
segundo mais ultrajada.
— Subsolo 2, chefe — debocho e assisto as expressões
passarem por seu rosto.
— Quantos quartos têm aqui?
Além de desgraçado, não sabe fazer conta?
— Cinco suítes. — Seguro-me para não revirar os olhos pela
vigésima vez. — Escolha um deles...
— Qual é o seu? — As sobrancelhas estão erguidas e um leve
sorriso presunçoso toma a sua face.
Bom sinal não é.
— Por que quer saber?
— Apenas responda, Lilith — comanda, dando um passo em
minha direção.
Mordo o lábio inferior, meu sangue ferve percorrendo as veias.
— Aquele.
Athos confere a porta de madeira em silêncio, como se
conseguisse enxergar através dela, seus olhos se franzem um
pouco diante da iluminação intensa desse corredor, contrastando
com o chão.
As sombras que as luzes criam no carpete preto trazem uma
atmosfera diferente, como se o céu e o inferno colidissem na
metade do caminho.
O toque final é dado pelos abajures dispostos ao lado das
portas, enviando sua luz vermelha.
— Ótimo, vou ficar com esse, então — diz, indo para o cômodo
escolhido.
— Em frente ao meu? Você só pode estar...
— Boa noite, Lilith — corta-me, abanando a mão em dispensa.
— Não preciso mais da sua ajuda. Depois passo no subsolo 3...
sozinho. Tire o restante da madrugada de folga, eu deixo. — Athos
entra na suíte, porém coloca a cabeça para fora no último segundo.
— Ah, e a partir de amanhã quero te ver trabalhando com aquela
linda coroa.
Então some de vista.
— Vai para o inferno — rosno, perdendo, enfim, a compostura.
— Desgraçado!
Sua risada atravessa a porta, entrando diretamente em meus
ouvidos.
Isso só pode ser brincadeira.
De costas, vou me afastando, cada centímetro do meu corpo
trêmulo, a ira alcança níveis que jamais imaginei serem possíveis.
Entro em minha suíte, trancando a porta antes de derrubar a
chave no chão e ignoro o objeto caído, caminhando em direção ao
closet e tirando os sapatos no processo.
Abro a parte em que os casacos pesados estão e os afasto,
encaro o fundo do móvel por alguns segundos com a respiração
entrecortada e milhares de ideias em mente, então encaixo meus
dedos no espaço feito para isso e, em um único gesto, o fundo falso
sai.
A primeira coisa que vejo é o diário de Suiane e o ignoro.
Observo as fotos dos molestadores desenhadas com um X
vermelho e para os homens que ainda não descobri quem são, há
somente um pedaço de papel com a frase: alvo um e alvo dois.
Arranco um papel do bloco de notas disposto no local e começo
a escrever, minha caligrafia torta por conta da raiva não me impede
de continuar.
Pego um alfinete e prendo ao lado dos demais, só que esse é
diferente dos outros dois, pois nesse tem nome, endereço e até as
peças de roupas bregas se precisar.
Sento-me no banco almofadado, enfim sorrindo com um pouco
de satisfação nessa noite de merda.
— Você mexeu com a pessoa errada, desgraçado...
Alvo três: Athos.
Seu nome ficará lindo cravado em uma lápide, farei questão de
levar flores, melhor ainda, levarei plantas, de preferência carnívoras,
assim, além da certeza de que sua alma estará com o Diabo,
nenhum outro vestígio irá sobrar a sete palmos do solo.
— Alexa, tocar Vigilante Shit.
“Tocando Vigilante Shit, de Taylor Swift, no Amazon Music”
Desenho um delineado afiado o bastante para matar um homem.
Você fez umas coisas ruins, mas eu sou a pior delas.
Teria medo se estivesse na pele de Athos a partir de agora.
Canto junto com a Taylor enquanto deito na poltrona, sentindo-
me bem melhor.
Toda vez que penso em matar um homem, me torno alguém
amigável, feliz e muito lúcida.
Eu não me arrumo para mulheres, eu não me arrumo para
homens, ultimamente eu venho me arrumando para a vingança.
agrado
1. sentimento ou sensação de satisfação, de
aprazimento; gosto.
2. suavidade ao trato, afabilidade, cortesia.
CAPÍTULO 5
Estou exausta, porém sem sono, então aproveito para fazer a
visita semanal mais cedo. Subo em minha moto e a ligo, recebendo
com prazer seu ronco profundo e meu corpo vibra junto à máquina.
Olho para o teto do estacionamento, sentindo-me tão aliviada
que um suspiro escapa pelos meus lábios. Preciso me afastar desse
lugar ou vou acabar cometendo um assassinato sem qualquer
planejamento, um cenário que odeio.
Não que eu já tenha feito isso antes...
Assim que encaixo o capacete no topo da cabeça, algo chama
minha atenção do outro lado do estacionamento, há uma moto, de
um dos modelos mais potentes da atualidade e preta.
Confiro o restante do local, contando os carros e motos dos
funcionários, conheço todos e cada vaga no estacionamento.
Menos essa.
Pelo modelo de alto padrão só pode ser de uma pessoa, alguém
novato na Babilônia. Quando retornar vou atrás de informações e,
se meu palpite estiver certo, será um prazer atormentá-lo.
Nunca se sabe quando um pneu pode furar, ou a lataria ser
riscada sem querer...
Sorrio com malícia diante de tais pensamentos.
Coloco o capacete, ainda de olho na máquina, e saio do local,
pegando a via expressa e acelerando acima do permitido, inclinando
o corpo sobre a moto e ultrapassando outros veículos.
Meu destino não é longe e levo cerca de quarenta minutos para
chegar, contando com um trânsito bom.
Faço isso há quase dez anos, época em que saí do orfanato
Abrigo Santa Madalena Misericordiosa.
Depois da tragédia com Suiane, nossa mãe aumentou
drasticamente o uso de drogas, ignorando por completo a existência
da filha que ficou, até que teve uma overdose.
No hospital, durante a madrugada e sentada em frente à
recepção, recebi a notícia da morte dela e, horas depois, a mulher
que cuidou de mim como uma filha, apareceu. Recebi todo o apoio
que uma garotinha de oito anos, assustada e sozinha no mundo,
poderia almejar.
Se mamãe tivesse morrido antes da chacina, Suiane a teria
conhecido e a amado também.
Pena que não aconteceu.
Estaciono a moto, lendo a placa enferrujada na porta de entrada.
Me irrito quando meus pés tocam o chão esburacado, era para esse
lugar estar em melhores condições, considerando tudo o que a
diretora recebe de mim.
Só não cobro a mulher incumbida disso como deveria porque o
quarto alugado tem tudo o que a senhorinha precisa.
Enquanto a fachada cai aos pedaços, a parte interna está toda
organizada.
Com o capacete embaixo do braço caminho em direção à porta,
fugindo do calor que começa a ficar insuportável, e nem são oito da
manhã.
Aceno para a recepcionista sem proferir palavras e continuo o
percurso familiar. Pelo tempo e investimento aqui, não preciso
esperar pelos horários de visitas como os demais.
Antes de entrar bato com leveza na madeira da porta, e então a
abro.
Pela primeira vez nessa semana, um sorriso real desenha meus
lábios quando a vejo sentada em sua cadeira favorita, observando
as árvores.
Seus olhos carregam uma tranquilidade que eu gostaria de ter.
Me aproximo devagar para não assustá-la, mas a senhora sente
minha presença.
Como vem acontecendo há cada mês, ela demora para me
reconhecer, o peso da idade está cobrando seu preço e roubando
memórias, tanto boas quanto ruins, como um ladrão na calada da
noite.
Sorrio ainda mais, afogando a tristeza que tenta emergir e me
sufocar.
— Dona Jussara — falo baixo, mas é o suficiente para tirá-la
desse pequeno transe.
De boca aberta e olhos arregalados, sou recebida pela única
pessoa que me ama de verdade.
— Daiane, minha filha — finjo não perceber sua voz rouca e
fraca, mais do que semana passada.
Abaixo-me e beijo sua testa, então uno nossas mãos e me
ajoelho em sua frente. Observo o lencinho colorido de seda preso
ao redor de sua cabeça, os fios grisalhos já tomaram conta de
quase tudo, deixando pequenas mechas do castanho-escuro de
antigamente.
— Como foi sua semana? Tomou os remédios que o médico
receitou na última consulta?
Dona Jussara deixa a sua risada gostosa escapar, apertando
meus dedos.
— Pare com isso, menina. Eu tô ótima! — A mão calejada toca
meu rosto, acariciando como sempre fez desde que me conheceu,
então fecho os olhos, me permitindo ter esse único momento de
humanidade. — Minha filha, você é tão linda... — arrasta a fala com
o riso entrelaçado ao timbre baixo e rouco. Volto a encará-la. —
Deve tá cheio de homem querendo casar com você.
Nego e a imito, passando a mão em sua face com poucas rugas.
Sua pele marrom é a mais linda que já vi.
— Já falei que não preciso de homem — resmungo, fingindo
estar brava, e ela abana a mão, dando um tapinha em meu ombro.
— Quero ir embora desse mundo em paz, Daiane...
— Para com essas conversas, a senhora vai passar dos cem
anos. Duzentos, talvez...
Do jeito que é a minha vida, não me surpreenderia se morresse
antes do que ela.
— Que nada, minha filha! Ouve o que essa velha tá te falando —
Dona Jussara segura meu rosto com as duas mãos, erguendo as
ralas sobrancelhas, concentrada —, se não fosse por você, a minha
vida seria solitária e...
— Não fala...
— Eu escolhi não me casar, e até me arrependi anos atrás —
Respira fundo, apoiando as costas na cadeira de tiras verdes,
olhando para fora —, mas quando te vi, tão pequeninha e magrinha
naquele hospital, recebi um propósito. — Abaixo a cabeça,
observando sua saia de linho marrom, sentindo um bolo na
garganta. Perdi as contas de quantas vezes ela repetiu essa
história, no entanto, jamais teria coragem de mandá-la parar. — O
mundo tá cada dia pior, minha filha. Não fique sozinha, se case,
encontre um propósito.
Se dona Jussara soubesse qual é o meu propósito, eu levaria
uma surra, no mínimo, mas só de cogitar sua ausência, minhas
pernas fraquejam. Não posso perder mais ninguém.
— Vou pensar nisso — digo, apenas para acalmá-la.
— Que seja um homem bem bonito e trabalhador, Daiane. —
Seu rosto se franze por alguns segundos enquanto me avalia. É
quase possível ver seus orbes carregados com uma sabedoria
antiga, uma longa vida compartilhando seu amor incalculável. — Ou
mulher, não sei, dizem que tá na moda hoje em dia.
Gargalho com vontade após essa pérola que somente Jussara
poderia soltar e faço o sinal de continência que ela adora.
— Seu pedido é uma ordem, minha deusa.
Levanto-me do chão para sentar em uma cadeira vaga em frente
a ela e fixo meus olhos em sua imagem frágil, outra vez engolindo
um bolo na garganta. Mordo o lábio inferior, apreciando sua
presença.
Se essa senhora soubesse o que eu faço, ainda me amaria da
mesma forma?
Então Jussara começa a narrar histórias da sua juventude,
contando como era disputada pelos rapazes pela vigésima vez e,
pela vigésima vez, eu presto atenção, adorando ouvir sua voz.
— A mais bonita da vila, eles diziam — ri, negando com a
cabeça.
Não temos nenhuma foto antiga dela, mas isso não importa para
mim. Passado, presente ou futuro, Jussara sempre será a mulher
mais linda que conheci.
Seu coração é tão gigante e puro que ela doou um espaço para
a pequena Daiane ficar, e é assim que deve permanecer, farei tudo
o que puder para que ela jamais conheça minha outra face, meu
lado sombrio, inumano.
A alma atormentada de Lilith mancharia tal pureza e a
condenaria ao inferno, eu jamais me perdoaria caso isso
acontecesse.
Mais do que um ritual, estar com ela, minha mãe, é uma maneira
de abstrair tanto minha confusão quanto a nova imagem dentro da
empresa. Ficar perto de Jussara é a forma que encontrei para
recordar de que, sim, eu ainda posso ser amada e homem nenhum
poderá me presentear com um amor puro igual ao dela.
Jussara é tudo o que me restou.
deleite
1. sensação ou sentimento aprazível; satisfação.
2. prazer suave e prolongado, moral ou físico.
CAPÍTULO 6
Meus dedos passeiam pelas dezenas de facas diferentes que
estão dispostas em uma enorme mesa de madeira. O cheiro de
sangue irradia pelo ambiente, despertando meu lado mais
selvagem.
Olho para o teto, deliciando-me com a visão das correntes
presas às vigas de aço.
Não há janelas nas paredes de concreto, apenas grandes tubos
de ventilação proporcionando um clima frio, e esse é, sem dúvidas,
o meu lugar favorito na Babilônia, o subsolo 3.
Aonde a verdadeira diversão vai acontecer, aonde me sinto em
casa.
— Por favor, tenha piedade, Black Horse — a voz atrás de mim
suplica, na tentativa de prolongar seus minutos na Terra, o que é
uma grande besteira, pois seu nome foi condenado no momento
que mandei trazê-lo.
— E por que eu teria piedade de um traidor como você?
Ouço as correntes se moverem em sincronia com o respirar
ruidoso do homem, enquanto ele engasga com a própria saliva,
misturada ao seu sangue.
— Meus filhos, eles...
— Pode ter certeza de que não vão sentir sua falta — digo o
encarando por cima do ombro, presenteando-o com um piscar de
olhos. — Acredite, é um favor que estou fazendo a eles e a sua
esposa. — Elevo a sobrancelha, assistindo quando seu rosto
detonado pelos socos se franze, deformando ainda mais sua
imagem. — Meus homens disseram que ela não precisou pensar
duas vezes antes de dar a sua localização.
A lâmpada conectada ao fio descendo do teto se move, criando
diversas sombras.
— Aquela vadia...
— De agora em diante, aquela vadia não vai mais precisar
esconder os hematomas com maquiagem. — Retorno a atenção
para a mesa e escolho a faca com a ponta mais fina. — Minha
generosidade é tão grande que ela terá um gasto a menos por mês.
Viro-me de frente para ele, vendo-o ajoelhado, com os pés e
mãos presos em correntes, o lábio está rachado e tem uma mancha
escura descendo, mas ele tem a ousadia de sorrir apesar da falta de
alguns dentes se tornar visível.
— Você é só mais um pau mandado dele, Black Horse. — Cospe
em minha direção, sujando meus tênis novos, justo esse par que é
uma edição limitada.
Faço um sinal para um dos meus homens, que chuta sua costela
e então ele começa a tossir, engasgando-se com o próprio sangue.
Abaixo-me, deixando nossos olhos na mesma altura.
— Diferente de você, não sou um peão, a peça mais fraca do
tabuleiro. — Passo a lâmina em meu dedo, rapidamente surge uma
gota de sangue e o líquido quente e espesso escorre sem pressa. O
homem acompanha o movimento enquanto seu corpo treme. —
Sabe o policial que você contatou? Ele, assim como muitos outros,
faz parte da nossa folha de pagamento. Achei que você fosse mais
inteligente.
— Black Horse, escute...
— E eu detesto lidar com gente burra. — Dou de ombros,
entediado por estar perdendo meu precioso tempo com esse inútil.
Agarro seu queixo, mantendo-o no lugar e observando o terror
adorável em seu semblante.
— Piedade... — sussurra ao compreender minhas intenções. —
Por favor, Black...
— Uni, duni, tê — cantarolo, alternando a ponta da faca entre
seus olhos e ignorando os gritos desnecessários. Nenhum Deus virá
para salvá-lo, ele deveria ter sido mais esperto, agora é tarde,
concluo. — O escolhido foi... você.
— Não!
— Segurem a cabeça dele — comando, sem me importar com o
seu falso arrependimento.
É incrível ver a forma como uma pessoa que tem a morte
estampada em sua cara age nessa situação, a maioria não segura a
pose de valentão por muito tempo.
Assim que sou obedecido por meus homens, estico sua pálpebra
ao máximo com a ajuda do dedo indicador e do dedão, avaliando
sua íris e escrutinando o globo ocular que brilha contra a luz do teto,
enquanto se afogam em lágrimas.
Enterro a lâmina afiada na carne macia, girando a ponta com
precisão e cortando a parte correta. Após anos fazendo isso, me
tornei um expert no assunto.
O prazer que esse ato me causa endurece o meu pau, poucas
coisas na vida conseguem causar tamanha satisfação em meu
organismo, mas sentir o globo ocular na palma da minha mão é
fascinante.
Seguro o olho entre os dedos e a camada gelatinosa, assim
como a quentura do sangue, me faz sorrir.
Levanto-me extasiado, analisando a íris sem vida, guardando
segredos jamais confessados, situações vistas e ignoradas.
— Acabem com ele e depois limpem toda a sujeira — aviso,
exausto dessa voz irritante gritando e provocando uma dor de
cabeça em mim, tentando tirar esse momento feliz e só meu, sem
sucesso.
Volto para o balcão, aonde um pote com um líquido transparente
me aguarda, jogo o olho ali dentro e meus dentes ficam à mostra
enquanto observo-o boiar.
Olho para o reflexo da minha imagem no vidro antes de tampar o
recipiente com cuidado e caminhar até a prateleira com os meus
outros brinquedos. Coloco-o bem no meio, em destaque.
Cruzo os braços e os encaro um por um, brincando de adivinhar
de quem são. Enquanto isso, dezenas de globos oculares boiam e
me encaram de volta.
— Senhores — Faço uma pequena reverência aos meus
convidados observadores —, se me dão licença, tenho assuntos
mais importantes a tratar, com todo respeito, é claro.
É como se eles pudessem me ouvir, compreendendo o que falo,
alguns, de uma maneira sinistra, boiam até estarem com as íris
voltadas para mim.
Alcanço um pedaço de pano e, antes de sair, confiro o que
restou do homem sendo colocado dentro de um barril, aonde as
partes do seu corpo serão consumidas pelo produto, deixando
apenas os ossos como lembrança.
Limpo as mãos quando entro no elevador e preciso arrumar a
calça, já que ainda estou excitado. Estou conferindo a hora em meu
relógio de pulso quando as portas se abrem e a figura altiva de Lilith
aparece.
Vestida com roupas de couro e coturno ela me observa com
esgar. Rápida, faz uma sondagem da minha aparência, incluindo o
pano manchado e minhas mãos ainda carregando sangue.
Saio do elevador e ela entra, porém seguro a porta.
— Foi bom te encontrar, Queen — provoco, apreciando quando
o semblante de poucos amigos é transformado pela ira que comecei
a me acostumar.
— Pena que não posso dizer o mesmo. — Coloca as mãos
dentro dos bolsos da jaqueta, olhando com repulsa para as minhas
roupas.
E não é a primeira vez...
Então ela nota o volume considerável na minha calça jeans e
percebo uma certa curiosidade tomando seu semblante, antes
carrancudo.
— Mais uma noite trabalhando juntos, vai ser divertido. —
Afasto-me e espero até o momento em que as portas estão quase
fechadas, conferindo a fisionomia endurecida dela. — Não esqueça
a coroa ou terá sérios problemas, Queen.
— Filho da...
Seu xingamento em meia voz é cortado no instante que o
elevador se fecha, subindo para o térreo.
Entro em meu quarto, passando pela cama e indo direto para o
closet, abro a primeira parte e vejo as roupas de sempre: calças
jeans rasgadas, camisetas largas e vários tênis.
Vou para o outro lado e, assim que afasto as portas, deparo-me
com alguns ternos feitos sob medida. Não sou fã dessa vestimenta,
mas preciso estar pronto para qualquer evento.
Tiro o cabide de aço com a peça dentro de um saco plástico e a
coloco em frente ao meu corpo assim que estou olhando para o
espelho.
— Nesse jogo, o Cavalo é mais forte do que a Rainha... —
sussurro para o meu reflexo, gostando do resultado. — Nada mais
apropriado do que estar à altura dela, e além.
De fato, essa noite promete ser bem divertida.
A Babilônia acaba de se tornar o nosso tabuleiro particular e, até
hoje, nunca perdi uma partida.
luxúria
1. propensão para a sensualidade exagerada;
tendência excessiva ao desejo sexual.
2. concupiscência, lascívia, lubricidade, volúpia.
CAPÍTULO 7
Quando pensei no Diabo com uma aparência angelical, não era a
isso que eu estava me referindo. Parada em frente à porta do meu
quarto, fixo meus olhos na imagem do desgraçado assim que
atravessa o batente do outro lado do corredor.
Dentro de um smoking totalmente ajustado ao seu corpo, Athos
sorri, girando nos calcanhares e dando-me uma visão privilegiada.
— Pela sua cara, sei que gostou — diz convencido.
— Ao menos não vai me envergonhar com aquelas roupas
ridículas outra vez.
Os cabelos loiros estão penteados para trás com a ajuda de
alguma pomada fixadora. Antes mesmo de se aproximar, noto a
fragrância amadeirada preenchendo o espaço e inspiro fundo,
apreciando o cheiro bom sem que ele note.
— Sorte a sua, Queen — o timbre rouco transforma a pequena
frase em um chamado sexy que não suporto e coloco as mãos na
cintura ao ouvir o apelido idiota. — A partir de hoje, vai conhecer um
novo homem.
— Odiei o de ontem e continuo odiando o de agora.
Athos gargalha, muito relaxado para o meu gosto, como se nos
conhecêssemos há anos.
Observo o bigode aparado, assim como o cavanhaque bem feito
no maxilar quadrado, ele pode até usar roupas feias, mas Athos é
vaidoso e deixa isso claro nos detalhes.
Olho para cima quando para a menos de dez centímetros de
mim, afogando-me em seu perfume e, ainda que odeie tudo isso,
noto um leve aumento em meus batimentos cardíacos.
Não sei se foi falta de atenção da minha parte na noite anterior,
por conta da irritação, ou se foram as malditas roupas que
bloquearam uma visão mais detalhada, mas noto que ele é um
homem grande, imponente e que possui uma beleza diferente das
que estou acostumada a encontrar.
Suas íris me lembram do quartzo azul brilhando contra as luzes
do corredor, e não há nenhum resquício de vermelhidão como havia
ontem. Pouco me importo se Athos faz uso de algum tipo de
entorpecente, contudo fiquei curiosa, a maneira como se comportou
acendeu minha curiosidade para encontrar as peças faltantes nesse
quebra-cabeças.
Aquela embalagem é de colírio? Não enxergo lentes em seus
olhos e ainda não o vi usando óculos.
— Você também está linda — debocha após minha fala,
entretanto Athos sonda meu corpo dentro do vestido vermelho
decotado.
A fenda até a virilha deixa pouco para a imaginação. Os
músculos em seu rosto se tencionam levemente enquanto coça o
queixo e observo o torso da sua mão tatuada, assim como a parte
aparente do pescoço.
Seu corpo é todo tatuado? Até onde elas vão?
A lista de questionamentos cresce.
— Vamos? — Athos oferece o braço e levanto as sobrancelhas
em uma pergunta silenciosa.
— Obrigada, mas eu sei o caminho — falo, dando as costas para
ele e me aproximando do elevador em um caminhar calculado,
movendo os quadris.
A risadinha cínica perto do meu pescoço segundos depois faz
algumas mechas do meu cabelo balançarem.
— As damas primeiro. — Inclina o corpo em uma reverência
idiota, me esperando passar.
Analiso os sapatos de grife em seus pés e, pelo solado intacto,
sei que é novo.
Quanto ele investiu na tentativa de me surpreender?
Acompanho o seu cartão preto sendo passado no leitor digital,
então o segundo andar é acionado.
— Mas que merda...
— Onde está sua coroa? — corta a minha fala, virando-se para
mim. Athos tem a ousadia de passar a mão livre no topo da minha
cabeça, desalinhando os fios. — Não estou vendo, nem sentindo —
conclui, trazendo-me de volta para a realidade e varrendo para
longe os últimos pensamentos impróprios.
Dou um tapa em seu braço, indo para trás, o metal frio do
elevador toca as partes expostas do meu corpo, fazendo a pele
arrepiar.
— Nunca mais toque em mim sem o meu consentimento,
desgraçado — exclamo entredentes e agora sinto meu coração
descompassado de verdade.
— A coroa? — Ignora a ameaça, abaixando a cabeça para que
as nossas testas se unam. Seu hálito quente com cheiro de menta é
um tormento, assim como o maldito perfume. — Aonde está a sua
coroa, Lilith?
— Enfiei no seu rabo, esqueceu?
Igual a ontem, sua mão agarra minha garganta, porém sem
apertá-la, ele apenas me prende contra a parede e noto suas
pupilas um pouco dilatadas, quase desejosas.
Fecho as mãos em punhos ao lado do corpo, evitando uma
possível castração. A ponta do seu dedão acaricia o início da
clavícula, despertando outras sensações além da raiva.
— Como pode ter uma boquinha tão suja? — Athos resvala seu
nariz em meu rosto, desconsiderando tudo o que falei, e suas
pupilas dilatadas se fixam nas minhas, provocantes. Ele está
gostando cada vez mais desse nosso joguinho particular. Jamais
vou admitir, mas ter seus dedos agarrados a minha garganta é
excitante. Troco o peso das pernas quando vejo sua mão
desaparecer dentro do smoking e, na mesma hora, seguro a
pequena faca presa em minha coxa, então algo é colocado no topo
da minha cabeça. — Uma verdadeira Queen — sussurra sem ao
menos olhar para cima e conferir o que fez.
O elevador anuncia nosso destino e Athos se afasta como se
não tivesse feito nada, mas meu pescoço sente falta do calor de sua
mão, da pegada firme e predatória...
Que merda estou pensando?
Respiro fundo e, antes de sair, avalio minha imagem no espelho.
As bochechas coradas denunciam a ira que me consome de dentro
para fora.
Olho para minha cabeça e toco a maldita coroa encaixada ali.
Diferente da que Ella me deu, essa é uma verdadeira joia, o aro
dourado envolve pedras vermelhas por toda a extensão do objeto.
Delicada e discreta, a peça quase desaparece entre as mechas
do meu cabelo.
— Lilith! — Reviro os olhos diante do comando prepotente, mas
finjo obedecer.
Enquanto saio do elevador, carregando o adereço, começo a
imaginar uma forma de fazê-lo se arrepender por tudo, já que Athos
quer brincar com fogo, posso mostrar a ele como é queimar sem ser
consumida pelas chamas.
Seguro seu braço, o presenteando com um falso sorriso.
— Tenho uma ideia melhor, chefe — digo, o puxando de volta
para o elevador e não encontro resistência. — Que tal começarmos
pelo terceiro andar?
Não espero por uma resposta e uso meu cartão, nos levando
para o local em que pretendo lhe causar tormento.
Como um veneno, desejo que tudo o que ver a partir de agora se
infiltre em suas veias, correndo direto para o coração, que o vicie.
Seu rosto se franze, sondando-me com cuidado.
— Não confio em você...
— Ótimo! — Dou batidinhas em seu peito sem deixar de sorrir, o
que faz o desgraçado unir as sobrancelhas, sondando cada parte do
meu rosto. — Eu também não.
As portas mal se abrem e o carrego comigo para a perdição.
Excluindo o último andar da Babilônia, em todos os outros há
excelentes bares repletos de bebidas das mais variadas, então faço
um sinal para o barman, sem precisar de palavras, e recebo um
aceno positivo, já acostumado ele prepara meu drink favorito.
— Então você curte observar outras pessoas fodendo? — a voz
de Athos está elevada por conta do som ambiente.
O andar é todo decorado em tons carmesins, com dezenas de
poltronas espalhadas em locais estratégicos. Aqui, o cliente pode
optar por assistir, entretanto, a maioria adora ser assistida e o cheiro
de sexo exala no ar.
Nos encaramos e alargo meu sorriso, adorando cada segundo.
— Também. — Um garçom para ao meu lado, entregando meu
drink. Aceno em agradecimento sem desviar a atenção dele. Coloco
a bebida em sua mão, o incentivando a tomá-la. — Beba, é a minha
favorita.
Athos leva o copo Tumblr até o nariz, sentindo o cheiro e
sondando-me por baixo dos espessos cílios, reviro os olhos e pego
a bebida, ingerindo uma boa quantidade. O sabor do uísque, as
notas da casca de laranja e a lembrança da cereja, são como um
bálsamo percorrendo a garganta.
— Old Fashioned, já provou? — Nega, ainda aparentando
desconfiança. Devolvo o copo, bufando. — Mas é claro, você tem
cara de quem não gosta de experimentar coisas novas e só bebe
cerveja.
— Prefiro cachaça, Velho Barreiro, pra ser mais específico —
diz, erguendo o copo até os lábios e apenas molha a boca,
franzindo o rosto para a bebida enquanto encara o líquido.
— A pinga combina mais com o seu tipo. — Tento pegar o drink,
mas Athos o afasta.
O canto do seu lábio se ergue e um olhar malvado toma conta da
sua face. Ele bebe o conteúdo do copo de uma só vez, encarando-
me.
— E julgar os outros combina muito com você, Queen —
provoca, antes de trombar seu corpo no meu e pedir mais uma dose
para o barman.
Respiro fundo, controlando-me, caso contrário estaria enfiando
minha faca no pescoço do desgraçado agora mesmo.
Observo o andar do voyeurismo, determinada a seguir com meu
plano. Vejo uma cabine ser desocupada, o que me faz sorrir. Ao
sentir a presença dele ao meu lado, toco em seu braço, acariciando
o local.
— Quase esqueci de responder sua pergunta, chefe. — Athos
permanece em silêncio, o olhar preso ao meu. — Você queria saber
se eu gostava de ver pessoas sendo fodidas, mas melhor do que
falar — Faço um gesto para que se abaixe, então sussurro em seu
ouvido: —, vou te mostrar como comecei na Babilônia. — O copo
com a bebida para no meio do caminho e noto um respirar mais
denso escapando dele. — Fique aqui, chefinho, e aproveite o show,
é pra você.
Dou as costas para ele e caminho com determinação até a
cabine vazia que conheço como a palma da minha mão, diante do
tempo passado aqui.
Os gemidos, além dos sons de coisas se chocando, ficam mais
intensos nessa parte, mesmo com as paredes transparentes. Ando
pelo espaço escolhido e, através do vidro, Athos acompanha cada
gesto que faço. Outros clientes também param para assistir, o lado
observador entrando em ação, no entanto, os ignoro.
O desgraçado é o meu único alvo.
Os leds vermelhos nas laterais da cama e do teto deixam o
ambiente em uma penumbra carmesim, essa cabine grita luxúria.
Há diversas opções para o cliente escolher como quer aproveitar
o show ao invés de somente assistir, e uma delas é usar AirPods
conectados ao sistema da cabine durante o ato.
Essa prática mostrou-se benéfica assim que o número de
orgasmos subiu de forma excepcional.
A Babilônia faz questão de estar ciente do potencial oferecido
através de um gráfico minimalista da quantidade de porra despejada
dentro da empresa. Depois de encaixá-los em meus ouvidos, busco
pela música ideal no sistema, lendo as inúmeras canções
disponíveis e aperto o repeat.
As primeiras notas de Devil, de MILCK, tocam e abafam tudo ao
meu redor.
Diabo, Diabo.
Inteligente Diabo, Diabo.
Caminho na batida da música, movendo os quadris enquanto
mordo o lábio inferior, em frente à poltrona escolhida levanto meu
braço e, em um gesto preciso, seguro na ponta do zíper atrás das
costas e o abaixo sem pressa, permitindo que o meu vestido caia
aos meus pés. Apenas de scarpin e calcinha de renda vermelha,
sento-me no estofado da mesma cor.
Olho para frente, cravando minha atenção em Athos, e ele se
aproxima do vidro, mesmo todo trajado com alta grife noto como
parece tenso.
Os quartzos azuis passeiam por meu corpo sem cerimônias e a
cor começa a sumir, dando espaço para pupilas dilatadas, brilhando
contra a luz baixa da cabine.
Apoio a perna direita no espaldar da poltrona enquanto afasto a
outra com minha atenção fixada nele, então começo a me tocar por
cima da lingerie, movendo os dedos em círculo e sentindo a maldita
coroa em minha cabeça.
Uma verdadeira rainha em seu trono, brincando diante dos
miseráveis súditos.
Não me tente, Diabo, Diabo.
Não pode me comprar, Diabo, Diabo.
Você não vai fazer de mim um tolo, não.
Aumento os movimentos conforme a música avança, sendo
incentivada pela melodia e pelo homem que vem testando a minha
paciência desde ontem.
Se em um pouco mais de vinte e quatro horas ele me fez odiá-lo,
mal posso esperar pelo restante da semana.
Permaneço me masturbando na batida da música e do meu
próprio coração descompassado.
Rebelde, rebelde.
Me chame de rebelde, rebelde.
Eu ando na prancha, nenhuma lágrima no meu olho.
Eu não vou me tornar sua esposa coroada.
Afasto a calcinha para a esquerda, meus dedos tocando o sexo
molhado e um suspiro de prazer escapa por meus lábios
entreabertos.
Espalho a lubrificação por toda boceta sem deixar nenhuma
parte de fora. Circulo meu ânus com o líquido pegajoso, imaginando
ser o pau dele quando insiro um dedo, movendo-o sem desviar a
atenção de Athos.
Acompanho sua mão se fechando em torno do copo vazio, a
garganta oscilando ao engolir em seco, seus ombros rígidos e a
pele clara adquirindo um tom rubro. Seu peito parece estar em
sincronia com o meu, pois respira no mesmo ritmo.
Estimulada por sua imagem sedenta por mim, além da bela
canção reverberando em meus ouvidos, seguro a pequena faca
presa na coxa.
Um deleite de satisfação atravessa meu organismo, é incrível e
poderoso compreender que o poder está em minhas mãos.
É fácil demais manipular homens apenas com uma boceta
molhada.
Você toma a forma de tudo o que me atrai.
Mas seus olhos estão mortos e vermelhos.
Vermelhos como a ferrugem.
Uso o cabo da faca para me masturbar, esfregando-a no meu
sexo pulsante, enquanto meus dedos se perdem dentro de mim.
Fricciono meu clitóris, dando atenção especial a essa parte
maravilhosa, e mordo o lábio inferior, sentindo o ápice se aproximar
como uma avalanche, destruindo tudo no caminho.
Acompanhando a voz em meus ouvidos tomando força, aumento
os movimentos, a pele quente produzindo gotas de suor.
Athos espalma a mão livre no vidro e repousa seus olhos nos
meus, ainda que o show esteja acontecendo na parte inferior do
meu corpo.
Não há vestígios dos quartzos azuis, somente pupilas escuras
como a noite mais sombria me observam, queimando sem precisar
de um toque. Cada centímetro da minha pele se arrepia diante de tal
compreensão.
O que te faz tão especial, especial.
Para pensar que eu cederia à essa dança entre você e eu,
Diabo, Diabo?
Se eu sou a rainha nesse maldito tabuleiro, como a sua
implicância para usar o objeto deixa claro, então o nomeio como o
peão.
O mais fraco. O mais ingênuo. O primeiro a cair.
Luto contra o que o meu corpo pede e permaneço de olhos
abertos ao gozar com força, gozar para ele.
Para que Athos nunca mais se esqueça de mim, para toda as
vezes que o desgraçado tomar Old Fashioned, ele se lembrar da
noite em que gozei em sua frente.
Da noite em que ele não pôde me tocar.
Levanto-me, ignorando as pernas trêmulas e vou em sua
direção. O vidro não possui isolamento acústico, então aproveito
para usar isso a meu favor e termino de brincar com o Diabo.
— Você quer me foder — é uma afirmação. Sorrio observando
seu rosto ficar vermelho. A respiração irregular não impede minhas
provocações, então levo meus dedos carregados de fluídos à boca,
chupando devagar e provando do meu gosto, o melhor de todos. A
mão de Athos se fecha em punho, as juntas estão brancas tamanha
a pressão feita. — Até deixaria, mas...
Tiro a maldita coroa, usando-a como a cereja do bolo. O metal
frio contra o meu sexo quente me faz suspirar. Athos encosta a testa
no vidro, sua pele tomada pelo vermelho, a feição irada é um
bálsamo para o meu orgulho.
Esfrego a coroa, sujando-a com o meu prazer, então a levo até a
boca assim como fiz com os dedos, só que dessa vez uso a língua
para degustar dos fluídos, sem tirar os olhos dele, de cada reação
do seu corpo.
O maxilar travado enquanto deixa o copo cair, espatifando em
centenas de pedaços é o ponto alto da minha noite.
— Só se você implorar, desgraçado. — Jogo a coroa no chão da
cabine e me afasto do vidro.
Com calma, pego meu vestido ao lado da poltrona e, antes de
dar as costas para ele, faço uma reverência.
Deixo a cabine, rebolando em cima dos meus saltos, satisfeita
com essa noite que parecia perdida, mas um soco ressoa atrás de
mim, o que faz um sorriso vitorioso nascer em meus lábios.
Não sou tola, sei que em algum momento Athos vai revidar.
Mal sabe ele que finalmente comecei a gostar dessa brincadeira.
atrevimento
1. ato corajoso; arrojo, audácia.
2. coragem injustificada; petulância, desdém.
CAPÍTULO 8
— Alexa, frase desmotivacional. — Encaro um ponto qualquer no
carpete do closet, tentando organizar meus pensamentos
bagunçados, algo que me irrita muito.
“Frase desmotivacional do dia: o perdão é a fragrância que a
violeta derrama no calcanhar que a esmagou. - Mark Twain.”
Meus olhos se reviram por conta própria.
Balanço a cabeça, como se pudesse retomar toda a
concentração com esse simples gesto. O pior? Tenho um nome para
essa desordem inaceitável, preciso manter o foco no que deve ser
feito, encontrar os homens restantes e concluir meu propósito nesse
mundo maldito.
Athos não pode se tornar uma distração, ainda que jogar contra
ele seja interessante.
E por falar no Diabo...
Trabalhei o restante da noite com tranquilidade ao lado de Silas.
O desgraçado, junto com o seu péssimo smoking e o bigode
esquisito, não cruzou mais o meu caminho e essa falsa calmaria
não provoca em mim o medo que talvez deseje despertar.
Independente dos seus planos, estarei pronta para o contra-
ataque... seja ele qual for.
Usando um roupão após o banho quente, abro a parte do closet
aonde escondo o diário e pego o caderno velho e amarelado pelo
tempo. Sento-me no chão, tomando cuidado ao segurar o único
objeto que sobrou de Suiane.
Meus dedos percorrem a lateral encardida, enquanto um leve
cheiro de mofo sobe até o meu nariz, engulo em seco o bolo se
formando em minha garganta e separo as páginas sem escolher um
local específico.
Há anos que não choro, no entanto, a sensação de sufocamento
que se alastra por meu corpo toda vez que seguro o diário é
horrível. Travo o maxilar diante da letra bonita de Suiane e leio parte
de um dos seus inúmeros relatos.
“Mamãe saiu bem cedo e deixou a Dai comigo.
A pobrezinha chorou de fome até dormir, preciso pedir pra dona
Neusinha alguma coisa para minha irmã comer.
Eu consigo aguentar mais algumas horas.”
Me impressiona como Suiane, para a idade que tinha, sabia
escrever tão bem. Considerando o lugar aonde fomos criadas e
quem nos trouxe ao mundo, ela era inteligente.
Era...
Às vezes, mesmo que pareça ser loucura, fico aliviada com a
sua morte, por saber que não está mais nesse mundo. Ao menos,
depois da chacina, minha irmã nunca mais foi abusada.
Isso era para ser... reconfortante?
Avanço para as últimas páginas, aonde ela contou sobre os
molestadores.
Anjo mau...
Muitos homens frequentavam minha casa, a maioria para se
drogar com nossa mãe e, por mais que eu tente me concentrar nas
memórias, seus rostos se transformaram em borrões e as vozes se
misturaram, então não faço ideia de como resolverei essa equação.
A conta não bate e isso me incomoda cada dia mais, são anos
buscando por qualquer pista sobre esse anjo mau, e em todo esse
tempo só encontrei frustrações.
Ao menos o mandante da tragédia pode estar mais próximo do
que imagino. Meu contato, a mesma pessoa que me treinou,
ensinando a lutar e a atirar, disse que eu encontraria respostas aqui,
na Babilônia.
Será que já o vi? É frequentador do lugar?
O cara faz parte da organização, Daiane.
O problema é descobrir em qual delas ele está e qual a sua
função.
Recordo-me da conversa com meu contato. Jussara e ele são os
únicos que me chamam e conhecem meu verdadeiro nome.
Ele é cinco anos mais velho e o conheci no orfanato. Na época,
ingênua e completamente perdida, mostrei para ele o diário de
Suiane, o que poderia ter acabado de uma forma bem ruim. Vítima
de abusos, ele jurou que me ensinaria tudo o que aprendesse,
porém essa vingança não era dele.
Anos se passaram e o contato deixou o lugar, no entanto, a
promessa de me ajudar ainda vale. Ele foi a primeira pessoa que
encontrei no dia que saí do orfanato, então as lições começaram e
aprendi rápido, sendo conduzida pelo ódio que nutria, enquanto
entendia o que realmente aconteceu com Suiane, o que aqueles
malditos faziam com ela.
Hoje em dia nos encontramos apenas se não houver outra saída,
afinal, ele se tornou um assassino de aluguel assim que concluiu
sua vingança.
Não vejo a hora de fazer o mesmo, colocar um ponto final em
tudo isso.
A Babilônia, assim como muitas outras empresas, é usada para
lavagem de dinheiro do alto escalão e, até hoje, a principal pessoa
por trás de tudo isso parece ter sido sugada da Terra.
Ninguém ousa dedurar, o que me leva a uma conclusão óbvia:
meu alvo é alguém importante e, se eu pudesse apostar tudo o que
tenho, diria ser um membro do governo, talvez.
Fecho o diário com calma, diferente de tudo o que acontece
dentro de mim, sinto-me como um vulcão prestes a explodir.
Abandono o chão e guardo as anotações de Suiane no lugar.
Observo por alguns segundos o celular que mais se parece com um
tijolo, tentada a ligar para o meu contato no nosso único meio de
comunicação.
Um barulho do lado de fora me tira desses devaneios,
conduzindo minha atenção para outro local.
Volto o fundo falso para o lugar e ando descalça pela suíte, indo
em direção à entrada.
Através do olho mágico assisto a um Athos fora de controle,
socando a madeira da porta de seu quarto com marcas de sangue
nos dedos e, ao seu lado, há dois homens de cabeça baixa. O
desgraçado coça a nuca, espalhando o vermelho na gola da
camiseta branca, seu peito se move com rapidez, então encosta a
porta e sai batendo os pés e os outros vão atrás.
Athos não trancou o quarto.
Assimilar isso faz surgir uma ideia que não havia cogitado: talvez
eu encontre informações escondidas ali dentro.
Não sei quanto tempo tenho até a sua volta e, por isso, pego
somente a faca em cima do aparador e meu cartão antes de abrir a
porta, usando apenas o roupão. Atravesso o corredor e entro em
sua suíte, mas diferente do idiota, fecho o local, conferindo o seu
cartão de acesso caído embaixo de um móvel.
Caminho pela suíte com meus pés descalços sentindo o frio do
piso. Entro no quarto e vejo as roupas de cama desorganizadas. Ele
estava dormindo quando foi chamado. Pouco me importa do que se
trata, por mim, Athos se foderia a cada minuto.
O perfume usado na noite anterior está mais denso aqui. Ao meu
redor uma decoração nada incrementada deixa o ambiente menos
gélido. Todos os quartos no subsolo 2 são iguais, com o teto
decorado com imagens de anjos seminus. Me aproximo da mesinha
de cabeceira, vasculhando as gavetas, mas todas estão vazias, nem
mesmo um único papel.
Deixo o cômodo e vou para o closet dele, tão sem sal quanto o
dono. Abro as sete portas, certificando-me de que Athos trouxe
apenas o básico. As camisetas largas, assim como os jeans com
estampas estranhas, estão dobrados com esmero, o que contrasta
com a cama. Observo os tênis limpos, todos cinza-claro.
Abro a primeira gaveta e faço uma cara de repulsa quando suas
cuecas nojentas ficam aparentes. Com a ponta da faca vou
movendo apenas o suficiente para conferir o fundo, minhas mãos
são limpas demais para sequer cogitar um simples toque nas peças.
Faço o mesmo em cada centímetro dos armários, em busca de
um fundo falso, mas não encontro nada.
Bufo, a frustração me enlouquecendo.
Antes de abandonar a suíte sentindo-me patética, caminho até o
banheiro. Na bancada de granito estão dispostos alguns perfumes e
cremes corporais em linha reta e uma lâmina de barbear descansa
no suporte.
— Pelo menos não sai fedendo por aí — murmuro ao pegar um
dos perfumes, deixando minha faca na pia. Leio a marca popular e
não consigo evitar outro revirar de olhos. — Quem ainda compra
através dessas revistinhas? Achei que nem existissem mais.
Devolvo o objeto para o lugar e é nesse instante que um
pequeno frasco chama a minha atenção, não há um rótulo
diferenciado ou cores berrantes, mas é o mesmo que eu o vi usar na
primeira noite.
Coloco-o na altura dos olhos e leio a descrição, não compreendo
a maior parte do que está escrito, mas nada que uma rápida
pesquisa na internet não resolva. A frase soro fisiológico me deixa
ainda mais curiosa, então coloco a mão no bolso, buscando pelo
celular no intuito de tirar uma foto, só que lembro que o aparelho
ficou em meu quarto.
— Merda...
— Que visita agradável. — A imagem de Athos aparece no
reflexo do espelho assim que se aproxima, e sua atenção alterna
entre o frasco que seguro e a faca que deixei no balcão. Ouço o
destravar de uma arma enquanto a mesma encosta na lateral da
minha cabeça, nada delicado. Respiro fundo em busca do meu
autocontrole para usar em momentos como esse. — Seja uma boa
menina e me obedeça, Queen.
— Ou o que, desgraçado? — falo entredentes, o fuzilando
através do espelho. Aperto a embalagem entre os dedos,
imaginando ser o pescoço dele no lugar. — Prefiro morrer antes de
obedecer a um inútil como você.
Ele parece ler a minha mente, afinal, segundos depois agimos
em sincronia.
Enquanto estico o braço para alcançar a faca, sinto a ponta de
uma agulha atravessando minha pele na lateral do pescoço. O
conteúdo se infiltra nas veias na velocidade da luz e uma fraqueza
se alastra com muita rapidez, fazendo minhas pernas vacilarem e o
banheiro girar ao meu redor.
Ouço o frasco cair no instante em que mãos grandes apoiam
meu corpo, antes que ele bata no chão.
Através da névoa que toma minha visão, enxergo o maldito
sorriso nos lábios de Athos.
— Você me provocou ontem, lembra? — sua voz é carregada de
uma doçura inexistente em seu olhar. Tento agarrar sua camiseta,
usando o restante das minhas forças, em vão. A densa e opressora
escuridão me obriga a acompanhá-la, ficando à mercê do inimigo.
— Agora é a minha vez de revidar, Queen.
Sou tragada para o abismo após ouvir as últimas palavras dele
em meu ouvido.
Nunca imaginei que o Diabo pudesse ser tão sedutor e astuto.
CAPÍTULO 9
O assento duro é a primeira coisa que meu corpo reconhece
assim que começa a se afastar da densa escuridão, nem o
excelente pano do roupão consegue suavizar o atrito das minhas
coxas com a superfície áspera. O silêncio ao meu redor não é
garantia de estar sozinha. De olhos fechados, tento assimilar tudo o
que aconteceu e como vim parar aqui.
Um deslize imperdoável da minha parte.
Metal frio envolve meus pulsos, mantendo-me com os braços
para trás. Não sei quanto tempo estou nessa posição, mas o latejar
em meus ombros me dá uma ideia dos minutos decorridos.
Reconheço o cheiro forte no ar, mesmo sem precisar ver o que
é.
— Acorde, dorminhoca — ronrona a maldita voz perto de mim,
então a erva é soprada em meu rosto, invadindo as narinas. Tusso
contra a minha vontade, me deparando com o olhar divertido de
Athos ao encará-lo. — Espero que tenha descansado, Queen.
Temos uma hora antes do trabalho começar.
É a primeira vez que o vejo fumando, com o baseado entre os
dedos o desgraçado traga por alguns segundos, seus lábios
entreabertos soltam uma grande quantidade de fumaça em minha
direção.
Viro o rosto e aproveito para conferir aonde estou, não me
surpreendo ao descobrir que ele me trouxe ao subsolo 3, mas há
objetos novos dispostos nas prateleiras, dezenas de olhos
observam-me de volta, submersos dentro de potes de vidros.
Não sinto nojo ou estranheza, afinal, fiz coisas tão obscuras
quanto, apenas me intriga essa aparente... obsessão?
— Gostou da nossa plateia VIP? — Athos para atrás de mim e
estica os braços por cima dos meus ombros, como se fôssemos a
porcaria de um casal apaixonado. Seu queixo repousa no topo da
minha cabeça, desfrutando da vantagem que possui.
Não por muito tempo...
— Seria mais interessante se os seus olhos estivessem ali
também. — Afasto a cabeça da maneira que consigo, virando o
rosto para encará-lo acima de mim, vejo o sorriso presunçoso em
seus lábios.
Não encontrei respostas na embalagem do colírio, contudo, sua
fixação por essa parte específica não passa despercebida. Decido
usar a única arma em mãos: o blefe.
— Talvez os coloque no mesmo vidro daquele com a íris tão
dourada quanto o mel.
Assisto ao seu maxilar enrijecer minimamente e uma pequena
veia em sua testa treme. O baseado retorna a sua boca enquanto o
segura entre o polegar e indicador. Mais uma vez toda a fumaça é
direcionada para meu rosto, sem se dar ao trabalho de observar a
prateleira.
— Tenho uma ideia melhor, Queen. — Athos se afasta apenas
para dar a volta e se abaixar em minha frente como o súdito que é,
mas que não assume. Então retira do bolso da sua calça a minha
faca. O frio da lâmina arrepia a pele no instante em que encosta a
ponta na base do meu pescoço, passeando pela clavícula. Athos
começa a descer o objeto, afastando o roupão para os lados. — Ao
invés dos meus olhos, por que não guardar a sua língua?
Assim que chega no laço da cintura, o maldito mantém o cigarro
entre os dentes e usa as mãos para desfazer o nó, deixando-me
completamente exposta.
Como se essa fosse a primeira vez.
O ar gelado do subsolo arrepia a pele e o metal frio passeia por
cada centímetro da minha virilha, deixando a marca superficial de
uma linha vermelha. Meu corpo corresponde ao toque, os espasmos
evidentes o fazem rir e ele alterna a atenção entre meus olhos e o
meu sexo.
Maldito...
— Qualquer uma delas — murmura, a ponta afiada rodeando
meu clitóris de forma perigosa. Um movimento em falso é o
suficiente para me cortar de uma maneira nada agradável. — Você
não é tão esperta quanto parece, afinal, caiu direitinho quando
deixei meu quarto aberto. Quando o gato sai, os ratos fazem a festa,
mas não dessa vez, Lilith.
Não respondo, guardando para mim o desapontamento ao dar
razão a ele.
“A impulsividade pode acabar atrapalhando o seu plano mais
para frente, Daiane.” Recordo das palavras do meu contato após ter
agido sem calcular cada mínimo detalhe. Esse é um lado meu que
não consegui obter domínio total. Ainda!
— Depois de todo aquele espetáculo na cabine, fiquei curioso
pra saber que gosto tem a sua língua. — Imitando-me, Athos usa a
base do cabo em uma masturbação lenta. Seus olhos se fixam nos
meus, sem parar com os movimentos que são de alguém que
conhece o corpo de uma mulher e os locais mais sensíveis. Meus
batimentos cardíacos aumentam conforme sua provocação se
prolonga. A mão livre joga a bituca para longe, enquanto a fumaça
se espalha pelo ambiente. — O que você queria na porra do meu
quarto?
— Quer provar? — mudo o assunto, tentando obter alguma
vantagem. Mordo o lábio inferior e abro mais as pernas, facilitando o
acesso ao local de sua curiosidade, mas seus orbes azuis não
vacilam, observando meu rosto sem pressa. — É só pedir, chefe.
— Tenho cara de quem pede alguma coisa, Queen? —
questiona, levando o cabo da faca para baixo, pronto para me
penetrar. Minha barriga se contrai diante do toque, traindo-me, e ele
nota, pois um sorriso vencedor surge em seu rosto antes de
começar a enterrar o objeto em mim. — Se eu quero, eu tenho.
Athos parece me punir quando seu dedo move com destreza em
meu clitóris. Contraio os dedos dos pés, a lubrificação se formando
mesmo que eu tente evitá-la.
— E vai me obrigar a foder com você contra a minha vontade?
— a última palavra sai quase como um gemido e travo o maxilar
após mais um deslize imperdoável.
— Quem começou a brincadeira não foi eu, Lilith. Você está
pedindo por isso desde ontem. — Athos se ajoelha, aumentando a
velocidade do vai e vem do cabo e as batidas do meu coração
entram em sincronia, em uma dança perigosa. Seus olhos descem,
passando pelos seios, inspecionando os detalhes do meu corpo. Há
irritação em sua fisionomia, graças ao meu feito na noite anterior,
contudo o desejo também queima em seu olhar. — Ah, e você ainda
não me respondeu... — sussurra, inclinando o tronco em direção ao
meu sexo —, encontrou alguma coisa relevante em meu quarto?
Ergue levemente a cabeça, o sorriso de um psicopata
desenhando seus lábios. E isso me excita.
Athos sabe que vi a merda do colírio, algo que pode ser
encontrado em qualquer casa. Infelizmente, não possuo nada para
confrontá-lo e a irritação me consome. Prazer e ira disputando um
espaço.
Trinco os dentes, varrendo qualquer vestígio de luxúria para
longe. Necessito usar a razão, a emoção é para os fracos e não
cheguei até aqui sendo guiada por ela.
Respiro fundo, relaxando o corpo e tomando as rédeas da
situação.
— Nada além de cuecas sujas — digo, avaliando como ele está
posicionado, calculando meus próximos passos.
Athos gargalha, porém não há humor em seu tom de voz. Essa
alegria não chega aos seus olhos.
— Cuidado, Queen, sua curiosidade vai acabar te matando. —
Ele abaixa a cabeça outra vez e a ponta do seu nariz toca minha
virilha.
E é esse gesto, essa confiança absurda, que desencadeia meus
próximos atos.
— Não se eu te matar antes, maldito — cantarolo, trazendo a
sua atenção para o meu rosto.
Assim que nossos olhos se encontram, uso o pé livre para chutar
suas bolas nojentas, usando toda a força que consigo estando ainda
algemada na cadeira.
O outro pé empurra seu peito para trás, batendo bem no meio e
cortando a circulação de ar em seus pulmões. Ouço o grito
misturado com a tosse diante da dor causada e Athos se contorce
no chão, deixando minha faca caída ao seu lado.
— Eu vou te matar, Lilith — grita, o tom rouco acentuado, como
se a sua fala me causasse medo.
Aproveito o seu momento de descuido e, em um único
movimento, impulsiono a cadeira para o lado, caindo para quebrar a
lateral. A dor lancinante em meu ombro faz os olhos lacrimejarem,
mas não paro. Tiro meus braços pela madeira detonada, livrando-
me do objeto e, ainda sentada no chão, passo as mãos algemadas
por baixo da bunda.
O local que amorteceu a queda sangra, o líquido quente e
espesso manchando meu roupão outrora branco.
— Lilith! — Só tenho tempo de puxar um pedaço da madeira
quando Athos pula em minha direção.
A ponta lascada ultrapassa sua camiseta e uma mancha
vermelha se destaca, mas ele não parece notar, principalmente ao
envolver minha garganta com as duas mãos, pressionando.
Pelo jeito, ele gosta de um enforcamento.
Seu corpo pesa em cima do meu, dificultando uma fuga, nossos
olhares se conectam e, por um instante, quase me vejo ali.
A dor. O ódio. A revolta. A maldade. O vazio.
Como foi o passado dele para ter chegado até aqui? O que o
impulsiona a continuar?
Mesmo sendo asfixiada e vendo tudo embaçar, começo a rir e o
riso parece vir de dentro da minha alma, liberando endorfina em
meio a esse momento inoportuno. Lágrimas escorrem nas laterais
do meu rosto diante da força do gesto.
Athos une as sobrancelhas sem me soltar, encarando-me
perplexo, enxergando a loucura escondida atrás de orbes mortas.
O Diabo é mesmo um excelente contador de piadas.
De todas as pessoas nesse mundo de merda, o maligno colocou
justamente Athos para me infernizar?
Desde quando um demônio teme outro demônio?
Largo a madeira, enquanto todo o meu corpo é tomado pela
crise de riso, puxo o ar, engasgando com a saliva, cada instante
mais agitada. A visão borra de uma vez e os meus globos oculares
afundam no sal das minhas lágrimas.
— Mas que porra...
— Senhorita Lilith! — sua voz é cortada quando Silas exclama
meu nome com evidente desespero. — O que você está fazendo
com ela?
Ouço mais vozes, mas não consigo enxergá-los, vejo apenas o
rosto de Athos, distorcido e confuso.
Minha garganta é solta quando a risada se mistura a uma tosse
sufocante. Fecho os olhos, dando tempo para que meu corpo se
recupere, enquanto ouço Silas falar, com sua voz demonstrando
todo o desagrado:
— Hoje teremos uma encomenda especial, senhor — a repulsa é
quase palpável em seu timbre. Segundos depois, as portas do
elevador são fechadas e um silêncio estranho recai no subsolo. —
Lil! — Silas cobre meu corpo da forma que consegue, xingando
nosso chefe de todos os nomes imagináveis. — Se eu não tivesse
chegado, ele iria te matar.
Será? O maldito chegaria tão longe?
Enquanto Silas me ajuda a levantar e abre as algemas com a
chave deixada por Athos, por um breve segundo recordo do que
falou.
“Hoje teremos uma encomenda especial.”
E esse dia de merda tem como ficar pior, já que o décimo andar
será usado essa noite.
Antes de sair, olho para os vidros na prateleira, refletindo sobre
esse gosto particular.
— Você não perde por esperar, chefinho.
angústia
1. estado de ansiedade, inquietude; sofrimento,
tormento.
2. estreiteza, redução de espaço ou tempo; carência,
falta.
CAPÍTULO 10
Depois de limpar o corte no meio do peito com o auxílio de
algodão e álcool, deixo-o sem nenhuma proteção para que o
ferimento seque mais rápido. Abro a torneira em sua potência mais
alta, lavando as mãos enquanto encaro o machucado no espelho,
por muito pouco aquele pedaço de madeira não ultrapassou a
superfície, se Lilith tivesse usado toda sua força, teria me causado
problemas maiores.
Esfrego os dedos com o sabonete líquido, odiando me observar
no reflexo, levanto a cabeça e não reconheço o homem ali.
Em que momento uma qualquer conseguiu crescer tanto para
cima de mim?
O que ela viu para ter desencadeado um ataque de riso
histérico?
Lilith parece ter enxergado além da aparência, além da
superfície prepotente e calculista que precisei abraçar durante a
vida ou não estaria mais aqui.
Solto um suspiro exasperado, afastando-me da pia, e começo a
abotoar a camisa social escolhida para essa noite. Batidas em
minha porta me fazem caminhar até a entrada e verifico pelo olho-
mágico ser o tal de Silas. Deixo apenas os dois botões de cima sem
fechar, permitindo que parte das minhas tatuagens apareçam, além
do recente machucado.
Abro a porta e, de imediato, meus olhos buscam por ela, pela
maldita mulher que está conseguindo dissolver a precária paciência
em mim, mas o limpar de uma garganta me faz cruzar os braços e
prestar atenção em Silas.
— A senhorita Lilith já subiu para o décimo andar, senhor. —
Inspeciono seu terno ajustado ao corpo, sem nenhum amassado.
Na mão direita, um tablet com a tela apagada é envolto por dedos
grossos. — Ela me pediu para acompanhá-lo até...
— Não é necessário, sei o caminho — digo, afastando-me dele,
pronto para fechar a porta.
— Se o senhor quiser... assistir — Silas fala e é notável em sua
fisionomia como o assunto o incomoda. Sorrio de lado, erguendo as
sobrancelhas ao inclinar o corpo em sua direção.
— Se eu quiser assistir? O que ia dizer? — provoco, saboreando
os segundos na presença dele.
— O senhor precisa subir agora, porque o nosso cliente acabou
de chegar. — Une as mãos em frente ao corpo, seu rosto agora
ausente de emoções.
Verifico meu relógio de pulso com certa estranheza.
— Mas já?
— O cliente precisa estar no aeroporto às 23hrs, por isso chegou
cedo — Silas informa sem vacilar.
— Aeroporto — repito mais para mim mesmo, enquanto coço a
nuca, refletindo. — Quer saber, Silas, meu amigo? — Me aproximo
do homem, nossos olhos na mesma altura, e dou batidinhas em seu
peito. — Estou animado para conhecer nosso cliente tão... especial.
Sem acrescentar mais nada, retorno para o quarto e fecho a
porta atrás de mim. Decido usar somente a calça e a camisa social,
ignorando o terno separado para hoje.
Seguro meu celular largado no aparador, além do cartão de
acesso, e respiro fundo, notando um leve tremor nas mãos, as fecho
em punho na mesma hora, derrubando os objetos na mesa, meu
peito subindo e descendo em uma velocidade desagradável.
Eu consigo fazer isso.
Eu, Athos, posso fazer qualquer coisa.
Trinco os dentes, concentrando-me em tudo o que acontecerá
essa noite.
Hoje sou o Black Horse e preciso estar bem para avançar nesse
tabuleiro, eliminando cada obstáculo no caminho, para somente
então destruir a Rainha. Balanço a cabeça, como se pudesse me
livrar dessas sensações e das lembranças que já deveriam estar
enterradas, esquecidas.
Inclino o pescoço e observo o teto decorado acima de mim, as
imagens de arcanjos se destoando completamente do que a
Babilônia é, talvez esteja aí a graça em misturar o santo e o profano.
— Chega dessa merda — resmungo e pego celular e cartão
outra vez, caminhando em direção à porta. — Está na hora de jogar.
Com esse pensamento, saio da suíte, aproximando-me do
elevador, e aciono o último andar assim que as portas se fecham e
tento relaxar meu corpo. Avalio a decoração do pequeno espaço
como se fosse a primeira vez, esfregando a ponta do sapato no
carpete luxuoso.
No instante em que chego ao meu destino, o ar mais gelado
nesse ambiente arrepia meus pelos por baixo da camisa social de
manga longa.
No final do corredor, há um segurança em frente à porta, que
desconfio levar para onde o convidado da noite vai se divertir.
Prestes a dar um passo em sua direção, a voz de Silas me impede,
seu corpo robusto bloqueando o caminho. Uno as sobrancelhas, no
aguardo, e ele aponta para o seu lado esquerdo.
— É por aqui, senhor — diz evasivo. Como não saio do lugar e
nem me dou ao trabalho de observar para aonde apontou,
acompanho sua garganta se mover enquanto engole em seco. — A
senhorita Lilith o aguarda na sala de monitoramento.
— Achei que estivesse interessado em assistir a diversão alheia
— a voz suave não combina com a imagem dela quando se
aproxima.
Giro o pescoço, deparando-me com uma Lilith dentro de um
longo vestido. A fenda na coxa direita atrai minha atenção para o
seu corpo, a sandália de tiras finas envolve sua perna até o
tornozelo. Ergo meus olhos com lentidão, apreciando sua beleza.
No entanto, o que mais me excita é perceber as marcas
presentes em sua pele. Me aproximo dela e, sem pedir permissão,
afasto seu cabelo, jogando-o para trás. A ponta do meu dedo
contorna o tom escuro e desforme, seu colo desnudo não esconde a
respiração intensa que a percorre. Sorrio assim que os nossos olhos
