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Copyright © 2022 Jussara Leal

ALÉM DO AZUL - PARTE 2

1ªEdição

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte dessa obra poderá ser


reproduzida ou transmitida por qualquer forma, meios eletrônicos ou
mecânico sem consentimento e autorização por escrito do
autor/editor.

Capa: Designer Tenório


Revisão: Pat Sue Revisões
Diagramação: Veveta Miranda

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e


acontecimentos descritos são produtos da imaginação do autor(a).
Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é
mera coincidência.

TEXTO REVISADO SEGUNDO O ACORDO ORTOGRÁFICO


DA LÍNGUA PORTUGUESA.
Sumário
Nota da autora
Meses depois
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Bônus Samuel
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Epílogo
Agradecimentos
Queridos leitores, essa é a continuação de mais uma história
apaixonante. É necessário ler o livro 1 para que tenha uma
experiência satisfatória na leitura deste livro.
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Antes que inicie a leitura, devo alertá-los de que pode conter alguns
gatilhos ao longo da história. Henrico foi abandonado pelo pai,
possui a Síndrome de Asperger, determinados acontecimentos
poderão mexer com alguns de vocês.

Este é um romance erótico, nele é narrado o desenvolvimento


sexual do personagem principal e foi escrito visando quebrar um
pouco do tabu que muitas pessoas possuem em relação ao autismo.

É IMPORTANTE RESSALTAR QUE HÁ VEROSSIMILHANÇA NESTA HISTÓRIA.


[1]
“Você é a luz, você é a noite

Você é a cor do meu sangue

Você é a cura, você é a dor

Você é a única coisa que quero tocar

Não sabia que podia ser tão importante

Então me ame como só você faz, me ame como você faz”

“Fogos! Muitos fogos! Eu odeio esses sons, eles são tão altos que
parecem estar sendo disparados diretamente dentro da minha
cabeça. Meu corpo está tremendo, minha cabeça está doendo muito
e meu avô está em cima de mim, tentando conter um desespero
incontrolável. Eu dou chutes, socos, arranho meu avô, puxo meus
próprios cabelos, e os sons apenas continuam. Eles agora se
misturam com gritos desesperadores da minha mãe. A voz dela
deveria me acalmar, mas os sons estridentes dos fogos parecem
infiltrados em minha mente.
Ela grita com meu pai, briga, o faz ir embora. Logo em seguida, ela
tenta me levar para o banheiro, mas estou nervoso o bastante e a
machuco, eu não consigo me controlar, não consigo controlar a
agressividade. Minha mãe não desiste de mim, mesmo quando dou
o meu pior a ela. Persiste e entra no banheiro, onde ela, sem nem
mesmo retirar as nossas roupas, liga a ducha e nos acomoda sob
os jatos de água, sentando-se e cobrindo meus ouvidos com suas
mãos, numa tentativa de me acalmar. Ela está chorando muito e
isso faz com que eu sinta uma dor ainda maior. Eu a abraço forte,
querendo que todas as dores desapareçam; as minhas e as delas.

— Mamãe está aqui, meu amor. Mamãe vai protegê-lo, ok? Acalme-
se, meu amor. Por favor, fique calmo — diz, balançando-me para
frente e para trás, como se estivesse me ninando. Está doendo
muito, muito, muito...— Vai passar, meu pacotinho de amor. Mamãe
te ama até o infinito e mais. Vai passar, minha estrelinha. Quem é o
meu príncipe? Quem é? O Henrico Davi! O garoto mais lindo do
universo todinho e mais especial também..

Essas são as últimas palavras que ouço antes da minha mente se


desconectar por completo da realidade e me apagar para todas as
dores.”

— Faltam cinco minutos, bebecito! — digo, sorridente, enquanto


meu noivo está sob tensão.

A virada do ano não é algo que Henrico gosta, devido à queima de


fogos de artifício. Ele nunca comemora, sempre fica em casa,
recluso. Esse ano eu resolvi mudar a situação. Enquanto todos os
nossos familiares estão na casa de Ilha Grande, celebrando da
maneira louca costumeira, eu e ele estamos na Ilha de Búzios,
sozinhos pela primeira vez. Daqui seremos capazes de vir a queima
de fogos, porém, com a distância segura e confortável, de forma que
não afetará Henrico e sua sensibilidade sensorial aos ruídos de
fogos.

Feliz da vida, corro até o balde de champanhe e encho mais uma


taça sob o olhar reprovador do meu noivo mal-humorado. Ele acha
que eu deveria estar em Ilha Grande, me divertindo com os nossos
familiares, segue insistente em dizer que eu sou "normal". Mas a
grande verdade é que nunca estive mais feliz e realizada em toda a
minha existência. É o primeiro Réveillon que passo ao lado do
garoto que eu amo, é o nosso primeiro Réveillon como casal. E
talvez eu tenha que repetir isso novamente antes que a contagem
regressiva comece...

Passamos por tantas coisas nos últimos meses, tantas mudanças,


amadurecimento, descobertas. Após as férias, Théo e Eva
mudaram-se para o Rio de Janeiro depois de anunciarem a
gravidez. Junto com eles, e de maneira muito misteriosa, Luiz
Miguel também voltou ao Rio – brigado com Kiara e sem que
Samuel descobrisse o envolvimento entre a irmã e o primo. Por falar
em Samuel, ele, com todo seu poder de argumentação, conseguiu
convencer a tia Dandara a permitir um ano sabático e ficou em São
Roque com Hadassa, que tem enfrentado uma crise com o pai e
está andando sob vigilância. É surreal que Samuel tenha adiado um
ano de sua vida acadêmica, mas não julgo porque fiz o mesmo, mas
ele sempre foi muito comprometido. Enfim. A casa de Théo e Eva já
foi devidamente construída com uma rapidez assustadora e agora a
equipe de engenharia está terminando a construção da minha casa
e de Henrico; o prazo para conclusão da obra é de mais dois meses
e meu gênio mais bonito do mundo acertou por completo quando
disse que esse modelo estrutural era rápido.

Além dessas mudanças, Henrico retomou a rotina de trabalho e


estudo, enquanto eu tenho feito um curso on-line e pesquisado
sobre cursos de diversas faculdades para uma possível mudança de
planos. Medicina veterinária sempre foi um grande sonho, porém,
não estou disposta a deixar São Roque e lá não possui
universidade. Estou avaliando algumas profissões, estudando mais
a fundo, para poder tomar uma decisão boa para o meu futuro. E a
notícia mais incrível é que estamos com pressa de nos casar, por
isso já estamos organizando como tudo será, lidando até mesmo
com cerimonialistas. Na verdade, eu conduzo as conversas virtuais
e Henrico me ajuda com detalhes e sugestões fora das conversas.
O que ele não sabe é que estou tramando algo grandioso, de forma
que todos possam participar da cerimônia sem que Henrico sinta o
impacto da aglomeração de pessoas. Diante do altar serão apenas
nós dois e nossos pais, mas darei um jeito para que todos os
demais familiares façam parte da cerimônia, visto que torceram e
acompanharam nossa trajetória uma vida toda e merecem fazer
parte desse grande acontecimento.

O primeiro casal a se casar será Théo e Eva, logo em seguida


seremos nós. Sempre sonhei com esse momento, tinha aqueles
sonhos de adolescente que encontra o príncipe encantado e tem um
casamento perfeito. Em todos os sonhos meu príncipe encantado
sempre foi Henrico e só de pensar em me casar com ele os meus
olhos se enchem de lágrimas.

No ponteiro do relógio marca dois minutos para meia-noite e eu me


aproximo de Henrico, deixando minha taça de champanhe de lado.

— Não está feliz? — pergunto, tocando seu rosto.

— É claro que estou, Sophie. Só... eu não gosto desta data. Sempre
foi muito traumática para mim devido aos sons e as crises que eles
me causavam. Você é diferente. Ama as festas de final de ano. Eu
tenho... — Ele fica em silêncio, demonstrando constrangimento ou
algo que não consigo decifrar bem.

— O que você tem? Diga para mim, por favor? — Peço.

— Medo e vergonha. Há muitas lanchas por perto e... e se eles


soltarem fogos, não sei como será, Sophie.
— Eu fechei todas as janelas, estamos apenas nós dois aqui e, sim,
eu sempre amei as festas de final de ano, porém, esse ano está
sendo diferente de tudo, sabe por quê?

— Não sei, Sophie.

— Porque esse é o primeiro ano que estou realmente feliz, realizada


de todas as maneiras possíveis. Esse ano, após longos anos de
espera, finalmente eu tenho você como noivo. Isso ressignificou a
minha vida e todos os motivos para comemorar. O próximo ano será
incrível para nós, bebecito. Eu serei sua esposa e isso é tudo que
eu sempre mais quis em toda a minha vida. Eu sou a mulher mais
feliz do mundo hoje por estar tendo a chance de virar o ano ao seu
lado. E quando a queima de fogos acabar e cearmos, serei ainda
mais feliz porque serei amada da forma mais voraz que você me
ama.

— Tem certeza de que está feliz estando aqui, isolada? — pergunta,


tocando meu rosto da maneira costumeira. — Sophie, infelizmente,
há certos bloqueios que jamais conseguirei vencer e não acho justo
que tenha que abrir mão por mim. Não estou dizendo sobre uma
separação, não pense isso. Mas há em mim muita compreensão e
eu quero que siga aproveitando as festividades como sempre fez.
Sei que voltará para mim no final de cada festa. Só me preocupo em
privá-la disso, por isso fico receoso e cabisbaixo. Não acho que uma
privação deve acontecer, não acho que tenha que se encaixar tanto
em minhas limitações. Eu tenho autismo, você não e compreendo
isso.

— Entendo tudo o que falou, de verdade — afirmo. — Sobre a sua


pergunta inicial, você é um bom observador, Henrico Davi. No fundo,
você já sabe a resposta para essa questão, porém, está deixando a
insegurança te confundir. Você sabe a resposta, bebê. Nunca estive
tão feliz! — repito. — Não estou me encaixando em suas limitações.
Nunca farei algo que não queira, eu sou bem teimosinha. — Sorrio.
— Agora falta um minuto e eu queria muito fazer um pedido a você.
— Qual?

— Não permita que a insegurança domine os seus pensamentos.


Ainda estamos na fase das descobertas, eu queria muito que você
descobrisse que a insegurança não faz parte da nossa relação, na
verdade, não combina com a nossa relação. Somos almas gêmeas,
Henrico Davi. Não tenho dúvidas sobre isso. Somos perfeitos um
para o outro, mesmo que tenhamos dezenas de imperfeições.
Somos o encaixe um do outro e é perfeito que sejamos assim.
Prometa que deixará de ser inseguro em algumas questões? Tire
essa repetição da sua vida. — Peço.

— Prometo, Sophie. Qualquer coisa por você! Me desculpe por


magoá-la.

— Não estou nem um pouco magoada. Muito pelo contrário. Estou


repleta de felicidade e amor. — Sorrio, jogando-me em seus braços
e o abraçando fortemente. — Eu amo você além da vida! — Ele me
beija, ignorando o ritual da contagem regressiva e só para quando
clarões ocasionados pelos fogos de artifício começam a iluminar o
ambiente. Não prestamos atenção. Apenas nos encaramos e
sorrimos.

Quando Henrico desvia o olhar do meu e olha através das janelas,


eu vejo lágrimas escorrerem livremente pelos seus olhos.

— É lindo ver a queima dos fogos assim, de maneira mais realista,


longe da tela de uma TV e livre de abafadores de ruídos potentes —
exalta, emocionado, tornando-se impossível que eu não me
emocione junto. Ele me vira, me abraça por trás e juntos seguimos
vendo as cores tomando conta do céu. Eu nunca me esquecerei
desse momento, nunca. Nunca me esquecerei dos olhinhos
brilhando, repleto de genuidade e gratidão.

— Feliz ano novo, meu amor.

— Feliz ano novo, Soso! Obrigado por me proporcionar esse


momento e me proteger dos sons! — Agradece como uma criança
que acabou de conhecer a Disney, fazendo todas as batidas do meu
coração vacilarem. — Agora eu sei que posso fazer isso...

— Você pode fazer isso e tudo mais que quiser!

— Eu quero você.

— Com muita emoção?

— Assim mesmo — responde, beijando meu pescoço.


“Porque estou com saudade das safadezas”

— Esse é um voo comercial — comenta Sophie, levando-me a


retirar o fone de ouvido.

— Não é um voo comercial. É um dos jatinhos da família —


argumento, tentando compreendê-la.

— Mas se parece com um voo comercial. Se levarmos em conta


que há uma tripulação maior hoje, fica bem parecido. Não acha?

— Não acho. Conhecemos toda a tripulação, Sophie. — Minha


noiva suspira frustrada e logo abre um sorriso.

— Ok. Você prefere a sinceridade e que eu vá direto ao ponto — diz


o que é bem óbvio. — Estou sugerindo um sexo nas alturas, Henrico
Davi. Será que você pode colaborar?

— Sophie, não seja bobinha. Você sabe que há uma tradição


familiar; meu pai me disse.

— Tradição é minha .... Argh! Henrico Davi! Que ódio! — Sophie


está mesmo nervosa, suas bochechas chegam a estar ruborizadas
e seu nariz está mais empinado que nunca. Ela sabe que regras são
regras. E eu não entendo o que ela quis dizer com "Tradição é
minha...". É minha o quê? Não entendo todo o mau humor e nem
toda a frustração. Estamos prestes a nos casar.

— Sophie, você está arrependida?

— O quê? — pergunta alto demais. — Arrependida de quê?

— Arrependida por estarmos indo nos casar.

— Você está falando sério? É claro que não estou arrependida. Só


quero transar. Essa tradição do inferno está durando mais para nós,
visto que fiquei uma semana inteira na casa dos meus pais. Você
ainda quer prolongar essa merda! E eu não acho que essa tradição
seja válida ou faça sentido.

— Você soa descontrolada e agressiva. Acho que deveria falar um


pouco mais baixo, antes que seu pai surja querendo cometer um
assassinato. — Repreendo-a, e ela faz uma careta. Sophie não se
parece com ela mesma. Está um pouco descontrolada, sem
resquícios da garota doce que costuma ser. Eu não sou capaz de
acreditar que essa mudança de comportamento é recorrente pela
falta de sexo.

— Me desculpe, ainda estou um pouco nervosa com o que


aconteceu antes da viagem. — Respiro fundo ao ouvir as palavras.
— Tem certeza de que está bem? Estou um pouco desesperada,
sentindo a extrema necessidade de me conectar com você de
alguma forma.

— Sophie, está tudo bem, menina mais bonita.

— Não sei não. — Ela não vai se convencer.

Tudo começou quando encontramos com uma amiga de Sophie no


aeroporto, minutos antes de embarcarmos no jatinho da família. A
amiga dela teve a infeliz ideia de dizer que eu não sou autista, que
não tenho "cara" de autista; escolheu exatamente essas palavras
para dizer a Sophie bem diante de mim, sem nem mesmo se
importar com os danos que suas palavras poderiam vir a causar.
Isso ativou a fúria de Sophie, mas não é nada que eu não esteja
acostumado. Aliás, é uma situação extremamente chata ter que
conviver com julgamentos e ser alvo de conversas em grupo de
amigas.

Desde que ouvi esse tipo de julgamento pela primeira vez, venho
me questionando: que "cara" um autista deve ter? O que as pessoas
pensam sobre autistas? Qual a visão delas sobre pessoas atípicas?
A falta de informação é assustadora, inclusive acho o autismo um
tema que deveria ser debatido nas salas de aula desde o início da
educação escolar, principalmente visando a inclusão daqueles que
se descobrem neurotípicos logo nos primeiros anos de vida. Deveria
haver uma preocupação sobre ensinar a sociedade a lidar com as
diferenças; e não digo apenas sobre o autismo, mas sim de uma
forma geral.

Sophie perguntou à amiga o motivo pelo qual ela não acreditava que
eu pudesse ser autista, e a garota não mediu suas palavras. As
respostas foram as mais superficiais possíveis. Primeiro ela disse
que eu era lindo, logo em seguida disse que era gostoso e então
falou sobre eu agir dentro da normalidade. Disse também que
autistas não podem ser gostosos, não podem fazer sexo ou
namorar. Isso deixou Sophie no auge da indignação, principalmente
pelo fato de eu estar ouvindo. Muito provável que ela ache que isso
tenha me afetado de uma maneira negativa. Bom, não vou mentir,
como disse, é uma situação chata. Porém, a cada vez que algo
assim acontece, consigo enxergar o potencial que possuo e que
falta em muitas pessoas.

Desde adolescência, graças a educação que recebi e ao


acompanhamento constante de profissionais capacitados, sei que
posso sentir tesão, posso me relacionar, posso me casar, ter filhos –
mesmo que eu não queira –, posso e devo cuidar do meu corpo. A
minha mente é quem sempre me limitou, principalmente por
carregar comigo dezenas de limitações. A cada dia aprendo que
posso conviver com essas limitações sem criar novas restrições
para usar de justificativa para fugir da realidade e da felicidade.
Descobri que o medo sempre me limitou muito mais que o autismo
e, desde então, tenho tentado me arriscar. Sei que posso fazer tudo
– ou quase tudo –, e tenho Sophie para me encorajar e servir de
motivação, assim posso até ousar e ir além.

Não vou mentir dizendo que em alguns momentos eu me pego


pensativo sobre nossas diferenças, pondero também sobre ela se
limitar por mim. Estamos indo nos casar e sem dúvidas esse é o
maior de todos os passos que já dei em minha vida, porém, ainda
há um resquício de medo por não conseguir me encaixar por
completo na realidade dela.

Esses pensamentos ruins me fazem pegar a mão dela.

— Está tudo bem, Sophie. Não precisamos de sexo para ter uma
conexão. Sempre estivemos conectados, antes mesmo de nos
tornarmos um casal.

— Como aquilo pode ter me abalado e não ter causado nada em


você? — pergunta.

— Não é a primeira vez que alguém diz que não tenho cara de ser
autista. Isso é fruto da ignorância e da falta de informação, na
verdade, é fruto até mesmo da falta de uma educação voltada à
inclusão. Meus pais e minha terapeuta me prepararam para não ser
atingido por esse tipo de colocação. Foi difícil ouvir e compreender
nas primeiras vezes, agora já me acostumei.

— Mas você está errado! — esbraveja. — Você não tem que se


acostumar com a ignorância de qualquer pessoa.

— Sophie, sinceramente, o que acha que eu devo fazer todas as


vezes em que alguém disser isso ou qualquer outra coisa sobre
mim? Eu mal sou capaz de olhar nos olhos de alguém, imagine
brigar exigindo respeito? Algumas pessoas simplesmente não têm
instruções suficientes, tampouco se importam em entender mais
sobre as adversidades para então poder respeitá-las. Eu não sou o
homem que vai encarar alguém e exigir que compreenda e respeite
as minhas diferenças. Apenas ignoro. Com os anos vai ficando mais
fácil. Não me incomoda tanto mais. É triste dizer isso, mas já me
acostumei.

— Eu... eu não sei — choraminga. — Não sei. Mas sempre que eu


estiver presente não é necessário que você se defenda. Eu mesma
irei fazer isso, porque é inaceitável.

— Esqueça isso, Sophie. Eu estava realmente bem antes de vê-la


tão afetada. Não quero que fique triste e que se deixe afetar. Vamos
nos casar, você precisa saber que episódios como esse são quase
constantes. Não quero trazer esse tipo de mágoa para a sua vida,
Sophie. Apenas esqueça e relaxe.

Sophie se porta de maneira infantil, ajeitando o travesseiro em sua


cabeça e virando-se para o lado. Volto a colocar o fone e tento
ignorar o mal-estar dentro de mim. Acho que é a primeira vez que
temos uma divergência e é estranho, principalmente quando nunca
lidei com algo assim e por estarmos nas vésperas do casamento.

Essa não é a minha menina mais bonita. Sinto que algo está errado,
mas não consigo decifrar, por mais observador que eu seja.

Seguimos distantes e no mais completo silêncio até chegarmos em


Santorini.

Sim, Santorini, na Grécia. É bem isso. Sophie disse que era um


sonho se casar em Santorini, quando eu nunca imaginei algo assim.
Havia todo um planejamento, então mudamos todos os planos,
fugimos dos típicos casamento da família Albuquerque, que
acontecem sempre em Ilha Grande ou na chácara de Belo
Horizonte, e trouxemos o casamento para a Grécia. Será algo
simples, porém, bonito, como Sophie merece. Digno de uma
princesa que gosta de ter os pés na areia e que jamais perde a
humildade.

Felizmente, Sophie volta a ser ela mesma assim que adentramos na


suíte do hotel. O fato de estar anoitecendo, deixa tudo mais mágico,
principalmente devido à vista privilegiada para o mar e o pôr do sol.
Supera todas as expectativas. Tem um ar levemente primitivo, por
ter uma decoração mais rústica, de pedras. Mas, ainda assim,
possui alguns detalhes que conseguem transformar o ambiente em
um lugar romântico o bastante para um casal quase recém-casado.
Ainda terei tempo de avaliar melhor o ambiente, mas agora meu
foco é em Sophie, que está empolgada ao extremo e parece
disposta a dar tudo de si para me provocar.

Dormir com Soso será uma tortura, não restam dúvidas. Ela é muito
fogosa e estou disposto a ser respeitador. Antes de ter sexo, era
mais fácil me controlar; havia o medo e ele me paralisava, impedia
que eu deixasse o desejo vencer. Atualmente... eu vivo uma luta
constante para controlar a mim mesmo. É extremamente difícil ser
namorado de Sophie, é desafiador conviver sob o mesmo teto que
ela. Não ajuda que a garota seja altamente tentadora e fogosa de
uma maneira quase incontrolável. E não ajuda que eu seja muito
fraco para provocações sexuais. Desde que descobri que ficar
confortável é a melhor coisa do mundo, tem sido difícil não querer
ficar confortável todos os dias.

Incrível que um dia, antes de beijá-la pela primeira vez, eu tenha


imaginado que morar com ela seria algo calmo, tranquilo, que eu
encontraria a paz. Não há paz, exceto quando acordo todas as
manhãs e a vejo dormindo como um anjo, ou quando a vejo dando
as gargalhadas mais incríveis e sendo carinhosa.

— Oh, meu Deus! — exclama, eufórica, espantando cada um dos


meus pensamentos. — É muito mais perfeito que nas fotos,
bebecito! Duvido você não me comer!

— Isso é muito desrespeitoso da sua parte, Sophie, mas... até eu


estou duvidando. Não pela suíte, óbvio. — Sophie deixa a mala cair
no chão e se joga em meus braços, sorridente, feliz como nunca. E,
devo confessar, nada na vida me faz mais feliz que vê-la dessa
maneira. Felizmente ela se esqueceu do episódio do "você não tem
cara de autista".

— Eu te amo, marido! Nem acredito que sou a menina mais sortuda


do mundo inteiro!

— Ainda não sou seu marido, Sophie. — Ela sorri e deposita um


beijo na ponta do meu nariz.

— Você sempre foi meu marido, Henrico Davi. Fomos casados em


outras vidas. Estamos apenas nos reencontrando nessa e repetindo
o script.

— Sou um homem literal, não sei se acredito em outras vidas —


respondo, abraçando-a. — Eu te amo ao infinito e além.

— Eu não quero me desgrudar de você. Estou morrendo de


saudades, bebecito. — Estou morrendo de saudades dela, mas
ligeiramente preocupado com a famosa tradição familiar. Eu e a
minha terrível mania de seguir regras não estamos satisfeitos agora.
Eu gostaria de apenas me perder em Sophie, em todos os mais
diversos sentidos. Não sei se posso resistir a ela. Talvez apenas
devesse tentar tirar o foco sexual de Sophie. Somos capazes de
viver sem sexo. Quando ela está tendo os momentos caóticos do
mês, como ela mesmo diz, conseguimos resistir. — Vamos tomar
um banho gostoso?

— Juntos? — pergunto, receoso.

— Sim — responde, sorrindo, como se soubesse exatamente todos


os meus pensamentos. — Está mesmo levando a sério esse
negócio de tradição?

— Estou. Em breve tomaremos muitos banhos juntos, Sophie. No


momento, terei que dispensar. Ficarei aguardando-a terminar e irei
logo em seguida.

— Isso é frustrante, Henrico Davi! Frustrante pra caralho! —


esbraveja, indo até a mala. Eu fico apenas a observando no auge do
rompante de fúria, tão incomum quanto é possível ser. A falta de
sexo realmente tem um forte poder sobre as pessoas; todas as
minhas pesquisas fazem todo o sentido agora. Sophie está
modificada pela necessidade sexual. Não que eu não esteja
levemente mal-humorado, mas ela está pior.

Já não sei se é tão bom ser tão observador. É pelo fato de estar
observando tanto, que a vejo ficar completamente nua, desprovida
de qualquer delicadeza. Engulo a seco quando ela joga a calcinha
em meu rosto e sai marchando em busca do banheiro. Com a
pequena peça de renda em mãos, eu ouso levá-la em meu nariz e
inspiro o cheiro de algo que me deixa duro em questão de
segundos. Sempre que via cenas assim em filmes educativos,
achava pervertido o bastante. Agora sou eu fazendo isso,
cometendo um ato que costumava considerar perversão. A
mudança que sofri nos últimos meses é assustadora. Eu não
consigo nem mesmo comparar o Henrico do passado com Henrico
de agora. É como se o passado inteiro tivesse sido uma grande
farsa e a minha versão atual seja de fato quem sempre fui,
escondido sob camadas de medo, preconceito e um montante de
sentimentos ruins. A pessoa que eu acreditava ser, foi
desconstruída por completo – desde que ousei a dar o primeiro
passo com Sophie – tornando-se uma versão mais corajosa, mais
disposta a encarar as situações, a vencer algumas limitações.

Controlador em um nível extremo e fiel às minhas crenças, contra


mudanças abruptas, admirador de cronogramas, seguidor dos
famosos "passo a passo", extremamente organizado, ligado às
convenções e apegado a regras diversas, eu me sinto insano ao
sentir o cheiro da intimidade de Sophie. A excitação me vence e me
pego chutando meus tênis para fora, retirando minhas roupas e
seguindo rumo ao banheiro com a calcinha da minha noiva.

Essa é a minha nova versão e eu não sei onde ela será capaz de
me levar.
“Pela forma que me olha, me incita a pecar

Quero te levar em algum lugar

Onde eles não vão nos encontrar”

Estou tensa. Seria impossível não estar. Preciso aprender a lidar


com situações relacionadas a Henrico. Agora estou de pertinho,
convivendo dia a dia com a rotina do meu menino mais bonito do
mundo, acompanhando de perto um preconceito que parece
enraizado na maioria das pessoas. Há aquelas que têm a coragem
de expor em palavras e há aquelas que deixam em evidência
através de olhares que falam mais que mil palavras; os dois tipos
me incomodam.

Sou bem como uma leoa, o tipo que é capaz de fazer qualquer coisa
para defender os seus. E eu me sinto assim com Henrico, me sinto
capaz de enfrentar o mundo para protegê-lo de todas as coisas
ruins, do preconceito. O meu Henrico Davi é perfeito de todas as
maneiras possíveis, até mesmo em suas imperfeições, e eu sempre
o enxerguei além de todas as coisas. Por mais que ele diga que não
se importa, eu sei que ele se importa, sei que sua autoconfiança
recém-adquirida vacila a cada vez que ele tem que lidar com
situações que deixam suas barreiras abertas. Sei que em algumas
situações ele até mesmo volta a pensar que somos incompatíveis e
que mereço alguém melhor. E qualquer pensamento que coloque a
nossa relação em risco, me leva ao limite de uma maneira insana
que não consigo controlar. Acabo me transformando em uma
pessoa que não sou, deixando um lado revoltado tomar conta.
Talvez isso assuste o Henrico e é por isso que enxergo que preciso
me controlar e aprender a abstrair a ignorância das pessoas.

Para completar, estou com uma saudade imensa dele. Passei uma
semana na casa dos meus pais, sem ver meu bebecito. Nós nos
falamos poucas vezes por mensagem, porque ele odeia se
comunicar desta maneira – ao menos se esforçou um pouco.
Acostumei-me com a nossa rotina de grude, onde ficamos afastados
no máximo algumas poucas horas. Eu gosto de acordar ao lado
dele, de fazer as refeições ao lado dele, de dormir grudada, gosto
de todo sexo que temos e estou sentindo falta de cada uma dessas
coisas. Eu não sabia que a falta de sexo poderia me afetar tanto.
Vivi a maior parte da minha vida sem essa bênção e, de repente,
agora que sou praticante do ato não consigo mais ficar sem. Sexo
faz falta. Pesquisas realizadas por Henrico Davi, afirmam que a
ausência de sexo pode ser prejudicial até mesmo para a saúde, e
talvez seja o momento de eu lembrá-lo sobre essas pesquisas,
porque elas fazem todo sentido.

Desligo a ducha, me enrolo em uma toalha e, assim que dou o


primeiro passo para fora do banheiro, bato de frente com meu noivo
nu. Eu nem me arrisco a descer o olhar, porque sou capaz de
devorá-lo como uma selvagem.

— Precisamos conversar — informo, vendo-o franzir a testa.

— Agora?

— Sim. É muito sério e necessário. — Deixo que meu olhar aprecie


o peitoral delicioso e mordo meu lábio inferior, completamente
apaixonada por cada pedacinho desse homem. — Pesquisas de
pesquisas realizadas por você, apontam que a falta de sexo é
prejudicial à saúde em altos níveis. Eu tenho estado constantemente
estressada nos últimos dias, tenho tido dores fortes de cabeça, meu
sistema imunológico é provável que esteja mais vulnerável, não
tenho conseguido dormir bem e estou me sentindo extremamente
feia, sem brilho, logo nas vésperas do nosso casamento. Não acho
que essa tradição familiar faça sentido, de verdade. Dizem que
nossos bisavós eram muito maquiavélicos, e foram eles que criaram
essa tradição. Deve haver algum motivo diferenciado nisso.
Deveríamos testar.

— Não gosto da ideia de sermos cobaia de testes, mas estou muito


disposto a ignorar essa tradição desde o momento em que inspirei o
cheiro da sua calcinha. — Minha boca vai ao chão de uma só vez,
principalmente quando ele mostra a peça em sua mão e a leva em
seu nariz mais uma vez. Eu estava molhada do banho, agora eu
posso sentir minha intimidade se contraindo e encharcando de tesão
apenas com a visão. Meu corpo inteiro está arrepiado,
completamente em alerta na expectativa de receber o devido
cuidado que merece e que somente Henrico pode dar.

Estou prestes a dizer algo quando algum infeliz decide que é o


momento ideal para atrapalhar meus planos de passar a noite inteira
trepando com esse homem.

— Isso deve ser alguma espécie de brincadeira! — protesto,


revoltada o bastante.

— Sophie, a missão de atender terá que ficar por sua


responsabilidade. Estou muito excitado e meu pau está bem rijo. —
Essas palavras destroem a minha sanidade impiedosamente e juro
que sinto meus olhos lacrimejarem. Seja quem for, eu amaldiçoo
neste momento!

Volto ao banheiro acompanhada pelo senhor "pau rijo". Ele segue


direto para um banho frio e eu solto um gemido alto ao vê-lo
manipular o pau.

— Puta merda, Henrico!

— Me desculpe por isso — diz, libertando-o e com as bochechas


ruborizadas. Voltam a bater à porta e eu visto um maldito roupão na
força do ódio. Saio marchando do banheiro e abro a porta principal,
completamente revoltada. Tudo muda quando vejo meu pai. Não
posso descarregar as minhas frustrações mais.

— Ok, Sophie Albuquerque, não quero nem mesmo saber o que


você estava fazendo — exclama, virando o rosto para o lado. —
Apenas vim chamá-los para o jantar. Estamos todos indo.

— Zero fome de comida.

— Zero fome de comida... — ele repete. — Zero... está com fome de


que, Sophie?

— De nada, papai. Só não estou com fome.

— Ah, mas vocês vão sim! — Samuel surge das profundezas


invadindo o quarto.

— Eu juro por Deus, vou empatar todas as suas fodas com a


Hadassa arregaça! — esbravejo.

— Aoooo, Melinda! Você que cuide dessa sua filha! — brada meu
pai, e sai andando feito um maluco enquanto Samuel se joga em
minha cama, rindo como um babaca. Parece que deixar a porta
aberta foi um erro; de repente, há Yasmin, Kiara, Hadassa e meu
irmão dentro do quarto.

— Luiz Miguel, meu caro rimão, você sabe que posso te foder, não
sabe? — pergunto, de maneira ameaçadora, e ele levanta os
ombros, fingindo não saber do que estou falando. Kiara dá um
sorriso típico de quem não presta e Samuel parece um viciado em
Hadassa. Os dois são um nojo!

Tudo melhora quando Henrico surge enrolado em uma toalha


branca, sem se enxugar direito. É lindo de ver a carinha que ele faz
ao ver um bando de pessoas no quarto. Ele fica mais vermelho que
um tomate.

— Ulalá! — Yasmin exclama. — Meu irmão é um gato molhado!


Agora vista-se para ir jantar!

— Não estou com fome — Henrico responde, enchendo-me de


orgulho. É por isso que vamos nos casar. Gostamos mesmo de
foder! — Estamos cansados da viagem, é o meu casamento, eu
quero descansar e ficar com Sophie intimamente; passamos os
últimos dias afastados. Podem sair por gentileza? — Até arqueio as
sobrancelhas, impactada. O que está acontecendo? Para quem
queria seguir regras, Henrico cedeu muito facilmente. Isso tudo por
conta da minha calcinha? Se for, eu posso dizer que minha xota é
poderosa! Senhor da glória!

— Está nos expulsando? — Samuel pergunta, já dando indícios de


que irá dramatizar.

— Estou de acordo com Henrico. — Basta eu dizer as palavras para


tio Lucca chegar feito louco.

— Aooooooo chão moiado! Preparados para jantar? — Eu quero


chorar como uma criança pirracenta. Que povo filho de uma boa
mãe! Quem quer jantar nessa merda?

— Sophie, não temos escolha — bebecito diz.

Amo a nossa família, mas em alguns momentos eu quero matá-los


por conta da frustração. Sem ter para onde correr, decidimos nos
render a pressão familiar, nos vestimos e seguimos para jantar.
Nenhum jantar em família é muito normal. Na verdade, a única
pessoa normal é Henrico, que se atém a observar toda dinâmica e
loucura.

Estou tão feliz, não apenas por mim, não apenas por estar
realizando um grande sonho; há uma pessoa que se parece ainda
mais radiante que eu e isso tem me deixado emotiva. Tia Paula mal
consegue se conter diante de toda a felicidade que está sentindo
por Henrico. Essa mulher é um exemplo de garra, perseverança,
dedicação e paciência. Tio Lucca também, mas ela é um caso à
parte. Acho que o maior sonho da vida dela era ver Henrico ao meu
lado, construindo uma relação amorosa. Sei que no começo foi
difícil para ela aceitar a distância escolhida pelo filho, mas, aos
poucos, ela se adaptou e deixou todos os receios de lado, dando
lugar a plena felicidade merecida.

Foram muitas lágrimas, muitas batalhas, tia Paula costumava dizer


que matava um leão por dia. Ela sempre foi feliz, mas a felicidade
era incompleta por ver o filho tão fechado dentro de si. Acho que
todos se sentiam mal com isso, mas certamente a dor dela era mais
profunda. Agora, é reconfortante ver que a única coisa profunda é a
felicidade. Está em cada palavra, em cada gesto, no olhar. A cada
vez que ela me olha, tudo que consigo ver é gratidão, como se eu
fosse a principal responsável pelo grande avanço de Henrico. Mas o
que ela não sabe é que esse avanço é fruto de inúmeros
impulsionamentos, de uma soma de fatores; onde ela, tio Lucca e os
profissionais que lidavam com Henrico, são os principais
responsáveis. A doação deles sempre foi de arrepiar, a abertura
para todos os assuntos, o positivismo mesmo em momentos de
crise... se um dia, Henrico e eu, tivermos um filho e ele for autista,
quero ser ao menos 10% do que tia Paula foi para Henrico. Quero
ter a mesma garra, a mesma paciência, todas as características que
representam a doação e o amor.

