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1ªEdição
“Fogos! Muitos fogos! Eu odeio esses sons, eles são tão altos que
parecem estar sendo disparados diretamente dentro da minha
cabeça. Meu corpo está tremendo, minha cabeça está doendo muito
e meu avô está em cima de mim, tentando conter um desespero
incontrolável. Eu dou chutes, socos, arranho meu avô, puxo meus
próprios cabelos, e os sons apenas continuam. Eles agora se
misturam com gritos desesperadores da minha mãe. A voz dela
deveria me acalmar, mas os sons estridentes dos fogos parecem
infiltrados em minha mente.
Ela grita com meu pai, briga, o faz ir embora. Logo em seguida, ela
tenta me levar para o banheiro, mas estou nervoso o bastante e a
machuco, eu não consigo me controlar, não consigo controlar a
agressividade. Minha mãe não desiste de mim, mesmo quando dou
o meu pior a ela. Persiste e entra no banheiro, onde ela, sem nem
mesmo retirar as nossas roupas, liga a ducha e nos acomoda sob
os jatos de água, sentando-se e cobrindo meus ouvidos com suas
mãos, numa tentativa de me acalmar. Ela está chorando muito e
isso faz com que eu sinta uma dor ainda maior. Eu a abraço forte,
querendo que todas as dores desapareçam; as minhas e as delas.
— Mamãe está aqui, meu amor. Mamãe vai protegê-lo, ok? Acalme-
se, meu amor. Por favor, fique calmo — diz, balançando-me para
frente e para trás, como se estivesse me ninando. Está doendo
muito, muito, muito...— Vai passar, meu pacotinho de amor. Mamãe
te ama até o infinito e mais. Vai passar, minha estrelinha. Quem é o
meu príncipe? Quem é? O Henrico Davi! O garoto mais lindo do
universo todinho e mais especial também..
— É claro que estou, Sophie. Só... eu não gosto desta data. Sempre
foi muito traumática para mim devido aos sons e as crises que eles
me causavam. Você é diferente. Ama as festas de final de ano. Eu
tenho... — Ele fica em silêncio, demonstrando constrangimento ou
algo que não consigo decifrar bem.
— Eu quero você.
Desde que ouvi esse tipo de julgamento pela primeira vez, venho
me questionando: que "cara" um autista deve ter? O que as pessoas
pensam sobre autistas? Qual a visão delas sobre pessoas atípicas?
A falta de informação é assustadora, inclusive acho o autismo um
tema que deveria ser debatido nas salas de aula desde o início da
educação escolar, principalmente visando a inclusão daqueles que
se descobrem neurotípicos logo nos primeiros anos de vida. Deveria
haver uma preocupação sobre ensinar a sociedade a lidar com as
diferenças; e não digo apenas sobre o autismo, mas sim de uma
forma geral.
Sophie perguntou à amiga o motivo pelo qual ela não acreditava que
eu pudesse ser autista, e a garota não mediu suas palavras. As
respostas foram as mais superficiais possíveis. Primeiro ela disse
que eu era lindo, logo em seguida disse que era gostoso e então
falou sobre eu agir dentro da normalidade. Disse também que
autistas não podem ser gostosos, não podem fazer sexo ou
namorar. Isso deixou Sophie no auge da indignação, principalmente
pelo fato de eu estar ouvindo. Muito provável que ela ache que isso
tenha me afetado de uma maneira negativa. Bom, não vou mentir,
como disse, é uma situação chata. Porém, a cada vez que algo
assim acontece, consigo enxergar o potencial que possuo e que
falta em muitas pessoas.
— Está tudo bem, Sophie. Não precisamos de sexo para ter uma
conexão. Sempre estivemos conectados, antes mesmo de nos
tornarmos um casal.
— Não é a primeira vez que alguém diz que não tenho cara de ser
autista. Isso é fruto da ignorância e da falta de informação, na
verdade, é fruto até mesmo da falta de uma educação voltada à
inclusão. Meus pais e minha terapeuta me prepararam para não ser
atingido por esse tipo de colocação. Foi difícil ouvir e compreender
nas primeiras vezes, agora já me acostumei.
Essa não é a minha menina mais bonita. Sinto que algo está errado,
mas não consigo decifrar, por mais observador que eu seja.
Dormir com Soso será uma tortura, não restam dúvidas. Ela é muito
fogosa e estou disposto a ser respeitador. Antes de ter sexo, era
mais fácil me controlar; havia o medo e ele me paralisava, impedia
que eu deixasse o desejo vencer. Atualmente... eu vivo uma luta
constante para controlar a mim mesmo. É extremamente difícil ser
namorado de Sophie, é desafiador conviver sob o mesmo teto que
ela. Não ajuda que a garota seja altamente tentadora e fogosa de
uma maneira quase incontrolável. E não ajuda que eu seja muito
fraco para provocações sexuais. Desde que descobri que ficar
confortável é a melhor coisa do mundo, tem sido difícil não querer
ficar confortável todos os dias.
Já não sei se é tão bom ser tão observador. É pelo fato de estar
observando tanto, que a vejo ficar completamente nua, desprovida
de qualquer delicadeza. Engulo a seco quando ela joga a calcinha
em meu rosto e sai marchando em busca do banheiro. Com a
pequena peça de renda em mãos, eu ouso levá-la em meu nariz e
inspiro o cheiro de algo que me deixa duro em questão de
segundos. Sempre que via cenas assim em filmes educativos,
achava pervertido o bastante. Agora sou eu fazendo isso,
cometendo um ato que costumava considerar perversão. A
mudança que sofri nos últimos meses é assustadora. Eu não
consigo nem mesmo comparar o Henrico do passado com Henrico
de agora. É como se o passado inteiro tivesse sido uma grande
farsa e a minha versão atual seja de fato quem sempre fui,
escondido sob camadas de medo, preconceito e um montante de
sentimentos ruins. A pessoa que eu acreditava ser, foi
desconstruída por completo – desde que ousei a dar o primeiro
passo com Sophie – tornando-se uma versão mais corajosa, mais
disposta a encarar as situações, a vencer algumas limitações.
Essa é a minha nova versão e eu não sei onde ela será capaz de
me levar.
“Pela forma que me olha, me incita a pecar
Sou bem como uma leoa, o tipo que é capaz de fazer qualquer coisa
para defender os seus. E eu me sinto assim com Henrico, me sinto
capaz de enfrentar o mundo para protegê-lo de todas as coisas
ruins, do preconceito. O meu Henrico Davi é perfeito de todas as
maneiras possíveis, até mesmo em suas imperfeições, e eu sempre
o enxerguei além de todas as coisas. Por mais que ele diga que não
se importa, eu sei que ele se importa, sei que sua autoconfiança
recém-adquirida vacila a cada vez que ele tem que lidar com
situações que deixam suas barreiras abertas. Sei que em algumas
situações ele até mesmo volta a pensar que somos incompatíveis e
que mereço alguém melhor. E qualquer pensamento que coloque a
nossa relação em risco, me leva ao limite de uma maneira insana
que não consigo controlar. Acabo me transformando em uma
pessoa que não sou, deixando um lado revoltado tomar conta.