se conectam.
— Parece que estamos quites, Queen. — Não preciso
acrescentar palavras para que ela compreenda e Lilith deixa ainda
mais evidente ao observar meu peito, como se pudesse ver por
baixo da camisa.
O sorriso diabólico serpenteando em seus lábios é malditamente
sexy.
Predatório.
E, por mais que eu deteste tudo o que fez durante esse pouco
tempo juntos, sinto-me compelido a me entregar, permitir que a
caçadora faça o que desejar com a sua presa.
— Cuidado, chefinho — sussurra, quase colando nossos rostos
e seu hálito quente acaricia minha pele. — É contra as regras os
funcionários se apaixonarem.
Ela se afasta, dando as costas para mim, enquanto move os
quadris em um caminhar confiante.
— Que desgraçada... — Novamente, Silas limpa a garganta na
tentativa de chamar minha atenção. — O que foi? — questiono sem
encará-lo, meus olhos buscando por ela.
— Desculpe, mas esse cliente costuma ser rápido quando está
com viagem marcada. — Enfim o observo, controlando a irritação
causada por Lilith. — Entre na sala de monitoramento, senhor.
Contudo, antes de fazer o aconselhado, sondo o segurança
parado em frente à porta, atento ao que acontece aqui. Permaneço
de olho nele, sem esconder qualquer desagrado em minha face e
espero. Não são necessários mais do que cinco segundos para que
o idiota quebre a conexão e volte a focar no que realmente importa.
Vou para o lugar aonde Lilith entrou, deparando-me com dois
homens sentados e atentos ao que veem. De um canto ao outro da
sala há monitores acompanhando cada andar da Babilônia.
A tela central, a maior do monitoramento, está dividida em quatro
partes: uma mostrando o corredor aonde o segurança se encontra,
outra segue todos os passos de três brutamontes no primeiro andar,
andando entre os clientes.
— Estão juntos. — Encaro Lilith de braços cruzados, enquanto
apoia o corpo na parede. Ela faz sinal com o queixo, apontando
para as imagens, o semblante neutro de emoções. — São os
capangas do nosso querido cliente.
Elevo o canto da boca diante do tom debochado em sua voz
antes de voltar minha atenção para as telas, sondo novamente seu
pescoço marcado por mim. Lilith nota o que estou fazendo e, ao
invés de esconder o que consegue com a ajuda do seu cabelo, ela o
joga todo para trás.
Essa petulância me fascina mais do que deveria.
Meus olhos recaem na tela, terminando de conferir o que foi
deixado em destaque: no terceiro quadro estão os homens sentados
em minha frente, com os aparelhos de comunicação em seus
ouvidos e, logo atrás, Silas, eu e Lilith aparecemos. A mulher
aproveita o instante em que nos sondo para levantar a mão e
mostrar o dedo do meio, essa desgraçada não tem noção do perigo
mesmo.
— Senhorita... — Silas sussurra, uma centelha de preocupação
envolvendo sua voz.
— Tenho uma ideia do que você pode fazer com esse dedo,
Queen. — Por cima do ombro a observo, sorrindo. Os seguranças
sentados se remexem na cadeira, desconfortáveis, um deles abre
uma garrafa de água, enquanto o outro arruma a gravata já bem
posicionada. — Ou aonde enfiá-lo...
— Não sabia que você gostava de fio terra, chefinho — Lilith
cantarola, saboreando cada segundo.
O segurança com a garrafa cospe toda a água de dentro da
boca, molhando a tela, ele se levanta com tanta rapidez que quase
derruba a cadeira em que estava sentado. Ignoro seu pedido de
desculpas e avalio Silas, com a cabeça abaixada, mordendo o lábio
inferior. Uno as sobrancelhas, enfiando as mãos dentro dos bolsos
da calça, nem um pouco afetado com o que ouvi.
— Como a boa equipe que somos, faço questão de retribuir o
favor. — Abro um sorriso maldoso, já me imaginando no meio das
pernas dela, provocando-a enquanto meu dedo abre espaço em seu
local mais apertado.
Antes que ela possa responder, Silas dá um passo para frente,
apontando para a tela.
— Tem alguma coisa errada — diz o homem. Apenas então
encaro o último quadro, esquecendo por hora de Lilith. O cliente
caminha em volta do corpo estendido na cama, coçando a cabeça
como se estivesse nervoso. — Parece que ele não está gostando da
encomenda especial — Silas fala para Lilith, que se aproxima
também.
A encomenda especial aparenta ser bem jovem, o que me faz
refletir sobre sua morte precoce.
De que maneira sua vida foi interrompida?
Enquanto a família lamenta essa perda e prepara tudo para o
último adeus, eles não fazem ideia do que acontece com o corpo
gelado e vazio.
O suspiro irritado de Lilith reverbera na sala de monitoramento.
— Ele sempre nos dá dor de cabeça... — murmura.
Então, no instante em que o cliente vira o rosto para a porta
abaixo da câmera, o reconheço na mesma hora. Imaginava ser
alguém do alto escalão, ainda mais depois de ver seus
subordinados caminhando pela Babilônia, mas saber exatamente
qual o cargo ocupado e o que gosta de praticar, chega a ser cômico.
As contas não batem, ou talvez o cliente esteja no lugar ideal
para continuar com o seu fetiche depravado.
Ministro dos Direitos Humanos e Cidadania.
A conversa ao meu redor fica em segundo plano quando
permaneço assistindo ao que acontece dentro do quarto.
Nu, o Ministro, um homem branco de meia idade, para aos pés
da cama se masturbando, movendo a mão em seu pau com muita
rapidez. O tronco subindo e descendo é o sinal de uma respiração
intensa e, quanto mais observo, melhor compreendo essa postura
estranha, o que só não é mais bizarro do que estar tentando transar
com uma pessoa morta.
Há movimento na sala em que estamos, mas mesmo assim, não
consigo desviar os olhos da patética cena.
Por mais que tente, o Ministro não se excita como desejado e a
frustração em seu interior se expande assim que agarra os
tornozelos da defunta, arrastando o corpo sem qualquer cuidado até
jogá-lo no chão.
— Chame os seguranças — Lilith ordena ao meu lado, irritada.
Avalio seu estado: as mãos em punho enquanto bate com força a
ponta da sandália no piso. — Odeio esse homem — profere com a
voz evidentemente cansada.
Então não é a primeira vez que o Ministro se comporta dessa
maneira?
Quando meus olhos se fixam na enorme tela outra vez, elevo as
sobrancelhas, não acreditando no que vejo.
O Ministro, ajoelhado em cima do corpo, desfere socos por todos
os lados, descontando sua ira.
— Ele sabe que a encomenda não pode ser danificada! — Lilith
exclama.
Entretanto, a cena que assisto não me permite tirar os olhos do
quadro, a maneira como o Ministro está montado no corpo, batendo
no peito inanimado com tamanha selvageria, desperta em meu
subconsciente tudo o que mais odeio.
Ele está tão agressivo que, mesmo aqui do outro lado da tela, é
possível ver o momento em que o tórax afunda.
Trinco os dentes, uma gota de suor escorre em minha face.
As mãos dentro dos bolsos tremem como nunca, meu coração
dispara bombardeando sangue em uma velocidade anormal.
“Não!” Essa voz, enterrada há muito tempo dentro de mim, grita
em meus ouvidos.
Por favor, pare!
Fecho os olhos, sinto as forças em minhas pernas se esvaindo,
transformando-as em gelatina. Preciso me escorar na parede mais
próxima, tamanha a angústia sufocando-me.
A visão embaçada não me permite enxergar corretamente,
contudo, sei que há alguém na minha frente, me chamando.
Depois de tantos anos vivendo em uma relativa paz, essa merda
acontece justo agora? Perto das pessoas que me odeiam?
— Athos! — a voz de Lilith se achega, rompendo essa barreira
invisível, como se eu estivesse embaixo d’água. Olho para cima e
não a reconheço. — O que aconteceu? — Sua mão repousa em
meu braço, o apertando.
Não. Não. Não. Não. Não.
Em um único movimento, desfaço esse contato, afastando-me
da parede em um caminhar errôneo. Ignoro seus chamados, não
confiro a tela para saber se o Ministro se acalmou e me arrasto até o
elevador, batendo na porta metálica desesperado para sair daqui e,
assim que consigo entrar ativo o subsolo, caindo de joelhos no chão
acarpetado e massageando o peito em busca de ar.
O som engasgado que atravessa minha garganta reverbera no
pequeno espaço, enquanto sinto espessas lágrimas escorrerem,
mesmo lutando contra isso a vida toda. Arrasto-me para fora do
elevador assim que as portas se abrem, sem forças para andar até
o meu quarto.
“Seu patético!”
Usando os antebraços, deslizo pelo porcelanato. Minha camisa
gruda na pele, o suor empapando toda a roupa. Não preciso olhar
para saber que estou deixando um rastro de sujeira pelo caminho.
Agarro a maçaneta para não cair e passo o cartão no leitor
digital. Depois que consigo atravessar a porta, caio de costas,
encarando o teto pintado enquanto sugo o precário ar que adentra
meus pulmões.
“Você é patético, sabia?”
Fecho os olhos, meus dentes batendo uns nos outros,
reproduzindo um ranger insuportável e espalhando pontadas de dor
no crânio.
Por favor!
— P-pare... — Tampo meus ouvidos, não aguentando mais os
sons animalescos dentro da minha cabeça.
“Vamos ver se você aguenta isso.”
— Não!
O grito atravessando minha garganta e quase rasgando minhas
cordas vocais é tudo o que consigo expressar antes de ser tragado
para a escuridão sem fim.
Um breu familiar que odeio com todas as forças.
CAPÍTULO 11
Perdi a conta de há quantos minutos estou esparramado no
colchão da cama com as pernas esticadas em direções diferentes,
enquanto observo, como se fosse a primeira vez, os comprimidos na
palma da minha mão direita.
Por mais que eu tente, não consigo decifrá-los.
Na mão esquerda, meus dedos seguram com demasiada força o
gargalo de uma garrafa de whiskey. Recomeço a contagem das
pílulas, conferindo a quantidade retirada do frasco jogado mais
adiante, me atrapalho quando passo dos cinco graças a visão ainda
turva pela falta de oxigenação minutos antes.
“Um a cada doze horas, apenas.” Uma risada ausente de humor
me escapa ao recordar das palavras do médico, anos atrás.
— Grande merda!
Encosto a boca da garrafa no lábio inferior, pronto para entornar
todo o conteúdo desse luxuoso recipiente, mas paro quando a
imagem do tórax afundando retorna com tamanha intensidade,
semelhante a um trem prestes a descarrilhar.
Essa sensação opressora me faz suar frio, deixando meu corpo
trêmulo e a mente confusa, por isso derrubo os remédios que
segurava, espalhando as bolinhas pelo chão.
— Voltem aqui, malditas! — Inclino o tronco em direção a elas,
que escorregam por toda a palma, agora molhada de suor. — Que
porra...
Calafrios sobem e descem por meus braços e pernas,
impossibilitando maiores movimentos, e a luz baixa do quarto me
faz tatear em busca delas, a solução para esquecer
momentaneamente da vida fodida que tenho.
Sou um peso morto enraizado nas costas, unindo-se ao meu
sistema nervoso.
Agarro o comprimido mais próximo e jogo dentro da boca,
engolindo a seco. Deixo a garrafa de lado e, como o ser patético
que eu sou, fico de quatro no chão da suíte, engatinhando para
recolher os remédios, que vão se avolumando em cima da minha
língua, despejando um sabor amargo ao começarem a derreter.
“Você é patético, garoto.”
— Eu sei... — Pego o whiskey sem delicadeza e algumas gotas
caem da garrafa.
Com as duas mãos formando uma concha seguro a estrutura do
objeto e permito que o álcool invada minha boca, batendo nos
comprimidos antes de os empurrar garganta abaixo, os obrigando a
descer até a porra do estômago.
“Tão patético quanto ela!”
Fecho os olhos e continuo ingerindo o líquido, as notas
adocicadas agraciando minhas papilas gustativas e varrendo o
amargor, como se isso fizesse diferença em minha atual condição.
O álcool queima durante seu percurso pelo esôfago até chegar
em meu estômago, mesmo assim não paro, não quando ainda me
sinto lúcido demais para encarar minha fraqueza.
Resquícios da bebida escorrem nas laterais da minha boca,
descendo pelo pescoço e atingindo o peito, empapando a camisa
social e gerando uma queimação na recente ferida. Elas se parecem
com as lágrimas que insistem em abrir passagem.
Engasgo-me com a tosse repentina, o que me faz cuspir o
whiskey.
“Todos vocês são patéticos.”
O lado esquerdo do meu corpo atinge o piso e uma fisgada de
dor sobe por meu braço, com isso, a garrafa escapa dos meus
dedos e produz um estalido doloroso contra o chão de porcelanato.
O restante da bebida que não consegui ingerir vai se espalhando
lentamente, sem uma direção certa.
Do mesmo jeito que a minha vida se encontra.
Contorço-me a cada tossida potente que parece socar meu peito
e seguro a vontade de vomitar, obrigando meu corpo a continuar
digerindo os remédios junto ao álcool. O gosto azedo deixado na
boca não me incomoda, nada disso o faz, na verdade.
Nasci no Inferno, então deveria estar acostumado com qualquer
intercorrência, mas minha mente é uma traidora, minha maior
inimiga, maior do que todos eles juntos. Sozinha, ela enjaulou
pessoas e emoções em sua cela particular e, anos atrás, entregou a
chave para um carcereiro inumano.
Eu deveria ter morrido também, ninguém é capaz de me fazer
pensar o contrário.
“Até pra morrer você é patético, garoto.”
Um fio de baba escorre da minha boca enquanto todo o meu
corpo treme entre ondas de frio e calor. Estirado contra o chão
gelado, abraço meu tronco, fincando os dedos com unhas curtas
nas laterais enquanto encolho as pernas.
Igual fazia quando era criança, após...
Meus olhos se fixam em um comprimido caído mais adiante e ele
parece zombar da minha cara, do meu estado deprimente.
O que ingeri foi o suficiente ou, por causa de uma maldita pílula,
ou da falta dela, não vai dar certo?
Não vou conseguir me esconder do passado?
É por isso que aquela bolinha sorri para mim?
Estico o braço, deslizando por cima da bebida derramada, em
busca da porra do comprimido fugitivo.
— Só m-mais esse...
Porém, a dormência familiar vai se arrastando dentro das minhas
veias, enviando uma mistura perigosa para cada centímetro do meu
corpo.
Ouvir meus dentes rangendo dentro da cabeça é agoniante, o
som incômodo parece vir do centro, bem no diencéfalo. A ponta do
meu dedo médio encosta nela, na última pílula, e só me resta
apenas observar, acompanhando o seu rolar.
Girando e girando, para longe de mim.
“Tsc. Tsc. Tsc. Patético.”
A neblina densa duplica as imagens ao meu redor e o quarto gira
rápido demais, é como se eu estivesse em um enorme parque de
diversões, dentro de um kamikaze, só que esse é aberto, sem as
grades de proteção e, quando ele chega no topo, meu corpo é
jogado para longe, para o vazio, para um lugar que ninguém se
atreveria a entrar de boa vontade.
O próprio Inferno.
— O-olá, Lúcifer... sou eu ou-outra vez...
O sorriso dele é o último vislumbre que tenho antes de ser
abraçado pelos demônios que vibram com a minha chegada.
E as chamas do inferno consomem meu corpo...
...lentamente!
interesse
1. o que é importante, útil ou vantajoso, moral, social ou
materialmente.
2. estado de espírito que se tem para com aquilo que se
acha digno de atenção.
CAPÍTULO 12
Alterno a atenção entre as duas imagens na tela, curiosa para
entender o que de fato acabou de acontecer: na primeira, o Ministro
se troca apressadamente depois da chegada de nossos
seguranças, que o convidam a se retirar.
Claro que o homem contestou, mesmo estando errado.
Sua única objeção quanto a fúria descabida? A encomenda
estava fresca demais e seu desejo era encontrar algo mais... bem
passado.
Franzo o cenho, enojada com tais pensamentos, então olho para
a segunda imagem e, por mais que o odeie, me preocupo, assim
como acontece com qualquer outro funcionário da Babilônia, mas
ele não é um simples funcionário...
Enquanto Silas cuida de toda a burocracia com o idiota do
ministro, assisto a aparente agonia do meu chefe: Athos, caído no
chão do elevador, parece sentir dor e me recordo dos poucos
minutos que ele passou aqui dentro da sala de monitoramento,
quando sua petulância corriqueira deu lugar a uma aflição opressora
assim que o cliente começou a bater na encomenda.
Cruzo os braços, trocando o peso das pernas sem desviar a
atenção dele.
Athos sai do elevador, se arrastando como uma serpente prestes
a dar o bote, no entanto ele parece ser a vítima dessa vez.
— Reproduza o momento que o ministro se altera — comando
com a voz firme para o assistente na cadeira.
— Sim, senhorita. — Seus dedos ágeis se movem pelas teclas,
em busca do frame solicitado.
Assim que a cena se repete, me atento aos detalhes, ainda que
rever essa merda seja desgostoso. Aperto os lábios em uma linha
fina, acompanhando a explosão do homem depois de rodear a cama
algumas vezes, quando o corpo é arrastado para o chão e o Ministro
começa a bater no peito do seu alvo, finco as unhas na palma da
mão.
O que poderia ter afetado Athos a ponto de sair em disparada?
O mesmo cara que coleciona globos oculares em potes de vidro?
— Pare! — Inclino-me em direção à tela, fazendo uma varredura
detalhada da encomenda. — Volte cinco segundos... — Tombo a
cabeça para o lado direito e analiso o soco que faz o peito do corpo
sem vida afundar.
Seria isso?
Na hora que aconteceu, fiquei tão irritada com o ministro por
estar causando danos à encomenda que não avaliei Athos, mas
mesmo assim, todo esse cenário é muito estranho e não combina
com o seu estilo prepotente e arrogante, convencido no papel de
dono do mundo.
Passo a mão em meu pescoço como se pudesse sentir as
marcas deixadas por ele mais cedo, ainda posso ver a fúria em seu
olhar determinado em ceifar minha vida.
O que você esconde, chefinho? Qual é o seu calcanhar de
Aquiles?
— Já cuidei de tudo, Lil — Silas diz perto do meu ouvido,
soltando uma respiração consternada a seguir. — O necrotério vai
receber uma bonificação adicional para deixar a encomenda...
Sua pausa me faz encará-lo e noto a curiosidade em sua
fisionomia enquanto vê a cena congelada na tela. Os olhos verdes-
acinzentados se voltam para mim, carregados de questionamentos,
mas dou de ombros, fazendo pouco caso de algo que parece
esconder uma mina de ouro.
— Consigo imaginar as engrenagens se movendo dentro da sua
cabeça — fala com cuidado, mas posso ouvir o medo atrelado a sua
voz. — Lilith — o chamado recheado de preocupação quase me
comove. Silas avalia meu pescoço com revolta. — Athos não é...
— Normal? Confiável? — Aliso meu vestido, tirando amassados
invisíveis do tecido vermelho. — Surpresa! Nenhum de nós é, e é aí
que está toda a graça. Não tenho medo dele, digamos apenas que
eu esteja muito curiosa para entender o que aconteceu mais cedo.
Só isso, Silas, queridinho.
— O que vai fazer? — pergunta após cruzar as mãos atrás das
costas, pronto para receber comandos, mas só dou um tapinha em
seu peito ao passar por ele em direção à saída. — Lil?
— Como a excelente funcionária que sou, vou conferir como o
nosso amado chefe está. — Silas abre a boca para contestar, então
ergo a mão e o homem a minha frente não move um músculo
sequer. — Relaxe, Silas, não vou matá-lo... ainda.
— Vou com a senhorita. — Se aproxima decidido, o que me faz
bufar.
— Você sabe ser bem chato, às vezes.
— E a senhorita é um anjo, às vezes. — Um mísero sorriso
surge em seus lábios e acabo o imitando.
— Marquei um horário no salão pra você amanhã — provoco e
passo a mão em sua cabeça lisa, adorando sua reação ao fingir
cansaço.
— Ah, não...
— Aproveita pra fazer uma chapinha.
Dou as costas para Silas, o ouvindo xingar baixinho enquanto os
seguranças no comando da sala tentam disfarçar uma risada. Não é
a primeira vez que zombo da ausência de cabelo em sua cabeça,
tirando uma com a sua cara, mas ele não se importa com isso
porque sabe que é a forma encontrada para demonstrar... afeto.
Em silêncio, seguimos para o subsolo 2, a suavidade da descida
contrastando com a loucura que é a Babilônia.
Confiro a pequena faca presa na coxa, apenas por precaução,
antes de sair do elevador, e o primeiro sinal de que algo realmente
está errado é encontrar a porta da suíte de Athos entreaberta.
Troco um rápido olhar com Silas, então toco na madeira,
empurrando-a e entrando em seguida.
O aparador está caído, junto com um vaso quebrado, do cartão
preto e outros objetos espalhados, passando a sensação de que
ocorreu uma briga, mas as filmagens não mostraram a presença de
mais ninguém no local.
O ar-condicionado desligado deixa o ambiente quente como o
Inferno e dou mais alguns passos na penumbra parcial com Silas
me acompanhando de maneira silenciosa.
— Merda! — é tudo o que sai dos meus lábios ao visualizar o
corpo de Athos estendido no chão.
Aciono a luz do quarto e o que vejo me faz repensar todos os
dias ao lado dele.
Noto uma garrafa vazia com o líquido despejado no piso,
formando uma enorme poça. Dou outro passo e acabo pisando em
algo, visualizo uma embalagem e me abaixo para pegá-la e
conseguir ler o rótulo em busca do componente principal: oxicodona.
Sem tampa, então confiro o óbvio e constato que está vazia.
— Caralho, Lil! — Silas caminha até Athos e confere o pulso do
homem por alguns segundos. — Ele tá vivo — anuncia sem
esconder o alívio em sua voz e se ajoelha ao lado dele.
Claro que está, dizem que vaso ruim não quebra fácil, mas ainda
é estranho.
Athos estava tentando se matar? Talvez a imagem o tenha
afetado mais do que eu poderia ter suposto.
Saio desse pequeno transe assim que ruídos engasgados
chegam até mim. Pego o instante em que Silas tira os dedos da
boca de Athos e o homem começa a vomitar com força, então me
levanto rápido do chão, observando diversos pontinhos brancos
misturados ao líquido amarelado que sai do estômago dele.
— Parece que ele tomou metade do fraco, Lil — diz Silas, sem
se importar com suas roupas ficando sujas, carregadas de
respingos enquanto mantém Athos no lugar. Ele liga para a nossa
central e solicita ajuda especializada, isso mostra o quão eficiente
ele é, então guarda o celular no bolso do terno e seus orbes verdes
me fitam, há preocupação genuína ali. — Se a gente tivesse
demorado... — Deixa no ar, apoiando o corpo de Athos em seus
braços.
Fecho a mão em punho, sentindo uma irritação anormal ao
compreender o que ele tentou fazer. Não consigo explicar o motivo,
no entanto, tenho vontade de socar o peito de Athos até ouvi-lo
confessar a razão de tudo isso.
— Lilith! — Encaro Silas e entendo que não é a primeira vez que
me chama. Aceno, sem encontrar minha voz. — Me ajude a levá-lo
até o banheiro, a água gelada vai ajudar.
Não me movo, permaneço observando Athos e o seu estado
lastimável, a ira se acumulando em minhas veias está prestes a
explodir.
O descompassar dos meus batimentos cardíacos somente agora
é ainda mais estranho, é como se o meu sistema nervoso estivesse
computando as sensações com delay.
Foda-se esse maldito e tudo o que fez. Nada teria mudado se
tivesse morrido.
Silas sonda meu rosto em silêncio, aguardando. Sem dizer nada,
agarro o braço de Athos desacordado e ajudo a levá-lo ao banheiro,
o cheiro de álcool misturado com vômito me faz franzir o cenho.
Apoiamos o corpo dele no vaso sanitário e, enquanto Silas tira
as roupas do nosso chefe, abro o chuveiro na potência mais fria.
Quando viro para trás dou de cara com o corpo de Athos
totalmente nu, mas por mais definido que ele seja, e por mais
acostumada a estar diariamente na presença de pessoas nuas que
eu esteja, as centenas de tatuagens ainda assim chamam minha
atenção.
É quase impossível enxergar a pele por baixo e essa
combinação perturbadora o deixa... lindo?
— Eu faço isso, Lil, não precisa estragar o seu vestido — Silas
pontua no instante em que volto a segurar no braço de Athos.
— Como se eu me importasse com isso — murmuro e dou uma
conferida em meu Miu Miu comprado recentemente.
Nesse instante, um desenho específico entre tantos outros me
hipnotiza, absorvo as linhas se entrelaçando e criando pontas, e
mais pontas. Ela é tão grande que começa no cóccix e termina
apenas na coluna cervical, com o sombreado da tatuagem
percorrendo os músculos dos ombros.
As asas de anjo são belíssimas e aparentam estar desgastadas
em certos locais, corroídas. Seja pela demonstração do tempo ou de
uma batalha vivenciada.
Na junção das asas, não sei definir se é a imagem de um
homem ou anjo, ajoelhado com a face escondida, como se
estivesse triste ou sentisse vergonha, culpa...
— Ele tem bom gosto, afinal — diz Silas, admirando a tatuagem.
O que eu estou fazendo?
Balanço a cabeça e ignoro a fala dele, voltando para a realidade,
então entro no box com os dois ainda usando salto e quase
escorrego. Enquanto Silas o senta no piso gelado, tiro minhas
sandálias Louboutin vermelhas, jogando-as do outro lado do
banheiro.
A água fria cai diretamente na cabeça de Athos e eu me abaixo
em sua frente, segurando seu rosto para que não se afogue, ainda
que a minha real vontade seja permitir que isso aconteça.
Talvez ninguém sinta falta. Eu, menos ainda.
— Vou providenciar a limpeza daquela bagunça e...
— Pode ir, eu fico aqui com ele. — Sinto meu vestido cada vez
mais pesado por conta da água densa, mas como Silas não se
move, encaro-o e noto cautela em seu semblante. Bufo, revirando
os olhos. — Não vou matar esse maldito, se é com isso que está
preocupado.
— Sempre é bom averiguar, Lil. — Sem conseguir evitar,
sorrimos um para o outro em cumplicidade, até a voz de Athos
chamar nossa atenção.
— Queen... — O timbre rouco se arrasta nessa pequena palavra.
— Eu mereço essa merda mesmo — murmuro sem soltá-lo.
— Bem, tem um quarto esperando para ser limpo e não vou
atrapalhar os pombinhos — Silas zomba, caminhando para fora do
banheiro.
— Eu te odeio — falo entredentes e noto o sorriso safado em
seus lábios.
— É recíproco, senhorita Lilith! — Mostro o dedo do meio e Silas
nos deixa a sós.
Athos começa a tossir e o seguro enquanto seu corpo solta mais
vômito, esvaziando tudo no ralo do box. Procuro por mais
comprimidos e não encontro, o que é um bom sinal, então faço um
muxoxo com a boca diante de tais pensamentos.
— Foda-se, não me importo com você.
Encosto sua cabeça na parede, afastando as mechas de seu
cabelo para os lados e ignorando os meus, que grudam em cada
parte das minhas costas.
Tento me mover melhor, contudo o vestido encharcado não ajuda
em nada, então, sem perder tempo, desço o zíper da lateral e o abro
por completo. Ainda agachada em frente a um Athos abobalhado,
arrasto todo o tecido para baixo, tirando-o pelas pernas, e
desprendo a faixa com a pequena faca, a lançando longe também.
Só de calcinha, sento nas coxas dele, rodeando sua cintura com
as minhas pernas, e dou tapas em seu rosto.
— Acorde, Belo Adormecido, chega dessa merda — comando e
aproveito para limpar do redor da sua boca os vestígios que ficaram
do vômito, enquanto observo com mais calma sua face.
As sobrancelhas são cheias e desenhadas naturalmente, seu
nariz é afilado em harmonia com todo o resto, o queixo triangular,
carregando uma quantidade considerável de pelos, contorna sua
boca, antes rosada, mas agora com a palidez crescendo, seus cílios
são espessos e encostam no alto das maçãs.
Acaricio seu rosto com as duas mãos, sentindo o contato de
nossas peles mesmo debaixo da água gelada, e levo um susto
quando seus dedos cravam em meus quadris com força.
Devagar, ele vai separando as pálpebras e a vermelhidão que já
vi antes toma toda a parte branca dos dois globos oculares.
— Queen... — O maldito apelido outra vez. Orbes azuis parecem
me enxergar através de uma intensa neblina, estou prestes a xingá-
lo e me levantar quando suas próximas palavras me paralisam. —
Ainda não descobri... a cor dos seus olhos... dos seus cabelos... a
porra da cor da sua pele — resmunga, sem me soltar. De boca
aberta, observo Athos sorrir, um sorriso que mais se parece com
uma lamentação. — A cor do seu vestido era verde? Sou tão
patético, Queen.
Athos fica em silêncio após compartilhar seu segredo e ergo o
braço para fechar o chuveiro, sem conseguir afastar meus olhos
dele.
A vermelhidão, o colírio e sua obsessão por globos oculares.
Tudo começa a fazer sentido, as peças vão se encaixando com
perfeição.
Suspiro extasiada, enquanto um sorriso real nasce em mim.
— Ainda não é o seu calcanhar de Aquiles, chefinho, mas posso
usar essa informação a meu favor — digo, saboreando a vantagem
obtida sobre ele. — Meus olhos são castanho-claros, mas você vai
ter que descobrir isso sozinho — sussurro em seu rosto antes de
depositar um beijo em cada um dos seus olhos fechados.
Levanto-me com as costas alinhadas, exatamente como uma
rainha faria, no segundo em que nosso médico e um acompanhante
entram no local.
Eles desviam o olhar da minha nudez e se aproximam de Athos,
então seco os pés no tapete e agarro uma toalha jogada na
bancada, saio do banheiro com o tecido felpudo enrolado no corpo,
vejo Silas e mais dois funcionários terminando de limpar o quarto
com uma eficiência exemplar. Meu braço direito nem parece
surpreso ao me ver dessa forma.
— Tudo bem? — Para o que está fazendo e me avalia por
alguns segundos.
Passo por ele sorrindo e entro no closet de Athos, abro a gaveta
aonde me recordo estar o que preciso e puxo uma camiseta larga,
com a logo da banda Arctic Monkeys.
Sem me incomodar com a atenção alheia, deixo a toalha cair aos
meus pés enquanto visto a roupa dele, que pelo menos está
cheirosa.
Aproveito para deixar um presente para o nosso amado chefe
sob o olhar atento de Silas, que não esconde a surpresa. Fico de
frente ao enorme espelho sem deixar de sorrir, meus cabelos estão
desalinhados, mas a maquiagem, intacta.
Investir alguns dólares em cosméticos de renome tem se
mostrado benéfico.
— Você quer saber se eu estou bem? — Olho para Silas e vejo
seu semblante carregado de curiosidade. Dou de ombros e saio do
closet com ele atrás de mim. — Suponhamos que a Babilônia seja
um tabuleiro — Paro no meio do quarto, assistindo o restante da
bagunça ser desfeita pelos funcionários, então encaro Silas e deixo
os meus dentes à mostra — e, nessa noite, avancei algumas casas
sem nenhum esforço.
Deixo Silas e os outros, indo para o meu próprio quarto sem
acrescentar mais palavras. No aparador, agora em ordem, estão
meu celular e cartão, depois peço para trazerem minha faca jogada
no banheiro.
Caminho pelo espaço familiar, refletindo sobre todos os
acontecimentos, essa noite foi uma verdadeira montanha-russa e
ainda são apenas duas da manhã.
— Alexa, me conte tudo sobre daltonismo. — Paro em frente ao
aparelho, atenta.
“Ok! Daltonismo: redução da capacidade de diferenciar certas
cores. Geralmente, o problema é...”
Sento-me na cama e, como a excelente aluna que sou, faço a
lição de casa.
CAPÍTULO 13
Deixo meu quarto algumas horas depois, mas ainda no mesmo
dia e com a cabeça fervilhando. As informações adquiridas durante
o tempo em que precisei para me arrumar parecem dançar dentro
do meu cérebro. Os movimentos precisos e mortais gingam cada
instante mais rápidos, espalhando sugestões do que fazer com esse
ouro em minhas mãos.
Olho para o quarto dele, ainda com a porta fechada, sabendo
que há um enfermeiro o supervisionando. Pelo que nosso médico
disse, não parece ser a primeira vez que Athos exagera na dose e
seu corpo, de alguma forma, se habituou ao remédio de tarja preta.
O que mais você esconde, chefinho?
Afasto-me das suítes e subo para o terceiro andar, aonde Silas
me aguarda, confiro a hora no painel digital assim que ultrapasso as
portas do elevador, 3:40hrs da madrugada.
Falta pouco para a Babilônia encerrar seu expediente, aproveito
para conferir minha aparência no espelho: um coque apertado sem
nenhum fio solto, as pálpebras sem maquiagem denotam o cansaço
evidente, e o vestido de tubinho preto combinado com o scarpin de
mesma cor, tornam tudo mais apresentável.
— Não precisava vir — Silas diz ao se aproximar. Sua análise
rápida em minha aparência cria um vinco no meio da sua testa. —
Tira o restante da madrugada pra descansar, Lil. Eu cuido de tudo.
— E ficar fazendo o que dentro do quarto? — retruco e começo a
caminhar para dentro do nível três.
— Dormir? — O sondo por cima do ombro e Silas meneia a
cabeça. Reviro os olhos e faço um sinal com a mão para que me
deixe por dentro de tudo, acostumado com isso ele pigarreia antes
de falar: — Andares dez, nove, oito e sete estão vazios já, além do
térreo, o seis, cinco e quatro possuem apenas alguns clientes
presentes, mas logo deixam o local.
— Ótimo — respondo enquanto avalio as pessoas presentes
aqui, a maioria está utilizando as cabines de vidro e os outros estão
acomodados nos mezaninos.
A música ambiente não esconde os gemidos intensos e o som
de seus corpos chocando-se contra os móveis.
— Lilith! — Mais a frente, Ella aparece dentro de um roupão
vermelho e toda descabelada, com os olhos levemente assustados.
— O que faz aqui? — Cruzo os braços, sentindo uma centelha
de irritação pedindo passagem. — Você sabe que é proibida a
circulação de funcionários em outros andares que não seja o seu,
Ella!
— Eu sei, mas é que... — corta a fala, mordendo o lábio inferior.
Então seus olhos pretos buscam por algo perto do bar. — Ele
precisava de ajuda, Lilith.
— Puta merda — Silas xinga baixinho e compreendo sua atitude
ao pegar Kai tentando se esconder atrás do balcão.
— Vocês estavam transando? — questiono, indo em direção ao
novato. — Fique de pé! — Não espero até ele estar totalmente
como mandei e me aproximo, puxando seu colarinho e sentindo o
cheiro em suas roupas.
— O quê? — Ella exclama incrédula, se colocando ao lado de
Kai com os braços cruzados. — Nós somos amigos, quase irmãos,
Lilith.
Se conheceram não tem nem dois meses, como ela pode
chamá-lo de amigo?
— Isso não é motivo para estar fora do seu local de trabalho —
Silas se pronuncia, exasperado.
— Tecnicamente, ainda estou dentro da Babilônia — Ella rebate
sem um pingo de vergonha na cara —, e Kai precisava de ajuda.
Observo com mais calma o barman se encolhendo como se
estivesse com dor. Há um pequeno corte perto da sobrancelha
esquerda e ele coloca a mão na barriga.
— Por favor, não seja tão severa...
— Alguém me conta o que aconteceu — pontuo acima da voz de
Ella —, então decido o que fazer com os dois.
Repouso as mãos na cintura, aguardando. Silas, parado ao meu
lado, resmunga tão baixo que não compreendo suas palavras,
porém entendo que ele está no limite de sua paciência devido a
todos os acontecimentos da noite, não o julgo.
— Kai me ajudou quando um cliente estava tentando se
aproveitar de mim.
— Qualquer tipo de violência é proibida na empresa, por que não
chamou os seguranças? — Alterno a atenção entre os dois e ele
desvia o olhar.
— Porque Kai estava lá para me ajudar...
— E por que o senhor se fazia presente no segundo andar? —
Silas se adianta, questionando por mim o óbvio com a voz mais fria
que o normal.
— Porque...
— Deixe que o Kai responda à pergunta, Ella — corto-a outra
vez. — Ele pode usar a própria boca, não é mesmo, Kai?
Escrutino o moreno sarcástico em minha frente, dentro do
uniforme elegante da empresa. Seus cabelos castanho-escuro e
lisos caem em todas as direções em uma bagunça sexy, o piercing
no lóbulo da orelha direita de Kai acrescenta mais charme ao
novato.
Com lábios finos e nariz arrebitado, Kai tem feito muitos
funcionários e clientes suspirarem, seus olhos pequenos e puxados
são intensos e estão menos tristes.
Conheço o suficiente do seu passado para ter permitido que
trabalhasse aqui. Depois de fugir do seu algoz, Kai praticamente
implorou por uma oportunidade na Babilônia. Sua imagem apática e
machucada após dias percorrendo as ruas da cidade de pedra está
cravada em minha mente, assim como o terço que carregava entre
os dedos.
— E então? — Espanto esses pensamentos quando a voz de
Silas se impõe com mais firmeza.
— E-eu... eu estava com dúvidas sobre... uma bebida —
responde baixo sem fazer contato visual comigo. Eles trocam um
rápido olhar e sei que não estão contando tudo.
Silas deixa um suspiro exasperado escapar de sua boca, dando
um passo em direção a eles, que se afastam.
Seria cômico se eu não estivesse tão exausta.
Abro a boca para dispensá-los, ainda que não seja o correto,
mas tenho a intenção de intimá-los separadamente durante o dia,
mas sou interrompida quando um segurança para ao meu lado e
informa:
— Tem um homem ao telefone insistindo em falar com a
senhorita — noto o nervosismo em sua voz e o observo.
— Quem é?
— Ele não quis dizer...
— Então desligue aquela merda, não tenho tempo a perder. —
Silas abandona o casal encrenca, como os apelidamos dias antes, e
se posta perto de mim.
— Senhorita — o segurança abaixa a voz para quase um
sussurro —, ele insistiu para repassar essa mensagem caso
dissesse algo semelhante. — Aguardo as próximas palavras, com
os olhos em Ella e Kai, que estão atentos ao que acontece aqui.
Dois fofoqueiros. — Se Lilith não quiser atender, peça para ela
chamar a Daiane.
Dou um passo para trás, travando o maxilar enquanto olho com
incredulidade para o segurança. Um arrepio percorre toda a minha
pele, gelando cada parte do corpo e as batidas desgovernadas do
meu coração se tornam intensas ao ponto de provocar dor em meu
peito.
Enfio as unhas nas palmas das mãos em busca de controle. Não
posso deixar que as pessoas ao meu redor percebam minha luta
interna ou a avalanche de emoções que somente esse mísero nome
pode provocar.
— Senhorita Lilith...
Dou as costas para Silas e os outros, caminhando a passos
apressados até o local aonde o telefone se encontra. Fecho a porta
atrás de mim, escorando-me na madeira. O aparelho em cima da
mesa de centro parece um bicho de sete cabeças, nojento e
horrível.
Quem mais saberia meu antigo nome?
Respiro fundo e me concentro, permitindo que a frieza assuma o
controle. Os três passos que me separam do telefone se tornam
pesados e estranhos. Envolvo o aparelho, fechando a mão com
tamanha intensidade que as juntas ficam brancas, encosto o objeto
no ouvido e o som de alguém caminhando atravessa a linha.
Permaneço em silêncio, olhando para um ponto qualquer nessa
sala.
— Sei que está aí, Lilith — a voz grossa de um homem reverbera
dentro da minha cabeça. Uma risadinha sínica acompanha a
respiração ruidosa. — Ou melhor, Daiane.
— Quem é você? — questiono entredentes, concentrando-me.
— Saber quem eu sou não importa, putinha. — Então ele ri com
desprezo emaranhado na voz. Fecho os olhos, contando minhas
respirações. — Sei que está atrás de informações sobre um certo
alguém... — Quando separo minhas pálpebras, me deparando com
a luz amarelada do local, não há qualquer fagulha de Daiane em
mim...
Apenas Lilith.
— Continue — comando baixo. Uma rouquidão sensual
adornando as cordas vocais.
— Mais tarde entro em contato novamente para te passar o
endereço, esteja pronta.
— Como posso saber que não está blefando?
A risada maldita outra vez. Consigo me ver cortando a garganta
desse animal por conta dessa ousadia.
— Suiane. — É tudo o que diz, sem vacilar.
Como sabe quem eu sou? De que maneira me encontrou?
Desde quando possui essa informação?
São tantos questionamentos dançando em minha mente, tantas
dúvidas. Pode ser uma cilada ou pode ser real, mas só há uma
forma de descobrir quem está do outro lado, de ver o rosto desse
pobre coitado que acabou de entrar em meu caminho.
Independente das consequências, a decisão está tomada ao
abrir a boca:
— Estarei esperando.
Devolvo o telefone no gancho como se tivesse acabado de
receber a notícia que ganhei na loteria. Para o bem ou para o mal,
de uma coisa tenho certeza: é impossível os dois saírem vivos
desse encontro.
Apenas um voltará para casa, ou melhor, para a Babilônia.
ódio
1. aversão intensa motivada por medo, raiva ou injúria
sofrida; odiosidade.
CAPÍTULO 14
Não consegui dormir desde o misterioso telefonema que recebi
nessa madrugada. A maneira confiante do interlocutor, como se me
conhecesse bem, não passou despercebida. Prova que possuiu
algo real para usar contra mim em uma chantagem.
Não ser informada com antecedência do local do nosso encontro
também me envia uma mensagem: seja ele quem for – ou eles –,
não quer me ver no lugar antes da hora.
Isso tem cheiro de ser uma armadilha para acabar comigo.
Entretanto, ele saber o nome da minha irmã é o que me faz optar
por correr esse risco. Sorrio de lado, encarando o teto adornado do
meu quarto, enquanto reflito sobre tudo.
Não é a primeira vez que recebo uma ligação desconhecida e
combino de encontrar alguém, porém jamais haviam usado o nome
de Suiane, ou o meu.
Cruzo os braços atrás da cabeça, mordendo o lábio inferior,
travada nessa espera que não parece ter fim. Aproveito esse hiato
entediante e abro espaço em meus pensamentos para ele, o
homem na suíte do outro lado do corredor.
O médico informou há menos de duas horas que Athos havia
acordado, que estava lúcido e até bem para uma pessoa que
atentou contra a própria vida no começo da madrugada. Não sei se,
de fato, foi isso o que aconteceu ou se ele ingeriu aquela quantidade
por puro hábito, um vício.
Ainda quero confrontá-lo, utilizar esse momento de fraqueza
para retirar informações, mas isso só vai acontecer depois do meu
encontro nessa tarde. Tenho prioridades e Athos, por mais tentadora
que sua situação seja, está em segundo plano e permanecerá
dessa forma até meu retorno. Sua condição e as diversas formas
que poderei usá-la contra ele me seduzem.
Chegarei ao fundo desse poço obscuro chamado Athos.
— Alexa, frase desmotivacional.
“Frase desmotivacional do dia: perdoe os outros tão rapidamente
quanto espera que Deus o perdoe - Autor desconhecido.”
— Deus... — sussurro o nome sagrado, testando o som. Foram
raras as vezes em que proferi essa pequena palavra, carregada de
significados para a maioria —, mas eu não busco por perdão...
Vingança, única e exclusivamente, esse é meu objetivo de vida.
Foram anos de preparação para tal momento, anos de
aprendizagem, cultivando a semente do ódio dentro de mim.
Esse sentimento está tão enraizado em meu coração que, para
retirá-lo, teria que arrancar o órgão junto, já que suas raízes, ao
longo do tempo, se misturaram com as veias do meu corpo,
esticando-se por cada centímetro.
É impossível identificar o que nasceu comigo e o que cresceu
posteriormente.
Fui moldada pelo ódio, pela revolta, pelo desgosto, o tormento e
pelo vazio do que foi tirado de mim sem que eu pudesse decidir, ou
lutar...
Lilith é o resultado da soma de todos os sentimentos mais
podres que existem em mim, pois somente dessa forma é possível
chegar ao final dessa luta. As migalhas de algo bom que existem em
mim, entreguei para Daiane e ela as ofereceu com devoção à dona
Jussara, quando essa senhora se for, minha antiga eu morrerá com
ela.
Então apenas escuridão, a mais opressora e cruel, existirá
dentro de mim.
Meu celular toca, me obrigando a sair desse devaneio sombrio.
Estico o braço em cima da cama e pego o aparelho, olha para a tela
e vejo o número da recepção.
— Senhorita Lilith, tem uma...
— Passe para mim, agora — comando, enquanto jogo as pernas
para fora da cama, no aguardo.
Antes de retornar para o quarto deixei avisado que era para me
avisarem sobre qualquer tentativa de comunicação comigo.
Observo a hora no relógio digital: 16:50hrs.
— Atendeu rápido dessa vez, Daiane — o homem debocha, mas
ao fundo ouço seus passos criando um eco.
Um galpão? Um pátio?
— Não me faça perder tempo e mande logo o endereço — digo
entredentes antes de soltar um suspiro exasperado.
— Deveria tomar cuidado, putinha, quem dá as ordens por aqui
sou eu. — Fecho os olhos, já imaginando diversas maneiras de
acabar com o idiota. Talvez eu desosse seu corpo... Um mísero
sorriso se desenha em meus lábios com a ideia nem um pouco
perturbadora. — Só vou falar uma vez... — sua voz asquerosa
começa a dar a localização, contudo, não preciso anotar nada, pois
sei aonde fica, para o azar dele.
O local já foi uma grande siderúrgica e é longe daqui, vou
precisar de quase duas horas para chegar, mas não tem problema.
Trabalho com mais eficiência quando o sol se esconde, quando as
sombras se transformam em amigas íntimas, abrindo passagem
para o meu caminhar semelhante ao de uma gatuna.
— Não se atrase, Daiane — diz, ressaltando o meu nome de
infância, então desliga sem esperar por respostas.
Você não tem ideia da minha pontualidade quando o assunto é
matar, infeliz.
Levanto-me animada, como se estivesse a caminho do parque
de diversões que acabou de chegar na cidade.
Em frente ao espelho, avalio minhas roupas: blusa de manga
comprida e gola alta, uma calça jeans justa e o coturno até a
metade da panturrilha. Pego a jaqueta recheada de zíperes e a
visto, então coloco as luvas pretas, assim como todo o resto.
All Black.
Sem precisar passar as mãos, sei exatamente cada local que
escondi algum tipo de arma, entre adagas e uma Glock, tão
pequenas que apenas com um detector seria possível encontrá-las.
Meus cabelos soltos ficam entre a blusa e a jaqueta, protegidos
contra o vento, afinal, a corrida será intensa.
Saio da suíte levando comigo um celular descartável, caso
ocorra algum imprevisto, e dou uma rápida olhada na direção do
quarto dele, a porta está fechada e tudo está mergulhado em um
completo silêncio.
Você não me escapa, chefinho.
Subo para o estacionamento aonde a minha máquina me
aguarda e sorrio diante da visão da moto imponente mais adiante. O
capacete permanece em cima do assento, local em que deixei já
que ninguém na Babilônia ousa tocá-la. Ela é quase um animal de
estimação e sou ciumenta para caralho com determinadas coisas.
Dentro do capacete há uma balaclava preta dobrada, a coloco
com calma e somente os meus olhos ficam visíveis.
Subo na moto assim que o capacete se encaixa em minha
cabeça, seguro nas roldanas e ligo o motor e, como sempre
acontece, fecho os olhos ao sentir a vibração percorrendo meu
corpo.
Um som de prazer atravessa minha garganta enquanto acelero
sem sair do lugar, usando meu pé para reproduzir um ronco único.
Inclino o corpo para frente e acaricio o tanque por alguns segundos,
apreciando esse momento tão meu.
Quando realmente me sinto pronta para qualquer coisa, dona de
mim ou, como o maldito insiste em falar, uma Queen – uma rainha
sentada em seu trono de duas rodas, vestida para caçar...
... e matar.
— Vamos lá, belezinha — digo para a minha máquina, a voz
saindo abafada por conta do tecido da balaclava e do capacete. —
Faremos um passeio interessante essa noite.
Tiro os pés do chão e começo a sair do estacionamento, sem
olhar para trás. Silas foi avisado e compreende que essa é uma
linha que não se deve ultrapassar, então, todas as vezes em que
sumo por horas sem levar ninguém comigo ou compartilhar minha
localização, meu braço direito se mantém em silêncio e atento a
cada detalhe.
Diversas vezes retornei machucada, com algum pequeno corte
precisando de atenção, mas depois da primeira vez que sugeriu
tocar no assunto e o alertei sobre ser um terreno perigoso, nunca
mais questionou.
Silas entende que há algo muito obscuro sobre a minha vida e,
quanto menos souber, mais seguro estará.
Avanço pela via dupla no limite da velocidade estabelecido para
a área, não posso correr o risco de ser parada por algum carro de
polícia, ou melhor, ter de despistá-los, como já aconteceu, preciso
chegar no local que o meu amigo compartilhou.
Assim que deixo a via principal, entrando em uma estrada mais
calma, inclino totalmente o meu corpo sobre a moto e acelero.
Apesar dos poucos raios solares presentes, o vento que encontra
brechas para entrar em minhas roupas é frio e parece acariciar meu
corpo, relaxando-me com eficiência.
Dessa forma, seguindo minha memória excelente, sigo para o
destino indicado, usando estradas alternativas. O velocímetro digital
apenas aumenta sua contagem, dou uma rápida conferida e sorrio
com o que os meus olhos veem:
170km/h.
Nada mau, é provável que eu chegue com alguns minutos de
antecedência.
Sigo adiante, assistindo o sol se pôr de vez, carregando sua luz
para outro lugar, e a escuridão vai tomando com rapidez tudo o que
consegue alcançar, majestosa e imponente.
Vejo as trevas subjugando a luz e engolindo sua claridade com
ânsia por mais, assim como um predador diante da sua presa,
sempre desejando, insatisfeito.
É como me sinto depois de tantos anos sendo abraçada pelas
sombras, pelo imoral. Quanto mais densa e opressora as trevas se
tornam, maior é a vontade de desbravar o seu núcleo podre e
pecaminoso. O submundo me proporciona isso, agir perante às
próprias leis criadas, leis essas que são centenas de vezes mais
eficientes do que as corretas perante o mundo.
Se eu esperasse pela justiça para ver a aniquilação dos
abusadores e honrar o nome de Suiane, eu enlouqueceria.
Farei sua morte ser vingada, assim como os anos sendo
molestada, enquanto a mulher que nos deu a vida se drogava na
sala, sem se importar, preocupada apenas com a agulha enfiada em
seu braço. Sorte a dela que está morta, porque eu não teria piedade
e seu nome também estaria na lista de alvos.
Seu silêncio diante de tudo o que acontecia foi mais cruel do que
todos aqueles homens juntos.
Entro na área afastada da cidade e avisto a siderúrgica
abandonada mais à frente, estaciono a moto duas quadras antes do
endereço combinado, sondando cada centímetro do beco que
escolhi. Em um espaço ao lado da caçamba de lixo, retiro e guardo
meu capacete, porém continuo com a balaclava.
Sei que o risco da minha máquina ser roubada é grande, só que
não posso me dar o privilégio de buscar por um local mais
adequado quando a hora estabelecida se aproxima. Tenho apenas
três minutos até o galpão e esse quase atraso, por conta do tráfego
intenso perto daqui, me irrita.
Caminho com passos leves, desviando de lixos, insetos e alguns
ratos no beco com odor duvidoso. Não são nem sete da noite e já
não há uma alma viva vagando por aqui, a região de fato
permanece desértica como me recordo.
Com um simples gesto, seguro o cabo da adaga presa em meu
pulso esquerdo, sem tirá-la do lugar. A mão enluvada a esconde
com perfeição, pronta para um ataque surpresa. Paro ao lado da
grade de aparência enferrujada e me abaixo, usando o buraco para
atravessar.
Meus olhos fazem uma varredura minuciosa no telhado,
buscando por algum brilho que confirme a presença de atiradores.
Novatos ou homens mal treinados costumam esquecer de pequenos
detalhes que podem acabar com suas vidas, por exemplo, se a
arma não estiver bem camuflada, os reflexos da lua contra o objeto
mortal tornam-se pontos sinalizadores. Uma das primeiras lições
aprendidas com meu contato foi essa.
Estanco os passos, próxima da porta do galpão, no aguardo. Se
o homem quer realmente me confrontar, que venha até aqui, no
pátio.
Não demora mais do que dez segundos para que os seus
passos se tornem distinguíveis. Junto as mãos em frente ao corpo,
enquanto grudo meus olhos na sombra que se aproxima, sem
esquecer de prestar atenção ao meu redor e, com os ouvidos
apurados, vou discernindo os diferentes sons a céu aberto: uma
cigarra grita em algum ponto, o coaxar forte indica sapos
espalhados no escuro e a estridulação de grilos atraindo as fêmeas
também é alto e persistente.
— Não sei se te considero corajosa ou muito burra, Daiane! — O
homem sai das sombras com um sorriso vitorioso em seus lábios.
As mãos nos bolsos da calça jeans são a tentativa de passar uma
imagem de tranquilidade, contudo, assim que se aproxima, ficando
apenas a cinco metros de mim, noto uma certa preocupação graças
ao vinco profundo no meio da testa. — Ou deveria te chamar de
Lilith? Não sei qual deles prefere para o nosso encontro. — Seus
olhos vão para além dos meus ombros, depois ao redor em busca
de algo. — Não é inteligente uma moça marcar encontros com
estranhos durante a noite e tão longe de casa.
Permaneço em silêncio, encarando-o. O homem é calvo e
carrega uma barba grossa, as cores de suas roupas não estão
precisas por conta de uma faixa de sombra sobre si e seu queixo se
move quando aponta em minha direção.
— Tire essa touca, sua puta. — Ser xingada não me causa
nenhuma comoção, afinal, foi assim que comecei quando cheguei
até a Babilônia, sem arrependimentos. — Quero ver se é tão bonita
quanto nas fotos que ele mandou.
Ele.
Para qualquer outra pessoa isso é uma inocente informação,
mas para mim é a ponta de uma corda jogada, indicando o caminho
a ser tomado para encontrar o outro lado.
— Como quiser — uso um tom de voz melodioso e baixo, com
uma nota de rouquidão.
Levanto o braço direito com rapidez e o que vejo tira algumas
dúvidas ainda presentes.
A primeira: o homem não está sozinho, pois olha por cima do
ombro. Um sinal de socorro? Uma confirmação? Caso eu faça
alguma coisa, é claro.
A segunda, e talvez a mais divertida: identifico que apenas o
simples gesto feito lhe causa aflição, medo. As sombras não são o
suficientes para esconder o pavor em sua fisionomia.
Nada me excita tanto quanto assistir a um maldito e miserável
homem com medo de uma mulher.
Assim que a balaclava é retirada por completo, balanço a
cabeça, deixando meus cabelos formarem uma linda cascata de
ondas sedosas e brilhantes, então um sorriso viperino toma meus
lábios, saboreando os segundos que antecedem algo bom. Sinto
isso...
A ponta da minha língua molha o lábio inferior em uma lentidão
prazerosa, deleitando-me com a atenção dele, cem por cento em
mim e desatento a todo o resto.
— Então, está gostando do que vê? — questiono, dando um
passo para frente, a adaga firme em minha mão.
— Até que dá pro gasto — debocha, esquecendo com quem
está falando. Quer dizer, ele não me conhece de verdade, mas até o
dia raiar farei esse gesto de bondade. — Me mostre o que essa
boquinha sabe fazer e eu posso pensar se te entrego a ele ou não.
— Ele... — Deixo a touca cair, diminuindo nossa distância. Outra
vez seus olhos buscam por algo atrás de si e, é nesse instante, que
um fraco reflexo dentro do galpão denuncia um ajudante. A
localização exata do primeiro a ser enviado para o inferno. — Quer
que eu chupe o seu pau? E enquanto eu te dou o melhor prazer da
sua vida, você me diz quem é ele.
— Mas é uma putinha mesmo — ri, trocando o peso das pernas.
Agora, próxima a ele, vejo sua mão se mover dentro do bolso da
calça. — Chupar o meu pau não é o suficiente, se eu puder te foder
na frente e atrás, faremos um trato.
— Trato? — Elevo as sobrancelhas e abro a boca em ‘O’,
fingindo um choque inexistente enquanto mais um passo é dado,
dessa vez ele não se afasta e nossos olhos ficam na mesma altura.
— Como eu posso acreditar em suas palavras?
— Você não está em posição de mandar, Daiane. — Seus
ombros balançam quando ri.
— E você está? — Inclino o pescoço para frente, centímetros
nos separam agora. A euforia que percorre minhas veias me deixa
ainda mais sedenta por sangue e vingança. Só preciso me livrar de
um deles, então a minha brincadeira vai começar. — O que te deixa
tão confiante? A pessoa posicionada dentro do galpão, quarenta e
cinco graus a leste? O rifle apontado para mim? Aposto que é um
rifle...
— O quê? — Pasmo, o homem se afasta e eu avanço.
— Ele tem treinamento para usar uma arma poderosa como
essa? — Olho além do seu ombro e capturo o reflexo outra vez. —
Ou vocês tiraram no palitinho quem seria o interlocutor?
— Sua puta...
— Não existe possibilidade alguma de um trato quando é óbvio
que receberam uma missão. — Permito que o canto da minha boca
se eleve minimamente e suspiro. — “Mate aquela puta.” Acertei?
— Se eu fosse você... — Tenta me calar e outra vez noto sua
mão se mover.
— Se eu fosse você, meu caro, começaria a rezar para todos os
deuses que existem. Só preciso de um de vocês vivo para a minha
festa... — cantarolo e esse é o seu limite.
Enquanto sua mão avança na direção do meu corpo, cravo a
minha adaga em sua coxa. Tenho tempo apenas para desviar de
forma precária quando sinto o metal resvalar em meu braço,
rasgando jaqueta e blusa.
Saco a arma acoplada atrás das costas e envolvo seu pescoço,
o tronco tocando meu peito, meu mata-leão o imobiliza junto ao
ferimento na perna, então uso seu corpo como escudo e aponto a
arma para dentro do galpão no instante que um tiro ressoa no ar. O
ombro do meu oponente é atingido e o idiota grita impropérios.
— Uma bela dupla, eu diria — sussurro em seu ouvido, ainda
com a arma apontada na direção do reflexo. Movo-o junto comigo,
observando o local através da curva do seu pescoço. — Como eu
disse, só preciso de um vivo...
— Ele vai te matar quando...
— Você fala demais. — Desço o braço e dou um tiro em seu pé.
Seus gritos irritantes me deixam impaciente. — Saia agora e a sua
vida será poupada. — Dou uma chance para a pessoa escondida no
galpão.
Chance de morrer mais rápido, sem dor. Diferente do que
acontecerá com esse em meus braços.
— Não acredite nela! — Ele se afoga na própria saliva, enquanto
seu corpo sangra e deixa uma marca escura no chão. Preciso
aumentar o aperto envolta de si quando se debate. — Essa puta...
O som de outro disparo dentro do galpão interrompe sua fala, um
baque ecoa acima dos insetos cantando ao redor, entretanto, a bala
não vem nessa direção e o meu gatilho não foi puxado. Sinto o
homem tremer ainda mais ao ouvir passos de alguém, além do
barulho de algo sendo arrastado, emitindo um gemido repleto de dor
que nos alcança.
— Nem fodendo — murmuro entredentes, irritada ao ver o
desgraçado aparecer, se postar embaixo da luz com um sorriso
confiante desenhado nos lábios rodeados por uma barba rala.
— Olá, Queen — Athos saúda tranquilo, sem soltar a perna do
sujeito que arrasta. — Não vai agradecer? — Ele para muito perto
de nós e sinto o homem em meus braços tremer com mais força.
— Mas que merda... — não consigo finalizar a frase.
Athos aponta para a cabeça da sua presa e dispara outra vez,
abrindo o crânio dele.
— Deveria ter tirado o olho dele antes, pra guardar com os
outros — resmunga mais para si mesmo e dá de ombros, então se
aproxima com o sorriso demoníaco nos lábios. — Salvei a sua vida.
De nada, Queen.
É óbvio que deveria socá-lo ou até mesmo cortar a garganta
tatuada. Eu, Lilith, deveria cortá-lo em pedacinhos e jogar no mar
após atrapalhar meus planos, mas assistir Athos matando o homem
como se fosse a coisa mais simples do mundo me excita, acende
algo dentro de mim.
Curiosidade? Luxúria?
Preciso entender como teve coragem de me seguir até aqui, mas
permaneço calada, tentando sair desse limbo aonde a minha mente
se meteu. Os cabelos desgrenhados o tornam ainda mais sexy,
cruel e sangrento, fodidamente fora da lei.
Que porra!
Pronta para xingá-lo por ter interferido em algo que era para ser
só meu, observo sua fisionomia divertida transformar-se em
segundos. Enquanto uma de suas mãos agarra o pescoço do meu
alvo, o afastando com uma violência delirante, a outra segura meu
braço machucado. Os orbes que me encaram são de um tom tão
profundo quanto o oceano mais mortal. É sombrio e opressor.
— Quem fez isso com você? — É a primeira vez que ouço seu
tom tornar-se feral, gélido, e a constatação arrepia minha pele,
eriçando minha nuca, ainda que eu lute contra essa loucura
acontecendo em milésimos de segundos. Athos ignora o homem
sufocando e se concentra em mim, em meus olhos e na ferida no
braço. — Ninguém toca no que vai ser meu — ruge, enfim
quebrando nosso contato para avaliar sua presa.
Mas que maldito!
Abro a boca, disposta a brigar diante de tanto egocentrismo
desse desgraçado, então desisto. Não preciso ser salva, sei me
cuidar melhor do que a maioria das pessoas e não devo nada a
Athos por ter matado um deles.
Jamais vou pertencer a ele e nem a qualquer pessoa no mundo,
pois sou dona de mim. No entanto, sinto-me confusa e curiosa com
os recentes acontecimentos, afinal, é a primeira vez na minha vida
como Lilith que alguém se importa comigo e tenta me proteger, de
uma forma bem deturpada, é claro.
As batidas do meu coração aceleram conforme os segundos se
arrastam sem eu conseguir tirar meus olhos dele, ou da sua postura
confiante e protetora, do próprio Diabo que encarnou apenas por ter
encontrado uma ferida em mim, esquecendo-se que há outra no
pescoço provocada por ele mesmo, da fera disposta a despedaçar
um corpo para me defender.
Estico os lábios em uma linha fina, inconformada comigo mesma
por não reagir de prontidão, por não usar a arma em mãos e
descarregar o pente no peito dele, bem no órgão bombeando
sangue e acabar com esse inconveniente, mas não me movo, e isso
é pior do que ser esfaqueada.
Que merda é essa que está acontecendo comigo?
CAPÍTULO 15
Uma agulha presa em meu antebraço, essa é a primeira coisa que
identifico assim que começo a atravessar a densa névoa da
