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Copyright © 2023 Bruna Borges

 
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte dessa obra pode ser
reproduzida ou usada de qualquer maneira ou por qualquer meio, eletrônico
ou físico, inclusive fotocópias, gravações, ou sistema de armazenamento em
banco de dados, sem permissão por escrito da autora, com exceção de
citações curtas utilizadas em resenhas críticas, artigos ou divulgação em
mídias sociais.
 
Esta é uma obra de ficção. Todos os personagens, nomes, localidades e
acontecimentos histórico e/ou atuais retratados neste romance são produto
da imaginação da autora e utilizados de modo fictício, sem qualquer
referência à realidade.
 
Capa: Larissa Chagas (@lchagasdesign).
Diagramação: April Kroes (@aprilkroes)
Leitura crítica: Ana Paula Ferreira (@ferreirareads).
Revisão gramatical: Camille Gomes (@K.millereditorial).
Leitura sensível: Ingrid M R Silva e Ana Paula Ferreira
(@coelhobrancolendo e @ferreirareads).
Betagem: Rebecca Cavedon e Maria Eduarda da Silva
(@leitoraincorrigivel e @dudalendoporai).
Ilustração dos personagens: Jéssica Karoline e Gabriela Gois Santos
(@jesx.art e @olhosdtinta).
 
Sumário
Nota da autora
Epígrafe
Dedicatória
Prólogo
Parte 1
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Parte 2
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Parte 3
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64
Capítulo 65
Capítulo 66
Capítulo 67
Capítulo 68
Capítulo 69
Capítulo 70
Capítulo 71
Parte 4
Capítulo 72
Capítulo 73
Capítulo 74
Capítulo 75
Capítulo 76
Capítulo 77
Capítulo 78
Capítulo 79
Capítulo 80
Capítulo 81
Capítulo 82
Capítulo 83
Epílogo
Agradecimentos
 
 
 
Sejam bem-vindxs à conclusão da história de Francis e Angelina. Como
sabem, esse livro é uma continuação, então precisam ter feito a leitura de
“Promete me esperar” para seguir com a de “Promete me perdoar”.
Antes de listar para vocês os avisos de gatilho, quero reforçar alguns
pensamentos que introduzi desde o primeiro livro. Essa é uma história de
personagens reais, falhos e com defeitos. Eles são o retrato do ser humano.
Vão ser egoístas, imaturos, hipócritas, contraditórios... e tudo mais que nos
faz sermos pessoas e não máquinas que sempre acertam. Esse não é um
livro que vai mascarar as partes ruins dos personagens. Ao contrário. Será
escancarado e aberto para todos, as falhas e erros cometidos. O livro trata
muito sobre como a fase de jovens adultos pode ser frustrante e
desesperadora, como nossas escolhas nos afetam e como são jogadas
pressões sobre nós. A duologia Promessas vai muito além de um romance,
muito além da história de um casal. Se busca apenas isso, provavelmente se
decepcionará. Se gosta de um drama carregado de caos, então esse livro é
para você.
Como podem ter visto na página do livro antes de baixarem, PMP não é
um livro pequeno. É um livro extenso, denso, com uma carga dramática
pesada e detalhada. Façam pausas se acharem necessário ou se algum
assunto os gatilharem, preservem sempre sua saúde mental e física.
Nenhum dos comportamentos dos personagens será romantizado, então não
romantize seu desconforto e converse comigo em minhas redes sociais caso
precise (@autorabrunaborges).
 Dito isso, vou listar abaixo os possíveis gatilhos que o livro pode gerar,
lembrando que não tenho como exaurir todas as situações que sejam difíceis
para vocês, então apenas interrompa a leitura se te fizer mal.
Gatilhos: transtornos psicológicos como depressão, ansiedade, pânico,
com momentos de elucidação suicida (não há suicídio no livro, apenas
pensamentos conflitantes a respeito); transtornos alimentares; TEA
(transtorno do espectro autista); traumas relacionados a afogamento, adoção
e infância; Abuso sexual (não há nenhuma cena gráfica, apenas a menção
ao fato ocorrido no passado); relação familiar tóxica; luto; consumo de
drogas lícitas e ilícitas; violência física e verbal; linguagem de baixo calão;
cenas de sexo explícitas e sem censura.
A classificação indicativa desse livro é para maiores de 18 anos, por
favor, preserve sua saúde mental e leia apenas com a idade correta.
Para quem gosta de fazer a leitura enquanto ouve música, preparei uma
playlist especial para o livro. Basta que você clique no link abaixo e
embarque comigo nessa história.
https://spotify.link/rFOMGzkVuyb
Boa leitura a todxs!
 
 
 
 
Mal sabe você
eu sei que está machucada, enquanto eu pareço dormir
Mal sabe você
que todos os meus erros estão lentamente me afogando
Mal sabe você
que estou tentando fazer isso melhorar
Pedaço por pedaço
Mal sabe você
que vou te amar até que o sol morra
Eu vou esperar, só espere
Eu vou te amar até você nunca sentir a dor
Apenas espere
Eu vou te amar como se eu nunca tivesse medo
Basta esperar
O nosso amor está aqui
E veio para ficar
— Little Do You Know – Alex e Sierra
 
 
 
 
Para todos aqueles que sempre
buscaram desesperadamente o perdão e
aceitação das pessoas que amam, mas
nunca aprenderam a fazer o mesmo por si
próprios... prometem se perdoar?
 

 
11 anos atrás; Cape May.
 
Meu cabelo não está penteado para o lado certo.
Mamãe o penteou para a esquerda e eu gosto que fique para a direita.
Angel sempre joga ele para o lado quando está para a direita. Eu gosto
que ela mexa no meu cabelo, são as poucas vezes que fica tão perto.
Angel não gosta de tocar nas pessoas.
É bom saber que sou diferente. Me faz sentir… especial.
— A gente tem mesmo que ir pra praia? — Don entra no meu quarto
arrastando a manta cor-de-rosa e esfregando os olhos preguiçosamente. Seu
pijama da Barbie está todo amarrotado e fora do lugar.
— São onze da manhã. — Mostro o horário pelo meu despertador do
Superman na mesa de cabeceira. Vou até ela, ajudando a tirar a touca de
cetim dos seus cabelos crespos. Donna sempre dorme com uma. Não sei
para o que serve, mas fica engraçado.
— Hoje é sábado — resmunga. Faço careta para as remelas secas nos
cantos dos seus olhos.
— Você que combinou com a Angel, esqueceu? Eu só tô indo de babá.
— Eu posso ter só oito anos, mas sou bem esperta. Você tá indo porque
são namoradinhos. — Ela mostra a língua.
— Para com isso! — Cruzo os braços, sentindo as bochechas
esquentando. — Somos amigos e ela é muito nova pra ser minha namorada.
— Dois anos de diferença, graaande merda. — Donna revira os olhos,
batendo o pé no chão. Meu rosto esquenta de novo, mas dessa vez é de
raiva. Ela me irrita sempre.
— Não devia dizer essas coisas, vai ficar sem mesada se a mamãe te
ouvir.
— Ela já tirou a minha ontem quando usei o perfume dela, então não tem
problema, eu uso a sua. Você não gasta mesmo.
Don sai do quarto ainda arrastando sua manta pelo piso, me deixando
com um bico irritado para trás. Ela tem essa mania de dizer que Angel e eu
somos namoradinhos…
Até parece, meninas são nojentas.
Quer dizer, Angel não é nojenta, ela é bonitinha, tem um cheiro
engraçado de floricultura e nunca tenta me irritar de propósito, mas ainda
assim não somos namoradinhos. Eu sou como o irmão mais velho das duas.
Não. Não da Angel, ela definitivamente não se parece com a Donna.
Mas a protejo como se fosse… como se fosse seu melhor amigo.
Isso!
Ela me considera assim? Seu melhor amigo? Ela sem dúvida é a minha.
Bagunço meu cabelo para a direita, sorrindo para o espelho. Angel gosta
que as coisas se pareçam sempre iguais, por isso não tenho dúvida que vai
notar algo fora do lugar em mim.
Não é fácil entender o que ela quer, mas eu meio que aprendi a gostar da
sua rotina. Me deixa calmo, porque sei que ela também fica. Não gosto
quando a Angel não está bem.
Isso me… machuca.
— Francis! — mamãe me grita do andar de baixo e corro apressado para
a cozinha.
— Oi, mamãe. — Abro um sorriso.
Mamãe é uma mulher muito bonita, está sempre bem arrumada e com
um perfume forte. Ela é diferente demais de mim e se parece muito com
minha irmã. Papai já me explicou que é porque eu não vim da barriga dela.
— Você ainda não está estudando? — ela não sorri de volta.
Mamãe não sorri muito pra mim, na verdade. Eu queria que fizesse isso
mais vezes, mas acontece só quando o papai está por perto.
— Hoje é sábado.
— Você sabe que precisa se esforçar mais. — Ela se agacha na minha
frente e fica do meu tamanho. Mamãe segura meu queixo. — Sabe do
esforço que seu pai e eu fazemos todos os dias por você. Precisa ser melhor
na escola.
— Mas eu tirei “A” em quase todas as matérias — digo orgulhoso. Papai
até me levou para tomar sorvete quando viu meu boletim.
— Quase… — balança a cabeça, me olhando feio. — Não é isso que seu
pai e eu merecemos. Nós somos “quase” bons para você ou somos os
melhores?
Olho para baixo, com vergonha. Eu deveria ter tirado “A” em todas as
matérias. Não gosto de decepcionar meus pais, eu deveria ser um filho
melhor. Não quero que se arrependam de me escolher.
— Os melhores — respondo baixinho.
— Exato. Então seja o melhor.
— Eu só vou levar a Don e a Angel para a praia porque prometi ao papai
que ficaria de olho nelas e depois vou passar o dia estudando… tudo bem?
Às vezes eu sinto meu coração bater rápido demais quando mamãe fala
essas coisas.
— Espero que não me decepcione mais uma vez, Francis.
Tento sorrir de novo, mas dessa vez não sinto vontade. Deve ser por isso
que mamãe também não sorri pra mim. Ela não tem vontade.
 

 
— Algo não está certo — é a primeira coisa que a garotinha de cabelos
loiros me diz quando bato à porta da sua casa.
— O que não está certo? — Finjo que não sei do que Angel está falando.
É engraçado porque ela morde a boca com cara de pensativa e fica mexendo
as mãos, batendo os pés contra o chão e uma ruguinha se forma entre suas
sobrancelhas.
— Eu não sei, acho que… Ah! — Ela estala os dedos. — É o seu cabelo!
Angelina enfia os dedos nos meus fios e joga para o lado certo. O lado
que gosta. Ela não encara meus olhos, está concentrada demais em seu
trabalho, então eu aproveito para admirar os dela. Gosto de fazer isso
quando Angel está distraída. Sempre que nota, seu rosto fica em um tom de
rosa bonitinho. Ela é bonitinha. O máximo que as meninas conseguem ser,
sem parecerem nojentas.
É melhor eu parar de encarar antes que ela grite comigo.
Isso já aconteceu antes. Várias vezes, na verdade. Agora com menos
frequência, mas quando era menor, Angel gritava quando algo a
incomodava. Principalmente se alguém tentava pegar ela nos braços.
Eu chutei a canela da mãe dela por causa disso um dia desses. Talvez
seja por esse motivo que a tia Savannah não gosta de mim.
Mas foi fraquinho, nem deixou marca. Ela não deveria guardar rancor;
isso faz mal.
— Melhor? — pergunto quando Angelina para de mexer no meu cabelo.
— Muito, você estava feio.
Arqueio a sobrancelha. Posso mudar de ideia sobre ela ser nojenta?
— Agora estou bonito?
— Não devia perguntar isso — Donna ri, jogando um beijo para a amiga.
— A Angie quase sempre fala a verdade.
— Que verdade? — Cruzo os braços. Papai diz que eu sou lindo e a
Vovó Lina também.
— Que você não é feio, mas devia desamarrotar suas roupas antes de
usar. — Angelina faz careta enquanto olha para a minha blusa.
Observo minha roupa, dando de ombros.
— Pra que vou passar meu blusão se logo vou molhar ele no mar?
— Você entra no mar todo dia? — A baixinha estreita os olhos e me
encara irritada. — Porque eu te vejo amarrotado todo dia.
Eu me enganei. Garotas não são nojentas, elas são irritantes e
mandonas. Donna ri, beliscando meu braço. A próxima vez que papai me
mandar olhar essas duas, vou fingir que estou resfriado.
Bom, isso se eu pudesse confiar em mais alguém para cuidar delas. A
última babá pediu demissão por um motivo. Eu quem devo protegê-las.
É como ser o Superman.
Eu gosto dele, só não usaria a cueca para fora da calça, é vergonhoso.
— Quem está aí, Angelina? — gritam de dentro da casa e Don e eu
fazemos careta. A mãe da Angel parece aquelas bruxas mal-humoradas de
desenhos da Disney.
— Francis e Donna.
— Vieram com Robert? — a voz dela sai mais animada ao perguntar do
papai, mas quando Angel nega, ela volta ao estado carrancudo e que me dá
medo. — Então vão arrumar algo para fazer e não fiquem de conversinha
na frente da minha casa!
Angelina dá de ombros, fechando a porta e seguindo com a gente para a
praia. Ela veste um biquíni branco de bolinhas pretas, combinando com seu
chinelo, destoando da cor alaranjada do de Donna. Minha irmã poderia ser
vista do espaço; algum ET vai encontrar a Terra com essa cor chamativa.
Que ela não sonhe que pensei isso ou vai jogar corante azul no meu
shampoo… de novo. Eu passei uma semana lavando o cabelo três vezes ao
dia para sair a cor estranha. Mamãe quase teve um ataque nervoso.
As duas saem correndo animadas pela areia, embora Angelina reclame
com Donna por estar sujando sua perna. Ela nunca gostou de ficar com
areia no corpo; levou um tempo até que conseguisse sequer pisar na praia.
Não sei porquê, eu adoro a sensação da areia entre os meus dedos. Faz
cócegas.
— Fiquem no raso, vocês ainda não sabem nadar bem! — Cruzo os
braços na frente do peito. É assim que os salva-vidas ficam e acho que
quero ser um quando crescer.
— Ah, não… toda vez é isso, que saco! — Don faz bico e bate o pé me
provocando.
— O mar não é como a piscina. — Reviro os olhos. — Se você se afogar
ele vai te puxar para o fundo. Além disso, as ondas estão fortes demais pra
nadar hoje.
— Eu não vou me afogar, sei nadar muito bem. — Empina o queixo.
— Sabe nada! Eu te ensinei há pouco tempo.
— E já sei mais do que você!
Papai disse que não posso puxar o cabelo dela…, mas será que nem um
pouquinho? Ela nem ia sentir. Minha irmã é a mais chata das garotas do
universo. Ela ganharia um concurso se fizessem um. Aposto que a diretora
da nossa escola concordaria comigo.
— Você vai entrar só no raso — repito.
— Você não manda em mim.
— Quando nossos pais não estão por perto eu mando sim.
— Eu te odeio, Francis! — Ela faz biquinho para começar a chorar e
mesmo que eu fique com um pouco de pena, mantenho minha ordem.
— Dorme que a raiva passa.
— Ou eu passo com ela por cima de você.
— Não me enche, Donna. — Suspiro e massageio minha testa. Por
algum motivo ela lateja. — Vai brincar com a Angel…
Procuro os cabelos loirinhos pela primeira vez desde o começo da
discussão com minha irmã irritante e meu coração bate mais rápido ao não
achar onde a tinha visto por último. Dou um passo para a frente e meus
olhos se arregalam.
Droga, pra onde ela foi?
Droga, eu não deveria dizer “droga”. Mamãe disse que é feio.
— D-Don… — gaguejo. — Você viu a Angelina?
A expressão irritada passa para preocupada quando ela observa a praia
vazia e percebe o mesmo que eu. Angelina não está na areia. Não está em
parte alguma que a gente possa ver.
Eu já senti medo. Medo quando quebrava alguma coisa da mamãe, ou
quando chegava mais tarde do que o horário que ela determinava, medo
quando tinha prova de matemática…, mas medo para sentir minhas mãos
suadas e ossos gelados ao mesmo tempo, é a primeira vez.
Talvez seja assim que o Superman se sente quando fica perto de
kriptonita.
Viro minha cabeça tão rápido a procurando, que começo a ficar tonto e
confuso.
Onde ela está? Entrou na água? Voltou para casa? Ela não gosta de
discussões… Don e eu a assustamos? Será que…
Antes de completar o pensamento, escuto um grito vindo da minha irmã
que treme minhas pernas e quase me faz cair na areia. Não sei o porquê
dele, só sei que nunca mais quero voltar a escutar algo parecido… me faz
ter vontade de me esconder.
O mundo gira em câmera lenta; a impressão que tenho é que levam horas
para meus olhos encontrarem Donna, a tempo de vê-la apontar para a água.
Para o mar com ondas grandes demais.
Para Angel se perdendo no meio delas.
Angelina…
O ar foge da minha boca tão rápido, que sinto a necessidade de puxar de
volta. Não encontro força. Não sei como respirar… não com ela precisando
do mesmo ar que eu.
Angelina está afastada da praia, seus braços se movendo rapidamente
para fora da água, enquanto é engolida pela próxima onda. Tiro o blusão
pela cabeça rapidamente, o jogando em qualquer lugar.
Eu… eu só preciso chegar até ela, só isso. Ensinei ela a nadar, Angie
sabe o que fazer, só não pode ficar com medo.
Não fica com medo, Angel. Estou chegando.
Eu estou indo, bata as pernas. Não pare de ir contra. Você é forte!
— Francis, não! — Don agarra meu braço enquanto corro para a água e
minha pressa é tanta que quase a carrego junto. — O mar tá muito forte.
Não a escuto direito. Na verdade, não consigo ver direito. Só água, muita
água. Ondas malvadas, espuma branca, vento forte, cheiro de sal, gosto de
medo.
Não sabia que o medo tinha um gosto, mas ele tem… é como ferrugem;
aperta a boca.
Donna continua gritando, ela grita muito, ouço desespero, mas não ouço
as palavras. Tudo que eu quero escutar é a voz da Angelina, seu pedido de
socorro, mas ele parou há alguns segundos e juro que nunca me apavorei
tanto com o silêncio.
Vou para a água. Pulo as primeiras ondas, passo por baixo de outras;
nado rápido e forte. Não sei por onde procurar. Quero sentir seu cheirinho
doce e floral, mas a água salgada não deixa e arde meu nariz. Quero
encontrar seus olhinhos castanhos, muitas vezes encarando o chão e sem me
olhar diretamente. Não me importo com isso agora, só me importo que não
tenha sido a última vez que ela implica com meu cabelo ou com a minha
roupa.
Papai do céu, eu prometo nunca mais andar com a roupa amarrotada se
Angelina ficar bem. Por favor, é uma promessa séria, serei o garoto mais
comportado que conhece. Obedecerei a papai e mamãe sem nunca
reclamar. Vou me esforçar na escola, nunca vou tirar nota ruim. Vou ser o
primeiro a chegar nos treinos de natação e o último a sair.
Por que não fiquei de olho nela? Por que deixei se afastar?
Ela deve estar com medo. Com certeza está com medo. Uma vez eu
disse para Angel que nunca precisaria ficar com medo quando estivesse
comigo e agora não consigo fazer nada. É minha culpa.
Se algo acontecer, é minha culpa.
Engulo o choro, sabendo que de todas as horas para ser fraco, essa é a
pior. Mamãe diz que preciso agir como um homenzinho, como meu pai.
Meu pai não choraria agora, ele salvaria a Angel.
Eu quero ser como ele agora. Um homem forte e corajoso. Quero salvar
a Angel.
O mar não me ajuda. Sei nadar, mas meus braços e pernas tremem tanto,
que é quase impossível lutar contra as ondas pesadas que passam por mim.
Está pesado, estou sendo jogado na direção contrária da que preciso ir. A
água está me separando dela… por favor, pare.
De longe, consigo escutar os gritos de Donna e mais uma voz masculina
que não sei identificar de quem é. A única voz que preciso escutar é uma
meiga e baixinha, como a voz de um anjo.
Engulo água pela terceira vez, é salgado, ruim e arde a garganta, mas não
posso parar para tossir, não posso parar para respirar. Quanto mais eu
demoro para chegar até ela, mais a água a puxa para longe de mim.
Desde pequeno, talvez desde bebê — como diz meu pai —, sou
apaixonado por água, amo estar no mar, na piscina, em qualquer lugar onde
eu possa nadar. Mas agora, nunca senti tanta raiva. Tanta raiva da água, do
mar, das ondas, da natureza.
Ela está levando a Angel embora. Ela não pode me afastar da Angel.
Não pode!
Mergulho por mais uma onda quando vejo uma mão pequenininha
afundando e sendo coberta. Minha perna queima com o esforço, mas
aumento a velocidade. Eu quero chorar, meu corpo dói, meus braços não
aguentam mais uma braçada, mas eu darei todas, ainda assim. Até encontrar
minha amiga. Eu nunca vou falhar com ela. É uma promessa.
Mergulho em direção ao fundo, abrindo os olhos, mesmo que a água
salgada machuque muito. A bagunça de ondas, bolhas, correntes, não me
deixa ver direito. Balanço os braços na água, tentando achar qualquer parte
da Angel que eu possa segurar.
Por favor, esteja aqui.
Eu não posso perder você.
Choro, mesmo embaixo d’água.
E choro mais ainda quando a ponta dos meus dedos toca uma pele macia.
Dessa vez, é de alívio. Eu me agarro a ela. Não me importo com a força, só
preciso levá-la pra cima. Só preciso que respire, que brigue comigo, que
arrume meu cabelo, que diga que estou feio…
Identifico o braço de Angelina e seguro firme, nos puxando para cima.
Minha perna falha e grito ainda que debaixo d’água; com raiva, muita raiva
de tudo isso em volta.
— Ela não é sua! — berro para o mar, como se ele fosse capaz de me
entender. — Você não vai levar ela de mim! Ela é minha melhor amiga.
Balanço a perna mais forte, até que nossas cabeças estejam recebendo os
ventos novamente. É difícil respirar; engoli água demais; é salgado demais.
Minha coxa queima para que eu pare de mexer, mas ainda estamos no
meio do mar, ainda estamos recebendo onda após onda. Seguro a cabeça de
Angelina para fora, gritando para que respire.
Ela não me obedece. Angel nunca me obedece. Por que você não
respira? Por quê?!
Ela engoliu água, idiota! — grito para mim mesmo.
Dói, dói tanto para nadar; só quero parar; só quero descansar. As
lágrimas irritam meus olhos.
Não sei como, não consigo nem me lembrar de quando ou quanto tempo
levou, mas meus pés tocam a areia fofa e braços me ajudam a sair da água.
Identifico pela primeira vez o rosto do pai de Angelina. Estou tão cansado
que não consigo sequer lembrar o nome dele.
A cabeleira loira é espalhada na areia branca e espero que ele faça algo,
que chame alguém, que a faça respirar, mas o homem tem as mãos sobre a
cabeça, balançando de um lado para o outro.
Faz alguma coisa! — quero gritar, mas minha garganta dói e está
pegajosa.
Eu já vi filmes, alguém precisa soprar ar para a boca dela e então ela vai
cuspir a água que engoliu. É assim, é assim que fazem nos filmes.
Olho para Donna e para o pai da Angel, mas os dois não parecem se
lembrar disso. Me apoio nos cotovelos e seguro a cabeça dela já coberta de
areia.
Encho a boca de ar, as bochechas ardendo pela forma que ficam
esticadas e sopro na boca de Angelina, sem encostar muito. O ar sai todo
para os lados e o rosto rosado se torna muito roxo. Aperto os lábios
pequenos, até que formem um “O” e aperto os meus contra eles, soprando
mais ar do que meus próprios pulmões aguentam. Não sei quantas vezes
faço isso, nem se está funcionando, mas tenho a certeza de que só vou parar
quando ela cuspir a água fora.
Vamos, Angel.
Cospe a água.
Por favor.
Me deixa te ajudar.
Me deixa ser seu herói.
Prometo que vou ser o melhor amigo que puder.
Prometo nunca mais te irritar.
Prometo te proteger sempre de agora em diante.
Mas volta.
Em meio às minhas lágrimas que descem mais salgadas que o mar e que
caem sobre o rosto dela, Angelina curva o corpo para a frente, tossindo
água para longe, o som em seu peito saindo feio, desesperado, buscando ar.
Acho que agora entendo a expressão de alívio de papai quando chego
tarde em casa. Agora entendo o porquê ele suspira. Porque eu suspiro.
Suspiro e choro e me agarro à minha amiga, jurando a mim mesmo não
soltar nunca mais.
É uma promessa.
Que é selada quando Angelina me abraça.
Pela primeira vez.
Seu primeiro abraço. Em mim. Em qualquer pessoa.
E eu a abraço de volta, não aceitando que ninguém a tire de perto.
Ninguém nunca mais vai tirar.
Nem mesmo a força do mar.
 

 
Tia Savannah me expulsou do quarto da Angelina depois de duas noites
dormindo lá.
Eu escuto o choro dela do meu quarto. Escuto os gritos. Ela pensa que
está se afogando de novo. Papai disse que isso podia acontecer.
Mas eu odeio que aconteça.
Agarro com força meu cobertor, tremendo toda vez que ouço seu
desespero. O pior de tudo, é que não escuto nada mais. Ninguém está
ajudando. Pelo menos não agora. Savannah entrou no quarto nas primeiras
vezes e brigou com ela. Não sei dizer qual das duas opções é pior.
Se é deixar Angie sozinha ou brigar quando ela precisa de proteção.
Quando o choro do outro lado da janela fica alto de novo, eu pulo da
cama. Se alguém quiser me deixar longe dela, vai ter que me arrastar à
força e me amarrar na minha cama.
Desço as escadas na ponta dos pés, tentando ao máximo não fazer
barulho. É difícil porque sou muito desastrado e toda hora acabo batendo a
mão ou o pé em algum lugar. Vejo a luz do escritório do papai ainda ligada
e sei que ele pode me ouvir. Espero alguns segundos para saber se vai brigar
comigo, mas tudo que acontece é a porta se fechar por completo. Eu
entendo como uma permissão.
Pulo a cerca branca que separa minha casa da de Angelina e uso a escada
que ela e minha irmã colocaram embaixo da janela para subir até seu
quarto. A janela está toda aberta, o vento frio entrando no quarto e nem
mesmo isso Savannah conhece da filha.
Angel gosta de calor.
Deixo meus chinelos encostados na parede e corro para a cama dela,
onde a garotinha se mexe violentamente sobre o colchão. Penso em pegar
sua mão, mas toque nunca foi algo que a acalmou. Olho pelo quarto,
procurando por coisas que posso fazer. Na parede dos fundos, encontro sua
estante recheada de livros e pego o primeiro que minha mão alcança.
Os três porquinhos.
Ajoelho na lateral da cama.
— Angel? — sussurro, esperando que me escute. Não posso arriscar que
Savannah descubra que estou aqui. O corpo pequenininho continua agitado,
se balançando, gemendo com o mesmo som que um papel faz ao se rasgar.
Nunca achei a Angel uma menina frágil. Na verdade, eu sempre achei
que ela fosse a menina mais forte e corajosa que já conheci. Ela não tem
medo de dizer que tem medo. Às vezes, eu queria ter essa coragem. Mas
agora ela está frágil.
— Não precisa acordar, ok? — Tiro com cuidado as mechas de cabelo
que caem sobre o rosto redondinho. — Eu vou te contar uma história e tudo
que precisa fazer é me escutar. Tá bom?
Ela não dá nenhum sinal de que me escuta, seu corpo ainda se move sem
direção e o suor escorre na testa mesmo com o vento gelado.
Limpo a garganta, abrindo o livro. Eu espero saber ler direito; mamãe
diz que eu sou péssimo com isso. Ela costuma me olhar de um jeito que fico
triste, como se nada que eu fizesse fosse suficiente.
Espero que seja o suficiente para Angelina, pelo menos. Já vi vovó Lina
contando histórias várias vezes, eu posso tentar.
— Era uma vez, três porquinhos que moravam com a mãe… — leio
devagar as palavras, com medo que as letras se embolem na minha língua, e
fico contente de ver que consigo não cometer erros graves. Eu sou bom em
fazer vozes diferentes para cada porquinho. Se estivesse acordada, Angel
riria de mim.
Eu gostaria muito disso. Ver ela rir. Foram poucas as vezes que vi Angel
sorrir. Papai me disse que nem sempre isso quer dizer que as pessoas não
estão felizes, mas sim que cada um tem um jeito de demonstrar.
Eu sei que a Angel tá feliz quando as unhas dela não arranham sua roupa
e ela não fica trocando o peso do corpo de um pé para o outro. Sei que ela
está feliz quando está perto de flores ou quando se perde em pensamentos
ao ouvir uma história. Sei que ela está feliz quando ficamos em silêncio,
vendo as ondas do mar se quebrando na praia. Sei que fica feliz quando
tomamos milk-shake de blueberry e quando não colocam ketchup na sua
batata frita.
Ela não precisa sorrir para eu saber o que a faz feliz.
Eu leio o livro. Imito os personagens. Na parte do lobo, sopro perto do
seu rosto e Angel parece perceber que pode respirar, inspirando o ar que eu
expiro. O corpo dela para de se debater. E sopro mais do que o lobo no
livro. Sopro até que a respiração dela esteja calma e contínua.
— E ele soprou, soprou e soprou.
No dia de hoje, o lobo não é mau. Ele é o herói. Porque a fez respirar.
Talvez até mesmo o vilão possa salvar a mocinha com a motivação
certa.
Volto tarde para casa.
Não sei o horário, mas o sol já começa a aparecer. Fecho a porta da sala
com cuidado, não querendo acordar ninguém. Estou com muito sono; passei
a noite lendo para Angel e ela dormiu durante todo o tempo. Eu queria ter
continuado, mas logo a mãe dela acordaria e não ia gostar nada de me ver
no quarto. Não queria que ela gritasse e deixasse a Angelina assustada.
— Campeão? — papai me chama e arregalo os olhos, com um pé no
primeiro degrau da escada. Viro para o lado, o vendo parado na porta do
escritório.
— Papai, eu posso explicar, eu…
— Não precisa — ele me interrompe e então sorri para mim, me
chamando com a mão. Eu me aproximo passando a mão na cabeça. Será
que estou encrencado?
— Eu só tava lendo pra Angel…
Papai me puxa para um abraço quando fico em sua frente. Ele se agacha
como mamãe fez no dia anterior, mas ao contrário dela, não briga comigo.
Papai me aperta forte e eu me sinto protegido nos braços dele. E um pouco
sem ar.
— Você é o melhor filho que um pai poderia ter. O melhor de todos. Eu
não poderia ser mais orgulhoso do rapazinho que está se tornando.
— Você não está bravo? — fico surpreso. — Eu passei do horário.
— Você arriscou ficar de castigo para ajudar uma amiga que estava em
um momento ruim. Não há nada mais honroso e digno do que nos arriscar
por aqueles que amamos. Você tem um coração lindo, campeão.
Não sei porque, mas sinto vontade de chorar. Papai está falando coisas
boas. Bonitas. Mas tenho vontade de chorar.
— Você é minha melhor escolha, filho. — Ele se afasta de mim e vejo
lágrimas nos olhos dele e não me sinto errado por querer chorar. Se papai
chora, então eu também posso. — Lembre-se sempre disso.
— Eu amo você, papai.
Olho para meu reflexo nos olhos dele.
Porque… porque nos olhos do papai, eu sou sempre legal. Gosto de me
ver aqui.
 
Dizem que o tempo cura todas as
feridas..., mas como as minhas irão
cicatrizar, se eu continuo abraçando a
lâmina que as causou?
 

 
Dias Atuais...
 
Sempre achei a vingança algo sem sentido, eivada de irracionalidade.
Não a considerava capaz de reparar o mal feito, curar a ferida ou retroceder
a cicatriz. Considerava uma perda de tempo e energia, um mal que causaria
mais dor a quem carrega o sentimento revolto do que ao alvo dele.
Não sei se penso assim agora.
Talvez sim, a vingança seja irracional e impulsiva, talvez de fato não
haja lógica nela. Mas se tem algo que aprendi nos últimos meses, é que nem
sempre o ser humano é guiado pela razão. Na maior parte do tempo,
borbulhamos em sentimentos que insistem em explodir e tomar o lugar da
vozinha na nossa mente onde reside o juízo.
Oscar Wilde disse certa vez que se pode perdoar a força bruta, mas a
razão bruta é irracional. É bater abaixo do intelecto. 
Essa deve ser a razão para que não nos importemos em reparar a nossa
própria dor, mas sim em causá-la a alguém. Em quem nos feriu. Também
por isso que cada vez que vejo Francis, tenho vontade de agarrar o primeiro
homem que cruzar meu caminho, para que ele sinta exatamente o que senti
quando me mudei para São Francisco e o vi com a Blue.
O quão ele precisou rasgar meus sentimentos e minha autopreservação,
para que eu quase ignore o fato de não querer ser tocada, apenas para que
ele sofra?
Donna estala os dedos quando passo tempo demais encarando seu irmão,
agora sentado na mesa ao fundo da lanchonete, com a Blue de companhia.
Ele não parece feliz. É uma mistura de tristeza, cansaço e estresse. E pela
expressão da animadora, também deve estar irritante.
— Tá olhando pra ele assim por que quer sexo ou briga? — Don me
provoca com um olhar estreito.
Bufo em desdém para sua pergunta.
Não faria sexo com ele de novo, a menos que tivesse apenas alguns dias
de vida, pouco o suficiente para não ter tempo de me arrepender.
— Angelina? — Don chama de novo, dessa vez mais alto.
— Hum?
— Não me respondeu. Essa expressão é tesão reprimido ou raiva?
— Eu estava considerando beijar outro cara só pra dar o troco no seu
irmão.
— Então é raiva. — Don arregala os olhos.
— É… é raiva.
Eu pensei entender o que era raiva quando me mudei para São Francisco,
mas o que sinto agora é completamente diferente. É enervante, me faz
querer agir das piores formas possíveis; me faz cogitar magoá-lo da mesma
forma que me magoou.
As palavras vingança e retaliação piscam em vermelho sangue na minha
visão.
Respiro fundo quando vejo o nadador tomando um milk-shake de
blueberry.
É torturante ter que fingir que somos estranhos e não pessoas que sabem
absolutamente tudo um sobre o outro. O hábito de perder a intimidade com
o Francis é a parte mais difícil das nossas separações. Retroceder a vontade
de olhar as mensagens, ignorar o impulso de contar sobre um livro novo,
não falar sobre o próximo campeonato de jogos, não ouvir suas histórias
quando minha mente vira uma bagunça…
Desconstruir rotinas é difícil para mim em todos os aspectos, mas
quando se trata de uma rotina que não apenas me deixava em minha zona
de conforto, como me fazia sair dela e apreciar a aventura, é ainda pior.
Meu corpo fica esperando por aquelas doses de endorfina que eram
liberadas e se frustra ao não as receber.
Perder o cara que você gosta uma vez é ruim, mas perder duas vezes
pode ser destrutivo. Tenho medo todos os dias, de que em algum momento,
eu me esqueça como era a sensação de tê-lo. Como era a textura da sua
pele, o calor do corpo, o timbre da voz, o sabor do beijo…
— Sabe que não podem passar o resto da vida assim, né? — Ethan tenta
argumentar. Ele foi bem insistente depois que Francis e eu paramos de
conversar, mas diminuiu o ritmo das suas tentativas depois que perdi a
paciência em um dia difícil. Não me orgulho da forma que o tratei, mas
estava cansada das falas poéticas e inúteis sobre perdão.
As pessoas falam sobre o ato de perdoar, mas dificilmente perdoam a
quem as magoam. Viver em hipocrisia não faz parte da minha cartilha. Não
é como se eu estivesse culpando a quina de uma mesa por bater meu
quadril. Estou culpando alguém consciente e racional, pelo mal que me
causou. Não importa o quanto não tenha sido intencional. Um corte dói,
mesmo que tenha sido feito por acidente. E não estou disposta a abraçar a
lâmina que o causou.
— Não preciso do resto da vida. Só até o fim da faculdade.
— E depois? — ele insiste.
— Depois só se eu fosse uma vidente pra saber. Coisa que não sou,
Ethan!
Será que ninguém entende que acabou? Quantas vezes mais querem que
eu entregue meu coração ao Francis? Só para ele cuidar como se fosse feito
do material mais resistente, quando na verdade, ele é feito do cristal mais
fino e cheio de remendos que colei de qualquer jeito?
Errar comigo uma vez, é culpa exclusiva dele. A partir do segundo erro,
a culpa é minha por ter permitido que ele tivesse a oportunidade. O perdoei
quando me tratou mal ao chegar nesta cidade, mas não vou cometer a
mesma falha depois de ele ter olhado dentro dos meus olhos e duvidado de
mim.
— Ok... — Ethan ergue os braços, quase acertando a cabeça de Donna.
Minha amiga, no entanto, está ocupada demais encarando a tela do seu
celular com um sorrisinho velado e secreto.
— Falando com alguém? — pergunto com a intenção de mudar o foco
da conversa.
— Hum? — Don ergue o rosto na minha direção, desfazendo o sorriso
instantaneamente.
— Perguntei se está falando com alguém.
— Ah… — Ela joga os ombros. — Ninguém importante.
— Está sorrindo muito para alguém que não é importante.
— Você só sorri para pessoas importantes? — Ela arqueia as
sobrancelhas.
— Sim. Por que eu iria ficar distribuindo sorrisos a quem não me
importa?
— Bom, eu sorrio pra todo mundo. Então meus sorrisos não são
indicativos de que a pessoa é importante. — A boca dela se retorce.
— Você é estranha, mas tudo bem… — Desdenho com as mãos.
— Eu deveria ter entendido esse papo de vocês? — Ethan coça a cabeça
recém-raspada. Segundo ele, as calouras adoram porque o faz parecer um
bad boy.
— Não há nada para entender. — Don volta a atenção para o celular.
— Entender o quê? — uma voz familiar entoa atrás de mim e giro o
pescoço em sua direção, encontrando Blue ainda vestida com a roupa das
animadoras. A líder de torcida apoia as mãos sobre a mesa e sorri
provocadora.
— Não é da sua conta. — Donna guarda o celular depressa, cruzando os
braços. — Não devia estar com meu irmão?
— Não nasci grudada com ele. — Blue estala a língua no céu da boca.
— Além disso, seu querido irmão foi ao banheiro. Para o bem da minha
paciência.
— Você devia fazer o mesmo, pelo bem da minha — Donna alfineta e
reviro os olhos. Elas não se cansam nunca?
— Não te irritei o suficiente no treino de hoje, docinho. Estou devendo
algumas rugas a você.
— Se eu não conhecesse vocês duas, diria que isso é puro tesão
reprimido. — Ethan apoia as mãos atrás da cabeça, atraindo o olhar de
algumas garotas do nosso lado. Elas não entendem que o ego dele só se
torna maior com toda essa atenção?
— Bateu a cabeça muito forte no jogo? — Blue joga uma batata frita em
cima do jogador. A minha batata. Eu deveria ficar irritada, mas fome não é
algo que tenho sentido nos últimos tempos.
— Ele só bate quando a Isa tá por perto pra cuidar — Don entra na onda.
— Não está mais aqui quem falou. — O jogador volta a comer,
emburrado.
Ele vai aprender que o melhor a se fazer para acabar com uma conversa
desagradável, é fingir que não está escutando. Não tem graça irritar alguém
que não presta atenção em você.
 

 
Minha bexiga vai estourar. Céus, por que fui pedir um suco daquele
tamanho? Corro para o corredor estreito, entrando na primeira cabine que
vejo disponível. Por sorte, o lugar está limpo. Quer dizer, tão limpo quanto
um banheiro de lanchonete pode ser.
Depois de me aliviar, lavo as mãos correndo, ajeitando meu cabelo para
tentar alinhá-lo. Me assusto com a quantidade de fios que saem na minha
mão, mas não perco tempo me preocupando com isso agora. Não quero
perder a carona que Ethan vai nos dar; meu carro teve um problema no
motor na última semana e desde então está na oficina do campus.
Corro apressada em direção ao corredor e assim que meus pés
atravessam o batente da porta, meu corpo colide contra uma superfície dura,
que identifico tarde demais ser uma pessoa. Cambaleio para trás, buscando
meu próprio equilíbrio.
— Me desculpe!
— Isso está se tornando um hábito, Angelina — a voz de Francis me faz
estancar e continuo encarando meus próprios pés, porque um arrepio
escorre da minha nuca até a base da coluna. Não escutava sua voz há
meses… Por favor, que eu esteja imaginando coisas. — Estou começando a
achar que você faz de propósito.
Ergo os olhos vagarosamente para o enorme atleta à minha frente. Ele
veste a regata azul e branca da USF, com o leão rugindo no brasão em seu
peito. Tenho vontade de rosnar igualmente.
Minha nossa, Francis está malhando quantas horas por dia?
Vezes demais para não reparar na largura dos seus ombros e braços.
Enquanto estou definhando e mal consigo comer, ele está simplesmente
ficando mais… insuportavelmente atraente. Pego-me imaginando que se ele
fosse menos bonito, as coisas seriam mais fáceis. Mas chego à triste
constatação de que não. Embora fosse ser um alento poder chamá-lo de
feio. Babaca e otário está ficando batido.
Francis cruza os braços em frente ao peito, seus bíceps tensionando com
o movimento e as veias sobressalentes tornando-se ainda mais visíveis. Os
lírios ganham vida junto aos músculos.
Se Francis ao menos cobrisse a tatuagem…
— Está um pouco frio para camisetas sem manga — digo irritada,
raspando a unha nos meus jeans.
— Meu corpo à mostra te incomoda? — Seu sorriso se eleva vitorioso.
Aperto minhas mãos, as unhas ferindo a palma.
— A tatuagem me incomoda — deixo claro. — Para quem fez tanta
questão de escondê-la no passado, é no mínimo engraçado que agora ande
por aí a exibindo.
O sorriso de canto nos lábios de Francis apenas se intensifica. Eu tenho
vontade de socar a cara dele. Por que fica sorrindo pra mim como se
soubesse de um segredo que não quero revelar?!
— Não tenho porque esconder a tatuagem agora. — Ele deixa os braços
caírem na lateral de seu corpo, para que eu possa ver o desenho por
completo. Mesmo não devendo, as pontas dos meus dedos coçam para
acariciar cada pétala intrincada. Deito o pescoço para observá-las melhor.
— Antes eu não queria que você soubesse que era importante pra mim, mas
agora não tenho como fingir que não é. Na verdade, não tenho a mínima
intenção de esconder que você é importante pra caralho.
— Fez isso muito bem quando não acreditou em mim — retruco
friamente, recuperando a postura rígida. — Ou você costuma não acreditar
em todo mundo que é importante?
O sorriso dele vacila e meu coração dá um loop de 360 graus dentro do
peito. Não é tão fácil assim magoá-lo. Mesmo que haja certa gratificação
em retribuir o que me causou, algo em mim recusa esse sentimento com a
força de uma multidão. É como se eu fosse impedida de odiá-lo. Sinto
raiva, fúria, cólera…, mas aquele ódio genuíno e cru, não.
Sinto algo pior. Decepção.
— Eu sei que errei com você. — Francis muda o peso do corpo para o
outro pé. — Isso não é sequer discutível, mas não vou esconder minha
tatuagem. Eu ainda amo você, Angelina, então ela permanece aqui. Além
disso… — Ele dá dois passos para a frente e dou a mesma quantidade para
trás. — Você também continua com a tatuagem. Quer dizer que alguma
parte sua, mesmo que seja remota, ainda gosta de mim e ainda pode me
perdoar.
— Ou que não tive tempo de removê-la. — Ergo o queixo, percebendo
tarde demais que foi uma péssima escolha. Nossos rostos ficam
perigosamente próximos e os olhos de Francis caem para minha boca
ansiosos. Ele parece perdido por alguns segundos, tentando achar o
caminho de volta para si. E eu posso dizer com clareza quantos vincos
existem sobre a carne grossa e macia da sua boca.
Minha língua se agita para desfazer os vincos e torná-los macios.
— Você a removeria? — Francis murmura e o ar estanca na minha
garganta. Seu peito está colado ao meu, as batidas de nossos corações
sincronizadas. Não sei dizer qual está mais acelerado. — Diz pra mim,
Angel. Você removeria a tatuagem?
Os cristalinos olhos azuis me perfuram como duas agulhas envoltas em
chamas. Minha respiração acelera e inspiro mais do perfume amadeirado do
que de fato gostaria. Ou que sequer é seguro para meu autocontrole.
Cheiros são gatilhos para ações.
Prendo a respiração.
— Você tem todo o direito de fazer isso se é o que quer. De se vingar. De
tentar me ferir. Mas se me permite dar um conselho, não faça. — Ele passa
a língua nos lábios e sigo o movimento com atenção. — Quando você se
mudou para cá, eu achei que tudo que queria na vida era te fazer sofrer, era
te ver sentindo a mesma dor que eu… e eu consegui ver a dor nos seus
olhos, Angelina, e não vou mentir que por alguns momentos achei
gratificante, que me senti vingado…, mas em nenhum desses momentos, a
minha dor desapareceu. Se quer se vingar por achar que vai parar de
sofrer… sinto muito. Como alguém que passou pela situação, não dará
certo. Mas tente se não acreditar em mim.
Aperto minhas mãos.
— É muito fácil pra você falar quando fez o que queria, quando me feriu
deliberadamente, quando se vingou da forma que achou mais conveniente,
por algo que eu não fiz e sequer tive a chance de defesa. Eu não ligo se sua
dor não passou, Francis, porque naquele momento, você escolheu me fazer
sofrer. — Sorrio cinicamente. — Eu sei que a minha dor não vai passar se
eu me vingar de você. Ela não vai passar de jeito nenhum, porque você me
feriu fundo o bastante para não cicatrizar. Então não há problema em te
retribuir o tratamento que recebi quando cheguei até aqui.
— Angelina…
— Não! — digo firme. — Não quero mais ouvir suas desculpas e
lamentações. Estou cansada de todas elas. Meu perdão é algo que você
nunca vai conseguir. Eu te perdoei pela forma que agiu comigo quando
cheguei aqui, mas não te darei outro benefício da dúvida depois de duvidar
do meu caráter e me culpar por algo que você próprio criou! — Analiso-o
de cima a baixo. — Da próxima vez, te aconselho a perguntar primeiro e
atirar depois. Você pode machucar uma pessoa inocente.
— Eu a magoei. E talvez não a mereça. Mas seu perdão é algo pelo qual
vale a pena lutar — a voz dele não transpassa nada além de um sussurro
sôfrego. — Não vou desistir.
Minha visão tremula.
— Com licença.
O empurro antes que meu coração tenda a se amolecer. Eu queria que
meu corpo o detestasse. Mas acho que isso é algo impossível. Francis
sempre será meu ponto mais fraco.
E por isso eu tenho que ficar o mais longe dele possível.
 

 
Sirenes. Sirenes vermelhas, piscando e berrando nos meus ouvidos. É
isso que vejo e ouço quando os alarmes internos do meu corpo se acendem
para situações inesperadas. É como estar em um engarrafamento de
veículos, onde carros de polícia, ambulâncias e caminhões de bombeiro
acionam suas luzes piscantes e gritantes. A vontade é de fechar os olhos e
tapar os ouvidos para não ver ou escutar.
Isso pode até funcionar quando a situação ocorre na vida real. Mas é
impossível conter quando os sons e luzes vêm de dentro de você, estão no
seu interior, piscando fervorosos.
Não posso culpar o sistema de defesa do meu corpo agora. Ele não está
errado de me alertar. Assim que vi o nome de Vovó Angelina na tela do
celular, eu soube que havia algo de errado. Ela sempre me liga nos mesmos
horários e por chamada de vídeo, nunca muda. E hoje, mudou.
Simplesmente mudou. Ela me ligou mais cedo do que o de costume e por
chamada de voz. Pensar no porquê de ela não mostrar seu rosto, faz minha
pele pinicar.
Engulo como se areia estivesse revestindo as paredes da minha garganta
ao atendê-la. Não costumo ser alguém pessimista. Mas quando a voz dela
soa esganiçada e falhada de choro, eu imagino os piores cenários possíveis.
Só vi minha avó chorar no dia que deixou meu avô. No dia que o colocou
para fora, porque ele havia perdido dinheiro no jogo novamente. E agora,
ela chora pelo mesmo homem. Sua fala é rápida, custo a entender.
Por apavorantes segundos, penso que ele tenha falecido. Mas não, ele
não faleceu. O que não quer dizer que não o fará em breve.
— É grave? — murmuro, piscando para afastar as lágrimas.
Vovó respira três vezes antes de responder.
— Eu recebi uma ligação do hospital de Atlantic City esta tarde. — Ela
chora baixinho. — Seu avô foi internado há três dias, depois de ser
encontrado desmaiado em casa.
Aperto o celular até meus dedos doerem. Olho para os lados buscando
minha bolsa, querendo minhas pastilhas. Preciso mastigar algo para não
forçar meus dentes um contra o outro. Jogo duas na boca, mesmo o gosto da
menta embrulhando meu estômago.
Vovô Samuel…
Faz anos que não falo com ele. Desde que os dois se separaram. Eu era
próxima ao meu avô, mas vê-lo tratar minha avó mal quando estava bêbado
e deprimido por perder um jogo era devastador. Não a culpo por tê-lo
mandado embora de casa. Mas me culpo por não ter tentado manter contato.
Ele que me deu meu primeiro exemplar de Austen… eu deveria ao menos
ter ligado ao longo desse tempo. O grande problema, é que não sou boa
com perdão.
— Doença no sangue — vovó volta a falar e escuto o raspar do papel
sobre o rosto dela, provavelmente enxugando suas lágrimas. — Seu avô
está com uma doença grave no sangue.
— Qual doença?
Vovó se cala. Se cala tempo demais. Sinto vontade de vomitar.
— Vovó? — chamo em agonia. O barulho está ficando alto em minha
mente. — Por favor...
— Eu preciso que você seja forte agora, minha flor.
Vovô me chamava assim. Agradeço por Donna ter saído, isso não parece
que ficará bonito de se ver.
— Eu sou forte — minto.
— Eu sei que é, meu bem. Mas pela primeira vez na vida, te peço para
ser forte por nós duas. Porque sua avó virou uma planta sem adubo.
Enfraquecida. Fragilizada.
Fecho os olhos com força.
— Me fala — tento manter a voz firme e falho vergonhosamente.
— Leucemia, Lilium. Ele está com leucemia.
Minha visão fica turva instantaneamente. 
— Não… não, por favor — imploro para minha avó. Imploro para que
minta. Pela primeira vez, quero que minta, que diga que não é verdade. Que
me diga as palavras doces que costuma direcionar a mim. — Vovó… me
diz, me diz que não é verdade. É um engano, pode ser um engano, os
médicos podem ter errado, vovô é forte, ele não pode… quer dizer, ele não
esconderia isso de nós… e-eu…
— Oh, querida — ela chora junto comigo, os meus soluços combinando
com os seus. — Faz anos. Três anos que ele sabe disso e não me procurou.
Devido à doença, ele sofre de anemias severas e não estava se tratando.
Vovó pediu para ser forte por nós duas, mas Shakespeare era ciente de
que todo mundo é capaz de dominar uma dor, menos quem a sente. Não
consigo erguer vovó agora, não quando me faltam forças para sequer
respirar.
— Ele achou que eu o deixaria sozinho. Achou que eu não o amava o
suficiente para me pedir ajuda, filha.
Vovó chora alto. Chora em desespero. Meu coração se quebra. Ele
despedaça, porque o fio que o mantinha no lugar, também está se partindo,
a mais de 7 mil quilômetros de distância.
— Eu o abandonei. O abandonei e ele achou que estava sozinho. Eu o
deixei porque achei que seu avô mudaria, que se curaria do vício no jogo e
no álcool, eu achei que o abandonar fosse ser o empurrão que precisava,
mas eu apenas deixei o amor da minha vida adoecer sozinho. E ele é,
Angelina, e sempre será, o grande amor da minha vida. Não importa
quantos erros, quantas falhas, quantas vezes ele tenha chegado bêbado ou
perdido todo nosso dinheiro. Ele é o homem que mais amei nesse mundo e
será assim até o dia que nos encontrarmos de novo após a morte.
— Como ainda pode sentir isso? — suplico por uma resposta. Suplico
porque sinto-me tão errada de ainda nutrir sentimentos pelo Francis, mesmo
depois de tudo. Talvez se vovó me explicar suas razões, eu aceite meus
sentimentos com menos sacrifício.
— Amar alguém significa escolher todos os dias pelo lado ruim daquela
pessoa, porque ele combina com o nosso. É isso que diferencia amor de
paixão. A paixão ama o belo, o correto, o que tem de melhor. A paixão é
rasa, inocente e temporária. O amor é diferente. Ele vê a verdade, é
maduro, consciente, o amor vê e se sente grato por encontrar os defeitos.
Seu avô errou demais, mas sempre que o álcool não o comandava, no final
do dia, eu via nos olhos dele o homem por quem me apaixonei.
— Então por que o deixou? — novamente, é uma resposta que espero
para justificar a mim mesma. Para justificar o fato de não perdoar, ainda
amando.
— Porque eu pensei que enquanto ele soubesse que não me perderia,
continuaria a se degradar. Eu esperei que com nossa separação, ele fosse
melhorar. Infelizmente, eu estava errada. E agora é tarde demais para me
arrepender, meu amor — Vovó funga, e leva um tempo até voltar a falar. —
Quando digo para perdoar o erro de Francis, não é apenas por ele. —
Abro a boca para interrompê-la, mas não tenho coragem. — É por você
também. Nós nunca sabemos o que nos aguarda no futuro. Eu abandonei
seu avô como uma escolha. E agora vou ter que viver com a consequência
de vê-lo morrer, sabendo que desperdicei nossos últimos anos juntos.
— Ele não te merecia. Você sofreria ao lado dele — argumento, porque
essa é a lógica. Se a pessoa não te merece, você a abandona. É simples ação
e reação. Não importa o sentimento envolvido.
Não é?
— Talvez sim — ela solta uma risada triste. — Mas esse homem me fez a
mulher mais feliz do mundo por mais de cinquenta anos. Eu devia a ele o
benefício da dúvida.
— Você está errada! — Nego com a cabeça. Porque se ela estiver certa,
então… então a errada sou eu e tudo que escolhi fazer meses atrás. E o
sofrimento que me submeti terá sido completamente em vão. — Ele erraria
com você de novo, ele beberia de novo e jogaria de novo.
Vovó suspira.
— Quando somos jovens, achamos que o mundo são dois extremos.
Certo e errado, bem e mal, oito ou oitenta. Mas a maioria das pessoas não
se resume a isso. Todos nós, em algum momento, fomos ou seremos a
pessoa ruim da vida de alguém. Assim como podemos ser a salvação. Não
estou dizendo que os erros devem ser ignorados, só estou dizendo que não
precisamos resumir as pessoas a eles. Eu não precisava ter continuado
casada com seu avô. Mas eu devia ter mantido contato, em consideração
ao amor que eu sentia e aos anos que estivemos juntos. — Ela suspira. —
Ele nunca foi ruim para mim diretamente, sabe? O maior erro dele, foi ser
ruim para si próprio. Ele machucou o homem da minha vida e por isso eu o
odiei. Eu o odiei, porque ele me obrigou a afastar a pessoa mais importante
no meu mundo. E agora, percebo que na verdade, eu o perdoei há anos e
odiei a mim mesma por tê-lo deixado.
Aperto os dentes com força. Vovó poderia muito bem estar falando sobre
o que sinto por Francis. Mas ao contrário do perdão que ela encontrou, o
meu segue distante como Cape May é de São Francisco. Eu não posso
perdoar, não posso… ele vai me decepcionar de novo e de novo, até que me
obrigue a não o amar mais. E se Francis me obrigar a não amá-lo, então o
odiarei verdadeiramente pela eternidade.
Ao menos ainda tenho nossas lembranças. E elas são boas. Céus, tão
boas.
— Você não precisaria ter escolhido isso, se vovô não tivesse escolhido
se tornar aquele homem. Se ele não tivesse errado com você — mantenho
minha posição. Não posso abrir mão dela agora. Não suportaria a verdade
de vovó, não quando ela me coloca na posição de me arrepender
amargamente no futuro.
— Eu só posso culpá-lo pelas próprias atitudes. Não pelas minhas. E
quer saber de uma coisa? Se fosse o contrário, seu avô nunca teria me
deixado.
— Você não pode saber! — digo irritada e com o tom alterado. Vovó está
sendo irracional. Ele errou. Não ela. Ela não devia nada a ele. Não importa
os anos ou os sentimentos.
 
— Quando se vive ao lado de alguém por cinquenta e dois anos, sim. Se
pode saber. Você é jovem e inexperiente ainda, Lilium. Qualquer erro,
qualquer gota de água, torna-se tempestade. Você vai entender com o
tempo, principalmente quando a errada for você, de que erros não são o
que somos. Não quando os cometemos sem qualquer intenção de machucar
quem amamos.
— Eu não erraria como eles — digo eles porque vovó não está falando
apenas do meu avô. Ela está falando de Francis. — Nunca!
— Eu espero que você não precise engolir estas palavras, meu amor.
Mas infelizmente, como uma mulher que cometeu grandes erros na vida,
devo te alertar que é quase impossível passarmos por ela sem fazermos
grandes besteiras com as pessoas que mais queremos o bem.
Fico em silêncio. Esse não é o momento para uma discussão com vovó.
Ela está errada. Eu nunca duvidaria de Francis como ele duvidou de mim.
Eu nunca erraria com ele assim. Jamais. Ele pode ser digno de amor, mas
não de perdão.
— Imagino que deva estar indo para Atlantic City.
— Estou. Vou estar ao lado do seu avô até o fim.
— Eu não entendo. Mas respeito sua decisão.
— Obrigada, querida. Obrigada por estar ao meu lado, mesmo não
concordando.
— Sempre vou estar.
Eu quero dizer as três palavrinhas para ela. Mas vovó já sabe. Ela sabe o
que sinto. Nosso silêncio é o suficiente. Nosso choro mudo também. Porque
posso não entender como ela consegue perdoar meu avô, mas entendo
porque ainda o ama. Como não entender, quando sinto o mesmo?
Não sei se estou pronta para perder meu avô. Ao menos eu sabia que ele
estava vivo e que poderia vê-lo se quisesse. A morte é diferente. É uma
sentença de que não há volta e que o tempo perdido foi concretizado sem
chance para arrependimentos.
Geralmente gosto de certeza. Mas dessa, eu tenho verdadeiro pavor.
Tenho medo da morte. De vê-la levar quem eu amo ou me levar para longe
deles.
Talvez a morte seja meu mais secreto pesadelo.
 

 
 
Esforço. Dor. Mais esforço. Mais dor. Isso é certo, constante... natural.
Ajo e recebo a consequência.
A dor de exercitar meus músculos é boa. Ela desaparece após alguns
dias, diferente de todas as outras que sinto. Eu posso aguentar os protestos
do meu corpo, mas não posso tolerar os berros da minha mente e do meu
coração. Eles ficam brigando entre si, tentando decidir quem é o mais
correto. Na minha opinião, os dois estão enganados. O primeiro, acha que
esquecer Angelina é a opção correta, que devo focar apenas em mim, em
ser alguém que me orgulho. O segundo, acha que devo lutar por ela a cada
segundo do meu dia, até que eles se esgotem.
Empurro mais uma anilha de vinte quilos na barra, sob olhares
enviesados de Vance. Deito sobre o banco de couro, estalando o pescoço
antes de empurrar a barra para cima e voltá-la em seguida até meu peito.
Estou pegando mais peso do que deveria, malhando mais do que o
recomendado pelo técnico, mas não é como se eu me importasse com algum
dano causado.
Às vezes é como se eu esperasse que algo de ruim acontecesse. Algo que
justificasse o fato de eu desistir de tudo. Que me desse uma desculpa por
não ser ninguém. Por não merecer ninguém.
— Você está pegando peso demais — Vance alerta, correndo na esteira.
— Não enche — resmungo com a voz falhada ao empurrar a barra.
— É sério, vai acabar distendendo um músculo e não vai conseguir
nadar.
— Eu sei meu limite, Vance. — Empurro novamente. E mais uma vez.
Esforço. Dor. Constância. Silêncio. Isso é o paraíso para mim.
— Sabe porra! Você nem está tomando as pílulas pra aguentar essa
rotina maluca, uma hora seu corpo vai ceder.
— Já falei que não preciso tomar nada. Eu parei com isso. — Comprimo
os lábios e contraio o abdômen para empurrar o peso até o final. Preciso
completar essa última série. Apenas mais essa para dormir rapidamente.
Para deitar na cama e apagar sem lembrar de tudo que perdi.
Esgotar meu corpo para silenciar minha mente, essa é a tática.
— O campeonato está próximo. Os amistosos estão logo aí! Se não
tomar, não vai conseguir treinar.
Subo a barra até o gancho e respiro ofegante depois de ouvir o clique do
ferro encaixado. Encaro Vance. Ele corre na esteira, mas seus olhos não
estão concentrados em seus pés, e sim em mim. Suas pálpebras estão
esticadas, como se seus dedos forçassem a pele para conseguir enxergar
melhor. O olhar é vidrado e ansioso.
Não sei por que ele quer tanto que eu volte a usar drogas. Eu não era
nem de perto seu melhor cliente ou a pessoa que dava mais dinheiro. Na
verdade, se ele dependesse do meu consumo pra viver, passaria fome.
— Eu dou conta — repito sem chance para argumentação. As coisas com
Angelina já estão difíceis o suficiente sem eu ser um viciado. Voltar a usar
essas merdas apenas a afastaria ainda mais de mim.
Se é que é possível ela querer estar mais distante.
O encontro de ontem fica passando na minha cabeça incontáveis vezes.
Mesmo breve, foi quando mais nos falamos desde que fodi com tudo. O
perfume dela ainda impregna minhas narinas. E mesmo sob palavras hostis
e provocações, foi um dos poucos momentos em que fui meramente feliz
nesses três meses.
Ninguém entende o vazio que a falta dela me causa. Não é apenas da
minha namorada. É da minha amiga, da garota que gosta de me contrariar e
me faz entrar em uma zona de equilíbrio. A minha maior falta, é que sem
ela, eu sinto que perco a parte boa de mim. A parte que Angie viu, dentre
tantas pessoas, e gostou a ponto de me querer ao lado. Eu me perco porque
Angelina é quem me faz acreditar que eu valho a pena. Mesmo que eu tenha
demonstrado a ela inúmeras vezes que não.
— Tudo bem…, mas se precisar sabe onde encontrar — Vance insiste.
— Não vou precisar.
Recolho a toalha de rosto do chão, secando o suor que escorre em meu
pescoço. Saio da academia sem dizer uma palavra a mais com ele. Não
lembro se foi sempre assim, essa insistência para eu usar drogas, mas se foi,
provavelmente eu aceitei em todas elas. Ficar sem as substâncias, mesmo
depois de meses, não tem sido fácil.
Elas são um alívio rápido, e quando você precisa desesperadamente
esquecer algo, parecem sua melhor amiga. Eu já constatei que essa relação
dá merda no final. Então estou recusando. Só não sei até quando vou
conseguir.
Entro no carro decidido a ir até à praia pegar algumas ondas, mas o
tempo fechado diz que não é uma boa ideia. Treinar hoje também está fora
de cogitação, as piscinas estão fechadas para manutenção. Minha última
alternativa seria a biblioteca, mas esse é o horário que Angelina trabalha e
ficar vendo-a me ignorar não é lá meu passatempo preferido.
Eu poderia aproveitar essa folga para dormir, mas se eu sequer fechar
uma das pálpebras, ninguém vai conseguir me acordar pelos próximos dois
dias. Hoje ainda é quinta-feira, não dá para adiantar o fim de semana.
Dando o braço a torcer, ligo para minha irmã.
— Alguém tá morrendo? — ela atende com diversão na voz.
— Deixa de gracinha. Quer fazer alguma coisa lá em casa?
— Como o quê?
— Sei lá, a gente pede uma pizza, assiste um filme. Qualquer coisa.
— Você já foi mais divertido, Hopkins.
— O que sugere então?
— Festa.
— Quinta-feira, esqueceu? — Arqueio a sobrancelha.
— E daí?
— E daí que temos aula amanhã.
— Continuo não vendo impedimento.
Suspiro, derrotado. Não sei por que ainda tento enfiar algum juízo na
cabeça dessa menina.
— Não dá pra fazer uma festa de última hora. Já é fim de tarde.
— Estou falando de uma festa universitária regada a álcool e
salgadinhos baratos, não um casamento digno de Leonor Hopkins. Ou
deveria dizer: Leonor Müller?
Duvido que mamãe abra mão do sobrenome no divórcio. Na verdade,
duvido que ela assine esses papéis. Faz meses que meu pai tenta levar a
coisa de forma amigável, mas ela está convencida de que consegue reatar a
relação.
— Se você cuidar de tudo, pode usar a casa. Só fique pra ajudar com a
bagunça depois.
— Já disse que amo você? — Don dá um gritinho agudo e afasto o
celular da orelha.
— Não com muita frequência, interesseira.
— Amo você, maninho. Te vejo em cinco minutos.
Abro a boca para responder, mas minha irmã desliga o telefone na minha
cara.
Respiro fundo.
Não foi para isso que liguei. Eu só queria uma distração e ganhei um
problema. Parabéns, Francis!
 

 
Onde eu estava com a cabeça quando liguei para a pessoa mais festeira
do país? Em plena capacidade das minhas funções cerebrais com certeza
não era. Minha sala mais se parece com uma adega.
— Eu não acredito nisso, Donna. — Ergo os braços. — Você gastou
quanto?
— Nada, bobinho. Vou cobrar pela entrada do pessoal.
— Não temos autorização para isso, se a polícia aparecer, estamos
fodidos.
— Para de ser pessimista. Metade das repúblicas fazem isso.
Balanço a cabeça, cansado.
— Vamos oferecer algo além de álcool?
— Só se seu amigo oferecer, porque da minha parte, nada de drogas.
— Eu estava falando de comida — debocho.
— Ah… como eu disse, salgadinhos baratos.
— Quero todo mundo fora daqui antes das duas da manhã. Entendeu?
— Mas…
— Duas da manhã, Don. — Ergo as sobrancelhas e ela assente mesmo a
contragosto. — A propósito, Angelina vai passar a noite sozinha?
Faço a pergunta que não quer calar.
— Não, Jayden foi pra lá para verem um filme.
Tento disfarçar o ciúme… só que não dá. Trinco o maxilar assim que
escuto o nome. Essa merda não está indo nada bem. Não sei mais o que
fazer para ela me desculpar. Quanto mais eu tento, mais ela me afasta.
Talvez seja melhor desistir de uma vez. Angelina e eu somos um caso
perdido, meu coração só precisa entender isso.
Meu coração, meu cérebro, meu pau… traduzindo, eu tô fodido pra
caralho.
— Eles são só amigos. — Donna responde à pergunta que não fiz.
— Até agora.
Mordo o interior da boca ao imaginar as mãos dele nela, ele a fazendo
sorrir timidamente, abraçando-a… porra, eu quebraria a cara dele agora
apenas por esporte. E eu ia gostar muito de fazer isso.
— Angelina não sente nada por ele. Não além da amizade.
— Isso é questão de tempo. Nós dois também éramos apenas amigos.
— É diferente, Francis. Você e Angelina se conhecem desde crianças.
Tem uma ligação que não pode ser quebrada por qualquer coisa.
— Por qualquer coisa não, mas por desconfiança sim — digo amargo. —
Vamos mudar de assunto. Estou cansado desse.
— Está cansado de lutar por ela? — Minha irmã se prostra em minha
frente, impedindo que eu escape pela tangente.
— Nunca — digo categórico. — Nunca vou me cansar. Mas uma hora eu
vou parar, ainda que existam forças. Eu não posso passar o resto da vida
atrás dela, preciso deixá-la em paz.
— Vocês homens são tão burros… — Donna ri com ironia. — Ela quer
que você continue atrás, porque mostra que realmente se importa. Se vai
desistir tão fácil, então não deveria sequer ter começado a tentar.
Ela cospe as palavras com irritação e sai rebolando para longe de mim,
me deixando com cara de otário para trás.
Quem entende as mulheres? Eu, definitivamente não.
 

 
Encaro o espelho do quarto, reprimindo as lembranças que ele me traz.
Ajeito a gola da camiseta azul, amarrando o cadarço do tênis antes de
descer para a festa. Do corredor consigo escutar a música eletrônica
colocada por Donna. Também consigo ouvir a voz do Ethan e do Josh, que
fazem tudo, menos falar baixo.
A sala está parcialmente cheia de universitários, mais do que deveria,
dado o dia da semana em que estamos. As luzes do jardim estão ligadas e já
vejo algumas latas de bebida espalhadas pela grama. Donna vai dar conta
disso tudo quando acabar.
Procuro por Ethan, o achando no exato momento que serve de cupido
para Josh e outro garoto que não conheço. Ele está prestes a seguir para a
própria caçada quando me aproximo.
Não sei como Ethan consegue dormir com uma garota diferente por
noite e levar isso numa boa, cumprimentá-las no dia seguinte, como se nada
tivesse acontecido. Talvez eu seja aquilo que chamam de emocionado. É,
fazer o quê? Meu pau está diretamente ligado ao meu coração.
E essa talvez tenha sido a frase mais ridícula que pensei, mas foda-se. É
a verdade.
— E ai, garotão. — Ethan agarra meu pescoço, jogando um beijo para a
loira que se afasta. — Vai tirar o atraso hoje?
— Você me pergunta isso todos os dias. Não está cansado da resposta?
— Pego o copo descartável da mão dele, cheirando antes de dar um gole.
Meu olho direito pisca com o quanto está forte.
— Estou esperando você mudar de ideia. — Ele recupera seu copo,
batendo na minha mão. — Tudo bem, eu entendo que você e a Angel é uma
parada de amor eterno e coisa e tal, mas é só sexo, porra. Acha uma garota,
arranca as roupas dela e mostra todo o rebolado do nado borboleta.
Livro meu pescoço do seu abraço, revirando o olho para sua
comparação. Se eu disser isso a uma garota, ela vai rir de mim.
— Você se preocupa demais com meu pau.
— Na verdade, eu me preocupo com as suas bolas. Elas podem ficar
roxas, sabia?
— Minhas bolas estão bem, obrigado.
É mentira. Elas não estão nada bem. Estão inchadas, pesadas e eu diria
que até tristes. Mas meu pau não sobe pra outra pessoa, cacete! Angelina
me quebrou para qualquer outra mulher. Se antes eu não me sentia atraído,
agora triplicou o problema.
— Você sabe que Angelina está com Jayden agora, né?
— Já fui informado disso — resmungo. — Dá pra não foder com a
minha noite?
Ele ergue as mãos.
— Depois não diga que não tentei ajudar.
Desdenho, o deixando seguir com sua caçada da noite.
Pego uma garrafa de cerveja no freezer, usando a camiseta para abrir a
tampa.
— Eu tenho um abridor se precisar — falam atrás de mim e me viro para
a garota que estende o objeto metálico.
— Já consegui, obrigado.
— Ah… tudo bem. — Ela sorri tímida, colocando uma mecha do cabelo
preto para trás da orelha. — Sou Mandy, a propósito.
— Francis. — Pego na mão estendida com a única intenção de um
cumprimento, mas a garota me puxa para um abraço e um beijo na
bochecha.
— Vi você no último campeonato de natação. A batida foi feia. — Ela
faz uma careta de dor e passa a mão pelo meu cabelo. — Você ficou com
alguma cicatriz?
— Não, na verdade só levei alguns pontos.
Faço pouco caso, mas Mandy segue fuçando meu couro cabeludo, como
se não acreditasse nas minhas palavras. De fato, é difícil de acreditar que
não fiquei com sequela.
— O próximo campeonato está chegando. Você vai participar?
— Vou, claro.
— Então estarei lá torcendo por você. — Mandy dá mais um passo na
minha direção, estalando um beijo na minha bochecha. O sorriso dela é
meigo, não é de alguém que está paquerando. Ela só parece demonstrar as
coisas através do toque. É meio estranho pra mim, dado que as mulheres
com quem convivo não são chegadas à melosidades.
— Espero fazer valer a pena sua torcida.
Tento manter uma conversa, seguindo em partes o conselho de Ethan.
Estamos apenas conversando, nada demais. Não preciso pular milhas de
distância da garota. Não é como se ela fosse me agarrar ou coisa do tipo.
Porra, eu sou homem ou a merda de um rato?
Com pouco tempo de conversa, ou monólogo — já que Mandy ocupou
boa parte do falatório —, descobri que ela cursa engenharia, que tem vinte
anos e que ama cerveja de trigo.
— Você tá sozinho aqui? — Mandy se apoia no meu braço, as mãos
sobre a tatuagem de lírios. Meus olhos caem para a região no mesmo
instante. Não parece certo os dedos dela estarem sobre o desenho. No
entanto, não vou ser um babaca e tirar a mão da garota. Ela é legal, não
precisa entender que estou na merda.
— Ele não está sozinho, benzinho. — Blue se prontifica do meu lado
antes que eu possa responder, igual a uma galinha protegendo a cria. Quem
vê de fora acha que ela é uma namorada ciumenta, mas é apenas uma amiga
que estaria muito disposta a arrancar meu pau fora se eu ficasse com outra
garota que não Angelina.
Ela e Ethan deveriam ter uma conversa para se decidirem. Porque
enquanto um quer me jogar na vida de sexo casual, a outra quer me botar
em um cinto de castidade.
Livre arbítrio? Eles não ouviram falar ainda.
— Ah, eu sinto muito. Eu… — A garota sai depressa por entre as
pessoas, a expressão pálida pela postura impenetrável de Blue.
Olho para ela com uma careta.
— Precisava disso?
— O quê? Não fiz nada.
— Cinismo é quase um hobby pra você, linda. — Beijo sua testa.
— Fazer o quê? É um dom. — Sorri provocadora. — A propósito, não
fica de graça por aí, você tá querendo perder a Angelina de vez?
Os olhos verdes se tornam extremamente julgadores.
— Acho que fiz isso há um bom tempo. E não se preocupe, ela não está
aqui. Está no dormitório com o Jayden. Não vou poder decepcioná-la
pessoalmente hoje.
— Quem? Aquele Jayden? — Blue aponta para trás de mim e viro o
pescoço, vendo o jogador de basquete conversando com os amigos de time.
Franzo o cenho.
— Mas Donna disse que ele estava com ela.
— Bom, Donna se enganou. Mas isso não é novidade — diz ela com
amargura na última parte.
— Então Angelina veio ou está sozinha?
— Tenho cara de adivinha?
— Blue, eu vou dar um de Ethan agora. Você está precisando transar, seu
humor tá pior que o meu — exaspero.
— Meu humor está ótimo, só está mais ácido que o de costume.
— Se isso é ótimo pra você, fico preocupado quando achar ruim. —
Bufo uma risada.
— Não enche, Hopkins.
Ela bate na minha nuca e sai pisando firme pela sala de estar. Pelo bem
da humanidade, espero que ninguém fique em seu caminho hoje. Blue e eu
estamos nos tornando intragáveis, exatamente como éramos quando nos
conhecemos. Eu só não sei o motivo para ela estar assim também.
Viro a garrafa de cerveja na boca, sorvendo o mais rápido que consigo o
líquido amargo. Posso até ficar com dor de cabeça amanhã, mas pelo menos
hoje esqueço dos problemas.
Rumo para o jardim em busca de ar fresco e Donna me intercepta no
meio do caminho, sorrindo amarelo e pedinte.
— A resposta é não — me adianto.
— Mas eu nem te pedi nada… ainda. — Ela continua sorrindo com falsa
inocência.
— Desembucha.
— Você pode buscar a Angelina nos dormitórios? O carro dela tá com
problema e não conseguimos um táxi.
Arqueio a sobrancelha.
— Eu duvido muito que ela se enfie num carro comigo. Aposto que
prefere vir a pé, descalça e com sacos de cimento nas costas.
— Bom, isso é verdade, mas ela não tem outra escolha.
— Tem sim. — Vasculho meus bolsos e pego a chave do meu carro,
estendendo para Donna. — Vá e a busque.
— Eu já bebi.
— Eu também.
— Droga, Francis! — Ela bate as mãos na lateral do corpo. — Para de
ser covarde e vá de uma vez!
Balanço a cabeça, sabendo que isso é tudo, menos uma boa ideia.
Angelina não quer me ver nem pintado de ouro. Pego as chaves de volta,
resmungando enquanto vou para a garagem. Essa noite começou ruim e
tende a piorar.
 

 
Leva apenas dez minutos para que eu chegue no prédio dos dormitórios.
É bom que seja rápido, porque uma chuva está se armando e não parece que
será branda.
Encaro o espelho do retrovisor, rindo dessa palhaçada. Quais as chances
de Angelina entrar nesse carro? Eu respondo: nenhuma.
Subo de elevador, mas de detenho antes de bater na porta. O que estou
fazendo? Já não basta o encontro fracassado de ontem? Quer saber,
esquece.
Eu não estou no melhor dia para escutar tudo que Angelina tem para me
dizer. Não que ela esteja errada em qualquer um dos xingamentos, mas
ainda assim não é nada agradável ouvir o quanto você é um babaca e como
fodeu com tudo.
Estou prestes a virar no corredor e ir embora, quando a porta do quarto
dela se abre abruptamente, fazendo-me arregalar os olhos. Angelina me
encara confusa, observando minha mão ainda estendida como se fosse
bater. Abaixo o braço, com um arrepio percorrendo a base da minha coluna.
Estar na mira dos seus olhos nunca foi algo tênue. Na verdade, me sinto
exposto.
— O que está fazendo aqui? — Angel cruza os braços em frente aos
seios, escondendo o decote do pijama de algodão.
Eu tento controlar, juro que tento, mas meus olhos caem para o corpo
dela teimosamente. A blusa fina não cobre totalmente sua barriga, deixando
uma faixa à mostra, antes da pele ser coberta pela calça do mesmo tecido.
Nada é apertado ou feito para ser sexy, mas porra… é. É sexy pra caralho.
Engulo, olhando para cima quando ela pigarreia.
— É… Donna pediu para que eu te buscasse.
— Eu disse a ela que não iria na festa. Ela pensou mesmo que logo você
me convenceria do contrário? — Angel me fita duramente, nem uma gota
de sentimento na voz.
— Eu não sei o que conversaram, só estou fazendo o que ela me pediu.
Você não precisa sequer falar comigo, é só entrar no carro e te levo até em
casa.
Angelina me analisa incerta e parece pronta para recusar meu convite,
quando um trovão estrondoso ecoa do lado de fora, fazendo nós dois
darmos um pulo. Ela, mais especificamente, um pulo na minha direção.
Angel não me abraça, mas fica perto o suficiente para que eu sinta o
perfume de lírios diretamente do seu cabelo. Inspiro o aroma como um
viciado e não me importo que ela perceba.
— Acho que vou com você — a voz dela sai trêmula de medo e me
amaldiçoo por ter esquecido que uma chuva se aproximava.
— Tudo bem, foi só um trovão. — Ergo a mão para colocar em seu
braço em busca de confortá-la, mas interrompo meu gesto, procurando em
seus olhos uma permissão. Angelina não me dá uma. Pelo contrário. Deixo
minha mão cair ao lado do corpo. — Eu te espero aqui fora enquanto se
troca.
A decepção é latente em cada letra que sai da minha boca. Angelina não
parece notar ou se importar, pois apenas volta a fechar a porta do quarto.
Cinco minutos mais tarde, estamos dentro do meu carro. Assim que
fechamos a porta, uma chuva despenca acima de nós, seguida de mais
alguns trovões. Vejo o corpo de Angelina tensionar a cada barulho da água
na lataria e trinco o maxilar ao ver os reflexos das mãos dela se
aproximando do meu braço e retraindo-se em seguida, ao lembrar o que já
não somos.
— Já estamos chegando, fique tranquila. Lá em casa a música vai distrair
dos trovões.
— Que ótimo! — ironiza. — Música e trovão, minha trilha sonora
favorita.
Comprimo os lábios para o humor ácido. Sarcasmo não é usual vindo
dela, mas eu gosto quando acontece.
— Você pode ficar nos quartos se o barulho te incomodar. Ou posso
abaixar o volume da música.
Sua cabeça balança em descrença para a parte dos quartos. Acho que
Angelina só entraria no meu quarto a essa altura, se sua vida dependesse
disso.
— Aposto que não vão ficar muito felizes se diminuir o volume no meio
da festa.
Viro o volante para fazer uma curva e a olho de esguelha, tempo
suficiente para jogar uma piscadela.
— A casa é minha, hoje é quinta-feira, eles estão tendo sorte de ter
alguma festa pra ir.
— Você tem um ponto. — Um sorriso de canto se forma nos lábios
desenhados. Minha vontade é de parar o carro e a tomar em um maldito
beijo. A saudade que estou de sentir seu toque, seu sabor, não dá para ser
explicada. Apenas me consome.
Aperto o volante até que minhas veias saltem. Merda, o perfume de lírios
vai ficar no meu carro por dias e eu não consigo me decidir se isso é uma
coisa boa ou ruim. Todos os semáforos da cidade parecem colaborar para
que eu fique dentro do espaço apertado, impregnado pelo aroma adocicado
e floral. Angelina exaspera no segundo que pegamos fechado.
— Droga! Você é irritante, Francis! — Ela bate as mãos contra o banco
do carro.
Arregalo os olhos.
— Eu posso saber o que fiz?
— Seu perfume! Esse maldito perfume com cheiro de madeira! — Ela
bufa como se fosse óbvio e autoexplicativo. Uma ruga se forma na minha
testa. Ela bebeu? — Ele me lembra terra, e terra me lembra jardim, e jardim
me lembra exatamente você sabe o que, então não me faça dizer.
Angelina cospe as palavras com o dedo apontado na minha direção e não
sei se olho para ela ou para o sinal, que não sai do vermelho. Se ele não
abrir logo, vou começar a temer pela minha integridade física.
— Eu… quer dizer… — balbucio, sem entender nada. — Eu não sei o
que dizer além de “desculpe”.
— Você pode muito bem parar de usar esse perfume.
— Mas eu o uso desde adolescente...
— Eu sei. Esse é o problema, ele traz memórias demais. E memórias
demais são ruins.
— O seu perfume também me traz memórias demais, mas nem por isso
eu estou gritando que você é irritante ou mandando parar de usar.
— Eu não gritei. — Ela se recosta no banco de braços cruzados e sua
voz sai um pouco embargada, como se eu a tivesse magoado. Eu
perguntaria se ela está de TPM, se não tivesse uma irmã. Donna me
advertiu muito cedo sobre nunca perguntar isso a uma garota. Esse aviso
deve ter me poupado vários tapas na cara.
Suspiro, pensando em como agir. Normalmente eu estrago as coisas, mas
não é como se desse para estragar mais do que já está.
— Angel… você tem razão, eu sou irritante, mas não por te trazer
lembranças com meu perfume. E sim, ele reivindica memórias que agora
são dolorosas pelo momento que estamos passando, mas não são memórias
ruins. Tudo que a gente viveu quando estava junto, vale a pena ser
lembrado, mesmo que abra algumas feridas. Não apague nossos momentos
felizes, só para tornar mais simples tolerar os difíceis.
Arrisco uma rápida olhada para ela e a vejo compenetrada no meu rosto.
Eu queria que sua expressão para mim fosse de paixão. Mas é de decepção.
E isso amarga minha boca.
— Tem razão, nossas memórias não são ruins, elas são péssimas!
— Não… — Solto uma risada irritada. — Se quiser mentir pra si
mesma, vá em frente, mas pare com essa porra de mentir pra mim. Quer me
odiar? Odeie. Quer falar que sou um merda? Eu concordo. Mas se quiser
mentir que o que vivemos foi péssimo, ao menos faça isso para alguém que
não esteve lá. Você pode me detestar agora, mas não foi assim no passado e
não finja que foi!
Ofego, virando na minha rua. Graças aos céus chegamos em casa, ou eu
não sairia vivo dessa conversa.
Desço do carro, muito ciente do olhar de Angelina sobre mim. Entramos
em casa sem dizer uma palavra a mais e não forço nenhum contato. Acho
que ela teve mais de mim do que queria por hoje.
Os ombros de Angelina retraem com o barulho estrondoso que se tornou
a música desde que saí, e não me incomodo nem por um segundo de ir até o
aparelho de som e o reduzir consideravelmente. Todos os pares de olhos dos
universitários se viraram para mim e arqueio as sobrancelhas, desafiando
qualquer um a abrir a boca para reclamar.
Minha cara não deve ter sido muito boa, porque eles voltam para as
próprias conversas, que agora devem estar cheias de xingamentos
direcionados a mim.
— Não precisava — Angelina grunhe.
— De nada, amor — provoco, deixando-a sozinha.
Eu tenho que levar as coisas com calma se quiser que ela possa ao menos
escutar meu lado. Ficar a rondando não é nem de perto a melhor tática. E
tampouco seguro para mim.
 

 
 
Quando as pessoas fazem coisas boas por mim, costumo me sentir
agradecida. Quando Francis as faz, eu tenho vontade de grudar em seu
pescoço, até vê-lo ficar roxo.
Eu não deveria me irritar assim, mas é que torna tudo tão mais difícil. Eu
preciso separar o cara legal, do cara que duvidou de mim. Preciso me
lembrar que são a mesma pessoa, e uma realidade é tão discrepante da
outra, que é quase impossível assimilar esses dois homens. Talvez seja a
mesma dificuldade que vovó tenha. Separar meu avô como era quando se
casou com ele e como ele ficou após o vício.
Meu cérebro foi programado para agir e pensar na racionalidade. Francis
agir como duas pessoas completamente opostas não entra nessa lista. Ou ele
me ama ou não acredita em mim.
Suspiro aliviada quando ele sai por entre os corpos dançantes da sala de
estar, embora seu cheiro permaneça no ambiente por alguns segundos a
mais. Fingir que não ligo quando Francis está longe é fácil. Posso dizer que
nunca mais quero vê-lo, mas quando meus olhos estão sobre toda sua
estrutura, sob suas íris que exalam desejo e calor, é simplesmente
impossível fingir para mim mesma ou qualquer outro que não me afeta.
Chega a ser vergonhoso tentar.
— Olha quem apareceu — Cassidy cantarola, jogando seu quadril contra
o meu.
— Oi... — Balanço para a frente e para trás, sem jeito. Acho que nunca
fiquei sozinha com Cassidy antes, não temos assuntos em comum.
— Vi você e o Francis chegando juntos… vocês voltaram?
— Não! — digo alto, talvez alto demais. — Ele só me deu uma carona
pra cá.
— Ah, então pelo menos voltaram a se falar.
— Também não. — Quando ela franze o cenho, trato de explicar. —
Donna armou para nós.
Cassidy solta uma risada.
— Eu adoro a Donna.
— Eu também. Mas agora quero fazer picadinho dela.
— Ela só quer seu bem. Sabe disso, não é? — Cassidy busca meus
olhos, mesmo que eu os desvie para o outro lado.
— É, acho que sim.
— Vem, vamos jogar sinuca, já está quase na minha vez e preciso de
uma parceira. — Me estende a mão animada, praticamente dando pulinhos.
— Nunca joguei sinuca — alerto.
— Para tudo tem uma primeira vez. Você não pode ser pior que a Blue
— ela diz com diversão, continuando com o sorriso pregado ao rosto. Já
teve alguma vez em que olhei para Cassidy e ela não estava sorrindo?
Acho estranho pessoas sempre sorridentes.
— É… tudo bem. — Dou de ombros.
Não pode ser tão ruim assim, né? O pior que pode acontecer é
perdermos feio.
 

 
— Você disse que nunca tinha jogado antes! — acusa um dos garotos da
dupla que joga contra nós. Parece que sou boa nisso. Assim que entendi as
regras e o objetivo, já encaçapei metade das bolas ímpares.
— E eu realmente nunca joguei — reafirmo com um gostinho de
orgulho.
— Sorte de principiante — resmunga o outro garoto.
— Não sejam péssimos perdedores, meninos — Cassidy provoca,
erguendo os polegares na minha direção. Ela é quase tão competitiva quanto
eu. Repito, quase. A única pessoa que conheço, que se equipara a mim
nesse sentido é… bem, Francis.
Aos poucos, uma rodinha de pessoas se forma ao nosso redor,
interessadas em assistir ao massacre. Isso não é de grande ajuda, tantos
olhares sobre mim quando preciso me concentrar. Na quadra de vôlei eles
estão longe o suficiente dos meus olhos, mas aqui, estão tão perto que posso
sentir e escutar suas respirações.
Tento focar a atenção no taco entre meus dedos e na bola branca que
precisa atingir a azul. Escuto alguns sussurros sobre eu errar e outras
apostas confiantes de que vou acertar. Bloqueio todas elas. Inclino o tronco
para a frente, até que meus olhos estejam no mesmo ângulo da ponta do
taco. É tudo sobre perspectiva e angulação, não existe muito segredo. Dou
um toque leve com o taco na bola branca, que segue lentamente até a azul,
atingindo-a na lateral, o que a faz caminhar para próximo da caçapa.
Prendo a respiração, esperando ansiosa pela queda. Quando ela atinge o
fundo em um baque oco, sorrio satisfeita.
— Você me trocou, vadia! — Blue empurra alguns garotos para ficar na
primeira fileira.
— Eu te trocaria por qualquer um. Você é péssima. — Cassidy dá de
ombros.
— Sua safada. — Blue joga um beijo para a amiga, não parecendo a
xingar de verdade.
Estudar os trejeitos de Blue é um ótimo exercício para aprender
sarcasmo e ironia. Seus diálogos basicamente se resumem a essas figuras de
linguagem.
— É você outra vez! — o loiro me avisa com um bico no rosto.
Homens são péssimos perdedores por natureza.
Analiso a mesa novamente, escolhendo a melhor bola para encaçapar.
Cinco rodadas depois, Cassidy e eu vencemos a dupla de garotos nem um
pouco felizes com a derrota. Eles saem sob vaias dos universitários e isso
deve ferir bastante seus egos inflados.
— Sou a próxima! — Donna se prontifica e eu sequer a estava vendo
antes de pegar os tacos deixados pela dupla. — Eu só preciso de um
parceiro… — Ela olha em volta e interrompe sua procura, fixando a
atenção atrás de mim. Franzo o cenho, girando nos calcanhares. Um gemido
escapa da minha boca ao ver Francis de braços cruzados e um sorriso
discreto na boca enquanto me fita. Ele desvia o olhar quando é pego no
flagra. — Você!
Donna aponta na direção dele e fecho os olhos.
Ah, cretina! Você me paga, Donna Hopkins!
— Agora a competição vai ficar boa… — Cassidy sorri perversamente
para Francis, que devolve o mesmo gesto, mas com um brilho competitivo
maior. Isso definitivamente não vai dar certo.
— Com saudades de perder pra mim, Cassy? — Ele pega o taco que Don
joga em sua direção e se aproxima da mesa predatoriamente.
— Você quer dizer saudade de dar uma surra em você?
— Desculpe, não me lembro de isso já ter acontecido. — Pisca
provocador e mesmo que não seja direcionado a mim, a vontade de ganhar
apenas triplica. Tudo para tirar esse sorrisinho arrogante, prepotente e
malicioso da cara dele. Principalmente porque provoca reações no meu
corpo que não deveria. Formigamento é uma delas. 
— Vamos jogar? — interrompo a provocação dos dois. Eu sou de fazer,
não falar.
Donna e Cassidy organizam as bolas sobre a mesa.
— Fiquem à vontade para começar. — Francis se faz de cavalheiro.
— Ansioso pra perder? — Cassy joga o quadril contra o dele.
— Apenas ansioso para vocês fazerem a primeira jogada e definir qual
será as bolas que vou encaçapar antes que possam dizer: Hopkins, você é o
melhor.
Gargalho alto com essa. Minha cabeça cai para trás, revelando meu
pescoço no processo. Ele acha mesmo que vai ganhar de mim? De mim?!
Eu poderia rir por um mês inteiro.
Recupero o ar após tossir algumas vezes e encontro o olhar de Francis
sobre mim. Ele tem as sobrancelhas unidas na minha direção, um vinco se
formando entre elas e o lábio inferior preso entre os dentes. E embora eu
estivesse rindo da sua prepotência, a expressão que encontro não é de
irritação ou qualquer uma que eu saiba decifrar.
Apenas a vi quando estávamos… ah, droga.
Engulo a saliva, sentindo meu baixo ventre se contrair.
— Como quiser, começamos — declaro.
Tento adotar uma máscara entediada, mas acho que não é muito
convincente. Atinjo a bola branca com força e todas as coloridas se
espalham pela mesa com violência. Três bolas caem na caçapa, duas
ímpares e uma par.
— Escolha a sua — diz Francis apressado.
— Ímpar.
— Vá em frente.
Varro a mesa em busca da melhor tacada e me posiciono na frente do
nadador, fazendo-o dar um passo para trás. Inclino o tronco para a frente e
tenho plena consciência de que meu traseiro fica empinado na direção dele.
Fico contente de ter vindo com essa calça. Talvez eu escute seu engolir a
seco e isso me encha de um sentimento de vitória. Parece que não sou a
única que se afeta aqui. Isso é ótimo; me faz sentir menos fraca.
Talvez eu demore um pouco para fazer a jogada. Só talvez.
Quando atinjo a bola branca e me endireito ereta, Francis sussurra algo
como “graças a Deus”. A minha bola, no entanto, não vai para a caçapa.
— Minha vez! — ele comenta ansioso e um tanto abalado.
Céus, como ele consegue fazer meu sangue ferver com míseras duas
palavras?
— É impressão minha, ou estamos apenas de coadjuvante nesse jogo? —
Cassidy sussurra para Don.
— Não é impressão, somos apenas os estepes aqui.
Não presto atenção nelas ou em sua conversa paralela. Meus olhos estão
fixos em Francis e em como ele caminha confiante para o outro lado da
mesa, posicionando-se de frente para mim. A calça de moletom é larga, mas
eu ainda consigo ver seus músculos se movimentando em cada passo que dá
e as mangas de sua blusa estão tão apegadas aos seus braços, que posso
escutar a costura estalar quando abaixa o tronco. Francis fita a bola branca e
quando consegue decidir o ângulo de sua tacada, os olhos azuis se voltam
para cima. Mais especificamente para mim. Meu coração contrai com a
visão e meu núcleo torna-se apertado. Foi como ele me olhou quando ficou
com o rosto entre minhas pernas, logo antes de…
Minha nossa… ofego, passando a mão pela minha nuca, já úmida e
quente. Desvio de seus olhos, mas não antes de perder o sorriso de lado que
cobre seus lábios. Ele está deixando claro que dois podem participar desse
jogo. O problema é que no fim, ambos vamos sair perdedores.
Francis faz sua tacada e a bola vermelha de número oito vai para dentro
da caçapa, assim como a próxima e a próxima. Na quarta jogada, ele perde.
— Isso! — comemoro, erguendo os braços.
— Estamos apenas no começo — ele me lembra.
— Exatamente. Lembre-se disso — rebato. — Vai, Cassidy!
— Merda, não funciono bem sob pressão. — Ela pisca assustada.
— Então não se sinta pressionada… apenas acerte a bola.
Posso jurar que o sorriso que ela me devolveu não foi de felicidade.
Cassidy acerta a primeira tacada, mas erra a segunda quando a bola
branca cai junto.
— Droga! — praguejo. Isso não nos faz apenas perder um ponto, mas
também dá um a eles.
— Desculpe…
— É só acertar na próxima.
A garota arregala os olhos e não entendo o motivo. A intenção não é
ganhar?
— Minha vez! — Donna grita animada e vai para a ponta da mesa.
— Aí não! — Francis a interrompe. — A bola quatorze está mais fácil.
— Quem vai jogar sou eu ou você? — ela o enfrenta.
— Nós estamos no mesmo time, lembra?
— Foda-se, você continua não mandando em mim. — Don sopra um
beijo em sua direção e me seguro para não gargalhar da expressão
indignada do Hopkins mais velho.
Donna tenta encaçapar a bola dois e sei que vai errar no momento em
que o taco atinge a bola branca. Francis estava certo, a quatorze era a
melhor opção.
— Ops!
— Eu avisei! — Francis ergue os braços, indignado.
Sete rodadas à frente, irritamos Donna e Cassidy o suficiente para elas
saírem da partida e nos deixarem jogando sozinhos.
Observo fixamente a jogada de Francis, com vontade de rir. É uma
jogada impossível, ele precisaria calcular o ângulo perfeitamente. Mas em
contrapartida, se acertar essa bola, vence a partida. E eu não estou nem um
pouco a fim de lidar com suas provocações.
Antes de fazer a tacada, ele ergue o olhar para mim, com um brilho
diferente.
— Que tal uma aposta? — Francis sussurra com um ar divertido.
Arqueio a sobrancelha.
— Não vou jogar a dinheiro.
— E quem falou em dinheiro? — Sorri malicioso. — Estava pensando
em um encontro.
— O quê?! — grito.
— Se eu ganhar, você aceita sair comigo. Se você ganhar… bom,
escolha o que quiser.
Forço um vinco a se formar entre as minhas sobrancelhas
imediatamente. Encaro a mesa com atenção. As chances estão em duas de
dez para ele acertar. Dificilmente eu conseguiria fazer essa bola ser
encaçapada. Mas é a primeira vez que jogo sinuca com ele, não sei até que
ponto é bom.
Um encontro. Como eu reagiria a um encontro com ele? Eu… eu não o
perdoaria apenas por um encontro. Mas a saudade… a saudade é mais
difícil de lidar quando você tem uma degustação da proximidade. Estar
perto dele por um dia, me fará lembrar o quanto dói não o ter em todos os
outros.
Parafraseando Dante Alighieri, não há maior dor do que a de nos
recordarmos dos dias felizes quando estamos na miséria.
— Correndo de um desafio, Angelina? — Francis me fita com deboche.
Ele sabe que não corro de desafios e está fazendo isso de propósito. Mesmo
sabendo, não consigo evitar. Não brinquei quando disse que sou
competitiva.
— Se eu ganhar, você não fala comigo enquanto durar a faculdade —
digo antes que eu possa raciocinar.
— Fechado. — Ele nem sequer pisca para aceitar. Está tão confiante de
sua vitória, que não importa o que eu peça em troca.
Prendo a respiração para vê-lo fazer a tacada. Francis atinge a bola
branca com força e ela atravessa a superfície como um raio, atingindo três
vezes as paredes da mesa, para então chegar à última bola par com precisão,
que cai sem pestanejar na caçapa.
Oh, droga…
Droga!
Como ele… como acertou?
Francis ergue-se com os cantos dos lábios esticados, estendendo a mão
para que eu o cumprimente. Minha vontade é de erguer o dedo do meio e o
mandar à merda. Mas não sou tão má perdedora assim. Ou ao menos tento
não ser.
Pego em sua mão e o primeiro toque envia ondas enervantes pelo meu
corpo. A temperatura quente da sua pele sempre me impressiona. Talvez
fiquemos mais tempo com o aperto do que manda a convenção social e
quando liberamos nossas palmas, um clima estranho se instala.
— Diga quando e onde. — Limpo a garganta.
— O quê? — Francis me encara confuso, saindo de uma espécie de
transe.
— Você ganhou a aposta. Diga quando e onde será o encontro.
Ele pisca, jogando os ombros.
— Ainda vou pensar sobre isso. Te mando uma mensagem para avisar.
— Mas…
— Eu não disse que já sabia onde a levaria, nem quando seria o
encontro. Talvez deva definir melhor os termos quando fizer uma próxima
aposta. — O nadador pisca com um dos olhos e sinto uma vontade
excruciante de lhe arrancar o globo ocular.
— Ok! — rosno.
Saio por trás da mesa, seguindo para o jardim, fula da vida.
— Inferno! Isso que dá sair para festas no meio da semana. Se tivesse
seguido minha rotina, nada teria acontecido!
Resmungo sozinha, ainda que alguns olhares se voltem para mim
confusos.
Que se fodam todos eles! Nunca viram uma pessoa falando sozinha na
vida?!
 

 
Observo Donna dançar com Josh, enquanto Ethan praticamente engole
uma garota na pista de dança. É estranho. Ele diz gostar da Isabela, mas não
perde uma oportunidade sequer de estar com outra garota. É mais fácil lidar
assim? Beijando outras bocas para esquecer a que você verdadeiramente
quer?
Não sei como pode funcionar. O sabor será outro, a textura, a forma de
beijar…
Não que eu já tenha realmente beijado outro cara que não fosse o
Francis, contando que o selinho em Jayden não valha para essa comparação.
Eu poderia tentar seguir por esse caminho, mas não é tão simples assim. O
toque é importante para mim. É complicado. Não é apenas um roçar de
peles, é confiar que aquele contato não vai ativar todas as partes erradas do
meu cérebro e me apavorar. Um simples apertar de mãos é algo que preciso
trabalhar em minha mente para fazer; um beijo em alguém que não me
conhece, que não sabe meus limites ou meus gostos... é desgastante só de
pensar.
— Não vai dançar? — Blue se joga ao meu lado no sofá, me tirando dos
meus pensamentos.
— Não gosto de dançar.
— Lembro de ter dançado com Francis nessa mesma sala. E parecia
estar gostando bastante.
— É diferente — entro na defensiva.
— Você quer dizer, com ele é diferente, não é?
— É — admito, ainda que a contragosto.
— Então por que não o chama para dançar? Ele está parado bem ali.
Blue aponta na direção do atleta. Francis está parado com uma mão no
bolso da calça, enquanto a outra leva uma garrafa de cerveja. Ele observa as
pessoas, distraído, como se não as enxergasse de verdade.
— Vai lá — Blue incentiva, me cutucando com o ombro.
— Não.
— Por que não?
— Porque…
Antes que eu possa inventar mil desculpas do porquê não é uma boa
ideia juntar meu corpo ao dele, uma garota de compridos cabelos pretos se
aproxima de Francis, sorrindo abertamente e estendendo a palma em sua
direção. Ele encara a mão da garota por alguns segundos antes de tomá-la
para si e se deixar ser levado para o centro da pista de dança.
Meus lábios comprimem em uma linha reta e desvio o olhar na direção
de Blue.
— Viu só, não tem mais que se preocupar com seu amigo. Ele está bem
acompanhado.
Cruzo os braços, me assustando com o tom amargo que sai impregnado
na minha voz. Eu não deveria me incomodar com a cena, mas tenho
vontade de arrancar as mãos dele fora, apenas por estar tocando a garota.
Arranho minha calça. Arranho com força. Quero ir embora.
— Sabe que seria você ali se não estivesse dificultando as coisas, né?
— Eu não sei de nada, Blue!
Levanto do sofá aborrecida, pegando um pouco do ponche na cozinha e
voltando para a sala enquanto dou longas goladas no líquido vermelho. Não
é nada sensato beber ponche nessas festas, afinal pode ter de tudo aqui, mas
estou tão nervosa que não paro para pensar. Sorvo até a última gota,
colocando o copo descartável na mesa de centro.
Permito uma olhada para Francis e a garota. Meu sangue corre mais
depressa ao notar a mão dele na base da coluna dela. Sei a sensação
daquelas mãos nessa região. Sei o quanto pode ser bom, o quanto me faz
sentir protegida e ao mesmo tempo excitada.
Talvez guiada pelo álcool ou pelo sentimento irracional que cresce
dentro de mim, vou para a pista, mais especificamente para perto de um
garoto que dança descoordenado, sozinho e distraído com sua própria
performance.
Chego perto dele e seus olhos se arregalam. Logo ele manipula a
expressão para algo parecido com calma e confiança.
— Oi, gatinha. — Sorri ladino, quase galanteador.
— Oi. Não me chame de gatinha e nem me toque. Apenas continue
dançando — ordeno um tanto quanto autoritária demais.
— É… só pra saber, estou fazendo ciúmes em quem? — ele atira contra
mim e arqueio a sobrancelha.
— É tão óbvio assim?
— Na verdade, é sim. — Ri, coçando a cabeça. — E então, quem é o
alvo?
— Por que precisa saber?
— Para determinar o quanto eu preciso correr caso ele queira quebrar
minha cara.
Suspiro, sabendo que é inútil fingir. Aceno na direção de Francis
discretamente e vejo os olhos do garoto saltarem para fora da cara.
— O Hopkins?! — sua voz sai falhada.
— É.
— O cara é uns dez centímetros mais alto e com o dobro de músculos.
Não é que eu me ache feio, mas você pensa mesmo que vai conseguir fazer
ciúmes nele comigo? — o garoto parece incrédulo.
— Bom… sim.
Olho de soslaio para Francis e ele tem as íris fixadas em mim, com um
brilho feroz tomando conta do azul.
— Porra… — o garoto exaspera. — Ele vai me partir em dois.
— Não vai…
— Ah, vai… — O garoto bufa uma risada. — Acredite, conheço esse
olhar no rosto dele… qual seu nome?
— Angelina.
— Prazer, Harry. — Ele acena. — Bom, eu conheço esse olhar no rosto
dele, Angelina. E é de um cara que gosta de você o bastante para se sentir
ameaçado por um cara como eu.
— Você não é feio.
— Também não acho que sou feio, mas com certeza não sou seu tipo de
cara. — Ele arqueia as sobrancelhas ao acenar na direção de Francis.
Permito-me mais uma olhada e posso ver a luta que ele faz para não dar
passos na minha direção.
Céus, ele seria capaz de começar uma briga? Por que a constatação de
que ele sente ciúmes me deixa feliz? Eu devo estar ficando maluca.
— Ele também não é mais o meu tipo de cara — comento, enquanto me
movimento devagar no ritmo de Harry.
— Acho que você está enganada.
— Por que diz isso?
— Porque o mesmo olhar que estou vendo no rosto dele, vejo no seu.
Embora em você, eu veja menos violência e menos probabilidade do meu
nariz ser quebrado.
Sou obrigada a rir da gracinha que ele faz.
— Gosto dele — admito unicamente porque duvido que vá ver esse
garoto de novo. — Mas nós não damos certo juntos.
— Eu sinto muito.
— Tudo bem. — Dou de ombros. — Acho que é assim, não é? Às vezes
simplesmente não é para ser.
— É… ou é para ser e nós complicamos demais — ele fala com certa
melancolia na voz. Ao menos, eu imagino que seja isso. Harry olha
novamente para Francis e balança a cabeça. — Sabe, Angelina... já passei
pela mesma situação que o Hopkins está passando agora. E não vejo apenas
ciúmes e agressão nos olhos dele, eu vejo mágoa e tristeza. E eu também
entendo isso. Quando estive no lugar dele, não foi nada legal, então…
desculpe, mas não me sinto bem fazendo esse papel. Na minha vez, eu
gostaria muito que o cara tivesse agido como eu agora.
Ele sorri para mim, desejando-me boa sorte, antes de se afastar. Suspiro,
me sentindo ridícula. Não é certo usar as pessoas assim.
Principalmente porque mesmo que Francis faça algo ou tome a iniciativa
de vir falar comigo, minha resposta continuará sendo a mesma.
Não. Não o perdoo.
 

 
 
Saio pela borda da piscina com um único impulso, tirando a touca
apertada da cabeça. Ofego com a mão no quadril, tentando regular a
respiração. A piscina já está vazia, exceto pelo técnico e eu.
— Isso foi impressionante — ele elogia.
Assinto, querendo sentir essa alegria contagiante. A verdade é que faz
três dias que não vejo graça em muita coisa; aquela maldita festa não sai da
minha cabeça. Primeiro o trajeto no carro com Angelina, depois o jogo de
sinuca e por último o momento dela com aquele cara fodido.
O “fodido” fica por conta do meu ciúme, porque nem sequer sei quem
era o coitado. Eu não deveria ter ficado tão irritado, afinal ele sequer a
tocou, mas estava respirando o mesmo ar que ela, o que já me deixou puto o
suficiente.
Podem me chamar de maluco, tóxico, fodido da cabeça. Porque sim,
tenho ciúmes e não vou negar.
— Amanhã no mesmo horário? — pergunto ao treinador.
— Pensei que fosse querer tirar o dia de folga, você treinou pesado hoje.
— Não. Não quero.
— Tudo bem então, garoto. — O treinador balança a cabeça. — Mesmo
horário amanhã.
Aceno, indo direto para o vestiário.
Entro no cubículo embaçado pela fumaça das cabines de banho, com
alguns atletas ainda conversando encostados nos armários de metal. Vou até
o meu para pegar meu shampoo, cumprimentando alguns conhecidos. Os
caras falam alto o suficiente do outro lado, para ser impossível não escutar.
Vestiários sempre são fontes inesgotáveis de fofocas, palavras de Blue
Hale.
— Ficou sabendo do novo inferninho que abriu no Mission District? —
um deles pergunta.
— O Hell’s Door?
— Esse mesmo.
— Ouvi dizer que é barra pesada. Rola muita droga.
— Então é meu tipo de lugar — um deles gargalha e reviro os olhos.
Conheço a voz desse cara, o nome dele é Eric, ele entrou para o time de
hóquei da faculdade na mesma época que entrei para a natação. O cara é um
atleta universitário em todo o sentido da palavra: galinha, alcoólatra,
viciado em anabolizante e um verdadeiro babaca.
— Não é só isso, Eric. Semana passada a polícia bateu lá porque uma
caloura acusou um dos promoters de estupro.
Franzo o cenho, fazendo uma anotação mental para mandar minha irmã
manter distância do lugar. Ela com certeza se sentiria tentada a conhecer só
pela fama de proibido.
— E eu com isso, Jim? Por acaso era minha irmã? — Eric debocha e
fecho meu armário com força, o asco cobrindo minha expressão.
Como eu disse, um verdadeiro babaca.
— Pelo que disseram, depois que você entra não pode sair até a festa ter
fim. Os seguranças fecham a única entrada e saída e acontece de tudo lá
dentro.
— Só não sei se as garotas do lugar fariam seu estilo — um terceiro
garoto fala e não identifico quem seja.
— Por quê?
— Porque elas não são boas mocinhas virgens para serem iludidas por
você.
— Ah, então definitivamente não faz meu estilo. Eu sou mais as calouras
com carinha de que querem se apaixonar pelo atleta famoso e viverem um
romance de filme. Sabe… tipo aquela loirinha gostosa do vôlei.
Começo a ir para a cabine de banho, mas estanco no lugar. Meus pelos se
arrepiam. Só espero que não estejam falando da minha loirinha gostosa do
vôlei.
— Cara, eu não sei qual a daquela garota, ela é esquisita, mas uma
delícia — o tal do Jim comenta e trinco o maxilar escutando os dentes
rangerem.
— Angelina o nome dela. Ela faz filosofia comigo. Aqueles peitos...
caberiam o meu pau perfeitamente.
Eu vou matar esses filhos da puta.
— O que eu não daria para esbarrar com ela sozinha nesses corredores.
Eu a faria se soltar rapidinho — Eric geme com a voz asquerosa e carregada
de malícia.
Fecho os olhos com força, minha boca formando uma fina e comprimida
linha. Meu sangue borbulha nas veias, como se tivessem o aquecendo com
um isqueiro. Esses desgraçados vão engolir a própria língua antes de abrir a
boca para falar de Angelina de novo.
— Ela deve ser uma delícia de se pegar contra uma parede. Com certeza
ficaria dizendo “pare”, como todas elas, se fazendo de santinha, enquanto
estaria maluca para ser fodida.
Foda-se. Ele pediu, quase implorou agora.
Jogo a toalha no chão, marchando como um alucinado para trás do
armário, encontrando os desgraçados rindo e especulando sobre posições.
Eles encerram a conversa quando me aproximo.
— E aí, cara… — o babaca me cumprimenta ainda com o sorriso
nojento na cara, que se desfaz no momento que o jogo contra os armários, o
barulho chamando atenção dos outros em volta. O metal range pela força
que o empurro pelo pescoço.
Ninguém se aproxima para apartar.
Ótimo. Não estou nem um pouco interessado em interrupções e não me
importo de partir pra cima de quem tentar.
Meu antebraço pressiona a garganta do infeliz e me controlo para não
fazer muito pior. Estou espumando, meu corpo inteiro treme até os ossos
para acabar com a existência desse verme.
— Se eu te pegar falando da Angelina assim de novo, não vai sobrar
muito dente na sua boca para continuar bostejando coisas sobre nenhuma
outra garota. Fui claro? — murmuro baixo, com o rosto próximo ao dele.
Ele não consegue falar porque estou pressionando seu pomo de adão, mas
eu tenho certeza de que consegue me entender. — Fui claro? — aproximo
mais, sorrindo como um maldito psicopata. Ninguém fala dela assim. Porra,
ninguém! O otário assente minimamente. — Bom… muito bom. Você me
parece esperto o suficiente para não querer repetir a dose dessa conversa. A
segunda não será nem de perto tão amistosa assim.
Viro para trás, sem libertar seu pescoço, encarando seus amigos.
— Isso vale para vocês também. Se sentirem vontade de falar merda,
enfiem o próprio pau na boca, porque se eu escutar vocês falando da
Angelina assim de novo, pode não sobrar nada para contar história.
Eles assentem com sincronia e liberto o cara, saindo do vestiário sem
sequer tomar meu banho.
Porra, não me importo com o que tenha parecido. Não me importo que
para todos os efeitos eu seja namorado da Blue. Só não vou aceitar
desgraçado nenhum falar da Angelina assim, como se ela fosse um prato de
cardápio, apenas esperando para ser devorada.
Vou em direção à saída do centro esportivo usando apenas a sunga e
tenho consciência dos olhares sobre mim. Não me incomodo com nenhum
deles, até parece que ninguém aqui viu um cara seminu antes.
Vou para o estacionamento pisando firme, esquecendo todas as minhas
coisas dentro do armário. Se eu voltar naquele vestiário para pegar, sou
capaz de quebrar o nariz daquele infeliz para reforçar meu aviso. Ele ficaria
ótimo com um olho roxo.
Antes de chegar ao carro, uma mão no meu ombro me faz parar.
— Pra quem vive brigando comigo por andar sem camisa pelo campus,
você está desfilando demais a sua bunda por aí — Ethan faz graça.
— Não estou de bom humor agora.
O sorriso no rosto dele se desfaz e Ethan tira o boné do time de basquete,
coçando os cabelos raspados.
— O que aconteceu?
— Uns desgraçados estavam falando da Angelina no vestiário e eu
empurrei um contra os armários. Preciso sair daqui antes que eu volte lá e
termine o serviço.
— Merda… é… quer fazer alguma coisa pra distrair?
— Não. Preciso tomar banho para ir pra minha aula de anatomia.
Começa em… — Olho para meu relógio de pulso, praguejando. — Merda,
trinta minutos. Não vai dar tempo de ir em casa, tomar banho e voltar.
— Você tem roupa no carro? Vai no dormitório da Donna e toma um
banho rápido.
— Tenho, mas o quarto não é só da Donna — o lembro. Tudo que não
preciso agora é de um momento constrangedor com Angelina.
— Angelina está treinando. Eu a vi na quadra agora mesmo.
Considero a opção, sabendo que é isso ou ir fedendo a cloro para a aula.
Duvido que a senhora Parkley vá gostar disso.
— Ok, vou ligar para Donna.
 
 
Para minha sorte, minha irmã estava no dormitório, se preparando para
seu treino com as animadoras. Ela abriu assim que bati à porta.
— Tem toalha limpa no armário da Angelina e, por favor, passe o rodo
no chão quando acabar, ela odeia que o piso fique molhado.
— Pode deixar. Obrigado por ceder o espaço.
— Só estou te deixando usar o banheiro, não exagere. — Ela beija minha
bochecha antes de sair pela porta.
Entro no chuveiro, precisando ir depressa se não quiser chegar atrasado à
aula.
Dentro do box, encaro os produtos de higiene e me perco na quantidade
de potes. Eu não faço ideia para o que serve a metade deles e torço para que
o escolhido ao menos sirva para limpar.
Se fizer espuma, é o certo.
Pego o primeiro pote que vejo e despejo o conteúdo nos meus cabelos e
no corpo, esperando que não seja muito caro. Donna me mataria.
Termino o banho rápido, me secando com a toalha que recolhi do
armário de Angelina. É branca, assim como uma das penduradas no vidro
do box. A enrolo na cintura, saindo do banheiro enquanto passo a mão no
cabelo para tirar o excesso de água.
— Donna, pensei que você estaria… Ah! Meu Deus! — um grito vem da
porta e seguro firmemente a toalha na cintura, arregalando os olhos para
uma Angelina que tem as mãos sobre as pálpebras.
— A-Angel? — gaguejo. — O-o que você está fazendo aqui?
— O que eu estou fazendo aqui? O quarto é meu! O que você está
fazendo aqui? E só de toalha, ainda por cima! — ela descobre os olhos para
gritar comigo, mas volta a cobri-los rapidamente. É meio inútil, se
considerar que já me viu nu.
— E-eu… eu precisei tomar um banho antes de ir para a próxima aula e
não daria tempo de passar em casa, então Donna falou que eu podia usar o
banheiro de vocês.
— Por que não foi no vestiário masculino?
— Longa história. — Ela continua com os olhos cobertos. — Sabe… eu
não estou pelado, pode abrir os olhos. Quer dizer, eu estou pelado, mas
estou de toalha.
— Isso não ajuda.
— Eu vou colocar a roupa, só um minuto.
Pego minha mochila e coloco o suéter de mangas, assim como a calça
jeans o mais rápido que consigo. Deixo apenas o tênis para assim que eu
sair.
— Pronto.
Ela livra seus olhos de apenas um dos dedos, conferindo se estou de fato
vestido. Ela achou o quê? Que eu estaria com o pau pra fora?
— Desculpe ter te assustado. Eu só vim porque Ethan garantiu que você
estava no treino.
Angel limpa a garganta antes de me responder, constrangida.
— Eu estava, mas acabou mais cedo porque a treinadora não estava se
sentindo bem.
— Entendo… — Coço a cabeça, sem saber o que falar. — Bom, de
qualquer forma, desculpa ter te assustado. Não era a intenção.
— Tudo bem… eu acho. — Ela contorce o nariz, me olhando de cenho
franzido. — Você usou meu sabonete líquido?
Oh, merda.
— O amarelo era o seu?
— Sim. — Angelina coloca as mãos na cintura.
— Mais uma vez… desculpa. Mas eram tantos e eu peguei o primeiro
que vi.
Ela dá passos na minha direção e inspira o ar antes de falar.
— Meu cheiro fica diferente em você… — ela inspira mais uma vez,
fechando os olhos. Fico parado o máximo que consigo, com medo de que
um mínimo gesto meu a faça se afastar. Estou sobrevivendo de migalhas, o
tempo que ela me der, eu aceito. A proximidade que estiver disposta, é o
bastante por hora. — Eu gosto de como se parece.
Engulo, permitindo-me fitá-la enquanto está de olhos fechados.
Caralho, como é linda. O semblante contemplativo, como se analisasse
cada nota do aroma de seu próprio cheiro em mim. Os cantos de seus lábios
se curvam minimamente e meu coração erra uma batida. Talvez duas. A
pele dela é como a superfície de uma nuvem, te faz querer tocar, mas ao
mesmo tempo, tem medo de que seja apenas uma ilusão. Que se desfaça
entre os dedos.
Porra, amor, o que estamos fazendo? Me perdoa.
Angelina ergue as pálpebras para mim e une as sobrancelhas pela
segunda vez. Dessa vez em direção ao meu cabelo.
Droga, o que fiz de errado agora?
— Está para o lado errado — ela sussurra antes de fincar seus dedos
entre os fios e jogá-los para a esquerda, desbloqueando a memória de
quando éramos crianças e ela costumava fazer isso. É impossível não sorrir.
Também é impossível não sentir saudade daquele tempo, onde tudo era
mais fácil e eu ainda era sua pessoa favorita no mundo. Por esses breves
segundos, me sinto aquele garoto de novo.
— Obrigado — murmuro baixinho, com a voz embargada, e o ar que sai
da minha boca colide contra Angelina, que tremula as pálpebras em
resposta. Encaro os lábios próximos aos meus, notando a pele macia e
úmida. Meu sangue se aquece pela segunda vez no dia, mas dessa é de um
jeito diferente. Não é raiva.
Angelina não parece indiferente, porque fita meus lábios com o mesmo
interesse incontido. Eu quero beijá-la, como nunca quis antes. Eu preciso
disso. Você também precisa, Angel? Me perdoa.
— Eu acho que é melhor você ir embora — ela murmura depois de um
tempo, ofegante, dando um passo para trás. Seus olhos fitam os próprios
pés.
Respiro fundo, balançando a cabeça. Minha respiração também sai
exaltada.
— É… — Limpo a garganta. — Você tem razão.
Saio do quarto o mais rápido possível, recolhendo a mochila de sua
cama. No corredor, permito-me cheirar a minha própria pele e sentir o
perfume floral. De fato, fica diferente na minha pele, mas ainda é bom ter o
aroma de Angelina em mim, exatamente como ficava quando estávamos
juntos.
Esse dia está se tornando uma provação para minha alma, com toda
certeza. E tenho falhado em todos os testes até o momento.
Primeiro, eu cedo à violência e depois, eu cobiço aquilo que não pode
ser meu.
Capeta, estou pronto para te abraçar.
 

 
A aula de anatomia se arrasta e eu me pergunto se quero mesmo isso
para minha vida. É estranho não ter as ordens de Leonor no meu ouvido
como malditos latidos. Mas mesmo que eles não existam agora, ainda os
levo em consideração ao pensar em trocar de curso.
Eu faria o quê? E se a natação não der certo? Preciso ter um plano B,
algo para qual correr se meu sonho de atleta não der certo.
A medicina é esse plano B. Ao menos eu posso trabalhar em algum
hospital aqui mesmo em São Francisco ou ir para Cape May e ajudar meu
pai na clínica.
Quando o sinal do fim da aula berra nos corredores, suspiro
audivelmente, levantando-me para sair. Encontro Vance nos corredores e
vamos juntos para casa no meu carro.
— Você tem estado sumido esses dias — ele comenta do banco do
carona.
— Estou estudando e treinando muito. Foi mal.
— Eu faço o mesmo curso e esporte que você, mas ainda tenho tempo
pra viver.
— Viver ou vender drogas? — Faço careta.
— Os dois. — Dá de ombros. — E pare de dizer isso como se eu
estivesse chutando cachorrinhos na rua.
— Só acho que você pode se dar mal com essa merda uma hora.
— Eu sei disso, mas não tenho um papai legal para me dar dinheiro todo
mês — ele comenta amargo.
— Meu pai me dá dinheiro para me manter aqui, assim como os seus.
Você vende drogas para bancar os excessos, então não fale como se você
fosse um pobre coitado que passa fome.
— Eu não vou ficar vivendo na mediocridade enquanto os infelizes
arrotam caviar, Francis.
— Você sabe que existem outros trabalhos, uns que não dão em prisão.
— E uns que dão metade do dinheiro que ganho, com o dobro de
trabalho.
Suspiro.
— Faz o que quiser da vida, cara. Estou apenas te alertando.
— Guarde pra você, então. Você não gosta que deem palpites na sua vida
e eu também não.
— Justo — assinto, esquecendo o assunto.
As coisas funcionam melhor assim. Cada um faz o que quer e ninguém
se mete.
Com Vance sempre foi assim, sempre fizemos merda um perto do outro,
mas nenhum tinha moral o suficiente para repreender. É basicamente nossa
licença poética para sermos miseráveis.
— Estou planejando uma viagem até as vinícolas — Ethan anuncia tão
logo entro em casa. Ele está jogado no sofá, com diversos papéis de
composição espalhadas pelo chão e pela mesa de centro, assim como o
violão aos seus pés.
— E desde quando você bebe vinho? — Debocho, guardando meu
casaco no gancho da parede.
— Desde que as gatinhas adoram caras que sabem beber vinho e todas
aquelas frescuras de cheirar rolha.
— Seus métodos usuais não estão gerando resultado? — Sento no sofá,
pegando o controle do videogame. Tem um tempo do caralho que não jogo.
— É sempre bom renovar o repertório. As garotas conversam entre si e
não é nada elegante usar a mesma cantada com elas. Isso pode fazer você
parecer um galinha.
— E você não é? — Arqueio a sobrancelha.
— Sou, mas elas não precisam saber disso.
Balanço a cabeça. Ele é feliz assim, então quem sou eu para o converter
ao celibato. Não é como se eu gostasse do meu também.
— Mas então, posso comprar nossos ingressos? 
Abro a boca para recusar, mas até que um dia longe do campus e de casa
me faria bem. Um dia longe de qualquer coisa que me lembre Angelina,
especificamente.
— É, pode. Não estamos fazendo nada mesmo.
— É assim que se fala — Ethan se anima.
— Podem comprar o meu também. Mando o dinheiro pra conta de
vocês. — Vance senta ao meu lado, pegando o segundo controle do
videogame.
Ethan o encara emburrado e o envio um olhar enviesado. Ele precisa
parar com essa birra do cara, já está ficando chato viver sobre o Muro de
Berlim.
— Te mando o valor por mensagem — Ethan comenta por fim e aceno
em agradecimento.
Não espero que os dois sejam melhores amigos, apenas que parem de
deixar um clima de merda na casa. Já basta o que preciso aturar na
faculdade com Angelina.
 

 
 
Apoio minhas mãos no joelho, esperando o saque do time adversário. O
treino hoje está um verdadeiro desastre, minha concentração está em algum
lugar entre Marte e Júpiter. Se a treinadora não tivesse me visto jogar antes,
com certeza questionaria se sou mesmo útil ao time. Errei três dos cinco
saques que fiz, não consegui fazer nenhuma recepção dos saques
adversários e errei cortes ridículos de fáceis.
Eu estou exausta. Acho que nunca me senti tão cansada e fatigada na
vida. Minhas pernas doem tanto que tenho vontade de chorar. As veias
parecem estar preenchidas por concreto ao invés de sangue.
A bola vem na minha direção e me concentro em seu trajeto, pronta para
recepcioná-la com uma manchete. Dou um passo para trás para a pegada
ficar correta, porém quando a bola fica próxima o suficiente para que eu
faça a jogada, meus braços colidem com sua lateral, errando completamente
o centro, a jogando para fora da quadra.
Respiro fundo, fechando os olhos.
Minha visão sempre foi perfeita, mas agora eu poderia muito bem dizer
que preciso do auxílio de óculos.
O que há de errado comigo?
Raspo as unhas na lateral do uniforme, sentindo os fiapos ficarem mais
soltos. Estou destruindo esse short e no momento não é a maior das minhas
preocupações.
— Angelina! — a treinadora Hart me chama e retiro os tampões de
ouvido. — O que está acontecendo?
— Eu não sei — admito, suspirando. — Não estou conseguindo me
concentrar.
— Quer molhar o rosto e voltar?
Balanço a cabeça.
— Não, não precisa.
— Tem certeza? Eu acho melhor você tirar alguns minutos. — Ela franze
o cenho, olhando para as outras garotas, que me fitam com cautela.
Isso me irrita extremamente.
— Se quer que eu saia da quadra e pare de atrapalhar o treino, então
diga. Não fique de olhares de esguelha como se eu não fosse esperta o
bastante para notar.
Tiro a blusa de mangas pela cabeça e vou apenas de top para o vestiário.
Jogo a peça com raiva nos bancos e nem me incomodo em saber como
ficou a cara da treinadora ou das minhas colegas de time. Não vou fazer
diferença alguma, elas estão melhores sem mim por lá.
Entro em uma das cabines para uma ducha rápida, e enquanto esfrego
meu corpo, encontro dois pontos arroxeados na pele. Um na coxa e outro
em meu quadril. Aperto o local, tentando me lembrar de quando bati essa
região. Não consigo me recordar de nada que possa ter deixado essa marca.
A pele sequer dói, apenas está uma mistura feia de roxo, azul e amarelo.
Respiro fundo, balançando a cabeça. Do jeito que minha mente está, eu
devo ter esquecido de ter batido contra uma mesa ou qualquer coisa
parecida. Talvez evitar as sessões com a Dra. Trish não tenha sido uma boa
escolha. Minha psicóloga vai ficar brava comigo, mas ela não seria a única.
Saio do centro esportivo muito ciente dos olhares em minha direção.
Elas não deveriam ficar surpresas, cada uma de nós já teve seus momentos
ruins. O meu só está levando mais tempo do que deveria para passar.
Caminho para a biblioteca, decidindo começar meu turno mais cedo. Ao
menos eu posso ir para casa com o dia ainda claro e assistir a todas as
adaptações de Jane Austen existentes. Preciso de uma dose de falas antigas
e elaboradas, das quais sei de cor. Um pouco de previsibilidade faz
maravilhas para o subconsciente.
Uso o crachá para passar pelas portas duplas e bato meu ponto, indo
atrás do meu carrinho para organizar os livros deixados pelos alunos sobre
as mesas. Eles têm uma dificuldade gritante de devolvê-los para os lugares
certos, e eu poderia até me incomodar, se empilhá-los nas estantes não fosse
uma ótima ocupação para minha cabeça. Eu não preciso pensar, só fazer. E
tudo que eu mais quero, é simplesmente o silêncio interno.
Meu corpo não me presenteia com isso com muita frequência.
Estou guardando exemplares antigos e empoeirados de direito, quando
escuto uma conversa do outro lado da estante. Geralmente não presto
atenção aos assuntos paralelos dos universitários, mas quando escuto meu
nome envolvido, é diferente. Nesse caso, minha antena se liga
automaticamente.
Aguço minha audição e aproximo o rosto dos livros para escutar melhor.
— Ele quase bateu no cara no meio do vestiário para defender a
Angelina — uma garota comenta.
— Eu ouvi dizer que eles foram namorados na adolescência — outra voz
feminina sussurra. — Deve rolar algum sentimento ainda.
— Mais do que um sentimento, os garotos disseram que o Francis estava
espumando pela boca.
— Isso se a Blue não for corna, né? Você sabe como são os caras.
— Rola uns boatos que o relacionamento deles é aberto.
— Se eu namorasse um gostoso como o Hopkins, não aceitaria dividir
com mais ninguém — a voz dela é carregada de malícia e faço uma careta.
— Eu usaria aquele corpinho delicioso o tempo todo.
Comprimo os lábios e me mantenho quieta para continuar escutando sem
que elas notem. Ainda quero entender sobre a parte em que Francis quase
bateu em alguém para me defender. Me defender do quê?
— E parece que não é só o corpinho que é delicioso, porque ele não
aceitou que falassem dela de qualquer jeito. Os meninos me disseram que
ele até ameaçou os caras.
— Ah, que sonho um homem fazer isso por mim — a garota diz em
lamentação.
A conversa das duas torna-se mais difícil de escutar e presumo que
estejam se afastando do corredor. Minha curiosidade atinge níveis
alarmantes para saber mais e praticamente enfio a cara entre as prateleiras
de madeira.
Então foi por isso que Francis foi tomar banho no nosso dormitório?
Porque arrumou briga no vestiário?
Por minha causa…?
Não devia, mas meu coração se aquece com isso. Assim como sinto
coisas estranhas na boca do estômago. Pensei que as borboletas estavam
todas mortas, mas parece que algumas ainda conseguem bater as asas. Meio
tronchas e tortas, mas batem.
Pego meu celular no bolso, mandando uma mensagem para Donna.
Eu: Seu irmão brigou no vestiário ontem?
Ela visualiza quase que instantaneamente.
Don: Só sei que ele estava estressado quando me ligou pedindo para
tomar banho no nosso quarto.
Por que?
Ficou sabendo de algo?
 
Eu: Umas garotas estavam falando aqui na biblioteca que ele brigou
com uns caras por minha causa… só fiquei curiosa para saber o porquê.
 
Don: Sei…
eu posso investigar.
 
Eu: Não precisa… deixa isso pra lá. Foi só por curiosidade mesmo.
 
Don: Pode até ser, mas agora eu vou fundo nessa história.
Odeio fofoca pela metade.
 
Eu: Mas isso não é uma fofoca, Donna. Pelo amor de Deus, não faça
alarde com a situação.
 
Don: Não vou.
Confia em mim, Baby.
 
O online dela desaparece e tenho certeza que ao voltar para os
dormitórios, terei a história completa na mesa. Nesse momento, eu agradeço
por Donna ser enxerida. Realmente quero saber do que Francis precisou me
defender exatamente. Eu meio que preciso agradecer.
Não é? É o que manda as convenções sociais, pelo menos.
Não que eu as tenha seguido muito durante a vida, mas em poucas
ocasiões é no mínimo elegante tentar.
Não é porque quero me encontrar com ele.
Definitivamente não é.
 

 
O expediente na biblioteca se arrasta preguiçosamente e pela primeira
vez mal posso esperar para sair de perto dos livros. Para piorar minha
situação, meu carro ainda está no conserto, então eu terei de ir a pé para o
prédio dos dormitórios.
Desço as escadas até o estacionamento, onde encontro Jayden também
saindo do seu trabalho no prédio da administração. Ele parece
verdadeiramente cansado, os olhos com bolsas arroxeadas ao redor,
indicando que faz um tempo que não tem uma boa noite de sono. Ele sorri
quando me vê, mas não é tão animado quanto costuma ser.
— Oi, princesa.
— Oi. Estou com pressa — já o deixo ciente, para que não inicie
nenhum diálogo que eu deva dar continuidade. Eu posso muito bem
começar a ter palpitações de curiosidade.
— Caramba, é bom te ver também — Jayden gargalha.
O encaro, esperando que diga algo.
— Que foi? — ele pergunta.
— Você disse oi, imagino que queira falar algo… só seja rápido.
— Não, eu… eu só te cumprimentei mesmo.
— Então estou indo, tchau.
Viro para sair, não esperando sua resposta.
— Angelina, espera! — Jayden grita. — Quer uma carona?
Franzo o cenho.
Não seria uma má ideia.
— Quero, obrigada.
Entro pela porta que ele abre para mim e me pergunto se ele acha que
não posso abri-la sozinha.
Assim que Jayden arranca com o carro, minhas pernas balançam no
assoalho.
— Posso perguntar o porquê de tanta pressa? — ele observa minhas
pernas com uma careta. Eu sei que isso irrita as pessoas, mas preciso me
movimentar se não quiser ficar irritada também.
— Preciso conversar com a Donna.
— Algo sério? Se precisarem de ajuda…
— Não. É apenas algo que preciso muito saber.
— Fofoca, então? — Jay balança as sobrancelhas, me provocando.
— Não… — nego, mas me interrompo. — Quer dizer, é. É sim.
— Me conta, eu gosto de fofoca também.
— É sobre o Francis.
— Esquece. — Ele balança a cabeça. — Não quero mais saber.
— Foi o que imaginei. — Reviro os olhos.
— Foi mal, é que a gente não é muito amigo, sabe como é. — Jay dá de
ombros, virando à direita.
— Vocês se odeiam, seja sincero.
— Ódio é uma palavra muito forte. Eu só não vou com a cara dele e
imagino que a recíproca seja verdadeira.
— É, pode apostar que é. — Solto uma lufada de ar. — Só não sei
porque você não gosta dele, se a história com sua irmã foi esclarecida.
— Não era só por causa da Isa.
— Se falar que é por minha causa, vou te bater com essa bola de
basquete. — Aponto para meus pés, onde há uma, sem a menor explicação.
— Não — Jayden ri. — Bom, um pouco por sua causa, mas não é isso.
Eu só não vou com a cara de playboyzinhos que não fazem nada da vida.
Minha boca despenca.
— Você não conhece mesmo o Francis se pensa que ele não faz nada da
vida. Ele é a pessoa mais esforçada que conheço, Jayden — sinto uma
irritação crescer dentro de mim. Isso é incrivelmente injusto. Além disso, só
eu posso falar mal dele.
— Ele é sustentado pelos pais, Angelina. Então não me diga que é a
pessoa mais esforçada que conhece. Acredite, tem gente que se divide em
dois empregos e a universidade para se manter — diz ele, desgostoso. Isso
parece ser um assunto sensível; Jayden não costuma ficar na defensiva.
— Não é porque os pais dele têm condições para ajudá-lo, que ele não se
esforça. Francis treina e estuda incansavelmente para valer a pena o esforço
dos pais.
— Angie… — Jay suspira. — Eu sei que independente do que rolou,
você ainda gosta do cara, então não quero te aborrecer quanto a isso. Nós
não vamos chegar a um consenso sobre esse assunto, então melhor
mudarmos o papo. De verdade, não quero que fique com raiva de mim.
Ele sorri para mim rapidamente.
— Não vou ficar, Jayden. Eu sei respeitar a opinião das pessoas.
Muito embora eu esteja sim irritada com a dele. Jayden não conhece
Francis como eu.
— Eu sei… eu só tô muito cansado e ainda tenho mais um turno hoje. —
Ele esfrega os olhos sem qualquer delicadeza. Reprimo a vontade de
perguntar se ele está com a mão limpa.
— Estava se referindo a você quando disse sobre dois empregos? —
pergunto.
— Estou trabalhando em um pub perto daqui durante a noite — explica.
— Por quê?
— Meus pais estão com alguns problemas financeiros e estou ajudando a
pagar pela estadia da Isa aqui. Eu tenho bolsa de cem por cento, mas a dela
só cobre oitenta.
Pisco, sentindo as bochechas queimarem de vergonha. Como sua amiga,
eu deveria saber disso.
— Sinto muito, eu não sabia.
— Não sinta, tá tudo bem. Eu estou dando conta.
Analiso Jayden por algum tempo e acho que ele não está se olhando no
espelho o suficiente. Dar conta ele pode até dar, mas até quando? Seu
estado está deplorável.
— Isabela sabe sobre isso?
— Não, e por favor, espero que continue assim.
— Mas ela poderia ajudar — contraponho.
Jay respira fundo, balançando a cabeça resignado.
— Não quero que Isabela tire seu foco dos estudos para trabalhar.
— Já parou para pensar que é assim que o pai do Francis pensa também?
— Arqueio a sobrancelha. — O fato de você estar bancando a Isabela não a
torna menos esforçada, ou torna?
Jayden me olha rapidamente e solta uma risada.
— Ok, eu entendi seu ponto, Angie. Você tem razão — diz, mas não
parece convicto. Francis e ele são um caso perdido para amizade, mas
agradeceria se não fizessem bico sempre que entram na pauta do assunto.
Isso me pouparia reviradas de olhos.
— Você fica fofinho quando é contrariado, mas não deixa de ser uma dor
na bunda — reclamo.
O canto da boca dele se estica em um sorriso.
— Desculpe ser irritante sem querer, eu só gosto quando é de propósito.
Estreito os olhos em sua direção.
— Você e Blue são farinha do mesmo saco.
— Ela se ofenderia se escutasse isso. — Gargalha.
— Pode apostar que sim.
Jayden estaciona em frente ao prédio dos dormitórios e abro a porta do
carro, quase saindo sem me despedir pela pressa.
— Obrigada pela carona.
— Tudo bem, princesa. É sempre bom conversar com você.
— Mesmo quando eu mostro sua lógica falida? — Arqueio a
sobrancelha.
Jayden sorri cheio de dentes e suas covinhas se afundam na bochecha
roliça.
— Mesmo assim. — Ele pisca antes de sair com o carro.
Subo as escadas depressa, ansiosa por saber o que Donna já deve estar se
tremendo para me contar.
Abro a porta do dormitório, alinhando meus sapatos no batente e
guardando minha bolsa no gancho de parede. Meus olhos encontram Donna
sentada na cama de pernas cruzadas, as mãos com as palmas para cima,
apoiadas em seus joelhos, o polegar unido ao indicador. As pálpebras estão
fechadas, deixando à mostra o delineado expressivo e um som engraçado
sai da sua garganta. Algo como hummmm.
— Donna? — sussurro.
Os olhos dela se abrem tão depressa, que me assusto. Pisco como se
batesse um print da cena.
— Até que enfim! — ela grita, batendo no colchão em sua frente. —
Precisei fazer uma meditação para conter minha ansiedade, garota! Por
acaso a Britney Spears estava dando show na biblioteca pra você ter
passado tanto tempo lá?
Abro a boca, franzindo o cenho.
O que diabos ela faria numa biblioteca? E se tivesse dando um show lá,
seria o último lugar que eu ficaria. Ela sabe que não gosto de lugares
cheios. Donna respirou monóxido de carbono ao invés de oxigênio?
— Devo presumir que você conseguiu informações sobre o que te falei
mais cedo.
— Informações? — Donna bufa. — Baby, eu consegui detalhes.
— Que são?
— Uns caras estavam falando merda no vestiário, como sempre. — Ela
solta uma risada irritada. — Acontece que Francis entrou para tomar banho
após o treino e um grupo deles estava falando de você.
— Falando o quê?
— Um deles comentou sobre seu peito, especificamente sobre o pênis
entre eles, outro comentou que seria bom te encontrar sozinha em um
corredor… enfim, Angelina. Esses papos ridículos de homens que não tem
nem coragem de falar com você se a vissem, mas que gostam de se passar
por poderosos perto dos amigos.
Meu rosto esquenta. Não é nada legal saber que ficam falando isso sobre
mim. É constrangedor, para dizer o mínimo.
— E o Francis? — sussurro, um pouco envergonhada de essa ser a parte
que mais me interessa.
— Bom, aí tem algumas controvérsias na história. Alguns me disseram
que ele quebrou o nariz do cara, mas como não vi a mão dele machucada
nem suja de sangue quando veio ao dormitório, duvido que seja verdade.
Outros disseram que ele jogou um dos caras contra os armários e ameaçou
quebrar a cara dele se falasse de você assim de novo. Ao que parece, a
ameaça se estendeu para os outros presentes do lugar. Há ainda um grupo
de pessoas que diz que ele pareceu muito enciumado e possesso, como se
estivesse possuído, mesmo que a namorada dele não tenha sido citada na
conversa…
Donna sorri de lado e o gesto diz mais do que se falasse algo. Sim, todos
pensam que ele namora com a Blue e isso vai acabar gerando boatos.
E apesar do meu coração saltar com a possibilidade de conversinhas
paralelas sobre Francis e eu, o que verdadeiramente me preenche por dentro
e aluga meus pensamentos, é o fato de ele ter me defendido.
Sim, ele fez isso a vida toda, mas considerando nossa situação e que eu
não estava por perto para ser ofendida, é um ato que mexe comigo.
— Ei! Tá me ouvindo? — Don passa a mão na frente do meu rosto e
pisco aturdida.
— Desculpe, o que disse?
— Eu perguntei se você gostou de saber disso.
— É… — Limpo a garganta, abrindo e fechando a boca sem proferir
absolutamente nada. O que eu devo dizer? Gostar seria eufemismo e amar
seria exagero… — Eu acho que sim.
Dou de ombros, esperando que ela não insista por mais detalhes sobre
meus sentimentos. Don pode ser enxerida, mas ela sabe o quanto é difícil
explicar sobre o que sinto. Às vezes é difícil apenas o fato de sentir, que
dirá formar uma linha de raciocínio que alguém possa entender.
— E você vai falar com ele sobre isso? — Ela brinca com os dedos dos
meus pés.
— Não. — Movo a cabeça depressa.
— Por quê?
— Por que eu falaria? — Rio confusa. — Ele me defendeu de uns
babacas, isso é tudo. Ele faria o mesmo por qualquer outra garota.
Desvio o olhar do dela, sabendo o quanto essa é uma mentira deslavada.
Não vou falar com ele porque não quero que veja que senti muito mais do
que simplesmente gratidão. Não, isso me deixou… meu Deus, só posso
estar ficando desmiolada, mas isso me deixou de certa forma excitada.
É alguma espécie de sentimento primitivo pelo homem mostrar sua
força? É um ótimo questionamento antropológico. Kant deveria ter
discutido sobre.
— Ok, minta para si mesma. — Donna se levanta da cama, beijando
minha testa. — Você e meu irmão são mestres em fazer isso.
Ela vai direto para o banheiro e logo o som do chuveiro ligado vira trilha
sonora para a verdadeira história desordenada e sem roteiro que se torna
meus pensamentos.
Ele só te defendeu, Angelina. Não reaja como se fosse mais do que isso.
Passo a mão na nuca, sentindo-a úmida. E ao que parece, minha nuca
não é a única parte afetada por imaginar Francis me defendendo. Isso sem
contar a imagem dele de toalha no meu quarto. Aquilo foi... minha nossa.
Nunca senti tanta… necessidade. Isso, a palavra é essa. Necessidade.
Nunca senti tanta necessidade de contato físico. Parece que meu corpo
também precisa se saciar desse aspecto.
Isso é bom em certo ponto, pois sempre achei que fosse quebrada nesse
sentido, que tinha vindo com uma pecinha faltando, mas agora vejo que ela
estava apenas desativada.
Merda, Francis, você a ativou e agora não tenho o que fazer com ela!
Além de desejo, sinto raiva. Porque é culpa dele o fato de não podermos
estar juntos agora.
Babaca, por que foi duvidar de mim? Que ódio de você, Hopkins!
 

 
 
— Nada se resolveu ainda — meu pai exaspera e noto seu semblante
cansado pela chamada de vídeo. Ele é médico, faz plantões de 72 horas,
encontra tempo para surfar e cuidar da família. Ainda assim, nunca o vi
cansado como agora. Leonor não está facilitando sua vida.
Meu pai deixou a casa para ela, está morando em um loft no centro de
Cape May, próximo à clínica. Ele não faz questão de nenhum bem, a única
coisa que pediu, é que se ela pretender vender a casa, que a venda para ele.
Meu pai se importa o suficiente com as recordações que Donna e eu
tivemos no lugar.
— Ela tem que assinar os papéis. Não tem porque não assinar, você
deixou tudo para ela, exceto a clínica.
Meu pai suspira.
— É complicado, campeão. São anos demais juntos e não quero que esse
casamento se encerre com uma guerra entre nós. Isso não fará bem para
ninguém, Donna e você principalmente.
Com essa eu tenho que rir.
— Pai… Donna e eu somos crescidinhos o suficiente para entender um
divórcio e para decidirmos nosso lado.
— Você não entende, Francis. — Ele sorri amargamente, e sei que está
acontecendo mais coisa do que está disposto a revelar. — Eu não quero
falar sobre isso com você, porque não quero fazer sua cabeça contra sua
mãe.
— Você não precisa. Ela fez isso muito bem por conta própria quando
mentiu pra mim.
— Não se ressinta dela, filho. Leonor acha que sabe o que é melhor para
as pessoas e então age sem consultar ninguém, apenas sua própria
consciência.
— Me desculpe, pai, mas que se foda esse papo de melhor para as
pessoas. — Meu rosto esquenta de uma raiva que eu não deveria sentir. Não
pela minha mãe, ao menos. — Ela só pensa no próprio bem-estar. No que é
bom para ela. Leonor nunca pensou no que era melhor para mim quando
confirmou que era Angelina do outro lado daquela janela.
— Sinto muito que as coisas tenham acontecido dessa forma. Eu queria
que você e Angelina não tivessem passado por nada disso.
— Eu a perdi, pai. — Minha garganta aperta. — Angelina nunca vai me
perdoar por ter duvidado dela. E eu nem posso dizer que ela está errada,
porque não está.
— Você está enganado, Francis. Sim, ela está com raiva e como você
mesmo sabe, com razão. Mas ela ainda ama você. Isso é transparente como
água.
Balanço a cabeça.
— Eu já não tenho tanta certeza disso.
— Vai desistir? — Ele ergue as sobrancelhas para mim e o gesto me
lembra Donna.
— Eu não poderia. Desistir de Angelina é como desistir de mim mesmo.
Ela faz parte de quem eu sou, a parte bonita e boa da coisa podre que só faz
merda.
— Não fale assim sobre si mesmo — sua expressão me repreende mais
que suas palavras. — Não criei nenhum monstro como filho. Você está
longe de ser uma pessoa ruim. Só esteve perdido e agora está buscando seu
caminho. Se Angie for a garota certa, suas estradas irão se cruzar em algum
momento. O que é para ser, é impossível de ser evitado. A vida nos dá
escolhas nos pequenos detalhes, mas o espetáculo principal já está formado
no momento que respiramos o ar deste mundo.
— O senhor está muito poético — mudo de assunto descaradamente.
— Eu sou um poeta nato — Robert ri, me permitindo sair do rumo da
conversa quando ela se torna difícil demais.
— Quando vai começar a aproveitar a vida de solteiro?
— Acho que preciso de umas dicas, eu estou fora do mercado tempo
demais. Não sei mais como conquistar as mulheres.
Reviro os olhos. Não é como se meu pai precisasse de táticas para
conquistar alguém. Até as amigas de Donna eram apaixonadas por ele. O
cara tem um charme natural, devo admitir.
— Qual é, pai. Você é tatuado, veste jaleco e ainda surfa. É meio que o
pacote completo dos fetiches femininos.
— Seria se eu já não fosse um velho.
Pisco.
— O senhor deve estar por fora da realidade mesmo, porque isso é
apenas um adicional à coisa toda. — Ele franze o cenho e gargalho antes de
explicar. — As mulheres estão preferindo caras mais experientes, sabe
como é…
— Coroas, você quer dizer…
— Isso, se quer colocar dessa forma.
— É, mas eu não vou sair por aí ficando com mulheres mais jovens. Não
tenho pique pra isso.
— Até parece. — Bufo. — Você tem mais gás do que eu e meus amigos
juntos.
Meu pai e eu ficamos no telefone até meu alarme tocar, deixando claro
que é hora de eu me afundar em livros.
É engraçado como uma simples conversa com ele pode renovar minhas
energias. Muitas pessoas consomem nossa bateria social fácil e
rapidamente. Mas Robert é diferente, ele tem algo em sua essência, que
funciona como um carregador para a coisa toda. Não me sinto exaurido por
falar horas com ele, me sinto novo, pronto para enfrentar um exército,
simplesmente por ele acreditar e confiar em mim.
De vez em quando, tudo que precisamos é que alguém confie em nós.
Que acredite que somos o bastante.
Ele acredita.
Lembro como se fosse hoje do meu primeiro campeonato de natação. Eu
estava tão nervoso, que pensei inúmeras vezes em desistir. Era apenas um
pirralho de oito anos, não teria chance alguma contra os garotos mais
velhos. Meu pai não achava isso, no entanto.
As imagens ainda estão frescas na minha mente, se fechar os olhos,
posso ver e sentir tudo daquele dia.
O treinador falou que eu competiria em uma categoria acima da minha
idade. Ele não devia confiar assim em mim, não sou tão bom. Não consegui
bater meu próprio recorde durante os treinos, como vou bater o desses
garotos?
Tento engolir minha saliva e isso é difícil, porque parece que minha
garganta está fechada. Limpo a mão nas minhas pernas, tirando o suor. Eu
nem sabia que dava para suar pelas mãos. De onde estou, consigo ver
Angel, Donna, mamãe e Lina na arquibancada. Procuro pelo meu pai
também. Não consigo fazer isso se ele não estiver aqui.
Começo a respirar rápido e meu queixo treme porque sinto vontade de
chorar. No mesmo instante, procuro o rosto da mamãe. Ela não está
olhando para mim e sim para o celular. Respiro mais aliviado. Se ela me
visse chorar na frente de todo mundo, ficaria muito brava.
— Campeão? — Escuto a voz de papai atrás de mim e me viro depressa,
meu sorriso ficando tão grande, que dói a lateral da minha boca. — Aí está
você!
Ele me pega no colo e me gira no meio do corredor em frente ao
vestiário. Eu fico um pouco vermelho, porque já sou grandinho para isso.
— Estou te envergonhando com as gatinhas, não é? — ele gargalha
quando encolho os ombros, confirmando. — Não se preocupe, você está
muito novo para namoros, eu posso te envergonhar ainda.
— Pai! — olho para os lados. Não é com as meninas que estou
preocupado, elas são irritantes, estou preocupado com esses meninos que
vou competir. Já devem me achar um nenenzinho.
— Tudo bem, tudo bem — Robert ergue os braços, só para então
agachar na minha frente.
Os olhos de papai são doces.
— Você está nervoso?
Assinto.
— É por isso que não está falando nada? — pergunta divertido.
— É… — Rio sem graça. — Estou com medo de ter uma dor de barriga.
Os lábios de papai tremem. Acho que ele está segurando uma risada.
— Você confia em mim como médico?
— Confio. — Papai é o melhor.
— Ótimo. Então deixa eu te contar uma coisa — papai começa a
sussurrar, como se contasse um segredo. — Quando você está dentro da
água, é impossível ter uma dor de barriga.
— Sério? — Abro a boca surpreso.
— Sério. Dentro da água, nós não passamos mal. Acredite em mim, é
impossível. Palavra de médico.
— Uau! — Arregalo os olhos.
— Então não precisa ter medo, campeão. Vai dar tudo certo. Eu acredito
em você.
Assinto para papai. Ele acredita em mim e eu acredito nele. Já não sinto
mais a garganta fechada ou medo.
É impossível passar mal. Papai acredita em mim.
Aquela foi a primeira e talvez a única vez que Robert mentiu para mim.
Mas aquela mentira, me fez ganhar minha primeira competição contra
garotos cinco anos mais velhos que eu. E até hoje, excetuando meu acidente
semestre passado, eu nunca passei mal embaixo d’água.
 

 
 
Naquela noite, eu recebi uma mensagem do Francis. Ele veio cobrar seu
prêmio na aposta e não tive outra alternativa, que não dizer sim para o
encontro que ele determinou horário e dia, embora sem informações sobre o
local.
Claro que se eu dissesse “não”, ele não me obrigaria a ir, mas não quero
parecer uma péssima perdedora e pessoa sem palavra. E para ser sincera,
estou um pouco curiosa.
Não o vejo desde a festa e isso faz uma semana. O vi apenas na aula de
redação, mas ele não se sentou ao meu lado, mesmo com a cadeira vaga.
Isso me incomodou mais do que deveria. Francis parece ter estabelecido
uma distância segura entre ele e minhas explosões de raiva. Embora
inteligente da sua parte, não gostei dessa mudança repentina. Por mais que
reclamasse de ele buscar seu perdão a cada mísero ponteiro girado no
relógio, o sentimento que vinha além da raiva e da mágoa era de... alegria?
Eu me sentia alegre com suas tentativas e não estava preparada ou desejosa
para elas se encerrarem.
Então talvez por isso, só por isso, eu tenha gostado de receber sua
mensagem.
Era simples, objetiva e direta… além de muito engraçadinha.
 
“Exclua qualquer compromisso da sua agenda para o próximo sábado.
Você tem um encontro comigo por não ser boa em derrubar bolas. Ps: use
algo confortável, você é linda de qualquer jeito.”
 
Sorrio para a tela do celular.
— Posso saber o motivo desse raro sorriso? — Donna provoca e mostro
a tela do celular para ela. — Quer dizer que meu querido irmãozinho não
contou onde vai te levar?
— Não, não disse.
— Ele finalmente aprendeu.
Ela parece satisfeita, mas se pensa que isso me fará perdoá-lo, então vou
ser obrigada a decepcioná-la. Isso nunca vai acontecer. Francis tem meu
coração, tem meus pensamentos e meu corpo, mas meu perdão é algo que
não estou disposta a entregar a ele.
— Não se anime demais. Estou apenas cumprindo a aposta que perdi. —
A encaro enfezada. — Por sua culpa, devo lembrar.
— Minha?!
— Sim, sua. Foi você que chamou ele para ser sua dupla, esqueceu?
— Eu chamei para ser minha dupla, mas não mandei vocês dois serem
malditos competitivos do caralho, e muito menos fazerem uma aposta. Essa
culpa eu não carrego.
Reviro os olhos, porque sei que ela está certa.
— Mudando de assunto, você vai ficar em casa? É sexta à noite —
indago confusa. Essa fase caseira e comportada tem me assustado. E para
ser sincera, sinto falta dos meus momentos a sós no quarto.
Os olhos de Donna saltam da órbita e ela levanta da cama em um pulo.
— Oh, merda, merda… ela vai me enforcar e não do jeito que eu gosto.
— Donna tira a camiseta do pijama pela cabeça, jogando-a de qualquer jeito
pelo chão. Ela abre seu guarda-roupa, vasculhando entre as pilhas
amontoadas de roupas.
Donna não se incomoda em dobrá-las, ela apenas as joga dentro do
armário, da mesma forma que saem da secadora.
— Cacete! — xinga ao derrubar uma pilha no chão. Eu também tenho
vontade de xingar, porque duvido muito que ela vá arrumar isso ainda hoje.
— Posso perguntar o que está acontecendo, ou você apenas teve vontade
de destruir o quarto?
— Eu… não, é que… — Donna para sua procura no armário, virando-se
para mim com os olhos saltados. — Eu tinha combinado de sair com uma
amiga, mas esqueci completamente que hoje era sexta-feira.
— Uma amiga? Que amiga? — Franzo o cenho. Pelo que eu saiba,
Cassidy está em um encontro e Isabela está em um jogo dos Yankees.
— Uma amiga. Você não conhece.
— Qual o nome dela?
— Quantas perguntas, Angelina!
— Se fosse você, perguntaria até o registro de nascimento da pessoa, eu
só quis saber o nome.
— Do que adianta eu te falar se você não conhece? — ela joga contra
mim enquanto se enfia em um vestido de paetê em um tom de salmão, que
chega até metade das suas coxas.
— Está frio — ignoro a fala raivosa dela, lembrando que estamos em
pleno inverno.
— É mesmo… ah, droga! Ela vai me matar.
Donna tira o vestido tão rapidamente, que escuto as costuras
protestarem.
A próxima peça que ela escolhe é uma calça de couro de cintura alta e
um cropped de manga longa. Donna joga um sobretudo igualmente de
couro, calçando seus coturnos.
— E então? Como estou? — Dá uma voltinha.
— Gostosa. — Ergo os polegares.
— Ótimo, é a intenção… minha bunda fica boa nessa calça? — Donna
se vira e analiso a região.
— Está redonda, para cima e parece durinha. Isso é bom o suficiente pra
você?
— Está perfeito. Obrigada, Baby.
Ela estala um beijo na minha cabeça antes de sair pela porta como um
furacão, me deixando sem a informação do nome da garota ou aonde vai.
E se algo acontecer a ela? Como diabos vou saber encontrá-la?
Donna deveria assistir a mais noticiários.
 

 
O relógio na escrivaninha marcava 21h quando uma chuva torrencial
despencou dos céus, acompanhada de trovões que fizeram e fazem cada
osso no meu corpo estremecer como se fossem feitos de gelatina. Minhas
mãos sobre as orelhas não abafam o suficiente e não encontro a droga dos
meus tampões de ouvido. Eu devo tê-los esquecido no vestiário depois do
treino.
Droga!
Deito em posição fetal na cama, cobrindo meu rosto com o espesso
cobertor de lã, desejando que fossem os braços quentinhos de vovó
Angelina e que ela sussurrasse histórias engraçadas e indecentes.
É tarde demais para fazer uma ligação, senão eu o faria. Ela é idosa,
precisa dormir.
Eu duvido que Donna chegue tão cedo do seu encontro, então também
não posso contar com ela. Eu chamaria um dos meus amigos para cá, mas
se o Instagram estiver correto, todos arranjaram programa para hoje. Não
devem sequer ter percebido que está chovendo e muito menos escutado os
trovões.
Jane Austen não conseguiu me distrair dessa vez. Nada consegue, porque
o medo já foi instalado e Deus sabe que esse mecanismo de defesa do meu
corpo é melhor que o do Pentágono. Ele não desativa, a menos que tenha a
chave correta.
Meu corpo pula do colchão quando o celular vibra logo abaixo do
travesseiro.
— Merda, Angelina! É só a droga do celular, não seja um bebê chorão.
Eu odeio ter tanto medo de coisas que não podem me machucar.
Ergo o celular e arregalo os olhos para o nome na tela.
Francis.
Uma ligação do Francis.
Penso em devolver o celular para debaixo do travesseiro e ignorar, mas
um neurônio errante fica cutucando minha cabeça para saber o que ele quer
comigo agora. Minha curiosidade nunca foi tão aflorada e isso ainda vai me
causar problemas.
— Vamos, uma ligação não pode te morder.
Respiro fundo antes de clicar no ícone verde.
— Alô? — atendo vacilante.
— Oi… — a voz dele parece um pouco surpresa, como se não esperasse
que eu atendesse. Bom, eu também estou surpresa quanto a isso. —
Desculpa te ligar a essa hora, mas… está chovendo muito e Donna me
avisou que iria sair, então imagino que esteja sozinha. Só quero saber se
está tudo bem… é… só isso, você está bem?
Silencio os latidos do meu coração. Francis está preocupado. Ele ainda
se preocupa. Fico feliz. E triste. E com raiva. São sempre os três agora.
Tenho saudade de sentir apenas uma emoção e não uma confusão furiosa.
— Sim, Donna saiu — respondo por fim. — E sim, estou sozinha. Sim,
está chovendo muito…, mas não, não estou bem.
— Já tentou ler um livro?
— Foi minha primeira alternativa.
— E filme?
— Os trovões estão altos demais.
— Que tal se você colocar vários cobertores em volta de si mesma? O
clima está muito frio, então não vai ser sufocante.
— Já tentei fazer isso também, mas não funciona. Acho que vou ter que
tolerar o barulho por hoje. Não se preocupe.
— Não me peça isso. Você sabe que é impossível — há irritação na voz
dele.
— Por quê? — indago.
— Por quê, o quê?
Reviro os olhos.
— Por que é impossível você não se preocupar?
— Porque é isso que fazemos com as pessoas que gostamos. Nos
importamos. Não dá para desligar esse hábito só porque não estamos mais
juntos. — Francis solta uma lufada de ar.
— Deveria dar.
— Você consegue? Consegue desligar os sentimentos assim? — me
desafia.
— Você quer dizer se consigo não me importar com você?
— Sim.
— Não — confesso. — Não consigo não me importar com você.
Dou de ombros mesmo que ele não consiga ver.
— Você acha isso ruim?
— Me importar? — Franzo o cenho.
— Uhum.
— Não. Preocupação não é o sentimento que odeio ter por você.
— E existem aqueles que você odeia?
Eu quase posso ver o sorrisinho de canto nos lábios dele. Sei disso
porque há um nos meus.
— Sim. Vários — admito.
— Posso perguntar quais?
— Não, não pode. Não vou dizer.
— Por quê?
— Porque você ficaria contente de saber e não estou com vontade de
deixar você contente agora.
Ele faz um som de choque.
— Isso foi rude, Eastwood. Não sabia que você podia ser tão má.
— Sim, você sabia. E sim, foi rude, mas não vou me desculpar.
— Não esperava que você o fizesse. Mas ainda quero saber quais
sentimentos você tem por mim que a faz borbulhar em pura ira.
— Você é exagerado.
— E você é a garota mais complicada que conheço. — Estala a língua.
— Agora ande, me diga quais são eles. É errado deixar um homem curioso
à essa hora, em uma sexta-feira chuvosa.
— Não vi a ligação ou a lógica na sua frase — zombo.
— Angel…
Suspiro, encarando meu teto em dúvida. Eu não deveria responder, mas
não deveria sequer estar falando com ele, então já que comecei errando, vou
prosseguir no erro.
— Odeio gostar de falar com você.
Demora um tempo para Francis responder.
— Sinto muito, mas é a melhor parte dos meus dias. O que mais você
odeia?
— Odeio quando diz coisas como essa.
— Por quê?
— Porque fico feliz. E eu não deveria me sentir assim. Você não merece.
— Eu sei que não mereço. Mas me agrada saber que a faço feliz, ainda
que com pitadas de ódio.
Tento prender o sorriso com os dentes, mas é algo que escapa ao meu
controle.
— Eu também odeio achar você engraçado.
— Minha irmã vive dizendo que nasci sem senso de humor.
— Tudo bem, ela também diz isso sobre mim.
— Nossa falta de humor é cômica para nós dois, afinal.
— É… parece que sim.
— Algo mais que você odeie, Angel?
Absorvo meu apelido com uma onda de prazer e melancolia. Consigo
escutar a voz dele acariciar meus ouvidos e me beijar com cada letra
arrastada, como se cantasse meu nome.
— Odeio o que sinto quando me chama de Angel.
Admito. E ele demora novamente para responder.
— Eu queria que você me afetasse só quando diz meu nome, mas você
me afeta até se falar “salada de macarrão”.
Gargalho alto.
Mais alto que o trovão lá fora.
Eu mal o escuto.
— Salada de macarrão — digo apenas para provocar.
— Mulher, meu coração errou quatro batidas. Acho que estou
apaixonado.
Mordo o lábio.
— Ou pode estar enfartando.
— Você ficaria feliz com isso?
Penso. E chego à resposta tão rapidamente que minha língua se agita
apressada.
— Não. Eu nunca ficaria feliz com isso. E apenas para avisar, você é
proibido de ter um infarto. Estamos entendidos?
— Entendido, Angel. Nada de ataques no miocárdio.
— Ótimo. Porque eu te odiaria se me deixasse sozinha nesse mundo.
— Achei que me quisesse longe de você — ele provoca.
— Talvez eu queira. Mas eu preciso saber que você está por aí. Preciso
saber que divide o mesmo ar que eu, que está sob o mesmo céu e que
enxerga a mesma lua. Eu só… não posso viver sabendo que você não
existe, Francis.
Talvez seja assim que vovó se sente em relação ao vovô.
Dessa vez, Francis demora tanto para responder, que penso que ele tenha
dormido. Estou prestes a bloquear o celular, quando sua resposta chega ao
meu ouvido.
— Eu pensei em mil coisas para responder. Mas a que mais exprime
meus sentimentos é: obrigado. Obrigado por achar algo em mim que valha
a pena existir. Confesso que às vezes não consigo achar alguma parte boa o
bastante para isso. Mas se você as vê em algum lugar no meio de tanto erro
e defeito, é o bastante para mim também. E só para constar, eu não existiria
em um mundo que não tivesse você.
A demora vem da minha parte dessa vez. Escuto sua fala repetidamente.
E em todas elas, meu peito se aquece de um sentimento há muito
conhecido, mas que nunca soube decifrar ou explicar. Eu sei o que ele é,
mas o tamanho dele é como o tamanho do universo; quanto mais pensamos
ser grande, mais ele se prova maior. E maior. Infinito.
— Francis… — murmuro.
— Oi, Angel.
— Posso te pedir uma coisa?
— Sempre.
As borboletas em meu estômago batem asas.
— Mas preciso que, pela última vez, me prometa algo.
— Estou ouvindo.
Respiro fundo para criar coragem.
— Dorme comigo essa noite?
Meu coração troveja mais forte que a tempestade lá fora.
— E qual é a promessa que você precisa que eu faça?
Evito pensar, aproveitando do lampejo de coragem dentro de mim.
— Que não vai considerar isso um retorno da nossa relação. Porque ela
não existe mais. Não estou te perdoando.
Ele leva alguns segundos para responder.
— Eu prometo que vou considerar apenas que você precisa de alguém
conhecido esta noite ao seu lado. Também vou considerar que é um
adicional esse alguém ser um nadador com um corpo escultural… não ria,
falo sério. — Seguro a risada. — Mas eu também prometo, Angel, que a
sentença que você acaba de dar sobre nossa relação não ter volta, é cabível
de muitos recursos. Esta noite não será nossa volta, mas isso não quer
dizer que nunca será.
Balanço a cabeça, rindo das suas palhaçadas.
— Pensei que fosse a Blue que fizesse direito e não você. Deixe os
recursos por conta dela.
— Ela pode ter me ensinado um truque ou dois.
— Aprendeu bem… Mas então, você vem?
Eu sei que estou cometendo um erro. Mas vou culpar meu medo. Não
quero ficar sozinha nessa chuva.
— Chego em dez minutos. Me espere com um balde de pipoca.
— Não tenho pipoca.
— Salgadinhos?
— Serve amendoins?
— Você já foi mais receptiva.
— São cobertos de chocolate.
— Meu coração errou mais duas batidas por você.
Abaixo a cabeça, rindo pela milésima vez nessa ligação. Eu detesto o
quanto ele consegue me fazer feliz. E mais ainda o quanto ele consegue
estragar tudo depois.
— Estou te esperando.
— Que bom… eu também estou te esperando. Sempre estou.
Bloqueio o celular rapidamente, antes que me arrependa de tê-lo
chamado para cá.
A verdade, é que eu deveria ter pedido ao meu coração que também
prometesse entender essa noite apenas como um momento e não como um
retorno. Porque ele parece acreditar na segunda opção.
 

 
Troco de pijama pela terceira vez. Não sei porque faço isso, é apenas o
Francis, ele já me viu em todo tipo de roupa… até mesmo sem elas.
Ok, não pense por esse lado, Angelina. É perigoso. Muito perigoso.
O objetivo é desfrutar da companhia dele e não daquele corpo infernal.
Savannah costumava me listar as coisas que eram pecado e várias delas
passam pela minha cabeça agora. A culpa é toda do Francis. Então sim,
corpo infernal. Ele poderia muito bem usurpar o trabalho do capeta com o
que está me fazendo sentir. Será que é isso que a Elizabeth e o Mr. Darcy
sentem quando brigam?
Decido finalmente pelo conjunto de short e blusa de algodão brancos e
dispenso o sutiã. Não consigo dormir com eles. Encaro o espelho, em
dúvida se solto meu cabelo do rabo de cavalo ou não. Decido permanecer
com eles presos, para que não se enfiem em minha cara durante a noite.
Francis bate à minha porta com nove minutos. Dessa vez, ele não se
atrasou e minha ansiedade poderia agradecê-lo com um aperto de mãos.
Respiro fundo antes de abrir a porta, meu coração berrando e colidindo
contra minha caixa torácica como um prisioneiro tentando fugir do cárcere.
Francis tem uma mão apoiada no batente da porta, enquanto a outra está
dentro do seu bolso da calça de moletom. Ele veste um casaco que é
conjunto da calça cinza e o capuz está em sua cabeça, cobrindo os cabelos
cor de mel. Vejo respingos da chuva que ele deve ter pego ao sair do carro
no meio desse temporal.
Sinto-me um pouco mal por tê-lo chamado aqui com esse clima. Mas só
um pouco.
As íris cristalinas se erguem para mim lentamente, ou ao menos eu
imagino que é assim, e me fitam com um brilho intenso. Um sorriso brinca
em seus lábios.
— Oi — sussurra baixinho e engulo em seco. A voz dele está rouca,
talvez pelo frio ou pela situação, e as vibrações de seu tom escorrem como
uma carícia por meu corpo.
Foi uma péssima ideia pedir para ele vir.
A pior que eu tive em anos.
— Oi — minha voz sai estrangulada, nem de perto tão bonita quanto a
dele.
Eu deveria odiá-lo.
Mas por essa noite, só por essa noite, vou me permitir não fazê-lo.
Só hoje, darei ouvidos aos meus instintos mais primitivos e às súplicas
do meu corpo… do meu coração.
Esta noite. Não mais que isso.
 

 
 
Foi uma péssima ideia vir aqui.
O que eu estava pensando quando aceitei essa proposta? É claro que
não ia dar certo. Não é no meio da madrugada que vou consertar minha
situação com Angelina. O que ela vai pensar de mim agora? Que estou me
aproveitando da situação, com toda certeza.
Ela não me convida a entrar e nem sai da frente da porta, só me fita sem
qualquer discrição. A forma que seus olhos me perfuram, faz todo o meu
corpo vibrar. Eu queria entender menos os seus sinais, porque é quase
impossível não a tomar nos meus braços, quando toda sua linguagem
corporal implora por isso.
Alguém avisa meu pênis que ela chamou a mim e não a ele?
Nós dividimos o mesmo corpo, mas entramos em cena em diferentes
situações e nessa não seremos uma dupla, com toda certeza.
Não digo nada. Apenas fico parado e a deixo decidir se quer mesmo que
eu fique.
Eu deveria ter dito “não”. Por que não disse “não”?
— Sabe que pode me mandar embora, né? — Sussurro e procuro a
verdade nos seus olhos. O brilho caloroso deles quase me derruba. Quero
tanto que ela volte a me olhar com carinho, sua raiva está me matando aos
poucos.
Porra… me perdoa, Angel. Pelo amor de Deus, estou definhando aqui!
— Eu sei — ela balbucia. — Mas não quero que vá embora. Quero que
fique. — Suas bochechas coram.
— Posso perguntar o porquê? — não deveria fazê-la pensar demais, mas
a verdade é que estou curioso.
— Pode.
Sorrio.
— Por quê?
— Porque eu quero sua companhia. Hoje, só hoje, quero fazer algo que
eu queira, sem pensar nas consequências.
Os olhos dela se movimentam aflitos, assim como suas mãos. Eu sei que
Angel quer ceder às suas vontades, mas tem medo do que o futuro reserva
caso o faça. Sei disso porque eu sinto o mesmo. Depois de fazer tanta
merda desde que ela chegou a essa universidade, eu tenho medo até de
respirar errado e foder com tudo.
— Posso propor algo? — analiso seu rosto. Por que você é tão linda?
— Da última vez que propôs algo, eu acabei te devendo um encontro. —
Ela tenta fazer cara de brava, mas o canto de seus lábios denuncia o
divertimento por trás das palavras. Sorria para mim, Angel. Me perdoe.
— Dessa vez você não vai me dever nada, prometo. — Cruzo meus
dedos, dando dois beijos sobre eles.
— A gente não consegue se afastar das promessas, não é?
— É um vício.
— E então… — Pigarreia. — O que propõe?
— Você disse que quer agir de acordo com suas vontades, sem pensar
nas consequências. Se desejar, eu posso ser a voz da razão por hoje. Posso
ser o freio. Posso pensar por você.
Isso é outra má ideia — minha mente tenta me alertar. Eu a ignoro.
— Eu pensei que você quisesse exatamente o contrário.
— E quero. Mas não se trata do que quero e sim do que você precisa. E
se hoje precisar que eu seja quem dirá “não”, então tudo bem. Serei.
Ela pisca rapidamente, processando minhas palavras. Quando volta seu
olhar ao meu, Angelina se afasta da porta, deixando o espaço livre para eu
passar. Seu convite é mudo, mas claro. Ela aceitou minha proposta. Me quer
aqui. E quer que eu seja aquele quem pensará nas consequências.
Ela tem razão, eu não quero pensar. Mas por ela, eu farei isso. Por ela eu
faria qualquer coisa, até colocar o maldito mundo abaixo, apenas para que
se adequasse às suas vontades.
Entro no quarto, deixando meu tênis ao lado da porta, ficando apenas
com as meias. O clima está frio pra caralho e estou torcendo para ela me
oferecer um cobertor o quanto antes.
— É… o que quer fazer? — Angelina cruza os braços à frente do seio e
isso os fazem saltar pelo decote do pijama de algodão. Ah, cara, eu tô tão
fodido…
Coço a nuca, forçando meus olhos a subirem e se manterem acima da
sua clavícula. Compostura, Francis! Você está tentando recuperar a
confiança dela, não a calcinha.
— O que estava fazendo antes de eu te enviar a mensagem? — indago
para afastar meus pensamentos.
— Encolhida embaixo do cobertor e tremendo de medo.
Trinco o maxilar. Se eu não tivesse fodido com tudo, ela teria me
mandado uma mensagem antes mesmo de começar a se sentir assustada.
— Angelina, você sabe que podia ter me ligado — não consigo conter
minha irritação.
— Sei. Mas eu não quero ficar perto de você na maior parte do tempo.
As palavras me cortam como uma faca afiada, mas o fato de ela dizer
“na maior parte” ao invés de “o tempo todo” são como remédios que curam
a ferida recém aberta. É literalmente um “morde e assopra”.
— Se precisar, me chame. Simples assim. Não importa quando, onde ou
em que merda de situação estivermos. Você precisa e eu venho. Entendeu?
Ela assente, os olhos levemente saltados.
— Ótimo… — Suspiro, analisando o quarto. — Alguém me prometeu
amendoins cobertos de chocolate.
Angelina sorri discretamente, apontando para a escrivaninha, com um
pequeno pote azul em cima.
— Eu cumpro minhas promessas — ela alfineta e aceito o ataque de bom
grado.
— É… eu sei que cumpre.
Ela cumpre tudo que promete. Agora eu sei. E ninguém se arrepende
mais de ter duvidado disso no passado, do que eu. Eu voltaria no tempo e
retiraria todos os meus pensamentos ruins, todas as vezes que fui rude e um
verdadeiro babaca com ela, eu excluiria aqueles minutos onde ela bateu
contra o meu peito, implorando para que eu acreditasse em suas palavras e
eu apenas mantive minha mente fechada a uma falsa ilusão.
Talvez eu quisesse acreditar que Angelina também errou, para que os
meus próprios erros não ficassem tão evidentes. É bom acreditar que as
pessoas que você ama são imperfeitas, porque isso te dá esperança de ser
amado, mesmo com suas imperfeições.
Angelina se senta na beirada da cama, as palmas das mãos contra os
joelhos, em uma posição formal da qual ela poderia muito bem se encontrar
com o governador do Estado.
Mordo o lábio, não querendo que pense que estou rindo dela. Não estou.
Só acho bonitinho esse constrangimento.
Curvo meu tronco, até meus lábios estarem próximos ao seu ouvido. O
perfume de lírios nessa região é ainda mais intenso.
— Eu não vou morder você, ainda que peça — murmuro. — Estou
sendo a voz da razão, então pode se sentar curvada, colocar as pernas para
cima e tirar meleca do nariz se quiser.
— Eu não tiro meleca! — Angelina bate no meu ombro e afasto o rosto
para observá-la. Sorrio de lado.
— Então seu nariz é sujo?
— Não, é bem limpinho, oh! — Angel estica as narinas para mim e não
consigo segurar a risada dessa vez. Eu caio na gargalhada, curvando o corpo
com as mãos apoiadas no estômago. — Qual a graça?!
— Nada… é só que eu vi seu cérebro, meu anjo.
Tusso para tentar parar de rir e seco meus olhos. Droga de mulher
espontânea. Ela poderia ser chata, isso facilitaria minha vida. Mas não…
além de linda e inteligente, a maldita tem que ser engraçada. É demais para
mim, eu sei. Mas eu não ligo, a quero mesmo assim. Chame do que quiser,
eu chamo de egoísmo.
— Ao contrário do meu nariz, meu cérebro está bem sujo de palavras
feias nesse exato momento. — Angelina cruza os braços pela milésima vez
e eu juro que tô começando a achar que é de propósito, porque em todas
meus olhos são atraídos para seus mamilos rosados, que não ficam
totalmente escondidos pelo tecido de algodão branco.
— Palavras feias? — Balanço as sobrancelhas. — Não sabia que você
ficava pensando putaria.
— Não é putaria! — As bochechas proeminentes se tornam rubras. — É
palavrão, seu palhaço pervertido.
— Discordo da parte do palhaço — zombo.
— E do pervertido? — Os olhos dela passeiam para o meu corpo quando
fala e talvez se demore demais no meio das minhas pernas.
Angelina deveria saber que embora haja uma ligação direta entre ela e
meu pau, não há qualquer ligação entre ele e meu cérebro. Não consigo
controlá-lo e espero que ela não brigue comigo se ele do nada tentar dar um
“olá” sob minha calça.
— Eu achei que era pervertido, mas é você quem está com os olhos nas
minhas partes baixas.
Angelina sobe o olhar para meu rosto rapidamente.
— Eu não… eu não estava… — balbucia inutilmente.
— Estava. Estava sim.
— Ok, eu estava. Mas eu não estou pensando nas consequências hoje,
você está. E ainda assim não tira os olhos dos meus peitos.
— Os olhos dos seus peitos também não param de me encarar. —
Aponto para seus mamilos túrgidos, esticando o tecido da blusa fina.
Angelina não faz questão de escondê-los e coloco a mão sobre meu nada
discreto amigo. As coisas aqui estão começando a ficar apertadas.
Voz da razão, Francis.
Você é a porra da voz da razão.
Angelina é maluca de ter aceitado essa proposta? Desde quando eu
tenho razão em alguma coisa?
— Acho que é melhor a gente fazer alguma coisa. Sei lá, ler a Bíblia…
— proponho desesperado, sentindo o suor escorrer na minha nuca.
— Não tenho uma Bíblia e já a li inteira. Não preciso fazer releitura.
— Talvez eu deva fazer uma — resmungo para mim mesmo. — Então
vamos ver um filme. Né?
— Que filme quer ver?
Coço o queixo para pensar e viro-me na direção dela com uma expressão
travessa.
— Lá vem…
— Vamos ver Monstros S.A. — Balanço as sobrancelhas.
— Qual a parte de você ser a voz da razão ainda não entendeu?
— Estou te chamando para ver um filme infantil, não para transar
violento contra sua escrivaninha.
Os olhos de Angelina saltam. E que Deus me ajude, ela não parece
alguém que recusaria. Ah, meus pecados serão todos pagos essa noite. Ou
irei diretamente para o inferno, sem direito a julgamento no juízo final. O
diabo em pessoa me receberá com uma xícara generosa de café.
— O filme me traz… recordações — Angel comenta timidamente.
Meu pau concorda.
— Recordar é bom.
— O problema é não poder repetir — ela sussurra, mas não tão baixo
quanto pretendia. Balanço a cabeça, tendo absoluta certeza de que foi muito
errado ter vindo hoje.
Ela está excitada. Eu estou excitado. E advinha quem precisa conter a
situação?
Eu.
Eu!
Gargalhem, porque eu estou querendo chorar.
Angelina me quer. Mas só por hoje. Enquanto eu a quero todos os dias. E
sei que se eu optar por tê-la esta noite, estarei recusando automaticamente a
outra opção. Até hoje, ela cumpriu tudo que me prometeu. Chegou minha
vez de não a decepcionar. Amanhã tudo volta ao normal. Ela exigiu assim.
Deito na cama de Donna, mesmo que minha mente e meu corpo estejam
completamente sedentos da garota de cabelos dourados do outro lado.
Angelina dá play no filme e observa a tela do computador, fingindo
concentração. Fingindo, porque a todo momento seus olhos me procuram e
desviam rapidamente.
Seguro o sorriso. É bom saber que ainda me quer. Mesmo que seja
apenas por hoje.
Remexo na cama. Estou inquieto. Ardendo. A cama de Donna é
confortável como qualquer outra cama convencional. Macia, talvez demais
para o meu gosto, mas nada que justifique a quantidade de vezes que eu me
viro de um lado para o outro, tentando arrumar alguma posição para assistir
ao filme.
Angelina não é de se mexer, na verdade, ela é incrivelmente parada para
dormir. Mas agora, o lençol branco quase se solta do colchão, tamanha as
movimentações. Ela bufa audivelmente, me fazendo sobressaltar de susto
quando se senta em um rompante na cama. Seus olhos me fuzilam com
raiva e os meus se arregalam.
— O que eu fiz? — me arrependo assim que pergunto. Geralmente não é
uma pergunta inteligente a se fazer para uma mulher. Elas querem que você
adivinhe…
— É o que você não fez.
Franzo o cenho.
— Me ilumine.
— Não tenho uma lanterna.
— Quero dizer, me esclareça o que foi que eu não fiz e que deveria ter
feito.
— Você sequer tentou se deitar comigo! — Os lábios rosados e macios
formam um biquinho fofo. Ela parece chateada. E eu tenho vontade de
mordê-la. Inteira.
— Eu estou sendo o sensato.
— Não pode ser sensato deitado comigo?
Angel pergunta com tanta inocência, que eu solto uma risada.
— Eu devo admitir que sua fé em mim é lisonjeira.
— Vai se deitar ou não? — Seus quadris se movem para o canto da
parede, deixando a ponta da cama livre para mim. Definitivamente não o
suficiente para o meu tamanho, mas nada que meu corpo juntinho ao dela
não resolva.
Razão, Francis. Razão!
— Angelina, sabe que vamos acabar nos agarrando antes que a Boo
desça o cacete no lagarto feio, né?
— Estou contando com isso.
— Porra, mulher! Você vai me matar, juro por Deus.
Deito na cama praguejando meio mundo, principalmente porque sei que
terei de dizer não.
Agora, como infernos vou dizer não para algo que meu corpo inteiro
grita sim?
Aparentemente terei que descobrir.
Acomodo-me ao lado de Angelina, ficando o mais próximo da beirada
sem cair, tentando a todo custo não encostar em seu corpo. Eu sei que se a
abraçasse agora, ela não reclamaria. Mas talvez Angel apenas esteja carente
e excitada, e não vou me aproveitar disso, porque apenas fará com que ela
me odeie ainda mais no dia seguinte. Eu falei sério em todas as vezes que
disse que a esperaria, não importa o tempo.
Sinto seu olhar pesando sobre mim. Ela não tenta esconder que está me
fitando e comprimo os lábios para não sorrir. Angelina não sabe ser
discreta, tudo que faz, é claro. Ao menos para mim, é cristalino.
Ela está analisando meus gestos, minhas expressões, para guiar as
próprias.
— Pensei que hoje você estivesse agindo de acordo com suas vontades
— sussurro ainda encarando o computador.
— E estou.
— Então por que você está analisando minhas atitudes, para só então
decidir o que quer fazer?
Angelina leva duas batidas do meu coração para responder.
— Porque não sei se você quer que eu faça o que eu quero fazer.
Seguro a risada. Há algo que eu não queira vindo dela?
— Acredite, quero o dobro. Eu já te falei uma vez, que não há nada que
você faça que eu vá achar ruim, Angel. Ainda vale.
— Mas você dirá não para a maioria das coisas. — Ela parece um tanto
decepcionada. Isso me deixa confuso. Ela aceita minha proposta, mas quer
que eu haja ao contrário do que prometi?
Permito-me olhá-la dessa vez. Esquadrinho seu rosto delicado e meus
dedos pinicam para acarinhar o contorno da pele macia. Me contenho, no
entanto.
— Eu direi “não”, porque você não é apenas um momento, Angelina —
decido ser sincero. — Você é a mulher que eu quero pra minha vida. Não a
que eu quero por uma noite. — Noto a garganta dela apertar-se para engolir
a saliva. — Direi não hoje, para um dia, se eu tiver sorte, ouvir um sim da
sua boca novamente.
Ela não fala nada. Apenas pega minha mão que até então repousava
sobre o meu estômago, esticando meu braço para a lateral. Franzo o cenho
confuso, mas logo que Angelina deita a cabeça em meu ombro, a confusão
se esvai. Ela se aconchega em mim e descanso minha mão em seu braço, a
deixando encontrar a melhor posição. Tenho certeza de que escuta as
pancadas violentas que meu coração dá na caixa torácica. Eu permito. Não
há porque esconder o que sinto.
— Achei que você fosse dizer “não” para isso — ela confessa,
desenhando coisas desconexas em meu peito.
— Eu só vou falar “não” se sua mão descer pro meu pau. Caso contrário,
fique tranquila — provoco.
— Francis! — Ganho um tapa estalado. — Eu não vou colocar a mão no
seu… no seu…
— No meu pau?
— Francis! —Angelina briga de novo, escondendo o rosto em meu
pescoço. Seu nariz cava minha pele e quase solto um gemido. — É… não
vou colocar a mão.
— Eu não sei não… você é um pouco tarada.
Com essa, Angelina ergue o rosto para me encarar. Por mais que suas
sobrancelhas estejam unidas em uma expressão enfezada, o canto dos lábios
esticados para o lado a denunciam. Você gosta desse nosso joguinho, amor.
Confesse.
— Não sou não — um biquinho fofo contorce seus lábios.
— Tem razão… — Tiro uma mecha de cabelo da frente de seu rosto,
colocando para trás da orelha delicada. — Você não é pouco.
Ela não nega, voltando a se deitar sobre meu peito, ficando finalmente
quietinha.
O tempo passa depressa, quando me dou conta, o filme já está pela
metade. O silêncio reinou a maior parte. Vez ou outra notei que Angelina
não tinha a atenção voltada para a tela e sim para nossas mãos quase se
encontrando. A minha, assim como a dela, está descansando em meu
estômago e nossos dedos estão separados por uma linha tênue. Nenhum de
nós dois parece ter coragem para diminuir a distância. Embora da minha
parte, o que falte não seja exatamente coragem e sim controle.
Angelina suspira inquieta.
— Tudo bem? — averiguo.
— Eu fiquei sabendo do vestiário — ela fala como quem não aguentava
mais guardar para si mesma.
Fecho os olhos, praguejando. Merda de gente fofoqueira!
— Sinto muito.
— Pelo quê? — Angelina se ergue, apoiando as mãos sobre meu peito.
— Bom… pelo que ocorreu no vestiário. Eu… eu só não estava num
bom dia e… — Solto o ar com força, balançando a cabeça. — Você tem
todo direito de me achar um babaca e…
— Francis. — Angelina coloca a mão sobre minha boca, — Eu gostei do
que fez. Fiquei… bom, não sei o que senti. Mas obrigada por me defender.
Ela tira a mão da minha boca e pisco surpreso.
— Achei que fosse me xingar por ter agido como um guerreiro num
cavalo branco indo salvar a donzela que podia se salvar sozinha.
— Faria isso se eu estivesse presente para me salvar. Como eu não
estava, foi bom que tenha feito. Eu ficaria chateada se soubesse do
contrário.
Solto uma risada. Mesmo uma mulher que conheço desde que me
entendo por gente, ainda consegue me deixar confuso. Estamos fadados a
nunca as entender.
— Então de nada. — Coço a cabeça. — Mas não é como se eu pudesse
evitar o que aconteceu, vi vermelho quando aqueles caras falaram aquelas
coisas, e quando dei por mim, já tinha partido pra cima.
Meu sangue esquenta novamente só de lembrar. E talvez minhas feições
tenham evidenciado isso, porque Angelina toca meu rosto, em meu cenho,
desfazendo o nó recém formado.
Prendo a respiração enquanto sinto sua pele na minha. O formigamento é
o mesmo. Sempre é. Não importa quantas vezes eu tenha sentido seu
contato, ele sempre me atingirá como uma supernova.
— Só pra você saber, eu também teria te defendido. — Ela continua
massageando minha testa.
Sorrio.
— Você teria jogado uma garota nos armários?
— Não. Nós mulheres temos a arte da conversação ao nosso favor, não
precisamos agir como homens das cavernas. Minhas palavras teriam
bastado.
Meu sorriso se alarga.
— Eu amo tudo que sai da sua boca, sabia?
— Mesmo quando eu digo que não quero mais nada com você?
— Mesmo isso. — Fito suas íris. — Porque é interessante ver como seus
lábios e seus olhos dizem coisas completamente opostas.
Angelina separa os lábios e sinto o hálito mentolado, me dando água na
boca. Eu ainda posso sentir o gosto…
— Francis...
— Hum?
— Eu vou ser sincera.
— Você sempre é.
— Agora vou ser mais do que costumo.
— Então manda ver. Eu aguento.
— Tem certeza?
— Uhum. — Mordo o lábio, imaginando nossas bocas unidas.
— Eu quero fazer amor com você.
Puta que pariu.
Não aguento não, esquece o que falei!
 

 
 
Talvez eu tenha derretido o cérebro do Francis.
Minto. Talvez não. Eu derreti o cérebro dele, desativei os neurônios,
porque só isso para explicar o fato de me encarar com os olhos saltados e a
boca entreaberta há minutos!
Começo a me preocupar quando ele sequer pisca.
— Francis? — Passo a mão em frente ao seu rosto e ele não tem
qualquer reação. — Francis! Estou falando com você!
Ele pisca quando bato em seu ombro e respiro aliviada.
— Desculpe. Eu estava tendo uma conversa interna muito calorosa entre
meu cérebro, meu coração e meu… bom, você sabe. — Ele olha para baixo
de seu corpo e quando faço o mesmo, meu baixo ventre se contrai, assim
como a saliva em minha boca se acumula.
A ereção de Francis estica o tecido do moletom e consigo ver seu
formato perfeitamente sob o tecido. E se não bastasse a imagem real, minha
memória também é excelente com detalhes. Lembro-me perfeitamente de
cada veia saliente, o tom de rosa mais claro da glande…
— Angelina, pelo amor de Deus, para de olhar meu pau como se fosse a
coisa mais interessante do mundo — a voz dele sai rouca e estrangulada.
— No momento, ele é.
Francis pragueja, colocando o braço sobre os olhos.
— Eu vou pro inferno. Sei que vou.
— Isso é um diálogo ou uma constatação?
— Constatação.
— Bom, se você já vai para o inferno, não precisa cumprir a parte sobre
ser o racional. Sua alma já está condenada mesmo.
Proponho e confesso que até eu me assusto com a confiança e coragem
que sai na minha voz.
Francis parece sentir o mesmo.
— Minha alma já está condenada ao inferno, mas não vou condenar
minha relação com você.
— Então dirá não? — por algum motivo, minha voz sai falhada pela
recusa. Eu não deveria estar chateada, Francis me avisou. No fundo,
acreditei que ele não fosse cumprir. Será que ele não quer…
— Angelina — Francis interrompe meus pensamentos. — Posso pegar
seu rosto entre as mãos?
Engulo com dificuldade.
— Eh… pode.
Eu pedi pra ele transar comigo, mão no rosto é o de menos.
Francis continua sério, acarinhando o contorno do meu rosto, até suas
palmas estarem contra minhas bochechas. Seus olhos não deixam qualquer
nuvem de dúvida, são como o céu limpo e claro em um dia de verão.
— Acredite em mim, fazer amor com você é algo que quero em 98 por
cento do meu tempo. Nos outros dois, eu penso em um sexo mais
safadinho. — Ele pisca e não consigo controlar a risada. — Eu quero fazer
amor com você hoje. Mas não só hoje. E não só fazer amor. Eu quero uma
relação com você. Quero ser o cara em quem você confia novamente, o que
vai ligar quando se sentir assustada ou temerosa, o cara que vai melhorar
seus dias e eventualmente suas noites. E não posso ser esse cara,
descumprindo a primeira promessa que te fiz desde que nos separamos. Isso
não é só por você precisar de um freio hoje, mas também por mim. Não
posso te tocar esta noite, não posso amar seu corpo, me banhar da sua
essência, não posso receber seus beijos e olhares que me mostram sua alma,
só para então, na manhã seguinte, perder tudo isso. Eu perdi você vezes
demais para uma só vida. Não pretendo perder nenhuma mais. Quando for
para estarmos juntos, será pra sempre. Não darei nenhuma brecha ao
destino.
Engulo em seco, piscando rapidamente, tentando afastar as lágrimas. Ele
me ama. Eu sei que sim. Queria que isso fosse o bastante. Que amor fosse o
bastante para duas pessoas ficarem juntas.
Com um sorriso triste, toco o rosto dele.
— Por que você tinha que estragar tudo? — me refiro ao passado.
— Eu me faço essa pergunta todos os dias. E me odeio porque não
encontro uma resposta.
— Nós seríamos felizes. — Uma lágrima escorre e Francis rapidamente
a captura com o dedo.
— Nós seremos.
Desvio o olhar para sua boca.
— Não vou te entregar meu coração novamente. — É uma mentira.
Nunca deixou de ser dele.
— Você não vai precisar. Ele já é meu, Angel. Sempre foi.
Não há dúvida em sua voz. É confiante. Determinado. É a voz de alguém
que não desistirá, não importa quantas vezes eu dificulte.
Mesmo não devendo, fico feliz. Tenho… esperança. Mas ela vem
acompanhada de um sentimento ruim.
Medo.
Medo de me quebrar novamente. Medo de tudo se repetir. E o medo é
maior.
Agora, ele é muito maior. Por isso eu sei que Francis e eu não ficaremos
juntos novamente. Porque não vejo expectativa de algo sobrepujar o medo.
Prefiro ter a certeza de que não o terei, do que a dúvida de estar ao lado
dele, imaginando quando a vida o tomará de mim.
Essa constatação descola alguns pedacinhos do meu coração que eu já
havia colado. Ele é como um cristal quebrado. Não volta a ser como era
antes, não importa o quão habilidosa eu seja em reparar os cacos.
É por isso, por essa dor de não o ter, que volto a deitar no peito do
homem que sim, tem meu coração, mas que talvez nunca mais tenha minha
confiança irrestrita. Francis parece ter o mesmo pensamento, porque seu
braço ao meu redor torna-se mais estreito, como se tivesse medo de me
perder.
Infelizmente, ele já o fez. Já me perdeu.
Para si mesmo.
 

 
Suspiro, balançando meus quadris para frente e para trás. Não consigo
ficar parada, não quando todo o meu corpo se agita por dentro, borbulhando
por algo que não o estou dando.
Minha pele não liga para o que meu coração sente. Meus músculos
tensos não se importam com o quanto já chorei. O centro do meu corpo não
está dando a mínima para os sinais de perigo enviados pelo meu cérebro.
Meu lado consciente está brigando com o subconsciente e este último está
com a vantagem na batalha. Uma larga vantagem.
Engulo a saliva, tentando absorver minhas reações ao simples fato de ter
Francis ao meu lado. Nunca fui boa em conter as emoções.
Estou… queimando.
Não há qualquer outra definição que eu consiga pensar, senão essa.
Estou queimando.
Minha pele formiga, meu sangue é quente por entre as veias, minha
respiração é irregular, meu coração errático… imagino que seja assim.
Queimar. Ao menos, queimar de desejo.
— Angelina — Francis sussurra meu nome roucamente, como imagino
que minha voz sairia se me permitir falar. — Você está bem?
Apenas aceno com a cabeça que “não”.
— Eu posso te ajudar de alguma forma? Me diga, porque estou perdido.
Aceno que sim, dessa vez.
— Então me diz — o timbre é suplicante, despedaçado.
— Já disse — murmuro. — E você disse “não”.
Um som estrangulado escapa da sua garganta.
— Sabe por que eu disse.
— Sei. Mas não ajuda. Eu estou… — Solto uma lufada de ar
envergonhada, balançando a cabeça. — Deixa pra lá.
— Você está o quê? — A mão dele em meu braço ganha vida, fazendo
pequenos círculos contra minha pele. Lembro-me perfeitamente da
sensação desses mesmos movimentos entre minhas pernas. E o calor se
concentra na região com rapidez.
— Eu estou… — como explicar, quando nem eu mesma sei?
— Excitada? — Francis termina para mim. — Está excitada?
Seus dedos ficam mais firmes sobre minha pele e o corpo forte
estremece. Francis está no limiar do seu controle, olhando para o precipício
da borda de uma montanha, muito disposto a pular. Eu quero falar para ele
se jogar. Que estou no fundo. Mas não sei se é correto arrastá-lo para a
queda. Mesmo que ele tenha me empurrado primeiro.
— Sim — confesso. — Estou.
— Você pode fazer algo por si mesma. E não se preocupe, pode me
mandar embora.
— Não é tão simples. — Minhas bochechas queimam.
— Por quê?
— Porque eu já tentei fazer algo por mim mesma. Acontece que… —
penso antes de prosseguir, decidindo se é seguro revelar. Não. Não é. Mas
digo ainda assim. Não estou pensando nas consequências hoje. — Acontece
que meu corpo quer algo específico. Alguém específico.
Um silêncio se instala e não tenho coragem de erguer os olhos para
encará-lo. Tenho medo do que posso encontrar refletido.
— Eu? — ele sussurra, e é tão baixo, que fico me perguntando se não
imaginei. — É a mim que seu corpo pede?
Posso não o estar encarando, mas consigo claramente definir sua
expressão apenas pela forma como sua voz chega até meus ouvidos. As
palavras parecem dançar em sua língua em um ritmo lento e sensual. Em
um idioma que só nós conhecemos.
Assinto. Não tenho forças para negar.
Francis retira com cuidado o braço sobre o qual eu me deitava e vira-se
de lado para mim, moldando meu corpo na mesma posição. Ficamos cara a
cara. As pontas dos nossos narizes quase se encostando. Respiração com
respiração. Olho no olho. É quase doloroso não o tocar.
Não.
Não quase.
É doloroso.
A pior tortura não é aquela em que você faz algo que não quer, mas a
que deixa de fazer exatamente o que precisa.
— Você pode estar comigo, ainda que eu não te toque — murmura ele.
Franzo o cenho.
— Como?
— Tendo-me aqui. — Francis toca minha testa. — Em sua mente.
— Não sei se será o suficiente.
— Não será. — Um sorriso melancólico brinca no canto dos seus lábios.
— Estou com você na minha mente o tempo todo, estamos sempre juntos
nela, e não é o suficiente…, mas ajuda. Alivia.
Engulo, desviando meus olhos para sua boca, descendo para seu peito.
— Não sei se consigo.
— Eu posso te ajudar… te ajudar a se concentrar. A me ter em seu
interior.
Gemo de frustração.
— Pelo amor de Deus, não fale sobre você no meu interior. Terei uma
síncope, Francis!
Ele solta uma risada divertida.
— Vou tentar fugir das expressões com duplo sentido.
— Eu agradeço.
Contorço meus dedos, tomando ciência do que exatamente ele me
propôs. Meu rosto arde em chamas.
Como vou me tocar com ele aqui? Não tenho coragem, isso é estranho.
— Angel.
— Hum? — Mantenho meus olhos baixos, envergonhada demais.
Francis aproxima o rosto do meu, seus lábios se esfregando contra a pele
da minha orelha. Não pare. Quero pedir. Não pare. Quero gritar.
— Sou eu. Lembra? — Suas mãos me viram, até que eu fique com as
costas apoiadas em seu peito. Sinto cada músculo rígido contra minha pele.
E é tão proibidamente bom. — Não existe vergonha entre nós dois. Não há
constrangimento no que você quer, no desejo que sente e muito menos em
aliviá-lo. Acredite, eu faço muito isso.
— Em outras garotas? — Arregalo os olhos e tento me virar para socá-
lo, mas a mão de Francis em meu quadril impede que eu me mova.
— Claro que não, boba! — Ele gargalha. — Comigo mesmo.
— Ah…
Suspiro aliviada e um tanto envergonhada. Esse ciúme pelo Francis é
completamente irracional. Ao que me diz respeito, ele pode ficar com quem
quiser. E ainda assim, tenho vontade de arrancar as mãos dele só de
imaginá-lo tocando outra pessoa.
Já pensar nele se tocando é… ao mesmo tempo que invejável, é algo do
qual gostaria de ver. Ele me ajudou a tocá-lo dessa forma meses atrás, mas
tenho certeza de que tem muito mais habilidade no assunto.
— Eu penso em você todas as vezes — ele declara. A revelação me faz
resfolegar. — E não tenho vergonha disso. Não hesito em me dar prazer
com a sua imagem em mente, fantasiando que são suas mãos, sua boca, sua
boceta macia e quente. Então não hesite ao fazer o mesmo. Não há culpa
aqui, Angel. Apenas os anseios do seu corpo.
Acho que perdi uma calcinha. Essa vai para o lixo.
— Não estamos mais juntos — murmuro.
— Eu sei. E isso não vai mudar só por esse momento. Prometi a você
que entenderia essa noite apenas como um momento e sei que amanhã de
manhã tudo volta a ser como era antes.
— Não quero machucar você.
Estou sendo egoísta. Sei o que estou pedindo a ele. Que abra seu coração
por uma noite, só para então fechar o meu para ele no dia seguinte. É um
jogo. Onde um sempre está pronto para a próxima partida e o outro quer
retroceder três casas.
— Eu estou machucado há muito tempo, Angel. E a culpa não é sua.
Então não se preocupe em quebrar meu coração, porque ele já está
estilhaçado.
— O seu combina com o meu, então — murmuro.
— O seu é bom. Não se compara em nada com o meu. Eventualmente
você vai se reconstruir. — Francis deixa um singelo beijo abaixo da minha
orelha e é preciso muito controle para não choramingar quando o toque
cessa cedo demais. Tenho vontade de virar-me e dizer o quanto está
enganado sobre si mesmo. Ainda que tenha errado comigo, eu jamais seria
capaz de dizer que Francis é alguém ruim. Minha boca jamais se atreveria a
proferir palavras nesse sentido.
Chego o corpo para mais perto do dele, sua ereção cavando contra meu
pijama. Escuto o suspirar de Francis e ele segura novamente meu quadril,
impedindo-me de me mover.
— Assim não, Angel. Apenas você. Isso é apenas sobre você.
— Mas eu quero você.
— Eu sei… — respira. — Porra… — Francis mantem-se imóvel por
alguns segundos antes de falar novamente. — Coloque sua perna esquerda
sobre meu quadril.
Fico momentaneamente confusa e Francis toca gentilmente meu joelho,
até chegar ao interior, erguendo minha perna para trás, até que esteja por
cima das suas. As pernas separadas me dão a sensação de exposição e
aguardo a vergonha ou o alarme da minha mente para fechá-las. No entanto,
eles não vêm. Estão tão silenciosos quanto o meu juízo.
O calar dos meus pensamentos é algo que anseio fervorosamente em
mais momentos do que gosto de pensar. E o homem ao meu lado é o único
capaz de interromper o falatório incessante, com o simples encontro de seus
olhos com minha alma. São como dedos me ajudando a desligar um
interruptor enferrujado. Francis conhece o labirinto que existe dentro de
mim. Conhece os becos sem saída, os corredores extensos e as curvas
confusas. Ele não se perde. O sabe de cor, como se o tivesse arquitetado.
— Assim… — Suas mãos firmam minha perna, para que ela fique bem
presa ao seu quadril. Meu sangue corre depressa.
Minha visão é limitada à parede branca e sem adereços, mas as vibrações
de sua voz me dão uma boa dica de como está sua expressão. Torturada e
refreando seus instintos é como eu imagino que esteja. E saber que eu posso
deixá-lo assim apenas com minha presença, derruba qualquer muro que eu
tenha erguido, qualquer proteção.
Por hoje. Só por hoje.
Não quero ser forte.
— Mantenha seu short do pijama. — Francis murmura.
— Mas, eu não preciso… bom, me tocar? — ressinto-me da falta de jeito
em falar. Enquanto Francis diz na minha cara que se toca pensando em
mim, eu mal consigo fazer uma simples pergunta.
— E você vai. Mas talvez seja bom começarmos com sua roupa
atrapalhando o contato direto. Ele pode ser incômodo… demais.
Balanço a cabeça, indignada com o quanto ele pode me conhecer. Com o
quanto pode saber mais sobre mim, do que eu mesma.
— Me dê sua mão — sussurra em meu ouvido e não ouso recusar.
Estendo minha palma e ele segura gentilmente meu pulso, levando até meu
ventre. Minha respiração trava na garganta e olho para baixo. — Eu não
vou tocar em você de nenhuma forma íntima, Angelina. Mas eu quero que
pense que sim. Quero que ao invés dos seus dedos, sinta os meus. Quero
que ao invés da sua pele, imagine a minha em contato com a sua,
percorrendo seu corpo. Feche os olhos, esqueça o presente e o passado.
Foque na minha voz, me deixa te conduzir. Você pode fazer isso?
Com os olhos fechados, respondo com um sorriso divertido.
— Se me disser que estamos no parque dos dinossauros, vou acreditar.
— Não vamos tão longe, nessa cena só quem vai comer você sou eu.
Cubro o rosto com a mão livre, segurando a risada.
— Credo, Francis! Essa foi péssima.
— Fiz você rir, então foi ótima — por mais que a fala ainda seja uma
brincadeira, seu tom de voz não abandona a sensualidade irreverente. —
Feche os olhos, meu anjo.
Comprimo as pálpebras no mesmo instante. Não tenho receio dele, de
nada que faça. Não enquanto estamos apenas nós dois em nosso mundo
particular, onde não existem problemas e não temos razões para não
estarmos juntos. Nesse mundo, podemos ser quem nós quisermos, ignorar
as opiniões alheias, as trapaças, as mágoas… na minha mente, nesse mundo
que desenhamos especificamente para essa noite, somos apenas Angelina e
Francis. Duas pessoas que querem estar juntas e podem fazê-lo.
— Não estamos em seu quarto — ele murmura contra minha orelha. —
Suas costas estão contra um cobertor macio, confortável. Ele está esticado
sobre um campo verde, de grama baixa e aroma molhado. O céu acima de
você está em absoluto breu, exceto pela lua em sua fase cheia, sendo o
único ponto de luz. O vento sopra suave, gentil…
Permito-me emergir nessa realidade criada por ele. Permito que ele
decore nosso mundo e cada parte dele me agrada. Cada parte dele foi
pensada para mim.
— Os pelos dos seus braços se arrepiam com a brisa — Francis leva
minha própria mão até meu braço, passando a ponta dos meus dedos sobre
pele, até que esteja de fato arrepiada. Abro os olhos para ver seus gestos e
Francis os interrompe, murmurando ao meu ouvido com a voz melodiosa.
— Não são seus dedos, não é sua pele que te toca. Desprenda-se da
realidade. Tudo que existe é o que você quer que exista. Feche os olhos.
O tom de comando caminha diretamente para minha intimidade, que se
contrai dolorosamente. Fecho novamente minhas pálpebras, tentando
convencer meu cérebro de que ele não precisa ser lógico o tempo todo. Ele
é bem fácil de se convencer quando se trata do homem às minhas costas.
Agora tente me fazer usar uma colcha que não seja de lã branca, para
ver se o engraçadinho aceita…
— A luz refletida da lua recai sobre nós. Não é uma luz forte, é branda, o
suficiente para enxergarmos nossos contornos. Meu corpo está junto ao seu,
nosso calor se misturando.
Céus, alguém manda esse homem escrever um romance.
— Você sente, Angel? Sente meu corpo junto ao seu? — cantarola em
meu ouvido.
Assinto fracamente.
— Me diga. Me diga o que sente. Eu quero ouvir de você.
Levo um tempo para pensar. É difícil especificar o que sinto. São tantas
coisas que podem ser ditas, coisas demais. Posso dizer que sinto a maciez
do cobertor, a brisa fria, o contato cálido da pele de Francis…
— Não pense. — Ele leva minha mão até meu coração, pressionando
minha palma na região. — Conte o que está aqui. Não na sua mente.
— Perdida — é a primeira palavra que me vem à cabeça. — Me sinto
perdida.
— Então se encontre. — Francis faz minha mão caminhar mais para
baixo, a ponta dos meus dedos roçando os mamilos túrgidos sob a camiseta
fina. Meu tronco arqueia de encontro ao contato, que logo cessa quando ele
repousa minha palma sobre meu estômago. — Me diga como estamos em
nosso mundo. Estamos em silêncio… conversando… nos tocando?
Respiro fundo, emergindo novamente naquela realidade inventada. Eu
sei que é perigoso acreditar nela, porque assim que meus olhos se abrirem,
não existirá; mas é tentador demais ficar onde não preciso pensar, apenas
ser.
— Estamos em silêncio. Olhando o céu — digo.
— Eu acho que devo estar olhando pra você — ele me contraria.
Arqueio a sobrancelha mesmo de olhos fechados.
— Pensei que eu pudesse inventar o que quisesse.
— E pode. Mas acredite, estou olhando para você. Eu estou sempre
olhando para você, Angel.
A promessa carnal dança em sua língua e chega até mim calorosa…
sedutora.
— Então eu me viro para você — dou continuidade à história que
escrevemos em nossa mente. Isso pode ser viciante. A fantasia é sempre
melhor que a realidade.
— E o que mais? — Francis carrega novamente minha mão, dessa vez
passeando meus dedos por minha clavícula.
— Seus olhos estão fixos na minha boca.
Minha coluna forma um arco quando meus dedos passam pelo centro
dos meus seios.
— Talvez porque eu queira te beijar.
— Você quer me beijar — afirmo ansiosa, esperando pelo que ele fará.
Ao contrário do que imaginei, Francis não toma qualquer iniciativa para
aproximar os lábios dos meus. Ao invés disso, meus dedos o fazem. Ele me
faz entreabrir a boca e sinto meu hálito contra minha pele.
— Eu com certeza quero. E o faço. Meus lábios tocam os seus
preguiçosamente, é leve… estou apenas te saboreando.
Arquejo, porque a forma como faz eu me tocar, é tão parecido como se
estivesse de fato me beijando. Meu centro pulsa e sinto meu short tornando-
se molhado com o quanto esse simples gesto me deixa excitada. Eu era
lógica, prática, ligava sexo aos pontos cientificamente comprovado de
prazer. Agora, eu me pego transcendendo sem sequer ser tocada. 
— Eu a viro, deixando suas costas coladas ao meu peito, transferindo
meu beijo para seu pescoço — ele sussurra.
Não preciso sequer pensar, quando dou por mim, meus dedos estão
percorrendo o ponto que liga meu pescoço ao meu ombro. As pontas das
minhas unhas arranham levemente a região, causando uma ardência
estranhamente prazerosa.
— Onde você sente esse toque?
— No pescoço.
— Só no pescoço? — Ele repete o gesto. — Sinta. Sinta o caminho da
sensação. Eu tenho certeza de que ela não se limita ao seu pescoço.
Solto uma risada.
— Quanta confiança.
— Não sou bom em muita coisa, mas sei te dar prazer, Angelina.
Calo a boca instantaneamente.
Não posso negar.
Ele sabe.
Novamente meus dedos raspam em minha garganta, embora desçam até
meu colo, contornando meus seios, sem tocar os mamilos doloridos.
— Preste atenção — murmura. — Por onde o toque caminha? O óbvio é
onde começa, quero saber seu percurso e onde se instala.
— É… — balbucio, sem saber o que falar. — Eu não sei.
— Não pense. Sinta.
Novamente, um toque. Novamente, sem tocar nos pontos sensíveis que
imploram por atenção.
— Não há pressa. Não há certo e errado. Apenas o que sente.
Francis não encosta em mim diretamente em nenhum momento. Bom, ao
menos não além da minha mão, que ele guia habilidosamente.
Quando a ponta do meu indicador roça meu mamilo, entendo o que ele
quis dizer sobre o caminho do toque. Ele não se concentra em meus seios,
não para em meu ventre, ele se instala e perpetua-se no aglomerado de
nervos entre minhas pernas.
— Onde termina, Angel? Não precisa me dizer. Mas pense. Tome
consciência. Aceite e sensação.
Agarro a colcha de lã porque meu outro mamilo recebe atenção. Sinto-o
se esticando e enrugando ao toque.
E por mais que seja eu me tocando, seja minha pele, sinto como se fosse
a de Francis. Desejo tanto que seja a dele, que se torna realidade. No fim
das contas, ele tem razão. Nesse mundo particular, podemos fazer o que
quisermos, sem culpa, arrependimentos, constrangimentos.
Minha mão é guiada para longe dos meus seios e antes que eu possa
protestar, o caminho decrescente que elas tomam prendem minha atenção e
amolecem qualquer músculo do meu corpo, incluindo minha língua. Não
conseguiria dizer nada, nem se eu quisesse.
E não quero. Não quero ouvir minha voz, quero apenas a do homem que
sussurra indecências como um poeta no meu ouvido. Francis seria um
verdadeiro galanteador na Inglaterra do século XIX. Ou como eles
chamariam, um libertino.
Austen ficaria chocada com a narrativa.
— Meus dedos estão caminhando para onde o toque se instalou,
Angelina? — Eu gosto quando me chama de Angel, mas meu nome
completo parece ainda mais sensual e proibido na boca dele. Cada sílaba
dança uma valsa dramática em sua língua.
— Sim…
— Ele terminou aqui? — Francis repousa minha mão um pouco abaixo
do meu umbigo, mas ainda está acima demais do verdadeiro lugar em que
senti os choques finais.
Movo a cabeça negativamente e o escuto sorrir contra minha orelha.
Sinto a necessidade de comprimir minhas coxas para buscar alívio, mas
minha perna sobre a de Francis impede isso.
Normalmente, se fosse me tocar, eu iria direto ao ponto. Tocaria entre o
nervo sensível entre minhas pernas e o estimularia até quase gozar.
Geralmente não me permito ir tão longe, a sensação parece um pouco
assustadora e intensa demais. Não tenho a distração do corpo atlético sobre
meu, ou suas palavras doces cantadas no meu ouvido; sou apenas eu e
minha mente fervilhante. E pensar demais quando se quer apenas ter um
orgasmo, pode ser um empecilho.
Francis abaixa um pouco mais minha mão, a palma repousando contra o
vale ao centro do meu corpo, mas não tocando o necessitado aglomerado de
nervos.
— E agora? — algo gutural escapa dos lábios dele e aperto mais a
colcha.
Nego novamente.
— Bom… — geme. — Então me diz... foi aqui? — Francis coloca a
ponta do meu dedo sobre meu clitóris, ainda sobre o tecido do short de
algodão. Céus… isso é bom.
Assinto, confirmando que chegou ao lugar certo.
— Ótimo... — Ouço uma risada travessa. — Seu corpo sabe o que fazer.
Ele sempre sabe, Angel.
— E agora?
— Agora, eu terei que deixar seus movimentos livres. Você terá apenas
que ouvir minha voz e repetir o que falo.
— Quer dizer obedecer a você?
Francis ri divertido em meu ouvido.
— É. Exatamente isso.
— Você vai adorar, não é?
— Cada segundo, amor.
Mesmo com a prepotência impregnada na voz masculina e grave, e
talvez justamente por causa dela, minha intimidade fica ainda mais úmida.
— Lembre-se: não estamos em seu quarto. Estamos em um campo. E
não são seus dedos a tocando, são os meus. Ouça apenas minha voz,
esqueça todo o resto.
Respiro fundo, tentando manter a atenção em apenas dois pontos do meu
corpo. Em meu ouvido e bom…, no centro das minhas pernas. Estou
receosa. Estou ansiosa. Estou excitada. Francis, você está me arrastando
para dentro do seu mar de confusões e não estou me sentindo mal por me
afogar nessa água.
— Bom, Angel… — Francis aprova quando minha respiração se torna
mais tranquila, embora mais pesada. — Muito bom.
Inspiro o ar pelo nariz, o soltando demoradamente pela boca, como se
estivesse respirando a brisa do campo. É estranho como minha mente pode
me fazer sentir o cheiro de grama molhada.
— Sabe o que sempre encontro depois de te beijar? — ele indaga e nego
com a cabeça. — Você completamente molhada e pronta pra mim. Sempre
encontro sua boceta babando, amor — Francis confidencia como um
segredo íntimo.
Oh, merda…
Os dedos dos meus pés se curvam e os da mão agarram com mais força a
colcha de lã.
— Se eu a beijei no campo, você vai estar pronta pra mim. Quer ver
como tenho razão?
Ele espera uma resposta e apenas assinto com a cabeça.
— Meus dedos com certeza desceriam para explorar suas dobras. Eu
gosto da sensação de você excitada para mim. Teste. — É uma ordem. Não
um pedido. E que Deus me perdoe, mas eu gosto.
E obedeço de bom grado.
Arrasto meus dedos para baixo, tocando os lábios já inchados e sensíveis
da minha intimidade. Francis chamaria de outra coisa, com toda certeza. Ele
tem um apreço por palavras sujas e eu gosto quando elas saem da boca dele.
É estranhamente sensual.
Toco os pequenos lábios, até então um pouco fechados.
— Você está molhada, mas precisa lambuzar seus lábios, Angel. Leve
seu prazer até eles, os separe. Faça como eu faria.
Meu núcleo pulsa dolorosamente e o instinto é comprimir minhas pernas
para cessar a reação. Estou aberta, exposta, e é instigante estar assim,
enquanto ele está completamente vestido.
É íntimo, exige a confiança que apenas entrego ao nadador às minhas
costas. O resquício de confiança que ele não perdeu.
Obedeço ao que pede e insiro a ponta do meu dedo em minha entrada,
recolhendo o líquido que já escapa, levando-o até em cima, até quase
chegar ao clitóris.
— Pare! — ele comanda. — Ainda não. Eu não gosto de apressar as
coisas. Esse é o último ponto que eu toco. O prazer precisa ser conquistado.
Penso em mandá-lo à merda, mas não tenho força suficiente para algo
sair da minha boca, não quando todo meu corpo está zunindo por libertação.
Estou quente, ofegante, a testa começando a transpirar… mais um pouco
e não conseguirei me manter em silêncio também.
— Sou um homem comprometido com seu prazer, Angelina. E um que
não gosta de negligenciar parte alguma. Desde que você lidou com todos os
toques, já saboreei sua boceta sem dar a devida atenção aos seus seios?
— É… n-não. — Engulo a saliva e com a outra mão cubro meu seio com
a palma, soluçando ao roçar meu mamilo esticado e incrivelmente túrgido.
— Gosto dos seus mamilos, Angel. Eles ficam apontando para mim,
implorando por meus dedos, minha boca, minha língua. Gosto de apertá-
los, de vê-los se esticar.
Seguro a carne macia entre meus dedos e pressiono brandamente,
gemendo.
— Molhe seus dedos.
Franzo o cenho e Francis pega minha mão, colocando meus dedos sobre
meus lábios.
— Abra a boca — obedeço. — Chupe até que estejam úmidos.
Sugo meus dedos até senti-los suficientemente molhados. Assinto para
Francis e ele os tira da minha boca.
— Ótimo… toque sob a blusa. Eu não gosto de tecido me atrapalhando.
Bufo uma risada falhada, mas faço o que ele diz. Seguir seus comandos
agora está bom demais para que eu ligue para o ego inflado desse canalha.
Quando minha pele molhada encontra o vale dos meus seios, gemo sem
inibição.
— Isso, amor. É exatamente o que faço. Não consigo ficar inerte quando
toco seus seios. Principalmente se os tiver entre meus lábios. É onde estão
agora. Sente como minha boca está molhada contra seu mamilo? Sente
como o aperto? Sente minha língua girando e girando, sugando você?
Não são muitas as vezes que agradeço o fato de conseguir sair da
realidade com facilidade e me perder em fantasias, mas nesse momento, é
exatamente o que acontece. Agradeço o fato de conseguir vislumbrar
perfeitamente o que Francis diz, porque não sinto meus dedos molhados,
sinto sua boca ao redor do meu seio, sugando, provando.
Aperto mais firmemente, como sei que ele faz. Droga, eu lembro-me tão
perfeitamente… me toque.
— Toque simultâneo. Não apenas um lugar. Não pare com nenhum dos
movimentos.
Percebo que havia parado os dedos entre minhas pernas e tento
comandar meu corpo a fazer manobras diferentes em cada uma das mãos.
Me atrapalho no começo, mas encontro um caminho ao final, estimulando
meus seios e tocando meus lábios íntimos.
— Sabe o que mais amo em tudo isso, Angel? — Francis ofega em meu
ouvido e há tanto desejo incontido em sua voz, que isso acende mais um
pavio da bomba prestes a explodir. É bom; é bom saber que o deixo
exatamente assim, sedento. Também é bom estar privando-o de se aliviar,
porque é uma forma de vingança.
Sim, é minha forma de vingança, embora eu saiba que depois disso,
também estarei um pouco mais dilacerada. De desejo, de necessidade… de
saudade.
— Não sei… — comento apenas porque gosto de ouvi-lo. Não deveria,
mas gosto de ouvir. Quero saber o que ele sente, quero que me diga, quero
que me faça acreditar, ao menos hoje, que sou tudo que ele precisa e que ele
é exatamente o mesmo para mim.
— Gosto de estar dentro de você. Não importa como, se com meus
dedos indo fundo e curvados em seu interior, ou meu pau completamente
enterrado ou com minha língua provando sua boceta deliciosa. Eu apenas
gosto de estar em você. Fundo, o mais fundo que posso, tomando-a para
mim, fazendo-a minha por esses minutos.
Eu sei o que ele quer que eu faça.
— Eu nunca… é… — Balanço a cabeça.
— Nunca colocou seus dedos?
— Uhum...
— E vai continuar não fazendo. Porque são meus dedos aí, não os seus.
Não importa se não sabe como você faz, porque sabe exatamente como eu
faço.
— Você tem um ponto. — Sorrio em puro desespero.
— Não quero ter um ponto. Quero meus dedos dentro da sua boceta.
Agora.
Arqueio minha coluna. Céus, eu sou tão avessa a ordens no meu dia a
dia, é irracional gostar tanto delas na cama. Ou no campo. Já não sei onde
estou, e na verdade não me importo.
Deslizo os dedos até minha entrada, empurrando o indicador para dentro,
que se arrasta sem dificuldade, tamanha minha umidade. A sinto pingando
em minha cama e me pergunto o quanto Francis riria da minha cara se eu
me levantasse para buscar um pano.
— Entre e saia. Vá e volte. Um pouco mais a cada vez.
Ele instrui. Desisto do pano. Ele não vai ser suficiente.
— Curve ao final. Você sabe onde eu toco. Sabe até onde vou. Sinta
como é apertada e macia… sinta meus dedos te tomando, minha Angel.
Minha… não sou dele. Mas gostaria de poder ser.
— Meus dedos são mais grossos que os seus. Coloque mais um.
Jogo o pescoço para trás quando introduzo o segundo dedo, o levando
todo para dentro de mim. Minha nossa… é… bom. Bom demais.
— Eu não meto meus dedos em você com tanto carinho, amor… — ele
profana ao meu ouvido. — Eu faço forte, fundo… eu gosto de te foder,
Angelina.
Minhas paredes mastigam meus dedos. Porra…
— Você é um canalha, prepotente e desprezível — xingo em meio ao
gemido agoniado que me escapa.
— Sou… tudo isso e um pouco mais. Agora cala a boca e goza.
— E-eu… é… demais — ofego, exaspero, resfolego, choro… é intenso.
E bom. E maravilhoso.
— Sim, é demais... e por isso é tão bom — ele geme junto comigo. —
Angelina… toque seu clitóris.
E quando obedeço a essa última ordem, estilhaço-me em mil pedaços
diferentes, minhas paredes se agarrando aos meus dedos, os molhando e
lágrimas se acumulam em meus olhos tamanha a intensidade do prazer.
Francis enterra o rosto em meu pescoço e não me importo que ele esteja
escutando meus gemidos ao ouvido ou que escute o bombear violento do
meu coração.
Porque nada, nada poderia ser mais perfeito e certo do que estar com ele.
Do que sentir prazer ao lado dele.
Independente do quanto saiamos machucados amanhã, vale a pena.
Ele me fez apreciar o fundo do precipício e ter vontade de escalar a
montanha só para me atirar novamente. E eu deveria o desprezar por isso.
Mas não o faço.
Por esta noite, não o faço.
 

 
 
— Que porra tá acontecendo aqui?!
Abro os olhos de supetão, sentindo como se meu corpo tivesse caído na
cama depois de despencar de um precipício.
Sabe, tipo aquela cena de Thor Ragnarok, que o Doctor Strange faz o
Loki despencar por minutos? Tenho a mesma sensação. Meu coração falta
arrombar a caixa torácica quando encaro Donna na porta do quarto, com as
mãos na cintura e um sorriso depravado na cara. Olho para o lado,
encontrando uma Angelina completamente paralisada, encarando minha
irmã como se visse o Bin Laden em pessoa. Ou pior, como se visse alguém
bagunçando seu armário.
Abaixo os olhos para nossa posição e tenho certeza que a frase “não é o
que está pensando” não vai funcionar. Mesmo que não seja mesmo o que
Donna está pensando.
Estou bem ciente da promessa que fiz a Angelina e que assim que o sol
entrasse pela janela, ela voltaria ao estado: não quero te ver nem pintado de
ouro. Eu só não esperava que ela fosse me chutar para fora da cama,
literalmente a pontapé.
Em um momento Angelina estava petrificada, sequer se escutava sua
respiração, e no segundo seguinte, fincou o pé na minha bunda, o que me
ocasionou uma queda digna de pena.
— Caralho! — xingo quando meu joelho direito bate diretamente no
chão. Por pouco, muito pouco, meu nariz não tem o mesmo destino. Bom,
eu me lembro de ter desvio de septo, talvez se eu arrebentasse a cara no
piso, resolvesse o problema…
— Eu… é… eu, Donna, quer dizer… seu irmão. — Angelina se
embaraça inteira, pouco se fodendo para o fato de ter me atirado da cama. A
encaro com incredulidade e sua consciência parece bater à porta, porque
seus olhos caem para mim, mais especificamente para minha posição de
quatro apoios. — Jesus…
Angelina cobre a boca com as mãos.
— Relaxa, você não pecou tanto assim. Não é Jesus, sou só eu. — Bufo,
ficando de pé, sentindo a pontada no joelho. Essa porra vai ficar roxa e isso
vai gerar piadas vindas do Ethan para o resto da merda da minha vida.
— Ah, então é o diabo? — Donna se mete e me viro para ela puto da
vida.
— Isso lá é jeito de acordar os outros? — reclamo. — Eu quase tive um
piripaque.
— Seu coração é forte — Minha irmã intercala seu olhar avaliativo entre
mim e Angelina. — Principalmente depois de uma noite regada a sexo
selvagem.
Angelina tosse. Tosse o pulmão, porque ela se engasga verdadeiramente.
Eu quase sinto pena, mas meu joelho dói o suficiente para que eu me
lembre que ela me jogou da cama.
— Nós não transamos, Donna. — Explico, mesmo sabendo que não vai
adiantar de nada.
— Ah, sei… vai me dizer que só dormiram de conchinha?
— Cala a boca! — Angelina grita na minha direção e meus olhos saltam.
— Mas eu nem abri…
— E vai continuar assim — Angel levanta da cama, indo para a porta
sem se importar com meu olhar e muito menos com o de Donna. Ela abre a
porta e me encara. Um convite nem um pouco sútil. — Tá na sua hora.
Pisco.
— É… eu posso ir ao banheiro antes? — Olho para minha roupa e ela
está toda amarrotada. Além disso, meio que preciso fazer xixi.
— Não. Vai embora.
— Nossa… não fez ela gozar? — Don provoca.
Abro e fecho a boca, sem saber como agir ou o que falar. Eu sabia que
seria constrangedor na manhã seguinte, mas não que seria assim. Que ela
me trataria como um estranho. Estou me sentindo usado. Mas eu me deixei
ser usado e gostei bastante, então nada a reclamar.
— O dia amanheceu, tudo volta ao normal. — A resposta é para Donna,
mas seu olhar está em mim. Ergo os braços.
— Fiz uma promessa, vou cumpri-la. — Caminho até a porta, parando
apenas para dizer: — Pelo que me consta, você ainda me odeia. Mas para
constar para você, isso não será pra sempre. Promete me perdoar?
Repito a pergunta que faço sempre que posso.
— Não.
E ela dá a mesma resposta de sempre.
— Um dia eu arranco um sim dessa sua boca gostosa.
Pisco, deixando-a vermelha para trás. Só não sei se de vergonha, desejo
ou raiva.
Talvez os três.
Eu tenho certeza que Angelina também está doida pra sair correndo
desse quarto, mas minha irmã não vai deixar até ter arrancado todas as
informações dela. Eu quase sinto pena.
Se ela não tivesse me jogado da cama, então bem feito.
Um sorriso vingativo estica minha boca.
Sou um merda, mas um merda com o joelho doendo pra caralho.
 

 
— Roupa de ontem… — Ethan comenta malicioso quando passo pela
porta de casa. — Afogou o ganso? 
Ergo o dedo do meio.
— Caralho, irmão, quem foi que te pegou? Tá até mancando.
— Ethan — rosno para colocar o pé no primeiro degrau. — Não enche
meu saco, que meu dia já começou todo errado.
— Eu tô vendo… quer ajuda pra subir? — Ele tosse uma risada.
— Quero só deitar na minha cama e esquecer que o mundo existe.
— Não dá.
— Por que não?
— Porque a Blue entrou aqui há meia hora, quase derrubando a porta
querendo falar com você. Ela está no seu quarto.
— Ah, inferno! — choramingo, subindo os degraus com um xingamento
por vez. O que foi que eu fiz pro universo?
— Boa sorte! — Ethan grita da sala e o mando se foder.
Abro a porta do quarto já suspirando, esperando o falatório incansável.
Eu nem sei o que fiz de errado pra ela tá aqui, mas sei que vou ouvir
esporro. Assim que vejo os cabelos castanhos, a fala dela chega em mim na
velocidade de um raio.
— Eu estou apaixonada pela sua irmã.
Paro com os pés no batente, abrindo a boca. Olho para os lados, para
trás, belisco meu braço, apenas para ter certeza de que estou de fato
acordado.
— Como é?
Eu preciso ouvir isso de novo para ter certeza que é verdade. Eu só não
sei se quero que seja. Não consigo decidir se é uma boa ideia a Blue se
apaixonar por Donna.
— Estou apaixonada pela sua irmã.
Normalmente, Blue reviraria os orbes verdes por eu tê-la feito repetir
algo. Mas há tanta incerteza, medo e insegurança na voz dela, que imagino
não haver espaço para sarcasmo e grosseria.
Isso me preocupa.
E é exatamente por isso que não sei se gosto da ideia de Blue se
apaixonando pela minha irmã. Donna é ótima, claro que sim. Mas ela é
desapegada. Donna não se prende, não se importa quando o assunto é
relacionamento. Blue pode ser chamada de megera, de abelha rainha e de
coisas mais que não são nada bonitas, mas eu sei o que mora ali dentro do
coração dela. Ela é carente de afeto. Mesmo que demonstre isso de um jeito
torto, Blue sempre está buscando amizade, proximidade e de certa forma,
amor.
Donna quebraria o que restou do coração dela e não sei se eu, Blue ou
mais alguém vai gostar do que sobrar depois. Eu sei como a decepção pode
nos transformar em um pária.
Respiro fundo, pensando no que falar. A conselheira, no geral, é ela e
não eu. Não que sejamos bons nisso, mas por algum tempo, só pudemos
contar um com o outro. Meio que achamos um mecanismo para fazer dar
certo.
Estendo a mão.
— Vem cá, linda. — Ofereço a ela um sorriso gentil, sem julgamento.
Blue pega na minha mão e a puxo para um abraço, depositando um beijo
nos cabelos brilhosos. — Você bebeu?
Faço graça e ela me dá uma cotovelada na costela.
— É sério, sua doida, você tá mesmo apaixonada pela minha irmã? Por
acaso alguma líder de torcida meteu o pé na sua cabeça durante os ensaios?
— Francis Hopkins, o único pé que vai se meter em algo é o meu, e é no
seu pênis.
Rio alto, afastando-a para ver seus olhos. Há menos sombras e nuances
de medo nele, então presumo que agora possamos falar sem que ela comece
a chorar. Blue não gosta de chorar na frente de ninguém e eu a entendo.
— Falando sério agora…
— Você consegue?
— Consigo. Não mude de assunto. Por que você acha que está
apaixonada por Donna?
Blue abre a boca para responder, mas a fecha em seguida, com uma
expressão surpresa e confusa.
— Eu… eu não sei. — Ela faz beicinho.  
— Merda — praguejo.
— Por que “merda”? Eu deveria saber? Quer dizer que não estou
apaixonada então? — suspira aliviada. — Ah, graças a Deus, eu achei que
fosse me foder, mas já que…
— Blue, controla a língua, cacete! — Seguro em seus ombros e ela me
fuzila com o olhar. — Nada de cara feia, que pra mim isso é fome. E se é
fome, vou encher seu estômago até você ficar igual a um baiacu.
Ela comprime os lábios para não rir.
— Ótimo, agora podemos conversar. — Balanço a cabeça. — Ao
contrário do que pensa, o fato de não saber explicar, é justamente o que me
faz acreditar que está apaixonada. Quando gostamos de alguém unicamente
por carência, nós costumamos pensar nos motivos pelos quais vale a pena
amar aquela pessoa, nós até inventamos qualidades para reafirmar esse
sentimento; nós queremos estar apaixonados, então necessariamente
precisamos de razões para convencer o coração. Mas quando gostamos de
verdade de alguém, nós sequer nos damos conta de qual momento aquela
pessoa deixou de ser apenas uma companhia agradável, para ser alguém que
você não consegue ficar longe. Eu não sei em que momento me apaixonei
por Angelina. Não sei explicar sequer o quanto a amo. Percebe como está
fodida?
Ela faz biquinho de choro.
— Aham… e agora eu queria ter pedido conselhos à Cassidy, porque ela
é menos confusa. Ela só me mandaria transar com a Donna e pronto.
Meus olhos saltam.
— E você acha que está apaixonada, mas nem transou com ela ainda?
— Não…
— Ah, você tá muito fodida. — Rio sem humor. — Só não tanto quanto
eu, que estou incrivelmente, irremediavelmente fodido.
— Para de falar a palavra fodido, isso está me estressando!
— Não, o que está te estressando é gostar da minha irmã caçula… —
Sorrio de lado, cruzando os braços. — A propósito, como irmão mais velho
devo perguntar, quais são suas intenções?
Blue fecha as mãos.
— Não brinque comigo hoje.
— Estou tentando tornar as coisas mais fáceis, linda. Porque se eu
começar a falar todos os contras desse sentimento, vou apenas te deixar pra
baixo.
Blue encara os próprios pés, talvez para esconder a insegurança.
— Você acha que… quer dizer, acha que Donna pode não gostar de
mim… desse jeito?
— Blue. — Ergo seu queixo. — Qualquer pessoa que tenha permissão
para te conhecer a fundo, a verdadeira você, pode se apaixonar pelo que tem
aqui. — Toco próximo ao seu coração. — Não fiz isso porque meu coração
já tem dona, mas que eu saiba, minha irmã não entregou o amor dela para
ninguém até hoje.
— E você acha que ela é capaz?
— Claro. Só não sei se essa é a intenção dela. Donna tem um controle
sobre a própria vida que eu invejo. Se ela não quer sentir, não sente. Se não
quer fazer, então não faz. E se ela decidir que não é uma boa se apaixonar
agora, então convencerá o próprio coração de que não sente nada.
Blue assente, suspirando.
— Acho que é melhor me afastar então…
— Não disse isso. Não se prive de tentar. Apenas não se entregue de
cara, porque ela pode não estar lá para te segurar.
Como Angelina ao me jogar no chão hoje. Ainda estou chateado com
isso…
— Por incrível que pareça, você tem razão — a voz dela recupera um
pouco da confiança e sarcasmo.
— De nada, ingrata. — Reviro os olhos, sendo puxado para um abraço.
— Amo você, linda. Sabe disso, né?
Blue me aperta.
— Eu sei. A recíproca é verdadeira.
— Por que não nos apaixonamos um pelo outro? — Suspiro. — Seria
mais fácil.
— Porque eu gosto da mesma coisa que você — ela gargalha e é
impossível me manter sério.
— Você tem um ótimo ponto.
 

 
Encaro a porta de madeira enegrecida como se estivesse prestes a passar
pelo portal do submundo, com moedas de ouro sobre os olhos, sendo
guiado pelo barqueiro até o inferno.
Balanço a cabeça.
Talvez eu deva assistir a menos filmes de mitologia grega.
A placa prateada com nome gravado parece querer me engolir.
Dra. Brice. Psicóloga da universidade.
Donna me levou até uma psicóloga no ano passado, mas não persisti nas
sessões. Talvez se eu consultar a do campus, me sinta mais obrigado a vir.
Embora agora, com a mão sobre a maçaneta há malditos cinco minutos,
eu comece a achar a ideia péssima. Não sei se conversar vai ajudar. Tenho
medo de tentar e não resolver. Porque se terapia não solucionar meus
problemas, o que vai? Não sei quais são as outras opções. Remédios para
alguém que usou drogas não é algo que os médicos vão querer arriscar.
Alterar minha rotina também é algo impensável agora. Embora a vontade
de largar a medicina seja um pensamento que me assola todos os dias.
Se ao menos eu tivesse um motivo para ser médico… uma causa pela
qual lutar…
Claro, salvamos vidas. Mas ainda que pareça monstruoso dizer isso,
preciso de algo mais. Algo pelo qual valha a pena me afundar em livros e
artigos. Alguma coisa que me faça ter sede por exercer essa profissão, por
ser bom nela.
Não acredito que vá acontecer, no entanto.
Reunindo coragem, bato à porta, esperando que respondam depressa,
para que eu não tenha tempo de fugir. É isso ou irei voltar para minha casa e
nunca mais pensar a respeito disso.
— Entre! — gritam do outro lado.
Giro a maçaneta no automático, ignorando as batidas irregulares do meu
coração. Isso aqui definitivamente não me deixa confortável. Uma sensação
esquisita assola a boca do meu estômago. Sentar num divã, com uma pessoa
te encarando e querendo saber seus segredos mais íntimos… não é possível
alguém gostar dessa porra. Não sei como Angelina consegue fazer terapia
há anos.
Talvez por isso ela seja mais bem resolvida que você, babaca — meu
subconsciente me lembra. Eu o detesto, verdadeiramente.
— Senhor Hopkins… — a mulher parece surpresa em me ver. Ela ajeita
os óculos de grau sobre o nariz pontudo, sorrindo cordialmente. Os cabelos
com fios brancos estão presos em um coque que eu diria ser o retrato do que
imagino se parecer uma psicóloga.
— A senhora me conhece — digo com uma careta.
Ótimo. Já deve ter ouvido maravilhas sobre mim…
— Conheço todos os alunos que me foram designados, senhor Hopkins.
Recebemos uma ficha de vocês.
— Não são alunos demais pra lembrar?
— Não sou responsável por todo o campus. Temos muitos psicólogos
aqui.
— Então também temos muitos alunos doidos.
A mulher sorri, evidenciando algumas rugas de idade.
— Psicólogos não são apenas para pessoas doidas — Ela faz aspas. —
Além de ser um termo não muito correto.
Suspiro, assentindo.
— Desculpe… estou nervoso.
— Eu imagino. — Ajeita seus óculos. — Geralmente eu vou atrás dos
alunos, dificilmente eles vêm até mim pedindo ajuda. É um bom começo
que você o tenha feito.
Ah, merda, agora ela vai achar que vou ser assíduo e comprometido com
essa porra. Mais alguém para decepcionar...
— Sente-se. A menos que prefira conversar em pé — ela indica a
poltrona de couro.
Respiro fundo, me jogando na poltrona, com as mãos sobre os braços de
couro. Uno as pernas, mantendo uma postura reta. Meus ombros doem pela
pressão, parece até que estou em alguma reunião com o comandante do
exército americano.
— Relaxe, Francis. Posso te chamar pelo primeiro nome?
— Claro.
— Então relaxe, Francis. Não precisa vestir a armadura para conversar
comigo. Na verdade, sinta-se em casa.
— Eu costumo andar nu em casa — digo no nervosismo, só para tentar
uma piada e aliviar o clima, mas isso só me deixa mais constrangido.
A senhora Brice não parece se importar, porque apenas solta uma risada.
— Você usa a graça para que não prestem atenção ao que sente — ela
analisa.
— Geralmente uso a grosseria, então hoje estou num dia bom.
— Dá no mesmo. No fim das contas, você esconde o que sente, com
medo de que as pessoas não se importem ou que considerem de certa forma
ridículo. Estou certa?
— A senhora é psicóloga ou vidente?
— Sou experiente.
— Hum… então já lidou muito com pessoas que só fazem uma merda
atrás da outra? Porque é meu caso.
— Eu já fui essa pessoa, então acredite, entendo o que diz.
— Se quiser falar sobre isso, sabe como é, sou todo ouvidos — faço
graça novamente. Por acaso eu engoli um palhaço?
— Acho que prefiro falar dos seus problemas, Francis — ela joga contra
mim.
— Eu poderia dizer o mesmo para a senhora. Alguém já te disse que é
estranho te contar a vida quando nem te conhece?
— Mais vezes do que poderia imaginar. — Ela se recosta contra o sofá,
jogando-me um olhar compreensivo. — Mas se nos sentíssemos
verdadeiramente confortáveis em falar nossos segredos para alguém que
conhecemos, então você não precisaria estar aqui. O fato de não me
conhecer e eu não estar inserida na sua vida, é exatamente o que me faz ser
a pessoa ideal para te escutar. Não estou influenciada pela situação e não
tenho amizade ou inimizade com você. Sou neutra. E por isso você está
conseguindo falar mais do que provavelmente fala com seu melhor amigo.
Acertei?
Pisco surpreso para a mulher de meia idade, constatando que seus
poucos cabelos brancos são de boas horas de trabalho.
— A senhora é boa — murmuro, recostando-me mais relaxadamente na
poltrona.
Talvez, só talvez, não seja tão ruim assim.
 

 
 
— Vou perguntar uma vez só. — A treinadora Hart nos avalia com
atenção e desconfiança. — Usaram alguma coisa que possa apitar em roxo
gritante nesse teste?
Ela ergue o potinho onde devemos fazer xixi.
Balançamos a cabeça em sincronia. Nenhuma de nós seria maluca de
usar drogas; Hart nos comeria vivas.
— Ótimo. Então me provem isso. — Pego o potinho que ela estende. —
Caso tenham mentido, nem se deem ao trabalho de fazer o teste. Apenas
peguem suas coisas nos armários e caiam fora da minha frente. Ao contrário
de alguns técnicos liberais, eu não abro exceções.
Engulo, encarando minhas mãos. Sei que ela está falando do caso de
Francis. Ela não entende. Não foi culpa dele.
Fazemos fila para usar o banheiro e vou rápido na minha vez, ansiosa
por lavar minhas mãos. Odeio fazer esses testes, são uma verdadeira dor na
bunda. Entrego o pote para a treinadora, franzindo o cenho. Tem algo de
muito esquisito em entregar um pote cheio do seu xixi pra alguém. Muito
mesmo.
Só não é pior que fazer o exame de sangue. Ainda estou um pouco
branca do que fiz há cinco minutos. Não gosto que me toquem, me furarem
é outro nível de insatisfação.
— O resultado sai daqui três dias. É o prazo que têm para me contar
algo.
Reviro os olhos, cansada dessas ameaças. Se alguém tivesse usado
droga, já teria saído correndo no primeiro discurso.
Saio do vestiário e vou direto para a quadra de basquete, esperando
Jayden. Combinei de almoçar com ele hoje. Não faz muito sentido eu ir já
que não estou com apetite nenhum, mas uma vez que inseri essa pauta na
minha agenda do dia, tirá-la seria bagunçar todo o resto.
Ele sai da quadra passando a mão nos cabelos suados, sorrindo ao me
ver.
— Oi, Princesa.
— Oi. — Desisti de convencê-lo a me chamar pelo nome há muito
tempo. — Como foi o treino?
— Uma merda — ele desdenha com as mãos. — Josh reclamou o tempo
todo, Ethan não parava de falar de mulher e eu não acertei uma porra de
cesta.
— Pelo menos não te fizeram urinar em potinhos. — Dou de ombros.
— Fizeram testes hoje?
— Sim.
— Com medo de ser pega na criminalidade, Angie? — Jayden joga o
ombro contra mim e faço careta.
— Você tá suado! — reclamo. — E não, não estou. O máximo que vão
encontrar são doses demais de cafeína e milkshake.
— Que devassa — ele ri de mim e ergo o dedo do meio.
Isso meio que aumenta sua risada.
Não era o objetivo.
— Você tá muito engraçadinho.
— Eu sei, obrigado — Jay ergue o queixo, exibindo-se.
O que eu fiz para merecer tantos caras de egos inflados na minha vida?
 

 
Minha saliva fica pastosa na boca enquanto olho para o prato de batatas
fritas sobre a mesa. Não queria comer nada, mas Jayden não me deu
ouvidos e pediu ainda assim.
— Come ao menos um pouco.
— Não estou com fome.
— Você está em algum tipo de dieta maluca de mulher?
Nego com a cabeça.
— Só não estou com fome. — Suspiro. — E pra você saber, não chuto
sua canela por esse sexismo unicamente porque estou com preguiça.
— Foi mal... — Ele coça a cabeça sem graça. — Mas isso é estranho,
você costuma comer bem. Bem demais.
Bato a mão na mesa, o assustando.
— Não estou com fome. Ponto final. Sem dieta, sem estranheza. Só não
quero comer.
Jayden pisca algumas vezes, abrindo e fechando a boca. Ele não diz
nada, no entanto. Volto a encarar meu prato, embora dessa vez irritada o
suficiente para atirar as malditas batatas no lixo.
— Angie, tá tudo bem?
— Por que não estaria? — retruco.
— Olha, eu sou seu amigo, tá? Não falei por mal, só me preocupei de
você não almoçar.
Os olhos chocolates me fitam com preocupação e certo receio. Jayden é
fácil de ler, ou ao menos agora é para mim. Não que isso seja uma ofensa,
mas ele não é cheio de facetas e nuances escondidas. É aberto. Se a maioria
das pessoas fossem assim, seria bem mais fácil para mim.
— Desculpe… — suspiro, esfregando o rosto. — Eu só estou muito
estressada esses dias.
— Tudo bem. Mas eu sei algo que pode melhorar seu dia. — Ele sorri
até as covinhas se aprofundarem em suas bochechas.
— O quê? — desconfio.
— Vai passar Orgulho e Preconceito no cinema aqui perto. O que acha?
Espero a onda de animação e excitação que deveria acompanhar essa
notícia, mas tudo que sinto é um cansaço ao pensar em sair. Minhas pernas
estão me matando, as veias parecem entupidas.
— Eh… eu não sei, estou um pouco cansada.
Jayden franze o cenho, me analisando mais tempo do que acho
confortável. Ele parece preocupado. Mas não quero que esteja. Não tem
porquê estar.
— Tudo bem. Só não fique sozinha hoje, ok? Faça uma noite das
meninas com Donna, ou seja lá o que vocês gostam de fazer.
— Por que diz isso?
— Porque é bom ter companhia em dias cansativos. E eu sei que Donna
é a ideal pra levantar o astral.
Assinto, sendo obrigada a concordar.
— Sempre que precisar desabafar, estou aqui. Certo? — Seus olhos de
cachorrinho carente me encaram com carinho e eu sinto segurança. Pensei
que os acontecimentos dos meses passados fossem abalar a confiança que
Jayden me incutiu, mas isso não mudou. Meu coração realmente confia
nele.
Talvez seja porque em todos os meus momentos difíceis desde que me
mudei, ele foi um amigo fiel.
— Eu sei. Menos que diga respeito ao Francis, claro — provoco.
— Errado — Jayden balança a cabeça, bebendo um gole do refrigerante
antes de falar. — Não gosto dele, mas gosto de você. Não me importo de
ouvir você falar. Se é sobre o que quer conversar, então meus ouvidos
estarão aqui.
Inclino o rosto. Talvez eu esteja enganada sobre Jayden ser sempre claro.
Ele ainda pode me surpreender.
— Você é um bom amigo, Jay.
As bochechas dele ficam rubras e solto uma risadinha.
— Você acha graça da minha timidez, né? É uma péssima amiga.
— Posso não ser boa com sarcasmo, mas até eu peguei esse. Eu sou uma
ótima amiga. Se fosse ruim, você não me chamaria pra almoçar todo dia.
Jayden estala a língua, pegando as batatas que não comi e quase as
enfiando todas na boca.
Gargalho porque ele definitivamente parece um esquilo agora.
Só não digo isso porque provavelmente ele cuspiria todo o conteúdo da
sua boca em mim enquanto ri como uma hiena de desenho animado.
 