Talvez isso assuste o Henrico e é por isso que enxergo que preciso
me controlar e aprender a abstrair a ignorância das pessoas.
Para completar, estou com uma saudade imensa dele. Passei uma
semana na casa dos meus pais, sem ver meu bebecito. Nós nos
falamos poucas vezes por mensagem, porque ele odeia se
comunicar desta maneira – ao menos se esforçou um pouco.
Acostumei-me com a nossa rotina de grude, onde ficamos afastados
no máximo algumas poucas horas. Eu gosto de acordar ao lado
dele, de fazer as refeições ao lado dele, de dormir grudada, gosto
de todo sexo que temos e estou sentindo falta de cada uma dessas
coisas. Eu não sabia que a falta de sexo poderia me afetar tanto.
Vivi a maior parte da minha vida sem essa bênção e, de repente,
agora que sou praticante do ato não consigo mais ficar sem. Sexo
faz falta. Pesquisas realizadas por Henrico Davi, afirmam que a
ausência de sexo pode ser prejudicial até mesmo para a saúde, e
talvez seja o momento de eu lembrá-lo sobre essas pesquisas,
porque elas fazem todo sentido.
— Agora?
— Aoooo, Melinda! Você que cuide dessa sua filha! — brada meu
pai, e sai andando feito um maluco enquanto Samuel se joga em
minha cama, rindo como um babaca. Parece que deixar a porta
aberta foi um erro; de repente, há Yasmin, Kiara, Hadassa e meu
irmão dentro do quarto.
— Luiz Miguel, meu caro rimão, você sabe que posso te foder, não
sabe? — pergunto, de maneira ameaçadora, e ele levanta os
ombros, fingindo não saber do que estou falando. Kiara dá um
sorriso típico de quem não presta e Samuel parece um viciado em
Hadassa. Os dois são um nojo!
Estou tão feliz, não apenas por mim, não apenas por estar
realizando um grande sonho; há uma pessoa que se parece ainda
mais radiante que eu e isso tem me deixado emotiva. Tia Paula mal
consegue se conter diante de toda a felicidade que está sentindo
por Henrico. Essa mulher é um exemplo de garra, perseverança,
dedicação e paciência. Tio Lucca também, mas ela é um caso à
parte. Acho que o maior sonho da vida dela era ver Henrico ao meu
lado, construindo uma relação amorosa. Sei que no começo foi
difícil para ela aceitar a distância escolhida pelo filho, mas, aos
poucos, ela se adaptou e deixou todos os receios de lado, dando
lugar a plena felicidade merecida.
Meus pais também estão felizes, embora meu pai esteja um pouco
ciumento. Já era de se esperar, observá-lo me faz sorrir.
Desconheço ser humano mais emocional que doutor Victor
Albuquerque. Em alguns momentos ele até tenta passar a imagem
de "não sou um bom rapaz", mas ele é apenas o melhor, um
exemplo de homem. Para a felicidade dele, estou com o garoto
certo, com aquele que parece ter nascido destinado a ser meu par
na vida. Porém, ainda assim, o ciúme está em meu pai. Sempre fui
sua princesinha da Disney, e ele sempre me tratou como se fosse a
coisa mais preciosa do mundo. Acho que ele pensa que está indo
perder seu lugar no pódio, mas meu pai sempre estará em primeiro
lugar em meu coração, não importa que eu esteja me casando com
o homem da minha vida, meu pai é apenas... o meu pai. Assim
como minha mãe também é o grande amor da minha vida. Eu os
amo com todo o meu amor e toda a minha idolatria, e o amor dos
dois é o meu maior exemplo.
Outro ser humano que tem seu lugar garantido é meu rimão. Meu
Miguelito, que tem um simbolismo imenso para os meus pais, além
de ser melhor irmão do mundo inteiro. Ele ainda está sem brilho nos
olhos, mas já sou capaz de ver uma determinação que esteve morta
por um longo período. Ele sofreu muito com a morte de Clarinha. Ela
estava grávida, gerando um bebê que não foi planejado e arrebatou
o coração de Luiz Miguel. O dia que ele nos deu a notícia do bebê,
foi um dos mais emocionantes da minha vida, porque ele mal
conseguia se conter diante de tanta felicidade. Ele amava Clarinha,
com todas as forças, então ela foi arrancada dele por um acidente
brutal, sem nem mesmo ter chance de uma despedida. Meu irmão
carrega uma forte dor dentro de si, mas agora, agora sim ele parece
estar começando a reagir. Vejo uma determinação gritando dentro
dele, de forma que dá para sentir. Ele está voltando à vida, pouco a
pouco, vencendo um dia de cada vez.
Ele sempre diz que o maior passo foi lá na infância, quando segurou
a minha mão e enfrentou o medo, saindo correndo. Eu digo que
aquele passo pode até ter sido significativo, mas nada se compara
ao passo que ele deu em São Roque, declarando o seu amor por
mim e nos trazendo ao dia de hoje.
— Oi...
— Vamos fugir?
— Romântico.
— Me desculpe por isso, Sophie. Não sei ser romântico. Sou mais
prático em momentos de necessidade. — Seguro a vontade de rir
ao ouvi-lo. — No três você segura a minha mão e saímos correndo.
Quem se importa?
“Porque a noite passada foi
— Acho que sim. Acho que hoje preciso de uma bebida. Estou
querendo sair da zona de conforto onde sou o garoto exemplar —
explica, quase me deixando boquiaberta. Na verdade, após ouvir
essas palavras, o bichinho da curiosidade me picou. Gostaria de
saber o motivo de ele querer deixar de ser o garoto exemplar, mas
receio perguntar e quebrar o clima.
— Eu não consigo fazer nada disso, Sophie, mas acho que posso
me arriscar em algumas aventuras, sem ultrapassar meus limites.
— Você pode fazer isso, mas..., mas sei que há um motivo e que
talvez não vá me dizer. Só preciso que saiba que sou a mulher mais
feliz do mundo por tê-lo e que não me falta nada, Henrico. Não me
falta absolutamente nada. Não precisa se esforçar para se encaixar
na rotina que eu costumava ter. Eu me encaixei em você e você se
encaixou em mim, é só isso que importa. Eu sou muito, mas muito
feliz ao seu lado, muito feliz dividindo a vida com você. Quero que
sejamos assim ao infinito e além, nada precisa mudar. — Ele não
me responde e seu silêncio diz mais que muitas palavras; significa
que captei exatamente a origem por trás dessa mudança abrupta de
comportamento.