confusão, mas sem precisar abrir os olhos, sei que tenho
companhia. Anos trabalhando no submundo me fazem levar o outro
braço para debaixo do travesseiro, buscando pela minha arma. A
sensação de torpor, alinhado à fraqueza pela falta de alimentos,
torna o gesto mais difícil do que o normal, é como se houvesse um
bloco de cimento esmagando a área.
— Não se mova, senhor Athos — uma voz, diferente de todas
que ouvi aqui, me alerta. — Estou ministrando alguns medicamentos
para que a sua recuperação seja rápida.
No momento em que minhas pálpebras se afastam para encarar
a realidade, a figura de um homem de meia idade surge. Escrutino
seu corpo, notando as luvas de látex nas mãos, ele usa um jaleco
por cima das roupas sociais. Observo seus cabelos, tentando
identificar qual é a cor, assim como a sua pele, e trinco os dentes
diante de tanto cinza, verde e marrom.
— Senhor Athos — o médico me chama, se aproximando. Ele
pega um aparelho de dentro do bolso e aciona um botão, sei que é
uma luz, pois a ponta do objeto fica mais intensa. — Senhor...
— Faça o que tem que ser feito e me deixe sozinho depois — o
corto, voltando minha atenção para o teto do quarto, enquanto o
médico mira o aparelho em meus olhos.
Em silêncio, o homem caminha pela suíte depois de trocar a
bolsa de soro por uma nova. Sinto minha boca tão seca que parece
não ver água há dias, semanas, talvez. Ao lado da cama encontro
um copo com canudo e, sem pedir ajuda, pego o recipiente,
sentando-me de qualquer maneira e tomando todo o líquido,
ignorando o auxílio do objeto.
— Vou pedir que preparem algo leve para o senhor comer — o
médico avisa assim que parece concluir seus afazeres. Seu
semblante neutro, além da postura inabalável, diz muito sobre si.
Está acostumado com esse tipo de atendimento e de pacientes
como eu. — Um enfermeiro ficará aqui...
— Não precisa de toda essa merda — minha voz sai arranhada,
provocando dor na garganta.
— O senhor será observado até que os resultados dos exames
que pedi cheguem. — O médico ignora meu comando e se afasta
por alguns segundos. Quando retorna, um homem bem mais novo o
acompanha e eu bufo, cansado demais para brigar. Por hora. — Já
ministrei...
Viro o rosto para o lado enquanto eles conversam sobre mim
como se eu não estivesse presente. As lembranças ainda estão
embaralhadas em minha mente, porém compreendo ter atravessado
uma linha que não era permitida, fiz exatamente o que não podia e
busquei alívio para a dor que consumia meu ser. Tantas formas de
esquecer aquela merda e recorri ao frasco guardado por meses.
Se algum dia eu precisar...
Foi o que disse a mim mesmo no dia em que o escondi de outras
pessoas, quando deveria ter jogado fora, e a facilidade com que
posso encontrar mais chega a ser irritante. Sempre haverá gente
como eu, pessoas dispostas a pagarem o preço que for para se
entorpecer. Não suporto erros e, imaginar que nada mais me
abalaria, acionando gatilhos, é imperdoável.
E agora as consequências desse ato irresponsável podem levar
ao meu fim.
— Coma, senhor, vai ajudá-lo na recuperação — diz o
enfermeiro, se aproximando com uma bandeja. O cheiro é bom, mas
sinto meu estômago embrulhar. — Precisa de mais alguma coisa?
— questiona, após organizar a mesinha com os alimentos.
— Sim, que saia daqui — minha voz ainda está rouca,
arranhando as paredes da garganta.
— Senhor...
— Saia! — aumento o volume da voz, enquanto pego o garfo e a
faca, o encarando.
Tento me alimentar o quanto consigo, mesmo que meu
estômago recuse. Depois que o enfermeiro sai, esmurro a cama,
precisando descontar toda uma ira que apenas aumenta dentro de
mim, direcionada a algo, ou alguém.
Concentrando-me, reparando no quarto limpo e organizado. O
que mais aconteceu aqui enquanto eu dormia? Solto uma
exclamação, passando as palmas no rosto, em desespero.
— Lilith...
Tenho que estar cem por cento até de noite para sondá-la, perdi
horas demais me recuperando e isso não é do meu feitio.
Volto a comer, sem sentir de verdade o sabor da comida, mas
limpo a bandeja, lutando contra a vontade de vomitar na sequência.
Meu corpo começa a ceder a um sono pesado, mas não posso
dormir agora.
Olho a bolsa de soro pela metade e, em um único gesto, puxo o
acesso em meu braço. Fico assistindo o sangue escorrer do
pequeno ponto escuro na pele e se espalhar por alguns milímetros,
depois parar.
Dizem que o sangue é vermelho, então por que o meu está
verde?
O pigmento parece rir da minha cara de revolta. Suspiro
novamente, o que vem se tornando um hábito desde que cheguei na
Babilônia. Repouso o tronco na cabeceira, exausto o suficiente para
não lutar contra o sono que vai envolvendo meu corpo como um
cobertor denso, porém macio.
Fecho os olhos, as pálpebras mais pesadas do que o normal e
adormeço com um questionamento me atormentando: qual é a cor
dos olhos dela?
Perdi as contas de quanto tempo estou aqui sentindo o jato frio
tocar minha pele e reavaliando os últimos acontecimentos.
Dois malditos fios de cabelos enroscados no ralo confirmam a
presença de Lilith pela madrugada, o que não me agrada porque
saber que ela viu o meu momento de maior fraqueza, sem recordar
se falei algo que não deveria, chega a ser angustiante.
Estava há quase um ano limpo, mesmo atravessando o inferno
pela falta da droga em cada parte do meu organismo. Voltei à
estaca zero e, quanto mais os minutos se arrastam e eliminam
qualquer vestígio dentro do corpo, a necessidade surge, uma velha
conhecida que tentei deixar no passado. Estico minha mão,
encarando os dedos trêmulos.
— Porra! — Soco o azulejo e o impacto envia uma dor aguda,
atravessando todo o braço. A mancha escura que tinge a parede
não me satisfaz, contudo, preciso me concentrar.
Eu tenho que fazer isso ainda que doa.
Encosto a cabeça no vidro do box, sentindo-me exausto. Depois
de meses vivendo um aparente acordo de paz com a minha mente,
retrocedemos.
Respiro pela boca, em uma tentativa pífia de me recompor do
desastre que me tornei outra vez, a mera lembrança de um passado
recente me aflige. É como se eu estivesse em modo de espera,
aguardando um simples gatilho ser acionado.
E, agora com ele ligado, a contagem regressiva dessa bomba
que eu sou, retomou sua contagem.
Cem, noventa e nove, noventa e oito...
Os números piscam regressivamente e muito mais rápido do que
me recordo, do que acredito ser capaz de controlar. Desligo o
chuveiro e caminho para o quarto, sem me importar com as poças
de água deixadas no piso.
Entro no closet e vou direto para as gavetas, em busca de uma
cueca. Olho para elas, as mesmas cores de sempre: marrom, verde
e cinza. Estou ciente de que não são essas, de fato, mas me
acostumei. Fui obrigado a isso, ou teria enlouquecido ainda criança.
Quando abro a outra gaveta, aonde guardo as minhas camisetas
com estampa de banda, estanco no lugar. Bem no meio delas há um
pedaço de pano, minúsculo, eu diria. Toco a peça e a umidade
presente é gelada contra minha pele. Ergo-a, dando de cara com
uma maldita calcinha de renda.
— Desgraçada! — exclamo sem tirar os olhos do presente
deixado. Confiro minhas camisetas e apenas as de baixo estão
secas. — Você me paga, Queen.
Antes de vestir minha roupa, faço algo que me arrependerei em
instantes. Aproximo o pedaço de pano do nariz para sentir o cheiro
dela que, mesmo não tendo provado, se fixou em minha memória
quando estávamos no subsolo 3.
Fecho os olhos, absorvendo a fragrância da sua boceta e, por
mais que eu finja, não sou indiferente a ela.
— Acho que está na hora de fazer uma visita a uma certa suíte.
— Jogo a calcinha de volta ao lugar que deixou, ligando o foda-se.
Termino de me vestir, aproveitando que estou sem a supervisão
do médico ou do enfermeiro. Os dispensei horas atrás, após
conseguir almoçar e dormir.
Descalço, atravesso o corredor que nos separa e bato com força
em sua porta. Aguardo alguns segundos, tentando identificar
qualquer som dentro do quarto. Giro a maçaneta, forçando-a, e
nada.
Volto para minha suíte, buscando pelo celular e o vejo em cima
da mesa de cabeceira. Ligo para Lilith e cai diretamente na caixa
postal.
Confiro a hora na tela do aparelho: 16:45hrs.
Onde você está, Queen?
Ligo para Silas, que atende no primeiro toque.
— Senhor...
— Mande Lilith vir aqui — comando, enquanto ando de um lado
para o outro no quarto limpo.
— A senhorita Lilith acabou de subir — diz com cautela e isso
me deixa curioso.
— Aonde ela vai? — Depois de pegar um par de tênis, sento-me
na cama e começo a vesti-lo. Apoio o celular entre o rosto e ombro,
atento a Silas.
— Ela nunca diz, senhor, mas... — Termino de amarrar os
cadarços e respiro fundo quando a fraqueza tenta me derrubar. — A
senhorita Lilith ainda está no estacionamento.
Desligo na cara dele, retornando ao closet e tirando uma jaqueta
do cabide. Antes de sair, pego a chave da minha moto no aparador,
além dos documentos, então chamo o elevador. Não levo mais do
que dois minutos para chegar ao estacionamento da Babilônia,
entretanto a belíssima Kawasaki ronca perto da saída, se afastando.
Posso não conseguir distinguir cores, mas sou ótimo em memorizar
símbolos, letras e, é claro, placas.
Ela nunca diz.
— Vamos descobrir o que você esconde, Queen — falo,
sentindo-me eufórico depois de toda essa turbulência pela
madrugada. Nem parece que se passaram apenas algumas horas
desde a visita ao nível 10. Subo na minha Harley-Davidson Night
Rod, encaixando o capacete, que deixo escorado no banco, e a ligo.
— Meu belo cavalo preto.
Meu apelido surgiu do nome dado para minha moto, anos atrás.
Ela é grande e potente como um Fusa Ichi Pegasus de puro sangue.
Deixo o edifício, enquanto abaixo o visor do capacete e avisto Lilith
quase sumindo de vista na via dupla.
Mantenho uma distância considerável, pois não duvido de que
seja capaz de notar uma perseguição. A fraqueza que me
acompanhou durante toda a tarde vai se afastando conforme meu
sangue ferve, animado, entrando em ebulição e pronto para se
divertir.
Relaxo o tronco inclinando-me para frente, o peito quase
encostando no tanque e avanço. Paro em um sinal quando o
semáforo muda de cor, há vários carros de distância dela.
De dia é mais fácil percorrer as ruas da capital, sempre imitando
outros veículos, já sozinho a conversa muda. Decorei a ordem em
que as cores estão, seja em um sinal vertical ou horizontal, mas
mesmo assim preciso me atentar a todos os detalhes, para não
provocar ou ser afetado por um acidente.
Assim que ela pega uma estrada mais calma, aumento a
distância entre nós. Dessa forma, sigo Lilith, mais curioso do que
deveria com essa saída e a fala de Silas. A noite toma conta de tudo
com rapidez, despejando a escuridão por todas as partes.
Mudo para a luz mais baixa na lanterna enquanto a velocidade
também cai, estamos há mais de uma hora nessa corrida misteriosa
quando avisto a parte mais afastada da região e diversas fábricas
abandonadas.
— O que você vai aprontar, Queen? — Não seguro o sorriso
desenhando meus lábios dentro do capacete. Mudo a direção no
momento em que ela entra em uma viela. Paro bem mais atrás e
desço da moto, ainda com o rosto coberto. — Vamos lá, Lilith, me
mostre o seu destino, o motivo de ter vindo até esse lugar ocioso.
Olho por cima do ombro quando o barulho de latas se chocando
ressoa. Um gato aparece correndo para o outro lado e depois volta.
Apenas então vejo sua presa fugir, um minúsculo rato tentando
sobreviver e sendo caçado pelo seu algoz. Ignoro-os, mesmo
torcendo para o gato comer o seu jantar.
Lilith caminha em direção a uma das fábricas abandonadas, a
cabeça coberta por uma touca, até parece uma ninja vendo daqui.
Sigo a mulher que vem me atormentando desde o dia em que nos
conhecemos, sabendo que a vontade de possuí-la e a de matá-la
está dando as mãos.
Assim que atravessa uma cerca quebrada, resolvo dar a volta
para verificar os fundos e, enquanto uso a grama alta para me
esconder, ouço uma voz masculina saindo da fábrica, porém o que
de fato me faz travar por alguns segundos no lugar é o nome usado.
“Daiane.” Então esse é o seu nome de nascença?
Retomo a caminhada, atento a todos os sons ao redor,
observando se há mais de um homem aqui. Atravesso os extensos
metros ao lado da parede da fábrica, meus tênis sem emitir barulhos
que possam denunciar minha presença.
Encontro um grande portão aberto e, pelo que consigo visualizar
diante da escuridão da noite, ele foi deixado dessa forma e não é de
hoje.
Acostumado a invadir lugares bem protegidos, com seguranças
treinados e armados até os dentes, não encontro dificuldades aqui.
É como roubar o doce de uma criança esquecida pelos pais do lado
de fora de um circo.
Percorro a fábrica abandonada, usando as laterais para me
esconder, e vou me aproximando do outro lado. Consigo enxergar o
momento em que Lilith tira a balaclava, movendo a cabeça. A
desgraçada não aparenta medo, o que não me surpreende, ela
recebeu um ótimo treinamento, fato.
Mas porque uma mulher que vendeu seu corpo por anos se
prepararia dessa forma?
Proteger a si mesma não parece o suficiente. Tem mais de
Daiane escondido e a possibilidade de descobrir qualquer
particularidade me instiga. Saber o seu nome já é um começo, mas
só isso não me satisfaz.
Uma respiração acelerada se distingue dentro dessa escuridão.
Não perco tempo e avanço mais alguns metros, deparando-me com
um segundo homem atrás de uma velha empilhadeira.
O infeliz não percebe minha aproximação e permanece com a
arma apontada, na espera. Lilith é o seu alvo, claro. Fecho as mãos
em punho, uma ira anormal se espalhando por todo o meu corpo.
Me livrar daquela desgraçada, tirar a mulher do meu caminho e
ter um pouco de paz, seria interessante. Indo contra tudo o que
sempre acreditei e lutei, entender que ela pode ser machucada por
um qualquer, me confunde.
Fico desnorteado apenas com a ideia atropelando meus sentidos
como um vagão desgovernado. De certa forma, Lilith ainda vai me
pertencer, sou o responsável pela Babilônia e somente eu dito o que
é meu e o que deve ser feito. Quem precisa sumir, desaparecer sem
deixar vestígios, e se chegarmos a tanto, não será um desconhecido
a efetuar tal missão.
Mas que merda é essa?
Trinco os dentes quase cambaleando tamanha a intensidade dos
meus pensamentos idiotas.
Lilith será minha e de mais ninguém, e eu cuido muito bem
quando algo se torna meu.
Um sorriso diabólico nasce em meus lábios, saboreando a
decisão louca e irresistível tomada em um quinquagésimo de
segundo. Ou seria desde o minuto que a conheci?
Dou uma trégua para essa bagunça organizada dentro da
cabeça quando o disparo reverbera com intensidade dentro da
fábrica. O grito do outro homem é o que me dá a certeza de que ela
não foi atingida.
— Você tem cinco segundos pra dizer suas últimas palavras —
sussurro no ouvido do infeliz após me aproximar em silêncio.
— Mas o quê... — Dou uma cotovelada na lateral do seu corpo,
agarrando a arma com avidez, sem permitir que se curve perante a
dor.
— Saia agora e a sua vida será poupada! — Lilith grita no lado
de fora, mas é tarde demais.
— Acabou o tempo. — De perto, consigo enxergar seus olhos
arregalados, temerosos. A respiração entrecortada é música para os
meus ouvidos. — Você é sortudo, vai morrer rápido.
Aciono o gatilho, disparando diretamente no peito do homem.
Sangue respinga nas minhas roupas, o cheiro de ferrugem se
sobressaindo. Gosto de fazê-los sofrer, passar por meu
interrogatório, que fica ainda mais divertido quando estou de mal
humor. Como essas quase vinte e quatro horas desde o meu
descuido com as pílulas.
Envolvo seu tornozelo, sabendo que está se engasgando, o
sangue invadindo cada buraco existente.
Um relaxamento que não sentia há semanas me abraça,
melhorando a porra do meu humor. Caminho em direção a Lilith,
sorrindo satisfeito ao vê-la imobilizando o outro infeliz, o mata-leão
usado com excelência.
Acompanho sua expressão se transformar em surpresa
conforme me aproximo, arrastando o sujeito em agonia comigo.
Seus lábios se movem, mas não consigo ouvir o que sussurrou.
— Olá, Queen. — Dou o meu melhor sorriso, sem soltar a perna
do homem, como se ele tivesse condições para correr de mim.
Aproveito esse instante de choque para provocá-la. — Não vai
agradecer? — Paro a centímetros deles e noto como a sua presa
treme, só falta fazer xixi na calça.
— Mas que merda... — É divertido vê-la parcialmente confusa.
Recaio a atenção para o local dos gemidos agoniados,
incomodado com tanto barulho. Aponto para a cabeça do idiota que
carreguei até aqui e disparo outra vez, abrindo seu crânio e sentindo
o prazer percorrer minhas veias.
— Deveria ter tirado o olho dele antes, pra guardar com os
outros — reflito, observando como o homem morreu, com os globos
oculares de encontro ao céu noturno. Dou de ombros e volto a sorrir,
agora com mais vontade, quase colando nossos corpos. — Salvei a
sua vida. De nada, Queen. — É mais forte do que eu essa
necessidade em atiçá-la a todo instante que estamos juntos.
Meus olhos são fisgados para o braço ferido dela e a euforia por
enviar mais um presente para o Diabo evapora-se em segundos.
Agarro o pescoço dele, sem calcular a força impregnada, tirando-o
de perto dela. Com a outra mão, seguro delicadamente o braço
machucado de Lilith, o aproximando dos meus olhos. Sua fisionomia
alterna entre choque, irritação e curiosidade.
— Quem fez isso com você? — meu tom de voz sombrio dança
entre nós como uma serpente, pronta para dar o bote. Posso estar
ficando louco, mas o que vejo diante de mim é uma Lilith engolindo
em seco. Os lábios entreabertos e a respiração mais pesada são um
incentivo silencioso. Concentro-me totalmente nela, ignorando o
infeliz e os sons de engasgo que emite. Confiro o ferimento outra
vez, estarrecido por alguém ter imaculado seu corpo. — Ninguém
toca no que vai ser meu — exclamo e deposito minha atenção nele,
enquanto uma raiva anormal borbulha dentro de mim.
— Você enlouqueceu de vez — a voz de Lilith sai em um suspiro
fraco, como se estivesse acordando de um pesadelo, ela balança a
cabeça e seus olhos fulminam-me. — Eu não sou a porra do
brinquedo de alguém. — Aponta o dedo enluvado na minha cara,
proferindo as palavras com o timbre carregado de ódio, mas sem
elevar o tom. — Pelo jeito, a droga está comendo o seu cérebro.
Solto o pescoço do homem, ignorando a tosse sufocada
enquanto se debate no chão. Envolvo a garganta dela com as duas
mãos, usando os dedões como apoio para o seu queixo. Lilith soca
o meu peito tentando se afastar, cada segundo mais revoltada, em
vão.
— Repita o que falou, Queen. — Meu hálito toca a pele do seu
rosto macio.
Acompanho suas sobrancelhas se arquearem junto ao sorriso
predatório esticando seus lábios.
— Eu não pertenço a ninguém, principalmente se ele for um
drogado de merda — sussurra com confiança, depois passa a ponta
da língua no lábio inferior.
Sua ousadia sem limites, provocando-me de igual para igual, não
medindo as consequências, me instiga ainda mais. Sei que estamos
brincando com fogo, porém, nunca senti tanto prazer enquanto as
chamas começam a queimar minha pele.
Passo o dedão em sua boca, imaginando o sabor que carrega e
faminto para devorá-la inteira. O sorriso confiante vai diminuindo
com o passar dos segundos. Enxergo em sua expressão a mesma
fome que eu tenho e concluo o que já suspeitava: ela não é
indiferente a mim, como tenta provar.
— Isso é o que veremos... Daiane. — Como em um passe de
mágica, qualquer vestígio de luxúria se dissolve e Lilith tenta se
afastar. Aumento a pressão no momento em que repouso minha
testa na sua, respirando o mesmo ar. Resvalo meu nariz no seu, o
cheiro dela se tornando um vício. — Vamos fazer o seguinte,
Queen...
— Eu vou acabar com você — diz baixinho entredentes e eu
sinto a verdade contida em cada sílaba.
— Você não veio até aqui para passear, esse infeliz tem algo que
a interessa, não é mesmo? — O homem caído tenta se arrastar pelo
chão, em uma fuga patética. Lilith se mantém em silêncio, seus
orbes fuzilando-me. — Então, primeiro te ajudo a tirar qualquer
informação dele...
— Não preciso da merda da sua ajuda.
— Depois, resolvemos de uma vez as nossas... pendências. —
Encaro a sua presa se afastar, acreditando que pode mesmo se
livrar de mim, de nós dois, uma bela dupla. — Vou levá-lo ao
subsolo 3...
— Athos.
— E farei do meu jeito. — As ideias se afloram em minha mente,
o que me faz sorrir. Observo Lilith, alternando a atenção entre seus
lábios e olhos sem esconder o quão animado estou. — A noite é
uma criança, minha Queen, e ela está apenas começando.
CAPÍTULO 16
Com as mãos dentro dos bolsos da calça jeans, passeio pelo piso
áspero do subsolo 3, encarando o ralo disposto embaixo de uma
cadeira, a mesma em que o nosso convidado está sentado agora
com os braços amarrados nos apoios e as pernas presas nas
correntes fixas no chão. Diferente da vez em que trouxe Lilith aqui,
utilizo uma cadeira de ferro, a mais reforçada que temos.
E por falar nela...
Lilith, com os braços cruzados na altura do peito, escora o tronco
na enorme mesa aonde ficam meus brinquedinhos. Sua fisionomia
fria observa o homem como se estivesse olhando para um pedaço
de merda que acabou de pisar.
Desde que saímos daquela fábrica abandonada, ela não trocou
uma única palavra comigo, nem contestou quando mandei meus
homens buscá-lo, já que de moto seria complicado trazê-lo à
Babilônia.
O seu silêncio consegue me passar dezenas de mensagens e,
uma delas, é entender o quanto odeia não ter o controle da
situação. Aguardo ansiosamente o momento em que for revidar e
estarei pronto, afinal, ela não permitirá que essa minha intromissão
saia barata. Deixo de lado esses pensamentos ao irritar-me com os
grunhidos do homem na cadeira. Com um pano dentro da boca,
além da grossa fita mantendo tudo no lugar, ele chacoalha o corpo
de forma inútil.
Aproximo-me dele, invadindo seu espaço pessoal e miserável, e
puxo a fita adesiva com um único movimento, seus olhos lacrimejam
diante da dor dessa depilação parcial. O infeliz tem a ousadia de
cuspir o pano na minha direção, enquanto a baba escorre nas
laterais de sua boca.
— Ele também vai te matar, seu merdinha! — exclama
alucinado. As linhas de expressão tornando-se ainda mais evidentes
conforme franze o rosto. Assim que olha para Lilith, o infeliz tem a
ousadia de sorrir com devassidão, varrendo o corpo dela com gana.
— Você e a sua puta vão morrer.
— Corajoso da sua parte falar isso quando está em
desvantagem. — Sondo a mulher calada e sua fisionomia
permanece a mesma. Na verdade, a frieza parece dar lugar a uma
fagulha de... alegria. — O que você quer fazer com ele, Lilith? Por
onde começamos?
— Daiane! Essa puta se chama Daiane. — De olhos arregalados
o nosso convidado alterna a atenção, lambendo os lábios finos.
Então inclina a cabeça em minha direção, diminuindo o tom de voz.
— Podemos fazer um acordo, sabe? Eu te conto tudo o que sei
sobre essa puta.
Suspiro, afastando-me dele e caminho até a mesa, disposto a
escolher um brinquedo.
— Retiro o que eu disse, você não é nada corajoso — falo com
suavidade e, pela primeira vez, Lilith me encara. Pisco para ela, que
mantém um mísero sorriso nos lábios. — Mal começamos e já quer
barganhar? — Aponto para os objetos a minha frente, entregando a
decisão em suas mãos. Ela nem se vira, sua mão vai direto para as
agulhas. — Ótima escolha, Daiane.
O sorriso com dentes à mostra enganaria qualquer um, a
inocência presente nesse simples gesto. Entretanto, recebo a
mensagem codificada com certa animação percorrendo minhas
veias. De fato, ela não vai deixar isso passar em branco e não vejo
a hora do nosso acerto de contas chegar.
— Não precisa ter pressa, chefinho — fala pela primeira vez
desde que chegamos. O prazer dando um toque sedutor em sua
voz. — Silas tomará conta dos negócios essa noite, enquanto
lidamos com esse... problema.
— Sua puta! — grita o infeliz atrás de mim.
No entanto, mantenho meus olhos sobre os dela, atento e, diria
que até excitado. A altivez de Lilith e sua postura inabalável diante
do que acontecerá aqui é diabolicamente sedutora.
Afasto-me da mesa com os objetos em mãos e me aproximo do
homem, o suor brotando em suas têmporas. Com cuidado, abaixo-
me em sua frente, colocando as agulhas no piso, apenas uma na
mão para começar.
Essa ferramenta foi modificada para ser mais útil durante os
nossos procedimentos, então essas agulhas são maiores do que as
comuns, com seus quinze centímetros. A ponta ainda mais fina foi
revestida para não haver nenhuma intercorrência, como quebrar
enquanto a utilizamos.
Recordo-me com prazer do dia em que a usei para tirar o globo
ocular de um infeliz, talvez eu repita o gesto essa noite.
— Quando quiser, Queen — anuncio, observando de perto os
dedos dele presos ao espaldar da cadeira.
Sinto cada célula do meu corpo relaxar em antecipação, da
última vez estava sem paciência, admito, e acabou mais rápido do
que normalmente. Hoje, entretanto, a necessidade em absorver o
aroma incomparável de sangue, me anima.
É como se a noite anterior, e toda aquela bagunça que causei,
não tivesse existido. O cenário muda no instante em que tenho
posse de um brinquedo.
Ainda mais por conhecer Lilith através da confissão desse
homem, e ciente de que ela não deixará isso barato.
— Como sabe quem eu sou? — ela questiona sem sair do lugar,
os braços cruzados e o semblante demonstrando tédio.
Enquanto dentro de si o sangue ferve, concluo, lendo-a com
perfeição. Um riso fraco escapa ao ver o quão parecidos podemos
ser e seus orbes fixam em mim, questionadores. Dou de ombros e
aproximo a agulha da mão do infeliz.
— Você deve se achar muito, não é mesmo, Daiane? — ele
provoca, mas mantém a atenção ao que faço. A respiração ruidosa
entrega o medo presente que tenta, a todo custo, esconder. — A
putinha egoísta e... — Enfio a agulha por baixo da unha do seu dedo
mindinho, bem no centro.
O grito engasgado que atravessa a garganta dele me irrita, mas
mesmo assim, semelhante a um renomado cirurgião, empurro com
delicadeza o objeto cortante. O sangue verte, quente e fascinante,
seu cheiro característico deveria ser transformado em perfume,
embalado no mais elegante frasco e vendido por centenas de
milhares de reais.
Eu pagaria cada centavo.
— Quem te falou meu nome? — Lilith interroga com a voz
mansa, nada chocada com o que vê.
— Sua puta...
— Eu sei disso, você já repetiu essa merda, que é verdadeira,
mais de vinte vezes. — Ela se desencosta da mesa de trabalho,
dando um passo para perto de nós. — Está nas suas mãos a
escolha: morrer de forma rápida e quase indolor, ou... — Seus olhos
encontram os meus.
— Ou podemos fazer isso durante vários dias — completo,
dando tapinhas no rosto suado dele, os cabelos empapados
grudando na pele e a barba nojenta cheia de saliva. — Temos
médico a disposição pra te deixar acordado o tempo todo. Acho
muito abusivo machucar um convidado quando ele não está
consciente. — Pego outra agulha, colocando-a entre nós dois,
movendo meu instrumento de trabalho, que brilha contra a luz do
teto. — Uni, duni... tê — Ela para bem em cima do dedão, o próximo
a ser usado.
Com a ajuda dos meus próprios dedos em formato de pinça,
mantenho o dedão parado enquanto ele tenta se livrar da punição,
debatendo-se como um animal no abatedouro.
O que esse infeliz não sabe, é que me compadeço pelos bichos
e os protejo, mas com seres humanos a história é diferente.
Não existe misericórdia para lixos como nós.
— Mas já? — Acompanho o olhar de Lilith quando o barulho
chega antes do cheiro, não vejo diferença na coloração das roupas
dele, mas sorrio diante do xixi vertendo diretamente para o ralo. —
Fraco demais.
Lágrimas molham o rosto do homem e sua respiração vacila no
instante em que um tremor se apossa do seu corpo. Pego outra
agulha, pronto para escolher mais um dedo.
— Espere, tenho uma ideia melhor. — A calma exterior de Lilith é
como um bálsamo para os meus olhos. Ela se inclina sobre ele e
começa a abrir a braguilha com tamanha naturalidade que, vendo
de longe, alguém poderia pensar que esteja pegando um batom
dentro da bolsa. Tranquila, ela puxa a merda do pau do convidado,
expondo-o em cima do local molhado. Ignorando o desespero dele,
Lilith faz questão em apontar o lugar exato. — Aqui, enfie a agulha
com lentidão, ele sentirá ainda mais prazer no processo.
Seu dedo é afastado da cabeça do membro mole e asqueroso.
— Sua imaginação é diabolicamente sedutora, Queen. Desse
jeito você me deixa excitado pra caralho. — Meu olhar sobe por seu
corpo, avaliando cada detalhe, a recordação dela nua se
masturbando para mim.
— Mais do que isso? — questiona, de olho no meio das minhas
pernas. Posso não saber a cor dos seus orbes, mas consigo
identificar as íris dilatadas.
— O que está te deixando mais excitada, Queen? — provoco,
enquanto seguro o pau nojento e aproximo a agulha do local. As
súplicas dele ficam em segundo plano, pois sinto-me hipnotizado
por essa desgraçada. — Ver esse inútil sofrer através das minhas
mãos ou a promessa silenciosa de uma foda? A melhor da sua vida,
garanto.
— Vocês são mais loucos...
— Talvez as duas coisas — ela corta a fala do infeliz, dando
abertura para a provocação —, mas uma delas você só vai ter se
implorar, esqueceu?
E eu estou disposto a essa merda apenas para me enterrar em
sua boceta.
— Jamais esqueço das promessas feitas a mim, menos ainda as
ameaças. — Não espero por uma resposta e, em um movimento
milimetricamente perfeito, insiro a agulha no canal do pau do infeliz.
Tenho tempo apenas para me afastar, indo para o lado quando ele
vomita, a dor sobrepujando seu corpo patético.
O objeto permanece no lugar enquanto me levanto para esticar
as pernas e me livrar do cheiro enjoativo. Lilith nem franze o rosto
ao se aproximar do convidado, se abaixando ao lado das agulhas.
Ela não pega nenhuma, porém, desliza os dedos nos metais, de
olho nele.
— Vou perguntar mais uma vez, pois estou me sentindo caridosa
essa noite. — Mesmo com o homem soltando impropérios, ela usa
um tom baixo e aveludado na voz. — Se responder errado, vou
encher o seu maldito pauzinho murcho de agulhas, até ficar igual ao
alfineteiro que as costureiras usam.
Agora sou eu a encostar na mesa, cruzando os braços e
divertindo-me com a visão dela, uma verdadeira rainha má.
— Juro que eu não sei quem é ele — mente sem um pingo de
vergonha na cara. O infeliz gargalha em meio ao seu sofrimento, de
olhos arregalados e enlouquecidos. — Me mate de uma vez, sua
puta imunda, porque não vou contar nada...
— Última chance: quem é o seu mandante? — Lilith pega a
agulha, girando o objeto entre os dedos ágeis.
— Quando eu chegar no inferno, sabe a primeira coisa que vou
fazer? — Ele tenta se aproximar dela, respirando com dificuldade.
— Vou atrás da sua irmãzinha e foder aquela boceta nova.
Daiane tinha uma irmã? Coço o queixo, a barba por fazer,
arranhando a pele enquanto absorvo a informação. O único gesto
que entrega o quão enraivecida Lilith está é a maneira que segura
com força a agulha.
O convidado, percebendo o silêncio dela com o corpo estático
como uma estátua, aproveita para provocá-la um pouco mais.
— O quê? Acha mesmo que Suiane foi para o céu depois de
abrir as pernas pra uma porrada de homens? — grita contra o rosto
de Lilith e observo seu peito se mover com mais rapidez, o maxilar
rígido.
Suiane.
Encaro os globos oculares dispostos nos potes de vidro,
puxando pela memória se eu já ouvi esse nome antes.
Não preciso ser um gênio para entender o que o infeliz disse, a
irmã dela foi abusada por mais de um homem. A garota era mais
nova? Mais velha? De que forma morreu?
Um suspiro baixo escapa enquanto passo a mão no cabelo,
bagunçando os fios. Sou a última pessoa nessa merda de mundo
que pode julgar alguém, no entanto, minha tolerância com
molestadores é nula.
A vontade crescente dentro de mim em assumir o controle dessa
situação é quase dolorosa, mas a decisão de dar cabo da vida
desse imprestável pertence a ela.
Avalio Lilith, Daiane, com outros olhos, ainda que esteja
consciente do meu erro ao fazer isso. O que a move, o que a faz
continuar seguindo em frente é o desejo de vingança, honrar a irmã
corrompida e morta, e por mais fodido que todo esse cenário seja,
conheço o sentimento e a ânsia por uma justiça feita com as
próprias mãos. A busca por respostas.
Seguro na beirada da mesa quando respirar se torna doloroso,
posso interrogar e matar centenas de pessoas e não ser afetado por
isso, mas uma singela recordação de fatos que já deveriam estar
enterrados e esquecidos mexe com a porra do meu cérebro.
Essa merda que carrego dentro do crânio foi danificada há anos
e só piorou com o passar do tempo. Giro o corpo, deparando-me
com o que preciso deixado mais à frente, sempre tenho um a
disposição para qualquer situação.
É isso ou usar outra vez oxicodona.
Prendo o baseado entre os dentes enquanto aciono a chama do
isqueiro, dando uma longa tragada assim que acende. A substância
percorre meu corpo em questão de segundos, trazendo um
relaxamento necessário, então solto a fumaça aos poucos,
formando círculos no ar como se estivesse sozinho aqui.
Foda-se, só preciso retomar o maldito controle sobre mim
mesmo, mas as coisas parecem que não sairão conforme imaginei
quando volto a observar os dois assim que os gritos do convidado
reverberam pelo subsolo.
Percebo que acabei perdendo uma pequena parte da festa
enquanto divagava. A agonia entrelaçada ao timbre sofrido dele me
faz sorrir. Seu pau flácido se tornou o que Lilith prometeu: uma
almofada de agulhas, com várias enfiadas na extensão do membro.
— Sabia que o pênis possui cerca de quarenta mil terminações
nervosas? — Assisto outra agulha ser inserida no vão entre a
cabeça e o corpo. Quase sinto a dor em meu próprio pau.
Lilith mantém um sorriso malicioso desenhado nos lábios, mas
os seus olhos nunca me pareceram tão vazios.
É aonde os seus demônios se escondem, assim como os meus.
Conheço esse semblante, a casca endurecida pelos contratempos
da vida cobrindo a podridão, a tristeza e o vazio interior.
Permaneço tragando meu baseado, ignorando por completo a
presença dele, tal qual como fiz assistindo-a se masturbar na cabine
de vidro.
Há somente Lilith na minha área visual.
Sem convidado. Sem cadeira da justiça. Sem agulhas. Sem
globos oculares encarando-nos.
Acompanho seu corpo se erguer com agilidade ao tempo que os
seus punhos descem na cara fodida do homem. O som de ossos
sendo esmagados sem que ela diga uma única palavra, desferindo
sua ira no queixo, olhos e nariz dele. Seus punhos fazem uma
sequência hipnotizante ao desfigurar a face do homem sem o auxílio
de facas.
Sinto-me ainda mais excitado diante de tal imagem: uma
assassina sem escrúpulos, fazendo justiça com as próprias mãos.
A sensação estranha, mas nem um pouco ruim, vai tomando
posse das minhas veias, da extensão da pele e das vias
respiratórias, de cada espaço fodido em mim. Não me assusto ao
encontrar — no profundo calabouço que é a minha mente — um
nome para isso.
Lilith é o meu efeito borboleta.
Por mais perigoso e mortal, começa a se tornar impossível não
desejar estar ao seu lado enquanto se prepara para bater suas
belíssimas asas. Sua mera existência é capaz de provocar o maior
dos tsunamis do outro lado do mundo, justamente aonde estou.
E agora, no momento em que a observo acabar com o homem,
usando as mãos sem um pingo de remorso, não vejo a hora de ser
atingido por essa tempestade.
Descarto a erva e caminho em sua direção assim que se afasta
dele, em suas mãos há manchas de sangue, muito sangue. Na
cadeira, o convidado não se move, a cabeça pendendo para o lado.
Encaramo-nos por segundos, que se arrastam como um bicho
preguiça, sem desviar nosso olhar por um miserável centésimo
sequer.
É impossível.
Lilith não recua quando minha mão envolve seu pescoço
delicado.
— Diz outra vez — incito, sabendo de antemão que ela
compreenderá a pequena frase.
Aos poucos, a ira vai sendo substituída por desejo e o semblante
dela é tomado pela luxúria e curiosidade.
Vitória.
Ela sabe que venceu no primeiro instante em que não abaixou a
cabeça, com seus contra-ataques precisos como a lâmina afiada de
uma adaga.
Aumento a pressão na pegada, encurtando o espaço entre nós,
as respirações se misturando.
A borboleta levanta suas asas, pronta para movê-las e acabar
comigo.
— É só pedir, chefinho — repete as mesmas palavras com
doçura, o que contrasta com o sorriso viperino em seus lábios
maldosos. Suas mãos machucadas e ensanguentadas
desaparecem entre nossos corpos e trinco o maxilar ao sentir seu
toque forte e preciso, provocando-me. — Implore... — sussurra,
saboreando a vitória eminente. Seu hálito acaricia meu rosto
enquanto resvala a ponta do nariz no meu. — De joelhos.
Seu comando é enlouquecedor, excitante, devasso e eu gosto de
cada um deles.
— Vai me pagar por isso, Queen — pontuo ao soltar seu
pescoço, descendo as mãos por seu corpo. Devagar, minhas pernas
se dobram, os joelhos tocando o chão imundo. Agarro suas coxas
por trás, mantendo-a próxima, nossos olhos conectados como
nunca. — Consigo imaginar as dezenas de formas que a farei gozar
nessa posição...
— Peça — comanda, totalmente centrada em sua missão. Lilith
enfia os dedos em meus cabelos, raspando as unhas no couro,
fazendo meu pau pulsar em antecipação.
Sorrio para a mulher desinibida a minha frente, aproximando a
boca do seu sexo ainda coberto pela maldita calça. Aspiro o cheiro
que atravessa a camada de roupa, constatando o quão molhada
está. Com a ponta da língua, percorro o centro quente e um leve
tremor perpassa em seu íntimo.
— Eu vou te acorrentar e foder sua boceta com a boca, com os
dedos e, é claro, com o meu pau, socando até o último centímetro
— aviso com acentuada rouquidão na voz e ela morde o lábio
inferior, aumentando a pressão em minha cabeça. — Então, quando
pensar no subsolo 3, a única imagem que vai povoar a sua mente é
o antro de perdição que esse local se tornou, a própria Babilônia
citada na bíblia. — Encosto o queixo em sua virilha e a observo
como se eu fosse, de fato, o seu súdito. — Por favor, Queen...
Lilith solta meu cabelo e cruza os braços, o sorriso viperino não
vacila um instante sequer.
— Espero que saiba aproveitar essa chance, porque será a
primeira e a última vez que a gente vai foder, chefinho.
A gente vai se comer.
Levanto-me em um salto, me afastando dela, e noto uma singela
confusão em sua fisionomia. Em uma parte afastada da mesa deixei
o objeto guardado para o momento oportuno então pego e ergo a
peça na altura dos olhos, gargalhando diante da sua face revoltada,
mas ela não dá o braço a torcer e permanece no lugar.
Quase consigo ver suas engrenagens se movendo enquanto
elabora a melhor forma de me matar.
— Uma rainha não pode ficar sem a sua coroa — sussurro
contra o seu rosto, encaixando a peça no topo da sua cabeça.
Satisfeito com o que vejo, faço uma reverência debochada. — Você
deu o seu aval, mas não pontuou nenhuma regra, então a partir de
agora vou te foder nos meus termos, Queen. — Seguro seu maxilar
delicado, sentindo a textura macia da pele. — Agora sim a nossa
brincadeira vai ter início e, para começar, se livre dessas malditas
roupas.
lascivo
1. que ou o que se inclina aos prazeres do sexo, à
sensualidade, à voluptuosidade; libidinoso, lúbrico.
2. que há lascívia; que manifesta ou excita luxúria;
sensual.
CAPÍTULO 17
— Você sabe que está brincando com fogo. — Não é uma
pergunta o que sai de sua boca no tom de voz igual a seda mais
macia. Lilith ergue uma das sobrancelhas perfeitamente
desenhadas, enquanto seus dedos estão enganchados no
minúsculo elástico da calcinha. Ela pode até negar, mas os mamilos
intumescidos não, e ainda nem os toquei, denotando o quão curiosa
se encontra. Aceno em um comando para que prossiga, observando
suas curvas delicadas. — Cretino.
A peça rendada se junta ao monte largado no chão aos seus
pés: calça, blusa, jaqueta, sutiã, bota e a calcinha. Contenho a
vontade de perguntar qual cor escolheu para se encontrar com os
sujeitos mais cedo.
Com o quadril encostado na mesa de trabalho, contemplo a
nudez de Lilith. Para ela, ficar dessa forma na frente de alguém não
é um problema, sua grande apresentação na cabine é a prova
irrefutável disso.
Começo a subir meus olhos por suas pernas compridas,
cobrindo cada centímetro com a minha perícia minuciosa. Sua
virilha depilada carrega fluídos na parte inferior, que brilham contra a
luz das lâmpadas, sinto a boca salivar enquanto imagino como vou
beber dessa fonte até acabar com a minha sede. Assisto a barriga
de Lilith se contrair de maneira involuntária bem na região do
umbigo. As mãos em punho estão travadas ao lado do tronco.
— Pelo jeito não estou sozinho nessa — constato, passando a
língua no lábio inferior, então cruzo os nossos olhares e a luxúria em
seu rosto é o pecado mais delicioso que vou cometer, por livre e
espontânea vontade. Troco o peso das pernas, meu pau chorando
na cueca ao pedir para ser libertado, mas é cedo. — Você estava
imaginando a minha boca na sua boceta, te chupando gostoso,
rebolando e molhando a minha cara. Acertei?
Ela não responde, porém um ar de desafio molda seus traços já
tão marcantes. Saio do lugar e, a passos lentos e calculados,
caminho em sua direção. O ar gelado e denso onde estamos
batalha contra o calor infernal que nossos organismos sentem.
Lilith inclina o queixo, encarando-me de frente, a presa sem um
pingo de medo de seu predador.
Deslizo as pontas dos dedos pela extensão dos seus braços,
subindo sem pressa. Sinto-me totalmente no controle assim que
contemplo os pelos eriçarem, provocando um tremor em seu
majestoso corpo. Agarro seus pulsos, erguendo-os acima de sua
cabeça sem resistência.
— Gosta de ser fodida enquanto está acorrentada? — Nossas
testas se tocam e aproveito para inspirar seu cheiro enquanto envio
o ar quente da boca em suas bochechas.
— Acredito que terá a sua resposta em breve, chefinho. —
Resvalo nossos lábios e sorrimos um para o outro, como dois
psicopatas depois de enterrarem a vítima. O que não difere tanto
desse cenário, pois o convidado morto ainda se encontra amarrado
na cadeira.
Por fora, mantenho a postura soturna de sempre, mas por
dentro, o descompassar do meu coração denota a ansiedade em
possuí-la, de tê-la em minhas mãos ao meu bel prazer.
Puxo as algemas da corrente presa ao teto e fecho o objeto, o
metal gelado a arrepiando ainda mais. Os cabelos de Lilith caem
como cascatas ao redor dos ombros, começando a grudar em sua
pele, que adquire gotículas de suor. A temperatura corporal
duelando com o ambiente é um cenário instigante.
— Enquanto eu estiver devorando cada parte do seu corpo, me
chame pelo nome, Queen. — Prendo o outro pulso, sendo
presenteado com um ar de deboche. Seguro o lindo pescoço com
as duas mãos, passeando meus lábios em sua face, a degustando.
— Quero te ouvir gemendo o meu nome, apenas ele — sussurro
contra seu ouvido, o véu de fios ondulados está no caminho, mas
não atrapalham.
A respiração pesada de Lilith e o peito movendo com rapidez é o
combustível que eu precisava. Alterno entre lamber e chupar a pele
exposta do seu pescoço, bem em cima da veia pulsante.
Meus dedos se enterram em suas nádegas, afastando-as
enquanto deslizo a ponta da língua em sua clavícula suada, passo
para o outro lado e prendo o lóbulo macio da sua orelha entre os
dentes, pressionando até retirar um gemido rouco dela.
Encosto o dedo médio na entrada do seu ânus, circulando o local
apertado e desço o rosto para os seios pequenos. Introduzo o
começo do dedo ao tempo em que abocanho o mamilo duro e
mordo a região forte o suficiente para fazer seus olhos lacrimejarem.
— Athos... — Meu nome em sua boca é puro e pecaminoso ao
mesmo tempo, a junção de céu e inferno em um espaço
compartilhado. Lilith move os quadris, fazendo com que o meu dedo
afunde mais, agradando-a. — Isso...
Joga a cabeça para trás, a corrente conectada ao teto permitindo
que consiga se movimentar sem ficar nas pontas dos pés. Suas
mãos seguram o metal em apoio, pois ela rebola mais rápido,
buscando sozinha o seu próprio prazer.
— Por que a pressa? — questiono antes de fechar minha boca
no outro mamilo sedento. Lilith abaixa a cabeça, encarando-me com
fúria. Sorrio, mamando gostoso e enterrando meu dedo até o fim.
Seu corpo vibra, pedindo por mais. — Detesto serviço malfeito,
Queen.
Uso meus dentes como pinças e puxo o mamilo duro,
acompanhando até onde ela consegue aguentar, o quanto sentir dor
causa prazer em Lilith. Meu dedo livre toca sua umidade e espalha o
líquido, conhecendo essa parte quente através do tato. Aproveito
para me abaixar de vez, ajoelhando-me em sua frente, entre
mordidas e lambidas em seu ventre.
A recordação dos pensamentos que inundaram minha mente na
noite em que a conheci retornam com tamanha intensidade que
aspiro com força, mesmo com as mãos acorrentadas e, de certa
forma, subjugada, a coroa em sua cabeça transforma a visão dela
em algo divino.
Um ser com aparência angelical, porém nascido nas trevas.
A figura imponente, parada em frente ao espelho, poderia
chamar a atenção até mesmo do papa, provavelmente ele se
ajoelharia, suplicando por sua benção.
Desço as mãos por seu tronco, permitindo caírem ao lado do
meu corpo, absorto. Seu peito, assim como o meu, se move em
sincronia à respiração entrecortada, a antecipação do que vai
acontecer tornando-se tão necessária quanto o ar ao nosso redor.
Com a atenção fixada nos orbes pecaminosos, comando com a
voz firme, diferente do que sinto em meu interior:
— Abra as pernas para mim, Lilith...
Poderia fazer isso eu mesmo, virar o seu corpo do avesso
enquanto sacio minha fome selvagem, no entanto, vê-la arrastar os
pés, cada um para uma direção diferente, se expondo ainda mais, é
fodidamente excitante.
Aproximo meu rosto na interseção entre os seus lábios quentes,
consumindo o perfume delicioso produzido por sua boceta.
— Esse é o meu momento da comunhão — murmuro,
espalmando as mãos abertas no chão do subsolo. Inclino-me para
frente, observando Lilith rir de forma diabólica, compreendendo
minhas palavras. — Vou consumir a eucaristia que me ofereceu de
bom grado, Queen.
Uno nossos lábios sem mover a língua, o que é o suficiente para
tirar um som prazeroso da mulher acima de mim, assistindo. A
maciez da carne quente e encharcada é tão viciante quanto as
drogas que já usei, ou até mais.
O sabor salgado escorre em minhas papilas gustativas, o manjar
dos deuses, de fato. Os mais de mil receptores responsáveis por
detectar o gosto gravam de imediato a essência única que vem dela,
permito que a ponta do meu nariz toque seu clitóris antes de me
afastar, sondando-a.
Seu abdômen contraindo-se é a minha perdição, o preço a ser
pago por todos os incontáveis pecados que cometi desde que me
entendo por gente.
— Vamos, Athos — sussurra, o barulho das correntes ressoando
no local enquanto se move, dobrando as pernas. — Me mostre o
que é capaz de fazer, se gabou tanto, tsc, tsc, tsc... — desdenha, a
provocação surtindo ainda mais efeito no meu pau, que luta para
atravessar a costura da calça. — Não sabe...
Calo a boca de Lilith assim que seguro suas nádegas com as
minhas mãos entre as pernas e abocanho a boceta molhada. O
gemido alto e sôfrego dela ao jogar a cabeça para trás é sexy para
caralho.
Seu quadril se move, lambuzando meu rosto com os seus fluídos
deliciosos, com o auxílio dos dedões, separo os grandes lábios e
chupo seu clitóris sensível com gana, desespero, até.
Assim como acontece quando preciso me drogar e enquanto não
faço o que o meu corpo pede, enlouqueço e fico paranoico.
Varro cada centímetro usando a ponta da língua em volta do
ponto arrebatador, indo em direção a entrada melada. Bebo seu
prazer, que vai escorrendo pelas pernas tamanho o desejo. Carrego
para os grandes lábios parte do seu gozo e volto a chupar, a sucção
alta compete com os gemidos dela, além do som das correntes
sendo puxadas com força.
Fodo sua entrada com o auxílio dos dedos, penetrando-a até o
fim, sem soltar o clitóris quente. Sei que há vários olhos nos
observando, expostos nas prateleiras, se tornando especiais por
assistirem a esse momento encantador, assim como o infeliz morto
mais a frente, sua alma se contentando com o que vê.
Encaro a figura dela, os seios com mamilos duros subindo e
descendo em sincronia com a respiração intensa. Com a cabeça
virada para o teto, vejo somente a linha da clavícula, pescoço e o
fino queixo, trêmulo. Aumento a velocidade dos dedos enfiados em
sua boceta e troco beijos lascivos e sujos com os lábios inferiores.
As paredes ao redor dos dedos pressionam, sugando, o indício
de que vai gozar a qualquer momento. Incentivo-a, entregando tudo
de mim para que sinta como posso dar prazer, e estamos apenas no
começo. Quero apreciar essas mesmas paredes esfolando o meu
pau, estrangulando-o até me fazer revirar os olhos.
— Athos... — geme, a voz carregada de tesão e alívio.
Apoio seu tronco com mais firmeza enquanto Lilith goza forte
dentro da minha boca. Bebo seus fluídos afrodisíacos sem cortar
nossa conexão, ainda que ela esteja com a cabeça jogada para trás.
Afasto-me minimamente, observando a boceta molhada, e trinco
os dentes, contendo a ira que tenta se apossar de mim em questão
de segundos por não saber qual é a cor tingindo esse pedaço de
pele.
— Conferindo o estrago que deixou? — Ergo a cabeça e me
deparo com a fisionomia de Lilith, uma mistura entre satisfação e
curiosidade, quase como se soubesse a fonte da minha aflição. Ela
ri, passando a língua nos lábios. Os longos cabelos grudados na
pele faz parecer que acabou de chegar de uma longa corrida, no
entanto, a maldita coroa continua aonde deixei. — Minha boceta
toda vermelha te excita, Athos?
Levanto-me sem avisos e ela acaba escorregando no chão
gelado, as algemas cravando em seus pulsos. Lilith não para de
sorrir, inclinando o corpo até estarmos com as bocas próximas o
suficiente para compartilhar o mesmo ar. Avalio com mais cuidado
qual a real intenção por trás das suas palavras.
Ela não tem como saber, não há evidências em meu quarto, sou
cuidadoso quanto a isso, mas a sensação de que Lilith possui uma
carta na manga, uma jogada certeira, a peça principal do tabuleiro, é
gigantesca.
Agarro seu queixo, os dedos afundando em sua pele quente e
suada, e encosto minha testa na sua. Entro na sua brincadeira,
presenteando-a com um sorriso de orelha a orelha, afinal, possuo
informações dessa mulher e sobre o seu passado, algo que eu
posso usar a meu favor.
Claro, apenas se ela sair da linha.
— Vermelho do jeito que pretendo deixar o seu cu. — Rimos, a
malícia em seus olhos provavelmente refletindo a minha. — Eu
quero ele também, Queen.
Lilith usa a língua para lamber meus lábios, sugando os próprios
vestígios do seu gozo melando minha cara, então para os
movimentos e a doçura que toma seu rosto é o oposto das palavras
baixas e sujas.
— Vem pegar... Athos.
Meu pau chega a doer em antecipação, quase rasgando as
camadas desnecessárias de roupas. Lilith parece que não aprendeu
nada desde o dia em que nos conhecemos e continua me
provocando até o limite.
Não tem problema, posso ser um professor paciente, e agora
pretendo dar uma lição nessa desgraçada.
CAPÍTULO 18
Meus braços, ainda presos nas algemas, tocam na madeira lisa
rodeada por dezenas de instrumentos peculiares. Avalio o teto baixo
com as luzes apagadas nas laterais, dando um ar sombrio ao
subsolo 3.
Athos segura meu tornozelo esquerdo, envolvendo-o em uma
corrente, o metal frio eriçando minha pele. Minha perna é estendida
para o lado, então ouço um clique na fechadura e é inevitável não
sorrir.
— Qual a graça, Queen? — Seu corpo grande, e agora
totalmente nu, deixando à mostra as belas tatuagens, aparece
acima de mim. Sondo seus lábios avermelhados depois de me
chupar por tanto tempo. Foi muito melhor do que imaginei que seria
momentos antes da devassidão começar, mas ele não precisa
saber, seu ego já toma espaço demais no local. — Gosta de sentir
dor, confesse — diz com a voz rouca.
Seus dedos se afundam em meu queixo, admirando-me com
fascinação e meu sorriso aumenta quando me recordo do olhar
desconfiado de minutos atrás. Sua frustração enquanto observava
minha boceta, sem conseguir distinguir as cores, foi tão palpável
que não me contive.
É deliciosamente prazeroso provocá-lo, ainda mais agora que
ele sabe sobre o meu passado, mesmo sendo uma parte muito
singela. Depois vejo o que farei em relação a isso.
— Mais do que consegue supor, Athos — sussurro de encontro
ao seu maldito rosto bonito. Pronunciar seu nome sem deboche
ainda possui um gosto estranho na boca, ao qual não me
acostumei. — Sou mais resistente que todos os seus capangas
juntos.
Ele usa a língua para lamber a lateral do meu rosto e desce
lentamente para o pescoço, onde seus dentes se cravam na veia
principal. Fecho os olhos diante do prazer correndo em linha reta em
direção ao meu sexo.
Se Athos fosse um vampiro, haveria uma guerra para saber qual
deles seria mais mortal, Klaus Mikaelson teria um concorrente à
altura.
Um ponto de dor se sobressai na área em que os seus lábios
estão e um suspiro carregado de êxtase atravessa minha garganta,
ausente de pudor.
De maneira instintiva, puxo os braços, forçando as algemas ao
redor dos punhos e a pele dilacerada queima, causando mais
agonia, meus olhos lacrimejam e meu coração se descompassa,
ansiando por mais.
Mais dor. Mais prazer.
Minha mente masoquista não se contenta com pouco,
principalmente quando encontra alguém tão sádico quanto ele.
Notando como respondo ao seu martírio, Athos ergue a cabeça
para me observar, o riso selvagem tornando o semblante ainda mais
pecaminoso. Resvala os lábios nos meus, seu hálito acarinhando o
local. Não houve troca de beijos além dos anteriores em meu sexo,
desde que eu sinta prazer, pouco me importa a ausência desse
detalhe.
— Então vamos deixar isso ainda mais interessante, Queen.
Se afasta com orgulho e vejo promessas desenhadas em sua
face. Meu outro tornozelo enfim é preso e, com isso, minhas pernas
desenham um V de cabeça para baixo, esticadas em cima da mesa,
mas com certo espaço para erguer o quadril. Ele pensou em tudo.
Athos se aproxima da prateleira com os bizarros olhos e abre
uma pequena gaveta na parte inferior. Aprecio a enorme tatuagem
de asas sob essa luz e, conforme movimenta o tronco, a ideia de
que elas se movem junto à criatura ajoelhada no meio é o
diferencial.
Não possuo nenhuma, contudo, o desenho marcado em sua pele
cria uma vontade de marcar meu corpo também. O som de metal se
chocando chama a minha atenção. Ao se virar para mim, ele ergue
os objetos na altura da visão, animado.
Sua imagem nua, toda tatuada, com os cabelos bagunçados e
os prendedores de mamilos em mãos, me faz querer fechar as
pernas. A eletricidade pulsa em meu clitóris enquanto imagino tudo
o que vai acontecer em instantes, e a antecipação é prazerosa.
Sinto meus fluídos escorrerem da boceta exposta. Ele se
aproxima, encarando com uma fome animalesca as lágrimas que o
meu sexo produz.
— Se eu soubesse desse gosto peculiar, teria escolhido trazer
meus brinquedinhos mais... legais. — Ele para ao meu lado e
aproveito para sondar o objeto. Compreendo suas palavras ao notar
que esses prendedores são simples e não machucam tanto quanto
eu gostaria. — Na próxima, usarei os com choque.
Na próxima...
Se toda essa luxúria valer a pena, sinto-me tentada a repetir,
ainda que tenha feito a promessa de ser apenas uma vez. Miro seus
orbes dilatados, o preto quase escondendo por completo o azul
magnífico.
— Então na próxima — provoco e falo com suavidade, o que
difere de toda a cena ao nosso entorno — não esqueça do
estimulador elétrico anal, é o meu favorito.
Ele gargalha tanto que os seus ombros se movem, até
parecemos um casal apaixonado, se observado de muito longe.
Apaixonados pela dor, entre dar e receber, nessa ordem.
Athos coloca o prendedor no mamilo duro, apertando sem
desviar os olhos de mim, curioso. A pontada dolorosa começa a se
espalhar por toda a região já sensível e eu arfo, o sangue sendo
bombardeado com muita rapidez.
Mordo o lábio inferior, pressionando-o sem dó, e paro ao sentir o
gosto metalizado tocando a língua. Ele faz o mesmo no outro
mamilo e, sem avisos, puxa a pequena corrente conectada aos
prendedores, igual faria com as rédeas de um cavalo.
Inclino a cabeça para trás, apreciando a tortura prazerosa,
enlouquecendo-me. É inevitável o marejar se acumulando nos
cantos dos olhos. Seus lábios encontram os meus, a respiração
arrastada denota sua excitação pulsando no meio das próprias
pernas.
— Vou te foder em cima dessa mesa, Queen. — Enxergo tanta
devassidão em seu olhar que acabo gemendo em antecipação.
Animada em demasia com o que está prestes a acontecer. — Meu
pau vai se afundar na sua boceta molhada... — Athos arrasta a
ponta do nariz no meu rosto, os orbes azuis fixos nos meus,
alucinados. — Depois no seu cu apertado, enquanto permanece
assim, amarrada igual um cordeiro pronto pro abatedouro.
Sua boca encontra a minha, enfim, devorando cada centímetro
com uma necessidade pungente. O recebo com gana, provando do
meu gosto presente em seus lábios, consigo sentir os resquícios de
creme dental misturados ao salgado do gozo.
Quando nossas línguas se tocam o ouço gemer em aprovação.
Seguro a ponta dela e chupo forte, o som do gesto preenchendo o
subsolo. Aumento a sucção, dando uma ideia a ele de como faria se
fosse o seu pau no lugar.
Outra vez, a corrente conectada aos prendedores é puxada, a
força calculada com maestria. Toda a minha auréola queima, a dor
se espalhando pelos seios, fazendo-me arfar novamente.
Ao liberar a sua língua em busca de ar, Athos captura a minha,
imitando meus gestos. Abro os olhos deparando-me com o seu
olhar diabólico enquanto chupa o órgão, nossas salivas sendo
compartilhadas, então estico os lábios em um sorriso perverso,
concedendo mais acesso.
Tento mover os quadris para aplacar o desejo que escorre como
uma cascata entre as pernas, molhando a madeira cara. Ele usa
seus dentes para morder a ponta da minha língua, sondando meus
limites, e meus olhos lacrimejam conforme a tortura na região
intensifica.
Athos se afasta, degustando o sabor do meu sangue em sua
boca. Sinto minha pele empapada de suor, a respiração
entrecortada, enquanto a língua lateja após a simulação de uma
mordida.
Com agilidade, ele sobe na mesa, o enxergo através da visão
um pouco embaçada pelas lágrimas. Outro gemido, ainda mais
potente que os anteriores, escapa ao ser penetrada com seus
dedos.
— Tão encharcada, Queen — murmura, a voz carregada de
orgulho, satisfação. Sua outra mão começa a espalhar meus fluídos,
levando-os até o ânus, sem parar os movimentos. Ergo a cabeça e
a visão de Athos entre as minhas pernas, escorado nos calcanhares
seria divina, se não fosse o olhar malicioso que se alterna entre meu
rosto e meu sexo. — Meu pau vai deslizar até o fundo aqui... —
Respiro mais rápido, os lábios entreabertos assistindo-o inserir dois
dedos, o som provando o quão verdadeiras são suas palavras,
nunca me senti tão molhada. Então ele encosta outro mais embaixo,
sem tirar os primeiros. E, com uma facilidade pecaminosa, Athos o
enfia no meu ânus, somente até a metade. — E aqui.
O prazer intenso apenas com esse simples toque me faz morder
os lábios novamente, como se conseguisse conter os gemidos se
acumulando na garganta. Encaro o seu pau ereto, pronto para foder.
Me foder. As veias são como um mapa indicando a direção de um
tesouro imoral e libertino, a glande molhada e brilhando contra a luz
é tentadora. A luxúria em carne e osso.
Mais do que senti-lo em minha boca, preciso desse maldito
dentro de mim.
E eu não quero gentilezas.
— Por qual deles começo? Como demonstração da minha boa
vontade, vou te deixar escolher, Queen — Athos inclina-se
totalmente sobre mim, usando os antebraços para se apoiar na
mesa, enquanto as mãos agarram a corrente com prendedores. Seu
corpo quente em contato com a minha pele faz os pelos eriçarem
outra vez e sua glande escorrega entre as duas entradas,
provocando —, mas isso não significa que serei delicado...
— Se eu quisesse ser tratada como uma boa moça, transaria
fora da Babilônia, com homens de família — rebato, encarando-o
nos olhos. Uso as palavras para incitá-lo do mesmo jeito que vem