 
Jayden e eu vamos para o jardim do campus, onde nossa amizade
começou meses atrás, logo após eu ter visto Francis com a Blue. Os
acontecimentos importantes da minha vida parecem se resumir sempre a um
jardim.
— As flores estão quase mortas — comento enquanto me sento no banco
de ferro, analisando as tulipas ressecadas.
— O inverno é impiedoso com elas — Jay as encara melancólico.
— Não gosto do inverno. São roupas demais.
— Eu gosto. Me lembra dos natais e os presentes embaixo da árvore pela
manhã. — Ele solta uma risada que me parece triste. — Duvido que vá
haver algum presente por um bom tempo.
Viro-me para ele, notando a tensão em seus ombros. Jayden parece tão
cansado, que não sei como está conseguindo manter-se em pé.
— Você quer conversar sobre o que houve? — Encolho o ombro. — Até
ano passado vocês não pareciam ter problemas financeiros.
Jayden suspira e desvia o olhar do meu, observando as flores. Ele une as
mãos, os cotovelos apoiados sobre os joelhos.
— Nós não tínhamos — explica. — Eu nunca te disse isso, Angelina,
mas… — Ele engole algumas vezes antes de falar. É estranho ver ações
comedidas vindas do meu amigo. A impulsividade é algo que temos em
comum, nós falamos sem freio. Meu estômago se aperta para o que ele fala
em seguida. — Eu tenho uma doença hereditária, que veio da minha mãe…
epilepsia.
Pisco.
— O-o quê? — ofego, balançando a cabeça. — V-você nunca disse,
Jayden. Eu não sabia.
Contorço as mãos em meu colo e as encaro com vergonha. Que espécie
de amiga eu fui para ele? Que tipo de pessoa eu tenho sido, em lidar apenas
com os meus problemas e ignorar o de todos à minha volta? Era minha
obrigação saber disso, já conversei com Jayden tempo suficiente para saber
tudo da sua vida. Ele sabe tudo da minha.
— Ei — Jayden joga o ombro contra o meu. — Tá tudo bem, Angie. A
maioria das pessoas não sabe porque eu não conto. Além disso, a minha é
bem controlada, não sofri incidentes na frente de ninguém da faculdade.
— Por isso os seus remédios?
Ele assente com a cabeça baixa.
— Minha mãe também tem. Mas a dela é um caso mais grave. — Jay
interrompe sua fala, a voz falhando ao final. Nunca o vi tão… vulnerável. É
difícil acreditar que um jogador de basquete desse tamanho possa parecer
tão frágil quanto um bebê de colo. — O tratamento e os remédios são caros;
há novos experimentos no mercado, mas a conta do hospital está atingindo
níveis estratosféricos.
— Eu sinto muito. — Sinto-me uma tonta de dizer isso, mas é a única
coisa que posso dizer. E é irritante, porque eu odeio quando me dizem isso.
Não ajuda em nada.
— Não sinta. Não é culpa sua. Não é culpa de ninguém, na verdade. —
Ele balança a cabeça, limpando a lágrima que desce no seu rosto, tentando
escondê-la de mim. Ergo a mão em sua direção e mesmo incerta, toco seu
braço. Ele me encara surpreso, seu olhar caindo para meu toque. Também
faço isso. Nunca o havia tocado deliberadamente para dar conforto antes.
Jay sorri para mim com os olhos. Eles têm um brilho de chocolate derretido.
Traz a sensação do primeiro dia do verão.
Assinto, dando apoio para ele me contar o que precisa.
— Meu pai não me contou como estava nossa situação financeira e
continuou mandando dinheiro para a faculdade de Isabela. Eu fiquei
sabendo no final do semestre passado. Fui passar o fim de semana na casa
dos meus pais e presenciei uma discussão.
Ouço com atenção. Não falo nada, ele não precisa me escutar. Só precisa
falar.
— Eu não podia contar a ninguém. Isabela se sentiria mal de aumentar
os gastos se ficasse sabendo. Eu quase fiquei maluco, procurando um jeito
de ajudar pelo menos nas despesas dela. Foi justamente na época que te
tratei daquela forma. — Ele faz uma careta. — Acredite, Angie, não estou
justificando. Eu fui um merda com você e me arrependo disso todos os dias.
— Ele inspira o ar, voltando a fitar minha mão em seu braço. — Meu pai
está pensando em deixar minha mãe. Está pensando em abandoná-la, no
momento que ela mais precisa dele.
A voz de Jayden passa de triste para furiosa.
— Ele não vai ajudar com as despesas? — pergunto com perplexidade.
Que tipo de monstro faria algo assim?
— Vai. Mas não é só de dinheiro que minha mãe precisa. Ela se sente
culpada pela doença e por precisar gastar tanto, mas ela não deveria se
sentir assim. E meu pai deveria fazê-la se sentir bem, feliz e não
abandonada. — Jayden esfrega o rosto. Ele está vermelho. De raiva, de dor,
talvez dos dois ao mesmo tempo.
— Seu pai é um otário — digo sem remorso. A mãe dele não fez nada
para merecer esse tratamento. Vovó Angelina está ao lado do meu avô,
mesmo tendo sofrido com ele. Eu não entendo a parte que ela o perdoou,
mas definitivamente entendo porque cuida dele. O pai do Jayden deveria
fazer o mesmo pela esposa.
— Eu sei. Mas ele não era, sabe? A doença da minha mãe vem
desgastando o relacionamento há um tempo.
— Ela não tem culpa, Jayden! — Talvez esteja sendo hipócrita pelo que
disse sobre meu avô para vovó Angelina. Mas ele escolheu acabar com o
próprio casamento, a mãe de Jay não.
— Eu sei que não. Eu sei, Angie. Mas o fato de ela não ter culpa, não
muda que a relação deles esfriou. Meu pai parece querer se afastar, como se
ela fosse morrer a qualquer momento e assim fosse doer menos.
— Se ele se afastar dela agora e ela morrer, ele nunca vai se perdoar.
Jayden me fita de sobrancelhas comprimidas.
— Não gosto de pensar em perder a minha mãe. E também não gosto de
pensar que posso vir a passar por tudo isso no futuro. Principalmente
porque não estou tomando meus remédios.
— Espera… o quê? — Puxo o braço de Jayden até que ele esteja de
frente para mim. — Como assim você não está tomando os remédios?
— Eu não preciso tomar sempre, sabe… — Ele dá de ombros.
— Uma ova que não tem. Eu tinha uma colega de turma epiléptica na
escola e ela sempre precisava tomar os remédios.
— Cada caso é diferente, Angie.
— Jayden, eu vejo Isabela correndo atrás de você todo o tempo para te
levar remédio, o que quer dizer que você precisa tomar. — O encaro
taciturna, decidida a não deixá-lo ir até me explicar direito essa situação. —
Por que não está tomando os remédios? E me fale a verdade.
As bochechas de Jayden ficam vermelhas.
— Estou vendendo para conseguir dinheiro — ele sussurra baixo. Eu vou
matá-lo. — Alguns traficantes pagam bem.
Balanço a cabeça incrédula. Eu não acredito que esse animal está
vendendo os remédios para traficantes. Meu sangue ferve.
— Você é um tapado, burro, inconsequente, irresponsável… — a cada
palavra que falo, é um tapa que dou nesse garoto desprovido de amor à
vida. — Se você não se matar, eu te mato, Jayden Clifford!
A raiva sobe em mim com tanta volúpia, que quase subo no banco para
bater nele o mais forte que consigo. Vou enfiar juízo em sua cabeça nem
que seja na base da cacetada.
— Angie… calma… ai, cacete! — ele esfrega os braços, tentando fugir
dos meus golpes.
— Que ódio de você! Seu burro, burro, burro! — respiro ofegante,
tirando os cabelos do meu rosto. Tento me recompor, mas ainda tenho muita
vontade de socar a cara dele. — Para quem você está vendendo isso? —
rosno.
— Ah, não... — Ele ri nervosamente. — Isso eu não vou te falar mesmo,
você vai criar confusão, Angelina. Acredite em mim, você não quer mexer
com esse cara.
— Jayden… — Respiro fundo. Acho que preciso incluir algumas
sessões de controle da raiva na minha terapia ou vou acabar deixando
alguém roxo. — Você que não quer mexer comigo nesse estado. Me conta
agora pra quem está vendendo seus remédios.
Ele arregala os olhos e cruzo os braços.
— Você pode me dizer ou eu posso sair por aí procurando todos os
traficantes do campus para perguntar — jogo a cartada final e Jayden se
levanta.
— Você nem pense em se colocar em risco por minha causa, Angelina
Eastwood.
— Você não está em posição de usar meu sobrenome. Quem está brava
aqui sou eu, Clifford! — Também me levanto.
Nos encaramos cada qual em sua teimosia e começo a perceber que
Jayden e eu temos coisas demais em comum. Coisas irritantes em comum.
Isso é um saco.
— Me fala — insisto.
Ele se senta de novo no banco, praguejando todos os palavrões que
conhece na nossa língua.
— Vance — sussurra.
— O quê? — franzo o cenho, aproximando meu ouvido dele.
— Vance — diz mais alto. — Estou vendendo para o Vance.
Abro a boca, me jogando no banco. Minha pressão atinge o nível do
chão.
Ofego.
— Eu não acredito que esse cara tá fazendo isso.
— Ele não está fazendo nada além de me pagar pelos remédios. Na
verdade, se não fosse ele, eu não teria conseguido arcar com tudo nos
últimos meses.
Aponto o dedo na cara dele.
— Você vai parar com isso.
— Não dá.
— Se você continuar, eu sou capaz de ir até a polícia. Eu prefiro você
preso do que morto.
— Você não faria isso. — Ele ri com escárnio.
Levanto para olhar fundo nos olhos do meu amigo.
— Olha pra mim e diz que eu não teria coragem. Olha, Jayden! — Ele
me fita com as sobrancelhas unidas. — Não vou deixar você se destruir só
para conseguir dinheiro. Você tem amigos. Amigos de verdade, não o
Vance. Nós vamos te ajudar.
— Eu não quero ajuda.
— Não foi uma pergunta. Foi apenas um aviso.
— Angie…
— Cala a porra da boca! Você não vai mais vender seus remédios e não
vai mais se envolver com o Vance.
Ele esfrega o rosto com raiva.
— Com uma condição — Jayden fica sério.
— Qual?
— Você não vai contar pra ninguém o que eu te disse hoje. Nem sobre eu
não tomar os remédios e nem sobre eu os vender para o Vance.
Abro a boca para protestar, mas Jayden me olha como quem não aceitará
uma recusa.
Suspiro, assentindo a contragosto.
— Ok… eu não vou dizer para ninguém.
— Promete? Não quero você se envolvendo com meus problemas.
— Prometo.
As promessas gostam mesmo de complicar minha vida. E os homens à
minha volta adoram que eu as faça.
— Obrigado, Angie. — Jay sorri minimamente. — De verdade, obrigado
por ter aceitado ser minha amiga de novo.
Meu coração aperta. Eu quem deveria agradecer por ele ainda ser meu
amigo, mesmo que eu tenha sido tão desinteressada em seus assuntos e
focada apenas nos meus. Isso sempre foi difícil para mim. Sair da minha
bolha e pensar fora do que está na minha cabeça. Não é que eu não me
importe com as pessoas, é só que minha mente está sempre tão ocupada de
pensamentos, que não sobra muito espaço para todo o resto. O que não
impede de me deixar mal sempre que eu vejo que estou perdendo as coisas
importantes das pessoas que gosto.
— Abraço de três segundos? — peço. Pela primeira vez, eu peço.
— É pra já — ele sorri até as covinhas se aprofundarem e me abraça,
contando junto comigo até três. Quando se afasta, quase peço para que não
o faça.
 
 
Três chamadas perdidas.
Da minha mãe.
Há meses não falo com ela. Quase três para ser exata.
Engulo, forçando um sentimento amargo garganta abaixo.
Clico em ligar, colocando o celular na orelha com as mãos tremendo. E o
faço apenas porque tenho receio de que seja algo relacionado ao meu avô.
Vovó Angelina não me ligou com mais notícias e isso não é um bom sinal.
Tenho medo de que esteja me escondendo alguma coisa.
— Angelina — A voz da minha mãe me faz gelar.
— Mãe.
— Como você está?
Solto uma lufada de ar.
— O que você quer? — pergunto ao invés de responder ao
questionamento retórico. Ela não se interessa em saber como estou. Ou pior,
creio que ela prefira que eu não esteja bem.
— Por que imagina que preciso de algo? Sou sua mãe, nada mais
natural que conversemos.
— Savannah, por que não encerra o teatro de uma vez? Não nos falamos
há meses e você não se preocupou em saber se eu estava viva. Apenas diga
o que quer e vamos poupar tempo a nós duas.
Espero pacientemente pelo silêncio que perdura por algum tempo.
— Seu pai… ele quer falar com você. — Franzo o cenho. Ela está
hesitosa e isso não faz seu feitio. Seja lá o que vem a seguir, não vou gostar.
— Ele insiste em saber o porquê de não estarmos nos falando e por que
você não aceitou ficar aqui em casa no natal…
Novamente silêncio. Não digo nada.
— Você entende o que quero dizer, não é? — Ela ri e não imagino do
que sinta graça em toda essa situação.
— Não. Nem mesmo perto, Savannah.
Escuto uma lufada de ar.
— Eu preciso que minta, Angelina. É óbvio.
Arqueio a sobrancelha.
— Desculpe. Apesar de ser sua filha, esse não é um hábito que me foi
herdado.
— Escuta — o tom de voz dela se eleva, mas antes de prosseguir, ela o
corrige. — Escute… Eu errei com seu pai anos atrás e não quero que isso
destrua nosso casamento.
Não deveria, mas meu coração contrai quando ela diz que errou com
meu pai. Apenas com ele? E sobre mim? Sobre ter me enganado fingindo
que era meu pai naquelas ligações, quando na verdade, era Francis? E
sobre ficar com outro homem no meu quarto?
Engulo o nó.
— Deveria ter pensado nisso antes de o trair.
— Você é muito ingênua! — há desprezo na voz comedida. — Pessoas
erram, isso acontece.
— Traição não é um erro, Savannah. É uma escolha. Uma que você faz
constantemente.
Não me esqueci da conversa que ouvi entre ela e a mãe do Francis.
Minha mãe não me engana por um segundo sequer ao dizer que isso
aconteceu apenas no passado. Ela ainda faz isso.
— Se disser algo ao seu pai, saiba que será responsável pela destruição
de um casamento de mais de vinte anos. É isso que quer? Destruir minha
vida? A do seu pai? É tão egoísta assim, Angelina?!
— Egoísta? — Arfo incrédula. — Você quer falar sobre egoísmo
comigo? Quer falar de egoísmo com a pessoa que você fez de tudo para
tornar a vida impossível?
— Faça-me o favor, querida — desdenha. — Não se vitimize. Sua vida é
difícil porque você é doente. E não me culpe por isso, porque na minha
família nunca teve alguém como você.
Meu estômago revira. Quero vomitar. Eu sempre tenho vontade de
vomitar ao falar com ela. Essa mulher me odeia. Me odeia e eu nunca vou
ser capaz de entender como uma mãe pode odiar uma filha. Nunca vou
entender como ela pode ser capaz de dizer essas coisas para a pessoa que
saiu do seu ventre. Talvez não faça diferença. Talvez essa mágica que todos
dizem sobre a maternidade seja uma grande mentira. O amor não nasce com
uma mãe, ele é construído, e como qualquer construção, exige vontade e
empenho, coisa que Savannah nunca teve em relação a mim.
Ela nunca se esforçou para tentar me entender, para saber como eu me
sentia. Ela só se preocupava em como eu pareceria para suas amigas e
nunca em como eu me sentia cada vez que eu tinha que aceitar ser beijada,
abraçada e tocada por pessoas que não davam a mínima para mim. Ela
nunca se importou com o quanto eu chorava depois de suas reuniões e
coquetéis infindáveis, regados a músicas e conversas altas. Ela nunca se
importou com o quanto eu me coçava e me movia com as roupas de tecidos
bordados e cheios de adereços que ela me obrigava a usar. Savannah nunca
sequer notou quando eu passei três dias sem comer porque tudo que ela
comprou naqueles malditos dias foram massas repletas de molhos, molhos
esses que nunca comi e ela nunca se deu conta.
Eu sei tudo que minha mãe não sabe.
Eu sei tudo que ela deixou de lado.
Sei tudo que sinto falta até hoje.
Sei tudo que eu queria que ela tivesse sido para mim, tudo que eu
esperava de uma mãe, tudo que li em livros e nunca vivenciei.
Sei das conversas que não tivemos e que teriam sido mais importantes do
que os presentes caros. Sei das vezes que precisei de proteção, mas fui
ferida por aquela que deveria me resguardar. Sei das vezes que busquei nela
forças e encontrei apenas desamparo. Sei a mãe que não tive e da inimiga
que convivi no quarto ao lado.
Esperei o dia que ela me olharia com brilho nos olhos e me veria como
alguém além de sua própria extensão. Ou alguém que apenas veio ao
mundo para tornar sua vida uma vergonha. Esperei o dia que ela não me
visse como uma garota problemática, e sim como alguém simplesmente
diferente. Esperei o dia que minha mãe me amasse.
Nunca aconteceu, no entanto. Acho que cansei de esperar. Acho que não
tenho tanta fé como costumava ter. Ou apenas descobri que ter fé nas
pessoas é sinônimo de se machucar. Um machucado que essas mesmas
pessoas não se importam de rasgar um pouco mais a cada vez.
Aperto o celular com força.
— Tchau, Savannah.
Desligo antes que ela perceba o efeito que suas palavras causam em
mim.
Eu já me sentia cansada. Exausta para ser sincera, mas além do meu
corpo implorar por sono, agora minha mente também implora por ele.
Deito em posição fetal, abraçando minhas próprias pernas, cobrindo-me
até a cabeça.
Respire, Angelina. Ela não pode mais te ferir. Tudo que ela podia apagar
no seu coração, ela já apagou. Deixe tudo assim. Apagado.
Concentre-se na respiração.
Meu colchão afunda quando Donna deita-se do meu lado. Ela ouviu
tudo. Savannah não é de falar baixo ao telefone. Don não me abraça, mas
fica ali. É mais do que já tive da minha mãe.
— Amo você, exatamente como é. Principalmente por como você é. Eu
não mudaria nada. Nem seus defeitos. Que se foda quem não consegue ver
o quanto você é incrível. Azar dessa bruxa. Você é minha pessoa, baby. É a
Serena da minha Blair, a Cristina da minha Meredith, o Marshal do meu
Ted, o Scooby do meu Salsicha.
Com essa última, eu gargalho.
— Você acabou de me chamar de cachorro medroso?
— Baby, eu me chamei de maconheiro sonso, então apenas aceite.
Tiro o cobertor do rosto, encarando minha amiga. Sorrio para ela. Ela
sorri para mim. E eu choro. E os olhos dela marejam.
Choramos, porque sabemos que mesmo que ela tente preencher o vazio,
o que meu coração espera é o calor de mãe. E, infelizmente, nem a melhor
das amigas pode tapar esse buraco. A pessoa que pode, apenas o deixa mais
fundo e sombrio. Donna conhece essa dor tão bem quanto eu. Aprendemos
a sobreviver apesar dela. O que com certeza não anula o fato de sentirmos.
Ignorar não é o mesmo que superar.
 

 
 
Penduro a Canon no pescoço, me assustando quando meus dedos tocam
minha pele. Estou frio. Gelado. Tudo porque vou me encontrar com
Angelina. Eu planejei esse encontro a semana toda. Cada detalhe.
E agora parece que tá tudo uma merda.
Calma, porra! — Dou tapas na minha cara. — Não seja a merda de um
covarde.
Encaro o espelho, tentando me convencer de que isso será bom. É difícil
relaxar quando essa pode ser minha última oportunidade de consertar tudo
com ela.
Estou tentando. Juro que estou.
Não usei mais drogas.
Estou procurando ajuda.
Converso com meu pai quase todos os dias, dividindo meus problemas e
minhas frustrações.
Estou indo a todas as aulas, todos os treinos e ainda tento passar um
tempo com meus amigos.
No fim, se ela não quiser mais porra nenhuma comigo, pelo menos vou
me tornar alguém… melhor? Não sei se essa é a palavra certa. Mas alguma
coisa boa tem que sair disso. Não é possível que vou ser fodido a vida toda.
Apenas um recado para a vida: não é um desafio. Não precisa
comprovar que pode me foder, eu sei bem que pode.
Se essa história de que colhemos o que plantamos for real, eu devo
receber algo de bom no fim de tudo.
Não plantei um canavial de paus pra levar tanto no meu rabo.
— Francis! — Ethan me chama do andar de baixo. — Angelina tá aqui
embaixo!
— O quê? — Franzo o cenho. Eu disse que iria buscá-la…
— Ela tá aqui embaixo, cara. Desça quando terminar de passar seus
cremes faciais!
— Vai se foder, Ethan!
— É exatamente isso que estou indo fazer, então desce logo.
— Tá, porra! Tô indo.
Balanço a cabeça. Por que caralhos a Angelina não me deixou buscá-la?
Oh, mulher difícil.
Que eu amo. Mas não deixa de ser uma dorzinha na bunda.
Depois de recolher a carteira e chave do carro, desço as escadas
correndo, encontrando Angelina parada no centro da sala, como uma
verdadeira estátua. Ela tem as mãos atrás das costas, coluna ereta e queixo
erguido.
— Preparada para encontrar com o Primeiro Ministro? — provoco só
para ver a expressão estoica se desfazer e transformar-se em irritação crua.
Eu adoro ver minha garota nervosinha. Gosto da Angel doce e carinhosa,
mas essa aqui, me faz virar os olhos.
— Não. — Ela sorri maldosa. — Preparada para encontrar com o
primeiro babaca.
— Ai — Levo a mão ao coração. — Isso quase me machucou.
— Quase? — indaga decepcionada.
— Quase — reafirmo, dando passos em sua direção. Observo sua
garganta mover-se demoradamente e meu sangue circula mais rápido.
Permito-me analisar sua roupa, uma calça jeans escura e moletom branco na
parte de cima. Ela não se arrumou para um encontro, essa é a mensagem
clara. Uma pena para ela que eu a ache sexy até vestida de Mike Wazowski.
— Eu já me preparei psicologicamente para tudo que você disser. Eu sei
que vai tentar o impossível para me afastar, e eu vou te mostrar como isso
não vai funcionar.
— Eu posso ordenar que você se afaste — ela diz petulante.
— Então ordene — desafio. — O faça agora.
Encaro seus olhos, compenetrado.
Vamos, Angelina. Me mostre que você também não consegue. Não posso
ser o único a sentir essa atração, essa conexão. Me mostre que não estou
sozinho nessa.
Ela não diz nada, como eu imaginava.
— Creio que isso quer dizer que vamos ao encontro? — Cruzo os braços
à frente do corpo. Estou usando uma máscara de prepotência, só para
disfarçar que meu estômago está se revirando e meu coração acelerado de
puro pânico. Não posso estragar tudo hoje.
— Não sou uma má perdedora. O encontro está de pé. — Ela ergue o
queixo.
Solto uma risada.
— Ok, vamos fingir que está indo apenas pela aposta.
— E por que mais seria?
Dou mais um passo em sua direção. Ela segura meu olhar, sem desviar.
Inspiro seu cheiro. E como sempre, tenho o ímpeto de sugar o aroma
diretamente da sua pele. Não faço isso agora. Apenas saio da sala, indo para
a garagem, entrando no meu carro.
Angelina vai para o lado do passageiro, mas não entra, apenas se escora
na janela aberta.
— Eu vim com o meu. — Sorri vitoriosa.
— Gastou gasolina atoa. Vamos no meu.
— Não! — Ela cruza os braços, petulante.
— Eu tenho o dia todo, Angel. — Jogo os ombros, fingindo arrumar o
cabelo no retrovisor. — Nós podemos passar o dia nessa garagem nos
encarando ou fazer o passeio que programei. Nas duas situações, vou estar
com você, então por mim tudo bem.
O rosto dela fica vermelho. Eu acho que é raiva.
Mas seja lá o que for, consigo que ela entre no carro. Angelina puxa
minha porta com força e a pancada é tão alta que meus olhos se fecham e o
carro estremece. Seguro a risada.
Ela acha mesmo que ligo pra isso?
— Desculpa — Angel sussurra apressada. Franzo o cenho. — Eu… eu
não devia ter batido a porta do seu carro. Isso não foi certo.
— Tudo bem. — Dou de ombros, dando partida.
— Não ficou com raiva? — pergunta surpresa.
— Na verdade, não.
— Bato mais forte da próxima — ela resmunga baixinho e gargalho,
saindo da garagem.
— Não se desgaste tentando me irritar. Eu amo suas pirraças, amor. —
Pisco para ela.
— Vamos ver… — o desafio em sua voz é latente e prevejo um jogo
divertido para nós dois.
Qualquer coisa é melhor que a frieza em que nos encontrávamos.
Eu suporto tudo, menos a indiferença da minha garota.
 

 
— O que é isso? — Angelina pisca perplexa para o mini carro amarelo
de três rodas.
— Isso se chama GoCar. — Mordo o lábio para a expressão confusa e
ao mesmo tempo curiosa no rosto dela.
— A gente vai andar nessa coisa? — Seu dedo aponta para o carro como
se eu estivesse mandando-a subir em uma carroça de uma só roda, guiada
por cavalos selvagens.
— É a ideia.
— E é seguro?
— Segundo o site, sim.
— E desde quando eu confio em sites? — Angelina cruza os braços,
balançando a cabeça. — Isso nem tem teto, Francis!
— Essa é a graça, Angel. Nada vai atrapalhar nossa vista da cidade.
— É, nem atrapalhar caso algum carro queira passar por cima de nós.
— Eu tenho certeza de que os motoristas vão ver esse carro em amarelo
canário há quilômetros de distância.
— Não sei não…
Seu corpo balança para frente e para trás, insegura. Me aproximo com
cautela, não a tocando. Angelina ergue os olhos para mim e vejo que não
está simplesmente fazendo pirraça. Ela está com medo.
— Angel — a aviso com os olhos que pegarei sua mão. Enlaço nossos
dedos e algo parece se consertar em meu coração com sua permissão. —
Alguma vez a coloquei em perigo?
— Nunca.
— Então confie em mim, isso só chega a 35 milhas por hora.
Os olhos castanhos voltam a analisar o pequeno carro e a deixo fiscalizar
toda a lataria, decidindo se vai entrar ou não. O veículo é pequeno, de
apenas dois lugares, três rodas e sem teto. Foi feito para o turismo, tendo
um guia eletrônico embutido que relata acontecimentos históricos dos
pontos turísticos da cidade.
Percebi o quanto estava enclausurado na minha rotina doentia, quando vi
que nunca sequer tinha ouvido falar sobre isso. Vai fazer três anos que moro
aqui e não conheço a porra da cidade.
— Ok. — Ela ergue os braços em rendição. — Mas se eu morrer, a culpa
é sua.
Angelina declara antes de abrir a porta e sentar no lado do passageiro.
— Eu assumo a responsabilidade, fique tranquila. — Sento ao seu lado,
estendendo para ela o capacete igualmente de cor amarela. Angelina
arregala os olhos. É preciso muita força para não cair na gargalhada.
— Você disse que era seguro!
— Um carro não deixa de ter airbag só porque é seguro. Do mesmo jeito
que você precisa usar esse capacete. Além disso, tem uma câmera em cima
dele, vai filmar todo o trajeto.
— Eu vou parecer uma palhaça andando com isso na cabeça.
— Uma palhaça segura, veja o lado positivo. Além disso, você anda
comigo, já é meio caminho andado para o circo.
Vislumbro um quase sorriso de canto e isso me dá um gás a mais para
prosseguir com o passeio. Minha meta é arrancar uma risada até o fim do
dia. É isso ou não me chamo Francis Hopkins.
Ligo o carro e noto a perna de Angelina começar a tremer ao lado.
Espero que ela confie mais na minha direção do que está demonstrando; até
parece que está sob os cuidados de Donna. Se fosse minha irmã no meu
lugar, eu exigiria vir enrolado em plástico bolha.
Acelero o pequeno carro, ligando o sistema de som e GPS. Eu espero
que isso realmente explique sobre a história dos pontos turísticos, porque se
depender da minha expertise no assunto, Angelina vai ter um péssimo
passeio. 
Faço um agradecimento interno ao escutar a coisa começar a falar com
aquela voz robótica e esquisita. Angelina pula no banco e me encara
enfezada.
— Que foi?! — Só não ergo as mãos porque acho que ela me mataria se
eu soltasse o volante.
— Por que não avisou que essa coisa falava?
— Eu não sabia que você ia se assustar.
— Bom, eu me assustei — novamente, talvez pela quarta vez desde que
saímos, os braços dela se cruzam sobre o peito.
Isso não é irritação, Angelina está se protegendo, criando uma barreira
física entre nós dois. A mental eu sei que ela mantém erguida o tempo todo,
por isso a agressividade incontida na voz, a petulância e os olhares
enviesados.
Ela vai ter que fazer melhor se quiser me convencer de que não sente
nada por mim. Ou sequer que realmente pretende se manter distante. Porque
esses pequenos gestos me mostram exatamente o contrário.
— Posso saber onde vamos? — ela muda de assunto.
— Você vai ver.
— Odeio quando não me diz as coisas.
— Achei que me odiasse de qualquer jeito. — Arqueio a sobrancelha.
— Bom… sim — gagueja. — Mas um pouco mais quando não me fala
as coisas.
Comprimo os lábios.
Essa mulher me ama, só não quer admitir.
Dirijo até Crissy Field, uma área de recreação pública ao leste da Golden
Gate, com praias e espaços verdes para piqueniques e com alguns
restaurantes. É possível ver a ponte e caminhar pelas calçadas na orla da
praia, o que imagino ser um passeio agradável para hoje. O sol não está
forte e o clima não está tão frio quanto nos outros dias. A neblina típica de
São Francisco não deu trégua, mas é algo que passei a amar nessa cidade.
Depois de um tempo você se acostuma.
Angelina mantém-se em silêncio por todo o percurso e não deixo de
notar seu olhar curioso. Ela também presta atenção no que a voz mecânica
diz sobre cada ponto turístico que passamos. Seu gosto por coisas antigas
permanece, eu imagino. Não sou tão fã de história como ela, mas se isso a
deixar com esse semblante tranquilo e até… feliz… bom, então eu posso
fazer disso meu passatempo pessoal.
Estaciono em um local próximo à área verde e abro a porta de Angelina,
ganhando um olhar possesso. Faço apenas para irritá-la e ela me agracia
com seus biquinhos fofos.
Estendo a mão para ajudá-la a descer do carro e a mulher falta me
atropelar para sair da sua frente, recusando minha mão. Um casal de idosos
me encara com certa pena e dou de ombros, rindo da situação. É isso ou
começar a chorar em posição fetal.
Sigo a garota loira que sai a passadas apressadas na minha frente,
forçando a perna para acompanhar seu ritmo.
— Não é uma competição, sabia? — ofego.
— Como atleta você deveria ter mais fôlego.
— E como uma boa perdedora, deveria ser mais gentil.
— Não me faça te xingar.
— Vá em frente, eu amo a sua boca suja.
Angelina interrompe os passos abruptamente, metendo o dedo no meu
peito.
— Não tenho boca suja, Francis Hopkins.
Seus olhos brilham em furor. Sorrio orgulhoso.
— Amo quando fica nervosa também.
— Para de dizer o que ama em mim, inferno! — ela grunhe.
— Eu paro se você parar de dizer o que odeia em mim.
Estendo o mindinho para uma promessa, mas Angelina o encara como
quem o quer virar do avesso. Escondo a mão rapidamente.
Ela sai bufando e pisando firme novamente, mas dessa vez eu não tento
acompanhá-la.
— Sabe, a visão que tenho aqui de trás é ainda melhor! — grito e
Angelina vira-se para mim confusa. Quando percebe que encaro sua bunda,
ela tenta sem sucesso escondê-la com as mãos. É grande demais, amor.
Nem tente.
— Para de olhar pra minha bunda!
— Foi mal, mas não vai rolar não. — Estalo a língua, continuando a
admirar o balançar de seus quadris.
Angelina fica vermelha, desacelerando os passos para andar ao meu
lado.
— Pervertido! — Ela belisca meu braço.
— Obrigado.
— Isso não foi um elogio, só pra constar.
— Você gosta que eu admire sua bunda, admita — jogo meu quadril
contra o dela e Angelina dá um passo para o lado um pouco sem equilíbrio.
Seguro em seus ombros rapidamente. Comprimo as sobrancelhas.  Não foi
forte o bastante para ela se desequilibrar.
— Gosto nada — sussurra, parecendo confusa com seu corpo. Decido
parar de irritá-la e apenas curtir a caminhada pela calçada, vendo o quebrar
das ondas suaves. Tenho que ter equilíbrio: irritação, paz, irritação, paz.
Deu certo no passado, espero que funcione agora também.
Dá para ver a ponte avermelhada de onde estamos, embora um pouco
mais distante. A neblina não está tão densa, mas ainda cobre parte dos
ápices do ponto turístico. Alguns surfistas se arriscam nas correntes revoltas
e devo confessar que não me animo de pegar essas ondas. A baía é repleta
de pedregulhos e um erro pequeno pode custar seu corpo sendo jogado
violentamente contra eles. Angelina se escora nas cordas espessas que
dividem a pista da praia e observa a água um tanto melancólica. Às vezes
olhar o mar me faz sentir saudades de Cape May. São Francisco é linda,
mas há algo naquela pequena cidade litorânea, que me tira completamente o
fôlego, ao mesmo tempo que abranda os batimentos do meu coração. Lá é
nosso lar, sempre será.
O vento sopra os cabelos dourados para trás, incontroláveis e livres. Ergo
a câmera até meus olhos, os afunilando para enxergar o melhor ângulo pela
lente.
Os dois primeiros cliques são feitos sem que Angelina perceba minha
ação; já no terceiro, ela olha diretamente para a câmera, tomando ciência
que está sendo fotografada. No quarto, sou agraciado com um sorriso
discreto, mas suficiente para fazer meu coração esmurrar meu peito.
Linda. Porra, como é linda. 
Angel estende a mão na minha direção e a entrego a câmera. Ela foca em
pontos estranhos para tirar as fotografias e eventualmente tira uma minha
quando acha que não percebo. É engraçado como ela pensa que ainda pode
me enganar.
Depois de andarmos por alguns minutos e comprar um picolé para mim,
já que Angelina não quis comer, seguimos para Fort Point, uma construção
localizada abaixo da Golden Gate Bright.
A visão do lugar é extraordinária e me faz sentir como se estivesse em
clássicos filmes de guerra americanos.
O guia local explica que o forte foi construído para proteger a baía de
São Francisco de ataques marítimos, sendo um símbolo histórico da
marinha americana, já que serviu de base militar durante a segunda guerra
mundial. Ao que parece, por pouco não foi destruído com a construção da
ponte.
— Olha as correntes — Angel murmura admirada para as espessas e
antigas correntes da ponte, completamente enferrujadas pela ação do mar. É
impressionante como ainda parecem tão resistentes, ainda que o tempo as
tenham castigado. Isso me lembra o que sinto pela garota ao meu lado. O
tempo está castigando essa relação mais do que ela merece, mas ainda a
sinto dentro de mim como correntes inquebráveis.
Entramos pelo pátio central do forte, rodeado por três andares de arcos
de alvenaria, com um farol no topo. Há escadas para se visitar os andares,
uma de ferro na parte externa, que parece muito mais segura, e outra de
concreto do lado de dentro, rústica para dizer o mínimo.
Angelina e eu subimos por essa última, visitando os quartos que
serviram de aposentos a soldados, até os cômodos do quartel general. A
energia é um pouco pesada, talvez pela violência que o lugar já presenciou.
— Caralho, tem canhões aqui. — Sorrio que nem criança, indo vê-los de
perto. Angel me segue igualmente encantada, ela parece estar em um
parque de diversões.
Tiro foto de tudo que poderia se imaginar, a arquitetura do lugar é de
encher os olhos de qualquer fotógrafo. As paredes parecem contar histórias
sussurradas por soldados há muito mortos. Mesmo os locais que aparentam
estar caindo aos pedaços, são bonitos o suficiente para belas fotografias. Na
verdade, são mais incríveis do que os mais conservados. Há algo mágico
em coisas quebradas, mas ainda de pé. Significa que tiveram história, que
tiveram momentos ruins, mas apesar deles, ainda continuaram ali. É algo
bom para se lembrar quando sua mente está prestes a se partir. Que apesar
da dor, do tempo e das dificuldades, ainda dá para se manter de pé.
— Eu deveria ter trazido um caderninho — Angelina pragueja.
— Não se preocupe, duvido que vá esquecer algo que foi dito aqui. —
Sorrio. — Além disso, estou tirando foto de tudo.
— Tire uma nossa — ela pede em um tom de voz baixo.
A olho surpreso, mas não a deixo perceber. Viro a lente da câmera para
nós, tirando algumas fotos e esperando que pelo menos uma fique boa o
bastante para que eu revele. Se tem algo que aprendi, é que eu nunca sei
quando será meu último momento com Angelina, então preciso tratar todos
como se fosse.
Nós seguimos o grupo de turistas até o topo do forte, onde se tem vista
do arco que foi construído na ponte para preservar a construção de tijolos.
O vento sopra impiedoso no alto, e tanto eu quanto Angelina começamos a
bater queixo. Não viemos preparados o bastante para esse frio. Eu me
esqueço o quanto essa cidade venta impiedosamente.
Nós descemos quando nossos lábios começam a ficar arroxeados e
voltamos para o carro conversando animados sobre o lugar. A verdade, é
que não parecemos um casal que se separou há pouco tempo e sim amigos
que têm muito em comum. Essa sempre foi a melhor parte de estar com
Angelina, poder conversar sobre tantas coisas e nunca ficar sem assunto ou
em um silêncio constrangedor. Eu passaria horas falando com ela sobre uma
pedra encontrada no meio do caminho e isso nunca se tornaria chato.
Volto a ligar o minicarro para visitarmos outros pontos turísticos antes
que fique tarde demais. Angelina arranca a Canon do meu pescoço para
fazer seus próprios relatos pessoais do passeio.
Tiro os olhos da estrada por alguns segundos para reparar os pontos em
que ela foca para fotografar. Não é no óbvio; ela procura por pontos até
considerados feios e estranhos. Sorrio quando ela vira a câmera na minha
direção. Realmente, coisas feias e estranhas.
— Tá rindo do quê? — ela indaga curiosa.
— Nada, é que eu estava reparando em que locais você gosta de capturar
e cheguei à conclusão que são lugares meio feios… e aí você virou a
câmera para mim e tive certeza.
— Ah… — ela tenta esconder o sorriso. Angelina parece satisfeita com
isso. Ela adora ferir meu ego. — Eu não acho você feio, sabe…
Quase piso no freio.
Isso foi um elogio?
— E o que você acha de mim? — Balanço as sobrancelhas
sugestivamente.
— Não força, Francis! — ela bufa, revirando os olhos.
— Não custava tentar.
Gargalho alto, mesmo com as caretas que ela me lança. Já não são tão
aborrecidas quanto no começo do nosso passeio.
Está dando certo. Não é?
 

 
É engraçado que mesmo que este seja um meio turístico bem usado na
cidade e haja diversos carrinhos amarelos como o nosso espalhados pelas
ruas, as pessoas ainda nos encaram curiosas e algumas até riem. Eu não me
importo com nenhum dos olhares e Angelina parece sequer notá-los. Ela
está alheia, prestando atenção nas informações que a voz robótica tagarela
sem parar. Eu tenho certeza que quando chegar em casa, ela vai escrever o
máximo de coisas que se lembrar em um caderno.
Em determinado momento, Angelina passa a mão no olho, o coçando
pela terceira vez.
— Você parece cansada, quer comer alguma coisa?
— Não… — Angel suspira. — Não estou com fome. Na verdade, não
tenho tido fome nos últimos tempos.
Comprimo as sobrancelhas.
— Isso não é comum.
— Eu sei. Acho que são muitas coisas acontecendo. Meu apetite sumiu.
Aperto o maxilar. Essa merda é culpa minha. Tudo desde que a deixei
em Cape May, virou uma bagunça; fiz a vida dela mudar em um ritmo
rápido demais, que mesmo para alguém que aprecia mudanças, seria
estressante.
— Coisas acontecendo, além do que houve com a gente? — não posso
presumir que a vida dela gire em torno de mim.
— Sim — suspira, parecendo se decidir em me contar ou não. — Meu
avô está muito doente.
Comprimo as sobrancelhas.
— Eu não sabia… sinto muito, Angie. Sei que eram próximos quando
ele ainda morava em Cape May.
— É… — A escuto engolir com dificuldade.
— É muito grave?
— Leucemia — ela sussurra com a voz embargada e percebo que não é a
melhor hora para aprofundar nesse assunto. Angie parece abalada o bastante
para que eu a encha de perguntas.
Em vez disso, tento mudar de assunto.
— Tem algo que queira fazer? Quer parar para beber uma água, pelo
menos? — minha voz sai apertada. Só queria poder ajudá-la, detesto a
sensação de impotência. Principalmente para algo que a faz sofrer.
E isso me lembra de que preciso ligar para Lina e ver como ela está.
Aquela mulher é forte, mas tenho certeza que isso a abalou. A peguei
diversas vezes chorando escondido na floricultura para Angie não ver,
quando eles se separaram. Eu gostava do Samuel. Era um cara legal,
quando não estava bêbado ou vendendo as próprias roupas para pagar as
dívidas de jogo.
— Não. Estou gostando do passeio, continue por favor.
Angie se permite me olhar por algum tempo e só desfaço nosso contato
visual porque a estrada deve ser minha maior preocupação. No entanto, um
incomodo me preenche.
— Sabe que precisa se cuidar, não é? Você emagreceu desde o fim do
ano — digo com gentileza. Não quero que ela pense que é um insulto.
— Não te perguntei sobre o meu corpo — entra na defensiva, a voz
pacífica indo embora rapidamente.
— Não quis fazer uma crítica ao seu corpo, amor. Acredite. Eu o acho
lindo, você toda é linda. Falo porque percebi que perdeu peso e se isso é
porque não está se alimentando corretamente, fico preocupado. Apenas
isso.
Angelina pisca rapidamente e contorce as mãos em seu colo,
visivelmente desconfortável.
Porra, Francis! Meus parabéns, conseguiu estragar tudo mais uma vez.
Doutora Brice vai gostar de saber como eu posso foder com um dia inteiro,
com apenas uma fala.
Encosto o GoCar próximo à costa da baía, escutando o quebrar das
ondas impulsionadas pela força do vento. Angelina me fita confusa. Respiro
fundo, tirando o capacete. Viro-me de lado, esperando que ela faça o
mesmo para começar a falar.
— Me desculpe. Eu não queria te chatear, foi um comentário infeliz.
— Não, Francis… — Angelina puxa o ar para si, as maçãs do rosto
adotando um tom rubro. — Não é isso, é só… eu estou estranha, ok? Estou
estressada, cansada, tudo está mudando depressa demais e não vejo
possibilidade de as coisas voltarem a ser como eram. É exaustivo. Estou
indo mal nos treinos, não consigo me concentrar nas aulas de tanto sono, eu
só…
Ela balança a cabeça, fitando o horizonte atrás de mim.
— Eu sinto muito — digo após um período em silêncio. — De verdade,
por tudo, eu sinto muito, Angelina.
— Eu sei que sente. Mas isso não muda nada, você não consegue
entender?
— Eu sei. Se eu pudesse, teria feito tudo diferente.
— Mas não pode! — Há mais mágoa na voz dela do que raiva.
— Não, não posso. Não posso mudar o passado, eu só posso tentar viver
o presente, Angel. E é isso que estou fazendo. Estou tentando dar meu
melhor. Tentando reparar o que fiz, tentando consertar cada coisa que
quebrei.
— Que bom que pra você é tão fácil. — Sua expressão é amarga. — Que
bom que você consegue até mesmo tentar, porque eu não consigo, Francis.
É difícil ter você, só para então não ter mais. É difícil criar uma rotina onde
você está nos meus dias e do nada simplesmente não está mais. Reordenar
meus horários, minhas falas, meus sentimentos, é um trabalho que me
consome, não é tão simples! Então, parabéns, você consegue tentar, mas eu
não!
Lágrimas escorrem do rosto de Angelina e eu apenas as encaro sem
saber o que falar. As coisas foram de zero a cem rápido demais. Não sei o
que posso dizer, que vai tirar a dor do coração dela e trazer para mim. Se
soubesse, eu o faria.
— Eu queria poder fazer algo para melhorar as coisas pra você. Para que
eu não fosse um fator que piorasse tudo — digo com sinceridade.
— Você iria embora do país? — ela solta em um rompante.
— Se isso a fizesse feliz de verdade, sim, eu iria.
Ela me encara com as sobrancelhas erguidas, duvidosa das minhas
palavras, mas quando não desvio nosso contato visual, a deixando saber que
sim, eu deixaria a porra desse país se isso a fizesse se sentir bem, Angie
suspira. Acontece, que eu sei que isso não aconteceria. E não se trata de ego
ou prepotência da minha parte. Eu apenas sei. Angelina sente o mesmo que
eu, e se ela fosse embora, eu ficaria destruído.
— Então pode fazer suas malas.
— Achei que você gostasse de ser sincera — provoco.
— Não importa se sou sincera com alguém que é capaz de acreditar na
mentira e não na verdade quando eu a digo.
Respiro fundo, assentindo.
— Não precisa jogar isso na minha cara sempre que a gente se fala.
— É só não falar mais comigo, vai te poupar irritação.
— Angel… se coloca no meu lugar por um instante. — Espero ela me
olhar para continuar. — Se fosse você no seu quarto, olhando pela janela,
vendo um cara parecido comigo, no meu quarto, beijando outra garota, e
sua mãe confirmasse tudo, além de escutar conversas em ligações que
corroboravam com a situação… você acreditaria em mim, ainda assim?
Ela hesita antes de responder, mas ainda o faz de forma rápida e
decidida.
— Acreditaria. Eu sempre acreditaria em você.
Minha garganta arde e minhas mãos coçam para segurar o rosto dela nas
mãos e aplacar qualquer sofrimento que eu tenha causado. Se eu pudesse
voltar no tempo, faria tudo diferente. Mas ela tem razão, eu não posso.
Essa é a parte difícil de errar com quem se ama. Você não consegue
arrancar a dor que causou e trazer para si próprio, ainda que tente. A chama
já queimou e não se pode transferir cicatrizes, apenas criar outras ainda
mais profundas.
— Eu sinto muito, Angelina. — Aproximo minha mão do rosto delicado,
mas ela se retrai do meu toque e abaixo a mão. A sensação é de ter levado
um soco no estômago. Não. É pior. — Sei que nada que eu diga vai mudar o
que fiz e o que causei a nós dois. Mas eu preciso que saiba e acredite que eu
sinto muito. Sinto muito ter estragado o que estávamos construindo. Sinto
muito ter desperdiçado a segunda chance que me deu. Sinto muito ter me
deixado levar por incertezas e não ter acreditado em você. É difícil pra mim
entender que você me escolheu, ainda contra todas as circunstâncias e é
muito mais fácil achar que você me substituiria. Eu só…
Suspiro, passando a mão no cabelo com violência. Não sei o que falar.
Nunca fui bom com isso, nunca fui bom em me expressar. Encaro o céu
acima de nós, o sol já pronto para se pôr.
— Eu também sinto — Angelina fala depois de um longo período de
silêncio. — Também sinto muito que você tenha estragado o que tivemos.
Porque eu estava feliz, Francis. Mais feliz do que eu já achei ser possível. E
foi tão rápido — ela bufa uma risada triste. — Tão rápido… eu queria ter
aproveitado mais tempo antes de tudo ir por água abaixo. Queria ter vivido
todas as coisas que imaginei por anos. Queria ter podido tocar você por
mais tempo, sem medo da lembrança da sua pele me queimar no dia
seguinte. Queria poder ter te beijado sem contar os minutos, apenas para
lembrar-me com exatidão da sensação…, mas isso tudo passou. — Nega
com a cabeça. — Passou e eu tenho medo de esquecer como era. Tenho
medo de não lembrar a temperatura da sua pele, o sabor dos seus beijos, a
textura dos seus cabelos… eu tenho medo de não me lembrar como era ser
feliz. Tenho medo de me esquecer de como éramos bons juntos e apenas me
lembrar o quanto nos machucamos em seguida.
Engulo com dificuldade, odiando a ardência nos olhos. Não tenho direito
de chorar. Não agora, não com tudo que causei.
— Eu… — engasgo, praguejando por ser tão fraco.
— Não — ela me interrompe. — Chega de tentar, Francis. Nada vai
mudar. Nós não fomos feitos para estar juntos. Seja lá o que sentimos um
pelo outro, não é suficiente. — Balanço a cabeça. Não. Não diz isso, Angie.
É suficiente. Sempre foi. — No fim, sempre vamos sair machucados. E eu
não quero mais ter que descobrir como superar você. Não quero ter que
convencer meu coração a sentir raiva ao invés de paixão. Não quero mais
explicar para minha mente que não pode buscar seu conforto, porque você é
exatamente o que a está deixando confusa. É cansativo. E dói.
— Você nunca vai conseguir me perdoar. — É uma constatação.
— Mesmo que eu te perdoasse, as lembranças continuariam aqui. —
Angelina engole, tocando sua cabeça. — Francis, não ache por um segundo
sequer, que eu não sinta mais nada por você. Se possível, esse sentimento
cresce mais a cada dia. Eu te admiro. Eu tenho verdadeiro fascínio por
você. Nossos momentos ainda são o que mais me faz sentir viva. O dia de
hoje foi o melhor em muito tempo. E é disso que eu quero me lembrar. É da
gente assim, fazendo bem um ao outro, nos conectando como ciência
alguma é capaz de explicar. Eu não quero que sejamos como vovó Angelina
e vovô Samuel. Não quero olhar para trás, e ter raiva de você, por ter me
feito odiar a minha pessoa favorita no mundo.
Ela segura minha mão, mas sinto que está fazendo exatamente o oposto.
Sinto como se a afastasse. Não faz isso, Angel. Não… não me deixa.
— Mas e se isso não acontecer? E se a gente der certo? Pode não ser
agora, mas você sabe que não me importo com o tempo, Angelina. Eu
sempre vou te esperar.
— Não espere — ela me corta. — Não espere. Porque acabou. Acabou,
Francis. Acabou no momento que você deixou Cape May e veio para São
Francisco. Nós só fomos ingênuos demais de acreditar no contrário.
Uma lágrima escorre do meu rosto ao mesmo tempo que do dela. Não
digo nada. Não tenho o que dizer. Não quando sei que ela está certa.
Por Deus, eu queria que estivesse errada. Eu queria poder pegar seu
rosto entre as mãos, olhar no fundo dos olhos achocolatados e prometer que
sim, podemos superar, que sim, podemos ficar juntos. Só que eu estaria
mentindo. Não consigo fazer as coisas certas. Tem algo de muito errado em
mim. Algo que coloca as pessoas para longe, algo que me faz foder com
tudo, mesmo quando as coisas estão indo bem. Minha mãe biológica viu
isso; Leonor viu em seguida; e agora… agora Angelina constatou o que eu
já sabia.
Não a mereço. Nunca mereci. E fui um tolo de achar que um dia poderia.
Ela parece esperar que eu fale algo e vejo um brilho morrer em seus
olhos quando percebe que não vou contradizer suas palavras. Eu não vou.
Ela está certa.
Angelina assente, voltando a analisar o horizonte.
Acabou… definitivamente acabou.
Limpo o rosto com as costas da mão, ligando novamente o carro. Não foi
assim que imaginei esse dia. Mas também não foi assim que imaginei nada
da minha vida, então não é grande surpresa que as coisas não estejam indo
de acordo com meus planos.
Engulo todas as palavras que querem sair. Engulo as súplicas,
promessas, pedidos; engulo o sentimento, a dor que rasga, porque não
posso, nunca mais, olhar nos olhos dela e saber que todo o sofrimento ali
foi causado por eu achar que podia ser melhor, que podia ser alguém digno
de tê-la ao lado.
Aperto o volante, até os nós dos meus dedos ficarem esbranquiçados.
Meu maxilar dói pela força que exerço e tudo que eu penso, é em esquecer
isso. Esse sentimento. E eu sei o caminho para isso. Só esperava não
precisar dele novamente.
De qualquer forma, não é como se alguém esperasse algo melhor de
mim. Era assim no começo da faculdade, vai apenas voltar a ser.
No fim, as coisas não deveriam ter mudado, foi tudo uma grande perda
de tempo tentar ser alguém que eu nunca conseguiria ser. Foi uma perda de
tempo achar que eu poderia ser o homem que Angelina merecia que eu
fosse. Leonor sempre teve razão. Eu só queria muito acreditar que eu valia a
pena. É melhor aceitar a realidade de agora em diante.
Estrago tudo. E por isso, perdi a mulher da minha vida.
 

 
 
Chegou o dia que todo atleta marca no calendário com um “x”
gigantesco. Abertura do campeonato com os jogos amistosos. Corrigindo, é
dia de acabar com o adversário na casa dele. Amistosamente. Não entendo
essa porra de nome, acho que nunca ficamos tão sanguinários quanto nas
aberturas dos jogos. Amistoso é o caralho, que comece o massacre!
Este ano o início do campeonato universitário será em Santa Bárbara, na
Universidade da Califórnia. Fica a 5h de São Francisco e a competição é a
única coisa que nos faz acordar 4h da manhã com um sorriso no rosto.
Bom, isso e as festas pós jogos. Vamos embora apenas amanhã de manhã,
então a noite é uma criança.
Vai ser bom ter alguma distração. Algo mais que me faça esquecer.
Nunca pensei que desistir de algo fosse mais difícil do que lutar. Desistir de
Angelina é como colocar correntes de ferro em um animal selvagem e
monstruoso, que anseia liberdade.
Balanço a cabeça, afastando os pensamentos. Ajeito a mochila nas
costas, subindo as escadas inclinadas do ônibus, correndo para pegar um
assento no meio.
Apenas três nadadores da USF foram selecionados para os amistosos em
Santa Bárbara. Vance, Damon e eu. Damon é um calouro que tem se
mostrado promissor, o treinador quer ver como ele se sairá para decidir se o
colocará no campeonato. Como somos poucos, vamos dividir o ônibus com
a galera do futebol americano. Poderia ser pior, podiam ser os caras do
hóquei. Eles são insuportáveis, definitivamente intoleráveis. Se acham os
donos da porra da universidade, ainda que tenham perdido os últimos três
campeonatos.
Vance senta ao meu lado e suspira irritado. Ele queria que fôssemos de
carro, mas pela primeira vez desde que vim para a USF, quis viver uma
experiência universitária completa. Quero ir no ônibus como todo mundo,
encher a cara após a partida e quem sabe, ficar com uma garota.
Angelina deixou claro que não me quer. É isso que tenho que fazer.
Seguir em frente. Eu também me canso de ser enxotado.
Os caras vão lotando o ônibus aos poucos e o veículo sacode inteiro com
a delicadeza dos jogadores.
— Não acredito que me fez entrar nessa merda suja e fedida.
— Eu não te obriguei a vir. — Dou de ombros, procurando meus fones
de ouvido dentro da mochila.
— Eu seria um péssimo amigo se te deixasse vir sozinho.
— Vance, sem ofensa, mas eu preferia vir sozinho. Quero só colocar
meu fone de ouvido, escutar música no volume máximo e dormir até chegar
lá.
— E aí, cara! — Fitz, um dos jogadores, estende a mão na minha
direção, passando o braço por cima de Vance. Eu o conheci pouco tempo
depois que entrei na USF, ele já era veterano e fazia monitoria nas
dependências do campus.
— Fala, cara. Quanto tempo! — Aperto a mão dele.
— Nem me fala, você nem aparece nas festas, mal te vejo pelo campus.
— Estudando muito, sabe como é.
— Mas hoje você não vai deixar de ir para o after né?
— E qual vai ser o after dessa vez? — Faço careta. — Não vão nos
meter em alguma irmandade de calouras pervertidas, ou vai? Lembra o que
aconteceu da última vez.
— Tenho vergonha só de lembrar, tem foto nossa de cueca saindo da
casa cobertos de chantilly até hoje — Fitz balança a cabeça.
Eu tenho vergonha só de pensar. As garotas surtaram do nada e
começaram a arrancar as roupas dos caras. Eu consegui escapar apenas com
um rasgo na camisa, mas tiveram alguns amigos meus que tiveram as
bundas expostas. Ethan é um deles, mas talvez ele tenha arrancado as calças
de propósito. Isso foi no primeiro campeonato que participamos.
— Mas não, nada de festas em irmandades. Vamos até um pub famoso
aqui de Santa Bárbara. É difícil conseguir ingresso, mas meu pai presta
serviço pro dono e nos conseguiu pulseiras VIP.
Fitz estende três pulseiras douradas para mim e as pego.
— Valeu cara. Acho que vai ser bom, conte comigo lá.
— Não vai dar pra trás, hein!
— Não vou.
Agradeço novamente pelas pulseiras e Fitz se senta ao fundo do ônibus.
Vance não abre a boca um segundo sequer. Ele e Fitz ficaram quando nos
conhecemos, mas teve o mesmo problema que Josh. Ele é bi e meu amigo
parece tomar isso como um defeito inigualável. Suspiro para a cara de
bunda que ele faz e encaixo os fones na minha orelha. Fecho os olhos,
abaixando o assento, que me obedece na terceira tentativa. Não deita muito,
mas com o sono que tenho, durmo até em pé.
Ligo o aplicativo de música no aleatório e me preparo para cinco horas
completas de sono. Às vezes é mais do que tenho à noite.
 

 
A Universidade da Califórnia está lotada. Completamente cheia de
alunos com suas rivalidades à flor da pele. Levou quase vinte minutos para
nosso ônibus achar uma vaga para estacionar e Vance me levou a loucura
com tanta reclamação. O ônibus estava frio demais ou quente demais. A
poltrona deitada demais ou deitada de menos. Foi a mesma coisa que viajar
com minha mãe do lado.
Olho em volta, reconhecendo os uniformes de outras três universidades.
Pelas expressões dos atletas, amistosa seria a última característica que eu
definiria. Está mais para raivosa, competitiva e sanguinária. Meu sangue
está rugindo nas veias, quase como um grito de guerra.
É isso que é. Uma guerra. Estamos aqui para defender o nome das nossas
universidades, como os soldados fazem com seus países. Mas sem a parte
das mortes e armas. Se não tentarem me drogar já é um grande avanço.
Vance coloca o braço ao redor dos meus ombros e sorri como um
maníaco.
— Pronto pra perder pra mim?
Gargalho alto, com a mão no estômago.
— Eu vou deixar que sonhe com isso.
A UC é maior que a USF, e mais focada nos esportes universitários
também, o que não quer dizer que já estou entregando os pontos. Eu quero
ganhar, preciso dessa boa dose de autoestima e ego, que só uma medalha de
ouro pode fornecer.
O treinador passa por nós apressado e nem se digna a olhar na nossa cara
antes de sair latindo ordens para nos apressarmos para chegar ao vestiário
antes que o lugar esteja um verdadeiro inferno. Não acho que vamos ter
alguma sorte com isso, as partidas começam em uma hora. Aquilo já vai
estar um pandemônio.
Por sorte, vim com meu short da competição embaixo da roupa. Por estar
frio, não vamos usar a sunga curtinha, para o choro das gatinhas, como
disse Ethan.
O vejo de longe junto com os jogadores de basquete e ele está ouvindo o
treinador seriamente. Um dos poucos momentos que vejo meu amigo sério.
Basquete é só um passatempo para ele, algo que gosta de fazer, mas ainda
assim, leva a sério pelos caras que querem uma profissão com isso.
Um grupo de animadoras de torcida passa por mim, cochichando alguns
elogios e sorrio de lado quando uma delas pisca na minha direção. É bom
receber um pouco de elogio de vez em quando. Quando se é criticado o
tempo todo, você começa a duvidar que haja coisas boas para se notarem.
Respiro fundo, seguindo a massa de atletas até o vestiário. Pandemônio
nem começa a descrever o estado do lugar. Não sou claustrofóbico, mas é
impossível não se sentir incomodado aqui. Além disso, estou vendo mais
pênis do que eu gostaria por uma vida inteira. Caralho, que visão infernal!
— Você precisa se trocar? — o técnico grita para que eu escute. Além do
lugar estar fedendo a suor de atleta, os caras não sabem conversar sem
gargalhar como hienas ou gritar como se estivessem sendo esfaqueados.
Tem toalhas penduradas por todo o espaço. Bolas rolam pelo chão, nos
fazendo desviá-las para não escorregar. Tacos de lacrosse e hóquei estão
ocupando os bancos e pias. Como diabos esperam que a gente se troque
aqui?
— Só tirar a roupa por cima do uniforme. — Aperto os braços na frente
do corpo e encolho os ombros para caber no maldito cubículo. Eu já quase
levei quatro cotoveladas, dois chutes e uma encoxada. Definitivamente é o
pior lugar da terra.
— Então faz isso e saia logo daqui, precisamos desocupar esse vestiário
— ele grita a última parte para os outros treinadores, que assentem. — Ei,
você de toalha vermelha… você mesmo. Tira a toalha da cabeça e enrola na
cintura, ninguém é obrigado a ver seu chaveirinho!
Seguro a risada.
Eu imagino que o vestiário masculino seja exatamente o contrário do
feminino. Esse último deve cheirar a sais de banho, morango e chantilly,
conversas baixas e respeitosas, garotas calmas vestindo-se com elegância…
é, deve ser um sonho comparado a esse pesadelo. Eu pediria um espaço por
lá se não fosse ser chamado de pervertido.
 

 
 
Céus, alguém abriu os portais do inferno e liberaram todos as princesas
dos demônios. Não há nenhuma explicação melhor para o verdadeiro
desastre natural que se encontra esse vestiário. Tem mais cabelo no chão do
que um salão de beleza. Há tantas fragrâncias de perfume misturadas, que
me sinto testando algum produto químico altamente tóxico. As garotas
brigam uma com a outra pelas cabines de banho, por tomadas e por toalhas.
O chão já está completamente molhado e escorregadio e preciso a todo
momento fugir dos cotovelos, braços e mãos das garotas que se vestem
furiosamente à minha volta. Uma garota quase furou meus olhos com os
mamilos e eu queria muito estar usando o sentido figurado aqui. Estou
encolhida, agarrada à minha mochila, com as costas contra um armário de
metal, pensando seriamente em pedir para me trocar no banheiro masculino.
Geralmente homens não são muito propensos a higiene, então não devem
demorar no vestiário.
Ah, Deus, lá deve estar tão vazio…
— Angelina! — Zoey me grita, tentando passar por duas garotas que
fazem cabo de guerra por uma toalha azul. — Credo, será que a gente vai
ter que invadir o banheiro masculino para ter privacidade?
— Nem me fala, eu estou entrando em pânico. — Aperto minha mochila
com força, hiperventilando. Para piorar, ligaram cinco secadores de cabelo
ao mesmo tempo.
— É sério? — Zoey arregala os olhos.
— É. — Por que eu brincaria com isso?
— Oh, merda… vamos sair daqui.
— Eu preciso me trocar.
— A gente se troca dentro do ônibus.
— E se alguém ver a gente?
— Não teriam tanta sorte — Zoey gargalha, me puxando para fora do
formigueiro.
Quase choro quando consigo sentir ar puro novamente. Já vi intoxicação
por muita coisa, mas por perfume, vai ser a primeira vez.
Zoey e eu voltamos para nosso ônibus e nos trocamos nos bancos
traseiros. É meio difícil sem um espelho, principalmente com a droga
apertada desse uniforme. Puxo minha blusa para baixo, esmagando meus
seios.
— Eu já falei mil vezes que preciso de uma blusa maior! — Bufo
irritada.
— A blusa ainda vai, olha esse short! — Zoey aponta para o dela, que
não cobre toda sua bunda.
— Nunca vou entender essa merda — reclamo.
Zoey termina de se vestir e abre sua necessaire, tirando de lá um
pequeno espelho quadrado, que ela posiciona em minha direção para que eu
veja se está tudo certo.
— Angelina… o que é isso no seu braço? — ela toca sobre as iniciais do
Francis. Eu sei exatamente onde elas ficam, não preciso vê-las. As toquei
tantas vezes buscando conforto ao longo dos anos, que seu caminho não é
um mistério para mim.
— Minha tatuagem.
— Não, não me refiro a tatuagem. Tem um roxo enorme atrás do seu
braço.
— Outro? — Franzo o cenho, me contorcendo para tentar ver a região. É
meio difícil, então Zoey tira uma foto com seu celular, mostrando a tela
para mim em seguida.
Ela tem razão. A pele está arroxeada, contornando a tatuagem e além
dela. Outro roxo. Minhas pernas tem dois deles, outro em meu quadril e
agora o braço… o que infernos está acontecendo comigo?
Engulo, sentindo o estômago embrulhar.
— Não é nada… e-eu… — Dou de ombros. — Devo ter batido.
— Tem certeza? — ela me encara com desconfiança.
— Tenho.
Não, não tenho. Mas tenho mais coisas com que me preocupar. Deve ser
apenas o estresse. É, com certeza é estresse.
 

 
Enxugo minha testa, apoiando nos joelhos após o fim do treino. Nós
jogamos três sets. Ganhamos dois deles. Mas não tive mérito sobre isso,
minhas parceiras fizeram todos os pontos. Eu, por outro lado, pontuei para o
time adversário. Pelo menos era apenas um treino. Vou melhorar para o
jogo de verdade.
— Vamos? — as meninas me chamam.
— Pra onde? — Comprimo as sobrancelhas. — Nosso jogo é só daqui
1h.
— Eu sei, mas agora os gostosos da natação estão exibindo suas
bundinhas durinhas na piscina. Você não quer perder isso, né? — Emma se
abana.
Ah, eu quero. Ela não faz ideia do quanto eu quero perder isso.
— Não chego perto de piscinas.
Ou melhor, não chego perto de um certo nadador. Não depois que ele
aceitou tão facilmente nosso fim. Ele devia ter insistido mais. Devia ter
lutado mais.
Mas quer saber? Que se dane. Não preciso dele. Estou melhor sem ele.
— Os amistosos vão ser nas piscinas descobertas, nós podemos assistir
pelos telões e ainda ficar mais longe — Zoey argumenta.
— Não acho uma boa ideia.
— Por quê? — elas ecoam em uníssono, fazendo um bico enorme. —
Por favorzinho.
Elas unem as mãos em súplica e tenho vontade de socar a cara de cada
uma.
— Eu odeio vocês, só pra deixar claro.
Saio de quadra basicamente arrastada. O que elas querem tanto ver
nesses homens musculosos, sarados e completamente molhados?
Bufo.
O gramado da universidade está lotado. Tenho vontade de sair correndo
assim que piso nele. Os alunos estão com todo tipo de instrumento para
fazer barulho e isso pode muito bem ser considerado meu inferno particular.
O ar frio corta a pele descoberta das minhas coxas e é amenizado
conforme nos aproximamos da multidão. As arquibancadas estão sem um
único espaço, os ferros de sustentação muito finos para o meu gosto e para a
quantidade de universitários em cima deles.
— Eu vou ficar aqui — cruzo os braços em frente ao peito, na diagonal
da piscina. Daqui, fico de frente a um telão que reflete a imagem superior
da piscina. Ficar perto dela me dá a sensação de ser jogada novamente na
água. E prefiro não me recordar daquele dia, muito menos de como um
certo nadador me ajudou.
— Se importa se eu ficar mais perto? Eu sou míope — Zoey aponta para
o próprio rosto e dou de ombros.
— Não me importo, pode ir.
Tiro os tampões de ouvido do bolso, encaixando-os na minha orelha,
bem a tempo de escutar os resquícios da sirene que indica o início do
campeonato. Meus pés recebem o tremor que vem do chão, causado pela
agitação das pessoas. Ainda com os tampões, posso ouvir os uivos e gritos e
aplausos. Meus pelos se arrepiam pela energia.
É excitante. Um pouco até demais.
Muitos se perguntam o que guia um atleta, e talvez a resposta esteja
nesses breves momentos antes do início de uma partida, onde a expectativa,
não apenas sua, mas da torcida inteira, está em seu apogeu. É possível sentir
nos próprios ossos a gana por vencer.
Os nadadores se posicionam sobre os blocos de partida, com os óculos
ainda sobre a cabeça. Acredite, eu queria muito demorar para achar o
nadador de olhos azuis, mas os lírios obsidiana em seu braço, são como um
refletor sobre a pele alva. Eu deveria desviar os olhos. Deveria mesmo. Mas
não consigo. Mesmo de longe, consigo ver a pele de seu peito avermelhada
dos tapas que ele dá na região.
Ele está concentrado na piscina; seus braços e pernas endurecidos e
tensos, apenas esperando o estouro da largada. Dou um passo à frente por
instinto, essa energia é um ímã. Gosto de ver a competição refletida em sua
pupila. É como se refletisse a minha própria quando estou em quadra.
Nós acabamos. Eu me lembro. Mas droga, por quê? Por que tínhamos
que estragar tudo? Ou melhor, por que ele tinha que estragar tudo? Éramos
bons juntos. Éramos muito bons juntos. 
Minha vontade é de o socar, até que ele insista e me convença de que
podemos ficar juntos sim. De que posso confiar nele de novo. De que não
precisamos sofrer assim. Mesmo que eu saiba que ele estaria mentindo se o
fizesse.
Como se sentisse minha atenção em si, Francis inclina o rosto para a
lateral e me procura, até firmar nosso contato visual. Recuo com a onda de
sentimentos que vêm sobre mim. Nem todos são bons. Mas nem todos são
ruins. É um misto. Doce e amargo. Calmaria e tempestade.
Franzo o cenho, acenando desajeitadamente com a mão. O que eu
deveria fazer? Fui pega no flagra encarando.
Francis não retribui meu gesto, apenas sorri de lado, tão minimamente
que mal consigo ver de onde estou. É dada a largada. O estouro é alto e
mesmo com os tampões, cubro as orelhas e aperto os olhos. Ao voltar a
abri-los, Francis ainda me olha sobre o bloco, enquanto todos os outros
nadadores já estão batendo braços e pernas na piscina. Abro a boca em
choque.
— Vai! — grito tão alto que algumas pessoas da arquibancada me
encaram assustadas.
Francis arregala os olhos, vendo que perdeu bons segundos da largada e
pula na água como um raio atravessando o céu. Meu coração acelera. Ele
está atrás dos outros quatro nadadores, Vance incluído. Assisto pelo telão a
partir daqui, minha posição não facilitando para ver toda a piscina. E que
bom que é assim.
É tudo uma bagunça de braços e pernas e água sendo respingada para
fora. Eles chegam à borda da piscina e fazem um mortal dentro d’água,
voltando para o início. Francis está atrás por segundos, ele se move
furiosamente, estou espantada. É incrível. Animalesco… lindo.
Há muito não o via nadar assim. Ele está simplesmente… fascinante.
Poderia vê-lo cruzar essa piscina por horas sem me cansar. Sua persistência
sempre me deu uma pitada de coragem. E ninguém pode dizer que este
homem não está dando tudo de si agora mesmo.
É cansativo sentir raiva e admiração por você, Francis.
— O cara da raia 3 é ótimo — um senhor sussurra ao meu lado.
Assinto.
— É. Ele é.
— Você o conhece? — indaga e viro-me para ele pela primeira vez. O
homem veste um terno elegante, corte de cabelo social e tem um pequeno
caderno em mãos.
— Conheço.
Por completo. Por inteiro. E amo tudo que tem ali. Assim como detesto
cada parte.
— Sabe me dizer se ele é dedicado?
Sei que ele está falando da natação. Mas não é apenas no quesito esporte
que penso em Francis como alguém dedicado.
— Não encontrará ninguém tão empenhado como ele, isso eu garanto —
murmuro com orgulho das palavras. Eu só queria que ele fosse menos
confuso e propenso a acreditar em mentiras. Queria poder perdoá-lo.
— Ele tem sua admiração — não é uma pergunta, o homem está
constatando. Mas respondo ainda assim.
— Sim, ele tem. — Sempre terá. — Com licença.
Saio de perto das piscinas o mais rápido que consigo. Não fico para ver
se Francis conseguiu uma classificação, não fico para saber como será o
olhar dele para mim novamente. Preciso apenas tirá-lo da cabeça.
Preciso seguir em frente, mesmo que cada minuto longe dele, seja como
receber agulhadas no meu coração.
 

 
 
Bato a palma na borda da piscina, tirando o rosto da água com um ofego,
procurando pelo rosto do meu treinador. Ele ergue os três dedos para mim,
indicando que fiquei em terceiro lugar. Tenho certeza que se pudesse, ele
teria erguido apenas o dedo do meio.
Porra, eu perdi a merda da largada. E tudo por causa da Angelina.
Procuro pelos cabelos dourados no último lugar que a vi, mas encontro
apenas um amontoado de universitários levantando-se das arquibancadas
para ir assistir ao próximo jogo. Varro o lugar com os olhos, mas está claro
que Angelina não está aqui. Por que ela estaria?
Bufo. Não sei nem para que veio. Já não deixou claro que não me quer?
Então por que fica me dando fios de esperança? É apenas um jogo para
ela?
Esfrego o rosto com força, me perguntando se imaginei a coisa toda.
Pode ser só coisa da minha mente, meu subconsciente querendo que ela
estivesse ali. Era só o que me faltava ficar vendo miragens.
O treinador estende uma toalha grande em frente à piscina e saio em um
único impulso, aceitando o tecido grosso. O vento gelado corta minha pele
molhada, mas não é algo que eu ache ruim agora. Estou puto, chateado e
precisando muito esquecer a merda do meu passado. Se meu cérebro
congelar, vai ser ponto para ele.
— O que deu em você? — O treinador grunhe baixo ao meu lado.
— Me distrai, não vai acontecer de novo.
— Você sabe que tem olheiros aqui, não é?
— Sei. — Merda, eu tinha me esquecido deles.
— Pra sua sorte, ainda tem mais duas partidas. Esteja pronto e focado,
Francis.
Assinto, bagunçando o cabelo para retirar o excesso de água. Sento em
um dos bancos de madeira reservado para os atletas e pego meu celular
dentro da mochila que o técnico largou de qualquer jeito para mim. Ele está
puto e não posso culpá-lo. Que merda deu em mim para não prestar
atenção?
Vance se joga do meu lado e respiro fundo, esperando a dor na bunda
que ele vai causar com seu falatório.
— Cara, que porra foi essa na piscina?
— Me distrai.
Não comento que foi por causa de Angelina.
— Eu te avisei que você ia acabar dormindo se continuasse naquele
ritmo.
Mordo o interior da boca. Se tem uma frase mais irritante do que “eu te
avisei”, definitivamente desconheço.
— Escuta, Vance, não tem ninguém mais puto com isso no momento que
eu, então não se preocupe em dar um sermão.
— Eu não vim te dar um sermão. Eu vim te oferecer ajuda. — Franzo o
cenho, olhando-o no exato momento que abre sua mochila na minha
direção, onde encontro um saquinho com três comprimidos. — Não precisa
me pagar agora. É por conta da casa.
Engulo a saliva que se acumula na minha boca. E se eu tomasse apenas
para treinar, como era antes? Não me fazia mal, eu conseguia ir a todas as
aulas e ainda treinar. Não me sentia tão cansado como agora. Eu não preciso
ficar dependente… na verdade, eu não sou dependente. Eu só tomo de vez
em quando. Ninguém precisa saber. Ninguém vai se importar se me ver um
pouco mais como pessoa e menos como um zombie.
— Escuta — Vance sussurra enquanto continuo a encarar o interior da
mochila. — Não precisa tomar agora ou pensar se vai tomar, apenas pegue e
use quando precisar. É sobre ter opções, Francis. E não digo apenas sobre
os comprimidos.
É… ele tem razão. É sobre ter opções. Pego o saquinho transparente,
jogando dentro da minha mochila. Meus ombros se aliviam da tensão
apenas por saber que posso ter uma válvula de escape. É só pra isso, para
caso eu precise muito. Talvez eu nem use. Isso. Talvez nem precise… eu
só… só preciso saber que tenho. Que posso me aliviar. Assinto para mim
mesmo. Não sou um viciado, nunca fui. Só preciso de vez em quando.
— Opções — murmuro e Vance sorri, dando tapinhas em minhas costas.
— Agora, vamos. — Ele se ergue do banco. — Tem uma hora para a
próxima partida e o jogo do Ethan começa em cinco minutos.
— Claro. — Levanto depressa, reprimindo a vontade de tomar um dos
comprimidos agora mesmo.
Sigo Vance até o vestiário e nos trocamos depressa, indo para a quadra
de basquete. Ela fica ao lado da quadra de vôlei, separadas apenas por uma
grade esverdeada. Paro no meio das duas, minha mente me puxando para o
basquete, mas meu coração martelando pela de vôlei. Procuro os cabelos
loiros presos em um rabo de cabalo e tenho absoluta certeza de que não
imaginei coisa. Angelina estava mesmo me observando na piscina. Minha
mente não seria tão perfeita com detalhes. Ela está nas linhas laterais da
quadra, conversando com seu time. Linda, completamente linda,
concentrada e com aquela expressão competitiva quase doentia. Cara, nada
é mais excitante que isso. Dou um passo para entrar na quadra de vôlei, mas
Vance segura meu braço. O encaro com raiva e ele arqueia as sobrancelhas
para mim.
— Opções, lembra?
Suspiro, dando uma última olhada para Angelina. Dessa vez, ela está
virada na minha direção, os olhos fixos em mim e completamente imóvel.
Ergo a mão, acenando discretamente, igualmente ela fez comigo. E assim
como fiz, ela apenas devolve um quase sorriso. É mais do que mereço. E
menos do que preciso.
Entro na quadra de basquete.
Como ela consegue dizer que acabou?
E pior… como vou aceitar que acabou?
Opções… Vance não está errado dessa vez. Preciso de opções de futuro.
Não dá para ser tudo sobre ela. Ainda que seja, fodidamente, tudo sobre ela.
Sento ao lado de Isabela na primeira fileira das arquibancadas. Ela digita
furiosamente em seu pequeno notebook e está um pouco descabelada, com
uma expressão um tanto psicopata.
— Noite cheia? — Jogo meu ombro contra o dela.
— Nem me fala — ofega. — Sabe o que é cobrir todos os esportes ao
mesmo tempo? Eu estou aqui, mas vendo mais duas partidas pelo notebook.
Estico o pescoço para ver sua tela. Ela não está brincando.
— Uau. E não tem ninguém para te ajudar?
— Não quero ninguém metendo o dedo na minha matéria. — Ela quase
rosna.
Ergo as mãos, decidindo que não é uma boa ideia interromper sua
concentração.
A partida começa com o time adversário tomando a bola. Esse amistoso
não está dos melhores para a USF. Só espero que os jogadores de hóquei
percam feio, porque ir para casa com medalha de bronze e eles de ouro,
seria a morte. E essa não é uma opinião só minha, é unânime entre os
atletas. Só as garotas gostam deles e nem consigo imaginar porquê, já que
as tratam como bonecas descartáveis.
Talvez o incidente no vestiário tenha incendiado de vez meu completo
asco por eles, mas não é como se eu fosse fã dos caras antes disso.
Josh retoma a bola para os Lions e corre em direção ao garrafão, ele faz
o passe para Ethan, que é marcado insistentemente por dois brutamontes,
impedindo que ele faça uma tentativa em direção à cesta. Meu amigo dá um
giro de 360 graus e passa a bola para Jayden. Faço uma careta na mesma
hora. Qual é, ninguém pode me julgar.
Ele quer o que é meu. Quer dizer, o que já foi meu.
 

 
 
Vergonha. É isso que está cobrindo cada miligrama do meu sangue. Nós
perdemos. Mas não foi uma derrota simples, foi um massacre. Nem
precisamos jogar o set de desempate e tudo por culpa minha.
Não consigo olhar para minhas colegas de time desde que saímos da
quadra. Elas não parecem nem de perto tão preocupadas quanto eu,
conversando sobre o bar que vão agora, enquanto só consigo repassar na
minha mente todas as jogadas que errei. Talvez eu deva ir a um oculista,
procurar um fisioterapeuta para entender minhas dores musculares ou
qualquer médico que me explique por que estou resfolegando como uma
fumante assídua. Tudo meu dói, minhas veias parecem entupidas e meu
cansaço está me deixando desestabilizada.
— Angelina! — Donna entra no vestiário, me gritando como se
estivéssemos no meio de uma multidão. Apenas ergo a mão fechada em
punho, mantendo meu olhar no chão.
Errei por tão pouco, era apenas dar um passo mais para trás, erguer mais
o braço, pular mais alto, inclinar mais o pulso… coisas simples.
Inferno!
Mãos se apossam das minhas com brutalidade e me fazem abrir os dedos
sem chance para negociação. Encaro minhas palmas, feridas com a marca
das minhas unhas. Faltava pouco para sangrar e eu sequer estava
percebendo o que fazia.
— Não precisa disso. Foi apenas um amistoso. — Don senta-se ao meu
lado.
— Você não entende.
— Escuta, você não é a única que gosta de ganhar, Angelina.
— Não é sobre ganhar.
— Então é sobre o quê?
— É sobre ser boa naquilo que eu sei fazer. E não estou sendo boa. Eu
nunca errei tanto. Nunca. Eu… — minha garganta aperta. Isso não é por
perder. Não por perder a partida, é por perder a habilidade naquilo que eu
sempre me saí bem. — Eu vou mal em muita coisa, Donna. Tem muita
coisa que não consigo fazer, mas no vôlei… — Sorrio melancólica. — No
vôlei eu sempre fui a melhor. E agora… agora eu não sei mais o que estou
fazendo no time, parece que estou jogando por pura pena da treinadora.
Acho que ela tem medo de me tirar e eu ter algum ataque.
Volto a pressionar as unhas contra a palma e Donna me interrompe
novamente. Ela entrelaça nossos dedos, mesmo comigo resistindo.
— Sabe o que é bom para curar isso? — ela sorri travessa. Donna tem a
arte de mudar de assunto. Isso é muito bom, principalmente em momentos
como esses.
— Gossip Girl não vai resolver agora. — Essa é sempre a alternativa
dela para um dia ruim.
— Eu não estava falando de Gossip Girl, embora se você conseguir ficar
mal vendo Blair Waldorf, só um terapeuta pode te ajudar — Don se abana.
— Mas enfim, estou falando de algo mais ousado.
— Não vou correr pelada. — Nego com a cabeça.
— Ei, eu só sugeri isso uma vez… e em minha defesa, eu estava bêbada.
Ergo as sobrancelhas em sua direção.
— Não estava não, era Ação de Graças e você tinha bebido suco de
laranja.
Don pensa por alguns segundos e gargalha em seguida.
— É verdade, mas teria sido incrível ver a cara das nossas mães. Enfim,
não é correr pelada, a menos que queira…
— Não, não quero.
— Uma pena, você tem peitos incríveis, o mundo deveria ver. — Dá de
ombros. — Estou falando de ir a um pub após os jogos. Todo mundo vai.
— Se estava tentando me convencer, acabou de destruir seu argumento
com essa última frase.
— Todo mundo vai para o pub, mas só eu tenho pulseiras VIP, amor —
Donna enfia a mão no bolso e tira algumas pulseiras de papel douradas.
— Onde conseguiu isso?
— Uns caras do futebol americano me deram.
— A troco de quê? — Franzo o cenho.
— Ah, eles esperam que eu leve algumas amigas gostosas pra lá —
Donna pisca sugestivamente para mim.
— Deixa eu ver se entendi: sou a amiga gostosa?
— Isso aí, gata! — Ela estende a mão para eu bater.
— Não vou bater. Não sou um pedaço de carne.
— Claro que não, mas o que custa a gente ir? Se não quiser ficar com
ninguém, só não fique. Os caras pareciam legais.
— Até ficarem sabendo que não vou ficar com eles.
— Relaxa, Isabela e Cassy vão também. Eles não vão sair no zero a zero.
Reviro os olhos.
— Você às vezes fala como um canalha.
— Se eu não curto brincar com o coração de caras gostosos, convenço
minhas amigas a destruí-los por mim. — Don pisca e sai me arrastando para
a fora do vestiário.
Céus, só Donna para me colocar em uma festa agora. Eu estou em clima
de enterro e não de diversão.
 

 
 
Um braço após o outro, meus músculos ardem, seguro a respiração por
mais três segundos, giro o pescoço e puxo o ar, que vem misturado com
algumas gotas d’água. Minha mão ultrapassa a última camada de água, a
que mais oferece resistência, recebendo o vento frio, só para então voltar a
cortá-la, impulsionando para frente.
Caralho, isso é maravilhoso.
É meu paraíso particular.
Não há problema nenhum aqui embaixo. A cabeça não dói, o sono não
me vence, o coração está acelerado demais para que eu sinta o quanto está
cortado. Não vou mentir, já tive vontade de ficar aqui. O mais baixo
possível. Embaixo d'água não só nossos corpos ficam mais leves. A vida
fica leve. Papai tinha razão ao me dizer que é impossível passar mal
embaixo d’água.
O mais engraçado, é que nunca poderei mostrar isso a Angelina. Queria
que ela sentisse essa paz que eu sinto exatamente aqui. Espero que ela a
sinta em quadra. Que encontre nos saltos para cortar a bola, a leveza de uma
mente em paz.
Antes que minha mão toque a borda, dou uma cambalhota,
impulsionando-me com os pés. A água abre caminho para mim, ela não me
impede, apenas me deixa agir e ser como bem entender; eu não preciso me
moldar para caber aqui. A água me recebe seja lá como eu me apresente.
Como eu queria que a vida fosse assim. Que as pessoas fossem assim. Que
conseguissem nos aceitar como somos, sem tentar nos mudar.
Talvez por isso ame tanto a dona dos cabelos dourados. Ela nunca tentou
me mudar. Mesmo quando eu já não era suficiente, ela preferiu se afastar do
que tentar me tornar o que não sou. Angelina jamais faria alguém agir
contra sua natureza. E mesmo que eu não consiga ver um lado bom disso
agora, acho que um dia posso ser capaz de ver.
Minha mão encontra a borda novamente e, dessa vez, quando procuro o
treinador, ele ergue apenas um dedo para mim, com um sorriso orgulhoso.
Permito-me sorrir. Porra, pela primeira vez em meses, permito-me sorrir
para algo exclusivamente meu, sem pensar em mais nada, apenas neste
momento e o fato de ter vencido. Ainda falta uma partida e decido competir
com todo meu sangue.
Apenas… por mim. Para variar.
 

 
— Medalha de prata, cachorrão — Ethan enlaça meu pescoço com o
braço, quase me causando um torcicolo.
É, eu não fiquei com a medalha de ouro do amistoso, mas ainda é melhor
que a de bronze. Ergo a chapa de prata para cima, beijando a superfície
gelada.
— Isso merece uma comemoração — digo animado.
— Espera aí, estou mesmo ouvindo o Francis sugerir alguma farra? —
Josh zomba da minha cara, carregando a bola de basquete do jogo. Eles
estão trazendo a medalha de ouro para a USF ao menos.
— Haha, muito engraçado. — Empurro seu ombro.
— Isso é uma ocasião rara — Ethan ergue a gola do moletom
universitário. — Não é sempre que um ancião está disposto a dormir depois
do horário.
— Por que eu sou amigo de vocês? — estapeio a nuca de Ethan.
— Porque se não fosse por nós, você seria apenas um velho resmungão
no corpo de um gostoso de vinte e um anos. — Josh ergue a sobrancelha e
dou de ombros.
— E o que eu sou com vocês? — indago.
— Um velho resmungão no corpo de um gostoso de vinte e um anos,
com amigos gostosões, com mente de dezesseis anos e corpo de vinte e um
— Ethan explica.
Reviro os olhos.
— Puxa, ainda bem que vocês estão na minha vida. Até porque eu super
preciso de amigos gostosões — faço aspas na última palavra.
— Isso só é ruim se você quiser pegar uma gatinha e só tiver uma para
todos. Agora se você quer pegar uma gatinha que está numa rodinha de
outras gatinhas, reforço é sempre uma boa opção.
Encaro Ethan com uma careta.
— Cara, você é nojento. — Balanço a cabeça.
— Precavido, meu caro amigo. Precavido.
— Esse é o novo nome para pervertido — Josh sussurra para mim e
assinto com força.
Espero ansioso para o dia que verei Ethan sossegar. Isabela bem que
poderia dar uma chance pra ele.
— Só pra constar, eu escutei isso. — Ele dá um peteleco na minha testa e
na de Josh. E só pra constar, essa porra dói. — Mas vou fingir que não
feriram meus sentimentos e perguntar onde vamos curtir a noite dos
vitoriosos… ou semi — ele pisca para mim e ergo o dedo do meio.
Babaca.
— Eu tenho pulseiras VIP para o Rainbow Lounge, mas acho que não
vou te dar uma — Tiro as pulseiras do bolso, balançando na cara do
jogador, que falta fazer coração com os olhos.
— Cara, por isso eu te amo!
Ethan sai puxando Josh e eu para fora do campus e pede um carro de
aplicativo para nos levar até o pub. O motorista nos deixa em frente à
entrada do lugar e nos encaramos, mais especificamente para nossas roupas,
tendo absolutamente certeza de que não estamos vestidos para a ocasião.
Até Josh está desarrumado, o que é um milagre.
Vejamos pelo lado bom, não estou só de sunga.
— Eles vão deixar a gente entrar assim? — Josh questiona, lendo meus
pensamentos.
— Escuta… — Ethan se vira para nós seriamente. — Se alguma mulher
achar vocês desarrumados, é só erguer a medalha de ouro… — ele faz uma
careta pra mim e juro que me seguro para não o socar. — No seu caso,
espero que a de prata funcione.
— Vai se foder!
— Se eu tiver sorte... — O panaca esfrega uma mão à outra, se
aproximando do segurança, erguendo a pulseira excessivamente dourada e
brilhante. O cara mal desvia o olhar para Ethan e nos deixa passar. Me
preocupa o fato de não ter nos revistado. E se a gente estivesse armado?
O pub faz jus ao nome. Tudo nessa porra parece que um unicórnio
vomitou. Estou me sentindo um duende ao final do arco-íris. Aqui vai um
mal de quem tem olhos claros: luz demais incomoda.
— Eu vou sair sem córnea daqui! — Esfrego os olhos.
— Deixa de ser bunda mole. — Ethan me puxa para uma escada nos
fundos do pub, uma merda com Leds em cada degrau, de cores diferentes e
dançantes. Se a intenção é fazer algum bêbado cair e quebrar a cabeça do
fêmur, então eles terão êxito. No meu caso, nem preciso estar bêbado.
Tropeço três vezes antes de chegar até o final e quase dou de cara com o
piso de ferro.
O espaço VIP nada mais é que um mezanino, com sofás de couro e
mesinhas de centro, que estão praticamente todas ocupados, exceto por uma
nos fundos. Procuro Fitz e os jogadores de futebol para agradecer
novamente pelas pulseiras, mas mudo de ideia assim que vejo Angelina
sentada entre eles, junto de Donna, Blue, Cassidy e Isabela.
O inferno tem uma nova cara para mim e meu ódio aos jogadores de
hóquei passaram para o segundo lugar no ranking.
— Na moral, você precisa muito de um banho de sal grosso — Josh
sussurra no meu ouvido.
Engulo o ciúme. Opções. Não sou só eu que preciso delas, afinal.
Angelina está seguindo em frente. Acabou, não é mesmo? Travo o maxilar,
desviando os olhos dela. Aceno para Blue e Donna, que arregalam os olhos
como se tivessem visto um fantasma. Blue me encara preocupada, quase se
levantando do banco. Nego com a cabeça, dando de ombros.
Angelina faz o que quiser da vida dela. Não tenho mais nada a ver com
isso.
Só me arrependo pra caralho de não ter ficado com ela aquela última
noite. Eu pensei que seria mais fácil no dia seguinte se não sucumbisse ao
nosso desejo, mas a verdade é que qualquer momento a mais com ela, seria
melhor do que nenhum. Pensei que estava fazendo a coisa certa para nossa
relação e agora sequer existe uma relação para fazer alguma coisa
É tarde demais para arrependimentos. Tarde demais para mudar o que já
foi feito e escolhido.
Acabou.
— Ali está vazio — aponto para os bancos do outro lado do mezanino.
Sento no banco alaranjado, erguendo a mão para o garçom. — Whiskey, por
favor.
Ethan senta do meu lado, batendo nas minhas costas.
— Estou orgulhoso, achei que você fosse chorar.
Sorrio amargo. Desvio os olhos para Angelina mais uma vez e seu
sorriso agora é entregue a outro cara. Ela parece confortável e a parte
racional dentro de mim fica feliz por isso. Todo o resto odeia e detesta.
Não, eu não estou chorando. Mas estou sangrando por dentro. E esse
corte, álcool algum é capaz de estancar. Mas vai servir para anestesiar. É
melhor que eu me acostume a vê-la com outras pessoas. Angelina é perfeita
demais, para que os caras também não vejam isso e caiam aos seus pés. A
culpa é exclusivamente minha de ter deixado minha oportunidade passar.
 

 
 
Não acredito que Francis está aqui.
Eu o senti assim que chegou, mesmo que eu tenha fingido que não. O
cheiro, a presença, o calor… meu corpo simplesmente sabe.
Continuo conversando com os garotos ao meu lado. Eles são divertidos,
de verdade, são. A conversa está boa, só que deixo de prestar atenção pela
presença do nadador. Francis não é simplesmente divertido e bom. Ele é
mais. Sempre mais; para o lado bom e ruim.
— Ele ganhou molhada de prata — Blue comenta contente com Donna e
não posso deixar de sorrir. Tenho certeza de que seria ouro, se não fosse seu
atraso na largada.
A gente se atrapalha. Se confunde. Se distrai. Eu deveria querer ficar
milhas de distância. 
Mas então por que quando ele aparece, meus olhos parecem mudar de
cor e todo o resto se ilumina? Por que quando penso em amor, só me vem a
cor azul dos seus olhos na minha mente?
Eu finjo não o querer, mas esse é um teatro fadado a críticas ruins. Basta
um olhar, um toque. Quero gritar para ele lutar por mim. Quero gritar para
que insista, mas ao mesmo tempo, agradeço que não o faça. Viro todo o
conteúdo do meu copo, deixando o álcool curar o que tiver destruído por
dentro.
— Tenho certeza que o campeonato será melhor para vocês — o cara à
minha direita tenta me animar quanto ao jogo de hoje. Ele disse que estava
na partida e que ficou preocupado com minha queda. Sim, eu me
esparramei pelo chão da quadra ridiculamente. Isso vai me render mais
roxos.
— Espero que sim. — Aceno para o jogador. Ele é um cara
extremamente bonito. A pele negra retinta, cabelos cacheados na altura dos
ombros e óculos de grau que combinam perfeitamente com seu rosto oval.
— A propósito, sou Fitz. — Estende sua mão, com um sorriso de orelha
a orelha. Como Jayden, ele tem covinhas.
— Não gosto de apertar a mão de desconhecidos. — Recuso com a
cabeça.
O sorriso de Fitz se desmancha.
— Eu não sei o que falar agora. — Ele coça a cabeça. — É… eu poderia
dizer que então a gente pode se conhecer melhor, e aí você aperta minha
mão, mas acho que não vai curtir essa cantada né?
— Fico feliz que tenha percebido isso sozinho. Já é um ponto a mais pra
você.
O sorriso dele se forma novamente. Franzo o cenho.
— Eu preciso de quantos pontos para você pegar na minha mão?
— Você precisa mesmo de um aperto de mãos? Isso é tão importante
assim? — Arqueio a sobrancelha. Qual a necessidade disso? Nenhuma. É
apenas uma droga de convenção social.
Fitz pensa por alguns segundos, dando de ombros.
— Na verdade, não.
— Viu, só. Não é porque se costuma fazer, que realmente precisa fazer.
— Te conheço a menos de meia hora e já aprendi alguma coisa, isso
deve significar algo. — Ele balança as sobrancelhas.
— Sim, significa que eu tenho coisas a ensinar e você a aprender.
Ele é estranho.
— Você é difícil — Fitz ri, virando sua garrafa de cerveja na boca. Ele
não deveria beber tão rápido. 
— Já me disseram isso muitas vezes.
— Também já me disseram que sou bom de lábia, mas você tá me
fazendo duvidar.
— A culpa não é minha que as pessoas mintam pra você... — Estalo a
língua.
— Por que eu estou achando divertido você acabar comigo? — Ele
gargalha alto. — É a primeira vez que isso acontece.
— Você pode só apreciar a verdade. É chato quando as pessoas falam
apenas o que acham que você quer ouvir.
Olho para Francis no mesmo instante. É por isso que gosto dele. Ele não
mede as palavras comigo. Apenas… diz. Age.
Ele está conversando com Ethan e Josh, quando algumas meninas se
aproximam da mesa. Devem estar perguntando se podem se sentar.
Vasculho o lugar em busca de um espaço vazio, mas a mesa deles é a única
com cadeiras e bancos suficientes. Engulo o incômodo.
Você decidiu que acabou, Angelina. Agora não espere que ele vire
celibatário.
Meu sangue borbulha.
Na verdade, eu espero sim!
— Gostei do seu jeito de pensar. — Fitz leva a garrafa na minha direção
e brindo com ele. Isso eu posso fazer.
— Diga isso à minha mãe — tento uma brincadeira, apenas para tirar os
olhos do nadador.
— Se me convidar para um domingo em família, eu vou, hein — ele
brinca.
Reviro os olhos.
— Você realmente é péssimo na arte da cantada.
— A prática leva à perfeição — Fitz coloca uma perna sobre a outra. —
Então, você é de São Francisco mesmo?
— Não, nasci em Cape May, Nova Jersey.
— Nunca ouvi falar, desculpa.
— Não é uma cidade conhecida, é pequena e fica no litoral.
— Imagino que seja bom ter crescido em uma cidade pequena.
— É, e não é. — Coloco o cabelo para trás da orelha. — A cidade em si
é maravilhosa, a natureza estonteante, não há risco de ficar nas ruas até
tarde, as crianças realmente são livres, mas as pessoas são enxeridas
demais.
— Muitas histórias constrangedoras a serem contadas para seus pais? —
Ele zomba e empurro seu ombro.
— Nenhuma que eu vá te contar. — Sorrio um pouco, gostando da
companhia. É, nem todos os caras são babacas.
Fitz e eu passamos boa parte da noite conversando. Ele está em seu
último ano na faculdade de engenharia e espera ganhar uma bolsa para
mestrado em Stanford. Temos planos completamente diferentes. O esporte é
apenas um passatempo para ele, uma diversão. Isso é algo difícil de
entender.
Esporte demanda tempo, disciplina e rotina regrada. Como alguém
consegue doar tanto de seu tempo, se isso não for seu maior e único
objetivo?
Ler é meu hobby. Mas eu posso passar uma semana sem ler, e ainda
manter o ritmo de leitura quando voltar. Se eu perco uma semana de treino,
leva outra inteira para me recuperar.
A música no pub estava branda até então, mas conforme a área de baixo
foi ficando cheia dos universitários que terminaram seus jogos dos
amistosos, ela foi aumentando de volume, até que nem mesmo meus
tampões puderam me deixar confortável.
— Vou tomar um ar lá fora. — Levanto depressa do banco. As meninas
se oferecem para ir comigo, mas recuso. Elas estão se divertindo,
principalmente Cassidy, que tem a língua enfiada na boca de um dos
jogadores.
— Posso ir com você? — Fitz se levanta, me olhando em expectativa.
Abro a boca para dizer não, mas…. Droga, por que não? Eu sou solteira.
Ele é solteiro. É legal, divertido e parece suficientemente decente e não um
maníaco que vai me matar no beco.
— Pode.
De esguelha, noto o olhar de Blue sobre mim. Não é um olhar de
aprovação.
— Mas… — ela começa a falar.
— Mas nada. Vai! — Donna a interrompe abruptamente e se minha
percepção não falha, até um pouco grosseira.
Ignoro as duas, ansiosa por sair daqui de uma vez.
Meu passo é apressado, mas não o suficiente para deixar de ouvir a
última parte da conversa das duas.
— E o Francis? — Blue indaga. — Eles se amam.
— Amor é uma droga, você não percebe? Os dois só sofrem, cada vez
mais vejo que não é uma boa ideia me apaixonar — Donna rebate e não
escuto mais nada. A música engole as palavras que vem em seguida ou elas
sequer são proferidas. O pior, é que não sei com qual delas eu concordo. É
como Austen retrata em Razão e Sensibilidade: quando a mente não quer
ser convencida, sempre encontra algo para inspirar-lhe dúvida.
 

 
 
— Parabéns pela medalha de ouro — Melissa me prestigia, erguendo seu
drink. Colido meu copo contra o seu, agradecendo. Ela e mais quatro
garotas sentaram-se na nossa mesa há poucos minutos por falta de espaço.
Elas são daqui mesmo da Universidade da Califórnia e estavam assistindo
aos jogos. Ao que parece, apenas uma delas é atleta, a loira com quem
Ethan conversa. Ou melhor, paquera. Eu já ouvi cinco cantadas sair da boca
dele e a pobre garota está caindo como uma patinha. Não que ele prometa
casamento ou ligar no dia seguinte, mas ainda assim, garotas esperam por
isso.
— Obrigado, Melissa. Eu preferia ter levado a de ouro, é claro.
— Claro que sim — ela ri, jogando os cabelos castanhos para trás. Os
olhos dela seguem a mesma cor dos fios, que atingem sua cintura. Melissa
tem os quadris e ombros largos e um corpo que ouvi vezes demais a mãe da
Blue avisá-la para não ter. Nunca entendi. Melissa é linda. Na verdade, não
consigo entender essa merda de beleza que definiram para as mulheres. A
única coisa que essa porra parece causar é uma obsessão com fundamentos
de que nós homens gostamos de apenas um tipo de corpo.
Na boa, eu tenho muitos amigos homens e eu nunca tive um que deixou
de achar uma mulher bonita por ela ser gorda, magra, ou seja lá a forma de
seu corpo. Eu reclamaria se a cidadã em questão tivesse três olhos, duas
bocas e uma antena de alienígena na cabeça. Fora isso… nada a reclamar.
— Você pretende se especializar em quê? — pergunto a ela. Melissa
estuda medicina e está no último ano antes da residência.
— Ah… a pergunta de um milhão de dólares — ela suspira. — Todo
mundo me faz essa pergunta, mas eu não sei. Espero descobrir na prática,
como Meredith Grey. E você?
Franzo o cenho.
— Posso ser sincero?
— Claro.
— Eu nem sei se quero mesmo ser médico. Meio que… — Solto uma
lufada de ar. — Meio que falta um motivo. Você entende ou sou muito
maluco?
— Eu também sentia isso no começo, sabe… até começar a atuar na
área. É quando você começa a salvar vidas, que essa profissão faz sentido.
E não apenas no sentido de impedir que alguém morra naquele exato
momento, mas de permitir que aquela pessoa possa aproveitar mais anos ao
lado da família.
— Espero que um dia eu possa sentir o mesmo que você.
Melissa se ajeita no banco.
— Eu também espero que sinta, Francis. Mas pode me prometer algo?
Faço careta.
— Olha, isso de promessa já me meteu em encrenca demais.
Ela me fita confusa.
— Não é nada demais, eu juro. — Melissa ergue o dedo mindinho para
mim e as lembranças são destravadas no mesmo instante. Ah, meu bem, se
você soubesse o quanto eu amo morder certo dedo mindinho de uma
jogadora de vôlei que me detesta…
— Vamos ouvir então — ignoro sua mão erguida e mesmo que ela fique
sem graça, não consigo unir meu mindinho ao dela. Eu sei, é ridículo, mas
isso é algo meu e da Angie.
— Promete que se não sentir o que eu te disse sobre a medicina, você a
largará e não olhará para trás?
Meus ombros ficam tensos. Eu posso prometer isso?
— Francis? — Melissa passa a mão em frente ao meu rosto.
— Ok! — digo em um rompante de coragem. — Prometo.
— Perfeito! — ela estala um beijo na minha bochecha e sorri
esperançosa.
Se ela soubesse o quanto minhas promessas deram errado até hoje, não
teria tanta fé em mim.
Bebemos cinco drinks variados antes de Melissa dizer que precisava de
um ar. Ela me disse que tem labirintite e que as luzes podem fazer as coisas
piorarem. Ela tentou chamar as amigas, mas elas estavam ocupadas demais
com os meus. Qual é, Josh tá quase engolindo a cabeça da menina.
— Eu vou com você — me ofereço.
— Não, não precisa. Sério, não quero estragar sua noite, vou ficar bem.
Olho as horas no meu celular, constatando que é tarde demais para que
eu deixe essa mulher sozinha no meio da rua.
— Fica tranquila. O máximo que você vai atrapalhar é eu ver sua amiga
engasgada com a língua do meu amigo.
Melissa gargalha e assente, segurando meu braço para descer as escadas
demoníacas. Se ela também soubesse meu histórico de desastre, não
confiaria no meu senso para descer os degraus que parecem se mover.
Nos esprememos entre os corpos na pista de dança e com muito sufoco
chegamos até o corredor na lateral do pub, que dá acesso a duas saídas, uma
da frente, onde eu e os meninos entramos e outra que imagino dar nos
fundos. Melissa e eu decidimos ir para a esquerda, que eu já sei com certeza
onde dará. Ao dar o primeiro passo na direção do corredor, dou de cara com
nada menos que Angelina e Fitz seguindo para o mesmo caminho.
Que. Caralho.
— Francis! — ele me chama animado, vindo me dar um cumprimento
tipicamente masculino. Dou tapinhas nas costas dele, mas meus olhos estão
fixos na loira atrás dele, que tem sua atenção atrás de mim, onde imagino
estar Melissa.
Limpo a garganta, me afastando de Fitz com o sangue me abandonando
o rosto.
— Fitz.
— Essa aqui é a Angelina. — Ele aponta para ela. — Angelina, esse é o
Francis.
Eu riria disso, se não fosse trágico.
— Prazer, Angelina. — Sorrio de lado para ela, apenas fingindo uma
calma que definitivamente não sinto. O que sinto é a porra do ciúme
transformando cada gota do meu sangue em veneno.
— Só não ofereça a mão, ela não gosta, hein — Fitz me alerta. Seguro
uma bufada. Sei tudo sobre ela, palhaço. Reprimo a careta.
— É mesmo? — entro no jogo e dou um passo na direção da Angel. Vejo
a garganta esguia se movimentar duramente para engolir a saliva. — Uma
reverência seria melhor?
Ela me fuzila, cruzando os braços na frente dos seios.
— Um “oi” é o bastante — grunhe. Ah, como eu amo você nervosinha,
amor. E você sabe disso.
— Oi — murmuro baixinho, observando seus olhos.
— Oi — ela sussurra de volta, não desviando nosso contato.
Meus pelos se arrepiam. Meus ossos se agitam para tocá-la. Angelina
respira pesadamente, refletindo meu próprio estado de espírito. Desço o
olhar para sua boca. Ela entreabre os lábios. Quero beijá-la. Ela sabe que eu
quero, porque morde o lábio inferior. Queria que fossem meus dentes ali. 
— E sua amiga, Francis? — Fitz limpa a garganta e me afasto de Angie
a contragosto.
— Melissa, esse é o Fitz, e essa é… — Faço uma expressão de dúvida,
com a única intenção de irritá-la. — Angelina, certo?
— Certo! — dessa vez ela rosna. Garota, para de me deixar apaixonado.
— É um prazer, gente. — Melissa diz com a mão na testa, visivelmente
tonta. — Desculpa o mal jeito, mas preciso sair daqui por causa da
labirintite.
Ela segura em meu braço novamente e os olhos de Angelina caem para a
mão dela no mesmo instante. Se olhar arrancasse pedaço, Melissa sairia
sem os dedos.
— Eu vou te ajudar. — Assinto com a cabeça para os dois na minha
frente, engolindo a vontade de socar Fitz por querer minha garota. Esses
jogadores tem que parar de dar em cima da minha Angel, porra! Ela é
algum imã para atleta? — Foi um prazer. Até…
— Até, cara. Foi bom te conhecer, Melissa — Fitz acena e ela apenas
ergue uma das mãos. Eu preciso mesmo tirar essa mulher daqui ou vai
acabar desmaiando no meio do corredor.
— Tchau — Angie nem tenta fingir que foi um prazer. Se Melissa não
estivesse prestes a falecer, acharia que chutou a mãe da loira. Mesmo que eu
saiba que a raiva é direcionada a mim e não a ela.
— Vem — levo Melissa para a porta dos fundos, ignorando a outra por
onde Angelina sai com Fitz. Essa é a imagem do inferno. É a pior cena que
um cara pode ver na vida.
A garota que ama sair com outro cara e não ter direito de fazer nada para
impedir.
Merda, Angel, o que estamos fazendo?
 

 
 
Eu quero voltar para o corredor. Quero esmagar a cara do Francis na
parede, até escutar os ossinhos daquele maldito nariz perfeito sendo
estilhaçados.
Estou com tanta raiva, que meu corpo está completamente aquecido,
mesmo nesse frio de sete graus. Ele fingiu mesmo não me conhecer? É
sério isso? Por que Francis gosta tanto de me tirar do eixo?
— Foi estranho ali no corredor — Fitz comenta, se escorando na parede
do hall de entrada do pub.
— Por quê? — Cruzo os braços, ficando ao lado dele.
— Não sei, mas parece que rolou uma puta energia vinda de você e do
Francis.
É, tanta energia que seria suficiente para iluminar toda São Francisco por
um ano inteiro.
— Não percebi — minto. Ele definitivamente não precisa saber da
confusão da minha vida.
— Bom, de qualquer forma, está se sentido melhor aqui?
Respiro fundo, assentindo.
— Com certeza meus tímpanos estão agradecendo.
— Confesso que meu ouvido está zunindo também — ele ri, virando-se
para mim. Também me viro para ele. — Você é muito bonita, sabia?
— Sabia.
Fitz morde a boca.
— Não vai fazer o joguinho do: não, não sou nada demais…
— Por que eu faria isso? — Franzo o cenho. — Eu me acho bonita, não
diria o contrário.
— E não teria motivos para isso mesmo. É legal que você seja sincera.
— Conviva comigo mais um tempo e você vai torcer por um pouco de
mentiras sociais. — Bufo uma risada.
— Eu duvido muito. Estou gostando de você falar algumas verdades na
minha cara. Veja, se não tivesse falado que sou ruim de lábia, como eu iria
melhorar?
— Fico contente em ter ajudado.
Dou de ombros, mantendo nossa conversa até que o tempo esfrie demais
e eu prefira o barulho da música, aos meus ossos sacolejando por dentro.
— Acho melhor a gente voltar — indico a porta de entrada.
— Você tem razão, está muito frio aqui.
Assinto, desencostando da parede para entrar novamente no pub. Fitz
chama meu nome, no entanto, interrompendo meu passo. Viro para trás para
saber o que ele quer, e recuo dada a proximidade que está agora. Engulo.
Alerta vermelho.
Próximo demais.
Se afaste.
Dou um passo para trás.
— Ei, não precisa ter medo de mim. Se não quiser, tudo bem. — Ele
ergue as mãos, deixando claro que não vai tomar nenhuma atitude.
Tento controlar minha respiração.
— O que exatamente eu posso não querer? — pergunto para averiguar
qual é sua real intenção aqui.
— Me beijar — fala sem graça, coçando a nuca.
— Te beijar? — minha voz sai falhada.
Contorço as mãos na lateral do corpo.
— Isso seria algo tão ruim?
— Você não faz ideia… — Balanço a cabeça, um pouco atordoada.
— Nossa, essa feriu.
— Não gosto de contato inesperado — explico.
— Não é exatamente inesperado, já que estamos falando sobre o beijo —
Fitz faz graça, mas o humor não chega até mim.
— Vai ser inesperado porque eu não sei como você beija.
— Nunca reclamaram.
— Também disseram que você é bom de lábia.
— Ok, feriu de novo. — Fitz gargalha. — Você tá acabando comigo.
— Não é a intenção.
— Então isso é um “não”? — Ele inclina a cabeça para o lado.
O encaro. Talvez por segundos ou minutos. Francis deve estar beijando a
garota agora. Ele vai conseguir seguir em frente. E eu? Se não me permitir
algum risco, nunca vou conseguir seguir em frente. Eu preciso ao menos
tentar. Preciso mesmo tentar.
— Eu vou beijar você e você não vai me tocar com as mãos ou se mover.
Fitz faz uma careta. Meu coração acelera.
— Mas aí você vai falar que eu beijo mal e a culpa nem vai ser minha.
— Apenas fique parado e se eu deixar, você me beija. Ok?
O garoto dá de ombros.
— Nunca passei por isso antes, mas ok. Você quem manda.
Assinto, suando frio. Meu corpo inteiro está pedindo para que eu me
afaste. Ele não quer coisas novas, quer o que já conhece e sabe que é bom.
Ele quer o homem que primeiro busca nos meus olhos o que minha boca
não consegue dizer, o homem que me toma pedaço por pedaço, nunca
tomando mais do que estou pronta a dar e me fazendo sentir capaz mesmo
contra todas as expectativas.
Só que eu afastei esse homem. Afastei porque não consigo perdoá-lo.
Afastei porque tenho medo de perdoar e meses a frente ter que perdoar
novamente.
Coloco as mãos nos ombros de Fitz.
— Não se mova.
Ele assente devagar. Respiro fundo, me aproximando da sua boca.
Hiperventilo. Meu coração acelera. O que esperar? Qual o sabor da boca
dele? Qual a textura?
Fitz fecha os olhos, mas eu mantenho os meus bem abertos. Comprimo
meu lábio ao dele. Espero o pânico. Ele não vem. Então espero a explosão
de sentimentos que estou acostumada. Ela também não vem. Espero o
arrepio na espinha. Mas apenas o frio a causa. Espero o amolecimento dos
meus ossos. Mas eles estão intactos feito pedra.
Não sinto nada.
Talvez porque ele não esteja se movendo.
Assinto contra a boca de Fitz e ele entende meu sinal. Ele entreabre seus
lábios, puxando o meu inferior para si. Ainda nada. Ele segura minha
cintura e a pressão na minha pele é ínfima, quase imperceptível. Ainda
nada. A língua dele entra na minha boca. É estranho. Diferente. Mas…
ainda nada. Permito que ele intensifique o beijo. E correspondo. Minha
língua se une a dele, mas meus olhos continuam abertos, tentando achar
alguma parte do meu corpo que esteja apreciando a experiência.
O pânico está guardado.
Mas a emoção também.
Eu passei a apreciar a tempestade do Francis. E isso não passa de uma
fina garoa.
Por que eu não sinto nada?
Afasto-me gentilmente, empurrando seus ombros.
— Desculpe — peço.
Fitz me analisa e não vejo aborrecimento em sua expressão, ele apenas
parece tentar me entender.
— Estava ruim?
— Não — sou sincera.
— Então por que parou?
— Porque também não estava bom.
— Agora eu estou confuso.
— Eu só… — Dou de ombros. — Não senti nada.
— Esse é o momento que você fala: não é você, sou eu? — Fitz segura o
riso.
— Não. É você.
— Mulher, você está me destruindo. — Gargalha. — E eu não sei porque
estou achando isso divertido.
Acabo rindo um pouco também.
— É você, mas isso não quer dizer que você seja ruim. É só que… você
não é a pessoa certa.
— Então tem um outro cara?
— Tem.
Tinha.
Não sei mais.
— Ele é um cara de sorte.
— É.
Era.
Não sei mais.
— De qualquer forma, gostei de te conhecer, Angelina.
— Também gostei de conhecer você, Fitz.
— Vamos entrar?
— Vai na frente. Agorinha eu subo.
— Tem certeza?
— Aham.
Ele assente, entrando novamente no pub.
Toco meus lábios. Eles sequer formigam.
Você me deu doses altas demais de si próprio, Francis. E agora estou
viciada e estragada para qualquer outro.
 

 
 
Será que Angelina está beijando o Fitz? Será que ela me esqueceu tão
rápido?
Meu corpo está aqui, mas minha mente está do outro lado do corredor.
Eu me sinto um merda. E perdido. Só queria ter direito de cruzar esse
espaço e perguntar sobre os seus sentimentos, reivindicar seu corpo para
mim e meu lugar de volta no seu coração. Mas acho que é tarde demais.
Céus, meu estômago embrulha de imaginá-la beijando outro homem. E
pior... eu nem deveria, já que fodi com tudo. Burro, Francis. Você é um
burro!
E egoísta.
Ela tem direito de seguir em frente. Merda, ela merece seguir em frente.
Melissa fica cara a cara comigo. Ela está próxima o bastante que se eu
me mova alguns centímetros a mais, nossas bocas se encontrem. Ela fecha
os olhos, esperando. Os meus continuam abertos.
Eu posso beijá-la?
Consigo beijá-la?
Eu devo colocar uma mão no seu rosto e outra em sua cintura? Por que
ela está de olhos fechados antes de eu a beijar? Como vou saber o que ela
sente? Como vou saber onde tocá-la?
Aproximo-me.
Afasto-me.
Repito isso três vezes.
E suspiro.
Ela abre os olhos.
Está visivelmente confusa.
— Algum problema?
Encaro o chão. Não acredito que sou tão fraco assim. Eu tenho que
seguir em frente. Angelina claramente está seguindo. Então por que fico
aqui, apenas esperando que a garota à minha frente faça tudo exatamente
como ela fazia?
— Tem — admito, voltando a observar os doces olhos castanhos. —
Infelizmente tem um problema.
— Qual?
Mordo o lábio, sentindo as bochechas esquentarem de vergonha.
— Escuta... — Seguro o rosto dela nas mãos, mantendo nosso contato
visual. — Você é linda. De verdade, você é muito linda. — Melissa sorri e
me sinto um bosta por simplesmente não conseguir sentir vontade de beijá-
la. — Você é gentil, inteligente e eu adorei nosso papo.
— Mas? — ela continua sorrindo. Eu queria que me batesse e me
chamasse de otário. Seria menos constrangedor.
— Mas eu sou apaixonado por outra pessoa. E mesmo que essa pessoa
não me queira, eu simplesmente não consigo fazer isso. — Aponto entre
nós dois.
— Deixa eu adivinhar… é a loira do corredor, não é?
Arqueio a sobrancelha.
— Como sabe?
— Mulher tem sexto sentido pra essas coisas.
— Está tão claro assim? — Saio da frente dela, me recostando na parede
ao seu lado.
— Cristalino — Melissa ri. — Por que acabou entre vocês?
— Errei com ela — digo amargo. — Mais de uma vez.
— Foi um erro tão grave assim?
— Acreditei em uma mentira para começar… e depois, duvidei de sua
verdade. É grave o bastante.
— Mas você ainda a ama.
— Amo. Com cada maldita fibra do meu corpo, eu a amo.
— Então por que não luta por ela?
— Eu tentei. — Solto uma lufada de ar. — Eu tentei, mas ela deu seu
ultimato. Acabou.
— Não pareceria que acabou quando vocês se encontraram no corredor.
— Ela estava saindo com outro cara, definitivamente acabou. — O
ciúme se arrasta como uma serpente.
— Você também estava saindo comigo e nem por isso acabou para o seu
coração.
— É diferente. — Balanço a cabeça. — Angelina é alguém por quem
vale a pena lutar e persistir. Eu não sou.
— Não fale assim, Francis.
— É a verdade. Eu tenho razões para amá-la todos os dias da minha
vida. Tenho motivos de sobra para saber que ela é digna de todos os
sentimentos bons que existem dentro de mim.
— Então por que não interferiu quando ela saiu com seu amigo no
corredor? — Melissa faz a pergunta do século.
— Porque sou egoísta o bastante para querê-la mesmo que não seja
merecedor, mas não sou egoísta o suficiente para impedir que ela tente
encontrar alguém que seja.
Esfrego o rosto com as mãos.
— Isso é lindo e triste ao mesmo tempo.
Rio sem humor.
— É mais triste do que lindo, pode ter certeza. Abrir mão de Angelina
sempre foi e sempre será a coisa mais difícil a se fazer.
— Eu espero que algum dia alguém fale de mim com o mesmo brilho
nos olhos que você fala dela. Nem a conheço, mas essa garota deve ser
incrível.
— Ela é... — Sorrio, mentalizando seus olhos. — Ela é a melhor pessoa
que eu já conheci. E eu a perdi. Perdi para sempre.
Uma lágrima escorre. E no momento, não sinto vergonha.
— Ainda há tempo — ela sussurra para mim. — Eu acredito nisso.
— Eu também queria acreditar. Mas o tempo tem sido meu pior inimigo.
 

 
 
Albert Camus disse: “Amo ou venero poucas pessoas. Por todo o resto,
tenho vergonha de minha indiferença. Mas aqueles que amo, nada jamais
conseguirá fazer com que eu deixe de amá-los, nem eu próprio e,
principalmente, nem eles mesmos.”
É assim que me sinto. Com vergonha da minha indiferença a Fitz. E com
a certeza, de que não importa o quanto queria ou quanto Francis mereça,
não sou capaz de deixar de amá-lo.
Abro a porta do pub decidida a tomar algumas doses a mais de álcool,
mas estanco no meio do corredor, quando o nadador também abre a porta
dos fundos, entrando sozinho, sem a garota ao seu lado.
Nós dois paramos a uma distância segura um do outro. O olho dele está
avermelhado como se tivesse chorado e não há sinal em sua boca de algum
beijo. E ali, eu tenho a certeza de que ele não conseguiu.
Mordo o lábio para esconder que fico feliz. Porque sim, podem me
julgar, eu fico feliz. Ele morde o lábio dele, também escondendo um
sorriso.
Mas nenhum de nós consegue conter a gargalhada que vem em seguida.
Não sei do que estamos rindo, talvez do caos da nossa vida, das nossas
incapacidades de sermos felizes separados, ou talvez porque o riso seja uma
alternativa melhor ao choro.
Francis dá passos na minha direção e leva a boca ao meu ouvido.
— Acabou é o caralho, Angelina — ele sussurra e deposita um beijo
demorado em minha testa, só para então seguir para dentro do pub, subindo
as escadas para o mezanino.
Fico parada uns bons cinco minutos, recuperando meu fôlego.
Quando estou pronta para subir, a garota que estava com Francis entra
pela mesma porta que ele. Ela arregala os olhos ao meu ver.
— Você! — Aponta em minha direção.
— Eu? — Franzo o cenho.
A garota pondera antes de se aproximar de mim.
— Escuta… eu não te conheço. Não faço ideia da sua história ou do que
passou com o Francis. Mas aquele cara — ela aponta para o mezanino. —
Aquele cara ama você. E se um dia eu tiver a sorte de encontrar alguém que
fale de mim com tanto amor e reverência, vou lutar com unhas e dentes para
que dê certo. Não desperdice sua chance.
A garota não me dá tempo para uma resposta.
Ela apenas sai andando, deixando-me de olhos arregalados para trás.
Ela tem razão sobre uma coisa. Não conhece nossa história.
Por isso acha que é tão fácil.
As pessoas não entendem como é difícil. Como perdoar é difícil.
Sim, ele me ama. Mas posso arriscar a dizer, que Francis perde na nossa
competição por quem tem o sentimento mais forte. Porque eu nunca duvidei
dele. E é por isso, por saber que eu nunca faria com ele, o que fez comigo,
que estou jogando minha chance fora.
 
 
 

 
 
— Você tem certeza do que está fazendo? — Donna me questiona pela
quinta vez desde que saímos de casa.
— Eu vou fazer isso, já está decidido. — Deito na maca de couro preto,
virando para o lado oposto ao do tatuador.
— Angelina, isso não tem volta.
— Minha relação com seu irmão também não — digo irritada.
— O fato de isso a deixar tão nervosa, só mostra o contrário. Se estivesse
convencida de que vocês não têm volta, lidaria com um belo foda-se e
viveria sua vida. Vocês estão agindo no calor do momento, faz pouco tempo
que tudo aconteceu, espera seu coração se aquietar para não se arrepender.
Ergo o tronco, olhando nos olhos dela.
— Estou cansada de todo mundo dizer o que eu tenho ou não que fazer,
o que eu tenho ou não que sentir. Se vocês não superaram meu término e do
Francis, é problema de vocês. Mas me deixem superar! — digo as palavras
separadamente, uma raiva borbulhando dentro de mim e chegando à minha
boca mais rápido do que consigo freá-la.
— O que merda deu em você? Tá cuspindo fogo em todo mundo que
quer te ajudar.
— Eu não pedi pra ninguém me ajudar! — digo mais alto do que
imaginei e Donna pisca, dando um passo para trás.
Ela passa bons segundos me analisando, até uma careta se formar em seu
rosto.
— Então lide com as consequências sozinha depois. Não fiquei servindo
de pano de chão do meu irmão quando ele estava no modo fodido da cabeça
e não vou servir para você. Me chame quando você estiver pensando além
da sua raiva e quem sabe eu ainda esteja disposta a conversar.
Abro a boca para falar, mas Donna sai do estúdio de tatuagem pisando
firme, os saltos produzindo barulhos altos no piso de madeira. Suspiro,
deitando a cabeça na maca.
— Está tudo bem? Quer deixar para outro dia? — O tatuador averigua
com as sobrancelhas erguidas e meu rosto esquenta por ele ter ouvido toda a
discussão.
— Está tudo bem… pode fazer — digo não tão convencida quanto antes.
Mas não vou desistir agora.
— Não se mexa, por favor.
Se ele soubesse que não consigo sequer respirar…
 

 
Não vou para casa depois de sair do estúdio de tatuagem. Não quero
encontrar com Donna e lidar com seu rompante, principalmente porque sei
que vou merecer cada coisa que ela disser.
Não estou sendo fácil. Bom, eu nunca fui, mas estou sendo mais difícil
que o costume. Meu humor vai do céu ao inferno em questão de segundos.
Doutora Trish disse que foram muitas mudanças para eu administrar em
pouco tempo e que isso mexeu com meu emocional. Me fez oscilar entre
felicidade, raiva e tristeza.
Não importa como começou, eu só quero que pare.
Ambiguidade de sentimentos não é algo que eu aprecie. Muito menos me
arrepender das minhas palavras, assim que elas saem da boca.
Quando falei para Francis no nosso passeio que não tínhamos mais
chance, eu quis de fato dizer e acreditei nas minhas palavras. Mas ao final,
quis que ele me mandasse à merda e me beijasse. Quis que risse da minha
lógica e não que a tomasse para si. Eu não deveria dizer as coisas esperando
uma reação diversa da racional. Ele agiu como eu dei a entender que
deveria. Mas ainda assim, estou possessa que ele tenha seguido minha linha
de pensamento.
Droga, por que ele ficou calado? Por que não insistiu? Eu quero que ele
insista, ao mesmo tempo que o quero longe.
Donna tem razão de estar brava comigo. Eu também estou.
Pego um táxi até à biblioteca, decidindo ficar por ali até que escureça o
suficiente para Donna ter saído ou dormido. Encontro Josh saindo do prédio
da administração e ele sorri para mim animado, talvez o único que ainda
esteja de fato feliz em me ver.
Não consigo forçar um sorriso de volta. Tudo em mim dói e não digo
apenas no emocional. Meu corpo inteiro lateja e minhas pernas parecem
perto de ceder ao meu peso. Talvez tenha algo a ver com os roxos que
encontrei por ela também. Eles não param de aparecer e eu definitivamente
não faço ideia de onde os consegui.
Quando não é minha mente gritando que está entrando em colapso, é
meu corpo berrando a mesma coisa.
— Como vai a campeã olímpica?
— Nem campeã e nem olímpica.
— Eu sei como curar esse baixo astral — Josh me oferece seu braço e
respiro fundo, negando com a cabeça. Não quero que me toquem agora.
Não quero administrar mais nada do que o turbilhão de comandos que meu
cérebro está enviando para meus músculos. — Tudo bem, nada de tirar
casquinha, entendi. — Ele sorri com seu jeito gentil e isso aquece um pouco
meu coração ranzinza. — Mas eu ainda sei como acabar com esse humor
azedo.
— Por favor, não diga festa.
— A menos que considere degustação de vinho uma festa, então não
direi.
— Vinho? — Faço careta. — Desde quando você toma vinho?
Meu amigo me encara ofendido.
— Sou quase um sommelier, gata.
— Aham… claro. — Solto uma risada.
— Falo sério, eu aprendi a degustar vinho com um veterano logo que
entrei na USF.
— Você provou o vinho ou a boca dele? — pergunto desconfiada.
— Os dois. A combinação perfeita. — Balança as sobrancelhas, jogando
o cabelo escorrido para o lado. — A propósito, você não pode dizer “não”.
Eu já comprei o ingresso e Cassidy deu pra trás pra se encontrar com um
cara.
— Então eu sou a segunda opção? — Cruzo os braços.
— Gata, eu tenho certeza que se você pudesse escolher, quem estaria na
sua frente seria um nadador de mais de 1,80m, musculoso, olhos azuis
piscina e tatuagens de lírios, então não se faça de ofendida.
Sou obrigada a ficar calada.
Não que eu fique feliz com isso, porque faço um bico bem proeminente,
que arranca risada de Josh enquanto ele me arrasta para os dormitórios.
Acho que é melhor enfrentar um monte de bêbados vestindo ternos caros do
que qualquer pessoa da minha vida agora. Torço apenas para que Donna
não esteja no quarto.
 

 
Josh fuça meu armário de roupas, procurando algo sexy o bastante para
chamar atenção, mas discreto o suficiente para não parecer que estou
desesperada por ela. Eu desisti de entender sua lógica há meia hora. Ele
falou tanto sobre a psicologia das cores, que começo a duvidar se vermelho
com azul dá mesmo roxo.
Tiro meus olhos das mãos rápidas e ágeis do meu amigo, evitando que
meu corpo me force a mandá-lo parar. As pessoas têm que aprender a ser
menos enxeridas, isso seria um alento para mim.
Enquanto ele faz sua inspeção, meu notebook acende a luz de uma
notificação e sento em frente à escrivaninha. É um e-mail da USF,
provavelmente com o resultado dos meus testes antidoping. Abro o e-mail
em busca de distração. Geralmente eles apenas encaminham o PDF com o
resultado. Isso quando não há algo preocupante nos resultados, porque
quando acontece, a seguinte mensagem é enviada: recomenda-se consulta
com um profissional da saúde, de caráter urgente.
E é exatamente o que está escrito em letras garrafais vermelhas ao final
do meu exame. Pisco para a tela, sentindo meu sangue sumir
completamente do rosto e das mãos, os dois tornando-se completamente
frios.
Não há a mínima chance de eles terem detectado uso de drogas. Não
mesmo.
Abro o arquivo sem sentir os batimentos do meu coração. Minha visão
torna-se turva quase que instantaneamente e preciso comprimir os olhos
para enxergar a comparação das taxas de normalidade versus as presentes
no meu corpo.
O hemograma é confuso e não entendo grande parte dos nomes, mas as
porcentagens esperadas são claras e a da minha hemoglobina está abaixo do
mínimo esperado. Muito abaixo. Seguro na beirada da mesa, ficando tonta.
Balanço a cabeça.
Jogo no site de busca a taxa com alteração e o resultado me deixa
confusa. Anemia. Mais especificamente, anemia severa.
Isso não condiz com meu histórico de saúde. Nunca tive qualquer
problema de ferro no sangue ou algum tipo de sangramento menstrual que
causasse uma perda de sangue considerável. Minha alimentação poderia ser
melhor, é claro, mas não é ruim ao ponto de me deixar anêmica. Não tenho
comido muito nos últimos meses, mas isso não seria suficiente para causar
danos nesse nível. Seria?
Droga, agora eu queria que Donna estivesse aqui. Ela sempre gostou de
olhar meus exames, antes mesmo de começar a faculdade. Ela se sentia uma
médica formada e conhecia todos esses nomes esquisitos e difíceis.
Com os dedos trêmulos e minha visão arriscando escurecer, abro o site
de buscas novamente, jogando o nome “anemia”. Aperto o enter e entro na
primeira matéria sobre o assunto.
O site explica o que é, os sintomas e tratamentos para anemia. Segundo o
artigo, ela não é uma doença principal, mas sim causada por outra doença
ou fatores. Isso não me anima muito, principalmente porque me pego
lembrando de todos os sintomas que venho sentindo. Paro para analisar meu
estado de uns meses para cá. Os pequenos sinais estavam piscando o tempo
todo e eu imaginei que fosse apenas meu psicológico aturdido e agitado.
Culpei meu estresse por tudo, e pior, culpei o Francis.
Os roxos que encontrei na minha pele fazem sentido agora. A fraqueza,
fadiga, perda de apetite…, mas ainda não sei dizer o que pode ter causado
isso. Não dá simplesmente para presumir que seja meu psicológico
estilhaçado.
“Ele vem sofrendo de anemia severa.”
A palavras de vovó Angelina de uns dias atrás acende na minha mente.
Minha respiração trava na garganta.
As letras do teclado parecem pequenas demais e meu coração bate
errado. As articulações dos dedos ficam travadas e é preciso que eu engula
a bile que sobe na garganta, antes de pesquisar “doenças que causam
anemia severa”.
A primeira coisa que aparece no resultado deixa minha visão quase
escurecida. Clico na palavra, buscando os sintomas.
Clico em leucemia e a página me mostra uma lista extensa de sintomas,
com fotos e relatos de pacientes. Minha vertigem se intensifica.
Fecho o notebook com força o bastante para tirar a atenção de Josh das
minhas roupas. Ele me analisa interrogativamente. Aperto minhas mãos,
fincando as unhas nas palmas para tentar manter uma expressão neutra.
É difícil quando as causas de leucemia piscam em letras garrafais na
minha mente.
Anemia severa, perda de apetite, emagrecimento sem causa aparente,
dores de cabeça, dores nas pernas, fadiga, cansaço. E a pior: pode ser
hereditário.
“Vovô está com uma doença no sangue.”
“Não estou com fome.”
“Você perdeu peso.”
“Não sei onde consegui esses roxos.”
“Minhas pernas doem tanto.”
“Estou tão cansada.”
“Minha cabeça parece prestes a explodir.”
“Recomenda-se consulta médica de caráter urgente.”
“Ele está com leucemia, Lilium.
Meus pensamentos dos últimos meses são jogados violentamente de um
lado para outro na minha mente, até que me sinto completamente enjoada.
— Angelina… está tudo bem? — Josh me fita com sobrancelhas
comprimidas. Eu apenas balanço a cabeça.
É o máximo que consigo fazer, quando sinto que o chão está se abrindo
sob meus pés.
A bile sobe na minha garganta rapidamente e corro para o banheiro,
batendo a porta fortemente e despejando todo o conteúdo do meu estômago
no vaso.
— Angelina, pelo amor de Deus, abre essa porta! — Josh esmurra a
madeira e cada batida faz meu corpo saltar no chão do banheiro. Recosto-
me contra os azulejos brancos e minhas costas suam miseravelmente; os
tremores me impedem de levantar.
Leucemia.
Não deve ser isso.
Não pode ser isso.
Deus, que não seja isso.
Merda, merda, merda!
Eu não posso estar doente. Não posso. E o vôlei? E a faculdade? Inferno,
e minha vida? Eu não fiz nada ainda. Não vivi nada. Me privei de tudo e
agora isso? É esse pedaço de história que terei para contar? Meu avô teve
décadas. Décadas! E eu não realizei sonho algum da minha vida…
As lágrimas descem pelo meu rosto, mas não escapa nenhum som dos
meus lábios, estou em completo choque. Minha mente não funciona. É
pensamento demais. Quero o silêncio. Preciso do silêncio. Cubro os
ouvidos com as mãos, balançando a cabeça.
Pare, por favor, pare!
Ruídos. Palavras. Pensamentos. Lembranças. Fragmentos de cada
pedacinho do que vivi nos últimos meses sendo jogados na minha mente em
um jogo doentio, onde a única possível derrotada serei eu. O difícil de lutar
consigo mesma, é que você conhece os pontos onde mais dói, onde a ferida
rasga e a cicatriz ainda não se perpetuou. Sabemos exatamente como nos
destruir.
Os tremores são internos, mas refletem no exterior. É como se pegassem
meus órgãos e ossos e os sacodissem violentamente, os tirando do eixo.
Bato a mão no chão. Na parede. Em mim. Eu me bato. Bato violentamente,
sentindo a pele arder e grunho para sair do embaraço de laços da minha
cabeça e voltar à realidade.
A bile sobe novamente e choro enquanto ponho tudo para fora. Minha
garganta queima, meus olhos ardem, meu corpo implora por um segundo de
calmaria. A tempestade não cessa. Ela nunca cessa. Mas em alguns
momentos, o que era uma onda forte, torna-se um tsunami impiedoso.
Incontrolável. E eu sigo em meu barquinho de madeira, balançando e
ameaçando se romper. É assim que me sinto. Prestes a romper em mil
pedaços não consertáveis.
Se antes o cansaço era esgotante, agora ele me coloca de joelhos. Não
tenho forças nas pernas para me erguer e cada vez que as encaro,
encontrando os roxos até então inofensivos, tenho mais vontade de vomitar.
Por favor, eu não quero estar doente… eu pensei tanto, minha vida toda,
eu pensei tanto nas consequências dos meus atos, no que viria no futuro, e
agora eu sequer posso vir a ter um. Não é justo! Eu sou boa, sou uma
pessoa boa, não é justo, não é… eu não consegui participar de uma
olimpíada, nunca participei de um concurso de flores, não visitei outro país,
não consegui vencer meu medo da água…
Balanço a cabeça sem conseguir parar; o controle sobre meu próprio
corpo foi tirado de mim e agora o pânico controla as teclas. Ele não tem
misericórdia.
Apoio-me na tampa do vaso sanitário, forçando minhas pernas a
funcionarem.
— Angelina, eu vou arrombar essa porta se você não abrir! — Josh
continua batendo e eu só quero que ele pare com a porra do barulho. Eu não
quero barulho, quero silêncio. Minha mente está ruidosa demais.
Firmo meus pés no chão, precisando de três tentativas até conseguir
apoiar minhas palmas na pia de mármore. Enxáguo a boca antes de girar o
trinco. Josh entra no banheiro apressado, com os olhos saltados e o rosto
desprovido de cor.
Pelo amor de Deus, eu já estou doente, não invente de ficar também.
— O que aconteceu, Angie? — Ele passa a mão no meu cabelo e dou um
passo para o lado, cambaleando e balançando a cabeça.
— Não! — grito. — Não me toca! Não me toca!
Abraço meu corpo, balançando para frente e para trás, raspando as unhas
na pele do meu braço. Dói, mas não tanto quanto os disparos de pensamento
na minha cabeça. O instinto é me bater. É me machucar. E alguns anos
atrás, eu o faria. Aprendi a controlar a porcentagem dos estragos. O que
antes vinha em 110%, agora me atinge em 80%. Pode não parecer um
grande avanço, mas para mim, qualquer coisa é melhor do que saber o
quanto eu poderia me ferir como forma de defesa.
— Desculpa, e-eu… eu não sei te ajudar, não sei o que fazer — Josh
sacode as mãos, visivelmente incomodado. — Você quer que eu ligue para a
Donna… para o Francis?
— Não! — nego fervorosamente. — Não… por favor não.
— Tudo bem, Angie… não vou chamar. Mas me diz como te ajudar.
Pisco, engolindo a saliva com gosto pavoroso.
— História… me conta uma história.
Josh me fita confuso, mas logo começa a fazer o que mais gosta. Falar. E
eu faço o que me acalma. Escutar. Sento novamente no chão, abraçando
minhas pernas apertado, enquanto meu amigo conta como descobriu que era
bissexual. Josh é bom contador de histórias. Ele me faz rir. Mesmo em meio
ao choro. E não me toca ou pergunta o que tenho.
Quando ele termina de me contar algo seu, sinto-me na obrigação de
contar algo meu.
— E-eu… — respiro, mas é doloroso, o ar poderia muito bem ser
espinhos em meus pulmões. O exalo com força. — Eu acho que posso estar
doente. Talvez muito doente.
Evito olhar em seus olhos. Passei a vida com pessoas me olhando como
se eu fosse quebrável e indefesa, como se a qualquer ventania, eu fosse
desabar. Se eu acrescentar um câncer à minha lista de limitações, tudo isso
apenas vai piorar.
Se for para ter algo assim, prefiro que apenas eu saiba. Que apenas eu
lide. Causar dor e sofrimento a quem eu amo não faz parte dos meus
objetivos. Eu posso lidar sozinha com isso. Ou melhor, posso não lidar com
isso. Não quero saber. Não quero ter certeza. Porque se eu tiver, não tem
volta. A esperança vai ter chegado ao fim.
Aristóteles disse que a esperança é um alimento da nossa alma, ao qual
se mistura sempre o veneno do medo. Talvez seja isso. Talvez não haja
esperança sem medo. E se eu constatar que tenho essa doença, não sentirei
nada além de conformismo.
Eu não quero sentir isso. Eu quero sentir que amo minha vida. Que quero
vivê-la. Vivê-la intensamente, de verdade. Vovô perdeu a chance dele. Eu
não quero perder a minha. Não quero ficar doente.
— Como assim doente, Angie? — se possível, Josh fica ainda mais
pálido e apático.
— Não quero falar sobre isso — admito. É melhor ser sincera. Ele não
vai acreditar se eu disser mentiras. Não sou boa com elas.
— Mas, Angie… e-eu preciso — ele começa a contestar e balanço a
cabeça, deixando claro que não falarei mais nada. — É grave assim?
Não respondo com palavras. A forma que o encaro em puro medo e
angústia, é suficiente. Josh assente, os olhos ficando avermelhados.
— Então é melhor ficarmos em casa.
— Não! — grito. — Eu preciso sair. Acredite em mim… e-eu não posso
ficar em casa hoje. Por favor, não me deixe em casa hoje, não comigo
mesma, não com meus pensamentos.
— Tem certeza? — ele averigua por precaução.
— Josh, eu tinha certeza de quase tudo na minha vida antes de me mudar
para cá. Hoje, eu não tenho certeza sequer de que vida terei.
— Como posso te ajudar? — Josh deixa uma lágrima cair. Não me
importo, eu também estou deixando as minhas rolarem.
— Me faça esquecer. Eu preciso esquecer, pelo menos por hoje, quem eu
sou, o que tenho e o que não terei.
Meu amigo engole com dificuldade e percebo a batalha interna que ele
trava consigo mesmo para não me questionar mais nada. Não é justo dividir
isso com ele, mas o destino quis assim.
— Você ainda quer ir até os vinhedos?
Assinto, balançando firmemente a cabeça.
— E quero parecer deslumbrante. Quero me olhar no espelho e não me
reconhecer.
Josh sorri minimamente. 
— Então vamos ter que assaltar o guarda-roupa da Donna.
— Ei! — Estreito os olhos. — Isso foi um jeito disfarçado de dizer que
me visto mal?
— Não, mas você se veste para dispersar e precisamos que você apareça.
É a ideia, não é?
Franzo o cenho, pensando a respeito. Josh tem razão, eu me visto para
aparecer o menos possível. As roupas brancas e de tons neutros não são
apenas para que eu veja a limpeza nelas, mas também para passar
despercebida entre as pessoas. Como um fantasma que não pode interferir
em suas vidas.
Nesse momento, esse fato me incomoda. Estou cansada de me esconder.
De fazer de tudo para ser mais uma na vida das pessoas. Principalmente
porque posso não ter o resto da vida para que eu me faça notar. Vovô
Samuel terminou com esse destino. Esquecido entre os seus. Isso me
apavora.
— É — digo sem dúvida alguma. — Essa é a ideia.
 

 
Conforme Josh dirige, as construções modernas vão dando espaço aos
campos de plantação da vinícola, que se estendem adjacentes à estrada. Se
eu não estivesse com uma bomba sobre minha cabeça, apreciaria a
paisagem. Como não é o caso, apenas aceno quando Josh comenta sobre a
beleza do lugar.
Josh me fita rapidamente e eu forço um sorriso. É melhor que eu fique
boa em dá-los ao estar mal. Não conseguiria olhar para minha avó, e saber
que trouxe mais um sofrimento para ela. E não conseguiria olhar para
Donna e saber que eu a deixaria sozinha, sem um freio para suas
maluquices. E ainda tem… ele. Francis.
Não. Não quero pensar nele.
De todos, é o que mais me dói. Talvez agora eu entenda o que vovó
Angelina quis dizer sobre o tempo. Sobre ele não voltar. E sobre nos
arrependermos de não perdoar. A vida é uma grande desgraçada quando
quer nos fazer pagar com a língua.
Eu estou doente. Pode ser leucemia. Pode não ser. Mas uma anemia
severa não vem do nada. Ela está aqui por um motivo. Foi assim que vovô
piorou, assim que vovó Angelina soube da doença dele. É quase cômico
que seja pelo mesmo motivo que eu vá descobrir a minha.
— Chegamos — Josh faz a curva numa estrada de terra e limpo a
garganta, me recompondo. Um casarão de pedras antigo se ergue ao fundo,
impressionante e impotente. — Ali é a fábrica e onde vamos fazer a
degustação. Também tem passeio pelas plantações, mas eu não sei você, eu
detesto pisar em terra e ser comido por mosquitos, então vou ficar na parte
chique e alcoólica.
Sou obrigada a rir de verdade com essa.
— Acho que por hoje vou seguir você.
— É assim que se fala! Donna ficaria orgulhosa.
— Donna está brava demais comigo pra ficar orgulhosa.
Eu deveria avisar a ela que não é uma boa hora para alimentar rancor de
mim, mas isso me obrigaria a contar algo que nem eu mesma sei. Não dá
pra chegar e falar: ei, acho que vou morrer, dá pra não me odiar?
— Por quê?
— Fui grossa com ela enquanto fazia a tatuagem.
— Tatuagem? — Josh me ajuda a descer do carro, já que o vestido longo
e os saltos dificultam meu trabalho. A fenda na perna direita se abre quando
coloco um pé para fora. Peguei emprestado o vestido de Donna e espero
que ela não se importe. — Que tatuagem?
— Essa. — Viro de costas para que ele possa ver o desenho recém feito.
O vestido de alça permite que fique visível e agradeço por não ter um tecido
ferindo a pele sensível.
— Puta merda! — ele pragueja. — Você cobriu…
— Cobri. — Dou de ombros. Francis também cobriu e não vi ninguém
de queixo caído.
— Ele vai pirar.
Josh começa a andar em direção ao casarão, balançando a cabeça.
— Quem? — finjo inocência.
— Você sabe quem e sabe que ele vai pirar.
Engulo.
— Não me importo — minto.
— Ah, você se importa — Josh ri. — Basta ver o desenho que fez.
Abro a boca para retrucar, quando percebo que ele tem razão. Francis e
eu não conseguimos nos afastar mesmo quando tentamos cobrir vestígios
do que tivemos no passado.
— A gente veio aqui beber ou falar do meu passado?
— Eu não acho que seja passado, mas tudo bem. Viemos beber e não
lembrar dos homens que destroçaram nossos corações — Josh suspira e me
arrasta para dentro da mansão de pedras. Ele é tão feliz o tempo todo, que é
difícil lembrar que também sofre pelo Vance.
Meus saltos não produzem muito ruído no revestimento em pedras do
piso, cortadas em pequenos retângulos que se alinham perfeitamente. Todo
o espaço tem um ar medieval, arcaico. É quente, talvez não só pela falta de
janelas e o local cheio, mas também pela cor âmbar dos barris de carvalho
onde são armazenados os vinhos. Eles estão espalhados pelo chão e um guia
nos explica o processo de desenvolvimento da bebida. Há também uma área
privativa, separada de nós por uma corda vermelha, presa por suportes de
metal dourado, resguardando garrafas de safras muito antigas.
Um homem distribui as taças para degustarmos e elas são preenchidas
pelo líquido vermelho na altura de um dedo. É menos que um gole generoso
e agradeço por ser assim.
Faço careta ao dar um gole no terceiro lote de vinhos que servem. Eu
não sei se todos são ruins ou sou apenas eu que não gosto mesmo disso.
Josh tem uma expressão apreciativa, estalando a língua na boca enquanto
gira a taça nas mãos. Eu não faço ideia se ele realmente entende o que está
fazendo, ou se está apenas atuando para uma mulher que ele achou bonita.
Todos estão vestidos formalmente; os homens em ternos de três peças e
mulheres em seus longos vestidos de luxo. Esse fato apenas me faz pensar
que estou no meio de um dos coquetéis da alta sociedade londrina, que
Austen retrata em seus livros. E pela primeira vez, estou no centro das
atenções. É estranho. Tenho vontade de me esconder atrás de Josh e
permanecer encolhida até o momento de ir embora. Mas ao mesmo tempo
que é estranho, é interessante ser notada. Querer ser notada. Os homens me
encaram com interesse incontido. As mulheres com brilhos nos olhos para
meu vestido. Eu me sinto… linda.
Bonita como há muito não sentia. Ou sequer já senti. E tenho vontade de
chorar por ter percebido tarde demais que não precisava me esconder. Que
os olhares sobre mim podiam, de alguma forma, serem positivos e não
acusatórios. Mas quando se foi uma adolescente que gritava ao ser tocada, e
ainda por cima morava em uma cidade pequena, é difícil conceber a ideia
de que olhares podem significar algo bom.
— Esse aqui parece ter… — Josh cheira a taça em suas mãos, inspirando
fortemente o líquido. — Uva.
Seguro a risada. Ele não faz ideia do que está fazendo.
— Mesmo? Já pode ser contratado como degustador — ironizo.
— Errado eu não estou, tem mesmo uva aqui.
— Disso todo mundo sabe, Josh — zombo.
Meu amigo não se abala, continuando seu fingimento.
— Eu acho que tô começando a ficar bêbado! — A voz de um homem
soa alta atrás de nós e alguns homens à nossa frente se viram na direção
dela.
Paro a taça no meio do caminho até a boca, estagnada.
— Essa voz é do Ethan? — Josh olha para mim e nos viramos em
sincronia para trás, quase tropeçando ao encontrar não apenas Ethan, como
também Francis e Vance, vestidos elegantemente como o resto de nós,
provando vinhos próximo ao fundo da extensa e escura saleta. Meus lábios
se separam quando minha visão foca no nadador de olhos cor do mar.
Minha nossa…
Inspiro.
Ele está… solto o ar pela boca.
Francis veste um smoking acinzentado, com uma camisa de seda branca
por baixo, aberta nos primeiros botões, revelando o início do peitoral
definido e desprovido de qualquer pelo. Os lábios inchados e carnudos
recepcionam a taça de vinho e ele sorve o líquido avermelhado, franzindo o
cenho, o pomo de adão movendo-se demoradamente.
Engulo a saliva. 
Fricciono uma perna contra a outra, preocupada que a minúscula
calcinha não seja suficiente para conter a umidade que se forma no meu
centro. Por que mesmo eu escolhi esse pedaço de pano? Donna me deu no
natal passado e nunca pensei que usaria. Eu quis inovar e me ferrei.
A última vez que vi Francis vestido formalmente assim, foi no baile de
primavera do colegial, e ainda assim, agora ele parece simplesmente…
irreal. Não é mais um adolescente, é um homem feito. O tecido do terno se
estica nos músculos de seu bíceps, colado à pele, deixando evidente cada
monte e saliência. A calça social de igual cor também delineia suas curvas,
deixando à mostra o formato musculoso da sua bunda. Recuso-me a olhar a
protuberância da frente, porque seria demais para minha sanidade. Ou
dignidade.
Com a respiração entrecortada, belisco o braço do meu amigo e espero
muito que ele fique roxo pelos próximos meses por me trazer para o mesmo
lugar que Francis. 
— Ai, Angie! Eu juro que não sabia! — Josh esfrega o braço e o encaro
possessa.
— Eu vou matar você, Josh Chao!
— Eu tô te falando, não sabia que o Francis estaria aqui. Prova disso é
que o Vance também está. — Ergue a sobrancelha e sou obrigada a acreditar
em sua palavra.
— O que a gente faz? Eles não nos viram ainda — sussurro, não
conseguindo tirar os olhos de Francis. A forma como lambe os lábios…
céus. 
Josh e eu começamos a dar passos curtos e lentos para trás, com medo de
que o menor movimento chame atenção dos garotos. É um milagre que eles
não tenham nos visto ainda. 
— A gente sai de fininho, à francesa, sem movimentos bruscos — Josh
fala tão baixo que preciso me esforçar para escutar.
— Mas por que a gente tem que fugir? Chegamos aqui primeiro! —
Estanco os passos.
— Porque nosso autocontrole é uma merda quando se trata de nadadores
e porque o vinho acende o fogo dos infernos em nós.
— Diga por você — entro na defensiva.
— Querida, se você ainda não sentiu, vai sentir.
Não digo a Josh que o fogo se alastrou a partir do momento que meus
olhos cruzaram o caminho do Francis.
— A gente fica ou vai embora, Josh? Porque não vou ficar agindo feito
criminosa, sussurrando e me escondendo.
— Prefere encarar os bonitões?
— Nós não vamos agarrá-los — bufo.
— Diga por você — Ele ri, ficando vermelho.
— Somos fortes — contraponho, embora não acredite muito nisso. Não
com Francis vestido daquele jeito. Minha nossa, existe algo sexy em um
homem provando vinhos.
Novamente, me sinto em um dos romances de Austen. Embora neles,
Francis teria de me cortejar e pedir minha mão ao meu pai para me levar
para a cama.
Agora, basta que ele dê a ideia. E nem precisaria de uma cama.
Balanço a cabeça para afastar o pensamento. Tenha modos, Angelina.
— Nem você tá se levando a sério, Baby — Josh caçoa.
Reviro os olhos, procurando os meninos novamente. Franzo o cenho ao
encontrar um casal no local, ao invés do trio.
— Oh, merda… onde eles foram? — Josh varre a saleta com olhos
cerrados. Pelo visto, Vance ainda mexe com ele o bastante para perturbá-lo.
Meu amigo precisa de um gosto melhor para homens.
— Não faço a mínima ideia.
— Nos procurando? — Uma mão enorme se apossa dos meus ombros e
Josh e eu gritamos em uníssono, virando em um pulo. Encontramos Ethan
sorrindo abertamente, enquanto Josh e eu conferimos o estado de nossos
corações. — Assustei vocês?
Ergo as sobrancelhas para ele, que apenas me joga uma piscadela.
Diferente do amigo, ele veste um smoking azul marinho, que deixa um
brilho impressionante em sua pele negra. Eu diria que Ethan está bonito, se
não odiasse que me assustassem.
— Filho da mãe, quer me matar? — Josh dá um soco no ombro dele e os
dois começam provocações masculinas ridículas, que eu prestaria atenção,
se não houvesse algo mais me convidando a olhar. Ou alguém.
Olho sobre os ombros de Ethan, mais especificamente para o homem que
protagoniza meus sonhos e pesadelos tumultuosos. Francis não profere uma
palavra sequer.
Ele me encara.
Imóvel.
Não consigo ver sequer seu peito se movendo para respirar. Parece
absorto em pensamentos, então aproveito para me perder nos meus. Mudo o
peso do corpo para o outro pé, desequilibrada com a expressão hipnotizada
que me lança, como se não visse nada ao nosso redor. Francis não está
tentando esconder que aprecia meu vestido vermelho e muito menos
tentando esconder seu olhar demorado e sensual para a fenda que revela
minha perna. Confesso, esse olhar me deixa extasiada. Me faz sentir a
mulher mais linda do universo. As íris transfiguradas em desejo me
consomem sem misericórdia. Francis está me devorando e eu gostaria que
fosse bem mais do que apenas com seus olhares.
— Oi, Angelina — Vance me cumprimenta, desfazendo o laço invisível
entre o nadador e eu, entrando na minha linha de visão. Pisco aturdida. Ele
veste um smoking da mesma cor do meu vestido e me irrita o fato de
combinarmos.
Não gosto dele.
— Oi.
— Como você está? — assim como a expressão do dragão desenhado
em seu braço, ele parece cuspir fogo com as palavras.
— Quer mesmo saber? — eu poderia culpar o vinho pela grosseria, mas
não estou nem perto de estar embriagada.
— Não, acho que não — ele parece ser acometido de sinceridade.
— Ótimo, então vamos nos poupar da perda de tempo, porque também
não estou interessada em como você está.
Especialmente depois de saber que comprou os remédios do Jayden.
Canalha. Eu queria que Francis percebesse quem você é de verdade.
Vance exibe um sorriso que me dá embrulho no estômago e vai em
direção a Josh, que ainda briga com Ethan. Eu espero que ele seja mais
forte que eu, porque meu coração dá um loop de 360 graus ao ficar de
frente para o meu nadador. No momento, tenho vontade de esconder a
tatuagem recém feita, porque não faço ideia da sua reação. Ele pode surtar.
Ou pior… pode não se importar.
É engraçado o eterno paradoxo que vivo quando ele está por perto. Eu
gosto da calmaria, mas a tempestade de Francis me faz sentir viva,
exatamente como quando estou em quadra e faço um ataque sem chance
para defesa. Brennan Manning, tem uma frase, que eu poderia me apropriar
para esse momento. Ele disse “Quando sou honesto, admito que sou um
amontoado de paradoxos. Honesto e ainda assim, insincero”.
É estranho, para dizer o mínimo, quando sentir-se confortável é um
infortúnio ao invés de uma dádiva. A calmaria não parece ser mais o que
mantém minha mente sã. A gravidade não é mais interessante, quando já se
esteve flutuando no céu.
— Francis — o cumprimento, tentando parecer indiferente.
— Angelina — Ele consegue com mais sucesso manter a voz firme,
chegando a soar fria e distante. Sinto vontade de socá-lo.
Insiste, merda! Você vai desistir só porque eu mandei? Você nunca me
obedeceu, por que infernos vai começar agora?
Logo agora!
Cruzo os braços, sibilando quando a ponta dos meus dedos esbarra na
tatuagem.
— Devo dizer, você está… — O olhar dele escorre desde meu cabelo até
o meu decote e não disfarça ao passar a língua sobre os lábios. Não sei
como, mas sinto o gesto em minha própria pele, com perfeição de detalhes.
— Deslumbrante. Magnífica. Nunca a vi tão bonita.
Pisco, prendendo a respiração. Ele não conseguiu manter a pose por
míseros segundos. O quão fracos somos quando se trata de nós dois? Eu
penso o mesmo sobre ele. Mas não lhe darei o prazer de ouvir da minha
boca o quanto está incrivelmente bonito.
— Agora gosta de vinho? — mudo de assunto e Francis solta uma
risada.
— Não. Eu detesto.
— Então por que veio?
— Quer mesmo saber? — ele joga a pergunta que fiz a Vance contra
mim. Aperto as mãos.
— Quero.
— Ethan me chamou e eu não tinha nada melhor pra fazer. E você?
— Quer mesmo saber? — pergunto apenas para provocar.
— Na verdade, não.
Meus olhos saltam do rosto. Como é?
Francis me fita com um sorrisinho de canto, de quem sabe exatamente a
que ponto estou de voar em seu pescoço incrivelmente definido. Inferno, eu
tenho vontade de mordê-lo e não sei se é de uma forma sensual ou brutal.
— Quão perto eu estou de levar um chute nas bolas? — ele averigua,
dando um passo para mais perto de mim. Francis dá um gole na taça de
vinho, e não desfaz nosso contato visual por um segundo sequer. Seu
perfume preenche meu olfato e contenho o tremular das minhas pálpebras.
Isso é ridículo, como um simples gesto pode me fazer queimar?!
— Perto — balbucio ridiculamente.
O sorriso arrogante enfeita sua expressão. Ele tem uma noção aguçada
demais sobre a própria presença e como a mesma me afeta. Eu gostaria de
ter essa confiança. Bebo mais um gole do vinho e tenho vontade de cuspir
tudo fora. O gosto é tenebroso.
— Gosto de te provocar, não consegui resistir. Me desculpe. — Ele
umedece os lábios pela segunda vez e acompanho o caminho de sua língua
como se fosse um dos jogos finais do campeonato de vôlei.
— Não me provocou em nada — finjo tédio, analisando minhas próprias
unhas.
— Então por que eu estaria perto de levar um chute nas bolas?
— Você sempre está perto de levar um chute nas bolas! — Jogo os
ombros. — Talvez seja sua habilidade em atiçar o lado mais irracional das
pessoas. — Minha face fica quente enquanto falo e percebo que sinto mais
raiva do que a situação exige. Estou brava não por suas palavras, mas por
ele estar aqui e por me fazer questionar absolutamente tudo. E mais brava
ainda, pela raiva ser o sentimento submisso em relação ao desejo.
— Estou curioso sobre uma coisa — Francis segura o próprio queixo
entre o indicador e o polegar. — Por que você sempre fica excitada quando
eu te irrito? — Francis ignora meu rompante, enfrentando-me como o
oponente à altura, que sabe conduzir cada rodada da competição sem que
ela perca a graça. O corpo viril se inclina sobre o meu, fazendo-me sentir
sua presença em todos os poros. Ele sussurra em meu ouvido. — Você gosta
de ser desafiada, Angelina?
Deus, essa voz… Ao mesmo tempo que entona como um anjo, profana
como um demônio.
— Você é tão presunçoso. — Bufo uma risada. — Acha que sempre
estou excitada por você.
— Não, não sempre. Mas agora, definitivamente você está. — Não sei se
é minha imaginação, mas sua frase soa como um gemido gutural.
Comprimo os lábios.
— E quem te garante que é por você? — provoco.
Francis se afasta para me encarar e seu maxilar se projeta para o lado, a
expressão passando de apenas sensual para uma fúria luxuriosa. Sinto um
gostinho adorável de vitória. Que não dura muito, porque o nadador me
circula, pairando atrás de mim, fazendo-me sentir seu peitoral em minhas
costas. O poder que exala dele é apenas… intenso. Insano. Quase me põe de
joelhos.
Sinto sua respiração contra minha nuca e um arrepio desenha a linha da
minha coluna. Poderia muito bem serem seus dedos fazendo o percurso,
acarinhando-me. Pintando-me, como se fosse sua tela.
Mesmo com a pele irritada, cubro a pequena tatuagem com os dedos.
— Então, diga-me, Angelina — meu nome é cantarolado como o gemido
de um amante. Um amante antigo, mas recém desperto. — Quem está te
deixando excitada aqui nessa sala? Quem faz seus lábios se separarem por
não conter a respiração irregular? Quem te faz latejar e arrepiar? Quem faz
suas dobras se encharcarem, ao ponto de você comprimir as pernas para
conter o prazer?
Olho em volta, mas não consigo dizer palavra alguma. Não quando faço
e sinto exatamente tudo que ele diz.
— É aquele homem que não tira os olhos de você? — Ele aponta
discretamente para um senhor de uns quarenta anos, trajado em terno e
gravata grafite. — É desse estilo que gosta? Formalidade? Seriedade?
— Talvez seja — afronto, mantendo os braços firmes ao lado do corpo.
— É mesmo? — ele ri divertidamente. — Então me diga, o que o torna
atraente para você?
— É… ele… — Droga, Angelina! É fácil pensar em alguma coisa. Ou
seria, se Francis não estivesse tomando meu espaço pessoal como um
predador rondando a presa. — Ele se veste bem.
Francis gargalha baixinho.
Eu também riria.
— Duvido muito que seja uma roupa que te excita.
— E o que você acha que me excita, Francis? — indago enervada. Ele
não pode achar que conhece tudo ao meu respeito. Não pode ser tão
arrogante a esse nível.
A resposta vem sussurrada ao meu ouvido.
— Eu te excito.
— Ah, faça-me o favor — desdenho, embora o hálito quente contra
minha pele faça minhas pálpebras pesarem uma tonelada. E não sei como,
mas… o hálito dele não me remete apenas a vinho, mas também…
melancia? Chiclete de melancia. Posso apostar que os degustadores estão se
revirando por ele provar vinho mascando um chiclete. Já eu… sinto vontade
de provar.
Só posso estar ficando maluca.
— Estou errado, então?
— Sim, você está.
— Mentira. — Ele estala a língua no céu da boca.
— Verdade — sussurro, mas inclino o pescoço para o lado, apenas para
dar mais espaço às lufadas de sua respiração que chegam até mim. Tenho
vergonha do meu autocontrole inexistente.
Ou pelo menos a parte racional de mim tem.
— É mentira e eu sei porque consigo ver as veias saltadas do seu
pescoço, Angel. E sei que se eu colocasse minha língua sobre elas, sentiria
o bater errático do seu coração, porque é isso que eu faço com você. — Ele
engole a saliva e por estar próximo ao meu ouvido, o som é molhado e
estranhamente excitante. — Pode não querer, pode me odiar, mas seu
coração gosta do que temos, gosta de ser desafiado, seu corpo gosta de ser
levado além dos limites, e adivinhe? O meu também. — Francis bufa uma
risada irritada. — Então embora eu deva correr milhas de distância de você,
embora eu tenha vindo aqui hoje justamente para me embebedar até
esquecer a porra do seu nome, estou aqui agora, te rondando como se você
fosse um maldito ímã que sou incapaz de resistir.
Engulo com dificuldade, piscando preguiçosamente, meus olhos
revirando na órbita sob a maestria da voz rouca e sussurrada.
— Não estou fazendo nada de propósito — arquejo.
— Eu sei — ele geme sofridamente. — Essa é a pior parte, porque você
não precisa tentar me atrair, não precisa fazer nada além de existir para que
eu te queira. E sim, talvez o vinho tenha soltado minha língua mais do que
deveria, mas eu quero você a cada maldito segundo do meu dia, sem sequer
estar perto de mim. Não importa quantas vezes você diga que não vai me
perdoar, todo o meu ser duvida das suas palavras; nem mesmo a parte
racional do meu cérebro consegue acreditar que acabamos. Não há ponto
final no infinito, Angel.
Troco o peso do corpo para o outro pé, apenas para testar se ainda sou
capaz de me manter ereta.
Sim, o vinho deu mais liberdade para ele, mas fez o mesmo comigo.
Bebi menos de uma taça, mas conciliado ao fato de que possivelmente vou
morrer antes dos trinta anos, acho que a combinação é suficiente para me
dar coragem de fazer qualquer coisa que passe pela minha cabeça, sem usar
nenhum tipo de filtro mental.
— Só tem um jeito de acabar com essa atração — digo antes que a
coragem me falte.
— E como seria, Angelina?
Respirando fundo, me viro para Francis, apoiando as mãos em seu
peitoral. Os músculos se contraem contra as pontas dos meus dedos e o
encaro nos olhos. O azul me consome como fogo líquido, derramando sobre
mim seu calor. Arde. Mas a ardência é mais branda do que a dor dilacerante
de não o ter.
— Sucumbindo a ela — murmuro decidida.
Francis me analisa curioso, talvez querendo ter certeza de que falo sério.
— Quanto vinho você bebeu? — As sobrancelhas dele se arqueiam.
— Não o suficiente para me fazer perder a noção do que quero.
— Mas o suficiente para ter coragem de me dizer o que quer.
— Exatamente.
— Quais as chances de você se arrepender disso amanhã? — As mãos
fortes se apossam da minha cintura após pedir permissão com seus olhos.
— Cento e dez por cento. E mesmo que eu não tivesse bebido nada,
continuaria a ser assim. — Umedeço meus lábios ao notar os dele macios.
— E você?
— Duzentos por cento. — Sorri malicioso. — Mas desde que eu me
arrependo da maioria das coisas que faço ou digo, ao menos disso vou
querer me lembrar dos detalhes.
Desenho seu maxilar com a ponta da unha e Francis fecha os olhos por
breves instantes.
— Sabe que isso não muda nada — digo, esperando ouvir palavras
contrárias de volta. Eu quero que ele me mande calar a boca e me faça
mudar de ideia.
— Sei que ainda não me quer e que não temos volta. Acredite, eu sei —
ele praticamente grunhe. Francis parece bravo consigo mesmo por não
resistir.
Tudo nessa frase me incomoda, mas fui eu quem tomou essa decisão,
uma da qual Francis parece não ter a mínima vontade de ir contra. Sinto
vontade de sacudi-lo por isso.
Lute, droga! Lute por mim. Insista. Não seja um covarde!
— Então me siga.
O puxo pela mão, pronta para sair da sala de degustação a caminho de só
Deus sabe onde, quando Vance aparece em minha frente, interceptando o
caminho.
— Onde estão indo?
— Por que quer saber? — O enfrento.
— Vamos dar uma volta para conhecer o lugar — Francis age
apaziguadoramente e minha vontade é de perguntar se ele é burro. Não
percebe que esse cara é ruim?
— Querem companhia? Aqui está um pouco chato — Vance faz que vai
na mesma direção que nós e trato de acabar com seus planos de uma vez.
— Não, não queremos companhia. Estamos saindo justamente para fugir
delas — falto grunhir.
— Nossa… — Vance desvia a atenção de mim, olhando para Francis em
busca de uma resposta diferente. Ele acha mesmo que Francis vai preferi-lo
ao invés de mim? É sério? — É isso mesmo?
— Desculpa, cara. Mas Angelina e eu queremos ficar sozinhos para
conversar.
Conversar? Franzo o cenho. Achei que era para outra coisa…
— Você gosta de ser usado. — Vance ri amargamente, me olhando com a
boca retorcida. — Mas eu ainda estarei aqui quando ela se cansar de você,
Francis. Porque é isso que amigos fazem.
Ele passa por nós como um touro, esbarrando seu corpo em mim, quase
me levando ao chão. Francis dá um passo à frente furioso, mas seguro seu
braço, o impedindo de causar uma cena no lugar.
— A energia que quero de você não é essa, então se poupe. — Tento
descontrair e os músculos dos ombros largos se suavizam da tensão. Ele
ainda fixa seu olhar colérico na direção de Vance por alguns segundos, mas
balança a cabeça, suspirando.
— Como quiser, senhorita. — Francis indica a saída com a mão,
oferecendo seu braço para que eu enlace. Sorrio agradecida, andando o mais
depressa possível sem que pareça que estou correndo. Ele vem ao meu lado
sem grande esforço. Já eu, estou fatigada na metade do corredor.
Controlo a respiração para que não perceba. Não quero que Francis se
preocupe comigo agora, definitivamente proteção e cuidado não é o que
espero dessa noite. Para ser sincera, nem eu mesma sei o que esperar dessa
noite. Vim aqui com outro objetivo. Me embriagar até esquecer que posso
ter câncer. Agora, a embriaguez será do infernal atleta ao meu lado.
— Você sabe onde está indo? — Francis pergunta divertido.
— Não faço nem ideia. — Solto uma risada incontida.
E isso me instiga. A adrenalina me faz sentir… viva. Nunca entendi
muito bem as coisas que Donna fazia, principalmente as perigosas, mas
talvez agora eu passe a compreender com um pouco mais de facilidade.
Quando você se coloca em perigo propositalmente, desafia a morte. A
coloca no papel de coadjuvante. Não é ela que decide. É você. É tirar do
ceifador o controle sobre sua própria foice.
Estar com Francis não pode ser considerado um perigo à minha vida,
mas com toda certeza é um perigo para minha mente. Ele é facilmente
viciante e ela é facilmente viciada.
— Se continuar por esse caminho vamos parar nos fundos das plantações
— avisa.
— Ótimo. Duvido que alguém nos interrompa por lá — falo, enquanto
forço minhas pernas a trabalharem mesmo que doam.
Toda a construção antiga de pedras cheira à uva, é um aroma forte
demais para mim, É enjoativo e alcoólico. Nas paredes, há quadros pintados
a óleo, fotografias em molduras antigas e enferrujadas, de cultivadores da
terra desde o princípio da vinícola, quando havia apenas algumas dezenas
de pés plantados e não os milhares que vi lá fora.
Passamos por uma porta dupla de madeira espessa, chegando exatamente
onde Francis dissera. O fundo da propriedade é envolto pelas plantações e o
pouco sol que ainda ilumina tudo, transforma o verde em tons mais
alaranjados pelo crepúsculo. Mais alguns minutos e o dia dará lugar ao
anoitecer.
— Caralho… é uma visão e tanto — Francis gira nos calcanhares, me
dando uma vista panorâmica de si próprio.
O analiso dos pés à cabeça. Não o vi o suficiente para essa vida. Não por
esses poucos anos. Não quero dizer adeus. Não quero ter que deixá-lo aqui.
Não quero que a lembrança que tenha de mim, seja de quando estávamos
separados. Meus olhos enchem de lágrimas e me concentro em não permitir
que elas rolem pelo meu rosto.
Eu sinto medo. E sinto saudade. Saudade do que vivemos juntos e
saudade do que talvez nunca poderemos viver.
— É… é uma vista e tanto — digo com melancolia, admirada com os
fios cor de mel dos seus cabelos.
Francis desvia a atenção para mim, franzindo o cenho ao focar em meu
rosto.
— Tá tudo bem? — Ele dá um passo para mais perto. É instintivo. Deve
ser algum complexo de herói mal resolvido.
Tenho vontade de rir da minha comparação, porque ela é extremamente
precisa. Francis está a todo momento pronto para me salvar. Como se ele
fosse Clark Kent e eu Lois Lane.
— Não — confesso. — Mas não me pergunte o porquê. Apenas… —
Rio, sentindo meu rosto esquentar. — Apenas me beije, Francis. Me faça
esquecer tudo que não seja nós dois, aqui e agora.
Ele pisca.
— Você tem certeza?
— Nesse momento, a única certeza que eu tenho é que quero você e que
não ligo para o que vai acontecer amanhã. — Fico na ponta dos pés para
aproximar nossas bocas, envolvendo seu pescoço com meus braços. O
hálito que costuma ser mentolado, agora tem cheiro de melancia. — Por
que você está mascando chiclete?
Francis ri.
— Eu detesto vinho. É pra tirar o gosto. — Ele passa a língua pelos
lábios. — Você quer que eu jogue fora?
— Não! — digo rápido demais. — Eu gosto. Gosto do cheiro. E quero
saber se o mesmo vale para o sabor… quero provar de você.
Há tanta necessidade na minha voz. Uma necessidade que já estava aqui
antes de eu ter medo de possuir pouco tempo para ficar com ele. Mas uma
que não aceitou ficar guardada justamente por esse motivo.
Se ele nota meu desespero, não demonstra, porque dá passos para frente,
me fazendo dar outros para trás. Suas mãos se amoldam em meu rosto e o
encaixe é tão perfeito, que satisfatório nem começaria a descrever. Os olhos
dele estão perfurando os meus. Ele está procurando meus segredos, o azul
invade sem pedir permissão e não encontra qualquer barreira no caminho.
Francis está pegando para si as palavras que eu não disse, que quis dizer e
até mesmo aquelas que escondi de mim mesma. Seja lá quais forem elas,
ele parece apreciar, porque um sorriso delineia os lábios cheios e não
poderia denominá-lo de nada mais, que não reverente…
— Sabe o que é mais estranho? — pergunta, roçando os lábios nos meus.
— O quê? — Fecho os olhos, esperando pelo beijo.
— Você continua sendo minha razão, mesmo na loucura que estamos
prestes a cometer.
Assim que as palavras escapam de sua boca, ele une nossos lábios,
demonstrando que não conseguiria passar um segundo a mais sem fazê-lo.
Gememos em uníssono ao sentir nosso sabor misturado e juro por Deus que
poderia chorar pela saudade de sentir a pele macia e molhada correndo pela
minha, as línguas ansiosas e curiosas duelando por espaço. Nós nos
fundimos como açúcar na água, nos misturamos, virando algo melhor…
delicioso.
O beijo tem raiva, saudade, rancor, necessidade… paixão.
Os braços do Francis me envolvem e tiram meus pés do chão. Agarro-
me aos ombros largos e envolvo sua cintura com as pernas, choramingando
quando sinto a monstruosa ereção pressionada contra o centro do meu
corpo. Ele dá passos erráticos para frente, logo minhas costas sendo
pressionadas contra a parede de pedras da propriedade. A superfície áspera
arranha minha pele, mas pouco me importo, não quando a boca macia desce
para minha mandíbula, os dentes arranhando e percorrendo, até chegar ao
meu pescoço, onde Francis se liberta em minha pele, a possuindo com
mordidas e chupões. Eu soluço e murmuro sons indecifráveis, enquanto
meus dedos se afundam em seus ombros para me manter no lugar.
Não importa quanto tempo fiquemos separados, minha pele conhece a
dele, minha mente reconhece seu toque e não se ressente dele.
— Você é minha maldição, Angel — Francis murmura contra minha
pele, provavelmente pensando o mesmo que eu. — É meu desejo mais
profano, o que vai me fazer merecer a descida até o inferno.
Ele diz com dor, mas ao mesmo tempo desejo, luxúria e… amor? Francis
me confunde, mas eu sei que ele me ama. Apesar de tudo, ele me ama. E sei
que o fará para sempre, mesmo que eu já não esteja aqui. Essa constatação
me faz puxar sua boca novamente para a minha, para que eu tenha dele o
máximo que puder, por essa noite ao menos. Pelo tempo que nos restar.
— Se eu sou sua maldição, então você é meu pecado. Um que sempre
vou escolher cometer e nunca irei ter redenção... não quando não me
arrependo um segundo sequer.
Não é justo comigo. Com ele. Com nós dois e tudo que poderíamos ser.
Não é justo, porque mesmo antes de desconfiar de doença alguma, já
estávamos fadados a um jogo perdido. Entramos em quadra cientes da
derrota.
Então por que são os melhores minutos de jogo?
Quando ele suga minha língua, um gemido escapa da minha boca e pego
suas mãos, que até então estavam contidas e levo para os meus seios,
soluçando ao sentir os dedos compridos trabalhando contra minha carne
inchada. Não ligo se o tecido do vestido irá amarrotar, ou se ameaça rasgar
cada vez que escuto os estalos da fenda. As costuras estão cedendo uma a
uma, igualmente o meu controle.
— Porra… é melhor a gente parar, Angelina. — Francis afasta a boca da
minha, ofegante.
— Isso não foi sincero — sorrio contra seus lábios e ele chupa o inferior.
— Não, não foi. Mas foi o resquício do meu juízo. Se continuarmos, ele
não vai aparecer de novo, então aproveite.
Nego com a cabeça, puxando os fios de seu cabelo, aproximando ainda
mais o rosto quadrangular do meu.
— Pra quê pensar em juízo? Eu já perdi o meu há tempos… — sorrio
debilmente. — Se essa é a última noite que temos juntos, então faça valer a
pena. Se é nossa última chance de ter um ao outro, então me ame, Francis,
como se ainda estivéssemos juntos e como se no dia seguinte não
precisássemos nos separar. Me ame, porque eu sei que ninguém nunca fará
como você.
Não me importo com o quanto minhas palavras soam suplicantes.
Francis não me ridicularizaria por isso. Não quando sente o mesmo
desespero e necessidade.
Talvez ele tenha estado certo desde o princípio e sejamos como drogas.
Viciantes e entorpecentes. E que no fim, traremos consequências
irreversíveis. Ainda assim, ansiamos pela próxima dose, mesmo com o risco
de que dessa vez seja fatal.
As mãos de Francis trabalham na alça do meu vestido, as empurrando
para baixo, até que a peça esteja embolada na altura do meu umbigo,
revelando meus seios. Meus mamilos se enrugam com a temperatura e ao
mesmo tempo pelo olhar cálido e faminto de Francis para eles. É frio e
calor se fundindo, céu e inferno unindo-se.
— Eu vou lamber você — ele rosna.
— Eu sei — ofego.
— E não consigo ser gentil ou romântico agora.
Pego o rosto dele entre as mãos, umedecendo os lábios.
— Apenas… — reúno a coragem para as palavras que saem em seguida.
Eu definitivamente não posso culpar o vinho por elas. — Apenas me fode.
— Solto uma risada de nervosismo, porque as palavras são engraçadas.
— Assim você fere meu ego — ele provoca, beliscando meu mamilo.
Recomponho-me da minha crise de riso e o fito séria novamente.
— Apenas me fode como você sempre quis, sem medo, sem receio.
As pálpebras dele pesam e vejo apenas uma fina linha de seus olhos. Que
é mais do que o suficiente para notar as pupilas tomando conta de toda a
íris, tornando o azul escuro, nebuloso. Apaixonado.
— Só pra constar, nunca fodi você com medo. Não faz meu feitio achar
que é quebrável. — Ele me joga uma piscadela. — Mas talvez eu tenha sido
mais romântico com suas primeiras vezes… devo presumir que não há
necessidade disso agora? — a voz dele está totalmente mudada, rouca,
predatória.
— Deve. Deve presumir exatamente isso.
Francis sorri como um demônio prestes a ter sua próxima alma, os olhos
dançando sobre meu corpo. Ele ergue a mão inicialmente devagar, dando-
me ciência de seu toque, só para então beliscar meus mamilos, os rodando
entre o polegar e o indicador.
— Oh, meu… — engasgo e jogo a cabeça para trás, colidindo contra a
parede.
— Que se foda… — Francis rosna e substitui sua mão por seus lábios.
Cubro minha boca com a mão, tentando abafar o grito que escapa por
minha garganta ao sentir meus mamilos dentro da prisão molhada e quente
da boca habilidosa. Os dentes de Francis se prendem na carne inchada e ele
não tem qualquer preocupação em fincá-los e rodá-los… esticá-los, até que
eu esteja movendo os quadris contra seu membro, buscando o alívio para o
palpitar entre minhas pernas.
Meu corpo está no limiar da tensão, a crise bate à porta pela quantidade
de energia e sentimento misturado. E por incrível que pareça, não quero que
ele faça parar. Quero que ele me prove mais uma vez, que sou capaz de
lidar com tudo. Quero que exploda tudo de uma vez.
Eu posso. Pode ser minha última chance.
O vento gelado corta minha pele exposta, que contrasta perfeitamente
com a temperatura fervilhante da boca de Francis. Ele libera meu mamilo
com um estalido molhado, passando para o outro, com fome. Não há uma
gota de receio ou dúvida em cada toque, não há cautela e posso dizer que o
prefiro assim, se libertando contra mim, exatamente como é tudo em
relação a ele.
Ninguém nunca irá conseguir me fazer sentir tão liberta. É uma pena que
ninguém nunca irá conseguir quebrar meu coração com tanta eficácia
também.
Sou capturada dos meus pensamentos quando sua boca volta à minha.
Solto um suspiro para o sabor da melancia, tendo vontade de chorar do
quanto é bom. Francis segura minhas pernas com posse, seus dedos
afundando em minha carne. Infiltro minhas mãos sob sua camisa, buscando
suas costas, unicamente para rasgar com minhas unhas. Assim como ele,
não ligo para qualquer marca que isso possa deixar.
Quero que se lembre de mim. Não posso suportar pensar que Francis
pode vir a me esquecer quando já não estiver aqui. Isso me destruiria mais
do que uma doença é capaz.
Nosso beijo não é delicado nem ritmado, é desgovernado, desesperado,
necessitado. Ambos sabemos que não vamos ter outra oportunidade. Meus
quadris ganham atenção e ele me faz castigar sua ereção, me esfregando
contra si. Meu clitóris pulsa em agonia para ter um pouco mais. Movo os
quadris da forma que a posição me permite e choramingo contra os lábios
dele.
— Eu preciso de mais.
— Eu sei que precisa. Mas aqui é muito visível — Francis ofega e
analisa nosso entorno.
— Ali não é — aponto para um caminho entre duas fileiras de
plantações.
— Nós vamos voltar todos sujos de terra — sorri malicioso.
Meu sorriso copia o dele.
— Você se importa? — passo a unha pelo cós de sua calça.
— Está me perguntando se eu me importo de te foder no chão, com
medo de sujar minha roupa?
Franzo o cenho. É… pergunta ridícula, Angelina.
Assinto apenas e ele ri, recolocando as alças do meu vestido e me
carregando por entre as plantações
— Mas e você? — ele comprime as sobrancelhas. — Não faz o estilo
que gosta de se sujar.
— Eu também não faço o estilo que transa com o ex, mas aqui estamos
nós.
— Não estamos transando — ele diz sério, só para então, piscar. —
Ainda.
Balanço a cabeça, mordendo o lábio.
Meu coração galopa no peito e a adrenalina do lugar inusitado, junto ao
risco de ser pega, apenas aumenta o palpitar entre minhas coxas. Eu sou
uma safada, isso sim. O que minha mãe diria de mim agora? Nada bom,
com toda certeza. E isso apenas me anima mais. Porque se ela não aprova,
então quer dizer que estou indo pelo caminho certo.
Contando que esse caminho é ir para o meio de uma plantação de uva,
com meu ex namorado, muito disposto a provar de mim por horas… é um
caminho muito, muito errado. Mas incrível e proibidamente bom.
 

 
 
Algumas horas atrás…
Estou me sentindo ridículo. Ethan me obrigou a vestir um de seus
smokings e apesar de ele ser mais alto, meus ombros são mais largos, o que
deixa o tecido esticado, como se eu quisesse exibir músculos como um
fisiculturista.
— Eu não vou sair assim. — Balanço a cabeça em frente ao espelho.
— Para de ser fresco. — Ethan revira os olhos. — As coroas vão pirar
em você embalado à vácuo.
Um tapa estala na nuca dele. Meu tapa. Eu deveria ter batido mais forte.
— Você vai ver o que vou embalar à vácuo.
Ele esfrega onde bati com uma careta. Talvez eu deva parar de bater
nessa região, estou começando a ver a curva das pancadas.
— Vai ter que arrumar algo grande para embalar meu amigão — ele
balança as sobrancelhas sugestivamente.
— A gente vai sair ou vocês dois vão continuar a discussão por mais
algumas horas? — Vance aparece na porta do meu quarto, trajado em um
smoking vermelho sangue, parecendo um marca-texto ambulante. Pisco. Se
a intenção dele era chamar atenção, conseguiu.
— Cara — Ethan assovia. — Por acaso estava com medo de não ser
visto?
Vance sequer o encara. Ele olha para mim, ansioso.
— Que foi? — viro para os lados, procurando algo de errado.
— Não vai falar nada da minha roupa? — Ele gira sobre os calcanhares e
quando volta a ficar de frente para mim, dou de ombros.
— É… tá chamativa. — Ergo os polegares.
A expressão de Vance se desfaz em algo parecido com decepção.
Eu falei algo errado?
— No bom sentido — complemento minha fala. Isso aqui tá começando
a ficar constrangedor, parece até quando Donna me perguntava sobre sua
roupa e eu falava merda.
— Vou esperá-los no carro.
Ele sai pisando firme escada abaixo e encaro Ethan de olhos arregalados.
— Você entendeu o que rolou aqui? — indago.
— Menos que você — gargalha, dando tapinhas no meu rosto. — Vamos
descer, bonitão. As coroas ricas te esperam ansiosas.
— Você sabe que não são só mulheres mais velhas que bebem vinho, né?
Além disso, você acha que todas estão em busca de caras que não têm onde
caírem mortos?
— Eu tenho onde cair morto, e aposto que o tio Rob não ia te deixar no
cemitério de indigentes.
Ethan ajeita a lapela do meu smoking e sai do quarto, não me dando
outra escolha, a não ser ir com essa roupa. Eu juro que se rasgar esse
negócio, não vou pagar.
 

 
Ethan estaciona em uma das últimas vagas disponíveis e descemos os
três com cara de otários para a enorme construção de pedras. Alguns
retardatários ainda entram no evento como nós e corremos para segui-los.
Agora, eu quase agradeço por meu amigo ter insistido para eu usar essa
roupa. Eu passaria vergonha com algo menos do que isso. Esses homens
facilmente poderiam estar vestidos para seus casamentos.
Uma mulher perto da casa dos quarenta anos passa por nós, vestida em
um elegante vestido azul, e pisca para mim, sorrindo lateralmente. Fico
vermelho na mesma hora e meus músculos parecem travar, porque tropeço
em meus próprios pés. A mulher ri de mim enquanto sai do casarão.
Ethan soca meu braço.
— Porra, cara! Você tinha mesmo que ser tão desastrado? Ela tava na
sua.
— Vai se foder, Ethan! — Fecho a cara. — Acha que tropecei de
propósito? Além disso eu não ia foder a mulher pelas plantações.
Bufo irritado.
— Qual é? — Sorri malicioso. — Vai me dizer que recusaria se uma
mulher te chamasse para foder no mato?
— Você é nojento — Vance interrompe e suspiro de alívio por não
precisar responder a isso.
— E você se irrita toda vez que o uso do pau do Francis entra em pauta.
Parece até que sente ciúmes.
Interrompo meus passos, virando para Vance com a expressão cautelosa.
Ele tem as mãos fechadas em punho, e para piorar Ethan não tira o
sorrisinho provocante da cara.
— Não comecem a porra de uma briga aqui — sibilo. — Tô cansado de
vocês agindo como criancinhas. Sejam adultos e resolvam os problemas de
vocês.
— É exatamente isso que vou fazer — Vance dá um passo para frente, a
mão se erguendo. Seguro o pulso dele, chegando o rosto próximo ao seu.
— Para com essa porra! Se não consegue ficar aqui sem arrumar
confusão, então vai embora.
Os olhos verdes idênticos aos de Blue seguram os meus por alguns
segundos, antes de se livrar do meu aperto e sair andando com as demais
pessoas.
— Ele gosta de você — Ethan sussurra e viro-me para ele.
— O quê? Quem?
— O Vance. Ele gosta de você.
Pisco para meu amigo, o encarando surpreso por alguns segundos.
E gargalho alto. Muito alto.
— Você viaja muito, irmão — sigo rindo na frente e consigo escutar
Ethan murmurando que isso explicaria muita coisa. Não dou moral para ele,
Vance sempre foi meu amigo, nunca demonstrou qualquer interesse no
sentido amoroso da coisa. Eu notaria se tivesse.
Entramos no salão principal do casarão, onde se concentra o evento. Um
homem de meia idade fala algo ao fundo com sotaque italiano e pego uma
taça oferecida pelo garçom, agradecendo-o com um sinal de cabeça.
Estou prestes a beber em um gole só, quando Ethan arregala os olhos
para mim, claramente me repreendendo.
— Que foi? — uno as sobrancelhas.
— Cheirar rolha, esqueceu? — ele sussurra, fingindo costume para as
pessoas em volta.
— Mas o cara não me deu nenhuma rolha pra cheirar — sussurro de
volta. Porque estamos sussurrando?!
— Então cheira a taça.
— Por que diabos eu tenho que cheirar alguma coisa? Eu não deveria
beber?
— Só cheira, Francis. Só cheira! — Ethan enfia o nariz na taça de vinho,
inspirando tão forte que por pouco o líquido não sobe para as narinas dele.
Engulo uma risada. É a coisa mais ridícula que já vi na vida. Eu deveria
ter trazido minha Canon para filmar.
— E aí? Tem cheiro de quê? — zombo.
— Não é por nada não irmão, mas tem cheiro de uva estragada. — Ele
esconde a careta, tendo um calafrio.
Mordo o interior da boca.
— É por isso que eu trouxe isto… — Tiro do bolso o chiclete de
melancia.
— Tá maluco? — Abaixa minha mão como se eu tivesse erguido um
saquinho com cocaína. — A gente vai ser comido vivo se beber vinho
mascando chiclete.
— Eu acho que algum adorador de vinho já te fez mal, Ethan… as
mulheres são todas caçadoras de jovens indefesos e os homens psicopatas
prontos para matar se você não adivinhar o ano da safra…
— Cala a boca, claro que não! — Ele cruza os braços. — Mas uma vez
vi um filme de terror com um cara que amava vinho…
— Eu sabia! — gargalho, recebendo olhares enfezados de alguns
homens ao nosso lado. Me calo na hora.
— Viu só? — Ethan volta a sussurrar e sou obrigado a concordar. Esse
povo é estranho.
— Se eu sair daqui em pedacinhos numa mala, puxo seu pé de noite.
— Justo.
— Mais vinho? — o garçom volta e eu sequer bebi o da minha taça. Viro
tudo na boca, reprimindo a careta pelo gosto horrível. Ethan faz o mesmo e
assim que o homem sai de perto, ele implora pelo meu chiclete.
— Eu sabia que seria útil. — Abro a embalagem escondido das pessoas.
Realmente tenho a impressão de estar fazendo algo errado. Criminoso, para
ser exato.
 
 
— Eu acho que estou ficando bêbado! — Ethan afirma alto demais para
alguém que ainda “acha” que está ficando bêbado. Eu diria que ele está
bêbado há cinco taças.
— Você acha? — Vance caçoa.
Ethan vem para o meu lado sorrateiramente e já me preparo para escutar
alguma baboseira sobre homens assustadores e suas taças cheias de vinho.
— Não olha para trás agora, mas… — assim que ele fala, é o mesmo que
meu pescoço entender “ei, vire-se como a garota do exorcista”. Antes que
eu o gire por completo, Ethan prende a carne da minha costela entre os
dedos e aperta como se sua vida dependesse disso. — Eu mandei não se
virar, caralho.
— Solta a porra da minha pele, seu filho da mãe — rosno, quando na
verdade deveria estar chorando. Essa merda dói.
— Então faz o que eu falei. — Ele me libera do seu aperto e esfrego a
região pensando em mil tipos de laxantes para colocar na comida dele. —
Como eu dizia, não olha para trás, mas Angelina e Josh estão ali.
— Espera… o quê?! — meu sangue some do rosto e até mesmo a dor em
minha costela desaparece. — Como assim? Isso foi coisa sua? Porque se
foi, eu vou estourar a bola de basquete na sua cabeça.
— Claro que não, por que eu faria isso? — Ele faz uma careta. — Blue
faria, não eu.
Inclino o rosto, concordando. É, ela faria.
— E como ela está? — pergunto ansioso. Se Angelina estiver vestida
meramente parecida com as mulheres desse lugar, que Deus me ajude. E me
perdoe, porque meus pensamentos vão atingir a sarjeta.
— Do jeitinho que o diabo gosta — ele responde malicioso e dou uma
cotovelada em sua costela.
— Olha como fala dela.
— Ela é minha amiga, seu ciumento de uma figa. — Revira os olhos. —
Mas é sério, a Angie tá… uau.
Meus olhos tremem de ansiedade para ver, mas meu cérebro pede para
eu não me virar, e ir embora o mais rápido possível.
Acho que já atestei que não uso o cérebro com frequência, né?
Giro nos calcanhares, precisando segurar em Ethan quando meus olhos
se focam na mulher de vermelho.
— Puta merda… — ofego.
— É… — Ethan se compadece. — Eu sinto até um pouco de peninha de
você agora.
— Você é um péssimo amigo — digo sem olhar para ele. Não consigo
desviar a atenção da verdadeira miragem à minha frente.
Essa acaba de se tornar minha cor favorita.
Nunca havia visto Angelina de vermelho antes. Deveria ser considerado
um sacrilégio ela me privar dessa visão. Engulo a saliva acumulada e sei o
quanto devo estar com cara de palhaço. Ou pervertido.
Além do vestido, seus lábios estão tingidos da mesma cor, parecendo-se
com um morango suculento. O que eu não daria para saboreá-lo… mordê-
lo, até sentir seu sabor adocicado.
— Eu tô ficando constrangido aqui… — Ethan dá um gole na taça,
jogando o ombro no meu.
Constrangido vou ficar eu, se uma certa parte do meu corpo não se
aquietar. Ele tem vida própria. É isso, ou Angelina tem o controle remoto do
meu pau. Ela aparece, e ele sobe.
— Eu não acredito nisso! — Vance vem para o meu lado e sou obrigado
a tirar os olhos de Angelina. Quase fico vesgo, porque os malditos não
querem parar de admirá-la…
— Nem eu — rio de desespero. — Definitivamente não posso acreditar.
— Isso deve ser coisa do Josh — ele reclama.
— Josh não tinha como saber que viríamos. — Ethan dá de ombros.
— Não importa. — Balanço a cabeça, voltando a olhá-la. Angelina
sussurra algo no ouvido do Josh. Ela nos viu, porque não haveria motivo
para os dois estarem dando passos para trás como fugitivos.
Seguro a risada para a tentativa falha em não chamar atenção. Seria
impossível trajados da forma que estão. Josh está tão elegantemente vestido
no smoking branco, que quase fico com vergonha de como eu estou. Os
dois juntos formam uma beleza quase insuportável de olhar.
— Vem. — Puxo o braço dos meus amigos, nos tirando da linha de visão
de Angelina. Contorno as pessoas pela lateral, evitando esbarrar nas
mulheres elegantes e seus saltos muito finos. Essas coisas são perigosas.
Chego por trás de Angelina, empurrando Ethan à minha frente. Se ela
bater em alguém de susto, que seja nele.
Ela e Josh viram-se quando Ethan os provoca e assim que Angelina gira
o tronco completamente, vejo a extensa fenda que se abre em sua perna
direita, chegando à metade de sua coxa. Engulo.
Ela usa saltos… Angelina de salto. Ok, outra coisa que raramente a vi
usando. Eu estou sonhando. Com certeza estou sonhando. Eu não seria tão
sortudo de ver isso, fazendo as merdas que faço.
Obrigado, Deus!
Espero uma reação raivosa ou até indiferente vinda dela, mas o que
encontro nas íris castanhas faz meu pau contrair a ponto da dor. O pobre
tenta algum espaço dentro da calça apertada e quase levo a mão para
acomodá-lo, se isso não fosse chamar atenção de Angelina e ela fosse me
chamar de tarado.
A pior parte é que eu não poderia negar.
Eu nunca sei como serão nossos encontros. Nunca sei se estaremos na
fase do ódio, da raiva, da mágoa, da paixão, da saudade…, mas agora, eu
vejo de tudo um pouco. Com a saudade e paixão sobrepujando qualquer
outro sentimento.
Nós nos provocamos. É inevitável.
Eu jogo com ela e ela joga de volta. Somos competitivos até nisso. Eu
falo e ela rebate, eu a encaro e ela me devora com seus olhos curiosos.
Desse nosso jogo, eu só não pensei que iríamos parar nos fundos da
propriedade, comigo a levando para dentro das plantações de uva.
 

 
Agora…
Carrego Angie pela trilha no chão de terra, até estarmos no centro, entre
duas fileiras de plantações de uva. Nossas bocas estão interligadas; meu
coração descontrolado, ignorando o fato de que novamente pela manhã tudo
se acabará. Talvez seja a isso que estou fadado a ter, apenas momentos ao
lado dela. Apenas breves instantes, onde me será concedido o privilégio de
amar a garota que não sai da minha mente. Foi assim em Cape May, foi
assim quando nos reconciliamos e será assim agora. Instantes efêmeros,
comparado à eternidade do que sinto por ela. Mas se for apenas isso que me
será dado, tudo bem. Um segundo ao lado de Angelina, é melhor do que
passar a vida nunca sabendo o gosto de nós dois.
Nunca a vi assim antes. Tão entregue, tão… liberta. Angel parece ter
deixado todo o controle em casa. Não estou reclamando, mas uma vozinha
dentro de mim se questiona do porquê.
As unhas mais compridas castigam a pele da minha nuca, puxando meu
cabelo para trazer meu rosto para mais perto. É humanamente impossível
que estejamos mais próximos, mas as leis da natureza não se aplicam a dois
corações que se desejam.
Assim que paro de andar, as pernas de Angelina depreendem-se dos
meus quadris e seus pés tocam o chão, os saltos tentando firmar-se na terra.
Sinto a diferença de tamanho imediatamente. Não que ela seja baixa, mas
ainda tenho alguns centímetros a mais.
Nossas bocas se separam apenas o suficiente para nossos olhares se
conectarem.
Ela está ofegante. Eu também estou. Um sorriso brinca nos lábios agora
borrados do batom vermelho.
— Eu preciso perguntar mais uma vez… — murmuro acariciando seu
rosto elegante.
— Não! — Angie coloca um dedo sobre minha boca. — Shhh… não
pergunte nada. Não diga nada. A certeza que você precisa não sairá da
minha boca. Ela está aqui… — Ela ergue meu queixo para meus olhos
focarem nos seus — Enquanto você me olhar, saberá tudo que precisa.
Enquanto me olhar, terá certeza de tudo que quero, de tudo que preciso e
sinto.
Franzo o cenho ao ver os orbes castanhos ficarem avermelhados em
volta. Angelina engole a saliva, bicando meus lábios em seguida.
— Enquanto me olhar, Francis, saberá que estou queimando por você.
Um fogo que não se apaga, apenas se alastra… eu preciso que você o
abrande, antes que ele me destrua.
Arquejo, um gemido escapando da minha boca, antes de tomar a sua de
volta. Minha língua percorre o lábio inferior criteriosamente, apreciando o
sabor alcoólico das taças que tomou. Nela, o sabor do vinho torna-se
delicioso.
Abaixo minha mão para a pele exposta da perna de Angelina, pela fenda
reveladora, que será a razão dos meus melhores sonhos de agora em diante.
Arrasto os dedos pela carne nua, sentindo os pelinhos loiros se arrepiarem
gradativamente com meu toque. Quando chego ao topo da fenda, onde o
tecido volta a cobrir toda a pele, aviso:
— Vou morder você. — Observo os olhos nebulosos de desejo de Angel.
— Bem aqui. — Movo a língua pelo seu lábio inferior.
Ela assente, piscando preguiçosamente.
Sorrio, antes de mordiscar a boca macia, puxando o lábio para mim, até
que ele se solta sozinho da prisão dos meus dentes. Não sou delicado, não é
a intenção para hoje. Procuro seus olhos para saber o quanto do limiar entre
dor e prazer ela consegue absorver. Minha garota não me decepciona nunca,
porque sua expressão não passa de deliciada… surpresa.
— O quão ruim isso foi? — murmuro sobre sua boca.
Ela não pensa antes de responder.
— Nem um pouco ruim — Angelina desliza a língua pelo lábio, como se
testasse a sensibilidade causada pelo meu ato. Isso apenas me deixa mais
excitado, porque suas bochechas tomam um tom rosado. — Ardeu um
pouco, mas… foi bom. Não sei explicar, isso me deixou mais…
— Não precisa… — Balanço a cabeça, beijando o cantinho dos lábios
atualmente inchados. — Você não precisa entender, muito menos me
explicar. Saber que foi bom, já é mais que o suficiente para mim. Nós
estamos testando, descobrindo… o que é bom, o que dá prazer. O que for
ruim, nós descartamos. Simples assim.
— Posso tentar? — Seu olhar cai para minha boca.
— Em mim?
Angelina assente.
— Sou todo seu, Angelina.
Ela contrai os dedos em meus ombros, me trazendo ainda mais perto.
As mãos elegantes sobem e se amoldam no meu rosto e ela entreabre os
lábios, aproximando-os novamente dos meus. Primeiro me beija, percorre
minha boca com delicadeza, só para então, aprisionar-me entre seus dentes.
Ela não me morde forte, apenas arranha minha pele. Um grunhido baixo
escapa pela minha garganta e isso parece incentivá-la. O aperto aumenta,
gradativamente, ela está testando meus limites, assim como fiz com os dela.
Quando deixa de ser prazeroso e passa a doer, assinto lentamente e
Angelina interrompe, abrandando novamente. Ela suga meu lábio para
aliviar a dor e sinto o gesto diretamente na minha glande, que incha e baba
como se estivesse entre os lábios quentes e molhados.
Aperto a cintura de Angelina, grudando seu corpo ao meu, deixando-a
ciente do quanto estou fodidamente duro para ela. Minha garota geme em
minha boca ao se esfregar contra minha ereção. A posição, no entanto, não
dá a ela o estímulo suficiente.
— Espera, amor — murmuro ofegante, enfiando uma perna entre as
suas, melhorando o atrito. — Assim…
Pego em seu quadril, a movimentando contra minha coxa, sentindo o
calor da sua boceta mesmo com o tecido da calça me atrapalhando.
— Rebola pra mim, ok? Vamos ver se consegue gozar apenas assim.
As pernas de Angelina fraquejam com minhas palavras em seu ouvido e
a seguro mais firmemente na cintura com uma das mãos, enquanto a outra
vai para sua bunda, a ajudando com os movimentos. Solto uma risada
prepotente quando ela geme e joga a cabeça para trás, revelando o pescoço
alvo e esguio.
Ergo sua perna direita até meu quadril, a fenda revelando a coxa macia e
perfumada. Isso deixa Angelina mais aberta e ela intensifica seus
movimentos em minha coxa.
— Vou lamber você mais uma vez — aviso e ela balbucia algo que
imagino ser uma confirmação.
Aproximo a boca de sua garganta, provando a pele, demorando a língua
em sua carótida, apreciando os batimentos erráticos de seu coração. Gemo
em seu pescoço, arranhando com os dentes, chupando até chegar à delicada
orelha.
— Você está quase? — Empurro minha coxa de encontro à sua boceta,
esperando que seu clitóris esteja sendo tocado. Angelina soluça de prazer,
dando-me certeza de que sim.  — Me diga o quão perto de gozar você está
apenas em se esfregar em mim, Angel.
— E-eu… — ela balbucia, choramingando. Não paro de movimentar
minha perna contra seu ponto de prazer. — P-perto. Muito perto.
— Ótimo. — Beijo abaixo de sua orelha, interrompendo meus
movimentos. — Então é hora de parar.
Afasto-me dela, mas mantenho as mãos em seus quadris, firmando seu
corpo vacilante no chão.
— O quê? — Angelina me fita confusa e até mesmo um pouco irritada.
Sorrio lateralmente.
— Você é deliciosa demais para se desperdiçar em minha coxa. Quero
você gozando na minha língua.
Não termino de dizer as palavras para colocar-me de joelhos em sua
frente.
Entenda, Angelina é a mulher mais linda que pude colocar meus olhos,
mas neste ângulo, comigo ajoelhado aos seus pés, ela se parece com uma
verdadeira rainha. Minha soberana. Uma que estou disposto a reverenciar
por horas, que dirá pela eternidade.
Ergo a cabeça para observá-la, enquanto coloco uma perna sua sobre
meu ombro, o aroma de seu prazer me arrebatando imediatamente. A saliva
se acumula em minha boca.
— Eu vou chupar você, amor, só não pode gritar… — Observo em volta,
não vendo ninguém por entre as plantações. — Podem nos pegar aqui e não
vai ser nada legal.
Ela assente, o peito subindo e descendo profundamente, os seios
sobrepujando o decote. Sinto a falta deles em minha boca no mesmo
instante. Adoro a sensação dos mamilos esticando em minha língua.
— E por favor… por favor — imploro. — Esfregue-se na minha boca,
exatamente como estava fazendo na minha perna. Goza para mim, Angel.
Não dou tempo para que responda.
Aproximo o rosto dela, dando de cara com a minúscula coisa que ela
chama de calcinha. Uma onda de ciúmes irracional me toma, só de pensar
que alguém mais poderia ver isso além de mim.
Rosno com o pensamento, lambendo-a por cima do tecido rendado.
Angelina choraminga, agarrando-se ao meu cabelo. Contorno a região onde
seu clitóris está, soprando em seguida; a renda não contendo o frescor do
meu hálito.
— Céus… Francis — ela geme meu nome languidamente e meu ego
infla perigosamente, assim como minha possessividade.
— Você é minha — murmuro para mim mesmo.
— Por esta noite apenas — ela retruca.
Deslizo a língua novamente por sua fenda, o líquido escapando pelo
tecido. O provo como um viciado. Olho para cima e Angelina está focada
em cada movimento meu. Sorrio.
— Sabe que não vou sair daqui enquanto não arrancar da sua boca que é
minha, certo? — provoco.
Angelina morde o lábio, escondendo o sorriso. 
— Isso não é um bom incentivo. Eu posso me calar só para tê-lo de
joelhos pra mim.
Porra, essa mulher será minha ruína.
— Acredite, amor, você não conseguirá se controlar. Antes que perceba,
vai estar implorando para ser minha.
— Então talvez você deva falar menos e me chupar mais. — Ela arregala
os olhos após falar, as bochechas pegando fogo. Não sou o único surpreso
com sua coragem esta noite.
Gargalho, enquanto afasto a calcinha de sua doce e inchada boceta.
— Será um prazer, Angel… para nós dois.
Ela pode ter pressa, e talvez esteja certa, já que estamos em um local
público, mas é uma heresia ter essa mulher à minha frente e não saborear
cada parte dela, antes de tomá-la por completo. Instigar é quase tão gostoso
e poderoso quanto vê-la gozar implorando pelo meu nome.
Por isso, eu não vou direto ao ponto.
Viro meu rosto, aproximando a boca de sua panturrilha. Beijo a região,
inspirando o cheiro de lírios do seu creme. É hipnotizante, viciante, nunca
irei me cansar. A fragrância parece mudar a cada dia, tornando-se melhor,
afrodisíaca. Confiro a reação dela, não enxergando nada além de permissão
para prosseguir.
Vou da panturrilha até os joelhos, contornando a região com minha
língua. Escuto o arquejar de Angelina e faço uma nota mental sobre sua
sensibilidade nas pernas. É sempre bom saber o que faz sua garota sentir
prazer. Isso, é claro, se eu tiver a chance de testar minhas descobertas no
futuro.
Passo do joelho para a coxa, arrastando o dente pela pele, mordiscando e
acalmando com minha língua em seguida. Eu poderia passar eras apenas
fazendo-a ansiar pelo meu próximo toque, se minha própria necessidade e
saudade não estivessem ao lado de Angelina.
Minhas mãos passeiam por suas pernas, subindo sob o vestido,
acariciando os quadris proeminentes, sua cintura afilada e descendo de volta
para a curvinha da sua bunda, onde afundo meus dedos na carne macia sem
pena. Um som gutural e animalesco sobe pela minha garganta e meu pau
contrai sob a calça.
Definitivamente não dá mais para esperar.
Minha língua chega até o fim da coxa de Angelina e desenho a região,
contornando os lábios inchados, os evitando. Meus olhos reviram na órbita
com o sabor de sua pele. Angelina puxa meus cabelos, guiando minha boca
para onde de fato me quer. Minha garota pode ser mandona e não costumo
desobedecê-la, não quando nossas vontades coincidem.
Afasto a renda com os dedos.
A entrada encharcada recebe a primeira atenção, deposito batidinhas
com a língua, penetrando-a apenas com a pontinha, só para então sair
novamente. Ela soluça, implorando por mais.
— Shhh, amor… estamos apenas começando.
Sopro contra sua entrada, sentindo os músculos das suas coxas
tensionando. O chiclete de melancia traz um sabor a mais para ela, embora
o prefira puro, sem nada mais para mascarar. Angelina é deliciosa, em todos
os aspectos, eu não mudaria nada em seu corpo, em seu sabor ou em seu
aroma. Tudo parece ter sido desenhado e pensado para mim.
Onde eu falto, ela complementa. Onde eu sobro, ela envolve.
— Angel… — sussurro contra sua pele e olho para cima, tomando o
castanho de suas íris para mim. — Não tire os olhos de mim.
— Nunca.
Sorrio como um maldito necessitado.
E vou de encontro à fruta mais doce para o meu paladar.
Empurro a língua por entre as dobras molhadas, as paredes inchadas se
abrindo para mim, recepcionando-me quentes e tenras. Gemo para o gosto
único e peculiar, prestes a me levar à loucura. Desfiro um tapa estalado em
sua bunda e ela ri divertida, esfregando-se em minha boca. É a porra da
sensação mais deliciosa, a pele escorregadia deslizando entre meus lábios,
molhando-os com seu prazer, me aquecendo. Provavelmente os poucos
pelos da barba recém feita arranham a região sensível, mas Angelina não
parece se importar ou achar ruim. Ela está rebolando como alguém que
deseja mais, não menos.
Adiciono um dedo à equação, brincando com sua entrada, sem de fato
penetrá-la. Angel choraminga, puxando meus cabelos com mais força.
Sorrio sobre a boceta molhada, beijando logo acima de seu clitóris. Ela grita
e olho para cima, vendo-a tapar a boca.
— Shhhh… — faço o barulho sobre o nervo pulsante e ela faz tudo,
menos silêncio. — Angel! — repreendo, soltando uma risada divertida.
— Não me mande calar a boca enquanto você está me chupando, Francis
Hopkins! — Angelina me fuzila com os olhos e eu até riria da situação, se
ela não tivesse empurrado meu rosto de volta para seu lugar de direito.
Se ela não se preocupa em ser pega, eu muito menos. Sem avisá-la, a
penetro com o dedo até a base, seus músculos me envolvendo apertado.
Minha mente não me deixa parar de imaginar meu pau no lugar dos meus
dedos, a fodendo tão duro quanto ela quer.
— Oh, merda… — Angel soluça quando chupo o nervo intumescido,
não parando de mover meu dedo.
Sorrio sobre sua boceta, indo e voltando, as paredes quentes como o
inferno me apertando, tentando manter-me ali, para si. É delirante sentir os
espasmos do corpo dela, como suas coxas se contraem e seus quadris
empurram de encontro ao meu rosto. Gemo sem descrição, amolecendo a
língua para contornar o pontinho sensível, o sugando em seguida, dando
batidinhas com meus lábios. Ela está perto, posso sentir.
— Francis… eu vou cair. — Angelina aperta a perna em meu ombro e a
ponta de seu salto se finca em minhas costas. Reprimo o gemido de dor.
— Não se preocupe. Se cair, não vou parar de te chupar.
Ela me encara de sobrancelha erguida, só para então dar de ombros.
— Tudo bem então.
Angelina gargalha, talvez tomada pelo prazer da endorfina liberada. É
lindo vê-la assim, sendo banhada pela lua que já toma lugar do sol.
Vamos amor… goza pra mim. Se entrega pra mim. Que seja por esta
noite ou pela eternidade…
Aumento a intensidade da minha língua, adicionando um segundo dedo
em sua entrada, tomando consciência do quanto é fodidamente apertada.
Lembro-me exatamente da sensação do meu pau entre suas paredes, sendo
mastigado para dentro, consumido.
Ergo os olhos para os dela e a imagem me arrebata.
Angelina fez o que pedi, ela não deixou de observar uma vez sequer os
meus movimentos, como se ver eu me perdendo em sua carne, a desse um
prazer adicional. Sorrio, piscando com um dos olhos. Ela revira os dela,
mas não consegue conter o gemido sôfrego.
— Seja minha — murmuro contra sua pele, beijando, lambendo sua
deliciosa boceta.
— Sou sua… esta noite.
Grunho de frustração, mas ainda assim, dou o que ela precisa.
Se ela for minha ao menos esta noite, será melhor do que não ser em
noite alguma. Ao menos darei a nós dois um fim melhor do qual se lembrar.
Curvo meus dedos dentro de Angelina, tocando o ponto que a faz gritar e
prendo seu clitóris entre os dentes, o chupando como um faminto.
Os sons saem molhados da minha sucção e preciso cuidar para não
engolir o maldito chiclete ainda na minha boca.
Quando Angelina goza, seguro firme seus quadris, tentando evitar que
ela caia. O fato de usar saltos não ajuda no processo.
Mesmo com minha tentativa, vamos parar os dois no chão. Ela cai para
trás, com as costas sobre o chão de terra e eu por cima de seu corpo, com a
boca colada à sua boceta.
Ela gargalha alto e ergo o rosto, admirando a cena. Eu devo parecer um
pinto no lixo agora.
— Você falou sério sobre não parar…
— Eu sempre falo sério quando o assunto envolve minha boca na sua
boceta, amor.
— Para de falar assim! — Ela cobre o rosto com a mão e dou um último
beijo em suas dobras, a deixando limpinha. Eu seria maluco se
desperdiçasse uma gota sequer. Subo por seu corpo, até estarmos nariz com
nariz.
— Não vá me dizer que é tímida agora, Angel. Nós estamos prestes a
foder no meio de uma plantação de uvas.
Ela tira a mão do rosto.
— Ainda não me acostumei com sua boca suja.
— Será um prazer deixá-la familiarizada com meu linguajar chulo e
indecente.
Angelina morde o lábio, mudando a expressão de divertida para
melancólica. Franzo o cenho, não gostando nada do rumo das coisas. Não a
quero triste. Definitivamente não depois de lhe dar um orgasmo.
Estico a mão para um pé de uva próximo à sua cabeça e arranco uma
fruta, oferecendo-a.
— Prova.
— Não está limpa. — Nega com a cabeça.
— Nós também não. — Abaixo os olhos para a terra onde estamos.
— Tem razão... — Angie dá uma risadinha.
— Abre a boca, amor.
Sinto o peito de Angel contrair ao chamá-la assim. É, o meu também dói,
meu anjo.
Os lábios rosados se entreabrem e deslizo a fruta por entre eles, até que
Angel a capture com a língua.
— Ei! — repreendo.
Ela apenas sorri, mastigando. Angel colhe uma do pé e leva à minha
boca, repetindo meu gesto. Talvez eu morda seu dedo no caminho, apenas
para recordar os velhos tempos.
Angel suspira com o ato.
Ela me puxa pela nuca e nos une em um beijo com sabor de uva. A fruta
é esmagada em nossas bocas e o suco se espalhando nos faz gemer. Angel
move a língua de forma engraçada na minha boca, como se procurasse por
algo.
— O que foi?
— Estou procurando o chiclete de melancia.
— Não sabia que gostava tanto assim.
— Nem eu… onde ele está? — Ela une novamente nossas bocas.
Passo a língua no céu da boca, onde havia pressionado o chiclete. Angel
geme na minha boca ao provar o sabor misturado das frutas. Vou confessar,
não é lá muito harmônico, mas quem sou eu para questionar seus gostos…
Ela pressiona meu peito e retraio o peso do meu corpo, deixando-a
inverter nossas posições, pairando sobre mim. A diaba senta por cima do
meu pau e solto um rosnado, jogando a cabeça para trás, em plena
consciência que vou sair cheio de terra e folha nos cabelos.
— Eu quero tocar você — murmura contra minha boca, rebolando em
minha ereção sem qualquer inibição.
Ergo a sobrancelha, assistindo-a erguer o tronco e me encarar de cima,
com uma expressão puramente maliciosa. O que diabos deu nessa mulher?
Se uma taça de vinho faz isso, é melhor me preparar caso um dia ela beba a
garrafa inteira.
— Seja específica.
— Estou sentada sobre o que quero tocar. — Ela aponta para baixo. O
“ele” vibra de puro êxtase.
— Fique à vontade pra pegar. — Coloco as mãos atrás da cabeça, a
encarando prepotente.
— É… eu quero… — Angie limpa a garganta, indecisa. — Eu não quero
pegar com a mão.
Franzo o cenho. Ela quer pegar com o quê, se não as mãos?
— Por acaso você tem aquelas taras em pés? — indago chocado. 
— Não! — Angelina grita com uma careta de nojo. — Eca!
Gargalho alto.
— Foi mal, foi só isso que pensei.
— Definitivamente não é isso… não gosto de pés, eles são feios. O que
eu quero… — Angelina respira fundo, olhando-me decidida em seguida. —
É com a boca. Quero tocar você com a boca.
Arregalo os olhos.
Ok.
Não esperava por isso.
Não mesmo.
Eu vou gozar em três segundos se essa mulher botar a boca no meu pau.
Se eu tiver sorte. Muita sorte. Porque só de ouvir ela cogitar a ideia, eu já
tenho que travar a bunda.
— Posso? — Angelina sussurra timidamente, ainda que ao mesmo
tempo provocativa. Eu vou pifar.
Não é todo dia que a garota que você ama, te olha com uma carinha
suplicante para te fazer um boquete.
Eu morri e fui para o céu? Esqueceram de me avisar?
Se esqueceram, deixem assim. Está bom pra caralho.
 
 

 
 
Pela segunda vez em pouco tempo, me pergunto se derreti o cérebro do
Francis. Ele não está verbalizando há uns dois minutos, apenas me
encarando como se visse um milagre na sua frente.
É engraçado como Francis pode assumir o total controle em alguns
momentos, como quando sua boca me provava habilidosamente, e em
poucos segundos, tornar-se submisso às minhas vontades e obediente aos
meus comandos. Ou talvez, mesmo quando ele assume a frente, o controle
ainda seja meu. Por isso é tão fácil para que ele siga meus sinais.
Não tivemos tempo o bastante. Mas ao fitar seus olhos, constato que
nunca seria o bastante. O infinito seria pouco demais para nós dois. Não sei
se acredito em vida após a morte ou reencarnações, mas se isso existir, eu
torço para que na próxima nós possamos ser felizes juntos. De alguma
forma.
Engulo a saliva, assim como empurro para baixo os sentimentos
mórbidos.
— Pergunta — murmuro. Francis pisca, saindo do transe. — Você ainda
está aqui ou sua alma foi embora?
— Um pouco dos dois. — Ele sorri sem graça, suas mãos se apossando
da minha cintura. Eu gosto de como os dedos dele são grandes e me
envolvem com possessividade.
— Então vou beijar você — aviso, assim como ele faz comigo todas as
vezes. É confortável para mim, então imagino que seja para ele.
— Sou todo seu, Angel.
Ele repete as palavras que usou na noite em que nos amamos na
floricultura. Minha primeira vez. Meu coração bombeia o sangue mais
forte.
— Por esta noite — emendo.
— Sempre. — Ele me corrige. — Eu sempre, eternamente, serei seu,
Angelina.
Meu rosto aquece. E abaixo o tronco para encontrar seus lábios.
— Por favor, não diga isso — imploro.
Imploro, porque se ele for eternamente meu, estará preso para sempre a
uma garota que pode não ter muito tempo. Vovô viveu muito... posso não
ter essa sorte.
— Não posso dizer o contrário. Desculpe... — a voz dele é dolorida,
porque eu sei que pensa que estou renegando o amor que sente por mim.
Mas não é isso. E não posso dizer que, na verdade, estou renegando seu
sofrimento por mim.
Acaricio seu belo e forte rosto. Beijo novamente seus lábios, só para
então passar para a pontinha do nariz; entre as sobrancelhas; descendo para
o maxilar proeminente; indo mais abaixo para seu pomo de adão…
contorno e percorro cada milímetro do rosto de Francis, o decorando. Seja
lá o que acontece depois que morremos, quero lembrar disso. Dele. Da
textura da pele, da temperatura do corpo, do sabor do beijo e do aroma do
seu perfume.
Serpenteio meu corpo sobre o dele, descendo as carícias para seu
pescoço, clavícula, até ser interrompida pela camisa branca.
Ergo os olhos para Francis e os dele estão compenetrados e fixados em
todos os meus movimentos. Por alguns segundos, perco-me nesse mar. É
engraçado como os tons de azul se misturam em suas íris, praticamente
formando ondas.
Exatamente como a recém desenhada em meu braço.
Porque ele é como uma onda para mim. Arrastando tudo consigo e
voltando sempre por um pouco mais.
Prendo os dedos nos primeiros botões ainda fechados da camisa e
Francis assente para minha pergunta muda. Abro um por um.
Demoradamente, porque não consigo quebrar nosso contato visual. Há tanto
que precisamos dizer, mas nada que saísse da nossa boca, dialogaria como
nossos olhares conectados fazem. É uma saudade que não pode ser medida,
uma mágoa que não consigo calcular e uma paixão… uma paixão que não
ouso sequer entender.
Abro o último botão da camiseta e afasto o tecido para os lados, embora
ainda presos em seus braços. O abdômen de Francis é revelado, em toda sua
glória. Céus, esse homem tem treinado.
A saliva acumula na minha boca e meus dentes doem para provar cada
um dos gominhos formados, cada monte e vale. Mordo o lábio inferior,
simplesmente por não conseguir me conter. Eu apertaria minhas coxas, se o
corpo sob mim não me impedisse.
— Angelina — chama divertido.
— Hum?
— Cuidado para a baba não cair em cima de mim.
Ergo o olhar para ele, que tem uma expressão nada além de convencida e
prepotente.
— Eu não babo.
— Se você for mesmo fazer me fazer um boquete, espero que esteja
errada.
— Como assim? — Franzo o cenho.
Ele sorri malicioso.
— Apenas… babe. Pode acreditar, meu pau não vai se incomodar com
um pouco de saliva… ou muita — Francis pisca, fazendo minhas bochechas
pegarem fogo.
Eu ainda não entendo essa reação do meu corpo em se constranger com
as barbaridades que esse garoto fala.
Balanço a cabeça, ignorando a risadinha que ele solta.
Ao invés de responder à sua provocação, aviso novamente.
— Vou continuar te beijando.
— Graças a Deus.
Dessa vez, eu solto uma risada.
Palhaço convencido.
Arrasto a ponta dos dedos por seu peito, admirada com a perfeição de
seus músculos delineados. A pele alva brilha sob o céu estrelado. Francis se
contorce minimamente enquanto o toco e isso me incentiva a continuar. Eu
gosto de fazê-lo se esquecer do próprio controle, assim me sinto na mesma
posição da nossa competição. Assim o faço sentir, exatamente como me
sinto quando são as mãos dele sobre mim. Ou os lábios, ou… ou o que
estou prestes a colocar na boca.
Eu sei o quanto ele está excitado. Eu sinto. Seu membro pulsa sob mim e
controlo meu corpo para não me esfregar contra ele em busca de alívio.
Talvez não devêssemos estar levando as coisas tão demoradamente, dado o
lugar e circunstância que estamos, mas se essa for nossa última noite, não
ligo para todo o resto.
Abaixo novamente meu troco, beijando logo acima do coração de
Francis. Sinto os batimentos cardíacos erráticos em meus lábios. O ritmo,
ainda que irregular, me tranquiliza. Eu poderia apenas deitar-me sobre seu
peito, ouvindo as batidas, e me sentir em completa paz.
Deixo outro beijo, antes de ir para o outro lado. Desenho os pequenos
mamilos com os lábios e os sinto esticar minimamente. Francis ofega.
Continuo meu percurso decrescente, chegando aos gominhos formados,
arranhando-os com os dentes, deixando-os marcados, não apenas pelo
batom vermelho, mas também por minhas mordidas. Francis se contorce,
contraindo o abdômen e fechando as mãos em punhos na terra.
O último contato dos meus lábios antes de chegar à braguilha da sua
calça, é no “V” que se forma ao final; um vale delicioso, que aponta
diretamente para o meu objeto de desejo desta noite.
Um rosnado rouco e incontido chega aos meus ouvidos, ao abrir o botão
da calça social. Francis segura minha mão, impedindo-me de abrir o zíper.
Olho para cima em busca de resposta.
— Você disse que eu podia… — começo a argumentar.
— E pode, só quero te pedir para evitar os dentes.
— Vou tentar levar em consideração sua sugestão.
— Você é má, senhorita Eastwood.
— Obrigada.
— Quem disse que foi um elogio? — Francis ergue as sobrancelhas.
— Seu sorriso.
Ele estreita os olhos sensualmente.
— Então faça um favor ao meu sorriso e chupa meu pau, amor.
Agora sou eu que arregalo os olhos.
— Pare de me desconcentrar — repreendo. — Abra a boca apenas para
me guiar, nada mais.
— Sim, senhora! — Ele leva a mão à testa, batendo continência.
Deito entre as pernas que Francis afasta apenas o bastante para caber
meu corpo. Meu rosto fica próximo à sua ereção e quase posso sentir seu
calor, mesmo com os tecidos a cobrindo.
Talvez eu passe bastante tempo encarando sem fazer nada, porque
Francis quebra o silêncio.
— Você quer que eu te ajude? — sua voz sai estrangulada em desejo cru.
Manejo a cabeça em confirmação.
Ele desce o zíper da calça, erguendo os quadris para empurrá-la para
baixo. Francis não faz o mesmo com sua boxer, que continua cobrindo seu
membro, embora não disfarce o quanto está excitado.
— Um toque de cada vez, lembra? — ele sussurra. — Não precisa ir
direto ao ponto.
Assinto, respirando fundo, só para contornar o relevo do tecido preto
com a ponta dos dedos. Francis contrai o abdômen com o gesto e joga o
pescoço para trás. Contorno a glande, unindo meus dedos na ponta, para
então abri-los sobre a extensão.
— Porra — ele pragueja. Sorrio satisfeita.
E repito o gesto mais umas três vezes, passando a testar o que mais ele
gosta. Percorro o caminho de uma veia sobressalente, que desponta mesmo
sob o tecido. Ela vibra contra meu toque, o sangue correndo mais depressa.
Francis está tão incrivelmente duro, que me pergunto se não é doloroso. Ao
chegar na base de seu membro, pergunto-me se devo tocar em suas… ah,
céus, como é difícil falar qualquer parte que envolva sua intimidade. Até
mesmo de pensar, quero sair correndo de pura vergonha. Mas vamos lá, ele
não pode rir dos meus pensamentos. Tocar em suas… bolas? É melhor que
saco escrotal, com toda certeza.
Seguro a risada.
— Angel, pelo bem do meu escasso ego e autoestima, me diga que não
está rindo do meu pau.
— Não, das suas bolas.
Arregalo os olhos quando a última palavra escapa da minha boca.
— Não ajuda muito — ele choraminga. — O que as coitadas têm para
ser motivo de riso?
— Não é o que elas têm, estou rindo do nome.
— Ah, graças ao bom Deus. Achei que fosse ser castrado moralmente
agora mesmo — ele suspira teatralmente.
— Quanto exagero, Hopkins. E pare de me distrair.
— Desculpe. Vou ficar calado — ele faz como se fechasse um zíper em
sua boca. Reviro os olhos para a cena dramática.
Umedeço meus lábios, que se tornam rapidamente secos com o clima
frio. Talvez eu escute Francis xingar algo depois que faço isso, mas não
tento entender. Preciso muito me concentrar no que vou fazer.
Encaixo os dedos na costura da boxer, a puxando para baixo, não por
completo, mas apenas o bastante para a glande inchada e avermelhada
aparecer em meu campo de visão, já com uma gota de líquido escapando
pela pequena fenda. Meus olhos pesam. E a saliva acumula em minha boca.
Talvez agora eu entenda a parte de babar.
Inspiro com mais força e o cheiro másculo de Francis toma minhas
narinas. Nesta parte de seu corpo, é ainda mais evidente. Não é como um
perfume, claro que não. Mas é tão ele, tão incrivelmente ele, que faz meu
centro latejar por sentir mais. E não só o cheiro, mas também o sabor.
Olho para cima para checar o estado de Francis e ele está vidrado em
mim, hipnotizado. Sorrio brevemente, antes de tocar meus lábios
superficialmente na ponta. Vejo os músculos das suas coxas tensionarem e
sua respiração pesada chega até mim. Ele parece relativamente bem,
embora prestes a infartar. Então prossigo.
Novamente o beijo, embora dessa vez, pressione mais meus lábios contra
sua glande e os entreabro, deixando a pontinha da minha língua prová-lo.
Gememos em uníssono. Aperto minhas pernas, contendo meu próprio
prazer. Não quero essa distração agora.
Permito que a saliva se acumule em minha boca e abro timidamente os
lábios, até que seja o suficiente para envolver a ponta, deslizando-a para
dentro.
— Oh, merda — Francis xinga e sinto seu corpo tremendo ansioso.
Movo a língua envolta da glande, que lateja em minha boca, agradando-
me o fato de a pele ser incrivelmente lisa e macia. Faço círculos em volta
dela, minha língua brincando e conhecendo. Agora, sequer presto atenção
às coisas que saem da boca de Francis. E mesmo que prestasse, elas mais se
parecem com palavras ininteligíveis.
Quando me canso dos círculos, imagino o que Blue me dissera sobre um
picolé, quando estávamos em Cape May. E o chupo. Não sei se faço certo e
nem com a força ideal, então começo devagar, com pequenas e fracas
sucções, observando as reações do corpo dele. Mais líquido escapa e me
surpreendo com o sabor. Não é gostoso. Mas também não é horrível.
Puxo a boxer mais para baixo, contando com a ajuda de Francis, que
eleva os quadris. Deslizo a boca para fora dele com um som molhado, e o
membro salta impiedoso e firme, pousando sobre o abdômen definido.
Ofego, sentindo minhas paredes internas contraírem, apenas de lembrar da
sensação de quando ele está completamente enterrado dentro de mim.
— Angel, você está me torturando… — Francis faz que vai se erguer e
tomar a frente da situação novamente, mas apoio a mão em seu tronco, o
empurrando para baixo de novo.
— Não. Eu vou terminar o que comecei.
— Mulher, você está superestimando meu autocontrole — ele ri
desesperado.
— Vai me dizer que não consegue se segurar? — provoco. Francis
grunhe. — Então fique calado e me deixe trabalhar.
— Trabalhar, ahn? — Ergue as sobrancelhas divertido.
— Não seja indecente.
— É você que está com a cara no meu pau.
— Francis Hopkins!
Ele gargalha alto, erguendo as mãos pela segunda vez.
Contendo a vontade de erguer o dedo do meio para ele, volto a me
concentrar. Já não é fácil fazer coisas novas, com ele me provocando, torna-
se duas vezes mais difícil.
Seguro seu membro pela base, as veias pulsando sob meu aperto, que
aumento gradativamente, até ficar como ele havia me ensinado meses atrás.
O peso é considerável, principalmente pela forma como está túrgido entre
minhas mãos. Movimento a mão de cima para baixo, a pele quase cobrindo
a glande, só para então revelá-la novamente.
— Isso, Angel… exatamente assim — ele me incentiva e fico um pouco
mais ousada.
Não deixando de mover minha mão, aproximo novamente a boca,
cobrindo apenas a ponta. Chupo com mais força do que a outra vez e
Francis se contrai em minha boca, embora dessa vez não pareça de prazer.
— Calma, amor. Mais devagar. Essa parte é sensível — ele instrui com
calma, passando a mão em meus cabelos, os afastando do rosto.
Diminuo a força, apenas o provando com minha língua, que contorna a
ponta inchada. Conforme movo a boca, minha saliva escapa, molhando sua
extensão, o que facilita os movimentos da minha mão. Francis grunhe, a
mão em meus cabelos fechando-se em punhos. Sei que ele se segura para
não ditar seu próprio ritmo, e de certa forma agradeço a gentileza, embora
eu queria saber exatamente como ele gosta que seja feito.
Com a mão livre, toco a sua e ergo os olhos para os dele, deixando claro
o que eu quero. Francis segura meu olhar por alguns segundos para ter
certeza.
— Basta erguer sua cabeça para que eu pare, ok? — murmura baixinho,
a voz não escondendo seu prazer.
Assinto e Francis força minimamente sua mão, movendo-me apenas
alguns milímetros mais para baixo, pouco depois de sua glande. Xinga e
pragueja, apertando os olhos, mas não os fechando por completo. Ele não
quebra nosso contato. Talvez, assim como eu, goste de observar, ver como
os lábios trabalham em seu corpo.
A cada movimento, ele me leva mais para baixo, seu membro tomando o
espaço da minha boca. É estranho. Mas não é ruim. De fato me agrada o
quanto sua pele escorrega pelas paredes molhadas do interior da minha
boca, e principalmente, sinto-me poderosa com os sons agoniados e
prazerosos que saem da boca dele. Francis está na beirada do seu limite e
tudo pelo que eu faço.
Quando sua glande quase encosta em minha garganta, mantenho o
pescoço firme e ele entende que não deve passar dali. Francis pisca
maliciosamente, voltando a afrouxar seu aperto em meus cabelos.
Ao sentir suas veias latejarem e incharem mais ritmicamente, ele me
ergue em um só movimento, por pouco meus dentes não raspando em sua
extensão. O encaro assustada e ele sorri preguiçosamente para mim,
colocando-nos de pé. Meus saltos dançam na terra.
— Eu estava quase gozando — explica a pergunta que não verbalizei.
— E daí?
— E daí, que é melhor uma coisa de cada vez. Não sei se seria muito
agradável — Ele arrasta o polegar pelo meu lábio, limpando a saliva que ali
se acumulara. — Além disso, apesar de amar a sua boquinha em volta do
meu pau, não posso mais esperar para estar enterrado bem fundo dentro de
você.
Arquejo e minhas pálpebras pesam. Não sei o que dizer.
— Vire-se... me deixa abrir seu vestido. — Francis verbaliza. Talvez
pelo momento, esqueço-me momentaneamente da tatuagem recém feita e o
obedeço. Arregalo os olhos quando escuto seu arquejar. Praguejo
internamente, sabendo que o que quer que tenha se iniciado até agora, acaba
de ter seu fim. Francis está com as mãos em meus ombros e as sinto
tornarem-se gélidas. Engulo a ansiedade, contorcendo meus dedos à frente
do corpo, incapaz de me virar para ele.
— V-você… você cobriu a… — ele se engasga. Meu coração bate mais
forte para a dor presente na voz falhada.
— Cobri — tiro forças do interior para responder.
O silêncio se perpetua. Tudo que escuto é o vento soprando as plantações
e os fios do meu cabelo raspando em minha orelha. Sequer a respiração do
homem atrás de mim, consigo captar. Quando estou prestes a me virar para
ele, Francis pergunta.
— Por que uma onda?
Respiro fundo, mantendo-me de costas. É mais fácil admitir sem olhar
para ele.
— Porque representa o meu medo mais profundo… Água. — Engulo. —
E ao mesmo tempo, meu amor mais incondicional… você.
Espero uma resposta, mas o que recebo, é sua testa apoiada em minha
nuca. Francis permanece assim por um tempo indeterminado, com os
braços envolvendo-me por trás, abraçando o mais forte que consegue.
— Você ficou triste? — questiono com medo da resposta. Não sei como
reagir a lhe causar dor. Mesmo que tenha sido essa intenção ao cobrir suas
iniciais em minha pele.
— Por alguns segundos, eu pensei que fosse morrer bem aqui, até notar
que era uma onda… — Ri descrente. — Você sabe como testar o coração de
um homem, Angelina.
— Então quer dizer que não ficou triste? — odeio quando ele não
responde minhas perguntas direito.
— Você ficou triste quando viu os lírios no meu braço?
Franzo o cenho, pensando.
— Não — admito. — Na verdade, foi um dos meus primeiros momentos
felizes desde que me mudei para São Francisco.
— Então tem sua resposta, Angel. — Francis desce as alças do meu
vestido, o tecido caindo aos meus pés em um amontado. — Esse também
tem sido um dos meus primeiros momentos felizes desde que nos
separamos.
Incapaz de controlar-me, giro sobre os calcanhares, ficando cara a cara
com o homem que bagunça toda minha vida. Eu deveria odiá-lo com todo o
meu ser e talvez o faça. Mas o odeio, porque sei que nunca serei capaz de
deixar de amá-lo. Mesmo após a morte. Exatamente como vovó Angelina
descreveu.
Francis sorri para mim, seus olhos brilhando como nunca antes,
ajoelhando-se para me ajudar a retirar minha calcinha. Ele beija o encontro
entre minhas pernas e fecho os olhos para a sensação. Quando se ergue,
guarda a pequena peça no bolso de dentro do seu blazer, que permanece
preso em seus braços.
Quando faço uma careta de confusão, ele pisca.
— Essa aqui eu vou guardar de recordação.
Gargalho, balançando a cabeça.
Francis deita-se novamente no chão e me convida com o dedo a fazer o
mesmo. Sento-me ao seu lado.
— Como você pretende fazer isso? — olho para o chão, quase rindo da
situação que nos colocamos. Podemos muito bem ser considerados cães no
cio.
— Me monta, Angel.
Arqueio a sobrancelha.
— Eu tinha acabado de pensar em nós como cães no cio, e agora você
está sugerindo que é um cavalo?
— Amor, eu posso ser até a porra de um pônei, desde que você sente no
meu pau.
Fecho os olhos, balançando a cabeça.
— Céus, agora você me fez lembrar de um livro que li certa vez, onde o
protagonista se considerava um pônei nada dócil.
— Fique tranquila, eu também não sou.
— Não sei, não… — provoco. — Você foi bem dócil das últimas vezes.
Francis estreita os olhos.
— Não devia ter dito isso.
Francis me faz gritar ao mordiscar meu seio completamente de surpresa,
me puxando para cima do seu corpo. Ele permanece com minha carne entre
os dentes, olhando-me de baixo.
— Muito dócil ainda? — a voz sai embolada já que ele mastiga meu
mamilo.
— Nada demais — jogo os ombros, claramente brincando com fogo e
muito ansiosa para me queimar.
Francis aperta mais a minha carne entre os dentes, com a expressão
dançando sensualidade.
Movimento meus quadris contra a ereção sob mim e ele geme com a
boca me aprisionando.
— Por que você vai ficar embaixo? — questiono curiosa. Ele sempre
ficava por cima.
— Porque o chão vai ferir suas costas.
— Mas e você? — indago.
— Estou de camisa. Além disso… — ele sorri lateralmente. — Quero
ver sua bocetinha engolindo meu pau por completo.
Suas mãos se apossam da minha cintura, levando para trás, seu membro
batendo em meu cóccix.
— Se inclina pra mim — me instrui e apoio os antebraços na lateral da
cabeça de Francis, meus seios pressionando seu peitoral. O contato é cálido,
delicioso. — Você sempre pode parar quando quiser.
— Mas não quero. — Tomo os lábios macios para mim, não deixando
margem para qualquer pensamento. Não tenho dúvidas quanto ao hoje e
agora, tenho dúvidas sobre o amanhã. E a merda do amanhã pode esperar.
Francis pode me levar do céu ao inferno nesse momento e não me
importarei com nenhum dos destinos escolhidos.
Ele guia seu membro para minha entrada e sinto sua glande contra meus
lábios. Suspiro contra sua boca, que me devora lenta e meticulosamente. O
gosto de melancia ainda está presente em nossas línguas, alimentando meu
desejo. Céus, nunca essa fruta me pareceu tão gostosa.
As mãos grandes e firmes se apossam cada uma de uma lateral da minha
bunda, até os dedos estarem enterrados na pele. Francis me abre para
receber seu membro. Ele dá batidinhas com a glande em minha entrada e
soluço em sua boca, surpresa com a sensibilidade. Francis vai me tomando
devagar. Pouco a pouco. Me deixando sentir cada parte dele em contato
com meu interior. Nossas bocas se separam, pois formam um círculo
perfeito quando ele está totalmente enterrado dentro de mim. O sinto por
inteiro, suas veias latejando e seu membro alargando minhas paredes, que
molham sua extensão conforme meu prazer torna-se algo tangível ao ponto
de ser sentido no ar.
Francis tem as sobrancelhas contraídas uma contra a outra, os olhos
cerrados, controlando e recebendo a mesma onda de endorfina que eu. Ele
acaricia minhas costas, ombros, seios, barriga, e antes de chegar ao meu
centro, ele molha seus dedos, os deixando úmidos, para então, só então,
esfregar meu clitóris com habilidade. Ergo meu tronco, a coluna se
arqueando com o prazer misturado de seu membro e seus dedos. Apoio a
mão no peito firme, usando-o de impulso para subir e descer em seu pau…
merda, ele está me contagiando com seu linguajar.
Meus joelhos ralam no chão de terra, mas não consigo parar de mover-
me em cima dele, sua glande atingindo um pontinho dentro de mim que me
faz ver mais estrelas do que as presentes no céu. Mordo o lábio para conter
o grito e Francis solta uma risadinha.
Não posso chamá-lo de nada além de safado. Ele é a própria
reencarnação de um dos pecados capitais. A luxúria.
Ele segura meus cabelos em punhos, fazendo meu tronco cair para
próximo de seu rosto, assim como meus seios, que ele mama como um
esfomeado. Como alguém que vagou por dias no deserto e encontrou seu
oásis.
— Porra, Angel… — Solta meu mamilo quase a contragosto, passando
sua tortura para a pele da minha orelha. — Você tá tão fodidamente
molhada, que está me babando inteiro, amor.
— Isso é ruim? — murmuro em agonia. Agonia por ter minha libertação.
E ao mesmo tempo, para que isso não acabe.
— Ter sua boceta molhada pra mim é a oitava maravilha do mundo, não
se preocupe.
— Você é um tarado.
— Sou. Por você, eu sou — ele fala enquanto arremete seus quadris para
cima e segura meus quadris no lugar, penetrando-me com força. Céus, tão
forte… e tão bom. Choramingo, gemo, grito, porque não consigo lidar com
as sensações em silêncio. Ele une nossas bocas para engolir meus sons e
conter os próprios, enquanto se move com precisão, me fodendo sem
qualquer receio de deixar marcas.
E, por Deus, eu quero que deixe.
Quero que me marque, por dentro e por fora, que não me deixe esquecer,
que me tome com força, com possessividade, que me faça confessar que sou
sua.
Ele me vira para baixo em um rompante, puxando minhas pernas para se
prenderem em suas costas e arremete seus quadris tão rápido e tão fundo,
que minha visão escurece de prazer. As mãos dele seguram minhas coxas de
modo a mantê-las no lugar e não deixar meu corpo se mover com a força de
seus movimentos. Ele está incontrolado, selvagem e isso me faz gemer e me
entregar ao prazer da mesma forma. Agarro sua bunda, o puxando para
ainda mais perto, ainda mais fundo. Ele rosna contra minha boca, rebolando
o quadril, seu membro de alargando ainda mais, me preenchendo ainda
mais.
— Francis...
— Eu sei. Eu também... — ele molha seus dedos, levando para baixo
entre nossos corpos e quando belisca meu clitóris, engole meu grito com um
beijo, que termina de me levar ao orgasmo, seguido pelo dele, quente e forte
dentro de mim.
É o paraíso. E o inferno. A mistura perfeita entre os dois.
 

 
Sorrio debilmente contra a boca de Francis, que ofega junto a mim,
acarinhando minha coluna, indo e voltando. Estamos exaustos. Exaustos e
completamente saciados. Não consigo dizer a quanto tempo estamos assim,
apenas que eu não tenho vontade de ir embora.
Ele está prestes a dizer algo, quando escutamos barulhos de passos vindo
em nossa direção. O olhar que era de puro êxtase, torna-se assustado e em
alerta. Francis nos ergue em um movimento que me deixa até tonta e
coloca-me atrás de si, para que eu consiga colocar o vestido no lugar. Ele
pega o blazer jogado no chão e o veste, dando batidas no tecido para tirar o
excesso de terra e folhas. Meu coração galopa no peito e desisto de tentar
arrancar os galhos presos nos meus cabelos. Uma risada começa a escapar
da minha boca e Francis até tenta fazer um movimento com as mãos para
que eu fique em silêncio, mas ele sucumbe ao nosso humor avesso e
começa a rir, enquanto sobe sua calça.
Antes que seja capaz de subir o zíper e fechar o botão, uma luz surge das
nossas costas, assim como a voz rouca de um homem.
— Vocês dois! Parados aí!
Meu sangue congela. Giro nos calcanhares por puro instinto do meu
cérebro e levo a mão ao coração, encarando o senhorzinho já de idade à
minha frente, com cara de poucos amigos e uma lanterna jogando luz na
nossa cara. Minha boca se abre e nada sai dela, nem mesmo respiração.
Com uma rápida olhada para Francis, ele tem as mãos erguidas para o
alto, como se estivesse prestes a ser revistado pela polícia e a cara ainda
mais arregalada que a minha. Volto a fitar o homem, esperando que ele
chame a polícia para nós.
Se eu fosse ele, chamaria. Acabamos de transar em suas terras. E não foi
um sexo silencioso. Será que gritos atrapalham no desenvolvimento das
uvas? Se sim, a plantação está fadada ao fracasso.
— Senhor… é… nós não… — Francis balbucia ridiculamente e tenho
vontade de pisar no pé dele. Desembucha, homem! Ele está segurando uma
lanterna, não uma espingarda. — Não é o que o senhor está pensando.
Fecho os olhos, balançando a cabeça.
— Eu tenho certeza que ele está pensando a coisa certa, Francis —
grunho.
— A gente podia tá só perdido — contrapõe.
Cubro o rosto com as mãos.
— Seu zíper tá aberto, sua camisa igualmente e tem marca de batom em
todo lugar — digo desacreditada.
— Ah… — Ele olha para si próprio. — Então é o que o senhor tá
pensando, mas foi tudo sem maldade — Francis tenta argumentar e eu juro
que me seguro para não o socar.
— É sério? — debocho. — Você me fodeu sem maldade?
O homem à nossa frente limpa a garganta, chamando nossa atenção e
interrompendo nossa breve discussão. Minhas bochechas esquentam ao
olhar para ele.
— Eu acho que sei exatamente o que aconteceu aqui, então se poupem
das desculpas.
— O senhor vai mandar nos prender? — pergunto de uma vez. É melhor
eu saber se já preciso ligar para um advogado.
— Angelina! — Francis joga o ombro no meu. — Não dá ideia, caralho.
— Você acha que precisa? — sibilo. — A gente transou na plantação
dele!
— Agora a gente vai ser preso, certeza — ele choraminga.
— Não vou chamar a polícia — o senhor diz enquanto torce a boca cheia
de vincos.
— Não?! — Francis e eu gritamos ao mesmo tempo.
— Querem que eu chame? — ele coça a cabeça.
— Não! — gritamos novamente.
— Vocês estão bêbados?
— Mesmo se tivéssemos, depois desse exercício todo, já estaríamos
sóbrios — Francis zomba, balançando as sobrancelhas e arregalo os olhos.
— Francis Thomas Hopkins! — Piso com força no pé dele, o fazendo
guinchar.
— Ai, Angel. Essa porra dói.
— É pra doer, palhaço. Se fosse pra fazer cócegas eu tinha cutucado sua
axila.
— Você fica linda quando tá brava. — Ele beija meus cabelos, cuspindo
uma folha em seguida. Seguro a risada.
Escutamos um limpar de garganta novamente.
— Antes que vocês recomecem com a safadeza, podem, por favor, sair
da minha plantação?
— Claro! — assinto, já saindo em disparada, tentando não torcer os
tornozelos. Nunca mais uso salto.
— Espera aí, Angel! — Francis grita atrás de mim, tropeçando nos
próprios pés. Deus, alguém arrume algum senso de equilíbrio a esse
homem. Engraçado que ele não leva um segundo sequer para achar o
caminho para dentro de mim, mas para andar em linha reta…
— O senhor deveria fechar o zíper e a camisa antes — o velhinho alerta.
— É uma ótima dica — Francis coça a cabeça, rindo sem graça. — A
propósito, por que o senhor não está querendo nos matar?
Interrompe meus passos. Francis quer mesmo ser preso.
— Porque vocês não são os primeiros nem serão os últimos a fazer dessa
plantação um motel, garoto. Quando era jovem, eu e minha esposa, que
Deus a tenha, adorávamos o ar livre. — Ele balança as sobrancelhas e
mordo o interior da boca para a careta que Francis faz.
— Informação demais.
— Adeus — aceno, contendo a risada de puro constrangimento.
Francis agarra minha cintura, me ajudando a andar mais depressa.
Mesmo com o flagra e o fato de estarmos todos sujos de terra, um sorriso
satisfeito decora nossos lábios. Acima de nós o céu começa a despejar gotas
de chuva, que molham nossas cabeças, piorando ainda mais nosso estado.
— Retiro o que eu disse, você é minha loucura sim — Francis me segura
em frente à porta de entrada da mansão, segurando meu rosto nas mãos. —
Quase me fez ser preso, mulher!
Gargalho alto, delirando com a adrenalina correndo em minhas veias. É
tão bom sentir essa liberdade. E é horrível constatar que o nadador à minha
frente é toda a razão para isso. Eu realmente detesto ser feliz com ele.
— De nada — pisco, unindo nossas bocas enquanto a chuva despenca.
Por hoje, os céus estão a nosso favor, porque nenhum trovão ressoa acima.
Beijar na chuva. Posso riscar isso da minha lista.
E que beijo…
 

 
 
— Angelina… — Donna me encara como se visse um cachorro de seis
patas na sua frente.
Ela não dormiu nos dormitórios na noite de ontem, o que me ajudou a
não ter que explicar o estado do seu vestido e nem sobre eu estar
completamente encharcada e com folhas no cabelo. Mas isso não impediu
que achasse o vestido no cesto de roupas sujas e os arranhões nos meus
braços. Aqueles galhos e pedrinha fizeram um estrago e nem quero pensar
como Francis está. Talvez eu tenha pegado pesado demais com as unhas.
— Eu ainda não consigo acreditar. — Minha amiga arfa, cruzando as
pernas sentada em sua cama.
Ela vem repetindo isso desde que tive que contar o que aconteceu.
— Pois trate de acreditar. — Jogo os ombros. — Não é como se eu
tivesse cometido um cri… — eu ia dizer crime, mas considerando o fato de
que transei em um local público, então sim, cometi um crime. Bem, é mais
um check da lista das coisas que preciso fazer antes de morrer. — Deixa pra
lá.
Desdenho com as mãos e faço menção de me levantar para tomar um
banho e ir para a aula.
— Não senhora, você vai me contar tudo direitinho.
— Eu já te contei, Don. — Suspiro. — O que eu não contei, faz parte das
coisas que provavelmente você não quer saber sobre o seu irmão.
 Ela faz careta de nojo.
— Eca. Não quero mesmo.
— Então pronto… — Escondo um sorriso. — E a propósito, não tem
nada de eca.
— Angelina Mary Eastwood! Isso foi uma piadinha maliciosa?
Dou de ombros novamente.
— Talvez.
— Quem é você e o que fez com minha melhor amiga?
— Sou a mesma. Só cansei de pensar demais.
Deixo de lado o fato de que talvez o que eu não tenha é tempo para
pensar demais.
— Isso é bom, não é? — ela me avalia.
Respiro fundo, sem saber o que responder. Por um lado, é. Mas por
outro, estou exausta. Eu poderia dormir durante três dias para me recuperar,
só que não é o momento para desperdiçar tempo. Acho que terei muito dele
para descansar depois que morrer. Seguro uma risada mórbida. Meu corpo
terá que aguentar mais algumas extravagâncias. Ele não tinha o direito de
estar doente tão novo, então também vou contrariar seus pedidos por uma
boa noite e talvez tarde de sono.
— É. É bom.
Donna procura por alguma mentira na minha fala. Se eu consegui
enganar até mesmo o Francis, não será muito difícil com ela. Detesto
esconder coisas da minha amiga. Detesto porque ela é alguém que nunca
precisei esconder nada. Mas não quero que ninguém saiba. Já basta o Josh
estar envolvido nisso. Quanto mais pessoas desconfiarem do mesmo que eu,
mais se torna real. E eu quero que seja mentira.
— Vem, se levanta e toma um banho. Só não demore muito por lá
pensando no meu irmão.
Arqueio a sobrancelha.
— Então é por isso que você demora tanto no banheiro? Por que está
pensando em alguém?
— Eu? — Ela leva a mão ao coração, mudando o peso do corpo para o
outro pé. — C-claro que não…
Donna ri, desviando o olhar.
Franzo o cenho.
— Sabe — digo antes de fechar a porta do banheiro — Não é justo eu te
contar sobre minhas aventuras e você me esconder as suas.
— Você estava toda grossa e antipática, como queria que eu te contasse?
— ela joga sobre mim sem piedade.
— Acho que mereço essa.
— Merece.
Respiro fundo, arranhando a calça do pijama.
— Não sei porque estou assim. — Minto. Agora eu sei. — Mas prometo
não descontar em você.
Donna me avalia por algum tempo, se aproximando de mim.
— Somos amigas desde bebês. Provavelmente, seremos enterradas em
caixões vizinhos — um arrepio me percorre a espinha com a menção à
palavra enterrar. Eu preciso avisar que quero ser cremada. — Não importa
que você seja uma vaca de vez em quando, desde que volte a ser a amiga
que eu conheço.
Forço um sorriso.
— Obrigada. Eu acho… — Faço careta e ela gargalha. — Vou tomar
banho agora, já estamos atrasadas.
A maçaneta faz um clique e escuto a voz de Donna por de trás da porta.
— Blue e eu estamos ficando!
Arregalo os olhos, com a blusa do pijama na metade do caminho para ser
retirada.
Abro a porta em um rompante.
Donna sorri amarelo.
— Como é, Hopkins?!
— Eu e a Regina George de pompons estamos ficando há alguns meses e
pela primeira vez na vida estou sendo exclusiva de alguém.
— Ok, isso é um choque. — Apoio a mão na porta. — O que deu na
gente? Ficamos loucas?
— Não sei, acho que deve ser mercúrio retrógrado — ela lamenta, se
jogando na cama.
Mercúrio quem?
 