— Oh, não! Não que eu seja fresca, mas não gosto dessas paradas
na areia. Prefiro uma boa cama — argumenta Hadassa.
— Sim, acho que posso fazer isso. Quer dizer, não quero aderir ao
alcoolismo, mas hoje senti vontade de arriscar. — Henrico ficando
bêbado é muito fofo. Só que tudo muda quando Samuel decide que
irá beber com ele.
— Essa noite foi uma das mais felizes da minha vida — confessa. —
Mas foi apenas porque estava com pessoas que convivo. Se fosse
diferente, não teria sido boa.
— Eu vou comê-la, Sophie, mesmo que haja uma regra. Uma vez
você me disse que regras foram feitas para serem quebradas. —
Surpreendo-me com o fato dele aceitar o sexo mesmo tendo
consciência de que estamos alcoolizados. Tenho certeza de que se
fosse apenas eu a alcoolizada, o sexo não aconteceria. Mas foda-
se! Eu não serei estúpida de relembrar sua promessa.
Uma vez que minhas costas estão grudadas contra a parede fria,
enrolo minhas pernas em sua cintura e sinto seu pau brincando em
minha intimidade. Henrico não me penetra. Ele desce seus lábios
até meus seios e suga cada um dos meus mamilos de forma voraz.
Admiro a capacidade que ele possui de fazer com que eu me sinta a
mulher mais desejada do mundo; consequência da forma como ele
demonstra precisar de mim, de cada parte do meu corpo.
Agarro seus cabelos e puxo sua boca para a minha. Ele me beija
como um animal selvagem, esfomeado, e penetra seu pau em
minha entrada de uma só vez, fazendo que eu quase grite em sua
boca. Essa dor é apenas a mais deliciosa, simboliza o prazer que
está por vir. Henrico não é delicado, tampouco parece se preocupar
em ser como costuma fazer. Ele afasta nossos lábios e solta um
som primitivo, como um rosnado másculo, forte. Eu gemo a cada
vez que seu pau entra e sai de mim, num ritmo louco, marcando,
reivindicando, possuindo meu corpo e fodendo a minha mente.
Tudo perfeito...
É um demônio, amor”
Assim que abro meus olhos, dou um salto da cama e saio correndo
para o banheiro. Por sorte consigo alcançar o vaso e não vômito no
chão. Coloco para fora tudo o que tenho e até mesmo o que não
tenho em meu estômago, esta é das piores sensações que já senti.
Minha garganta queima, meu estômago queima, minha cabeça dói
como nunca doeu antes. Acho que nunca me senti tão doente após
uma bebedeira como me sinto agora. Não me lembro de ter bebido
tanto assim. Ao menos não o bastante para passar mal dessa
maneira. Um Henrico muito nu surge no banheiro, um tanto quanto
desesperado, e pela primeira vez sua nudez não parece
interessante. Eu nem mesmo tenho forças para levantar do chão.
— O que eu posso fazer por você, Sophie? Acha que precisa voltar
ao médico? — pergunto.
— Eu ... eu não posso fazer isso. Não posso fazer isso agora. Não
sou capaz — diz, começando a chorar muito. — Me desculpe. Eu te
amo. Sonhei com esse dia desde sempre; o dia em que eu me
casaria com o garoto que é o meu mundo e a minha vida. Quero
fazer isso quando estiver disposta, feliz, e não me sinto agora.
Alguma coisa me diz que há algo mais. Ter sido observador a vida
inteira faz com que eu veja muito além do que é dito pelas pessoas.
E, além disso, é Sophie diante de mim, dizendo todas essas coisas.
Eu a conheço tão bem. Só demorei a perceber sobre os sentimentos
a mais, por puro medo e por ingenuidade, mas a conheço melhor
que ela mesma. Agora estou levemente frustrado por ter quase
certeza de que há algo a mais e que ela não se sente confortável
para me contar.
DIAS DEPOIS
Deixou de ser puro.
É a vida real. Pensar nisso me faz rir sozinha. Meu Deus, a vida real
existe mesmo, obviamente. Todos os casais estão sujeitos a passar
por problemas, até mesmo os que parecem os mais perfeitos. Quem
um dia iria imaginar Sophie e Henrico com problemas conjugais?
Ninguém!
Não tenho todo esse tempo. Essa é a grande diferença. Não posso
esperar anos, tampouco muitos meses. Eu só estou perdida,
completamente, de forma que não consigo me abrir a qualquer
pessoa, e menos ainda para ele.
O que minha mãe faria se estivesse em meu lugar? O que meu pai
diria a mim? Ao mesmo tempo que preciso de ajuda e bons
conselhos, estou presa em uma casca de covardia e medo que não
combinam em nada comigo. Sinto-me covarde por não ter coragem
de enfrentar a minha própria verdade, covarde por não conseguir
expressar absolutamente nada, covarde por estar me mantendo
muda 90% do tempo e mais covarde ainda por saber que é errado,
saber que estou causando dor a Henrico, e não conseguir sair da
casca para mudar a situação.
— Você é humano.
Estou paralisado”
— Entendo.
Eu travo uma luta contra mim mesmo e sinto uma imensa vontade
de fugir, me esconder em algum lugar escuro onde ninguém possa
enxergar toda minha vulnerabilidade. Não gosto de ser assim. Não
gosto de quando me sinto inferior. Mesmo assim eu venço o choro e
aperto o botão de chamada. Meu pai atende no segundo toque e
fico mudo por alguns segundos, até ele chamar meu nome.
— Mas...
— Sophie ama você. Não precisa temer. Esqueça esse "mas". Algo
deve estar acontecendo talvez ela esteja tendo dificuldade em se
expressar, em expor. Talvez, em uma conversa, você consiga extrair
o que de fato está se passando. Lide com paciência e obterá
resultados fantásticos, palavras de quem já passou por isso muitas
vezes. E não sei se já ouviu falar, mas existe uma frase que diz
"Depois da tempestade vem a bonança". Saiba que é exatamente
assim. Saberá o significado dessa frase no momento de
reconciliação.
Encerro a ligação e aproveito que a igreja está vazia para fazer dela
o meu lugar de pensamento.
Quando menstruei pela primeira vez, minha mãe contou a ele que
eu estava doente e ele não sossegou até tio Lucca levá-lo para me
ver. Ele chegou em minha casa com meia dúzia de margaridas
arrancadas do jardim de sua casa, chocolates e um bilhete com um
coração desenhado escrito "você é a menina mais bonita do
mundo".
Aos 15 anos, escutei uma conversa entre Samuel e ele. Ele disse a
seguinte frase: "eu sempre vou esperar por ela".