fazendo desde que chegamos aqui. — Para o inferno com o papai e
mamãe... — sussurro, observando como a sua face, já perigosa, se
torna ainda mais sombria. Ele aproxima o rosto, a fome evidente
impregnada em cada poro, o serpentear de um sorriso toma meus
lábios para finalizar a provocação. — Toda mulher merece ser fodida
de uma forma selvagem, impura e completamente devassa ao
menos uma vez na vida. Ter a boceta tão bem comida, invadida até
que a faça continuar sentindo o pau no meio das pernas por dias,
semanas. — Ergo a cabeça, anulando a distância entre nós e uso a
ponta da língua para lamber a boca avermelhada. — Comece por
aqui, Athos... — Movo o quadril, direcionando a sua ereção para
onde desejo, elevando o tronco em seguida.
As palavras mal saem da minha boca quando as suas mãos
avançam para o meu pescoço em um aperto delicioso. Sem a
necessidade de mais incentivos, a glande dele afunda, abrindo
passagem e pedindo por mais espaço. Minhas pálpebras se unem e
apenas a sombra dele fica aparente.
Meu gemido é calado por sua boca ao se fechar sobre a minha,
beijando-me com tamanha intensidade que me tira o ar. A belíssima
ereção é enfiada em mim, até o talo, o que me faz gritar diante da
dor, somada ao prazer que o momento proporciona.
Sinto lágrimas escorrerem nas laterais do rosto e, ao abrir os
olhos, deparo-me com um Athos ensandecido. A pele rubra, o suor
grudando seus cabelos na testa e nuca é pura perdição.
Acompanho seu quadril movendo-se enquanto me alarga, o som do
seu prazer saindo rouco.
— Tão quente e gostoso — fala contra o meu rosto, sem tirar as
mãos que apertam a garganta. Devagar, toda a sua extensão
começa a sair, deixando apenas o vazio. — Meu segundo lugar
favorito...
Agarro a corrente, fincando as unhas nas palmas no instante em
que me penetra com força. Ele sorri, adorando a minha imagem
entregue, tomada pelo desejo. Athos volta a mover o quadril em
provocação, agora encontrando mais facilidade após quase me
rasgar ao meio. Uma pontada de dor sobe pelas pernas quando as
fechaduras nos tornozelos cortam a pele tamanha a intensidade da
penetração.
— E qual seria o primeiro? — Assisto a luxúria tomar seus lábios
ao sorrir, a ponta do nariz se arrastando em meu rosto.
Ele retoma a pegada sufocante na garganta, cortando o ar para
os meus pulmões. Outra vez sua ereção se afasta, lentamente, e
mesmo acostumada a unir dor ao prazer, nada me prepara para
isso. Meu pescoço sendo estrangulado na medida certa por mãos
habilidosas e, não duvido, mais experientes do que imaginei.
Meu ânus é fodido com rapidez e o som dos nossos corpos se
chocando cria uma música inédita no subsolo da tortura.
Pontos pretos tomam minha visão ao tempo em que as lágrimas
escorrem sem pressa. Athos me solta, apenas para envolver a
corrente conectada aos prendedores e puxar para cima, estocando
fundo e forte. Os meus gemidos voltam a atravessar a garganta
livre, a rouquidão acentuada na voz.
Fixo meus olhos nele, na visão selvagem acima de mim, dando e
recebendo prazer na mesma proporção.
Ele agarra a corrente como se no lugar fossem os meus cabelos,
o metal ao redor do pulso está cortando sua pele, mas Athos ignora.
Na verdade, acredito que ele possa ser tão ou mais masoquista do
que eu. Os dedos dos meus pés se curvam em um aviso.
— Caralho, Queen — rosna sem parar os movimentos, então
usa a mão livre para tocar meu clitóris inchado. Por mais que eu
lute, não consigo manter meus olhos em seu rosto assim que sinto
um forte orgasmo se aproximando. — Isso, estrangula meu pau...
goza nele...
E é o que o meu corpo faz, o prazer se infiltra em minhas veias,
enviando a sensação enlouquecedora para todas as partes.
Espasmos percorrem as coxas, a barriga, os seios sensíveis e até o
pescoço enforcado e dolorido. Meu coração retumba contra o peito,
prestes a danificar a caixa torácica, dançando com rapidez,
sentindo-se extasiado.
Outra vez o vazio, causado anteriormente ao se retirar de mim,
retorna e Athos estica seu braço acima da minha cabeça, abrindo o
fecho das algemas com muita agilidade, mas não se livra delas, as
mantém em meus pulsos enquanto arrasta-me para o seu colo.
Contorno seu pescoço, dando um singelo descanso para os
meus braços.
Seus dedos afundam em minha bunda segundos antes de me
preencher outra vez, mas agora...
— Sua boceta, sem dúvidas, é o meu primeiro local favorito. —
Lambe os próprios lábios, nos encaixando como um prego afundado
na madeira. Repouso a testa na sua, nosso suor se misturando,
enquanto o cheiro inconfundível de sexo nos envolve.
— Como poderia saber sem ter provado antes? — Minhas
pernas permanecem presas, mas a posição me permite obter certo
controle. Rebolo em seu pau, saboreando até onde ele chega, então
contraio os músculos e sou presenteada com um Athos travando o
maxilar.
— Desse jeito vou gozar muito rápido, Queen... — O que não
parece uma má ideia, afinal, ele aumenta as investidas fazendo a
mesa ranger. Os pés em atrito com o piso criam um som arranhado.
— E, respondendo a sua pergunta... eu soube no momento em que
provei o seu gosto. — O movimentar alucinado dos meus seios
entre nós, ainda com os prendedores, geram dor, espalhando essa
agonia deliciosa para toda a região. — Na hora que chupei a sua
boceta, tive o mesmo prazer que a porra da droga causa.
Athos estica as minhas pernas ao limite quando circula minha
cintura com os braços definidos e tatuados, indo alguns centímetros
para frente. Uso as unhas para deixá-lo marcado nas costas, bem
na imagem do anjo ajoelhado.
Sua boca busca pela minha, devorando-me como se fosse o
nosso primeiro beijo. Nossos gemidos misturados ao ranger da
mesa, transformam o subsolo 3 em uma verdadeira Babilônia.
Fazemos jus ao nome do local, escolhido com cuidado dentro da
bíblia.
“Babilônia, a joia dos reinos,
o esplendor do orgulho dos babilônios,
será destruída por Deus,
à semelhança de Sodoma e Gomorra.”
Pela terceira vez na mesma noite gozo tão forte que acabo
mordendo o lábio inferior de Athos, sorvendo o sangue do local. Ele
não se importa, mantendo seu próprio ritmo em busca de prazer.
Ainda que me sinta cansada e com as pernas fracas, cavalgo em
seu pau, o ajudando a alcançar o êxtase.
Acaricio a face rubra do meu nêmesis, oferecendo um sorriso tão
real quanto a bondade humana.
Ele esporra dentro de mim, com o corpo suado e trêmulo, e a
respiração entrecortada. Tiro as mechas molhadas de cabelo do seu
rosto, com o seu pau preenchendo a minha boceta.
Euforia aquece meu peito, a carga necessária para não ser
desviada dos meus planos antigos e inegociáveis.
Foi bom, de fato ele sabe como foder uma mulher, mas Athos
sabe demais sobre mim e sobre Suiane, e isso não pode ficar
assim.
Enquanto a sua porra escorre entre as nossas pernas, elaboro a
melhor forma de excluí-lo da minha vida sem deixar rastros, no
entanto, até lá...
Vou me divertir o quanto puder, sem peso algum na consciência,
algo que nunca tive, mas esse é só um mero detalhe.
inquietação
1. estado de inquieto, do que se acha em agitação.
2. estado de preocupação; desassossego que impede o
repouso, a paz, a tranquilidade; nervosismo.
CAPÍTULO 19
Com os cadarços das botas enganchados nos dedos, olho para o
chão frio abaixo dos meus pés, conferindo se esqueci alguma peça
de roupa. O celular descartável permanece no bolso da jaqueta ao
lado do aparelho que peguei do homem sem vida ainda preso a
cadeira.
Athos, dentro da cueca boxer branca, está inclinado sobre o
morto. Suas mãos são ágeis enquanto retira, com uma precisão
médica, seu globo ocular. Um dos seus capangas segura o pote de
vidro com o líquido para conservar o órgão e as asas de anjo
arqueadas no desenho parecem prontas para alçar voo conforme
ele se move.
Não me canso dessa imagem peculiar, principalmente agora,
com ela toda suja com o sangue que tirei ao cravar as unhas ali. O
machucado é inocente perto do que carrego.
Observo meus pulsos em carne viva, a queimação nada ruim
sinalizando o que houve. Meus tornozelos também ardem, mas em
uma intensidade menor. O corte feito no braço pelo morto é apenas
uma linha pequena, carregando sangue seco.
— Conferindo o resultado dessa noite, Queen? — Olho para
cima e deparo-me com ele sorrindo satisfeito. Em sua mão, o pote
de vidro fechado com o globo ocular boiando.
Aceno nessa direção, com uma sobrancelha erguida.
— Que espécie de fetiche é esse? — Então aponto para a
prateleira com dezenas de globos, mas Athos não desvia os olhos
dos meus. — Por acaso vai deixá-los em conserva até o dia em que
decidir comê-los? — Sondo seu rosto, gravando as expressões
antes de provocá-lo, entrando em um terreno que ainda não faço
ideia do quão perigoso é. — Ou você tem algum problema com
olhos e desconta sua frustração assim? — Toco o vidro gelado com
a ponta do dedo, acompanhando um vinco se formar em sua testa.
O leve franzir do cenho não passa despercebido.
— Porque não descobrimos juntos, enquanto degustamos de um
excelente Cogumelo Matsutake com o seu globo servindo de
aperitivo? — A mão dele se aproxima, acarinhando o lado direito do
meu rosto. — Se ele for tão delicioso quanto a sua boceta... —
sussurra a frase, deixando no ar palavras não ditas.
Minha risada atravessa a garganta com rapidez, reverberando
por todo o subsolo 3, atraindo a atenção dos capangas dele, rio
tanto que os meus ombros se movem sem controle.
De início, Athos somente observa a cena com o seu olhar
minucioso, então começa a gargalhar com vontade, seus orbes,
assim como os meus, lacrimejam diante da potência do riso.
Repouso a mão livre em seu peito quente, sentindo os batimentos
acelerados.
O cheiro de sexo ainda é presente na atmosfera do local, assim
como a porra dele em cima da mesa e no meio das minhas pernas.
De fato, passamos a ideia de um casal feliz comemorando a vitória
sobre um inimigo em comum.
O amor reinando entre nós, envolvendo-nos com o seu abraço
quente diante de um inverno devastador, mas Athos e eu somos
imiscíveis, assim como a água e o óleo, por mais que você agite os
dois líquidos dentro de um recipiente, eles não se misturam, a
densidade do óleo é menor, o empurrando para a superfície
enquanto o outro descansa no fundo.
Sua densidade é superior, única, já eu sou água, talvez poluída,
mas ainda assim, água. E não vai ser uma boa foda que mudará
meus planos.
Nossas falsas risadas cessam, enquanto nos encaramos em
silêncio, prontos para um contra-ataque. Como se tivéssemos armas
em mãos, apontadas para a cabeça um do outro, o dedo no gatilho,
aguardando um passo em falso.
Pronta para sair desse local, trombo nele ao seguir o caminho
para o elevador. O homem que estava na cadeira, agora se
encontra em diversos pedaços, que os capangas jogam dentro de
um tambor.
— Obrigado pelo presentinho — fala com a voz arrastada e
mansa. Não me viro, porém sinto sua movimentação atrás de mim.
— Prometo retribuir sua generosidade a altura, Queen. Vai ser
divertido.
— Não duvido, chefinho — zombo, retomando a caminhada e a
forma que o trato.
Entro no elevador e nossos olhos se conectam novamente, em
silêncio. No instante que as portas vão se fechar, mostro o dedo do
meio para ele e depois o enfio na boca. A última imagem que tenho
de Athos é o seu olhar malicioso e a expressão confiante de quem
possui alguma vantagem.
Abandono a caixa de ferro como se estivesse pegando fogo,
sentindo falta do meu quarto e da privacidade que tanto valorizo.
Após trancar a porta, vou retirando minhas roupas, ansiosa para me
banhar.
— Alexa, recomende uma música — comando e passo por
minha cama arrumada, atravesso o closet e entro no banheiro. Abro
a torneira, regulando a temperatura da água.
“Tocando Me and the Devil, de Soap&Skin.”
— Até parece que ela faz de propósito — reclamo. A melodia
possui um começo sombrio, como se fosse uma marcha fúnebre.
Decido entrar na banheira, mesmo pela metade, e suspiro ao sentir
meu corpo agradecer, ainda que os machucados queimem. — Só
recomenda música com o Diabo no meio.
De manhã cedo
Quando você bateu em minha porta
E eu disse: “Olá, Satanás, creio que seja a hora de ir.”
Eu e o Diabo caminhando lado a lado.
Acabo gostando do que ouço, de alguma forma a letra me faz
lembrar minha própria situação.
Pego a embalagem branca e jogo seu conteúdo direto na pele, o
cheiro de bergamota toma o ar. Ensaboo meu corpo com as mãos,
limpando qualquer vestígio que tenha ficado dele, menos as marcas
espalhadas e a lembrança de mais cedo.
Meus seios carregam vergões, que se sobressaem ao toque e
causam incômodo. Levanto uma perna, o tornozelo com a sua
aparência feia e vermelha, assim como nos pulsos, local mais
afetado.
De onde estou, não consigo ver no espelho, mas posso afirmar
que os dedos de Athos marcaram a pele com a mesma eficiência da
agulha que o tatuou.
Você pode enterrar meu corpo na beira da estrada.
Eu e o Diabo caminhando lado a lado.
Esfrego as unhas na palma, alternando entre uma mão e outra,
eliminando os vestígios de sangue seco. A altura da água atinge
meu peito e decido fechar a torneira, aproveitando a temperatura
quase escaldante, o que não vai durar muito, pois o contato com o
ar a esfria com rapidez.
Uso mais sabonete líquido e passo nos seios, lavando qualquer
saliva que tenha ficado e, dessa forma, percorro todo o corpo em
uma limpeza minuciosa. As juntas dos dedos estão vermelhas,
quase em carne viva após desferir parte da minha ira naquela cara
presunçosa.
Quando percebo, a música dark acabou e apenas os sons do
meu banho repercutem pela suíte. Escoro a cabeça na borda da
banheira, avaliando o teto como se ali estivesse as repostas que
preciso.
Não foi necessário esperar muito tempo para perceber que o
homem preferia morrer ao delatar alguém, o que me levou a
conclusão de que o idiota foi ameaçado.
Filhos? Esposa? Só vou saber quando o reencontrar no inferno.
Ele...
Quem é o maldito por trás dessa tentativa vergonhosa de
ataque? Ou o homem foi usado como isca para enviar a mensagem:
estou de olho em você? Seu nome está na minha lista? Nos
conhecemos?
— Não importa, Suiane — falo para o vazio, a voz com uma
porcentagem de rouquidão presente. — Ele vai se arrepender de ter
nascido... de ter te tocado...
Se for o mesmo que eu busco há anos.
Anjo mau.
Suspiro em frustração e mergulho todo o corpo, incluindo a
cabeça, na água cheia de espuma. Apoio as mãos nas paredes
laterais para me manter no lugar e imersa acompanho as bolhas
caminharem para cima, escapando dos meus lábios. Afasto o sabão
sem sair do lugar e consigo ver o lado externo embaçado.
Gradativamente meu sistema se acalma, então fecho os olhos,
relaxando ao tempo em que a água ao meu redor esfria, o que
difere dos meus pulmões, ardendo em busca de ar que não dou,
ainda não, sei que consigo aguentar mais alguns segundos, é só
manter a concentração e o controle.
Duas coisas que parecem quase impossíveis desde que Athos
chegou, seu nome mal aparece em minha mente e uma bolha,
levando o restante do meu ar, escapa.
Devagar, abro os olhos embaixo da água e uma grande
quantidade dela inunda minha boca, queimando pelo caminho da
garganta. A cena se desenrola em questão de milésimos de
segundos, tudo isso porque Athos está aqui, encarando-me do lado
de fora da banheira.
— Prometo retribuir sua generosidade a altura. — Seus lábios se
movem, reproduzindo as mesmas palavras de minutos atrás.
Ele veio me matar.
Uso toda a minha força para escapar da água, sentando-me
enquanto puxo ar para os pulmões e encontro o banheiro vazio.
Como um peixe tirado do seu habitat natural por muito tempo,
sugo oxigênio, agarrando as bordas da banheira e espalhando água
pelo piso.
— Mas que merda...
Ignoro os batimentos descompassados, os cabelos grudados
nas laterais e na nuca, e levanto-me.
Desprezo a possibilidade de levar uma queda ao caminhar
descalça no chão liso e caminho rapidamente para o quarto. Molho
tudo por onde passo, mas não paro, meus pelos se arrepiam em
contato com o ar frio.
Passo pelo closet, que só tem uma entrada e não vejo nada. No
quarto, a mesma coisa. Observo a porta da suíte e o trinco a mais
que mandei colocar está intacto. Só dá para usar pelo lado de
dentro.
Estou sozinha aqui desde a hora em que retornei, então esfrego
as mãos no rosto enquanto a ira se assoma em minhas veias.
Não basta meu controle e concentração oscilarem esses dias por
causa dele, agora minha sanidade também?
Esse maldito está me deixando louca.
CAPÍTULO 20
— Vai levar mais de uma semana para essas marcas sumirem —
Silas diz o óbvio enquanto caminha ao meu lado. Os braceletes não
escondem totalmente os machucados, mas o longo vestido batendo
no chão poupa meus ouvidos das suas afirmações. Não que ele não
tenha visto os meus machucados também, nada passa por Silas. —
O colar é muito bonito.
Paro ao lado da porta de monitoramento do nível 3, sondando
seus orbes verdes, e passo os dedos pela joia delicada no mesmo
tom que adorna meu pescoço maquiado.
Não me importo com o que as pessoas vão falar sobre a pele
avermelhada e cheia de vergões, é bem normal encontrar muita
gente assim pelos corredores da empresa após as sessões,
entretanto, ainda sou a imagem da Babilônia e recebo diversos
clientes especiais, com gostos peculiares. Só por esse detalhe
mantenho certas aparências.
Athos deveria estar ajudando com isso, afinal, ele não veio aqui
com esse intuito? Hoje faz dois dias desde o nosso... encontro.
Mesmo dormindo no quarto do outro lado do corredor, ele sabe
como ser silencioso quando quer. Quase um fantasma. Essa falsa
calmaria me deixa em alerta, ainda que não tenha me deparado
com a sua assombração novamente, meu cérebro cansado não
ajuda ao pregar essas peças e criar ilusões irritantes.
— Lilith — Silas me chama, postando-se em minha frente, a
fisionomia curiosa me sonda. — Nunca te vi tão distraída, isso não é
normal, ainda mais sendo sobre você. Esse envolvimento...
— O quê? — Elevo a sobrancelha após sua percepção errônea.
Dou um passo, quase colando nossos corpos, o que evidencia seu
tamanho perto do meu mesmo em cima dos saltos. — Sim, estou
distraída esses dias e isso tem nome, Silas querido — Espalmo as
mãos em seu smoking preto, com risca de giz, impecável. Os
batimentos permanecem sem alterações, diferente da maioria dos
outros funcionários quando me aproximo —, mas esse envolvimento
está a milhas de ser algo romântico, posso listar as diversas ideias
que tive, as melhores formas de acabar com aquele maldito.
— Lil... — tenta novamente e o calo, acariciando seus lábios com
o meu dedão.
— Viu? Isso é apenas um toque inofensivo, sem segundas
intenções, diferente de Athos. — Dou tapinhas em seu ombro antes
de me afastar. — Não se preocupe comigo, antes de ele tentar
qualquer coisa contra mim, eu o mato. Me amo demais para permitir
que um homem ouse manchar meu coração.
... e atrapalhar meus planos.
Bem, isso só seria possível se eu tivesse um coração, de fato. E
quanto a realmente me amar, às vezes parece o contrário, já que
me coloco em perigo a todo instante.
Entro na sala, verificando o trabalho dos seguranças por algum
tempo, e Silas permanece ao meu lado em silêncio, fazendo suas
anotações. Ele não toca mais no assunto, mesmo após sairmos da
sala.
Deparo-me com Kai preparando uma bebida no espaçoso bar,
tão concentrado em não derramar o líquido que não percebe minha
aproximação. Há um vinco no meio da sua testa, os olhos cerrados
acentuam a fisionomia séria.
Deslizo os dedos em cima do balcão lustroso, o preto adornado
com detalhes em dourado, tudo combinando com as cores da
Babilônia.
— Oi, Kai — falo enquanto sento-me no banquinho a sua frente.
As íris castanhas me fitam na mesma hora, parando os movimentos.
Um sorriso fraco escapa dos meus lábios diante da cena. — O que
foi? Até parece que viu um fantasma — provoco. Escoro o cotovelo
no balcão, enquanto minha mão descansa embaixo do queixo, olho
para o lado quando Silas se afasta ao ser chamado por um dos
nossos funcionários e retomo o foco ao barman, conferindo o fino
corte em seu lábio inferior. — Está quase bom em vista do outro dia,
com a Ella perambulando por aqui. — Aceno na direção das
garrafas atrás de si, aguardando por uma resposta. — Prepare um
Old Fashioned, por favor.
Sem me responder, Kai começa o preparo do meu drink após
entregar o que estava fazendo para outro cliente. De olho no moço
quieto, e aparentando medo, acompanho suas mãos habilidosas
separando os ingredientes.
A música ambiente não abafa os gemidos dentro das cabines ou
o atrito incessante de coisas batendo. Recordo do dia em que o
encontrei machucado, faminto, sem largar o terço entre os dedos
ralados e sujos.
— Está gostando da Babilônia? — Decido ir por um outro
caminho, cercando-o sem que perceba.
O jogo de luzes por trás das centenas de garrafas de bebidas
projeta sombras ao seu redor. A coqueteleira de prata brilha diante
dos movimentos rápidos, misturando o conteúdo. Um singelo sorriso
aparece enquanto me encara de verdade, sem desviar a atenção
como das outras vezes.
— Eu gosto muito daqui, senhorita Lilith — fala, aparentemente
mais à vontade agora. Ele pega a taça e um papel de seda,
colocando-os em minha frente. — Às vezes dou risada do nome que
escolheram pra algo tão... — Engole em seco assim que um gemido
de algum cliente se sobressai aos outros e despeja a bebida na
taça. — A senhorita sabe que na bíblia a torre de Babel foi destruída
por Deus, não sabe? — Assinto, enquanto aproximo o drink de mim,
incentivando-o com a cabeça. Kai se escora no balcão, observando
ao redor, e um riso matreiro desenha seus lábios. — Não tem medo
de acontecer algo parecido aqui?
Preciso me concentrar para não cuspir a bebida sem querer em
seu rosto ao ser tomada pela vontade de rir. Limpo a boca com a
seda preta, cruzando as pernas em cima do banquinho.
— Você é bem religioso — concluo, recordando do terço, e Kai
compreende, pois suas bochechas ganham um tom rubro que não
havia antes. — Como é acreditar em um ser divino e prestar
serviços nesse templo de perdição, Kai? — Cruzo as mãos embaixo
do queixo, inclinando mais o corpo em sua direção, sem perder
nenhum detalhe da sua fisionomia em conflito. — Assistir pessoas
transando na sua frente, enquanto outras se masturbam com a
cena? Isso te excita e te deixa mal ao mesmo tempo?
Ele coça a cabeça, bagunçando os fios castanhos e lisos, mas
acaba rindo e observa as cabines atrás de mim, e é impossível não
notar a curiosidade que cresce como uma erva daninha em seus
olhos. Continuo saboreando o excelente drink feito por suas mãos,
no aguardo por uma resposta.
— Já vi muita coisa ruim, senhorita Lilith — confessa, a diversão
dando espaço para algo como a raiva. Os orbes de Kai se fixam nos
meus, o rubor desaparecendo na mesma velocidade em que o
tingiu. — E acredite, isso aqui, essas pessoas sem pudor nenhum,
não é nada perto daquilo.
Daquilo...
A palavra dita é carregada de ódio e Kai limpa o balcão
impecável, usando uma força maior do que o normal. Pelo jeito, o
assunto é delicado e não o agrada, então decido não continuar
nessa provocação. Se fosse um outro alguém não teria qualquer
tipo de piedade e tocaria com mais insistência em suas feridas.
— Lilith — Silas se posta ao meu lado, tão sorrateiro quanto um
gato —, temos um convidado essa noite.
Deposito a taça no balcão, pronta para me levantar, quando uma
voz com um sotaque carregado se faz ouvir.
— Pelo visto subiu de cargo, Lilith. — Silas se afasta e a imagem
do homem dentro do seu smoking vinho se destaca. — Quanto
tempo. — Pega minha mão e faz uma reverência, depositando um
beijo no torço.
— Boss, o que faz tão longe de casa? — Seus olhos pretos se
tornam duas fendas ao sorrir com vontade, as sobrancelhas grossas
moldando os gestos. Os cabelos negros e lisos estão maiores,
quase na altura do queixo.
— Baixa temporada na Tailândia — brinca, soltando minha mão.
Boss abre o primeiro botão do smoking, antes de se sentar ao meu
lado, e vejo os seus guarda-costas mais adiante, observando todo o
andar. — Cuidando dos assuntos da família, já que o meu pai não
está em condições. — Balança os ombros, dando fim a esse tópico.
Klahan é o mafioso mais importante do país e Boss ficará em
seu lugar quando o velho morrer, sua atenção se volta para Kai,
analisando o barman com muita curiosidade.
— Ainda não te conheço. Prazer, sou o Boss, como deve ter
ouvido.
Ele estende a mão, aguardando por uma resposta de Kai.
Observo seu rosto ser tomado outra vez pelo carmesim, no entanto,
retribui o gesto ao esticar o braço.
— Kai... — balbucia e noto que essa timidez parece agradar o
visitante quando oferece um sorriso malicioso para o barman.
Fito suas mãos enlaçadas, com as juntas dos dedos de Boss
destacando-se na pele branca. Reparo em Silas, esquadrinhando o
que acontece a nossa frente, então trocamos um olhar questionador.
— Kai, nome curto e bonito. — Boss solta a mão dele, contudo
mantém o braço esticado em cima do balcão.
— Tire os olhos dele — aviso, atraindo a atenção do mafioso
para mim. Faço uma última análise de Kai, todo envergonhado e
limpando uma taça. — Ele está em horário de trabalho, Boss, não o
atrapalhe.
— Jamais faria isso, Lilith. — O sorriso sacana diz exatamente o
contrário. — A não ser que ele queira, ที่รัก[1] — diz em sua língua
natal, o som anasalado e agudo do idioma é único. — เขาจะยังคง
เป็ นของฉัน[2].
Não faço ideia do que compartilhou, mas pelo sorriso arrogante e
sabendo que homens são iguais tanto aqui quanto na Tailândia,
deve estar reivindicando Kai. Quando conheci Boss, ele namorava
um conterrâneo, até o pai dar fim no sujeito depois de uma traição
dentro da máfia.
Ele é uma das pessoas mais possessivas que já atravessaram o
meu caminho e, pelos poucos dias ao lado de Athos, são bem
parecidos nesse quesito.
Idiotas.
— Lilith — Silas sussurra ao pé do meu ouvido, com uma nota
de preocupação —, cabine três, veja.
E falando no Diabo... Por que não me surpreendo com a cena
quando a encaro?
— Se ele está fazendo isso para chamar atenção...
— Conseguiu, Silas — concluo a frase, enquanto observo Athos
na cabine indicada pelo meu segurança. Cruzo os braços na altura
do peito e permaneço onde estou.
Athos, com os olhos em mim, começa a acariciar sua virilha, as
pernas separadas e relaxadas na cama, estendidas para os lados.
Apenas com a camisa social preta aberta e cueca box branca, o
maldito é a própria pintura do teto em meu quarto.
Um anjo na aparência, contudo, por baixo das camadas de pele,
um demônio disposto a me torturar.
— Você não vai dar esse gostinho pra ele — afirma, postando-se
ao meu lado, alternando a atenção quando Athos me chama,
fazendo sinal com o dedo. Como não respondo, Silas respira fundo,
a tensão exalando do seu corpo quase palpável. — Lilith.
— E por que não? — questiono, dando pequenos passos em
direção à cabine, passando pelos clientes em suas mesas. Silas
vem junto, por precaução, mesmo sabendo que dificilmente mudo
de ideia. Paro a um metro da parede transparente, sondando como
as tatuagens que estão expostas ficam embaixo dessa luz. Cada
centímetro dele foi esculpido com zelo, seus ombros largos, a
cintura afinando com o V em destaque e as coxas grossas e bem
torneadas. — Esse espécime é interessante de se provar, Silas.
Acredite, já conferi.
— E eu não sei? — faz um muxoxo com a garganta.
Aprecio o espetáculo com excitação, a céu aberto e feito só para
mim.
A mão dele masturba a deliciosa ereção por cima do pano
branco, em um movimento de vai e vem, passando por todo o
comprimento, noto a peça úmida onde a glande está.
Em pé, cruzo as pernas quando o latejar em meu sexo incomoda
de uma forma boa, ainda tenho vontade de acabar com esse inútil,
mas não sou tola ao ponto de desperdiçar uma oportunidade,
menos ainda quando ela é praticamente esfregada em minha cara.
Athos mexe com os meus sentimentos, brincando entre o ódio e
a luxúria, por isso, assim que me chama outra vez com o dedo
indicador, não penso duas vezes e apenas vou, sem qualquer
resquício de culpa me assombrando.
Ignoro todo o resto ao meu redor e caminho em direção a
entrada da cabine pela parte traseira. Conforme avanço no extenso
corredor, passo por outros casais se satisfazendo diante da plateia
devassa.
No instante que fecho a porta de vidro, Athos se põe de pé,
jogando a camisa social no chão.
A música ambiente muda, dando espaço para uma batida mais
sensual que a anterior.
Bem-vindo ao meu lado obscuro.
Vai ser uma longa noite.
Bem-vindo à minha escuridão, estive por aqui por um bom
tempo.[3]
Paro em sua frente, sentindo meus batimentos acelerarem com a
antecipação, nada disso sendo por estar exposta a tantas pessoas
ou aos funcionários que me cumprimentam diariamente.
Um arrepio prazeroso sobe por minha coluna ao receber o toque
dele em meu ombro desnudo, é tão leve quanto o alçar de um voo
da borboleta. Retribuo o gesto, enganchando meus dedos no
elástico da boxer, movendo-os. Athos ofega baixinho, o sorriso
pervertido ficando ainda maior em seus lábios, tão grande quanto o
volume no meio das pernas.
Eu dreno sua vida até não sobrar nada além dos seus olhos
sangrando.
Eu sou cautelosa, até te mostrar como me sinto por dentro.
Não trocamos palavras, depois da noite no subsolo 3 conversar
parece uma perda de tempo e de prazer. Somos ocupados demais
para tanto desperdício.
Sua mão envolve minha nuca, puxando-me para si, e recebo sua
boca assim que começa a me beijar, ou devorar, sugando todo o
meu ser. A mordida forte em meu lábio inferior retira de mim um
gemido rouco, atravessando a garganta em velocidade recorde.
Eu posso ser sua imprudência, você pode ser a minha mancha.
Eu posso ser seu sofrimento, você pode ser minha vergonha.
Enfio minhas mãos por dentro da cueca e agarro a bunda cheia
de músculos, encostando sua ereção em minha barriga. Ele geme
dentro da minha boca em aprovação e sua mão livre busca pelo
zíper do vestido, impaciente e desejoso.
Movo o corpo, facilitando o acesso ao local sem desgrudar
nossas bocas. Chupo a ponta da sua língua, imaginando ser a
cabeça do seu pau e a suavidade da sua pele é um contraste
perturbador com a aparência demoníaca.
Bem-vindo ao meu lado obscuro, iremos nos divertir um
pouquinho.
Agindo como se eu fosse sem coração, faço isso o tempo todo.
Isso não significa que não estou machucada.
Isso não significa que estou bem.
Afasto-me dele, apenas para deixar o vestido tocar o chão, e a
falta da quentura de sua pele faz cada parte de mim arrepiar com
um frio incômodo me assolando.
Athos, depois de se livrar da cueca, avança em minha direção
como um verdadeiro animal prestes a se fartar com a presa abatida.
Com facilidade, seus braços tiram-me do chão, então enlaço sua
cintura ainda com a calcinha e os scarpins de salto agulha. Minhas
costas tocam a parede de vidro e noto que ele ficou de frente para o
público atrás de mim.
— Você gosta de ser assistida, ficou claro naquela noite, Queen
— afirma contra o meu rosto, nossas respirações pesadas se
igualando. Athos gruda a testa na minha e usa sua força para me
manter no lugar, enquanto suas mãos percorrem minhas coxas, se
aproximando do meu sexo sedento por um toque. Agarro seus
ombros, enlaçando-o como fiz com as pernas, cravando as unhas e
ultrapassando tatuagem e pele. — Eu poderia prolongar o show e
deixar essas pessoas com tanta vontade de estar em nosso lugar
que uma fila se formaria na porta.
Athos usa a ponta da língua para lamber ao redor da minha
boca, deixando molhado o caminho percorrido. Movo o quadril em
busca de contato para aliviar o fogo que me consome com mais
intensidade a cada segundo e o maldito prende-me com mais força
no lugar.
Bem-vindo ao meu...
Bem-vindo ao meu...
Bem-vindo ao meu lado obscuro.
— Foda-se tudo isso, Lilith — Abaixa a cabeça, alternando entre
morder e lamber minha garganta. Seu nariz suga o ar, exalando
meu cheiro e o enviando para dentro dos seus pulmões. Encaro o
teto, dando acesso total para degustar outra vez do melhor
banquete que já comeu. — Você é a pior droga que já experimentei,
sabia?
Athos brinca com o mamilo entumecido ao morder a ponta, me
fazendo delirar, ele faz o mesmo com o outro enquanto suas mãos,
movidas pela necessidade e luxúria, rasgam a pequena calcinha.
Seu rosto sobe novamente e ele gruda os lábios em meu ouvido.
— A droga mais viciante e deliciosa... tão boa que passei os dois
últimas dias me masturbando com sua imagem na porra da minha
cabeça.
— E porque não me procurou, se estava tão sedento, chefinho?
— Seguro sua cabeça para observar a fisionomia devassa em seu
limite.
Athos deixa um riso frouxo escapar, então lambe os próprios
lábios, me comendo com os olhos.
— Você sabe o que um viciado faz antes de se afundar de vez
no vício?
Seus dedos separam meus lábios úmidos e tocam o clitóris
sensível, me fazendo soltar um gemido aflito, pedindo por mais, e
ele ri ensandecido. Sinto o suor acumulando nas laterais do rosto,
enquanto meu coração perde o descompasso de vez.
Athos continua:
— A gente tenta fugir, correr pra longe, se esconder dessa porra
de necessidade que cresce, e cresce, e cresce, e não parece ter
fim.
Ele enfia dois dedos de uma vez, alargando-me para recebê-lo.
Tento mover o quadril e ditar o ritmo que eu quero, mas Athos
prende meu pescoço com a mão livre, mantendo-me no lugar.
— Você é a pior droga que experimentei, Lilith, porque precisou
de um único contato pra me enlouquecer e viciar a porra do meu
pau, que só quer estar enterrado nessa boceta quente e molhada,
ou no seu cu apertado e delicioso.
Ele move os dedos em um vai e vem rápido, minha lubrificação
criando um som fascinante. Os orbes azuis avaliam as emoções
marcando meu rosto, o prazer queimando-me de dentro para fora e
os intensos gemidos que escapam.
— Depois dessa noite... depois de alimentar o vício dentro de
mim, não tem mais volta... serei seu, Queen, somente seu, e você
será completamente minha.
Seus dedos deixam um espaço vazio ao se afastarem de
repente. Agarro seus fios úmidos, cravando as unhas no couro
cabeludo, e Athos sorri mais, fascinado enquanto mantem a atenção
fixa em mim.
— Só minha, Lilith, e eu odeio compartilhar o que é meu... —
rosna no momento em que me penetra com força, tirando um grito
de aprovação. — Eles podem ver, mas só eu vou te tocar e foder
essa boceta molhada.
Aperto seu quadril com mais força, utilizando as pernas para
encaixar melhor a ereção pulsante dentro de mim. Ele começa a
aumentar a velocidade das estocadas, fazendo minhas costas
baterem na parede de vidro.
Se o material não fosse de qualidade, já estaria trincado
tamanha a força que Athos utiliza.
Seus dedos se fincam em minha bunda, abrindo-me para a
plateia atrás de nós como em demonstração do que falou. Rebolo
em seu pau, o levando mais fundo, até o limite, aonde minhas
paredes internas conseguem abraçá-lo e envolvê-lo com gana.
Sentindo como me preenche em um encaixe perfeito.
Quando você estiver se sentindo descuidado.
Quando você estiver se sentindo acorrentado.
Quando não há nada além da dor.
Bem-vindo ao meu lado obscuro.
Grudo nossas bocas e respiramos o mesmo ar, sem intervalos,
nos fodendo. As íris azuis praticamente desapareceram diante das
pupilas dilatadas ao máximo. Sorrio entre gemidos e a vontade
avassaladora de fechar os olhos para apenas sentir, aproveitar, mas
não faço.
Mordo o lábio inferior assim que alguns espasmos percorrem
meu sexo e sobem pela coluna, avisando que estou muito perto de
gozar. Notando o mesmo, Athos soca ainda mais forte em um
comando ausente de palavras, me dizendo que ele quer isso, me
quer desmanchando ao redor do seu membro duro como pedra.
Jogo a cabeça para trás diante da potência dos tremores que
tomam todo o meu corpo enquanto gozo de forma intensa, mas não
tenho tempo para saborear essas sensações, Athos logo nos
desconecta apenas para me virar de frente para a plateia.
Espalmo as mãos no vidro embaçado, tentando me manter em
pé em cima desses saltos, com as pernas bambas e com os meus
fluídos escorrendo pelas coxas, então ele enrola meu cabelo ao
redor do seu punho, puxando-me para si, enquanto a glande
encosta na entrada no ânus.
— Olhe, Lilith, quantas pessoas estão prestando atenção na
gente — sussurra em meu ouvido, depois lambe o lóbulo com
lentidão. Seu pau começa a se mover, entrando aos poucos,
obrigando esse espaço apertado a ceder um lugar.
Passeio meus olhos pelos clientes espalhados pelo terceiro
andar, a maioria assiste ao nosso humilde show com as feições
extasiadas.
No bar, encontro Boss parado atrás de Kai, sua boca se
movendo enquanto fala algo para o atendente, os braços do
tailandês seguram o balcão, deixando Kai preso entre seu corpo e a
madeira.
Deixo de prestar atenção assim que Athos estoca até o fim em
um encaixe deliciosamente perfeito.
— Minha! Você é minha, Queen... — Seu braço envolve a minha
cintura, mantendo-me no lugar, então ele se move com a mesma
velocidade que estocou minha boceta. — Vamos fazer o final desse
show ser inesquecível...
— Com certeza, chefinho, mas eu não sou sua e nem de
ninguém além de mim mesma.
Empino mais a bunda para recebê-lo até o fundo, engolindo cada
centímetro da sua devassidão. O puxão em meu cabelo me faz
inclinar a cabeça, o olhar fixo no teto da cabine e mais um gemido
arrastado sai dos meus lábios quando Athos morde meu ombro,
sem pausar as estocadas.
Lágrimas tomam minha visão, sentindo dor e prazer ao mesmo
tempo, preenchendo essa necessidade obscura que há dentro de
mim.
— Você é minha!
Excita-me essa certeza idiota de Athos, chega a ser revigorante,
criando mais chamas em meu sexo sensível e encharcado.
Saboreio seu toque, a aspereza da língua sendo arrastada sobre
a mordida, o arrepio tomando minha pele. Homens sendo homens,
acreditando que nos possuem como objetos.
Meus gemidos se entrelaçam com um riso inevitável conforme
meu corpo se movimenta junto com suas investidas. Meus seios
pequenos acompanham o ritmo ensandecido, os mamilos duros
apontando para os clientes.
Quando Athos compreender que sou eu quem o está usando
para benefício próprio, será tarde demais, não há espaço para
arrependimentos na trajetória que tracei para Lilith.
De fato, adestramentos são incríveis e foi mais fácil do que
imaginei, como roubar o salário-mínimo de um aposentado distraído
em frente ao banco. Enquanto isso, permito que acredite em sua
interessante fantasia, na ideia de que me tem em suas mãos.
Mas você vai ver quando alguém te deixa desse jeito.
Bem-vindo ao meu lado obscuro.
Seus dedos tocam meu clitóris sem pausar os movimentos
alucinados e meu corpo responde de imediato. Athos ampara meu
tronco assim que começo a gozar com força, perdendo o equilíbrio
das pernas na sequência.
Fecho os olhos sentindo sua porra quente sendo despejada
dentro de mim assim que goza, seus gemidos roucos ao pé do
ouvido eriçam meus pelos mais uma vez.
Bem-vindo ao meu lado obscuro, chefinho. Divirta-se enquanto
pode, pois isso entre nós não vai durar a vida toda e sua abstinência
será dolorosa .
CAPÍTULO 21
Termino de comer meu fettuccine com cogumelo paris, em frente
ao meu MacBook vermelho. Mais de dez páginas abertas enquanto
faço algumas pesquisas, como tentar descobrir quem era o homem
– os homens – e, pela quarta vez, desde aquela noite, não encontro
nada, mesmo usando alguns recursos na deepweb.
O convidado usou nome falso e os seus documentos pareciam
novos, porém utilizados em outras ocasiões. Foi preparado para
isso e, cada dia sem uma resposta concreta, além de me irritar, me
desperta uma curiosidade desagradável.
Limpo os lábios no guardanapo branco, antes de afastar o prato
e arrastar o aparelho para perto. Seguro o cabo da taça, fazendo o
vinho se mover e criando um pequeno redemoinho no centro,
encosto a borda no lábio inferior e degusto o meu Cabernet
Sauvignon, que desce com suavidade pela garganta.
Olho para a garrafa pela metade e ainda estou longe de me
sentir minimamente embriagada, no mínimo duas dessas me tiram
da linha, o que não vai acontecer.
Parece que estou vivendo em um estado de alerta ininterrupto e
cansativo, como se algo que realmente importasse estivesse a
ponto para acontecer, uma bomba prestes a explodir bem na minha
frente e eu não conseguisse desarmar o sistema.
Silas tem razão, preciso retomar o controle e focar nos próximos
passos para alcançar um objetivo traçado há anos.
E, para que isso aconteça, nada de sexo entre mim e Athos, por
mais que seja bom. Foder com o inimigo possui um gosto peculiar,
quase viciante, principalmente com tantas pessoas nos assistindo.
Foi prazeroso estar em seus braços e ser consumida pelas chamas
do inferno, ainda mais estando ciente de que ele poderia ignorar
toda aquela gente e tentar contra mim, me matar enquanto me fodia.
O errado, o proibido e o inaceitável sempre serão mais
interessantes do que o puro ou o certo.
O perigo é o meu combustível, foi assim desde o começo,
quanto mais impróprio, maior se torna a minha necessidade de
entrar no bueiro e me sujar na podridão.
A tela do meu celular acende no instante em que faz a mesa
vibrar duas vezes seguidas e o nome de Silas aparece na barra de
notificações. Bebo o restante do vinho na taça e desbloqueio o
aparelho, para conseguir ler as mensagens completas.
Silas: Roberta está aqui no andar um, não sei o que ela disse
para o Athos, mas ele parece querer matar a mulher.
— Interessante... — sussurro depois de bloquear a tela sem
respondê-lo. Desligo o MacBook e me levanto mais dispostas do
que estava minutos atrás. — Se o circo está pegando fogo, quero
estar na grade de proteção assistindo ao espetáculo.
Vestindo calça e blusa de moletom, além do tênis preto, subo
para o andar citado por Silas.
Encaro-me no espelho do elevador, penteando as mechas
onduladas do meu cabelo com os dedos, meus lábios carregam
uma coloração mais intensa por conta do vinho, quase como um lip
tint. Uma pena meu chefinho não poder mais apreciar.
Meus dentes alinhados ficam visíveis, o sorriso satisfatório
moldando minha boca. As portas do elevador se abrem e a parca
felicidade é escondida em meio a uma fisionomia taciturna. Mal
entro no primeiro andar e ouço a voz exasperada de Athos perto de
uma pilastra decorativa.
— Porra, Roberta, já disse que não! — Ele anda de um lado para
o outro mirando o piso.
Diferente da outra vez, a mulher não parece incomodada, reparo
em sua expressão assim que ela entra em meu campo visual: ela
não abaixa a cabeça e nem aparenta medo, o que é estranho.
Silas, com as mãos cruzadas nas costas, se mantém afastado,
de olho em tudo o que acontece, até me notar e o seu leve menear
negativo de cabeça é um aviso para eu não me envolver. Se não
quisesse de fato isso, não teria me avisado.
Paro ao lado de Roberta e o perfume adocicado que exala do
seu corpo é horrível. Ela está usando um cropped e calça de cintura
alta, ambos vermelhos e de couro sintético laminado, e nos pés uma
bota preta, parece que ela vai se apresentar.
Ao menos, nossas strippers se vestem com classe.
O rabo de cavalo está tão esticado nas laterais que causa um
lifting natural ao redor dos olhos maquiados com sombra preta, e os
cílios postiços mais parecem duas aranhas bizarras.
— Linda como sempre, Roberta — falo devagar, atraindo sua
atenção para mim. — Depois me passa o nome da loja.
Pisco para ela, usando todo o meu lado angelical. Quer dizer, se
eu tivesse um, o usaria.
— Lilith — O esgar em seus lábios preenchidos não passa
despercebido por mim e seu olhar desce por minhas roupas, não
preciso de uma bola de cristal para saber que detestou —, não acho
que combina com o seu tipo, sabe?
— Tem razão! — Toco seu ombro, arqueando as sobrancelhas,
então me aproximo do seu ouvido e digo baixinho: — Talvez,
quando eu tiver a sua idade, use essas fantasias ridículas. Moletom
combina mais com pessoas jovens, o que não é o seu caso, mesmo
depois de tantos procedimentos.
Baixinho, sim, mas não o suficiente para Athos e Silas não
ouvirem. O primeiro ri descaradamente do semblante raivoso da
mulher, já o outro simula uma tosse falsa, para abafar o riso.
Afasto-me, pois não quero ser contaminada por ela e mantenho
as mãos dentro dos bolsos, alternando o olhar entre ele e ela.
Athos franze o cenho, voltando para a realidade em questão de
segundos, porém os orbes azuis varrem meu corpo como se eu
estivesse nua.
Como se estivéssemos dentro da cabine outra vez...
Preciso manter o foco, agarrar a frieza natural que há em mim,
mesmo vestida dos pés à cabeça os pelos em minha nuca se
eriçam ao recordar do toque de seus dedos grandes e tatuados
acariciando e me fodendo.
É fácil e deliciosamente pecaminoso ceder a ele.
— Você se diz tão esperta, mas pelo visto já deu pra ele, Lilith.
— Roberta é rápida e perspicaz, por isso ainda se mantém como a
aliciadora mais famosa no submundo. Centenas de meninas já
caíram em sua lábia com a promessa de dinheiro e fama, há várias
que nunca mais foram vistas.
Eu sou uma das meninas aliciadas por ela, mas diferente das
outras, entrei nesse meio ciente dos perigos, com um precioso
objetivo em mente: vingança.
“Olá, mocinha, qual é o seu nome?” Perguntou, fingindo um
sorriso entre os dentes amarelados pelo cigarro. Cruzei os braços
na altura do peito e fui direta para não perder tempo.
“Quanto vou ganhar por noite?” Ela arregalou os olhos,
realmente surpresa. “Não sou igual a elas” Continuei, apontando
para um grupo de meninas entre quinze e dezesseis anos.
Devagar, a mulher com cabelos pintados de vermelhos – tão
desbotados que pareciam quase a água da salsicha depois de lavar
– sorriu de verdade. Acompanhei suas mãos, com muitas veias
aparentes, as unhas descascadas ainda segurando uma parte da
esmaltação preta, pegar um cigarro na bolsa.
“Tem quantos anos?” Questionou antes de acender o cigarro e
retruquei. “Como se isso importasse pra você, mas fiz dezoito
semana passada...”
“Ainda é virgem?” A mulher finalmente tocou no assunto que a
deixaria feliz. Meu contato havia me informado sobre tudo, então me
aproximei da cabeça de salsicha e puxei o cigarro para mim e,
depois de tragar profundamente e deixar a fumaça escapar pelo
nariz, sorri. “Quer apostar quanto?” O olhar minucioso passou por
cada centímetro do meu corpo. “Não vendo minha virgindade por
menos que dez mil.”
Ela gargalhou alto o suficiente para chamar a atenção alheia,
então repousou a mão ossuda em meu ombro. “Garota, você vai
longe...”
“Tão longe que um dia vou roubar o seu lugar.” Gargalhando da
minha promessa, a mulher pegou de volta o cigarro e fumou por
longos minutos, sem tirar os olhos de mim.
“Vem comigo” Ela mandou e eu fui...
Em que local melhor do que esse mundo sujo da prostituição eu
poderia obter informações pertinentes? Qual é o preço de uma
vingança?
Até agora, o valor que paguei foi perder a inocência, a juventude
e a minha integridade. Sei de muita sujeira que é colocada debaixo
do tapete todos os dias, mas optei pelo silêncio. Fingir não ver, não
ouvir.
Expiro pelos lábios entreabertos enquanto caio na real, outra
vez.
Sou tão suja quanto ela.
Roberta e eu somos farinha do mesmo saco.
— Até que não foi ruim — cantarolo, enfim respondendo sua
observação. Athos não se incomoda, ao contrário, sorri com gosto
para mim. Assim que os seus olhos enigmáticos recaem em
Roberta, o semblante consternado retorna. Esse clima estranho
deve ser melhor que a novela das nove, se eu a assistisse para
confirmar. — Sobre o que estavam falando? — Aproveito a deixa
para sondar o território. — O encontro não parecia amistoso quando
cheguei...
— Não é assunto que te interessa, Queen — me corta, sua voz
adquirindo uma frieza que me deixa ainda mais curiosa.
Olho para Roberta em busca de respostas e um sorriso
descarado estampa seu rosto em provocação. O que a trouxe até
aqui incomoda Athos e a deixa ousada o bastante para não temer.
— Se estiver relacionado à Babilônia, é do meu interesse sim,
chefinho.
— Não está — avisa, dando um passo em minha direção. Se ele
esperava sentir o cheiro do meu medo, se enganou. A cada
segundo, a motivação para saber o que estão escondendo aumenta.
— Então...
— Dependendo do ponto de vista, sim. — Encaro Roberta, que
enrola uma mecha de cabelo no dedo indicador. Seus olhos brilham
contra os reflexos das lâmpadas, e ela parece realmente pensativa,
as engrenagens se movendo ao seu favor, é claro. — Acho que
Lilith poderia...
— Cala a boca! — Assusto-me com o grito estridente de Athos.
Na verdade, Roberta e Silas também se sobressaem, e pela
primeira vez enxergo raiva no olhar dela.
Observo o peito dele mover com rapidez, sua face rubra,
enquanto as narinas se expandem. Seus cabelos ficam ainda mais
bagunçados quando esfrega as mãos na cabeça.
— Nós vamos viajar esse final de semana — Roberta informa,
ignorando o perigo no olhar dele.
— Nós...
— E você é a nossa convidada de honra, Lilith! — exclama,
passando seu braço ao redor dos meus ombros, mas de olho em
Athos.
— Vai se arrepender disso, vagabunda — ele rosna, cerrando os
punhos.
— Não é você quem manda nisso, querido Athos. — A ousadia
de Roberta ganha uma grande porção enigmática, atiçando-me.
Dizem que gatos possuem sete vidas. Agora, vou descobrir se
humanos também ganharam essa dádiva.
— Eu vou — anuncio sem perder um gesto de Athos.
— Lilith! — Silas se aproxima e sua voz não esconde a
preocupação.
— Não vai, não se eu puder evitar essa merda, Queen — rosna
contra o meu rosto antes de abandonar o local, trombando seu
ombro no meu.
Roberta ri com gosto, batendo palmas.
— Esse final de semana será o mais divertido da sua vida, Lilith.
— Não a olho, mantendo a atenção em Athos sumindo de vista.
Não sou burra, está mais claro do que um céu limpo e sem
nuvens que nada de bom essa viagem trará, mas estou na Babilônia
justamente para chegar até a ponta dessa corda. Até encontrar
todas as respostas.
— Você vai adorar, Lilith — Roberta exclama e enfim a encaro.
Seu rosto carrega uma felicidade predatória e mortal.
— Para onde vamos?
— Lilith! — Ergo a mão, calando Silas no aguardo da resposta
dessa víbora.
— É surpresa, queridinha. — Roberta se aproxima, acariciando
meus cabelos e o ajeitando ao redor dos ombros. Os orbes verdes
estão fixos em mim, mesmo ela usando salto sou mais alta e a
encaro de cima a baixo. — Essa viagem é o meu presente pra você
depois de tantos anos, o melhor presente da sua vida — sussurra,
deixando à mostra suas presas nojentas.
Mostro as minhas também, sem um resquício de felicidade em
mim, e permanecemos em silêncio, as milhares de palavras não
ditas nos rodeando.
Pouso minha mão em cima da sua, apertando com firmeza até
as juntas ficarem brancas e o rosto de Roberta rubro.
— Obrigada pelo presente, Rorô...
— Mas ainda nem sabe o que é... — contesta ao tentar se
afastar, mas não permito.
— Não preciso disso. — Desço minha cabeça até as nossas
testas se tocarem e, pela primeira vez no dia de hoje, seus malditos
lábios tremem. Acompanho o peito dela se mover com rapidez, o ar
escapando em lufadas. — Confio em você e, quem sabe, no final da
viagem eu possa te presentear também.
Quem sabe com uma passagem só de ida para o inferno? Só
que ela não precisa saber disso agora.
O odor da sua confiança, transformada em medo, é o elixir mais
satisfatório que eu poderia beber.
De fato, será um final de semana interessante.
decadência
1. estado do que está começando a se degradar e se
encaminha rapidamente para o fim, para a ruína.
CAPÍTULO 22
O cantarolar ressoa no quarto através da boca fechada, emitindo
sons incompreensíveis e notas desafinadas, forçando a garganta. A
rouquidão acentuada denota o tempo gasto nesse gesto antigo, um
velho hábito abandonado no caminho e que, de alguma forma,
recordou nessa manhã cinzenta e fria.
O céu carregado de nuvens bloqueiam o sol e é o prenúncio de
uma intensa tempestade, como se a mãe natureza estivesse prestes
a chorar um lamento doloroso e cruel.
Hum, hu-um, hum...
Seu corpo se move no mesmo ritmo, indo para frente e para trás
na cadeira de balanço, rangendo um pedido de socorro.
Os olhos cerrados observam as árvores no lado de fora,
contemplando o começo da ventania sacudir os galhos, espalhando
folhas secas para longe.
As mãos enrugadas permanecem uma sobre a outra em cima do
colo, e ela está usando a costumeira saia marrom.
Na mesinha perto de mim está o prato de sopa quase intocado,
agora com as beiradas endurecidas e geladas. Ela disse que estava
sentindo o estômago ruim e, pelo que a enfermeira repassou, desde
ontem não se alimenta direito.
— Se agasalhe bem, minha filha. — Dona Jussara diz de
repente, sem tirar a atenção da paisagem. Os lábios enrugados
formam uma linha fina de preocupação. — Vai cair uma chuva forte
daqui a pouco — avisa, usando do seu conhecimento adquirido nas
décadas que passou nessa terra.
Inclino-me para frente e toco em seu joelho, acarinhando o local,
então recebo um sorriso capaz de iluminar qualquer ser humano,
até mesmo os cobertos por uma grande camada de escuridão como
eu.
— Não se preocupe comigo, estou bem protegida. — Aponto
para as roupas de couro que uso. Seus olhos observam com calma
meu corpo, conferindo cada parte, como sempre. — Já sei o que vai
falar...
— Nunca usa branco, Daiane. — Acabo rindo, pois a conheço
melhor do que ninguém e aguardo pelo gran finale. — Vai deixar
para usar branco só no dia do seu casamento?
— Ah, dona Jussara! — Finjo estar aborrecida e um biquinho se
forma em minha boca. — Os homens de hoje não são mais como os
de antigamente, sabe? Nenhum presta!
Ela ri, erguendo levemente as sobrancelhas brancas e ralas,
movendo a cabeça em discordância.
— Ai, menina, você não muda mesmo. — Repousa a mão por
cima da minha. A pele áspera e cheia de calos é a melhor que pude
conhecer em toda essa trajetória conturbada que a minha vida se
tornou. Talvez seja dessa forma desde o meu nascimento. Há
pessoas que não nasceram para vivenciar a felicidade, apenas
tribulações, sofrimentos e tragédias.
Suiane foi uma delas.
Qual o sentido em criar algo somente para acompanhar a sua
decadência? A desgraça? Uma criança sendo manchada com a
sujeira do mundo?
Quanto mais reflito sobre essas questões, mais me afasto de
qualquer crença que deposite totalmente a sua fé em um ser puro,
benigno, como dizem, misericordioso e amável. É ultrajante pensar
que o divino permita tanta degradação e tanto sofrimento em almas
tão inocentes.
— Moça... — a voz arrastada e insegura de dona Jussara me
puxa desse limbo de pensamentos em que entrei.
No instante em que volto a prestar atenção em seu rosto, noto
uma singela diferença nas feições marcadas pelo tempo. Ela sorri
para mim, assim como me observa como se fosse a primeira vez.
Aprumo a coluna e seguro com mais força sua mão, sem machucar.
— Dona Jussara, tudo bem com a senhora? — sondo com
cuidado a idosa em minha frente. Ela anui em concordância,
sorrindo muito, mas não responde. O olhar manso se volta para a
paisagem do lado de fora, admirada com o tempo. — Dona
Jussara...
— Vai chover — diz em um ímpeto e tenta se levantar, então
seguro em seu braço, dando apoio ao corpo frágil e trêmulo. —
Daiane sempre esquece o guarda-chuva, ela não pode sair assim...
— Dona Jussara — chamo com mais firmeza a senhora parada
diante de mim, atordoada. — Estou aqui, a Daiane, veja! — Aponto
para o meu rosto e dou o meu melhor sorriso, mesmo que algo
dentro de mim queira se partir. — Sou eu, dona Jussara, a sua
Daiane.
— Minha Daiane — repete, fazendo uma avaliação minuciosa, a
dúvida presente em sua face.
— Sim — sinto dificuldade em elaborar uma frase maior quando
o bolo em minha garganta ocupa todo o espaço, cortando o ar que
deveria ser direcionado aos pulmões. Enxergo a única pessoa
preciosa para mim através da visão embaçada —, sou eu...
— Socorro! — Dona Jussara grita tão forte para a sua condição
que me assusto, dando um passo para trás. Ela retorna para a
cadeira, encolhendo-se e cobrindo o rosto com as mãos. — Alguém
me ajuda... cadê minha Daiane?...
Abro a boca, na tentativa de encontrar algo que a acalme, que
não a faça sofrer, e só deparo-me com o vazio, com o nada.
Como se estivesse em frente à TV, assisto as enfermeiras
entrarem, sabendo como agir em situações semelhantes. O médico
que a atende há anos havia me alertado e preparado para tal
momento.
Acreditei que seria muito mais fácil manter a postura e o controle
quando Jussara começasse a me esquecer.
— Eu quero a Daiane. — Chora enquanto é colocada com
cuidado na cama e a saia marrom desaparece assim que uma
coberta esquenta seu corpo. Movo as pernas, pronta para tentar
uma aproximação sem causar medo nela, porém estanco os
passos. — Daiane!
Olho para a porta, local em que dona Jussara aponta, e uma das
enfermeiras que trabalha aqui entra sorrindo.
A profissional, acostumada e treinada para isso, entra no
personagem com facilidade, a moça se senta ao lado de Jussara na
cama e pega suas mãos, acariciando.
Os sons ao meu redor parecem disformes e confusos enquanto
assisto as bocas se moverem criando frases e mais frases, no
entanto, não consigo compreender. Está além da minha percepção,
da mesma forma que seria se eu estivesse embaixo d’água.
— Minha filha! — Dona Jussara segura o rosto da enfermeira
entre as mãos, feliz por estar comigo. — Não esquece o guarda-
chuva, viu? Vai chover daqui a pouco, Daiane.
Respiro fundo, obrigando meu corpo a cooperar, pois não posso
perder o controle dessa maneira.
Essa senhora precisa de mim, ainda que agora não se recorde.
Não existe qualquer possibilidade que me faça desistir da pessoa
que cuidou da pequena Daiane quando perdeu tudo. A palavra
opção não faz parte do meu dicionário em relação à dona Jussara,
cuidarei dela até o fim da sua vida ou da minha, se esse momento
chegar primeiro.
Permaneço aonde estou, próxima da porta, enquanto a vejo
adormecer sob os cuidados das enfermeiras. As profissionais falam
e falam comigo, contudo não absorvo as palavras, só observo o
lencinho na cabeça adornando seu rosto relaxado.
No bolso da jaqueta meu celular vibra, sinalizando a chegada de
uma mensagem. Tiro os olhos dela por alguns segundos e leio o
nome de Athos na barra.
A última vez que nos falamos foi há três dias, durante a visita de
Roberta, depois foi como se eu não existisse.
Desbloqueio a tela, curiosa para saber o conteúdo dessa
mensagem, a primeira que me envia.
Athos: Me encontre aqui, precisamos conversar.
Sua localização em tempo real pisca diante de mim e a praia não
fica longe de onde estou. A viagem está marcada para amanhã,
sairemos da Babilônia antes de o sol nascer, o que me faz concluir
que o destino é aqui mesmo no país.
— Dona Jussara está descansando, não se preocupe, Daiane.
— A enfermeira mais velha se posta ao meu lado e sorri
complacente. — Você também deveria fazer o mesmo. Vamos
cuidar dela muito bem — afirma.
Sondo a senhorinha deitada na cama, toda coberta e com o
rosto tranquilo. O nó em minha garganta permanece, no entanto,
consigo driblá-lo e controlar minhas emoções.
Aperto o celular entre os dedos e aprumo a coluna sem desviar a
atenção dela.
— Qualquer coisa...
— Ligaremos na mesma hora. — A enfermeira repousa sua mão
em meu ombro, em sinal de consolo. — Vá para casa antes que
comece a chover forte do jeito que ela falou.
Tento sorrir diante de tal argumento, mas acabo fazendo uma
careta. Através da janela é possível enxergar as árvores movendo-
se mais rápido a cada instante, conforme o vento se intensifica.
De fato, uma grande tempestade se aproxima com velocidade e
não estou falando do tempo.
Caminho até a cama e me abaixo para depositar um beijo em
sua testa macia.
— Vou viajar esse final de semana, mas segunda venho ficar
com a senhora, viu? — sussurro a promessa, lutando contra a
vontade avassaladora de chorar, algo que há anos não faço. Talvez,
deparar-me com a sua fragilidade e a idade avançando sem
piedade, me torne mais humana e menos o monstro horroroso que
escondo atrás dessa máscara. — Até segunda. — Me afasto da
cama enquanto a minha vontade é o contrário disso.
Despeço-me das enfermeiras e percorro o extenso corredor da
clínica, deixando meu coração com a única pessoa em quem confio.
Assim que meus pés tocam o chão ladrilhado apenas Lilith se faz
presente, só preciso dela para enfrentar a fera que me aguarda e
descobrir o porquê de me chamar para uma conversa tão longe da
empresa.