 
— Angelina, você tem que prometer que não vai contar ao Francis —
Donna corre ao meu lado pelos corredores do campus. Estamos atrasadas.
Doença nenhuma vai me fazer ficar bem com isso, meus nervos se ouriçam
com a possibilidade de perder o primeiro tempo de aula.
— Donna, a fofoqueira entre nós duas não sou eu — zombo.
— Eu não sou fofoqueira, sou transportadora de notícias.
A encaro com uma careta.
— Dá no mesmo!
— Não, não dá não. A fofoqueira faz por maldade, eu faço pelo bem da
informação.
Gargalho alto.
— É engraçado, mas continua dando no mesmo.
— Tá, que seja. — Donna bufa. — Só me prometa que não dirá nada ao
Francis.
Paro em frente à minha sala de redação, exatamente onde o irmão dela
deve estar. Fito minha amiga.
— Seu irmão e eu não voltamos, Donna. Além disso, quando foi que eu
contei alguma coisa sua pra ele?
— Ah, corta essa de não estarem juntos. Vocês transaram no mato que
nem duas lagartixas despudoradas!
— Donna! — Belisco seu braço e ela me devolve o gesto. — Ai!
— Ai digo eu. Você transou, deveria estar com o humor melhor.
— Fala baixo! — rosno. — Ninguém precisa saber disso.
— Todo mundo aqui transa, Baby.
— Você está transando? — Arqueio a sobrancelha e a expressão
prepotente se desmancha no rosto dela. Pelo que me disse, Blue e ela não
chegaram a terceira base ainda.
— Isso foi cruel, Angie! — Don cruza os braços.
— Não, isso foi apenas eu te enxotando para fora daqui. Temos aula!
Aponto para o andar de cima, para onde ela deveria estar indo agora e
não perturbando minha paciência.
Donna resmunga algo sobre eu ser insensível à sua seca sexual e sai a
passos apressados, batendo os saltos de seu coturno no chão. Respiro
aliviada, subindo as escadas da sala para me sentar no meu lugar.
As carteiras estão praticamente vazias, ainda que faltem apenas alguns
minutos para a aula.
Francis ainda não chegou. Ele não cansa de se atrasar, parece até um
hobby. A carteira ao meu lado fica vaga e um garoto alto de cabelos
compridos faz menção de se sentar nela.
— Não! — falo alto, balançando o dedo na cara dele. Ele se sentou ao
meu lado duas semanas atrás e eu quase arranquei seus cabelos com as
mãos, do tanto que ele me irritou com sua mastigação de chiclete
barulhenta. O cara parecia uma vaca mastigando no meu ouvido e Deus
sabe que detesto esse som. — Está ocupada.
— Não estou vendo ninguém aí, garota — ele desdenha com tédio, os
olhos baixos e avermelhados. O cara está deplorável, com a roupa
completamente amarrotada, como se tivesse dormido com ela e não se
importado o suficiente em trocar para vir para a aula. Isso sem contar o
cheiro de maconha.
Prendo a respiração, comprimindo os lábios.
— Vai ver se sair da minha frente — uma voz masculina rouca e
irritadiça chega aos meus ouvidos e meus pelos se arrepiam. Ergo o olhar
para Francis, que paira de braços cruzados atrás do garoto. O franzino rapaz
resmunga algo sobre ter sido melhor ficar na cama e cambaleia para a fileira
da frente, jogando-se em uma cadeira e repousando a cabeça na mesa.
Volto a respirar mais tranquilamente, embora o cheiro da erva ainda
esteja presente.
Francis se joga na cadeira ao meu lado, mantendo-se em silêncio. O
observo de esguelha. Seus lábios estão presos entre os dentes, segurando
uma risada. Minhas bochechas esquentam e limpo a garganta.
— O que foi? Quer uma água? — Francis me espia de rabo de olho, com
um sorrisinho afetado nos lábios.
— Por que está sentado aqui? — ignoro sua pergunta.
— Porque sim. — Joga os ombros, abrindo o notebook.
— Acha que as coisas se resolveram apenas por uma noite? — provoco.
— Eu sei que não se resolveram. Por isso só estou sentando do seu lado
e não tentando te convencer a sentar em mim.
Meu queixo cai na mesa. Pisco desacreditada, olhando em volta para ver
se alguém o escutou. Todos parecem alheios, cuidando das próprias vidas.
— Você não pode facilitar, não é?
Francis suspira, se virando para mim lentamente. Suas íris espiam meu
corpo antes de voltar aos meus olhos. Merda, ele vai começar…
— Se eu facilitasse, você não gostaria.
— Como pode saber? — Arqueio a sobrancelha.
— Porque eu amo quando você não facilita as coisas para mim, então
tomo por analogia.
— Você ama quando não facilito porque nunca ocorreu uma situação em
que eu facilitasse. Você não tem conhecimento de causa.
— Touché! — Pisca. — Mas se tratando de você, não há muito o que eu
não goste.
Estreito os olhos.
— Não comece com as declarações. Faça-me o favor, não são nem 9h da
manhã.
— Prefere declarações de madrugada?
— Até parece... — Escorro mais na poltrona.
— Que foi? Ficou cansada de tanto cavalgar ontem? — Francis coloca
uma mão sobre minha coxa. Prendo a respiração.
— Cansada? Eu? — Dou de ombros. — Claro que não. Além disso,
lembro perfeitamente que era você quem estava ofegante e não eu.
Os dedos dele estreitam em minha pele e minhas pálpebras pesam.
Francis aproxima a boca do meu ouvido.
— Você já teve os dedos dentro de si mesma, amor… pode imaginar o
porquê de eu ficar ofegante. Estar enterrado bem fundo na sua boceta não é
algo que dê para se fazer inabalado.
Ele fala com a maior naturalidade do mundo e eu me engasgo com a
saliva. Tusso a alma para fora, meus olhos lacrimejando. As pessoas na
frente se viram na minha direção e Francis dá tapinhas nas minhas costas.
— Ela se engasgou. — Ele segura a risada e os alunos voltam a olhar
para frente.
Respiro fundo, prendendo o ar para tentar impedir que meu coração saia
pela boca. Quando consigo me conter, fuzilo o nadador cretino com os
olhos.
— Que foi? — Francis ergue os braços, se fazendo de inocente.
Reprimo a vontade de enfiar os dedos em seus olhos.
— Calado! Você vai ficar calado o restante da aula depois disso! —
grunho, abrindo meu notebook.
— Só uma última coisa.
— O quê?!
— Promete me perdoar? — Francis balança as sobrancelhas e dou um
safanão em sua mão, a tirando da minha perna. O que só me garante uma
gargalhada miseravelmente gostosa.
— Eu não vou parar até ouvir um sim da sua boca — ele avisa.
— Talvez não sobre dentes na sua até lá.
Francis esconde o sorriso com a mão e volta sua atenção para a frente,
onde o professor entra tão atrasado e de ressaca quanto os alunos. Pelo
menos agora ele para de falar obscenidades.
 
 
No meio da aula, meu estômago ronca tão alto, que arregalo os olhos.
Algumas pessoas olham para trás e sem qualquer vergonha, aponto para
Francis, o culpando. Ele entra na minha e dá de ombros.
— Esqueci de tomar café — se justifica sem qualquer vergonha.
Quando os universitários dispersam sua atenção, ele abre sua mochila,
tirando de lá uma das barras de cereais que costuma guardar para a Blue.
— Come! — Francis estende a comida para mim, mas recuso. Sim,
talvez meu corpo queira, só que não tenho fome. Se antes meu apetite
estava ruim, agora tenho um bolo formado na boca do estômago, que se
formou no momento que li meu exame.
— Não, obrigada. — Balanço a cabeça, empurrando a barra.
— Não foi um pedido — Francis contesta.
— Você não manda em mim.
— Angelina, você pode comer sozinha e sem passar vergonha, ou eu
posso te colocar no meu colo e enfiar essa barra goela abaixo.
O fito possessa.
— Você não seria babaca a esse nível.
— Já fui pior, isso não é nada. — Joga os ombros. — Faz tempo que não
te vejo comer, você está perdendo peso e não adianta ficar puta comigo.
Então apenas coma.
Ele balança a barra em minha direção novamente. Espio seus olhos e
eles me dizem que não vai desistir enquanto eu não colocar comida para
dentro. Puxo a barra com irritação, abrindo a embalagem com cuidado.
Detesto o barulho que essas coisas fazem, me dão arrepios.
— Eu só quero o seu bem — ele sussurra baixinho.
Mordo o primeiro pedaço do doce e o observo de esguelha. Meu coração
se aperta. Estou fazendo de novo, deixando meu humor virar da água para o
vinho.
— Eu sei.
Francis não volta a se concentrar na aula, até que eu tenha comido tudo.
E não entendo o porquê, mas meus olhos lacrimejam por isso.
 
 
Como será que meu avô lidou com a notícia da doença?
É isso que fico me perguntando enquanto caminho para o centro
esportivo.
Será que ele também renegou o diagnóstico, será que demorou para fazer
os exames? Como são as coisas quando a doença piora? Dói? Muito ou
pouco? É rápido? São tantas perguntas, mas ninguém para respondê-las.
É engraçado que alguém que sempre preferiu a verdade, doa ela o quanto
doer, está agora preferindo não ter certeza sobre a própria saúde. O que eu
faria se tivesse certeza? Como poderia esconder das pessoas que importam?
Que tipo de vida eu teria depois de um diagnóstico desse?
Saber que sou autista foi algo que me libertou de muitas crenças
limitantes. Saber que tenho câncer, vai me aprisionar a cada uma delas de
novo. Então dessa vez, só dessa vez, eu prefiro só achar, e não saber.
Aperto o passo para chegar logo ao treino, adentrando o centro
esportivo. Ele está particularmente vazio dado o horário. Vim tão cedo
porque o primeiro jogo do campeonato é amanhã. Não sei se estou pronta
para ele ainda.
Isso é novidade pra mim.
Eu já me senti ansiosa, nervosa, quase a ponto de entrar em colapso, mas
nunca pensei que eu fosse uma jogadora ruim. Agora, eu me considero
péssima.
Tudo na minha vida sempre gostou de mudar, o mundo nunca se
importou em virar tudo de cabeça para baixo e me fazer reorganizar as
coisas que despencaram. Mas algo que sempre permaneceu imutável e
sendo meu ponto de equilíbrio, é o vôlei.
Isso aqui é minha casa, meu lar, meu porto seguro. Se não sou boa numa
quadra, segurando uma bola, então não sou boa em nenhum outro lugar.
Não posso perder essa parte da minha vida. Não posso perder quem eu sou.
Uma doença pode me tirar tudo, que eu ainda conseguiria permanecer
em pé. Mas se ela tirar a minha essência, o meu sonho, então qual o motivo
para permanecer lutando? Nenhum. Não haveria motivo. Por que alguém
decide continuar tentando, se não tem pelo que lutar? Nossos objetivos são
o que nos mantém vivos. Alguém que perde seus sonhos, encontra força
onde? Não consigo imaginar como é isso.
Não quero imaginar como é isso.
Entro na quadra de vôlei, ofegante pela minha caminhada apressada.
Houve um tempo, que isso não me afetaria em absolutamente nada, mas
agora parece que corri uma pequena maratona. A treinadora está com sua
prancheta nas mãos, rabiscando no papel sem qualquer delicadeza. Ela
parece irritada, mais irritada do que o costume.
Faço menção de passar por ela, mas sua voz cortante me faz estancar.
Giro apenas meu pescoço e ela me chama com a mão.
— Angelina, precisamos conversar — Hart adota a expressão que vi
muitas vezes nos rostos das pessoas, principalmente aquelas que tinham
medo de dizer a verdade para mim e eu acabar tendo uma crise. Odeio essa
expressão. Não sou uma bomba relógio.
— Estou aqui.
A treinadora Hart suspira.
— O primeiro jogo é amanhã.
— Eu sei.
— É muito importante que comecemos bem o campeonato…
Balanço a cabeça.
— Eu também sei. O que eu não sei, é porque está me dizendo coisas
óbvias.
Hart limpa a garganta, claramente enrolando.
Minha pele pinica de irritação.
— Bom... Seus exames apresentaram um alerta e…
— Não eram drogas! — a interrompo. Isso é ridículo.
— Eu sei que não eram, mas não posso te deixar jogar assim. Pode ser
exatamente o motivo para você não estar indo bem nos treinos.
Balanço a cabeça.
— O que você quer dizer com “não pode me deixar jogar”?
Arranho o uniforme.
— Você está fora do primeiro jogo, Angelina — Hart diz de uma vez e o
chão parece se abrir sob meus pés.
— Não — pisco desenfreadamente. — Não… Você não pode fazer isso,
eu consigo jogar! Eu consigo. Eu posso treinar mais, posso passar mais
horas aqui, eu…
Meu tom de voz se altera.
— A faculdade não me permite deixá-la jogar com os exames alterados.
— Uma porra que não! — Ergo as mãos. — Os exames dos atletas
atestam até drogas e eles continuam em quadra, em campo… nas piscinas.
Não me sinto culpada por dizer isso agora. Francis, por querer ou não,
estava sob efeito de drogas, e ainda o deixaram voltar a competir.
— Por que o mesmo não valeria para mim? Eu estou bem! — Seguro os
braços de Hart e ela me encara com o que imagino ser pena.
— Desculpa, Angie. Mas são as regras.
— Por favor… — Meus lábios tremem. — Não me tira isso.
— Angeli…
— Tá tudo sendo tirado de mim! Tudo… eu… — puxo o ar, mas ele não
parece servir para meus pulmões. — Eu… eu não consigo… não isso, não
me tira isso. Por favor...
Meu avô, Francis, minha saúde, meu tempo, minha vida… tudo isso está
se acabando, escapando entre meus dedos, como areia da praia, e não há
nada que eu possa fazer para mantê-los em minhas mãos.
— Por favor… — suplico, imploro. — Me deixa jogar, eu sei que posso,
eu sei… eu posso te mostrar agora mesmo — Assinto para ela, apontando
para a quadra. — Me testa agora, joga comigo. Eu te mostro que sou boa.
Isso… isso é apenas uma fase. Vai passar. Eu sei que vai… me deixa… me
deixa jogar. Por tudo que você mais considera sagrado, me deixa jogar.
— É minha decisão final, Angelina.
Procuro os olhos de Hart e sei que ela não vai mudar de ideia.
Meus ombros caem. Solto seus braços, tampando meus ouvidos. Não há
barulho aqui fora, mas dentro de mim, as sirenes foram novamente
acionadas.
Pisco para afastar as lágrimas. Abro a boca para tentar falar, mas não há
o que sair. Eu perdi. Perdi tudo.
Começa com um jogo. E quando tudo piorar? E quando eu não tiver
mais força para sacar a bola? Ou para pular? Ou para me jogar no chão?
Essa é minha última chance, antes que tudo seja impossível, antes que eu
não seja mais capaz de fazer aquilo que é meu oxigênio.
Estou sendo jogada para fora da minha casa, do meu lar.
Começo a andar. Não sei para onde. Mas começo a andar. É assim que
meu avô se sente? É assim que vai ser daqui para frente? Coisas sendo
tiradas de mim e minhas mãos sem forças para impedi-las de ir embora?
Hart me grita. Mas os sons estão tão distantes, como se eu estivesse
embaixo d’água e ela abafasse minha audição.
Quando estou mal, é para cá que venho. É segurando a bola e a fazendo
cruzar a quadra que consigo me sentir eu mesma. O que faço agora? Que
importância terei? O que vai fazer meu coração bater com orgulho? O que
verei no reflexo do espelho? A Angelina que conheço desde que me
entendo por gente, é aquela com um uniforme e uma bola. Não existe outra.
Jogar de brincadeira não é a mesma coisa. Vôlei é sério para mim. É meu
sonho, meu… eu. Meu motivo. 
Acho que eu já desconfiava que não iria para as olimpíadas quando vi
meu exame. Mas agora… agora não tenho sequer a chance de tentar. Era
minha oportunidade. Meu tempo. Não sei quanto tenho. Pode ser muito. Ou
pode ser pouco. Droga, pode ser até nenhum.
Coração quebrado de amor dói. Dói muito. Mas nada dói mais do que
arrancarem sua única razão pela qual se orgulha de ser você. Tiraram de
mim aquilo que me faz ser eu mesma. Eles arrancaram meu sonho.
Passo pelos corredores. Estou correndo? Andando? Não faço ideia. Meus
pés se movem no automático. Eu quero correr para bem longe daqui.
Aperto os ouvidos. Quero silêncio. Quero apenas silêncio. Não quero ouvir
meu coração gritar. O som é feio. E me dá medo. Me deixa assustada.
Quero voltar para os braços da minha avó, quero que ela me diga que tudo
isso não passa de um pesadelo inventado pela minha cabeça.
Meu estômago embrulha. Minhas pernas doem e a respiração sai como
pequenos cacos de vidro cortando minha garganta.
Levo a mão até a nuca, puxando os fios da região. Quero que doa.
Preciso que doa. Eu…
Meu caminho é interrompido por um encontrão. Quase caio para trás, se
não fosse a parede me impedindo de ir parar no chão. Ao contrário das
outras vezes que algo assim aconteceu, não é Francis que está em minha
frente, mas sim outro nadador.
Vance.
Ele pragueja algo que não entendo e me encara com fúria. Não ligo para
sua merda agora. Faço menção de sair novamente, mas ele segura meus
ombros na parede, mantendo-me presa no corredor vazio. Arregalo os
olhos, debatendo-me para sair de seu aperto.
— Que bom te encontrar sozinha, Angelina. — Seu sorriso me faz
querer vomitar.
— M-me… me deixe s-sair. — Encaro sua mão em mim com pavor, o
toque me queimando como chama viva.
Não me toque, não me toque, não me toque por favor… não agora. Me
deixe em paz.
Pisco sem parar. Não consigo parar de piscar. O pânico é um veneno,
caminhando e maculando cada miligrama do meu sangue. Faz doer estar
viva.
— Eu vou te deixar sair quando escutar uma coisa. — Ele aumenta o
aperto em meus ombros e choramingo. — Francis está todo felizinho
porque acha que terá uma chance com você novamente. Esse seu joguinho é
perverso, garota. Até para mim. Mas devo admitir que é brilhante.
— Me solta — choro baixo, encarando meus pés.
— Pode parar com o showzinho, que comigo esse teatro não funciona.
Não perca seu tempo bancando a deficiente de merda. — Os dedos dele são
ásperos. Muito ásperos. Parecem uma lixa na minha pele. Está me
machucando. Sua voz está me ferindo. Ele precisa me soltar. — Você vai
parar com essa merda, Francis não precisa de você. Ele vai superar, igual
fez quando se mudou para São Francisco. Ele não precisa das suas falsas
expectativas. Não vou deixar você brincar com ele assim!
Vance fala alto, o rosto próximo ao meu. Olho para os lados, mas não há
ninguém nos corredores. O ar estanca na minha garganta. Ele não vai me
soltar… não vai. A constatação faz lágrimas escorrerem. Eu preciso que o
mundo pare. Eu preciso conseguir puxar ar para dentro.
— Você é uma vadiazinha que se faz de boa moça e usa a merda da sua
doença para dar pena nas pessoas. — Ele ri. — Mas você não passa de um
nada. Todos só estão à sua volta porque se sentem na obrigação de cuidar da
garotinha problemática.
Nego com a cabeça.
A lágrima escorre quente e pesada no meu rosto. Não abro a boca para
retrucá-lo. Não quando ele tocou no lugar onde me dói. Não quando ele
tocou na parte que me impediu de fazer amizades por anos. Não quando ele
usa a palavra que fui chamada a minha vida inteira. Problemática. Ele soa
exatamente como minha… minha mãe.
“Não deixe as pessoas perceberem que é problemática, Angelina”.
“Não entende que isso é atitude de garota problemática? O que vão
pensar de mim na rua?”
“Você deve dar a mão para as minhas amigas. Não seja uma menina
problemática”.
Vance pode não saber, mas falou exatamente o que ela me disse a vida
inteira. As pessoas não gostam de mim. Elas sentem pena. E eu nunca
entendi por que deveriam ter. Eu não sou digna de pena. Não sou. Não
quero ser.
Queria ser autoconfiante. Mas, nesse momento, eu quero apenas chorar e
aceitar o que ele diz como verdade.
Pode… pode ele ter razão?
E se estiver certo?
Então quando eu for, quando essa maldita doença me levar, será um
alívio?
Isso é bom?
Se é bom, porque meu coração está se rasgando e pingando sangue no
chão? Por que escuto as gotas mesmo que dentro da minha mente?
— Você acha que Francis te ama? Ele apenas ama o fato de ser amado
por você. E convenhamos, claro que você o amaria, é o único homem
altruísta o suficiente para jogar a vida fora para viver com você. Para se
privar de viver, apenas para tolerar seus limites de merda.
Meu corpo convulsiona. Não sei se estou chorando ou se estou tendo um
ataque de pânico. Mas dói.
Eu quero me recolher, quero sair de perto do mundo, quero não existir…
quero não sentir.
Francis me ama.
Ele me ama e eu sei disso
Não ama?
Ele não deixa de viver por mim, já me disse tantas vezes…
Mas ele não teve a namorada nos campeonatos, enquanto todos os outros
tinham. Ele não ia a festas, porque eu não ia. Ele não ouve música no carro,
porque eu não gosto…
No fundo, eu sei que Vance tem razão. Eu sei que Francis abriu mão de
parte dele por mim.
E eu o deixei e dei esperança novamente. Uma esperança que sequer eu
tenho. Uma esperança que vai morrer quando eu também o fizer.
— Você é uma egoísta do caralho! — ele cospe as palavras sobre mim e
sinto os respingos de sua saliva como se fossem ácidos.
— Sai de perto dela! — uma voz feminina chega até mim como o
rosnado de um animal.
Não tenho tempo para raciocinar, mas as mãos de Vance não estão mais
sobre mim. Agora ele cambaleia para o lado, como se tivesse levado um
empurrão.
Eu escorrego para o chão, levando as mãos à cabeça e prendendo os fios
do meu cabelo nas mãos. Eu puxo. E dói. E puxo mais, exatamente por isso.
— Nunca mais toque nela! — a voz feminina é colérica, como se
pudesse destruir o mundo apenas com seu tom.
Não ergo a cabeça. Não consigo. Eu tremo. Meu corpo treme. Minha
mente treme. Meu coração, ao contrário, parece não bater.
— Não se meta nisso! — Vance grita.
— Eu não me defendi de você no passado, Vance. Deixei que me
humilhasse sempre que tivesse a oportunidade, não me importei quando me
virou as costas e disse que eu merecia tudo que tinha passado. Mas não vou
permitir que faça isso com mais ninguém. Principalmente com minha
amiga. Com ela você não vai mexer! Você não passa de um covarde, que
precisa crescer sobre as pessoas em seus momentos mais frágeis para se
sentir alguém!
Arregalo os olhos.
Blue?
Forço a cabeça para cima, vendo-a vestida no uniforme de líder de
torcida, o rosto transfigurado em ódio e o corpo pronto para me defender.
Ela está na minha frente, deixando mais que evidente que para chegar até
mim, terá que passar por ela.
O mundo fez de tudo para tirar sua força, mas Blue encontrou alguma
para lutar por mim. Isso não é pena. Ela não sente pena das pessoas, porque
não quer que sintam dela também.
— Você mereceu naquela época e continua merecendo todos os dias. —
Ele fala novamente. — É uma pena que seu pai tenha escolhido um
incompetente para fazer o serviço, ele mesmo devia ter feito! É isso que
garotas como você merecem. Alguém que te coloque em seu maldito lugar.
Talvez você se dê bem no futuro como prostituta. As lésbicas parecem
ganhar em dobro. — Vance solta uma risada que escorre como um arrepio
macabro por minhas entranhas. Eu sabia que ele era um problema. Mas não
podia imaginar que chegava a ser doentio nesse nível. Ele é um monstro. —
Como advogada nós dois sabemos que você não vai conseguir se manter...
— Para! Para! — grito, grito sem parar, grito ainda que sem forças.
Alguém tem que fazê-lo parar. Ele não pode dizer essas coisas para Blue.
Não pode! Vance olha para os lados, procurando se alguém me escuta.
Ele dá um passo para frente, mas Blue não sai do lugar. Ela me defende. 
— Cala a porra da boca, sua vadia! — Vance tenta passar pela minha
amiga.
E ouço um tapa. Um tapa forte e estalado.
E então, Vance leva a mão ao rosto, agora avermelhado e encara Blue
perplexo. Blue massageia a mão direita, tão vermelha quanto o rosto dele.
— Você vai se arrepender disso. — Vance aponta o dedo sobre o rosto
dela e sai andando furioso para fora do corredor.
Encaro as costas dele, até que não veja nada além do extenso corredor
completamente vazio.
— Ei — Blue se agacha em minha frente, o rosto banhado em lágrimas.
E isso é o estopim para meu próprio desabamento. Tudo escurece. E só
sobra o medo. O medo cru e exposto como uma ferida aberta.
Não sei com que força, mas Blue me carrega para dentro do vestiário
feminino, no exato momento que a crise se instala.
Faziam anos. Anos que eu não me batia. Anos que eu não perdia o total
controle sobre mim. Anos que eu não precisava me preocupar em machucar
quem estivesse comigo.
E agora, simplesmente acontece.
Egoísta.
Pena.
Problemática.
Você está fora do jogo.
Ele abriu mão da vida por você.
Veja bem, não gosto de gritos. Mas não posso impedi-los de sair de mim.
E ao mesmo tempo que berro, cubro os ouvidos com as mãos, batendo em
minha cabeça, não querendo escutá-los. Eu bato, bato e bato novamente.
Alguém segura meus braços. O toque gélido, como se fossem algemas
me prendendo.
Blue me segura.
Ela tenta me impedir de me machucar. Tenta a todo custo. Um custo que
a faz ganhar os golpes que eram para mim.
Quero gritar para que ela saia, que não se machuque, mas só sei gritar a
dor para fora. Ela passa os braços à minha volta, dando-me um abraço de
ferro, e me contorço para sair. Bato em suas costas, estou em agonia.
Me solte.
Me solte.
Não posso ser presa.
Não gosto de me sentir presa.
Mas ela não solta. Não solta e eu continuo debatendo meus braços.
Continuo a machucando.
— Bate. Pode bater, mas bata em mim! — Ela me aperta e não sei como
consegue ser tão forte. Eu poderia estar rodeada pelo concreto mais duro.
— Solta! — choro e grito, uma mistura horripilante dos dois. Meus
ouvidos estão implorando para que minha boca pare de gritar. Meu coração
implorando de joelhos para minha mente e meu corpo não machucarem
uma amiga.
— Nunca. Eu não vou te soltar enquanto você tentar se machucar. Não
vou permitir, Angelina, assim como você não permitiu que eu fizesse
comigo meses atrás.
Um dos tapas acertam seu rosto e eu quero implorar por seu perdão, mas
minha língua está presa entre meus dentes cerrados, pressionamos com a
força de uma tonelada.
— Você lembra? Lembra quando me ajudou nas arquibancadas? Lembra
que, mesmo sem me conhecer, me ajudou a passar por uma crise de
ansiedade?
Eu lembro. Claro que lembro. Só não falo. Meus dentes estão travados.
Ela se senta no chão, levando-me a fazer o mesmo, colocando-me entre
suas pernas. Seus braços e suas pernas me prendem ao chão.
É muito toque. Não quero que me toque. Eu não quero machucá-la.
— O Vance… — engasgo com a garganta seca e áspera. — Ele…
— Angelina, em nenhum momento, acredite no que aquele monstro te
disse.
Balanço a cabeça, sabendo que ele tem razão. Ele tem. Olha o que estou
fazendo com uma amiga. Eu a machuquei, sei que sim.
— Ninguém tem pena de você. Ninguém, está me ouvindo?
Ela está mentindo. Blue é boa em mentir.
— As pessoas se aproximam de você, porque eu nunca conheci ninguém
com o seu coração. Você é a mulher mais forte que conheci. Você carrega
dores que muitos teriam desistido e ainda consegue sorrir, ainda consegue
lutar pelos seus sonhos e ajudar pessoas que sequer conhece. — A voz de
Blue falha e as lágrimas dela molham meus ombros. Meus braços estão
menos revoltos a essa altura. — Você não sabe, mas quando estou prestes a
desabar, quando acordo de um sonho vívido do que passei, eu penso: a
Angelina não deixaria isso pará-la. Quando minha mãe fala algo para mim
que me faz ter vontade de desaparecer, eu lembro: a Angelina nunca deixou
ninguém a diminuir. Você foi a primeira mulher para quem tive coragem de
contar pelo que passei, foi a primeira amiga a saber de tudo sobre mim.
Porque eu sabia, que você nunca sentiria pena de mim, assim como eu
nunca senti de você. Não se sente pena de mulheres como você. Se sente
orgulho. Se sente inspiração. Mulheres são como diamantes. Quanto mais a
vida bate, mais ela se lapida em algo belo. E você é tão linda, Angelina, que
fez eu me achar assim também. Não deixe o Francis saber, mas apesar de
ele me chamar de linda sempre, eu só fui acreditar na minha beleza, no dia
que olhei nos seus olhos e não vi asco por mim. Eu vi… reconhecimento. E
se você pode ser linda… eu também posso.
Os movimentos violentos cessaram. Mas o choro não. O choro aumenta.
Por mim. Por ela. Por sermos obrigadas a sofrer.
Não peço licença e espero que ela não se importe.
Mas eu me viro e a abraço. Forte. Muito forte. A abraço porque ela se
tornou alguém importante o bastante. A abraço porque assim como Donna e
Francis, Blue me faz sentir em paz em meio a sua tempestade.
— Obrigada por não ter desistido — ela sussurra em meu ouvido. E eu
apenas assinto. Quero dizer tanta coisa para ela e eu diria se minha língua
não estivesse amolecida. — Obrigada por ser minha amiga. Eu achei que
você me odiaria pelos Francis.
— Te odiar por amar alguém que eu também amo? — murmuro com a
voz falhada. — Talvez eu te ame um pouco mais por isso.
O corpo de Blue solavanca mais que eu o meu nesse momento.
— É a primeira vez que escuto isso de uma amiga… obrigada por me
achar digna do seu amor. Eu não sou muito carinhosa, mas eu…
— Você deu sua cara a tapa por mim hoje. Palavras não são nada perto
disso. Ninguém aceita um golpe de bom grado, se não tiver em seu coração
o mais genuíno amor.
Ela esconde seu rosto no meu ombro e se permite chorar. E eu a seguro,
exatamente como ela me segurou.
Porque no final das costas, apenas quem carrega uma dor no coração,
pode te ajudar a suportar o peso da sua.
— Vance vai pagar pelo que ele fez hoje — ela confidencia em uma
promessa de violência depois que nós duas nos recompomos.
— E eu sei como — a afasto para encarar seus olhos. Meu corpo inteiro
recebe os choques da crise. E eu sei, que ficará assim por uns dois dias. A
descarga de energia é apenas… demais.
Respiro fundo, buscando firmeza na voz.
Conto a ela sobre Jayden. Conto sobre os remédios comprados. Eu sei
que prometi a ele que não diria nada a ninguém. Mas passou da hora de
Vance começar a sofrer as consequências dos seus atos. Ele não pode
continuar ferindo as pessoas e saindo por aí como se nada tivesse
acontecido.
— Não é fácil denunciá-lo para a reitoria. Já fizeram isso e ele saiu
impune. Precisamos de provas. — Blue me fita séria.
— E como podemos consegui-las? — limpo meu rosto, completamente
molhado de lágrimas.
— Seguindo ele. — Blue sorri perversa. Retribuo o gesto. — Vance não
vende as drogas apenas aqui no campus, ele vende em festas, então se
quisermos ter provas disso, vamos ter que achá-lo em um local que ele não
seja tão cauteloso quanto aqui. Eu só não conheço muitas boates pela
cidade… vamos precisar de ajuda.
— Eu sei alguém que conhece muito bem as boates… — Engulo a saliva
pastosa. — Donna ficará mais que feliz em ajudar.
— Então vamos fazer isso, Angelina. Meu primo não vai continuar
machucando as pessoas de quem eu gosto.
Blue é confusa para mim a maior parte do tempo. Mas mesmo para
alguém com dificuldades em ler suas expressões, entendo seu olhar agora.
Ele reflete vingança. Reparação.
E eu retribuiria toda essa gana, se meu corpo não me abandonasse. Me
arrasto para dentro de uma das cabines e despejo todo o pouco conteúdo do
meu estômago. Fecho a porta antes que Blue veja essa situação deplorável.
E agradeço, porque ao pegar um pedaço de papel para limpar meu rosto,
vejo vermelho. Sangue. Saindo do meu nariz. Muito sangue.
— Merda… — sussurro com um frio percorrendo a espinha.
 
 
 
 

 
 
— Fala, espantalho pervertido! — Ethan me cumprimenta assim que
chego na cozinha, usando um dos muitos apelidos que ele tem inventado
desde a semana passada, quando viu o estado que Angie e eu chegamos na
degustação após nossa pequena aventura.
Não ajudou falar que ficamos conversando, porque Angelina fez uma
verdadeira obra abstrata com seu batom vermelho e suas unhas. Eu estou
tentando tirar as manchas desse negócio até hoje. Meu pau voltou para casa
igual a um boneco de posto: vermelho e molenga.
— Bom dia.
— Meu menino está de bom humor a semana toda. Tenho que enviar
flores de agradecimento para a Angie?
— Você teria que conseguir falar com ela antes. — Sorvo o café ainda
borbulhando de quente.
— Como assim?
— Bom, desde nossa última aula de redação, ela tem sido uma pessoa
difícil de ver pelo campus. Segundo minha irmã, as duas têm saído quase
todos os dias.
— A Donna eu não duvido, mas a Angie? — Ethan ergue as
sobrancelhas. — Ela não está mentindo pra fugir depois do sexo selvagem e
pré-histórico de vocês?
Pego o pano de prato em cima da pia, jogando em cima dele.
— Pré-histórico é seu cérebro.
— É sério, Francis. Para de ser resmungão. Tem certeza que a Angie só
não quer um tempo depois do que aconteceu?
Respiro fundo, sentando na cadeira à frente dele. Roubo um dos pães
doces sobre a mesa.
— Eu acho que também seja isso, mas ela realmente está saindo todos os
dias com a Donna. Indo a boates e tudo. — Jogo os ombros. — Eu fico feliz
que ela esteja se divertindo, acredite, mas esse jeito liberal da Angelina não
é o comum. Desde que a conheço, ela calcula tudo que faz. Na noite do
vinhedo, já foi uma loucura, mas éramos apenas nós dois. Uma festa, uma
balada, são pessoas demais. Geralmente ela leva dias para se recuperar da
energia desses lugares e agora está indo um dia após o outro e isso me
preocupa. Algo grave está acontecendo e ela não está contando para
ninguém. Faz tempo que percebo algo estranho, só não sei o que é.
— Credo, cara — Ethan parece sentir um calafrio. — Para de ser
pessimista.
— Não é pessimismo. — Nego com a cabeça. — É experiência.
Conheço a mulher que eu amo. Conheço os limites dela. O vinhedo foi
apenas um passo fora do limite. Festas todos os dias, lugares cheios
constantemente, barulhos estrondosos a todo momento, tempo demais sem
comer, perda de peso, ela parece sempre cansada… isso é uma maratona
completa para fora da zona de conforto. E eu me preocupo quando a carga
de energia cobrar o preço. Não é como se eu pudesse estar lá para ajudá-la,
quando sequer fala comigo.
A última parte sai amarga da minha boca. Eu a afastei de vez. A afastei,
porque eu deveria ter me controlado mais, deveria ter mantido distância.
Angelina deve pensar que só quero transar com ela e nada mais. Além
disso, não liguei no dia seguinte, nós apenas nos encontramos na aula e nos
provocamos. Eu devia ter ligado, a chamado para tomar um café comigo,
sei lá, qualquer porra que demonstrasse mais importância.
Ethan toca meu braço e afasto os olhos da caneca de café.
— Já passou pela sua cabeça, que o medo que você tem de perdê-la, é
justamente o que te faz perder todas as vezes?
Pisco.
— Desde quando você ficou tão filosófico?
— Desde que assisti Um Amor para Recordar. Acredite, as gatinhas
amam as referências.
Solto uma risada, porque isso sim parece ter saído da boca dele.
— Mas você tem razão — Faço uma careta para admitir. — Eu sou um
covarde. Só que agora é tarde demais pra ser corajoso, Ethan.
— Você achava isso antes da Angie chegar na USF, também achou
depois que voltaram a se falar e agora novamente. Não tá cansado de estar
errado?
— Eu tô cansado de estragar tudo, é diferente.
— Caralho, Francis, você complica tudo. — Ele bate a mão na mesa. —
Se não quer estragar, então não estrague, faça certo. Simples.
— E você acha que eu tento estragar de propósito? — Arqueio a
sobrancelha.
— Não, mas você se acha tão fodido, que nada pode dar certo na sua
vida. Deixa eu te contar... — Ele se inclina para perto de mim. — Você não
é Stalin, Hitler, Trump... Você pode ser feliz.
— Eu me considero um merda, mas não chega a tanto também — me
defendo.
— Então resolvido. — Ganho tapinhas nos ombros. — E não se esqueça,
você tem que viver apesar da Angelina. Eu sei que você a ama, mas precisa
achar um motivo além dela pra existir.
— Eu tenho a natação.
— Eu concordaria, se você pelo menos se animasse com suas conquistas,
estando Angie para vê-las ou não. — Ethan bebe outro gole da sua xícara.
— Se no fim, ela decidir que não te quer mais, você precisará encontrar
felicidade nas outras coisas. A ame, tudo bem. Não entendo esse amor cru e
intenso que vocês têm, mas acho bonito. Só não deixe que isso seja tudo na
sua vida, a ponto de não dar certo e você não ver mais razão para estar aqui.
— Ethan — seguro seu olhar. — Eu não vou fazer merda. — Eu sei
exatamente com o que ele está preocupado. — Não vai acontecer de novo,
eu te prometo. Você nunca mais vai me encontrar daquele jeito.
Eu ainda vejo o lampejo do pavor nos olhos do meu amigo, sempre que
ele pensa que estou no meu limite e que posso voltar a me drogar. Eu ainda
vejo o medo que ele tem de me encontrar como anos atrás.
— Acredite, não vou ficar exultante se a Angie não me quiser, mas eu
sobrevivi quando achei que ela havia quebrado nossa promessa e vou
sobreviver de novo agora.
Ele engole, assentindo firmemente.
— Confio em você. Mas não faça eu me arrepender — ele diz com a
expressão séria e preocupada. — Não está mesmo usando nada, né?
Manejo a cabeça, negando.
E me sinto um merda, porque eu peguei os comprimidos com Vance.
Não os usei. Mas eles estão em meu armário… aguardando. E todo dia,
todo maldito dia, eu me pego encarando a gaveta fixamente, resistindo à
tentação de fazer tudo ser mais fácil.
Meu amigo confia em mim. Mas não deveria.
E mais uma vez, tenho nojo de mim mesmo.
 

 
— Você parece verdadeiramente incomodado com o comentário do seu
amigo — Doutora Brice observa, anotando algo na sua prancheta. Estico o
pescoço para tentar ler, curioso para o que ela tanto anota sobre mim.
Apesar que ela pode muito bem estar desenhando um tomate.
— Não estou incomodado, só não acho que eu viva em prol da Angelina.
Brice abaixa os óculos de grau redondos, os posicionando na ponta do
nariz. Os olhos vincados e com linhas de expressão me analisam fixamente,
tentando achar as brechas da barreira que tento erguer sempre que entro
nessa sala.
Eu sei que não deveria, mas a sinto como uma oponente, que tenho que
manter longe da minha mente.
Não quero que ela saiba… tanto.
— Talvez você e seu amigo estejam certos até determinado ponto.
— Como assim?
— Pode ser que você não viva em prol da garota por quem é apaixonado.
— Foi o que eu disse.
— Mas pode ser que viva em prol das expectativas e opiniões de todas
as pessoas na sua vida.
Abro a boca para concordar, achando que ela refutaria Ethan por
completo, mas ao que parece eu não sou só um trouxa de uma única garota,
eu sou o palhaço de todo mundo.
— Isso não é verdade — digo irritado.
— Francis, não sou sua inimiga. Estamos conversando para descobrir o
que te incomoda, lembra?
Faço careta, olhando para a estante de livros da parede atrás dela.
— Sabe, muitas vezes, aquilo que mais nos machuca que seja dito sobre
nós, é exatamente o que sabemos ser verdade. Aquilo que é mentira, traz
raiva e revolta, mas a verdade é difícil de ser aceita, machuca nosso ego.
— Escuta, Doutora, eu acho que não vamos chegar a um consenso sobre
isso.
Ela sorri compassiva.
— Não estou buscando por um. Em verdade, quero te fazer pensar. Não
estou dando uma sentença para você. Estou te dando opções. Opções para
curar a dor que mora em você, em algum lugar que você manteve distante
de todo mundo. Quero que você busque dentro do seu coração, onde toda
essa necessidade de aprovação começou. Não é no presente que
encontramos a razão para os problemas. Na maior parte do tempo, é no
nosso passado a causa de tudo.
— A minha dor, é causar dor e decepção. Apenas. Não tenho trauma
algum ou essas merdas filosóficas de psicanálise! — Levanto-me da
cadeira.
Espero ela me mandar sair da sua sala depois da pequena explosão, e até
torço para que faça isso, mas ela mantém a expressão neutra, como se já
previsse minha atitude. Brice espera pacientemente que eu volte a me
sentar.
Acomodo-me novamente na poltrona, abaixando a cabeça.
Ela me faz sentir um garotinho repreendido pela diretora. Odeio isso.
— Nosso ego é um mecanismo ambíguo — volta a falar. Como fala,
essa criatura. — Ao mesmo tempo que ele serve de defesa, nos impedindo
de colocar-nos em situações humilhantes ou degradantes, também pode ser
nosso pior oponente, nos privando de admitir nossas falhas, erros, dores e
defeitos, com receio de que as pessoas, incluindo as que se importam
conosco, nos julgue e os use contra nós. — Ergo o olhar para Brice e a
expressão dela não transmite nada além de calma e paciência. — Seu ego te
protege, Francis, mas está te protegendo de quem não precisa. Está te
protegendo de ser ajudado e de colocar para fora o garotinho frágil que há
aí dentro.
— Eu não preciso ser frágil.
— Todo mundo precisa ser frágil em algum momento. A vida não é só
cuidar, é também aceitar cuidado.
— Já sou grandinho para precisar disso. Passei da época de precisar
dessas coisas.
— Precisar de amor? — Ela ergue as sobrancelhas. — Nós nunca somos
velhos demais para precisar de amor. De ser amado. De ser cuidado. A
criancinha que fomos, principalmente aquela que não pôde usufruir de toda
a proteção que deve ser dada, nunca vai embora de dentro de nós. Ela
sempre está disposta a um cafuné. E sabe de quem sua criança interior mais
precisa de carinho?
Engulo.
— Se disser mãe, sinto lhe informar, mas a biológica me largou num
orfanato e a adotiva fodeu minha vida deliberadamente. Melhor pensar em
outra coisa, Doutora.
Ela nega com a cabeça, inclinando-se para frente, com os antebraços
sobre as pernas.
— Sua criança interior precisa receber carinho de você mesmo. Porque
Francis, o ódio, mágoa, decepção e raiva, que você pensa que os outros
sentem por você, é você mesmo que deposita. Você é seu carrasco. E há um
ponto positivo nisso.
— E qual é? — Rio com ironia.
— Se você é o carrasco, tem as chaves da cela. — Abaixo meus ombros,
tensos da conversa. — Basta ser gentil consigo mesmo para destrancá-las.
Pisco. E pisco novamente, observando a doutora Brice, irritando-me
cada vez mais com suas metáforas e divagações. Vim aqui atrás de
respostas. Respostas simples. E tudo que ela está fazendo, é me deixar mais
confuso.
— Não conte comigo para as próximas sessões.
Levanto-me da poltrona, pisando firme até a porta. Antes que eu a
atravesse, a voz da mulher chega até mim.
— Nos vemos na semana que vem.
Bufo, batendo a porta atrás de mim.
Vai sonhando.
 

 
Termino o último resumo para a aula de patologia do dia seguinte, com a
última sessão da terapia martelando minha mente. Essa coisa deveria ajudar
e me deixa ainda mais confuso.
Penso em ir para casa e adiantar os estudos de algumas matérias, mas só
de pensar em entrar no meu quarto, me sinto claustrofóbico. Há momentos
que aquele espaço é meu refúgio, é onde me sinto livre de qualquer pressão.
Mas agora parece que ficar sozinho e com tempo para pensar não é a
melhor escolha. Não com aqueles comprimidos lá.
Eu deveria jogar fora. Mas não consigo. Eu não sei quando tudo vai se
tornar insuportável demais para tolerar. Eu ainda estou aguentando. Ainda
estou mantendo o sono afastado, o cansaço mascarado. Só que alguma hora
eles vão aparecer e preciso de algo que me faça levantar.
Em vez de ir para casa, busco a Canon no carro e decido tirar algumas
fotos pelo campus. As quadras me parecem uma boa opção; eu costumava
cobrir os eventos esportivos em Cape May. Os únicos jogadores ainda no
centro esportivo, são do time de basquete. Eles têm um jogo importante
amanhã, do início do campeonato de inverno, então provavelmente irão
ficar aqui até tarde treinando.
Sento nas arquibancadas, aproximando a lente dos olhos. Josh está com a
bola, indo a toda em direção à cesta. Confesso que não sou fã de basquete.
Assisto porque meus amigos estão no time. Um jogador toma a bola de
Josh, e joga para Ethan, que está próximo ao garrafão. Ethan não repassa,
tenta fazer a cesta diretamente e… e erra.
O treinador berra com eles e seguro a risada. É bom quando não é você
levando esporro de um cara irritado e puto da vida.
Tiro algumas fotos deles parados, mas as melhores são as que pego
enquanto estão em movimento, principalmente quando saltam para fazer as
cestas. Devo admitir, é impressionante a altura que conseguem chegar.
Jayden, no entanto, parece um tanto abatido. Sou um babaca, mas sei
reconhecer um bom jogador, e ele é um desses. Só não hoje. Hoje ele está
uma verdadeira merda, se parece mais com um zombie perambulando pela
quadra. Bom, ele se parece muito comigo.
Evito capturar imagens dele, porque não quero ter vontade de atirar
minha Canon na parede um dia desses. A história sobre terem drogado
minha água ainda está na minha cabeça, só não estou com tempo ou
disposição suficiente para ir atrás. Prefiro acreditar que ele não teve
coragem de fazer isso. Porque se tiver tido, não vou me importar em
mandá-lo ao hospital, exatamente como fez comigo. Eu prefiro acreditar no
instinto de Angelina. Se ela gosta dele, e conseguiu perdoá-lo pelas coisas
que falou no passado, algo de bom o cara deve ter. Angelina não faz o tipo
ingênua e que se engana pelas pessoas.
Por ora, deixarei isso para lá.
— Não quer ver se é bom na quadra, Hopkins? — um dos garotos me
grita e identifico ser Toby. Desdenho com as mãos, recusando.
— Vocês estão muito secos pro meu estilo!
Eles gargalham, voltando ao jogo.
— A gente pode ficar de sunguinha e jogar água no corpo se preferir!
Deixo até vender as fotos depois — Ethan, obviamente, não consegue ficar
calado.
— É uma visão que eu passo!
— Tá perdendo dinheiro! — ele ergue a camisa do time para mostrar o
abdômen e o treinador joga uma bola em cima dele, que o infeliz captura
antes que atinja sua cabeça.
Pelo menos os reflexos são bons, já que o juízo não funciona.
Os meninos treinam até que o sol vai completamente embora e saio de
quadra com eles por volta das 20h, indo todos à lanchonete para beber e
comer. Eu pensei que eles fossem sugerir apenas um bar, mas esse
amontoado de jogadores com mais de 1,80m e uns bons 90kg precisam de
uma tonelada de comida.
Não tenho muito do que reclamar, já que meu estômago começa a
roncar. Tudo que ingeri hoje foram garrafas e mais garrafas de café e de vez
em quando um copo de água para enganar meu corpo e ele não pensar que
estou tentando assassiná-lo.
Levo alguns dos caras no meu carro, fazendo uma nota mental para levá-
lo a um lava-jato para sair o cheiro de suor. O restante deles vão com Ethan.
Ocupamos duas mesas do Peper’s e automaticamente o ambiente que era
silencioso, torna-se um misto de gargalhadas altas e comentários
masculinos, que acredite, somente nós vamos achar graça. A conversa é
mais construtiva quando tem uma garota à mesa, elas adicionam o intelecto
na coisa toda.
Por exemplo, agora estamos discutindo qual equipamento esportivo
incomoda mais.
— Se vocês nunca usaram uma touca de natação, não podem falar nada
sobre incômodo — insisto no meu ponto.
— Aquela coisinha de nada? — Josh provoca.
— Quando ela arrancar metade do seu cabelo, aí você me diz se é uma
coisinha de nada. — Ergo o dedo do meio.
— Temos alguém com medo de ficar calvo? — Ethan gargalha.
— Falou o cara do cabelo raspado para chamar atenção das calouras —
Toby zomba.
— E tem dado certo, eu tenho encontros para todos os finais de semana
do mês.
— Nossa, quase sinto pena de você — ironizo. — Se quiser eu faço uma
planilha pra não se perder.
— Não precisa. — Ele exibe seu sorriso malicioso. — Eu já tenho uma.
— Tá brincando, né? — Josh arregala os olhos.
— Eu não duvido nada. — Balanço a cabeça.
Os caras pedem uma cópia ao Ethan da tal planilha e me preocupo que
ele comece a vender pela Amazon. Antes que meu amigo faça um lance
para sua organização de pegação, meu celular vibra no bolso e o puxo com
força, deixando o aparelho cair no chão.
Porra, mas que inferno! Já vai ser a sexta película do ano e nem cheguei
à metade dele!
Atendo a ligação sem nem olhar o identificador de chamada.
— Alô? — Faço careta para o estrondo da música que vem do telefone.
O afasto um pouco da orelha.
— Francis? — Donna tenta gritar mais alto que a música, mas só escuto
meu nome em frangalhos.
— Oi! Onde diabos você está? — Verifico meu relógio no pulso. Ela não
pode estar nos treinos e definitivamente a música não estaria tão alta.
— Nada de sermão agora, mas será que pode nos buscar?
Franzo o cenho para entender o que ela diz. Que merda Donna está
fazendo? Foi pra uma balada no meio da semana?
— Onde você está? — repito minha pergunta. — E vocês quem?
— Eu, Angelina, Blue e Isabela.
Ah, agora eu entendo porque todas elas sumiram.
— Tá, tô indo agora mesmo, mas preciso que me diga onde estão.
O fato de Donna não querer me responder de uma vez, faz meus pelos se
eriçarem.
— Sabe aquela boate que abriu há pouco tempo… — ela hesita. Eu
travo meu maxilar. — A… a Hell’s Door?
Arregalo os olhos. Meu sangue congela nas veias. Donna só pode tá de
brincadeira com a minha cara. Eu fiquei de avisar pra ela sobre essa boate,
depois das merdas que ouvi no vestiário, mas com certeza minha irmã não
estava alheia à fama do lugar. No quesito informação de balada, ela ganha
disparado.
— Aquela na Mission District? — questiono com um fio de voz,
esperando muito tá errado.
— Essa mesmo.
Fecho os olhos com força.
— Porra, Donna! Vocês ficaram malucas? Esse lugar é barra pesada.
— Eu sei, tá?!
— E como vocês chegaram aí? — Já começo a procurar a chave do carro
nos bolsos.
— A gente veio de carro.
Comprimo as sobrancelhas.
— Se foram de carro, por que precisam que eu vá buscar? — isso tá
ficando pior do que eu esperava.
— Porque a Angelina e Isabela não parecem nada bem depois do drink
que tomaram, Blue está apavorada e… — a voz de Donna some e eu tenho
certeza que alguns tufos do meu cabelo começam a cair pela demora. —
Não nos deixam sair.
Porra, eu lembro do que disseram no vestiário. Só liberam a saída
quando a festa acaba.
— Caralho! — Bato o punho na mesa, assustando meus amigos. Eles
param a conversa na hora, me encarando preocupados. — Chego em dez
minutos e façam o que fizer, não se separem. Fiquem uma do lado da outra
e não bebam nada que oferecerem. Nem mesmo água, entendeu?
— Eu sei… — A voz de Donna falha. — Só… anda logo. Por favor. 
Minha irmã já se meteu em muita encrenca. E quando digo muita, é
muita. Mas ela sempre lidou com tudo sozinha, nunca precisou que eu fosse
socorrer e muito menos ficou apavorada como agora. Poucas coisas metem
medo em Donna Hopkins e se ela está assustada, eu tenho absoluta certeza
de que minha sanidade vai embora esta noite. E talvez meu réu primário.
Levanto da cadeira quase a derrubando para trás. Os caras me encaram
confusos e jogo algumas notas em cima da mesa, para pagar minha parte da
conta. Olho para Ethan e para Jayden.
— Preciso buscar as garotas em um lugar de merda, e preciso de pelo
menos mais dois caras pra ir comigo.
Eu sei a fama daquele lugar, se algum engraçadinho tentar algo, não vou
conseguir tirar as meninas e ainda lidar com a situação. Definitivamente
não me considero nenhum Vin Diesel.
Ethan e Jayden se erguem da cadeira no mesmo instante.
— Isabela está lá — aviso a ele e uma sombra de pavor passa pelas íris
castanhas.
— Elas estão bem? — ele grunhe.
— Não sei — não falo a parte em que Donna disse sobre as bebidas que
elas tomaram, porque só de pensar que Isabela e Angelina podem ter sido
drogadas, perco a visão. — Mas é melhor irmos buscá-las de uma vez.
Ele assente e saímos os três em direção ao meu carro.
Porra, elas vão levar um esporro que não se esquecerão para o resto da
vida!
 

 
O motor do meu carro urra pela velocidade que dirijo pelas ruas de São
Francisco. A neblina característica da cidade não ajuda e as estradas estão
escorregadias do inverno que vai chegando no seu fim. Vejo Ethan se
agarrando ao apoio da porta para manter-se no banco. Minha mente não
para de enviar possibilidades de merda do que pode estar acontecendo nessa
boate. Tenho a impressão que Donna não me contou toda a verdade.
Aperto o volante com força, a cólera consumindo minhas veias. Não
faço ideia do porquê elas decidiram se meter nesse lugar de merda,
sozinhas, sem dizer a ninguém.
— Porra! — Soco o volante duas vezes e os caras sequer estranham
minha reação, já que cada um está tão puto quanto. — Inconsequentes do
caralho!
Elas não vão gostar nem um pouco da conversa que vamos ter.
Estaciono de qualquer jeito na viela onde a maldita boate fica, um lugar
que fede a urina e cigarro. A frente do inferninho é discreta, nada além de
uma placa em neon vermelho escrito Open. Não consigo raciocinar como
elas pensaram que era uma boa ideia se meter nisso aqui. Nem mesmo
Ethan que gosta de uma farra viria para cá, isso aqui é o tipo de coisa que
apenas Vance se meteria. É com certeza um lugar para ele, mas não para
minhas garotas.
Vamos os três para a porta de metal preto, onde um segurança de quase
dois metros impede a passagem. Jayden vai como um touro em direção ao
cara e seguro o ombro dele. Ele me fuzila, pronto para partir para cima de
mim.
Eu adoraria, cara, mas vamos deixar nosso embate pra depois.
— Se você chegar arrumando confusão, não vamos poder entrar e muito
menos ajudar as garotas.
— Se fizeram alguma coisa… — ele grunhe.
— Aí você não terá só minha permissão pra quebrar alguns narizes,
como a minha ajuda também. Mas antes, precisamos entrar nesse caralho.
Ele assente com a boca retorcida.
Ethan fala com o segurança por nós, que dos três, é o que ainda mantém
certa calma e o homem nos avalia de cima a baixo, desconfiado. Tenho
certeza de que estamos com expressões assassinas, mas eu duvido que
alguém que frequente esse inferno tenha uma cara de mocinho de filme.
Estou para agir contra minha própria fala e partir para a violência,
quando Ethan estende algumas notas para o homem, que as aceita,
liberando a porta.
Preciso lembrar de devolver esse dinheiro ao Ethan, que com certeza não
foi pouco. Assim que a porta de metal é aberta, uma escada entra no nosso
campo de visão, levando até um subsolo. Fico claustrofóbico só de olhar e
isso só me deixa mais confuso de como Angelina entrou nesse caralho.
Nós descemos apressados, já sendo bombardeados com a música
eletrônica explodindo nas caixas de som. As luzes psicodélicas atrapalham
nossa visão e estreito os olhos na intenção de tentar enxergar melhor. Ethan
coloca a mão no meu ombro e no de Jayden e seguimos andando assim para
não nos perder.
— Donna deve estar próxima ao bar, seria mais fácil de encontrá-las —
aponto na direção dele.
Empurramos as pessoas para conseguir passar e mesmo sendo altos é
gente demais para conseguir transitar livremente. Como eu imaginei, o
lugar não tem saída de emergência, só a entrada pela qual passamos. O
barman quase não prepara bebidas e sei que isso só significa uma coisa:
drogas.
As pessoas não estão bêbadas, estão drogadas, e eu juro por Deus, que se
alguma das meninas tiver tomado algo de propósito, eu vou fazer o
pandemônio na vida delas.
Eu sei, não tenho a porra de moral nenhuma, mas é justamente por saber
o quanto essas merdas te fazem dependentes, que não quero nenhuma delas
sequer perto de drogas. É o famoso: faça o que eu falo, não o que eu faço.
— Ali! — Ethan grita, apontando para a direita do bar, onde consigo ver
a cabeleira loira de Angelina. Ela está com os braços para cima, movendo-
se desengonçada, enquanto Isabela está praticamente apagada ao seu lado.
Não vejo Donna ou Blue.
— Vamos!
Empurro com mais força as pessoas para chegar até elas e escuto
algumas ameaças pelo caminho, que com certeza não dou a mínima. Meus
pés são pisoteados e o cheiro de tabaco e maconha impregnam minha pele.
Antes de chegar onde Angelina está, minha visão periférica captura o
exato momento que um filho da puta sem qualquer amor à própria vida
encurrala minha irmã na parede. Donna empurra os ombros dele, tentando
manter o deboche e o sarcasmo como forma de defesa, mas vejo algo que
não costuma estar presente em seus olhos: medo.
Minha visão escurece.
Não sei precisamente quando ou como tirei todas as pessoas da minha
frente nem como minha mão encontrou tão rápido o queixo do desgraçado
que ousou encostar suas mãos imundas em Donna. Em um segundo, eu
agarro seu pescoço, afundando meus dedos exatamente onde sua carótida se
encontra, interrompendo o fluxo de oxigênio para o cérebro. No outro, o
estou jogando no chão, no espaço vago que as pessoas abrem após
perceberem uma confusão se formando.
Não enxergo nada além de cólera fria e crua, ansiando escutar alguns
ossos se partindo. Seguro nos ombros de Donna, encarando-a com nada
além de raiva. No momento, não consigo ser a pessoa que vai confortá-la,
não quando sinto a raiva percorrendo meu sangue.
— Pegue as meninas e saia daqui com Ethan e Jayden.
— Mas Francis… — ela chora.
— Agora, porra! — grito. Grito como nunca na vida havia feito com
Donna e seus olhos saltam magoados e ao mesmo tempo amedrontados. A
solto a tempo de ver o maldito infeliz se erguendo do chão e vindo na
minha direção. Franzo o cenho, apertando os olhos para analisar seu rosto.
É ele. O cara do vestiário. Eric.
Um grunhido sobe minha garganta. Ele é um cara morto. Morto, mas
muito bem avisado do que aconteceria.
Ele cambaleia desnorteado para cima de mim e sei que atingi sua
carótida forte o bastante para o desorientar, mas não para causar o dano que
ele merecia receber. O primeiro golpe que ele tenta é ridículo, sinto vontade
de rir. Apenas desvio, esperando pelo próximo. No segundo, agarro o pulso
que vem de encontro ao meu rosto, girando o braço do desgraçado até suas
costas, empurrando sua mão cada vez mais para cima. Sinto a resistência de
seus músculos e os estalos dos ossos. Tenho plena consciência, que um
pouco mais, posso deslocar seu ombro. Ou melhor, fraturar.
Ele grita e escuto sob os urros das pessoas amando o pequeno show e os
estrondos do grave das caixas de som gigantescas.
— Será que eu devo te deixar um lembrete eterno de como nunca tocar
uma mulher sem o consentimento dela? — cuspo as palavras próximo ao
ouvido do monte de merda à minha frente. Aprecio como ele geme de dor.
Não é um dia de sorte para ele, definitivamente não. Controlei-me mais do
que é considerável saudável a um ser humano, de caras mexendo, falando e
tocando as mulheres que eu amo. É uma pena que ele tenha me pego no
limite. Pena para ele, mas um prazer demoníaco para mim.
— Francis! — escuto a voz de Ethan, mas não me digno a olhar para ele.
— Leva as meninas para fora daqui — ordeno.
— Eu não vou embora sem você — escuto a voz de Blue e aperto os
dentes, virando para ela pela primeira vez.
— Você não deveria sequer ter vindo pra essa porra de lugar! — cuspo
as palavras, transtornado. Sei que elas não têm culpa do que esse
desgraçado ia fazer, mas a raiva não me deixa raciocinar. Não agora.
— Me solta! — Eric tenta se soltar, gemendo quando empurro seu braço
ainda mais para cima.
— Vou te soltar quando sua mão estiver inutilizada o suficiente. —
Seguro a ponta de seus dedos, dobrando as falanges, pressionando até sentir
o osso resistindo à força que exerço. Um sorriso toma minha boca quando o
escuto gritar.
Talvez as aulas de anatomia tenham valido a pena afinal de contas. Não é
exatamente para causar dor que elas servem, o que não quer dizer que não
ajuda.
Uma mão no meu ombro me faz olhar para trás e por pouco o punho do
homem às minhas costas não acerta meu queixo. Abaixo a tempo e a mão
dele corta o ar. Ele desequilibra-se dado a força que projetou no braço e
aproveito para segurar atrás de sua cabeça, a empurrando de encontro ao
lóbulo frontal do Eric. Eles colidem suas testas e os solto, ambos indo para
o chão.
— Francis, vamos embora porra! — Jayden vem na minha direção
arrastando Isabela e Angelina, as duas em estado muito piores que Donna e
Blue. Se antes eu via tudo escuro, agora enxergo vermelho. Eu não saio
daqui sem tirar sangue de alguém.
Analiso os dois homens tentando ficar sobre os próprios pés e o asco
sobe minha garganta, porque estão piores pelas drogas do que pela briga.
Nunca senti tanta vontade de sentir a vida saindo de uma pessoa nas minhas
mãos, como agora.
Se esse desgraçado tivesse feito algo com a minha irmã…
O pensamento não chega a perpetuar, porque um segundo depois, meu
rosto vira para o lado com violência e escuto o osso do meu maxilar
estalando. Cambaleio, segurando em um grupo de pessoas em nossa volta,
que parou para ver a briga. Leva alguns segundos para eu me dar conta que
alguém me golpeou. Procuro atordoado pelas minhas costas, encontrando
Eric poucos centímetros mais baixo que eu, com uma expressão diabólica e
prazerosa, balançando a mão.
Contraio a boca, firmando meus pés novamente.
Minha língua desliza pelo filete de sangue que escorre do meu lábio e
minhas sobrancelhas se arqueiam, o convidando para mais uma rodada.
Meus dedos coçam para se enterrar no rosto asqueroso, até sentir os ossos
cedendo. Eu escuto meu nome. Escuto meus amigos. Minhas amigas.
Escuto a voz da garota que ronda meus pensamentos a cada maldito
segundo. E ignoro todos.
— Saiam daqui! — grito novamente, sem tirar os olhos do meu
oponente, que dá passos em minha direção, calculando a melhor forma de
me acertar.
Ele vai ter que ser bom, porque o lado positivo de eu esgotar meu corpo
na academia, é que eu tenho força o bastante para derrubar dois dele.
Espero Eric dar o primeiro golpe. O deixo com a vantagem. Ele acerta a
lateral do meu ombro, o golpe não passando de um encontrão. Gargalho
perversamente.
— É tudo que consegue? Ou você só tem capacidade de forçar para cima
de mulheres, seu merda?
Pareço atingir o ego dele suficientemente, para o otário tentar a sorte de
um segundo golpe, mas esse, eu intercepto. Seguro seu punho com a mão
esquerda e acerto o cotovelo em seu esôfago. O ar nojento e fétido escapa
da boca dele e o desgraçado tosse o pulmão para fora, caindo de joelhos.
Estou para me inclinar e terminar a merda do meu serviço, quando
escuto a voz de Angelina. Viro por breves segundos, meu corpo incapaz de
recusar seu chamado. E no pouco momento de distração, sinto um rasgo no
meu ombro. Grito de dor. E ouço o grito de mais pessoas. Volto a atenção
para o amigo de Eric, agora segurando um pedaço de garrafa quebrada, que
ele usou como arma para me atingir. Seguro meu ombro, sentindo o sangue
escorrer entre meus dedos. Não foi profundo, mas isso pode infeccionar pra
caralho.
Dou um passo na direção dele, mas dois seguranças entram no meio de
nós dois, o imobilizando. Eles não estavam nem aí para o que estava
acontecendo, mas parece que não pretendem lidar com um assassinato nos
primeiros meses de negócio. Eles saem arrastando os dois e só não vou
atrás deles porque mãos pequenas e geladas tocam meu pescoço.
Viro com a expressão doentia e a suavizo assim que vejo Angelina.
Ela tem um sorriso débil na boca e Donna tenta agarrar seu braço, para
tirá-la do epicentro da confusão. Minha garota não obedece, ela está
decidida a ir aonde quiser.
Procuro seus olhos, fazendo careta para o estalo que escuto ao tentar
abrir a boca e pronunciar seu nome. Ergo as mãos para tirar os fios loiros
espalhados pelo rosto delicado, agora suado pela falta de ventilação do
lugar. Meus dedos tremem pelos impactos que deram, e algumas gotas de
sangue brotam da pele que começa a se abrir. Seguro o rosto de Angelina, o
erguendo para que eu possa analisá-la. Ao encontrar suas íris, me controlo
para não colocar o maldito lugar abaixo.
O que era para ser castanho, está completamente preto das pupilas que
tomam conta de todo seu globo ocular. O olhar dela é desfocado e suas
ações agitadas, fora de si. Angelina está drogada.
E considerando que ela nunca colocaria voluntariamente nenhuma droga
para dentro do organismo, ela foi drogada.
Alguém com certeza dormirá sob a terra e engolindo germes esta noite.
— Quem caralho fez isso com você? — sussurro, observando de um
olho para o outro. Ergo suas pálpebras, tentando ver se algo de mais grave
se passa, mas as luzes não me deixam ver muita coisa com clareza. —
Quem fez isso com ela?
Berro para as meninas, que encolhem os ombros, balançando a cabeça.
Jayden exige a mesma resposta, segurando uma Isabela quase desacordada
nos braços. As duas foram dopadas.
Inferno! Porra! Eu não sei se as mato ou se pego no colo.
— Alguém abre a porra da boca! — até mesmo Ethan se descontrola o
ver o estado de Isabela.
— E-eu n-não, sei… não sei — Donna chora e Blue sequer consegue
abrir a boca.
Deus me ajude a ter uma pitada de paciência com elas hoje.
Respiro, meus músculos tremendo para quebrar cada maldita coisa desse
lugar. Procuro o barman para saber quem deu as bebidas para elas, mas o
cara desapareceu de vista.
Mordo o interior da boca, lembrando das minhas prioridades de agora.
Reprimo a careta para o meu ombro rasgado. Isso vai ser um inconveniente
de merda.
— Vai ficar tudo bem, amor. — Beijo a testa suada e fria de Angelina,
passando o braço por sua cintura, quase a carregando para perto de Ethan.
— Eu preciso que você pegue o carro que elas vieram e leve Donna e Blue
para casa. Eu vou com Jayden para o hospital, descobrir que caralho deram
pra elas.
— Francis, m-me d-esculpe… eu não q-queria… — Donna soluça,
balbuciando com as mãos agitadas.
Engulo a raiva que sinto por ela ter se colocado em perigo e a puxo para
um abraço, ainda segurando uma Angelina agitada. É desconfortável, mas a
pressiono contra mim, respirando meramente aliviado desde que recebi sua
ligação.
— Eu não me perdoaria se algo acontecesse a você, Don. Nunca. — Tem
raiva na minha voz, mas espero que ela veja além disso.
— Eu sei… me desculpe. — Seus braços me apertam. — Eu não sabia
que era tão ruim assim. Eu só… não queria que nada tivesse acontecido.
— Shhhh… Eu sei. Está tudo bem agora, ok? Você está segura, ninguém
nunca mais vai tocar em você assim, eu não vou deixar — prometo,
beijando sua testa antes de a afastar. — Mas agora você precisa ir para casa
e eu preciso levar as meninas para o hospital. Tudo bem?
Donna assente, fungando. Olho para Blue e ela parece estática. Eu sei o
que isso significa. Gatilho demais. Ver o cara quase atacando minha irmã a
fez lembrar de quando…
Aperto minhas mãos.
Vou para perto dela, sussurrando em seu ouvido.
— Você não está naquela igreja. Você está com pessoas que te amam e
que dariam a porra da vida para te proteger. Você está segura, está a salvo,
nada e nem ninguém vai te tocar. Repita isso até entender. Ok?
Ela não responde. Pego sua mão, colocando no meu coração. Blue ergue
o olhar para mim.
— Sente as batidas? — ela assente. — Você é um dos motivos para ele
bater. Não desmorone. Ou eu vou junto.
Blue respira, assentindo mais firmemente.
— Ótimo… vai ficar bem com Ethan te levando?
— V-vou — sua voz sai rouca.
— Bom. — A observo preocupada. Jayden me grita, segurando Isabela
no colo. Merda… — Eu preciso ir, linda… amo você. Somos alicerce um
do outro, não esquece. Se você cai, eu caio. 
— E-eu sei. Vou ser forte. — Blue respira fundo. —  C-cuida de-delas.
— Com minha vida.
Envolvo as pernas de Angelina nos braços, a erguendo do chão. Ela grita
divertida e tenho vontade de matar o infeliz que ousou drogá-la. Ela não
estaria gostando nada disso se não estivesse completamente fora de si.
Por ora, tudo que me importa é que elas saiam bem deste dia de merda.
Bem o bastante para ouvirem para o resto da vida, todos os sermões que eu
tenho para dar. E pela cara de Jayden, não serei o único a encher seus
ouvidos. A coloco no banco de trás e antes de me sentar no do motorista,
penso ver Vance saindo da boate. Balanço a cabeça. Acho que estou
começando a ver coisas.
 

 
 
Estaciono desajeitadamente em frente ao hospital, ocupando duas vagas.
Levo Angel nos braços, enquanto Jayden carrega uma Isabela desacordada.
Entramos pela porta de emergência, berrando como dois cães raivosos,
latindo ordens. Enfermeiros vem correndo com uma maca para Isa, já que
ela está aparentemente pior que Angelina. Não preciso olhar no espelho
para ver o medo nos meus olhos, porque Jayden é o reflexo perfeito. Ele
está branco como papel e quando a adrenalina passar, temo que ficará pior.
Firmo os pés de Angel no chão e ela enlaça meu tronco com os braços
curtos. Algumas frases desconexas saem da sua boca e a abraço,
sussurrando palavras confortantes em seu ouvido. No momento, espero que
seja o bastante, porque começo a questionar a força das minhas pernas. É
carga emocional demais para lidar em poucas horas. Os hormônios estão tão
bagunçados, que minhas feridas começam a ficar anestesiadas, como se
nem estivessem lá. Provavelmente vou precisar levar pontos, mas não deixo
encostarem em mim, até que eu saiba o que infernos Angelina tomou.
Ela pula e fala sem parar. Mal entendo uma palavra. As pessoas em volta
nos olham criticamente e reprimo a vontade de mandá-las irem se foder.
— Shhhh, Angel. Vai ficar tudo bem, eu prometo.
— É outra promessa que você vai quebrar. — Ela ri, grogue.
— Até assim você briga comigo — solto uma risada cansada. — Deve
ter muita raiva de mim.
— Não é raiva de você. — Ela estala a língua, negando com o dedo bem
em frente ao meu rosto. — É da morte.
Franzo o cenho, afastando sua mão para que eu possa observá-la.
— Eu vou morrer, sabe… — Angelina balbucia.
— Nem brinca com isso, Angelina — A aperto nos meus braços. —
Você vai ficar bem, pode precisar passar por uma lavagem estomacal, mas
vai ficar bem.
— Não vou não. — Ela se afasta para encarar meu rosto. — Eu vou
morrer, Francis — Angelina passa o dedo no meu lábio cortado. — Não
hoje e talvez não amanhã, mas em breve… não vamos ter tempo. Mesmo
que eu te perdoe, não vamos ter tempo.
Encaro cada um de seus olhos, repetidamente, tentando entender que
merda ela está dizendo. Não sei se são as drogas ou ela está me falando algo
sério.
— Como assim, Angelina?
— Eu não devia estar te falando isso… não era pra ninguém saber. — Ri,
mas seus olhos se enchem de lágrimas. Não estou gostando dessa
brincadeira. — Mas já que vou morrer, não faz muita diferença.
— Para de dizer isso! — repreendo, segurando em seus ombros. — Não
diga mais isso, Angelina. Você está bem. Foi apenas um susto, vamos
passar por essa noite e amanhã tudo vai parecer melhor, você vai ver.
As pernas dela falham e a prendo melhor em meus braços.
— É o que pessoas com leucemia fazem, Francis. — A lágrima escorre
em seu rosto. — Elas morrem. Não vai melhorar só porque o novo dia
chegou.
Pisco.
De novo.
E mais uma vez.
— O que você disse? — minha voz é como um sussurro estrangulado.
Deixo de sentir tudo em volta. O ar estanca.
— Eu estou com leucemia, Francis. Exatamente como meu avô.
Rio.
Uma risada estrondosa.
Não consigo parar.
E assim como a risada começou, o pânico se alastrou. Balanço a cabeça,
ficando tonto, com as vistas embaçadas.
— Você… você está confusa. Está entendendo tudo errado… você não
tem leu… — não ouso completar a frase. Não ouso. Ela não tem isso. —
Você não está doente, só foi drogada.
Angelina não tem câncer!
Ela não pode ter.
Não… bufo uma risada amarga. Ela está confusa demais, só isso.
— Não estou enganada. — Balança sua cabeça rápido demais. — Sei
disso desde a noite do vinhedo, sabe… — Ela toca meu rosto, concentrada.
Mal a enxergo. Não com as grossas gotas de lágrimas escondendo minha
visão. — Aquela noite, foi minha despedida de nós dois, minha maior
loucura e toda minha razão, porque eu escolhi viver com você antes que não
pudesse mais estar viva.
Nego com a cabeça.
Ela assente.
— Não — pisco com força, afastando as lágrimas.
— Entende por que pedi para não prometer que seria sempre meu? — os
lábios dela, agora ressecados, forçam um sorriso. — Se você for pra sempre
meu, estará preso a alguém que só poderá ter através de imagens e
lembranças.
Uma equipe médica chega por trás de Angelina e a coloca em uma
cadeira de rodas, para realizar os exames.
— Para! — grito, segurando no braço de um dos médicos. — Você! Eu
preciso da sua ajuda. Preciso que me diga que não. Preciso que faça… que
faça exames nela. Todos. Eu preciso de todos. — Hiperventilo, tentando me
lembrar do que precisa para comprovar algo como isso. — Hemogramas…
faça um hemograma completo. Faz tomografia. Faz qualquer exame que
tiver nessa porra de hospital… tá me ouvindo? — Seguro o homem com
força.
— Senhor, se controle. Nós vamos cuidar dela — uma enfermeira tenta
me conter.
— Não! — grito. — Eu preciso… preciso de todos os exames. Faça…
é… — droga, não consigo respirar. Não consigo respirar. — Faça…
— Senhor, acho melhor você se sentar. Você está ficando pálido.
Um dos médicos me segura quando os músculos da minha perna me
abandonam e eu tropeço para trás. Eles me carregam até uma cadeira e abro
a boca para mandarem me soltar e irem cuidar de Angelina, mas não
consigo falar. Não tem ar. Não tem ar.
Onde está o ar?
— Ang… eu… eu preciso ficar com ela. Preciso saber… ela não… —
Seguro nos braços da cadeira como se fossem a gravidade da terra nesse
momento.
— Fique calmo, por favor. Eu preciso olhar o ferimento no seu braço. —
A enfermeira segura minha cabeça que começa a tombar para o lado.
Porra, isso não é hora para desmaiar. Não posso perder Angelina de
vista.
— Mo… moça. — Seguro o braço dela, piscando para me manter
acordado. Gelado. Está muito gelado. Meu corpo está formigando. Está
tudo girando.  — Por favor… por favor… ela… ela não pode.
— Nós vamos cuidar dela, rapaz. Fique calmo.
— Não… você… você não entende. — Sinto as lágrimas descendo. —
Ela… eu a amo… ela não pode…
— Sua namorada vai ficar bem. Fique calmo.
Aperto o braço dela o máximo que consigo, mas a força me falta.
— Hemograma. Eu preciso que façam um hemograma completo…
entende? Eu preciso de todos os exames — engulo a saliva pastosa,
arqueando para o ar que passa aos frangalhos na minha garganta. Estou
tendo uma crise de pânico. — Todos. Faça todos. Você vai falar com o
médico, não vai? 
— Eu...
— Por favor! Eu estou te implorando.
Não sei se pelo meu descontrole, pelas lágrimas ou simplesmente por
empatia, a mulher me solta e vai fazer o que digo. Seguro no encosto da
cadeira, sentindo o cheiro de produto de limpeza e aquele aroma pungente
que apenas um hospital tem.
Algumas pessoas me encaram, cochicham algo, mas não dou a mínima
para nenhuma delas. Um dos enfermeiros que cuidava de Angelina vem em
minha direção com um kit para sutura e nego, impedindo-o de lidar com
meus machucados.
— Eu não quero! — O empurro. — Eu preciso achar a Angelina.
— Eu preciso suturar seus cortes, rapaz. Depois você vai ver sua
namorada.
Agarro o jaleco do homem, arrumando força onde sequer imagino,
aproximando seu rosto do meu.
— Você vai me levar até ela agora. Entendeu?
— Se você não me soltar, vou chamar o segurança.
— Vai precisar chamar a guarda nacional pra me tirar de perto dela.
Então poupe sua noite e me leve até ela — rosno cada palavra.
O cara suspira e pragueja algo sobre não aguentar mais seus plantões
noturnos. Ele me guia até o andar de cima e vou me batendo em todos os
corredores, segurando nos lugares para me manter em pé.
Minha pressão parece ter me abandonado por hoje e não caio única e
exclusivamente porque vou acompanhar cada porra de exame de Angelina.
Ela não tem câncer. Só está confusa. Ela não tem nada, apenas está
assustada. Ela não pode ficar doente. Está com medo pelo avô e as drogas a
fizeram achar isso. Apenas.
Não importa que não esteja em minhas mãos decidir, não vou deixar, eu
rasgo a porra do destino se preciso for.
A vida já tentou me tirá-la vezes demais e nunca conseguiu.
Assim como o mar quis reivindicá-la anos atrás, também não será uma
doença que a levará.
Não é justo. Não com ela.
Semanas atrás, falei a ela que não existiria em um mundo que não a
tivesse. E disse sério. A partir do momento que este plano não tiver
Angelina, ele também não me terá.
Se o senhor quiser a levar, ganhará dois em um.
Não espere que eu viva, sabendo que o amor da minha vida não está
mais respirando o mesmo ar que eu.
Agarro a barra da minha blusa, a torcendo até o tecido ceder nas minhas
mãos.
O enfermeiro me deixa em uma sala de exames, onde estão retirando o
sangue de Angelina. Ela parece dormir, com a cabeça recostada contra uma
poltrona branca, e seu peito sequer parece se mover. Está imóvel, estática, e
essa é a pior imagem que tive na vida. Porque parece que ela está…
Agarro o batente da porta, recuperando o equilíbrio para ir até ela e me
ajoelhar em sua frente. Seguro suas mãos, agora frágeis contra as minhas,
tomando cuidado com o acesso em seu pulso. Tiro os fios de cabelo do seu
rosto, deixando tudo o mais confortável possível.
— Por que só me contou agora, meu amor? — Aperto os olhos,
mordendo a boca para não deixar o choro sair alto. Há mais pessoas na sala.
— Eu sei que eu errei com você, errei muito, mas você não podia ter me
escondido isso. Não podia achar que eu não estaria do seu lado. Não
podia… eu amo você. Não importa o quanto você não sinta o mesmo, não
importa que me odeie ou que me queira longe. Eu nunca te deixaria para
passar por isso sozinha, Angelina. Você tinha que me contar seu medo,
porque eu sei não se passar disso. É apenas um medo, não é real.
Minhas lágrimas pingam em suas mãos e já não consigo segurar os meus
soluços.
— Acorde e diga que isso é um engano. Me diga que foi apenas as
drogas. Me diga que nada disso é real.
Mesmo que eu implore, pedaços dos últimos meses se passam na minha
mente.
Angelina não estava se alimentando corretamente.
Ela quase não sentia fome.
Os roxos em sua pele, que notei na nossa noite na vinícola.
Seu cansaço incomum.
Suas atitudes estranhas e impensadas.
E eu não insisti para saber.
Não exigi saber.
Não fiz nada.
— Me perdoa, meu amor. Me perdoa… — Beijo sua mão, sacudindo a
cabeça, como se isso fosse afastar esse pesadelo.
Uma senhora se abaixa ao meu lado e fala alguma coisa, que não consigo
entender agora. Apenas continuo balançando a cabeça.
— Não posso perdê-la. Não posso.
Eu permito que a mulher de idade me abrace. E não sei porque ela o faz,
muito menos porque retribuo. Eu apenas me agarro a algo que posso me
manter erguido e não jogado ao chão.
A senhora diz palavras sobre fé e destino, mas agora eu tenho vontade de
mandar os dois se foderem, por estarem destruindo algo que não trouxe
nada ao mundo, senão bondade e gentileza.
Aperto a mão de Angelina, implorando.
— Promete que vai ficar bem. Promete. Você sempre cumpre suas
promessas, então promete, amor… promete, pelo amor de Deus, promete.
Tento reprimir o grito que quer sair de mim quando o médico chega com
os primeiros exames, constatando uma anemia severa. Severa demais. Um
dos primeiros sintomas a serem notamos de leucemia…
Tento reprimir, mas é completamente inútil, porque o som que sai da
minha boca, faz todos os meus pelos se arrepiarem. É a pior coisa que já
escutei e custo acreditar que saiu de mim. É um uivo agoniado, como se um
animal estivesse sendo rasgado ao meio.
— Não! — eu renego o papel, o jogando no chão. — Isso tá errado. Faz
outro! — o médico dá um passo na minha direção e eu aponto o dedo para
ele — Não! Não fique aí parado! Faz outro. Isso tá errado! São as drogas…
são as drogas, é por causa do que deram a ela!
Eu grito e nada muda. Ninguém faz nada. Ninguém está concordando
comigo.
Isso não está certo.
A mulher me abraça mais forte e eu continuo berrando minha dor para
fora. Continuo gritando, mesmo quando Angelina abre os olhos assustada e
me vê descontrolado.
O perdão já não é mais o ponto aqui. O tempo é.
A gente tem tempo. Isso tudo é um maldito engano. Não pode ser
verdade.
 

 
 
Sons. Gostaria de saber como é apenas ouvir e não os sentir, como se
tivessem uma textura, como se fossem um toque incômodo e não solicitado.
É difícil explicar, e por um tempo, foi difícil entender. Quando eu era
criança e ganhava um brinquedo que fazia barulho, meus pais esperavam
que aquilo chamasse minha atenção. E bom, chamava. O que não quer dizer
que fosse algo bom.
Mais tarde, meus coleguinhas de classe gritavam e não paravam de bater
os brinquedos no chão, estourar balões ou usar sapatinhos que faziam
barulho quando iam de encontro ao chão. As pessoas não fazem ideia do
que é ser averso aos sons do mundo. Não é como se desse para silenciá-los.
Na adolescência, a maioria das garotas estavam com seus fones de ouvido
no volume máximo, curtindo as músicas do momento, mas eu, usava
tampões de ouvido justamente para fugir delas.
E apesar de já ter provado uma boa dose de sons que me fizeram
encolher e querer me esconder dentro de mim mesma, nada, nunca, se
equiparará ao que ouvi sair da boca do Francis, durante a madrugada.
Lembro de poucas coisas de ontem. É tudo uma desordem de fatos e
pedaços de memórias, que não faço ideia do que é real e do que não passou
de efeito do que ingeri.
Quando dei por mim, estava em uma poltrona branca de hospital, com
um acesso em meu pulso e com Francis urrando como se alguém o ferisse,
enquanto encarava um pedaço de papel no chão. O rosto dele estava
banhado de lágrimas, olhos azuis completamente avermelhados em volta e
uma senhora desconhecida o segurava nos braços. Poucos segundos depois,
uma equipe médica entrou na sala apressada e o segurou, enquanto ele
tentava se soltar e injetaram algo em suas veias. Seja lá o que for, não me
parece ter sido forte o bastante, porque Francis levou minutos a fio para
sequer parar de berrar com os médicos. Eu não consegui me mover, não
consegui falar, estava completamente aturdida e paralisada, como se meu
corpo pesasse uma tonelada.
Jayden apareceu alguns momentos depois e ajudou os enfermeiros a
levá-lo para a maca ao lado da minha poltrona, o deitando lá, enquanto o
remédio fazia efeito.
Tudo depois disso, foi uma verdadeira confusão.
Pedaços de memória foram voltando para minha mente. Minha conversa
com Francis quando cheguei ao hospital. A forma que contei a ele sobre a
doença… Eu contei a ele. Contei sobre a leucemia. Eu não devia ter feito
isso, mas estava fora de mim. Acho que estava com medo demais de algo
acontecer e nunca poder dizer a ele o que eu precisava. É uma pena, que o
que eu realmente precisava, não era dizer que estava doente. Era dizer que
apesar do perdão, eu o queria. O queria pelo tempo que a vida me desse.
Jayden se agachou em minha frente durante a noite e eu fui obrigada a
explicar para ele o motivo do surto do Francis. Meu amigo desabou em
minha frente e fez o que eu não queria que acontecesse e o motivo pelo qual
não contei a ninguém. Ele me olhou com pena. Com medo. Com dor.
Agora pela manhã, já passei por tantos exames, que não suporto mais ser
furada, colocada em máquinas claustrofóbicas ou tocada por pessoas que
não conheço. Talvez sejam as drogas que colocaram em minha bebida, ou
os medicamentos que me deram, o motivo pelo qual suportei todas essas
invasões sem ter uma crise sequer. No entanto, ela não está distante. A crise
está batendo na porta, esperando minha mente estar acordada o suficiente
para se mostrar presente e fazer o estrago em grande estilo.
Francis acordou há uns vinte minutos atrás e ameaçou processar metade
do hospital por tê-lo dopado.
A cada dez minutos mais ou menos, escuto uma das enfermeiras
reclamando sobre o garoto bonito, que não para de latir ordens e que se
acha mais inteligente que os médicos formados. Se a situação não fosse tão
ruim, eu riria.
Isabela, segundo seu irmão, terá alta ainda hoje pela tarde. Ela está em
observação apenas por precaução e, de novo, exigência de Francis. Ele e
Jayden estão como dois zangões, desfilando pelos corredores do hospital
como se fossem donos da merda do lugar. Acho que é a primeira vez que os
vejo juntos, sem que estejam de cara amarrada um para o outro e unidos em
um propósito em comum: deixar todos os funcionários malucos.
Alguns dos meus exames ficam prontos agora e confesso que o ar
começa a me faltar antes mesmo de Francis entrar com os papéis em mãos.
A expressão dele denuncia que está ainda pior que eu.
Francis está verde. Não branco, não vermelho… verde.
Se eu pudesse presumir, diria que não falta muito para ele vomitar.
Seus dedos apertam o envelope com força, os nós cortados da briga de
ontem, brancos pela pressão que exerce. O corte em seu ombro foi
enfaixado e ele parece sequer dar-se conta de que também é paciente aqui.
Seu peito não se movimenta, ele não está respirando.
Engulo sem qualquer saliva na boca, ferindo minha garganta. Eu preciso
de água, mas não ouso abrir a boca para falar algo.
Francis vem na minha direção cautelosamente.
— Posso me sentar? — Ele aponta para a cama.
Assinto, com medo de não ter voz para proferir palavra alguma. Eu não
quero saber, não quero descobrir, seja lá o que eu tenho. A certeza não é
bem-vinda agora, só que duvido que eu possa convencer Francis a jogar o
papel pela janela e esquecer que esse dia aconteceu. Principalmente porque
agora ele não é o único que sabe. Jayden deve estar com Isabela, esperando
por uma resposta.
Francis olha para mim, não com pena, mas com algo muito pior, que faz
meu coração se rasgar e sangrar. Ele me observa com saudade. Uma
saudade que ainda não chegou, mas que sabe que chegará. O azul me
consome, me decorando, fitando cada cantinho do meu rosto. Quando ele
parece prestes a começar a chorar, ergo a mão para segurar a sua. Seu olhar
cai para nossos dedos unidos e consigo o efeito contrário ao pretendido. As
lágrimas gordas despencam com vontade, desenfreadas, mesmo que ele
permaneça com uma máscara fria, fingindo e escondendo o que sente de
mim.
— Por que não me contou? Como soube? — ele está com raiva,
magoado e ferido. Odeio ser a causa de tudo isso, mesmo que em algum
momento passado ele tenha sido a minha.
— Foram os testes antidoping — digo com a voz arranhada e rouca. —
Constatou uma anemia severa e eu apenas juntei os pontos. Meu avô com
essa doença. Os roxos em minha pele, meu cansaço, minha falta de apetite,
minha desconcentração, fatiga e… bom, eu soube.
— Você não pode supor uma coisa dessas, existem mil e um motivos
para esses sintomas, Angelina — sua voz denota fúria.
— É coincidência demais, não acha? — Bufo uma risada. — Justamente
quando meu avô está convalescendo desse câncer.
— Ainda assim — Francis insiste. Eu sei que ele apenas quer acreditar
em outra opção, quer ter esperança.
— Meu nariz também sangrou alguns dias depois do vinhedo, Francis.
Eu vomitei todo o conteúdo do meu estômago. — Deixo de lado a crise que
tive por causa de seu amigo. Não preciso que ele saia por aí caçando Vance
com um bisturi.
Ele fecha os olhos com força e seu maxilar ameaça partir com a forma
que pressiona seus dentes. A mão que está na minha, começa a tremer e
toda essa energia me confunde.
— Por que você não me disse isso? — rosna, transparecendo toda a raiva
que parece o consumir.
— Porque não era da sua conta! — Retiro a mão da sua. Ele está
irritado? Eu deveria estar! Eu estou doente, não o contrário. — Você não é
nada meu.
— Que se foda esse papo, Angelina! — Francis ergue os braços,
mordendo a boca. — Eu sempre serei algo seu, não importa quanto tempo
passe ou que você já esteja até casada com outro cara. Eu sempre serei algo
seu, sempre serei seu, e imaginei que tivesse deixado isso claro no vinhedo.
Você não podia esconder isso de mim e não podia lidar com isso sozinha!
— Pare de achar que sou incapaz de lidar com as coisas sozinha. Pare de
brigar comigo!
— Pare você de achar que estou falando isso porque te acho incapaz,
estou falando porque ninguém merece lidar com uma porra dessa sozinha.
— Josh sabia, ele estava comigo.
As palavras parecem atingir Francis como um soco em seu estômago,
porque ele me fita como se eu o tivesse traído, e de certa forma, o fiz.
Porque nunca na vida fui tão egoísta, do que naquela noite. O permiti
provar um segundo a mais de nós dois, sabendo que em anos, meses, ou
seja lá o que a vida pretende me dar, eu não estarei mais aqui.
Talvez seja melhor que ele sinta raiva de mim, que me odeie, talvez seja
mais fácil.
— Não me tire da sua vida assim. Não deixe que a raiva que sente de
mim, a faça pensar que está sozinha, Angel. — Francis desaba, como uma
criança que perdeu seu brinquedo favorito. — Eu não estou pedindo para
ficar comigo, estou pedindo para não me excluir a esse ponto. Para não me
impedir de estar ao seu lado quando precisar. Eu nunca me aproveitaria de
você, se é o que pensa. Não estou tentando buscar seu perdão com isso, eu
só não posso suportar a ideia de você sofrer e eu não poder fazer nada a
respeito. Nada para ajudar. Eu… eu não posso te perder, porra!
— Nunca disse que você se aproveitaria de mim ou da situação, Francis
Hopkins. Eu nunca pensaria isso de você!
— Então por que não me contou, porque escondeu de todo mundo, até
mesmo de Donna?
— Porque nem mesmo eu queria saber! Porque não queria ver pena nos
olhares de vocês. Porque não queria fazê-los sofrer. E porque torço tanto
para ser mentira, que se eu contasse, tornaria tudo real. Não quero pensar
que perderei a vida que sequer tive a chance de aproveitar.
Agora, não apenas Francis sucumbe as suas emoções, como eu também.
Choro e não consigo segurar os soluços.
— Eu não quero morrer, Francis — admito de uma vez.
Assim que os frangalhos de palavras escapam, ele me pega em seus
braços, abraçando-me e sendo novamente o meu bote salva-vidas. Não
importa que no passado tenha me levado ao fundo, porque em todas as
vezes, ele é o cara que me tirou de lá, até mesmo quando não tinha sido a
causa da minha queda.
— Eu não quero sentir dor — confesso meu medo.
— Você não vai — ele me garante, e ainda que saibamos que não pode
prometer algo assim, preferimos acreditar. Eu prefiro acreditar que ele vai
ser capaz de me salvar mais uma vez, até mesmo das trapaças do destino.
— Não me deixe sozinha, por favor… não me abandone. — Fiz tudo ao
contrário do que digo, fiz de tudo para afastá-lo, mas agora não sou forte o
bastante para ir contra esse sentimento.
— Nunca. Eu nunca vou te abandonar, meu amor. Você faz parte de
mim, de quem eu sou, do que faz minha vida ter sentido. Eu não tenho
como abrir mão de você, porque eu deixaria de existir, Angelina. Não há a
mínima possibilidade de algo nos afastar. Nem sequer uma doença. — Os
braços fortes me apertam ainda mais e sinto-me em casa, no meu lar, no
meu lugar no mundo. Agarro-me aos ombros largos, enterrando o rosto no
vão do seu pescoço, inspirando todo o cheiro amadeirado que consigo, para
tirar o aroma macabro de hospital. — Eu nunca vou sair do seu lado. Não
importa o que passe, eu sempre estarei aqui por você, Angelina. Nunca se
esqueça disso, nunca esqueça que você terá meu apoio, para o que quer que
seja, não importa os anos que passem.
— Eles não serão muitos — tento uma gracinha, que apenas faz as
lágrimas deslizarem mais rápido.
— Não brinca com isso, pelo amor de Deus — sua voz falha e me sinto
culpada. — Não quero ouvir isso saindo da sua boca nunca mais. Até
porque, nós precisamos confirmar tudo antes de sair fazendo suposições.
Você pode muito bem ter sofrido esse tempo em vão e ser apenas um
problema fácil de resolver. Pode só ter me apavorado pra caralho por nada.
— Me iludir é pior, Francis. A queda vai ser mais dolorosa.
— Eu discordo. Porque vou acreditar, até que exames me provem o
contrário. Na verdade, nem mesmo eles vão me fazer desacreditar que você
vai ficar bem.
Ele se afasta para recolher novamente os papéis e começa a abrir o
envelope.
— Pronta?
— Não. E você?
— Com toda certeza não.
Engulo. Ele engole. Passam-se eras, porque Francis parece ter
envelhecido anos em apenas horas.
— Abre — sussurro.
Francis não faz de imediato. Ele me fita, olho no olho, e aproveito
enquanto ainda posso enxergar a fé e confiança inabalável nos dele. Porque
quando vir o resultado do exame, eu sei que esse brilho bonito e único que
apenas ele tem, desaparecerá como uma gota de água no meio do oceano.
Eu sei que ninguém no mundo, sofrerá minha perda, como o homem em
minha frente fará. Porque ninguém no mundo me ama na intensidade que
ele ama.
E isso me fere ainda mais. Porque sei, que ele não descumprirá sua
promessa de ser meu. E continuará me carregando em seu coração, não
importa o destino que a vida me dê.
O barulho de papel sendo rasgado nunca foi tão ruim.
Nem o deslizar da folha para fora do envelope. Identifico ser um
hemograma, mas um completo dessa vez, não apenas o superficial que
fazem nos testes antidoping. Nesse, todo tipo de doença que pode ser
identificado no sangue… é.
As mãos grandes, fortes e agora machucadas tremem, enquanto Francis
analisa o exame.
Meu coração urra. O dele berra. Posso escutar. Posso praticamente ver o
peito dele sendo bombardeado pelas pancadas erráticas. Assim como vejo
os ombros de Francis caindo, a cor sumindo do seu rosto e o completo
medo passar em seus olhos.
Ele não precisa dizer.
Eu já sei o resultado.
Sei porque o ar abandona o corpo dele como um ofego desesperado.
Quando os olhos azuis se erguem para mim, estão arregalados.
— Positivo — ele murmura estrangulado e assinto, engolindo a dor.
Engolindo o pânico. Engolindo o ódio. Abro a boca para falar, mas Francis
termina sua frase. — Positivo para gravidez.
Fecho a boca.
Minha pressão despenca.
Pisco, balançando a cabeça.
— C-como é? — arquejo.
— V-você está grávida, Angelina. — A boca dele fica completamente
branca, a ponto de arroxear. — Não doente… grávida.
Nos encaramos com os olhares fixados, perplexos e assustados. O
mundo gira. Vejo dois nadadores na minha frente. Talvez três. E os três
parecem prestes a desmaiar.
— Grávida — repito a palavra, deitando-me na cama no exato momento
que Francis leva a mão à cabeça e se perde dentro da própria mente.
Grávida.
Tudo fica preto. Mas não antes de eu sentir Francis cair em cima de
mim. Tudo fica preto para ele também.
 
 
Há sempre medo com a chegada de uma
tempestade. Os céus ficam escuros, cobertos de
nuvens densas, sons assustadores nos fazem
correr para debaixo do cobertor. Mas tudo isso
passa. Sempre passa. E no lugar da tempestade,
resta o arco-íris. No lugar do medo, resta o
alívio. Não há calmaria sem tormenta. A espere
passar e aproveite a bonança.
 

 
 
A estrada passa na minha frente como um borrão acinzentado e dirijo em
modo automático. Devo ao menos me dar o crédito de conseguir dirigir
depois de tudo. Acordei com o cheiro de álcool próximo ao meu nariz e
uma enfermeira chamando meu nome. Tudo depois disso foi uma confusão
dos infernos.
A única coisa que está clara minha mente como um letreiro em neon, é a
palavra “positivo”. Essa pequena junção de letras, conseguiu pegar toda
minha vida, que já não era das mais ajustadas, e virar de cabeça para baixo,
sacolejando como uma mochila velha. O que eu achei saber do meu futuro,
não existe mais. E as partes em que eu tinha dúvida, apenas tornaram-se
ainda mais intangíveis.
Angelina não falou nada desde que li o resultado do seu exame. Nem nos
outros exames que se seguiram. Eu não sei o que pensar. Ela está grávida.
Não tinha um momento pior para isso acontecer do que agora.
Definitivamente não foi assim que planejei ter um filho e eu sei que
Angelina também não. Se a gente achava que tinha problema, agora todos
eles se misturaram e viraram uma grande e embaraçada teia.
O que nós vamos fazer? Angelina está no começo da faculdade, eu
sequer estou na residência, não tenho um emprego… e isso porque a parte
mais difícil nem fica comigo.
Os médicos quiseram fazer um ultrassom para saber mais sobre o… o…
céus, bebê. Puta merda, eu vou ser pai. O suor escorre da minha testa. Isso
não está certo. Não era pra ser agora. Não podia ser assim. De qualquer
modo, Angelina não quis fazer o ultrassom hoje. Eles tentaram persuadi-la,
mas não deixei que a tocassem sem que tivesse sua permissão.
Meu pai saberia o que fazer agora...
Porra, meu pai… ele vai me matar. Ah, ele vai. Já posso ouvir seu
discurso sobre o uso da camisinha. E o pior é… usamos. Nós usamos.
Angelina está entrando no quarto mês de gravidez. Ela está grávida desde
sua primeira vez.
É… se fertilidade concorresse nas olimpíadas, Angelina levaria a
medalha de ouro pra casa. E não vou nem dizer sobre a minha própria. Que
porra de espermatozoide é esse? Feito de aço? Eu estava protegido,
caralho! Não é possível que Angelina e eu sejamos o 1 % da camisinha que
falha.
Quero levar as mãos à cabeça e arrancar meus fios fora, mas preciso
parecer tranquilo. Isso se Angelina ainda me levar a sério depois de
literalmente desmaiar na cama de hospital.
O silêncio é uma presença invisível entre nós. O clima dentro do carro
está tão tenso, que poderia cortá-lo com faca e servir em um pratinho de
festa.
Eu vou ser pai. Caralho, eu não sei nem cuidar de mim mesmo, como
vou cuidar de outra pessoa? Angelina sabe?
Deus, isso tem que ser pegadinha. Como o senhor achou que termos um
filho era uma boa ideia? A gente não consegue nem se resolver
decentemente, que dirá criar uma outra pessoa. O que eu vou ensinar? A
comer e dormir mal, estudar de madrugada, treinar até o corpo falhar, como
ter uma autoestima negativa e usar drogas quando as coisas ficarem
difíceis? É sério? Eu juro que gargalharia se eu não estivesse apavorado.
Minha cara e da Angelina é o retrato do medo.
Eu queria estar diferente. Merda, eu deveria estar diferente. Deveria ter
sorrido como um maldito apaixonado, a tomado nos braços, a beijado e
agradecido o melhor presente que poderia me dar. Mas felicidade não está
entre as minhas emoções agora. E duvido que nas de Angelina também.
Não estou feliz. Não estou com vontade de sorrir.
Este não é o momento. Nós sabemos o que acontece quando os pais não
estão prontos para ter filhos. Não queremos repetir os erros dos nossos pais.
No meu caso, nem os biológicos e nem os adotivos. O único exemplo
decente que temos em casa é papai e vovó Lina. O que não adianta muito, já
que os pais seremos nós. Minhas mãos suam no volante e o aperto com
força para não escorregar.
O que posso oferecer a uma criança? O que Angel pode oferecer?
Somos dois universitários, que com certeza não têm condições de sustentar
ninguém sem a ajuda dos pais. E quem dera o dinheiro fosse o maior dos
problemas.
Não consigo olhar para Angelina, sinto vergonha de estar apavorado.
Isso não é nem de perto tão difícil para mim quanto é para ela. Não sou eu
que vou ter que abrir mão da minha vida durante nove meses. Angelina terá
de parar os treinos em algum momento. E eu não consigo pensar em como
seria isso. Desde que ela começou o vôlei, nunca vi essa mulher passar mais
de uma semana sem um treino.
Minha cabeça dói. Lateja insuportavelmente, porque não sei como
sairemos dessa situação. Ou melhor, como vamos lidar com ela. Inspiro o ar
com força e exalo demoradamente, tentando parecer firme. Não é o
momento para surtar.
Não me entenda errado, eu sonhava em ter filhos com ela. Um dia. Em
um futuro distante, onde nós dois teríamos nossas profissões, fôssemos
mais maduros e capazes de lidar com nossos próprios problemas sem causar
tempestades em copo d’água. E isso definitivamente não se enquadra em
nossa atual situação.
Por que infernos eu não conferi a porra da camisinha depois que
terminamos?
Merda. Estamos fodidos. Os dois. Completamente fodidos.
Ao menos foi isso que Jayden falou quando contei a ele. Quer dizer, na
verdade, ele leu no exame, porque eu não conseguia fazer nada além de
balançar a cabeça. Eu pensei que o cara fosse me xingar e dizer que eu tinha
estragado a vida da Angelina, e embora seja verdade, ele apenas colocou a
mão no meu ombro e disse que nós dois estávamos em uma situação fodida,
mas que teríamos apoio dos amigos.
Por que isso não ajuda? Porque os pais somos nós! Porque não importa
quem esteja do nosso lado, a bomba está em nossas mãos.
Céus, que merda de pensamento. Como eu posso pensar isso de um
filho?
Trinco o maxilar, jogando o carro no acostamento em um rompante. Dois
motoristas buzinam e me xingam e não me dou ao trabalho de retribuir o
gesto. Estou em pânico. Em puro pânico. Continuo segurando e olhando
fixamente para o volante, mesmo ciente dos olhos de Angelina sobre mim.
Concentro em respirar.
Inspirar.
Segurar.
Expirar.
Inspirar…
O silêncio é tanto, que escuto a batida dos nossos corações. Eles estão
acelerados como um carro de corrida. E eu quero muito parar essa
competição. Quero pedir um pause, um momento, um tempo… só que a
merda de ser adulto, é que a vida não é como uma brincadeira da qual
podemos interromper quando fica difícil demais ou quando queremos só
correr para o colo dos nossos pais.
— Francis? — a voz geralmente firme e decidida, agora sussurra meu
nome como se eu fosse sua tábua de salvação. Se sou, ela está em péssimas
mãos.
— Hum? — pigarreio.
— Me diga, por favor, que não sou um monstro por não estar feliz. Por
favor, me diga que não sou uma pessoa horrível.
Franzo o cenho, surpreso com a pergunta. Viro de lado no banco,
encarando seu corpo encolhido. Minha vontade é de pegá-la nos braços e
prometer que tudo ficará bem, que ela não sofrerá, mas não posso mentir.
Tudo que posso lhe oferecer é a verdade dos meus sentimentos e
pensamentos.
— Angelina, se você é um monstro, não quero nem nomear o que eu
sou… — Observo as íris castanhas cheias de uma culpa que não deveria
estar lá. — Desculpe, mas eu também não estou feliz. Desculpe, mas eu não
consigo sorrir para o que está acontecendo agora.
Ela suspira, assentindo. Eu não sei se é de alívio ou de pesar. E tenho
medo demais de perguntar e ela me contar a verdade.
— Me leva pra Golden Gate — diz de repente. Pisco algumas vezes,
tentando entender. — A gente sempre pareceu pensar melhor enquanto
estávamos lá.
Assinto, um tanto aturdido.
— Você tem razão. É… — Umedeço os lábios. — Talvez seja bom.
Não comento que antes a gente pensava melhor, porque não tínhamos a
responsabilidade de outra vida nas costas.
Volto a ligar o carro e ergo a palma da mão para cima, esperando os
dedos de Angelina envolverem os meus. Ela me aperta, buscando a
coragem que lhe falta e lembro-me de criar alguma para poder oferecer.
Porque, neste momento, sou apenas um garotinho que quer se enfiar atrás
das pernas dos pais e ficar escondido.
Não posso ser pai. Não consigo nem sequer ser um filho decente.
Eu vou foder com tudo e dessa vez não será apenas com uma pessoa.
 

 
As ondas quebram na baía de São Francisco violentas e inquietas. A
neblina, hoje em particular, mais densa do que jamais havia visto. Quase
não conseguimos ter visão da ponte avermelhada, tamanha densidade das
nuvens cinzentas. Se eu precisasse definir uma imagem para minha situação
mental, com certeza seria essa. Cinza. Nem branco nem preto… confuso.
Quando saí de Cape May, eu não podia imaginar o que me aguardava. E
talvez se imaginasse, teria ficado por lá. A cidade era pequena demais para
problemas tão grandes. E São Francisco é espaçosa o suficiente para todos
eles.
Estremeço com um vento mais forte que nos corta e Angel repete meu
gesto. Ainda estamos com a roupa do dia anterior e a dela cobre menos seu
corpo. Não imagino que queira contato físico agora. Na verdade, nem eu
mesmo quero. Tiro meu casaco, colocando-o sobre seus ombros. Ao
contrário do que aconteceria normalmente, Angel não protesta. Estamos os
dois cansados demais para discutir por um casaco.
Na verdade, agora todas as nossas discussões parecem ínfimas e fúteis.
— Eu não sei como isso é possível — ela sussurra após um tempo.
Estremeço porque não estava esperando uma fala sua. Tenho medo do que
ela tem para me dizer, ao mesmo tempo que torço para que ela diga algo.
— Como assim?
— Quer dizer… nós nos protegemos, eu até menstruei, Francis.
Respiro fundo.
— Camisinha não é cem por cento e você pode ter tido sangramentos,
mas não eram sua menstruação. São apenas escapes.
— Todos esses sintomas… — Ela ri nervosamente. — Francis eu tinha
todos os sintomas de alguém com leucemia, eu pesquisei no Google!
Fecho os olhos com força, comprimindo a boca. Como é?
— Você está me dizendo… — tento reprimir a incredulidade e raiva na
voz, mas é inútil. — Que tinha certeza que estava com câncer, baseado em
uma pesquisa no Google?
Ok, agora estou puto de verdade. Médicos, rasguem seus diplomas, o
Google sabe mais!
Passo a mão no rosto, puxando meus cabelos no processo.
— Foi. — Dá de ombros.
Solto uma risada indignada.
— Angelina, você tem noção de que quase me matou do coração? Eu
podia ter falecido ali mesmo naquele pátio do hospital e aí você seria uma
grávida sem pai! — exaspero, jogando as mãos para cima. E Angelina faz o
que com certeza não cabe na situação.
Ela gargalha. E não falo de uma gargalhada simples, é daquelas que você
fica sem ar e até o som para de sair da sua boca. Isso apenas me deixa mais
puto.
Espero ela terminar sua risada.
— Isso definitivamente não tem graça, Angelina.
— Não… — tenta recompor seu fôlego sem grande sucesso. —
Realmente não tem graça.
— Então por que está rindo?
— Não sei!
Angelina coloca a mão sobre a barriga para conter a risada e meu olhar é
atraído para a região no mesmo instante. Diferente dela, é porque me
lembro exatamente do que está ali dentro.
Porra, Angelina emagreceu nos últimos meses, isso não deveria ter
acontecido. Isso sem contar no fato de que ela ingeriu álcool e… drogas.
Cubro meu rosto com as mãos, apoiando os cotovelos em minhas pernas.
Deixo de escutar a risada de Angel, embora não saiba se meu cérebro
apenas parou de funcionar de vez ou se ela realmente entendeu a porra da
seriedade da situação.
Um toque no meu braço me faz entender pela segunda opção.
— Eu sinto muito ter feito você pensar que eu morreria.
Balanço a cabeça, afastando a mão dela do meu braço, apenas para tomar
seu rosto entre minhas mãos. Não é ela que tem que pedir desculpas, sou eu
quem devo por ser um merda. Essa não é a hora para questionar a forma
que reagiu a uma notícia aterrorizante. Angelina tinha acabado de descobrir
sobre o câncer do avô, foi pega de surpresa com uma anemia severa e seu
cérebro tomou conta de todo resto, fazendo-a sentir sintomas por pura força
emocional. Psicossomático para ser exato.
— Não peça desculpas. Você não precisa — uno nossas testas,
inspirando o ar que ela expira. — Eu… você reagiu até bem para a situação
que estava, Angel. Acredite, estou agradecendo aos céus por você não ter
doença alguma, não pense que a gravidez é uma sentença pior que um
câncer, em momento algum isso é verdade. É só que… eu nunca pensei que
isso pudesse acontecer, não agora, e está tudo uma bagunça… — tagarelo
sem parar para respirar, apenas despejando pela boca o que passa em minha
cabeça.
— Francis, fala devagar, está me deixando confusa.
— Eu estou confuso, não sei o que falar.
— E tem o que falar? Estamos em um beco com poucas saídas e
nenhuma delas é de fácil escolha.
— Como assim? — alterno o olhar entre seus olhos.
— Nós só temos três opções. Ter a criança, aborto ou… adoção.
Angelina sussurra a última parte e meus pelos se arrepiam para a
palavra.
Eu não lembro da época em que vivi em um orfanato. Era novo demais
para isso. E tive mais sorte do que gosto de pensar. Mas mesmo tendo sido
adotado pelo homem mais íntegro que conheço, o fato de não saber porque
fui deixado naquele lugar ainda assola minha mente todas as noites antes de
dormir. Não verbalizo isso para Angel. Não digo que tenho pavor de apenas
pensar em adoção, porque não é justo.
— Eu sei. — Balanço a cabeça. — Eu sei que existem essas opções.
Realmente sei. Mas não tinha pensado nelas. Achei que simplesmente
teríamos o bebê.
— Essa é a hora que você diz que a escolha é minha e que não interferirá
em nada?
Franzo o cenho, analisando suas palavras.
— Claro que não, Angelina. — Nego com a cabeça. — Sim, a decisão
final sempre será sua, mas começamos isso juntos e vamos lidar com isso
juntos. É injusto jogar toda a decisão nas suas mãos, para que lide com as
consequências dela sozinha. Nós vamos pensar juntos. Vamos analisar tudo
juntos. E então, só então, a decisão estará com você. E seja ela qual for,
estarei do seu lado incondicionalmente.
Mesmo que a adoção vá matar algo dentro de mim. Eu não consigo
entendê-la. Não como alguém que foi abandonado em um orfanato. As
pessoas dizem que minha mãe pode apenas ter pensado no melhor para
mim. Mas eu não consigo tirar da minha cabeça, que ela apenas viu alguém
que não valia o esforço. Alguém que não valia amar.
Angelina assente, passando o nariz pelo meu.
— Promete ficar do meu lado? — ela implora. — Porque eu estou
morrendo de medo.
— Sempre. Prometo sempre, seja lá o que decidir, que vou estar ao seu
lado.
Ainda que isso rasgue minha alma, Angel — complemento na minha
mente.
 
 

 
 
Um pé depois do outro. Flexionar o joelho, impulsionar a perna e pisar
no chão novamente. Inspirar o ar devagar e expirar lentamente. Um, dois,
três e piscar. Um, dois três, piscar novamente. Engolir a saliva, umedecer os
lábios.
É assim que se vive. Que se existe. Que se caminha. Que se respira.
Então porque não consigo realizar as coisas mais básicas? Por que meu
joelho não se dobra o suficiente, ou minha perna não tem forças para dar
mais um passo? Por que meus pulmões estão renegando o oxigênio que
inspiro para eles? Por que minha saliva tem gosto de remédio amargo? Por
que deixo meus olhos ressecarem por não conseguir piscar?
Porque estou grávida.
Francis me deixou em casa faz uma hora. Eu pedi que ele me deixasse
sozinha e por mais que ele tenha insistido para estar ao meu lado, vi em
seus olhos que ele também precisava de alguns momentos a sós. Assim a
gente desaba em paz, sem se preocupar que o outro note.
Veja pelo lado bom, Angelina, ele não perguntou quem era o pai — a
parte sarcástica da minha personalidade alfineta.
Francis não seria doido ou burro de perguntar isso. Ele sabe muito bem
que é o pai. Oh, puta que pariu, pai… eu não quero que ele seja pai, não
agora. Nunca sequer passou pela minha cabeça que eu enfrentaria uma
situação como essa na vida. Eu tenho tudo calculado. Engravidar na minha
lista, se encontrava nos últimos dos tópicos, depois de pular de paraquedas.
Eu fui responsável ao ponto de pensar em um possível acidente devido ao
salto e então, eu só teria os filhos depois de garantir que voltaria viva da
queda livre em direção ao chão.
Agora, o chão está perto demais e não dá tempo de abrir o paraquedas e
eu estou grávida!
— Merda, merda, merda! — jogo minha bola de vôlei longe,
aproveitando o quarto vazio. Donna está com a Blue no dormitório dela, ao
menos foi isso que a mensagem dela dizia, depois de perguntar como eu
estava.
Grávida. Estou fodidamente grávida. Inacreditavelmente grávida. Sem
querer grávida!
Não respondi isso, é claro.
Apenas menti. Disse que estava tudo bem.
Para quem pretendia esconder um câncer, o que é uma gravidez, não é
mesmo?
Eu tinha certeza que estava com leucemia. Tudo batia. Absolutamente
tudo. E mesmo correndo o risco de Francis arrancar o resto de juízo que tem
na cabeça, eu procuro no google pelos sintomas de gravidez.
A anemia é algo comum, assim como a falta de apetite e consequente
perda de peso. Os roxos na pele se deviam a ela e não a uma porra de
câncer. Meu cansaço e fadiga significam que algum serzinho está dividindo
as minhas energias comigo. Ou melhor, ficando com a maior parte. O meu
cabelo caindo também era da gravidez.
Eu nunca poderia imaginar que estava grávida, minha menstruação
nunca foi regular e como eu disse ao Francis, houveram sangramentos. Só
não eram da causa que eu pensei serem.
Por que infernos eu não pude desmaiar ou vomitar durante meses? Seria
bem fácil de saber. Mas não… meu corpo não é comum, ele gosta de ser
excepcional na surpresa.
Deito na cama de bruços e abraço meus próprios braços. Não toco minha
barriga. Tem alguém aqui dentro. Meu Deus, tem alguém vivendo dentro de
mim neste exato momento. Isso não é normal. Eu sei a ciência da coisa, mas
a prática é apavorante. Eu não sei se quero alguém aqui. Definitivamente
não quero alguém mexendo nas minhas coisas, que dirá nas minhas coisas
internas, nos meus órgãos, nos meus músculos… eu quero ser apenas eu.
Só eu.
Não quero dividir meu corpo.
Eu não sei se tenho o bastante para dividir.
E se eu for egoísta e tomar mais do que preciso?
E se esse serzinho for egoísta e não deixar nada de sobra pra mim?
Hiperventilo.
Tem alguém em mim. Tem alguém em mim. Isso aqui não é uma
casinha!
Olho para baixo, para minha barriga não plana, mas negativa.
Definitivamente não é uma casinha, será que ele tem espaço aí?
Cutuco minha pele.
— Ei! — sussurro, me sentindo ridícula. — Tá apertado aí, né? Mas a
culpa é sua porque eu não comi.
Tiro a mão rapidamente da minha barriga. E se mexer? Não tem tempo
ainda pra se mexer né? Pelo amor de Deus, não se mexa!
— Dorme. Fica aí quietinho. — Arregalo os olhos, deitando de barriga
para baixo. Viro-me depressa para cima. Posso deitar assim? Ah, merda, eu
não sei sequer isso. — Você não podia ter escolhido outra pessoa? Eu não
sei o que fazer nem comigo, que dirá com você!
Bufo irritada.
Me abraço apavorada.
Isso é um sonho. Um pesadelo. Eu vou acordar. Eu vou acordar…
Já estou acordada. E continua sendo um pesadelo.
 

 
— Donna, já disse que estou bem! — desvio das mãos dela, que me
tocam procurando uma parte que falta. Ela devia procurar o que está
sobrando.
— Eu fiquei com tanto medo, você e Isabela começaram a agir de forma
estranha, eu nem vi vocês bebendo nada, não sei como tudo aconteceu, só
sei que de repente toda a situação ficou uma merda e eu liguei para o
Francis e ele ficou puto comigo, com razão…
Donna vai falando e finjo entender tudo. Se ela soubesse que estou
precisando de espaço na cabeça e não mais palavras, ficaria quietinha e
calada. Mas eu não posso pedir isso, porque não quero explicar o motivo.
Ao invés disso, a deixo falando enquanto tento lembrar eu própria dos
acontecimentos da última semana.
Bom, tive minha noite despudorada com Francis, nossa aula de redação,
a briga com Vance no corredor e depois meu mau momento no vestiário. A
coisa ficou bagunçada depois daí. Blue e eu procuramos Donna para nos
ajudar a desmascarar o Vance. Ela topou na hora, é claro. O problema é que
Isabela ouviu parte da nossa conversa, já que fomos burras o suficiente para
falar disso nas arquibancadas da quadra de basquete após o treino das
animadoras. Isabela está sempre pelo centro esportivo, deveríamos ter tido
mais cuidado. Fui obrigada a explicar a ela sobre a situação de Jayden
vender os remédios. Não disse para o quê, apenas falei que ele vendeu. Jay
deve estar com muita raiva de mim agora, mas eu juro que foi por uma boa
causa. Agora nem tenho mais a desculpa do câncer para ele ficar com pena.
É mórbido, mas não tive sequer tempo ou cabeça para comemorar o fato de
não morrer.
Eba…
Voltando aos acontecimentos da semana, Donna descobriu de alguma
forma as boates que Vance estaria vendendo as drogas. Não é muito difícil
saber os lugares onde vão vender, já que parece que metade dessa faculdade
faz uso. É um dado chocante, a reitoria deveria avaliar. O mundo está se
perdendo e cá estou eu, trazendo mais gente pra ele.
Balanço a cabeça.
Foco, Angelina.
O fato é, seguimos Vance para toda maldita festa que ele foi, mas o cara
é discreto demais, não anda por aí vendendo para qualquer pessoa e esconde
muito bem a mercadoria. Sabemos disso porque chamamos a polícia para
uma festinha que estava rolando em uma fraternidade e que ele era
convidado. Não acharam nada na bolsa dele. Por fim, estávamos quase
desistindo, quando soubemos que ele estaria na Hell’s Door. Os boatos
estavam espalhados sobre todo o campus, era tudo escancarado no lugar,
não havia revista por parte dos seguranças, não havia detector de metais,
tudo ali era livre. O lugar perfeito para Vance ser descuidado e nós
conseguirmos alguma prova contra ele.
O problema, é que assim que entramos naquele lugar, tudo virou um
inferno. Rapidamente perdemos Vance de vista, eram pessoas demais,
música alta, luzes psicodélicas, e mais uma dúzia de coisas que eu detesto.
Comecei a ter uma crise sensorial ali no meio. Hiperventilei, fiquei enjoada
— obrigada, Serzinho, agora eu sei que foi você — o ar começou a faltar e
eu me desesperei. Isabela buscou uma água para mim e eu virei o copo todo
sem nem pensar. Péssima escolha. Também foi para ela, que também pediu
água para si. Não sei como Isabela deixou passar que tinham batizado
nossos copos, mas seja lá como aconteceu, o fato é que fomos drogadas. E
aí, tudo virou um borrão.
Eu lembro de Francis brigando, o ombro dele sangrando, um cara no
chão, as pessoas gritando, Jayden tentando me afastar da confusão…
E aí, eu estava no hospital. No hospital e quase matando meu ex-
namorado, atual ficante de plantações alheias, falando que eu ia morrer de
câncer.
Se eu fosse o Francis, nunca mais olharia na minha cara. Porque se fosse
o inverso e ele tivesse me passado esse susto, eu furaria seus olhos com as
unhas.
— Angelina! — Donna bate palmas em frente ao meu rosto.
— Eu. — Não sou só eu. Eu quero chorar. Mas definitivamente não
quero estar grávida. Desculpa, Serzinho. Não pedi você. Não quero correr o
risco de ser como minha mãe. Você deveria ter escolhido outro útero.
— Ainda tá drogada?
— Claro que não!
— Pois parece.
— Donna, não estou drogada e estou bem. Mais alguma coisa?
— Tá bem, mas tá de péssimo humor, né?
— Acertou em cheio.
— Pode falar comigo se quiser, sabe… dividir.
— Não me fala em dividir, Donna! — altero o tom de voz, me jogando
na cama e cobrindo a cabeça com o cobertor. — Eu não quero dividir nada,
quero tudo pra mim, só sobre mim, mais ninguém.
— Olha, você é meio incompreensível às vezes, mas agora eu não
entendo nada que sai da sua boca.
— Então me deixa ficar calada.
— Tudo bem, mas eu vou querer saber o motivo desse estresse quando
você tiver mais calma.
Seguro a língua para falar que não vou ter mais calma. Mães são
calmas? Nunca presenciei isso. Vovó Angelina é ótima, mas ela
definitivamente não é calma.
— Ok — concordo apenas para ela me deixar em paz. Isso e porque vou
ter que contar logo o motivo do estresse. Jayden já sabe e é pouco tempo até
que todos saibam também. Não sei se Francis vai contar aos amigos e
espero que não o faça ainda. Não quero todas as expectativas viradas para
mim agora. Quero ter calma para decidir o que fazer. Mesmo que eu já
tenha me decidido internamente por uma das opções. Não sei se Francis vai
gostar. Mas espero que me apoie como disse que faria. Caso contrário, estou
perdida.
Meu celular vibra embaixo do travesseiro e choramingo, pronta para
jogá-lo pela janela dos dormitórios. Só não o faço porque o nome na tela me
deixa intrigada.
Papai.
Savannah me disse que ele queria falar comigo, mas como não o tinha
feito até agora, achei que tivesse desistido.
— Alô? — sento na cama e Donna me encara confusa. Gesticulo com a
boca que é papai e ela ergue uma sobrancelha. É, eu também estou
surpresa.
— Angelina? Sou eu. Seu pai.
— Eu sei. Tenho seu nome no identificador de chamada.
— Que bom. É… eu queria falar com você.
— Imaginei pela ligação.
— Claro. — Meu pai limpa a garganta. Posso imaginar com clareza ele
mudando o peso do corpo para o outro pé. Louis Eastwood é um homem
tenso. O tempo todo. — Como está a faculdade?
— Boa.
— Fico contente.
— Imagino. — É mentira. Não imagino meu pai contente, eu nunca o vi
feliz. Apático, conformado, tedioso, sim. Feliz? Nunca.
— Sua mãe deve ter te falado que eu ligaria.
— Falou.
— Ela me disse que você não queria falar comigo. Agora estou confuso,
você não recusou minha ligação. Por quê?
— Porque ela mentiu — digo diretamente, cansada dos joguinhos da
minha mãe.
— Como assim?
— Sua mulher mente, pai. Mas é você quem dorme com ela todos os
dias, já deveria saber disso.
Donna arregala os olhos para mim. Eu nunca falei assim com meu pai.
Eu nunca troquei tantas frases com ele.
— Angelina, você está falando da sua mãe. Isso não é nada educado.
Meu sangue esquenta e vai parar por completo na minha testa. Ele quer
falar de educação em se tratando de Savannah? É sério? Ouvi toda minha
merda de vida que precisava ser mais educada, quando era ela que dormia
com garotos do colegial no quarto da própria filha.
— O que você quer falar comigo de verdade, pai? Estou cansada, então
seja rápido.
— Eu quero saber por que não ficou em casa quando veio para o natal.
Eu só te vi na festa de aniversário do Francis e sempre que tentava me
aproximar, você fugia. Eu sei que não somos muito próximos, mas ainda
sou seu pai. Eu… eu sinto sua falta.
Arqueio a sobrancelha. Louis nunca me disse isso antes. Ele bebeu?
Duvido muito. Meu pai não bebe. Não sei como, se vive com Savannah. Eu
viveria alcoolizada.
— Desculpa, mas… sente falta do quê? — pergunto curiosa.
Donna faz careta e imagino que eu tenha sido grosseira. Não concordo. E
se fui, não me importo.
— Você é minha filha, sangue do meu sangue. É natural que eu sinta sua
falta.
Que se foda essa merda de sangue. Eu agora estou na posição de… meu
Deus, não consigo dizer a palavra com M, mas mesmo sendo a palavra com
M, não consigo sentir felicidade por estar grávida, então Louis também não
sente minha falta por pura força do DNA. Não é assim que funciona, ao
menos não para mim.
— Nem tudo que é natural se adequa a mim, pai.
Louis fica em silêncio por um tempo e logo antes de voltar a falar,
suspira pesadamente.
— Eu te fiz algo? Estou perdido, Angelina. Não sei o que pensar e nem
como agir com você.
É, você nunca soube, isso não é novidade.
— Você não fez nada. Absolutamente nada. Nada certo, nem nada
errado.
— Então por que essa raiva de mim?
— Não é de você! — digo mais alto do que pretendia. Donna pula em
seu colchão e abaixo o tom de voz, respirando fundo. — Não é de você. É
de Savannah que não quero estar perto.
— Por quê?
— Quer a verdade? Porque se estiver em busca de mentiras, ligue para
sua mulher.
Minha boca fica amarga. Isso é vingança. Eu sei que vou ferir meu pai se
disser. Mas vou levar Savannah junto. Não é justo. Mas a vingança não é. A
porra da vida não é.
— Quero a verdade.
— Então recomendo que comece a se preocupar com sua idade.
— Não entendi, Angelina.
Donna se levanta da cama, balançando a cabeça para que eu não faça
isso. Tarde demais. Já fiz.
— Porque minha mãe tem certo apreço por garotos da minha idade.
Principalmente se puder ficar com eles no meu quarto.
Minha amiga cobre a boca com as mãos e escuto barulho de vidro se
quebrando na ligação do meu pai. Talvez um copo. Talvez um computador
caindo. Não sei. E para ser sincera, não ligo. Eles nunca ligaram.
— Você… você… como assim, Angelina? Eu… eu não entendo o que
está querendo dizer com isso.
— Então me permita te esclarecer. — É mais do que me ofereceram a
vida toda. Estou sendo benevolente. — Enquanto vovó Angelina estava no
hospital fazendo uma cirurgia no coração, Savannah estava com um colega
de turma do Francis no meu quarto, se agarrando como dois amantes fazem.
Francis achou que fosse eu e me odiou por dois anos inteiros e fez da minha
vida um inferno quando me mudei para cá. E sabe a pior? Sua mulher só se
preocupou em me pedir para guardar segredo sobre seu casinho
extraconjugal e não em me pedir desculpas.
Não escuto sequer a respiração do meu pai. Penso que ele vai desligar,
quando finalmente volto a ouvir sua voz.
— O… não… Savannah não faria isso… você…— meu pai está
ofegante. Muito ofegante. Quase como eu fico durante uma crise. Escuto
chiados na ligação, sons de unhas na pele e dedos passando violentamente
pelos cabelos. Pela primeira vez desde o início da ligação e talvez na vida,
sinto preocupação em relação a ele.
— Pai?
Ele não responde por um tempo e um gelado se apossa da minha
espinha.
— Estou aqui — ele arqueja, o ar saindo de seus pulmões com
sofreguidão.
— Não acredita em mim, não é?
— Eu… eu não sei no que acreditar. Isso parece… parece loucura.
Parece um pesadelo, Angelina. Sua mãe… ela não é fácil, mas ela não seria
capaz de fazer isso comigo. Não posso acreditar que a mulher que passei
minha vida, estava me traindo. É… é um pesadelo. É isso. Um pesadelo —
escuto seus passos pela casa. Louis sempre teve essa mania. Andar pela
casa. Sem parar. O tempo todo. De madrugada inclusive.
— É, é um pesadelo. — Confirmo, o gosto venenoso da vida passeando
na minha língua. — Mas pesadelos se tornam reais.
— Não — ele diz em súplica. — Deve haver uma explicação.
— Se eu fosse você, não buscava por uma. — Rio com escárnio. — Eu
fui buscar um exame para confirmar um câncer e sai com uma confirmação
para gravidez. Qual o melhor? Talvez a segunda opção. Mas quem sabe...
— Dou de ombros, sentindo-me suja pelas palavras.
Donna arranca o celular da minha mão e me dou conta da merda que
acabei de fazer. Arregalo os olhos, encarando seus pés.
Merda, merda, merda…
— Você está grávida, Angelina?! E que porra é essa de câncer? — Don
diz com um fio de voz.
Uma lágrima escorre sem sentido no meu rosto. Assinto. Assinto e rezo
para um buraco se abrir sob meus pés. Quero me esconder. Quero não
existir agora.
— Puta merda — ela exclama.
É, Don. Puta merda nem começa a explicar. Mas já que joguei a merda
no ventilador, não adianta tentar abafar com purificador de ar. É melhor
explicar porque fede tanto.
Essa é a pior metáfora que já pensei. Mas reflete bem.
— Liga para o seu irmão — digo a Donna. E vejo minha amiga sem
palavras como nunca antes.
 

 
 
Eu já desconfiava que tranquilidade e paz fosse ser algo precário nos
dias que se seguissem, eu só não imaginava que precisaria ouvir um sermão
da minha irmã. Normalmente, é ela quem merece um e não o contrário.
O pior de tudo é que Angelina e eu ouvimos tudo calados e
conformados. Não sei se por concordar com o que Donna fala, ou
simplesmente porque não temos força o suficiente para contestar nada.
Estamos cansados.
— Como você pôde esconder algo assim de mim? — Don praticamente
sacode os ombros de Angelina. Uma Angelina apática e esbranquiçada
como giz. — Você achou que estava com leucemia e não me disse nada!
Encolho os ombros só de pensar nessa possibilidade. Nossa situação não
é das melhores, mas com certeza é um alívio tirar esse peso das costas.
Imaginar que Angelina pudesse ter câncer foi a pior coisa que já senti em
toda minha vida. E olha que já senti coisas ruins o suficiente.
— Não estou com câncer, então essa discussão é inútil — Angelina tenta
argumentar, mas minha irmã está irredutível. Eu a compreendo. Quando
soube que Angie me escondeu essa informação, foi como se me cortassem
com navalhas cegas.
— Não, não está com câncer, mas está grávida! — Donna grita.
Angelina se retrai. Eu também.
A palavra assusta mais que o grito. Grávida. Ainda não sei o que fazer
com essa informação.
Encaro meus próprios pés, segurando a mão de Angelina ao meu lado.
Não sei precisar em que momento tomei seus dedos para mim, mas o fato é
que não conseguimos soltá-los. Ela me aperta quando a conversa fica difícil
e eu aperto a sua quando penso que estou prestes a desmaiar de novo.
— Você! — Donna aponta o dedo na minha cara e sou obrigado a fitá-la.
Os olhos pretos agora estão envoltos de chama vermelho sangue. — Você
sabia disso? Sabia que ela estava pensando que tinha leucemia?
Respiro fundo.
— Soube apenas noite passada, Donna. Você não foi a única no escuro.
— E sobre a gravidez?
— Apenas hoje cedo, assim como Angelina…  Nesse ponto estávamos
os dois no escuro.
Um tapa.
É isso que recebo quando acabo de falar.
Arregalo os olhos para Donna, que começa a me desferir golpes sem
qualquer piedade. Solto a mão de Angelina exclusivamente para proteger o
rosto.
— Você engravidou minha amiga na faculdade! Como você pôde fazer
isso? — minha irmã vocifera com a força de uma multidão. E ela é forte.
Porra, muito forte. — Seu babaca, otário, palhaço, energúmeno…
Ela continua achando nomes nada legais para me chamar e eu continuo
recebendo seus tapas. Angelina não faz nada para interrompê-los e pela
forma como um sorrisinho brinca no canto dos lábios dela, diria que estaria
me batendo se Donna desse espaço. — Você sabe o que fazer agora? Você
estragou a vida dela. Angelina tinha sonhos! Ela não queria ser mãe agora!
Cansado de ganhar bofetadas, seguro os pulsos de Donna, erguendo-me
do colchão. Uso minha altura superior para evitar que ela continue me
acertando.
— Eu sei que fodi com tudo, mas me bater não vai deixar a Angelina
menos grávida, Donna. Já foi, já era, não adianta reclamar agora. — Ela me
fuzila com os olhos possessos e retribuo na mesma medida. Donna acha
que estou exultante com isso também? Ela acha que estou curtindo a
notícia? Porque novidade: não estou. — Eu sei muito bem que Angelina
tinha planos e sonhos, assim como eu os tinha. Mas não se preocupe,
porque o que tiver ao meu alcance fazer, nada atrapalhará Angelina de
realizar os dela.
Os meus, já dei como caso perdido.
A natação está perdida, eu sei. Talvez seja bom menos um peso para
carregar. Menos uma coisa para fazer. Não posso ficar brincando de atleta
enquanto Angelina carrega um filho meu. Preciso encontrar um emprego.
Preciso dar um jeito de concluir a faculdade mais rapidamente. Preciso da
droga de uma saúde mental… são tantas coisas que preciso, que me canso
só de pensar.
Solto as mãos de Donna quando ela para de tentar me bater e me sento
novamente na cama. Angelina pede minha mão no mesmo instante.
Vamos fazer dar certo. Eu vou fazer dar certo. Não sei como, mas vou.
Donna se joga em sua cama, com as mãos na cabeça. Ela está surtando,
imagina se estivesse no nosso lugar. Angie e eu estamos catatônicos demais
para esboçar essas reações, mas se pudéssemos, estaríamos jogando fios de
cabelo pelo quarto.
— Alguém sabe disso? — ela pergunta. — Sobre a gravidez?
— Jayden sabe — respondo.
— Por que ele sabe e eu não?!
— Porque ele estava no hospital quando tivemos a notícia — Angelina
explica dessa vez.
— Então Isabela também sabe?
Negamos com a cabeça. Ao menos Jayden falou que não diria nada
enquanto não revelássemos. Não sei se queremos revelar isso. Parece que
torna mais real.
Isso se ela mantiver a gravidez — minha mente me lembra.
Não sei o que penso a respeito do aborto. Sou a favor dele, em absoluto.
Só não sei o que pensaria nesse caso específico. Como eu me sentiria? Bem,
mal, aliviado, triste? Não sei. E duvido que Angie saiba também.
— Vocês sabem que estão na merda, né? Isso vai destruir a vida de
vocês. Tudo que planejaram, todos os sonhos… já era.
Franzo o cenho. Angelina aperta meus dedos.
Não sei se gosto da forma como Donna fala.
Ok, gravidez agora realmente não foi algo que esperávamos, mas
quantas pessoas engravidam na faculdade e conseguem sair bem nisso? É
meu caso e de Angelina? Não sei, mas prefiro acreditar que temos uma
chance de fazer isso dar certo. Acabar com as esperanças e expectativas da
vida de Angelina não é uma culpa que estou disposto a carregar.
— Não. — Angie nega com a cabeça, falando firme pela primeira vez
desde que descobrimos o resultado do exame. — Minha vida não está
destruída. Não ainda. — Ela se vira para mim com a expressão petrificada.
— Desculpa, mas não sei se posso fazer isso. Não sei.
Meu sangue gela. Um arrepio macabro contorce minhas entranhas.
Mantenho a expressão neutra. Não sei se quero ouvir o que ela tem para
falar.
— Quero ver as opções de adoção — ela solta finalmente.
Pisco.
Minha garganta fecha.
Meu coração urra.
Ele urra uma única palavra, uma que preciso trincar os dentes para não
sair pela minha boca. Ele urra “não”.
Não, porque eu fui abandonado.
Não, porque fui colocado para adoção.
Não, porque eu carrego isso na minha mente todo maldito dia,
perguntando-me por que não fui o suficiente para minha mãe me querer.
Não, porque quero muito saber o motivo pelo qual ela não me amou o
bastante.
Não, porque não vou suportar a culpa de fazer o mesmo.
Sinto o olhar de Donna sobre mim. A ignoro. Ignoro os latidos do meu
coração, o tamborilar da minha mente e tudo aquilo que me faz renegar essa
opção.
— Vamos começar a pesquisar os trâmites, então — é tudo que digo.
Fito o olhar ansioso de Angelina e ele se suaviza com minha resposta. Estou
sangrando. E vou sangrar pelo resto da vida por essa escolha. — Você tem
meu apoio.
Eu só não sei o que farei para me manter em pé depois disso. Porque
Angelina pode um dia me perdoar pelo que fiz no passado. Mas eu nunca,
em hipótese alguma, vou me perdoar em entregar meu filho para adoção.
Tudo que posso esperar, é que ele encontre o que eu busquei minha vida
toda e nunca encontrei: um motivo altruísta por trás.
 

 
Seguro o telefone em mãos, apertando o aparelho com dúvida. Mal
dormi de noite, pensando em tudo que precisarei fazer de agora em diante.
Eu sei que Angelina optou pela adoção, mas até lá, ela precisará de
cuidados, de suporte, de alguém que possa segurar as pontas caso o mundo
desmorone. Além disso, a adoção pode demorar, não é? Pode ser que levem
meses até que encontremos um casal a altura. Essas coisas são demoradas.
É, isso pode demorar muito, então preciso estar pronto.
Preciso de um emprego. E por isso, faço a ligação. Levo o telefone à
orelha, balançando a perna fora da cama.
Jayden atende no quarto toque.
— Alô? — ele atende desconfiado. Não temos o número um do outro
salvo, tive que pedir ao Ethan. Ele ficou curioso sobre o motivo, mas ainda
não contei para ele da gravidez de Angelina.
— Oi. — Limpo a garganta. — É… é o Francis.
Faz um minuto de silêncio.
— Oi… não esperava uma ligação sua.
— Nem eu esperava te ligar um dia. Mas estou desesperado e preciso de
ajuda.
— Imaginei que só um desespero fosse te fazer pedir minha ajuda.
— Você é um dos únicos que sabe sobre Angelina. Então também é o
único a quem posso recorrer agora.
Merda, estou odiando isso. Jayden definitivamente é a última pessoa
com quem quero contar, mas é minha única alternativa e não posso pensar
apenas em mim agora.
— Claro — Jayden suspira. — É uma situação foda, cara.
— Nem fala.
— Espero que esteja dando apoio para Angie. Ela vai precisar.
Quero mandá-lo à merda por tentar me dizer o que fazer a respeito de
Angelina, mas contenho minha boca.
— É por isso que estou te ligando. Sei que você faz alguns bicos fora do
campus e preciso de um emprego.
Novamente, um silêncio se instala.
— É, eu faço alguns serviços em lanchonetes e pubs. Não é nada muito
glamuroso, não sei se vai gostar.
Não posso deixar de notar a alfinetada em sua fala. Jayden acha que sou
um filhinho de papai metido. Ele não poderia estar mais enganado sobre
mim, só que não me incomodo em alertá-lo disso. Não me importa o que
pensa de mim, desde que me ajude a arrumar um emprego.
— Só preciso de um emprego. Não ligo para onde, desde que pague
razoavelmente bem.
— Seu pai não pode te ajudar? — novamente, uma crítica não tão
velada assim.
— Meu pai não tem nada a ver com isso, sou eu que preciso lidar com a
situação.
— Mas ele tem dinheiro, você não precisa se preocupar com nada.
— Você falou certo, meu pai tem dinheiro e não eu. E pelo que eu saiba,
quem engravidou Angelina não foi ele.
Não tento esconder minha grosseria. Esse filho da mãe sequer me
conhece para achar que vivo esbanjando o dinheiro do meu pai. Foi uma
péssima ideia pedir ajuda para ele, só podia estar ficando maluco.
— Quer saber, esquece que te liguei — faço menção de desligar a
ligação e Jayden me chama antes que eu o faça.
— Espera! — ele suspira. — Foi mal… não devia ter sugerido nada
assim.
Arqueio a sobrancelha. É a primeira vez que ele se desculpa por falar
algo equivocado sobre mim.
— Tanto faz — desdenho.
— Eu posso ver com o gerente da lanchonete onde trabalho se ainda
tem vaga. Você está livre em que período?
De madrugada? Faço careta. Não estou livre período nenhum, não sem
retirar os estudos ou os treinos da minha rotina. O segundo é o mais sensato
a se fazer. E o mais justo. Angelina terá de parar com os treinos em algum
momento e não é certo que apenas ela abdique de uma parte sua.
— Pela tarde, depois das 14h.
— Ok. Vou falar com ele.
— Obrigado.
— E, Francis?
— O quê?
— Não fode com tudo. Angelina não precisa de mais problemas.
— Não é da sua conta. Mas não vou foder com tudo.
Desligo antes que eu acabe o mandando a puta que pariu. Principalmente
quando sei que a preocupação dele tem fundamentos. Meu histórico de
foder com tudo me condena.
 

 
Minhas mãos suam enquanto espero meu pai no aeroporto. Agora penso
que foi uma má ideia chamá-lo para cá, mas eu não tive coragem de contar
por telefone. Não faço ideia de qual será a reação dele, nem sobre a
gravidez e muito menos sobre a adoção. Não que ele tenha que dar uma
opinião sobre isso, mas eu quero saber ainda assim. Eu vou decepcioná-lo.
Sei que sim. Meu pai fez de tudo para que minha vida fosse brilhante e eu
consegui estragar cada parte disso.
Robert sai do portão de embarque apenas com uma pequena mala de
mão. Eu devo ter deixado o velho doido com aquela ligação. Nem me
lembro o que disse, só sei que implorei para estivesse aqui o quanto antes.
Ele só conseguiu um voo para esta madrugada, então ficou um dia todo sem
saber o que infernos acontecia por este lado do país. Para minha surpresa,
atrás do meu pai, outro conhecido desembarca.
O pai de Angelina.
Puta merda. Esqueci completamente de que Angelina me contou que ele
já sabia de tudo.  Então meu pai já sabe? Pelas suas expressões sérias, é
quase certeza que sim. Porra…
Nunca soube o que pensar de Louis, ele sempre foi um cara quieto, na
dele, sociável com os clientes, mas completamente tedioso e silencioso com
os demais. Não sei se por Savannah roubar a atenção para si, como a boa
narcisista que é, ou se realmente o pai de Angie é um homem de poucas
palavras. Ele nunca se opôs diretamente à minha relação com sua filha, mas
de igual forma, nunca se mostrou animado e apoiador. Ele é uma eterna
incógnita.
— Pai! — Ergo a mão para que me veja e ele caminha até mim,
acompanhando do meu sogro. Ex sogro. Sogro. Porra, eu não sei o que
Angelina e eu somos, então vou mantê-lo no posto de pai da garota que eu
engravidei.
Robert larga a mala no meio do caminho e me puxa para um abraço.
Escondo a careta de dor por ele encostar no meu machucado do ombro.
Fico surpreso com o abraço, sua expressão não está das melhores. Mas
surpreso ou não, o abraço de volta, sendo por mais algum tempo um cara
que pode buscar conforto nos braços dele. Não dá para isso continuar agora
que o pai serei eu.
Você não será pai.
Angelina optou pela adoção.
Você não será nada.
— Você já sabe? — murmuro com o coração apertado.
— Louis me contou.
— Não sei como isso foi acontecer.
— Acho que você sabe sim.
— Não foi isso que quis dizer. — Afasto-me dele, notando pela primeira
vez seus olhos avermelhados. Ele está decepcionado. — Sinto muito.
Meu pai balança a cabeça, dando de ombros.
— Essas coisas acontecem, Francis. Não estou feliz com isso, assim
como imagino que você e Angelina também não. Mas filhos acontecem. É
natural da vida, não adianta eu chegar aqui, gritar com vocês e falar que
fizeram cagada, porque não vai reverter a situação e nem ajudar.
Essa é uma opinião só do meu pai.
Porque Louis afasta Robert com uma mão e com a outra, acerta um
murro no meu nariz, que me faz cair no chão do aeroporto.
Não conheço muito do cara, mas seu gancho de direita é excelente.
 

 
 
Eu estava no meio da aula quando recebi uma ligação. Não costumo
atender números desconhecidos e muito menos durante uma aula. Mas
quando Donna recebeu uma ligação do mesmo número, eu senti que
precisávamos atender. Gostaria de estar errada.
Nós mal desligamos e tivemos que correr para a delegacia. Meu pai,
Francis e Robert foram presos. Eu achei que fosse alguma espécie de
pegadinha, mas infelizmente não era. Por sorte, os tios da Blue, que são
amigos de Robert, tinham contatos de bons advogados e estavam livres para
nos acompanhar até a delegacia na Mission Rock Street.
Teria sido engraçado, se não fosse completamente trágico o fato de
estarem os três com olhos roxos e lábios cortados. Francis está tendo brigas
demais para um ano inteiro, ele mal começou a se curar da briga na boate e
já se mete em outra?
Voltei no carro com o casal Hale, Blue e meu pai. Donna foi dirigindo o
carro do Francis, com ele e Robert de carona. Não quisemos correr o risco
de colocá-los no mesmo espaço e acontecer outra confusão. Não sou burra,
sei muito bem porque isso aconteceu. E se a narrativa dos fatos que escutei
entre uma conversa e outra na delegacia, meu pai começou a confusão. Ele
socou o Francis, Robert ficou possesso e retribuiu o gesto e tudo que se
seguiu é uma ordem cronológica de violência e masculinidade sem fim.
Estou puta da vida. Por que homens acham que podem resolver cada
maldita coisa com os punhos? E por que Louis achou que tinha direito de
bater em Francis? Por que ele me engravidou?
Bom, ele deveria dar graças a Deus que sequer tem uma filha para estar
grávida, graças ao cara que ele socou. Porque se não fosse Francis me
salvando do afogamento, ele teria a casa inteira para ficar sozinho com
minha mãe. Francis fez mais por mim ao longo dos anos do que meu
próprio pai em toda sua vida. Ele nem deveria ter vindo para cá, com
certeza não o convidei. E torço veementemente para que tenha mantido sua
boca fechada para Savannah. Não posso suportar seus gritos e absurdos
agora. Ou serei eu que irei presa dessa vez.
— Que fofoca quente — Blue comenta do banco do passageiro. Ela
parece se dar bem com os tios, ao contrário do que se dá com o filho deles.
Vance fala muito mal dos pais, mas até o momento eles me pareceram bem
decentes.
— Pelo amor de Deus, não ache graça disso. Eles se engalfinharam
como três cães — repreendo.
— Vai me dizer que não está curiosa para saber o motivo.
Faço careta.
— Eu sei o motivo, por isso não estou achando nada engraçado. —
Aperto o volante, fazendo uma curva sem muita preocupação em reduzir a
velocidade. Os passageiros do carro são jogados de um lado para o outro,
mas nenhum reclamou comigo até agora. Meu pai, principalmente, está
mudo como se um esparadrapo estivesse na sua boca. Eu agradeço, porque
no momento não quero ouvir sua voz. Não quero sequer ver seu rosto.
Estaciono em uma vaga no estacionamento do campus e Donna
estaciona a uma distância segura de mim. Acho um exagero, mas talvez seja
bom não dar brecha ao azar. Eu comprovei da pior forma que coisas raras
gostam de acontecer comigo. Blue me encara confusa e faço um gesto com
as mãos, indicando que depois explico. Vou ter que explicar a todo mundo
mesmo… ainda que eu esteja pensando em adoção, eles vão notar uma
barriga enorme em mim, não dá para fingir que nada está acontecendo.
Francis vem na minha direção com um algodão preso ao nariz,
avermelhado do sangue que ainda escorre. Meu pai tem um belo soco, ao
que parece.
— Acho que não começamos muito bem. — Toco seu rosto. Francis
recua, claramente dolorido.
— Não dá pra tirar a razão do seu pai. Eu te engravidei na faculdade. —
Dá de ombros.
— Claro que dá pra tirar a razão dele. Meu pai nunca se importou com
nada que acontecesse na minha vida e agora quer sair por aí socando as
pessoas que eu gosto?
Um sorriso toma conta dos lábios do Francis instantaneamente.
— Então você gosta de mim? — Ele balança as sobrancelhas. — Eu
sabia que essa raiva era tudo fachada.
Reviro os olhos.
— Você é terrível! — Bato em seu peito. — Eu aqui falando sério e você
fazendo gracinha.
— Eu posso me deitar aqui no chão e chorar por ter levado um soco do
seu pai, mas estou fazendo melhor e paquerando a filha dele.
— Chama isso de paquerar? — Seguro a risada. — Você está precisando
se atualizar.
— Cala a boca, eu te engravidei, isso atesta que sou ótimo com paquera.
— Não se vanglorie disso, Francis Thomas Hopkins! — Tento conter a
gargalhada, mas é impossível não rir. É bom que ele consiga achar graça de
algo nessa situação, porque tudo que vejo é pavor.
Bom, não é ele que vai ficar com uma bola de boliche na barriga…
— Será que vocês podem me contar a piada? Quero rir também. — Blue
coloca as mãos na cintura, batendo o pé no chão. Francis e eu nos
encaramos e voltamos a olhá-la com sincronia. Donna não foi fácil e eu não
faço ideia de qual será a reação da Blue. Eu sei que não deveria me
importar com o que vão pensar disso, já que só diz respeito a Francis e eu,
mas… meus amigos são importantes para mim. Levei muito tempo para
conseguir fazê-los e o mínimo que posso é lhes oferecer a verdade.
— Estou grávida — solto na lata e Francis tosse, me olhando perplexo.
— Que foi? Não adianta enrolar.
— Hahaha, como vocês são engraçados — os olhos verdes se reviram na
órbita. — É sério, qual a piada? — Blue ironiza.
Franzo o cenho. Eu já disse. Muito embora isso não seja nem de longe
uma piada. Blue continua nos observando, esperando por alguma resposta
diferente. Francis e eu permanecemos sérios. A expressão irritadiça dela,
passa para chocada em segundos.
— Ah, meu Deus! Vocês não estão brincando… — Blue deixa a bolsa
cair no chão. — Como isso aconteceu? Quando foi que transaram que eu
não fui informada?
Comprimo as sobrancelhas.
— A gente tem que passar o itinerário sempre que transa? — questiono a
Francis.
— Essa é novidade pra mim também — ele resmunga. — E só para
esclarecer, Angelina está grávida desde novembro do ano passado.
— Ah, garota, engravidou na sua primeira vez? — ela guincha, falando
alto demais.
— Fala baixo, cretina! — olho para os lados, agradecendo pelo
estacionamento estar vazio. É claro que está, os alunos estão na sala de
aula, enquanto eu estou aqui, buscando meu ex namorado na cadeia, junto
com meu pai e meu ex sogro, esclarecendo para minha amiga sobre minha
gravidez não planejada. Se algum dia eu vivi em rotina, sequer me lembro.
Mas tenho saudade.
— Desculpe! — Ela cobre a boca com as mãos. — Espera… é por isso
que seu pai deu um soco nele?
— É.
— Merecido — Blue encara Francis enfezada. — Eu também estou com
vontade de te socar. Nunca ouviu falar de camisinha, babaca?
— Ah, vai caçar alguma coisa pra fazer, Blue! — Francis ergue os
braços, indo na direção do pai, que conversa com os Hale.
— Nossa, a grávida é você e é ele que fica com os nervos à flor da pele?
— debocha, balançando a cabeça.
— Você consegue ser bem irritante quando quer. Não precisa estar
grávida pra isso.
— Ei, não fica brava comigo não. Se eu pegar terçol, acabo com a raça
do nadador.
— Não deveria ser com a minha?
— Não, você tá grávida. Não sou um monstro. — Blue leva as mãos ao
coração.
— Dá pra parar de dizer que estou grávida?
— Desculpa, mas é meio impossível. Você está.
— É, mas eu acabei de descobrir isso, não estou nada feliz e não é como
se Francis e eu fôssemos criar o bebê.
— Espera… — Blue ergue a mão. — Como é?
Respiro fundo. Chegou a parte que eu não queria. Ter que me explicar.
— Nós estamos pensando em adoção.
— Vocês dois? — As sobrancelhas delineadas se arqueiam.
— Sim.
— Desculpe, mas eu duvido que Francis esteja pensando nisso.
— Como assim? — digo um tanto irritada.
— Ele se sente um merda todos os dias porque foi adotado. Acha que
não foi o bastante para a mãe dele, que ela não o amou. E aí agora ele quer
colocar o filho para adoção? Difícil de acreditar.
Aperto as mãos. Blue pode ser amiga dele, mas não pode achar que o
conhece mais do que eu. E muito menos que sabe algo que ela sequer estava
presente.
— Então pergunte a ele se for mais fácil de acreditar.
A deixo sozinha no estacionamento, entrando no meu carro novamente.
Dirijo até o prédio dos dormitórios sem me dar ao trabalho de saber onde
meu pai vai ficar. Quero que todos se explodam com suas opiniões sobre a
minha vida.
 

 
Saio do banho com o banheiro tomado por vapor. Eu estava precisando
de um banho relaxante. Já perdi as aulas mesmo, ao menos tenho tempo
para descansar antes de ir para a biblioteca. Eu devo avisá-los sobre a
gravidez? Não vou poder trabalhar nos últimos meses. Ou posso? É só repor
livro…
Esfrego o rosto, ainda querendo acordar. Encaro meu reflexo no espelho
e volto minha atenção para a barriga. Não dá pra ver nada ainda. Era pra
dar? Tenho algum problema? As pessoas costumam ter uma barriguinha
agora, né?
— Ei! — cutuco minha barriga. — Você tá bem aí?
É estranho, porque eu meio que espero uma resposta.
— Eu preciso te explicar uma coisa… não posso ficar com você —
sussurro baixinho. — Mas é para o seu bem, ok? Eu não tenho cabeça para
ser mãe agora. Não sei como ser uma. Eu não tenho um exemplo muito
bom disso. O Francis tem um exemplo maravilhoso de pai, mas ele também
não tem muito juízo para ser um. Nós somos despreparados. Seríamos
péssimos pais. Acredite, seríamos mesmo. — Suspiro. — Então… é isso.
Você não vai ficar com a gente, mas vamos achar um casal que vai cuidar
bem de você.
Engulo um nó esquisito na minha garganta.
— Acho que você concorda, né? Com certeza se pudesse entender,
preferiria assim.
Limpo a garganta, fitando meus olhos. Por que eles estão vermelhos? Eu
não quero chorar. Não teria porque chorar. Estou fazendo a coisa certa. Por
mim, por Francis e por esse bebê. Devem ser os hormônios. Por isso eu
estava tão instável ultimamente.
Balanço a cabeça, rindo de mim mesma. Nunca me passou pela cabeça
uma gravidez. Nem por um segundo, eu cheguei a imaginar que tudo que
vinha sentindo era por isso. O que me lembra que terei de fazer exames.
Não sei se quero pessoas me tocando, nem mesmo Robert. Donna e Francis
podiam muito estar formados, isso me pouparia um bocado.
Pego o secador para tirar o excesso de água dos meus cabelos, já que
ficar gripada não é uma boa opção agora. Ao ligá-lo na tomada, não faz
barulho nenhum, muito menos vento. Tento em outra tomada e ainda nada.
— Droga, mas será que nada pode funcionar como se espera? Primeiro
uma camisinha que não impede gravidez e agora um secador que não seca?!
Alguém bate na porta do banheiro.
— O que foi?! — vocifero hiperventilando. Uma garota não pode ter um
minuto de paz?
— Angelina, sou eu — Don diz com uma voz apaziguadora.
— O que você quer?
— Eu posso entrar?
Abro a porta para ela, cruzando os braços em seguida.
— Nossos pais querem conversar com você e Francis.
— Agora querem conversar? Mais cedo pareciam mais dispostos a se
esmurrar.
— Olha, eu não tenho nada a ver com seu estresse, não precisa me
engolir.
— Por muito menos você sai por aí mordendo os outros, então não me
enche!
Donna morde a boca. Ela quer rir? Por que ela quer rir? O que tem de
engraçado nisso?
— Meu irmão tem razão, você fica uma gracinha quando tá nervosa.
— Donna Hopkins, a única coisa que seu irmão tem razão, é que ele só
faz uma merda atrás da outra.
— Não chama meu sobrinho de merda, Angelina!
— Você não tem sobrinho, Donna! — Viro de costas para ela, segurando
na bancada da pia. Senhor, me dê alguma paciência, porque sou capaz de
agredir alguém. Todo mundo já foi parar na cadeia hoje, é minha vez.
— Ok, eu não vou insistir nesse assunto de adoção. Mas eu acho que
vocês estão tomando decisões precipitadas.
Arranco o secador da tomada, saindo do banheiro. Ela também deixou
sua opinião depois que falei para o Francis da adoção. Eles não entendem
que não podem falar nada, porque são nossas vidas em jogo?!
— Ei, não precisa me bater com isso! — ela ergue os braços para se
defender do secador.
— Não estou indo te bater, estou indo me encontrar com nossos pais e o
seu irmão.
— Com o secador?
— Ele estragou, então espero que eles façam o que homens fazem e
consertem isso.
— O Francis não sabe nem trocar lâmpada queimada e o máximo que
meu pai faz é consertar gente, não eletrodomésticos.
— Então eles que comecem a aprender.
Saio do quarto, batendo a porta com força. Por acaso esses cretinos só
servem pra bagunçar nossa vida e não arrumar nossos secadores quando
eles queimam?
Inúteis!
 

 
Meu pai e Robert nunca foram amigos. Eles não tiveram nenhum
desentendimento ao longo dos anos como nossas mães, mas definitivamente
não eram amigos. Chegaram no máximo a ser bons vizinhos.
Essa foi a primeira vez que eles chegaram a ser agressivos um com o
outro.
Agora, vê-los sentados lado a lado, com olhos inchados, encarando
Francis e eu, é um pouco cômico. A verdade é que essa história toda seria
uma grande piada, se não fosse uma grande verdade fodida.
— Vocês sabem que muitas coisas vão mudar. — Robert apoia os
antebraços nas pernas.
— Tudo — meu pai interfere. — Tudo vai mudar.
Ouço uma lufada de ar. Não sei se vem de Francis ou de mim mesma.
Eles pensam que somos burros? Nós sabemos que tudo vai mudar, será que
precisam dizer isso a cada maldito segundo?
— Vocês terão nosso apoio, é claro — Robert volta a falar e sinto
vontade de vomitar. — Tudo que estiver ao nosso alcance ajudar, faremos.
Não é, Louis?
— Esse não é o futuro que eu esperava pra minha filha, eu queria que ela
se formasse antes de formar uma família, mas nós temos condições de
ajudar vocês.
Engulo a bile.
— Claro que vamos. — Robert se dirige a Francis. — Eu sei que você
não vai aceitar nossa ajuda sem fazer nada, então vou falar com uns amigos
meus aqui da cidade e com certeza eles vão te dar uma vaga para estágio.
Assim você não precisa parar com os treinos e nem com a faculdade. Será
um salário não muito significativo, mas que você pode guardar na poupança
para o bebê, porque assim não se sentirá mal.
Dessa vez, acho que é Francis que engole a bile. O encaro pesarosa,
porque sei que ele não está gostando dessa conversa tanto quanto eu, mas
ele nunca vai contrariar seu pai. Robert sempre foi um cara bom demais,
nunca precisou que Francis fosse contra ele, e eu duvido que se precisar,
tenha coragem. Ele não enfrentou nem mesmo Leonor… Robert seria muito
mais difícil. Eu não ouso criar expectativa que ele vá contra algo que seu
pai diga. Isso ficará comigo.
— E nós vamos ver um lugar para vocês morarem, porque não dá para
você ficar nos dormitórios de agora em diante, precisa estar sempre perto de
um hospital para o caso de uma emergência, com certeza têm casas ou
apartamentos bons por perto — meu pai tagarela olhando para mim e eu
começo a ver dois dele. — Vamos achar uma médica para você também, o
Robert deve ter algumas indicações para fazer e já vamos pensar também
no parto, que provavelmente você vai querer uma cesariana por ser menos
dolorosa, principalmente por causa do seu problema. Assim será uma coisa
rápida, sem dor e você terá o apoio da sua família durante o resguardo. É
bom que já vejam a possibilidade de saber do sexo do bebê, para
começarmos a fazer o enxoval…
Cesária? Problema? Enxoval?
Céus, alguém me tira daqui. Minha saliva virou cola dentro da boca, não
consigo gritar para eles enfiarem suas línguas na bunda, porque não têm
absolutamente nada a ver com o que estão propondo. Isso são coisas que eu
vou decidir, não eles. Encaro minhas mãos, sem coragem de fitar o homem
calado ao meu lado. Eu queria que Francis pudesse ter voz agora.
— E quando vocês terminarem a faculdade, claro que podem voltar para
Cape May, afinal eu tenho a clínica por lá, o que vai ser mais fácil para o
Francis começar a carreira e Angelina pode abrir seu próprio negócio,
talvez uma livraria, se assim desejar. O bebê vai estar perto da família,
então vamos ajudar vocês a cuidar enquanto trabalham. Podemos revezar os
dias. — Robert continua a falar. — Vejam bem, não é o ideal, não é o que
sonhamos pra vocês, definitivamente, mas não vamos deixar que sofram
mais do que o necessário. Resolveremos tudo o que for possível para vocês
e não terão que se preocupar com nada…
— CALADOS! — Francis bate as mãos no sofá, levantando-se em um
impulso. Dou um pulo com seu rompante, arregalando os olhos. Nossos
pais à frente têm a mesma reação. Robert parece petrificado.
Um silêncio esquisito se forma na sala e desvio atenção para o nadador,
que hiperventila encarando de frente nossos pais.
— Francis… — Robert começa, mas é interrompido.
— Eu disse: calados. Os dois. — Nunca, em toda minha vida, o vi falar
assim com o pai. — Com todo o respeito que vocês merecem, estou apenas
pedindo que fiquem calados, porque mais uma palavra dessa grande merda
que estão falando, eu vou dizer mais coisas que a decência não
aconselharia.
— Escuta, garoto — Meu pai se levanta e Francis dá um passo à frente.
— Senta — ele diz cada letra lentamente e a ordem está explícita e clara.
E por incrível que pareça, meu pai se senta. — Vocês acham que vão chegar
aqui e decidir tudo que vai acontecer com nossas vidas? Ou melhor, com a
Angelina? Eu lidei com essa merda minha vida toda e estou mais que
habituado em receber opinião não solicitada e decisão sobre o meu futuro,
mas eu não vou permitir que façam isso com ela. Caso não tenham
percebido, ela está grávida, não emburreceu. Ela sabe decidir e sabe falar,
então parem de agir como se tivessem uma bonequinha com problemas na
frente de vocês, porra!
— Filho, me escuta, nós não…
— Pai. Eu estou falando agora, então vocês vão escutar.
Meu coração acelera. E não de um jeito ruim. Ele acelera de orgulho.
Porque sim, eu tenho orgulho do homem que está à minha frente, com o
peito estufado e o queixo erguido, não dando brecha a ninguém para se
intrometer nos nossos assuntos. Era essa a atitude que eu esperei dele meses
atrás, quando não acreditou em mim. Era essa certeza em nós, que eu
esperei. Cutuco minha barriga e sussurro:
— Ei! Serzinho. Eu estava enganada sobre uma coisa. Francis não seria
um péssimo pai.
— Vocês não conseguem ver o quanto é ridículo tudo que estão falando?
Dois homens, decidindo sobre o pré-natal, gestação, parto e pós-parto de
uma mulher? — Ele ergue as mãos em descrença. — Pai, você pode ter
trazido algumas crianças ao mundo, mas definitivamente você não as pariu.
Você não sabe o quão difícil é e muito menos eu. Nunca saberemos. Então
acho que vamos deixar a decisão para quem sabe e quem passará por isso. E
não sou eu, você ou o Louis. Quem tomará a decisão de cada uma dessas
coisas, é Angelina.
Não sei se inconscientemente, mas a mão de Francis se estica para trás
em minha direção e não hesito em tomá-la para mim e levantar-me para
estar ao seu lado.
— Acham que a gente não sabe que tudo vai mudar? Que nosso tempo
vai ficar escasso, que as pessoas vão comentar, que teremos de abdicar de
parte das nossas vidas? Que Angelina vai ter enjoos, que vai querer arrancar
minha cabeça, que vai ter desejos estranhos de comer abacaxi com feijão,
que vai ficar irritadiça uma hora e na outra chorosa, que vai precisar de
ajuda quando não conseguir ver os próprios pés…
— Onde você viu isso? — Cutuco sua costela.
— Eu fiquei vendo uns relatos de grávidas no Discovery Home and
Health ontem à noite. A propósito, eu descobri que se enjoar da minha cara,
a criança vem parecida comigo, então tenha pena desse bebê e não me odeie
— ele sussurra no meu ouvido antes de voltar a falar com nossos pais.
Mordo a boca para não rir. Esse palhaço arruma tempo para me fazer
perdoá-lo até agora, eu devo admitir que ele é esforçado.
— Concluindo — Francis suspira, voltando a ficar sério. Ele está
adquirindo minha mudança de humor. É contagioso? — Angelina e eu
sabemos tudo que vai acontecer durante a gravidez. E vamos decidir tudo
sozinhos. Nós agradecemos a preocupação e claro que vamos precisar de
ajuda, mas não que tomem a frente por nós. Somos adultos e vamos lidar
com isso como tal. Além disso… — vejo a garganta dele tremular e ele
aperta minha mão. — Nós estamos pensando em adoção.
— O quê?! — Robert se levanta. — Você está pensando nisso? — ele
encara o filho como se visse outra pessoa em sua frente. Por que todo
mundo estranha que Francis possa escolher isso também? É a melhor
opção.
— Nós estamos pensando, pai — ele afirma com a voz impenetrável,
com a postura de um homem que não tem dúvidas do que fala. Mas sua
mão torna-se ligeiramente gelada.
— É uma decisão séria, vocês têm que pensar com calma, para não se
arrependerem — Robert continua olhando para Francis e um vinco se forma
em sua testa. — Vocês sabem melhor que ninguém que eu sou a favor da
adoção, muitas vezes é a melhor coisa a se fazer e o ato de adotar também é
louvável, só quero me assegurar de que vocês não vão sofrer com isso
depois. E eu entendo, filho, o que disse. Peço desculpas por ter tomado a
frente da situação, eu não pensei antes de falar. Vocês têm toda razão de
lidar com isso ao seu modo e, Angelina — ele sorri afetado para mim. —
Perdoe-me pelas bobagens que disse. Jamais quis te invalidar, a decisão
sempre será sua. Foi realmente um erro. Eu só peço aos dois, que por favor,
se informem e conversem com casais que tenham colocado os filhos para
adoção, vocês terão uma visão que eu não posso dar e saberão melhor o que
esperar dessa fase.
— E como fazemos isso? — Abro a boca pela primeira vez nessa
conversa. É uma piada, já que a grávida sou eu.
— Bom, tem fóruns na internet onde você pode procurar, eu tenho
alguns para recomendar. Há também alguns encontros de mulheres, tanto
que optaram pelo aborto, até aquelas que tiveram os filhos ou escolheram a
adoção. Não vou interferir, meu filho tem toda razão em tudo que disse.
Mas se me permitem um conselho, busquem se informar.
Assinto. Isso eu posso concordar.
— Vamos conversar a respeito a sós — Francis fala diretamente ao pai.
Dessa vez, eu aperto a mão dele. Fico grata por não ter deixado nossos pais
assumirem uma coisa que não lhes diz respeito. Por não ter deixado que
passassem por cima de mim com suas opiniões.
Desvio a atenção para meu pai que ficou em silêncio. Ele me encara.
Encara minha barriga.
Limpo a garganta quando ele passa tempo demais me observando.
Quando seu olhar sobe ao meu, vejo que estão marejados.
— Vocês têm meu apoio. Eu queria poder facilitar tudo — ele murmura
com a voz falhada. — Mas têm meu apoio.
Louis se ergue do sofá e estende sua mão ao Francis. Ele fita a mão do
meu pai por um tempo, mas a segura e eles se cumprimentam. A situação
toda é esquisita. Meu pai nunca foi deliberadamente contra Francis, mas
também nunca foi a favor. Louis sempre foi em cima do muro. Nem lá, nem
cá. Nem sim, nem não. Isso me irrita, me deixa confusa e perdida.
— De vocês, nós esperamos apenas que nos deixem decidir e que não
dificultem — falo mais firmemente. — Vocês nos criaram, então devem
confiar na criação que deram.
Apesar que, se for para alguém confiar na minha criação, então esse
alguém é vovó Angelina, que por Deus, vai ter um troço quando eu contar.
— E claro, eu quero que o senhor esteja presente nesses exames que
passaram para Angelina. Ela vai ficar mais confortável com alguém que já
conhece — Francis diz ao pai.
— Sim, por favor — assinto veementemente.
— Será uma honra — Robert sorri para mim. — O quanto antes
fizermos isso, melhor.
— C-claro — gaguejo e Francis passa o braço envolta de mim.
— Prometi estar junto com você nessa, lembra? — ele sussurra em meu
ouvido.
— Lembro.
— Não vou descumprir.
Eu acredito. Por esse momento, eu acredito. Em meus ossos, eu sei que
ele não vai descumprir.
— A propósito — pigarreio, abrindo minha mochila e tirando de lá meu
secador de cabelo — Alguém sabe arrumar essa coisa?
Os três homens me olham com sobrancelha erguida. E eu tenho a
absoluta certeza de que terei que comprar outro.
 

 
 
Toda vez que venho parar nesse mesmo corredor, acabo encarando essa
porta por mais de vinte minutos. As pessoas vão começar a achar que estou
maluco. O que não é inteiramente mentira, eu devo mesmo estar maluco de
voltar aqui.
Bato duas vezes na porta. E meu coração bate ansioso. Odeio essa
sensação, de estar perdendo o controle das minhas emoções. Eu sou bom
em reprimir, mas minha caixinha de aflições sufocadas está cheia demais
para caber mais uma. Ou eu as esvazio do jeito certo, ou esvazio do jeito
errado. E isso quer dizer usar droga. Não vou me enganar, nunca senti tanta
vontade de usar como agora. Fiquei minutos olhando os comprimidos hoje
cedo, cheguei até a abrir o saquinho que eles estavam guardados. E por isso
estou aqui.
— Entre — Doutora Brice grita do lado de dentro.
Solto o ar que prendia, girando a maçaneta.
— Bom dia, Doutora.
Entro com a cabeça baixa, covarde demais para encarar os olhos
avaliativos.
— Bom dia, Francis.
A voz dela não denota nenhuma surpresa. Mas… eu pensei que…
Ergo os olhos para ela e sua expressão também não denota surpresa.
— Não está surpresa por me ver.
— Claro que não. — Ela sorri gentilmente, empurrando os óculos para o
lugar certo.
— Mas na última sessão eu disse que não viria mais.
Ela indica a poltrona para eu me sentar.
— Se todo paciente que eu tenho, de fato não voltasse quando fala que
não irá, eu provavelmente estaria desempregada.
Rio sem graça.
— Isso é porque você é irritante.
Encaro minhas mãos, esperando a resposta afiada de Brice. Mas o que
vem é a sua risada.
— Você está se abrindo sobre como se sente, isso é bom.
— Mesmo que o que eu sinta seja irritação por você?
— Só o que importa é que esteja confortável para dizer o que sente.
— Muitas pessoas te falam que você é irritante, não é? — Estreito os
olhos.
— Pode apostar que sim.
— E não se sente mal com isso?
— Diga-me, senhor Hopkins… a verdade é irritante, não é?
Lá vem ela responder minhas perguntas com mais perguntas. É por isso
que é chamada de irritante.
— Às vezes ela é sim.
— E ainda assim, não deixa de ser verdade. E a verdade, é o melhor
caminho para a felicidade genuína.
— Mesmo quando a verdade dói?
— A verdade dói nos primeiros instantes que é dita. Depois, ela cura. A
mentira, ao contrário, conforta nosso consciente por efêmeros momentos,
mas macula nosso subconsciente a longo prazo.
Comprimo as sobrancelhas.
— Estou confuso. O que isso tem a ver com você não se sentir mal por
ser chamada de irritante?
— Eu não me importo de ser irritante como a verdade, de incomodar em
um primeiro momento, mas curar a longo prazo.
— Hum… — Faço careta. — Já começou cheia de metáfora, né?
— Geralmente ajuda a entender.
— Eu devo ser burro então.
— Você não é burro. Mas é imediatista.
— Alguns diriam o contrário, eu sou bom em esperar.
— Ser bom em esperar não quer dizer que consegue lidar bem com a
espera. — Ela apoia os antebraços nas pernas. — Não é porque sabemos
fazer algo, que sabemos lidar com a carga disso emocionalmente.
— Não importa como eu me sinto em relação a isso, só importa que eu
faça. — Dou de ombros.
— E depois?
Franzo o cenho.
— Depois?
— Depois que você faz o que tem que fazer, o que sobra de você? Como
pode aproveitar os bônus do seu feito, se arcou com todo o ônus emocional?
Vai sobrar algo de você no final das contas, sendo que a todo momento
ignora o que está sentindo?
Comprimo o maxilar, olhando para os lados. Eu detesto as coisas que ela
fala. Detesto porque são verdade. E ela tem razão, a verdade irrita.
— No fim das contas, eu só preciso estar inteiro o suficiente para as
pessoas que importam.
— Não se pode ser inteiro para as pessoas, enquanto você não se sentir
inteiro aqui — ela toca o coração — e aqui — ela toca sua testa.
— Eu consegui até agora.
— Sente de verdade isso? Eu lembro de ter me dito que falha com todo
mundo. Qual a verdade, afinal? Você consegue ou falha?
Aperto minhas mãos.
— Eu tento.
— Isso é bom, Francis. Você tenta. E da mesma forma que tenta para os
outros, faça o mesmo por você.
— E se eu falhar?
— Tente de novo.
— É esse o conselho que tem para me dar? — Rio amargo.
— Eu não estou aqui para te dizer como agir. Estou aqui para que você
entenda que pode agir. Que sempre pode começar de novo. Mas a escolha
dos seus atos, sempre será sua. Essa é a dificuldade de toda pessoa que
deixa sua criança interior trancada. Não vemos as mil e uma possibilidades
que a vida joga em nossa frente. Quando crianças, as brincadeiras nunca
acabavam porque um obstáculo aparecia. Sempre dávamos um jeito de
contorná-lo ou usá-lo a nosso favor, sem transformar tudo em uma confusão
generalizada. Com o passar dos anos e de tanto ouvirmos que precisamos
ser sérios, maduros e adultos, nos vemos na obrigação de ver uma pedrinha
no chão como uma montanha em nossa frente e que devemos
obrigatoriamente escalá-la ao invés de apenas contorná-la.
Suspiro, assentindo.
— Então eu nunca fui uma criança, Doutora. — Limpo a garganta. — Eu
fui ensinado a ver uma montanha desde cedo.
— Então permita-se ser criança agora.
— Não posso.
— Por que pensa assim?
— Porque no momento, tem uma criança no ventre da minha namor…
da minha ex namor… da mulher que eu amo.
Credo, Angelina e eu precisamos resolver nosso status. Está difícil
explicar isso.
— Ah… — pela primeira vez, Doutora Brice fica surpresa. — Ok, isso
realmente me pegou desprevenida.
— Se fosse só a senhora... — Solto uma risada irônica.
— Eu pensei que vocês não estivessem juntos.
— E não estamos. Ela engravidou na época em que estávamos.
— E como estão agora?
— Bom, nós somos amigos... eu acho.
— Por que só acha?
— Porque dormimos juntos algumas noites atrás.
— Mas não conversaram sobre isso, certo?
— Não.
— Por que não?
— Não tivemos tempo. Depois disso, descobrimos a gravidez e pareceu
um assunto muito distante.
— Vocês vão manter a gravidez?
Chegamos ao ponto, Doutora. Quero ver resolver meu problema agora.
— Vamos. Mas ela… quer dizer, nós optamos pela adoção.
— Ela ou vocês?
— Eu disse, nós dois.
— Você hesitou.
Aperto os dentes.
— Não concorda com a decisão dela? — Brice insiste.
— Não cabe a mim decidir.
— Não, não cabe — Ela assente. — Mas não estou perguntando se você
irá decidir e sim se concorda ou não.
Engulo duramente a saliva, que parece ter se tornado pastosa.
— Eu fui adotado, Doutora Brice. — Sorrio falsamente. — O que acha
que eu penso?
— Por que ao invés de eu tentar te decifrar, você não me conta? Como se
sente em ter sido adotado? Se ressente?
Essa é a parte da terapia que ela sempre me faz ter vontade de mandá-la
para a casa do caralho. Tamborilo os dedos no braço da poltrona.
— Não tenho do que me ressentir quanto ao meu pai que me adotou. Ele
é o melhor.
— Mas e sobre seus pais biológicos? — ela empurra onde eu não quero
falar.
— Eles me abandonaram, não me quiseram e não me amaram o bastante.
— Bufo furioso. — Por que eu deveria sequer pensar neles?
— Você pensa?
— Pare de me responder com perguntas.
— Por quê? — ela sorri compreensiva para mim e me levanto.
— Acho que deu minha hora, doutora.
— Pense neles, Francis. É importante que você os perdoe, para também
se perdoar — Brice fala enquanto estou com a mão na maçaneta. Estanco
no lugar, de costas para ela.
— Não sei se consigo perdoá-los. E não sei se vou conseguir me perdoar
também.
— Então seja uma criança, Francis. E como uma criança, procure pelos
caminhos alternativos. Eles sempre existem. Você não tem apenas o “atrás”
e "à frente" para olhar. Procure os lados.
— Vou tentar.
Saio da sala.
 

 
Por incrível que pareça, estou animado para a aula de hoje. Eu não
costumo ficar animado para nada em relação a medicina. Eu não tinha um
motivo para estar. Agora acho que tenho. Não quero ter que recorrer ao meu
pai sempre que quiser saber algo da Angelina. Ele não vai poder ficar aqui
muito tempo, na verdade, seu voo de volta para Cape May está marcado
para amanhã. Não posso simplesmente confiar na opinião de qualquer
médico, eu tenho que saber o básico. Estou há duas noites vendo canais de
grávidas e em um dos programas, presenciei um parto. Que Angelina não
sonhe isso, mas eu agradeço muito por ser ela quem vai parir. Aquele
negócio não é normal, é uma tortura até pra quem assiste. Como as pessoas
conseguem passar por isso?
Me arrepio, voltando a prestar atenção na aula de embriologia. Nunca fiz
tanta pergunta na minha vida, acho que o professor nem sabia que eu
existia, até a aula de hoje. Também acho que ele está um pouco irritado com
minha curiosidade excessiva.
Anoto tudo que consigo e saio da sala com mais uma enciclopédia de
perguntas, que com certeza farei na aula seguinte. Agora, o que eu preciso
fazer é ir com Jayden até a tal lanchonete que ele falou. Tive que desmarcar
meu treino com o técnico e passá-lo para a noite, o que o fez achar que eu
estava drogado de novo. Parece que eu estava sendo um tanto irracional
com a natação.
Pelo menos na noite de ontem, depois da conversa estranha — para dizer
o mínimo — que tive com meu pai e Louis, contei para meus amigos sobre
minha situação. Eles agiram razoavelmente bem. Vance ficou calado o
tempo todo, não esboçou sequer uma reação, apenas os olhos arregalados
habituais. Josh chorou de emoção e chorou mais ainda quando disse que
optamos pela adoção. Ethan deu uma leve surtada e me xingou de burro em
cinquenta idiomas diferentes, mas me garantiu que trabalharia comigo se
fosse necessário. Isso, e me fez prometer nunca mais usar drogas, porque
isso é um péssimo exemplo até para um bebê na barriga. Ele arruma
qualquer desculpa para não correr o risco de me ver engasgando no próprio
vômito. Não posso culpá-lo.
Entro no carro, terminando de comer uma das barras de proteína que
guardo para Blue. Isso vem bem a calhar quando não tenho tempo para
almoçar. Jayden trabalha na lanchonete apenas de noite, mas isso vai mudar
na próxima semana. Ele me disse que as gorjetas pagam mais do que o
estágio que faz na administração do campus. Ou seja, se eu for admitido,
vamos nos ver mais do que gostaríamos. Não entenda errado, não nos
tornamos amigos e isso nunca vai acontecer. Queremos a mesma mulher.
Ele está me ajudando por ela, não por mim.
Entro no JC Grill, já sentindo o cheiro de bacon frito e pão na chapa.
Porra, que fome. Esse lugar é bem diferente das lanchonetes próximas ao
campus, as mesas são maiores, menos coloridas, tem mais chopp no balcão
do que café e pratos com mais comida de verdade e menos hambúrguer.
— Você deve ser o Hopkins! — um senhor robusto limpa as mãos em
seu avental preso precariamente às costas. O homem tem uma penugem
ruiva e rala sobre a cabeça, onde se vê mais couro cabeludo que qualquer
outra coisa.
— E o senhor deve ser JC, imagino. — Aperto a mão que ele me
estende.
— Ah, não. Nada de senhor, apenas JC.
O homem me leva para conhecer as instalações da cozinha e isso é mais
bagunçado do que imaginava. Não é uma bagunça suja, é só… bagunça. Os
corredores entre os fogões e as chapas são estreitos, panelas e colheres
enormes penduradas por ganchos de ferro no teto, armários de madeira com
condimentos; tudo em um espaço retangular de uns oito metros quadrados.
— Nossos cozinheiros aquecem a chapa assim que chegam. Há troca de
turno, os cozinheiros do café da manhã ficam das 5h da manhã até o meio-
dia. Fechamos até às 13 horas e ficamos abertos até às 22 horas.
Assinto, fazendo uma nota mental de escrever isso em algum lugar.
— Meu horário vai ficar de que forma? Acho que Jayden falou que
tenho aulas pela manhã, certo?
— Ah, sim. O menino Jay falou. Você e ele ficarão com o período da
tarde. Das 13 até as 18 horas.
Faço um cálculo mental. Ainda vai dar tempo de eu chegar e ir direto
para as piscinas e ficar até 21 horas e depois estudar em casa até 2 da
manhã.
— Perfeito. — Olho em volta. — Qual é minha função? Eu confesso que
não entendo muito de cozinha.
— Ah, não se preocupe. Você será garçom assim como Jayden. Atenderá
as mesas, recolherá os pedidos, voltará com eles até a cozinha e pendurará
em ordem de chegada naquele painel — ele aponta para uma fileira de
pregos dispostos na parede. — E quando estiverem prontos nossos chefes
vão tocar um sino e é só você levar o pedido para as mesas. Pode ser um
pouco confuso no começo, mas depois você pega o jeito.
Respiro fundo. Eu dou conta. Não deve ser tão custoso fazer isso.
Contando, é claro, que eu não quebre nada.
— As gorjetas são suas. As mulheres costumam ser generosas com
rapazes como você. Principalmente as mais velhas. Ao menos Jayden
consegue umas gorjetas bem gordas.
Guardo a informação para usar contra ele depois, com um sorriso
perverso. Obrigado pelo material, JC. Vai ser útil quando o jogador de
basquete quiser torrar minha paciência. Posso chamá-lo de gigolô das
gorjetas.
Meu chefe disse que eu pegaria o jeito. Mas sinceramente, estou
começando a achar que ele me superestimou.
Santo Cristo, isso é um pandemônio.
Onde diabos é a mesa três e o que o casal que me encara enfezado pediu
mesmo?
As coisas estavam fáceis até isso se encher como um formigueiro em
chamas e as pessoas começarem a falar alto e a bater seus talheres nos
pratos. Uma gota de suor escorre da minha testa, enquanto tento equilibrar
uma bandeira com ovos mexidos, uma xícara enorme de café e um bloco de
notas com caneta na outra mão.
Gasto todo meu esforço mental para andar em linha reta e perceber todos
os obstáculos na minha frente. Coloco o pedido sobre a mesa, não
escondendo meu suspiro de alívio.
— Rapazinho, não foi isso que pedimos — a mulher da mesa me diz e eu
quase imploro para ela aceitar a merda dos ovos com café.
— Sinto muito — respiro fundo antes de erguer novamente a bandeira,
recalculando minha rota.
Ao final do expediente, estou com molho na minha roupa, já que não
pude usar o avental que eu sem querer chamusquei no fogão ao ir entregar o
pedido ao cozinheiro, com café respingado na cara de quando deixei uma
xícara cair da bandeja, e claro, porque o diabo não alivia nesses momentos,
ovos mexidos no meu tênis. Branco. No meu tênis branco.
Recosto-me no balcão, respirando ofegante quando vejo o último cliente
da tarde indo embora.
— Você é o garçom mais desastrado que já vi — JC para ao meu lado,
balançando a cabeça.
— Eu sei que sou um desastre, mas eu vou melhorar, juro. Eu sou
esforçado e…
— Calma, garoto. Eu já ia dizer isso. — Ele dá tapinhas em meus
ombros. — Por mais que seja desastrado, não desistiu de nenhum pedido e
foi educado o bastante para que os clientes não se incomodassem com o
atraso. Isso já é mais do que tive com outros funcionários.
Suspiro aliviado. Ser demitido no primeiro dia seria uma humilhação e
tanto.
— Então estou mesmo contratado?
— Claro, te espero aqui no mesmo horário amanhã. — Estou prestes a
sair, quando ele fala novamente. Giro o pescoço para escutá-lo. — Se serve
de dica, se olhe bem no espelho, para ver se assim você toma consciência
da largura dos seus ombros e do tamanho do seu braço.
Sorrio sem graça.
— Pode deixar. Vou ficar igual uma garota de quinze anos passando
horas me admirando.
— Só não volte a gritar como uma quando queimar outro avental — JC
pisca e minha cara, se possível, pega mais fogo que a droga do avental. É
bom que eu pesquise na Amazon se tem alguma dessas coisas à prova de
fogo.
Entro em casa com uma sacola de papel que JC me deu com alguns
hambúrgueres e deixo em cima da mesa para os meninos. Eu
definitivamente não preciso dessas calorias para entrar na água.
— E aí, jovem operário vítima do capitalismo, como foi o primeiro dia?
— Ethan já chega na cozinha abrindo o pacote, sem nem perguntar se é para
ele.
— Queimei o avental, quebrei uma xícara de café e derramei ovos no
tênis, mas não fui demitido.
O palhaço gargalha alto, mordendo um pedaço do hambúrguer.
— Seu chefe é um santo, então.
— Eu vou melhorar — falo sério. Eu realmente preciso desse emprego,
não dá mais para depender do meu pai e essa gravidez apenas me mostrou
isso.
Ethan dá tapinhas nos meus ombros, assentindo.
— Se alguém consegue fazer isso, é você. Confio nisso.
— Obrigado, irmão.
Vance entra na cozinha, acenando para nós. Ele não tem aberto muito a
boca para falar comigo. Acho que não sabe o que dizer. Eu o entendo,
também não sei o que falar.
— Desde quando você passou a secar o cabelo? — ele me indaga
repentinamente
— Como assim?
— Tem um sacador de cabelo na sala. Imaginei que fosse seu, já que
Ethan e eu estamos sem cabelo para secar.
— Ah, não… — Rio ao lembrar da cara de Angelina quando pensou que
eu ou nossos pais conseguiríamos arrumar essa coisa. Se eu colocasse a
mão, era capaz de chamuscar o cabelo dela igual meu avental. — Isso é da
Angelina. Ela achou que conseguiríamos consertar.
— Ah… — ele comprime as sobrancelhas, esboçando um sorriso
esquisito em seguida.
— Ingênua — Ethan estala a língua. — Mal sabe ela que quase não
conseguimos trocar a lâmpada da sala.
— Em nossa defesa, aquela porra não enroscava. — Ergo os braços.
— Porque a gente comprou o tamanho errado.
— É, aí você tem razão. — Coço a cabeça. — Bom, mas chega de
conversa, vou para os treinos.
— Não vai comer? — Ethan pergunta de boca cheia.
— Na volta! — grito já da sala. Meus dias agora vão ser baseados em
uma corrida sem fim.
 

 
 
— Francis! — levanto a cabeça em um pulo, limpando a baba que
escorre da boca.
— O que foi? O que aconteceu? — olho para os lados, vendo um monte
de mulher com barrigas enormes e estufadas me olhando de forma crítica.
Angelina solta uma risada, assim como meu pai.
Ah, a consulta. Estamos na sala de espera para a primeira consulta de
Angelina. E eu acho que acabei de dormir nessa poltrona confortável pra
cacete. A médica se incomodaria de me contar onde foi que comprou essa
coisa?
— A médica está nos chamando, vamos. — Meu pai me dá a mão e a
aceito, sendo guinchado para a sala da doutora. Fico aliviado de sair da mira
do olhar das barrigudinhas ali fora. Essas mulheres dão medo. E eu estou
cansado demais para me proteger.
Angelina e meu pai passaram algum tempo escolhendo a obstetra que
acompanharia o pré-natal e, dessa vez, Robert não foi inconveniente de
tomar as rédeas da situação. Ele apenas apresentou para Angie as opções e
explicou para ela as médicas de sua confiança. Acho que ele ganhou pontos
com minha garota.
A sala da doutora é gelada e cheira a camomila, além de produtos de
limpeza. Camomila é uma boa escolha, já que lá fora está cheio de
bombinhas prestes a explodir. Eu deixo a conversa inicial com meu pai e
Angelina, apenas ouço e anoto tudo. Sim, eu trouxe um maldito caderninho.
Quando os dois param de falar, eu inicio meu monólogo, explicando tudo
que aconteceu nos últimos meses. Angelina bebeu, foi drogada, transou no
matinho — sim, eu contei isso, porque a gente rolou igual lagartixa naquela
plantação e eu precisava deixar isso claro. Angelina me beliscou tão forte
que talvez eu fique roxo por semanas — e que ela está com anemia. Angie
trouxe os exames que fizemos no hospital e a médica não gostou nem um
pouco dos resultados. Eu também não, essa merda está séria.
No momento do ultrassom, Angelina congelou na maca.
— Você prefere que eu vire o monitor para que não veja? — Doutora
Montserrat pergunta a ela.
— E-eu… eu não sei, eu… — Angelina me procura e observo seus olhos
antes de pegar sua mão. Brinco com seu mindinho. — Eu não tinha pensado
nisso ainda.
A verdade, é que nem eu. Vim preparado com mais pergunta que
Sócrates tinha aos cidadãos de Atenas, mas não para ver o bebê de verdade.
Ok, que seria apenas um borrão que eu não ia conseguir identificar o que
era cabeça do que era pé, mas mesmo assim.
— Angelina, você não precisa decidir por agora, ok? Eu posso fazer a
consulta sem que você veja e você escolhe o momento e o dia que se sentir
mais confortável para ver tudo. Aqui se trata de você e do que a deixará
mais confortável.
— Mas eu vou ser horrível por isso, não é? — Angelina engole a saliva,
piscando sem parar. Os dedos dela apertam os meus. — Toda mulher sonha
em ver o ultrassom, em escutar o coraçãozinho, mas tudo que eu sinto é
pavor, porque tem alguém dentro de mim, e isso não me parece normal.
— Olha, posso te garantir que você não seria a primeira e nem será a
última mulher a se apavorar com a gravidez. Acredite em mim, tenho
pacientes que só conseguiram ver seus bebês no momento do parto, que só
conseguiram se sentir mães, quando tiveram a criança no colo e outras que
levaram meses com ele nascido para de fato sentirem-se nessa posição. Não
se deixe levar por essa romantização da maternidade que a mídia vende por
aí. Você é incrível só por estar tendo coragem de me dizer seus medos. — A
médica sorri para nossas mãos unidas. — É bom que você tenha apoio
também. Seu namorado é bem preocupado e isso é bom.
— Ele não é meu namorado! — Angie retruca na hora e eu sorrio. É
claro que ela ia corrigir.
— Isso é uma mera questão de nomenclatura, doutora. — Pisco para a
médica e Angelina falta entortar minhas falanges.
— Bom... — Montserrat esconde o sorriso, assim como meu pai, e vira o
monitor para si. — Vou começar o exame e manter o coraçãozinho apenas
no meu fone. O senhor quer ver e ouvir?
Ela se dirige a mim.
Coloco a mão no peito.
— Eu?
— É, você.
Engulo em seco.
Eu quero?
Jesus, eu tenho coragem?
Minha testa acumula suor.
— Tudo bem se você quiser, eu não me importo. — Angie empurra o
dedo na minha mão, quase como se quisesse que eu fosse.
Ela quer? Por que ela quer?
Merda, eu quero. Por que eu quero?
— Uhum. — Assinto meio tonto.
Limpo a garganta, indo para o lado da doutora. Ela passa o gel gelado na
barriga de Angelina e ela faz uma careta de desconforto. Isso aí é
melequento e ela vai ficar puta da vida pra tirar depois.
A mulher liga o monitor e me entrega um fone de ouvido. Sinto como se
segurasse uma bomba nuclear. Ela coloca o aparelho no ventre de Angelina
e meu coração acelera de medo.
— Vocês querem saber o sexo? Com o tempo de gravidez que tem, já
podemos tentar ver.
— Não! — Angelina grita, negando com a cabeça freneticamente.
— Tudo bem, manterei para mim. — Ela se vira para mim. — Francis,
você estuda medicina, mas não creio que tenha qualquer experiência para
obstetrícia, certo?
— Certo.
— Ok, por enquanto pode ser difícil que alguém leigo veja o sexo, mas
se ficar extremamente visível, pedirei que não olhe, tudo bem?
— Uhum.
Estou sendo monossilábico, eu sei. Mas estou tão apavorado e ao mesmo
tempo tão, mas tão curioso, que as palavras não sairiam de forma coerente.
Ela liga o monitor. E eu arregalo os olhos.
Caralho. Não é apenas um borrão.
Não, não é. É um bebê formado. Meu coração ameaça extravasar minha
caixa torácica. Céus… me preparei para ver manchas pretas e cinzas, não
um pequeno bebê quase nítido. Aperto o maxilar, impedindo que Angelina
veja qualquer reação no meu corpo.
Sinto vontade de desmaiar quando escuto o som no fone de ouvido logo
em seguida.
Tum tum. Tum tum. Tum tum. Tum tum.
Rápido. Muito rápido. Meu Deus, como é veloz. E forte. Tenho vontade
de sorrir. E chorar.
O coração bate com muita força de vontade. Como a força de vontade
que vejo retratada nos olhos de Angelina, que não saem de mim. Sorrio para
ela.
Algo esquisito aperta meu estômago. Ou eu finjo que é no estômago,
porque o incômodo é direto no meu peito esquerdo. Talvez meu coração
bata rápido também. Talvez ele também doa um pouco. Ou muito.
Encaro o monitor. E Angelina. E novamente o monitor. Às vezes não
entendo nada, e outras consigo ver seu formato certinho.
— Está com… — algo aperta minha garganta e não consigo falar. Meus
olhos ardem insuportavelmente.
— Com o dedinho na boca. Isso mesmo. É bem comum.
— Uhum — isso sai como um gemido sôfrego e limpo a garganta.
Tiro o fone depressa, entregando para a doutora de qualquer jeito. Pego o
olhar do meu pai no ar. Ele parece entender mais do que estou sentindo do
que eu próprio.
Fico em silêncio.
— Tudo bem? — Angie pergunta preocupada.
— Tudo. — Forço um sorriso, mas mal consigo mover os músculos da
minha face.
Tum tum. Tum tum.
Talvez eu nunca me esqueça desse som.
Talvez eu nunca queira me esquecer desse som. E dessa imagem. E
dessa sensação no meu peito.
Engulo o que quer que suba na minha garganta. Forço meu cérebro a não
reconhecer os sussurros do meu coração. Aperto as mãos na lateral do
corpo.
Adoção.
Eu não vou conseguir.
Mas preciso conseguir.
Vejo meu pai colocar a mão sobre o próprio peito, dando batidas. Eu sei
que me ama, pai. E eu acho que estou entendendo demais esse sentimento
agora. Olho uma última vez para o pequeno bebê no monitor e a forma
como chupa seu dedinho preguiçosamente.
Céus…
Volto rapidamente para o lado de Angelina. E finjo com tudo que há em
mim, que nada aconteceu.
Mas aconteceu... eu o vi. E o escutei. Não tem como esquecer ou apagar.
É tarde demais.
Como faço para abandoná-lo agora?
 E é com esse pensamento, que eu volto na sala de consulta depois dizer
ao meu pai e Angie que esqueci meu celular, apenas para fazer um pedido à
médica. Um pedido que pode salvar parte do meu coração algum dia.
 

 
 
— Angelina, eu devo te dizer que estou surpresa com isso. Não esperava
que fosse acontecer com você.
— Por quê? Eu tenho um útero, um ovário e uma vida sexual. É até
normal que isso aconteça. — Jogo os ombros.
— Não foi isso que quis dizer e sim que você me pareceu muito
responsável.
— E continuo sendo. Por isso optei pela adoção.
— Ah… — ela pisca atônita.
— Você é contra?
— Não, claro que não. — Ela limpa a garganta, sentando-se mais ereta.
— Olha, ninguém sabe disso. mas na adolescência, um pouco mais jovem
que você, eu engravidei do meu namorado do colegial. Ele não quis
assumir, a família dele e a minha se negaram a ajudar e foi muito difícil
para mim ter o meu filho. Eu pensei muitas vezes em adoção, mas eu acabei
desistindo depois de um tempo. Não era tão simples naquela época e eu
tinha muito medo do julgamento.
— Você se arrepende de não ter colocado seu filho para adoção?
— Não, querida. — Ela suspira. — Não irei mentir que foi um
verdadeiro inferno o início da minha maternidade e foi por muito tempo, até
eu conseguir uma estabilidade financeira. Eu não tive instrução, apoio ou
ajuda. Espero que seja diferente para você e que tenha uma rede de apoio.
— Eu tenho quase um time. — Sorrio ao me lembrar dos meus amigos.
Eles realmente são bons. Mesmo que estejam me cercando a todo instante
perguntando se estou bem, com fome ou sono. — E sinto muito sobre o que
aconteceu com você. Não deve ter sido fácil.
— Não, não foi. E é por saber o quanto não é fácil, que terá meu apoio
também. — Hart sorri, estendendo a mão para segurar a minha. Franzo o
cenho, mas deixo que ela o faça.
— Você vai dizer em seguida que estou fora do time, né? — suspiro com
embrulho no estômago.
— Claro que não. Vou continuar te treinando, apenas não poderá
participar dos jogos e dos treinos em grupo pelo risco de alguma queda ou
lesão. Os primeiros meses são arriscados.
— Então não estou fora? — Um sorriso ameaçando rasgar minha boca.
— Você nunca esteve, é apenas exagerada e impulsiva demais para
entender que tudo sempre foi sobre a sua saúde.
Começo a pular na quadra, incapaz de me conter. Mas pulo pouco,
porque apesar de ter saído da médica com mais remédio para anemia que é
humanamente normal, eu ainda não estou cem por cento.
Cutuco minha barriga.
— Viu só, Serzinho! A gente ainda tá no time!
— Serzinho? — Hart sorri carinhosa.
— É... — Dou de ombros, dando-me conta de que falei na frente dela.
Acho que ninguém nunca me ouviu falando com meu hóspede. — É assim
que o chamo.
Hart me analisa por alguns momentos e depois assente, me liberando
para o turno na biblioteca. Um problema a menos.
Eu me pego pensando o que a senhorita Austen diria para mim nesse
momento. Ela era uma romântica, mas era a romântica mais realista da
época dela e talvez da minha. Suas protagonistas tem o furor dos
sentimentos em si, mas a grande maioria mantém seus pés atolados ao chão.
Isso, é claro, quando não aparece um homem cheio de boas intenções, que
chega para cavar o chão com a própria mão e as deixar sem rumo. Mas
independente disso, Austen não retratou muito a gravidez em suas obras.
Suas protagonistas se tornavam mãe apenas ao final dos romances, ou
sequer este fato é mencionado. Talvez por isso eu não tenha muita ideia do
que seja maternidade.
Seja como for, não sou mãe. Não é porque estou grávida, que
automaticamente me tornei uma. Se assim o fosse, o mundo não estaria
cheio de gente traumatizada na infância. A consulta com a médica que
Robert indicou me deixou mais tranquila. Ela não me forçou a fazer nada
do que eu não queria e não me olhou torto vez alguma.
O grande problema daquela consulta, foi quando Francis ouviu o coração
do bebê. Quer dizer, não foi exatamente um problema, porque eu até queria
que ele fosse. Mas… a expressão dele, eu podia jurar que nunca escutara
nada tão bom na vida. Me deixou curiosa. Talvez eu tenha coragem para
escutar da próxima vez.
É, da próxima vez quem sabe.
Saí de lá com todas as minhas consultas marcadas até o nascimento.
Céus, nascimento. Eu vou ter que colocar o Serzinho para fora de mim. É
tipo um despejo, mas nesse caso, quem sofre sou eu.
Balanço a cabeça. Não quero pensar nisso agora, ainda faltam cinco
meses. Espero conseguir ser forte e completá-los... eu não sei como reagiria
se sofresse um aborto agora... não agora que sei tudo. O bebê não está
muito bem. Está pesando menos do que devia e medindo menos ainda. Me
sinto culpada.
Cutuco minha barriga.
— Ei! Tá acordado aí? — sussurro enquanto olho para os lados no
corredor da biblioteca, para ver se alguém me observa. Por sorte, estou
sozinha. — Eu vou me alimentar direito agora, ok? Eu meio que não sabia
de você, achava que você era um câncer.
Arregalo os olhos.
Nossa, Angelina, que coisa linda a se dizer.
— Foi mal, ok? Não disse por maldade, mas eu achei mesmo que você
estava me matando.
Fecho os olhos com força. Eu definitivamente não sirvo pra coisa toda,
eu traumatizaria essa criança.
— Tá vendo por que não posso ser sua mãe? Você iria me odiar. E pior,
preferir o Francis. Ah, isso seria péssimo, Serzinho.
Suspiro, me sentindo ridícula. Ridícula por tudo, por realmente achar
que iria morrer e por ter tomado isso como uma verdade absoluta sem um
exame que pudesse comprovar. Eu nunca fui tão irracional, imprudente e
inconsequente na vida. Todas as vezes que chamei Donna das coisas acima,
não chegaram nem perto da própria burrada que eu fiz.
O coitadinho do Josh teve que guardar esse segredo comigo, quase
causei um AVC em Francis e em mim própria…
E agora, eu tenho que tirar os lençóis brancos de cima dos móveis da
minha mente, já que não vamos nos mudar para o além. Eu tinha bloqueado
tudo, deixado de lado mágoas, manias, rotina, limites… mandei tudo para o
espaço e não me importei que juntassem poeira. Agora tenho que reavaliar a
situação. Não estou morrendo e tenho todo o tempo do mundo para fazer o
que quero.
Eu não sei o que pensar da minha situação com Francis. Eu tinha
decidido estar com ele porque achei que tinha pouco tempo, mas essa foi a
única parte de toda essa confusão que fiquei aliviada, poder me livrar das
amarras e simplesmente fazer o que queria, sem pensar nas consequências
ou dores que viriam em seguida.
Agora, nós temos meses difíceis pela frente e não sei se é a melhor coisa
engatarmos de novo em uma relação, pode tornar tudo mais difícil. Acho
que a melhor coisa a se fazer, é algo em que nunca fui boa: deixar as coisas
rolarem. Eu gosto de estar com os dedos posicionamos contra os botões do
controle remoto da minha vida, mas agora o controle foi estilhaçado no
chão e eu não tenho muitas alternativas, senão participar da partida que o
destino quiser elaborar.
Coloco o último livro na prateleira, indo direto para o estacionamento.
Francis me chamou para a casa dele, porque precisava conversar algo
urgente. Aparentemente não só comigo, porque quando chego lá, o carro de
Blue também está estacionado na rua.
Bato na porta três vezes antes de entrar, colocando meu sapato no
batente da porta e tirando o casaco pesado. Hoje está particularmente frio.
No sofá, Donna e Blue estão sentadas como duas garotas prestes a receber
uma bronca do pai, enquanto Francis e Ethan estão de cara amarrada.
— O que elas fizeram? — pergunto e me sento ao lado de Donna.
— Vocês pensaram mesmo que iam escapar dessa conversa depois de
terem ido parar naquela boate dos infernos? — Francis ergue a sobrancelha.
Ah, merda. Eu pensei que ele fosse deixar isso para lá. Eu e as meninas
nem combinamos o que dizer. Deve ser por isso que estão meio
esverdeadas. Eu, assim como elas, não quero dar ao Vance o gostinho de
que corremos para os braços fortes dos meninos para nos ajudar. E eu não
quero que Francis saiba o que motivou nossa vingança, não quero que ele
precise me defender. Sua síndrome de herói não vai deixá-lo ficar quieto e
eu mesma quero cuidar dessa situação com Vance. Provar a ele que está
enganado em tudo que disse para mim naquele dia. Além disso, contar de
Vance implicaria contar a situação de Jayden e não tenho esse direito. Já foi
demais contar para as meninas, que dirá alguém que ele não se dá bem.
— Mas já passou, vira a página! — Blue estala a língua, cruzando as
pernas com desdém.
— Virar a página? — Ethan gargalha. — O Francis saiu com um
centímetro de braço a menos, Angelina e Isabela drogadas e Donna
assediada. É sério?
Pisco. Eu não tinha chegado a presenciar Ethan nervoso antes. Acho que
agora entendo porque o Francis sempre tenta avisá-lo que vai chegar
atrasado em casa. Faço uma nota mental para não o deixar nervoso. É ruim
levar bronca de alguém que é sempre gentil. Machuca mais.
— Ok, a gente sabe que não deveria ter ido lá, mas será que podem nos
poupar do sermão? — Donna revira os olhos. — Erramos e pagamos pelo
nosso erro.
— Sermão? — O nadador coloca as mãos na cintura e os meus olhos
errantes vão parar direto nos lírios em seu braço. Ainda estão levemente
arranhados da nossa estripulia no vinhedo. Cruzo as pernas.
Hum hum… você não faz mais isso, Angelina. Sexo começou o
problema.
Você não pode engravidar de novo já estando grávida — uma vozinha
despudorada e sem juízo sussurra na minha cabeça. Trato logo de expulsá-la
a vassouradas. Nada de sexo para nós.
— Eu não vou dar sermão, eu vou gritar no ouvido de vocês, até nunca
mais pensarem em se meter em uma porra de lugar daqueles! — O dedo
dele aponta na nossa direção e fecho a cara. Se ele continuar apontando o
dedo pra mim, vai ver como eu consigo entortá-lo em sua direção. — Quer
dizer, menos você. Eu não vou gritar com você.
— Eu? — Coloco a mão no peito.
— É.
— Por que não vai gritar comigo? — Levanto irritada. — Só porque eu
estou grávida? Vai ficar me tratando que nem criancinha agora?
Francis dá dois longos passos e para a centímetros do meu rosto. Engulo.
As íris azuladas chamuscam as minhas.
— Eu não vou gritar com você, porque você não lida bem com barulhos,
mas eu vou sussurrar a bronca no seu ouvido, até que você queria arrancar
as orelhas fora. — Ele está bravo. E fica lindo assim. Céus, Angelina,
controle-se. — E a propósito, você tá grávida, não doente. Nem adianta
querer usar essa desculpinha.
Estreito os olhos.
— Você é um babaca.
— É sempre um prazer ouvir palavras doces da sua boca, amor.
Estou prestes a voar no pescoço dele, quando Donna entra no meio.
— Ok ok, já chega com as preliminares. — Ela solta uma lufada de ar.
— Deem a bronca logo, para que a gente vá para casa, xingue vocês até o
dia raiar, acompanhadas de um belo macarrão com queijo.
Meu estômago ronca. E minha boca enche d’água. Eu não gosto de
macarrão com queijo. Eu gosto de macarrão sem molho, sem coisa
melequenta e puxenta. Então por que diabos eu não posso pensar em nada
mais apetitoso que isso?
Olho para minha barriga.
Seu traidor!
Sentamos de volta ao sofá e escutamos por meia hora, todas as razões
pelas quais fomos inconsequentes e imprudentes e porque nunca mais
devemos sair sem avisar alguém do nosso paradeiro. Eu começo a ter ideias
nada legais sobre cozinhar a língua desses dois tagarelas, apenas para que
fiquem em silêncio.
— Antes de irem... — Ethan pega uma sacola ao seu lado na mesa de
centro e me entrega.
— O que é isso?
— Seu secador.
— Vocês arrumaram? — questiono perplexa.
— Na verdade, eu fui ligar ele na tomada pra ver se funcionava e ligou.
Acho que foi só um pane momentâneo — Francis explica.
— Eu tenho certeza que ele queimou.
— E eu tenho certeza de que quando o liguei na tomada, ele funcionou.
— Se eu ligá-lo na tomada e não funcionar, posso jogar na sua cabeça?
— Com toda sua força, amor. — Francis pisca, sorrindo travesso.
— Eca! — Blue faz ânsia.
— Vocês são nojentos — Donna concorda.
— Eu acho bonitinho — Ethan funga, coçando os olhos.
E eu me perco um pouco mais no mar de Francis antes de ir para casa.
Levei uma bronca pior do que quando atropelei o gato da vizinha com a
bicicleta, mas pelo menos vou poder secar meu cabelo antes de dormir.
 

 
Como todo meu macarrão com queijo e metade do de Donna. Ela está
me olhando como se eu tivesse três cabeças, mas não ligo. Isso é a melhor
coisa que já comi em toda minha vida.
— Eu pensei que você odiasse isso.
— Eu odiava. — Limpo a boca com o guardanapo, passando para ela a
embalagem de papel. Donna joga tudo no lixo. — Mas acho que o Serzinho
gosta.
Aponto para a barriga.
— Serzinho? Não tinha um nome melhor?
— Eu não posso dar um nome.
— Um apelido então.
— Serzinho está ótimo. Não é? — Cutuco minha barriga. E continuo
esperando por uma resposta que não vem. Eu devo estar ficando biruta das
ideias. Estou fazendo amizade com um hóspede não esperado e que ainda
não pode falar comigo.
— Ok, então. Eu vou dormir porque estou morta. — Don beija minha
cabeça, antes de se jogar debaixo da coberta preta. — Boa noite, baby
Serzinho!
Faço careta para a vozinha de criança.
— Você não tomou banho — protesto.
— Eu tomei de tarde.
— Por isso mesmo.
— Vai tomar o seu primeiro, depois eu vou — ela fala com a voz
letárgica e eu sei que só vai entrar nesse banheiro amanhã de manhã.
Não sei porque fiquei tão assustada com a gravidez, eu já tenho uma
filha.
Meu banho é bem mais rápido dessa vez. Vovó sempre disse que não é
bom ficar debaixo d’água de noite por muito tempo. Eu desconfio que seja
apenas uma crendice, mas ouço isso desde criança, então eu sigo à risca.
Já a contrariei o bastante por ter lavado o cabelo agora. Ao menos tenho
meu querido secador para hoje.
O tiro da sacola, girando-o na mão. Tem algo diferente de quando o
deixei na casa de Francis, o fio parece de outra cor. Quer dizer, não outra
cor, apenas outro tom. O tenho há um tempo, então o preto já estava gasto e
agora parece novo. Além disso, a parte de trás parece mal encaixada. A
empurro até que o clic estale e ligo de novo na tomada.
Para minha surpresa, funciona. Francis não mentiu.
Mudo o peso do corpo de um pé para o outro, incapaz de me manter
parada enquanto espero meu cabelo secar por completo. Talvez eu deva
cortá-lo um pouco para facilitar. Estou prestes a desligar o secador, quando
o sinto esquentar na minha mão e o odor de algo queimando. Sem que eu
espere, o objeto faz um estouro na minha mão e a parte de trás começa a
pegar fogo, que se estende para o fio. Solto o secador na pia com um pulo,
vendo cada parte do fio pipocando e sendo consumido pelo fogo. Dou um
grito, esbarrando na porta.
— O que foi isso? — Don grita do lado de fora.
— Tá pegando fogo! — grito de novo quando as chamas atingem a
toalha de rosto que fica ao lado da tomada. Ah, merda, merda, merda.
Sacolejo minhas mãos para cima e para baixo, sem saber o que fazer.
Donna força a maçaneta para tentar abrir, mas eu havia trancado.
— Angelina, abre essa porra!
Meus dedos se atrapalham na chave ao tentar destrancar e o pequeno
chaveiro cai da maçaneta.
Droga, droga! A fumaça começa a se espalhar pelo banheiro e meu
coração dispara. Ajoelho no chão, passando a mão no carpete, com o pânico
me subindo. Tento ligar a luz, mas o curto parece ter danificado o
interruptor. Donna tem muitos enfeites na pia e o pior, muitos produtos
inflamáveis.
Cadê a porra dessa chave?
— Angelina! — Donna esmurra a porra, tentando abri-la na base da
força. Reprimo a vontade de mandá-la parar, porque estou prestes a fazer o
mesmo.
— E-eu perdi a-a chave! — Tusso com a fumaça fedida e densa que vai
se espalhando.
— Como perdeu a chave? Ah, meu Deus! Eu vou ligar pro Francis!
— O seu irmão virou bombeiro agora? Ele vai fazer o quê? Bater perna
na piscina até apagar?
— Eu não sei, Angelina. E não brigue comigo, foi você que colocou
fogo no banheiro! Eu sempre achei que seria eu, mas né…
Mais um frasco de produto estoura na bancada e o fogo se alastra para as
toalhas estendidas no box. Arregalo os olhos, me encolhendo junto a porta.
— Angelina, tá tudo bem.?
— Não, Donna. Eu estou num banheiro em chamas!
Ao longe, eu escuto a porta sendo aberta e uma voz masculina falando.
— Angelina, você esqueceu seus tampões de ouvido no carr… que porra
tá acontecendo aqui?
Tusso tão alto em seguida, que não consigo escutar o resto da conversa.
Meu estômago começa a embrulhar com o cheiro fétido e a fumaça branca e
negra se mistura com as chamas avermelhadas. Minha visão fica turva.
— Se afasta da porta! Agora! Tá me ouvindo? Se afasta da porta!
Gemo, me arrastando pelo chão, para o lado contrário onde o fogo está
se encaminhando.
— Se afastou?
— S-sim…
Tudo que escuto em seguida é um estrondo forte e pedaço de madeira
voando. Cubro o rosto com as mãos, evitando que eles me atinjam e logo
estou sendo levantando do chão e sendo carregada para um lugar com ar
respirável e um calor menos intenso.
Tusso forte, meu pulmão expulsando a fumaça.
As sirenes de incêndio começam a disparar e é uma gritaria infernal do
lado de fora do quarto.
— Liga para os bombeiros! — a voz do meu salvador vocifera.
— Tá bom — Donna balbucia nervosamente.
— Ei, pode tirar a mão da frente do rosto. — A voz doce fala ao meu
ouvido. — Vou te tirar daqui, Angel.
Francis? O que ele tá fazendo aqui?
Tira a mão do rosto ainda desconfiança, tossindo meu pulmão para fora,
e vejo o dono do rosto quadrado me carregando para fora do quarto, com
Donna na nossa frente.
— Se continuar me salvando assim, vou ter que te chamar de meu herói
— minha voz sai rouca e arrisco um sorrisinho.
— Se continuar quase morrendo, vai ter que me chamar de meu defunto.
Meu coração não aguenta mais suas estripulias, Angelina.
— Para de reclamar, a culpa é sua! — Bato no peito dele, enquanto me
carrega escada abaixo. As mulheres estão gritando desesperadas, passando
uma por cima da outra para sair do prédio.
— Culpa minha? — Francis estanca no lugar e somos empurrados pela
multidão. Ele tropeça três degraus antes de se firmar e eu peço para descer
do seu colo. Não estou afim de um nariz quebrado.
— Você que mexeu no meu secador de cabelo.
Ele me encara esquisito.
— Mas eu não mexi. Eu só liguei e ele tava funcionando.
Francis pega na minha mão e na de Donna, nos puxando para fora do
prédio dos dormitórios. O gramado logo está ocupado por universitárias de
pijama, algumas até com toucas na cabeça e máscara verde no rosto. As
fotos que vão sair disso amanhã…
— Eu também só liguei ele e depois de um tempo explodiu na minha
mão. Por sorte eu não saí sem ela.
Nos viramos para trás ao escutar as sirenes dos bombeiros. Os homens
trajados em vermelho logo pulam do caminhão e se dirigem para o prédio
munidos de escadas e mangueiras.
Olho para cima, especificamente para nosso quarto e choramingo.
Espero que o fogo tenha se mantido apenas no banheiro, porque senão,
acabamos de perder tudo.
— Minhas coisas, eu não quero perder minhas coisas — Donna chora
para Francis, que a abraça, acariciando seus cabelos.
Ela vai me matar se o quarto tiver pegado fogo.
— Você tá bem? Quer ir até a enfermaria? — Francis me analisa de cima
a baixo.
Balanço a cabeça, olhando para mim, para conferir se algo ficou
queimado. Só estou com um pouco de cinzas na roupa, mas não cheguei a
me queimar.
— Talvez seja bom fazer um raio x amanhã para conferir os pulmões.
Ok? — o azul cristalino brilha de preocupação. E não tenho coragem de
negar.
— Ok.
Respondo. Mas fico com uma dúvida na cabeça. Se Francis não mexeu
no meu secador e tinha algo diferente nele, então quem foi?
 
 

 
 
— Não, não e não. Eu não vou morar com você, Francis Thomas
Hopkins! — Angelina cruza os braços, batendo um pé no chão e me
encarando com a expressão mais irritante que ela consegue. A veia na
minha testa pulsa. Cristo, ela não pode facilitar as coisas por um segundo
sequer? Diabo de mulher difícil!
Já foi uma luta levá-la para tirar um raio X do pulmão e agora ela
simplesmente não consegue entender que está desabrigada.
— Você colocou fogo no seu dormitório, pretende ir pra onde, Angelina
Mary Eastwood? — Arqueio a sobrancelha, sorrindo vitorioso quando ela
muda o peso do corpo para o outro pé, a expressão tornando-se pensativa.
— Eu não sei você... — Donna beija minha bochecha antes de se sentar
na minha mesa do refeitório. — Mas eu aceito a moradia. Não tô a fim de
viver em um quarto que parece a reconstituição de um crime.
— Só queimou um pouquinho! — Angelina argumenta.
Rio alto.
— Um pouquinho? Mulher, você viu o mesmo quarto que eu? — Coloco
a mão na cintura e ela faz cara feia pra mim.
— Nossa sorte é que o fogo pegou primeiro nas camas e não nos
armários, porque senão teríamos ficado sem roupa. — Minha irmã, pela
primeira vez na vida, fica do meu lado. Ou apenas quer um teto sobre sua
cabeça.
— A gente pode procurar instalações do campus.
— Angelina, estamos no meio do semestre, não vai ter alojamento, a não
ser aqueles caindo aos pedaços e eu não vou ficar neles — Donna fala e
rouba uma cenoura do meu prato. Bato em sua mão, roubando de volta a
metade que ela não comeu.
— Mas como eu vou morar na casa deles? O Ethan ronca muito! —
Angelina aponta para o meu amigo, que desce a caixa de leite da boca, com
um bigode branco sobre a boca. Estreito os olhos.
— Como você sabe que o Ethan ronca muito? — Olho de um para o
outro e meu amigo logo ergue os braços.
— Oh, nem vem! Antes que eu perca o pau, me deixa explicar.
Inclino o rosto.
— Então explique. — Cruzo os braços.
— Ontem elas dormiram na nossa casa por causa do incêndio.
— Sei disso. Continua. — Ethan, Ethan…
— E aí, a senhorita sua irmã se recusou a dormir no sofá e pediu minha
cama. Eu cedi e fui para o sofá. Só que a Angelina não quis dormir na
minha cama, porque segundo ela meu perfume é forte demais e fica nos
lençóis, que ela também não gosta, porque têm costuras demais. Aí ela
dormiu no sofá ao lado do meu. Mas tudo no maior respeito.
Mordo a boca. Ethan falou tão rápido e em tantos detalhes, que é
impossível não rir.
— É, com todo respeito e com todos os roncos da face da terra. Não tem
como dormir naquela casa sem escutar aqueles trovões saindo da sua boca.
— Do meu quarto não dá pra ouvir nada — pisco para ela e ganho um
belo dedo do meio. Que dedo comprido, querida… melhor eu tomar
cuidado se ela vier com aquele papo de bunda novamente. Lembro
perfeitamente disso na nossa brincadeira do espelho meses atrás.
— Eu não vou ficar no seu quarto, pode ter certeza — diz petulante.
— Por que não? — Blue senta-se na mesa, pegando uma cenoura do meu
prato. Mas o que deu nessas garotas? Por que elas não pegam a própria
comida? — Você já tá grávida dele mesmo, não vão fazer nada do que já
não tenham feito.
Tudo bem, ela pode pegar todas as cenouras do meu prato se quiser. Só
não ergo a mão para ela bater, porque é capaz de Angelina arranhar minha
cara.
— Blue Hale! Justamente por ele ter me engravidado, não vai chegar
perto de mim nunca mais!
Gargalho alto, batendo na mesa.
— Diga isso até se convencer, amor. Você não resiste a esse corpinho. —
Passo a mão desde meu peito até meu abdômen e eu vejo claramente a
safada seguindo o caminho com os olhos. Ela só para quando Ethan grita
“vai, gostoso” com uma voz falsa de mulher.
— Eu não vou mais morrer, então não preciso te perdoar. — Ela cruza os
braços emburrada.
— Não vai mais morrer, graças ao bom Deus, mas vai sim me perdoar
porque você prometeu.
— Prometi?
— Não — sorrio. — Mas promete me perdoar agora? — Pisco.
E Angelina me faz engolir três cenourinhas de uma vez.
Ah, ela tá muito apaixonada por mim.
 

 
Entrego meu trabalho de imunologia para o professor e ele me olha de
cima a baixo. O velho senhor Therry é um homem sério e um tanto
rabugento, mas um excelente docente. Só não sei porque ele está me
observando como se um terceiro olho tivesse crescido na minha testa.
— Algum problema, professor?
— Você está mais interessado nas aulas, Hopkins.
— Isso é um problema?
— Não. Claro que não. — Ele ajeita os óculos de armação redonda nos
olhos. — Mas fiquei curioso com o motivo.
— Precisa de um? — Cruzo os braços. Não estou nem um pouco
disposto a sair por aí falando sobre a gravidez de Angelina. Principalmente
porque já tomamos a decisão da adoção. Eu não quero que nenhuma fofoca
errada chegue até ela.
— Não, mas quando você passa de metódico e robótico para interessado
e eu diria que até apaixonado, definitivamente há um motivo. — Ele coloca
a mão no meu ombro. — Isso é bom, rapaz. Essa paixão. Espero que não
tenha vindo por causa de alguma doença na família.
— Pelo contrário — digo antes que consiga controlar a boca. — É por
uma coisa boa.
Ele sorri com os lábios vincados, deixando a sala.
Coisa boa? Acho que é a primeira vez que penso nessa gravidez assim.
E sequer tenho certeza se de fato é uma coisa boa.
— Vamos? — Vance me chama da porta. Ele tem estado mais calado,
mas mais próximo de mim, me rondando a todo instante. É estranho, mas
imagino que apenas queira me dizer que está aqui caso eu precise. Eu
também não sou bom em dizer as coisas que preciso, não posso culpá-lo.
Ele ficou um pouco surpreso quando chegou em casa hoje de manhã e viu
Donna e Angelina. Vance tinha dormido fora e quando entrou em casa já foi
logo me procurar, mas estancou ao ver as meninas. Tenho certeza de que
não gostou da situação, mas pelo menos não disse nada.
— Vamos pra onde? — indago.
— Treino — ele diz como se fosse óbvio. E seria, se eu não trabalhasse
agora.
— Não dá, eu tenho trabalho. — Dou de ombros.
— De novo?
— É a definição de trabalho, né? — Solto uma risada. — Ser constante.
— Vai abandonar a natação? — ele não me deixa passar da porta.
— Não vou largar, estou treinando de noite.
— Não era a hora que estudava?
— Estou estudando depois que volto do treino.
— Tá indo dormir que horas?
— Pra base de três da manhã.
— E acorda que horas?
— Seis.
— Você vai morrer desse jeito.
— A maioria das pessoas trabalha e estuda, eu não vou morrer por causa
disso.
— Mas você trabalha, estuda e treina.
— Jayden também. Se ele consegue, eu consigo.
— Jayden não treina nem um por cento do que você treina e muito
menos estuda como um maldito psicopata.
— Você não é meu pai.
— Nem quero ser. Mas sou seu… — Vance engole, balançando a
cabeça. — Sou seu amigo. E amigos se importam.
— Eu agradeço a sua preocupação, de verdade — Aperto seu ombro. —
Mas eu estou bem.
— Angelina deveria abortar — ele comenta de repente, a boca se
retorcendo como se provasse uma comida estragada.
Tiro a mão do ombro dele. Porque se continuasse ali próxima ao rosto,
não ia dar boa coisa. Meu sangue ferve na velocidade da luz e meu
estômago se revira.
— Você não é ninguém para dizer o que ela tem ou não que fazer. É uma
escolha dela.
— Deveria ser sua também.
— Sou eu que estou carregando a criança? É meu corpo que vai mudar?
É minha vida que vai se transformar por completo e que vou ter que abdicar
de muitas coisas por causa do bebê? — Arqueio a sobrancelha. — Não. Não
é. Então a decisão definitivamente não é minha. E muito menos sua.
Vance faz uma careta de asco.
— Mas você decidiria pelo aborto, não é?
— Não — respondo sem dúvida. — Nunca cheguei a pensar nisso, na
verdade. É uma opção válida e que as mulheres tem que ter o direito, mas
não escolheria por isso, caso estivesse em minhas mãos fazê-lo.
Mas eu também não decidiria pela adoção. Isso ainda fere. Ainda arde.
Eu espero que no futuro, essa criança entenda melhor do que eu, que
fizemos isso para o seu bem. Infelizmente é uma dúvida que vou carregar
para a vida toda.
— Francis! — Jayden me grita do lado de fora, erguendo a mão. A gente
combinou de ir junto e rachar a gasolina. Não tem porque gastar mais, se
vamos para o mesmo lugar. Talvez a gente se pegue de porrada algumas
vezes, mas é sempre bom para manter o corpo aquecido.
— Tenho que ir. — Tiro o braço de Vance da frente da porta, escutando o
que ele fala ao final.
— Você tá deixando ela estragar sua vida.
Balanço a cabeça, sequer me dignando a olhar para trás. Ele não faz
ideia do que diz. Porque desde que me entendo como gente, tudo que
Angelina fez foi melhorar minha vida.
Mesmo quando tenta me magoar, ela ainda é a melhor parte desse
maldito mundo.
 

 
— Como estão as coisas? — Jayden senta na cadeira à minha frente no
nosso horário de descanso. Ele coloca sobre a mesa uma bandeja com dois
hambúrgueres monstruosos e pego um para mim.
— Você quer dizer com o incêndio?
— É, Isabela me contou que foi uma merda.
— Destruiu a cama das duas e o banheiro, mas não chegou ao armário de
roupas, então elas deram até sorte. Além do mais, não saíram machucadas,
é o que importa.
— Claro — ele assente, me olhando esquisito.
— Pergunta de uma vez o que quer perguntar.
Ele ri, assentindo.
— Angelina vai morar com você?
Meus lábios se repuxam em um sorriso sarcástico. Eu sabia que era isso
que ele queria saber desde o início.
— Eu ofereci, mas não sei se ela vai aceitar.
— Sei… — Jayden dá uma mordida no hambúrguer e parece que está
comendo sola de sapato, porque sua expressão é quase uma careta de dor.
— Eu sei que você é apaixonado por ela — revelo.
Ele me olha de supetão, mas não nega.
— Eu sou. — Jayden limpa a boca, apoiando os braços sobre a mesa. —
Mas eu já entendi que Angelina só quer minha amizade.
— Mas continua esperando pelo dia que isso vai mudar.
— Não vou mentir. — Ele anui, manejando a cabeça afirmativamente.
— Espero sim que isso aconteça, porque na minha visão, sou muito melhor
pra ela do que você.
Fecho minhas mãos na lateral da cadeira.
— Na minha visão, você ficaria incrível com um olho roxo. — Sorrio
diabolicamente.
— Na minha visão, minha mão se encaixa perfeitamente no seu queixo
também — ele me encara com verdadeira gana nos olhos.
— É uma pena que ela nos odiaria se a gente se quebrasse — digo com
falso humor.
— Realmente é uma pena. — Jayden assente veementemente.
Ficamos nos olhando seriamente, mas acabamos os dois caindo na
gargalhada. Não sei bem o porquê, já que nem ele, nem eu, temos Angelina
do lado.
— Eu não vou tentar nada com ela agora, você sabe…. — ele fala
quando se recupera. É a primeira coisa sensata que disse nessa conversa.
— Nem eu vou falar de relacionamento com ela agora. — Dou de
ombros. — Não é justo. Não vou usar de nenhum artifício para ficar com
Angelina. Quando estivermos juntos, vai ser porque ela decidiu assim.
— Se — ele me corrige. — Se ficarem juntos.
Sorrio.
— Quando. — O interrompo. — Você é apaixonado por ela Jayden. Eu a
amo. A amo há muito tempo. E não há nada que eu não faria por Angelina.
— Você largaria a natação? — ele joga sobre mim com um sorriso de
quem achou o ponto fraco de um oponente. Sou obrigado a segurar a risada.
— Eu abandonaria a Angelina, porque a amo. O que é a natação perto
disso? — Respiro fundo. — Se chegar o dia, em que eu veja que não há
mais chances para nós, e que tudo que posso oferecer a ela é dor, então eu a
deixarei livre. E nada é mais difícil do que isso.
Jayden engole.
— Então você ainda vê chances.
— Sim. Eu vejo.
— Não vou te desejar sorte.
— Não espero que faça isso. — Dou de ombros. — Da mesma forma
que eu te desejo todo o fracasso nessa empreitada de conquistá-la.
Ofereço minha mão a ele.
— Todo o azar pra você também. — Ele aperta firmemente minha mão.
Acho que pela primeira vez, não quero socar a cara dele. Talvez não
sejamos amigos. Isso seria forçar a barra além do que eu e ele queremos.
Mas podemos coexistir sem causar uma hecatombe.
Passo pela porta de casa depois de terminar o expediente de trabalho e
treino do dia, tentando não fazer muito barulho. Barulho. Mas deixo meu
casaco cair três vezes tentando encaixá-lo no gancho sem acender a luz.
Sair do treino tão tarde e cansado tem me deixado ainda mais desastrado.
— Onde você tava?
— Puta que pariu! — Levo a mão ao coração, esperando minha alma
decidir voltar para o corpo. Procuro pela voz, encontrando Angelina sentada
no sofá com uma xícara nas mãos e um livro na outra. Ethan está deitado
com a cabeça no colo dela, completamente apagado. E roncando.
Mordo a boca para não rir da cena. Ela deve tá puta por não ter seu
silêncio e seu próprio canto.
— Você me assustou — falo normal, sem preocupação alguma de
acordar o jogador. Ethan não acorda nem se colocarmos essa casa abaixo.
— Vovó Lina fala que quando nos assustamos fácil, é porque estamos
escondendo alguma coisa. — Ela bebe um gole do conteúdo de sua xícara.
Sento no braço do sofá.
— Bom, dessa vez vovó Lina está errada. Não estou escondendo nada.
— Por que chegou a essa hora? — desconfia. Angelina está analisando
cada parte minha, pescoço e rosto principalmente, talvez em busca de
marcas de batom. É impossível não sorrir para a carinha irritada dela.
Está com ciúmes, meu anjo? Eu adoraria se estivesse.
— Estava no treino. — Aponto para meus cabelos molhados.
— Até essa hora? — ela estreita os olhos, passando a mão nos meus fios.
— E isso pode ser consequência de um banho na casa de alguém.
Ah, ela tá com ciúmes.
— Poderia, mas não é. Eu comecei o treino tarde, por isso terminei tarde.
— Por que começou esse horário? — eu posso ver uma veia na testa dela
saltar.
Pergunte o que quer, Angel. Você não é de fazer rodeios.
— Porque eu estava ocupado de tarde.
Eu poderia falar que estava trabalhando, mas ela ainda não sabe desse
detalhe e tá muito bom vê-la tentar fugir da pergunta principal.
— Você estava com alguém? — Limpa a garganta, desviando o olhar do
meu.
— Alguém, tipo uma pessoa? Sim, com certeza tinham pessoas no lugar.
Ah, eu vou para o inferno mesmo, não custa brincar um pouco.
— Eu quero saber se você estava com uma mulher, Francis Hopkins! —
Ela rosna para mim e Ethan resmunga, mudando de posição no colo dela. O
rosto dele agora está virado para a barriga dela, quase entre suas pernas.
Epa, ele tá com a cara bem no meu lugarzinho da felicidade, não tô
gostando disso não.
Angelina dá um tapa na careca dele, que se vira novamente para o outro
lado. Melhor, muito melhor.
Respiro aliviado. Não vou precisar enterrar meu melhor amigo.
— Não, eu não estava com uma mulher, meu amor. — Jogo uma
piscadela. — Se soubesse como eu gosto de você bravinha, não ficava
fazendo essa cara.
— Para de me cantar e me fala onde esteve — Ela bate na minha perna,
bem menos brava.
— Trabalhando.
— Trabalhando? — As sobrancelhas loiras se unem.
Assinto, fuçando o cabelo dela. Eu gosto demais desses fios loirinhos.
— Jayden me arrumou um emprego em uma lanchonete, hoje é meu
terceiro dia lá.
— E por que não me disse nada?
— Porque com a quantidade de copos que eu já quebrei, fiquei com
medo de ser demitido. — Dou de ombros. — Eu não queria te contar e
depois não dar certo e você se decepcionar comigo.
— Francis… — ela ofega, se esticando para beijar minha bochecha, sem
que para isso derrube meu amigo de seu colo. O breve contato aquece meu
peito. Nós tivemos nosso momento no vinhedo, mas não é sexo que quero
com ela. Não só sexo pelo menos. Eu sinto falta de abraçá-la, de beijar seu
rosto, de acariciar as maçãs macias de suas bochechas, de segurar sua mão.
De conversar sem brigar...
— Por que me beijou?
— Você achou ruim?
— Claro que não, baby. — Sorrio de lado. — Só fiquei surpreso com o
gesto.
Ela abaixa a cabeça sem graça pela forma que a chamo. Bobinha.
— Eu quis te beijar porque é fofo o fato de você se preocupar em me
decepcionar.
— Não quero fazer isso nunca mais na vida, Angel.
— Eu sei — Respira fundo. — Mas vamos falar de coisas boas, você
conseguiu um emprego, isso é maravilhoso!
— É… — Coço a cabeça, um pouco sem graça. Não é todo dia que
ficam orgulhosos de mim. — Eu tô gostando bastante, o chefe é um cara
legal, ele nem faz mais careta quando escuta algo quebrando.
— Você precisa urgentemente de noção de espaço, lindo.
Meu coração dá um salto triplo carpado no meu peito. Não comento
sobre ela ter me chamado assim, não quero estragar seu bom humor.
— Eu sei, mas estou pegando o jeito, o Jayden tem me ajudado.
— Você tá trabalhando no mesmo lugar do Jayden?
— Sim… — Encolho os ombros. — Por que o espanto?
— E ainda não se mataram? — ela continua em choque.
— Bom, hoje nós idealizamos socar a cara um do outro, isso conta?
— Pra vocês dois, já é um progresso que pelo menos se falem.
— Ele quer o seu bem — explico.
— E o que isso tem a ver com você?
— Bom, você está grávida e ele sabe que precisamos lidar com essa
situação agora, então me ajudar nesse momento, significa te ajudar também.
Uma ruga se forma entre as sobrancelhas de Angelina.
— O que foi? — sussurro.
— É que… bom, eu deveria procurar um emprego também. Não é certo
deixar tudo nas suas costas.
Nego com a cabeça.
— Não seja absurda, Angelina. Quem lidará com toda a dificuldade da
gravidez é você. Esse emprego é para caso precisemos de algo, não
fiquemos ligando para nossos pais a todo momento. Até porque, se a gente
fizer isso, vai dar brecha pra mais sugestões deles e eu não sei você, mas
não aguento outra conversa daquela.
— Não, pelo amor de Deus — ela ofega, balançando a cabeça.
— Então…. Eu preciso dar conta dos imprevistos. Nós temos que nos
informar sobre a adoção, não sabemos quanto tempo leva e eu não quero
que você mude sua rotina mais do que ela já vai obrigatoriamente ser
alterada.
— Não tô doente.
— Claro que não. Apesar de anêmica, ter ingerido drogas e fumaça tudo
em uma única semana, você tá inteira. — Reviro os olhos para os últimos
acontecimentos e ela esconde a risada. — Você é forte. Mais forte do que
imaginam. Não falo isso porque acho que você não dá conta, falo para que
tente seguir sua vida como era antes, o máximo que der. Vai chegar um
momento, que será impossível. Por um tempo, será impossível. Nada mais
justo que eu também me dedique. Não acha?
Desenho seu rosto com as pontas dos dedos, admirado com o quanto é
linda. Nunca me canso de descobrir coisas nela. Há sempre algo novo,
como se fosse a primeira vez que a vejo.
— Eu gosto de ganhar, não de ficar empatada — os cantos dos lábios
rosados se esticam em um sorriso provocador.
— Ah, eu sei, sua competitiva dos infernos. — Gargalho e Ethan
resmunga algo. Só espero que ele não babe em cima de Angelina. Ela com
certeza o socaria. — E por falar nisso, já aceitou morar aqui um tempo?
Angelina revira os olhos e suspira.
— Não é o ideal, mas eu não tenho outras opções racionais agora.
— Então seja bem-vinda, colega de casa. — Jogo uma piscadela.
Angel passa a mão próximo à minha têmpora.
— Tem alguma coisa diferente em você — ela diz com o cenho franzido
na minha direção.
Ah, merda.
— O que? Tô com cheiro de fritura? Eu juro que estou sentindo isso em
mim vinte e quatro horas por dia. — Puxo minha camiseta para sentir o
cheiro.
— Não. — Balança a cabeça. — Não é fritura. É algo nos seus olhos.
Algo que parecia apagado e que se acendeu, um brilho muito mais forte do
que eu já tinha visto antes.
Franzo o cenho.
— Você é a segunda pessoa hoje que me diz algo parecido.
— E quem foi a outra, Hopkins? — a expressão dela muda de pensativa
para raivosa em segundos. Jesus, não dá para acompanhar.
— Um velho professor de medicina. Barbudo e muitos anos de vida para
o meu gosto, sabe como é. — Gargalho da cara de sem graça que ela faz. —
Não sabia que era tão ciumenta, amor.
— Primeiro — Angelina aponta o dedo na minha cara. — Não sou
ciumenta. E segundo, não sou seu amor.
Levanto do sofá, beijando seus cabelos. Talvez eu me demore inspirando
seu perfume de lírios.
— É sim, você sempre será meu amor. O amor da minha vida.
Subo para o quarto sem esperar pela sua resposta. Até porque não espero
mesmo uma. Tempo. É disso que precisamos para tudo se curar.
Tempo.
 
 
 

 
 
19 de abril. Meu aniversário. A uma semana de completar cinco meses
de gravidez. Não foi assim que eu imaginei fazer 20 anos. Essa é a fase em
que quando era criança, costumava brincar com Francis que o estava
alcançando na idade, apenas para em dezembro ele ir e abrir mais um
espacinho entre nós.
Não programei nada para hoje. Na verdade, não planejo algo há muito
tempo, apesar de gostar do meu aniversário. Acho que a última festa que
fiz, foi de 15 anos e foi organizada pelos meus pais. Nunca vou me esquecer
dela, porque foi quando Francis e eu nos beijamos pela primeira vez.
Quanta coisa mudou desde então. Namoramos, ele se mudou e nos
separamos. Voltamos, ele fez merda e voltamos. Agora, estou grávida e não
voltamos, nem estamos separados. Estou morando na casa dele e noite após
noite, sinto meu corpo implorando para ir até ele. Na sala.
Francis cedeu seu quarto para mim e está dormindo na sala com Ethan.
Donna ocupou o quarto do jogador, porque não gosta da cama do irmão. Já
eu, me sinto no limiar entre paraíso e inferno, porque seu perfume
amadeirado está presente em cada canto do quarto, principalmente nas
fronhas de seus travesseiros. Ele bate na porta todo dia de manhã para poder
se trocar e eu fico o escutando no chuveiro. Francis não canta, mas eu fico
observando quando a água cai mais depressa e com força no piso, ou
quando cai branda, porque provavelmente todo seu corpo está embaixo do
chuveiro. Eu fico imaginando como as gotas de água escorrem pelas suas
costas, pelas pintinhas que eu sei existirem ali. Fico me perguntando como
seria passar a mão pelo seu corpo, misturado a sabonete líquido e água.
Nunca tomamos banho juntos.
Agora mesmo, ele está lá dentro, provavelmente cheio de espuma e eu
estou… merda, eu estou sedenta. Ao menos eu tenho a desculpa dos
hormônios.
Bebo um copo de água que Francis deixa todas as noites na mesa de
cabeceira, para que eu tome todos os remédios e vitaminas logo ao acordar.
É tanto comprimido, que leva cinco minutos até que eu tenha engolido
todos. E ele falta conferir embaixo da minha língua para saber se tomei
mesmo.
Ouço o trinco da porta do banheiro e me endireito na cama, sentando
com as pernas cruzadas uma à outra. E lá vamos nós para a sessão diária de
água na boca. Eu poderia acordar mais cedo, tomar banho e já sair do
quarto para não presenciar o nadador apenas de toalha enrolada na cintura,
com o cabelo respingando água pelo peitoral e descendo para o “v” que
forma seus músculos. Mas não consigo. Poderia dizer que é por sono, mas
é só falta de vergonha na minha cara, mesmo.
— Ei, bom dia! — Ele sorri carinhosamente, quase me derretendo com
os olhos mais claros pela manhã. Sempre gostei de como seu rosto fica mais
inchado, me lembrando de quando éramos crianças.
— Bom dia... — Sorrio de volta, suspirando para quando ele vem na
minha direção e deposita um beijo demorado na minha testa. Meu rosto fica
de frente para o abdômen malhado e, que Deus me perdoe, eu tenho
vontade de passar a língua em cada gotinha de água na região.
Francis inspira meu perfume sem qualquer discrição e se afasta com uma
expressão afetada.
— Hoje é seu aniversário. — Ele se senta na lateral da cama. O nó da
toalha continua em seu lugar e isso me decepciona mais do que deveria.
— Eu sei.
— Feliz aniversário. — Francis recolhe minha mão, beijando o dorso em
um toque singelo. Isso me aquece por dentro.
— Obrigada.
Ele não solta minha mão de imediato, fica deslizando a pontinha gelada
do seu nariz por ela, fazendo cócegas. Quando seu olhar sobe ao meu, sua
testa forma um vinco no centro.
— O que foi?
— Tem uma… espera. — Ergue a mão até meu cabelo, puxando uma
pequena pena branca de lá, a estendendo na frente do meu rosto. Observo a
penugem macia e mordo o lábio, olhando para ela pensativa. Solto uma
risada.
— Vovó Angelina costumava dizer que quando encontramos uma pena,
quer dizer que nosso anjo da guarda está por perto.
— É algo bonito de se pensar. — Ele deposita a pena no meu colo e
ajeita uma mecha do meu cabelo para trás da orelha. Seus gestos são feitos
com tanto carinho, que me deixam fraca. — Espero que ele esteja mesmo
cuidando bem de você.
Coloco minha mão sobre a dele, deitando a cabeça em sua palma. O
calor me conforta.
— Ele está. — Observo cada ponto do rosto forte, mas ao mesmo tempo
gentil, e meu coração espanca o peito. — Você está.
— Como assim? — sussurra.
— Você me chamou de anjo a minha vida toda. — Rio divertida. — Mas
você sempre foi o meu anjo. Meu anjo da guarda. — As íris cristalinas
faíscam. É bonito. Quase doloroso de tão bonito. — Você esteve presente
em todos os momentos que eu precisei ser salva. Não apenas da água. Você
me salvou quando precisei ser ouvida, vista e sentida. Você me falou com
palavras, com silêncio e com toques. Você me salvou em todos os
momentos que eu pensei ser difícil demais existir. E não foram poucos.
— Não, não foram. — Ele sorri, as bochechas ficando rosadas. Francis
não sabe receber elogios ou comentários positivos sobre si. Não gosto disso.
Ele não vê o quanto é bom? Não vê o que todos veem em seu coração? Por
que pensa que as pessoas se aproximam dele? Só pela beleza? Isso dura
pouco. As pessoas se aproximam porque ele mostra que nada no mundo é
mais importante que seu bem-estar. Isso é raro. Tão raro, que só encontrei
um anjo assim. Ele.
— Obrigada — murmuro, erguendo seu queixo com a ponta dos dedos.
Ele não costuma permitir que eu desvie o olhar do seu, então também não
lhe darei essa brecha. Quero ver a verdade em seus olhos da mesma forma
que vê nos meus.
— Não precisa me agradecer por nada. Eu fiz o que devia ter feito.
Nego, aproximando meu rosto do seu. O perfume amadeirado me
invade. Passo os dedos por seus cabelos molhados, tentando arrumar a
verdadeira confusão que os fios se encontram. Gosto dos sons que saem da
sua garganta, manhosos pelo carinho.
— Apesar de qualquer coisa que tenha havido entre nós, você sempre
esteve lá quando mais ninguém esteve e me resgatou de uma forma que só
você sabia como. Então sim, sempre haverá um motivo para agradecer
você.
— Angelina…
— Shhhh — encosto nossos lábios e um suspiro escapa dele. — Não me
contrarie. É meu aniversário, apenas aceite o que eu digo.
Sinto seu sorriso sobre minha boca. Eu quero tanto beijá-lo. Mas ainda
tenho tanto medo de no próximo dia não poder mais…
Eu quero que Francis me prove que posso confiar de novo em nós.
Quero que me faça acreditar.
Por favor, me faça crer. Eu quero ter fé em nós dois.
— Tudo bem, só porque é seu aniversário vou fazer tudo que quiser.
Ele acaricia meu couro cabeludo com uma mão, enquanto a outra
repousa em meu rosto, fazendo cócegas com as pontas dos dedos macios.
— Tudo? — sussurro, meu hálito se misturando ao dele. Nossas
respirações são o único som no quarto.
— Tudo. — A voz rouca me faz arquejar.
— Então me dá um beijo de presente — digo antes que a coragem me
falte.
Era mais fácil dizer e fazer o que eu queria quando achava que ia morrer.
Era só jogar a culpa na doença e que eu teria pouco tempo. Agora só posso
culpar meu desejo por ele. Por nós.
— Onde? — ele pergunta, destravando uma memória. Da noite antes de
sua partida para São Francisco, quando nossa promessa foi feita. Éramos
ingênuos..., mas felizes. Definitivamente éramos felizes.
— Aqui. — Toco meus lábios, assim como ele fizera comigo no
passado.
Francis sorri antes de dar fim a qualquer distância entre nós.
Os lábios dele são gentis, carinhosos… gratos. Nossos beijos costumam
ser afoitos e regados a instintos primitivos dos nossos corpos, mas esse não.
Este é apenas um beijo de gratidão, tanto minha quanto dele, por nunca
termos soltado as mãos um do outro, ainda que nossos rostos estivessem
virados para o outro lado e nossos corações carregados de raiva, rancor e
ódio. No fim, sempre termina em nós dois. Mesmo quando não somos
“nós”.
Ele não prolonga o contato de nossas bocas, mas cola sua testa à minha e
fica apenas me olhando.
Por uma eternidade.
E eu faço o mesmo.
O olho.
Por uma eternidade.
Vovó estava certa. Meu anjo da guarda está comigo.
Sempre está.
— Eu tenho outro presente para dar a você — revela.
— Mesmo?
— Uhum — Francis sorri, beijando minha boca antes de abrir uma
gaveta do seu armário e tirar de lá uma pequena caixa branca, com um laço
salmão a fechando. Ele a entrega para mim e umedece os lábios, parecendo
ansioso.
Mordo os meus, desfazendo o laço e erguendo a tampa. Dento da caixa,
um único lírio branco é envolto por um colar de prata, extremamente fino e
delicado. Nele, há um pingente com um aro circular e no centro do círculo,
uma onda, exatamente como a desenhada no meu braço, onde um dia foram
suas iniciais. Ergo o cordão com a ponta dos dedos, emocionada com o
quanto o objeto é delicado.
— Há algo gravado envolta do círculo — ele murmura baixo.
Aproximo o pingente dos olhos, cobrindo a boca com a mão para a
pequena frase entalhada.
“Uma onda sempre volta para sua praia”.
Ofego, olhando para ele em busca de respostas.
— Você me disse no vinhedo que sou como uma onda para você. Se sou
como uma, Angelina... então você é minha praia. É para onde sempre vou
retornar. Não importa se a maré estará alta ou baixa... eu sempre vou voltar
para você.
Engulo com dificuldade, estendendo o colar para ele. Francis entende
meu pedido mudo, colocando-o envolta do meu pescoço. Ao terminar, ele
beija a junção do meu pescoço com o ombro, inspirando o perfume da
minha pele. Não o deixo se afastar depois disso. Envolvo suas costas com
os braços, o mantendo para mim. Francis me abraça tão apertado, que sinto
seu coração bombeando junto com o meu.
— E uma praia sempre espera o retorno da sua onda — murmuro contra
sua pele.
Seus braços se estreitam à minha volta.
 