Ele disse que não queria. Eu também não queria. Não deveria ter
acontecido.
— Eu sei.
— Eu sei.
— Pode ser mais direta? Estou com dor de cabeça de tanto pensar
e dói muito forte quando minha mente fica embaralhada — diz,
passando as mãos pela cabeça. — Por favor... eu não quero
pressioná-la, mas...
— Eu estou grávida.
“Pés, não me falhem agora
Me levem até a linha de chegada”
Seja como for, eu nem preciso pensar mais para ter a certeza
absoluta de que esse é o momento mais desafiador de toda a minha
existência. Eu achava que o maior desafio seria me declarar para
Sophie, mas estava enganado. O meu maior desafio é aceitar que
serei pai e viver a paternidade como uma pessoa normal. Terei que
vencer as minhas diferenças, vencer um pouco do meu autismo
mesmo quando não há cura para tudo que me torna atípico. É
possível fazer isso? É possível enfrentar meus traumas? E se o meu
filho tiver medo de mim como eu tinha do Pablo? Meu pai Lucca
sempre será a minha inspiração, mas não sei se posso ser como
ele. Eu temo decepcionar a todos.
Não sou capaz de dormir.
E eu respeito.
— Não sei se posso fazer isso, Sophie. Me desculpe por não estar
sendo bom para você agora — diz, deitando-se, e eu nem tenho
tempo de responder. Ele simplesmente desmaia e eu tento infiltrar
na minha mente que esse descanso forçado é o que ele mais
precisa neste momento.
Seja quão difícil for, em algum momento nós poderemos fazer isso!
“Tenho meus demônios cantando
canções na minha cabeça”
Permito que minha mente faça uma breve viajem ao meu futuro;
quer dizer, aos planos que eu tinha para o meu futuro. Um bebê
muda muitas coisas, como, por exemplo, a minha busca pela nova
universidade, que prometi ao meu pai que seria logo. Alguns planos
terão que ser adiados, talvez isso magoe meu pai no primeiro
momento, mas carrego comigo a certeza de que se existe alguém
no mundo que me dará todo e qualquer apoio, esse alguém é ele –
e minha mãe também. Sempre o cito por conta de todo drama que
ele pode carregar consigo. Minha mãe é mais prática, já o doutor
Victor herdou do meu avô Teus um drama surreal e é sempre a
pessoa que fica mais afetada emocionalmente em qualquer
acontecimento, por isso estou tão preocupada com as reações dele.
O drama é tão certo quanto o apoio, e nem mesmo precisarei citar
fatos que envolvem o passado tórrido dele e da minha mãe.
Estou rindo sozinha quando ele sai do banheiro. Volto a fingir meu
sono e rezo para que Deus nos acuda em algum momento. Pelo
amor da Santa Josefina, definitivamente não estamos brincando de
casinha!
Por um segundo sinto uma leve inveja pela maneira mais fácil como
ela demonstra conseguir lidar com as situações. Ter falado comigo
trouxe a ela uma espécie de alívio. Já comigo, falar sobre isso com
qualquer pessoa, incluindo ela, não aliviará a bagunça de
sentimentos e pensamentos. Estou com dor de cabeça o dia todo.
Não poderia ser diferente, desta vez nem mesmo um inibidor foi
capaz de me derrubar ou capaz de acalmar minha mente ao menos
um pouco. Tudo em mim está na mais completa turbulência, como
se eu fosse explodir a qualquer momento. E não me sinto disposto a
dividir a notícia com qualquer pessoa agora. Eu sou um homem
feito, não é mesmo? Se serei pai é preciso ser maduro para isso,
como posso correr para os braços do meu pai agora e clamar por
ajuda? Eu e Sophie já fomos longe demais em poucos meses e se
fui homem pra ir longe demais, preciso ser homem para encarar a
notícia sozinho. Não será fácil. Eu sou quase um dependente das
pessoas que me cercam; dependo dos meus pais, de Sophie, de
Samuel, para lidar com tudo. Só que dentro de mim há algo gritando
que desta vez precisa ser diferente.
Não sei lidar comigo hoje, mas quero lidar com Sophie, mesmo que
em silêncio. Preciso que ela saiba que estou aqui e que, por mais
que eu diga que não sou capaz de lidar com o acontecimento, farei
todos os esforços possíveis para ao menos chegar perto de
conseguir.
— Minha mente está muito mais barulhenta que qualquer outro som.
Enquanto ela permanecer assim, acho que nenhum outro ruído me
incomodará.
“A estrada é longa, nós seguimos adiante,
tente se divertir nesse meio tempo”
Ela foi a primeira a colocar uma barreira entre nós, quando ainda
não tinha coragem o suficiente para me dizer a verdade e escolheu
ficar isolada dentro de si mesma, adotando uma postura diferente
comigo. Agora, talvez seja eu me distanciando na tentativa de tentar
entender e absorver a novidade. Quando penso em Sophie, enxergo
que não é correto eu precisar do meu espaço nesse momento.
Antes dela, meus isolamentos eram normais, corriqueiros,
necessários e todos costumavam entender, aceitar e respeitar. Na
atual situação em que nos encontramos, penso que me isolar possa
ser um ato de egoísmo, mesmo que eu sinta a necessidade de
readequar meus pensamentos e conseguir compreender que me
tornei uma das coisas que mais temia: pai. Acredito que, em algum
momento, um de nós terá que tomar uma atitude na tentativa de
tentar mudar essa situação. Por mais incapacitado que eu me sinta
sobre a paternidade, isso não muda o que sinto por Sophie ou o
nosso relacionamento. Somos noivos e eu não sei como resgatar
isso. É confuso demais para a minha mente que está em processo
de expansão e aprendizado constante nos últimos meses. Não sei
lidar com a maioria das situações e isso me deixa em um estado de
incapacidade que faz com que eu me sinta insuficiente.
Pergunto-me como meu pai reagiria vendo minha mãe ser cortejada.
Quase sorrio ao conseguir vislumbrar uma cena criada em minha
própria mente. Ele não permitiria, tampouco ficaria apenas
observando de longe. E é exatamente essa cena que me faz tomar
uma atitude. Acho que estou cansado de não ter a minha Sophie,
cansado de tudo.
Sim, eu posso dizer que estou bem parecida com a "eu" do passado
agora, dançando feito louca com Hadassa "arregaça", mas a
verdade é que estou à beira de um surto. Talvez esse lance de
hormônios de gravidez sejam mesmo reais, porque estou oscilando
como se estivesse andando em uma corda bamba.
Ok, vamos lá! Vamos pensar de uma forma mais positiva e prática.