Meus pais também estão felizes, embora meu pai esteja um pouco
ciumento. Já era de se esperar, observá-lo me faz sorrir.
Desconheço ser humano mais emocional que doutor Victor
Albuquerque. Em alguns momentos ele até tenta passar a imagem
de "não sou um bom rapaz", mas ele é apenas o melhor, um
exemplo de homem. Para a felicidade dele, estou com o garoto
certo, com aquele que parece ter nascido destinado a ser meu par
na vida. Porém, ainda assim, o ciúme está em meu pai. Sempre fui
sua princesinha da Disney, e ele sempre me tratou como se fosse a
coisa mais preciosa do mundo. Acho que ele pensa que está indo
perder seu lugar no pódio, mas meu pai sempre estará em primeiro
lugar em meu coração, não importa que eu esteja me casando com
o homem da minha vida, meu pai é apenas... o meu pai. Assim
como minha mãe também é o grande amor da minha vida. Eu os
amo com todo o meu amor e toda a minha idolatria, e o amor dos
dois é o meu maior exemplo.

Outro ser humano que tem seu lugar garantido é meu rimão. Meu
Miguelito, que tem um simbolismo imenso para os meus pais, além
de ser melhor irmão do mundo inteiro. Ele ainda está sem brilho nos
olhos, mas já sou capaz de ver uma determinação que esteve morta
por um longo período. Ele sofreu muito com a morte de Clarinha. Ela
estava grávida, gerando um bebê que não foi planejado e arrebatou
o coração de Luiz Miguel. O dia que ele nos deu a notícia do bebê,
foi um dos mais emocionantes da minha vida, porque ele mal
conseguia se conter diante de tanta felicidade. Ele amava Clarinha,
com todas as forças, então ela foi arrancada dele por um acidente
brutal, sem nem mesmo ter chance de uma despedida. Meu irmão
carrega uma forte dor dentro de si, mas agora, agora sim ele parece
estar começando a reagir. Vejo uma determinação gritando dentro
dele, de forma que dá para sentir. Ele está voltando à vida, pouco a
pouco, vencendo um dia de cada vez.

Aqui, nesta mesa, só existem pessoas incríveis. Há muitas pessoas


que não estão presentes, por vários motivos, mas os principais
estão aqui para presenciarem o grande momento da minha vida e o
maior passo da vida de Henrico.

Ele sempre diz que o maior passo foi lá na infância, quando segurou
a minha mão e enfrentou o medo, saindo correndo. Eu digo que
aquele passo pode até ter sido significativo, mas nada se compara
ao passo que ele deu em São Roque, declarando o seu amor por
mim e nos trazendo ao dia de hoje.

Eu acho que, quando segurei a mão dele para correr, já o amava, já


estávamos destinados, eu estava apenas afirmando ao universo que
a partir daquele momento sempre segurarei a mão do menino mais
bonito e sempre andaremos, correremos e venceremos todas as
batalhas juntos. Naquela tarde, nossas mãos se encaixaram uma na
outra com uma força diferente e um tipo de encaixe incapaz de ser
desfeito.

Em dois dias, nossas mãos estarão se encaixando com a firmeza de


sempre e estaremos sentenciando uma revolução interna. Henrico
Davi venceu. Eu venci. O amor venceu. Ele é o meu encaixe e eu o
amo muito além da vida.

— Soso... — ele sussurra.

— Oi...

— Vamos fugir?

— O quê? Sério? Só vamos! Para onde?

— Eu não sei ainda, mas quero te comer. — Arregalo meus olhos e


confiro se há alguém nos observando. Não há.

— Romântico.

— Me desculpe por isso, Sophie. Não sei ser romântico. Sou mais
prático em momentos de necessidade. — Seguro a vontade de rir
ao ouvi-lo. — No três você segura a minha mão e saímos correndo.

— Isso é muito vida louca! — exclamo, animada, já retirando as


sandálias dos meus pés. — Três...
— Dois. Um.

Levantamo-nos e, sob gritos de todos, saímos correndo rumo aonde


quer que ele queira ir. Nem conhecemos Santorini, mas foda-se!

Quem se importa?
“Porque a noite passada foi

Algo que não consigo explicar

Nós mandamos ver, sem parar

Você dizendo que morria por mim”

A coisa mais fantástica da vida é ver Henrico vencendo os próprios


limites e arriscando. Tão incomum quanto é possível, e
surpreendente de todas as maneiras possíveis. Simplesmente me
joguei e corri de mãos dadas com ele pelos labirintos loucos que há
em Santorini até chegarmos a uma estradinha que nos levou à
praia. Só então paramos, ofegantes pela corrida e pela adrenalina.
Foi então que uma conversa muito tensa se desembolou, desde
então, tenho tentado quebrar o clima de seriedade e Henrico está
cumprindo com suas palavras.

— Que corrida, bebecito! O que faremos agora? — pergunto,


atraindo seu olhar avaliativo. É como se mil e uma ideias se
passassem através dos lindos olhos dele.

— Podemos comprar alguma bebida e ficar um pouco na praia,


apenas você e eu. Não quero outra companhia, Sophie. — Balanço
a cabeça em concordância e sorrio amplamente antes de me jogar
nos braços dele.

— Você vai beber?

— Acho que sim. Acho que hoje preciso de uma bebida. Estou
querendo sair da zona de conforto onde sou o garoto exemplar —
explica, quase me deixando boquiaberta. Na verdade, após ouvir
essas palavras, o bichinho da curiosidade me picou. Gostaria de
saber o motivo de ele querer deixar de ser o garoto exemplar, mas
receio perguntar e quebrar o clima.

— Eu nunca fui uma garota exemplar ou bem-comportada —


comento. — Na verdade, só era comportada em relação a garotos.
Eles nunca me atraíram e eu nunca permitia que nenhum deles se
aproximasse, porque sempre fui sua desde que me entendo por
gente.

— Como é ser livre? — pergunta, segurando minha mão firme e


voltando a caminhar, rumo à praia.

— Eu não sei dizer. Nunca fui completamente livre.

— Não no sentido de garotos, Sophie. Livre no sentido de não ser


diferente, não possuir limitações como as minhas.

— Cada um possui um tipo de limitação diferente. Ninguém está


imune às limitações, Henrico Davi. Mas compreendo o que quer
dizer. Você quer saber como é não possuir autismo, mas não
saberia te dizer isso. Assim como você, tenho minhas limitações. A
diferença é que consigo olhar nos olhos das pessoas, consigo
socializar, festejar, abraçar é algo normal para mim, adoro beber,
dançar...

— Eu não consigo fazer nada disso, Sophie, mas acho que posso
me arriscar em algumas aventuras, sem ultrapassar meus limites.
— Você pode fazer isso, mas..., mas sei que há um motivo e que
talvez não vá me dizer. Só preciso que saiba que sou a mulher mais
feliz do mundo por tê-lo e que não me falta nada, Henrico. Não me
falta absolutamente nada. Não precisa se esforçar para se encaixar
na rotina que eu costumava ter. Eu me encaixei em você e você se
encaixou em mim, é só isso que importa. Eu sou muito, mas muito
feliz ao seu lado, muito feliz dividindo a vida com você. Quero que
sejamos assim ao infinito e além, nada precisa mudar. — Ele não
me responde e seu silêncio diz mais que muitas palavras; significa
que captei exatamente a origem por trás dessa mudança abrupta de
comportamento.

Não é mentira. Não me falta nada. Eu gostaria muito que essa


insegurança não existisse, mas a cada dia percebo que esse
fantasma irá nos assombrar em determinados momentos.

Após comprarmos bebidas, nos sentamos em uma pedra e daqui


conseguimos ouvir músicas que estão sendo tocadas
provavelmente em alguma boate. Não tão alto e nem tão baixo,
perfeito para o meu noivo que possui sensibilidade sensorial.

De bebida em bebida, aos poucos vamos nos soltando, dissipando a


tensão da conversa levemente confusa que tivemos no caminho. Os
toques suaves começam, os beijos castos, tão perfeito como jamais
imaginei que seria a véspera do casamento. Achei que seria
monopolizada pela nossa família, que seria quase obrigada a seguir
aquele bendito ritual, mas Henrico nos salvou e não há nada mais
perfeito que estar apenas com ele.

Ele está encostado na pedra agora, enquanto eu danço uma música


latina que está tocando na boate. É quase desconcertante a
maneira como ele não perde um único movimento meu.

— Essa é a nossa despedida de solteiro? — ele pergunta.

— Parece que sim. Está dentro das suas expectativas? É


completamente diferente das tradicionais despedidas de solteiro que
acontecem em nossa família.

— Eu sou completamente diferente, então está tudo bem que esteja


sendo diferente. Não tinha expectativa sobre isso, mas se tivesse,
não chegaria perto de como está sendo. — Há leveza em seu tom
de voz; uma leveza desconhecida, certamente recém-adquirida pela
ingestão de álcool. É mais uma primeira vez entre nós dois. Henrico
levemente alcoolizado é inédito e algo que nunca imaginei que
presenciaria. Meu menino mais bonito do mundo definitivamente é
diferente, e eu amo que seja. Amo todo o pudor que ele é capaz de
possuir fora de quatro paredes, amo como ninguém jamais será
capaz de imaginar no que ele se transforma em um quarto na hora
do sexo. Um anjinho aos olhos de todos, um devasso em nossa
cama. Isso me faz rir, é o contrário do que estamos acostumadas a
ver por aí. Geralmente as mulheres são damas na sociedade e se
transformam na cama, aqui é o contrário. Henrico é um cavalheiro
na sociedade e se transforma no sexo de uma maneira intensa.

Uma outra música latina começa a tocar e eu sigo com a minha


dança. A letra me faz sorrir e me aproximo de Henrico, abraçando-o
pelo pescoço. Um de seus braços rodeia meu corpo, enquanto o
outro se mantém abaixado, devido ao fato de estar segurando um
copo com bebida.

— A forma como olha para mim me incita a pecar, bebecito —


sussurro em seu ouvido.

— Você é muito gostosa — diz, subindo a mão pelas minhas costas.


— É perfeita e deixa o meu pau duro em todos os momentos
inapropriados. — Essas palavras me causam um arrepio, porque
grudado em meu corpo há algo rijo, demonstrando o quanto as
palavras são verdadeiras. Essa intensidade que existe entre nós, é
surreal.

— Sua sinceridade é desconcertante em alguns momentos —


confesso, depositando um beijo casto em seu pescoço.
— Ainda não se acostumou? — pergunta, trazendo a mão em minha
nuca por entre os meus cabelos, puxando-me para que eu olhe
fixamente em seus olhos.

— Não. Acho que ainda há muito para eu me acostumar, por


exemplo, a maneira como você está me olhando agora, parecendo
um predador. Ainda me surpreende, tudo me surpreende — admito,
e volto a me mover com ritmo da nova música que começou a
tocar. Henrico não me solta, mas permite que eu me mova,
esfregando-me contra seu corpo. Eu capricho nos movimentos, para
provocá-lo mais. Adoro vê-lo louco.

— Sophie, preciso te comer.

— Você pode me comer, bebecito. Eu sou...

— Aooooo chupa e me lambe! — Eu, neste momento, me pareço


como a garota do filme Exorcista, girando a minha cabeça e
observando Samuel surgir das profundezas do inferno. Dizer que eu
quero matá-lo seria pouco. Até mesmo meu corpo se retesa de
raiva. — Sexo na praia é horrível, entra areia em todos os buracos,
mas se Hadassa quiser eu quero! Vem com o pai virar bife à
milanesa!

— Oh, não! Não que eu seja fresca, mas não gosto dessas paradas
na areia. Prefiro uma boa cama — argumenta Hadassa.

— Ou um bom tronco de árvore. — Samuel diz a ela, sorrindo. —


Vocês fugiram para ficar roçando na praia? Esperava mais. Uma
fuga para a foda.

— Só para eu me programar aqui, quantas vezes você vai


atrapalhar nossos momentos de privacidade? — pergunto, virando-
me de frente por completo e o encarando muito séria.

— Que isso, novinha! Parece tensa, pensei que éramos um trio —


alega.
— Trio é o teu cu!

— Sophie! — Henrico diz em tom de repreensão.

— Eu te amo, você é muito mais que um primo, mas pelo amor de


Deus, pare de empatar meus momentos de intimidade. Você e
Hadassa não se desgrudam nem para fazer as necessidades, aliás,
eu acho que você limpa a bunda dela e vice-versa. Já eu e Henrico
estamos há alguns dias separados e precisamos de um pouco de
privacidade.

— Fala sério! Você está bebendo, irmão? — Samuel ignora o meu


apelo e puxa Henrico. Eu quero matá-lo mais fortemente agora.

— Sim, acho que posso fazer isso. Quer dizer, não quero aderir ao
alcoolismo, mas hoje senti vontade de arriscar. — Henrico ficando
bêbado é muito fofo. Só que tudo muda quando Samuel decide que
irá beber com ele.

A cada copo de bebida, Samuel o faz beber um pouco de água.


Prudente. Já eu, bebo na força do ódio e tento me distrair com uma
Hadassa muito louca, que está ostentando todo um visual de
chique. Ao menos ela não está de salto alto essa noite, mas sua
rasteirinha deve custar o preço de todos os meus sapatos juntos.

Demora até que eu esteja relaxada novamente, e só acontece por


conta da bebida. Quando dou por mim, o dia já amanheceu e
estamos todos mais loucos que o Batman, caminhando rumo ao
hotel.

Estou nas costas de Henrico e posso garantir que nunca o vi em um


momento de tanta liberdade fora da zona de conforto. Ele está rindo
alto, como se estivesse habituado a se portar dessa maneira leve e
louca, e não sei dizer se isso é bom ou ruim. De qualquer forma, eu
me entrego a esse momento também, não posso fingir que não
estou feliz por vê-lo se divertindo.
Samuel fica em sua própria suíte, deixando-nos. E assim que
chegamos à nossa, Henrico me tira de suas costas e eu sorrio.

— Bebecito, nem estou com sono... — comento, retirando minhas


sandálias e minha roupa sob o olhar dele.

— Essa noite foi uma das mais felizes da minha vida — confessa. —
Mas foi apenas porque estava com pessoas que convivo. Se fosse
diferente, não teria sido boa.

— Essa manhã será ainda mais incrível — digo, aproximando-me


dele e forçando a retirada da sua camisa. — Eu preciso senti-lo
dentro de mim.

— Eu vou comê-la, Sophie, mesmo que haja uma regra. Uma vez
você me disse que regras foram feitas para serem quebradas. —
Surpreendo-me com o fato dele aceitar o sexo mesmo tendo
consciência de que estamos alcoolizados. Tenho certeza de que se
fosse apenas eu a alcoolizada, o sexo não aconteceria. Mas foda-
se! Eu não serei estúpida de relembrar sua promessa.

— Eu sou mesmo uma garota muito sábia. — Sorrio, abrindo o


botão da bermuda dele. — Amo seu pau duro, bebecito. — Minhas
palavras levam Henrico ao limite. Minhas mãos são afastadas de
sua bermuda e sua boca gruda na minha em um beijo que não
recebi por longos dias. Surreal não conseguir viver sem os toques,
os beijos, o sexo que Henrico me dá. Ele me pega tão bem, tão
forte, sinto um misto de possessividade e proteção, tudo ao mesmo
tempo.

Sou conduzida até a cama e ele me deita, fazendo com que eu


apoie meus pés na beirada dela e abrindo minhas pernas ao
máximo. Sinto-me exposta, mas há algo no olhar dele que espanta
qualquer mínima timidez. Quando ele se afasta, apoio meus
cotovelos na cama e o encaro, tentando não perder a visão do
paraíso. Meu bebecito retira o restante das roupas e eu foco em
seu pau rígido, apontado para diretamente para mim; é a coisa mais
perfeita do mundo, porém, mudo meu foco por completo quando ele
se ajoelha ao chão, bem diante de mim, e beija a parte interna de
uma das minhas coxas. Ofego quando sinto seu polegar brincar com
meu piercing, deslizando pelo meu clitóris.

— Você está pronta para mim, Sophie. Escorregadia, lubrificada de


tesão. — Amo Henrico bêbado, está decretado!

— Então só vem aqui...

— Eu quero muito lamber sua boceta. — Nunca irei me acostumar!


Eu abro a boca e a fecho, ao menos três vezes. Então ele faz o que
quer e meus cotovelos fraquejam. Mordendo meu lábio inferior e
agarrando a coberta abaixo de mim, fecho meus olhos e permito-me
ser transportada ao prazer.

Acho que só agora me dou conta do quanto eu precisava disso para


voltar a ser "eu". A cabeça de meu noivo enterrada entre as minhas
pernas serve para pontuar que nasci para ser explorada
sexualmente por ele. Ele faz isso tão bem, tão gostoso, todo meu
corpo treme e responde, em especial quando ele penetra dois dedos
em minha intimidade.

Estou quase atingindo o orgasmo quando ele se afasta, quase


conseguindo me deixar frustrada. Não acontece, porque ele me
puxa pelos braços, fazendo com que eu fique de pé, gruda seu
corpo ao meu e me beija como um desesperado enquanto me
conduz até a primeira parede que encontra.

Uma vez que minhas costas estão grudadas contra a parede fria,
enrolo minhas pernas em sua cintura e sinto seu pau brincando em
minha intimidade. Henrico não me penetra. Ele desce seus lábios
até meus seios e suga cada um dos meus mamilos de forma voraz.
Admiro a capacidade que ele possui de fazer com que eu me sinta a
mulher mais desejada do mundo; consequência da forma como ele
demonstra precisar de mim, de cada parte do meu corpo.
Agarro seus cabelos e puxo sua boca para a minha. Ele me beija
como um animal selvagem, esfomeado, e penetra seu pau em
minha entrada de uma só vez, fazendo que eu quase grite em sua
boca. Essa dor é apenas a mais deliciosa, simboliza o prazer que
está por vir. Henrico não é delicado, tampouco parece se preocupar
em ser como costuma fazer. Ele afasta nossos lábios e solta um
som primitivo, como um rosnado másculo, forte. Eu gemo a cada
vez que seu pau entra e sai de mim, num ritmo louco, marcando,
reivindicando, possuindo meu corpo e fodendo a minha mente.

Sou conduzida até a cama e ele me abre mais, segurando minhas


pernas enquanto arremete forte, quase me partindo ao meio. Eu só
consigo sentir, não há como reagir com toques, apenas com sons.
Ele domina tudo, todas as ações, e eu tenho o primeiro orgasmo da
noite enquanto seus olhos fixam aos meus.

— Você é linda demais.

— Eu te amo demais, obrigada... por tanto. Por tudo.

— Eu te dou prazer, todas as vezes.

— Você me dá prazer só por existir, não apenas quando está dentro


de mim. — Ele sorri e se afasta, vindo se deitar ao meu lado. —
Quero montá-lo e fazê-lo gozar dentro de mim agora.

— Estou aqui te esperando. — Não perco tempo. Monto meu noivo


e ele permite que eu pegue exatamente o que quero; seus sons, seu
prazer, seus toques, seus tapas, suas palavras sujas e seu esperma
dentro de mim, bem fundo.

Tudo perfeito...

Até eu acordar e viver um dia quase aterrorizante.

Que Deus me ajude!


“Você consegue enxergar todas essas partes de mim?

Despedaçada em volta do mundo

Eu preciso encontrar algum tipo de paz de espírito

É um demônio, amor”

Assim que abro meus olhos, dou um salto da cama e saio correndo
para o banheiro. Por sorte consigo alcançar o vaso e não vômito no
chão. Coloco para fora tudo o que tenho e até mesmo o que não
tenho em meu estômago, esta é das piores sensações que já senti.
Minha garganta queima, meu estômago queima, minha cabeça dói
como nunca doeu antes. Acho que nunca me senti tão doente após
uma bebedeira como me sinto agora. Não me lembro de ter bebido
tanto assim. Ao menos não o bastante para passar mal dessa
maneira. Um Henrico muito nu surge no banheiro, um tanto quanto
desesperado, e pela primeira vez sua nudez não parece
interessante. Eu nem mesmo tenho forças para levantar do chão.

— Não quero que me veja assim — digo, precisando unir forças


para falar.
— Eu vou cuidar de você, Sophie. Vai vomitar mais? — Balanço a
cabeça negativamente, ele me pega em seus braços, fazendo com
que eu fique de pé. Henrico fecha a tampa do vaso, aperta a
descarga e me leva até a pia para que eu possa lavar meu rosto e
escovar os dentes. É bom tê-lo sustentando meu corpo quando eu
mal consigo fazer isso.

Quando me torno o mínimo apresentável, ele me conduz de volta


para a cama e me coloca deitada, porém, tremores me deixam
assustada. Há um frio que não sei explicar e é preciso que ele
busque mais cobertas para mim. Não adianta muito.

Fico ligeiramente triste ao ver a culpa estampada no rosto de


Henrico, assim que ele se senta ao meu lado.

— Eu sinto muito, Sophie. O que devo fazer agora? — pergunta em


um tom baixo, carregado de medo.

— Não sei o que está acontecendo, não bebi o suficiente. Estou


acostumada com bebidas. Era você quem deveria estar passando
mal — comento.

— Minha cabeça está doendo muito, mas apenas isso — explica. —


O que devo fazer?

— Não sei. Me deixe apenas alguns minutos aqui, se não resolver,


terei que ir ao médico.

— É minha culpa. Eu sempre tento controlá-la em relação à bebida,


mas dessa vez apenas não fiz; ainda bebi junto. Me desculpe por
isso, Sophie.

— Não é sua culpa. É culpa do meu organismo que não recebeu a


bebida bem. Está tudo certo, bebecito. — Ele não parece
convencido disso, mas resolve aceitar, dizendo que pedirá um café
da manhã reforçado para nós.
Da cama, eu fico apenas o observando lidar com coisas que eu
jamais acreditaria que lidaria. Porém, está explícito em cada gesto
que ele não lida tão facilmente com as pessoas, como a maioria de
nós.

Quando duas funcionárias surgem trazendo um carrinho com todas


as refeições, Henrico se afasta abruptamente, como se tivesse
medo. Ele não troca muitas palavras, tampouco consegue olhar nos
olhos dela. Somente agradece de cabeça baixa. Quando elas nos
deixam, vejo-o esfregar o rosto repetidas vezes e passar a mão pela
cabeça, como se estivesse sentindo dor. Não ouso perguntar nada
com medo de obter um resultado negativo ou constrangê-lo.

Ele me força a comer um pouco, mas meu organismo não recebe


bem a refeição. Depois disso, tudo vira flashes e acontece rápido
demais. Eu começo a passar muito mal, Henrico se desespera,
Samuel surge... Quando dou por mim, estou na emergência de um
hospital. Graças a Deus a maioria das pessoas conseguem se
comunicar falando em inglês. O único que seria capaz de falar em
grego com o médico é Henrico, ninguém mais da nossa família está
apto a conversar em um idioma tão diferente. Mesmo assim, quando
estamos apenas eu e os médicos, após ser submetida há uma série
de exames, não consigo entender uma única palavra que eles
dizem. Eles esquecem do inglês quando estão falando entre si. Por
esse motivo, fico calada, sorvendo os incômodos do meu estômago.

Fico calada até eles se lembrarem do idioma e dizerem uma palavra


em inglês que abala todo o meu mundo. Assim que meu cérebro a
processa, eu só tenho tempo de virar para o lado antes de voltar a
vomitar. Dessa vez sei que é puramente de nervoso. Um choro
desesperado escapa, ao mesmo tempo que dezenas de memórias
começam a surgir em minha mente, como um filme. Sou capaz de
ouvir todas as palavras de Henrico, os conselhos dos meus pais, as
palavras de Eva. As únicas palavras que saem da minha boca vêm
como uma súplica para que os médicos tenham ética e guardem a
informação.
A psicologia explica que o ser humano depende das interações
pessoais para sobreviver, e o grau dessa interação determina a
qualidade de vida de pessoa para pessoa. Logo, pessoas que
passam a ter dificuldade em se relacionar, tende a desenvolver
depressão. Sei que muitos fatores podem ou não justificar
determinadas atitudes das pessoas, talvez Sophie esteja isolada por
estar mesmo se sentindo mal desde ontem, mas há algo em meu
coração, um sentimento que está o deixando apertado; uma espécie
de alerta que insiste em dizer que não há algo mais por trás das
atitudes dela desde que deixou o hospital ontem no início da noite.

Hoje, teoricamente, é o nosso casamento. Mas não acho que vá


acontecer. Pensei que Sophie acordaria mais disposta, porém, a
indisposição está visível. Ela já acordou seguindo direto para o
banheiro e tudo que ouço são os sons de choro e vômito. Queria
entender ao menos o choro, mas ela tem se mantido calada e eu
não sei como agir diante disso.

Sophie sempre respeita os momentos em que preciso ficar isolado,


mas agora, pela primeira vez, estou me colocando no lugar dela e é
péssimo ter que respeitar um afastamento quando tudo o que mais
quero é a proximidade. Estar do outro lado não é bom, mesmo que
isso esteja trazendo aprendizado a mim.

Talvez eu esteja sendo um pouco dramático em pensar que está


havendo uma distância afetiva entre nós desde a manhã de ontem.
Mas é compreensível que eu me sinta assim. Sophie e eu nunca
tivemos um afastamento afetivo desde que demos o primeiro beijo.
Não sei o que pensar, minha mente está uma bagunça de
pensamentos e dessa vez tenho a total consciência de que não
posso me afastar e tentar colocar tudo em ordem.

Quando Sophie sai do banheiro, ela vem diretamente para os meus


braços e me abraça fortemente.

— O que eu posso fazer por você, Sophie? Acha que precisa voltar
ao médico? — pergunto.

— Não preciso. Só estou com um mal-estar.

— Hoje seria o nosso casamento. Não acho que vá conseguir,


Sophie, mas não tem problema algum, ok? Podemos fazer isso
depois, quando estiver realmente bem.

— Eu ... eu não posso fazer isso. Não posso fazer isso agora. Não
sou capaz — diz, começando a chorar muito. — Me desculpe. Eu te
amo. Sonhei com esse dia desde sempre; o dia em que eu me
casaria com o garoto que é o meu mundo e a minha vida. Quero
fazer isso quando estiver disposta, feliz, e não me sinto agora.

— Nós podemos fazer isso em outro momento, em outro lugar. Não


precisamos de Santorini ou qualquer outro lugar extravagante,
Sophie. O que importa agora é a sua saúde. Acho que deve se
deitar, dormir um pouco mais.

— Henrico — ela diz, afastando o mínimo e segurando meu rosto


entre suas duas mãos, como sempre fizemos um com o outro. — Eu
amo você com todas as minhas forças. Nunca faria qualquer coisa
para despertar gatilhos ou a sua infelicidade. Acredita em mim? —
Não compreendo de fato essa pergunta, mas balanço a minha
cabeça positivamente. — Ao infinito e além, amor da minha vida. O
nosso amor é coisa de Deus, desde pequeninos. Nada nunca será
capaz de mudar isso, não importa o que aconteça, nós sempre
estaremos juntos e sempre seremos fortes, um pelo outro.

— O que está acontecendo, Sophie?


— Eu só queria dizer isso. Me sinto doente agora; doente e triste.
Parte de mim que vestir o lindo vestido e caminhar em sua direção
até o altar. A outra parte grita para que eu me deite e tente me
recuperar física e psicologicamente.

Alguma coisa me diz que há algo mais. Ter sido observador a vida
inteira faz com que eu veja muito além do que é dito pelas pessoas.
E, além disso, é Sophie diante de mim, dizendo todas essas coisas.
Eu a conheço tão bem. Só demorei a perceber sobre os sentimentos
a mais, por puro medo e por ingenuidade, mas a conheço melhor
que ela mesma. Agora estou levemente frustrado por ter quase
certeza de que há algo a mais e que ela não se sente confortável
para me contar.

Deixo-a ir se deitar e passo parte do dia na piscina da nossa suíte.


Eu não me importo de fato com adiarmos o casamento, mas eu me
importo por ver a minha menina mais bonita se distanciando da
garota que sempre foi. Apego-me a esperança de que tudo será
devidamente normalizado quando voltarmos para nossa casa.

DIAS DEPOIS
Deixou de ser puro.

Deixou de ser mágico.

Há toda tensão do mundo em minha casa, em meu relacionamento.


Henrico não é mais o garoto que era quando começamos e isso é
tanto bom, quanto ruim. Havia um excesso de inocência que não
existe mais. Agora ele possui uma expertise surreal e parece me
analisar o dia inteiro, em cada um dos meus atos e minhas ações. É
desconcertante, intimidador, pois parece que ele é capaz de ver
através de mim, de ler cada uma das minhas ações e aparenta estar
disposto a buscar respostas que não quero dar.

Enquanto comemos, num silêncio profundo, sinto seu olhar sobre


mim. Para fugir, eu tento me lembrar da época em que ele mal era
capaz de falar sobre sexo abertamente; o período onde ele buscava
as palavras mais doces para expressar suas necessidades, suas
dúvidas, coisas que para mim sempre foram bastante normais de
serem ditas. Eu juro por Deus que daria muitas coisas para voltar a
fase das bases, das descobertas. Assim, talvez, daria tempo para
mudar algumas coisas...

É a vida real. Pensar nisso me faz rir sozinha. Meu Deus, a vida real
existe mesmo, obviamente. Todos os casais estão sujeitos a passar
por problemas, até mesmo os que parecem os mais perfeitos. Quem
um dia iria imaginar Sophie e Henrico com problemas conjugais?
Ninguém!

E a culpa é toda minha. Isso é o mais surpreendente, visto que


sempre tentei ser a garota perfeita. Isso também mostra que todos
temos nossas imperfeições, o nosso lado feio. Fechei-me em um
acontecimento e simplesmente mudei, deixei de ser quem sou,
estou uma bagunça, causando dor em Henrico, sendo responsável
pelo nosso distanciamento.... Uau, bem que Henrico sempre disse o
quanto é bom pensar sobre tudo. Agora, com todos esses
acontecimentos, sou capaz de compreendê-lo mais que nunca.
Nesse momento compreendo por que era tão difícil para ele
enfrentar determinadas situações. Realmente não é fácil enfrentar a
vida, a realidade dura, acontecimentos que podem mudar toda a
nossa vida. É por isso que ele sempre deixou que o medo estivesse
de frente em sua vida; foram necessários anos para que ele
conseguisse segurar minha mão e correr; e mais anos ainda para
que ele pudesse declarar os sentimentos por mim.

Não tenho todo esse tempo. Essa é a grande diferença. Não posso
esperar anos, tampouco muitos meses. Eu só estou perdida,
completamente, de forma que não consigo me abrir a qualquer
pessoa, e menos ainda para ele.

Levanto meu olhar a o encaro. Agora há uma espécie de sombra em


seus olhos, algo misterioso demais, sombrio, como um pouco de
raiva e determinação. Uma versão nova de Henrico, dentre todas as
outras que conheci desde que nos envolvemos. Sorrio para ele, mas
puramente de nervoso. Ele não retribui o sorriso. Simplesmente fica
de pé, pega o prato diante de si e caminha até a pia para lavá-lo.
Isso é muito louco! Minha mãe sempre disse que amava deixar meu
pai nervoso, que isso rendia bons frutos, mas não sei se isso é
válido para Henrico. Não acho que vá render fruto algum. Ele parece
decepcionado...

E eu me sinto com ódio de mim mesma.

O que minha mãe faria se estivesse em meu lugar? O que meu pai
diria a mim? Ao mesmo tempo que preciso de ajuda e bons
conselhos, estou presa em uma casca de covardia e medo que não
combinam em nada comigo. Sinto-me covarde por não ter coragem
de enfrentar a minha própria verdade, covarde por não conseguir
expressar absolutamente nada, covarde por estar me mantendo
muda 90% do tempo e mais covarde ainda por saber que é errado,
saber que estou causando dor a Henrico, e não conseguir sair da
casca para mudar a situação.

Eu sou Sophie Albuquerque, a garota que é constantemente


comparada à mãe – que é exemplo de força, coragem e rebeldia. Eu
sou a garota provocativa, que corre atrás do que deseja, que dá a
cara a tapa e não teme. Mas estou temendo agora. E estou fazendo
isso porque a minha verdade pode demorar a ser aceita e terá
consequências. Neste momento, sou covarde o bastante para não
me sentir pronta para enfrentar as consequências. A covardia é a
maior virtude dos fracos, e é assim que eu me sinto; fraca.

— Aonde vai? — pergunto, ligeiramente preocupada, quando


minutos depois, Henrico surge arrumado e faz menção de sair sem
falar comigo.

— No bar do Tião encontrar Samuel e Hadassa. E, me desculpe,


Sophie, mas só a convidarei quando resolver ser sincera comigo.
Você prometeu isso. Disse que sempre teríamos diálogo e que
sempre poderíamos falar abertamente um com outro sobre todas as
coisas. Então por que no primeiro obstáculo você faz tudo ao
contrário? — questiona. — Vocês humanos são muito estranhos.

— Você é humano.

— Pela primeira vez na vida estou preferindo a sinceridade do meu


universo atípico, a mentira do universo de vocês — ele se vai, e eu
caio sentada no sofá, boquiaberta.
“Onde está o meu verdadeiro eu?

Estou perdido e isso me mata por dentro

Estou paralisado”

Deixar Sophie me causa um tipo de dor desconhecida.


Não estou habituado a todos os tipos de sentimentos, alguns são
novos e me deixam um tanto quanto perdido.

Fico ainda mais perdido quando chego ao bar do Tião e encontro


uma cena no mínimo inusitada. Tião está com um celular em mãos,
fotografando Hadassa e Samuel, que estão fazendo uma pose de
comercial de TV. Em uma das mãos de Hadassa há um perfume e
Samuel está com o rosto enterrado no pescoço dela. Além disso, os
dois estão vestidos como se fossem para um baile de gala.

Eu fico parado, aguardando, a sessão fotográfica acabar e Samuel


me ver.

— Irmão. — Ele me cumprimenta sorrindo, e eu me junto a eles.

— O que está acontecendo?


— Hadassa arregaça demais! — responde como se fizesse sentido.

— Sou influencer, acho que já disse isso a você. Estou usando


Samuel para fazer uma publi diferenciada, visto que ele é um gato e
atrairá muita visibilidade — explica Hadassa, e eu ainda me
encontro perdido não compreendo sobre influencers, mas talvez
deva fazer algum sentido para ela ser isso. — É um perfume
europeu, chiquíssimo!

— Entendo.

— Onde Sophie está? — Samuel pergunta.

— Em casa. — Eu gostaria de me abrir, pois estou muito perdido.


Não entendo de relacionamentos e todas essas coisas complicadas,
mas não conseguirei fazer isso com Samuel, não quando Hadassa
está tão perto. Ainda estou me adaptando a ser amigo dela, é um
pouco difícil deixar as pessoas se aproximarem tanto. Sentindo a
necessidade de falar com meu pai, me arrependo de ter vindo direto
aqui, porém, Samuel enviou uma mensagem convidando e achei
que conseguiria me distrair. O que não acontece. Sinto uma espécie
de pânico crescente a cada segundo. Por isso, fico de pé.

— Ei, aonde vai?

— Ligar para o nosso pai. Preciso falar com ele.

— O que há de errado? Sophie? Vocês estão bem? — Olho para


Hadassa e travo, sem conseguir dar uma resposta a Samuel. — Ok,
eu compreendo você. Faça o seguinte, ligue para o nosso pai e logo
te encontrarei na pracinha, tudo bem? Está vazia, não há ninguém
lá.

— Ok — concordo, e os deixo, caminhando até a pracinha que está


realmente vazia.
Pego meu celular, mas não ligo de imediato para o meu pai. Meses
atrás eu parecia um garoto completamente perdido, mas isso mudou
desde que Sophie entrou em minha vida em uma outra perspectiva.
Sua chegada aumentou de forma considerável a minha vontade de
crescer, de ser um homem independente, maduro, seguro, mas
agora, neste momento, me sinto tão perdido quanto eu costumava
ser no início da relação. É como se todos os meus esforços, todas
as mudanças que sofri, tivessem acabado de ser desperdiçadas.
Vejo minha necessidade como um regresso, como excesso de
inexperiência e imaturidade.

Eu travo uma luta contra mim mesmo e sinto uma imensa vontade
de fugir, me esconder em algum lugar escuro onde ninguém possa
enxergar toda minha vulnerabilidade. Não gosto de ser assim. Não
gosto de quando me sinto inferior. Mesmo assim eu venço o choro e
aperto o botão de chamada. Meu pai atende no segundo toque e
fico mudo por alguns segundos, até ele chamar meu nome.

— Henrico? Filho, está tudo bem?