 
Desço as escadas sozinha, depois de Francis ter me deixado no quarto
para tomar um banho. A gritaria na casa chega ao andar de cima. Ethan e
Donna juntos tem sido algo difícil de lidar, os dois são bagunceiros e
barulhentos. Duas semanas parecem uma vida inteira, ao passo que é pouco
tempo para entender aqui como minha casa.
— Essa torrada era a minha! — Donna briga com Ethan, que está agora
com a boca cheia.
— Não era não. Era a minha! — ele fala embolado com a boca cheia de
comida.
São duas crianças.
— Bom dia — Vou para me sentar ao lado de Francis, mas Vance senta-
se antes de mim. Ele me oferta um sorriso de lado e preciso segurar a língua
para não o mandar a merda. Mas não vou ceder ao joguinho dele e me
tornar a vilã da situação. Ele pode enganar os outros, mas não a mim.
— Bom dia, aniversariante! — Donna corre para o meu lado e estala um
beijo na minha bochecha, me fazendo esquecer momentaneamente de
Vance.
Ai, tá molhado, melecado e doce.
É geleia.
Eu vou matar ela.
— Eu acabei de tomar banho! — Esfrego o rosto.
— No seu aniversário você tem que aguentar meu grude, sabe que é
minha condição.
Reviro os olhos.
Eu odeio parabéns. Odeio ver as pessoas em volta de mim, todas me
encarando e cantando uma música ridícula, com palmas incluídas. Donna
sempre me infernizava querendo cantar os parabéns, então a fiz prometer
que não cantaria mais, e ela me fez prometer que aguentaria seu grude ao
menos por esse dia. Agora não sei se fiz uma boa escolha, porque essa
geleia não quer sair da minha cara. E o cheiro… o cheiro está me dando
embrulho no estômago.
Cubro a boca com a mão e corro. Corro para o banheiro, despejando o
que sobrou do que comi ontem. Em poucos segundos sinto mãos retirando
meu cabelo da frente do rosto e não preciso olhar para trás para saber que é
o Ethan. Ele virou o “radar de vômitos da Angelina”. Nome que ele mesmo
deu, a propósito. Eu mal chego no banheiro e ele já está lá me esperando.
Francis e ele brigaram um dia para ver quem iria segurar meu cabelo e eu
ainda estou tentando entender como alguém disputa para ficar perto de
alguém vomitando. Eu, particularmente, não quero nem ficar perto de mim
mesma. Odeio essa parte, é uma merda, vem do nada, para as coisas mais
aleatórias do mundo. Simplesmente agora eu detesto minha pastilha de
menta. Mas tenho roubado secretamente todas as de melancia do Francis. A
gaveta dele está cheia delas e não importa o quanto eu coma, sempre
aparece preenchida no dia seguinte.
— Pronto? — meu amigo averigua.
Assinto, escovando novamente os dentes. Usei pasta de adulto até
mesmo quando era criança, mas agora cá estou eu, usando aquelas de
criança com gostinho de tutti-frutti. Cutuco o ovinho que se formou na
minha barriga.
— Você tá acabando com a minha dignidade, Serzinho — sussurro só
para eu escutar. —  Hoje é meu aniversário e você podia muito, mas muito
mesmo, não me fazer vomitar a cada meia hora. É vergonhoso, nojento e
algumas galinhas ficam vindo atrás de mim, como se eu fosse suas crias! —
falo alto a última parte, encarando Francis e Ethan parados na porta feito
seguranças. — O que vocês querem?!
Grito irritada. Parecem abutres em cima da carniça. E a carniça sou eu!
— A gente só tá conferindo se tá tudo bem. — Francis ergue as mãos.
— Não queremos que você desmaie sem que a gente saiba. — Ethan
complementa. — Imagina só, a gente se distrai, você desmaia e aí nos
perguntamos “onde está Angelina?” e adivinhe só, Angelina vai estar
apagada no chão.
Arqueio a sobrancelha.
— Saiam do banheiro. Os dois! — Fecho a porta em cima deles. — Só
falta quererem conferir a cor do meu xixi, agora.
— Não seria uma má ideia, o xixi nos diz muito sobre a saúde — Francis
começa a falar e bato a porta na cara dele.
Nem que me matem ele vai conferir o meu xixi. Há um certo limite que
uma garota aguenta de invasão de privacidade. E sinceramente, mais gente
do que eu gostaria viu meu útero nos últimos dias. É um tal de abre as
pernas pra cá, afasta os joelhos pra lá, que não está nada legal. Eu não gosto
que me toquem na mão, interiormente a coisa é ainda pior. Ainda mais
quando vem com aqueles instrumentos metálicos e gelados. Eu juro que
imagino matar o Francis todas as vezes que tenho que passar por isso. A
culpa é toda dele.
Dele e do amiguinho no meio das pernas.
Eu ainda te fatio em pedacinhos, pênis cretino.
 

 
— Achei que não viria hoje, Angelina — a treinadora Hart me
confidencia. Ela bebe da sua xícara de café com muita cafeína, enquanto eu
preciso me virar com o descafeinado insosso. A treinadora me chamou para
nos sentarmos no quiosque do campus depois do treino e desconfio que seja
para ver se irei passar mal pelo esforço. Mas estou bem.
— Por que não viria?
— É seu aniversário, não é? Ou estou enganada?
— Sim, é meu aniversário.
Quico a bola no chão três vezes. Está um pouco murcha.
— É… — Ela faz uma careta. — Não deveria querer uma folga?
— Aniversários são comemorações da nossa existência, por que deveria
mudar algo da minha por isso? — Dou de ombros. — Se quero celebrar
minha vida, então devo vivê-la como de costume.
Hart balança a cabeça, rindo.
— Eu me esqueço o quanto você é espirituosa.
— Quer dizer esquisita? — Estreito os olhos.
— É, isso também. Mas não se ofenda, isso é um ponto positivo.
— Tudo bem, já me chamaram de coisa bem pior.
Tipo quando Ethan me chamou de incubadora ambulante. Eu espero que
meu beliscão esteja roxo ainda.
Suspiro. Estou me cansando de tanta gente preocupada comigo. Josh me
dá algo para comer sempre que me vê, Donna anda na minha frente como
uma guarda-costas, para impedir que qualquer pessoa esbarre em mim,
Ethan é o sensor de vômitos e segurador de cabelos oficial, Blue tem me
enchido de roupas para grávidas estilosas toda vez que me visita. Ela disse
que não aceita que eu ande com coisas largas e feias. E Francis… bom, esse
tem tentado disfarçar seus cuidados de todas as formas possíveis, mas ainda
está lá e eu posso ver. Ele está trabalhando duro e guarda todas as gorjetas
em uma caixinha no guarda roupa, confere meus remédios todos os dias,
fica observando o crescimento da minha barriga sempre que pensa que não
noto. Mas eu noto, todas as vezes.
Ele ao menos não fica falando de gravidez o tempo todo como os outros.
— Esse café é horrível. — Meu estômago revira forte.
— Cafeína não faz bem ao bebê. — Ela dá de ombros.
— Não faz bem a ninguém, tomamos porque precisamos ficar vivos. —
Cubro minha barriga com as mãos, sentindo novamente o revirar.
E continua revirando e revirando.
Franzo cenho.
Isso não é pelo café.
Mais uma vez, a contração. E dessa, não parece um revirar. Parece um…
Olho para baixo, assustada.
Paro de respirar, vendo se sinto de novo.
E aí está.
Revirando.
Ou melhor… chutando.
Não é meu estômago.
É o… o bebê?
Arregalo os olhos.
Está se mexendo. Dentro de mim.
Oh, merda.
Seguro a lateral da mesa.
Onde foi parar o oxigênio desse lugar? Abro a boca para puxar mais ar,
no entanto, tudo que ele faz é escapar de mim.
Respira, Angelina. É só respirar. Não é nada demais, só está se movendo,
você sabia que isso iria acontecer em algum momento.
Está se mexendo em mim.
E eu não quero. Sabendo ou não, não quero. É meu corpo. Só meu.
— Angelina? Está tudo bem? — Hart inclina o corpo para frente.
Nego com a cabeça.
Está se mexendo.
Não posso fazer nada para impedir.
Não tenho controle do meu próprio corpo.
Hiperventilo.
Para. Por favor, fique quieto. Serzinho, fique quieto.
Não estava pronta. Não estou pronta. Ele está aqui, dentro de mim, e
agora é um pouco difícil não me lembrar disso e ver o quão estranho é.
Por que ninguém fala disso? Por que ninguém diz o quanto é estranho
alguém se movendo dentro de você, empurrando seus órgãos, alargando
seus ossos. Sou apenas eu que não consigo gostar dessa parte?
Já li livros com mulheres grávidas, já as vi em filmes, poucas na vida
cotidiana, mas todas, em absoluto, disseram o quanto era bom sentir o bebê
se mexer, principalmente a primeira vez. Mas eu não. Não consigo sentir
essa emoção, que enche o coração de carinho e afeto, que me faz
transbordar de alegria. Não. Eu sinto medo. Muito medo. Quando ele se
moverá? Quando parará? Vai ser o tempo todo? Vai doer? E quando ficar
maior? E quando eu apenas quiser me sentir sozinha?
Meu peito sobe e desce descontroladamente. Arranho a palma das mãos
com as unhas, meus ombros encolhendo-se como se eu quisesse
desaparecer. E eu quero. Sozinha. Sem ninguém movendo coisas em mim,
que não autorizei.
Estar consciente de que outra vida reside em mim é assustador. É
aterrorizante. Principalmente quando usa tudo que é meu. Minhas
vitaminas, minha energia, ocupa meus órgãos como sua casa e não tem
problema em bagunça-los no processo.
— Angelina! Está passando mal? — Hart faz menção de me tocar e
afasto a cadeira no gramado depressa, quase caindo no processo. A cadeira
despenca atrás de mim.
— Não! Não encosta em mim! — Cubro os ouvidos com as mãos,
mesmo que não sejam os sons que de fato me incomodam. É apenas a
minha forma de me sentir segura do mundo.
As pessoas me olham de cenhos franzidos e cochicham umas com as
outras, olhando esquisito. Aperto minhas orelhas, saindo correndo o mais
rápido possível dali, escutando os gritos de Hart pelo meu nome.
A pior parte em ter um grau de autismo que as pessoas consideram
“leve”, é que elas acham que o que passamos, também é leve. Brando.
Insignificante.
Talvez eu não precise de muito suporte das outras pessoas. Talvez eu não
precise de ajuda constante para realizar atos básicos.
Mas há dias, que as gotas de água que pingam no chão, são como
metralhadoras em meus ouvidos, dando tiros ininterruptos e impiedosos. Há
dias que o deslizar do pincel atômico sobre o quadro branco, é o mesmo que
o raspar de unhas sobre uma lixa áspera demais. Há dias, que o deslizar do
zíper de bolsas e mochilas, são como o barulho de um trem passando a toda
velocidade pelos trilhos, ensurdecendo. Há dias que os tampões de ouvidos,
as pastilhas de menta, ou até mesmo o raspar das minhas unhas na roupa,
não são o bastante para aplacar os estímulos do mundo do lado de fora. Ou
pior, silenciar os estímulos do lado de dentro.
A desordem não pode ser vista por todo mundo. Para a maioria das
pessoas são sons normais, coisas comuns, dias convencionais, toques gentis.
Para mim, são aqueles em que eu gostaria de poder colocar-me dentro de
um quarto sem cores, sons ou luzes. Um quarto onde até mesmo meus
pensamentos são tirados de mim, permitindo-me ouvir apenas o eco do
nada… do absoluto silêncio.
Há dias, como hoje, principalmente hoje, que eu tenho vontade de
mandar a merda, qualquer um que ouse dizer que o que sinto é leve. Leve
para quem não sente. Leve para quem não precisa lidar com a dor de
simplesmente sentir um bebê se mover, algo que deveria ser incrível e que
para mim é agonizante. Leve… palavra maldita.
Enquanto o mundo se mostrar em muitos momentos hostil para mim,
tudo isso não será leve. Um peso que me custa carregar, deve levar outro
nome. Ser autista, dentro da minha cabeça, tem seus dias ruins. Mas ser
autista, para o mundo aqui fora, com pessoas que não te entendem, que te
olham atravessado, e que te fazem sentir fora da sociedade, é ruim sempre.
Talvez eu só tenha direito a crises quando era criança.
Bufo.
Nem mesmo nessa época eu tive. Era apenas a garota sem educação,
birrenta e mimada. Tudo agora só piora, porque não podem mais culpar
meus pais pela falta de educação, podem apenas me achar maluca, na
melhor das hipóteses.
Me escondi na biblioteca.
A tarde toda.
É o lugar onde eu sinto que ninguém pode me julgar. Os personagens dos
livros não vão me olhar de cara feia ou apontar o dedo para mim. Eles não
se importam com quem os está lendo. Não se importam com nossos
problemas. E por isso é tão bom ficar na companhia deles. Amigos que
conhecemos, mas que não nos conhecem de volta.
Não trabalhei no tempo que fiquei aqui e sendo bem sincera, não me
arrependo. Apenas achei o corredor mais afastado, escuro e silencioso e me
sentei no chão, com as pernas encolhidas, rezando para que o bebê se
aquietasse. Tive que fazer isso em silêncio, porque cada vez que eu falava,
mais ele se movia. Minha voz o deixa agitado, ao que parece.
Saí da biblioteca mais tarde do que meu expediente exigia e voltei para
casa esperando encontrar todos muito ocupados. Não estou no clima para
comemorações, não quando posso simplesmente surtar de novo. É um
verdadeiro milagre que ninguém tenha insistido para fazer algo hoje.
Milagre até demais.
Abro a porta de casa, encontrando a sala escura e vazia. Está
particularmente cedo para todos estarem em casa, mas ao menos Donna
deveria estar aqui. Que eu saiba, hoje não tinha treino com as animadoras.
— Oi? — chamo em meio ao breu, recebendo como resposta uma
luzinha piscando no jardim.
Acende.
Apaga.
Acende.
Apaga.
O que diabos é isso?
Fico na ponta dos pés para tentar enxergar, mas o reflexo do vidro
atrapalha. Deixo a mochila no sofá antes de seguir até o jardim.
Abro a porta envidraçada, a correndo até o final. Tudo está escuro, se
passando das 19h. Em um segundo, tudo que vejo é o completo nada, e no
outro, meus amigos saem de trás da árvore do quintal, trajados com roupas
do século XIX e lanternas nas mãos.
— Feliz aniversário! — eles falam em uníssono, porém sem gritar.
Francis aperta algo em um controle em suas mãos e algumas luzinhas
douradas iluminam o gramado, permitindo-me ver a mesa que eles
prepararam, com croissant, panquecas salpicadas com açúcar de confeiteiro,
um bolo sem cobertura, apenas com raspas de limão por cima, e o que me
faz gargalhar. Uma melancia.
Eu tenho tido muita vontade de comer melancia.
Fiz Francis sair três dias atrás, à meia noite, para ir procurar uma pra
mim. Ele e Ethan levaram quase duas horas para voltar e quando chegaram,
eu já estava dormindo. Pelo menos eu comi no café da manhã. Comi a coisa
sozinha e faltei morder a mão de quem me pediu um pedaço.
Volto para a realidade, analisando o espaço em minha volta. Não tem
música no jardim, nem balões ou cores chamativas, que normalmente se
encontra em festas de aniversário. Só meus amigos vestidos de nobres
ingleses de 1800, tons neutros, comidas que não me incomodam e
decoração que não me dão pavor. Meus pais deveriam ter tido algumas
aulas com eles quando eu era criança.
— Vocês estão elegantes, senhores. — Faço uma falsa reverência,
encantada com os detalhes dos vestidos das meninas e das roupas pomposas
dos meninos. Eu tenho certeza que tem dedo do Josh e da Blue nisso.
Donna não cobriria tanto a pele.
— Senhorita... — Francis, Ethan, Josh e Jayden se curvam como
perfeitos cavalheiros. Se não os conhecesse, até acreditaria.
As meninas caminham na minha direção com sorrisos conspiratórios e
me seguro para não correr.
— Vem, a gente precisa te vestir. — Blue já sai me puxando pelo braço.
— E fazer cabelo e maquiagem. — Donna pega no outro braço.
— Oi pra vocês também — Reviro os olhos, permitindo-me ser
arrastada. Cassidy e Isabela nos seguem escada acima. Eu tenho a leve
impressão de que vou virar boneca.
Pelo menos é uma boa distração à verdadeira festa que o bebezinho faz
na minha barriga.
— Pronto — Blue dá um pulinho, terminando de fechar o vestido
comprido em mim.
— Você exagerou no blush — Donna estreita os olhos me observando.
— Não exagerou não, é que esse tanto de tecido tá me dando calor. —
Me abano com as mãos.
— Tá apertado aí? — Isabela aponta para minha barriga e Cassidy
belisca seu braço.
— Não fala isso!
— Tudo bem, eu sei que minha barriga tá crescendo. Tem um bebê aí,
sabia?
— Vamos logo, os meninos vão dormir desse jeito. — Donna me puxa
para fora da cama, entrelaçando o braço no meu e bufo irritada.
— Eu posso andar sozinha.
— A gente sabe, mas vai mais rápido se te carregar — Blue faz o mesmo
que minha amiga e descemos a escada com mais cuidado do que pressa.
Elas pensam que me enganam, estão me segurando para evitar que eu
caia. Essas duas viraram galinhas em cima de mim, Santo Cristo. Acho que
a única coisa em que concordam, além de se beijar, é em torrar minha
paciência.
Eu não sei a que pé anda a relação das duas, mas eu já vi a Blue sair
escondida daqui pela manhã mais de uma vez. Espero que Ethan tenha
consciência do que anda acontecendo na cama dele. Eu não imagino que
elas estejam fazendo algo além de sexo até às cinco da manhã. Donna gosta
de conversar, mas isso são com amigos. Ela nunca teve muita paciência
para relacionamentos e muito menos para discutir seus sentimentos. Ao
menos não os amorosos.
No jardim, os meninos conversam ao som de uma música baixa, tão
baixa que é difícil de escutar a letra. É legal que eles tenham pensado em
mim, mas não vou me importar se aumentarem um pouco o som. Duvido
que eles estejam apreciando esse volume tão baixo.
Caminho um pouco desconfortável, o tecido do vestido pinicando minha
pele. Austen que me perdoe, mas acho que vou rever meu sonho de ter
nascido nessa época. De jeito nenhum eu iria aguentar essas roupas.
— Olha, se não são nossas criadas chegando — Josh provoca, erguendo
a lapela da sua camisa.
— Criada é sua bunda, Josh Chao — Donna ergue o dedo do meio para
ele. — Eu fui uma dama em todas as vidas.
— Dama? — Francis gargalha. — Você tá mais pra rebelde.
— Ou fui uma bruxa poderosa — Don ergue o queixo, sorrindo como
uma.
— Se você tivesse sido uma bruxa, teria feito algum feitiço pra vir
menos chata — ele zomba.
— Eu sou a melhor irmã do mundo, admita. Sua vida seria terrível sem
mim.
— Não estou sendo pago para mentir, desculpe.
Sorrio para os dois. É bom ver que algumas coisas voltaram a ser como
antes. Principalmente quando se trata dos dois.
— Libera o irmão, docinho — Blue belisca o braço de Donna, que
empurra Francis na minha direção sem qualquer delicadeza. O nadador para
a centímetros de mim, usando a mesa para estancar o passo. O observo com
atenção pela primeira vez desde que cheguei. Ele fica bem vestido de nobre
inglês. Apesar que esse tanto de roupa é meio estranho num homem que
vive de sunga.
— Gostou da surpresa? — Ele fala sem fazer contato visual. Seus olhos
estão me avaliando e seu sorriso me dá o indicativo de que aprecia me ver
em trajes antigos. É bom me sentir como se estivesse em um baile da alta
sociedade londrina, ainda que eu esteja disposta a arrancar essa roupa o
mais depressa possível. Será que é por isso que em livros de época sempre
têm cenas eróticas nos jardins das propriedades? Porque as mulheres não
aguentavam o tecido na pele e saiam dos bailes malucas para ficarem nuas?
Começo a pensar que sim.
— Detestei — minto. — Odeio surpresas.
— Você sorri bastante para coisas que odeia.
— Por que acha isso?
— Porque você diz que me odeia, mas sempre tem um sorriso para me
entregar quando pensa que não estou vendo. — Seus dedos acariciam meu
braço de cima a baixo, arrepiando meus pelos.
— E odeio mesmo você — minto novamente.
Odiá-lo é, definitivamente, a coisa mais difícil que me propus a fazer.
Desafio quem quer que seja a tentar. Vai fracassar. Eu fracassei.
— Isso é bom, já que estamos caracterizados como personagens que se
detestam. — Ele pisca divertido. Algo no meu peito dá um salto.
Olho para minha roupa para fugir da tentação dos seus olhos. É difícil
definir um personagem só por estas roupas, principalmente se ele tiver
usado como base livros de Austen. As roupas eram retratadas da mesma
forma, sem grandes discrepâncias.
— E quem você é? — indago, ajeitando a costeleta falsa em seu rosto.
Estranhamento fica atraente. Ele provavelmente faria sucesso no século
XIX assim como faz no XXI.
— Vou dar uma dica.
— Manda — me animo para acertar.
— Eu odeio pobres. — Francis ergue o queixo, forçando uma expressão
prepotente.
Caio na gargalhada.
— Prazer, senhor Darcy. — Faço uma reverência para o protagonista de
Orgulho e Preconceito. O livro pode não ser meu favorito, mas com certeza
o senhor Darcy é um dos personagens mais intrigantes. Ele tem um claro
desprezo pela protagonista, ao mesmo tempo que uma paixão incontrolável.
Claramente levou bem ao pé da letra a parte do amor e ódio andarem lado a
lado.
— Eu gostaria de poder dizer o mesmo, senhorita Bennet — Francis fala
com um sotaque britânico perfeito e eu preciso me segurar na mesa do bolo
e comprimir as pernas para conter o arrepio que desce pela linha da minha
coluna. Que droga tem nesse sotaque que é incrivelmente sexy? Nossa sorte
é que os homens daqui não falam assim, ou nossas calcinhas sofreriam uma
perda significativa.
A minha, nesse momento, já era.
— Acho melhor não falar assim… senhor — pigarreio, passando a mão
no pescoço. De repente ficou quente aqui. Cristo, eu daria uns bons
trocados para ouvir a voz desse homem, com esse sotaque, falando pertinho
do meu ouvido. Como se eu precisasse de mais um incentivo para arrancar
essas roupas…
Francis solta uma risadinha maliciosa.
— Você gosta de sotaque britânico, Angelina? — ele sussurra no meu
ouvido e me seguro em seus braços para não cair.
— Gostar não seria a palavra certa.
— E qual seria a palavra?
— Desejo sexual irrefreável.
Arregalo os olhos quando percebo o que disse.
Francis gargalha baixinho no ouvido e o som caminha espinha abaixo, se
alojando entre minhas pernas. Cretino!
— Você é insaciável. Isso não é de bom tom para a alta sociedade.
— Isso quer dizer que se eu te convidasse para os meus aposentos para
tomar um chá, você recusaria? — Aprofundo as unhas em seus braços com
uma mão e a outra seguro em seus ombros. Merda, ele tem ótimos ombros.
Francis aperta minha cintura e a respiração sai baixa e densa na minha
pele. Perco o limiar da encenação. Não me recordo sequer que dia é hoje.
Antes que ele responda minha pergunta, uma discussão de Donna e Blue
nos fazem olhar para o jardim. Elas brigam para escolher a música, assim
como fizeram no Halloween do ano passado. Francis e eu soltamos uma
risada, já achando graça dessa interação entre as duas. Blue consegue
ganhar dessa vez, roubando um beijo na bochecha de Donna. Ela fica
desestabilizada tempo suficiente para a animadora colocar sua playlist na
caixa de som.
Uma voz melodiosa ressoa e me dispersa da discussão das duas, de tão
doce e quase melancólica. Não é nenhuma música que eu tenha ouvido
antes, mas eu não sou de ouvir música, então não seria muita novidade. As
primeiras frases, no entanto, me pegam desprevenida.
“Mal sabe você, que estou quebrada enquanto você dorme
Mal sabe você que eu ainda estou assombrada pelas memórias
Mal sabe você que estou tentando me reerguer, pedaço por pedaço.
Mal sabe você, que eu preciso de um pouco mais de tempo”
Engulo, sentindo a garganta seca.
A música segue e uma frase específica me faz olhar para Francis, no
mesmo momento que ele abaixa o olhar para o meu.
“Estou pronta para perdoá-lo.
Mas esquecer é uma luta mais árdua.
Mal sabe você, que eu preciso de um pouco mais de tempo.”
O nadador me fita de perto, sem ao menos piscar. O ar do mundo é
sugado e eu não encontro oxigênio para preencher meus pulmões. Quanto
mais perto seu rosto fica, mais meu coração aumenta seu ritmo e bate
desenfreado. Quanto mais tenho ciência de que suas pupilas tomam conta
do azul, mais minha pele se arrepia. Ele paira a milímetros de mim. Sinto
seu cheiro. Sinto seu calor. Sinto sua necessidade.
De mim. De nós.
E sinto a minha.
Dele. De nós.
— Me concede essa dança, senhorita? — Ele oferece sua mão em um
gesto cortês e levo alguns segundos até conseguir desviar a atenção de seu
rosto para a palma erguida.
Assinto e deposito com delicadeza minha mão sobre a dele. A pele
quente me faz suspirar.
Francis me conduz para o centro do jardim e todo o resto parece
desaparecer. Talvez eu tenha um hiperfoco além do vôlei e dos livros.
Talvez encarar esse mar cristalino seja um deles, porque quando os observo,
o mundo vira apenas um borrão para mim, sem cor. O azul me consome. É
minha cor favorita, ainda que eu não seja fã de cores. E é engraçado, porque
desde pequena, já era. Porque era olhando para o azul, que eu me sentia
bem. Segura. Amada.
A mão ele se acomoda em minha cintura e a outra ergue minha mão na
altura de nossos rostos. Ele comprime seu peito ao meu, sem nunca deixar
de me pedir permissão com seu olhar. Mal sabe ele que meu corpo sempre
está consentindo. A boca de Francis fica colada à minha orelha, enquanto a
voz da cantora é substituída por uma voz masculina, quase torturada.
E se a parte da cantora refletia o que eu tenho vontade de dizer a Francis,
mas não encontro as palavras, a parte do cantor parece ser o que ele diria a
mim se sua boca ousasse.
“Eu vou esperar
Eu vou esperar
Eu vou te amar como você nunca foi amada
A dor
Eu vou esperar
Eu prometo, você não tem que ter medo
Eu vou esperar
O amor é aqui e veio para ficar
Então deite sua cabeça em mim”
Nossos dedos se comprimem um contra o outro e enquanto Francis
intensifica seu aperto na minha cintura, eu faço como a música e apoio meu
rosto em seu peito. O coração dele bate rápido o suficiente para saber que
estamos no mesmo ritmo. No mesmo barco, furado e naufragando, mas
lutando para manter-se na margem.
“Mal sabe você, eu sei que está machucada enquanto eu finjo estar
dormindo
Mal sabe você que todos os meus erros estão lentamente me afogando
Mal sabe você que estou tentando melhorar
Pedaço por pedaço
Mal sabe você que eu te amarei até que o sol morra”.
Ofego, porque ele canta a última frase baixinho no meu ouvido, como se
recitasse para si próprio, como se pensasse em voz alta. Uma lágrima
escorre do meu rosto e não me atrevo a encarar o dele. Mantenho minha
cabeça em seu peito, buscando nos batimentos erráticos as respostas para
minhas perguntas não feitas. Para todas as minhas inseguranças.
— Eu sinto tanto. — Ele murmura agoniado. — Tanto... por tudo.
— Eu queria que fosse mais fácil esquecer o que passou — digo
baixinho, desenhando coisas desconexas em suas costas. — Eu queria que
fosse mais fácil não ter medo de ter você de novo, apenas para perder em
seguida.
— Eu não estou pronto para perder você, Angel. — Francis solta minha
mão, apenas para me abraçar corretamente. — Muito menos pronto para
que me esqueça. Nunca vou estar.
Afago sua pele.
— Eu nunca quis te perder — admito. — Porque em todas as vezes, foi a
coisa mais difícil que tive que passar. Perder você me faz abdicar de uma
parte de mim mesma. E eu não sei se sobrou muitas para perder caso
aconteça de novo.
— Você nunca me perdeu. — Ele balança a cabeça, com o queixo
apoiado em meu ombro. — Não de verdade.
— Mas eu perdi. Mesmo que de mentira, eu te perdi. Porque agora, eu
tenho medo de colocar você na minha vida como era antes. Eu não gosto de
ter medo, Francis.
Um som agoniado escapa da garganta dele.
— Eu vou te provar que você nunca mais vai precisar. Eu te prometo.
— Estamos prestes a colecionar promessas — brinco, soltando uma
risada melancólica.
— Não. Estamos prestes a colecionar nossa história. Nosso amor. E eu
sei que um dia vamos olhar para tudo isso, de mãos dadas, e ver que o
destino pode ter tentado, mas nunca foi forte o bastante para cortar o laço
que nos une.
— Como pode ter tanta certeza? — tenho vontade de entrar na mente
dele e agarrar para mim essa fé inabalável que me falta.
— Porque nem mesmo quando achei que você pudesse morrer, eu
desisti. Nem quando as ondas tentaram te engolir, eu desisti de você, e eu
era apenas a merda de um pirralho. Eu sou um homem agora, Angelina.
Você não tem ideia do que eu seria capaz por você. Por isso eu tenho
certeza.
Afasto o rosto de seu peito, analisando seu maxilar proeminente, seus
olhos pequenos, mas expressivos, suas sobrancelhas desorganizadas. Passo
o polegar por elas, as penteando. Abro a boca para respondê-lo, mas a
campainha da casa toca, nos interrompendo.
Francis franze o cenho.
— Quem falta chegar? — indago.
— Não faço a menor ideia. — Ele beija minha testa. — Espere aqui, vou
ver quem é.
Ele sai na frente, junto com Ethan, curioso demais para saber quem
chegou. Passo a mão na nuca, a sentindo úmida. As palavras do nadador
martelam na minha mente, quebrando as barreiras de ferro que ergui. Elas
não são tão fortes quanto pensei.
— O que você tá fazendo aqui? — Francis fala alto e grosseiramente.
— Quem está na porta? — Jayden questiona, já indo para a sala.
— Seja quem for, não deve ser muito amigo do Francis — Vance se
levanta da rede. A expressão dele é sempre ligeiramente cômica, com
pitadas de crueldade. Me dá asco.
— Vai embora daqui! — Dessa vez é Ethan quem fala secamente, sem a
doçura impregnada na voz.
Corro para a sala, com as meninas em meu encalço. Estanco no meio do
cômodo ao ver Savannah parada na porta. Meus ombros murcham como
uma rosa no deserto.
Minha mãe.
Aqui em São Francisco.
Por que ela estaria aqui?
— Eu quero falar com a minha filha e não saio daqui antes disso.
— Você não vai chegar nem perto dela. — Francis bloqueia a porta.
Savannah solta uma risada seca.
— Não vai ser um moleque que mal saiu das barras das calças do pai que
vai me impedir de ver minha filha.
— Você fala como se não gostasse de moleques que mal saíram das
barras das calças do pai — Donna se aproxima da minha mãe com um
sorriso sínico. — Achei que fosse justamente o seu tipo.
— Veja só se não é o encosto da vida da minha filha — Savannah avalia
Donna dos pés à cabeça, com asco revirando sua expressão. Blue dá um
passo à frente na velocidade de um piscar.
— Veja só se não é a cretina papa-anjo. — Ela se posiciona ao lado de
Donna, segurando sua mão. Donna a analisa surpresa.
— Deixem ela entrar — falo firmemente, atraindo os olhares dos meus
amigos.
— Tem certeza? — Francis é o único que mantém os olhos em
Savannah. A tensão em seus ombros é palpável. Ele ainda não tirou o braço
da porta e eu sei que não irá permitir que ela entre se eu não quiser. Não há
nada que minha mãe possa fazer, que conseguirá passar por ele. Como
Francis disse, eu não tenho ideia do que ele pode fazer por mim.
Ele só está enganado em um ponto. Eu sei do que ele é capaz por mim.
Eu já vi.
— Tenho. Deixe ela entrar.
Seu braço cai na lateral do corpo, liberando espaço para Savannah. O
olhar dele para ela é puramente colérico.
Savannah entra sem se dignar a cumprimentar meus amigos e para quem
defendia tanto as boas maneiras, isso foi bem rude. Quando ela está a
poucos passos de mim, cubro minha barriga com as mãos. Não sei por que
faço isso. Mas sinto a necessidade de proteger o meu hóspede de tudo que
essa mulher é capaz. Se eu pudesse, eles nunca saberiam da existência um
do outro.
Eu vou dar a você uma família com uma avó melhor. Vou sim.
— Então é verdade… Louis não estava enganado — ela fita minha
barriga fixamente, a boca retorcida em nada além do mais puro desprezo.
Abraço minha barriga ainda mais possessivamente.
Pare de olhar para ele!
Francis não deve ter pensamentos diferentes dos meus, porque se
posiciona ao meu lado, seus ombros largos como duas muralhas em minha
lateral. Seus músculos estão tremendo, como se fosse doloroso não se pôr
na minha frente. Ele quer se colocar, eu sei disso. Mas agora eu preciso
encarar minha mãe de frente. Eu não sou uma garota medrosa. Ela não pode
mais me colocar medo.
— Você acabou com a vida da minha filha, seu desgraçado! — Savannah
avança para cima de Francis, com a mão erguida para acertar seu rosto.
Minha mão intercepta seu braço um segundo antes de tocar a pele dele.
Fogo crepita dentro de mim.
Os olhos de Savannah saltam do rosto e me observam com o que
imagino ser uma boa mistura de surpresa e raiva.
— Não ouse encostar um só dedo nele.
— Você que não ouse me enfrentar! — Os lábios se contorcem da raiva
que sempre esteve direcionada a mim. — Não se esqueça de que eu sou sua
mãe.
— Você me colocou no mundo. — Serzinho se move e reprimo a careta.
Fique quietinho, por favor. Acredite, você não quer que essa mulher te note.
Você nunca vai precisar saber quem ela é. — Isso está longe de ser mãe.
Você não sabe o que essa palavra significa ou o que ela implica.
Solto o braço dela, o empurrando sem delicadeza para baixo.
— De repente ficou corajosa? Foram esses seus amiguinhos que
colocaram ideias na sua cabeça? Não se esqueça que você me deve respeito.
Aperto as unhas na palma. Vôlei. Saque, defesa, contra-ataque. Procuro
na minha mente o som da bola no chão. Um. Dois. Três. Inspiro o ar
profundamente, segurando alguns segundos antes de soltá-lo novamente.
Relaxo as mãos e firmo a voz.
— Você está na casa dos meus amigos. Da minha família. Se alguém
deve respeito, esse alguém é você. E se pensa que vai entrar aqui e agredir o
meu homem, está completamente enganada. O tempo em que eu tremia
diante de você ficou para trás, Savannah.
Sinto o peito de Francis inflar as minhas costas. Ele ofega.
— Seu homem? — gargalha sarcástica. — O máximo que eu vejo na
minha frente é um rapazote sem futuro algum pela frente, que vai viver às
custas do pai. Pobre Robert, não sabia onde estava se metendo no dia que
resgatou esse garoto do orfanato. Deveria saber que se ele estava lá, era
porque nem a própria mãe o quis. Isso era indicativo o suficiente do nada
que ele seria e ainda assim você foi burra para engravidar dele e trazer outro
inútil ao mundo.
Escuto um tapa.
Minha mão arde.
Savannah vira o rosto, cobrindo a bochecha com uma expressão
perplexa.
Arregalo os olhos.
Encaro minha mão.
Avermelhada.
Eu… eu dei o tapa?
Pisco desnorteada. Savannah parece ver o demônio em sua frente.
Eu bati nela. Meu Deus, eu não podia ter feito isso.
— Sua vagabunda! — Savannah ergue a mão para me bater e eu não
faço movimento algum para me defender. Apenas fecho os olhos,
petrificada demais com minha atitude. O tapa não chega em mim. Espero
alguns segundos e nada.
Abro novamente os olhos.
Donna está segurando a mão da minha mãe.
— Angelina te deu apenas um tapa, porque ela estava apenas defendendo
o meu irmão — Lágrimas escorrem do rosto de Donna. Meu coração se
aperta. — Mas eu… eu estou defendendo meu irmão e ela. As duas pessoas
que eu mais amo na vida. Eu já briguei por uma bolsa em uma loja, você
não tem ideia do que eu faria com quem mexe com quem eu gosto.
Savannah tenta soltar sua mão, mas as unhas de Donna cravam no pulso
dela.
— Você se diz amiga da minha filha, mas está conivente com seu irmão
tê-la engravidado. Angelina não tem capacidade de entender isso. Ela não
tinha nem capacidade para entender o sexo como uma mulher normal! Ela é
como uma criança!
Um pedaço de mim quebra. Como o som estilhaçado de vidro se
partindo em mil e um minúsculos pedaços, espalhados pelo chão de
concreto.
— Além de papa-anjo você é ignorante? — Blue se intromete, avaliando
Savannah dos pés à cabeça. Tudo que eu consigo fazer é escutar as palavras
da minha mãe repetidamente na minha cabeça. — Angelina é uma mulher,
muito capaz de entender a gravidez e muito capaz de entender o sexo.
Quem não é capaz de entender algo, é essa sua mente problemática e
preconceituosa, sua vaca desalmada.
— Não... — Estico a mão, pedindo que Blue não prossiga. — Não
precisa falar, Blue. Minha mãe apenas repetiu o que suas amigas achavam
sobre mim. E agora vejo que ela própria pensava igual. — Engulo o choro
que quer sair. — Minha mãe nunca fez questão de entender como eu
pensava, via o mundo ou me relacionava com as pessoas. Ela caiu na falácia
de que vivo em um mundo paralelo. Que não estou no mesmo plano que
ela. Mas eu estou, Savannah. — Engulo o nó. Engulo a dor. Engulo o
sangue que escorre da minha alma. — Eu estou no mesmo mundo que você.
Nós só vivemos nele de formas diferentes. — Bato em meu peito. — Eu
posso amar! Eu posso ser amada! Eu posso fazer tudo que uma mulher
neurotípica faz. Ou o que você chama de normal. Eu não espero que
entenda. — Sorrio amarga, negando com a cabeça. — Não mais. Mas eu
vou me certificar, de que essa criança que está dentro do meu ventre, de
uma mulher autista, que se entregou ao homem que amava por desejo,
paixão e vontade, e que a correspondeu igualmente, uma família melhor que
a que eu tive.
Savannah ergue as mãos, batendo palmas audíveis, que me fazem piscar
a cada colisão.
— E como espera fazer isso, oh grande mulher independente? Hum? —
Os lábios pintados de vermelho se erguem em um sorriso asqueroso. —
Dependendo do pai dele? Esperando que seu homem se torne um de
verdade? — ela aponta para Francis desdenhosa. Ele abre a boca para
responder e seguro sua mão, o interrompendo.
Dou um passo para mais perto da mulher que me gerou. E mesmo que
nossa semelhança física seja latente, o que vejo nos olhos dela é um grande
e tenebroso vazio. Às vezes eu penso que ela apenas sente raiva. Outra eu
acho que ela é triste. Mas é tudo muito pior. Savannah é vazia.
— Sabe, mãe… quando você me levava para as festas das suas amigas,
eu nunca tinha muito o que fazer. Eu não era amiga de nenhuma das filhas
delas e muito menos tinha vontade de entrar nas conversas frívolas de falar
mal de cada alma viva daquela cidade. — Respiro fundo, sorrindo
melancólica. — Eu realmente detestava cada parte daquilo. Mas certa vez,
você me levou para a casa de uma amiga, que o marido dela era jornalista.
Ele tinha uma coleção de jornais, livros aos montes e biografias de
jornalistas do mundo todo. Eu adorei conhecer o escritório dele. Ele me
deixou ficar lá, porque viu que eu não me enturmava com as outras
crianças… — Ela tenta fugir do meu olhar, mas dessa vez sou eu que a
seguro ali. — Naquele dia, li uma frase de um jornalista brasileiro, Ele
disse: o tambor faz muito barulho, mas é vazio por dentro. — Aperto
minhas mãos na lateral do corpo. — Você sempre disse muitas coisas.
Sempre precisou usar tudo a sua volta para chamar atenção para si. Sempre
fez barulho. Mas nunca de fato teve o que falar. Nunca de fato houve
substância nos seus barulhos. É tudo um grande vazio. Muitas palavras,
pouco significado. E é por isso, que não importa o que me disse a vida toda,
o que me disse agora ou dirá no futuro. Porque é um cinzento vazio de
barulhos sem razão.
Os olhos de Savannah avermelham em volta, como se estivesse triste o
bastante para chorar. Só que eu sei, que se alguma lágrima se derramar, será
de raiva, ódio e rancor.
— Você se acha tão melhor que eu, mas verá com os próprios olhos
como é ser mãe. — Ela segura meu queixo, para que me fite de perto. Eu
posso sentir Francis mais próximo de mim também. — E espero que você
passe com esse bebê, exatamente o que me fez passar. Espero que tenha que
abdicar do seu corpo, da sua vida, dos seus sonhos, do seu amor… só então
me entenderá.
Seguro seu punho, retirando sua mão de mim.
— Sua espera será árdua, então, porque eu farei o que você deveria ter
feito comigo, mãe. Eu escolhi a adoção, para o bem dessa criança. Porque
não me sinto pronta para ser mãe. E se você me amasse ao menos por um
mísero segundo, quando me teve, teria feito o mesmo. Porque a verdade,
Savannah, é que existem pessoas que não podem ter filhos. Porque elas
jamais seriam capazes de amá-los acima de si mesmos. Jamais seriam
capazes de serem altruístas. Existem pessoas, como você, que amam apenas
uma pessoa a vida toda. A si própria.
Ela me encara horrorizada, como se eu houvesse lhe desferido outro
tapa.
— Não diga o que não sabe! Você não pode fazer isso! Vai envergonhar
toda a família. Acha que vai levar quanto tempo para saberem dessa
gravidez em Cape May? — Ela olha de um lado para o outro. — Para
saberem que foi capaz de colocar uma criança para adoção?
— É melhor que saibam da minha gravidez e da adoção, do que da sua
infidelidade. Que a propósito, meu pai já sabe — rebato.
— Se ele ao menos fosse seu pai, essa frase estaria correta! — ela grita.
E minha visão fica turva.
— Como é que é? — Donna fala por mim.
— Louis não é seu pai. — Savannah limpa uma lágrima que escorre em
seu rosto. — Robert é.
O mundo gira.
E a última coisa que sinto são os braços de Francis me aparando antes de
eu cair.
— Caralho, fodeu — Ethan pragueja.
E tudo fica preto.
 
 
 

 
 
— Eu sabia que a mãe dela não era fácil, mas não sabia que chegava a
esse ponto — Jayden comenta baixo comigo, enquanto olhamos Angelina
na cama. Ela teve uma queda de pressão pelas coisas que Savannah falou e
eu só não caí junto porque minha mente ainda não processou as
informações.
— Savannah é o tipo de pessoa que sempre pode te surpreender... pra
pior.
— Parece que ela não gosta muito de você.
Solto uma risada.
— Você não gosta muito de mim... aquela mulher me odeia.
— Por que?
— Jayden, a história é longa, mas basicamente se resume ao fato de que
ela e meu pai se relacionaram na adolescência e Savannah nunca superou
isso. E como os dois não deram certo, ela parece achar insultante que
Angelina e eu temos a chance de dar.
— Ah, a típica narcisista.
— Narciso é altruísta perto dela.
Donna conversa com Angelina, sentada na beirada da cama e me pego
imaginando se isso for mesmo verdade. Se Savannah não estiver mentindo,
o que acho muito difícil, elas seriam irmãs? Eu duvido que as duas queiram
uma reviravolta assim, mesmo tendo se tratado dessa forma a vida toda.
Minha cabeça lateja só de pensar o que Leonor aprontaria.
— Tem certeza que não é melhor levar ela até um hospital? — Aponta
para Angelina.
— Foi só uma queda de pressão pelo estresse e já normalizou... —
Encaro Jayden, cansado. — E também, se conseguir convencê-la a sair
daqui para um hospital, vou te dar um prêmio.
Ele ri, assentindo.
— É melhor não a estressar mais.
— Bem melhor...
— Eu acho que vou para casa, então. Muita gente aqui só vai atrapalhar.
— Não quer esperar mais? — digo ainda que a contragosto. — Angelina
pode se recuperar e ainda aproveitar mais da festa... você ajudou bastante a
trazer as coisas, é justo que ao menos fique pra comer.
Jayden ergue as sobrancelhas para mim e eu sei que uma piadinha
irritante quer vir à tona.
— Não força a barra — aviso antes que ele abra a boca. — Já estou
engolindo o ego te falando pra ficar, não me faça engolir o soco que quero
te dar também.
— Não disse nada. — Ele ri, erguendo as mãos. — Vou ajudar o Ethan lá
embaixo com a mãe da Angie... não deve ser fácil vigiar o dragão sozinho.
Aceno, esperando Donna se afastar da cama para me aproximar de
Angelina. Minha irmã nos deixa sozinhos.
— Como você está?
— Do mesmo jeito de quando me perguntou dois minutos atrás. — Seus
olhos se reviram.
— Bruta? — provoco.
— Vou ficar agressiva se não parar de me rondar como uma mamãe
galinha.
— Eu não seria o papai galo?
— Não. Porque você está prestes a me colocar debaixo das suas pernas e
me chocar.
Comprimo a boca para conter a gargalhada.
— Sua imaginação está fértil, pelo menos.
— Com tudo que tem acontecido, tenho tido muita carga para imag….
— ela interrompe sua fala, fazendo uma careta. Já é a quarta vez que faz
isso e todas as vezes que perguntei se ela sentia dor, me negou.
— Angelina. — Ergo seu queixo. — Não mente pra mim, o que tá
sentindo?
Ela suspira, as bochechas ficando rubras. Quase posso sentir seu calor.
Minha preocupação atinge níveis alarmantes. Estou para perguntar
novamente quando sua resposta vem para me desestabilizar.
— Está se mexendo — ela diz baixinho, tão baixo que mal consigo
entender.
— O que está se mexendo?
— O bebê — Aponta para a barriga. — O bebê está se mexendo.
— Ah.
Ah…
Ah meu Deus!
Engulo a saliva, que desce rasgando.
Minha boca adota um gosto esquisito, assim como meu coração desiste
de bater e meu cérebro entra em curto.
Está se mexendo. O bebê está se mexendo.
Como se respira mesmo?
Calma, Francis. Angelina não precisa de você surtando.
Principalmente porque não deveria haver um motivo para isso.
Eu não deveria estar sentindo o que estou sentindo. É errado. Em muitos
níveis. E pior ainda, é egoísta.
Ele não é nosso.
Não vou ser seu pai, não posso sentir como se fosse. Não posso me
permitir me colocar nesse papel, porque corre o risco de não saber como
sair dele.
— É ruim? — pergunto no lugar de todas as outras coisas que vem na
minha mente.
Está se mexendo e eu juro que tento manter as lágrimas no lugar. Minhas
mãos estão brigando contra os comandos do meu cérebro. Enquanto ele
ordena para que fiquem quietas, elas se esforçam para se verem livres e
descobrirem como é a sensação dos movimentos do bebezinho.
Pelo amor de Deus, eu estou ficando maluco? Quanto mais cedo eu
enfiar na minha cabeça que não vou ser nada para esse bebê, mais cedo essa
dor vai passar. Ou ao menos é isso que espero.
— Não é que sentir mexer seja ruim. Mas não saber quando vai
acontecer, é horrível. Eu não sei o que fazer, o que pensar, se a sensação é
boa ou ruim, se ele está bem ou não. Eu só… — Ela arqueja. — Eu queria
apenas poder saber quando vai acontecer. E ele está agitado demais agora,
como se percebesse o que está acontecendo do lado de fora. Estou exausta,
Francis.
Olho para baixo, fechando os olhos. Isso é culpa minha. Angelina não
precisaria estar passando por isso se não fosse por mim e eu não faço ideia
de como ajudar. Não é como se eu pudesse impedir de acontecer ou
cronometrar quando o bebê se moverá.
Respiro fundo.
— Eu estou me sentindo inerte — confesso. — Não sei o que fazer para
facilitar as coisas para você. Desculpe…
— Francis, você não é o Super-Homem, não pode me salvar de tudo,
sabia? Isso é novo demais pra mim, mas eu vou conseguir lidar com o
tempo. Posso sobreviver a isso como sobrevivi a coisas piores.
Novamente uma careta. Olho para a barriga dela instantaneamente. Não
dá para ver se movendo, o bebê ainda é pequeno para isso, mas do jeito que
se desenvolveu no último mês, não acho que demorará para ver.
Busco na minha cabeça as coisas que li sobre bebês. Li quatro livros
sobre maternidade. Com certeza tinha alguma coisa lá sobre agitação. Eu só
preciso me lembrar.
— Já tentou falar com ele? — indago, me sentindo meio burro. É claro
que Angelina não conversa com ele.
— Já, o Serzinho se agita com a minha voz.
Espera… Serzinho? Ela deu um apelido? Ela fala com ele?
— Serzinho? — a curiosidade fala mais alto.
— Não posso dar um nome, então o chamo assim.
Assinto, com medo de um sentimento que vai tomando conta de todas as
minhas entranhas. Não ouso rotulá-lo. Não ouso saber o que é. Mas é forte.
Mais forte do que qualquer outro que eu tenha sentido.
Olho para Angelina como se ela fosse inatingível. Superior. E ela é. É
mais forte que eu, mais altruísta que eu, mais madura que eu. Porque se
dependesse de mim, nossa realidade de agora seria diferente. E isso seria
muito egoísta da minha parte.
— Deve ser normal ele se agitar com você — digo com a garganta
apertada. Mas que porra! O que é essa emoção que está segurando minha
voz? Limpo a garganta. — Talvez você possa tentar música, eu vi que
música clássica pode acalmar. Ou então você pode colocar sons relaxantes,
deve ter alguma playlist no YouTube com isso, ou podemos apenas ficar em
silêncio, talvez seja disso que goste e…
— É você... — Angelina me encara surpresa.
— Eu o quê?
— Ele fica quietinho quando você fala.
Meu peito infla. Quando eu falo? Ele gosta da minha voz? Meus lábios
brigam para sorrir. Não posso sorrir. Ele não é nosso. Algo sangra dentro de
mim. Ele não é nosso...
Caralho, que porra de vida é essa? Mesmo aquilo que deveria ser meu,
sou obrigado a abdicar.
— Eu posso? — questiono com a voz embargada, apontando para sua
barriga. Eu não a toquei. Nunca a toquei. E Deus, como eu quero. Eu quero
muito.
— Pode — Angelina assente, tirando as próprias mãos da região.
Minha testa transpira. Todo meu corpo é tomado por uma ansiedade e
adrenalina que nenhum campeonato de natação foi capaz de me fazer sentir.
Permito-me realmente olhar para a barriguinha proeminente com Angelina
vendo dessa vez. Eu sempre estou olhando. Sempre observando. De longe,
escondido. Não quero que ela se sinta pressionada a nada. Ela escolheu
adoção. Irei respeitá-la até meu último segundo de vida.
O que não quer dizer que essa escolha não está tomando uma parte
minha a cada maldita batida do meu coração.
Com a ponta dos dedos, acaricio a parte mais alta, onde o bebê se
concentra. Meu coração pulsa dolorosamente. Na verdade, é algo pior que
dor. Algo que não sei nominar, mas que dilacera sem piedade.
Eu sei que você não pode ser meu. Mas porra, eu queria pra caralho que
pudesse.
Pisco para afastar o ardor dos meus olhos.
Não sou digno de você. Não tenho nada para te oferecer, bebezinho.
Angelina mais uma vez tem toda a razão. Já cometi muitos erros na minha
vida, achando que eu tinha direito a ter o que queria..., mas não posso
cometer esse erro agora. Não com você. Jamais com você.
— Você precisa colocar a mão por completo para sentir. — Angelina
espalma minha mão sobre sua barriga.
Céus, me dê forças para suportar isso. Me dê forças para não sentir
mais do que devo. Me dê forças para conseguir abandonar tudo isso
quando o momento chegar.
Espero pacientemente o bebê se mover e logo percebo um leve e
efêmero golpe contra minha palma. Uma lágrima escorre no meu rosto e me
viro de lado para que Angelina não veja. Respiro fundo, travando o ar.
Mantenha a porra da calma, Hopkins!
Limpo disfarçadamente meu rosto úmido e aproximo minha boca da
barriguinha redonda.
— Ei, brotinho agitado… — Limpo a garganta, tossindo para ver se
minha voz adota firmeza. É difícil quando eu sei o porquê dessa rouquidão.
Quero chorar como a porra de uma criança que ralou o joelho. — Como
está aí dentro?
Não sei porque, mas espero uma resposta. Ela não vem. Ele fica quieto.
— Está funcionando — Angelina comemora — Continua.
— Aí deve ser apertado pra caralho, né?
— Francis Hopkins! — Ganho um golpe na minha cabeça e percebo que
acabei de falar palavrão para o bebê. É a primeira vez que falo com ele e
solto um palavrão. Eu seria um péssimo pai. Ah, seria…
— Foi mal — Sorrio sem graça, coçando a nuca. — Foi mal, brotinho
agitado, não diga essas palavras, elas são feias. Mas bem, continuando, aí
deve ser apertado pra… muito apertado. Mas também deve ser quentinho e
silencioso. Se eu fosse você, dormia bastante, não vai conseguir fazer muito
isso quando sair daí.
— Você vai assustar o bebê desse jeito. Depois se não quiser sair, eu faço
o quê? — Angelina bate de novo na minha cabeça.
Ai, mulher, isso dói.
O bebê volta a se mover.
— Shiu, calada. Ele realmente se agita com a sua voz. — Ela revira os
olhos para mim e me sinto orgulhoso de ser quem o acalma. — Não liga pra
ela não, sua casinha tá muito nervosa. — Cubro a cabeça antes que ela me
atinja. Pisco para uma Angelina possessa. — Escuta… você precisa deixar
ela descansar um pouco, ok? Ela recebeu a visita de uma bruxa malvada
hoje e precisa muito ficar calma. É difícil com você fazendo uma rave na
barriga dela.
O corpo de Angel se sacode em uma risada muda.
— Sabe, eu andei lendo alguns livros. — Mantenho minha mão parada
onde Angelina a colocou, mas não vou mentir que sinto vontade de
acariciar a região. Me contenho, no entanto. Apenas esse momento é o
suficiente para preencher um pedaço do meu coração que eu sequer sabia
estar vazio. — Dizem que alguns sons ajudam a acalmar. Eu posso cantar se
você quiser.
— Pelo amor de Deus, não faça isso — Angie zomba.
Olho para cima e arqueio a sobrancelha.
— Está insinuando que canto mal?
— Insinuando não. Eu estou afirmando. Você canta mal.
— O bebê gosta da minha voz — debocho.
— Ou talvez ele prefira dormir do que escutar — Angelina me dá língua,
emburrada.
— Não seja cruel, amor.
Ela continua emburradinha, fingindo estresse, mas eu vejo a pontinha do
seu sorriso se formando. Deito minha cabeça sobre sua barriga, ouvindo de
perto as movimentações. O som do coraçãozinho forte que escutei semanas
atrás vêm à minha mente com perfeição de detalhes. Acaricio a pele dela,
até perceber que ele não se mexe mais. Angelina coloca a mão sobre meu
cabelo, brincando com os fios. Mesmo irracionalmente, eu gostaria de
poder registrar em uma foto esse momento. Mas não ouso pedir isso.
Meu coração fervilha de sentimentos incontidos e emoções afogadas em
um mar revolto que se tornou meu subconsciente. Minha racionalidade jaz
no topo de uma construção alta, como um farol apagado, não iluminando
água alguma. Há um mês, Angelina e eu descobríamos a gravidez. Eu não
podia pensar em momento mais inoportuno para isso acontecer, sentia
apenas uma grande e profunda confusão e desespero. Agora, eu sinto uma
tristeza intrincada, que risca meu coração como uma navalha afiada. Eu
queria que esse fosse o melhor momento. Queria poder proporcionar a
Angelina e ao bebê, um mundo onde poderíamos ficar com ele. Queria
poder mudar nossa realidade, ao ponto de movê-la como cordinhas de um
boneco. Queria poder garantir a mulher que eu amo, que eu seria o pai mais
incrível que ela poderia dar ao filho dela, que eu seria o melhor
companheiro…, mas eu não ousaria mentir.
Não, eu não posso mudar nossa realidade. Não, eu não posso tornar o
mundo melhor. Não, eu não posso alterar essa nuvem de acontecimentos
ruins que vem sombreando nossa vida. E não, eu não posso ser o melhor pai
e companheiro para ela. Isso faz parte apenas de um sonho guardado em
uma gaveta dentro do meu coração, um projeto arquitetado pela minha
mente, mas um do qual ela própria sabe, que não conseguiríamos construir.
É algo intangível, inalcançável.
É amargo como a própria morte, saber que não poderei ser o pai do meu
filho, porque outra pessoa o faria infinitamente melhor que eu. É uma dor
que vou manter calada e silenciada para o resto da minha vida.
— Francis? — Angelina me chama depois de um longo tempo em
silêncio.
— Hum?
— Você acha que minha mãe estava falando a verdade? Que tem alguma
chance de eu ser filha do... — ela não consegue completar a frase e acho
que nem eu consigo falar isso em voz alta.
Respiro fundo, negando com a cabeça.
— Eu duvido que meu pai teria ficado em silêncio esse tempo todo se
tivesse ao menos uma chance de ser verdade.
— Ele pode não fazer ideia...
— Sim... mas por que Savannah esconderia isso esse tempo todo? Ela
sempre foi apaixonada pelo meu pai, era o motivo perfeito para tentar
acabar com o casamento dele.
Angelina suspira.
— Isso você tem razão, não faria mesmo sentido... só que então não
entendo por que minha mãe resolveu mentir sobre isso agora.
— Porque ela quer infernizar sua vida e foi a forma que conseguiu. Não
há muitas coisas que ela possa fazer para surpreender a gente. Já sabemos
como funciona a tática dela e da minha mãe. Elas tentam machucar com a
realidade e quando não podem, elas mentem para alcançar seu objetivo.
Angelina parece relaxar com a minha lógica. Eu, no entanto, não estou
totalmente seguro dela. Não sem antes falar com meu pai sobre isso. E eu
espero, com todas as minhas forças, que ele ria da minha cara e desminta
essa palhaçada. Porque se for verdade, a merda vai feder.
 

 
— Escuta aqui, se me botarem de babá desse projeto de demônio de
novo, a nossa amizade acaba! — Ethan aponta o dedo na minha cara
quando convenço Angelina a descer do quarto e aproveitar o restante do seu
aniversário. — Eu aguento dormir no sofá, aguento perder meu quarto,
aguento o Vance, mas a sua mãe, Angelina, com todo respeito mesmo, é
uma vaca fria e desalmada. Isso aí é pior que castigo de purgatório, eu tô
fora, vocês estão me devendo uma.
— Ethan — Angelina interrompe sua crise, se aproximando dele com
um sorriso doce. — Um abraço te faria me desculpar?
Diaba manipuladora. Anjo nada, isso é uma diabinha perversa. Ethan
falta chorar e cai na lábia dela, ganhando um abraço rápido. Balanço a
cabeça. Nem posso falar nada, porque eu caio como um patinho nesses
encantos também.
— Perdoada, Angie — ele fala com a voz embargada, apenas para se
virar para mim com a cara revoltada. Agora pronto! — O que você vai me
dar em troca?
— Eu não vou beijar você.
— Mas pode pagar um encontro meu e da garota que vou beijar.
— Você é inacreditável, Ethan — Angelina bufa.
— Feito! — Pego na mão dele e selamos o acordo. — Mas vai ser num
lugar baratinho, estou economizando.
— Eu sei, você vai ser pai, não vou te extorquir.
Engulo a bile.
— Não vou ser pai, Ethan.
Comento e vou atrás de Angelina que segue até sua mãe. Não sei por que
essa mulher ainda não foi embora. Ou por que não a enxotamos para fora
daqui.
Na sala, Savannah está lendo uma revista de moda que Donna largou na
mesa de centro. Ela ergue o olhar quando percebe que entramos e não passa
nada além de desdém.
— Eu sabia que esse desmaio não era nada... Veja só, está andando
facilmente sozinha.
Fecho os olhos, engolindo todos os xingamentos que penso em proferir.
— Desde que chegou, você só disse atrocidades, mas não disse a que
veio. Desembucha — Angel não dá brecha para mais conversa.
— Vim porque você vai abortar essa criança. — Savannah se levanta. —
É isso, ou vocês vão se casar.
— Como é que é? — falamos em uníssono.
— Vocês me entenderam bem. Ou se casam antes dessa criança nascer
ou então você aborta, Angelina. Não me passará vergonha.
— Sai daqui — Angelina rosna, apontando para a porta. — Saia e nunca
mais ouse falar comigo. Porque eu te bati no rosto uma vez, e talvez não me
orgulhe, mas isso não vai me impedir de repetir a dose.
— Você vai fazer o que eu quero por bem ou por mal. Porque eu
transformo sua vida em um inferno — a mulher diz com tanta frieza, que
um arrepio percorre minha espinha.
— Mais? Achei que você fazia isso desde sempre. Viver no inferno é
algo do qual estou acostumada, Savannah. Se quer me surpreender, diga que
será uma mãe decente. — Angelina abre a porta para ela. — Na próxima
vez que aparecer aqui sem ser convidada, será encaminhada para fora com a
ajuda da polícia.
Savannah recolhe sua bolsa do sofá, se encaminhando para a saída.
Antes de ir embora, ela para e olha para a filha.
— Você nunca será feliz ao lado dele. — A mulher amaldiçoa. —
Hopkins e Eastwood nunca ficarão juntos.
Angelina ergue um sorriso maldoso.
— Achei que tivesse dito que eu era filha do Robert. Então que bom que
não sou mais uma Eastwood.
Sorrio orgulhoso. Essa história pode ser absurda, mas ver Angelina
usando as palavras de Savannah contra ela, é um show à parte.
— Nos vemos mais em breve do que pensa, Angelina.
— Duvido muito.
Ela fecha a porta na cara da mãe, respirando profundamente.
— Ainda tem comida, milk-shake e música — Jayden entra na sala
segurando alguns copos. — Seu aniversário pode ter sido interrompido, mas
podemos continuar madrugada adentro. Além disso, estamos gatos demais
para desperdiçar — o palhaço se vira de costas, olhando a própria bunda.
Que imagem infernal. — Os caras daquela época gostavam mesmo de
realçar o traseiro.
Angelina gargalha alto, pegando o milk-shake que ele oferece.
Devo confessar que fico grato a ele por quebrar o clima pesado. E aos
nossos amigos que não foram embora apesar da confusão. Nós seguimos de
volta para o jardim, nos sentamos na grama e comemos tudo que temos
direito.
Acho que é isso que importa no fim das costas. Ter com quem
compartilhar a calmaria após o caos.
 

 
Angelina passou a noite tranquila, parecendo ter se esquecido
momentaneamente da bomba que sua mãe jogou sobre nossas cabeças. Não
sei se por ter se acalmado com a nossa conversa ou por ter coisas demais a
pensar além disso, mas o fato é que ela conseguiu dormir. Diferente de
mim, que acordei seis horas da manhã de um sábado para ligar para o meu
pai.
Não consegui sequer pregar os olhos e não vou conseguir enquanto não
tirar essa conversa a limpo. Aceitar histórias mal contadas foi como todos
os meus problemas começaram, não vou repetir a dose do erro.
— Filho? Aconteceu alguma coisa? — Robert me atende na terceira
chamada, com a voz assustada.
— Oi, pai — pigarreio. — Desculpe te ligar esse horário, mas é que...
sim, aconteceu.
— Eu posso imaginar que tenha a ver com Savannah. — Respira fundo.
— Ela e Louis tiveram uma discussão feia. Eu sei porque sua mãe me ligou
para contar, principalmente sobre a parte da traição.
— Por que minha mãe se daria ao trabalho de falar algo sobre Savannah
com você?
— Para que eu não me envolva com ela — Robert ri. — Como se eu
precisasse de motivos a mais para não ficar com aquela mulher.
— Você a namorou na adolescência — o lembro.
— Ela era diferente, acredite. Mas isso não vem ao caso agora, quero
saber o que aconteceu. Por acaso Savannah descobriu da gravidez? Ligou
para Angelina?
— Ela descobriu sim..., mas Savannah não fez uma ligação, ela fez uma
visita.
— Como é?
— É isso que ouviu. Ela apareceu aqui, tentou fazer o mesmo que o
Louis e estragar a minha cara, mas Angelina não deixou. A coisa foi tão
feia que Angelina deu um tapa na cara dela.
— Puta que pariu — ele xinga e acabo rindo. Meu pai sempre evitou
xingar na nossa frente.
— Ela exigiu que a gente se casasse para ter a criança ou abortasse. E
essa não é nem a pior parte da ilustríssima visita.
— O que pode ser pior que isso?
— Tá sentado?
— Eu tô vendo que vou precisar de um lorazepam.
— Talvez dois.
— Fala, Francis.
— Savannah disse que você é o pai da Angelina — digo de olhos
fechados, mesmo que ele não possa me ver.
— Ah… — diz simplesmente, sem esboçar nem um terço da surpresa
que eu esperava. Suor brota na minha testa. Por que meu pai não tá gritando
a plenos pulmões agora? Por que não está dizendo que vai colar a boca
daquela psicopata com superbonder?
— Como assim “ah”?
Robert solta o ar devagar pela boca. E o meu estagna nos meus pulmões.
— Francis, eu achei que nunca fosse precisar tocar nesse assunto. Na
verdade, eu esperava nunca precisar. No fundo eu sabia que uma hora ou
outra essa verdade sairia à tona.
— Pode parar! — Rio de puro desespero. — Você não vai me dizer que é
pai da Angelina, pelo amor de Deus. Chega de bizarrice nessa minha vida.
— Francis, o que eu tenho para dizer não pode ser por telefone. Não
fique preocupado, filho. Nem tudo é o que você pensa.
— É sério que vai me deixar no escuro sobre isso?
— Confie em mim. Eu preciso conversar com você e sua irmã
pessoalmente.
— O que Donna tem a ver com isso?
— Tudo.
Meu pai desliga sem me dar grandes explicações, apenas garantindo que
estará aqui em breve. Eu nunca fiquei com tanto medo de ver meu pai na
vida.
Algo me diz que não quero saber o que ele tem para me dizer.
No café da manhã, faço o possível para disfarçar minha aflição. Com
Angelina parece funcionar, mas Blue fica me encarando querendo respostas.
Eu nego com a cabeça, deixando claro que não quero conversar sobre isso
agora. E talvez nem depois.
Mas o que a faz não me perguntar nada, não é minha expressão e sim seu
celular.
— Meus pais estão me chamando para um jantar essa noite. Vai ter uma
reunião dos líderes na igreja.
Praguejo. O que deu na porra dos pais esses dias? Resolveram causar
um apocalipse? Combinaram de dar problema tudo na mesma época?
— Eu vou com você.
— Nós temos consulta hoje, Francis — Angelina me lembra.
— Droga, eu tinha me esquecido... — Coço a cabeça. — Fala para os
seus pais que não pode hoje, Blue.
— Você sabe que eu não posso — a cor no rosto dela desaparece.
— Você não vai sozinha — Angelina a interrompe.
— Os velhos são tão ruins assim? — Donna solta uma risada. — Parece
até que estão te convidando para um jantar com minha mãe.
Abaixo o rosto, não tecendo qualquer comentário. Não quando Donna
não sabe o que aconteceu com a Blue. Não sei por que ela ainda não contou
para a minha irmã, mas não é minha história para dar palpites.
— Blue, eu levo a Angie na consulta e depois nós vamos... uma hora de
atraso no máximo, eu me viro com seus pais — tento uma solução.
— Não, Francis — ela nega com a cabeça. — A saúde da Angelina e do
bebê em primeiro lugar, não vou mais ficar atrapalhando a vida de vocês só
por causa dessa farsa de namoro...
— Você nunca atrapalhou em nada, Blue — Angelina contrapõe.
— Eu posso ir com você — Donna fala e nós três viramos surpresos.
Ah, os pais da Blue não vão gostar nem um pouco disso.
— Eu agradeço a oferta, Docinho. Mas eu vou precisar recusar.
— Por quê?
— Porque meus pais são complicados.
— Minha mãe também, estou acostumada.
— Meus pais não sabem que sou lésbica, Donna.
— E você acha que vou chegar na sua casa levantando a bandeira
LGBTQIA+ e te lascando um beijo na boca? — ela coloca a mão na
cintura, expressando deboche.
Senhor, ela é irritante.
— Eu não duvidaria, Hopkins.
— Não seja exagerada, Regina George. Eu vou com você e prometo
ficar de boca fechada. Toda vez que sentir vontade de jogar um prato na
cara dos seus pais, eu bebo um gole de vinho.
Vai ficar bêbada então, querida irmã.
Blue me encara em busca de uma opinião e eu balanço a cabeça em
negação. Essa definitivamente não é uma boa ideia.
— Ah, pelo amor de Deus, eles não podem ser piores que Leonor e
Savannah, e eu sei lidar com elas.
Sim, eles podem. Eles foram.
— Donna, acho melhor você ir comigo pra consulta e o Francis com a
Blue — Angelina interfere, provavelmente chegando à mesma conclusão
que eu, que Donna com os Hale seria uma hecatombe sem precedentes.
— Gente, assim vocês me ofendem. Eu posso ir com ela e posso me
comportar.
— A questão não é se comportar, Donna. Meus pais são intragáveis, são
piores que qualquer pessoa que você já viu. Eles não vão poupar nenhum
comentário homofóbico e… — Blue se interrompe, sem graça demais para
falar.
— E racista — Donna constata.
— É.
— Eu lidei com gente assim a minha vida toda. — Minha irmã ri
amarga. — É uma merda, esse país inteiro é uma bacia de racistas, não vão
ser seus pais que me farão ficar mal.
Aperto as mãos ao lado do corpo. A única vez que fui parar na diretoria
da escola, foi porque um garoto zombou do cabelo da minha irmã. Na
época, ela não usava tranças e mantinha os cabelos armados e curtos. O
garoto em questão jogou água em cima dela, para ver se seu cabelo ficava
molhado. Em troca, eu quebrei o nariz dele, para ver se sangrava. Não ouvi
uma bronca sequer do meu pai. Na verdade, naquele dia, eu ganhei filmes
novos para minha câmera. Nunca me foi ensinado que se combate
ignorância com violência. Mas racismo não é uma ignorância. É um crime.
Não me arrependo um segundo sequer.
— Você precisa me prometer que não vai cair em nenhuma provocação
deles. Que não vai dizer sua orientação sexual ou a minha. Para todos os
efeitos, eu namoro seu irmão e essa é toda a ligação que temos — Blue
ergue o dedo para minha irmã fazer a promessa.
— Ah, nem vamos poder transar na mesa do jantar? — Don revira os
olhos. — Eu prometo.
— Donna — a encaro seriamente. — Não estamos brincando.
— Tá bom — ela franze o cenho. — Até parece que estão me
escondendo alguma coisa.
Nós três nos fitamos e balançamos a cabeça em negação.
— Não estamos — Blue responde com a voz fina e sussurrada.
— Então combinado, já temos programa para o sábado à noite. Donna
bate palma e eu rezo. Isso não vai dar certo.
 

 
 
A igreja dos meus pais fica no centro de São Francisco. Uma enorme
construção de pedras antigas, que remete à arquitetura da idade média, tal
qual o pensamento da maioria das pessoas que entram aqui. Eu queria poder
dizer que essa é a casa de Deus. Mas é difícil fazer isso quando vejo
demônios em todos os corredores. O espaço que deveria ter me conectado
com o amor de Cristo, me fez questionar sua existência anos atrás.
Dizem que o tempo tudo cura. Quem disse isso, tinha uma ferida fácil
demais de cicatrizar. Porque eu nunca vou conseguir entrar por essa porta
de madeira pesada, sem lembrar que um dia passei por ela para ser entregue
a outro homem sem meu consentimento, pelo meu próprio pai. Tempo
nunca vai ser o bastante para apagar isso da minha memória.
E a verdade é que eu não quero apagar. Porque um dia, eu vou me
vingar.
A pior parte em entrar nessa igreja, é passar para o lado de fora de mim
mesma.
Aqui, eu não sou a Blue, mais conhecida como megera nos corredores da
USF. Aqui, eu sou a senhorita Hale, herdeira da fortuna dos Hale’s, filha do
pastor, exemplo para todos que pregam neste lugar. Aqui, eu não tenho voz,
expressão, vontade ou escolhas.
Aqui eu visto uma máscara. E não posso ousar tirá-la.
Lembro da pergunta que Angelina me fez há um tempo atrás.
Por que continua tendo contato com seus pais?
E lembro melhor ainda da resposta que dei.
Não é tão fácil se esconder das pessoas que te fizeram acreditar que sua
existência na terra é um erro. Não é tão fácil fugir das mãos invisíveis que
agarraram seu pescoço por toda a vida. Não é tão fácil se afastar de pessoas
que você sabe até onde chegariam para te ter de volta.
Eu ainda preciso deles. Do dinheiro deles.
Minha bolsa cobre meus estudos, não minha estadia nos dormitórios,
alimentação ou transporte. E eu prefiro aturá-los apenas em alguns finais de
semana, do que viver naquela casa todos os dias. Não posso perder meu
lugar longe deles. Eu me lembro com perfeição como era dormir todas as
noites aterrorizada com a possibilidade de eles desconfiarem da minha
orientação sexual. Eu me lembro como era temer que eles tentassem me
“curar” novamente.
Endireito minha postura, forçando meus lábios a se erguerem no sorriso
que ficará no meu rosto o restante da noite. É minha máscara. Odeio ter que
colocá-la.
É meu fardo, mas ainda é minha salvação.
Um guerreiro não abre mão do seu escudo apenas porque é pesado de
carregar. Ele o segura, porque sabe que seu peso é infinitamente mais
suportável do que os golpes que viriam sem sua presença. Essa máscara de
menina gentil, submissa e respeitável, foi o que me permitiu sobreviver na
família que cresci. A máscara de cretina sem coração fica para os demais.
Ela eu ergui para não mostrar as consequências que a primeira delas me
causou.
— Credo — Donna esfrega os braços após um calafrio. — Que sorriso
macabro é esse?
— A Blue que você conhece não existe aqui, Docinho. — Uma risada
amarga escapa dos meus lábios. — E a que vai conhecer esta noite, espero
que esqueça assim que colocarmos os pés para fora desse lugar.
Olho para ela em busca de coragem e acabo perdendo toda ela. Donna
não sabe nada de mim. Não sabe o que me aconteceu por trás dessas
paredes. Não conhece meus demônios e me apavora que ela possa fugir
deles assim que seus olhos se cruzarem.
Nós não temos nada além de uma inimizade colorida. Pelo menos foi
assim que ela chamou. E estou fazendo o possível para esconder que para
mim passa disso… de algo tão vazio. A conversa que tive com Francis foi
indicativo o suficiente de que eu não posso entregar meu coração à sua irmã
sem reservas. Porque ela não fará o mesmo em troca.
Empurro a porta, sentindo meus músculos tensionarem. Consigo ouvir
meu pai pregando no salão principal. Ele já deve estar terminando a essa
altura. Caminho na frente de Donna até o fim do corredor, saindo da
construção da igreja.
— Aonde vamos? — Don me questiona confusa.
Para o meu inferno particular. Para onde tudo aconteceu.
— São duas construções no terreno. O centro religioso é onde acabamos
de sair. Nós vamos para o centro administrativo, onde fica a tesouraria, o
escritório do meu pai e a sala de reunião.
— Pra que ele precisa de um lugar à parte da igreja pra isso?
Porque além de tentar curar a filha lésbica, ele recebe mais propina de
políticos do que seria considerável possível.
— Privacidade — é o que respondo, no entanto.
— Esse lugar me dá arrepios.
Observo o terreno gramado em volta, assentindo.
— A mim também.
Mas eu já me acostumei. Ou finjo que sim.
Digito a senha da porta, abrindo após o clique. A garota ao meu lado
arqueia a sobrancelha e bufo uma risada irônica. Eu falei que era para
privacidade, Docinho. E não brinquei em nenhum ponto sobre isso.
A única parte engraçada é a senha ser o meu aniversário. Como se eles
de fato comemorassem meu nascimento.
Hipócritas do caralho.
O único barulho que se ouve dentro do lugar são dos meus saltos e de
Donna. O chão de madeira reclama a cada passo dado. Esse som me causa
arrepios. Também os escutei no dia que precisei sair correndo da mesma
sala para a qual estou me encaminhando agora.
Sim, meus pais oferecem jantares na mesma sala que me enviaram para
ser estuprada. Eles não veem como isso, claro. E o pior, pensam que
funcionou. Aquele homem não abriu a boca para contar que não conseguiu
terminar o serviço. Não porque se arrependia de tê-lo começado, mas por
vergonha de ter sido detido antes de concluir.
Não sei de quem sinto mais nojo. Se dos meus pais, dele ou de mim.
Porque eu fingi desde então, que isso funcionou. Que ser abusada
funcionou. Às vezes, eu entendo o porquê Vance me odeia.
Eu validei o que meus pais fizeram. Mas ele não devia se preocupar,
tenho asco por mim o suficiente. Ninguém me odeia mais do que eu mesma.
Paro em frente a porta da saleta, dando toques suaves.
— Não se preocupe, vou me comportar — Donna murmura antes da
minha mãe abrir.
Não é com isso que estou preocupada, Docinho.
A mulher esguia, de longos cabelos castanhos e olhos verdes como uma
esmeralda aparece na minha linha de visão, fazendo com que todas as
minhas entranhas se retorçam. Poucas mulheres são elegantes como
Georgia Hale. E poucas pessoas me dão mais nojo e asco do que ela.
O olhar da mulher que chamo de mãe, recai sobre Donna e tão logo
percebe que não é o nadador que está ao meu lado. Eu preferi não contar em
ligação.
— Oi, minha princesa — as mãos dela se apossam dos meus braços e me
puxam para um abraço. Suas unhas aprofundam em minha pele. Ela
sussurra ao meu ouvido. — Quem é essa garota?
— Irmã do Francis. Minha cunhada.
A palavra amarga na minha boca.
— Eu me esqueço que ele é adotado — a crítica está sendo feita em cada
sílaba. Georgia me afasta e esboça um sorriso falso na direção de Donna.
Tire seus malditos olhos dela!
— Olá, querida — mamãe oferece sua mão em claro sinal de desdém.
Eu espero Donna oferecer a mão em troca, mas me esqueço
completamente de quem estou falando. Donna envolve minha mãe em um
abraço apertado, a pegando completamente de surpresa.
— É um prazer finalmente conhecer você. Francis fala muito dos Hale’s.
Ela não mentiu. Ele fala sim. Só não é bem.
— Ah, Francis é um garoto precioso — diz mamãe com sinceridade pela
primeira vez. Eles realmente gostam de Francis. Se soubessem a quantidade
de vezes que precisei o segurar para não quebrar seus dentes… — Não vejo
a hora de vê-los unidos em matrimônio.
— Eles ainda estão na faculdade — Donna a interrompe abruptamente.
— Tão logo se formem eu irei providenciar isso — Georgia sorri para
mim, mas posso apostar que é para si própria. Ela pensa que conseguiram
me mudar. Se meus pais soubessem o quanto eu ando beijando a boca da
minha cunhada, ficariam horrorizados. — Blue será uma noiva magnífica.
Meus dentes rangem. Eu morro antes que ela consiga me casar com um
homem.
— É melhor entrarmos antes que as pessoas comecem a chegar, mãe.
— Tem toda razão. — Seu corpo abre espaço para passarmos, mas antes
que eu seja capaz de passar pelo batente, sua mão agarra meu pulso. — Nós
teremos um convidado especial hoje. Essa garota sabe ao menos se
comportar em um jantar?
Ergo os olhos para os orbes esverdeados tais quais os meus. Os odeio. É
como fitar de perto uma cobra peçonhenta. Um dia, eu vou mostrar a ela
que sua cria veio ainda mais carregada de um veneno letal. Um dia será ela
quem terá medo de mim.
— Essa garota tem nome. E ela sabe se portar tão bem ou melhor que eu
— não consigo mascarar a cólera na minha voz. Minha mãe inclina a
cabeça e continua me encarando. Eu sei que ela não gosta do que vê, a
petulância que tanto tentaram subjugar.
Sorrio de lado.
Eu sou sua filha, mamãe. O que há de ruim em mim você não vai
conseguir aniquilar, ainda que tente. A sua ruína virá da pessoa que tanto
tentou transformar em sua semelhante.
Puxo meu pulso de seu aperto e a vejo adotar uma postura surpresa. Fiz
Donna prometer que não faria nada, não importasse o que visse ou ouvisse.
Mas acho que esqueci de me convencer a fazer o mesmo.
Não sei até que ponto posso manter-me calada se mexerem com a
mulher que eu gosto.
Sigo reto até a mesa de buffet ao fundo, pegando os pratos para dispor na
mesa retangular ao centro. Não me atrevo a olhar os sofás da área mais
privativa onde os homens costumam beber e conversar. Porque no sofá
vermelho da direita, não foi apenas beber e conversar que um tentou fazer
comigo.
Engulo a saliva pastosa, forçando meus lábios a manter o sorriso. Se ele
se desfizer, não vou conseguir colocá-lo de volta no rosto. Don me ajuda a
pôr a mesa e logo a comida que minha mãe encomendou chega.
Os convidados adentram a saleta, até que todas as cadeiras estejam
ocupadas, exceto por uma. Sento-me à direita do meu pai, com Georgia à
frente e Donna ao meu lado. Agarro as laterais da cadeira, controlando
minha respiração.
Isso também passa.
Isso também passa.
Isso também passa.
É essa a frase que repito a mim mesma desde que tudo aconteceu.
Naquele dia, enquanto aquele homem se colocou sobre mim, eu a repetia
incessantemente. Mesmo que elas sejam uma mentira. O corpo dele não
está sobre o meu, mas ainda… ainda não passou.
— É um grande prazer receber vocês aqui, meus amigos. — Papai se
levanta para falar. Meu olhar ainda é baixo. Ele não gosta que mulheres
fixem o olhar no seu quando fala. — Estamos apenas esperando o filho de
um dos meus mais antigos amigos para iniciarmos o jantar. Ele estava
morando na Inglaterra, mas agora voltou às suas raízes.
Ele sorri para mim e repito seu gesto forçosamente.
Não importa quantas vezes eu faça esse teatro, sempre sinto náuseas.
— E Francis? Por que não veio? Faz tempo que meu genro não me
visita.
— Ele estava estudando para as provas, não podia parar agora —
explico.
— Mas eu vim no lugar dele — Donna entra na frente da minha fala,
estendendo a mão para o meu pai. Arregalo os olhos para ela.
Abusada dos infernos, fique quieta!
Phil Hale é melhor em disfarçar do que minha mãe. Na verdade, ele
poderia muito bem ganhar um Oscar por atuação.
— É um prazer finalmente conhecer a família de Francis. Ele fala muito
bem de vocês.
— É mesmo? — Don ergue as sobrancelhas e dou uma cotovelada de
leve em seu braço. — Ah, é que nos amamos muito. Somos uma família
muito unida.
— A família é o alicerce e a escada que nos aproxima de Deus.
Tão logo as palavras saem da boca do meu pai, a porta da saleta é aberta.
Todos viramos para ela. E meu sorriso montado se desfaz em mil pedaços,
incapaz de ser recolocado no lugar.
Um homem de sobretudo preto passa pela porta.
Meu pior pesadelo entra no meu campo de visão.
— O que… — Perco o ar.
Nego com a cabeça.
Pisco.
Meu corpo coça.
Minhas unhas cavam a pele dos meus braços.
Ele entra, ganhando cumprimentos dos convidados e… e um abraço do
meu pai. Meus lábios estremecem e escuto o som dos meus dentes batendo
um contra o outro. Sinto a queimação da bile subindo por minha garganta.
Sinto a pressão das mãos invisíveis nos meus pulsos, as mesmas mãos que
agora se oferecem para mim, para que eu o cumprimente.
Isso também passa.
Uma lágrima cai no meu colo. E outra. E outra.
Eles trouxeram… trouxeram ele aqui.
O convidado de honra dos meus pais é o homem que tentou me estuprar.
Eu sinto os olhares de todos em mim. Sinto que esperam que eu ofereça
minha mão de volta.
Mas eu as escondo embaixo da mesa.
Ele não vai me tocar.
Nunca mais, ele não vai me tocar.
Coço minha perna.
Tudo coça.
Estou suja.
Outra lágrima cai no meu colo.
Ninguém diz nada.
— Blue? — a voz do meu pai me faz pular na cadeira.
Por favor, não me faça tocá-lo. É o que meu olhar para ele implora. Não
ganho misericórdia de volta.
— Prazer, sou Donna Hopkins. — Ela põe-se de pé e aperta a mão que
ele estende para mim. Arregalo os olhos. — Desculpe se ela não pegou sua
mão, é que meu irmão não está presente e ele é muito ciumento com sua
namorada.
Um arrepio desce minha espinha.
— Eu entendo, também seria muito ciumento no lugar dele — a voz
pútrida me faz apertar os lábios para não vomitar. — Sinta-se
cumprimentada, Blue.
Abaixo meus olhos, assentindo.
As pessoas em volta deixam de me observar e passam a ter suas próprias
conversas enquanto comem. Meu prato continua intacto. Intacto como eu
não estou.
Como podem convidar esse homem sabendo exatamente o que pediram
para ele fazer anos atrás?
Os nós dos meus dedos ardem da força que seguro as laterais da cadeira.
Meus dentes ainda batem. As lágrimas ainda escorrem.
E ninguém faz nada. Ninguém diz nada.
Ninguém acha estranho.
Isso também passa.
Eu queria que Francis estivesse aqui, queria que ele me protegesse agora.
Porque eu odeio que Donna tenha que ter feito. Odeio que ela sequer o
tenha deixado tocar suas mãos.
Quando estou a um passo de desabar, minha mão é coberta por outra.
Meus olhos recaem para o ato e vejo Donna segurar firmemente minha
mão, escondida de onde os outros podem ver. Ela pressiona o polegar
contra meu dorso e sussurra sem olhar para mim.
— Inspira enquanto meu dedo estiver batendo e segura quando estiver
parado. Ao voltar a bater, expire.
Seu polegar colide contra minha pele em batidas lentas e faço o que ela
pede. Conto oito batidas até que ela pressione e pare. Prendo a respiração.
Ela volta a bater depois de cinco segundos. Expiro.
— Como…
— Shhh — Don nega com a cabeça. — Apenas respire.
A voz dela é raivosa. Possessa. Mas sua raiva não está direcionada a
mim e sim ao homem que me recuso encarar. Acho que não precisa ser
nenhum gênio para desconfiar o porquê da minha reação.
— Está de dieta, querida? — uma das amigas da minha mãe pergunta
para mim. — Você está muito magrinha, homens não gostam disso. Gostam
de ter carne para pegar.
Olho meu prato vazio. Tente comer na mesma mesa que seu abusador e
veja o que acontece, querida.
Donna aperta minha mão. Um pouco até demais.
— Olha aqui... — ela começa a falar.
— Você prometeu — murmuro, a lembrando.
— Desculpe — grunhe, voltando a ficar em silêncio.
Meu estômago embrulha. Donna não tem que pedir desculpa por reagir
mal a isso. E eu não deveria fazê-la participar desse teatro nojento.
— Vou ao banheiro, com licença.
Levanto da cadeira quando a bile ameaça irromper pela minha boca e
corro para o banheiro no final do corredor.
Eu aguento fazer esse papel, aguento ouvir essas coisas e parecer
conivente, mas não consigo obrigar Donna a fazer o mesmo. Chego ao vaso
a tempo de despejar o ácido que se acumulava. Não comi nada hoje, não
tem conteúdo no meu estômago.
A porta do box que me enfiei às pressas é aberta e logo as mãos de
Donna seguram meus cabelos. A ânsia não para de vir, mesmo sem ter o
que vomitar.
— Por que ficou assim desde que aquele homem chegou?
A voz dela é dura. Puxo o ar, limpando o suor da testa com as costas da
mão, tentando não tirar a maquiagem.
— Deixa isso pra lá.
— Uma porra que vou deixar. Me fala.
— Donna, eu te disse que você não ia gostar do que visse aqui.
Saio do box para limpar a boca na pia e uso o enxaguante bucal. O
banheiro é equipado com tudo, meus pais passam mais tempo nessa ala
administrativa do que na igreja em frente. Isso porque esse lugar não passa
de uma fachada. Não é uma igreja, é um negócio.
Não vou contar nada a Donna. Ela não gosta de mim como eu gosto dela
e se souber como estou suja, isso nunca vai acontecer. Eu quero poder
esquecer e não vou conseguir fazer isso se enxergar nojo em seu olhar. Eu
sei que ela vai me odiar. Sei que vai me achar fraca. Sei que vai me julgar
por não ter feito nada para impedir.
— Eu não espero um mar de rosas depois do que vi lá dentro, Hale. Eu
quero apenas a verdade. Eu aguento.
Seguro a beirada da pia com força. Com Francis sempre foi mais fácil.
Ele respeita meu silêncio e eu respeito o dele na maior parte das vezes. Com
Donna é muito mais difícil. Ela cava na minha mente até que obtenha o que
deseja. Isso me assusta.
E me encanta.
— Blue — as mãos pequenas seguram meus ombros, obrigando-me a
olhar em suas obsidianas. Meu corpo estremece com seu brilho perigoso e
sem limites. — Esse homem já colocou as mãos em você? Não minta.
Mordo o interior da boca.
— Quase todos os homens aqui já colocaram as mãos em mim, Docinho
— debocho com o sorriso mais falso que já esbocei. — Eu costumo ser bem
educada e cumprimentar a todos.
— Não vem com essa ironia dos infernos agora, porra! — a respiração
de Donna fica irregular e as lufadas de ar com cheiro de hortelã me
entorpecem. — Você já deixou a máscara de vadia má cair há muito tempo,
Blue. Não adianta tentar pregá-la na cara agora. Não na minha frente.
— Ou talvez você só tenha visto o que queria ver, Donna. — Livro-me
de suas mãos e me encaminho para a porta. Não consigo mentir olhando
para os olhos dela. Não sou tão boa fingindo assim. — Eu continuo sendo a
mesma de sempre. Não pense que sou um anjo ou algo parecido a isso.
A gargalhada dela me faz estancar o passo, me impedindo de sair do
banheiro. Seu corpo paira atrás do meu e mesmo ela sendo mais baixa,
meus joelhos ameaçam fraquejar para sua presença. Donna afasta meu
cabelo e expõe minha nuca, exatamente onde sua boca se aproxima. O
hálito colide contra minha pele e fecho os olhos.
— Eu jamais pensaria em você como um anjo, Blue Hale. — As mãos
dela se apossam novamente dos meus braços e descem até se alojarem em
minha cintura, puxando-me para trás. Minhas costas ficam contra seus
seios.
Arquejo.
— Justamente o fato de que nenhum miligrama do seu sangue é
puritano, exatamente por você ser como um pecado encarnado, é que me
fascina, Regina George.
Sorrio mesmo para a porta.
— Então eu te fascino? — Deixo minha cabeça tombar em seu ombro.
Os dedos dela estreitam em minha cintura com possessividade. Seu toque
me acalma. Não ultrapassa limites. Eu poderia chorar só por não me sentir
assustada com ela. Acontece com mais frequência do que admito para as
pessoas… toques me apavoram. — Achei que eu te irritasse.
— E irrita — Os lábios macios percorrem meu pescoço como o deslizar
de uma pena. É tão carinhoso que meus olhos ardem. — Mas isso não quer
dizer que não haja algo muito intrigante e fascinante em você. Você esconde
coisas por trás desse rostinho bonito, Hale. E eu sou curiosa demais para
não descobrir o que é.
Estalo a língua.
— Você pode não gostar do que vai encontrar do lado de dentro —
alerto.
Ela solta uma risada cínica e ao mesmo tempo maliciosa, sussurrando em
meu ouvido em seguida:
— Duvido muito que eu não vá gostar do seu lado de dentro. Só vai ser
uma dúvida cruel se vou chegar até ele primeiro com meus dedos ou com
minha língua.
Puta. Que. Pariu.
Agarro a maçaneta da porta para não cair. Sei que ela está falando isso
apenas para me distrair. Donna e eu não chegamos a esse ponto ainda. Nós
só ficamos nos beijos. Não sei o que ela está esperando, mas eu sou covarde
demais para tomar o passo seguinte. Tenho medo que depois que acontecer,
ela simplesmente suma.
Mas ela vai sumir de qualquer jeito, não vai? Ao menos vou me dar algo
do qual lembrar.
— Que se foda — viro-me para Donna, tomando sua boca para mim.
Agradeço o enxaguante bucal agora.
Ela fica surpresa e imóvel por alguns segundos, mas tão logo sua ficha
cai, Donna me beija de volta, tomando para si todos os meus pensamentos.
Eu estou fodida por gostar dela. Mas vou aproveitar enquanto ainda posso.
Nossos pés se movem apressados assim como nossos lábios, até que a
pia nos impeça de continuar. Donna me pressiona contra ela e separa nossas
bocas tempo o suficiente para segurar na minha bunda e me colocar sobre o
mármore. Sorrio de lado, estreitando os olhos.
— Que forte, Hopkins.
Ela se encaixa entre minhas pernas, retribuindo o sorriso nada pudico.
— Eu estou acostumada a te erguer até meus ombros nas apresentações.
Achou mesmo que uma pia seria um obstáculo alto o suficiente?
— Deve ser ótima a visão que você tem de baixo — provoco, puxando
seu lábio inferior com os dentes.
— Está se achando?
Estalo a língua, escorrendo minha unha desde sua garganta até seus
mamilos sob o tecido branco.
— Não preciso. — Belisco o ponto inchado e entumecido. — Seu corpo
mostra bem o quanto eu te agrado.
Ela observa os mamilos presos entre meus dedos.
— Isso? — Dá de ombros. — É apenas o frio.
Solto uma risada.
Minhas mãos vão para o tecido do vestido branco, o erguendo até que
seja apenas um amontoado nos quadris proeminentes. A calcinha vermelha
de renda não combina em absoluto com a pureza do vestido. Minha mão vai
parar dentro dela em segundos. E encontro exatamente o que imaginei.
Donna se deixa afetar e perde a postura quando dois dos meus dedos
brincam com seus lábios úmidos.
Aproximo a boca de seu ouvido.
— Frio também te deixa molhada, Docinho? — Afasto seus lábios, com
a pontinha do dedo brincando com sua entrada. Minha própria carne pulsa
dolorosamente, é preciso de força para não levar as mãos até o centro das
minhas pernas e me aliviar dessa tensão.
Eu não deveria estar fazendo isso aqui.
Mas muita coisa não poderia ter acontecido aqui também.
Donna não sabe…, mas está limpando minhas lembranças desse lugar.
Substituindo por uma nova. Por uma melhor.
Está me dando uma experiência de consentimento. De prazer.
Está me dando algo do qual lembrar dentro dessas paredes, que não seja
asco e pavor.
Quando ela partir, porque eu sei que vai, e eu tiver que voltar a esse
lugar, vou ter uma lembrança boa a qual me agarrar com unhas e dentes.
Uma lembrança mais forte do que o pesadelo que vivi nessas paredes anos
antes.
Não ligo se essa vai ser nossa primeira vez. E não ligo que esteja
acontecendo no banheiro. É ela. E merda, essa garota me enlouquece.
Ela não vira o rosto, não importa o quanto eu carregue meu olhar de
ironia. Ela não abaixa a cabeça, não importa a grosseria que saia da minha
boca. Ela me encara de frente. É irritantemente petulante e teimosa.
Irritantemente gostosa.
E nesse momento, absolutamente minha.
Donna não responde à minha pergunta sobre o frio a deixar molhada, ela
apenas ergue uma de suas pernas até a pia, permitindo que eu tenha espaço.
Graças aos céus ela é ginasta. E bendita seja sua flexibilidade.
— Isso é um convite? — murmuro, cavando sua entrada com os dedos,
aprofundando um pouco mais dessa vez. Donna não faz o tipo que fecha os
olhos quando sente prazer. Ela é do tipo que quer provar o que está
sentindo.
— Não achei que você precisasse de convite, mas se sente necessidade
de um, seus dedos são mais que bem-vindos dentro de mim.
Seus olhos se fixam nos meus como uma gata observando sua presa.
Seus movimentos são elegantes, calculados, ainda que na impulsividade. É
natural.
Isso que me fascina em Donna. Ela é simplesmente ela. Sem tirar nem
pôr. Sem máscara. Isso me excita. Me põe completamente de joelhos. É
algo do qual não estou acostumada. Pergunto-me como é poder ser quem
você verdadeiramente é, sem precisar erguer barreiras em volta de si mesma
para se proteger do mundo. Como é a sensação de ser livre? Imagino que
fascinante.
Sorrio de lado, a preenchendo com dois dedos de uma única vez, sem
aviso.
Don aperta seus dentes.
— Megera infernal.
Mordo seu lábio em reprimenda, curvando meu dedo em seu interior.
Donna pende sua cabeça para frente. Ela me fita com ímpeto e malícia.
Suas mãos saem do meu quadril e afasta a calcinha para o lado, fazendo
comigo o mesmo que fiz com ela. Donna não encontra qualquer resistência
ao me preencher.
Estou vergonhosamente molhada. Como nunca estive em toda minha
vida. Jogo o pescoço para trás e ela se aproveita para castigar meu pescoço.
Não há espaço para diálogo quando a boca dela cobre a minha em um
beijo possessivo e lento. O ritmo da sua língua é o mesmo de seus dedos
dentro de mim. É provocante, exploratório e experiente. Donna choraminga
em minha boca quando acrescento o terceiro dedo. Seus dentes prendem
meu lábio inferior, buscando o controle do próprio corpo.
Os sons de nossos movimentos são molhados, produzindo uma melodia
nada além de erótica e prazerosa. Meus dedos ficam encharcados do prazer
que escorre dela e sei que meu estado não está nem um pouco diferente.
— Parece que não foi uma dúvida tão cruel decidir como estaria dentro
de mim primeiro. Seus dedos encontraram o caminho bem rapidinho. —
Curvo os meus dentro de sua carne apertada e ela apoia a mão livre no
espelho atrás de mim.
Gosto de saber que tiro seu equilíbrio. Don também está tirando o meu.
— Você diz isso porque não sabe como estou me controlando para não
me ajoelhar na sua frente e chupar você até que esteja gritando meu nome
para todo esse maldito lugar escutar.
Belisco seu clitóris e é ela quem precisa morder a boca para não gemer
alto o bastante para ouvirem.
— Quem sabe um dia eu te dou a honra de se ajoelhar pra mim.
— A honra seria sua, megera. — Donna me penetra tão fundo com seus
dedos, que minha cabeça bate no vidro ao pender o pescoço para trás.
Nós duas rimos do barulho, mas não cessamos nossos movimentos.
Encaro Donna sob os cílios. O sorriso dela já não é de humor e sim de
desejo. Os lábios úmidos dos nossos beijos me fazem imaginar a visão dela
com a boca sobre mim, me provando e levando minha sanidade consigo.
Sim, eu quero que ela faça isso. Preciso ver com meus próprios olhos
Donna se banqueteando de mim.
Só para então, eu me banquetear dela depois.
A mão que apoiava no vidro agora penteia meus cabelos para trás, o
tirando do caminho da minha boca. Ela não puxa meus fios, apenas os
acaricia gentilmente, tudo tão discrepante do restante dos seus gestos.
Como se alguma parte da mente dela tivesse espaço para carinho e afeto.
Como se eu pudesse ter alguma expectativa de que a nossa relação possa ser
algo mais.
Fecho os olhos e beijo sua boca, fugindo dos olhares penetrantes e
intensos demais.
Eles podem não ser irmãos biológicos, mas os Hopkins têm algo no
olhar que ameaça enxergar sua alma despida.
— Vamos, Blue… nós não podemos demorar aqui — ela grunhe contra
meus lábios, chupando minha língua. — E eu não saio daqui até que tenha
gozado pra mim.
— Como? — sorrio afetada. — Assim?
Pressiono minha palma contra seu clitóris, continuando a ir fundo com
meus dedos dentro dela. Donna pende a cabeça para frente e cerra os
dentes, contendo seu gemido. Ela goza em meus dedos tão intensamente
que seu próprio orgasmo me faz chegar ao meu.
Isso, e o fato de Donna girar seus dedos dentro de mim, fazendo pontos
brilhantes explodirem como fogos de artifício em minha visão. Meus
músculos apertam e a puxam ainda mais para mim, assim como sinto meus
dedos sendo mastigados e presos.
Donna apoia a cabeça em meu ombro e eu apenas olho para frente,
dando-me conta de onde estou. Por breves instantes, o prazer me fez
esquecer que me encontro ladeada por paredes que assombram meus sonhos
e por pessoas que protagonizam meus pesadelos.
Me dou conta de que pela primeira vez na vida, me senti feliz dentro
desse lugar. Segura. Não ameaçada.
Eu tenho do que me lembrar agora.
Tenho algo para me prender sempre que eu precisar estar aqui.
Não nas lembranças do dia em que tudo foi tirado de mim, mas do dia
em que me devolveram um pouco do que foi roubado.
De hoje.
De agora.
Donna ergue o rosto para mim e suas sobrancelhas se unem ao fitar meu
rosto.
— Por que está chorando? Eu te machuquei? — seus dedos saem de
mim com tanto cuidado, que mais lágrimas escorrem pelo meu rosto. —
Blue, fala alguma coisa.
— Não — a minha voz arranhada sussurra. — Não me machucou.
— Então por que está chorando? Não me diga que foi de prazer, porque
não cheguei nem perto de te fazer ficar assim.
Nego com a cabeça, puxando seu corpo para mim, descendo da pia. Eu a
abraço forte e mesmo os braços dela ficando rígidos na lateral do corpo,
talvez nunca tenha me sentido tão protegida.
— Obrigada — é o que consigo dizer, enquanto molho seu vestido com
minhas lágrimas. — Obrigada por ter me dado algo para lembrar. — Os
braços de Donna me envolvem tímida e receosamente. — Obrigada por
substituir minhas lembranças. Obrigada por limpar um pouco de mim.
Eu não queria. Não deveria estragar esse momento com meus
sentimentos e principalmente não com meus traumas. Mas quando se sente
suja por tempo demais, alguém que chegue e lhe ofereça um paninho para
limpar seus olhos e sua boca, já é algo grande o bastante para se sentir bem.
Em pouco tempo estou soluçando nos braços dela. Nos braços da garota
que me irrita, que me tira do sério, que me provoca e que não tem medo de
mim.
Céus, como é bom que ela não tenha medo de mim.
Mesmo usando uma fachada de pessoa ruim, tudo que eu sempre espero
é que vejam além dela. É que percebam que a máscara é apenas a proteção
e primeira camada de uma menina carente pedindo por socorro. Por
carinho. Por amor.
— Foi ele, não foi? — Donna murmura com nada além de raiva
transfigurando sua voz, tanta que seu tom muda completamente e quase não
consigo alcançar o humor que sempre está impregnado.
Meu corpo tensiona no dela e faço menção de me afastar, mas os braços
firmes dela não permitem. Donna acaricia meus cabelos e afaga minhas
costas, me apertando até quase me deixar sem ar.
— Não precisa me responder — ela murmura. — Só saiba de uma coisa:
ninguém nunca mais vai encostar um dedo em você sem que permita.
Porque eu não vou deixar.
— Não precisa me proteger. — Engulo a saliva. — Não sou nada sua.
— Eu sei — ela diz o que não quero ouvir. Talvez eu esperasse que ela
me refutasse. — Mas ainda não vou deixar que encostem em você. Porque
de um jeito torto, você foi minha hoje.
As lágrimas gordas ficam ainda mais pesadas em meu rosto.
— Seus pais sabem? Eles precisam saber, trouxeram o desgraçado como
convidado de honra!
Permaneço em silêncio. O que eu poderia dizer? Sinto vergonha só de
falar. Sinto dor só de pensar.
— Blue… seus pais não sabem, né? — o corpo dela estremece em um
calafrio e cerro os punhos contra suas costas, a apertando um pouco mais.
— Puta que pariu, eu não acredito!
— Tá tudo bem — minto.
— Um caralho que tá tudo bem!
— Donna… — tento impedi-la, mas antes que minhas mãos segurem as
suas, Donna irrompe pela porta do banheiro, como um exército derrubando
os inimigos.
Meu choque dura tempo o suficiente para que eu arregale os olhos e saia
correndo em direção a ela. Mas a merda já está feita quando Don abre a
porta da sala de reuniões em um estrondo, a maçaneta colidindo contra a
parede.
E ali, eu tenho a certeza de que ela vai quebrar a promessa que me fez.
Donna não vai ficar calada. Não quando percebe o que aconteceu comigo.
Eu corro para a sala no exato momento que ela pega a taça de vinho e vira
contra a cabeça daquele homem.
Na verdade, Donna não vira a taça. Ela joga. O vidro quebra sobre o
topo da cabeça dele e faz um corte em sua bochecha. O filete de sangue
escorre e todos estão petrificados demais para reagir.
Meus pés parecem presos por concreto no chão. Não consigo fazer nada
além de olhar a garota com labaredas nos olhos, indo em direção aos meus
pais.
— Vocês são uns merdas! — ela rosna. — Como deixaram que alguém
tocasse nela e ainda convidam o desgraçado para um jantar?! — ela
empurra meu pai e saio do estado de choque, porque sei que as coisas a
partir dali não ficarão boas. Nunca vi ninguém encostar um dedo nele, que
dirá uma mulher. E não importa que essas pessoas estejam vendo, ele
colocaria Donna em seu lugar mesmo com as testemunhas. Até porque
todas essas pessoas concordariam com a postura.
Eu chego até Donna a tempo de receber o tapa no rosto que era
direcionado a ela. Sinto o gosto de sangue no mesmo momento que minha
cabeça tomba para o lado com a força do impacto. Lágrimas caem dos meus
olhos não por tristeza ou decepção.
Quando seu pai orquestra seu estupro, um tapa no rosto não é nada.
Donna segura meus ombros e sinto suas mãos geladas e trêmulas. Dou
um sorriso a ela, passando a língua na ferida do lábio, impedindo que o
sangue escorra.
Ergo o rosto para o meu pai, que está catatônico na minha frente. Meu
sorriso aumenta e ele não é nada além de raivoso. Ele acaba de me dar mais
um motivo para sempre odiá-lo. Não por me bater. Mas porque esse tapa era
para atingir a garota por quem estou apaixonada.
— Eu tolerei por todos esses anos tudo que fez comigo. — Incrivelmente
minha voz é firme. — Suportei suas palavras negando minha existência.
Suportei seu desprezo. Suportei seus tapas, suas palavras e até mesmo o dia
que mandou esse verme me estuprar!
Aponto o dedo para o homem que limpa o corte feito com um pano.
— Suportei que minha mãe não fez nada para impedir — a encaro com
desprezo e ergo o dedo do meio para ela. — Suportei a homofobia de
vocês... — Solto uma gargalhada para os olhares surpresos dos convidados.
— Sim, queridos amigos do meu papai. Eu sou lésbica — Ergo os braços
para cima, gritando.
O horror no rosto das pessoas fica mais evidente agora. Ao que parece é
pior ser lésbica do que abusador.
Coloco um dedo sobre o peito do homem que me gerou e o encaro de
frente, olho no olho, como nunca tinha feito antes.
— Mas eu nunca vou suportar que encoste um dedo nas pessoas com
quem me importo. Nunca vou suportar que faça o que fez comigo, com
mais ninguém.
O velho asqueroso fica vermelho além de tudo que já havia visto e
segura seu próprio coração. Minha mãe corre para o lado dele, me xingando
de monstro e coisas piores que não estou com vontade de prestar atenção.
Como eu disse, meu pai é ótimo em fingir, porque até eu começo a
pensar que ele pode estar mesmo sofrendo um ataque do coração. Mas ao
contrário dos amigos dele que ficam desesperados, eu apenas consigo sentir
um prazer triunfante.
— Se morrer, não me espere no enterro, papai.
Pego na mão de Donna, a puxando para fora da sala. Antes de passarmos
pela porta, a voz da minha mãe ecoa:
— Pode esquecer que existimos. Você nunca mais verá a cor do nosso
dinheiro!
Travo meu passo, a olhando por cima do ombro.
— Pode usá-lo para preencher essa sua cara de ameixa seca com botox,
velha nojenta. Quem sabe assim meu pai te acha mais agradável e para de
dar em cima de garotas novas demais para a idade dele.
Saio pisando firme, carregando Donna comigo, pela penúltima vez
pisando nesse lugar. A última será no dia que vou transformar tudo isso em
pó.
Quando saio do terreno da igreja, caio sentada no meio fio, chorando
tudo que preciso para nunca mais ter que derramar lágrima alguma. Donna
me segura em seus braços por todo o tempo, murmurando para mim que
está orgulhosa.
Não são as palavras que eu gostaria de ouvir, mas no momento, me
bastam.
 

 
— Não vai precisar de pontos, linda. Mas vou fazer um curativo, tudo
bem? — Francis fala, agachado na minha frente enquanto analisa o
resultado do tapa que levei. Sua expressão não está nada boa e nós
precisamos de muito esforço para convencê-lo a não ir até aquela igreja.
Francis faz menção de se afastar, mas dá meia volta, me tomando em um
abraço novamente.
— Eu te conheço. E sei que não vai desabar agora e nem tão cedo, mas
quando sentir que vai acontecer, basta apenas uma palavra e estarei com
você — sussurra no meu ouvido para que apenas eu escute.
Estreito meus braços ao seu redor.
— Estou perdida. Eles não vão deixar isso barato. Vão cortar todos os
pagamentos para a faculdade e… — começo a me desesperar.
— Ei! Você não está sozinha, porra! Eu estou aqui, entendeu? Nós
vamos dar um jeito nisso. Eu te prometo isso.
— Você precisa urgentemente de um encontro para viciados em
promessas, lindo.
— Eu sei — Ele ri, beijando meu cabelo. — Vou buscar o curativo.
— Ok.
— Vocês duas juntas são o caos, sabia? — Angelina comenta. Ela deu
um sermão gigantesco em Donna por ter descumprido a promessa de não
falar nada. Mas quando achou que eu não vi, agradeceu a amiga por ter tido
a coragem.
Francis volta para a sala com o kit de primeiros socorros.
Ele se agacha na minha frente, limpando o corte com um cotonete
banhado por algum líquido. Francis não tem a mão pesada e limpa sem que
eu sinta dor. Vai ser um ótimo médico se optar por esse caminho.
— Eu posso ficar aqui essa noite, né? — Contorço minhas mãos. —
Tenho medo de voltar para o dormitório e meus pais aparecerem lá. Já
deixei Cassy avisada que eles podem telefonar para ela, então vai passar a
noite nas nossas vizinhas.
— Claro que pode ficar — Francis diz como se fosse óbvio. — Não só
por essa noite, pode ficar até não precisar mais.
— E os meninos?
— Escuta, eu já perdi o quarto, Ethan também, então não vai fazer
diferença. Você pode dormir no meu quarto com a Angel ou no do Ethan
com minha irmã.
— Com a Donna! — Angelina se adianta, sorrindo amarelo. — Eu não
gosto de dormir com outras pessoas, desculpe.
Estreito os olhos.
— Mas com o nadador aqui você dorme, né? — Estalo a língua.
— Claro! — Ele sorri todo pomposo. — Olha pra mim.
Arqueio a sobrancelha.
— O que você tem que eu não tenho? Também sou gostosa — provoco.
— Eu tenho um pênis. — Ele gargalha e Angelina joga uma almofada na
sua cara.
— E eu tenho peitos! — Os apalpo sem discrição.
Francis para de gargalhar, inclinando o rosto.
— É… — assente — Contra fatos não há argumentos. Você ganha pelos
peitos. É um ótimo motivo para dormir agarrado.
Sorrio vitoriosa.
— Então você dorme comigo só pelos meus peitos? — Angelina o
fuzila.
— Claro que não, meu anjo — Francis pisca. — Você tem uma boa
bunda também.
Gargalho alto para a cara de constrangimento da Angelina.
— Donna — ela busca ajuda com a amiga.
— Nem vem, ele tem razão. Você tem uma boa bunda.
Angie esconde o rosto com as mãos.
— Eu odeio vocês!
Nós ficamos conversando até que Francis tenha terminado de fazer meu
curativo.
— Agora todas pra cama! Eu preciso de descanso — ele ordena como
um pai rigoroso.
— Você não manda em nós — repetimos em uníssono.
— Se não subirem por bem, eu vou pegar cada uma, jogar nos ombros e
carregar pra cama.
A cara dele não é de alguém que está brincando. Erguemos as mãos,
subindo as escadas enquanto escutamos ele reclamar que vai acabar com
cabelos brancos antes dos 30 anos.
Donna e eu fechamos a porta do quarto do Ethan e nos jogamos na cama.
Viro para a garota de olhos obsidiana.
— Estou com medo — admito. — Mas também acho que nunca me senti
tão corajosa na vida. E isso foi porque você estava lá. Você apenas… me
deu coragem.
Os cantos dos lábios dela erguem-se em um sorriso contido.
— Eu tornei sua vida bem complicada. Deveria estar gritando comigo.
— Eu sei — rio. — Mas vou aproveitar enquanto estou anestesiada para
só te agradecer.
— Eu vou estar com você. Não vou te deixar sozinha nessa.
— Eu sei...
— Blue? — ela chega o rosto perto do meu.
— Hum?
— Desculpe por isso. — Donna beija onde o curativo está.
Suspiro.
— Então me beija de verdade.
Donna hesita por um momento, mas toma minha boca para si, me
puxando para ficar em cima dela. Suas mãos vão direto para meus quadris e
nossas bocas não são gentis uma contra a outra. O corte dói, mas eu acho
que doeria mais me afastar agora.
Quando ela começa a erguer minha blusa, a porta do quarto é aberta e
Francis grita:
— EU MANDEI DORMIR!
Don me empurra de cima dela no susto e por pouco não caio da cama.
Nós nos enfiamos debaixo do cobertor, escondendo a risada.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 
 
Essa casa está cheia demais. Virou a república dos desabrigados. Eu
achei que a Blue fosse ocupar o quarto da Donna, mas ela está é ocupando a
minha cama, porque as duas não conseguem passar um único dia sem
discutir. Ela está morando aqui há uma semana e dormiu comigo cinco
dias... e quando digo comigo, é comigo mesmo, porque joga aquelas pernas
assassinas em cima de mim e ainda fica conversando durante o sonho,
quase me matando de susto.
Agora mesmo, seus cabelos estavam quase chegando ao meu esôfago,
porque a espaçosa se jogou em cima de mim como se eu fosse um
travesseiro. Não tive outra alternativa a não ser deixar a cama toda pra ela e
sair do quarto em busca de um canto vazio para dormir.
Começo a descer as escadas, contando os degraus para me acalmar. Uma
xícara de leite quente pode me fazer bem agora. Ou pode garantir que eu
passe a madrugada vomitando. Tudo vai depender do humor do meu
hóspede.
No meio da escada, tropeço em um monte de coisas e quase caio de cara
no chão. Agarro o corrimão a tempo, agradecendo o reflexo condicionado.
— Merda! Tem gente! — Francis grita, esfregando a costela que pareço
ter chutado.
— O que tá fazendo aí? — Estreito os olhos tentando enxergar no
escuro.
—Eu que te pergunto, o que tá fazendo descendo as escadas no escuro a
essa hora? Você podia ter caído.
Abro a boca em choque.
— Eu só tropecei porque você estava jogado feito um espírito.
— Se eu fosse um espírito você teria passado direto por mim.
— Você me entendeu, palhaço! — Bufo, me sentando ao lado dele no
degrau.
— Mas falando sério, por que desceu?
— Porque Blue e Donna brigaram de novo. — Reviro os olhos. — Blue
queria dormir de conchinha e sua irmã parece ter pavor de proximidade,
então não deixou e elas discutiram tão alto que acordou até o bebê. Aí a
Blue resolveu se aboletar na minha cama. O problema é que ela não se
satisfez com seu lado e ocupou o meu.
— E ela fala — reclama.
— Como sabe? — Franzo o cenho, me virando de braços cruzados.
— Quando fingíamos namorar, ela dormia aqui. Eu dormia no chão,
claro, mas isso não me impedia de ouvir seus monólogos.
— Ah... — Rio sem graça.
— Por quê? Ficou com ciúmes? — Francis empurra o ombro contra o
meu.
— Me poupe, Hopkins! É apenas curiosidade.
— De onde eu venho, ciúmes é apenas ciúmes. Curiosidade se tem para
provar um prato de comida. É diferente.
— E de onde eu venho, pessoas não fingem namoros.
— Achei que esse tópico entre nós já estava resolvido.
— E está. Eu apenas gosto de te alfinetar. — Solto uma risadinha.
— Principalmente quando eu falo que você tem ciúmes de mim.
— Cala a boca!
— Está fechada — Francis finge fechar a boca com um zíper, mas não
esconde o sorrisinho contente demais.
Suspiro, apoiando a cabeça em seu ombro. O braço dele me envolve
imediatamente para me aconchegar melhor. Eu gosto de ficar assim.
Rodeada dele.
— Está cansada?
— Muito — gemo de pura exaustão.
— Acha que o remédio da anemia não está surtindo efeito?
— Não é fraqueza. É só cansaço mesmo. Sono, para ser exata. — Bocejo
durante a fala.
— Não poder tomar café dificulta as coisas, né? — Ele acaricia minhas
costas.
— Não acho que o café ajudaria.
— Por que não?
— Eu não consigo dormir de noite porque o bebê não para de se mexer.
Se eu adicionar cafeína na equação, ele vai saltar pra fora.
— Então o Brotinho continua agitado?
— Mais do que um time de futebol depois da vitória.
— Isso ainda te deixa mal?
— Não como antes. —  Jogo os ombros. — Não sinto que vou explodir,
mas também não consigo dormir com uma balada rolando dentro da minha
barriga.
— Eu não consigo imaginar como é isso. O máximo que mexe dentro de
mim são gases.
Solto uma risada e Francis me acompanha.
— Sabe, parece um pouco. Mas é bem mais forte, principalmente agora.
E também mais recorrente. — Estreito os olhos. — Como posso te
explicar? Lembra quando ventava muito em Cape May?
— Lembro. — Francis beija meu ombro distraidamente e quase perco a
linha de raciocínio.
— Então, o jardim da vovó Angelina ficava uma verdadeira desordem.
Todas as folhas, flores e árvores balançando sob a força do vento,
desgovernados e imprevisíveis. É assim. Como um jardim durante uma
ventania. Se move sem direção, sem um verdadeiro lugar para ir, mas ainda
assim, com força e vivacidade.
Ele fica em silêncio por alguns momentos, absorvendo minhas palavras.
Não sei se fui clara o suficiente, mas para mim faz sentido.
— Isso pareceu mais bonito do que ruim — diz ele por fim.
— Se você parar para pensar no que realmente acontece, que é uma vida
dentro de outra, então sim, pode parecer bonito. — Minha expressão se
retorce em uma careta. — Mas pra mim, ainda é meio assustador pensar
sobre. Então eu apenas sinto e tento não pirar.
— Você disse que minha voz o acalma... se quiser, eu posso conversar
com o Brotinho quando for dormir. Eu fico no quarto até que você pegue no
sono e depois vou embora.
Franzo o cenho, erguendo a cabeça e encarando seus olhos penetrantes.
— Por que não fica a noite toda? — Isso também tem me tirado o sono.
Francis tem sido cauteloso no seu contato comigo, principalmente o contato
físico, como se não quisesse me incomodar. Ele me beijou no meu
aniversário, mas não o fez mais. Por acaso só vou ser beijada em datas
comemorativas? Estou grávida, mas ainda estou viva!
— A noite toda? — O pomo de adão se move duramente.
— É... a noite toda. Algum problema?
— Por quê? — pergunta de repente.
— Por que o quê?
— Por que você me quer lá a noite toda, Angelina?
— Bom... — Limpo a garganta. — Eu… — ah, droga, no que foi que me
meti? — Eu gosto… gosto quando está por perto. Com você no quarto, eu
me sentiria em segurança.
Que mentira, Angelina! Mas espero que ele acredite.
— Só isso? — Francis aperta as pálpebras. — Só o que sentiria comigo
dentro do quarto é segurança?
— O que mais poderia ser? — sussurro baixinho, meus olhos sendo
atraídos para sua boca.
— Amor. Paixão. Atração. Desejo… são várias opções — seu sorriso de
lado desponta prepotente.
Nego com a cabeça, umedecendo meus lábios.
— Eu não preciso estar dentro de um quarto para sentir isso por você —
confesso. — Na verdade, dado aos lugares em que já me entreguei a você,
um quarto é o que menos mexe comigo.
Agora teste me colocar em um jardim, para ver se não arranco suas
roupas...
— Como sempre, bom ponto. — Ele finge indiferença, mas o timbre da
sua voz se torna rouco
— Eu costumo estar sempre certa, Senhor Hopkins.
A mão dele passeia de cima a baixo na minha coluna, um carinho
preguiçoso e constante, que eu poderia receber sempre de bom grado. Isso
se ele parar de ficar receoso comigo.
— Você só esteve errada em uma coisa até hoje, Angel.
— Em quê? — indago curiosa.
— Quando disse que havíamos acabado. — Ele me encanta com seu
olhar, como um hipnotizador. — Estamos juntos agora.
— Não estamos juntos — o corrijo. E é tudo culpa dele, por estar se
mantendo distante.
— Semântica... — Francis estala a língua como a Blue faria. — O que de
fato é “estarmos juntos”? É apenas se estivermos usufruindo do corpo um
do outro? — Ele balança a cabeça. — Estamos juntos aqui. — Francis toca
no lugar do meu coração. — É o que verdadeiramente importa.
— Como sabe que estamos juntos no meu coração? — provoco.
— Eu não sei... só espero estar, Angelina. Porque você está no meu.
— Mesmo depois de tudo? Mesmo depois de eu ter sido rude com você
por todos esses meses?
— Não há nada forte o bastante nesse mundo para te tirar do meu
coração. Distância, erros, problemas... não são nada comparados ao que
sinto por você.
Devo admitir, esse homem sabe o que falar. Levo a mão ao colar que me
deu, segurando o pingente de onda. Ele me dá esperança de que Francis
sempre voltará para mim.
— Então por que sinto como se você estivesse fugindo? — Meu
estômago embrulha de medo. Acho que não saberia lidar com Francis
simplesmente não me desejando mais. — Se eu não estivesse grávida, você
continuaria tentando me ter de volta e agora parece que desistiu.
— Estou tentando te dar espaço para lidar com tudo. — Francis faz um
carinho singelo no meu rosto. — Não quero forçar a barra, você já está
passando por coisa demais. Não seria justo tentar te ter de volta agora.
— Eu consigo lidar com tudo, sou mais forte do que pensa! — Que
droga ele está falando? É sério que vai vir com esse papo pra mim? Logo o
Francis? — Sou eu que vou dizer se você está ultrapassando algum limite,
cruzando alguma linha ou forçando a barra. E até agora, o que você está
fazendo é ser covarde e se manter longe. Eu não quero distância de você!
Ofego, sentindo o rosto esquentar. Ele tem que se lembrar com quem
está falando e não é com uma garotinha assustada.
— Não? Mas eu pensei que... — Coloco um dedo sobre sua boca, o
impedindo de falar.
— Se tem uma coisa que percebi quando achei que estava doente, é que
podemos não ter tempo. Então eu quero aproveitar o que tenho. Não quero
ter medo de viver, Francis. Eu tenho medo é de não viver o suficiente.
— Então... você me perdoou? — Ele parece confuso.  
— Não sei. — Solto uma risada. — O perdão é algo que vem com o
tempo, precisa ser digerido pouquinho a pouquinho, até que não sobrem
resquícios de mágoa. Não posso dizer que te perdoei ainda, porque não
sinto que entendi todas as coisas que aconteceram. Eu te conto quando tudo
dentro de mim tiver perdoado você.
— Promete? — Francis sorri travesso.
— Só se você prometer parar de sentir medo de ficar perto de mim. Eu
não sou quebrável, lembra?
— Posso apalpar sua bunda à vontade então?
O quê...
— Palhaço! — o empurro para longe, mas Francis me abraça mais forte,
beijando meu pescoço.
— Eu prometo, meu anjo.
Engulo a saliva. Eu amo quando me chama assim. Sinto falta dessa
intimidade. Eu não quero espaço, não agora.
Toco minha barriga quando sinto o bebê mexer e os olhos de Francis
caem para a região instantaneamente.
— Eu posso? — ele sussurra quase inaudível.
— Por que pergunta? Não seria a primeira vez.
— Você não gosta que toquem. Eu vi o dia em que pediu a Josh que
nunca o faça.
— Você é diferente, Francis. É diferente de todos os outros.
A expressão dele beira ao sofrimento.
— Por quê? — me indaga.
Respiro fundo antes de responder.
— Porque você também nunca saiu do meu coração. Acho que você é a
única pessoa, que pode entrar e sair da minha vida incontáveis vezes e ainda
parecer que nunca foi embora.
Ele acaricia meu rosto, beijando a ponta do meu nariz.
— A partir de agora, eu realmente nunca mais irei embora. A não ser que
me empurre da sua vida, Angel.
— Não farei isso — prometo, beijando seus lábios brevemente.
Ele sorri antes de acariciar minha barriga, no exato momento que ganho
um belo chute na costela.
Ai. Não precisa ficar tão feliz, Serzinho, assim vai me quebrar!
— Brotinho... — Francis leva a boca próximo à região. — Vá com
calma aí dentro. Sua casinha é resistente, mas não é de ferro. Além do mais,
em uma história que talvez eu te conte um dia, uma casa de tijolinhos
sobreviveu a um sopro, mas chute é outra história.
Gargalho, lembrando-me das vezes em que Francis leu Os Três
Porquinhos para mim. Em todas elas, mantive meus olhos fechados, com
medo de que ele fosse embora e parasse de ler. Eu amava escutar sua voz.
Ainda amo.
Cubro a mão dele com a minha.
É, bebezinho, eu te entendo. Ele também me acalma.
— Você quer ir dormir?
— Com a senhora espaçosa? — Arqueio a sobrancelha. — Não
obrigada.
— Vai passar a noite acordada? Temos aula amanhã.
— Vou dormir aqui com você.
— Na escada? — ele guincha.
— É. É isso ou enfrentar o senhor escapamento furado. — Ethan precisa
averiguar se esse ronco é normal.
— Escada então! — exaspera. — Vem, vou tentar deixar mais
confortável.
Francis recosta contra a parede e abre as pernas para que eu me encaixe
entre elas. Sento-me com as costas contra seu peito e ronrono. Não é
confortável, ele é duro como os degraus, mas as curvas dos seus músculos
são mais suaves e deliciosamente quentes. Conscientemente ou não, não
faço ideia, a mão dele volta para minha barriga, fazendo pequenos círculos.
— Era uma vez, três porquinhos…
Ele começa a contar a história infantil com uma voz doce e gentil, que
não apenas deixa o bebê quietinho, como me faz adormecer em minutos.
Sonho embalada pela voz amorosa. E é um sonho bom. Muito bom.
Nele, o bebê não está na minha barriga. Está conosco. E se eu achava
que os olhos de Francis eram azuis, eu não posso descrever a cor dos olhos
do menininho que era nossa mistura perfeita.
Foi o melhor sono que tive em meses... a
Até Donna acabar com a minha paz na manhã seguinte.
— Mas não é possível! Até na escada?!
Acordo assustada com uma voz estridente e o corpo em que estava
encostada solavanca, quase me fazendo rolar os últimos degraus. Só não
despenco, pelo braço possessivo que envolve minha cintura.
— Caralho, Donna! Fala baixo — Francis diz com a voz rouca,
esticando a coluna. Consigo escutar os estalos que dá. A minha não está
muito diferente e para compensar, não sinto minha bunda.
— O que estão fazendo na escada? — Blue pergunta do topo.
— Estamos aqui porque você invadiu meu quarto. — Rosno para ela.
— Culpa da sua amiguinha — ela avalia Donna com deboche.
— Eu não durmo de conchinha e você é emocionada demais. Não pode
ouvir um “não” que surta. Me poupa. — Os olhos de Don reviram.
— Se esqueceu com quem está falando, querida? Eu não ouço “não”. Eu
ouço “sim, senhora” — Blue bate o pé no chão.
— Vai sonhando, Regina George.
Olho para Francis, que encara as duas com uma careta de confusão. Que
bom, achei que eu era a única que não estava entendendo. As duas não
deveriam estar se dando bem?
— É reunião e ninguém me convidou? — Ethan aparece no início da
escada, coçando as partes.
Desvio os olhos na hora.
— Tenha modos, garoto! — Blue reclama.
— Vai me falar que nunca viu um cara coçando o saco?
— Ethan, eu vou te fazer engolir sua língua. — Francis sorri para ele,
mas não é um sorriso amistoso. É até assustador.
— Quanto nervosismo. Até parece que não dormiu.
— E eu não dormi! — Francis explode. — Ou você compra algo para
impedir esse ronco, ou vou te colocar pra dormir na garagem.
— Eu não ronco, só faço barulhinhos de cansaço.
— Barulhinhos? — indago. — Ethan, você parece um escapamento
furado.
— Mais um motivo para eu não dormir com nenhuma das mulheres que
saio. Não quero atrapalhar o sono delas — ele pisca.
Quatro pares de sobrancelhas se arqueiam para ele.
— Nada tem a ver com você ser um galinha, então? — Donna zomba.
— Jamais! — Ele faz uma expressão estoica.
Reviro os olhos, me levantando do degrau. Cada osso, músculo e pelo do
meu corpo doem.
— Eu vou tomar banho — declaro enquanto me estico. E é meu pior
erro.
— Não vai não! — Donna e Blue correm para cima e as duas se
aboletam nos quartos, fechando a porta. Penso em ir para o banheiro do
primeiro andar, mas o Ethan sai pulando feito gazela fugindo de uma hiena,
entrando no último disponível. Encaro Francis perplexa.
— Foi você que abdicou do direito prioritário das grávidas. — Ele ergue
as mãos. — Se eu fosse você, usava isso ao meu favor em tudo. Se me
cobrassem uma dívida, eu ia colocar a mão na barriga, fazer uma cara de
dor e gritar: tô grávido!
Pisco em choque para a imitação que ele faz, arreganhando as pernas e
segurando a barriga.
— Por acaso eu ando com as pernas feito uma pata torta, Francis
Hopkins?
— Eu não diria como uma pata torta, mas como uma pata endireitada,
sim. — Ele dá de ombros.
E corre quando eu ameaço jogar meu chinelo em cima dele.
Uma grávida já foi mais respeitada nessa casa.
 

 
Há coisas que gostaríamos de manter para nós, afastado do mundo, dos
olhares, dos julgamentos e, principalmente, das opiniões. Havia um motivo
pelo qual eu não queria que minha mãe soubesse da minha gravidez. Havia
um motivo para que eu me esquivasse de ouvir o que ela teria a dizer.
Para todos os efeitos e para os meus amigos, a visita dela não me abalou.
Mas só eu sei o que tem apertado meu peito desde que veio. E a pior parte,
não é nem sua mentira sobre minha paternidade, mas a forma como ela não
pensou uma vez sequer em preservar meus sentimentos.
Não importa quantas vezes eu repita a mim mesma e para os outros, o
quanto a opinião dela não importa ou o quanto suas palavras não podem
mais me ferir. É mentira em todas elas.
Como as palavras hostis de uma mãe podem não machucar? Como o
olhar de desprezo pode não ferir?
Observo minha barriga no espelho. Será que me pareço com ela quando
me carregava? Será que eu também era agitada? Savannah nunca me
contou. Nunca me mostrou fotos. Acho que ela quis apagar essa fase da sua
vida, assim como tenta fazer comigo. Ela apaga tudo que me envolve, como
se eu tivesse sido um veneno para sua felicidade.
Uma lágrima cai em cima da minha barriga. Eu a observo deslizar pelo
monte bem mais proeminente. Seis meses. Dois meses que descobri a
gravidez. Dois meses que minha vida deu um giro de 360 graus. Dois meses
que meus sentimentos foram testados. Que fiz uma escolha. Acaricio minha
barriga, limpando-a de minhas lágrimas.
Seis meses de gravidez e aniversário da minha mãe. Deve ser por isso
que hoje, especialmente hoje, tudo que ela já me disse na vida, machuca
tanto. Eu queria poder ligar para ela e ser sincera nas minhas felicitações.
Mas não seria. Então não as faço. Não perco meu tempo com declarações
falsas e levianas de amor.
— Sabe, Serzinho — murmuro — Francis e eu temos uma mania. É
quase um vício. Nós fazemos promessas. Elas são importantes para nós. E é
por isso, que vou te fazer uma promessa. Eu prometo dar a você, os
melhores pais que você pode ter. Eu os escolherei com toda a exigência da
minha alma. Escolherei aqueles em que eu sinta, que não amarão nada no
mundo acima de você. Eu prometo que nunca sentirá o que Francis e eu
sentimos em relação à nossas mães. Prometo que será feliz. Eu vou garantir
isso.
Pego meu telefone e ligo para vovó. Está na hora de ela saber o que está
acontecendo. Está na hora de receber o conselho de alguém que realmente
quer o meu bem. Eu não posso esperar isso de Savannah.
Vovó me atende na terceira chamada.
E mesmo brava por não ter contado nada para ela antes, eu não escuto
nada além de palavras de apoio.
— Você fará o que for melhor para essa criança — vovó diz com a
calma que me preenche. — Nunca conheci alguém com o coração como o
seu e o do Francis. Vocês dois são puros de alma, como poucas pessoas no
mundo tem a capacidade de ser. O que escolherem, sei que farão por nada
além de amor. E podem contar comigo, seja lá o caminho que decidirem
seguir.
— Estou perdida, vovó.
— Todos estamos, querida. Viver é nunca saber o caminho que está
seguindo, mas tendo certeza do final do percurso. A morte. Ela é a única
constância imutável. Então simplesmente aproveite a sua estrada sem
pensar aonde ela vai dar.
— Não posso me dar ao luxo de não pensar. Tem uma criança no meu
ventre.
— Mas para essa criança a sua decisão já está tomada. Então por que
se sente perdida em relação a isso?
Abro a boca para responder, mas percebo que não tenho uma resposta a
dar. Tenho só a mesma pergunta.
Por que me sinto perdida, se tomei a decisão da adoção há meses?
Por que sinto dor no meu peito sempre que penso?
— Eu não sei, vovó.
— Pense a respeito. Decisões não são como a morte, mas podem gerar
efeitos definitivos. Assim como na vida, você pode mudar o rumo. Então
antes de dar sua certeza a algo, lembre-se que até o segundo antes de
realizar, você pode mudar de ideia.
Respiro fundo.
— Vou me lembrar disso.
— E Angelina…
— O quê?
— Seja feliz. Esqueça todo o resto.
Nego acompanhado de um suspiro.
— Estou tentando. Estou dando uma nova chance ao Francis, mas ainda
dá medo. Ainda é difícil.
— Por isso vale a pena.
— E se eu me machucar?
— Se você se machucar, coloque um curativo e se erga. Em machucados
colocamos esparadrapos e não paredes de concreto. Elas podem proteger
seu coração das coisas ruins do lado de fora, mas vai impedir que ele
receba as coisas boas também. A solidão só é bonita até certo ponto.
Depois, ela torna-se uma escolha pela dor. Não faça essa escolha.
— Eu não sei como esquecer.
— Então não esqueça. Perdoe.
Fecho os olhos, apertando o telefone na orelha.
— E se eu já tiver perdoado?
— Então está perdendo seu tempo. Eu sei que Francis ama você, mas
até mesmo o amor conhece limites. Não deixe que os limites dele se
esgotem. Você pode não ter outra chance.
Um fio de pavor desce pelas minhas costas.
— Vou pensar nisso.
— Faça isso, Lilium. Faça isso e seja a mulher feliz que nasceu para
ser. Você não tem cara nem jeito de mulher infeliz. Você tem a garra de ter
tudo o que quer. Então não espere que caia na sua mão. Vá lá e pegue.
 
 
 

 
 
— Jayden, caralho! — Balanço a mão freneticamente. — Você tá
espirrando óleo pra todo lado. Tem certeza que sabe o que está fazendo?
JC deixou a grelha nas mãos dele hoje, porque o cozinheiro teve um
problema familiar. Jayden disse que dava conta, mas se contar que estou
prestes a ter uma queimadura pelo tanto de óleo espirrado, eu acho que
mentiu.
— Eu sei o que estou fazendo, só estou distraído. Foi mal.
Estava indo levar um pedido para clientes, mas com ele se desculpando
comigo, acho melhor conferir se sua sanidade está em dia. O cara tá com
febre, drogado ou alucinando? Nem quando me esmurrou sem motivos
ouvi um pedido de desculpa.
— Você tá bem?
— Estou — responde com indiferença. Continuo parado, confuso.
Jayden tira a atenção da grelha e me olha de sobrancelha erguida. — O que
foi?
— Nada, é que você me pediu desculpa. Da última vez, você falou que
se eu reclamasse de novo, me atiraria dentro da fritadeira.
— Ah… — Ele coça a nuca. — Eu estou com uns problemas em casa,
minha cabeça não está boa.
— Se quiser conversar. — Dou de ombros, sem saber o que falar. Jayden
e eu progredimos, mas ainda não temos muitos assuntos em comum.
— Talvez depois.
Ele volta ao trabalho sem dizer mais nada. Talvez tenhamos isso em
comum. Não gostamos de falar o que sentimos.
Às 19 horas, estou andando como um sonâmbulo. Minhas pernas se
movem, meus braços entregam pedidos e recolhem gorjetas, mas meu
cérebro está desligado. Estou exausto. Merda, estou muito exausto.
Em casa as coisas estão difíceis, não durmo direito durante a noite desde
que o lugar ficou cheio. Não que eu fosse um exímio dorminhoco antes
disso, mas depois de ter dormido na escada com Angel em cima de mim, as
coisas ficaram mais complicadas. Ela vem muitas vezes porque Blue invade
seu quarto.
Eu posso apostar que minha coluna está com o formato dos degraus.
— Quer carona pra casa? — Jayden me pergunta enquanto se prepara
para a troca de turno.
Deixei meu carro com a Blue já que os pais tiraram o dela, e Ethan me
deixou aqui antes de ir para a cafeteria dos pais.
— Seria bom, mas eu preciso passar no banco pra depositar o dinheiro
das gorjetas.
— Está guardando as gorjetas em uma conta?
Tiro o avental todo sujo.
— É o que está sobrando para guardar. O salário eu estou pagando minha
parte das despesas da casa. Quer dizer, menos o aluguel, isso meu pai
continua pagando porque o dinheiro não dá. Agora que tá todo mundo lá em
casa, não quero sobrecarregar mais as coisas pra ele.
— E as consultas da Angie?
— Meu pai está lidando com isso, porque a médica é amiga dele.
Digamos que eles têm uma troca de favor, ele já cuidou da mãe dela e agora
ela está cuidando da Angelina. Meu pai conhece muita gente aqui, ele se
formou na USF e fez residência em São Francisco.
Jayden assente.
— Queria que o meu tivesse alguma influência assim — ele suspira
pesaroso.
— Por quê? Alguém está doente?
— Minha mãe — ele exaspera. — E os tratamentos estão somando uma
conta astronômica no hospital.
Arqueio a sobrancelha.
— Sinto muito, Jayden. Eu não fazia ideia.
Ele dá de ombros, indiferente.
— Tudo bem. — Ele dá de ombros, indiferente.
— É uma merda não termos um sistema de saúde público — observo.
— Nem consigo imaginar como seria isso.
— Há um sistema assim no Brasil. É um dos temas que quero usar para o
meu trabalho de conclusão do curso.
— Deve ser interessante, gostaria de ler quando estiver pronto.
Fico surpreso.
— Claro. E… — Limpo a garganta, coçando minha nuca. — Sem querer
ser indelicado, mas... o que sua mãe tem?
— Ela sofre de epilepsia. — O mesmo que ele… o mesmo motivo pelo
qual desconfio que seja ele quem me drogou. Ou melhor, desconfiava.
Tenho minhas dúvidas de que Jayden faria algo assim agora. — O caso dela
é grave e tem sido difícil achar médicos que caibam no nosso orçamento e
que sejam especialistas.
— Meu pai deve conhecer, tenho certeza. Eu posso passar o contato dele
para você, ou você me passa os prontuários dela e encaminho para ele. Meu
pai é especializado em cardiologia, mas pode ajudar também.
— Eu tenho certeza que eu não conseguiria arcar com as despesas dos
médicos amigos do seu pai — Jayden ri sem humor. — Eu sei o quanto
vocês são bem de vida e não deve ser porque cobra barato pelos
tratamentos.
— Você pode ter ouvido falar do meu pai, mas definitivamente não o
conhece — minha voz sai dura e Jayden ergue o rosto da sua mochila para
mim. — Ele não cobra caro pelos seus serviços, ele cobra o preço do seu
esforço, o preço por abdicar de estar com seus filhos, para estar tratando dos
familiares de outros. E ao contrário do que pensa, meu pai sempre fez muita
coisa de graça para pessoas que não tinham condições. Ele não é uma
espécie de mercenário, se é o que quis conjecturar.
A expressão dele fica surpresa e eu preciso me controlar para não o
mandar para a casa do caralho. Quem ele pensa que é para falar do meu
pai?
— Não quis ofender seu pai, Francis — ele parece sem graça. — Você
tem razão, eu não o conheço. Mas ainda assim, não me sinto confortável em
fazer parte das pessoas que pedem um serviço de graça.
— Não é de graça — Respiro fundo, controlando minha raiva. É muito
mais difícil domar o temperamento quando não se dorme. A falta de
serotonina deixa meu corpo em um completo estado de alerta e defesa. —
Você me conseguiu esse emprego. Nada mais justo que eu te ajude agora.
— Uma coisa não tem nada a ver com a outra.
Ele é orgulhoso. Não o culpo. Eu também sou.
— Estou propondo que meu pai te ajude a cuidar de alguém que ama. —
O encaro seriamente. — Em troca, já que não considera meu emprego
suficiente, peço que me ajude então, a cuidar de alguém que amo. Peço que
continue sendo para Angelina o amigo que ela precisa.
— Eu não faria isso em troca de nada.
— Eu sei… — Sorrio, ainda que incomodado. — Mas é toda a
retribuição que preciso para falar com meu pai.
— Pensei que me quisesse longe dela.
— Eu quero. — Rio sarcasticamente. — Pode apostar que eu quero. Mas
ela não. E eu fico feliz quando ela está feliz.
Ele franze o cenho, pensando por alguns segundos.
— Eu posso te ajudar com sua conta no banco. Eu estou fazendo alguns
fundos também, para Isabela — ele oferece.
— Acho que chegamos a um acordo então. — Ofereço minha mão e
Jayden a aperta. Ele aperta forte demais e retribuo numa competição
ridícula de testosterona. Angelina reviraria os olhos e bateria na nossa
cabeça, com toda certeza. — Eu te ajudo e você me ajuda.
— Só não me faça promessas, posso achar que está interessado em mim
— Jayden debocha e ergo o dedo do meio para ele.
Babaca.
 

 
Entro em casa depois de fazer um curto treino no campus, encontrando o
lugar já escuro, exceto pela luz da televisão da sala, onde Ethan joga
videogame com Vance. Isso parece ser a única coisa que eles conseguem
fazer juntos e com certeza é porque não exige nenhum grau de conversação.
Subo as escadas sem chamar a atenção dos dois e abro a porta do meu
quarto devagar, sabendo que Angelina deve estar dormindo. Ela tem sentido
bastante sono agora com seis meses de gravidez. Geralmente quando chego
em casa, já a encontro aproveitando as primeiras horas de sono. Depois de
um tempo o bebê se agita demais e ela passa a madrugada em claro.
Sorrio para a imagem da garota na minha cama. Um livro está sobre seu
peito, o abajur ligado ao lado e uma expressão serena em seu rosto. Não
resisto em me aproximar para ver melhor. Tiro uma mecha de seu cabelo do
rosto, a devolvendo para o lugar. Seus lábios estão um pouco abertos, agora
mais inchados, e suas bochechas mais rosadas. Ela está linda. Se possível,
ainda mais linda.
Sua blusa do pijama revela o início da sua barriguinha proeminente e não
me contenho em pegar a Canon para registrar algumas fotos. Talvez
Angelina não queira se lembrar desse período da sua vida depois que passar,
mas eu não consigo sequer imaginar não ter recordações dela assim... minha
garota está brilhando e nem é exagero.
Ajoelho ao lado da cama depois de ficar satisfeito com as fotos, tocando
a barriga com cuidado para tentar sentir os movimentos do bebê.
— Você parece estar cansado hoje também. Nem esperou eu te contar
uma história para ir dormir. Achei que a gente fosse mais companheiro —
brinco, fazendo desenho desconexos com a ponta dos dedos na pele
exposta. — Deve estar mais confortável agora que a barriga cresceu, não é?
— Aproximo o rosto, depositando um singelo beijo. — Eu sei que a Angie
dorme melhor quando está quietinho, mas eu gosto de sentir você se
mexendo. É legal sentir os chutes aqui de fora, você vai ser um garotinho
ou garotinha bem forte.
Deito o rosto sobre a barriga de Angelina, abraçando sua cintura.
— Meu dia foi bom hoje, sabia? Eu consegui juntar mais dinheiro para
cuidar de você. Também acho que estou começando a ficar amigo do chato
do Jayden. Você deve saber quem ele é a essa altura, aquele jogador não
desgruda da sua m... da Angelina.
Balanço a cabeça para minha fala.
— Posso te contar um segredo, Brotinho? — minha garganta aperta. —
Eu queria poder ser o bastante pra vocês. O bastante para você poder ficar
com a gente. Queria poder ter vibrado quando soube de você e queria poder
estar preparando tudo para te receber. Mas eu não posso ser egoísta com
você ou com a Angel. — Beijo logo abaixo do umbigo — Ela é uma pessoa
maravilhosa... você teria sorte de tê-la como mãe. Só teve a má sorte de ter
me escolhido como pai. Eu não posso dar a você o que precisa. Sou fraco
demais pra isso. Para garantir a vocês dois um mundo melhor. Mas eu não
sei nem como cuidar de mim... não sei o que quero para minha vida, cometo
erros atrás de erros... e ainda assim sei que não é desculpa o que estou
fazendo.
Uma lágrima escorre do meu rosto para a barriga dela e apenas observo a
gota se espalhando na pele alva.
— Eu nunca entendi porque fui abandonado. Nunca entendi porque
meus pais me deixaram. E eu sei que vou te deixar com a mesma pergunta.
Sei que vou plantar em você, as dúvidas que cultivei minha vida toda. Não
fui o bastante? Não fui amado? Fui imperfeito? — Respiro fundo. — Eu
queria poder garantir a você essas respostas. E mesmo que não vá se
lembrar... saiba que é o bastante. Você é amado. E é perfeito. O único
incompleto aqui sou eu... e nunca vou conseguir te pedir perdão por isso.
— Francis?
Levanto do chão rapidamente, olhando para a porta assustado. Blue está
parada no batente, com o rosto avermelhado.
— O que foi? — sussurro, enxugando minhas lágrimas.
Ela me chama com o dedo e quando chego no corredor, seus braços me
envolvem.
— Conta pra ela — minha implora enquanto me abraça.
— Não.
— Angelina precisa saber que você o quer.
— Angelina precisa saber que tem meu apoio e que vou respeitar sua
decisão.
— Mas e se ela só estiver esperando de uma pitada de coragem? E se ela
só estiver esperando que você a diga que vão conseguir?
— Eu não posso mentir para ela ou dizer coisas das quais não tenho
certeza. Eu não sei se consigo, Blue... não sei se posso ser bom para essa
criança. — A aperto contra mim, porque não há nada pior do que admitir
que qualquer outro seria um pai melhor para o meu filho do que eu. — E
Angelina me diria se ela estivesse em dúvida. Ela é direta, não faz rodeios.
— Ela é direta, mas ainda é humana. Também sente medo, também tem
seus demônios internos, dos quais não quer que ninguém saiba.
— Eu já errei demais com ela, Blue. Já dificultei muito a vida da
Angelina. Não tenho direito de interferir nisso. Essa não é uma decisão
minha. Principalmente porque eu sei que ela está certa. De nós dois, ela
quem não está sendo egoísta. Eu não posso fazer o que quero, só porque
isso me faria mais feliz... tenho que pensar na criança que vai ser muito
melhor cuidada por alguém menos fodido.
— Um dia, eu espero que você se veja da forma como verdadeiramente
é. Porque eu sei, que ninguém no mundo cuidaria desse bebê como vocês.
Nego com a cabeça, me afastando do seu abraço.
— Isso já está decidido. — Enxugo as lágrimas com força. — Eu só
espero ter forças para entregar o bebê e continuar vivendo depois disso.
Porque nesse dia, algo dentro de mim vai morrer.
— Vocês vão conseguir passar por isso. Eu tenho certeza.
Ela tem. Mas eu não tenho.
Como alguém supera perder um filho?
 

 
 
— Ergue menos o braço e flexiona o cotovelo — Hart me corrige. —
Você está muito afoita para ir na bola, tentando premeditar em que
momento deve rebater. Não faça isso, espere. Aprenda a esperar.
— Se a senhora soubesse o quanto eu sei esperar, não diria uma coisa
dessas — ironizo.
— Espere até que a bola tenha ultrapassado a rede para dar o passo.
Assim você terá certeza da jogada — ela ignora meu comentário.
— Tudo bem.
Quico a bola três vezes. Saco para Hart. Ela devolve com uma única
manchete.
Esperar e pensar antes de agir, Angelina.
Sem impulso. Não deixe a ansiedade te conduzir.
Respiração. Essa é a chave.
Inspira. Segura. Expira.
A bola parece vir mais devagar quando o ritmo do meu coração diminui
e escuto apenas o som do ar entrando e saindo dos pulmões.
Recebo a bola com uma manchete, a tocando para cima e cortando de
volta para Hart. Jogamos três sets até que ela perceba minha fadiga.
Definitivamente não tenho o mesmo fôlego.
— Por hoje chega — ela segura a bola contra o peito. — Você perguntou
à sua médica sobre quando terá de parar?
— Ela falou que contando que eu não pule ou me jogue no chão, posso
continuar com os treinos até o oitavo mês.
— Ótimo. — Hart se senta nas arquibancadas. — E você já decidiu por
qual parto vai optar?
— Parto normal — digo com convicção. — Eu quero uma recuperação
rápida. Preciso sair da maternidade bem o bastante para seguir minha vida.
Se eu fizer uma cesárea, Francis vai me obrigar a ficar de repouso.
— O que é o correto, Angelina. Uma cesariana não é algo simples,
precisa ser feito o repouso corretamente. Infelizmente essa não é uma
realidade para a grande maioria das mulheres, que não tem apoio para
cuidar do recém-nascido. Mas se você tem pessoas que se importam ao
lado, sinta-se privilegiada. Esse é o momento que nós mulheres mais
estamos vulneráveis e apenas as que passam pelo abandono durante e pós a
gravidez sabem a dor que isso causa.
— A senhora passou por isso, não é? Lembro de ter me dito que não teve
apoio na gravidez do seu primeiro filho.
— Sim, passei meu resguardo fazendo tudo sozinha, tendo que me
agachar, levantar da cama sem apoio, carregar o bebê enquanto fazia
comida, limpava casa, trabalhava para me manter… minha cicatriz não
ficou bonita, é uma marca que vou levar para sempre.
Analiso o rosto dela.
— Você não parece triste por isso.
— E não estou. Essa marca que carrego no corpo é a prova de que por
mais que aquele fosse meu momento mais frágil, eu fui a mulher mais forte
que poderia. É a prova de que sozinha, eu fiz pelo meu filho o que toda
minha família não fez por mim.
— E você não pensou em adoção?
— Pensei. — Ela assente firmemente. — Eu confesso, pensei sim. Mas
conforme os meses de gestação foram passando, eu comecei a amar tanto
aquele bebê, que eu não conseguiria entregá-lo a mais ninguém. Eu sabia,
Angelina, que ninguém no mundo faria por ele o que eu estava disposta a
fazer.
A encaro por um tempo.
Muito tempo.
E suas palavras ficam rodando na minha cabeça.
— Como teve certeza?
— Como assim?
— Que queria ficar com o bebê? Quando teve a certeza?
Hart pensa por um momento, dando de ombros.
— Acho que nunca tive, Angie. Eu descobri com a maternidade, que ter
filhos é ter a certeza de que nunca mais você vai ter certeza de nada.
Ela ri da careta que eu faço. Era para entender alguma coisa?
— Eu sei que é difícil de compreender agora, mas é mais simples do que
parece. — Ela me faz sentar nas arquibancadas ao seu lado. — Veja bem,
nós estamos gerando uma vida. Essa pessoinha que está aí dentro da sua
barriga, vai ter a própria personalidade, os próprios gostos, sonhos e
desejos. Nós não conhecemos nada sobre a pessoa que divide o mesmo
corpo que o nosso.
— Isso me assusta — confesso.
— Não só a você, pode apostar — Hart me assegura. — Você não é fraca
por estar com medo, na verdade isso mostra que se importa. Gerar uma vida
é a coisa mais desafiadora que alguém pode ser submetido. Principalmente
porque a experiência é particular a cada pessoa.
— Mas... — contorço as mãos sobre o colo. — Se você não teve certeza,
como decidiu ficar com o bebê?
— Eu decidi criar meu filho, quando percebi que o esforço e as dores
que eu teria que enfrentar, seriam infinitamente menores do que o esforço e
a dor que eu passaria para entrega-lo.
Coloco a mão sobre a minha barriga, sentindo náuseas.
— Eu não tive uma boa mãe... não tenho referências.
— Você não precisa delas. Eu também não tive uma boa mãe e fiz o meu
melhor para meu filho.
— E se o meu melhor não for o suficiente?
— Angie... quando nos tornamos mãe, esquecemos de todos os nossos
pensamentos como filha. Mas pare e pense por um só segundo: você já
esperou que sua mãe fosse perfeita?
Nego com a cabeça.
— A gente só espera que ela nos ame. Já é mais que o bastante. Não é?
Assinto, abaixando a cabeça. Eu sei o que é esperar amor de mãe. Mas
eu nunca descobri o que é recebê-lo.
— Seu bebê não vai esperar a perfeição de você. Ele só vai esperar ser
amado.
— Mas e se eu não for capaz de amá-lo? Eu não o conheço.
— Todas essas perguntas me mostram que talvez já haja esse amor
dentro de você. —  Hart sorri para mim. —  Mas lembre-se... criar ou não
seu filho, não vai desmerecer seus sentimentos. Seja lá qual for a decisão
que tomar, a faça movida pelo seu coração e tenho certeza que não se
arrependerá.
— E se eu não souber o que meu coração quer?
— Então espere saber para decidir. Você tem tempo, Angelina. O use
para se descobrir. Para descobrir o que você está disposta ou não a fazer e a
abrir mão. Você sempre pode mudar de ideia.
Abaixo os olhos.
É a segunda vez que alguém me diz isso. Mas ainda é difícil concordar
com isso. Principalmente porque já convenci o Francis dessa decisão. E não
sei se tenho o direito de dar esperanças a ele sobre algo diferente.
— Quer um conselho? — Hart indaga.
— Todos que puder me dar.
— Converse com mulheres que optaram pela adoção. Você teve a minha
versão da maternidade, mas ela não é a única.
— Como eu posso encontrar essas mulheres?
— Há fóruns na internet, eu posso te ajudar a encontrar.
Assinto firmemente, desesperada por respostas. Eu preciso delas.
Principalmente para o motivo pelo qual meu coração se encolhe do
tamanho de uma uva sempre que eu penso em não ter mais esse bebê
comigo. E resposta para a culpa que vem logo em seguida, por ser tão
egoísta.
Não quero ser injusta. Não posso ser como minha mãe. Eu nunca me
perdoaria.
 

 
Eu realmente gostaria de dizer que sou uma pessoa que consegue deixar
as informações para lá e dormir tranquilamente. Mas não sou. Depois de
passar a tarde vendo fóruns na internet com a treinadora Hart, meus
pensamentos só seguiram esse rumo, como uma obsessão. Quando dei por
mim, eu já estava parada em frente ao trabalho do Francis, com o coração
latejando dentro do peito de ansiedade. Eu deveria ter esperado ele chegar
em casa, mas não consegui. Eu preciso tirar essa dúvida de mim.
Por sorte, chego quase no fim do expediente e só espero alguns minutos
para Francis vir na direção da mesa que me sento.
— Angie... o que tá fazendo aqui? Aconteceu alguma coisa? — Ele me
analisa dos pés a cabeça, procurando algo fora do lugar.
— Eu preciso muito conversar com você.
— Você tá sentindo alguma dor? Quer ir no médico?
— Não... eu estou fisicamente bem. Só quero que se sente e me escute.
— Ok, pronto — ele senta na cadeira à minha frente, me encarando
aflito. —Fala, você tá me deixando preocupado.
— Eu tenho algumas coisas para te falar. A primeira, é que a vovó
Angelina já sabe da gravidez.
Os olhos azulados arregalam ao ponto de eu ver mais parte branca do
que gostaria.
— Ela ameaçou cortar meu pênis fora?
— Três vezes — confesso.
Ele ri, assentindo.
— Imaginei.
— Segunda coisa — digo apressada, sem tempo para interrupções. —
Eu… eu entrei em um fórum na internet hoje, indicado pela Hart. — Eu não
sei qual vai ser a reação dele. Francis pode não gostar que eu tenha tomado
essa decisão sozinha. Ele não interferiu em nada que eu decidi até agora,
mas não sei se vai concordar a esse respeito. As palavras da Blue ainda
ficam martelando na minha cabeça sobre a adoção. E cada dia que passa, eu
vejo algo se apagar no olhar dele sempre que o assunto entra em jogo.
Francis não diz nada, mas às vezes não precisa.
— Fórum de quê? — me questiona.
— É um fórum para mulheres. Especificamente para mulheres que
optaram pela adoção.
Francis perde um pouco da cor. E meu sangue corre depressa.
— Eu… — Limpa a garganta. — É… e o que, quer dizer, o que tem
nesse fórum, o que exatamente você procura nele?
— Eu procuro certeza. — Contorço minhas mãos. Não sei por que estou
tão nervosa sobre esse assunto. — Queria conversar com mulheres que
tomaram a mesma decisão que eu, queria saber se elas se arrependeram.
Algo como uma fagulha de esperança acende nas íris azuladas. Ao
menos eu acho que é isso. E não sei por qual motivo, mas meu coração se
alivia com a esperança dele.
— E você chegou a alguma conclusão? Quer dizer, acha que vai se
arrepender?
— Não — nego com a cabeça. — Não cheguei à conclusão nenhuma,
por isso eu quero ir até o encontro presencial que elas fazem uma vez no
mês. Vai ser daqui quinze dias.
— Ah... entendi. — Os ombros dele caem. — Eu pensei que você tinha
mudado de... esquece, me explica melhor sobre isso — Francis diz um tanto
ansioso, me deixando ainda mais agitada. Estou perdida quanto aos
sentimentos dele sobre a gravidez. A última vez que conversamos
abertamente sobre o que sentíamos em relação ao bebê, foi no dia que
descobrimos que ele estava no meu ventre.
Mas, merda, tanta coisa mudou desde então. E quanto mais o tempo
passa, mais ficamos cautelosos em falar o que sentimos. Acho que estou
cautelosa até em sentir.
— Eu quero que você vá comigo — admito. — É por isso que vim aqui,
porque quero que vá comigo.
Ele pisca alguma vezes, um tanto aturdido.
— Na reunião com mulheres que entregaram os filhos para adoção? —
Francis engole a saliva e assinto. Ele leva um tempo para conseguir falar de
novo. — Ok... eu... eu vou estar lá.
— Mesmo? — sorrio aliviada e ele me devolve o gesto, mas não parece
muito animado. Deve estar cansado do serviço, tem sido uma rotina pesada
essa que adotou. — Ah... e tem outra coisa.
— O quê? — seus olhos se arregalam.
— Eu preciso ir até Atlantic City.
— Não me diga que seu avô...— Francis não consegue terminar a frase.
— Está mal. Mas não morreu. Vovó disse que ele quer me ver.
— Quando precisa ir?
— No fim do mês, logo depois da reunião do fórum. As provas estão
chegando, não posso deixar o trabalho na biblioteca e tenho que treinar
enquanto ainda posso.
— Daqui um mês você estará entrando no sétimo mês de gravidez. É um
período um pouco delicado, tem certeza que quer esperar? Nós podemos ir
em um fim de semana.
— Não… — Balanço a cabeça. — Eu não posso ir correndo assim. Eu
me sentiria mal. Quero passar ao menos dois dias inteiros com ele. Se for
apenas um fim de semana, passarei basicamente um dia todo no avião.
— Claro, você está certa. — Francis assente, suspirando. — Vamos
apenas ver com sua médica e fazer alguns exames antes de viajar, ok?
Os olhos cristalinos me dizem que ele não vai ceder sobre isso.
— Ok.
— Ótimo. E no próximo fim de semana... a reunião.
— Combinado.
Consigo finalmente respirar aliviada. Acho que meu medo em falar com
ele foi em vão. Francis vai estar do meu lado. Sempre vai.
— Agora eu preciso ir — levanto apressada da mesa.
— Mas já? Me espera e vamos juntos pra casa.
— Não dá. Eu tenho que ir no shopping com a Donna e a Blue.
— Elas estão te ameaçando? — ele solta uma risada.
— Não, são só as minhas roupas que não me entram mais. — Aponto
para minha barriga e Francis a observa por um longo tempo. Se eu não
soubesse que era cansaço, diria que ele está... triste. Muito triste.
— Boa sorte com elas — Francis parece tentar um sorriso, mas ele não
se forma por completo.
— Você está bem?
— Uhum... — Ele se aproxima para beijar minha boca e o gesto me faz
amolecer nos seus braços e dissipar meus pensamentos. — Eu só estou
cansado, apenas isso.
— Tem certeza? — aproveito a proximidade para inspirar seu perfume.
— Tenho, Angel — dessa vez, o sorriso dele aparece. — Me ligue se
precisar ser resgatada daquelas malucas.
— Pode deixar — beijo sua bochecha. — Vou te esperar acordada.
— Então não vou demorar muito nos treinos — ele promete, me
acompanhando até o carro.
Eu estava certa. Ele só está cansado. Apenas isso.
 
 
 
 

 
 
Os últimos dias foram uma verdadeira merda. Angelina e eu mal nos
vimos. As provas, o trabalho, os treinos, fizeram nossos horários se
desencontrarem. Estamos há mais de uma semana nos vendo apenas no café
da manhã. Apesar disso, hoje eu estou decidido a mudar essa rotina. Nós
merecemos um pouco de diversão ou vamos acabar agredindo alguém de
tanto estresse acumulado.
Bato na porta do quarto, colando o ouvido na madeira para averiguar se
ela está acordada.
— Se for a Blue, não vou dormir com você hoje. Durma sem ser de
conchinha e pare de ser grudenta!
Ah, caralho, ela tá nervosa. Culpa das duas demônias que brigam mais
que gato e rato. Mais de uma vez eu subi correndo as escadas para entrar no
quarto que elas ocuparam. Algumas delas eu tive que intervir nas
discussões e outras saí de olhos arregalados, porque não era briga que
estava rolando. Definitivamente não era.
— Não é a Blue, é alguém mais bonito, mais gostoso e mais legal — falo
do lado de fora.
— Quem? Matthew Macfadyen?
Abro a boca para confirmar, mas… peraí. Quem é esse cara? Coloco a
cabeça para dentro do quarto.
— Quem é esse sujeito?
Angelina suspira, abaixando o livro que tem nas mãos.
— Ator que interpretou o senhor Darcy na adaptação de Orgulho e
Preconceito.
— Vai me dizer que acha ele mais bonito e gostoso que eu?
— Garotas tem seus tipos. — Ela dá de ombros.
Ah, enviada das profundezas do inferno para testar minha sanidade…
— E seu tipo são caras que mal tomam banho? Porque eu não sei se
sabe, mas eles não tomavam muitos banhos naquela época.
Bato o pé no chão, claramente dando birra. Eu preparo um programa
legal pra gente e ela acha um cara mais bonito que eu? Isso fere o coração.
— Eu disse que acho o ator e não o personagem. Além disso, você falou
de beleza e personalidade, não de higiene pessoal.
— Angelina Eastwood, você tá me trocando por outro, bem na minha
frente?
— Prefere pelas costas?
— Eu prefiro que me ache mais bonito.
— Ok, eu te acho mais bonito.
Comprimo as sobrancelhas.
— Está falando isso só para eu me sentir feliz?
— Sim — ela admite na lata. Arregalo os olhos. Não podia mentir?
— Assim não vale, você tem que me achar mais bonito porque eu
claramente sou mais bonito. — Ergo a barra do suéter até meu peito,
revelando meu abdômen. — Vai me dizer que algo é mais bonito que isso
aqui?
Balanço as sobrancelhas, sorrindo de lado. Ela não pode resistir a isso.
Tem gominhos demais nesse abdômen para não a conquistar.
— Não consigo ver tão de longe assim. — Ela estreita os olhos fingindo
dificuldade de enxergar.
Meu sorriso aumenta enquanto me aproximo da cama. Os olhos dela
percorrem meu corpo muito interessados.
Vai, fala que esse palhaço é mais bonito que eu agora. Fala!
— Tocar ajuda, pra você ter certeza — provoco.
— Acho que tem razão — ela me surpreende ao colocar a mão sobre
meu abdômen e traçar cada cantinho. Santo Deus, quando foi que ela
inverteu o jogo tão rapidamente? Seus dedos tateiam a linha no centro do
meu estômago e vai descendo até o cós da minha calça. Minhas pálpebras
estremecem.
— É… — Estala a língua, erguendo os olhos lentamente para mim. Isso
me faz lembrar de uma parte específica da nossa aventura no vinhedo. Os
olhos dela nos meus, enquanto sua boca deslizava pelo meu… — Até que
você é bem aproveitável.
Angelina interrompe minha linha de raciocínio na melhor parte.
— Só aproveitável? — debocho. — Acho que não tocou o suficiente
então.
As bochechas dela ficam levemente rosadas e não consigo esconder meu
sorriso cínico. Te peguei na mentira, amor. Você deve estar molhadinha.
— É, dá pro gasto.
— Tenta um pouco mais e eu acredito em você.
— De repente ficou convencido?
— Eu sempre fui. Pelo menos em relação ao quanto você baba em mim.
— Eu babo em você? — Angelina finge uma gargalhada.
— Na maior parte do tempo. Acha que não percebo seus olhares?
— Na maior parte do tempo sou eu que percebo seus olhares. Minha
bunda está com a marca dos seus olhos já.
— Poderia ser da minha mão se facilitasse — pisco.
— Francis Hopkins! — Angelina cobre o rosto com a mão.
Gargalho alto. A safadeza verbal de Angelina tem um limite até que suas
bochechas comecem a esquentar de um jeito preocupante.
Sento do outro lado da cama, retirando suas mãos do rosto com
delicadeza.
— Não se esconda de mim — sussurro baixinho. — Você fica linda
tímida. Mesmo que eu não saiba como ainda consegue ter vergonha de um
elogio.
— Não é o que você fala. É como fala.
— Hoje eu quero fazer mais do que falar... Tenho uma proposta para te
fazer — murmuro próximo ao seu rosto, mas não próximo o bastante para
nossas bocas se encontrarem. Umedeço os lábios e contenho um suspiro.
Que puta saudade de te beijar, Angelina.
— Qual?
— Confia em mim?
— Da última vez que me fez essa pergunta para sair com você, fomos
parar em um cine drive-in.
— E eu com seus peitos na boca, bons tempos.
Os olhos dela faltam cair da cara.
— Eu vou fingir que não falou isso.
— Por quê? Fica excitada? — Balanço as sobrancelhas.
— Me diz de uma vez o que pretende!
— Faz mais de duas semanas que a gente mal se vê, achei que fosse
legal nos divertirmos um pouco.
— Contando que você não me leve pra fazer nenhum exame…
— Prometo que o passeio será apenas sobre você, nada de gravidez.
— Ah, céus, até que enfim! — ela suspira. — Eu vou, não preciso saber
de mais nada.
Angel pula da cama, levando a mão até a barra da camiseta. Antes que
eu pergunte o que vai fazer, ela simplesmente arranca a peça de roupa pela
cabeça, ficando apenas com um sutiã branco de taça na minha frente.
Eu morri e fui parar no paraíso. Não era bem peitos que eu achava que
ia encontrar no céu, mas não estou reclamando.
— An-Angelina — pigarreio, sentindo todo o sangue do meu corpo
descer. Para o meu pau.
Porra. Eu quero esses peitos pra mim... eles estão enormes.
— O que foi? — ela me encara confusa.
— Você vai tirar a roupa na minha frente?
— Não há nada aqui que você não tenha visto.
— Se vai ficar nua na minha frente, ao menos avise. Quando o sangue
todo vai para uma parte específica do corpo com tanta rapidez, a pressão dá
uma abaixada.
Deito na cama, encarando o teto. Eu ainda vejo os peitos dela. Oh, céus.
Essa imagem não vai sair da minha mente.
— Não estou nua, só tirei a blusa. — Bufa. — Você precisa brincar com
suas coisas mais vezes, está parecendo prestes a explodir.
— Fica meio difícil brincar com o meu pau, é este o nome, meu pau, sem
um quarto. E acho que você não vai querer que eu venha aqui bater uma na
sua frente, né?
Angelina desce o olhar para o meio das minhas pernas. Ela inclina a
cabeça. E pensa. Caralho, ela pensa. E dá um sorrisinho safado. Eu vou
gozar nas calças. Eu juro que vou.
Angie dá de ombros, não respondendo minha pergunta.
— Deus… — Viro-me de bruços na cama, afundando a cara no
travesseiro. Meu pau falta abrir um buraco no colchão.
 

 
 
 
— Um parque de diversões? — fito a entrada de boca aberta. Eu nunca
fui em um. Eram barulhentos demais e quando criança eu tinha ainda mais
restrição quanto à ruídos.
— Eu pensei que poderia ser legal. — Francis dá de ombros, enfiando as
mãos nos bolsos da calça jeans. — Eu lembro que quando éramos crianças,
você não foi com a gente para o parque em Atlantic City. Foi muito sem
graça sem você.
— Pensei que tivesse sido mais divertido sem mim. Tenho certeza que
foram em muito mais brinquedos do que se eu estivesse lá.
Francis coloca a mão na minha boca, me impedindo de continuar a falar.
— Antes de começar toda essa merda de você atrapalhar em alguma
coisa e eu ter que te sacudir até tirar esses absurdos da sua cabeça, vamos
entrar e nos divertir. — Francis aproxima a boca do meu ouvido, seu hálito
me causando calafrios. — Nunca se esqueça, que sem você, tudo fica
incompleto pra mim.
— Duvido que vá ser divertido comigo agora — confesso e Francis se
afasta com o cenho franzido.
— Por quê?
— Porque estou realmente um caos, insuportável, tudo me estressa. Eu
poderia muito bem ser um tsunami de mau-humor, arrasando com a
paciência de todo mundo. Não sei como pode querer ficar perto de mim
assim.
Francis sorri, um sorriso lindo, completo e branco.
— Eu a quero, Angel. — O azul de suas íris me queima. — Não apenas
quando se revela como as águas calmas de um lago, mas também quando se
torna ondas revoltas e furiosas quebrando no mar. No fim, é tudo água. Sem
ela eu não posso viver. Sem você, menos ainda... Eu te quero porque o seu
caos reconhece o meu.
— Você sabe o que dizer, garoto. Sabe mesmo — meu coração lateja. —
Vamos entrar antes que eu te beije.
Saio correndo na frente para entrar no parque e ele sai gritando atrás de
mim.
— Ah, não. Vamos ficar aqui fora, volta aqui, Angelina!
Gargalho alto, fugindo como uma criança.
Ao menos ele já conseguiu arrancar um sorriso de mim. Mas afinal, ele
sempre consegue, não é?
Francis paga nossas entradas na bilheteria e passamos pela catraca
giratória. Não sei porque, mas eu amo passar por essas coisas. É
extremamente satisfatório.
— E então? — Francis gira nos calcanhares, observando os brinquedos
do parque. — O que vai querer fazer primeiro? Carrossel?
— Só se você quiser sair coberto de vômito.
— Nada de carrossel então. — Ele faz careta. — Roda-gigante?
— Minha pressão cai só de imaginar.
— Nada que gire e seja alto então?
— Por favor.
— Bom, imagino que nada de trem-fantasma também, então podemos ir
direto para….
— Ei, ei, ei! Calma aí. — Bato em seu braço. — Trem-fantasma eu topo.
— Não topa não. — Ele nega com a cabeça rápido demais.
— Topo sim.
— Não topa não… por favor, não topa não — Francis une as mãos na
frente do rosto, suplicando.
Estreito os olhos.
— Vai me dizer que tem medo de um simples trem-fantasma?
— Claro que sim. O negócio se chama trem-fantasma, é feito pra dar
medo. Se fosse o contrário se chamaria trem da felicidade.
— Sim, é para dar medo… em crianças.
— Nunca disse que sou adulto. — Ele cruza os braços emburrado.
— Francis, deixe de ser medroso. Eu vou estar lá com você.
— Agora me sinto superprotegido — Ri sarcasticamente. — A senhora
vômito vai ser minha guarda-costas.
— A senhora vômito tem mais coragem que você.
Sua cabeça tomba para trás e ele choraminga antes de concordar.
— Se eu tiver que trocar minha cueca depois disso, acho bom você não
contar pra ninguém.
Cruzo os dedos, dando beijinhos neles.
— Prometo.
Ele sai resmungando em direção ao brinquedo, que tem o rosto de um
palhaço gigante. Ok, dá um pouco de medo, não sou fã de palhaços. Mas
vale a pena apenas pela cara de desespero do Francis. Acho que gosto de
ver ele sofrer um pouquinho. Afinal, é culpa dele que eu tenha virado a
menina do Exorcista e saia vomitando por aí.
Antes de entrarmos para sentar nos carrinhos, ele se vira para trás em
uma última tentativa de me fazer mudar de ideia.
— Será que levar susto faz bem para o bebê? Eu acho que não…
— O bebê tá ótimo, Hopkins. Entra logo nesse carrinho. — Reviro os
olhos.
— Moço — ele chama o funcionário do brinquedo. — Nesse aqui, se eu
levantar a mão, a brincadeira para, né?
— Não, senhor. Depois que o trem é ligado, só para quando chegar do
outro lado.
O rosto do Francis fica verde e me preocupo que talvez eu quem fique
cheia de vômito.
Nós nos sentamos no carrinho da frente, porque segundo o nadador
medroso, vai ser o primeiro a sair do inferno. Ele só se esqueceu que será o
primeiro a ver tudo também.
O túnel começa inicialmente escuro, não dá para enxergar nada.
Confesso que meu coração acelera, mas é uma adrenalina legal de sentir.
Ao menos para mim, porque Francis parece prestes a pular do trem. Ele está
imóvel, estático, e sei disso porque nossos ombros estão encostados e não
sinto sequer sua respiração. Como um homem desse tamanho pode ter
medo de algo assim?
Meu herói.
Talvez eu possa fazer algo para deixar as coisas mais interessantes. Ou
menos assustadoras para ele.
— Se você conseguir ficar sem gritar pelos próximos três sustos, ganha
um selinho — proponho.
— Se você não queria me beijar era só falar, não precisava oferecer uma
proposta que não vou dar conta de cumprir.
— Ou é apenas o incentivo que está fraco — murmuro contra a pele de
sua orelha e talvez, só talvez, deixe meus lábios brincarem com carne
macia. Minha tática parece funcionar, porque ele não nota a cabeça
decapitada que passou na nossa frente.
— E você tem algo a mais a oferecer? Sou todo ouvidos...
— Algo me diz que ficou um pouco afetado com meus seios hoje...
— Um pouco afetado não chega nem perto, Angelina — a voz dele é
agoniada e ofegante. Ainda posso afetá-lo. É bom saber que o desejo não
morreu, mesmo meu corpo mudando.
— Então aqui vai o seu incentivo — beijo abaixo da sua orelha e ele
grunhe, um som rouco vindo direto do fundo de sua garganta. — Se
aguentar os próximos três sustos sem gritar, deixo que os toque.
Ele pragueja.
— Toque exatamente com o quê? Há tantas opções, Angelina… Mão,
boca, língua… se eu me lembro bem, você mais do que apreciou quando
tive seus mamilos presos entre meus dentes.
Oh, merda. Ele inverteu o meu jogo. Era para ele ficar abalado, não eu.
— Creio que não vá conseguir fazer isso aqui, Hopkins — tento manter a
voz inabalada, mas fingir tédio diante do homem que abala e estremece
meus ossos é inútil. — As pessoas atrás de nós vão ver.
— Então acho que escolhi mesmo o vagão correto, Angelina. Porque nas
nossas costas, há uma parte alta, que não tem em nenhum dos outros
vagões.
Giro o pescoço para averiguar o que ele fala e sim, às nossas costas há a
cabeça do palhaço. Antes de me virar para frente, Francis dá outro grito
com o cadáver falso pregado na parede. Arqueio a sobrancelha para ele.
— Ainda não tava valendo a aposta — Ergue as mãos. Rio alto. É
inacreditável. Ele consegue enfrentar um mar revolto para me salvar e não
pode ver alguns monstros de mentira.
— Então tudo bem, a partir de agora, valendo. — Ofereço minha mão.
— Não foi a mão que me propôs. — Ele encara meus seios.
— Só vai me tocar onde os seus olhos estão agora se ganhar. Então
aperte minha mão e se dê por satisfeito.
— Sim, senhorita Eastwood — ao invés de apertar minha mão, ele a leva
até seus lábios e deposita um beijo. Eu finjo que não percebo a mordiscada
que ele também dá no meu dedo mindinho.
— E se você perder, vai ter que dar uma volta sozinho — provoco.
— Como é? E você só me diz depois que eu aceito?
Escondo o sorriso com a mão.
— É só não perder.
Sinceramente, estou torcendo para que vença. Estou há semanas
esperando que ele tome uma iniciativa, mas parece que hoje em dia nós
mulheres precisamos dar um empurrãozinho. Francis acha que está
respeitando meu espaço, mas só está me privando de orgasmos.
Ou será que uma mulher deixa de ser uma pessoa com desejos só porque
está grávida? Isso é ridículo.
Olho de esguelha para o nadador, para ter certeza de que ele não está
trapaceando e fechando os olhos, mas ao que parece, Francis gosta de jogar
limpo. E tenho pena dele, porque até mesmo eu grito no susto que se segue.
Uma serra elétrica ensanguentada passa na nossa frente, de um lado para o
outro, com um barulho alto até demais. Depois de descobrir meu rosto, o
encaro. Eu acho que vejo uma lágrima escorrendo do seu olho, mas pelo
menos gritar, ele não gritou.
Também não sei se está vivo.
 

 
 
Tudo por peitos.
A que nível eu cheguei?
Mas não me importo com a humilhação, eu só estava esperando um sinal
dela para avançar esse quesito da nossa relação, então que apareça até o
próprio Lúcifer, não vou gritar. Não pra fora, porque pra dentro, eu gritei
como uma gazela ferida.
Angelina é tão cara de pau, que está dando pulos do meu lado, como se
levasse um choque e ainda tem coragem de rir da minha cara de sofrimento.
Passei por um susto, faltam dois e os peitos são meus.
Encaro o túnel escuro à frente, iluminado minimamente para que
possamos ver a silhueta das coisas. Eu me sinto agoniado no escuro,
principalmente em saber que o escuro está ali justamente para me deixar
desprevenido.
Seja forte, porra!
Estou me segurando tempo demais para não a tocar, porque não queria
usar desse momento para reconquistar nossa relação. Se Angelina quiser
ficar comigo de verdade novamente, quero que seja unicamente porque me
ama e não porque estamos em uma situação que parece o mais certo a se
fazer. Mas se o desejo que vi nela não for coisa da minha cabeça, então
acho que só causei a nós dois um distanciamento desnecessário.
O segundo susto vem e eu solto um miado. Sim, um miado, eu não
consigo classificar como nada além disso.
— Não foi um grito — já me adianto e escuto a risada perversa de
Angelina.
— Não, mas pareceu aqueles patinhos de borracha sendo esmagados.
— Não tem graça, isso era uma cabeça decapitada.
— Você é impressionável demais.
— Impressionável ou não, mais um susto e seus peitos são meus —
Esfrego uma mão na outra.
— Então é melhor se preparar...
— Para o quê? — olho para a frente, onde Angelina aponta, no exato
momento que três, não dois, não um, mas três cadáveres despencam quase
em nossas cabeças.
O grito se forma no meu pulmão, sobe pra garganta, e para não sair da
boca, eu mordo minha língua.
Forte, eu mordo muito forte.
Aperto os olhos com força, segurando para não gritar, mas dessa vez de
dor. Que desgraça!
— Não acredito que você não gritou — Angelina se surpreende. — Esse
foi terrível.
— Terrível foi a dentada que eu dei na minha língua, Angelina. — Giro a
língua na boca, conferindo se está inteira. — Seria uma grande perda pra
você, mas fique tranquila que vai se curar.
— Grande perda pra mim? — Suas sobrancelhas arqueiam.
— O que você faria sem minha língua, amor? — Jogo uma piscadela.
Angelina bufa ironicamente.
— Você não é o único com uma.
— Tem razão... línguas existem várias, mas será que todas com as
habilidades da minha? Não é sobre o objeto e sim sobre saber fazer
multiuso dele.
— E o que você faz de diferente com a sua língua? — ela me desafia
com o olhar.
Sorrio de lado.
— Me diga você. É sua boceta que escorre cada vez faço uso dela.
— Céus… — ela segura meu braço com força.
— É, é pra lá que te levo mesmo.
— Eu tenho certeza de que a bíblia discordaria.
— E você? Discorda do prazer que eu te dou? Porque estou sempre
disposto a te relembrar.
Os sustos continuam vindo pelo caminho do trem. Mas tente se assustar
com o pau duro, para ver se consegue. É meio difícil, porque meu pênis
levou consigo meu sangue inteiro. O próprio Freddy Krueger pode vir em
pessoa me matar que é capaz de eu cumprimentá-lo com tapinhas nas
costas.
— Eu não… não duvido das suas habilidades.
Não escondo meu sorriso. Ela está afetada. Mais do que eu pensei que
ficaria. Merda, acho que deixei minha garota tempo demais sem gozar.
Preciso mudar isso agora mesmo.
— Eu posso trocar o meu prêmio? — pergunto de uma vez.
— Por quê? — ela parece decepcionada. Quase chateada.
— Porque eu preciso muito de outra coisa.
— Isso não vale. Você não pode trocar o prêmio depois de ganhar!
Calma, meu amor. Me deixa explicar.
— Por favor — murmuro, brincando com a carne macia da sua orelha.
— Você não vai se arrepender, eu prometo…
A respiração dela acelera.
— Tudo bem — se rende. — O que quer?
— Que afaste suas pernas.
— Por quê?
— Porque meu prêmio vai ser ver você gozando... — A fito de lado,
puxando uma de suas pernas para ficar sobre minha coxa e jogando meu
casaco sobre meu colo, para o caso de haverem câmeras. — Tem um tempo
vergonhoso que sua boceta não mastiga meus dedos, amor.
— Ah... — Angelina ofega, passando a língua pelos lábios. — Gostei da
sua troca de prêmio.
Meu pau também, pode apostar.
— Grite apenas quando algo assustador aparecer. — Sussurro em seu
ouvido. — Assim ninguém vai desconfiar que você está sendo bem fodida.
— Não prometo nada.
— Foi uma ordem, Angelina. Não um pedido.
Sorrio satisfeito para como ela ergue seus quadris involuntariamente.
Coloco a mão sobre seu joelho, aproveitando a pele nua deixada pelo
vestido solto. Eu poderia me ajoelhar e agradecer por ela ter feito essa
escolha de roupa. Agradecer e a lamber, mas essa segunda parte não vai dar
tempo agora. O que não me impede de prová-la madrugada a dentro.
Não me demoro como costumo fazer, não temos tempo. Isso vai ser uma
rapidinha e eu preciso que ela goze antes que o passeio acabe. Vai ser a
primeira vez que vou torcer para um trem-fantasma não chegar ao fim.
Meus dedos afastam sua calcinha para o lado e eu cubro sua boca com a
minha, necessitando ter para mim e só para mim todos os gemidos e sons
que ela estiver disposta a me entregar. Tão logo o tecido de algodão é
afastado, recebo em meus dedos todo seu prazer acumulado.
— Porra, você já está tão molhada.
— Estou assim desde que estávamos no quarto.
— Devia ter me falado, eu acabava com seu sofrimento ali mesmo.
— Vou me lembrar da próxima vez.
— E eu vou me lembrar de sempre averiguar o quanto minha garota está
molhada pra mim... é um erro que não irei mais cometer.
Tão logo termino de falar, dois dos meus dedos separam os lábios
inchados e se aprofundam na carne infernalmente quente. Ela grita de
surpresa no momento exato que as pessoas atrás de nós se assustam. Mordo
a pele do seu pescoço, murmurando com a voz embargada de desejo.
— Boa garota... — Angelina ergue o quadril na direção dos meus dedos,
sempre gulosa por mais. Não sei se é possível, mas a sinto ainda mais
apertada que antes. A adrenalina corre nas minhas veias com a chance de
ser pego, meu pau implorando por qualquer espaço dentro do jeans. Os
barulhos das pessoas e das caixas de som do lugar ficam mais intensos e
Angelina enrijece. — Esconda seu rosto no vão do meu pescoço.
Ela prontamente me obedece, abafando os sons de fora. Seu movimento
faz meus dedos irem ainda mais fundo e ela geme ao meu ouvido, se
agarrando à minha blusa com força.
— Eu daria tudo para estar em um lugar mais espaçoso e silencioso
agora — confesso, metendo meus dedos lentamente, apreciando o
escorregar macio e molhado.
— Por quê? — Ela choraminga contra meu pescoço.
— Porque eu gosto de ver e escutar tudo que faço, Angelina... — esfrego
a palma da mão contra seu clitóris e ela morde minha pele, tentando se
controlar. — Eu gosto de ver como sua boceta fica vermelhinha e inchada
quando quer me ter dentro dela e a forma como meus dedos são engolidos
lentamente... e nada, nada é mais gostoso do que o som molhado do meu
corpo entrando e saindo de você. Eu poderia gozar só de escutar os sons da
sua boceta encharcada.
— Porra... — ela rebola, sem timidez para alcançar sua libertação.
— Sim... é isso que te darei mais tarde, não se preocupe. Não vou
terminar essa noite sem me enterrar em você e te dar o que deseja. — Com
a mão livre, seguro seu cabelo em punho, aproximando a boca dela da
minha. — Enquanto isso, goza e molha meus dedos... me dê uma prévia do
que meu pau vai receber ao final desse dia.
Angelina me beija duramente, chupando minha língua como faria no
meu pau. Rosno, aumentando a velocidade dos meus dedos, até que ela
esteja choramingando na minha boca.
— Vamos, Angie... — Mordendo seu lábio e encarando seus olhos, vejo
o exato momento que ela perde o controle dos seus músculos e se desfaz em
vários pedaços, em um orgasmo delicioso de se assistir. Eu apenas observo
a cena, hipnotizado com a expressão de prazer, os lábios entreabertos, as
pálpebras fechadas e o pescoço alvo jogado para trás. Percorro minha
língua por todo ele, até chegar à sua orelha. — Você nunca me decepciona,
Angelina... bem na hora.
Ela me olha confusa e letárgica. Sorrio para seu estado, retirando meus
dedos de dentro da sua carne. Eles saem encharcados e os levo à boca para
não perder nada do seu sabor. Angelina ainda se choca quando faço isso,
mas o ato parece a excitar.
Sorrio ladino, piscando um dos olhos.
— Pode me chamar mais vezes para trens-fantasmas.
— Pode ter certeza que eu vou — Angelina ofega, se endireitando no
banco no exato momento que chegamos ao fim da linha.
Rindo, tiro meu casaco de cima do seu colo e o coloco sobre o meu.
Estou com uma ereção mais monstruosa do que as fantasias de terror.
 
 
 

 
 
Eu não sei que tipo de passeio Francis tinha planejado, mas com certeza
foi mais curto do que nós dois esperávamos. A gente até tentou ir em outros
brinquedos, mas Francis estava andando torto de tão duro e eu cruzando as
pernas de pura excitação. Aquele primeiro orgasmo só serviu para acender
uma fagulha dentro de mim. Dado o tempo que eu estava sem um, obriguei
Francis a me levar de volta para casa e terminar o serviço que havia
começado.
E céus... ele está cumprindo. Há uma hora, tudo que sinto é seu membro
atingindo pontos dentro de mim que eu desconhecia a existência. Francis
ainda conseguiria ficar por cima de mim dado a barriga não ser tão grande,
mas o nadador não parece gostar de nada que facilite sua vida. Por isso, ele
me colocou em cima do seu corpo, com as costas sobre seu peitoral, meu
rosto voltado o teto. Minhas pernas ficam dobradas para trás, ao redor do
seu corpo e Francis sustenta meu quadril com as mãos, me fazendo subir e
descer na sua ereção. O espelho na parede me deixa ver com perfeição
como minha carne o envolve e a forma como abandona meu corpo
completamente banhado do meu prazer. Por isso, quando consigo sustentar
meu próprio corpo, forço o pescoço para frente, admirando a vista. Com
certeza é melhor que a dele, que só vê meu cabelo em seu rosto.
Não o ouvi reclamar em nenhum momento, no entanto.
Pelo contrário, ele não demonstra cansaço, fadiga, ou intenção de
abandonar meu corpo tão cedo. Quando estou prestes a ter o terceiro
orgasmo da noite, perco as forças, deitando minhas costas contra seu peito.
Francis afasta meu cabelo, mordendo meu ombro. Ele mantém meu quadril
parado, impulsionando os seus para cima, me penetrando tão rápido que
soluço de prazer.
— Massageia seu clitóris... me ajuda a te fazer gozar mais uma vez — a
voz rouca no meu ouvido é de comando puro. E meu corpo é pura
obediência, porque levo meus dedos até o nervo sensível, o esfregando na
mesma velocidade que suas investidas. Em poucos segundos estamos os
dois gemendo e lamuriando, nossos líquidos se misturando ao atingirmos o
ápice. Francis me tira de cima dele, apenas para me colocar de lado, seu
membro não deixando meu corpo. É boa essa sensação. Ele dentro de mim.
Ainda que apenas assim, estático. Me sinto preenchida, completa. Desejada.
Francis distribui beijos pelo meu pescoço, ombros, costas, ele me marca
em cada pedaço de pele possível. Eu só consigo fechar meus olhos e
aproveitar cada um desses toques mais que bem-vindos.
— Tudo bem? — ele averigua depois de um tempo.
— Uhum... — balbucio sem forças.
— Alguma chance de eu ter te machucado?
Nego com a cabeça, empurrando meu quadril para trás. Sua ereção,
embora menos rígida, se aconchega mais dentro de mim. Francis geme,
segurando minha cintura para que eu pare de me movimentar.
— Mulher, pare com isso ou eu não te deixo sair desse quarto.
— Isso é um incentivo?
Ele ri, deslizando seu membro para fora de mim e me virando para beijar
meus lábios.
— Eu preciso te dar um pouco de água e comida, senhorita. Não se
esqueça que você está grávida.
— Eu não esqueci, mas você com certeza se esqueceu — brinco.
— Sentiu algum desconforto? — a expressão dele fica preocupada no
mesmo instante.
— Não, eu só estava brincando... está tudo bem por aqui.
— Pelo menos nossa estripulia não pareceu atrapalhar o sono do
Brotinho.
— Ele não costuma estar dormindo agora... esse é o horário que ele faz
uma rave na minha barriga e só vai parar lá para umas quatro horas da
manhã.
— Então você finalmente encontrou um padrão? — Ele afasta as mechas
do meu cabelo para longe do meu rosto.
— Bom, não é nada exato, mas o bebê não mexe muito pela manhã —
explico. — Ele é preguiçoso nesse horário e apenas fica agitado se eu
comer coisas gordurosas. De tarde, ele se move bastante, principalmente
quando estou treinando. Acho que ele gosta muito, porque parece que quer
acertar a bola junto comigo. — Solto uma risada e acaricio a barriga,
imaginando o garotinho do meu sonho, vestido com um uniforme,
caneleiras e bola na mão. — De noite, ele realmente fica agitado. Isso, é
claro, até que você chegue. Ele conhece seus horários, Francis. Quando está
perto de você chegar, se mexe tanto, que chego a pensar que sairá da minha
barriga. Mas assim que escuta sua voz, se aquieta. — Sorrio. — Quando
você se atrasa, os chutes doem. Ele também gosta de rotina.
Volto minha atenção para Francis e todo seu corpo está tenso, paralisado.
Seus olhos estão vidrados na minha barriga e levemente avermelhados.
Novamente essa atitude estranha quando falo do bebê. Eu não sei decifrar o
que o Francis está sentindo.
— O que você tem?
Francis ergue o olhar para mim, limpando a garganta.
— Nada. — Tenta sorrir, mas não me convence. — Só estou cansado.
Solto uma risada.
— De novo essa desculpa?
— Como?
Respiro, me sentando na cama, o levando a fazer o mesmo. Puxo o
cobertor sobre meu corpo, escondendo minha nudez.
— É a segunda vez que pergunto o que você tem e me responde que é
cansaço... só que sempre fica assim depois que falo algo do bebê.
Francis cruza os braços, balançando a cabeça.
— Eu só não sei explicar o que sinto.
— Tenta.
— É mais difícil do que parece.
— Vai dizer isso pra mim? — Arqueio a sobrancelha.
— A gente pode deixar isso pra lá? Eu realmente não quero estragar
nosso momento — Francis passa as mãos no cabelo, agoniado.
— Não vou deixar pra lá. Você deve ao menos saber se o que sente é
raiva, tristeza ou felicidade.
— Aí que tá! — Solta uma lufada de ar. — É uma mistura demoníaca de
tudo isso.
— Por causa do bebê? — indago ansiosa por uma resposta. Precisando
de uma.
— Por causa do sinto quando fala dele — Francis admite, fechando os
olhos em seguida. — Angelina, eu realmente não quero falar disso agora.
Seu pomo de adão se move duramente e todo o bom-humor de alguns
minutos atrás se esvai.
— Desculpe — murmuro.
Ele abre os olhos, confuso.
— Pelo quê?
— Passei dos limites com as perguntas... às vezes é difícil saber a hora
de parar.
Francis toma meu rosto nas mãos, negando com a cabeça.
— Você nunca tem que me pedir desculpa por querer saber algo a meu
respeito. Se eu não te falo, é porque não sei a resposta, não sei te explicar o
que estou sentindo. Tudo bem?
— Uhum.
Ele bica meus lábios, sorrindo em seguida.
— Quando eu souber explicar, você vai saber. — Assinto e ele se levanta
da cama, me estendendo a mão. — Vamos descer? Eu preparo algo pra
gente comer.
— Vai ser meu chef?
— Vou ser seu master chef. — Ele pisca e aceito sua mão. — Mas antes
você precisa se vestir, ou só eu vou comer por aqui.
— Só pra saber, eu não recusaria — Pisco enquanto vou atrás de uma
blusa sua para vestir.
 

 
 
Eu falei para Angelina que estaria com ela em todos os momentos. Em
tese, não falhei com a minha palavra. Estou aqui para o encontro do fórum
de adoção. O problema é que apenas o meu corpo está presente. A alma eu
deixei pelo caminho. Quanto mais se aproximava do condomínio, mais
minha mente foi ficando oca e isolada. Eu não quero estar presente, quero
estar longe.
Olho em volta da sala que entramos, com meu pulso disparado. Que
merda eu estou fazendo? Por que estou tão nervoso? O que mais eu
poderia fazer senão estar aqui?
Respiro fundo, limpando a mão suada na calça social. Estou vestido
como um advogado em dia de audiência, eu peguei até mesmo uma das
camisas de cetim apertadas do Ethan. Como se eu já não fosse ridículo o
suficiente sem ela.
Observo Angelina confiante à minha frente e gostaria de ter pelo menos
um terço da sua coragem.
Sou o único homem aqui, o que me deixa mais ansioso do que estava. A
coisa toda é como uma reunião de alcoólatras anônimos. Cadeiras dispostas
em círculos, todos sentados sem olhando meio sem jeito e sem saber o que
falar.
Eu me sinto avaliado assim que chego. Não sei o que elas esperam. Se é
meu julgamento, meu apoio, ou seja lá mais o que se pode fazer numa
situação dessas. Acontece que nem mesmo eu sei o que posso fazer aqui, a
não ser ficar perto de Angelina, fingindo ser um cara seguro.
Para cada mulher que vejo nesse lugar, me pergunto se minha mãe
biológica participa também de encontros assim para se perdoar pelo fato de
ter me abandonado. Se ela sequer se pergunta como estou ou se arrepende
do que fez.
Ela pode muito bem nem lembrar que me pariu.
Eu sempre aposto por essa última. Sempre.
Não crio mais expectativas de que ela pode ter me amado. Quanto mais
se cria esperança, mais a desgraçada te consome por dentro.
— Vocês devem ser Angelina e Francis — uma mulher de meia idade
nos cumprimenta. Angelina conversa com ela e apenas aceno com a cabeça.
— Me acompanhem, por favor.
Angel segura minha mão e me olha quando percebe a temperatura fria.
— Você está bem?
Sorrio, assentindo.
Não mesmo. Nem fodendo.
— Claro, acho que só estou ansioso.
— Eu também — ela ri nervosa e ajeita o rabo de cabelo pela quarta vez.
Acaricio suas costas.
— Está tudo bem, Angel. É apenas uma conversa.
Quem eu quero enganar? É muito mais que isso.
Eu me sinto um merda buscando justificativas para abandonar essa
criança como eu fui abandonado. Mas eu me sentiria pior ainda se colocasse
Angelina no mesmo degrau da mulher que não me quis. Elas são diferentes.
Angelina está fazendo isso pelo bebê. Minha mãe só não me quis. Eu sei
disso.
— Vocês podem se sentar aqui. — A mulher sorri. — Eu sei que pode
ser um pouco estranho no começo, mas nós apenas ajudamos uma à outra,
não há julgamentos aqui.
— Eu posso esperar afastado se acharem melhor — digo ansioso para
sair correndo.
Não pense que estou sendo altruísta em dar espaço para elas. Eu estou é
sendo a porra de um covarde que está se cagando de medo das coisas que
vai ouvir.
— Não, será bom ter você aqui. É a primeira vez que algum homem se
interessa em vir. Você é uma mulher de sorte, Angelina.
Abaixo a cabeça, sentindo o rosto queimar.
Não, ela não é. Ela merece mais. Muito mais do que um dia eu vou
poder oferecer. Se eu fosse um homem decente, ela não precisaria abrir
mão do filho.
— Sei disso — ao invés de refutar, Angelina aperta meus dedos.
Espero que ela se sentar e fico ao seu lado, com os antebraços apoiados
nas pernas. Eu não consigo olhar para os olhos de nenhuma dessas
mulheres. Eu tenho medo de saber o que elas têm a dizer. Tenho medo de
pensar que alguma delas pode ser minha mãe.
Angelina se mantém ouvinte até o momento, absorvendo o depoimento
das mulheres. Duas aqui são mais jovens que ela, mas as outras são mais
velhas. Me pergunto o motivo pelo qual elas optaram pela adoção. O que
foi tão difícil que não puderam criar o bebê? Se não foi pela idade, então o
quê? Eles não eram suficientes? Não havia amor o bastante? O pai não
assumiu? O dinheiro não permitia?
É hipocrisia querer julgar, porque estou prestes a fazer o mesmo que
cada uma delas. Eu sei que é. Mas meu sentimento é de raiva. Eu tenho
vontade de gritar com todas. Vontade de questionar seus motivos… tudo
para entender por que aconteceu comigo. Por que minha mãe me deixou.
Elas não podem me dar essa resposta. E sinto ainda mais raiva por isso.
Eu não deveria me ressentir assim. Tive uma porra de vida maravilhosa,
em comparação às crianças que foram jogadas de lar adotivo em lar
adotivo. Mas tente enfiar na cabeça de uma criança que a mãe dela não a
quis por um bom motivo e veja se isso fará alguma diferença.
Não sou mais uma criança, posso ver a sorte que tenho. Mas em algum
lugar dentro de mim, ainda sou o garoto que só queria entender o porquê.
Ou melhor, que quer muito que haja um porquê, que não seja falta de amor.
Eu nunca esperei conviver com minha mãe biológica. O amor dela não
me interessa agora, Robert o supriu com excelência. Mas eu queria meia
hora de conversa com ela. Sentar ao seu lado num degrau qualquer e escutar
seu lado da história. Se ela dissesse que não conseguia me amar, eu a
agradeceria por ter aberto mão de mim, então. É mais do que Leonor me
ofereceu. Se ela dissesse que se achava incapaz de me criar, então
novamente eu a agradeceria. Se ela dissesse que sua situação financeira não
permitiu, então eu diria que sinto muito e a agradeceria mais uma vez. No
fim das contas, tudo que eu teria a oferecer para ela, seria minha gratidão.
Desde de que me desse em resposta, a verdade. Que me desse a explicação.
Eu queria que ela tivesse deixado um maldito bilhete me contando o
porquê. Quando eu era criança, esperava pelo momento que eu completaria
idade suficiente para o meu pai me entregar a carta que minha mãe
biológica deixou. Isso acontece muito em filmes. Mas nunca aconteceu,
porque não há carta alguma. Nunca houve. Ela não se preocupou em deixar
uma.
Talvez esperasse que eu fosse alguém bom o suficiente para entendê-la
mesmo sem uma explicação. Ou que eu fosse ruim o suficiente para sequer
merecer uma.
A dúvida me corrói.
É tudo que não me deixa dormir de noite.
Eu vou escrever uma carta ao Brotinho Agitado. Mesmo sem Angelina
saber. Eu vou escrever. E espero que os pais adotivos dele, um dia a
entreguem quando ele tiver idade suficiente e que perceba que tudo que
estamos fazendo, é para o seu bem.
Não sei como começar essa carta. Não faço ideia de como desenvolver
as minhas palavras. Mas eu sei qual será a última frase dela:
Promete me perdoar?
É tudo que eu vou pedir e rezar a Deus todos os dias. Que ele possa me
perdoar.
Isso se ele sequer pensar em mim.
Eu não penso no meu pai biológico. Porque sei que ele foi tão merda
quanto eu sou. Imagino que tenha sido covarde também. Que não tenha sido
homem o bastante para que minha mãe escolhesse ficar comigo. A culpa
deve ser dele, assim como também é minha.
— Francis — a senhora que nos recebeu toca meu ombro e ergo o olhar
sobressaltado. — Será que você se importa de conversar comigo a sós um
momento? — ela olha para Angie, buscando permissão também. Minha
garota assente, me empurrando.
Porra, Francis. Seja adulto, merda!
Levanto da cadeira, a seguindo até as janelas basculantes ao fundo do
salão de festa. Encosto o ombro na parede, observando o jardim de camélias
do lado de fora. Angelina não deve ter visto ainda, ela vai gostar, com toda
certeza.
— Isso não está sendo fácil para você, imagino — a senhora começa a
falar e continuo observando as flores. — A propósito, me chamo Faith.
Balanço a cabeça, sem dizer mais nada.
Não é nada pessoal, Faith, mas eu não me abro completamente nem com
minha psicóloga.
— Você não queria a adoção? — ela fala baixo e ergo o olhar.
— Não fale essas coisas — digo com raiva. — Não importa o que eu
queria ou não.
— Então ela não sabe que você não quer… — a mulher ignora meu
aviso e troco o peso do corpo para o outro pé.
— Tudo que Angelina precisa saber é que estarei com ela independente
do caminho que seguir. Ela está aqui hoje e pediu que eu viesse. É tudo.
Faith tenta colocar a mão no meu ombro, mas me afasto.
— Você parece estar sofrendo.
— Não é da sua conta — rio, voltando a fitar a janela.
Essa mulher sequer me conhece e acha que sabe algo a meu respeito.
— Eu entendo que esteja na defensiva, Francis. Lembro como era a
sensação quando eu estava na sua situação.
— Duvido muito. — Cerro os dentes.
— Você não vê a adoção com bons olhos, eu percebo. Estava prestes a
vomitar com o relato das mulheres na roda.
Viro para ela com o maxilar doendo pela pressão dos meus dentes.
— Não. Eu não tenho nada contra a adoção. Eu tenho algo contra mães
que não se importam sequer de deixar uma explicação do porquê estão
fazendo isso. — Hiperventilo. — Vocês sabem que é tudo que esperamos?
A porra de uma explicação! É tão difícil assim?
Meu peito sobe e desce descompassado e meu estômago revira. Droga,
essa merda agora não. Agora não! Fecho os olhos, tentando controlar minha
respiração. Não pira agora, Francis. Crise de ansiedade agora não.
Por favor, na frente da Angelina não.
— Vem comigo — a mulher coloca a mão no meu braço e me puxa para
fora da sala. Eu apenas a sigo, ansioso para fugir dos olhares de todas
aquelas mulheres na sala, e principalmente a dona dos cabelos dourados. O
ar fresco do lado de fora também é um alívio.
Olho em volta, vendo o jardim que observava do lado de dentro. Sento
em um banco de ferro pintado de branco em frente às flores e apoio os
cotovelos nos joelhos, com a cabeça entre as mãos.
O banco vibra com o peso de outra pessoa e imagino que Faith tenha se
sentado ao meu lado.
— Vocês sabem que é tudo que esperamos? — ela repete a frase que
falei há poucos segundos. — Então você foi adotado.
Não respondo. Não precisa.
— Entendo melhor sua reação agora. Não deve ser fácil. — A mulher
suspira. — Sua família… sua família adotiva foi boa pra você?
Ergo a cabeça com certa rapidez e minha visão escurece por alguns
segundos.
— Meu pai me deu o lar que muitas crianças sonham. Ele me ama como
nenhuma outra pessoa seria capaz. — Nego com a cabeça. — A minha
reação não tem nada a ver com minha família adotiva ser ruim.
— Então você sente raiva da sua mãe biológica? — Faith pergunta com
emoção na voz. Ergo o olhar para o dela, vendo que assim como eu, ela
busca a resposta que talvez espere ouvir do filho que entregou para adoção.
Não é justo com ela essa raiva que estou transparecendo, mas no momento,
ela é a representação da mulher que me deixou. E porra... como eu queria
entender. Só isso, eu só queria entender.
— Eu não sinto raiva por ela ter me deixado. Eu sinto raiva por nunca ter
sabido o porquê. Por nunca ter buscado por mim, ao menos para saber se
estavam me tratando bem, se eu era bem cuidado ou se estava sequer vivo!
Ela assente, respirando fundo.
— Nos afastar é o certo a fazer. Não seria justo que mesmo optando pela
adoção permanecêssemos presentes na vida de vocês. Quando tomamos
essa decisão, sabemos que é para sempre. Porque não é certo para a criança
e nem para os pais, que serão os verdadeiros e legítimos depois disso. Pais
adotivos têm todo o direito de não aceitarem nossa presença na vida de
vocês, porque inicialmente fomos nós que escolhemos assim. Ninguém
gosta de correr o risco de perder seus filhos.
Engulo a saliva, mexendo os pés de um lado para o outro no chão de
pedras.
— Eu sei de tudo isso. E mesmo que meu eu adulto saiba que é o certo,
principalmente agora, meu eu criança ainda está esperando sua resposta.
Não é para você se sentir mal que falo isso. Mas as coisas não deixam de
doer só porque são certas. Às vezes, o errado pode machucar muito menos.
— Eu sei que não ajuda muito..., mas nós nunca nos esquecemos de
vocês. E te garanto que sua mãe fez o melhor que pôde.
— Então o melhor dela é o mesmo que o meu... um grande nada — digo
amargo e me levanto do banco. — Com licença.
Volto para a sala e me sento ao lado de Angelina, que tem a expressão
retorcida de algo que não consigo decifrar. Eu não sei se ela conseguiu o
que veio buscar aqui, se obteve as respostas que queria, mas eu com certeza
não consegui.
Só tenho menos vontade ainda de optar por esse caminho. E só tive mais
certeza de que isso vai me assombrar para o resto da vida. Talvez quem não
foi abandonado um dia, possa compreender melhor o que cada uma delas
passa. Mas eu não. Eu vou me culpar a porra da vida inteira por fazer com
meu filho o que fizeram comigo.
E mais ainda, porque sei que ele vai estar melhor sem mim.
 
 
 

 
 
Aliso o lençol da cama mais uma vez; as rugas do tecido não me
deixando dormir. Isso e minha mente que ainda não foi embora da reunião
de ontem. Eu achei que fosse sair de lá com todas as respostas que
precisava, mas saí com mais perguntas do que antes. Ver todas aquelas
mulheres, fortes, decididas, de atitude, enquanto eu mais pareço um
animalzinho medroso, foi um pouco assustador. Porque se elas, com toda
aquela coragem, não ficaram com seus filhos, quem sou eu para me atrever
a ficar?
No fundo, eu sei que encontrei a resposta para o meu principal
questionamento... mas acho que não foi a que eu esperava. Talvez eu tenha
ido lá com a intenção de outra constatação e a frustração está sendo
torturante. Meus sentimentos estão confusos e não acho que Francis esteja
melhor que eu. Ele não falou muito depois que saímos de lá e quis ir direto
para o centro esportivo nadar. Não tive coragem de perguntar o que ele
achou, porque eu também não queria que ele me perguntasse. Não gosto de
parecer covarde... ainda que eu esteja sendo.
Como se não bastasse toda essa situação, amanhã viajo para ver meu
avô. Eu não sei como vou reagir. Não sei o que falar, o que não falar, o que
fazer e o que não fazer. Faz anos que não nos falamos e agora é como se eu
estivesse indo me despedir. Dar tchau para alguém que ainda está vivo
parece errado. Mas criar esperança de que ele vai ficar bem, com a idade
avançada que tem, é mais que errado. É burrice.
Estou indo me despedir. E odeio despedidas.
O bebê parece sentir isso, porque está mais quieto esta noite. É isso, ou
porque ele gosta quando fico deitada de costas na cama. Para mim, essa
posição já está ficando difícil, sinto meus pulmões comprimidos, mesmo
que minha barriga seja menor do que costumo ver por aí. Faço sete meses
de gravidez exatamente amanhã e na minha cabeça eu deveria ter uma
barriga enorme e não uma mediana. A médica me garantiu que está tudo
certo, mas é assustador quando você não atinge os padrões que imagina
serem certos. Parece que estou fazendo algo errado, sendo insuficiente e... é
só uma culpa sobre absolutamente tudo.
Toques na porta me fazem sair dos meus pensamentos.
— Pode entrar!
Francis coloca a cabeça para dentro do quarto, sorrindo gentilmente.
— Ainda acordada?
Aponto para os meus olhos abertos e ele solta uma risada.
— Quer conversar? — Ele fecha a porta atrás de si e se senta ao meu
lado na cama.
— Eu não sei o que falar.
— Está preocupada com a viagem?
— Não com a viagem, mas com o motivo dela.
— Eu vou estar ao seu lado. Sabe disso, não sabe?
Fecho os olhos, escorregando mais para baixo na cama. Estou exausta.
— Eu sei. Mas tem coisas que você não pode me ajudar.
— Posso ao menos tentar.
Franzo o cenho ainda de olhos fechados.
— Por que você se esforça tanto por mim, Francis?
— Não entendi.
Abro os olhos, virando de lado para procurar seus olhos. Eles me
parecem confusos.
— Eu sei o que sente por mim. Mas eu não sei por que sente.
— Isso é uma pergunta elaborada demais para essa hora da madrugada.
Eu posso ficar te devendo a resposta para ser à altura do que realmente devo
falar?
Rio, assentindo.
— Pode.
— Obrigado. — Ele leva minha mão até a boca, deixando um beijo
sobre o dorso.
— Por nada — puxo nossas mãos unidas de seus lábios e levo aos meus,
depositando um beijo também.
— O bebê está quietinho?
— Mais quieto do que o de costume.
— Eu queria testar uma coisa. — Francis senta na cama.
— Se isso não o agitar, tudo bem.
— Espero fazer exatamente o contrário — Ele ergue a mão esquerda,
mostrando um fone de ouvido daqueles de encaixar na cabeça.
— Acho que você se esqueceu de que detesto escutar música em fone de
ouvido.
Ele revira os olhos, se jogando na cama.
— Se esqueceu com quem está falando, Angel? Sou eu, o cara que sabe
até que tipo de absorvente você usa.
— E qual é? — o desafio. Eu duvido que ele saiba isso.
— Você usa o convencional sem abas, porque as abas te incomodam, e
tem que ser o que o algodão fica em contato com a pele e não aqueles que
possuem uma proteção de telinha em cima. Errei?
Abro a boca, inclinando o rosto. Como diabos ele sabe disso?
— Antes que pergunte, eu já fui muito na farmácia com você e Donna.
Ela usa o interno, mas apenas nos dois primeiros dias e depois usa o
convencional com abas.
Pisco perplexa.
— Você é esquisito.
— Eu sei. — Ele sorri como se fosse um elogio. E talvez até tenha sido.
Estou confusa. — Agora para de me distrair e se deita com a barriga para
cima.
— Eu fico com falta de ar deitada assim.
— Espera aí — Ele me ajuda a sentar na cama, já que a barriga tem
atrapalhado até esse simples movimento. Francis coloca mais dois
travesseiros às minhas costas e me faz recostar com delicadeza neles. —
Fique mais sentada para se sentir confortável, assim o bebê não vai
pressionar o seu pulmão. Para dormir pode ser um pouco incômodo no
começo, mas aí você pode tentar virar de lado.
— O bebê não para quieto quando deito de lado.
— É mesmo? — Francis sorri. — Eu também não gosto.
— Obrigada por passar seus gostos esquisitos para ele.
Francis gargalha, olhando minha barriga. Ele dá um soquinho na região.
Segundo ele é para cumprimentar o bebê. Não digo nada, porque acho fofo.
— Ele vai ficar quietinho se o que eu li for mesmo verdade. — Francis
mexe no celular, talvez conectando alguma música ao fone. — Vou colocar
isso na sua barriga, tudo bem?
— Como assim?
— Eu li em um artigo que bebês gostam de escutar música dentro da
barriga, isso pode acalmá-los.
— É sério?
— Vamos descobrir agora. Ele sempre pode ter puxado você e gostar de
silêncio.
— Ele não gosta de silêncio quando se trata de você. Ele gosta que você
fale.
— Bom, então vai ficar feliz em descobrir que o que tá saindo no fone é
justamente minha voz.
Arqueio a sobrancelha.
— Você se gravou cantando?
— Na verdade, eu tentei, mas ficou péssimo. Então eu contei histórias e
gravei. Eu posso? — pergunta novamente ao aproximar o fone da minha
barriga.
— Vai caber?
Ele assente com um sorrisinho.
Francis regula a alça do fone para ficar mais relaxada e a encaixa na
minha barriga. A visão é estranha, até mesmo engraçada.
— Posso tocar sua barriga para saber onde ele está exatamente? — Os
olhos azuis procuram os meus.
— Sempre.
Francis tateia a região procurando onde ele está e ajeita o fone mais para
cima. Isso tem me preocupado, ele está sempre com a cabeça para cima e
nunca para baixo. A doutora disse que nas últimas semanas o bebê tende a
se encaixar corretamente e espero que faça mesmo isso.
— Prontinho, acho que está certo agora — Francis coloca o ouvido na
minha barriga, apoiando sua cabeça sem fazer qualquer pressão. Seus dedos
tamborilam na minha pele em um ritmo padronizado e parece fazer de
propósito. Ele deve ter visto isso em algum dos inúmeros artigos que lê. Se
continuar assim, vai se tornar um obstetra antes de terminar a faculdade.
Fico observando a cena em silêncio, porque não quero macular esse
momento. Francis está concentrado em seu trabalho e o bebê está quietinho
ao som da voz dele. Confesso que sua ideia foi genial. Eu não conseguia
dormir com ele falando, então agora apenas o Serzinho ouvirá. E o calor da
pele dele na minha, ajuda no meu próprio sono.
Inconsciente ou não, infiltro as mãos nos seus cabelos, acariciando o
couro cabeludo. Adormeço assim. E só acordo no outro dia, já sem os fones
em minha barriga, mas o corpo do nadador ao meu lado e sua mão sobre
minha barriga.
Algo preenche meu coração. Ao mesmo tempo que o despedaça, por
saber que só tenho mais dois meses para viver isso.
 
 
 

 
 
— Quer que eu entre com você? — as mãos de Francis estão em meus
braços e seu peito colado às minhas costas enquanto encaro a porta do
quarto de hospital do meu avô. A viagem de avião passou mais depressa do
que eu pretendia. Acho que eu queria evitar esse momento o máximo que
desse.
— Eu preciso fazer isso sozinha.
— Vou estar aqui fora te esperando.
Giro o pescoço para olhá-lo.
— Não sai daqui, por favor.
— Eu prometo.
Assinto, respirando fundo. As mãos dele deslizam para longe do meu
braço. Sinto a falta do calor no mesmo momento.
— Vou deixar que conversem sozinhos — Vovó Angelina fica ao lado de
Francis.
— Ok, vovó.
Giro a maçaneta, escutando as pancadas do meu coração. Eu queria estar
em qualquer lugar do mundo, menos aqui. Mas não há nenhum outro lugar
do mundo que eu deveria estar, senão aqui.
Olho para o chão, contorcendo minhas mãos impiedosamente enquanto
me aproximo da cama. Pisco sem parar. Quero ir embora. Não gosto de
despedidas. Não quero ver o que o tempo e a doença fizeram com ele.
— Minha flor — a voz rouca e cansada chega aos meus ouvidos e meus
olhos ardem pelo apelido que me deu quando eu era criança. — Olhe para
mim, querida. Não estou muito feio, sua vó penteou meus cabelos e até
coloquei uma camisa social pra te ver.
Não consigo.
Aperto meus dedos. Troco o peso do corpo de um pé para o outro. De
novo, de novo e de novo. Até que eu praticamente dance no quarto de
hospital.
Meu peito sobe e desce depressa e eu penso que é minha respiração
irregular, até que as gotas das lágrimas comecem a cair sobre meu peito.
— Não chore, Angie. Não chore por um velho que tomou decisões
erradas. — Balanço a cabeça. — Eu não mereço suas lágrimas.
Não, não merece. Mas não importa, porque estou entregando todas elas.
Meu coração não liga para quem ele se tornou ao longo dos anos, só se
lembra do avô que foi na minha infância.
Abraço meu próprio corpo, balanço para frente e para trás.
— Obrigado, filha.
Ergo os olhos para ele por pura confusão. E meu coração estilhaça. Meu
avô não era gordinho, mas ele era um homem forte. Agora, está tão magro.
Céus, tão magrinho. As bochechas côncavas, a pele amarelada, os olhos
fundos... E ainda assim, ainda assim, um sorriso enorme no rosto e os olhos
brilhando de algo que conheço. Amor.
— Obrigado pelo quê? — murmuro com a voz embargada.
— Por me permitir ver você assim. Mesmo que eu não viva para ver o
rosto do meu netinho ou netinha, você me permitiu ver o quanto fica linda
carregando ele no seu ventre.
Travo o maxilar, fazendo o possível para não sucumbir aos soluços do
choro que implora passagem na minha garganta. Vovó não contou para ele
sobre a adoção? Ela deve ter deixado para eu contar.
Mas eu não vou.
Não depois de ver o brilho nos olhos cansados. Não vou tirar isso dele.
Não posso.
Não quero.
— O senhor… — Engulo, limpando minha garganta. — O senhor…
quer sentir ele mexer?
Os olhos castanhos iguais aos meus se arregalam. Há tantos vincos em
suas laterais, que eles se tornaram caídos. Lembro de vovô como um
homem muito bonito. E estranhamente, ele ainda é, de sua própria maneira
agora. Eu entendo por que vovó se apaixonou por ele um dia. Eles devem
ter formado um casal muito bonito na juventude.
— Você me permitiria?
Respiro fundo, assentindo.
Chego perto da cama, com todo meu corpo estremecendo. Meu coração
está despedaçado e se curando ao mesmo tempo. Eu não fazia ideia da
saudade que tinha dele, até estar aqui ao seu lado. Acho que bloqueei
qualquer sentimento que tivesse por ele, justamente para não sentir sua
falta. Porém agora é impossível fingir que a saudade não está aqui.
Aperto minha barriga com o indicador, acordando o Serzinho. Ele
costuma dormir essa hora. Um momento depois ele se move minimamente
e sorrio. Neném bonzinho. Obrigada por isso.
Estendo a mão para meu avô e ele a ergue com o acesso em seu braço. A
onda de choro quer subir novamente, mas seguro o máximo que posso. Seus
dedos trêmulos encostam na minha barriga sobre o vestido branco e
pressiono sua palma na região onde o bebê me chuta.
O contraste ameaça me colocar de joelhos. Três gerações. Um bebê que
sequer nasceu para viver sua vida, uma jovem que está perdida em como
viver a dela e um senhor que já não tem tempo para viver a sua.
— Obrigado meu Deus. Obrigado por essa criança forte — ele murmura
com a voz embargada para o bebê. — Eu desejo que você tenha muita
saúde, que seja sempre feliz e que sua mãe possa encontrar na memória,
momentos bons comigo para te contar um dia. Em meio aos erros que
cometi, espero que possa haver alguma coisa boa para te ensinar, e algo
bom para me ter no seu coração.
Minhas pernas fraquejam. É a primeira vez que alguém diz que sou mãe
dele. Mãe. A palavra que achei ter pavor. A palavra que eu temia que
falassem para mim. Mas agora ela parece tão certa, que quero pedir para
que repita. Quero gritar que sou.
Mas não sou. Não posso ser.
Vovô ergue os olhos úmidos para mim e sorri com os lábios finos.
— Eu sempre achei você a pessoa mais linda que conheci. Porque você é
igual a sua avó muito além do nome. Você é igual a ela quando jovem. E
seu coração é tão puro e bonito quanto. Mas, filha… não diga a ela. Você
está radiante agora. Está muito mais bonita do que qualquer pessoa que eu
já tenha visto. Saiba disso. Você está iluminando os olhos desse velho antes
que eu tenha que fechá-los para sempre.
— Vovô — soluço, agachando ao lado da cama, o abraçando da forma
que consigo. E da forma que sei. Nunca o abracei antes. Nunca. E eu não
podia deixar esse arrependimento me corroer.
Eu não duvido das palavras dele. E mesmo que eu esteja me achando
feia, nesse momento, vou me achar linda assim por ele.
— Saiba que não importa o que eu tenha vivido, minha flor. Minha vida
valeu a pena apenas por esse abraço.
Assinto, o apertando mais forte.
— Não quero que vá — admito. — E me desculpe por não ter dito isso
antes... por nunca ter ligado.
— Não se desculpe, filha. Eu deveria ter ligado também, mas não fiz por
vergonha. — Ele estala a língua — Agora não é momento de chorar pelo
passado. Eu jamais me ressenti de você.
Ergo o rosto banhado das minhas lágrimas para ver o dele de igual
forma. Levo a mão para seu rosto, incerta. Vovô fica parado, me deixando
prosseguir. Acaricio a testa com ruguinhas, decorando seus traços.
— Eu sinto muito por estar passando por isso.
— Apesar de tudo, Angie, eu tive uma vida muito feliz. Sua avó me fez
o homem mais feliz do mundo e você o avô mais orgulhoso. Eu fui feliz,
não importa os últimos anos. A grande parte da minha vida fui uma pessoa
que não tinha do que reclamar.
— Você sente dor? — pergunto com medo da resposta. E talvez entenda
porque as pessoas gostam que mintam para elas. Eu quero que ele minta
para mim.
— Nada que esse velho não aguente. Eu sou forte. — Ele dá um sorriso,
mas isso não me convence. — Não chore, Angelina. Como um pedido que
te faço, sempre sorria. Sorria, porque você pode mudar tudo com um
simples sorriso. Quero que seja feliz e que tenha boas lembranças de mim,
nunca ruins e tristes. Você pode prometer isso pra mim? Pode prometer não
chorar, mas sorrir por mim? Mesmo quando eu partir.
Seguro as mãos frágeis nas minhas e assinto. Assinto sem ter a certeza
de que vou poder cumprir essa promessa.
— E prometa que irá contar ao bebezinho no seu ventre, que ele é e
sempre será amado por mim. Prometa contar a ele, que de onde quer que eu
esteja, o estarei protegendo. E que quando estava grávida dele, a mãe era o
anjo mais lindo da terra. O anjo que me deu o dia mais feliz da minha vida
ao me visitar. Que me deixou em paz e aliviado para partir.
— Eu prometo, vovô.
Deito sobre seu peito, escutando os batimentos fracos do seu coração,
enquanto ele acaricia meus cabelos pela primeira e última vez.
 

 
 
Enfio as mãos no bolso e encaro a porta depois que Angelina entra no
quarto, como se fosse a coisa mais interessante de assistir. Eu sinto o olhar
da Lina sobre mim e confesso que estou seriamente pensando se é feio
demais eu correr de uma senhora de idade.
— Vai ficar fingindo que não engravidou minha neta até quando, Francis
Hopkins?
Forço um sorriso, sentindo minha vida esvaindo das veias. Giro o corpo
para ficar de frente para ela. Arregalo os olhos para sua expressão.
— Em minha defesa, usamos camisinha.
— Ela continua grávida.
— Eu sei. Me desculpe.
Me desculpe? É sério, Francis?
— Está se desculpando por ter transado e engravidado minha neta?
Engulo. O que devo dizer? Sim, não, talvez?
— Eu não estou me desculpando por transar com sua neta, até porque se
a senhora não lembra, me ajudou a preparar o jardim. Mas estou me
desculpando por engravidá-la, porque eu deveria ter conferido a camisinha
depois e não fiz isso. E então eu transformei a vida dela numa bagunça dos
infernos, mas estou fazendo de tudo para que fique o mais calmo possível.
Ela está com todos os exames em dia, a anemia finalmente deu trégua,
arrumei um jeito para ela dormir mais confortável e…
— Querido! — Vovó joga a bolsa no meu peito, me fazendo calar a
boca. — Respira.
Inspiro o ar, vendo que precisava mesmo disso.
— Você deveria de fato ter conferido a camisinha depois de usar, mas
isso também não garantiria que ela não fosse engravidar.
A expressão de Lina suaviza-se e tenho a leve impressão de que ela não
estava brava, só queria ver um cara de 1,80m se borrando de medo dela.
— Me diz… vocês já se informaram sobre a adoção?
Meus ombros tencionam imediatamente.
— Fomos a um fórum com mulheres que optaram pela adoção dois dias
atrás.
— E como foi?
A encaro, sabendo que com ela posso ser sincero. Essa mulher foi a
primeira pessoa a ouvir a pergunta que me faço desde que entendi que era
adotado. Por que minha mãe biológica não me quis?
Eu tinha uns seis ou sete anos, não me lembro com exatidão, quando
minha mãe precisou ir para um encontro com as amigas e não tinha com
quem me deixar. Donna estava em um passeio escolar para o farol, junto
com Angelina. Lina se ofereceu para cuidar de mim e eu fui ajudá-la na
floricultura. Eu já era desastrado naquela época e acabei derrubando um
vaso de flores, que sujou todo o chão da loja. Fiquei com tanto medo, que
sentei no chão e comecei a chorar. Eu não queria que ela ficasse triste ou
brava comigo, eu realmente queria ser útil. Mamãe sempre ficava muito
brava quando eu quebrava algo seu, mas vovó Lina apenas se agachou na
minha frente, afastou os pedaços do vaso de argila que poderiam me cortar
e segurou meu rosto nas mãos, limpando minhas lágrimas delicadamente.
Ela não brigou comigo, não reclamou ou disse o quanto eu era um desastre.
Não… seu sorriso apenas se formou no rosto e ao invés de uma bronca,
me ofereceu um abraço. Nesse momento, eu perguntei. Perguntei se era por
eu ser assim que minha mãe biológica não me quis. Vovó ficou estática por
muito tempo e quando me olhou para responder, seu rosto estava úmido de
suas lágrimas. Ela me disse na época, que minha mãe não havia ficado
comigo, por me amar. Eu disse que não entendia como alguém que ama
abandona. E ela respondeu que muitas vezes, o melhor que fazemos por
aqueles que amamos, é abandoná-los. É nos afastar deles.
— Foi o pior dia da minha vida, Lina — respondo a sua pergunta sobre a
reunião. — Até o momento. Porque o dia que eu entregar o bebê, esse sim
será o dia marcado no meu calendário como o pior e aquele pelo qual
sempre irei me ressentir.
Vovó segura minhas mãos.
— E eu suponho que não tenha dito nada disso a Angelina, não é?
— Como eu poderia? — Solto uma risada de escárnio. — Eu não posso
ser egoísta com ela, Lina. Não posso falar que quero esse bebê, quando é a
vida dela que mais será afetada. Ela não precisa que eu bagunce mais as
coisas do que já fiz.
— E vai passar a vida com esse arrependimento?
— Por ela? — Assinto. — Eu vou.
— Oh, querido — suas mãos pequenas amoldam meu rosto e me abaixo
para ficar mais próximo de sua estatura. — Eu espero que você e Angelina
sejam capazes de conversar mais claramente sobre essa gravidez e que
façam aquilo que realmente mandam seus corações. Espero que possam ser
felizes depois de tudo isso.
— Se ela estiver em paz e o bebê estiver com uma família que o faça
feliz, então encontrarei uma forma de ser também.
— Por que essa família não pode ser vocês dois?
— Porque eu não sou bom o bastante para ser pai. — Engulo o nó que
sobe minha garganta. — Não posso ser egoísta com esse bebê e oferecer a
ele um pai menos perfeito do que ele merece.
Vovó balança a cabeça.
— Nenhum pai é perfeito.
— O meu é.
— Ele faz de tudo para ser. Isso que o torna perfeito. E você pode não
perceber, Francis, mas está sendo o melhor para essa criança, mesmo agora.
Desvio o olhar de Lina, não querendo que ela veja o quanto essas
palavras me dão esperança. Mas é uma esperança falida. Não posso
alimentá-la.
— É melhor que a gente pare de falar sobre isso. Angelina pode escutar.
Lina abre a boca para insistir, mas inclino a cabeça, suplicando para que
não fale mais. Não é só por Angelina. É por mim.
Ela suspira, assentindo.
— Tudo bem, meu querido. — Ela dá tapinhas no meu rosto e nos
viramos para a porta que é aberta por Angelina.
Dou um passo para frente no mesmo instante quando vejo seus olhos
avermelhados e inchados, assim como seu rosto banhado por lágrimas que
ela se agita para secar.
— Ei, você tá bem? — Acaricio seu cabelo, ajudando a secar as
lágrimas.
— Claro que não, olha meu rosto.
— Você é grossa, mas eu mereci pela pergunta ridícula.
— Ainda bem que sabe — Angelina funga, tentando esconder seu
estado.
— Quer um abraço? — estreito os olhos, erguendo seu rosto. Os olhos
castanhos ficam carentes.
— Quero, por gentileza.
Sorrio mais abertamente, a puxando para meus braços. Enlaço sua
cintura e ela meu pescoço, afundando o rosto no vão entre ele e meu ombro.
Angelina me aperta forte, como se tivesse medo que eu fosse desaparecer a
qualquer momento.
Meus braços se estreitam ao redor do seu corpo, tentando passar a
mensagem de que sempre estarei aqui. Não importa o momento, eu vou
estar ao seu lado.
— Vovô quer falar com você — Angie avisa.
Arqueio a sobrancelha, me afastando para encarar seus olhos.
— Comigo?
— É, com você. — Revira os olhos, me libertando do seu abraço.
— Não tem nenhum bisturi próximo dele não, né? — Faço careta.
— Ele não vai te matar, fique tranquilo.
— Sei… — Rio de nervoso, fazendo menção de abrir a porta. A voz de
Angelina me interrompe, no entanto.
— Francis… — Giro o pescoço para olhá-la. — Não falei a ele sobre a
adoção. Por favor, minta.
Comprimo as sobrancelhas e penso em perguntar o porquê de ela não ter
contado, mas chego à conclusão de que esse não é o momento. Apenas
assinto.
Fecho a porta depois de entrar no quarto e me aproximo da cama. O
senhor Samuel também parece se recuperar das lágrimas derramadas pela
conversa com Angelina. Eu imagino que não tenha sido fácil para nenhum
dos dois. Ele era alguém importante na vida dela. E acredito que ainda seja.
— Eu achei que fosse entrar aqui e ver um idoso, mas estou encontrando
um homem bonitão.
— Você mente mal, rapaz. — Ele ri e aceita o aperto de mãos que
ofereço. Puxo a cadeira para o lado da cama e me sento. Acho que vou
precisar.
— Como o senhor está? Fora o óbvio, claro.
— Feliz, Francis. Feliz pelas pessoas que eram importantes para mim
ainda me amarem o suficiente para estarem ao meu lado na reta final.
— O senhor ainda tem muito tempo.
— Estou cansado, filho. Estou feliz e cansado. Se eu pudesse escolher o
momento para partir desse mundo, seria agora, enquanto estou em paz.
— Pelo amor de Deus, não inventa de morrer comigo aqui, vou ficar
traumatizado — brinco e ele gargalha alto, tossindo ao final.
— Eu sempre gostei de você, garoto, porque você não é falso. E nem
trata as pessoas com pena simplesmente por alguma situação ruim —
Assente para mim. — E por isso minha neta gosta tanto de você também.
Suspiro.
— Eu estraguei tudo com ela, senhor.
— Por tê-la engravidado?
— Antes da gente descobrir isso eu já tinha estragado tudo.
Abaixo a cabeça. É uma merda dizer isso para o cara que provavelmente
daria a vida por Angelina. E que praticamente a criou junto com Lina. Meu
rosto evidencia meu constrangimento.
— Você está com vergonha do seu erro na frente de um homem que
perdeu a família para o vício. Isso já mostra que se arrepende, porque não
há ninguém tão indigno do seu respeito que eu. Não sou ninguém para te
julgar. Só peço que faça tudo que estiver ao seu alcance para reparar o seu
erro enquanto ainda há tempo. — Ele solta uma risada triste. — Não perca a
sua Angelina, como eu perdi a minha.
Engulo o nó na garganta, me imaginando no lugar dele.
Como seria ter a certeza de que não há mais tempo para buscar o
perdão e o amor de Angelina? Como seria estar numa cama de hospital,
olhando o passado, e vendo tudo que perdi por pura burrice? Como seria
saber que não importa o quanto queira, o tempo definitivamente acabou?
Como seria ter certeza do fim?
Meus pelos se arrepiam por todo o corpo e um gosto amargo toma minha
garganta. Apenas o vislumbre de tudo acabado me faz sentir vontade de
vomitar. Não quero sentir isso. Não quero viver isso.
— Senhor… eu tenho um pedido a te fazer — falo de supetão, ficando
em pé. Ele arqueia os poucos pelos da sobrancelha e me encara confuso.
— Se eu puder ajudar...
— Eu… — Limpo a garganta, ajeitando a gola da blusa. — Esse não é o
melhor momento para isso, mas eu posso não ter outro com você vivo, com
todo respeito, então preciso aproveitar — Rio de nervoso. — O senhor sabe
que sou apaixonado pela sua neta. Ou melhor, eu a amo. A amo como nunca
amei e nunca irei amar outra mulher na minha vida. Não há chance para que
outra pessoa ocupe o lugar dela. Eu tinha certeza anos atrás que Angelina
era meu primeiro amor, o amor da minha vida e o amor para minha vida. E
continuo tendo essa certeza.
— Eu posso ver isso no seu olhar, filho. Mas o que posso fazer por você?
Respiro fundo, limpando a testa com as costas das mãos.
— O que tenho para te pedir, é uma coisa para longo prazo. Uma coisa
que eu não sei se vai acontecer, mas que se eu tiver a sorte e o prazer de
conseguir, quero saber que levarei comigo a sua benção. — Olho no fundo
dos olhos que são idênticos aos da mulher que amo. — Hoje, senhor, eu
quero pedir a sua benção e a sua aprovação, para um dia fazer da sua neta, a
minha esposa. Quero pedir a mão da Angelina, para aquele que assim como
eu, errou com ela, mas que a ama incondicionalmente.
Solto o ar asperamente, tentando não hiperventilar. Não sei porque estou
pedindo isso agora. Mas pode ser minha última chance de conseguir a
benção dele. Angelina provavelmente me xingaria se visse essa cena, mas
eu preciso saber que alguém confia em mim para um dia fazer esse pedido a
ela.
— Filho… se você for digno de reconquistar minha neta, não tem apenas
minha benção e minha aprovação para se casarem. Você tem meu incentivo
e minha eterna gratidão por amá-la acima de tudo. Peço apenas que seu erro
do passado, seja seu último. E saiba, que quando chegar o dia de estarem no
altar para se unirem, estarei olhando por vocês. Estarei os abençoando, da
forma que puder. E torcendo para que vocês tenham mais sorte que eu e
minha Angelina tivemos.
Assinto, secando uma lágrima fujona.
— Obrigado senhor. Eu honrarei as minhas e as suas palavras.
— Sei disso, filho. Assim como sei que meu bisneto não poderia ter um
pai melhor que você. Ele ou ela sentirá muito orgulho do homem que é. —
Meu coração espanca meu peito, porque por esses breves segundos, me
permito acreditar e viver essa fantasia. — Posso ver agora mesmo o brilho
no seu olhar. Posso ver seu amor. Pelos dois.
Aperto as mãos na lateral do corpo, ousando falar aquilo que não ousei
para ninguém.
— Eu amo. Eu os amo. Com a minha própria vida. Eu os amo.
Porra, como eu amo. Eu amo meu bebê. Porque pelo menos para mim,
dentro da minha cabeça e dentro do meu coração, ele sempre, eternamente,
será meu bebê. Assim como Angelina sempre, eternamente, será o meu
amor.
 

 
Na noite daquele mesmo dia, após nossa visita, vovô faleceu.
Ele faleceu dormindo, segurando as mãos da vovó Lina. Uma morte
tranquila e sem dor. Isso deveria confortar, e até certo ponto, conforta. Mas
a morte ainda dói. É uma dor não pelos que vão, mas pelos que ficam com a
saudade que não pode mais ser aplacada. Dois dias depois, ele foi cremado.
Seu pedido era que suas cinzas fossem jogadas no mar pelas mãos da
mulher que ele amava.
Eu nunca vi uma mulher tão forte como a vovó Angelina, na tarde
nublada em que a vi atirar as cinzas do homem da sua vida no mar. Eu não
consegui dizer uma única palavra nesse dia, porque não consegui parar de
pensar se fosse eu no lugar dela. Eu não conseguiria. Não seria forte como
ela. E naquele dia, fiz um pedido a Deus. Que ele me levasse antes de levar
Angelina. É egoísta, eu sei. Mas pedi. Implorei.
Agora, segurando as mãos dela no avião, voltando para São Francisco, a
sombra da morte paira em nossas cabeças. Ela, ao contrário de mim, foi
forte para sorrir.
Nós havíamos ficado no mesmo hotel em que Lina estava hospedada
próxima ao hospital. Recebemos sua ligação às 23h35min. Eu atendi e não
precisei repassar a informação para Angelina. Ela sorriu para mim e disse
apenas “eu sei”. E desde então, ela não deixou o sorriso morrer em seu
rosto. Mesmo quando as lágrimas caíam, ela sorriu. Quando eu perguntei a
ela o porquê, ela me disse que era porque sempre cumpria suas promessas.
Não questionei mais nada. Principalmente porque naquele dia, ela me
entregou seu perdão.
Quando sua vó terminou de atirar as cinzas, Angelina se virou para mim
e me entregou o que eu tanto pedi todo esse tempo. Insisti para que ela não
se deixasse levar pela emoção do momento, mas minha garota prendeu meu
olhar no seu e garantiu que não era algo feito no impulso. Suas palavras
foram:
“Se o dia que você deixar este mundo, for antes do meu, quero poder ter
no rosto, a expressão que vi no da minha vó ao se despedir do homem que
amava. Quero ter a certeza que estive com você o máximo que pude. Que
respeitei meus sentimentos, que vivi meus desejos, e principalmente, que
não sucumbi aos rancores. Quando chegar a hora do fim, não quero ter
arrependimentos. Quero olhar para trás e sorrir para a história que
construímos. E para isso, eu preciso te perdoar. Não vai ser difícil... difícil
mesmo é tentar te odiar, meu amor.”
Angelina me entregou seu maior ato de amor, no seu momento de maior
dor. Se ainda existia alguma dúvida dentro de mim, sobre a força dessa
mulher, se esvaiu naquele momento.
Fizemos toda a viagem de volta em silêncio e não soltamos a mão um do
outro. Uma promessa muda de que sempre estaríamos juntos. Tão logo
chegamos em casa, ela corre para o quarto. A deixo sozinha, para que possa
chorar sem precisar parecer forte. Ela precisa chorar.
— Como ela está? — Minha irmã me abraça quando me encontra na
sala.
— Mais forte do que imaginei.
Donna funga e afago suas costas.
— A morte é uma merda. É por isso que eu não gosto de amar ninguém,
porque pessoas morrem.
— Você não me ama? — brinco.
— Amo. Por isso você tá proibido de morrer.
Rio baixinho, a ninando.
— Fica tranquila, pentelha. Vou te encher o saco por muitos anos, ok?
— Não vou mandar você prometer, porque esse é seu lance com
Angelina, então vou te ameaçar. Se morrer cedo, eu te caço no inferno!
— E quem disse que vou para o inferno?
— Você fez sexo fora do casamento, segundo os preceitos da mamãe,
está condenado à danação eterna.
— Cala a boca, Hopkins segunda. — A aperto mais forte contra mim,
sentindo medo. A morte causa isso. Mesmo que a gente saiba que ela vai
chegar, nunca estamos de fato preparados.
Queria colocar todos que eu amo aqui. Nos meus braços. Protegê-los de
tudo. E sinto uma agonia lacerante por não poder. 
— Será que eu posso me juntar nesse abraço? — Blue sorri para mim e
abro os braços para ela.
— Aproveite que eu tenho os braços longos — pisco e ela revira os
olhos, se aconchegando no espaço que Donna deixa.
— Minhas meninas — Beijo a cabeça das duas. — Eu amo vocês. E vou
estar aqui sempre.
— Ih, não vai chorar no meu cabelo hein — Donna zomba.
— Ele não é nem doido — Blue me dá um soquinho na costela.
E mesmo se fazendo de difíceis, as duas estalam um beijo na minha
bochecha.
A morte machuca..., mas nos lembrar dela dá razões para valorizar a vida
que ainda temos.
 

 
 
Quando somos crianças e ficamos doentes, temos a oportunidade da
faltar aula, de passar o dia na cama, apenas assistindo desenhos ou lendo
um livro. Quando nos sentíamos tristes, nada era mais inadiável do que
apenas sentar e chorar. O tempo estava a nosso favor. A vida podia esperar.
Mas quando nos tornamos adultos, não importa o quanto nosso corpo esteja
exausto, não interessa a intensidade da nossa tristeza ou o quanto
precisamos de um momento para lidar com os sentimentos... a vida
simplesmente não espera. Aquele botão de pause ficou para trás, assim
como a infância. Agora, chorar já não é algo que fazemos sempre que
ficamos tristes. É algo que fazemos quando temos tempo. Depois de fazer
todas as outras coisas que são prioridade.
Não tenho tempo de sentir o luto pelo meu avô. Não posso simplesmente
deitar na cama e chorar o quanto meu coração deseja, porque os problemas
e obrigações não param de chegar. Principalmente com o fim da gravidez.
Uma semana depois que vovô faleceu, eu tive que guardar a dor dentro
de uma caixinha e abrir outra que viria a me machucar um pouco mais. Tive
que parar de adiar e começar a me preocupar com os trâmites para adoção.
Não sei explicar o que sinto nesse momento. Eu achei, ou esperei, que esse
dia fosse demorar a chegar. Parecia tão distante e agora é tão real, que todo
meu corpo estremece de medo.
Nós havíamos nos inscrito em uma agência particular de adoção logo
que descobrimos a gravidez. Deixamos nossos dados e eles nos ligariam
quando fizessem a seleção dos candidatos. A empresa faz um estudo para
conferir as condições pessoais, financeiras e psicológicas para receber a
criança. Eu só não esperava que eles fossem me ligar agora. Para ser
sincera, não estava sequer me lembrando que eu precisaria entregar o bebê
em algum momento.
Ele tem sido a parcela boa dos meus dias.
Estou apavorada. E Francis não parece diferente. Quando acordei, ele já
estava de pé, guardando sua Canon. O nadador pensa que não sei que todos
os dias pela manhã, ele tira fotos minhas... eu gostaria de ter coragem de
dizer a ele que eu gosto. Mas tenho medo de querer tanto essas lembranças.
De qualquer forma, Francis não esboçou nenhum sorriso no dia de hoje. Ele
costuma me acordar com um radiante, que me dá coragem para enfrentar o
dia, e hoje o que ganhei foram seus olhos fugindo dos meus como uma
presa foge do seu predador. Ele está com raiva de mim? Está com medo e
não quer que eu veja? Não sei decifrar.
Apesar da expressão fria e congelada, a mão dele não saiu de mim um
segundo sequer. Seja segurando a minha, seja me conduzindo pela base da
coluna enquanto caminhávamos do estacionamento para a agência ou
envolvendo minha cintura ao subirmos de elevador.
Isso me conforta, ao menos um pouco. Se ele estiver com raiva de mim,
seja lá por qual motivo, não é forte o bastante para que não queira me tocar.
Eu lembro perfeitamente como é a recusa do seu toque e não quero nunca
mais experimentar essa sensação. Quando cheguei à USF foi um pesadelo.
Vê-lo recuar de mim machuca. Dilacera. Não posso passar por isso agora.
— Boa tarde, vocês devem ser Francis e Angeline — a recepcionista nos
chama.
— Angelina — corrijo. Se ela não se atentou ao meu nome, irá se atentar
corretamente ao casal que está me indicando para o meu bebê? Envolvo
minha barriga conduzida por um instinto que me faz praticamente
arreganhar os dentes e rosnar.
— Claro, perdoe-me o equívoco. — Sorri.
— Espero que seja o único — solto rispidamente e Francis me olha
surpreso.
— A gente espera aqui na recepção ou já entramos em alguma sala? —
ele toma a fala para si e não reconheço sua voz. Está tão fria, tão
indiferente, como se ele estivesse presente de corpo e sua alma tenha ficado
do lado de fora.
— Podem esperar na sala de reunião. Basta que virem naquele corredor à
direita. É a primeira porta.
— Obrigado — ele repousa a mão na base da minha coluna e me conduz
para o lugar que a mulher indicou.
Fico tentada a perguntar o que ele e Blue conversaram antes de sairmos,
mas sua postura me impede de abrir a boca. Ele não parece alguém que quer
conversar, só alguém que quer sumir.
Quando cheguei à garagem, Blue o estava abraçando e não sei se foi
coisa da minha cabeça, mas o corpo de Francis parecia tremular. Ele estava
chorando? Não faço ideia. Quando viu que cheguei, os dois se endireitaram
e ele apenas entrou no carro. Blue me interceptou no caminho e disse uma
frase que me deixou ainda mais perdida.
— Nunca, nunca mesmo, é tarde demais.
Por que todos continuam me falando isso?
Francis abre a porta da sala intimista, com uma mesa oval no centro e
cadeiras de estofado de couro em volta. O lugar é frio. Muito frio. Uma
sensação de cemitério. Não sei explicar, mas é a mesma sensação que sinto.
Agradeço por vovô não ter escolhido ficar em um. Mas também não me
agradou ser jogado no mar. Aquilo me apavorou, porque mesmo sendo
irracional, o imaginei se perdendo naquela imensidão de oceano.
Francis puxa a cadeira para que eu me sente e isso só piora a situação.
Ele não é assim. Eu não estranharia a atitude vinda do Jayden, mas Francis
não é do tipo que abre a porta ou puxa a cadeira para sentar. Ele é romântico
de outro jeito. E definitivamente isso aqui não é romantismo e nem
tampouco cavalheirismo. Só está agindo em um modo automático que me
dá arrepios. Ele senta-se ao meu lado e apoia os cotovelos na mesa, com os
dedos das mãos entrelaçados. O encaro, tentando entender toda essa atitude.
Os olhos estão vítreos em um ponto qualquer da sala, os nós dos dedos,
brancos com a força que aperta a própria mão, os ombros tensos, a veia do
pescoço saltada.
Abro a boca para perguntar o que ele tem, mas a coragem me escapa.
Não sei se quero saber o que ele sente, principalmente se for diferente do
que eu estou sentindo.
Quando a porta da sala é aberta, nós dois damos um pulo na cadeira.
Sinto a bile subir minha garganta tão rapidamente, que cubro minha boca
com a mão. Francis me olha pela primeira vez no dia e pergunta se estou
bem. Não respondo. Sequer balanço a cabeça. Ele sabe que não estou bem.
Nós temos encontro com duas famílias hoje.
A primeira, duas mulheres na faixa de 30 anos, estão juntas há dez anos.
Uma trabalha como freelancer de design digital e a outra é professora de
biologia no ensino médio. Donna fez uma lista de perguntas que eu deveria
fazer, mas mesmo com o papel em mãos, nenhuma palavra saiu da minha
boca. Francis quem fez todas. Quando ousei encarar seus olhos, meu
coração sangrou. Eles demonstraram o que parte alguma de seu corpo
deixou escapar. Enquanto sua fala saiu calma e serena, o azul das íris estava
turvo, nublado, tão escuro que já não parecia a cor do mar em sua calmaria,
e sim o tom assustador de uma onda gigantesca devastando tudo. O casal
fez perguntas a nós também. Não respondi nenhuma, Francis fez esse papel.
Estou sendo egoísta de deixar tudo com ele, quando a decisão partiu de
mim. Mas se eu abrir a boca para falar algo, vou permitir sair o que não
posso.
As mulheres se despedem de nós após uma hora de conversa, que mais
me pareceram eras inteiras de pura tortura. Cada vez que uma pergunta se
referia a como elas pretendiam criar o bebê, meu sangue rugia nas veias,
queimava, meus dentes se apertavam, e não pelas respostas serem ruins,
mas justamente por serem boas. E não serem minhas.
Meus dedos estão tão comprimidos contra minhas palmas, que já não os
sinto. Ficamos sozinhos na sala novamente e logo a porta se fecha, Francis
deixa escapar um gemido de dor, recostando-se na cadeira. A respiração
dele já não está regular. O peito sobe e desce freneticamente, suas pálpebras
piscam rápido demais, o maxilar projetado para os lados tamanha a força
que ele pressiona os dentes.
— Preciso ir ao banheiro — ele diz num rompante, saindo da sala a
passos apressados.
Ao me ver sozinha, agarro minha barriga, como se isso pudesse impedir
que mais alguém fale o que fará com o meu bebê.
— O que eu faço? Me diz, Serzinho, o que eu faço? — ele se move na
minha barriga e pela primeira vez, acho que vou sentir falta disso. — Eu
preciso pensar em você. Só em você. Não posso pensar no que quero. Não
posso colocar Francis nessa situação agora, sendo que decidi por esse
caminho desde o princípio. É tarde demais.
E a frase de Blue martela minha cabeça.
Nunca, nunca mesmo, é tarde demais.
Arquejo.
Mas e se for?
 