Já foi o tempo em que as mulheres seguiam a sequência de
estudar, noivar, casar, ter filhos. Estamos numa era mais moderna,
onde não precisamos seguir nenhuma sequência fodida para
sermos bem-sucedidas no futuro. Minha mãe é exemplo disso. Ela
foi mãe muito jovem e é uma mulher bem-sucedida, assim como sei
que serei. É isso. Pensando dessa forma, não há nada a temer;
principalmente pela base familiar que possuo, onde sei que tudo que
mais terei é apoio.
Por outro lado... é chocante me dar conta de que meu medo agora é
todo pela aceitação dele. Acho que nem mesmo estou com medo do
surto do meu pai – que é certo, mesmo ele tendo teto de vidro. Claro
que é. Estamos falando de Victor Albuquerque, o drama King, filho
do avô mais dramático do universo. Só que estou cansada de temer.
Temer não combina com a garota que sempre se jogou nas
situações. Já temi durante muitos anos revelar os meus sentimentos
e, agora que descobri o quão libertador expor os sentimentos pode
ser, não consigo me ver regredindo ao medo.
Sinto uma leve nostalgia por Eva. Ela costumava ser louca por
essas festinhas de igreja e agora consigo entender o motivo. Tem
todos os tipos de barracas de comida, bebidas, tem música,
artesanato, enfim de tudo um pouco.
Olhe para esse homem! Meu Deus! Eu lamberia até os poros dele e
o deixaria fazer qualquer merda de coisa que quiser comigo nesse
segundo. Nem mesmo vou atribuir esse desejo louco aos hormônios
da gravidez. Esse desejo existe desde que meu corpo despertou
para o prazer e para a necessidade, não há nada novo aqui... eu só
o quero, como uma necessidade que precisa ser suprida de
qualquer maneira ou simplesmente vou enlouquecer.
— Não diga isso. Mais homem? Por favor, Henrico. Você é muito
mais homem do que a maioria dos homens que eu já conheci, você
é fantástico de todas as maneiras e é por ser exatamente assim
como é que eu te amo incondicionalmente. Sinto o meu peito rasgar
todas as vezes em que diz algo inferior sobre si mesmo, quando se
compara com o que não deveria e até mesmo quando pensa tão
pouco de si. Você não tem ideia... Eu queria poder colocá-lo diante
de um espelho e fazê-lo enxergar tudo o que você é, e tudo o que
significa para mim, mas creio que isso jamais conseguirei fazê-lo
enxergar. No espelho você só veria um rosto lindo e um corpo de
tirar o fôlego. Eu gostaria que você olhasse para dentro de si
mesmo e conseguisse enxergar tudo o que eu consigo. Achei que já
tivéssemos superado essa fase de você se achar insuficiente e
incapaz, Henrico. Meses já se passaram e construímos uma relação
tão linda, onde um está em constante aprendizado com o outro.
Você já me ensinou tanto, me fez crescer tanto. Talvez seja ridículo
uma mulher dizer isso nos dias de hoje, quando não precisamos de
ninguém para nos autoafirmar e tudo mais, mas, ainda assim, vou
dizer o que sinto; você me fez mulher. Você expulsou para longe
uma jovem garota sonhadora e me transformou nos mais diversos
sentidos. Chegou onde ninguém jamais foi capaz de conseguir
chegar. Então, por favor, pare com essas palavras que me
machucam e enxergue de uma vez o seu potencial. Eu proponho
começarmos novamente, mas, dessa vez, de igual para igual. Sei
que a paternidade te assusta absurdamente e que não se sente
preparado, mas eu vejo além dos seus medos e eu posso garantir
que essa criança será a mais amada e mais protegida do mundo por
tê-lo como pai — digo, colocando as mãos em minha barriga. O
olhar de Henrico desce e o vejo observar a cena. Quanto mais ele
encara minha barriga, mais lágrimas escorrem dos seus olhos e
mais meu coração se parte por vê-lo tão vulnerável.
— Você vai vencer isso. Olhe para trás e veja o quanto já venceu,
Henrico. Na verdade, você já venceu e nem mesmo percebeu. Você
já o ama, você o quer tanto quanto eu quero. É novo para mim
também, e nós vamos aprender tudo juntos, vamos passar por cada
fase juntos.
Dizem que tudo o que é bom dura pouco, não é mesmo? Assim está
acontecendo com o beijo de Henrico. Na mesma velocidade que me
beijou, ele se afasta. Levemente aturdido, como se tivesse acabado
de cometer um crime. Fico o encarando, mas minha mente só
consegue pensar em uma única coisa: Sexo.
— Sei que quer lidar com isso sozinho, mas acho que seria tão bom
você desabafar com alguém que não seja eu. Sei que pondera as
palavras comigo. Já pensou em conversar com Samuel? Ele é seu
grande confidente. Algo me diz que isso seria muito bom para você,
Henrico. Está visível que há centenas de dúvidas dançando em sua
mente. Não acho saudável guardar tudo para si e se forçar a lidar
com algo tão complexo sozinho.
— Eu queria agir como um garoto normal — confessa, deixando
meu coração em frangalhos.
— Você sabe que pode me dizer qualquer coisa. Seja o que for,
estará guardado comigo.
— Uow! Calma aí! Você está conduzindo isso com uma perspectiva
muito ruim. Está focando apenas no Henrico do passado e
esquecendo todas as evoluções que teve nos últimos meses. —
Bebo todo o uísque, precisando de qualquer coisa em que eu possa
me apegar. — Você se julgava incapaz de fazer dezenas de coisas
que fez nos últimos meses, Henrico. Você sempre acredita que não
será capaz, e sempre descobre que é muito mais capaz do que
acredita ser. Sophie te mostra todos os dias que você é muito além
do que julga ser, todos te mostram. É óbvio que tem as suas
limitações, é atípico, mas isso não te anula a ser pai, cara.
— Não é porque viveu coisas ruins na infância, que seu filho e sua
mulher viverão. Você não é o Pablo, Henrico. Na verdade, você é
mais Lucca que tudo. — Ele sorri e eu me pego sorrindo também.
— Nosso pai é o exemplo de pai que deve seguir, eu sei que se
orgulha dele, que se sente honrado por tê-lo, que se inspira nele.
Não teria como ser diferente, eu faço o mesmo. Você não precisa
encarar as pessoas, Henrico, mas se um dia precisar, sei que fará
isso. Você é coração, é movido pelo amor. Você enfrentou a si
mesmo por Sophie, imagina o que não fará por um filho que é fruto
do amor dos dois? Não será fácil, nunca é, mesmo para quem não é
autista, Henrico. Mas sinceramente? Sei que você desempenhará
esse papel melhor que a maioria dos homens. Você gosta de
desafios, mesmo tentando fugir deles na maioria das vezes. Você
possui uma determinação invejável, mesmo que só mostre isso em
casos extremos. Há muito aí dentro de você, Henrico. Talvez você
seja muito mais capacitado que eu, que Bruno, que Thiago, até mais
que Théo. Quando você infiltra na mente que quer, não há ninguém
que possa detê-lo, nem mesmo seus medos, suas limitações. Você
só precisa dizer e assumir para si mesmo o que deseja e então
estará feito, mesmo que obstáculos e desafios apareçam em seu
caminho. Se você fez por Sophie, fará pelo seu filho ou filha, que
será meu afilhado ou afilhada.