— Eu e Sophie estamos em crise no relacionamento — confesso. —


Eu não fui preparado para algo assim. A culpa não é sua ou da
mamãe, mas é minha por ter achado que nunca teríamos uma crise.
Eu mesmo não me preparei para isso e não sei lidar. Era um pouco
mais fácil quando os meus medos se resumiam ao sexo e a
conquista, agora eles mudaram. Sophie está estranha, um pouco
fria, sem brilho nos olhos. Você acha que o amor pode ter acabado?
Acha que... acha que é o fim para nós? Eu nunca mais vou tocar em
uma garota caso esse seja o fim, porque nunca mais vou amar.
Sophie sempre foi o meu sonho e eu acredito que sonhos não
podem ser substituídos. Eu passo muitos minutos a analisando,
tentando interpretar suas feições, seus gestos, tentando decifrá-la,
mas ela parece vazia, pai. Eu não sei lidar com isso.

— Uau! — exclama, provavelmente tão perdido quanto eu agora. —


Já tentou conversar com ela?
— Tenho tentado decifrá-la, ela tem fugido de conversas. Eu fui
ensinado a respeitar pessoas, a respeitar as vontades das pessoas,
mas tudo parece muito difícil e confuso agora, de forma que não
estou conseguindo respeitar essa nova versão de Sophie, porque
me machuca.

— Calma. Você precisa saber, antes de mais nada, que todos os


casais passam por turbulências, ouso dizer que principalmente os
casais que mais se amam são os que mais têm crise. Nada é como
nos contos de fada, filho. Eu e sua mãe também temos problemas,
sua irmã e o namorado também. É normal. Desentendimentos
acontecem e, para resolvê-los, é necessário muito diálogo. Acho
válido respeitar o momento da pessoa, mas isso tem um limite.
Vocês são um casal, dividem o mesmo teto, são praticamente
casados, mesmo que não tenham assinado os papéis. É necessário
que sentem e conversem, que da maneira mais educada possível
você tente extrair o motivo para ela estar agindo desta maneira. Não
é nada de outro mundo, filho. Acontece com todos, porém, nem
todos estão dispostos a resolver. Há aqueles que nem mesmo
tentam dialogar e desistem logo na primeira crise. E há aqueles
como eu, como sua mãe, que estão sempre dispostos e abertos a
um bom diálogo para discutir os erros, resolver os problemas.

— Mas...

— Sophie ama você. Não precisa temer. Esqueça esse "mas". Algo
deve estar acontecendo talvez ela esteja tendo dificuldade em se
expressar, em expor. Talvez, em uma conversa, você consiga extrair
o que de fato está se passando. Lide com paciência e obterá
resultados fantásticos, palavras de quem já passou por isso muitas
vezes. E não sei se já ouviu falar, mas existe uma frase que diz
"Depois da tempestade vem a bonança". Saiba que é exatamente
assim. Saberá o significado dessa frase no momento de
reconciliação.

— Por que é tudo tão complicado?


— Se a vida fosse fácil não teria graça, filho. Se fosse fácil, não
seríamos capazes de valorizar todas as coisas que devem ser
valorizadas. As dificuldades surgem para nos mostrar o valor da
vida, das pessoas, muitas vezes das coisas. É importante
passarmos por provações, termos nossa força testada. Um dia tudo
começa a fazer sentido. Sei o quanto gosta de explicações
específicas e todas essas coisas de roteiro, regras, mas nem tudo
vem com manual e nem mesmo existem explicações para todas as
coisas.

— Preciso pensar em tudo o que me disse.

— Pense. Estarei sempre aqui por você. — Isso me conforta.

Encerro a ligação e aproveito que a igreja está vazia para fazer dela
o meu lugar de pensamento.

"— Eu estou com você. Você vai conseguir — Incentivo Henrico e a


magia acontece. Segurando a minha mão, simplesmente saímos
correndo e gritamos de felicidade. Samuel se junta a nós e Yaya
também, juntos comemorando, mas não há ninguém aqui que esteja
mais feliz que Henrico.

— Eu corri, mamãe. Sophie é a menina mais bonita do mundo e me


ajudou! — ele grita, e agora corre para os braços de tia Paula.

— Eu te amo, filho. Eu te amo ao infinito e além!"

Ao infinito e além. A nossa frase. A frase que simboliza o nosso


amor.
"No meu aniversário de 9 anos, Henrico me deu um quadro feito de
uma foto minha, desenhado e pintado por ele mesmo.

Aos 12 anos, ele empurrou um menino que disse que ia se casar


comigo e que eu era a mais bonita do mundo.

Aos 13 anos de idade, em uma manhã chuvosa de um sábado, fui


acordada pelo meu pai. Ele disse que havia um alguém muito
especial esperando por mim na sala. Eu soube quem era antes
mesmo de ele precisar dizer o nome. Eu saltei da cama e corri para
a sala antes mesmo de escovar os meus dentes. Henrico estava lá,
acompanhado de tia Paula, carregando um potinho em suas mãos.
Assim que me viu, ele estendeu as mãos e eu corri para pegar o
pote. Quando o abri, encontrei dezenas de brigadeiros feitos por ele,
apenas porque sabia que era meu doce preferido. Tia Paula contou
que ele passou a madrugada fazendo brigadeiro para mim e eu
agradeci dizendo que ele era o menino mais bonito do mundo e o
meu melhor amigo. Em todas as festas de família que tinha
brigadeiro, ele sempre arrumava uma maneira de arrumar um pote e
pegar vários para mim, e eu nem precisava pedir.

Quando menstruei pela primeira vez, minha mãe contou a ele que
eu estava doente e ele não sossegou até tio Lucca levá-lo para me
ver. Ele chegou em minha casa com meia dúzia de margaridas
arrancadas do jardim de sua casa, chocolates e um bilhete com um
coração desenhado escrito "você é a menina mais bonita do
mundo".

Aos 15 anos, escutei uma conversa entre Samuel e ele. Ele disse a
seguinte frase: "eu sempre vou esperar por ela".

Um dia antes de eu descobrir sobre seus sentimentos por mim ele


disse: "eu sempre vou esperar por você".

Eu sempre declarei o meu amor a ele. Ele nunca disse que me


amava. Ele só respondia "ao infinito e além".
AO INFINITO E ALÉM.

"Eu posso fazer isso, Sophie!"

— Sophie? — a voz de Henrico me tira do desespero. Limpo as


minhas lágrimas e corro até a sala, onde ele está.
— Eu não fui ao bar do Tião. Na verdade, eu fui, mas não fiquei lá.
Estive pensando e pesquisando. Eu descobri que 75% dos casais
gostariam de discutir mais a relação de forma franca. Seis em cada
dez casais sentem que não existe muito contato um com o outro. É
como se fossem casais apenas por conveniência, comodidade ou
sexo. Não é o nosso caso. Nós não estamos juntos por
conveniência ou comodidade. Estamos juntos porque nos amamos
e somos muito bons sexualmente.
— Eu quero sorrir, mas me contenho. Eu acho tão doce vê-lo
pesquisando sobre todas as coisas. — Uma outra pesquisa disse
que 80% das mulheres começam as discussões, mas também não
nos encaixamos nisso, porque você se isolou e sou eu a tomar a
iniciativa agora. Estou fazendo isso porque estou me sentindo
incomodado com a situação e também quero que a nossa relação
volte a se estabilizar. Eu aprendi que a comunicação é essencial
para um casal e deixamos de ter isso. Você poderia me contar o que
está acontecendo para que possamos lidar juntos?

— Você não faz ideia do quanto eu te amo.

— Eu também amo você e quero que sejamos para sempre — diz,


aproximando-se e tocando o meu rosto. Esse gesto doce é o
suficiente para fazer com que lágrimas voltem a inundar meu rosto.
— Por que está chorando? Por que não me conta o que está
acontecendo? Seja o que for, nós podemos lidar.
— Você tem certeza disso? Tem certeza de que pode lidar com
tudo? — pergunto, temendo de todas as formas possíveis. Há
tantos gatilhos no que tenho a dizer, foram tantas as vezes em que
o ouvi dizer que não queria isso de forma alguma. Eu tenho tanto
medo das consequências, no que a notícia poderá causar a ele, em
como ele reagirá ao recebê-la. Quanto tempo ele precisará para se
recuperar do impacto das minhas palavras? Pensar nisso tudo me
causa um mal-estar e saio correndo para o banheiro, onde só
consigo vomitar e chorar. Eu nem mesmo consigo comer mais,
estou me afundando no mar de medo, deixando de ser a garota
corajosa que sempre fui.

É que eu sei. Eu vi. Soube. Centenas de crises, algumas mais


graves, outras mais leves. Destruição, móveis quebrados, desmaios,
crise de pânico. Quantas vezes Henrico já se autoinflingiu dor
apenas para tentar silenciar todas as coisas que o aterrorizavam e
lhe traziam gatilhos? Incontáveis.

Ele disse que não queria. Eu também não queria. Não deveria ter
acontecido.

— Sophie, posso entrar?

— Não. Eu só preciso de alguns minutos. Vou me limpar, escovar


os dentes...

Os pensamentos seguem me atormentando e a cada segundo fica


mais em evidência que até os corajosos têm suas fraquezas e seus
medos. Não existe ousadia, audácia, nada mais. Eu só quero que
ele possa lidar com isso bem, é a única coisa que consigo pensar e
pedir. No fundo, sinto que seria muito mais fácil se eu não o
conhecesse tanto, se não tivesse convivido tão de perto com os
seus terrores, seus bloqueios... acho que minha coragem seria
maior do que o medo que sinto agora.

Meus pais sempre me ensinaram a ser forte, determinada, corajosa.


E eu tenho jogado todas as lições ao ar nos últimos dias. Parte de
mim está me julgando duramente, outra parte é capaz de
compreender exatamente o motivo de tantos receios. Não tenho
como fugir. Não quando sei que estou causando dor no garoto que
mais amo na vida. Eu nunca imaginei que um dia poderia causar dor
em Henrico e ela está lá, estampada em seu rosto, de forma aberta.
Ele é o garoto que tem excesso de sinceridade e merece receber de
volta a verdade que dá aos outros. E eu preciso ser a garota que vai
segurar a mão dele....

Não posso ser a garota fugitiva.

Após alguns minutos, saio do banheiro um pouco mais decidida e o


encontro sentado no chão, próximo à porta, aguardando-me.

— Você precisa ir ao médico? Está doente? É isso? Está me


escondendo alguma espécie de doença? — pergunta, ficando de
pé. — Sophie, pelo amor de Deus, eu preciso saber o que está
acontecendo.

— Eu... eu sempre te amei.

— Eu sei.

— Sempre sonhei em ser sua namorada, sua mulher. Esse sempre


foi o meu conto de fadas — digo, tentando conter as lágrimas, mas
é em vão. — Você sempre foi o meu príncipe encantado e sempre
sonhei com o futuro ao seu lado. E... eu não sei como dizer isso a
você, não há explicações, ao menos eu penso que não há... ainda
não fui corajosa o suficiente para buscar respostas. Existem
respostas?

— Sophie, isso está muito confuso.

— Eu sei.

— Pode ser mais direta? Estou com dor de cabeça de tanto pensar
e dói muito forte quando minha mente fica embaralhada — diz,
passando as mãos pela cabeça. — Por favor... eu não quero
pressioná-la, mas...

— Eu estou grávida.
“Pés, não me falhem agora
Me levem até a linha de chegada”

— Eu estou grávida. — Sophie diz, e eu entendo pela primeira vez


aquela frase que dizem sobre "ver o mundo girar bem diante dos
olhos". Uma única frase tem o efeito de superlotar a minha mente de
informações. Neste momento, eu me sinto como um computador
tentando processar informações em uma alta velocidade; primeiro
porque eu nunca quis ter filhos, segundo por não saber lidar com
essa notícia, terceiro por conta do tio Victor, quarto... Sophie fazia
uso de método contraceptivo e fiz pesquisas sobre eles, ofereciam
um risco muito mínimo, quase impossível. Sei que Sophie no futuro
iria querer ser mãe, mas até esse momento chegar, eu teria muito
tempo para trabalhar isso em minha mente, com ajuda da minha
terapeuta. Eu não sei o que fazer ou o que pensar, sempre digo a
famosa frase "eu posso fazer isso", mas agora ela não se encaixa.
Eu não poderia ter engravidado Sophie e eu não sei se posso fazer
isso. Ao mesmo tempo que penso todas essas coisas, sei que não
posso ser covarde, que é a minha responsabilidade e que meus pais
sempre me ensinaram sobre ser responsável. Eu amo Sophie, eu a
amo além da vida, mas agora estou perdido nessa informação e
prestes a entrar em uma crise.
Eu deveria agir como o homem que venho me tornando, mas acho
que nunca estive tão vulnerável como me sinto agora. É como se
todas as minhas fraquezas estivessem expostas e não posso nem
mesmo pronunciar uma única palavra de conforto a minha noiva.

— Eu não deveria ter falado assim, de uma só vez, mas... eu


precisava ser sincera da mesma forma que sempre foi sincero
comigo. Sei que devo ter acabado de fazer uma grande merda,
estou arrependida, mas... nós estávamos indo por um caminho ruim
por conta desse segredo que carreguei sozinha nos últimos dias por
não ser corajosa o suficiente para te contar, por ser uma grande
medrosa. E eu entendo que não queira ser pai, entendo que tenha
dito que em algum momento poderia fazer isso no futuro, então não
vou pedir ou exigir que dê pulos de alegria, porque realmente não
era o momento e porque o conheço bem para saber que terá que
ficar horas, talvez dias, isolado, tentando processar a informação,
tentando entender por si próprio como isso pôde ter acontecido.
Tanto estou com medo, quanto estou um pouco aliviada agora que
compartilhei isso com você. E sei que será incrível, Henrico. Você
pensa pouco de si, mas eu sempre o vi além e sei que será o
melhor pai do mundo, porque você só tem amor, você é amor,
generosidade, paciência. Me desculpe, menino mais bonito. Não era
o momento, não sei o que aconteceu. Me desculpe. Sei que isso
muda tudo, sei que essa novidade afeta o seu modo controlado,
regrado e organizado. Eu só preciso que registre a novidade e que
em breve segure a minha mão, porque eu também estou perdida,
estou com medo, sou muito jovem. Preciso de você para correr
comigo agora, mais que nunca. O jogo virou, eu acho — diz,
limpando as lágrimas. — Você pode pensar, ok? Vou te dar o
espaço que sei que precisa. Eu entendo você, respeito você e acima
de tudo admiro você. Além do azul, ao infinito e além. Nós podemos
fazer isso!

A culpa é minha. Eu deveria ter me esforçado para conseguir fazer


uso dos preservativos. A sensação de um preservativo em meu
pênis era sufocante, claustrofóbica, e tudo isso por culpa da minha
condição. Tão diferente e tão incapaz às vezes. Uma coisa tão
comum e que a maioria dos homens é capaz de fazer, foi tão difícil
para mim. De qualquer forma, estou mudo. Mesmo querendo dizer
palavras a Sophie, estou mudo, preso em minha mente e meu
medo.

Sophie se aproxima e deixa um beijo casto em meu rosto antes de


caminhar para a sala. Minha reação é sair do quarto e me trancar no
escritório, onde ando de um lado para o outro por alguns minutos,
até me sentar diante do computador, pegar um bloco de anotações
e começar a fazer pesquisas.

Poderia ser algo comum. Milhares de jovens se tornam pais fora do


planejado. Mas sendo autista, a paternidade indica mais uma gama
de desafios vindo pela frente. Eu tenho problemas em socializar,
tenho hiperfoco em algumas coisas, sensibilidade em outras, tenho
mania de organização, preciso ter uma rotina programada, gosto de
regras, de seguir cronogramas, além de possuir distúrbios
sensoriais. Tudo isso sempre foi muito bem conciliado, mas sei que
a paternidade não me oferecerá a oportunidade de manter tudo
dentro da organização que preciso. Em breve, após o nascimento
do bebê, serei eu a me adaptar a ele. Terei que desfazer das minhas
necessidades e priorizar as necessidades dele. Terei que lutar
contra os ruídos de choro, a rotina de horários sofrerá alterações
significativas, terei que dividir meu foco, nada mais será tão
organizado... Isso tudo é tão louco e desafiador.

Geralmente os pais tentam adequar os filhos à rotina, comigo será o


contrário disso. Eu quem terei que me adaptar, gerenciar todas as
mudanças, vencer meus limites. Eu que sempre fujo e evito
mudanças, não fui capaz de evitar ser pai. É uma mudança drástica
de todas as maneiras possíveis e agora sinto a necessidade de
saber exatamente tudo o que está por vir, de me preparar para o
futuro. O que seria trabalhado em anos, precisa ser trabalhado em
dias porque Sophie precisa de mim. E eu nem sei por onde
começar, nem mesmo quero pedir ajuda neste momento, porque
ninguém pode se preparar por mim. Não entendo muitos de
crianças, mas sei que meu senso de ordem é quase rigoroso e tudo
que um bebê não possui é isso. Bebês recém-nascidos não tem
horário para sentir fome, dormir...

Como eu lidarei quando meu filho deixar de ser um recém-nascido?


Como poderei levá-lo a parques, em áreas recreativas? Como
lidarei com situações caóticas que atingem meus problemas
sensoriais? Quase entro em pânico ao imaginar meu filho rodeado
de crianças correndo, gritando... Puta merda! Sinto-me tão
desesperado agora. Não sei o que me assusta mais nesta novidade:
ser pai, cuidar de um recém-nascido ou enfrentar os primeiros anos
do meu filho, ou filha. Além de tudo, ainda há o tio Victor. Como
enfrentá-lo? Ele confiou em mim, confiou Sophie a mim e eu a
engravidei tão jovem. Ele ficará decepcionado provavelmente.

Após um longo período de pensamentos conflitantes e de zero


pesquisa, vem em minha mente a maneira negativa como estou
lidando com isso. Até o presente momento não me permiti pensar
em nada positivo e estou me questionando quanto tempo levarei
para mudar a visão. Não posso deixar de pensar na possibilidade
de o bebê nascer com autismo. E se isso acontecer, não sei como
será. Meus pais sempre lutaram por mim, mas será que sou capaz
de lutar pelo meu filho da mesma forma que eles fizeram? Eu mal
consigo encarar as pessoas, não sou capaz de enfrentar uma
reunião presencial sem ter o meu pai ou a minha mãe ao meu lado,
para me auxiliar. Como tudo isso será?

Seja como for, eu nem preciso pensar mais para ter a certeza
absoluta de que esse é o momento mais desafiador de toda a minha
existência. Eu achava que o maior desafio seria me declarar para
Sophie, mas estava enganado. O meu maior desafio é aceitar que
serei pai e viver a paternidade como uma pessoa normal. Terei que
vencer as minhas diferenças, vencer um pouco do meu autismo
mesmo quando não há cura para tudo que me torna atípico. É
possível fazer isso? É possível enfrentar meus traumas? E se o meu
filho tiver medo de mim como eu tinha do Pablo? Meu pai Lucca
sempre será a minha inspiração, mas não sei se posso ser como
ele. Eu temo decepcionar a todos.
Não sou capaz de dormir.

Já perdi as contas de quantas vezes passei pelo corredor só para


ver se a luz do escritório ainda estava acesa; está e há um barulho
constante dos dedos de Henrico trabalhando incansavelmente no
teclado do computador. Talvez ele esteja pesquisando, ou talvez
esteja apenas escrevendo todos os pensamentos que estão em
minha mente para buscar uma maneira de alinhar e acalmar tudo.
Por sorte a mulher dele sou eu; uma das pessoas que mais o
conhece e mais entende de todas as limitações que ele possui. Eu o
respeito tanto, o compreendo tanto. Quando disse a ele, por um
momento me tornei um pouco sonhadora e quis receber um enorme
abraço de conforto e apoio. Mas eu já possuía a certeza de que ele
iria entrar em pânico e precisaria do seu momento, por esse motivo
não me sinto frustrada. Eu sei que em algum momento os
pensamentos estarão mais calmos e ele virá me dar o suporte que
tanto preciso. Ninguém além dele pode me dar esse suporte agora.
Na verdade, nem é tanto pelo fato de estar grávida. Após dias
perdida em meu medo, preciso sentir a nossa conexão, preciso
sentir que ainda somos o "infinito e além" um do outro. Não preciso
que ele me diga que dará tudo certo com o bebê, porque farei dar.
Sou filha da Melinda, uma leoa que é o melhor exemplo materno
que eu poderia ter. Eu sei que dará certo com o bebê. Só não tenho
tanta certeza em relação a dar certo com Henrico, há muitos
desafios vindo, não sou tola de pensar o contrário e sonhar com um
conto de fadas.

Sou capaz de imaginar grande parte dos pensamentos que estão


mexendo com ele neste momento e carrego comigo a certeza de
que não são bons. Um bebê muda tudo mesmo. Para Henrico que
sempre foi centrado, organizado, amante de regras e controle,
receber uma notícia de que toda a sua vida e sua rotina sofrerá
alterações deve ser altamente difícil. Tenho a certeza de que ele
tentará de alguma forma montar todo um esquema em relação à
paternidade apenas para tentar manter-se em uma zona de conforto
que ofereça o mínimo de controle a ele. É tão complexo, que me
pego sorrindo mesmo estando desesperada. É muito louco conviver
de perto com as adversidades do meu menino mais bonito, e a cada
dia ganho mais e mais conhecimento sobre ele.

É no meio da madrugada que desisto de ficar igual um fantasma e


volto à cama, decidida a deixar que a minha mente e meu corpo
descansem. Não há o que ser feito, nenhuma conversa que eu tente
ter com ele agora resolverá; provavelmente se eu tentar uma
conversa, vai acabar mexendo ainda mais com sua mente
complexa. Agora eu só preciso respeitar o momento dele, é isso.

E eu respeito.

Após uma oração, onde peço por paciência e compreensão,


adormeço, sonhando com o momento onde Henrico finalmente se
sentirá preparado para dizer algo e enfrentar a situação ao meu
lado.

— Sophie... — acordo com sua voz bem próxima ao meu ouvido. —


Sophie, eu estive pesquisando. Descobri que não há muitas
pesquisas sobre pais portadores de autismo. Há muito sobre os
filhos, sobre adultos, mas não sobre pais autistas. Há um déficit em
relação às informações sobre a paternidade e isso é extremamente
desconcertante, porque pensei que poderia achar todas as
respostas e apenas não as encontro. Isso significa que ... eu não
sei. Eu não terei em que me apegar ou me basear, não tenho
respostas e eu preciso delas.

— Calma. Você precisa respirar um pouco e descansar a mente.


Talvez, assim, você acabe conseguindo descobrir todas as coisas
que precisa. Sua mente está cansada, Henrico Davi. Precisa se
desligar um pouco.

— Eu me mediquei — avisa, e eu fecho os meus olhos, triste por


saber que isso iria acontecer. — Precisei fazer isso. Estou sentindo
uma forte dor na cabeça e todos os meus pensamentos estão
embaralhados, parece que minha cabeça irá explodir de tanta dor.

— Então deixe o remédio agir. Deite-se, descanse a sua mente.


Vamos buscar respostas juntos.

— Não sei se posso fazer isso, Sophie. Me desculpe por não estar
sendo bom para você agora — diz, deitando-se, e eu nem tenho
tempo de responder. Ele simplesmente desmaia e eu tento infiltrar
na minha mente que esse descanso forçado é o que ele mais
precisa neste momento.

Seja quão difícil for, em algum momento nós poderemos fazer isso!
“Tenho meus demônios cantando
canções na minha cabeça”

Essa é a primeira grande situação da minha vida. Aquela que mais


exige que eu tenha uma maturidade que nem mesmo sei possuir,
mas que terei que encontrar em algum lugar dentro de mim. Não é o
momento de correr para os braços fortes do meu pai ou para o
carinho doce da minha mãe. É o momento de sustentar a
consequência de um ato da minha vida adulta e esse ato foi dividido
apenas com uma pessoa: Henrico Davi.

Enquanto ele dorme pesadamente, eu me levanto e perambulo pela


casa, apenas na tentativa de acalmar um pouco meu coração. Ao
contrário do que eu imaginava, andar na escuridão acaba surtindo
um efeito positivo e aos poucos vou conseguindo organizar
pensamentos.

Por algum motivo que desconheço, consigo encontrar uma gotinha


de esperança dentro de mim, e essa gotinha me faz pensar que em
breve o Henrico terá se adaptado à notícia de uma maneira
surpreendente. Acho que esses pensamentos positivos são fruto da
fé que sempre tive em relação a ele. Sim, eu sempre acreditei na
capacidade do menino mais bonito do mundo, desde quando eu
nem mesmo sabia o que capacidade significava. Sempre vi muito
além do que ele era capaz de enxergar sobre si mesmo e,
surpreendentemente, isso se mantém vivo em mim mesmo em uma
situação tensa como a de agora.

Ele ficará perdido dentro de si por alguns dias, fará um milhão de


pesquisas que desafiarão até mesmo os artigos acadêmicos de
medicina e o Google, e será apenas o melhor homem que sei que
ele é. Inspiração paternal definitivamente não falta para ele. Meu
lindo noivo foi criado por um dos melhores seres humanos que
conheço; meu tio dindo é o exemplo de pai que todos os homens
deveriam seguir e sei que Henrico o terá como maior inspiração
nesta fase que está começando.

Eu só preciso acalmar a mim mesma, deixar o desespero e o medo


de lado, e ter a paciência que sempre tive. Não importa quanto
tempo demore, em algum momento Henrico estará realmente
preparado para lidar com a notícia e então a enfrentaremos juntos.

Permito que minha mente faça uma breve viajem ao meu futuro;
quer dizer, aos planos que eu tinha para o meu futuro. Um bebê
muda muitas coisas, como, por exemplo, a minha busca pela nova
universidade, que prometi ao meu pai que seria logo. Alguns planos
terão que ser adiados, talvez isso magoe meu pai no primeiro
momento, mas carrego comigo a certeza de que se existe alguém
no mundo que me dará todo e qualquer apoio, esse alguém é ele –
e minha mãe também. Sempre o cito por conta de todo drama que
ele pode carregar consigo. Minha mãe é mais prática, já o doutor
Victor herdou do meu avô Teus um drama surreal e é sempre a
pessoa que fica mais afetada emocionalmente em qualquer
acontecimento, por isso estou tão preocupada com as reações dele.
O drama é tão certo quanto o apoio, e nem mesmo precisarei citar
fatos que envolvem o passado tórrido dele e da minha mãe.

Quando enfim recupero a sanidade e relaxo minha mente, o sono


surge e volto para a cama. Desta vez nem mesmo fico me
embebendo da imagem perfeita de Henrico, só me aconchego na
coberta e adormeço.
Há muitos dias não me despertava tão bem.

Carregar o peso da notícia e o medo, estava me prejudicando de


uma maneira que nem sei explicar. Por alguns dias foi como se eu
estivesse envolta na mais profunda escuridão, presa em um lugar
onde só o medo sobrevivia. Agora me sinto infinitamente mais leve
só por ter dividido com Henrico, mesmo que tenha sido difícil e que
eu saiba que a dificuldade talvez demore a acabar. Estive morta por
longos dias, mas agora me sinto viva como nunca, principalmente
ao ver Henrico se levantar da cama, usando apenas uma cueca e
portando um armamento pesado, totalmente acordado para a vida,
contrariando até mesmo os efeitos da medicação. Ainda estou lerda
o bastante para não conseguir distinguir se é algo bom ou ruim que
os efeitos tenham passado rápido demais. Sei que ele costuma ficar
até 48 horas grogue e que é assustador o bastante.

Na dúvida, decido ficar na cama, observando as ações dele de


longe e fingindo estar dormindo. Aliás, não sei quando foi que ele
retirou parte das roupas e ficou apenas de cueca. De qualquer
forma, isso deve ser só um mero detalhe.

Vejo-o entrar no banheiro e logo ouço o som da ducha sendo ligada.


Nos nossos dias de glória, eu desceria da cama e invadiria o
banheiro para uma rodada de sexo matinal da melhor qualidade.
Pensar nisso me deixa um pouco triste e me faz questionar como
será a nossa vida sexual a partir de agora. Sei que pais transam,
que casais "grávidos" transam, mas... e eu e Henrico? Como será
nossa vida daqui para frente? Temo que ele queira se abster de
sexo por um período e nem mesmo posso brigar, visto que fiquei
alguns dias fechada dentro de mim.
Talvez eu tenha que voltar a ser a boa e velha Sophie; aquela capaz
de ir até o ápice da palavra provocação e talvez isso até torne as
coisas mais quentes que costumavam ser, se é que é possível.

Rolo na cama e até suspiro, sentindo uma tremenda falta de todas


as palavras sujas que somente Henrico é capaz de dizer. Eu duvido
que alguém o imagine tão safado na cama. Definitivamente, eu tirei
a sorte grande na vida. Embora eu ache que nenhuma mulher deva
ficar paralisada esperando pelo homem perfeito ou pelo príncipe
encantado, posso dizer que não me arrependo nem por um segundo
por ter esperado por ele toda a minha vida. Sei que não tenho com o
que ou com quem compará-lo, mas estou certa de que eu tenho o
melhor e que ele foi criado sob medida para saciar a minha vida em
todos os mais diversos sentidos.

Estou rindo sozinha quando ele sai do banheiro. Volto a fingir meu
sono e rezo para que Deus nos acuda em algum momento. Pelo
amor da Santa Josefina, definitivamente não estamos brincando de
casinha!

Na tentativa de acalmar minha mente turbulenta, cedo à pressão


que Samuel está colocando em mim para ir até à festa da igreja.
Sophie foi a primeira a aceitar e ela se parece diferente hoje. Não
diferente. Na verdade, ela se parece mais com ela mesma, como se
tivesse tirado um peso de cima de si e tivesse recuperado sua
essência.

Por um segundo sinto uma leve inveja pela maneira mais fácil como
ela demonstra conseguir lidar com as situações. Ter falado comigo
trouxe a ela uma espécie de alívio. Já comigo, falar sobre isso com
qualquer pessoa, incluindo ela, não aliviará a bagunça de
sentimentos e pensamentos. Estou com dor de cabeça o dia todo.
Não poderia ser diferente, desta vez nem mesmo um inibidor foi
capaz de me derrubar ou capaz de acalmar minha mente ao menos
um pouco. Tudo em mim está na mais completa turbulência, como
se eu fosse explodir a qualquer momento. E não me sinto disposto a
dividir a notícia com qualquer pessoa agora. Eu sou um homem
feito, não é mesmo? Se serei pai é preciso ser maduro para isso,
como posso correr para os braços do meu pai agora e clamar por
ajuda? Eu e Sophie já fomos longe demais em poucos meses e se
fui homem pra ir longe demais, preciso ser homem para encarar a
notícia sozinho. Não será fácil. Eu sou quase um dependente das
pessoas que me cercam; dependo dos meus pais, de Sophie, de
Samuel, para lidar com tudo. Só que dentro de mim há algo gritando
que desta vez precisa ser diferente.

Diferente parece ruim, mesmo que necessário.

Talvez haja uma parte de mim que admire desafios, mesmo eu


odiando todas essas teorias que fogem do sentido literal e de tudo
que acredito.

De qualquer forma, ao ver Sophie surgir linda na sala, devidamente


pronta para sair, eu me pego ficando de pé, incapaz de deixá-la ir
sozinha. Isso faz com que eu me sinta levemente machista, ou
talvez nem tanto, apenas um pouco possessivo. Ou muito.

Não sei lidar comigo hoje, mas quero lidar com Sophie, mesmo que
em silêncio. Preciso que ela saiba que estou aqui e que, por mais
que eu diga que não sou capaz de lidar com o acontecimento, farei
todos os esforços possíveis para ao menos chegar perto de
conseguir.

Agitado, com a mente transbordando, coloco meus abafadores de


ruídos e seguro a mão direita de Sophie. Ela estremece. Eu
estremeço. Trocamos um olhar cúmplice, de duas pessoas que
sabem que terão suas vidas modificadas a partir de agora.
Enquanto caminhamos para fora de casa, me pergunto o quanto
modificadas. Por maior que seja meu medo, por mais intensa que
sejam as minhas limitações, tenho receio de perder o que existe
entre mim e a Sophie, o magnetismo, a sintonia, a conexão forte
que sempre tivemos, de um entender o que o outro está sentindo
apenas com um olhar.

Quando chegamos à praça, fico mais aliviado por não estar


excessivamente cheio. Porém, há luzes de Led e isso me causa um
certo desespero, além de intensificar a dor de cabeça. O abafador
ajuda com o som, agora preciso fugir dessa luz e faço, sabendo que
Sophie e Samuel compreendem exatamente o que está
acontecendo.

— Está tudo bem? — Sophie pergunta, quando encontramos um


lugar para sentar.

— Sim, agora está.

— Sophie, vamos dançar! — Hadassa a puxa e elas se afastam. Eu


fico observando até Samuel exigir minha atenção.

— Ei, não vai me contar o que está acontecendo entre Sophie e


você? Conversaram? — pergunta, demonstrando preocupação.

— Sim, algo aconteceu, mas não quero falar sobre isso. Na


verdade, não me sinto preparado para nada. Estou me esforçando
para conversar com você e para estar aqui.

— Preferia que tivesse inventado qualquer desculpa. Sua


sinceridade agora me fodeu na curiosidade. Como ficarei bem
sabendo que algo aconteceu e que está se esforçando para
conversar comigo? É no mínimo bizarro, visto que sou seu irmão e
melhor amigo, fomos confidentes uma vida toda. O que de tão louco
pode ter acontecido para você não querer falar comigo?
— Não fique magoado comigo. Somos irmãos e você é o meu
melhor amigo. Só preciso de um tempo para absorver algumas
coisas sozinho, como todas as pessoas normais precisam em
algumas situações. É assim que é ser normal, não é mesmo? Digo,
agir como pessoas normais, que não possuem autismo e diferenças
tão singulares — argumento.

— Não gosto muito desse lance de normal, Henrico, mas respeito


que não queira falar. Talvez eu tente extrair de Sophie. — Ele nem
mesmo se envergonha por dizer isso.

— Não acho que vá conseguir dessa vez — comento, e dou um leve


sorriso enquanto tento testar como ficarei sem o abafador. Após
alguns minutos sem, Samuel questiona:

— Está conseguindo ficar sem o abafador? Que porra está


acontecendo?

— Minha mente está muito mais barulhenta que qualquer outro som.
Enquanto ela permanecer assim, acho que nenhum outro ruído me
incomodará.
“A estrada é longa, nós seguimos adiante,
tente se divertir nesse meio tempo”

Estou surpreso por descobrir como alguns acontecimentos acabam


sendo capazes de criar uma barreira entre um casal. Jamais
imaginei que eu e Sophie pudéssemos nos distanciar em algum
momento. É novo para mim, ainda assim é mais um aprendizado.
Agora preciso tentar descobrir como modificar isso.

Ela foi a primeira a colocar uma barreira entre nós, quando ainda
não tinha coragem o suficiente para me dizer a verdade e escolheu
ficar isolada dentro de si mesma, adotando uma postura diferente
comigo. Agora, talvez seja eu me distanciando na tentativa de tentar
entender e absorver a novidade. Quando penso em Sophie, enxergo
que não é correto eu precisar do meu espaço nesse momento.
Antes dela, meus isolamentos eram normais, corriqueiros,
necessários e todos costumavam entender, aceitar e respeitar. Na
atual situação em que nos encontramos, penso que me isolar possa
ser um ato de egoísmo, mesmo que eu sinta a necessidade de
readequar meus pensamentos e conseguir compreender que me
tornei uma das coisas que mais temia: pai. Acredito que, em algum
momento, um de nós terá que tomar uma atitude na tentativa de
tentar mudar essa situação. Por mais incapacitado que eu me sinta
sobre a paternidade, isso não muda o que sinto por Sophie ou o
nosso relacionamento. Somos noivos e eu não sei como resgatar
isso. É confuso demais para a minha mente que está em processo
de expansão e aprendizado constante nos últimos meses. Não sei
lidar com a maioria das situações e isso me deixa em um estado de
incapacidade que faz com que eu me sinta insuficiente.

É um pouco desesperador. Eu sinto que posso lidar com algumas


questões, vencer alguns bloqueios, mas quando penso que Sophie
está grávida, quase entro em pânico. Mas há algo que me causa um
pânico maior; pensar em perdê-la para um outro alguém que seja
corajoso o bastante para lidar com todos os acontecimentos e com
as consequências dos próprios atos. De repente, me sinto mais
vulnerável que já fui um dia, principalmente ao ver Sophie sendo
cortejada por um outro homem.

Tudo em mim está em estado de alerta ao ver o homem dizendo


algo a ela, que parece desconfortável com a abordagem. Por um
segundo nossos olhares se cruzam, mas Sophie desvia o quanto
antes, impedindo-me de tentar obter uma resposta silenciosa.
Engulo a seco um nó que se forma em minha garganta e percebo
que essa frase nada literal se encaixa bem a mim neste momento.
Essa expressão, que eu tentava desvendar no passado, agora
parece fazer sentido para mim.