Deixo o capacete em cima da moto e caminho até o lugar aonde


ele se encontra parado, contemplando o dia virar noite. Parece que
hoje todos decidiram prestar atenção no clima.
Assim como eu, Athos veste preto da cabeça aos pés, a calça
jeans escura por dentro de um coturno fosco, afundado até a
metade na areia. Enquanto fuma seu baseado, o cheiro não
deixando dúvidas para mim, sua aparência me faz lembrar de filmes
passados em faculdades.
Jaqueta grande, os cabelos esvoaçando ao vento e a pose de
quem não liga para merda nenhuma. Um típico badboy, que
conquistaria a mocinha nas primeiras páginas de um romance
meloso.
Paro ao seu lado e o azul dos seus olhos está sombrio como o
céu fechado acima de nós.
Um raio cai não muito longe de onde estamos, clareando tudo ao
redor, o que me faz notar o vermelho tingindo o espaço branco em
seus olhos.
Coloco as mãos dentro dos bolsos da jaqueta e permaneço em
silêncio, nos encaramos por longos segundos na beira do rio, com
as águas agitadas respingando em meu rosto.
— Esquece a porra dessa viagem, Lilith — diz, taciturno e
convicto. O uso do meu nome, sem o deboche e o apelido idiota
presentes, é mais um item para ficar atenta. Athos joga o baseado
no rio e coloca as mãos na cintura. Seu rosto tem uma expressão
neutra que não me permite decifrar as emoções presentes, então
recorro aos gestos, ao mover do seu peito por baixo da jaqueta.
Uma incógnita. — Confie em mim e fique na Babilônia.
Meus ombros balançam quando uma risada ressoa entre nós.
Olho para a areia e arrasto a ponta da bota na superfície, criando
um montinho que o vento desmancha em seguida.
— Confiar em você — repito, antes de erguer a cabeça e encará-
lo. — Por que eu faria isso? Acreditar na pessoa menos confiável
daquela empresa?
Mais um relâmpago corta o céu com força, trazendo os primeiros
pingos de chuva. A demora em responder me ajuda a avaliar suas
atitudes e é como se ele estivesse sopesando a situação, decidindo
os próximos passos.
— Precisa me dar um motivo muito convincente pra me fazer
mudar de ideia...
— Sou daltônico — joga a informação em meu colo e não espera
por uma resposta —, mas isso você já sabia — conclui.
Elevo as sobrancelhas e anuo com a cabeça.
— Digamos que você fala demais quando está bêbado, quer
dizer, chapado. — Sua face neutra e o corpo estático não ajudam,
então dou um passo, me aproximando. — E contar o seu
segredinho não me faz confiar em você, Athos.
— Em qualquer outra ocasião se confiasse em mim seria uma
tola, mas isso, Lilith — diz entredentes, abaixando a cabeça e quase
tocando nossas testas. Seu hálito ainda carrega o cheiro do fumo,
agora misturado com o de areia molhada, enquanto o céu começa a
desabar em nós —, vai se arrepender amargamente...
— Está me ameaçando, seu maldito?
— Estou tentando te salvar, sua desgraçada — grita acima do
som da chuva e sondo seu rosto encharcado, enfim demonstrando
alguma reação. Não há raiva em seus olhos, apenas medo, e essa
constatação faz minhas pernas vacilarem. Athos agarra minha
cintura, colando nossos corpos, e sinto como treme. Repouso as
mãos no peito definido por cima das camadas de roupas e, mesmo
assim, consigo notar o coração descompassado. — Meu daltonismo
é do tipo protanopia, a porra do pigmento vermelho é ausente, e o
que enxergo aqui é uma pele acinzentada e muito preto. Seus lábios
são uma mistura de cinza e verde, Lilith. Nem a porra da cor dos
seus olhos eu sei, caralho! — Amasso o tecido da jaqueta entre os
dedos, segurando-me com mais força e, pela primeira vez na vida,
realmente assustada com o que vejo. — Para apimentar as coisas,
Deus deve ter apontado pra mim enquanto ria e decidia colocar a
porra de um glaucoma no meu olho direito, esse mesmo que você
sempre observa quando fica muito vermelho, o que é engraçado, já
que nunca vi a merda dessa cor.
De boca aberta, não desvio a atenção dele, assimilando suas
últimas palavras. O quebra-cabeça que Athos é enfim se montando
aos poucos e suas atitudes tornando-se repletas de sentido. Cada
peça tomando o lugar que lhe pertence.
A embalagem do colírio, a obsessão por globos oculares, sua
sensibilidade excessiva à luz.
— Mesmo assim... — Meu lábio inferior treme devido ao frio que
a densa chuva causa.
— Mesmo assim, isso não é o suficiente pra você acreditar em
mim — constata, me abraçando com mais força, uma tristeza
palpável tomando sua face molhada.
— Por que tá fazendo tudo isso só pra eu não ir, Athos? Por
acaso começou a se importar comigo? — Soco o seu peito com as
duas mãos, o restante de autocontrole se esvaindo.
— Sim, Lilith! — grita ainda mais alto do que antes, de olhos
arregalados em desespero. — Eu me importo com você na mesma
medida em que tenho vontade de te matar.
— Isso não faz sentido...
— Nada nessa merda de situação faz sentido, caralho! — Athos
envolve minha cabeça e vai afastando as mechas encharcadas,
nossas respirações irregulares em sincronia. — Só não vá, por
favor...
— Me conte a verdade, então — peço, enfim sopesando sua
súplica. Sinto-me atordoada com a verdade em seu rosto, o medo
genuíno que só vi em dona Jussara e, no fundo da minha memória,
Suiane. — Athos.
— Não posso — murmura como se estivesse sentindo dor ao
falar. Observo sua boca tremer e escuto os dentes trincados. A
chuva não me ajuda a discernir se são gotas ou lágrimas
percorrendo a face conturbada. — Eu não posso... não dá, Lilith.
— Você está sendo ameaçado? — Ele desvia seus olhos de
mim, encarando o céu, ainda que a força da chuva machuque sua
pele. — Athos? Você não pode me contar por isso? — Volto a
esmurrar seu peito quando evita me responder, a necessidade de
uma resposta convincente quase me faz sufocar porque, de certa
forma, também me importo com esse maldito e não sei lidar com as
estranhas sensações dentro de mim. — Athos!
Agarro a gola da sua jaqueta, o forçando a me encarar outra vez.
Esse descontrole só pode estar relacionado ao que presenciei com
dona Jussara hoje, não há outra explicação para a avalanche de
sentimentos que me oprime e que envolve cada centímetro do meu
corpo, assim como a água atravessando as roupas, se infiltrando
em meu ser.
Os orbes azuis, mais lindos do que tudo que já pude ver, me
sondam através de uma neblina de medo e dor.
Muita dor.
— Athos...
Não tenho tempo para concluir a frase quando seus lábios
encontram os meus.
Urgentes, dominadores.
Uso o seu corpo para me escorar assim que as minhas malditas
pernas fraquejam, retribuo o beijo na mesma intensidade, mesmo
sabendo que ele está fazendo isso para fugir da pergunta. Ao
menos, uma delas é respondida quando sinto o salgado das suas
lágrimas entrando em minha boca, misturadas com a chuva.
De certa forma, ainda que o odeie desde o dia em que nos
conhecemos e por toda a sua arrogância, dói compreender que está
sofrendo. A cada segundo meus sentimentos tornam-se mais
confusos, entrando em conflito.
Um cenário que não estou acostumada a lidar, acho muito mais
fácil nutrir e trabalhar com o ódio, a repulsa e até mesmo a
indiferença. Ainda que eu tenha recebido só amor daquela
senhorinha, minha vida como Lilith não permitiu envolvimentos além
dos carnais.
Sou nova nisso, quase uma adolescente descobrindo a primeira
paixão, ainda que essa esteja nascendo de maneira perturbadora e
nada comum.
Em questão de duas semanas a presença dele me
desestabilizou, mesmo com todo o treinamento recebido. Athos e
toda a sua bagagem são coisas que não posso e nem tenho tempo
de lidar agora.
Assim como essa tempestade tomando tudo, transformando o
dia em noite em questão de minutos, ele é assim, Athos é essa
chuva forte, passando por cima de tudo sem pedir passagem,
inundando o caminho.
Só por isso recuo, pois não posso me permitir ser imergida em
sua turbulência. Não devo me afogar em suas águas densas e
obscuras, as minhas já são sufocantes o suficientes.
Dou um passo para trás, cortando nosso contato e pondo um fim
no beijo que deixou meu interior em chamas, enquanto por fora me
sinto congelar.
Respiro de boca aberta, puxando lufadas de ar para os pulmões
em busca de clareza, sentindo seus olhos queimarem por onde
passam, serpenteando meu corpo encharcado, olhando através das
roupas, para além do muro sólido que eu, como Lilith, sou, ou
deveria ser.
— Você vai — encontra a confirmação em meu rosto, com a voz
cheia de pesar, então anuo em afirmação.
Ele inclina a cabeça para o céu e fecha os olhos, permitindo que
as grossas gotas de chuva toquem seu rosto como se fossem
milhares de flechas o atingindo. Os braços estendidos ao redor do
corpo, com as mãos cerradas, demonstram a guerra em seu interior.
Permaneço com os olhos nele, o enxergando disforme por causa
da cortina espessa entre nós. Sem outras tentativas de me
persuadir a fazer o que pediu, ele dá as costas para mim,
arrastando os pés na areia molhada em direção a sua moto no
asfalto.
Acompanho cada gesto, o assistindo acender a lanterna e
disparando para longe de mim em meio a tempestade sem olhar
para trás. Assusto-me quando outro raio cai ainda mais perto de
onde estou, tremendo o chão, tamanha a sua intensidade.
Olho para as fortes ondas e contemplo a fúria da natureza, a
rebelião que acontece diante de mim como um aviso. Um frio
diferente e mais intenso perpassa por meu corpo, subindo até a
nuca.
Sinto muito em decepcioná-la, dona Jussara, mas nem o guarda-
chuva mais reforçado é capaz de me proteger desse temporal.
E, dessa vez, não faço ideia ao que me refiro com tais
pensamentos.
CAPÍTULO 23
Um silêncio pesado e antagônico se estendeu durante toda a
viagem até essa cidadezinha quente e com casas de aparência
humilde, todas feitas de madeira. Athos, sentado no banco da
frente, evitou qualquer contato comigo, ignorando a minha presença
de uma forma que não imaginei ser possível vindo dele.
Os solavancos que a estrada de terra provoca no carro estão
deixando a minha coluna dolorida.
Após embarcar no jatinho particular do dono da empresa,
alguém que ainda não conheci, levamos somente três horas para
chegar. Agora, em cima das quatro rodas de uma Range Rover,
fazemos o percurso final até a sede.
Sede do que, exatamente?
Ela fica no meio do nada e esse carro luxuoso é o oposto do que
vejo na paisagem do lado de fora.
Na última residência na beira da estrada, meus olhos se
deparam com uma senhora de idade avançada, estendendo roupas
no varal, o lenço verde na cabeça se destaca entre os cabelos
brancos presos em um pequeno coque perto da nuca.
A idosa usa a mão flácida para esconder seu rosto do sol ao
observar nosso veículo. O vestido florido mais parece uma camisola
diante da sua aparência esquelética e o vira-lata caramelo aos seus
pés abana o rabo, levantando poeira nas roupas lavadas, mas ela
não parece se importar.
Me remexo no banco traseiro enquanto um incômodo anormal
parece me envolver em um abraço opressor. Quanto mais as horas
passam, maior é a certeza de que há algo errado nessa viagem
misteriosa.
O local afastado, o motorista carrancudo e cheio de cicatrizes no
rosto e pescoço, o silêncio ensurdecedor de Athos, tudo dentro de
mim grita, implora para que eu saia daqui, fuja o quanto antes.
Meus instintos bem treinados não estão em harmonia com o
restante do meu corpo, tudo em mim luta entre ficar e conferir o que
escondem aqui, e ligar o foda-se, dando as costas sem olhar para
trás.
Movo a perna direita e sinto a faca encaixada dentro da bota,
escondida pela barra da calça jeans.
Diferente de São Paulo, aqui o calor nessa época do ano
permanece intenso, o que me fez optar por uma regata preta,
também mantive os cabelos em um rabo de cavalo ao sair do jato.
Olho para frente e o boné branco de Athos se destaca acima do
encosto do banco de couro bege, seu braço apoiado na janela
reflete as tatuagens no vidro do carro e, de onde estou, enxergo sua
perna esquerda subir e descer, agitada.
Ficou óbvio para mim o quanto ele odiou a notícia dada por
Roberta sobre essa viagem, está claro que não é sua primeira vez
aqui, tão distante da cidade de pedra. O incômodo estranho que
sinto parece causar dez vezes mais angústia nele e sua atitude
taciturna me faz recordar da noite em que esteve na sala de
monitoramento no décimo andar.
Que tipo de situação o deixa tão ansioso e irritado?
Bom, acredito que esteja prestes a descobrir.
Nos aproximamos de um local com muros altos o suficiente para
bloquear seu interior, tudo menos a cúpula dourada que brilha
contra o sol. Estico meu tronco, observando o enorme portão preto
de ferro.
Um segurança fica visível dentro da sua guarita, enquanto outro
aguarda o carro parar do lado de fora, todo vestido de preto, e
posso ver sua Glock na cintura.
O motorista abaixa o vidro pela metade e acena com a cabeça
sem dizer nada, mostrando um cartão muito parecido com o da
Babilônia.
O homem encara Athos primeiro, o cumprimentando, então me
sonda e franze o cenho por alguns segundos antes de se afastar,
então o portão começa a abrir.
O incômodo aumenta assim que passamos pela entrada e meus
olhos escrutinam a gigantesca construção em nossa frente.
Duas pilastras decoram a arquitetura que remete aos templos
medievais e são elas que dão suporte à cúpula oval; a porta é de
um tom de ouro velho, com abertura para os dois lados, seguindo o
mesmo estilo; nas laterais da construção noto extensas janelas,
abarrotadas de anjos seminus decorando os vitrais escuros.
Contenho um xingamento ao ler a frase gravada em letras
douradas, destacando-se no cinza chumbo da parede central:
De fato, o Senhor Deus está neste lugar.
Gênesis 28:16.
— Que lugar é esse, Athos? — quebro o nosso silêncio
enquanto o carro avança para um estacionamento repleto de outros,
tão luxuosos quanto esse.
O veículo nem é desligado e ele abre a porta com força, jogando
as pernas para fora, porém antes de sair me encara por cima do
encosto do banco, com o semblante frio e ausente de qualquer
emoção.
— Eu te avisei — diz baixo e entredentes, sem mover outros
músculos faciais. — Bem-vinda ao inferno, Queen.
Ele desce do veículo, batendo a porta com tamanha força que,
mesmo prestando atenção aos seus gestos, me assusto. O
motorista me observa pelo retrovisor e seus olhos parecem
divertidos com o que acabou de ver.
Respiro fundo e saio do veículo no momento em que Athos entra
no templo e Roberta aparece. Não escondo a incredulidade em meu
rosto ao vê-la trajada de maneira quase normal, como uma fiel. O
vestido creme, diferente do que sempre usa, não está esmagando
seu corpo, apenas o envolve com certa leveza e o comprimento
esconde seus joelhos, as mangas medianas chegam nos cotovelos,
sem os decotes escandalosos e as sandálias tem salto quadrado e
médio, no mesmo tom do vestido.
— Lilith, que prazer ter você aqui! — exclama de braços abertos,
vindo em minha direção. Os cabelos repartidos ao meio, caindo
como uma cascata em suas costas, além da ausência da
maquiagem forte, a deixa com uma aparência mais jovial. Se eu não
a conhecesse, diria ser uma dessas esposas de líderes religiosos.
— Lilith...
— Pare com essa falsidade, Roberta — retruco quando ficamos
frente a frente e desvio de seus braços nojentos. Coloco as mãos na
cintura, olhando além dela, para a entrada do local. — Que merda
está acontecendo aqui?
— Ah, querida...
— Roberta — interrompo, fitando seus olhos astutos —, não tem
ninguém perto de nós, então pare com esse fingimento
desnecessário.
Como em um passe de mágica, a mulher muda a expressão
para o costumeiro ar de deboche, avaliando minhas roupas. Roberta
cruza os braços e os cantos dos seus lábios se elevam.
— Se você ainda não notou, isso é uma igreja, Lilith — provoca e
começa a enrolar a ponta do cabelo entre os dedos.
— E você me convidou para o quê? Me confessar, receber a
salvação ou o batismo nas águas? É assim que funciona?
Roberta ri com vontade, deliciando-se com a evidente irritação
em meu rosto. O sol, sem nuvens para tampá-lo, começa a queimar
meu couro cabeludo, sinto as gotas de suor escorrendo na minha
nuca e laterais do rosto.
— Se eu te contar, vai perder a graça, então... — Dá um passo
para o lado, indicando o caminho do templo. — Vamos entrar, você
chegou bem na hora, a palavra vai começar depois do coral.
“Tua voz me chama sobre as águas, onde meus pés podem
falhar...” De onde estamos, é possível ouvir o começo de uma
melodia entoada através de diversas vozes. Belíssimas, eu diria.
Ignorando a sensação de incômodo dentro de mim, dou o
primeiro passo a caminho da entrada do templo, sendo seguida por
Roberta. Quanto mais me aproximo, menos em paz eu me sinto,
pois todo esse cenário é estranho. Errado.
O dono da Babilônia é o mesmo que comanda essa igreja? Não
seria a primeira, nem a última vez, encontrando religiosos
envolvidos no submundo, mas esse local tão afastado e enigmático
me deixa em alerta máximo.
— Por um acaso você se converteu? — questiono a mulher ao
meu lado assim que paramos na entrada do templo. Observo o
sorriso de Roberta se transformar em um gesto doce, quase
humilde.
— Sempre O carreguei em meu coração — responde, apontando
com o queixo para algo a nossa frente. Olho para o ponto indicado e
vejo uma enorme cruz de madeira pregada na parede, essa está
vazia, mas compreendo ao que se refere. — Ele me salvou, Lilith,
assim como fará com você esse final de semana.
Suas palavras causam arrepios em minha coluna, pois estão
carregadas de segundas intenções e Roberta nem tenta esconder.
Fecho as mãos em punho, cravando as unhas nas palmas e
sondo o coral embaixo da cruz, cantando com fervor. Todos usam o
que parece serem becas, pretas e com desenhos em dourado
percorrendo a vestimenta.
“Ao Teu nome clamarei, e além das ondas olharei.
Se o mar crescer, somente em Ti descansarei.
Pois eu sou Teu e Tu és meu.”
Seria interessante assistir ao grupo cantando com emoção se
meu corpo e mente não estivessem em estado de alerta. Observo
os bancos mais próximos do altar tomado por pessoas em trajes
sociais.
A maioria são homens, concluo. Roberta senta-se perto deles,
fazendo sinal com a mão para que eu faça o mesmo, mas nego,
escrutinando o local em busca de Athos, que parece ter evaporado
assim que atravessou as portas.
“Tua graça cobre os meus temores, Tua forte mão me guiará.
Se estou cercado pelo medo, Tu és fiel, nunca vais falhar.”
Permaneço em pé atrás do último banco enquanto o coral atinge
notas agudas, o eco das vozes ressoando no gigantesco templo.
Avalio a estrutura com minúcia para ter uma ideia da capacidade
do lugar, acima de mim há uma extensa galeria em U, também com
muitos assentos, os estofados todos pretos. Acredito que essa igreja
consiga comportar mais de mil pessoas com facilidade, entretanto,
os presentes aqui hoje não ultrapassam cento e cinquenta.
“Guia-me pra que em tudo em Ti confie.
Sobre as águas eu caminhe.”
As paredes, diferente das do lado de fora, são pintadas em um
tom de branco gelo, noto equipamentos de ar-condicionado
posicionados em toda a extensão, além do sistema de som de
última geração, como os usados na Babilônia.
Alguns lustres de cristal em formato de cascata adornam o teto,
exalando riqueza e conforto.
Na verdade, tudo nesse lugar grita luxo, assim como na
empresa, cada metro quadrado foi construído com essa intenção e,
quem sabe, deixar ainda mais absurdo o contraste com o exterior e
com a pobreza dessa cidadezinha afastada de tudo.
Por que uma igreja, mesmo essa tão rica, precisaria de
seguranças armados?
“Leva-me mais fundo do que já estive.
E a minha fé será mais firme.
Senhor, em Tua presença.”
Enquanto o coral permanece cantando, continuo avaliando tudo
ao meu redor. No altar, aonde as pessoas estão se apresentando
agora, há cadeiras de madeira escura e com espaldar formando
uma coroa; no lado direito estão os instrumentos musicais
descansando, pois o coral utiliza playback.
Coloco a mão no bolso traseiro da calça jeans, pronta para sacar
o celular e começar as pesquisas sobre esse templo, quando algo
perto de onde estou, bem no fundo, chama a minha atenção.
A passos silenciosos me aproximo das portas de ferro de um
elevador, que destoa do ambiente, assim como essa igreja
construída em uma cidade que não combina com tudo o que possui.
“E ao Teu nome clamarei,
E além das ondas olharei,
Somente em Ti descansarei,
Eu sou Teu e Tu és meus.”
O visor digital mantém uma luz vermelha acesa, com o símbolo
X em destaque, aperto o botão apenas para examinar, mas ele não
muda a cor. Olho para cima, inspecionando o piso superior, então
para uma escada alguns metros à frente.
Ignorando as pessoas nesse lugar, e que nem parecem notar
minha presença aqui no fundo, subo o pequeno lance, atenta a cada
passo. No final da escada deparo-me com o espaço vazio, os
assentos são os mesmos da parte inferior.
Suspiro irritada ao entender que o elevador não foi feito para
subir, já que não existe uma saída para ele, então sigo o caminho de
volta para onde estava e vejo Roberta de olho em meus
movimentos, sorrindo pacificamente, como se esperasse essa
reação de mim, como se soubesse que eu faria exatamente isso.
— Que merda vocês escondem aqui? — murmuro dando as
costas para ela e parando em frente ao elevador. De fato, essa
porcaria só desce e parece que a passagem só é liberada através
de algum código.
Outra vez minha mente é povoada de inúmeros questionamentos
e, talvez, o principal agora seja: por que um templo precisaria de um
subsolo?
Na Babilônia os dois níveis abaixo do térreo são para
acomodações dos funcionários e o último, bem...
— Graça e paz, amados. — Sou retirada desse conflito interno
por uma voz baixa e suave no microfone. Assim que encaro o altar,
o coral não está mais presente, dando espaço para um homem com
sorriso afável, dentro de um terno cinza-claro, com os cabelos
escuros ganhando destaque. Não deve ter mais do que cinquenta
anos. — É um prazer tê-los aqui novamente para o nosso sétimo
Congresso de Líderes do Senhor.
As pessoas presentes respondem ao comprimento, ainda
sentadas. Observo com mais cuidado o homem com o microfone,
aparentando domínio do aparelho ele vai passando as páginas de
uma bíblia, alternando a atenção entre o livro e o público.
Seu rosto não é estranho para mim, acredito que já o tenha visto
em outro lugar, esforço-me para recordar de onde o conheço,
concentrada enquanto ele fala, porém ignoro suas palavras. Todos
os políticos, representantes religiosos, atores e mais uma parcela da
sociedade que visitaram a Babilônia, estão presentes em minha
memória.
Menos ele...
— Tudo tem o seu tempo, é sobre essa passagem bíblica que
iremos estudar hoje — anuncia o pregador com animação.
— Merda... — sussurro assim que as imagens dele vão se
proliferando em minha mente.
Outdoors com a sua foto convidando para Uma Noite com Deus,
junto com a localização da igreja, vem tomando as ruas da cidade
nos últimos meses. O templo que dirige está em ascensão depois
de diversos vídeos se espalharem na internet, mostrando milagres
que só acontecem através das mãos dele.
Filas gigantescas se formam para ter qualquer mísero contato
com o homem de Deus e receber sua cura. A primeira vez que
assisti sem saber sobre o que se tratava, acreditei estar vendo uma
seita religiosa, tamanha a loucura dos fiéis por atenção.
— Tem uma palavra que mexeu muito com o meu coração, é
sobre as pessoas que não sabem lidar com o tempo, e eu quero
compartilhar com vocês. — Atrás do púlpito, ele permanece no
lugar, gesticulando a mão livre e fala com serenidade. — O primeiro
tempo que eu quero abordar é sobre o tempo dos outros, aquele
que não é seu, mas que você gostaria que fosse. Há um Salmo que
ilustra isso de maneira bela na bíblia...
Caminho até a escada, subindo alguns degraus, e paro no meio
assim que fico oculta pelas paredes daqui. Deixo o celular que uso
diariamente no bolso da calça e pego o descartável escondido
dentro da bota, ao lado do tornozelo.
Com o número decorado há anos, digito uma rápida mensagem
para ele, já que os meus recursos aqui são limitados.
Fênix: Preciso que encontre essas informações para mim o
quanto antes.
Em seguida, cito o líder no microfone, além da cidade e o templo
em que estou. São necessários quarenta segundos para obter uma
resposta dele.
Caçador: Resolvendo um problema agora, mas te aviso assim
que terminar.
Sorrio de lado, lendo nas entrelinhas e sabendo que alguém está
sendo enviado para o Capeta através das mãos dele. Uma pena
não estar presente para apreciar tal momento.
Guardo o aparelho na bota e subo o restante dos degraus.
Repouso as mãos no aparador da galeria assim que entro no andar
superior e volto a atenção para o homem falando no microfone.
— Você precisa ter maturidade para entender que o tempo dos
outros não é o seu tempo. Trabalhe, ore e entenda que o sua hora
vai chegar.
Olho para as cabeças dos líderes, na tentativa de reconhecer
mais algum, observando os tons entre o preto falso de tinta até os
fios brancos reais.
Excluindo Roberta e o cara no altar, são homens e mulheres
desconhecidos por mim. Diversas pessoas seguram um caderno ou
tablet, anotando o que é repassado como se estivessem dentro de
uma sala de aula.
Athos desapareceu após atravessar as portas do templo, o que
me faz questionar se ele utilizou o elevador para descer. Está claro
que não é sua primeira vez aqui, provavelmente possui acesso a
qualquer lugar.
— O tempo de Deus são os milagres que Ele quer fazer na sua
vida, e é de suma importância que você entenda isso. Hoje em dia
eu costumo olhar de forma sábia para as coisas fora do tempo d’Ele
— O homem caminha de um lado para o outro no altar, observando
as pessoas nos bancos com um sorriso complacente —, mas muito
mais do que falamos, vale o que nós vivemos.
Observo o homem taciturno no altar, refletindo em sua fala que
parece ter sido bem ensaiada em frente ao espelho.
Assisti aquele vídeo meses atrás e nunca senti confiança em sua
imagem, mas agora, próxima a ele e tendo o desgosto de presenciar
essa estranha pregação, sei da importância em confiar nos meus
instintos.
Uma áurea densa de podridão exala pelo ar, muito maior do que
na Babilônia, e não é apenas por estar desconfiada do pregador.
Tudo nesse lugar parece... errado.
— Quando lemos esses textos, descobrimos que estamos
chegando ao final dos tempos. Tudo está se cumprindo, as coisas
estão acontecendo, mas não se preocupem com quando isso vai
ocorrer. — Seus olhos se fixam nos meus, como se soubesse o
tempo todo minha localização exata, e a ponta de um sorriso
desenha o canto da sua boca. O ar-condicionado parece ter mudado
para deixar o ambiente ainda mais gelado, pois um frio anormal
toma meu corpo ante a esse escrutínio. — Porque não há nada
oculto que não venha a ser revelado, e nada escondido que não
venha a ser conhecido e trazido à luz. O seu tempo chegou! —
conclui confiante, como se estivesse, de fato, me enviando uma
mensagem, um aviso ameaçador...
Diferente do que está escrito do lado de fora do templo, Deus
jamais esteve aqui e, depois dessa pregação fajuta, agora eu tenho
certeza disso.
Lamento, meu caro, mas nenhum Deus está aqui.
CAPÍTULO 24
Apenas no começo da tarde descubro onde Athos esteve durante
toda a manhã, enquanto eu participava de outra reunião feita pelos
líderes. Ao lado do altar, existe um escritório que não fui convidada
a conhecer.
Atrás do templo há toda uma estrutura grandiosa com
acomodações, além de um excelente refeitório, que é mais um item
adicionado na extensa lista de coisas que não estão de acordo com
o que vi na pequena cidade.
Ao ser questionada por mim sobre a igreja oferecer alguma
assistência às famílias, Roberta teve a ousadia de gargalhar.
Eles fazem o mínimo, apenas para manter a imagem, e a
população faminta não reclama, afinal, ganhar uma refeição por
semana ainda é melhor do que ficar com o estômago vazio o mês
todo.
— Relaxe, Lilith — provoca Roberta, parando ao meu lado
enquanto observo essas pessoas sentadas, rindo e comendo depois
do fim de outra reunião. Mais afastada no refeitório e de braços
cruzados, aguardo por uma mensagem do meu contato. Ele sempre
foi ágil, principalmente se estivesse em posse de uma mínima
informação, então a demora anormal também se torna uma espécie
de aviso. Olho a mulher com desdém, sua falsidade quase me
fazendo revirar os olhos. — Consigo sentir sua tensão de longe.
Sorria, você tem o privilégio de estar no meio de pessoas tão...
boas.
— O que você e a sua corja escondem aqui? E nem venha me
dizer que aceitou a salvação — rebato com deboche. O sorriso
cínico aumenta em seus lábios e a vontade de tirá-lo dali através de
alguns tapas é grande.
— Lilith, querida — Sua mão nojenta toca meu ombro,
acariciando o local —, você está se deixando levar por sua irritação.
Se reparar bem, vai identificar as diferenças entre quem realmente
acredita estar aqui por uma boa causa e... quem comanda o jogo.
Na verdade, quem faz parte dele.
Por alguns segundos avalio sua face confiante e, sendo sincera,
bem, sinceridade não é o forte de Roberta, contudo, sua confissão
parece muito verdadeira.
Atento-me às mesas repletas de alimentos extravagantes,
dispostos em toda a extensão da madeira para consumirem à
vontade, então meus olhos dançam entre os convidados,
questionando-me se deixei algo passar.
Eles riem e compartilham histórias entre si, abanando as mãos e
gesticulando com exagero. Alguns aparentam estar mais tímidos e
permanecem de boca cheia a maior parte do tempo.
— Acho que me enganei — Roberta sussurra em meu ouvido e
sua voz me deixa tensa de uma maneira bem amarga. — Você só
vai descobrir a diferença quando ouvir o que a noite tem a dizer,
Lilith. — Encaro-a enquanto sua analogia fajuta ecoa dentro de mim
e o olhar que recebo dela é recheado de desprezo, deliciando-se de
toda essa situação. — O jantar será servido à meia-noite, não se
atrase.
Fico sozinha nesse canto mais afastado, observando Roberta se
aproximar de um casal na faixa dos cinquenta anos. Eles a encaram
com admiração, totalmente ignorantes ao que essa mulher, de fato,
representa e quem ela é no submundo. Por essa visão consigo
concluir que eles são os que acreditam na causa, ainda que aceitar
estar aqui seja estranho.
Ajudar os necessitados fingindo não ver o lado de fora desses
portões?
Enfim, não devo me importar ou perder o meu precioso tempo
com pessoas que parecem estar realmente comprometidas com sua
fidelidade e com a fé depositada em um ser que declaram ser
divino.
Cada um acredita naquilo que lhe traz mais... paz? Segurança?
Me deparei com inúmeras situações na empresa, envolvendo
todo o tipo de gente e cargo, mas aqui sinto como se estivesse
sendo apresentada a um mundo ainda mais cruel, só que com uma
fachada reluzente e convidativa.
Só é possível enxergar a realidade depois de atravessar as
portas de vidro, caindo diretamente no inferno, um local arquitetado
por seres que se consideram humanos.
Estou longe de ser um exemplo para alguém, na verdade, nem
quero que isso aconteça, porém, se eu posso me orgulhar de algo, é
saber que trilhei todo esse caminho para chegar até aqui, sem
precisar me escorar em uma falsa imagem de santidade como
alguns desses presentes faz, liderando rebanhos fiéis.
Noto uma avaliação minuciosa em cima de mim e não disfarço
ao procurar a causa dessa curiosidade. Outra vez, meus olhos
cruzam com os do primeiro homem a falar pela manhã, sorrindo em
minha direção, enquanto segura um copo com refrigerante e acena
solícito antes de beber todo o líquido, encarando-me por cima da
borda transparente.
Permito que meus lábios se alarguem, os cantos elevados
deixam o sorriso viperino à mostra, mas essa alegria não chega aos
olhos, assim como a dele.
À meia-noite vou descobrir quem você realmente é e o que faz
nesse lugar, maldito.
Como se tivesse ouvido os meus pensamentos, sua mão aperta
o copo de vidro com força, as juntas embranquecendo antes de
colocá-lo no prato em sua frente.
Caminho em direção à porta, exausta por ficar na presença de
tanta gente louca, mas antes de desaparecer de vez, ignoro o
restante das pessoas e sondo o homem por cima do ombro e, em
uma última saudação, ergo o braço e mostro o dedo do meio.
— Até mais tarde, maldito — sussurro, saindo de uma vez desse
refeitório, mas com o rosto dele gravado em minha memória.
O quarto em que vou dormir possui um banheiro privativo, com
direito a chuveiro com água quente e uma pequena banheira, como
se o templo fosse um hotel quatro estrelas no meio do nada.
Vasculhei cada centímetro a procura de câmeras ou escutas
escondidas, sem sucesso. Assim como na empresa, o quarto de
Athos fica em frente ao meu, Roberta fofocou a informação já que o
loiro nem parece estar aqui. Até quando vai ficar escondido, eu não
sei. Na verdade, repreendo-me por estar pensando tanto nesse
imbecil.
Sento-me na beirada da cama e confiro a pequena tela do
aparelho descartável, sem mensagens do contato. Decido fazer uma
pesquisa por conta própria e usar a rede aberta que, na maioria das
vezes, não me dá um retorno satisfatório.
Digito o nome do líder, além da instituição que preside,
aparecem dezenas de vídeos com as curas milagrosas. Em todos
ele está com as mãos estendidas, abençoando a multidão que o
segue, fervorosos.
É bizarro assistir como utiliza da oratória para convencer jovens
e idosos com a sua fala mansa e articulada.
Quantos anos o homem treinou para esse papel?
Passo algumas horas nessa busca pela internet, entrando em
sites e blogs, além da conta que ele fez para a igreja no app de
vídeos.
A frustração pela falta de qualquer notícia que possa ser usada
como a ponta de uma corda é imensa, assim como o ego dele em
entrevistas referindo-se a si mesmo como “O Escolhido”, até de “O
retorno do filho de Deus”.
Reviro os olhos, jogando o corpo na cama, e solto o celular
descartável ao lado do outro, cobrindo o rosto com os dois braços.
Nunca fui uma dessas pessoas que conseguem dormir a noite
toda, na verdade estou longe disso, meu sono varia entre duas e
três horas, no máximo, mas nessas últimas semanas parece que
nem essa quantidade estou sendo capaz de aproveitar.
A chegada de Athos, além da preocupação com a saúde de
dona Jussara, e tudo o que indique um possível envolvimento com
Suiane, estão cobrando seu preço.
Fecho as pálpebras pesadas, com o intuito de descansar por
meia hora pelo menos, e um sono denso me carrega para a
escuridão da minha mente. A voz do líder ressoa como uma cantiga
opressora e maldita dentro da cabeça, convidando-me para aceitar
o Salvador enquanto há tempo.
Porque depois será tarde demais.

Acordo assustada com o barulho de uma porta batendo no


corredor. Na penumbra do quarto consigo enxergar apenas a luz
branca passando por baixo da madeira. Sento-me na cama,
respirando fundo, com o suor empapando toda a minha roupa e com
a regata grudada na pele.
Em meio à neblina do sono, tateio o colchão e sinto o aparelho
gelado na palma. O brilho da tela ao acender me cega por alguns
segundos, fazendo meus olhos doerem.
Consigo visualizar a tela apenas para encontrá-la vazia,
nenhuma mensagem ou chamada do contato.
Ele nunca demorou tanto...
Outra vez escuto o barulho no corredor, passos que se afastam
com a sola raspando no chão. Levanto-me com o celular de
descarte em mãos, disposta a contatar a pessoa do outro lado da
linha, e aproveito para sondar o dono do arrastar de pernas.
Com cuidado abro a porta no instante que o vejo fazer a curva
para sair do espaço dos quartos.
— Aonde você vai? — sussurro, aguardando um tempo para sair
também. Observo a hora na tela e as palavras de Roberta inundam
minha mente. — Ele vai falar em outra reunião? À meia-noite?
Tranco o quarto e levo comigo somente a chave e o aparelho, no
aguardo de respostas. Com as mesmas roupas de quando cheguei,
sigo em silêncio o líder de mais cedo. Parece que os nossos
caminhos vêm se cruzando com bastante frequência em tão poucas
horas, o que não me agrada.
Sua figura taciturna avança tranquila, com as mãos enfiadas nos
bolsos da calça social preta. Avalio o nosso entorno vazio assim que
atravesso a porta do refeitório parcialmente aceso. Seus passos
ecoam, o arrastar da perna mais acentuado a cada segundo.
Pela manhã, ao vê-lo somente atrás do altar e da mesa, não
captei esse gesto. Nos vídeos o líder se portava com normalidade,
caminhando sem apresentar dificuldade, entender isso deixa tudo
ainda mais estranho, principalmente agora, com ele entrando no
templo.
— Mas que merda esse homem vai fazer? — Guardo o celular
no bolso traseiro da calça jeans, sentindo a pele suada e grudenta
por falta de banho. Meus pés pedem socorro por estarem há horas
dentro da bota abafada.
Atravesso a porta lateral e preciso ser rápida para esconder o
corpo atrás de uma grande pilastra quando ele para de caminhar e
olha por cima do ombro.
Assim como no refeitório, o templo se encontra vazio, somente o
luar ilumina alguns pontos através dos vitrais. Respiro de boca
fechada para não reproduzir qualquer som e aguardo, apurando os
ouvidos.
De onde estou, um fecho de luz brilha em cima da cruz vazia e
solitária, diante de todos esses bancos, como se guardasse
segredos sujos e lamentasse por estar aqui.
O som do elevador se abrindo me faz esticar o pescoço para
verificar o local em que o líder se encontra. No painel aonde estava
a luz vermelha mais cedo, a verde pisca sem parar, liberando a
passagem.
O homem entra de cabeça erguida e, instantes depois, a caixa
de ferro une suas portas começando a descer. Saio de trás da
pilastra e me aproximo do elevador, enquanto aquele incômodo
retorna com tamanha intensidade que preciso escorar na parede
gelada.
No aguardo para acionar o elevador, passo as mãos nos braços,
esfregando-os diante do frio que varre o calor de segundos antes.
Minha pele chega a eriçar tamanha a intensidade do ar-
condicionado trabalhando mesmo que não tenha pessoas aqui.
Não sei quanto tempo aguardo, mas sou rápida para fazer o
trajeto do líder depois que o elevador retorna. Diferente do lado de
fora, ele é simples com o seu metal cinza e piso preto. O painel
indica haver somente um subsolo, como suspeitei.
Assim que as portas se afastam, dou de cara com uma pequena
sala toda branca, recheada de instrumentos médicos. O espaço
mais se assemelha ao espaço aonde é feita a triagem quando
chegamos em um hospital.
Não passa despercebida a gaze manchada de sangue na
superfície do lixo. Na prateleira acoplada em cima da maca estão
diversos medicamentos, como o Mifepristona e Misoprostol, os
quais reconheço porque já vi algumas das meninas da empresa
usarem para abortos.
Antes de tirar fotos dessa sala, dou mais alguns passos quando
ouço uma conversa compartilhada. Como no décimo andar da
Babilônia, aqui também possui portas por todo um extenso corredor.
No entanto, há uma diferença que faz meu estômago embrulhar
mesmo depois de ver homens e mulheres executando os fetiches
mais sujos daquele nível.
Roberta, vestida com o seu habitual conjuntinho apertado,
permanece em pé ao lado da última porta, aguardando a entrada do
líder.
— A encomenda está pronta para a vigília, senhor — diz com
suavidade, então seus olhos se fixam em mim, ciente da minha
presença, e um sorriso cruel se forma. — Boa oração.
Oração?
Essa pequena palavra ecoa em minha mente em uma
velocidade semelhante ao que consigo atingir com a minha moto,
ultrapassando todas as placas de sinalização e avançando sem
cuidado.
Duas vozes infantis vão aumentando o volume dentro dos meus
ouvidos, em um fade-in impecável.
“Porque seu joelho tá machucado, Su?” Ela tenta esconder com
a barra da saia azul, mas eu vi o sangue ali, nos dois joelhos.
Suiane pega um lençol, que já é fino de tanto ser usado, e me
cobre, fazendo carinho em minha cabeça.
Mamãe continua dormindo no sofá, depois de usar aquela
agulha estranha, e o homem foi embora faz algumas horas. “E-eu...
O chão machucou meu joelho, porque eu tava orando, Dai.”
Seu peito treme tanto que minha irmã parece estar com falta de
ar, mas ela não para de me embrulhar no tecido velho.
Olho para o sangue aparecendo na barra da saia e fico triste.
“Não quero oração, Su!” Exclamo, apontando para o sangue, e
minha irmã arregala os olhos.
“Daiane...” Suiane deita comigo e me abraça forte.
“Oração machuca e eu não quero machucar os meus joelhos.”
Choro com a cabeça em seu peito e ouço seu choro também e seu
coração batendo muito rápido.
“Tá t-tudo bem, Dai. Você nunca vai precisar orar, eu prometo.
Tá tudo bem...”
A memória antiga e extremamente dolorosa retorna tão
implacável quanto um tiro certeiro no peito.
Abro a boca e nenhuma palavra escapa, pois todas estão presas
na garganta, formando um bolo gigantesco de dor e amargura.
Espalmo a mão na parede mais próxima, sentindo o fraquejar em
minhas pernas quando o líder se vira em minha direção, sorrindo
com perversidade.
O sorriso de um tirano feroz.
Travo a mandíbula assim que atravessa a última porta e a
imagem dele se mistura com outra mais antiga. A diferença é que
aqui ele não entra com uma bíblia embaixo do braço.
Com as mãos na cintura, Roberta gargalha enquanto assiste
meu tormento e a perda de controle, na verdade, o que havia
sobrado dele.
Pisco diversas vezes tentando ler seus lábios, pois os sons ao
meu redor tornaram-se confusos, indistinguíveis.
Somente um deles consegue se sobressair aos outros, um
lamento carregado de dor, um choro abafado pela madeira da porta,
por mãos grandes e, ouso acreditar, velhas e adultas.
O choro aumenta e a minha aflição o acompanha, subjugando-
me.
Achei que já conhecia o inferno, seus demônios e o Diabo, agora
vejo que me enganei e a estadia nas profundezas do maligno está
apenas começando.
dor
1. mágoa originada por desgostos do espírito ou do
coração; sentimento causado por decepção,
desgraça, sofrimento, morte de um ente querido.
CAPÍTULO 25
A pessoa que vê a porta ser fechada mais adiante não é a Lilith.
Os olhos que assistem cada cena se desenrolando através de
minutos opressores e frios, como a pele de uma serpente se
arrastando na epiderme, não são os da mulher adulta e assassina.
Nem os ouvidos que, agora mais atentos, distinguem sons de
lamentos repletos de dor, somados aos gemidos de prazer.
O corpo que escorrega contra a parede, sem forças para se
manter em pé e enxerga a mulher loira gargalhando, não é o meu.
Quem olha para cima, frágil em sua pequenez, encarando-a com
a visão embaçada por lágrimas é Daiane.
Sua atitude é semelhante à daquela mulher, a mesma que me
trouxe ao mundo. Ela sorria enquanto a própria filha era abusada,
enquanto delirava com a agulha enfiada no braço sem demonstrar
qualquer importância para o que acontecia dentro do quarto.
Para os joelhos ralados de Suiane;
Para aquele olhar sem vida;
Para o pedido de socorro tão silencioso quanto ela;
Para todas as atrocidades do mundo.
Cravo as unhas nas coxas por cima da calça jeans, na tentativa
de conter o tremor se apossando do meu corpo, do meu ser.
Parece haver uma mão ao redor do meu pescoço, pois respirar
se torna pesaroso, o ar não chega aos pulmões como deveria e isso
aumenta a sensação de fraqueza.
A mulher se abaixa, ficando de cócoras e apoiando os braços
nas pernas, apreciando meu estado patético e decadente.
— Ora, ora, se não é a destemida Lilith, largada no chão igual a
um inseto — zomba e sua mão agarra meu queixo para mantê-lo
direcionado a si. — Vamos lá, querida, não precisa desse teatro
todo. Você nunca se importou com o que acontecia ao seu redor,
desde que não interferisse em seus planos.
Roberta tem razão.
Não é como se eu não soubesse o quão longe o ser humano
poderia ir quando desejava algo. Sou a prova disso.
Todos os dias pessoas desaparecem embaixo dos nossos olhos
e nunca mais são vistas. Algumas das meninas que começaram
comigo, talvez nem a ABIN ou o FBI consigam encontrar, se é que
há algo para ser achado.
— Ouça a sagrada canção, Lilith... — sussurra perto do meu
rosto, o hálito quente me enojando. — Elas estão sendo purificadas.
Elas...
Lutando contra a letargia que envolve cada parte do meu corpo,
movo os olhos para o corredor, contando as portas. As batidas do
meu coração são intensas ao ponto de reverberarem o
descompasso em minha cabeça.
Os dedos dela permanecem segurando meu queixo, as unhas
grandes entrando na pele, mas não sinto dor, a apatia esmaga meu
sistema nervoso.
— Dez quartos — diz, compreendendo meu gesto. De onde
estou consigo ver fechaduras digitais, alto padrão tecnológico —,
dez criaturinhas sendo purificadas por dez homens e mulheres de...
Deus.
Roberta volta a gargalhar, apreciando o conflito em meu
semblante. A enxurrada de sentimentos discrepantes me atravessa
em alta velocidade. Um turbilhão de emoções capaz de me fazer
sufocar, perdida diante de tanto descontrole físico e emocional.
O lamento fraco se torna distinguível novamente e ele vem da
porta mais próxima, o que me faz empertigar o corpo, como se
tivesse levado um chute nas costelas.
— Nem se atreva, Lilith — Roberta rosna, ainda perto de mim.
Sondo seus olhos arregalados com um prazer cruel escorrendo de
dentro deles. — Mesmo que tente, não vai conseguir atrapalhar o
que acontece no interior dos quartos. Você não tem qualquer
vantagem aqui, esse templo foi pensado e construído com um
objetivo: se tornar uma fortaleza tão eficiente que nem a porcaria da
polícia consegue aval para entrar. Essas pessoas aqui — aponta
para o corredor com a mão livre, sem soltar meu queixo —,
compraram tantas outras para ficarem caladas e advinha? Tudo foi
pago com o bendito dinheiro do dízimo.
Enfim me vejo livre das garras dessa mulher quando se levanta
altiva com as mãos na cintura, encarando-me de cima, semelhante
a uma mãe repreendendo seu filho após uma bagunça no cômodo
organizado. No entanto, essa mãe é tão inclemente quanto a que
me gerou, aquela que proporcionou uma vida perversa a Suiane.
Em um cenário diferente, as duas até seriam amigas,
compartilhando as atrocidades cometidas e rindo da desgraça
alheia.
Firmo as mãos no piso gelado e inclino o corpo para frente,
puxando o ar com lufadas. Fecho os olhos quando escuto algo se
chocar contra a parede mais próxima, dentro do quarto.
Travo a mandíbula com o intuito de conter o tremor que faz meus
dentes rangerem e o gesto provoca dor em minha cabeça.
Todo o cenário a minha volta gira, embrulhando meu estômago
vazio, e centenas de pontos pretos tomam minha visão embaçada.
Eu estava à beira do precipício esse tempo todo, apenas
esperando um leve toque em meus ombros, empurrando-me para
baixo?
A sensação esmagadora em meu peito e toda essa bagunça que
me tornei em questão de minutos causada pelo acionar de um
gatilho?
Foi assim que Athos se sentiu naquela noite no nível dez?
Tantas perguntas...
O ser humano é muito prepotente mesmo se acredita que possui
o controle da porra da própria vida, que basta treinar ano após ano
para ter as rédeas nas mãos, quando tudo pode mudar em
milésimos de segundos.
— Se isso te deixa feliz — Roberta volta a provocar diante do
meu silêncio e faço questão de manter os olhos fechados em busca
de um mísero domínio de meus pensamentos. As rédeas desse
momento inconveniente precisam retornar para as minhas mãos —,
o que te falei mais cedo é verdade, nem todos que vieram para esse
Congresso sabem o que realmente acontece. — Repouso a cabeça
contra a parede enquanto minha mão se direciona para a faca
dentro da bota, na espreita. — Como estamos em um templo
sagrado, vou usar a bíblia de exemplo. — Ri com escárnio, seus
saltos provocando barulho contra o piso ao andar de um lado para o
outro. — Qual é a melhor maneira de esconder o joio, senão
misturá-lo com o trigo?
Abro os olhos no instante em que Roberta começa a bater
palmas do que ela acredita ser uma piada. Nunca esperei nada de
bom de alguém como ela, aliciando meninas menores de idade, as
selecionando igual faria em um hortifruti, escolhendo as melhores
verduras.
Como consegue rir enquanto dez crianças são molestadas ao
seu lado?
Ao nosso lado.
Faço um muxoxo com a garganta, a realidade de que somos
mais parecidas do que gostaria estapeando meu rosto sem piedade.
— Já mandei parar com esse teatro! — A ponta fina do scarpin
de Roberta acerta a lateral das minhas costelas, espalhando dor por
toda a região. Reprimo o gemido que tenta escapar e minha mão
segura o cabo da faca, sem tirá-la da bota, ainda não. — Só porque
não colabora nessa área, não quer dizer que seja melhor do que
nós, Lilith. Ou vai querer se enganar agora? Você nunca se importou
com as meninas que sumiram na sua época, ou estou mentindo?
Você sabe como o submundo funciona, todo o tráfico de órgãos,
mulheres, crianças, drogas e armas, mas só esteve preocupada
com o seu Jimmy Choo e sua Fendi. Sempre tão vaidosa,
consumindo do bom e do melhor enquanto toda essa merda
acontecia embaixo do seu nariz. Quanta hipocrisia... — Permaneço
encarando o piso cinza e lustroso, absorvendo as palavras de
Roberta sem conseguir negar os fatos. — O que foi? A destemida
Lilith por acaso usa dois pesos e duas medidas? A assassina fria e
cruel possui algum resquício de humanidade dentro de si? Fingir
estar abalada com o que acontece dentro desses quartos não vai
limpar a sujeira embaixo das suas unhas, queridinha. Está atrasada
para qualquer arrependimento, vamos para o inferno juntas! E já
que esse é o meu destino, por que não posso me divertir até lá?
— Seria uma honra te enviar para o colo do Capeta — rebato,
enfim encontrando minha voz, ainda que saia com acentuada
rouquidão. Olho para cima, deparando-me com a face debochada
de Roberta, nem um pouco incomodada com o que ouviu ela cruza
os braços enquanto morde o lábio inferior, sem desmanchar o
sorriso cínico. — Então, quando chegar a minha vez de ir, você será
a responsável por me receber, o que acha? Esse cenário te agrada,
Rorô?
Aproveito seu momento de descuido e, em um único movimento,
levanto o braço com a faca na mão, enterrando a lâmina na coxa
esquerda de Roberta.
Seu grito de dor não me assusta enquanto uso o próprio objeto
para me impulsionar para cima, levantando-me e rasgando tecido e
pele no caminho. A mulher se encolhe, inclinando o corpo para
frente e tentando agarrar o cabo, com isso, faço mais pressão até
senti-la tocando no osso.
— Sua puta nojenta! — grita, os olhos arregalados e molhados
por lágrimas, mas não sinto pena. — Desgraçada...
— Sim, Rorô — sussurro contra a sua maldita cara deformada
pela dor. — Sou uma puta, desgraçada e, não podemos esquecer,
uma assassina. — Com a mão livre, esfrego seu próprio sangue no
rosto maquiado, pintando os cabelos loiros no processo. — Eu
poderia acabar com a merda da sua vida agora mesmo, mas você
merece sofrer.
— Socorro! — Ela olha para os lados, porém as portas
permanecem fechadas.
Esses monstros pouco se importam com o que acontece aqui,
desde que nada os atrapalhe e isso me enoja ainda mais quando
compreendo isso.
Puxo a faca com agilidade e uma quantidade maravilhosa de
sangue escorre do corpo velho e plastificado. Dou um passo para
trás e Roberta usa a parede para se escorar, gemendo de dor, a
fraqueza pela perda de sangue mostrando os primeiros sinais.
O elevador reproduz um som baixo, anunciando a chegada de
alguém, então limpo o suor da testa e sujo o rosto com o líquido
espesso e carmesim dela sem me importar com mais nada.
A imagem de Athos aparece assim que as portas se afastam e
não me surpreendo com isso. Seus olhos são rápidos ao avaliar a
situação, demonstrando repulsa diante da mulher sangrando e uma
maldita preocupação comigo.
— Athos, me ajuda, por favor — Roberta balbucia, estendendo a
mão na direção do homem parado em minha frente.
— Você é condescendente com tudo isso — falo, sem precisar
esclarecer minhas palavras. Os orbes azuis fixados em meu rosto
sujo, o maxilar travado e as mãos cerradas. Não sei o porquê, mas
saber que ele faz parte dessa merda mexe comigo de maneiras
estranhas e uma dor anormal se apossa do meu peito, encarando-o.
— Você...
— Cale a boca, Lilith! — Se aproxima, fazendo pouco caso da
faca em minha mão. Seu peito se move com força e seus lábios
estão puxados em uma linha fina de raiva. A ira vazando dos seu
poros, mas não parece ser direcionados a minha presença. É tudo
muito confuso. — Eu te avisei para não vir aqui...
— E descobrir que você é ainda mais sujo do que eu imaginava?
— o corto, disparando as palavras que serviriam perfeitamente para
mim. Um riso ausente de humor escapa diante da minha hipocrisia.
Mesmo gemendo de dor, Roberta volta a gargalhar, alternando a
atenção entre nós dois. Uma verdadeira lunática.
— Queridinha... você acha que ele está envolvido? — Com uma
mão em cima do ferimento, ela usa a outra para envolver a cintura e
ri sem controle algum, com os olhos arregalados. — Esse maldito...
— Roberta puxa o ar e sei que está no limite antes de desmaiar. —
Athos já foi uma dessas criaturinhas no outro lado da porta...
Tudo acontece tão rápido que só tenho tempo de ver a mão de
Athos descer sobre Roberta, após arrancar a faca de mim e, como a
excelente telespectadora que sou, assisto a cena em minha frente
entre choque e prazer.
Athos desfere inúmeras facadas no peito da mulher prensada
contra a parede, ela se engasga com o próprio sangue, observando
de olhos esbugalhados o seu benfeitor.
Athos parece não enxergar nada enquanto permanece atingindo
o corpo imóvel despencando no chão, cego pelo ódio guardado
dentro de si.
A camiseta é tomada pelo vermelho do sangue espirrado no
pano, que antes era branco. Assim como acontece com a calça
cargo bege e o tênis pisando na poça que se agiganta no piso.
Não saio do lugar em que estou, contudo, as últimas palavras de
Roberta entram em modo repeat em minha cabeça.
Athos já foi uma dessas criaturinhas no outro lado da porta...
Por sua reação selvagem e sanguinária, não vejo motivos para
duvidar.
Quem é o molestador? Ou, se for um caso semelhante ao de
Suiane, quem são eles? Como Roberta sabia disso? E, talvez o
mais importante...
Se ele já foi uma vítima, como consegue seguir a vida e trabalhar
aqui enquanto acontece o mesmo com outras crianças?
Athos puxa a lâmina uma última vez, trazendo consigo pele,
sangue e pedaços de órgãos.
Quando se levanta sem tirar os olhos do que um dia foi Roberta,
seu peito descompassado, junto ao suor empapando a nuca e toda
a sujeira nas roupas, até parece que acabou de percorrer uma
maratona.
O respirar ruidoso é o único ruído ecoando no corredor. As
portas continuam fechadas, pois é fato que esses vermes ouviram o
que ocorria no lado de fora, mas não se envolveram já que só
demonstram coragem diante de crianças.
— Ele quer te ver — anuncia com a voz baixa sem fazer contato
visual comigo, seu braço se estende para mim, devolvendo a faca
ensanguentada. Assim que passa as mãos nos cabelos, jogando-os
para trás, o loiro escuro da lugar para o carmesim, o odor de
ferrugem torna-se acentuado. — Depois eu me resolvo com ele
sobre isso. — Aponta com o queixo para o corpo caído com o
semblante enojado. Athos respira fundo, como se buscasse o
controle perdido, e gira o pescoço, analisando-me. — Sua cabeça
está cheia de merda, julgando a porra da minha presença aqui.
Foda-se, porque não vou te dar nenhuma satisfação, Queen. — Ele
caminha para o elevador e aciona o botão. Por cima do ombro,
Athos, com cara de poucos amigos, deixa uma sentença: — Anda
logo, ele odeia esperar.
— Ele quem? — sondo sem perder nenhum gesto do homem
que acabou de ceifar uma vida.
Não que ela valesse algo.
Analiso o corredor outra vez, enquanto seguro a faca e a
vontade de fazer o mesmo em cada maldita porta é forte.
— A pessoa que você tanto queria conhecer, o dono da
Babilônia — há desdém em seu timbre. Fito-o parado dentro do
elevador, segurando a porta, no aguardo, digerindo mais essa
informação. O canto direito do seu lábio se ergue minimamente,
mas os orbes azuis estão vazios. — Quando eu disse “Bem-vinda
ao inferno”, não estava brincando, Lilith.
Pois é, chefinho, e estou descobrindo isso da maneira mais
dolorosa.
Contra a minha vontade e ciente de que não posso fazer nada
agora, não sem me preparar devidamente, dou as costas para esse
maldito subsolo. Do mesmo jeito que fazia quando deixava Suiane
sozinha no quarto, na presença dos molestadores.
Roberta e eu somos mais parecidas do que eu gostaria de
aceitar.
CAPÍTULO 26
Caminho a uma curta distância de Athos, seguindo-o pelo templo
vazio e morbidamente gelado, contrastando com a temperatura do
lado de fora. Contenho-me para não disparar todos os
questionamentos em minha cabeça, sem dar a mínima para o aviso
de minutos atrás.
A avalanche de informações recebida em pouco tempo chega a
ser sufocante e tudo indica que as surpresas não acabaram.
Sondo o altar envolvido em um breu, mas a luz da lua entrando
pelas janelas de vidros ilumina bem o meio da cruz de madeira e um
embrulho cresce em meu estômago por saber o que está
acontecendo no subsolo.
A cruz vazia é uma espécie de sinal de que até o Divino fugiu
desse lugar horrendo, abandonando essas crianças, assim como fez
com Suiane.
Avisto uma porta adjacente ao lado do altar, também com um
dispositivo digital para dar acesso. Então, conhecendo o básico
desse lugar, compreendo ser mais um espaço reservado para tudo,
menos para pregar a palavra de Deus. Afinal, que tipo de igreja
usaria algo assim para criar um limite até aonde os fiéis podem ir?
Athos não precisa bater para anunciar sua chegada, ele digita
um código de quatro dígitos e, segundos depois, um som baixo
ressoa, abrindo passagem.
Antes de atravessar essa porta para o desconhecido, coloco a
faca suja dentro da bota e, é nesse momento, que sinto meu celular
vibrar no bolso. Puxo o aparelho com a mão ensanguentada e leio a
parte inicial da mensagem do contato:
Caçador: Você ainda está no local informado?
— Lilith! — Athos exclama impaciente e escancara a porta em
um comando para eu entrar. Ergo os olhos do celular, prestes a
xingá-lo por esse incômodo, quando observo o homem sentado
atrás da longa mesa. Com os braços repousados no encosto da
enorme cadeira, ele sorri com escárnio. — Caim, o dono de tudo
isso — Athos avisa, se afastando para o lado, no aguardo por minha
entrada.
Seguro o aparelho com força, as juntas tornando-se brancas, e
começo a caminhar para dentro da sala, na direção do homem
branco, de óculos e terno preto, com os cabelos grisalhos e lisos
começando a rarear no topo da cabeça.
Assim como nos aposentos da Babilônia, tudo ao meu redor
exala a luxo, a caneta dourada junto com a bíblia aberta na frente
dele, a iluminaria do mesmo tom, então noto as abotoaduras quando
repousa os braços em cima do livro.
— Lilith... — a voz mansa e aveludada eriça os pelos em minha
nuca de um jeito estranho, a sensação é ruim e sufocante ao
mesmo tempo. — Ou eu deveria te chamar de Daiane?
Paro a um metro da mesa, sondando o homem ainda sem
acreditar se não estou fazendo alguma confusão. Por mais que
Athos tenha dito o nome desse senhor, surpreende-me vê-lo aqui,
mesmo que não devesse, afinal, o submundo esconde pessoas e
desejos sujos, os mais podres que existem.
Sempre suspeitei de que o dono e, possivelmente o mandante
da chacina, fosse alguém do alto escalão, escondido atrás de um
cargo do governo, todavia, o cabeça de toda essa organização ser o
maior líder religioso do país, possuindo dezenas de rádios e canais
televisivos, não me surpreende tanto.
O que me faz compreender a imensidão dessa sujeira e o poder
que possuem para acobertar qualquer merda, é estar em frente ao
irmão do candidato a vice-presidente.
Abel, depois de dois mandatos como governador do estado,
anunciou a parceria dos partidos. Não falta muito para que a
propaganda eleitoral gratuita comece a circular em todos os lugares,
e a vantagem dessa dupla para a outra na corrida presidencial é
esmagadora.
Caim e Abel. Irmãos e parceiros nos negócios.
Se aquele homem conseguir vencer a eleição e chegar ao
Palácio do Jaburu, além de ter mais acesso aos três poderes em
Brasília, será quase impossível destruir essa facção.
Por isso, esse maldito em minha frente não aparenta medo ao
mostrar a sua cara, assim como a ligação que tem com o outro.
Porra.
— Você parece surpresa — fala, enquanto seus olhos varrem
meu corpo, observando as manchas de sangue. Caim faz o mesmo
com Athos, mantendo um semblante amistoso e nada surpreso. —
Parece que se divertiram essa noite, assim como em outras. Podre
Roberta — suspira e analisa um monitor ao seu lado, a imagem da
mulher ainda no chão do subsolo toma toda a tela —, fazia um
excelente trabalho, mas sempre se intrometia aonde não era
chamada. Menos um peão na partida — sussurra e coça o queixo,
sem qualquer resquício de compaixão. — Ainda bem que temos
você, Lilith. Uma filha se foi, mas agora tenho outra, e bem mais ágil
e calculista. — Os olhos de Caim se fixam nos meus com cautela.
— Uma grande assassina.
Cautela e diversão.
Ele não estava presente durante as reuniões que aconteceram
de dia, nem se juntou aos outros no refeitório, em todo esse tempo
ficou nessa sala, acompanhando o que acontecia através do
computador, concluo.
Athos troca o peso das pernas ao meu lado, denunciando seu
incômodo. Escrutino seu corpo sujo e percebo que mantém a
cabeça abaixada, sem fazer contato visual com Caim. Suas mãos
apoiadas na cintura apertam as laterais, e outra vez as palavras de
Roberta ressoam em minha mente.
Athos já foi uma dessas criaturinhas no outro lado da porta.
Volto minha atenção para Caim e ele arqueia as sobrancelhas,
interrogando-me em silêncio. O homem relaxa na cadeira com as
costas no espaldar, que agora analiso com mais calma e noto que
imita a parte superior de um trono.
Um rei em seu palácio, afastado de tudo e recheado de terror,
comandado a ferro e fogo, utilizando um ideal sagrado como
escudo.
— Se espera que eu assuma o maldito posto da Roberta,
esqueça. Não vou entrar no seu joguinho sujo, cretino — rebato com
a voz fria e baixa, e sinto Athos me encarar. O ignoro.
Caim parece realmente feliz agora, divertindo-se às minhas
custas. Ele balança a cabeça em afirmação, enquanto arruma o
óculos na face. O reflexo das lâmpadas no teto atinge bem o centro
do objeto, escondendo seus orbes. O rosto barbeado deixa aparente
as linhas de expressão ao redor da boca. Ele deve ter quase setenta
anos.
— Ah, que displicência a minha. — Aponta para as duas
cadeiras vazias. — Sentem-se, filhos...
— Se você me chamar de filha outra vez, vai se arrepender —
aviso, controlando meu tom de voz, mas mostrando os dentes para
ele, sem que essa alegria chegue de fato aos meus olhos —,
senhor.
Então ele ri alto e forte, escorando-se na mesa enquanto me
avalia com entusiasmo. Sua pele branca adquire tons rubros, as
veias no pescoço velho parecem prestes a explodir em volta da
gravata de seda azul.
O celular em minha mão vibra duas vezes, meu contato
aguardando por uma resposta ao tempo que o caos aumenta a
minha volta.
— Incrível como você é ainda melhor pessoalmente — bufo,
deixando a irritação escorrer por cada poro em minha pele, exausta.
Compreender que esteve de olho em mim não surte o efeito
desejado, se é isso o que esperava.
Depois de saber que permaneceu nessa sala, acompanhando
tudo através das telas, fazer o mesmo na empresa é ainda mais
fácil.
Miro o enorme quadro exposto atrás dele, com as mesmas
pinturas da Babilônia. Anjos demoníacos encaram-me de volta com
um sorriso perverso na boca, igual a Caim.
Athos parece ter perdido a língua, pois o seu silêncio ao meu
lado me incomoda mais do que se estivesse gritando comigo e, por
mais que eu tente evitar, preocupo-me com ele.
Qual é o poder desse líder sobre ele? O tão destemido Athos
mais se assemelha a um frágil cordeiro no caminho do abate. É
discrepante sua atitude se comparada a como agiu após as palavras
da falecida Roberta, que descanse em paz no colo do Capeta.
No outro lado da sala, vejo um suporte preto com detalhes em
dourado, mas não é isso o que me faz sair do lugar em que estou e
me aproximar. Um tabuleiro de luxo, com as peças menores
dispostas nas laterais, é usado para apoiar a maquete de vidro do
edifício da Babilônia.
Ao redor, o Rei, a Rainha, o Cavalo, a Torre e o Bispo de metal
em ouro envelhecido, formam um círculo, um Peão foi deixado caído
propositalmente aos pés do Rei.
Toda a disposição das peças remete à uma cena, alguém fez
questão disso, manipulando o jogo, mudando as estratégias ao seu
bel prazer.
— Vejo que se interessou pelo tabuleiro — Caim é silencioso o
suficiente para se aproximar enquanto estou focada no objeto.
Respiro fundo, escondendo o susto levado, e o olho de perto. Um
pouco mais baixo do que Athos e dentro de um elegante terno, ele
estende o braço e pega o Rei. Seu perfume amadeirado consegue
me deixar enojada mesmo adorando a fragrância em outras
ocasiões. — Por acaso já participou de uma partida de xadrez,
Daiane? — o deboche contido na maneira que pronuncia meu
verdadeiro nome não me passa despercebido. Anuo em negativa,
dando espaço para que despeje suas merdas. — A maioria dos
jogadores, se você perguntar, vai te falar que a Rainha é a peça
mais forte, a que precisa ser derrotada, mas gosto de avaliar de
outra forma. — Com o Rei na mão, Caim aproxima a peça de outros
peões e vai derrubando um a um, o sorriso cínico nos lábios não o
abandona. — O Rei deve ser o único a ser protegido, e todos os
outros são obrigados a se sacrificarem para que apenas ele viva,
assim como Roberta... — sussurra enquanto encosta a peça no
primeiro peão que vi.
O homem deixa claro do que se trata toda essa disposição dos
objetos de metal. Caim desliza o Rei ao redor da Rainha,
produzindo um ruído na sequência.
— A Torre e o Bispo podem se mover em qualquer direção para
protegerem o Rei e a Rainha. A meu ver, é desperdício de tempo e
concentração proteger algo tão frágil e... quase inútil quanto ela. —
Ele deposita a peça de volta no tabuleiro, ao lado da maquete
transparente da empresa. Seu dedo escorrega e Caim derruba a
Rainha que, na sequência, leva a Torre, o Bispo e o Cavalo juntos.
Um risinho escapa dos lábios velhos e murchos. — Desatenção a
minha, desculpe.
Só que não há resquício de arrependimento em sua voz
enquanto organiza as peças no lugar, deixando a Rainha por último.
Se ele pretendia passar uma mensagem através dessa porcaria de
analogia, conseguiu.
Caim se afasta de mim e vai em direção a Athos, colocando a
mão no ombro do loiro. Observo como o segundo trava a mandíbula
com o gesto e não faz contato visual, apenas encara a bíblia aberta
na mesa.
— Não vou ocupar o seu tempo explicando sobre um jogo tão
masculino, Daiane. — Dois tapinhas nas costas de Athos, sem se
importar com as roupas sujas, então volta a caminhar, escondendo
as mãos nos bolsos da calça social. — Tenho outros assuntos para
discutir com você.
Continuo olhando Athos e a maneira como se comporta na
presença de Caim, cada segundo mais curiosa sobre o seu
passado. O homem atrás da mesa possui alguma parcela de culpa,
pois chega a ser desconcertante vê-lo tão... frágil.
Saio desse pequeno torpor ao sentir o celular vibrando outra vez.
Pelo visto, meu contato encontrou algo bom o suficiente para me
ligar, o que não fazemos normalmente. Confiro a tela do aparelho e
deparo-me com mais de cinco mensagens.
Movo o corpo em direção à saída, pouco me fodendo com o que
Caim vai pensar, afinal, as respostas que meu contato deve ter pode
se tornar um divisor de águas. A linha de chegada dessa busca
incessante por aqueles homens ou a vingança que, enfim, Suiane
vai receber.
Ignoro-os assim que dou as costas e levo o celular ao ouvido,
entretanto, com o dedo em cima do botão atender, outro som me
paralisa.
Estanco os passos no lugar enquanto um antigo e familiar ruído
se infiltra pelas minhas orelhas, adentrando o canal auditivo em
velocidade recorde. Da mesma forma que aconteceu no subsolo do
templo minutos ou horas atrás, já que pareço ter perdido a noção de
tempo, a sensação que me acomete chega a fraquejar minhas
pernas, provocando uma tontura aterradora. O passado retornando
como uma bomba e destruindo tudo no caminho.
“Mamãe não acorda nem quando aumento o volume da TV no
máximo. Um fio de baba escorre de sua boca aberta, a cabeça
virada para o teto enquanto dorme que nem uma pedra.
No chão da sala ainda está a agulha, a colher e uma cordinha
que ela usou não faz muito tempo. Minha barriga ronca de fome,
mas ainda não aprendi a mexer no fogão e Suiane não deixa. Tenho
que esperar minha irmã, mas essa oração não acaba nunca.
Pulo do sofá rasgado e me aproximo do nosso quarto, pronta
para bater e chamar por Suiane e interromper sua oração mesmo
que ela brigue comigo depois, mas não preciso fazer isso.
No último instante, a madeira velha range ao ser aberta e aquele
homem com a bíblia embaixo do braço, sai. Assusto-me, dando um
passo para trás e batendo no sofá em que mamãe dorme. Seu
corpo grande tampa tudo, por isso não vejo minha irmã, mas ele me
olha por muito tempo, eu acho, e fico com medo.
O homem não diz nada, mas sorri para mim antes de se afastar
em direção à porta dos fundos.
Como ele sempre faz quando vai embora, mexe a mão dentro do
bolso da calça e o barulho de chaves se chocando é grande, deve
ser um costume porque ele sempre carrega essas chaves.
Suiane aparece na porta, limpando o rosto e sorri quando me vê.
Corro até ela e recebo um abraço gostoso, ela me abraça com tanta
força que eu consigo ouvir o seu coração batendo e ele parece uma
escola de samba.
— Tá com fome, Dai? — Faço que sim sem sair do lugar e
ganho um beijo na cabeça. — Então vamos jantar.”
O maldito tilintar de metal se chocando me faz transpirar tanto
que o celular escapa da minha mão, o impacto do aparelho contra o
chão é tão alto e potente que ele se quebra, espalhando alguns
pedacinhos ao meu redor.
Devagar e sentindo todo o peso do mundo envolver meu corpo,
o abraçando com força, esmagando carne e ossos no caminho, olho
para o homem atrás da grande mesa.
Caim permanece balançando as chaves como se esperasse por
uma atitude da minha parte, e a sombra de um sorriso cínico e
portador de muitos segredos não abandona seus lábios.
Acompanho o movimento da sua mão saindo do bolso da calça e
um calafrio percorre minha coluna, descendo para as pernas e
repousando em meus pés.
Dentre todas as chaves, há um chaveiro em formato diferente,
destacando-se entre os outros, a estatueta dourada da imagem de
um anjo curvado com as asas o envolvendo se choca nas chaves,
produzindo o maldito som. Os dedos velhos e longos brincam com o
objeto, demonstrando familiaridade no ato.
Anjo mau.
Com mais cuidado, fito seu rosto em busca de qualquer traço
que se assemelhe ao homem que frequentava minha casa na
infância e, consequentemente, abusava da minha irmã.
As lembranças misturam-se e não sei se posso confiar no que
vejo, diferente dos outros que, mesmo sem recordar de suas faces,
eu possuía nomes, agora dependo da memória de uma criança de
oito anos, inocente ao ponto de nem sequer suspeitar que algo ruim
acontecia atrás daquela maldita porta.
Que a tal oração, na verdade, era o próprio inferno de Suiane.
Anjo mau.
Caim joga o chaveiro em cima da bíblia de maneira
despreocupada, no entanto, seu olhar atrás das lentes do óculos
dizem o contrário. A falsa mansidão que enfeita seu rosto se
transforma em um prazer cruel, predatório. Ele me avalia com
verdadeira curiosidade, fascínio até, como se...
Preciso me apoiar na parede mais próxima quando as pernas
voltam a fraquejar, o que aconteceu em demasia nas últimas horas.
Meu coração disparado pulsa dentro da cabeça, gerando uma dor
descomunal que me obriga a fechar os olhos e cortar qualquer
contato com o maldito.
Meu emprego na Babilônia, o convite para uma viagem até esse
inferno e, não duvido, toda a minha adolescência no orfanato, foram
assistidos por esse homem. Tudo isso faz parte desse jogo doentio
em que acredito estar no controle.
O Rei, sendo o centro de tudo, o maior manipulador dessa
partida real e sangrenta, assim como o tabuleiro em cima do
suporte, com suas peças organizadas com minúcia.
Anjo mau.
Ele quis isso, desejou presenciar o momento em que eu
descobrisse sua verdadeira face.
Caim está se divertindo às minhas custas, enquanto assiste a
enxurrada de emoções que atravessam meu corpo como um raio
potente e mortal. A presença de Athos é ignorada por nós dois, pois
fulminamo-nos através de nossos olhares, afinal, o falso riso
começa a dar espaço para o orgulho tingindo suas malditas feições.
Soberba emana de si de uma maneira tão densa que chega a
ser palpável, tão poderosa que a sinto envolver meu pescoço em
um aperto cruel, cortando o caminho do oxigênio para os pulmões.
Após anos de buscas por qualquer vestígio que indicasse o
responsável e o dono do maldito apelido deixado por Suiane, avisto
a linha de chegada, como se ele estivesse balançando a bandeira,
sinalizando sua localização, pedindo-me para me aproximar.
O carrasco vangloria-se ao mostrar sua face, sem a necessidade
de usar um capuz.
E para que usaria? Ele sabe que não precisa, não mais.
Enfim encontro-me em frente a ele, dono dos meus pesadelos...
O anjo mau.
promessa
1. afirmativa de que se dará ou fará alguma coisa;
compromisso oral ou escrito.
2. a coisa prometida.
CAPÍTULO 27
— Anjo mau — balbucio baixo e fraco, por fim, encontrando minha
própria voz. No entanto, ela sai com dificuldade e amarga toda a
minha boca. Uma sequidão incomum repuxando a língua,
embolando o órgão e inchando-o.
Caim lê os meus lábios e o rosto presunçoso ganha traços de
vanglória, cruzando as mãos em frente ao corpo inabalável. Tudo
minimamente calculado.
—Você consegue ser ainda melhor pessoalmente, Daiane, como
previ com inteligência — provoca orgulhoso. Finco as unhas nas
palmas até sentir a quentura do sangue tocar meus dedos,
escapando da ferida. — Valeu a pena investir tempo e dinheiro na
figura da Lilith, um espetáculo à parte.
— Você não viu o que é um verdadeiro espetáculo ainda, maldito
— rosno, sendo tomada por uma necessidade pungente em dar
cabo a essa vingança.
Por que prorrogar toda essa angústia de anos, se o próprio se
colocou na minha frente? A porra de um alvo fácil. Sorrio de canto,
dando a ele essa última visão.
Em um movimento ágil envolvo o cabo da minha faca, projetando
o corpo para a frente e lanço o objeto mortal, sem precisar de uma
segunda inspeção, e a lâmina afiada e carregada de sangue da
querida Roberta acerta com maestria seu pescoço velho e
pelancudo.
Caim cambaleia para trás, pego de surpresa, enquanto suga o ar
com desespero, afogando-se no próprio líquido carmesim. Os olhos
arregalados por trás das lentes do óculos vão perdendo a
arrogância, a vida se esvaindo desse ser repugnante, vertendo
lágrimas de sangue.
Sorrio, observando o corpo despencar no chão, produzindo um
baque ensurdecedor, mas que se transforma em música para os
meus ouvidos. Melhor que todas as composições clássicas de
Wolfgang Amadeus Mozart juntas.
Athos corre até onde estou, agarrando meus ombros e
balançando-me para frente e para trás com selvageria, mas seu
desespero não me afeta.
— O que você fez, Lilith? — grita na minha cara, saliva
respingando para todos os lados. Seu olhar apavorado não desperta
pena ou remorso, na verdade, não sinto nada.
— Agora o anjo mau está aos cuidados do Capeta — cantarolo
com uma nota de humor. — Pena que acabou rápido demais... —
sussurro.
— Lilith! — Então desperto desse devaneio real e sedutor, pisco
algumas vezes e deparo-me com Athos ao meu lado, sua mão
segura meu ombro com força, porém sem balançar. A preocupação
demonstrada na praia, ao passo que tentava me convencer a não
embarcar nessa viagem, presente outra vez. Ele se coloca em
minha frente, bloqueando a visão do maligno. — Você está bem? —
questiona em meia voz.
Por cima do ombro de Athos, direciono minha atenção para o
homem postado atrás da mesa, saboreando cada segundo que
permaneço dentro desse inferno particular.
Puxo ar para os pulmões, dividida entre a tristeza em saber que
nada disso passou de uma invenção dessa mente cansada. Encaro
Athos, ainda sentindo o resultado do devaneio percorrendo meu
sistema sanguíneo.
— Se eu estou bem? — repito, incerta.
“— Como você vai saber que está pronta? — ele pergunta,
testando-me novamente.
Abaixo os braços sem derrubar meu revólver Taurus 44H Racing
Hunter, e o encaro irritada. Hoje, o local escolhido para praticar tiro
ao alvo é um campo abandonado de golfe, longe o suficiente da
cidade.
Errei as três primeiras garrafas apoiadas cada uma em um
tronco de árvore, totalmente desatenta. Deve ser por isso que ele
fica tocando nesse assunto desde que começamos os treinamentos
e não rendi metade da minha capacidade. Abro a boca para
contestar esse idiota, mesmo que internamente saiba que ele está
certo, mas sou cortada.
— Não adianta ficar brava comigo. Se você não souber controlar
essa raiva e impulsividade para usá-la no momento certo, todo o
plano de anos, quem sabe de uma vida toda, já que não sabemos
quanto tempo levará, vai por água abaixo, Daiane. Veja por si
mesma. — Aponta com o queixo os alvos.
Respiro fundo, posicionando-me como ensinou e estendo os
braços, de olho na garrafa marrom a cento e cinquenta metros de
mim.
Sinto-me patética, pois essa distância é a mais curta em que
treinamos e, no entanto, a que estou falhando como uma miserável.
Puxo o gatilho, fazendo uso da impulsividade que ele falou, e o
projétil passa longe da garrafa.
— Inferno! — Chuto a grama aos meus pés, apertando o cabo
da arma com agressividade.
— Daiane — ele me chama com calma, a discrepância entre nós
maior a cada instante. —, quando você estiver frente a frente com
os homens que arrancaram a inocência de Suiane, que abusaram
dela, invadindo o corpo frágil e pequeno sem permissão, que a
estupraram por horas, por dias — provoca, ciente de que suas
palavras invadem meu sistema nervoso carregadas de incentivo. —,
vai permitir que o descontrole assuma ou fará cada um deles pagar
pelo que fizeram, com calma e muita, mas muita dor?
Meu lábio inferior treme enquanto encaro seus olhos de
aparência pacífica, contudo, só eu sei a tempestade que esconde.
Suas mãos tocam meus braços, incentivando-me a erguê-los,
novamente fico em posição, observando a maldita garrafa no tronco.
— Quando o momento chegar — sussurra perto do meu ouvido,
abaixando os próprios braços e dando-me total controle da situação.
—, custe o que custar, controle os seus sentimentos e permita que a
frieza, o desejo por sangue e a ânsia por morte, tome conta.
Fecho os olhos por alguns segundos, seguindo cada uma das
suas palavras, mesmo que encontre dificuldade em domar meu
temperamento. Eu preciso fazer isso ou Suiane jamais será vingada,
então, assim que abro meus olhos fitando o alvo distante, imagino
ser a cabeça de um pedófilo e puxo o gatilho.
O som de vidro se espatifando é música para os meus ouvidos.
Ele não diz nada, mas dá batinhas em meu ombro e a sombra de
um sorriso serpenteia em seus lábios.”
Assim que a recordação passa como um filme diante dos meus
olhos, sorrio para Caim, um riso recheado de sarcasmo e
promessas.
Agora que sei quem é o rosto por trás das palavras escritas às
pressas por minha irmã, não perderei a oportunidade de fazê-lo
implorar por sua patética vida, mas não aqui, nessa sala ridícula,
menos ainda agora.
Como já concluí, está fácil demais com o alvo postado em minha
frente, seguro de si, e ele merece passar por toda a minha
experiência de tortura.
Olho para Athos, ainda bloqueando parcialmente minha visão, e
levanto o braço, acariciando seu rosto sujo de sangue, igual ao meu.
Seus orbes azuis denotam toda a confusão diante do meu
comportamento peculiar, afinal, caminhei em meio ao caos, quase
subjugada por completo, perdendo os últimos resquícios de
controle.
Como meu contato pontuou, não posso e não devo colocar por
água abaixo os planos de uma vida inteira lutando por essa causa.
— Estou ótima, chefinho — digo com suavidade. Aproveito o
sangue grudado em sua pele e esfrego meus dedos, retirando o
líquido outrora quente. Diante do seu olhar assustado, pinto meus
lábios como se fosse um batom da MAC e dou um passo para o
lado, deparando-me com um Caim dividido entre a curiosidade e a
diversão, então caminho até ele com a cabeça erguida, jamais
cortando nosso contato visual. — Obrigada — falo antes de me
aproximar e, antes que possa prever, deposito um beijo em seu
maldito rosto velho antes de sussurrar: — Esse é o meu beijo de
Judas, para alguém tão especial como você, Caim. Um verdadeiro
homem de Deus.
Afasto-me ciente de que ele compreendeu o significado, já que
conhece a bíblia do início ao fim. Recebo a confirmação quando
Caim começa a gargalhar, colocando a mão na barriga e fitando-me,
com a marca do batom destacando-se em sua bochecha.
Sua risada é tão alta que o som ecoa pela sala em que estamos,
por trás das lentes do óculos vejo seus olhos lacrimejarem tamanha
a intensidade do riso. Patético.
Athos acompanha tudo em silêncio, porém não intervém. Antes
de abandonar esse inferno, caminho em direção ao tabuleiro, à
medida que Caim ri ainda mais, sentando-se na poltrona como um
verdadeiro lunático.
Pego a Rainha com cuidado, erguendo-a na altura dos meus
olhos e contemplo como é linda. Os detalhes que imitam uma coroa,
além do dourado envolvendo toda sua estrutura.
Com a mão livre, toco a maquete de vidro da empresa e fito
Caim, a maldita risada cessa em um piscar de olhos, atento.
— Você sabe que na bíblia a torre de Babel foi destruída por
Deus, não é? — reproduzo as palavras de Kai enquanto
conversávamos no bar do nível 3. Um vinco se forma na testa do
imundo, os lábios repuxados em desgosto, pois estou roubando a
atenção que adora ter. — Está claro que estou longe de ser Deus,
na verdade, sou mais parecida com o Diabo, sabe? E nunca tive
tanta certeza de algo... — Arrasto a maquete até a beirada do
tabuleiro, acompanhando como algo aparentemente simples o
enlouquece. — Prepare-se, Caim querido, pois a Babilônia vai cair.
Empurro a maquete para o chão, adorando o prazer que
percorre meu corpo enquanto ouço o vidro se chocar com o solo e
espalhar milhares de cacos por todas as direções.
Caim não se levanta, mas as mãos em punho por cima da mesa
denunciam a ira reprimida, assim como o rubor marcando as
bochechas flácidas.
Derrubo as peças restantes no tabuleiro, menos o Rei, esse eu
deito bem no meio do objeto, o deixando sozinho, abandonado.
— E o Rei vai queimar, de preferência no próprio inferno —
completo a sentença, apreciando a face rubra de Caim, então ando
para a saída dessa maldita sala ouvindo os sons de vidro sendo
pisoteados pelo solado de uma bota enquanto passo por Athos, que
observa a tudo, agora com o semblante mais parecido com o de
sempre, quase como se tivesse gostado do que assistiu. Carrego a
Rainha comigo e abro a porta, mas dou uma pausa, encarando o
anjo mau por cima do ombro. — “O inferno está vazio e todos os
demônios estão aqui.” Shakespeare foi mais preciso do que todas
as mil páginas da sua bíblia juntas. — Aponto para o livro aberto
embaixo de suas mãos e sorrio, fechando a porta atrás de mim.
Observo o templo desabitado e os primeiros raios solares
atravessam os enormes vitrais, enquanto um grito ressoa do outro
lado da porta. A cruz vazia recebe fragmentos da iluminação natural,
começando pela parte debaixo.
— Caim vai ter o que merece, irmã — prometo, sentindo meu
corpo tremer em antecipação e júbilo. — O anjo mau vai pagar por
tudo o que te fez, ou não me chamo Lilith, Suiane. E o preço será
muito, muito alto.
O preço da cruz.
PARTE 2
Novo Testamento
Hoje mamãe avisou que um amigo viria mais tarde para me ver,
e que se ele gostasse de mim, Dai teria sorte.
Ela não precisou explicar nada porque eu já entendia o
significado, depois de anos acontecendo a mesma coisa. Só que
dessa vez ela falou de Daiane para o amigo e isso me deixou com
muito medo.
A pequena Dai não pode saber o que é isso, ninguém vai
machucar a minha irmã, a única pessoa que eu amo.
Será que é errado odiar mamãe?
Às vezes eu choro porque eu só queria que ela parasse de usar
aquela seringa, e que fizesse carinho na gente, tipo o que dona
Rute faz na Manuelinha quando elas sentam em frente da casa,
sem ligar para o chão de barro.
Como a gente não tem muro aqui, vejo a mãe dela tirando os
nós do cabelo da Manu bem devagar, só para a escova de madeira
não enroscar mais. Dona Rute beija a cabeça da menina antes de
elas entrarem em casa.
Às vezes choro porque tô olhando para faca meio enferrujada na
pia e depois para mamãe jogada no sofá, mas se eu fizer isso,
quem vai cuidar da Dai? Se eu não estiver aqui, minha irmã vai ser
machucada e ela não merece isso.
Eu acho que também não mereço, mas ninguém tentou me
ajudar. Nem dona Rute, que vê os amigos da mamãe entrarem aqui.
Ela só cobre a janela com um pano velho e tira no outro dia.
Agora vou mandar a Dai tomar banho porque tá ficando tarde.
Depois da visita do amigo da mamãe eu tomo, aí economizo água.
Para que me lavar agora, se ele vai me sujar? Tento criar um
pouquinho de esperança de que esse será diferente dos outros,
mesmo sabendo que nunca deu certo.
Eu sou muito idiota mesmo.