— Ela estará.
Grande demais
Falar com Samuel deixa de ser uma opção quando penso no quão
confuso será para ele lidar com os dois. Eu penso em mil
possibilidades, mas decido falar com o menos provável: meu irmão.
Luiz Miguel é parte de mim, é o meu irmão mais velho e talvez vá
agir como meu pai agora, mas meu coração clama para que eu
confie na minha intuição. Pego meu telefone e ligo, ele atende no
segundo toque:
— Estou grávida.
— Ele sempre disse que não queria filhos. Então ele mudou de ideia
em relação ao futuro, disse que trabalharia isso em sua mente para
no futuro planejarmos filhos. Tudo no tempo dele, obviamente. Eu
também não queria filho agora, nem preciso dizer isso. Sou muito
jovem, preciso estudar, meu plano era viver o relacionamento dando
um passo por vez. Lá em Santorini tudo parecia perfeito, até eu me
exceder na bebida...
— Eu sei.
— Sim. Tem sido muito difícil. Ocultei por alguns dias, mas estava
me consumindo e precisei contar a ele. Como esperado, ele reagiu
mal, teve uma crise, mas, felizmente, agora ele está melhor,
tentando lidar com isso da maneira dele. É incrível ver o quanto ele
está se esforçando, lutando com os seus demônios internos e com
todas as demais coisas em sua mente. Mas estamos um pouco
afastados ainda — confesso. — Está me matando... assim como
estou morrendo um pouco a cada dia ao pensar no papai...
Não estou fazendo sentido agora, mas nunca fiz, então está tudo
bem. Sophia tem uma bunda hipnotizante e é impossível não ter
meus pensamentos bagunçados enquanto a observo. Talvez, dizer
que ela não parece grávida soe de forma ruim, da mesma maneira
quando dizem que eu não tenho "cara de autista". Ou talvez...
Quanto mais Sophie rebola, mais meu corpo reage e mais a minha
mente se distrai dos propósitos. Eu iria fazer pesquisas e agora só
consigo pensar em descobrir sozinho, na prática, todas as respostas
para as minhas dúvidas. Estou ponderando me aproximar e dizer o
quanto quero comê-la, quando ela se vira e me encontra.
— Bebecito.
— Sophie.
— Como foi? Se sente melhor após se abrir um pouco com Samuel?
— pergunta, enquanto meus olhos descem aos mamilos que estão
marcados no tecido do sutiã.
— Eu não sei. Talvez seja algo a ser desafiado. O que acha? Apesar
de que, acho que não fomos tão calmos assim — acrescenta.
Buscando mais sons como esse, deslizo uma mão até seu membro
rijo, ereto em toda glória, devidamente preparado. Lágrimas
escorrem pelos meus olhos diante de tanto desejo; um desejo mais
amplificado, mais intenso, que me faz doer pela necessidade de tê-
lo, algo que consegue ser maior do que qualquer coisa que eu já
tenha sentido. É então que a realidade me inunda, lembrando-me do
motivo por trás de toda essa confusão de desejo, choro,
desespero... a confusão de hormônios quase palpável está aqui,
relembrando-me que agora tudo será diferente. Para melhor ou
pior? Eu não tenho essa resposta, mas sei que, embora sinta medo,
dúvidas fazem parte da vida, do crescimento...
— Eu não faço ideia, Henrico Davi. Acha mesmo que tive tempo de
pensar em piercing? — Questiono, quase rindo. — Além disso,
talvez não tenha problema. O bebê não nascerá do meu clitóris.
— Sophie?
Misericórdia!
— Samuel fez merda, tia Dandara está aqui na cidade com o tio
Lucca. Meu pai foi intimado e então mamãe quis vir e tia Paula
acompanhou.
— Henrico ... ele ... não sei explicar. Ele está diferente, até mesmo
conversando mais abertamente e muito sério. Sério demais. Nem
mesmo ri das merdas que estão falando lá. Precisava te alertar.
Sophie acaba de sair com tio Victor, Luiz Miguel, Kiara e tia Melinda.
Eu fico em casa com a minha mãe, que neste momento está me
olhando um tanto quanto estranha.
— Você sabe que temos uma ligação extremamente forte, não sabe,
filho? — Ela questiona.
— Sim. Sua e da sua irmã, mas, sempre tive mais em torno de você,
por todos os motivos que não preciso dizer. Isso significa que o
conheço melhor do que conheço a mim mesma, o bastante para
saber que há algo te atormentando. Talvez você não queira dividir
esse problema com Sophie ou com qualquer outra pessoa por sentir
a necessidade de ...
— Respire.
— Ela estava doente e eu não fazia ideia de que era uma gravidez.
Ela não quis casar escondendo essa notícia de mim e não sabia
como me contar. Ela só me contou muitos dias depois e foi
assustador. Não transamos mais.
— Eu quero ser igual ao meu pai. Quero ser tudo o que ele foi e é
para mim.
Esse pensamento me faz sorrir, mas logo passa. Ele criou não só os
projetos da casa... há uma outra criação aqui... senhor da glória!
Tio Lucca não para de chorar, mas ajuda meu irmão a carregar meu
pai. Os vizinhos devem estar pensando que perdemos um ente
querido, pois estão nos olhando com um olhar de piedade. É como a
caminhada da vergonha, só que de forma diferente.
— Por que meu pai está chorando e tio Victor parece morto? —
Henrico questiona sentando-se ao meu lado.
— Meu pai teve o tradicional desmaio familiar e... não sei explicar o
choro de tio Lucca. Talvez seja apenas emoção — sorrio. — Sei
que é bastante assustador para nós dois, em especial para você,
mas é um momento muito especial para os seus pais, Henrico. Tem
ideia do significado dessa novidade para eles?
— Aoooo Melinda!
— Quero ver quando for a sua vez, babaca! Não se esqueça que
tem uma filha! — Meu pai esbraveja.
Só nos damos conta de que minha mãe ouviu tudo quando ela nos
abraça, chorando. Então Luiz Miguel se junta a nós e eu sinto cada
centelha de medo ir embora, pouco a pouco, sendo substituído pela
coragem e pela esperança de que os dias mais felizes da minha
vida seguirão seguros.