Pergunto-me como meu pai reagiria vendo minha mãe ser cortejada.
Quase sorrio ao conseguir vislumbrar uma cena criada em minha
própria mente. Ele não permitiria, tampouco ficaria apenas
observando de longe. E é exatamente essa cena que me faz tomar
uma atitude. Acho que estou cansado de não ter a minha Sophie,
cansado de tudo.
Sim, eu posso dizer que estou bem parecida com a "eu" do passado
agora, dançando feito louca com Hadassa "arregaça", mas a
verdade é que estou à beira de um surto. Talvez esse lance de
hormônios de gravidez sejam mesmo reais, porque estou oscilando
como se estivesse andando em uma corda bamba.

Ok, vamos lá! Vamos pensar de uma forma mais positiva e prática.
Já foi o tempo em que as mulheres seguiam a sequência de
estudar, noivar, casar, ter filhos. Estamos numa era mais moderna,
onde não precisamos seguir nenhuma sequência fodida para
sermos bem-sucedidas no futuro. Minha mãe é exemplo disso. Ela
foi mãe muito jovem e é uma mulher bem-sucedida, assim como sei
que serei. É isso. Pensando dessa forma, não há nada a temer;
principalmente pela base familiar que possuo, onde sei que tudo que
mais terei é apoio.

Não, não estou romantizando uma gestação precoce,


principalmente por saber que a minha realidade difere da maioria
das jovens. Eu não sou louca de levantar essa bandeira, sobretudo
porque a realidade está longe de ser fácil. Nem todas possuem
suporte, possuem uma base familiar sólida e condições financeiras
que lhes garantirá uma vida plena e tranquila, tampouco possuem
pais excelentes e amorosos que apoiam todos os acontecimentos e
escolhas – ou quase todas. Tudo o que falei acima trata-se apenas
de mim, de mais ninguém. E são esses pensamentos que estou
tentando cultivar a cada vez que o surto vem. Quero pensar de
forma positiva, principalmente por carregar a certeza de que esse
bebê é fruto de um amor de tirar o fôlego. Poucas pessoas nesse
mundo possuem uma história de amor tão pura e verdadeira como a
minha e de Henrico. Isso é o que move os bons pensamentos
dentro de mim, mesmo eu sabendo que há um longo caminho pela
frente e que, desde a notícia, nada tem sido fácil ou romântico como
um dia sonhei.

Por outro lado... é chocante me dar conta de que meu medo agora é
todo pela aceitação dele. Acho que nem mesmo estou com medo do
surto do meu pai – que é certo, mesmo ele tendo teto de vidro. Claro
que é. Estamos falando de Victor Albuquerque, o drama King, filho
do avô mais dramático do universo. Só que estou cansada de temer.
Temer não combina com a garota que sempre se jogou nas
situações. Já temi durante muitos anos revelar os meus sentimentos
e, agora que descobri o quão libertador expor os sentimentos pode
ser, não consigo me ver regredindo ao medo.

Minha cabeça chega a doer diante de tantos pensamentos


conflitantes, mesmo assim me forço a seguir dançando com
Hadassa e inventando desculpas para negar todas as bebidas que
ela me oferece. Eu sou muito jovem, deveria estar o mínimo sentida
por não poder beber, mas não é assim que me sinto. Acho que
estou enxergando em mim uma maturidade que eu nem sabia
possuir, pois estou bem e determinada a fazer o melhor pela minha
saúde e pela saúde do bebê neste momento. Estou bem tendo que
ser uma mocinha comportada.

Sinto uma leve nostalgia por Eva. Ela costumava ser louca por
essas festinhas de igreja e agora consigo entender o motivo. Tem
todos os tipos de barracas de comida, bebidas, tem música,
artesanato, enfim de tudo um pouco.

Tem também muitos homens e alguns deles abusados o bastante.


Ou seja, alguns machos não perdoam nem as festas de igreja, onde
em teoria deveria haver um pouco mais de respeito. Ou não?

É. Não posso afirmar nada sobre esse universo de paquera e


pegação ao qual não estou acostumada – mesmo que já tenha sido
paquerada muitas vezes. Por não ter experiências, tudo que sei é o
que via minhas amigas vivenciando, mas foda-se! O que tem minha
atenção agora é Henrico, que, ao ver um homem se aproximar de
mim, parece desconfortável o bastante. Talvez eu tenha um pouco
de sadismo na veia por gostar de ver o desconforto nele. Não vou
mentir, perceber que ele está com ciúme e levemente
desconfortável é como receber uma pequena dose intravenosa de
adrenalina. Eu consigo até mesmo me sentir como a boa e velha
Sophie Albuquerque. Aquela garota desafiadora e destemida, que
só temia Henrico Davi e agora não teme mais. Eu já beijei quase
cada pedacinho daquele homem, agora nada mais me impede de
ousar.

Rindo internamente na cara do perigo, desvio o meu olhar do dele e


volto minha atenção ao homem que está ao meu lado.

— Ou, cê é linda demais, vei! Que isso! Tá doido! — Não tenho


nenhum preconceito com a forma como as pessoas falam ou com
sotaques, mas ... de repente, ao ouvir as palavras, tudo o que quero
é correr. A expressão "vei" é a principal responsável. Por que a vida
resolveu atolar um membro em mim? — Cê é daqui mesmo?

— Oi. Sim, sou daqui. Me mudei recentemente, obrigada. — Nem


mesmo sei dizer por que o agradeci, mas sorrio, para que Henrico
pense que estou confortável. Eu preciso de alguma ação do meu
noivo, mesmo que isso pareça arriscado e tenha grandes chances
de dar merda. Preciso sentir que Henrico ainda está ligado em mim,
porque isso é tudo que não tenho sentido, mesmo que no início
tenha sido por minha culpa, por não conseguir enfrentar de frente a
novidade.

Ok, Sophie! Você está viajando muito longe agora.

Ao invés de focar na aceitação do meu noivo, estou pensando em


fazer ciúme para talvez acontecer uma ação em casa. Isso é
estupido, infantil, medíocre; principalmente quando sei das
limitações dele e entendo muito bem a complexidade de sua mente.
Estou confusa, perdida mesmo. Não sei se cabe alguma ação entre
nós neste momento, não sei se devemos nos abster de sexo e todas
as demais coisas fantásticas da relação até conseguirmos assimilar
que teremos um bebê, não sei de porra alguma. Por um lado acho
injusto adiar tudo o que quero... por outro, quando penso em todas
as crises que Henrico já enfrentou, acho que é necessário dar
tempo ao tempo, visto que a maneira de ele absorver os
acontecimentos é diferente da minha.

O cara segue falando comigo e eu sigo sorrindo levemente, mas


juro por Deus que pareço em outro universo e não estou dando a
mínima para o que ele está falando. Eu odeio essa coisa de mente
turbulenta. Odeio quando minha mente enche de inúmeros
pensamentos de uma só vez e me deixa nesse estado completo de
confusão. Não consigo alinhar meus pensamentos, tampouco
minhas vontades, mas, de repente, sou trazida de volta à terra por
um Henrico que parece enfrentando muito mais do que gostaria.

Ele não olha na cara do sujeito ao meu lado simplesmente porque


tem dificuldade em fazer contato visual com pessoas
desconhecidas, mas, em compensação, ele olha para mim e esse
olhar é o suficiente para fazer meu sorriso morrer.

— Sophie, eu não gosto da sua proximidade com outro homem —


diz com toda a sinceridade que possui, sem se importar com o rapaz
ouvindo. Henrico sendo Henrico. — Eu gostaria que viesse comigo.

— Ihhh, alá! — o cara diz, rindo, e eu ignoro, assim como Henrico.


No fundo, sei que ele está o ignorando por não conseguir encará-lo.

— Ir com você para...? — questiono atenta em tudo.

— Para onde estou com Samuel.

— Eu realmente estou gostando de dançar. Se fosse para outro


lugar eu até iria. — Dou um sorriso nada inocente e o vejo franzir a
testa, tentando registrar e compreender as minhas palavras. Por
uma fração de segundo eu me sinto culpada por vê-lo se esforçando
para compreender minhas palavras que foram tudo, menos diretas
como ele gosta, está acostumado e espera de mim. Henrico odeia
as entrelinhas e eu, em algumas situações, me perco nelas.

— Sophie, você pode ser mais direta? — Ele pede.

— Vocês são alguma coisa? — o cara pergunta, e eu me


surpreendo com a coragem. Vejo o rosto de Henrico ganhar um tom
de vermelho. Olho para as mãos deles e as vejo fechadas em
punhos. Quase sou capaz de sentir o cheirinho de testosterona no
ar. Sinto-me culpada, mas não posso negar que essa experiência de
testar Henrico está sendo interessante, mesmo que errada. Saber
que estou errada e assumir isso, neste caso, não me torna menos
pecadora. Mas eu também confesso que às vezes cometer um
pecado é algo bom. Há uma magia em pecar, uma espécie de
adrenalina diferente que eu estava precisando sentir. Eu me sinto
tão louca que gostaria que Henrico descarregasse esse ódio que
está sentindo em mim, de preferência em nossa cama ou qualquer
merda de lugar. É um inferno viver sob o mesmo teto que ele e não
poder usufruir dos seus dotes incríveis para o sexo, não que eu
tenha tido tempo de pensar muito em sexo, mas...

Olhe para esse homem! Meu Deus! Eu lamberia até os poros dele e
o deixaria fazer qualquer merda de coisa que quiser comigo nesse
segundo. Nem mesmo vou atribuir esse desejo louco aos hormônios
da gravidez. Esse desejo existe desde que meu corpo despertou
para o prazer e para a necessidade, não há nada novo aqui... eu só
o quero, como uma necessidade que precisa ser suprida de
qualquer maneira ou simplesmente vou enlouquecer.

— Deveríamos ir para casa continuar essa conversa — sugiro para


o meu futuro marido e volto meu olhar para o cara ao lado. — Nós
somos noivos, moramos juntos, sem chance para você. Eu sinto
muito. Ou não. Eu não sinto muito. — Agindo como uma louca e
sem fazer sentido algum para Henrico, Samuel e Hadassa, eu
simplesmente pego o meu menino mais bonito do mundo pela mão
e saio o puxando rumo a casa.
— Sophie, eu não estou conseguindo entender você ou suas ações.
Poderia parar e me explicar? — Ele pede com a voz repleta de
frustração e eu me pego suspirando forte, parecendo uma perfeita
garota mimada que decidiu fazer pirraça. Não o respondo até
entrarmos em casa e eu fechar a porta atrás de nós.
— Por que viemos para casa? Eu pensei que quisesse se divertir.
Eu sei que estou soando confuso, que fiquei muito surpreso e reagi
mal com a notícia da gravidez, mas em algum momento eu
conseguirei absorver isso e lidarei bem, ou ao menos me esforçarei.
Eu só não estou entendendo mais nada. — Ele passa as mãos pela
cabeça, expressando através desse gesto toda a sua confusão
mental.
— É tudo novo para mim. Nunca pensei que em algum momento
nossa relação ficaria dessa maneira. Não importa o que eu tenha
que enfrentar, Sophie, você é a menina mais bonita do mundo e eu
te amo incondicionalmente. — As lágrimas caem dos meus olhos ao
vê-lo chorar. Isso muda tudo. Tudo. É um desabafo com um toque
sutil de um pedido de socorro. Ele parece em busca de uma luz.
— Sophie, se eu pudesse, eu voltaria no tempo e começaria tudo
novamente. Eu tentaria ser mais firme em minhas palavras e ações,
tentaria ser mais preparado para as surpresas da vida, teria mais
responsabilidade, eu tentaria ser mais homem e mais como vocês
que não possuem diferenças.

— Não diga isso. Mais homem? Por favor, Henrico. Você é muito
mais homem do que a maioria dos homens que eu já conheci, você
é fantástico de todas as maneiras e é por ser exatamente assim
como é que eu te amo incondicionalmente. Sinto o meu peito rasgar
todas as vezes em que diz algo inferior sobre si mesmo, quando se
compara com o que não deveria e até mesmo quando pensa tão
pouco de si. Você não tem ideia... Eu queria poder colocá-lo diante
de um espelho e fazê-lo enxergar tudo o que você é, e tudo o que
significa para mim, mas creio que isso jamais conseguirei fazê-lo
enxergar. No espelho você só veria um rosto lindo e um corpo de
tirar o fôlego. Eu gostaria que você olhasse para dentro de si
mesmo e conseguisse enxergar tudo o que eu consigo. Achei que já
tivéssemos superado essa fase de você se achar insuficiente e
incapaz, Henrico. Meses já se passaram e construímos uma relação
tão linda, onde um está em constante aprendizado com o outro.
Você já me ensinou tanto, me fez crescer tanto. Talvez seja ridículo
uma mulher dizer isso nos dias de hoje, quando não precisamos de
ninguém para nos autoafirmar e tudo mais, mas, ainda assim, vou
dizer o que sinto; você me fez mulher. Você expulsou para longe
uma jovem garota sonhadora e me transformou nos mais diversos
sentidos. Chegou onde ninguém jamais foi capaz de conseguir
chegar. Então, por favor, pare com essas palavras que me
machucam e enxergue de uma vez o seu potencial. Eu proponho
começarmos novamente, mas, dessa vez, de igual para igual. Sei
que a paternidade te assusta absurdamente e que não se sente
preparado, mas eu vejo além dos seus medos e eu posso garantir
que essa criança será a mais amada e mais protegida do mundo por
tê-lo como pai — digo, colocando as mãos em minha barriga. O
olhar de Henrico desce e o vejo observar a cena. Quanto mais ele
encara minha barriga, mais lágrimas escorrem dos seus olhos e
mais meu coração se parte por vê-lo tão vulnerável.

— Sophie, eu... eu quero esse bebê, eu só... eu só não sei se


poderei protegê-lo da mesma forma que os meus pais fizeram por
mim. Eu não sei se posso encarar as pessoas e lutar para defendê-
lo. Eu não sei. Mas eu ... eu quero tentar, mesmo que não saiba
nem mesmo por onde começar. Não tem uma fórmula ou um passo
a passo a ser seguido, isso foge do meu controle, foge da minha
zona de conforto e me amedronta, me faz sentir incapaz.

— Você vai vencer isso. Olhe para trás e veja o quanto já venceu,
Henrico. Na verdade, você já venceu e nem mesmo percebeu. Você
já o ama, você o quer tanto quanto eu quero. É novo para mim
também, e nós vamos aprender tudo juntos, vamos passar por cada
fase juntos.

— Nós podemos recomeçar? — Pede limpando o rosto.

— Nós podemos e devemos. — Quebro a distância entre nós, levo


minhas mãos em seu rosto, como faço desde que me entendo por
gente e sinto sua respiração ficar mais pesada com o contato.
— Você é o menino mais bonito do mundo. Eu amo você demais.
Esperei a vida inteira por você, bebecito. Eu preciso de você, eu
respiro você, desejo você. — Deixo seu rosto e beijo delicadamente
seu pescoço, fazendo-o soltar um som que faz meu coração
acelerar. — Por favor... — Ele me afasta levemente e logo seus
lábios estão nos meus, para o alívio do meu coração e felicidade
geral do meu corpo.

Eu acredito nele e, se eu acredito nele, sei que podemos vencer


tudo!
“Eu só quero que você saiba quem sou”

Dizem que tudo o que é bom dura pouco, não é mesmo? Assim está
acontecendo com o beijo de Henrico. Na mesma velocidade que me
beijou, ele se afasta. Levemente aturdido, como se tivesse acabado
de cometer um crime. Fico o encarando, mas minha mente só
consegue pensar em uma única coisa: Sexo.

Esse negócio de sexo é algo muito louco. Você é capaz de viver


sem sexo quando nunca experimentou. Pode até sentir curiosidade
ou um foguinho nas partes, mas sobrevive de boa, como se fosse
quase que indiferente. Experimentar esse prazer pode ser tanto uma
bênção quanto uma tormenta. Faz um tempo desde que eu e
Henrico ficamos devidamente confortáveis. Sei que há milhares de
pensamentos embolados em sua mente, sei da dificuldade de
processar tudo, da necessidade de isolamento completo para
acalmar a mente e de todas as coisas que Henrico precisa, cresci
convivendo com suas necessidades e sempre foi muito tranquilo
entender e respeitar isso. Sempre, mas não hoje.

Hoje eu não gostaria de respeitar nada. De verdade. E não tem


absolutamente nada a ver com os hormônios da gravidez. É o
mesmo desejo que sempre senti, intensificado pela falta. Eu ouvia
muito minhas amigas falarem sobre a "falta de sexo", mas
desconhecia que isso poderia até mesmo causar dor e abalar uma
pessoa. Eu sinto dor pela necessidade de ter Henrico, sinto vontade
de chorar, vontade de fazer pirraça como uma criancinha que não
consegue o que quer. Parte de mim quer aloprar, tacar o foda-se e
buscar o que tanto necessito. A outra parte é totalmente sensata,
sabe que não pode e não deve fazer uma pressão nele neste
momento.

Eu fico com a parte sensata, mesmo que algumas lágrimas estejam


escorrendo em meus olhos. Quão absurdo é isso tudo? Eu não sei
explicar. Tudo o que sei é que é amor. É amor demais. Eu o amo
tanto e anseio tanto por ele. É tão louco e insano. Porém, o amor é
isso; é saber respeitar, entender, ter paciência e esperança. Esperei
a vida toda por ele, então posso esperar mais alguns dias, posso
aguardar até que sua mente tenha se acalmado. Neste momento,
mais importante que o sexo é a aceitação da paternidade, é ele
entender que é só mais um desafio que irá vencer como já venceu
centenas.

Suspiro, tentando espantar essa confusão insana de dentro de mim


e tentando acalmar meu corpo. Que saudade de quando eu era
apenas uma garotinha e não sentia tais necessidades, era tudo tão
mais leve e mais fácil.

— Me desculpe, Sophie — pede com o semblante altamente triste.


— Está tudo bastante complicado em mim.

— Sei que quer lidar com isso sozinho, mas acho que seria tão bom
você desabafar com alguém que não seja eu. Sei que pondera as
palavras comigo. Já pensou em conversar com Samuel? Ele é seu
grande confidente. Algo me diz que isso seria muito bom para você,
Henrico. Está visível que há centenas de dúvidas dançando em sua
mente. Não acho saudável guardar tudo para si e se forçar a lidar
com algo tão complexo sozinho.
— Eu queria agir como um garoto normal — confessa, deixando
meu coração em frangalhos.

— Sabe, isso não tem absolutamente nenhuma ligação com


normalidade, Henrico. Eu estava com o mesmo pensamento que
você, achando que guardar isso apenas para mim seria uma prova
de maturidade. Não é. Estamos errados, eu e você. Desabafar não
quer dizer que você não é normal ou que eu não sou madura.
Desabar requer coragem. É preciso muita coragem para abrirmos
nossos problemas para outras pessoas. Falar com Samuel não vai
simbolizar que você é diferente, incapaz. Simboliza que precisa de
um ombro amigo, como ele foi a vida toda, para você e para mim —
explico para nós dois, tentando infiltrar essas palavras em minha
própria mente.
— Não quero falar ainda, mas sei que você precisa disso. Então,
pelo seu bem, pelo nosso bem, vá até o seu irmão, o seu melhor
amigo. Existem respostas que não são encontradas em pesquisas,
em sites... existem respostas que só conseguimos obter
conversando, tendo pontos de vistas diferentes, tendo alguém para
ampliar a nossa visão. Estamos uma bagunça. Há vários fatores nos
bagunçando agora. Não pense que é apenas você quem está
perdido, nem mesmo pense que está perdido por ser atípico. Somos
muito jovens, estamos juntos de fato há pouquíssimo tempo, temos
a mesma família, tudo isso abala muito. Apenas vá, Henrico. Saia
por aquela porta e vá conversar com o seu melhor amigo.

— Você também é a minha melhor amiga, Sophie.

— E você é o meu, mas somos mais que isso e agora precisamos


do nosso outro melhor amigo. Eu estarei te esperando acordada.
Apenas vá e volte para mim. — Seguro seu rosto entre as minhas
mãos e passo meu nariz no dele. — Você é o menino mais bonito do
mundo!

— Eu te amo demais, Sophie.

— Eu sei. Ao infinito e além, para sempre!


Ao infinito e além, para sempre!
Decido ir para o sítio. De lá, envio uma mensagem para Samuel.
Como bom amigo e irmão, ele logo chega, sozinho como pedi.

— Aooooo! Você e Sophie estão bem? Brigaram? — pergunta.

— Desculpa ter te chamado. Você e Hadassa estavam se divertindo.

— Eu e ela nos divertimos todos os dias, irmão. Estou aqui por


você. Estarei sempre que precisar.

— Há uma bebida? — Ele me encara de um jeito estranho. Não


justifico o pedido, por isso ele apenas acena com a cabeça, vai até à
cozinha e enche dois copos com uísque.

Não gosto do sabor, mas o simples fato de queimar minha garganta


parece aliviar.

— Vai me contar o que houve? — pede, quando nos acomodamos


no sofá.

— Eu não queria te contar. Não queria contar a ninguém. Sinto a


necessidade de enfrentar o acontecimento sozinho, porém, Sophie
me convenceu de que falar com você seria o melhor para mim, o
melhor para nós.

— Você sabe que pode me dizer qualquer coisa. Seja o que for,
estará guardado comigo.

— Sophie está grávida. — Ele arregala os olhos e abre a boca.


Talvez isso seja um sinal bastante ruim. Não é o tipo de reação que
eu esperava, mas parece dentro da normalidade. Essa notícia é um
pouco chocante e Samuel parece em completo estado de choque
agora.

— Caraiiii! — Reage bebendo todo o líquido do copo. Acompanho-o


e logo ele enche nossos copos mais uma vez. — Puta merda! Me
desculpe, mas eu esperava qualquer coisa, menos isso. Quer
dizer... acontece..., mas... porra...

— Não está ajudando. Sophie disse que talvez eu conseguiria


respostas para algumas das minhas dúvidas conversando com
você.

— Calma, cara. Me desculpe, ok? — Ele suspira. — Ok, vamos lá!


É normal. Tia Melinda engravidou praticamente com a mesma idade
da Sophie, então isso não será um problema. Tio Victor não será
hipócrita de brigar.

— Eu prometi a ele que cuidaria dela. Sophie estava cheia de


planos de estudo, o tio Victor estava animado. Eu prometi que
cuidaria dela e a engravidei. E sabe o que é pior? Eu tenho um certo
pavor em relação a me tornar pai. Não me considero forte o
suficiente ou apto para defender um filho quando necessário, por
exemplo. Se for autista? Os meus pais me defenderam a vida toda,
brigaram por mim, lutaram. Eu não consigo olhar nos olhos das
pessoas, eu não gosto de dialogar com quem não tenho o mínimo
de intimidade. Sempre tive dificuldade de conversar com o tio Victor,
que convive comigo desde a infância. Imagine as demais pessoas?
Como poderei dar suporte a Sophie? E se ela passar mal e eu
precisar levá-la a um hospital? Como farei isso? Como lidarei com
as pessoas?

— Uow! Calma aí! Você está conduzindo isso com uma perspectiva
muito ruim. Está focando apenas no Henrico do passado e
esquecendo todas as evoluções que teve nos últimos meses. —
Bebo todo o uísque, precisando de qualquer coisa em que eu possa
me apegar. — Você se julgava incapaz de fazer dezenas de coisas
que fez nos últimos meses, Henrico. Você sempre acredita que não
será capaz, e sempre descobre que é muito mais capaz do que
acredita ser. Sophie te mostra todos os dias que você é muito além
do que julga ser, todos te mostram. É óbvio que tem as suas
limitações, é atípico, mas isso não te anula a ser pai, cara.

— Eu tenho medo de não poder defender a minha família.

— Não é porque viveu coisas ruins na infância, que seu filho e sua
mulher viverão. Você não é o Pablo, Henrico. Na verdade, você é
mais Lucca que tudo. — Ele sorri e eu me pego sorrindo também.
— Nosso pai é o exemplo de pai que deve seguir, eu sei que se
orgulha dele, que se sente honrado por tê-lo, que se inspira nele.
Não teria como ser diferente, eu faço o mesmo. Você não precisa
encarar as pessoas, Henrico, mas se um dia precisar, sei que fará
isso. Você é coração, é movido pelo amor. Você enfrentou a si
mesmo por Sophie, imagina o que não fará por um filho que é fruto
do amor dos dois? Não será fácil, nunca é, mesmo para quem não é
autista, Henrico. Mas sinceramente? Sei que você desempenhará
esse papel melhor que a maioria dos homens. Você gosta de
desafios, mesmo tentando fugir deles na maioria das vezes. Você
possui uma determinação invejável, mesmo que só mostre isso em
casos extremos. Há muito aí dentro de você, Henrico. Talvez você
seja muito mais capacitado que eu, que Bruno, que Thiago, até mais
que Théo. Quando você infiltra na mente que quer, não há ninguém
que possa detê-lo, nem mesmo seus medos, suas limitações. Você
só precisa dizer e assumir para si mesmo o que deseja e então
estará feito, mesmo que obstáculos e desafios apareçam em seu
caminho. Se você fez por Sophie, fará pelo seu filho ou filha, que
será meu afilhado ou afilhada.

— Será. Se Sophie estiver de acordo. — Sorrio.

— Ela estará.

— Eu e ela... nós não... eu tenho medo de machucá-la.


— Está falando sobre sexo? — pergunta, rindo. — É sério isso?
Você e Sophie estão sem... fazer o coito?

— Isso é ridículo, você sabe. Não se deve falar dessa maneira.


Mas, enfim nós não estamos tendo vida sexual. Eu gostaria, mas
tenho medo. Há um bebê dentro dela.

— Cara, se gestação impedisse sexo ninguém iria querer ter filhos.


Mas se está com dúvidas, acho que deveria pesquisar os limites,
apenas isso. Nunca estive com uma grávida, mas se Hadassa
arregaça estivesse grávida, eu ia mandar ver... Na verdade, ela
provavelmente me estupraria, como tem feito quase diariamente —
brinca. — É sério, Henrico, apenas pare com toda essa pressão
psicológica. Você ainda tem alguns meses para se preparar, apenas
fique calmo e confie no seu potencial. Aliás, obrigado por confiar em
mim. Estarei aqui para o que quer que seja. Enfrentaremos isso
juntos. E se posso dar um conselho, não conte a ninguém ainda.
Precisam passar segurança quando forem dar essa notícia,
precisam mostrar que são capazes, e sei que nem mesmo Sophie
está preparada para fazer isso agora.

— Obrigado por isso. Foi realmente muito bom desabafar com


você, estou me sentindo muito mais calmo agora, mesmo com
medo, dúvidas e receios. Agora eu preciso ir. Preciso pesquisar.
Sophie precisa de mim.

— E você precisa dela, cara. — Fico de pé e quando estou prestes


a sair, Samuel me puxa para um abraço forte e incômodo. Não
protesto. Tê-lo como amigo e irmão é uma das melhores coisas que
possuo. — Parabéns, irmão! Estou além de feliz por vocês, mal sou
capaz de explicar. Tudo dará certo, tudo ficará bem. Você é capaz!

— Obrigado! Por tudo!


Eu preciso ficar confortável com Sophie e para isso preciso
pesquisar!
“Mina, você tem uma bunda bem grande, eh

Grande demais

E eu fico estudando ela toda, já até me graduei

E tatuei ela na minha cara”

Pondero se também devo me abrir para alguém. Estou à beira de


um surto, por mais forte que eu esteja tentando mostrar que sou.
Dentro de mim está uma bagunça por inúmeros motivos. Há
Henrico, há meu pai, há a minha inexperiência de vida, há uma série
de fatores... eu juro que amaria voltar a ser a garota livre de
preocupações, mas a cada dia que passa, percebo que a vida real
está muito distante dos contos de fadas, muito distante da forma
como eu achei que seria. Há tantas coisas para lidar e eu não
estava esperando por toda essa bagagem. Dias atrás estava
vivendo meu conto de fadas, tendo o relacionamento perfeito, livre
de preocupações. Quando penso em toda a responsabilidade que
vem pela frente, fico apavorada.

Talvez eu esteja conduzindo as coisas para uma perspectiva onde


somente eu seja a responsável por tudo. E por mais difícil que seja
para Henrico lidar com determinadas situações, sei que ele estará
ao meu lado. É o processo de aceitação dele que está despertando
em mim uma negatividade que nunca tive. Desde criança sempre
acreditei e confiei no potencial dele, agora não pode ser diferente.
Preciso seguir mantendo a fé que tenho nele e preciso acalmar meu
coração.

Falar com Samuel deixa de ser uma opção quando penso no quão
confuso será para ele lidar com os dois. Eu penso em mil
possibilidades, mas decido falar com o menos provável: meu irmão.
Luiz Miguel é parte de mim, é o meu irmão mais velho e talvez vá
agir como meu pai agora, mas meu coração clama para que eu
confie na minha intuição. Pego meu telefone e ligo, ele atende no
segundo toque:

— Transmissão de pensamento, irmã — ele diz, e solta um suspiro.


— Aquela garota é infernal. Acho que não foi uma boa ideia ter
vindo para o Rio. Ela sempre está nos lugares mais improváveis,
provavelmente instalou algum GPS em mim, sem contar que cismou
que sou seu professor particular. A filha da mãe está dia sim, dia
não aqui em casa. Tia Dandara não percebe que a filha é diabólica,
me pede ajuda de uma maneira que não posso negar. Como negar
algo a tia Dandara? A garota está com dificuldade em física, mas
em química ela está de parabéns...estou quase estudando biologia
com ela, mas se parar para analisar, a matemática não fecha —
desabafa.

— Estou grávida.

— O quê? — Ele praticamente grita, e quase afasto o celular da


minha orelha.

— Desculpa. Sei que precisa desabafar com alguém e que só eu


sou capaz de lidar com isso... mas estou grávida.

— Puta merda, Sophie! Estou um pouco perdido agora.


— Eu também. Preciso do meu irmão — confesso, deixando o choro
escapar. Um choro que parece vir do fundo da minha alma,
queimando meu peito e rasgando meu coração. Um choro de medo,
desespero, mas, também, de felicidade por estar gerando uma vida,
fruto de um amor tão puro. Oscilo entre felicidade e desespero o
tempo inteiro.

— Não chore, Sophie. É só um bebê, por mais assustador que


pareça. Respire fundo, nós vamos lidar com isso, apenas se acalme
— diz, quase tranquilizando-me.

— Eu sei que vamos, mas... é tão confuso e complexo. Henrico não


estava preparado para algo assim, eu tampouco... Descobri no
casamento...

— É por isso que tudo foi adiado?

— Ele sempre disse que não queria filhos. Então ele mudou de ideia
em relação ao futuro, disse que trabalharia isso em sua mente para
no futuro planejarmos filhos. Tudo no tempo dele, obviamente. Eu
também não queria filho agora, nem preciso dizer isso. Sou muito
jovem, preciso estudar, meu plano era viver o relacionamento dando
um passo por vez. Lá em Santorini tudo parecia perfeito, até eu me
exceder na bebida...

— Eu sei.

— Quando estava no hospital o médico me informou sobre a


gravidez. — Choro. — Eu não poderia me casar com Henrico
ocultando a gravidez, e não podia simplesmente jogar a notícia no
ventilador, para todos. Foi um dos maiores baques da minha vida,
irmão, como eu poderia enfrentar algo desse porte com positividade
ou coragem em demasia? Eu sabia que ele demoraria a digerir a
notícia, não podia simplesmente ocultar isso dele e me casar, sendo
egoísta pensando só na realização do meu sonho.
— Você fez certo, princesa. Muito certo. Você foi altruísta. E
Henrico já sabe?

— Sim. Tem sido muito difícil. Ocultei por alguns dias, mas estava
me consumindo e precisei contar a ele. Como esperado, ele reagiu
mal, teve uma crise, mas, felizmente, agora ele está melhor,
tentando lidar com isso da maneira dele. É incrível ver o quanto ele
está se esforçando, lutando com os seus demônios internos e com
todas as demais coisas em sua mente. Mas estamos um pouco
afastados ainda — confesso. — Está me matando... assim como
estou morrendo um pouco a cada dia ao pensar no papai...

— Não vamos criar um drama em torno disso, Sophie. Sei que o


drama faz parte da família, mas tente pensar e agir diferente. Papai
pode vir a ficar sentido por ter feito centenas de planos para você,
mas ele não é hipócrita, Soso, e, além disso, ele te ama acima de
todas as coisas. Será o seu porto seguro como sempre foi. Você
sabe disso, Sophie, só está com medo que ele receba a notícia
como uma decepção, e isso não vai acontecer. Nossa mãe
engravidou de mim muito jovem também e veja como tudo deu
certo? Somos uma família linda, nada na vida dela mudou, só
precisou adiar alguns planos por um tempo. Assim será com você.
Não é o fim da sua vida, dos seus estudos, é apenas uma pausa. E
não preciso dizer que temos uma condição financeira excelente e
que não precisará se preocupar com nada disso. Você é
privilegiada, Sophie. Milhares de outras jovens não possuem os
privilégios que você possui. Não tem o que temer, apenas aceite a
novidade e siga confiando em Henrico. Ele não vai decepcioná-la, e
você sabe disso, não deixe o medo te guiar agora. Você sempre foi
corajosa o bastante.

— Obrigada, irmãozinho! Eu estava certa em seguir meu coração e


ligar para você. Agora me sinto mais calma e mais preparada para
encarar a situação.

— Quando contará aos nossos pais?


— Não contarei ainda. Darei um tempo para que Henrico consiga
digerir e lidar melhor com a novidade, só então contaremos a todos.
Pode guardar meu grande segredo?

— É claro, Sophie! E só para constar, eu amo meu sobrinho ou


minha sobrinha só pelo simples fato de saber que ele ou ela já
existe. Eu te amo, Sophie! Obrigado por confiar em mim. — Volto a
chorar até ele começar a me xingar. Respiro fundo e me despeço,
percebendo que a cada vez que divido isso com alguém me sinto
um pouco mais leve.

Lavo meu rosto e decido ir para cozinha me distrair até Henrico


voltar...

Quando chego em casa, encontro Sophia na cozinha, em meio a


uma bagunça. Ela está lavando louça, e isso seria uma atividade
normal se ela não estivesse vestindo apenas uma lingerie, usando
fones de ouvido, dançando sensualmente e cantando uma música
latina. Meu propósito era seguir direto para o escritório e fazer
milhares de pesquisas, mas, ao contrário disso, estou hipnotizado
observando a maneira como seu corpo se move. Ela parece tão
bem, tão livre e segura consigo mesma. É impossível não sentir um
pouco de culpa por dificultar tudo em nossa relação, mas não é
como se eu pudesse controlar. Na verdade, desde que decidimos
nos relacionar, tenho lutado de maneira constante com a minha
mente e isso é exaustivo.

Fora o fato de que tio Victor irá me matar...

Não estou fazendo sentido agora, mas nunca fiz, então está tudo
bem. Sophia tem uma bunda hipnotizante e é impossível não ter
meus pensamentos bagunçados enquanto a observo. Talvez, dizer
que ela não parece grávida soe de forma ruim, da mesma maneira
quando dizem que eu não tenho "cara de autista". Ou talvez...

Eu gostaria de atingir todas as bases com ela agora. Na verdade,


gostaria que a vida fosse como um computador, que podemos
reiniciar quantas vezes forem necessárias. Há alguns momentos
isolados em que penso que a intensidade tem sido nossa inimiga e
há alguns outros momentos em que penso que ela é a nossa grande
aliada. A intensidade com que eu e Sophie vivemos tem nos feito
atropelar tudo e foi ela, com acréscimo da falta de cuidado, que nos
trouxe a uma gravidez não planejada. Penso que ainda
descobriremos se tudo isso foi bom ou ruim. Enquanto isso, só nos
resta mergulhar profundamente nos resultados das nossas ações
intensas.

Torna-se difícil manter o controle quando ela leva os polegares nas


laterais da calcinha e ameaça abaixar a peça. Engulo em seco,
enquanto tento lutar contra as reações do meu corpo. Após muitos
dias de abstinência sexual, pareço estar no limite do suportável. Eu
poderia dizer que há pesquisas que explicam isso, mas elas
parecem tolas diante da maneira como me sinto. Consegui me
manter desligado de sexo por um longo período da minha vida, mas
agora que experimentei, não serei hipócrita em ocultar o fato de que
parece impossível viver sem, por mais que eu tente não basear o
relacionamento nisso.