 
 
 
Apoio as mãos na pia de mármore, hiperventilando.
Meu cérebro se recusa a funcionar, as ligações dos meus neurônios
foram todas interrompidas. Meu pulmão queima cada vez que recebe ar e o
expulsa como se fosse um gás venenoso. Meu estômago se recusa a aceitar
qualquer coisa dentro dele, cada fibra dos meus músculos tensiona, estou
paralisado. Meus pés, apesar de tudo, estão prontos para o comando de sair
correndo daqui. Eu correria milhas de distância para ir embora. Correria o
resto da vida se isso significasse não entregar meu bebê. Fazer aquelas
perguntas, anotar as respostas, olhar nos olhos daquelas mulheres que estão
aqui justamente para tirar algo de mim, foi a coisa mais torturante ao qual
fui submetido. Submetido por mim mesmo. Se eu fosse alguém mais
confiante, sensato e maduro, Angelina não precisaria ter optado pela
adoção. A culpa é minha por estarmos nessa situação. E a culpa é minha por
não conseguir dizer uma única palavra de conforto a ela agora. Estou
quebrado. Assim como eu sabia que estaria. E vou me quebrar pedaço por
pedaço todos os dias da minha vida por esse erro. É um erro. No fundo,
meu ser, minha alma, tudo bem em mim grita que é um erro. Mas eu não
posso dar ouvidos à minha voz, à minha razão, porque ela já falhou vezes
demais.
Minha vontade é de rasgar o mundo em dois, estilhaça-lo da mesma
forma que ele está fazendo com meu coração.
Como eu posso abrir mão do meu filho? Como posso esperar que
alguém o ame como eu amo? Como posso esperar que alguém destrua o
mundo por ele, como eu sei que faria? Como eu posso esperar que ele ame
alguém como me ama? Porque eu sei, eu sinto, ele me ama. Nós
conversamos todas as noites. É com a minha voz que se acalma. É com as
minhas histórias, com meu toque…
Certa vez, ouvi uma música que dizia que apenas o amor pode machucar
assim. Eu discordo. O amor não machuca. Abrir mão dele sim.
Jogo água no rosto, voltando para a sala no exato momento em que um
homem e uma mulher entram nela. O segundo casal. Deus, me dê forças
para repetir todas as perguntas, me dê forças para não gritar e não
carregar Angelina nos braços para fora daqui e prometer coisas que não
posso cumprir.
Permito que o casal entre primeiro, fechando a porta em seguida. O
homem segue para o outro lado da mesa e senta-se, mas sua mulher corre na
direção de Angelina, com a mão estendida em direção à sua barriga. Angel
arregala os olhos, cobrindo sua barriga com as mãos, quase a abraçando.
— Não a toque. — Entro na frente dela em segundos.
— Eu só queria sentir o bebê se mexer. — Ela sorri e insiste com o
movimento das mãos.
— Não. A. Toque — digo cada palavra separadamente, minhas veias
rugindo com um instinto de proteção duplicado. O que quero dizer é: não os
toque.
— Querida, já conversamos sobre isso. Deixe o garoto. — O marido dela
se desculpa. — Sente-se aqui por favor.
A mulher olha mais uma vez para a barriga de Angelina e a cubro
totalmente de sua visão. Eu sei que essa mulher tem o sonho de ser mãe,
muito provavelmente por isso está assim, mas ela não pode tocar as pessoas
sem sua permissão. E eu não vou deixar que nada nem ninguém faça
Angelina sofrer mais do que ela já está. Seja quem for.
Os dois se sentam à nossa frente e ao contrário do casal anterior, eles
interrompem a maioria das minhas perguntas, fazendo as próprias ou não
respondendo exatamente o que perguntei, apenas falando que sonham em
ser pais. Trinco o maxilar. Eu estou abrindo mão do meu bebê justamente
para que ele não seja apenas um sonho e sim uma realidade. Uma realidade
onde ele possa se desenvolver sendo uma criança como deve ser e não para
suprir almejos e sonhos de adultos.
— Nós já temos nomes — a mulher declara. — Se for menina, se
chamará Betty e se for menino, se chamará George, exatamente como meu
marido — ela sorri para o homem e engulo o incômodo e o ciúmes que vai
me preenchendo pouco a pouco. Olho de esguelha para Angelina e ela
aperta as mãos tão fortemente, que estão tremendo sobre a mesa. Coloco as
minhas sobre as dela.
Angelina me olha com labaredas chamuscando suas íris castanhas.
— A gente já sabe a escola que vai colocar e também já temos o plano
para a faculdade. Nós nos conhecemos em Princeton e queremos que estude
na mesma faculdade que nós. Poderá escolher entre administração e
ciências políticas. — Ela sorri vitoriosa. — Se for menina, eu quero que
faça balé desde muito cedo, porque é algo que eu sempre quis e minha mãe
não tinha condições na época. Além disso, nós já temos os padrinhos
escolhidos, vamos batizá-lo na igreja católica assim que nascer. Nossa
família é muito religiosa e tradicional, tenho certeza que vocês vão ficar
muito satisfeitos que a agência tenha nos chamado hoje, afinal nós vimos
que duas mulheres saíram daqui. — Ela balança a cabeça em desaprovação.
— É inacreditável que tenham feito isso com vocês dois, um casal tão
jovem, foi um claro desrespeito, sinto muito.
Pisco devagar para a mulher. Meu corpo inteiro estanca. Até mesmo as
mãos de Angelina param de tremer.
— Vocês podem ficar tranquilos em relação a isso, nós temos a intenção
de ensinar nosso filho sobre os princípios da família e da fé. O bebê será
muito bem educado — o homem complementa.
— Educado? — rosno. — Ou doutrinado?
— Filhos nós criamos assim, garoto. — O homem interfere. — Não se
pode dar liberdade demais para uma criança, vocês são jovens e talvez não
saibam disso, ou seus pais tenham dado liberdade demais a vocês e por isso
se encontram nessa situação. Nós vamos garantir que nossa filha ou filho
seja bem ensinado. Que não tenha o mesmo destino que vocês dois.
Angelina se põe de pé. Seu movimento é tão rápido quanto o de uma
serpente prestes a dar o bote e sua expressão como a de uma leoa pronta
para defender o que é dela.
— Não é o seu filho — a voz dela envia um arrepio na minha espinha.
Não como costuma ser, e sim de uma ameaça implícita, mas implacável. —
Nem agora e nem nunca será.
— Minha querida… — a mulher começa a falar e fecho os olhos para
esperar a resposta de Angelina.
— Querida é a senhora sua mãe! — Ela se inclina sobre a mesa e nada
poderia me parecer mais forte que Angelina agora. Meu peito se enche de
um orgulho sem medidas. — Você não está aqui em busca de criar uma
criança, está em busca de reproduzir a si própria e seus sonhos fracassados.
E esse alguém não será o meu bebê.
Angelina bate no próprio peito e não foi de forma branda. Escuto o
estalo da sua palma contra a pele e os ossos. Ela prossegue:
— Um filho não é extensão do seu ego, uma extensão dos seus falhos
planos. Vocês não querem ter um filho para amá-lo, querem um filho para
criar versões mais novas de si próprios. O casal que saiu daqui antes de
vocês dois, sim duas mulheres, seriam infinitamente melhores mães do que
um dia vocês seriam pais. Elas em momento algum tentaram me tocar, coisa
que se não sabem, não devem fazer! O corpo de uma mulher continua sendo
apenas dela, mesmo que carregue um bebê em seu ventre.
— Você não pode falar com ela assim! — O homem se levanta e se
inclina na mesa perto de Angelina. Ergo-me no mesmo instante, minha
cadeira arranhando o piso e caindo para trás. Seguro os braços de Angelina,
a afastando.
— Abaixa o tom — minha voz nada mais é que um sussurro
tempestuoso. — Abaixa o tom, porque se gritar com ela novamente, garanto
a você que vou te mostrar o “garoto” pelo qual tem me chamado desde que
entrou aqui. Mais uma palavra dita errada e eu não irei avisar novamente.
Se pensa que estou brincando, apenas teste. — Sorrio sombriamente. — Eu
estava mesmo pensando em como gostaria de socar a cara de alguém.
— Escuta aqui, seu moleque…
— Eu mandei abaixar a porra do tom! — Bato contra a mesa e ele me
encara com visível gana.
— Meu amor, pare com isso, assim não vamos conseguir nunca. — A
mulher o puxa para se sentar. — Desculpe, nós não queríamos ofender, mas
estamos mostrando que temos tudo planejado para essa criança, que nós
podemos oferecer a ele um futuro muito sólido, programado e bem
sucedido. Isso é muito mais que vocês vão poder oferecer ou até mesmo
aquelas duas mulheres que saíram daqui. Nós não realizamos muitos sonhos
quando éramos jovens e queremos que a criança tenha oportunidades, isso
não é algo ruim.
— E amor? — Angelina vocifera. — E confiança? E proteção? E
liberdade? E apoio? E carinho? E compreensão? E escolha? Pensaram em
oferecer alguma dessas coisas? — Ela solta uma risada amarga. — Deixa eu
te falar uma coisa, um conselho vindo da filha de uma narcisista, como
vocês: isso que estão propondo, não gera felicidade. Uma criança, deve ser
criança. Não escutar tudo que ela precisa ou não ser quando crescer. Uma
criança não é uma continuação dos seus pais, é uma pessoa à parte, que tem
seus próprios sonhos, desejos, personalidade e modo de agir. O casal que
vocês tanto criticaram, frisaram o quanto queriam dar amor à criança no
meu ventre. Como queriam ensinar sobre amor, liberdade e respeito. É isso
que eu quero para essa criança. Que jamais foi de vocês, para chamarem
assim.
— Você fala isso agora porque é jovem — a mulher força uma voz doce
que me dá asco.
— Somos jovens sim — interfiro. — Jovens e ainda mais cientes do que
uma criança precisa do que vocês dois.
— Eu imagino que você queira muito ser mãe pelo seu desespero —
Angelina assente. — Mas você não quer um filho para amar e cuidar. Você
quer para fazer por você, o que não conseguiu. Existem pessoas que não
deveriam ter filhos. Você é uma dessas. E como um conselho que eu daria a
minha própria mãe no passado: não tenha.
— Você é um monstro! — a mulher se ergue, apontando o dedo para
Angelina. — Vai dar essa criança para um casal gay cuidar? Vai fazer essa
criança ser homossexual, sofrer preconceito. Se acha que essa baboseira de
liberdade funciona, veja só como vocês estão!
A mulher grita e a recepcionista abre a porta da sala assustada.
— Vamos embora daqui, Francis — Angelina segura minha mão. —
Vamos embora com nosso bebê.
— Ele não é seu! Não percebe? — a mulher continua gritando, enquanto
a recepcionista tenta contê-la. — Você não tem preparo para ser mãe, é só
uma menina! Nunca vai conseguir dar um futuro decente à essa criança!
— É meu! — Angelina fala alta e firme. — Meu para cuidar, amar,
proteger, até que seja apenas de si próprio para viver sua vida. Meu! Nosso
filho! — Ela me encara, agarrando o colarinho da minha camisa, e arregalo
os olhos. — De mais ninguém. É nosso.
Uma lágrima cai do rosto dela e fico completamente imóvel. Ela está
dizendo que…
— Não sei o que vai achar disso. Não sei qual será sua reação. Sei que te
fiz planejar a vida de acordo com minha decisão anterior. — Angelina
chora, apertando os dedos na minha camisa. — Mas eu não vou dar meu
bebê, Francis. Eu não consigo. Merda, eu o amo. Eu amo esse bebê e eu
quero ser mãe dele. — Angelina me suplica com o olhar. — Eu quero ser
mãe dele, por favor me diga que eu consigo, que eu posso. Me diz que eu
posso ser mãe dele... porque eu tentei... tentei até onde não pude, fazer a
coisa mais sensata e o entregar..., mas não vou conseguir. Não posso abrir
mão dele, porque já faz parte de mim.
Meus joelhos caem no chão, sem qualquer força para sustentar meu
corpo. E caem no chão de alívio, de gratidão, de libertação. Eu abraço a
cintura de Angelina, colando a boca à sua barriga. E choro. Na barriga dela,
eu choro. Choro tudo que quis durante todo esse tempo e não pude. Deixo o
medo, o desespero e a dor saírem; mas principalmente, deixo a felicidade se
expressar em forma de lágrimas.
A olho sob os cílios e sorrio. Sorrio de um jeito que os cantos da minha
boca reclamam de tão esticados.
— Ele é nosso. É nosso filho. — Angelina se agacha junto a mim e a
abraço apertado, enterrando o rosto em seu pescoço. — Eu não sei como
vamos fazer, não sei por onde começar, mas nós vamos dar um jeito. —
Acaricio os cabelos loiros, querendo gritar de puro alívio. Ela só consegue
se agarrar a mim e chorar, como se não acreditasse nas minhas palavras. —
Porque eu quero esse bebê, Angelina. Eu amo esse bebê. Eu amo você e
vou dobrar o mundo para que ele seja perfeito para vocês dois. Eu prometo.
Prometo todos os dias tentar ser minha melhor versão, para que você nunca
mais tenha que sentir medo de ser a mãe do nosso filho. Você é mãe dele.
Nada no mundo vai te tirar isso. Não vou deixar.
 
 
Quando crianças, nos perguntam o
que queremos ser. Se soubéssemos
naquela idade, o que sabemos quando já
crescemos, responderíamos: quero
sempre ser criança.
 

 
 
Cape May; 4 anos atrás…
Nem posso acreditar que finalmente estou no terceiro ano do colegial.
Eu mal pude dormir noite passada, apenas imaginando a sensação de
entrar pelas portas do Cape May Street High School como um veterano, e
tendo Angelina e Donna como minhas calouras. Meu sangue parece em
ebulição com a expectativa com tudo que está por vir. Nem mesmo meu
café da manhã consegui comer, apenas roubei uma maçã da geladeira e saí
apressado.
Minha irmã me acordou às 5h da manhã para implorar que eu não
jogasse ovos em seus cabelos no trote ou ela arrancaria os meus fora. Ela
está a salvo dos ovos, mas não pela ameaça, e sim porque Angel odeia a
textura deles crus e as duas estão sempre juntas demais para arriscar..., mas
um pouco de farinha pode muito bem resolver a situação. Dois sacos estão
pesando minha mochila e estou apenas aguardando o sino do final das aulas
para deixá-las completamente brancas de pó branco.
— Ei, cara! — um dos jogadores de lacrosse me cumprimenta com um
tapinha no ombro enquanto passo pelo corredor. Os outros do time fazem o
mesmo e sigo na direção da minha primeira aula.
Brody agarra meu pescoço com o braço quando passo pela porta,
esfregando o punho no meu couro cabeludo. Dou um soco na sua costela, o
afastando rindo.
— Isso tudo é saudade de mim? — provoco meu melhor amigo.
— Você sumiu o verão inteiro, porra!
— Eu estava treinando com um técnico em Atlantic City.
Jogo a mochila na cadeira.
— Enquanto isso eu fiquei trabalhando na oficina do meu tio. — Ele
revira os olhos.
— Fez a inscrição para as faculdades? — ignoro sua reclamação. Brody
é expert em resmungar de tudo.
— Fiz, claro. É minha única chance de deixar essa merda de cidade.
— Não é tão ruim. — Dou de ombros.
— Claro que não é ruim, você namora. — Brody joga um livro em cima
de mim e me esquivo a tempo do exemplar cair no chão. — Só precisa de
um quarto pra se divertir.
Arqueio a sobrancelha. Se ele está falando sobre sexo, ficaria surpreso
que não rolou isso entre Angelina e eu ainda. Eu não sei como vai ser meu
futuro depois que terminar o colegial. Se minha mãe me obrigar a ir para a
faculdade assim que me formar, então não acho justo tomar esse passo com
ela agora e fazê-la esperar por mim depois.
— E pra você diversão é só sexo? Não consegue manter o pau dentro das
calças?
Brody sorri como um pervertido.
— As coroas não deixam.
Balanço a cabeça. Brody vive falando sobre isso, mas eu não faço ideia
com que mulher mais velha ele anda se envolvendo. Só espero que não seja
casada, ou vai acabar se metendo em alguma encrenca antes de ir para a
faculdade. E seria uma idiotice fazer isso.
Os dois primeiros tempos das aulas de trigonometria e artes cênicas
passam arrastados, a professora tentando a todo custo me convencer a
participar da peça de formatura, mas definitivamente não sou nenhum Troy
Bolton. Eu sou bom no esporte; apenas isso. Nada de cantoria ou atuação.
O sino do intervalo soa baixo e sorrio satisfeito que a sugestão do meu
pai tenha surtido efeito. Ano passado, no último dia de aula, pedi para o
meu pai falar com a diretora sobre a altura dos alto-falantes. Angelina
começaria a estudar aqui no ano seguinte, e ela sempre teve sensibilidade
sonora. Achei que fosse ser incômodo para ela, então Robert conversou
com a mulher e ela prometeu que deixaria o mais baixo possível. Não que
eu esperasse que alguém fosse negar um pedido do meu pai, já que ele
patrocina grande parte dos esportes do colégio. Foi graças a ele que
ganhamos uma piscina semiolímpica.
Sigo para o refeitório já procurando minhas calouras preferidas,
encontrando Donna e Angel sentadas em uma das mesas próxima à janela
com vista para o jardim. Sorrio, indo em direção a elas. Coloco em cima da
mesa os presentes que comprei para comemorar suas entradas no colegial.
— O que é isso? — minha irmã pega o que está embrulhado em papel
seda vermelho, já rasgando sem qualquer cerimônia, sem nem ao menos
saber se é seu. Reviro os olhos.
— Presente pelo primeiro dia no colegial. — Sento ao lado de Angelina,
oferecendo minha mão. Ela a encara por um tempo, antes de entrelaçar seus
dedos nos meus, os alinhando perfeitamente. — Oi, meu anjo.
— Oi... — Seus olhos caem curiosos sobre o segundo embrulho na mesa.
— Não acredito! — Donna pula da cadeira ao ver qual seu presente, logo
em seguida saltando para cima de mim, quase me enforcando com a força
que me abraça. Angelina ri do meu lado.
— É só um sapato, não uma mansão. — A faço parar de esmagar minha
garganta.
— Garoto, isso é um Louboutin! — grita eufórica, estourando meus
tímpanos. — Quantos meses de mesada você economizou?
Ela se senta de volta na sua cadeira, encarando o sapato como se ele
fosse trazer a paz mundial.
— Não se fala o preço de um presente e nem como fez pra comprar,
pirralha.
Oito.
Oito meses.
Isso sem contar o dinheiro que ganhei do prefeito no último verão para
fazer as fotos de um evento que ele ofereceu. Eu não tenho muito o que
gastar aqui em Cape May, então a mesada que meu pai me dá, eu guardo
para emergências. Ou para saciar o gosto caríssimo da minha irmã.
— Qual o seu, Angelina? — Donna faz menção de pegar o embrulho e
Angelina fura a mão dela com o garfo. — Ai, merda!
— Não mexa nas minhas coisas, sua enxerida.
— Eu só tô curiosa. — Don faz cara de emburrada, mas logo se distrai
calçando seu mais novo sapato.
— Donna, essa coisa tem um salto enorme, vai contra as regras de
vestimenta daqui — aviso mesmo sabendo que vai ser inútil.
— Você é monitor por acaso? — debocha.
— Não, mas um pode passar a qualquer momento e você pode ir para a
diretoria na porra do primeiro dia de aula.
— É bom que a diretora já se familiariza com a minha cara.
Céus, pobre mulher. Se eu fosse ela, me aposentava.
Volto minha atenção para a garota loira ao meu lado. Angelina observa o
dela com atenção, embrulhado em um saquinho de tecido, diferente do
papel que embrulhei para Donna. O tecido não é tão bonito, mas eu sei que
ela não gosta da sensação de rasgar esses papéis, então foi a alternativa que
encontrei.
— Não vai abrir? — pergunto ansioso. Definitivamente foi muito mais
barato do que o presente de Donna, mas elas têm gostos diferentes demais,
então é autoexplicativo. Minha irmã é cara e Angelina é difícil de agradar.
Eu estou na merda nas duas ocasiões. Todo natal, aniversário, ou data
comemorativa que exija um presente, sinto que perco cabelo. Eu confiro
todos os dias minhas entradas, não faço ideia se meu pai biológico sofria de
calvície.
É uma das muitas inúmeras coisas que eles deveriam informar para nós
— penso ironicamente.
— Não. — Angelina nega com a cabeça, comendo uma mini cenoura. —
Vou abrir quando sair daqui.
— Por quê? — Donna se irrita.
— Porque eu quero ter calma e tempo para aproveitar o que quer que
seja — Angelina suspira para a insistência da amiga.
— E se você não gostar? — minha irmã me deixa ainda mais ansioso.
Valeu, pirralha.
— Aí eu vou ter tempo de explicar ao seu irmão o porquê de não ter
gostado. Seria falta de educação fazer isso na frente de todo mundo. — Dá
de ombros.
Oh, merda.
Não vou conseguir prestar atenção nas próximas aulas até saber se essa
garota gostou. Estou com muita vontade de pegar o presente de volta e
pensar em algo melhor.
Que porra, Francis! É claro que ela merecia algo melhor.
— Por que eu não ganhei presente? — Brody atinge a parte de trás da
minha cabeça com um tapa, se sentando do lado de Donna. Ele estala um
beijo na bochecha dela e cumprimenta Angel com um aceno. Ele vive lá em
casa, então sabe a dinâmica de não encostar nela a menos que ela deixe. E
ela nunca deixou.
Não vou fingir que acho isso ruim. Ele que mantenha as mãos
recolhidas.
— Por que eu te daria um presente? — debocho.
— Porque sou seu melhor amigo?
— Exato, o presente já sou eu. — Ergo a gola da camiseta.
Brody ergue o dedo do meio e Angelina me chama de metido.
Eu não sou metido, longe disso… meu ego é que às vezes fica alto
mesmo com a autoestima baixa.
 

 
— Tudo pronto? — sussurro para Brody, que segura um saco de farinha
assim como eu. Pedi que ele me ajudasse a jogar em cima de Donna, porque
não consigo usar as duas mãos ao mesmo tempo em completa sincronia, a
não ser que eu esteja dentro da piscina. Eu ia acabar acertando outra pessoa,
que ficaria puta da vida comigo.
— Elas estão saindo da sala. — Ele sorri como o diabo no dia das
bruxas.
Todos os veteranos estão. Não somos os únicos esperando do lado de
fora da sala, prontos para sujar até a alma dos calouros. A diretora sequer
destranca sua sala hoje, ela sabe que não pode controlar o espírito do trote;
então apenas finge não ver todas as regras que a gente quebra.
E não são poucas.
— No três — ele me instrui, já que sua posição possibilita que veja o
exato momento que as duas vão sair da sala. Abro o saco de farinha,
tossindo quando um pouco sobe para o meu nariz.
— Um — Brody conta. — Dois… — Ergo o braço com a farinha em
mãos. — Três! — ele grita no exato momento que elas abrem a porta da
sala e passam para fora. Nós viramos os sacos de farinha de uma só vez,
abrindo a boca para já cair na gargalhada.
A gente só não contava que Donna ergueria um guarda-chuva no mesmo
instante, fazendo a farinha ricochetear contra nossos rostos. Se tacar ovo,
manteiga e açúcar, viro um bolo.
Brody e eu saímos tossindo como dois fumantes de longa data, com pó
branco voando até do nosso ouvido. A risada de Donna é histérica e eu
penso em tirar os sapatos do pé dela e jogar no lixo.
— Filha da puta! — Brody encara sua camisa preta arruinada. Ele só não
é tão sistemático com as roupas quanto Donna, mas chega perto o bastante
pra eu saber que vai surtar.
Minha irmã continua rindo e fecha o guarda-chuva, que eu não sei de
onde diabos ela tirou. Não a vi com isso em momento nenhum. Sacudo a
cabeça como um Golden Retriever depois de sair da piscina, e voa pó
branco em todo mundo.
Algumas garotas saem de perto de mim, bravas para um cacete.
— Achou mesmo que não te vi comprando farinha? — Donna limpa
meu ombro inutilmente. Eu vou precisar de um banho e minhas roupas de
uma lavagem dupla.
A encaro enfezado, me perguntando por que meu pai resolveu ter outro
filho. Angelina chega perto de mim, tirando um paninho de dentro da bolsa
e limpa meus olhos, minhas narinas e boca. Ela sorri como um anjo e minha
raiva se derrete tão rápido como a neve com a chegada da primavera.
— Você é a única que me trata bem. — Fecho os olhos e faço um
biquinho para ela me beijar, mas o que recebo em troca é mais um punhado
de farinha na cara.
Mas que porra…
Abro os olhos e vejo o sorriso malvado dela, com as mãos sujas de
farinha.
— Por que me limpou se ia jogar mais?
— Por que eu queria mais espaço pra sujar — ela sopra meu rosto e sai
rindo com a minha irmã pelos corredores, fugindo dos ovos que os outros
jogam entre si.
Brody bate nos meus ombros.
— Você tá fodido, cara. Essa garota só tem cara de anjo, mas não tem
jeito de um.
Suspiro, vendo tudo branco pelo pó que se aloja nos meus cílios.
— E você acha que eu não sei? — choramingo.
 

 
Coloco as mãos no joelho, completamente ofegante, ainda faltando cinco
degraus para chegar ao topo do maldito farol. Não bastasse a farinha que
Angelina jogou, ela fez questão de virmos para cá para abrir seu presente.
Às vezes eu acho que ela me odeia.
— Você é um atleta ou não? — Angelina caçoa sem nem ao menos
respirar mais fundo, já no topo da escada. Essa mulher é de ferro?
— Eu não tenho o costume de subir escadas com mais de três degraus,
meu anjo.
— Pois devia. Meu recorde foi subir e descer o farol três vezes seguidas.
— Por que diabos você subiu isso mais de uma vez? — arquejo,
colocando o pulmão para fora. Me jogo no chão tão logo chego no topo.
— É bom para treinar. Minhas pernas estão bem fortes, olha.
Ela pega minha mão e me faz apertar suas coxas grossas e torneadas. Ok,
ela pode continuar com seu hobby esquisito, porque tem dado super certo.
— Tá treinando mais alguma parte pra eu conferir? — provoco e ela me
dá um chute na lateral da bunda, correndo de mim. — Eu estava brincando,
amor. Volta aqui!
Corro atrás dela envolta do farol e a pego no meio do caminho.
— Vou te abraçar — sussurro em seu ouvido e a enlaço por trás, girando-
a até escutar sua gargalhada. Fecho os olhos para que nada atrapalhe essa
música para os meus ouvidos. O som da risada dela sempre foi meu favorito
no mundo. É fofo, engraçado e fodidamente sexy.
Devolvo seus pés ao chão e Angelina vira de frente para mim, bicando
meus lábios.
— Você ainda tá com gosto de farinha. — Limpa meu lábio com o
polegar.
— Amor, eu devo tá com farinha até na cueca.
Angelina ri travessa e me puxa para sentarmos na beirada do farol, com
as pernas penduradas para baixo, chutando o vento. Ela pega o embrulho
dentro da bolsa que colocou no chão e o abre puxando o fitilho branco.
Esfrego as mãos ansioso.
Suas mãos são ágeis em desfazer o laço com delicadeza e puxar para
fora o livro de capa dura. Ergo meu olhar para seu rosto, ao invés de prestar
atenção em suas mãos. Seus olhos sempre me contam mais histórias e com
certeza me passam mais clareza do que suas palavras… ou a falta delas.
Angelina sorri com os lábios comprimidos e franze o cenho, parecendo
achar graça.
— Não gostou? — Uma gota de suor acumula na minha testa.
— The Secret Garden… — ela murmura o nome do livro, o girando nas
mãos com uma expressão contemplativa.
— Você tá me matando aqui. É tão ruim assim? Eu posso trocar se
quiser. — Tento pegar o livro, mas ela bate na minha mão, abraçando o
exemplar.
— Não encosta no meu livro!
— Então você gostou? — ela me deixa confuso.
— É um livro. — Dá de ombros. — É claro que gostei.
— Então por que ficou pensativa?
— Veja só — Angelina estende o exemplar na minha frente e passa a
mão pelo título gravado em alto-relevo, acariciando a palavra “Garden”. —
Eu amo essa palavra… “Garden”. É minha palavra favorita.
Arqueio a sobrancelha.
— Mesmo? Eu nem sabia que existiam palavras preferidas. Nunca
pensei nisso.
— Eu penso. — Dá uma risadinha fofa. — Sempre existem coisas
preferidas, palavras incluídas. Gosto do som do ar que escapa da boca na
primeira sílaba, só para então ser contida na segunda, em uma pronúncia
que perdura sem final. Parece que o som da última letra permanece no ar
mesmo depois que sua boca se fecha.
Ela sorri, erguendo o rosto para observar o mar se quebrando diante de
nós. Queria que Angelina um dia pudesse conseguir entrar nele de novo,
mas sei que isso não vai acontecer. No entanto, ela ainda o admira de longe,
maravilhada com a espuma branca que se forma na areia. Angelina percebe
o mundo muito mais que eu. Ela vê significado por trás das coisas mais
banais, como a pronúncia de uma palavra.
Isso foi algo que me fez querer ficar perto dela desde criança. Se eu
enxergo o mundo com um pouco mais de beleza e esperança, é por sua
causa. Se Angelina é capaz de admirar a beleza até mesmo de algo que a
aflige medo, então talvez ela possa ver beleza em alguém incompleto como
eu.
— Acho que Garden é minha palavra favorita agora também. — Jogo
meu ombro contra o seu.
— Ache sua própria palavra preferida, ladrãozinho.
Rio alto, abraçando a lateral do seu corpo, enquanto ela começa a entoar
a palavra que é levada pelo vento.
Gar…
Den…
 
 

 
 
São Francisco, dias atuais…
Platão disse, em um de seus muitos momentos de reflexão, que podemos
facilmente perdoar uma criança por ter medo do escuro, porque a real
tragédia é quando o homem tem medo da luz.
Eu fui uma dessas tragédias. Transfigurada de temor pela luz,
unicamente porque não a conhecia, nunca tinha estado sob seus fleches e
sua claridade era nova em meio à escuridão que eu estava me acostumando
a viver.
Tive medo do que mais quis. E ao que parece, não apenas eu.
Poderia esperar por todas as reações do mundo da parte do Francis ao
querer ficar com o bebê. Raiva, consentimento, negação, conformismo…,
mas eu nunca pensei que o veria se ajoelhar na minha frente e me agarrar
com tanta gratidão, como se não existisse ninguém a quem ele
reverenciasse mais do que a mim. Gratidão e reverência. É isso que vejo do
homem que não me soltou desde que gritei para quem quisesse ouvir que o
bebê era nosso.
Nosso filho.
Meu coração ameaça quebrar a caixa torácica de um sentimento que
nunca senti antes. Não é amor. Não pode ser. Amor é algo que me parece
uma faculdade humana, algo que nosso cérebro reconhece ao sermos
invadidos por serotonina. Não, o que sinto não é amor. O que estou sentindo
beira o irracional, o animalesco, puramente instintivo.
Francis e eu saímos da agência sem maiores explicações além do
cancelamento do processo de entrevistas e fomos andando para Jefferson
Park, uma área verde próxima de onde estávamos. Francis não disse nada,
ele não conseguiu pelo choro ininterrupto. Suas lágrimas molham meu
suéter e mesmo que seu corpo esteja trazendo calor demais, não tenho
coragem de pedir para que se afaste. O único momento que tirou suas mãos
de mim foi para estender seu casaco sobre a grama para que nos
sentássemos. Agora, com as costas apoiadas contra seu peito e o queixo
dele sobre meu ombro, escuto o ressoar baixinho do seu choro e sinto a
carícia circular na minha barriga.
É assustador. Mas também estou aliviada. É confuso.
Estou em movimento, mesmo parada. A mudança se tornou minha única
constância. Há de chegar o dia em que eu me incomode com a total
calmaria; talvez eu já não saiba viver sem uma tempestade ameaçando
irromper meu céu.
Estou aprendendo a velejar nas águas revoltas. E quando as mãos
cansam e os braços não tem mais forças para controlar o barco contra as
correntezas, o melhor a se fazer é soltar o leme e deixá-lo girar sem controle
para a direção que o destino determinar. Eu percebi quase tarde demais, que
é inútil lutar contra o destino. Ele é um oponente forte, certeiro e insistente.
Eu soltei meu leme. Soltei e agora observo aliviada meu barco se rendendo
às correntezas, indo por um caminho contrário a todo o trajeto que planejei
para a minha viagem chamada vida.
No final, é melhor que estejamos perdidos no caminho certo, do que
coordenados no caminho errado.
De tempos em tempos, Francis entoa um agradecimento baixinho,
enquanto seus braços me embalam. Não é como se ele precisasse que eu
escutasse e sim porque ele precisa dizer.
Reúno saliva na boca extremamente seca para falar.
— Você queria o bebê.
Não é uma pergunta. Mas ele acena com o queixo encostado em mim,
ainda assim.
— Desde quando?
Francis suspira, estreitando os braços à minha volta.
— Eu não sei quando determinei na minha mente que o queria, mas
desde que vi o ultrassom e escutei o coraçãozinho, não pude controlar os
sentimentos que me invadiram. Acho que o quis naquele mesmo dia. —
Suas mãos espalmam minha barriga e as cubro com as minhas. — Eu nunca
vou conseguir me esquecer daquele som e daquela imagem, Angel… ele
estava chupando dedo e parecia tão frágil, mas ao mesmo tempo tão, tão
forte… mais forte do que eu fui.
Assinto, deixando minhas próprias lágrimas rolarem. Meu peito se
contorce de culpa.
— Desculpa — murmuro quase inaudível.
— Pelo quê?
— Por não ter compartilhado aquele momento com você… acha que
nosso bebê pode ter raiva de mim por isso?
— Angelina, não ouse pensar isso. — Ele beija meu pescoço, mantendo
o rosto entre o vão, seu nariz percorrendo minha pele em um carinho suave.
— Como alguém que já tentou ter raiva de você com todas as forças, posso
te garantir que não é algo nada fácil. Não dá para odiar você. E nosso filho
só tem motivos para amar a mãe dele, porque ela é foda pra caralho.
Balanço a cabeça, apertando tanto seus braços contra mim, que minhas
mãos ficarão marcadas na pele branca. Como é bom ouvir ele falar assim.
Me chamar assim. Me faz confiar em mim mesma.
— Você foi muito mais forte que eu — Francis continua. — Tomou
atitude enquanto me mantive inerte. Pode não ter visto o primeiro ultrassom
ou não ter escutado seu coração ainda, mas protegia sua barriga antes de si
mesma. Mesmo sem ver ou ouvir, você amou. O que mais é o amor, senão a
fé no que não se pode tocar ou ver?
— Eu queria ter tido mais coragem. Mas eu tinha medo de ser como ela
— admito meu maior medo. — Como minha mãe. Por isso, mesmo quando
eu percebi que falar da adoção rasgava algo dentro de mim, silenciei esse
sentimento, porque eu não podia arriscar ser como ela. Não podia olhar o
passado e ver que transmiti para a geração futura, os traumas que eu tive
que lidar.
— Escuta… — Francis segura meu queixo e me faz girar o pescoço para
vê-lo parcialmente. Ofego com a visão de seus olhos marejados. Francis
fica lindo quando chora. E mesmo assim, não quero que ele derrame mais
lágrima alguma. — Você nunca será a Savannah. Já foi diferente dela desde
que descobriu a gravidez. Não ficou exultante com ela, mas ainda pensou
no bebê. Você enfrentou os desafios de mudar sua rotina, seus treinos, me
permitiu no seu quarto quase toda noite para que eu acalmasse o bebê,
enfrentou sua mãe, o julgamento da faculdade, sentiu cada enjoo, cada dor,
cada invasão ao seu corpo, sem nunca reclamar… ou pelo menos não muito
— Ele ri e bica meus lábios. Novamente sinto o gesto como uma
reverência. Francis me faz sentir… grande. Poderosa. — E naquela sala,
meu amor, não havia ninguém tão corajosa como você. Era como ver uma
leoa proteger seu filhote, você estava prestes a atacar qualquer um que
ousasse ficar no seu caminho… por nosso filho. Savannah nunca rugiu por
você, Angelina. E você rugiu pelo nosso Brotinho agitado. Eu me orgulho
de você. Da mãe que dei ao meu filho.
Uma lágrima faz um caminho quente na minha pele.
— Diz de novo — suplico, querendo ouvir para sempre essa palavra.
Fiquei com medo dela por meses, mas desde que a ouvi ser dita pelo meu
avô, nada me pareceu mais certo.
— Mãe do meu filho — ele sussurra e beija meu ombro. — Mãe do
nosso bebê — outro beijo, mas dessa vez mais íntimo. Etéreo. — Amor da
minha vida.
Viro de frente, colocando minhas pernas uma de cada lado de seu
quadril, nossas testas quase se encontrando e minha barriga entre nós dois.
Francis recolhe uma mecha do meu cabelo que desprendeu do rabo de
cavalo e a coloca atrás da minha orelha. As lágrimas ainda não pararam de
derramar de seus olhos, como se houvesse as acumulado demais para
simplesmente interromper o fluxo.
— A Blue estava certa — digo com culpa. Ela me alertou, mais de uma
vez, que ele não estava bem. Mas eu queria acreditar que estava. Eu
precisava acreditar que ele estava bem, porque saber que minha escolha era
a razão para Francis sofrer, me mataria mais do que já estava fazendo.
— Sobre o quê?
— Sobre você não estar bem com a adoção.
— Ela te falou isso? — Sua boca retorce em desaprovação.
— Não exatamente. — Desvio o olhar das íris azuladas. — Ela ficou
surpresa quando eu disse que tínhamos optado pela adoção. E hoje antes de
sairmos, ela também me disse que nunca era tarde demais para mudar de
ideia… eu fiquei brava no começo por ela insinuar que te conhecia mais do
que eu, mas ela estava certa. — Bufo uma risada amarga. — E no fundo eu
sabia que estava, só não queria que fosse verdade. Eu queria tanto estar
certa sobre minha decisão, que o fato de você ser contra me apavorava.
— Ei, coisa linda. — Seus dedos trazem meu rosto de volta para
encontrar seu olhar. Eu não vejo raiva neles. Mas ela deveria estar ali. Fui
egoísta, eu sei disso. — Você não pode se culpar pelo meu sofrimento; não
quando eu não abro meus sentimentos com você. Desde o início eu
concordei e também achava que era a coisa certa a se fazer, eu só não queria
que fosse. Eu queria que quem eu sou, fosse o bastante para ficarmos com
nosso bebê. — Ele une nossas testas, fazendo um carinho com as pontas dos
dedos nas minhas costas. — Eu deixo você se sentir culpada por me fazer
sofrer quando souber que seus gestos têm essa consequência. Mas não vou
te deixar se sentir culpada por coisas que eu escondi deliberadamente de
você. Eu sofri calado e essa decisão foi minha. As consequências dela
também.
Aperto as pálpebras, negando com a cabeça.
— Eu nunca precisei te dizer que estava sofrendo para você notar.
— E mesmo percebendo, eu te fiz sofrer, Angelina. — O escuto respirar
fundo. — Se isso te deixar melhor, estamos quites. O que acha?
Acabo soltando uma risada.
— Tudo bem, estamos quites. — Abro os olhos, afastando nossos rostos.
— Mas antes preciso que me faça uma promessa.
Um sorriso brincalhão dança nos lábios macios e banhados pelas
lágrimas.
— Eu vou ter que começar a anotar, estou perdendo o controle das que
fiz.
Gargalho, batendo em seu peito.
— Babaca! Tô falando sério.
— Então manda.
— Me prometa que não vai mais esconder seus sentimentos — digo
sério, tomando seu rosto nas mãos. — Eu não sou boa em perceber os
sinais, Francis. Mesmo com você, mesmo te conhecendo, a minha mente
acredita naquilo que quer acreditar, não é fácil ditar o que você sente,
quando diz e age de forma contrária. E eu não quero sentir que estou sendo
egoísta com você.
— Prometo. — Ele cruza os dedos e os beija, arrancando uma risada
minha. Francis respira fundo e fica sério antes de voltar a falar. — Eu não
queria que você pensasse que eu era egoísta em querer o bebê, quando
claramente outra pessoa seria um melhor pai para ele. Por isso não falei
nada sobre não estar confortável com a adoção — me confidencia.
Cubro sua boca com a mão, com um pouco mais de força do que devia.
O quase tapa estala na pele dele.
— Nunca mais diga essa besteira. — É a minha vez de brigar com os
pensamentos negativos que ele tem sobre si. Se Francis se visse como eu o
vejo, e eu me visse como ele me vê, seríamos pessoas muito mais felizes.
Mas é muito mais fácil ver qualidade nos outros do que em nós mesmos.
Assim como é muito mais fácil perdoar os erros dos que estão do nosso
lado, do que os que cometemos. Eu passei tempo demais achando que não
tinha perdoado o Francis, e agora não consigo me perdoar por ter perdido
tempo. — Ninguém, me escute bem, ninguém poderia ser um pai melhor
para o nosso filho. — Beijo a lágrima que escorre no rosto dele, os poucos
pelinhos da barba recém-feita arranhando minha boca. — Você abdicou de
parte dos treinos e começou a trabalhar. Pediu ajuda ao cara que detestava
só para que pudesse estar pronto para ajudar ao seu filho e a mim. Você
doou sua casa, seu quarto e seu tempo a nós. Você passou noites vendo
documentários, lendo livros e estudos sobre gravidez, só para que pudesse
saber tudo quando fosse nas minhas consultas… Francis, se há alguém que
eu pudesse escolher para ser o pai do meu filho, esse alguém seria você. Em
todas as vidas. Seria você.
Vou beijando cada gotinha salgada que escapa dos olhos avermelhados.
— A dúvida nunca foi se você seria um bom pai. No começo, eu achei
que nós dois seríamos péssimos e desastrados, mas com o passar do tempo,
eu sabia…, eu tive a certeza, de que você seria o melhor. — Umedeço os
lábios, suspirando. — Mas eu tinha dúvidas e ainda as tenho, se eu serei
uma boa mãe. Eu não tenho o melhor exemplo disso. E tenho pavor só de
imaginar que eu posso cometer os mesmos erros que Savannah cometeu
comigo. Então acredite, nunca foi uma dúvida sobre você. Eu também
tenho orgulho do pai que dei ao meu filho.
Francis não diz nada, ele apenas captura meus lábios nos seus, em um
beijo salgado, com gosto de lágrimas, mas acima de tudo, com gosto de
sinceridade. Com gosto de esperança. Dura menos do que eu gostaria.
— Eu… — Francis quebra o silêncio, limpando a garganta. Passo os
dedos em suas costas, brincando com os músculos tensos e isso parece dar a
ele mais confiança para falar. — Eu tinha receio quanto a adoção, por mais
um motivo… não por achar que escolheríamos alguém ruim, mas porque
até hoje… até hoje eu não entendo por que fui abandonado. Eu não sei por
que minha mãe me deixou e isso me corrói todos os dias. Eu tinha medo
que nosso filho sentisse o mesmo.
— Continue… — incentivo.
— Pensei em escrever uma carta e entregar aos pais adotivos. Pensei em
explicar o porquê de tomarmos aquela decisão. Porque sabe… não é a dor
do abandono que machuca. É a dor de não saber a razão.
Pisco para afastar a ardência em meus olhos e pego uma mão do Francis,
levando até minha barriga. Espero que isso dê coragem a ele. Ao menos dá
para mim.
— Eu passei a vida com medo de ser substituído e abandonado. E não
vou mentir, ainda tenho. A minha vida toda, não há um momento que eu
não tenha me sentido insuficiente, incompleto, como se faltasse algo em
mim que valesse a pena para as pessoas me quererem por perto. — Francis
faz uma pausa para recompor a voz que falhava. — Mas enquanto isso
afetava apenas a mim, era suportável lidar, Angel. Quando vi que o que
faltava em mim, me impedia de ficar com o meu filho, isso me destruiu.
A essa altura, minhas lágrimas escorrem pela camiseta dele livremente.
Desde que me lembro, tenho dificuldade em me colocar no lugar das outras
pessoas. Não porque não me importo. Só é difícil tentar entender ou sentir o
que não está dentro de mim. Entender o desconhecido é uma tarefa que leva
minha mente à exaustão. Eu não consegui me colocar no lugar do Francis
quando desconfiou de mim, porque eu jamais desconfiaria dele. Entender o
que nunca senti é como visitar um local desconhecido sem um mapa para
me guiar.
Além disso, quando tomo uma decisão, quando um sentimento me
invade, seja ele bom ou ruim, é quase impossível modificá-lo. Não consigo
transitar entre o oito e o oitenta. É céu ou inferno, nunca o limbo. Minha
psicóloga chama isso de rigidez cognitiva. É uma característica comum
dentro do espectro autista. Nunca havia me incomodado, até agora. Até
saber que prolonguei o sofrimento do Francis e o meu, simplesmente
porque não consigo virar a chavinha tão rápido assim. Simplesmente por ter
medo e dificuldade de mudar de ideia. De reverter o que meu cérebro
construiu com esmero.
O terceiro porquinho tinha razão. É difícil derrubar com um sopro aquilo
construído com tijolos e concreto. Não basta um pedido de desculpa para
desmantelar a mágoa e o medo que sinto. Mas Francis não foi um sopro.
Ele nunca foi. Assim como a tatuagem no meu braço, ele é uma onda. E
atravessou minhas barreiras e proteções como se não oferecessem qualquer
resistência.
— Nada mais vai te impedir de ficar com seu filho — desfaço nosso
abraço e me ponho de pé. Estendo a mão para Francis. — Assim como nada
mais vai te impedir de ficar comigo. Nem mesmo eu.
Eu o perdoei. Mas não é só isso. Eu o quero de volta. E que se dane todo
o resto. O que é mais um pingo de chuva dentro da tempestade?
O sorriso que Francis me retribui me deixa tonta e extasiada tempo o
bastante para que ele se aproveite da minha letargia e me pegue em seu
colo, gritando para as pessoas no parque.
— Eu vou ser pai! — ele berra, nos girando sobre o gramado. Me agarro
ao seu pescoço, rindo pelo susto e pela adrenalina correndo solta. — Vou ter
um filho com a mulher que eu amo!
Escondo o rosto em seu pescoço quando as pessoas em volta começam a
nos aplaudir e gritar felicitações. Ele sabe como fazer um alarde, com toda
certeza.
— Eu te amo, Angelina Mary Eastwood!
— Para de gritar! — continuo rindo sem forças, e fico preocupada que
minha bexiga não aguente muito tempo. — Tá todo mundo olhando pra
gente.
— Então grita que me ama — Francis provoca, vasculhando meu
pescoço com a ponta gelada do nariz. — Grita e eu paro de gritar.
— Não. — Me encolho, fugindo das suas cócegas. — Você sabe que isso
é pouco e que não é o que sinto.
— Grita logo que me ama, mulher! — ele faz cócegas nas minhas
costelas e convulsiono em seu colo, me rendendo de uma vez.
— Eu te amo, Francis Thomas Hopkins! — grito e volto a me esconder,
sentindo as bochechas pegarem fogo.
É a primeira vez que digo com todas as letras que o amo. E ainda é
pouco.
— E eu amo vocês dois — ele sussurra dessa vez ao meu ouvido e
mesmo que o grito seja um gesto romântico, eu optaria por nossa intimidade
intrincada em todas as vezes.
Eu os amo. Amo os dois.
Nunca mais vou negar isso.
 

 
 
— Tem certeza que vai fazer isso? — Angie faz careta para o telefone na
minha mão. Principalmente para o nome que aparece na tela. Ela senta de
lado no banco do meu carro, com as pernas cruzadas uma à outra. É
impossível não rir da sua barriguinha quase como uma bola de basquete
encaixada exatamente no centro delas.
— Tenho — digo com convicção. Passou da hora de falar com Leonor.
Não sei porque escolhi esse momento, quando eu apenas deveria estar
levando minha garota para casa e aliviando os corações dos nossos amigos,
mas cansei de me esconder da minha mãe. — Se eu quero ser um pai
decente, tenho que aprender a enfrentar meus próprios demônios. Se eu não
fizer isso, como vou poder ensinar a essa criança que ela não precisa ter
medo?
— Você tem razão. — Ela encara as próprias mãos, indecisa em me
tocar. Sorrio, oferecendo a minha. Minha garota sorri sem graça e a segura.
— Apoio é sempre bem-vindo — digo.
— Vou me lembrar disso.
Inspiro o máximo de ar que meus pulmões aguentam e faço a chamada.
Os dedos de Angelina brincam com os meus, distraindo-se e me fazendo
relaxar.
— Francis? — a voz de Leonor chega aos meus ouvidos e a coragem
que eu tinha se esvai quase por completo.
Eu não me surpreenderia se Leonor tivesse algum interruptor da minha
mente, onde ela liga e desliga o sentimento que quer, na hora que quer.
Aperto os dedos de Angelina e ela gesticula com a boca para que eu
coloque no viva-voz. Nego com a cabeça. De jeito nenhum vou deixar que
ela escute o que minha mãe tem a dizer.
— Leonor...
— Estou surpresa que tenha me ligado. Estou tentando falar com você
há meses. Não nos falamos desde o seu aniversário, tem noção do quanto
eu estava preocupada? — ela faz uma pausa e eu fico em silêncio. — Eu
tinha que ficar ligando para o seu pai quase todo dia pra ter notícias suas e
de Donna, sabe como é humilhante?
Mordo a língua para não dizer o que penso. Ela só ligou para o meu pai
quase todos os dias para tentar voltar, e não porque estava preocupada
comigo e com Donna. Se estivesse tão aflita, teria aparecido aqui. Ela sabe
onde nos encontrar.
— Não liguei para discutir o passado — corto seu drama pela raiz. —
Tenho algo para te comunicar.
— Não me diga que vai largar a medicina?
Solto uma lufada de ar e fecho os olhos, balançando a cabeça. Tudo que
ela tem para me perguntar depois de meses é isso?
— Não. Eu não larguei e nem vou largar a medicina.
— Menos um problema então.
Contenho minha risada. Não vá por esse caminho, mãe… o problema é
bem pior. Ao menos para você.
Procuro os olhos de Angelina, mas ela tem a cabeça baixa, ainda
brincando com meus dedos. Notando minha atenção, ergue o rosto para
mim. Dou palminhas na minha perna, a chamando com o dedo em seguida.
Angie olha pela janela do carro e depois de conferir se alguém veria, ela se
senta no meu colo. A ajudo com a mão livre, já que se movimentar tem
ficado cada vez mais difícil. Afasto todo o banco para trás, a deixando com
as costas no volante e sua barriga entre nós. Angelina une sua testa com a
minha, um gesto que costuma ser meu quando quero mostrar que estou ao
seu lado. Talvez ela queira me dizer o mesmo. Cubro sua barriga com a
mão, me lembrando do motivo pelo qual essa ligação precisa ser feita.
— O que tenho para te dizer é algo da minha vida pessoal e não
profissional. Eu já deveria ter ligado há um tempo, mas de qualquer forma,
vou dizer agora.
— Você e Blue terminaram?
Seguro a risada e Angelina ergue as sobrancelhas, curiosa. Suspiro e
coloco no viva-voz. Só espero que Leonor não fale merda.
— Blue e eu nunca estivemos juntos, mãe.
Posso dizer isso agora, Donna fodeu com nosso namoro falso em três
línguas diferentes naquele jantar com os pais da Blue. Não é como se desse
para piorar mais.
— Como é? — Ela ri, não me levando a sério.
— Fique tranquila, você continua tendo a Blue como nora, só não é da
minha parte.
Angelina arregala os olhos. Dou de ombros. É melhor que a merda seja
jogada no ventilador de uma vez.
— O que está querendo dizer com isso? Que mentiu sobre namorar
aquela menina tão boa?
— Você vai continuar achando ela tão boa quando descobrir que Blue e
Donna estão juntas?
— J-Juntas como? — Leonor gagueja.
Angie revira os olhos e mordo a boca para não rir.
— Juntas como eu e Angelina, mãe.
Espero pelo grito, mas recebo silêncio. Não sou ingênuo para achar que
isso é um bom sinal.
— Ainda está aí? — averiguo.
— Era isso que queria me contar? Que voltou com ela? Você ao menos
sabe que ela está grávida?!
O corpo de Angelina balança no meu colo pela risada que dá. Minha
garota malvada, adora um mal feito. Deixo um peteleco em seu nariz como
advertência.
— Eu sei que ela tá grávida, mãe. É meio difícil não notar, quando
parece que ela engoliu uma melancia.
— Ei! — Angie estapeia minha cabeça.
Seguro seus braços, cobrindo sua boca com um selinho.
— Uma melancia linda, fique tranquila — sussurro antes de voltar a
prestar atenção na ligação.
— E mesmo assim vai ficar com ela? — a incredulidade na voz de
Leonor é cômica. — Vai criar um filho que não é seu?
— Sim, eu vou ficar com ela. E quem disse que o filho não é meu?
— Não diga isso, Francis — Leonor ofega, como se eu acabasse de lhe
dar uma punhalada pelas costas.
— Já disse. Estou com Angelina e o filho que ela está esperando é meu.
— Afago a barriga dela com orgulho explodindo pelas minhas entranhas. —
O bebê está saudável, a propósito. Faremos um ultrassom daqui a alguns
dias, posso te mandar foto se quiser.
Não deixo de notar a pontinha de esperança que fisga meu coração.
— Eu não quero saber. Não quero saber de foto, se está saudável,
quando vai nascer, não quero saber nada dessa criança. Ele nunca será
meu neto! Ouviu bem? Nunca será! — ela grunhe com raiva o bastante para
que eu tire o celular do viva-voz e o coloque no ouvido. Angelina não
precisa ouvir isso.
— Ele não precisa, Leonor. — Cerro meu maxilar e Angelina deita a
cabeça em meu ombro. A aconchego o mais perto de mim que sua barriga
permite, apertando-a em meus braços. — Essa criança jamais precisará que
você a ame. Meu bebê terá tanto amor, de tantas pessoas à volta dele, que
sequer vai lembrar que você existe. — Rio amargamente. — Eu sei que não
é tão difícil assim.
— Filho, escuta…
— Francis! — a interrompo. — Se meu filho não é seu neto, então
claramente também não sou seu filho. Ninguém que não o ame ficará na
minha vida. Porque agora, Leonor, o bebê é a pessoa mais importante no
meu mundo. — Engulo o nó da esperança falida. Eu ainda esperava que ela
pudesse se dobrar por uma criança. Mas seu ego não permite. Não quando a
mãe do meu filho, é a filha da mulher que ela odeia. — Espero que seja
feliz. De verdade. Espero que um dia encontre amor pelas pessoas à sua
volta, porque no fim, tudo que nos resta são aqueles que amamos e que nos
amam de volta. Você está sozinha. Tente não ficar até que precise de fato de
pessoas ao seu lado.
Desligo a ligação e bloqueio seu número, jogando o aparelho de
qualquer jeito no banco do passageiro. Enterro o rosto na curva do pescoço
de Angelina e inspiro seu cheiro de lírios, me sentindo no paraíso quando o
bebê chuta e consigo sentir em meu abdômen. Nós rimos e não nos
desgrudamos. Nós três.
Porra, finalmente nós três.
 

 
Entro no serviço mais atrasado do que havia avisado meu chefe que o
faria. Tiro o casaco e penduro no armário dos funcionários, colocando o
avental que Blue me deu de presente. Segundo ela, mancha menos. Espero
que seja verdade.
Vou direto para a cozinha para pegar os pedidos das mesas que Jayden
estava cobrindo para mim. Ele estanca o passo quando me vê, arregalando
os olhos. Jay coça a nuca e olha para o chão, então para o pedido em suas
mãos e para mim novamente.
Arqueio a sobrancelha.
— Tem alguma coisa em mim? — procuro por alguma sujeira que não
tenha visto.
— Não cara… — Ele chega perto, tão perto que dou um passo para trás.
— Que que foi? — afino a voz.
— Me fala como foi — Jayden chega mais perto e eu estou começando a
achar que ele quer me beijar.
— Como foi o quê, caralho? — Dou de ombros para o cozinheiro que
olha para a gente de boca arreganhada. — Jayden você tá respirando o
mesmo ar que eu!
— Como foi na agência de adoção, merda? — ele se irrita, dando um
soco no meu ombro.
— Aaaah… — Suspiro aliviado, dando uma risada ao final.
— E então?
Sorrio de orelha a orelha, segurando seu ombro.
— Angie e eu decidimos ficar com o bebê.
O ar escapa da boca dele. Não pensei o que esperar da reação do Jayden,
afinal gostamos da mesma mulher, mas com certeza eu não esperava o que
veio em seguida.
Jayden me abraça.
Sou pego completamente desprevenido, tanto que não retribuo de
imediato.
— Parabéns, cara… de verdade.
É impressão minha ou a voz dele está embargada?
Seguro o ombro de Jayden, o afastando para conferir. Os olhos grandes
de labrador abandonado estão avermelhados e úmidos, e sei que choraria se
não estivesse se controlando. O abraço de volta, sentindo eu mesmo
vontade de chorar.
Ah, como somos dois fracotes do caralho. Meu filho nem nasceu, mas já
me transformou num molenga sentimental.
— Obrigado. — Limpo a garganta. — Eu tô feliz pra caralho… eu não
queria a adoção, Jayden.
Ele bate nas minhas costas, não desfazendo o abraço. É constrangedor
pra porra, mas incrivelmente reconfortante. Que ele não saiba que pensei
isso, mas o cara é cheiroso. E quente.
Vou precisar levantar umas barras com peso extra depois dessa, se
quiser reafirmar minha masculinidade.
— Tava escrito na sua cara que você não queria a adoção. — Ele ri. —
Na verdade, tava na sua cara e na da Angelina, mas todos nós decidimos
deixar vocês dois perceberem isso sozinhos.
— Foi quase tarde demais.
— Mas não foi, isso que importa.
Ele se afasta finalmente e nós dois nos recompomos, fingindo que não
acabamos de dar um abraço longo. Meu Deus, se Ethan e Josh souberem,
vão me zoar até a décima encarnação.
— Só pra você saber, acho que Angelina e eu começamos a nos entender
também — conto de uma vez, porque acho que é justo. Ele jogou limpo
então também vou.
Jayden assente, jogando os ombros.
— Essa última parte eu dispenso, mas estou feliz demais pela primeira
notícia.
Acabo rindo, concordando. É mais do que posso esperar. Eu o entendo.
De verdade.
Jayden pega novamente seu pedido para entregar e sai em direção à porta
da cozinha. Antes de sair, ele vira o pescoço para trás.
— E Francis?
— Hum?
— Você vai ser um bom pai — diz e sai da cozinha, me deixando com
uma expressão surpresa no rosto.
— Espero que sim, Jayden — sussurro para mim mesmo.
 

 
Bato a porta do carro e Jayden entra no lado do passageiro depois do
expediente. Ele quis passar pra dar um abraço na Angelina e falar com o
Ethan sobre o treino de amanhã. De qualquer forma, já virou mais que
rotina a gente pegar carona um com o outro.
—Você vai participar do campeonato? — ele me pergunta quando a
rádio da faculdade começa a listar as datas dos jogos.
— Não. Participei da primeira fase, depois dos amistosos e consegui
uma classificação boa, mas não vou conseguir participar agora. Vou amanhã
conversar com o técnico que estou me retirando temporariamente.
Sinto o olhar de Jayden em mim.
— Vai largar a natação?
Rio da sua incredulidade.
— Angelina vai ter que largar o vôlei por um tempo, principalmente
agora que decidimos ficar com o bebê. — Jogo os ombros, virando à direita
para pegar a avenida principal. O caminho para casa é cheio de curva e
trânsito, sempre me deixa meio tenso. — Não acho justo que enquanto ela
fica em casa cuidando dele, eu vá treinar. Essa é a única parte da minha vida
que pode esperar, então vou abrir mão dela por enquanto.
Ele fica em silêncio até quase chegarmos em casa, mas quando viro na
esquina da minha rua, Jayden fala novamente.
— Eu estava enganado sobre você. 
— Como assim?
— Pensei que você era só um cara sortudo que recebia tudo dos pais e
vivia uma vida de luxo. Mas estava enganado e acho que te devo um pedido
de desculpa.
Abaixo a cabeça, um pouco sem graça.
— Eu sou privilegiado, Jayden. Não posso negar isso. Nunca precisei
trabalhar para me manter ou bancar meus estudos. Meu pai sempre arcou
com tudo e devo minha vida a ele. Mas eu nunca esbanjei dinheiro que não
me pertencia e sempre fiz de tudo para não gastar nada além do necessário e
tirar notas que valessem o esforço dele. — Coço a cabeça. — Entendo o
porquê pensou assim, afinal você estava tendo que se desdobrar em dois
empregos para manter sua irmã estudando e realmente não é justo que
alguns tenham muito e outros tenham pouco. Eu só espero que as pessoas
não me vejam como um playboy que só se aproveita do dinheiro dos pais.
Isso eu realmente nunca fui.
— Posso ver isso agora.
— Eu agradeço pelo que disse. E não precisa se desculpar. — Rio sem
graça. — Também não ia com a sua cara, sempre te achei meloso e carente
demais.
— Ah, cala a boca! — Ele gargalha, saindo do carro.
— Achei que a gente estava sendo sincero — provoco, o seguindo para
dentro de casa.
— Vamos voltar a mentir então.
— Com cert…
Estanco os passos na porta quando vejo a cena que acontece na minha
sala de estar. Blue está em pé entre umas quinze caixas de papelão
espalhadas pelo tapete, enquanto Angelina a encara enfezada e de braços
cruzados.
— Em minha defesa, eu tinha certeza que vocês iam ficar com o bebê.
— Ela sorri e me olha de lado, pedindo socorro. — Isso foi antes dos meus
pais cortarem meus cartões, agora não posso comprar nada pelos próximos
cinquenta anos, então serve para todos os aniversários.
— Caralho, você comprou tudo isso pra um bebê que ainda tá na
barriga? — Jayden assovia.
— Cala a boca, Jayden! — Ela o fuzila. — Se não vai ajudar, não
atrapalha.
— Desse jeito vai ser difícil concorrer para o posto de padrinho, os
adversários estão jogando muito alto — ele reclama comigo, mas é o Ethan
que o responde, saindo da cozinha com a cara inchada de choro e um prato
com frango grelhado e legumes, que ele entrega para Angelina.
— Sai fora que esse posto é meu. Eu mato e morro por ele — Ethan
empurra Jayden para o lado e me abraça, quase me sufocando no processo.
— Eu tô feliz pra caralho por você, irmão.
Ignoro a falta de ar e apenas retribuo seu abraço, porque se não fosse por
esse cara, eu provavelmente nem estaria vivo para ter um filho.
— Eu devo minha vida a você. Sabe que sempre vou ser grato.
— Se me fizer chorar na frente das garotas, eu vou quebrar suas pernas.
— Parece que você já chorou, sua cara tá toda inchada.
— Claro, seu merda! — Ethan bagunça meu cabelo. — Você vai ser pai,
porra. Vai ficar com seu bebê, que vai ser mimado pra caralho por todos
nós. Não tem como não chorar.
O aperto contra mim.
— Você vai ter que me ajudar a não fazer merda.
— Pode deixar que se for menino eu ensino a flertar e se for menina eu
ensino a não cair no flerte.
Uma almofada atinge a cabeça dele. Nos viramos e Blue o encara
possessa.
— Sem machismo aqui, Ethan Smith!
— Foi mal... — Ele ergue os braços, indo conferir se Angelina gostou da
comida.
A época de delivery acabou por aqui. Já peguei Ethan assistindo ao canal
culinário três vezes depois que cheguei do trabalho e quando questionei ele
disse que era porque a Angie não deveria comer porcarias pois não faria
bem ao bebê.
Olho para meu amigo, cuidando da minha garota e do meu filho; em
seguida para Blue que gastou rios de dinheiro comprando presentes mesmo
antes de decidirmos ficar com ele; e para Jayden que ofereceu seu apoio
mesmo que eu seja o impedimento para a garota que ele gosta, e tenho
certeza que sou sortudo pra caralho.
Deus deve gostar de mim, apesar de tudo.
 
 

 
 
— Você acha que ela está com raiva de mim? — pergunto para Blue
depois que todo mundo sai da sala. Ethan e Francis foram tomar banho e
Jayden voltou para casa porque estava parecendo o bagaço chupado de uma
laranja. Na verdade, ele e Francis estão.
— Eu queria entender mais a Donna, Angelina. — Ela diz pesarosa. —
Eu não faço ideia do que se passa naquela cabeça irritantemente bonita.
Contorço as mãos, sentindo o nervosismo se entranhar na minha mente.
Quando eu voltei do estágio na biblioteca, contei para elas e Ethan que
tínhamos decidido ficar com o bebê. Blue deu gritos que ainda estremecem
meus tímpanos e Ethan me abraçou de supetão, chorando como um bebê.
Donna apenas… subiu para o quarto e permanece lá até agora. Nem uma
palavra, nem uma indicação de que está feliz com a decisão.
Mesmo que ajudando e preocupada comigo, ela se afastou desde que
contei da gravidez. A gente contava tudo uma para a outra e agora eu nem
sei como está a relação dela com a Blue. Sinto falta da minha amiga, dos
nossos momentos que o assunto não era nem um pouco sério e consistia
apenas em palhaçadas e diversão.
— Vocês não estão bem? — indago para Blue.
— Angelina, eu nem sei o que “vocês” significa. — Faz aspas. — Eu
estou acostumada aos outros caírem aos meus pés, não a ir correndo atrás
do pé de alguém. E Donna tem me feito correr como uma maratonista.
Franzo o cenho.
— Eu deveria ter entendido?
Blue estala a língua, sem paciência.
— Não sei como conquistar alguém, droga! — Blue pega uma almofada
do sofá, jogando sobre o rosto. — Eu nunca precisei. As pessoas se
apaixonavam por mim espontaneamente. Seja por me acharem inalcançável
ou porque me achavam gostosa. Agora eu me sinto uma virgem de
cinquenta anos tentando descobrir como fazer uma mulher se apaixonar por
mim, quando ela claramente tem um coração de ferro.
Seguro a risada para a parte do “virgem de cinquenta anos”. As coisas
que escuto daquele quarto não condizem com virgens brincando de baralho.
— Donna enfrentou seus pais, vocês estão morando juntas, dormindo no
mesmo quarto, isso não quer dizer que ela está apaixonada por você?
Puxo a almofada de seu rosto, não deixando que ela se esconda.
— Significaria, se Donna ao mesmo encostasse em mim depois de
transar. É literalmente sexo e depois cada uma para o seu lado. Se eu a
abraço, ela se afasta e se eu peço que ela me abrace, então a briga começa.
— Blue suspira chateada, visivelmente incomodada com a situação. — Eu
achei que a gente tinha progredido depois daquela noite na igreja, mas na
manhã seguinte senti que demos cinco passos para trás.
— Donna nunca namorou, sabe… — tento achar uma explicação que
não seja falar mal da minha amiga e nem menosprezar os sentimentos de
Blue. Por que os seres humanos não podem ser mais fáceis de entender?
— Não foi assim na primeira vez… — sussurra com a cabeça baixa, suas
unhas arranhando sua pele. — Mesmo que tenha acontecido em um
banheiro, no pior lugar do mundo para mim, foi especial. Me senti especial,
ainda que fosse carnal. Eu sabia que ela não era apaixonada por mim, mas
houve carinho, um abraço depois… agora não. Parece que assim que Donna
tem um orgasmo, eu crio espinhos.
— Isso não faz sentido… Donna não faz o tipo carinhosa, mas também
não faz o tipo indiferente. Você já conversou com ela sobre isso?
— Claro que não, Angie — Blue ri ironicamente. — O que vou falar?
Ei, por que você não gosta de mim? Por que não se apaixona como eu já
estou apaixonada? — Nega com a cabeça. — Ainda me resta um pouco de
dignidade, meu apelido é megera e não capacho.
— Se serve de consolo, Donna também não está muito próxima de mim.
E olha que a conheço desde bebê.
— Donna ama você, é diferente. A mim, o máximo que ela sente é tesão.
Eu acho que perdeu a graça depois que deixei de ser um desafio e passei a
ser algo que ela alcança com a facilidade de um levantar de dedos.
— Ei! — Passo a mão na frente do seu rosto. — Essa não é a Blue Hale
que eu conheço. Acha mesmo que você deixou de ser um desafio? Acha
que perdeu a graça? — Rio de pura incredulidade. — Blue, você é uma das
pessoas mais complexas que eu já conheci. Ao mesmo tempo que é
misteriosa, é entregue. Ao mesmo tempo que parece não se importar com
nada além de você, também se joga na frente de um amigo para defendê-lo.
Se quer minha opinião, você é o tipo exato de Donna.
Um sorrisinho começa a aparecer nos lábios dela.
— Ok, você me animou. — Ela dá um tapinha na minha perna. — Agora
se posso retribuir seu conselho, acho que Donna não está com raiva de
você. Como falei, ela te ama.
— Eu sei que ama. Mas eu tenho sido péssima.
— Angelina — Blue estala a língua. — Você passou por um término
complicado, chegou a achar que estava com câncer, foi drogada, descobriu
uma gravidez, lidou com questões de adoção, e ainda continuou treinando,
estudando e estagiando na biblioteca… se você tivesse tempo para ser uma
ótima amiga, eu juro que daria na sua cara de pura irritação com a sua
perfeição.
Caio na risada, mesmo que essa frase demonstre como esse ano está
confuso. Logo as férias de verão vão chegar e com o período final da
gravidez, vai ser um alívio ter algum tempo de descanso.
— Eu acho que vou falar com ela. — Levanto do sofá. — Você se
importa de ficar aqui embaixo enquanto isso?
Blue gargalha.
— Está perguntando se eu me importo de você acalmar a fera antes de eu
subir? É piada, né?
Franzo o cenho.
— Não. É sério.
— Era sarcasmo.
— Ah...
Bufo uma risada, subindo de vez as escadas, disposta a saber se ainda
tenho uma amiga. Nós nunca ficamos assim em vinte anos, não é agora que
vamos começar.
— Entra! — Donna grita do lado de dentro quando bato na porta.
Giro a maçaneta com o coração martelando, esperando que ela não esteja
muito nervosa.
— Posso me sentar? — Aponto para a cama, sem de fato olhar para ela.
— Claro.
Sento no final da cama, brincando com meus dedos.
— Me desculpa.
— Me desculpa.
Dizemos ao mesmo tempo.
A encaro, sem entender.
— Pelo quê?
— Pelo quê?
Novamente, sincronizadas.
Comprimo os lábios. Acho que não é certo rir agora.
— Acho melhor uma de cada vez — Donna zomba.
— É… pode começar então — jogo a vez para ela.
— Não, vá em frente — que rebate de volta para mim.
Suspiro.
— Ok. — Batuco os dedos nas pernas, pensando em como começar. —
Eu estou pedindo desculpa por seja lá qual for o motivo que você está brava
comigo e por ter sido uma péssima amiga nos últimos tempos e
provavelmente nos últimos anos.
Fecho os olhos, torcendo para ela não me xingar. Eu sei que deveria estar
explicando mais, mas considerando que nos conhecemos desde bebês,
espero que leia nas entrelinhas.
O silêncio de Donna vai me matando de pouquinho em pouquinho e o
medo que sempre tive de perder sua amizade perfura meu coração como
micro agulhas. Desde que me lembro, ela foi a única coisa ou pessoa
inalterável e imutável na minha vida. Não importa o momento, sempre
estivemos lá uma pela outra. Não sei o que faria se isso mudasse um dia.
Donna é uma perda que eu não suportaria.
— Eu sei que fui relapsa com você, sei que deveria ter te perguntado
mais vezes como você estava, mas eu tenho a ideia burra de achar que
quando vocês precisarem de mim, vão me dizer. Eu realmente espero isso e
não deveria, então me desculpa. Também me desculpa se deixei seu irmão
em uma posição difícil e não me dei conta até poucas horas atrás. E me
desculpa por não estar dando mais apoio a você e Blue, porque estou tão
focada nos meus problemas, que não estou vendo os seus e…
— Angelina! — Donna cobre minha boca e abro os olhos assustada. —
Respira.
Inspiro.
Ela assente.
Expiro.
— Obrigada. — Ri, tirando a mão da minha boca. Espero que sua mão
esteja limpa, definitivamente existem muitas bactérias na nossa palma. —
Eu não estou com raiva de você.
— Não? — comprimo as sobrancelhas.
— Não.
— Por que não? Eu mereço.
— Por que eu achei que você pudesse sentir raiva de mim. Por isso estou
no quarto até agora e morrendo de vergonha de falar com você.
— Agora eu tô confusa. — Coço a cabeça. — Por que eu estaria com
raiva de você?
— Porque eu fugi quando você chegou em casa contando que vai ficar
com o bebê… — Os olhos dela umedecem. — O meu sobrinho, droga!
— Por que você subiu?
— Porque esse tempo todo, enquanto os outros demonstraram afeto com
o bebê, eu não fiz isso. Blue comprou mil coisas, Ethan te ajudava com os
vômitos, regulava sua alimentação, até vídeos de culinária ele anda vendo,
tudo para ajudar com o bebê. E eu… poxa, eu não queria nem encostar na
sua barriga, porque eu sabia que vocês colocariam esse bebê para adoção e
se eu amasse ele, um pedaço de mim ia embora, e eu nunca estive
acostumada a perder as coisas, Angie — ela funga, cobrindo o rosto com as
mãos. — Eu sou mimada, ok? Posso ter uma mãe merda, mas no resto, eu
sou mimada. Não gosto de perder, não sei como fazer isso e muito menos
perder algo que eu amo. Esse bebê… — Ela tira a mão do rosto e toca
minha barriga com tanto cuidado que minha garganta aperta. — É um
pedacinho das duas pessoas que eu mais amo no mundo… se eu amasse ele,
não deixaria vocês dois entregá-lo, e por isso eu me afastei. O pior é que
mesmo me afastando, eu me apeguei a essa coisinha.
Cubro sua mão com a minha, tentando acabar com a agonia que vejo no
seu rosto.
— Don… acredite, eu também fiz de tudo para fechar meu coração para
esse bebezinho, mas ele puxou muito ao pai nesse sentido. — Sorrio. —
Assim como o Francis, é difícil não amá-lo. Mesmo me deixando enjoada,
nervosa, chorosa e com a vida de cabeça pra baixo, ele roubou meu coração
e não quer devolver por pura pirraça. Não se culpe por ter tentado proteger
seu coração, porque eu fiz isso também. Só que se você me permite
transferir um conselho dado por vovó Angelina, é que se fecharmos o nosso
coração contra as dores, ele também se fecha para receber amor.
Isso não serve apenas para o bebê e sim para Blue. Donna entende sem
eu precisar falar.
— Aquela velha safada é muito sábia.
— É, ela é.
O vento entra refrescante pela janela aberta, soprando nosso cabelo.
Observo o lado de fora, tendo uma ideia.
— Don?
— Hum?
— Vamos para o telhado como nos velhos tempos?
Os olhos dela brilham como os de uma criança indo fazer besteira.
— Meu irmão vai matar a gente. Ou melhor, vai me matar por deixar
você fazer isso.
— Só se ele descobrir. — Jogo os ombros.
O sorriso travesso aparece no rosto dela e eu poderia chorar de alívio.
Essa é a amiga que eu conheço.
— A gente sai pela janela do Ethan? Eu não sei se essa parte do telhado
é plana pra gente conseguir ficar. — Don estica o pescoço para tentar ver.
— A do Ethan eu não sei, mas a do Francis é.
— Ele tá no quarto?
— No banho. — Esfrego as mãos de pura animação. — Se a gente for
rápida, consegue entrar no quarto, ir pro telhado e ele nem vai nos ver.
— Sabe que vamos levar o sermão do século, né?
— Vai ser como nos velhos tempos. — Abro a porta do quarto. — Ou
você tá com medo dele?
Minha amiga revira os olhos, bufando enquanto me arrasta para fora.
Nós colocamos o rosto primeiro para dentro do quarto, conferindo se
nenhum nadador está dando bobeira pelado por aí. Se estivesse, eu ia
mandar a Donna sair por cinco minutos. Eu realmente preciso transar. Céus,
estou falando sério. Esses hormônios estão me pondo louca.
— Tudo limpo — ela se esgueira pelo cômodo como naqueles filmes de
ninja e dá até uma cambalhota no chão para chegar até a janela. Eu vou pelo
modo tradicional, andando até a janela. Donna passa para o telhado
primeiro e me junto a ela em seguida. Essa parte do telhado quase não é
íngreme e é mais extensa do que do lado do quarto do Ethan.
A gente deita sobre os tijolinhos brancos e olhamos para o céu noturno,
coberto por estrelas e sem nenhuma nuvem.
Inspiro o ar profundamente e Don faz o mesmo ao meu lado, nossas
respirações sincronizadas.
— Eu estava com saudade dos nossos momentos — digo com
sinceridade. — Desde que nos mudamos para cá, nunca mais fomos apenas
nós duas.
— Sinto falta de você reclamando que a Serena deveria ter ficado com o
Nate — ela ri e concordo.
— E deveria mesmo — Dou de ombros.
— Eu sei, mas o amor deixa as pessoas burras.
— Você acha mesmo isso? — Viro o pescoço de lado para poder ver seu
rosto. Don continua encarando o céu inabalada.
— Acho. Veja só onde você e meu irmão se enfiaram. No lugar dos dois
eu já teria pirado, baby.
— Se me contassem tudo que nós passaríamos de dificuldade, talvez eu
tivesse optado por não estar ao lado dele — admito. — Mas se dentro dessa
narrativa, me contassem também tudo de bom que faríamos juntos, então eu
não pensaria duas vezes em passar por isso, Donna.
Ela se vira para mim.
— E isso não te assusta?
Rio baixinho.
— Muito. Mas vale a pena, sabe. — Umedeço os lábios. — A
tempestade dele é boa. Porque no fim, mesmo diante de tudo que já
aconteceu, eu sei que ninguém no mundo me amaria como ele me ama. —
Volto a olhar o céu. — A bagunça dele é melhor do que a calmaria de
qualquer outra pessoa.
— Nossa — ela ofega. — Você até me faz querer sentir isso.
— E você já não sente?
— Por quem?
Seguro o sorriso.
— Jura que preciso responder?
— Eu não amo a Blue — Donna entra na defensiva. — Gosto dela, me
sinto atraída, mas é só.
— Você nunca ficou assim com qualquer pessoa. E sabe disso.
— Eu nem sei se a Blue confia em mim, Angelina. Como posso abrir
meu coração dessa forma?
— Por que diz isso?
Ela vira de bruços, olhando para mim.
— No primeiro dia que dormimos juntas, logo depois que saímos da
igreja, nós acabamos nos abraçando de noite. E ela… ela teve um pesadelo
e chorava pedindo que a soltasse. Blue não parava de implorar para que não
a segurasse, que a deixasse ir embora. — Donna engole a saliva e estremece
com um calafrio. — Eu me senti horrível, Angie. Parecia que eu tinha feito
algo errado a ela e desde então, não consigo ficar abraçada. Eu tenho medo,
pavor, de vê-la chorar e se debater daquele jeito de novo. Principalmente
por um gesto meu. — Minha amiga suspira, parecendo triste, tal qual a
garota lá embaixo. — Eu acho que precipitei as coisas, não deveria ter
transado com ela naquele lugar, não deveria ter revelado nada aos pais dela,
porque eu só baguncei a sua vida e não sei como consertar agora. É melhor
que ela não se apegue a mim e siga sua vida antes que eu foda com mais
alguma coisa.
Suspiro.
Já cheguei a ouvir algumas vezes em que Blue teve pesadelo quando ela
dormiu no quarto, mas nada tão grave como o que Donna relata.
— E você contou pra ela sobre o que sente? — pergunto já sabendo a
resposta. Só não quero delatar que Blue conversou comigo sobre isso. Estou
parecendo um agente duplo e espero que as duas não se importem.
— Claro que não.
Exalo irritada.
— Qual o problema dos Hopkins em serem claros sobre o que sentem?
— Bato as mãos nas pernas. — Seu irmão não abria a boca para falar por
que me odiava e olha no deu. Também não me disse que estava incomodado
com a adoção e olha o que quase deu. E você aí, escondendo algo que a
Blue pode facilmente livrar sua mente de paranoias sem sentido. Mas que
inferno!
Respiro ofegante, com o rosto quente de raiva.
— Você achou que estava com câncer e não disse nada, então cala a
boca.
Abro a boca para retrucar, mas sou obrigada a fechar de volta.
— Ok. — Reviro os olhos e Donna gargalha, deitando a cabeça no meu
colo. Meus dedos infiltram suas tranças e faço cafuné em seu couro
cabeludo. — Por que a gente complica nossa vida?
— Porque seria chato se não fizéssemos isso.
— É — Dou de ombros. — Deve ser.
Donna franze o cenho, me olhando sob os cílios espessos.
— Você acha mesmo que devo falar com a Blue?
— Acho. E também acho que devem encontrar uma forma de desviar
dos gatilhos dela.
— Como assim?
— Olha, mesmo tendo confiança no seu irmão, não foi fácil e simples ter
uma relação sexual com ele.
— Ai, credo! — Donna faz careta. — Não tem outro exemplo não?
— Não, agora cala a boca. — Fecho a boca dela com minha mão. — Vou
te poupar dos detalhes sórdidos. Aliás, você é minha amiga, tem que ouvir
os dramas da minha vida sexual, porque eu já ouvi os seus. A culpa não é
minha que ele seja seu irmão.
— É sim! Devia haver um código que amigas não ficam com os irmãos
das outras — ela diz toda embolada pela minha mão cobrindo sua boca.
Aperto mais, a fazendo ficar calada.
— Como eu estava dizendo, eu não sabia o que esperar de uma relação
sexual, tinha medo que todas as sensações fossem ser demais para mim.
Então seu irmão me mostrou um toque de cada vez, uma sensação do corpo
de cada vez, até que eu conhecesse todas e pudesse transar de fato.
— Todas? — Don arregala os olhos quando tiro a mão da sua boca.
Penso por um segundo e arregalo os olhos também.
— Ele não encostou na minha bunda!
Minha cara arde.
E Donna explode em uma gargalhada.
— Ainda, meu amor — sussurra alguém do nosso lado.
Don e eu gritamos quando Francis coloca a cabeça para fora da janela,
nos pegando de surpresa. Confiro meu coração, mas parece que ele mudou
do peito para a garganta.
Cretino! Se não bastasse o susto, ainda aparece aqui com o peito nu e os
cabelos molhados… pode pegar um resfriado. Ou pior, me causar uma
arritmia.
— Você quer nos matar, filho da mãe? — Donna se senta com a mão no
peito.
— Eu não, vocês parecem querer fazer isso sozinhas — ele nos encara
com olhos comprimidos e claramente irritado. Não vou dizer a ele, mas
Francis bravo fica… sexy. — O que diabos estão fazendo no telhado?
— O mesmo que a gente fazia quando era adolescente — repondo
erguendo o queixo. Falei que fica sexy? Quis dizer irritante.
— Quando você era adolescentes não estava grávida.
— E nem você era tão chato.
Ele arqueia a sobrancelha, me estressando mais ainda. Mandão dos
infernos!
— As duas pra dentro, já!
— Eu vou entrar antes que vocês comecem a arrancar as roupas —
Donna engatinha até a janela e Francis a ajuda a entrar no quarto.
— Ninguém aqui vai arrancar as roupas. — Cruzo os braços, me
recusando a entrar.
— Se você não vier sozinha, eu vou até aí arrastar sua linda bunda pra
dentro.
Os olhos azuis me analisam determinado.
— Você não ousaria. — Bufo uma risada. — Está só de toalha na
cintura.
— Não? — Francis debocha e coloca o primeiro pé no telhado,
ameaçando cumprir sua fala.
— Tá bom, tá bom! — exaspero, engatinhando até a janela. Eu que não
vou correr o risco dessa toalha cair da cintura dele e oferecer uma vista
privilegiada às vizinhas.
Francis enlaça minha cintura mesmo que eu bata em sua mão e me
arrasta de volta para o quarto. Já não há sinal de Donna aqui, a espertinha
previu a bronca e correu. Traidora.
— Eu consigo fazer isso sozinha.
Meus pés tocam o chão, mas ele não desfaz seu enlace. Ao contrário
disso, Francis aproxima o rosto do meu e sinto seu hálito e perfume
anuviando meus sentidos.
Babaca cheiroso.
— Eu sei que você consegue, mas não custa ajudar. — Um sorriso gentil
e travesso enfeita seu rosto. — Não é porque conseguimos fazer as coisas
sozinhos, que significa que não podemos aceitar ajuda daqueles que estão
dispostos a tornar nossa vida um pouco mais fácil.
Arqueio a sobrancelha.
— Roubou algum dos meus livros de filosofia?
Francis ri, balançando a cabeça.
— Tenho certeza que você não vai me achar nem um pouco filosófico
com a próxima coisa que vou dizer.
Seu corpo me encurrala contra a janela.
Minha pele formiga com a mera ameaça maliciosa de sua fala.
— E o que você tem para me dizer? — entro no jogo dele e apoio os
braços em seus ombros, me impressionando pela milésima vez em como
eles são largos e fortes. Esse homem é uma montanha, um armário, e que
Deus me ajude a colocar o filho dele no mundo.
Ele percebe a reação do meu corpo e dá uma risadinha baixa e
prepotente, que só acumula calor entre minhas pernas. Eu deveria ficar
irritada com o quanto ele pode ter certeza de seu poder sobre mim, mas há
algo muito sexy nisso. E seja como for, está certo.
Sua boca caminha para minha orelha e os lábios fazem desenhos
abstratos contra minha pele, seu hálito gelado refrescando o calor recém
aceso.
— Eu falei sério sobre a parte do “ainda”.
— O quê? Como assim? — fico momentaneamente confusa, mas minha
mente logo trata de me iluminar. Ele disse que ainda não tocou minha
bunda. Gargalho alto, tentando o empurrar, mas seus braços não me dão
escapatória. — Você não vai tocar nisso aí não.
Francis acaricia minhas costas em um toque insinuante e arqueio a
coluna por reflexo.
— Eu acho que prometi há um tempo te mostrar todas as reações do seu
corpo ao meu toque. — Ele estreita os olhos. — E só para constar, você foi
a primeira a colocar a bunda em pauta. Ou se esqueceu que nesse mesmo
quarto, me perguntou se eu deixaria que tocasse a minha?
— E você respondeu que eu teria que te pagar um jantar antes.
— Tudo bem, se esse é o requisito, quer comer o que? — Francis
balança as sobrancelhas, com um sorriso safado no rosto.
Bato em seu peito.
— Você não vai bisbilhotar minha bunda. — Olho para o teto, batendo o
pé no chão. — Pelo menos não agora.
Fecho os olhos de vergonha. Céus, eu nunca nem tinha pensado em fazer
isso, mas eu sei o que esse homem consegue fazer com as mãos e com o
restante do corpo, e eu tenho certeza que no fim, estarei me contorcendo de
prazer. O calor e umidade em meu centro só me mostram que sim, ele
conseguirá isso um dia.
Francis gargalha, segurando minha mão e me girando.
— Vai tomar banho, sujinha.
Ele me direcionada até a porta do banheiro e giro o pescoço para encará-
lo.
Mordo os lábios, fitando seu peito nu, com algumas gotas que ainda
pingam do cabelo molhado pelo banho recente. Às vezes eu tenho vontade
de reservar um dia inteiro só para ficar olhando o corpo dele. E talvez
tocando também.
— Vai me deixar de pau duro me olhando assim.
Olho para sua virilha com ironia, dando um meio sorriso.
— Já está duro.
Francis olha para baixo, assentindo.
— É verdade. Então corrigindo, você vai deixar meu pau ainda mais
duro me olhando assim.
Engulo a saliva.
— Ou eu posso resolver essa situação… — Dou de ombros, o fitando
sob os cílios. — Isso, é claro, se você não se importar de tomar outro banho.
Não dou tempo para ele responder. Apenas entro no banheiro, deixando
a porta aberta e tiro o vestido de alças, o deixando cair no chão junto com
minha calcinha. Tão logo entro no box, escuto o clique de uma fechadura
sendo trancada. Não preciso olhar para saber que Francis me seguiu.
Sorrio vitoriosa, ligando o chuveiro na água quente. A temperatura alivia
as dores nas minhas costas e um gemido satisfeito escapa da minha boca.
Não coloco a cabeça sob a queda d’água de forma que cubra meu rosto.
Não faço isso desde que me afoguei. Ao invés disso, fecho as mãos em
concha e pego um pouco de água, molhando meu rosto.
Não demora muito para que eu ouça os trilhos do box sendo aberto e o
calor do nadador às minhas costas. Ele beija meu ombro, apoiando suas
mãos em meus braços. Nós nunca havíamos tomado banho juntos e a última
vez que estivemos perto um do outro com água no meio, foi quando fui
jogada naquela piscina. Quando ele ainda me odiava e mesmo assim me
salvou. Mas diferente daquela vez, a sensação da sua pele escorregadia com
a minha, com as gotas passando pelos nossos corpos, é extasiante. Me faz
suspirar e recostar meu corpo contra o dele, sentindo sua ereção cavando
minha carne.
Seu peito se move depressa contra mim, a respiração cada vez mais
profunda e desregrada, combinando com perfeição com a minha própria.
— Sua pele fica linda molhada — ele entoa com um desejo primitivo na
voz, deslizando as mãos em meus braços, costas e ombros. — Como eu
queria que você pudesse entrar no mar ou na piscina comigo… ver o seu
corpo flutuar na água, ser banhado por ela da forma certa. — Recebo um
beijo na nuca, e mais dois que se encaminham para meu pescoço. — Um
dia, Angelina, vou ser forte o bastante para lavar esse medo de você.
Viro de frente para Francis, pegando um pouco de água e molhando seu
peitoral. Arrasto os dedos pelas pintinhas que começam em seus ombros,
brincando de contá-las.
— Eu não espero que você lave esse medo de mim. — Procuro seus
olhos. — Não esse. Esse é meu para superar. — Sorrio, deslizando o
polegar por seu lábio inferior. Fica ainda mais macio com a água. — Eu só
espero que me ame, Francis. Como sempre amou, quero que me ama,
porque já é o bastante para mim. Não quero que lute minhas batalhas, quero
apenas ter você no fim do dia, depois de lutar por cada uma, para me
abraçar e me beijar e me amar até que eu saiba que o mundo está em seu
lugar de novo.
Beijo seus lábios, sugando-o para mim. Ele geme em minha boca e
prende meus quadris com seus dedos.
— Eu amo, Angelina. Sempre vou amar. E sempre que estiver ao meu
alcance, vou mostrar a você, que aqui, na nossa realidade particular, o
mundo estará no lugar. Pertencendo a você para moldá-lo à sua vontade.
Ele inverte nossas posições, ficando sob a mira do jato d’água e me
acolhe em seus braços, me fazendo receber o líquido apenas dos meus seios
para baixo. Francis toma meus lábios para si, em um gesto demorado,
íntimo e sem qualquer pressa. O calor se alastra por cada miligrama do meu
sangue e eu sei que nada tem a ver com a temperatura da água e sim do
homem que me adora com suas palavras, com suas mãos e com seus lábios.
Ele pede passagem com a língua, lambendo meu lábio superior e o
sugando fraquinho, enquanto faço o mesmo com o seu inferior. É um
encaixe tão perfeito, que meu peito se contrai de dor ao pensar em perdê-lo.
Agarro-me aos seus ombros, não me preocupando com o quanto meus
dedos apertam sua pele ou se minha unha o machuca. Eu apenas preciso
dele o mais perto possível e o fato de a barriga não permitir que nossos
corpos se unam sem qualquer distância, me deixa irritada. Gemo de
frustração em sua boca, movendo-me para tentar ficar o mais próxima que
consigo.
— Calma, amor — murmura contra meus lábios.
— Eu preciso ficar perto de você.
— Eu sei... — Ele firma seu apoio em meus quadris e me gira
novamente de costas contra si, seu peito tão colado à minha pele, que sinto
os vales e montes de seus músculos e o titubear do seu coração. De igual
forma, seu membro cava em minha bunda, implorando por passagem. —
Perto o suficiente, Angelina?
— Não — nego com a cabeça fracamente, tão fraco quanto o meu
controle perto dele. Francis segura meu braço direito, o levantando e
erguendo até seu pescoço, me fazendo segurar em sua nuca. Ele me segura
com firmeza e com um dos pés, afasta um pouco uma das minhas pernas,
deixando-as separadas na largura do meu quadril. Ele se abaixa um pouco,
flexionando seus joelhos e no mesmo instante sua glande quente e latejante
toca minha entrada, nos fazendo choramingar. Agarro mais forte sua nuca.
— Perto o bastante? — sussurra com a voz rouca, profunda e controlada.
O corpo dele estremece perto do meu e sei que está se controlando para
manter-se parado.
— Eu quero mais. Por favor…
Estou implorando. Imploro quantas vezes forem necessárias, porque tudo
que preciso nesse momento é senti-lo dentro de mim.
— Você nunca precisou pedir por favor para me ter enterrado em você,
Angel — ele castiga a pele macia da minha orelha com seus dentes,
guiando seu membro corretamente para minha entrada, forçando
brandamente… o que já é o bastante para que eu feche os olhos e os revire
na órbita. Francis está quente, sinto o palpitar do seu membro contra minha
pele. — Não vai ser agora que vai precisar… o papel de implorar é meu.
Implorar para sentir sua boceta malditamente quente e molhada me
apertando e me puxando para mais perto… mais fundo.
Profano a pele da sua nuca com a unha, o arranhando até escutar o seu
rosnado profundo em minha orelha. Sorrio de lado, arfando.
— Então implore. — Empurro meu quadril contra o dele, o fazendo
entrar mais e me afasto em seguida, sua ereção deslizando para dentro e
para fora. Amo os sons e sibilos que saem da sua boca. Amo saber que sou
a causa. — Implore por mim, Francis. Implore para estar dentro de mim.
Implore para me ter.
Ganho uma risada provocativa em resposta, assim como seus dedos em
meu quadril se estreitam.
— Quer que eu implore? — assinto, ainda moendo sua ereção contra
mim. Se ele não implorar de uma vez, não vou conseguir esperar. Francis
desce uma mão pela lateral do meu corpo, a encaminhando lentamente para
meu centro, até que seus dedos toquem meu clitóris. Jogo o pescoço para
trás, minha cabeça pendendo em seu ombro. Com a mão livre, meu seio
esquerdo ganha a atenção de seus dedos e ele belisca meu mamilo
incrivelmente sensível. Mordo o lábio ao ponto da dor. — Me permita te
foder, querida… deixe que eu me enterre fundo, deixe que eu te foda até
que sua boceta esteja latejando e mastigando meu pau. — Ele arremete o
quadril para frente, me penetrando minimamente, enquanto seu dedo se
move em movimentos circulares em meu clitóris e o outro belisca e puxa
meu mamilo, tornando-o rígido e mais comprido. — Estou implorando para
ir forte, para me deixar entrar por completo, até que meu pau atinja aquele
ponto que a faz choramingar meu nome. Estou pedindo por favor para que
goze e me molhe com seu prazer, para que se boceta me prenda e me mostre
que pertenço a você e a mais ninguém. Por favor, Angel...
Reviro os olhos sob as pálpebras fechadas, meus dedos dos pés
contraindo sobre o piso molhado.
— Então me foda. — Arquejo. — Me foda até que eu esqueça meu
nome e me lembre apenas do seu.
— Apoie suas mãos no azulejo — o tom de comando quase me leva ao
ápice sem precisar de seus toques. Faço o que ele pede, com as duas mãos
apoiadas contra a parede. Francis cola seu peito às minhas costas e passa
um braço pela minha frente, cobrindo meus seios e me mantendo ereta. —
Não se curve, fique apenas assim.
Franzo o cenho. Ele vai ter muito mais trabalho se eu não me curvar,
mas entendo porque pede para que eu não o faça. Seria difícil para mim. Ele
afasta minha perna com delicadeza, apenas o suficiente para se encaixar
novamente em minha entrada.
— E não pense que estou fazendo isso para ser gentil, Angelina —
Francis ri ao meu ouvido. — Você quer ser fodida e será… quero você
assim porque ficará ainda mais apertada e quando eu estiver por completo
dentro de você, não terá dúvidas de que é minha.
Sorrio para a parede, esperando ansiosa. Ele não me deixa assim por
muito tempo, porque me penetra sem mais aviso e estou tão molhada que
ele escorrega até o fundo sem nenhuma dificuldade, enterrado em mim
como disse que estaria. Fecho as mãos em punhos na parede, porque ele
estava certo sobre um ponto. A posição o faz atingir um ângulo
malditamente delicioso dentro de mim, tornando-me ainda mais estreita em
sua volta.
— Porra, eu sabia que você ficaria apertada nessa posição, amor…, mas
você está me esmagando. — Ele gira os quadris, seu membro me alargando
para buscar espaço em meu corpo. Mordo o lábio para não avisar a todos da
casa o que estamos fazendo. Minha carne relaxa ao seu redor, acostumando
com seu tamanho. Agito meu quadril contra ele, ansiosa para que se mova.
— Não tire suas mãos da parede.
É o único aviso que recebo quando ele sai quase por completo de mim,
voltando forte e duro para dentro do meu corpo, me fodendo como
prometido, me fazendo sentir que ele é meu e que eu sou sua.
Irremediavelmente sua. Seus movimentos não são rápidos, mas são precisos
e quase rudes, sua virilha batendo contra minha bunda, produzindo um som
quente e erótico.
A fumaça da água quente que jorra ao nosso lado deixa nossa visão
turva, mas não tenho certeza se é exatamente isso que quase me faz perder
os sentidos ou o prazer que estou recebendo do nadador às minhas costas.
Seus movimentos erguem meus pés do chão a cada arremetida e só não
vou ao chão por seu braço ao redor dos meus seios.
Francis segura meus cabelos em punhos, fazendo-me deitar a cabeça
para o lado, devastando meu pescoço com sua boca, dentes e língua.
Minhas pernas ficam cada vez mais fracas, conforme minha carne lateja
contra seu membro rígido. Sinto cada latejar, cada vibração, cada veia
saltada me expandindo, me tomando, me roubando para si.
Ele coloca dois dedos contra meus lábios.
— Abra a boca, Angel. — Faço como pede. — Agora chupe os meus
dedos.
Obedeço sem pestanejar, girando a língua por eles. Francis rosna,
mordendo meu ombro e arremetendo cada vez mais forte dentro de mim.
Quando se dá por satisfeito, guia os dedos molhados para meu clitóris, o
beliscando e me fazendo gritar.
— Desgraçado — ofego e ele ri, moendo ainda mais o nervo inchado.
— Disponha — provoca.
Meu clitóris arde quase que insuportavelmente e meu baixo ventre se
contrai com o orgasmo eminente.
— Vamos, amor… goza pra mim. Me mostra que é minha, que só eu sou
capaz de fazer isso com você.
Penso em retrucar, em mandar ele parar de ser prepotente, mas tudo que
consigo fazer é confirmar suas palavras e seguir sua ordem.
— Sim, sou sua… — soluço, o prazer explodindo dentro de mim com
mil pequenos fogos de artifício. — E você é meu.
Ele rosna, perdendo o controle de seus próprios movimentos. Viro o
rosto para buscar sua boca e ele me devora com a sua, enquanto goza dentro
de mim, ao mesmo tempo que eu me desfaço em seus braços.
— Seu… porra, só seu. Apenas seu, Angel. — Seus lábios não deixam
os meus, assim como seu corpo não me abandona, mesmo que ambos já
tenhamos chegado ao ápice do prazer.
Nós dois sabemos que a união dos nossos corpos é apenas a desculpa
perfeita para a união das nossas almas. Depois de saciar nossa carne, nosso
coração ainda implora para nos saciarmos de nossas essências. Somos eu e
ele. Sempre foi. Sempre será. Nada nunca foi capaz de alterar o que está
gravado além da nossa pele em forma de desenho. Nosso amor foi gravado
há muito tempo no nosso sangue. É primitivo. E inalterável.
— Meu — murmuro como uma oração. Como uma prece ao homem que
me faz descobrir mais partes de mim mesma a cada vez que me ama.
 
 

 
 
— Você tem certeza do que está fazendo? — é a terceira vez que o
treinador me faz essa pergunta desde que vim anunciar minha pausa dos
treinos.
— Tenho, senhor — afirmo sem sombra de dúvidas. — Como sabe, eu
vou ser pai e preciso estar mais presente agora para minha família.
— Ainda dá para treinar, Francis. Nós podemos apenas diminuir seu
ritmo.
— A minha namorada também é atleta, senhor Kinley — explico. — Ela
vai ter que dar uma pausa nos treinos por causa do bebê e não acho justo
que enquanto ela arque com isso, eu fique aqui treinando e não a ajudando.
— Você é um rapaz responsável, eu não esperaria outra conduta vinda de
você. Mas espero que entenda que é uma perda não te ter conosco e que
espero que volte logo. Seu talento não pode ser desperdiçado.
Pisco surpreso. É a primeira vez que o treinador me elogia assim. Ele
costuma ser muito mais discreto e conciso.
— Eu não pretendo parar de nadar. Isso é apenas uma pausa.
Estendo a mão para ele e o treinador a aperta firmemente.
— Deseje os parabéns para sua namorada. E claro, é estendido a você.
— Obrigado, senhor — sorrio orgulhoso. Tem sido bom ouvir as
felicitações das pessoas com quem me importo. Eles parecem realmente
acreditar que eu posso fazer dar certo.
Tenho tentado acreditar nisso também.
— Até mais — me despeço, indo direto para o vestiário. Hoje foi meu
último treino até que eu volte e preciso me lavar antes de voltar para casa.
Angie teve enjoos da última vez que voltei com cheiro de cloro, então
preciso tirar isso de mim antes de ir.
Abro meu armário para pegar um xampu e quando o fecho, quase engulo
minha própria língua. Vance está parado ao meu lado, com os braços
cruzados sobre o peito e uma expressão afetada no rosto.
— Que susto!
— Vai abandonar a natação.
Ele não faz uma pergunta, então imagino que tenha escutado minha
conversa com o treinador. Amarro a toalha na cintura, me sentando nos
bancos de madeira. Ele se senta ao meu lado.
— Não vou abandonar. — Bagunço o cabelo para tirar um pouco do
excesso de água. — Só vou dar um tempo até que a Angie ganhe o bebê e
que a gente se adeque à nova rotina. Um ano, no máximo.
Ele bufa uma risada amarga.
— Se ficar um ano sem treinar, pode jogar fora sua carreira.
Dou de ombros.
— Eu ainda tenho a medicina.
— E desde quando você quer ser médico?
— Desde que eu achei um bom motivo para isso. Eu não gostava de
medicina porque era uma imposição da minha mãe, mas agora eu vejo uma
razão por trás de exercer essa profissão. Percebi que posso cuidar das
pessoas que amo. — Dou de ombros. — A natação é algo que faço por
mim, não preciso necessariamente ganhar dinheiro com ela. Claro que eu
ficaria feliz se funcionasse, principalmente quando eu não via a medicina
como opção, mas isso aqui sempre foi minha terapia, meu pedaço do céu
em meio ao inferno. — Suspiro, olhando meu amigo. — Eu ainda posso
nadar, mesmo sendo médico. Nunca vou perder isso por completo.
Ele desvia a atenção de mim, fixando os olhos no chão do vestiário
vazio.
— Tá tudo bem? Você quer conversar? — Toco seu ombro e parece ser o
estopim para sua explosão.
— Claro que não tô bem, porra! — Vance se ergue na minha frente,
visivelmente alterado. — Você está abandonando seus sonhos por causa
daquela garota, não percebe o quanto ela está sendo egoísta em fazer da sua
vida o que quiser. Ela decide manter a gravidez, decide pela adoção e
depois decide ficar com o bebê, tudo sem te consultar, tudo sem pensar em
você!
Respiro fundo, ignorando o tom que ele usa para falar de Angelina.
Estou cansado demais para uma cena com Vance a essa hora. Tudo que eu
quero é ir para casa, jogar videogame com Ethan, ouvir suas composições,
apartar as brigas de Donna e Blue e depois consolar cada uma e logo em
seguida subir para o meu quarto, com a minha garota e meu filho e ouvir
seu coraçãozinho com o aparelho que comprei hoje de tarde.
— Por que ela deveria pensar em mim, quando a mais afetada seria ela e
o bebê? — Arqueio a sobrancelha. — E só para que saiba, cara, Angelina
nunca me deixou por fora das coisas. Ela sempre me falou e eu escolhi
apoiá-la em qualquer decisão que tomasse. Não precisa criar cenários e
fantasias na sua cabeça, onde Angelina é o lobo mau e eu sou um dos três
porquinhos fugindo.
— Você nunca desistiria dos seus sonhos, nunca optaria por isso, você
lutaria por eles com unhas e dentes — ele grita, sua saliva batendo contra
meu rosto. — Você não vê isso, caralho?!
Levanto do banco para tentar acalmá-lo e ele empurra meu peito, me
fazendo cair sentado de volta.
— Você tá cego! — Ele ri, balançando a cabeça. — Tá cego por essa
mulher, todos vocês estão. Desde que ela chegou, conquistou vocês como a
porra de uma maldita sereia, fez a cabeça de todo mundo. O único que
consegue ver com clareza sou eu! — Ele bate no próprio peito com
violência, as marcas de sua mão aparecendo na pele logo em seguida.
Permaneço sentado, sem reação para o seu rompante. — Que porra de
boceta única é essa que ela tem? Por acaso você acha que só ela pode sentar
no seu pau e te fazer gemer que é dela e apenas dela?
Franzo o cenho. Ele nos escutou? Como ele saberia disso? Seu quarto
fica no final do corredor, não haveria como nos escutar a menos que
estivesse dentro do meu quarto quando estávamos no banheiro. Afasto o
pensamento. Ele pode ter acertado por coincidência. Não é algo incomum
de se falar durante o sexo.
Levanto do banco, reunindo a escassa paciência que ainda tenho.
— Se controla — digo sério. — Não fale assim da mulher que eu amo.
Não gosta dela? Ok, eu respeito. Mas me ofereça o mesmo benefício e
respeite minhas escolhas.
— Nem você se respeita mais — diz com asco, andando de um lado para
o outro. — Você abandonou seu sonho!
Fecho os olhos, apertando minhas pálpebras com os dedos.
Vance fica repetindo que abandonei meu sonho, quando na verdade, ele
nunca soube dos meus sonhos, assim como nunca soube os dele. Nossa
amizade é diferente da que tenho com Ethan. Diferente do jogador de
basquete, para quem eu faço confidências e tenho liberdade irrestrita, Vance
sempre foi aquela parceria fodida onde você não se preocupa em mostrar o
seu pior, porque a pessoa também está dando o seu pior perto de você. Nós
dois usávamos drogas, bebíamos, treinávamos como dois psicopatas e
apenas isso. Vance não se importava o bastante para temer que eu morresse,
então não importava quanta merda eu fizesse comigo mesmo, ele ficava lá
do lado, apenas incentivando a fazer mais. É uma amizade tóxica do caralho
que criamos, mas não dava para ser assim para sempre. A gente tinha que
amadurecer alguma hora e parar de tentar morrer antes de terminar a
faculdade. Ele esteve lá no meu pior momento e eu estive no dele, mas não
dá para permanecer na fossa, só porque ele não quer sair dela.
— Meu sonho é a Angelina, Vance — falo baixo e ele para de andar,
olhando para mim com uma expressão assustadora. — A natação era tudo
para mim quando me mudei para São Francisco, porque eu não a tinha.
Minha família é meu sonho. Viver bem com a minha irmã, com meus
amigos, com minha garota e agora com meu filho. — Aperto os lábios, me
aproximando dele cautelosamente. Parece que estou lidando com um bicho
ferido. — Eu o quero, Vance. Quero meu filho, eu o amo. Quero esse bebê,
como nunca quis nada na minha vida. Meu sonho também é ele. Perto da
minha família e amigos, a natação não é nada. Porque se tenho essas
pessoas ao meu lado, eu já não preciso tão desesperadamente de um refúgio
ou de uma tábua de salvação. Eu amo nadar e vou fazer isso para o resto da
minha vida. — Seguro seu ombro, notando que ele treme. — Eu posso dar
uma pausa de um ano e ainda nadar quando voltar. Mas eu não posso dar
uma pausa de um ano da família que estou construindo e achar que depois
vou ter tudo de volta como se nada tivesse acontecido.
— E eu? — ele sussurra parecendo ferido.
— Você é meu amigo. Entra no pacote. — Ele ri com desdém. — Eu sei
que a gente tá afastado há um tempo, mas é porque eu já não vivo na
autossabotagem cem por cento do meu dia. Eu não posso mais fazer isso.
Porra, eu nem quero mais fazer isso. — Respiro fundo, passando a mão no
cabelo nervosamente. — Eu tô fazendo terapia, aprendendo algumas coisas
boas, está me ajudando. Você devia tentar também.
— Não vem com essa porra pra cima de mim. Meus pais já tentaram
essa façanha e não deu nada bom, então não tenta se meter na minha
cabeça.
— Vance, quem decide o que vai ou não fazer é você. Eu não posso te
forçar a sair do buraco, mas você também não pode me forçar a voltar para
ele, só para não ficar sozinho no fundo. Não é justo. Estou disposto a te
oferecer ajuda na subida, mas não estou disposto a aceitar um puxão para
descer.
— Até quando acha que ela vai ficar do seu lado? — muda de assunto
abruptamente. — Só até você cometer outro erro. E você sabe que vai
cometer. — Nego com a cabeça. Não, eu não vou. — E sabe qual será o seu
maior erro? Escolher a Angelina em todas as vezes, acima de todas as
outras pessoas… — Seu olhar gélido varre meu corpo de cima a baixo, até
voltar para meu rosto. — Você a escolheria, até acima do seu filho que diz
amar tanto.
Engulo o veneno gratuito à força.
— De todas as coisas que você poderia ter dito, essa foi a mais cruel e a
mais mentirosa. — Pego minha mochila, desistindo do banho aqui e visto
minha roupa. Antes de sair pela porta, giro o pescoço para trás. — Angelina
e eu abriríamos mão um do outro pelo nosso bebê. Se chegar o dia em que a
soma de nós dois for igual ao sofrimento do nosso filho, então deixaremos
de ser dois como um casal. Não duvide disso. Nós dois sabemos, que a
única pessoa nesse mundo, que amamos mais do que a nós mesmos, é o
bebê. Então pense o que quiser sobre a minha vida, mas saiba que ela
continua sendo minha. A aceite ou saia dela de uma vez.
Fecho a porta do vestiário, sem esperar por uma resposta.
 

 
Entro em casa puto da vida, sentindo o cheiro de cloro rescender de
mim. Penso em ir direto para o banheiro do primeiro andar e tomar um
banho antes de subir para ver a Angel, mas meu plano vai por água abaixo
quando vejo que não só ela, como nossos amigos estão na sala, jogados no
tapete, tentando montar algo de madeira.
— Eu já falei que esse parafuso tá errado, cacete! — Blue joga uma
almofada na cabeça do Jayden.
— Então onde é o certo, porra?! — ele retruca irritado, girando um papel
de um lado para o outro nas mãos.
Pigarreio e todos me encaram assustados.
— Ah, é você... — Josh geme frustrado. — Achei que era a pizza que
pedimos.
— Obrigado por dizer que a pizza é mais importante que seu amigo —
faço drama e ele sorri sem graça. — O que diabos estão fazendo?
— Eles estão tentando montar o berço do bebê — Angelina responde
com uma expressão sem paciência. Sorrio para minha garota, bicando seus
lábios.
— Desculpe se meus amigos te irritam. — Rio enquanto escuto “vai se
foder”, “seu rabo” e “quem disse que somos seus amigos?”. — A propósito,
que berço? Não me lembro da gente ter comprado nada ainda.
— No ritmo que anda, nem vamos precisar comprar nada. — Angie
geme com a mão na coluna.
— A gente fez uma vaquinha — Jayden responde, ainda girando o papel
que deve ser um manual nas mãos. Donna pega dele com sua delicadeza
impressionante, quase partindo a coisa em duas.
— Só que a gente esqueceu que ninguém aqui sabe sequer trocar uma
lâmpada e não pedimos o serviço de montador. — Ela bufa, estreitando os
olhos para as letras miúdas do papel.
— Eu já falei pra gente tentar montar sem o manual. — Cassidy assopra
as unhas.
— Se fizerem isso, meu filho vai dormir em cima do berço e acordar
embaixo dele — caçoo e ela me oferece o dedo do meio. Jogo um beijo em
sua direção. — Você faz falta, coisinha chata.
Beijo sua cabeça e ela suspira tristonha.
— Desde que Blue não é mais minha colega de quarto, tive que fazer
novas amizades.
Sento do seu lado e a baixinha abraça meu braço e deita a cabeça no meu
ombro.
— Pode vir morar aqui, já abrimos as porteiras mesmo. — Dou de
ombros.
— Eu não vou dar o meu sofá — Ethan aponta na minha direção. —
Para de ficar arrumando inquilinos que roubam meu espaço, homem!
— Vou fingir que isso não foi uma indireta pra mim — Donna fala sem
erguer os olhos do papel.
— Será possível que podemos tentar montar isso logo? — Jayden ergue
as mãos em desespero.
— Onde está Isabela? Ela com certeza já teria lido algum artigo de jornal
sobre montar berços — brinco.
— Eu não sei exatamente, mas ela ia sair com um cara hoje — Jay
informa indiferente. Hum… quando foi comigo ele quis partir meu nariz em
dois.
— Como assim sair? Um encontro? — Ethan ergue o pescoço para ouvir.
— Acho que sim. — Dá de ombros.
— Por que a surpresa, Ethan? — Estreito os olhos. — Com ciúmes?
— Claro que não… eu só achei que ela não estava a fim de
relacionamento agora.
— Por que pensou isso? — Blue, como sempre curiosa, questiona.
— Porque ela me disse isso essa semana ainda. — Meu amigo fecha a
expressão, parecendo chateado. — Como ela diz que não está pronta para
relacionamento e hoje sai para um encontro?
— Ela pode só ter ido transar. — Cassy revira os olhos.
— Eca, será que dá pra não falar da vida sexual da minha irmã na minha
frente, por gentileza? — Jayden faz careta.
— Pelo menos você só escutou falarem da vida sexual da sua irmã. Pior
sou eu, que escuto a vida sexual da minha. — Fuzilo Donna e Blue e ganho
em troca sorrisos debochados.
— Até parece que a gente não escuta suas safadezas com a grávida
apagada aqui — Don aponta para uma Angelina dormindo no sofá, com o
rosto apoiado em uma caixa de papelão.
— Puta merda! —Angelina tem ficado muito cansada, suas costas tem
doído cada vez mais e não está conseguindo encontrar uma posição na cama
em que fique mais confortável. Ao que parece, não tem muito o que fazer
nessa fase final e isso tá me deixando maluco. A pego no colo, decidido a
levá-la para cima.
— Leva ela e a gente termina aqui. Te chamamos quando a pizza tiver
chegado — Jayden pega o celular de Angelina e coloca no meu bolso para
me ajudar.
— Valeu, cara. Ela já jantou?
— Fiz salada de macarrão pra ela — Ethan fala enquanto tenta unir duas
peças do berço.
— Não esqueça de passar o óleo para estrias na barriguinha dela, ok? A
teimosa já tinha tomado banho quando eu cheguei. — Blue estala a língua.
— E liga o difusor de aroma do lado dela na cama. Eu já coloquei a
essência de lavanda. — Minha irmã dá mais instruções.
— Tem um travesseiro que eu e Cassy compramos e deixei lá na sua
cama — Josh sorri. — Ele é curvado, pode ajudar ela a se apoiar de noite
para dormir.
Observo meus amigos, completamente estático. Meus amigos não,
minha família. Vance está completamente errado. Não estou abandonando
sonho algum, estou lutando por um muito maior e duradouro, que pode me
oferecer muito mais que medalhas de ouro.
 
 

 
 
Desço as escadas contando os degraus, louca para tomar um café. Mas
um café com cafeína, não essa coisa esquisita e aguada que eles têm me
dado. A cozinha era meu destino final, mas não há como passar pela sala
sem observar a cena que se desenrola.
Nossos amigos estão amontoados sobre o sofá e o tapete, com um berço
montado ao lado. Ou melhor, quase montado. Inclino a cabeça, cobrindo a
boca para não rir. De jeito nenhum vou deixar meu bebê dormir aí sem
antes mandar alguém arrumar. Eles definitivamente não encaixaram as
peças no lugar certo.
— Tem alguém acordado em casa? — Francis desce falando alto e
coloco um dedo sobre a boca, o mandando ficar calado. Ele olha para a
cena na sala e começa a rir. — Acho que nossos amigos trabalharam duro
essa noite. Olha só, até montaram o berço.
— Você quer dizer que tentaram, né?
— Está péssimo, a gente vai ter que mandar desmontar e montar de
novo, mas quando eles acordarem, diga que está perfeito, ok? — Ele beija
minha nuca.
— Por que eu vou mentir?
— Porque eles vão ficar felizes, acredite em mim.
— Tudo bem, vou mentir em prol da felicidade alheia — ironizo, me
sentando à mesa na cozinha. — E falando em berço, já pensou sobre como
vamos arrumar um lugar para o bebê?
Francis coloca bacon para fritar e o cheiro quase me faz revirar os olhos.
Comida boa, graças a Deus.
— Bom, eu acho que não temos muita opção que não seja o meu quarto.
— Ele pega ovos na geladeira, os quebrando em outra frigideira. — É
espaçoso, eu posso me livrar da escrivaninha e lá colocamos o berço e uma
cadeira de amamentação para você. Na frente da cama também podemos
colocar uma cômoda, que o topo sirva de trocador.
— É, acho que pode dar certo. Mas será que seus amigos não vão achar
ruim o bebê aqui? Quero dizer, ele vai chorar.
Francis retira o bacon já frito e coloca em um prato junto com os ovos,
me servindo junto com suco de laranja. Não é café, mas pelo menos tenho
bacon.
— Ethan é capaz de pedir para ficar com o bebê por nós, e Vance… —
ele suspira. — Vance vai ter que se conformar ou se mudar. Não há muita
solução além disso.
— Essa casa era dele antes de eu chegar.
O nadador se senta ao meu lado, pegando um pedaço de bacon com as
mãos mesmo.
— A casa sempre foi nossa, Angel. Minha, do Ethan e dele. Além disso,
Vance é o único que não perdeu o quarto, a vida dele continua igual, tendo
seu próprio espaço. — Francis coça a nuca, incomodado. — Ele mora aqui
porque os pais pagam, então podem pagar por outro lugar caso ele se
incomode.
— Mas aqui eles dividem as despesas com seus pais e do Ethan.
— Angie, tem noção do quanto a família da Blue é rica? Se em Cape
May consideram meu pai como um cara rico, os Hale são três vezes mais.
Franzo o cenho.
— Você sabe que os pais dele estão ajudando a Blue, né?
— Mesmo? Ela não me falou nada a respeito... me preocupo que possam
estar fazendo isso para influenciá-la a voltar para casa.
— Blue não se vende por um pouco de dinheiro.
— Não, mas ela se entrega a qualquer afeto que estejam dispostos a
oferecer.
Assinto, sendo obrigada a concordar.
— E por falar em afeto… você tem uma ideia de quem vamos chamar
para padrinhos do bebê?
Francis para de mastigar, me olhando confuso.
— Nós vamos batizá-lo?
— Não — nego rapidamente. — Acho que nosso filho deve escolher
isso quando tiver idade suficiente para tomar decisões.
— Concordo completamente. Mas você quer algo simbólico, então?
— É... — Dou de ombros. — Sabe, na nossa falta, quero que ele tenha
com quem contar.
— Cada um escolhe um padrinho e uma madrinha então… quanto mais
melhor, não é? — ele ri, terminando de comer seu bacon.
— Eu já pensei nos meus — declaro.
— E quem são?
— Donna e Ethan.
Francis limpa a boca com as costas da mão.
— Achei que escolheria o Jayden — diz surpreso.
— Vou deixar essa com você. — Sorrio.
— E quem disse que pensei nele?
— Não pensou?
Ele suspira, revirando os olhos.
— É, eu pensei, mas estava contando com você para fazer o convite.
— Vocês estão próximos agora, faça isso você mesmo. — Empurro seus
ombros.
— Você gosta de dificultar minha vida.
— Eu vou fazer o convite para Donna, já deixei a mais fácil com você.
— Donna já espera por isso — me contrapõe.
— Conte a ela que terá responsabilidade com o bebê na nossa falta e a
veja fugir para o Alaska — brinco, comendo meu ovo.
— Isso é verdade — Francis ri. — Bom, então vou falar com a
compradora compulsiva também.
— Blue vai ficar feliz.
— É, mas também vai nos colocar malucos.
— Eu sei disso.
Encerramos o assunto quando nossos montadores não profissionais de
berço se levantam, vindo para a cozinha com expressões famintas.
— Acho que é melhor você preparar mais comida — digo a Francis.
— Você acha? — ele já se levanta pegando toda a bandeja de ovos.
 

 
Fazer aula junto com Francis é bom. Mas estou dando graças a Deus que
é nosso último semestre junto, porque ele me distrai só de ficar parado. Eu
recolho minhas coisas o mais rápido que posso, porque antes de ir para meu
último treino, ainda tenho que falar com a Donna.
— Não esqueça de editar o arquivo do nosso trabalho e me mandar pelo
e-mail — Aviso ao Francis já a caminho da porta.
— Sim, senhora — ele bate continência, algumas garotas dando
risadinhas atrás de mim, comentando o quanto ele é um sonho.
Viro-me para elas, cruzando os braços.
— É, ele é um sonho. Mas é meu.
Passo por elas, deixando-as de olhos arregalados. Mas será que não se
tocam? Eu devo ter muita cara de boazinha. Ou de trouxa.
Passo pela quadra de basquete antes de ir para o treino, onde as
animadoras estão ensaiando. Sento na arquibancada perto de Isabela,
esperando Donna acabar de torrar a paciência de meia dúzia de pobres
garotas.
— Oi.
— Oi, gravidinha.
— Trabalhando?
— Sim, estou montando alguns materiais extras para a edição do jornal
dessa semana. E você, vai treinar?
— Vou — suspiro. — Hoje é meu último treino antes de ganhar o bebê.
— Ah, meu Deus… e como você está se sentindo?
— Não sei ainda. Nunca pensei em ter que parar o vôlei, mas eu
realmente não estou dando conta de ficar jogando com essa barriga que de
repente cresceu demais.
— Você e Francis estão namorando de novo? — Isa pergunta curiosa.
Jogo os ombros e acabo rindo.
— A gente não deu nome à nada, só estamos fazendo o que queremos e
vendo no que vai dar.
— Desculpa perguntar, mas… você acha que o bebê foi decisivo para
essa escolha?
Penso por um momento, negando com a cabeça.
— Claro que passamos mais tempo juntos por causa da gravidez, mas
minha relação com Francis não tem a ver com isso. Antes de descobrir que
estava grávida, nós tivemos um momento… — recordo-me da vinícola e
minhas bochechas esquentam. — Acho que eu já o tinha perdoado, mas
fiquei com medo de me machucar de novo. Esse medo foi embora quando
eu percebi que mesmo com o risco de sair machucada, valia à pena estar
com ele.
Isa me olha de canto e eu faço o mesmo. Os olhos dela parecem
marejados.
— Você tá chorando?
— Ah, é que você e Francis dão certo até quando tudo tá dando errado e
minha vida tá mais chata que assistir jogo de ping pong.
— Isso foi bem específico.
— Estou fazendo uma matéria para o grupo da USF que joga, e essa
coisa é um porre.
— Mas você saiu em um encontro, pelo menos foi isso que seu irmão
falou.
— Jay tá me saindo um belo de um fofoqueiro. — Ela reclama com uma
careta. — Mas sim, eu saí com um cara, mas ele não tinha outro assunto
que não esporte. Eu amo, trabalho com isso o tempo todo, mas chega uma
hora que eu só quero falar de coisas que não envolvam atletas suados.
— Você sempre tem o Ethan como opção. — Tento fazer o lado do meu
amigo.
— Eu e todas as garotas desse campus, né! — Isabela revira os olhos
irritada. — Ficar com o Ethan, é o mesmo que entrar para a estatística das
garotas que se apaixonaram e não receberam sequer uma ligação no dia
seguinte.
— Você sabe que o Ethan gosta de você, né?
Não me importo de dedurar, acho até que estou fazendo um favor.
— Ele não gosta de mim — Isa mexe no cabelo. — Ele gosta do fato de
não me ter. Sou a amiga inatingível que ele tem uma queda porque é a única
que não quis ficar com ele.
— Ele também nunca teve chance comigo, com a Donna ou a Blue, nem
por isso se apaixonou por nós.
Ganho uma expressão debochada.
— Blue era até onde ele sabia, namorada do Francis. Você era ex e a
Donna irmã dele. Ethan não ia se envolver com qualquer uma das três
porque o código dos amigos não permite.
— Bom, você só vai saber como as coisas vão acontecer se pagar pra
ver.
— E você pagou pra ver quando foi sua vez? — ela ironiza.
— Aham, olha aqui a prova. — Aponto para minha barriga e Isabela
gargalha, fazendo sinal da cruz.
— Desculpe, Angie, mas eu não queria estar no seu lugar.
— Às vezes nem eu, então tudo bem.
Donna e Blue terminam o treino e carregam seus pompons até nós,
suadas demais para os braços que erguem na minha direção.
— Banho primeiro, enquanto isso um metro de distância — Ponho
minha mão na frente delas.
— Só não vou te mandar a merda porque você tá grávida — Blue estala
a língua.
— Vá a merda! — Donna fala pelas duas, me jogando um beijo. — Eu
xingo até vovós que demoram no caixa eletrônico, que dirá uma grávida
com frescuras.
— Que amor — Isa debocha.
— Veio fazer o que aqui? — Blue se senta do meu lado, tirando a
joelheira. Acho que elas estão treinando algum passo novo e arriscado,
porque nunca a vi usar isso antes.
— Eu vim chamar a Donna para ser madrinha do meu filho.
Minha amiga, que tinha acabado de encher a boca de água da garrafa em
suas mãos, cospe o líquido todo em cima da gente.
Fecho os olhos, comprimindo a boca para não vomitar. Tenho nojo de
saliva. Não importa que seja da Donna, eu tenho nojo de saliva. É meio
irônico que eu ame beijar a boca de certo nadador, mas isso é diferente de
levar uma cusparada na cara.
— Era só você ter dito “não”. — Limpo o rosto com as costas da mão.
— Meu cabelo, sua cretina! — Blue começa a dar tapinhas nos braços de
Donna.
— Pelo menos era só água que ela estava bebendo — Isa faz careta, se
limpando com a blusa.
— Como assim você quer que eu seja madrinha? — minha amiga ignora
por completo o banho que acabou de nos dar. — Por acaso você confia em
mim com uma criança? Porque definitivamente eu não sei nem falar com
uma.
— Eu achei que fosse óbvio que eu te chamaria, Don.
— Angelina, eu pensei que você fosse racional e sensata — ela
praticamente me acusa. — Como você pode confiar um filho a mim? Tá
maluca, bebeu?
Olho para Blue confusa, esperando que ela me ilumine.
— Você tá com medo ou bateu a cabeça durante o treino? — Blue
confere a cabeça dela, ganhando um olhar enviesado.
— É claro que estou com medo. Se acontece alguma coisa com esses
dois, o bebê é minha responsabilidade — Donna parece prestes a surtar.
Ergo a mão, chamando sua atenção.
— As chances de Francis e eu morrermos ao mesmo tempo é pequena,
fique tranquila. Além disso, você não será a única, haverá outras três
pessoas nesse cargo — faço aspas na última palavra.
A boca da minha amiga escancara.
— Quer dizer que me acham tão incompetente que colocaram mais três
pessoas nisso?
— Mas você não devia estar aliviada? Estava tendo um ataque há dois
segundos! — Isabela entra na conversa.
— Só eu posso me achar incompetente, eles não — Donna cruza os
braços e me olha enfezada.
Eu apenas pisco, desistindo de entender.
— Seja como for, meu convite está feito. — Me levanto. — Você aceita?
— É claro que sim! Tinha dúvidas? — Donna me abraça do jeito que dá,
com a barriga quase não permitindo.
Blue nos olha coçando a cabeça e Isabela aparenta não ter entendido
nada.
Bem-vindas ao time, eu também não faço ideia do que acabou de
acontecer.
 

 
Acho desde que peguei uma bola de vôlei pela primeira vez, nunca
pensei no dia que fosse pegar pela última. Não que esse seja o fim. Não
será. Eu não vou permitir olhar meu filho um dia, e culpá-lo por coisas que
eu própria não consegui fazer. Então por ele e por mim mesma, eu jamais
vou deixar que seja o fim dos meus dias em quadra.
Isso vai ser só um até logo.
Engulo o medo e entro na quadra de vôlei, esperando encontrar Hart
como sempre sentada na arquibancada com sua prancheta, mas o que vejo
na minha frente me deixa petrificada e com o coração aquecido.
Minhas colegas de time estão cada uma segurando uma bola de vôlei
com uma letra escrita, formando a frase “volte logo”.
Eu não sou de chorar. Muito menos na frente das pessoas. Mas posso
culpar os hormônios, então não impeço a lágrima de escorrer quando vejo
que há presentes em cima das arquibancadas. Brinquedos, roupinhas, até
mesmo fraldas.
Cubro a boca, não sabendo o que dizer.
As meninas se aproximam de mim, formando um círculo ao meu redor.
— Nós somos um time — elas falam em uníssono. — E uma vez dentro
dele, sempre parte dele.
Observo o rosto de cada uma delas, lembrando do quanto foi difícil
treinar na minha cidade, onde não havia um terço de companheirismo como
aqui. Não comigo, pelo menos. Fazer parte de algo assim, de um time de
verdade, que não te trata como adversária e sim como integrante do todo,
faz qualquer partida valer a pena.
Sei que podemos viver sozinhos. Sei que a solitude tem as suas
vantagens. Mas sentir que você não apenas é aceita, como esperada dentro
de um grupo, torna o mundo menos hostil.
— Eu nunca tinha feito parte de um time — digo engasgada. — Não um
de verdade. Não com uma treinadora que se importasse comigo — encaro
Hart, que tenta a todo custo manter a pose de durona. — Não com parceiras
além das quadras — observo as meninas. — Mas seja lá qual for meu futuro
no vôlei, vocês sempre serão o meu time.
Coloco a mão no meio de nós, as encarando com um sorriso me cortando
o rosto. Elas unem suas mãos à minha e fazemos meu último grito de guerra
antes de um treino.
O último grávida.
Porque nunca será o último para mim.
Não quando essa quadra significar minha casa.
Meu verdadeiro lar.
— Somos um time com você aqui — Zoey funga.
— Até você voltar, somos um todo incompleto — Emma complementa.
— Então volta logo — a treinadora termina de falar, assentindo
confiante.
— Eu vou. — Ergo o queixo. — Prometo.
 

 
 
— Ah, merda! — Coloco a ponta do dedo na boca, estancando o sangue
do corte que acabei de fazer. O cozinheiro me pediu o simples trabalho de
cortar tomates. Apenas isso. E eu consegui cortar a porra do dedo.
— O que aconteceu? — Jayden estica o pescoço para olhar.
— Cortei o dedo.
— Você não enxerga não?
— Pra falar a verdade, tô com problema de visão, mas já marquei uma
consulta.
— É melhor ficar longe de objetos cortantes enquanto isso.
— É… — Limpo a garganta, decidindo falar de uma vez por todas.
Angelina me coloca em cada situação, que eu estou pagando por todos os
meus pecados. — Já que você tá se mostrando sensato quanto a não utilizar
utensílios cortantes, queria te falar sobre um assunto sério.
Jayden cruza os braços e se recosta na pia.
— Pode falar.
— Não, é que… eu queria saber se… na verdade, estou te convidando…
— Fecho os olhos, balançando a cabeça.
— Por favor, me diz que não está apaixonado por mim — ele zomba
com um sorrisinho irritante na cara.
Faço careta.
— Foi mal, mesmo que eu gostasse de homens, você definitivamente
não faz meu tipo.
— Vou tentar não levar para o pessoal — Jayden gargalha e atiro nele
um pano de prato. — Fala logo o que quer, para de enrolação. Parece até
que vai me pedir dinheiro… e se for, já aviso que estou duro.
Reviro os olhos.
— Não quero seu dinheiro e nem seu corpo, ok?
— Então desengasga, cacete.
Eu posso mudar de ideia? Vou chamar o Josh.
— Eu ia te convidar para ser um dos padrinhos do meu filho, mas estou
seriamente preocupado dele acabar convivendo demais com você e pegar
essa mania de ser engraçadinho.
O sorriso arteiro de Jayden se desfaz na mesma hora, substituído por
uma expressão surpresa. Ele abre e fecha a boca inúmeras vezes e sequer se
dá ao trabalho de retrucar minha farpa.
— Você… — Ele pisca os olhos enormes. — Você quer que eu seja
padrinho?
Brinco de chutar o ar com os pés, me sentindo tímido.
— É, meio que isso aí.
— Angelina te obrigou a fazer isso? — não há humor na voz dele, mas
mesmo assim tenho vontade de rir. Eu aparento ser tão capacho assim?
— Não, mas a Angie sabia que eu tinha pensando em você pra isso. E
ela preferiu falar com o Ethan.
— Eu posso apostar que ela se divertiu com essa situação.
— Você nem faz ideia — rio ironicamente. — Mas então… você vai
aceitar?
Jayden coça a nuca, se desencostando da pia.
— Posso te perguntar por que me escolheu para um papel importante na
vida do seu filho, mesmo sabendo que isso implica que eu também fique
mais perto da Angelina?
Assinto, pensando na melhor forma de responder a essa pergunta.
Confesso que me fiz ela diversas vezes.
— O ponto, Jayden, é que Angelina e eu não vamos deixar nada
referente ao nosso relacionamento afetar a vida do nosso filho. — Dou de
ombros. — O fato de você gostar da Angelina, não afeta o fato de que eu
sei que seria um ótimo padrinho para o meu filho. Você foi o primeiro a
saber que ela estava grávida depois de mim, esteve do nosso lado desde o
princípio, mesmo gostando da mesma garota que eu e ainda me ajudou a
conseguir um emprego. Querendo ou não, você fez um papel de padrinho
desse bebê desde o princípio e eu nunca vi receio da sua parte por ele ser
meu.
— Porque não há qualquer receio — ele confirma, me olhando
sinceramente. — Além disso, não tenho mais antipatia por você. Com
certeza não é minha pessoa favorita da vida e sei que a recíproca é
verdadeira, mas também sei que acabamos nos tornando amigos depois de
passar mais tempo juntos. Eu tenho um carinho enorme por esse bebê, e
teria mesmo que te odiasse.
Aceno, colocando uma mão no ombro dele.
— É exatamente por isso que te escolhi.
— E para eu ensinar a jogar basquete, né — provoca, piscando um olho.
— Alguém tem que ensinar essa criança um esporte que preste.
Fecho minha cara, mesmo tendo entendido que isso é seu “eu aceito” ao
meu convite. Dei um padrinho irritante ao meu filho, espero que ele não me
odeie por isso.
— Deixa a Angelina te escutar falando isso e ela vai enfiar a bola de
vôlei em um lugar nada agradável.
— Dela eu tenho medo, por isso só encho o seu saco.
Meus olhos dão três voltas na órbita.
— Mas voltando a assuntos sérios, como está sua mãe?
O sorriso no rosto dele se expande em questão de segundos.
— O tratamento está sendo excelente, ela ainda tem alguns episódios de
crise, mas nada tão grave como estava acontecendo antes… eu realmente
devo muito a você e seu pai.
Estalo a língua.
— Seja um bom padrinho para meu bebê e estamos quites.
Ofereço minha mão e Jayden a aperta.
— É bom que agora vou ter mais tempo pra ajudar vocês. Como o
médico está tratando minha mãe de forma gratuita, eu não preciso trabalhar
tanto ou vender meus remédios para ajudar com os custos da Isabela...
Jayden continua falando, mas minha mente paralisa em uma única
informação.
Vender os remédios? Os remédios para epilepsia?
Um arrepio desce minha espinha.
Eu não achava mais que ele fosse o culpado por ter batizado minha água,
mas o fato de ele vender seus remédios, volta a colocar esse assunto em
pauta novamente.
Abro a boca para questioná-lo sobre essa história, mas JC o chama para
atender algumas mesas, me deixando apenas com a dúvida martelando
minha mente.
Para quem ele vendia esses remédios?
 
 
Viro toda a xícara de café na boca, acertando os últimos detalhes do
trabalho que Angelina e eu fizemos para nossa matéria de redação. Nós
tínhamos que fazer uma análise crítica do estilo textual e escolhemos o
século XIX para isso. Quer dizer, Angelina escolheu, eu só fui na onda.
Claro que muitas das páginas estão dedicadas a Jane Austen e confesso que
me interessei pela escrita dela.
Clico em salvar o arquivo e espero a notificação de confirmação, mas ao
invés disso, minha tela trava por completo.
Merda de computador.
Aperto em salvar diversas vezes, impaciente, até que um aviso de
“página não respondendo” aparece.
— Cacete! — bato a mão no notebook, esperando essa coisa pré-
histórica voltar a funcionar, mas tudo que ganho é uma tela preta.
Puta que pariu… Angelina vai me matar.
A gente tem que entregar isso amanhã. Eu não acredito que perdi toda a
edição de texto que fiz. Tento ligar o computador, mas ele não responde
nem sob tortura. Enfio as mãos no cabelo, praticamente arrancando os fios.
— Se a Angelina arrancar meu pau fora, a culpa é sua! — acuso o objeto
inanimado, mesmo me sentindo ridículo. Se fosse uma máquina de escrever,
não teria dado isso. Tecnologia é o caralho!
Mando uma mensagem para Angelina, já esperando os xingamentos que
ela vai me oferecer de muito bom grado.
Eu: Angel, meu notebook deu pau e perdi toda a edição que fiz. Preciso
que me mande o arquivo do texto pelo e-mail para que eu faça de novo em
outro lugar.
Angel: Não acredito nisso.
Eu: Nem eu, mas a culpa não é minha.
Angel: A gente precisa entregar isso amanhã e hoje é meu último dia na
biblioteca, não posso sair mais cedo.
Eu: Eu sei, não precisa sair daí, eu vou dar um jeito de terminar tudo
ainda hoje, só me manda o arquivo no e-mail que eu procuro o Ethan e vejo
se ele pode me emprestar o notebook.
Angel: Vou te mandar, mas não faz merda.
Eu: Ok, coisinha carinhosa.
Angel: Não fui carinhosa, fui grossa mesmo. Agora para de falar e vai
organizar esse trabalho.
Rio, balançando a cabeça.
Eu: Eu amo você.
Angel: Trabalha, Hopkins!
Deixo o celular na bancada, saindo apressado do quarto. Oh mulher que
me causa dor na bunda.
Procuro Ethan pela sala toda, constatando que ainda não chegou do
trabalho. Donna e Blue teriam treino agora de tarde, o que me resta recorrer
ao Vance. Sei que ele está em seu quarto, mas a gente não se falou desde
seu surto no vestiário.
Espero que não me mande à merda, porque eu teria que avisar que já
estou nela.
Bato na porta, torcendo para o humor dele estar mais razoável do que de
costume.
— O que foi? — pergunta do outro lado da porta sem abri-la.
Muito carismático.
— É o Francis. Meu computador deu pau, será que posso usar o seu um
minuto para o meu trabalho?
— Espera aí.
Balanço o corpo para frente e para trás, ouvindo alguns barulhos dentro
do quarto. Vance abre a porta parcialmente, apenas o bastante para sair por
ela com um notebook em mãos.
— Onde? — ele me avalia.
— Pode ser no meu quarto.
Vance não me entrega o notebook, apenas entra no meu quarto, o ligando
em cima da minha bancada, ao lado do computador morto.
— Eu preciso entrar no meu e-mail, tudo bem?
— Deixa só eu sair do meu — ele se põe na minha frente e logo sai do
seu e-mail, a tela de login aparecendo para mim. Coloco meu usuário
tranquilamente, mas na hora da senha, minha mente dá um nó.
Porra, eu tinha a senha salva no meu computador, faz anos que não
preciso logar nessa merda, não lembro o que diabos coloquei de senha.
— Fodeu... — Coço a cabeça.
— O que foi?
— Não lembro minha senha.
— Só tem esse arquivo no e-mail?
— Pedi a Angie que mandasse por lá.
— Faz login do seu WhatsApp no meu computador e pede para ela te
enviar.
— Boa, garoto! Salvou minha pele. — Bato nas costas dele, agradecido
por essa iluminação.
Mando mensagem para Angelina me encaminhar pelo aplicativo de
mensagens e eu juro que posso imaginar com clareza a expressão indignada
dela, principalmente pela sua mensagem nada contente.
 
Angel: Pelo amor de Deus, quem é que esquece a senha do próprio e-
mail? Você não anota essas coisas? O meu filho tá na barriga, mas tenho
um grandão pra cuidar também. Assim que eu chegar em casa vou anotar
todas as suas senhas em um caderninho.
Ps: eu também amo você.
 
Essa mulher vai me deixar louco.
Faço login no meu WhatsApp pela versão web e baixo o arquivo que
Angelina mandou. Levo quase três horas para refazer meu trabalho e Vance
me auxilia por todo o tempo, fiscalizando o que mexo no seu computador.
Ele acha o que? Que vou pesquisar seu histórico no google? Não tenho
nenhum interesse em ver qual pornô ele assiste, se esse é seu medo.
Termino o trabalho e envio para Angelina, por via das dúvidas. Vou para
fechar as páginas que abri, mas Vance interfere.
— Pode deixar, eu vou usar e fecho tudo.
Ele pega o computador e eu levanto da cadeira, esticando minhas costas.
— Valeu, cara. Você me salvou.
— Não por isso — ele sorri satisfeito, mais satisfeito do que quando o
chamei em seu quarto.
— O que acha de jantar com a gente hoje? — convido, já que ele não
tem feito nenhuma refeição conosco desde que as meninas vieram para cá.
— Vou aceitar. Obrigado por querer minha presença.
Vance me abraça, me pegando completamente de surpresa. Retribuo seu
abraço, dando batidinhas em suas costas. Acho que no fundo ele só quer
atenção, só é difícil entendê-lo, principalmente quem não tem um carinho
preexistente às suas merdas.
— Essa é sua casa também, espero que possamos viver todos em paz.
— Nós vamos. — Ele me fita nos olhos. — Agora nós vamos.
 

 
Uso o carro de Angelina para buscar as meninas e ela no campus, já que
o meu foi para a revisão. Tive que me espremer para caber no banco sem
mudar muito o jeito que ela dirige. É um milagre que ela me deixe dirigir
esse carro, se eu ficar mudando o banco de lugar, vou ser decapitado.
Céus, como se dirige desse jeito?
Encolho os ombros, abaixo a cabeça e meus joelhos ficam encostados no
volante. O caminho é curto, mas o bastante para me deixar com as costas
em petição de miséria. Também é tempo bastante para notar que tem algo
de errado com o carro. Ele está fazendo um barulho estranho e é melhor que
eu o leve na oficina depois de deixá-las em casa. Angelina ficar dirigindo
com um possível defeito não é uma opção.
Estaciono em frente ao prédio, descendo do banco do motorista com
todos os meus ossos estalando. Angelina toma a posição do motorista e vou
para o banco do passageiro.
— Mexeu no meu banco? — é a primeira pergunta que me faz.
Reviro os olhos.
— Já te irritei o bastante com o trabalho hoje, então não.
— Esperto.
Donna e Blue ocupam seus lugares no banco de trás, discutindo algo
sobre suas posições na próxima animação de torcida.
— A propósito, quero levar seu carro na oficina — aviso.
— Eu ia fazer isso amanhã, ele está com um barulho estranho.
— Vocês ficam em casa e eu levo pra você — ofereço.
— É naquela dos alunos da USF, eles não são perfeitos, mas cobram
barato.
— Não se preocupe, eu te ajudo a pagar.
— De jeito nenhum e não estou aberta a negociações. O carro é meu e
você já está basicamente arcando com as contas da casa.
— Nem sou eu que arco com as coisas mais caras, o aluguel e gastos de
manutenção são pagos pelo meu pai, eu só ajudo nas compras.
— Que triplicaram, né lindo — Blue me lembra. Para se meter na
conversa alheia ela até para de brigar com a minha irmã.
— Ok, não está mais aqui quem falou… — Ergo as mãos, me rendendo.
— Ótimo, você leva pra mim e me manda uma mensagem com o valor.
— Mas tem certeza que quer consertar o carro com eles? — Faço careta.
— Os caras são bons, eles só são lerdos — Donna comenta. — A
maioria do campus faz serviço com eles.
— De qualquer forma eu vou levar, e se não resolver a gente procura
outra pessoa. Ok? — indago à Angelina.
— Ok. — Ela dá de ombros, prestando atenção na estrada. Minha garota
odeia que falem enquanto está dirigindo, então ficamos em silêncio o
restante do caminho.
Angel estaciona em frente à nossa casa e Vance está na garagem pronto
para sair com a moto. As meninas passam por ele sem cumprimentar e ele
as ignora igualmente. Essa porra é um saco, mas é melhor assim do que se
ficassem brigando.
—  Vai sair? — ele me pergunta.
— Vou levar o carro da Angie na oficina, ele tá com um barulho
estranho.
— Na oficina perto do campus?
— É, não acho o melhor, mas vai ser o jeito.
— Eu conheço os caras, eles cuidam da minha moto e faço alguns
serviços pra eles. — Arqueio a sobrancelha. E por serviço quer dizer vender
drogas. — Se você quiser eu vou junto, assim consegue um desconto.
— Vai ajudar a Angelina? — pergunto incrédulo.
— Vou ajudar você. Vai no carro e eu te sigo na moto.
— Mas e seu compromisso? Você estava saindo.
— Fica pra depois.
Vance sobe na sua moto e pega a estrada, me deixando pensativo. Já é a
segunda vez que ele me ajuda hoje e não fez qualquer menção de insultar
Angelina. Talvez estejamos entrando em algum consenso. Ele deve ter
percebido que sua atitude estava sendo descabida. Acabou afastando todo
mundo de si e agora vai tentar reconstruir esses laços. Eu não posso julgar,
já precisei fazer o mesmo.
Vou dar esse voto de confiança.
 

 
 
Eu descobri que não entendo porra nenhuma de carro. Foi pura sorte
Vance ter ido comigo na oficina, porque eu não saberia nem por onde
começar a explicar aos mecânicos. O deixei conversando com eles e só lidei
com a parte financeira. Deixamos o carro de Angelina por lá e Vance me
levou em casa de moto, saindo logo em seguida.
Não perguntei aonde ele ia, porque sempre tenho medo da resposta.
Geralmente não tem nada de lícito.
Vou direto para a cozinha, sentindo meu estômago roncar. Por sorte,
Angelina e Blue preparam alguma coisa ao fogão, enquanto Donna tira
selfie sentada à mesa. Entro na frente da câmera do seu celular, no momento
que ela registra uma foto.
— Ai, que horror! — Donna me empurra, olhando o resultado
desastroso. — Eu fiquei menos bonita que o de costume, vem tirar outra.
— Não quis dizer feia? — Faço um cafuné na sua cabeça.
— Irmãozinho, eu sou uma obra de arte. E assim como uma obra de arte,
nunca sou feia, no máximo sou moderna e à frente do meu tempo.
Gargalho alto, assim como Angie e Blue.
— Quero sua autoestima. — Sorrio para a nova foto que ela bate.
— Deus livre a humanidade de tanto ego! — Blue estala a língua
reclamando.
Angie parece prestes a dizer alguma coisa, mas se interrompe, colocando
as duas mãos na coluna com uma careta de dor. Chego perto dela tão rápido
quanto consigo piscar.
— Tudo bem? — Observo seu rosto.
— “Bem” seria mentira e “mal” seria exagero. Estou com dor nas costas
porque essa barriga tá pesando uma tonelada — ela choraminga e eu até
riria da sua carinha se eu não fosse perder um dente.
— Posso testar uma coisa para aliviar?
Angelina arregala os olhos.
— Francis… nós temos companhia aqui — ela olha disfarçadamente
para as meninas.
— E o que tem?
Os olhos dela faltam cair da cara. O que diabos deu nessa mulher?
— Você não vai me chupar na cozinha — diz entredentes com o rosto
ameaçando explodir de tanta vermelhidão.
E basta dois segundos para eu e as meninas explodirmos em uma
gargalhada estrondosa. Há três dias, ela estava com desconforto na lombar
antes de dormir, então eu apenas me encaixei entre suas pernas, afastei sua
calcinha para o lado e a chupei até que estivesse mole e sorridente na cama.
Tudo pelo bem da sua coluna, afinal orgasmos liberam endorfina.
— Eu não… — Tento respirar corretamente. — Eu não estava falando
disso.
— Ah não? — Angel cobre o rosto com as mãos, visivelmente
constrangida.
— A menos que você queira, amor. — A viro de costas, abraçando-a por
trás para poder falar ao seu ouvido. — Você sabe que eu tô sempre disposto.
— O que você queria testar de verdade? — ela muda de assunto
descaradamente e as meninas soltam risadinhas atrás de nós.
— Eu vou pegar abaixo da sua barriga, ok? — ela acena, um pouco
desconfiada. — Ótimo, agora endireite a sua coluna. — Angel melhora sua
postura, meu queixo se apoiando na sua cabeça. — Vou erguer um pouco
sua barriga e sustentar o peso com as mãos. Me fale se ficar desconfortável
ou causar alguma dor.
— Tudo bem.
— Vamos lá… — Ainda a abraçando por trás, levo minhas mãos para a
base da sua barriga, firmando a região. — Inspire fundo e expire.
Quando Angelina termina de expelir o ar, ergo sua barriga, tomando para
os meus braços o peso que ela sustenta.
— Ah, meu Deus! — Angelina joga o pescoço para trás, gemendo de
puro alívio. — Isso é bom… é muito bom.
Sorrio satisfeito.
— Não dói? — averiguo, ainda mantendo o peso. Eu não sei como ela
consegue andar assim o dia inteiro, realmente não é algo leve.
— Não, é a melhor coisa que você já fez — ela continua ronronando
como uma gatinha manhosa.
— Parece que ela está tendo um orgasmo — Donna zomba.
— Ah, não, é mais escandaloso quando ela tem um — brinco e Angelina
nem perde tempo me xingando, de tanto êxtase.
Fico assim alguns poucos minutos, tomando para mim o peso e deixando
sua coluna alinhada.
— Amor, não posso ficar assim por muito tempo, não é recomendado,
então vou soltando bem devagar, ok?
— Uhum.
Aos poucos, vou abaixando sua barriga, até que o peso volte para ela. Eu
ficaria assim o dia todo se isso não a prejudicasse.
— Bem? — Beijo sua nuca.
— Muito.
Angel ofega, virando para mim com um sorriso de fato aliviado. Coloco
uma mecha do seu cabelo para trás da orelha.
— Sempre que estivermos juntos vou fazer isso pra você de tempos em
tempos, tá? Só não podemos ficar muitos minutos nessa posição.
— Ensina pra gente — Blue pede. — Assim podemos ajudar também.
— Hum, é uma boa. Tudo bem pra você? — encaro Angelina, que dá de
ombros. — Venham cá, vou mostrar como fazer.
Minha irmã e ela ficam me observando enquanto mostro como levantar e
principalmente como soltar com cuidado.
— A cada hora, vocês podem fazer isso por uns cinco minutos.
— Tudo bem, vamos virar levantadoras de barrigas de grávida
profissionais — Don joga um beijo para Angelina. — É por isso que sou a
melhor madrinha.
— Por falar nisso… — hesito, oferecendo minha mão para a animadora
de torcida. — Preciso que venha até o jardim comigo, Blue.
— Eu? — Me encara curiosa.
— Outra pessoa aqui chama Blue? — Arqueio a sobrancelha.
— Se for ignorante comigo não vai ter ninguém chamado Francis
também.
Gargalho, segurando a mão que ela coloca sobre a minha.
Angelina sorri para mim, já sabendo o que vou pedir e mando um beijo
em sua direção.
Blue e eu nos deitamos parcialmente na rede pendurada na árvore,
encarando o céu com poucas estrelas. Continuo segurando sua mão,
brincando com os dedos finos e seus muitos anéis.
— Faz tempo que a gente não fica só nós dois, né — ela comenta.
— Faz mesmo, linda. — Beijo o dorso da sua mão. — Eu sinto falta de
você me xingar e eu te dar conselhos péssimos.
— Eu não seguia nenhum deles mesmo — ela desdenha com as mãos.
— Eu sei que não, teimosa… — Limpo a garganta, tentando encontrar
minhas palavras. Eu sou péssimo com isso, Angelina faria muito mais fácil.
— Você sabe o que vim pedir. 
— Eu sei. Mas quero ouvir você falar. — Blue também gosta de me ver
sofrer.
Fito os olhos esverdeados.
— Há alguns dias, seu primo me disse que foi ele quem havia me
ajudado a manter a sanidade nos dois anos que passei separado de Angelina.
— Engulo a saliva, negando com a cabeça. — Mas não foi. Não foi ele, não
foram as drogas, não foram os treinos e nem o estudo. Foi você. Desde o
princípio, você manteve minha mente no lugar, ainda que a sua estivesse
perdida também.
Os olhos dela marejam, mas Blue não perde sua pose.
— Você estava no seu pior momento, assim como eu — continuo. — E
como duas pessoas tentando encontrar seu caminho, nos ajudamos a não
tropeçar nas pedras que foram colocadas na nossa frente. — Sorrio para ela.
— Se almas gêmeas existem, então você é a minha, Blue.
— Pensei que fosse a Angie.
— Angelina e eu não temos a mesma alma. — Balanço a cabeça. —
Somos diferentes, ela é aquela que me completa, que sobra onde eu falto,
que tem o excesso onde eu tenho a escassez. — Aperto sua mão. — Você é
minha igual, Blue. Nossas almas são irmãs gêmeas. Não há arestas opostas,
apenas a outra face da mesma moeda. Uma é reflexo da outra.
Blue apoia a cabeça no meu ombro, me abraçando.
— Eu gosto bastante da minha alma gêmea — ela sussurra chorosa.
— Eu também. E é por isso que eu não poderia chamar mais ninguém
que não fosse você para ser a madrinha do meu filho. Ele ou ela, quero que
tenha uma amiga como eu tive. Uma pessoa que vai te escutar, te xingar e
talvez até jogar alguns objetos em você, mas vai estar do seu lado mesmo
que isso signifique esconder um cadáver. Quero que tenha uma pessoa ao
lado, que não importa o quanto erre, o quanto falhe ou o quanto esteja
quebrado, sempre vai estar ali. Uma pessoa como você. Linda como você é,
Blue Hale.
Minha melhor amiga esconde o rosto no vão do meu pescoço, chorando
baixinho. Faço um carinho nas suas costas, segurando minhas próprias
lágrimas.
— Eu odeio você — resmunga.
— Também te amo. — Dou uma risadinha.
— Conhecer você não me deu apenas o meu melhor amigo, mas me fez
conhecer a minha melhor amiga e também a garota por quem estou
apaixonada.
— Espero que a melhor amiga seja a Angelina e a garota por quem está
apaixonada a Donna, porque não aguento mais concorrência com a minha
loirinha.
Blue dá uma cotovelada na minha costela, com a força de um mamute.
Solto um gemido de dor, esfregando o lugar.
— Palhaço.
— Seja boazinha comigo, não vai querer deixar meu filho órfão.
Blue e eu nos provocamos e irritamos por um bom tempo, exatamente
como era antigamente. Nosso jeito torto e esquisito de fazer o outro se
sentir acolhido. Mas estranho ou não, sempre deu certo. Se estamos aqui
hoje, é porque deu certo.
Nem sempre será uma pessoa inteira que irá te ajudar a recolher seus
caquinhos. Às vezes, será uma pessoa que tem mais caquinhos espalhados
pelo chão do que você, que irá saber exatamente como pegar cada um sem
cortar os dedos. Nada ensina mais do que a dor e ninguém sabe mais do que
quem já sofreu. Por dor ou por amor, Blue e eu colamos nossos cacos,
tortos e disformes, mas ainda assim, inteiros novamente.
— Mas me diz… Angie me contou que seus tios estão te ajudando —
inicio o assunto.
Blue suspira, se deitando com as costas para o outro lado da rede e as
pernas em cima de mim.
— Eles ficaram sabendo do episódio na igreja e entraram em contato
comigo porque sabiam que meus pais teriam cortado meus cartões.
— E por que eles fariam isso? — desconfio. — Até porque eles fizeram
o mesmo com Vance.
— Ai que está, lindo. Eu fiz o mesmo questionamento para a minha tia, e
ela me disse que o motivo pelo qual cortaram o dinheiro do Vance nada tem
a ver com a sexualidade dele. Ela me disse que sempre soube que o filho
era gay e que isso não a afetava em nada.
— Não faz sentido, por que Vance mentiria sobre isso?
Blue me encara como se eu fosse burro.
— Para de ser ingênuo. Tudo que aquele garoto faz é manipular as
pessoas, e desculpe te informar, você é manipulável demais com pessoas
que se fazem de sofridas. Para com esse complexo de herói que precisa
salvar todos os excluídos do mundo. Você não é o centro de reabilitação
dele e meu primo com certeza não é o seu.
Como eu disse, ela ajuda, mesmo que seja quase te mordendo.
— Eu sei que Vance tem seus problemas, mas ele está tentando mudar.
Hoje mesmo me ajudou sem pedir nada em troca. — Passo a mão no
cabelo, exasperado. — E o que ele ganharia dizendo que os pais o
renegaram por ser gay?
— Pena — diz ela simplesmente. — Tudo que um manipulador tenta
buscar de outra pessoa, é pena. Assim ele se mostra indefeso, e não há
melhor momento para um predador atacar, quando sua presa pensa que ele
está morto no chão.
— Tá assistindo animal planet? — zombo e ela acotovela minha costela.
— Eu estou falando sério, lindo.
Suspiro.
— Eu sei. Mas eu sei me cuidar.
— Há provas do contrário.
— Ok, mas não estamos falando de mim, eu quero saber se seus tios não
estão te manipulando de alguma forma.
Blue estala a língua no céu da boca.
— Eu não sou tão fácil de enganar como você, acredite em mim. Eles
sempre me trataram bem e só estão me ajudando com dinheiro, sem cobrar
nada em troca. Minha tia até marcou uma consulta para mim na
endocrinologista.
Arqueio a sobrancelha.
— Eu tento te levar faz meses.
— Eu sei, mas eu detesto ir, porque ela sempre tem más notícias.
— E sempre vai ter se não se cuidar.
— Você definitivamente não pode me dar sermão sobre isso, Hopkins!
— Posso sim. Você é minha amiga e quero você bem.
— Você sequer se cuida.
— Tá errada, eu vou no oftalmologista essa semana.
Blue me mostra a língua, odiando perder uma discussão.
— Cabem mais duas pessoas aí? — Donna e Angelina caminham até
nós, segurando xícaras nas mãos, subindo vapor.
— Três — Angie corrige, olhando a barriga.
Sorrio, puxando Blue para o centro da rede comigo, dando espaço para
Angelina se deitar do meu lado e Donna do dela. Elas entregam as xícaras
que logo noto serem de chocolate quente.
— Eu já disse que amo vocês? — sopro o líquido escaldante, inspirando
o aroma que sobe em seguida.
— Eu não quero… pode ficar com a minha — Blue tenta me oferecer,
mas Angelina intervém.
— Eu quero a madrinha do meu filho forte. Como vai cuidar dele se não
comer?
Blue pensa em argumentar, mas contra o que Angelina falou, ela não
encontra nada bom o bastante. Mesmo irritada, bebe seu chocolate.
— Obrigado — sussurro no ouvido da minha garota, beijando logo
abaixo da sua orelha.
 

 
Os lábios de Angelina se movem lentos nos meus, apenas curtindo nosso
momento a dois. A melhor parte dos meus dias tem sido me deitar com ela
antes de dormir e aproveitar sua companhia sem a interferência de mais
nada. Minha mão acaricia sua barriga, sentindo o bebê se mover sem
descanso.
— O bebê está inquieto hoje.
— Uhum — ela assente, deitando a cabeça no meu peito. Seus dedos
brincam com as pintinhas que tenho na linha da clavícula. — Ele parece
querer arranjar espaço às custas das minhas costelas.
Mordo o interior da boca para não rir.
— Vou conversar com ele.
Escorrego na cama, aproximando a boca do lugar onde ele chuta.
— Oi, Brotinho Agitado. — Beijo onde imagino ser seu pezinho
empurrando. Meus dedos batucam contra a pele esticada, assim como faço
todas as noites. Isso costuma acalmá-lo.
— A gente precisa de um nome — Angelina caçoa.
— Você já pensou em algum?
— Não, só quero que seja um nome unissex. Não quero decidir só
porque vai ser menino ou menina.
— Eu gosto da ideia, mas não tenho nenhum em mente. — Beijo
novamente onde o bebê chuta. — Acho que tem que ser algo com
significado, um nome que seja especial pra gente.
Angelina franze o cenho, fuçando meu cabelo com os dedos. Sempre que
eu me abaixo para falar com o bebê, ganho um cafuné. Eu pareço aqueles
cachorros que se enroscam na perna do dono pra ganhar carinho.
Angelina parece ter uma ideia, sorrindo para mim com a expressão
denunciando que não vou gostar nada.
— Nosso filho não vai se chamar Darcy — aviso.
— Ah… por que não? — Angie tenta segurar a risada, mas a cara que
faço faz ela cair na gargalhada.
— Porque não vou dar o nome da sua paixão literária para ele. Além
disso, é um nome careta e antiquado demais.
Angelina me olha com tanto deboche, que quem precisa segurar a risada
sou eu.
— Como se Francis fosse um nome super moderno e atual.
Abro a boca perplexo.
— Meu nome é lindo!
— E velho — ela complementa. — Era o nome do primeiro marido da
rainha Mary Stuart do século dezesseis. Mais velho que o Darcy, que é
retratado no século dezenove.
Bufo, olhando para sua barriga.
— Você não vai se chamar Darcy, Brotinho. A sua mãe quer colocar o
nome do cara que ela secretamente me trai, olha que absurdo.
— Secretamente? — Angie zomba. — Eu faço na sua frente mesmo.
Choramingo, balançando a cabeça.
— Não me faça sofrer, mulher.
Angelina puxa meu rosto para si, penteando minhas sobrancelhas.
— Falando sério agora, eu não tinha pensado em Darcy. É referente a
livros, mas não ao personagem dele.
Franzo o cenho.
— Não entendi.
— Vem aqui… — Ela bate no meu travesseiro e volto para cima, me
deitando ali. — Agora olha para frente, às 3 horas.
Inclino o rosto para a direita, onde imagino ser às três horas no ponteiro
de um relógio. Eu sempre fui meio lerdo pra ver isso. Observo minha
prateleira na parede, com alguns livros dela que escaparam do incêndio no
dormitório.
— O que tem?
— Vê o livro de lombada verde-claro?
Estreito os olhos, praguejando minha visão de merda.
— Uhum — digo quando encontro o exemplar.
— Lembra que livro é esse? — Escuto o sorriso na voz dela e viro de
lado para observar seu rosto. Não aguento a tentação e beijo os lábios com
gosto de pasta de dente.
— Gostosa. — Roubo outro beijo antes de voltar minha atenção para a
prateleira. — Não consigo ler o nome daqui.
— Posso te dar uma dica.
— Manda.
— Tem a minha palavra favorita no livro e foi presente da minha pessoa
favorita também.
Um sorriso vai esticando meus lábios conforme me lembro de nós dois
no farol de Cape May.
— Então o nome…
— O nome seria a minha palavra favorita — Angelina complementa
minha frase e meu coração acelera. Coloco a mão sobre sua barriga, me
inclinando sobre ela novamente.
— Você vai ser muito amado ou amada, Garden. — Beijo a região, mal
podendo esperar para ter esse bebê em meus braços. — Só espero que não
pense que seu nome foi homenagem ao lugar que você foi concebido.
Gargalho quando Angelina me xinga e bate na minha cabeça.
Garden.
Eu disse que essa também havia se tornado minha palavra favorita, eu só
não imaginava que ela também seria o nome da minha nova pessoinha
favorita.
 

 
 
Termino a última prova mais rápido do que pensei que conseguiria e faço
uma nota mental para agradecer Jayden por isso. Ele foi lá em casa quase a
semana toda para estudarmos para as provas finais antes das férias de verão.
Como meu veterano, ele tinha algumas anotações em seu computador que
salvaram minha pele.
Corro para o estacionamento, quase atrasada para a minha consulta com
a doutora Montserrat. É a primeira vez que vou ver o bebê. Francis já deve
estar a caminho de lá, porque saiu da sua consulta no oftalmologista que é
no mesmo hospital. Ele tem tido muitas dores de cabeça e dificuldade para
ler, então eu meio que o obriguei a consultar. É no mínimo irônico que
sendo ele da área da saúde, se recuse a cuidar da própria. Eu me lembro que
Robert dizia que um médico sabe cuidar de todos, menos de si próprio e
agora eu tenho que concordar.
E por falar no meu sogro, Francis está estranho em relação a ele. Eles
ainda se falam quase todos os dias, mas sinto que há um clima tenso nas
conversas, e na maioria das vezes, Francis se afasta de mim para atender às
ligações. Hoje irei confrontá-lo sobre isso. A gente se comprometeu a falar
um com o outro a partir de agora. O princípio de todas as nossas brigas e
afastamentos foram exatamente falta de diálogo e não vou permitir que algo
assim aconteça de novo.
Entro no meu carro, que chegou da oficina hoje, conferindo os espelhos.
Ele não pega de primeira e nem de segunda, apenas quando giro a chave
uma terceira vez, que começa a funcionar.
— Merda, se eu tiver que gastar de novo, mato aqueles mecânicos! —
Bato no volante irritada, pegando a saída do campus. O dinheiro que ganho
na biblioteca dá para pagar os custos com alimentação, mas não sobra muito
para ficar gastando com coisas caras como carros. Eu tenho uma poupança
no meu nome, que meu pai me informou estar alimentando até hoje, mas eu
não quero o dinheiro deles. É um pouco injusto com Francis, que tem
arcado com a maior parte das coisas, mas ele também não quis que eu
pegasse esse dinheiro. Segundo ele, Robert o ofereceu um empréstimo para
pagar depois de se formar e Francis disse que pensaria a respeito.
Estaciono o carro na primeira vaga que encontro e corro para dentro do
hospital. Passo pelo saguão já querendo ir em direção ao terceiro andar, mas
antes de virar no corredor dos elevadores, escuto a voz do nadador. E ele
não parece nem um pouco paciente.
— Pai, quando é que você vai vir aqui? Pelo amor de Deus, você quer
me deixar maluco? Não aguento mais pensar na possibilidade daquela
mulher estar falando a verdade. — Ele fica em silêncio e me recosto contra
a parede, escutando. — Eu sei que você não pode deixar a clínica a
qualquer momento, mas pelo menos me diz que não é verdade, porque eu
preciso me preparar para o inferno que vai virar nossas vidas se for. —
Escuto os passos dele, como se andasse de um lado para o outro. — Tá. Tá
bom. Tchau.
Francis está puto. Puto com Robert, pela segunda vez. E eu só consigo
pensar na única coisa que seu pai teria para explicar. Minha paternidade.
Um frio gélido percorre minha coluna.
Eu não quero pensar nisso agora. Seja lá o que Robert tenha para dizer,
espero que demore. Ou que não diga. Não quero saber. Se eu vivi minha
vida sem essa informação até agora, então que se foda; não preciso dela.
Acho que por isso preferi ignorar o que minha mãe falou. Seria coisa
demais para administrar e estou fazendo bom uso da minha memória
seletiva. A partir de agora, só lembro o que me interessa, o resto que se
exploda.
Espero pelo barulho das portas do elevador se abrindo e depois
fechando, tendo certeza de que Francis não me pegou ouvindo. Vou ter essa
conversa com ele, mas definitivamente não agora.
Chamo o elevador e entro no consultório da doutora Montserrat com o
coração apertado.
— Angel — Francis ergue o braço para que eu o veja e seu sorriso
derrete meu humor amargo em segundos. Ele está com uma revista nas
mãos, sentado entre duas grávidas que o encaram descaradamente. Seguro a
risada.
Sim, ele é lindo… E meu. Olhem minha barriga, ele colocou uma
criança aqui!
Francis se levanta e beija minha boca, um pouco demorado demais para
estarmos em público, mas não ouso reclamar. Assim que se afasta, ele me
faz sentar na cadeira que estava anteriormente e vai até a recepcionista
talvez para conferir nosso horário. Mordo o lábio, passando os olhos por
suas costas, até sua bunda que está incrível na calça cáqui, colada na região.
Céus, ele está delicioso.
Pego a revista e me abano.
Escuto a risadinha de uma das mulheres do meu lado e ignoro. Há um
minuto, elas estavam babando por ele também. Francis volta na minha
direção, me oferecendo um chiclete de melancia.
— Daqui dez minutos somos nós. — Ele sorri, esfregando as mãos.
— Alguém parece animado — brinco.
— Claro que estou, vou ver nosso bebê.
Meu coração ainda dá cambalhotas toda vez que ele diz isso com
orgulho explodindo nos olhos. Quando a médica nos chama, Francis me
ajuda a levantar e segura minha mão para entrarmos no consultório. A
doutora sorri quando nos vê assim, já que é a primeira consulta que
realmente estamos bem e juntos novamente. Ela me entrega o robe para que
eu me troque na cabine e faço isso rapidamente, me deitando em seguida na
maca. Não entendo essa privacidade, já que em alguns minutos ela vai estar
com a cara entre minhas pernas e com uma lanterninha pra ver tudo dentro
de mim.
— Hoje vamos ver o ultrassom — aviso.
— Francis me disse quando marcou a consulta. — Ela me olha com
gentileza. — Está cem por cento de acordo com isso?
— Sim. Estou cem por cento de acordo.
— Ótimo. — Ela passa o gel gelado na minha barriga. — E vocês vão
querer saber o sexo?
— Não — respondemos juntos.
— Bom, agora é um pouco fácil que vocês identifiquem o sexo do bebê,
então quando eu perceber que vai ficar claro para vocês, vou pedir que
fechem os olhos.
— Tudo bem — assinto. — De qualquer forma, eu já tenho um palpite.
— É mesmo? — Francis aperta minha mão. — Qual?
Sorrio, balançando a cabeça.
— Apenas algo que vi nos meus sonhos. Mas não vou te contar.
Ele resmunga, mas cessa assim que a doutora liga o monitor.
— Podemos começar?
— Uhum — Balbucio com a emoção ameaçando atravessar minha
garganta.
Inicialmente é apenas uma bagunça de cores preta, cinza e branco, mas
um segundo depois, o formato do bebê aparece perfeitamente, movendo as
perninhas e bracinhos. Meus olhos ardem, porque agora não apenas sinto,
mas vejo onde ele me toca. De repente, todo o medo e assombro que senti
com seus movimentos parecem infundados. Porque é bonito. É algo muito
bonito. Não me dou conta de que aperto a mão de Francis, até que ele aperte
a minha de volta.
— Vocês conseguem ver? Aqui estão os pezinhos, os dois bracinhos e
ele está em uma posição sentada, com a cabeça para cima. — Ela ri. — O
bebê de vocês é bem agitado e ainda mantém a mania de chupar o dedinho.
— Cadê? — Ergo o tronco na maca tentando ver melhor, mas Francis me
empurra gentilmente de volta, beijando minha testa.
— Ali, amor — ele indica onde devo olhar no monitor — Garden fez
isso quando o vi pela primeira vez… parece que nosso bebê também gosta
de uma rotina.
Tiro os olhos do monitor por um segundo, sendo o bastante para ver o
motivo da voz dele estar rouca e arranhada. Francis está lutando contra as
lágrimas e perdendo feio. Limpo com o polegar uma que escorre em sua
bochecha e volto a olhar a tela, vendo meu Serzinho sugando avidamente
seu dedo. É adorável. Apenas isso, incrivelmente adorável.
— Eu queria ter visto naquela época — digo com um pouco de culpa.
Acho que sempre vou sentir, porque eu deveria ter visto meu bebê, não
deveria ter me recusado. Eu tinha a obrigação de ser mais forte. Desde que
engravidei, descobri que o sentimento que mais me acompanhou durante a
gestação foi a culpa. Será que para todas as mães é assim? Uma infinidade
de motivos para se responsabilizar e se achar inferior?
— Na verdade, você pode. — Montserrat olha para Francis e ele assente,
ficando com as bochechas avermelhadas.
— Como assim? — indago confusa.
— Só um minuto.
A mulher vai até sua mesa, pegando uma pequena pasta na mão e me
estendendo. A abro curiosa, arregalando os olhos ao ver pequenas polaroids
com fotos das ultrassonografias de todas as vezes que vim até o consultório.
Pego uma em mãos, com o bebê com o dedinho na boca, quando estava
com 14 semanas, exatamente quando Francis o viu pela primeira vez.
Olho para ele buscando explicação e ganho um jogar de ombros.
— Pedi que a doutora registrasse os ultrassons, porque eu não queria
correr o risco de me arrepender. Eu precisava de registro em fotos, mesmo
que não tivesse o Brotinho comigo. — Seu pomo de adão estremece com a
força que faz para engolir. — Por muito tempo, quando você ainda morava
em Cape May, as nossas fotos foram o que me mantiveram são. Vivo. Eu
precisava ter isso do nosso filho também, algo do que me lembrar. —
Francis coça a nuca, sem graça. — Desculpe se não te falei.
Bufo incrédula.
— Desculpe? — Nego com a cabeça. — Só pode estar maluco por me
pedir desculpa pelo presente mais lindo que poderia me dar. — Separo foto
por foto, amando ver que na maioria seu dedinho não abandona sua boca.
— É fofo — Francis beija minha testa, olhando as fotos. — Espero que
se pareça com você.
Olho para ele, para seus olhos, para as íris azuladas, para o mar dentro
delas e nego.
— Eu só espero que tenha seus olhos.
Ele beija meus lábios tão carinhoso e gentilmente, que me esqueço até
mesmo de onde estamos. Francis se afasta cedo demais e encaro a doutora,
que sorri discretamente para nós.
— Querem ouvir o coração?
— Por favor — me apresso em falar.
Ela aperta algo no monitor e logo um som ritmado, constante e forte
invade meus ouvidos.
Pisco para a tela, vendo o pequeno bebezinho se mover dentro de mim,
tão frágil, mas ao mesmo tempo, tão forte. Esse batimento com certeza é de
um lutador, de alguém que está ansioso para viver, de alguém que combina
com a perseverança do homem que chora ao meu lado sem qualquer medo
de mostrar a sua fraqueza. Ou deveria dizer a sua maior força? Porque eu
tenho certeza, nada nunca o afetará tão genuinamente como esse bebê,
assim como ele destruiria e acabaria com qualquer coisa que o ameaçasse.
Sua testa paira sobre a minha e ele nos une dessa forma, suas lágrimas
derramando em meu rosto.
— Obrigado, Angel. Obrigado…
Assinto, o deixando lavar sua alma dessa emoção mais uma vez. E nada
nunca será tão bonito do que vê-lo se desfazer sem amarras. Nosso filho
está derrubando todas as barreiras que Leonor obrigou Francis a erguer. O
nadador está finalmente aprendendo a sentir sem medo. Tanto a tristeza
quanto a alegria.
E espero que nunca mais desaprenda.
 

 
— Nós precisamos falar sobre o parto, Angelina — Montserrat anota
minhas medicações no receituário.
Respiro fundo, suor acumulando na minha testa só de pensar.
— Eu quero parto natural.
— Você sabe que necessariamente pessoas vão tocar em você, certo?
— Eu sei. Mas a ideia de ficar deitada numa mesa com minha barriga
aberta e sem conseguir sentir meu corpo, com pessoas fuçando dentro de
mim, é ainda mais assustador. — Procuro os olhos de Francis. — O que
você acha?
— Se tem alguém que consegue fazer isso, esse alguém é você. — Ele
entrelaça nossos dedos sob a mesa. — Tenho certeza disso.
— Ótimo. — Montserrat escreve alguns nomes e telefones em um papel.
— Você disse parto natural, então imagino que queira uma doula.
— Sim, mas quero ter o bebê no hospital, não quero correr riscos.
— É o melhor, Angie. Principalmente porque o bebê tem estado sentado
durante toda sua gestação e se ele não se virar e encaixar, precisaremos ou
realizar uma manobra para virá-lo ou realmente recorrer a uma cesariana.
Meu sangue gela.
— Se for preciso uma cesariana, não quero que pensem duas vezes,
apenas façam! — Seguro o braço de Francis com força — Eu quero que
você me prometa que vai fazer o que for preciso para nosso bebê nascer
saudável. Não importa o que precise decidir, será ele.
Algo nebuloso atravessa o azul claro. Ele não diz nada, como se seu
corpo tivesse sido tomado por um pavor paralisante.
— Francis, me prometa — insisto. — Me prometa que fará tudo e
qualquer coisa para o nosso bebê nascer saudável, acima de tudo, inclusive
de mim mesma.
— Nada vai acontecer com vocês — sua voz é quase um rosnado, como
se desafiasse o mundo a ousar tocar em nós dois.
— Me prometa.
— Nada vai acontecer com vocês dois, Angelina.
— Por favor... — imploro. Os olhos dele me mostram uma batalha
interna e seus dentes cerram a ponto de o maxilar projetar para o lado.
— Eu prometo.
Respiro aliviada, assentindo.
Porque eu sei, que mesmo que isso o mate por dentro, ele nunca
descumprirá essa promessa.
 

 
 
Observo o jardim da minha casa de boca aberta. Quando pedi que Blue o
decorasse para que eu pudesse tirar fotos, eu não esperava que ela fosse
fazer isso. Ao menos não com o tempo escasso. Nossa sorte é que as férias
de verão finalmente começaram.
Angel completa oito meses de gravidez hoje, então ontem depois que
cheguei do trabalho pedi que Blue pensasse em alguma decoração para as
fotos. Ela teve o prazo da madrugada até hoje de tarde para transformar o
quintal em um verdadeiro jardim, com um balanço de madeira pendurado
na árvore e suas cordas envoltas por lírios e folhagens verdes. Na grama, há
vasos de flores, com tulipas, rosas, magnólias e girassóis. Cada um
formando um bonito arranjo, por cima dos tecidos brancos que ela estendeu
pelo gramado.
Eu consigo ver perfeitamente cada lugar e cada pose que pedirei para
Angelina fazer. Ela está deslumbrante, já é mais bonita do que jamais foi
antes, um completo milagre, e aqui nesse jardim, com as roupas que Donna
preparou, tenho medo de que meu coração para de bater antes que eu seja
capaz de bater as malditas fotografias.
Rio de mim mesmo, porque sei que isso só vai piorar. Essa mulher vai
ser a causa da minha morte precoce se continuar ficando mais linda a cada
segundo. Meu coração não vai aguentar olhar para ela por toda a vida sem
ter um único infarto.
Josh e Ethan se jogam no gramado depois de pendurarem uma última
rosa na árvore e me junto a eles. O sol ainda está aparecendo, embora já não
seja forte para incomodar. Me sento, enlaçando o pescoço de Josh com o
braço.
— Como você está? — beijo sua cabeleira preta. Ele se aconchega em
mim, deitando a cabeça no meu peito. Carente.
— Eu tô apaixonado.
Arqueio a sobrancelha.
— Eu já estou comprometido, foi mal. Mas se não tivesse, o próximo da
fila seria você.
Josh soca meu estômago, resmungando.
— Não é por você, para de se achar.
— Ele acha que só porque tem os ombros largos conquista todo mundo
— Ethan arranca um pouco de grama e joga em cima de mim.
— Não é só meu ombro que é largo — pisco e Ethan finge vomitar.
— Todo mundo sabe que sou o mais gato aqui. — Josh joga os cabelos
para trás.
— Ok, a gente tem que concordar — assinto, bagunçando os fios… que
voltam para o lugar. É impossível bagunçar o cabelo dele, porque mesmo
em desordem é mais arrumado que o meu. Acho que deve ser por isso que a
Angie ama ficar perto dele, é sempre tão arrumadinho.
— Só porque você tem cara de neném e as mulheres gostam disso —
Ethan resmunga invejoso.
— Os caras também — Josh balança as sobrancelhas.
— Então conta, por quem tá apaixonado? — fico curioso. Ele não se
envolveu seriamente com ninguém depois do Vance.
— Pelo enfermeiro do campus.
Tusso uma risada.
— Eu vou querer saber dessa história ou é imprópria para meus ouvidos?
— Imprópria para os ouvidos foi o que escutei do seu quarto ontem —
Ethan balança a cabeça, indignado. Sorrio só de lembrar. Ah, aquela manhã
foi realmente boa.
Angelina está literalmente com fogo subindo pelo corpo. Sua libido é
algo que estou em completo choque, porque eu não podia imaginar que os
hormônios a deixariam tão acesa assim. No dia que Ethan nos escutou,
Angie havia dormido de conchinha com o travesseiro e eu estava
completamente largado do outro lado da cama. Acontece, que ela começou
a se mover inquieta, até ficar com as costas no meu peito e a bunda
perfeitamente encaixada no meu pau. Eu juro que tive uma conversa interna
com ele para não subir, mas definitivamente não obtive nenhum resultado.
Nem podia culpar o coitado, porque ela ficou rebolando como se tivesse
formiguinhas na bunda e eu já estava a um passo de sair gritando. Só não
fiz isso porque escutei a risadinha dela quando comecei a choramingar. A
diaba estava acordada e muito consciente do que estava fazendo. Foi tudo
calculado e premeditado para me fazer encontrar Jesus mais cedo. Ele só
não veio me buscar porque a cena que se seguiu não foi nada decente.
Minha garota olhou para trás, sorrindo travessa do seu feito e apenas
disse que me queria desde a noite anterior e que ficou me esperando chegar
do trabalho, mas que o sono a tinha vencido. Saber que ela estava me
esperando excitada foi a minha ruína, principalmente porque seu desejo
permaneceu até a manhã seguinte. E naquela mesma manhã, apenas peguei
em uma de suas pernas e a puxei para trás sobre meu quadril, aproximando
mais meu peito de suas costas. Não perdi tempo tirando a calcinha que ela
usava por baixo da minha blusa branca, eu apenas afastei o tecido para o
lado e me enterrei nela completamente, até suas dobras molhadas
encontrarem minha pélvis. Eu estava tão fodidamente dentro dela, que
sequer queria me mover, aquele aperto molhado, quente e macio eram o
suficiente para mim. Mas não para ela, porque Angelina moeu seu quadril
contra mim, buscando seu alívio e não tive opção a não ser segurar em seu
ossinho do quadril e a foder lentamente, abandonando seu corpo e voltando
tão devagar que a escutava praguejar meu nome e implorar para que eu
fosse mais rápido. Quando todo seu corpo estremecia contra o meu, não
suportando mais esperar por seu alívio, levei a mão para frente do seu
corpo, beliscando seu clitóris e bombeando duro dentro dela, sentindo suas
paredes se fecharem quase dolorosamente envolta do meu pau. Naquela
manhã, Angelina não se importou que a casa inteira pudesse escutá-la
gemer o meu nome. E eu muito menos me importei de ouvir saindo dos
lábios dela.
— É, aquele dia foi bom — suspiro com um sorriso idiota no rosto.
— Meu caso com o enfermeiro parece mais puro do que o lugar para
onde essa sua imaginação te levou — Josh caçoa.
— Então já está tendo um caso com ele? — indago.
Josh dá de ombros.
— Eu vou muito à enfermaria porque furo o dedo durante as aulas de
costura, e a gente ficou amigo. Só que parece estar rolando um clima a
mais, entende… pelo menos da minha parte, eu nem sei se ele curte caras.
— Você fura o dedo pra encontrar com ele? — Ethan abre a boca. — E
depois ainda me chamam de ardiloso.
— Quem te chama de ardiloso? — Faço careta.
— A última garota com quem saí. Ela disse que eu era ardiloso porque
conseguia tudo que eu queria só com a minha lábia.
Cubro a boca para não rir.
— Ela tava bêbada? — zombo.
— Só se for do orgasmo que dei pra ela. — Ergue o dedo do meio pra
mim. — Talvez dois.
— Vocês são horríveis. — Josh bate nas nossas pernas. — Eu não furo o
dedo de propósito pra ir na enfermaria… — Arqueamos a sobrancelha. —
Tá, talvez eu tenha feito isso uma ou duas vezes, mas eu juro que nas outras
foi verdade.
Ethan e eu curvamos o corpo de tanto rir, rolando na grama.
— Eu não conto mais nada pra vocês! — Josh emburra com os braços
cruzados, mas nem isso nos faz parar de rir.
— O que os três patetas estão fazendo rolando em cima da minha
decoração? — Blue entra no jardim como uma horda de demônios,
enxotando nós três a base de tapas. — Angelina já está descendo e quero
esse cenário impecável. Aliás… — ela empurra minha Canon no meu peito.
— Já comece a aprontar seja lá o que vocês fotógrafos fazem.
Seguro minha câmera, para ver se a doida não a quebrou com sua
delicadeza.
— Grávida passando! — Donna grita da porta de correr e giro o pescoço
lentamente, dando um passo à frente com a visão que tenho da minha
garota.
— Porra… — ofego e Ethan bate nas minhas costas, desejando boa
sorte. Eu vou precisar, amigo. Vou sim. Levo a mão ao coração, tentando
mantê-lo no lugar e batendo decentemente.
Angelina caminha na minha direção com um top branco cobrindo seus
seios, apenas uma faixa os contornando, a barriguinha — que de
barriguinha já não tem nada —, descoberta e brilhosa, talvez de algum dos
inúmeros cremes que ela passa. Na parte de baixo, ela usa uma saia
transparente, de tecido esvoaçante, que mostra apenas o curto shortinho por
baixo, igualmente branco. Mas o que me arrebata está em suas costas,
despontando para o lado majestosas e brilhantes.
Asas.
Asas como a de um anjo.
Meu anjo.
Seus cabelos caem como cascatas à frente de seu corpo, apenas duas
mechas da frente presas para trás em uma trança despojada. Ela para a uns
cinco metros de distância de mim e ergo o dedo indicador, o rodando,
indicando que é para ela dar uma voltinha. Minha garota sorri timidamente
e dá uma volta, me permitindo ver as asas brancas com penas que parecem
ser incrivelmente macias, e um lírio preso onde as duas tranças se unem
atrás da cabeça. Ela volta a ficar de frente para mim e faço uma pequena
reverência.
— E então? — pergunta ansiosa. — Estou bonita?
— Não mesmo — acabo com a distância entre nós e seguro seu rosto
entre as mãos. — É um sacrilégio te qualificar por algo tão banal quanto
“bonita”. Você está esplêndida. É quase uma miragem, Angelina.
— Quase?
— Quase, porque ao contrário de uma, eu posso te tocar... Você é real.
Estalo um selinho nos lábios brilhosos, sentindo gosto de melancia.
Passo a língua por eles, provando novamente.
— Para de tirar o gloss que eu passei nela! — Donna me puxa pela
camiseta. — Você tá aqui pra tirar fotos.
— Eu quero que você apareça em algumas fotos comigo — Angel me
surpreende ao falar. Olho para minhas roupas, fazendo careta.
— Não tava preparado pra isso. Você vai parecer uma miragem e eu uma
assombração.
Ethan tosse uma risada e ergo o dedo do meio para ele.
— Eu vou tirar as fotos de vocês dois. — Donna revira os olhos. — E
você vai ficar apenas de calça jeans, querido irmãozinho. Nunca viu ensaio
de grávida? O cara é só coadjuvante, só pra não dizer que não apareceu.
Arqueio a sobrancelha.
— Porra, valeu. Me sinto muito importante agora.
— De nada — ela pisca, me empurrando para ir tirar logo as fotos antes
que a luz natural vá embora.
— Onde eu devo ficar? — Angelina olha para a decoração confusa,
quase batendo a ponta da asa no olho do Josh. Ele se abaixa a tempo, saindo
de perto.
— Vamos começar as fotos em pé, porque quando você se cansar
fazemos com você sentada no balanço. — Indico os tecidos no chão com
arranjos de flores. — Você pode ficar em cima desse primeiro, de costas
para a árvore.
Instruo como ela deve ficar e ajusto a lente da Canon, regulando melhor
o ângulo.
Como costumava ser, Angelina é minha melhor modelo. Sempre foi. Eu
não preciso dizer quando ela deve se mover ou que pose fazer, porque essa
mulher respirando fica infernalmente bonita. Ela repousa as duas mãos
sobre a barriga, seu rosto virado ligeiramente para a lateral, as asas brancas
despontando e tornando tudo quase irreal. Ela é quase irreal. Boa demais
para existir.
— Cobre os seios com as mãos — instruo e ela envolve seu colo com
um dos braços, mas o top branco ainda aparece pelas laterais. — Donna,
desamarra para ela.
— Está a fim de mostrar meus peitos pra todo mundo? — Angelina me
encara incrédula.
Meu sangue esquenta só de pensar qualquer um olhando pra eles.
— Claro que não, seus braços vão estar na frente. E se não notou, Ethan
e Josh entraram em casa assim que a palavra seio saiu da minha boca.
Angelina procura meus amigos onde eles estavam anteriormente e solto
uma risada.
— Medrosos… até parece que você dá esse medo todo — ela zomba.
— Não é por medo de mim.
— Pelo quê então?
— Por respeito a você. — Sorrio. — Eles são seus amigos também, não
só meus.
— Ah… — sua carinha de surpresa ainda me encanta.
Donna desfaz o nó do top dela e o deixa cair no chão. Angie posiciona o
braço corretamente sobre os seios.
— Fica de frente pra mim, amor. — Agacho a uma distância boa e
inclino a lente, pegando a visão de baixo para cima. — Agora ergue um
pouco seu queixo e olha para as folhas da árvore… isso, perfeita. Fica
assim, linda.
Apoio melhor o joelho no chão, batendo o flash, que misturado à luz do
crepúsculo, forma tons alaranjados, combinando com as flores alocadas nos
galhos da árvore.
Tiro mais algumas fotos dela sozinha, até que Donna tome a câmera da
minha mão e me faça tirar a camiseta. Estremeço na mesma hora de frio e
os pobres dos meus mamilos endurecem.
— Ai, cacete de vento frio. Por que essa cidade tem que ventar tanto? —
Esfrego os braços e Angelina me olha de cara amarrada.
— Eu tô com os peitos pra fora tem meia hora e você reclama só de tirar
a blusa?
— Você é claramente mais resistente que eu.
Beijo sua têmpora, posicionando-me em suas costas.
— Coloca você o braço sobre o seio dela agora — Minha irmã instrui.
— Só um segundo. — Sopro devagar minha mão, tentando trazer um
pouco de calor e esfrego meu antebraço, onde vai entrar em contato com
ela. Quando minha pele já não está gelada, Angie abaixa seu braço e eu a
cubro com o meu.
— Ah, sua mão tá quentinha — ela ronrona e sorrio contra sua orelha.
— Fica tranquila que vou te aquecer mais tarde.
— Ei! — Blue grita com a gente. — Menos putaria e mais pose.
Dou língua para ela e cubro a barriga da Angel com a mão livre. Ela
repousa as suas igualmente. O bebê se mexe agitado e sorrio, acariciando
sua pele com o polegar.
— Eu não sei como, mas ele sente quando você está perto — Angie
sussurra.
— Deve ser porque o seu coração acelera e vira uma sirene para o
coitadinho.
— Palhaço! — Ela me dá uma cotovelada e ficamos quietos de uma vez,
antes que Donna dê na nossa cara.
Não sorrio, não sou bom como modelo. Eu sou bom tirando fotos. As
asas de Angie fazem cócegas no meu peito, mas permaneço sério.
— Angie, vira o pescoço e olha para ele, Francis você olha pra ela
também.
Giro ligeiramente o rosto para o lado, capturando as íris castanhas. Perco
a linha de raciocínio por alguns segundos, apenas perdido no que vejo
estampado ali.
. Se a câmera fosse capaz de capturar tudo que se passa por nossos
olhares, eu provavelmente esconderia essa foto do mundo. O sentimento
que transborda quero guardar só para mim, onde ninguém possa tocar e
estragar.
— Eu amo você — gesticulo com a boca e ela sorri.
— Eu sei.
Sorrio de volta.
— E eu amo nosso bebê — complemento.
— Eu sei.
Quando nos viramos de frente novamente aos comandos de Donna,
Angelina sussurra:
— Nós te amamos também, Francis.
Nesse momento, eu sorrio para a foto. Espero que Donna tenha
conseguido capturar.
Porque foi um dos sorrisos mais sinceros que dei na minha vida.
 

 
 
Ainda bem que sou atleta e não modelo, porque tirar fotos por horas é
exaustivo. Chegou um ponto, que eu estava com vontade de fazer o Francis
engolir aquela câmera. Estou começando a achar que ele tem uma leve
obsessão por mim, porque só isso justifica tanta foto. Garden nem nasceu e
tem um book mais completo que muita modelo por aí.
Enxugo o rosto depois de tirar a maquiagem e me enfio em uma boxer
do Francis, já que minhas calcinhas estão me apertando. Pego também o
blusão que ele vestiu ontem para dormir. Particularmente estou amando usar
suas roupas; são largas e cheirosas.
— Pode tirar a blusa. — Francis estala a língua, pegando o óleo em cima
da mesa de cabeceira. Todas as noites é a mesma rotina, ele passa tanto óleo
em mim, que tenho medo de acordar frita acompanhada de milk-shake.
— Eu tinha esquecido. — Mentira, eu só não estava querendo ficar
melecada. O pior de tudo, é que a barriga coça e ele não me deixa arrancar
meu couro na unha. Vou mandá-lo relaxar da próxima vez que suas bolas
pinicarem de coceira também. Vamos ver se um óleo vai dar jeito.
— Vou fingir que acredito — Francis me faz erguer os braços e puxa sua
camisa do meu corpo. Tenho vontade de esconder meus seios no mesmo
instante. Eles estão estranhos, para dizer o mínimo. Ao menos nas fotos eu
o estava cobrindo, agora estou exposta aos olhos do Francis. Não é mais o
corpo que ele costumava ver, agora tudo está diferente. Levo o braço para
me cobrir, mas o nadador não me permite, prendendo minhas mãos nas
suas.
— Você não tem que se esconder de mim. Não há nada aqui que eu não
tenha visto.
— Está muito diferente do que você via — tento fugir dos olhos azuis,
mas eles me perseguem.
— E isso é ruim? — ele traz meu rosto para si, com a mão no meu
queixo.
— Depende.
— De quê?
Francis despeja um pouco do óleo nas mãos, o esfregando para esquentar
antes de espalhar na minha barriga.
— Você me achava mais bonita antes ou agora?
As mãos quentes e macias sobem pela minha barriga, até chegar aos
meus seios, onde Francis também desliza o óleo, hidratando meus mamilos.
Procuro no seu rosto a malícia de quando me via nua e sinto um pouco de
medo ao notar que ele apenas transparece cuidado. Ele sobe o olhar para
meu rosto, sorrindo preguiçoso.
— Todos os dias, eu vou dormir com a dúvida se é possível te achar mais
linda. — Francis me beija antes de terminar a fala. — E acordo todas as
manhãs tendo a certeza que sim, você sempre estará mais bonita do que o
dia anterior.
Engulo a saliva, acariciando seu rosto.
— Então prefere como estou agora? — é difícil para eu acreditar.
— Não, Angel. — Ele sorri. — Eu não tenho uma preferência por antes
e depois. Não tem como ter.
— Por quê?
— Porque eu amo todas as suas versões. Olharia por horas para cada
uma delas e não me cansaria.
— Então por que... por que seus olhos não tem desejo ao olhar meu
corpo nesse momento? — faço a pergunta que me incomoda de verdade.
— Porque eu não sinto apenas desejo por você. Bom, noventa por cento
do meu tempo eu quero te jogar em uma cama ou qualquer superfície
possível e te foder por horas... — ele ri, me fazendo revirar os olhos. —
Mas no restante do tempo, sobra o carinho, cuidado e afeto. Eu tenho desejo
por você, seu corpo me fascina, me excita mais do que pode imaginar... mas
agora estou cuidando dele. Estou te fazendo um carinho. Entende?
Franzo o cenho, pensando por algum tempo.
— Achei sua resposta um pouco melosa demais, mas entendi.
Francis me encara estático e explode em uma gargalhada.
— Hora de dormir, barrigudinha.
— Barrigudinha é...
— Olha a boca, meu anjo — Francis morde meu lábio e me ajuda a
vestir sua blusa novamente. Ele me auxilia a deitar e coloca o travesseiro
entre as minhas pernas. Minha cabeça repousa em seu peito. — Dorme,
Angel... amanhã vai ser um dia cheio.
Assinto, com o couro cabeludo pinicando.
Robert chega amanhã. Ele vem para esclarecer o que minha mãe falou. E
o fato de precisar se deslocar para o outro lado do país para responder uma
simples pergunta, me apavora. Porque isso significa que podemos não
gostar da resposta.
— Você acha… acha que pode ser verdade?
— Sinceramente? — Francis respira fundo. — Não. Não consigo pensar
no Robert tendo dúvidas de ser seu pai e não ter falado nada por anos. Ele
teria tentado cuidar de você.
— Mas ele cuidou — estremeço. — Foi ele quem insistiu para que meus
pais me levassem ao médico para fazer o diagnóstico de autismo.
— Acredite em mim, se ele achasse que você é filha dele, não teria te
deixado passar por nada que passou com sua mãe.
— Ele não tinha como saber o que eu passava.
— Tinha sim. Robert é mais observador do que se pode imaginar. —
Assinto, me sentindo um pouco mais confiante. Prefiro acreditar no
pensamento do Francis. — E se ele for seu pai, nada muda.
— Tudo muda… minha vida inteira teria sido uma mentira.
— Sobre quem é seu pai, mas nunca sobre o resto. Nunca sobre mim.
Sobre nós dois. Sobre Donna e você… não deixe que isso te tire do seu
eixo.
— É fácil falar, Francis.
— Eu sei o que você deve estar sentindo, Angel. Eu me faço a pergunta
de quem são meus pais biológicos todos os dias desde que eu me entendo
por gente. Eu sei como pode ser ruim, mas você definitivamente não está
sozinha nessa.
Me aconchego mais a ele, buscando conforto.
— Quer ouvir o coraçãozinho? — ele sussurra e eu assinto.
Francis abre a gaveta da mesa de cabeceira e tira de lá o aparelho que ele
comprou para podermos escutar o coração do bebê. Ele coloca os fones no
meu ouvido e o aparelho na minha barriga.
O som da vida do meu filho embala meu sono.
 

 
 
O aeroporto está particularmente gelado e cruzo os braços para tentar me
esquentar. O que é inútil, já que o frio triplica quando vejo não apenas
Robert saindo pelo portão de desembarque, mas meus pais e a mãe de
Francis também.
— Puta que pariu — ele pragueja do meu lado.
— Esses quatro juntos só podem significar problema, confusão e chifre
— Donna resmunga.
— O que vocês estão fazendo juntos? — Francis interroga assim que
eles nos encontram.
— É uma ótima pergunta. — Leonor tem o rosto sério e o olhar desce
para minha barriga. Sua boca estremece para conter a careta.
— Se te dá asco olhar, aconselho que tire os olhos — alfineto.
Francis segura minha mão, pondo-se a um passo na minha frente.
— Então? — ele espera uma resposta à sua pergunta.
— Seu pai e eu conversamos, Francis — Louis toma a frente e não sei
decifrar sua expressão. Ou a falta dela. — E já era mais do que hora de nos
encontrarmos. Afinal, somos uma família agora.
Savannah não reprime a risada sarcástica e contrariada.
— A única coisa que quero saber é o nível de parentesco de todos dentro
dessa família. — Ironizo, encarando minha mãe. Ela não me parece com
alguém que concordou com essa viagem.
— Aqui não é o lugar para conversarmos sobre isso. — Robert intervém.
— Onde seria melhor? Num bordel? — Donna se irrita. — Porque isso
aqui virou uma grande putaria.
— Don… — Francis balança a cabeça. — Não vamos piorar as coisas.
— Ele se vira para o pai. — Preferem ter essa conversa em casa ou em um
restaurante?
— É melhor na casa de vocês.
— Ótimo, é bom que eu abasteci a nossa geladeira com bastante álcool.
Dependendo do rumo que a conversa tomar, podemos todos encher a cara
para esquecer — Donna sai andando na frente, sequer cumprimentando seus
pais.
Merda, eu espero muito que tudo isso seja a porra de um engano. Ou
acho que minha amiga e eu vamos cometer alguns crimes.
 

 
— Desembucha — Francis senta no sofá do meu lado e sua expressão é
a menos amistosa possível.
— Antes que eu fale, quero que Savannah diga na frente de todo mundo
o que disse para vocês meses atrás — Robert olha para ela, a colocando
contra a parede.
— Você quer dizer a mentira que ela inventou — Leonor solta uma
risada enojada.
Savannah levanta-se de queixo erguido, como a dona da verdade
universal e diz olhando para Robert sem pestanejar:
— Você é o pai da Angelina.
Todos encaram minha mãe, mas eu olho para o meu pai. O pai que tive
desde a infância. Acho que essa situação é mais difícil para ele do que para
mim. Imagino se alguém dissesse que Garden não é meu e meu coração
acelera com a pura imaginação.
Não sei se meu pai tem essa explosão de sentimentos por mim. Só que
no fundo, eu espero que sim. Espero que ele lute por mim. Para ser meu pai.
— Que você é uma vadia que trai o marido não é novidade para
ninguém, Savannah. — Leonor se levanta, indo para perto dela. As duas se
encaram tão próximas que Francis se ergue para aplacar qualquer violência
que se inicie. — Mas o Robert jamais me trairia.
Minha mãe sorri viperina.
— Ele não te traiu, querida. — O sorriso dela aumenta e minha espinha
gela. — Lembra de quando vocês deram um tempo, um pouco antes de
engravidar da Donna?
Louis abaixa a cabeça após a fala, as mãos unidas na frente do corpo,
completamente estático. Meus olhos ardem. Nunca o vi tão destruído como
agora. É humilhante. O que ele está passando é humilhante. Minha mãe está
confessando que o traiu na frente de todos.
— Então você está dizendo que transou com meu marido enquanto nós
estávamos em crise? É isso? — Leonor cerra os punhos, falando
entredentes.
— Isso é verdade, pai? — Donna se intromete.
Robert contorce o rosto em uma careta e acena fracamente.
— Sim, é verdade.
Fecho os olhos, sentindo minha cabeça girar. Deus do céu, isso não está
acontecendo. Sinto vontade de cobrir meus ouvidos e me recusar a escutar
qualquer coisa mais. Mas não dá para fugir do mundo real sempre que ele
me desagrada. Infelizmente.
— Robert? — Leonor o encara exigindo explicações.
— Não finja que não sabe disso, se te contei quando aconteceu — ele
interrompe a cena.
— Que porra virou isso? — Donna se levanta. — É troca de casais? Por
acaso você já pegou o Louis, mamãe?
— Claro que não! Eu exijo respeito, Donna Hopkins!
— Você desconhece o significado dessa palavra, Leonor — Minha amiga
ri desdenhosa.
— Donna, por favor, não vamos começar discussões desnecessárias
agora — Robert tenta apartar, mas ela o encara com raiva.
— Desnecessárias? É sério, pai? — Ela ergue os braços, exasperada. —
Vocês estão aqui para dizer se Angelina é minha irmã ou não, começam a
lavar a própria roupa suja na nossa frente e você acha que não é momento
para essas discussões?
A bile sobe minha garganta. Não pela gravidez, isso não tem nada a ver
com o bebê. A bile sobe porque estou cansada de lidar com dramas
familiares. Vim para São Francisco, do outro lado do país, para fugir de
tudo, dessas merdas que passava na infância e adolescência, mas os erros
dos nossos pais parecem nunca desaparecer, eles nos perseguem.
Cubro o ouvido com as mãos, apertado o bastante para fazer pressão e eu
escutar mais a minha própria respiração do que a briga que se segue após a
fala de Donna. Minha mãe se mete, Leonor interfere, Robert tenta aplacar,
Don rebate… eu não aguento mais. Não aguento.
Quero o silêncio. Quero o controle de volta.
— Cala a boca todo mundo! — A voz de Francis não é alta, mas é grave
e revoltada o suficiente para que todos fiquem em silêncio. Continuo
pressionando meu ouvido.
Quadra de vôlei. Queria estar na quadra de vôlei. Queria ter a posse da
bola em mãos. Queria ter controle sobre o que vai acontecer. Controle dos
meus pensamentos, movimentos e sentimentos.
Sinto mãos sobre as minhas e ergo as pálpebras, focando no rosto de
Francis agachado na minha frente. Os olhos azuis estão como o centro do
fogo, parece inofensivo, mas é a parte que queima de verdade, a que fere,
dilacera. E eu posso ver que ele queimaria tudo por mim.
— Uma palavra, e todo mundo vai embora — ele me oferece a paz que
busco. — Basta uma palavra e você se vê livre dessa confusão. — O peito
dele está ofegante. — Mas também basta uma palavra e descobrimos isso
de uma vez por todas e fingimos que esse dia nunca existiu, porque não
importa qual seja a verdade, você é a Angelina, a minha Angel, assim como
Donna sempre será sua amiga, sua melhor amiga. Entendeu? — Assinto
fraquinho e Francis acaricia as mãos que mantenho sobre o ouvido. — Faça
menos força, amor. Isso pode prejudicar seu ouvido, ok? Tire as mãos com
cuidado para desfazer a pressão.
Ele me ajuda a retirar a mão sem me machucar e as segura com força.
— Quando precisar forçar suas mãos, as force em mim. Ok? Em mim,
não em você. Tudo bem?
Novamente eu assinto.
— Perfeito, Angel — ele respira fundo, controlando as próprias
emoções. — Quer se levantar? — Balanço a cabeça e ele ajuda a me pôr de
pé, segurando firme minhas mãos. — E então, Angelina… vai querer saber?
Pisco algumas vezes, tornando silenciosas as centenas de vozes na minha
cabeça, cada uma dizendo para eu seguir um caminho diferente. Mas se tem
algo que aprendi com minha interpretação errada do exame de sangue, é
que é melhor saber a verdade de uma vez, mesmo que ela machuque.
— Quero. Quero saber quem é meu pai de verdade.
— Eu sou seu pai de verdade — Louis profere e paira do meu lado tão
rápido que fico tonta.
— Como pode ter certeza? Nós não somos parecidos em nada.
— Somos parecidos em algo que vou te explicar assim que Robert
terminar de falar o que precisa. — Meu pai encara o pai de Francis
determinado. Acho que é a primeira vez que o vejo tão altivo. — Diga de
uma vez, minha filha não precisa passar por mais nenhum estresse.
— Você tem razão, Louis — Robert assente. — Angelina e nem meus
filhos precisam passar por mais um minuto dessa situação. — Ele se vira
para Leonor e ela parece estremecer. — Eu sei de tudo.
Comprimo as sobrancelhas, procurando Francis, mas ele parece tão
confuso quanto eu. Olho para Donna e me choco ao vê-la virar uma garrafa
de cerveja na boca. Não vi em que momento ela pegou essa merda, mas
duvido que álcool vá ajudar.
— De tudo o que, querido? — Leonor tenta tocar o braço dele, mas
Robert se afasta.
— Deixe-me voltar alguns anos, quando eu tinha adotado o Francis e
você não estava lidando bem com a situação. — Francis fica tenso do meu
lado, esperando o pai continuar. — Eu estava decidido a terminar o nosso
casamento, afinal eu não podia te obrigar a amar o meu filho. E você sabe,
Leonor, que Francis se tornou meu filho desde que o vi no orfanato aqui em
São Francisco. Que me tornei seu pai naquele mesmo dia.
Pisco surpresa.
Essa é nova para mim. Não sabia que Francis tinha sido adotado aqui.
Pensei que tivesse sido em alguma cidade de Nova Jersey.
— Eu não pedi a sua opinião na época da adoção, eu tinha tanta certeza
que o queria como meu filho, que se você dissesse não, eu teria terminado
nosso casamento naquele mesmo momento... mas você disse sim. Mesmo
que hoje eu perceba que era contra sua própria vontade, você disse sim —
Robert passa a mão pelo rosto, parecendo exausto. — Quando percebi que
você não se adaptaria, conversei para que a gente terminasse. Você não
aceitou, se jogou aos meus pés e disse que aprenderia a amá-lo.
Fecho os olhos com força e se eu não estivesse grávida, pediria um gole
da garrafa de Donna. Realmente, agora é uma ótima hora para álcool. Só
bêbada para lidar com essa merda.
— Eu não aceitei sua proposta, porque não aprendemos a amar alguém
forçosamente, e com certeza não para segurar um casamento. Eu saí de casa
e levei Francis comigo, junto com minhas coisas para a pousada. — Ele
suspira e se vira para Savannah. — Eu contratei uma babá para ficar com
Francis, afinal eu tinha plantões e não podia deixá-lo sozinho. Uma noite
que cheguei tarde do plantão, passei no restaurante para comer e Savannah
estava bebendo no bar. Ela estava bebendo porque tinha brigado com Louis,
ao menos foi isso que me contou na época. Nós não tínhamos nenhuma
inimizade, mesmo com nosso passado. Eu sempre me mantive afastado por
respeito a Leonor, mas naquele momento, eu não pensei. Não preciso falar
detalhes, mas a verdade é que naquela madrugada, nós tivemos um caso. E
sim, eu sei que isso foi uma traição, não apenas com Louis, mas com
Leonor também, porque faziam exatos dois dias que eu tinha deixado minha
casa. — Ele parece verdadeiramente envergonhado. E deveria mesmo. —
Eu voltei para casa antes mesmo de amanhecer, porque de manhã Francis já
havia se acostumado a ser acordado por mim. Então eu disse a Savannah
que aquilo não podia acontecer de novo, afinal ela era casada e eu não podia
me enfiar em outro relacionamento naquele momento.
Engulo a saliva pastosa e nem olho para Francis, com medo de encontrar
o mesmo pavor nas íris dele. Essa conversa toda está demorando demais e
eu só preciso que eles digam de uma vez que não sou filha de Robert.
— No dia seguinte ao que fiquei com Savannah, passei em casa e contei
tudo a Leonor. Ela merecia saber. Eu queria contar ao Louis, mas isso era
algo que não me dizia respeito.
Bufo uma risada. Mas para se envolver com a mulher dele te dizia
respeito, não é?
— Mais ou menos um mês depois, Savannah ficou grávida — ele diz e
minha pressão cai. Francis passa o braço à minha volta. — Eu fiquei
desesperado, porque tinha chance de ela estar grávida de mim. Eu havia
usado camisinha, mas vocês dois são prova de que isso não é cem por cento
— ele nos olha e não respondemos nada. — Enfim… eu esperei Savannah
me ligar e me falar se era meu, tentei sondar por onde ela ia, mas sempre
estava acompanhada do marido. Quando eu já estava prestes a bater na casa
dela e saber dessa história, recebi uma ligação do hospital de Atlantic City,
informando que a inseminação artificial havia sido bem sucedida.
O rosto de Leonor fica branco como papel e ela volta a se sentar no sofá,
apática.
— Como assim inseminação? — A voz de Donna não passa de um
sussurro.
Robert respira fundo antes de continuar.
— Leonor sempre quis ter um filho, assim como eu. Mas ela não
engravidava, mesmo que não nos protegêssemos. Na época, eu não me
liguei, afinal gravidez não é sempre tão fácil de acontecer como pensamos.
— Ele aperta os olhos e vejo que o que vai sair da sua boca não é algo bom.
— Quando me ligaram da clínica, falando que a inseminação de Leonor
tinha dado certo, fiquei confuso e pensei que era engano, afinal eu não
havia doado material para isso. Foi então que no dia seguinte ela me ligou
contando que estava grávida e que eu não podia abandonar nossa família.
Robert caminha até Donna, que tem os olhos vítreos no pai.
— Ela estava grávida por uma inseminação que eu não tinha doado o
material genético. Eu sabia que tinha algo errado se ela precisou recorrer a
isso, então fiz exames… — Robert engole a saliva, uma lágrima
derramando do seu rosto. — Eu não posso ser o pai biológico da Angelina,
pelo mesmo motivo que não sou seu pai biológico, Don… eu sou infértil.
Ofego, cobrindo minha boca com a mão. Os braços de Francis caem na
lateral do seu corpo e um silêncio pesado se instala na sala.
— Eu não contei para Leonor que sabia sobre a inseminação, porque eu
pensei que assim, com ela gerando um filho, poderia amar o Francis
também, e que o instinto materno fosse prevalecer. Eu vi pela primeira vez
que poderíamos ser uma família e que eu também não poderia abandonar o
bebê que estava no ventre dela, mesmo não sendo meu. Porque ele havia
sido pensado em um momento de desespero por minha causa.
A garrafa de Donna cai da sua mão, estilhaçando em centenas de
pedaços pelo piso. Robert dá um passo na direção dela, mas minha amiga se
afasta, com lágrimas gordas e incessantes escorrendo pelo seu rosto.
Meu coração rasga com a visão.
Donna é sentimento puro. É explosão. E o fato de não dizer nada me
apavora. 
— Eu te amei desde o segundo em que a vi no ultrassom. — Robert
segue falando, mas parece que um zumbido preenche minha audição. —
Você pode não ter meu sangue, mas é minha filha, assim como Francis é
meu filho.
Donna se apoia no encosto do sofá, tentando se manter de pé.
— Mas a ele você deu a verdade. — A dor no seu rosto vai sendo
transfigurada em fúria gélida. — A mim você deu mentiras.
— Eu fiquei com medo que se eu contasse a verdade, alguém pudesse te
tirar de mim. Eu não podia perder você, filha.
— EU NÃO SOU SUA FILHA! — ela grita, me fazendo dar um pulo.
— Don… — a voz de Robert parte algo dentro de mim também.
— Não fale comigo! E você… — ela avança sobre Leonor e Francis dá
um passo para frente, porque sua irmã não parece ciente dos próprios atos.
— Você tirou o meu pai de mim! Você conseguiu destruir até mesmo isso,
sua vaca desgraçada!
Donna grita, chora e soluça em frente a Leonor e me odeio por não saber
o que fazer. Estou paralisada.
— Eu dei a você uma família, Donna — Leonor diz com a voz trêmula.
— Tudo que fiz foi por amor a você e ao seu pai!
— Amor? — Francis abre a boca depois de um tempo. — Você não
conhece o que é essa palavra. Você só sabe o que é manipular, dobrar os
outros à sua vontade, é isso que você sabe, é isso que sempre fez!
Ele envolve Donna em seus braços, a embalando como se tivesse
novamente cinco anos e ele fosse seu super-herói favorito.
Eu esperei ouvir duas coisas hoje. Que era filha de Robert. Ou não. Mas
nunca que Donna não era.
— Eu fiz isso para amar você também! — Leonor aponta o dedo para
Francis. — Eu não podia tolerar sequer olhar para você, filho de outra
mulher, de outro homem que não era o meu. Não podia suportar a forma
como Robert te tratava como se fosse um milagre, quando na verdade você
foi uma maldição nas nossas vidas. Você acabou com meu casamento, me
obrigou a fazer a inseminação para manter o homem que eu amava comigo.
Isso é tudo culpa sua. Sempre foi malditamente culpa sua! Se quer alguém
para culpar, Donna, culpe esse garoto que roubou seu pai de você desde o
momento que pisou na nossa casa!
— Chega — murmuro, andando zonza para perto da mulher que é o
retrato frio da maldade. — Você não vai mais fazer isso. Não vai mais dizer
ao Francis que ele tem culpa pelos seus fracassos. — Nego com a cabeça.
— Eu tenho pena de você. Pena porque nunca saberá como é ser amada por
esse homem incrível, que apesar de você, ele se tornou. Tenho pena porque
nunca conseguiu olhar nos olhos dele e ter a honra de enxergar o que mora
ali dentro. Todo o amor, proteção, carinho e companheirismo. Eu tenho
pena de você, Leonor, porque nunca foi e nem nunca será digna de
conhecer, amar ou ser amada por Francis Hopkins. — Sorrio cruelmente. —
E como alguém que sentiu o amor dele em todas as fases da vida, sinto
muito por qualquer pessoa que não possa provar do mesmo.
— Eu quero todos fora daqui! — Donna vocifera, se envolvendo com os
próprios braços.
— Antes eu preciso dizer uma coisa a Angelina. — Louis se coloca na
minha frente, parecendo desesperado.
— Você sabia que era meu pai. Como? — exijo saber.
— Primeiro, que não preciso que sua mãe ou homem algum diga que sou
seu pai, eu sempre fui e sempre serei, mesmo tendo falhado com você a
minha vida toda. Ser seu pai nunca foi uma dúvida pra mim, porque eu
sempre te considerei minha filha e o faria mesmo que não tivesse meu
sangue. — Engulo a saliva, comprimindo as sobrancelhas. Meu pai encara
as próprias mãos, mudando o peso do corpo para o outro pé, e novamente,
como se não se aguentasse quieto. — Desde pequena, você era parecida
comigo em muitas coisas. Não em como eu parecia para as pessoas, mas
como eu seria se não tivesse medo de mostrar quem eu era. — Os olhos
dele se avermelham. — Eu estudei em uma escola apenas para garotos a
minha vida toda, era uma escola religiosa e muito rígida. Meus pais me
criaram para ser um homem sério, de negócios e que não demonstrava
nenhuma fraqueza. E por fraqueza, quero dizer sentimentos. Se eu sentia
vontade de chorar, então deveria engolir. Se eu sentia medo, então deveria
superar. Se eu não gostava de estar entre muitas pessoas, então eu deveria
fingir que sim. Se eu não entendia os sentimentos das pessoas, então
deveria imitar todos os outros que entendiam.
As mãos dele se enfiam dentro dos bolsos da calça social, mas ainda
consigo ver a forma que seus dedos se contorcem. Exatamente como os
meus. Meu peito comprime com a compreensão batendo à porta. Louis
nunca foi bom em lidar comigo, ele nunca conseguiu entender meu rosto
quando eu estava triste, feliz ou nervosa. Ele nunca me olhou nos olhos,
nunca soube me dar carinho, não sei sequer se ele já chegou a me abraçar
de verdade algum dia.
Uma lágrima escorre do meu rosto.
— Quando você foi diagnosticada, meu mundo desabou, Angelina —
confessa, encarando o chão. — Desabou, não porque eu achava que existia
algo de errado com você, porque mesmo que eu nunca tenha sabido
demonstrar, você era perfeita. É perfeita. Eu desabei, porque eu sabia, que
seja lá o que você fosse passar na sua vida, seria culpa minha;
— Pai… — sussurro, mas ele balança a cabeça.
— Fiz os exames e consultas no mês seguinte, escondido da sua mãe…
fui diagnosticado com transtorno do espectro autista logo depois de você,
Angelina — Louis revela e pisco aturdida. — Então não, minha filha,
ninguém precisava me dizer que eu era seu pai, porque você era tão
parecida comigo em tantas coisas, que não havia como não ser. Eu sou seu
pai. Um pai ruim e falho demais, mas seu pai.
Por exaustão, cansaço ou até mesmo afeto, faço algo que nunca fiz.
Eu abraço meu pai.
Sem jeito, sem achar uma posição, com os ombros tensos e de forma
fraca. Mas eu abraço.
E pela primeira vez, ele coloca os braços ao meu redor, dando batidinhas
nas minhas costas, derramando lágrimas nos meus ombros.
— Me perdoa por nunca ter protegido você desse mundo. Me perdoa por
sempre ter te deixado lutar suas batalhas, por não contar a você que não
estava sozinha e que eu podia sentir e entender tudo que você sentia. Me
perdoa por querer que você não demonstrasse os sinais, para não sofrer. Me
perdoa por todas as vezes que a fiz fingir ser quem não era, pelas vezes que
te fiz mascarar seu jeito único e lindo de ser, filha. Me desculpe por todos
os anos que não fui seu pai e espero que me dê a oportunidade de ser de
agora em diante.
Meu pai ergue seu rosto e meu coração se desfaz com as lágrimas
incontidas e as emoções por tanto tempo guardadas. Eu esperei por tanto
tempo que ele me defendesse, que lutasse por mim ou que ao menos
demonstrasse algo além de frieza, que agora não sei como agir. Ou o que
falar.
Louis se vira para Francis e Donna atrás de mim.
— Obrigado, vocês dois. Obrigado por terem cuidado da minha filha por
todos esses anos. Por serem para ela o que eu não pude ser. — Ele se
aproxima de Donna com cautela. — Obrigado, Donna, por ser a irmã que
ela não teve. Por sempre ter entendido minha menina, por sempre tê-la
acolhido do jeitinho que é. Obrigado por nunca ter permitido que nada e
nem ninguém afetasse a amizade de vocês. — Ele olha para Francis em
seguida. — Obrigado por ter salvado minha filha. Naquele dia no mar, eu
congelei. Meu corpo inteiro não respondeu porque minha mente estava uma
bagunça. Não há um só dia na minha vida, que eu não me odeie por ter
sucumbido a uma crise naquele exato momento. Não há um só dia que eu
não tenha a visão da minha filha se perdendo no mar e eu não conseguindo
fazer nada. Então obrigado, filho, se me permitir chamá-lo assim, por ter
feito pela minha menina o que eu não consegui. E desculpe por todas as
vezes que não facilitei para vocês. Era mais raiva de mim do que de você.
Francis limpa a garganta, parecendo surpreso. Acho que todos estamos.
Louis nunca falou tanto, em toda minha vida.
— Eu faria tudo de novo — O nadador dá de ombros.
— Quem podia imaginar que de vocês, agora eu só iria gostar do Louis
— Donna diz amarga, se virando para o meu pai. — Se vacilar com minha
amiga de novo, te corto em pedacinhos, entendeu?
Louis arregala os olhos.
— Ela está brincando… — Franzo o cenho. — Eu acho.
— Não, eu não estou. Nunca mais vou aceitar que brinquem com a
gente. Essa merda se encerra hoje.
Ela diz e se desvincula dos braços de Francis, subindo as escadas. Blue
faz menção de ir atrás, mas seguro seu pulso. Ela me encara aflita.
— A conheço desde que nasceu. E nunca a vi assim tão destruída — fixo
atenção nas íris esverdeadas. — Donna tem um mecanismo de defesa que
consiste em atacar quando se sente encurralada. Se subir até lá, vai me
prometer ignorar tudo que sair da boca dela, porque não será de coração e
sim guiado pela mágoa. Se não me prometer isso, não vou deixar que suba.
Os olhos dela saltam, mas Blue assente devagar.
— Ela lutou por mim naquele dia e agora vou lutar por ela também.
Aceno, soltando seu pulso.
Blue sobe correndo atrás de Donna e sou obrigada a observar minha
mãe. Savannah está com os olhos arregalados em um canto, como se de fato
acreditasse que Robert fosse meu pai. Ela deve ter alimentado essa fantasia
por tantos anos…
— Por que agora? — pergunto o que não sai da minha cabeça. — Por
que falar sobre Robert ser meu pai só agora?
Ela me encara com raiva, como se o fato de não ser filha dele fosse mais
uma razão para me odiar.
— Eu quis contar logo que soube que estava grávida, mas Louis havia
ficado tão feliz, que me rondava como um maldito cachorro.
Enlaço o braço do meu pai, que não diz nada. Ele nunca soube me
defender, mas não é como se tivesse sabido se defender também.
— Quando finalmente pude contar, fiquei sabendo que Robert havia
reatado com Leonor e que ela estava grávida também. Eu havia perdido
minha chance… de novo.
— Foi você que o trocou quando ele estava na faculdade — Leonor a
acusa.
— Você acha que eu trocaria o Robert por Louis se isso não fosse
extremamente necessário?
— Céus… — Robert se senta no sofá com as mãos na cabeça.
— E o que foi extremamente necessário, Savannah? — Leonor continua
a discussão doentia. — Não conseguiu ficar sem sexo?
— Eu não pude esperar, porque eu precisava de dinheiro e proteção e a
única pessoa que podia me oferecer isso era o Louis — Savannah fala para
Leonor, mas com os olhos no meu pai, como se para ela fosse prazeroso
feri-lo.
— Como assim proteção e dinheiro? — indago.
Vovó Angelina nunca foi rica, principalmente depois que meu avô
começou a se envolver com apostas, mas eles nunca deixaram faltar nada
para minha mãe. Disso eu sei. 
— Quando Robert se mudou, eu fiquei perdida. E então me envolvi com
pessoas que não deveria e comecei a usar drogas. Seus avós não tinham
dinheiro e nada que eu pudesse vender para pagar minha dívida com o
traficante, até porque meu pai já tinha vendido tudo para pagar as próprias
merdas. — Ela ri de um jeito mórbido ao falar do meu avô. Talvez agora eu
entenda a raiva dela. — Então eu fiz o que precisava fazer e casei com o
homem que vinha de família boa e tinha um futuro. Eu não poderia pedir
ajuda ao pai do Robert, porque aquele velho nunca me suportou. E é por
isso, Angelina, que eu me casei com seu pai. — Savannah ergue os braços,
fora de si. — Ele arcou com minhas dívidas e eu fiz o papel de esposa feliz.
É por isso que fiquei com seu pai esse tempo todo. Eu o teria deixado pelo
Robert na primeira oportunidade que tivesse.
Sento no sofá quando a força das pernas me falha. Savannah diz tudo
isso com tata naturalidade, como se não estivesse jogando anos de uma
união no lixo, como se não tivesse humilhando o homem que sempre
cuidou dela. Com que tipo de pessoa eu convivi minha vida toda? Que tipo
de mãe eu tive? Ou melhor, que tipo de mãe eu não tive?
— Vão embora daqui — Francis murmura baixa, ele próprio já exausto
de tudo. — Eu não sei por que caralho vocês são tão podres por dentro, mas
nós não precisamos ouvir mais nem um segundo de toda essa merda. — Ele
se vira para Robert e Louis. — Vocês também... é melhor irem. Deixem a
poeira abaixar para conversarmos melhor... falo por todos quando digo que
não aguentamos mais saber de nada.
Não sei se eles relutam. Não sei se vão embora sem contestar. Não sei
sequer que horas eu subo para o quarto. Minha mente desliga.
Simplesmente desliga. É carga demais. Informação demais. E para não
queimar, eu paro de funcionar.
Por hoje, eu escolho desligar o interruptor.
 
 

 
 
Encaro a porta do quarto de Donna, pensando no que fazer. Suas férias
de verão têm consistido em passar o dia na cama assistindo a seriados e
ingerir o máximo de bebida alcoólica que seu fígado permite. Angelina
tentou conversar com ela, mas não obteve êxito. Blue não sabe como
começar a falar, porque todas as vezes Donna acaba sendo estupidamente
grosseira. Chegou a minha vez de tentar acalmar a fera, ou ao menos fazê-la
tomar um banho decente e se alimentar.
Vai fazer uma semana que ela está assim, essa situação já passou dos
limites. Até mesmo Angelina que ficou abalada ao ponto de me assustar no
dia, já está conseguindo se reestabelecer. Pensar na minha irmã se
autossabotando assim é doloroso. Don sempre foi o elo forte,
Bato na porta anunciando minha presença, mas sem esperar uma
resposta. Se eu for esperar que Donna me deixe entrar, ficarei plantado do
lado de fora até outro dia. Ela desvia os olhos do notebook e me encara
apática, nada como geralmente se parece. Seus cabelos estão desarrumados,
o rosto sem nenhuma maquiagem, roupas largadas e velhas, além é claro, de
uma garrafa de cerveja ao lado.
Minha cabeça lateja de preocupação.
— Se veio aqui conferir se estou na merda, já viu que sim. Então pode
sair.
— Não preciso vir aqui pra saber que você tá na merda, eu vim para te
tirar dela.
Sento na beirada da cama.
— Você pode apagar todos os anos que mentiram pra mim? — Seus
olhos estão furiosos na minha direção. Não levo para o pessoal, ela está
furiosa com todo mundo.
— Não posso.
— Então se poupe do desgaste e me poupe da falação.
— Você não vai me afastar com grosserias, Donna.
— Foi o mesmo que Blue falou na noite passada e saiu daqui chorando.
— Sua risada é carregada de amargura. — Quer tirar a prova também?
Sorrio, pegando suas pernas e colocando sobre meu colo. Massageio os
pés pequenos, tentando uma aproximação mais branda. Com ela não adianta
forçar, preciso ir de fininho.
— Não há nada que você possa dizer de ruim sobre mim que eu já não
tenha dito a mim mesmo. — Dou de ombros. — Mas vai lá, dê o seu
melhor. Se é isso que vai te fazer ficar bem, então despeja o que tiver que
despejar.
Donna desdenha com o olhar.
— Quando você quis se afundar na merda, ninguém te impediu, então
me ofereça o mesmo benefício.
— Acha mesmo que ninguém me impediu? — Bufo uma risada. —
Ethan me tirou de cima do meu próprio vômito, Blue me impediu de usar
drogas mais vezes do que posso contar. Se eu estou vivo hoje, é graças a
eles que não desistiram de mim.
Donna vacila por um momento, mas logo a expressão gélida retorna às
suas feições.
— Não vou beber até morrer, só quero esquecer dos problemas um
pouco.
— Era isso que eu dizia sobre as drogas. Mas sofri uma overdose,
Donna. Acha que eu queria? Eu não tentei me matar, eu tentei esquecer.
Acontece que quando tentamos esquecer o presente e o passado, nós
também esquecemos a razão para querer estar vivo no futuro. Esse é um
caminho difícil de voltar, não prossiga por ele.
Os lábios dela estremecem e meu coração fisga com a imagem. A puxo
para o meu colo, exatamente como fazia quando éramos crianças e Donna
machucava o joelho. Brinco com suas tranças, rezando para que ela se
lembre de que não está sozinha. Tudo está uma merda, mas porra... estou
aqui.
— Lembra do que me disse quando me viu usando drogas? Que família
quer dizer nunca abandonar? Lembra dos conselhos e de como me fez ver
que eu não era menos seu irmão por ser adotado? Use-os agora com você.
— Beijo sua cabeça, a balançando de um lado para o outro. — Eu estou
aqui, sou seu irmão, não vou sair do seu lado. Amei você desde que nasceu,
pirralha. Você é minha bombinha de felicidade, não me deixe sem ela. Ok?
— A bombinha tá querendo explodir.
— Então divide o fardo comigo. É pra isso que servem os irmãos.
Donna se agarra ao meu pescoço, chorando no meu ombro.
— Ele não é meu pai, Francis...
Engulo a saliva com toda a dor que ela transpassa na voz. Eu sei o que
ela sente. Foi diferente, mas ainda assim, já me ressenti que Robert não
fosse meu pai biológico. Já desejei com todas as minhas forças que fosse.
— Robert sempre foi e sempre será seu pai. Assim como é o meu.
— Mas pra você ele não mentiu.
— Porque não tinha uma mãe que pudesse me tirar dele. No seu caso,
você é filha biológica da Leonor, ela poderia te tirar dele.
— Isso não é desculpa.
Suspiro, assentindo.
— Eu sei que não. Mas será que nós não podemos dar uma colher de chá
pro cara que nunca errou com a gente? Ele merece, Don.
— Não consigo. — Sua cabeça balança no meu ombro. — Nesse ponto,
eu me pareço com a Angie. Não dá para esquecer, Francis. Eu não quero
mais ver ele.
Estreito meus braços ao seu redor.
— Você sabe que está mentindo. Sabe que é a mágoa falando. O tempo
vai curar isso, você só precisa estar saudável para quando ele chegar.
— Tempo… — Donna repete e se afasta de mim, virando o notebook
para que eu veja a tela. Franzo o cenho, lendo o site de faculdades no
Canadá. — É disso que preciso. Tempo. E espaço.
— O que significa isso, Donna?
— Fiz a minha inscrição em algumas universidades no Canadá. Não
quero mais ficar aqui em São Francisco. Só escolhi essa faculdade porque
foi a que Robert frequentou, porque queria dar continuidade ao legado dele,
ao legado da família..., mas eu não sou mais da família.
Abro a boca para contestar, mas sou interrompido.
— Como é que é? — Blue arqueja encostada à porta do quarto. Don e eu
nos viramos para ela assustados. — Você vai embora da USF e não me
falou nada?
Fecho os olhos, praguejando. A coisa não vai ficar boa, não com essas
duas batendo de frente nessas circunstâncias. Donna está machucada e
querendo machucar e Blue está vulnerável com a situação dos pais, então
vai bater antes de apanhar. Em poucas palavras, fodeu.
— Eu não te devo satisfação da minha vida, Blue. — Donna não poupa a
frieza na voz. Eu sei que o ela está fazendo… afastando todos os motivos
que tem para ficar, porque assim não vai sentir culpa ao partir. Sei porque
eu também fiz isso no passado.
— Quando está pensando em sair do país você deve sim! Não percebe
que eu me importo com você?!
— Isso diz respeito só a mim. Você não é nada minha!
— Don… — alerto, mas a resposta da outra vem cortando minha fala.
— Quer dizer que eu não posso interferir na sua vida, mas você tinha o
direito de interferir na minha? — Blue ri ironicamente. — Você tinha o
direito tomar atitude sobre os meus assuntos e eu não posso nem perguntar
dos seus? É isso?! Quando a situação é comigo, você pode agir, pode
desmontar o teatro que criei por anos para me proteger, mas quando é o
inverso, eu devo me manter calada e quieta como uma bonequinha educada
e não me meter onde não fui chamada? Eu não posso sequer tentar te
ajudar?
A essa altura, Donna já se levantou da cama.
Esfrego o rosto, suspirando.
— Vocês duas não querem dizer as coisas que estão dizendo, então
apenas parem antes que se arrependam.
— Você preferia ficar sob as asas dos seus pais, com eles levando para o
seu convívio um cara que abusou de você? Por quê? Por que te davam
dinheiro? A grana é tão importante assim? Deveria estar me agradecendo e
não ofendida pelo que eu fiz! — Donna bate no peito. — Você não está
tentando me ajudar, só tá com medo de ficar sozinha!
Porra, Donna…
Blue dá um passo para trás, como se levasse um tapa.
— Eu preferia não ter acreditado quando você disse que estaria comigo
nesse momento. Afinal, por que a grande Donna Hopkins ligaria para
alguém além dela mesma, não é? É boa demais para deixar alguém entrar
no seu coração.
Blue diz engasgada, com os olhos avermelhados.
— Ou talvez seja você que não é boa o bastante para estar nele — Donna
cospe cruelmente.
— Chega! — Levanto da cama, me colocando entre elas. — Eu não vou
deixar vocês duas continuarem com essa porra. — Meu rosto esquenta de
raiva. — Escutem as merdas que estão falando e vejam se algum dia diriam
isso uma para a outra sem a raiva corroendo vocês!
Blue enxuga uma lágrima que escorre pelo seu rosto, forçando um
sorriso a sair.
— Não se preocupe, Francis.  Eu só vim aqui para pegar minha bolsa. Eu
ia sair para comprar o sorvete que sua irmã disse estar com vontade, mas
acho melhor eu não me envolver na vida dela. — Ela recolhe sua bolsa, se
encaminhando para a porta. — Cometi o erro de achar que eu poderia
ajudá-la e que ela fosse me querer por perto, ainda que você tenha me
avisado para tomar cuidado… mas não se preocupe, não vou cometer mais
esse erro.
A garota sai do quarto antes que eu consiga impedir e encaro minha
irmã, que tem os olhos arregalados, como se desse conta apenas agora das
coisas que falou. Ela se senta na cama, com as mãos na cabeça.
— Donna…
— Sai. — Aponta para a porta.
— Por favor, vamos conversar.
— Sai! — ela grita, me assustando. — Sai ou eu vou sair.
Respiro fundo, passando as mãos no cabelo com raiva.
— Se acalme e conserte essa porra. — Digo antes de sair do quarto. —
Você não vai querer cometer o mesmo erro que eu e quase perder a garota
que ama.
Fecho a porta atrás de mim, correndo para encontrar a Blue. Quando
chego à sala, Angelina e Ethan balançam a cabeça para mim, informando
que ela já saiu com seu carro.
— Porra! — Coloco as mãos na cintura, cerrando os dentes.
— Deu para escutar tudo — Ethan comenta com uma expressão
estranha.
— Ela não quis dizer aquilo — Angelina defende a amiga. — Nenhuma
delas quis.
— Mas disseram. — Me sentando no sofá. — Agora já era.
Angelina segura minha mão, acariciando com o polegar.
— Dê tempo a elas. — Suas íris desanuviam um pouco o sentimento
ruim que se aloja no meu peito. — Funcionou para nós dois.
— Funcionou para nos machucar.
— Mas estamos juntos agora. — Ela afaga meu rosto. — Se o que
Donna e Blue sentem for verdadeiro, elas também vão ficar.
Viro o rosto e beijo a palma da sua mão.
— Espero que sim, Angel. Espero que sim...
 

 
 
— Eu desisto! — Donna exaspera, jogando a pequena roupa para o alto.
O único jeito que consegui fazê-la sair daquele maldito quarto foi pedir
ajuda para organizar as roupinhas do bebê. Estou apelando para qualquer
coisa, não aguento mais ver Donna se afundando dia após dia em álcool.
Depois da sua briga com a Blue, tudo apenas piorou. Ela chegou a passar
dois dias sem tomar banho e Donna é a pessoa mais vaidosa que conheço.
Pode não parecer nada demais para quem não a conhece, mas a amiga
que eu conheço, estaria maquiada até mesmo num enterro. Donna não se
afunda, ela faz o tipo que causa o próprio tsunami.
Eu me preparei para desabar com a visita dos nossos pais. Não para ver
minha amiga o fazendo no meu lugar. Dói muito mais assim.
Principalmente porque não posso tirar a dor dela.
— É claro que desiste, é típico de você — Blue retruca enquanto dobra a
quinta peça de roupa e coloca na cômoda que meu pai deu de presente,
junto ao restante dos móveis do bebê.
— Blue — repreendo, antes que elas comecem uma nova discussão.
Minha intenção em colocar as duas sob o mesmo cômodo é fazê-las
conversar e não se matar. Provavelmente não terei êxito.
— Disse alguma coisa, Regina George?
— Nada que seja do seu interesse, Docinho.
— Duvido mesmo que seja.
Suspiro.
Não aguento mais escutar as farpas que elas trocam indiretamente. E se
não bastasse lidar com a bebedeira desenfreada de Donna, Blue também
parou de comer quase que por completo. Posso apostar que perdeu cerca de
três quilos em sete dias. Francis está a ponto de enlouquecer.
Se continuar assim, vamos ter que intervir seriamente.
Antes que eu abra a boca para tentar uma reconciliação, Ethan entra no
quarto só de calça de moletom, cara amassada de sono e esfregando os
olhos. Meu amigo nem se dá ao trabalho de cumprimentar as meninas,
apenas para na minha frente, com as mãos nos meus ombros e me vira de
costas para ele.
Seguro a risada porque eu já sei o que vai fazer.
Digamos que Francis criou um itinerário para cada um segurar a minha
barriga.
— Vou segurar agora, beleza? — Ethan espera minha confirmação, para
só então apoiar a base da minha barriga e erguê-la um pouco, sustentando o
peso. Um suspiro de alívio sai de mim e respiro mais tranquilamente. —
Está cada vez mais pesado.
— Você nem faz ideia. — Fecho os olhos aproveitando a falta do peso.
— Como vai colocar essa criança pra fora?
— Do jeito que qualquer mulher coloca. — Reviro os olhos.
— Eu que não quero ver uma coisa assim nunca mais — ele estremece e
tusso uma risada. Blue obrigou todos nós a vermos um vídeo de parto. Eu
acho que Josh desmaiou duas vezes, Ethan fez ânsia de vômito quatro,
Jayden ficou sem falar com ela pelo resto do dia com a cara verde, Francis
ficou mais branco que papel e eu tive certeza de uma coisa: ser mulher é
uma merda.
— Não vai ser necessário, fique tranquilo. Na sala de parto já sei que não
vou poder contar com nenhum dos homens da casa — brinco.
— Ainda bem que sabe… prontinho. — Ele devolve minha barriga para
o lugar com delicadeza, beijando meu cabelo. — Daqui três horas é minha
vez de novo.
Rio do seu comprometimento com o cronograma. Depois do Francis, ele
é o mais dedicado.
Ethan sai do quarto do mesmo jeito que entrou, sem falar com as
meninas, provavelmente para voltar a dormir. Giro nos calcanhares para
observar as duas e meu peito se aperta pelas expressões que vejo em seus
rostos. Quando Blue não está olhando, Donna a encara, abrindo e fechando
a boca como se decidisse se é uma boa hora para pedir desculpa. Blue faz o
mesmo quando minha amiga está distraída.
— Eu vou descer para ver se esquecemos alguma sacola de roupa na
lavanderia — minto. E elas sabem disso, mas não reclamam. Talvez estejam
esperando um momento a sós para se resolverem.
Saio do quarto esperando que elas possam finalmente conversar sem
discutir. Só não coloco nenhuma expectativa nisso.
No jardim, Francis joga futebol com Josh, Jayden e Isabela. Me sento na
rede para assisti-los, rindo para os meninos perdendo ridiculamente. Eles
são péssimos com uma bola nos pés, é vergonhoso de ver.
— Você chutou minha canela! — Josh acusa Jayden.
— Você que colocou a canela no meu pé! — ele rebate.
— Ah, cala a boca vocês dois! — Isabela bate na nuca deles, arrancando
risada do Francis. — Você também, bola murcha.
O sorriso dele desaparece em questão de segundos.
— Minha bola não é murcha. Pergunta pra Angelina.
— Ah, que nojo! — Jayden faz ânsia de vômito.
Eles jogam mais alguns minutos, até que chutaram tanto as pernas um
dos outros, que Isabela precisou ir buscar um gel para aliviar a dor. Francis
se senta na rede do meu lado, beijando minha barriga antes de beijar minha
boca. Faço careta porque ele está todo suado.
— Donna e Blue te irritaram?
— Não mais do que se irritaram. Deixei as duas no quarto sozinhas, se
escutar um grito, chame a polícia e a ambulância.
— Eu aposto na polícia pra Blue.
— Fechado. — Aperto sua mão.
Assim que terminamos de selar nossa aposta, as duas aparecem no
jardim com as caras mais amarradas do que quando as deixei no quarto.
Donna inclusive com uma garrafa de cerveja em mãos e Blue com os olhos
avermelhados.
— Chame um exorcista, acho que é melhor — Francis exaspera sem
paciência.
— Vou falar com a Blue.
Ele me ajuda a levantar da rede e me sento nos banquinhos do fundo
para onde a animadora foi. Se algum time dependesse dela para ganhar com
essa cara, estaria na merda.
— Oi — chamo sua atenção.
— Oi.
— Tão ruim assim?
— Donna disse que vai embora, não importa o que a gente ache disso.
— Ela não vai.
— Como tem tanta certeza?
— Porque Donna não me contou nada. Se ela fosse embora, me diria.
— Ou ela apenas está com medo da sua reação.
Os olhos verdes se erguem para mim finalmente.
Um sussurro de medo que ela esteja certa passa pelo meu coração, mas
logo é substituído pela certeza que tenho na minha amizade com Donna.
— Ela me contaria — reafirmo. — Se estivesse mesmo certa dessa
decisão, nós já teríamos conversado a respeito. Ela está fazendo isso só para
lidar com a dor... logo tudo vai voltar ao normal.
— Eu espero que esteja certa, porque eu aprendi a gostar muito dela,
Angie. Não sei como parar de gostar se for mesmo embora.
— Ela também gosta de você — confidencio. Eu realmente acredito
nisso. Baseado nas outras pessoas que Donna se envolveu, Blue foi a que
chegou mais perto do seu coração.
— Acho que não passo de um objetivo que ela alcançou. Agora já virei
algo chato.
Nego com a cabeça.
— Se Donna não gostasse de você, ela sequer se daria ao trabalho de
discutir. Simplesmente fingiria que você não existe.
— Às vezes acho que preferiria isso do que a forma como ela está me
tratando. — Blue parece tão frágil agora, que me pergunto onde foram parar
aquelas duas mulheres incrivelmente fortes que eu conheço. Só estou vendo
um pedaço delas aqui.
— Não prefere não. Os gelos de Donna podem realmente congelar.
— Mas a raiva dela está me queimando — contrapõe. — E
sinceramente, não sei se tenho tanto de mim para entregar ao fogo assim,
sabendo que vou ser a única a sair machucada.
— Ela também está machucada, pode acreditar. Donna é dura, mas tem
coração.
— Mas Donna Hopkins sempre sai por cima… Blue Hale não.
— Isso não parece com a megera que eu tanto ouvi falar. — A empurro
com os ombros.
— Cansei de interpretar esse papel.
— Quando a gente não tem força para se reerguer sendo nós mesmas,
tudo que nos resta é fingir ter… até que se torne verdade. — Foi o que fiz
quando Francis foi embora de Cape May. Finge que estava bem, até
finalmente estar.
— E se não funcionar?
— Troque de personagem mais uma vez. O que te fizer sentir melhor e te
ajudar a escalar o poço, é o certo.
— Não quero viver sendo um personagem… passei minha vida toda
sendo um. Quero ser um pouco a Blue. — Ela deita a cabeça no meu
ombro.
— Mas você vai ser. Todo personagem carrega um pouco dos seus
donos, você não precisa desvirtuar quem é, apenas acrescentar vantagens
que seu eu de verdade ainda não alcançou. Seja a Blue em essência, mas
traga a megera quando ela estiver indefesa.
— Quem você traz à tona quando a Angelina está indefesa? —
— Minha mãe — respondo desgostosa.
— Por quê?
— Porque se ela é a pessoa que mais me deu medo a vida toda, então é
nas atitudes dela que me espelho quando preciso que se afastem e me
achem intocável.
— Acho que todas nós acabamos pegando alguns dos traços ruins das
nossas mães — Blue divaga. — Qual será o da Donna?
— As palavras cortantes.
 