Ele é o pior de todos!


Minha pele tá toda vermelha de tanto esfregar o restinho de
sabonete tentando limpar a sujeira que ele deixou.
Dai já tá dormindo e mamãe não voltou ainda, vi quando seu
amigo colocou várias notas na mão dela e ela saiu correndo para
comprar mais drogas. Agora tô aqui, sozinha no sofá e sentindo
tanta dor enquanto os meus joelhos machucados sangram.
Tem uma mancha escura sujando minha saia bem no meio das
pernas, quase não enxergo a folha aonde tô escrevendo porque
minha visão tá embaçada. Sinto vontade de vomitar cada vez que
lembro que ele mandou eu engolir aquilo. Ele me bateu duas vezes
porque fiz cara de nojo e disse que só dependia de mim ele parar,
que ovelhas devem obedecer em silêncio, sem reclamar.
Se eu não fizesse o que ele estava mandando, ele descontaria
na minha irmã, por isso que eu tentei ler aquelas letras pequenas do
livro que o homem trouxe enquanto...
Só de lembrar do barulho das chaves meu coração dispara e
todo o meu corpo treme.
Ele é o pior de todos.
Antes de ir embora, o amigo da mamãe falou que agora ele seria
um anjo em nossas vidas, porque não ia deixar faltar comida como
antes, mas eu prefiro morrer de fome do que ver esse homem de
novo.
Ele disse que era um anjo e eu acreditei nisso.
Ele é mesmo um anjo.
Um anjo mau.
aflição
1. estado daquele que está aflito.
2. sentimento de persistente dor física ou moral; ânsia,
agonia, angústia.
CAPÍTULO 28
— Duas opções, filho: ou você para essa imunda com as próprias
mãos, ou darei um jeito nela — a suavidade com que ameaça do
outro lado da linha é pior, se comparado aos seus gritos de
antigamente, a habilidade adquirida ao longo dos anos o tornou
ainda mais cruel. — Se é dessa forma que ela pretende jogar,
ignorando a oferta oferecida para trabalhar conosco, que Lilith esteja
preparada. — Esfrego o rosto enquanto encaro as imagens na TV a
minha frente. — Mais um incidente como esse e serei obrigado a
intervir, então se apresse, filho, encontre a imunda e detenha seus
próximos passos.
Caim desliga sem despedidas, mas o aviso repassado
permanece comigo, pressionando-me até os ossos.
Em outro cenário, eu já teria acabado com ela sem remorsos,
como sempre fiz, mas agora... A situação é diferente e me importar
com a desgraçada atrapalha tudo.
Jogo o celular na cama da suíte e pego o controle, tirando o
volume do mudo, deixando que a voz do repórter tome todo o
espaço, alternando as imagens entre ele e o local do crime.
“— Esse é o terceiro homicídio em apenas uma semana. O
modus operandi indica se tratar do mesmo assassino que vem
atormentando as igrejas e os fiéis começam a nutrir um medo
incomum, fazendo com que a frequência nos templos religiosos
diminua drasticamente. Alguns postaram em suas redes sociais que
esse é o sinal de que Jesus está voltando. Três grandes líderes de
comunidades diferentes foram mortos e deixados dentro das igrejas
para que os fiéis os encontrassem...”
Gosto do que vejo, sinto prazer em acompanhar como Lilith vem
cumprindo sua promessa, só não imaginava que seria tão rápido, é
como se ela não quisesse perder mais tempo.
O que me aflige são as palavras de Caim, conhecendo-o como
ninguém, sei que ela corre risco e, talvez, não chegue na principal
pessoa dessa jornada em busca de vingança.
Volto a prestar atenção na tela quando vejo um homem sendo
entrevistado e acabo sorrindo.
“— A provável assassina é habilidosa e não deixou vestígios nas
cenas dos crimes.
— Como o senhor sabe que é uma mulher, delegado?
— Além do modus operandi, nos três locais a criminosa deixou
uma espécie de presente que a perícia acredita ser uma mensagem.
— E que presente seria esse, delegado?
— É a primeira vez em anos nessa área que vejo algo assim.
Além dos corpos nus, posicionados imitando uma cruz, os órgãos
genitais foram arrancados. A pessoa por trás de tudo isso costurou
os lábios unidos depois de inserir os órgãos dentro das bocas e uma
peça de xadrez foi colocada no espaço do ferimento, a Rainha. Por
isso...”
Ignoro o restante da entrevista do delegado alargando o sorriso
nos lábios. Lilith não está fazendo tudo isso sozinha, concluo, afinal,
entre esses líderes assassinados, um é de outro estado, enquanto
os outros dois são daqui de São Paulo.
Desde que a conheci e presenciei suas habilidades através de
um excelente treinamento, suspeitei de que havia alguém por trás.
Seja quem for, fez um trabalho perfeito com a Queen, e agora está
dando uma... mãozinha.
Faz uma semana desde que ela esteve frente a frente com Caim
e prometeu derrubar a Babilônia.
Assim que saiu sozinha da cidade em que estávamos, Lilith fez
uma visita a empresa, deu ordens a Silas, arrumou suas malas e
desapareceu do mapa.
Agora sou o responsável por encontrá-la e evitar mais um
assassinato de algum pobre líder pedófilo. Não duvido que ela tenha
uma extensa lista com os nomes das pessoas presentes naquele
templo e que sinta prazer em executar cada nome nesse checklist
mortal.
Se ela não concluir seus planos o quanto antes, Caim vai matá-
la usando de toda a proteção que conquistou ao longo dos anos
sendo a figura religiosa mais carismática do país. Compreender que
esse cenário é totalmente possível me atormenta como nunca.
A mulher, antes de trocar de número, sequer atendeu minhas
ligações, nem mesmo as mensagens enviadas. Se eu fosse Lilith
agiria da mesma forma, já que convivo com o homem que abusou
da sua irmã.
Infelizmente fui obrigado a isso, não houveram opções além de
caminhar ao lado dele, mas ela precisa ouvir da minha própria boca
que também busco por vingança, nossos objetivos são tão
semelhantes que essa constatação dissipa o riso em meus lábios.
Athos já foi uma dessas criaturinhas no outro lado da porta.
Se eu pudesse, ressuscitaria Roberta, apenas para matá-la outra
vez só por ter zombado de um passado que pertence somente a
mim. Fecho as mãos para conter o tremor que tenta se apossar do
meu corpo toda vez que sou obrigado a recordar. São lembranças
repletas de escuridão, tão opressoras quanto a mão que tapava
minha boca para eu não gritar.
“Fique quietinho...” A voz sussurrada dentro do meu ouvido
nunca abandonou a porra da minha cabeça.
Bato nas têmporas para expulsar esse som repugnante e,
mesmo que o gesto provoque uma dor aguda em meu crânio,
permaneço socando minha cabeça de olhos fechados, a respiração
acelerada faz meu organismo trabalhar ao máximo. O sangue é
bombardeado mais rápido que o normal e tudo ao meu redor
começa a girar e alguns pontos escuros tomam toda a minha visão
assim que abro os olhos para evitar uma queda.
“Quanto mais você lutar, mais dor vai sentir...” A voz retorna
mesmo assim.
Encaro a embalagem nova com a oxicodona e a abro,
derrubando vários comprimidos em cima do aparador. Sinto minhas
costas empapadas de suor, porém um frio percorre minha pele,
eriçando os pelos.
Uso meu próprio punho para esmagar as pílulas, correndo contra
o tempo antes de perder por completo o mísero controle que ainda
possuo.
A madeira do aparador range, mas não paro, a fúria atinge um
nível diferente de tudo que já senti, fazendo cada centímetro dessa
porra que me tornei tremer.
Com o cartão da Babilônia faço três carreiras desajeitadas, então
pego uma nota qualquer e, assim que termino de enrolar o dinheiro,
curvo o tronco sobre o aparador e cheiro a primeira carreira,
tapando o lado esquerdo do nariz.
“Bom garoto...” A voz ainda alta demais.
Sem pausas, faço o mesmo com o canal limpo do nariz e inclino
a cabeça para trás, sentindo a droga invadir meu sistema nervoso.
Como não triturei da forma correta, acabo sentindo alguns
pequenos pedaços na sequência, mas foda-se, movo a ponte do
nariz, sugando o ar com mais força e levando tudo para dentro.
A imagem do quarto permanece girando, transformando-se em
duas, e o caralho daquela voz diminui o tom dentro da minha
cabeça.
Um dia eu vou te matar...
Caio perto da cama quando a recordação do menininho que fui
retorna estapeando minha cara.
— Tô te devendo essa, cara... — Encosto a cabeça na beirada
da cama, observando o teto girar. — Por você e por ele... vou matar
o filho da puta... — Volto a socar meu crânio sem dar importância ao
estrago que estou fazendo. — A maldita voz... — sibilo enquanto
travo o maxilar, socando minha cabeça com as duas mãos ao
mesmo tempo, a dor não sendo o suficiente para me acalmar, nem
espantá-los de dentro de mim. O ar parece não encher os meus
pulmões como deveria. — Ela nunca vai... essa porra não
desaparece...
Um líquido quente desce por meu rosto, inundando as
bochechas, e não consigo identificar se é o sangue do corte na
testa, ou lágrimas que escapam mesmo que eu lute para evitá-las.
Talvez sejam as duas coisas e esse merda que me tornei não é
boa o suficiente para diferenciar algo tão simples.
Meu celular começa a vibrar em cima do colchão, anunciando o
chamado de alguém, provavelmente um dos homens que coloquei
para ficar de olho nos passos dos líderes que estavam no
Congresso.
Nos que ainda estão vivos, é claro. Conhecendo Lilith, ela vai
atrás deles, só preciso saber qual é o escolhido por ela para ser o
próximo a conhecer o Diabo.
— Tenho mais um pra colocar nessa maldita lista, Queen — falo
para o meu quarto tão vazio quanto me sinto e me arrasto pelo
chão, sem forças para erguer o tronco —, mas desse eu cuido...
Ninguém vai tirar de mim o prazer que será vê-lo implorar para
que eu pare, para que o seu sofrimento cesse quando, na verdade,
estará apenas começando.
Escoro-me nos cotovelos assim que consigo impulsionar meu
corpo para o colchão, atravessando a neblina da confusão. O
aparelho para de vibrar, porém uma mensagem curta e muito
satisfatória aparece.
Jogo as costas no objeto macio enquanto uma gargalhada real e
bem-vinda expulsa a tensão de segundos antes, rio agarrado ao
celular, encolhendo o corpo em posição fetal.
— Talvez eu mude de ideia e chegue atrasado para detê-la,
Caim... — sussurro, eufórico por saber quem é a próxima pessoa da
lista dela.
Olho mais uma vez para o aparelho, relendo o começo da
pequena mensagem que me deixou tão animado.
Lilith pegou mais um.
— Nos vemos nas profundezas do inferno, miserável.
júbilo
1. alegria extrema, grande contentamento; jubilação,
regozijo.
CAPÍTULO 29
“— Sabe o que mais me impressiona na palavra de Deus? É ver
os homens se derramarem no altar d’Ele sem reservas. No livro de
Samuel a palavra diz que, após ter trazido a arca para Jerusalém,
houve uma grande festa, talvez bem parecida com a desta noite, e o
povo se alegrava, cantando e adorando, porque a glória de Israel
havia retornado! E o homem de Deus, Davi, sabia que a arca era a
representação da presença do Deus vivo. O desejo desse grande
homem era construir um templo de adoração ao Deus vivo.”
Começo a atravessar o extenso corredor lustroso a passos
largos, o som das minhas botas misturando-se ao ambiente e dando
um ar ainda mais especial para essa noite.
O chão de mármore cinza reluz contra as lâmpadas no teto alto e
branco, o cheiro dos estofados em azul-petróleo indicam o quão
novas são as dezenas de fileiras em linha reta.
Observo a figura sentada na cadeira, com as mãos presas atrás
das costas e os tornozelos nos pés do objeto, tendo a ousadia de
sorrir para mim, retribuo o gesto e bato palmas ao término parcial da
pregação ao fundo. As luvas de couro pretas abafam o ato, mas isso
não me impede de continuar.
— Bravo, bravo! — exclamo com entusiasmo, o deboche
escorrendo da minha boca. — Ah, não é assim que vocês fazem! O
que acha de “Glória a Deus, Aleluia!”? — Estanco os passos a
menos de dois metros do maldito, elevando minhas sobrancelhas
em um questionar silencioso. — Deveriam receber um prêmio por
esse teatro fervoroso que vocês fazem, principalmente esse aí. —
Aponto para o sistema de som e pego o pequeno controle no bolso
da calça para aumentar o volume. — Caim merece um Oscar de
melhor ator!
O líder que segui naquela noite e que vi entrando em um dos
quartos não para de rir, mesmo preso e ciente do que vai acontecer,
quer dizer, ele acha que sabe, mas adicionei algo especial ao meu
modus operandi.
“Deus não quer templos feitos pelas mãos dos homens, porque
de nada adiantaria possuir um grandioso templo e dentro dele não
encontrarmos a presença de Deus!”
Nos encaramos com calma até, e fico a cada segundo mais
maravilhada com todos os passos que dei para chegar nesse
momento.
Os outros líderes que enviei para o Capeta, além da ajuda
especial do meu contato durante esses dias, foram primordiais. Sei
que poderia ter feito tudo sozinha e que prolongaria ainda mais a
angústia deles, mas os outros que já se foram – e que o Diabo os
tenha – não demonstraram uma fagulha de arrependimento, nem
uma súplica por suas malditas vidas.
Assim como no jogo de xadrez, estou formando um cerco ao
redor do Rei, a peça a ser destruída. Derrubo seus peões sem
qualquer culpa em meu coração.
Agora, estou prestes a eliminar a Torre que sorri em minha
frente, o intitulei dessa forma porque, para mim, o Bispo é outra
pessoa.
Uso o controle para cortar a voz asquerosa e as primeiras notas
de uma canção preenchem o templo. Ergo os braços para o céu,
inclinando a cabeça para trás e imito os gestos que eles fazem.
Depois de tantas sugestões da Alexa, decidi colocar uma música
cheia de energia para essa noite maravilhosa. O timbre poderoso da
vocalista adentra meu sistema nervoso, enviando ainda mais euforia
e diversão para meu cérebro.
Parou de chover na minha cabeça hoje.
Finalmente me sinto eu outra vez.
Redenção está finalmente aqui, de volta onde tudo começou.
No lugar onde Deus e o Diabo apertam as mãos.[4]
— Consegue sentir? — grito acima da música e ele gargalha. O
rosto carrega machucados do momento em que o capturei enquanto
tomava banho, seu olho direito parcialmente fechado, sangue seco
no nariz e boca, e o pau flácido e pequeno no meio das pernas
peludas. — Porque eu sinto a presença d’Ele!
Esse é o meu reino.
Essa é a minha catedral.
Esse é o meu castelo, e esse é o meu povo.
Corro o resto da distância que nos separa e agarro as laterais da
cadeira, girando o objeto comigo. Assim que posiciono o meu
convidado para que não perca nada, subo no altar e movo o corpo
ao som da batida da belíssima música, em adoração.
Giro sem sair do lugar, os braços estendidos e os olhos
fechados, apreciando os últimos segundos de vida do ser
prepotente na cadeira. Sua risada se junta ao som edificante, o que
me faz deixar à mostra meus dentes alinhados.
O batom vermelho foi escolhido para combinar com todo o
sangue que escorrerá do maldito. Meu cabelo preso na nuca,
formando um coque apertado, enquanto o resto do meu corpo está
coberto pelo traje preto.
Um coral está cantando em meu coração hoje,
Como mil anjos quebrando o desfile silencioso.
Para aqueles que eu chamo de meus, estou de volta aonde eu
pertenço.
No lugar onde Deus e o Diabo chamam de lar.
Pego a faca, que descansa em cima do púlpito, separada para o
momento de glória e, com a ponta da língua, percorro toda a lateral
da lâmina extremamente afiada enquanto observo o líder abaixo de
mim.
O metal gelado contrasta com a quentura do meu corpo e eriça
meus pelos da nuca em uma provocação maliciosa.
Olho através dele, encarando o templo vazio, e aproveito para
acionar outros comandos no pequeno controle, apagando todas as
luzes ao nosso redor e deixando apenas uma iluminação central,
direcionada para o espaço escolhido no meio da igreja.
Na parte final da música, aonde os vocais ganham força total,
salto do altar de olho nele e sento-me em seu colo nu. Agarro o
queixo do líder e cantarolo a melodia em sua cara, sem perder
nenhum gesto do convidado.
Essa é minha armadura, esta é a minha âncora.
Tem sido um longo caminho para fora do inferno até o
campanário.
Pois esta é a minha igreja e este é o meu povo.
— Sabe — desdenho no instante em que a música termina,
minha voz não passando de um ronronar —, até que gostei do seu
nome... Davi. — Arrasto a ponta da lâmina na bochecha do líder,
atenta. — De tantos nomes bíblicos, você se chamar Davi se torna
uma grande piada.
— Por que ele foi temente a Deus? — provoca, mas sua fala não
surte o efeito desejado em mim.
Balanço a cabeça em afirmação e arrumo minha postura em
cima das suas coxas.
— Também, mas Davi, o homem segundo o coração de Deus, foi
um dos piores que já pisaram nessa Terra, não acha? — Desço a
mão livre por seu peito nu, analisando suas reações. — Sei que
você conhece toda a história, mas permita-me enumerar alguns dos
pecados desse homem de Deus. — Envolvo seu pau murcho e o
líder não demonstra qualquer resquício de sensação. — Davi
quebrou metade dos mandamentos, mas tudo bem, vamos relevar,
afinal ele é um escolhido. Foi... — Faço pressão na base do pênis,
fincando os dedos enluvados na carne nojenta e, enfim, um franzir
de cenho desponta. — Então Davi cometeu assassinato, mentiu,
adulterou, cobiçou a mulher do seu vizinho, mas o melhor vem
agora: — Começo a mover minha mão para cima e para baixo com
demasiada força e ele trava o maxilar sombreado por pelos — Ele
roubou a esposa de outro homem.
— Mas ele se arrependeu...
— Também conheço essa merda, não preciso da sua opinião,
Davizinho — rebato e aumento a velocidade do vai e vem, sem tirar
a faca da bochecha marcada. — Tem misericórdia de mim, ó Deus,
por teu amor; por tua compaixão, apaga as minhas transgressões —
cito a passagem bíblica decorada durante a semana e abaixo a
ponta da lâmina bem em cima da sua jugular antes de continuar: —
Lava-me de toda a culpa e purifica-me do meu pecado, pois eu
mesmo reconheço as minhas transgressões, e o meu pecado
sempre me persegue.
— Deus o perdoou — debocha, ainda que esteja em
desvantagem, e não há um traço de receio em seu semblante.
— Pois é, mas eu não sou Deus e não tenho a intenção de
desperdiçar misericórdia em pessoas como você. — Arregalo os
olhos e abro a boca em ‘O’, fingindo surpresa quando o pau dele se
anima. — Então o sagrado Davi não é insensível a adultos, apenas
tem preferência por criancinhas.
— Você está me provocando, puta, não tenho como controlar
meu corpo... — Aspira forte assim que meus dedos espremem a
cabeça nojenta do seu pau.
— Essa é a desculpa que você usa para molestar meninos e
meninas? Que é impossível controlar seus instintos quando vê um
corpo ainda em desenvolvimento? — Torço seu membro da mesma
forma que faria se essa merda fosse uma esponja. Delicio-me com
os olhos lacrimejados que me fitam repletos de ódio. Seu grunhido
de dor me saciando. — Por acaso já se perguntou o que elas
sentem quando são invadidas? Acho que não, mas não tem
problema, porque vamos descobrir isso agora!
Levanto-me com tanta rapidez que Davi mal acompanha meus
próximos passos. Empurro a cadeira no chão, usando de toda a
minha força, e o objeto quebra de um lado, como previsto.
Seguro a corda que prendi em seus pulsos, separando-os e
arrastando seu corpo para mais perto do altar, onde dois pequenos
ganchos foram colocados. Uso cada um deles para prender seus
braços de maneira que fiquem estendidos.
— Semelhante a Cristo — desdenho, o encarando de cima e
Davi volta a sorrir. — Não gosto de fazer algazarra e chamar muita
atenção quando envio um presente para o Capeta. — Seus
tornozelos envoltos em corda facilitam o encaixe no terceiro gancho,
então o corpo de Davi forma uma cruz. — Sou cuidadosa e
silenciosa, mas vocês despertaram um lado meu que, porra, é uma
maravilha!
— Você gosta de chamar a atenção, Lilith, gosta de poder...
— Talvez, mas você não estará mais aqui para descobrir quanto
poder eu vou ganhar! — Dou de ombros e faço um biquinho,
analisando a cruz de madeira acima do altar. — Se você se
arrepender no último segundo, ainda é perdoado? Recebe a
salvação?
O sorriso com os dentes sujos de sangue se expande em Davi.
Desde o momento em que fui atrás dele, livrando-me de seus
seguranças, o homem não demonstrou resistência. É como se o
maldito estivesse em paz com o pagamento dos seus pecados, mas
não estou aqui para ficar avaliando a mente fodida desse monstro.
— O que acha? — Dessa vez não o interrompo e espero para
ouvir o que ainda pode sair do inútil. — Lembra do ladrão na cruz?
Ele se arrependeu no último instante, eu diria que foi perdoado, que
recebeu a vida eterna.
— Isso! — Aponto o dedo indicador para Davi e começo a
caminhar, dando a volta em seu corpo nojento no chão. — Esse
sistema não faz sentido, porque se você se arrepender daqui a
pouco, bem no momento em que eu estiver tirando a sua vida, é
perdoado? Ganha a salvação mesmo depois de tocar em algo tão
puro quanto aquelas crianças? Não sou nenhuma flor que se cheire,
Davizinho — Paro perto dos seus pés e coloco as mãos na cintura,
pensativa. — Isso não é novidade, mas...
— Pensar que até os monstros vão para o céu, é interessante,
Lilith, admita! — Davi zomba do assunto, no entanto, ele tem uma
parcela de razão e a usa com habilidade.
— Então é isso que planeja? Se arrepender nos instantes finais
e...
— Eu tenho cara de alguém arrependido? — Lambe os lábios,
os olhos expandindo-se na sequência. Tombo a cabeça para o lado,
fitando a arrogância presente no líder. — Se todo esse show que
vem fazendo há mais de uma semana foi para isso, lamento, puta,
mas perdeu a porcaria do seu tempo...
“A polícia foi avisada, você tem dez minutos.” Ouço com atenção
as palavras do meu contato, interceptando sinais da região e
cuidando do seu amado fuzil no lado de fora.
Respiro fundo, a tristeza por ter o meu precioso tempo roubado
me abraçando.
Davi acompanha meus movimentos diante do silêncio que recai
no templo. Caminho até o altar, onde deixei o brinquedinho
escolhido para a noite de hoje, e o ergo na altura dos olhos,
esquadrinhando o líder.
— Que doa até os ossos, maldito — provoco, enquanto pego o
controle do sistema e aperto o play na outra música separada com
antecedência.
Davi avalia com cautela até identificar o que seguro e começa a
gargalhar, alternando a atenção entre nós. A melodia explode nos
alto-falantes e abafa a voz dele.
Oh, estou aguentando isso tudo por nós.
Estou aguentando isso tudo,
Estou aguentando isso tudo por nós.[5]
Abaixo-me em cima de suas pernas unidas, segurando a faca e
o objeto de metal escolhido a dedo para o momento. Em breve ele
verá com os próprios olhos o que essa maravilha pode fazer, vai
sentir na pele, o que é ainda melhor.
Mesmo que Davi esteja com os tornozelos presos, dificultando
um pouco o trabalho para introduzir o meu brinquedo, não me
importo já que essa posição vai deixar tudo ainda mais interessante.
Deslizo a ponta fina e gelada na coxa cheia de pelos,
observando o sangue escorrer da ferida.
Oh, estou fazendo tudo isso por amor.
Estou fazendo tudo isso,
Estou fazendo tudo isso por amor.
Repouso a faca no chão do templo e, com meus dedos livres,
toco o ferimento, pintando minha luva com o magnífico carmesim
enquanto Davi treme diante da dor.
Inclino-me para frente e avalio sua face em uma mistura de ódio
e prazer. Os outros malditos parecem ter isso em comum, concluo,
pois é o mesmo gesto feito por Davi agora.
Nossos olhares se fixam e uso o momento para abençoá-lo e
deixar a sua viagem até os confins do inferno mais turbulenta.
— In nomine patris. — Faço a linha vertical no meio do seu peito,
o sangue servindo de tinta para marcá-lo. Não encontro dificuldade
em pronunciar o texto em latim, decorado pela manhã. — Et filii, et
spiritus sancti. — A próxima linha é na horizontal, formando a cruz.
Balanço a cabeça positivamente, apreciando o feito com a euforia
percorrendo minhas veias, aprovando cada segundo. — Amen.
Hey, apenas pelo seu amor,
eu vou te dar o mundo.
O sorriso de Mona Lisa.
— Na Idade Média havia a Inquisição para julgar crimes de
heresia. — Pego o objeto, colocando-o na direção de seus olhos e
Davi treme. — Um dos equipamentos mais brutais da época foi essa
belezinha aqui, você conhece? Claro que sim, a Pera da Angústia é
famosa — Giro a peça metálica e faço um muxoxo com a garganta
—, mas sabe como é, sempre que a igreja se envolve em assuntos
que não deveria, as coisas tomam outro rumo. Como essa pera
aqui, feita para punir mentirosos, mas que acabou sendo usada em
mulheres e homossexuais. Sem piedade, os santos da igreja
enfiavam esse objeto nas vaginas e ânus daqueles que julgavam
estarem errados.
As quatros folhas de metal estão unidas, no entanto, escolhi
justamente a que apresenta elevações na estrutura, o que vai gerar
ainda mais dor no convidado.
Envolvo com as duas mãos a base da pera e a direciono para o
orifício entre suas pernas, sem tirar os olhos de Davi, e assim que
encontro a entrada pequena do seu ânus, pressiono minimamente,
testando-o, e todo o seu corpo se retrai.
— Poderia cortar esse pau murcho antes e enfiar toda a carne
nojenta em sua boca, mas quero ver como vai lidar com essa dor —
compartilho alto, para que ouça através da música. Ajoelho-me
entre as suas coxas, o obrigando a manter as pernas abertas, e
sinto seu corpo endurecer, denotando outro sentimento. — Na
bíblia, júbilo significa extrema alegria, lembra? — Passo a ponta da
língua nos lábios, saboreando a euforia e me afogando em sua
intensidade.
— Por que não... acabar logo com isso... ? — retruca e quase
sinto seu medo no ar.
— Eu decido o minuto que o brinquedo vai perfurar a porra do
seu rabo. — Desço meus olhos para o objeto em mãos, totalmente
seco. — A última decisão deixo com você, Davizinho — cantarolo,
enxergando-o através dos cílios. A face temerosa por estar muito
perto de se encontrar com o Diabo. — Com ou sem cuspe? — Não
há necessidade de outras palavras, pois o maldito entende e,
mesmo com medo, ri. — Posso facilitar...
— Sem...
Não espero completar a sentença e uso cada grama de força
para enfiar a pera de metal em seu rabo nojento. Através dos gritos
de agonia e o corpo tentando mover para escapar, observo o
aparelho sumir diante dos meus olhos, invadindo a cavidade
contraída.
— A surpresa vem agora — sussurro fitando-o, ainda que não
consiga ouvir minhas palavras em meio a dor.
“Cinco minutos” Meu contato avisa no ponto em meu ouvido.
Uma pena, queria ter mais tempo.
O dispositivo possui uma chave na parte traseira que, quando
acionado, as folhas se expandem dentro do corpo. Alterno a
atenção entre seus olhos e seu rabo no momento em que giro a
chave dessa preciosidade.
As quatro folhas se abrem, mutilando o reto de Davi, as pontas
deformadas cravam em sua carne pela parte de dentro e sangue
começa a jorrar em propulsão, seu corpo treme sentindo a agonia
percorrer cada centímetro de si.
Os gritos saem estrangulados e seu peito se move em uma
velocidade preocupante.
Não para mim.
Hey! Caramba, eu pegaria vinte e cinco anos por assassinato
Se isso me tornasse um rei, uma estrela em seus olhos.
O cheiro de fezes atinge meu nariz assim que o homem defeca,
a massa marrom mistura-se com o sangue. Sua urina amarelada
molha minhas luvas de couro, então uso esse instante para agarrar
a faca no chão e pressionar a ponta dela no espaço entre o ânus e o
membro. Ao fitar Davi, o encontro delirando, as órbitas oculares só
faltam pular para fora.
— Por todas elas... — aviso com prazer enquanto mutilo seu
corpo, arrancando seu maldito pau. Assisto sua estrutura patética
entrar em colapso diante da imensa dor e levanto-me com o
membro em mãos. Me aproximo da sua cabeça e enfio a porcaria
da sua carne mole em sua própria boca, então a fecho, mantendo
seus lábios unidos com meus dedos, pois não terei tempo de
costurar. — Mande lembranças para o Diabo — desdenho,
observando-o sufocar.
O rosto tomado pela dor, além dos olhos submersos em
lágrimas, faz toda essa espera valer a pena. Não da mesma forma
que será quando Caim morrer em minha frente.
“Um minuto.”
Suspiro, acompanhando a vida abandonar o homem segundo o
coração de Deus.
Os olhos vazios de Davi encaram além de mim, como se
estivessem fitando a cruz de madeira. Tiro do bolso do casaco o
presente que deixarei no lugar, em agradecimento pela gostosa
noite proporcionada a mim.
Eu espero que um de vocês volte para me lembrar quem eu era,
Quando eu desaparecer naquela boa noite.
Introduzo a Rainha na cavidade aonde estava o pau de Davi e
sorrio, ciente de que o xeque-mate se aproxima. Dou as costas para
o corpo sem vida no instante em que a música reproduz sua última
frase.
Estou aguentando isso tudo por nós, fazendo tudo isso por amor.
atribulação
1. sofrimento moral; aflição, mortificação.
2. acontecimento desagradável, penoso; agrura,
adversidade.
CAPÍTULO 30
Acompanho seu respirar pacífico, mergulhada em um sono
revigorante. Acaricio a pele marrom das suas mãos ossudas e
carregadas de marcas do tempo, o lencinho que sempre adorna
seus cabelos está escondido por baixo da touca de lã, pois a
temperatura denuncia que o inverno chegou de vez.
Sei que está tarde, mas não poderia sair do estado sem vê-la
antes e providenciar sua mudança, não confio em deixar dona
Jussara no velho asilo, por isso meu contato a levará para um lugar
mais seguro pela manhã.
— Está quase acabando, prometo — sussurro em meio a
penumbra do quarto, admirando a mulher que me amou sem o meu
merecimento. — Vou tirar férias quando aniquilar o maldito que
abusou de Suiane. — Reflito minhas palavras e um suspiro cansado
escapa. — Ainda preciso encontrar o mandante da chacina, mas
está acabando, dona Jussara.
É o que espero.
Encaro o lado de fora através da janela fechada, sem conseguir
enxergar nada de fato, as cenas de ontem rodando em minha
cabeça. Como disse a Davi, não gosto de chamar a atenção e
sempre trabalhei de maneira limpa e silenciosa, contudo, essas
pessoas merecem ver o meu lado mais sombrio, o monstro que
Lilith também pode se tornar, se assemelhando a aqueles que tanto
abomina, ou tentando acreditar nisso.
Não há arrependimentos em como conduzi toda a situação
desde que fiquei frente a frente com Caim. Se os fiéis que
apareceram no noticiário estão em choque diante de tal
barbaridade, é porque não fazem ideia do que preparei para o
granfinale do homem de Deus, da pessoa que dedicou sua vida à
causa e que se tornou um exemplo para milhões.
Anjo mau.
Um sorriso molda meus lábios dentro da escuridão parcial do
quarto e volto a observar a senhorinha dormindo.
Dona Jussara me reconheceu na vez anterior que estive aqui, e
isso me deu forças para seguir com o plano até o fim, ainda que isso
consuma os resquícios de sanidade que ainda sobram em meu ser.
— Prometo tentar não morrer... — sussurro o contrário de algo
que estava certa de acontecer, pois a ideia de deixá-la sozinha
nesse estado mexe comigo, com a Daiane. — Quero viver os
últimos anos ao seu lado... mãe.
Mordo o lábio inferior enquanto engulo a bola de pregos formada
em minha garganta em questão de segundos.
Como pode uma palavra tão pequena gerar tamanha dor na
alma?
Consigo contar nos dedos das mãos quantas vezes a chamei
dessa forma, pois não sinto que a mereço, que esse amor puro, sem
cobrar nada em troca, foi algo inventado em minha cabeça fodida.
Às vezes tenho medo de acordar desse sonho e me deparar com
aquela realidade da infância, me ver em frente a mulher que me
trouxe ao mundo e abandonou no momento em que o cordão
umbilical foi cortado.
Mesmo presente e compartilhando a velha moradia, sua
ausência foi mais acolhedora do que os braços aonde a agulha
afundava, enquanto a droga era injetada, as filhas eram esquecidas,
largadas ao bel prazer de homens cruéis e depravados, alguns se
escondendo atrás de uma religião para criar a falsa aparência de
santidade, traindo a confiança de quem realmente se firma em uma
fé.
Repouso a cabeça no encosto da cadeira de tiras e olho para um
ponto qualquer na paisagem do lado de fora. A noite clara, sem
ventos ou chuva, está tão fria quanto um ar-condicionado
trabalhando no máximo, bem semelhante ao dia que retornei para a
Babilônia sozinha após tantas descobertas na pequena cidade.
“No limite da exaustão caminhei a passos pesados até minha
suíte, em busca dos meus pertences, aqueles que de fato possuem
algum valor emocional.
O restante, como os vestidos e sapatos de grifes, pedirei a Silas
que presenteie às meninas da empresa, e, por falar no meu braço
direito...
— Tem certeza, senhorita Lilith? — Fecho a mochila assim que
guardo o diário de Suiane e viro-me para ele. — Deve existir uma
forma...
— Está tudo bem, Silas — digo, fingindo não notar um certo
embargo em sua voz grossa. Aperto seu ombro, o único gesto que
me permito para demonstrar gratidão, e tento usar o meu melhor
sorriso. — Obrigada por seu trabalho exemplar.
O homem de estrutura grande parece pequeno agora, seus
orbes verdes como a esmeralda brilham carregados de lágrimas.
Conhecendo-o bem, sei que não deixará que nenhuma escape e
molhe as suas bochechas.
— E o que significa aquela frase? A Babilônia vai cair — repete a
primeira coisa que compartilhei quando o vi.
— Talvez a empresa passe por algumas remodelações e a
necessidade de um novo dono, com um olhar mais apurado e que
conheça cada centímetro disso aqui, surja. — Pisco para ele, sem
pretensões de compartilhar mais do que isso. Coloco a mochila nas
costas e pego o luxuoso cartão preto e meu dedo indicador resvala
no nome em dourado. — A Babilônia serviu para o propósito que
estabeleci, agora está na hora de seguir outro caminho, Silas. —
Entrego o retângulo de plástico em sua mão e meu sorriso vacila.
— Lil...
— O Boss ainda está aqui? — o corto, entrando em outro
assunto antes de ir. Ele acena enquanto aperta o cartão entre os
dedos. — Ótimo, passe o seguinte recado para ele: saia do país
antes de o sol nascer, as coisas vão se... complicar. — Ergo a
cabeça, começando a caminhar para fora da suíte sem olhar para
trás. — Adeus, Silas.”
Balanço a cabeça, expulsando essas memórias tão recentes, e
olho para o meu colo assim que a tela do meu celular acende e ele
vibra.
Caçador: Tudo pronto para a viagem.
Essa é a minha deixa. O que preparei acontecerá em outro
estado, horas e horas longe daqui. Estou ciente de que carrego um
alvo nas costas após os... assassinatos? Não, após os presentes
enviados ao Capeta.
Agora, a segurança de dona Jussara é primordial, por conta
disso preciso me mover e os trazer junto comigo. Amanhã farei
questão de que me encontrem, deixando clara a minha localização,
eles só não imaginam que estão a caminho do inferno.
— Tá acabando, prometo — repito as palavras ante a
necessidade de pontuá-las outra vez e deposito um beijo em sua
testa quente, por conta do ambiente fechado, antes de sorrir. — Te
amo, mãe.
Levanto-me da cadeira e começo a deixar a Daiane entre as
paredes desse lugar. Saio do quarto sem olhar para trás,
caminhando no corredor quase vazio, pois algumas enfermeiras
cumprem seus turnos.
Aceno para uma na recepção enquanto tiro a touca do bolso,
vestindo-a. Desço os dois degraus que me separam do pátio
envolvido em um breu, os poucos carros estacionados conseguem
refletir a luz da lua de forma parcial e minha moto é a única ao lado
dos veículos de quatro rodas.
Faltando poucos metros de distância, meu corpo se coloca em
alerta, como se dezenas de olhos estivessem fixos em minha nuca,
mas continuo caminhando até a moto e uso a visão periférica em
uma varredura ágil.
Sinto a presença de alguém atrás de mim, do lado esquerdo, e
minha mão em volta no cabo da faca está pronta para proferir um
corte profundo e limpo.
Mais à frente outra presença se sobressai sem fazer questão de
se esconder e estanco os passos, atenta à figura prepotente se
aproximando, sem esquecer a que está atrás de mim.
A lâmina em sua mão brilha. Se é um combate corpo a corpo
que ele deseja, não vejo problema em ajudá-lo.
— Teria me vestido melhor para essa festinha, triste por não ser
avisada com antecedência, meu caro — minha voz sai abafada por
causa do tecido, uma pena ele perder o sorriso encantador
despontando em meus lábios agora.
Inclino o corpo no instante em que o oponente adiante se joga
em minha direção e aproveito seu ataque para aplicar uma rasteira
enquanto minha faca afunda na coxa dele. O baque do seu corpo
contra o chão se junta ao gemido de dor.
Ergo-me sem perder tempo, ficando frente a frente com o
segundo. Eles estão cobertos de preto da cabeça aos pés e usam
uma touca parecida com a minha. Alongo o pescoço em deboche e
aguardo por mais um ataque.
— Você é o próximo? — provoco, limpando o sangue do primeiro
na calça. Posiciono-me tranquila, aguardando por ele, que não se
move. Por cima do seu ombro enxergo mais um se aproximando. —
Três para atacar uma mulher indefesa? Tsc, tsc, tsc...
O barulho de folha seca sendo amassada é tudo o que consigo
captar ante ao ataque por trás, de um quarto indivíduo. Jogo o corpo
para o lado, sentindo o rastro da sua faca passar próxima ao meu
rosto. Não perco tempo ao enfiar a minha na lateral do seu tronco,
usando-o como escudo quando o primeiro avança.
— Menos um rim, maldito — sussurro no ouvido dele enquanto
aplico um mata-leão e puxo a faca, a lâmina rasgando outros órgãos
na sequência. O grunhido de dor torna o sorriso em meus lábios
ainda maior. — Que o Diabo o tenha.
Solto seu corpo no instante que o primeiro homem estende o
braço, a faca direcionada para o meu coração. Agarro seu pulso,
colando minhas costas em seu peito e o uso para esfaquear seu
outro companheiro.
A ponta desaparece dentro do pescoço do maldito, bem em cima
da carótida, e sangue espirra para todos os lados, sujando meu
rosto. Uso esse segundo de descuido do outro e, ainda de costas
para ele, aproveito minha mão livre para cravar a faca em seu
estômago. Giro o objeto e fico frente a frente com ele, sem retirar a
lâmina.
— Caim mandou vocês? — questiono em sua face em um
rosnado baixo. Como não recebo resposta, giro um pouco mais a
faca, assistindo o semblante do maldito se contorcer. Suas mãos
tentam agarrar meus ombros em busca de apoio e sangue escapa
da boca dele. — Foi ele...
Minhas palavras morrem, evaporando-se no ar assim que a
ponta do que parece ser uma agulha atravessa minha touca,
entrando no pescoço.
Solto o homem quando o local começa a rodar com muita
rapidez, puxando-me para a escuridão. Levo a mão até o objeto
preso em meu corpo, constatando ser um dardo tranquilizante, mas
não tenho forças para tirá-lo.
— A resposta é sim, putinha — a voz cheia de diversão surge do
meu lado direito. Tenho tempo apenas de virar o pescoço para
encarar o homem encapuzado. Em sua mão está a arma utilizada
para me abater, a substância no dardo é tão potente que acabo
caindo com força no chão, batendo a lateral do rosto no cimento e
uma pontada de dor se espalha na região. Consigo enxergar
somente as botas do homem em meio à névoa que sou obrigada a
entrar. — Caim está com saudades de você, Daiane. — Agarro sua
perna com os resquícios de força presente, mas tudo o que vejo é
escuridão, a mais densa e opressora. — Sua salvação chegou.
Quase afogada pelo sono obrigatório, sinto outra dor
sobrepujando meu corpo quando o maldito homem chuta meu rosto.
O Diabo aparece e segura em minhas mãos, carregando-me
para suas profundezas sem que eu possa reagir.
— Bem-vinda ao inferno, puta.
CAPÍTULO 31
Sempre ouvi falar que a morada do Diabo era quente, que chamas
incandescentes se espalhavam em todas as direções e lavas faziam
parte da natureza do lugar, que o próprio ser maligno recebia os
novos e eternos moradores com o seu arpão de três pontas.
Bem, a pessoa que inventou essa história e convenceu outra a
anotar em um livro, passando de geração em geração, estava
errada. Milhares de outras pessoas no decorrer dos séculos tomou o
relato como genuíno e, desde então, a imagem do Diabo modificou
de acordo com o medo alheio.
Quanto mais bizarra e repudiante sua aparência, maiores seriam
as chances de provocar temor na humanidade.
Como sei de tudo isso? A verdade me atinge com a velocidade
de um meteoro chocando-se contra a Terra assim que minhas
pálpebras se afastam. A imagem que meus olhos enxergam,
atravessando a neblina da confusão e do sono, embrulha meu
estômago.
Não consigo mover braços e pernas, presos à cadeira onde
estou sentada, a touca que cobria minha cabeça e todo meu traje
foram retirados, deixando-me apenas de lingerie. O ar-condicionado
arrepia minha pele exposta, carregando um frio congelante para
cada célula.
Sinto a boca seca enquanto meus lábios ressecados tremem.
— O Diabo e o seu demônio... — minha fala sai arranhando a
garganta. Por baixo dos cílios e de uma mecha de cabelo, vejo as
figuras patéticas paradas mais à frente.
A risada abominável de Caim explode na sala onde estamos e,
aos poucos, tomo ciência do lugar, vasculhando todo o espaço sem
reconhecê-lo. Rodeada de paredes e um chão cinza-chumbo, fito
uma mesa atrás dos homens e posso imaginar os tipos de
ferramentas dispostas ali.
As laterais desse local estão tomadas pelas sombras que a luz
da única lâmpada acesa projeta.
Volto a atenção para eles, dentro de ternos pretos sob medida. O
semblante do mais novo passa a tranquilidade de quem não precisa
se preocupar com a porcaria da justiça de ser pego por seus crimes,
menos ainda pagar por qualquer um deles.
— Enfim posso te conhecer pessoalmente, Daiane — com a voz
mansa, Abel se aproxima, compartilhando um sorriso cínico.
Diferente do irmão mais velho, ele é alto e não usa óculos, mas a
pele é branca como a de Caim. Não me recordo, mas deve estar na
casa dos sessenta. — Ou estou de frente com a destemida Lilith? —
Sua mão asquerosa tem a ousadia de mover a mecha de cabelo em
meus olhos, afastando-a. Respiro fundo, mantendo o controle e
guardando energia para tentar uma fuga se houver uma brecha. —
Não importa. O prazer é todo seu em conhecer o futuro vice-
presidente do país.
— Não se eu te matar antes — ameaço e minhas palavras são
varridas pelo ar quando os irmãos se encaram sorrindo.
— Eu avisei, ela é ótima — Caim fala, fitando meu corpo sem
pressa. — Só precisa ser domada, irmão.
— Assim como aconteceu com Athos. — Não escondo a
surpresa diante do nome citado e sondo com mais cautela o maldito
Abel. Seu timbre é carregado de um prazer doentio e sujo. Meu
corpo esquenta conforme os batimentos cardíacos se
descompassam, compreendendo suas palavras. — O que foi,
querida? Ficou pálida de repente...
— Como se tivesse visto o Diabo! — Caim debocha e os dois
gargalham da patética piada.
Qual dos irmãos corrompeu Athos quando era criança? Abel?
Caim? Os dois?
Assisto aos homens trajados de forma elegante enquanto riem
com cumplicidade. Confiantes e protegidos atrás de uma religião e
de um cargo político, além da aparência complacente de bons
samaritanos, principalmente quando estão aparecendo na TV.
Meu estômago volta a embrulhar, cogitando quantas crianças,
além de Suiane e Athos, a dupla abusou.
O que prende Athos a esses homens? Qual sua motivação para
permanecer sob as asas desses demônios? Por acaso ele seria
capaz de reproduzir o que aconteceu consigo?
Minha cabeça parece inchar, prestes a explodir, tamanha a
quantidade de questionamentos que me rodeiam, e eu acabei de
acordar.
— Vocês são piores do que ele — digo, referindo-me ao Capeta
e eles entendem. É claro que o fariam. Tento esticar os dedos dos
pés e mãos para enviar a dormência embora e um grunhido escapa.
Encaro a dupla de satãs, imaginando todas as formas mais
inumanas de matá-los, mas nada parece o suficiente, nem mesmo a
Pera da Angústia. O berço de Judas, quem sabe?
— Como tantas pessoas ainda caem na ladainha de vocês?
Acreditando mesmo serem homens de Deus, sem gerar dúvidas...
— Desde o início da criação, os humanos são os seres mais
manipuláveis que existem, Daiane. — Caim começa o discurso
repugnante, com entusiasmo como se fosse uma pregação. E eu? O
alvo merecedor de salvação e cura. — A grande massa precisa se
apegar a algo, ter a sua fé testada e validada para se sentir
pertencente de alguma coisa, é da nossa natureza...
— Ser depravado ao ponto de molestar crianças?
— Ela ainda não entendeu — Abel ri da minha cara, então enfia
as mãos nos bolsos e caminha pelo espaço em direção à mesa com
utensílios, fitando cada um deles —, mas isso vai mudar rapidinho
— cantarola.
— Como eu ia dizendo, é da nossa natureza ter um lugar para
recorrer quando nos sentimos perdidos, sem saída e sozinhos. —
Caim une as mãos em frente ao corpo, apreciando a merda que
defeca pela boca. — Sempre existirão aqueles que precisam de
refúgio e perdão, além de esperança. Da mesma forma, existem
pessoas como nós, os que facilitam essa caminhada ao conduzir
todo um rebanho. Não tem como fugir disso, Daiane, toda ovelha
precisa de um pastor.
— E todo pastor é um maldito pedófilo como vocês? — Tento
mudar a posição em que estou sentada, porém meus membros não
respondem, banhados em uma dormência ruim, pesada e
incapacitante.
— Não precisa generalizar, filha. — Travo o maxilar diante do
termo usado. Observo Abel passando os dedos nos objetos,
fingindo escolher um sem tirar o prepotente sorriso dos lábios. Caim
inclina o corpo, esquadrinhando meu rosto e seu perfume enjoativo
me atinge. — Nem todo anjo é mau — sussurra, trazendo toda a
minha atenção para si. Sua mão segura com delicadeza o meu
rosto, tal qual um pai faria ao ver seu filho machucado. Ele sabe
como a minha irmã o chamava e outra vez deixa óbvio, assistindo-
me em seu jogo obsessivo. Caim analisa minha respiração saindo
entrecortada, além do tremor oprimindo minha estrutura enquanto
dói imaginar tudo o que ela suportou. Horas e horas dentro daquele
antigo quarto. — Suiane me chamava dessa forma, tão ingrata...
Jogo meu corpo para frente em um impulso, usando a parca
força presente em mim, e desfiro uma cabeçada no maldito. Seu
grito de surpresa e dor se mistura ao som da lente do óculos se
partindo.
A quentura do sangue escorrendo em meu rosto contrasta com a
frieza da minha pele exposta ao ar. Caim se afasta praguejando e
cobre a ferida no supercílio, encarando-me com desprezo e sorrio
maliciosamente, aprovando o feito.
Ainda é pouco para esse homem desprezível.
Abel tenta ajudar o irmão e seu braço estendido é estapeado
pelo mais velho, transformando seu semblante de preocupado em
magoado.
— Que patético — começo a provocação atraindo seus olhares
para mim. Balanço a cabeça em negativa, lendo o comportamento
dos dois. — Então você é o cachorrinho dele, obediente, fazendo
tudo o que o dono manda.
Caim joga seu óculos quebrado em cima da mesa e tira um
lenço do bolso para limpar o sangue no rosto.
— Nós somos uma dupla, putinha. Trabalhamos juntos! — Abel
se revolta com a mera possibilidade citada, o que me faz rir ainda
mais. Ele fecha as mãos em punho, caminhando em minha direção
e não desvio meus olhos dos dele. — Nós mandamos no jogo...
— Quem foi o primeiro assassino na bíblia? — o corto,
saboreando vê-lo se descontrolar aos poucos. Estou no caminho
certo. — Não lembro, mas acho que faltei nesse dia. Caim ou Abel?
Aposto que foi Caim...
Minha cabeça gira para o lado assim que o punho de Abel atinge
meu rosto com violência. Imediatamente sangue preenche minha
boca e a dor se espalha por toda a região, respiro fundo
concentrando-me e uma gargalhada atravessa a garganta enquanto
encaro os homens parados em minha frente.
Caim não parece nada surpreso com o cenário, já o irmão...
— A dupla de satãs não é tão unida quanto parece — provoco
sem conter o riso escandaloso reverberando pelo espaço. — O Rei
vai acabar com o Bispo da mesma forma que Caim matou o irmão,
porque teve inveja...
Recebo outro soco de Abel, ainda mais forte do que o primeiro e
me engasgo com o sangue, tossindo e espirrando o líquido
vermelho no chão. Abel agarra meus cabelos pela nuca e me obriga
a esticar o pescoço para cima.
Volto a rir no momento em que nossos olhos se cruzam,
adorando provocá-lo. De fato, ele é o mais manipulável como
suspeitei enquanto os avaliava.
— Não seja tolo — Caim repreende o irmão com a voz cansada,
como se fizesse isso sempre. Gargalho ainda mais, assistindo um
vinco se formar no meio da testa de Abel. O semblante raivoso e a
pele rubra são bem mais interessantes vistas tão de perto. — É
justamente isso o que ela quer e você está facilitando, Abel.
A respiração ruidosa envia seu hálito direto para o meu rosto, o
cheiro de fumo se infiltrando em meu nariz machucado. O aperto em
meu cabelo se intensifica e meus olhos lacrimejam ante as pontadas
de dor espalhando-se com rapidez.
— Cobra! — Abel grita e, por um momento, acredito que esteja
falando comigo. Contudo, não são necessários mais do que cinco
segundos para a porta ser aberta. — Agora você vai ter o que
merece, puta nojenta, assim como a sua querida mãe — rosna
enraivecido. Consigo ver quando estende a mão e o mesmo homem
que dirigiu o carro na pequena cidade, aparece. As roupas pretas
denotam ser ele o responsável em me atingir com o dardo
tranquilizante. Uma toalha encardida é coloca na mão de Abel e ele
sorri vitorioso. — Espero que sofra bastante.
O tecido cobre meu rosto bloqueando a visão desses malditos.
Então, antes mesmo que eu possa tentar qualquer fuga, água é
despejada em cima de mim. O líquido invade nariz e boca,
queimando tudo no caminho enquanto percorre minha garganta.
Mal consigo respirar, engasgando-me com a água que não
cessa, molhando também meu corpo exposto. Debato-me na
cadeira, conduzida pelo instinto de sobrevivência, e ouço Abel rir.
— Isso, puta! — mesmo gritando, sua voz adentra meus ouvidos
com certa falha. O som da minha agonia quase se sobressaindo a
sua provocação. A toalha é retirada assim que a água para de cair e
tusso descontroladamente, sentindo olhos e garganta arderem como
o inferno. — Qual é a sensação de estar tão perto de conhecer o
Diabo? Hum? Vamos lá, Daiane, me mostre toda a sua ousadia
agora.
O enxergo através de uma neblina de confusão, seus orbes
arregalados e os dentes meio tortos à mostra. Aos poucos, minha
tosse começa a se transformar em um riso desenfreado que move
todo o meu peito e Abel cerra a mandíbula como se não pudesse
acreditar no que vê. Sua mão asquerosa agarra meu queixo com
força para me manter no lugar.
— Me diga você, homem de Deus — Repito o gesto feito com
Caim e aproveito sua proximidade para jogar meu corpo para frente,
batendo nossas testas.
O barulho dos crânios se chocando é malignamente prazeroso, o
que acentua minha dor. Por alguns instantes, sinto-me zonza, mas
nem isso tira o sabor de fazê-lo sangrar.
— Puta! — Abel se descontrola de vez, a mão no ferimento em
uma tentativa inútil para conter o sangue que escorre com profusão.
Passo a língua nos lábios e provo do líquido espesso e quente,
soltando um gemido de contentamento. — Filha de uma puta...
— Cachorro que late demais, não morde ninguém — cantarolo e
Caim ri, encostado com tranquilidade na mesa. Ergo as
sobrancelhas machucadas e alterno a atenção entre eles, atenta. —
Viu só? Na primeira oportunidade seu amado irmão vai te descartar.
— Cale a boca! — Abel puxa meus cabelos encharcados,
obrigando-me a inclinar o pescoço. Outra vez o pano tampa minha
visão, anunciando que a sua brincadeira ainda não acabou.
Meus pulmões se revoltam com a quantidade de água entrando
em minhas vias respiratórias. Por mais que eu tente fechar a boca, o
líquido transparente se torna mortal jogado dessa forma e volto a
me engasgar.
O ar não chega e cada centímetro do meu rosto queima, arde
como se estivesse sendo consumida por chamas incandescentes.
Rebato-me na cadeira igual a um bicho na porta do abatedouro,
tentando fugir. Pulsos e tornozelos começam a sangrar conforme
me movo com selvageria, mas nada disso importa.
Apenas oxigênio, ar puro para preencher meus pulmões
enquanto sou subjugada.
O pano é retirado e respiro em busca de alívio assim como os
peixes fazem quando são obrigados a sair do seu habitat natural.
Tudo em mim queima, sugando toda a mísera energia, levando-me
ao extremo.
— Tenho uma proposta para você, filha. — O anjo mau volta a
me rodear, dispensando os outros com um aceno.
Aproveito o momento de pausa para respirar fundo, enviando
todo o oxigênio possível diretamente para os pulmões doloridos. A
água gelada se empoça na cadeira bem no vão das minhas pernas,
como se fosse urina.
Meus cabelos molhados escorrem em minha pele, arrepiando
cada centímetro. A ponta da língua resvala em um dos dentes e o
sinto se mover. Um soco bem aplicado e ele sairá com facilidade.
— Também tenho uma proposta. — Olho para cima quando ele
para muito perto. O arquear da sua sobrancelha em diversão é
irritante. — Enfia ela no rabo, bem fundo e...
Caim bate palmas e gargalha, aparentando estar ainda mais
animado.
— Deveria ter seguido a carreira de comediante, ganhando muito
dinheiro com stand-up, Daiane. — Ele segura meu queixo, movendo
meu rosto de um lado para o outro, esquadrinhando a face
machucada. — Ainda bonita, mesmo toda inchada — diz mais para
si em um murmúrio. Caim me solta e não esconde o nojo ao fitar a
mão que me tocou, então começa a limpar os dedos. — Enfim,
como estava dizendo, você tem a chance de sair dessa
complicação. Posso ser benevolente, acredite. — Caim coloca a
mão em cima do peito, mostrando como sabe atuar.
— Vejamos, você quer que eu assuma o cargo da saudosa
Roberta? Que o Diabo a tenha... — sussurro o final, também
demonstrando o quanto posso atuar nessa merda de papel.
— Melhor do que isso, filha. Imagina se tornar a figura
arrependida que encontrou a salvação?
— Que porra é essa...
— Quantos jovens conseguiremos converter quando ouvirem o
seu testemunho?
— “Vendi meu corpo a vida toda, mas fui salva através do amor
de Deus, que usou o líder Caim, enviando uma mensagem de fé ao
meu coração!” — Abel exclama o texto provavelmente decorado,
abrindo os braços. — Quanto mais fiéis, maior será a quantidade de
dízimo arrecadado.
— Tudo isso por dinheiro? Não faz sentido...
— Dinheiro é o que fará os negócios se moverem, Daiane. —
Caim cruza as mãos atrás das costas como se estivesse
discursando para uma centena de pessoas. Talvez ele enxergue
certa confusão em meu semblante, por isso revela mais. — Vamos
expandir os templos, com mais espaços, mais subsolos, mais
quartos.
— Essa rede vai atravessar a fronteira e teremos sedes em
todos os continentes, puta. — Abel é o que demonstra mais
empolgação, no entanto, isso não quer dizer que Caim não esteja
da mesma forma, ele só atua melhor. — Meu irmão, a imagem do
bem mais respeitada do país, enquanto estarei em Brasília.
Ninguém vai conseguir nos derrubar.
O esquema de pedofilia tornando-se algo ainda maior e
profissional embrulha meu estômago. O gosto amargo atravessa a
garganta até a boca, mas apenas saliva escapa, pois estou há horas
sem consumir nada.
A dupla de satãs quer usar minha imagem para enganar mais e
mais pessoas, ao passo que vão expandindo esse ato doentio. Se
Abel, de fato, chegar à Brasília, a facção se tornará praticamente
impenetrável.
— É só fingir submissão na frente dos outros, Daiane. — Caim
dá de ombros e observa o relógio de pulso.
Sua fala provoca um riso sincero e o som da minha risada
ressoa dentro do pequeno espaço. Abel acena para o outro homem
e deparo-me com mais água separada para me torturar.
Não me importo com essa merda.
— Submissa? É você quem deveria ter feito stand-up, maldito. —
O semblante de Caim vacila por milímetros, dando-me a certeza de
que ele está no limite de toda a porra de benevolência. — Você
pode acabar com a minha vida agora, porque jamais serei submissa
a um homem, menos ainda de vocês. Eu. Não. Sou. Feita. Da.
Costela. De. Adão. Ouviu? — A pele de Caim vai ganhando tons
rubros e uma veia tremula em sua testa. Olho para os três idiotas na
sala e uso toda a força para elevar minha voz e deixar claro: — Eu
não sou feita da costela de Adão! Me chamo Lilith, a porra da rainha
do inferno!
Caim acena para o irmão que, de imediato, tampa meu rosto e
inclina meu pescoço para trás ao puxar meus cabelos. A água vem
em seguida, tirando qualquer chance de sugar oxigênio, e tudo volta
a queimar como o inferno de onde vim, por isso suporto, sobrevivo a
essa maldita tortura com cada grama de força do meu ser.
Preciso atravessar a sensação de morte, porque se eu morrer
dessa forma, tudo o que fiz para chegar até aqui terá sido em vão. A
pessoa que me transformei ao longo dos anos não terá mais valia.
Se a Lilith cair agora, ceder a dupla de satãs, Daiane e cada pessoa
ao meu redor cairá também, assim como em uma sequência perfeita
de dominó, uma peça derrubando a outra, e mais outra até não
sobrar nada em pé.
E esse é o único cenário que me recuso a aceitar.
Comecei tudo isso por Suiane, apenas ela e por ela.
Só que assim que a água para de ser despejada em meu rosto e
o pano é retirado da minha cara, sei que tem algo diferente.
Não faço ideia de qual situação e momento nesses últimos
meses culminaram nisso, mas o meu objetivo mudou, na verdade,
ele ficou ainda mais forte e ganhou garras tão afiadas quanto a
lâmina da minha faca.
É por Suiane, mas também é por aqueles dez quartos no
subsolo do templo.
E... também por ele.
É impossível aniquilar todos esses monstros espalhados pelo
mundo, divertindo-se às custas de corpos frágeis e ainda em
desenvolvimento. Estou ciente de que essa aberração jamais vai ter
um fim, afinal, desde que o mundo é mundo, e desde que as portas
do inferno foram abertas, os demônios nunca mais foram presos e
circulam entre nós, escondendo-se atrás de uma imagem, de uma
roupa ou uma religião, se torna quase impossível distinguir o joio do
trigo.
Um anjo bom de um anjo mau.
Enquanto tusso e aspiro ar para os meus pulmões doloridos, fito
os homens em minha frente em silêncio, semelhante a uma
submissa, como disseram. Meu olho esquerdo começa a inchar
devido aos machucados e enxergo Caim parcialmente, seu
semblante malicioso e arrogante me oferece um riso pequeno,
porém, muito significativo.
Como se dissesse: xeque-mate.
Retribuo o gesto, ainda que mover um músculo sequer gere dor,
porém estou acostumada a ela e consigo aguentar mais. Ergo a
cabeça para que a única luz do teto ilumine meu rosto e Caim leia a
mensagem enviada: Ainda não, maldito.
Transformarei essa cadeira aonde estou sendo subjugada em
um trono, de onde vou jogar e assistir sua aguardada queda.
A Rainha vai destruir o impiedoso Rei, custe o que custar, ou ela
não se chama Lilith, a primeira mulher da bíblia.
CAPÍTULO 32
Subo o zíper da jaqueta até o peito, encarando-me no espelho do
closet, a blusa de gola alta esconde o pescoço e as tatuagens. Solto
uma baforada sem tirar o baseado da boca, enquanto meu corpo
caminha em meio à fumaça, acalmando-se.
Precisarei de cada grama de concentração se eu quiser, de fato,
ir até o local para onde a levaram.
Assim que um dos meus homens enviou o alerta de que Lilith
havia sido pega a mando de Caim, uma ira descomunal me possuiu
e acendeu a parte mais sombria e desumana em mim.
Ele teve a audácia de tocar no que é meu.
Minhas mãos se fecham em punhos para conter o tremor que se
espalha com tamanha rapidez. Trinco o maxilar, esmagando o
baseado na sequência, e fito a porra do homem patético que ainda
sou quando o assunto é ele.
Tudo o que o envolve me deixa fraco, enquanto Caim se
fortalece. Minha vida parece com a de um animal capturado e
enjaulado, que tenta inutilmente escapar do seu algoz.
Quanto mais esse animal luta para atravessar as malditas
grades, maiores se tornam os seus ferimentos.
Minha vida tem sido assim desde...
Batidas na porta me tiram desse turbilhão de pensamentos
opressores, olho para o lado quando Moca, um dos homens que
trabalha para mim, se aproxima.
— Temos um problema — avisa calmo. Ele é um dos melhores
que tenho, Moca consegue esconder seus sentimentos com
maestria. Anuo para que prossiga e tiro o baseado da boca,
soprando mais fumaça. — Alguém invadiu o subsolo 3 e ele quer
falar com...
— O subsolo foi invadido? — o corto, apontando para baixo,
curioso com a informação. — De tantos lugares na porra da
Babilônia, alguém passou por todos vocês, que estavam o quê,
coçando o saco? E o intruso quer falar comigo?
— Ele disse que é sobre Daiane — Moca responde sem
demonstrar medo.
Daiane... Quem mais a conhece pelo nome de nascença?
Jogo o fumo no chão, apagando com a sola do meu sapato
enquanto faço a merda da minha cabeça funcionar.
Será que é ele? Quais as chances?
Passo por Moca sem dizer nada e ele me acompanha a caminho
do local aonde a visita me espera. Não trocamos outras palavras
dentro do elevador, no entanto, assim que as portas se abrem no
último subsolo, ele ergue sua arma, apontando para frente.
Um indivíduo está encostado, olhando para tudo com... tédio?
Há outros homens, também com suas armas apontadas, como se
fosse resolver algo agora.
No momento em que os nossos olhares se cruzam, ele
esquadrinha cada parte do meu corpo, então retorna os olhos e dá
de ombros.
— Daiane e o seu gosto peculiar para homens — desdenha sem
sair do lugar e cruza os braços. — Precisa melhorar a segurança da
sua empresa.
— Percebi isso. — Caminho até estar a um metro dele e observo
suas roupas de moletom e o tênis. O idiota faz questão de deixar
claro o quanto foi fácil entrar aqui, como se tivesse acabado de sair
de uma corrida. — Você a treinou — afirmo o que suspeitei e ele
não nega, ao contrário, sorri enquanto finge avaliar o subsolo.
Esse homem não deve ter mais do que cinquenta anos. Para
quem não lida com o submundo, o imagina sendo um desses caras
ratos de academia pelo seu porte, mas em poucos segundos
consigo enxergar além da aparência normal.
Um passo em falso do Moca, mesmo segurando uma arma, e o
maldito em minha frente o eliminaria com muita rapidez, acabaria
com todos eles.
Lilith é assim.
— Você não sabe aonde ela está...
— Mas o famoso Black Horse, sim — debocha do apelido, sem
qualquer vestígio de medo no rosto.
Um riso fraco escapa dos meus lábios enquanto o analiso.
Talvez, se existisse um universo paralelo, até poderíamos ser
próximos, quase amigos. Quase...
— E se eu não estiver a fim de compartilhar informações? — O
imito, cruzando os braços na altura do peito e tombando a cabeça
para o lado, curioso. — O que vai fazer?
O homem, que não faço ideia do nome, se afasta da mesa
dando um passo adiante. Somos da mesma altura, constato no
segundo seguinte. Moca e os outros ao redor se movem ao meu
lado, as armas ainda apontadas para o sujeito.
— Vejamos... — começa enquanto passa a língua no lábio
inferior. — Te matar? Seria fácil demais...
— Não sei se Lilith gostaria de um gesto tão... amoroso. — Tento
me convencer disso e o homem ri arrogante.
— Acha mesmo que é tão importante para ela? — Endureço
minimamente o maxilar diante de sua fala quase precisa. Ele nota o
gesto singelo e meneia a cabeça em afirmação. — Por mais que a
conversa esteja agradável, e você seja um excelente anfitrião, não
pretendo deixar Daiane nas mãos daqueles miseráveis por mais
tempo.
— Ao menos concordamos em algo... — Aguardo para que diga
seu nome e fico no vácuo.
— Onde ela está? — seu tom muda para um questionamento
baixo e frio.
— Como pode ver — Dou um passo para trás, mostrando
minhas roupas, e seu rosto se franze —, estava prestes a sair
quando fiquei sabendo da sua visita.
— Para onde a levaram? — a pergunta sai entredentes e ele se
move em minha direção e Moca é rápido ao encostar a arma na
cabeça do homem.
— Por ela, serei legal e vou permitir que me acompanhe —
aviso, também baixando meu tom de voz e varrendo qualquer
sorriso do rosto. — É pegar ou largar, amigo.
Ele sabe que é mais vantajoso dessa forma, caso contrário não
teria vindo aqui. Não duvido da sua capacidade de encontrá-la, no
entanto, até conseguir tal proeza, horas e mais horas seriam
desperdiçadas e é bem provável que Lilith não tenha tudo isso.
Caim não faz ameaças ao vento.
— Chega de perder tempo — responde como se tivesse lido
meus pensamentos.
— Escolha inteligente.
Sorrimos um para o outro enquanto os nossos olhares
transbordam promessas.
E nenhuma é boa ou feliz.
inferno
1. lugar em que as almas pecadoras se encontram após
a morte, submetidas a penas eternas.
2. local subterrâneo habitado pelos mortos.
CAPÍTULO 33
Meus olhos encaram fixamente o teto cinza-chumbo e as duas
aberturas para lâmpadas, que estão vazias, somente a do meio
envia um brilho amarelado para o meu rosto e não me incomoda
mais, talvez seja porque enxergo apenas de um lado enquanto o
outro se fechou de vez depois de receber os punhos de Abel
novamente.
Meu pescoço inclinado para trás por tanto tempo não causa mais
dor, assim como os pulsos e tornozelos presos. A agonia causada
pelas cordas rasgando a pele cessou e a dormência que abraça a
minha estrutura é bem-vinda e tão eficiente quanto analgésicos para
o desconforto. O que realmente consigo sentir ainda é o fio de baba
e sangue que escorre devagar, saindo da boca e percorrendo o
queixo antes de atingir o chão.
— Tudo bem, filha? — a falsa preocupação na voz de Caim ao
se aproximar, somada a uma suavidade inexistente em seus olhos,
é desprezível. Sua imagem acima de mim cobre a luz da lâmpada e
o sorriso malicioso molda os velhos lábios. — Por que passar por
tudo isso e desperdiçar nosso precioso tempo quando poderia estar
trabalhando comigo? Aceite de uma vez a oferta! — Não movo um
músculo sequer, observando-o através da visão embaçada. — Você
tem muito potencial, Daiane, mas precisa deixar o orgulho de lado
se quiser continuar vivendo, ou não sairá daqui respirando. Por isso
— O hálito de Caim toca meu rosto, trazendo uma quentura que
seria gostosa em qualquer outro cenário. Ele franze os olhos e o
machucado que fiz fica mais evidente —, para demonstrar que
posso ser um homem benigno, te ofereço pela última vez a
oportunidade de sair ilesa disso. Faço questão de te perdoar pelas
mortes dos meus parceiros de negócios. — Um riso fraco escapa, o
que me faz tossir e espirrar saliva misturada a sangue em seu
maldito rosto. Ele fecha os olhos por alguns segundos, respirando
firme com o maxilar endurecido.
— Vamos matar essa puta de uma vez, Caim... — Abel pausa
sua fala no instante que o irmão o encara com raiva.
A dupla de satãs se odeia, mas nenhum quer admitir isso.
— Como estava dizendo, Daiane — Caim limpa o rosto com um
lenço, de olho em mim —, vou te dar...
— Tão patético... — balbucio e o corpo de Caim se retesa. — Só
falta se humilhar... dois patéticos...
A risada que atravessa minha garganta provoca uma tosse ainda
mais forte, o que faz meu corpo trabalhar, o sangue corre em uma
frequência melhor e leva um pouco de calor para as áreas
dormentes.
— Avisei que era perda de tempo tentar convencer essa puta. —
Abel coloca as mãos na cintura, esquadrinhando-me com desdém e
repulsa. — Se tivesse me escu...
— Cale-se! — Caim o corta, enfim demonstrando toda a irritação
maquiada em falsa benevolência.
— Patéticos e hilários. — Cuspo sangue e saliva no instante que
recebo um tapa de Caim, fazendo meu pescoço mover, o lado
esquerdo do meu rosto arde, mas a dor me ajuda a permanecer
atenta e consciente de tudo o que acontece nessa maldita sala.
— Siga com o plano. — O anjo mau aponta em minha direção ao
se afastar. Ele avalia enquanto Abel e o tal de Cobra se aproximam
de mim, com suas mãos enfiadas dentro dos bolsos. — Você teve
várias chances, Daiane, algo que não aconteceu para a pequena
Suiane.
Sua provocação varre todo o riso em meu rosto e só vejo a
seringa vazia depois que o Cobra se afasta, jogando-a no chão.
Abel agarra meu queixo com demasiada força e agora é a sua vez
de rir, eufórico. Toda a extensão do meu braço direito começa a
queimar, muito parecido com o que senti no estacionamento horas
atrás.
— Já que não servirá como a imagem de redenção que
precisamos, vamos ver quanto a puta vale, ou melhor, o quanto
darão por cada órgão saudável que for retirado desse corpo inútil. —
A figura de Abel roda, o transformando em dois, e a mesma
queimação no braço vai percorrendo meu corpo, o imobilizando por
completo. Sinto minha língua embolar dentro da boca, quase me
sufocando no processo. — Rins, fígado, pulmões, coração, tudo! O
que der para raspar dessa merda que você é, tiraremos.
Amaldiçoo-me quando não consigo usar minha voz para
provocá-los e ganhar tempo. O líquido injetado em mim é mais
potente do que o dardo tranquilizante e, mesmo que surgisse uma
brecha, não seria capaz de fugir.
Não...
— Sabe o que dizem quando um corpo, tipo o seu, passa a noite
no necrotério? — Abel saboreia cada segundo enquanto Caim
permanece silencioso, apenas observando. — “Hoje tem festa!” —
Ele gargalha diante de mim, vendo meus olhos moverem-se sem
controle. — Ou seja, depois de morta, você ainda vai ser usada,
putinha nojenta, eles vão estuprar o seu corpo por horas enquanto o
Diabo te recebe no inferno.
— É claro que Daiane sabe disso, Abel, afinal, o décimo andar
da Babilônia não existiria se não existisse essa... barbárie — Caim
debocha. — Em hospitais também: homem, mulher, criança, não
importa.
O que injetaram em mim?
— Desde que os animais encontrem comida, pode até ser um
idoso que eles não vão se importar. — Minha cabeça tomba para
frente sem que eu consiga comandar meu corpo. O barulho de
rodas movendo-se pelo piso vem antes da imagem da maca
parando do meu lado e Abel se abaixa para que eu possa vê-lo
rindo ensandecido. — Uma última palavra antes de morrer,
destemida Lilith?
Por mais que eu force, não consigo verbalizar uma única frase, é
como se toda a minha garganta estivesse preenchida com um pano.
Meus batimentos cardíacos aumentam de repente e o pulsar dentro
da minha cabeça é doloroso.
O rosto de Abel some e os sapatos lustrosos de Caim entram em
meu campo de visão. Sei que há alguém atrás de mim,
provavelmente desamarrando meus pulsos, mesmo assim nenhum
músculo se move, nada obedece a porra dos meus comandos.
— Mande lembranças para sua irmã — Caim provoca e o som
metálico das chaves se chocando invade meus ouvidos. Ele faz
questão de mostrar o chaveiro de perto, movendo os objetos entre
os dedos.
Não...
Depois de tudo é dessa forma que vou morrer?
Suiane não será vingada?
O anjo mau continuará atormentando outras crianças?
Mesmo em meio ao meu estado letárgico, sinto uma singela
lágrima escapar, caindo diretamente em meu colo desnudo. Minha
visão embaçada muda para a escuridão, levando-me a entrar no
abismo obscuro do meu ser, tudo acontecendo tão rápido quanto o
piscar de olhos.
— Ah, antes que eu me esqueça, vagabunda, quero falar duas
coisas: a primeira é que eu me isento de qualquer culpa pela morte
da sua irmã. Sério, não estava nos planos aqueles moleques saírem
atirando pela cidade — Abel reclama, entretanto não consigo mais
enxergá-lo.
O quê? Ele está falando da...
— Por que eu faria isso se já estava tudo concluído com o meu
cliente? Tive que me esconder por algum tempo até as notícias da
chacina serem varridas para baixo do tapete com a ajuda do meu
irmão. Moleques imbecis... — rosna as palavras enquanto a
informação parece espremer meu crânio, levando-me ao limite.
Abel é o mandante da chacina?
Desde o início a dupla de satãs está conectada ao passado de
Suiane?
O molestador e o assassino?
Abel sussurra e quase não consigo compreender as malditas
palavras:
— Suiane teria vergonha de você, putinha, muita vergonha e
desprezo. — Meu corpo só não cai para o chão depois dos pulsos
soltos porque esse nojento me segura. Sei que é ele ao sentir o
perfume nojento e enjoativo. O tremor que se apossa da minha
estrutura é tão potente que o ranger dos meus dentes se sobressai,
mas não o suficiente para abafar as últimas palavras de Abel: —
Afinal, quem em sã consciência dormiria com o filho do inimigo?
Não, não, não, não...
Isso não.
Abel está blefando.
É como tento me convencer nesses segundos finais ao sentir
meu corpo colapsar, obrigando-me a ceder e viajar para a escuridão
sem fim.
— Parabéns, Daiane, você conseguiu ser pior do que eu quando
me diverti com o pequeno Athos, anos e anos atrás. — Abel me
solta e meu corpo paralisado cai com força no chão, o barulho da
minha cabeça batendo de encontro ao piso seria extremamente
doloroso, porém não sinto mais nada —, mas nós dois não
sabíamos disso até acontecer, então merecemos um desconto, só
duvido que a sua irmãzinha ache o mesmo.
Caim é o pai de Athos, o mesmo homem que abusou de Suiane,
o pior de todos eles, de acordo com o relato no diário.
E Abel, o maldito ser por trás do massacre.
De fato, eu fodi e gozei com o filho e sobrinho dos inimigos, até
desejei mais no final, me importei com ele, com o seu passado, mas
Athos sabia de tudo isso e se aproximou da mesma forma.
A tatuagem de anjo nas costas é algum tipo de mensagem?
Esse maldito idolatra as atitudes do pai?
Se esqueceu dos abusos do tio?
Uma lástima acabar desse jeito e não concluir minha vingança,
falhar em todos os níveis possíveis e imagináveis com Suiane, não
aniquilar os nomes marcados na minha lista.
Estava tudo conectado desde o início e Caim manipulou esse
jogo ao seu bel prazer através dos anos, assistindo os peões se
sacrificarem em seu nome.
O Rei e o Bispo permanecem em pé do outro lado do tabuleiro,
enquanto a Rainha se desfaz em milhares de pedaços, sua
existência sendo aniquilada para sempre.
O anjo mau venceu...
Outra lágrima escapa no instante que a consciência me
abandona, empurrando-me para o desfiladeiro sem fim.
O anjo mau nunca perdeu...
CAPÍTULO 34
A viagem de quase três horas até o local próximo ao porto de
Santos transcorre quase silenciosa, somente alguns dos meus
homens vão dando as coordenadas.
Somos em oito no total, contando com ele, o sujeito responsável
por treinar Lilith, que encara a paisagem tranquilamente, no entanto,
sei que nada escapa da sua supervisão taciturna.
Conheço o perímetro para onde a levaram, porque é o mesmo
espaço que a facção usa para as desovas. A clínica que serve de
fachada e a responsável por cada transplante não autorizado se
localiza a menos de cinco minutos do porto.
Caim e Abel movem o mercado do submundo traficando drogas,
armas e órgãos, através das centenas de contêineres.
Não fizeram questão de esconder para onde a levaram, pois eles
acreditam que eu jamais interferiria em algo. A dupla está contando
com isso, até porque, de acordo com as palavras de Abel, não tenho
culhões para enfrentar meu próprio pai ou meu maldito tio que,
infelizmente, são da família.
Uma bem podre...
Abomino o sangue que percorre minhas veias e me liga a porra
dos irmãos, a ser obrigado a conviver junto com eles depois daquela
tragédia.
Além de patético, é um bastardo! Vou matar os dois, a
vagabunda e o bastardinho.
Meus dedos envolvem o cabo da arma com mais força enquanto
as malditas lembranças invadem minha cabeça. Fui arrastado de
um inferno para outro mais sujo e opressor, vendo todos que amava
morrerem, menos eu, até para morrer fui acometido pelo azar, não
por muito tempo agora.
Giro o pescoço, deparando-me com o olhar centrado do sujeito
em mim, sua face neutra me sonda com minúcia, e a forma como
seguro a arma não passa despercebida por ele. Como todos nós,
ele está trajado e armado da cabeça aos pés, tal qual um soldado
indo para a guerra entre anjos e demônios.
Demônios contra demônios.
— Essa vingança é dela — pontua em voz baixa.
Compreendo todas as palavras não ditas e arqueio a
sobrancelha com a sombra de um sorriso em meus lábios.
— Eu sei, ninguém aqui vai matar Caim, mas isso não quer dizer
que ele precisa estar inteiro. — Pisco para o sujeito e, dessa vez,
um mísero divertimento desenha sua face.
— Chegamos, Black Horse — Moca avisa em nossos
dispositivos auriculares. Os três carros param no estacionamento
que fica entre a clínica e um prédio comercial. — Eles não estão
mais aqui, chefe.
O que significa que Lilith corre real perigo, pois enquanto a
estiverem torturando as chances de resgatá-la com vida são
maiores, porém no momento que Caim decide dar fim a algo, é
porque já conseguiu o que desejava ou simplesmente se cansou.
Desço do carro antes mesmo de ele frear e ouço o sujeito fazer o
mesmo, por cima do veículo nos encaramos em silêncio, então anuo
para que me siga.
Não será hoje que colocarei um ponto final em tudo isso, agora o
nosso maior objetivo é tirar Lilith daqui, depois retomaremos o
plano.
— Só deixaram três para cuidar dela, além do açougueiro —
outro dos meus homens avisa no ponto e meneio a cabeça.
Açougueiro é o código usado para chamar a pessoa responsável
pela retirada de órgãos.
— Pelo jeito você é bem descartável — o sujeito debocha,
caminhando ao meu lado para a entrada da clínica. Mantenho a
atenção na porta lateral, fingindo não dar importância ao que falou.
— Eles nem se preocuparam com a possibilidade de você aparecer.
— Antes de entrar estanco os passos, virando-me de frente para ele
e esquadrinhando o semblante neutro. — Se eu fosse você, me
sentiria insultado com a ousadia dos canalhas. Espero que essa
merda não nos atrapalhe...
— O que está insinuando? — Dou um passo à frente, quase
colando nossos rostos e segurando com mais força a arma. — Que
vou acabar me arrependendo e trair Lilith?
— É possível — rebate em meia voz, seu olhar endurecendo na
sequência. — Foda-se o seu passado de merda, todos aqui tem um,
garoto — rosna contra o meu rosto, mesmo ouvindo armas sendo
engatilhadas por meus homens ao nosso redor. — Você
praticamente cresceu sob a asa do inimigo e nunca tentou contra
ele. Por que agora? Por que confiaria em uma mudança tão
repentina? No final, talvez se arrependa da escolha, traindo Daiane
e correndo de volta para os braços que te maltrataram. Quase...
quase como uma espécie de síndrome de Estocolmo. — Ele ignora
a ameaça implícita ao redor e repousa a mão livre no meu ombro. —
Se isso acontecer...
— Não vai — retruco, porém sinto aquele maldito tremor
percorrer meu corpo outra vez. Trinco os dentes e dou a resposta
que atravessa rasgando minha garganta —, mas se chegar a isso,
faça o que precisa ser feito.
— Mesmo que ela me odeie depois... — Ele une as
sobrancelhas, no entanto, não há vestígios de relutância.
— Não duvido que saiba lidar com o temperamento dela.
— Melhor do que ela própria — completa.
Passamos mais alguns segundos frente a frente, encarando-nos
sem acrescentar mais palavras.
— Ela foi levada para mesa de corte há cinco minutos, Black
Horse. — Moca, que já entrou na clínica, avisa o que eu mais temia.
Mesa de corte.
Na verdade, o espaço repleto de aparelhos é aonde os órgãos
são retirados dos pacientes. Há todo um cuidado com a retirada
enquanto ignoram por completo o doador, afinal, o corpo se torna
uma casca vazia, enviada ao necrotério da facção para ser
incinerado.
Afasto-me do sujeito e caminho rumo à sala, atravessando a
porta lateral com ele no encalço.
Enquanto meus homens cuidam dos três que permaneceram na
clínica para fazer a segurança do lugar, não perco mais tempo e me
aproximo da porta de vai e vem. A cena que inunda meus olhos faz
todo o meu sangue entrar em combustão.
O homem com o bisturi, cortando o tórax de Lilith, tem apenas o
segundo para erguer a cabeça quando disparo direto em seu crânio,
vejo massa encefálica se esparramar pela sala, e ouço o baque
seco de seu corpo atingindo o chão, é tão revigorante.
O sujeito passa por mim e age com rapidez, retirando os
acessos do braço dela, enquanto uso gazes para deter o
sangramento em seu peito. Sua pele está fria e só tenho a certeza
de que não está morta porque o monitor ainda ligado acompanha
seus batimentos fracos.
O rosto está tomado por manchas escuras, além de um
ferimento no supercílio, seu olho esquerdo é o mais detonado e vai
levar semanas para voltar ao normal. O corte no peito tem cerca de
dez centímetros, mas é superficial, mas mesmo assim só
poderemos tirá-la daqui depois de fechá-lo.
Fitamo-nos por cima do corpo de Lilith e, diferente dos minutos
que antecederam a esse momento, seu semblante transborda ira.
— Faça — comanda assim que aproxima agulha e linha na mesa
de corte.
— Se quiser manter a porra dos dentes na boca, não me dê mais
ordens, desgraçado — aviso entredentes, enquanto tiro as luvas de
couro e pego um frasco na mesa, pelo cheiro sei que é álcool. O uso
para limpar minhas mãos e inclino-me sobre ela, sem tirar os olhos
dele.
Seu corpo denota certo alívio e, sem proferir outras palavras, o
sujeito volta a circular pela sala. Trinco o maxilar antes de passar a
agulha, unindo as bordas.
Ele estava me testando? Que sujeito prepotente do caralho.
Ignoro tudo e todos ao meu redor, trabalhando em um alinhavar
cuidadoso no tórax exposto agora que o sangue estancou. É
impossível evitar que a marca de uma cicatriz feia e torta desenhe
seu corpo, infelizmente.
O filho da puta que a marcou permanece esparramado no chão
da sala, em cima da própria poça de sangue. Deveria ter sofrido por
ter tocado nela, mas sua morte foi indolor demais, diferente do que
acontecerá com os irmãos.
Enquanto finalizo o fechamento do corte, observo Lilith
desacordada embaixo de um fino lençol cobrindo apenas suas
pernas. Foi por muito pouco que não a encontrarmos sem vida, e
pensar nisso mexe com a minha cabeça, com a porra dos
sentimentos que não tenho mais controle algum.
Deveria colocar a maior distância possível entre nós e deixá-la
sozinha em sua vingança, afinal, seu alvo é diferente do meu.
Lilith quer matar Caim, ao passo que desejo com todo o meu ser
observar a vida abandonar o corpo do maldito Abel.
Só que não consigo fazer isso e nem quero, me afastar de Lilith
parece impossível, as sensações diferentes que ela desperta em
mim são tão novas.
Só não descobri se isso é paixão ou obsessão.
Foda-se.
Permanecerei ao lado dela até toda essa merda acabar.
Até os irmãos não estarem mais presentes na Terra.
E, dependendo de como tudo ocorra, eu também não.
CAPÍTULO 35