Quanto mais Sophie rebola, mais meu corpo reage e mais a minha
mente se distrai dos propósitos. Eu iria fazer pesquisas e agora só
consigo pensar em descobrir sozinho, na prática, todas as respostas
para as minhas dúvidas. Estou ponderando me aproximar e dizer o
quanto quero comê-la, quando ela se vira e me encontra.

— Bebecito.

— Sophie.
— Como foi? Se sente melhor após se abrir um pouco com Samuel?
— pergunta, enquanto meus olhos descem aos mamilos que estão
marcados no tecido do sutiã.

— Você é gostosa! E sim, eu me sinto melhor, mas ainda há muito


para lidar. Por que está de calcinha e sutiã?

— Estava pensando em algo... — ela diz, dando um sorriso que


conheço bem. — Você disse que queria recomeçar, então me
lembrei das bases...que tal relembrar o início de tudo, Henrico Davi?

— Você acha que consegue voltar à lentidão? Acha que consegue


ter a calma que tínhamos antes de descobrirmos o sexo?

— Eu não sei. Talvez seja algo a ser desafiado. O que acha? Apesar
de que, acho que não fomos tão calmos assim — acrescenta.

— Depende do ponto de vista. Olhando pelo meu ângulo, acho que


fomos calmos o bastante. Mas... você quer que seja um desafio?

— Acho que será no mínimo interessante...

— Tudo bem. Sendo assim, vou tomar um banho frio antes de


começarmos — aviso, deixando-a. Pelo suspiro que deu, já sei que
está devidamente frustrada. Eu duvido que ela consiga ir lento, mas
estou disposto a tentar, mesmo querendo tudo.
“Eu vejo você quando você está desanimada e deprimida, apenas
uma bagunça
Eu vejo você quando você chora, quando você é tímida, quando
você quer morrer
Eu vejo você quando você sorri, demora um pouco, pelo menos
você está aqui
Eu te vejo, sim, eu te vejo”

Uau! Pensar no início trouxe um pouco de nostalgia com um misto


de surpresa. Quantas coisas vivemos em um curto intervalo de
tempo!
Diante de toda a intensidade, é como se tivéssemos vivido 20 anos
em um único ano. Esperamos a vida inteira para nos encaixarmos
um ao outro, e então mergulhamos com profundidades recém-
descobertas. Eu jamais me imaginaria tão profunda, assim como
tenho certeza de que Henrico jamais se imaginaria assim.

Olhando por esse ponto de vista, a gravidez não parece tão


absurda, mas... Há tantos “mas”, tantas incertezas. Aliás, voltamos
às incertezas e eu não gosto muito disso.

Eu volto meus pensamentos às bases, na esperança de que minha


mente fuja de todos os pensamentos indesejados. Pensar em um
recomeço parece inútil ou apenas uma desculpa para adiarmos um
pouco mais nossa conexão sexual pós descoberta de gravidez.
Quando você atinge a última base, consequentemente se vê
voltando na primeira frequentemente. Ninguém começa um sexo
direto da quarta base... ou talvez, no auge do desejo, comece. Já
começamos algumas vezes. É só que, neste momento, encontro-me
perdida, necessitada, desesperada, louca de curiosidade para saber
se Henrico será capaz de me foder como fazia antes de toda essa
novidade. Se ele não conseguir, é provável que eu vá me sentir um
pouco mais perdida. Tão confuso!

Eu odeio me sentir como a garota de 16 anos perdida, mas parece


inevitável. Tenho que lidar com todas as incertezas e com a
frustração. Isso me irrita, como se eu fosse uma garotinha mimada
que quer que tudo saia exatamente do jeitinho que idealiza.

Cansada de toda essa merda mental, decido deixar de lado a


“menininha” e sigo para o banheiro, em busca do quero. Ficar
esperando pacientemente deixou de combinar comigo há alguns
meses.

Ao entrar, sinto como se estivesse vendo Henrico nu pela primeira


vez. O impacto é o mesmo, assim como o desejo. Nada,
absolutamente NADA mudou. Ele não nota minha presença, está de
costas, com as mãos apoiadas na parede, cabeça baixa, deixando
com que a água caia em rompantes por sua cabeça. Se eu tivesse o
dom da pintura, pintaria um quadro com essa imagem. Suas costas
largas, pernas musculosas e definidas sob medida, o traseiro
incrível... Pelo amor de Deus! É o pecado em toda glória e
intensidade bem diante dos meus olhos, um convite tentador e
irrecusável para a perdição completa.

Guindastes... eles nunca serão capazes de me tirar de cima desse


homem! O MEU homem!

Retiro o projeto de roupa que estou vestindo e mordo meu lábio


inferior, sofrendo em antecipação. Em passos lentos, bem
calculados e temerosos, me aproximo.

Antes que eu possa encostar nele, sua cabeça se ergue, como se


sentisse minha proximidade. O observo fechar as mãos, que
estavam espalmadas na parede, em punhos, parecendo lutar para
conter algo que eu não quero que contenha. Tudo que espero dele é
que liberte o lado destruidor que costumava dar as caras com muita
frequência, mas ele segue relutante, e é por esse motivo que eu
toco suas costas, sentindo sua pele se arrepiar com o toque
delicado das minhas mãos. Em busca de tudo, as deslizo
delicadamente até sua barriga, sentindo os gomos bem definidos...
Beijo suas costas e ele solta um rugido, parecendo um animal
selvagem. Um rugido que causa um efeito em minha intimidade e
faz meu ventre se contorcer; o som que tanto senti falta e que
anseio ouvir mais e mais.

Buscando mais sons como esse, deslizo uma mão até seu membro
rijo, ereto em toda glória, devidamente preparado. Lágrimas
escorrem pelos meus olhos diante de tanto desejo; um desejo mais
amplificado, mais intenso, que me faz doer pela necessidade de tê-
lo, algo que consegue ser maior do que qualquer coisa que eu já
tenha sentido. É então que a realidade me inunda, lembrando-me do
motivo por trás de toda essa confusão de desejo, choro,
desespero... a confusão de hormônios quase palpável está aqui,
relembrando-me que agora tudo será diferente. Para melhor ou
pior? Eu não tenho essa resposta, mas sei que, embora sinta medo,
dúvidas fazem parte da vida, do crescimento...

Henrico interrompe o meu momento quando retira minha mão.


Quase protesto, porém, ele acalma minha fúria ao me puxar para
debaixo da ducha. Em questão de segundos, tudo muda. Sua mão
direita desliza pelo meu pescoço e sinto minhas costas baterem
contra a parede. Mal tenho tempo de respirar, Henrico reivindica
minha boca em um beijo esfomeado, que cala todos os demônios
dentro de mim e espanta todas as dúvidas. Meu corpo inteiro
responde ao contato repentino, especialmente quando ele usa um
joelho para afastar minhas pernas fazendo com que eu sinta toda
sua rigidez grudada em mim.

— Que base é essa? — pergunto, ofegante e delirando de prazer,


assim que ele afasta nossos lábios. — Certamente não é a
primeira...

— Isso importa? — responde com um questionamento.

— Apenas não pare — peço, esfregando-me desavergonhadamente


contra ele. — Eu o quero dentro de mim, tão forte, tão intensamente,
tão louco como sempre fomos.

Ao ouvir minhas palavras, ele desliga a ducha e me pega em seus


braços. Sem se preocupar em nos secar, me conduz até a cama,
deitando-me no meio e pairando sobre meu corpo. Eu me abro para
ele o máximo que sou capaz, oferecendo-me, dando-me por
completo, implorando silenciosamente para que ele pegue. Me sinto
queimando diante do olhar intenso e abrasador que ele está me
dando, se torna latente quando ele afasta os olhos dos meus e
passa a olhar cada pedacinho do meu corpo nu. É quase
intimidante, porém, tomada de desejo, eu decido tornar as coisas
um pouco mais interessantes para ele.
Mantendo meus olhos fixados nele, sorvendo cada respiração que
ele dá, deslizo uma mão pela minha barriga e desço lentamente até
levá-la em minha boceta. No momento em que a toco, vejo o pomo
de adão de Henrico subir e descer quando ele engole em seco. Meu
coração atinge um novo nível de batimentos. Brinco com o piercing
em meu clitóris, o ponto fraco de Henrico... só então percebo que
isso foi muito errado.
Ele se levanta abruptamente, passa as mãos pelos cabelos e me
encara.

— Sophie, você tem um piercing no clitóris! — Diz o óbvio. Sua voz


está em um tom firme, mesmo ele parecendo estar um pouco
desesperado. Não sei se olho para ele ou para o pau
deliciosamente ereto.
— Eu pensei que já tínhamos superado isso.

— Eu nunca vou superar. Como será? Você está grávida e tem um


piercing no clitóris! — Pelo seu tom de voz, parece que possuir um
piercing no clitóris durante a gestação parece muito inadequado. A
verdade é que... porra... eu nem mesmo pensei nesse detalhe.

— Eu não faço ideia, Henrico Davi. Acha mesmo que tive tempo de
pensar em piercing? — Questiono, quase rindo. — Além disso,
talvez não tenha problema. O bebê não nascerá do meu clitóris.

— Eu sei que não, Sophia. Não seja bobinha!

— Sério?! Só esquece isso e vem aqui me foder, por favor?! Você


estragou o momento, Henrico. Parecia prestes a afundar a língua
em minha boceta e do nada cisma com meu piercing! — Esbravejo,
levantando-me rapidamente. É aí que tudo desanda. Minha visão
fica turva e vejo o quarto girar diante dos meus olhos. Henrico me
pega em seus braços antes que eu alcance o chão.

— Sophie! Você está bem? Fale comigo! — Não o respondo.


Apenas o abraço, escondendo minha cabeça em seu peitoral, e
aguardo até que a sensação ruim diminua.

Que loucura! Puta merda! Se antes já estava difícil foder com


Henrico, agora tenho certeza de que será pior. Se o conheço bem,
sei que ele se tornará um pé na minha bunda com excesso de
proteção e cuidado. Que grande fiasco!

— Sophie?

— Estou melhorando. Foi apenas uma tontura — explico, tentando


retomar o controle de mim mesma. — É normal. Dizem que é
normal. Vai ficar tudo bem.
Henrico me coloca na cama, se veste e vai até a cozinha buscar
água para mim. E assim termina o momento “foda violenta”.
“E se você sente em um momento ímpar
Eu quero ser aquele a quem você guia
Pois eu acredito que você poderia mostrar o caminho”

Meu humor nesta manhã está péssimo. Já levanto da cama


sentindo-me frustrada, especialmente porque Henrico está fora dela.
Caminho até o banheiro, faço xixi e escovo os dentes. Não fico feliz
ao me ver no espelho, pareço levemente abatida, na verdade, me
sinto péssima.

Vou em busca de um consolo em Henrico quando ouço vozes bem


conhecidas na sala. Eu juro por Deus, sinto uma tremenda vontade
de correr de volta para o quarto, me cobrir até a cabeça e pedir aos
céus para que tudo não passe de fruto da minha imaginação. Não
tive tempo para pensar em como direi aos meus pais que estou
grávida, nem mesmo treinei isso com Henrico... pior... Henrico tem
surtos de sinceridade e ...

Misericórdia!

Luiz Miguel surge e me encontra no corredor. Ele faz um sinal e eu


vou andando de costas, voltando para o quarto. Se foi esse traidor
quem os trouxe aqui, irei matá-lo!
— Que diabos está acontecendo? — pergunto ao entrar no quarto.
Ele fecha a porta atrás de si e me encara.

— Samuel fez merda, tia Dandara está aqui na cidade com o tio
Lucca. Meu pai foi intimado e então mamãe quis vir e tia Paula
acompanhou.

— Tinha que ser o Samuel!!!!!

— Kiara também veio...

— Oh! — Exclamo, sem saber o que de fato dizer. É muita doideira


para um inicio de manhã. Definitivamente eu não estava preparada
para esse evento.

— Henrico ... ele ... não sei explicar. Ele está diferente, até mesmo
conversando mais abertamente e muito sério. Sério demais. Nem
mesmo ri das merdas que estão falando lá. Precisava te alertar.

— Sinceramente? Acho que tudo será mais fácil quando todos


ficarem sabendo. Parece que quanto mais oculto, pior é, mais presa
me sinto. Não posso esconder por muito tempo. Em breve estará
bastante óbvio — suspiro. — Ao mesmo tempo, não sei como dizer
a eles. Eu preciso ir até lá, beber algo e ficar ao lado de Henrico. É
isso!
Parece fácil falar, mas, assim que chego na sala, parece que toda
minha coragem foge. Meus pais são os primeiros a se levantarem
para me abraçar, seguidos da tia Paula e Kiara. Tio Lucca e tia
Dandara devem estar em algum BO com Samuel.

Quando os cumprimentos cessam, Henrico me puxa pela mão e me


leva até a cozinha, onde encontro uma mesa de café da manhã
devidamente farta.

— Uau! — É o que digo.


— Você está bem? Precisa se alimentar direito. Eu acho que não
tem se alimentado bem, Sophie, e parece muito estressada sobre
todas as coisas, inclusive sobre sexo. Eu sei que está difícil, mas...

— O que está difícil? — Meu pai surge perguntando, depositando


um beijo em minha cabeça. — Você engordou um pouquinho e,
antes que me bata, não é uma critica, filha. Você está ainda mais
linda.

— Obrigada?! Papai. — Sorrio. — Está difícil acordar cedo e fico um


pouco estressada quando me dou conta disso. Preciso me
programar para acordar mais cedo — explico uma baboseira.

— Não se cobre tanto, princesinha da Disney. — Aconselha e volta


para a sala. Solto um suspiro e Henrico solta outro.

— Eu não sei mentir, Sophie. Na verdade, odeio mentir, odeio ter


que ocultar sentimentos, acontecimentos. É muito difícil ser seu
namorado.

— Eu concordo com você sobre essa dificuldade — digo, mordendo


um sanduíche. — Tudo se resolverá, bebecito. Vamos acabar com
todos os segredos em breve e então tudo ficará um pouco melhor.
Confie em mim. Eu te amo!

— Eu amo você, Sophie.

Sophie acaba de sair com tio Victor, Luiz Miguel, Kiara e tia Melinda.
Eu fico em casa com a minha mãe, que neste momento está me
olhando um tanto quanto estranha.
— Você sabe que temos uma ligação extremamente forte, não sabe,
filho? — Ela questiona.

— Claro, você é minha mãe.

— Sim. Sua e da sua irmã, mas, sempre tive mais em torno de você,
por todos os motivos que não preciso dizer. Isso significa que o
conheço melhor do que conheço a mim mesma, o bastante para
saber que há algo te atormentando. Talvez você não queira dividir
esse problema com Sophie ou com qualquer outra pessoa por sentir
a necessidade de ...

— Sophie está grávida — confesso e solto um primeiro suspiro de


alívio. Minha mãe parece em choque, boquiaberta. Na verdade, ela
parece ter parado de respirar. — Nós fazemos muito sexo. E aí...
aconteceu isso. Sexo faz filhos. É sobre isso. Porém, não há
trabalhos científicos ou maneiras de pesquisar sobre a paternidade
de um autista. Ao menos eu não encontrei. Isso é muito confuso. Há
pesquisas sobre sexo, mas não há sobre as consequências.

— Respire.

— Estou respirando, mas a senhora parece que não. Eu não sei o


que fazer, não sei como será isso. Eu mal consigo olhar nos olhos
de conhecidos, como poderei enfrentar o mundo pelo meu filho ou
filha?

— Oh! Merda! Perdão!

— Eu gostaria de dizer com segurança que posso fazer isso, mas


não sei se posso, porém, terei que fazer. Parece insano. —
Confesso. — E preciso contar para tio Victor, provavelmente ele vai
me matar ou ficará com muita raiva. Sophie é jovem...

— Você também é jovem.


— Eu sei, mas há essa coisa dele tratá-la como uma princesinha e
...

— Você contou isso para alguém? Há quanto tempo sabe? Quando


ocorreu? — Minha mãe indaga.

— Contei para Samuel apenas. Sophie descobriu no dia do nosso


casamento.

— Por isso vocês desistiram...

— Ela estava doente e eu não fazia ideia de que era uma gravidez.
Ela não quis casar escondendo essa notícia de mim e não sabia
como me contar. Ela só me contou muitos dias depois e foi
assustador. Não transamos mais.

— Calma, Henrico. Esqueça o sexo.

— Não há pesquisas sobre pais autistas! — Insisto.

— Filho, uau! Eu estou em choque ainda, mas se acalme. Sei que


gosta de pesquisas, que gosta de encontrar explicações, respostas,
mas não há uma receita para a paternidade ou maternidade. Não
adianta centenas de pessoas relatarem suas experiências, isso é
algo que só se aprende vivendo. Eu me tornei mãe e fui aprendendo
com a prática. Ok, talvez esteja soando confuso, mas... só quero
que entenda que não existe uma receita. Entendo a dificuldade que
sente por ter algumas limitações, entendo o medo devido ao
autismo, mas você é capaz, filho. Não há nada que você não seja
capaz. Olhe para traz e veja o quanto evoluiu e vem evoluindo, o
quanto já venceu. Caramba, meu filho, você é um exemplo! Tão
focado, determinado! Esqueça as regras, ignore as “receitas”.
Nenhuma experiência é igual a outra, ninguém vive histórias iguais.
Podem até ser parecidas, mas nunca iguais. Eu sei que será um pai
fantástico, porque você, quando decide vencer os medos, vai muito
além do esperado, do que estava buscando. — Minha mãe diz, com
os olhos brilhando em lagrimas. — Quando resolveu se mudar para
São Roque, eu tive tanto medo. Achei que as coisas seriam bem
difíceis, porém, foi a coisa mais certa que você já fez. Você se
transformou tanto, evoluiu tanto. E sei que vencerá esse medo, sei
que fará qualquer coisa pelo meu neto ou neta. Só precisa deixar de
lado o medo e focar no pai que você quer ser.

— Eu quero ser igual ao meu pai. Quero ser tudo o que ele foi e é
para mim.

— Lucca choraria escondido se ouvisse isso. — Ela diz, sorrindo. —


Você o tem como base, filho. Tem ideia da sorte que possui? Você
tem o melhor pai, o melhor companheiro e o melhor exemplo. Só o
fato de dizer que quer ser como ele, já diz muito sobre o pai que
será. Mergulhe nessa gestação com Sophie, porque a sua
capacidade é indiscutível. Está tão clara quanto a luz do sol que
está iluminando o lindo dia de hoje.

— Eu acho que posso fazer isso.

— Eu tenho certeza — afirma. — Eu estarei aqui para o que


precisar, sempre que precisar, enquanto meu coração bater, filho.
Embora esteja um pouco em choque, estou radiante pela notícia.
Nem nos meus melhores sonhos eu pensei que isso aconteceria tão
cedo. Aliás, digo isso em relação a todas as transformações. Eu sou
a mãe mais feliz e mais realizada do mundo!!! — Ela me abraça
fortemente e isso faz com que eu me sinta um pouco mais forte e
capacitado.

Eu só preciso seguir o exemplo do meu pai. É isso. A referência que


preciso esteve comigo uma vida toda.
“Agora eu estou longe
Você continua ao meu lado como antes”

Estou imensamente nervosa. A cada passo que dou, o nervosismo


parece intensificar. A notícia parece presa em minha garganta, tipo
algo que preciso “vomitar”, colocar para fora. Estamos voltando das
obras das casas, no terreno do sítio. Em pensar que foi Henrico
quem criou os projetos...

Esse pensamento me faz sorrir, mas logo passa. Ele criou não só os
projetos da casa... há uma outra criação aqui... senhor da glória!

— Sophie, você parece abatida, filha. — Minha mãe diz.

— Parece mesmo. Na verdade, você está bem estranha, filha. O


que está acontecendo? Pode me falar. Estou aqui. Sou seu pai. Me
diga se algo estiver incomodando. — Eu sorrio. Não. Na verdade, eu
dou uma gargalhada de leve. O rei do drama está pedindo que eu
diga o que está me incomodando. Pobrezinho. Meu Deus! Estou a
beira de um surto!

— Filha, há algo errado? Você e Henrico? Confie em nós. — Mamãe


insiste.
— Sophie... — Luiz Miguel tenta dizer algo, mas o corto. Num
rompante de loucura misturado com uma coragem insana, escolho o
meio da rua para dar a notícia:

— Estou grávida — confesso, em um tom bastante audível. Luiz


Miguel me encara em choque, minha mãe abre a boca e parece
incapaz de fechá-la, e meu pai... bem, meu pai ri. Ele, Victor
Albuquerque, simplesmente começa a rir de uma maneira insana,
até mesmo leva as mãos até a barriga e a dobra, morrendo de rir,
como se eu tivesse acabado de contar a piada mais engraçada do
século. Sem saber o que fazer, apenas ficamos o observando. Ele ri
o que parece uma eternidade, enquanto nos mantemos sérios,
assustados. Para ficar ainda melhor, tio Lucca surge e se junta a
nós.

— Aooooo! Qual a porra da piada? Preciso rir. O demônio da


Dandara já me irritou o bastante. Só uma pinga, um modão e muita
gargalhada para me salvar!

— Sophie está grávida. — Luiz Miguel revela, esquecendo que tio


Lucca é pai do meu noivo, além de ser meu tio dindo.

Ao contrário do meu pai, ao invés de rir, tio Lucca simplesmente


começa a chorar, quase que na mesma intensidade da gargalhada
do meu pai. E, como boa cidade de interior, os vizinhos começam a
surgir do nada, alguns abrem as janelas das respectivas casas,
outros abrem a porta... o circo está formado. Tio Lucca chega a se
sentar no chão e eu fico sem reação ao ver meu pai parar de rir e
cair durinho no meio da rua.
— Puta merda, Sophie! Você tinha mesmo que falar isso no meio da
rua? — Miguelito pergunta em um tom nada amigável.

— Sugar Daddy! — Minha escolhe justamente essas palavras para


acudir meu pai.

— Sugar Daddy? — Soninha surge questionando Luiz Miguel. De


onde essa mulher saiu???? — Seu pai é Sugar Daddy? É aquele
negócio que passa na televisão, não é? De homem velho que banca
jovens.

— Ah! Soninha, sinto muito, mas não é o momento. — Meu irmão


responde. — Tio Lucca, dá para parar de chorar e me ajudar a
carregar meu pai?

Ao ver o caos formado, percebo que Miguelito está certo em me


repreender. Eu poderia ter feito essa grande revelação em um jantar
em família, um almoço, um churrasco, em qualquer merda dentro da
porra da minha casa. Seria melhor, menos caótico.

Tio Lucca não para de chorar, mas ajuda meu irmão a carregar meu
pai. Os vizinhos devem estar pensando que perdemos um ente
querido, pois estão nos olhando com um olhar de piedade. É como a
caminhada da vergonha, só que de forma diferente.

Quando chegamos em casa, tia Paula está abraçando Henrico, eles


se afastam com o barulho.

— O que houve??????? — Ela pergunta, levantando-se,


desesperada. — Lucca?

— Sophie está grávida. — Luiz Miguel revela sem se importar com


a reação de Henrico. ESTÁ FODA! Vou repreendê-lo, mas, ao ver
que Henrico parece já ter revelado a notícia à tia Paula, eu
simplesmente solto um suspiro e me jogo no sofá.

Que dia, senhores!!!!!

— Por que meu pai está chorando e tio Victor parece morto? —
Henrico questiona sentando-se ao meu lado.

— Meu pai teve o tradicional desmaio familiar e... não sei explicar o
choro de tio Lucca. Talvez seja apenas emoção — sorrio. — Sei
que é bastante assustador para nós dois, em especial para você,
mas é um momento muito especial para os seus pais, Henrico. Tem
ideia do significado dessa novidade para eles?

— Nós faremos isso, Sophie. — Henrico garante.

— Eu sei que sim. Você é o menino mais bonito do mundo. — Ele


sorri e beija minha mão. É como se tivéssemos apenas nós dois na
sala, vivendo uma história de amor inabalável. O “momento casal”
só termina quando meu pai acorda, dando um salto do sofá em que
foi colocado.

— Aoooo Melinda!

— Ok, sugar Daddy, não seremos hipócritas, não é mesmo? —


Minha mãe diz quando a ficha parece cair. — Meu Deus, Sophie!
Por que você tinha que me puxar até nisso? — Questiona me
encarando e volta a olhar para o meu pai. — E você nem comece
com o drama, Victor Albuquerque. Preciso te lembrar a idade que eu
tinha quando engravidei de Luiz Miguel? Misericórdia! Serei avó!
Pelo amor da santa Josefina, Sophie! Só diz que é menina! — Ela
parece tão surtada como ... sempre foi. É isso. Minha amada mãe
sempre foi um pouco surtada e é óbvio que isso ganharia um novo
tom neste momento. Eu não sei o que dizer, o que responder. —
Claro que gostarei se for um menino. Seja o que for, irei mimar
extremamente! É só que... Senhor da glória! Vou perder meu
marido! Santa Josefina me defenda do ataque de pelancas de Victor
Albuquerque.

— Tia Melinda e tio Victor, me desculpem por engravidar a Sophie.


Nós fizemos sexo excessivamente sem proteção... — Henrico
declara.

— Henrico! — Repreendo. O excesso de sinceridade e explicações


agora não são necessários. A única coisa boa é que tio Lucca para
de chorar e começa a rir. Eu me sinto em meio a um grupo de
pessoas insanas. Já nem estou entendendo mais nada.
— Foi engraçado — tio Lucca se defende ao ver o olhar de
reprovação de tia Paula.

— Quero ver quando for a sua vez, babaca! Não se esqueça que
tem uma filha! — Meu pai esbraveja.

— No cu dos outros é refresco mesmo... — tio Lucca divaga. —


Aooo Paula, Jacinta meu desespero de pensar em Yaya grávida.

— Isso é muito machista. Você não se importa de Henrico ter


engravidado Sophie? Ele também é jovem! Oh, claro! Ele é homem!
Então está tudo bem! — Tia Paula esbraveja.

— Não é isso. Ser pai de menina é diferente. Eu e Victor criamos


Yaya e Sophie como duas princesas. É um pouco difícil aceitar que
elas cresceram. Não tem absolutamente nada a ver com machismo.
É sobre proteção e sobre o conto de fadas que criamos em torno
delas — ele se defende. Fico ligeiramente emocionada, pois sei que
é exatamente isso. Eu sempre fui a princesa número dois do meu
pai e sempre houve mais proteção em torno de mim do que de Luiz
Miguel. Eu o compreendo tanto... assim como compreendo o ponto
de vista de tio Lucca.

— É verdade, Sophie? — Meu pai questiona. — Você está mesmo


grávida?

— Sim, papai. Me perdoe? — pergunto, ficando séria e tentando


controlar a vontade de chorar. Ele é o amor da minha vida, eu
jamais quis desapontá-lo. Sei que isso foge de tudo o que ele
sonhou para mim, prova disso é que ele cai duro no chão, mais uma
vez. Dessa vez carregam ele para o quarto de hóspedes e eu peço
para que nos deixem a sós. Ele precisa deste momento comigo, da
mesma forma que preciso deste momento com ele. Minha mãe é
mais maleável e sei que já está sonhando em comprar roupinhas
incríveis e estilosas. Meu pai tem toda a dramaturgia e sensibilidade
do meu avô. Eles parecem a mesma pessoa, inclusive.
Ele fica alguns minutos apagado, mas, quando desperta, parece
completamente perdido. O vejo engolir em seco ao olhar para mim,
então seguro sua mão.

— Sei que está decepcionado comigo — digo. — Pulei todas as


etapas, tranquei a faculdade, me entreguei de corpo, alma e
coração ao maior de todos os meus sonhos: Henrico. Talvez o
senhor entenda um pouco, mas não o suficiente. A sua história com
a mamãe é bem diferente da minha. Não estou querendo dizer isso
no sentido de diminuir ou de pensar que a minha história é mais
forte ou mais verdadeira. Mas eu amo Henrico desde quando eu
nem sabia o que era amor. Eu cresci com esse sentimento, sofri
calada por anos, esperei... e então, quando finalmente eu consegui
realizar esse sonho, eu mergulhei com toda a intensidade que
herdei de você, papai. Não sou tola e nem tenho a expectativa de
viver de amor e abandonar todos os demais sonhos; eles ainda
estão aqui, aguardando, e irei vive-los, papai. Eu prometo ao senhor
que terei o meu diploma, seguirei a minha profissão, porque é o que
quero para o meu futuro. Mas, no momento, eu só quero viver esse
amor profundamente, especialmente agora que ele se multiplicou.
Estou assustada, morrendo de medo — confesso, permitindo que as
lágrimas caiam. — Sou só uma menina em um corpo de mulher,
papai. Ao menos é assim que me sinto. Não planejei engravidar, me
cuidava, e nem mesmo sei explicar o que deu errado, mas estou
confiando que essa é a vontade de Deus, que esse era o plano Dele
para mim. É muito difícil por muitos fatores. Sei que nada será fácil,
principalmente por Henrico e todos os gatilhos que ele carrega,
porém, eu prometo que farei de tudo para ser a melhor mãe, assim
como sei que ele fará o melhor como pai. Eu prometo que não irei
decepcioná-lo mais, papai.

— Você não está me decepcionando. Nunca mais diga ou pense


isso, filha. É só... eu... você é a minha princesinha da Disney. Eu
olho para você e vejo sua mãe. Você é e sempre será a minha
princesa e, assim como nos contos de fadas, as princesas sempre
encontram seus respectivos príncipes, se casam e vivem o tão
esperado final feliz. Felizmente eu sei que esse não é o seu final,
embora esteja e seja imensamente feliz tudo que está vivendo,
ainda há muito por vir. Eu não poderia estar mais feliz e orgulhoso
pelo fato do seu príncipe encantado ser Henrico, o garoto que você
ama desde antes mesmo de saber o que é o amor, como você
sempre diz — ele sorri. — E não poderia estar mais feliz por saber
que sou um coroa gostoso e cheio de saúde — diz, arrancando um
sorriso de mim. — A história se repete, mesmo que de uma maneira
diferente, com perspectivas diferentes. Não tenha medo. Você e
Henrico possuem uma base de apoio invejável, e nós nunca
mediremos esforços para estarmos com vocês em todos os
momentos, haja o que houver.

“Quando sua mãe engravidou, ela só tinha a mim e a minha família.


Ela era órfã de pai, mãe e irmão, havia perdido tudo. Ela também
teve muito medo, especialmente de sofrer mais uma perda. Você é
privilegiada, Sophia. Possui seus pais, seus padrinhos, seus avós,
seu irmão, uma família numerosa, repleta de pessoas que te amam
e que sempre te darão todo apoio e suporte. O mesmo vale para
Henrico. Então, não tenha medo, princesa. Encare o acontecimento
da melhor forma possível, procurando sempre ver o lado bom de
tudo. Acredite, o lado bom supera todos os obstáculos que sua
mente pode tentar criar. Juntos, vocês enfrentarão tudo por essa
criança; os medos, os bloqueios que Henrico possui, todo e
qualquer obstáculo que vier a surgir. E, adianto, a vida de vocês
jamais será a mesma. Se você acha que sabe o que é o amor,
espere até ouvir o coração do seu filho ou filha bater pela primeira
vez. Ter um filho é como ter o coração fora do corpo. Você é o meu
orgulho, Sophie. Olhando para você agora, eu só consigo sentir
orgulho. Seja feliz e eu estarei feliz também. A sua felicidade, a
felicidade do seu irmão, o sorriso da sua mãe... tudo isso é o que
me move. Eu te amo, ao infinito e muito além dele.”

Só nos damos conta de que minha mãe ouviu tudo quando ela nos
abraça, chorando. Então Luiz Miguel se junta a nós e eu sinto cada
centelha de medo ir embora, pouco a pouco, sendo substituído pela
coragem e pela esperança de que os dias mais felizes da minha
vida seguirão seguros.
— O que é isso que estamos vivendo? — Hadassa faz a pergunta
que vale 1 milhão de dólares. — Onde isso nos levará? Aliás, será
que nos levará a algum lugar?

Eu estava olhando para o teto, mas, após essas perguntas, viro-me


de lado e a encaro. Algo que começou do nada, simples e
inesperadamente se transformou nessa relação. Eu e Hadassa
temos vivido praticamente um casamento, mesmo sem termos
formalizado até mesmo um namoro.

— Em breve você terá que voltar para o Rio...

— E você voltará para Londres. — As duas perspectivas parecem


nada tentadoras. Seria muito bizarro eu dizer que São Roque
tornou-se o lugar mais incrível que já conheci? Aqui é realmente
encantador, uma cidadezinha em meio a natureza, pacata, livre de
toda tensão que uma cidade como o Rio de Janeiro possui. Eu sou
apaixonado até mesmo na pavimentação das ruas em
paralelepípedo, que são responsáveis por um charme à parte,
proporcionam um visual clássico e deixam a impressão de
conservar e manter viva a história dessa cidade.

Não consigo me imaginar vivendo outra vida, ao menos não agora.


Acordar, ouvir os sons dos pássaros, galinhas, cavalos, vacas... o
cheiro de terra... eu juro que jamais imaginei que gostaria tanto de
viver aqui. Além disso, há tantas pessoas acolhedoras, até mesmo
os vizinhos que parecem amantes de uma boa fofoca. Eles podem
até fofocar, mas parecem sempre dispostos a sorrir, cumprimentar,
ajudar uns aos outros. Este lugar é apenas FODA! Além disso, há o
meu irmão e a minha prima, meus dois melhores amigos da vida.
Como viver em uma cidade em que eles não estão? Tudo bem que
isso parece quase uma dependência emocional, mas eu gosto muito
deles, o bastante para querer estar perto, acompanhando as
evoluções de Henrico, o amor puro de Soso, e vivendo a vida de
uma maneira muito mais saudável do que eu costumava viver no
Rio.

Eu gostaria que Hadassa portasse do mesmo gosto, mas tenho


minhas dúvidas. Ela é a mulher sofisticada, que não deixa de lado
seus saltos, suas roupas de grife e que parece não pertencer nem
mesmo um pouco a esse lugar. Ela chegou aqui forçada pelo pai e,
por mais que a cada dia que passa sua relutância parece diminuir,
sinto que ela gostaria de estar em Londres.

Acontece que eu gosto dela. Em todos os meus anos de vida eu


nunca me apeguei a uma garota, nunca gostei verdadeiramente de
ninguém, mas eu realmente gosto dela, tanto que estou dividindo a
vida com ela desde quando nos conhecemos. Isso NUNCA
aconteceu antes, eu NUNCA estive em um relacionamento. É o que
acontece quando você possui uma família foda, repleta de casais
bem resolvidos e emocionalmente estáveis. Qualquer coisa que fuja
da responsabilidade afetiva e emocional parece ser errada pra
caralho e eu nunca quis cometer esse erro, nunca quis brincar com
os sentimentos de qualquer mulher, visto que jamais vi as pessoas
que tenho como os meus exemplos fazerem isso.

Eu não era o garoto louco? Pois é. Eu adoro me passar por louco,


por ser o divertido da família, mas há em mim um Samuel sério,
comprometido com os grandes valores que meus pais me
ensinaram, e sonhador.

— Você ainda pensa em voltar para Londres? — pergunto a ela, já


temendo uma resposta que não vá me agradar.
— Algumas coisas mudaram... — diz, dando um sorrisinho safado.
— Ir para Londres significa ficar muito longe de você. E eu não sei
se consigo mais. Acho que perdi o desafio...eu me apaixonei por
você. Não teria como não acontecer. — Sorrio com a confissão. — E
nem adianta dizer que não se apaixonou por mim.

— Eu não ousaria mentir — digo, tocando seu rosto


carinhosamente. — Eu me apaixonei por você. Você é muito
arregaça, Hadassa!

— Na aposta que fizemos, eu teria que me mudar para o Rio de


Janeiro com você, mas não acho que você quer isso. Estou certa?
— Volto a olhar para o teto e só consigo pensar em Henrico, no
quanto ele precisa de mim agora que será pai. Não contei para
Hadassa ainda, mas eu sei que Henrico precisa que eu esteja aqui,
mesmo que seja ele a tomar as rédeas da situação. Não quero que
isso soe como se eu estivesse diminuindo a capacidade dele de
lidar com as questões ou como se eu estivesse o diminuindo a uma
criança totalmente dependente, mas, tenho medo de que ele precise
de mim e eu não esteja ao alcance, não possa ser a rede de apoio
dele. Na verdade, tenho medo de não tê-lo por perto. A perspectiva
de não estar por perto faz a minha vida parecer vazia demais. Nós
sempre fomos muito próximos.

— Eu sinto muito. Estou apaixonado por você, mas... eu não posso


ir embora agora. Preciso e quero estar aqui. — Hadassa vira meu
rosto para si e sorri.