 

 
 
— Boa tarde, meu amor — murmuro carente, abraçando seu corpo por
trás. — Hummm, você está tão cheirosa.
Angelina inclina o pescoço sentindo cócegas e acaba batendo a bochecha
nos meus óculos de grau.
— Eu odeio essa porra! — Ajeito a armação que Blue escolheu para
mim; ela me fez experimentar uns trinta tipos de óculos diferentes, eu
estava me sentindo em um comercial. Só aceitei passar por essa humilhação
porque ela prometeu comer depois. Estou basicamente me sujeitando a
qualquer coisa para que Donna e ela não virem um fantasma de quem eram.
— Primeiro, boa tarde pra você também — Angelina se vira para mim,
apoiando as costas na pia. O sorriso que ela me dá faz com que eu me
esqueça qualquer motivo para estar irritado. Ah, mulher bonita do caralho.
— Segundo, eu sou sempre cheirosa… e terceiro, tem que usar os óculos
mesmo que não goste. Você fica uma gracinha com eles.
Ela faz uma carinha de safada, arrumando a armação no meu rosto.
Tá aí o motivo de eu ainda estar usando. Angelina me achou sexy com
isso.
Mordo seu lábio, espiando atrás dela.
— Tá preparando o quê?
Angie se vira novamente para frente, terminando de mexer uma calda.
— Geleia de frutas vermelhas. O Ethan comprou tanta fruta pra eu
comer que tá perdendo na geladeira. Fiz isso pra ver se assim vocês comem
também.
— Não sou fã de fruta.
— Espero que Garden não puxe isso de você.
Sorrio, passando meus braços por ela e acariciando sua barriga enorme.
Nós ainda não falamos o nome do bebê para nossos amigos, mas quando
estamos apenas os dois, já virou mais do que costume usar o nome que
escolhemos.  
— Por mim Garden não puxa nada de mim, só de você.
— Até a falta de paciência?
— Mas paciência ele vai puxar de quem? — Bufo. — Eu não tenho,
você muito menos e não vamos nem comentar sobre nossos pais.
— Falando em nossos pais, vai fazer um mês desde que a Donna soube
que não é filha biológica do Robert e tudo que tem feito é beber. Você
deveria falar com ela de novo. Eu tentei e ela me mandou a merda em três
línguas diferentes. Não aguento mais ver ela desse jeito.
Suspiro cansado. Mesmo com as férias de verão, parece que tenho estado
mais exausto do que nos períodos de aula. Estou trabalhando o dobro,
porque Jayden e eu conseguimos emprego temporário na cafeteria dos pais
do Ethan e ainda tem toda essa confusão aqui em casa. As nossas férias
serviram basicamente para organizar nossas vidas e não chegamos nem
perto de ser bem-sucedidos nisso.
— Angie, eu sei que é difícil, mas eu a entendo. Já me afundei assim e
eu acho que precisei passar por essas merdas para me reerguer. Donna só
vai segurar nossa mão e sair do fundo do poço quando ela quiser. O máximo
que podemos fazer é não parar de oferecer a mão.
— Blue está preocupada… desolada para ser mais clara. — Ela termina
de mexer a geleia e coloca em um pote sobre a mesa.
— Eu sei, todos nós estamos. Mas cada um tem um jeito de lidar com as
coisas, essa foi a forma que Donna encontrou. Ela nunca precisou lidar com
algo assim antes, que virasse sua vida de cabeça para baixo. Então agora ela
está grandinha e precisando lidar com uma reviravolta que eu tive quando
era um mero moleque. Se Donna precisar beber um pouco pra isso, tudo
bem. Eu vou interferir se não passar logo.
Angelina senta na cadeira e coloca um pouco da geleia em uma torrada,
fazendo também uma para mim.
— Tudo bem, eu não vou insistir. Mas também vou jogar fora todas as
garrafas de bebida que encontrar na geladeira.
— Donna vai dar um jeito de beber, aqui ou na rua. Eu prefiro que seja
em casa. — Mordo um pedaço da torrada com geleia e me impressiono com
o sabor. Realmente ficou gostosa, não conhecia os dotes culinário da Angie.
— Por favor, não se preocupe com isso. Eu vou cuidar das duas, se
concentre em cuidar de você e do bebê. Eu me viro com o restante.
Angelina abre a boca para me responder, mas Vance entra na cozinha e o
assunto morre instantaneamente. Achei que estivéssemos sozinhos em casa.
Ele é tão silencioso que às vezes nem sei quando está aqui ou não.
Vance se senta do meu lado, pegando uma torrada e passando a geleia
preparada por Angelina. Procuro seus olhos no mesmo instante e eles estão
fuzilando as mãos de Vance. Oh, merda.
— Vou estar no quarto lendo se precisar de mim. — Angelina se levanta
e nem penso em retrucar.
Quando ela sai, Vance se vira para mim.
— Tem tempo que não nos falamos.
— Ando muito ocupado. — Dou de ombros.
— E eu muito chapado.
Bufo, lembrando do estado que o vi chegar em casa há algumas noites.
Eu tinha descido para buscar água para Angelina e o vi na cozinha fora si,
parecendo que estava ligado na tomada. Eu tive que enfiá-lo debaixo do
chuveiro para ver se caía em si. Foi quase uma tortura fazê-lo comer
alguma coisa depois.
— Maconha não faz isso com ninguém.
— Tava usando mais algumas coisas.
Apoio os cotovelos na mesa.
— Você precisa de ajuda, cara. Vai acabar se matando.
— Uso drogas desde os quatorze anos. Se não me matei ainda, não vai
acontecer agora.
Tusso a saliva que desceu pelo lugar errado.
— Quatorze?!
Vance ri, balançando a cabeça.
— Nem todos vão experimentar drogas apenas na faculdade como você,
bebezão.
— E nem todos experimentam com quatorze anos. — Limpo a boca,
virando a cadeira para ficar de frente para ele. — Por que você usava?
— Porque era bom.
— Pra fugir da realidade? — Arqueio a sobrancelha. Ninguém começa a
usar droga se não for para sair da realidade. Principalmente não com essa
idade.
— Você tem uma visão romântica do mundo, Francis. — Vance dá
tapinhas no meu rosto. — Acho que é por isso que gosto de estar com você.
Faz as coisas parecerem melhores do que são, como se minhas merdas
tivessem um motivo por trás.
— E não tem? — Apoio uma mão em seu ombro. — Seus pais
abandonaram você por causa da sua sexualidade, isso causa efeitos.
Falo para ver se ele desmente ou conta outra versão, mas nada disso
vem. Eu ainda não engoli totalmente essa história dos pais dele ajudarem a
Blue. Algo não me parece certo, eu só não sei quem está mentindo.
O canto dos lábios do Vance se estica em um sorriso distorcido e me
causa calafrios.
— É… deve ser por isso. — Ele apoia os braços nas pernas e se inclina
sobre mim. — Se eu fosse quebrado assim, talvez você gostasse mais de
mim, não é? — seus globos oculares estremecem. — Você parece gostar do
que é estragado, acho que é um bom passatempo tentar consertar. Foi assim
com a minha prima sem amigos, com Josh o carente, com garotas
estragadas…
Franzo o cenho.
— Se está querendo insinuar que Angelina é algo quebrado que preciso
consertar, sinto te dizer que se há alguém que faz reparos aqui, é ela. O
quebrado na história sou eu.
— Então você busca alguém que te conserte? — Ele umedece os lábios
ressecados. — Eu fiz isso muito antes dela. Enquanto ela estava vivendo a
vida do outro lado do país, sem se importar se você estava vivo ou morto,
eu quem estava aqui.
— Vance… — alerto, não gostando do rumo da conversa. Ele tem
insistido nessa merda sempre que estamos sozinhos. Não percebe que nós
apenas nos afundamos juntos e que nenhum ajudou o outro? Achei que
finalmente estávamos seguindo para um convívio amistoso, mas Vance
muda da água para o vinho da noite para o dia.
— Pare de me olhar como se eu fosse louco. Você não me olhava assim
antes — ele se irrita, passando a mão nos cabelos um pouco maiores agora.
— E como eu te olhava antes? — indago impaciente. — Você parece ter
vivido o que eu vivi de forma diferente. Me diga como eu agia e como eu te
olhava, porque pra mim nada mudou na nossa amizade.
— Amizade… — sua risada vem carregada de deboche. Arqueio a
sobrancelha sem entender a graça que ele está enxergando no que falei. —
Você aconselhou o Josh a não ficar comigo, Francis. Acha que não sei?
Comprimo as sobrancelhas. O que isso tem a ver com a nossa conversa?
— O que eu fiz foi conversar com ele sobre o próprio bem-estar quando
você quase bateu nele na nossa sala. A decisão de se afastar foi do Josh, e
se posso dizer minha opinião, com razão.
— Por que acha isso? Porque quando eu não namorava ficava mais
tempo com você?
Mas que porra… o que deu na cabeça dele? Essa conversa não faz o
menor sentido, Vance e eu éramos mais próximos no passado, mas nada
comparado ao que ele diz. Eu sempre convivi muito mais com Ethan.
— Eu achava que era melhor para o Josh terminar com você, para que
não acabasse o agredindo e isso se tornando uma situação de merda. —
Balanço a cabeça. — Mas não pense que eu o obriguei a nada, se Josh
terminou com você, foi por sua culpa. O cara gostava de você de verdade.
— Gostava? — Vance estala o pescoço. — Ele ainda gosta.
— Você realmente vê as coisas de uma forma distorcida pra cacete, cara.
— Balanço a cabeça. — E se posso te dar um conselho, comece a ver as
coisas como elas são e não como você quer que sejam.
— E como você acha que eu quero que as coisas sejam? — Sua veia da
testa salta. — Hum? Logo você que não enxerga algo a um palmo de
distância da sua cara.
— Como assim? — exalo o ar com força. — O que eu tenho que ver,
hein? Seja claro de uma vez e pare com essa conversa sem sentido!
— Quem está do seu lado sempre que a merda explode? — Vance apoia
as mãos nas minhas pernas, chegando o rosto próximo do meu. — Quem te
amparou quando chegou destruído de Cape May quase três anos atrás?
Quem te ajudou a se manter vivo mesmo com a rotina fodida? Quem te
esperava no centro esportivo enquanto você treinava de noite? Quem te
tirou da piscina quando você sofreu aquele acidente ano passado? Quem
ficou do seu lado quando você errou com a senhorita perfeitinha? Ahn?
A respiração dele bate contra meu rosto e fico paralisado. Seus dedos
estreitam na minha perna, como se tivesse medo de eu sair correndo.
E para ser sincero, estou quase fazendo isso. Ele fodidamente tá me
assustando com esse papo. E pela forma como suas pupilas estão, não
duvido que tenha usado alguma merda antes de descer. Só isso explicaria
esse descontrole.
— Eu estive do seu lado o tempo todo — Vance responde por mim
quando permaneço em silêncio. — Mesmo quando eu namorava o Josh,
você foi o primeiro para mim, sempre foi. Quando eu achei que você
namorava minha prima, eu também era sua prioridade, os outros nunca
conseguiram nos separar, porque não era uma relação tão forte quanto a
nossa… até ela chegar.
A fúria caminha perigosamente pelos seus olhos, tornando-os vítreos e
tempestuosos.
— Vance… — Seguro em seus ombros, tentando afastá-lo, mas ele
apenas joga seu peso ainda mais em minhas pernas.
— Fui eu que você sempre procurou quando estava mal. Fui eu… eu! —
grita a última palavra, me fazendo pular na cadeira. — Você não vê que
gosta de mim como eu gosto de você?
— O q-quê?! — meu queixo despenca.
Que porra…
— Você tá confuso, eu entendo. Acha que gosta da Angelina, que
depende dela, ou que ela depende de você, porque foi isso que te fizeram
acreditar sua vida toda, mas quando você está comigo se liberta, pode ser
quem é, sem medo de errar, porque eu nunca vou te deixar só porque errou.
Não há erro grande o suficiente que me afaste de você, Francis.
Eu estou ficando maluco. Ou tendo um pesadelo. Porque real isso aqui
não pode ser.
Seguro firmemente nos ombros dele, o empurrando com força o
suficiente para que me deixe livre, mas não forte o bastante para que o
machuque. Vance já parece fodido o suficiente.
— Vance... — Engulo a saliva, com a cabeça explodindo. Porra… Ethan
tentou me alertar disso meses atrás e eu não dei a mínima, porque nunca
poderia imaginar que Vance me via dessa forma. Ele sempre foi um amigo
mais possessivo, mas também era um namorado assim com Josh, só
imaginei que fosse seu jeito. Não que…
Merda. Será que alimentei alguma esperança? Eu nunca dei indícios,
nem mesmo de brincadeira, que pudesse gostar dele mais do que como
amigo. E nunca deixei dúvidas sobre a minha sexualidade também.
— Eu sei que pode ser um choque pra você agora — Ele agarra minha
camiseta, não me deixando falar. — Sei que você tem um filho com ela e
isso te deixa ainda mais amarrado, mas vocês não precisam casar pra ter o
bebê. — Vance ri como se fosse ridículo. — Quantos casais se separam?
Isso é normal. Além disso, eu posso considerá-lo meu filho também,
aprender de alguma forma a amá-lo, porque há metade de você ali… esse
bebê nunca impediria que nós ficássemos juntos…
Puta que… ofego, piscando sem acreditar. Se Angelina escutasse
falando isso, eu precisaria esconder as facas daqui de casa.
— Vance! — interrompo seu monólogo com mais firmeza. Nego com a
cabeça, procurando as palavras certas. Eu não quero magoá-lo. Não há a
mínima necessidade disso. Não estou puto por ele ter sentimentos por
mim… isso acontece, porra! Mas estou fodidamente preocupado com o
fato de ele ter visto em mim reciprocidade. — Desculpe se alguma vez eu
dei a entender que você era para mim mais do que um amigo…, mas não é
o caso. Eu sempre fui, sou e serei sempre, apaixonado pela Angelina. Não
há ninguém que ocupe esse lugar… eu nunca gostei de você dessa forma, e
não porque eu acho que preciso estar com ela pelo bebê. Se estamos juntos,
é porque queremos estar. Pais nós seremos mesmo que nossa relação não dê
certo. Nosso filho não é nem um incentivo e nem um empecilho. — Respiro
fundo, um nó se agarrando na minha garganta. — Eu amo você, mas como
amigo. Porra… eu te amo como um irmão, como eu amo Josh e Ethan…
Merda, eu estou começando a amar até a porra do Jayden como irmão…
— Não fala isso! — Ele segura meu rosto com as duas mãos, unindo sua
testa à minha. Tento afastá-lo, mas seus dedos aprofundam na minha pele,
chegando a doer. — Não fala que me ama como um irmão, nem que me
ama como os outros… porra, eu aguento que você diga que ama a Angelina,
aguento porque é o que você foi ensinado a fazer, é como os meninos são
ensinados, a amar as garotas…, mas dizer que me ama como amo o Ethan,
Josh e… e Jayden? — Sua boca espuma com a saliva acumulada e sua mão
aperta meu maxilar a ponto de me fazer abrir a boca. Eu posso tirá-lo daqui
com um único movimento, mas eu vou machucá-lo porque cairá direto em
cima da mesa de vidro. Olho para os lados e tento mudar nosso rumo para
que ele fique de costas para a parede.
— Vance, me solta — murmuro calmamente, tentando me livrar das suas
mãos.
— Eu posso te mostrar como é ser feliz, sabia? Você vai ver que é bom,
basta se permitir. Você é fechado demais, vive querendo agradar as pessoas,
vai ver como é maravilhoso não se importar com mais ninguém além de si
mesmo. Eu posso te mostrar como é.
Antes que eu fale algo mais, Vance empurra sua boca na minha, tentando
me beijar. Tiro as mãos de cima dele e mantenho meu corpo estático, os
lábios em uma linha reta e imóveis. Fico assim até que ele perceba de uma
vez a porra do que está fazendo. Se eu o empurrar, se gritar com ele, vai
continuar falando que estou com medo e com receio da opinião das pessoas.
Ele precisa entender apenas que eu não gosto dele assim. Que nunca vou
gostar. E que não importa a vida utópica que ele esteja me oferecendo, a
resposta sempre será não.
Ele tenta passagem com sua língua e mantenho minha postura. De olhos
abertos, parado e com a boca comprimida. Ele geme de frustração,
empurrando meu peito com força, me fazendo dar dois passos para trás.
Seus olhos me avaliam com raiva e desespero.
— Você nunca vai ser feliz com ela! Sabe por quê? — uma risada
distorcida faz meus pelos se arrepiarem. — Porque ela nunca vai aceitar que
você vai errar… de novo e de novo e de novo.
— Não vou mais errar com ela.
— Já está errando… e quer ver como tenho razão? — Vance ergue os
braços, virando para a porta da cozinha e saindo em direção à escada. Corro
atrás dele, sem a menor ideia do que é capaz de fazer.
Lidei com a situação como amigo dele até agora. Mas se pensar em
mexer com Angelina e destruir com a paz que ela finalmente conseguiu,
então vai descobrir um lado meu que nem mesmo eu gosto.
Não consigo o alcançar a tempo de impedir que abra a porta do meu
quarto violentamente, assustando Angelina, que se senta na cama em um
solavanco. Ela faz careta, segurando a barriga, provavelmente doendo pelo
movimento brusco. Cerro o maxilar, pegando Vance pelo colarinho e o
jogando na parede.
— O que você tá pensando, porra?! — nossos narizes quase se
encontram e meus punhos imploram para colidir com o dele.
Ele sorri satisfeito e isso me embrulha o estômago.
— Até que enfim uma reação. Estava achando que você tinha virado um
gatinho manso e sem graça.
O empurro mais contra a parede e sinto as mãos de Angelina nos meus
ombros e seus pedidos para que eu pare. Agora é tarde. Ele ultrapassou os
limites da minha paciência.
Mais. De. Uma. Porra. De. Vez.
— Eu não perderia meu tempo com você. Não perderia minha sanidade
só pra lidar com as suas merdas, mas as coisas mudam quando você tenta
mexer com as pessoas que eu amo — rosno, ofegante. — Se quer mexer
comigo, se quer despejar seus problemas em mim, vá em frente e faça. Mas
nela não!
— Francis, por favor — a voz de Angelina sai entrecortada, como se
tivesse assustada e forço meu corpo a reprimir a vontade de violência e
solto Vance, dando dois passos para trás.
— Vai embora! — Ela grita para ele, que continua sorrindo, amando a
desgraça que está criando.
— Eu vou embora depois de te mostrar como seu relacionamento é uma
mentira. E como você sempre faz, vai jogar o garotão quebrado fora, porque
você só gosta de peças perfeitas.
— O quê? — ela o encara confusa.
Vance gargalha.
— Por que você não olha as coisas dele e vê o que encontra? Eu duvido
que Francis te fale tudo da vida dele… principalmente o que usa quando
não aguenta o inferno que você causa.
— Do que ele tá falando? — Angelina exige explicação e fecho os olhos,
balançando a cabeça.
Eu não joguei os comprimidos que Vance me deu fora. Há meses atrás,
ele me deu esses malditos comprimidos e eu guardei como medida de
segurança. Merda…
— Ele costumava guardar seus antigos comprimidos na gaveta da mesa
de cabeceira. Por que você não procura lá dentro?
Angelina se aproxima de Vance com a expressão fechada.
— Francis não usa mais drogas!
Cerro o maxilar ao ponto da dor. Eu nunca mais usei, mas também não
consegui jogar fora com medo de precisar. E agora isso vai foder com tudo.
— Fala pra ela, Francis. Ou você vai mentir? — Ele arqueia a
sobrancelha para mim, sorrindo mais que vitorioso. Vance sabe que não
joguei fora. Ele sabe que eu sempre guardei como precaução. Só esperou o
momento certo pra usar isso contra mim.
— Francis… — Angelina me chama e sou incapaz de retribuir seu olhar.
— Eu vou te mostrar que não tem nada aqui.
Ela abre minha gaveta, pronta para jogar na cara dele o quanto está
errado. Mas o errado aqui sou eu. Eu devia ter jogado fora. Há muito tempo,
devia ter jogado fora.
Escuto seu ofegar e vejo o momento que ela pega o saquinho com os
comprimidos.
— Por que você tem isso? — Posso escutar a decepção na voz dela. —
Francis?
Não consigo falar. Não consigo porque tenho vergonha, porque fui fraco
de não jogar fora e fraco ao não contar pra ela que tinha guardado. Porra, eu
tinha tanta coisa na cabeça que definitivamente não lembrei dos
comprimidos. Isso foi antes de ela vir morar comigo, antes de saber do
nosso filho…
— Francis, eu estou te dando a oportunidade de me explicar. Por favor,
fale algo.
Cerro os punhos, encarando meus pés em miséria. Ela vai me deixar. Eu
sei que vai. Ela não vai me querer sendo um drogado de merda. Eu sei
disso. Se eu fosse ela, também não ia querer.
Vance aplaude, provavelmente contente com seu feito.
— Então o telhado de vidro despencou, não é mesmo? Percebe como ele
não pode ser quem é perto de você? Que tem medo dos seus julgamentos?
Que grande namorada você é, Angelina.
— Vance… — ameaço, mas ela me interrompe.
— Eu vou sair. — Sua voz fica embargada. Subo meu olhar para o dela
em desespero. Ela me encara possessa de raiva e vem na minha direção com
o dedo sobre o meu peito. — Eu vou sair, te dar tempo para clarear sua
cabeça para que consiga conversar comigo. Não estou te deixando, seu
babaca estupido, porque eu te amo! Mas eu quero a merda da verdade
quando voltar pra casa.
Angelina não me dá tempo de resposta e sai do quarto a passadas
longas.  A próxima coisa que escuto é o barulho da garagem abrindo e o
som do seu carro na pista.
— Merda… — Corro para procurar minhas próprias chaves, com medo
que ela dirija tão nervosa assim. — Porra!
Amaldiçoo meio mundo ao demorar a encontrar as chaves. Quando a
encontro, seguro a camiseta de Vance e o ergo do chão.
— Reza... mas reza muito para que nada aconteça com ela. Para que
Angelina e meu filho estejam inteiros quando os encontrar… porque eu te
garanto, que se algo acontecer com eles, acontecerá três vezes pior com
você.
O solto de qualquer jeito, correndo desesperado para o meu carro. Saio
da garagem com o pneu cantando na pista.
Angelina completa nove meses em dois dias.
O bebê pode nascer a qualquer momento, ela não deveria nem pegar seu
carro assim.
Caralho!
Soco o volante, pensando onde ela pode ter ido.
— Porra, Angie, só esteja bem. Nem que seja para foder com a minha
cabeça depois, mas esteja bem.
 

 
Eu já não sei onde Angelina pode estar. Fui na biblioteca, no centro
esportivo, até na porra da Golden Gate...
Ligo para minha irmã, mas seu telefone cai direto na caixa de
mensagens, assim como o da Blue. Ethan me atende, mas está trabalhando
na lanchonete dos pais e não sabe de nada da Angelina. Jayden também está
trabalhando hoje, então nem tento ligar.
Tenho medo de ligar para ela e o celular a desconcentrar caso esteja
dirigindo. O dia está começando a ficar escuro, não vou arriscar.
— Ela pode ter ido pra lanchonete — penso em voz alta e giro o volante
no retorno mais próximo, pegando o caminho da lanchonete perto do
campus.
Entro lá correndo, deixando o carro estacionado ocupando duas vagas.
Procuro os cabelos loiros pelas mesas, no bar e até espero um tempo no
banheiro para ver se ela sai. Mas nada. Não está aqui. Logo percebo ser
uma perda de tempo e corro para fora, mas não sem antes um calouro
derramar sua caneca de cerveja toda em cima de mim.
— Puta que pariu! — Encaro minha roupa molhada, enxugando o rosto
do líquido amargo. Até a merda do meu cabelo vai ficar fedendo a cerveja.
— Foi mal cara — o idiota tenta me limpar, mas passo por ele furioso.
Desgraça de noite!
Pego meu celular e mando uma mensagem para Angelina antes de voltar
para o carro. Espero que essa foto a faça sentir um pouco de piedade e volte
para mim.
 

 
 
Minha cabeça explode com mil perguntas.
Eu sabia que Francis usava drogas antes de eu me mudar para São
Francisco, ele me contou isso. Mas também tinha me dito que tinha parado,
no ano passado mesmo. Pensei que esse assunto estava mais que encerrado.
Agora, eu descubro comprimidos na gaveta dele. Ou pior, Vance joga isso
na minha cara, como se o fato de estarem lá fosse minha culpa.
Será que pode ser? Francis voltou a usar drogas por minha causa?
Não entendo por que me escondeu. Sei que recaídas podem acontecer, eu
não iria abandoná-lo por isso. Merda, a gente tinha combinado não ter mais
segredos um com o outro, para manter nossa relação livre de situações
como essa. Será que sou tão pouco confiável assim?
Para piorar, ele apenas ficou parado como uma estátua, encarando os
próprios pés, enquanto Vance despejava todo o veneno em cima de nós
dois. Só que de uma coisa esse verme nojento está enganado, eu não vou
deixar o Francis por isso, eu apenas quero ouvir o que ele tem para me dizer
e assim a gente encontrar uma solução.
Quando ele tirar a porra dos ovos da boca e começar a falar!
Saí de casa por duas razões. A primeira: queria dar espaço para Francis e
eu esfriarmos a cabeça e não falar nada que não deveria. A segunda: eu
ainda quero manter a minha ficha na polícia limpa e se eu ficasse naquela
casa com aquele homem maluco e psicótico, acabaria tendo meu filho na
cadeia, porque eu não sairia sem a pele do Vance debaixo das minhas unhas.
Dirijo sem rumo por um tempo, até que me vejo no caminho do
restaurante que Jayden e Francis trabalham. Assim que entro, meu amigo
não demora para me achar e faz um sinal que já vem me atender. Assinto,
me sentando com dificuldade na cadeira.
Céus, eu só espero que esse bebê não demore muito a nascer agora. Faço
nove meses amanhã, eu apenas preciso que ele nasça. E acho bom que
Francis não invente nunca mais de me engravidar, porque posso amar meu
bebê, mas definitivamente eu não amo estar grávida. Meus seios doem tanto
e estão tão pesados, que acho que poderia amamentar essa criança durante
dois anos com fartura.
Ganho um chute em resposta. Garden tem o senso de humor das tias.
— Céus, eu sei que você está ficando sem espaço aí dentro, mas poderia
por favor não fraturar todas as minhas costelas e parar de chutar minha
bexiga? Daqui a pouco vou acabar fazendo xixi na roupa! Você quer uma
mãe mijona e humilhada?
— Falando sozinha? — Jayden ri de mim, me dando um beijo na
bochecha antes de se sentar à minha frente.
— Com a coisinha inquieta que mora na minha barriga.
Ele se inclina sobre a mesa para observar.
— Posso? — pergunta com a mão estendida e assinto. — Onde o bebê
está?
— Em toda parte, mas está chutando aqui — coloco a mão dele na
lateral da minha barriga e o bebê empurra dentro de mim como se quisesse
arrumar espaço na base da violência. Francis me deve costelas novas.
— Esse bebê é impaciente. — Ele ri, tirando a mão logo em seguida. Jay
nunca ultrapassa os meus três segundos de toque, mesmo quando eu
permito que o faça. Já faz um tempo que não me incomodo com o toque
dele, mas acho bonitinho que ele ainda se preocupe.
Francis disse que ele ainda gosta de mim e às vezes o pego me olhando
quando está distraído. Espero que isso passe logo e ele encontre uma garota
que o faça feliz. Jayden é o tipo de cara romântico, que gosta de estar com
alguém, de dar carinho e de receber também. Ele com certeza será um
ótimo namorado e desejo que conheça uma garota que o ame intensamente,
do tamanho do seu coração.
— Você pensa em ser pai, Jay?
Ele pisca surpreso com minha pergunta e também não sei de onde veio
minha curiosidade. Meu amigo coça a nuca.
— Não agora, mas com certeza sim — seus lábios esticam em um
sorriso bonito, suas covinhas aprofundando as bochechas. — Sempre me vi
como pai de menina… eu iria ensiná-la a jogar basquete e ela cresceria em
uma época que esse esporte já teria relevância feminina. Eu sempre me
imaginei sendo um pai tipo o Michael Kyle, meio doido e amigo dos filhos.
Sorrio, assentindo.
— É, se eu fosse imaginar você sendo pai, com certeza seria de menina.
Providencie isso em breve para meu bebê ter uma amiga.
— Ah, isso vai demorar bastante! Tenho que entrar para a NBA ainda —
Jay arregala os olhos, com pavor só de pensar em ser pai agora. Eu entendo,
também fico assim ainda. — E você, já tem um palpite do sexo do bebê?
Aceno que sim, sorrindo ao imaginar aqueles olhos azuis do meu sonho.
— Eu acho que será um menino.
— É mesmo? — Seus olhos brilham. — E já tem ideia de nome? Jayden
é bem bonito.
Gargalho alto, batendo no seu braço.
— Palhaço… sim, temos um nome, mas só vamos revelar quando nascer.
— Credo, que maldade comigo… eu nem sou fofoqueiro.
Suas sobrancelhas balançam e eu imito fechar um zíper na minha boca.
Ele me dá língua como resposta, como sempre muito maduro.
— Como está sua mãe, a propósito? — mudo de assunto.
O olhar de Jayden muda de provocativo para amoroso em segundos.
— Está indo muito bem com o tratamento, eu realmente devo muito ao
Francis e ao pai dele.
— Eu fico feliz que vocês tenham se tornado amigos.
— Eu fico é surpreso, eu jurei que a gente ia acabar jogando um ao outro
na fritadeira qualquer dia desses — Ele ri, cruzando os braços.
— Eu também pensei…, mas você e Francis têm algo em comum.
— O quê? — Jay se inclina curioso. — O branco do olho?
— Vocês cuidam das pessoas que amam — explico, e Jayden olha para
baixo, um pouco tímido. — Também não sabem receber elogios. Se gabam
o tempo todo, mas quando alguém realmente os elogia, vocês se encolhem
como gatinhos manhosos.
— Para com isso! — ele se encolhe ainda mais, me tirando risadas. —
Mas então, o que veio fazer aqui? — muda de assunto com as bochechas
vermelhas. — O Francis não te avisou que ia ter folga?
— Ele estava lá em casa… — suspiro, sentindo minha cabeça pesar de
novo. — Vance aprontou.
— Michael Jordan! — Sua boca retorce desgostoso. — O que foi que ele
fez dessa vez?
Nego com a cabeça.
— Eu não sei como as coisas começaram, mas eu estava na cozinha com
Francis e ele apareceu, então eu subi porque não suporto ficar na presença
dele — Reviro os olhos. — E aí do nada ele abriu a porta do quarto do
Francis como um touro, falando um monte de coisa, me acusando de não
amar o Francis de verdade, de querer alguém perfeito…
— Que babaca!
— Nem me fale. — Bufo. — E o pior é que ele saiu satisfeito e vitorioso
da situação, porque ele disse que Francis me escondia algo e de fato
escondia.
— Você conversou com o Francis antes de achar isso? — Jay desconfia.
— Não vá acreditar no Vance, ele claramente só disse algo assim pra vocês
dois brigarem.
Brinco com meus dedos sobre a mesa.
— Encontrei droga na gaveta dele.
— Do Francis? — Jay fala mais alto.
— Sim.
— E você perguntou se era mesmo dele?
Eu riria dessa proteção se não estivesse tão chateada com a situação.
— Francis estava no quarto também, Jay.
— Que cacete! — Ele bate a mão sobre a mesa. — Mas eu duvido que
ele estava se drogando, o cara mal tem tempo para respirar com essa rotina.
— É, eu também, mas quando o confrontei ele simplesmente ficou
parado olhando para o chão.
— Nós não somos bons com palavras, Angie... — Meu amigo dá de
ombros. — Eu travo com situações assim, quando sou colocado contra a
parede. Ele pode só estar precisando de um tempo.
— Por acaso Francis está te pagando pra defender ele?
Jay ri baixinho, negando.
— Escuta… pode ser estranho que eu o defenda, principalmente porque
estou ajudando a relação de vocês, mas quando eu disse que gostava de
você, realmente era verdade — ele diz com o rosto corado. — E isso
implica em querer te ver bem. Seja comigo ou com ele.
Engulo a saliva, sentindo-me culpada. Eu não deveria desabafar da
minha relação com Jayden, não sabendo do que ele sente por mim.
— Desculpe tocar nesse assunto com você. Sei do seu sentimento.
— Não precisa se desculpar, sério mesmo. — Jay apoia os braços na
mesa. — Eu te falei que estava satisfeito em ser seu amigo e falei a verdade.
Logo o meu amor por você vai se transformar em apenas amizade de novo.
Você vai ver, não tem nada que o tempo não cure.
Seguro sua mão, apertando levemente.
— Tem razão. Não há nada que o tempo não cure e eu vou estar torcendo
para você ser muito feliz com uma pessoa que te ame acima de tudo.
Jay fita nossas mãos, assentindo.
— Mas se isso não acontecer, acredite em mim, estou feliz de ter
encontrado você na minha vida. Às vezes o amor não precisa ser recíproco
para ser completo, o simples ato de amar abastece nossas vidas.
— Que poético, Jayden Clifford! — Bato palmas para ele, que falta se
esconder debaixo da cadeira.
— Para de me constranger, mulher! — as pessoas começam a olhar para
ele e eu apenas me contorço de rir com sua vergonha.
Só paro quando meu celular vibra sobre a mesa. Olho para o aparelho,
esperando ser Donna ou Blue, mas vejo que é uma mensagem do Francis.
Ele deve estar preocupado, já que saí sem falar para onde iria. Eu deveria
ignorá-lo, para ver se assim não me esconde mais as coisas.
— Olha… — Jayden empurra o aparelho nas minhas mãos. — Ao
menos para dizer a ele que está bem. Não o torture muito.
Respiro fundo, desbloqueando a tela.
Ele mandou uma imagem com uma frase embaixo. Aperto para baixar a
foto e quando ela abre, meu coração para de bater por um segundo. Há
comprimidos espalhados em sua cama, tantos que não consigo contar.
Franzo o cenho, abaixando a tela para ler a mensagem.
“Ele estava certo. Você sempre vai me deixar quando eu errar. E eu estou
cansado de ser abandonado, Angelina. Cansei de tentar valer a pena,
cansei de viver”.
— Jayden — ofego, colocando a mão no coração.
— O que foi?
Ele toma o celular da minha mão quando vê meu estado e seus olhos se
arregalam.
— Cadê a chave do seu carro? Eu vim de táxi hoje — Indico minha
bolsa e ele estende a mão para mim. — Vamos, ele não vai fazer essa
merda.
Tento me levantar, mas minhas pernas não me obedecem, todos os meus
ossos tornaram-se gelatina com as imagens que vão aparecendo na minha
mente. Do Francis ingerindo esses comprimidos, dele deitado sem cor no
colchão, dele…
— Por favor, Jayden… — Uma lágrima escorre no meu rosto. — Me
ajuda a chegar lá… me ajuda. Ele não pode fazer isso... eu o amo, ele não
pode!
— Vem cá.
Jayden me pega em seus braços e a lanchonete roda em todas as
direções, com minha pressão que vai caindo e meu coração apertando
dolorosamente. Ele me carrega até meu carro e me coloca no banco do
passageiro, passando o cinto por mim. Jay se põe no lado do motorista,
chegando o banco para trás para adequar ao seu tamanho.
— Isso foi na casa dele, certo?
Imagino que ele se refira a foto e apenas aceno. Foi no seu quarto. A
cama... tantos comprimidos. Se Francis ingerir tudo isso, ele... ele vai...
Jayden pega a avenida apressado, o motor do meu carro rugindo com o
esforço que nunca teve. Eu nunca atingi uma velocidade alta antes, mas
mesmo que ande sempre devagar, agora parece que estou em câmera lenta e
que cada segundo leva horas.
Francis não pode fazer isso. Não pode.
Será que ele não entende que eu não o deixaria por algo assim? Quão
forte aquele desgraçado envenenou sua mente que passasse a acreditar
naquelas palavras nojentas? Eu nunca o deixaria em um momento que
precisasse de mim. Não já tendo feito isso quando ele se mudou para São
Francisco, não sabendo o que ele passou com as drogas aqui.
Eu só preciso que Francis acredite em mim. Que acredite no que sinto.
Talvez eu devesse falar mais sobre meus sentimentos. Talvez seja por
falta das minhas palavras que Francis aceitou as do Vance.
Talvez seja de fato culpa minha…
— Porra, sai da frente! — Jayden pragueja com o motorista à nossa
frente e o ultrapassa com uma manobra brusca, meu corpo chacoalhando no
banco. Seguro na porta para me manter estável. Jayden se vira para mim
depois de fazer uma das curvas acentuadas. — Você está bem?
— Tô sim, apenas olhe para a fren… JAYDEN! — Uma luz forte bate
contra meu rosto, onde um caminhão da pista ao lado ultrapassa o limite da
nossa, vindo na contramão.
— Merda! — ele reclama mais calmo que eu, afinal ainda está um pouco
longe e ele tem tempo para frear o carro. Jayden pisa no freio bruscamente,
mas ao invés do carro derrapar ou jogar meu corpo para frente, ele apenas
continua indo.
— Jay…
— O freio… o freio não tá funcionando — Jayden continua pisando com
força. — Angelina, não está funcionando... eu tô tentando... — ele pisa
mais forte ainda, empurrando o pé incessantemente, mas o carro não
funciona, como se o frio tivesse travado. — Se segura, eu vou desviar para
a pista do lado!
Ele tira uma mão do volante, a passando sobre meu tronco, prendendo-
me ainda mais ao banco, enquanto tenta girar o volante para escapar do
caminhão em nossa direção. Nós dois só não contávamos com uma
caminhonete que vinha logo atrás dele.
Tudo que escuto depois disso, é o grito do Jayden para que eu me segure
e o choque da frente do nosso carro com a caminhonete.
— Angelina! — Jayden solta o volante quando percebe que nada
adiantaria e se desfaz do cinto de segurança, jogando seu corpo sobre o meu
quando meu carro descola as rodas traseiras do chão e somos jogados para
frente. Cubro minha barriga com as mãos, com uma única palavra
titubeando em minha mente.
Garden…
Escuto o som dos pneus freando dos outros carros, o som de aço sendo
retorcido, de vidro sendo quebrado, de plástico se partindo, de pessoas
gritando… do meu amigo urrando de dor ao ser esmagado pelas ferragens.
O caminhão passa do meu lado praticamente raspando a lataria em minha
porta, mas sem atingi-la. Todo o impacto se dá do lado do motorista. Do
lado do Jayden.
Quando o carro volta os quatro pneus ao chão, toda minha visão fica
turva, escurecida. Meu ouvido zuni com um barulho fino, como se meus
tímpanos tivessem sofrendo uma grande pressão.
Escuto vagamente pessoas do lado de fora gritando socorro e ajuda, mas
não consigo sair da posição que me encontro. O cinto de segurança me
segurou no lugar e meu tronco está debruçado sobre as costas do Jayden,
que cobre minha barriga com seu corpo. Meu baixo ventre fisga com uma
dor aguda. Tento mexer o pescoço para ver como meu amigo está, mas
meus músculos estão travados como aço, não consigo me mover. Tento
mexer os dedos dos pés, com medo de ter pedido meus movimentos, mas
consigo fracamente movê-los. Algo escorre no meu rosto e não sei
identificar se são lágrimas ou sangue.
— J… J… Jay — tusso com o gosto enferrujado na minha garganta.
Tento mexer os braços, mas meu corpo não consegue se livrar do peso do
meu amigo, não sou forte o bastante. Ele está sobre toda a lateral direita do
meu corpo, me protegendo. — Jay… p-pelo amor de d-Deus… Jayden,
acorda! — grito da forma que dá, saindo mais como um sussurro rouco e
engasgado.
Um líquido quente escorre pelas minhas pernas e rezo para que não seja
nada com Garden. Eu não posso entrar em trabalho de parto agora, não
posso perder meu bebê. O pânico vai tomando conta de todo meu corpo e já
não diferencio uma dor da outra; tudo dói… ao mesmo tempo que pareço
não sentir nada. Os músculos estão pesados, a mente anuviada, a visão
turva... eu quero desmaiar. Mas não posso fazer isso. Não posso apagar
agora.
Consigo erguer uma das minhas mãos, colocando-a sobre o rosto de
Jayden que repousa na minha barriga. O peso dele dói. Tudo dói. Tento
empurrar sua pele para acordá-lo, mas minha força é suficiente apenas para
uma carícia branda.
As pálpebras de Jayden tremulam e não consigo conter o som de alívio e
agonia que sai da minha boca. Encosto minha testa na sua têmpora, meu
pescoço perdendo a força para se manter ereto.
— A-Angie…
— Shhh, não fala. — Olho para os lados, procurando por qualquer
pessoa que nos tire daqui. — O socorro já vai chegar.
Meus dedos tremem com a força que faço para erguer o braço direito e
colocar sobre a cabeça dele, tirando dali um pedaço de vidro. Estamos
cobertos de vidro. Sinto meu corpo cada vez mais molhado. Minhas coxas
molhadas e molhadas. É minha bolsa estourando? É sangue? É meu? Do
Jayden?
— Vai ficar tudo bem. Tudo bem — repito sem parar, mas não
acreditando em nada que sai da minha boca.
Vai ficar. Precisa ficar. É só um susto. Só um pequeno susto. Vamos sair
daqui. Já vão nos tirar daqui. Jayden vai rir disso amanhã comigo.
Vai ficar tudo bem.
— Não sinto nada — Jayden balbucia com uma expressão neutra, quase
bêbada.
— Você vai ficar bem.
— Tem algo em cima de mim? — ele força para falar, seus olhos quase
se fechando novamente.
— Não dorme. Não dorme, por favor! — choro alto, mordendo a boca
para não gritar com a dor que se alastra no meu ventre. É forte. É
insuportável. Como um peso que força para baixo, um corpo que quer
expulsar algo. 
— Eu estou cansado… me deixa dormir, Angie. Estou tão cansado...
— Jayden! — tento sacudi-lo, mas não tenho força para fazer isso.
Encosto nossas testas, implorando, suplicando, molhando sua pele com
minhas lágrimas, varrendo o sangue dali. — Jay, fica comigo. Conversa
comigo.
— Eu não sinto… — Sangue escapa dos seus lábios e eu choro, em um
grito mudo por ajuda. — Não sinto nada. Tem alguma coisa em cima de
mim?
— Você está bem. Está bem.
Ergo os olhos para a janela, mas a noite não facilita para que eu veja
muita coisa do lado de fora
— Você está mentindo pra mim. — Ele tenta sorrir e mais sangue
escorre. — Você não é de mentir... lembra? — sua tosse sai carregada. —
Seja minha Angie sincera.
Nego com a cabeça.
— Não… — Engulo o pânico, pavor e desespero. — Não estou. Não
estou mentindo... vai ficar bem, Jay.
— Então me fala… — os olhos dele quase se fecham de novo e seu rosto
geralmente corado vai perdendo a cor. — Tem algo em cima de mim? Não
dói nada..., mas está pesado. Estou pesado.
Não me faça olhar.
Não me faça olhar.
Por favor, não me faça olhar.
— Angie...
Aperto os dedos, forçando meus olhos a se virarem para o lado que o
restante do seu corpo está.
Mordo a boca até o sangue se acumular para não gritar com a visão que
tenho.
Deus…
Ele...
Ele não vai…
Ele não vai sair daqui. 
— Não… — meu maxilar estremece tanto que meus dentes colidem um
contra o outro. — Não… não tem nada em cima de você.
Minto.
Eu minto.
A verdade é odiosa.
A verdade é uma filha da puta.
Sinto outra fisgada em meu ventre e dessa vez não consigo reprimir o
grito de dor.
— Angie…
— Oi… o-oi — arquejo, as lágrimas escorrendo do meu rosto para o
dele.
Fito seus olhos castanhos, os olhos que sempre me olharam com carinho,
que sempre estiveram ali para mim, os olhos de um garoto com sonhos,
com uma vida inteira pela frente. Os olhos de um homem bom.
Deus, por favor… por favor, não leva ele.
Não faça isso!
— Eu quero que saiba que eu te amo — Jayden tosse, as gotas de sangue
respingando na minha pele.
— Não fala isso — choro com a boca contra sua testa. — Não se
despeça de mim. Eu te proíbo, Jay. Eu não deixo!
— Me conta o nome… me diz o nome.
— O que? — tento conter meus soluços.
— O nome do bebê.
Meu coração estraçalha em milhões de pedaços por todo esse carro
destruído. Toda a dor do meu corpo evapora e se concentra apenas no meu
peito. Meu coração está sendo arrancado de mim. Não como foi com meu
avô. Agora, é o destino arrancando à força uma pessoa que tinha décadas
pela frente.
— Garden… o nome do bebê é Garden. — Beijo sua testa, com o gosto
de sangue, terra, suor e lágrimas. E lembrando do que ele disse no
restaurante, complemento. — Garden Jayden.
— Mesmo? — ele sorri tão fraquinho, enquanto o sangue continua
escorrendo da sua boca.
— Mesmo.
— Me promete uma coisa?
— O que você quiser. — Por favor, não vai.
Tento esconder o meu desespero, mas nós dois sabemos de uma coisa.
Jayden não vai sair vivo desse carro. Não importa o quanto eu minta. Ele
sabe. Eu sei. E a única razão para que eu não queira o mesmo destino, é o
bebê dentro da minha barriga. Ele é a única razão para que eu não implore
para ter o mesmo destino.
— Promete que contará a Garden que o titio Jayden era muito bonito e o
melhor no basquete?
Soluço agoniada, o som vindo de uma dor torturante, uma que nunca
senti antes.
— Prometa que contará que eu já o amava muito… — ele tenta outro
sorriso. — Também acho que será um menino.
Jayden tosse e sinto minhas pernas ficando mais molhadas. Não é a
bolsa. É ele. O sangue dele. Aperto os dentes em um grito mudo, mas
ensurdecedor por dentro.
— Prometa que… que não esquecerá de mim e que contará a ele que eu
seria seu padrinho. E que… que eu nunca me senti tão feliz e honrado com
algo na vida. Que… que irei ser seu anjo da guarda… vestido de uniforme e
com uma bola de basquete na mão.
Um som feio e engasgada sai da garganta dele e mordo a boca para não
gritar da minha própria dor.
— Pro…promete que cuidará da Isabela. Diga que… que eu a amo e
quero que… que ela siga seus sonhos. Diga que me orgulho dela. Que ela
precisa ser forte pela mamãe.
O abraço da forma que dá, tentando sentir um pouco do seu cheiro que o
sangue e a poeira não macularam. E me arrependo de não ter abraçado
mais, de não ter estado mais ao lado dele. Preciso de mais tempo, Jay.
Preciso de mais anos ao seu lado.
Isso não é justo. Ele ainda tinha tempo. Tanto tempo...
— Prometa que dirá aos meus pais que os amo. Que sempre os amei e
que sou gra…grato — ele respira, mas o ar parece não chegar. — Prometa
que nunca largará o vôlei. Prometa que dirá ao Francis para cuidar bem de
você e para… para parar de ser desastrado e se cuidar. E que… que ele vai
ser um bom pai para o Garden. Que eu confio nele.
Assinto, dando tudo de mim para me manter acordada. Meu corpo e
minha mente querem desligar. E me apavoro de perder qualquer segundo ao
lado dele.
— Diz… diz ao Ethan que ele sempre foi um amigo incrível e que
sempre seja tão coração… e diga ao Josh que o cara da enfermaria me disse
que está gostando dele… — Ele tenta um sorriso com a boca perdendo a
cor. — Prometa que no meu enterro ninguém vai chorar… eu quero cerveja,
música e meus vídeos foda em quadra…
Jayden para de falar, sua voz quase um sussurro inaudível e quero
implorar para que não pare. Que fale comigo, que nunca deixe de falar
comigo.
— Eu prometo, Jay… prometo. Prometo tudo isso. Prometo que irei
cumprir tudo isso.
Beijo sua testa. E de novo. De novo.
Não vá.
Por favor.
Me desculpe.
Fica.
Por favor, fica.
— Angie… — os olhos castanhos fixam nos meus, quase não abertos,
tão fracos, o brilho sumindo aos poucos. — T-Três segundos?
Tento erguer meus braços para abraçá-lo, mas não consigo. Meu corpo
não me responde mais e grito de pura frustração. Meu rosto é a única coisa
que consigo mover.
Chego a boca perto da dele e sussurro em meio ao desespero.
— Eu também te amo, Jayden Clifford — ele geme de agonia e talvez
dor e tento o acalmar. — Shhh, conte até três, então tudo vai passar. A dor
vai passar. Tudo vai ficar bem. Eu prometo. Você ficará bem.
Encosto meus lábios aos dele e conto.
Um. Dois. Três.
E escuto o último suspiro do meu melhor amigo colidindo contra minha
pele, tranquilo, sereno… em paz. Mas o próximo som é apenas o meu grito,
o meu urro para o universo, o amaldiçoando, agarrando o corpo inerte, mas
ainda tão quente, como eu sempre me lembro dele.
Como eu sempre vou me lembrar.
 
 
 
 
 

 
 
Entro na JC’s Grill já sem grandes esperanças de encontrar Angelina. É a
porra do último lugar que me resta procurá-la por essa cidade. Já vasculhei
todo maldito canto que ela pudesse estar. Bato na porta da cozinha e quem
abre é meu chefe.
— Francis? O que está fazendo aqui na sua folga?
Apoio a mão no batente, pegando fôlego.
— Onde está o Jayden?
— Eu também queria saber. Ele saiu daqui faz uma meia hora com uma
garota loira e grávida. Acho que é sua namorada, não é?
Alívio escorre pelas minhas veias e respiro sossegado com a mão sobre o
peito. Graças a Deus ela está bem.
— É sim… — Engulo a saliva pastosa. — Se ela está com ele então está
tudo bem.
— Aconteceu alguma coisa grave?
— Aconteceu alguma coisa sim, mas eu espero que não seja grave a
ponto de eu ganhar um pé na bunda.
— Você ficou com outra garota?
— O quê?! — grito. — Claro que não.
— Então ela te perdoa.
Gargalho, negando.
— Você não conhece essa mulher. Ela é tão difícil quanto uma prova de
anatomia. — Confiro o celular, ainda sem chamada ou mensagem dos meus
amigos. Angelina também não respondeu à minha mensagem ainda; pelo
visto ela está além da piedade. — Eu vou indo, preciso achar minha garota.
— E vê se fala para o meu funcionário não sair daqui sem me avisar de
novo. Vou deixar passar só dessa vez.
Assinto.
— Pode deixar, JC… — faço menção de sair, mas volto para falar uma
última coisa. — Qualquer punição que ele esteja prestes a receber, por favor
dê a mim… Jayden só saiu para ajudar minha namorada, então não o
responsabilize por nada.
Meu chefe balança a cabeça.
— Eu não sou ruim ao ponto de punir um funcionário por ajudar uma
garota grávida.
Rio, me despedindo dele. Se Angelina o ouvisse falar assim dela,
provavelmente o agrediria.
Corro de volta para o meu carro, bem mais tranquilo do que há alguns
minutos. Eu sei que Jayden deve ter levado Angelina para se acalmar e se
algo tivesse acontecido me ligaria. Tudo que posso fazer é voltar para casa e
esperar que ela esteja pronta para falar comigo.
E que eu não estrague tudo mais uma vez.
Eu não deveria ter travado quando ela me questionou sobre as drogas. Se
tivesse explicado o que aconteceu, ela não teria saído tão possessa da vida.
Acho que tenho medo demais que ela me deixe de novo, e não posso ser
fraco assim. Não sou só eu que preciso de mim mesmo agora.
Se quero ser um bom pai, então primeiro preciso ser um bom homem. E
para isso preciso saber administrar melhor minhas situações de crise. Travar
e sentir vergonha não vai me tirar da merda.
Sou obrigado a pisar no freio de novo, parando o carro.
O trânsito na volta está um caos, basicamente não anda. Eu deveria ter
pegado algum atalho, mas só me lembrei tarde demais. Na vinda, eu vi que
havia acontecido um acidente na avenida ao lado, mas na pressa não prestei
atenção.
— Merda! — Bato no volante, impaciente.
Não quero chegar em casa depois de Angelina. Eu ainda preciso
urgentemente de um banho por causa da maldita cerveja que derramaram
em mim. Só espero que nenhum policial me pare, porque é capaz de
explodir o bafômetro mesmo sem soprar.
Aproveito o carro parado e fecho os olhos, estalando meu pescoço. O
que vou dizer a Angelina? Que tenho medo de não ter drogas em casa? Que
preciso ao menos saber que existe a possibilidade caso o mundo venha
abaixo? Que eu sequer me lembrei das drogas desde o bebê? Que ele foi
minha válvula de escape muito mais do que qualquer comprimido?
Porque todas essas coisas são verdadeiras.
Respiro fundo, passando a macha quando o trânsito começa a ser
liberado. O barulho de sirenes vai ficando cada vez mais alto conforme me
aproximo do acidente. Ambulâncias, carros de polícia e bombeiros estão no
local e a coisa parece ter sido grave.
Nunca gostei de olhar para acidentes. Mas mesmo não tendo o hábito de
fazer isso, quando meu carro passa exatamente do lado da via próximo à
batida, meus olhos vão por reflexo para o emaranhado de latarias
amassadas. Foi um carro contra uma caminhonete que colidiram de frente,
provavelmente por alguém estar na contramão.
Fico agradecido mais uma vez por Angelina estar com Jayden. Ela
poderia ficar impressionada com um carro parecido com o seu estar
envolvido em um acidente assim.
Franzo o cenho ao me aproximar ainda mais. É… parecido mesmo —
constato com uma sensação estranha.
Meus olhos quase voltam para a pista em frente, quase não analisam de
novo a destruição do lado esquerdo do carro esmagado contra a
caminhonete, quase não observam o quão idêntico é ao carro de Angelina e
quase… quase não chegam à constatação, de que não só se parece, como é
o carro dela.
Quase.
Mas eu noto. Por uma fração de segundo apavorante, eu vejo a placa.
Noto e meu corpo todo desliga. O meu carro desliga. Ou apaga. Não sei e
não sinto mais nada. Escuto as buzinas atrás de mim, vejo alguns policiais
vindo na minha direção quando desço do carro, escuto gritarem comigo.
Mas eu só consigo olhar para o lado do motorista completamente
amassado e destruído.
“Ele saiu com uma garota loira e grávida daqui”.
“É sua namorada, não é?”
Abro a boca, querendo dizer algo.
Angelina não deixa dirigirem seu carro.
Ela não… ela não deixa.
Não deixa.
— Não deixa o quê, rapaz? — um policial agarra meus ombros e me dou
conta de que pensava em voz alta.
Minhas pernas falham e ele me segura mais forte.
— Você está bêbado?
Nego com a cabeça, encarando a lataria do carro.
Não, não estou bêbado. Estou morto. Morto, porque não há como
alguém ter sobrevivido estando no lado do motorista. Morto porque eu sei
quem estava.
— Rapaz! Rapaz! — ele começa a me gritar quando minhas pernas
cedem completamente e começo a gritar, me rastejando até os escombros.
— Você não pode chegar perto!
Mãos me seguram, me puxam, me agarram e eu grito. Grito e me arrasto,
grito e golpeio; grito e me debato.
— É alguém que você conhece? — eles perguntam nervosos. — Sabe
quem eram as vítimas?
Eram…
Vítimas…
Agarro pedaços de vidro, terra e aço do chão. Até que a ponta dos meus
dedos toca algo fino e gelado. Abaixo os olhos, encontrando o colar de onda
que dei para Angelina meses atrás. Com as mãos tremendo, o segundo nas
mãos, lendo a frase gravado no aro circular.
“Uma onda sempre volta para a sua praia”.
— Não, não, não, não… ela não pode... não pode... — Fecho o colar na
mão, o segurando como se ele pudesse trazer minha garota de volta. — Diz
que não, diz que não, diz! Diz que ela está bem, que... que meu filho está
bem.
Garden... Deus, você não seria cruel a esse ponto.
— Calma, garoto.
— Não… ela… ela e o bebê — a dor sai rasgando o caminho pela minha
garganta, até que o som de um animal ferido chega aos meus ouvidos. Eu
sei que sou eu. Mas não se parece comigo.
— Ele conhece a moça grávida? — escuto alguém de longe.
Ou está perto.
Meus ouvidos parecem tampados com a pressão do ar, o gosto de sangue
acumulando na minha boca, talvez porque a mordi, talvez porque imagino,
ou talvez seja apenas o gosto do cheiro que sinto.
— Você é alguma coisa da garota grávida?
Fico de pé apenas porque ele agarra minha camiseta.
Angelina não pode… Garden não pode… eles não podem me deixar.
Não podem ir embora. Eu deveria estar aqui. Deveria ser eu. É tudo culpa
minha. Ela nunca teria saído de casa se não fosse por mim. Por minha
causa, minha garota e meu filho estão…
Céus, não… por favor, não.
Eu já assisti muitos filmes. Muitos filmes onde o mundo começava a
correr em câmera lenta quando algo ruim acontecia. Já vi incontáveis vezes
como um acidente acontecia em detalhes na tela de uma tevê; as reações de
quem está dentro do carro, como seus corpos são jogados ou ficam presos
entre as ferragens. Por vezes demais assisti à cenas onde quem estava do
lado de fora, rezava e implorava, a Deus, ao demônio ou a qualquer um que
pudesse trocá-lo de lugar com sua pessoa amada perdida entre aço e vidro.
Nunca me coloquei nessa cena. Nunca me vi nela. Nunca pensei que um dia
passaria por ela. Mas agora eu sei. Eu sei que o ar já não é mais o que te
mantém na terra. Nada é. Agora eu sei que a gravidade dobra sua pressão,
levando seu corpo ao chão, sem chance para misericórdia. Agora eu sei, que
todo o mundo fica mudo, exceto pelo latejar fraco e quase inerte do seu
coração. Agora eu sei… o mundo não gira em câmera lenta, é o coração e a
mente que vão deixando, pouquinho a pouquinho, de funcionar. Não
querem sentir. Não querem ver. Não querem escutar. Não querem existir. É
o pedido mudo do corpo para ter o mesmo destino de quem ama.
Deus, o senhor fez isso… fez isso com eles. Não deu oportunidade para
eles. Para Angelina. Para meu filho.
Eu nunca vou te perdoar.
Me ouviu? Nunca.
Nunca!
— Rapaz, me escuta, a moça grávida foi levada de ambulância para o
Hospital regional, ela estava em trabalho de parto. Se você a conhece, me
escute.
Sinto tapas no meu rosto e viro o pescoço tão rápido, que o músculo do
meu ombro salta.
— O… o que disse? — me agarro ao colarinho do uniforme do policial.
— A moça grávida saiu daqui viva na ambulância.
Olho novamente para o carro, negando com a cabeça.
Não está. Não tem como estar.
Estão mentindo.
Por que estão mentindo pra mim?
— Eu sinto muito, mas o motorista não resistiu.
— Ela… ela estava dirigindo. Eu sei. Ela não deixa ninguém dirigir. Eu
sei. Não mente pra mim! — Parto para cima dele e os outros me seguram
pelos braços. — Não minta! Eu sei a verdade… eu sei...
Soluço, uma dor esmagadora comprimindo meu peito.
— Senhor, acredite em mim. Quem estava dirigindo era um homem e a
mulher grávida estava no banco do passageiro. Ela foi levada ao hospital.
Deixe que meu colega te leve até ela, o senhor não está em condições de
dirigir.
Pisco, negando.
Agarro meus cabelos.
— Ela… ela está…
— Saiu daqui com vida.
Assinto no automático, minha visão girando e retorcendo. Ergo a mão,
apontando para ele afobadamente.
— Não está mentindo?
— Ela saiu daqui com vida. Não posso assegurar como está agora.
Cerro os punhos, firmando meus pés no chão.
— Me leva. Me leva ao hospital. Alguém me leva! — grito agoniado,
sem raciocinar corretamente.
O homem me arrasta para uma viatura e me joga no banco, porque
minhas pernas não formam linhas retas. Agarro a porta durante todo o
caminho e não penso em nada.
Nada.
Nunca pensei que isso fosse possível.
Pensar em nada.
Mas agora, o nada é melhor do que qualquer realidade que eu imagine.
O motorista não resistiu.
Ele saiu daqui com uma garota loira e grávida.
Esfrego meu rosto, meus punhos passando pela pele arrastado, pesado.
Seguro meus cabelos em punhos, puxando, forçando. Sinto alguns fios
cedendo entre meus dedos.
Não tenho noção do tempo. Não sei quanto tempo leva para que eu entre
naquele hospital pela segunda vez temendo pela vida de Angelina. O
policial me leva até a recepção e a mulher começa a fazer perguntas demais,
perguntas que estou anestesiado demais para responder.
— A garota acabou de sofrer um acidente, ela está grávida,
provavelmente está em trabalho de parto. — O policial explica quando
percebe que não consigo falar.
— O senhor é parente?
— S… Sou pai… pai do bebê.
— Por aqui, por favor. Ela está em trabalho de parto.
A mulher vai na frente e o policial segura nos meus braços, me
arrastando junto de si. Não me permito acreditar. Não me permito ter
esperança.
A pior coisa que fiz a minha vida toda, foi ter esperança de que as coisas
ficariam bem em seu devido tempo; que a vida castigaria para depois
curar…, mas a vida não é uma mãe carinhosa. Não tem a intenção de
suturar os rasgos que faz. Sua intenção é deixar cicatrizes tão grandes, que
seja impossível esquecer ou cobrir. O tempo não é um esparadrapo para os
machucados que adquirimos. Ele é a faca que abre novos. E eu nunca mais
vou cometer o erro de acreditar. De ter esperança.
— É nesse quarto — a mulher indica e o policial me guia.
— Ele pode entrar assim?
— Menino… você está bem para entrar?
Eles falam.
Falam e falam.
Mas eu não quero escutar nenhum deles.
O único som que quero escutar, são os urros e gritos que vêm por trás
dessa porta.
O ar sai completamente dos meus pulmões e espalmo as mãos na
madeira, ouvindo os berros de Angelina. Se me dissessem algum dia, que
eu me sentiria bem ao escutar gritos de dor, eu com certeza chamaria a
pessoa de louca. Mas se me perguntassem agora, o que eu ouviria para o
resto da minha vida, seria isso. Os gritos dela. Porque significam que está
viva. Significam que minha garota desafiou a morte mais uma vez e saiu
vencedora dela. Não sei a que custo. Não sei a que preço. Mas desde que
ela e Garden estejam bem, estou disposto a arcar com qualquer dívida
cármica que seja jogada sobre mim.
Abro a porta precisando ver com meus próprios olhos e minhas pernas
me abandonam. Caio de joelhos no chão ao ver Angelina deitada na cama,
com alguns cortes sobre a testa, escoriações nos braços, mas completamente
inteira. Inteira e viva. Inteira e tentando colocar nosso filho no mundo.
Cubro o rosto com as mãos, soluçando em meu bálsamo, permitindo que
o alívio percorra minha corrente sanguínea, sem medo de despencar no
abismo da esperança novamente.
Apoio as mãos na parede, tomando a força que preciso para me colocar
de pé. Ela está viva. Angelina está viva. Céus, eu posso me permitir respirar
novamente. Esquadrinho cada parte dela com os olhos, buscando qualquer
fração do seu corpo que tenha sido machucada. Não faço ideia de como,
mas ela não aparenta ter sofrido grandes ferimentos externos.
A sensação do meu corpo vai voltando aos poucos, sinto novamente o
calor na minha pele, escuto com clareza os bipes do aparelho marcando o
batimento cardíaco, a voz da enfermeira conversando com Angelina...
Ela ainda não me notou. Sua posição deitada não lhe permite me ver.
Então forço meus pés a darem passos até ficar a uma distância razoável
dela. Não leva cinco segundos para as íris castanhas focarem em mim e
levarem meu mundo consigo. O sorriso rasga meu rosto, mesmo que as
lágrimas embacem minha visão. Eu quero rir, chorar, gritar e berrar… quero
tomá-la nos meus braços e ter certeza que isso é real e não apenas a minha
imaginação. Ao mesmo tempo que tenho medo de encostar em sua pele e
ela desaparecer entre meus dedos.
Angelina não me dá tempo de tomar essa decisão, no entanto. Sua voz
chega até mim com uma força que me faz cambalear para trás.
— É tudo culpa sua!
Comprimo as sobrancelhas.
— É culpa sua! — ela grita, o rosto vermelho pela raiva, a saliva
escapando por seus lábios. — Vai embora daqui, é tudo sua culpa! É sua
culpa!
— Senhorita, se acalme, por favor! — a enfermeira tenta segurar seus
braços e deitá-la novamente na maca e tudo que eu faço é olhá-la.
— Angelina… — Tento me aproximar com a mão estendida, mas seu
grito me impede de continuar.
— Vai embora daqui! — ela se volta para a enfermeira. — Tira ele
daqui, pelo amor de Deus! Meu amigo morreu por culpa dele!
Arregalo os olhos, todo o ar dos meus pulmões saindo de uma vez pela
minha boca.
Desde que vi o carro destruído, tudo que veio na minha mente foi
Angelina e meu filho. A lógica, os fatos que se passaram, nada disso cabia
na minha mente, nada disso tomou minha atenção.
“Ele saiu daqui com uma garota loira e grávida”
“O motorista não resistiu”
“Você conhecia a vítima?”
“Meu amigo morreu por culpa dele”.
Jayden…
Levo as mãos à cabeça, puxando os fios e negando… de um lado para o
outro. Não, por favor não. Não, ele... por favor, não. Olho para Angelina,
implorando que me diga que é mentira. Mas seus olhos me contam a
verdade que não quero saber.
— Ele não… ele não morreu.
Nego com a cabeça.
— Vai embora! — Angelina continua berrando, continua me culpando,
continua gritando para que eu me afaste.
— Senhor, por favor, precisa se retirar. A paciente tem que se acalmar.
— Mas eu… — Olho de um lado para o outro, sem saber onde me cabe.
Não estou cabendo nem mesmo dentro de mim. — Ela… o bebê…
— O bebê está bem, ela ainda não está com dilatação suficiente, vai
demorar algumas horas até que nasça, se retire até que ela se acalme, por
favor.
— Eu… — Engulo a seco, ficando tonto. Meu estômago embrulha e a
bile sobe minha garganta com violência. — Eu não posso…
— Vem, garoto. — O policial segura meus braços, me arrastando para
fora da sala. Eu sequer me dei conta de que ele ainda estava aqui, não vi
nada além da única pessoa que eu precisava ver. — Eu sei que você não
está em condições, mas precisamos que reconheça o corpo.
Corpo.
Cubro a boca tentando evitar, mas dessa vez não consigo. Meu estômago
expulsa qualquer coisa que eu tenha ingerido no dia e procuro a primeira
lixeira que vejo para vomitar. Agarro a lateral do cesto de metal, despejando
até minhas entranhas ali dentro.
Todos os meus ossos estremecem, como se um frio negativo me
atingisse. Cuspo a saliva fora, levantando quando não há mais nada para o
meu corpo expelir.
Corpo… reconhecer o corpo…
Nunca na minha vida eu esperei passar por algo assim. Essa não é uma
frase que você espera escutar alguma vez na vida. Quero gritar que não é
um corpo. É meu amigo. Quero gritar que não é ele. Quero que por um
milagre, como em um filme ruim, ele simplesmente acorde. Quero apenas
acordar desse pesadelo.
— Você consegue? Consegue me acompanhar? — o policial segura
meus ombros na intenção de me firmar, mas me afasto, não suportando
nenhum toque. Não quero que me toquem. Eu só quero acordar. Por favor,
quero acordar, me deixem acordar. — Consegue?
Assinto. Não porque consigo, mas porque não consigo dizer algo mais.
O que mais eu poderia fazer? O que me resta a não ser conseguir?
Eu pensei que não fosse mais precisar viver algo assim de novo. Que eu
nunca mais precisaria só acordar, respirar, fingir estar vivendo, enquanto
claramente eu só existia, só era um corpo sendo movido por nada além de
comandos do cérebro. Mas aqui estou eu de novo.
Talvez eu esteja fadado a isso. Viver pequenos momentos e existir no
restante deles. Eu só me pergunto porque a vida não pode apenas jogar as
consequências sobre mim e deixar aqueles que eu amo em paz. Por que ela
tem que se parecer com um vilão de filme, que não machuca seu algoz, mas
vai atrás de todos aqueles que ele ama.
Talvez seja porque nada me machucaria mais. Talvez porque em mim
não doeria tanto como dói agora.
Eu prometi muitas coisas na minha vida. Prometi proteger Angelina e
falhei tantas vezes, que não consigo mais contar. Prometi proteger meu filho
e falhei tão ridiculamente, justamente quando ele viria ao mundo. Falhei
com o amigo que me estendeu a mão e esse eu nunca vou poder reparar.
Nunca vou poder implorar o seu perdão.
O policial abre a porta de uma sala fria, tão fria que minha pele dói,
como cortes feitos por uma lâmina de gelo. O colar de Angelina parece
pesar no meu bolso. O cheiro é horrível, mesmo que não passe de produtos
químicos. Simplesmente não parece de limpeza e sim algo mórbido e
terrível. O cheiro apenas reflete a situação. Apenas reflete o que sinto ao
olhar a mesa de metal no centro da sala, com um lençol branco cobrindo
algo.
Alguém.
Alguém que pode ser meu amigo.
Alguém que pode ser aquele a quem confiei para apadrinhar meu filho.
Alguém a quem, mesmo de um jeito torto, aprendi a amar.
Não quero olhar. Não quero olhar porque seja lá como ele estiver, não
vai ser com aquele sorriso idiota no rosto cheio de covinhas, não vai ser
para escutá-lo me irritando e implicando com qualquer bobagem possível.
Seja lá o que estiver por baixo desse pano, não vai ser o homem que
detestei por anos e que foi foda o suficiente para transformar a raiva em um
carinho e respeito gigantescos.
Não, eu nunca o odiei ao ponto de querer que algo assim acontecesse.
Mas cheguei a gostar dele a ponto de agora querer ser eu mesmo debaixo
desse lençol. Eu daria tudo para trocar de lugar com Jayden agora.
Dou um passo na direção da maca. Dou um passo na direção do corpo.
Dou um passo sabendo que nunca haverá como voltar atrás dessa decisão.
Estendo a mão trêmula e toco a barra do lençol. O seguro na mão
implorando para que não seja verdade. Para que, por algum motivo, não
seja ele. É o pensamento mais egoísta que já tive. Querer que seja alguém
importante da vida de outra pessoa aqui embaixo. Mas é o que meu coração
implora.
Por favor, não seja você, cara.
Quem vai brigar comigo por quebrar copos no trabalho?
Quem vai dizer que gosta da minha garota na mina cara e ainda me
oferecer uma caneca de cerveja depois?
Quem vai ensinar meu filho a jogar basquete só para me contrariar?
Quem vai citar “Eu, a Patroa e as Crianças” como um viciado?
Por favor, ao menos uma vez, faça o que eu falo. Não seja você aqui.
Com a garganta apertada, puxo o lençol para baixo. Eu puxo e posso
dizer que nunca odiei tanto ver alguém na minha vida. Nunca senti tanta
raiva, ódio, cólera em ver o rosto de uma pessoa.
— Você não podia! — Bato sobre o peito de Jayden, esperando que esse
idiota acorde e me mande à merda. — Não faz isso, porra! Levanta daí, Jay.
Levanta, merda…
Soluço alto, debruçando sobre o corpo sujo de sangue, estilhaços e
poeira. Abraço seu tronco com toda a força que me resta, balançando-o.
Sinto mãos nos meus braços tentando me afastar, mas me desfaço do toque,
segurando o amigo que não consigo deixar ir.
— Você não tem o direito de ir embora. Me ouviu? — eu grito para ele,
me desespero por não sentir nada nesse corpo gélido. — Você disse que
seria o padrinho do meu filho, disse que ia cuidar dele, que ia ensinar a
jogar basquete, você não pode descumprir isso, porra! Pelo amor de Deus,
acorda… acorda e fala que quer a minha garota. Acorda e me tira a
paciência… não faz isso… não vai embora logo quando você se tornou
importante… — Estreito meus braços, o segurando com força, como se
fosse o bastante para não deixá-lo ir. — Jay, eu não vou conseguir. Eu não
vou conseguir se você for, então volta. Manda os anjos à merda e volta,
porque seu dever aqui na terra não acabou ainda…
Meu choro esganiçado não me permite falar mais nada, eu só me agarro
a ele, agarro e imploro. Imploro a Deus, ao diabo, ao universo, ao
desconhecido, que não o leve.
— Me perdoa… por favor, diz que me escuta, diz que me perdoa. Eu
queria ter feito mais por você, queria ter estado lá… me perdoa, Jayden. Me
perdoa, a culpa é toda minha.
As palavras de Angelina ricocheteiam na minha mente e perco todo o
controle restante dos meus atos.
— É culpa minha… deveria ser eu aqui. Desde o começo, desde a porra
do começo deveria ser eu… você não estaria nesse carro se não fosse por
mim. Angelina não estaria naquele carro se não fosse por mim… me
desculpa, por favor me desculpa… eu não queria que ninguém se
machucasse, eu nunca quis que ninguém se machucasse, nunca quis ferir
ninguém…
Mais de um par de mãos me tira de cima dele e não importa o quanto eu
me debata, o quanto eu grite e berre e chore, eles me afastam do corpo
inerte do meu amigo, me impedindo de continua suplicando o impossível.
Quando me tiram da sala e me colocam sobre uma maca, eu tenho a
certeza de três coisas.
A primeira: eu nunca mais veria Jayden e meu filho jamais conheceria o
seu padrinho.
A segunda: Angelina me odiaria para sempre.
E a terceira: eu nunca me perdoaria pela morte que causei.
 

 
 
Eu passei todo o período da minha gravidez preocupada com esse
momento. Em como seria a dor de colocar no mundo a criança dentro do
meu ventre. Pensei se suportaria. Imaginei que nada no mundo pudesse ser
tão dolorido, que eu conheceria minha força no momento do nascimento.
Mas nada, nada me preparou para a dor que eu sinto no meu coração.
Meu corpo dói efemeramente comparado ao sangue que escorre do meu
peito e da minha alma. Eu não grito pela dor das contrações cada vez mais
curtas. Eu grito pela dor da imagem e do som que não saem da minha
mente.
Eu consigo escutar o último suspiro de Jayden com se ele ainda estivesse
com a cabeça no meu colo, como se ainda estivesse dentro daquele carro
capotado. Eu grito de raiva, de ódio, da mais pura revolta que já senti.
Tudo piorou quando vi Francis dentro do quarto. Eu queria que fosse ele
no lugar do Jayden. Queria que fosse ele ali, porque ele é o culpado por
isso.
Aquela maldita mensagem, aquela maldita foto, aqueles malditos
comprimidos. Por que ele tinha que me mandar aquilo? Ele não pensou em
como eu ficaria? Não pensou que eu me arriscaria para chegar até ele a
tempo? Como pôde ser tão egoísta, tão mesquinho, tão horrível ao ponto de
me deixar entender que tiraria sua própria vida daquela forma?
Eu não teria voltado naquela velocidade para casa. Jayden não teria que
estar dentro daquele carro. O acidente não teria acontecido.
Eu o odeio.
Odeio com tudo que há em mim.
Odeio, eu verdadeiramente odeio Francis Hopkins.
Jayden pode ter perdoado o Francis, pode não ter o culpado mesmo no
momento de partir, mas eu vou fazer isso por nós dois. Ele é culpado, é
mais culpado que aquele caminhão na contramão, é mais culpado que os
freios que não funcionaram, é mais culpado que a merda do destino.
Eu quero que sofra. Quero que saiba o que fez. O que causou. Quero que
entenda até que ponto a sua mensagem causou a noite de hoje. Eu poderia
estar morta também. E Garden. E esse é mais um motivo pelo qual nunca
vou perdoá-lo.
— Angelina, suas contrações estão vindo a cada oito minutos agora.
Ainda não há dilatação o suficiente, mas o bebê não está em risco, podemos
continuar com o parto natural. Você quer assim? — a enfermeira mais
jovem fala comigo.
Assinto com a expressão retorcida.
— Nós já estramos em contato com a sua médica, ela vai estar aqui o
quanto antes. O trânsito está parado, mas ela vai chegar.
— Ok — falo em meio a lufada de ar, grunhindo quando a próxima
contração chega.
Eu só tenho uma missão hoje. Fazer o meu bebê nascer. É tudo que me
concentro. É tudo em que consigo pensar. Eu queria poder desejar a morte.
Queria poder implorar por ela. Mas não posso. Há alguém prestes a
conhecer esse mundo, que precisa de mim.
Eu sou a única que posso protegê-lo, a única pessoa que Garden tem.
Depois de hoje, eu não confio mais em Francis. Não confio meu filho a ele.
Não confio a segurança do meu bebê ao homem que não se importou em
mandar aquela mensagem.
— Angelina! Cadê a Angelina? — escuto gritos do lado de fora e se
parece muito com a voz de Donna. Um segundo depois a porta do quarto é
aberta e ela irrompe pelo cômodo, junto de Blue e Ethan.
Seus rostos estão pálidos, sem qualquer sombra de cor ou calor. Ethan
tem a pele coberta por lágrimas, enquanto as meninas ainda parecem em
choque. Quando os vejo, meu choro volta com força total. Só consigo sentir
alívio por não ver Isabela ali. Eu nunca mais vou ser capaz de olhar para
ela. Como vamos dizer que seu irmão se foi? Como vou tirar seu mundo
dessa forma?
— É verdade? O Jayden... — Ethan pergunta com tanta esperança que eu
desminta, que me rasga dizer a verdade.
— Ele… — começo a falar, mas a voz me falta. Apenas assinto.
Meus olhos capturam o exato momento que o enorme homem à minha
frente despenca no chão, com as mãos lhe cobrindo o rosto e o berro
desesperado que ele libera.
— De novo não, por favor, de novo não… eu não aguento isso de novo!
Blue se agacha no chão ao lado dele, derramando lágrimas silenciosas,
embalando o corpo grande demais para seus braços. Ethan perdeu um
amigo quando criança e por isso era tão superprotetor com Francis… e
agora se vai mais um.
Francis não causou só a morte de Jayden. Cada pessoa nessa sala, sofre
por culpa dele.
— Por favor, não… eu não posso perder mais ninguém, não aguento…
não.
Desvio os olhos do Ethan, incapaz de continua olhando. Cada vez que eu
ver alguém chorar por Jayden, será como perdê-lo de novo. Estou perdendo
tudo, pouco a pouco, dia a dia, estou perdendo o que é importante para
mim. Quanto mais vou perder, até não sobrar nada?
— Ele foi tranquilo — digo porque sei que as pessoas costumam se
tranquilizar com isso. Sim, ele foi tranquilo. Mas isso não acalma meu
coração. Porque Jayden se foi! Não importa como, ele se foi. Se foi antes de
fazer o que queria.
Ele tinha sonhos.
Ele queria ter uma filha.
Queria ensiná-la a jogar basquete.
Queria conhecer Garden.
Ele queria viver.
Jayden sempre teve muita vontade de viver.
Agarro o lençol da cama, descontando toda a raiva e revolta que me
corrói.
Não deveria ter sido ele. Não deveria.
— Ele… ele sofreu muito? — Ethan pergunta e encaro seus olhos. Eles
estão implorando para que eu diga não, mesmo que seja mentira.
Sim, Jayden sofreu. Não havia como não sofrer. Ele sabia que não sairia
dali com vida. Mas foi rápido.
— Ele não chegou a sentir a dor… não deu tempo — digo a parte que é
verdade.
— Céus… — Blue se junta a ele no pranto, soluçando baixinho. — Por
que isso tinha que acontecer?
— Pergunte ao homem que tem culpa disso — digo amarga, meus dentes
rangendo.
— Como assim? — Don abre a boca depois de muito tempo em silêncio.
Ela não está chorando. Mas sequer parece estar viva. Seu rosto é uma
máscara congelada.
— Seu irmão. Pergunte a ele. Culpe a ele.
— Angelina... — Blue tenta falar, mas não permito.
— A culpa é dele! Toda dele!
Os três pares de olhos se fixam em mim assustados, medrosos e cheios
de dor.
— Francis está aqui? — Ethan exige saber.
— Esteve. Agora não sei onde está e não me importaria se estivesse no
inferno.
Meu amigo pisca sem expressão, deixando o quarto.
Procuro Donna novamente.
— O meu filho vai nascer hoje. No mesmo dia que o padrinho dele se
foi. E eu não vou permitir nesse quarto o homem que o matou. Deixe
Francis muito bem avisado.
— Mas, Angie… 
— Não! Ele não entra aqui. Eu vou colocar essa criança no mundo, mas
vai ser sem ele.
Deveria ser Francis naquele carro.
Deveria...
 

 
 
— O senhor precisa ficar aqui mais um pouco, a sua pressão está muito
alta — o enfermeiro tenta me segurar na cama.
— Meu amigo acabou de morrer, como você queria que tivesse a minha
pressão? — Arranco o acesso do meu braço. — Não vou continuar deitado,
o meu filho está nascendo.
— O senhor vai se responsabilizar se algo de ruim acontecer?
Rio amargo.
— Eu vou adorar se acontecer, não se preocupe.
Saio da sala o mais depressa possível, passando pela recepção para pegar
o corredor do quarto onde vi Angelina pela última vez. Ela pode me odiar,
pode não me querer ali, mas eu preciso estar perto caso preciso de mim.
Não vou deixá-la sozinha mesmo que tenha que ver seu olhar de ódio.
Mesmo que eu saiba que esse será seu olhar para mim para o resto dos meus
dias.
Assim que cruzo o corredor, vejo Ethan saindo do quarto. Ele estanca
assim que me vê. Não consigo conter meu choro quando vejo a destruição
no dele. Meu amigo corre na minha direção, me abraçando
esmagadoramente. Ele chora no meu ombro, completamente perdido. Um
choro de criança, puro e inocente, mas quebrado. Tão quebrado como estou
por dentro. Agarro sua camiseta, chorando junto com ele.
— Eu não aguento mais perder amigos, Francis. Não aguento mais.
— Eu sei… eu sei, irmão. Eu sei… me perdoe. Me desculpa, por favor…
Ethan segura nos meus ombros, me afastando.
— Isso não é culpa sua… não ligue para o que a Angelina fala agora, ela
está nervosa, passou por um acidente. Logo vai ficar lúcida.
Engulo o pavor que sobe minha garganta. Ele também vai me odiar
quando souber que sim, a culpa é minha. Eu poderia não estar naquele
carro, mas sou a razão para que Jayden e Angelina estivessem.
Encaro meus pés, covarde demais para olhar nos olhos do meu amigo e
descobrir que também o perdi. Essa noite, eu sei que perdi tudo. Tudo que
batalhei para conquistar. Meus amigos. Minha família… Angelina.
Eu falhei com todos eles.
Destruí todos eles.
Mãe e pai… que bom que vocês me entregaram. Ou eu teria destruído
vocês também. Eu só queria que ninguém tivesse me adotado, seria mais
fácil, não haveria pessoas a quem pedir perdão. Eu deveria viver sozinho,
longe de tudo.
Tenho o toque de Midas. Mas não transformo nada em ouro. Eu
transformo em cinzas.
— Francis...
— A culpa é minha, Ethan — admito.
— Não, não é. Olha pra mim.
Nego com a cabeça, deixando as lágrimas rolarem.
— Angelina achou comprimidos na minha gaveta — confesso antes que
a coragem me falte. — Não tive coragem de jogar eles fora e ela
encontrou… então saiu de carro muito nervosa. Eu tentei a achar pela
cidade… fui ao meu trabalho e JC me avisou que Jayden tinha saído com
ela. Angel e Jay estavam naquele carro porque ela encontrou drogas na
minha gaveta e não queria estar perto de mim. Então sim, Ethan, a culpa é
minha.
Meu queixo treme, meus dentes rangem e minhas lágrimas não param de
escorrer e pingar sobre o meu tênis, que encaro fixamente.
— Olha pra mim — Ethan diz sem qualquer emoção na voz.
Respiro fundo, erguendo meu rosto.
Mal consigo visualizar o dele antes que Ethan acerte o punho no meu
maxilar. Viro o pescoço com o impacto, caindo sentado no chão. Ele não
para. Vem para o chão junto comigo e me acerta novamente. E de novo. E
mais uma vez. Eu não o impeço. Aceito cada soco, cada golpe, aceito feliz
por ele estar fazendo. Eu mereço. Quero sentir dor. A física dói
infinitamente menos.
— Você mentiu pra mim, porra! — ele me acerta mais uma vez e vejo a
movimentação de gente vindo nos separar. Quero pedir para que eles
deixem Ethan extravasar toda a raiva em mim, mas minha boca está inchada
demais para falar. — Eu te perguntei meses atrás sobre as drogas e você
mentiu na minha cara, porra! Seu desgraçado! Eu te avisei que isso acabaria
com a sua vida, eu te avisei! Eu estava lá por você, por que não confiou em
mim? Por que me excluiu e me deixou de fora? Eu teria te ajudado, porra!
Ethan continua me batendo, até que conseguem o tirar de cima de mim.
Eu permaneço no chão, deixando o sangue escorrer da minha boca e da
minha têmpora.
— Me desculpe — murmuro languidamente. — Eu não queria… não
queria causar mal a ninguém. Eu não queria…
— E ainda por cima bebeu? Você está só o cheiro de cerveja, seu
desgraçado!
Nego com a cabeça, ficando tonto. Alguém me ajuda a levantar e tentam
afastar o Ethan de mim, mas nego.
— Eu… — tusso sangue. — Derramaram em mim enquanto eu
procurava a Angelina.
Ethan gargalha ironicamente, me olhando com desprezo. Com um
desprezo que ele nunca me olhou antes. Eu queria que fosse eu naquela
maca. Queria que fosse eu naquele carro. Eu só quero não ser eu mesmo
nesse momento. Quero voltar cinco horas atrás e mudar o rumo de tudo.
Não ter conversado com Vance. Ter contado tudo a Angelina. Céus, eu só
não quero existir nesse momento.
É preciso uma vida toda para construir a felicidade, mas um segundo
apenas para enterrá-la.
— Você espera mesmo que eu acredite em qualquer coisa que saia da sua
boca agora?
Nego.
— Não. Não espero que acredite. Mas é a verdade.
— A verdade não basta para trazer o Jayden de volta.
Ethan não diz mais nada e sai pelo corredor, me deixando sozinho com
muitas pessoas me encarando. Elas acham que estão vendo um homem
destruído, mas não… elas estão vendo apenas a casca de um. O que restou
apenas porque uma pessoa no mundo ainda depende de mim.
Talvez a única que não me odeie no momento.
Ainda.
Porque eu sei, que chegará um dia que até mesmo Garden me odiará.
E eu não vou poder culpar meu filho por isso.
Eu mereço. Tudo que vier, eu mereço.
 

 
 
— O bebê ainda está sentado, nós vamos precisar fazer a cesárea. — As
enfermeiras conversam entre si.
— Pode ser feita a manobra para virar o bebê, mas precisaríamos de uma
enfermeira especializada para isso.
— Não vamos perder tempo, vai só demorar mais pra essa criança
nascer. Na cesárea em quarenta minutos ela está no colo da mãe e a gente
vai pra casa.
— Eu acho melhor que você não esteja planejando como será o parto da
minha amiga sem o consentimento dela — Donna interfere, atraindo a
atenção das duas mulheres.
Meus dentes rangem demais para conseguir falar. Meus músculos faciais
pesam como pedra. Estou me agarrando com unhas e dentes à lucidez. E
estou quase perdendo essa batalha.
— Acredite, ela vai me agradecer. A cesárea é menos sofrimento e muito
mais rápido, você pode perguntar a qualquer mulher.
— Se eu tiver condições para um parto natural, então quero tentar. —
Procuro os olhos de Donna, implorando para que ela não deixe que façam
nada se realmente não for necessário. Pensar em ser submetida a uma
anestesia que me privaria de sentir meu corpo me deixa apavorada. Eu já
perdi o controle de muitas coisas hoje, não quero mais isso… não aguento.
— Nada vai ser feito contra a sua vontade, isso eu te garanto.
A mais velha das enfermeiras se afasta da minha cama resmungando
baixo, mas não baixo o bastante para que eu não escute sua frase cruel.
“Na hora de engravidar cedo não pensou, mas agora quer atrapalhar
nosso trabalho…”
Donna dá um passo na direção dela, mas seguro seu braço, a mantendo
perto de mim.
— Não… — Fecho os olhos com força pela dor lancinante que preenche
meu baixo ventre e escorre para as pernas, ao mesmo tempo que sobe pela
minha coluna. É como uma cólica generalizada, tudo dói. Dói intensamente.
— Fica aqui comigo, não sai de perto.
— Angelina, o Francis poderia ajudar aqui mais do que eu… não sei o
que fazer.
— Ele não vai entrar aqui!
Eu sei que estou perto de perder o controle das minhas ações, sei que
meu corpo está exausto, minha mente está cansada de tentar ficar acordada.
Eu só quero dormir. Preciso dormir.
— E a sua médica?
— Ela vai chegar.
— Quando?
— Quando chegar, Donna – grunho com a próxima contração, sentindo
meus ossos se afastando, expulsando o bebê de dentro de mim. Tudo o está
expulsando, antes da hora, antes do momento que ele teria escolhido para
nascer. A cada pontada minha pele se estica, mais pressão eu sinto, mais
tenho a impressão de que meus músculos estão se rasgando. Isso é o
inferno. Dar à luz é o inferno. Não tem nada de bonito, nada de belo, nada
de mágico.
— A sua médica ligou e informou que está presa em um engarrafamento,
não sei se temos todo esse tempo. — Uma das enfermeiras avisa, já não
consigo distinguir qual.
O suor vai se acumulando na minha testa e o medo de não conseguir me
preenche. E se eu me deitar em uma mesa de cirurgia e nunca mais acordar?
E se eu me deitar e deixar o meu filho sozinho? Eu não tinha esse medo
antes, não tinha porque confiava que tinha um homem que cuidaria bem do
meu filho, que seria responsável e maduro o suficiente para cuidar dele
mesmo sem minha presença. Agora, tudo que eu tenho é um homem que
preferiu mandar aquela foto. Tudo que eu tenho é um homem fraco.
Eu preciso estar viva. Preciso estar bem.
Porque Garden precisa de mim.
— Você está com uma dilatação boa, mas o bebê ainda está virado.
— Dilatação boa? — Donna ofega. — Isso definitivamente não passa
um bebê.
Minha amiga analisa e eu queria muito poder achar graça ou
constrangimento dessa situação. No momento, eu não me importo de estar
com as pernas separadas enquanto pessoas olham dentro de mim. Eu sequer
sinto qualquer tipo de instinto em fechá-las, ao contrário. A cada contração,
sinto mais vontade de afastar as pernas, de simplesmente me agachar no
chão e fazer força até que a dor pare.
— Angelina… — Blue coloca a cabeça para dentro do quarto, já que
saiu pouco tempo depois do Ethan. — Você tem certeza que não quer que
ele…
— Não! — nego furiosa.
— Não é por você. É pelo bebê. Você sabe que ele vai trazer mais
confiança.
— Blue… se você insistir mais uma vez nesse assunto, é você que não
vai entrar mais aqui.
Não recebo uma resposta, apenas sua saída do quarto. Não é como se
desse tempo para eu me importar, porque grito até minha garganta doer com
a pontada no meu ventre, indicando mais uma contração.
 
 

 
 
— Eu não aguento mais. — Me ergo da cadeira, com as mãos sobre a
cabeça.
Angelina está gritando dentro daquele quarto e não vejo movimentação
de médicos, de enfermeira, de ninguém para me informar o que está
acontecendo. Blue entra para saber como estão as coisas a cada dois
minutos, mas tudo que falam é que o bebê ainda não virou.
Garden está sentado. E elas estão esperando a porra da médica que não
chega para fazer a manobra. Um parto com ele assim é arriscado demais,
principalmente nas condições que Angelina está. Ela acabou de sofrer um
acidente de carro, não passou por todos os exames necessários para saber se
tudo corre bem com sua saúde. A submeter a uma anestesia agora é
perigoso demais.
Eu já vi vídeos dessa manobra. Vi muitos vídeos. Não é tão difícil, ao
menos não parece tão difícil, então por que as enfermeiras não fazem nada?
E é a mesma pergunta que eu me faço. Por que estou aqui parado? Por
que não entro naquela sala e faço alguma coisa? A mulher que eu amo está
sofrendo, meu filho pode estar sofrendo e eu estou aqui em pé do lado de
fora, sem fazer porra nenhuma a não ser enlouquecer.
Ela não me deixa entrar, não aceitou em nenhuma das vezes que
implorei. Não estou pedindo seu perdão, nunca mais vou pedir por ele. Eu
quero que ela me odeie, porque eu me odeio. Eu quero que ela me culpe,
porque eu também me culpo. Não espero que me dê palavras doces de
conforto, porque eu não mereço nenhuma delas. Eu só quero que ela me
permita ajudar a trazer nosso filho ao mundo. Só que ela me permita tentar
fazer algo para poupar seu sofrimento.
— Francis, você precisa se acalmar. Se algo estivesse fora de controle, as
enfermeiras nos diriam. — Blue tenta me acalmar, me abraçando. Eu a
afasto, porque não consigo que ninguém me toque agora, não de forma
carinhosa, não para me confortar. Eu não mereço nada disso. Eu prefiro
mais mil socos do meu amigo, a ter alguém passando a mão na minha
cabeça.
Eu não podia ter deixado as coisas chegarem a esse ponto. Não podia ter
sido tão omisso quanto aqueles malditos comprimidos. Nunca pensei, que
aquele dia nos amistosos, quando Vance os ofereceu, eu estaria selando meu
destino. Quando saí de casa hoje a procurando, sabia que enfrentaria uma
tempestade. Mas nada comparado a isso.
E pensar que mandei uma foto para Angelina sujo de cerveja para ver se
ela ficava menos brava quando chegasse em casa, já que eu tinha sido
punido com um banho da bebida fedorenta. Talvez Angelina nem tenha
chegado a ver a foto vergonhosa do meu estado e nem a frase que mandei
em seguida:
 
“Eu sou um babaca, um otário, um filho da mãe e tudo de ruim que você
possa querer me chamar agora, mas o universo já começou a me punir com
uma caneca de cerveja inteira… então acho que vai ficar feliz de saber que
já estou sofrendo.
ps: vou te explicar tudo quando chegar em casa… volte bem e segura, eu
amo você e nosso filho. Me perdoe pelos comprimidos. Vou te contar tudo.
Prometo.”
 
Bom, mesmo que ela tenha lido a mensagem, com certeza não vai fazer
diferença agora. Não importa mais que eu não tenha ingerido a droga.
Importa que eu guardei. E fui idiota demais ao ponto de me esquecer delas.
Blue ainda não me perguntou nada.
Desde que me achou com a cara toda inchada dos socos que ganhei do
Ethan, ela apenas me ajudou e segurou minha mão. Ela também deveria me
odiar. Mas não vejo isso no olhar dela. Vejo apenas o que sempre vi.
Que ela estaria comigo, independente do que acontecesse.
Ela tem que se afastar. Antes que eu faça alguma besteira que a afete
também, antes que eu seja responsável por destruir a vida de mais alguém.
— Eu não vou ficar parado, vou atrás de alguém que faça algo.
Vou direto para a recepção, confirmando se não há uma maldita obstetra
presente. O horário não facilita, já quase passa da meia noite. Mais alguns
minutos e meu filho vai ter nascido exatamente com nove meses.
— Nós temos apenas uma enfermeira que trabalhou na área obstetrícia
por muitos anos, mas agora ela está na área da emergência.
— Então chama ela. Qualquer pessoa, porque as duas que mandaram
cuidar da minha mulher estão sem fazer nada naquela sala. Meu bebê está
sentado, não dá para ele nascer assim, então me arrume alguém, nem que
seja de outro hospital!
Eu sei que já estou gritando e não me incomodo. Esses desgraçados
apenas ficam me olhando, como se não fosse a vida das duas pessoas mais
importantes para mim que estivesse em jogo. Eu já perdi alguém hoje, não
vou perder ninguém mais. Nem que eu tenha que entrar naquela sala mesmo
contra a vontade da Angelina e ajudá-la a passar por isso.
Não é como se ela pudesse me odiar mais do que já odeia.
— Já reportei a mensagem para a enfermeira, ela vai estar lá no quarto
em minutos.
Não agradeço antes de sair correndo de volta para o corredor para
esperar a mulher. Educação não é a minha preocupação agora.
Espero aflito no corredor, com Blue agarrada à minha mão e chorando
cada vez que Angelina grita. Olho para minhas roupas, suja do meu sangue
e sangue do… sangue do meu amigo. A bile sobe minha garganta
novamente, mas não me permito despejar meu estômago fora dessa vez.
— Senhor Hopkins? — a voz de uma mulher chega até mim e me viro
para trás, encontrando uma enfermeira. Só espero que ela seja a que a
recepcionista falou ou eu juro que vou colocar esse hospital abaixo.
— Sou eu… a senhora já trabalhou na área obstetrícia? A recepcionista
me informou que sim, a minha namorada está dando à luz, mas o bebê está
sentado e ela parece estar com dor e…
Eu paro de falar quando a mulher me encara com a expressão de que viu
um fantasma à sua frente. Olho sobre meus ombros, mas constato que seu
olhar arregalado e assustado é direcionado a mim.
— Senhora? — Abano a mão sobre seu rosto, mas ela parece
completamente perdida… na minha cara.
Eu sei que estou inchado e com o lábio cortado dos socos do Ethan, isso
sem falar no sangue na minha blusa, mas eu tenho certeza que ela já deve
ter visto coisas piores por aqui. Não deveria se impressionar tão facilmente.
— Vo… você… é… oh, meu Deus. — Ela passa as mãos sobre o rosto,
tomando ar. Não é possível que me mandaram alguém que não consegue
sequer articular uma frase. — Qual o seu nome?
— Francis Hopkins — suspiro irritado. — A minha namorada está
dentro dessa sala, seu nome é Angelina Eastwood, o bebê está sentado,
disseram que você poderia realizar a manobra para virar…
— Francis? — a mulher repete meu nome, piscando sem parar. A cor no
seu rosto vai desaparecendo gradativamente, me dando a impressão de que
vai desmaiar a qualquer momento.
— Sim, senhora, meu nome é Francis. Você está em condições de
trabalhar? Parece cansada demais, talvez seja melhor chamar outra
pessoa…
— Não! — Ela limpa sua garganta, balançando a cabeça freneticamente.
Ela está em choque. Eu só não faço ideia do porquê, talvez tenha saído de
alguma emergência grave — Meu nome é… é... pode me chamar de Nina.
Assinto, confuso por ela me falar seu primeiro nome.
— Ok, Nina… você poderia entrar, por favor? — Abro a porta para ela,
esperando do lado de fora. Isso está me matando. Não poder entrar está me
matando.
— Você não vem? — ela continua me olhando esquisito, me analisando
de cima abaixo. Como enfermeira, deve estar querendo saber se preciso de
cuidados médicos. Mas não preciso.
Balanço a cabeça.
— Ela não me quer aí. — Forço um sorriso, completamente sem
emoção. Não vou ver o nascimento do meu filho... eu nunca vou me
perdoar por isso também.
— Eu... — balbucia, seus olhos enchendo de lágrimas. — Eu vou te
avisando de tudo, fique tranquilo.
Ela ergue a mão para tocar no meu braço, mas se contém com uma careta
de dor.
— Uhum… — Franzo o cenho. — Obrigado, Nina.
A mulher entra e fecha a porta atrás de si e eu despenco novamente na
cadeira desconfortável, com os cotovelos apoiados nas pernas.
Por favor, fique bem, Angelina. Por favor, que essa mulher cuide dela.
Eu não posso perdê-la. Não posso perder meu filho. Eu não suportaria…
não isso, não assim.
— Eu estou com você — Blue murmura.
— Não precisa estar. Isso é culpa minha.
— Não é.
— Você não sabe a história toda. — Rio com um gosto pútrido na boca.
— Não importa. — Ela se agacha na minha frente, olhando nos meus
olhos. — Independente do que tenha acontecido, eu conheço você, sei quem
você é, sei o que tem no seu coração e sei que você nunca iria querer fazer
mal a nenhum deles… eu sei que se pudesse, trocava de lugar com os dois
nesse momento e carregaria a dor só para você. Então não, Francis Hopkins,
eu não vou sair do seu lado, mesmo que você ache que não merece. Eu não
sou sua amiga apenas nas horas boas e que você age certo, eu também sou
sua amiga quando toda a merda explode e você está errado... amigos são
para isso, para estar do seu lado, quando você está na sua pior versão.
Engulo o nó na minha garganta, puxando Blue para os meus braços.
Seguro seu corpo frágil, sabendo que mesmo que seja infinitamente menor
que o meu, é como a porra de um lugar seguro. E mesmo que eu não
mereça um agora, me agarro a ela. Eu preciso me agarrar a algo para passar
por esse dia, ou não vai sobrar mais nada quando amanhecer. Eu me agarro
a ela, assim como fiz anos antes.
— Ele se foi, Blue… — Choro alto, molhando sua rouba.
— Eu sei… eu sei, lindo.
— Jayden não podia ter ido. Não podia. Ele… ele era uma pessoa boa.
Ele não merecia isso, não devia ser ele… era para ser eu naquele carro, era
para eu estar naquela sala fria… estava tão fria, Blue. Tão fria, não quero
que ele sinta frio…
O corpo dela balança contra o meu, num choro baixo, mas que combina
com a mesma dor que estou sentindo.
— Se eu… se eu tivesse chegado antes… se não tivesse brigado com o
Vance, se não tivesse pegado os comprimidos… é tudo culpa minha.
Agarro o casaco dela em punho, me despedaçando um pouco mais a
cada segundo.
— Angelina poderia estar morta. Eu achei que ela estivesse morta, eu…
eu vi o carro, o colar que dei a ela no chão, e achei que ela tivesse ido, que
nosso filho tivesse partido antes que eu fosse capaz de ver seu rostinho…
Blue, eu iria logo em seguida. Eu não ficaria um segundo sequer nesse
mundo se eles dois não existissem.
— Shhh, meu bem… não fala essas coisas, não pensa. — Blue me
embala como uma criança de colo. — Ela está viva, ela e o bebê vão ficar
bem, você vai ver… vai ficar tudo bem. Precisa ficar.
— Nada nunca mais vai ficar bem. — Nego com a cabeça
repetidamente, gemendo de pura dor. — Nada nunca mais vai ser como
antes. Nunca mais.
— Não, não, não! — gritos vindos da sala nos fazem levantar em um
pulo e meus olhos saltam do rosto.
— Angelina!
Dou um passo para perto da porta, mas Ethan aparece no mesmo
instante, impedindo que eu entre. Ele tem o rosto completamente banhado
de lágrimas e uma expressão indecifrável.
— Ela não quer você aí — diz me olhando com dor.
— Não me toca, não me toca… aaaai — Angelina chora alto e avanço
novamente sobre a porta. Meu amigo se coloca na frente dela, impedindo
minha passagem. — Não toca, não toca, por favor não me toca!
Agarro o colarinho da blusa dele. 
— Eu vou entrar — digo entredentes. — Passando por cima de você ou
não. Nada e nem ninguém vai me fazer ficar do lado de fora enquanto ela
está sofrendo. — Aproximo o rosto do dele. — Você vai sair da minha
frente, seja por bem ou por mal. Não me importo que me mate depois disso,
mas agora não ligo se é meu amigo ou um estranho, vou fazer você sair.
Nada vai ficar entre mim e Angelina.
— Ethan… — Blue segura o braço dele. — Deixa ele entrar. É o filho
dele que está nascendo e Angelina precisa de ajuda.
Não espero que ele tome uma decisão, apenas o empurro para o lado
com força, entrando na sala sem me preocupar que a porta quase saia das
dobradiças.
A imagem que tenho me apavora.
Nina está tentando conversar com Angelina para permitir que faça a
manobra, mas ela está nervosa demais, agitada demais, recusando o toque.
Suas mãos cobrem seus ouvidos, batendo contra eles, seu corpo inquieto na
cama, as pernas se movimentando com violência. As outras enfermeiras
tentam tocar nela sem sua permissão, e meu sangue sobe para a cabeça.
Donna está paralisada olhando tudo, apenas chorando do seu lado, sem
saber o que fazer.
Mas eu sei. Sempre soube. E quando se tratar dela, sempre vou saber.
— Tira as mãos dela! — ordeno.
As mulheres na sala me olham assustadas, inclusive Angelina. Arranco
minha camisa suja pela cabeça, retirando o relógio e o jogando longe. Lavo
meus braços, minhas mãos e meu peito na pia do banheiro, o máximo que
consigo com minha pressa.
Volto para próximo à cama dela e Angelina me fita surpresa e de olhos
saltados.
Abaixo meu tronco para ficar próximo do seu rosto e prendo suas íris nas
minhas.
— Você pode me odiar para o resto da vida, pode fazer o que quiser a
respeito de mim e vou aceitar de bom grado. Mas isso aqui não é sobre nós.
É sobre você e Garden. — Engulo o nó que aperta minha garganta. — Me
deixa te ajudar a colocar nosso filho nesse mundo. Não vou te pedir nada
além disso, apenas me deixe te ajudar. Não estou pedindo por mim,
Angelina.
Os olhos castanhos são tomados pelas lágrimas e ela continua com as
mãos sobre seus ouvidos, mas batendo mais devagar agora. Por favor, não
se machuque. Não suporto te ver machucada, não aguento te ver sofrer.
— Ninguém vai te tocar sem sua permissão, ninguém vai falar alto, pode
tirar as mãos do ouvido, eu prometo que nada vai te incomodar agora... os
únicos sons que vai escutar serão da minha voz e os batimentos do seu
coração... por favor, solte seus ouvidos.
Angelina fecha as mãos em punhos, desviando o olhar do meu e
encarando o nada na frente. Ela engole a saliva três vezes antes de abaixar
suas mãos e assentir fraquinho. Tão fraco que quase não tenho certeza de
que é real. Só tomo ciência quando ela segura meu braço.
— Não se esqueça da promessa que me fez meses atrás. — Seu olhar
volta para o meu, cheio de medo. — Garden em primeiro lugar.
Assinto, mesmo sabendo que eu distorceria o destino antes de permitir
que ele a levasse também. Eu já não me importo com as consequências.
— Eu nunca me esqueço das promessas que faço a você. 
Não digo isso para amolecer algo dentro dela. Digo para que ela tenha
certeza que eu jamais descumpriria. Principalmente quando se trata do
nosso filho. Angelina sabe, que acima dela, existe apenas ele.
— É a última vez que vou confiar em você… — avisa friamente. —
Então não falhe comigo agora.
— Não vou falhar — garanto. — Você e Garden vão ficar bem. Não
tenha medo.
 

 
21 anos atrás, Hospital de São Francisco.
 
— Eu não quero vê-lo — repito como um mantra.
Fecho meus olhos com força, até que pontos brilhantes estourem na
minha visão.
— Você pode se arrepender… ele é um bebê tão bonito. Por favor, olhe
para ele ao menos uma vez. — A enfermeira tenta me persuadir a olhar o
filho que acabei de colocar no mundo. Mas não posso fazer isso. Se eu o
olhar, não vou ser capaz de deixá-lo ir. — Eu vou deixá-lo no bercinho aqui
do lado por mais alguns momentos, caso você mude de ideia. Volto em
vinte minutos.
Escuto os sons baixinhos e manhosos que ele faz e o chorinho que dá
quando é deixado no berço. Cubro meus ouvidos, não querendo ouvir mais
nada. Não posso ouvir mais nada. Não posso ficar com ele.
O que eu poderia dar a esse menino? Se o pai dele estivesse vivo, eu
teria coragem. Se Francis estivesse vivo, eu teria coragem de enfrentar o
mundo. Mas quando ele morreu servindo a esse país, não levou embora
apenas o homem que eu amava, como também toda e qualquer esperança
que eu tinha para o futuro. Eu sou apenas uma casca vazia e amarga… uma
criança não precisa de alguém oco por dentro. Precisa de uma família. Uma
mãe que seja capaz de demonstrar amor e não apenas dor.
Eu pensei que conseguiria. Que enfrentaria tudo por ele. Mas não
consigo. Não sou forte o bastante. Não sou altruísta o suficiente. Não vou
conseguir acalentar o choro dele, quando na verdade preciso que acalentem
o meu. Não vou conseguir dar colo a uma criança, quando sou eu quem
mais precisa de um.
Eu só tenho dezoito anos, também sou uma criança precisando de colo.
Dezoito anos, uma família que me rejeita, um namorado morto, nenhum
emprego… não posso adicionar um filho a isso. Não posso obrigar ninguém
a viver no inferno do meu lado. Esse bebê precisa de anjos e não de
demônios. E espero que alguém seja esse anjo na vida dele, como eu nunca
poderei ser.
O choro que era brando se torna mais alto, alto o suficiente para que
minhas mãos sobre os ouvidos não sejam suficientes para abafar.
— Pare de chorar, por favor… por favor, não chora.
A agonia no meu coração me machuca. É como se mãos frias e ásperas o
apertassem.
— Não foi assim que imaginei esse dia, sabia? — começo a conversar
com ele, mesmo sem olhá-lo. — Seu pai teria pegado você no colo, teria
sentido seu cheirinho e dito que era o melhor do mundo. Ele adorava
cheiros, era viciado em perfumes… — rio melancólica, lembrando do
quanto ele sempre elogiava o meu cheiro. Era estranho, porque fazia isso
mesmo quando eu não usava perfume. — Ele te amava tanto, que nunca
vou ser capaz de te explicar. Seu pai te amou no segundo que soube que
você existia, ele te amou até mais do que eu acho que sou capaz de te amar.
Tudo que ele mais queria, era ver seu rosto, saber se você puxaria os olhos
azuis dele ou os meus pretos. Ele tinha planos para você, sabe? Seu pai
queria que você estudasse na melhor escola, que se formasse na melhor
universidade, que praticasse esportes, que fosse um rapaz de bom coração e
honesto… ele teria cuidado bem de você, se estivesse aqui. Tão bem como
eu nunca vou ser capaz de cuidar.
O bebê balbucia, seu choro se acalmando, como se reconhecesse minha
voz. Eu costumava conversar muito com ele até o sétimo mês de gravidez.
Até receber a ligação de que Francis havia sido atingido no estômago por
uma bala e não resistido à hemorragia. Depois disso, nunca mais conversei
com o bebê. Nunca mais conversei com ninguém.
— Seu pai era um homem bom… ele era bonito também, muito bonito.
Cabelos castanhos, olhos tão azuis como a água do mar, lábios rosados e...
ah — sorrio. — Ele tinha várias pintinhas nos ombros e nas costas. Tantas
que eu me divertia contando cada uma delas. Será que você as puxou dele?
Será que se parece com ele?
O nó se aperta mais na minha garganta, como mãos de aço que se
agarram à minha pele. Eu preciso saber. Preciso saber se vocês se parecem.
Preciso ter algo para contar ao meu amor quando me juntar a ele um dia.
Preciso dizer ao menos que vi nosso filho uma única vez.
Respiro fundo, abrindo os olhos devagar, focando no teto acima de mim.
Minha visão vai se adequando a claridade, ficando menos embaçada. O
bebê do meu lado continua balbuciando e choramingando, parecendo pedir
a minha atenção. Fecho as minhas mãos em punhos, criando forças para me
sentar na cama.
Sento com um pouco de dor, de frente para o berço, ainda sem olhar para
o pequeno ser humano que chama por mim da forma que consegue.
Com as mãos trêmulas, puxo seu bercinho para perto de mim e tomando
todo o resquício de coragem que possuo no corpo, abaixo meus olhos para
ele.
As lágrimas até então contidas desde a morte do meu Francis são libertas
quando vejo a sua imagem e semelhança na minha frente. Agarro a lateral
do bercinho, chegando meu rosto para mais perto dele. Encosto meu nariz
em sua testinha, inspirando seu cheiro, me permitindo chorar tudo que não
chorei desde que perdi tudo.
— Ele teria adorado seu cheiro… ele teria adorado você…
Levo a mão até a penugem quase loira de seus cabelinhos, penteando os
poucos fios, me perguntando se eles irão escurecer até ficar da cor dos do
pai ou se ficarão loiros assim como os meus. Contorno a bochechinha
redonda e macia, sabendo que Francis e eu não poderíamos ter criado algo
tão perfeito como esse bebê.
— Você é perfeito… perfeito. — Ele abre os olhinhos ainda inchados,
preguiçosamente, e pisca fraquinho para mim. Os olhos acinzentados, em
um azul mais escuro que do meu Francis. Limpo as lágrimas do meu rosto
antes que caiam sobre seu rosto delicado, balançando a cabeça para
tamanha semelhança. Seguro sua mãozinha pequenina e ele agarra meu
dedo com força, uma força que eu queria ter. — Você foi muito amado…
você é muito amado, por favor saiba disso por toda sua vida. Se não fico
com você hoje, não é por não te amar o bastante…, mas por te amar o
suficiente para saber que eu não seria o melhor para você. Para te dar o
futuro que seu pai queria que você tivesse. Você é e sempre será a coisa
mais bela e perfeita que eu fiz na vida. E sempre será a razão dos meus
sorrisos quando eu me deitar de noite e lembrar do seu rostinho sereno. —
Pego o pequeno bebê no colo, o embalando nos meus braços pela primeira e
última vez em minha vida. Sinto seu cheiro, decoro seu rosto, acaricio sua
pele…
Pela primeira vez em meses, sinto paz. Sinto que há esperança. Que o
mundo não pode ser tão feio e terrível, se pôde criar algo tão bonito como
meu filho. Nada horrendo poderia ter criado alguém como ele... eu sei disso
agora. Esse bebezinho é a prova de que ainda pode haver alguma coisa que
valha a pena nesse mundo. Que ainda existem razões para tentar viver.
O abraço contra mim, permitindo que por esses breves segundos, seja
meu poço de esperança.
— Você é a paz que eu precisava para continuar viva. Obrigada, por
mesmo tão pequeno e sem consciência do que faz, ter me feito acreditar de
novo... assim como seu pai me fez acreditar em amor e felicidade um dia...
— Acaricio a cabecinha macia, esperando que ele saiba, que de alguma
forma entenda, que é a pessoa que mais foi amada nesse mundo. — E por
isso, por ser o único capaz de me fazer sentir amor novamente, você não
poderia se chamar de outra forma, se não pelo nome do homem que te amou
acima de qualquer coisa nesse mundo e do homem que eu amei com todo
meu coração… Francis. Seu nome será Francis. Para mim, sempre será.
Assim como foi com seu pai, irei amá-lo até meu último dia de vida. Eu
prometo, filho. Prometo te amar. Sempre. Para sempre e além dele.
Beijo uma última vez sua testa e admiro seu rosto com olhos curiosos, o
entregando para a enfermeira que vem recebê-lo. Agora, já não resta
dúvidas de que preciso te entregar. Porque você é importante demais para
que eu me arrisque falhar.  É importante demais para te manter comigo.
— Seja feliz, meu Francis. — Aceno em sua direção. — Seja feliz e se
torne o homem que seu pai sonhou que você se tornasse.
— O nome dele é Francis? — A enfermeira pergunta com a voz
embargada.
— Sim. — Assinto sorrindo depois de muito tempo. — O nome dele é
Francis… peça isso a todos. É meu único pedido… que se chame Francis.
 

 
21 anos depois, Hospital de São Francisco.
 
Por todos esses anos, me perguntei como ele se pareceria. Me perguntei
como estaria. Me perguntei se seus olhos haviam ficado mais claros como o
do pai, se continuavam tão doces e ternos. Me perguntei se havia
encontrado uma família boa que o amasse. Me perguntei se seu nome ainda
seria Francis. Me perguntei se ainda se pareceria tanto com o homem que
amei…, mas nunca, nesses vinte e um anos, pensei que fosse poder ver com
meus próprios olhos como meu filho está.
Eu não tenho dúvidas. Não tive dúvidas, assim que ele apareceu na
minha frente, como a imagem e semelhança do seu pai, com o mesmo
timbre de voz e formato do rosto. Seu nome apenas colocou abaixo
qualquer questionamento que eu tivesse.
É meu filho. Diante dos meus olhos, está o bebê que eu carreguei no
ventre e dei à luz. Está o bebê que não fui forte o bastante para cuidar.
Nunca me arrependi da minha decisão, mas já tive dúvidas se tinha feito
o certo. Agora, já não tenho. Vendo esse homem feito, preocupado e que
acaba de irromper por essa porta para ajudar a colocar o próprio filho no
mundo, eu tenho certeza de que fiz o certo. Porque naquela época, naquelas
condições, eu jamais poderia tê-lo criado tão bem quanto vejo que fizeram.
Assisto calada e com lágrimas nos olhos ele conversando com a garota
loira, a olhando com tanta reverência, assim como seu pai um dia me olhou.
É como nos ver jovens novamente. É como imagino que ele teria ficado no
nascimento do próprio filho.
Nosso filho.
Deus… não sei o que fiz de bom na minha vida para merecer receber
essa graça, mas serei eternamente grata por ter a chance de ver aquele
bebezinho novamente. Porque mesmo que agora ele esteja maior e mais
forte que eu, ainda vejo aquele bebê inocente de olhos azuis manhosos e
carentes. Ainda o vejo com aquela mesma doçura e pureza. E mais ainda,
serei grata por poder ajudar no parto do seu filho. Do bebezinho que seria
meu neto ou neta, se eu tivesse tido a oportunidade de ser a mãe dele.
Eu estou tendo a chance, hoje, de viver o que não vivi 21 anos atrás.
Meu filho está vivendo a história que um dia era para mim e seu pai termos
vivido. Eu espero que ele tenha um final muito mais feliz que o nosso; que
o brilho que eu vejo que tem por essa garota, nunca tenha que se apagar.
— Querida, eu vou precisar tocar em você para realizar a versão cefálica
— digo com a voz falhada. Não consigo conter minha emoção. Não diante
dele.
— A o quê? — uma garota de tranças me questiona.
— É a virada do bebê para a posição correta — explico.
— Eu não… — A loira hiperventila, sacudindo a cabeça. — Não
aguento, não aguento.
— Já falei para levar para a cesárea, essa menina não vai conseguir parir
com todas essas frescuras! — Beatrice, uma enfermeira antiga aqui do
hospital, reclama.
— Se vai abrir a sua boca para chamar qualquer sintoma que uma
paciente tem de frescura, peço que se retire da sala — intervenho. Passei
por situações demais como essa enquanto trabalhava na área obstetrícia e o
pior que a maior parte dessas invalidações vindas de outras médicas e
enfermeiras, como se não soubessem exatamente como este é um momento
delicado.
— Ela é minha paciente — ela me enfrenta.
— Não é mais — a encaro decidida.
— Angie… — Francis parece absorto de tudo em volta e se concentra
apenas na garota. — Ela precisa te tocar para virar o bebê, você consegue
fazer isso? Eu vou estar aqui, não vou sair do seu lado.
Eu queria poder abraçá-lo agora e tirar do seu rosto essa expressão
assustada, da mesma forma que fiz quando ele tinha apenas algumas horas
de vida.
Mas eu sei que perdi essa chance quando abri mão dele. Sei meu lugar.
Mesmo que me machuque, sei meu lugar. Sei que não tenho o direito de
entrar na vida dele agora. Não tão tarde.
— Eu não consigo, não consigo, Francis. Meu corpo vai entrar em
colapso, não aguento mais descontrole, eu não posso… não posso... — ela
chora e volta a se agitar, como se qualquer pessoa que a tocasse fosse
queimá-la.
— E se for eu? — ele oferece e sou obrigada a intervir.
— Não posso permitir, Francis. É preciso instrução para isso.
— Sou estudante de medicina — ele ergue os olhos para mim. — Se
você me ajudar, eu posso fazer.
Pisco surpresa.
— Você vai ser médico…
Engulo novamente o nó em minha garganta.
Seu pai ficaria tão orgulhoso de você, querido.
Ele com certeza está orgulhoso, vendo-o de onde está.
— Eu estou no terceiro ano, sei que não é nada, mas eu posso fazer. —
Seus olhos suplicam minha ajuda e meu instinto me faz querer erguer uma
redoma sobre ele, para que nada o atinja. — Se você me ajudar, eu posso
fazer, não arriscaria a vida dos dois… eles são a minha vida, então acredite
em mim, por favor.
Pisco indecisa, sem saber como proceder. Eu não deveria permitir isso,
iria contra todas as regras. Mas se tem algo que aprendi em anos nessa
profissão, é que as regras não são nada quando se trata de salvar vidas. Lide
com as consequências depois, mas garanta que haverá uma vida para valer a
pena seja lá o castigo que for receber. Posso ter colegas que discordem
disso, mas não vou seguir protocolos agora.
Isso pode ser um erro, mas não vejo nada além de certeza nos olhos
azuis do garoto na minha frente. Não… não garoto, do homem na minha
frente.
— Tudo bem — assinto, assustada com minha própria certeza. — Mas
preciso monitorar o bebê primeiro, temos que saber se há líquido amniótico
o suficiente, se a membrana amniótica se rompeu e ver os batimentos
cardíacos do bebê.
— Tudo bem — ele olha novamente para a garota. — Você confia em
mim? Confia que posso fazer isso?
Procuro os olhos da menina e ela parece buscar algo nos dele que me
deixa intrigada.
— Faça — é a resposta que ela dá.
Francis se vira para mim, esperando minhas instruções.
— Preciso fazer um ultrassom para avaliar o líquido amniótico. Você me
permite? — olho para ela e tudo que vejo é medo. — Ele pode segurar o
aparelho para mim, tudo bem?
Angelina assente e entrego o gel para Francis.
Ele espalha pela barriga dela na região correta e leva o aparelho sem que
eu precise de grandes informações. Ele não estava brincando sobre saber o
que fazer. Meu peito explode de um orgulho há muito guardado. Eu sabia
que você seria grande, mas não tinha ideia do quanto, filho.
— Tudo certo, podemos começar. — Aponto para a tela do monitor onde
o bebê se move inquieto. — Está vendo onde está a cabecinha e as nádegas,
certo?
— Sim.
— Você precisa colocar uma mão sobre a parte que está a cabeça e a
outra onde estão as nádegas e virá-lo em sentido anti-horário. Tem que ser
devagar, analisando a posição dele pelo monitor. Nós vamos monitorar os
batimentos cardíacos do bebê e qualquer alteração mais significativa
interrompa imediatamente a manobra.
— Entendido — a voz dele falha e consigo ver o medo transparecendo
em seu rosto. — Ela vai sentir dor?
Como eu queria poder te abraçar agora...
— Pode haver desconforto, mas não é para ser doloroso nem para ela e
nem para o bebê. Então preciso que você nos diga se algo estiver errado,
Angelina.
— Só faça! — ela grunhe de dor por mais uma contração. Francis parece
estar sendo torturado ao vê-la assim. Ele a ama. Não precisa conhecê-lo
para saber disso.
— O bebê estará bem se você estive bem, querida. Por favor, diga se me
entende — insisto.
— Entendo — ela assente depressa, sempre olhando para Francis.
Percebo que ele é seu ponto de equilíbrio.
— Tudo bem, vamos começar. Posicione suas mãos.
Ele esfrega uma mão na outra, talvez para proporcionar calor ao toque,
antes de encostar nela.
— Vou tocar no topo e quase abaixo da sua barriga, não vai ser forte, me
diga se te machucar… não me esconda, eu preciso saber — ele conversa
com Angelina e não a toca até que ela permita.
Francis segura nos lugares que indiquei e olha para o monitor, vendo o
bebê se movendo.
Ele empurra levemente com as mãos, mas percebo que está brando
demais para causar qualquer diferença.
— Francis, não precisa ter medo. O bebê está protegido e isso não gerará
danos ao corpo de Angelina.
Ele fecha os olhos inchados por um momento, apertando o maxilar.
Assim como o pai, ele tem o rosto anguloso, de maxilar forte.
Nosso filho é um homem bonito e corajoso, querido. Você o amaria
tanto…
Ele respira fundo por um momento e espera que uma contração passe
para prosseguir. De fato, ele estudou.
Francis empurra novamente, dessa vez mais confiante e mais forte e
posso observar o bebê ficando em posição transversal dentro do útero. Ele
procura meu rosto e assinto, indicando que tudo vai bem. Monitoro seus
gestos e os monitores.
— Falta pouco agora, termine de virá-lo.
O suor escorre pela testa dele, passando pelos hematomas arroxeados
que cobrem seus olhos. Ele se envolveu em uma briga? Estava no acidente
junto com ela? A recepcionista me informou que era uma paciente
envolvida em um acidente de carro...
Francis gira completamente o bebê e Angelina geme de alívio,
respirando rapidamente. Seus batimentos cardíacos aceleram, mas não a
ponto de me preocupar com o ocorrido. O bebê permanece com os
batimentos estáveis e o líquido amniótico em quantidade suficiente.
— Perfeito — sorrio, não conseguindo conter uma lágrima que desce
pelo meu rosto. A limpo antes que alguém perceba. — Eu vou analisar sua
dilatação, Angelina.
Ela assente, mas parece ansiosa.
— Não vou tocar você — a tranquilizo.
Francis se coloca atrás de mim, talvez para garantir a ela que ninguém a
tocaria sem a sua autorização.
— Ela está com uma dilatação de oito centímetros — averiguo. — Não é
o ideal ainda, mas está perto.
Francis dá um passo para trás e o encaro, vendo seu rosto completamente
sem cor.
— Você precisa se sentar? — averiguo.
— Não — ele nega depressa, balançando a cabeça. — Foi só uma leve
queda de pressão.
— Mas eu acho que eu vou desmaiar. — A garota de tranças se senta em
uma cadeira.
— Don, pode sair se for demais — Francis segura nos ombros dela.
— Eu quero ser médica, preciso ver isso.
— Não quando é alguém que você ama. É diferente.
— Você está aqui.
— Eu estou aqui porque meu mundo todo está nessa sala e precisa de
mim. Não ache que estou sendo forte, eu simplesmente não posso e não
consigo estar em nenhum outro lugar.
— Meu mundo também está aqui… vocês são os únicos que restaram.
Lágrimas começam a escorrer pelo rosto da menina e Francis a toma nos
braços como se ela não fosse nada além de uma criança precisando de colo.
— Não somos os únicos. Tem uma garota lá fora que está pronta para te
receber quando você permitir abrir seu coração.
Ele a solta, abrindo a porta.
— Vai, pirralha.
Ela olha mais uma vez para Angelina e sai pela porta sem dizer mais
nada.
— Está doendo mais, empurrando mais — Angelina choraminga na
cama, com a mão sobre a base da barriga. Analiso o monitor e nada parece
fora do comum.
— O bebê está encaixado agora, então vai sentir mais pressão… é hora
de começar a empurrar, querida.
— Eu… eu quero ficar agachada, assim não. Preciso me levantar — ela
começa a se erguer da cama, incapaz de permanecer quieta.
— Está tudo bem? — Francis me procura e assinto, sorrindo.
— A maioria das mulheres sente menos desconforto nessa posição. Pode
me ajudar a levantá-la?
— Claro… — ele se posiciona na lateral da cama. — Angel, vou te
levantar agora, tudo bem?
A garota assente, lágrimas descendo pelo seu rosto. Não consigo me
lembrar dessa agonia, no meu caso o parto passou como um piscar de olhos.
Ou foi apenas minha mente que estava desligada demais para notar o
sofrimento? Só tenho alguns flashs de quando cheguei no hospital e depois
já estava escutando o choro do meu bebê.
— Aqui está bom para você? — Francis indica a frente da cama e a
garota consente.
— Fique agachado às costas dela e sustente seu corpo para que ela não
tenha que lidar com mais esse peso — instruo e ele faz exatamente o que
digo, colando seu peito às costas dela. Seus braços a envolvem e não deixo
de reparar os lírios tatuados em um deles. É uma tatuagem bonita, em traços
finos, dificilmente vista em um homem.
Me agacho à frente deles.
— Não vou precisar tocar em você, mas vou receber seu bebê, tudo
bem? Caso haja algum toque, será muito rápido.  Eu não preciso intervir,
seu corpo sabe parir e seu neném sabe nascer, não vou puxar, vou apenas
apoiá-lo quando for a hora.
— Tá… — os lábios dela tremem e seus olhos denunciam seu cansaço.
— Não falta muito agora, querida. Suas contrações estão com intervalos
curtos, sua dilatação está boa, quero apenas que aumente um pouco para
que seja o menos doloroso para você.
Francis sustenta o peso dela e a ajuda a afastar suas pernas.
— Pegue aquele banquinho para ele — peço à Beatrice e ela posiciona o
banco para que Francis se sente. — A mantenha um pouco mais alta, para
que eu possa receber o bebê.
— Tudo bem — Francis apoia melhor os braços embaixo dos dela e a
ergue mais, me possibilitando uma visão melhor.
— Bom, Angelina, quando a contração vier, não grite. Apenas faça
força. Use a dor para empurrar.
— Ok — ofega, o suor escorrendo na sua testa.
— Tudo ficará bem em instantes, meu anjo. Você está indo muito bem,
está sendo perfeita.
Ele diz palavras doces ao ouvido dela, mas Angelina não esboça
nenhuma reação a elas. Parece até querer rechaçar cada uma dita. Ele não se
abala com isso, continua prestando seu apoio de forma carinhosa.
— Se fizer o corte no períneo vai ser mais rápido — Beatrice propõe e
antes que eu abra minha boca, a voz de Francis sai como um rosnado.
— Tente fazer isso com ela e eu juro que não respondo por mim.
— É mais rápido, garoto. Você não entende disso. Ela vai sofrer menos
porque a criança vai sair mais depressa.
— Na verdade, isso se chama violência obstétrica — interfiro. — Ela
está dentro do prazo, o bebê não está em sofrimento e a dilatação está
aumentando conforme o esperado… violar o corpo dela para tornar o seu
trabalho mais rápido é uma violência. O corpo dela sabe parir e sabe a hora
de parir, se for necessária qualquer interferência, será feita. Mas não vou
violar um corpo em perfeito estado para esse parto ser rápido, a menos que
haja o consentimento da paciente.
— Tira essa mulher daqui! — Angelina segura os braços de Francis com
tanta força que vejo a pele ficando branca ao redor. — Tira ou eu sou capaz
de me levantar daqui e mesmo com a minha vagina se rasgando, eu vou
apertar o pescoço dela!
Arregalo os olhos e Francis faz o mesmo.
Talvez a garota não costume falar esse tipo de coisa.
— Se retire… está deixando a paciente nervosa.
— Vou informar aos superiores sobre você — ela me ameaça.
— Não se preocupe — Francis fala antes de mim. — Vou fazer questão
de falar com eles… meu pai é amigo íntimo do diretor do hospital.
Os olhos dela saltam brevemente, mas sai calada da sala.
— Tudo bem, Angelina? — averiguo.
— Claro que não, tem uma cabeça querendo sair de mim e isso dói como
se estivessem me rasgando, ninguém estaria bem nessas condições, que
pergunta idiota!
Francis sorri para mim, como se pedisse desculpas. Sorrio de volta,
negando com a cabeça. Já escutei coisas piores durante um parto, e
sinceramente, nunca me importei. Só uma mulher sabe o que é passar por
isso. Ser grosseira é seu direito nato.
— A contração está vindo... ah meu Deus! — Ela morde o próprio lábio
para tentar não gritar, mas acaba não conseguindo, liberando seu grito de
dor. Se Francis não a estivesse segurando agachada, ela não teria forças.
— Tente não gritar, querida. Eu sei que é difícil, mas tente usar a força
para empurrar. — Confiro novamente sua dilatação. — Você está pronta,
está pronta agora… quando a dor vier, não grite. Empurre.
— Eu não consigo — ela geme de frustração, segurando mais forte os
braços do Francis. Ele me encara agoniado, buscando o que fazer. Balanço a
cabeça. Infelizmente, não temos o que fazer, essa é a parte difícil. Essa
etapa só Angelina pode fazer.
Ela tenta segurar o grito novamente, mas ele escapa depois de alguns
segundos, assim como sua força para empurrar.
— Morde! — Francis coloca seu braço contra a boca dela. — Morde
quando a dor vier.
Os olhos dela saltam, negando.
— Você está com raiva de mim, está com dor, então use isso ao seu
favor… apenas morde, Angelina!
Arregalo meus olhos quando ela toma o braço dele nos dentes e os crava
na pele quando a dor chega. Dessa vez, ela não grita. Ela empurra. Francis
não esboça uma careta sequer, mesmo que eu saiba que a força que ela usa
em seu braço não é branda. Ele apenas a sustenta, sussurrando palavras
doces.
Seja lá quem te criou, filho, serei grata eternamente pelo perfeito
trabalho.
— Eu estou conseguindo ver a cabeça, você está indo bem, Angelina.
Ela apenas grunhe, pressionando mais seus dentes contra o braço dele.
— Isso, querida, está vindo.
Não consigo conter o sorriso do meu rosto. Não consigo conter meu
corpo que treme. Eu nunca esperei ver meu filho novamente. Mas
definitivamente nunca passou pela minha mente, nem nos meus mais lindos
sonhos, que eu ajudaria a trazer meu neto ao mundo.
— Falta pouco, Angel… pouco e vamos ter Garden com a gente… você
está sendo perfeita, como sempre está sendo perfeita.
— Eu estou cansada — ela arqueja, deitando a cabeça no ombro dele.
— Eu sei, meu anjo. Prometo que logo você poderá descansar, aguente
só mais um pouco.
Ela respira fundo antes de empurrar mais uma vez.
Mais três contrações à frente, estou apoiando a cabecinha do bebê em
minhas mãos, deixando o corpo dela fazer o restante. Não demora até que
eu o tenha em minhas mãos, assim como lágrimas escorrendo pelos meus
olhos.
— É um menino… um lindo menino.
Olho desacreditada para o pequeno ser em minhas mãos, me recordando
exatamente do momento que tive o pai dele desse mesmo tamanho em meu
colo. É como estar vinte e um anos atrás, com todo meu mundo em mãos.
Assim como o pai, nasceu com os cabelinhos loiros… me pergunto se irão
escurar como os de Francis, ou permanecer na penugem loira como a da
mãe. Nesse momento, pela primeira vez, me arrependo de ter deixado meu
filho, porque agora não quero soltar o pequeno bebê e sinto uma vontade
dolorosa de acompanhar seu crescimento.
Olho para frente, para meu filho com o rosto banhado em lágrimas
enquanto olha para seu bebê, acariciando e confortando sua mulher.
— Você… — minha voz falha e pigarreio para assumir o controle. —
Você quer cortar o cordão?
Ele ofega, piscando desacreditado.
— Vou aproximar de você para que não deixe de apoiar as costas da
Angelina.
Espero o tempo necessário e aproximo o bebê o quanto dá, lhe
entregando a tesoura. As mãos dele tremulam, mas seus olhos não
demonstram dúvidas. É um homem corajoso e honroso.
Meu filho é tudo que eu e seu pai um dia sonhamos.
Sei que a partir de agora, posso me encontrar com meu Francis sem
qualquer peso e lhe contar que sim… seu filho é um homem honrado,
estudioso, bondoso e amoroso.
E que tem o bebê mais lindo que meus olhos já viram.
Posso viver em plena paz. Novamente, ele é aquele quem me traz
conforto e esperança. Meu pequeno garotinho de olhos da cor do mar. Você
nunca saberá que sou sua mãe, eu perdi esse direito anos atrás... mas sou
grata por eu saber que você é meu filho. Sou grata por você ser tudo e além
do que um dia sonhei. Se possível, te amo ainda mais. E sempre irei amar.
Ainda que nunca mais te veja.
 

 
 
As pessoas costumam dizer que as crianças são as únicas que conhecem
o amor puro e genuíno, sem esperar algo em troca, com inocência e
honestidade. Mas olhando para o pequeno e frágil bebê nos braços da
enfermeira que sempre serei grato, eu sei que na verdade, as crianças são as
que nos fazem conhecer o amor puro e genuíno. Elas nos permitem voltar à
inocência e sermos honestos com nossos sentimentos.
Sinto uma dor que me corrói por dentro. Por Jayden. Por Angelina…,
mas aqui, enquanto corto o cordão que ligava meu filho à proteção do
ventre da sua mãe, tudo desaparece. Eu sei que nada no mundo é maior que
ele, maior que o amor que me preenche como um tsunami afundando uma
cidade.
Eu imaginei que já o amava com todo meu ser. E sim, eu já o amava com
todo meu ser. É que agora, quem eu sou, já é pequeno demais para o
tamanho do sentimento que esse pequeno ser humano toma de mim. Tenho
que ser dois ou mais para suportar o que sinto. Para aguentar o peso desse
amor.
Nina segura a pinça sustentando o cordão e pego a tesoura, apoiando
Angel com apenas um dos braços. Corto onde ela me indica e meu coração
se aperta, porque sei que de agora em diante, Garden é desse mundo. Já não
está mais protegido no corpo da mulher que mais vai amá-lo, não está mais
envolto e seguro no ventre que eu protegi… até não conseguir proteger
mais.
Nina entrega Garden para Angelina segurar e eu gostaria de ter minha
câmera nesse momento. Não foi assim que planejei esse nascimento. Era
para eu estar registrando tudo, fotografando cada momento. Era para ser
tranquilo, planejado, sem a perda de um amigo, sem o ódio da mulher que
eu amo… sem a culpa que vou carregar cada dia da minha vida.
Mas ainda assim, mesmo que tudo tenha acontecido como eu nunca
esperei, mesmo que o teto esteja apenas esperando para cair sobre a minha
cabeça, não consigo conter o sorriso no meu rosto, ao ver Angelina
carregando nosso filho nos braços. As mãos delicadas o sustentam com um
carinho que ninguém no mundo será capaz de dar a ele. Ela o segura como
o tesouro mais precioso que já foi encontrado e de fato ele é.
— Eu sabia que você era um menininho, Garden — Angelina sussurra,
beijando a testinha ainda suja. — Eu sabia, sempre soube…
Ela chora sobre ele e quando Nina me informa que a placenta foi
retirada, a ajudo a se deitar na cama. Acaricio seus cabelos, escutando o
choro bravo e valente do nosso bebê. Sorrio… ele com certeza é tão forte
como a mãe.
— Nós precisamos limpá-lo — Nina informa e Angie o abraça mais
protetoramente, encarando Nina com os olhos assustados.
— Eu vou junto, Angelina… não vou tirar meus olhos dele, eu prometo.
Estendo os braços para pegar o bebê e ela demora alguns segundos para
me entregar. Todos os meus ossos viram gelatina ao segurar o pesinho
quase insignificante, mas que parecem toneladas pela tensão em meus
braços e ombros. O seguro estremecendo de medo. É tão frágil, como se
qualquer movimento errado pudesse machucá-lo. Analiso o rosto retorcido
pelo choro manhoso e sorrio como um idiota, apaixonado por essa criança.
— Ah, filho… — falo baixinho com ele e seu rostinho procura minha
voz. As lágrimas escorrem mais a partir desse momento. — Eu esperei
tanto para te ter aqui. Para ver seu rostinho, para segurar sua mão, para
cuidar de você... obrigado por ter sido forte, campeão. Obrigado por não ter
desistido de ficar com a gente.
Garden para de chorar, abrindo minimamente os olhinhos inchados.
Como pode alguém tão pequeno e com minutos de vida roubar todo o
meu ar?
— Francis… — Nina me chama novamente e cobre Garden com uma
manta.
Angelina não tira os olhos do bebê um segundo sequer, com uma dor
como se eu o tivesse levando embora e não o trouxesse mais. Abaixo para
ficar na sua altura da cama.
— Eu vou levá-lo, mas volto mais rápido do que você pode sentir sua
falta. Não se preocupe, vou trazer seu bebê de volta para você.
Ela assente em um choro mudo.
Beijo sua testa, saindo depressa da sala, carregando um pacotinho
manhoso.
Assim que cruzo a porta, meus amigos se erguem em um pulo, cada um
com uma cara pior que a outra de cansaço, choro, tristeza, mas ao ver o
bebezinho nos meus braços, dois dos três sorrisos se rasgam na minha
frente. Blue é a primeira a se aproximar, com as mãos sobre a boca e as
lágrimas descendo.
— É um menino — anuncio e ela sobe o olhar para o meu.
— Eu nunca disse..., mas sempre quis que fosse um, sabia?
Franzo o cenho.
— Imaginei que você fosse querer uma menina para encher de lacinhos.
— Eu queria que fosse uma cópia sua, para que você pudesse ver o
quanto vale e o quanto significa para quem te ama. Para que quando
pensasse em se odiar, olhasse para o seu filho, para sua semelhança, e visse
que não há o que odiar. Há o que amar.
A frase dela me pega de jeito, já não tenho controle do meu emocional.
Ethan se aproxima também, encarando meu filho. Ele parece um pouco
tímido perto de mim, mas acredite, não sinto raiva dele. Sobre nenhum
momento.
— É a porra da sua cara — Ethan ri, balançando a cabeça.
— Olha a boca perto da criança! — Blue dá uma cotovelada nele.
Eu gostaria de conseguir rir dessa situação, mas há tanta coisa se
passando na minha mente, que sou incapaz de processar.
— Eu...  — Donna diz engasgada, olhando para seus próprios pés. Ela se
afasta, como se estivesse se protegendo. — Eu não consigo... não consigo,
desculpa.
Donna sai correndo e Blue dá um passo na direção dela, mas se detém
antes de continuar. Minha irmã desaparece pelos corredores, sem ao menos
ver o bebê. Ela está com medo. Eu também estou.
— Eu preciso levá-lo para se limpar. Angelina está ansiosa.
— Vai lá… — Ethan me olha sem graça e assinto. — E Francis… — ele
abre e fecha a boca, engasgado.
— Depois — interrompo.
— Ok... depois.
Aceno, seguindo Nina para uma sala próxima ao quarto de Angelina. Ela
estende os braços para pegar o Garden e quase tenho a mesma reação da
Angie de segurá-lo mais contra mim.
— Vou cuidar bem dele, fique tranquilo.
Balanço a cabeça, entregando a ela com cuidado. Quando o peso sai das
minhas mãos, é como se uma tonelada saísse dos meus ombros. Céus,
carregar um bebê é mais difícil do que pensei.
— Você quer observar como dar o banho?
Nina me olha estranho novamente, seus olhos com um brilho que não
entendo.
— Quero sim.
Chego mais perto da pequena banheira e Nina enrola Garden em uma
toalha fininha. Ela me explica que é para ele se sinta mais protegido, como
se ainda estivesse no útero e não completamente solto na água. Presto
atenção em tudo.
Garden não gosta muito do banho, ele chora a maior parte do tempo.
— Se você segurar a mãozinha dele, pode ser que fique mais calmo.
— É... claro — com o indicador, encosto na pequena mão e ela se fecha
no meu dedo rapidamente. — Estou aqui, brotinho agitado — chego mais
perto dele, até que me ache. — Você lembra das conversas que tivemos? Eu
sou... sou seu papai, sabia? Aposto que você esperava alguma coisa melhor,
mas eu não sou tão feio como pareço agora, prometo que meu rosto vai
melhorar.
Sorrio quando ele para de chorar, prestando atenção em mim.
— Eu amo você, carinha... amo muito.
Seguro a mãozinha dele durante todo o banho e quando Nina o veste, ela
o entrega para mim. Tento ajeitá-lo deitado nos meus braços e ele resmunga
muito, então o viro na vertical, sobre meu peito ainda nu. Eu preciso
arrumar alguma roupa.
Ele parece se acalmar contra o meu peito.
— Bebês gostam de sentir o calor e contato da pele, segure-o assim
quando ele se agitar.
— Obrigado pelo que fez... nunca vou me esquecer de você — digo
engasgado. — Você ajudou a trazer meu filho ao mundo bem e saudável.
Serei sempre grato, Nina.
Ela pisca aturdida, piscando rápido. Deve ser as horas sem dormir.
— Você fez todo o trabalho, não precisa me agradecer. Foi muito
corajoso lá dentro... sua mãe com certeza está orgulhosa.
Seguro a risada amarga. Leonor nem mesmo quer saber do meu filho.
Peço a mão da enfermeira, que parece abalada ao pegar a minha. Seguro
Garden com uma mão, seu tamanho pequenino quase a permitindo cobrir
seu corpo todo.
— Mesmo assim, obrigado. — Aperto seus dedos. — Eu não sei o que
teria feito se não estivesse lá.
— De nada... — sua respiração falha. — Posso... posso te dar meu
cartão? Para... para caso precise de algo?
Comprimo as sobrancelhas.
— Pode... é... pode, claro.
— Vou deixar na recepção... pegue antes de ir embora. Não se esqueça,
por favor.
— Farei isso.
Aceno para me despedir e caminho até a porta. A voz de Nina me faz
parar por mais um momento.
— Francis...
Giro o pescoço.
— Hum?
— Seu nome é muito bonito.
Sorrio.
— É a única coisa que meus pais biológicos me deixaram... acho que
gosto dele por isso também.
Saio depois que ela acena para mim com os olhos úmidos.
Estranhamente, Nina me lembra alguém. Só não consigo saber quem.
 

 
 
Parir é uma merda.
Uma grande merda dolorosa, horrorosa, cansativa e pavorosa.
Nunca mais quero sentir como se meu corpo precisasse expulsar a todo
custo, inclusive ao custo de mim mesma, um corpo que ele criou e carregou
por nove meses. É isso que senti, como se meu corpo não reconhecesse e
não aceitasse mais o meu filho. E para ser sincera, gostaria que ele ficasse
ali por mais tempo, longe desse mundo, longe de tudo que ele precisaria
enfrentar assim que saísse de mim.
Quando escutei seu choro, quando o vi nos braços da enfermeira, quando
vi Francis cortando o cordão que me ligava a ele, quando o tive em meus
braços… eu só quis voltá-lo para minha barriga e mantê-lo ali, onde eu sou
capaz de protegê-lo e mantê-lo seguro. O mundo não parece um lugar certo
para um serzinho tão pequeno e frágil.
Cada segundo que passa com ele longe de mim, sem senti-lo se mexer no
meu útero, é como se um pedaço meu tivesse sido arrancado a força. Me
sinto vazia… estranhamente vazia comigo mesma.  Cada segundo que
Francis leva para trazê-lo de volta, mais desespero toma conta do meu
corpo. Uma enfermeira me ajuda a me limpar, faz alguns exames a olho nu
e troca os lençóis da minha cama. Ela também coloca um bercinho ao meu
lado.
Estou prestes a sair do quarto atrás do meu filho quando Francis abre a
porta, carregando-o como um pacotinho verde. Meus braços se estendem
antes mesmo que chegue perto.
Eu só quero que ele me dê meu filho.
O chamo com os dedos, agoniada.
Francis coloca o bebê nos meus braços e meu coração desacelera quase
que instantaneamente.
Quase.
Porque ele ainda está aqui. Ele ainda está no quarto.
E ele ainda é a razão para que meu amigo não esteja… para que, por
pouco, eu e Garden não estivéssemos também. Meu coração acelera tanto
que o ar fica escasso.
Desvio meus olhos do homem na minha frente, que ao menos agora tem
uma camisa cobrindo a maldita tatuagem e me concentro no meu único
ponto de paz. O bebê que tenta abrir seus olhinhos inchados.
Passei meses sonhando com esses olhos, meses torcendo para que
fossem exatamente da cor cristalina, para que fossem o retrato dos olhos
que me encantaram por toda a minha vida. E agora… agora eu torço, rezo,
imploro para que não sejam. Porque não quero mais ver esses olhos. Porque
agora eles não me trazem conforto, eles me trazem dor, raiva e mágoa.
Garden continua lutando para erguer suas pálpebras e meu coração se
aperta com o quanto isso é adorável. Observo seu rostinho, decorando cada
parte dele. Seus cabelos loirinhos como os meus, não passando de uma fina
penugem, o nariz tão pequenino e redondinho, as bochechas cheias e fofas,
a boca desenhada e fininha… ele é como um anjo deve se parecer.
Mesmo que quando finalmente consegue abrir seus olhos, eles sejam
como o de Francis. Mais escuros, mas ainda assim, iguais.
Azuis, límpidos e cheios de um sentimento que não consigo decifrar.
E eu os amo. Amo esses olhos, jamais serei capaz de odiar algo no meu
filho. O que me faz ter mais raiva ainda do pai dele. Porque sempre que eu
olhar no seu rosto, não vou poder detestar tudo que há ali. Vou continuar
amando seus olhos.
— Ele se parece com você — Francis diz baixinho, se abaixando para
vê-lo de perto. Mesmo que passageiro, um cheiro quase imperceptível de
cerveja me atinge. Subo o olhar para o dele, meu estômago se embrulhando.
Ele estava bebendo enquanto o acidente acontecia. Bebendo e esperando o
resultado da sua mensagem.
Meu sangue se esquenta por todo meu corpo e se não fosse Garden nos
meus braços, eu o tiraria daqui com minhas próprias mãos.
— Angelina, vou te ajudar com a primeira amamentação… pode ser que
seu leite ainda não saia, é normal — A enfermeira que ajudou no meu parto
começa a me explicar. — Nós temos bancos de leite, então caso seu leite
não saia, nós o alimentamos através de um copinho… ele não precisa ficar
em incubadora, exatamente hoje você completa as 38 semanas, de acordo
com seu prontuário e pré-natal. Garden nasceu com 3,200 kg, 45
centímetros, é um peso e tamanho muito bons. Como seu nascimento se deu
após à meia noite, Garden nasceu em 20 de agosto.
Assinto, ainda assimilando tudo. Talvez eu não tenha conseguido decorar
metade do que ela fala, já que estou preocupada demais em saber se vou
conseguir alimentar meu bebê.
— Posso te ajudar? — ela se aproxima com um sorriso, mas aperto
Garden contra mim. A sensação que tenho é que a qualquer momento
alguém vai querer arrancá-lo de mim. Meu instinto é de fechar meus braços
ao seu redor e não permitir que ninguém possa vê-lo.
— Ela só quer te ajudar, Angie… não precisa te tocar, apenas te instruir
— Francis leva a mão para tocar no meu braço.
— Não! — falo alto, mas me repreendendo por assustar meu bebê. —
Não toque em mim — digo mais baixo.
— Desculpe, não vou fazer isso.
— Eu quero que você saia — aceno para a porta, agoniada. Estar perto
dele me machuca. — Quero que saia agora.
Francis pisca, abrindo a boca.
— Você esteve presente nessa sala, unicamente porque eu precisava de
você para trazer nosso filho. — Minha boca se retorce no pior sentimento
que já experimentei. Meu coração quer sair do meu peito, porque nunca
conheceu o ódio genuíno por esse homem. Nunca o recusou com tanta
força. Meus olhos ardem e eu seguro seja lá quantas lágrimas ainda tiverem
que rolar. — Agora quero que saia da minha frente, por que não consigo te
ver, te olhar, estar perto de você!
O controle que tenho das minhas próprias lágrimas, é infinitamente
maior do que o dele. Talvez eu nunca presencie imagem de dor como essa
que vejo estampada no rosto do Francis. É crua. E talvez eu nunca sinta
tanta frieza na vida, como agora. Porque nesse momento, eu gosto do que
vejo. Gosto de saber que ele está sofrendo. E quero apenas que continue.
Ele merece sofrer. 
Não merece ter paz.
Não quando tirou a minha.
— Angelina, eu sin…
— Não diga que sente muito! — murmuro com uma careta. — Não me
importo. Não me importo com o que você sente, com o que faz, com o que
pensa… eu só quero que você não estrague mais do que já estragou, o dia
mais importante da minha vida. Quero entregar ao meu filho, apenas
sentimento de amor… e com você aqui, tudo que eu sinto é nojo e raiva e
revolta.
Francis dá dois passos para trás e duvido que consiga enxergar algo pelas
lágrimas que descem ininterruptas. Deixo de olhar para ele, apenas
esperando que saia. Não demora até que eu escute a porta se abrindo e
fechando.
Levo a mão ao pescoço, disposta a tirar o colar que ele me deu, mas
percebo só agora que ele já não se encontra aqui. Deve ter se perdido no
acidente. Exatamente como a minha relação com o homem que o deu a
mim.
Acaricio meu filho, sentindo seu cheiro tão doce e puro, buscando dentro
de mim a pessoa que preciso ser para ele. É difícil quando parece que morri
naquele acidente. É difícil quando parece que nunca vou conseguir resgatar
um único traço da pessoa ou dos sentimentos que já tive.
Mas seja lá quem eu me torne agora, será moldado para Garden. Porque
ele é a única razão para eu continuar viva. Para querer estar viva.
Um pigarrear me faz erguer o rosto e encontro a enfermeira do meu lado,
com uma expressão estranha e os olhos avermelhados. Não me dei ao
trabalho de poupá-la da minha discussão com Francis.
— É… — Nina limpa novamente sua garganta. — A... a gente pode
começar?
— Pode — respondo com medo.
A enfermeira coloca Garden deitado na transversal sobre meu peito e
limpa meus seios com um pouco de algodão molhado em água.
— Não use nada além de uma simples limpeza nos mamilos. E não fique
lavando a todo momento para não gerar feridas ou rachaduras. Caso use
pomadas, a limpe antes de amamentar.
Tento prestar atenção ao que ela diz, mas é difícil quando a mulher está
chorando.
— Por que está chorando?
— Desculpe — funga, limpando seu rosto. — Não é nada demais.
— Se não fosse, não estaria chorando.
Nina suspira, parecendo cansada. Seus olhos se fixam nos meus,
igualmente castanhos e surpreendentemente tão doloridos quanto os meus.
— Se me permite um conselho… não perca esses momentos ao lado da
pessoa que você ama. — A voz dela embarga. — Você nunca sabe quando
será a última oportunidade de estar com ela.
Ela volta a me ajudar a posicionar Garden sobre meu seio e não tenho
coragem de responder.
O que eu diria? Que já provei de muitas últimas oportunidades e que a
cada uma, mais machucada eu saio?
De uma coisa Francis sempre teve razão. Ele estraga tudo. Sempre.
 

 
 
Não sei quanto tempo passo encarando a porta de madeira, vendo nada
além de borrões que as lágrimas permitem. Minhas mãos se apoiam na
superfície rígida e fria, meus dedos tensionando e retrocedendo, tentando
me agarrar a qualquer coisa física que me mantenha na realidade.
Mesmo que o melhor que possa fazer agora é sair dela.
O mais difícil em viver por alguém, é que quando esse alguém já não te
quer em sua vida, não te sobra no que se agarrar. Não há corrimão, freio ou
arestas que mantenham seu equilíbrio. Não sobram motivos para viver.
Quando se passa uma vida sendo, existindo, buscando e tentando pelas
pessoas que ama, e já não sobram pessoas para te amar de volta, é quase
impossível entender o motivo pelo qual ainda se respira. Ainda se tenta.
Ainda se vive.
— Francis? — as mãos de Blue tocam minhas costas.
— Acabou... eu destruí tudo.
— Não diz isso, por favor.
Ela me envolve com seus braços…, mas não sinto. Não sinto o tempo, os
cheiros e não sinto os toques. Estou apenas… anestesiado. Dizem que nosso
corpo desliga quando sentimos uma dor a qual não é capaz de suportar. É
um sistema de autodefesa, uma proteção. Meu corpo sabe que eu não posso
suportar essa dor. Sabe que não vou conseguir perder qualquer um dos dois
que esteja ali dentro. Sabe que vou definhar pouco a pouco, em cada
momento que eu perder disso esperei por meses.
Desvencilho dos braços de Blue e encaro seu rosto, não conseguindo
sentir emoção alguma. Não sinto a dor. Não sinto mais vontade de chorar.
Não sinto agonia. Não sinto culpa. É apenas um nada. Um nada que parece
que não sairá daqui, que não permitirá que eu pinte mais nada nesse quadro
em branco e sem vida.
Eu me tornei uma grande folha de papel que lápis algum é capaz de
desenhar sobre. Inútil.
Começo a andar, sem nem mesmo saber para onde vou.
— Francis! Francis, para onde você vai?
As vozes vão passando por mim como uma trilha sonora de um filme,
apenas vagueiam na mente, estão ali, mas não interferem na história. Eu não
paro de andar. Não sei como parar. Não sei onde estar, o que fazer, como
agir.
— Francis, espera. — Uma mão é colocada contra meu ombro, me
impedindo de prosseguir. Olho para ela, sabendo que é de Ethan. Ele pode
me parar se quiser, mas terá que usar a mesma força que usou algumas
horas atrás. Eu aceitaria de muito bom grado mais alguns golpes. Todos
eles, se preferir.
Livro-me do seu contato, andando ininterruptamente até meus próprios
pés se estancarem ao ver as consequências das últimas vinte e quatro horas.
Isabela está parada no saguão, encarando o médico de olhos arregalados,
negando com a cabeça incessantemente. Ela se agarra ao colarinho do
jaleco do homem, com seus pais às suas costas, com os rostos
desconfigurados do próprio pranto.
Minha respiração acelera. Meu coração golpeia a caixa torácica.
Não há saliva que seja o suficiente para acabar com a aridez da minha
boca e com o gosto amargo e pútrido que toma conta dela.
— Ele não! Não, por favor, Jayden não! Me diz que isso é mentira… é
mentira, mãe. Diz pra mim que ele tá mentindo, meu irmão não, mamãe,
por favor… — Isabela segura os ombros da mãe, a balançando porque não
consegue nenhuma resposta. — Meu irmão, mãe… me fala que ele tá bem,
o médico tá enganado. Jay é forte, ele aguenta qualquer coisa… ele sempre
me disse que estaria aqui mãe, meu irmão não mente pra mim, ele não faria
isso comigo. Jayden nunca me abandonaria!
A esse ponto, ela está gritando, implorando, seu corpo rejeitando o que
seu coração não pode suportar. Mãos seguram meus ombros, não confiando
que eu seja capaz de me manter de pé. Não me dou ao trabalho de saber
quem tenta me proteger.
Mal sabem que nada mais consegue me quebrar. Chega um ponto, que
até mesmo o vidro mais frágil não é capaz de ser estilhaçado; não quando
os cacos são pequenos demais até para se partirem. Quando a alma é
machucada onde mais dói, não restam ferimentos e sofrimentos que possam
te assustar. Tudo é pequeno demais quando seus piores pesadelos se tornam
a sua realidade.
— Pai, fala comigo, alguém fala comigo! — Isabela grita e meus pelos
se arrepiam. — Meu irmão nunca me deixaria. Ele falou comigo ontem, a
gente combinou de ir ao cinema esse fim de semana, ele me fez prometer
que pagaria o ingresso dessa vez… eu prometi, pai. Eu prometi que pagaria
o ingresso dele, não me deixa descumprir a promessa… por favor, ele
desligou dizendo que me amava, Jayden me ama, ele não me deixaria
sozinha aqui! Eu o conheço, é minha metade, um não existe sem o outro!
Eu saio correndo quando Isabela despenca no chão do hospital, com os
joelhos sobre o assoalho frio, agarrada aos pés de qualquer um que posso
dizer a ela que tudo não passa de um pesadelo.
Sim. É um. Mas estamos todos acordados. E não sei quando haverá
sonhos novamente.
 

 
A água bate com violência contra as rochas e alicerce da ponte vermelha,
impiedosas, impacientes… como se quisessem derrubar as paredes que a
impedem de prosseguir seu rumo. A espuma branca se forma ao redor, o
mar retrocedendo e arremetendo novamente.
Assisti a isso durante toda a tarde de ontem. Toda à noite. E agora, tenho
assistido a manhã inteira.
Tenho contado cada onda. Cada carro que passa pela Golden Gate. Cada
pessoa que caminha pela areia e se arrisca a entrar na água. Não sei o
porquê faço isso, mas minha mente está tentada a preencher os buracos com
qualquer coisa tangível.
Meus olhos imploram para que eu os feche, para que pisque, para que
afaste a sequidão e ardência, para que limpe a areia da praia a qual estou
ajoelhado. Minhas costas doem, a pele dos meus joelhos reclama pelo
tempo na mesma posição, os grãos finos rompendo e machucando. Tenho
estado assim desde que cheguei. Na praia sob a ponte vermelha. A mesma
ponte que já foi meu momento de paz em tantos dias. Talvez por isso eu
tenha vindo para cá. Talvez meu corpo tenha buscado algum conforto.
Não funcionou, no entanto.
Talvez porque agora não busco conforto e sim coragem.
Coragem para fazer a dor desaparecer.
Para que os problemas se percam em meio às ondas.
É o mais certo. Ser o mar. A água.
Sempre foi meu lugar.
Talvez tenha que ser o último.
Eu posso ser eu mesmo debaixo d’água. Posso gritar sem ninguém ouvir.
Posso debater minhas mãos sem atingir ninguém. Posso ser meu pior ali
embaixo e nada nem ninguém verá. Posso deixar meus pensamentos
fluírem, até que não reste nada além do silêncio.
O silêncio parece bom. Parece perfeito.
O que eu daria para silenciar minha mente, meu corpo, meus sentidos,
meu coração, meu medo…
Eu só preciso de coragem.
E tudo acaba.
Tudo de bom acaba.
Mas tudo de ruim também.
Não é como se eu ainda tivesse coisas boas para me preocupar em
perder.
Já perdi tudo.
Não é justo viver assim.
Por que eu tenho que ser forte e suportar mais um dia?
Eu estou tão cansado. Tão cansado.
Não tenho mais forças para tentar.
Não sei por onde começar.
Se ao menos tivesse uma pista.
Um sinal do que fazer.
Algo que me diga que vai passar…
Olho para o alto, para o lugar onde costumava me sentar com Angelina
para observar o mar. Não fui para lá. Era alto demais. Fácil demais. Fácil
demais para acabar com tudo. E eu não tenho coragem. Sinto medo. Até
mesmo da morte, tenho medo.
Não sei se terei paz, até mesmo nela.
Não sei se tenho o direito de ter.
Uma lágrima escorre.
Eu só quero ter coragem.
Por que tenho que ser covarde?
Por que não posso acabar com isso?!
Aperto minhas mãos, hiperventilando.
Se eu entrar pouco a pouco no mar…
Pouco a pouco, é apenas isso. Um passo de cada vez. Chegará uma hora,
que será tarde demais para desisti. E mesmo que eu tenha medo, o mar não
me permitirá retroceder. Ele aceita as ofertas que o fazem. Reivindica.
Talvez eu só tenha que dar à água uma chance... uma chance para me
limpar. Para me levar.
Levanto-me. Meus dedos se afundam na areia e caminham até que se
molhem na água salgada.
Está tão fria que sinto como se minha pele se abrisse.
Por que tenho tanto medo, se não tenho mais nada a perder?
Por que é tão difícil apenas acabar com toda a dor?
Por que meu peito queima ao invés de relaxar quando penso em
simplesmente não existir?
Abraço meu próprio corpo com força, com raiva, com dor. E choro.
Depois de horas do mais puro nada, eu choro.
Choro, porque enquanto estou aqui me desfazendo, meu amigo está
sendo enterrado.
Choro, porque enquanto estou sentado e fraco, a mulher que eu amo está
sofrendo e passando por tudo sozinha.
Choro, porque enquanto penso em desistir da minha vida, o meu filho
está nesse momento começando a dele… longe de mim.
Choro, porque minha irmã provavelmente vai embora.
Choro, porque meu melhor amigo agora me odeia.
Choro, porque a única pessoa que sempre acreditou em mim, ainda o faz,
mesmo que eu não mereça nada.
O que eu fiz de tão errado? O que meu nascimento causou, para que tudo
que viesse depois dele, fosse para corromper e macular?
Meus pais não me quiseram.
Acabei com a relação de Robert e Leonor.
Fui motivo de intriga entre a Angelina e sua mãe.
Machuquei a mulher que amava acreditando em uma mentira.
Fui omisso com minha irmã pelo mesmo motivo.
Engravidei Angelina em um momento caótico.
Não fui capaz de tornar a vida dela mais fácil em sequer um momento.
Fui o culpado por ela sair de casa daquele jeito.
Fui o culpado pelo meu amigo estar naquele acidente.
Fui o culpado pelo meu filho nascer sem estar pronto ainda.
Em cada ponto que olho da minha vida, fui o ponto-chave para coisas
ruins.
Sem minha presença, nada teria acontecido.
Se não fosse por mim, tudo ficaria bem. Todos estariam bem… todos
estariam vivos.
E ainda assim, o egoísmo dentro de mim quer a todos. Quer a todos que
sei ter perdido.
Eu ainda tenho o Garden. Mas não posso jogar sobre ele a
responsabilidade de me fazer ficar vivo. Não é justo e não é certo. Não
posso esperar que ele suporte a carga de ser a única razão para eu continuar
aqui. Esse seria o princípio de todos os problemas que Angelina e eu
quisemos evitar desde o começo. Sobrecarregar nosso filho com nossos
próprios problemas. Fomos crianças que passaram por isso, muito nos foi
arrancado por esse motivo… e eu posso cometer todos os erros do mundo,
mas esse não vou me permitir.
Fui a ruína de todos à minha volta. Mas não vou ser a do meu filho. E se
isso significar que eu não deva estar na vida dele, então que seja.
Dou mais passos até que a água atinja a barra da calça que ergui até os
joelhos.
Nunca tive medo do mar. Mas estou apavorado. Tão apavorado que
quero sair correndo.
Tão apavorado, que se eu não ouvisse todos os meus pensamentos,
poderia acreditar que lá no fundo quero viver. Eu riria disso se ainda
conseguisse fazê-lo.
A água quase chega ao meu peito quando escuto gritos. Meus olhos
vasculham a água, mas não há ninguém dentro dela. É gelada demais para
qualquer um estar. Qualquer um com uma boa dose se sanidade. Não é meu
caso. Dou mais um passo, mas os gritos se tornam mais apavorados.
— Filha! Alguém me ajuda!
Comprimo as sobrancelhas, girando meu corpo de volta para a areia.
Não consigo ver muita coisa, a praia está praticamente vazia. Tudo que
vejo são os borrões de uma pessoa ajoelhada na areia, a uns trinta metros de
onde eu estava. Estreito meus olhos para enxergar melhor.
— Eu disse pra você não colocar isso na boca! — a voz da mulher é
agoniada e quando dou por mim estou pisando novamente na areia, para
saber o que acontece. — Cospe, filha. Cospe!
Não demoro a chegar até a pessoa que agora identifico ser uma mulher.
No seu colo, vejo uma menininha, de não mais de um ano.
— O que... — pigarreio, minha voz falhando pelo tempo em silêncio. —
O que tá acontecendo?
A mulher se assusta com minha voz e se vira para mim com o rosto
apavorado.
— Minha filha, e-ela engoliu uma bolinha que estava brincando e está
engasgada. — A mulher tenta abrir a boca da criança, colocando os dedos
para dentro em busca do objeto. — Pelo amor de Deus, chama ajuda... ela tá
ficando roxa.
Diz desesperada e bate nas costas da filha com ela ainda sentada em seu
colo. Seguro seu braço, a impedindo de continuar. Ela me encara no mesmo
instante.
— Por favor, não é assim que se faz, deixe eu te ajudar. — Seu olhar
vacila para mim. Não devo estar em boas condições mesmo. O rosto
inchado, o braço em carne viva pela mordida de Angelina, roupa molhada
do mar... também não confiaria em mim. — Eu faço medicina, tenho curso
de primeiros socorros, me deixa ajudar. É preciso fazer a manobra de
Heimlich corretamente, você vai machucá-la assim.
A mulher assente ainda receosa, mas me entrega a menininha, que tenta
puxar o ar, mas aparentemente o objeto está obstruindo a via respiratória.
Abro sua pequena boca, constatando que o objeto de fato já foi engolido e
não dá simplesmente para pegar com os dedos.
Não sei como me mantenho calmo nessa situação, talvez se fosse meu
filho eu estaria em completo desespero como a mulher do meu lado, mas
incrivelmente me sinto calmo, porque sei o que fazer.
Seguro a menininha de bruços contra meu antebraço, minha mão a
apoiando em seus ombros e tronco. Ela é pequena ainda, então permite que
a manobra seja feita deitada. Me ajoelho no chão para evitar qualquer
acidente grave caso ela escorregue dos meus braços e com a palma da mão,
dou tapas contra o centro das suas costas, entre os ombros, não exercendo
uma pressão muito forte para não machucá-la. Faço isso cinco vezes, mas
ela não tem qualquer reação de desengasgo. Não há vômito, tosse ou choro.
A viro de barriga para cima ainda em meu antebraço e com dois dedos
pressiono o centro, logo abaixo do seu peito. Repito a pressão três vezes,
até que seu corpo ejete o objeto. A bebê vomita um pouco e a viro de lado
para que não se engasgue com o líquido. Observo para encontrar o objeto e
a mãe suspira aliviada ao me mostrar a bolinha cor-de-rosa que ela havia
ingerido. Analiso se há vestígios de sangue, mas nada parece ter ferido suas
vias respiratórias.
Solto o ar que vinha prendendo sem ao menos perceber, entregando a
bebê que chora para sua mãe. A mulher chora junto com ela e sinto minha
bochecha molhada também. Franzo o cenho, levando a mão para enxugar
uma lágrima que escorre. Sento-me na areia completamente sem força,
como se eu tivesse segurado um peso insuportável por horas e não um tão
leve por tão poucos minutos.
Encaro minhas mãos assustado. Como se a ficha tivesse caindo. Essa
bebê poderia ter... se eu não tivesse chegado a tempo... céus. Só de imaginar
que Garden possa precisar de mim agora e eu estou longe... que algo assim
poderia acontecer com ele e eu não estaria lá para ajudar...
Hiperventilo com a mão sobre meu coração. Ele arrebenta meu peito.
— Obrigada, obrigada... — A mulher me puxa para um abraço, chorando
no meu ombro, enquanto segura sua filha em um casulo contra o peito.
Passo os braços por ela, com meus olhos arregalados e fitando a praia em
volta, com pessoas se aproximando ao notar o alvoroço. A mulher continua
chorando e me agradecendo e eu não sei como reagir. Nem muito menos o
que dizer.
— Foi Deus... foi Deus que te colocou no nosso caminho. Não sei o que
teria feito se você não tivesse chegado... obrigada por salvar minha filha,
obrigada por estar aqui no momento certo... não sei por que você estava no
mar tão gelado e a essa hora com a praia tão vazia, mas se estava, é porque
tinha um propósito... você salvou minha filha.
Ela continua falando. Falando e me abraçando. Falando e me
agradecendo. Falando e eu parado, estático, sem conseguir mexer uma
única grama do meu corpo.
“Não sei porque estava aqui, mas tinha um propósito.”
“Deus te colocou no nosso caminho.”
Meus olhos ardem. Agora, é minha garganta que está fechada.
A areia sob mim me leva há anos atrás, quando uma cena muito próxima
a essa se passou. Sinto o cheiro do mar de Cape May, a sensação de cansaço
é tão parecida e as lágrimas da mulher me fazem ver uma Angelina
pequena, chorosa e assustada por ter se afogado.
E viva porque eu estava lá...
— Como é seu nome? — a mulher me pergunta.
— F-Francis — gaguejo, piscando aturdido.
— Francis — Ela sorri. — Nunca vou esquecer... nunca vou esquecer o
que fez hoje. Nunca vou esquecer que graças a você tenho minha bebê
respirando e bem... você não deve ser pai ainda, mas tenho certeza que
entenderá a gratidão que estou sentindo quando for um.
Quero falar que sou pai. Mas tenho vergonha de dizer que não posso
estar com meu filho agora. Que não sou bom o bastante para ele.
Viro o rosto para olhar ao redor quando as pessoas começam a aplaudir.
A me aplaudir. Abaixo a cabeça, respirando com dificuldade.
— Ele salvou minha bebê, sabia exatamente o que fazer — a mulher diz
a eles e tenho vontade de pedir que pare. Não fiz nada. Eu só... só... só fiz o
que tinha que fazer.
Franzo o cenho, olhando para a bebê. Seus cabelos loiros me lembram os
de Garden. Sorrir é inevitável. Sentir saudade do bebezinho que tive em
meus braços, também. Como eu queria segurá-lo agora como esta mulher
segura sua filha. Como eu queria poder ser para ele o pai que tive.
— Qual o nome dela? — sussurro engasgado.
— Heaven. Seu nome é Heaven.
Sorrio.
— É um nome muito bonito... meu filho se chama Garden... ele nasceu
ontem. — A sua imagem vem com perfeição à minha mente e é como se
conseguisse sentir seu perfuminho doce e único.
Ela me encara surpresa, mas sorri ao final.
— Seu filho tem sorte de ter você... queria que o pai de Heaven também
falasse sobre ela com os olhos brilhando como os seus. Você vai ser um
ótimo pai.
Engulo a saliva, abaixando a cabeça.
— Não sei se vou conseguir.
— Francis... — ela toca meu ombro. — Você salvou minha filha hoje.
Uma desconhecida. Imagina o que você não faria pelo seu bebê. Tenho
certeza que ele vai amar muito você.
Assinto, com as lágrimas escorrendo. Observo a mulher beijar a
cabecinha loira de sua filha e a bebezinha me encara com seus grandes
olhos verdes. Eles transmitem paz, ainda que estejam avermelhados do seu
choro.
Seguro a mãozinha dela, agradecendo a Deus por estar tudo bem. Ela
aperta o meu dedo e isso me quebra por dentro. Não... na verdade, me
reconstrói.
A mulher pede para tirar uma foto comigo e mesmo que eu esteja
parecendo que saí de uma luta, aceito. A essa altura, já não raciocino com
clareza para me opor a nada.
Despeço-me dela e de Heaven, observando-as andarem para longe da
praia. As pessoas em volta me cumprimentam e eu aceno, ainda
anestesiado. Em alguns minutos me vejo sozinho, novamente observando as
ondas.
Mas dessa vez, não sinto vontade de me perder entre elas.
Não porque tenho medo. Mas porque tenho coragem.
Entendo agora porque não terminei de entrar no mar. Não era covardia.
Era vontade de continuar vivendo. Coragem para isso. É preciso muita
coragem para escolher estar vivo todos os dias. É preciso muita coragem
para enfrentar as dores. Se há medo em desistir... então é porque você não
quer desistir.
Se há uma única grama do seu corpo que se apavore em fechar os olhos
por completo, é porque todo o resto clama por mais um dia. Mais uma
chance.
Se eu tivesse desistido, teria perdido a chance de ajudar aquela
bebezinha.
Se Robert não tivesse me adotado, Leonor não teria feito a inseminação
e tido Donna.
Se eu não tivesse sido adotado por Robert, então não teria ajudado
Angelina naquele dia no mar... e na piscina... e no banheiro coberto por
fumaça.
Se eu não tivesse acreditado em uma mentira, não teria conhecido a
Blue. Não teria estado ao lado dela quando mais ninguém estava.
Se eu não tivesse engravidado Angelina em um momento inoportuno,
Garden não estaria aqui hoje.
Sim... em todos os momentos da minha vida, estive no epicentro de
coisas ruins. Mas não foi apenas isso. Se esses momentos ruins não
tivessem acontecido, todos os bons que se seguiram também não.
Se eu não tivesse estado aqui, apesar de tudo, coisas piores teriam
acontecido.
O meu pior momento, foi o que me trouxe até essa praia hoje. A vontade
de morrer, foi o que me levou até essa praia... só para então, lutar pela vida
de outra pessoa... e perceber que mesmo sendo difícil, ainda quero lutar
pela minha também.
Cubro o rosto com as mãos, deixando meu peito se lavar.
Sim, está doendo.
Sim, ainda vai doer por muito tempo.
Mas eu quero sentir. Quero viver. Quero estar aqui.
Porque sempre haverá o amanhã.
Sempre haverá um propósito para eu estar aqui.
Agarro a areia com as mãos, implorando a Deus que ele nunca me deixe
esquecer de novo. Que nunca me deixe esquecer, que minha existência
também tem valor. Que ainda que eu não mude o mundo, posso mudar uma
pequena vida.
Subo o olhar para o céu, pensando em Jayden. Ele me xingaria muito se
me visse chegando por lá agora. Ah, eu posso até escutar sua voz e sentir o
chute na bunda que ele me daria.
Gargalho ainda que seja impróprio.
— Me perdoa, irmão... — minha garganta arde. — Não vou te visitar tão
cedo, então guarde um lugar para mim quando for verdadeiramente minha
hora. Nós vamos jogar de novo aquela partida de futebol e dessa vez vou
evitar chutar sua canela. — Sorrio com as lágrimas descendo. — E quando
o momento chegar, saiba que vou te abraçar como um garotinho assustado e
vai ser constrangedor pra caralho... mas até lá, vou ser forte. Eu prometo a
você ser forte. Prometo a mim ser forte. A partir de agora, vou viver. Viver
por mim. Porque mesmo que você tenha precisado morrer para isso, eu
percebi que quero viver. Quero sonhar. Quero ser feliz... por mim. Para que
assim eu possa trazer o mesmo sentimento para quem estiver do meu lado.
Me espera e olha por mim de vez em quando. Porque eu sempre vou olhar
para você de agora em diante. Nesse mesmo céu, com um uniforme de
basquete, bola em mãos e uma piada irritante pronta para sair. Me espera,
irmão, mas saiba que vou demorar. Não quero dizer adeus ainda.
 

 
 
Doutora Mont Serrat sai do meu quarto depois de conferir mais uma vez
como Garden e eu estamos. Ela chegou ontem no hospital logo depois que
eu expulsei Francis do quarto. A demora dela não se deu ao trânsito parado,
na verdade, não conseguiram entrar em contato com ela e mentiram para
nós para não nos preocuparmos... isso ou eles não queriam que culpássemos
o hospital por não ter um médico de plantão.
Ao que tudo indica, meu bebê não precisará ficar em observação por ter
nascido dentro das 38 semanas e seu peso e tamanho estarem satisfatórios.
É a única coisa que me traz alívio. Ele está bem.
Garden está bem.
Repito isso para mim mesma o tempo todo. Como um mantra que me
mantém sã.
Não consigo tirar os olhos dele. O simples fato de piscar me faz temer
que desapareça. Só aceitei o colocar no berço porque disseram que seu
corpo ficaria mais descansado ali. Ainda assim, meus olhos ardem e meu
peito se aperta com a distância. O tive comigo por exatos nove meses, é
difícil que agora ele não esteja mais assim.
Acaricio sua pequena mãozinha, os dedos com a pele ainda enrugada. É
precioso. Nada menos que isso. Acho que nunca havia segurado um bebê
antes, nunca havia chegado tão perto de um... e agora sinto uma
necessidade de tocá-lo e sentir seu perfume, que é nova para mim. O
sentimento é transcendente, algo que eu não podia sequer imaginar a
imensidão. Me assusta. Mas também me dá coragem.
— Ele é lindo — Blue para em frente ao berço, não tendo saído daqui
desde ontem. Ela passou o restante da tarde e à noite comigo. Não houve
sinal de Donna. Também não houve sinal de Francis. Essa última parte me
alivia.
— Você já viu muitos bebês? — Ethan faz a tentativa de uma
brincadeira, mas sua expressão não me passa nada além de dor. Aquele
brilho divertido e leve já não aparece em seus olhos; até mesmo sua postura
é rígida, defensiva, como se estivesse pronto para se defender do próximo
ataque. Sinto o mesmo. Esperando pela próxima dor. Mas não é comigo que
devo me preocupar mais.
É estranho. Ter uma pessoa que depende de você é estranho. Antes,
meus erros só podiam afetar a mim mesma. Agora, podem afetar por
completo a vida desse bebezinho. E o pior de tudo, é que por um longo
tempo, ele não vai poder me dizer se estou me saindo bem. Vou ter que
fazer tudo a cegas e esperar que quando ele crescer, possa me dar certeza de
que não falhei. Isso me apavora.
Será que minha mãe achou que estava agindo certo comigo? Será que
por eu nunca ter falado nada, ela achou que estava no caminho? Eu gostaria
de ter ela aqui para perguntar. Mas a única que sabe que Garden nasceu é
vovó Angelina. Fizemos uma longa chamada de vídeo e ela prometeu estar
aqui assim que encontrar alguém para cuidar da floricultura.
— Bom, eu já fiquei muitos anos ajudando na ala das crianças na igreja.
Não são bebês, mas não deve ser tão diferente.
— Donna... ela... — deixo minha fala morrer no ar e Blue abaixa a
cabeça, apenas balançando negativamente. Suspiro, assentindo. Donna não
viu o bebê. Ela saiu da sala antes que ele nascesse e não voltou desde então.
— Talvez ela volte hoje para vê-lo — Ethan murmura. Acho que nem ele
acredita nisso.
— Não, não vai — constato.
E meu medo só aumenta.
Os Hopkins sempre foram meu porto seguro. Sempre foram aqueles em
quem me apoiei quando meu próprio equilíbrio falhou. No entanto, um
deles eu afastei e a outra se afastou por conta própria. As duas pessoas as
quais pensei nunca ser capaz de viver sem, foram embora na mesma época.
Não paro de perder. Jayden, Francis, Donna... 
Blue vira-se de costas, seu corpo estremecendo controladamente. Ela
tem chorado assim desde ontem. Passou a noite olhando seu celular
ininterruptamente, assim como Ethan faz agora. Ela olha para ele de vez em
quando e ele apenas nega com a cabeça, parecendo preocupado. Não
pergunto o porquê. Não quero saber.
— Angie — Ethan limpa a garganta, se aproximando de mim com
cautela. Odeio isso. Odeio esse medo que estão me olhando. — Hoje vai
ser...
— Não fala — o interrompo. Eu sei o que vai dizer. Eu sei o que vai
acontecer hoje. Jayden vai ser… Deus, não consigo pensar.
— Então você não...
— Disse para não falar, Ethan — minha voz se altera, assim como meus
pensamentos começam a lutar um contra o outro, a razão brigando com a
emoção, o consciente guerreando com o subconsciente.
Blue segura os ombros dele, o afastando.
— Eu fico com ela... você pode ir tranquilo.
Olho para Garden. Só para ele. Estou aqui por ele. Não posso sair daqui.
Não posso pensar em mais nada. Não posso.
Mas devo uma última coisa a Jayden. Uma promessa que fiz.
— Ele... — começo a falar antes que Ethan saia. — Ele não queria
ninguém chorando... ele queria... queria uma festa... bebida, risadas...
basquete — digo tudo o que me lembro de Jayden ter pedido.
Ethan me encara em choque.
— Então ele sabia que ia...
Desvio os olhos dele, balançando a cabeça em negação, embora a
resposta seja positiva.
— Sabia.
Minhas unhas arranham minha palma e machucam a pele. Não consigo
parar de mover as mãos. Minha cabeça nega incessantemente no ar, estou
negando os pensamentos, implorando para que eles parem de chegar. Só
preciso que parem de chegar.
Escuto a porta se fechar e continuo olhando meu bebê. Não o toco. Não
com meu corpo assim. Não quando não tenho controle.
Sinto raiva. Raiva por estar assim. Raiva por ser justamente eu quem
pode oferecer qualquer risco ao meu filho enquanto tenho uma crise.
Meu pai não me ajudou quando me afoguei.
E se eu não puder ajudar o Garden quando ele precisar?
E se minha mãe estivesse certa e eu não puder ser mãe?
— Angelina Eastwood! — Blue se senta na cama ao meu lado e pega
Garden do berço, o aproximando de mim. Meus olhos saltam e chego mais
para trás, recusando pegá-lo. Isso me corta em mais pedaços do que tenho
de sobra.
— Não...
Ela não aceita minha recusa, no entanto.
— Você está nervosa, com medo e isso reflete o seu corpo, mas o seu
centro de equilíbrio está aqui. Não pense em mais nada, apenas no seu bebê.
Ele é lindo, saudável e a coisa mais fofa que já vi no mundo, então
aproveita esse pedacinho de felicidade e o segura nos seus braços.
Abraço meu próprio corpo.
— Minhas mãos tremem... eu não quero deixá-lo cair.
— Você acha que eu deixaria meu afilhado cair? — Ela arqueia as
sobrancelhas com deboche. Blue é a única que consegue me transmitir uma
falsidade verdadeira. É estranho, mas é a verdade. Ela não está bem. Mas é
tão boa em fingir, que meu coração aceita acreditar na sua mentira.
Blue desfaz o aperto dos meus braços e me faz sentar mais à frente da
cama. Ela coloca com cuidado o bebê nos meus braços e se senta atrás de
mim, com as pernas me contornando e o peito nas minhas costas. Seus
braços vão para a frente do meu corpo e seguram nos meus, os mantendo
firmes ao redor de Garden.
— Somos nós duas o segurando e nenhuma de nós jamais o deixará cair
— ela murmura e beija meu cabelo.
Eu tenho vontade de chorar.
Não sei se de afeto. Se de amor pelo meu filho. Se de gratidão por ela
estar aqui. Ou se de dor por quem eu mais amei não estar.
Você o afastou — minha mente me recorda.
Garden pisca preguiçosamente, me olhando curioso, como se tentasse
entender quem sou eu. Forço um sorriso a sair, acariciando os poucos fios
de cabelo.
— Também quero muito descobrir quem é você. Vamos nos conhecer dia
após dia agora... espero que goste de mim.
— E não esquece de mim, sua madrinha favorita — Blue coloca a
cabeça sobre o meu ombro, passando o dedo sobre o nariz redondinho e
inchado dele. — Tomara que seu nariz fique melhor com o tempo, querido.
— Ei! — brigo, mas acabo rindo junto com ela.
Blue tem razão. Ele é meu pedacinho de felicidade. E eu vou me esforçar
com tudo que tenho para ser sempre o dele.
Éramos para ser três. Mas me transformo em duas se Garden precisar.
No fim, tudo que posso fazer é tentar ser para ele o que não tive. Não
será fácil, mas talvez eu consiga.
 

 
 
Entro no hospital depois de passar em casa para tomar um banho. Eu
estava tão sujo, que não havia como pensar em ver meu filho assim. Isso se
eu tiver a chance de vê-lo. Assim que sai daquela praia, depois de por um
triz não ter desistido da minha vida, quis ligar para os meus amigos, quis os
lembrar de que eu ainda estava ali, que seria forte.
Nunca senti tanta vontade de ouvir a voz deles e pedir perdão. Perdão
por não ter confiado no amor que eles têm por mim e por ter pensado em
causar mais dor que já estavam sentindo.
Mas meu celular morreu quando entrei no mar com ele no bolso, não tive
como ligar. Apenas uma coisa permaneceu intacta, apesar da ação do mar.
O colar de Angelina. A água não o reivindicou. E eu o guardei. Porque no
fundo, mais profundo que o oceano, eu tenho a fraca esperança de que um
dia a sua dona o queira de volta. Que um dia, a praia esteja pronta para
receber as ondas novamente.
Respiro fundo antes de cruzar o corredor do quarto de Angelina. Eu sei
que ela não vai me permitir entrar. E tudo bem, eu entendo. Não vou invadir
seu espaço, quero apenas saber que estão bem... apenas ver meu filho, nem
que seja por dois minutos do lado de fora. Preciso que ele saiba que estou
aqui... e que vou permanecer, não importa o quê.
Quando chego próximo ao quarto, Ethan sai de lá cabisbaixo. Ele não me
vê e tromba nos meus ombros, erguendo o rosto assustado. Quando nota
que sou eu, um ofego escapa da sua garganta, ao mesmo tempo que me
puxa para um abraço. Tão forte que cambaleio para frente e me seguro em
seus braços para não cair.
— Nunca mais, seu desgraçado egoísta de merda, saia assim de novo
sem me dizer pra onde vai — Ethan esmurra minhas costas, ao mesmo
tempo que me aperta mais forte. Eu não sei se quer me matar ou está com
saudades. — Eu juro que se você estivesse morto, eu ia no inferno pra te
matar de novo! Eu juro, Francis, nunca mais faça isso ou eu não respondo
por mim... Você saiu daqui ontem desnorteado, não atendia o telefone, não
sabíamos onde você estava porque o seu carro ainda estava no
estacionamento... tem noção das merdas que passaram na minha cabeça?
Tem noção de como Blue e eu tivemos uma noite demoníaca pensando no
que você estava fazendo?
A voz dele falha e Ethan enfia a cabeça no meu pescoço, chorando.
Fico estático.
— Achei que você me odiasse... — confesso, ainda aturdido.
— Eu já conheci pessoas burras na minha vida, mas nenhuma delas
supera você! — Ele soca minhas costas. — Eu odeio você, odeio porque me
fez ficar desesperado por toda a noite imaginando onde você estava e se
estava bem. Te odeio porque fiquei com medo de nunca mais te ver e a
última coisa que eu teria feito foi socar a sua cara de otário.
Solto uma lufada de ar, quase uma risada, abraçando Ethan de volta.
Engulo o nó, o apertando o máximo que consigo. Eu não sei quando será
a última vez. Se o acidente me ensinou algo, é que a vida passa como uma
lufada de ar. Em um momento, estamos aqui. No outro, só deixamos para
trás lembranças.
— Chegou perto... — confesso sobre meu momento na praia. — Perto de
eu fazer besteira.
Ethan estremece.
— Quão perto? — me questiona com medo.
— Muito. Muito perto.
— Eu te proíbo. Me ouviu? — Ethan me afasta para olhar meu rosto. —
Te proíbo de fazer isso. Eu preciso de você, você é meu irmão, é a porra do
meu melhor amigo, não posso ficar sem você! Se pensar que não vai
conseguir, se pensar que não há mais esperança, me liga. Porque eu vou te
lembrar, seu porra, que você é amado pra caralho!
— Desculpa — falo sinceramente, me arrependendo amargamente de ter
pensado que não existiam pessoas do meu lado. Não é justo pensar isso com
os amigos que tenho.
— Eu te desculpo quando falar onde enfiou a porra do seu celular. Blue e
eu te ligamos mil vezes!
— Ele estragou... — engulo.
— Como? — Ethan exige saber. Encaro meus pés.
— Ficou molhado... depois que entrei no mar. — Eu sei que Ethan vai
entender. Sei que vai perceber o quão fodidamente perto eu cheguei de
acabar com tudo dessa vez.
— Você é um filho da mãe, quase deixou a gente louco! — ele continua
me batendo. Acho que precisa disso para aliviar a tensão, então eu deixo.
Não é como se eu não estivesse com a cara esverdeada dos socos que ele
me deu ontem.
— Escuta, eu estou... vivo — eu ia dizer bem, mas seria uma mentira e
tanto. — Não é comigo que tem que se preocupar.
Ethan suspira, voltando a me abraçar.
— Hoje é... — começa a falar, mas sua voz embarga.
— O enterro do Jayden — completo a frase que ele não consegue.
— É. — Ethan solta o ar pela boca, soando tão cansado que não sei
como se aguenta de pé. — Estava indo para a capela onde ele será velado.
Você vem, não é?
Nego com a cabeça.
— Ninguém vai me querer lá, Ethan. Como vou olhar para os pais dele...
como vou olhar para a Isabela? Eu não posso.
— Ninguém está te culpando além de você mesmo.
— Mas você...
— Eu te bati porque você mentiu pra mim quando te perguntei das
drogas meses atrás, porque me preocupo com você e porque precisava
descontar a raiva em qualquer coisa e você foi a mais próxima... — Ethan
respira, balançando a cabeça. — Mas eu não te culpo. Você não estava
naquele carro, não tinha como evitar que algo acontecesse, Francis. Não dá
pra ser sempre um herói.
— Angelina me culpa — o lembro. — E ela tem razão... não se
preocupe, vou lidar com isso, mas tenho que encarar a verdade. Fui
responsável por tudo que aconteceu.
— Não adianta a gente discutir isso agora, todo mundo está machucado e
querendo alguém para culpar... inclusive você mesmo. — Ethan segura
meus ombros. — Vou deixar o endereço anotado pra você na recepção.
Passe lá caso mude de ideia. Por favor, pense a respeito.
Assinto, mesmo sabendo que não irei. Não consigo.
— Você quer que eu chame a Blue? Ela tá aí dentro com a Angelina.
— Quero, por favor.
Ethan não demora no quarto e logo sai pelo corredor para ir ao velório.
Acompanho olhando suas costas até ele desaparecer e Blue entrar no meu
campo de visão.
— Seu cretino, cachorro, desgraçado, horroroso, filho bastardo de
satanás! — ela avança em mim, batendo no meu peito com mais força que
Ethan.
Ergo os braços, deixando-a descontar a raiva. Posso trocar meu nome
para saco de pancadas facilmente. Me perdurem logo no teto e façam sua
terapia de combate à raiva.
— Já acabou?
— Não tô nem perto de acabar com você, eu quero te escalpelar, arrastar
sua cara no asfalto! Tem noção do quanto eu fiquei preocupada com você?!
— ela bufa como um touro e juro que posso ver fumaça saindo das suas
orelhas.
— Blue, para de gritar, estamos no hospital.
Arregalo os olhos para a cara que ela faz. Acho que talvez queira mesmo
me matar.
— Esse hospital já vai ter nossos rostos estampados como pessoas não
bem-vindas, então estou me cagando pra barulho. Eu quero saber por que
você sumiu e por que não atendia a porra do telefone!
Minha amiga hiperventila com a mão sobre o peito, talvez para se
controlar de me bater mais.
— Eu não conseguia ficar aqui, Blue. Me perdoe...
Ela me olha de cima abaixo.
— Vira de costas — ordena.
— Por quê?
— Só vira!
Faço o que ela manda, mesmo sem entender. Blue tateia minhas costas,
meus braços, a cabeça... só então eu entendo. Ela está conferindo se estou
bem... inteiro. Escuto seu suspiro aliviado e me viro de frente, a abraçando.
— Está tudo bem, linda. Eu estou inteiro.
— Eu tive tanto medo... tanto medo, Francis. — Suas mãos se fecham na
minha blusa e seu rosto se afunda no meu peito, derramando suas lágrimas.
— Eu sei o que se passa na sua cabeça, sei o quanto você pode ser
autodestrutivo, então não me afasta nesses momentos, me deixa ser sua boia
enquanto você está prestes a afundar.
Afago suas costas, tranquilizando-a.
— Desculpe, mas não posso fazer isso... não mais. — Puxo o rosto dela
para me olhar. — Eu preciso ser minha própria boia, Blue. Não posso
esperar que tenha sempre alguém do meu lado quando eu pensar em
desistir. Se eu não viver por mim, se não lutar por mim, hora ou outra vou
sucumbir na primeira oportunidade em que estiver sozinho. Eu vou lutar,
vou tentar e vou dar a volta por cima, mas não porque me puxaram e sim
porque meus braços são fortes o bastante pra chegar ao topo... porque eu
quero respirar.
Minha amiga sorri para mim, limpando seu rosto.
— É a primeira vez que escuto você falar algo assim... por favor, diga
mais vezes até que eu pense igual sobre mim.
Sorrio.
— Será um prazer ser um bom exemplo pra você, linda. Darei meu
máximo para que seja assim de agora em diante.
Ela assente, fungando de um jeito fofo.
— Você vai entrar? — Ela aponta para a porta.
— Angelina não quer me ver... tenho que dar esse tempo a ela para
podermos conversar. Só quero saber como ela e Garden estão.
— Eles estão bem... Angie está na medida do possível.
Assinto, fechando os olhos.
— A médica já veio aqui?
— Já, os dois estão bem de saúde. Meu afilhado é um neném gordinho e
forte.
Sorrio de lembrar da sensação dele nos meus braços.
— Eu posso trazê-lo aqui — Blue advinha meus pensamentos. Abro os
olhos, com medo de pedir isso a Angelina e ela me negar. Não sei o que
fazer se ela me impedir de estar com ele. Não posso sequer sentir raiva. Não
posso julgá-la e não posso simplesmente tirar ele de perto dela, porque sei
que está sendo sua tábua de salvação nesse momento.
Engulo a dor que dizer essas palavras me causam.
— Não faça isso. — Passo as mãos pelos cabelos, sem rumo. — Vou dar
esse tempo a ela, Blue. Ela tem direito. Não tire Garden dela... não deixe
que ninguém tire. Não agora.
— Não vou deixar. Eu prometo.
Blue abre a boca para dizer algo mais, mas seu telefone toca e ela o tira
do bolso para atender. Seus olhos saltam quando olha o aparelho.
— Quem é? — pergunto.
— Isabela — diz num ofego.
Meus ombros pesam instantaneamente.
— A-atende.
Blue se atrapalha com o celular, mas o leva até o ouvido.
— Alô?
Fecho os olhos, querendo sair correndo daqui de novo. É fácil falar que
vou aguentar e em alguns momentos parece que vou mesmo, mas um
segundo depois o peso volta e eu quero só me enfiar em um canto escuro e
silencioso. Eu quero viver. Mas não vai ser fácil lutar contra todos os
pensamentos venenosos que estão acostumados a me assombrar. Não dá
para ensinar meu subconsciente a ser corajoso da noite para o dia. Preciso
ensiná-lo como a um bebê, dia após dia, que eu quero estar vivo. Quero
estar bem. E que não posso depender de mais ninguém para isso.
Passei a vida toda alimentando minha cabeça com pensamentos
depreciativos. Agora vou precisar reeducá-la a amar aquilo que ensinei a
odiar. Eu mesmo.
— Está... ele está aqui — Blue responde ao celular e meu coração
acelera. — Você quer que eu passe pra ele?
Abro os olhos alarmado.
— Ela quer falar com você.
— Co-comigo?
Blue assente, me passando o celular. Encaro o aparelho como se ela
estivesse me oferecendo uma granada sem pino, prestes a explodir. Pisco
algumas vezes, segurando o celular contra o ouvido.
— Pronto — murmuro quase sem voz.
— Vem pra cá! — sua voz é raivosa.
— O quê?
— Vem pra cá. Vem pra cá ou eu mesma vou te buscar. Não seja
covarde, ele estaria aqui se fosse o contrário, meu irmão não te deixaria
sozinho agora, então vem pra cá!
Firmo meus pés no chão, sentindo a pressão abaixar.
— Ele precisa de você, ok? Você se tornou um amigo. Ele falava o
quanto você o ajudou, me contou o quanto ajudou nossa mãe, ele gostava
de você, Jayden se importava com você, então o mínimo que pode fazer por
ele é estar aqui... por favor, Francis, não deixa ele sozinho agora. Se
despeça dele, por favor... — Isabela perde para o choro ao final, me
suplicando em puro desespero.
— Eu... — engulo a dor como se mãos esmagassem meu coração. — Eu
vou... eu vou, estou indo.
— Por favor, vem rápido.
Olho para Blue e apenas entrego seu telefone, correndo para a recepção.
Não, eu não estou pronto pra isso. Nunca vou estar.
Mas eu nunca, jamais negaria um pedido de Isabela... não quando eu
tenho responsabilidade por ela agora. Jayden pode não estar aqui, mas vou
fazer o possível para exercer o papel que ele cumpria perfeitamente. Porque
eu sei, que se fosse ao contrário, ele faria o mesmo por mim.
 

 
Não fui direto para a capela. Não poderia ir sem antes pegar algumas
coisas.
Com elas em mãos, observo a entrada da pequena igreja, pedindo a Deus
que me dê forças para suportar o que eu tiver que passar ali dentro. Não
estou com saldo para lhe pedir nada, quando com a quantidade de vezes que
o culpei por tudo. Mas se o que dizem for mesmo verdade, ele é
misericordioso. E está do lado até mesmo dos que menos merecem.
Principalmente dos que menos merecem.
Respiro fundo, entrando pela lateral das cadeiras brancas. Há muitas
pessoas aqui. Muitas reconheço da faculdade, do time de basquete, de
outros esportes e muitos colegas de turma. Alguns professores também
estão aqui. Jayden era querido. Jayden é querido. Sempre será.
Porra... eu preferia quando não gostava de você.
Preferia quando te achava um otário que apenas queria a minha garota.
Não ia comemorar sua partida, claro que não... mas não doeria tanto. Não
me arrasaria como está fazendo agora. Nunca perdi um amigo de uma
forma que eu não pudesse voltar atrás. Nunca perdi ninguém dessa forma
tão irreversível. Até mesmo meus pais biológicos, ainda existe aquela
esperança falida de um dia vê-los. Já você, Jay... você eu nunca mais vou
poder ver, não importa o quanto eu queira.
Você bem que podia ter esperado eu ir primeiro, seu apressado de
merda. Mas quis ganhar de mim até na corrida para o céu... isso não é
justo.
Paro no meio do caminho, abaixando o rosto e engasgando nas minhas
lágrimas. Abraço as coisas que carreguei do campus, desejando que fossem
o dono delas aqui.
Meses atrás, senti vergonha quando te abracei. Eu daria tudo para ficar
constrangido assim agora.
Tento dar passos para frente, tento continuar o caminho, mas não dá.
Não quero vê-lo daquele jeito de novo. Nunca mais quero ver. Era tão frio...
tão frio.
Alguém segura meu ombro e ergo o rosto assustado. Fico mais ainda
quando vejo Isabela.
Meu soluço escapa tão alto e incontrolável, que me assusto. Me ajoelho
aos pés dela, deixando as coisas com cuidado no chão.
— Me perdoa. Me perdoa. Me perdoa.
Isabela se afasta de mim e espero por todas as palavras hostis que ela
tem para me entregar. Mas ao invés disso, ela se afasta apenas para se
agachar junto a mim, me abraçando forte. Isa se agarra ao meu pescoço e
chora no meu ombro, tão alto e tão dolorido quanto eu faço.
— Me perdoa... ele não merecia isso. Eu não pude fazer nada, cheguei
tarde demais, não pude fazer nada, me desculpa...
— Shhhhh... — o corpo dela solavanca junto ao meu. — Não fala isso...
Você está aqui agora... você veio. Chegou a tempo. Que bom que veio...
obrigada por vir.
Nego com a cabeça, a abraçando mais forte. Como ela pode me
agradecer por estar aqui? Ela deveria me odiar.
— É minha culpa, Isabela. É minha culpa, não me agradeça por vir.
Imploro para que ela sinta raiva, para que me bata, para que me mande
embora.
— Sabe... — ela se afasta para me olhar, tentando um sorriso trêmulo. —
Meu irmão uma vez foi injusto com você... e ele se arrependeu. — Ela ri
fraquinho, olhando para frente como se pudesse vê-lo parado ali. — Jay me
contou que teve uma impressão errada de você e ainda assim, você ajudou
nossa mãe... ele disse que se arrependeu, que nunca mais queria cometer um
erro assim. Então, Francis — ela segura meu rosto, olhando dentro dos
meus olhos. A dor que vejo nos dela me subjuga. Eu sei que ninguém sofre
como ela. É metade dela que está indo embora. — Eu não posso cometer o
erro do qual Jayden se prometeu não cometer de novo... faço isso por ele e
não tomo decisões precipitadas. Meu irmão aprendeu a ser justo e vou
carregar isso comigo. Não apontarei o dedo para você. Então não faça o
mesmo. Vamos ser quem meu irmão era. Alguém que aprendia com seus
erros. Alguém justo.
Aperto os dentes até que os escuto ranger, tentando entender por que ela
está sendo boa comigo.
Isabela se levanta e estende a mão para mim. Todas as pessoas estão nos
olhando. Algumas chorando, outras sem entender, algumas com um
semblante anestesiado... Engulo a seco, segurando a mão dela para me por
de pé. Pego os itens que deixei no chão e caminho de mãos dadas com
Isabela até onde o caixão se encontra. Meus pés travam, mas ela continua
me puxando, não me deixando acovardar.
Termino com a distância que me separa do caixão de madeira escura.
Não olho para ele de imediato. Ao invés disso, observo o casal que se
abraça, chorando um nos braços do outro. A mãe e pai de Jayden erguem os
olhos para mim e faço todo o esforço do mundo para não desviar os meus.
Eu nunca vou me esquecer das suas feições. Não importa quanto tempo
passe.
Eles me olham com carinho.
A senhora Clifford vem até mim, segurando meu rosto entre suas mãos.
Prendo a respiração, tentando em vão parar de chorar.
— Eu não queria que nada disso tivesse acontecido — murmuro
engasgado.
Ela sorri, limpando minhas lágrimas como uma mãe carinhosa faria.
— O mesmo olhar que vejo no rosto da minha filha, é o olhar que
enxergo em você. — Ela derrama as próprias lágrimas. — Ninguém que
não amasse e quisesse verdadeiramente o bem do meu filho, teria tanta dor
quanto a sua. — Ela continua limpando meu rosto, esquecendo do próprio.
— Mas, querido... Jayden sempre nos fez sorrir. Vamos sorrir por ele hoje,
tudo bem? Vamos deixar para chorar em casa e sorrir para dar um até logo
hoje.
Assinto, limpando meu rosto de qualquer jeito.
Engulo todos os pedidos de desculpa, todas as lamúrias que quero
implorar. Mostro as coisas que peguei.
— Ele não vivia sem o uniforme... e sempre tinha uma bola de basquete.
Estavam dentro do armário dele no vestiário... eu arrombei pra pegar.
Ela sorri, segurando o moletom, levando até o nariz e inspirando o
perfume. Ela abraça a peça de roupa como se abraçasse o filho. Desvio os
olhos porque a cena é dolorida demais para mim. A mãe dele estende o
uniforme sobre a tampa do caixão, aberto apenas do tronco dele para cima.
Ainda não olho para o Jayden. Ainda não tenho coragem.
Seguro a bola de basquete dele, oferecendo ao seu pai. O senhor Clifford
a segura com o cuidado de alguém que tem um cristal nas mãos.
— Achei que ele fosse gostar de ter essas coisas aqui — digo olhando
para o chão.
— E a garrafa de cerveja? — ele me indaga.
Olho para a garrafa na minha mão direita e solto uma risada triste.
— Acho que ele iria querer que bebêssemos também.
Engulo o receio de parecer desrespeitoso, mas o senhor Clifford coloca a
mão no meu ombro e quando olho para cima, ele me mostra o engradado de
cerveja no chão. Antes que eu questione, Ethan sai de trás de algumas
pessoas, sorrindo pra mim.
— Jayden pediu a Angelina que nós bebêssemos e comemorássemos,
porque ele não queria ninguém chorando.
Solto uma risada. Isso é muito a cara dele.
— Meu filho gostava de viver a vida no seu máximo — o pai dele se
engasga ao falar. — E eu tenho certeza de que ele quer que cada um de nós
também vivamos assim.
Ethan para ao meu lado, segurando meus ombros.
— Eu não consigo vê-lo assim de novo... Ele... não quero ver ele daquele
jeito — confesso ao meu amigo.
As mãos de Ethan se estreitam nos meus ombros.
— Eu soube que você fez o reconhecimento..., mas seja lá como você o
viu, ele não está mais assim — Ethan dá uma risadinha melancólica. —
Passaram até maquiagem nele... Jayden deve estar puto por estar de batom.
— Dou uma cotovelada no meu amigo, mesmo que eu ria um pouco. —
Desculpe, eu faço piada em momentos inoportunos e quando não quero
chorar.
— Reparei — suspiro. — Nunca perca esse hábito, Ethan. Nunca deixe
de trazer um pouco de alívio em momentos assim.
Respiro fundo algumas vezes, até criar coragem de subir meu olhar para
o rosto de Jayden. Seus olhos estão fechados, os cabelos penteados para
trás, mais arrumados do que jamais os vi, vestindo um terno... e um quase
sorriso nos lábios.
— Ele ficaria muito puto da vida por se ver assim — observo.
— Eu disse — Ethan também se aproxima, enfiando os dedos no cabelo
dele e despenteando. — Assim está mais parecido com ele de verdade.
— Obrigada por isso, eu mesma estava prestes a fazer — Isabela fica ao
meu lado e segura minha mão. Aperto a dela em busca de lhe oferecer
conforto e me confortar ao mesmo tempo.
Pego o moletom de basquete e coloco sobre o tronco de Jayden,
escondendo o terno elegante.
— Agora só falta uma piada irritante ou dar em cima da minha garota
para completar o pacote Jayden Clifford — brinco.
— Não se esqueça das frases de “Eu, a patroa e as crianças”. — Isabela
complementa.
— Sem falar nos sermões sobre ser menos galinha — Ethan
complementa.
O pai de Jayden oferece uma garrafa de cerveja para todos os amigos
mais próximos e a abrimos, erguendo a garrafa, envolta de Jayden.
— Um brinde a você, filho... um brinde para você que mesmo com tão
pouco tempo, mudou um pouco a vida de cada uma dessas pessoas aqui.
Um brinde ao filho maravilhoso, dedicado e carinhoso que sempre foi. Vou
sempre amar você, até o dia em que nos encontrarmos de novo e jogarmos
mais uma partida de basquete.
— Um brinde ao melhor companheiro de time que já tive... eu também te
amo, Josh, não fique com ciúmes — Ethan fala e olha para trás, vendo
nosso amigo chorar ao lado de Cassidy nos bancos. Meu coração se parte
com o quanto os dois parecem simplesmente... desolados. — Um brinde ao
cara que me dava conselhos, a quem eu vivia chamando de cunhado e
ganhava um belo tapa no pescoço — Ethan ri em meio às lagrimas. — Um
brinde ao amigo leal, divertido e carinhoso... vou sempre ter você como
exemplo de como ver a vida, irmão. Me espera que ainda vou vencer de
você no campeonato angelical.
Todos rimos um pouco e viramos mais um gole da cerveja. Mal sinto o
amargor quando vejo que Isabela é a próxima.
— Um brinde ao melhor irmão que eu poderia ter. Ao irmão que
trabalhou em dois períodos só para ajudar com os custos da minha
faculdade. Ao irmão que era meu conselheiro, confidente e melhor amigo.
Um brinde à minha metade — Ela faz uma pausa, tentando recuperar sua
voz. — Nós estamos juntos desde a barriga da nossa mãe. Nunca precisei
saber como era estar longe de você... não sei como fazer essa caminhada
sem você, Jay Jay. Não sei como acreditar que tudo vai dar certo sem a sua
voz me garantindo que tudo daria. Não sei como vai ser planejar as férias
sem você. Como será não falar sobre todos os seus erros em quadra, só para
te deixar irritado... não sei como vai ser dormir sem receber uma ligação
sua para me perguntar como foi meu dia... não sei como vou me formar,
casar, ter filhos e não te ter ao meu lado para dividir todos esses momentos.
— Ela para de falar, olhando para cima, tentando em vão fazer as lágrimas
retrocederem. — Mas seja como for... mesmo não sabendo, eu vou tentar.
Vou viver. Sem você, mas por você. Nós começamos juntos essa vida e
estaremos juntos para sempre, mesmo que em planos diferentes. — Isabela
olha para o irmão e ergue seu copo. — Um brinde ao homem que vou amar
mais que a qualquer um. E ao irmão que vou chutar a bunda quando o
encontrar por ter me deixado aqui sem se despedir.
Ela vira toda a garrafa na boca e me controlo para não fazer o mesmo.
Bebo um gole mesmo que minha garganta esteja fechada demais para
líquido algum descer.
Pouco a pouco, cada pessoa fala um pouco sobre Jayden. Josh e Cassy,
os amigos de time, os professores... faltando apenas uma pessoa.
Eu.
Isabela agarra minha mão, assentindo para mim.
Engulo diversas vezes e abro e fecho a boca mais mil, me preparando
para falar o que não faço ideia.
— Eu... — Limpo a garganta, olhando para o meu amigo deitado, como
se estivesse apenas dormindo. E olhando pra ele, eu sei que não preciso
dizer nada bonito ou poético. Jayden não esperaria nada disso vindo de
mim. — Jayden... seu palhaço irritante de uma figa... você sabe mesmo
como dar uma festa — Olho em volta e as pessoas sorriem, mesmo
quebradas. — Você e eu não tivemos um começo fácil. Na verdade, até
poucos meses, nós não nos suportávamos. E arrisco dizer que ainda
tínhamos algumas arestas para aparar. Ainda assim... — Um soluço tenta
irromper minha garganta e respiro fundo, me acalmando. — Ainda assim,
você foi quem primeiro soube do meu filho e prestou seu apoio. Mesmo
amando a mesma mulher que eu, você me ajudou a ser alguém digno dela e
do meu bebê. Você estendeu sua mão, mesmo que isso significasse que eu
teria mais chances ao lado dela dali pra frente. Você nunca pareceu se
arrepender... nunca se negou a estar ali, mesmo para o cara que você não
gostava muito. Você foi importante o bastante para que eu te escolhesse
como padrinho do meu filho... é um garotão, sabia? — meus ombros
balançam com meu choro e Ethan também segura minha mão. — Garden é
o seu nome... eu acho que você gostaria de saber disso. E não ache que eu te
livrei do compromisso, me ouviu? Você ainda é padrinho dele, ainda tem
que me ajudar a cuidar dele, mesmo que de onde você estiver... eu sei que
você não estará aqui para ensinar ele a jogar basquete, mas vou deixar o
Ethan e Josh fazerem isso. Quero que meu filho se pareça com você em
caráter, bondade e lealdade. Quero que ele siga esses caminhos do padrinho
dele e por que não o esporte também? — Rio, negando com a cabeça. — Eu
vou sempre lembrar ao Garden que ele tinha um tio com covinhas que mais
se pareciam com uma cratera na bochecha, um sorriso cheio de dentes
demais e piadas bregas e irritantes. Vou contar a ele todas as suas histórias,
até mesmo as ruins, afinal ele não pode gostar mais de você do que de mim.
As pessoas gargalham.
Respiro fundo.
— Você não estará aqui em matéria, mas estará nos corações de cada
pessoa que você participou um dia sequer da vida. Você não nos contará
mais piadas ou frases bregas de livros, mas sempre que escutarmos algo
parecido, é você que virá nas nossas mentes. Então, meu concorrente, meu
amigo... meu irmão, um brinde a você. Um brinde que vamos repetir
quando chegar a hora.
Ergo a garrafa e todos repetem o gesto, ingerindo o líquido que ele
amava.
Olhamos para Jayden uma última vez. Mesmo sabendo que a imagem
que vamos guardar dele, não será essa. E sim a do cara com o sorriso mais
aberto que já conheci.
Vou sentir sua falta, irmão.
Não suma da minha memória.
Eu te imploro.
 

 
 
Estar em casa nunca foi tão difícil, desde que eu ainda morava com meus
pais. Tudo está igual, ao mesmo tempo que tudo está diferente. Saí daqui
com uma barriga enorme, um relacionamento intacto e um amigo com
saúde. Agora, mesmo que os móveis estejam exatamente onde estavam, a
barriga pesada já não me acompanha, não suporto ver o homem que eu mais
queria perto e meu amigo não está mais aqui para me dizer que tudo ficará
bem.
A única parte boa em tudo isso, é o bebê que seguro nos meus braços.
Garden teve alta primeiro que eu, porque ainda precisei fazer alguns
exames devido ao acidente de carro. Por sorte, ou por milagre, não tive
nada além de escoriações e uma leve luxação no ombro direito. Onde
Jayden... onde meu amigo se jogou para evitar que qualquer coisa
acontecesse comigo.
Eu não queria vir para essa casa. Para a casa do Francis, mas
principalmente, para a casa do Vance. Ethan me garantiu que nenhum dos
dois estão ficando mais aqui. Ele aparentemente não sabe o show que Vance
deu no dia do acidente e não estou com cabeça para começar a explicar.
Não mudaria nada, de qualquer forma. Também não sei onde Francis está
ficando e uma pontada de medo que ele esteja ficando no mesmo lugar que
aquele desgraçado, me assola.
Fico parada na porta principal, sem conseguir entrar. Pisco
ininterruptamente, meu cérebro tentando reconhecer minha nova situação.
Vamos lá, é só mais uma mudança. Você já passou por tantas, Angelina,
então por que tem que ser esse sofrimento todas as vezes? Por que não
posso me acostumar como qualquer pessoa? Às vezes eu tenho raiva. Raiva
de tudo que me torna diferente. Raiva porque queria que fosse mais fácil.
Blue tenta colocar as mãos nos meus ombros, mas me afasto
abruptamente. Não quero que me toquem. Eu só quero meu espaço. Um
espaço que eu nem sei se tenho mais.
Mesmo em Cape May, eu tinha meu lugar seguro. Meu quarto. No
campus, o dormitório era meu cantinho, mesmo que eu o dividisse com
Donna. Aqui tudo me lembra dele. É a casa dele, o quarto dele, a cama dele
que eu vou dormir e sentir o cheiro. Não é meu lugar, não tenho mais um.
— Leve o tempo que precisar — Blue entra antes de mim, ficando à
minha frente. Ela não para de me olhar, não para de me encarar e isso tem
tornado tudo pior. Eu quero poder desabar sem ninguém ver, quero poder
chorar sem que alguém venha me abraçar, quero apenas sofrer em paz, sem
olhar de pena, sem me oferecerem ajuda, quero... droga, eu quero estar
sozinha e isso não é algo que posso fazer. Não com meu filho.
Abaixo os olhos para o pacotinho nos meus braços.
Meu coração sorri para o ressoar baixinho e leve do seu sono, sorri para
a boquinha entreaberta, fazendo barulhinhos engraçados, sorri para seu
cheirinho tão puro e aconchegante..., mas meus lábios não sorriem. E a
culpa me fere como navalha. Eu deveria estar exultante pelo nascimento do
meu filho, deveria estar sorrindo para o vento, deveria dar a ele apenas os
melhores sentimentos... e eu não consigo.
Eu não deveria ter ficado com ele. Eu não vou ser uma boa mãe... não
quando não consigo nem mesmo sorrir para Garden.
Minha respiração acelera e quero apertar minhas mãos, mas ele me
impede. Como vou deixar de ter meus hábitos e me acostumar aos dele? Eu
não vou conseguir. Minha mãe tinha razão... eu não deveria ter um filho...
não quando pareço precisar de mais cuidados que ele, não cheia de
limitações.
Pisco rapidamente, desviando os olhos de Garden. Procuro em volta
qualquer coisa que me tire desses pensamentos, mas eles me bombardeiam
e me afogam. É como o barulho de dezenas de pessoas conversando ao
mesmo tempo, sem que eu consiga silenciá-las.
— Sabia que eu travei na minha primeira apresentação de ballet? — A
voz de Blue me assusta. — Eu estava com tanto medo de errar na frente das
pessoas, que quase vomitei no palco — ela ri e franzo o cenho. Isso não é
engraçado, vomitar é horrível, eu tive minha cota de vômitos ao longo
desses meses. — Na verdade, eu estava com mais medo de errar na frente
dos meus pais e eles acharem que não valia a pena continuar gastando com
minha professora.
Por que ela está me dizendo isso? Eu sofro um acidente e ela que parece
ter batido a cabeça.
— Mas aí, eu pensei que se eu não entrasse naquele palco e pelo menos
tentasse, eles definitivamente me tirariam das aulas. Na primeira opção,
havia cinquenta por cento de chance de dar errado, mas na segunda opção,
se eu não entrasse, era cem por cento de chance que daria errado. Eu
arrisquei naquela que havia uma porcentagem favorável. — Blue estala a
língua. — E eu fui péssima, acredite. Errei tantos passos que minha
professora quase engoliu a própria língua, caí duas vezes e minha meia
calça se rasgou no meio da apresentação..., mas sabe — Blue sorri
novamente e eu tenho a certeza de que ela está doida. Por que está sorrindo
como se fosse uma boa memória, quando tudo que aconteceu foi dar
errado? — Essa foi minha melhor apresentação... não em performance, mas
a que mais me diverti. Eu já entrei sabendo que não conseguiria dar meu
melhor na dança, então dei meu melhor em ser feliz. Eu lembro de rir tanto,
que no final a plateia me aplaudiu de pé. Eles riram junto comigo e se
divertiram.
— Por que está me dizendo isso? — comprimo as sobrancelhas.
— Porque não é sobre acertar e ser perfeita, mas sim se divertir mesmo
sabendo que está tudo uma merda.
— Isso não faz sentido.
— Não é para fazer sentido.
— Eu gosto de coisas lógicas, Blue. Não me divirto com a bagunça e as
coisas dando errado.
Ela sorri arteira.
— Mas minha história te ajudou mesmo assim.
— Em quê?
— Você entrou.
Ela aponta para mim e me dou conta de que estou no centro da sala.
Mas... quando foi que eu dei passos? Balanço a cabeça. Blue me deixa tão
confusa para entender seu raciocínio, que me esqueço do meu próprio.
Ah, entendi.
Essa era a intenção.
— Obrigada...
— Por ser ilógica e sem sentido?
— É... por isso aí.
— Sempre que precisar, Angie. — Ela joga um beijo. — Agora eu acho
que você deve querer um banho decente... eu posso segurar o Garden.
Prometo não roubá-lo.
Faço careta.
— É sério, não vou sair correndo com seu bebê, pode tomar banho
tranquila.
Meus braços se estreitam ao redor de Garden e meus dentes rangem.
Céus, quem está sendo a irracional agora? Eu acabo de querer um
tempo sozinha e não consigo deixar que ninguém tire o bebê de mim.
É definitivo, estou ficando maluca.
— Angelina Eastwood, você está fedendo, então suba, tome um banho e
volte cheirosa para o seu filho! — ela fala alto, estressada e tampando o
nariz.
Eu... eu não estou fedendo! Ou... ou estou?
Suspiro, assentindo.
Blue segura Garden com cuidado e corro escada acima, antes que mude
de ideia. No topo, desacelero os passos, contando degrau por degrau até
chegar ao corredor e então à porta do quarto de Francis. Arranho minha
calça com as unhas, sem saber o que vou encontrar.
Ele me mandou aquela foto no quarto.
Com os comprimidos na sua cama.
Eles ainda estarão aí?
Minhas mãos tremem quando as levo até a maçaneta. Giro devagar.
Faça o que faz quando está em quadra, Angelina. Esqueça tudo, se
concentre no seu objetivo. Não há nada em volta, apenas o que você quer
ver e ouvir. Não há nada que tire sua atenção, nada pode te tocar, te ferir
ou te alcançar. É só você e a bola. Só você e o caminho até banheiro, nada
mais.
Abro a porta do quarto, o encontrando completamente arrumado. Os
itens de higiene de Garden que estavam guardados, agora estão expostos no
trocador, alinhados perfeitamente. Em cima da cama, uma roupinha e fralda
também estão estendidos. Será que Blue arrumou isso? Ela não ficou muito
tempo fora do meu quarto no hospital, não vejo como tenha tido tempo.
Ethan não teria esse cuidado todo, ele provavelmente nem sabe para o que
servem metade das coisas.
De qualquer forma, não importa.
Pelo menos não há comprimidos espalhados pelo colchão.
Entro no banheiro pronta para tomar um banho rápido, mas estanco na
porta ao ver que algumas coisas aqui também mudaram. Dentro do box, a
banheira do Garden foi montada sobre um suporte que a deixa na nossa
altura, produtos de higiene também ocupam uma prateleira e até mesmo
alguns adesivos coloridos de peixes foram pregados na parede.
Pisco admirada, passando o dedo por eles... são siliconados, não devem
estragar com a água. Será que Garden vai gostar disso? Será que vou
sequer conseguir dar banho nele? Na maternidade as enfermeiras fizeram
isso. No colo da Nina ele pareceu muito tranquilo.
Não demoro a tomar meu banho, vestindo uma... uma fralda. É, digamos
que meu útero está expelindo tanta coisa, que um absorvente comum não
seria usável. Lembro de quando Francis comprou isso e eu fiquei rindo
porque não precisaria usar.
Estava enganada.
Visto um vestido de alças removíveis para facilitar caso Garden sinta
fome. É estranho pensar que o alimento sou eu. Sei lá, quando eu estou com
fome, abro a geladeira. Agora quando ele sente fome, eu sou a geladeira. Eu
sei a teoria da coisa, mas ainda é estranho que leite saia de mim. Além de
nojento.
Quando desço a escada, Blue está sentada no sofá, com Garden deitado
em suas pernas e ela brinca com as mãozinhas inquietas dele. Agora eu
percebo que não ganhava só chutes na barriga, como socos também. Ele é
agitado demais para um bebê com dias de vida.
— A sua mamãe já volta, por favor não faça esse biquinho fofo senão eu
também vou começar a chorar... — Ela parece se desesperar, porque
começa a abanar o rostinho dele, como se isso fosse evitar que chorasse. —
Olha, eu nem devia ficar sozinha com você, sou totalmente inexperiente
com recém nascidos, vocês são molengas e escorregadios, parece que vai se
desmanchar na minha mão só de respirar errado... ah, pequeno G, não chora
não. Eu juro que sou legal.
Cubro a boca com a mão quando ela realmente fica com a voz
embargada de choro.
— Pode me dar ele.
Blue arregala os olhos, se virando para mim. O olhar aliviado dela quase
me faz gargalhar.
— Graças a Deus, eu já estava me arrependendo por não ter nenhuma
música infantil decorada. Acho que você não ia gostar se eu começasse a
cantar Adele pra ele.
— Por que não? — Franzo o cenho.
— Porque eu choro — Dá de ombros.
Sento-me do lado dela no sofá e tento fingir que estou tranquila de pegar
meu filho. Blue tem razão, são molengas, frágeis e escorregadios. Bebês
tinham que vir com antiderrapante e alcinhas.
O acomodo no meu braço, deixando-o de lado. Ele fica inquieto assim,
mas eu não sei segurá-lo de outra forma.
— Calma, bebezinho, você vai ter que ser paciente comigo. Isso é tão
novo pra você quanto é pra mim.
Ele me encara com os enormes olhos azuis, agora nem um pouco
inchados. Garden se mexe novamente impaciente e ameaçando colocar os
pulmões para funcionar com seu choro alto.
Ele não vai ter paciência comigo, ao que parece.
— Ele tem seu gênio, mesmo que a cara seja idêntica ao do pai — Blue
provoca.
Faço bico.
— Eu te carreguei por nove meses exatos e você nasce com a cara dele...
isso é injusto, sabia? — Converso, mas Garden está mais interessado em
olhar para o meu cabelo. Ele o agarrou noite passada e foi preciso uma boa
dose de calma e jeito para que as mãozinhas soltassem meus fios. Agora, eu
até riria da situação, mas no dia foi desesperador, principalmente porque
Blue não sabia fazer nada além de colocar a mão na cabeça e dizer: ah, meu
Deus.
— Pelo menos o Francis é bonito, se o Garden puxar a ele quando
crescer vai arrasar corações.
— Eu também sou bonita. — Jogo os ombros.
— E viva o amor-próprio — ela ri, balançando a cabeça.
Reviro os olhos, procurando coisas no meu filho que se pareçam comigo.
O cabelo é tudo que encontro. Suspiro chateada. Como posso amar tanto
alguém que se parece com o homem que mais quero distância?
— Ah, obrigada por ter arrumado o quarto e o banheiro para ele. —
Mudo de assunto para evitar pensar no proprietário dos olhos que meu filho
resolveu imitar.
— O quê? — Blue me olha confusa.
— O quarto... você colocou os produtos em cima do trocador do Garden,
decorou o banheiro e montou a banheira.
Blue arqueia a sobrancelha.
— Angie, eu não vim em casa nem pra tomar banho, como você acha
que arrumei isso?
— Então foi o Ethan? — fico surpresa.
— Quando Ethan não estava no hospital, ele estava com Isabela — o
clima pesa automaticamente quando me lembro o motivo. Ainda não a vi. E
não sei se tenho coragem de ver, não quando ela se parece tanto com Jayden
e não quando tenho culpa por ela não ter mais o irmão.
— Mas se não foi ele e nem você, quem arrumou tudo? — evito o
assunto Isabela. Tenho que evitar muitos assuntos. Jayden, Francis,
Isabela... Donna. Minha amiga não veio me ver. Por que ela não está aqui?
Preciso dela. Preciso daquele pedacinho do meu passado em que eu era
feliz. Donna é minha lembrança constante de quem eu sou. Sem ela aqui, é
o mesmo que ficar pela metade.
— Você sabe quem foi que arrumou tudo... — Blue inclina o rosto, me
deixando deduzir.
Pisco algumas vezes, chegando à conclusão que não queria.
— Francis?
— Ele só não está aqui porque você não quer vê-lo, Angelina. Francis só
saiu do hospital para ir até o enterro e vir aqui. Ele disse que precisava
deixar algumas coisas prontas que vocês não tiveram tempo antes do
acidente... então com certeza seja lá o que estiver arrumado naquele quarto,
foi obra dele.
O olhar dela sobre mim é pesado. Eu sei que ela não concorda comigo.
Mas Blue não viu a foto que eu vi, não sabe que é por causa disso que
saímos desesperados do restaurante e corremos com o carro. Ela não sabe e
não vai entender. Ninguém vai. E sinceramente, eu não tenho forças para
reviver aquele dia e me explicar. Tudo que quero é fugir, tirar minha mente
daquele carro, daquele momento... ao menos durante o dia. Porque de noite,
quando fecho os olhos, me vejo novamente presa embaixo do corpo do meu
amigo. Ainda sinto o sangue escorrendo em mim. Ainda ouço a sua última
respiração.
Seguro Garden mais firme nos meus braços, tentando me prender ao
agora.
— Blue... não tente me fazer sentir culpada por Francis não estar aqui.
— Eu não estou tentando.
— Está! — acuso. — Está sim, porque não para de colocar ele nos
assuntos, a todo momento você fala algo dele. Que meu filho se parece com
ele, que se puxar ao pai vai arrasar corações, que Francis veio arrumar tudo
aqui casa, que só não está aqui porque eu não deixo... acha que não
percebo?
Altero o tom de voz e meu coração dói quando vejo que Garden se
assusta. Respiro fundo para me controlar. Tem sido tão difícil. Há tanta
raiva, tanta coisa entalada dentro de mim, tantos sentimentos... estou a um
passo de explodir.
— Não estou te falando isso para se sentir culpada ou para te amolecer,
Angelina. Estou falando porque é a verdade — ela também diz irritada. —
Não pense que vou começar a falar mal do Francis ou esconder as coisas
que ele faz, só porque você não gosta dele no momento.
Sinto as bochechas esquentarem e me levanto com dificuldade do sofá.
Seguro Garden protetoramente e me direciono à escada.
— Então talvez seja melhor eu evitar falar com você também.
Digo antes de subir e me fechar no quarto.
Não posso obrigar que ninguém me entenda. Eu passei a vida sendo
incompreendida, não vai ser nenhuma novidade. Mas também ninguém vai
me obrigar a engolir a seco o pai do meu filho. Francis é apenas isso agora.
Pai do Garden. E se veio aqui arrumar as coisas, então não fez mais que sua
obrigação.
Engulo o asco.
Se eles ao menos tivessem visto a foto..., mas ela foi apagada. Ele a
apagou. Eu quis mostrar para eles, mas na conversa, há apenas duas
notificações escritas: essa mensagem foi apagada.
A foto e o texto... se foram. Só sobrou minha memória.
A memória de uma mulher que todos acham só estar sofrendo demais
para ver a verdade. Quando na realidade, sou só uma mulher que está
sofrendo por causa da verdade.
Francis é culpado. E se todos quiserem se afastar de mim por odiá-lo,
tudo bem. Não vai ser a primeira vez perdendo alguém... isso virou um
hábito. Só preciso do meu filho. Vou conseguir viver sem todo o resto.
 

 
 
 
Pego as chaves com o reitor, indo para o dormitório no campus. Eu tive
que recorrer a isso, não dava para dormir em casa e nem ficar pagando
hotel. Por sorte, só precisei de um quarto antes de o novo semestre começar,
ou não encontraria nenhum. O masculino é sempre mais vazio que o
feminino, os caras preferem ficar nas repúblicas, então não tive grande
dificuldade. Só de não precisar dividi-lo com outra pessoa já me deixa mais
à vontade. Há poucos quartos individuais e eles são mais caros que os
outros, mas é um esforço estou disposto a fazer. Preciso ficar sozinho para
colocar minha vida no lugar.
Josh e os caras da república do Jayden ofereceram o quarto dele, mas eu
não conseguiria dormir ali. Definitivamente seria uma tortura.
Quero um lugar onde eu possa desabar sem que ninguém me veja.
Está sendo uma merda ficar longe do meu filho, a cada segundo me pego
quase correndo para vê-lo, para sentir seu cheirinho, para que ele saiba que
não o estou abandonando.
Eu não estou... porra, eu não conseguiria.
Fecho as mãos em punho.
Só estou dando o tempo que Angelina precisa. Eu sei que o estresse pode
prejudicar sua produção de leite, além do psicológico dela já estar lidando
com mais coisas do que deveriam agora. Não vou piorar a situação com a
minha presença. Não posso ser egoísta agora.
E não posso mentir que ver Angelina me deixa apavorado. Eu me culpo,
mas ela me culpa ainda mais. Isso dificulta para que eu consiga cumprir a
promessa que fiz aos pais do Jayden.
Os dois me fizeram prometer que não me culparia pelo acidente. Não
aceitei fazer a promessa até que eles me permitissem contar o que
aconteceu naquele dia. Que o filho deles não estaria dentro daquele carro se
eu não tivesse escondido os comprimidos de Angelina. Se eu sequer tivesse
pegado aquelas malditas drogas. Eles me escutaram, em silêncio enquanto
eu falava..., mas quando terminei, a senhora Clifford me deu um tapa
estalado no braço. Eu achei que ela finalmente tinha me culpado, mas
apenas... apenas me mandou parar de ser ridículo e um tolo. Exatamente
com essas palavras. Ela me disse, que se fosse o inverso, Jayden também se
sentiria assim e que ela jamais iria querer ver o filho sentindo culpa por
algo que ele não poderia ter evitado, assim como meu pai o teria
confortado, como fez nos meses de tratamento dela. Eu não sabia que eles
tinham mantido contato, mas ao que parece meu pai conversou bastante
com os Clifford para saber como andava o tratamento.
Os pais do meu amigo não me perdoaram... eles sequer me culparam.
Suspiro, olhando o pequeno quarto que vai ser minha casa de agora em
diante. Não trouxe muita coisa, apenas algumas roupas, produtos de higiene
e meus livros acadêmicos. Todo o resto ficou no quarto, que deixei
arrumado para Angelina antes de vir para cá.
Sorrio ao pensar se Garden vai gostar dos adesivos no banheiro. Ele
chorou um bocado durante o primeiro banho na maternidade, espero que se
sinta melhor estando na casa dele.
Esfrego o rosto. Estou sendo inútil, não posso fazer nada além de decorar
um banheiro. E não sei quando Angelina vai passar a tolerar minha
presença. Minhas esperanças para nós dois morreram junto com Jayden,
não sou tão burro ao ponto de achar que ainda temos uma chance. Quero
apenas que ela possa conviver comigo o bastante para que eu conviva com
Garden. A saudade daquele garotinho está ameaçando me partir em dois.
Deito na cama depois de limpar o quarto e o banheiro, organizando a
matrícula das matérias desse semestre. Não peguei toda a grade curricular,
porque não sobraria tempo para meu trabalho e Garden. Não sei como vai
ser o processo de adaptação com ele, então preciso de todo o tempo que eu
tiver. As aulas que peguei foram no horário da tarde, para poder trabalhar de
noite e ficar de manhã com Garden para Angelina descansar.
Vai ser assim, até que a gente encontre uma forma melhor para lidar com
as coisas.
Falei com meu pai mais cedo e ele não vai poder me visitar agora por
causa da clínica, mas está me mandando mensagem toda hora para ter
notícias. Eu só contei sobre o que houve com Jayden e sobre o nascimento
do meu filho. Não falei o que quase fiz e nunca vou falar. Ele não precisa
desse peso. Não quando Donna simplesmente não aparece. Tudo que recebi
foi uma mensagem dela dizendo que está em um hotel e que está bem. A
minha sorte foi ter conseguido manter o número antigo depois de comprar
outro celular, ou a mensagem dela teria se perdido.
Estou prestes a deitar para dormir, quando recebo uma ligação da Blue.
Meu coração já acelera instantaneamente. Tive notícias ruins demais nesses
dias para temer até uma simples ligação.
— Oi, linda. Tá tudo bem? — digo apressado.
— Estamos todos bem, só seu filho que está sujo.
— Como assim? — Levanto-me da cama.
— Bom, são 18 horas e precisamos dar banho nele... acontece que
Angelina travou e eu não consigo segurar essa criança sem ela escorregar
das minhas mãos, ele é pior que sabão.
Rio baixinho.
— E você quer que eu vá até aí?
— Por favor.
— Angelina concordou com isso?
— Olha, no momento, Angelina está surtando, então eu não fiz uma
pergunta formal.
— Surtando como? — pergunto já pegando as chaves do meu carro e
correndo para o estacionamento.
— Ela está quase rasgando a calça na unha, olhando petrificada pro
Garden, sussurrando que é uma péssima mãe e que no primeiro dia em
casa já está perdida.
Praguejo.
— Merda, chego aí em cinco minutos.
— Obrigada, você é nosso herói.
Desligo sem responder, entrando no meu carro e chegando lá mais
rápido do que o prometido. Talvez eu tenha ultrapassado um sinal vermelho
ou dois. O Estado que me multe, foda-se.
Entro em casa correndo, subindo direto para o meu quarto. A porta já
estava aberta e passo por ela ofegante.
— Nossa, você veio a quanto por hora? — Blue arregala os olhos ao me
ver.
— Melhor não falar — arquejo.
— Eu falei que ele precisava de um banho, não de um salvamento — ela
fala comigo, mas meus olhos já estão em Angelina.
Eu sei que Garden não vai ficar mal se passar mais um minuto sem
banho, mas ela vai.
— Ah, entendi — Blue solta uma risadinha.
— Angelina — a chamo, mas ela continua olhando para o Garden.
Desço meus olhos para ele, sorrindo no mesmo instante. Ele veste
apenas sua fraldinha e mexe os pés e os braços desengonçadamente. Meu
sorriso se alarga quando ele derruba o potinho de creme que estava no
colchão, batendo a mão nele.
É, você realmente é meu filho.
Agacho na frente da cama, o cobrindo com sua toalha. O enrolo no
tecido fino e macio, pegando-o no colo. Só quando o tenho nos braços que
Angelina parece acordar dos próprios devaneios. Ela me encara assustada e
estica suas mãos para ele.
— Fique calma — sussurro. — Eu só o cobri porque a janela está aberta
e ele não deve pegar friagem no peito, apenas isso.
— Você... você não pode tirar ele de mim, eu vou fechar a janela da
próxima vez... eu...
— Ei... — Seguro Garden com uma mão e com a outra puxo o queixo
dela até que me olhe. — Eu nunca, jamais tiraria o Garden de você... e eu
sei que você vai fechar a janela da próxima vez... somos todos inexperientes
aqui, tá tudo bem se esquecer, você não tem que se culpar.
Angelina sai do meu toque, se afastando como se a machucasse.
— Eu posso dar banho nele hoje, caso você ainda não se sinta preparada
— tento convencê-la sem parecer que estou duvidando da sua capacidade.
Eu não estou. — Posso vir aqui todos os dias e dar banho nele...
— Eu não preciso de você! — ela murmura com raiva.
— Não, você não precisa — assinto. — Mas eu posso ajudar. É pelo
Garden. Não vim aqui para tirar ele de você, não vim para me colocar como
o salvador da história, vim apenas porque nesse momento, posso ajudar a
cuidar dele.
Angelina parece ficar mais calma, mas não aumenta em nada a sua
vontade em me ver. Não a culpo.
Ela continua contorcendo as mãos, inquieta demais e com medo demais
do Garden nos meus braços. Eu entendo esse medo. Nós já perdemos
pessoas demais e agora tudo parece uma ameaça.
— Você pode amamentá-lo, eu não. — Tento ao mesmo livrá-la da
culpa. — Você pode dar um conforto a ele que ninguém no mundo pode, ele
conhece seu cheiro, sua presença, esteve com você durante nove meses... eu
não vou ocupar o seu lugar só por dar banho nele, acredite, Angelina.
Os lábios dela tremem.
— Eu tenho medo... medo de deixar ele escorregar e...
— Tudo bem. Eu também tenho, é normal sentir medo. Vou fazer como a
enfermeira me ensinou e a gente vai aprendendo com o tempo. Tudo bem
pra você?
Garden resmunga impaciente, fazendo uma careta fofa, mas que indica o
início de um choro. Eu o coloco na vertical, deixando seu corpinho em pé
sobre meu peito. Ele se acalma quase que instantaneamente.
Acho que a gente se entende bem, carinha. Foi assim desde a barriga,
não é mesmo?
— Então é por isso que você chutava tanto na hora de dormir? — falo
baixinho para ele. — Por que não gosta de ficar deitado? — Rio. — Você é
um rapazinho cheio de vontades.
— Então é isso! — Angelina e Blue falam ao mesmo tempo. Procuro
respostas e minha amiga esclarece. — Ele não parava quieto o dia todo e a
gente não sabia o que era.
— Eu não consigo segurar assim ainda — Angelina começa a se
desesperar de novo.
— Tenta sentar na cama, com as costas bem apoiadas e então o coloque
sobre seu peito. Não vai ter risco dele cair assim. O que acha? Você pode
tentar depois que eu der o banho.
Angelina assente, mordendo a boca.
— Ok, hora do banho rapazinho. Não seja como seu tio Ethan que só vê
o chuveiro quando tem um encontro.
Inspiro o cheirinho de camomila que exala dele antes de o colocar sobre
o trocador e tirar sua fralda. O enrolo novamente com a toalha e confiro a
temperatura da água na banheira.
— Não vai tirar a toalha? — Blue pergunta na porta. Angelina fica ao
lado dela, olhando curiosa.
— Não, Nina disse que o bebê se sente mais confortável se estiver
envolto e protegido, assim ele não sentirá que vai cair ou que está solto na
banheira.
— Isso é bom... — Angelina dá um passo à frente. — Assim vai ficar
menos escorregadio. — Ela sorri para ele, ainda que eu veja a pontada de
culpa nos seus olhos.
Acho que eu e ela vamos ter que lidar com o fato de não saber tudo sobre
como ser pais.
Coloco aos poucos o corpinho dele na água e seus olhos saltam para
mim ainda assustados. Ele tenta soltar suas mãozinhas de dentro do pano e
o ajudo. Ele logo tenta segurar meu dedo e o apanha com força.
— Você é forte, mas eu preciso dessa mão pra te limpar.
Ele comprime as sobrancelhas algumas vezes, como quem diz: problema
seu.
Rio da minha própria idiotice. O pobrezinho deve só estar tentando
entender porque tiraram ele da barriguinha quente e segura da mãe.
— Eu... eu posso segurar — Angelina fica do outro lado da banheira e
pega a mãozinha dele, deixando que ele envolva seu dedo.
— Viu só? — jogo um pouco de água no seu tronco. — Não precisa ficar
com medo... papai e mamãe estão aqui.
Minha voz embarga ao falar e sinto o olhar de Angelina sobre mim. Mas
tão logo ele vem, vai embora.
Tento não falar mais nada enquanto termino de limpá-lo. Pelo horário,
não molho sua cabecinha. O banho foi a parte particularmente fácil, vesti-lo
que parece uma tarefa impossível. Faço uma careta para a fralda.
— Essa coisa deveria vir com manual de instruções — reclamo.
— E vem. — Blue mostra o saco da fralda.
— É, mas eu fiz igual tá aí e ainda saiu torto. — Aponto para o meu
filho, segurando a risada. Eu tenho certeza que essa fralda não deveria estar
assim. — Você deveria ter escolhido um pai melhor, Garden.
— Me deixa ajudar — Angelina o segura quietinho enquanto eu arrumo
a fralda e por fim consigo ajeitar essa coisa do demônio. Quando você
arruma um dos lados, o outro fica largo. Puxo para arrumar e fica
apertado... isso não é justo com pais iniciantes.
— Acho que agora foi.
Levei três chutes na cara para colocar uma simples fralda, mas foi.
Angelina coloca a roupinha nele e agradeço aos céus por isso, porque
são tantos botões, que não faço ideia de como juntar uma peça na outra. É
como um quebra cabeça e nunca fui bom com eles.
— Ah, como você é lindo, deixa a titia te pegar — Blue o pega da gente
e penteia o cabelinho dele na cama.
Estreito os olhos.
— Agora que a parte difícil já foi, você pega. — Bufo.
— Essa é a vantagem de ser tia e não mãe — ela pisca e eu reviro os
olhos.
— Você já pode ir. — Angelina para na minha frente, apontando para a
porta.
Abro a boca para dizer algo, mas desisto no meio do caminho.
— Tudo bem... — olho para Garden, querendo apenas mais alguns
minutos com ele.
Amanhã, filho. Eu prometo.
Beijo a cabecinha dele mais uma vez.
— Sinto muito — Blue sussurra só para eu escutar e balanço a cabeça.
— Tudo bem. — Forço um sorriso.
Não, não está.
E não vai ficar por muito tempo.
Não sem meu filho. Não vendo que a mulher que eu amo, tem pavor de
estar na minha presença.
 

 
 
Há duas semanas tenho sido o lava-jato particular do Garden. Todos os
dias, às seis horas da manhã estou na porta da Angelina, esperando para
fazer meu papel. Meu único papel. É tudo que ela tem me permitido fazer e
todo o tempo que tenho é o equivalente a dar o banho. Assim que o enrolo
na toalha, é como se um despertador tocasse e ligasse a contagem regressiva
para eu dar o fora da casa.
Não é o bastante para mim, não foi esse tempo que imaginei ter como
meu filho, mas é tudo que me é dado, então aproveito cada segundo dentro
daquele banheiro para que Garden possa me conhecer e eu possa conhecê-lo
um pouquinho mais.
Eu amo aquele carinha com tanta força, que acho que chegará a ser
insuportável quando tiver mais tempo ao lado dele. Garden é um bebê
curioso, agitado ao extremo, manhoso por um colo e doce como nem
Angelina consegue ser. Ele é perfeito. Tão perfeito que nem nos meus
sonhos consegui imaginá-lo dessa forma. Tão perfeito que consegue em dez
minutos, melhorar todas as vinte e três horas e cinquenta minutos do resto
do meu dia.
E que bom que faz isso, porque o resto é uma droga, que se divide em
estudar, chorar, trabalhar, chorar mais um pouco, dar atenção à Isabela e
tentar dormir nas poucas horas de sono que me restam. Às vezes eu me
pergunto se caí no sono ou simplesmente desmaiei.
Não está sendo fácil, e eu não esperava que fosse quando Garden
nascesse, mas também não fazia ideia de que seria praticamente impossível.
Eu achei que meu maior problema fosse ser a falta de sono por ficar
acordado madrugada adentro ajudando Angelina a cuidar daquele
bebezinho inquieto, e não a dor fodida de sequer poder passar uma única
noite cuidando dele.
Eu devo ser o primeiro pai da história que realmente quer olheiras por
passar a noite acordado olhando um bebê. Mas é isso, eu quero. Quero
acordar quando ele for mamar e assistir isso de camarote, porque deve ser a
coisa mais linda que Deus criou na porra desse mundo. Quero colocá-lo
para arrotar e o ninar até pegar no sono novamente, só para dali meia hora
acordar de novo.
Estou perdendo tudo. Perdendo os momentos dele que nunca voltam.
Perdendo seus pequenos desenvolvimentos, seus primeiros aprendizados...
até meus amigos acompanham isso mais de perto do que eu. É doloroso
saber de cada coisa do dia do Garden através da Blue e não com meus
próprios olhos.
O pior, é que não posso simplesmente entrar naquela casa, confrontar
Angelina e impor minha presença. Isso pioraria tudo. Ela já me odeia, já
não me suporta, já me quer longe... e está sofrendo.
Mais do que qualquer um, ela está sofrendo. Então por mais que esteja
me matando ficar longe deles, eu espero pacientemente. Não vai ser pra
sempre assim. Não pode ser. Uma hora ela vai ver que precisa me permitir
conviver com nosso filho. Angelina é uma mulher justa, sempre foi. Seu
coração só precisa parar de sangrar para que ela veja as coisas com mais
clareza.
Meu celular vibra no bolso e atendo a ligação diária do meu pai.
— Oi, pai.
— Oi, filho. Como você está?
— Estou a caminho de uma aula.
— Ah, não vou tomar muito do seu tempo, então. Mas você está bem?
Meu neto? Angelina?
— Estou indo, Angelina ainda me odeia e seu neto vai fazer o teste do
olhinho hoje, então vou tentar a sorte de passar lá antes de ir pro trabalho e
ver se ela me permite passar pela porta.
— Isso vai passar.
— É... acho que sim.
— Escuta, você já registrou o Garden? Não se esqueça que tem um
prazo legal pra isso.
— Eu sei, vou esse fim de semana.
— Escolheram um nome do meio?
— Pai, Angelina e eu só conversamos sobre lavar ou não o cabelo do
Garden e qual toalha eu devo usar. No mais, não existe diálogo. Mas eu
quero muito colocar o nome do Jayden... ele amava o Garden e me ajudou
tanto... merece essa homenagem. Só não sei como Angelina vai reagir a
isso.
— Vá com calma com ela.
— Eu estou indo. Só que é difícil.
— Eu imagino... também não tem sido fácil com a sua irmã. Ao menos
hoje ela me ligou.
— Mesmo? Porque Donna sequer me atende.
— Ela queria conversar algumas coisas.
— Pela sua voz, não mudou em nada relação de vocês.
Meu pai suspira.
— Sua irmã ainda me odeia.
— Acho que os Hopkins nasceram pra serem odiados pelas mulheres
então, pai.
— Estou começando a achar que sim.
— Por falar em mulheres que odeiam... quando você acha que Angelina
poderá voltar aos treinos? Acho que seria bom para ela ter essa distração.
— Você vai precisar consultar a médica dela sobre isso, mas como o
parto da Angelina foi natural, não vai demorar muito tempo até que esteja
apta a voltar. Só precisamos saber sobre o ombro que ela machucou no
acidente.
— Tudo bem, vou ligar para a doutora Mont Serrat para me informar. —
Chego na sala de aula, parando na porta. — Eu tenho que desligar agora, te
ligo mais tarde para contar do teste do Garden.
— Ok, me ligue se o resultado apontar algo incomum.
Eu ligo, pai... Se pelo menos tiver o privilégio de ficar sabendo.
Balanço a cabeça, me recriminando. Angelina pode estar dificultando,
mas ela nunca deixaria de me contar sobre a saúde do nosso filho. Ela sabe
que isso ultrapassaria qualquer limite. Não importa o quanto não me queira
perto, a saúde do Garden não é algo discutível. Ela me avisaria no primeiro
sinal de algum problema com ele, não tenho dúvida.
 

 
 
 
Já olhei para muitas pessoas e não as reconheci. Já vi mudanças radicais
em pessoas que eu achava que conhecia. Já me senti sozinha entre as
pessoas que me faziam sentir parte de um grupo. Mas é a primeira vez, que
eu me olho no espelho e não me reconheço. É a primeira vez que vejo
tantas mudanças radicais em mim, que não consigo me lembrar como eu
era. E é a primeira vez, que minha própria companhia me faz sentir tão
sozinha e perdida. A solitude nunca havia sido um problema, ao contrário.
E agora tudo que eu tenho medo é de ficar sozinha com a minha própria
mente.
Meu corpo não é mais meu. Meus seios não parecem bonitos como eu
achava, eles só me parecem um objeto que eu uso para dar de alimento.
Minha barriga não voltou a ser o que era antes, meus quadris estão mais
largos que eram, minhas coxas não parecem tão tonificadas. Pouco a pouco,
meus músculos construídos por anos, estão desaparecendo diante dos meus
olhos.
Minha pele está ressecada, meu cabelo despencando a cada lavagem... eu
já não consigo me enxergar nesse corpo. E tudo piora quando olho para
dentro de mim.
Minha disposição é algo inexistente, eu poderia deitar e dormir durante
todo o dia se tivesse tempo. Não acho a Angelina apaixonada por esporte,
por atividade física e nem aquela que adotava uma competição. Só consigo
ver a mãe do Garden, perdida, preocupada e culpada, por não saber tudo
que precisa e com medo de nunca conseguir aprender.
Não importa quantas pessoas eu tenha do meu lado para me ajudar. No
fim das contas, sinto como se fosse apenas eu. Porque há coisas que só eu
posso fazer pelo Garden. E se meu leite secar? E se não produzir o
bastante? E se meus mamilos não pararem de rachar e eu não suportar a
dor? E se meu leite não nutrir meu filho o quanto deveria? E se toda essa
tristeza e apatia que venho sentindo, prejudicar todo o resto?
Eu me olho e não me encontro. E não tenho tempo para me procurar de
volta.
Ou eu penso na vida, ou lavo o cabelo, ou choro. É uma escolha diária
entre essas coisas. Hoje, eu decidi por lavar meu cabelo. É tudo que dá pra
fazer antes do Garden começar a sentir fome de novo.
— Angelina, a médica chegou! — Blue me grita e suspiro.
Penteio meu cabelo de qualquer jeito, orgulhosa do simples fato de tirar
o óleo da raiz. Visto um vestido qualquer, descendo as escadas para
acompanhar o teste do olhinho. A pediatra do Garden pediu que fizéssemos
os exames com uma oftalmologista para garantir que não há nenhum
problema com a visão dele, que poderíamos tratar desde cedo. Como se eu
precisasse de mais uma coisa para me tirar o sono, passei a noite apavorada
com essa possibilidade.
Assim que chego na sala, não vejo apenas a médica, como também
Francis com Garden no colo. Dou um passo à frente no mesmo instante,
querendo meu filho de volta.
— O que você tá fazendo aqui? — exijo saber.
— Eu vim antes de ir pro trabalho pra acompanhar o exame.
— Sem avisar?
— Eu mandei uma mensagem para a Blue, ela não te avisou?
A animadora assovia, disfarçando. Fecho os olhos, contendo a raiva.
— Eu dou conta de lidar com o exame sozinha. — Estendo os braços
para pegar o Garden de volta. Mais tarde eu dou a bronca que Blue merece.
Ela acha que me engana com essa cara, mas está fazendo o que pode e o
que não pode para colocar Francis na minha vida de novo. Na cabeça dela,
deve pensar que está me fazendo bem. Mas Blue não sabe o quanto me dói
olhar para ele.
Alguém faz ideia, do que é sentir asco, genuíno e cru, pela pessoa que
era seu porto seguro? Como é olhar para o rosto que me trazia paz e só
enxergar tormenta? Francis era a pessoa que acalmava minhas crises, agora
ele é a razão delas. Cada vez que o vejo, as imagens daqueles comprimidos
vêm à minha mente. Eu volto para aquele carro. E eu só preciso muito sair
daquele carro. Estou sufocando nessas lembranças.
Os problemas que já tivemos até hoje, não se comparam a isso. Uma
coisa é ele duvidar de mim. Outra bem diferente é ser a razão do meu amigo
estar morto. Isso não é passível de perdão. Se o estou aceitando nessa casa
todos os dias, é simplesmente porque não posso impedi-lo de ver o Garden.
Insisto com os braços para pegar meu filho e meu coração acelera
quando vejo a relutância do Francis.
— Eu seguro o Garden — Blue se coloca no meio, tentando evitar um
conflito e o pega no colo. — Deve ser difícil para os pais passarem por
qualquer exame do filho tão pequeno, não é doutora?
Ela conversa com a médica, mas meus olhos continuam no nadador e os
dele em mim.
— Assim que acabar eu vou embora — ele me assegura.
Desvio a atenção, engolindo todas as minhas palavras. Abraço meu
corpo, tentando afastar o formigamento na pele. Quando os sentimentos se
agitam demais, meu corpo está reagindo. Como uma defesa, um aviso de
que preciso desacelerar.
A médica coloca sua maleta sobre a mesa de centro, brincando Garden
para distraí-lo. Ela nos explica que são testes simples para averiguar a
sensibilidade com a luz e os reflexos. Tento prestar atenção no que ela diz,
mas as palavras passam como vento entre as tantas outras na minha cabeça.
— Eu posso falar com você um momento? — Francis me pergunta
durante o exame. Sua voz está tensa.
— Não temos nada para conversar.
— É sobre você voltar a treinar. — Espero o clique que deveria sentir ao
pensar no vôlei, mas minha apatia é tanto que nem isso me anima.
— Não sei se percebeu, mas eu não tenho tempo pra isso agora.
— Eu sei, por isso quero organizar nossos horários para que eu possa
cuidar do Garden enquanto você vai voltando aos poucos. O que acha?
Respiro fundo, me virando para olhá-lo.
— Não tem nem um mês que eu dei à luz, tem o resguardo — falo
apenas porque me desespero só de pensar em deixar o Garden com ele. Eu
não posso deixar que ninguém tire o Garden de mim. Ele é tudo que eu
tenho. E se meu filho o preferir? E se, lá na frente, não me escolher? Me
restará o quê?
— Eu conversei com meu pai e com a doutora Montserrat por ligação,
você teve um parto normal, não precisa de meses de resguardo como em
uma cesariana. A única coisa que te impede de voltar exatamente agora é a
luxação do seu ombro devido ao acidente e...
— Para! — Meus lábios tremem. — Eu vou cuidar do meu filho e voltar
à minha vida quando eu achar que é hora.
Eu sei que Francis quer que eu volte para ficar mais com Garden. Mas
como posso confiar nele? Quem me garante que ele não esteja usando
drogas de novo? Não é essa sua válvula de escape?
— Só quero que você saiba que pode voltar quando se sentir pronta, que
você tem meu apoio para ficar com nosso filho. Não está sozinha nessa.
— Eu não preciso do seu apoio. Não preciso de nada de você. — Nego
com a cabeça. — Aliás, eu preciso sim... de distância.
Os ombros dele caem e seu rosto vira de lado, se escondendo de mim.
Quando olho para Blue, ela está me fuzilando e negando com a cabeça. Não
interessa o que ela acha também. Não importa o que qualquer um acha.
Eu sei a verdade. Eu vi a verdade naquela foto.
É tudo que eu preciso para saber que estou certa.
 