— O que é isso que estamos vivendo? — Hadassa faz a pergunta
que vale 1 milhão de dólares. — Onde isso nos levará? Aliás, será
que nos levará a algum lugar?
DIAS DEPOIS
— Sou mesmo.
Mas minha cacto parece gostar de estar com razão, porque ela sorri
em desafio para o meu pai e se acomoda no sofá, com seu jeito
imponente de ser.
— Mas...
— Ok, podem parar por favor? — Peço. — Sei que sempre fomos
muito grudados, mãe. Há um cuidado especial comigo por todo o
passado e entendo que é difícil para a senhora saber que estarei
distante, longe do ninho. Mas faz parte da vida, a senhora sabe...
depois que cresce o filho vira passarinho e quer voar. — Meu pai
desanda a rir, tornando-se impossível se manter sério.
— Perfeitamente.
— Farei isso. Enfrentarei minha própria mente a cada vez que for
necessário.
DIAS DEPOIS
— Talvez seja.
Henrico está mudo, tão mudo que não sou capaz de dizer uma
única palavra. Ele parece muito perdido dentro de si e, de alguma
maneira, sinto que preciso respeitar este momento. Ele fez o que
achei que jamais faria: me acompanhou na primeira consulta. Na
minha cabeça, eu teria que trabalhar aos poucos para ele poder me
acompanhar em alguma consulta futura, seria compreensível ele
não ir. Conheço seus bloqueios o bastante para entender se ele não
quisesse enfrentar isso, mas parece que ele lutou bravamente com
seus próprios demônios e passou por cima das próprias limitações
para estar ao meu lado. Isso é de uma grandiosidade que nem
mesmo sei explicar, significou muito e me fez enxergar que estarei
de fato amparada nesta fase. Me sinto um pouco mal por ter
duvidado o mínimo da sua presença hoje, mas não irei ser dura
comigo mesma por isso.
— Sophie...
TEMPOS DEPOIS
Dizer a verdade liberta. Não sei se algum pensador contemporâneo
já criou essa frase, mas é tudo que tenho vivido: a liberdade de ter
dito a todos e arrancado um peso imenso do meu coração. O
mesmo está acontecendo com Henrico, especialmente após a
primeira ultrassonografia do nosso bebê. Mas, acho que a libertação
foi muito além do que apenas dizer a verdade. Ele tem demonstrado
que se libertou de todos os receios que estavam o mantendo preso,
incapaz de encarar os fatos. Prova disso é sua animação, que
estava adormecida e agora está mais acordada que nunca!
A obra da nossa nova casa está chegando ao fim. Mais duas
semanas e então começará a fase de montagem dos moveis
planejados, que agora, às pressas, contas com um quarto de bebê
que será surpresa para mim.
Uma...
Duas...
Três vezes.
Seguirei me desafiando.
A minha vontade sobressai ao medo e à todas as forças que tentam
me levar para um lugar onde não me sinto mais confortável. A zona
de conforto em que o medo me mantinha é extremamente
desconfortável agora.
Há 5 dias não a vejo. Estou ansioso também, por esse e por outros
motivos. Eu quero vê-la vestida de noiva. Meu pau endurece muito a
cada vez que a imagino usando um vestido de noiva. Talvez isso
seja um grande pecado, mas não vou fingir santidade. Se querer
foder minha esposa vestida de noiva faz de mim um pecador, eu
aceito qualquer que seja a sentença.
— Você disse uma frase que carrego comigo e que foi muito
importante — digo e ele parece surpreso por eu me lembrar. —
Você disse “você pode fazer isso”, e, desde aquele dia, essas
palavras se transformaram em uma espécie de mantra. Eu digo para
mim todos os dias que eu “posso fazer isso”. E há um mundo inteiro
de possibilidades nesse “isso”.
E vi à beça
O som, a festa
O calor aumenta quando ele entra e fecha a porta atrás de si, com
chave. Engulo em seco quando seu olhar volta para mim.
Suas mãos passam a explorar meu corpo. Ele desfaz o laço do meu
roupão e me encontra completamente nua por baixo dele.
— Me desculpe por isso Há cinco dias não vejo Sophie, não sou
capaz de conter as reações. — Henrico diz. Pressiono meus lábios
fortemente, tentando não rir.
Anos atrás, caminhamos de mãos dadas pelo mesmo lugar que iremos caminhar
hoje. Naquele dia, caminhamos assim para levarmos as alianças até meu pai e
minha mãe. Isso é louco, não é mesmo? Em minha mente tudo isso tem parecido
um filme de romance, porque parece surreal o bastante que eu esteja indo me
casar com a menina que me deu a mão e me ajudou a caminhar até o altar,
quando meus passos eram frágeis e inseguros. Hoje será a minha mãe me
levando até lá, caminhando de mãos dadas comigo. A diferença é que agora
meus passos são firmes, decididos e, mesmo que eu esteja morrendo de
ansiedade, nada será capaz de fazer com que eles vacilem. Em poucos minutos
irei encontrá-la, encaixaremos nossas mãos da maneira perfeita e caminharemos
de mãos dadas para nos tornarmos marido e mulher. Eu mal posso respirar agora,
imaginando essa cena.
Por tudo que você é, por tudo que fez por mim, por ter me esperado, por ter
corrido comigo, por me impulsionar todos os dias — mesmo sem se dar conta.
Todos os dias seu amor me encoraja. Eu sempre farei o possível e vencerei o
impossível para fazê-la feliz, para protegê-la, para cuidar do nosso bebê.
Terei coragem
Ao abrir a porta, sinto um friozinho na barriga que achei que não iria
sentir. É necessário que eu respire fundo algumas vezes em busca
de um controle emocional. De braços dados com meu pai, caminho
pelo jardim, que está tomado de flores brancas que formam um lindo
contraste com o verde. A decoração está impecável, muito além do
que imaginei que ficaria.
Meu pai me guia por mais alguns passos, até Henrico se aproximar.
Eu olho para os dois homens da minha vida e não consigo
descrever o que sinto.
Não.
Não selamos.
Sob uma chuva de pétalas de rosas brancas, reafirmamos nossa
união. Da infância para o resto dos nossos dias!
TEMPOS DEPOIS
— Sophie...
— Deixe-me falar — peço. — Por todas as pesquisas que fiz, pela
minha saúde, eu acredito que será o melhor para mim, melhor para
nós. Eu poderia ter parto humanizado em um hospital também,
mas... após pensar e repensar, eu decidi que quero ter o meu bebê
em casa, em um parto humanizado, com a devida assistência em
caso de necessidade e com uma base de apoio forte. Quero você,
minha mãe, tia Paula, uma doula, a doutora e uma pediatra. Quero
ser protagonista do nascimento do nosso bebê e preciso que minha
vontade seja respeitada e apoiada.