— Imaginei. Sinceramente? Acho que ficaria um pouquinho


decepcionada se dissesse o contrário — confessa, para a minha
surpresa. — Sophie, você e Henrico são inseparáveis. No início,
quando meu pai me obrigou a vir para cá, eu me senti como se
estivesse sendo enviada diretamente para o inferno — Hadassa
suspira. — Eu não queria vir para cá, não queria estar aqui, mas
não por ser metida ou algo assim. Tudo nesse lugar me lembra a
minha mãe. Para cada lado que olho, vejo uma lembrança. Porém,
desde que te conheci, tudo mudou, especialmente minha visão
sobre São Roque. Agora eu me sinto em um lar, por mais que seja
um pouco complicado manter a minha profissão aqui e que eu
esteja me virando em mil na criatividade, eu me sinto em casa, me
sinto como se aqui fosse o meu lugar. E não é uma prisão. Morar
aqui não me tornará uma prisioneira. Ainda poderei fazer muitas
viagens, ostentar minhas roupas de grife e meus saltos altíssimos...
— ela sorri. — Só quero ficar com você, aonde quer que seja.

E foi assim que eu enlouqueci de todas as maneiras possíveis e


tomei a decisão que jamais imaginei que tomaria um dia.

DIAS DEPOIS

Uma batida forte na porta me faz cair do sofá. São 8 da manhã.


Quem bateria desta forma na casa de alguém uma hora dessas?
Com o coração acelerado, abro a porta para encontrar minha mãe e
meu pai. Ela parece prestes a me trucidar, enquanto meu pai parece
muito disposto a impedi-la. É óbvio que seria assim, mas eu entendo
os motivos dela e eles são diferentes de toda e qualquer coisa que
ela disser. É a minha mãe sendo a minha mãe, e eu amo por ser
assim, tempestiva, leoa, incontrolável.

— Como você me joga uma merda de uma bomba dessas por


mensagem? — Ela entra parecendo um furacão, jogando sua bolsa
no sofá e cruzando os braços. — Eu não o criei para lidar com as
situações desta maneira, Samuel.

— Senta que lá vem história... — meu pai diz, acomodando-se no


sofá. — Vai, cacto! Liberte os seus espinhos.

— Eu amo você, Lucca, na mesma intensidade que odeio! Eu


sempre saio como a bruxa má, enquanto você sai como o príncipe
encantado. Acha mesmo que é certo a maneira como Samuel
escolheu para dizer que está abandonando os estudos e se
mudando definitivamente para São Roque? Acha interessante que
ele esteja jogando fora a chance de ter um futuro brilhante que só a
faculdade pode oferecer? Eu NÃO SOU A BRUXA MÁ AQUI! — Os
olhos dela estão brilhando em lágrimas, mas ela não as deixa
derramar.

— Você não é a bruxa má, Dandara, mas tem a péssima mania de


transformar em tempestade as situações, você nem mesmo ouviu o
que nosso filho tem a dizer.

— E você é sempre a voz da razão — ela rebate.

— Sou mesmo.

— Ok, mãe. Você tem razão — digo e meu pai arqueia as


sobrancelhas, mas estou falando sério. Não é para fazer “média”
com a minha mãe. Não se dá uma noticia dessas por mensagem no
celular.

Mas minha cacto parece gostar de estar com razão, porque ela sorri
em desafio para o meu pai e se acomoda no sofá, com seu jeito
imponente de ser.

— Dito isso, prossiga — ela pede.

— Ah, tá! Deixa só eu te informar uma coisa, Dandara, você não


está em um tribunal, minha querida.

— Pai — repreendo. — Eu deveria ter ido em casa, conversado


como um homem. Acabei agindo como um moleque, porém, ainda
assim, isso não muda a minha decisão. Estou em duvidas se quero
seguir com a faculdade de direito, além disso, quero morar em São
Roque, perto de Sophie, Henrico, e Théo, que voltará em breve.
Preciso do seu apoio, mãe. Eu poderia estar jogando tudo para o
alto para ser um garoto inconsequente, viver uma vida desregrada,
mas não é o caso. Estou em um relacionamento sério, aqui é uma
cidadezinha pacata, estou adquirindo novos e bons hábitos, me
redescobrindo. Acho que isso é tudo que uma mãe pode querer
para um filho, não?

— Mas...

— Não precisa falar nada — sorrio. — Eu sei o que está te ferindo.

— Estar sendo obrigada a abrir mão do controle — meu pai provoca


e, antes que eu possa raciocinar, minha mãe pega o controle da TV
e taca no meio da testa dele. — Aooooo filha de uma boa mãe!

— Gostou de me ver abrindo mão do controle, babaca?!

— Eu vou te processar por agressão!

— Meu marido é juiz, eu sou juíza. Digamos que conheço uma


pessoa ou outra para me inocentar desta acusação e ainda te
transformar em réu! — Ela rebate.

— Ok, podem parar por favor? — Peço. — Sei que sempre fomos
muito grudados, mãe. Há um cuidado especial comigo por todo o
passado e entendo que é difícil para a senhora saber que estarei
distante, longe do ninho. Mas faz parte da vida, a senhora sabe...
depois que cresce o filho vira passarinho e quer voar. — Meu pai
desanda a rir, tornando-se impossível se manter sério.

— A diferença é que o olhar da sua mãe na porta você deixará a te


amaldiçoar — ele diz, gargalhando e batendo no sofá. — Eu sei que
ela nunca compreendeu, os meus motivos de sair de lá. Mas ela
sabe que depois que cresce, o filho vira passarinho e quer voar...

— Isso é a maldição de uma música, Samuel????? Filho do


Lucca!!!!!!

— Mãe, mas faz sentido — me defendo. — É isso e combina bem.


Só que, ao contrário do Zezé, que saiu para ganhar o mundo, eu
estou vindo para um lugar pacato, uma rocinha, cheio de animais,
pássaros, tomar leite direto da fonte. Ô trem bão, sô. Se um dia fui
carioca eu não me lembro — brinco e a puxo pelo braço, fazendo
com que fique de pé. A envolvo em um abraço esmagador. — Eu
amo você, sua bobona! Sempre irei te amar acima de todas as
coisas desse mundo. Nunca deixarei de ser seu filho, tampouco a
deixarei de lado. Só me deixa viver esse momento. Se nada der
certo, eu voltarei com o rabinho entre as pernas. Mas, preciso tentar,
preciso fazer o que quero, mergulhar na fase que estou vivendo e
me entregar ao que meu coração está pedindo.

— Amor? — A voz de Hadassa surge e minha mãe se afasta.


Posso dizer que Hadassa acaba de ganhar o olhar mais avaliador
que já ganhou na vida. Minha garota estilosa está usando botas de
montaria, calca jeans marcando a curva perfeita de sua bunda, uma
blusa branca justa e alguns acessórios. — Uau! — Ela diz, fazendo
a mesma avaliação em minha mãe. — Sua mãe ...?

— Sim. Está é a minha cacto — sorrio. — Mãe, está é Hadassa,


minha namorada.

— Compreensível. — Dona cacto diz.

— Ei! Prazer, senhora Dandara. A senhora é ainda mais linda


pessoalmente. Samuel já havia me mostrado algumas fotos, mas
nada se compara a isso — diz e minha mãe da um resquício de
sorriso. — Meu sogrão eu já conheço — ela brinca.

— Quer dizer que meu filho ganhou a aposta? — Meu pai


questiona.

— Nós dois ganhamos, pai.

— Nem vou perguntar que espécie de aposta é, mas, tenho que


dizer... meu filho tem um excelente gosto. Você é realmente linda —
cacto suspira. — Não há nada que eu possa fazer para você voltar
atrás? — pergunta a mim. — É a sua decisão final?
— É, mãe. — Ela balança a cabeça em concordância.

— Sendo assim, Hadassa, quero almoçar com você, conhecê-la


melhor. Aguardo vocês em algum restaurante da cidade — diz,
pegando sua bolsa e saindo como um tornado. Meu coração se
aperta por saber que ela está sofrendo. Minha mãe é durona, paga
de malvada, mas, sendo bem sincero, ela é uma das melhores
pessoas do mundo, tem um coração gigante e não há palavras para
descrever a mãe que ela é para mim e para os meus irmãos. Por
trás de todo aquele rompante de fúria e da máscara de mulher
inalcançável, há uma pessoa sensível, que se faz de durona para
não ser ferida nesse mundo onde há tantas pessoas ruins.

— Ela te ama acima de todas as coisas desse mundo — meu pai


diz. — Sua mãe é foda, sabe disso?

— Perfeitamente.

— E, Hadassa, eu aposto minha traseira que ela será a melhor


sogra, mesmo sendo assustadora em alguns momentos. A mulher
que saiu por aquela porta agora, é capaz de ir ao inferno para
defender quem ama. Está doendo nela, mas ela está torcendo por
você, filho.

— Ela nem mesmo precisava dizer, pai — sorrio.

— É isso... bom, vou visitar seu irmão. Nos vemos depois?

— Com certeza, pai. — Ele me abraça, se despede de Hadassa e


se vai.

Eu olho para Hadassa e ela sorri. Observar seu sorriso só confirma


que estou tomando a decisão certa. Afinal, no amor e na guerra
vale tudo, não é mesmo?
“Mas você nunca ficará sozinha
Ficarei com você do anoitecer até o amanhecer
Ficarei com você do anoitecer até o amanhecer
Amor, estou bem aqui
Eu te segurarei quando tudo der errado”

Agora todos sabem. Tio Victor sabe.


Meu receio em dar a notícia sempre foi ele, pela sua reação. Talvez
eu tenha sido sincero demais ao dizer que fiz sexo com Sophie e ele
engravidou, mas essa é a verdade. Quando fico nervoso, não
consigo calcular bem as palavras ou pensar em uma forma mais
sutil de dizê-las, elas simplesmente saem sem que eu possa
controlar, faz parte de quem sou e, sendo bem sincero, controlar a
minha sinceridade não está no topo das mudanças que quero para a
minha vida. Aliás, o mundo seria melhor frequentado se todas as
pessoas fossem totalmente sinceras com tudo e com todos.

— Eu acho que precisamos conversar, meu filho. Na verdade, tenho


certeza de que precisamos. — Meu pai diz. Ele está certo. Nós
precisamos, mas, embora eu saiba e precise disso, estou um pouco
cansado de externar todos os meus medos, receios, cansado de
repetir toda a problemática que está acontecendo dentro de mim.
Ele me convida para irmos até a praça. Caminhamos
silenciosamente até encontrarmos um banco e nos acomodarmos.
Após pegar um elástico em meu bolso, apoio meus cotovelos em
minhas pernas e passo a me concentrar exclusivamente em rodá-lo
em meus dedos.

— Eu sei como está se sentindo. E esses pensamentos que estão


rodeando sua mente, parecem te levar direto ao retrocesso, mesmo
tendo ido tão longe nos últimos meses — diz, surpreendendo-me.
Na verdade, eu deveria saber que essa seria a conversa e que eu
não precisaria externar tanto. Não desmerecendo a ligação que
tenho com a minha mãe, mas meu pai, talvez por ser homem,
parece me compreender um pouco melhor em determinadas
questões. — Sabe, a maioria das pessoas sentem esse medo que
está sentindo, independente de serem atípicas ou não. Essa,
definitivamente, não é uma característica exclusiva do autismo. É
um bebê, um ser humano que dependerá cem por cento de nós.
Isso é assustador pra caralho! — Ele suspira. — É uma
responsabilidade imensa ter que criar alguém, educar, ensinar boas
maneiras, guiar por bons caminhos... Os pais são responsáveis
diretamente pelo ser humano que o filho se tornará. Ter que dar
bons exemplos é essencial. Nada aqui é fácil, filho. Porém, nada é
impossível também. Nem tudo são dores — sorri. — Sendo bem
sincero, é maneiro pra caralho e há muito mais alegrias que dores.
Ninguém nasce preparado para ser pai ou mãe, mas se transforma
ao receber a notícia. E sei que você sofrerá essa transformação
assim que se permitir aceitar definitivamente essa novidade. Isso vai
acontecer. O processo pode estar sendo lento, mas vai acontecer.
Não importa que tenha limitações, filho. Tudo que importa é que
você se sentirá motivado a vencer o que quer que seja assim que
ouvir o coração do seu filho ou filha bater pela primeira vez. Não
perderei meu tempo dizendo palavras de motivação e toda merda
nostálgica, porque eu sei, eu sei que será o melhor pai, então é
isso... Eu só estou tendo essa conversa com você para deixá-lo
ciente que é muito normal sentir receio, eu sinto até hoje e acho que
esse sentimento sempre me acompanhará.
— Você sente receio da paternidade? — pergunto, curioso.
— Claro que sinto. Todos os pais e mães sentem, mas isso você
precisará vivenciar para entender e, já adianto, não há receitas, toda
e qualquer pesquisa que encontrar jamais será capaz de te dar
respostas cem por cento concretas sobre isso. Não existe resposta
para tudo, Henrico. Algumas coisas só descobrimos vivendo. A
experiência paternal nunca é igual para todos os pais, e acho que
você deve saber disso.

— Sim, eu sei. É sobre Pablo, não é?

— É sobre ele — responde. — E mesmo os pais bons, que honram


os filhos e a paternidade... nada nunca é igual. Embarque nisso,
filho. Faca descobertas, ganhe conhecimento pela sua vivencia e
tire da mente as suas limitações. Pare de permitir que elas te
mantenham preso a uma crença que não cabe mais em você.
Sophie está grávida de um filho seu, não há mais escolha sobre
querer ou não ser pai, já aconteceu e precisa encarar isso como o
homem foda que sei que você é.

— Farei isso. Enfrentarei minha própria mente a cada vez que for
necessário.

— É isso! — Ele me abraça.

Permitir que o medo se mantenha vivo está sendo extremamente


exaustivo. É o momento de assumir meus atos e enfrentar tudo o
que me limita.

DIAS DEPOIS

É tão bonito como as palavras saem tão facilmente da boca, assim


como é extremamente frustrante quando não conseguimos segui-
las. Eu travo na primeira ida a uma consulta médica de Sophie. É
óbvio que ela passará por várias delas, é mais do que necessário,
porém, a sensação de incapacidade surge ao pensar que terei que
lidar com uma pessoa desconhecida. Não apenas isso. O que mais
me incomoda é essa limitação que faz com que eu sempre me porte
de forma inferior diante de pessoas desconhecidas, completamente
diferente da forma que Sophie enfrenta as situações. Me sinto
envergonhado e incapacitado diante da minha própria mulher.

— Só você é capaz de controlar a maneira como se sente diante


das situações — ela sussurra em meu ouvido, como se estivesse
lendo todos os meus pensamentos. — Ninguém é melhor que
ninguém...

— Talvez seja.

— Talvez não — ela sorri, apertando minha mão. — Tudo é uma


questão de ponto de vista. E, nem sempre os pontos de vista são
iguais. Eu não me sinto capacitada a sentar em frente a um
computador e desenvolver jogos. Você se sente. Não me sinto
capacitada a realizar diversas funções, e está tudo bem. Entende o
que quero dizer?

— Eu entendo, Sophie. Isso é tudo que venho escutando desde


criança, porém, ouvir essas palavras não ameniza a maneira como
me sinto.

— Você vai entrar comigo? — pergunta. Há receio em sua voz. Por


mais que eu saiba que ela seria compreensiva se eu disse que não
estou pronto, sei que isso a magoaria. Não há limitação que vá fazer
com que eu perca este momento ou que eu a magoe. Não posso
permitir que ela enfrente esta gestação sozinha, não quando sou tão
responsável quanto ela. É o nosso filho ou filha. — Você não é
obrigado a fazer isso. Eu posso ir sozinha, filmar para você a
ultrassonografia... — Pensar em Sophie sozinha na primeira
consulta de pré-natal me causa um mal-estar muito maior do que
pensar em ter que enfrentar pessoas desconhecidas, é por isso que
não a respondo, simplesmente desço do carro, abro a porta para
que ela saia, e sigo rumo à clinica.

Estamos em uma cidade vizinha, em uma clinica indicada por Eva.


Eu não encaro as pessoas, é Sophie a paciente e é ela quem
responde todas as perguntas. Ficamos alguns minutos aguardando
até que a médica a chama. Sinto-me como um robô, agindo
programado para executar tal função. Mantenho-me calado, apenas
observando, ouvindo as perguntas da médica e as respostas de
Sophie. É um pouco engraçado como sei a resposta de algumas,
devido a todas as pesquisas que tenho feito. É a minha maneira de
tentar conseguir lidar com o desconhecido. Não encontro respostas
para muitos dos meus questionamentos paternos, mas, ainda assim,
consigo sanar algumas dúvidas relacionadas à maternidade.
Obviamente estou interessado em saber melhor como devo lidar
com Sophie nesta etapa, os riscos e tudo mais.

— De acordo com a data do seu último período, a gestação deve ter


em torno de 6 a 7 semanas, vamos confirmar tudo através de uma
ultrassonografia transvaginal — a médica diz a Sophie, que apenas
acena positivamente com a cabeça, parecendo tão perdida quanto é
possível. — Há uma porta a sua direita. Nela há um avental. Pedirei
para retire apenas a sua calcinha, já que está de vestido, e volte
usando o avental, para darmos início ao procedimento.

Segundo pesquisas, na sexta semana de gestação, os primeiros


batimentos cardíacos do embrião já começaram. Ele mede cerca de
2,5 mm de comprimento no início dessa semana, dizem que pode
ser comparado a um caroço de romã, o que é pequeno demais. O
embrião já apresenta o esboço da cabeça, coração e um tubo
neural, além de ter um crescimento muito rápido nesta fase.
O coração primitivo já começou a bombear sangue e a maioria dos
órgãos estão em formação. O coração, apesar de ser um pequeno
tubo, já bate de 140 a 150 vezes por minuto, duas vezes mais que o
de uma pessoa adulta. Parece muito louco que um bebê do
tamanho de um caroço de romã possua um coração, mas é o que é,
contra fatos não há argumentos. Além de todas essas coisas, os
vasos sanguíneos que unem o cordão umbilical com a placenta,
aparecem.
No final desta semana o embrião adota a forma de um “C”, mede
cerca de 5,0 mm e pesa em torno de 0,4 g.

Sophie, nesta etapa, terá um aumento de náuseas, provavelmente


— isso depende do organismo de cada mulher. Passará a sentir
desejos por alguns alimentos e tomará pavor de outros. Certos
aromas poderão contribuir para enjoos, inclusive produtos
aromáticos que ela está acostumada a usar. E eu? Eu ainda não sei
como tudo isso será, mas tentarei manter o controle para cuidar
dela, fazendo o possível para que que ela seja devidamente
amparada em todas as fases.

Estou mexendo incansavelmente o elástico em meus dedos, só


diminuo o ritmo quando ela volta e a médica a faz se deitar sobre
uma maca.

— Eu conseguirei ouvir os batimentos? — Sophie pergunta,


esperançosa.

— Se estiver mesmo grávida de 6 semanas, é provável que sim —


respondo sem nem mesmo pensar na médica, então me calo ao vê-
la me encarar e desvio o olhar, abaixando minha cabeça.

— É exatamente isso que seu noivo disse. — A ouço responder,


assim como ouço uma risada de Sophie, que faz com que eu volte a
levantar a cabeça.

Enquanto a médica faz os procedimentos, eu só consigo manter


minha atenção voltada ao monitor. Ela faz diversas verificações e
então um barulho forte toma conta do consultório. Eu deveria me
incomodar com o forte ruído, mas não acontece. Apenas sinto a
sensação de ter algo preso em minha garganta a cada batida. É
forte, veloz, ritmado e... faz com que meus olhos se encham de
lágrimas, como se a ficha tivesse acabado de cair por completo. Eu
nunca quis ser pai, mas, neste momento, consigo compreender a
grandiosidade do que me tornei. Na verdade, neste momento,
consigo perceber que sou pai. É isso. Não serei. Eu já sou. É um
tipo de sentimento que não consigo evitar ou bloquear. Não gosto de
ser sentimental diante das pessoas, mas não há como evitar o quão
forte meu coração está batendo, tampouco consigo controlar a
emoção avassaladora. Não consigo nem mesmo olhar para a
Sophie que, certamente, está tão emocionada quanto eu.
Todo o restante da consulta passa como um borrão e eu me pego
agindo automaticamente no final. Apenas seguro a mão de Sophie e
saio do consultório, andando rumo ao carro.

Há um outro coração batendo dentro da mulher que amo. Há um


outro coração batendo dentro da garota que segurou a minha mão
para eu correr pela primeira vez. Agora corremos juntos e
alcançamos algo que sempre desacreditei. Quão insano é tudo
isso? Eu nunca imaginei que um dia poderia viver tudo o que estou
vivendo, nunca acreditei que seria tão capaz. É incrível, mesmo que
assustador. O incrível sobressai. Não imaginei que me sentiria desta
maneira, mas é inevitável.

Um caroço de romã acaba de me transportar definitivamente para


a nova realidade. Agora sim eu consigo começar a acreditar que as
minhas limitações sempre estarão abaixo da minha determinação e
do amor que sinto por Sophie e por essa criança. Sempre ouvir dizer
que o amor é capaz de superar tudo. Essa frase nunca foi tão
verdadeira antes.
“Cavalgue-me como um cavalo de corrida
Segure-me como um corda esfarrapada
Me quebre e me construa
Eu quero ser o erro, o erro
A palavra em seu lábio, lábio
A letra que você arranca, arranca
Me quebre e me construa

O que for preciso


Pois eu adoro a adrenalina nas minhas veias
Eu faço o que for preciso
Pois eu adoro a sensação
De quando eu quebro as correntes”

Henrico está mudo, tão mudo que não sou capaz de dizer uma
única palavra. Ele parece muito perdido dentro de si e, de alguma
maneira, sinto que preciso respeitar este momento. Ele fez o que
achei que jamais faria: me acompanhou na primeira consulta. Na
minha cabeça, eu teria que trabalhar aos poucos para ele poder me
acompanhar em alguma consulta futura, seria compreensível ele
não ir. Conheço seus bloqueios o bastante para entender se ele não
quisesse enfrentar isso, mas parece que ele lutou bravamente com
seus próprios demônios e passou por cima das próprias limitações
para estar ao meu lado. Isso é de uma grandiosidade que nem
mesmo sei explicar, significou muito e me fez enxergar que estarei
de fato amparada nesta fase. Me sinto um pouco mal por ter
duvidado o mínimo da sua presença hoje, mas não irei ser dura
comigo mesma por isso.

Acabo de sair de um dos momentos mais incríveis da minha vida.


Eu não imaginava que sentiria o mundo girar bem diante dos meus
olhos ao ouvir os batimentos do meu bebê. A primeira
ultrassonografia muda tudo, faz a realidade cair, a maternidade fluir.
Desde que descobri a gravidez, acho que somente hoje eu me senti
verdadeiramente mãe, houve uma transformação naquele
consultório, a Sophie menina deu lugar à Sophie mulher e mãe, com
toda responsabilidade e todo amor. Um coraçãozinho muito forte
está batendo dentro de mim, mostrando que é cheio de vida e me
fazendo ser tomada por planos e sonhos futuros. De repente, só
consigo pensar em construir um futuro digno para essa criança. Foi
mágico, ainda mais por ver que Henrico ficou realmente
emocionado, tanto quanto eu. Sei que é a emoção que está o
calando. Sinto que, se ele abrir a boca, não será capaz de se conter,
derramará lágrimas e todo o sentimento que está guardando dentro
de si.

Ele tem se mantido isolado, pesquisando, evitando contato físico, só


cuidando do que como, do meu descanso, fazendo tudo que acha
que eu mereço, me mimando de todas as formas, exceto
sexualmente. Estou respeitando, embora em alguns momentos eu
sinta a imensa vontade de bater os pés como uma garota pirracenta.
Cheguei à conclusão que não posso insistir nisto, não agora quando
ele está travando batalhas gigantes com a própria mente. O sexo vai
acontecer quando ele se sentir melhor, menos bagunçado e mais
disposto. Acho que esse é um pensamento bem maduro da minha
parte, mas não vejo outra opção no momento, especialmente
porque tem que partir dele e não deve ser forçado apenas para
satisfazer o meu desejo. Um bom encontro é de dois[2], como diz a
musa Vanessa da Mata. Para ser fantástico como sempre foi, os
dois precisam querer, precisamos estar em uma completa sintonia,
mas entendo que neste momento está um pouco inviável. Meu
menino mais bonito voltará a si em breve, tenho certeza. É muito
para ele lidar e foram muitas mudanças em poucos meses, é óbvio
que em algum momento tudo iria transbordar dentro dele. Se está
transbordando em mim, imagino nele, que parece sentir tudo em
uma intensidade muito maior. O garoto metódico, amante das regras
e admirador de respostas concretas, viu sua vida sair dos trilhos, de
repente não há mais acordos, mais sequência a serem seguidas,
mais regras. Há o receio de pisar em um lugar desconhecido, onde
a vida exige que você mergulhe e viva, mesmo sem nunca ter
estado lá, mesmo sem um mapa, um guia, pesquisas... Isso daria
uma boa história, poderia se transformar em poesia nas mãos de
um bom autor. Eu só consigo pensar no futuro, quando essa fase
passar e ter presenciado Henrico vencer dia a dia, porque é
exatamente isto que acontecerá. Ele vencerá! Nós venceremos!

“ — Eu acho que posso ser pai um dia.


— Quê?
— Eu acho que posso fazer tudo, se for com você. Eu posso tudo,
Sophie.
— Sim, você pode tudo! Tudo! — Sorrio entre lágrimas, enquanto
seguro seu rosto entre as minhas mãos. — Você é a coisa mais
linda do mundo!
— Não agora, tudo bem?
— Não mesmo. Há muito a ser explorado antes de pensarmos em
filhos. Mas, só o fato de você dizer que pode fazer isso, já significa
muito, mesmo que eu nem estivesse pensando nisso neste
momento.
— É porque eu olho para você e me dá vontade de viver todos os
seus sonhos, e sei que um dia quer ter os meus filhos — explica,
olhando em meus olhos. — Eu quero dar tudo a você. Quero ficar
para sempre ao seu lado e quero que seja cem por cento feliz,
realizada.
— Você, por si só, já é a realização do maior sonho da minha vida.
Poder beijá-lo, tocá-lo, acordar ao seu lado todas as manhãs, sentir
uma parte do seu corpo dentro de mim, sentir sua reciprocidade, a
nossa conexão... Você é o meu maior sonho, a resposta de todas as
minhas orações, a realidade mais linda que estou vivendo. Parece
um clichê com excesso de romantismo, mas que seja clichê... quem
se importa? Eu respiro você, Henrico Davi. Eu vivo você. Eu amo
você.”

— Está tudo bem? — A curiosidade de saber como ele está se


sentindo vence, após virmos todo trajeto até a casa no maior
silêncio. Eu mal espero que ele abra a porta de casa para perguntar.

— Está — responde. Uma resposta vaga demais para quem quer


que ele fale pelos cotovelos.

— Seu silêncio está me preocupando — confesso.

— Me desculpe por isso, Sophie. Aliás, tornou-se um hábito pedir


desculpas nas últimas semanas, porém, estou assimilando os
acontecimentos. — Aceno a cabeça positivamente em
compreensão.

— Eu estarei no quarto. Preciso retirar meu piercing do clitóris —


aviso, virando-me e caminhando pelo corredor.

— O que? — Quase sorrio ao ouvir a pergunta. — Você vai retirar o


piercing do clitóris?

— Acho que você estava em outra dimensão quando a médica


sugeriu que eu retirasse — respondo, virando-me para encará-lo. —
Quando o bebê nascer, talvez eu retorne com ele.
— Talvez?

— Quer que eu volte? — Retribuo sua pergunta com outra.

— Eu amo seu clitóris. Digo, seu piercing. — Corrige.

— Meu clitóris te ama, então é bem provável que eu recoloque e


tudo mais...

— Sophie...

— Está tudo bem, menino mais bonito — o conforto. — Não se


cobre tanto, ok? Eu vou tomar um banho e então irei retirar o
piercing. — O beijo carinhosamente no rosto e volto a caminhar para
o quarto.

Ele me segue, mas eu ajo naturalmente, como se ele nem mesmo


estivesse presente. Ignorando o olhar que sei que está sob meu
corpo, eu me desvencilho de cada peça de roupa e caminho até ao
banheiro. Sinto sua presença sem nem mesmo precisar me
certificar. Abro a ducha, controlo a temperatura da água e entro de
uma só vez, deixando que a forte pressão da água caia sobre minha
cabeça e meu corpo.

Estou de costas para Henrico, mas viro-me de frente e capturo um


olhar que não via há algum tempo: primitivo, regado de desejo.

— Vai ficar observando todos os meus passos e todas as minhas


ações? — Questiono, ousando provocá-lo com um sorriso que ele
também conhece bem; um reservado apenas para os momentos
onde todo seu pau está dentro de mim, fodendo-me
impiedosamente. — Vai seguir todo o caminho que minha mão
trilhar ou vai apenas ficar observando a maneira como os meus
mamilos estão rijos e meus seios inchados? — Novamente não
obtenho resposta alguma. — Por que não arranca essas malditas
roupas e se junta a mim? — Pergunto de forma mais grosseira,
deixando que a sutileza se esconda ao menos um pouco. Ele
retribui arqueando as sobrancelhas enquanto desço meu olhar para
a ereção marcada em sua calça. Minha boca se enche de água com
a visão, me pego engolindo em seco enquanto me embebo da
imagem. Se eu fecho meus olhos, sou capaz de ver exatamente a
grossura, as veias marcadas, a glande rosada. Eu me recordo dos
tapas, das palavras sujas, da sinceridade enlouquecedora... sou
quase capaz de sentir o peso que sinto dentro de mim quando ele
se enfia por completo. É tão pesado, preenche cada pedacinho de
mim, me faz sentir um prazer insano e causa um fogo incontrolável.

Eu desejo montá-lo. Sim. Montá-lo. Preciso estar em cima deste


homem tanto quanto preciso de oxigênio. Eu por cima, o quanto
quiser, até obter o suficiente e melá-lo inteiro com o meu prazer. Eu
por cima até sentir sua porra grudando em minha boceta e então
escorrendo pelas minhas pernas, formando uma bagunça de
líquidos e fazendo nossos corpos deslizarem ainda mais fácil. Ter
um homem desses em casa e não poder trepar nele... Argh! É um
inferno completo. Eu fico em contradições o tempo inteiro, porque
ele me bagunça sem fazer o mínimo de esforço.

Não há uma atitude de sua parte, isso é quase decepcionante. Eu


apenas respiro fundo e decido tomar meu banho de verdade agora.
Volto a virar-me de costas, pego a esponja, despejo uma quantia
generosa de sabonete líquido e me lavo, sentindo a dor real
causada pelo desejo latente. Vivendo e aprendendo, é tudo que
penso a cada vez que percebo o que o excesso de desejo sexual
pode causar em uma pessoa. Era tão mais fácil antes de
experimentar essa maravilha... agora soa como uma tortura. Henrico
está torturando a nós dois, querendo ou não, proposital ou não.

Eu tenho medo. De verdade. Eu temo o que será deste homem


quando ele decidi ceder. Não sei dizer quantos guindastes serão
necessários. Estarei sobre ele de uma maneira que não sou capaz
de descrever.
E parece que ele decide fazer isso, porque, no momento em que
mais estou envolta em pensamentos insanos, sinto-o me puxar de
encontro ao seu corpo nu. Nem mesmo sei quando e quão rápido
ele retirou suas roupas, mas isso é o que menos importa. A devassa
que habita em mim começa a festejar em meu interior, mas ela se
cala muito rapidamente quando as mãos de Henrico descem até a
minha barriga e paralisam. Meus olhos inundam e eu seguro um
soluço que quer muito escapar. É o contato que tanto esperei e que
significa o mundo inteiro para mim.

— O coração dele bate tão rápido quanto o meu coração está


batendo agora — diz, com um sussurro quase angustiante. — É
surreal que um bebê tenha o tamanho de uma semente de romã e
tenha um coração batendo tão forte. Parece impossível, tanto
quanto parece mágico. Nem todas as pesquisas cientificas são
capazes de explicar isso, eu tenho certeza. Elas podem até chegar
perto, mas não acho que há uma resposta concreta, porque é algo
que se deve sentir e não algo que se deve compreender. Não quero
buscar respostas para descrever o desenvolvimento do nosso bebê,
quero apenas sentir, imaginar, apreciar cada dia da sua gestação.
Acho que dessa forma as coisas serão mais mágicas, mais lúdicas,
mais perto de tudo que sonhamos. Acho que não estou sabendo me
expressar bem, Sophie, mas sei que você é a única no mundo
capaz de entender.

— Eu entendo. Entendi cada palavra.

— Cansei de buscar respostas em pesquisas, de esperar o óbvio.


Estive pesquisando nos últimos dias e percebi que ... percebi que
estou desperdiçando tempo trancado em um escritório buscando
esclarecimentos que só terei se viver intensamente a realidade, o
momento. Percebi que a vida é muito mais que todas as coisas que
me limitam e muito mais que todas as perguntas que tenho em
minha mente. Você não merece isso, Sophie. Eu não mereço; não
quando estou vivendo ao lado da mulher que sempre amei, não
quando ela está grávida de um filho meu... não quando ela me fez
enxergar todas as capacidades que eu jamais imaginei possuir. Eu
amo você uma vida inteira, Sophie. — Ele suspira. — Eu sei que
posso aprender a conviver com as adversidades, sei que posso
encarar o incerto. É extremamente difícil para mim, mas não posso
me manter prisioneiro da minha própria mente e deixar de
compartilhar essa gestação com você. E há inúmeros medos,
incontáveis, mas preciso enfrentar porque sou um homem. O
menino mais bonito precisa ficar no passado agora.

— Ele nunca deixará de existir para mim — digo, virando-me e


tocando seu rosto com as mãos. — Nunca. Não quero que mude,
Henrico. Quero que consiga enfrentar seus medos, mas não quero
perder o meu menino mais bonito, não quero que perca a sua
essência. Eu sou louca por você, alucinada, eu amo tudo sobre
você. Siga sendo o homem que preciso e o menino que eu amo.
— Eu quero comer você, Sophie, mas tenho medo de fodê-la como
um selvagem. Há tanto desejo reprimido, que temo despejá-lo
inteiro sobre você, ultrapassar os limites.

— Eu preciso que faça isso. Estou queimando por você, sofrendo.


Me coma, me devore, me foda. — Ele me beija. Intensamente.
Insanamente. Incansavelmente. Eu me esforço para acompanhá-lo
no ritmo, ao mesmo tempo em que sinto um calor latente. Ainda é
surpreendente a maneira como meu corpo queima por Henrico,
como tudo em mim se acende, se aquece, vibra e implora.

Ele se afasta apenas para desligar a ducha. Me pega em seus


braços e me leva para a cama, sem se importar com o fato de
estarmos completamente molhados. Ainda me sinto levemente
tímida quando ele abre minhas pernas e fixa seu olhar em minha
boceta. É uma linha tênue entre o erótico e o intimidante. Ele se
ajoelha na cama, bem diante de mim, entre minhas pernas. Suas
mãos forcam que eu me abra mais, quase que por completo, e eu
simplesmente me abro, deixando de lado 1% de vergonha que sinto
a cada vez que ele me encara desta maneira. Há um puta de um
gostoso completamente nu, com um pau que deveria virar escultura
e uma beleza de arrancar o fôlego... é nisso que foco.
Ele desliza as mãos em minhas panturrilhas e vai subindo
lentamente por minhas pernas. A quentura de suas mãos contrasta
deliciosamente com minha pele molhada, enviando ondas de calor
para o meu centro. Ele aperta minhas coxas e um som rouco
escapa de sua garganta, agarro a coberta abaixo de mim quando
ele se abaixa, preparando-se para me dar algo fantástico.

O primeiro contato de sua língua com o meu clitóris é delicado,


como se estivesse provando algo pela primeira vez e estivesse
incerto sobre sua ação. Minha pele se arrepia no instante em que
sinto o contato, tudo em mim passa a ansiar pela continuidade, por
mais.

O segundo contato é mais voraz, do tipo que provou e gostou o


bastante para querer me devorar. Ele se abaixa mais, agarra minhas
coxas com os braços, controla a abertura ideal da minha perna e eu
me torno uma bagunça intensa de sons, gemidos. Deixo a coberta
de lado e levo as mãos em seus cabelos, os agarrando forte e
descontroladamente. Impulsiono minha pélvis insanamente para sua
boca quando ele fecha os lábios em meu clitóris e o suga.

— Deus do céu... Henrico Davi! — Grito.

Perco o controle das minhas próprias pernas conforme ele continua.