Os ponteiros em meu relógio de pulso mostram que em breve
completará vinte e quatro horas desde que resgatamos Lilith e
saímos do local.
Após ter copiado todas as informações do sistema, o sujeito
provocou um incêndio na clínica, a explosão tomou proporções
maiores ao atingir parte do estacionamento e acabar com diversos
veículos.
Os homens que trabalhavam para Caim permaneceram nos
escombros como um presente para ele. O noticiário está em
polvorosa diante da tragédia que ceifou quatro pobres
trabalhadores.
Na cama em minha frente, Lilith permanece dentro de um sono
obrigatório desde que chegamos a esse lugar. O esconderijo para
onde fomos trazidos nada mais é do que parte da instalação de uma
fábrica abandonada no meio da cidade.
Pelo visto, o sujeito usa bastante o local, já que está totalmente
abastecido. Depois de uma rápida ronda, retornei para o quarto em
que ela dorme, não ter ideia do quanto Lilith sabe sobre meu
passado torna a espera por seu despertar ainda mais aguardada por
mim.
Na sala adjacente a essa, o homem digita freneticamente em
seu computador, averiguando as informações confiscadas.
Sondo meu celular desligado e sem chip descansando na mesa
de cabeceira, foi necessário me livrar de qualquer vestígio que
fizesse Caim nos encontrar. Antes de quebrar o chip havia mais de
doze ligações perdidas.
Pela primeira vez desde que o conheço, consegui me arrastar
para fora das sombras de suas asas. É desprezível compreender o
quanto de poder ele ainda possui sobre mim.
No início, seu controle disfarçado de amor, conquistou o
garotinho amedrontado que eu era, mas a imagem de bom homem
não durou muito tempo, principalmente quando soube o que o
próprio irmão havia feito.
“Você mereceu, por ficar se intrometendo no que não deveria,
filho.” O pequeno Athos só tentava se agarrar à figura paterna que
nunca teve enquanto cresceu ao lado de um monstro.
Esfrego o rosto irritado com o rumo dos meus pensamentos e
tateio minha jaqueta buscando pelos comprimidos, as mãos
trêmulas mal conseguem segurar na ponta do zíper e um grunhido
irritado escapa.
Encontro somente um pacote de cigarros com um isqueiro junto,
e essa merda precisa servir. Trago uma quantidade grande de
fumaça, preenchendo meus pulmões na sequência, e fecho os olhos
assim que a nicotina começa a fazer efeito. Um relaxamento se
espalha por meu corpo e, em outras ocasiões ele seria o suficiente,
mas não agora.
Mesmo sentado e sem fazer qualquer esforço, meu coração
pulsa descontrolado, as batidas presentes dentro da cabeça em
uma dança opressora. Solto toda a fumaça com força, uma parte
dela saindo pelas narinas, e balanço minhas pernas para cima e
para baixo, pois nada nesse maldito corpo quer me obedecer.
Sou um prisioneiro de uma mente fodida para caralho, sem
conseguir enxergar uma saída já que não há portas ou janelas,
apenas paredes altas e espessas ao redor.
Tombo a cabeça para frente e me deparo com os astutos olhos
de Lilith sobre mim, na verdade, apenas o olho bom está cravado
em minha face, como se pudesse me matar somente com a força
dos pensamentos.
Deixo o cigarro entre os dedos, a guimba me queimando, e não
corto nossa conexão no aguardo. Ela não se move de imediato, mas
faz uma careta de dor quando separa os lábios. Mesmo toda
machucada e com os cabelos revoltos ao redor da cabeça, a
desgraçada continua linda.
Retorno o cigarro para a boca, tragando sem pressa sob sua
supervisão e, através da fumaça, a vejo se escorando no cotovelo
para se sentar e um murmúrio de dor é solto. Lilith olha para o
próprio peito, encontrando o motivo da sua agonia. A camiseta que
cobre o seu corpo é do sujeito, e vê-la com essa maldita peça de
roupa é mais um item em minha extensa lista de irritações.
— Vamos com calma, Daiane. — Ele entra no quarto,
esquadrinhando Lilith e dando a mínima para minha presença. —
Você tá com uma incisão grande no peito e precisa de repouso.
— Foda-se o repouso — rebate enquanto estica a gola da
camiseta para conferir o corte e suspira, sua voz sai com acentuada
rouquidão, indicando que a utilizou bastante. Espero que tenha sido
para amaldiçoar os irmãos. — Tenho duas encomendas para o
Capeta...
— E machucada desse jeito não vai conseguir fazer nada. — Ele
pega o copo deixado na mesinha e o entrega a ela. Continuo
fumando e assistindo a interação dos dois para entender que tipo de
ligação possuem. — Vai precisar de todo autocontrole...
— Se eu tivesse matado aquele demônio no dia que o conheci,
teria poupado tempo e esforço, mas segui o seu maldito conselho e
olha no que deu — argumenta, tirando o copo da mão dele sem
calma, entretanto é notável que só está revoltada e não mudaria
seus passos.
— Tem coisas que nunca mudam, e o seu temperamento é um
deles, Daiane. — Ele dá de ombros e cruza os braços, então abaixa
a voz em um sussurro, e um pouco de vida retorna ao semblante de
Lilith. — Ela tá segura.
Ela quem? Uma avó, tia?
Os dois parecem irmãos, concluo assim que jogo a guimba do
cigarro no chão, avaliando-os. O mais velho cuidando da caçula
temperamental, e se eu não soubesse que Lilith só teve Suiane
como irmã, acreditaria nessa constatação.
Arrasto a sola em cima das cinzas e a atenção dela se volta para
mim, acompanho sua mão se fechar em volta do copo com mais
força, até o plástico ceder, espirrando água em suas roupas.
— Vamos traçar um plano e encontrar...
— Sei como encontrá-los sem desprender tanto esforço —
anuncio, ainda sentado na cadeira dura. — Ou uma forma de atraí-
los para o mesmo local e facilitar toda essa merda.
— E vai entregar Caim de bandeja? — Lilith retruca, sem soltar o
copo amassado. — Seu próprio pai?
E aí está a resposta para as minhas dúvidas, ao menos, parte
delas. O sujeito não parece surpreso com a sentença de Lilith,
porém me sonda com mais cuidado.
— Faz sentido — ele diz convicto, mais para si mesmo, e coça o
queixo. — Podemos dar uma chance para que o Black Horse nos
convença dessa mudança de lado.
Sua provocação não passa despercebida e contenho a vontade
de pular no pescoço do infeliz, só estou suportando a porra da sua
presença por causa dela. Respiro fundo, escorando os cotovelos
nas pernas e cruzo as mãos embaixo do maxilar, mas antes que eu
possa ao menos tentar me defender, Lilith questiona com uma
pontada de acusação na voz:
— Desde quando sabia?
— Sobre... — provoco, testando o terreno, para checar o quanto
foi dito para ela.
— Vou preparar sua comida enquanto... conversam
amigavelmente. — O sujeito se afasta sem olhar para trás, fechando
a porta do quarto em seguida, e eu continuo sem saber como ele se
chama.
— Athos — Lilith murmura meu nome como se o gesto causasse
dor em si.
— Depois daquela noite no subsolo fui atrás de respostas, o que
culminou na descoberta de mais essa sujeira de Caim, entre
tantas... — digo a verdade e espero que ela veja isso em mim.
— Então aproveitou a informação para usar...
— Eu tentei te impedir de viajar para o inferno daquele lugar,
Lilith. — Irrito-me com essa cabeça dura, mas é em vão.
Provavelmente, se fosse eu em seu lugar, não olharia na minha cara
ou permitiria minha presença aqui. Ela não ter me expulsado ainda
pode ser um bom sinal. Quem eu quero enganar? Lilith passou anos
atrás de um dos homens que se aproveitou da irmã, agora que sabe
quem eu sou e de onde vim, sugará todas as respostas guardadas
dentro de si. — Você me odeia ainda mais — afirmo, nossos olhos
fixos como nunca. — Assim como se preocupa comigo e não está
sabendo lidar com essa merda.
— Quanta prepotência para acreditar nisso — diz enquanto se
move na cama, colocando as pernas desnudas para fora. Lilith
respira mais rápido, pois o pequeno esforço está cobrando seu
preço. — Você é o filho da pessoa que eu mais odeio no mundo...
— E vai me odiar por tabela. — Anuo em concordância, mesmo
que tudo dentro de mim grite o contrário. — Se eu não tivesse sido
amaldiçoado ao ser a porra do filho dele, sentiria tanta aversão
quanto diz sentir?
— Claro, você é conivente com o que acontece no maldito
templo!
Saio da cadeira com tanta força que ela cai, chocando-se no
chão. Ajoelho-me diante de Lilith, entre as suas pernas, segurando
firmemente seu quadril para não escapar. Suas mãos tentam socar
meu peito, mas ela está tão fraca que algo simples em outro
cenário, a deixa cansada agora.
De perto, sondo seu rosto machucado com minúcia, cada
mancha na pele, cada corte e o olho inchado.
Afundo meus dedos em sua pele, sentindo a calcinha por baixo
da camiseta e a noto se mover. Os pelos em seus braços eriçando
com o toque, o duelo de sentimentos marcando a íris dilatada. Os
segundos tornam-se minutos, sem que um de nós faça qualquer
gesto para se afastar. Devagar, seus dedos agarram a gola da
minha jaqueta e um leve tremor perpassa em seus lábios.
Estamos à beira de um colapso, suportando os últimos metros
até cruzar a linha de chegada.
— Sinto muito carregar o mesmo sangue do monstro que abusou
da sua irmã... — sussurro, enfrentando o bolo que se forma em
minha garganta.
Nunca me abri para outra pessoa, nem para o médico que tentei
me consultar anos atrás. Depois de mais um maldito pesadelo,
achei que poderia me livrar dele se fosse atrás de ajuda e fizesse da
maneira correta, como nos levam a acreditar. Me ver livre da voz
asquerosa, do toque sem permissão, da forma que me machucou,
mas não funcionou, minha mente está fodida demais para ter
qualquer espécie de conserto.
De certa forma, acabei me tornando igual a eles, pois fui
seduzido pelo submundo. Não ouso reproduzir o que o imprestável
fez comigo, isso está fora de cogitação, mas eu gosto de matar e
andar conforme minhas próprias regras.
Continuo a observando e compreendo que aqui não se trata de
um predador encarando sua presa. Lilith e eu somos dois
predadores dispostos a arrancar o coração um do outro se for
necessário, dois animais selvagens que desconhecem a maneira
tecnicamente correta de lidar com essa situação.
Só fomos apresentados a dor, ao ódio e a sede de vingança.
— Eu sinto muito — repito, pois é verdade, e vejo seu olho bom
lacrimejar enquanto morde o lábio inferior. Sua respiração se
intensifica e posso apostar que as batidas do seu coração estão
descompassadas como as minhas. — Você pode me odiar por ser
um bastardo ou qualquer invenção da sua cabeça, mas não me
odeie por ser conivente, Queen, essa porra eu não sou.
Corto nosso contato visual enquanto esquadrinho a parede atrás
de si, tomando coragem para fazer algo que vai piorar meu estado.
Recordar o passado é um território que prometi ao pequeno Athos
que não faria, não abriria essa maldita porta e nem me tornaria um
telespectador de momentos cruéis, mas um riso anasalado ressoa
no quarto quando volto a fitá-la.
— Não dá pra entender essa merda, sabe? Em como é fácil
matar e colecionar malditos olhos e ainda ficar com medo daquela
porra...
— Athos — Lilith me chama com a voz baixa, usando de uma
suavidade que não é comum.
Até ela está pisando em ovos, enquanto deveria estar socando a
minha cara. Prefiro sua fúria a essa complacência.
— Antes de morar com o meu pai biológico — começo a narrar
antes que me arrependa e minha mente fodida me sabote. O
chamar assim traz um sabor amargo para boca, me enojando —,
cresci com minha mãe e o homem que acreditou que eu era filho
dele, o que achei ser o meu verdadeiro pai. Até que ele descobriu a
traição dela e matou Patrícia na minha frente, eu só tinha oito anos
quando José, depois de me espancar, fez o mesmo com ela... Até
hoje recordo dos gritos, do choro, do som do peito dela se
afundando...
“Mamãe tá deitada perto de mim com os olhos arregalados, sem
piscar desde que papai parou de bater nela. Tento me levantar para
ajudar mamãe, mas acho que o meu braço esquerdo tá quebrado
porque não consigo me mexer e dói muito.
— Mãe... — chamo fraco, a garganta também dói. Papai apertou
tanto antes de socar a minha cara que eu não conseguia respirar.
Arrasto o corpo igual o cachorrinho que vi um dia desses quando
o carro atropelou aquela bola de pelos. Ele chorou, e chorou, e
chorou, se arrastando com a ajuda da patinha de trás. Depois parou
de chorar e mexer o corpinho, ninguém tirou o cachorrinho morto de
perto da guia até começar a feder carniça.
— Mãe... — Toco seu rosto com o braço bom e me assusto com
a sua pele fria.
Mas tá tão quente aqui no quarto por causa do verão, por que
mamãe ficou tão fria?
— Mãe...
Sempre que confundia as cores, papai me batia, dizendo que eu
era patético e nem parecia filho dele. Acho que ele tem razão.
Tem uma roda grudenta ao redor da cabeça da mamãe, pelo
cheiro deve ser sangue.
Igual ao do cachorrinho, por onde ele se arrastou ficou uma
mancha escura. Uma vez mamãe falou que o sangue é vermelho,
mas que ela não sabia como era porque sempre viu verde.
Eu também.
Como é o vermelho?
Olho para seu peito com cuidado, observando a camiseta para
encontrar mais verde, e não acho. Quando papai tava em cima da
mamãe, ele bateu muitas vezes nessa parte e só parou quando um
barulho estranho saiu dela.
Parecia o som de um galho, quando quebro ele em vários
pedaços enquanto ando na calçada.
Um galho seco e sem vida.”
— Naquela época, Caim trabalhava como missionário, por isso
conseguiu visitar dezenas de cidades, a maioria muito pobres.
— Assim ele tinha acesso às crianças — Lilith sussurra com a
voz embargada e anuo, sentindo todo o meu corpo trêmulo diante
dessa maldita recordação. — Ele fingia visitar famílias carentes e se
aproveitava da situação, como aconteceu com Suiane.
— Eu fui o único erro que não conseguiu apagar porque soube
da minha existência quando eu já havia completado um ano —
compartilho mais essa informação e Lilith me encara sem dar
importância a uma lágrima escorrendo no rosto machucado. —
Caim fez questão de contar a história, em como ele se tornou mais
cuidadoso sobre o assunto, obrigando as meninas a abortarem...
— Suiane — Lilith arfa ao citar o nome da irmã, buscando por
uma resposta. Limpo a lágrima com a ponta do dedo, a quentura da
sua pele expulsando toda a frieza em mim.
— Não sei, Queen, ele nunca citava nomes, mas pela época em
que isso aconteceu, talvez sim...
Lilith treme entre os meus braços e fecha o olho inclinando o
pescoço para cima, a respiração pesada no peito. Suas mãos
permanecem agarradas a gola da minha jaqueta, como se temesse
soltar e cair em seguida.
Solto seu quadril apenas para massagear suas coxas na
tentativa de enviar algum tipo de conforto, não sei como fazer isso,
sou tão quebrado quanto ela e nossos pedaços estão se misturando
em nossos pés, eles se mesclam conforme os segundos se
arrastam como areia movediça, sugando-nos para a escuridão.
Desço meu olhar para a camiseta com uma mancha esverdeada
tomando o peito dela, então aproximo meu nariz e constato ser
sangue, o corte é recente demais e vai levar algum tempo para
cicatrizar.
— Lilith — chamo com a voz baixa, observando a única mulher
que me fez ajoelhar em sua frente, do mesmo jeito que estou agora,
dessa vez por vontade própria e sem qualquer resquício do orgulho
que normalmente não me abandona.
— E Abel? — questiona assim que seu olho bom encontra os
meus. Travo o maxilar diante desse nome e ela nota, mas segue em
frente. — Como esse miserável se encaixa em tudo isso? Você?
Suiane? A chacina?
— Para apagar qualquer rastro, Caim me levou até a casa dele
depois que minha mãe foi assassinada. — Outro bolo se forma em
minha garganta sempre que me recordo dela. Fixo meu olhar na
mancha da camiseta, sentindo-me zonzo, minha mente fodida
tentando me paralisar enquanto as vozes sussurram incoerências
dentro dela, enlouquecendo-me. — Ele disse que foi ameaçado por
minha mãe, que iria contar na igreja que ele frequentava sobre a
minha existência, por isso Caim deu um jeito nas coisas e se livrou
dos dois. José sumiu do mapa, assim como ela, não sei nem aonde
ele a enterrou. Os negócios estavam crescendo e ele não podia me
manter sob o mesmo teto, então eu cresci junto com os seus
capangas, mas antes disso, Caim fez outra das suas incontáveis
viagens e fiquei sozinho, então Abel apareceu e...
Repouso minha cabeça em seu ombro, o passado me
atormentando como nunca. Só noto que estou tremendo porque
sinto as mãos de Lilith acariciarem minhas costas. Agarro com força
seu quadril, necessitando me apoiar em algo, pois a areia movediça
já envolveu meus pés, tentando me arrastar para baixo, para a
escuridão sem fim.
— Caim não havia confessado para o irmão que tinha um filho,
menos ainda que eu estava em sua casa. — Por mais que eu lute
contra essa porra, sinto lágrimas teimosas escaparem, molhando o
tecido da camiseta. — Abel achou que eu fosse mais um dos
brinquedinhos deles e... Caim demorou três dias pra voltar de
viagem...
— Abel ficou com você por três dias? — Lilith completa e sua
voz não esconde o asco, o repúdio. Meus dentes se chocam uns
nos outros enquanto cada parte de mim treme sem qualquer
resquício de controle.
— Quando Caim voltou e soube o que aconteceu — balbucio
contra seu corpo, fincando meus dedos em seu quadril e ela não
reclama —, me surrou e disse que eu pedi por aquilo, que Abel não
faria mais nada comigo, mas que a culpa era minha. Ele protegeu o
irmão e foi nesse momento que, mesmo tão novo, entendi que havia
escapado de um inferno apenas para entrar em outro.
Os irmãos conseguiram me quebrar ao ponto de não saber
reagir ou tentar uma fuga. Cresci no covil dos lobos até me tornar
um deles, preparando-me para uma vingança que se arrastou por
anos.
Patético e sem culhões como Abel adora pontuar, não cheguei
nas últimas instâncias. Sempre desistia enquanto minha mente
fodida fazia questão de paralisar todo o meu corpo, cada célula
dele.
— Sinto muito... — Afasto-me de Lilith, cortando a sua fala,
porque ouvir a pena em sua voz é pior.
Retomo a narrativa da parte que deseja saber e ignoro o resto
antes que a areia movediça me soterre de vez.
— Abel já vendia muita droga em toda a região aonde nasci e
era o principal fornecedor. Você sabe como as coisas funcionam,
quem não paga, recebe uma visita bem agradável e foi isso o que
os capachos dele fizeram.
— Ele citou moleques durante a tortura. — Lilith tenta unir as
sobrancelhas e uma careta de dor se sobressai.
— Sim, moleques entre dezesseis e dezessete anos
trabalhavam para ele. — Pego uma mecha do seu cabelo revolto e o
encaixo atrás da orelha, sentindo a necessidade de manter minhas
mãos em Lilith, de persuadir minha mente para que não caia na
escuridão. — Estavam chapados, mais do que o normal naquele
dia. Ninguém sabe de quem foi a ideia, já que estavam em dois,
mas assim que cobraram a dívida que Abel mandou, saíram
atirando pelo caminho e...
Não completo a narrativa, não é preciso.
Observo a dor retornar ao rosto de Lilith, encaixando o quebra-
cabeças do passado de sua irmã. A morte de Suiane, assim como a
das outras pessoas presentes no ponto de ônibus, é revoltante.
Estavam no lugar errado e na maldita hora errada.
Abel pode não ter dado essa ordem, porém é tão culpado quanto
os moleques que assassinaram gente inocente. E, como se o Diabo
estivesse fazendo uma piada, tudo aconteceu em frente a uma
pequena igreja.
— Jamais seria conivente com essa parte obscura dos trabalhos
de Caim, e nem escondi a informação de você porque pretendia
usar como uma carta na manga. Meu passado é a porra de uma
merda, quanto mais mecho, pior fica. Essa é a primeira e a última
vez que toco no maldito assunto, Lilith. — A enxergo através da
porcaria das lágrimas que teimam em se acumular nos olhos.
Aponto para a minha cabeça, trazendo toda a sua atenção de volta
para mim. — É aqui aonde eles se escondem, cada um dos
demônios que me atormentam desde menino, Queen... — Bato em
minha têmpora quando recordar as noites na presença de Abel
começam a me sufocar. As vozes sussurram com mais força,
ganhando espaço. — Já tentei de tudo para essa porra sumir, matei
mais pessoas do que os meus dedos conseguem contar, mas eles
nunca vão embora, nunca... A vida consegue ser injusta para
caralho.
— Athos. — Lilith tenta segurar meus braços para que eu não
me machuque mais, em vão.
— Eles estão aqui outra vez, os demônios, as vozes! — Bato
com as duas mãos ao mesmo tempo, enquanto tudo ao meu redor
gira, o ar que aspiro não é enviado ao cérebro e sou arrastado para
aqueles dias intermináveis. As horas de angústia do menininho
assombrado dentro daquela casa. — Consegue ver? Olha bem pra
porra dos meus olhos, Lilith. Eles estão aqui, eles se escondem
aqui... Fui amaldiçoado no meu nascimento. — Um riso ausente de
humor atravessa minha garganta, todo o meu corpo chacoalha
diante da risada forte e aguda. Lilith fica em silêncio, sondando-me
com o olho bom. Lágrimas escorrem na face ferida e ela ainda é a
imagem mais bonita que já vi. — Dessa vez eu vou até o fim, custe
o que custar... — balbucio. — Caim é todo seu, mas ele...
Trinco o maxilar para deter os dentes se chocando e volto a
encarar a mancha na camiseta, a maldita mancha verde.
Nunca vermelha.
A suavidade com que as mãos dela acariciam meu rosto faz
minhas pálpebras cerrarem em agradecimento. Espantando, ainda
que temporariamente, as vozes e os demônios.
Eles não se vão, na verdade, permanecem no canto obscuro do
meu ser, aguardando e prontos para um próximo ataque, talvez o
mais cruel. O último.
Por isso não quero perder mais nenhum segundo de sua linda
visão, então imito seus gestos, envolvendo sua face sem a
agressividade de sempre e apenas a admirando.
Dois predadores se analisando...
Dois predadores feridos...
Dois malditos predadores que no final se tornaram a presa um
do outro.
— Daiane — uso seu nome de nascença, ausente de desdém
dessa vez, o sentindo em minha boca. Gosto dele, porém sempre
vou escolher o que me marcou, o que fez com que nos
encontrássemos em meio às desgraças desse mundo. Ela morde o
lábio inferior tentando conter seu pranto, mas no instante que a
pergunta escapa, a mulher em minha frente desmorona de vez. —
Ainda não sei... não descobri a cor dos seus olhos. V-você pode me
contar?
Nossas testas se unem e aproveito para enlaçar sua cintura
enquanto nossas lágrimas se misturam, tornando-se apenas uma. O
gosto salgado invadindo minha boca e se espalhando na língua.
Meus lábios raspam nos seus, no aguardo para apreciar o som
da sua voz, a mesma que se manteve afiada desde o início, jamais
aceitando ser silenciada, a única que consegue acalmar e incendiar
meu corpo na mesma proporção.
A dona da voz de timbre tão afiado quanto a lâmina que utilizo
para remover globos oculares.
— Qual é a cor deles?
Lilith passa as mãos por meus cabelos, os penteando para trás.
— Qual é a cor que você enxerga? — questiona em um sussurro
e não há vestígios de deboche.
— A pupila quase preta, um tom de cinza muito escuro. —
Começo pelo terreno que me sinto mais confiante e observo com
calma a íris brilhante contra a luz do teto. — Cinza mais claro,
mesclado com verde, é assim que enxergo seus olhos, Queen.
— Bem... — Lilith limpa a garganta, o pescoço se movendo
quando engole em seco, então sorri, o lábio cortado não tira a
beleza desse sorriso. — Para a maioria das pessoas, os meus olhos
são castanho-claros, dependendo da luz, quase mel.
— Mel — repito a pequena palavra, assimilando o que me falou,
e ela assente enquanto outra lágrima volta a escorrer.
— Mas para você acho que posso confessar a verdade. — Lilith
vira o rosto, encostando os lábios em meu ouvido, e todos os meus
pelos se arrepiam de imediato. — Eles são cinza-claros, mesclados
com verde.
Minha risada se mistura a um pranto entalado no alto da
garganta.
Desde que mamãe morreu, nunca mais fui tratado com um
mínimo de cuidado, e receber isso de Lilith provoca uma avalanche
de sensações. Meu coração parece prestes a explodir tamanha a
intensidade dos meus sentimentos.
Quando nos afastamos minimamente, a ponta do seu nariz
resvala no meu e aproveito para aspirar seu cheiro agradável e
bom, talvez eu esteja extrapolando, mas decido seguir meus
instintos ainda ajoelhado na frente dela.
— Pode ser que seja errado para caralho e disso eu entendo,
sou especialista nessa merda. — Envolvo minhas mãos no delicado
pescoço, da mesma forma que fiz outras vezes, mas dessa vez não
aplico força alguma, uso o gesto somente para apoiar seu belo
rosto. Seu semblante ainda está tomado por tanta tristeza, assim
como o meu, porém identifico algo a mais. Pena, preocupação,
paixão... Não faço ideia, mas está ali. — Não sei como serão os
próximos dias, nem como tudo vai acontecer, e pode ser que não
tenhamos outra chance, não dá pra saber como essa merda vai
terminar, Lilith.
— Athos, porque...
Meu dedo indicador toca seus lábios, a silenciando por um
tempo, a textura macia permanece tão convidativa como da primeira
vez.
— Saber que eu carrego aquele maldito sangue é foda para
caralho, para nós dois, sabe? Mas... Sou um erro e tive que aceitar
isso, sou errado o suficiente para pedir que você peque comigo. —
Beijo seu olho inchado, o gesto não passando de um resvalar
suave, então passo para o outro, sentindo-a quente e trêmula em
minhas mãos. — Eu quero ser o seu pecado mais sujo, Lilith, a
porra do pecado que você nunca mais vai esquecer, um que vai
sujar até seu último fio de cabelo, sua alma... — sussurro contra
seus lábios entreabertos e respirando fora de compasso. — Por
favor, Queen... Peca comigo?
Mal finalizo a sentença e Lilith gruda sua boca na minha,
concedendo permissão.
Que bom, porque estou com vontade de fazer valer a pena cada
segundo pecando junto com ela.
Nossas almas queimando unidas de agora até o inferno.
pecado
1. violação de um preceito religioso.
2. desobediência a qualquer norma ou preceito; falta,
erro.
CAPÍTULO 36
O local do corte queima conforme me movo, somado a fraqueza
causada pelas longas horas presa naquela cadeira, minha
respiração densa arranha a garganta, espalhando dor, assim como
os machucados no rosto incomodam e o latejar no olho esquerdo se
acentua. Contudo, nada disso é suficiente para deter a necessidade
pungente de beijar e sentir Athos, suas mãos grandes se infiltrando
por baixo da camiseta, envolvendo meus seios com força e
pressionando minha carne, tateando cada centímetro como se não
acreditasse na realidade.
Foram tantas regras quebradas nesse último mês desde que o
conheci, que corresponder ao beijo se torna algo pequeno. Não
deveria ansiar por mais, ou até mesmo desejá-lo ao ponto de
ignorar minha promessa de nunca mais ficarmos, ou talvez até pior
– e isso só me mostra o quanto estou bagunçada – não almejar
mais a sua morte.
Athos se afasta o suficiente para fitar meus olhos, seus orbes
quase não aparecem mais por causa das pupilas dilatadas e
mantenho meus dedos presos em sua nuca, as pontas do seu
cabelo acariciando minha pele.
— Parece que estamos presos na porra de um romance ruim,
Lilith — murmura contra os meus lábios, o cheiro de fumo presente
entre nós e sua respiração tão densa quanto a minha. — Eu quero
qualquer coisa que queira me dar... O seu amor ou a sua vingança,
não importa — rosna antes de morder meu queixo, cravando os
dentes no local e me tirando um gemido de dor. — Serei seu pecado
e a porra da sua história de amor mais suja. — Suas mãos puxam
meus seios, torcendo os bicos entumecidos, enviando prazer e
necessidade direto para o meu sexo. — Vamos deixar escrito o
nosso conto de fadas ruim, um absurdamente errado, do jeitinho
que a gente é...
Ele não aguarda por uma resposta e retorna ao beijo ávido,
enfiando sua língua dentro da minha boca. O recebo com gana,
sentindo entre dor e prazer conforme os machucados ardem pelo
atrito. Sua saliva carrega o gosto de menta e cigarro misturados.
Athos desce os dedos até o meu centro quente e pulsante,
afastando a calcinha para o lado. Arfo no primeiro toque, notando o
quanto estou ansiosa por isso.
— Sua boceta tá sempre pronta para mim. — Encaro Athos
enquanto ele puxa meu corpo para a beirada da cama, então
começa a me foder com os dedos e, com a palma da mão, esfrega
meu clitóris. O som dos meus gemidos se une ao barulho da intensa
lubrificação que escorre pelo meio das minhas pernas. — Tá vendo
como te deixo bem aberta, Queen? Prontinha para receber meu
pau, gulosa para engolir até o fim.
— Athos — gemo seu nome, grudando nossas testas, e observo
sua mão habilidosa trabalhando em mim. Ela brilha contra o reflexo
da luz, coberta de fluídos e das lágrimas de prazer que arranca
conforme aumenta a velocidade. Espasmos percorrem minhas
coxas e elas tentam se unir quando uma onda de prazer se
aproxima.
Minha nuca é agarrada, me obrigando a olhar para cima, para o
maldito homem com o semblante devasso, sondando-me
— Goza olhando para mim, Lilith — comanda e o seu dedão
pressiona meu clitóris, fazendo os dedos dos meus pés se
curvarem. — Para o protagonista do seu romance sujo e
pecaminoso. Goza bem gostoso olhando nos meus olhos, isso é só
pra mim e mais ninguém.
Meu corpo inteiro treme ao sentir a potência do orgasmo
chegando sem pedir passagem, atravessando-me da cabeça aos
pés. Meu peito parece que vai explodir enquanto está mergulhado
entre dor e prazer, o que deixa tudo ainda mais intenso.
Respiro pesado e de boca aberta, meu olho bom acompanha
quando Athos leva os dedos melados até sua boca, sugando o
líquido com deleite, sem cortar nossa conexão.
— Caralho, parece que sua boceta fica mais gostosa a cada
transa — provoca enquanto suga com devassidão o dedo médio.
Seus lábios molhados e carregados do meu gozo é a imagem da
perdição.
Athos é rápido ao se afastar, ficando de pé em minha frente, o
sorriso sacana permanece enquanto começa a se livrar de suas
roupas, começando pela jaqueta. Encaro sua enorme ereção, que
luta contra o tecido da calça para se libertar.
Assim que ele se desfaz da peça, a cueca branca boxer aparece
e o local molhado é mais um item para provar o quão pronto se
encontra. Seguro as laterais da cueca, abaixando-a em um único
movimento e o pegando de surpresa.
A cabeça encharcada de pré-gozo faz minha boca salivar em
antecipação.
— Queen — sua voz não passa de um sussurro ao compreender
minhas intenções. Seguro seu pau, sentindo a saliência das veias
por toda a extensão, movendo as mãos em um vai e vem
diabolicamente lento. O abdômen de Athos se contrai, enquanto
seus dedos enrolam meu cabelo, puxando-os com força. — Me
mostra o que sabe fazer...
Athos separa as pernas, ficando mais próximo de mim, e
aguarda com fogo queimando as pupilas dilatadas e seu peito sobe
e desce com rapidez.
Sorrio o quanto meus machucados permitem e, com seus olhos
presos a mim, envolvo a cabeça com os lábios, acostumando-me
com seu tamanho, então começo a chupar a glande, o gosto
salgado tocando minha língua. O gemido de satisfação que ele solta
é mais um incentivo para continuar.
— Porra, Lilith — grunhe assim que uso a língua para lamber a
extensão, descendo até as bolas pesadas e cheias. Uso minha mão
para masturbar esse local enquanto movo a outra, o fazendo chorar
ainda mais. Refaço o caminho, agora de baixo para cima, sem tirar
a atenção dele, passando a língua nas veias, e o aperto em meu
cabelo intensifica. Abocanho a cabeça e chupo do mesmo jeito que
faria se fosse um pirulito. — CARALHO!
Vê-lo tão descontrolado me deixa excitada outra vez, então toco
meu sexo sensível e arfo com o seu pau na boca. Em sincronia,
sugo com voracidade a glande enquanto me masturbo.
Algumas mechas grudam nas laterais do seu rosto conforme o
suor brota em sua pele, mesmo estando no inverno. O levo até a
garganta, sentindo-o me alargar, e meu olho lacrimeja, mas não
paro, pelo contrário, dou permissão para que foda a minha boca
assim que coloco as mãos atrás das costas e sorrio para ele.
— Gostosa pra caralho — ele diz entredentes, usando as duas
mãos para ditar o ritmo que deseja. — Boa menina...
Sua imagem se torna embaçada conforme a visão embaça, o
lacrimejar constante por levá-lo ao limite. Não resisto e volto a me
tocar, movendo os dedos de forma rápida e gemendo com seu pau
entalado na boca.
Seu sabor delicioso chega a ser afrodisíaco, pois sensível do
jeito que estou, sinto meu prazer se aproximar outra vez e ainda
mais potente do que o anterior, mais carnal e selvagem. No instante
em que insiro dois dedos em mim e fecho os olhos arquejando,
Athos estanca os movimentos.
— Vai gozar no meu pau, Queen. — Segura meu queixo
sussurrando, depois lambe com luxúria meus lábios. — Agora deite
e abra bem as pernas que eu vou foder sua boceta encharcada —
comanda, enquanto rasga minha roupa com fúria. — Camiseta
feia...
Mal repouso as costas no colchão e Athos vem para cima de
mim, assim que se livra da minha calcinha. Envolvo seus ombros,
cravando as unhas curtas na pele suada quando sinto a glande
encostar em meu sexo. Encaramo-nos por alguns segundos, presos
um ao outro nessa aura de embevecimento.
De uma só vez, sou invadida por seu membro pulsante,
atingindo meu ponto de prazer. Ofegamos em uníssono diante da
potência dessa conexão ímpar, uno meus tornozelos ao enlaçar sua
cintura, o querendo ainda mais fundo, e Athos escorrega suas mãos
por baixo do meu tronco, agarrando-se aos meus ombros também.
Então ele me fode com força, fazendo a cama ranger em atrito
com o chão. A cabeceira se choca na parede anunciando o que
acontece aqui dentro, assim como sua pélvis batendo na minha,
levando-me à loucura.
O latejar em meu peito e nas outras áreas machucadas servem
de estímulo, incitando cada parte do meu sistema nervoso a
mergulhar nessa insanidade. Dor e prazer se juntam para
proporcionar um frenesi surreal ao meu corpo. Recebo essas
sensações com barulho, gemendo alto o suficiente para machucar a
garganta.
Gozo mergulhada em deleite, espasmos sendo enviados para
todo o corpo, meu sexo pulsando ao redor do membro grande.
— Porra, Queen, sua boceta sugando meu pau desse jeito vai
fazer eu gozar rápido demais...
Seguro o rosto de Athos e rebolo, trazendo-o comigo, ditando o
ritmo e o enlouquecendo de vez. Ele morde o lábio inferior assim
que começa a tremer e despejar sua porra dentro de mim em jatos
potentes.
Acaricio seu rosto enquanto tento levar oxigênio para os pulmões
sem deixar de fitá-lo.
É lindo assistir seu prazer, observar como as dezenas de
tatuagens se movem.
Seu peito definido e a pele suada, as coxas grossas e os pés
grandes.
Assim como sua majestosa ereção, ainda dentro de mim.
Tudo em Athos é lindo!
Até seu lado mais feio agora me parece atraente, sedutor.
O filho do meu nêmesis, do meu inimigo mortal.
De fato estamos escrevendo um romance ruim, por mais que
não tenha culpa de carregar o maldito sangue que carrega, ele
sempre será o filho de Caim, um dos homens que mais
machucaram Suiane, mas ainda assim o quero.
Quero a sua sujeira, sua doença, os beijos agressivos e todo o
seu drama.
Quero o seu corpo, sua psicose e toda essa merda de tragédia
romântica em que nos tornamos.
Até essa vingança se realizar e os meus inimigos morrerem,
cada um deles.
Até lá continuarei dormindo com o filho do inimigo e me
afogando nesse pecado sujo e imoral, depois me preocupo com o
amanhã.
Apenas se ele vier.
PARTE 3
Testamentos de Lilith
salvação
1. ação ou efeito de salvar(-se), de libertar(-se).
CAPÍTULO 37
Cobra atravessa os portões do templo após passar por dois
seguranças e percorre mais alguns metros, parando o veículo em
frente ao átrio. Aguardo a porta ser aberta de onde estou sentado,
na parte de trás, e o vento gelado toca meu rosto assim que coloco
as pernas para fora. Respiro fundo, lendo o versículo bíblico fixo no
alto, próximo à cúpula.
Fito o céu limpo e sem nuvens, o clima gelado do inverno
atravessando as camadas do meu terno azul-marinho, ajusto o
óculos no rosto e caminho para dentro, carregando minha pasta
sem trocar uma única palavra com Cobra, o melhor e mais fiel entre
os peões que permanecem ao meu lado.
Dentro da igreja vazia, avanço pelo extenso corredor em meio
aos assentos dispostos em fileiras extremamente alinhadas e, antes
de entrar em minha sala ao lado do altar, observo a grande cruz
presa na parede, em tamanho real e usando madeira de qualidade,
a peça custou uma pequena fortuna, daria para alimentar algumas
famílias dessa cidade patética por meses.
Sua beleza chama a atenção de qualquer pessoa que atravesse
as portas do templo, obrigando-os a analisá-la por alguns segundos,
valeu a pena o investimento.
Digito o código de acesso no painel luminoso, entrando em
minha sala em seguida, e meus olhos se dirigem de imediato para o
tabuleiro organizado com minúcia em cima do apoio de cimento cru.
Deixo a pasta na poltrona mais próxima e avalio as peças e suas
disposições, mas fecho meus punhos automaticamente quando fito
o Cavalo caído aos pés do Rei.
— Sua traição custará caro, filho. É isso o que acontece quando
se escolhe o lado mais fraco — falo sozinho, minha voz não
passando de um murmúrio.
Encaro a Rainha ainda de pé, rodeada pelas peças caídas ao
seu redor, essa é diferente da anterior, roubada por aquela
vagabunda. A peça simples de plástico não gera temor, ao contrário,
a estrutura do objeto está completamente danificada, riscos cobrem
a peça e deformam sua aparência.
— Assim como acontecerá com você, Daiane. Você e cada um
que se uniu a sua causa salvadora.
No meio do tabuleiro permanece o espaço aonde se encontrava
a maquete de cristal da Babilônia. Em breve, uma maior e melhor
tomará o lugar da danificada por aquela puta.
Afasto-me do objeto, indo até minha mesa, e aguardo a chegada
de Abel que está vindo diretamente de Brasília. Sento-me na grande
poltrona, com o espaldar em formato de uma coroa, e começo a
verificar o sistema para confirmar a presença dos outros.
Os dez quartos estão sendo utilizados nesse momento.
Através das câmeras confiro cada parte do templo, mesmo com
os seguranças fazendo a inspeção noturna.
Desde que Daiane iniciou essa palhaçada de vingança,
eliminando vários dos meus sócios, fiquei ainda mais atento e, após
nove dias desde nosso encontro e o seu silêncio anormal, vale tudo
para me manter em segurança.
Por isso estou aqui, em minha fortaleza disfarçada de templo,
protegido daquela vagabunda. Há quinze homens fazendo a
proteção do perímetro, armados até os dentes. Ela não tem
nenhuma chance.
Nem ele, o maldito bastardo.
Deveria ter eliminado esse erro no instante em que a puta da
Patrícia anunciou a desgraça dessa paternidade fora do seu
casamento condenado.
Eu era novo e inconsequente, então não agi com cautela e
acabei fodendo a traidora. Ao menos, José cuidou bem da mulher,
depois ficou fácil limpar a sujeira que deixou e sumir com todos os
corpos, menos com o do bastardo.
Athos, um nome bíblico, como o meu e o do meu irmão.
Na época, quase eliminei o imbecil do Abel por não conseguir
manter a porcaria do pau dentro das calças e usar o garoto. Não
posso negar que foi por muito pouco que não ultrapassei essa linha
e o toquei. O desejei por meses até retomar o controle da situação e
voltar aos costumes.
— Devia ter feito exatamente isso, quem sabe assim ele não
saísse da linha como fez agora... — falo desgostoso e arrependido.
Arrumo o óculos na ponte do nariz e acompanho os portões do
templo serem abertos. — Enfim, Abel chegou.
Repouso as costas no estofado macio e sondo o calendário
digital em cima da mesa, destacando a data de hoje.
Em todo Corpus Christi, me reúno com meus sócios para
conversar e decidir os próximos passos da organização, assim
como aproveitamos essa data santa para purificar novas crianças.
Um feriado repleto de oração.
Sorrio de lado, sentindo minhas mãos coçarem diante da
expectativa de tocar algo novo.
Dou alguns comandos no teclado, até a foto do ser infantil
aparecer. De acordo com o registro, ela tem sete anos e foi trazida
da cidade vizinha para essa, os pais viciados não pensaram duas
vezes quando um excelente malote de drogas foi oferecido.
Está cada dia mais fácil encontrar esses lixos e comprá-los com
tão pouco.
Encarando os olhos inocentes e cheios de medo na foto, desço
minha mão para o meio das pernas, sentindo-me excitado, toco meu
pau ainda meio mole e começo a fazer movimentos de vai e vem
com força, por cima do tecido da calça social.
Com a idade, tem demorado mais do que o normal para
endurecer, mas não desisto. Esquadrinho a boca rosada e banguela
e meu sangue ferve em antecipação.
— Vou santificá-la em breve, minha pequena. — Abro o zíper da
calça, sem me importar em ser pego por Abel, já compartilhamos
tantas outras que me ver assim não seria nem estranho e nem
constrangedor. — Talvez eu te dê para o meu irmão...
Então a tela do computador fica preta, enquanto um ruído forte
de microfonia toma toda a sala.
Paro meus movimentos, tentando entrar no sistema, e quase
caio da cadeira assim que a imagem de Athos aparece, mas o que
faz eu aproximar o rosto da tela é ver Abel desacordado aos pés
dele.
O bastardo sorri ainda mais, como se soubesse exatamente o
que estava fazendo, cada gesto.
— Mas que merda...
— Achei um ultraje não ser convidada para a sua reunião
sagrada. — Essa voz faz os pelos em meu corpo se arrepiarem.
Identifico o humor atrelado ao timbre baixo e sedutor.
Devagar, giro meu pescoço assim que a ponta gelada de uma
lâmina o toca, e a visão dela, toda de branco e com uma coroa na
cabeça, me deixa de boca aberta.
Há muitos sinais evidentes da nossa reunião anterior, porém, seu
olho esquerdo já se abre normalmente. Nos lábios, um batom
carmesim o contorna com perfeição.
— Não tem problema, vamos dar início à última ceia. — Daiane
se afasta sem soltar a faca, a ponta ainda pressionando a carótida.
— A Rainha vai comandar a reunião.
Seu sorriso viperino é a última imagem que vejo antes de ser
atingido por trás, sendo carregado para uma escuridão opressora.
CAPÍTULO 38
Há dez anos eu começava a trilhar esse caminho tenebroso e
cansativo, os treinamentos se iniciaram ainda dentro do orfanato,
cheios de limitações e muitas incertezas. Mal completara a maior
idade, e já estava dando meus primeiros passos como adulta e um
ser responsável para chegar até aqui.
Suiane foi assassinada quando eu tinha apenas oito anos e
desconhecia em sua totalidade a maldade humana. Então, se as
contas forem feitas, desde que arrancaram de mim a única pessoa
que se importava comigo na época, duas décadas nos separam.
Estou viva há mais tempo do que minha irmã viveu.
Muita coisa cabe em duas décadas, como por exemplo a
tecnologia que avançou, assim como a podridão do ser humano em
sua inconsequência, seu descontrole sem fim. Faço parte disso e,
nem por um mísero segundo, me arrependo da forma que a minha
jornada seguiu, ou do preço que paguei para vingar o nome de
Suiane, vendendo a alma para o Diabo.
Foram necessários malditos vinte anos até estar frente a frente
com o anjo mau.
Duas décadas ampliando seu esquema porco e nauseante, sete
mil e trezentos dias abusando de crianças por todo o país,
escondendo-se atrás de uma religião, enganando milhares de
pessoas com sua imagem de complacência, tão amável e caridoso.
Tão humano...
— “No princípio, criou Deus o céu e a terra.” — começo,
utilizando o microfone sem fio. A passos calculados, caminho em
meio às centenas de poltronas no templo, usando uma beca branca
do coral, somente a ponta da minha bota preta aparece enquanto
ando. Embaixo do altar fito o homem voltando da inconsciência,
sentado em uma cadeira de plástico. Quase não o enxergo, pois
somente uma lâmpada se encontra acesa, talvez ele também não,
já que seus óculos ficaram dentro do cesto de lixo da sua sala. — “E
a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do
abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. E
disse Deus: Haja luz!” — exclamo em uma imitação do seu
comportamento diante dos fiéis. Todas as lâmpadas da igreja se
acendem de uma só vez, clareando cada centímetro do local. Elevo
as sobrancelhas, mirando Caim enquanto pisca sem parar, a
iluminação repentina o incomodando. — “E houve luz.”
A confusão em seu rosto se prolonga assim que observa ao seu
redor, deparando-se com os outros líderes, e então para o próprio
corpo nojento, ausente de roupas. Seu elegante terno, feito sob
medida, está jogado no monte, fazendo companhia às peças dos
demais convidados.
O homem sem escrúpulos começa a rir, compreendendo o
cenário reproduzido com maestria, seu riso lunático chama a
atenção dos outros, que estão com as bocas tampadas com
mordaças.
— “E disse Deus:” — retomo a sagrada narrativa, atraindo o
interesse de cada um. —“Façamos o homem à nossa imagem,
conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e
sobre as aves do céu, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre
todo o réptil que se move sobre ela.” — Estanco meus passos no
meio do extenso corredor, saboreando a visão que meus olhos
contemplam, então sorrio de lado satisfeita e meneio os ombros. —
“E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou;
homem e mulher os criou. E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis
que era muito bom.” — Volto a caminhar, o solado da bota
reproduzindo cada passo que avanço em direção ao trono de
plástico do fajuto rei. — Só que, como podemos ver aqui, nem tudo
o que Ele criou foi bom, ou não estaríamos reunidos nessa noite
maravilhosa. Vocês não sabem o prazer que é estar de volta ao
templo da perdição, para uma última ceia.
Abro os braços e faço uma debochada reverência, passeando
meus olhos por todos os indivíduos, todos os homens e mulheres
presentes nesse fim de mundo para curtirem o feriado.
Como Athos previu durante a semana, enquanto planejávamos
esse reencontro, todos os animais se prepararam para a santa
reunião, pouco se importando com o perigo eminente.
Ao final da ceia, Caim entenderá, da pior forma existente, que
essa fortaleza nojenta não é indestrutível. Ao todo, são treze
presentes, contando com o segurança particular do anjo mau e do
seu patético irmão, a dupla de satãs.
— Exatamente como na passagem bíblica, doze pessoas estão
sentadas à mesa para celebrar, pela última vez, a ceia do Senhor.
Rodeando o filho de Deus. — Coloco o microfone no assento mais
próximo e repouso as mãos na cintura, admirando a vista. — Horas
antes de Jesus ser traído, agora só preciso descobrir qual de vocês
é o Judas nessa ocasião, ou o Pedro, que negou o filho de Deus por
três vezes antes de o galo cantar. — Caim ri e o seu peito infla,
coberto por pelos mesclados entre preto e branco que me enojam. A
pele flácida, devido à idade avançada, é repugnante. — Você deve
estar orgulhoso, não é mesmo, velho maldito? Fiz a lição de casa
direitinho.
— Não imagina o quanto, filha — rebate, erguendo o queixo em
toda a sua merda de arrogância.
Começo a andar como se estivesse cercada por um campo
florido, o aroma das flores agraciando meu olfato e, assim que
chego no outro lado da nave do templo, analiso o primeiro homem
que pegamos.
Eles realmente acreditavam que, ao passar por aquelas portas,
encontrariam crianças. Foi divertido assistir suas faces confusas e,
em questão de segundos, horrorizadas diante da promessa de
morte.
Um a um, fiz questão de que vissem meu rosto antes de serem
atingidos na cabeça.
Athos e o meu contato trabalham bem em dupla, principalmente
meu loiro, que não parece suportar o homem que me ensinou a ser
tudo o que sou hoje, mas que está empenhado na causa e vai
aguentá-lo por mais algumas horas.
Depois é cada um por si, como deve ser.
Varro para longe a sensação de pesar que me acomete ao
recordar disso.
Irei para o local aonde dona Jussara se encontra, e não há
espaço para Athos nessa minha vida como Daiane.
Limpo a garganta e obrigo meu cérebro a focar no que é
necessário, sorrindo para o sujeito no chão, que está
completamente nu, sua bunda nojenta se move minimamente para
encontrar qualquer alívio, em vão.
Todos estão sentados em uma camada de vidro triturado,
dilacerando a pele e fazendo uma pequena poça de sangue se
estender ao redor. Menos Caim, preparei algo mais especial para
ele.
— Como é mesmo seu nome, verme? — questiono com ternura,
unindo as mãos como se fosse rezar, e ouvindo os murmúrios
baixos que solta ante a dor através do pano na boca. — Tenho uma
ideia melhor, não preciso do nome real de vocês.
Volto para onde deixei o microfone e pego a bíblia de Caim,
folheando o enorme livro, com suas páginas finas e recheadas de
palavras, comandos que nenhum aqui está disposto a seguir.
— Isso não vai ficar assim, sua puta...
— Olá pra você também, Abel. — Ergo apenas os olhos, fixando-
os no infeliz. A dupla de satãs é a única sem nenhuma mordaça. —
É um desprazer te reencontrar, mas não se preocupe comigo. —
Fito as páginas e sorrio ao encontrar o texto cogitado. — Athos
cuidará de você com muito, muito amor.
— Se pensa que pode se livrar do seu passado nojento só
porque está fazendo isso, se enganou. — Cospe na direção dos
meus pés, o que me faz revirar os olhos.
— Justo na minha bota nova, tsc, tsc, tsc... — Aponto para o
homem do outro lado, despreocupada com horários, já que temos a
madrugada toda para celebrar se necessário. — Você será Pedro e
você João, sinto muito, mas não existiram mulheres na última ceia
— compartilho com a velha desgraçada que acreditou que
encontraria um menino de cinco anos no maldito quarto assim que
entrou. — Sabe como é esse livro, machista pra caralho! E você,
Tiago! — Aponto para outro infeliz, na casa dos cinquenta anos.
Faço o mesmo com os demais, tomando meu tempo para irritá-los
ao máximo, então, quando sobra o nome do discípulo mais odiado
pelos fiéis, paro em frente a Abel, a visão do seu corpo nu me enoja
tanto quanto os demais e não escondo o esgar em meus lábios. —
Judas Iscariotes, o traidor.
Caim, sentado ao lado do irmão, se diverte, rindo como o
lunático que é, e Abel se move em uma tentativa patética de se
livrar das amarras.
— Sua morte será tão horrível quanto essa merda que preparou,
puta! — Jogo o livro aos seus pés, cortando as palavras inúteis.
— E você, meu querido Caim. — Estendo o braço e pego o
objeto que Athos me entrega ao se aproximar. Por míseros
segundos, encaramo-nos, compartilhando milhares de palavras não
ditas. Os homens no chão tentam olhar para trás e ouço diversos
suspiros quando enxergam o que seguro com zelo. Retomo a
atenção, esquadrinhando Caim. —, o nosso amado Cristo —
sussurro perto do seu rosto, enquanto encaixo a coroa de espinhos
no topo de sua cabeça.
Conforme as pontas cravam em sua pele, sangue começa a
escorrer com profusão.
Contemplo maravilhada a visão e suspiro em êxtase, os
espinhos são dezenas de pregos soldados a um arco de metal,
passei a semana trabalhando nisso, noites e noites sem dormir,
materializando cada passo, cada parte dessa vingança.
Caim geme em meio a dor, seus olhos brilhando contra as luzes
do teto, e então volta a rir, agora com a face manchada pelo
escarlate vibrante, com o cheiro de ferrugem impregnado no ar.
— Se aguarda por... — Caim balbucia, entre dor e júbilo. Baba
começa a escorrer de sua boca enrugada. — Se acha que vou me
humilhar... pedir perdão... você é ainda mais burra do que a
vagabunda da sua mãe...
Ergo o braço direito, concentrando-me para que nada do que
saia da boca dele me atinja. Caim tentará fazer uso da sua boa lábia
para me ludibriar, mas não darei a ele essa vantagem, não há mais
nada que eu ainda não saiba.
Viro o pescoço no instante que uma pequena luz vermelha
acende na testa da velha. Pela visão periférica o sinto acompanhar
meu gesto atento, assim como o irmão ao seu lado.
O gemido de dor explode de dentro da boca da velha quando o
projétil, silencioso e extremamente mortal, atinge sua virilha. Com o
tranco do seu corpo ante ao baque, ela se move em cima dos cacos
de vidro e a poça carmesim se expande.
Os outros discípulos empertigam seus corpos e o terror que se
apossa das pavorosas feições me agracia. Curiosos, buscam pelo
atirador no alto da galeria.
Olho para trás e recebo uma debochada reverência do meu
contato. Encapuzado, só é possível ver a sombra do corpo, além do
potente fuzil em mãos.
— Até o dia raiar, quando Jesus tiver sido negado por três vezes,
continuaremos essa linda celebração! — Direciono meu dedo
indicador para a outra ponta da mesa imaginária da ceia, para o
líder de cabelos brancos como a neve, e sorrio. A luz vermelha
acende no meio de sua testa, como aconteceu com o primeiro, e vai
descendo. — Dê adeus ao seu pau molenga. — Outro projétil é
lançado com perfeição, sangue imundo jorra do meio das suas
horríveis pernas, enquanto grunhe diante da dor. Pego o microfone
sem fio em cima do assento e uso o tom mais suave que consigo
alcançar. — Tem algo que adoro fazer e, usando de toda a minha
benevolência, vocês saberão o que é antes de irem para o inferno.
Alexa, estou na igreja, então recomende uma música.
A voz eletrônica não demora a responder, a parte mais fácil de
tudo isso foi conectá-la ao sistema, e sua recomendação arranca
uma gargalhada sincera de mim, fazendo todo o meu corpo tremer.
Alexa sendo a melhor piadista da noite.
Tocando: Take Me to Church, de Hozier.
— Antes de distribuirmos a ceia, precisamos pegá-la da fonte. O
sangue puro de um pecador valioso.
Minha amada tem humor, ela é a risada no funeral
Nós nascemos doente, você ouviu eles dizendo.
Passo entre Caim e Abel, seguindo para o altar e fitando com
deleite o objeto que tanto chamou a minha atenção. Ela é grande e
esplendorosa, perfeita para o lindo final do maldito anjo.
Repouso a palma da mão, deslizando pela superfície polida, tão
lisa quanto a lâmina da minha faca. Deu um pouco de trabalho tirá-
la da parede por ser pesada e real, mas valeu a pena, e ela será
usada para honrar a memória e a perda da inocência de dezenas,
centenas.
Assim como Suiane.
Minha igreja não oferece absolvições, ela só diz: louve no seu
quarto.
Cruzo meu olhar com o de Athos outra vez, parado junto a cruz,
fitando-me com as pupilas dilatadas, como se estivesse excitado em
meio a tudo isso, mas também enxergo uma fúria pronta para ser
liberada, semelhante com a de um animal enjaulado, no entanto, o
que faz meu maldito coração errar uma batida, é saber que atrás de
toda essa fachada há um vazio que ninguém no mundo consegue
preencher.
Suiane também carregava esse vazio?
Eu, sendo tão pequena, não compreendia isso?
Em algum momento, minha irmã teve vontade de desaparecer?
Fugir para nunca mais voltar?
Engulo em seco quando o grunhido de dor de mais um líder
invade meus ouvidos, pisco várias vezes, varrendo esses devaneios
para longe e aceno.
Athos, se percebeu qualquer divergência, não demonstra, ele
está mais silencioso do que o normal essa noite. A parte branca dos
seus olhos tomados pelo vermelho. Talvez eu consiga imaginar as
milhares de questões dançando em sua mente, os cenários em que
aniquila Abel.
Ele não compartilhou comigo como fará isso, está em suas mãos
determinar a forma que o porco do tio morrerá.
Posso ter nascido doente, mas amo isso
Me ordene que eu me cure
Amém, amém, amém.
Em um movimento limpo, empurro a cadeira de plástico,
derrubando Caim no chão. A coroa em sua cabeça se choca no
piso, cravando os espinhos ainda mais fundo, e só então recordo-
me do objeto em minha própria cabeça. Toco o metal gelado com...
afeição.
A ideia foi minha e não pensei que veria tanto orgulho no
semblante de Athos assim que a viu.
Tiro a pequena faca da bota e começo a romper a corda nos
pulsos do velho, ignorando o riso fraco escapando da boca maldita.
— Que honra a sua ser crucificado igual a Cristo — provoco,
passando a lâmina em seu maxilar e um corte grosseiro se abre,
escorrendo o líquido espesso com profusão. Meus dedos são
pintados de escarlate, contrastando com a palidez de minha pele. —
Enquanto o cara do livro foi morto mesmo sendo inocente, como
dizem, aqui a crucificação punirá um verdadeiro lobo em pele de
cordeiro.
Seguro o pulso de Caim e o arrasto pelo chão, marcado de
sangue, até a cruz de madeira.
Sem qualquer cuidado, o impulsiono para que fique em cima do
objeto, sua cabeça se choca na lateral, afundando os espinhos com
precisão. Deposito a faca no piso e agarro uma elegante
embalagem, contendo os pregos feitos sob medida. Seguro um,
erguendo-o na altura dos olhos, e sorrio diante do brilho do metal de
encontro à luz.
Me leve para a igreja, louvarei como um cão no santuário das
suas mentiras
Vou te confessar meus pecados para você poder afiar sua faca
Me ofereça aquela morte imortal, bom Deus
Me deixe te entregar minha vida.
Encaro o anjo mau em seu momento patético entre dor e
diversão, com as pálpebras entreabertas, ele nem tenta fugir, sabe
que esse cenário é impossível, então parece aceitar o maldito final.
Entretanto, sondando-o de tão perto, vejo a arrogância de sempre
dançando em seus olhos, como se tivesse uma carta da manga,
algo realmente bom para mexer comigo.
Esquadrinho Athos, atenta a cada gesto, e o loiro passa por nós,
se postando em frente a Abel.
Pego o pesado martelo e estico o braço direito do maldito,
abaixando-me ao seu lado. Os dedos trêmulos e frios deveriam
estar me deixando animada, a constatação do que vai acontecer
deveria me excitar, porém sua fala me obriga a sondá-lo com
minúcia.
— Pelo j-jeito ele não t-te contou, vagabunda — Caim balbucia,
um riso animalesco atravessando sua garganta. Meu corpo enrijece.
Pode ser apenas mais ladainha saindo da sua boca nojenta,
ganhando tempo. — Não m-mesmo...
Abel acompanha o irmão na risada estrangulada que sai e subo
meus olhos para Athos, ele segura uma adaga com o cabo branco e
posso imaginar o que vai fazer com o tio, contudo, seu silêncio ante
ao que a dupla de satãs está insinuando é anormal.
Antes que Caim consiga proferir mais sentenças estranhas,
desço com toda a força guardada em mim o martelo no longo prego
e seu grito de agonia se junta à música, ainda percorrendo o templo.
O que você tem no estábulo?
Nós temos um monte de fiéis famintos
Isso parece saboroso, isso parece abundante, esse trabalho é
insaciável.
Preciso martelar mais três vezes até a ponta do prego aparecer
do outro lado, completamente suja de sangue. A beca que estou
usando é tomada por respingos carmesins, retirando a alvura de
antes.
A excitação que esperava após pregar sua mão na madeira não
vem.
Levanto-me, já com outro prego em mãos e o martelo entre os
dedos, passando por cima de Caim. A face deturbada me fita com
prazer enquanto me abaixo do lado esquerdo, pronta para pregar
essa palma também.
— Saber que fodeu com o filho do inimigo não foi o suficiente,
puta? — Abel entende o comportamento do irmão como alguma
merda de sinal. Não o encaro e observo a ponta afiada do prego no
centro da mão de Caim, pressionando a textura da pele. — E se eu
te contasse o segredinho desse moleque desgraçado? Esse
bastardo de merda!
O barulho do soco atingindo o rosto de Abel me faz erguer a
cabeça, assistindo a cena, é provável que o osso do nariz tenha se
partido tamanho o impacto.
De punhos fechados, reparo no peito de Athos se movendo em
uma velocidade alarmante, e seu rosto carregado de ira é tomado
por rubor, o alto das maçãs quase da mesma cor escarlate do
sangue.
É fato que esconde alguma informação importante o suficiente
para dar esse prazer à dupla de satãs. A sensação de ter sido traída
traz um gosto amargo para minha boca e sinto-me patética por ter
acreditado nele.
Respiro fundo ante ao seu silêncio, lhe oferecendo uma
oportunidade de confessar, seja lá o que tenha guardado dentro de
si ainda que nada nos meus planos mude em consequência disso.
A música permanece ressoando no templo e, ao som das
risadas arrastadas dos irmãos, desço o martelo outra vez, sem
desconectar meus olhos da imagem de Athos. Ele se aproxima do
tio, anulando a minha existência como se tivesse se fechado dentro
de uma caixa escura, com paredes densas e impenetráveis.
Agora, apenas duas batidas são necessárias para cravar o
prego, unindo o corpo à madeira.
Nada de mestres ou reis quando o ritual começa
Não há inocência mais doce do que nossos suaves pecados.
— P-pobre, vagabunda... — Caim gorgoleja, sangue e saliva
descendo nas laterais da sua boca, mas a diversão atrelada a sua
voz é repugnante. — Você pode me m-matar...
— Mas o passado é o que é, nada vai mudar isso, sua puta
nojenta — Abel profere em desespero assim que fica claro o que
Athos fará. A ponta da lâmina encosta na base do seu pau murcho,
pronto para mutilá-lo. — Tudo está conectado, e o passado é o que
é. — Então ele começa a gritar em meio à aflição quando a faca
separa o membro imundo do restante do seu corpo. O cabo branco
dando espaço para o carmesim.
Na loucura e imundície desta triste cena mundana, só então sou
humano
Só então me torno puro.
Levanto-me, com as juntas dos meus dedos provavelmente
esbranquiçadas tamanha a pressão que faço no cabo do martelo.
Vejo Athos espremer com fúria o que antes era um pênis, com o
olhar vidrado no feito, destruindo a porcaria inútil que machucou
tantas crianças, assim como a ele próprio, esguichando o restante
de sangue que estava preso dentro enquanto Abel se contorce no
chão.
— Athos... — sussurro sem saber se pode me ouvir já que minha
voz não passa de um fio fraco e recheado de medo pelo que possa
vir. E o que me deixa ainda mais confusa é sentir esse temor
inaceitável. — O que eles...
— O irmão dele! — Abel ruge, deliciando-se da situação, mesmo
que esteja sofrendo e em desvantagem. Caim o acompanha na
risada, a dupla de satãs demonstrando o quanto ainda conseguem
ser cruéis. Monstros divertindo-se ao desenrolar o passado. Fito
Abel, não escondendo a confusão em meu rosto, e o homem caído
em posição fetal ri, gargalha feito o louco que é. — O moleque que
trabalhava pra mim... o que segurava a porcaria da arma naquela
tarde, era o irmão desse bastardo. — Abel se engasga em uma
tosse profunda, mas não para de rir, chacoalhando todo o corpo em
cima dos cacos de vidro. Caim, deitado aos meus pés, acompanha
o irmão, os dois demonstrando felicidade ao colocarem todas as
cartas na mesa, movendo cada peça em cima do tabuleiro. — A
grande Lilith fodeu com o assassino da irmã — desdenha.
O martelo escapa da minha mão enquanto sinto o chão sob
meus pés tremendo.
Através da visão nublada, observo o homem que cheguei a me
importar, da minha forma errada e nem um pouco natural,
sentimentos que jamais deveriam ter sondado meu coração, mas
que ainda assim nasceram, como erva daninha, teimosa e quase
invencível.
Talvez seja mais um blefe desses malditos, por estarem à beira
da morte, ou talvez possa ser a última tentativa de se salvarem do
fim que se aproxima. Essa é a mentira que conto a mim mesma,
sabendo que qualquer cenário se torna possível quando se trata
dessas pessoas.
Encolho-me em minha desgraça assim que os orbes azuis, os
mais lindos que já vi na vida, me encaram.
Não há necessidade de qualquer palavra, porque a verdade
transborda dos olhos vazios de Athos.
— Xeque-mate — Caim debocha aos meus pés antes de voltar a
rir.
Amém, amém, amém.
Verdade
“E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.”
CAPÍTULO 39
“— A polícia conseguiu interceptar o veículo com os criminosos
na saída da cidade. Durante a abordagem os infratores tentaram
escapar abrindo uma chuva de tiros contra os policiais. Enquanto
tentavam realizar uma curva fechada, o carro se chocou com um
caminhão que seguia na direção contrária e os criminosos morreram
na hora. A identidade deles não foi divulgada pela polícia, mas o
delegado que está cuidando do caso confirmou serem dois jovens,
um de dezesseis e outro de dezessete anos.”
Recordo uma das diversas matérias que saíram após a chacina,
tentando ligar os pontos.
A dupla de satãs se deleita em meio ao terror que sobe por
minhas pernas, arrastando-se com rapidez, suas garras afiadas
parecem cravar milhares de agulhas em cada espaço vazio que
encontram.
Minha cintura é rodeada por mãos invisíveis, envolvendo a
região com força, subindo para o peito, para o tórax. O ar diminui,
não sendo o suficiente para preencher meus pulmões de maneira
adequada, então minha visão nubla e dezenas de pontinhos
brancos aparecem.
A maldita família sempre esteve conectada à Suiane de alguma
maneira, essa imundície que abusou e matou minha irmã.
Aspiro forte, curvando-me em meio à falta de oxigênio. Perdi as
contas de quantas vezes desonrei a memória dela em uma porção
minúscula de tempo, sou tão suja quanto qualquer um presente
nesse templo.
Já está quase amanhecendo do lado de fora, então ergo o rosto
e fito a imagem mais a frente. Seu maxilar está travado, o rosto
pintado de rubro, os braços trêmulos e os olhos tão vazios.
— Athos — seu nome amarga minha boca, o que não deveria
acontecer, nada do que vem dele é permitido me afetar ou tirar-me
do eixo, já que não dei essa permissão, afinal, assim que toda essa
merda acabar é cada um por si, mas...
Por que estou me importando com mais uma coisa que esse
desgraçado escondeu?
Qual é o motivo para eu me sentir incomodada ao ponto de
perder uma parte do controle, um que sempre me orgulhei de
possuir?
Por que fizeram isso com a minha irmã?
Por que tanto desgosto até no momento de vingar sua morte?
— Athos...
— Te avisei, Lilith, eu sou a porra de um amaldiçoado. — Enfim
ele sai do momentâneo torpor, ainda segurando o membro mutilado
em sua mão, sua voz está tão vazia quanto seus orbes azuis. Caim
profere murmúrios incompreensíveis aos meus pés, a fraqueza o
consumindo, mas Abel ri, assistindo ao nosso filme patético, feliz por
ter nos provocado com maestria até seu último instante. — E não
me arrependo de ter ocultado essa porra, sabe?
— A puta e o bastardo — sussurra Abel enquanto se contorce no
chão, rindo.
— Quando eu nasci, Rafael já tinha dez anos e era levado pra
toda porra de lugar impróprio pra idade dele, mas aquele monstro
que um dia chamei de pai, nunca se importou com o filho se
tornando o melhor aviãozinho da cidade...
— Não quero ouvir a outra parte da merda da sua história,
maldito...
— Mas vai, desgraçada! — Athos dá um passo à frente,
diminuindo nossa distância. Aprumo minha postura, elevando a
cabeça para encará-lo de igual, e buscando por minha arma
acoplada no cós da calça, enfiando a mão por entre a beca. Ele
entende o que pretendo fazer e rompe os últimos centímetros,
quase colando seu rosto ao meu. O membro mutilado cai em sua
bota. — Diferente de você e Suiane, Rafael e eu não tivemos
qualquer vínculo que não fosse a porra do sangue. Nossa diferença
de idade era tão gritante que fui ignorado a infância toda. Nunca
conheci o tal amor de irmão, então, quando ele morreu por estar
envolvido com toda essa merda, não houve choro, não senti porra
nenhuma, bem diferente do que foi com ela... — Athos sussurra a
última palavra e um resquício de dor perpassa em seu olhar.
Deixo o braço estendido ao lado do corpo, o dedo em cima do
gatilho, pronta para acioná-lo. Sua respiração entrecortada atinge
meu rosto e o cheiro característico de menta e fumo fica evidente.
Fico nauseada por me ver dividida entre tanto ódio e... pena.
— Te avisei, Queen — ele recomeça, erguendo a mão para tocar
meu rosto. O resvalar dos seus dedos arrepia cada maldito pelo em
meu corpo, intensificando a fúria dentro de mim. O odor de ferrugem
entre nós cresce. — Falei que se confiasse em mim você seria uma
tola... — Mordo o lábio inferior quando não consigo deter o tremor
que faz meus dentes rangerem. O peito de Athos parece prestes a
explodir, tamanha a rapidez da sua respiração ruidosa. — Não tenho
nada de bom ou saudável para oferecer, só sujeira, podridão... É
uma maldição ser assim, porra! — Athos segura com delicadeza a
mão presa a arma, diferente da sua imagem quase animalesca,
fitando-me com olhos extremamente vermelhos. Durante os dias
que passamos juntos, não o vi cuidar das pupilas com o auxílio do
colírio, como fazia antes. É como se ele estivesse desistindo de
tudo. — Posso matar o dobro de pedófilos, ou colecionar o triplo de
globos, nada vai acabar com isso, Lilith. — Aponta para a própria
cabeça, seu tormento tornando-se tão palpável quanto nossa massa
corpórea. Perdida em meu caos interno, apenas acompanho quando
ele ergue meu braço e posiciona a ponta da arma no meio da
própria testa. — Não me arrependo de ter escondido informações de
você, ou tudo o que vi e fiz pra chegar até aqui hoje, mas porra... tô
cansado de fugir delas, cansado pra caralho...
— Athos — o chamo entredentes, vendo sua imagem embaçar
conforme o maldito, e não solicitado, pranto transborda. Como da
outra vez, ele começa a bater nas laterais da cabeça, em uma falha
tentativa de expulsar seus demônios internos, uma luta pela qual
não parece ter chances de ganhar. —, por que tá fazendo isso?
— Porque matar esse desgraçado não vai acabar com elas, só
tem um jeito de silenciar as vozes...
— Para com essa merda! — grito contra o seu rosto, afastando a
porcaria da arma. Nunca me senti tão perdida e descontrolada como
agora, e o pavor dessa constatação me faz arfar, sôfrega. Sou
apenas o casco vazio do que um dia transbordou. — Eu te odeio
tanto, seu maldito.
— Eu também te odeio pra caralho, desgraçada! — Athos agarra
meus ombros, chacoalhando-me mergulhado em desespero. A face
rubra e os olhos arregalados causariam medo em outras pessoas, o
que não acontece comigo, e constatar isso me apavora. — Te odeio
na mesma proporção que me preocupo com você, essa merda entre
a gente já estava condenada desde o início, Queen...
— Para de falar essas merdas! Vamos acabar logo com tudo
isso e depois... — É tudo o que consigo argumentar quando chego
no limite do meu descontrole, nada dentro da minha cabeça fazendo
sentido. — Depois...
Depois o quê? Fingir que nada disso aconteceu e seguir com a
vida? Os créditos vão subir no final desse lamentoso filme?
Na ficha técnica, a dupla de satãs é o inimigo derrotado, mas
Athos não é o mocinho da história, correndo contra o tempo para
salvar sua amada. Nem a mocinha é frágil e indefesa, pois ela não
existe.
Se não somos os protagonistas ou os inimigos...
Quem caralho nos tornamos nessa maldita trajetória?
— Daiane — assusto-me com a voz preocupada do meu contato.
Athos se afasta, indo em direção a Abel, parando em frente a ele,
também perdido em seus pensamentos —, interceptei alguns sinais,
temos dez minutos para uma saída limpa.
Continuo fitando o loiro, que parece não saber mais o que fazer,
apenas encarando o corpo fraco de Abel enquanto ele se contorce
sobre os cacos.
Então ele se abaixa com rapidez, cravando a lâmina afiada no
pescoço do homem, muito mais rápido do que imaginei, a carótida é
rompida e o líquido quente espirra com força, atingindo o rosto de
Athos.
Tô cansado de fugir delas...
— Daiane? — Meu contato estala os dedos em frente ao meu
rosto, impaciente.
— O que você quer, Gael? — rebato nervosa, usando seu nome
depois de tanto tempo.
— Gael? — Athos repete, demonstrando estar atento ao que
acontece em seu entorno. Os dois se avaliam e um riso tão vazio
quanto os seus olhos desponta. — Combina com você.
Gael o ignora, virando-se para mim.
— Temos que finalizar o quanto antes ou...
— Eu sei — afirmo sem sair do lugar. Observo Caim,
parcialmente acordado, sem anular a sombra de um sorriso
vitorioso. Respiro fundo, tentando pela décima vez assumir o
controle roubado. Não era dessa forma que pretendia finalizar a
noite, minha intenção sempre foi prolongar o quanto pudesse o
sofrimento dessas pessoas, mas estamos atuando em um filme de
baixo orçamento, não em uma corrida para o Oscar. — Faça.
Imediatamente, Gael se move, caminhando para os pontos que
preparamos com antecedência e, enquanto meu contato, mestre e
conselheiro de grande parte da minha vida, pega o isqueiro, volto a
observar Athos.
O crepitar das chamas se alastrando com velocidade ao nosso
redor não é o suficiente para abafar os gemidos de terror dos
imundos no chão. Os orbes azuis, tão vazios como estou me
sentindo agora, acompanham meus gestos enquanto me livro da
beca.
A segunda pele e a jaqueta não são capazes de cortar o calor
que se aproxima. Conforme as chamas sobem pelas paredes do
templo, o que antes era um local gelado, agora mais se assemelha
ao inferno e fumaça vai tomando conta do lugar.
— A-aquela coisinha p-pequena foi a m-mais gostosa... — Caim
provoca, sua última tentativa para me causar dor. Fito o anjo mau
em toda a sua glória, sangue manchando cada espaço de sua pele
flácida, e não sinto nada.
Sua boca volta a se mover, mas as palavras não são absorvidas,
é semelhante a estar embaixo d’água e tudo ser disforme.
Com a destreza de anos praticando, envolvo o cabo da minha
faca e a lanço sem precisar pensar duas vezes. Assisto a ponta da
lâmina rasgar ao meio seu pau murcho, e sei que o maldito está
gritando, pois escancara a boca e mantém o olhar flamejante em
minha direção.
Sua angústia se alastra através das veias e é o mínimo depois
de tudo.
Minha audição acompanha as chamas agora mais próximas, em
cima do altar e tomando os assentos traseiros, vejo as finas cortinas
brancas se dissolverem com velocidade, soltando apenas cinzas no
ar.
Meu corpo é lançado para trás assim que uma explosão
poderosa surge no meio do púlpito. Bato a cabeça na lateral do
assento, sentindo o solo tremer sob meus pés, e a fumaça se
intensifica, deixando minha garganta seca e oprimindo meus
pulmões.
— Vamos sair daqui, Daiane! — Enxergo Gael desfocado acima
de mim, puxando-me para cima. — Temos que ir agora...
— O que você fez? — questiono em meia voz, mas ainda assim
ele me escuta.
Havíamos planejado assistir aos pedófilos queimando em nossa
frente, somente então provocaríamos o incêndio para consumir todo
o resto, não deixando pedra sobre pedra.
— Mudança de planos. — Escoro-me em seu corpo assim que
consigo ficar de pé e sinto sangue escorrer da ferida na minha
cabeça. — O subsolo vai explodir a qualquer momento. — Sondo
seus olhos castanho-claros e ele anui. — Tecnicamente, estamos
em cima de areia movediça, essa merda toda vai afundar. Daiane,
precisamos sair agora, porque esses vermes vão queimar de
qualquer jeito, você conseguiu, o objetivo foi atingido, agora vamos
embora. Venha!
Sem que eu consiga me conter, busco por ele na nave do
templo, mas é em vão. Giro o pescoço, sentindo um temor tomar
posse de mim, então o encontro na entrada, me avaliando.
As portas se abrem para os lados e a primeira delas já está
fechada, deixando apenas a outra para sairmos. Observo pela
última vez os malditos no chão, percorrendo meus olhos por cada
um, e paro em Caim, pego a Rainha dentro do bolso e me abaixo ao
seu lado. As chamas consumirão a peça, entretanto, preciso fazer
isso.
Acaricio o rosto do desgraçado e sorrio.
— Agora sim, xeque-mate. Nos vemos no inferno...
Outra explosão vinda da sala de Caim acontece de repente, essa
é ainda mais intensa e toda a estrutura do templo balança. Olho
para o teto, como se pudesse ver a cúpula dourada, e prevejo ela
caindo justamente nesse local.
Além de queimado, o corpo desse animal será esmagado.
— Vamos! — As mãos de Gael me puxam para cima enquanto
uma densa e obscura fumaça toma todo o ar, meus olhos
lacrimejam e sinto meus pulmões reclamarem, a tosse seca
machuca com mais intensidade a garganta.
Corremos em direção à saída e Athos aguarda nossa passagem
antes de selar a porta.
Agarro um dos assentos assim que a terceira explosão acontece,
a laje que mantém a galeria no lugar despenca, mas barras de
ferros a mantém parcialmente no lugar, só que não por muito tempo.
Se o bloco de cimento que estamos em cima cair, ficaremos
presos aqui dentro. A outra saída foi lacrada no início da noite, até
porque não estava em meus planos abandonar o templo dessa
forma.
Com o auxílio de Gael, avançamos os últimos metros, até que
consigo enxergar Athos do lado de fora, segurando a outra porta.
No instante em que as minhas botas tocam a área externa e o ar
limpo dos minutos finais da madrugada me atinge, suspiro pesado,
meus pulmões carregados de fumaça agradecem o alívio
instantâneo.
O clima gelado é recebido com alívio por mim, mas a ardência
em meus olhos permanece, dificultando enxergar cem por cento. O
som da porta sendo lacrada é o que me faz virar o pescoço para
sondar pela última vez a imagem de Caim, caído e crucificado.
As chamas começam a consumi-lo e nem mesmo um único
pedaço de carne ficará de presente para os vermes.
Todavia, o que tira um arquejo do fundo da minha alma, é
acompanhar uma minúscula abertura aparecer na gigante porta de
ferro. Do lado de dentro, enquanto o fogo se alastra, lambendo as
cadeiras e aumentando a pressão no interior da igreja, Athos se
torna visível.
A fumaça escura não é o suficiente para bloqueá-lo da minha
visão, nem o embaçar conforme lágrimas se acumulam nos cantos
dos meus olhos, esperando permissão para caírem.
Entre tosses dolorosas e o insuportável vazio abraçando os
orbes azuis, Athos sorri para mim.
— O que... — Cambaleio para perto da entrada, desviando de
Gael, que tenta me segurar.
— Tá tudo bem, Queen. — Seus dedos se agarram ao metal
aquecido, não demonstrando incômodo. — Vou calar a porra dessas
vozes pra sempre, finalmente essa merda vai acabar.
— ATHOS! — Meus dentes se chocam quando parte do meu
corpo treme ante ao pavor dessa visão. Repouso minha mão em
cima da sua e arfo, sua palma deve estar toda queimada, pois sinto
o calor atravessando sua pele e passando para a minha. Um
gemido longo e arrastado se sobressai ao barulho de dentro da
igreja, como se um gigante estivesse despertando e movendo tudo,
tirando cada porcaria do lugar. Metal sendo contorcido e a poeira
caindo em minha cabeça se juntam à fumaça escura. — Athos, saia
dessa merda agora!
— É melhor você se afastar, Lilith. Essa porra vai desabar a
qualquer instante — avisa, ignorando o meu chamado.
— Athos, e-eu...
Eu o quê? Te odeio? Te perdoo? Sinto muito?
Como pode uma única pessoa despertar uma avalanche de
sentimentos confusos e dolorosos?
Deixar aparente o pior e o melhor lado?
Sem perceber, destruir toda a maldita barreira construída ao
passar dos anos?
— Qual é a cor do fogo, Lilith? — Seu rosto sujo de sangue e
cinzas é banhado pelas marcas de lágrimas e ele não tem vergonha
em mostrá-las.
Permitir que eu veja a sua parte frágil, que eu enxergue através
de seus olhos o pequeno Athos, tão sozinho, tentando se salvar no
meio da matilha, com os lobos prontos para devorá-lo.
— Eu te odeio por isso... — Engasgo-me com meu pranto, tão
potente quanto o ódio que cultivo por ele.
— Eu também, Lilith, eu também — murmura e sua resposta
parece ter outro sentido. Ele aproxima a face da janela na porta,
tento fazer o mesmo, porém o calor e a fumaça que escapam me
deixam zonza. — Me fala a cor antes que seja tarde demais, por
favor...
Cravo as unhas em sua pele, a temperatura começando a me
queimar, mas a ignoro.
Balanço a cabeça em negação, o maxilar travado enquanto
choro tomada pela dor, enfim permitindo que esse lado de Lilith
apareça. Uma dor que vem de dentro, esmagando meu coração em
seu aperto mortal.
— Por favor... — Os vitrais da entrada começam a estourar,
formando uma chuva de estilhaços ao meu redor.
— Temos que ir, Daiane — Gael avisa atrás de mim, repousando
sua mão em meu ombro, pronto para me arrastar daqui.
Volto a negar, ainda que em meu interior compreenda que nada
mudará, nenhuma palavra que eu diga ou promessa que eu faça
pode modificar o curso dessa história, mas mesmo assim é injusto
pra caralho.
— Queen. — Sua tosse aumenta e Athos se curva,
desaparecendo por alguns segundos. Não solto sua mão quando
vejo fumaça envolvendo sua palma, queimando tudo no caminho.
Assim que os orbes azuis, mergulhados em lágrimas, me encaram,
eu cedo. — Lilith...
— V-vermelho, na maior parte, m-mas tem laranja e amarelo. —
Cubro a boca com a mão livre para deter um soluço, mas é em vão.
Olho para além de Athos, para o templo imerso em chamas e
fumaça, bloqueando a visão dos malditos líderes. — O fogo é
poderoso e indomável, igual a tudo o que sinto por você.
Fixo meus olhos nos seus, os segundos arrastando-se aos
nossos pés, consumindo os últimos resquícios.
— Obrigado, Queen, eu...
No entanto, a vida tem outros planos ao varrer nosso tempo para
o abismo, então outra explosão, a maior de todas, acontece,
lançando Gael e eu para longe da entrada.
O impacto é intenso e chacoalha meus ossos, enviando ardência
para todos os lados, meus ouvidos doem como se tivessem cigarras
dentro deles, cantando a plenos pulmões, zunindo.
Através da visão disforme, vejo a entrada da igreja destruída,
selando de vez a passagem.
— Athos... — sussurro em meio à confusão e sinto dor em cada
célula do meu corpo. Posto-me de quatro e um grunhido atravessa
minha garganta, a palma da minha mão direita está em carne viva,
mas mesmo assim tento engatinhar até a porta. Ao longe e
misturado com as cigarras cantando dentro dos meus ouvidos,
distingo o ressoar de sirenes. Muitas. — Athos...
— Temos que ir — Gael se abaixa em minha frente, a face toda
suja de poeira e sangue. Tento me livrar da sua pegada, disposta a
vasculhar o pecaminoso templo e encontrar o dono dos olhos azuis
e ir contra o seu desejo insano. — Daiane!
— Vai se foder — rebato, olhando fixamente para o lugar aonde
havia uma porta segundos atrás. — Você não pode morrer assim,
seu maldito! Não pode...
Caio de encontro ao chão repleto de pedregulhos e bato a lateral
da cabeça.
— Porra, Daiane, você não me dá outra opção.
No milésimo de segundo que consigo elevar a cabeça em
direção a Gael, vejo a coronha da arma se aproximando.
A escuridão densa e opressora aparece para me carregar
diretamente para o precipício. Dezenas de demônios me rodeiam,
dançando e rindo antes de me empurrarem para essa queda sem
fim.
Apenas dor e nada mais.
CAPÍTULO 40
DOZE DIAS DEPOIS...