— Eu sei que pode, mas acredito que da forma que escolhi, será
melhor para todos nós. Nós podemos debater mais sobre isso em
casa. — Ele acena positivamente com a cabeça e eu seguro sua
mão.
Uma menina.
— Você está tenso por conta do parto? — Ela pergunta. Sinto que
preciso respondê-la, para que ela não pense que não estou feliz ou
que sou contra suas escolhas. É o corpo dela, é ela quem precisa
tomar a decisão do parto.
— Não. Eu apoio sua escolha, especialmente porque é você
gerando nossa filha e você quem passará pelo parto. Estou feliz por
ser uma menina, só que... você sabe que temo que ela nasça com o
transtorno, temo que sua vida seja limitada como a minha foi
durante grande parte. Mas, estou quieto apenas por excesso de
pensamentos, Sophie. Aconteça o que acontecer, nós seremos os
melhores pais para ela e enfrentaremos qualquer obstáculo.
— Eu sei que será o melhor pai, Henrico Davi, meu menino mais
bonito do mundo! — Ela faz com que eu me sinta verdadeiramente
capaz.
DIAS DEPOIS
Estou feliz por minha esposa estar tendo uma gestação tranquila e
feliz, regada de amor, sonhos e tudo que ela merece. Ela está
radiante e conseguiu ficar ainda mais perfeita portando uma enorme
barriga.
Nossa filha se chamará Alice, e tudo está pronto para sua chegada.
Agora nos resta aguardar.
Seguro sua mão, a beijo e seguimos até o quarto. Cubro seus olhos
antes de abrir a porta, logo em seguida permito que ela veja. Não
gosto muito de ambientes com cores vibrantes, por esse motivo,
optei por cores neutras. Há muita luz natural no quarto, dá a
sensação de serenidade, aconchego. É um quarto simples, porém,
muito bonito. As cores escolhidas: cinza, branco e rosa claro.
Usando meu dom da pintura, desenhei e pintei em uma parede uma
árvore com flores voando, tudo em tom branco sobre o fundo cinza.
Todos os móveis são brancos. Há também uma aconchegante
cadeira de amamentação para que a futura mamãe tenha o máximo
de conforto. Sophie está chorando, então, provavelmente, significa
que ela gostou. Ela caminha até o guarda-roupas e o abre,
revelando dezenas de roupinhas que eu mesmo pendurei de
maneira bem-organizada. Compramos tudo pela internet, faltava
apenas organizar, e executei esse trabalho ao meu modo.
— Oh! Meu Deus! Não sei se rio ou choro — diz, fazendo as duas
coisas. — Essa é a coisa mais fofa do mundo inteiro, Henrico. Você
trouxe sua mania de organização para o quarto da nossa filha! É tão
fofo e perfeito! Eu jamais organizaria tudo da forma como você fez,
separando por cores, modelos... É a coisa mais apaixonante! — Ela
corre até mim e eu a pego, mesmo com uma enorme barriga entre
nós. — Você é a coisinha mais perfeita que tenho só para mim!
— Não tanto quanto você, Soso — sorrio. — Estou feliz que tenha
gostado.
— A coisa mais importante que ela irá usufruir é o nosso amor. Alice
é uma mocinha que nem nasceu e já tem toda a sorte do mundo
com ela. — Diz, enchendo-me de beijos.
— Ela tem muita sorte mesmo, porque é filha da garota mais incrível
do mundo. Além disso, a mãe dela é uma leoa e dona do coração
mais puro que existe.
Eu encontrei em você
TEMPOS DEPOIS
— Sophie, você está bem? Acha que conseguirá? Eu não sei que
tipo de perguntar fazer agora, apenas me diga como se sente —
Henrico pede, segurando fortemente minhas mãos.
Tia Paula parece não estar acreditando, sua ficha parece não ter
caído 100%. Ela, o tempo todo, olha para Henrico com a admiração
estampada em seu rosto. Imagino que esteja orgulhosa pelo bom
trabalho que fez na criação do filho, além de estar completamente
tocada pelo desenvolvimento dele. O autismo estará sempre com
ele, mas é bonito vê-lo tentando e aprendendo a conviver e vencer
as limitações dia a dia.
Eu sou mãe de uma filha do Henrico, o garoto que não queria ser
pai e que parece completamente apaixonado pela filha.
— Alice, essa é sua vovó Paula e esse é o seu vovô Lucca. Diga
“olá” para eles. — O ouço dizer e me pego sorrindo, feliz da vida.
Parece mesmo um sonho. Eu só consigo pensar na felicidade de tia
Paula e tio Lucca agora, sentindo orgulho pelo incrível trabalho que
fizeram com Henrico uma vida inteira. Todo esforço sendo
recompensado pela vida.
Ninguém nasce preparado para ser pai ou mãe; isso vale para
autistas e para pessoas que não possuem o transtorno. Tudo que
podemos fazer é ter fé, disposição e nos dedicar à paternidade ou
maternidade. É sobre tentar fazer com que dê certo.
Desde o inicio eu soube que não seria fácil. E não é. Dizem que são
os bebês que precisam se adaptar à rotina dos pais, mas, aqui em
casa, esse processo está sendo totalmente diferente. Sophie está
sendo uma mãe incrível, porém, sou eu quem mais está tendo que
se adaptar à Alice. Por exemplo, o choro dela. Todos os bebês
choram, supernormal. Porém, eu não consigo lidar com o choro
dela. O choro de Alice me incomoda extremamente. Isso significa
que eu me afasto quando ela está chorando? Não. Eu a amo
incondicionalmente e quero ser um pai completo para a minha filha,
é por isso que, sempre que ela chora, é necessário que eu coloque
um tampão em meus ouvidos para que eu possa lidar com ela da
maneira como ela merece.
Ou eu me adapto, ou perco.
Embora eu tenha sido uma péssima mãe de pet, visto que deixei
Maicon levar Bel para sua casa e ficar com ela para sempre (por
estar cem por cento envolvida em me relacionar com Henrico), sou
uma boa mãe de uma princesinha.
Meu marido diz, enquanto estou de joelhos diante dele, com a boca
recheada com parte do seu pau.
— Delicioso, bebecito.
E nós corremos.
No final da tarde, no jardim, após fazermos um pic-nic, ela segura
minha mão, segura a mão de Henrico, e corremos juntos por todo
gramado, sorrindo com a pureza de uma criança.
Beijos no coração,
Jussara Leal
[1]
ligação, nexo ou harmonia entre fatos, ideias etc. numa obra literária, ainda que os
elementos imaginosos ou fantásticos sejam determinantes no texto; coerência.
[2]
Menção à música Good Luck – Boa sorte da Vanessa da Mata