Tremores disparam por elas, por meu ventre e minha barriga. Fecho
meus olhos quando o orgasmo surge, levando toda a minha
sanidade para uma outra dimensão. Arrebatador, como sempre foi,
e ainda mais intenso, devido a todo desejo reprimido.

Em uma situação normal, provavelmente meu desejo estaria um


pouco mais controlado. Mas, na atual circunstância, esse orgasmo
serviu apenas para abrir ainda mais o meu apetite, como se nada
que ele fizesse pudesse aplacar essa vontade.

— Sophie, sua boceta é gostosa pra caralho! — Diz, fazendo com


que eu abra os olhos e levante a cabeça o suficiente para conseguir
encará-lo. — A cada vez que a faço gozar me sinto o cara mais
incrível e mais capaz do mundo. Não que isso seja o principal
parâmetro, há muitas outras questões muito mais importantes do
que apenas fazê-la gozar, mas...

— Eu entendo você, bebecito. E eu quero sentar muito forte em seu


pau agora — aviso, ao mesmo tempo em que faço uma manobra e
consigo jogá-lo sobre a cama. — Eu até poderia retribuir o sexo oral,
mas serei bem egoísta hoje, Henrico Davi. Eu quero todo o prazer
que me foi negado nas últimas semanas. Quero ter tudo que desejo
e preciso.

— Você parece assustadora agora, Sophie. Quase gozei só por


chupá-la, vou gozar muito rápido quando foder meu pau. — Senhor
da glória! Eu amo essa boca suja! E amo ainda mais quando penso
estar no controle e Henrico rouba tudo para si. Será eu por cima,
mas é ele quem está me puxando para que eu execute o meu
trabalho da forma como quero. É no mínimo interessante sua
atitude, ressalta o quanto ele é um amante que não possui o mínimo
de egoísmo, o meu prazer é o prazer dele também.
Com sua ajuda, o monto, sentindo cada parte do seu majestoso pau
me invadir, centímetro por centímetro, numa doce tortura lenta,
enquanto Henrico mantém suas mãos fortemente em meu quadril,
tentando controlar o ritmo para que eu simplesmente não sente de
uma só vez. Parte de mim quer rir de sua preocupação, enquanto a
outra parte está apenas focada na sensação de tê-lo me alargando,
tão bom, tão gostoso, tão feito para mim.

— Que boceta gostosa, Sophie — Henrico diz, em um tom quente


pra caralho. Sua voz está levemente rouca e deliciosamente erótica.

— Que pau delicioso, Henrico Davi. Eu senti uma saudade insana


de tê-lo dentro de mim, de poder montá-lo, de fodê-lo com a minha
boceta — retribuo as palavras sujas, sentindo-me completamente
afetada e corajosa, tudo brinde do tesão acumulado.
Quando chego no limite e o tenho completamente enterrado em
mim, paraliso minha ação apenas para senti-lo pulsar
involuntariamente em meu interior. Ele quer gozar, mas sei que vai
tentar se controlar ao máximo para que isso demore um pouco mais.
Apoio minhas mãos em seu peitoral e sorrio. Eu o amo tanto, o
desejo tanto. Esse garoto/homem é a minha vida, o meu mundo
inteiro, juntos estamos indo em lugares que jamais imaginamos que
chegaríamos um dia.
Rebolo uma vez. Como um desesperado, Henrico simplesmente
agarra meus cabelos e beija a minha boca. Eu pensei que iria
cavalgá-lo como uma profissional de montaria, mas a atmosfera
simplesmente muda. Não fodemos como selvagens, mas nos
amamos com uma espécie de devoção, cada um demonstrando
como precisa do outro, como sentiu falta, como significa tanto.

Meu ritmo é quase lento, porém, extremamente prazeroso, como se


eu conseguisse contabilizar todos os suspiros que damos, todo o
fôlego que perdemos em determinados momentos. É olhando nos
olhos dele que meu corpo se liberta daquilo que mais precisava. Eu
gozo, derramando meu prazer e meu amor, por completo. Minha
pele se arrepia, sinto o leve gosto ferroso do sangue em minha boca
devido a morder fortemente o meu lábio inferior, ofego, choramingo,
sinto lágrimas queimarem meus olhos, e sigo... simplesmente sigo
rebolando, buscando mais, pedindo, implorando silenciosamente a
cada movimento do meu corpo.
E ele me dá.
Ele me faz sentir as melhores sensações do mundo. Derrama sobre
mim sua devoção, me preenche com o seu prazer, se permite
esquecer de todos os problemas e me faz crer que, a partir de
agora, só teremos soluções... que todos os problemas ficarão para
trás.
Tomamos mais um banho juntos, para nos livrarmos dos resquícios
do sexo mais intenso que já tivemos. Logo em seguida, na cama,
ele, gentilmente, retira meu piercing e o guarda, pontuando que
passará a contar os dias para que eu possa colocá-lo novamente.
“Então chame o meu nome (chame o meu nome)
Chame o meu nome quando eu te beijar tão suavemente”

TEMPOS DEPOIS
Dizer a verdade liberta. Não sei se algum pensador contemporâneo
já criou essa frase, mas é tudo que tenho vivido: a liberdade de ter
dito a todos e arrancado um peso imenso do meu coração. O
mesmo está acontecendo com Henrico, especialmente após a
primeira ultrassonografia do nosso bebê. Mas, acho que a libertação
foi muito além do que apenas dizer a verdade. Ele tem demonstrado
que se libertou de todos os receios que estavam o mantendo preso,
incapaz de encarar os fatos. Prova disso é sua animação, que
estava adormecida e agora está mais acordada que nunca!
A obra da nossa nova casa está chegando ao fim. Mais duas
semanas e então começará a fase de montagem dos moveis
planejados, que agora, às pressas, contas com um quarto de bebê
que será surpresa para mim.

Ademais, o nosso casamento irá acontecer em alguns dias. Não


adiaremos mais. E tem sido uma loucura resolver todas as questões
tendo pais tão loucos. Tio Lucca cismou que é organizador de festas
só porque organizava as festas dos filhos quando eram crianças,
meu pai está com ciúmes dele, sendo mais dramático do que
costuma ser. Do outro lado, tia Paula e minha mãe têm me ajudado
— longe da loucura dos dois.
Temos feito chamadas de vídeos para tomar decisões. Eu e Henrico
estamos fazendo todas as escolhas de longe, virtualmente, e elas
estão colocando a mão na massa para que tudo saia como estamos
planejando. Estou feliz por vê-las tão animadas em ajudar, em
alguns momentos até fico relaxada demais e permito que tomem
decisões por mim. Estou certa de que terei o melhor casamento,
inclusive, estou certa de que será infinitamente melhor do que teria
sido em Santorini.
Agora nos casaremos na ilha de Búzios, onde Henrico correu pela
primeira vez e onde vivemos momentos mágicos na infância (não
me esquecendo dos momentos onde testamos bases).

— Sophie, precisamos decidir o padrinho do nosso bebê —


Henrico diz, fazendo com que eu paralise o garfo diante da minha
boca. Acabamos de encerrar uma chamada de vídeo e agora
estamos jantando um delicioso strogonoff, que eu estava morrendo
de desejo.
— Quantos padrinhos nosso filho poderá ter? — Questiono.
— Dois padrinhos e duas madrinhas. Um casal para batismo e um
para consagração.
— Ufa! — digo. — Eu amo Samuel, quero muito que ele seja um
dos padrinhos. Ele esteve conosco uma vida inteira e tenho certeza
que estará com o nosso bebê para o que der e vier. Porém, eu
gostaria de ter meu irmão como padrinho também. Não que eu
queira aliviar a dor dele por ter perdido um filho... mas tenho certeza
absoluta de que o nosso bebê trará muita alegria para a vida de
Miguelito, ele ficará feliz e será o melhor tio dindo.
— Eu pensei em chamar Yaya para ser madrinha do nosso bebê
— revela, surpreendendo-me. — Eu não fui um irmão muito legal
ou próximo. A reneguei grande parte da vida por não saber como
lidar com ela. Agora estamos mais próximos e eu acho que seria
uma maneira de provar a ela que a amo. Eu acho que ela não
acredita muito nisso. Não posso culpá-la, sempre tivemos uma
relação difícil, na verdade, acho que não posso chamar de relação.
Quero que isso mude, que ela acredite que eu a amo e quero me
esforçar para estar mais próximo dela. Além disso, sei que ela é
uma garota incrível e que será uma madrinha muito boa para o
nosso bebê.
— Você é incrível pra caralho, menino mais bonito — sorrio,
animada. — Agora falta uma madrinha. Hadassa? Eu gosto muito
dela! E Samuel e ela estão muito apaixonados, vejo verdade nessa
relação, acho que eles serão como nós, ficarão juntos ao infinito e
além.
— Ninguém é como nós, Sophie. — Suas palavras me pegam
desprevenida. Ele as disse tão intensamente, atingindo a
profundidade. — Ninguém é, nem mesmo será como nós. O que
somos e o que temos, ninguém mais pode alcançar.
— Eu te amo tanto — digo, deixando que lágrimas desçam pelos
meus olhos.
— Você chora o tempo inteiro, Sophie — diz, com um sorriso lindo
no rosto. — Está muito sensível, menina mais bonita.
— Eu amo a nossa história, amo o que estamos construindo, amo
que você me ame de volta. Está certo, ninguém nunca será como
nós.
— Eu te amo antes mesmo de entender sobre o amor — declara.
— Mas acho que Samuel e Hadassa serão para sempre, então
estou de acordo em convidá-la para ser madrinha do nosso bebê,
embora ela seja tão louco quanto Samuel.
— Gosto da loucura dela — afirmo, sorrindo. — Ela faz o estilo
maluca beleza, então está tudo bem.

Ainda estamos comendo quando o interfone toca. Ao abrir a porta, o


tornado chamado Samuel surge, com toda a sua impetuosidade e
insanidade.
— Aooooo, meu povo! Qual o rango? — Pergunta, e logo se junta a
nós na mesa. — Mentira, acabei de jantar na fazenda de Hadassa.
Eu não vim aqui para roubar, matar ou destruir, vim aqui para intimar
Henrico a uma despedida de solteiro. — O encarro fixamente,
sentindo o sangue tomar pouco a pouco meus olhos.
— Não quero uma despedida de solteiro — Henrico informa. — Não
gosto de festas e tudo mais. Prefiro não ter uma despedida de
solteiro. — Sorrio para Samuel, que arqueia as duas sobrancelhas
como se estivesse me desafiando.
— Sophie tem uma boceta vodu! Henrico parece um monge. — Diz,
gargalhando. — Qual é... é só um porre. Só se vive uma vez.
— Provavelmente você bateu com a cabeça. Henrico não curte
tomar porres, você sabe.
— Teremos uma noite dos meninos, mesmo que eu precise raptá-lo
— informa. — É sobre isso, e tá tudo bem!
— Não quero mais que ele seja padrinho do nosso bebê. Inclusive,
estou repensando sobre ser padrinho de casamento. Talvez eu deva
desconvidá-lo. — Digo a Henrico e o riso de Samuel morre.
— Eu... — Sorrio ao vê-lo com os olhos cheios de lágrimas. — Eu
serei padrinho do filho ou filha de vocês?
— Seria... do verbo não será mais — brinco.
— Para! Ninguém aqui está interessado em uma despedida de
solteiro — diz, limpando as lágrimas que agora estão caindo dos
seus olhos. — Eu serei padrinho? É mesmo sério? Ou é uma
pegadinha?
— Você e Yaya — respondo, observando os olhos dele se moverem
para Henrico. Ele fica de pé, puxa Henrico pela camisa, fazendo
com que meu menino mais bonito fique de pé também, e então o
envolve em um abraço esmagador. Novamente estou chorando,
INFERNO! Samuel está soluçando, Henrico engolindo em seco.
— Eu serei o melhor padrinho para essa criança, juro por Deus e
estou falando mesmo sério. — Ele solta Henrico e então vem até
mim, repetindo o feito. Sou esmagada por seus braços fortes. — Eu
te amo muito, Soso. Acredite, se existe alguém no mundo feliz por
vê-los vivendo tudo isso, esse alguém sou eu. Serei o melhor dindo,
prometo a você. Até vou parar de beber para poder dar exemplo...
depois que eles nascer, é claro. Muito obrigado por confiar em mim.
— Nós te amamos, ao infinito e além! — Declaro.
Ele se afasta e volta a olhar para Henrico.
— Nossa irmã ficará feliz pra caralho! Ela esperou uma vida toda
para ser sua amiga, por essa proximidade. Isso significa muito,
Henrico.
— Eu sei. Queremos que Hadassa seja madrinha dele também.
Você, Hadassa, Yaya e Miguelito. — Henrico especifica. — Acho
que você e Hadassa serão para sempre. — Samuel ri.
— Eu também acho. Gosto mesmo dela. Você diz que Sophie é o
seu encaixe, Hadassa é o meu. A nossa loucura combina —
declara, todo apaixonado. — Ela vai amar ser dinda. Estaremos
fodidos. Ela vai transformar o bebê em fashionista, como ela
costuma dizer. Agora sim, vou lá no bar do tião tomar um porre para
comemorar! Serei padrinho do meu afilhado...
— Mas isso é óbvio, não? — Henrico questiona. — Se você será
padrinho, obviamente será de um afilhado ou afilhada.
— Vocês entenderam! Até mais e obrigado! — Ele sai no mesmo
rompante que entrou. Henrico fica alguns segundos com a testa
franzida, tentando compreender o irmão. Ninguém explica Samuel,
absolutamente ninguém.

Lavamos as louças, escovamos os dentes e então ficamos


assistindo filme até dar o momento da “foda pós janta”. Que Deus
me perdoe!
— Oi, irmãozinho — Yaya diz sorridente, assim que atende a
chamada de vídeo. — Qual o acontecimento catastrófico que por
trás desta chamada de vídeo? Você nunca faz isso.

— Eu sei, me perdoe por ser como sou, Yasmin. Estou me


esforçando, você sabe que já evoluí bastante em nossa relação.
— Sim, eu sei. Não quis cobrá-lo, me desculpa por isso também. Eu
te amo muito e sinto sua falta, mesmo que não tenhamos tido um
relacionamento tão próximo ao longo da vida.
— Eu também amo você e é por isso que estou fazendo essa
chamada de vídeo. Nunca fomos tão próximos, quero mais
proximidade com você. Mesmo que eu não tenha sido o melhor
irmão, sei que você é uma irmã e uma mulher incrível, não teria
como ser diferente, você é filha dos meus pais.
— Está um pouco confuso.
— Eu quero que seja madrinha da sua sobrinha ou sobrinho, tipo
“tia dinda”. — Yasmin fica me encarando, parece que não está
acreditando no meu convite. Fico ligeiramente sem saber como
continuar conduzindo a conversa. O silêncio dela me deixa perdido.
Piora quando ela começa a chorar. Yasmin chora tanto, que minha
mãe surge para ampará-la.
— Henrico? — Minha mãe questiona, olhando assustada pela
câmera. — O que houve?
— Oi mãe, eu apenas convidei Yasmin para ser madrinha do meu
bebê. — Minha mãe parece em choque. Simplesmente ela se junta
a minha irmã e as duas choram juntas. — Mãe, eu não como agir
— confesso, levemente desesperado.
— É apenas choro de emoção, filho. Apenas emoção. Essa notícia
é incrível! — Exclama.
— Eu aceito — Yaya responde. — Eu te amo, amo Sophie e vou
amar meu afilhado ou afilhada.
Sorrio, aliviado e certo de que acabei de fazer a coisa certa.
Parece que é mesmo uma grande coisa, Luiz Miguel, Hadassa,
Yaya, Samuel... todos eles choraram com o convite. Sophie e eu
acertamos.
“Quando eu te seguro em meus braços
Não há nada comum sobre nós
Eu vejo todas as suas falhas e imperfeições
Mas isso é o que me faz te amar mais”

— Bom dia, marido! — Uma mensagem de Sophie me desperta


para o grande dia. Eu leio e releio...

Uma...

Duas...

Três vezes.

Tudo se parece como um sonho. Ao menos é essa a sensação que


tenho a cada vez que penso em tudo que está acontecendo em
minha vida. Não faz muito tempo, eu estava imerso em uma prisão
psicológica. Todos os gatilhos, todas as limitações, me impediam de
ter qualquer perspectiva boa em relação a vida. Sophie? Era apenas
um sonho, que se mantinha bem distante e guardado dentro do meu
coração e da minha mente. Eu temia. Vivia aterrorizado. Me
questionava se Sophie tinha algum garoto, se havia alguém
beijando a minha menina mais bonita do mundo. Sofri muito por
Sophie. Sofri em silêncio. Em alguns momentos, deixando de ser
literal, a dor parecia capaz de rasgar meu peito, parecia capaz de
fazer meu coração sangrar. Eu não sabia, não fazia ideia de que ela
sentia a mesma dor que fazia o meu coração sangrar. Não
imaginava que ela estava me esperando. Não suspeitava que todas
as nossas primeiras vezes seriam juntas.

Eu beijei Sophie. Ela me beijou de volta. Ela disse que me amou


uma vida toda, assim como eu a amei e seguirei amando.

O beijo deixou de ser o suficiente. Nós fomos para as bases.


Passamos por todas elas e então descobrimos o prazer juntos, o
prazer um no outro. E esse prazer nos levou além.

Sophie carrega um filho meu em seu ventre.

Sophie vai se casar comigo.

Nós estamos construindo uma família só nossa — que nunca será


apenas “só nossa”. E está tudo bem. Seria imperdoável não
dividirmos a família que estamos construindo com a família que nos
guiou e nos amparou até aqui.

Ainda me sinto aterrorizado em muitos momentos, especialmente


nos que penso em nosso bebê. Estou munido de coragem, mas o
medo também está aqui. Ele não sobressai, mas está aqui,
escondido em um lugar onde só eu posso alcançar, guardado em
segredo absoluto. Ainda temo pela paternidade, muito. Mas, a cada
vez que olho para Sophie, eu tenho uma sensação forte de que
posso fazer isso, de que poderei exercer a paternidade. Eu vou
vencer dia após dias, por ela, por nosso bebê, pela nossa felicidade.
Desde que se tornou um pouco mais fácil aceitar a novidade, eu
tenho desafiado a mim mesmo, desafiado a minha mente.

Seguirei me desafiando.
A minha vontade sobressai ao medo e à todas as forças que tentam
me levar para um lugar onde não me sinto mais confortável. A zona
de conforto em que o medo me mantinha é extremamente
desconfortável agora.

Eu respondo sua mensagem. Digo a ela que ainda não somos


marido e mulher, porém, estou ansioso para fazer isto acontecer. Ela
responde dizendo que está ansiosa para a lua de mel.

Há 5 dias não a vejo. Estou ansioso também, por esse e por outros
motivos. Eu quero vê-la vestida de noiva. Meu pau endurece muito a
cada vez que a imagino usando um vestido de noiva. Talvez isso
seja um grande pecado, mas não vou fingir santidade. Se querer
foder minha esposa vestida de noiva faz de mim um pecador, eu
aceito qualquer que seja a sentença.

Batidas na porta fazem com que eu me levante rapidamente.


Samuel e meu pai invadem o quarto com uma animação que poucas
pessoas conseguem ter em uma manhã.

— Aooooo chão moiado! — Os dois gritam juntos e, por incrível que


pareça, não foi combinado. — É hoje!!!! — Meu pai exalta. — Você
não sabe o quanto eu caminhei para chegar até aqui.

— Foi muito chão moiado até chegarmos aqui. — Samuel diz, e eu


percebo que já há toda uma emoção em torno do dia de hoje.

Optei por um casamento muito íntimo, com poucas pessoas. Há


aqui somente meus pais, os pais de Sophie, nossos avós, nossos
irmãos, alguns dos nossos tios e primos. Não passam de 40
convidados, e para mim já é o bastante. Eu preferia uma cerimônia
onde só estivesse Sophie e eu, mas, novamente, seria imperdoável
negar a presença das pessoas que sempre torceram por nós, assim
como seria imperdoável não dar um casamento digno à Sophie.
Estou cumprimentando eles quando surge uma funcionária trazendo
um carrinho cheio de comidas. Ela é rápida, apenas deixa o carrinho
e se vai. Eu agradeço internamente por isso.

— E então... como está o coração hoje? — Meu pai pergunta,


enquanto nos acomodamos em uma mesa no próprio quarto.

— Está bem. Estou um pouco ansioso e sentindo falta de Sophie,


mas sei que faltam apenas algumas horas para eu revê-la.

— Sophie está tendo um dia de noiva. Está cercada por um bando


de mulheres insanas, tia Paula, tia Melinda, tia Ava, Eva... —
Samuel comenta. — Já tio Victor, está chorando desde que acordou.
Vô Theus já deu uns 6 tapas na cabeça dele.

— Por que ele está chorando? — Questiono, curioso.

— Emoção. Sabe, o que irá acontecer no dia de hoje é o sonho de


um pai. Victor está entregando a filha para um garoto exemplar que
a ama com devoção, ele está entregando a filha para o grande amor
da vida dela. É tão raro encontrar um amor como o seu e de Sophie
— meu pai diz, visivelmente emocionado. — Então, esteja
preparado. Hoje você verá muitas pessoas chorando, mas serão
lágrimas de felicidade, por uma das histórias mais lindas de amor
que um Albuquerque já viveu.

— Eu não sou um Albuquerque, mas me considero um, então


compreendo o que quis dizer, pai.

— Sabe o que acabei de me lembrar? — Meu pai pergunta. Nego


com a cabeça. — Eu me casei com a sua mãe aqui, no mesmo local
onde você e Sophie dirão o grande SIM. Bom, mas não foi isso... eu
me lembro perfeitamente de um momento específico. Quando
Sophie surgiu segurando sua mão e os dois levaram as alianças até
o altar. Estavam vestidos como mini noivos. Soso estava segurando
sua mão tão forte, dando passos lentos e certeiros, tudo pensando
em sua coordenação motora, que era bastante frágil naquela época.
Nenhum incidente aconteceu. Foi o momento mais incrível. Ali,
quando vocês ainda eram jovens demais para entender qualquer
coisa relacionada ao mundo dos adultos, à relacionamentos, eu já
sabia... vocês estariam de mãos dadas pelo resto da vida.

— Você disse uma frase que carrego comigo e que foi muito
importante — digo e ele parece surpreso por eu me lembrar. —
Você disse “você pode fazer isso”, e, desde aquele dia, essas
palavras se transformaram em uma espécie de mantra. Eu digo para
mim todos os dias que eu “posso fazer isso”. E há um mundo inteiro
de possibilidades nesse “isso”.

— Há — ele concorda. — E há um mundo inteiro de felicidade em


mim e em sua mãe.

— E em todos que amam vocês — Samuel acrescenta.

— Eu realmente preciso ver Sophie — informo, ficando de pé e


saindo em busca dela.

— Você não pode ir até Sophie — Samuel grita, tentando me


impedir. Meu pai o detém.

— Ele pode. Ele pode fazer isso. — Suas palavras me impulsionam


e apenas sigo.
”Hoje eu olhei pra você

E vi à beça

O gozo, a ginga, a luz

O som, a festa

Reparo em corte de cena

Ponta, planta, mesa

Recorte inteiro de um amor completo”

Estou cercada de pessoas quando a porta se abre violentamente,


assustando a todas. Sentada em uma cadeira giratória, eu me viro
para encontrar um Henrico um pouco descompensado. Ele não
precisa dizer nada. Eu digo por ele.

— Vocês podem nos deixar a sós? — Peço. Surpreendentemente,


todos saem, inclusive tia Paula, que parece extremamente curiosa
para saber o que o filho está fazendo aqui. Ela apenas faz um
carinho no rosto dele e nos deixa.

Eu ignoro o fato de estar com a cabeça lotada de bobs e vestindo


um roupão enorme bordado com a palavra “bridge”. Ignoro que
estou uma bagunça e apenas fico de pé, dando total atenção a
Henrico e sentindo meu corpo queimar de um minuto para o outro.

O calor aumenta quando ele entra e fecha a porta atrás de si, com
chave. Engulo em seco quando seu olhar volta para mim.

— Não venha me dizer que desistiu do casamento... — digo, com a


voz trêmula, tentando quebrar o clima de tensão.

— Você não precisa de nada dessas coisas — diz, apontando para


a minha cabeça e então para os vários carrinhos repletos de
maquiagens. — Você é a menina mais bonita do universo, Sophie.
Nada e ninguém supera você. Você é a mais bonita, muito além do
infinito. — Sorrio.

— O que está fazendo aqui?

— Eu te amo muito — declara. O vejo seguir me observando,


enquanto seu pomo de adão sobe e desce. — Não sei o que estou
fazendo aqui, mas sei que não conseguiria enfrentar o dia de hoje
se ficasse mais alguns minutos sem vê-la. — Revela. — Não é
sobre me casar com você... é só que há pessoas diferentes e
então... eu precisava vê-la...porque... — Eu me jogo sobre ele e o
beijo, calando sua boca e todas as explicações que querem sair
dela. Não preciso de explicações, só preciso dele.

Quando nossos lábios colidem, parece que o mundo parou neste


momento. Não o beijo com delicadeza alguma. O beijo daquele
nosso jeito insano. Aliás, beijá-lo delicadamente tem sido cada vez
mais difícil. Eu culpo os hormônios, mas, mesmo antes de estar
grávida, o delicado não estava acontecendo. O beijo de Henrico é
viciante o bastante e me leva a beira do abismo, onde me jogo muito
facilmente.

Suas mãos passam a explorar meu corpo. Ele desfaz o laço do meu
roupão e me encontra completamente nua por baixo dele.

— Vou te comer, Sophie. Foda-se! Você está nua e estou louco


para enfiar meu pau em sua boceta.

— Só vem! Só me come! — Imploro, esfregando-me em sua


ereção.

Ele vai me empurrando até alcançarmos a cama. Ele está prestes a


me devorar com sua boca quando batidas fortes na porta
exterminam o momento.
Ele se afasta abruptamente e se senta, usando uma almofada para
cobrir algo que está em bastante evidência agora. Eu fico de pé e
tento me recompor, querendo matar a pessoa do outro lado da
porta.

Eu a abro e Victor Albuquerque entra, trazendo todo seu drama de


companhia. Ele me analisa, solta um suspiro e encara Henrico.

— Nem mesmo irei questionar sobre essa almofada.

— Me desculpe por isso Há cinco dias não vejo Sophie, não sou
capaz de conter as reações. — Henrico diz. Pressiono meus lábios
fortemente, tentando não rir.

— Sem mais detalhes, Henrico. — Meu pai pede, passando as


mãos no rosto. — Sophie, há profissionais ali fora esperando sua
boa vontade. Vocês terão muito tempo para fornicar.

— Fornicar? — Questiono, deixando uma gargalhada escapar.

— Fornicar e um verbo transitivo direto e intransitivo, que significa


ter relações sexuais. No sentido religioso, significa ter relações
sexuais pecaminosas fora do casamento, cometer o pecado da
carne. — Henrico explica.

— Sim, eu sei, mas...

— Chega! — Meu pai nos corta. — Eu só quero ter o privilegio de


levar minha filha ao altar, devidamente arrumada. Não vão me tirar
isso. Vocês terão a noite toda para fazerem essa merda.

— Você chama de merda o que você e mamãe fazem... — me calo


assim que ele me dirige um olhar bastante intimidador. — Desculpa,
pai... ok. Henrico, ele está certo. Nos pegaremos mais tarde.
— Que?

— Mais tarde fornicaremos. — Explico. — Eu te amo, menino mais


bonito, mas é melhor você ir agora, para o nosso próprio bem. —
Henrico fica de pé, suspira frustrado e sai, levando a almofada como
escudo.

Meu pai me dá um beijo carinhoso na testa e também se vai. Logo,


eu volto a mergulhar no meu dia de noiva, contando cada segundo
para reencontrar meu bebecito.

Faltando poucos minutos para a cerimônia, eu recebo algo que faz


as batidas do meu coração falharem...

“Provavelmente ficarei mudo em nosso casamento, gastarei toda energia que


possuo para dizer o SIM e, então, apenas aguardarei que a cerimônia termine
para que você possa ser minha para todo o sempre, longe de todos os olhares,
longe de todos os convidados. Eu sei que você me entende, assim como sei que
entenderá o meu silêncio. Eu não sei fazer declarações públicas, detesto ter
dezenas de olhares direcionados a mim, tenho pânico de estar em evidência. É
assim que sou, é assim que minha mente me faz ser. E, está tudo bem que eu
seja assim, há certas limitações que não precisam ser vencidas, que não são tão
importantes assim. Mas, isso não vem ao caso. Eu apenas não me perdoaria se a
deixasse sem os votos de casamento; não aqueles votos dos casamentos
tradicionais, onde os padres fazem o casal repetir o tal “na alegria e na tristeza, na
saúde e na pobreza”. Estou falando de outros votos. De acordo com o que
descobri em pesquisas, o costume dos votos surgiu em torno de 1542 na
Inglaterra. Na época, a igreja escrevia e oferecia algumas opções de votos para
os noivos repetirem na cerimônia. Os votos destacavam a fidelidade, honra,
respeito, a importância da união na alegria e na tristeza, na saúde e na doença,
na riqueza e na pobreza, com o objetivo de mostrar aos noivos que a vida a dois
seria permeada de momentos altos e baixos, mas que eles deveriam ter
consciência de que estavam selando um compromisso de amor e
companheirismo a partir daquela celebração. Porém, atualmente, os votos são
também usados para traduzir um pouco da história ou sentimento do casal. É
esse o ponto. Eu não sou capaz de traduzir o que sinto tendo tantas pessoas em
volta, mas sou capaz de fazer isso para a única pessoa que interessa saber: você.

Anos atrás, caminhamos de mãos dadas pelo mesmo lugar que iremos caminhar
hoje. Naquele dia, caminhamos assim para levarmos as alianças até meu pai e
minha mãe. Isso é louco, não é mesmo? Em minha mente tudo isso tem parecido
um filme de romance, porque parece surreal o bastante que eu esteja indo me
casar com a menina que me deu a mão e me ajudou a caminhar até o altar,
quando meus passos eram frágeis e inseguros. Hoje será a minha mãe me
levando até lá, caminhando de mãos dadas comigo. A diferença é que agora
meus passos são firmes, decididos e, mesmo que eu esteja morrendo de
ansiedade, nada será capaz de fazer com que eles vacilem. Em poucos minutos
irei encontrá-la, encaixaremos nossas mãos da maneira perfeita e caminharemos
de mãos dadas para nos tornarmos marido e mulher. Eu mal posso respirar agora,
imaginando essa cena.

Eu sou grato, Sophie. Infinitamente.

Por tudo que você é, por tudo que fez por mim, por ter me esperado, por ter
corrido comigo, por me impulsionar todos os dias — mesmo sem se dar conta.
Todos os dias seu amor me encoraja. Eu sempre farei o possível e vencerei o
impossível para fazê-la feliz, para protegê-la, para cuidar do nosso bebê.

Te amo mais do que as palavras podem dizer. Te amo ao infinito e além.

Henrico Davi – seu marido. “


“Eu morri todos os dias esperando você

Eu te amei por mil anos

Eu te amarei por mais mil

Terei coragem

Não deixarei nada levar embora

O que está na minha frente

Cada suspiro, cada momento trouxe a isso”

Todos os convidados já foram para o local onde a cerimônia


acontecerá. Estou sozinha no quarto, aguardando meu pai. Não
quero chorar, mas há um nó em minha garganta pontuando o
quanto isso será impossível. É a realização do maior sonho da
minha vida, daquele que larguei tudo para mergulhar e viver
intensamente.
Deu certo. Está indo acontecer. Eu vou me casar com Henrico. Eu
vou me casar com o menino mais bonito do mundo inteiro!

Um movimento em minha barriga faz com que eu engula esse nó e


leve as mãos até ela. Há um alguém aqui dentro, participando de
todas as emoções que a mamãe está sentindo. Meu filho ou minha
filha. Ele ou ela, está absorvendo toda a felicidade e todo amor do
mundo, porque são só sentimentos bons dentro de mim,
transbordando.

Sigo até o enorme espelho que há no quarto e fico me observando.


Eu me sinto como uma verdadeira princesa. O vestido ajuda. Optei
por um modelo “princesa”, bem acinturado, com a parte de cima
justa até a cintura, e com uma saia volumosa, semelhante aos que
vemos nos contos de fadas. Ele é levemente decotado, tomara que
caia e conta com uma aplicação de flores delicadas em 3D, que dá
todo um toque de romantismo à peca. Meus cabelos estão soltos, e
em minha cabeça há uma tiara de cristais Swarovski realmente
linda. Seguindo com a minha autoanálise, foco em minha barriga,
ansiosa para que ela cresça logo. Estou perdida em pensamentos
quando vejo meu pai pelo reflexo do espelho.

— Uau! — Ele diz. Eu me viro de frente e o encaro. — Nenhuma


palavra que eu diga será o suficiente, Sophie. Eu só senti algo
parecido quando me casei com a sua mãe. Você está linda pra
caralho, como a verdadeira princesa que sempre foi e ainda mais.
— Sorrio. — Chegou a hora, filha, e, por mais que eu sinta uma leve
dorzinha por ser apegado demais, eu não poderia estar mais feliz.
Acho que todos os pais sonham com o melhor para seus filhos, e sei
que o Henrico é o melhor para você. Eu tirei a sorte grande por ter a
minha princesinha se casando com um garoto excepcional. Isso
torna tudo mais fácil. Estou feliz por presenciar a realização de um
sonho no dia de hoje. Mas, não vou ficar falando muito. Você sabe
tudo o que sinto e tudo o que desejo a você, filha. Siga sendo feliz e
conte sempre comigo. Nunca se esqueça que estarei com você
enquanto meu coração bater.
— Eu te amo muito, papai! — O abraço, permitindo que as lágrimas
desçam. — Você e mamãe são os melhores pais do universo, eu os
amo acima de tudo.

— Limpe essas lágrimas e vamos, antes que Henrico surja aqui. —


Sorrio e faço o que ele sugeriu, após ganhar um beijo delicado na
testa.

Ao abrir a porta, sinto um friozinho na barriga que achei que não iria
sentir. É necessário que eu respire fundo algumas vezes em busca
de um controle emocional. De braços dados com meu pai, caminho
pelo jardim, que está tomado de flores brancas que formam um lindo
contraste com o verde. A decoração está impecável, muito além do
que imaginei que ficaria.

A cada passo que damos, mais nervosa fico, especialmente quando


nos aproximamos do local onde todas as pessoas mais importantes
estão esperando por mim. O som de uma melodia suave anuncia
que o momento chegou. Fecho meus olhos e dou os últimos passos
assim. Sinto meu pai apertar minha mão um pouco mais forte...

— Filha, chegou o momento — anuncia. — Abra os olhos e seja


feliz.

IMPOSSÍVEL segurar as lágrimas assim que abro os olhos e vejo


Henrico há alguns metros de distância aguardando por mim. Eu me
odeio por caminhar chorando e por saber que todas as fotos ficarão
horríveis.

Meu pai me guia por mais alguns passos, até Henrico se aproximar.
Eu olho para os dois homens da minha vida e não consigo
descrever o que sinto.

— Está entregue, companheiro — meu pai diz a Henrico. — Eu sei


que a fará feliz. Eu te amo, moleque! — Surpreendo-me ao ver
Henrico abraçá-lo.
— Eu prometo cuidar de Sophie e do nosso bebê, tio Victor. — Meu
pai acena positivamente com a cabeça e se afasta, então Henrico
pega minha mão e apenas a segura fortemente enquanto parece
memorizar cada detalhe de mim.

— Sophie, você é a menina mais bonita do mundo vestida de noiva


— elogia.

— E você é o menino mais bonito do mundo vestido de noivo —


digo. Ele está vestindo um terno preto, com uma camisa branca por
baixo e uma gravata borboleta, seu cabelo está com um novo corte
e sua barba está aparada. PUTA MERDA! Eu nunca o vi tão sexy
antes. Ele conseguiu se superar e estou completamente
apaixonada. É como se não houvesse mais ninguém nos
observando e como se o mundo tivesse parado neste momento.

Henrico entrelaça nossos dedos e me conduz ao altar, onde há um


padre já conhecido pela família nos aguardando. Meu noivo não o
encara. Henrico simplesmente passa toda a cerimônia com os olhos
fixados em mim, de uma maneira intimidante o bastante. Ele parece
agir programado e parece só enxergar a mim. Seu olhar só se move
no momento da troca de alianças, quando, do nada, Samuel surge
como pajem, fazendo graça e trazendo a caixinha até nós.