Estou há mais de uma hora alternando a atenção entre o sono


tranquilo de dona Jussara e a pequena caixa enviada sem
remetente. Não é necessário saber o nome, esse foi o combinado
entre o meu contato, quer dizer, entre Gael e eu.
Assim que despertei após as explosões, eu já estava bem
instalada no mesmo local em que ele deixou essa senhorinha
protegida. Na maior parte do tempo, a doença varre todas as suas
lembranças sobre Daiane, contudo, os raros momentos de lucidez
são os mais preciosos que eu poderia ter.
Ganhei essa chance de estar ao seu lado agora, com a memória
de Suiane vingada.
Fito as palmas das minhas mãos, marcadas pelas bolhas de
queimadura, principalmente a direita. A única parte do meu corpo
realmente afetada pelo incêndio, todas as outras cicatrizes
permanecerão para sempre em meus pensamentos, girando e
girando sem parar, consumindo a sanidade que me sobrou.
Os gritos.
A fumaça.
O fogo.
Aquela despedida...
Respiro fundo, repousando as costas na cadeira, então volto a
encarar dona Jussara. Ela não tem ideia do inferno vivido nos
últimos dias, talvez nos últimos anos, mas é melhor assim.
Fiz questão de não saber o nome da pequena cidade em que
estamos até poder levá-la para um lugar melhor. Mal tenho saído de
casa, apenas acompanho os noticiários em polvorosa com todas as
sujeiras dos falsos líderes sendo jogadas no ventilador.
Gael continua trabalhando com empenho, em algum lugar do
nosso imenso país.
Como solicitado, ele está agindo para que a empresa seja
comprada por Silas. A Babilônia merece um dono competente como
ele, mas é um processo demorado e pode levar anos, mas não
tenho dúvidas de que conseguiremos já que atingimos a facção em
seu órgão principal: o coração.
Mesmo com tudo vindo à tona, há centenas de pessoas
revoltadas e entristecidas com as mortes dos homens de Deus, elas
não acreditam nas notícias, afirmando serem fake news, e pedem
justiça para que os responsáveis sejam encontrados.
Enquanto fazem vídeos, encenando choros patéticos, a dupla de
satãs e seus companheiros continuam queimando, mas agora no
inferno, virando espetinhos do Capeta.
Boa sorte com isso.
Dona Jussara ressona, a boca entreaberta e o inseparável
lencinho na cabeça. Permito-me sorrir e ousar ter um segundo de
felicidade.
O quarto em que estamos foi todo modificado para atender as
necessidades dela, e faço questão de cuidar dessa mulher incrível.
Venho dedicando todas as vinte e quatro horas do meu dia ao seu
lado, pois não suporto mais a ideia de ter outras pessoas por perto.
No momento que o pacote chegou, ela estava acordada e
percebi a curiosidade sobre o misterioso embrulho, então aproveitei
para sondar sobre o assunto que ainda tira o meu sossego.
“— É errado odiar e se preocupar com a mesma pessoa, dona
Jussara? — questionei, enquanto alisava o pacote de papel pardo.
— Seu namorado mandou esse presente? — perguntou,
aproveitando os últimos raios solares para se aquecer já que o
inverno se tornou rigoroso agora.
Precisei refletir com calma antes de proferir uma resposta
adequada.
— Na verdade, aqui dentro tem a resposta para algo que pode
me deixar muito triste ou muito feliz. Ou as duas coisas ao mesmo
tempo — falei, confusa.
Parece que eu havia me tornado um amontoado de confusão e
descontrole, tudo aquilo que abominava há não muito tempo.
— E está com medo da felicidade — constatou em sua rara
lucidez, sorrindo com afeto. — Acha que não merece nada de bom,
Daiane, foi sempre assim.
— Talvez eu não mereça mesmo.
Dona Jussara meneou a cabeça discordando, sem anular o
sorriso em seus lábios.
— Acho que nunca te contei essa história, mas quando você
chegou no orfanato e viram como eu tinha me apegado a você, me
aconselharam a me afastar. — Minha memória é recheada das
histórias que ela contou, porém essa eu não conhecia. As mãos
calejadas pelo tempo começaram a limpar a coberta estendida em
cima das suas pernas e ela deu de ombros. — Disseram que eu não
deveria me aproximar de você por conta de onde veio, por causa de
quem te criou...
Resvalo as pontas dos dedos em meus machucados na palma,
observando a mulher cavar as lembranças soterradas e vencer,
mesmo que por alguns minutos, a doença.
Minha garganta parecia se fechar diante do bolo em formação.
Ela mal citou o passado e já precisei conter o descontrole que se
apossou de mim, na verdade, eu tentei. Detesto recordar qualquer
coisa que me ligue à pessoa que me trouxe a esse mundo, é uma
dor que carregarei para o túmulo.
Não sei lidar com essa bagunça que me tornei.
— Dona Alzira queria dizer que, se eu me aproximasse de
alguém tão encardido, me sujaria também. — Jussara olhou em
minha direção, os olhos repletos de repulsa direcionada à mulher
que citou. — O nosso passado vai caminhar com a gente até o
último dia de vida, minha filha. Não tem como mudar isso, mas você
não tem culpa por carregar essas memórias, nem a Suiane teve!
Não importa a quantidade de sujeira em volta de você — exclamou,
erguendo o dedo e dando sua explicação da maneira simples e
direta como sempre fez. — Você não é ela, Daiane. O sangue
daquela mulher tá dentro de você? Sim, mas você não é ela e não
merece carregar a sujeira dela — disse enérgica, como se estivesse
me defendendo em frente a uma multidão. — Você não é ela... —
sussurrou mais para si, voltando a encarar um ponto qualquer no
cobertor de lã sobre as pernas.”
Limpo os olhos enquanto recordo as palavras ditas mais cedo.
Carrego esse sangue, mas não sou igual a mulher que permitiu
que a própria filha fosse abusada por anos. É certo que a próxima
seria eu e, mesmo que Suiane lutasse, essa batalha já estava
perdida.
Minha irmã me salvou da maneira que podia porque jamais foi
conivente com as atitudes da pessoa que nos gerou, e aquela
mulher é só isso: a pessoa que nos gerou.
Suiane teria amado Jussara, e Jussara teria amado Suiane,
assim como me amou, como continua me amando mesmo nos dias
que me esquece.
Minha verdadeira mãe.
Sorrio em meio ao choro enquanto ela dorme serena, sem
imaginar que suas palavras foram essenciais para tomar coragem e
abrir o maldito pacote.
Eu não sou ela e ele não é...
Paro com as mãos trêmulas, ainda sem conseguir pensar em
seu nome. Dona Jussara pode ter razão, mas levará tempo até me
acostumar com essa nova realidade, afinal, foram vinte anos com
um único objetivo e é estranho e assustador esse cenário em que
me permito sentir algo e receber.
Lilith não sabia sentir, menos ainda receber sem questionar.
Antes eu tentava separar as duas, mas agora, Daiane e Lilith
tornaram-se apenas uma e, dia após dia, uma ensinará à outra. Vai
dar certo!
Volto a mexer no pacote pardo, rasgando-o de uma vez, e a
pequena caixa de papelão lisa não entrega o conteúdo.
Balanço o objeto, prolongando essa espera, mas nenhum som é
extraído. Deposito a caixa em cima da mesa e vou afastando as
abas para os lados. De início, somente o plástico bolha transparente
aparece e meu coração realmente dispara assim que sinto a ponta
dos dedos tocarem algo gelado no fundo.
Começo a chorar, como a idiota que me tornei, quando
reconheço as curvas do objeto e o desenho esculpido nele.
Ergo a peça na altura dos olhos, esquadrinhando as marcas de
queimado, principalmente no lado direito.
O cavalo preto detonado, mas ainda inteiro, é a resposta que
ansiei durante esses malditos doze dias, e meu pranto é silencioso
enquanto dona Jussara permanece dormindo como o anjo que é.
Gael cumpriu sua promessa, a resposta está em minhas mãos.
Agora preciso me preparar para a próxima partida.
— Olá, Black Horse.
Hoje eu segurei algo muito pequenininho, e tão delicado que fiquei
com medo de machucar.
Minha irmã nasceu ontem e mamãe só voltou pra casa hoje.
Achei que tinha acontecido alguma coisa ruim, mas mamãe disse
que é normal, bebês precisam ficar em observação.
Daiane é o bebê mais lindo do mundo inteiro. Quando ela
segurou no meu dedo achando que era o tetê, fez cosquinha.
Daiane.
Dai, minha irmãzinha linda, prometo te proteger do bicho papão
até eu ficar bem velhinha. E a gente vai ficar velhinhas juntas.
Eu te amo, Dai.
nêmesis
1. deusa da vingança e da justiça.
EPÍLOGO
SEIS ANOS DEPOIS – EINDHOVEN, HOLANDA

Aplico uma generosa camada de batom vermelho e desenho os


lábios com precisão, sem nenhum borrado, então deposito a
embalagem na penteadeira de mogno claro, ao lado das outras
maquiagens.
Confiro pela última vez minha aparência: o coque baixo mantem
os cabelos esticados; os brincos de diamante, em formato de
lágrimas, brilham contra as luzes frias do closet e a sombra clara
nas pálpebras apenas realça a cor dos meus olhos.
Levanto-me, esquadrinhando o vestido de veludo preto com gola
alta. Nos pés, scarpins Saint Laurent, vermelhos com as siglas da
marca desenhando o salto.
Tem coisas que nunca mudam.
O som de sapatos batendo contra o piso chega antes da imagem
deles.
Olho para a porta assim que um pedacinho de gente a atravessa
com os cabelos loiros quase alcançando sua cintura, já dentro do
pijama de tigre, sua mais nova obsessão, seus pequenos orbes
azuis me encaram com alegria e é impossível não sorrir de volta
enquanto sinto meu coração descompassado.
Como pode algo tão pequeno provocar tamanho alvoroço dentro
de mim?
— Mamãe!
Abro os braços e a ergo com zelo, então o cheiro de shampoo de
morango se espalha pelo closet.
— Tudo bem, pessoinha que mais amo nesse mundo? — brinco
com Anne, seu nome sendo um diminutivo de Suiane.
Hoje, recordar da minha irmã não chega carregado de
sentimentos ruins, agora pensar nela me traz alegria e saudade.
Cheiro o rosto de Anne e ela gargalha em meu colo.
— Então o segundo lugar é o meu? Vou perder pra essa pirralha
outra vez? — o timbre baixo e arranhado faz os pelos do meu corpo
se arrepiarem, mesmo depois de tantos anos.
Anne e eu viramos de frente para a entrada do closet e somos
presenteadas com a bela visão do homem dentro de um smoking
feito sob medida, usando preto da cabeça aos pés e com a máscara
escolhida para essa noite sendo do mesmo tom.
Athos se parece com o Fantasma da Ópera.
Ele sofreu queimaduras de terceiro grau em quase cinquenta por
cento do corpo. Athos ficou em coma por quase quatro meses
depois que Gael o resgatou, enquanto sua pele se regenerava.
Mesmo com a gola perfeitamente fechada as cicatrizes
aparecem, subindo até a lateral da sua cabeça. Os cabelos, que
antes eram fios compridos, agora estão em um corte militar,
combinando com o espaço curto aonde sofreu as queimaduras.
Sua imagem assusta quem não o conhece, mas para mim ele
está ainda mais lindo do que estava anos atrás, na noite em que nos
conhecemos.
O corpo marcado por centenas de cicatrizes é apenas uma parte
da sua história.
Athos só não enlouqueceu quando voltou do coma e constatou
estar vivo, porque fui mais rápida e contei sobre Anne, minha
barriga proeminente não deixando dúvidas. Desde o início, nada
entre a gente aconteceu de forma natural, menos ainda saudável.
Athos confidenciou certa vez que as vozes não o incomodavam
mais, mas isso só aconteceu depois da chegada de Anne.
Duas pessoas quebradas, e com muita bagagem, se adaptando
à nova realidade. Não achei que daria conta e nem ele acreditou,
mas cá estamos nós, uma família improvável e nada comum.
O normal não combina com a gente.
— Queen e Princess — brinca, se aproximando de nós. A forma
como ele observa a filha, completamente encantado, me passa a
certeza de que Anne jamais será machucada, não com os pais que
tem. Então me fita com o olho bom. — Tudo bem, linda?
O olho direito, que era tomado pelo glaucoma, foi muito atingido
no incêndio, mas ele continua ali, com uma fina camada branca o
cobrindo, porém já não enxerga mais nada.
Ergo a mão, acariciando o lado sem a máscara, e sinto sua pele
aquecida. Seu perfume amadeirado se mistura com o cheiro de
morango de Anne.
— Com licença, Sr. e Sra. van Dijk. — Nosso mordomo limpa a
garganta ao chamar nossa atenção. O homem baixinho e troncudo
foi um achado quando viemos para cá. Alfons me lembra Silas, o
dono majoritário da Babilônia, sendo eficiente e silencioso. — A
limusine os aguarda — avisa em seu holandês nativo.
— Obrigado, Alfons, já vamos descer. — Athos pega Anne no
colo e começa a beijar todo o rostinho da nossa filha. Ela adora
tanto o pai que já precisei intervir, mesmo pequena, em uma
discussão com outra coleguinha por conta da máscara. Ela é a sua
fã número um. — Você gosta do batom da mamãe?
— Eu amo verde — fala, batendo palminhas.
Foi durante conversas assim que descobrimos o daltonismo de
Anne. Ela é muito nova, mas compreende que enxerga o mundo de
outra forma, assim como o pai. Athos está empenhado em ser o
melhor professor, ensinando tudo o que aprendeu da maneira ruim,
mas com muita leveza para nossa garotinha.
Suspiro sem conseguir esconder o encantamento. No passado
me acharia uma tola por isso, mas agora não troco essa vida por
nada. É inimaginável me ver sem eles ao meu lado.
Sondo a penteadeira para confirmar se peguei tudo e deparo-me
com a foto dela.
Como eu gostaria que a minha mãe estivesse aqui.
Dona Jussara nos deixou pouco antes de Anne completar dois
anos, a maior parte do tempo a doença roubava cada grama de
memória dela e foram dias pesados e tristes, no entanto, como a
vida não para de me surpreender, a senhorinha se encantou com
Athos, não dando importância para a aparência sombria do loiro.
Eles se deram bem e ele recebeu por alguns meses o amor que lhe
foi tirado na infância.
Em seu raro momento de lucidez, dona Jussara riu de felicidade
ao nos ver juntos e com um bebê.
Não preciso nem acrescentar o quanto ela amou Anne, não é
mesmo?
“Agora posso partir em paz, minha filha, você encontrou o
homem perfeito e é a melhor mãe desse mundo.”
Ah, quem me dera, mas prometo continuar tentando.
Minha mãe descansou no final do verão mais intenso em anos
no país e, como mais nada me ligava àquele lugar, mudamos para a
Holanda. A localização é ótima para os nossos negócios, faturamos
milhões a cada ano.
Beijo a bochecha de Anne antes de o pai entregá-la a Brigitta, a
babá da pequena. Confiamos nela, assim como em todas as dez
câmeras espalhadas pela mansão em locais estratégicos.
Eu disse, tem coisas que nunca mudam.
— Vamos? — Meu marido entrelaça nossos dedos e vejo a
felicidade transbordar em seu olho, e tudo isso porque iremos
trabalhar essa noite.
Usaremos o baile cerimonial da cidade para caçar e enviar um
presentinho ao Capeta, outro maldito abusador usando a política
para se esconder, mas não por muito tempo, afinal, ele recebeu a
mensagem, o aviso adorável que criamos.
Pela manhã, a Rainha e o Cavalo foram enviados ao quarto de
hotel cinco estrelas aonde se hospedou.
Somos requisitados em diferentes lugares do mundo para limpar
essa sujeira, ratos conseguem se proliferar em uma velocidade
alarmante, mas ainda bem que somos os melhores na área, quase
como se fôssemos justiceiros.
Interessante como chamam assassinos de aluguel hoje em dia,
eles não têm ideia do prazer que é acabar com esses malditos.
— Vamos, mijn liefje[6], o jogo não pode parar.
BÔNUS
Aproveito que Bibi dormiu lendo para mim e vou devagarinho até
o escritório do papai e da mamãe. Fecho a porta grandona e arrasto
meus pés no carpete macio, até chegar atrás da cadeira aonde
papai gosta de se sentar.
Ele não sabe, mas fiquei olhando ele mexer em um botão
quando pensou que eu estava dormindo.
É igual nas historinhas que mamãe conta toda noite, nos
castelos das princesas sempre existe uma passagem secreta.
Igual a essa daqui, que começo a entrar depois de apertar a
bolinha verde embaixo da mesa.
As estantes se afastam e eu olho animada para todas as
prateleiras quando a luz cinza se acende.
— Uau! — Bato palmas, chegando mais perto do monte de potes
de vidros. — Quantos olhos! Um, dois, três, quatro...
Volto a contar quando me perco, isso sempre acontece na escola
e é por isso que eu odeio aritmética.
Coloco a mão no potinho perto de mim e sinto como ele tá
gelado. Papai nunca desliga o ar-condicionado daqui, mesmo
quando tá nevando lá fora.
Papai e mamãe me contaram que o trabalho deles é ajudar
outras pessoas, que muita gente precisa deles.
Eles são tão bonzinhos.
Só não entendi porque meu papai sempre aparece com um novo
pote, são muitos, muitos mesmo, e toda semana chega mais.
— E são tão legais! — Observo bem devagarinho a bola no meio
do olho, ela boia sem parar na água estranha. — Tudo é verde e
cinza. Por que papai não traz de outras cores pra gente formar um
arco-íris? Quais são as cores do arco-íris?
Não tem problema, meu papai disse que isso é só um detalhe,
não entendi, mas se ele tá dizendo eu vou acreditar, meus papais
nunca mentiram pra mim.
Quando eu crescer, vou trazer um montão de olhos, um de cada
cor, e deixar papai e mamãe orgulhosos.
Não vejo a hora de virar adulta!
Gostou da história e gostaria de conhecer outros personagens desse universo? Deixe uma
avaliação na Amazon, ela é muito importante!
E, sobre outros personagens, me conta mais enviando um direct para o meu instagram:
@laizaverso
AGRADECIMENTOS
Não poderia começar de outra maneira a não ser deixando
meu profundo agradecimento pelas meninas que foram até o final.
Embarcaram de corpo e alma nessa história e me incentivaram com
suas palavras de apoio incondicional.
Hellen, Larissa e Laís.
Estejam preparadas para a próxima aventura!

Obrigada Augusto e Camila.

Mari B. Maia, você é foda pra caralho! Obrigada por


observações tão necessárias e que me ajudaram na construção de
Nêmesis. Leiam os livros dessa deusa.

Sabrina, que foi essencial lá no comecinho quando eu me


senti verdadeiramente perdida. Amo você, amiga.

A todos que me apoiaram de alguma forma a chegar até aqui.

Mayara, a revisora mais foda que você vai encontrar, juro!


Que esse seja o primeiro de muitos trabalhos contigo e obrigada por
ter virado a noite no final da revisão. Principalmente por todas as
lágrimas que fui responsável rs

Aurora que sempre me apoia, obrigada, amiga.

Nana, que ilustração perfeita! Muito obrigada por conseguir


passar tudo da cena nessa imagem.

Por último e muito, MUITO importante, obrigada a cada


autora no grupo “Sprints das Gatas”. Sem as nossas reuniões e
várias trocas, eu não teria chegado ao fim dessa jornada. Podia ser
sete da manhã, três da tarde ou as quatro da madrugada que
sempre tinha alguém ali, disposta a escrever e incentivar. Que grupo
foda e me sinto sortuda por fazer parte!

Obrigada!
OUTRAS OBRAS
Suíte 69

“Bem-vindos à Suíte 69. Agradecemos a escolha do pacote


Diamante com direito a 48 horas de prazer. Sua estadia começa às
00:00 do sábado e só termina às 00:00 da segunda-feira.
PS: não é recomendável se apaixonar por nenhum dos nossos
acompanhantes de luxo.”
Joana, após se sentir frustrada, decide embarcar em uma aventura
selvagem durante um final de semana regado ao desconhecido.
Miguel, ao se deparar com um imprevisto financeiro, aceita o convite
da sua antiga chefe, e promete que aquela será a sua última vez
como um acompanhante de luxo.
Até onde você iria em busca de prazer?
Joana e Miguel levarão seus corpos ao limite, enquanto um
sentimento incomum e proibido entre eles, ganha forças. O que
começou apenas por diversão, pode acabar mudando
completamente suas vidas.

Meu ex Acompanhante de Luxo

É INDISPENSÁVEL A LEITURA DE SUÍTE 69 ANTES DE LER A


CONTINUAÇÃO!
“PS: não é recomendável se apaixonar por nenhum dos nossos
acompanhantes de luxo.”
Joana escolheu o pacote Diamante e, ao entrar na Suíte 69, não
poderia imaginar o quanto a sua vida iria mudar ao final das 48
horas mais quentes já vividas. Satisfeita e com o coração batendo
mais forte por seu belo acompanhante de luxo, a mulher se vê
interessada e envolvida pelo homem.
Miguel, depois de prometer que aquela seria a sua última vez
trabalhando como um acompanhante, sente que agora é real.
Principalmente depois de conhecer Joana Strack e, diferente do que
a empresa aconselha, se apaixonar por sua cliente.
O que eles não imaginam é que, fora da Suíte 69, todo o peso que o
mundo deposita em suas costas pode se tornar um empecilho para
esse amor que surgiu e cresceu de forma genuína, permaneça.
Indo na contramão, Joana e Miguel terão que aprender a lidar com
as dificuldades do dia a dia e a vida real.
Ele, enfrentando o preconceito da sociedade ao ser taxado como
um ex-garoto de programa.
Ela, soterrada pelo abuso psicológico da pessoa que deveria amá-
la.
Joana e Miguel conseguirão ultrapassar todos os obstáculos e viver
plenamente esse amor gerado de uma maneira distinta?
O que começou por diversão, de fato, mudou por completo as suas
vidas.
Em Meu Ex Acompanhante de Luxo, leia o desfecho do casal que
conquistou centenas de pessoas ainda dentro da suíte mais quente
do Brasil.

Minha Adorável Diaba

Apenas uma cama, um casal que se odeia e química pura nesta


comédia romântica com casal age gap!

Para Gustavo, nenhuma provocação com vistas a vingança era


demais quando se tratava dela, a Diaba, que o fez ter o melhor
orgasmo de sua vida num banheiro de boate e bem... o humilhou
logo depois do gozo.

Já Sasha, sabe que o Garoto, é um perigo para si mesma e ceder a


atração que sente por ele sem limites firmes, seria demais para sua
sanidade, mesmo que ele tenha sido o cara mais gostoso que ela já
pôs a boca.
Após ver Gustavo chupar um pêssego, Sasha teve certeza de que
gostaria daquela atividade em outro local, acabando por oferecer um
acordo: uma ‘tentativa’ de amizade com benefícios, com muito suor
envolvido.

É possível que eles consigam não dar voz aos sentimentos que
serão páreo para toda afronta na cama e fora dela?

Aviso: Minha Adorável Diaba, é um volume único no Universo de


Suíte 69. Por ser com casais diferentes, cada livro pode ser lido
separadamente, mas é provável que contenha pequenos spoilers do
anterior.

Contrato com um ex Cafajeste

Um cafajeste arrogante.
Uma gravidez inesperada.

Sem saber, Guilherme Porto, o badboy da faculdade em que estuda,


engravida a ex-melhor amiga após uma noite regada a álcool.
Quando um vídeo viraliza na internet e o deixa famoso, Gavião vê
a oportunidade perfeita para curtir a nova fase em sua vida.
Até Manuella Parrilha bater em sua porta e contar o resultado do
sexo selvagem dentro do depósito de uma vinícola.

Os ex-amigos serão obrigados a conviver juntos até o final da


gestação, compartilhando a mesma cama e sem poder quebrar a
principal regra do contrato: eles não podem se apaixonar.

O Cafajeste vai conseguir?

Aviso: Contrato com um ex-Cafajeste, é um volume único no


Universo de Suíte 69. Por ser com casais diferentes, cada livro pode
ser lido separadamente, mas é provável que contenha pequenos
spoilers do anterior.
Devil’s Mouth – Pecaminosa Inversão

"Quando você está com o seu cartão dourado em mãos e


atravessa Devil's Mouth, todos os seus desejos mais sujos, são
saciados."

Ele só quer uma noite perversa de prazer. E ela, a pequena


Demôniazinha, fará tudo o que o seu Senhor mandar. Inclusive
inverter os papeis durante a relação.

Para Ele, essa é apenas mais uma forma de satisfação plena.


Para a Demônia, é o seu momento de assumir o controle de um ato
diabolicamente sujo e excitante.
Neste clube secreto e repleto de perversão, o seu lado mais
sombrio e pecaminoso é libertado sem julgamentos.

Afinal, em Devil's Mouth, você é o seu próprio mestre.

Dona das Bolas – trisal entre atacante, goleiro e a melhor amiga

Um atacante dominador.
Um goleiro cafajeste.
Uma amiga curiosa.
E uma aposta indecente.

Descubra o resultado dessa louca combinação em um conto quente


como o inferno.
SOBRE A AUTORA
Láiza de Oliveira, é Técnica em Marketing, Informática para
Internet e, recentemente, finalizou o curso de Preparação de Texto.
Nasceu em Barra Bonita, interior de São Paulo. Atualmente,
mora em Jaú.
Começou a ler e cheirar livros aos oito anos. A biblioteca
sempre foi seu lugar de refúgio, onde permanecia por horas a fio
tentando encontrar alguma relíquia. Somente em 2012 começou a
adquirir livros. Seu sonho? Montar uma biblioteca particular.
Viciada em livros e séries dramáticas, se apaixonou e entrou
de cabeça na leitura de High Fantasy. Sabaa Tahir é sua grande
inspiração, junto de George Orwell. Sarah J. Mass foi incluída na
sua lista de autores favoritos junto de Juliana Daglio, Anne Marck,
Taylor Jenkins Reid e Tahereh Mafi.
Ela jura que está tentando melhorar e responder as
mensagens dos amigos em tempo record, não duas semanas
depois - como tem feito - já que costuma se esquecer. Meros
detalhes.
No meu mundinho da escrita você vai encontrar: drama; sick-lit;
distopia, mundo pós-apocalíptico, ficção científica e erótico.
O multiverso é real.
[1]
Querida
[2]
Ele ainda vai ser meu.
[3]
Dark Side – Bishop Briggs
[4]
The Steeple - Halestorm
[5]
All For Us - Labrinth
[6]
Meu amor

Você também pode gostar