 
 

 
 
— Vejo que sua vida teve muitas reviravoltas desde nossa última sessão.
Lamento por sua perda — Doutora Brice me observa.
Respiro fundo, limpando meu rosto. Ainda não consigo contar sobre o
que aconteceu com Jayden sem chorar.
— Chorar faz bem, Francis. Significa que está se permitindo sentir, que
está vivendo o luto.
— Não tenho direito de chorar, Doutora. Já me fizeram prometer que
não me culparia, mas sentir isso de verdade é diferente. Cada vez que eu
choro, tenho vergonha.
— Eu entendo que você esteja se culpando e pensando em todas as
coisas que poderia ter feito ou não, para impedir o que aconteceu. Esse é o
terceiro estágio de luto: a barganha. Sempre que perdemos um ente querido,
todos os momentos que esteve ao seu lado se passam na cabeça e cogitamos
fantasias e atitudes diferentes que levariam a um resultado menos doloroso.
— Ela faz uma pausa e olho para frente. Ela tem o braço estendido com um
copo de água para mim. Pego o copo, agradecido. — Acontece, que você
não está cogitando essas possibilidades para sofrer menos e sim para sofrer
mais. Está tomando como uma punição por não ter evitado o que você
sequer imaginou que pudesse acontecer... percebe o quanto é injusto
consigo mesmo?
— Seria errado tentar não sofrer.
— Por quê?
— Como assim, por quê? Meu amigo morreu, como eu posso tentar não
sofrer e viver minha vida como se nada tivesse acontecido?
— O sofrimento que está se impondo não é capaz de mudar o que já
aconteceu, Francis. Não existe um tempo certo para o luto, não existe um
pré-requisito que te obrigue a passar um ano de luto, como imposto
antigamente às mulheres viúvas. Uma coisa é sofrer até que seu coração se
sinta livre e bem para seguir, outro é se impor o sofrimento, por achar que
assim está sendo mais justo com quem partiu. Você considera que seu
amigo preferiria te ver como?
— Ele era bom demais para quisesse ver alguém sofrer, mas isso não
tem a ver com o que ele iria querer e sim sobre o que eu acho que é certo!
— Então está aí a sua conclusão.
— Que conclusão?
— Você não está querendo sofrer porque acha que é o justo para o seu
amigo, está se impondo sofrimento porque acha que merece essa tortura.
Isso não é sobre a morte do seu amigo, é sobre você sempre escolher
carregar um peso maior do que pode carregar. Você não é um Deus, senhor
Hopkins, não pode controlar a vida, o destino, e principalmente, não pode
controlar a morte. Deixe essa mochila pesada que carrega nas costas cair,
porque ela só vai atrasar e dificultar seu percurso.
Solto o ar que prendia, jogando a cabeça no encosto do sofá.
— Não sou só eu que me culpo, não se preocupe.
— Quantas pessoas culpam você e quantas pediram que não se culpasse?
Retorço a boca.
— Uma me culpa... todo o resto me pediu para não me culpar.
— E por que você leva em consideração a menor parcela, só porque ela é
ruim?
— Porque a menor parcela é a mãe do meu filho.
— Faria diferença se fosse um dos seus amigos que te culpassem? Você
deixaria de lado essa opinião ruim?
Abro a boca para dizer que sim, mas eu sei que é mentira. Qualquer um
que me culpasse, eu ficaria do mesmo jeito. Minha falta de resposta é
resposta suficiente para Brice.
— Nós costumamos ignorar as coisas boas, elogios e comentários
positivos sobre nós, mas basta um único negativo para levar o chão sob
nossos pés.
— Eu já te expliquei por que meu amigo estava naquele carro, me diga
que não tenho parcela de culpa então — a desafio.
E ela aceita.
— Se assim o fosse, a pessoa que produziu as drogas que você comprou,
é culpada. Se for assim, quem te vendeu tem culpa. Se for assim, o
fabricante do carro tem culpa. Se for assim, Angelina tem culpa. Por que
dentro dessa relação de causalidade, você é o único que vai levar a
responsabilidade? Se for considerar cada pequena atitude como razão da
morte do seu amigo, terá que considerar todo o resto. Então me diga,
Francis... você vai culpar a Angelina?
— Claro que não! — digo nervoso.
— Use essa mesma incredulidade que me olhou agora, para si mesmo.
Ofereça o mesmo benefício que está dando a ela, para si próprio.
— Já me dei esse benefício quando não me matei naquela praia.
Digo sem pensar e os olhos de Brice saltam brevemente.
Fecho os olhos. Porra, pra que fui falar isso?
Conto pra ela o que aconteceu na praia uma semana atrás, garantindo
que entenda que não farei algo assim de novo. Não quero que ela pense que
posso tentar algo. Eu não vou.
— O fato de me culpar, não vai me fazer desistir, ok? — reafirmo. — Eu
não vou desistir de viver por sentir a culpa, eu só não sei como deixar ela ir.
Eu entendi que não posso controlar tudo, entendi que eu preciso querer
viver apesar de tudo, entendi que minha vida não é inútil. Eu só...
Exalo o ar com força, sem saber como prosseguir.
— Você só está cansado — ela complementa para mim. — Cansado,
sofrendo e sem tempo para lidar com tudo de forma tranquila. Fico feliz que
tenha me contado o que aconteceu e principalmente que você tenha
percebido que quer viver. Esse é o primeiro passo, Francis. Perceber que o
medo em fazer qualquer coisa que ceife sua vida, não quer dizer covardia, e
sim a vontade de estar vivo. Nós só temos medo daquilo que nos assusta e
que não queremos para nossa vida.
— Eu sei... eu sei que quero viver. E isso também me faz sentir culpado.
Porque...
— Porque seu amigo não está.
— Isso.
Respiro fundo. Ela me passa raiva, mas de alguma forma
impressionante, também me traz alívio. É bom conversar com alguém que
entende minha lógica esquisita sem que eu precise explicar demais.
— Tudo bem sentir culpa. Tudo bem sentir revolta. Tudo bem sofrer.
Desde que seja um sentimento genuíno e não autoimposto.
— Qual a diferença?
— Um sentimento genuíno pode ir embora quando sua mente percebe
que ele já não faz mais sentido, que só causa dor. Um autoimposto não,
porque sua mente, mesmo que perceba a inutilidade dele, vai continuar
forçando seu corpo a aceitá-lo. Sente culpa agora? Sinta. Viva seu luto, não
deixe sentimentos para resolver lá no futuro. Mas quando sentir que a culpa
está te deixando, a permita ir como uma colega que já não cabe na sua vida.
Dê tchau a ela e se liberte.
Engulo a saliva.
— Não prometo que vou conseguir, mas vou tentar.
— O importante é o primeiro passo, os outros vem logo em seguida.
Então dê o primeiro quando estiver pronto.
— E quanto ao meu filho? — indago esperando que ela me dê uma
solução mágica. — Angelina não me permite vê-lo por mais que alguns
minutos.
— Enquanto você está se culpando para continuar vivendo e criando
suposições do que poderia ter feito para evitar a morte do seu amigo,
Angelina me parece estar vivendo entre a negação e a raiva. Ela precisa
culpar alguém para não desabar. Dê tempo a ela, mas lembre-se que você
não deve aceitar que as pessoas fiquem bem às suas custas. Há diferença
entre ser altruísta e ser condescendente. Ajudar alguém não significa aceitar
tudo que essa pessoa faz. Isso só leva a caminhos destrutivos.
Cubro o rosto com as mãos, não fazendo ideia de como me impor nessa
situação.
Na verdade, me impor contra Angelina não é algo que já consegui fazer.
Mesmo quando achava que a odiava, eu fodidamente não sabia dizer não a
ela.  
— Não sei se consigo piorar a situação para ela.
— Então não piore. Seja um homem bom, como sempre foi, apenas
imponha limites. Eles não significam que você a ame menos, mas que você
também se ama o suficiente. E principalmente, ama seu filho.
Mesmo sendo difícil de admitir, Brice tem razão.
Se eu mantiver essa atitude tão passiva, Angelina nunca vai ter o clique
de que precisa me aceitar na vida do nosso filho. Não tem sido difícil só
para ela. Todos nós estamos vivendo a perda do Jayden. Todos os dias, eu
ligo para os pais dele, vejo como Isabela está, atendo as ligações infinitas
do Ethan para o tranquilizar... todos, sem exceção, estão sofrendo à sua
própria maneira.
Eu sei que foi mais difícil para ela. Angelina estava naquele carro. Viu
como tudo aconteceu, esteve lá quando Jayden nos deixou... não consigo
imaginar como tem sido esse aspecto para ela. E eu tenho feito o que posso
para não piorar ainda mais.
Só que tem um ponto nessa questão, que não posso deixar passar, ainda
que possa estressá-la. Garden. Ele também é meu filho. Também tem um
pai. E precisa conviver comigo para saber disso. Não posso ser a visita que
ele vê dez minutos por dia. Isso pode não o afetar agora, com tão pouco
tempo de vida, mas a longo prazo... meu filho não vai me reconhecer como
seu pai.
Não faço ideia de como ser mais altivo sem ser invasivo. Não sei como
me impor, sem invadir o espaço que Angelina precisa. Mas vou ter que
começar a aprender. Aprender a dizer não. Aprender a não permitir que me
firam. Aprender a não aceitar que me inferiorizem... ainda que, na maior
parte do tempo, eu me sinta inferior.
Como vou exigir que as pessoas me tratem bem, se eu mesmo sempre me
tratei tão mal?
 

 
 
Não consigo mais.
Tenho vontade de chorar junto com Garden sempre que ele quer mamar.
Ontem, meus mamilos sangraram. Fui tomar banho e quando a água
entrou em contato, eu mordi a boca para não gritar. Não sei o que estou
fazendo de errado, não limpo exageradamente, estou usando as pomadas
que a médica me passou, mas nada resolve. Depois que vi a gotinha de
sangue, interrompo Garden toda hora para ver se está sangrando
novamente. Tenho pavor só de pensar em passar algo para ele.
Estou com tanta vergonha, que não consigo contar isso para ninguém. Se
eu não servir para alimentar meu filho, então definitivamente não sei o que
estou fazendo sendo mãe. Francis tem dado banho nele todos os dias e só
não tenho me sentido culpada porque sou eu que o alimento. Se não fizer
isso, vou ter que admitir que não posso cuidar dele.
Não entendo por que meu corpo está fazendo isso comigo. Antes mesmo
de Garden nascer eu me precavi. Francis passava pomada nos meus
mamilos para não racharem.
Acho que até nisso ele falhou.
Saio do banheiro depois de lavar meus mamilos do creme que havia
passado, porque sei que logo mais Garden vai querer mamar. O deixei com
Blue e Ethan para usar o banheiro e... bom, chorar um pouco por ser uma
inútil.
Já passam um pouco das 19 horas e ele vai querer mamar de novo.
Melhor eu descer e encarar isso de uma vez. É um milagre que tenha ficado
quietinho sem resmungar até agora, geralmente ele chora quando sente
fome e não me vê.
A menos que esteja com... com Francis. Mas esse horário ele deve estar
indo para o trabalho.
Desço as escadas depressa para conferir e o encontro sentado no sofá da
sala, com Garden deitado em suas pernas, apenas de fraldinha. Francis
massageia a barriga dele, falando baixinho e com uma voz fina.
— Essa cólica chata está te deixando irritado? Ou são apenas gases,
hein? — Francis ri quando ele resmunga, esticando as perninhas, uma após
a outra. Quando o vejo fazendo isso, ainda me lembro da sensação de
quando estava na minha barriga. — Você tá batendo no papai? Olha que eu
te faço cosquinha. Você tem que ser bonzinho comigo, eu falava com você
todas as noites para dormir na barriga da mamãe. Essas olheiras que está
vendo são obra sua, rapazinho.
Garden solta um gritinho agudo quando Francis beija sua barriguinha
redonda. O som me faz sorrir, porque é a primeira vez que escuto sua voz
tão alta sem chorar. E também sinto ciúmes, porque não foi pra mim.
Eu passo o tempo todo com ele, sou eu que estou aqui o dia e a noite
inteiros, não o Francis.
Engulo o sentimento amargo, me aproximando. Francis vira o pescoço
para mim quando nota minha presença. O sorriso dele morre no mesmo
instante. Costumava ser diferente. Ele costumava abrir o sorriso quando me
via. Agora adota um ar de tristeza e até de... desespero?
Tudo bem, também sinto isso quando o vejo. Tristeza, desespero, raiva,
revolta.
Estendo o braço para Garden.
— Está na hora dele mamar.
— Claro... — Francis começa a colocar de volta o pequeno macacão
azul no meu filho e se atrapalha com os muitos botões. Exalo irritada,
cruzando os braços. Nem mesmo vesti-lo ele sabe, mas é para ele que
Garden solta gritinhos animados. Aperto os dentes.
— Deixa que eu faço! — Empurro suas mãos e termino de abotoar a
roupa. A posição abaixada dá uma pontada na minha barriga e seguro a
careta de dor. Posso não ter feito uma cirurgia, mas meu corpo ainda não
voltou ao normal.
Seguro Garden no meu colo, erguendo o tronco devagar para não
denunciar minha dor.
— Vou subir.
Não espero por sua resposta, eu só subo as escadas com meu filho nos
braços. Garden vira o rostinho automaticamente para o meu seio, buscando
saciar sua fome. O mero ato de encostar sobre a roupa, me faz apertar os
olhos de dor.
— Deus, me ajuda a conseguir.
As lágrimas querem descer, mas eu as seguro. Eu não posso chorar
agora, não posso demonstrar fraqueza. Se eu parecer fraca, vão achar que
não posso cuidar do meu filho. E eu posso, posso cuidar dele, posso passar
por cima da minha dor.
Entro no quarto, me sentando na poltrona de amamentação. Garden
procura meu seio impaciente e respiro fundo, abaixando a alça do vestido.
Procuro qualquer sinal de sangue, mas não há nenhum.
— Vamos lá, filhinho, a gente vai conseguir.
Aproximo o seio da boca dele e mordo a língua para evitar gritar. Garden
suga com tanta avidez, que as lágrimas descem no meu rosto no mesmo
instante. Cubro o rosto com a mão livre, apertando as unhas na palma.
Céus, eu não vou conseguir.
Meu corpo todo treme conforme ele continua mamando. A sensação é de
queimação, de pequenos cortes sendo feitos ao redor da pele.
Não consigo segurar o choro alto quando ele aperta meu mamilo com as
gengivas. Não importa que não há dentes, dói ainda assim.
— Ah, Deus... — soluço alto, me forçando a não retirá-lo do meu seio,
mesmo que todo meu corpo implore por isso.
Minhas costas descolam da cadeira em um pulo quando a porta do quarto
é aberta sem aviso. O susto me faz abaixar Garden e ele solta meu seio,
chorando manhoso. Coloco a alça do vestido depressa, sem jeito, vendo os
olhos do Francis assustados sobre mim.
— O que foi? Você tá sentindo alguma coisa? — ele chega até mim no
tempo de uma piscada, se agachando na minha frente.
— Sai daqui! — Olho para o outro lado, com vergonha das minhas
lágrimas, com vergonha da minha dor... da minha incapacidade.
— Angelina... pelo amor de Deus, não faz isso. Me deixa ajudar.
— Eu não preciso da sua ajuda — digo entredentes, o olhando com
raiva. — Sai daqui.
— Eu só vou sair quando você me disser porque está chorando. Se você
está com dor, eu preciso saber... — Esfrega o rosto, passando a mão pelos
cabelos. — Angelina, se você não estiver bem, o Garden também não vai
ficar. Ele precisa de você mais do que precisa de qualquer pessoa, não é por
mim que estou pedindo, é por ele.
Antes de terminar de falar, um jato de leite escapa do meu seio,
enxarcando meu vestido e me fazendo gemer de dor. É a sensação de um
ácido correndo pela pele machucada.
Abro meus olhos e Francis está encarando a mancha de leite.
Tento disfarçar, mas por mais que eu odeie admitir, ele me conhece
melhor do que ninguém.
— Seu seio está machucado?
— Isso não é da sua conta.
— Vou perguntar de novo, seu seio está machucado?
Meus lábios tremem de raiva. O que ele tem a ver com isso? Por que
acha que devo satisfação de alguma coisa?
— Angelina...
— Está! Agora me deixa em paz. — Aponto para a porta. — Eu preciso
dar de mamar pra ele, então sai.
— Me deixa ver — insiste.
— De jeito nenhum você vai me ver nua!
— Você sabe que não é dessa forma — Francis sussurra decepcionado.
— Você sabe que não estou te pedindo para ver com esse olhar... não há
malícia em jogo. Você sabe.
Mesmo para alguém que não é boa em decifrar emoções, posso sentir a
dor na voz dele. A mágoa.
— Se você não quer me deixar ver, vamos ao médico.
Desvio os olhos novamente, balançando Garden para que ele se acalme.
Eu não quero ir ao médico. A doutora não vai me deixar amamentar assim,
ela não vai.
— Eu estou te implorando, Angelina. Estou te pedindo por favor, não
sofra sozinha, me deixa te ajudar.
Fecho os olhos, meu corpo balançando sem que eu precise ordenar.
Assinto com a cabeça devagar, permitindo que ele faça.
Francis suspira no que imagino ser alívio.
— Abre seus olhos — ele pede e nego com a cabeça. — Você vai se
sentir mais confortável tendo noção do que eu estou fazendo, então abra os
olhos.
Respiro fundo, erguendo as pálpebras.
— Vou abaixar seu vestido — ele avisa. — Tudo bem?
Assinto devagar, indecisa.
Francis puxa a alça com delicadeza, revelando meus seios. Seu ofegar
escapa tão logo seus olhos analisam o estrago na minha carne.
— Jesus Cristo! — Ele fecha os olhos, balançando a cabeça. Meu rosto
esquenta automaticamente e sinto vontade de me cobrir. Eu devo estar
muito feia realmente, nada parecido com o que ele estava acostumado a ver.
— Por que você não disse que estava machucada assim?
O rosto dele beira a raiva.
— Porque não é da conta de ninguém.
— É sim! — a voz de Francis se altera. — É da minha conta sim, porque
você está ferida e sofrendo e ficou calada. É da minha conta porque eu me
importo com você! Não estou nem aí se você quer me ver nas profundezas
do inferno, porque eu me importo com você. — Suas mãos agarram os fios
do seu cabelo, desesperado. — Céus, Angelina, você merece umas
palmadas na bunda.
— Se atreva! — o desafio, faltando me levantar da cadeira.
— Eu disse que você merece, não que sou eu que vou te dar. — Bufa
uma risada. — Fique tranquila que minhas mãos vão ficar longe da sua
bunda. Mas eu não garanto nada que as da vovó Lina fiquem.
Arregalo os olhos.
— Você não contaria isso pra ela. — O sangue vai esquentando meu
rosto. — Se você falar pra minha avó que estou machucada, eu juro que...
— Você jura o quê? — Ele ergue as sobrancelhas. — Hum? Você vai
fazer o quê? Me ignorar? Gritar comigo? Ser grossa? Me expulsar daqui?
Tudo isso já está acontecendo, então não há muita coisa que você possa
fazer, que me dará medo.
Pisco surpresa com o rompante dele. Desde o acidente, ele tem aceitado
tudo que faço. Parece que isso mudou agora.
Francis analisa novamente meu seio e não vejo nenhuma sombra de
desejo. Ao mesmo tempo que eu deveria gostar disso, algo no fundo me
incomoda. Será que estou tão feia assim? Será que meu corpo já não pode
ser visto dessa forma?
Balanço a cabeça, afastando os pensamentos.
— O seio esquerdo está mais machucado — ele fala bem mais baixo que
antes.
— Eu consigo segurá-lo melhor com o braço esquerdo, então ele mama
mais nesse seio... meu ombro direito ainda dói pelo... pelo acidente.
Francis abaixa os olhos no mesmo instante, assentindo.
— Entendo — suspira, parecendo pensar no que fazer. — Eu posso
segurar o Garden pra você? Posso colocá-lo no seu seio direito?
Abro a boca para falar que não, mas o bebê no meu colo tem fome e não
posso pensar só em mim. Ser mãe é isso. Não pensar só em mim. E eu não
fazia ideia de como podia ser difícil.
Assinto ainda que isso fira meu ego.
Francis o segura, virando de lado e o colocando sobre meu seio. Garden
fecha a boquinha de prontidão, puxando forte.
Aperto os dentes para não gritar de dor.
— Está errado — Francis analisa os movimentos dele.
— O que está errado? Eu sei dar de mamar pra ele!
— Angelina, solte as pedras das mãos, apenas me escuta. Garden está
pegando apenas a ponta do seu mamilo, por isso está ferindo assim. Ele
deve pegar a aréola junto, entendeu? Assim não vai te machucar e ele
também vai conseguir sugar mais leite.
Droga... a enfermeira havia me dito isso no hospital, mas minha cabeça
estava tão cheia, que não consigo me lembrar de metade das coisas que
preciso.
— Como... como eu o faço pegar?
— Não o deixa pegar seu seio, você o posiciona na boca dele, ajustando
sua pele.
Tento fazer o que ele pede, mas Garden se irrita com minha falta de jeito
e aperta sua boca contra mim, me fazendo gemer de dor.
— Eu posso tentar? — Francis diz em agonia.
Aperto minhas mãos, concordando. Não tenho outra escolha.
— Licença — pede, me olhando nos olhos antes de me tocar. Meus
olhos lacrimejam com as lembranças de todas as vezes que ele fez isso.
Francis segura meu seio com os dedos em formato de pinça e aperta a
ponta, para que se afunile e encaixe melhor na boquinha de Garden. Ele
puxa de leve o queixinho dele para que abra mais os lábios e o faz envolver
quase toda a aureola. Dessa vez, quando ele suga, não dói quase nada.
Olho para Francis surpresa.
— Melhor? — averigua com as sobrancelhas unidas e suor na testa,
como se estivesse fazendo um trabalho muito difícil.
— Sim... sim, está.
Respiro aliviada ao ver que meu leite sai mais dessa forma, até mesmo
escorrendo na lateral da boquinha do Garden. Francis continua o apoiando
com um braço e se coloca atrás de mim para melhorar a posição. Com a
mão livre acaricia sua cabecinha. Francis o olha com reverência, como se
nunca tivesse visto algo tão bonito.
Minha garganta aperta ao perceber que ele luta contra as lágrimas.
— É lindo... é lindo ver vocês dois assim... um milagre. — Sorri
abertamente, talvez o sorriso mais verdadeiro que já o vi dar desde que tudo
aconteceu. — Que bom que Garden tem você.
Desvio o olhar, sentindo meu coração arder.
— Pega aquela almofada pra mim — Aponto para a cama, onde a
almofada grande que Josh e Cassy deram pra mim durante a gestação está
sobre o colchão.
Apoio Garden com o braço, sentindo o ombro reclamar e ele faz o que
eu peço.
— Coloca embaixo do meu braço — instruo.
Francis posiciona de modo que eu não precise fazer força para segurar o
bebê.
— Assim está bom? — ele olha preocupado para o meu ombro.
— Está — não encaro suas íris, abaixo os olhos para o Garden,
segurando a mãozinha que ele repousa sobre meu seio. Seus olhinhos
procuram a voz do homem na minha frente e sinto vontade de pedir que
pare. Que pare, porque isso me machuca. — Agora você pode ir.
— Mas Angie...
— Vai! — o interrompo, limpando a garganta arranhada. — Você já
ajudou, não preciso mais de você.
As palavras amargam como veneno na minha língua. Mas eu preciso
tirá-lo daqui. Não posso depender dele. Que espécie de mãe eu sou, se não
consigo nem mesmo alimentar meu filho sozinha? Se até nisso, eu preciso
dele? Isso não pode continuar assim. Preciso me tornar cada vez mais
independente da sua ajuda, porque eu sei que um dia ele vai se cansar de
lutar. Vai se cansar de tentar ficar na minha vida, se cansar de tentar lutar
para ficar mais perto. E quando esse dia chegar, eu preciso saber fazer tudo
sozinha.
— Como quiser, Angelina.
Francis diz sem emoção e sai do quarto depois de beijar a cabecinha do
nosso filho.
— O papai ama você. Daqui até o infinito.
É a última coisa que diz.
E que me faz chorar por toda a noite, porque a forma como meu filho se
mexe na direção do pai, sei que também o amará até o infinito, não importa
o quanto eu o odeie.
Não importa o quanto a presença do Francis apenas me machuque.
Nosso filho o ama. O ama como um dia eu já amei.
 
 

 
 
— Francis, realmente não precisava — Isabela se senta no banco do
passageiro do meu carro. Ela tem ficado na casa dos pais, então venho
buscá-la para a faculdade todos os dias. Sob protestos, é claro, mas eu não
menti quando falei que cuidaria dela como Jayden cuidava. Meu próximo
passar é fazê-la comer... ela parece ter perdido mais de cinco quilos.
— Você pode reclamar o quanto quiser, vou te levar até que volte para os
dormitórios.
Dou partida no carro, vendo de soslaio ela suspirar.
— Eu estava lá quando meus pais me ligaram para contar que... — ela se
interrompe.
— Eu entendo, Isa. Você não precisa voltar pra lá se não quiser, pode
ficar na casa dos seus pais e eu te levo e trago da faculdade todos os dias.
— Vai virar meu motorista particular porque se sente culpado do meu
irmão ter morrido?
Piso no freio ao ouvir as palavras diretas. Coloco o braço na frente do
corpo dela para que não vá para frente.
— Desculpe — sussurro, voltando a ligar o carro. Limpo a garganta para
tentar falar decentemente.
— Eu que peço desculpa, Francis. Estou muito estressada esses dias.
— Não se preocupe. Eu entendo. — Bato os dedos no volante, pensando
na melhor forma de me explicar. Leva um tempo até que eu consiga
organizar meus pensamentos. — E sobre o que disse... não, eu não vou virar
seu motorista particular porque me sinto culpado pelo seu irmão ter
falecido. Eu vou, porque além de ser minha amiga, eu devo muito ao seu
irmão. Não é por culpa, é por agradecimento por tudo que ele fez por mim e
pelas pessoas que eu amo. Você não está e nunca vai ficar sozinha.
— Obrigada... — Isa sorri, segurando minha mão livre. — E Francis?
— Hum?
— Eu posso ver o Garden?
Pisco surpreso... por essa eu não estava esperando. Isabela não tinha
mostrado interesse em conhecer meu filho até agora.
— Isa... eu sei você não culpa Angelina por nada que aconteceu, mas ela
se culpa... eu não sei se ela vai conseguir ver você agora. — Suspiro. — Eu
sinto muito, mas preciso perguntar a ela antes, tudo bem?
— Está sendo assim pra você, não é? — Sinto seu olhar em mim. —
Você também está pisando em ovos para ver seu filho.
Contraio o maxilar, sorrindo forçado.
— Não é bem assim. Ela só precisa de tempo.
— E como sempre foi, você vai esperar por ela.
Não é uma pergunta.
— Vou. — Balanço a cabeça com o coração agoniado. — Eu vou, Isa.
Mas não como era antes.
— O que você vai esperar então?
Estaciono o carro na garagem coberta do campus antes de responder.
Viro de lado, olhando nos olhos curiosos e tristes de Isabela. Olhos tão
parecidos com os de Jayden.
— Eu vou esperar para poder receber dela o olhar de confiança que um
dia teve em mim. Não espero que me perdoe. Não espero que me ame. Mas
vou esperar para todo o sempre, que Angelina confie em mim para ser
quem ela precisar. Para lutar as batalhas que ela não puder. Para dar forças e
coragem naquelas em que ela sentir medo. Para ser o aplauso naquelas em
que ela vencer e o ombro naquelas em que ela perder. Tudo que eu espero e
sempre vou esperar, é pela confiança da Angelina.
— Por quê? Por que precisa tanto que ela confie em você?
— Porque se ela não confiar em mim, eu sei que também não vai confiar
em mais ninguém. Porque se ela não confiar em mim, eu temo que não
deixe ninguém mais chegar perto o bastante para estar ali por ela.
— Angelina é forte.
— Ela é — sorrio. — Ela é a pessoa mais forte dentre todos nós. E é
justamente por isso que também é a que mais precisa de um colo quando o
peso for demais. Que precisa confiar que quando as forças falharem, os
braços que a segurarem não irão falhar... no momento, ela não confia em
mim para isso. E vai carregar peso sobre peso, até se ajoelhar, até andar
curvada, até não dar conta mais de se erguer.
A imagem dela chorando de dor no quarto me invade em cheio. Ela não
falou para ninguém. Escondeu de todos que estava sofrendo e ninguém a
conhece tão bem quanto eu para desvendar aquilo que não quer contar. Pelo
menos não com Donna longe.
Isa se inclina no banco e beija minha bochecha.
— Não perca as esperanças. Ok? — Sua mão acaricia meu rosto e minha
garganta se aperta. — Por favor, não deixe de ser quem você é. Tenha
esperança e seja bom.
— Pode deixar. — Limpo uma lágrima que escorre, tentando sorrir pra
variar. — Vou tentar.
É tudo que tenho feito, tentar.
 

 
— Estão liberados — o professor desliga o refletor de imagens e fecho o
notebook que tive que comprar desde que o meu morreu, jogando para a
cabeça para trás. Estico meus braços para cima, gemendo pelos músculos
travados. Estou há tempo demais sem malhar, sem nadar, meu corpo nunca
ficou tão inerte assim. Tudo que eu faço agora é ler com esses malditos
óculos durante todo o dia, carregar bandejas por toda a noite e me esgueirar
nos horários disponíveis para conseguir ver meu filho... por todos os dez
minutos que Angelina tolera minha presença.
Às vezes menos.
Volto à posição normal na cadeira, guardando minhas coisas na mochila.
Antes de ir para o trabalho, eu tenho que passar em casa para Isabela
conhecer o Garden. Blue me disse que Angelina aceitou a visita, o que foi
um pouco inesperado pra mim. Eu achei que ela fosse relutar mais.
Levanto, decidido a ir buscar Isabela na sua sala, mas meu braço é
agarrado antes que eu chegue à porta. Viro para trás, dando de cara com
Vance.
Pisco inerte, sem saber como reagir. É a primeira vez que o vejo desde
aquele dia. O cara sumiu, simplesmente desapareceu, não foi ao enterro do
Jayden, não foi ao hospital, não fez sequer uma ligação. Ele causou o
inferno na minha vida e na vida de todo mundo, mas não conseguiu ser
decente o suficiente para ver os estragos que causou.
— A gente pode conversar? — Vance continua segurando meu braço e o
puxo para trás com violência.
— Não encosta em mim — minha voz treme de cólera.
— Eu vou ser rápido, só quero saber como você está, você deve estar
sozinho, quero que saiba que pode contar comigo. — Vance dá um passo na
minha direção e dou outro para trás.
Arregalo meus olhos.
— Como você tem coragem de falar comigo depois de tudo, como se
nada tivesse acontecido?
— Você não pode me culpar por nada que aconteceu, quem saiu
correndo foi a Angelina. Ela fez exatamente o que eu disse que faria. Ela
fugiu, ela sempre foge e sempre vai fugir quando você errar, eu te falei...
por isso eu sei que você está sozinho, porque eu sei que ela deve te culpar,
deve estar te ferindo. E eu nunca faria isso com você.
Aproximo meu rosto do dele, com cada grama do corpo estremecendo de
estresse. Olhar para ele é o gatilho perfeito para desencadear as imagens e
emoções daquele dia infeliz.
— Vou dizer pela última vez, escuta bem, e grava na porra da sua
memória fodida... — encaro os olhos verdes do homem que chamei de
amigo e que hoje não faço ideia do porquê o fiz. Ele nunca foi meu amigo.
Se eu tivesse que classificar Vance na minha vida, diria que ele sempre foi
como uma droga... um analgésico. Pode anestesiar a agonia de vez em
quando, pode funcionar como um interruptor para dor, mas a longo prazo,
causa mais dano do que aquilo que se tentou evitar. — Eu não quero nunca
mais ter que ver você. Se me ver em uma sala de aula, finja que não viu. Se
nos cruzarmos no campus, atravesse o lugar. Se nos esbarrarmos na piscina,
se concentre para se manter na sua raia... torça, Vance, com todas as suas
forças para não cruzar o meu caminho de novo. Eu já não tenho muitas
coisas a perder, mas o que me restou, vou defender de uma forma que você
não iria gostar... mas acredite, eu iria amar.
Me afasto dele, vendo seus olhos saltados e avermelhados.
— Eu nunca gostei de você como você achava que eu gostava. — Dou
um sorriso distorcido. — E agora, nem da forma que um dia já gostei. Eu
tenho nojo de você. Nojo da sua maldade, da sua crueldade, nojo de como
você se diverte brincando com os sentimentos e a vida das pessoas. Eu
tenho nojo de um dia ter sido seu amigo, de um dia ter achado que você se
importava comigo. Nojo de ter acreditado em você e por vezes ter ido
contra todos que me alertaram sobre quem você era. Eu tenho nojo de mim
por não ter visto desde o começo a verdade.
Ele nega com a cabeça tudo que falo, seus olhos tornando-se úmidos,
como se ele de fato se magoasse com o que sai da minha boca. Como se não
fosse apenas a porra da verdade.
— Não fala assim comigo, você não pode deixar todo mundo te
envenenar contra mim, vamos conversar, eu te amo! Sempre te amei,
sempre tentei te proteger das pessoas que iriam te machucar, sempre estive
do seu lado enquanto todos os outros te julgavam, você não pode achar que
vai se afastar de mim, eu não vou deixar!
— Me ama? Você não sabe o que essa palavra significa, Vance. — O
observo de cima a baixo. — Você diz que sempre esteve do meu lado, mas
onde estava quando tive uma overdose? Foi o Ethan que me levou para o
hospital e esteve lá comigo. Onde você estava em todas as vezes que eu
fiquei na merda? Foi a sua prima quem me levantou. Onde você estava
quando eu corri o risco de ser expulso da natação pelas drogas? Foi
Angelina que passou a noite comigo no hospital e Blue que lutou para eu
não ser responsabilizado. Onde você estava quando eu quase usei drogas
novamente? Foi Donna quem me impediu. — Rio sarcasticamente. — Onde
você estava quando eu descobri que seria pai? Foi o Jayden que me
estendeu a mão. Onde você estava quando eu sofri pela adoção? E quando
decidi ficar com meu filho? E quando estava montando o berço dele? E
quando Jayden morreu? Onde você estava?
Vance balança a cabeça, tentando se aproximar de mim. Dou um passo
para trás.
— Você só esteve do meu lado para me oferecer drogas, para me
convencer a odiar a Angelina, para me afundar junto com você na merda.
Você nunca esteve do meu lado, você queria era estar com os pés nas
minhas costas, me empurrando mais para o fundo. Ainda agora, quando
tudo desabou, você só conseguiu fugir.
Ele começa a chorar na minha frente, mas não há mais um miligrama do
meu corpo que sinta pena. Se fosse antes, eu acreditaria nesse teatro, mas
agora? Agora não acredito em nada que diz ou faz. Vance é dissimulado,
gosta de atuar, de manipular, e descobri isso tarde mais.
— Se eu ficasse naquela casa, todo mundo me culparia por algo que a
Angelina tem culpa! — ele fala alto, chamando atenção de alguns alunos
ainda na sala. — Ela que foi atrás do Jayden. Foi dela! Ela que foi covarde
e te deixou só por achar os comprimidos! Desde o princípio, tudo foi
causado por ela. Sua overdose, seus momentos de merda, o acidente... tudo
porque Angelina falhou com você!
Estreito os olhos, tentando enxergar onde essa merda faz sentido na
cabeça dele.
— O que a Angelina te fez? Hum? — Ergo os braços. — Ela só pode ter
te feito algo para você ter tanto ódio assim.
— Ela tirou o que era meu — os lábios dele se retorcem. — E pra piorar,
ela descartou como se não fosse nada.
— O que era seu, Vance?
— Você! — Ele espalma as mãos no meu peito. — Você era meu.
Esboço um sorriso ladino.
— Você precisa de ajuda. — Me livro das suas mãos. — Precisa se
tratar, voltar pra nossa realidade. Eu nunca fui seu.
— Você ia se apaixonar por mim se não fosse por ela. — Ele esfrega as
mãos sobre o rosto. — Faltava tão pouco...
— Pouco para o quê?! Eu sou hétero! — Arregalo os olhos, sem saber
mais como enfiar isso na cabeça dele. — Mesmo que Angelina não tivesse
vindo para cá, você só seria meu amigo, porque eu sou hétero.
— Sempre dá tempo de mudar de ideia.
— Sobre a sexualidade? — Arqueio a sobrancelha. — Escuta, desde
quando sexualidade é uma escolha? Não chega um ponto da vida, onde a
gente se senta e decide se quer ser hétero, bi, gay... nós simplesmente
somos. — Rio sem qualquer humor. — Eu não consigo mudar de ideia nem
sobre a garota que amo desde a adolescência, achou mesmo que conseguiria
para algo mais? Eu não sei se você é otimista ou burro.
— Você nunca experimentou, como pode saber que não gosta de
homens?
Meu Deus, não acredito que estou tendo essa conversa.
— Eu também nunca tomei veneno, mas eu tenho certeza que não vou
gostar. Nem tudo na vida a gente tem que experimentar para saber se gosta
ou não. — Umedeço os lábios. — E se quer saber, deveriam inventar mais
um nome para definir a minha sexualidade, porque ela se resuma à
Angelina. Sou Angelsexual, deu pra entender?
— É por isso que eu a odeio... porque eu sei, que nesse mundo, só ela
pode te tirar de mim — a frase de Vance vem carregada com um olhar tão
venenoso, que tenho calafrios. Até onde ele vai chegar com isso?
— Você já conseguiu o que queria, já me separou dela... e ainda assim
não vou ficar com você. Nunca vou ficar. Entenda de uma vez e deixe
minha vida sem que eu precise te tirar dela à força.
— Eu não vou desistir. Não vou! — a essa altura, ele está gritando tanto
que meus ouvidos doem.
— Você está avisado — interrompo o teatro asqueroso, segurando o
colarinho da blusa que ele veste. — Não cruze meu caminho de novo ou vai
se arrepender. Você colocou em risco não só minha relação com Angelina,
como a vida dela e do meu filho... você não vai querer saber o que um pai
faria com qualquer um que ousasse tocar no seu filho. E isso não é uma
ameaça. É uma promessa.
Saio da sala escutando os gritos dele por mim. Quem é esse homem?
Onde ele estava escondido esse tempo todo?
Seja lá onde fosse, espero que permaneça longe. Falei sério sobre não
permitir que ele fira mais as pessoas que eu amo. O meu limite é
maleável..., mas até mesmo ele, tem um estopim. E não faço ideia do que eu
seria capaz de fazer depois disso.
Espero nunca precisar saber.
 

 
Seguro a maçaneta da porta do carro, talvez por tempo demais, porque
Isabela passa a mão na frente do meu rosto.
— Não vamos descer?
Olho para minha casa... ou onde era minha casa, com nada além de
cansaço. Eu queria falar que só estou animado para ver meu filho, cuidar
dele, mas a verdade é que não importa o quanto eu queira, eu sei que meu
tempo vai ser curto, vigiado e tenso. O momento com Vance na USF só
serviu para me dar uma dor de cabeça enorme e vontade de apertar
pescoços por aí.
Estou puto, cansado, chateado e com sono. Do jeito que o diabo gosta.
— Se você achar melhor, eu posso vir outro dia.
— Não, está tudo bem, Isa. — Balanço a cabeça, saindo do meu transe.
— Vamos.
Saio do carro de uma vez, entrando em casa.
Como tem sido desde então, encontro Angelina sentada no sofá, com
Garden no seu colo enquanto ela o nina sem parar. Acho que isso a acalma
tanto quanto o acalma.
Ainda cansado, não consigo deixar de sorrir ao ver os dois. Ela já
consegue o segurar na vertical sobre o peito. Os olhinhos dele estão abertos,
curiosos olhando tudo, enquanto seu dedinho está na boca sendo mastigado.
Garden não perdeu o hábito.
Angelina se vira para nós depois de um tempo e encara Isabela sem
nenhuma emoção. Ao menos não uma que conseguimos ver por fora.
— Eu vou pegar ele pra vocês poderem conversar. — Me aproximo para
pegar nosso filho e ele vira a cabecinha para o lado ao ouvir minha voz.
Angie o passa para mim com cuidado e ele solta alguns barulhinhos
engraçados. — Estava com saudade do papai, carinha? Eu também estava
morrendo de saudade de você. O que acha da gente ir ali no jardim um
pouco?
— Lá tá ventando, fica na cozinha — Angelina me interrompe e mesmo
sabendo que o clima lá fora está mais que razoável, eu apenas assinto.
Há batalhas que não valem a pena travar.
Inspiro o cheirinho de camomila de Garden.
— Você vai aprender que as mulheres são difíceis, filho. Se você gostar
delas, espero que tenha mais sorte que eu.
Rio de mim mesmo e Garden vira o rosto para o meu peito, vasculhando.
— Não vai encontrar nada aí, garotão. Me desculpe, mas a mamãe é a
única vaquinha da casa... não conta pra ela que falei isso ou você vai ficar
órfão de pai.
Garden dá um gritinho irritado e o coloco sobre a mesa da cozinha, o
segurando sentadinho. Ele ainda não consegue firmar sua cabeça, então a
apoio com uma das mãos.
— O que você fez hoje? Espero que não tenha dado trabalho. — Ele faz
um biquinho fofo, me quebrando inteiro. — Garoto, você é bonitinho
demais.
Blue entra na cozinha atrás da gente um momento depois.
— Vem cá — a chamo com o dedo e quando se aproxima, deixo um
beliscão no seu braço.
— Ai! — Ela estala um tapa na minha nuca. — Por que fez isso, seu
babaca?
— Porque eu queria beliscar ele, como eu não posso, belisco você. —
Dou de ombros.
— Belisca suas bolas da próxima vez.
— Aí eu não vou ter a chance de ter outro desse aqui. — Esfrego a
pequena bolotinha que Garden chama de nariz. Como pode uma criatura ser
simplesmente insuportável de tão meiga e ainda veio de mim? Minhas bolas
estão cheias de crianças com potencial para concurso de beleza.
— Seria covardia não trazer mais filhos ao mundo, você e Angelina
sabem como fazer crianças bonitas... não é, amor da titia — ela fala com
uma voz esganiçada. Pobre do Garden, seus ouvidinhos devem estar
zumbindo. — Ele ama minha voz, sempre fica mexendo as mãozinhas,
olha.
— Ou pode ser que ele só esteja tentando cobrir as orelhas.
Ganho outro tapa estalado.
— Tá cheio das gracinhas hoje, né palhaço?
— Estou testando novas profissões.
Blue franze o cenho pra mim.
— O que foi? — questiono.
— É bom te ver de bom humor.
— Ah — Rio. — Não é bom humor, é só uma tentativa de rir das
próprias desgraças.
— Tipo o Coringa?
— Não chega a tanto.
— Ainda bem, você ficaria horrível de batom vermelho.
— Com certeza.
Balanço a cabeça.
— Mas falando em batom vermelho... Donna falou algo com você? —
averiguo, esperando que minha irmã dê brecha para alguém. Comigo está
sendo inútil.
A expressão de Blue cai no mesmo instante.
— Não, lindo. A última vez que falei com sua irmã foi no dia que esse
pequenininho aqui nasceu. Não a vi na universidade, não a vi nos treinos...
— Blue estala a língua fingindo desinteresse. — Acho que ela já deve ter
ido para o Canadá.
— Isso eu sei que não, ela disse que estava em um hotel aqui.
— Qual? — os olhos de Blue saltam e mesmo que ela fosse a melhor
atriz do planeta, não conseguiria esconder o quanto se importa. Minha
amiga está sofrendo. Na nossa real situação, quem é que não está? É um
fodido ajudando outro mais fodido ainda. Seria cômico se não fosse trágico.
Se juntarmos todos nós em uma sessão de terapia, o terapeuta sai com
depressão.
— Eu não sei qual hotel porque ela não quis me falar. Mas Donna me
garantiu que está bem, então não se preocupe.
— Não estou preocupada.
— Nem o Garden acredita... não é filho? — O coloco de volta sobre meu
peito e ele segue procurando mamilos lactantes.
— Ele faz isso comigo também — Blue muda de assunto. — Eu já disse
que vaca é só a mãe dele.
Gargalho alto.
— Eu disse a mesma coisa.
Blue está prestes a abrir a boca para falar algo, quando escutamos vozes
exaltadas na sala. Ela se levanta na mesma hora. Eu me demoro mais para
não assustar o bebezinho no meu colo.
— O que tá acontecendo agora? — Ela me encara assustada.
— Nada que vai nos surpreender mais, eu aposto — suspiro, revirando
os olhos.
Eu juro que pra alguma coisa me chocar de agora em diante, terá que ser
a próxima guerra mundial. Fora isso, estou vacinado.
Blue e eu chegamos na sala, onde Angelina está em pé na frente de
Isabela, chorando e falando alto.
— Você não sabe de tudo! — a primeira repete várias vezes.
— Eu sei, Angie. — Isabela tenta acalmá-la. — Francis me contou, eu
sei de tudo que aconteceu e ainda assim não o culpo.
— Sabe tudo mesmo? — Angelina grita e me olha tão furiosa, que dou
um passo para trás.
Ela me odeia.
Ela verdadeiramente me odeia.
— Você contou pra ela da foto? — Angelina me indaga com um sorriso
cruel. Isso não combina com ela.
— Que foto, Angelina? — estou cansado. Estou verdadeiramente
cansado.
— A foto que me mandou no dia do acidente, depois que encontrei as
drogas no seu quarto.
Franzo o cenho.
— Não sei, eu não lembro se contei pra ela da foto que te mandei, mas
por que isso faria alguma diferença? Não é relevante para os
acontecimentos daquele dia.
Céus, eu não deveria perder minha paciência, não com ela. Mas está
sendo difícil. Melhor dizendo, está sendo impossível. Eu não consigo mais
sorrir e balançar a cabeça como um boneco de carro sempre que ouço uma
ofensa ou uma alfinetada.
— Não faz diferença para o que aconteceu?! — ela caminha na minha
direção como quem está prestes a me agredir.
— Blue... pega o Garden e vai com ele lá pra cima.
Digo as palavras que eu nunca queria dizer ao meu filho. É sempre isso
que os pais falam quando tem alguma discussão. Vai ser assim? Sempre?
Garden vai ter que subir para o quarto para não presenciar as brigas entre
Angelina e eu? Não foi isso que planejamos para ele.
Quando Blue termina de subir as escadas e só então me viro para
Angelina.
— Me responde, Francis! — ela praticamente grita.
— Te responder o quê? — mantenho a voz baixa. Eu não vou começar
uma discussão.
— Pra você aquela foto não faz diferença no que aconteceu aquele dia?
Balanço a cabeça.
— Não vejo como interfere em algo. Eu me culpo sim pelo que
aconteceu, Angelina, mais do que você pode compreender, mas não pela
foto que te mandei e sim por ter escondido os comprimidos e não ter te
explicado tudo antes que saísse daquela forma de casa. A foto não foi nada
demais...
Não sou capaz de falar mais nada depois do tapa que ela desfere no meu
rosto.
Meu pescoço gira para o lado e arregalo os olhos, encarando o chão na
posição que o golpe me levou. Cubro o rosto com a mão, não acreditando
no que acabou de acontecer.
Lentamente, viro o rosto para Angelina, que tem os olhos saltados,
encarando a própria mão. Pisco devagar, raciocinando os últimos cinco
segundos.
— Pelo amor de Deus! — Isabela vem chorando na nossa direção, se
colocando entre nós.
O que...
O que acabou de acontecer?
Ela me bateu?
Ela...
Uma lágrima cai na minha bochecha, esfriando a pele quente deixada
pelo tapa.
Ofego e balanço a cabeça.
A que ponto a gente chegou?
— Por favor, não façam isso, vocês têm um bebê, não se tratem assim.
Se tratem?
SE TRATEM?
Não fui eu que fiz algo agora.
Foda-se, não sou o errado agora.
Estou cansado de assumir a culpa por tudo. Estou exausto, porra!
— Não se preocupe, Isabela — digo friamente. — Eu nunca faria nada
com ela.
Angelina sobe o olhar ao meu, ainda assustada com a própria atitude.
Eu também estou. Também estou assustado.
Com a atitude dela e com a minha total falta de sentimento sobre o que
ela está sentindo agora.
Pela primeira vez, eu realmente não tenho o ímpeto de acabar com a sua
agonia.
Angelina escolheu dar o tapa, então que lide com as consequências dele.
Não é assim pra mim?
Não tenho que lidar com as consequências de tudo?
Então, por que só eu?
— Eu... eu não... — ela balbucia.
— Você não o quê? Não queria me bater?
— Não! — Ela aperta as mãos. — Não, eu queria sim te bater, eu só não
devia ter feito isso.
Rio ironicamente.
— Parabéns, Angelina. Você realmente está sendo escrota agora.
— Posso estar sendo sim. — Seus lábios tremem. Isso também não mexe
comigo. — Mas não sou hipócrita.
— E eu sou?
Eu vou explodir. Vou explodir se não tiver a porra de um minuto de paz.
— Se falar que a foto que causou o acidente do Jayden não é a
responsável pela morte dele, não é ser hipócrita, então por favor, invente
uma palavra melhor para mim!
— Espera, o quê? — minhas sobrancelhas se unem a ponto da minha
cabeça doer. — Angelina, eu não sei se você se lembra dos acontecimentos
daquele dia com exatidão, é um pouco confuso até pra mim, mas não tem
como aquela foto ser causadora de nada, porque eu enviei depois que você
já tinha saído de casa. Se quiser me xingar por ter sido covarde e por ter
aqueles comprimidos, tudo bem, faça! Mas aquela foto não tem nada a ver
com isso, foi só eu tentando fazer graça pra quebrar o clima de merda que
ficou entre a gente.
— Fazer graça?! — ela grita, com os olhos cada vez mais saltados. O
corpo de Angelina se agita de um jeito que nem mesmo puto consigo ficar
inerte. — Você acha que mandar foto de um monte de droga na sua cama,
deixando a entender que ia se matar, que estava cansado de ser abandonado,
é brincadeira? Você é doente, nojento!
Seu descontrole é tamanho, que Angelina se senta no sofá, encolhendo
as pernas, as abraçando para conter os tremores. Isabela corre para ajudá-la
e eu continuo apenas olhando, tentando raciocinar o que acaba de falar.
Foto de droga?
Dando a entender que iria me matar?
Falando que estava cansado de ser abandonado?
De que porra ela está falando?
Abro e fecho a boca diversas vezes, buscando uma única linha de
raciocínio que funcione.
— Do que ela tá falando, Francis? — Isabela mais chora do que fala.
Balanço a cabeça.
— Eu... eu não sei, eu... eu mandei uma foto pra ela, mas não foi uma
foto assim... e-eu sequer tenho ou tiraria uma foto assim. Eu...
— Você mandou! — Angelina grunhe. — Eu estava no restaurante
conversando com Jayden, ele estava te defendendo, quando você mandou
uma foto no seu quarto, cheio de comprimidos na cama, com a legenda
falando que eu sempre te deixava quando cometia erros, que tinha cansado
de tentar valer a pena, cansado de viver. — Angelina aperta as mãos,
precisando respirar fundo antes de continuar. — Eu fiquei tão desesperada,
que Jayden precisou me carregar no colo até o meu carro. Por isso ele
dirigiu, porque eu não conseguia nem mesmo andar de tanto medo de você
fazer alguma coisa consigo mesmo! — Ela chora, abraçando suas pernas e
balançando seu corpo.
Minhas pernas falham e me ajoelho no chão.
— Ele dirigiu rápido, muito rápido, porque a gente achou que você ia...
que você ia se matar, Francis. Ele acelerou... acelerou e um caminhão estava
invadindo nossa pista na contramão. Ele tentou desviar e ir para a
contramão da outra pista, mas vinha uma caminhonete e... e então... — Ela
soluça, balançando a cabeça. Meu corpo está estático demais para processar
essas palavras. — Jayden se jogou em cima de mim para evitar que algo me
acontecesse... ele... ele me protegeu, me protegeu...
Paro de escutar qualquer coisa. Meus ouvidos zumbem, meus olhos estão
turvos de lágrimas. Minha boca não tem uma gota sequer de saliva.
— Você fez isso? — Isabela me encara tão destruída quanto Angelina.
Nego com a cabeça, sem conseguir falar.
— Francis, fala a verdade — Isa começa a falar mais alto e se levanta,
balançando meus ombros. Continuo ajoelhado, negando com a cabeça.
Eu não mandei.
Não mandei uma foto assim.
Nunca faria Angelina pensar que eu me mataria.
Nunca faria isso sabendo que ela acharia um jeito de estar perto de mim
o mais rápido possível.
Nunca colocaria a vida dela e do meu filho em risco.
Eu não mandei.
Não mandei... santo Deus, eu não mandei.
Cubro o rosto com as mãos, soluçando descontroladamente.
— Eu não mandei, não mandei — falo em meio aos soluços. — Não
mandei!
— O que tá acontecendo aqui?!
A voz de Ethan chega até mim e logo sinto as mãos dele nos meus
ombros, me erguendo do chão. Seguro o rosto dele entre minhas mãos,
procurando seus olhos, desesperado.
— Eu não mandei. Não mandei uma foto assim. Eu nunca faria isso.
Você sabe disso, não sabe Ethan? Eu ainda me lembro do seu rosto no
hospital quando eu tive a overdose, eu nunca faria alguém sentir aquela dor
que vi no seu rosto, diz que acredita em mim, por favor.
Suplico desesperado e Ethan apenas me encara de olhos arregalados,
sem falar nada.
— Eu não entendo, eu... do que você está falando? — ele tenta me
entender, mas não sei falar nada além de “não mandei”.
Isabela explica para ele por mim e meu amigo me coloca sentado no
sofá, para poder olhar Angelina.
— Angie, meu amorzinho, eu sei que você está sofrendo, sei que está
difícil pra você, mais do que está sendo difícil pra todo mundo, mas você
não está enganada? O Francis não mandaria isso pra você, colocando a sua
vida e a do Garden em risco...
— Eu sei o que eu vi, Ethan! Eu mostraria pra vocês, mas ele apagou a
foto.
— O quê? — Balanço a cabeça. — Eu... eu mandei sim uma foto
naquele dia, mas foi na lanchonete da faculdade.
Levanto-me do sofá, me ajoelhando na frente dela. Eu preciso que
acredite em mim, preciso que saiba que eu não sou um monstro. Porra,
agora faz sentido todo o ódio que ela vem sentindo. Se eu tivesse mesmo
enviado uma foto dessa, ela teria todo o direito de querer me matar. Angie
está confusa, deve ser pelo acidente, por tudo que aconteceu... se ela tivesse
me dito antes, se tivesse me contado que era isso, eu poderia ter explicado
tudo.
Procuro os olhos castanhos, me agarrando à esperança de que ela
acredite nas minhas palavras. Angelina me conhece. No passado, ela disse
que nunca duvidaria de mim. Que nunca cometeria o erro que eu cometi.
Preciso que isso seja verdade. Preciso que ela confie em mim.
— Assim que você saiu de casa, eu peguei o carro e fui te procurar, fui
em todos os lugares que eu achei que você pudesse ter ido. Fui até a
lanchonete e quando não te encontrei lá, sai correndo. Antes de passar pela
porta, um cara derramou o copo de cerveja em mim e eu tirei uma foto
naquele momento, brincando que se você estivesse puta comigo, podia ficar
tranquila porque o universo já estava se vingando de mim. Essa foi a foto
que te mandei, Angelina. Eu ... — Respiro fundo, passando a mão no
cabelo. — Eu nem tinha mais comprimido além dos que você viu, eram
apenas aqueles dois, não teria de onde tirar tantas drogas... e eu jamais,
nunca te deixaria em uma agonia tão grande como essa. Nunca te deixaria
pensando que eu tiraria minha vida. Não sou um monstro... não sou.
Ela me encara de cenho franzido e olhos saltado, balançando sua cabeça
e com as mãos esfregando em seus ouvidos.
— Por favor, acredita em mim. — Tento tocá-la, mas Angelina se afasta.
— Angel, pelo amor de Deus, acredita em mim, eu nunca mandaria nada
assim pra você... não sei como você viu essa foto, não sei como isso pode
ter acontecido, mas eu preciso que você acredite em mim... você me
conhece... por favor — minha voz falha, porque eu vejo no rosto dela, no
olhar dela sobre o meu, que não... Angelina não acredita em uma só palavra
que saia da minha boca. — Por favor...
Eu suplico, imploro, coloco minhas mãos no chão, pouco me importando
com o quanto estou me submetendo ou me humilhando. Ela não pode
pensar que fiz isso. Não pode achar que eu sou esse cara. Que sou esse tipo
de pessoa.
— Por favor, acredita em mim. Você me conhece, me conhece melhor
que qualquer pessoa no mundo. Conhece meu coração... eu sei que sou
falho, sei que já errei demais, mas eu não sou um monstro, Angelina.
Acredita em mim...
Ela se ergue do sofá, com o rosto transfigurado de asco. Seus olhos
nunca foram tão frios e cruéis para mim como agora. A esperança escapa
entre meus dedos.
— Meses atrás, era eu quem estava implorando para que você
acreditasse em mim. E você não acreditou. Agora eu te entendo... porque
também não acredito em nada que você fala. Em nada.
Ela não me deixa falar mais, porque sobe as escadas correndo, me
deixando ainda mais sem chão do que eu me encontrava.
Angelina não acreditou em mim. Assim como não acreditei nela.
Por que insistimos no mesmo erro tantas vezes?
Por que nosso amor nunca é o bastante para ficarmos juntos?
Ethan tenta me levantar, mas afasto sua mão, querendo permanecer no
chão. Esse é o único lugar que quero ficar agora. No chão.
— Eu não mandei...
— Sei disso — meu amigo me assegura. — Nós vamos resolver essa
situação.
Não, não vamos. Porque se Angelina acredita que fui capaz de fazer algo
tão sujo, então não vale a pena sequer tentar provar o contrário.
Acabou. As promessas. A espera. O perdão.
Não tenho mais esperança. Não quero ter.
Machuca a ter arrancada de mim todas as vezes.
 
 
 

 
 
Desde que eu me lembro da minha existência, vovó Angelina foi alguém
que ficou do meu lado, que me defendeu e que soube me falar exatamente o
que eu precisava nos momentos difíceis.
Agora, não é bem isso que ela está fazendo.
Na verdade, se eu não estiver entendendo errado, ela está fazendo tudo,
menos me defender. Ao que parece estou sendo injusta, hipócrita e mais
algumas coisas desagradáveis.
Não era isso que eu estava esperando da visita dela. Dela e do meu pai.
Os dois chegaram ontem de noite e ficaram em um hotel. Minha mãe não
veio. Mas eu também não esperava que viesse... acho que é melhor assim.
Papai está com Garden na sala, babando em cima do neto como eu nunca
vi em toda minha vida. Ele estava sendo mais aberto comigo, claro, mas a
explosão de sentimentos que ele teve ao pegar meu filho, foi algo realmente
surpreendente pra mim. Não o soltou desde que chegou e se ofereceu para
ficar com ele enquanto eu converso com vovó em particular.
Ou melhor, enquanto eu levo uma bronca dela.
— Querida, você sempre foi teimosa, sempre teve a cabecinha muito
dura quando se tratava das suas convicções, mas acima de tudo, você
sempre foi justa. Onde foi parar essa justiça agora?
Arranho as cutículas com as unhas, balançando a cabeça.
— Se estou agindo assim é para ser justa.
— Me explique então. Como você pode estar sendo justa em culpar o
Francis por algo que ele disse que não fez?
— Eu sei o que eu vi — digo cada palavra pausadamente. — Eu não sou
louca, eu não bati com a cabeça e imaginei coisas, eu não estava fora de
mim... eu sei o que eu vi. Eu sei o que tinha naquela foto. Eu só não provo
pra todo mundo, porque a única pessoa que viu além de mim, infelizmente
não está viva para contar.
Vovó comprime os lábios no mesmo instante.
— Não seja cruel. Isso não combina com você.
— Talvez as pessoas tenham que se acostumar com a nova eu.
— A sua nova eu é alguém que você deseja que seu filho seja? — ela
joga contra mim e o ar escapa da minha boca.
Cruzo os braços, desviando os olhos dela.
— Não coloque meu filho nessa conversa. Ele não tem nada a ver com o
que aconteceu.
— Essa é sua palavra final? — vovó insiste.
— Eu sei o que eu vi! — repito.
— O Francis também achou isso quando viu sua mãe beijando o seu
colega. Ele também tinha certeza quando a mãe dele confirmou que era
você. Ele teve essa convicção por dois anos, sem sombra de dúvidas,
porque era o que ele tinha visto... e ainda assim, era uma visão falsa. Uma
realidade falsa.
— Aaah... — Rio amarga. — Que bom que você lembrou disso. Se ele
fez comigo, por que eu não posso fazer o mesmo? Se todo mundo, inclusive
eu, perdoei, por que quando é a minha vez, estou errada? Por que tenho que
pensar nele?
Vovó sorri para mim, ainda que minha expressão continue dura.
— Isso não é por ele. Não é por pensar nele que estou te dizendo tudo
isso, filha. — Ela segura minha mão, dando tapinhas reconfortantes. — É
por você. Porque eu conheço a minha neta, talvez mais do que ela mesma, e
sei que ela não vai se perdoar se for injusta. Sei que ela vai sofrer quando
toda a tempestade se acalmar e ver o quanto se afastou da praia e está
sozinha no meio do mar.
— Já está difícil te entender sem metáforas, vovó.
— Vou ser mais clara então. — Suspira antes de voltar a falar. — Você
considera que Francis errou com você por não ter acreditado na sua palavra,
mesmo tendo visto o que viu pela janela do quarto?
— Sim — digo sem pestanejar. Eu o perdoei por isso, mas não quer dizer
que concordo com o que ele fez.
— Por quê?
— Porque independente do que achou que viu, ele me conhecia bem o
bastante para saber que eu nunca faria algo assim.
— Você o conhece bem, Angelina? — ela joga a pergunta, que me faz
franzir o cenho.
— Conhecia.
— E baseado na pessoa que você conhece toda sua vida, baseado no
coração que você conhece mais do que qualquer um, você acha que
Francis... o seu Francis, mandaria uma foto daquela para você, correndo o
risco de te deixar nervosa e desesperada, colocando você e seu filho em
perigo?
Pisco, confusa.
— Eu... eu... — minha cabeça parece fazer contas no ar, tentando ligar o
que eu penso ao que falo. — Não. A pessoa que eu conhecia não faria
isso..., mas eu podia estar enganada. Ele pode ter feito isso por efeito de
drogas, ou qualquer outra coisa. De toda forma, o que eu penso que ele faria
ou não, não muda o fato de que eu vi aquela foto.
— Parabéns. — Vovó bate palma de repente, me deixando confusa.
— Parabéns por quê?
— Porque você acabou de contradizer suas próprias palavras.
Franzo o cenho.
— Como assim?
— Você disse que Francis estava errado em acreditar no que viu e não na
pessoa que ele sabia que você era. Mas que você está certa por julgá-lo,
mesmo sabendo que ele não faria isso, baseado apenas no que viu. Dois
pesos e duas medidas... é assim que você vai agir? — Vovó ergue as
sobrancelhas. — A mesma situação não pode ser certa e errada, apenas
porque muda a pessoa em foco. Ou você considera a atitude do Francis
certa ou você admite que a sua está errada. Os dois ao mesmo tempo é
injusto e errado.
Encaro minhas mãos.
O que ela quer de mim?
Quer que eu diga que estou errada?
Eu não estou, não acho que estou e não vou mentir só pra todos ficarem
mais felizes e eu continuar sendo a pessoa perfeitinha que querem que eu
seja.
— Você se lembra do que conversamos quando eu te contei que seu avô
estava com leucemia? — ela pergunta e eu assinto. — Você lembra que me
disse, que sempre acreditaria no Francis, que se fosse você no lugar dele,
teria acreditado na sua palavra?
Engulo em seco.
— Lembro.
— E lembra que eu te disse, que todos nós erramos com a pessoa que
amamos alguma vez na vida? Que em algum momento, sempre seremos a
dor daqueles que menos queremos machucar?
— Lembro.
— Você não acreditou em mim. Você disse que nunca erraria com ele
assim. Eu sabia, filha, que em algum momento você erraria... você não é
sobre-humana, vai errar, já errou e provavelmente cometerá mais erros no
futuro. — Vovó segura minha mão. — Mas não se esqueça de todas as
lições que esses últimos acontecimentos te ensinaram... a vida é um sopro.
Em um momento, você tem as pessoas que ama ao seu lado, e no outro, elas
simplesmente não estão mais aqui. E não importa o quanto você queira
voltar no tempo e desfazer seus erros, a vida não é escrita à lápis, é escrita à
caneta permanente, o que foi não pode ser apagado... — Ela ergue meu
queixo para o dela. — Tudo bem errar, minha Lilium. Mas não está tudo
bem achar que está acima de qualquer erro. Não está tudo bem não admitir
quando se erra. Não está tudo bem continuar errando, por orgulho. Não está
tudo bem ser injusta com seu próprio coração.
— Ele só acreditou em mim quando o pai dele contou toda a verdade —
a enfrento.
Francis não é um exemplo nessa situação.
— E quando soube, ele admitiu seu erro. — Vovó não se deixa abalar
pela minha grosseria. — Eu estou te alertando do seu erro agora... você vai
admitir também ou vai seguir errando?
— Você está me alertando, mas não pode me provar nada. Não pode
garantir que ele não mandou aquela foto.
— Não, eu não posso. — Suspira. — Talvez ninguém possa. Mas eu sei
de uma coisa que é possível.
— O quê?
— Fazer a escolha certa. Se vai acreditar nos seus olhos ou no seu
coração. Os dois podem ser enganados. Os dois podem ser iludidos. Mas é
muito mais fácil manipular a realidade do que nossos sentimentos. Se você
olhar para dentro de si e conseguir me falar que acredita no seu âmago que
Francis seria capaz de algo assim, então tudo bem. Não vou te falar mais
nada. Mas se não conseguir, então tome a decisão certa, filha. Porque
mesmo alguém que te ama como ele ama... cansa. Ninguém suporta ser um
saco de pancadas pra sempre.
— Que bom! Espero que ele se canse logo.
Vovó sorri tristemente.
— Vejo que tomou sua decisão... eu só espero que você não precise se
arrepender dela... e que se precisar, não seja tarde demais.
— Não vou precisar.
Levanto-me da cama, deixando vovó sozinha no quarto.
Por que todo mundo acha que preciso dele? Que se um dia Francis
decidir ir embora da minha vida, não vou conseguir seguir em frente? Por
acaso sou tão dependente assim?
Eu sobrevivi quando Francis foi embora de Cape May, fui mais forte que
ele. Também sobrevivi quando ele terminou comigo no final do ano
passado, doeu, mas eu fiquei inteira. Por que agora seria diferente?
Para alguém que já foi magoada tantas vezes, chega uma hora que dói
menos. A pele já tem tantas cicatrizes, que não tem a mesma sensibilidade
de antes. Os cortes podem vir, mas estou familiarizada com a ardência. O
estoque de lágrimas já não é o mesmo. Quando dói, não choro... eu só faço
o curativo. No momento, esse é meu curativo. Ficar longe.
Sei qual é a sensação de vê-lo indo embora. A conheço muito bem.
E como foi em todas as outras vezes, sobreviverei. Não preciso dele.
Eu só preciso do meu filho.
De mais ninguém.
 

 
 
— Você vai passar lá em casa? — Ethan me encontra no estacionamento
do campus depois da aula. Ele tem me rondado desde o desastre de dias
atrás, com medo de que eu faça besteira. Inclusive dormiu no meu quarto
nas últimas noites. Não importa o quanto eu diga que não vou fazer nada,
ele ainda tem a expressão de medo.
Escoro no meu carro e solto um suspiro pesado.
— Vou tentar. Eu preciso ver meu filho, já faz três dias. Não consigo
nem dormir mais por causa disso. Se Angelina não quiser me ver, tudo bem,
eu também não sou a pessoa que mais quero me encontrar com ela agora.
Só que o fato de estarmos assim não pode impedir que eu veja o Garden.
Ethan aperta meu ombro.
— Você está certo, a relação de vocês não pode afetar o pequeno G.
— A gente conversou tanto sobre isso, Ethan... — Passo as mãos no
cabelo com raiva. — A gente frisou tanto que não importava o que
acontecesse entre nós, isso não chegaria à vida do nosso filho.
Aperto a porta do nariz, tentando me acalmar. Isso tem elevado meus
níveis de estresse e eu não estou tendo nada para descarregar. Eu preciso
treinar ou malhar, antes que exploda.
— Eu sinceramente não sei se a gente julgou demais nossos pais sem
saber como era ser pai e mãe ou se a gente simplesmente tá perdido demais
pra encontrar uma solução.
— Mas ela não te impediu de ver o Garden até hoje, né?
Solto uma risada sem nem uma gota de humor.
— Não, ela nunca me impediu. Mas passar dez minutos supervisionados
com meu filho por dia, pra ser enxotado logo em seguida como um pedaço
de bosta não é lá a convivência que quero ter. Eu sempre dou banho nele,
então basicamente o meu tempo é no banheiro e no máximo trocar uma
fralda. Nos dias que encontro tempo para ir de noite antes do trabalho,
Angelina mal me deixa cinco minutos antes de falar que é hora de mamar
ou dele dormir... estou cansado, irmão. — Exaspero. — Eu não vou ser o
tipo de pai que vai fazer visitas ao filho nos finais de semana. Eu quero
participar da criação dele, quero estar perto quando ele descobrir as
mãozinhas, quando começar a se alimentar de comida e derrubar tudo no
chão, eu quero estar lá quando ele falar as primeiras palavras, dar os
primeiros passos... e eu não vou conseguir isso em dez minutos.
Aperto os olhos, sem saber o que fazer.
— Já tentou conversar com ela sobre isso?
— Ethan, você viu o que deu eu tentar conversar com a Angelina no
outro dia. Além de um belíssimo tapa na cara eu ainda fui acusado de
mandar uma foto escrota. — Balanço a cabeça. —Eu estou me esforçando,
dando tudo de mim pra entender, pra dar esse tempo que ela precisa, mas a
minha paciência não é um poço sem fundo. Vai chegar um momento, que se
isso continuar, eu não vou poder levar só os sentimentos dela em
consideração e descartar a minha convivência com meu filho. Eu vou ter
que fazer a escolha entre ele e ela, e sempre será ele, Ethan.
— Não seja exagerado, ela nunca te colocaria na posição de escolher.
— Não diretamente. Mas se Angelina não me quer por perto, eu vou ter
que vê-lo longe dela E eu sei que tirar o Garden de lá nem que seja por uma
hora do dia, vai machucá-la como nada no mundo machucaria. — Apoio as
mãos nos joelhos, curvando meu corpo. — Eu nunca vou querer magoá-la...
mas eu também nunca vou querer ser um mero figurante na vida do meu
filho. É uma encruzilhada, seja lá o lado que eu escolher, vou machucar
alguém. E se eu achasse que minha presença na vida do Garden seria
insignificante, que ele passaria a vida sem nenhum tipo de dor por eu não
estar presente, eu sairia mesmo que isso me rasgasse... — Controlo a
vontade de chorar, cansado demais para lidar come essas emoções agora. —
Mas eu sei o que é se perguntar todos os dias aonde seus pais estão. Se te
amaram e por que te deixaram... eu não vou deixar o Garden ter essa mesma
dúvida ao meu respeito. Ele vai ter certeza, todos os dias, que tem um pai
que o ama.
Endireito o corpo.
— Eu estou torcendo por um milagre, Ethan. Estou esperando que
Angelina possa ao menos se lembrar da verdadeira foto que mandei.
— Você não acha estranho que ela tenha imaginado tudo isso? — Ele
comprime as sobrancelhas. — É muito esquisito que ela tenha essa certeza e
detalhamento da foto que acha que você mandou... sei lá, você não pode ter
mandado errado?
— Não, Ethan — digo sério. Porra, será que não entendem? — Eu
nunca tirei uma foto de drogas. Você acha que sou maluco de ter algo assim
na galeria do celular? E pra quê? E por que essa quantidade?
Respiro fundo.
— Então alguém mandou essa foto pra ela — ele conclui.
— Pela minha conta? — Arqueio a sobrancelha.
— Hoje em dia não é tão difícil clonar uma conta, cara.
— Por que alguém faria isso?
Ethan não me responde, mas me olha com uma expressão estranha.
— É sério que não consegue pensar em ninguém?
Abro a boca para negar, mas um nome pisca em vermelho neon na
minha cabeça.
Engulo a seco. Ele não... não chegaria isso... chegaria?
Chegaria. O pior é que eu sei que sim.
Minha cabeça lateja. Porra, que não seja isso. Não aguento mais tanta
maluquice acontecendo.
— Você conectou seu WhatsApp no novo celular? — Ethan me tira dos
devaneios e prefiro não falar nada da minha desconfiança ainda. Eu não
tenho sequer tempo para processar essa informação agora.
— Sim.
— Pode me dar seu celular no fim de semana?
— Pra quê?
— Eu quero levar em um amigo meu... nada demais, me deixa ter
certeza antes de falar alguma coisa, ok?
— Tá... — Olho meu relógio, praguejando. — Essa conversa demorou
mais do que devia, vou para o trabalho direto... amanhã cedo passo lá em
casa pra ver o Garden.
— Ok, irmão. — Ele dá tapas nas minhas costas. — Vou dormir com
você de novo.
— Maravilha — ironizo, entrando no carro. — Mais uma noite sem
dormir pelos roncos.
E por tentar achar uma lógica para essa maldita foto que Angelina
recebeu. Se foi o Vance, eu...
Não. Não vou pensar nisso agora. É capaz de ir atrás dele sem nem
mesmo ter certeza.
Preciso ser racional, não posso mais agir por impulso. Angelina já não
confia em mim, se eu fizer merda, nunca mais vou ver meu filho.
A fase adulta só pode ter sido ideia do diabo, porque nada é mais
torturante do que precisar ser maturo quando queremos só espernear e
gritar. Que saudade do caralho de dar uma boa birra.
 
 

 
 
— Você tem certeza de que vai ficar bem aqui sozinha com o Garden?
— Blue sapateia pelo quarto. — Chama seu pai e a vovó Angelina pra ficar
aqui pelo menos, o Ethan tá dormindo no Francis.
— Blue, eu não preciso de babá, sei cuidar do meu filho.
— Eu sei, mas tenho medo de que precise de alguma coisa e não tenha
alguém por perto.
— Eu não vou chamar minha avó porque ela não para de encher a minha
cabeça de dúvidas e se eu chamar meu pai, ela vem junto.
— É a primeira vez que vejo você não querendo ficar perto da vovó.
— É a primeira vez que ela tenta me deixar maluca também.
A conversa se encerra quando Garden choraminga no berço para que o
pegue no colo. Eu não entendo, ele detesta esse berço. Parece que tem
espinhos nesse colchão. Um dia eu literalmente procurei por todo ele
qualquer coisa que estivesse furando meu filho. Vovó Angelina falou que eu
era o contrário, que só queria ficar deitada no berço e me irritava quando
me pegavam no colo.
Então Garden deve ter puxado o Francis...
— Ele tá mais enjoadinho hoje ou é impressão minha? — Blue brinca
com os cabelinhos dele, enquanto Garden procura avidamente meu peito.
— Não é impressão. E também tá querendo ficar no peito toda hora e às
vezes ele nem mama, só fica brincando.
— Não é bom comprar uma chupeta pra ele?
— Não sei, na verdade eu nunca pensei sobre isso. Ele já tem mania de
chupar o dedo, não sei é bom incentivar. Vou perguntar à médica na
próxima consulta.
— Ou você pode perguntar pro Francis... — Blue joga no ar e a encaro
enfezada.
— Ele não é médico ainda.
— Mas entende mais disso que a gente.
— Vou perguntar à médica do Garden, assunto encerrado.
Ela ergue os braços.
— Não está mais aqui quem falou. Estou saindo agora para o aniversário
da Cassy, se você precisar de mim, liga no meu celular.
— Não vou ligar, você vai se divertir. Tem tempo que não sai, não se
diverte, só fica aqui comigo cuidando do Garden e me ajudando nas
atividades da faculdade.
Meus trabalhos acadêmicos começaram a chegar, não posso reclamar,
pelo menos não vou perder um período letivo inteiro; mas minha mente e
meu corpo estão prestes a se romper de exaustão.
— E faço isso com muito amor, eu amo cuidar do meu afilhado — ela
faz a vozinha fina que zuni meus ouvidos. — Menos quando você parece
uma bombinha de mal cheiro, né joelhinho?
— Já falei pra não chamar ele assim.
Ela cismou que Garden tem cara de joelho...
— Sua mãe é uma chata, sabia? — Blue beija a cabecinha dele e Garden
se mexe no meu colo na direção dela. Pequeno traidor, me troca por todo
mundo. Quando não se trata da sua fome, ele não faz diferença entre estar
comigo ou com um estranho.
Ethan então... é aquele grandalhão abrir a boca e Garden começar a
gritar. Eu finjo que é irritação, mas eu sei que é de animação. Pra mim
sobram os choros por leite... acho que ele me vê como um enorme peito
ambulante.
— Tchau, Blue Hale — a enxoto do quarto e a palhaça sai gargalhando.
É bom ouvir a gargalhada dela. A de qualquer pessoa para ser exata. Tem
semanas que não sei o que é rir... ou ter motivos pra isso.
— Somos só nós dois agora. — Me sento na poltrona, dando de uma vez
o que ele quer. Pelo menos agora já não sinto dor para amamentar e meu
peito cicatrizou quase por completo. Odeio pensar que foi por causa da
ajuda do Francis, mas não posso negar. Ele ajudou.
Mesmo mamando, Garden continua inquieto e fazendo sonzinhos de
choro. Deus, eu já não sei mais o que ele pode querer. Já tomou banho,
comeu, a fralda não está suja... eu posso ajudar com as questões
fisiológicas, mas não tenho a menor ideia de como ajudar com o resto. Eu
conheço ele há pouco tempo, é exigir demais.
Respiro fundo, balançando a perna freneticamente.
— O que você quer, pequenininho? Eu estou perdida aqui — o tiro do
meu peito, sentando sobre minhas pernas. Os olhinhos dele estão caídos,
coisa que não acontecesse a menos que esteja com sono. Pelo horário, ainda
falta muito pra ele querer dormir. — Você está triste? Está cansado? Está
com dor? Me desculpa, eu simplesmente não sei.
Francis saberia.
A frase fica martelando na minha mente.
Aperto os dentes com força, descartando essa opção. Não vou ligar pra
ele, tem sido um alívio ele estar há três dias sem vir. Garden está bem sem
ele.
— Você está bem, não é? — O coloco deitado do jeitinho que gosta em
pé sobre meu peito e bato de leve em suas costinhas ritmadamente. Eu
ainda lembro da forma que Francis fazia sobre minha barriga e sempre que
repito isso em Garden, ele se tranquiliza. Eu odeio admitir, mas eles têm
uma ligação. Eles têm uma ligação que acho que eu própria não tenho com
meu filho. Francis sempre conversou mais com ele, sempre ficou brincando
com minha barriga. Garden reconhece a voz dele a distância. Parece que
sente até mesmo seu cheiro.
Quando dou por mim estou chorando abraçada ao bebezinho inquieto.
Eu me sinto um lixo. Me sinto inútil, incapaz, insuficiente, como nunca me
senti na vida. Já cheguei a sentir um pouco de culpa por não entender
facilmente as pessoas, mas foi tão efêmero que não mudou muita coisa na
minha vida. Agora... agora eu não consigo entender meu filho. Não sei
como ajudá-lo. Talvez por isso Blue tenha tido tanto medo de sair e me
deixar sozinha. Ela também não confia que eu consigo.
Eu queria alguém para fazer mil perguntas. Alguém que passasse pelos
mesmos problemas que eu. Alguém que tivesse as mesmas dificuldades.
Meu pai pode ser autista, mas ele não é mulher e definitivamente não somos
parecidos. Eu queria que alguém me dissesse que eu posso, que eu consigo,
porque também conseguiu. Que o TEA não vai me impedir de ser a mãe
que o Garden precisa. Que vou conhecê-lo e entendê-lo com o tempo, como
todas as mães.
Mas é tão difícil acreditar nisso quando minha própria mãe não acredita.
Eu tento dizer a mim mesma que não preciso dela aqui, que não sinto falta e
que não faz diferença. Mas faz, faz muita diferença. Ela deveria estar aqui
me contando como foi na vez dela, como eram meus gostos e manias, o que
eu gostava e o que não gostava... ela deveria estar aqui...
Eu queria que ela estivesse aqui.
Que me reconfortasse.
Que acreditasse em mim. Ao menos uma vez, que acreditasse em mim.
Que ela ao menos quisesse conhecer o neto.
Que olhasse para ele com o amor que nunca me olhou.
Acho que é demais para esperar dela. Eu não sou o tipo de pessoa que
sonha com o impossível e não vou começar a ser agora. Mais do que nunca,
eu preciso ser realista. Ver o que há de verdade e não o que eu espero que
exista.
Ser adulto significa isso, não é? Entender que os contos de fadas só
existem nos livros e que na vida real, geralmente o vilão sai vitorioso. Ser
adulto é uma merda.
Garden pega no sono para além da meia noite. Eu, no entanto, fico
olhando para ele sem parar, com medo de que sinta algo. A todo momento,
coloco o dedo embaixo do seu nariz para ver se respira, reparo na
movimentação do seu peito, que sobe e desce profundamente... tenho plena
consciência que estou sendo exagerada, mas não consigo pregar os olhos
sabendo que algo está de errado com ele.
Garden está quieto na cama. Ele costuma se mexer tanto de noite, que é
capaz de ir dormir do lado de cima e acordar nos pés. Seus braços e
perninhas estão imóveis e eu quase o acordo para saber se está mesmo bem.
Não demora muito para ele começar a resmungar para mamar. Respiro
aliviada, o pegando no colo. Nunca quis tanto ficar grudada a qualquer
coisa como quero ficar com ele. Quando o coloco no meu peito e a sua
mãozinha vai automaticamente para meu colo, estranho a temperatura.
Garden é quente, assim como Francis, mas não tanto assim.
Encosto a minha testa na dele e franzo o cenho.
— Você está quente demais, amorzinho.
Confiro minha própria temperatura.
— Está diferente demais. O que você tem? — O deito no berço mesmo
sob protestos, procurando o termômetro.
Por favor, não esteja doente.
Me atrapalho toda para achar o maldito termômetro, o apontando para a
testinha dele. Graças a Deus não são mais aquele de colocar embaixo do
braço, eu lembro que quando sentia febre, aquilo era tão gelado que doía.
38ºC.
— Ah, meu Deus! — Coloco de novo o termômetro, implorando para
estar errado. De novo, a temperatura alta aparece na tela. Esfrego meu
rosto, tentando respirar devagar.
Ok, Angelina... você precisa ter calma. Precisa ter calma.
Levo as mãos para pegar o Garden, mas elas tremem tanto que tenho
medo de derrubá-lo. Ele começa a chorar querendo colo e minhas mãos vão
para o meu ouvido. Meu Deus, eu não sei o que fazer, não sei... eu preciso
pegar o cartão do seguro de saúde, os documentos dele, roupa...
Eu preciso ligar pra minha vó.
Digito o número completamente atrapalhada no celular.
— Lilium?
— O Garden tá com febre, eu preciso de ajuda — respondo já chorando.
— Estou chegando.
— Vem rápido, por favor.
Jogo o celular na cama, apertando meus dedos, cavando as unhas na
palma. Preciso acordar. Não posso me desesperar agora.
Mostra que você consegue, Angelina.
Você não pode falhar agora. Não pode mostrar para ninguém que é
fraca.
Ou vão tirar seu filho de você. Seja forte. Finja ser.
Seja convincente!
 

 
 
Eu odeio despertadores. Odeio com todas as minhas forças esse
barulhinho do demônio.
Suspiro irritado, me sentando na cama.
Seis horas da manhã.
Fui dormir às 3.
Eu não tenho mais idade pra isso. Foda-se que só tenho vinte e um, a
fase de dormir só três horas e acordar com energia é quando eu tinha dez
anos e tinha passeio na escola.
Depois de sair do restaurante ontem, fui ser ajudante do barman de um
pub perto do campus.
Ethan continua roncando do meu lado, nem um pouco incomodado com
o despertador. O deixo dormindo e corro para tomar um banho.
Minha aula começa só depois do almoço, mas essa manhã eu estou
decidido a ver meu filho. Não passo nem mais um segundo longe dele,
estou ficando maluco longe daquele carinha. Nossos momentos eram curtos
e foram poucos, mas ainda assim eram nossos momentos. Meu dia não
parece completo sem tê-lo visto.
Pego o celular depois do banho, mandando uma mensagem para a Blue.
Eu: Bom dia, linda. Acha que é tranquilo eu passar aí em casa agora pra
ver o Garden?
Blue não demora a me responder.
Blue: Bom dia, lindo... a gente não está em casa, você não sabia?
Franzo o cenho.
Eu: Não, ninguém me falou nada. Vocês estão passeando com ele?
Sorrio só de imaginar o quanto ele vai gostar de ver as coisas no mundo.
Ele é muito observador.
Blue: Nós estamos no hospital, Francis. Eu achei que tinham te avisado.
Meu sorriso morre na mesma hora.
Eu: Como assim hospital? O que aconteceu?
Não espero ela responder a minha mensagem e já ligo no celular. Blue
atende na primeira chamada.
— Blue, o que aconteceu?
— Calma, não precisa se desesperar.
— Blue...
— O Garden teve febre de madrugada. A Angie chamou a vovó Angelina
e o pai dela, e eles levaram o Garden pro hospital. Já era umas duas horas
da manhã. Seu filho já tá bem, mas a febre dele não estava cedendo de
noite, por isso eles preferiram mantê-lo no hospital em observação.
— Por que ninguém me avisou?
O sangue sobe direto pra minha cabeça.
— Eu achei que tivessem te avisado e você estivesse dormindo ainda,
sinto muito.
— Esquece, eu tô indo para aí.
Jogo o celular longe, me enfiando na primeira roupa que vejo. Ethan
levanta da cama num pulo, assustado com meu rompante.
— O que aconteceu agora?
— Garden tá com febre no hospital e ninguém teve a porra da ideia de
me avisar!
— Eu vou com você.
Ele pega qualquer roupa do meu armário e descemos de escada para não
perder tempo esperando elevador. Aproveito esse breve exercício para
tentar acalmar meu corpo, porque minha paciência foi esgotada de todas as
formas possíveis. Eles não têm o direito de me deixar no escuro sobre a
saúde do meu filho, não tem! Essa é a porra do meu estopim.
Meu carro canta pneu o caminho todo até o hospital, onde entro como de
costume, um maldito raio. A recepcionista já arregala os olhos quando me
vê e eu quase fico com pena. Essa mulher não deve me suportar mais.
— Eu vim ver meu...
— Seu filho, já fui avisada — ela me interrompe, me entregando o
adesivo de acompanhante.
— Obrigado.
Ethan segue atrás de mim e subimos o elevador para a área infantil. Os
choros de crianças e cores vivas nos preenchem de imediato. A sensação
aqui é bem melhor do que no restante do hospital, com certeza.
Não demora para encontrar Blue no corredor. Ela ergue a mão para a
gente com uma expressão pesarosa. Deve ser por causa da minha possessa.
— Escuta, tenha calma, por favor — Blue suplica.
Ela segura meus braços quando não quero escutá-la. Respiro fundo,
olhando em seus olhos.
— Linda, calma tem sido tudo que eu tenho tido nesses dois meses. Eu
estou sendo paciente, todo maldito dia. Eu não sou de ferro, Blue. Essa
situação se encerra hoje, se encerra agora. Cansei de abaixar a cabeça pra
tudo pra preservar o sentimento da Angelina, porque ela tá pouco se
fodendo para os meus. Chega uma hora que a gente apanha tanto que deixa
de doer, mas também deixa de ter paciência para esperar pelo próximo
golpe. Chega!
— Ethan — ela busca meu amigo em busca de me convencer.
— Desculpa, Blue. Mas o Francis tem razão. Não contar pra ele que o
filho estava no hospital já é demais.
— Eu sei... eu só fiquei sabendo quando cheguei em casa depois do
aniversário da Cassy — Ela esfrega o rosto, querendo chorar. — Eu já tentei
conversar tanto com a Angie. Já implorei pra isso mudar, a vovó Angelina
também, mas por favor, não briguem. — As mãos dela se agitam. — Eu não
aguento mais. Eu não aguento mais briga, não aguento mais ficar entre
vocês dois, sendo a amiga no meio do campo de batalha.
— Não vai mais haver um campo de batalha, porque eu desisti da guerra.
Eu desisti da Angelina. Desisti de tentar que seja sequer uma amizade. Eu
só quero meu filho.
Entro no quarto não esperando um convite. Eu não vou mais esperar por
um quando se tratar do meu filho. Não assim, não nessas circunstâncias.
— Onde está o Garden? — Já entro procurando por ele e vovó Angelina
entra no meu campo de visão.
— Francis, que bom você finalmente chegou — ela suspira aliviada e
aceito o abraço que me dá.
— Como assim finalmente? Eu vim assim que soube, não demorei
quinze minutos pra chegar aqui.
Vovó se afasta confusa.
— Não, nós te avisamos assim que saímos de casa, eram umas duas
horas da manhã. Achei que você não tinha vindo porque estava dormindo e
não viu o celular.
Respiro fundo, abrindo meu celular mostrando a inexistência de
mensagens ou ligações.
— Ninguém me avisou, eu fiquei sabendo porque liguei para Blue para
saber se podia ir em casa visitar meu filho.
— Querido, mas eu falei pra Angie te avisar e...
— Ah... — Solto uma risada irônica, a interrompendo. — Você não
precisa me explicar mais nada.
Vovó Angelina aparenta estar confusa, mas não dura muito. Ela é uma
mulher inteligente demais para não sacar o que rolou.
— Angie, você não avisou o Francis?
Meus olhos vão para Angelina no mesmo instante, sentada em uma
poltrona com Garden no colo, dando de mamar. Ela coloca um pano sobre o
seio, como se eu fosse a porra de um estranho ou tarado. Já deu pra mim
dessa merda. Não sou a porra de um vilão.
— Eu achei que não era necessário porque já tinha muita gente aqui —
ela explica.
— Eu não acredito nisso... — vovó suspira, se virando de costas.
Conhecendo essa velhinha como eu conheço, ela está xingando no mudo.
Ponto para a paciência dela, porque eu estou querendo xingar no volume
máximo.
— Não é sobre a necessidade de eu estar aqui, Angelina. Não posso
fazer muito pelo nosso filho quando ele está doente, mas você também não
e mesmo assim não conseguiria sair do lado dele... não é sobre o quanto eu
seria útil à situação e sim sobre o fato de que qualquer pai iria querer estar
ao lado do filho em um hospital. Não é necessidade, é cuidado. É
preocupação. E também é meu direito!
Os lábios dela tremem e vejo que seus braços ao redor dele se estreitam.
— Já viu que ele está bem agora, então pode ir — nada do que eu digo
parece fazer diferença na cabeça dela. — Garden precisa muito mais de
mim agora, ele está mamando e você só está agitando e atrapalhando. —
Ela me encara com raiva, porque Garden vira seu rostinho me procurando.
E isso me quebra. Porque ele também sente minha falta. Meu filho sabe
quem eu sou, que eu existo e ela não está só causando a dor de uma saudade
em mim, está causando nele também. Não é justo.
Dessa vez, eu também não tento entender o lado dela. Na verdade, acho
que nunca senti tanta raiva da Angelina em toda minha vida. Achar que
senti raiva dela quando pensei tê-la visto com meu amigo, é brincadeira de
criança perto do que sinto agora.
— Não, eu não vou embora. — Olho bem nos olhos dela para que
entenda. — Se você não quer me ver aqui, fique tranquila, porque você
também é a última pessoa que quero estar perto. — Angelina pisca
surpresa. — Mas eu vou lidar com isso e eu espero que você faça o mesmo,
porque eu não vou sair do lado do meu filho mais. Eu vou fazer parte da
vida dele, você gostando disso ou não. E não nos horários que você permite,
não no tempo que você quiser. O Garden tem um pai e uma mãe. E ele
sempre terá um pai e uma mãe. Presentes. Não uma figura que ele vai ver
de vez em quando por cinco minutos. O quanto antes você entender isso,
menos vai sofrer. Porque essa é a realidade agora.
Ela se levanta com Garden, vindo para perto de mim como um animal
ameaçado.
— Você não tem esse direito! — ela me encara de perto, olho no olho,
nem um pouco disposta a retroceder. Bom, eu também não estou.
— Direito de quê? Hum? De estar com meu filho? De saber quando ele
está doente ou não? De ser avisado quando ele vai para o hospital? De
conviver com ele? É isso que eu não tenho direito, Angelina? — Rio
desacreditado, olhando pra cima. — Você é muito inteligente, eu não
preciso te explicar que eu tenho mais do que direito disso. Você sabe.
Volto a olhá-la.
— Você não vai tirar ele de mim! — ela rosna.
— Não sou eu que estou tentando tirar o Garden de você. É você que
está tirando ele de mim. Me tirando dele. Porque quer queria ou não, o
Garden também sente minha falta. Eu não sou um desconhecido pra ele e
não pretendo ser. Ocupar o meu lugar de pai, não vai tirar o seu de mãe.
Assim como participar da vida dele, não quer dizer participar da sua. —
Procuro dentro de mim os sentimentos bons que senti por ela a vida toda,
mas tudo que me sobrou foi dor e mágoa. Meus olhos ardem, porque eu sei
que acabou. A partir daqui, acabou. A gente acabou com tudo de bom que
tinha um pelo outro. Pouco a pouco. Eu e ela, nós dois conseguimos
destruir o amor mais puro que sentimos. — Como eu te disse, não faço mais
questão de estar na sua vida, assim como você também não faz mais
questão de estar na minha. Hoje, pra mim, você é a mãe do meu filho. E eu
sempre vou te respeitar nessa posição. Nada além disso. E eu espero que
você me respeite como pai do seu filho. Nada além disso.
Eu poderia chorar agora, se ainda houvesse lágrimas. Poderia sofrer
agora, se já não estivesse sofrendo há muito tempo. Eu poderia sentir tudo
isso, mas estou cansado. Me cansei de tentar fazer algo dar certo, quando
claramente a vida já nos mostrou que não dá. É triste. É muito, muito triste.
Mas Angelina e eu não nascemos para estar juntos. Ela estava certa quando
me disse isso quando fizemos o passeio até Fort Point. Nós só nos
machucamos. Mais e mais. E agora nos machucamos de um jeito que não
tem mais volta.
Tanto, que não consigo achar no meu coração, mesmo olhando nos olhos
dela, o amor que sinto. E isso é horrível. Não a amar é horrível.
— Angie... — Vovó Angelina pigarreia, estendendo o braço para pegar o
Garden.
— Deixa ele terminar de mamar — interrompo. — Eu vou esperar lá
fora e quando ele terminar me chamem, por favor. Enquanto isso eu vou
falar com os médicos.
Saio do quarto sem esperar mais nada. Não tenho intenção de magoar
Angelina e não estou em um bom momento para falar nada. Tudo que sair
da minha boca vai ferir, porque eu estou ferido e conheço muito bem o meu
mecanismo de defesa.
E não é recuar... é atacar. O grande problema é que o da Angelina
também é. Nós nos ferimos para parar de sofrer... e no fim, acabamos
arrependidos, magoados e sozinhos.
Infelizmente Savannah estava certa. Hopkins e Eastwood não nasceram
para ficar juntos. A história se repetiu.
— Francis? — Vovó Angelina ofega correndo atrás de mim.
— Calma, para de correr, maluquinha. Olha a coluna.
— Espero que não esteja me chamando de velha, menino. Eu ainda dou
um bom caldo.
Rio, beijando a testa dela.
— Não te cumprimentei direito, desculpa.
— Não se preocupe, a situação não estava das melhores. — Ela me
encara com uma careta que eu conheço muito bem.
— Vai, pode falar — suspiro. — Solta tudo.
Vovó Lina suaviza a expressão.
— Vamos nos sentar ali... você estava certo sobre a coluna — ela ri e me
puxa para bancos encostados na parede. Lina segura minhas mãos com as
suas pequenas e enrugadas. — Meu querido... você sabe que não há
ninguém nesse mundo que torça por você e pela Angelina como eu. Desde
que vocês eram crianças, eu sabia que ali tinha nascido um amor que
dificilmente o mundo veria igual. A princípio, um carinho inocente, puro,
até mesmo ingênuo. Depois, uma paixão ardente, calorosa, até mesmo
afoita. Para então, enfim ser um amor forte, permanente, até mesmo
inquebrável. — Ela faz carinho no meu rosto. — Eu sempre torci por vocês
como um casal, mas acima de tudo, eu sempre torci para que você a tivesse
na sua vida quando esses olhinhos azuis tão carentes precisassem de amor e
afeto; e que ela sempre tivesse você quando aqueles olhinhos castanhos e
confusos precisassem de compreensão e aceitação. Antes de mais nada, eu
torci para que vocês sempre pudessem contar um com o outro, ainda que o
mundo despencasse sobre suas cabecinhas. Que vocês se apoiassem, se
respeitassem e lutassem quando o outro não tivesse forças.
— Lina — tento interrompê-la com a voz engasgada, mas ela coloca a
mão sobre minha boca, me impedindo de falar.
— Me deixe falar. Angelina me ouviu e você também vai. Porque eu
preciso saber, Francis, que vocês dois tem ciência do erro que estão
cometendo. Eu preciso ter a consciência tranquila de que fiz o que pude
para unir novamente o que claramente foi feito para estar junto. — Lina
enxuga uma lágrima que escorre do meu rosto com delicadeza. — Angelina
é mais dura que você. Ela não chorou quando eu conversei com ela. E você
sabe melhor do que ninguém, que quem menos demonstra, às vezes é quem
mais sente. Não se deixe levar por aquela postura impenetrável, por aquele
tom petulante e bravo e nem por aquela carinha possessa dela. Minha neta
ama você, como sempre amou. Assim como você a ama, como sempre
amou.
Abro a boca, mas ela faz uma cara feia que me obriga a fechar de novo.
— Não pense que as suas palavras naquele quarto foram o bastante para
me convencer de que você não a ama mais. Não pense nem por um segundo
que eu acreditei em você. Eu sei que você está pensando isso agora, sei que
pensa que não a ama mais, porque está machucado... e ela também. Vocês
jovens tem mania de certeza. Têm que aprender, que na vida, o mais certo é
o talvez.
— Já dei muita chance ao talvez e olha onde estamos agora — digo com
amargura.
— Vocês são muito jovens. E já passaram por muita coisa, coisas que
jovens não deveriam ter passado. Mas são fortes. Se ainda estão aqui, se
bicando, se implicando, brigando como cão e gato, é porque dentro de
vocês, lá no fundo, onde as mágoas não chegaram, um sentimento, aquela
fagulha que deu início a tudo, não se apagou.
Faço careta. Já não acredito nisso. Eu não consigo mais achar essa
fagulha dentro de mim. Mas não vou tentar convencê-la disso.
— Vocês são teimosos, orgulhosos, convictos da própria escolha e
decisões e isso é bom até certo ponto. Mas quando atrapalha a felicidade de
vocês, os torna burros.
— Que felicidade, Lina? — Nego com a cabeça. — Não tem mais
felicidade para atrapalhar.
— Você acha que vai ser infeliz pra sempre? Escute uma velha senhora
que pensou isso incontáveis vezes e que sempre teve a chance de ser feliz
novamente.
— Lina, eu sei que você é avó da Angelina e que vai entender o lado
dela, mas...
— Não pense que porque sou avó dela não estou vendo os erros que ela
está cometendo — ela me silencia. — Acredite, Angelina está muito
revoltada comigo pela bronca que levou. E eu espero que você seja mais
simpático comigo depois da bronca que vou te dar.
— Bronca? — Ergo as sobrancelhas. — O que eu fiz agora?
— O mesmo que ela fez no final do ano passado.
Franzo o cenho.
— Não entendi.
— Claro que não, vocês dois são duas mulas.
Abro a boca.  
— Não finja surpresa, vocês são! — Ela bate no meu braço, irritada. —
Ano passado, você não acreditou em Angelina. E quando descobriu a
verdade, voltou correndo pedindo perdão. Ela não aceitou e fez da vida de
vocês dois um inferno. Agora, você está cometendo o erro dela. As posições
se inverteram.
— Mas Lina... você está se esquecendo de um detalhe: Angelina não me
pediu perdão. — Bufo uma risada. — Pelo contrário. Ela continua achando
que eu mandei aquela foto, continua me culpando por tudo, continua
fazendo de tudo para me manter longe, até do meu filho. Você pode me
pedir para entender a primeira parte, mas não me peça para entender a
última.
— E você, está se esquecendo de um detalhe: você só pediu perdão
depois que te contaram a verdade. Você não pediu perdão porque acreditou
na palavra dela e sim na do seu pai. Por que então, ela tem que acreditar em
você sem medidas agora? Hum?
Céus, essa mulher é brava. E irritantemente lógica.
— Eu não espero mais que ela acredite em mim — admito. — Essa é
uma batalha perdida, até porque eu não tenho como provar que não mandei
aquela foto. E não tenho mais disposição para lutar, Lina. Eu só quero ver
meu filho. Só preciso que ela me permita isso, de resto eu não tenho mais
forças.
— Não se esqueça, que aquela garota lá dentro, não é a sua Angel. É só
um pedacinho machucado dela. Não leve em consideração o que ela fizer
agora.
Engulo a saliva, negando com a cabeça.
— Não estou culpando-a por nada do que está acontecendo, não é minha
intenção fazer da Angelina a vilã da história. Ela é a maior vítima e vai me
machucar pra sempre tudo que ela está passando, muitas das coisas sendo
minha culpa. Mas eu também não sou mais o Francis que você conhecia,
Lina. Sou só um pedaço machucado dele.
Ela sorri triste, acariciando meu rosto.
— Vocês dois não tem culpa de nada que aconteceu. Sempre foram
separados pelas atitudes dos outros.
— Não, Lina... — Nego com a cabeça. — Angelina me fez ver isso no
passado, de que sim, tentaram nos separar, mas nós deixamos. Nós só
podemos culpar os outros pelas próprias atitudes, não por como agimos
devido a elas. Eu escolhi não acreditar na Angelina no passado e ela
escolheu não acreditar em mim agora. Isso, é só nossa culpa, de mais
ninguém.
— E você vai deixar o amor da sua vida ir embora assim, sem lutar?
Respiro fundo, beijando as bochechas dela.
— Quanto mais eu lutei pelo amor da minha vida, mais eu a machuquei.
E mais eu me machuquei. Todas as vezes que fui teimoso e insisti na nossa
relação, nós dois saímos dela em frangalhos. Acontece, Lina, que antes a
gente ainda tinha partes inteiras que pudéssemos arriscar a quebrar. Agora,
Angelina e eu somos só cacos que estão colados de um jeito todo torto e
bagunçado, com o único propósito de cuidar do nosso filho. — Dou de
ombros. — Então sim... eu vou deixar o amor da minha vida ir embora.
Lina suspira, visivelmente decepcionada.
— Eu espero que o tempo cure vocês. E que não seja tarde demais para
viverem esse amor. Porque eu sei, que vai chegar o dia que vocês dois irão
se arrepender dessa decisão. Pode não ser hoje, pode não ser amanhã..., mas
vocês vão. E aí, pode ser você vendo a sua garota se casar com outro, que a
fará infinitamente menos feliz do que você poderia. E se esse dia chegar,
meu filho, tudo que você poderá fazer, é chorar e se lembrar desse dia aqui
com essa velha, quando você escolheu deixar seu amor ir embora.
Ela se levanta e volta para o quarto, me deixando com a cabeça
estourando. Esfrego o rosto, me erguendo da cadeira e indo procurar os
médicos que atenderam meu filho.
Vovó Lina pode ter razão. Mas isso não muda nada. Nem para mim e
nem para Angelina. Nós fizemos nossas escolhas e vamos viver com elas.
Arrependidos ou não, vamos viver com elas.
Porque agora, minha única prioridade é o Garden. E é nele que vou
pensar, não em mim.
Principalmente, não nela.
 

 
— Não foi nada preocupante, fiquem tranquilos. Bebês nessa idade são
muito suscetíveis a qualquer fator externo, então mesmo que vocês não
estejam saindo com ele, toda vez que alguém sai de casa e volta, traz
consigo bactérias e vírus, que para ele que ainda não tem a imunidade forte,
pode causar esses pequenos episódios de febre e desconforto. É importante
que não haja tantas mudanças na rotina dele também, isso pode acabar os
estressando e agitando mais do que o necessário.
O médico fala comigo e com Angelina. Ele me explicou tudo isso no
corredor quando fui procurá-lo, mas está repetindo agora para dar alta ao
Garden.
— Ele não apresentou mais febre alta desde ontem à noite, então é
provável que ela não volte e tenha sido um caso isolado. Se a febre voltar,
eu passei a receita do medicamento e já entreguei ao Francis. — Ele me
olha e assinto. — Vocês podem me ligar a hora que for, seu pai já me
ajudou muito, estou a inteira disposição de vocês.
— Obrigado, doutor Meyer.
— A gente já pode ir pra casa? — Angelina se levanta olhando para
Garden no meu colo. Ela fica fisicamente ansiosa quando não está com ele
por perto, seus olhos não saem dele e seu corpo a todo momento parece
prestes a se aproximar. Ela só não o faz porque sou eu o segurando.
— Sim, já podem ir pra casa.
Angelina me olha e desvia o olhar algumas vezes, balançando seu corpo
para frente e para trás. O médico nos deixa a sós e os outros na sala
também. O clima pesa tanto que é como se alguém estivesse sentado sobre
meus ombros.
Pigarreio e ela me encara.
— Você pode pegá-lo, basta me falar.
— Pra quê? Pra você me falar que tem direito de ficar com ele também?
Fecho os olhos. Céus, me dê paciência.
— Eu só não quero ser impedido de estar perto dele, Angelina. Mas não
vou morrer se você quiser segurá-lo. Eu sei que se sente melhor com ele no
colo e tenho certeza que o Garden também se sente assim com você.
Os ombros dela caem um pouco.
— Garden parece preferir você. Se pudesse, se jogaria do meu colo
quando você aparece... ele vira o rosto quando escuta sua voz, mas não faz
o mesmo comigo.
A voz da Angelina falha ao falar isso, visivelmente chateada. Inspiro o
ar, pensando nas palavras com cuidado. Estou caminhando em ovos e um
passo em falso, posso quebrar todos.
— Ele fica assim porque me vê pouco — suponho. — Garden sabe que
tem você o tempo todo, não precisa te buscar porque está sempre no seu
campo de visão... nós só procuramos aquilo que não achamos. Por isso
quando me vê fica assim. Essa reação vai passar quando eu deixar de ser a
novidade e passar a ser a constância. Garden vai achar outra pessoa para
nos trocar, não se preocupe.
— Isso deveria me confortar?
— Não sei, Angelina. Estou apenas dizendo a verdade... quando eu era
criança e chegava um primo distante, ele parecia mais interessante do que a
companhia do meu pai, por exemplo. Novidades são mais chamativas.
Não dou mais explicações. Na verdade, não preciso dar nenhuma, é
óbvio porque o Garden age assim e nada tem a ver com o fato de me
preferir. É só porque ele mal me vê!
O bebezinho faz um barulhinho engraçado com a boca e Angelina e eu
abaixamos a guarda para ver suas gracinhas. Ele gosta de receber atenção,
acho que puxou muito de Donna...
— Eu queria que ela pudesse estar aqui com você — comento para mim
mesmo. Sinto falta da minha irmã, mais do que tenho tido tempo para notar.
Às vezes ficamos tão ocupados, que nem mesmo nos lembrar das pessoas
que sentimos saudades conseguimos. É o cúmulo não ter tempo nem para
saber o que se sente nessa porra de vida.
— Quem? — Angelina indaga, me fazendo perceber que falei em voz
alta.
— Donna.
A expressão que era tensa, fica triste. Não sou o único a sentir a falta
dela.
— Eu a entendo — Angelina diz depois de um tempo em silêncio. — Se
eu pudesse, também fugiria de tudo.
— É... acho que todos nós.
Engulo a seco, estendendo Garden para ela. Angelina me olha surpresa e
segura nosso filho com visível alívio. Ela deve mesmo me considerar um
merda para ficar tão ansiosa sempre que eu o pego. Angelina acha mesmo
que não sou capaz de cuidar dele? Ou pior, que vou tirá-lo dela?  
Suas mãos acariciam as costinhas dele, o embalando de um lado para o
outro. A pequena mãozinha repousa sobre o colo dela e segura os fios de
cabelo que caem ali. Antes que Angelina possa impedir, Garden se agarra
aos fios, os puxando com força.
— Ah, meu Deus, de novo não.
Angelina tenta abrir a mão dele, mas Garden a fecha com força.
— É... deixa eu ajudar... — Dou um passo à frente, abrindo com cuidado
cada um dos dedinhos dele até livrar o cabelo dela. Empurro a mecha para
trás e meus dedos esbarram em seus ombros, o que a faz estremecer.
Interrompo meu gesto, segurando a mecha de cabelo estático e próximo o
bastante para sentir seu perfume. Nem mesmo ele é capaz de acender a
fagulha dentro de mim agora.
Porra... como conseguimos foder até com isso?
Nós não dizemos nada. Apenas ficamos parados. De frente um para o
outro, mas sem se olhar. Próximos, mas sem se tocar. E pior ainda, sem
sentir absolutamente nada.  Não há atração, nada nos puxando, apenas
repelindo. Nunca me senti tão distante de mim mesmo.
— Você... você tem algo para prender seu cabelo? — pergunto para
quebrar a tensão pesada da sala. Não é uma tensão boa.
— Na minha bolsa.
Angelina aponta para a poltrona, onde está a pequena mala do Garden.
Respiro fundo, estalando meu pescoço.
Pego a liga de cabelo dela e me posiciono em suas costas.
— Posso amarrar pra você? — Espero a resposta, vendo os olhinhos do
Garden me procurando. Ele solta um gritinho quando me acha e pisco para
ele. Você é esperto demais, filho, assim vai acabar com meu coração.
Quando Angelina não responde, eu imagino que ela não vá deixar. — Posso
segurar ele pra você amarrar...
— Pode... pode amarrar — ela diz rápido, me interrompendo.
— Ok. Eu vou juntar seu cabelo.
— Tudo bem.
Olho para os fios dourados na minha frente, me perguntando quando foi
que eu cheguei ao ponto de ter medo de tocá-los. Segurar esses fios e passar
a mão por eles já foi meu passatempo, agora é algo que não vou fazer mais.
É estranho. Essa falta de intimidade com ela é estranha. Não parece que a
conheço há anos. Balanço a cabeça, recolhendo os fios de cabelo na mão. A
ponta dos meus dedos eventualmente passa pelo pescoço dela e Angelina
tem calafrios, mas nada da resposta que meu toque conseguia antes. Eu
também não sinto a mesma emoção. Ou emoção alguma. Ainda estou com
raiva. Ela ainda está com raiva.  
E eu não vejo muita perspectiva de que isso vá mudar em algum
momento.
Termino de amarrar seu cabelo, indo para a porta.
— Vamos, eu vou deixar vocês em casa.
— A gente pode ir de taxi.
— Meu carro já tem o bebê conforto do Garden, é mais seguro.
Ela abre a boca para contestar e inclino o rosto.
— Angelina, eu não estou te convidando para um passeio, eu só quero
levar meu filho da forma mais segura pra casa. Nada mais.
Vejo que ela contrai seu maxilar.
— Ok — diz contrariada, saindo com Garden do quarto.
Esfrego o rosto com as mãos, puxando meu cabelo em seguida.
— Isso não vai ser nada fácil. Definitivamente não vai.
 

 
 
Fecho o notebook depois de terminar mais um trabalho da faculdade. Os
professores realmente acham que por estar em casa tenho mais tempo do
que os alunos que estão indo para a aula. Eles só se esqueceram que estou
cuidando de um recém-nascido e que se não fosse a verdadeira rede de
apoio que eu tenho, nem esses trabalhos eu estaria conseguindo fazer.
Pelo menos essa noite eu consegui dormir, já que na passada fiquei no
hospital. Quando Garden acordou às seis horas, Francis já estava na sala o
esperando. A minha vontade ainda era de mandá-lo ir embora, mas escutei a
conversa que ele teve com meu pai. Louis e vovó dormiram aqui essa noite
para caso Garden tivesse febre de novo e ao que parece meu pai e Francis
estão criando algum tipo de amizade.
Quando desci as escadas, eles estavam falando sobre mim.
— Eu entendo por que você estava estressado ontem, mas te peço para
ter calma com ela. Minha filha vai voltar a si em breve, eu sei disso.
— Não se preocupe, Louis. Eu não estou aqui para brigar com ela, muito
pelo contrário. Eu quero a relação mais pacífica com Angelina, o Garden
merece isso de nós dois. Ontem eu realmente senti muita raiva e não vou
mentir, estava possesso com Angelina, mas já me acalmei e não pretendo
manter nenhum tipo de relação hostil.
— Isso quer dizer que você ainda a ama?
A pergunta do meu pai me faz parar no meio do caminho para ouvir a
resposta. Por alguns segundos, não sinto meu coração bater.
— Isso quer dizer que amo meu filho. E vou fazer o possível para que
ele tenha uma vida tranquila.
Até agora, mais de três horas à frente, a resposta dele ainda martela na
minha cabeça. Ou melhor, a forma como ele se esquivou de responder.
Então ele não me ama mais? Ou não quer admitir porque está com raiva de
mim? Eu quero que ele me ame? Eu sequer o amo ainda?
Pensar nessas coisas e fazer o trabalho não foi fácil. Algumas vezes me
levantei da cadeira da escrivaninha para pedir que ele fosse direto na sua
resposta, mas me sentei de volta porque… porque tenho medo do que ele
vai me falar. Ou do que eu posso falar para ele.
Quando estou na frente do Francis, minha primeira intenção é de ferir.
De magoar. E as pessoas à minha volta não estão do meu lado nisso.
Ninguém entende. É estranho, porque da última vez que nos separamos,
todos ficaram do meu lado. Mesmo torcendo para que eu o perdoasse, todos
ainda ficaram do meu lado. Agora, todos estão me dizendo que estou errada
e eu não consigo ver assim. Não acho que estou errada.
Se eu achasse, não estaria agindo dessa forma.
Depois de escutar a resposta velada do Francis, eu anunciei minha
presença e perguntei ao meu pai se ele poderia ficar com o Garden para eu
estudar. Eu não deixei de notar o revirar de olhos do Francis por não ter
pedido a ele, mas pelo menos se manteve calado.
Eu sei que provavelmente é ele que ficou com meu filho, mas quero que
entenda que não preciso dele. Ele pode estar aqui, pode participar do meu
convívio, mas não preciso dele.
Dois toques na porta me fazem olhar para o lado.
— Pode entrar.
Papai abre a porta em seguida, caminhando até mim com as mãos no
bolso.
— Onde está o Garden?
— Com o pai dele.
Reviro os olhos, me levantando da cama. Louis entra na minha frente, no
entanto.
— Seu filho está bem. Você não precisa correr.
— Você também veio aqui pra me dar algum sermão sobre minhas
atitudes?
— Não. Eu vim aqui pra te mostrar uma coisa.
Franzo o cenho. Ele se senta na beirada da cama depois de esticar o
lençol e desfazer todas as rugas. Em cima do colchão, meu pai coloca uma
pequena caixa de papel.
— O que é isso?
— Senta-se e veja.
Faço o que ele pede, segurando a caixa nas mãos, testando o peso. É
leve, mesmo que pareça cheia de coisas. Apoio a base sobre as pernas e
ergo a tampa, encontrando algumas fotos minhas quando criança.
— Por que me trouxe isso?
— Olhe todas e me diga o que falta.
Dou de ombros, vasculhando as fotos.
Há algumas de quando eu era bebê, quase todas com vovó Lina e
algumas poucas com minha mãe. Também tem algumas de quando eu tinha
uns quatro anos, brincando com Donna. Francis também aparece na grande
parte das fotos, mesmo que seja de longe cuidando de mim e da irmã. Há
fotos minhas nos jogos de vôlei, na floricultura, brincando nas ruas de Cape
May…, mas nenhuma… nenhuma com meu pai.
Comprimo as sobrancelhas, olhando para ele.
— Por que não tem nenhuma com você?
Ele suspira.
— Você notou… que bom.
— Você não gosta de tirar fotos, é isso?
— Não, Angelina. — Ele passa os dedos pela gola da camisa social, a
esticando. — Eu não estou em nenhuma dessas fotos, simplesmente porque
eu não estava lá quando todas foram tiradas. Eu perdi grande parte da sua
vida porque estava trabalhando. E você não tem ideia de como me
arrependo de poder conhecer sua vida apenas através dessas fotografias.
— Por que você tem isso se te deixa triste?
— Para eu me lembrar de não cometer mais esse mesmo erro… e agora,
para te lembrar de não permitir que essa história se repita com Garden.
— Eu sou muito presente na vida dele, não se preocupe.
— Não é de você que estou falando.
— Ah… — Abaixo a cabeça.
— Não deixe que Garden tenha lembranças só suas. Não deixe que ele
sinta o que você sentiu com a minha ausência. Não deixe que ele se sinta
desprotegido por parte do pai, como você se sentiu em relação a mim.
— Ele é muito pequeno para entender isso ainda. — Balanço a cabeça.
— Filha, desça e veja seu filho interagir com Francis. Se depois de ver
os dois juntos, você tiver coragem de me falar que seu filho não sentiria a
falta do pai por ser muito pequeno para entender, então eu te prometo não
falar mais nada.
Louis se levanta e vai para a porta, me esperando. Eu desço as escadas
em silêncio, apenas o seguindo. Na sala, Francis está sentado no chão, sobre
um tapetinho colorido que Garden ganhou do Ethan. Meu filho está deitado
de barriga para cima nele, enquanto Francis brinca de esconder o próprio
rosto com os pezinhos gordos dele.
— Cadê o papai? — ele esconde os olhos com os pés e Garden o encara
vidrado. É como se não existisse nada no mundo mais interessante que o
Francis. Não importa a quantidade de brinquedos pendurados em cima do
tapete, não importa o quanto sejam coloridos e barulhentos, meu filho só
encara o… o pai. — Achou!
Francis tira os pezinhos dele do rosto e Garden dá um gritinho animado,
como se fosse a brincadeira mais legal do mundo.
— Filho, você é muito fofo. Eu ainda vou acabar mordendo suas
bochechas.
Garden agita os bracinhos, resmungando no chão.
— Você quer colo, não é? Puxou a carência do papai, foi? A sua mãe não
é grudenta assim não, você com certeza me puxou nisso. Será que vai sofrer
por mulheres bonitas como o papai? Ou garotos, não se sinta pressionado.
Francis gargalha da própria fala.
— Acho que essa camiseta pode irritar sua pele, espera um minuto.
Francis puxa a camiseta pela cabeça e o pega no colo. Garden deita a
bochechinha contra o peito nu, fechando os olhinhos, enquanto eu arregalo
os meus ao ver as costas descobertas de Francis. Cubro a boca com as
mãos, as lágrimas descendo nos meus olhos no mesmo instante.
Desde sua nuca, até o final de sua coluna, um jardim foi tatuado. Plástico
envolvendo a pele me mostra que é recente. Me aproximo mais,
aproveitando que ele não notou minha presença. Em meio às flores do
jardim, sobre a parte superior, o nome Garden está escrito em uma letra
delicada e bonita. Algumas flores são pretas sem nenhum preenchimento e
outras são pintadas com o tom exato dos olhos dele… dos olhos de Garden,
que estão clareando cada vez mais, se tornando no tom cristalino do pai. Eu
achei que os lírios em seu braço fossem ser o desenho mais bonito que
havia visto, mas nada se compara a isso. À delicadeza e afeto presentes em
cada ramo, folhagem e flor desenhados sobre os músculos largos.
— Você… — ofego e Francis se vira assustado para mim. — Você
tatuou…
Agacho-me às costas dele, olhando de perto. Não consigo não traçar as
linhas do desenho com os dedos. Ele se afasta, no entanto. Francis me olha
com uma expressão inabalada.
— Está recente, não toque por favor.
— Ah… desculpe. — Abaixo minhas mãos, um pouco sem graça.
— Não se preocupe… — Ele desvia os olhos de mim. — Eu vou colocar
a blusa de volta, só tirei para não irritar o rosto dele.
Encaro meu filho, que parece estar no lugar mais confortável do mundo,
ouvindo os batimentos do coração de Francis. Garden tem a expressão
serena, calma e nada no mundo parece forte o bastante para abalá-lo agora.
Suas mãozinhas estão apoiadas contra o peito do pai, brincando de abrir e
fechar os pequenos dedos. A respiração dele é tão tranquila, que eu diria
que pode dormir a qualquer momento, mesmo que não seja seu horário de
sentir sono. Olho para o meu pai e nego com a cabeça. Não, eu não consigo
dizer que Garden não sente a falta do Francis. Eu não consigo sequer
cogitar que esses dois não se amam incondicionalmente. Ainda que dentro
de mim, eu sinta medo, não posso mentir. Mesmo pequeno, meu filho
reconhece o pai. Se conecta com ele. Foi assim desde a barriga... por que
seria diferente agora? Não posso mais afastá-los. Não posso causar dor a
esse bebê, só para evitar sentir a minha própria. Não posso ser egoísta.
— Fique assim, por favor… ele parece gostar muito.
Limpo a garganta, me levantando. Francis parece surpreso com minha
atitude. Só espero que não pense que a faço de bom grado. Estou apenas
evitando me colocar em primeiro lugar. Garden merece que eu priorize seus
sentimentos, não os meus.
— Eu vou estar no quarto, quando você precisar ir para o campus me
avise e eu desço para ficar com ele.
— Tudo bem.
Francis não me olha. Ele se concentra em Garden.
E talvez eu tenha a resposta para a pergunta que meu pai fez a ele.
Talvez ele não me ame mais.
E talvez seja melhor assim.
Só é... estranho. Diferente.
Em todas as ocasiões passadas, ainda que no fundo, eu sabia que sempre
poderia contar com o Francis. Que mesmo com raiva, sempre haveria um
espaço no coração dele reservado para mim. Mas acho que ultrapassei seus
limites. Assim como ele ultrapassou os meus.
Meu coração precisa entender, assim como minha mente, que já não
tenho um par de olhos cristalinos sempre voltados para mim. Porque até
mesmo o amor mais forte conhece limites. Até mesmo o elástico mais
resistente arrebenta.
E o nosso arrebentou.
Vamos ter que conviver, cada um com seu pedaço partido, com a eterna
lembrança de quando era um laço inteiro.
Seria mais fácil esquecer.
Mas a praia nunca é a mesma depois que a onda passa por ela.
Marcas são deixadas.
E Francis deixou a sua.
 

 
Durante a gravidez eu fui completamente obcecada com melancia. Agora
tenho vontade de vomitar só olhar para uma. Ethan entrou em casa depois
da faculdade com dez sacolas cheias de compras, onde duas delas estavam a
maldita fruta. Ele guardou tudo nos armários e geladeira antes de picar a
melancia para mim.
— Como está o segundo cara mais bonito da casa? — Ele brinca com os
pezinhos do Garden, que ele apelidou carinhosamente de brioche.
— Segundo? — Arqueio a sobrancelha.
— Eu ainda sou o mais gato. Deixa eu aproveitar meu posto enquanto
esse menino não cresce, porque aí ele vai ser o reizinho da USF.
Reviro os olhos.
— Você é ridículo.
— Vai dizer isso mesmo eu tendo trazido melancia? — ele aproxima a
fruta de mim e aperto a boca, engolindo a bile.
— Ethan, se não quiser que eu vomite isso em cima de você, tira essa
coisa de perto de mim.
— Mas você amava melancia.
— É... disse certo, eu amava.
Ele coloca o prato atrás de si.
— Vocês mulheres são difíceis demais.
— Só porque não gosto mais de melancia?
— Não, porque vocês ficam mudando de ideia a cada maldito segundo.
Ele suspira e se joga no sofá. Ethan estende os braços para pegar o
Garden e o coloco nos braços dele. Meu amigo só o segura se estiver
sentado e ainda fica parado como se estivesse segurando uma bomba.
— Aconteceu algo pra colaborar com a sua irritação às mulheres?
— Aconteceu que a Isabela tentou me beijar hoje.
— O quê? — Arregalo os olhos.
— É, ela tentou me beijar, eu recuei achando que pudesse estar fazendo
isso porque ainda estava mal e carente pela morte do irmão, só que ela ficou
extremamente ofendida com a minha recusa e quando eu tentei beijá-la, ela
se afastou e disse que era melhor a gente manter só a amizade mesmo.
Sinceramente, vocês são confusas pra caralho.
Ignoro o fato de ele ter falado um palavrão na frente do Garden. Do jeito
que todos falam aqui em casa, a primeira palavra do meu filho vai ser
proibida pra menores.
— Ela tem motivos de sobra pra estar confusa.
— Eu sei, mas agora não faço ideia se ela está chateada comigo por eu
ter recusado ou com raiva por eu ter tentado beijar ela depois.
— Eu aposto na primeira — admito.
— Por quê?
— Porque a gente não costuma tentar beijar alguém sem vontade. Se ela
tentou te beijar, é porque queria. E se isso a fizesse se sentir melhor na
situação que ela se encontra, qual seria o problema? Não é como se você
estivesse se aproveitando dela pra levá-la pra cama. Era um beijo, não um
pedido de casamento.
Ethan abre a boca, me encarando chocado.
Depois dizem que as complicadas somos nós. Eles que são burros.
— Posso entrar na conversa? — Blue se senta do lado do Ethan. —
Como vai o joelhinho mais lindo da titia?
— Será possível que vocês não conseguem chamar meu filho pelo
nome?
Nós finalmente o registramos. Quer dizer, Francis o fez. Foi estranho,
porque quando ele veio me falar que faria isso, pediu para acrescentar o
nome do Jayden. Mal sabia ele que eu já havia prometido isso ao meu
amigo no seu último momento... e eu cumpri. Meu filho foi registrado como
Garden Jayden Hopkins Eastwood. Eu nunca vou deixar que Jayden seja
esquecido. Nunca descumpro minhas promessas.
— Eu só apelidei o pé dele, não me inclua nessa — Ethan brinca, mas
arregala os olhos quando Garden se mexe minimamente no seu colo. Ele
cria quase que uma jaula com seus braços para o meu filho não cair. É
bonitinho, mesmo que desastrado.
— Ele não gosta de ficar deitado assim — explico. — Deixa eu colocá-
lo em pé.
— Não! — Ethan balança a cabeça freneticamente. — Eu vou deixar
essa criança cair, ele parece aqueles bonequinhos que quando você aperta
um botão se desmonta inteiro. Depois eu não vou saber consertar e vai dar
problema pra mim.
— Deixa de ser fresco, homem — Blue estala a língua. — Um jogador
de basquete de 1m87 com medo de um nenenzinho?
— Justamente por eu ser alto que tenho medo, a queda é maior.
— Ethan, você está sentado. — Seguro a risada.
Eu pego Garden com cuidado e o deixo na vertical sobre o peito dele.
Ethan sequer respira. Apoio uma mão dele na cabeça e outra na bunda do
Garden.
— Olha, eu dei conta! — ele sorri animado e Blue e eu reviramos os
olhos.
— Agora fica com ele assim porque eu quero conversar com a Angie.
Blue e ele trocam um olhar cúmplice, mas logo Ethan se dá conta de que
vai ficar sozinho com Garden.
— Não, gente! Pelo amor de Deus, não me deixa aqui sozinho não.
Meninas! Ei! — Ethan nos grita desesperado, mas Blue já me arrastou para
a cozinha.
— Senta aí! — Ela aponta para a cadeira. — Eu quero conversar uma
coisa séria com você.
— O que aconteceu?
— É o que eu quero saber.
— Não estou entendendo.
— Angelina, eu esperei até agora porque eu precisava te dar tempo para
superar algumas coisas, mas eu preciso saber exatamente tudo que
aconteceu no dia do acidente. Não quero que me conte nada dentro daquele
carro, porque nem eu quero saber e você com certeza não quer lembrar, mas
quero saber tudo que te levou até lá.
Solto o ar pela boca, mordendo meu lábio.
— Por que isso agora?
— Porque eu conversei com o Ethan algumas coisas sobre a foto que
você viu e estou um pouco curiosa. Não dá pra te explicar agora.
Fecho os olhos, assentindo.
— Vocês estavam foram de casa naquele dia — começo a falar, me
lembrando de como eu estava nessa cozinha, com Garden ainda na minha
barriga, sem a menor noção de como aquele dia terminaria. — Eu estava
aqui com Francis, até que o Vance apareceu.
— Por que eu sabia que tinha algo nessa história que o Francis não
estava me contando? — Ela bufa irritada.
— Eu não quis ficar aqui com seu primo e você sabe o porquê. Então eu
subi.
— O Francis foi com você?
— Não. Ele ficou aqui com Vance. Não me pergunte o que aconteceu
entre eles, porque não faço ideia dessa parte.
— E depois?
— Depois de algum tempo, Vance entrou no meu quarto, já
completamente descontrolado, falando um monte de merda sobre eu só
querer o Francis quando ele está sendo perfeito, sobre eu sempre fugir
quando ele erra... enfim, o de sempre.
— E o Francis?
— O Francis entrou logo em seguida e o jogou contra a parede. Eu achei
que ia matá-lo bem ali, porque havia tanta raiva nos olhos dele... e aí eu me
levantei e pedi para que parasse, que não começasse algo que ia se
arrepender.
— Você é outra burra, Eastwood! — Arqueio a sobrancelha e Blue
parece que quer me bater. — Meu primo quase te agrediu aquele dia, se não
fosse eu ter chegado, ele provavelmente teria feito isso e você não deixou o
Francis finalmente decorar a cara dele com um belo par de olhos roxos.
Pelo menos o Francis sabe o que ele fez aquele dia? Ou você até hoje não
contou?
— Não contei — suspiro. — Eu não queria fazer exatamente o que seu
primo falou que eu faria, Blue. Eu não queria correr para o Francis sempre
que eu precisasse, como se não soubesse me defender e ainda levando
problemas meus para ele.
— Minha querida... — Blue pede minha mão e a entrego para ela. —
Você é uma pessoa incrível e talvez a pessoa mais forte que já conheci, mas
você se deixa ser enganada muito facilmente. Às vezes, as pessoas dizem
algumas coisas, justamente para que você aja de acordo com o que elas
querem. Ele falou que você faz isso, justamente para que você não contasse
para o Francis o que ele fez. Só que nisso, Angie, não foi você que saiu
ganhando como a garota forte e sim ele saiu ganhando por conseguir te
silenciar.
— Isso não muda nada agora, Blue. — Dou de ombros.
— Continue me contando, vamos resolver esse assunto depois.
Assinto, recapitulando os acontecimentos daquele dia.
— Vance estava achando engraçado o Francis naquele descontrole,
parecia que estava vendo algo divertido... era nojento. E então ele falou que
o Francis estava guardando drogas no quarto. Eu não acreditei, ele tinha
dito desde o ano passado que tinha parado com as drogas e...
— E ele parou — Blue me interrompe.
— Mas havia mesmo droga nas gavetas dele. E quando eu perguntei por
que estavam ali, ele simplesmente travou. — Respiro fundo. — Eu disse
que não o estava deixando, que eu só precisava sair para me acalmar e ele
colocar a cabeça no lugar para me contar... e então eu fui pro restaurante
que eles trabalhavam. Eu fui ver o Jayden.
O nome sai rasgando na minha garganta, porque fazem meses que não
pronuncio em voz alta. Meus olhos se enchem de lágrimas e engulo
algumas vezes para conseguir falar.
— No meio da conversa, eu recebi uma mensagem do Francis. Era uma
foto da cama dele cheia de comprimidos, onde ele dizia que tinha cansado,
que não aguentava mais... dando a entender que tomaria tudo aquilo e...
Dado a esse momento, minhas mãos começam a tremer.
— Pode parar. — Blue segura minhas mãos com mais força. — Não
precisa continuar a partir daí. Só me responda uma coisa: as drogas que
você viu na foto, eram as que estavam no armário dele?
Franzo o cenho.
— Não... não eram. No armário só havia dois comprimidos brancos, mas
na foto tinham muitos comprimidos e de várias cores.
— É o que eu achava...
— Por que quer saber isso?
Blue me analisa com os olhos verdes determinados.
— Porque eu vou te provar que o Francis não mandou isso.
— Não perca seu tempo, Blue. Nós duas sabemos que nem você pode
provar algo assim.
— É o que veremos.
— Você deveria estar mais preocupada em resolver a sua situação com a
Donna do que a minha com o Francis.
Ela inclina o rosto, arqueando as sobrancelhas.
— Você consegue ser bem cruel quando quer, Angelina.
— Não fui cruel. Estou falando sério. Você está aqui querendo resolver
uma relação que não é sua, quando a que você realmente deveria resolver
está se perdendo.
— Você não é a melhor pessoa para julgar alguém em relação a isso.
Também está deixando sua relação morrer — ela retruca.
— Ela já morreu. —  A recordo. — A sua ainda não. Vá atrás da Donna.
Blue bufa uma risada irônica.
— Não dá pra ficar correndo atrás de uma pessoa que foge de você,
Angelina. É uma caminhada inútil, porque eu nunca vou alcançá-la. E isso
serve para você também. O Francis não vai correr sempre atrás enquanto
você estiver fugindo.
— Não sei se percebeu, mas ele já parou de correr.
Engulo a saliva, brincando com meus dedos.
— E isso parece te incomodar — ela conclui.
— Por que me incomodaria? É exatamente o que eu quero — a fito com
os lábios comprimidos.
— Vocês dois são péssimos mentirosos quando se trata de mentir para os
outros, mas são tão bons em mentir para si próprios, que acreditam que é
verdade o que falam.
Blue se levanta, olhando para mim mais uma vez antes de ir embora.
— Donna vai embora... eu já perdi minha batalha. Por favor, não queira
sentir o que eu estou sentindo agora. Não deixe ele ir também.
— Você não pode ter certeza de que ela vai embora, Donna só precisa de
um tempo.
— Eu a encontrei no aniversário da Cassy. Donna apareceu por lá para
desejar feliz aniversário, já que, bom... você sabe, a Cassidy não está
levando bem a morte do Jayden e a gente praticamente a obrigou a
comemorar seu aniversário. — Blue suspira cansada. — Acontece que
Donna foi e eu criei coragem para falar com ela.
— E como foi? — pergunto com o coração martelando.
— Ela vai mesmo se mudar para o Canadá. Já está tudo certo, ela vai tão
logo esse ano se encerre.
A informação me pega desprevenida. Donna não tem respondido minhas
mensagens ou ligações. Isso me magoa mais do que quero admitir.
— E o que você disse? — tento engolir o sentimento ruim.
— Eu disse que a amava... pela primeira vez disse a uma mulher — a
voz dela fica embargada. — Disse que a amava, que já sabia que a amava
há algum tempo e que não queria que ela fosse embora. Eu disse que a
gente daria conta de tudo isso. Que eu estaria do lado dela quando as coisas
ficassem difíceis, como ela esteve do meu, meses atrás... eu implorei para
ela ficar, Angelina. — As lágrimas escorrem no rosto da Blue e ela as seca
delicadamente. — Eu a abracei, tão forte como nunca abracei ninguém na
vida, e implorei para que não fosse. Para que me deixasse mostrar a ela que
o amor pode fazer mais do que machucar... que a vida perto das pessoas que
você ama pode ser boa.
Meus próprios olhos ardem.
— E o que ela disse?
— Que o fato de eu estar destruída por ela ir embora, é justamente a
prova que o amor só fere. E que... — O rosto da minha amiga se contorce e
seus lábios tremem. — Que o meu amor não era correspondido... que ela
não me ama como eu a amo. Que ela gostava de mim, mas... não era o
bastante para ficar.
— Eu sinto muito — murmuro engasgada.
— Eu também... também sinto muito, mas foi por não ter dito isso a ela
antes. Então, por favor... não perca sua chance de ser feliz ao lado da pessoa
que ama como eu perdi. Viva esse amor, porque acredite, tem pessoas que
dariam tudo para serem amadas de volta.
Blue sai da cozinha, me deixando sozinha com meus próprios
pensamentos.
A dor dela deixa meu coração menor do que já costuma estar.
Donna ir embora o extermina de vez.
Ela é presença constante na minha vida desde sempre. Minha infância
toda foi ao lado dela, aprendemos muita coisa juntas, lidamos com a
adolescência ao mesmo tempo, viemos para a faculdade juntas. Não há uma
única parte da minha vida em que Donna não estivesse lá.
E agora... agora simplesmente ela vai embora. Sem se despedir. Sem
uma última conversa. O que de tão errado eu fiz para ela? Sei que está
sofrendo, mas por que minha amiga não me procurou como sempre fez?
Nada sobrou da minha antiga vida. Tudo se foi. Não há um único pedaço
de lembrança da garota que fui um dia. A tatuagem no meu braço mudou.
Donna se foi do meu dia a dia, Francis se foi do meu coração, não piso em
uma quadra de vôlei há meses...
Tudo que a antiga Angelina mais amava se perdeu. E agora não faço
ideia de quem eu sou. Como posso me reconhecer, se tudo que me fazia eu
mesma, se foi? Como vou ficar inteira para o Garden, se todos os aspectos
importantes se fragmentaram?
 
 

 
 
— Como assim você vai embora?! — Seguro o celular com força, não
acreditando no que estou ouvindo. — Donna, você está sendo precipitada.
— Eu pensei muito sobre a minha decisão, Francis. Vou me mudar para
o Canadá, fui aceita na Universidade de Toronto. Começo no próximo
semestre.
Tiro o celular do ouvido, olhando para a tela sem nenhuma reação.
Aperto para ligar a chamada de vídeo e Donna aceita de imediato. Eu
pensei que a encontraria apática ou triste, mas ela está parecendo
simplesmente... minha irmã. Como sempre foi. Bem arrumada e maquiada,
com uma expressão quase debochada. Não coloca a máscara, Don. Depois
é difícil demais distinguir o que de fato é você, do que é o personagem que
criou para se defender. Eu sei bem disso.
— Você está fugindo — acuso.
— Estou — ela não se preocupa em negar.
— Do quê? De pessoas que te amam?
— Não... eu estou fugindo das pessoas que eu amo, Francis. Porque eu
descobri que basta um único segundo para elas irem embora. Eu prefiro ir
embora antes delas me deixarem.
— Você está antecipando uma separação, sofrendo por algo que pode
nem acontecer — argumento.
— Eu sei. Mas pode acontecer. E eu não quero ficar como você e a
Angelina. Vocês se perderam, por tantas perdas. E eu não quero me perder
de mim.
— Você acha que ficar longe de todas as pessoas que gosta vai evitar que
sofra? — Bufo uma risada. — Deixa eu te contar, como alguém que fez isso
no passado: você não vai sofrer, mas também não vai ser feliz. Vai estar
vazia.
— É melhor do que triste.
— Não, não é. — Nego com a cabeça. — O vazio é o pior sentimento
que você pode ter. O que nos torna nós mesmos são nossas emoções,
Donna. Eu demorei para entender isso. Mas mesmo que me doa tudo que
estou sentindo, eu não quero apagar nada. Eu não quero mais o vazio ao
invés do sofrimento. Eu quero passar por ele, até a hora de ser feliz de
novo. Porque assim eu vou evoluir..., mas sentindo o nada, sendo uma
pessoa anestesiada, tudo que eu posso fazer é andar em círculos que não
vão me levar a lugar nenhum. A apatia apaga quem você é.
Donna suspira, mas eu sei olhando nos olhos dela, que não vou mudar
sua opinião.
— Você aprendeu apanhando da vida..., mas eu sou mais esperta que
você, maninho. Não vou esperar me baterem.
— Você sabe que vai perder ela pra sempre se for embora, não sabe? —
me refiro a Blue. E Donna sabe.
— É melhor assim. Pra nós duas.
— Ela te ama, Donna.
Minha irmã pisca com minha fala, mas logo recupera a expressão fria.
— Ela vai aprender a não amar.
— Essa é sua última palavra?
— É minha última palavra.
— Então eu te desejo sorte. Você vai precisar.
— Obrigada, mas não vou mais contar com a sorte. A partir de agora só
vou contar comigo mesma.
— E Angelina? Já sabe?
Isso faz a expressão de Don cair por completo. Ela pode conseguir
esquecer a Blue. Mas ela nunca vai esquecer da amiga. As duas nunca
viveram separadas.
— Angelina não precisa de mim. Ela tem todos vocês.
— Ninguém vai ocupar seu lugar. Você sabe disso.
— Não posso pensar nela agora.
— Você não está pensando nem em você — retruco. — Papai sabe
disso?
— Ele disse que me apoiaria na decisão que eu tomasse.
— É claro que vai, ele está tentando fazer de tudo para você não o odiar
mais.
— Não o odeio... e ele fez o certo em aceitar. É a minha vida, não de
vocês.
— Mas Donna...
— Tchau, Francis.
Donna não espera eu me despedir antes de encerrar a ligação.
Abaixo o telefone sem qualquer esperança.
Tudo ruiu. Tudo que eu achei que fosse construído com bases sólidas,
simplesmente despencou e eu não posso fazer nada além de olhar a
destruição. Estou impotente. Mas vou ter que me acostumar com o fato que
nem tudo posso salvar. Nem tudo posso consertar.
Algumas coisas ficam simplesmente quebradas depois que você as deixa
cair. Não há cola que una os pedaços. E se você tentar recolher os cacos,
pode apenas ganhar cortes.
Donna precisa entender por ela própria o que eu levei anos para
reconhecer. A dor de perder quem amamos é dilacerante..., mas a dor da
solidão é muito pior. Antes viver cinco minutos como se fossem uma vida
toda ao lado de quem importa, do que momento nenhum por covardia.
Ela vai aprender. E quando estiver pronta, estarei aqui. Não posso
garantir por todos os outros, mas eu estarei aqui por ela. Como um dia ela
esteve por mim.
 

 
— Você percebe que está tentando carregar o mundo nas costas? —
Doutora Brice comenta depois que pedi uma sessão extra quase que
desesperadamente. Detesto confessar isso, mas a terapia tem me mantido de
pé. Isso e litros de café. Minha rotina está me matando.
— Muitas pessoas trabalham e estudam ao mesmo tempo. A maioria
dessa universidade, pra falar a verdade — retruco.
— E quantos são estudantes de medicina? Quantos trabalham meio
período e ainda pegam serviços durante a madrugada... e o mais importante,
quantos chegam em casa para cuidar dos filhos?
— Eu não sei, Doutora. Não saio por aí fazendo pesquisa pelo campus.
Ela sorri para a minha petulância.
— E ainda que fizesse, não importaria o resultado.
— Por quê?
— Não importa quantas pessoas estejam fazendo o mesmo que você,
porque elas não são você e ninguém nunca estará na mesma realidade e
condições que você está. Não precisa se esgotar só porque acha que o resto
do mundo está fazendo isso. A vida não é uma competição para ver quem
morre mais cedo de exaustão.
Arqueio a sobrancelha.
— Eu já falei que a senhora é irritante?
— Algumas vezes.
— Pois é, a senhora é irritante.
Brice tenta esconder a risada.
— Pode me explicar o porquê, senhor Hopkins?
Suspiro, cruzando os braços.
— Porque geralmente você está certa. E isso é um saco, porque quer
dizer que eu estou errado.
— Veja bem, Francis... — Ela apoia os cotovelas nas pernas. — Não há
certo e errado, apenas o que te faz bem e o que não faz. Sua rotina não está
te fazendo bem, como você próprio falou.
— Mas pra mudar isso eu teria que pedir a ajuda do meu pai — digo
desgostoso. — Isso não é certo, sou adulto.
— Eu entendo que você queira independência e isso é ótimo, mas
também não é vergonha aceitar ajuda. Ser adulto não significa lidar com
tudo sozinho. Isso não quer dizer que você não vá merecer cada uma das
suas conquistas. É claro que isso tornará mais fácil do que para as pessoas
que não tem essa rede de apoio, mas ainda assim terá esforço seu envolvido.
Você não faz o tipo que leva uma vida mole.  
Assinto com uma careta.
— Viu, eu odeio quando você está certa.
Resmungo alguns palavrões e a psicóloga dessa vez não consegue
segurar a gargalhada.
Eu odeio essa mulher.
Estou saindo da minha casa para ouvir umas verdades na cara, que eu
nem queria saber. E o pior que mesmo que eu saia daqui com a minha
cabeça estourando e com vontade de apertar o pescoço dela... eu também
fico infinitamente melhor a cada sessão.
É bom conversar.
Irritante.
Mas bom.
Quando entro em casa já passa um pouco das 20h. Graças a Deus é meu
dia de folga ou eu juro que cairia morto naquele restaurante e JC não ia
ficar nem um pouco feliz de perder outro funcionário.
Respiro fundo. Eu tento fazer piada disso como Ethan faz, para ver se
fica mais fácil..., mas não fica. Não pra mim.
Ainda me dói todo maldito dia.
A falta dele dói todo maldito dia.
Noite passada eu sonhei com Jayden. Nós estávamos no trabalho e ele
perguntava do Garden. Foi estranho. Quando acordei, era como se eu de
fato tivesse estado com ele. Não sei se acredito em vida após a morte ou
toda a espiritualidade dos sonhos, mas o dessa noite eu escolhi acreditar.
Porque foi bom ver meu amigo de novo e saber que ele se preocupa com
meu filho.
Entro para o banho sonhando com a minha cama, mas quando saio do
banheiro, Ethan já está esparramado nela. Eu o amo. De verdade, amo esse
cara. Mas não aguento mais ficar sem espaço pra dormir e, principalmente,
sem meu precioso silêncio.
— Quando você vai parar de dormir aqui? Você tem casa.
— Você também tem uma — ele retruca, mexendo no celular.
— Uma com uma certa mulher que me mataria de madrugada.
— Angelina no máximo chutaria suas bolas... e não é como se você
precisasse ter mais filhos.
Jogo a toalha em cima dele depois de vestir a boxer.
— E quem disse que não quero mais filhos?
Ethan atira minha toalha no chão.
— E você vai tatuar em que parte do corpo se outro nascer? Porque eu
ficaria no mínimo puto da vida se meu irmão estivesse estampado nas
costas do meu pai e eu ganhasse o quê... um braço?
Gargalho alto.
— Eu não tinha parado pra pensar nisso.
Na verdade, a tatuagem toda foi algo de momento. Depois que saí do
episódio estressante do hospital, liguei para o tatuador que fez meus lírios e
agendei um horário naquela noite. Foi impulso. Mas um do qual não me
arrependo. Meu filho merece essa homenagem. Só foi estranho ver
Angelina em choque. Talvez ela tenha finalmente entendido o que nosso
filho significa para mim.
— Pois é, isso que dá virar um gibi pra homenagear as pessoas que você
ama... quero saber quando você vai fazer uma pra mim.
Reviro os olhos, o empurrando para o lado. Mesmo assim, não sobra
muito espaço no colchão.
— Vou tatuar um carrapato. Porque é isso que você é, um maldito
carrapato.
— É, mas um carrapato te ajudaria a conquistar sua garota? — Ele se
senta na cama, me olhando com cara de pervertido.
Suspiro.
— Ethan, eu não quero reconquistar ninguém.
— Caralho, você e Angelina são uma puta dor na bunda.
— Para de se meter que vamos parar de ser uma.
— Eu não me meteria se ver a cara de merda de vocês dois não me
incomodasse. O pobrezinho do Brioche reviraria os olhos se conseguisse.
— Brioche? — Me sento. — Você tá falando do meu filho?
— O próprio, aquele menino parece um brioche. O leite da Angelina
deve ser um mingau pra deixar aquela criança gordinha assim.
Me engasgo com a própria saliva.
— Deixa ela te ouvir falando isso que eu não vou ser a pessoa mais
odiada da casa.
— Por falar em pessoa mais odiada da casa, você tem notícias do Vance?
O assunto faz minha veia salta. Estou tão ocupado que ainda não tive
tempo de tirar a história da foto a limpo.
— Esbarrei com ele em uma das aulas, depois disso não mais.
— Ele falou com você?
Bufo uma risada irritada.
— Veio com aquele papo de merda de sempre.
— Sei... — Ethan faz uma pausa longa demais e arqueio a sobrancelha.
— Não se esqueça que precisa me emprestar seu celular para eu levar no
meu amigo.
— Tudo bem. Isso vai me ajudar a dormir melhor.
— Se eu estiver certo, não vai não.
Ethan e eu estamos desconfiando da mesma coisa. Mas nenhum de nós
está com coragem para externar. Porque é a porra de uma confissão de que
convivemos com um psicopata. Eu espero estarmos errados. Mas algo
dentro de mim diz que não estamos.
 
 
 

 
 
Francis nunca foi pontual na vida. Desde que me lembro, ele me estressa
com seus atrasos. Mas para uma coisa ele nunca se atrasou: aparecer seis
horas da manhã em ponto na porta de casa, pronto para dar banho no
Garden. Mesmo que eu já consiga fazer isso sozinha, é um papel que ele
reivindicou para si.
Desde a conversa que tive com meu pai, estou tentando não atrapalhar a
convivência dele com nosso filho. Nosso relacionamento não melhorou em
absoluto, ainda trocamos apenas algumas dúzias de palavras necessárias,
mas pelo menos as farpas diminuíram. De alguma forma, Louis me fazer
lembrar da falta que me fez, conseguiu girar uma chavinha na minha mente.
Não quero que Garden sinta essa mesma falta do Francis. Posso não gostar
disso agora, mas ele é o pai... um bom pai.
O relógio bate os ponteiros e a porta da sala se abre como esperado. O
bebê no meu colo não tira os olhos da porta, esperando para ser mimado.
Francis deixa o casaco no gancho da parede e seus olhos são atraídos para o
bebê impaciente no mesmo instante, que se agita ainda mais nos meus
braços.
Francis o pega no colo, beijando suas bochechas gordinhas.
— Bom dia, Brotinho. Parece que você cresceu.
Olho para baixo, escondendo o sorriso.
Ele diz isso todos os dias. E bom... Garden está mesmo crescendo. Em
alguns dias, ele vai completar quatro meses. Nem posso acreditar que já
estamos em dezembro. Que o natal está chegando... vai ser um feriado
complicado para todos nós. Ainda não me decidi se vou para Cape May.
— Bom dia, Angelina.
Olho para cima novamente.
— Bom dia, Francis.
— Como foi a noite?
Respiro fundo. Eu gosto de rotina, mas essa mesma conversa que temos
todos os dias está me entediando.
— Cansativa.
— Imagino... — ele encara nosso filho. — Você precisa dormir melhor,
carinha. Desse jeito vai ter olheiras antes do primeiro ano.
— E a sua noite, como foi? — Mudo o roteiro do nosso diálogo diário.
Tem muito tempo que não pergunto como ele está. Ou que sequer me
importo com isso.
— Foi cansativa também, fiquei trabalhando.
— Entendo... — Balanço meu corpo para frente e para trás, sem mais
ideias para assunto.
Garden, ao contrário de mim, parece ter muito a dizer. Ele balbucia
coisas ininteligíveis enquanto se irrita ao não conseguir chupar seu dedo,
por causa das luvinhas que coloquei nas suas mãos. Ele estava se
arranhando e não tive coragem de chegar uma tesoura perto da sua mão
inquieta. Da mesma forma que balanço minhas pernas, meu filho move suas
mãos. Agora eu entendo porque algumas pessoas se irritam com essa
inquietação.
— Seu trabalho deve ser cansativo mesmo... ainda mais com essa rotina
— digo apenas para finalizar o assunto.
A gente já repetiu demais a palavra cansativo em uma conversa tão
curta. Mas não temos mais reportório como antes.
— É, mas de qualquer forma foi meu último dia.
— Você foi demitido? — Arregalo os olhos.
— Não, eu não fui demitido. — Ele bufa uma risada. — É engraçado
porque chegou a essa constatação de primeira... eu entendo, você sempre
me via chegando do trabalho todo sujo, devia imaginar o desastre que eu
era.
Pela primeira vez em meses, sinto uma pontada de culpa pelo que falo.
— Desculpa, não quis dar a entender que você não trabalhava bem.
— Tudo bem, Angelina. — Joga os ombros. — Eu só achei engraçado,
não se preocupe.
— Então você pediu demissão?
— Sim. — Francis se senta no sofá, colocando Garden nas suas pernas.
Meu filho logo leva as mãos até a tatuagem de lírios, me deixando sem
graça. Não sei explicar, mas me sinto desconcertada a vendo assim... acho
que Francis não deve gostar mais dela como antes. Exatamente como
também não gosta mais de mim. — Depois de muito relutar eu aceitei o
empréstimo que meu pai me ofereceu.
— Ah. — Limpo a garganta, afastando meus pensamentos. Achei que
ele nunca fosse dar o braço a torcer sobre esse assunto. — Eu lembro de
você ter falado sobre.
— Pois é... vou começar a pagar assim que me formar e arrumar um
emprego. — Ele ergue o olhar para mim com uma expressão séria. — Não
se preocupe, que tudo que você e o Garden precisarem, eu vou providenciar.
Minhas bochechas esquentam.
— Eu não estava preocupada com isso, eu também tenho o dinheiro que
meu pai depositou todo esse tempo na minha conta.
— Eu sei que você não estava pensado nisso e que tem dinheiro, mas
quero que saiba que não está sozinha nessa... nós somos uma dupla quando
se trata do nosso filho. E eu sempre vou estar aqui por ele.
Por ele. Não por mim. Não deixo de notar na sua fala, mesmo que eu não
saiba se ele percebeu.
— Eu sei... — sussurro, brincando com meus dedos. — Eu sei que vai
estar.
— Isso quer dizer que não vai mais me mandar embora?
Minhas bochechas ficam mais quentes ainda.
— Quando se tratar dele, não.
— É tudo que quero. Não vou te exigir ou esperar nada além disso.
Meu coração bate de um jeito errado. Parece medo. Medo de perder
algo.
Ou alguém.
— Você pode cortar as unhas das mãos dele? — mudo de assunto
depressa. Não estou gostando do rumo dos meus pensamentos.
— O quê?
— As unhas das mãozinhas estão grandes e ele se arranhou noite
passada, então eu coloquei essas luvas.
— Ah... — Francis solta uma risada sem jeito... — Claro... inclusive não
é bom deixar muito tempo com elas para não atrapalhar a sensação do tato
para ele.
— É mesmo? Eu não sabia, vou evitar de agora em diante.
— Não se preocupe, só o tempo que você deixou não vai interferir em
nada, mas o uso constante das luvas atrapalharia o desenvolvimento das
sensações... demoraria mais para se acostumar a elas quando chegasse a
hora.
— Não quero atrapalhar o desenvolvimento dele, isso já me tira o sono
todas as noites — admito.
— O que te preocupa exatamente?
Dou de ombros.
— Ele pode ser autista também. Meu pai é. Eu sou. Garden também
pode ser.
Talvez agora eu entenda a culpa que Louis disse sentir. Não quero que
Garden sofra.
— Não é uma ciência exata a questão da hereditariedade do TEA, você
sabe. É difícil dizer se Garden será autista ou não, só porque você é, ou
porque seu pai é. Nós só saberemos disso mais para frente, o diagnóstico
não costuma ser conclusivo ou até mesmo realizado com bons resultados
antes de um ano, principalmente em casos do nível 1 como o seu. — Ele me
explica com calma. — É algo a se observar, claro, principalmente pela mãe
e avô fazerem parte do espectro, mas não se preocupe agora. Garden está
tendo seu desenvolvimento dentro dos prazos razoáveis e se chegar um
momento em que ele esteja apresentando sinais, isso não será um problema.
— Não? — Franzo o cenho. — Eu não quero que meu filho passe pelas
coisas que passei.
— É exatamente por você já ter passado, que eu sei que Garden não
poderia ter uma mãe que o entenderia e apoiaria tão bem. Confio em você
em relação a isso. Garden será feliz, dentro do espectro ou fora dele.
Abaixo a cabeça.
— Obrigada — sussurro baixinho.
— Pelo quê?
— Por confiar em mim.
— Eu aprendi que duvidar de você nunca é uma opção sensata — ele diz
por fim e se levanta com Garden. Sinto palpitações no peito. — Vou dar
banho nele e então corto as unhas, tudo bem?
— Uhum... — Balbucio, enquanto ele sobe as escadas com nosso filho.
Frio... ele está simplesmente, frio. Indiferente. Não está bravo comigo
como antes, mas também não há calor em nada que fala. Essa apatia me
incomoda mais do que deveria.
Subo para o quarto alguns minutos depois, para ajudar a vestir o Garden.
Francis ainda se atrapalha com os botões das roupas.
— Imagino que você vai voltar a nadar agora que parou de trabalhar —
comento depois de vários minutos em silêncio no quarto. Francis sequer
estava respirando enquanto cortava as unhas do Garden. Definitivamente
ele é nosso filho, essa criança não conhece o significado de paciência,
resmungou todo o tempo. Pelo menos agora vai parar de se arranhar.
Francis o deita sobre seu peito.
— Na verdade, não vou não... — Reafirmando meu pensamento, Garden
reclama da camiseta em contato com seu rosto. — Espera, campeão, não
posso tirar a blusa agora.
Como se respondesse, Garden bate a mão no rosto dele, me fazendo
segurar a risada. Ganhei um igual dois dias atrás no meu nariz e passei meia
hora espirrando.
— Pode tirar.
Fico surpresa quando percebo que é minha voz pronunciando isso.
Francis parece tão chocado quanto.
— O quê?
— Pode tirar a camiseta.
Ele pisca.
— Você tem certeza? Eu posso distrair ele com outra coisa.
— Não é como se eu já não tivesse te visto sem camisa antes, Francis. O
Garden é a prova disso.
Dessa vez, são as bochechas dele que ficam vermelhas.
Estendo os braços para segurar nosso filho e o devolvo quando Francis
tira a camiseta pela cabeça. Garden fica infinitamente mais quieto ao sentir
a pele com pele. Sorrio para o biquinho que ele faz sempre que está prestar
a dormir. A boca dele está começando a se parecer mais com a minha.
— Onde está a Blue quando eu preciso dela? — Francis diz agoniado.
— Do que você precisa?
— Beliscar alguém.
— O quê? — ele é maluco?
— É que o Garden é fofo demais, aí eu sinto vontade de beliscar ele, mas
não posso, então sempre que a Blue está por perto eu belisco ela no lugar.
Abro minha boca.
— Se você me beliscar eu chuto suas bolas. — Aponto o dedo pra ele.
Francis ri.
— Eu não estou a fim de morrer, não se preocupe.
Prendo o sorriso com os dentes, estranhando a sensação de querer de fato
sorrir. Achei que meus músculos faciais já nem soubessem como fazer isso.
Talvez ser feliz seja como andar de bicicleta... você pode até ficar
enferrujado, mas seu corpo e sua mente sabem a mecânica da coisa.
— Por que não vai voltar a nadar? — volto à minha pergunta inicial.
— Ah sim... porque vou usar o tempo que me sobrar do trabalho para te
ajudar e também para estudar.
— Você está sacrificando o seu sonho — solto antes de conseguir me
impedir.
Eu espero uma careta, um revirar de olhos ou até palavras hostis, mas o
que recebo é um meio sorriso.
— Sacrifício significa perder, renunciar, entregar algo muito importante
para mim, em troca de outra coisa que valha mais... depois que o Garden
nasceu, tudo que me importa é ele. Ele é onde começa e termina meu
mundo. Então não... não estou sacrificando um sonho, porque não sinto que
estou perdendo nada. Estou apenas honrando a pessoa que me deu um novo
significado para a vida.
Em todos esses meses, fitar os olhos de Francis foi difícil. Mas hoje, eu
busco por eles. Busco por eles porque não há nada mais lindo que o amor
que ele tem pelo nosso filho. Eu achei que o amor que ele sentia por mim e
a forma como me olhava era surreal... achei que nunca fosse sentir e ver
algo tão bonito. Mas ver que ele ama, a pessoa que eu mais amo no mundo,
com tanta reverência, me faz duvidar pela primeira vez que tenha mandado
aquela foto.
Como essa pessoa na minha frente, que eu tenho certeza que estaria
disposta a se jogar na frente de uma bala por essa criança, teria mandado
aquela foto?
Uma lágrima escorre pelo meu rosto e me surpreendo ao vê-lo recolhê-la
com o dedo. Francis também encara seu gesto com choque.
— Desculpe, é o hábito. — Ele limpa a garganta, voltando a brincar com
Garden.
E eu continuo estática, sentindo o calor do seu toque como se ainda
estivesse na minha pele.
Quando é que vou deixar de sentir essas coisas?
Quando vou começar a ficar tão indiferente como ele?
 
 

 
 
Quando é que vou parar de sentir essas coisas?
Quando vou começar a ficar tão indiferente como ela?
Ignorar e não sentir calafrios sempre que nossas peles se esbarravam era
mais fácil quando eu estava com raiva pelo Garden. Agora não tenho isso
ao meu favor. Vou ter que engolir a seco e provavelmente queimando
qualquer sentimento por Angelina... de novo.
Por sorte tenho meu filho para me distrair. Pensar na quantidade de
coisas que ele vai precisar até se formar e sair de casa, é um ótimo
passatempo. Pelo menos até eu lembrar o valor de um ensino superior nos
Estados Unidos. Não é desejando o mau alheio, mas espero ter muitas
consultas e atendimentos quando me formar.
— Doeu muito? — Angelina fala de repente. Ela está muito falante hoje,
isso é uma novidade.
— Hum? — giro o rosto, me assustando com sua proximidade. Angelina
está a poucos centímetros de mim, analisando minhas costas. — Ah, a
tatuagem... sim, doeu um pouco. Principalmente onde o osso é mais
proeminente.
— Eu posso? — ela aproxima a mão das minhas costas e prendo a
respiração. Apenas assinto. Angelina toca minhas costas com a ponta dos
dedos e faço o possível para me manter estático. As mãos dela estão mais
gélidas do que o de costume e estou há tanto tempo sem sentir seu toque,
que quase havia me esquecido de como ele é. E é bom... o toque de
Angelina é bom. — Garden vai ficar feliz com isso quando entender.
Abaixo a cabeça, escondendo o sorriso.
— Espero que sim.
— Eu sei o que é ganhar uma homenagem em forma de tatuagem... sei
que Garden vai gostar.
Engulo a saliva. Não estou gostando do rumo que meu coração está
tomando.
— Eu acho que é melhor eu ir, minha aula vai começar em breve.
Levanto-me com Garden, o colocando no berço. Fico de frente para
Angelina sem saber como me despedir. Geralmente ela me enxota daqui tão
rápido que não preciso pensar, mas agora é diferente.
— É... — Ergo a mão para dar tchau, mas abaixo porque seria ridículo.
Porra, por que estou ficando vermelho? Visto minha camiseta depressa,
mas não era minha seminudez que me deixava desconcertado. Acho que é o
fato de ela não estar querendo me matar hoje. — Então... eu vou...
— É... tá... tudo bem — Angelina também gagueja, me deixando
confuso.
Aceno para ela, saindo o mais depressa que consigo.
Já fora da casa, me curvo para frente, com as mãos nos joelhos e
ofegando como se tivesse corrido uma maratona.
Mas é só o meu coração acelerado demais.
 
 
 

 
É estranho vir ao campus depois de todo esse tempo. Estava programado
que eu só voltasse depois do ressesso de fim de ano, mas desde que Francis
me contou que havia deixado o emprego, conversamos sobre a
possibilidade de ele ficar com Garden pela manhã para que eu pudesse
voltar às aulas presenciais.
Eu já sabia sua resposta, porque havia me oferecido isso anteriormente.
Mas desde que eu fui extremamente grossa com ele na ocasião, achei
necessário falar de novo. De qualquer forma, é só uma semana antes das
festividades começarem.
Eu pensei que voltar a esses corredores lotados fosse ser algo comum,
uma parte da minha vida da qual eu sentia saudade. Mas quando me deparei
com às escadas de acesso aos prédios dos dormitórios, foi difícil engolir a
dor.
A imagem de um garoto de sorriso grande e covinhas profundas ocupou
toda minha mente. O conheci pela primeira vez ali. Com sua oferta para
carregar minhas coisas...
Eu não fazia ideia de que ele se tornaria uma parte importante da minha
vida. E muito menos que ele a deixaria pra sempre logo em seguida. Para
todos os cantos que olho, vejo imagens dele em seu uniforme de basquete,
fazendo piadas, gracejos e cantadas ridículas. Como eu sinto falta do som
da sua risada. Como eu sinto falta dos três segundos de abraços que ele me
dava.
Eu queria que pudesse ter sido mais.
Que ele tivesse mais tempo. Todo tempo do mundo.
Tive vontade de voltar correndo para casa, onde não havia tantas
lembranças do Jayden.
Dele e de Donna.
Desde que nos conhecemos, Donna e eu fomos carne e unha. Estou pela
metade sem ela. Estou perdida. Tudo aquilo que era meu quando passei por
esses corredores a primeira vez, eu perdi. Donna, Jayden... Francis.
Eu perdi tudo. Tudo o que considerava essencial. Mas uma coisa eu
aprendi com tudo isso.
Nada, absolutamente nada e nem ninguém, é tão essencial na sua vida,
que te impeça de continuar vivendo caso vá embora. Pode ser que a vida
fique mais difícil e menos bonita. Pode ser que os dias já não tenham a
mesma cor de antes e o sol já não aqueça como costumava... mas ainda há
vida. Mesmo que perca tudo, o amanhã ainda vai chegar e te dar coisas que
supram em parte aquilo que perdeu. A vida é um jogo de tabuleiro. Em
algumas casas se perde e em outras se ganha.
Perdi minha melhor amiga. E ganhei a Blue. Perdi meu amigo. E ganhei
meu filho. Perdi o Francis. Mas ganhei uma relação com meu pai.
Perder e ganhar. Ganhar e perder.
O mundo parece precisar de um equilíbrio cósmico para funcionar.
Eu só queria que alguém verificasse a minha balança, porque eu tenho
certeza que está quebrada.
Mando uma foto do campus para Donna. Todos os dias, eu mando uma
foto para ela. De mim, do Garden, de um livro. Apenas para que ela não se
esqueça de mim... e eu não me esqueça de como é ter Donna Hopkins. Ela
ainda não me respondeu em nenhuma delas, mas olha todos os dias, no
exato horário que as mando. Nós nunca precisamos de palavras para nos
entender, eu sei que ela me ama e ela sabe que eu a amo. Vou estar aqui
quando ela voltar, assim como sei que ela estará lá por mim. Eu vou esperá-
la.
Entro na sala depois de respirar fundo algumas vezes, ignorando os
olhares sobre mim. Principalmente os que olham para minha barriga. É... eu
não emagreci tudo que engordei na gravidez ainda, meu corpo não está
como antes, então superem! Meus peitos estão prestes a explodir de tão
cheios, meu nariz ainda parece uma batata e meus lábios ainda não
desincharam.
Não vou nem contar sobre a situação dos meus pés. Se o Ethan acha que
os do Garden parecem um pão, é porque não viu os meus. Minha intenção
era apenas assistir à aula como se nada na minha vida tivesse mudado
bruscamente, mas é muito difícil com quase toda a sala me olhando.
Verifico minha roupa mil vezes para ver se o leite não vazou, se estou
andando com um peito de fora...
Isso aconteceu dois dias atrás. Garden tinha acabado de mamar de
madrugada e eu precisava urgentemente de um copo d’água. Desci as
escadas, fui na cozinha, bebi a maldita água e quando estava prestes a subir
a escada de novo, esbarrei com Ethan indo para a cozinha. Ele deu um grito
tão alto que até mesmo o sono de pedra da Blue foi perturbado. Eu quase
acreditei que ele nunca tinha visto mamilos na vida, porque faltou se
esconder debaixo do sofá. O pior de tudo é que eu nem havia me dado conta
que estava com um seio para fora da blusa.
Pelo menos agora eu posso dizer que mais um homem além do Francis
viu meus peitos. Parabéns, Angelina, sua lista acaba de aumentar para
dois.
Suspiro irritada.
— O que é que vocês tanto me olham? — digo alto, assustando o
professor que escrevia no quadro. Algumas pessoas param de me olhar,
outras olham ainda mais e outras cochicham coisas. — Por acaso nunca
viram uma mulher depois de parir? Isso é tão novidade assim?
Uma menina de cabelos ruivos ergue a mão, chamando minha atenção.
— É que a gente tá meio sem jeito de perguntar, mas... será que você
pode trazer o bebê aqui algum dia? — Arqueio a sobrancelha surpresa. —
A gente viu o Instagram do Francis, ele posta foto do Garden todo dia e
literalmente seu filho é a atração principal de todo o campus... a gente só
queria conhecer ele pessoalmente.
Minha boca despenca.
Céus, esse garotinho é mesmo filho do Francis. Não sabe nem falar e já
tem um campus aos seus pés? Afundo na cadeira. Acho que eu vou ter
trabalho.
Eu sabia que o Francis tirava fotos dele, mas não sabia que estava
publicando. Do jeito que é babão, devem ter mil fotos só dos olhos do
Garden. Acho que ele gosta de se gabar que puxaram os seus.
— Eu o trago amanhã — me rendo.
E sou obrigada a ver uma sala toda eufórica por conhecer meu filho.
Seguro a risada.
Garden, Garden... eu vou ter que me dobrar para não te deixar com o
ego maior que o do seu pai.
 
 
Depois da última aula do dia, espero pela Blue no estacionamento para
me levar em casa. Meu carro... bom... não sobrou muita coisa dele. E desde
o acidente, não me vejo dirigindo. Tenho medo só de entrar em um carro.
Cada vez que sinto o freio ser pisado com mais força, todas as cenas
daquele dia invadem minha cabeça. Eu tento disfarçar para ninguém
perceber e parece estar dando certo até agora.
Quando o carro vermelho de Blue para na minha frente, entro
rapidamente, colocando o cinto de segurança. Olho para minha amiga com
a intenção de saber como foi a manhã dela e do Francis com Garden, mas
me assusto ao ver que não estamos sozinhas. Ethan está sentado no banco
de trás, com uma expressão tão brava, que eu posso jurar que alguém bateu
na mãe dele.
— Eu não quero saber o que aconteceu — digo logo. — Se for problema
que eu não posso resolver, então não preciso saber. Se for um problema que
posso resolver depois, então me contem depois.
— Não é problema — Blue fala friamente.
— Então é o que?
— A solução de um — Ethan me esclarece... em partes, porque continuo
confusa.
— Dá pra explicarem de uma vez? Ficam parcelando a informação e isso
me irrita.
— Angelina, se a gente te passar a informação toda agora,
provavelmente teremos que arrumar um advogado pra te tirar da cadeia. Eu
ainda não me formei, então sossega a bunda na cadeira e espera a gente
chegar em casa.
Começo a balançar a perna.
— Meu filho tá bem?
— Garden está perfeitamente bem ganhando tudo que quer daquele
molenga do pai dele, não se preocupe.
— Pra onde a gente tá indo? — Me seguro na porta quando ela acelera.
Meu coração quase chega à garganta.
— Pra casa.
— Vai mais devagar — minha voz treme. — Por favor.
— Blue... — Ethan coloca a mão no ombro dela e Blue desacelera no
mesmo instante.
— Desculpa.
Assinto, tentando respirar normal. Já passei por isso antes, foi como
quando me afoguei. Pelo menos eu ainda consigo entrar em um carro sem
travar completamente.
Mesmo tendo diminuído a velocidade, não demora para chegarmos em
casa. Blue não espera por ninguém, pula do banco do motorista, já abrindo
a porta da sala com brutalidade. Corro para alcançá-la, encontrando Francis
sentado no tapete, dando a mamadeira para o Garden. Eu tirei leite para ele
e confesso que eu estou pensando em doar para o hospital também. Sou
praticamente uma vaca.
— Já chegaram? — ele parece decepcionado.
A essa altura, pensei que Francis já estaria arrancando os cabelos, mas
me enganei. Ele parece estar nas nuvens por cuidar do Garden e nem um
pouco disposto a me entregá-lo de volta. Acho que alguns dias atrás eu teria
sentido isso como uma ameaça, sentiria medo que ele pudesse tirar meu
filho de mim e me morderia de ciúmes. Mas isso foi antes. Eu entendi a
extensão do sentimento que esses dois tem um pelo outro.
— Francis, entrega o Garden pro Ethan e sobe comigo e com a Angelina.
— Por que eu fico com o Garden? — Ethan coloca as mãos na cintura.
— Não que eu não ame ficar com o pãozinho, mas eu quero ver tudo.
Blue estala a língua, olhando enfezada para ele.
— Porque se precisar ficar na frente da porta pra esse doido não sair pra
matar alguém, eu sou a pessoa ideal.
— Eu sou mais forte — Ethan contrapõe.
— Mas o Francis te socaria para passar pela porta, em mim ele não
encostaria.
Ethan faz bico.
— Você tem um ponto.
— Será que dá pra alguém me explicar o que está acontecendo? —
Francis olha para mim e dou de ombros.
— Eu sei tanto quanto você.
— Vamos subir e eu conto tudo. — A animadora revira os olhos.
Francis entrega Garden para o Ethan, que se senta no sofá
automaticamente. Meu filho vai estar na escola e o padrinho dele ainda vai
segurá-lo sentado. Antes de subirmos, Ethan entrega um celular para o
Francis, que o lança um olhar questionador.
— Eu disse que ia resolver isso — Ethan murmura e a cor do rosto do
Francis vai se esvaindo.
Subo as escadas sem entender nada. E fico ainda mais confusa quando
Blue para em frente ao quarto do Vance. Ou o que era o quarto dele, já que
esse infeliz nunca mais apareceu aqui.
— O que você quer no quarto dele? — Francis indaga.
— Procurar por uma coisa.
Blue tenta abrir a porta, mas como eu esperava está trancada.
— Blue... — Francis insiste.
Ela suspira, se virando para ele irritada.
— Antes de mais nada, me responde uma coisa. Você usava seu
aplicativo de mensagens pelo computador na época do acidente?
Francis franze o cenho, mas responde mesmo assim.
— Não, meu computador estragou faz um tempo, você até comprou
outro comigo semanas atrás, lembra?
— Ótimo, era o que eu precisava saber. Agora abre a porta.
— Você viu que tá trancada — ele ironiza.
— Esses ombros largos não servem nem para arrombar a merda de uma
porta?
— Geralmente essa não é a funcionalidade deles.
— Francis...
Ele respira fundo, balançando a cabeça.
— Então dá licença.
— Você vai mesmo fazer isso? — indago assustada.
Ele não me responde antes de colidir o ombro contra a porta uma, duas,
três vezes, até que a maçaneta ceda aos seus impulsos. Francis abre a porta,
olhando para mim.
— Já fiz.
Merda...
Blue não perde tempo, entrando no quarto furiosa.
— O que você pretende achar aqui? — questiono precisando de
respostas que me façam entender alguma coisa.
— A prova de que não foi o Francis que mandou aquela foto pra você,
Angelina.
— O quê? — ofego.
Existe a possibilidade de...
Não... eu vi. Eu sei o que vi. Foi ele.
Era a nossa conversa. Não tenho dúvidas.
— Blue, seja mais clara — Francis começa a se irritar. Então somos dois.
Ela mal presta atenção em nós, revirando as gavetas e armário do Vance.
Paro para analisar o cômodo, girando sobre os calcanhares. Confesso que
não era o que esperava. Talvez minha imaginação tenha ido um pouco longe
demais e criado um cenário de filme de terror, mas esse quarto é comum
demais. Quase impessoal, como se não fosse de ninguém.
Não há fotos, livros, pôsteres, nada além de uma cama, uma
escrivaninha, um guarda-roupa e mesinhas de cabeceira.
— Droga, ele deve ter levado o notebook — Blue exaspera, se sentando
na cama com a expressão fechada.
— Blue Hale, ou você começa a fazer sentido, ou eu juro que vou surtar
— Francis se exalta.
— Francis Hopkins, com a sua burrice, eu quem deveria estar surtando!
— ela se levanta e aponta o dedo no peito dele. — Como pode uma pessoa
tão inteligente para algumas coisas, ser tão inútil pra outras?
— É pra eu me sentir bem com isso?
— Não, porque tudo isso podia ter se resolvido se você tivesse colocado
sua memória pra funcionar.
— Como assim? — Me meto na conversa.
— Conta pra ela, Francis.
— Contar o quê? — Ele bate as mãos na lateral do corpo.
— Como você deixou o Vance ter acesso ao seu telefone.
— Mas eu não deixei — ele se explica. — Eu estava com meu telefone
no dia do acidente, Blue.
— O Vance não precisava do seu telefone para mandar aquela foto — ela
contrapõe.
— Como não? — A voz dele fica tensa.
— Isso sou eu que quero uma explicação. Como o Vance conseguiu
acesso à sua conta pelo computador? — Blue o indaga cruzando os braços.
Olho para Francis esperando sua resposta e ele aparenta estar confuso no
começo, mas logo o vinco entre sua testa se desfaz e seus olhos saltam
assustados.
— Ah, merda... — ele ofega, se sentando na cama com a cor
abandonando seu rosto.
— O que foi? — começo a ter palpitações. Nada do que eles falam faz
sentido pra mim.
— Está se lembrando de algo importante para compartilhar conosco,
lindo? — o tom de Blue é puramente debochado.
— Eu... — ele nega com a cabeça, como se não acreditasse no que vai
falar. Quando seus olhos se voltam para mim, engulo a saliva, apavorada.
— Angelina, você se lembra do trabalho que fizemos para a aula de
redação? E que meu computador tinha quebrado no momento de te enviar o
arquivo?
— Uhum.
— Eu disse que ia pedir o notebook do Ethan emprestado..., mas não foi
o dele que peguei.
— Não foi?
— Não... — Ele se levanta da cama. — Ethan não estava em casa, então
pedi ajuda ao Vance.
Pisco confusa.
— E?
— E... que eu não lembrava a senha do meu e-mail. Te avisei isso por
mensagem.
— Sim... — assinto. — Eu cheguei a te dar uma bronca sobre isso.
— Exato — ele respira aliviado, talvez por eu me lembrar. — O Vance
deu a ideia de você me mandar o arquivo pelo aplicativo de mensagens e eu
conectar minha conta ao notebook dele para baixar e editar.
— E você fez isso? — minha voz é apenas um sussurro falhado.
Por favor, que não seja o que estou pensando.
Por favor, eu não posso estar enganada.
Porque se eu estiver... então cometi o pior erro de toda minha vida.
E não sei como lidar com isso.
— Fiz, Angelina. Eu conectei meu WhatsApp no computador dele e fiz o
trabalho.
— E não desconectou depois? — Blue interroga.
— Não... — Francis passa as mãos no cabelo. — Vance disse que sairia e
eu estava com a cabeça tão cheia e tão aliviado de ter entregado esse
trabalho, que não me importei.
Pisco com a visão turva, me escorando na escrivaninha para não cair.
— Agora que isso foi explicado, eu posso esclarecer vocês sobre o que
Ethan e eu descobrimos.
Olho para ela, negando com a cabeça.
Não...
Não pode ser isso.
Foi o Francis.
Precisa ter sido ele... porque se não foi, eu...
Umedeço meus lábios que ressecam e seguro a bile garganta abaixo.
— Ethan me contou que havia pegado o celular do Francis para seu
amigo dar uma olhada na conta e tentar descobrir como Angelina teve
acesso àquela maldita foto. Eu fui junto, porque tinha garantido que tiraria
essa história à limpo. O amigo dele descobriu que havia um dispositivo
desktop conectado à conta e rastreou o IP. De forma ilegal devo dizer, se
perguntarem eu nunca estive aqui. — Ela ergue o dedo. — Mas o que
importa, é que ele achou a localização do computador de quando logou na
sua conta pela última vez... aqui. A localização deu aqui. E se o seu está
quebrado e não foi o Ethan ou nenhuma de nós que estava conectada à sua
conta do WhatsApp, só resta um morador nessa casa.
Nego com a cabeça.
— A foto foi no quarto do Francis, os comprimidos estavam na sua cama
— tento achar qualquer brecha na lógica deles. Eu não posso... não posso
aceitar que estava enganada.
Não, não pode ser. Foi o Francis que mandou, foi... eu... eu disse que foi
ele. Acreditei que foi ele. O culpei por causa dessa foto, eu... eu desejei que
fosse ele naquele carro e não o Jayden, eu... eu falei coisas horríveis.
Impedi que Francis vivesse muitos momentos ao lado do nosso filho. Se o
que a Blue estiver falando for verdade, então... então eu cometi o maior e
pior erro da minha vida. Fiz exatamente o que o julguei tanto por fazer. Não
acreditei nele. Mesmo que tenha se ajoelhado aos meus pés, mesmo que
todos tenham me pedido para repensar, mesmo que as atitudes dele nunca
tenham me dado indícios que mandaria aquela foto, eu duvidei.
— Eu deixei o Vance no meu quarto aquela noite. Saí imediatamente
atrás de você — Francis explica, tirando meu chão.
Minha respiração acelera e continuo encarando meus pés. Vejo de
relance os passos dele mais próximos de mim e aperto minhas mãos.
— Eu te mandei mesmo uma foto, mas era de mim coberto de cerveja,
dizendo que se você estivesse muito brava comigo, podia ficar tranquila
porque o universo já estava me castigando. Você consegue acreditar em
mim agora?
Ele me contou isso no dia que Isabela veio me ver pela primeira vez
depois do acidente. Naquele dia, eu não suportei ver que ela o tinha
perdoado, se a morte do Jayden era culpa dele, se saímos apressados de
carro por causa daquela foto. Eu não consegui ver que as pessoas não o
odiavam. Parecia injusto.
Levo as mãos à cabeça.
— Não pode ser — fico repetindo isso. Não pode ser. Eu não posso ter
sido injusta assim. — Só tinham duas mensagens apagadas... a da foto e do
texto que mandou... se você também me enviou uma foto, deveria haver
mais e...
— Eu enviei o texto como legenda da foto, Angelina... não eram duas
mensagens. O mesmo pode ter acontecido com a foto que você viu.
— Angie — Blue tenta tocar em mim e me afasto. — Nós temos como te
provar, o amigo do Ethan nos mandou todos os prints e se o computador do
Vance ainda estiver aqui no quarto, podemos ter certeza.
— O Vance não deixaria isso aqui, Blue — Francis suspira. — E de
qualquer forma, não vai fazer diferença, não é, Angelina? Você ainda não
vai acreditar em mim.
Ergo o olhar para ele, não sabendo o que falar. As íris azuis me fitam
esperando uma resposta. Elas parecem me implorar para que eu acredite.
Implorar para que eu acabe com a dor que as deixam turvas. Ele está
sofrendo. Está sofrendo como eu sofri quando não acreditou em mim. E
mais... porque o que pensei que ele tivesse feito, era muito pior que beijar
alguém.
O que foi que eu fiz?
Ele está sofrendo e a culpa é minha. Eu estava enganada.
Não havia como. Mas eu estava.
Eu jurava... eu tinha certeza... que não havia como estar errada.
— Angelina — Blue me cutuca. — Fala alguma coisa.
Nego com a cabeça. O que eu vou falar? Tem alguma coisa que eu possa
falar?
Eu... eu o acusei. Eu desejei o seu mau. Eu o afastei do próprio filho. Eu
bati nele.
Meu Deus, o que foi que eu fiz?
— Angelina! — Blue insiste.
Nego novamente, correndo para fora do quarto e entrando no meu. Giro
a chave na porta, escorregando até o chão. Abraço minhas pernas com
força, controlando os tremores que vão chegando impiedosos.
Francis nunca vai me perdoar.
Nunca.
Eu não me perdoaria.
Eu o fiz se contorcer para conseguir o meu perdão e cometi o mesmo
erro. Vovó Angelina tinha razão. Mais uma vez, ela tinha razão.
Bato as mãos nas minhas orelhas, tentando silenciar meus pensamentos.
Por favor, eu não queria ter sido injusta. Eu não queria errar. Eu não
queria ser alguém ruim. Eu...
Eu não quero estar na mesma posição que Francis esteve. Porque agora
ele tem todo o direito de agir pior do que eu. Só que eu não tenho a força e
resistência que ele teve para não desistir de mim.
Como eu vou olhar pra ele?
Eu quis... eu quis que fosse o Francis naquele carro. Eu quis... como eu
posso pedir perdão por isso? Não tenho esse direito.
Eu nunca errei assim. Nunca estive nesse lugar. Não sei como agir a
partir de agora, isso é algo que nunca esperei passar. Eu estava acima de
erros assim... era o que pensava. Que não havia como errar assim.
Eu sempre fui justa. Sempre agi pensando no certo.
O que eu faço agora? Como começo a consertar?
Não foi ele... não foi o Francis que mandou a foto.
Deus, o que eu fiz?
Agarro meus cabelos, me encolhendo no chão.
Ele nunca vai me perdoar.
 

 
 
— Lindo, ela só está em choque, dê um tempo. — Blue toca meu braço.
Desvio o olhar da porta pela qual Angelina passou como um raio.
Forço um sorriso.
— Não se preocupa. Não existem muitas coisas que podem me chatear
agora.
Que mentira desgraçada.
Sempre vai existir uma pessoa que é a exceção à regra e poderá sempre
arrancar um pouquinho de dor de mim. E esse alguém é a razão pela qual eu
tenho lírios cobrindo meu braço.
— O que nós vamos fazer? — ela questiona ansiosa.
— Nada.
— Nada?!
— Blue, você mesma viu que Angelina não vai acreditar, do que
adianta?
— Você não entendeu, que se foi meu primo que mandou essa foto, a
culpa do que aconteceu é dele? E que não era o Jayden que ele queria
prejudicar? — Blue fecha as mãos com raiva. — Eu sei que é coisa demais
pra você pensar agora, mas coloca seus neurônios pra funcionar, o Vance
mandou essa foto pra Angelina, sabendo que ela estava perto de ter o bebê,
que estava dirigindo e que com certeza viria o mais depressa possível para
te impedir de fazer alguma besteira... ele só não contava que o Jayden fosse
aparecer nessa equação. Vance queria atingir a Angelina, Francis. E o
Garden por tabela.
Sinto um calafrio descendo minha espinha. Vance demonstrou de todas
as formas possíveis que não gostava da Angelina, mas em que parte a mente
dele se perverteu tanto a esse ponto? Por que gostava mim? Duvido muito.
Ninguém faz isso por gostar de alguém. Não sem ter sérios desvios de
caráter.
— O que você tá fazendo? — questiono quando Blue começa a procurar
algo embaixo do colchão.
— Infelizmente aquela praga é meu primo, e quando éramos crianças
nós escondíamos coisas embaixo do colchão, principalmente doces... até ele
contar pra minha mãe e eu ficar de castigo. Só descobri isso quando estava
no colegial e minha mãe acabou contando em uma discussão comigo sobre
meu corpo. Eu desconsiderei na época porque éramos crianças, mas Vance
sempre teve um jeito diabólico de nos colocar em problemas. — Ela ri com
claro desprezo, passando a mão sob o colchão.
— Você acha que vai encontrar o quê? Cocaína? Porque com certeza seu
primo não deixaria o notebook dele aqui, ele não é burro.
— Não, Francis, ele não é burro. Mas é prepotente e narcisista. Pessoas
assim se acham acima da inteligência dos outros, são confiantes demais,
acham que ninguém nunca vai descobrir as coisas que fazem... e isso os
torna descuidados em alguns momentos. Ele pode não ter deixado o
computador, mas com certeza isso não é a única coisa que pode mostrar o
merda que ele é.
— Me diz que aí não tem fotos de corpos, pelo amor de Deus — digo
quando ela tira debaixo do colchão, uma pasta azul.
A veia da minha testa lateja. Eu ainda não sei o que achar de nada disso,
a minha ficha não quer cair de que tudo pode ter sido uma armação dele, de
que ele fez essa merda para prejudicar a Angelina... é pesado demais. Eu já
estava desconfiando quando Ethan me questionou sobre terem clonado
minha conta, mas ainda restava uma pequena esperança de que não fosse.
Me dá calafrios ter deixado uma pessoa assim tão perto da Angelina e do
meu filho. O que mais ele pode ter tentado fazer, que a gente nem
descobriu?
É informação demais.
— Francis, acho que você deveria ver isso... — Blue me chama e
estende a pasta aberta, com o rosto pálido.
A seguro com as mãos tremendo. Quando crio coragem, abaixo os olhos
para o conteúdo dentro dela, que não passa de algumas fotos polaroids.
Não são de assassinatos.
Mas são fotos minhas.
Muitas, muitas fotos minhas.
Treinando, nas aulas, comendo no refeitório, conversando nos
corredores, estudando na biblioteca... em nenhuma delas eu olhava para a
câmera, até porque não sabia que estavam sendo tiradas. Elas não são de
qualidade profissional, provavelmente foram tiradas de um celular. Mas o
que me assusta de verdade é o que está escrito embaixo de cada uma das
fotos.
Em uma delas, estou sentado na sala de aula, olhando meu computador.
Provavelmente é do primeiro semestre que entrei na USF, dado o corte do
meu cabelo. Na parte branca da polaroid, está escrito: “acho que estou me
apaixonando por um garoto gentil”.
Em outra, estou no hospital, logo depois de sofrer a overdose. Nela está
escrito: “ele vai precisar muito de mim agora, isso é bom”.
Meus pelos se arrepiam.
Em outra, estou segurando a mão da Blue em um jantar que os pais dela
deram para comemorar o aniversário de casamento. Foi a primeira vez que
fui até a casa da Blue, quando começamos a mentir sobre nosso namoro.
Nela, a anotação está mais forte, como se ele tivesse colocado muita força
na caneta ao escrever.
“Ele escolheu o Hale errado, mas vai me notar quando achar que me
perdeu”.
— Puta que pariu — sussurro, me sentando no colchão.
Em outra foto, estou conversando com Josh, acho que foi logo que os
dois começaram a namorar. Nela, a frase é: “o cara que me ama e o cara
que eu amo”.
Fecho os olhos, com a náusea me subindo à garganta. Blue pega a pasta
de mim, olhando o restante. Eu não sei se quero ver o resto. Se piorar, eu
juro que vou ter que concordar com Ethan que vivia com um psicopata
dentro de casa.
— Francis — ela murmura assustada, me entregando mais algumas
polaroids.
Minha cabeça parece girar pelo quarto.
Sou eu e Angelina no cine drive-in, abraçados na carroceria do carro do
Ethan.
— Como... como ele tirou isso? Nós estávamos sozinhos lá.
— Ao que parece não estavam.
— Não tem nada escrito, pelo menos. — Acho que não quero saber o
que ele pensou daquele momento, porque me lembro bem que não foram só
os lábios dela que estiveram na minha boca naquela noite.
— Olha atrás... — Ela vira a foto nas minhas mãos e entendo por que
não havia nada na frente. Não caberia.
“Eu a odeio. Odeio como ela consegue enganá-lo tão bem com aqueles
olhos doces. Eu odeio que ela esteja tirando ele de mim. Ele é meu. Pode
estar provando do corpo dela agora, mas sempre será para mim que
voltará quando tudo piorar. As coisas só precisam dar errado de novo”.
Passo a mão no rosto, jogando a foto longe.
— Tem mais — a voz dela não passa de um sussurro.
— Não quero ver.
— Acredite, essa você precisa.
Respiro fundo, pegando a outra foto que ela me entrega. É outra de mim
no hospital. Mal aparece meu rosto, foi tirada com pessoas na frente... claro,
já que ele tirava essas porras escondido. Não é de quando eu tive a
overdose, então só pode ser de quando eu bati a cabeça na piscina. Nessa, a
escrita também está no verso.
“Não achei que as coisas chegariam tão longe. Você me perdoa, meu
amor? Eu não queria machucá-lo, só queria que você perdesse a
competição. Você sempre conversava comigo quando perdia e eu te
reconfortava. Eu apenas sentia saudades disso. Ainda bem que comprei os
remédios do Jayden, porque foi bom como você me agradeceu por ter te
ajudado... viu só como só eu estou com você quando precisa? Aquela
garota nem mesmo conseguiu chegar perto. Você deveria me escolher.”
Arregalo os olhos.
— Então foi pra isso que ele comprou os remédios do Jayden... — Blue
sussurra para si própria.
— Como você sabe disso?
Blue suspira, fazendo careta.
— Jayden contou para Angelina e ela nos contou. Foi por isso que
estávamos naquela boate aquele dia, nós seguimos o Vance a semana inteira
para tentar conseguir qualquer prova contra ele e entregar na reitoria da
faculdade ou pra polícia.
Ela me conta sobre aquela noite, agora sem me esconder nada e meu
sangue ferve por estar sabendo disso apenas agora. Só piora quando fico
sabendo que Vance encurralou Angelina no corredor do centro esportivo e
só não a agrediu porque Blue chegou a tempo.
— Eu não acredito que vocês esconderam isso de mim! — Levanto da
cama possesso. — Blue, vocês não podiam ter me deixado no escuro!
— Em minha defesa, a gente achou que lidaria com isso sozinhas, mas aí
a Angelina descobriu a gravidez e não tinha mais espaço na agenda pra
gente pensar no Vance.
— Ele a ameaçou, quase a agrediu, eu tinha o direito de saber!
— E você ia fazer o quê? Matar ele?
— Estou começando a achar isso uma excelente ideia.
— Nem brinca com isso, Francis. Eu não estou nem aí para o que
acontece com meu primo, mas estou muito preocupada com o que acontece
com você.
— E você quer que eu faça o quê, Blue? Que ligue pra polícia? — Ergo
os braços. — Nós não temos provas. Dizer que ele tem meu WhatsApp no
computador não vai dar em nada porque eu próprio autorizei. Nós não
temos prova das fotos enviadas, nós não podemos sequer provar que ele
vende drogas!
— Eu sinto muito, mas a Angie não queria correr pra você em qualquer
problema, porque foi isso que o Vance colocou na cabeça dela, que ela te
enchia de confusões... você sabe como ele pode envenenar nossa cabeça
com facilidade.
— Blue... — Respiro fundo, tentando controlar minha raiva. — Tem
alguma chance da Angelina e Isabela terem sido drogadas aquele dia por
causa dele?
Ela dá de ombros.
— Isso eu não sei te falar, mas Vance estava naquela boate.
Assinto. Quando saí de lá, pensei tê-lo visto, mas na ocasião estava tão
nervoso com as meninas passando mal, que ignorei minha intuição.
— É o bastante pra mim.
Rumo em direção à porta e Blue segura meu braço.
— O que você vai fazer?
— Vou atrás dele e que Deus o ajude a não cruzar meu caminho..., mas
se cruzar, vou entender como um aval para acabar com aquele desgraçado.
— Não! — Ela se agarra ainda mais ao meu braço. — Nós vamos olhar
tudo que tem aqui e levar para os meus tios. Você vai me escutar, Francis
Hopkins, porque todas as vezes que não escutou, você se fodeu.
Meu maxilar dói pela forma que aperto meus dentes. Meu corpo já não
está sustentando a raiva e a vontade de ter meu punho na cara dele.
— Ele atentou contra a minha vida, contra a vida da Angelina e do meu
filho, e Jayden está morto por culpa dele! Como você quer que eu seja
racional agora? — falto alto, assustando até a mim mesmo. Me afasto dela,
encostando a testa na porta e respirando para buscar calma.
Blue me abraça por trás, tão apertado quanto os braços dela permitem.
— Eu sei que você está com raiva e você tem direito de estar. Mas bater
no meu primo não vai fazê-lo pagar por nada. Então, por favor, me escuta.
Passo alguns minutos calado, na mesma posição, sentindo cada
miligrama do meu sangue pegar fogo de ódio. Mas me viro para Blue
quando consigo ao menos respirar decentemente.
— O que você tem em mente? — indago.
Ela sorri perversamente.
— Vou fazer como ele na infância e o dedurar para a mamãe.
— Eles não vão fazer nada contra o filho.
— Exatamente para não acontecer nada com o Vance, eles vão fazer
alguma coisa. Confia em mim.
Mordo o interior da boca, tentando silenciar todos os pensamentos
homicidas que corroem minha mente.
— Me dá a pasta, Blue.
— O que vai fazer com ela?
— Se Angelina não acredita que não fui eu que mandei a foto, pelo
menos é bom que saiba disso.
Blue me entrega a pasta azul e levo até onde era meu quarto, passando o
objeto por debaixo da porta. Bato três vezes na madeira, não com a intenção
de ter permissão para entrar, mas para avisar.
— Olha o que tem aí dentro — murmuro contra a porta. — Talvez você
comece a acreditar em tudo.
Não espero por uma resposta, desço as escadas para ver meu filho,
porque ele é a única coisa nesse mundo capaz de me impedir de ir atrás do
Vance agora e fazer com ele o que ele pretendia ter feito com Angelina.
Nunca pensei que fosse tão difícil não sair para matar alguém.
 
 
 
Quantas vezes esperamos o perdão daqueles que
machucamos? Quantas vezes nos culpamos por sermos
apenas humanos e cometermos erros? Quantas vezes
exigimos dos outros, um carinho e cuidado que
deveríamos ter por nós mesmos?
Não peça perdão. Perdoe-se. Não peça carinho. Seja
carinhoso consigo. Não peça cuidado. Cuide-se.
Ninguém o fará tão bem quanto você.
 
 
 

 
 
Esse fim de ano conseguiu ser ainda pior que o anterior.
No ano passado, Francis e eu tínhamos acabado de nos separar por culpa
dele.
Nesse, eu fujo dele por culpa minha.
Uma semana atrás descobri que cometi o pior erro da minha vida.
E não fui corajosa o suficiente para olhar no olho da pessoa que
machuquei e pedir perdão.
Para fazer isso, eu preciso assumir em voz alta o que fiz. E não é tão
fácil.
Todas as vezes que Francis me pediu perdão pelas coisas que fez, eu
achei que era muito fácil para ele. Fazer merda e pedir desculpas. Mas eu
descobri que é muito mais fácil fazer merda e fingir que não fez. E muito
mais difícil engolir o ego e a culpa para pedir perdão.
Já que não fizemos nada na Ação de Graças em novembro, decidi vir
para Cape May para o natal. Não foi para visitar ninguém, foi para fugir.
Fui tão covarde, que pedi à Blue para falar com Francis sobre eu trazer o
Garden. Por sorte, mais do que eu mereço, ele não se opôs que eu trouxesse
nosso filho, mesmo que isso significasse ficar longe dele nesse tempo.
Ele está sendo mais gentil do que eu seria no seu lugar. Que eu fui no seu
lugar.
Mesmo minhas razões não tendo sido certas para estar em Cape May, é
bom poder mostrar um pouquinho desse lugar para o Garden. É para cá que
eu espero voltar um dia, depois de me formar. É aqui eu penso em criar ele,
da forma livre que eu pude ser criada na infância.
Não consigo olhar essa praia e deixar de imaginar ele brincando na areia,
entrando no mar com Francis, brincando de vôlei de praia comigo...
Inspiro a maresia, o ar gélido do inverno resfriando tudo por dentro.
Garden está completamente empacotadinho nos meus braços, dormindo
tranquilo com o som dos pássaros que sobrevoam a praia em busca de
peixes.
Sento sobre a areia fria depois de estender uma toalha e fico apenas
olhando, observando e principalmente, lembrando.
Foi nessa praia que Francis me salvou anos atrás. Foi aqui que dei a ele
meu primeiro abraço. Foi essa vista que observamos do meu telhado,
quando fizemos nossa primeira promessa. Foi olhando esse mar, que eu tive
a certeza de que o esperaria, não importava o tempo que passasse. E agora,
olhando esse mesmo mar, eu tenho a certeza de que não só não o esperei,
como o fiz desistir de mim. Estou sozinha.
Tantos erros. Tantos desencontros. Por quê? Por que a vida teve que ser
tão dura com a gente? Éramos apenas duas pessoas que queriam se amar.
Que queriam viver seus sonhos.
Até mesmo eles mudaram. Francis não queria cursar medicina e
encontrou um motivo pelo qual amar essa profissão, tão forte que o fez
desistir de nadar profissionalmente. Eu ainda quero o vôlei. Ainda quero
fazer isso para viver, mas o esporte deixou de ser o número um na minha
vida, como costumava ser. Agora, meu ponto de equilíbrio tem nome,
sobrenome, olhos azuis e uma mania fofa de chupar os dedinhos.
Francis e eu nos moldamos pelo Garden. E nenhum de nós dois parece
ressentido disso. Talvez pelas mães que tivemos, achamos que
necessariamente nos tornaríamos amargurados por abdicar de algumas
coisas pelo nosso filho, como elas se ressentiram de nós. Mas a verdade, é
que entendo o que Francis falou sobre sacrifícios. Não estamos nos
sacrificando pelo Garden... não quando ele trouxe um sentido pra nossa
vida que sequer poderíamos sonhar se ele não tivesse chegado de repente.
A maternidade não é um mar de rosas. Não é romântico, não é fácil e
definitivamente não é como nos comerciais da televisão. Mas ter um filho
não é ter um problema para resolver. Pelo contrário, é a razão para termos
força o bastante para resolver todos que aparecem. Ter um filho não é ter
um concorrente, é ter um parceiro de equipe.
Francis e eu não desistimos dos nossos sonhos, nós apenas os
ressignificamos. Garden nos fez crescer em meses, o que passamos anos
tentando. No fim das contas, o medo que sentimos quando soubemos da
gravidez, parece irracional agora.
Esse bebezinho nos ensinou muita coisa. Me fez ver o quanto eu posso
ser egoísta, assim como me mostrou como abrir mão do ego. Revelou como
eu posso ser fraca, mas também me mostrou que ninguém seria tão forte por
ele. Garden escancarou todas as minhas fraquezas e defeitos, assim como
revelou qualidades e fortalezas que eu não sabia existir dentro de mim.
O seguro na altura dos meus olhos, encostando meu nariz ao dele,
sentindo a pontinha gelada.
Ele foi o presente que nunca pedi. Que não queria ganhar. Mas que foi
exatamente o que eu precisava.
Hoje eu entendo que a gente só vai descobrir o que é essencial na nossa
vida com o tempo. Que o que eu sabia ontem, pode não valer de nada para o
hoje. Garden me ensinou a admitir minha ignorância. É muito fácil nos
perdemos na nossa prepotência quando jovens, achando que já sabemos
todos os segredos do mundo. Mas a verdade é que sabemos muito pouco.
Mesmo velhos, saberemos muito pouco. E a vida talvez não seja feita para
entendermos de fato. Ela é feita para ser desbravada, vivida e sentida. Não
importa se conhecemos seus segredos... importa que ao final dela, tenhamos
histórias para deixar para trás.
Não interessa se fomos os mais inteligentes, espertos ou bem-sucedidos,
importa se ficaram pessoas para trás que vão se lembrar de nós. Nossa
marca aqui não é deixada com grandes feitos, mas com grandes amores,
grandes amizades, grandes compartilhamentos.
Coloco meu bebê contra meu peito, sentindo seu cheirinho único. Nunca
entendi sentimentos. Nunca soube explicá-los. Mas eu sempre soube fazer o
mais importante: senti-los com intensidade. Eu entendi que Garden não
precisa das minhas palavras mais claras e conexas para entender que é
amado. Ele precisa sentir, em cada gesto meu, esse amor. E eu sei que meu
filho sente.
Enxugo uma lágrima que escorre do meu rosto, tendo certeza de uma
coisa. Ainda que Francis nunca me perdoe, ainda que a gente nunca mais
possa ficar junto... valeu a pena. Pelo Garden, valeu a pena.
Se no fim, o propósito da vida ter nos unido foi para ter nosso filho,
então podemos dizer com toda a certeza, que cumprimos nossa missão.
Com êxito. Porque Garden é fruto do sentimento mais bonito e mais puro
que poderíamos sentir. Não importa como estamos hoje, ele foi gerado com
amor. O mais lindo amor.
 
 
Cumprindo minha rotina diária, eu mando mensagem para Donna. Às
vezes eu também tento ligar, esperando que ela atenda nem que seja por
impulso. Mas na noite de natal, é a primeira vez que ela atende. Pisco
surpresa para a tela, vendo minha amiga depois de tanto tempo.
Ela tem uma garrafa de vinho na mão, batom vermelho nos lábios, um
pote de pipoca no colo e lágrimas descendo pelo rosto.
Subo para o meu quarto na casa de vovó Angelina, deixando Garden
com meu pai na sala.
— Eu não acredito que você atendeu. — Sento-me na cama, com meu
coração acelerado.
— Eu estou bêbada, é por isso. — Ela ergue a garrafa de vinho.
— Estou com saudades — solto sem me controlar.
Os lábios de Donna tremem e ela assente.
— Eu também... morrendo de saudade.
— Então vem ficar com a gente.
— Não posso — nega com a cabeça.
— Por quê?
— Porque tenho medo de perder vocês. Se eu ficar longe... vai doer
menos.
— Você tá chorando... por acaso tá doendo menos?
— Menos do que doeu perder meu pai. Menos do que doeu perder a
Blue. Menos do que doeu perder o Jayden. Menos do que doeu quase perder
você e o Garden naquele maldito acidente. Dói menos, Angie.
Prendo a respiração, tentando controlar as lágrimas que escorrem no meu
rosto. Eu sabia que sentia falta dela, mas a vendo, ouvindo sua voz, o
sentimento ameaça me derrubar. Eu não sei o que machuca mais, se é sentir
falta do Jayden e ele não estar mais aqui ou se é sentir falta de Donna, que
poderia estar comigo, mas escolheu não estar.
Como eu queria poder voltar no tempo, só para reviver alguns dos
nossos momentos juntos. Antes de dormir, depois que deito a cabeça no
travesseiro, me pego lembrando deles, para aplacar um pouco a saudade. Às
vezes só faz aumentá-la.
— Você não vai perder a gente.
— Eu também achava isso de tudo que eu perdi... — Don vira um gole
na boca, direto da garrafa. — E eu sempre fui mimada, Angie, fui
acostumada pelo meu pai a ter tudo que eu queria, nunca aprendi a perder.
Só para no final das contas, ele nem ser meu pai de verdade.
— Ele é sim, não importa o sangue...
— Importa! — Donna me interrompe. — Importa e você sabe. Porque
teria ficado destruída se o Louis não fosse mesmo seu pai. Importa... porque
tudo que eu acreditava era mentira. E só me restou uma mãe que nunca me
aceitou e que nunca vai me aceitar.
— Mas e o Francis?
— Eu já quase perdi meu irmão tantas vezes, que só fico esperando a
mesma ligação que Isabela recebeu. Eu vi a dor dela, Angelina. Eu vi o
desespero, eu vi a dor que é perder um irmão... eu não quero tá perto pra ver
acontecer. Se eu estiver longe, a saudade vai ser mais branda.
— Mas seu irmão está aqui. Eu estou aqui.
— Até quando? — ela ri. — Até que alguém sofra um acidente? Até que
alguém descubra uma doença? Até que alguém brigue e nunca mais se fale?
Até que a porra da vida nos separe de qualquer forma? Não, Angelina. Eu
não vou mais esperar a vida me tirar as pessoas que eu amo. Eu vou me
retirar antes.
— Você vai estar perdendo de qualquer jeito.
— Mas vai ser escolha minha. Não do destino.
— Eu não vou dizer que está certa. Mas também não vou dizer que não
te entendo... e que se pudesse, não teria fugido como você fez.
— Eu sei que você não me julgaria. E é por isso que você tem sido a
parte mais difícil de ir embora... porque você é minha metade, Angie. Você
é minha pessoa. Eu estou aqui só com parte de mim... não tem um dia que
eu não sinta sua falta, que não queira ter você do meu lado. Mas meu medo
é maior... eu travo só de lembrar como você estava naquela cama de
hospital e como eu não conseguia fazer nada para te ajudar... eu nunca
pensei que fosse, mas eu sou covarde.
Fecho os olhos, apertando os lábios. É preciso alguns minutos para eu
conseguir falar firmemente de novo.
— Eu sempre vou estar aqui, Donna. Principalmente porque eu sei que
esse seu medo vai passar.
— Promete? Assim como prometeu ao meu irmão, promete me esperar?
Promete não me esquecer?
— Prometo. E também prometo que não vou desistir de te ter de volta.
Garden e eu nunca vamos desistir de você.
Ao falar dele Donna desabada na ligação, soluçando alto.
— Peça desculpas a ele por mim. Eu sei que ele não entende, mas pede.
Pede pra me desculpar por não poder ser a madrinha que ele merecia. Mas
que eu o amo, Angie. Eu amo esse garotinho com a minha vida. Vejo as
fotos que você manda, acompanho o crescimento dele mesmo de longe...
ele é tão lindo, tão precioso, é a misturinha perfeita das duas pessoas que
mais amo nesse mundo. Eu queria ser mais corajosa por ele. Mas não
consigo... desculpa, não consigo.
— Eu sei. E eu não vou deixá-lo se esquecer disso. Garden sempre
saberá que tem uma tia maluca que o ama.
O rosto dela é o retrato da dor. Da perda. E isso me devasta. Passei
minha vida vendo o sorriso no rosto dela e agora ele se foi. O brilho de
Donna se foi. Enquanto seu irmão era a boia que me mantinha na superfície,
ela era o farol que me guiava até a praia. Agora não tenho nem um e nem
outro. Estou no meio do oceano agitado, precisando aprender a me salvar
sem amparo e no escuro.
— Eu amo você, Angie... feliz natal.
Ela encerra a ligação antes que eu possa responder. Abaixo o celular,
tentando entender minhas emoções. Há muitas coisas misturadas. Saudade,
compreensão, mágoa, solidão, culpa... mas acima de tudo isso, esperança.
Donna está ferida e com medo. Assim como eu já estive. Mas a coragem
vai voltar para ela. Minha amiga é uma força da natureza, ela só precisa se
lembrar disso.
 

 
 
Eu nunca tinha passado as festas de fim de ano sozinho. Quando me
mudei para São Francisco, o primeiro ano passei na casa do Ethan e no
segundo meus pais vieram de Cape May para cá. Nesse ano, eu decidi que
queria ficar sozinho.
Não foi por tristeza ou por não querer meus amigos e meu pai por perto,
eu só precisava de um tempo a sós, comigo mesmo. Talvez eu nunca tenha
tido isso antes. Não me lembro da época que eu apenas apreciei minha
companhia. Já quis ficar sozinho, já me isolei, mas detestei conviver
comigo mesmo. É diferente agora. Foi bom simplesmente entrar na minha
mente e me sentir... em casa.
Desde que me recordo, adentrar meus pensamentos era como estar
perdido em alto mar, encarando o fundo turvo e escuro, ouvindo a melodia
de terror, apenas esperando que uma fera viesse de lá para me devorar. Eu
descobri que a fera era meu próprio reflexo na água. E que ao invés de me
sentir amedrontado e tentar atacá-la, eu deveria abaixar minha guarda e
apenas a receber de braços abertos.
Eu tinha medo de mim mesmo. De me ver de verdade. De permitir que
me vissem por completo, com defeitos e tudo. Eu tinha medo do meu
reflexo. Mas o medo se foi. Agora eu posso finalmente boiar sobre as
águas, tranquilo de que o fundo da minha mente não irá me ferir. Aqui estou
seguro.
Finalmente seguro. Comigo mesmo.
Foi preciso perder amigos, reinventar sonhos, ressignificar sentimentos,
me tornar pai e me ver sem a mulher da minha vida, para perceber que antes
de todos eles, eu precisava de mim mesmo.
Eu sempre amei com intensidade. Mas nunca pensei que um dia
conseguiria me amar. Que o homem que eu olhasse no espelho, fosse ser
um do qual me orgulhasse. Nunca pensei que apenas a minha opinião me
bastasse.
O ponto chave para isso, foi minha última consulta com a doutora Brice,
um dia antes do ressesso. Eu tinha marcado apenas para levar o presente
que comprei de natal, para agradecer pela ajuda que ela vem me dando, mas
a mulher me fez ter uma sessão completa de terapia. Deve ter sido por eu
ter dado a ela um gravador, por gostar tanto de se ouvir falar. Ela riu, mas
acabou comigo naquela sessão. Foi tanto tapa na minha cara em forma de
palavras, que vou pensar duas vezes antes de brincar com ela de novo.
Naquele dia, eu contei sobre ter provado que não enviei a foto para
Angelina. E que aparentemente ela continuou sem acreditar em mim, já que
preferiu fugir para Cape May sem nem conseguir falar diretamente comigo.
Quando expliquei para Brice, ela ficou intrigada. Disse que eu não
parecia tão chateado quanto antes por Angelina não acreditar na minha
palavra. E a verdade é que... eu realmente não estava.
Bom, chateado sim, mas..., mas não destruído como costumava ficar. E
foi confuso perceber isso. Pelo menos para mim, porque Brice tinha uma
explicação para me dar.
“Você fez o que estava ao seu alcance, Francis. Revelou sua verdade,
contou sua versão. Tudo que viesse depois, já estava fora da sua
capacidade de resolver. Ao longo das sessões, trabalhamos a sua imagem
sobre si próprio e a forma como era guiada pela opinião das outras
pessoas. Hoje você mostrou que tem gerado frutos... você está triste por
Angelina duvidar de você. Mas não está duvidando de si mesmo ou se
culpando por algo que não fez, só porque ela o faz. Você aprendeu a
separar e filtrar, a sua verdade, da verdade das outras pessoas.”
E ela tem razão. Estou triste porque queria que Angelina acreditasse em
mim. Que não tivesse fugido paro o quarto quando eu contei a verdade. Mas
isso já não faz eu me enxergar como vilão da história. No máximo um
palhaço incompreendido.
Sorrio, me levantando das arquibancadas.
Acho que menti sobre uma parte de passar as festas de fim de ano
sozinho. Porque eu vim visitar um amigo no seu lugar preferido.
Vim ver Jayden na quadra de basquete. Vim conversar com ele. Contar
uma coisa que era a última para me libertar de uma vez dos meus
fantasmas.
— É estranho pra caralho conversar com uma cesta de basquete, espero
que não esteja rindo da minha cara aí do céu — sorrio, coçando a nuca. —
Seja como for, eu fiz uma promessa aos seus pais quando você partiu... eu
prometi me perdoar por não ter sido capaz de te salvar... — engulo a saliva.
— Ainda há saudade, irmão. Sinto falta das nossas tardes infernais no
trabalho, das nossas implicâncias, mas principalmente, da amizade que
construímos. Só que agora, a saudade já não fere, é apenas um sentimento
nostálgico e de afeto. Sinto sua falta. Mas já não me culpo por você não
estar aqui. Eu precisava vir aqui te contar isso, te contar que vivi a culpa
enquanto meu coração a aceitou como uma companheira digna, mas agora
que ela já não faz mais sentido, estou a deixando ir como algo que foi
necessário, mas hoje só me atrapalharia.
Inspiro profundamente, soltando o ar pela boca devagar. É como se com
o oxigênio, o peso da culpa também estivesse indo embora.
— Você sempre fará parte das nossas vidas. Sempre será o fantasminha
camarada para quem vou contar meus segredos... afinal, você não vai poder
contar pra ninguém mesmo — gargalho, secando uma lágrima que escorre.
— Até a próxima conversa, irmão... feliz natal.
 
 
 

 
 
Dois meses.
Dois meses inteiros que eu não sei o que é olhar para o Francis. O novo
ano chegou, trouxe consigo janeiro, fevereiro, mas esqueceu de trazer o
mais importante: coragem. O nadador não deixou aparecer, claro. Fica com
Garden todos os dias pela manhã para eu frequentar o campus. Mas só entro
em casa quando ele sai e saio antes que ele chegue. Blue ou Ethan sempre
intermediam.
Eu sei que estou sendo ridícula.
Mas não consigo encará-lo.
Tenho medo do que Francis tem a me dizer.
— Garden, você tem uma mãe horrível. — Acaricio a sua cabeleira loira,
já bem maior agora. O tom é quase idêntico ao meu, embora um pouco mais
claro. Meu filho brinca com os próprios pés, encantado com seus dedinhos.
Ele não está nem um pouco preocupado com meu dilema. Desde que tenha
seu alimento e colo na hora que quer, nada o perturba. — Eu não sei como
consertar as coisas com seu pai... você bem que podia saber falar e pedir
misericórdia por mim, não é? Ele nunca recusa nada pra você, seria muito
mais fácil.
Rio de mim mesma. Sou uma piada. Termino de vesti-lo com uma calça
de moletom e camiseta gola polo, quase tendo um ataque de tanta fofura.
Essas roupinhas minúsculas ainda me deixam encantadas.
— Angie, já vamos colocar o almoço lá no jardim. — Ethan aparece na
porta do quarto.
— Todo mundo já chegou? — Hoje Garden completa seis meses, então
meus amigos acharam bom fazer uma comemoração pequena, já que não
fizemos nada parecido desde que ele nasceu.
— Falta só a Cassidy, mas o Josh, Isabela e Francis já chegaram.
— O Francis? — falo com um filete de voz.
— É, você não achou que ele faltaria, né?
— Bom, eu não preciso que ele olhe o Garden hoje, então pensei que
fosse aproveitar pra fazer outras coisas. — Mentira, eu só torcia muito para
que ele não viesse.
— Ele não é a babá do Garden. É o pai.
— Eu sei que ele é o pai. — Reviro os olhos.
— Então vamos? — Ethan estende a mão. — Chegou a hora de encarar
isso de cabeça erguida. De ser a Angelina cheia de coragem que eu
conheço... você já passou tempo demais se escondendo atrás dos seus
medos.
— E se ele... se ele me odiar?
Ethan sorri.
— Então seria um tolo e isso meu amigo não é... Vamos?
Respiro fundo, aceitando a mão que ele me oferece.
Vou direto para o jardim, decorado com bolas infláveis azuis, verdes e
transparentes, com desenhos de peixes e corais. Garden ganhou uma pelúcia
de peixe-palhaço do meu pai no natal, e ficou tão apegado ao bichinho, que
só dorme com ele entre os bracinhos. Desde então temos apresentado mais
coisas do fundo do mar para ele. Ao menos para isso ele se mostrou mais
interessado, já que não liga para nenhum outro brinquedo.
No centro da grama, uma pequena piscina inflável foi montada.
— Oi, Angie — Josh beija minha bochecha. — Tchau, Angie... agora me
dá o Garden.
Josh estante os braços, mal me notando. Arqueio a sobrancelha.
— É impressão minha ou você me trocou pelo bebezinho fofo? — acuso.
— Não é impressão, eu troquei. — Ele não se incomoda em roubar meu
filho do meu colo e o encher de beijo. Garden ama um grude, então
definitivamente Josh é uma das suas pessoas favoritas no mundo. Acho que
o carinho que tenho por esse maluquinho passou para o meu filho.
Ele sai saltitando com Garden pelo jardim, tentando fazê-lo gargalhar.
Isso raramente acontece. Meu filho não é um bebê muito sorridente, ele se
expressa de outras formas.
— Não pula muito que ele acabou de mamar! — faço careta.
— Ele pode virar a menina do exorcista em segundos — Blue exagera...
ou não.
Eu termino de cumprimentar meus amigos e não há muito que eu possa
fazer, a não ser olhar para a pessoa que estava evitando. Engulo, sentindo o
rosto esquentar. Francis está sentado em uma das cadeiras do jardim, com
um copo de água na mão e um embrulho de presente no colo. A camisa azul
que veste realçam seus olhos quando eles focam em mim.
Merda...
Ele está bravo comigo? Chateado? Neutro? Querendo me esganar?
Com pena de mim? Eu não faço ideia.
— Oi, Angelina — a voz rouca me faz piscar.
— Oi...
Respiro devagar, tentando afastar o pânico. Estou apavorada.
Francis se levanta e automaticamente dou um passo atrás. Seria ridículo
se eu saísse correndo?
— Vai se esconder de mim até quando?
Arregalo os olhos. Assim direto? Não poderia fazer um carinho antes de
me socar?
— E-eu... eu não... — Nego com a cabeça, mas suspiro quando percebo
ser inútil. — Ok, eu estou me escondendo de você e me esconderia pra
sempre se fosse possível.
— Eu sei que você ainda não acredita em mim, mas achei que a gente
tinha chegado a um denominador em comum sobre uma conivência
amistosa meses atrás.
Abro a boca. Ele acha que não acredito nele?
Claro, Angelina! Você saiu correndo e fugiu dele por mais de dois
meses!
— Eu acredito em você — admito.
Francis ergue as sobrancelhas.
— Acredita?
— Sim.
— Então por que está agindo como se eu fosse a pior pessoa desse
mundo e fugindo como o diabo da cruz? — Não é preciso ser um gênio para
detectar a mágoa na sua voz.
— Não estou. Quer dizer... estou fugindo, mas não te acho a pior pessoa.
Ele bufa uma risada.
— Faz dois meses que eu não te vejo, você sequer tem coragem de me
entregar o Garden pessoalmente. Se não é porque me acha a pior pessoa
desse mundo, então o que é? Feio eu não sou para assustar mulheres
bonitas.
Ok, ele está bravo... e chateado. E o pior, com razão.
— É que eu me acho a pior pessoa desse mundo.
Arranho meu vestido com as unhas, encarando meus pés. Sinto tanta
vergonha, tanta vergonha de tudo que falei para ele, de tudo que fiz, que não
estou conseguindo caber dentro de mim mesma. Como Francis aguentou
quando esteve no meu lugar? Como lidou com a culpa?
Pisco quando sinto dedos erguendo meu queixo. E paraliso quando o
vejo tão próximo, fitando meus olhos.
— Você está me evitando, por que se acha uma pessoa horrível por ter
duvidado de mim? É isso?
Balanço a cabeça positivamente. Não confio na firmeza da minha voz
agora.
— Angelina, com todo respeito... você é maluca?
— O quê?
Francis me olha por um tempo e então começa a rir, soltando meu
queixo. Ele coloca as mãos na cintura, balançando a cabeça.
— Quando você me odiava e me achava um filho da mãe, ainda falava
comigo, nem que fosse pra me mandar embora ou pra acabar com a minha
existência. Aí quando você acredita que não mandei aquela porra de foto,
me ignora e finge que não existo... você que é confusa ou sou eu que sou
burro pra caralho pra te entender?
— Os dois? — respondo com um fio de voz. Eu não sei como me
explicar, inferno!
Ele franze o cenho. É agora que vai me xingar? Eu não iria me opor,
também quero me xingar.
— Eu deveria ficar bravo com você agora.
— E não está? — Dou um passo para mais perto.
— Não... eu estou com muita vontade de rir. Mas talvez seja desespero.
— Então você deveria chorar, não rir.
Escondo o sorriso com a mão. Eu não deveria querer rir também, isso
não tem graça, mas estou tão sem jeito, que meu corpo está tentando se
livrar da adrenalina da forma que consegue.
Francis suspira, sua expressão divertida indo embora.
— Você está com vergonha de mim? Por isso fugiu todo esse tempo?
Assinto.
— Por quê? — interroga. — E não estou perguntando do óbvio.
— Estou com vergonha porque fiz exatamente o que eu disse que nunca
faria — confesso.
— É, você foi bem hipócrita, senhorita Eastwood.
Faço bico.
— Dá pra pegar mais leve comigo?
— Você pegou leve na minha vez? — rebate.
— Estou torcendo para que você seja mais evoluído.
Nossa, eu sou uma vaca. Se o Francis quiser sair daqui sem olhar na
minha cara, eu vou entender. Quer dizer, não vou não, mas vou fingir que
sim.
— Eu não sou mais evoluído que você, mas eu entendo o que está
passando agora.
— Eu duvidei de você — admito.
— Eu também duvidei de você.
— Eu fui cruel.
— Eu também fui.
— Eu disse que devia ser você naquele carro. — Meus olhos ardem.
— E eu disse que não deveria ter feito nada quando você se afogou. —
Os olhos dele também ficam vermelhos.
— Eu te afastei do nosso filho... isso você não pode falar que fez.
— Eu não te contei que guardava os comprimidos... isso você também
não pode falar que fez.
— Eu não te contei sobre o Vance e o que ele fez no meio do ano.
— Isso eu ainda estou puto — o bico dele se forma em segundos.
— Eu sei. — Suspiro.
— Angelina.
— Hum?
— Não estamos em uma competição para ver quem errou mais. Nós dois
erramos, fomos levados ao erro e escolhemos acreditar e persistir nele.
Umedeço os lábios.
— Mas você me pediu perdão — digo com muita vergonha.
— Você pode pedir agora.
Nego com a cabeça.
— Eu não vou pedir perdão, porque você não vai aceitar e eu prefiro
achar que tem a possibilidade de você me perdoar um dia e não a certeza de
que não vai. Eu não te perdoei quando você me pediu e agora eu imagino o
que você sentiu e acho que é injusto eu te pedir perdão e...
Um corpo forte envolve o meu, me fazendo parar de falar. Arregalo os
olhos, sentindo os braços do Francis ao meu redor e seu queixo apoiado no
meu ombro. Meus braços ficam na lateral do corpo, sem reação. Ele não me
odeia?
— Isso foi para eu parar de falar? — sussurro, sendo envolvida pelo seu
perfume.
— Foi — Francis me aperta mais. Céus, como eu estava precisando
disso. Acho que eu não tinha nenhuma noção da saudade que sentia dele...
até agora.
— Eu posso te abraçar de volta? — minha voz falha. Meu coração
ameaça irromper do meu peito.
— Por favor.
Coloco as mãos com cuidado sobre suas costas, com medo de encostar e
ele desaparecer como num sonho. Mas não consigo manter o contato
brando por muito tempo, porque a saudade dentro de mim me faz apertá-lo
forte, até sentir seu suspiro e seus músculos relaxando à minha volta.
Agarro com força sua camiseta, afundando meu rosto no vão do seu
pescoço. Inspiro o máximo do seu cheiro que consigo, como um bálsamo.
— Eu não te abracei só pra você parar de falar — ele confessa de
repente.
— Eu sei.
— Você pode me pedir perdão, Angelina. — Francis acaricia minhas
costas e eu só consigo trazê-lo para mais perto. — Não é injusto, não é
errado e não vou te maltratar. Eu já te pedi perdão demais, para achar ruim
que você faça o mesmo.
— Se eu pedir, você promete aceitar e não se ressentir de mim por nada?
— pergunto ansiosa.
— Não posso te prometer isso.
— Por que não?
Ele beija meu ombro.
— Porque seria mentira.
Empurro seu ombro para poder olhar nos seus olhos.
— Então se eu pedir, você não vai me perdoar?
Francis sorri, colocando uma mecha do meu cabelo para trás da orelha.
Seus dedos acariciam o contorno do meu rosto e o deito contra sua palma,
quase fechando os olhos.
— Pedir perdão pode ser libertador. Assumir um erro e se desculpar por
ele, é o primeiro passo para perdoarmos a nós mesmos. Depois disso, já não
cabe mais a nós e sim aos outros nos perdoar ou não. O que conta de
verdade, é o que sentimos aqui — Francis toca meu coração. — Eu espero
que me peça perdão, não porque preciso ouvir isso de você, mas para que
você entenda que erros acontecem e podemos nos desculpar por eles e
seguir em frente. Eu quero que você siga em frente, Angelina. Não repita o
mesmo erro que eu e fique consumindo a sua culpa. Eu me libertei da
minha e quero o mesmo para você.
Meus lábios tremem.
— Mas você não vai me perdoar, não é?
Ele me solta dos seus braços, dando um passo para trás. É preciso muita
força para não puxá-lo de volta. Preciso me lembrar de que fui eu a afastá-
lo primeiro.
— Lembra da conversa que tivemos no início do ano passado? Você
falou que não poderia dizer que me perdoava, porque seria uma mentira.
Porque no fundo, você ainda estava magoada e com medo de se machucar.
A cena no passeio que ele me levou preenche minha mente.
— Lembro.
— Eu não posso dizer que te perdoo agora, porque meu coração ainda
está machucado demais, Angie. — Francis nega com a cabeça. — Não é
para te magoar, para te dar o troco ou qualquer coisa parecida. Meu coração
só precisa de tempo para fechar as feridas. E quando isso acontecer, quando
eu já não sentir mágoa, vou poder olhar nos seus olhos, com sinceridade, e
dizer que te perdoo.
Aperto meus dentes, não querendo que ele veja meu queixo tremendo
pela vontade de chorar. Eu o entendo. Melhor do que ninguém, eu o
entendo. Passei pelo mesmo que ele está passando agora. E seria injusto
pedir que mentisse para mim, apenas para que eu me sentisse melhor.
Estendo minha mão e ele a toma sem hesitar. O encaixe é perfeito,
nossos dedos se entrelaçam como uma peça de quebra-cabeças. Dou um
passo para frente, segurando seu rosto com a mão livre.
— Promete me perdoar? — sussurro. — Um dia, promete que me dará
seu perdão?
Francis me devolve um sorriso singelo e bonito.
— Prometo. — Ele une nossas testas. — Prometo que vou te perdoar,
assim como você sempre me perdoou.
Assinto, me afastando dele com lágrimas cobrindo meu rosto.
Eu sei que ele vai me perdoar.
Mas eu também sei, que a gente acabou.
Que o que foi, não volta mais.
Francis também sabe.
Por isso seu rosto também está molhado de lágrimas.
Céus, como eu queria poder voltar atrás.
— Amigos? — ele murmura engasgado.
Os olhos dele me mostram sua dor. Assim como eu sei que os meus
mostram a minha. Como não doeria, se estou aceitando ser amiga do amor
da minha vida?
— Amigos.
Mas mesmo na dor, mesmo doendo, a gente sabe que tem um ao outro.
Sabemos que não importa se seremos um casal, amigos ou conhecidos.
Sempre teremos um ao outro. E essa é uma promessa que não precisamos
fazer. Essa promessa o universo fez por nós. É melhor tê-lo assim do que de
jeito nenhum. A praia é vazia e triste demais sem as visitas da sua onda.
— Será que temos uma oferta de paz por aqui? — Blue volta com
Garden no colo e Josh com uma blusa diferente da que estava antes. Eu
sabia que sairia vomitado. Seguro a risada, assentindo.
— Temos — olho para Francis, enxugando minhas lágrimas. — Temos
paz.
— Pra vocês, porque o Garden jogou todo seu leite em mim... e não é
nada cheiroso! — Josh faz careta, nos fazendo gargalhar.
— Ele só não vomita mais que a mãe dele quando tava prenha — Ethan
balança as sobrancelhas pra mim.
— Prenha quem estava era a senhora sua mãe quando te teve — rebato.
— E a paz acabou — Blue cantarola.
— Ela colocou minha mãe no meio — Ethan cruza os braços emburrado.
— Vem cá, bebezão, testa a temperatura da água da piscina — Francis
puxa o Ethan para colocar o pé na pequena piscina do Garden.
— Por que eu?
— Porque do jeito que você é manhoso, se a água estiver boa pra você,
então para o Garden vai estar perfeita.
— Só vou testar porque é pro meu afilhado.
Deixo os meninos se implicando e pego meu filho do colo da Blue. Os
olhinhos dele estão no pai, é claro. Me desculpe por ter te afastado dele,
meu amorzinho. Eu não sabia o que estava fazendo.
— Você está pronto para seu primeiro banho de piscina? Hum? — Beijo
sua testinha e ele agarra meu cabelo na primeira oportunidade. Eu vou
acabar careca.
— A mamãe gosta de ter cabelo, campeão — Francis paira sobre mim e
sorrio quando ele tira as mãozinhas nervosas dos meus fios. Garden estica o
pescoço para ele e Francis falta se derreter e babar. Eu não sei quem é mais
apaixonado um pelo outro, sinceramente. Passo nosso filho para ele e
Francis o ergue sobre a cabeça, o balançando para cima e para baixo. Meu
coração quase sai pela garganta com medo dele cair, mas meu filho parece
estar adorando. Ele não sorri exatamente, mas dá gritinhos.
Francis se agacha com Garden e coloca primeiro os pezinhos dele na
água. Ele os recolhe com uma careta e todos nós rimos do espacate que ele
abre para não tocar na água.
— Por que ele é tão fofo?! — Josh grita, tirando o celular do bolso para
tirar fotos do meu filho. Garden está no Instagram de quase toda a
faculdade, já que costumo o levar de vez em quando para as aulas.
— Vocês se resolveram? — Blue se aproxima de mim sorrateiramente.
— Decidimos ser amigos.
— Você sabe que são mais que isso.
— Fomos.
— E tem chance de ainda ser? — os olhos verdes se voltam para mim.
Respiro fundo.
— Sinceramente, não faço ideia. Acho que perdemos nossa chance.
— Vocês prometeram se esperar.
— E cumprimos — sorrio. — Nós nos esperamos. Não importa se foi
como um casal ou não... ainda nos esperamos. A nossa promessa está de pé.
Sempre vai estar.
— Mas não dá pra se esperarem transando? Eu queria muito vocês
juntos, inferno! — ela bate no meu ombro, estressada, e não consigo conter
a gargalhada. Um que vem do fundo, faz meus olhos lacrimejarem e meu
pescoço ser jogado para trás.
Nossa, que saudade de rir. Há quanto tempo não fazia isso...
Quando meu rosto volta à posição normal, vislumbro os olhos de Francis
sobre mim, brilhando como costumavam fazer. Toco a tatuagem de onda em
meu braço, o deixando ver o que faço. Em resposta, ele toca seus lírios.
Nossos sorrisos se abrem simultaneamente.
É tudo que preciso. Que a gente possa sorrir um paro o outro de novo.
Que a gente possa se olhar com carinho e abandonar as pedras nas mãos.
Meu medo era em vão. Meu medo por ele sempre foi em vão. Francis está
me dando a chance de me livrar da minha culpa, e talvez seja mais do que
mereço, mas irei aceitar de bom grado. E como é bom me sentir livre para
abrir a porta do meu coração de novo para ele. Como é bom tirar a poeira e
abrir as vidraças e sentir o calor me recebendo.
Blue pode ficar despreocupada. Ele nunca precisou me beijar, me tocar
ou possuir meu corpo para eu me sentir amada. A gente não precisa ser um
casal para isso. Eu simplesmente sei.
Porque a minha onda voltou à praia.
 

 
Eu achei que nunca fosse estar pronta para reviver os acontecimentos
daquele dia. Que nunca conseguiria pensar sobre o acidente sem meu
cérebro começar a pifar. E ainda não é fácil. Não importam quantos meses
tenham se passado. Perder um amigo não é algo que se possa simplesmente
superar. Você vive, um dia de cada vez, esperando que aquela dor possa ao
mesmo abrandar o suficiente para seu coração pare de sangrar e comece a
cicatrizar.
Meus amigos se sentaram em roda no tapete da sala depois que Garden
dormiu, cansado demais depois de tanto brincar. Eles se surpreenderam
quando pedi que me permitissem contar o que aconteceu. Mas eu preciso
cumprir a promessa que fiz a Jayden para falar para cada um o que ele
sentia. Eu devo isso a ele.
— Nós estávamos rápido demais, acima da velocidade da via naquela
noite. Mas estava tudo bem, até um caminhão da pista contrária invadir o
nosso lado. Estava longe o bastante para frearmos, mas o freio não
funcionou quando Jayden precisou pisar mais forte... então ele tentou
desviar para a outra pista... só que ela não estava vazia pelo horário e uma
caminhonete vinha logo atrás do caminhão... batemos de frente.
Paro de falar, fechando os olhos. Minha respiração acelera ao lembrar da
sensação de ver aquela luz branca vindo na nossa direção logo. Eu volto a
falar quando minha voz fica firme o bastante.
— Ele se foi tranquilo... eu contei até três, o beijei e então... — Uma
lágrima escorre pelo meu rosto e não me dou ao trabalho de secar, porque
meus amigos estão chorando há mais tempo que eu. — E então partiu. Mas
não sem antes me fazer prometer que diria algumas coisas a vocês.
Eles me olham surpresos. Me sinto culpada por não ter dito a eles antes,
mas não conseguia. As palavras não sairiam da minha boca. Conto a cada
um o que Jayden me pediu, deixando Francis por último. Mesmo naquele
momento, mesmo achando que ele havia mandado aquela foto, Jayden
nunca sentiu raiva dele. Pelo contrário.
— Ele disse que você seria um bom pai. Jayden realmente acreditava em
você... ele também pediu que alguém ensinasse Garden a jogar basquete —
sorrio e Francis bufa uma risada. Os olhos dele ainda mostram dor, mas
agora é muito mais de saudade do que aquela dor agonizante. Espero
conseguir sentir o mesmo algum dia... Jayden não iria querer me ver
sofrendo toda vez que lembrasse dele. — Ele estava certo, sabia?
O nadador segura meu olhar. Ele não se retrai mais com um elogio.
— Você é um ótimo pai, Francis. É o melhor — Engulo o bolo que se
forma na minha garganta. — Garden tem sorte de ter você. — Olho para os
meus amigos. — Todos vocês, na verdade. Meu filho tem sorte de ter essa
família. Pode não ser a mais convencional e completa, mas é a melhor que
eu poderia querer para ele.
Meu peito só sangra por faltar uma pessoa aqui. A minha pessoa.
Donna não faz ideia que falta que faz.
Eu queria que estivesse aqui. Mas não a culpo por não estar.
 

 
 
Escapei para cozinha na primeira oportunidade que tive. Deixei meus
amigos na sala, precisando tomar um copo de água antes que eu ficasse
maluco.
Eu não sabia sobre tudo do acidente, principalmente não a parte em que
os freios falharam. O carro da Angelina tinha acabado de sair da oficina, ele
não deveria apresentar defeito nenhum. O grande problema, que não para de
martelar na minha cabeça, é que foi Vance quem me ajudou naquele dia. Ele
quem conhecia os mecânicos e lidou com a parte mais técnica. Não posso
afirmar nada, não posso dizer que ele teve algo a ver com isso, mas desde
que Angelina contou sobre esse detalhe, meus pelos continuam arrepiados e
um gosto estranho se apossou da minha boca. Tentei disfarçar o máximo
que consegui, porque se houver a menor chance de Vance ter feito algo no
carro de Angelina, isso... isso seria mais do que qualquer um naquela sala
esperaria ou seria capaz de tolerar.
Viro para trás quando sinto uma mão no meu ombro, dando de cara com
Isabela.
— Fala.
— Falar o quê? — fico confuso.
— Você ficou estranho desde que a Angelina contou sobre o acidente.
— Não é algo fácil de saber — tento disfarçar.
— Francis... — Ela inclina o rosto. — Fala.
Respiro fundo, passando a mão no cabelo. Porra, eu nem sei se posso
levantar essa hipótese... eu não tenho como provar nada.
— Eu não sei se você vai querer saber disso, Isa... foi só algo que passou
na minha cabeça e...
— É sobre o acidente?
— É — admito.
— Então eu quero saber. — O olhar determinado dela me diz que não
vai sair daqui enquanto eu não abrir a boca.
Suspiro, apertando os olhos com força antes de começar a falar.
— O carro da Angelina estava apresentando alguns barulhos estranhos
antes do acidente. Então eu fiquei de levá-lo na oficina e Vance se dispôs a
me ajudar, já que ele conhecia os mecânicos... — olho para ela, esperando
que entenda o que quero dizer, sem que eu precise falar. Sinceramente, não
consigo nem colocar para fora o meu pensamento. — Eu o deixei
conversando com eles, porque não entendo nada de carros.
A cor no rosto de Isabela vai sumindo aos poucos.
— Por que ele ajudaria em algo relacionado à Angelina? — a voz dela
não passa de um sussurro.
— Eu me fiz essa mesma pergunta na época, mas ele estava tentando ser
mais amistoso, estava sendo solícito... hoje eu entendo que não passava de
fachada. — Mordo o interior da boca. — Você está entendendo o que quero
dizer?
Por favor, não faça falar que eu acho que ele pode ter a ver com os
freios não terem funcionado. Vance teria coragem? Teria pedido que os
mecânicos fizessem algo assim? Eles teriam feito? Isso me apavora, porque
o alvo dele nunca foi o Jayden. O alvo era Angelina. E meu filho.
Isabela me encara assustada, piscando rapidamente. A respiração dela
acelera. E eu tenho a certeza de que entendeu.
— Não diga nada sobre isso — ela me pega de surpresa. — Você tinha
razão, eu não quero saber.
— Mas, Isa...
— Não, Francis — ela implora. — Minha família está passando o
inferno para superar... e foi apenas um acidente. — Nega com a cabeça. —
Meus pais nunca seriam capazes de superar se isso tivesse sido culpa de
alguém. Se alguém tivesse causado a morte dele... eu não seria capaz de
suportar. Então, não. Não diga mais nada e esqueça sobre isso. Por favor,
me prometa que nunca mais você vai falar sobre esse assunto, que não vai
levantar essa hipótese pra mais ninguém — Ela segura meus braços. — Por
favor... por favor, nos deixe seguir assim. Meu irmão se foi por um acidente.
Eu vou encontrar paz assim... não de outro jeito.
Abro a boca para contestar, mas não tenho coragem.
E também não tenho direito.
Como posso adicionar mais sofrimento ao que eles já estão sentindo?
Os Clifford estão finalmente seguindo em frente, finalmente conseguindo
continuar sua vida... não posso jogar essa bomba sobre suas cabeças,
principalmente não sem uma certeza.
E para ser sincero, nem mesmo eu quero saber. Isso seria... não quero
pensar. Se Isabela quer assim, então assim será. Foi um acidente. Precisa
ter sido.
— Por favor — ela insiste.
Suspiro, assentindo.
— Eu prometo.
 
 
 

 
 
— Isso que estão nos falando é muito grave — A mãe de Vance encara a
mim e Blue seriamente.
Nós não pudemos adiar mais essa conversa. Não depois da minha
desconfiança na noite passada. Eu prometi à Isabela que não falaria nada
com ninguém a respeito e cumpri. Mas exigi à Blue que marcasse um
encontro com seus tios para falar de todo o resto que sabemos. Sobre as
polaroids, sobre a foto enviada para Angelina, sobre as ameaças dele para
ela no centro esportivo... coisas não faltam para falar. Eu preciso do Vance
longe daqui ou não vou dormir tranquilo.
Ele se tornou uma ameaça difícil de ignorar.
— Então por que você não parece surpresa? — Blue interroga a tia.
— Porque não seria a primeira vez que algo assim acontece.
— Como é? — me intrometo.
A senhora Hale suspira, olhando para o marido, que assente dando
permissão para ela contar.
— Meu filho diz para todo mundo que nós cortamos seu dinheiro por
causa da sua sexualidade. Não é verdade?
— É isso que ele fala sim, mas Blue já me contou que não é esse o caso.
— E não é mesmo... Vance sempre foi um garoto que teve tudo que
queria. Nós achávamos que estávamos fazendo o certo, achávamos que
apenas o faríamos feliz assim. Mas nos esquecemos de que a vida não
funciona dessa forma e que as pessoas de fora não o tratariam como em
casa, não dariam a ele tudo que queria, na hora que queria.
Ela se interrompe e o marido segura sua mão.
— Quando ele entrou na escola, foi quando os problemas começaram —
O senhor Hale continua para a esposa. — Ele discutia com as professoras,
brigava com os colegas, queria todos os brinquedos para ele, não aceitava
dividir nada, era agressivo... então a escola pediu que ele fizesse
acompanhamento com uma psicóloga. Nós levamos, mas Vance se tornava
extremamente volátil e tinha acessos de raiva, então achamos melhor parar.
Não queríamos ver nosso filho naquele nível de estresse.
— Foi um erro — a senhora Hale lamenta. — Ele ficou melhor por um
tempo na escola, principalmente porque Blue começou a estudar também e
os dois eram inseparáveis. Nós finalmente achamos que Vance tinha tomado
jeito, porque a vida dele girava em torno da prima. Com o passar dos anos,
os dois foram crescendo e naturalmente se afastando. Blue começou a ter
amigas e uma adolescente não gosta exatamente de andar com a família por
aí... Vance não aceitou isso muito bem. Ele começou a inventar muitas
histórias sobre a prima, sobre coisas que ela fazia com os garotos na escola,
que seus pais deveriam interferir antes que ela se tornasse uma... uma...
— Uma vadia — Blue completa por ela, bufando uma risada. — Eu sou
uma, mas não do jeito que ele pensava.
— Blue... — repreendo. Agora não é hora para gracinhas.
— Desculpe.
— Tudo bem — Senhora Hale suspira. — Bom, quando vocês se
afastaram de vez, Vance voltou a ter problemas na escola. Vocês eram
adolescentes, então achávamos que era normal para essa idade... até que ele
começou a namorar um garoto. — Engole seco. — Vance não nos escondeu
e nós sempre desconfiamos da sua sexualidade. Recebemos o garoto em
nossa casa, apenas pedimos que Vance não falasse nada para os seus pais,
Blue, porque sabíamos o que eles falariam e não queríamos nosso filho
sendo vítima de preconceito.
— Esperto da parte de vocês, porque não era só preconceito que ele
sofreria.
A tia de Blue segura a mão dela, com os olhos avermelhados.
— Eu sinto muito, querida. Nós não fazíamos ideia do que você sofria
naquela casa. Nós teríamos tomado providências se soubéssemos.
— O passado é passado. — Blue dá de ombros. — Pelo menos vocês
estão me ajudando agora.
A mulher assente, voltando a se recostar no sofá.
— Nós pensamos que seria bom ele ter um namorado, assim não ficaria
tão sozinho..., mas as coisas não funcionaram bem, porque Vance era
ciumento demais. Ele discutia por tudo, achava a todo momento que o
garoto o estava trocando, não aceitava sequer as amizades que ele tinha...
Ela olha para baixo, parecendo envergonhada. Seu marido toma a fala
novamente.
— Em um Halloween, os dois saíram para uma festa que teria na casa de
um garoto que os pais tinham viajado. Nós não sabemos o que aconteceu
naquele lugar até hoje, só sabemos que por volta de três da manhã
recebemos uma ligação do hospital, nos chamando. — Ele estremece. — Eu
me lembro como se fosse hoje... achei que meu filho tinha se ferido, achei
que tivessem feito algo com ele por seu gay... esse sempre foi meu pior
pesadelo, que o preconceito o ferisse não apenas psicologicamente, mas
fisicamente. — O homem respira fundo, negando com a cabeça. — Mas
não era meu filho que estava ferido. Ele não era a vítima. Era o culpado.
Franzo o cenho.
— Como assim?
— Vance bateu no namorado. — A mãe dele explica, enxugando uma
lágrima. — Bateu muito.
— Ele estava drogado — O senhor Hale explica. — Foi quando
descobrimos que ele usava drogas. Sempre tentamos ser seus amigos,
sempre o escutamos, o apoiamos, não fazia sentido que ele precisasse usar
drogas para fugir da realidade, quando a sua realidade era boa. Acreditem
em nós, Vance sempre foi criado com muito amor.
— Eu sei disso — Blue conforta o tio.
Ele suspira agradecido e continua:
— Nós fomos chamados ao hospital porque ele era menor de idade e
estava claramente sob efeito de drogas, mas estava bem. Exceto a mão
completamente cortada pelos socos que deu, ele estava bem. — O senhor
Hale estremece mais uma vez. — Eu queria muito poder dizer o mesmo do
namorado dele... o garoto ficou deformado. Essa imagem nunca vai sair da
minha mente, como aquele garoto doce, educado e bom, estava destruído
por causa do filho que eu criei.
A senhora Hale coloca a mão na perna do marido.
— Nós adorávamos o Nouel — ela conta. — Ele era tímido, mas muito
educado. Vance contou que ele era muito excluído na escola, que era
retraído e também muito humilde. Nosso filho disse que se aproximou dele
para que não ficasse sozinho..., mas no final, ele quase acabou com a vida
do garoto. — Ela enxuga uma lágrima. — Nouel sofreu um trauma craniano
e ficou desacordado por uma semana. Vance dizia não se lembrar de nada.
Por sorte, ou pelo menos achamos que era sorte na época, trabalhávamos no
hospital, então conseguimos que as coisas ficassem em sigilo. Não nos
orgulhamos disso, mas oferecemos uma quantia aos pais do garoto para que
não denunciassem... a gente não conseguia acreditar que nosso filho teria
feito aquilo de propósito. Achávamos que eram apenas as drogas falando...
achávamos que ele continuava sendo o nosso bebê.
— Meu primo gosta de pessoas quebradas, sozinhas e carentes — Blue
diz revezando os olhares entre mim e os tios. — Ele te faz sentir que o
mundo todo é contra você e que ele é sua única alternativa. Ele vai te fazer
sentir a pessoa mais importante do mundo e para alguém que quer ser
amado acima de tudo, isso parece lindo no começo.
Josh vem imediatamente na minha mente. Vance o tratava com devoção
no começo da relação.
— Ele vai estar presente em tudo que você fizer. Nas aulas, nos bares,
nas boates, no parque, na biblioteca, na sua casa... tudo vai te lembrar dele e
isso só te torna ainda mais dependente. — Outro calafrio me percorre. De
um jeito ou de outro, Vance sempre esteve lá em todas as ocasiões da minha
vida. — Até que você coloque mais pessoas na relação. Até que você faça
mais amigos. Até que você não dependa mais dele. Porque quando isso
acontece, ele faz de tudo para te tornar aquela pessoa miserável e sozinha
que era antes. Ele precisa de pessoas influenciáveis e manipuláveis e nada
nos deixa mais assim do que quando não temos amigos e com quem contar.
A senhora Hale abaixa os olhos, parecendo torturada. Não deve ser fácil
ouvir isso sobre um filho.
— Você é pai agora, consegue entender que é impossível olhar para o
seu filho e ver que ele pode ser uma pessoa ruim?
Respiro fundo.
— Consigo imaginar que seja, Senhora Hale. Mas também acho que eu
tomaria uma atitude diferente... não estou te julgando, eu não estava lá, não
passei pelo mesmo que você, mas o fato de Vance nunca ser
responsabilizado pelas coisas que fez, o deixou ainda mais confiante para
fazer mais.
— Nós sabemos disso agora — ela funga.
— Depois do ocorrido, nós internamos o Vance em uma clínica — O pai
dele explica. — Ele ficou lá por todo o verão antes da faculdade. Nós
sabíamos que precisávamos prevenir que ele tivesse acesso a drogas e que
melhor forma senão cortar seu dinheiro? Foi aí que cortamos tudo. Nós já
sabíamos da sexualidade do nosso filho há muito tempo. Nós tiramos seu
dinheiro para que não tivesse mais como comprar.
— Só que ele passou a vender — Blue informa.
— Nós ficamos sabendo disso através de você, quando brigou com seus
pais.
Blue confirma.
— De qualquer forma — o senhor Hale retoma. — Isso que vocês estão
no contando, chega a um nível perigoso demais. Ele está obcecado por
você, Francis.
— E o que vão fazer a respeito? — é o que quero saber de verdade. Vim
aqui para isso.
— Nós não temos outra alternativa, que não o internar de novo e dessa
vez interditá-lo até que esteja realmente recuperado.
— Então façam isso logo — aviso. — Porque eu não vou ficar parado da
próxima vez que ele fizer algo contra mim ou contra as pessoas que eu amo.
Ao contrário do namorado do passado, eu não sou um garoto assustado e
tímido. Eu bato de volta.
Blue e eu saímos da casa deles tarde da noite, depois de insistirem que
ficássemos para o jantar. Eles pareciam arrasados demais para a gente
recusar. Mas ao menos planejamos tudo. Isso acaba amanhã. Vance sai das
nossas vidas amanhã.
— Você acha que eles vão mesmo conseguir fazer isso? — indago Blue
no caminho de volta.
— Vão. Eles sabem que se não parar agora, Vance vai acabar preso, ou
pior... morto.
— Não sei como vou ficar cara a cara com ele sem fazer merda —
confesso.
— Pense no Garden. — Ela aconselha. — É nele que você tem que
pensar antes de se prejudicar.
Suspiro, cansado.
— Está muito tarde para continuar pensando nesse assunto. Vamos para
casa, dormir e amanhã colocamos um ponto final em tudo isso.
Blue segura minha mão em resposta.
Eu só espero que Vance não torne impossível a missão de não partir sua
cara em duas.
 