— Eu amo vocês, porra! — Exalta, esquecendo que diante de nós


há um padre. Damos um abraço triplo, somos inseparáveis desde
que me entendo por gente e nos amamos incondicionalmente.

Sob uma chuva de pétalas de rosas brancas, Henrico e eu selamos


a nossa união.

Não.

Não selamos.
Sob uma chuva de pétalas de rosas brancas, reafirmamos nossa
união. Da infância para o resto dos nossos dias!

É tudo questão de saber esperar. Tudo que é valioso demorar a


acontecer e é tudo no tempo de Deus.

“O que vale a pena possuir, vale a pena esperar.”

Henrico e eu decidimos passar a nossa lua de mel aqui na casa de


Búzios mesmo. Após a recepção, nosso familiares irão embora e
ficaremos apenas nós dois por alguns dias. Queríamos ir para
Santorini — recuperar a viagem perdida, visto que mal tivemos
chance de aproveitar o local na primeira tentativa de casamento —
mas decidimos adiar devido a gestação. Faremos essa viagem
quando nos sentirmos confortáveis para deixar nosso bebê aos
cuidados de outra pessoa, e aí poderemos aproveitar muito mais,
poderei tomar ao menos algumas taças de champanhe com o meu
marido.

Nosso casamento foi perfeito, tudo correu da melhor maneira,


respeitando as limitações de Henrico e sendo fiel a tudo que
sonhamos.
“Querida, este amor, eu nunca vou deixar morrer

Não pode ser tocado por ninguém, eu gostaria de vê-los tentar

Eu sou louco pelo seu toque

Eu vou fazer isso durar para sempre

Não me diga que é impossível

Porque eu te amo até o infinito

Eu te amo até o infinito”

TEMPOS DEPOIS

— Eu decidi que quero ter um parto humanizado, em casa. —


Informo à médica e deixo Henrico em choque. — Estive
pesquisando...

— Sophie...
— Deixe-me falar — peço. — Por todas as pesquisas que fiz, pela
minha saúde, eu acredito que será o melhor para mim, melhor para
nós. Eu poderia ter parto humanizado em um hospital também,
mas... após pensar e repensar, eu decidi que quero ter o meu bebê
em casa, em um parto humanizado, com a devida assistência em
caso de necessidade e com uma base de apoio forte. Quero você,
minha mãe, tia Paula, uma doula, a doutora e uma pediatra. Quero
ser protagonista do nascimento do nosso bebê e preciso que minha
vontade seja respeitada e apoiada.

Na verdade, embora essa seja a melhor opção para mim e para o


bebê, estou pensando em Henrico também. Acho que desta forma
será muito mais fácil para ele, acredito que assim ele poderá ser
muito mais participativo. É por mim, pelo bebê e por ele. Além disso,
poderei escolher pessoas para estarem comigo neste momento. No
hospital, estaríamos apenas nós dois e uma equipe médica, em
casa poderei ter mais apoio familiar.

— Henrico, é uma boa decisão. — A médica diz a ele. — É muito


mais saudável para Sophie e para o bebê que seja desta forma.
Acho que será melhor para você também. Sophie é jovem,
felizmente muito saudável.

— Sophie... isso é por mim? Eu posso enfrentar um hospital e ...

— Eu sei que pode, mas acredito que da forma que escolhi, será
melhor para todos nós. Nós podemos debater mais sobre isso em
casa. — Ele acena positivamente com a cabeça e eu seguro sua
mão.

— Agora vamos tentar descobrir se é um menininho ou uma


menininha — a médica diz, visivelmente tentando quebrar o clima
de tensão que se instalou.

Em poucos minutos estou sobre a maca e ela está movimentando o


aparelho por minha barriga. Agora estou ligeiramente ansiosa e
Henrico extremamente atento ao monitor.

— Aqui está! — Anuncia e eu olho para tela. É surpreendente como


médicos conseguem ver coisas que nós, meros pacientes, não
conseguimos. Não vejo um piruzinho ou uma pepequinha. — Bom,
mamãe e papai, há aqui uma linda menininha! — Comunica e eu
quase salto da maca. Não consigo conter a emoção. Uma mini eu!

— Oh! Meu Deus!!!!!! — Exclamo, chorando para manter o costume.


— Uma menina, bebecito! Uma menininha nossa!

— É ... incrível! Sophie! — Ele diz, apertando minha mão


fortemente. — Uma menina nossa...— Meu marido agora parece em
outra dimensão. Henrico sempre fica assim em todas as ultras. Ele
está com os olhos marejados, engolindo em seco. Enquanto eu
estou quase dando saltos de alegria. Ficaria da mesma forma se
fosse um menininho, mas agora terei todo um mundo rosa. Hadassa
vai enlouquecer! Já consigo vislumbrar o futuro, onde minha filha
será a bebê mais fashionista do universo, além de se tornar uma
mini influencer. Minha mãe, tia Paula, Yaya... meu Deus! Essa
garotinha será extremamente mimada e amada por todos. É a
primeira vez que me encontro realmente ansiosa para dar a luz. Eu
duvido que exista alguém mais feliz que eu neste mundo! Obrigada,
Papai do céu, por realizar todos os meus sonhos!

Uma menina.

Pesquisas apontam que a cada quatro pessoas com Transtorno do


Espectro Autista (TEA), apenas uma é mulher, segundo a edição
mais recente do relatório bianual do Centro de Controle e Prevenção
de Doenças (CDC), dos EUA. Existem duas possíveis possibilidades
sobre essa diferença. A primeira considera que o transtorno
realmente atinge mais homens. Outra hipótese é que as mulheres
são atingidas de forma diferente e, por causa disso, o diagnóstico
não é concluído como autismo.

Um estudo publicado pelo JAMA Psychiatry no último dia 17 de julho


(2019) confirmou que 97% a 99% dos casos de autismo têm causa
genética, sendo 81% hereditário. Há outras centenas de pesquisas
que apontam com segurança que o autismo é genético, mas me
perguntei por muito tempo como é genético se não há ninguém com
essa condição na família? A resposta é: o autismo pode ser
causado por uma única alteração genética, por uma combinação de
alterações genéticas, ou ainda, por uma associação entre alterações
genéticas mais fatores ambientais, que chamamos de modelos de
herança. Mas, não é sobre isso... Agora há muitos pensamentos em
minha mente turbulenta, de forma que preciso ficar um pouco
sozinho para organizar todas as informações. A impressão que
tenho é de que há um computador em minha cabeça e que ele está
rodando muito rapidamente centenas de fatos, pesquisas e tudo
mais.

O autismo é um transtorno fortemente genético, com uma


herdabilidade estimada de mais de 90%, isso é muito difícil para eu
lidar. Eu prometi que não pensaria nisso, mas é impossível quando
há grandes chances da minha filha nascer com TEA.

Eu não consigo conversar com Sophie, aliás, é ela quem está


dirigindo o carro e nos levando para casa. Não consigo fazer
atividades arriscadas quando minha mente está um turbilhão.

— Você está tenso por conta do parto? — Ela pergunta. Sinto que
preciso respondê-la, para que ela não pense que não estou feliz ou
que sou contra suas escolhas. É o corpo dela, é ela quem precisa
tomar a decisão do parto.
— Não. Eu apoio sua escolha, especialmente porque é você
gerando nossa filha e você quem passará pelo parto. Estou feliz por
ser uma menina, só que... você sabe que temo que ela nasça com o
transtorno, temo que sua vida seja limitada como a minha foi
durante grande parte. Mas, estou quieto apenas por excesso de
pensamentos, Sophie. Aconteça o que acontecer, nós seremos os
melhores pais para ela e enfrentaremos qualquer obstáculo.

— Eu sei que será o melhor pai, Henrico Davi, meu menino mais
bonito do mundo! — Ela faz com que eu me sinta verdadeiramente
capaz.

DIAS DEPOIS

Há três meses Sophie e eu nos mudamos para a nossa casa,


aquela que projetei especialmente para nós. Contamos com a ajuda
de duas funcionárias para nos ajudar, mas é Sophie quem lida
diretamente com elas. Ainda estou me adaptando a ter novas
pessoas dentro da nossa casa, mesmo que seja apenas por
algumas horas do dia.

Em nossa casa, há pontos específicos onde podemos ver o nascer


e o pôr do sol, e, neste momento, minha linda esposa está deitada
em uma chaise long, diante da enorme vidraça com vista para o
jardim, observando o sol se pôr. Ela está absurdamente linda e eu
registro a imagem na mente para que eu possa reproduzi-la em um
quadro. Sophie está vestindo um vestido branco, seus cabelos estão
caídos do lado direito do ombro, suas mãos estão sobre a barriga e
seu olhar está distante. Seu semblante está tão calmo, que eu
poderia facilmente dizer que ela está sonolenta.

Estou feliz por minha esposa estar tendo uma gestação tranquila e
feliz, regada de amor, sonhos e tudo que ela merece. Ela está
radiante e conseguiu ficar ainda mais perfeita portando uma enorme
barriga.

Nossa filha se chamará Alice, e tudo está pronto para sua chegada.
Agora nos resta aguardar.

— Ei, menino mais bonito do mundo inteiro. Ficará aí me


observando por quanto tempo? — pergunta, pegando-me em
flagrante.

— Acho que você já pode ver o quarto de Alice, princesa. — Ela


sorri e se levanta, demonstrando total animação. Eu quis
surpreendê-la, uma maneira de mostrar a ela que me sinto de fato
pronto para exercer meu papel de pai. Cuidei de cada detalhe do
quarto da nossa filha e acabo de terminar um último ajuste.

Sophie, por mais desesperada que é, aguardou pacientemente, sem


permitir que a curiosidade vencesse. Ela confiou em mim, agora é o
momento de mostrar a ela e saber se fui bem em minhas escolhas.

Seguro sua mão, a beijo e seguimos até o quarto. Cubro seus olhos
antes de abrir a porta, logo em seguida permito que ela veja. Não
gosto muito de ambientes com cores vibrantes, por esse motivo,
optei por cores neutras. Há muita luz natural no quarto, dá a
sensação de serenidade, aconchego. É um quarto simples, porém,
muito bonito. As cores escolhidas: cinza, branco e rosa claro.
Usando meu dom da pintura, desenhei e pintei em uma parede uma
árvore com flores voando, tudo em tom branco sobre o fundo cinza.
Todos os móveis são brancos. Há também uma aconchegante
cadeira de amamentação para que a futura mamãe tenha o máximo
de conforto. Sophie está chorando, então, provavelmente, significa
que ela gostou. Ela caminha até o guarda-roupas e o abre,
revelando dezenas de roupinhas que eu mesmo pendurei de
maneira bem-organizada. Compramos tudo pela internet, faltava
apenas organizar, e executei esse trabalho ao meu modo.
— Oh! Meu Deus! Não sei se rio ou choro — diz, fazendo as duas
coisas. — Essa é a coisa mais fofa do mundo inteiro, Henrico. Você
trouxe sua mania de organização para o quarto da nossa filha! É tão
fofo e perfeito! Eu jamais organizaria tudo da forma como você fez,
separando por cores, modelos... É a coisa mais apaixonante! — Ela
corre até mim e eu a pego, mesmo com uma enorme barriga entre
nós. — Você é a coisinha mais perfeita que tenho só para mim!

— Não tanto quanto você, Soso — sorrio. — Estou feliz que tenha
gostado.

— Está além de perfeito, as cores, os tons, a decoração... perfeito,


perfeito e perfeito!

— Agora sim, falta apenas essa mocinha chegar e usufruir de tudo o


que preparamos para ela.

— A coisa mais importante que ela irá usufruir é o nosso amor. Alice
é uma mocinha que nem nasceu e já tem toda a sorte do mundo
com ela. — Diz, enchendo-me de beijos.

— Ela tem muita sorte mesmo, porque é filha da garota mais incrível
do mundo. Além disso, a mãe dela é uma leoa e dona do coração
mais puro que existe.

— Só meu coração que é puro, bebecito. Todo o restante não... —


Ela morde o lábio inferior, provocativamente. De repente, tudo deixa
de ser puro, da forma como só Sophie consegue fazer. Ela está
sendo uma grávida muito saudável e disposta, só teve algum
desconforto no início da gestação, esse fato faz com que ela seja
muito ativa e aventureira — safada também. Nossa vida sexual tem
sido animada, prazerosa e contínua.

E é pensando em conter um pouco dessa animação que vamos


diretamente para o nosso quarto, onde ela prova que somente seu
coração é puro, todo restante não.
“Porque você

Você significa o mundo para mim, oh

Eu encontrei em você

Meu amor sem fim”

TEMPOS DEPOIS

— Eu tenho o direito de acompanhar o nascimento da minha neta!


— Meu pai grita a plenos pulmões enquanto discute com tio Lucca.
Os dois não estão ajudando nada neste momento. Henrico está
prestes a ter uma síncope, assim como eu. Além disso, estou
sentindo as dores do parto e não desejaria isso para uma inimiga,
caso eu tivesse uma.

Estou aguardando a equipe que me auxiliará chegar, as contrações


começaram de fraca intensidade e com grandes intervalos entre
uma contração e outra, e agora estão ficando mais fortes, com
espaços de tempo mais curtos. Estão tendo um espaçamento de
sete minutos. A cada sete minutos eu tenho a sensação de ter algo
me rasgando por dentro. É uma dor muito insana, que parece rasgar
até mesmo minha lombar.

— Se você tem esse direito, eu também tenho, porra! — Tio Lucca


rebate.

— Sophie, você está bem? Acha que conseguirá? Eu não sei que
tipo de perguntar fazer agora, apenas me diga como se sente —
Henrico pede, segurando fortemente minhas mãos.

— Eu estou bem, bebecito. Faltam três minutos para eu voltar a


sofrer, mas está tudo sob controle.

— Sophie, já preparamos a banheira — tia Paula anuncia. — Quer ir


para lá de uma vez?

— Para com essa merda, caralho! — Meu pai esbraveja e minha


surge com sangue nos olhos e uma vassoura em mãos. Arregalo
meus olhos e espero pelo ataque de Melinda.

— SAIAM DA PORRA DA CASA DA MINHA FILHA AGORA! — Ela


grita. — VOCÊS DOIS SÃO IDIOTAS OU ESTÃO SE FAZENDO? A
MENINA ESTÁ EM TRABALHO DE PARTO E NÃO OS CONVIDOU
PARA PARTICIPAR. ELA QUER PRIVACIDADE. UM DE VOCÊS JÁ
SENTIU A DOR DE UM PARTO? IMBECIS! SAIAM DAQUI ANTES
QUE EU ENFIE O CABO DE VASSOURA NO...

— Mãe... — tento repreendê-la. — Pai, por favor. Eu sei que temos


muita intimidade, mas não quero que veja um bebê saindo da minha
genitália. Logo que Alice nascer você poderá vê-la. O mesmo vale
para você tio Lucca, por favor, aguardem no sítio, ou no bar do
tião... qualquer lugar.
Luiz Miguel me salva. Provavelmente minha mãe ligou para ele
antes de surgir com a vassoura, pois ele surge acompanhado de
Samuel e os dois levam tio Lucca e meu pai praticamente
arrastados.

— Aoooo Melinda, satânica! — Ouço meu pai gritar lá de fora. E


então tio Lucca:

— Aooo Paula, Jacinto a sua ingratidão, filha da... minha sogra! — É


impossível não rir.

Ficamos eu, Henrico, minha mãe e tia Paula, aguardando a equipe


chegar.

— PUTA QUE PARIU! — É esse meu gemido quando a dor maçante


começa. Aperto as mãos de Henrico mais forte e grudo minha testa
na dele. — Alice será a nossa única filha — anuncio. E é a verdade.
Quero apenas uma filha e ajudar crianças carentes. A dor só ajuda a
fortalecer essa ideia. Não é fácil. Neste momento estou chocada
com a força que nós mulheres possuímos, mesmo que eu tenha
feito uma preparação para este momento, é mais intenso do que
imaginei. Um homem jamais conseguiria se submeter a tal coisa.
Definitivamente não somos o sexo frágil.

Quando a equipe chega, sou conduzida para a banheira. O mais


surpreendente é que Henrico entra comigo, sentando-se atrás de
mim e me posicionando entre suas pernas. Ele faz carinho em
minha barriga, em alguns momentos massageia meus ombros, me
acolhe nos momentos de dor, e faz com que seja de fato especial.

Minha mãe e tia Paula também me acolhem, mas de forma


diferente. Tipo agora, minha mãe está me dando água como se eu
fosse uma garotinha.

Tia Paula parece não estar acreditando, sua ficha parece não ter
caído 100%. Ela, o tempo todo, olha para Henrico com a admiração
estampada em seu rosto. Imagino que esteja orgulhosa pelo bom
trabalho que fez na criação do filho, além de estar completamente
tocada pelo desenvolvimento dele. O autismo estará sempre com
ele, mas é bonito vê-lo tentando e aprendendo a conviver e vencer
as limitações dia a dia.

Estou em trabalho de parto há mais de 4 horas. É exaustivo, mesmo


tendo todo um conforto e todo apoio.

— Você é a garota mais forte e mais corajosa que conheço. —


Bebecito sussurra em meu ouvido, fazendo minha pele se arrepiar.

— Eu te acho gostoso até quando estou sofrendo a dor do parto —


digo. Maria — a doula — me encara em choque. Estamos juntas há
alguns meses, e talvez ela já tenha ouvido muitas safadezas saindo
da minha boca. Mas, parece que ela está assustada pelos meus
dizeres logo neste momento. — MERDA!

— Respire, Sophie. — Maria aconselha. — Vamos mudar um pouco


de posição? — Sugere. — Henrico, vou pedir que você fique do lado
de fora agora e que Sophie fique de quatro.

Fazemos o que ela sugere. Tia Paula massageia os ombros de


Henrico e Maria massageia minha lombar. Por mais doloroso que
esteja sendo, esse momento também está sendo mágico.

Ficamos nessa de mudar de posição, conferir os batimentos de


Alice, massagens, por mais 2 horas. A minha dilatação finalmente
chega a dez e então eu começo num processo de expulsão, que dói
ainda mais. Eu quase enlouqueço. Choro silenciosamente, agarro
Henrico, esmago a mão da minha mãe... quase perco a força. Minha
médica me auxilia, juntamente com a doula, enquanto a pediatra se
prepara. O choro de dor se mistura com o choro de emoção.

Agora estou posicionada de frente. Henrico está me abraçando por


trás, porém, ele está fora da banheira.
— Força, Sophie! Traga essa princesinha para nós — a médica diz.

— Você é a menina mais bonita do mundo e a mais forte também,


Sophie. Eu preciso conhecer a segunda menina mais bonita do
mundo. Você consegue, meu amor. — Aceno positivamente para
Henrico, respiro fundo e faço toda força que consigo fazer. Uma...
duas... três vezes. Nada.

— Respire. Reúna todo o fôlego. — Eu não faço nada disso. Olho


para os olhos de Henrico e reúno toda a minha força. Um gemido
alto de dor escapa de mim, unindo-se com um som que escapa
diretamente da minha garganta. Eu forço, sinto uma pressão e então
ouço um choro. Abro meus olhos tempo suficiente para capturar o
olhar apaixonado de Henrico, então eu levanto minha cabeça e vejo
nossa filha.

— Oh! Meu Deus! — Minha mãe diz, morrendo de chorar. Henrico


me solta e Alice é colocada em meus braços.

— Ela é linda... — digo, chorando. — Linda. Linda. Perfeita. —


Henrico toca no rostinho de Alice e parece não acreditar. Nem eu
estou acreditando. Ela é cabeluda. Seus cabelos são tão pretos
quanto os meus e de Henrico.

Impressionante. Com ela em meus braços, nenhuma dor existiu. Eu


passaria por tudo novamente, até mais, apenas para poder viver o
momento mais mágico de toda a minha existência. Eu sou mãe!

Eu sou mãe de uma filha do Henrico, o garoto que não queria ser
pai e que parece completamente apaixonado pela filha.

Horas depois, as visitas começam. Eu queria descansar, mas sou


incapaz de negar que as pessoas mais importantes da minha vida
vejam minha filha.
Com ela nos braços, parecendo que fez isso uma vida inteira, é
Henrico quem cuida de fazer as apresentações.

— Alice, essa é sua vovó Paula e esse é o seu vovô Lucca. Diga
“olá” para eles. — O ouço dizer e me pego sorrindo, feliz da vida.
Parece mesmo um sonho. Eu só consigo pensar na felicidade de tia
Paula e tio Lucca agora, sentindo orgulho pelo incrível trabalho que
fizeram com Henrico uma vida inteira. Todo esforço sendo
recompensado pela vida.

A vida sempre recompensa.

Henrico será o melhor, eu nunca duvidei.


“Porque eu sou um menino grande, um adulto agora ou quase

Se eu puxar o novelo dos meus olhos eu posso ver claramente

O mundo está aos meus pés e eu estou em pé no teto

E eu caio, caio, caio, quando tudo acontece

Eu caio do céu, mas eu não vou cair para sempre

Eu caio, mas quando me erguer, serei mais forte que nunca”

Não vou romantizar a paternidade. Não posso.

Ninguém nasce preparado para ser pai ou mãe; isso vale para
autistas e para pessoas que não possuem o transtorno. Tudo que
podemos fazer é ter fé, disposição e nos dedicar à paternidade ou
maternidade. É sobre tentar fazer com que dê certo.

Desde o inicio eu soube que não seria fácil. E não é. Dizem que são
os bebês que precisam se adaptar à rotina dos pais, mas, aqui em
casa, esse processo está sendo totalmente diferente. Sophie está
sendo uma mãe incrível, porém, sou eu quem mais está tendo que
se adaptar à Alice. Por exemplo, o choro dela. Todos os bebês
choram, supernormal. Porém, eu não consigo lidar com o choro
dela. O choro de Alice me incomoda extremamente. Isso significa
que eu me afasto quando ela está chorando? Não. Eu a amo
incondicionalmente e quero ser um pai completo para a minha filha,
é por isso que, sempre que ela chora, é necessário que eu coloque
um tampão em meus ouvidos para que eu possa lidar com ela da
maneira como ela merece.

Além disso, quando estou concentrado em algum trabalho ou em


alguma conversa, eu perco a concentração total ao ouvi-la chorar.
Eu fico mudo e então minha mente se volta cem por cento para
aquele barulhinho, não conseguindo atingir qualquer outro foco
senão aquele. Não consigo ter controle algum sobre isso. Há em
mim um receio enorme pelo fato de não conseguir ouvir o choro
dela. Dizem que os bebês possuem vários tons de choro, cada um
diz respeito a um incomodo: fralda suja, fome, dor, manha... E, para
mim, só existe um único tom, especialmente porque coloco tampões
em meus ouvidos para amenizar o som. Então existe essa
dificuldade em identificar o que Alice está querendo “dizer”.

Há também os momentos em que preciso ajudar Sophie e a minha


mente turbulenta está exigindo que eu vá para um lugar fechado,
escuro e fique por lá alguns minutos. Não tenho como obedecê-la,
pois a minha mulher está precisando de mim e ela deve ser a minha
prioridade, juntamente com Alice. É extremamente difícil!

Outra questão é que eu gosto da segurança de saber o que esperar


ou o que pode acontecer, mas não existe isso na paternidade. Nós
nunca sabemos o que vai acontecer com um bebê. Em um
momento minha filha está dormindo serena, no outro ela está
chorando copiosamente. Isso também me afeta e tenho me
esforçado para me adaptar. Eu não tenho a facilidade que Sophie
tem de compreendê-la, me frustra um pouco ter essa dificuldade,
por esse motivo, por mais que essa fase de recém-nascida seja
incrível, eu conto os dias para que Alice comece a se comunicar. A
falta de comunicação me deixa muito perdido. Quando ela começar
a falar, tenho certeza de que será muito mais fácil de lidar.

Há momentos de muita tensão e estresse, e é exatamente nestes


momentos que preciso mostrar o meu amor, o meu carinho e o meu
companheirismo. Há os momentos fantásticos também,
especialmente quando Alice ri. A cada vez que vejo seu sorriso, me
sinto mais forte para vencer tudo o que tenta me limitar e me afastar
do propósito.

A vida mudou muito. Antes eu tinha uma futura esposa, agora


somos uma família e toda a rotina em torno disso é diferente. Não
tínhamos compromisso com nada. Eu trabalhava, criava meus
jogos, mas estava sempre livre para Sophie, para a relação, para o
sexo. Agora não mais. Não somos mais prioridade um do outro,
embora nos esforcemos para manter o ritmo e a relação do início.
Ter uma família exige que estejamos preparados para nos sacrificar,
nos doar a uma outra vida e é isso que temos feito, sem deixar de
lado o amor que sentimos um pelo outro e a conexão.

Eu, sendo autista, só tenho uma opção: me adaptar.

Ou eu me adapto, ou perco.

Ou eu me adapto, ou sobrecarrego a minha esposa.

Ou eu me adapto, ou deixo de viver a vida paterna.

Ou eu me adapto, ou fico para trás, no limbo. Eu não gosto de estar


no limbo. Não esperei tantos anos por Sophie para permitir que
minha mente seja uma vilã e vença a guerra que travo todos os dias
contra ela. É preciso muita coragem para se adaptar. É arriscado,
um processo onde preciso torcer para que o melhor aconteça, torcer
para que eu esteja fazendo algo certo e bom pela minha família.
Continuo com as consultas semanas com a doutora Ana. É bom
falar com ela, que me acompanha desde a infância e me sinto bem
para manter uma relação de livro aberto. Ela me salva de mim
sempre que é necessário.

Nossos dias têm sido assim, eu e Sophie nos arriscando, nos


moldando. Especialmente eu. É muito difícil para mim, mas todos os
dias eu descubro que não é impossível, todos os dias eu luto e
todos os dias eu venço. O amor que sinto por Alice me impulsiona a
tentar ser o melhor para ela.

O autismo já me colocou em dúvidas muitas vezes, já me testou das


mais diversas formas, já me fez duvidar da minha capacidade. Hoje
vivo outra fase, uma onde o autismo não me desqualifica como
homem e como pai.

Antes eu me sentia muito diferente, muito fora dos padrões


comportamentais. Hoje, com Alice em meus braços, sinto que
encontrei o meu lugar de encaixe. Sinto que os demais padrões
perderam a importância e que encontrei o que costumam dizer
“lugar no mundo”. Sophie, Alice, São Roque... meu lugar no mundo.
“Eu ouvi falar de um amor que vem uma vez na vida

E eu tenho certeza de que você é esse amor”

DOIS ANOS DEPOIS

Dois anos se passaram. Théo e Eva acabam de voltar à São Roque,


agora para a casa nova e trazendo Madah, que é a coisinha mais
perfeita do mundo e que será amiguinha/fiel escudeira de Alice.
Somos vizinhos deles, assim como somos vizinhos de Samuel e
Hadassa, que uniram as escovas de dentes recentemente. Eles não
se casaram, mas é como se estivessem casados desde o primeiro
beijo, sem exagero.

Estou sentada no meu lugar preferido da casa, de frente para uma


enorme vidraça com vista para o quintal, lendo um livro. Mas, na
verdade, estou fingindo ler. No enorme tapete da sala, os dois
grandes amores da minha vida estão brincando e gargalhando.

Alice não possui um diagnóstico sobre autismo, mas ela herdou o QI


elevado do pai.Com apenas dois anos, ela já se comunica
incrivelmente bem e faz coisas que me deixam boquiaberta. Essa
menininha de perninhas curtas é surpreendente pra caralho e,
fisicamente, é a cópia de Henrico. Os olhos, a boca, o formato do
rosto, o sorriso... uma miniatura do pai. Preciso dizer que ela é um
grude com ele também. Tudo bem. Ela é grudada comigo também,
mas... não sei explicar ela com Henrico. Eu fico feliz que seja assim.
Durante pouco mais de 1 ano, eu vi Henrico ter momentos de
desespero por não saber como agir com Alice em determinadas
situações.

Eu preciso dizer que ele me surpreendeu desde o primeiro minuto


de vida da Alice, foi e é um pai excepcional, meu parceiro na criação
dela. Achei que seria infinitamente mais difícil, porém, eu o vi lutar
muito forte contra si mesmo em todas as dificuldades. Em alguns
momentos ele me pedia socorro e, sinceramente, não há ninguém
melhor que eu para lidar com Henrico. Me uni a ele, me uni às suas
limitações, e juntos vamos crescendo dia após dia.

Tudo começou a melhorar quando Alice passou a se comunicar.


Isso parece ter tirado um enorme peso das costas do meu marido, é
como se ele tivesse se transformado em um alguém mais leve. Ele
brinca, ele a ajuda em tudo que precisa, ele nina, mima, passa por
todos os perrengues e mostra a capacidade que sempre possuiu e
que não conseguia enxergar. Meu bebecito é uma grande
superação.

Mas eu também sou...

Embora eu tenha sido uma péssima mãe de pet, visto que deixei
Maicon levar Bel para sua casa e ficar com ela para sempre (por
estar cem por cento envolvida em me relacionar com Henrico), sou
uma boa mãe de uma princesinha.

Na verdade, eu tenho me saído uma excelente mãe. Não apenas


boa, excelente. No início tive muito medo, normal para uma garota
tão jovem. Me questionei muitas vezes se seria capaz, se possuía
habilidade para a maternidade. Estou desenvolvendo um papel de
extrema importância: ser mãe Mas, felizmente, o início de tudo isso
foi primordial, especialmente porque pude contar com uma base de
apoio. Meus pais e meus tios/sogros ficaram em São Roque durante
seis meses, curtindo a netinha e nos amparando nos momentos de
necessidade. Minha mãe, especialmente, me amparou muito, foi
meu ombro amigo, onde pude deitar minha cabeça e chorar quando
me sentia perdida. Meu pai só me impulsionava, o tempo todo ele
tinha uma palavra de incentivo, dizia o quanto eu era boa e capaz.
Tio Lucca e tia Paula foram o ponto de apoio de Henrico. Por mais
que eu e Henrico nos apoiássemos um no outro, foi bom e de
extrema importância poder contar com os nossos pais, nossos
amigos, nossa família incrível. Um privilégio que muitas pessoas
não possuem oportunidade de ter.

Embora os problemas aconteçam ocasionalmente, Henrico e eu


sempre resolvemos na base do respeito, do companheirismo e do
amor.

Há em mim somente gratidão, por tudo, por todos.

Em alguns meses estarei retornando aos estudos, e tenho a


segurança de saber que meu marido está devidamente pronto para
enfrentar qualquer coisa que aconteça com a nossa filha.. Henrico
gosta de desafios e, por desafiar-se, ele se torna o melhor em tudo
que se propõe a fazer. O autismo não o desqualifica como pai, como
marido, como ser humano.

Do nosso jeitinho, com toda a paciência que possuímos, vamos nos


ajustando, superando as adversidades e encaixando as peças
pouco a pouco. Eu me encaixo nele, ele se encaixa em mim, Alice
se encaixa em nós. Juntos formamos o encaixe perfeito.

O autismo não o desqualifica como fodedor nato!


— Eu já disse isso, mas irei repetir. Você chupando o meu pau é a
menina mais bonita do mundo, Sophie.

Meu marido diz, enquanto estou de joelhos diante dele, com a boca
recheada com parte do seu pau.

— Eu sei... — retiro-o rapidamente para poder respondê-lo e então


retorno.

— Embora esteja muito gostoso, estou fazendo um trabalho


importante para tia Ava, Sophie. — Paraliso minha ação e o encaro.
— Você está com uma cara de devassa.

— Estou carente de você. Alice está dormindo, eu quero foder com


você muito forte, gozar em seu pau, em sua boca... — Minhas
palavras fazem uma revolução e eu me pego segurando um sorriso
que quer sair a todo custo.

Num segundo estou de joelhos no chão, no outro estou em cima da


sua mesa, com as pernas sobre os ombros dele, aberta por
completo e sentindo o primeiro contato de sua boca com meu
clitóris.

40 dias após o parto, eu coloquei um implante anticoncepcional


mais eficaz. Quando Alice fez 1 aninho, coloquei meu piercing de
volta e surpreendi Henrico, que tem uma fixação absurda por esse
pequeno detalhe.

Ele lambe minha intimidade, beija como se estivesse beijando minha


boca, desliza seus dedos por entre as minhas dobras, me faz gritar.
Eu me torno uma completa depravada, esqueço-me até que há
funcionários em casa, por um instante há só eu, ele e o fogo que
está me consumindo. Estou prestes a gozar quando ele afasta sua
boca, me pega em seus braços e me conduz até um sofá que há em
seu escritório. Ele se senta e faz com que eu o monte, então eu me
deleito. Suas mãos se dividem entre apertar meus seios e minha
bunda. O sinto por completo dentro de mim, como se nem mesmo o
ar fosse capaz de passar entre nós. Ele goza primeiro, rugindo e
falando uma centena de palavras sujas, então eu gozo em seguida,
fechando meus olhos e me deliciando com a sensação maravilhosa
que um orgasmo proporciona. O clímax me deixa devidamente
relaxada, tanto que Henrico me pega em seus braços, percebendo
meu corpo mole.

— Delicioso, bebecito.

— Eu me sinto incrível a cada vez que a faço gozar.

— Então você se sente incrível excessivamente, bebecito. Você é


além de incrível e fode maravilhosamente bem. — Ele ri e eu levo
minhas mãos em seu rosto. — Eu sou a menina mais feliz do
universo inteiro.

— Eu te amo, Sophie — declara e o momento se encerra quando


alguém começa a bater na porta. Nos encaramos e começamos a
rir. Corremos para o banheiro do escritório, nos limpamos e Henrico
vai abrir a porta, para encontrar um toquinho de gente.

— Me desculpem, ela saiu correndo... — Luana, nossa ajudante,


explica.

— Está tudo bem, Luana. Eu assumo daqui — Henrico diz,


pegando Alice nos braços. Hoje, após um longo período, ele já se
acostumou com a presença de Luana e Maria, nossas ajudantes. —
Olá, bebecita.

— Olá, papai. Olá, mamãe — sorrio, louca de vontade de mordê-la.

— Olá, Alice. Quem é a princesa da mamãe? — Pergunto.

— Alice. — Ela diz Alice meio “Alixe”, é encantadora pra caralho!


— E quem é a princesa do papai? — ela sorri.

— Mamãe — responde, sorridente. Eu e Henrico gargalhamos.

— Não é a Alice a princesa do papai? — Ele pergunta a ela.

— Não. Você chama a mamãe de pincesa — ela explica. — A


mamãe é a pincesa, Alice neném bebecita.

— Alice também é pincesa do papai — digo a ela.

— Não. É a mamãe pincesa. — Insiste.

— Ok, está tudo bem. Alice é a minha neném bebecita — Henrico


confirma e ela segura o rosto dele entre as mãos. É a coisa mais
linda do mundo, é como desarmar uma guerra e encorajá-lo sem
nem mesmo ela fazer ideia do que esse pequeno gesto significa. Ela
o toca da mesma maneira que eu sempre fiz. É mágico,
emocionante, é coisa de Deus que seja assim. Essa criança veio
para causar uma revolução em meu menino mais bonito, e está
cumprindo o propósito. Nunca o vi se sentir tão capaz, tão forte, tão
disposto.

No início, saber da existência dela, foi tão assustador. Vieram tantos


pensamentos ruins, tantos medos; por mim e por Henrico. O medo
de não aceitação dele, o medo pela minha pouca idade, pela falta
de experiência e pela mudança radical que a vida sofreria. Mas a
cada dia eu percebo que ela veio no tempo certo, que era ela o
“ingrediente” que faltava para mudar por completo a vida de Henrico
e, consequentemente, a minha. Alice veio no momento ideal. Ela
veio para somar e nos ensinar lições valiosas.

Ela veio para correr conosco...

E nós corremos.
No final da tarde, no jardim, após fazermos um pic-nic, ela segura
minha mão, segura a mão de Henrico, e corremos juntos por todo
gramado, sorrindo com a pureza de uma criança.

Que a princesa Alice e muitas outras princesas tenham a sorte de


encontrar um amor como o nosso...
Olá, querido(a) leitor(a)!

Muito obrigada por me acompanhar nessa linda jornada de Além do


Azul. Esse livro tem um lugar especial em meu coração e espero
que tenha alcançado isso em seu coração também.

Não se esqueça de avaliar e me seguir nas redes sociais, para que


possamos manter um vínculo de autora/leitor(a).

Beijos no coração,

Jussara Leal

“Ao infinito e além.”

[1]
ligação, nexo ou harmonia entre fatos, ideias etc. numa obra literária, ainda que os
elementos imaginosos ou fantásticos sejam determinantes no texto; coerência.

[2]
Menção à música Good Luck – Boa sorte da Vanessa da Mata

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