 
Foi impossível dormir. Passei a noite em claro, velando o sono da Blue.
Ela decidiu ficar nos dormitórios comigo, com a desculpa de que estava
com saudade... até parece, a gente se vê todo santo dia. Ela só queria ter
certeza de que eu estava bem.
Eu estou. Minha preocupação era se Vance ficaria inteiro depois da nossa
conversa. Minha amiga queria estar junto comigo, mas recusei. Não a quero
perto dele. Nem eu mesmo quero ficar perto dele.
Meu coração parece que vai sair do peito quando o vejo descendo da
moto e vindo até mim. Marquei com Vance no campus, onde teriam pessoas
o suficiente para eu não sucumbir a qualquer provocação da sua parte. Não
contei o motivo pelo qual queria falar conversar, mas ele também não me
questionou, pareceu até feliz. Isso é mais assustador do que parece.
Sento em uma das mesas do café no centro do pátio, o observando se
sentar na minha frente. Ele está incrivelmente mais magro do que a última
vez que o vi. Está sendo consumido pelas drogas, mas dessa vez não há
qualquer gota de piedade dentro de mim para oferecer. Pelo contrário.
— Eu diria que fiquei surpreso com a sua mensagem, mas eu sabia que
você ia sentir minha falta mais cedo ou mais tarde — ele tenta colocar as
mãos sobre as minhas na mesa e puxo meu braço para trás antes que
consiga.
— Eu diria que estou surpreso com o quanto você é dissimulado, mas a
verdade é que já esperava por isso — meu tom o faz erguer as sobrancelhas.
— Não entendi.
— Então me permita esclarecer as coisas. — Inclino o corpo para frente.
— Essa é a última vez que vamos conversar... ao menos a última que vamos
fazer isso pacificamente.
— Mas eu achei...
— Achou que eu senti sua falta? — Bufo uma risada. — Não é o caso,
pode acreditar. O que eu sinto falta é da época que não te conhecia.
— Francis...
— Não! — o interrompo. — Sendo mais específico, isso não é uma
conversa. Eu vou falar e você vai ouvir. É apenas esse o intuito desse
encontro. — Vance engole, balançando a cabeça. — Eu sei de tudo.
Meu sangue urra nas veias com a expressão inocente que me devolve.
— Tudo o quê?
— Sei das fotos que você tirava, as encontrei embaixo do seu colchão.
— Vocês entraram no meu quarto?! — ele fala alto, batendo a mão na
mesa. As pessoas em volta nos olham.
— Aquele não é mais seu quarto, foi tudo retirado e levado para a casa
dos seus pais, hoje mesmo pela manhã.
— Você envolveu meus pais nisso? — o rosto dele vai perdendo a pouca
cor que ainda tinha.
— Eu envolvi seus pais, porque você envolveu as pessoas que eu amo.
Você podia ter mexido comigo, Vance... — Sorrio cruelmente. — Podia ter
feito o que quisesse comigo, eu já estava acostumado a me foder. Mas não
com as pessoas que me importo. Nelas, você devia ter pensado mil vezes
antes de tocar.
— Mas eu não fiz nada!
— Não? — Estreito os olhos. — E a foto que você mandou para a
Angelina usando minha conta no seu computador?
Os olhos dele saltam levemente.
— Não esperava que eu fosse descobrir, não é?
Eu vejo a batalha acontecendo dentro da sua mente. Se assume de uma
vez ou se continua mentindo. Ele parece optar pela primeira.
— Eu só queria te mostrar que ela não estaria com você se voltasse a
usar as drogas, que ela só queria seu lado perfeito... e eu estava certo.
Engulo a bile, fechando minhas mãos em punho.
— Ela tanto estaria comigo, que foi por esse motivo que Jayden e ela
sofreram aquele acidente... — Meu corpo estremece com a raiva me
consumindo. — É bom que saiba, que Jayden faleceu por causa daquela
foto. É bom que saiba e carregue esse peso com você pelo resto da vida.
— Eu não tenho culpa daquele acidente! — Vance começa a se
descontrolar.
— Será mesmo? — Apoio as palmas na mesa. — Porque eu me lembro
de você muito interessado em levar o carro da Angelina na oficina. Eu
pensei que você só queria se enturmar com todo mundo de novo..., mas não
era isso, não é Vance?
Os ombros dele caem e seus olhos desviam dos meus, agoniados. Meu
coração acelera, porque no fundo eu sei... eu sei que ele faria. Sei que teria
coragem.
Engulo os questionamentos, a raiva, o asco... eu prometi à Isabela.
Respiro fundo três vezes antes de voltar a falar.
— Você não conseguiu o que queria.
— Não? — Vance desiste da máscara de vítima e me olha como o
homem nojento que é. — Você não está mais com a Angelina, ou está?
Você está sozinho. Foi culpado de tudo, todos te deixaram, como eu disse
que aconteceria. Só estou esperando você voltar para mim correndo.
Nego com a cabeça, desacreditado que possa existir uma pessoa que se
sinta tão bem falando coisas assim.
— Você só se esqueceu de um detalhe, com todo esse seu plano de
merda. — Sorrio. — Quem se ama de verdade, sempre encontra uma forma
de estar junto. Angelina e eu estamos bem. Tenho todos os meus amigos do
meu lado, mais do que nunca estamos juntos e unidos, apoiando um ao
outro, porque se algo nos ensinou com a perda do Jayden, é que precisamos
dar valor a cada pessoa e a cada momento ao lado delas. Você não
conseguiu, Vance. Você perdeu.
— Não! — Ele se ergue da cadeira, batendo na mesa. — Eu não perdi!
Você vai ver que não perdi, vai ver como mais um erro vai colocar todo
mundo contra você de novo! Eles não te amam do jeito que você é! Eles
amam seus acertos!
Suspiro, me levantando da cadeira com calma.
— Se eles só amassem meus acertos, não teriam estado por mim quando
mais errei. Acontece, que ser amigo não é passar a mão na cabeça. É ficar
do seu lado, mesmo que seja puxando sua orelha. Porque amigo de verdade
não quer te ver na merda, ele quer te tirar dela. Amigos de verdade te
ajudam a escalar o poço e não a se afundar ainda mais dentro dele. Mas eu
não espero que você entenda.
Faço menção de sair e Vance segura meu braço, me impedindo.
— Isso não vai ficar assim. Vocês se acham superiores, acham que estão
acima de mim só porque tentam viver sob uma ética falida do caralho, mas
não estão! São todos fracos!
— De tudo isso que falou, você tem razão sobre uma coisa... realmente
isso não vai ficar assim — nego com a cabeça, apontando para trás. Vance
se vira, confuso, e arregala os olhos ao ver seus pais.
— O que você fez?! O que meus pais estão fazendo aqui?
Ele aperta meu braço e me livro do seu toque.
— Eu nada, mas eles vão fazer o que é preciso por você... porque mesmo
que seja difícil, seus pais te amam... e não vão mais deixar que você destrua
sua vida e a dos outros à sua volta. — Olho uma última vez para Vance,
fitando seus olhos. É o mesmo que encarar uma cobra peçonhenta. — Até
nunca mais.
— Você se acha tão esperto, o grande Francis Hopkins, mas sequer foi
capaz de descobrir tudo que fiz!
Comprimo as sobrancelhas.
— E o que mais você fez?
— Nunca se perguntou por que o secador da Angelina pegou fogo? —
Ele sorri odiosamente. — Nunca facilite as coisas para seu inimigo... e ela
facilitou demais deixando aquilo lá em casa. Bastou apenas uma troca de
fios...
Ele não fala mais nada. E não porque resolveu fechar a porra da boca.
Não fala porque meu punho acerta seu queixo com tanta força, que escuto
meus ossos estalarem. Vance cai no gramado como uma fruta podre e
balanço a mão para tentar afastar a dor.
— Tem razão, Vance. — Bufo uma risada. — Nunca facilite para seu
inimigo... e você facilitou demais agora.
Quem falou que a violência não compensa, certamente nunca socou a
cara de um filho da puta.
Saio dali escutando seus gritos, sem qualquer arrependimento. A partir
de agora, nunca mais vou pensar nele. Vance não merece estar presente nem
mesmo nos nossos pensamentos ruins. Vou apagar tudo. A raiva, o ódio, a
vingança... porque nada disso traria Jayden de volta. Nada disso consertaria
o que foi quebrado, apenas traria ainda mais dor.
Estou deixando ir embora o que fere e deixando ficar apenas o que cura.
Não quero saber o que vai acontecer a ele. Se vai ficar bem ou continuar
seu caminho deturpado. Tudo que quero, é nunca mais precisar saber nada
desse homem.
Hoje, ele também morreu para mim. Mas essa morte não dói. Alivia.
 

 
 
— Você vai fazer alguma coisa no seu aniversário? — Zoey recebe a
bola que eu jogo e a guarda no carrinho junto com as outras. Ficamos
apenas nós duas treinando até mais tarde; ela tem me ajudado a voltar ao
ritmo.
— Não sei — Dou de ombros. — Tudo passou tão rápido, que nem
acredito que já estamos em abril.
— Sei... — ela me olha esquisito, colocando a mão na cintura.
— O que foi?
— Posso te fazer uma pergunta indiscreta?
— Se é indiscreta, por que vai fazer?
— Porque sou curiosa.
— Se eu disser que não, vai perguntar do mesmo jeito?
— Vou.
— Então por que pediu permissão?
— Pra fazer com menos peso na consciência.
Solto uma risada, balançando a cabeça.
— Fala de uma vez.
— Você e o Francis ainda estão juntos?
Meu sorriso morre.
— Por que a pergunta?
— É que... bom, não fica brava, mas a minha colega de dormitório faz
algumas matérias com ele e ficou interessada... só que ela não sabia se ele
estava realmente solteiro.
Engulo a saliva. A força.
— É... ele está solteiro — mas não é para qualquer pessoa. — Não
estamos juntos se é o que quer saber. — Mas também não é bagunça. Quer
dizer... não é, né? Ele já está ficando com outras pessoas? Eu confesso que
não tinha parado para pensar nessa hipótese. Mas e se estiver? Francis
tem todo direito, ele é solteiro. Então por que eu tenho vontade de apertar
aquele pescoço musculoso só de pensar nele beijando outra boca?
— Angelina, você está vermelha.
— Estou? — coloco a mão no rosto, o sentindo quente. — É do treino.
— Ou é ciúmes? — Sorri maliciosa.
— Ciúmes? — Bufo uma risada. — Claro que não. Nós somos amigos.
— Que já foram namorados.
— Mas agora não somos mais — entro na defensiva.
— E não gosta mais dele?
— Acho que já chega de perguntas indiscretas, Zoey.
— Ok. — Ela ergue os braços. — Parei.
Mordo o lábio, pegando a bola de volta do carrinho. Acho que preciso de
mais algum tempo de treino para gastar energia.
Ou a raiva.
Eu nem posso sentir raiva. Não posso sentir ciúmes.
Somos amigos.
E isso não vai mudar.
— Não vai embora? — ela pergunta com cautela.
— Não, pode ir. Eu vou ficar aqui mais uma hora.
— Tem certeza?
Assinto, quicando a bola no chão. Me despeço de Zoey de qualquer jeito,
com o humor completamente estragado.
Vai fazer dois meses que Francis e eu voltamos a nos falar, que já não
temos arestas a aparar. Mas nossa intimidade não é como antes, ao menos
não em todos os aspectos. Passamos por coisa demais para simplesmente
fingir que nada aconteceu. Nós conversamos sobre o Garden, sobre a
universidade, trabalho, esporte... até sobre a merda do clima, mas sobre nós
dois? Nossa relação? Não.
Desde que a palavra amigos foi colocada em pauta quando nos
reconciliamos, foi assim que nos tratamos. Amigos. Nada mais, nada
menos.
E está bom... céus, como é bom tê-lo de novo na minha vida. Não
precisar afastá-lo sempre que aparece, não precisar sentir vergonha quando
o olho... ele ainda não disse que me perdoou, mas definitivamente me trata
muito bem. Francis está sendo o Francis. Apenas isso. Não quero perder
isso de novo. E acho que ele também não.
Talvez por essa razão não tenhamos tocado no assunto romance. Não
estamos prontos para ele e nem sabemos se um dia vamos estar dispostos a
arriscar nossa convivência. Dói demais ficarmos afastados um do outro,
então o que temos agora, é mais do que o suficiente por ora.
É sim. É suficiente tê-lo lá em casa todos os dias, brincando com nosso
filho, me contando dos seus planos, ouvindo os meus. É suficiente não ter
mais seu olhar frio e apático, ouvir seus conselhos, suas gracinhas... é
suficiente.
Eu só vou precisar aprender a ter paciência com situações como a de
hoje. Com o... ciúmes. Não vai ser uma tarefa fácil..., mas amigos não
devem sentir ciúme um do outro. Então vou me educar para agir melhor da
próxima vez. Para não ferver de ódio como estou agora.
Por hoje, vou treinar até que o sentimento evapore.
E faço isso até que luzes se acendem ao fundo do centro esportivo, onde
as piscinas se encontram. Arqueio a sobrancelha.
Só uma pessoa estaria lá a essa hora...

 
Entro no centro esportivo já tarde da noite, com uma toalha em mãos.
Finalmente voltei para a equipe de natação depois de todo esse tempo.
Meus treinos costumam ser mais cedo, mas hoje eu simplesmente estava
inquieto no meu dormitório e resolvi vir nadar.
A área das piscinas está com as luzes desligadas, mas é algo que já
esperava. Acendo algumas delas, deixando uma meia iluminação. Eu não
preciso ver muita coisa, só preciso sentir água envolta de mim. Há dias que
só isso pode arrastar o estresse para longe.
Não dá pra ser eu mesmo sem isso aqui. Não a competição, mas a
sensação de estar dentro d’água.
Tiro a calça de moletom e a camiseta, não me incomodando em vestir
uma sunga. Pulo na água com a boxer mesmo, relaxando quando meu corpo
fica completamente submerso. A água está mais fria que o habitual, mas
não acho isso ruim. Subo de volta à superfície, batendo meus braços e
pernas.
Porra, como é bom.
Chego ao outro lado rapidamente, dando uma cambalhota e voltando
com um impulso na borda da piscina. Não penso em nada, absolutamente
nada. Deixo meu corpo fazer o que faz de melhor. É tão bom fazer coisas no
automático, tão bom saber que meus músculos não perderam a memória;
não ter que raciocinar e apenas agir.
Emerjo quando preciso de um fôlego, apoiando os braços na borda.
Encosto a testa na cerâmica gelada, respirando ofegante. Estou fora de
prática, com toda certeza. Vai levar um tempo até que eu fique tão bom
como costumava ser. Pelo menos já não coloco aquela mesma pressão,
talvez por finalmente ter escolhido a medicina. Meus ombros estão bem
mais leves para fazer o que amo.
Um barulho de bola batendo contra o chão me faz erguer o pescoço e
franzir o cenho. Pelo horário, não é para ter nenhuma equipe trainando.
O barulho se aproxima da entrada das piscinas e estreito os olhos para
tentar enxergar melhor. Eu preciso pensar em usar lentes de contato, porque
sempre me esqueço de colocar os óculos.
Só que não é preciso nenhum deles para eu identificar a garota loira
parada na entrada, com uma bola de vôlei nas mãos e os cabelos amarrados
em um rabo de cavalo.
O que Angelina está fazendo aqui?
Apoio as mãos na borda e impulsiono para fora da piscina, caminhando
até ela. Me aproximo porque sei que não vai entrar. Passo a mão no cabelo
para tirar o excesso de água, cuidando para não a molhar no processo.
— É uma miragem ou estou mesmo vendo Angelina Eastwood perto de
uma piscina?
Sorrio de lado, vendo as bochechas dela ficarem vermelhas. Acho que é
porque seus olhos não estão no meu rosto. Olho para baixo, lembrando que
não visto uma roupa totalmente apropriada. Pelo menos a boxer é preta e
não branca... embora pela cara dela, acho que não ficaria muito triste se
fosse.
Limpo a garganta e Angelina sobe o olhar rapidamente.
— Sou eu mesmo... — Sorri tímida. — Por quê? Você costuma me
imaginar muito por aí?
Estreito os olhos.
— Acho que vou te deixar na curiosidade sobre isso.
Ela assente, achando graça.
— A propósito, Garden está com o Ethan e a Blue. O deixei dormindo e
vim treinar um pouco.
— Não precisa me explicar, eu sei que você o deixaria em segurança.
Angelina suspira, se balançando nos pés.
— Por que estava treinando essa hora?
Olho para a piscina, dando de ombros.
— Não estava treinando, só precisava gastar um pouco de energia. E
você?
— O mesmo. — Seus ombros se encolhem. — Eu vim aqui porque vi a
luz ligada e só tem uma pessoa que eu conheço que estaria na piscina a essa
hora.
Rio, mordendo o lábio.
— É, realmente eu sou o único que vem aqui esse horário, por isso o
técnico nunca tranca.
— Mas então... — Angelina ergue a bola de vôlei. — Eu estava
precisando de um adversário para jogar... você está disponível ou a quadra é
seca demais?
A encaro confuso. Minha relação com Angelina melhorou em níveis
extraordinários nesses últimos dois meses, mas é a primeira vez que ela de
fato me convida para fazer algo. Só nós dois. Geralmente só nos vemos em
casa, com Garden ou nossos amigos por perto. A verdade é que não sei
mais como ficar sozinho com ela. Não sem me permitir sentir coisas que
não devo.
Falei sério quando disse que ainda não havia esquecido todas as mágoas.
Tem abrandado. Pouco a pouco. Mas ainda está aqui dentro e preciso ser
honesto comigo e com ela. Por isso, tento evitar de todas as formas pensar
em nós como algo além de amigos.
Até porque... é bom demais tê-la de volta na minha vida. Bom demais
para arriscar acabar com tudo.
— É só para uma partida, não estou te pedindo em casamento. — Ela
brinca pela minha demora, como se lesse meus pensamentos.
Coço minha cabeça, sem graça.
— Claro... eu só vou colocar minha calça.
— Vai molhar. — Faz careta.
— Estou morando no campus agora, um pulo e já estou em casa. Não
tem problema molhar.
— Tudo bem, vou te esperar na quadra.
Visto a calça rapidamente, permanecendo sem camisa. Não sei por que,
mas o calor parece ter aumentado radicalmente. Sigo Angelina até a quadra
de vôlei, ficando de um lado da rede e ela do outro. Nós costumávamos
jogar juntos quando morávamos em Cape May e eu era realmente
humilhado.
Não sou bom com bolas. Nem com as minhas.
Angelina vai para trás da linha de saque e sorri para mim, quicando a
bola no chão três vezes. Eu posso não ser bom com bolas, mas ela é ótima.
Inclusive com as minhas. Talvez, só talvez, elas fiquem mais pesadas pela
visão de Angelina com uma expressão competitiva.
Foda-se, essa mulher me abala até respirando, que dirá me encarando
com cara de malvada querendo me vencer em um jogo. Eu estou tão na
merda, que a vigilância sanitária deveria me interditar.
Balanço a cabeça.
Foco, Francis. É um jogo de vôlei, não preliminares.
— Pronto? — ela me grita.
— Para o quê? — Arregalo os olhos.
— Jogar? — Angelina franze o cenho.
Gargalho de desespero.
— Ah... claro. Estou sim.
Você é um completo tapado, Francis. Parabéns!
Angelina saca a bola e ela vem na minha direção como um raio. Com
sorte, consigo pegá-la em uma manchete e jogá-la para o outro lado com
um corte. Angelina, no entanto, salta a tempo de interceptá-la com um
bloqueio perfeito.
Ela volta ao chão com um sorriso rasgando seu rosto, algumas mechas
do cabelo fora do lugar e o peito ofegante.
Pisco aturdido.
Mulher, continue sorrindo assim e eu vou perder para você o resto da
minha vida de bom grado.
Jogo a bola de volta para ela sacar novamente. Se acalma e coloca a
mente do lugar, porra. Vocês são amigos, nada além disso. É melhor assim
e eu sei... só preciso convencer o resto do corpo.
— Você não melhorou muito suas habilidades com a bola — ela
provoca.
— Eu sou melhor jogando na horizontal, Angelina.
— O q-que? — ela gagueja.
Sorrio de lado.
— Natação... horizontal... pensou que fosse o quê?
— Ah... N-nada.
Meu sorriso aumenta quando ela saca a bola depressa.
Ficamos cerca de duas horas jogando, até que eu não consiga nem mais
respirar decentemente.
— Isso é uma desistência? — a loira endemoniada caminha até mim com
ar de vitoriosa. Ela é mesmo, já que não marquei quase que ponto nenhum.
Apoio as mãos no joelho, ofegante.
— É injusto jogar contra você na sua especialidade. Eu me sairia melhor
em uma competição de natação.
— Seria interessante, se eu não fosse começar a ter uma crise na água.
— Ela faz graça e eu faço careta.
— Isso não é engraçado.
— Não, não é. Mas é verdade.
Respiro fundo, endireitando minha coluna. O suor escorre pelo meu
pescoço, descendo para o meu peito.
— Preciso de um banho.
— É, eu também — Ela olha para o próprio corpo e quase adquiro uma
cãibra no globo ocular para não fazer o mesmo. Eu não fico sozinho com
ela há muito tempo, mereço um desconto.
— Você veio com o carro da Blue? — indago.
— Não, eu vim de taxi, vou pegar um de volta.
Olho para o relógio do ginásio, balançando a cabeça.
— Eu te deixo em casa.
— Não precisa.
— É bom que eu vejo o Garden também.
— Mas ele está dormindo.
— Eu só vou vê-lo, não vou acordá-lo. Prometo.
— Tem certeza?
Sorrio, assentindo.
— Vamos até meu dormitório, eu tomo um banho e te levo. Pode ser?
— Seu dormitório? — é a vez dela de engolir a seco para uma proposta
minha.
— Só estou te pedindo para esperar no meu quarto, não para entrar no
chuveiro comigo — provoco e Angelina revira os olhos.
— Cretino — resmunga enquanto sai rebolando na minha frente.
Gostosa.
Quer dizer... grossa.
Porra, Francis!
 

 
 
Estou começando a achar que foi uma péssima ideia vir até o dormitório
do Francis.
O quarto dele em casa já perdeu seu cheiro, mas esse aqui... céus, está
impregnado. Não ajuda muito escutá-lo no banho.
Amigos, Angelina. Vocês são apenas amigos, ele deixou isso muito claro.
Você passou meses o desprezando, sendo horrível com ele, não pode
esperar que simplesmente esqueça. Além disso, não é como se você
estivesse preparada para um relacionamento agora, sua doida!
Sento na beirada da sua cama de solteiro, olhando em volta. O
dormitório é menor do que o meu costumava ser, já que é para uma pessoa
só. Algo na cama ser pequena me deixa mais à vontade. Isso quer dizer que
ele não traz garotas aqui, não é?
Minha consciência só me lembra que nunca precisamos de cama para
transar. Me arrepio só de pensar nele por cima de outra garota. Mas vou ter
que começar a conviver com isso, Francis definitivamente não vai ficar
sozinho por muito tempo. Conheço garotas o suficiente nessa faculdade que
matariam para ficar com ele. A amiga de Zoey é um ótimo exemplo.
Garden vai ter uma madrasta em breve?
A porta do banheiro é aberta e me levanto depressa da cama, cruzando os
braços. Sim, estou criando uma barreira entre mim e o nadador de mais de
1m80 cheio de músculos, tatuado, molhado e de toalha.
É uma boa hora para me arrepender de ter saído de casa.
— Está tudo bem? — ele averigua, bagunçando o cabelo para tirar o
excesso de água. Acho que Francis deveria saber que isso é claramente
contraindicado na minha frente. Causa palpitações onde não deveria.
— Não — admito, me abanando com a mão.
— Tá muito calor? — Franze o cenho.
— Demais — ofego.
— Quer que eu ligue o ar-condicionado?
— Eu quero que você coloque uma roupa.
A compreensão atinge seus olhos, ao mesmo tempo que o
constrangimento atinge minhas bochechas. Francis esconde o sorriso,
tossindo para disfarçar. Ele não tece nenhum comentário, só abre sua
gaveta, tirando de lá uma boxer branca. Graças aos céus ele estava com uma
preta na piscina.
Quando vai abrir outra gaveta para pegar o restante da roupa, ele deixa a
cueca cair no chão e me desespero. Se Francis abaixar e essa toalha se
soltar, eu vou cair direto na porta de entrada do inferno.
— Deixa que eu pego!
Abaixo depressa na intenção de ser mais rápida que ele, mas Francis tem
a mesma ideia. Nossas testas batem uma contra a outra com força e meu
corpo vai para trás no mesmo instante. Francis tenta me segurar, mas a
toalha envolta do seu quadril ameaça cair e ele perde o equilíbrio, caindo
para a frente.
Em cima de mim.
Minhas costas batem contra o chão acarpetado e ele apoia as mãos nele
para sustentar seu peso. E muito embora nossas testas não colidam, todo o
resto do seu corpo pressiona o meu.
Me ferrei.
Arregalo os olhos, com a respiração presa na garganta. Os olhos de
Francis estão tão assustados como imagino estarem os meus, e a boca
entreaberta, arquejando. Meu coração está tão silencioso dentro do peito,
que me questiono se ainda bate. Não posso dizer o mesmo sobre o dele, que
bombeia o sangue tão forte, que sinto contra meu seio. Ele abaixa os olhos
para os meus e então mais um pouco para minha boca. Sua respiração
acelera no mesmo instante. E se eu achava que meu coração havia falhado,
ele me envia uma prova brutal de que está inteiro. Colide contra meu peito
fervorosamente.
O cheiro do sabonete de Francis preenche meus sentidos e minha
pálpebra pesa, tremulando. Assim como ele, desço meu olhar para sua boca.
Por que parece tão macia? Tão perfeita para se encaixar na minha?
A mão que eu mantinha na lateral do meu corpo vai parar sobre as costas
dele, sentindo as gotas de água que ainda escorrem do banho recém tomado.
Meus dedos percorrem desde a nuca até a base da coluna, fazendo Francis
arqueá-la e seu quadril vir de encontro ao meu. Abro mais a boca ao sentir o
choque contra o topo das minhas pernas.
Francis pragueja baixinho, algo ininteligível, mas que meu corpo
responde imediatamente. Meus mamilos ficam turgidos contra seu peito e
eu tenho certeza que ele pode sentir, porque seus olhos caem para meu colo
e seus lábios são aprisionados por seus dentes. Sinto como se fosse na
minha pele. Quero que seja na minha pele.
Quando Francis volta a me olhar, cara a cara, nariz contra nariz, eu perco
qualquer limiar entre o desejo e o bom senso. Ergo meu rosto minimamente,
apenas para diminuir milímetros de distância entre nós, e Francis foge na
mesma proporção. Eu vejo a batalha acontecendo refletida no azul agora
nublado de vontade. Sua garganta se move duramente, o pomo de adão
descendo e subindo sofregamente. Meus dedos em suas costas aumentam a
pressão, até que minhas unhas estejam percorrendo a pele molhada. Ele se
mantém imóvel dessa vez e não sei decidir se isso é bom ou ruim. Francis
cola sua testa na minha, negando com a cabeça devagar.
— Seria uma ideia ruim te beijar agora? — sussurro, passando meu nariz
pelo dele, nossas bocas quase se encostando. Ele aperta o maxilar e os
músculos de seus braços na lateral do meu rosto retesam, estremecidos.
— Pra caralho — Francis arqueja, umedecendo os próprios lábios. A
toalha não é empecilho suficiente para que eu não sinta o quanto o corpo
dele discorda da sua fala. Meu núcleo se contrai dolorosamente, porque a
sensação da sua rigidez contra minha carne me faz lembrar do quão bom era
tê-lo dentro de mim. E de que nunca mais terei.
— Então por que parece que é tão certo? — imploro por uma resposta
capaz de convencer meu corpo.
— Porque não importa quanto tempo passe, Angelina, meu corpo sempre
vai desejar o seu, e o seu sempre vai retribuir. Eles se conhecem bem
demais para se esquecer.
Francis se apoia no chão com apenas uma mão, enquanto a outra vai
parar na minha cintura. Não havia me dado conta que movia meu quadril,
até que ele me prende contra o chão, impedindo de me mover.
— Por Deus, pare de rebolar em mim — sua voz sai torturada.
— Você não gosta?
Ele solta uma risada rouca.
— Esse é exatamente o problema, Angelina. Eu gosto... merda, eu gosto
muito.
Os dedos na minha cintura se tornam mais estreitos e eu poderia chorar
de saudade. Essa possessividade, esse toque espaçoso, essa maneira
silenciosa de dizer que sou dele...
Minha respiração sai aos tropeços.
— Se isso é tão errado, então definitivamente me tornei alguém que
aprecia o erro.
Esfrego minha boca, incapaz de me controlar. Francis deixa um som
gutural escapar da sua e meus mamilos doem para ser tocados.
— A gente não pode foder com tudo de novo — diz, mas repete o
mesmo gesto e escorrega seu lábio no meu.
— Eu sei — quero chorar, porque eu sei. Ele volta a unir nossas testas e
abraço seu corpo, apenas por necessidade de tê-lo aqui por mais algum
tempo. De me iludir por mais alguns segundos e fingir que ainda posso ser
dele.
— A gente é bom demais em destruir nossa relação... mais do que bons
em mantê-la. E eu não quero que a gente perca o progresso que estamos
tendo. — Francis beija meu nariz, e então minha bochecha, terminando na
minha testa. O carinho é tão bom que leva lágrimas aos meus olhos.
— Eu sei — repito.
Ele aperta seus olhos, o maxilar travado e eu sei que está se contendo
tanto quanto eu.
— É melhor eu me levantar daqui — fala, mas não se move.
— É... é melhor — digo, mas não me movo.
Francis respira fundo, mordendo os lábios.
— Eu posso ficar só mais um minuto? — pede.
— Dois.
— O quê?
— Fica dois. Dois minutos. Só mais dois — imploro.
Ele apenas assente, pegando minha mão e a entrelaçando na sua acima
da minha cabeça. Nossas testam permanecem coladas e passamos os dois
minutos apenas nos olhando e escutando a respiração irregular um do outro.
Quando o tempo acaba, Francis se ergue sem dizer uma palavra e volta a se
vestir.
Ele me deixa em casa logo em seguida e ao contrário do que faria, não
desce para ver o Garden. Eu agradeço por isso.
Acho que nós dois precisamos de uma distância segura um do outro.
Ao menos até nosso corpo entender o que nossa cabeça já compreendeu.
Somos amigos. E deve continuar sendo assim.
 
 
 

 
 
O tempo é uma coisa engraçada. Quando tudo estava indo pelos ares,
sentia o passar de um dia como se fossem meses. Mas quando as coisas
finalmente se acertaram na minha vida, os dias passaram como horas.
Em dois meses será o aniversário do Garden e nem posso acreditar que
aquele bebezinho já vai completar seu primeiro ano de vida. Blue e Cassy
estão cuidando dos preparativos para a festa desde já e eu estou começando
a me assustar com o preço das coisas.
Eu não fazia ideia que festa de criança era tão caro. Angelina tentou
convencê-las que era inútil fazer uma festa da qual ele nem vai se lembrar,
mas eu consegui persuadi-la pelas fotos. Não é exatamente para o Garden se
lembrar, é para nós dois vermos esses momentos no futuro.
Minha relação com ela continuou na mesma. Amizade e nada mais.
Depois do momento que tivemos no meu dormitório há alguns meses,
evitamos facilitar situações que nos colocariam à prova dessa decisão.
Angelina e eu fomos racionais naquela ocasião, mas sabemos como nossa
química pode apenas explodir em questão de segundos... então não
arriscamos. Basicamente evito ficar só de toalha na frente dela e ela evita
me tocar por tempo demais.
É uma droga nosso corpo não ter se esquecido até hoje qual eram as
sensações de estarem unidos. Seria mais fácil assim.
Aperto o passo para a sala do orientador do curso de medicina. Ele tem
conversado com os alunos sobre as especialidades que pretendemos seguir.
Isso tirou meu sono nessas últimas semanas, mas finalmente me decidi por
qual caminho seguir, depois que Angelina me confidenciou sua
preocupação com Garden pela segunda vez no mesmo tema.
Ela notou algumas coisas nele, que podem ser oriundas do TEA. Não
confirmamos nada ainda, porque os diagnósticos são feitos geralmente após
os doze meses de vida. Mas eu confesso que tenho ficado atento a alguns
sinais. Garden não é uma criança que costuma sorrir, dificilmente seu corpo
responde ao chamarmos seu nome, ele perde horas brincando com objetos
giratórios, além de dificilmente olhar para os nossos rostos. Ele apresentou
até mesmo algumas regressões em movimentos motores e na fala que estava
começando a adquirir. Pode não ser nada. Mas também pode ser.
Angelina e eu não vamos esperar uma eternidade para descobrir, como
foi feito com ela. Seja como for, eu sei que Garden sempre terá nosso apoio
irrestrito. Só me preocupo porque Angelina está se culpando de alguma
forma.
Entro na sala do orientador, me sentando na cadeira em frente à sua
mesa. Ele é um amigo íntimo do meu pai, então talvez isso tenha me
tranquilizado um pouco mais. Principalmente porque meu pai apoiou a
decisão que tomei.
— Boa tarde, senhor Hopkins. — Me oferece sua mão e o cumprimento.
— Imagino que já tenha se decidido pela sua especialização, você parece
confiante e não assustado como os alunos que acabaram de entrar aqui.
Bufo uma risada.
— Assustado eu estou, principalmente porque ainda tenho um caminho a
seguir antes de começar a minha especialização. Mas sim, estou decidido.
— Me conte então, estou ansioso para saber se seguirá os caminhos do
seu pai.
— Na verdade, não vou — conto. — Eu vou seguir na neurologia.
O homem ergue as sobrancelhas.
— Na área cirúrgica?
— Não, eu pretendo me especializar no transtorno do espectro autista.
— Ok... isso foi inesperado — Ele ajeita seus óculos sobre o nariz. —
Você tem certeza disso?
— Tenho.
— Posso perguntar se há algum motivo em especial? Você foi bem
específico quanto a área de atuação.
— Bom... só o fato de eu ter optado por seguir na medicina já é uma
surpresa, professor. Eu comecei o curso sem um propósito, apenas querendo
agradar minha mãe — confesso. — Quando minha ex-namorada ficou
grávida do meu filho, foi a primeira vez que me interessei pelas aulas e vi
um propósito nelas... que eu podia realmente fazer a diferença com essa
profissão. — Solto uma risada. — Eu sei que é óbvio que um médico faz a
diferença, mas eu não tinha provado na pele ainda, não tinha sentido essa
emoção. Você me entende?
— Mais do que imagina, Francis.
— Depois disso, continuou sendo algo que eu aprendia para ajudar
pessoas próximas a mim... até ajudar uma garotinha na praia que estava se
engasgando. Ali... ali eu puder concretizar que eu não seria útil só às
pessoas que eu amava e conhecia, mas que podia ser maior que isso. Que eu
podia de fato ser relevante e bom naquilo que faço. — Dou de ombros. —
Eu sempre amei cuidar das pessoas... só demorei a entender que podia fazer
isso na minha profissão também.
— É um propósito bonito. Poucos médicos encontram um ideal dentro
da profissão, e acredite, chega um momento que tudo que precisamos é de
um motivo especial para continuar. É fácil se perder na rotina e nos
esquecer do porquê nos tornamos médicos.
Assinto, sorrindo.
— Meu filho abriu meus olhos para tudo que eu poderia fazer. E outra
criança reafirmou minhas crenças. Acho que seguir nessa área infantil será
minha escolha no futuro.
— Me desculpe perguntar, mas... seu filho foi diagnosticado dentro do
espectro? Estou curioso sobre sua especialização.
— Não, professor. Mas nós estamos desconfiando que possa ser. De todo
modo, eu convivo minha vida toda com alguém dentro do espectro,
importante o bastante para ter tornado o assunto pessoal para mim.
— Sua ex-namorada?
— É... agora ela é minha amiga.
— Desculpe a sinceridade, mas acho que ela significa mais que isso para
você.
— Sim, significa — admito. — Mas continua sendo apenas minha
amiga.
— Espero que isso mude no futuro, rapaz.
Sorrio.
— Quem sabe...
 

 
Vou para a casa da Angelina depois das últimas aulas do dia, carregando
minha mochila. Tenho dormido aqui algumas vezes na semana para que ela
possa descansar mais durante a noite. Garden não costuma dormir mais que
quatro horas seguidas. Pelo menos agora ele tem usado a mamadeira
durante a madrugada e assim eu posso cuidar dessa parte, já que o leite de
Angelina praticamente secou.
A introdução alimentar do Garden continua sendo algo complicado.
Basicamente ele não gosta de comer nada amassado e é realmente tenso
dar coisas para ele em pedaços maiores, porque morremos de medo dele se
engasgar. Angelina geralmente me espera estar por perto e me fez ensiná-la
as manobras para o caso de algum acidente.
A pediatra não viu problemas em ele não comer alimentos amassados,
porque falou que isso estimularia a mastigação, então ficamos mais
tranquilos a respeito.
Assim que abro a porta da sala, Garden se vira na minha direção, sentado
no tapete brincando com o controle remoto. Tanto brinquedo e ele gosta é
disso.
— Como está o Brotinho Agitado do papai? — Largo a mochila no sofá,
me jogando no chão para brincar com ele. Deito a cabeça nas suas
perninhas e as mãos de Garden vão direto para o meu cabelo. Ele tem
verdadeiro obsessão em puxar os fios alheios. Eu deixo porque ele parece se
divertir. Se eu ficar calvo, tenho a quem culpar.
— Estressado e pronto pra me deixar doida! — Angelina resmunga no
sofá e me estico para beijar suas bochechas.
— Você está bem? — averiguo.
— Estou. Só preciso de um banho, porque seu filho jogou toda a banana
que tentei dar pra ele em mim.
Seguro a risada.
— Pode ir, vou ficar com ele.
— Tenta fazer ele comer, você tem mais sorte com isso do que eu. — Ela
corre escada acima antes de eu responder.
Pego Garden no colo e ele briga por ter que soltar meu cabelo, batendo
na minha cara. Os tapinhas dele realmente começaram a machucar.
— Vamos ver o que você tem de comida hoje... é melhor comer bem ou
vai deixar sua mãe nervosa. E aí quem aguenta sou eu, carinha. Somos uma
dupla, lembra?
O coloco na cadeirinha alta que Josh comprou, e analiso o prato com
beterraba, batata, cenoura e abóbora. Angelina os picou em cubinhos todos
iguais. Ela realmente é a única com paciência para isso.
— Você tem a melhor mãe do mundo, sabia? — Ele estica as mãozinhas
gordas para o prato, querendo pegar os cubinhos. Garden prefere comer
assim, não gosta de coloquemos colheres na sua boca. Angelina quase teve
um ataque vendo-o comer pelas primeiras vezes. A bagunça a deixava
estressada, mas tentei trabalhar com ela que ele precisava reconhecer as
texturas das coisas. Além disso, era aceitarmos o jeito dele ou deixá-lo sem
comer, porque nosso filho só faz o que bem entende. Ninguém consegue
persuadir esse garoto.
— Calma... — Afasto a vasilha quando tenta pegar mais de um. Ele tem
mania de sempre pegar um em cada mão e colocar tudo dentro da boca.
Segundo Ethan fica parecendo um esquilo comendo nozes. Angelina ainda
vai quebrar a cara dele pelo tanto que apelido que coloca no nosso filho.
— Você já contou ao seu padrinho do céu que está ficando bom em
comer legumes? — todos os dias, levo Garden até a foto de Jayden que
temos na sala e conversamos com ele. Às vezes Ethan se junta a nós, outras
Angie, até Isabela já me ajudou nesses momentos. Mesmo sem a presença
dele aqui, vai ser como se Garden sempre o tivesse conhecido.
Tento colocar um pedaço de batata na boca dele, mas o bebê se irrita e o
joga no chão.
— Não precisa ficar nervoso, o papai só estava te ajudando.
Ele solta um gritinho, pegando outro pedaço do pote.
— Você tem o gênio da sua mãe! — Bufo uma risada.
Garden amassa uma abóbora sem querer nas mãos e faz careta,
balançando os braços para a meleca alaranjada sair dos seus dedos. Os
limpo para ele e coloco outro pedaço na sua mão.
— Tenha paciência, você ainda não tem toda a coordenação do mundo...
e se depender do pai que tem, nunca vai ter uma totalmente completa.
Quando Garden termina de comer e sujar toda a cozinha, seus olhinhos
começam a piscar pesados. Aproveito que também preciso de um banho e
entro com ele no chuveiro depois que Angelina libera o cômodo. O seguro
contra meu peito embaixo do jato de água, já que tem preferido assim do
que na banheira. Saímos os dois enrolados em uma toalha de bichinhos que
comprei combinando e Angelina ri quando nos vê. Eu sei que a gente evita
momentos de tensão sexual, mas eu duvido que ela me ache atraente
enrolado em uma toalha com estampas de estrelas do mar. É ridículo até
para mim.
— Bem estilosos — caçoa.
— Não nos julgue, você queria ter uma igual.
Angelina ri, voltando a ler seu livro. Troco Garden primeiro, vestindo
uma roupa no banheiro em seguida. Dispenso a blusa, porque em contato
com meu peito ele sempre dorme mais rápido. Me jogo no lado contrário de
Angelina na cama, colocando Garden deitado sobre mim, sua orelhinha
direita contra meu coração e a esquerda coberta com minha mão. Batuco
meus dedos em suas costas no ritmo que faço desde que ele estava no útero
de Angelina e sopro o ar através dos dentes, fazendo um chiado com a boca.
Garden não demora a dormir assim, logo ressoando baixinho e babando no
meu peito.
É nojento, mas adorável.
Ergo o olhar e pego Angelina no encarando distraidamente. Ela demora a
perceber que a peguei no flagra.
— O que foi? — indago baixinho.
— Nada... eu só gosto de ver vocês dois juntos. Me acalma.
Estendo minha mão livre para ela, que entrelaça nossos dedos.
— Estar com vocês dois me acalma.
Ela suspira e balança de leve a cabeça, como se afastasse um
pensamento.
Eu também afasto um.
O pensamento de que ainda a amo.
E o de que sempre o farei.
 
 
 

 
 
Interrompo meus passos no meio da escada, com a mão sobre a boca.
Ok, eu devo dar o braço a torcer para todas as minhas falas sobre
aniversários de um ano serem inúteis. Achei que fosse uma perda de tempo
fazer algo que meu filho não se lembraria, mas Francis tinha razão. Com
toda certeza do mundo vou querer me lembrar desse dia e dessa imagem me
esperando aos pés da escada.
Francis está vestido novamente de Sullivan, a mesma fantasia que usou
quando nos reconciliamos no passado e Garden veste a fantasia que a Boo
usou para se disfarçar de monstro no filme. Ele tem anteninhas sobre a
cabeça e mastiga a mãozinha coberta pelo tecido. Meu coração dá um
looping dentro do peito. De amor e de medo. Porque quanto mais se ama
alguém, mas o medo de perdê-lo te consome.
E é esse o motivo pelo qual minha amiga não está aqui. Ao menos dessa
vez, foi ela quem me ligou. Assim que terminei de vestir a fantasia, meu
celular tocou com uma chamada de vídeo dela. Novamente, a garrafa de
vinho estava na sua mão. Acho que ela só tem coragem de falar comigo
quando está bêbada. Não sei se fico feliz ou triste de que ela não responda
sempre. Porque aí eu teria uma amiga presente, mas alcoólatra.
Seja como for, ela melhorou meu dia em duzentas vezes por pelo menos
escutar sua voz. Ela também disse que mandou um presente ao Garden
pelos correios. Não quis me dizer o que é, mas a conhecendo como
conheço, deve ser uma roupa estilosa. Eu a deixei saber que meu filho anda
menos arrumado do que deveria porque ela não está aqui. Mas nem isso foi
suficiente para convencê-la a fazer uma visita.
Paciência... é isso que preciso ter. No tempo certo, Donna voltará para
nossas vidas.
Desço os últimos degraus, vestida de Mike Wazowski, me aproximando
dos meus meninos. Um dia a semelhança dos dois chegou a me machucar,
mas hoje... hoje não há nada que eu ame mais do que ver que meu pequeno
garotinho é o retrato do homem que o segura orgulhoso. Se não fossem
pelos cabelos loiros claros que Garden puxou de mim, eu diria que eles são
a cópia fiel um do outro.
— Olha, filho — Francis sussurra olhando para mim. — A mamãe é um
monstro verde e caolho.
Ergo uma sobrancelha.
— E o papai é peludo e azul.
— Você poderia muito bem estar falando das minhas bolas — Ele
balança as sobrancelhas.
Arregalo os olhos.
— Que eu me lembre elas eram rosa e sem pelos.
— Estão ficando azuis pela falta de uso e também por esse motivo não
veem uma lâmina há um tempinho.
Gargalho, batendo no seu peito. Garden dá um gritinho, irritado que não
consegue mastigar os dedos com a fantasia. Sua fala não progrediu além de
balbuciações ininteligíveis. Poucas coisas Francis e eu identificamos, como
quando ele nos chama ou quando pede água.
As consultas com a fonoaudióloga foram marcadas desde que recebemos
o diagnóstico do Garden na última semana. Ele veio apenas para confirmar
o que já suspeitávamos. Garden é autista, um nível acima do meu. Segundo
os médicos, é possível que o nível de suporte dele diminua com o tempo e
com as terapias ocupacionais, já que ele é pequeno demais para definir algo
sem qualquer chance de alteração.
Se eu achei que não podia amar ainda mais meus amigos, depois desse
diagnóstico eu tive a certeza que sempre poderei os amar um pouco mais.
Eles lotaram a casa com brinquedos para estimular a fala e a coordenação
motora. Todos os dias, Ethan fica brincando com ele junto com a Blue. Até
mesmo Isabela tem sido uma visita frequente. Segundo ela, está fazendo o
que seu irmão faria por Garden.
Jayden deve estar orgulhoso. De todos nós.
Estendo os braços para pegar meu filho e levá-lo até o jardim onde a
festa acontece, mas ele se agarra aos pelos da fantasia do Francis para não
vir.
— Eu vou ser um monstro depilado até o fim da festa — ele caçoa. —
Garden não para de puxar os pelos.
— É a festa dele, temos que deixá-lo fazer o que quiser.
— Diga isso quando ele começar a puxar o seu cabelo.
Reviro os olhos, o empurrando para fora.
Nós não chamamos muitas pessoas, só as que realmente importam para o
nosso garotinho. Minha avó e meu pai devem estar a caminho do aeroporto
para cá agora mesmo e Robert quase chegando à cidade.
Tão logo chegamos ao jardim, Josh se adianta em pegar o Garden dos
braços do Francis e correr com ele para a piscina de bolinhas. É a primeira
vez que ele vai entrar em uma, não faço ideia se vai gostar ou detestar. Meu
filho é oito ou oitenta, não tem meio termo com ele.
Ou ama uma coisa ou verdadeiramente a detesta. A aparência pode ser
do pai, mas definitivamente a personalidade é minha.
Tão logo suas mãos ficam livres, o aspirante à fotógrafo pega a Canon
pendurada no seu pescoço e começa a fotografar até a respiração das
pessoas. Sou obrigada a admitir que a festa ultrapassou o que tínhamos
planejado, mas ficou tão linda que vale cada clique dele. Não há balões
espalhados como na maioria das festas infantis, mas está cheia de
referências aos monstros S.A. A mesa do bolo é definitivamente minha
parte favorita. Há cupcakes e pirulitos verdes com olhos, outros azuis e com
chifres, tubinhos de balas fantasiados de Boo igual ao Garden e pelúcias em
miniatura.
— Angie, eles chegaram! — Ethan me grita da porta e corro apressada
para ver vovó. Tem meses que não a vejo, mais do que meu pai. Ele tem
sido uma presença constante aqui, ao menos uma vez no mês viaja para ver
o Garden e enchê-lo de presentes. Quando descobriu que o neto é
apaixonado por tudo do fundo do mar, minha casa virou o próprio oceano
de pelúcias. Garden ainda não abandona seu peixe-palhaço, no entanto.
Chego até a sala sorrindo, mas minha expressão murcha quando vejo
Savannah na porta.
O que ela está fazendo aqui?
Vovó Angelina vem até mim, segurando meus ombros.
— Querida, eu sei que ela não tem o direito, mas sua mãe insistiu em
conhecer o neto. Não faça isso por ela, faça pelo Garden. Ele merece ter
uma família completa.
Meus olhos não deixam a mulher na porta, que me encara com certa
ansiedade. A última vez que a vi, foi quando Donna soube da sua
paternidade. Eu não tenho sorrisos a oferecer.
— Garden está muito bem sem ela, obrigada.
— Mas não acha que ele ficará feliz em conhecer a avó? — ela insiste.
Solto uma risada.
— Avó? A avó que ele tem é você. Savannah nunca se dignou a saber se
ele estava vivo.
— Ela me perguntava dele, querida. Desde que nasceu — vovó me
confidencia, mas isso não me amolece.
— Não quero ela aqui. É o dia do meu filho, é o dia que vamos
comemorar um ano da sua vida e ela nunca fez esforço algum para
participar dela. Não vai simplesmente entrar aqui e aproveitar junto dos
meus amigos e da minha família, como se tivesse tido o mesmo carinho por
Garden que eles têm.
— Angelina... — Savannah começa a falar, mas meu pai a interrompe.
— Eu te avisei que se Angelina não quisesse sua presença, ninguém a
obrigaria a te tolerar.
Ainda me surpreendo ao ver meu pai falando assim com Savannah.
Claro que estão separados há alguns meses, mas a coragem dele me
impressiona.
— Eu só quero conhecê-lo, nada mais — ela insiste.
— Pra quê? Hum? — Dou um passo à frente. — Vai se colocar na vida
dele, deixá-lo sentir carinho por você e quando ele decepcionar suas
expectativas vai abandoná-lo, ou pior, rechaçá-lo? Desculpe, mas não vou
deixar você fazer com meu filho o que fez comigo.
Savannah não contradiz minhas palavras. Não poderia, porque são todas
verdadeiras.
— Ele é autista, você sabia? — indago. — Você ainda quer vê-lo depois
de saber que ele tem a mesma coisa que tanto odiou em mim?
— Querida... — vovó tenta me acalmar, mas desvio do seu toque.
— Eu sei, Angelina — Savannah responde. — Sua avó me contou.
Assinto.
— E ainda assim quer vê-lo?
— Eu não posso ter mudado?
— A essa altura? Duvido — desdenho.
— Eu perdi tudo, Angelina. Meu casamento, você, as pessoas na cidade
souberam de muita coisa através de Leonor... acredite, eu tive motivos para
mudar.
Bato palmas.
— Meus parabéns. — Indico a porta. — Agora que já terminou de me
contar, pode ir.
Savannah está prestes a se virar para ir embora, quando seus olhos focam
atrás de mim.
— Angie, quem chegou?
Olho para trás, vendo Francis com Garden nos braços. Ele paralisa
quando vê minha mãe. Seus olhos logo caem para mim, buscando
explicação.
— Savannah quer conhecer nosso filho.
Seus braços envolvem Garden protetoramente. Ele tem a mesma opinião
que eu, ao que parece.
— E escolheu a festa de aniversário dele pra isso? — Francis pergunta
diretamente a ela.
— É melhor tarde do que nunca — o responde.
— Eu preferia nunca — ele contrapõe.
Garden se remexe no colo do Francis para descer e ele coloca nosso filho
no chão, ainda que a contragosto. Garden ainda não consegue andar, mas
engatinha tão rápido como se corresse. Não consigo impedir antes que ele
vá até minha mãe, se apoiando nas pernas dela. Savannah o encara de olhos
arregalados e se agacha para ficar na mesma altura. O bebê leva
automaticamente sua mão para o cabelo dela e o envolve nos dedinhos.
Ele tem completo fascínio com meu cabelo. E eles são idênticos ao de
Savannah. Ela ergue seu olhar para mim, me fazendo um pedido mudo.
O que eu devo fazer? Deixo que ela entre na vida dele? O que isso vai
causar ao meu filho quando não for o bastante para ela? Porque eu sei que
esse dia vai chegar.
— Meu filho é a criança mais doce do mundo. — Dou um passo na
direção dela. — Ele ama carinho, ama abraços, ama que deem atenção para
ele. Ele sente tanta falta das pessoas, que adoece quando passa muito tempo
longe das que gosta... se você tem a mínima e remota intenção de ferir o
coração dele, por favor saia por essa porta e nunca mais volte. Olhe para os
olhos dele e me diga se vale a pena se colocar na sua vida, só para então
sair dela sem remorso depois.
Savannah parece travar uma batalha dentro de si, porque pela primeira
vez vejo os olhos dela úmidos, como se estivesse prestes a chorar. Ela
envolve o corpinho dele com os braços e o ergue do chão, ficando de pé.
— Me deixe conhecê-lo... me deixe ser alguém na vida dele. Não preciso
que me chame de avó ou que me reconheça como uma. Eu sei que não
tenho o direito de te pedir isso. Mas se posso te fazer um último pedido na
vida, é que me deixe conhecê-lo. Não vou machucá-lo, Angelina.
Pisco aturdida, procurando Francis. Ele assente para mim, me dando
apoio.
— No primeiro sinal de que meu filho vai sair machucado, você sairá da
vida dele.
— Obrigada — ela sussurra para mim, sorrindo para o bebê que puxa
seus cabelos.
Tenho medo do quão fácil Garden confia e se apega às pessoas. Espero
que ele não saia machucado por ter um coração bondoso.
 

 
 
Eu nunca pensei que colocaria essa fantasia de novo. Muito menos que
agora teria um filho para completá-la. Mas surpresa mesmo foi Savannah
aparecer aqui. Angelina pode ter dado um voto de confiança, só que eu sou
infinitamente mais desconfiado. Mesmo de longe, observo a interação da
mulher com meu filho.
E no fundo... no fundo, sinto um pouco de incômodo por ela ter vindo e
Leonor não. Eu não esperava que viesse, mas... não sei. Vendo Savannah,
cheguei a cogitar que pudesse ter algum lampejo de afeto no coração da
minha mãe. Não foi o caso. Ela simplesmente cortou laços.
A única mulher que recebeu uma foto do Garden, foi a enfermeira que
ajudou a trazer ele ao mundo. Um ano atrás, quando ela deixou seu telefone
para mim na recepção, nunca pensei que fosse usá-lo. Mas quando acordei
hoje, achei justo agradecer. Afinal, foi graças à Nina que Garden e Angelina
ficaram bem. Nossa conversa foi curta, mas foi quase como ter uma
conversa com uma mãe. Uma mãe de verdade e afetuosa.
A campainha toca novamente e dessa vez vou atendê-la, porque não tem
mais ninguém para chegar além do meu pai. Robert não consegue disfarçar
a risada para a minha roupa.
— O que um filho não faz a gente fazer, né — caçoa, me dando um
abraço.
— Se eu te contar que vesti isso antes mesmo do Garden ser feito, vou
perder a moral com você?
— É melhor eu pensar que está usando pela primeira vez.
— Ok, então — gargalho, o levando para o jardim.
— Angelina, você também? — Meu pai analisa a fantasia dela, a
cumprimentando com um aceno.
— Culpe a Blue, eu falei que não tinha necessidade de vestir essa coisa.
Fico horrorosa.
— Eu acho que você está linda — minha boca grande acaba revelando o
que passa na minha mente.
Os olhos dela saltam na minha direção na mesma hora e por alguns
segundos a gente se perde nesse olhar. Eu preciso cumprir a promessa que
fiz a ela há algum tempo, preciso de um minuto a sós para conversarmos.
Desviamos os olhos quando Robert limpa a garganta.
— Eu vou ali cumprimentar seu pai e sua avó, Angie. — Ele sorri de
lado pra mim, olhando entre nós dois.
O que foi? Não fiz nada.
— Não esquece de cumprimentar a Savannah também — provoco.
— Como é?
Aponto para uma das mesas, onde ela brinca com meu filho.
— Eu vou querer saber por que ela está aqui?
— Acho que nem a gente sabe. — Angelina dá de ombros.
Robert suspira pesado.
— Eu saio de Cape May e ainda tenho que encontrar essas mulheres
malucas — meu pai sai resmungando, arrancando uma risada nossa.
— Eu sentiria pena dele se não tivesse dormido com a minha mãe
quando ela era casada com meu pai — Angie alfineta.
— Eu não sinto pena de jeito nenhum, meu pai que escolheu se envolver
com elas — Dou de ombros. — Cada um tem o karma que merece.
A fito de cima a baixo e ganho um tapa estalado no ombro.
— Está me chamando de karma, Hopkins?!
Sorrio, colocando uma mecha do seu cabelo para trás da orelha. Reprimo
a vontade de acariciar seu rosto. Eu sinto saudade, mas também tenho juízo.
— Você é do tipo bom.
— E tem karma bom?
— Não sei, mas você é um que eu não abriria mão.
Angelina pisca surpresa e um brilho intenso passa pelos seus olhos. Meu
coração dá um pulo. Só não falamos mais nada porque Garden começa a
chorar, provavelmente porque negaram algo para ele.
A fase das birras começou e ainda bem que faço terapia para não surtar.
Amo meu filho, ele é a coisa mais incrível da minha vida, mas ainda assim
consegue elevar meus níveis de estresse à estratosfera. E a parte mais
complicada é diferenciar qualquer crise sensorial de uma simples pirraça de
criança. Nem mesmo Angelina consegue identificar ainda, é tudo muito
recente. Vou ficar calvo antes dos quarenta anos, tenho certeza.
Angelina e eu passamos a festa toda correndo atrás do bebê agitado,
evitando que ele enfie qualquer coisa na boca. O engraçado é que com
comida ele é exigente, mas quanto a objetos aleatórios, está muito disposto
a provar. Até grama tivemos que tirar da sua boca.
— Onde a gente vai colocar esse tanto de coisa? — Angelina aponta
para a pilha de presentes na grama. Garden já rasgou boa parte dos
embrulhos e não porque estava interessado no conteúdo, mas porque gosta
de brincar com o papel. Angie teve quatro tipos de arrepio com o barulho.
Eles são parecidos em muita coisa, mas contrários ao que se refere ao TEA.
Vamos ter que aprender tudo de novo.
— Eu não faço ideia. Acho que vamos ter que usar o quarto do Vance.
— Tenho pavor daquele lugar.
— Confesso que me dá calafrios também... será que a gente chama um
padre?
— Vance não é um demônio pra ser exorcizado... é melhor chamar um
dedetizador.
Tusso uma risada.
— Seu humor é ácido. — Inclino o rosto.
— Você adora isso em mim. — Seus lábios se erguem em um sorriso
irônico.
— Me diga uma coisa que não adoro em você... — Arqueio a
sobrancelha. — Aí sim será uma novidade.
Angelina me olha surpresa.
— Achei que você já não gostava de tudo em mim...
— Por que acha isso?
— Você não me perdoou.
Abro a boca para contestar, mas Blue começa a gritar para a gente ir
cantar os parabéns.
— Depois... — garanto.
Blue pega o Garden do chão, ganhando gritos por tirar dele os papéis que
brincava. Como vingança, ele agarra os cabelos dela.
— Escuta, eu vou mandar a conta do meu cabelereiro pra vocês.
— Briga com ele, não com a gente. — Angie dá de ombros.
— Eu não brigo com meu bombonzinho de coco, não é amor da
madrinha? — ela faz a vozinha fina, dando beijo de esquimó nele. Garden
grita em resposta, babando sobre o nariz dela.
— Esse é meu garoto... — Estufo o peito orgulhoso. — Sabe exatamente
como derreter as mulheres.
— Com certeza não puxou isso de você — Ethan bagunça meu cabelo.
— E espero que nem de você — Angelina caçoa.
— Nem vem com essa, você sabe que eu sosseguei — Ethan puxa a
cintura de Isabela, beijando sua boca.
Há mais ou menos um mês, Ethan fez a coisa mais inesperada e que
agradeci por estar vivo para ver. Ele pediu Isabela em namorado durante o
intervalo de um jogo de basquete. Isabela estava na arquibancada e ele
parou no meio da quadra, com uma caixinha de aliança e fez o pedido. Uma
porra de aliança. Nem eu dei uma para Angelina e ele já começou assim.
Ganhei um tapa da jogadora de vôlei naquele dia por isso.
— Mas até chegar a esse ponto rodou a faculdade inteira — Isabela
revira os olhos, abraçando meu amigo.
É bom vê-los juntos. O engraçado é que antes eu era o amigo
comprometido e agora sou o solteiro e pai. Até o Josh está namorado de
novo... com o enfermeiro do campus. Furar os dedos para ir pedir um
curativo parece funcionar, eu deveria ter tentado a tática com Angelina
enquanto dava tempo.
— Vamos cantar parabéns de uma vez, porque esse bebezinho aqui tá
com sono e quando ele fica com sono... fica chaaaato. — Blue faz careta e a
boquinha do Garden forma um bico fofo. — Mas eu ainda te amo, não se
sinta rejeitado, não tenho dinheiro pra pagar sua terapia no futuro.
Para Blue, tudo vai traumatizar o Garden. Um dia ele mordeu o dedo
dela enquanto dava seu almoço e ela acabou gritando, dando um susto nele.
Bastou um bico do Garden e ela ligou para mim chorando, porque ele a
odiaria para o resto da vida. Angelina tem crise de riso só de lembrar.
— Ba... Ba — Garden balbucia seu jeitinho de me chamar e o pego no
colo, o livrando da tia complexada. Ele automaticamente se agarra ao capuz
da minha fantasia e enfia sua mão na boca. Quando deita a cabeça no meu
ombro, sei que Blue está certa.
— Vamos cantar os parabéns antes que ele durma.
— Eu tenho que ficar atrás da mesa também? — Angelina faz careta.
— É claro, Angelina! — Blue a empurra, não dando outra opção.
— Eu odeio ser o centro das atenções.
Envolvo sua cintura com o braço livre e beijo sua testa.
— Fica tranquila, o centro das atenções vai ser esse carinha aqui.
Garden se joga para frente e o seguro mais firme. Suas mãos tentam
pegar os olhos que despontam do bolo de aniversário, decorado como a
fantasia de nós três.
— Filho, não seja como sua mãe por cinco minutos e tenha um
pouquinho de paciência.
Ele olha para Angelina, sorrindo e expõe seus quatro dentinhos, dois em
cima e dois embaixo, como se entendesse o que eu falo. Parece um coelho.
Mas eu não comento para não levar um chute nas bolas.
— Eu vou acender a vela, segura essa criança — Blue acende com o
isqueiro e os olhos do Garden faltam cair para fora do rosto, agitando os
braços para tentar encostar nas chamas. Só me falta esse menino gostar de
fogo, aí eu vou ter que virar três para ficar de olho nele. Deus, tenha
piedade.
O número um é aceso pela ponta e nossos amigos começam a cantar os
parabéns. Garden abre a boquinha assustado e observa cada um na sua
frente. Angelina e eu só conseguimos manter os olhos em cima dele.
Minha garganta aperta.
Mal consigo acreditar que ele está fazendo um ano. Que realmente está
com a gente e que nós conseguimos. Angelina e eu nunca poderemos contar
a ele histórias clichês sobre como descobrimos que o estávamos esperando.
Nunca poderei contar que peguei a mãe dele no colo e festejei, porque tudo
que senti foi medo e dúvida. Mas apesar de nunca poder contar sobre um
início fácil e bonito, vou poder contar sobre tudo que fizemos, mesmo
quando achávamos que não éramos dignos dele. Mesmo quando achávamos
que não daríamos conta. Eu vou poder contar, que o dia em que decidimos
que poderíamos ser seus pais, foi o dia mais feliz da minha vida. E que ali
sim, eu pude pegar a mãe dele nos braços, e a rodar por aquele parque para
que todos pudessem ver.
Sua chegada a esse mundo também nunca será contada como algo bonito
e tranquilo. Ela foi carregada de dor, de luto, de mágoa. Mas ainda assim,
mesmo que Angelina e eu estivéssemos vivendo o nosso inferno particular e
nos repelindo como óleo e água, ele foi aquele limiar que nos manteve
unidos, foi a razão para que mesmo destruídos, permanecêssemos de pé e
lutando dia após dia.
Garden não sabe disso e talvez nunca vá entender a extensão do que
sentimos por ele. E que mesmo tão pequeno, nos salvou de um momento
que achávamos não ser possível sermos salvos.
Talvez Deus tenha de fato propósitos para todos nós. E seja através de
linhas retas ou tortas, ele nos guia pelo caminho que devemos trilhar. Talvez
desde o princípio, o real motivo de estarmos juntos fosse o Garden. Nossos
pais não deram certo, mas nos conhecemos quando crianças por causa
deles. Angelina e eu não demos certo em todas as nossas tentativas, mas
aqui está esse bebezinho. Eu não teria nos meus braços o meu mundo, se
antes a vida não tivesse tentado destruir todas as razões pelas quais eu
achava que valia a pena para viver nele. Eu precisei ser ensinado a ser forte,
para hoje ser o alicerce que Garden precisa que eu seja. Precisei perder
tudo, para ganhar em dobro.
Seja como for, a dor que enfrentei, as vezes em que achei que não
conseguiria mais aguentar ou os momentos em que vi a morte como algo
muito mais atrativo do que a vida, valeu a pena. Por ele, por Garden, valeu
a pena. E eu viveria tudo de novo, se no final significasse que o teria nos
meus braços, que veria seus olhinhos brilharem sempre que me veem.
Uma lágrima escorre do meu rosto quando ele agarra o capuz da minha
fantasia e come sua outra mãozinha. Ele olha entre Angelina e eu e mesmo
que frases ainda não sejam formadas em sua boca, nós sabemos que
ninguém vai nos amar como ele ama. Que nada nunca vai ser tão puro e
perfeito, do que o que vemos refletido nesse azul cristalino.
— Obrigado — murmuro engasgado, estreitando meu braço ao redor de
Angelina. Eu não preciso explicar para ela o que estou agradecendo. Ela
sabe.
— A gente fez um bom trabalho — sua voz também está embargada.
Olho para meu filho e para nossa família na nossa frente, assentindo.
— É, fizemos.
 
 
 

 
 
— Eu vou indo, Angelina — minha mãe se aproxima de mim depois dos
parabéns.
— Não quer comer um pedaço de bolo?
— Não, eu acho que já fiquei mais do que as pessoas daqui suportam —
ela olha para o meu pai e Robert, que estão de cara amarrada no canto do
jardim.
— A casa não é deles — contraponho. — É minha. E não é como se eles
fossem santos também.
— Ainda assim, acho que deu minha hora — ela desvia a atenção para
Garden no meu colo, quase fechando os olhinhos. Do tanto que brincou, é
um milagre que ainda esteja acordado. — Eu posso?
Assinto e ela o segura por pouco tempo, apenas para se despedir. Eu
queria olhar essa cena e não sentir nada. Savannah não merece nenhum
sentimento que eu tenho guardado por ela. Mas não dá para ver a minha
mãe segurando o meu filho, sem sentir um aperto no coração. Quando ela
vai embora, irracionalmente sinto vontade de chorar.
Sua presença me lembrou da saudade que mesmo uma mãe ruim pode
gerar. É mais fácil quando ela está longe.
— Me passa o pãozinho — Ethan me assusta ao chegar por trás. Sua
boca está toda suja de glacê azul, já que devorou o bolo com Josh.
— Ele está quase dormindo, se você o agitar vai passar a noite com ele.
Definitivamente o sono do meu filho não melhorou com o tempo.
Garden passa quase toda a noite acordado ou agitado e isso tem levado
Francis e eu à exaustão. Às vezes eu choro no banho de tanto cansaço e
ainda tenho sorte por ter uma rede de apoio. Fico me perguntando como é
para as mulheres que precisam fazer tudo sozinha... não é justo e não é
fácil. Por mais que você ame seu filho, chega um momento que você só
quer ficar sozinha e ter uma noite de sono completa.
— Contando que ele vai mesmo dormir com a gente, isso não é um
problema — Ethan o pega do meu colo.
— Como assim dormir com vocês?
— Escuta, você e o Francis estão com olheiras de dar medo, então eu e a
Blue vamos dormir no quarto com ele hoje. Vamos fazer plantões, enquanto
ela dorme eu cuido e enquanto eu durmo, ela cuida.
Faço careta.
— Vocês têm certeza que vão conseguir cuidar dele?
— Claro, tá duvidando da nossa capacidade?
— Estou.
— Ela está pensando em recusar nossa oferta? — Blue se escora no
Ethan, comendo um dos pirulitos azuis.
— Estou — repito.
— Você não tem opção.
— Mas...
Eu começo a contestar, mas eles saem arrastando meu filho para dentro
de casa e não tenho outra opção que não aceitar. Até porque, preciso mesmo
dormir bem.
— Querida, eu acho que já vou para o hotel — vovó Angelina se
despede.
— Não quer dormir aqui?
— Não, lá tem uma banheira enorme no quarto, quero ficar igual uma
sardinha em conserva.
— Você vai é ficar mais enrugada.
Vovó comprime os lábios.
— Eu te amo, Lilium, mas você ainda não ficou totalmente boa no
traquejo social. — Dou de ombros. Talvez eu nunca fique. — Vou atrás do
seu pai.
— Tudo bem, mas venham amanhã almoçar aqui.
— Claro, querida.
Giro nos calcanhares para procurar o Francis, ansiosa pelo que tem para
me falar. Antes de sermos interrompidos pela Blue, ele parecia querer me
dizer algo.
— Vocês ainda se amam — Josh me assusta ao parar do meu lado e
encostar a cabeça no meu ombro. Faço um rápido cafuné na sua cabeça.
— Acho que sempre vamos — confesso.
— Então por que não ficam juntos?
Sorrio, mesmo triste.
— Porque amor não é o bastante.
— Mas é o principal.
Nego com a cabeça.
— Um dia, eu também achei que fosse. Mas agora eu percebo que antes
de se amar acima de tudo, você precisa confiar acima de tudo. E nós dois
tivemos nossas cotas de desconfiança durante a relação, que fragilizaram
demais nosso coração. Ele já não é tão forte.
— E você acha que um dia isso pode mudar?
Jogo os ombros.
— Pode ser que sim. E também pode ser que não. Eu não penso no
futuro, Josh. Ele não existe.
— Eu torço por vocês, sabe... mesmo que não fiquem juntos como um
casal.
— Eu também torço por nós... Garden merece que sejamos amigos.
— E ser amiga dele é o suficiente?
Penso e nego.
— Não..., mas é melhor do que nada.
— Angelina — Robert me chama. — Você pode me mostrar onde fica o
banheiro lá em cima? O de baixo está ocupado.
Abro a boca para responder, mas Cassidy o faz no meu lugar.
— Uau... por que ninguém me contou que o papai Hopkins era mais
bonito que o filho? — ela varre o homem de cima a baixo com os olhos sem
qualquer discrição. — Eu te acompanho, bonitão.
Arregalo os olhos e Josh tosse uma risada do meu lado.
Robert começa a ficar roxo.
— Vem, eu não mordo... a não ser que você implore.
Ela pega o braço dele e o arrasta para dentro da casa sem cerimônia. Se
tivesse álcool aqui, eu diria que ela está bêbada, mas é só a Cassy sendo
Cassy.
 — Eu vou atrás dela, senão é capaz do pai do Francis sair traumatizado
— Josh sai correndo atrás da amiga, me deixando para trás sozinha no
gramado.
Sozinha com Francis.
— Vem cá... tem alguma chance de eu ganhar uma madrasta? — Francis
observa seu pai ser arrastado para o segundo andar.
— Robert pode ser muito bem conservado, mas será que ele aguenta a
Cassidy?
— Prefiro não pensar nisso... eca.
Ele ri, mas eu permaneço séria. Estou curiosa demais para achar graça.
— Francis...
— Presente.
— Sem gracinha. — Reviro os olhos.
— Diga, Angelina. — Ele adota uma expressão séria. Parece fingida,
mas está de bom tamanho por enquanto.
— Quem vai dizer é você.
— Não entendi.
Suspiro irritada.
— Você parecia que ia me dizer algo antes da Blue nos interromper na
hora dos parabéns.
— Ah... isso. — Ele coça a cabeça. — Vamos sentar ali na rede.
Nos acomodamos um de frente para o outro, com as pernas recolhidas e
os olhares conectados.
— Você se lembra do que te prometi seis meses atrás? — ele nos balança
na rede.
— Lembro. Você prometeu me perdoar.
— Sim. Eu prometi te perdoar e prometi te contar quando isso
acontecesse e eu pudesse olhar nos seus olhos sem qualquer ressentimento,
mágoa ou dor pelo que ocorreu. — Francis me oferece sua mão e entrego a
minha com os dedos trêmulos. — Eu perdoo você. Eu me perdoo. Eu
perdoo nós dois, por não termos dado certo. Perdoo nosso passado, nossos
desencontros, nossas brigas... eu perdoo a vida por tudo que nos fez. Eu
perdoo, porque acho que se tudo não tivesse acontecido da forma como foi,
talvez eu não tivesse a mente que tenho hoje. Talvez se a gente continuasse
junto, se nada tivesse nos atrapalhado, lá na frente teríamos magoado muito
pior um ao outro por falta de maturidade, por falta de confiança ou
experiência. Hoje, podemos estar aqui como amigos, mas eu consigo olhar
nos seus olhos sem sentir vergonha, sem me arrepender de algo ou me
ressentir. Consigo olhar para você e saber que vamos estar unidos em prol
da pessoa que mais amamos. Se as coisas tivessem sido diferentes, nós
poderíamos não ter nem isso.
Engulo a saliva e junto com ela o acúmulo de sentimentos.
— Eu achei que te perdoar fosse difícil — admito, acariciando o dorso
da sua mão com o polegar. — Achei que eu não conseguiria... até precisar
me perdoar. Essa é a parte mais difícil. Olhar no espelho e não gostar do que
vê. Não sentir orgulho do que faz... isso foi muito pior de esquecer. Você
tinha razão quando me disse que te pedir perdão fosse o primeiro passo para
eu me perdoar. Porque dia após dia, eu fui me desculpando comigo mesma
por cada erro e cada falha. — Umedeço os lábios secos pelo vento. —
Quando olhamos nossa aparência, é difícil por si só aceitar algumas coisas
que estão fora do que esperávamos. Mas olhar para dentro, para quem
somos e reprovar o que falamos, como agimos e o que pensamos... isso é
pior. Então eu também me perdoo. Eu também perdoo você. Perdoo nós
dois por todas as vezes que não pudemos ser dois e precisamos ser um.
Perdoo pelas vezes que deixamos nossa confiança de lado e preferimos
acreditar na dúvida... é engraçado como sempre confiamos a nossa vida um
ao outro, mas nunca confiamos nossos corações. A gente os protegeu tanto
de se ferir, que a caixa em que o guardamos, criou espinhos que os
machucaram ainda mais.
Francis assente, me puxando para unir minha testa à sua.
— E sabe o que é cômico e trágico disso tudo? — questiono.
— O quê? — seus olhos brilham mesmo com a noite escura.
— É que justo quando nós dois finalmente nos livramos de todas as
amarras, de todas as crenças limitantes, de todas as mágoas... nós também
estejamos fracos demais para estarmos juntos..., conscientes demais de tudo
que podemos perder ao dar um passo errado. No fim, nos perdoar não muda
nada.
Sorrio, ao passo que uma lágrima escorre do meu rosto. Francis também
sorri, segurando as suas lágrimas para si.
— Pode não mudar nada para nós como um casal. Mas muda tudo para o
Francis pai e a Angelina mãe. Muda tudo para o Francis e Angelina amigos.
Muda tudo para nós como indivíduos... eu demorei tempo demais para
perceber isso, precisei perder você inúmeras vezes e perder até mesmo
amigos para me tocar de que antes de amar alguém, antes de esperar ser
amado e perdoado, eu precisava fazer isso por mim mesmo. O nosso perdão
não vai nos fazer ficar juntos, Angelina. Não agora e o depois só Deus
saberá. Mas o nosso perdão vai nos tornar pessoas que se enxergam com
valor, com carinho e cuidado.
Ele seca minhas lágrimas, beijando cada uma delas demoradamente. O
toque dele me faz falta. Todo maldito dia, me faz falta.
— Eu já senti o que é não ter você no meu coração — Francis continua.
— Já senti o que é não encontrar o sentimento aqui dentro do peito. E eu
tenho certeza que você também sentiu isso. Pela primeira vez em nossas
vidas, nós soubemos o que era não amar um ao outro, o que era de fato
querer distância... e isso foi terrível. Mas também nos fez fortes. Também
nos fez encontrar uma razão para viver, que nunca, jamais, iria embora,
independente das circunstâncias... nós mesmos. — Sorri melancólico. — Eu
precisei te perder, perder o amor que sentia por você, para me amar. E hoje,
reencontrando esse amor que sinto por você, ele é muito mais puro, mais
verdadeiro e mais duradouro. Não importa que você esteja comigo ou com
outra pessoa. Não importa a distância que estivermos, os problemas que
aparecerem. Eu sei, Angelina, que vou continuar sentindo amor por você.
Porque agora eu não deposito mais nele, a razão da minha existência. Eu
deposito em mim mesmo. — Sua voz falha, mas ele se recompõe
rapidamente. — Você já não é capaz de me ferir a ponto de eu desistir de
tudo. E eu não sou mais capaz de ferir você a ponto de te quebrar. As rédeas
do nosso coração estão nas nossas mãos. E é por isso, por não colocar
expectativas em você, em cima das suas atitudes e das suas falas, que posso
te amar livremente. Que posso ser feliz, apesar de você, mas
principalmente, ser feliz ao seu lado. Seja como pais do Garden, seja como
amigos ou como meu amor do passado.
Ele beija novamente minha testa, também buscando meu toque em cada
mínimo detalhe. Por que tivemos que estragar tudo? Não é justo.
— Acho que essas fantasias de monstro sempre vão significar nossas
reconciliações — comento com a voz falhada, enxugando meu rosto. Ele
sorri, penteando meu cabelo para trás.
— Então a guarde, Angie. A guarde, porque nós nunca sabemos quando
vamos precisar nos reconciliar de novo.
— Espero que nunca mais. Não quero mais brigar com você.
Se eu pudesse ir contra tudo que acho certo agora, o que eu realmente
queria era amá-lo. Quando meus olhos encontram os seus, sei que Francis
sente o mesmo. Que se nos faltasse juízo como antes, nós já estaríamos nos
braços um do outro.
Como diria Lya Luft, a maturidade me permite olhar com menos ilusões,
aceitar com menos sofrimento, entender com mais tranquilidade e querer
com mais doçura.
Mas quem inventou que ser maturo é bom, nunca precisou se impedir de
beijar o homem que ama.
 

 
Giro de um lado para o outro na cama, incapaz de dormir. Meu corpo
está cansado de tanto correr atrás do Garden, ao passo que minha mente
está desperta como se pudesse correr uma maratona.
Nossos amigos foram embora há uma hora e eu ainda não consegui
pregar meus olhos. Não quando o nadador de olhos azuis ficou para dormir
na sala. Francis parecia tão cansado, que deve ter dormido tão logo sua
cabeça encostou no sofá.
Balanço as pernas na cama, tentando embalar meu sono, mas meus
pensamentos estão dispostos a me deixar desperta. Eu sei a causa disso. Só
não quero admitir.
Fecho os olhos e tento me concentrar no som da minha respiração.
Angelina, tenha calma. Isso é só uma reação do corpo. Apenas isso.
“E o que mais o desejo é, senão uma reação do corpo?” — A pergunta
que fiz à Francis na biblioteca tempos atrás me atinge em cheio.
Ofego, batendo as mãos no colchão.
Tudo bem, eu o desejo. Mas é normal, não é? Faz tempo que... que não
estamos juntos, muito tempo que não me preocupo com as vontades do meu
corpo, que eu não tenho tempo para pensar nisso. Talvez fosse melhor que
Garden tivesse ficado comigo, para que eu ocupasse minha cabeça com
algo para fazer. Agora, no ócio, eu não tenho distração alguma para todas as
terminações nervosas acesas.
Estou quente. Queimando. E quem me dera poder dizer que é
simplesmente de desejo carnal. Eu queimo porque meu coração não aceita
que estou abrindo mão desse amor. Queima por uma última chance. Uma
última noite. Uma última lembrança da qual possa se agarrar nas noites de
solidão.
Eu sei muito bem que levar as mãos até o centro do meu corpo agora,
não vai me saciar. Eu não quero apenas um orgasmo. Eu quero ele.
Inferno, Francis, saia da minha cabeça.
Por que eu insisto em querer adiar esse ponto final? Nós terminamos.
Definitivamente nós terminamos. Muito embora não tenha havido uma
despedida. Em todas as vezes que nos distanciamos, sempre houve aquele
um por cento de chance de estarmos juntos de novo. Essa esperança é que
corrói, a falta de um momento decisivo, onde não esperamos a vida nos
separar e sim colocamos nós mesmos os pontos finais.
Eu não tenho uma boa lembrança de nenhum dos nossos términos. É
sempre dolorido e traumático. Não é assim que quero me lembrar da nossa
história. Não é assim que quero ver a última página do nosso livro.
Quando dou por mim, já estou de pé, atravessando o corredor.
Chego à sala tão rápido que me surpreendo de não ter tropeçado pelos
degraus da escada. Minha esperança é que Francis esteja de fato dormindo.
Porque assim não faço a besteira que estou pensando em fazer.
Como de costume, minhas esperanças são em vão.
Ele está acordado, sentado no sofá com os cotovelos apoiados nas pernas
e a cabeça entre as mãos, encarando a lareira e as lascas de madeira
estalando com o fogo. Seu rosto reflete as chamas agitadas e toda a
iluminação consiste no âmbar quente que elas refletem. Os lírios em seu
braço parecem dançar junto ao fogo e meus olhos não conseguem sair do
seu tronco completamente despido de qualquer tecido. Seus ombros largos
estão tensos e sua pele parece arrepiada, ainda que o clima aqui dentro
esteja quente.
Talvez pela minha respiração que acelera ou por sentir meu perfume, o
rosto quadrangular se volta para mim, os olhos azuis saltando quando me
veem parada o observando. Eu deveria corar por ter sido pega no flagra,
mas a verdade é que meu corpo todo já está quente e vermelho, e
definitivamente não é de vergonha.
— Eu não consegui dormir.
— Eu não consegui dormir.
Dissemos ao mesmo tempo.
Rimos juntos.
— Fala você.
— Fala você.
Novamente, ao mesmo tempo.
Francis se levanta do sofá, mas não se aproxima de mim. Eu não sei
dizer se agradeço ou peço para que o faça.
A distância é mais segura, mas nem sempre o mais seguro é o que vai
nos manter vivos. Às vezes, o perigoso, é exatamente o que mantém nosso
coração batendo.
Ele aponta para mim, me permitindo falar primeiro. E talvez pelo
ambiente caloroso que o fogo proporciona, talvez pela beleza crua e brutal
do homem à minha frente ou talvez unicamente pela emoção que percorre
meu corpo, eu falo o que está guardado na minha mente.
— Estou cansada de “ponto e vírgula”.
Francis comprime as sobrancelhas.
— Ponto e vírgula?
— É... — Dou um passo em sua direção e vejo sua respiração travar. —
Nós nunca temos um ponto final. Sempre deixamos ponto e vírgulas nos
últimos capítulos da nossa história e sempre termina com uma cena triste,
da qual não vamos querer ler de novo. Estou cansada desse enredo. —
Engulo. — Eu não quero mais me lembrar dos nossos últimos momentos
juntos com dor, Francis. Eu quero um epílogo bonito do qual me lembrar...
eu quero olhar para trás e saber que meu último momento com você, foi
vivendo o amor que a gente tem guardando aqui.
Termino com a distância entre nós, apoiando uma mão no seu coração.
Ele está quente. Mas sua pele não chega nem perto da alta temperatura dos
seus olhos. Se engana quem pensa que azul é uma cor fria. O dele, ameaça
me queimar.
— Eu não sei se vou amar alguém de novo — admito. — Mas,
principalmente, não sei se um dia vou amar alguém como amo você.
Então... então me dê algo bom para me lembrar. Me dê essa última
lembrança, esse último capítulo feliz. E aí... aí eu vou poder seguir em paz
com a nossa decisão. Vou seguir em paz não vivendo esse amor, porque eu
sei, que ao menos o final da história é algo que vou poder ler para sempre
nas linhas e entrelinhas do meu coração. — Umedeço os lábios, ofegante.
— Eu não quero que a última página da nossa história seja aquela com
marcas de lágrimas e sim uma que me faça colar um post-it cor-de-rosa.
— Post-it cor-de-rosa?
— Todas as páginas que me fizeram acreditar no amor carregam um.
O pomo de adão se move duramente à minha frente e meus lábios
formigam para beijar a região. Espero a resposta de Francis. Espero pela
sua confirmação ou negativa.
Mas eu não ganho palavras, ganho gestos.
Sempre os preferi, de qualquer forma.
 

 
 
Não consigo dormir.
Eu deveria estar roncando pelo cansaço do meu corpo, mas minha mente
está tão acordada, como se eu pudesse cruzar uma piscina olímpica sem
ofegar. Sento no sofá quando não encontro mais posição a qual me mexer.
O estofado parece conter espinhos.
Ligo a lareira para me distrair, ainda que a temperatura do meu corpo
não possa estar mais alta. Estou febril, suando, mas não é do clima. Não
poderia ser. Estou fervilhando, porque embora meu corpo esteja aqui, minha
mente e meu coração estão lances de escada acima, no segundo quarto do
corredor. Estão em Angelina. Na mulher que estou abrindo mão deliberada
e calculadamente pela primeira vez. Eu nunca pensei que esse momento
fosse mesmo chegar, onde nós dois iríamos concordar que estar juntos
poderia não ser uma boa ideia.
E eu continuo pensando assim.
No momento, estarmos juntos não é uma boa ideia.
Só preciso convencer cada miligrama do meu sangue disso, porque ele
corre nas minhas veias urrando o nome dela, precisando de um último
contato do qual se lembrar. Mas não posso fazer isso, não posso ser egoísta
de pedir a ela que me permita amá-la uma vez mais.
— Inferno!
Praguejo, apoiando os cotovelos nas pernas e a cabeça entre as mãos. O
que eu vou fazer para aplacar todo esse sentimento? Como vou guardá-lo
dentro de uma caixa, se ele é tão grande que meu peito mal o comporta?
Encaro as chamas crepitando, estalando a madeira, imaginando que é
isso que ocorre dentro de mim. As lascas desse amor estalando e zumbindo,
queimando por mais. Meus pelos se arrepiam quando sinto o aroma de
lírios.
Às vezes o sinto sem que ela esteja por perto, como uma memória
olfativa do melhor cheiro do mundo. Mas agora, eu sei não se tratar de uma.
Viro para o lado, encontrando Angelina parada me encarando, com o peito
subindo e descendo profundamente.
Escuto o que ela tem a dizer. Me mantenho inerte e calado por todo seu
monólogo, vendo-a colocar para fora as suas vontades e desejos, esses que
se parecem e assemelham tanto com os meus próprios.
— Todas as páginas que me fizeram acreditar no amor carregam um.
Ela termina de falar e seus olhos caem sobre mim ansiosos, esperando
pela minha resposta. Eu não tenho uma para dar. Não há nada que eu possa
dizer, que ela já não tenha colocado para fora. Então faço algo melhor do
que falar. Eu ajo. Ajo de acordo com o pedido dela, mas principalmente de
acordo com a súplica dentro de mim.
Eu a amo.
Minhas mãos se amoldam na lateral do seu rosto e não perco tempo
medindo forças entre a razão e a emoção. Eu sucumbo à segunda sem ao
menos pestanejar. A beijo tão logo o ar escapa de seus lábios e a puxo
contra mim, precisando sentir a pressão de seu corpo no meu mais uma vez.
Apenas mais uma. Algo com o que me lembrar. É disso que nós dois
precisamos, um final do qual poderemos revisitar sempre que a saudade se
tornar insuportável.
Angelina geme sobre meus lábios e envolvo minhas mãos no interior dos
seus joelhos, a puxando para cima, até que suas pernas estejam envolta da
minha cintura. Ela se prende a mim como se nunca mais fosse se soltar. Eu
acredito nisso por agora. Escolho acreditar que temos todo tempo do
mundo, mesmo sabendo que o prazo do infinito é a manhã seguinte.
Sento no sofá com Angelina me montando, enquanto nossas línguas se
embolam em uma dança lenta e molhada. Seu sabor me encanta, me leva ao
desconhecido, me transporta para o passado e tudo que vivemos. Minhas
mãos apertam a carne do seu quadril, a movendo contra mim, minha ereção
cavando sua carne, implorando para ser envolvida por ela. Angelina
choraminga, rebolando sobre mim, buscando mais atrito que nossas roupas
permitem.
Ao passo que desço meu beijo para seu pescoço, também empurro as
alças do seu pijama para baixo, deixando a fina blusa embolar em seu
quadril e revelar os seios macios e intumescidos. Minhas mãos não tardam a
envolvê-los por completo, se fechando por sua carne farta, explorando as
reações ao meu toque. Os mamilos se enrugam e apontam, levando meu
controle embora consigo.
Deliciosa... porra, ela é apenas deliciosa.
Percorro o corpo macio com as mãos, até apoiá-las sobre a base da
coluna de Angelina, a trazendo para mais perto de mim. Seus seios pairam a
centímetros da minha boca e não me faço de rogado, os tomando com um
grunhido rouco. Angelina tensiona, empurrando meus ombros até que eu
solte seus mamilos em um som molhado. Olho para ela, buscando
respostas.
— Não faça isso... pode... eu parei de amamentar a pouco tempo, então
pode...
Sorrio, acariciando seu rosto ruborizado. Percorro seu lábio inferior com
o polegar, a encarando sob os cílios. Abro os lábios sobre seu seio
novamente, dessa vez aprisionando o ponto rosado entre os dentes,
mordendo seu mamilo e o esticando para mim, sem desfazer nosso contato
visual. Angelina arqueja.
— Não pense por um só segundo que eu tenho receio ou nojo de
qualquer coisa relacionada a você... seu corpo é uma dádiva e eu vou
receber de bom grado tudo que ele estiver disposto a me entregar.
Contorno a língua pelo mamilo inchado, o acalmando da ação dos meus
dentes. Começo a sugá-los para mim e Angelina arqueia a coluna,
empurrando-o ainda mais para minha boca, seu pescoço pendendo para trás.
Agarro seus cabelos em punho, fazendo-a voltar a olhar para o que faço.
— Eu quero que veja... você pediu uma lembrança, então observe como
vou me banquetear de você essa noite, Angelina.
Surpreendo-me com o tom profundo da minha voz, mas isso é apenas o
desejo por ela consumindo tudo. Minha garota afunda seus dedos no meu
couro cabeludo, empurrando meu rosto contra seus seios. É a porra do
paraíso. Os devoro como um faminto, ora com meus dentes e língua, ora
com meus dedos os provocando, mas sem nunca deixá-los sem meu toque.
Haverá marcas no dia seguinte, não tenho dúvidas. Assim como sei que
ela não vai reclamar de nenhuma delas. Estou torcendo para que as deixe
em mim também, para olhar e me lembrar do exato momento em que foram
feitas.
Quando os choramingos se tornam mais altos e desesperados, volto
minha boca para a dela, impedindo que avise o resto da casa o que estamos
fazendo. Muito embora eu duvide que eles vão se arriscar a descer essa
noite. Sei muito bem o porquê dos nossos amigos terem ficado com Garden.
Eles estavam nos dando a última chance de ficarmos juntos.
A seguro com as mãos em suas coxas, levantando-nos apenas para deitá-
la sobre o tapete, cobrindo seu corpo com o meu. Apoio um cotovelo no
chão, sustentando meu peso, mas duvido que Angelina queira qualquer
distanciamento agora, porque suas mãos vão para minhas costas, me
puxando para mais perto, querendo me sentir contra ela. Rosno em seus
lábios, brincando com sua língua, a chupando demoradamente, dando um
vislumbre do que farei com sua boceta em alguns instantes.
As pernas de Angelina me envolvem, puxando meu quadril de encontro
à sua pélvis. Seu corpo está quente, posso sentir mesmo que através dos
shorts do seu pijama. Prendo meus dedos na costura, o forçando para baixo,
enquanto Angelina faz o mesmo com meu moletom, o empurrando ansiosa.
Tão logo nos livramos das peças de roupa, gememos em uníssono pela
sensação dos nossos sexos se encontrando, desprovidos de qualquer
empecilho de tecido. Nossas bocas voltam a se devorar, mãos passeando
afoitas pelo corpo um do outro, tentando decorar cada sensação.
Eu preciso me lembrar, preciso gravar na minha mente.
Passeio meus lábios por cada pedacinho do seu rosto, beijo sua testa,
entre suas sobrancelhas, a ponta do seu nariz, suas maçãs proeminentes,
seus lábios cheios, deslizando para sua orelha, onde me liberto contra a pele
macia, mordendo e chupando, ferindo com meus dentes e acalmando com
minha língua. Angelina crava suas unhas em minhas costas e rebola os
quadris sobre mim, fazendo meu pau a acariciar onde precisa, deslizando
para cima e para baixo entre os lábios molhados de sua boceta, estimulando
seu clitóris com a glande. Não a impeço, a deixo buscar o prazer que
necessita.
Hoje, por essa noite, não a impedirei de nada.
Abaixo-me sobre seu corpo, lambendo o vão entre os seios, percorrendo
sua cintura, deixando a marca dos meus dentes em cada filamento de pele,
apreciando cada vez que ela se contorce e implora meu nome. Quando
finalmente me coloco entre suas pernas, Angelina tenta me puxar para cima,
apressada.
— Eu preciso de você... preciso de você dentro de mim. Agora. — Seu
tronco se move descompassado, a respiração tão ofegante que sai aos
frangalhos.
Ao olhar para cima, praguejo meio mundo pela imagem. Suas pernas
abertas em meus ombros, seu tronco curvado para me olhar, as sombras das
chamas da lareira sobre sua pele alva... eu adoraria tirar uma foto agora.
Mas isso é algo para ter apenas na minha memória.
— Você vai me ter, meu amor..., mas vai me ter por completo. — Separo
ainda mais suas pernas, soprando contra sua carne macia e molhada. — Eu
também quero meu pau enterrado dentro de você, mas antes terei minha
língua e meus dedos... eu não vou perder nada, Angelina. Quero tudo.
E eu não perco. Deslizo minha língua por toda sua fenda, rosnando com
o sabor do seu prazer, enlouquecendo com o quanto ela está pronta para
mim, seu líquido brilhando nos lábios já inchados. Meus dedos afundam na
carne do seu quadril, a fazendo movê-lo contra minha boca. Angelina
entende meu recado, rebolando contra minha língua, a fazendo ir fundo em
sua entrada, a provocando com investidas lentas e duras, rápidas e
lânguidas.
Subo para seu clitóris, o tomando nos lábios sem delicadeza,
substituindo minha língua por meus dedos dentro dela, a penetrando com
dois de uma única vez. Quando os curvo em seu interior, as mãos dela se
agarram os meus cabelos, mantendo-me no lugar enquanto esfrega a boceta
em minha boca.
— Não goza ainda — ordeno.
— Por quê? — ela ofega, se esfregando na minha boca, fazendo meus
dedos irem mais fundo. Porra, acho que sou eu que vou precisar me
segurar para não gozar.
— Porque eu quero você gozando no meu pau. Aguenta.
— Maldito, filho da... — ela para de falar quando mordo acima do seu
clitóris, seu tronco caindo de volta no chão, as mãos se agarrando ao tapete
em busca de se conter. Um terceiro dedo se une aos outros e a chupo como
se precisasse dos sons e reações do seu corpo para viver. E talvez eu
precise.
Quando vejo que ela não vai aguentar muito mais tempo e que suas
paredes se fecham contra mim quase dolorosamente, retiro meus dedos de
dentro dela, deixando um último beijo entre seus lábios quentes, molhando-
a ainda mais.
Não a deixo um aviso antes de girar seu corpo, a colocando com seu
estômago sobre o tapete. Pairo sobre suas costas, minha boca logo tomando
o caminho para seu ouvido, afastando os fios loiros da região. Guio meu
pau para sua entrada, o deslizando de cima a baixo, molhando minha glande
com seu líquido.
— Como você quer isso, Angelina? Duro e rápido? Suave e lento? —
mordo a parte durinha de sua orelha e ela soluça, empurrando o quadril para
cima, tentando me fazer entrar em seu corpo. A seguro contra o chão. —
Preciso que me diga, amor...
Ela ofega.
— Duro, mas... lento.
Sorrio ladino.
— Como quiser.
A penetro lentamente, meu pau sendo abraçado pelas paredes macias e
apertadas, minhas bolas ardendo com a sensação depois de tanto tempo
longe. Mordo o interior da boca, me controlando para deixá-la sentir cada
parte de mim invadindo seu corpo, mas tão fundo que a faz arquear a
coluna, gemendo alto. Cubro sua boca com minha mão, a silenciando o
máximo que consigo.
— Me morde quando o prazer for demais e achar que vai gritar.
— Cretino presunçoso — ela murmura em meio a um gemido.
Solto uma risada convencida, saindo quase por completo do seu corpo,
só para voltar ainda mais forte, ainda mais duro. Angelina morde minha
mão, empurrando sua bunda contra mim, buscando mais. Aperto o maxilar,
precisando eu mesmo me controlar para não nos denunciar.
— Pode me xingar o quanto quiser..., mas vai fazer isso gemendo
enquanto eu te fodo do jeito que apenas eu sei. Você pediu uma lembrança...
e vou te fazer gozar para que nunca esqueça a sensação de como é me ter
dentro de você.
Agarro seu quadril, mantendo-a no lugar, enquanto a penetro de novo e
de novo, cada vez mais fundo, cada vez mais forte, sem deixar de ir
lentamente, saboreando a sensação da boceta cálida me engolindo, me
apertando e mastigando. Angelina solta lamúrias, mordendo minha mão e
continuo sussurrando as coisas sujas que a fazem corar, mas ao mesmo
tempo molhar meu pau de prazer. Minhas bolas pesam, ardem pela vontade
se libertar e acelero o ritmo, não contendo mais o corpo dela. Deixo que
Angelina jogue seus quadris para cima, empurrando contra minha ereção,
buscando o próprio prazer. Essa posição me deixa tão enterrado dentro dela,
que quisera eu nunca sair.
Quando ambos estamos nos nossos limites, a ergo do chão, deixando-a
de quatro para mim. Angelina não tarda em arquear a coluna e empinar o
quadril em minha direção. É a porra da visão do paraíso. Não consigo
conter o tapa em sua pele, e nem voltar meu pau para dentro dela. Ambos
gememos pelo ângulo que a posição facilita. Envolvo seu ombro com uma
mão, apenas para mantê-la no lugar e seu corpo não tombar para a frente
com as investidas. Angelina geme sem qualquer controle, me deixando
alucinado com a confiança que me entrega seu corpo, sem qualquer reserva
ou receio. Inclino-me sobre ela, sussurrando em seu ouvido.
— Eu quero que você se toque. Quero que se dê prazer.
— É demais... — ela ofega, rebolando contra mim.
— Algo me diz que você aguenta — arremeto fundo dentro dela e
Angelina grita, levando uma mão até o centro do seu corpo.
Afasto meu tronco para observar meu pau entrando e saindo da boceta
avermelhada, contraindo e inchando ao meu redor, nossos líquidos se
misturando, facilitando meu acesso para dentro e fora do corpo macio.
Mordo o lábio para tentar suportar ter essa visão e não gozar mais rápido do
que pretendo.
— Francis... mais forte.
— Às suas ordens, amor.
Ela está quase. Está no seu limite e eu não pretendo adiar o seu prazer.
Seguro seu quadril, preenchendo seu corpo por completo, até escutar os
choques da minha pélvis com sua bunda e o som luxuriantes que eles
produzem. Angelina goza chamando por mim e sua boceta me aperta ao
ponto de eu travar o maxilar, rosnando como um animal.
Não me permito gozar ainda, não agora.
Quando ela está quase tendo os últimos espasmos do seu orgasmo, a viro
de frente novamente, deitando-a de costas contra o tapete. Observo seu
rosto deliciado e relaxado. Puxo suas pernas para me envolverem e entro
em seu corpo dessa vez calma e brandamente, procurando seus olhos.
É assim que eu quero gozar. Olhando para ela, vendo suas feições,
notando cada parte do seu corpo reagindo ao prazer. A luz das chamas
ilumina parcialmente nossos corpos, o suficiente para que consigamos ver
tudo que precisamos nos olhos um do outro. Cada estalo que a madeira dá,
sucumbindo ao fogo, é semelhante ao dos nossos corações, sucumbindo ao
amor que sentimos. Queimando em suas chamas.
Acaricio seu rosto, os braços, sua cintura, suas pernas, pegando para
mim todas as lembranças que preciso. Me movo lentamente, a amando
como nunca farei com nenhuma outra mulher, a reverenciando como apenas
Angelina merece ser. Ela, em contrapartida, acaricia meu cabelo, beija os
lírios em meu braço, reivindica meus olhares, me anestesiando com os seus,
dando-me a certeza de que nunca serei amado assim por ninguém. Que
como é para mim, Angelina está me reverenciando uma última vez.
Os olhos dela são tomados por suas lágrimas, escorrendo pela lateral do
seu rosto, assim como as minhas próprias pingam em suas bochechas,
incessantes. Nós não estamos saciando nosso corpo agora, estamos saciando
os pedidos da nossa alma, do nosso eu eterno que sempre busca um pelo
outro e que talvez o faço além dessa vida.
Uno nossas mãos acima de nossas cabeças e gozamos juntos dessa vez,
sem desfazer o contato dos nossos olhos um segundo sequer. Palavras não
são necessárias. Não preciso dizer que a amo, porque cada parte do meu
corpo a está amando e devotando. Também não preciso ouvir dos seus
lábios que ela me ama, porque seus olhos me entregam tudo que preciso
saber, assim como seu corpo buscando o meu me revela os segredos que
preciso para continuar vivendo.
A última página da nossa história não será recheada de diálogos, mas
Angelina poderá colar seu post-it cor-de-rosa, porque se essa entrega não
for exatamente a confiança no amor que ela precisava, então nada será.
Ela adormece nos meus braços quando enfim nos saciamos e o fogo é
testemunha da nossa última noite de amor, nos marcando em brasa,
tornando incapaz de ser esquecido. A carrego para o quarto com cuidado e a
coloco em sua cama, cobrindo-a com o edredom. Antes de sair, beijo sua
testa, me permitindo chamá-la assim pela última vez:
— Angel... minha Angel, estou te libertando da promessa — sussurro,
acariciando seus cabelos. — Não me espere mais... busque sua felicidade. É
tudo que peço. E eu farei o possível para não te esperar... e tentar ser feliz
com isso.
Beijo uma última vez seus lábios, saindo pela porta, tendo a certeza de
que valeu a pena. Ainda que tenha a tido por menos tempo do que eu
pretendia, valeu a pena cada segundo. Porque sim... sempre será a história
de amor que eu poderei contar ao meu filho um dia, que o inspirará a
acreditar nesse sentimento.
Amar vale a pena. Mesmo que seja por uma única noite.
 

 
 
 
7 ANOS DEPOIS...
 
Cape May, Nova Jersey.
 
A minha coluna vai me matar.
Eu deveria ter recusado pegar o plantão do meu amigo em Atlantic City
esse último final de semana. Como tive que voltar para Cape May na
segunda de manhã, faz mais de quarenta e oito horas que não durmo.
Esfrego meus olhos com força, esperando que isso me dê algum
resultado satisfatório. Como não funciona, viro toda a caneca de café
expresso que minha secretária deixou na minha mesa. Lauren é excelente,
mas definitivamente não consegue mexer na máquina de café. Essa coisa
tem mais água que pó.
A porta da minha sala é aberta por ela e assim que vê minha careta para
xícara, já começa a rir.
— Eu juro que ainda vou aprender a mexer nessa coisa.
— Você está trabalhando comigo há dois anos. Eu duvido. — Balanço a
cabeça, rindo.
Lauren e eu estudamos juntos no colegial e voltamos para Cape May no
mesmo ano depois de nos formarmos. Como ela ainda não tinha conseguido
emprego na área de arquitetura, a contratei como minha secretária.
Mal consigo acreditar que faz dois anos que terminei minha residência
em neurologia e voltei para cá. Foi tudo tão corrido, a ampliação da clínica
do meu pai para montar meu espaço, a mudança de São Francisco, a
adaptação do Garden à nova cidade, a organização da casa que divido com a
Blue... não tive tempo para prestar atenção ao calendário e ver que já
haviam se passado anos.
Bom, eu não posso dizer que sou o único com muito trabalho, porque
Angelina está se dividindo em duas atividades. Ainda não sei como ela dá
conta de manter a carreira de atleta, agora jogando pela seleção nacional, e
ainda manter uma livraria conjunta com a floricultura da vovó Lina. Isso
sem contar nosso filho, que demanda de nós dois um tempo generoso.
— Para de falar mal do meu café e se prepara a próxima consulta, seu
paciente entra em cinco minutos.
— Sim, senhora — Bato continência. Às vezes acho que ela é a chefe.
Lauren caminha até a porta, mas se vira antes de sair.
— A propósito, aquela mulher ligou... de novo.
— Qual delas?
— A que você dormiu na semana passada... ou foi a da semana
retrasada? Eu acho que vou precisar fazer uma planilha para as suas transas,
doutor.
Dou de ombros.
— Você estaria me fazendo um favor, estou definitivamente me
perdendo no cronograma.
— Pelo amor de Deus, Francis! — Ela bate as mãos nos quadris. — Não
é à toa que te chamam de tubarão por aí.
Arqueio uma sobrancelha.
— Tubarão? Por que me chamam assim? — Essa é nova pra mim, eu já
estava familiarizado com mulherengo, canalha, cachorro..., mas tubarão é
novidade. Acho que gosto de como soa.
— Sabe como é... rosto quadrado, tão escorregadio que não se consegue
segurar e está sempre nadando por aí pronto pra te comer.
Fico sério por alguns segundos, mas explodo em uma gargalhada sem
conseguir acreditar.
— Concordo com o rosto quadrado, a parte do escorregadio é
intencional, mas não fico nadando por aí sempre pronto para comer alguém.
— Como não?! Você já pegou essa cidade inteira!
— Não! — Balanço o indicador de um lado para o outro. — Eu respeitei
as comprometidas, idosas e menores de vinte e um anos. É tipo os tubarões
poupando as rêmoras.
— A Jennie tinha namorado... — Ela arqueia a sobrancelha.
— Mas eu não sabia — me defendo. — Ela não me contou esse detalhe,
só fiquei sabendo quando o dito cujo bateu na porta do meu consultório
querendo me enforcar com meu estetoscópio.
— É uma cidade pequena, basta perguntar para mim ou para Blue sobre
a solteirice feminina e vamos saber.
— A Blue não pode falar muita coisa, porque as mulheres que eu não
peguei, ela pegou.
— Vamos ter que procurar um animal pra definir ela também — Lou
resmunga.
— Não sendo piranha, porque esse tá batido.
Gargalho quando ela sai da sala revirando os olhos na órbita.
Blue se mudou para cá para trabalhar no escritório de advocacia do pai
da Angelina, mas além de casos criminais, ela tem ganhado os corações da
população feminina da cidade. Uma pena que o único que ela queira, esteja
em outro país. Desde que minha irmã foi embora, há mais de sete anos,
Blue fez o que pôde para ocupar o coração. Mas assim como eu, a única
coisa que conseguimos ocupar foi nossas camas.
Não demora até que meu paciente chegue junto com a sua mãe. O
garotinho de oito anos, na idade exata de Garden, para à minha porta com
os pés arraigados no chão, sem querer entrar. Sua mãe sorri para mim, me
cumprimentando e me levanto para pegar em sua mão. Ele continua no
mesmo lugar, com as mãos enfiadas no bolso da calça e fones de ouvido.
— Gabriel demora um pouco para entrar nos lugares... me desculpe.
— Não há problema algum, senhora Martin. Ele pode levar o tempo que
precisar.
A deixo confortável para se sentar e me aproximo do garotinho de
cabelos cacheados, incrivelmente ruivos. Me agacho em sua frente,
mantendo certa distância, e reparo na sua blusa do Doctor Strange,
combinando com seu tênis do mesmo personagem.
— Você gosta do Steven Strange? — erro o nome de propósito.
— É Stephen Strange — ele me corrige no mesmo instante. — Sim, eu
gosto dele, é meu personagem favorito do Universo Marvel, mas meu
personagem favorito do Universo da DC é o Aquaman e...
— Querido, a mamãe te pediu para não falar de super-heróis hoje.
— Tudo bem — a tranquilizo, voltando a olhar o garotinho. — Eu
também gosto de super-heróis, tenho algo parecido com os dois, você sabia
Gabriel?
Os olhos dele, que até então estavam concentrados no carpete, sobem
para o meu rosto.
— Você abre portais e pode falar com animais?
Sorrio, negando com cabeça.
— Eu não sou tão legal assim, mas sou médico como o Doctor Strange e
sou um excelente nadador como o Aquaman. As pessoas aqui na cidade me
chamam até de tubarão.
Seguro a risada para essa última parte. Eu fodidamente adorei o apelido.
 
— Então se eu for médico ou nadador, posso dizer que sou um super-
herói? — os olhos verdes brilham na minha direção.
— Independente do que você escolher fazer quando crescer, pode ser um
super-herói.
— Verdade?
— Verdade! O que você pensa em ser?
— Eu queria ser médico, como você. — Ele olha interessado para meu
estetoscópio e a mãe me explica.
— Ele é apaixonado por filmes e séries com médicos, já perdi as contas
de quantos estetoscópios de brinquedos ele já me fez comprar.
— E você já pegou um estetoscópio de verdade, Gabriel? — me
aproximo um pouco mais, aproveitando o objeto no meu pescoço.
— Nunca, os médicos que eu fui disseram que era muito caro para eu
segurar.
— Ah, então você vai ficar feliz em saber que eu sou pobre e o meu é
baratinho — brinco com ele, mas o garotinho não ri. Na verdade, ele ergue
as sobrancelhas para mim.
— A minha mãe pagou por essa consulta, e pelo preço, duvido que você
seja pobre.
Ok, ele me pegou.
— É, eu posso até ganhar dinheiro, mas deixa eu te contar um segredo...
quando eu era mais jovem, precisei pegar um empréstimo com meu pai,
então eu estou pagando pra ele até hoje. Isso me deixa pobre.
— O seu pai é mau? — ele comprime as sobrancelhas e gargalho.
— Ele não é mau, mas digamos que ele é o Tony Stark rico e eu o
Capitão América sem dinheiro.
— Então você tem que trabalhar mais para pagar ele logo. É feio dever
as pessoas.
— Gabriel! — a mãe dele me encara em um pedido de desculpa, mas só
consigo rir. Se ela soubesse as coisas que meu filho fala, ficaria calma.
— Tudo bem, você tem razão. Mas então. — Me levanto e fico próximo
à maca no canto esquerdo da minha sala. — Você vai querer pegar o
estetoscópio ou não?
O garoto olha para seus pés, pulando a linha do batente da porta e
caminhando incerto até mim. Ele sobe a escadinha e se senta na maca,
estendendo sua mão. Entrego o estetoscópio.
— Você já fez uma consulta antes, doutor Gabriel?
— Muitas vezes, meus soldados sempre se machucam em batalha.
— E o que o doutor acha de olhar meu coração? Eu acho que estou com
uma dor estranha.
Ele assente animado, me deixando aproximar.
Desde que me formei, eu sabia que queria me especializar no TEA, mas
principalmente eu queria trabalhar com crianças. Garden me ensinou mais
coisas do que qualquer faculdade no mundo faria. E vendo todo o progresso
que ele teve ao longo dos anos, deslocando seu nível de suporte de dois,
para um, eu sabia que queria ajudar não apenas as crianças que passaram
por dificuldades como as dele, como os pais que precisavam contorná-las.
Angelina e eu conhecemos na pele o que foi cuidar do nosso filho e
protegê-lo das opiniões do mundo. Nem sempre conseguimos escondê-lo de
olhares que não entendiam suas crises ou de pessoas sem paciência para
lidar com o atraso da sua fala, mas mesmo que o mundo externo nem
sempre tenha sido gentil com ele, em casa sempre teve o apoio e incentivo
que precisava.
Por sorte nossa, nós tivemos o filho mais doce do mundo. Garden não vê
maldade nas pessoas, ele simplesmente ama em uma intensidade que talvez
ninguém nunca consiga entender. É tanto, que ele adora a Savannah. Tem
que ser muito iluminado para gostar daquela mulher. Ela é uma pessoa boa
com ele, mas ainda é intragável em todo o resto. Pelo menos do namorado
da Angelina ela gosta. Acho que o problema era só quando o genro era eu;
o resto dos homens da face da terra parecem merecer sua filha.
Mas eu devo confessar, o John realmente é um cara legal, é difícil não
gostar de alguém tão bonzinho. A gente se implica cem por cento do tempo,
mas desde que ele faça Angelina feliz e trate meu filho bem, vai estar em
alta no meu conceito. Isso, é claro, ignorando o fato de ele dormir com a
mulher que eu amo, mas eu já progredi com a questão do ciúme. Agora eu
já não tenho vontade de matá-lo de imediato, só arrancar suas tripas... e
deixá-lo morrer naturalmente.
Balanço a cabeça. Eu estou muito tempo sem dormir. Isso é um perigo
para os meus pensamentos, porque meus filtros mentais parecem
desaparecer com o sono.
— Onde eu coloco? — Gabriel pergunta segurando o estetoscópio.
— Você pode colocar aqui — indico para ele os pontos e respiro fundo,
vendo seu rosto pensativo.
— Acho que você só tem três dias de vida.
Seguro a risada. Preciso de mais, Angelina me buscaria no inferno se eu
deixasse o Garden sem pai.
— Então já que tenho pouco tempo, o que acha de me deixar te
examinar? — testo a confiança que adquiri. Nem sempre consigo um
progresso com o paciente na primeira consulta. Gabriel não foi
diagnosticado, então preciso me atentar a todos os sinais que ele der nas
pequenas interações comigo e o consultório.
Pelas informações do prontuário, a senhora Martin buscou o diagnóstico
de autismo, mas alguns profissionais insistiram que ele só tinha déficit de
atenção ou depressão. O mais difícil em se diagnosticar o TEA, é que
muitos dos sintomas não são similares a todas as pessoas, principalmente na
fase infantil. Além disso, eles se confundem facilmente com os de outros
transtornos, que se analisados isoladamente, não são condão suficiente para
o diagnóstico. É por isso que especialistas nessa área se fazem necessários,
é um estudo multidisciplinar entre neurologistas, psiquiatras e
fonoaudiólogos. Não se pode analisar apenas um aspecto da criança e sim
seu comportamento como um todo.
Gabriel apresentou alguns sintomas desde que entrou aqui. A falta do
contato visual, a relutância em entrar em outro ambiente, a necessidade de
falar em super-heróis, o extremo interesse em um assunto específico como a
medicina mesmo com a pouca idade, a fala crua e sem filtro... isso pode ser
autismo. Mas não é o bastante para que eu o diagnostique.
Gabriel se retrai quando estendo a mão para pegar o estetoscópio e olha
com medo para a mãe. Recolho minha mão.
— Ele não gosta de ser tocado... nem por mim.
Assinto para ela. Como eu disse, cada pessoa tem sua peculiaridade.
Angelina não gosta de toques de estranhos, Garden ama contato físico,
chegando a ser manhoso, e Gabriel não aceita nem o da própria mãe.
— E se eu colocar no meu ouvido, mas você mesmo apoiar a parte
geladinha nos pontos que te ensinei?
Ele assente, mais calmo.
Na primeira consulta, principalmente nos casos de autismo de nível um,
como imagino ser o caso de Gabriel, não faço o diagnóstico conclusivo.
Então peço a avaliação de uma equipe de profissionais e alguns exames
complementares para não submeter a criança a terapias que não surtiriam
resultado.
A consulta dura mais uns trinta minutos, voltada principalmente para que
a mãe me situe do cotidiano de Gabriel e eu posso o analisar interagindo
com alguns brinquedos e objetos do consultório.
— Eu acho que seria bom você trazê-lo à nossa clínica de terapias
ocupacionais, elas não funcionam apenas para crianças autistas, mas para
crianças que precisam de incentivos na fala, na interação social, na
cognição e até mesmo atos básicos do dia como alimentação,
reconhecimento de texturas e sabores diferentes — explico enquanto
Gabriel continua girando as rodas do carrinho que entreguei para ele
brincar. Garden fazia isso também, girava todos os brinquedos, sem brincar
da forma correta. — Aqui atrás da clínica, nós fizemos um espaço voltado
para essas terapias, além disso trabalhamos o esporte como um incentivo à
interação social, oferecemos aula de vôlei, natação e dança.
Blue não deixou totalmente de lado seu amor por ela. Então três vezes na
semana dá aulas aqui.
— Muito obrigada, Doutor Hopkins... vou trazê-lo aqui amanhã para
conhecer.
— Não deixe de realizar os exames que incluí na receita e trazer para
mim as avaliações dos profissionais que recomendei. É muito importante a
opinião de todos eles.
A senhora Martin me cumprimenta e se prepara para sair da sala, mas
Gabriel se recusa a sair.
— Vamos filho?
— Doutor... você disse que seu estetoscópio é barato. Pode me dar ele?
— Gabriel! — a mãe o repreende. — Desculpe, doutor.
O menino não se importa com a reprimenda da mãe. Ele continua me
olhando, esperando uma resposta. Uma coisa que eu deveria me lembrar:
nunca minta para uma criança, ela vai usar isso contra você em algum
momento.
— Pode — me pego falando antes de pensar direito.
— Como? — a mãe fica surpresa.
— Pode levar — Suspiro. — Considere um presente, mas com uma
condição.
— Qual? — ele não tira os olhos do objeto.
— Você vai acompanhar sua mãe a vários lugares divertidos, que vão ter
médicos ainda mais legais que eu, que provavelmente vão te deixar brincar
com os aparelhos legais também. O que acha?
— Combinado! — Gabriel estende a mão e o entrego o objeto.
Eles saem da minha sala e me jogo na cadeira, com os olhos quase
pregando de sono.
— Francis Hopkins! — Lauren abre minha porta abruptamente e dou um
pulo na cadeira.
— Alguém tá morrendo?
— É o segundo estetoscópio só esse ano! — ela grita e faço careta para
minha cabeça latejante.
— Eu tenho outro em casa.
— Você é impossível!
— E você briga tanto comigo, que estou pensando em te chamar de
esposa.
— Prefiro chamar a Blue de esposa.
Solto uma risada.
— Se você conseguir fazer ela acreditar em relacionamentos de novo…
Donna estragou um pouco mais do coração da Blue do que tem ciência.
Não que ela já tenha se interessado em saber durante esses sete anos.
 

 
 
— Vovó, já fechei o caixa, você está pronta para ir embora? — Jogo o
celular e a carteira dentro da bolsa.
— O quê? — ela grita do jardim e conto até dez. Vovó tem escutado
cada vez menos, me obrigando a falar gritando. Há dias que chego em casa
com o ouvido zumbindo. — Eu estou terminando de plantar umas
sementes!
— Eu não posso demorar, tenho que pegar o Garden na escola!
— Pode ir na frente, eu fecho a loja e volto a pé.
— De jeito nenhum! Vou pedir ao Francis para buscá-lo.
— O pobre homem fez plantão, Lilium. Deixe que ele durma quando
chegar do trabalho.
Reviro os olhos. Às vezes vovó trata o Francis como se tivesse a idade
do Garden.
— Então deixa essa plantação pra amanhã, eu não gosto de me atrasar.
Ela sai do jardim com a expressão irritada, tirando as luvas cheias de
terra.
— Querida, a velha sou eu, mas parece que é você que só tem mais
alguns anos de vida.
— Ser pontual nunca fez mal a ninguém.
— Diga isso para quem chegou no horário de um voo que caiu.
Céus, senhorinha difícil. Pelo menos consigo enfiá-la dentro do carro.
Chego na escola do Garden atrasada dois minutos e vovó fica rindo do
meu estresse. Esses dois minutos vão fazer falta para o meu sono. Preciso
de pelo menos seis horas seguidas dormindo se quiser viver até amanhã.
Garden teve insônia no fim de semana por não ver o pai e com isso eu
também não pude dormir. Sempre que Francis tem plantão, ele fica assim.
Pelo menos dessa vez não ficou doentinho.
Não demora muito para meu filho jogar a mochila na traseira do Jeep e
entrar no banco de trás já falando pelos cotovelos. Ele pode ter demorado
para falar, e mesmo que ainda gagueje a depender da sua euforia, não há
ninguém que consiga manter essa criança em silêncio por mais de cinco
minutos. Acho que a fonoaudióloga foi boa até demais.
— Boa noite, mamãe. Boa noite, bisa. — Ele se pendura na frente do
banco, beijando a bochecha de nós duas. — Hoje eu aprendi fazer conta de
divisão na escola, a professora levou chocolate pra gente aprender, mas eu
falei que ela devia ter levado tangerina. É mais saudável do que chocolate,
além de ser muito mais gostoso. Né, mamãe?
Sorrio, ligando novamente o carro.
— Boa noite, filho. Que bom que aprendeu algo novo, mas não importa
a comida, desde que tenha entendido a matéria.
— Mas eu li na revista do papai que açúcar causa mais mortes do que o
álcool. O chocolate vai elevar os níveis de açúcar no meu sangue e
aumentar o risco de diabetes.
— Eu tenho que falar para o Francis esconder os livros de medicina
quando Garden estiver com ele — comento com vovó. — Na semana
passada ele brigou comigo porque fiz frango frito, dizendo que eu estava
entupindo suas artérias.
Vovó gargalha, virando para trás para falar com meu filho.
— Querido, chocolate só faz mal se você comer muito.
— Igual a mamãe quando está perto do período menstrual?
Arregalo os olhos.
— Angelina…
— Hum?
— Ele é pior que você.
— Eu sei — choramingo.
— Agora você entende como colocava a gente em saia justa.
— Nunca te vi de saia, vovó — Franzo o cenho.
— Céus, vocês dois são iguaizinhos. — Ela suspira.
Garden e eu damos de ombros.
Eles falam coisas sem sentido e nós dois que somos os malucos.
 

 
— O papai vai vir me ver hoje? — Garden pergunta enquanto come suas
verduras. Não sem antes reclamar que eu as cozinhei demais, é claro.
— Não sei, G. — Encho um copo de suco de morango para ele. — Seu
pai fez plantão no fim de semana, então deve estar cansado.
— Mas ele me prometeu na sexta passada que segunda-feira me veria.
Francis tem que parar de fazer promessas, esse homem ainda vai acabar
atolado em todas elas.
— Bom, se ele te prometeu então vem. Sabe que ele cumpre as
promessas que te faz.
— Mas está atrasado. — Garden olha no relógio.
— É seu pai, esqueceu? Ele sempre tá atrasado.
O garotinho cruza os braços, batendo os pés no chão. É o mesmo que me
ver no espelho, às vezes me assusto como ele pode se parecer tanto comigo
em personalidade, enquanto é a própria cópia do pai em aparência.
— O papai me estressa, ele não tem relógio? A gente deveria dar um
relógio pra ele, mamãe.
Reprimo a risada.
— Ele tem relógio, só se esquece de olhar.
— Vou dar uma bronca nele assim que chegar.
— Faça isso — brinco, sabendo que Garden se esquecerá de qualquer
coisa quando vir o pai. Isso não mudou desde que ele era um bebê. Por sorte
Francis é tão obcecado por ele quanto. Não sei quem fica pior em estar
longe um do outro.
Motivo esse que Francis comprou a casa do lado da minha para morar
com a Blue.
A porta da sala se abre um momento depois e Garden não precisa de
mais nada para pular da cadeira e ir correndo para lá. Vejo essa cena quase
todos os dias, mas ainda ando depressa para ver o abraço dos dois. Sorrio
para como Garden encosta o ouvido no coração do pai e ele tamborila os
dedos em suas costas, o ninando. Talvez se passem vinte anos e eles ainda
façam isso.
Torço para que sim.
— Boa noite, Brotinho.
— Você está atrasado, papai. Tive que começar a comer antes de você
chegar e sabe que não gosto de te deixar comendo sozinho depois. — Ele
balança as mãos agoniado. — E eu não sou mais um brotinho, pelo meu
tamanho, posso... posso... eu posso ser chamado de perfilho. — Garden se
engasga as palavras; isso acontece quando ele fica ansioso ou eufórico
demais. Geralmente dura nos primeiros minutos com o pai.
— O que é um perfilho? — Francis faz uma careta confusa. Nosso filho
se afasta do abraço para estalar os dedos. Isso o ajuda a coordenar seus
pensamentos, tanto quanto meu balançar das pernas e raspar das unhas.
— Perfilho é o broto já na fase de perfilhamento — responde sem se
enrolar dessa vez, ainda estalando os dedos. — Sou grandinho agora, então
não sou mais um broto e sim um perfilho.
— Filho, você tem sorte de eu não te chamar de sementinha. — Francis
ri, bagunçando os cabelos dele. — Oi, Angelina. — Beija minha bochecha,
já indo para a cozinha como se fosse sua casa. E bem, desde que ele passa
mais tempo aqui do que na sua, deve mesmo ser.
— Oi, doutor Hopkins, fique à vontade para usar minha casa e comer
minha comida. — Reviro os olhos quando o vejo abrindo as panelas.
— Não seja má comigo, eu estou virado há mais de dois dias e só comi
comida de hospital. Aquilo lá é para entristecer o estômago.
— Mas a comida da mamãe pode te matar. — Garden fala enquanto
coloca ração para os peixes do seu aquário. — Você sabia que ela entupiu
minhas artérias no fim de semana?
— Como assim? — Francis me encara divertido e cubro o rosto com a
mão.
— Eu só fiz frango frito — choramingo.
Francis explode em uma gargalhada e tenho vontade de jogar a panela na
cabeça dele.
— Eu vi naquele livro de capa verde na sua casa, que gordura em
excesso entope as artérias e eu contei para a mamãe, mas ela disse que não
tinha problema comer uma vez só... acho que a mamãe é teimosa — essa
última parte Garden cochicha no ouvido do pai. Mas ele é como a Blue e
não sabe falar baixo.
— Nisso você acertou em cheio, G. — Francis fuça minhas panelas em
busca de alimento e o estendo um prato para se servir.
— Como foi o plantão? — tento acabar com o assunto sobre minha
comida ser assassina.
Ele suspira.
— Foi péssimo, tivemos um paciente parando na madrugada do sábado
durante a troca de turno, os prontuários estavam uma bagunça, e no
domingo tive que ficar no trauma porque o plantonista teve uma emergência
familiar.
— Blue ficou cuidando do centro esportivo?
— Ficou, ela deve tá um caco.
— Todos estamos muito atribulados. Mas vamos superar isso, já
passamos por coisa pior.
Ele ri.
— Muito pior..., mas então, falando em muito pior, onde está o John? —
Francis acha que ainda me provoca com isso, mas eu já superei sua
implicância com meu namorado. Até porque os dois se gostam.
— Ele deve estar chegando.
— Que bom, faz tempo que não encho o saco de alguém.
— Seu recorde é de quanto tempo? — Arqueio a sobrancelha. — Um
dia?
— Uma hora. — Ele pisca para mim, provando da minha comida. —
Hummm, isso aqui tá muito bom. É estrogonofe?
Arqueio a sobrancelha.
— Bolinho de carne — digo irritada. Ele arregala os olhos.
— E em qual parte o bolinho deu errado?
Jogo o pano de prato em cima dele.
— É só não comer, prepare sua própria comida. Pra um homem de 29
anos você é pouco autossuficiente.
— Eu posso preparar a minha própria comida — retruca ofendido.
— Então por que não prepara?
— Porque eu prefiro a sua... tudo feito pelas suas mãos é mais gostoso.
O sorriso do Francis me diz que não é exatamente de comida que
estamos falando. Meu rosto se avermelha no mesmo instante e eu sei que
ele só falou isso para me deixar com as bochechas em chamas. Faz anos que
não temos nada. A nossa última noite no aniversário de Garden, foi
realmente o nosso último momento juntos.
— Para com isso. — Aponto o dedo e ele se finge de desentendido.
— Por que a mamãe sempre fica vermelha quando vocês ficam se
olhando? — Garden questiona, assustando a nós dois.
— Eu não fico vermelha. — Cubro as bochechas com as mãos. Fico?
— Fica sim e o papai fica te olhando sem piscar, parece até que vai
desmaiar.
— Eu pisco sim! — Francis começa a piscar incessantemente para
provar seu ponto.
Por sorte, John entra em casa nos salvando do interrogatório do
garotinho curioso. Ele não mora aqui, definitivamente não chegamos a esse
tipo de relação, mas costumamos jantar juntos algumas vezes na semana.
— Graças a Deus! — Francis murmura aliviado. É a primeira vez que
ele fica realmente feliz com a chegada do meu namorado.
— Boa noite, querida — ele vem direto até mim e beija minha bochecha.
John não é de muitas demonstrações de afeto em público.
— Boa noite, querido — é Francis quem fala, imitando uma voz
feminina.
— Eu espero que isso não tenha sido uma tentativa de imitar minha voz.
— Estreitos os olhos.
— Isso foi uma tentativa de me irritar, mas ele falhou — John o
cumprimenta com um aperto de mãos e um abraço tipicamente masculino.
— Como foi o trabalho? Você está acabado.
— Pelo menos eu não estou cheirando a dinheiro.
— Você precisa inventar algo mais para zombar de mim fora o fato de eu
ser bancário.
— Eu ainda posso falar que você é baixinho, tem pés chatos e é um
pouco calvo.
— Eu não sou calvo! — John se defende. — Essas entradas aqui eu
tenho desde que era pequeno.
— Piorou — Francis gargalha. 
Tusso uma risada. Só o Francis pra me fazer rir de uma coisa dessas.
— Pelo menos ele sabe andar em linha reta sem derrubar alguma coisa
— defendo meu namorado.
— Pelo menos eu posso me defender sozinho.
Ah, cretino.
Nós encerramos as provocações quando Garden se levanta da cadeira e
vai para sala sem falar nada. Ele tem esse costume, quando quer fazer algo,
simplesmente vai e faz. Não é de anunciar. Dou uma olhada e o vejo sentar
à frente da televisão e ligar no Discovery Chanel.
— Programa de animais? — Josh me abraça pela lateral e assinto.
Francis se senta no chão ao lado do Garden enquanto come seu jantar e
nosso filho sequer nota a presença dele. Só tem uma coisa que Garden gosta
mais do que do pai: animais marinhos.
— Sua mãe nos convidou para um almoço na casa dela no domingo —
John me avisa.
— Pra conhecer o novo namorado dela... vovó me contou.
— Você não quer ir?
— Não, não quero. Mas vou deixar o Garden com ela, que eu sei que é
por ele o convite.
— Ei, de mim ela gosta — John fala alto para o Francis ouvir e esse
ergue o dedo do meio atrás da cabeça.
— Não provoca, porque você sabe que não aguenta — repreendo. Ele até
consegue entrar nas gracinhas do Francis, mas sempre sai perdendo no
final.
— A culpa não é minha que o grandalhão ali ainda tem espirito de
universitário.
Puxo John para a cozinha, deixando Garden ver seu programa em paz.
— Tem estrogono... bolo de carne. — Francis consegue entrar no meu
cérebro.
— Estou começando uma dieta vegetariana.
— Desde quando? — me surpreendo.
— Desde hoje. Um colega de trabalho tá fazendo e disse que tem sido
bom para ele.
— Hum... então o máximo que posso te oferecer são os legumes do
Garden.
— Tá perfeito — John sorri como se eu lhe oferecesse um banquete.
Mas isso não é novidade, tudo está sempre tão bom, tão perfeito pra ele,
que me sinto até mal de reclamar de algo da minha vida. John faz o tipo que
agradece o buraco que estragou o amortecedor do seu carro, porque isso
pode ter evitado um acidente futuro. Ao contrário de mim, que xinga até a
máquina que pavimentou a rua.
— Meus jogos começam semana que vem — informo, já sentindo a
competição nas veias.
— Já marcou a sua consulta com a psicóloga?
Franzo o cenho.
— Como assim?
— Você sempre fica muito agitada durante os campeonatos, é bom ter
um preparo psicológico antes.
— É, você tem razão. Vou ligar para doutora Trish e marcar um horário.
— Tenho certeza que vai se sair bem, mas não se preocupe se perder. —
John sorri docemente, com uma calma até mesmo apática. Ele é a única
pessoa da minha vida que transborda calma, porque todo o resto pode muito
bem ser um redemoinho de confusões.
— Se sair bem em quê? — Francis entra na cozinha com o prato já
vazio. Céus, ele pelo menos mastigou isso antes de engolir?
— Meus jogos.
— Aaah... — Bate palma, esfregando as mãos. — Como está o espírito
sanguinário? Pronta pra fazer picadinho das adversárias? — ele sorri
perversamente, contrastando completamente de John. Esboço meu melhor
sorriso competitivo. Enquanto um é a calmaria, o outro é a tempestade.
— Mais que pronta. — Esboço meu melhor sorriso competitivo.
— É isso aí, quero te ver acabando com elas! — Francis bate a mão na
minha.
— O importante não é vencer e sim competir — John apazigua a energia
caótica.
Francis o encara de sobrancelha erguida.
— Você diz isso porque não está competindo, porque perder é uma
merda.
— Faz tempo que você não compete — John o lembra.
— Não profissionalmente. Mas com a clínica eu treino os pacientes e
tenho alguns alunos por fora que eu preparo para competições... além disso,
eu ganhei o torneio de surf do último verão.
Francis pisca para ele, que revira os olhos.
Os dois competiram no torneio que a cidade promoveu e Francis ganhou
até mesmo de Robert. John ficou em sétimo lugar, então foi muito bem.
— Tá vendo como perder é ruim? — Francis gargalha. — Nem uma
pessoa cheia de luz e gratidão como você, gosta.
— O problema não é perder, é perder pra você que não consegue
esquecer.
— Você sabe que faço isso porque te amo, meu neném — Francis puxa
John para um abraço, esfregando a cabeça dele e bagunçando seu cabelo
perfeitamente alinhado.
Ainda dizem que depois que viram pais, eles amadurecem.
— Você tem que ser mais adulto! — John consegue se livrar do aperto
dos braços gigantesco, sentando do outro lado da mesa.
— E desde quando ser adulto significa ser chato?
— Não significa ser chato, mas significa preparar as próprias refeições
— John o alfineta por comer aqui.
— Então por que você está comendo da refeição dela também? —
Francis provoca.
— Porque ela é minha namorada, nada mais natural que eu faça
refeições aqui. — John cruza os braços, provocativo. — E você, Hopkins,
qual sua desculpa?
— Porque ela é... é minha... — Francis abre a boca pronto para
responder, mas a fecha em seguida com um suspiro. Ele ergue as mãos em
sinal de rendição, parecendo sem jeito. Sou sua o quê? Penso em insistir
para que termine a frase, mas prefiro que eles parem com a discussão inútil.
— Nada... não tenho uma desculpa para dar. Você está certo.
Até mesmo John fica surpreso com a fala.
— É... eu acho que vou pra casa... eu... vou indo. — Francis recolhe seu
celular sobre o balcão.
Ele não ficou chateado com o que John falou, né? Já disseram coisa
muito pior um para o outro.
— Não quer ficar mais com o Garden? — insisto. Eles ficaram tão pouco
tempo juntos, além disso nós nem conversamos direito...
— Ele não vai lembrar de mim enquanto o programa não acabar... e eu
preciso mesmo dormir um pouco. Mas amanhã cedo venho buscá-lo para a
aula de natação.
— Mas, Francis...
Ele não dá tempo para que eu fale mais nada, apenas se despede de nós
com um aceno, indo para sua casa quase correndo. Geralmente, Francis
sempre me dá um beijo na testa e um abraço, mas hoje... simplesmente vai
embora.
O que deu nele?
Se algo o incomoda, ele deveria falar. Foi assim que combinamos ao
longo desse tempo. Manter o diálogo para não ter nenhum mal-entendido.
Ele sair assim me irrita. Muito.  
 

 
 
— O que foi? — Blue entra em casa já começando um interrogatório.
Ela joga sua pasta em cima do sofá, sentando do meu lado.
— O que foi o quê? — continuo olhando para a televisão, vendo um
filme que não faço ideia do nome e muito menos do que se trata.
— Você nunca assiste filme, sempre está na casa da Angie essa hora e
tem um bico quilométrico na sua cara... o que aconteceu?
Cruzo os braços.
— Cansaço.
— Você é cansado desde que te conheço, tenta outra desculpa.
Suspiro.
— Você não tem mais nada pra fazer? Sei lá, revisar um caso, programar
as aulas de ballet na clínica, sair com uma mulher...
— Não levo trabalho pra casa, não preciso programar minhas aulas e
transei o fim de semana inteiro, estou satisfeita. Algo mais?
— Pelo menos alguém aqui está satisfeito. — Cruzo os braços.
— Hummm... então o problema são mulheres... — Reviro os olhos para
a insistência. — Ou deveria dizer, uma mulher?
— Como assim?
— Eu só conheço uma mulher no mundo que consegue te deixar desse
jeito, Francis...
— Pelo amor de Deus, não começa! — Ergo as mãos. — Angelina é
passado, nós nos superamos há muito tempo.
Ela sorri de lado, irônica.
— Eu não falei o nome da Angelina.
— Nem precisa. Te conheço.
— Me conhece e ainda acha que pode mentir pra mim?
— Não estou mentindo pra você.
— Então é pra si próprio, o que é pior. Porque se acredita mesmo que
esqueceu a Angelina, então definitivamente precisa abrir os olhos para o
óbvio.
— O que é óbvio? — Bato as mãos nas pernas.
— Que você ainda ama sua garota.
— Ela não é minha há sete anos. — Isso ficou bem claro na cozinha
hoje. Não sou mais o homem que tem o direito de vê-la todos os dias. — E
nem uma garota, não somos mais jovens inconsequentes.
Minhas bochechas são apertadas tão logo eu termino de falar.
— Por que fez isso? — Toco a região que fica dolorida.
— Ah, é que é tão bonitinho ver você tentando se convencer disso. —
Blue dobra as pernas em cima do sofá. — Sabe... a única coisa certa que
você disse nesse discurso barato, é que não somos mais jovens. Ou pelo
menos, não tão jovens como costumávamos ser. E é exatamente por esse
motivo que devemos ser um pouco inconsequentes de vez em quando.
— Não entendi. — Alguma vez entendo o que ela fala?
— Lute pelo que você quer. A vida voa, Francis. Até ontem éramos
universitários que não sabiam se passariam na próxima prova e hoje somos
adultos com nossas próprias casas, construindo profissões... construindo
família.
— Eu já tenho família.
— Estou falando de casamento, seu idiota!
— E você quer que me case com quem? Hum? — Arqueio a
sobrancelha. — Com a Angelina? Caso não tenha percebido, ela tem
namorado e não sou eu.
— Então muda isso. É apenas uma pedra no meio do caminho.
Esfrego o rosto.
— John é uma pessoa, não uma pedra. Não é como se eu pudesse
simplesmente chutá-lo para longe.
— Não é você que precisa chutá-lo, é a Angie.
— Eles se amam — falo com uma careta.
— Nossa, essa nem você consegue acreditar — Blue estala a língua. —
Ele a ama? É, acho que sim, não consigo ler naquela tela em branco das
expressões dele, mas definitivamente Angelina não o ama. Gostar sim, mas
não é amor.
— Você não pode falar o que tem no coração dela.
— Posso — Blue assente com força. — Posso sim, porque eu já vi a
Angelina apaixonada, já vi a Angelina amando. E só vi isso com você.
Suspiro, massageando minha têmpora. Por que ela decidiu voltar com
esse maldito assunto logo agora? Eu estou bem, estou levando minha vida,
Angelina está levando a dela, por que a Blue quer que a gente bagunce tudo
de novo? Finalmente temos paz, temos um convívio amistoso, está tudo
calmo... pacífico. Até demais.
Droga, por que eu odeio tanto ficar falando que minha vida é calma, se
houve um tempo que tudo que eu pedi foi por paz? Porque me pego quase
implorando para aquela loirinha colocar minha vida de ponta cabeça de
novo?
— Você sabe melhor do que ninguém por que Angelina e eu não
podemos ficar juntos. — Espero que isso a convença por fim.
— Eu sei o motivo pelo qual vocês não podiam ficar juntos no passado.
Mas Francis... — Ela segura minhas mãos. — Isso foi há sete anos. Isso foi
quando estávamos na faculdade. Isso foi quando vocês nem sabiam como
lidar com todas as questões da vida e ainda com as do Garden. Mas olha pra
vocês agora. — Blue sorri, afagando minha mão. — Você se tornou um
neurologista e construiu o centro esportivo na clínica para as crianças.
Angelina está na seleção nacional de vôlei e construiu uma biblioteca em
meio a uma floricultura. Do jeito torto de vocês, conseguiram realizar todos
os sonhos que queriam. Menos um. Talvez o mais importante.
Nego com a cabeça.
— Não é justo, Blue. Não faça isso comigo. — Encaro seus olhos
seriamente. — Abrir mão da Angelina foi e sempre será, a coisa mais difícil
que tive que fazer, mas eu não me arrependo. Nem por um segundo. —
Minha respiração acelera. — E eu tenho tentado, por todos esses anos, me
convencer de que fiz a coisa certa, de que fiz o melhor para nós dois, então
não me encha novamente de esperanças que eu sei não existirem, não me
faça lembrar dela dessa forma, porque só Deus sabe como foi malditamente
torturante explicar para o meu coração que ela devia mudar do espaço de
amor da minha vida, para o espaço de amiga. — Engulo a saliva agoniado.
— Então por favor... não me faça pensar nisso — imploro. — Mesmo que
você pense que é verdade, não me coloque na posição de lutar por ela,
porque eu já não tenho esse direito, o perdi há muitos anos. Eu a libertei na
nossa última noite, de todas as promessas, e desde então estou tentando me
libertar das minhas. Não torne mais difícil do que já é.
Mesmo com o discurso bonito, a cara dela é de deboche.
— Se eu fosse alguns anos mais jovem, te mandaria à merda, mas como
já sou bem grandinha, vou te mandar se foder mesmo. Que conversinha sem
sentido e covarde!
Arregalo os olhos.
Blue se levanta do sofá, me encarando com as mãos na cintura.
— Angelina e John vão fazer um ano de relacionamento na próxima
semana.
A informação me pega de surpresa.
Já?
— E daí? — finjo desinteresse.
— E daí, que como você bem lembrou, não somos mais jovens. Não
esperamos mais anos e anos de namoro, para levar um relacionamento
adiante. Temos idade o suficiente para nos conhecer, saber o que queremos,
temos uma vida construída…
— Onde você quer chegar com isso?
Os olhos verdes faltam ficar do outro lado da córnea quando Blue os
revira.
— Eu ainda não sei como você se formou em medicina com essa
burrice! Eu estou dizendo, criatura, que não vai demorar cinco anos para o
John pedir a Angelina em algo muito mais sério que um namoro.
Levanto do sofá.
— Angelina não casaria com ele agora. É muito cedo!
Ela ri de mim.
— Por que não? Ele é bonito, a trata bem, a respeita, deixa claro que a
quer, gosta do filho dela, gosta até do ex dela — Blue aponta para mim. —
A mãe dela gosta dele, e isso é algo que você nunca poderá falar.
Pisco, sentindo algo estranho no peito. Fecho as mãos em punho,
estalando o pescoço. De repente, o ar parece intragável.
— É muito cedo. — É, é cedo demais. Angelina não se casaria com tão
pouco tempo de relacionamento.
Ou casaria?
— Enquanto você continuar sendo covarde e achar que é cedo demais
para buscar aquilo que te faz feliz, as outras pessoas vão continuar
chegando na sua frente e tomando para elas o que você teve medo demais
de conquistar. Continue achando que é cedo, que vai ver de camarote o
quanto é tarde demais.
A agressividade dela me irrita. Por que isso agora?
— Você quer falar sobre covardia? É sério, Blue? — Rio amargamente.
— Logo você que some da cidade toda vez que Donna vem fazer uma
visita?
Minha irmã nos visita sempre uma vez no ano, no aniversário do Garden,
desde que ele fez três anos. Blue some assim que ela aparece.
— É completamente diferente! — Ela também fecha suas mãos.
— Por quê? — rio ironicamente.
— Porque com Donna, mesmo que eu tentasse, a escolha dela nunca
seria ficar comigo. — A voz de Blue falha. — É diferente, porque Donna
não me ama e nunca me amou. É diferente, porque se você lutar pela
Angelina, ela vai estar do seu lado na batalha. E eu vou estar sozinha
tentando quebrar as barreiras que sua irmã ergueu no próprio coração. Já
ouvi na minha cara que ela não me ama, isso você nunca ouviu da
Angelina.
Minha amiga sobe as escadas correndo para o seu quarto e me jogo no
sofá, me sentindo um merda. Não deveria ter aberto a boca para falar sobre
Donna, mas eu também não quero retomar o assunto Angelina. Blue e eu
conseguimos superar, do nosso próprio modo, não precisamos mexer nesse
vespeiro mais uma vez.
Inferno!
Subo as escadas depois de passar na cozinha e pegar um suborno,
batendo na porta do seu quarto.
— Vai ser babaca lá casa do…
— Ei, eu vim em missão de paz! — aviso antes que ela xingue todas as
minhas desconhecidas reencarnações. — Posso entrar?
— Entra logo.
Coloco primeira a cabeça dentro do quarto, conferindo se ela não vai me
jogar um abajur. Já aconteceu. Estendo o pote de Ben e Jerry, esperando
que seja suficiente. Blue o puxa da minha mão sem delicadeza.
— Um sorvete não vai me fazer te achar menos babaca.
— Eu sei, pra isso eu teria que nascer de novo. — Respiro fundo, me
sentando na cama. — Eu também sei que não devia ter tocado no nome da
minha irmã, mas você precisa admitir que é hipocrisia me dizer todas
aquelas coisas, enfiar o dedo na minha ferida e eu não poder nem dar um
cutucada na sua.
Blue parece prestes a me mandar embora, mas ela respira algumas vezes,
assentindo. Se fossem anos atrás, ela teria cedido aos seus impulsos, mas eu
a obriguei a fazer terapia há muito tempo. Quem diria que logo eu não
poderia ficar sem a minha sagrada sessão semanal.
Doutora Brice ainda me atende, mas agora de forma online.
— Ok, eu sei que é hipocrisia, mas é muito mais fácil resolver a sua vida
do que a minha.
— A grama do vizinho é sempre mais verde. — Dou de ombros.
— A sua não parece mais verde, parece prestes a morrer. E eu sei que
isso já foi um jardim bonito, não quero ver cada pedacinho dele deixar de
existir... — Blue me encara com olhos pidões. — Francis, você e a
Angelina são toda a razão para eu acreditar em amor. Desde que Brad Pitt e
Angelina Jolie terminaram, só me restou vocês dois.
Solto uma risada, balançando a cabeça.
— Só você pra me fazer rir agora..., mas falando sério, o que eu tive com
a Angie também sempre será minha referência de amor. O fato de não
estarmos juntos, não significa que não demos certo. — Acaricio o rosto da
minha amiga, a puxando para se deitar comigo. Encaramos os dois o teto
branco do seu quarto. — Nós demos muito certo, mesmo no curto espaço de
tempo que duramos. A amizade que temos hoje mostra isso. Se o que a
gente viveu não fosse importante e valioso o suficiente, nós não teríamos
passado por cima de tudo para conviver hoje em dia.
Blue brinca com os botões da minha blusa.
— Então você admite que gosta dela... que a ama?
Engulo a saliva.
— Sim, linda. Eu ainda gosto dela. Ainda a amo. Mas isso nunca foi algo
que eu tive esperanças de deixar de sentir. Tudo que eu fiz e faço, é guardar
dentro de uma caixa esse amor. — Bufo uma risada. — De vez em quando,
eu abro essa caixa, revivo nossa história, lembro dos nossos momentos, das
nossas palavras... das nossas promessas, e me permito viver naquele
passado por alguns minutos. Às vezes, é o bastante para não doer. Mas na
maioria, faz doer ainda mais. Então não visito essa parte do passado
frequentemente.
Aperto os dentes, impedindo que esses sentimentos venham à tona. É
mais fácil quando eu finjo que eles já não existem.
— Vocês vão deixar a história se repetir — Blue sussurra com tristeza.
— A dos nossos pais?
— Sim.
— Talvez, mas ainda assim é diferente. Angelina e eu não nos odiamos.
— É pior, não consegue ver? — Blue apoia as mãos sobre meu peito, me
encarando. — É infinitamente mais suportável lidar com o afastamento
quando ele se deu por dor, por raiva e por ódio. É mais fácil quando você
sente aquela fúria. — Eu vejo que ela segura as lágrimas e apenas isso me
faz ver que suas palavras não são verdadeiras, porque com Donna e ela foi
assim, e mesmo nessas circunstâncias ainda sofrem. — Mas vocês,
Francis... vocês escolheram estar longe um do outro, por amar um ao outro.
Vocês desistiram porque queriam o melhor do outro, queriam que fossem
felizes, abdicaram de tudo por se amarem ao ponto de se deixarem. Isso dói
mais... porque vocês sabem, mesmo que no fundo, que basta uma palavra,
um gesto, para estarem juntos de novo.
É minha vez de piscar para fastar o ardor nos olhos.
— E você sabe por que Angelina e eu não fazemos nada? — indago.
— Porque são burros.
Rio alto, tapando a boca dela.
— Você é um amor — ironizo. — Não, nós não fazemos nada porque
respeitamos o sentimento um do outro. A gente sabe o tanto que já se
machucou e as cicatrizes que ficaram disso. Angelina não é uma bola de
ping-pong para eu jogar de um lado para o outro, de acordo com o momento
oportuno da minha vida. Não importa que agora eu tenho tudo a oferecer
para ela, não importa que hoje eu sei ser o homem que a merece, se no
passado eu a deixei livre para seguir sua vida, a libertei das promessas.
Angelina não tem culpa que eu não tenha conseguido o mesmo, que meu
coração não tenha se aberto a mais ninguém. Se estar com John é o que for
fazer ela ficar bem, em paz, tranquila, então eu espero que dê certo.
Só não conto que essa parte apenas o meu cérebro concorda. Meu
coração é egoísta. Ele acha que eu posso fazê-la muito mais feliz que o
calvo... quer dizer, o John.
Minha amiga se senta na cama.
— Escuta, você sempre disse que ela era sua razão.
— E ela sempre disse que eu era sua loucura. — Dou de ombros. — Ela
pode não querer mais viver na turbulência. E eu não posso garantir a
Angelina o amor tranquilo e completamente pacífico que John a oferece.
Meu amor queima, além de a amar, eu sou apaixonado por aquela mulher,
nunca será brando, nunca será raso.
— Exatamente! — Blue assente. — É por isso que eu sei que John nunca
a fará feliz de verdade. Bem? Sim. Em paz? Sim. Mas apaixonada? Vivaz?
Com sede de se aventurar? Não.
— Angelina não é como você e eu, Blue. Ela é como a parte calma e
estática do mar.
— E água parada dá dengue, Hopkins!
— O quê? — De onde essa mulher tirou isso?
— Sei lá, eu vi isso em uma notícia da América do Sul uma vez quando
meus pais iam viajar para o Brasil... Ah, eu nem sei mais o que tô falando,
você fica cheio de metáfora e eu me perco! — ela se irrita, batendo as mãos
na cama. — Mas traduzindo para você entender, pecinhas de quebra-
cabeças iguais não se encaixam. É preciso ser diferente. Seria o mesmo que
você e eu nos casando... a gente colocaria fogo um no outro na primeira
semana.
— Você deu até muito tempo, eu acho que estaria morto em duas horas.
— Eu levaria mais que isso para esconder seu corpo. — Ela sorri
perversa e faço uma nota mental de trancar a porta do meu quarto.
— A gente pode concordar em discordar dessa vez? — Por favor, que
ela encerre esse assunto. Eu odeio quando a Blue está fodidamente certa e
eu não tenho nada para contestar.
— Só se você concordar que estou certa.
— Puta que pariu, mulher teimosa do diabo!
Jogo um travesseiro na minha cara, me sufocando com ele. Se eu morrer
ela me deixa em paz? Ou vai me atormentar até no inferno?
— Eu também amo você, lindo — ela gargalha, me comprovando que
sim. Me torraria a paciência até no purgatório.
 

 
 
— Bom dia — cumprimento as meninas da recepção da clínica, mas a
maioria sequer me dá atenção. E é tudo porque Garden corre para elas como
um raio para abraçá-las. Meu filho é como aqueles cartazes de abraços
gratuitos. Nunca vi uma criança gostar tanto de carinho assim.
— Bom dia, mini Francis. Veio pra aula de natação? — Judith bagunça
os cabelos loiros.
— Não, hoje eu vim assistir a de vôlei da mamãe.
— Desse jeito você vai ser um poli atleta. Já sabe nadar como seu pai e
jogar vôlei como sua mãe.
— O meu padrinho bonitão também me ensinou a jogar basquete.
— Padrinho bonitão? — as meninas me olham e balanço a cabeça.
Ethan, você me paga.
— Se lembram do nosso amigo que veio na Ação de Graças do ano
passado?
— Aquele gostosão? — Daphne se abana.
— Isso é você que está dizendo. — Dou de ombros. — Mas sim, esse
mesmo.
— Nossa, eu quase desmaiei quando ele veio na clínica com o doutor
Hopkins. E uma obra-prima daquela ainda estava solteiro.
— Isso é porque a obra-prima — faço aspas —, não sabe se manter em
um relacionamento.
E o único que ele tentou, não deu certo pela distância. Isabela e Ethan
namoraram por dois anos, quando ela se mudou para Nova York para
trabalhar em uma revista. Os dois tentaram manter o relacionamento, mas
chegou ao fim em pouco tempo. Foi a primeira vez que Ethan sofreu por
uma relação e acho que passou um bom tempo assim. De qualquer forma,
ele já deve ter superado; Isabela se casou há um ano com um colega de
trabalho, não há muito que ele possa ter esperança agora.
Algo nessa história me faz ter arrepios.
— Então ele é igual ao doutor — uma delas comenta. — Nenhuma
mulher da cidade conseguiu fisgar o tubarão.
Meus olhos reviram. Eu odeio esse apelido com todas as forças. Sou
obrigada a escutar toda vez que vou a uma reunião na escola do Garden. As
mães faltam babar naquele cretino presunçoso.
— Podem não ter fisgado... — Faço careta. — Mas fizeram bom
proveito da pescaria.
— Isso é verdade. Elas aproveitaram do peixão do Hopkins. — As
meninas riem e Garden puxa minha blusa.
— O que é o peixão do papai?
Arregalo os olhos. Senhor, jogue uma bomba em cima de mim, mas não
me faça responder a essa pergunta.
A porta do interior da recepção é aberta e Francis entra na sala distraído,
sem notar nossa presença. Ele está analisando uma prancheta, com o cenho
franzido, os óculos sobre a ponta do nariz. Seu jaleco não está no seu corpo,
mas o estetoscópio contorna seu pescoço, pairando sobre a camisa social
em um azul marinho. Os primeiros três botões estão abertos e as mangas
enroladas até o cotovelo, revelando uma pontinha ínfima dos lírios em seu
braço.
Desvio os olhos da tatuagem, cruzando as mãos atrás do corpo. Ainda é
estranho olhar para ela. Estranho porque eu deveria não me importar mais
com o fato de ter uma parte do corpo dele que ainda me carrega e estranho
porque também tem uma parte do meu que o leva. A onda ainda está aqui. E
acho que sempre ficará.
— Papai! — Garden fala alto, fazendo o médico dar um pulo e segurar o
próprio peito. Pelo menos me livrou de responder à pergunta.
— Jesus, filho, você quase ficou órfão.
— Pra eu ficar órfão, a mamãe teria que morrer também.
Agora quem olha assustada sou eu.
— Me tira dessa, eu sou muito nova.
— Mas mamãe, desde quando tem idade pra morrer? Basta a gente estar
vivo pra isso acontecer, nem todo mundo tem a sorte da bisa de estar viva
tão velha.
— Filho... — Francis comprime a boca para não rir, se agachando na
frente dele. — O papai vai ter que te ensinar algumas coisas que você nunca
pode dizer sobre uma mulher ou você ainda vai acabar apanhando.
— Você também vai me contar por que as mulheres da cidade querem o
seu peixão?
— Como é? — Francis olha pra mim em busca de explicação, mas eu
estou ocupada colocando meus pulmões para fora em uma tosse.
Meu Deus, como vou sair dessa agora?
— É que elas estavam falando que você é um tubarão, mas as mulheres
só conseguiram aproveitar do seu peixão. Eu quero saber o que é, estou
confuso. Um tubarão já é um peixe, então não tem como ter um peixão, será
que elas estão querendo falar das barbatanas dorsais?
Quanto mais Garden fala, mais eu quero me enfiar debaixo da mesa.
Francis ergue as sobrancelhas para mim, começando a entender do que
falávamos.
— É filho, deve ser disso que elas estavam falando... — o sorriso
debochado dele me faz sentir as bochechas esquentarem. — Afinal, é um
membro externo que sempre desponta para cima, não é, meninas?
As recepcionistas encaram seus computadores, fingindo não ser com
elas, sobrando só para eu resolver essa conversa constrangedora. Me agacho
na frente do Garden, fazendo uma proposta.
— Se você esquecer esse assunto e ir com as meninas para a quadra de
vôlei enquanto eu converso com seu pai, a mamãe promete não fazer mais
frango frito.
Meu filho arregala os olhos, correndo para dentro da clínica, gritando:
— Tudo pelas minhas artérias!
Fecho os olhos, suspirando. Ele ainda vai me deixar doida.
Me levanto para encarar o peixão... quer dizer o tub... o Francis. Encarar
o Francis!
— Oi, Angie... — Ele coça sua nuca, olhando em volta como se nunca
tivesse reparado na cor das paredes. Eu sei que isso nada tem a ver com o
que Garden falou e sim porque está estranho desde que saiu da minha casa
ontem.
— Vamos conversar na sua sala. — Não perco tempo, subindo para o
segundo andar. Ao entrar na sua sala, cruzo os braços. — Vai falando.
— Falando o quê? — Ele se senta no sofazinho do canto esquerdo,
cruzando uma perna na outra.
— Não sei... talvez o motivo de você estar com cara de merda pra mim
desde ontem e de ter saído da minha casa daquele jeito.
— Você está irritada.
— Que bom que percebeu — ironizo. — Achei que a fase de ficar
emburradinho tinha passado há muito tempo e que agora a gente conversava
como adultos sobre o que nos chateia.
Bato o pé no chão, esperando-o parar de ser covarde e me olhar. Francis
esfrega o rosto, erguendo o queixo.
— Quer mesmo saber por que eu saí ontem daquele jeito?
Chego perto do sofá e ele se levanta, me obrigando a olhar para cima
para fitar seu rosto.
— Óbvio.
— Ciúmes e ego ferido — solta de uma vez. — Satisfeita?
Minha postura altiva se desmancha. Ciúmes?
— Não entendi — sussurro.
Seu pomo de adão se movimenta duramente. Isso ainda me faz suar.
— John disse algo ontem que me deixou puto, mais ainda por saber que
ele estava certo.
— John disse muitas coisas ontem, seja específico.
— Sobre eu comer na sua casa todos os dias.
— Ele queria te provocar, vocês fazem isso sempre.
— É, mas ontem tocou no ponto chave que vai sempre fazer ele ter uma
vantagem sobre mim e sobre qualquer argumento meu.
— Qual?
— Que ele é seu namorado e eu sou... — Francis dá de ombros. — Nem
sei o que eu sou.
— Você é pai do meu filho. — Dou um passo para mais perto.
— Isso não me torna nada na sua vida além de alguém que você tem que
conviver, ao invés de alguém que quer conviver. Ser pai do Garden implica
uma relação com ele, não com você.
— Você é meu amigo — troco o termo e os ombros do Francis caem,
como se esperasse outra resposta.
— Isso ainda o faz ter razão. Eu não deveria ir à sua casa todos os dias,
comer da sua comida, impor minha presença quando você pode muito bem
querer ter sua privacidade com ele e...
— Eu nunca disse que você impôs sua presença, Francis! — Toco seu
queixo, o fazendo me olhar nos olhos. Por que infernos ele fica fugindo do
meu olhar? — Desde que nós estávamos na faculdade a gente
compartilhava refeições.
— Exato, Angelina. — Suspira. — Desde a faculdade... nós não somos
mais universitários, cada um tem sua vida.
— Você não quer mais conviver comigo, é isso? — Tiro a mão dele,
irritada.
— Não, claro que não! — Fecha os olhos, agoniado. — Droga, deixa eu
pensar em como te explicar isso... — Francis respira fundo antes de voltar a
falar. — Eu quero sua companhia, você sabe disso, eu nem me lembro
como não é ter você na minha vida, mas eu me pergunto se de alguma
forma estou invadindo a sua com a minha presença constante... vamos
convir que mesmo sendo seu amigo, eu já fui muito mais que isso e John
tem direito de se sentir incomodado comigo naquela casa.
Abro a boca.
— Não, ele não tem!
— Ele é seu namorado, Angie.
— E desde que me pediu pra ser, eu deixei claro uma coisa na minha
vida que nunca mudaria por causa dele ou por causa de ninguém!
— E o que seria? — ele me confronta.
— Você, seu idiota!
Meu peito sobe e desce depressa pela respiração irregular. A do Francis
parece travada em sua garganta. O azul me avalia curioso e confuso. Engulo
a saliva, falando mais calmamente.
— John sabe desde o começo que você é parte da minha vida. Você
estava nela antes dele e permaneceria nela apesar dele. Isso não é algo que
eu deixei subtendido ou algo que flexibilizei. Ele sempre esteve ciente que
para estar comigo, deveria aceitar que você é alguém que eu nunca manteria
longe... — Inspiro o ar e exalo com força. — Não importa que a gente já
tenha sido mais que amigo, não importa que seja difícil para qualquer
homem aceitar o ex tão perto... eu não obrigo ninguém a ficar comigo, mas
também não abro mão de parte alguma minha. Você e o Garden são partes
inalteráveis e insubstituíveis, todo o resto, todas as outras pessoas, podem ir
e vir da minha vida... não vocês.
Francis pisca surpreso, abrindo e fechando a boca. É sério que ele
pensou que fosse diferente? De onde tirou que eu aceitaria que alguém que
chegou na minha vida há tão pouco tempo, afastasse ele que esteve ao meu
lado a minha vida toda?
— Não aja como se você não entendesse e fizesse a mesma coisa — fico
brava.
Ele limpa a garganta.
— Como assim?
Solto uma risada.
— Quantas mulheres você já afastou porque nosso filho não gostou, ou
porque achou que elas não gostaram do Garden, ou...
— Ou porque não eram você — ele fala baixo e chego mais perto para
escutar melhor. Com toda certeza eu ouvi errado o que disse.
— C-como? — gaguejo.
— Nada... — Francis passa as mãos no cabelo. — Escuta, eu sei que
você tem razão, fui irracional ontem, senti ciúmes da situação e eu nem
tinha direito de sentir isso, o que é ainda pior, então eu apenas fui embora.
— Você tem direito. — Dou de ombros. — Você é meu... meu amigo,
você tem direito — o encaro ansiosa, talvez para que corrija minha frase.
Os ombros dele caem pela segunda vez no dia.
— É... sou seu amigo... talvez eu tenha um pouco de direito.
Nós dois desviamos nossos olhares, um clima pesado se instalando na
sala.
Limpo a garganta, apontando para a porta.
— Vou descer e dar minha aula de vôlei.
— Tudo bem... boa aula.
O encaro algum tempo, mas saio pela porta sem dizer mais nada.
Por algum tempo, eu realmente mantive minhas esperanças. Achei que
um dia ficaríamos juntos..., mas isso não aconteceu. Mesmo quando a vida
ficou mais fácil, nenhum dos dois tomou nenhuma iniciativa nesse sentido.
Então ele seguiu sua vida, se envolvendo casualmente, e eu segui a
minha em uma zona mais segura. Acho que encontramos maneiras de ser
felizes e nunca tivemos a audácia de arriscar a nos quebrar de novo.
Foi melhor assim. Mais seguro. Mais calmo.
Bem mais calmo.
Calmo demais.
 

 
— Achei que não fosse me ligar hoje — Donna reclama pelo telefone.
— Desculpa, minha aula demorou um pouco mais que o previsto. —
Desligo o carro, parando em frente à floricultura. A maioria das pessoas
tem pavor das segundas-feiras, mas eu tenho pavor das terças e quintas.
Meu turno é triplicado com as aulas na clínica, o expediente na floricultura
e meus treinos. Pelo menos nesses dias Francis sempre fica com Garden.
— Sua voz está cansada.
— A sua também.
— Eu estou no último ano da residência, esqueceu?
— Claro que não, estou ansiosa para ter uma dermatologista particular.
— Até parece que você precisa de algo pra esse rostinho, sua vaca.
Quase vinte e oito anos e ainda parece uma adolescente.
— Por falar em quase vinte e oito anos...
— Eu não vou para o seu aniversário e você sabe o porquê.
— Donna, a última vez que a gente se falou sem ser por um telefone foi
no aniversário do Garden no ano passado. Já cansei das suas visitas serem
apenas uma vez ao ano.
Donna conheceu o afilhado no aniversário dele de três anos. Foi a
primeira vez que voltou à São Francisco depois de ter ido embora. Eu achei
que ela e Blue fossem se resolver ali, mas tudo que sei do encontro que elas
tiveram na ocasião, é que não acabou nada bem.
— Angelina, você sabe que minha faculdade é complicada, não tenho
tempo, ainda mais agora no final da residência.
— E nós duas sabemos que não é por faculdade que você deixa de visitar
e sim por causa da Blue.
— Já se passaram anos, ela é passado pra mim.
Solto uma risada, descendo do carro.
— Se fosse, você não fugiria dela.
— Você sabe por que eu fujo.
Apoio o celular entre a orelha e o ombro, abrindo a loja.
— Eu sei e entendia quando éramos mais novas, mas agora já se tornou
irracional.
— E só porque ficamos adultas não podemos mais ter medo?
— Medo pode ter, mas deixar que ele te impeça de viver com as pessoas
que você gosta? Isso não.
— Falou a pessoa que está com um cara que não gosta.
— Quem disse que eu não gosto do John? — Ligo as luzes da ala da
floricultura, seguindo para a da livraria.
— Tá, você gosta, mas consegue falar que o ama?
— Isso nem ele me disse até hoje. Nós vamos fazer só um ano juntos.
Amor não se constrói assim do nada, o que não quer dizer que eu não goste
dele. John é um homem incrível, ele sempre tenta me fazer feliz.
— E consegue? Consegue realmente te fazer feliz?
Demoro a responder.
— Sim.
— Como meu irmão fazia?
— Eu era nova demais com seu irmão, naquela época tudo era mais
emocionante e arrebatador, não tenho mais idade pra isso. As coisas agora
são mais sérias.
— E chatas.
— Meu namoro não é chato.
— Não? Então me conta o que vocês fazem.
Entro na minha pequena sala, me sentando na cadeira.
— A gente janta junto quase todos os dias, nos finais de semana vamos
em restaurantes que gostamos, passeamos com o Garden, vemos algum
filme...
Donna para de responder e tiro o celular do ouvido para ver se a ligação
caiu. Coloco de volta na orelha.
— Donna?
— Ah, desculpa, é que eu dormi de tanto tédio... isso mais pareceu uma
relação de idosos. Vocês só comem e assistem televisão, é isso?
— O que mais você quer que a gente faça?
— Sexo!
— A gente faz sexo.
— E é bom?
— Se você quer saber se ele me faz gozar, sim ele faz.
— É o mínimo, Angelina! — Donna bufa. — Se você tivesse namorando
um cara que nem te faz gozar eu te chamaria de burra, mas eu quero saber
se ele te faz gritar, se te deixa maluca, se te deixa pensando dias depois
naquela transa que tiveram, se você fica completamente mole e com um
sorriso bobo no rosto depois de vários orgasmos.
Ligo meu computador, já que o sistema demora pelo menos cinco
minutos para funcionar. Eu preciso trocar essa coisa.
— John ainda é um pouco receoso, fica com medo de fazer algo que eu
não goste, que me deixe desconfortável..., mas ele me satisfaz.
— Ainda? — ela praticamente grita e afasto o telefone da orelha.
— O seu irmão também tinha receio no começo — defendo John. Ele é
bom na cama, não vou deixar que passe a impressão de um cara chato. Ele
não é. Só é mais certinho.
— Meu irmão teve cuidado nas primeiras vezes, mas receio? Angelina,
eu lembro o estado que meu vestido vermelho voltou depois de vocês dois
transarem feito coelhos em uma plantação de uvas! Se aquilo era receio,
coitada de você no dia que ele te foder sem dó. Vai sair descadeirada.
Tusso alto, me engasgando com a saliva. Ela precisa mesmo lembrar
disso?
— Donna... — pigarreio, tentando limpar a voz. — Seu irmão me
conhece a vida toda, era mais fácil.
— Não, Angelina. Se tem uma coisa que você não é, é fácil. Ele que era
esforçado demais.
Suspiro.
— Mas estou com o John, ele é uma pessoa incrível, então não o
diminua.
— Não estou diminuindo... não muito. Ah, me entende, eu quero você o
mais feliz que pode ser.
— Eu também quero o mesmo por você, e sei que sua felicidade está
desse lado do país.
Donna resmunga, mudando de assunto.
— Como está meu afilhado?
— Mais esperto que nunca.
— Claro, ele é meu sobrinho.
— E muito sincero.
— Claro é seu filho.
— E conquistando todo mundo.
— Claro, é filho do Francis.
— Dá pra parar?
Donna gargalha, continuando a me provocar até que o primeiro cliente
entre na livraria. Eu poderia chorar de agradecimento pelo salvamento.
— Tenho que ir, chegou um cliente.
— Salva pelo gongo.
— Tchau, cretina. Te ligo amanhã no mesmo horário.
— Tchau, baby. Amo você.
— Idem.
Se algo eu posso agradecer ao tempo por ter me devolvido, foi minha
amiga. Ela continua tirando a minha paz noventa por cento do tempo, mas
ter Donna de volta foi como recuperar uma parte minha.
 

 
 
— O que você quer fazer pra comemorar nosso primeiro ano? — John
me pergunta enquanto andamos pela praia em frente à minha casa.
Dou de ombros.
— O que acha de fazermos um passeio nos pântanos? Tem os
pedalinhos... faz anos que não ando neles.
Balanço os pés no ar para tirar a areia entre os dedos.
— Acho que já somos velhos para andar naquilo — ele ri, balançando
nossas mãos para frente e para trás. — O que acha de ir àquele restaurante
que você gosta?
A conversa com Donna martela na minha mente.
— A gente sempre sai pra comer, o que acha de fazer outra coisa?
— Os passeios de barco não são uma opção, então...
— Por que não? — interrompo.
— Você não gosta de água. — John me olha como se fosse óbvio.
— Mas eu vou estar no barco.
— Com água em volta, você pode ficar mal com isso.
— Posso, mas eu também posso me distrair.
Eu lembro muito bem de ter ficado distraída no barco com Francis anos
atrás. Isso não foi um problema. Tudo bem que eu estava com o pênis dele
na mão, mas não preciso lembrar desse detalhe agora.
— Prefiro não arriscar, Angie... — John sorri para mim, mas eu não
sorrio de volta.
— Você sabe que eu não sou uma bomba prestes a explodir, né?
— Não insinuei que fosse. Mas eu detestaria que você se sentisse mal.
— As pessoas se sentem mal o tempo todo, não dá pra deixar de viver só
por medo disso.
— Mas podemos evitar.
— Evitar viver? — Arqueio a sobrancelha.
— Evitar sentir medo.
— Mas isso faria a gente viver pisando em ovos.
— Não quando você já sabe o que te assusta.
Paro no meio do caminho, puxando John para ficar no mesmo lugar. Ele
me olha curioso.
— O que foi?
Respiro fundo, pensando a melhor forma de explicar.
— Escuta... eu tenho medo de muita coisa. Barulhos me assustam.
Toques me assustam. Água me assusta. Mudanças me assustam..., mas se eu
tivesse tentado fugir de tudo isso, nunca teria vivido nada. Eu passaria a
vida escondida e isso seria apenas existir, sobreviver. Eu quero mais,
sempre quis.
— O que quer dizer?
— Quero dizer que não vou resumir minha vida a fugir dos meus medos
e sim enfrentá-los. Nem sempre vai dar certo, nem sempre vou conseguir e
algumas vezes as crises vão bater à porta, mas ao menos vou tentar.
— Desculpe, eu achei que você preferia a zona de conforto.
Eu deveria preferir. Mas não é bem esse o caso. Deixou de ser há muito
tempo, desde que um certo nadador me mostrou como era bonita a
tempestade vista do alto.
— Às vezes sim, mas não o tempo todo.
— Eu não sou muito bom em sair da zona de conforto, não gosto de me
aventurar... — Ele ri, dando de ombros. — Mas vou tentar fazer isso mais
vezes por você. Tudo bem?
— Então o que propõe?
— Hummm... — John comprime as sobrancelhas e espero ansiosa. —
Que tal se formos ao cinema?
Meus ombros caem.  
— Ok — assinto, voltando a andar. No automático, como em uma
esteira.
Acho que esse vai ser o máximo da zona de conforto que ele vai sair.
Deixar de assistir filme em casa e assistir no cinema.
Não era exatamente algo assim que eu estava planejando. Na verdade,
acho que eu queria alguma dose de aventura e de caos na minha vida. Tem
sido tudo tão parado, que eu quase sinto falta dos anos de loucura, dos
nervos à flor da pele e das borboletas no estômago.
Era tempestuoso, como viver no epicentro das chamas. Mas depois de
aprender a dançar sob o ritmo das lascas que estalam, é frio e apático se
afastar do fogo. Principalmente quando queimavam em azul cristalino.
 

 
— Oi, John. Oi, mamãe — Garden entra no carro assim que estaciono
em frente à sua escola. — A professora mandou a gente ler um livro para
contar para a turma na próxima semana, então eu tenho que ir na livraria e
escolher um, mas eu ainda não sei qual livro esco... esco... esco... — Garden
gagueja ao ficar eufórico demais.
— Escolher — John completa por ele e coloco uma mão na sua coxa,
balançando a cabeça.
— Não termine por ele. É só não pressionar e ser paciente, logo ele
consegue falar.
— Tudo bem, desculpe.
— Fica tranquilo.
Olho pelo retrovisor e Garden estrela os dedos para se acalmar, voltando
a falar.
— Escolher, eu não sei qual escolher, mamãe.
— Tudo bem, a gente procura amanhã um que você goste, ok?
— Tá bom.
Ligo novamente o carro, pegando a rua que dá acesso ao restaurante.
— Não vamos pra casa?
— Não, Garden — John o responde. — Nós vamos comer naquele
restaurante que você gosta.
— A mamãe cansou de entupir minhas artérias?
— Santo Cristo, Garden! Não vai esquecer isso nunca?
— Não, a minha memória é boa. Não sou como a vovó.
John tosse uma risada e o lanço um olhar enviesado.
Nos sentamos na mesa de sempre no restaurante, com vista para a praça
principal. Garden gosta de ver as pessoas passando, ele poderia muito bem
se juntar às senhoras fofoqueiras da cidade. Quando Blue não sabe de
alguma novidade, é só perguntar para ele e a informação chega em primeira
mão.
— Você vai querer o de sempre? — pergunto, mas sua atenção está no
forro da mesa, com desenhos de peixes. — Garden? — ele continua
analisando a estampa, alheio ao que eu falo. Coloco a mão na frente da
mesa e seus olhos sobem para os meus. Sorrio para sua expressão assustada.
— Você vai querer o de sempre?
— Pout Pourri de legumes e suco de laranja sem açúcar.
— Ok... — Estreito os olhos. — Nada mais que possa entupir suas
artérias ou elevar o nível de açúcar no sangue?
— Não, eu quero viver até os trinta.
— Isso quer dizer que você acha que vou morrer antes dos trinta? —
seguro a risada.
— Eu espero que não, porque só falta dois anos. Preciso de você para
entrar comigo no dia do meu casamento, então precisa viver mais uns vinte
anos, mamãe.
— Fico feliz de ser tão útil — ironizo. — E que história é essa de
casamento? Você é muito novo pra pensar nisso.
— E você já tá velha pra não pensar.
Arregalo os olhos.
— Eu ainda não tenho nem trinta anos, Garden Jayden!
— A média de idade de casamentos para mulheres é de vinte e sete anos.
Você está quase fazendo vinte e oito.
— Como sabe isso? — Estreito os olhos.
— A madrinha Blue me contou quando me levou para passear nos
pedalinhos. Ela falou que tinha ficado para titia porque a idade média para
se casar era de vinte e sete anos.
— Só podia ser a Blue mesmo — balanço a cabeça. Quando se trata dos
padrinhos do meu filho, Francis e eu escolhemos os mais errados das ideias.
— Isso é besteira, filho. A gente pode se casar mesmo que fuja à média.
— É você que gosta de estatísticas, mamãe. Não pode deixar de usar só
porque te prejudicam.
Abro a boca para contestar, mas sou obrigada a concordar. A lógica do
Garden é boa demais até pra mim.
— Ok, eu vou fazer o pedido da comida.
Qualquer coisa para ocupar a boca nervosa do meu filho. John está quase
roxo com esse assunto de casamento. Se ele soubesse que estou mais do que
tranquila em não me casar agora... Definitivamente casar não é a minha
pauta favorita do momento.
Por sorte nosso pedido não demora a chegar e Garden é apaixonado
demais por comer para falar durante as refeições.
— Aquele ali é o Francis? — John estreita os olhos para a entrada do
restaurante, no momento que o médico passa pela porta com uma mulher de
cabelos pretos em seu encalço. Os dois se sentam nas primeiras mesas, não
nos notando.
— Hoje já é dia para o abatedouro? — Arqueio as sobrancelhas. — É
uma quarta-feira.
John dá de ombros.
— Pra administrar a fila de mulheres com quem ele sai, deve começar na
segunda.
John ri. Eu tento.
Balanço a perna embaixo da mesa, esperando que ele não nos note aqui.
Não estou com o melhor humor para aturar as gracinhas dele e do John. E
definitivamente sem vontade alguma de conhecer a garota.
Não que eu vá precisar, já que os romances dele duram o tempo de uma
única noite e ele não costuma repetir os encontros.
— Por que você tá de cara feia, mamãe?
— Não estou de cara feia. É apenas minha cara.
— Não fala assim, você é bonita na maioria dos dias. — Sorri para mim.
— Obrigada?
Viro o copo de suco na boca, esperando que o copo me esconda.
— Aquele não é seu filho? — escuto uma voz feminina perguntar. Por
favor, que não seja quem eu acho que é. — É sim, é seu filho, sempre achei
tão fofo quando via vocês dois na praia brincando, vamos lá falar com ele.
— Não… — Francis tenta impedir, mas sua acompanhante chega na
nossa mesa com uma velocidade impressionante.
— Oi! Eu sou a Sarah, você é o Garden, não é? — a mulher inclina o
corpo e abraça meu filho, fazendo meu sangue subir para a cabeça.
— Você sabe quem eu sou, moça. Mas eu não sei quem você é —
Garden a abraça de volta mesmo assim, porque abraços são coisas que ele
nunca nega.
— Eu sou namorada do seu pai.
— Namorada? — guincho.
— Namorada? — Francis arregala os olhos, já do lado dela.
— Namorada? — Garden repete.
— Ah, a gente não rotulou nada ainda, mas acho que isso não demora
muito — ela sorri para o Francis, enlaçando o braço dele. Que merda é
essa? Ele tá namorando e não falou nada? É sério? Quando John me pediu
em namoro, a primeira coisa que fiz foi contar para ele e esse babaca nem
pra me avisar?
— A gente pode se sentar aqui? — Sarah pergunta já puxando uma
cadeira.
— Já sentou… — Dou de ombros.
— Claro, podem se sentar com a gente, vai ser ótimo — John sorri para
eles.
Francis parece que vai vomitar, mas se senta do lado do Garden.
— Então finalmente desencalhou, Hopkins? — John o provoca. — Estou
surpreso.
— Não mais que eu... — Ele solta uma risada.
— Ela é sua namorada, papai?
— Filho, isso foi só forma de falar, ok? O papai te falou que quando
tivesse em um relacionamento você seria o primeiro a saber, lembra?
— Você também falou que não me apresentaria ninguém se não fosse
sério.
— E eu falava sério. — Ele encara a garota, enfezado. — A Sarah foi um
pouco animada demais, não é?
— É que eu adoro crianças e as crianças me adoram, não é verdade,
Garden? Você não gosta de mim?
— Não te conheço pra gostar de você.
— Ah… — Ela ri sem graça, mas disfarça mexendo no cabelo.
— Então, Sarah, o que você faz da vida? — John engata um assunto.
— Eu sou professora de matemática, provavelmente no próximo ano
Garden ficará na minha sala.
Giro o pescoço lentando para o Francis. Ele repete meu gesto com um
sorriso amarelo.
— É sério? — gesticulo com a boca. Ele dá de ombros.
— Eu não sabia.
Pisco desacreditada.
Como ele não sabe isso da própria namorada?
Inacreditável.
— Eu gosto de matemática — meu filho conversa com ela. — Mas eu
quero estudar mesmo é biologia.
— Vai demorar um pouco pra você ter essa matéria.
— Tudo bem, o papai me deu vários livros.
— Ah, seu pai é um homem incrível mesmo — Sarah passa a mão pelo
braço do Francis, exatamente onde os meus lírios estão tatuados... quer
dizer, os lírios dele estão tatuados. Ele encara a mão dela e depois meu
rosto, voltando a olhar para o braço.
Meu rosto esquenta.
— Francis, a gente pode conversar um minuto? — Levanto da mesa em
um impulso. Todos me olham. — Talvez mais que isso.
— É... tá, eu... claro — Ele se levanta, me esperando ditar o caminho.
Antes de sair, aviso à John que já volto.
Saio do restaurante, esperando Francis na calçada. Assim que ele para na
minha frente, não consigo segurar minha língua.
— Quanta consideração...
— Como assim?
— É sério que preciso perguntar? — Apoio as mãos na cintura, soltando
o ar pela boca. — Você não ia mesmo me contar que estava namorando? Eu
te contei tudo quando foi com o John, o mínimo que eu esperava de você,
era ser avisada!
— Mas eu não estou namorando com ela!
— Então ela se apresentou como sua namorada por quê?
— Eu também quero saber, eu nunca nem tinha saído com ela antes, esse
é nosso primeiro encontro.
Estreito os olhos.
— É sério? — debocho.
— Você acha que eu mentiria pra você?
Abro a boca no impulso, mas suspiro ao final.
— Eu sei que não mentiria.
Cruzo os braços e Francis inclina o rosto, me olhando esquisito.
— O que foi? — o olho de cima a baixo.
— Você está com ciúmes?
— O quê?! — praticamente grito. — Claro que não estou com ciúmes.
— Parece muito com ciúmes.
— Tipo o que você disse que sentiu na minha casa? — enfrento,
colocando o dedo no peito dele.
— É, talvez tipo o que eu senti. — Ele chega mais perto.
— Ótimo, então talvez seja mesmo... um ciúme de amiga, igual ao que
você disse ter sentido.
Francis estreita os olhos.
— Se não se lembra, foi você que disse que meu ciúme era de amigo.
— E você concordou!
— É, eu concordei. — Ele fita minha boca.
— Ótimo! — ofego, fitando a sua de volta.
— Então você assume que é ciúmes?
— É... mas... não por causa dela e sim porque eu esperava que você me
contasse isso, afinal a gente conta tudo um pro outro.
— Já disse que ela não é minha namorada — o coração dele arrebenta
seu peito e consigo sentir pela ponta do meu dedo.
— Tudo bem, afinal eu também tenho namorado — rio ironicamente. A
postura dele vacila.
— É, você tem... e talvez seja hora de eu arrumar alguma.
Abro a boca, minhas sobrancelhas quase tocando o couro cabeludo. Ele
vai namorar só pra me contrariar? É sério?
— Perfeito, doutor Hopkins. Vá em frente, namore. É bom que assim a
gente sai de casal! — Empurro seu tronco, voltando para a mesa com um
humor de merda.
— Onde está o Francis? — Sarah pergunta tão logo minha bunda
encontra o estofado na cadeira. Penso em falar “no diabo que o parta”, mas
não posso dar esse mau exemplo para o meu filho.
— Ele já volta. — Forço o sorriso no meu rosto, virando para John. —
Quero ir embora.
— Mas você nem comeu ainda.
Pego o pedaço restante do meu sanduíche, enfiando tudo na boca.
— Acabei — digo embolada, quase cuspindo pão por todo lado. John
arregala os olhos, assentindo devagar.
— Ok, vou pedir a conta.
— Ótimo.
Termino de mastigar assim que Francis volta à mesa. Ele não me olha e
eu também não olho pra ele.
Que ódio!
 

 
 
 
Encaro minhas mãos unidas em cima da mesa há cinco minutos, desde
que Angelina e Garden foram embora com John. Eu sinceramente não sei o
que aconteceu. Isso pelo menos nunca tinha acontecido antes, Angelina
nunca pareceu se importar com o fato de eu ficar com outras mulheres.
Bom, talvez porque o assunto da vez tenha sido namoro e não uma noite
de sexo... mas ela não quer estar comigo, foi mais fácil para ela seguir em
frente do que foi pra mim... ou ela não seguiu? A dúvida quase abre um
buraco no meu cérebro.
Será que a desmiolada da Blue estava certa esse tempo todo?
— Você vai querer fazer o pedido agora? — Sarah toca meu braço e me
desvencilho com delicadeza.
— Na verdade, se não se importa, eu gostaria de te levar pra sua casa.
Ela abre um sorriso de lado, inclinando o rosto.
— Nossa, eu não pensei que você pulava as etapas e fosse tão direto,
mas tudo bem... vamos para minha casa. — Ela pisca um dos olhos e uma
chavinha gira na minha mente.
— Aaah... não! — Solto uma risada. — Não foi esse sentido de te levar
para sua casa pra gente... você sabe. Quis dizer te levar para sua casa e eu ir
para a minha.
O sorriso dela desaparece.
— Como assim?
— Não estou com clima para mais nada.
— Foi algo que eu disse?
— Sinceramente? Foi. Você se apresentou para o meu filho como algo
que não somos, sem a minha permissão.
— Ah, isso não é nada demais, crianças nem se lembram dessas coisas.
— Meu filho se lembra. — Fico sério instantaneamente. — E ainda que
não se lembrasse, cabe a mim decidir quem participa da vida dele ou não. E
eu não apresento ninguém que não vá ficar na minha vida tempo suficiente.
— Mas eu posso ser alguém que vai ficar. — Sarah inclina o corpo para
frente, apoiando os braços na mesa.
— Desculpe, Sarah, mas Garden não tem contato com ninguém da
minha vida sexual.
— Quis dizer amorosa?
— Não. Eu quis dizer sexual, porque desde o primeiro momento que
você me convidou para sair, eu deixei claro que eu não estava disposto a me
envolver romanticamente. Inclusive, você me disse que não queria nada
sério no momento.
— Ah, eu sei disso. — Ela solta uma risada. — A sua fama te precede, o
cara bonito, educado, inteligente, bem sucedido, mas com o coração de
gelo... sabemos disso. A cidade toda sabe.
— Se você sabe tudo isso sobre mim, não vejo porque pensou que
poderia se apresentar como namorada para o meu filho.
— Eu sei que vocês homens nunca acham que querem um
relacionamento, mas só ficam à espera de uma mulher que mostre que pode
mudar isso.
Pisco, incapaz de esboçar reação.
— Então deixa eu ver se entendi. Baseado nas fofocas que ouviu de mim
pela cidade e nos cinco minutos da sua casa até aqui, você achou que me
conhecia bem o suficiente para entender o que eu secretamente desejava?
Eu tenho vontade de rir, porque isso parece piada.
— Mulheres tem sexto sentido.
— Eu devo te avisar que o seu tá quebrado.
— Como?
— Olha, Sarah. Me desculpe, mas eu não sou de fazer rodeios quanto ao
que eu quero. Se eu gosto de uma mulher, eu luto por ela, e não finjo que só
quero levá-la para cama, esperando que ela faça de tudo para me conquistar.
— Umedeço os lábios, chegando mais perto. — Sou eu quem gosta de
conquistar. Sou eu quem gosta de fazer por onde, acho que é mínimo que
posso fazer por uma mulher que eu tenho interesse amoroso. Da mesma
forma que também deixo sempre claro para todas que eu não pretendo ter
um envolvimento, porque respeito pra mim, é acima de qualquer situação. E
você não faltou respeito só comigo em achar que poderia dizer o que eu
quero, como interferiu em um ponto específico na minha vida, do qual eu
não aceito que mexam. Meu filho. Ele é uma parte instransponível.
Sarah faz careta.
— Francis, acho que você está exagerando, é só dizer ao Garden que era
uma brincadeira e pronto. Crianças não levam as coisas à sério.
— Você está errando de novo em supor algo sobre alguém que não
conhece. Como um médico que lida com crianças todos os dias, posso te
garantir que as coisas que elas mais lembram e que mais as afetam está na
infância. O meu filho sabe que tem sinceridade de mim, que faz parte da
minha vida e que eu não escondo coisas importantes dele. E eu quero que
mantenha essa visão de mim sempre.
Ela suspira, forçando uma expressão tímida.
— Tudo bem, eu confesso que me excedi, deveria ter te consultado antes
de falar com ele. Mas será que não podemos continuar nossa noite? — Seu
sorriso volta ao rosto e ela toca minhas mãos.
Desvencilho do seu toque pela segunda vez.
— Se quiser fazer sua refeição, claro que vou te esperar e te levar de
volta em casa. Mas quanto à nossa noite, termina aqui.
— Tudo por que eu cometi um erro?
— Tudo porque cometeu um erro com meu filho. E meu limite quanto a
ele é zero.
 

 
Deixo Sarah em casa no momento exato que uma chuva pesada despenca
por Cape May. Não há nada como as chuvas do litoral, chega a ser algo
assustador até para quem não teme. As gotas grossas e pesadas colidem
contra o vidro do carro, não me deixando enxergar quase nada. Por sorte já
está um pouco tarde para as ruas estarem movimentadas e Cape May tem
um tráfego bem reduzido de veículos. Se fosse em São Francisco com essa
chuva, eu teria que parar o carro no primeiro lugar seguro.
Aumento a velocidade dos limpadores, mas nem eles conseguem me
ajudar. Um clarão acende o céu até então escuro e me preparo para o
estrondo que virá em seguida. O trovão que se segue é tão alto que me faz
pular no banco.
Droga.
Aperto as mãos no volante, tentando enxergar alguma coisa nesse
temporal. Não posso sequer acelerar para chegar em casa logo e ver como
Garden e Angelina estão. Meu filho não tem problema com a maioria dos
ruídos, mas com certeza trovões e fogos de artifício o deixam tão mal
quanto Angelina.
— Cacete! — Soco o volante, pisando um pouco mais no acelerador,
buscando algum farol que indique se há um carro à minha frente. Eu não
deveria nem ter saído de casa hoje, tudo simplesmente foi uma merda.
Meu celular vibra no suporte do carro e ignoro, prestando atenção na
estrada. Meus ombros estão tensos o suficiente mesmo com os olhos na
pista. O celular vibra de novo quando outro trovão, ainda pior que o
anterior, estronda no céu.
Franzo o cenho.
Merda, pode ser a Angelina.
Pego o aparelho, olhando rapidamente para colocá-lo no viva-voz.
Sequer confiro o identificador de chamada.
— Francis... — é a voz do John, assustada o bastante para não precisar
dizer mais nada.
— Estou chegando, só faça o que fizer, não toque na Angelina.
A ligação termina um segundo depois e empurro meu pé no acelerador,
abrindo a janela do meu carro e colocando o rosto para fora, tentando a
qualquer custo enxergar mais as coisas na minha frente.
Por sorte não estava tão longe de casa e assim que chego à nossa rua,
estaciono meu carro de qualquer jeito, pulando os degraus da pequena
escada da entrada e abrindo a porta em um baque. A cena que se segue é
uma confusão desenfreada. Garden está sentado no canto da sala, encostado
na parede e suas mãos estão se agitando, ora batendo em seu rosto, ora
arranhando seus braços. Angelina tenta se aproximar, mas seu corpo não
parece respondê-la, porque suas mãos não saem dos seus ouvidos e ela
treme violentamente. John tenta conversar com Garden, mas meu filho
apenas grita, grita tanto que o som machuca meus ouvidos e me apavora.
Arranco minha camisa pela cabeça no próximo segundo e afasto John de
perto dele, o pegando no meu colo e sentando no chão no mesmo lugar que
ele estava. Apoio sua cabeça em meu peito, seu ouvido direito pressionado
na minha pele, exatamente onde conseguirá escutar meus batimentos
cardíacos. Minha mão cobre sua outra orelha, abafando os sons de fora.
Garden se debate no meu colo e o aperto contra mim, minhas pernas e braço
livre o envolvendo por completo, deixando seu corpo o mais estreito ao
meu possível.
— Shhhhh... — faço um zumbido perto da sua orelha, batendo com dois
dedos em suas costas, tentando ritmar com o som do meu coração.
Tum tum. Tum tum. Tum tum.
O corpo dele dá espasmos, mas não para se livrar do meu contato,
porque para ele, as coisas só passam assim, o abraçando tão forte até que
todos os seus músculos comecem a relaxar.
— Shhhh, Brotinho... o papai está aqui. Escuta meu coração. Apenas ele.
É o único som aqui, apenas meu coração.
Continuo batendo em suas costas, o som imperceptível para quem olha
de fora, mas alto o suficiente para ele que tem as orelhas cobertas. É muito
mais fácil escutar o que acontece com nosso corpo quando escondemos os
estímulos do lado de fora.
— Feche os olhinhos, vamos brincar de nos esconder na anêmona igual
ao Nemo, você está dentro dela, nada pode te pegar, lembra? Nada pode
machucar o Nemo quando ele está na anêmona. Todos os perigos ficam do
lado de fora, você está em segurança.
Uma mão de Garden procura meus cabelos e a outra ele coloca em sua
boca, se apertando contra mim o máximo que consegue. Ergo os olhos para
Angelina quando ele se acalma parcialmente, vendo-a ainda em choque.
— Ei, meu anjo — sussurro, sorrindo para ela. — Você se lembra de
quando fomos até Fort Point quando estávamos na faculdade? — Tento
chamar atenção dela para outra coisa que não seja a realidade. É tão
diferente lidar com as crises sensoriais dela e de Garden, que meu próprio
corpo se agita pela adrenalina. — Lembra de como as correntes da ponte
estavam desgastadas pela maresia, mas ainda assim pareciam fortes?
Angelina tenta fixar seu olhar em mim, mas seu corpo está em uma
agitação superior ao normal. Eu não imagino como é para ela tentar ajudar
o Garden e não conseguir. A angústia deve ser simplesmente... torturante.
— Você lembra como elas estavam enferrujadas e pareciam que a
qualquer momento poderiam se romper, mas ainda assim sustentavam
aquela enorme ponte? — olho ansioso para Angelina, implorando para que
ela embarque nessa comigo. Vamos, meu anjo. Vem comigo, vem para o
passado, vem para a calmaria. — Se lembra do cheiro? Era salgado do
mar, mas ao mesmo tempo dava para sentir a ferrugem das correntes, o
vento que soprava contra a gente intensificava tudo... me diz como era a
sensação do vento. Como estava a temperatura?
Angelina aperta os dedos na lateral do corpo, completamente rígida.
— G-gelado — ela gagueja, respondendo entre dentes.
— Estava mesmo, se eu fechar os olhos, consigo me ver naquele mesmo
lugar, sentindo o vento gelado no rosto, o cheiro do mar, o som dos carros
passando de longe na Golden Gate. Você consegue ouvir? Me diz o que
ouve.
Angelina fecha os olhos e respiro aliviado, sabendo que de agora em
diante é mais simples. Permaneço embalando Garden, o abraçando o quão
forte ele precisa. Beijo seus cabelos loiros, querendo poder fazer o mesmo
pela mulher que ele os herdou. É sempre uma maldita tortura nunca poder
tocá-la e abraçá-la até afastar o medo. Isso nunca vai deixar de ser horrível.
— Eu... eu escuto as ondas — ela sussurra, ainda de olhos fechados. —
Elas... elas estavam fortes naquele dia.
Isso, meu amor. Se lembre. Você estava tão linda aquele dia, mesmo com
raiva de mim.
— Lembro das pessoas andando na calçada e no gramado... lembro... eu
lembro da gente entrando no forte...
— Lembra das fotos que tiramos? Você consegue se lembrar do que os
guias no contaram sobre o forte?
Os olhos de Angelina parecem se mover sob as pálpebras, como se
procurassem na sua lembrança o que eu peço. Qualquer coisa é melhor que
ela prestar atenção aos trovões ininterruptos da tempestade. Essa porra não
parece que vai ceder tão cedo.
Angelina continua me falando de tudo que lembra, sobre a construção, a
história do lugar, as coisas que fizemos e falamos... até que ela se senta no
sofá, ainda de olhos fechados, seu corpo exausto dos estímulos que foi
bombardeado.
Garden ressoa baixinho em meus braços, depois de uma meia hora
comigo na mesma posição, conversando com Angelina e o embalando. John
se move pela primeira vez desde que cheguei, com os olhos vermelhos.
Forço um sorriso, gesticulando com a boca de que agora está tudo bem. Ele
assente um tanto perdido, indo para a cozinha. Talvez para beber um copo
de água ou simplesmente se sentar para não desmaiar.
Eu lembro como era assustador nas primeiras vezes que presenciei uma
crise de Angelina e depois do Garden. Não é fácil ver as pessoas que você
gosta sofrendo.
Subo com meu filho para seu quarto e o coloco na cama, deixando sua
antiga e velha pelúcia do Nemo entre seus braços. Ele agarra o peixe
instantaneamente, formando uma bolinha na cama com seu corpo. O cubro
com cuidado, beijando sua cabeça.
— Dorme tranquilo, minha vida. Papai não vai sair daqui hoje.
Desço as escadas apenas para conferir como Angelina está e ela tem os
braços envolta de si mesma, com o pescoço apoiado no encosto do sofá.
Seus olhos estão a tanto tempo fechados, que imagino que tenha caído no
sono. Busco uma coberta e a deito no sofá, não querendo carregá-la até o
quarto para não despertar seu sono tranquilo. Eu sei que ela precisa
descansar depois de toda essa energia gasta. Cubro até seu tronco, afastando
os fios loiros do rosto sereno.
Meu polegar passa onde as lágrimas deixaram rastro na pele macia,
afastando as manchas salgadas.
— Como eu queria poder te tirar todas as dores, meu anjo... eu faria tudo
para que você nunca mais precisasse derramar essas lágrimas. Não sou
capaz de evitar que você sofra, mas estarei sempre aqui para tornar a dor
passageira e não eterna.
Sento no chão, apoiando os braços no sofá para observá-la mais alguns
segundos. Coloco minha mão sobre a dela, agora um pouco mais quentes.
— Me desculpe por hoje. Eu não quis que você pensasse que não tenho
consideração com você. Aquela mulher... ela realmente não era minha
namorada. Você seria a primeira a saber se alguém tivesse ocupado lugar no
meu coração... — Solto uma risada cansada. — Mas você é espaçosa
demais, Angelina. Não sobra espaço para ninguém aqui dentro, porque só
dá você. Não importa o tempo que passe, as circunstâncias e as
adversidades, sempre foi você.
Beijo o dorso da sua mão, inspirando seu perfume de lírios.
— Eu te libertei das promessas sete anos atrás, mas meu coração nunca
deixou de te esperar. Eu continuo aqui, como uma onda perdida, esperando
pelo momento de encontrar sua praia novamente. Eu continuo esperando
por você, Angelina. E assim como o céu e o mar foram testemunha da
minha promessa, eles são testemunha de como a cumpro todos os dias...
Engulo a seco, me erguendo.
— Eu só não te conto isso, porque você conseguiu seguir em frente. Não
é justo que eu te atrapalhe só por não ter conseguido o mesmo. Não é justo
que eu te peça para ficar comigo, quando fui eu que te deixei ir anos atrás.
Me afasto para voltar ao quarto do Garden, vendo John parado à porta da
cozinha, me observando. Não sei se ele me ouviu, mas sua expressão não
denota raiva, então acredito que não.
— Eu sinto muito, Francis — ele sussurra com a expressão torturada. —
Eu não sabia o que fazer, não sabia ajudar a Angelina e muito menos o
Garden, então me desculpa.
Caminho até ele, segurando seu ombro, apertando de leve.
— Não precisa pedir desculpa, John. Eu tive muito tempo para aprender
a lidar com essas coisas, já você é a primeira vez que presencia.
— Ainda assim, foi horrível ver os dois desse jeito e me ver
completamente inerte.
— Sei como é a sensação. Eu também me sinto assim.
— Mas você conseguiu acalmá-los, eu provavelmente pioraria a
situação.
Respiro fundo e o chamo para o corredor para não acordarmos Angelina.
— Escuta, eu vou te ensinar o que fazer nessas situações e saiba que às
vezes pode funcionar e outras não. Em alguns momentos, tudo que
podemos fazer é impedir que a pessoa se machuque e esperar a crise passar.
Mas caso seja possível tentar, vou te explicar o que eu aprendi com anos ao
lado dos dois.
— Por favor — John me suplica com os olhos. Ele tem meu respeito. Eu
sei que verdadeiramente está sofrendo pelo bem estar dos dois e qualquer
pessoa que ame quem eu amo, tem meu respeito.
— Angelina e Garden são diferentes, mesmo que os dois sejam autistas e
que agora o nível de suporte do Garden seja o mesmo que o da Angelina,
eles reagem e têm sintomas e crises sensoriais completamente distintas um
do outro. Angelina não suporta toques quando tem uma crise,
principalmente uma crise interna como a que ela teve. O que você deve
fazer é tentar levá-la para outro lugar, para outro momento, fazer sua mente
parar de trabalhar no presente. A memória dela funciona muito mais com os
sentidos emocionais e sensoriais, ela vai se prender a histórias que a
trouxeram emoção e sentimentos importantes o bastante para lembrar dos
detalhes. Cheiros, sensações físicas, sabores... se concentre nesses detalhes
e a guie a se lembrar disso.
John assente, prestando atenção.
— É muito raro que Angelina chegue a se machucar, como Garden
estava fazendo, mas ainda assim pode acontecer. Se isso ocorrer, não fique
apenas parado olhando e falando, porque ela verdadeiramente vai se
machucar. Vai ser algo difícil para ela, mas é preciso que você a impeça de
se ferir.
— E o Garden?
— Garden é o oposto, ele precisa do toque para se acalmar, para seu
corpo liberar a pressão. O abraçar forte vai diminuir a sua pressão arterial e
o nível de cortisol no sangue. Também vai liberar serotonina e oxitocina, o
ajudando a relaxar.
— Você parecia conversar com o Garden também.
— Não é uma conversa — explico. — Desde que Garden estava na
barriga, eu fazia alguns toques sobre a barriga de Angelina e fazia alguns
sons com a boca, que imitam o barulho que eles escutam no próprio útero, é
como o chiado de quando você pede para alguém ficar em silêncio... —
Faço careta, incerto do que vou pedir. — Eu posso te mostrar?
John me olha confuso.
— Me deixe te abraçar e te mostrar porque vai ficar mais fácil.
— Ah... — John fica vermelho, mas assente. — Pode.
Dou um passo à frente, puxando a cabeça de John para o meu peito.
Ajuda o fato de ele ser bem mais baixo que eu.
— Se você puder tirar a camisa, vai ajudar, o contato com o calor da pele
o deixa mais calmo também. Coloque um ouvido dele contra seu coração e
a outra mão tampe seu outro ouvido. — Faço exatamente o que falo com
ele, sendo uma cena estranha pra caralho. — Com sua mão livre, bata nas
costas dele assim... tum tum, tum tum... sente? É mais alto quando tampo
seu ouvido, certo?
— É... é como se eu escutasse por dentro.
— Exatamente. Faça isso e o abrace até que se acalme.
Solto John, que também está envergonhado. Não sou só eu que achei
esquisito, graças a Deus.
— Acho que vou pelo menos conseguir fazer alguma coisa se tiver uma
próxima vez, antes de você chegar.
Assinto, olhando para a escada.
— Eu vou subir para ficar com o Garden... fique de olho na Angelina e
qualquer coisa me chama.
— Tudo bem.
Começo a subir os degraus, mas paro quando John me chama. Viro para
trás, erguendo as sobrancelhas.
— Eu entendo por que Angelina quer você na vida dela... você realmente
é uma pessoa especial, Francis.
Engulo a saliva, sem saber o que falar.
— Eu também entendo por que ela está com você... você também é um
cara especial, John.
E por esse motivo não posso lutar por ela.
 
 

 
 
Uma dica muito valiosa: olhos fechados nem sempre significam uma
pessoa dormindo.
Alguém deveria avisar ao Francis sobre isso.
Porque sete anos atrás, depois de me amar por horas, ele me deitou sobre
o colchão e me libertou das promessas, pensando que eu dormia. E agora,
sete anos depois, ele me revela que não conseguiu se libertar das dele e
continua me esperando.
Se eu já não dormia naquele ponto, depois de ouvir tudo que disse,
apenas consegui passar a noite acordada.
Eu realmente pensava que ele havia seguido em frente. O fato de não
namorar, não era suficiente para me fazer crer que ainda me esperava. No
passado, quando Francis de fato me esperou, ele não havia se envolvido
com ninguém, nem mesmo sexualmente. Quando ele passou a se encontrar
com mulheres por uma noite, acreditei que nossa promessa por fim tinha se
esvaído.
Mas o que eu esperava? Que ele passasse sete anos no celibato? Não é
como se eu tivesse ficado também. John não foi o primeiro homem que me
envolvi depois do Francis.
Cubro o rosto com as mãos, me afundando na cama. Não fui trabalhar
hoje, assim como Garden não foi para a aula. Não é muito fácil estar cem
por cento depois de uma crise como a de ontem. É como se um caminhão
tivesse passado por cima de mim repetidas vezes.
Por sorte Francis conseguiu desmarcar as consultas para ficar com nosso
filho e vovó ficou cuidando da loja. Não quero sair do quarto. Não sei como
olhar para o Francis depois do que ele me contou e nem para o John depois
do que senti ao saber.
Desde que John entrou na minha vida, ele soube sobre Francis. Nunca
escondi que eu ainda nutria sentimentos e que talvez o fizesse sempre. Não
é algo que eu possa enfiar a mão no peito e arrancar fora e nem algo que
posso esconder das pessoas que quiserem encontrar espaço no meu coração.
Então, sim, John sabe que eu sempre amei o Francis.
E o pior, é saber que não é apenas por esse motivo que já não posso
continuar com ele.
A cidade inteira fala que tenho sorte de ter um homem como o John. Ele
abre a porta do carro, é gentil, sensato, carinhoso, romântico, paciente,
calmo... chega sempre no horário, concorda com tudo que falo, nunca fica
bravo, nunca é irônico, me mantem com os pés no chão... sua paixão é
branda, acalenta. Não queima, é morna.
E por um tempo da minha vida, eu achei que isso era exatamente o que
eu precisava.
Mas sinto falta de não sentir o chão sob meus pés, de cometer loucuras,
de beijar na chuva sem me importar com o resfriado no dia seguinte, de
confrontar meus medos, de sentir o sangue rugindo ao discordarem de mim,
de reclamar por atrasos irritantes... sinto falta de queimar de paixão, de mal
conseguir tocar meu corpo tamanha a temperatura, de brigar e depois ser
amada na parede mais próxima...
Sinto falta de como era amar e ser amada por Francis Hopkins.
A paixão dele é escaldante. Seus atos são insanos. A sensatez caminha
longe da sua mente. Ele não pensa, simplesmente age. Não me envolve em
uma rede de proteção; me faz confrontar as razões de eu sentir medo.
E é exatamente desse jeito que eu o amo. Só isso para explicar como
passei a noite amaldiçoando seu nome, por não ter dito antes que me
esperava até hoje.
Enfiei na minha cabeça incontáveis vezes, que ser adulto era renegar
sentimentos exasperantes. Que para ser uma boa mãe, eu deveria ser séria,
madura cem por cento do tempo, evitar loucuras e andar na linha. Mas e
sobre o que eu queria como pessoa? Como mulher? Essa parte eu abdiquei.
Não pensei em mim como a Angelina, só como a mãe do Garden.
E isso fez com que eu evitasse fazer muitas coisas que queria. Não é
culpa do meu filho. É apenas minha por ter escolhido esse caminho. Só não
sei se dá para voltar atrás e tomar outra rota agora.
Saio da cama quando meu estômago ronca e encontro John na cozinha,
mexendo no celular.
— Oi... — murmuro sem graça.
— Oi. — Ele sorri para mim e me sinto péssima.
Eu não quero magoá-lo. Mas também não posso fazê-lo perder tempo
comigo. Não é justo.
— Onde está o Garden? — pergunto.
— Saiu com Francis para ir no mercado.
— Ah... — engulo com dificuldade, buscando uma água para me
acalmar. Eu não deveria falar nada com John agora, mas eu não consigo
guardar nada pra mim, não quando sei que passar mais um segundo
guardando esses sentimentos pode só machucá-lo.
— Preciso falar com você.
— Preciso falar com você.
Falamos ao mesmo tempo.
Arqueio a sobrancelha.
— O que você precisa falar comigo? — indago com o coração acelerado.
— Angie... desde a nossa conversa na praia, eu tenho pensado.
— Em que?
— Na gente. — John caminha até mim, segurando minha mão.
Pisco.
— O que tem a gente?
Ele não me responde. Mas tira do bolso uma caixinha preta de veludo.
Ah, meu Deus.
 

 
 
— Papai, presta atenção! — Garden me repreende quando quase esbarro
em uma prateleira do mercado. Esfrego o rosto, tentando afastar o sono.
— Desculpa, Brotinho. Eu não dormi bem de noite.
— Foi porque eu chorei por causa do trovão?
Sorrio, me agachando na sua frente e penteando seu cabelo para trás.
— Claro que não, filho. Eu fiquei acordado por motivos de adulto.
— Eu não quero ficar adulto. Vocês têm problema demais, só comem
coisa que não presta e não dormem oito horas por noite.
Solto uma risada.
— Se fosse só isso era fácil. Mas você tem razão, aproveite sua infância
e não queira ser adulto ainda.
Volto a fazer as compras com Garden, pegando algumas coisas para
preparar um almoço para Angelina. Até a hora que saí de lá, ela ainda não
tinha saído do quarto. Depois que acordou e levantou do sofá, se trancou no
quarto e eu não tive como ver se estava tudo bem.
De qualquer forma, John ficou na casa caso ela precise de algo.
Ele estava estranho quando acordou, veio com um papo sobre meus
planos para o futuro, querendo saber se pretendo me casar um dia, se estou
comprometido com aquela garota do restaurante. Não sei se John escutou o
que falei para Angelina ou se simplesmente só queria puxar assunto. Seja
como for, não precisa se sentir ameaçado por mim. Angelina parece bem
com ele. A vida dela é bem mais simples assim.
Garden me ajuda a colocar as compras no porta-malas do carro, animado
com a quantidade de verduras que me fez trazer. Não pude colocar nada
com glúten, farinha de trigo ou excesso de açúcar no carrinho. Ele brigou
até pelas garrafas de cerveja que comprei, mas isso... isso eu estou
precisando. Negociei em troca de comprar pão integral ao invés do
convencional.
— Papai, esse fim de semana a gente pode fazer mergulho com o vovô
Robert?
— Não sei se vou conseguir ir com vocês, mas que tal se a gente ligar
pra ele e conferir se te leva?
— Você não vai porque vai se encontrar com aquela moça?
— Que moça? — o ajudo a descer do carro quando paramos na rua de
casa.
— A do restaurante.
Fecho os olhos, suspirando. Eu sabia que isso ia acontecer, Garden não
se esquece das coisas.
— Escuta, filho... — Me agacho novamente na sua frente. Estou ficando
velho pra isso, meu joelho já não é o mesmo. — Ela não é minha namorada,
o papai só saiu com ela ontem, mas nem amigos nós ficamos.
— Por quê? — os olhinhos azuis saltam de curiosidade.
— Porque ela falou pra você uma coisa que não era verdade e eu não
gosto de mentiras.
— O que ela mentiu?
— Ela disse que era namorada do papai. E não é.
— Por que você não namora como a mamãe? Ela tem o John, mas você
não tem ninguém.
Nocaute um!
— Eu tenho você, a tia Blue, a tia Donna... e também a mamãe.
— A mamãe quem tem é o tio John.
Nocaute dois!
— Eu não quis dizer no sentido amoroso, eu quis dizer que tenho vocês
na minha vida, então que não preciso de uma namorada para me sentir feliz.
— Então por que você sai com tantas mulheres se não quer namorar
nenhuma?
Nocaute três! Fim da luta, ele ganhou!
— Isso é uma pauta para eu discutir com minha psicóloga, mas você
ainda é novo para entender algumas coisas.
— Me responde só mais uma coisa.
Suspiro. Quantas perguntas, eu me sinto o google.
— Fala.
— Por que você e a mamãe não ficam juntos como os pais dos meus
colegas de escola?
Ok, eu não sabia que o oponente podia continuar batendo depois que
você já estava no chão desmaiado.
— Filho, já te expliquei isso, você lembra? O papai e a mamãe se amam,
mas não são um casal. Uma coisa não depende da outra. Nós somos amigos.
Além disso, sua mãe está com o John. Você gosta dele.
— Gosto, mas eu gosto muito mais de você. — Garden começa a andar
para dentro da casa, mas olha para trás com a expressão brava. — E a
mamãe também.
Arregalo os olhos.
— Vamos guardar as compras, né? Algumas coisas precisam ir pra
geladeira antes que estraguem.
E eu preciso que você pare de falar nisso antes que eu tenha um colapso.
Garden finalmente abre a porta da sua casa para entrarmos com as
compras, mas eu mudo completamente de ideia sobre querer ficar aqui.
Assim que a gente chega perto da porta da cozinha, tenho o vislumbre da
cena que vai ser protagonista dos meus pesadelos de agora em diante. E que
contradiz a última fala do Garden. Acho que Angelina não gosta mais de
mim. Se gostasse, ela não estaria segurando uma aliança enquanto John
segura uma caixinha preta.
As compras caem da minha mão em um baque e meu filho começa a
resmungar que amassei suas frutas. Eu não consigo prestar atenção nelas
agora.
Angelina... ela... ela está aceitando se casar com ele? É isso?
Nego com a cabeça, dando passos para trás antes que eles me vejam.
Engulo o nó na garganta, me abaixando para falar com Garden.
— O papai precisa ir embora.
— Agora?
— É, nesse exato momento. Você pode ajudar sua mãe a guardar as
compras?
— Por que você vai embora?
— Filho... — Respiro fundo. — Eu não consigo te explicar agora, tudo
bem? Só... diz pra Angelina que te deixei aqui e que precisei resolver uma
emergência.
— Qual emergência? — Garden não desiste de saber.
— A necessidade do meu corpo de álcool.
Graças aos céus eu não deixei a cerveja no mercado. Mas acho que vou
precisar de algo mais forte para digerir o fato que a mulher da minha vida
vai se casar com outro homem.
Talvez veneno com gelo e limão.
 

 
 
John vai para sua casa quando já passam das 18 horas, ficando apenas
Garden e eu na sala, assistindo Procurando Nemo. Durante toda a tarde,
uma dúvida me incomodou, mas eu não tinha como questionar com o tanto
de informação que precisei absorver em poucas horas.
Pela primeira vez John me pegou de surpresa e me deixou
completamente estática. Eu realmente não esperava por isso, mas foi bom
que tenha acontecido. Muito bom para o nosso relacionamento, bom para as
dúvidas que me acometeram pela manhã... ele me deu a certeza de que eu
precisava.
Mas agora preciso me livrar de mais uma pergunta.
— Garden, o que aconteceu hoje cedo para o seu pai te deixar em casa e
não falar comigo?
Meu filho ergue a mão, pedindo para eu o esperar assistir a cena do
consultório do dentista. Ele adora a garotinha de aparelho nos dentes.
Quando o filme entra no intervalo, finalmente me responde.
— Papai entrou em casa, te viu na cozinha segurando um anel, derrubou
minhas frutas e precisou ir embora.
Arregalo os olhos.
Puta merda. Ele viu.
— Cacete! — Levo as mãos à cabeça.
— Você não pode falar palavrão perto de mim, senão vou precisar de
terapia antes dos vinte anos.
— Quem te falou isso, Garden?
— A madrinha Blue.
Cubro o rosto com as mãos. Tudo para ela o Garden vai precisar de
terapia.
— Filho... o seu pai te falou alguma coisa antes de ir embora? — Merda,
não era pra ele ter visto assim, eu quero contar pessoalmente.
— Que tinha que ir embora por causa de uma emergência.
— Qual emergência?
— Necessidade de álcool.
— Ah, droga...
— Mamãe!
— Desculpa! — Sorrio amarelo. — Filho, você sabe se a Blue tá em
casa?
— Não, hoje é dia dela procurar a sua esposa pela cidade.
Pisco desacreditada. A Blue tem que parar de dizer essas coisas a ele.
— Então você se importa de dormir na casa da vovó Savannah por hoje?
— Por quê? Eu só durmo lá uma vez no mês e ainda não está no dia.
— Eu sei, mas eu preciso muito conversar com seu pai.
— Tudo bem, desde que você fale que o álcool vai acabar com o fígado
dele.
— Prometo que falo.
— Tá, vou buscar o Nemo e meu cobertor.
Garden sobe as escadas atrás das suas coisas e eu fico sozinha com meus
pensamentos.
— Merda, não era pra ele ter visto assim! Eu deveria ter tido tempo de
explicar... como vou resolver isso agora?
 

 
Giro a maçaneta, abrindo a porta sem esperar um convite. A casa de
Francis está completamente escura, com exceção da pequena área gramada
dos fundos, onde uma baixa iluminação indica a presença de alguém.
Caminho até lá com o coração galopando, não sabendo o que vou
encontrar.
Francis vai estar bravo? Chateado? Triste? Feliz?
Engulo a saliva com gosto de medo, empurrando a porta de correr para
pisar no gramado bem aparado. Varro o lugar com os olhos, encontrando o
dono dos olhos cristalinos deitado à espreguiçadeira, com uma garrafa de
cerveja nas mãos e mais outras cinco vazias aos seus pés.
Ok, acho que ele bebeu um pouco...
Francis encara o céu de estrelas, com a mão livre atrás da cabeça,
conversando sozinho.
— Você perdeu, seu otário — ele soluça e ri em seguida, virando mais
um gole da cerveja na boca, até esvaziar a garrafa e abrir outra. — A Lina
me avisou... anos atrás ela avisou que eu veria o amor da minha vida se
casando com outro. Que porra... por que está fazendo isso comigo,
Angelina?
Meus ombros caem e minhas mãos se esticam em sua direção para tentar
confortá-lo. Francis parece destruído como não vejo há anos. É a primeira
vez que o vejo frágil depois de muito tempo.
— Eu te amo, loirinha. Será que era tão difícil assim pra você perceber?
— ele fala com o vento, gesticulando com a garrafa nas mãos. — Agora
você vai casar com aquele calvo! Pelo menos eu tenho cabelo!
Cubro a boca com a mão.
Céus...
— Ah, quem eu quero enganar? O calvo é legal. Porra, eu queria falar
que ele é um merda, mas o cara é gente boa. — Francis funga, enxugando o
rosto com as costas da mão. — Só que eu sou mais gostoso, isso ninguém
pode negar.
Comprimo a boca para não rir.
Eu não deveria, mas é engraçado.
— Eu tenho o abdômen sarado, fico incrível em uma sunga, sou alto,
calço 43 e tatuei a porra da sua flor favorita no braço, mas é com o baixinho
sem músculos que cheira a dinheiro novo que vai se casar, Angelina? — Ele
ergue os braços, como se eu estivesse na sua frente. Dado o fato que ainda
não me viu, ele realmente está bêbado. — Será que o sexo com ele é
melhor?
Arqueio a sobrancelha.
— Eu duvido! — Soluça novamente, limpando a boca. — Você não goza
com ele como gozava comigo. Pelo amor de Deus, me diz que não, porque
eu nunca mais transei daquele jeito na vida! Se você tiver o mesmo prazer
que tinha comigo eu vou começar a chorar aqui... não, espera, eu já tô
chorando, diaba!
Ok, é melhor eu avisar que estou aqui, porque ele já começou com os
xingamentos. Mesmo que tenha sido engraçado demais. E hipócrita. Como
assim ele nunca mais transou assim? O apelido dele não seria tubarão se
não tivesse devorado metade das mulheres de Cape May.
— Francis... — sussurro, não querendo assustá-lo. É em vão, porque ele
vira o pescoço rapidamente, me fazendo pular.
— Quem é essa moça bonita que está na minha casa? Se for assaltar, a
senha do cofre é o aniversário do meu filho..., mas você não vai saber isso.
Ergo uma sobrancelha.
— Não tá me reconhecendo? É sério?
E é claro que eu sei a data de nascimento do nosso filho, seu cretino!
Francis estreita os olhos na minha direção e balança a cabeça.
— Eu estou sem óculos e já tomei umas sete garrafas de cerveja. Eu só
vejo seu vulto... ou três dele.
Cruzo os braços. Eu posso me aproveitar desse breve esquecimento para
ele ser sincero comigo.
Sento na espreguiçadeira ao seu lado, também encarando o céu.
— Por que bebeu tanto?
— Você vai ficar aqui? Tudo bem então... — soluça. — Eu bebi porque a
mulher da minha vida vai se casar com um calvo.
— Ele não é calvo! Só tem entradas.
— Mas vai ficar, só esperar uns anos... espera, você conhece ele?
Arregalo os olhos, escondendo meu rosto com o cabelo.
— Não...
— Se conhecesse, você ia me achar mais bonito. E legal. E gostoso. E
engraçado... e com mais cabelo.
Solto uma risada, mas me repreendo. Isso não tem graça, Angelina!
— O que você quis dizer com: eu nunca mais transei daquele jeito na
vida? Fiquei sabendo que você transa muito por aí...
Ok, é injusto perguntar isso com ele bêbado, mas ele me chamou de
diaba e não de anjo.
— Tá vendo esses dedos? — Francis se senta de repente, quase
colocando a mão no meu rosto.
— Estou.
— Viu como estão malhados? E essa língua? — Ele põe meio metro de
língua para fora e o hálito alcoólico quase me deixa embriagada. — Essa
língua está quase criando gominhos de tão malhada. Sabe por quê?
— Não? — Franzo o cenho.
— Porque a quantidade de vezes que meu pau não funcionou e eu tive
que usar dos meus dedos e da minha língua, foi vergonhosa. Se eu não fosse
tão bom com eles, meu apelido pela cidade não seria tubarão, seria ameba.
— Como é? — ok, isso foi inesperado. — Você tá dizendo que...
— Que eu broxei... — ele volta a se deitar, cobrindo o rosto com o
braço. — É vergonhoso falar isso, mas eu broxei muito ao longo desses
anos. Isso quando meu pau sequer subia. Às vezes ele só ficava ali...
cabisbaixo, coitado.
Tusso uma risada, incapaz de me controlar. Então quer dizer que esse
tubarão é desdentado e não anda comendo ninguém?
— Por que você acha que isso acontece?
Francis suspira dramaticamente.
— Porque meu pau é apaixonado só por uma boceta..., mas ela tá
comprometida e vai se casar! — Ele joga a cabeça no meu ombro, chorando
alto. Arregalo meus olhos, sem saber o que falar. Até porque... a dita cuja
sou eu. — Ele só levanta pra ela, e quando se levanta e vê que não é ela, ele
pula sem paraquedas. Fica murcho, o pobre.
Mordo o lábio para tentar não gargalhar.
— Enquanto isso, a boceta que eu sou apaixonado, vai se casar com um
cara que deve ser mais broxa que eu!
— Ele não é não, cumpre bem o serviço — defendo John.
— Você não tem como saber! Me deixa acreditar que ele é broxa e
pequeno.
— Ok...
— Pede pra ela não casar. Por favor, vai lá e fala pra ela não se casar. —
Ele me abraça apertado e acaricio seus cabelos.
— Por que ela não deveria se casar?
— Porque é o amor da minha vida e eu a faria muito mais feliz.
— Então por que a deixou escapar?
— Porque eu achei estar fazendo a coisa certa.
— E mudou de ideia quanto a isso?
— Não sei... — Francis molha meu ombro com suas lágrimas. — Eu só
sei que tá doendo pra caralho saber que a perdi pra sempre. No fundo, eu
sempre tive esperança de que nós ficaríamos juntos de novo. Agora acabou,
moça do perfume bom... alguém já te falou que seu perfume é muito bom?
Sorrio, fazendo um carinho nas suas costas.
— Um amor do passado vivia me falando isso.
— Ele estava certo, você é muito cheirosa. Só não é mais cheirosa do
que minha Angel... tem tempo que não chamo ela assim, mas ela é minha
Angel.
Meu coração aperta com sua voz dolorida.
— Eu a amo. Amo tanto que dói, moça. Ela é linda, engraçada, bondosa,
uma atleta foda... é a melhor mãe que meu filho poderia ter... meus dias
ficam mais bonitos quando chego do trabalho e a vejo na sua casa. Me sinto
completo quando posso contar pra ela do meu dia e ela me conta do seu...
isso vai acabar. Se ela se casar, vai acabar. A onda não vai mais ter uma
praia para voltar. Isso me deixa triste.
— Por que não luta por ela? — indago com medo da resposta.
— Porque eu quero que ela possa ter a calma que sempre quis na sua
vida.
— E se ela não gostar mais da calmaria?
— Então eu estaria mais que disposto em chegar com a tempestade.
Não tenho oportunidade de dizer mais nada, porque Francis dorme nos
meus braços. O ajeito na espreguiçadeira e o cubro com um cobertor
pesado, beijando sua testa antes de voltar para casa.
— Você poderia ter contado isso a ela, seu broxa dos dedos malhados. —
Sorrio antes de deixar sua casa.
Ela teria gostado de saber. Eu gostei de saber.
 

 
 
Tem alguém martelando um prego na minha cabeça. Só isso pra causar
um dor tão grande.
Tento abrir os olhos, mas a claridade ameaça me cegar.
— Que dor dos infernos! — Viro de lado na cama, mas quando vou
parar no chão, sentindo grama nas mãos, me dou conta de que não estava na
cama. Muito menos no meu quarto.
Olho para os lados, confuso.
— O que eu tô fazendo aqui fora?
— Acordou, Bela Adormecida?
Praguejo, erguendo os olhos, vendo Blue de braços cruzados me
encarando de cima. Forço meus braços a funcionarem, me sentando na
espreguiçadeira.
— Quanto eu bebi ontem?
— Veja por você mesmo. — Ela indica as incontáveis garrafas no
gramado.
— Porra! — pra que fui beber tanto?
Ah... lembrei. Angelina vai se casar.
Arregalo os olhos e me coloco em pé depressa.
— Angelina vai se casar! — Seguro a cabeça.
— Como é? — Blue quase cospe o café que bebia em cima de mim.
— O John a pediu em casamento e quando eu fui deixar o Garden lá, a vi
segurando a aliança enquanto ele estendia a caixa.
— Você é um otário.
— Eu sei.
— Vai perder a mulher da sua vida.
— Eu sei.
— E vai ficar aí parado com cara de palhaço, fedendo a cerveja e roupa
de ontem?
— O que você quer que eu faça? Roube a noiva no altar?
Os olhos dela dão um giro de 360 graus.
— Você não vai esperar chegar no dia do casamento, até porque eu já
teria comprado um belo vestido e sapato e te mataria por atrapalhar a
ocasião. — Blue segura meus ombros, me sacodindo. — Você vai atrás dela
agora falar para não se casar e contar que ainda gosta dela.
— Ok! Eu vou!
Começo a correr, mas a cria do satanás agarra meu cabelo, me
impedindo de continuar.
— Toma um banho, escova os dentes e troca de roupa antes!
— Ai. Ai. Então solta meu cabelo. Ai... — Blue me empurra para o
banheiro, não me dando chance sequer de pensar.
E pra ser sincero, é melhor mesmo que eu não pense na loucura que
estou prestes a fazer.
Não é todo dia que você implora para a mulher que ama não se casar.
Principalmente quando ela aceitou fazê-lo há um dia atrás.
“Você poderia ter contado isso a ela, seu broxa dos dedos malhados”  
Um flash de ontem preenche minha mente, me deixando confuso. Por
acaso eu conversei com alguém e não me lembro?
Bom, de qualquer forma, não importa.
A única pessoa com quem tenho que falar é a Angelina.
E é por isso que termino de me arrumar e corro para o centro esportivo
da clínica. É lá que ela vai estar, se preparando para dar sua aula de vôlei
em... — olho meu relógio. — Uma hora.
Eu tenho sessenta minutos para convencê-la a não se casar com John.
Não porque ele não é um cara bom.
Mas porque eu sou melhor.
Ao menos melhor para ela.
Não vou ter mais medo de dizer isso.
Eu sou fodidamente melhor.
Porque a amo como ele nunca vai amar.
 

 
Ofego ao chegar na clínica, mesmo tendo vindo de carro.
Não estou ofegando de cansaço, é de nervoso, é de tanto meu coração
arrebentar minha caixa torácica.
Por favor, que não seja tarde demais.
— Doutor Hopkins? — as meninas da recepção se assustam em me ver.
— Hoje não é seu dia de folga?
— Uhum... é. — Estico o pescoço para ver se vejo Angelina pelos
corredores da clínica, mas ela já deve estar em quadra. 55 minutos. É isso
que tenho para convencê-la a não se casar. Acho que não vai ser muito legal
se eu citar o fato de ele ficar calvo, né? — Angelina já chegou?
— Sim, ela acabou de ir pra quadra. Você tá bem? Parece que vai ter um
colapso.
— Estou bem. — Eu acho. — A Lauren tá aqui?
— Não, como é sua folga, ela também teve folga.
Droga, seira bom alguns conselhos.
Tudo bem, vai ter que ser com você mesmo, Hopkins.
Esfrego minhas mãos, estalando o pescoço. Até parece que estou me
preparando para uma competição nas piscinas.
— Eu vou entrar... e... — Coço a nuca. — Não deixe ninguém entrar nas
quadras até que eu volte. Ok?
— Uhum — elas assentem confusas.
É melhor mesmo que não saibam o que estou indo fazer.
Como é o nome que se dá para o homem que tenta roubar a noiva de
outro?
Honrado que não é.
Mas foda-se, não estou tentando ser um homem de honra agora. Estou
tentando ter meu amor de volta. Não dizem que no amor e na guerra vale
tudo?
Então, ótimo, vou jogar a calvície na roda.
Já nas quadras, Angelina se aquece dando voltas por ela, distraída em
seus próprios pensamentos. Espero que não esteja planejando o casamento.
Ela ficaria brava de ter perdido o tempo. Isso contando que ela desista dele.
Sua corrida cessa tão logo ela me vê.
— Francis? — Angelina me analisa dos pés à cabeça, como se
procurasse por algo.
— Oi... — E agora? O que eu falo? Desista do casamento?
— Você está melhor?
Franzo o cenho.
— Melhor do quê? — Blue não teria ligado para contar da minha
bebedeira, não é?
— Garden falou que você teve uma emergência ontem... imaginei que
tivesse se sentido mal — os olhos dela continuam me avaliando.
— Ah... bom, eu realmente não me senti bem, mas não era nada de
saúde.
— Fico feliz. — Ela esconde o sorriso.
Será que está tão feliz em se casar?
Sou um merda em desejar que não?
— Você está muito feliz? — Meu coração vai sair do peito.
Angelina dá de ombros.
— Estou. Por quê?
— Não, nada. — Merda... — Mas assim... você não tem nada pra me
contar?
Por favor, diga que desistiu.
Te ver entrando de noiva para casar com outro cara não foi o que esperei
do futuro.
— Te contar? — Angelina franze o cenho, batendo o dedo no queixo,
pensativa. Ela só pode estar brincando comigo. — Não, não tenho nada para
contar.
— É sério? — Dou um passo para mais perto.
— O que exatamente você quer que eu diga, Francis? — ela inclina o
rosto, me olhando diferente.
Angelina está estranha.
— Eu quero que diga não.
— Ahn?
Suspiro, esfregando o rosto e puxando os cabelos. Porque ela está me
torturando?
— Eu quero que diga não ao John e ao pedido de casamento que ele te
fez. Eu quero que você diga não para ele sim para mim.
As sobrancelhas dela se ergue e Angelina se senta nas arquibancadas
com o choque. Sua boca abre e fecha repetidamente, mas não espero que
reorganize seus pensamentos para voltar a falar. Me agacho à sua frente,
apoiando minhas mãos em seus joelhos.
— Escuta. Só me escuta. Não precisa falar nada agora, só ouvir tudo que
eu tenho para te dizer — Minha testa transpira e tenho calafrios por todo o
corpo. Essa é sua última chance, Francis. Última chance para tê-la de
volta. — Provavelmente vou me embolar com as palavras, vou falar o que
não devo, mas não estou tentando ser a pessoa mais certa do mundo agora.
Eu só preciso ser sincero com você, porque não vou me perdoar por deixar
você escapar sem lutar.
Seguro as mãos de Angelina, prendendo seu olhar ao meu.
— Eu amo você. Desde que me entendo por gente, eu amo você,
Angelina. Amei cada uma das suas versões, continuei amando mesmo
quando achei que esse sentimento tivesse saído do meu peito. Te amei
quando te conheci e te amei quando precisei te deixar. — Respiro fundo,
esperando minha voz parar de falhar. — Já senti raiva, mágoa, ódio, desejo,
luxúria, decepção, orgulho... tantos sentimentos por você. Mas nenhum
deles foi mais forte que o amor. Eu sei que é uma palavra pequena, que não
parece ter a força suficiente para expressar um sentimento tão infinito. Mas
dentro da finitude de palavras que eu possuo, só posso dizer hoje, e sempre,
que eu te amo, Angelina. Amo, com a mesma frequência e rotina que uma
onda se distancia e reaproxima da praia. Amo, com a força e intensidade de
uma correnteza. Amo, como a beleza e pureza de um lírio. Assim como
amo com a fúria e tormenta do mar.
Recolho uma lágrima do rosto da mulher que me observa paralisada.
— Eu te deixei quando precisei ir para a faculdade. Te deixei novamente
quando acreditei em uma mentira. Te deixei mais uma vez quando achei
que nosso amor não fosse o suficiente para curar todas as feridas..., mas,
Angelina, eu não vou te deixar agora, sem que saiba com todas as letras,
que estou disposto a abrir cada uma delas, a esperar cicatrizar de novo,
estou disposto a batalhar junto com você, seja em um campo espinhoso ou
em águas revoltas, para te ter comigo.
Enxugo meu rosto das lágrimas que atrapalham minha visão.
— Já me achei egoísta por querer ficar com você. Já me achei imaturo
pelo mesmo motivo. Mas agora, eu quero se dane toda essa merda, estou
jogando pro alto qualquer racionalidade, porque amar não é seguir uma
linha reta e sem relevos, amar é tropeçar pelas linhas tortas e ainda sair
rindo dos tombos. — Rio, balançando a cabeça. — Eu quero cair com você.
Quero te ajudar a levantar. Quero que me ajude a colar curativos quando me
machucar. Quero segurar seu choro em dias difíceis. Quero brigar na chuva
e te beijar só porque é bom. Quero rolar com você na areia como se ainda
tivéssemos dezesseis anos. Quero entrar escondido em casa para ninguém
ver a hora que estamos indo dormir. Quero ser inconsequente, insano,
maluco, mas com você. Não ligo se vai ferrar minha vida, pode foder com
tudo, a gente conserta do jeito que dá, porque que graça tem acertar em
tudo?
Engulo minha emoção, porque preciso dizer tudo que está aqui dentro de
mim.
— Eu procurei em outras bocas, encontrar sua. Eu procurei em outros
corpos, o que só achei no seu. Procurei em outras vozes, o seu timbre.
Procurei em outros gemidos, aqueles que você me entregava ao ser amada.
Procurei em sorrisos, achar o que o seu me oferecia. Procurei em outros
olhos, a verdade que só os seus me revelavam. Eu procurei te achar em
outras mulheres. Mas só existe você. Sempre foi, e sempre será você.
Porque não importa o quanto tentam, só existe uma Angelina Mary
Eastwood nesse mundo. E ela é a única a quem meu corpo, meu coração e
minha alma procuram. Só você, Angel. Só você, meu amor.
Seguro o rosto delicado e banhado em lágrimas nas mãos, fitando-a nos
olhos, procurando nesse calor amarronzado, os segredos que ela me
esconde.
— Não sou mais um garoto medroso. Não sou mais um jovem indigno.
Eu sou um homem. O seu homem. Então diga não a esse casamento, e seja
minha mulher. Minha garota. Meu anjo. Meu lírio. Seja minha, porque
estou pronto para ser seu. Para sempre dessa vez.
Angelina passa minutos me olhando. Minutos em que a ansiedade e o
medo consomem meu peito. Mas acima de tudo isso, que o alívio me
preenche. Ainda que ela não me escolha hoje, saberei que ao menos ela
soube a verdade. Soube meus sentimentos.
Eles só devem ter parecido piada, porque Angelina começa a gargalhar
com toda a força dentro de si. É agora que eu começo a me sentir
humilhado?
— O que eu disse de tão engraçado?
— É que... — Angelina tenta respirar fundo, mas mesmo em meio às
lágrimas, ela consegue gargalhar. — Desculpa, é que seria lindo tudo que
você me falou, se não fosse por um único detalhe.
Inclino o rosto.
— Qual?
— Eu não posso recusar um pedido de casamento que nunca existiu.
Franzo o cenho.
— Como é?
Angelina suspira, inclinando seu corpo e segurando meu rosto.
— Quando John me pediu em namoro, eu disse a ele que meu coração
era dividido em duas grandes partes. A primeira, era toda entregue ao meu
filho. A segunda, era subdividida entre as pessoas que eu amava. E nessa
parte, ao final do curto corredor de portas, havia uma trancada há sete anos.
Eu disse a ele, que por trás dessa porta na cor azul, havia o grande amor da
minha vida. Havia o homem pelo qual eu sempre seria apaixonada. E que
ninguém, nem mesmo eu, conseguiria expulsar esse homem daquele
espaço. Que o que restava aos que chegassem agora, era esperar no
corredor, se esgueirar pelos cantos vazios...
— Só pra saber, esse homem sou eu?
— É, Francis, essa mula... quer dizer, esse homem é você. — Revira os
olhos. Delicada... — O que eu quero dizer, é que John sempre soube que eu
ainda te amava e que isso sempre seria assim. E estava tudo bem, até ele ver
o quanto você me ama. Ou melhor, te ouvir dizer isso.
— Merda, ele me escutou... eu não falei aquilo para ele ouvir e
atrapalhar vocês, eu só...
Minha boca é coberta pelos dedos de Angelina.
— Me deixa terminar. John não está bravo pelo que você disse e nem eu.
Quer dizer, eu estou porque você só falou porque pensou que eu estava
dormindo!
Arregalo os olhos. Não estava? Oh, merda.
— É... eu estava acordada, querido. Mas seja como for, hoje pela manhã,
John pediu para conversar comigo e me tirou do bolso uma aliança. Eu
fiquei paralisada, porque depois de ouvir que você ainda me esperava, eu
não conseguiria aceitar aquele pedido. Mas não veio um para eu aceitar.
— Não?
— Não — Ela sorri, penteando meu cabelo para trás. — Ele me mostrou
o anel que pertenceu à mãe dele quando era viva, era o anel que seu pai
havia dado a ela. Ele me disse que antes de morrer, a mãe pediu que ele
entregasse o anel para a mulher que ele amaria, como nenhum outro homem
seria capaz. — Sua mão desce do meu rosto para o pescoço, até encostar no
meu coração. — Depois de te ouvir, de te ver cuidando de mim, ele disse
que nunca me amaria como você me ama. E que aquele anel, nunca poderia
ser meu. E se eu não era a escolhida para ganhá-lo, então que nós dois só
estávamos perdendo tempo juntos. Enquanto poderíamos estar buscando
nosso verdadeiro amor.
— Então ele não te escolheu...
— Não. Assim como não o escolhi. — Angelina sorri, limpando minhas
lágrimas. Não são de tristeza, são de alívio. Posso parar de chamá-lo de
calvo, agora. — A cena que você viu na cozinha, foi apenas ele me
mostrando o anel. Logo depois John o guardou e nós passamos o dia
conversando, como os bons amigos que sempre fomos. Dando um fim
digno e honroso à pequena história que vivemos.
— Então eu sofri atoa?
— E bebeu atoa também.
Espera...
— Como você sabe que bebi?
— Eu fui até sua casa ontem depois que o Garden me contou que você
tinha saído correndo depois de me ver com o anel. E você nem sequer me
reconheceu, mas confessou que ainda me amava... de novo. Você só faz isso
quando acha que não estou ouvindo. Qual seu problema?
— Muitos — não consigo deixar de sorrir.
— Eu aceito — ela diz de repente, se levantando da arquibancada e me
levando a fazer o mesmo.
— Aceita o quê?
— Ser sua. Sua mulher. Sua garota. Seu anjo... seu lírio. Assim como te
aceito como meu homem, meu nadador de olhos cristalinos, meu doutor de
porte sério. Eu aceito você. Pra sempre, dessa vez. Desde que você não seja
nada como o tubarão que te apelidaram.
Minha cara esquenta.
— Não farei mais jus ao apelido, prometo.
Angelina agarra o colarinho da minha blusa, me puxando para si.
— Ótimo, porque a única pessoa que você vai devorar a partir de hoje
sou eu.
Sorrio ladino, a pegando no colo, suas pernas na lateral do meu quadril.
— Posso começar agora?
— Por favor... eu quero mesmo ver se você se tornou um broxa.
Praguejo, percebendo que contei a ela sobre esse detalhe. Encaro meu
relógio, vendo que ainda temos vinte minutos antes da aula começar. Sorrio
malicioso, sustentando seu peso com as mãos em sua bunda.
— Eu tenho vinte minutos para te mostrar que com você, meu pau
sempre está mais que pronto. O que acha?
Angelina não me responde.
Ela apenas arranca a blusa pela cabeça, engolindo minha boca em
seguida.
Porra, como passei sete anos sem isso?
Mas agora não importa.
Porque nunca mais a onda ficará distante da praia.
 
 

 
 
1 ano depois...
 
De quem foi a brilhante ideia de casar com sete meses de gravidez?
Ah... foi minha. Onde eu estava com a cabeça?!
Por pouco o vestido não entrou em mim.
Enquanto na gravidez do Garden passei grande parte muito magra, nessa,
eu virei um balão desde o quarto mês. Minha filha definitivamente quer
causar em grande estilo como seu irmão. Lavender não foi planejada, na
verdade, eu só pretendia ter outro filho depois das olimpíadas. Mas como
nada na minha vida foi planejado, cinco meses depois que Francis e eu
voltamos a ficar juntos, eu descobri que estava grávida.
Francis precisou ser colocado em uma maca, porque sua pressão ficou
muito amiga do chão. O fato é que a gente podia ter adiado a data do
casamento que havíamos marcado, mas eu achei que seria legal me casar
com um barrigão...
Eu devo ter esquecido como essa coisa pesa.
— Filha? Você está pronta? — Meu pai bate na porta.
— Estou pai.
Assim que ele entra, giro nos calcanhares para olhá-lo de frente. O
queixo de Louis despenca ao me ver. Ok, eu devo admitir que mesmo
parecendo que engoli duas melancias, estou bonita. O vestido que escolhi
não é um digno de princesa, cheio de rendas e bordados trabalhados. Ele é
simples e minimalista. Não possui alças, o decore em formato de coração
sustentando meus seios em uma seda fina e elegante, terminando em um
estreito lacinho no topo da minha barriga, onde o vestido escorre em um
tule com pequenas aplicações de renda em formato de lírios. A calda se
estende mais comprida atrás, arrastando no chão.
— Você está... — Meu pai engole em seco, procurando as palavras.
— Bonita?
— Não, filha... você está como imagino ser um anjo. — Sorrio,
segurando a mão que ele me oferece timidamente. — Obrigado por me
permitir te levar até o altar. Por muito tempo eu não mereci essa honra.
Assinto, o observando com carinho.
— Por muito tempo, eu achei que fosse fácil sempre acertar com as
pessoas que amamos e admitir quando erramos. Achei que fosse simples
entender os filhos e ser bons pais... Até que eu errei feio com pessoas que
eu amava e não consegui admitir de imediato. Até que eu tive um filho e
percebi o quanto era difícil compreender tudo que ele queria, pensava e
precisava, porque era uma pessoa diferente de mim. A vida me ensinou a
ser mais humilde e admitir minha ignorância, pai.
— Mas eu errei muito com você, filha. Mais do que você jamais irá errar
com Garden.
— Até quando? — Inclino o rosto. — Eu tenho uma vida toda para errar
com ele. Aprendi que não estou acima dos erros. E sim, você falhou
comigo, eu só não te culpo mais por isso. Você fez o que pôde com o que
tinha. Não foi suficiente para mim, mas você tem feito nos últimos anos,
tudo para recompensar a falta que fez no passado. Você é para o meu filho,
o pai que eu não tive... isso vale mais do que qualquer pedido de desculpas.
Louis abaixo o rosto para esconder suas emoções e abraço meu pai, para
que ele entenda de uma vez por todas, que antes de me perdoar, eu precisei
exercitar esse sentimento com as pessoas à minha volta também.
— Se perdoe, pai. Por todos os erros, todas as falhas e as faltas. Se
perdoe, porque esse tempo não volta mais para consertar.
— Não mereço você. — Ele me aperta brandamente nos seus braços e
seguro as lágrimas para não borrar a maquiagem. Donna me mataria. —
Mas agradeço por mesmo assim, me permitir a honra de te levar ao altar e
entregar sua mão ao homem que cuidou de você quando eu mesmo não
pude.
Louis se afasta mais rápido que eu e me oferece seu braço.
— Pronta? Pronta para finalmente se casar com aquele médico metido a
nadador?
Olho mais uma vez para o espelho, concordando.
— Sim, pai. Estou pronta para finalmente parar de esperar pelo Francis e
o ter para sempre.
Enlaço meu braço ao dele, caminhando escada abaixo, até meus pés
tocarem na areia. Começou aqui, anos atrás, quando um certo garotinho de
olhos claros me salvou do mar. E vai se perpetuar nessa mesma praia, com
o homem de olhos cristalinos tomando minha mão em casamento. O lapso
de tempo entre um feito e outro foi longo, árduo e mais difícil do que
consigo explicar. Mas eu viveria cada parte de novo, se isso significasse
olhar para o fim do tapete azul estendido ao centro das cadeiras brancas, e
encontrar o homem da minha vida, ao lado do garotinho dos meus sonhos.
Coloco a mão com o buquê de lírios sobre barriga, sussurrando para minha
garotinha:
— Nossos meninos estão lindos, filha. Você vai ser uma garotinha de
muita sorte, porque duvido que esses dois deixem qualquer coisa de ruim
acontecer a você.
Conforme me aproximo do altar, observo meus amigos à minha espera,
tal qual meus dois rapazes. Ethan do lado esquerdo, como padrinho do
Francis, junto com Cassidy e sua filhinha de três anos. Cassy a adotou há
dois anos, já que sonhava em ser mãe, mas não queria esperar um homem
para isso. Isabela está logo atrás deles, junto com o marido, motivo pelo
qual Ethan nem se arrisca a olhar para trás. Não deve ser fácil, mas nós não
tínhamos como pedir que ela deixasse o homem em casa. E por fim, Robert
na primeira fileira.
Do lado direito, sendo meus padrinhos, Donna está sentada com Josh e
seu noivo. Logo depois deles, estão minha mãe e seu novo namorado, que
ainda não decorei o nome, e vovó Lina. Uma cadeira foi deixada vazia ao
lado dela, para simbolizar o lugar do meu avô. John também logo atrás,
com sua namorada. Sorrio para ele e ele sorri de volta para mim. Eu diria
que a Blue deveria estar ali, mas ela insistiu para ser a dama de honra.
Tentei alertá-la sobre a dama de honra geralmente ser meninas na flor da
idade e virgens, mas ela disse que ainda se parecia com uma adolescente e
que era apertada como uma virgem.
Não discuti depois dessa.
Ao invés da marcha nupcial, “When you look me in the eyes” é tocada
baixinho e deixo de me concentrar em tudo mais, para de fato olhar o azul
cristalino. Não o da água do mar que é nosso cenário de fundo, mas os
olhos do homem que me salvaram dele anos atrás. Os olhos do homem que
sim, como a música, me fazem encontrar o paraíso, me fazem ver que tudo
ficará bem. E quando nossos olhares se encontram, eu sei que Francis não
enxerga nada além de mim. Seu rosto até então tenso, é manchado por
lágrimas ininterruptas que escorrem, brilhando com a luz alaranjada do
crepúsculo. Seus lábios se esticam gradativamente, a cada passo que dou e
são reflexo dos meus próprios.
Seguro firme o braço do meu pai, com medo que minhas pernas cedam a
essa intensidade. Francis trajado de noivo em um terno azul, deveria vir
com avisos de gatilho. Será que o juiz de paz se importaria em pular para a
parte em que assinamos os papéis e podemos sair correndo daqui?
Minha filha se move na minha barriga como quem me repreende. Ela é
tão ou mais agitada que Garden. Quando escolhemos seu nome devido à
flor que carrega consigo calmaria e relaxamento, talvez tenhamos nos
equivocado.
Eu nunca sonhei em me casar. Não a cerimônia em si. Mas devo
confessar que ver o homem que eu amo, completamente hipnotizado
enquanto me olha aproximar, é uma imagem que quero carregar para o resto
da vida. Se existia alguma parte do meu coração que duvidava da imensidão
do amor dele, acaba de perecer.
Francis me ama. Me ama como nenhum outro homem vai amar, mas
principalmente, me ama mais do que ele próprio já amou. O extenso tapete
chega ao fim e meu pai cumprimenta Francis com um aperto de mãos, o
fazendo garantir que cuidaria de mim. O sorriso dele rasga quando Louis
entrega minha mão na sua.
A gente conseguiu. Chegamos até aqui. No mesmo lugar que ele me
devolveu a minha vida e prometeu esperar-me por toda ela, tendo o céu e o
mar de testemunha. Agora, é nossa família que será prova do que um amor
é capaz de superar. Porque nosso amor superou o tempo, trapaças, até a
própria morte, e seguiu tão firme quanto o amor daquelas duas crianças que
se abraçaram nessa mesma praia, anos atrás. Nos olhos dele, ainda vejo
aquele garotinho e seu amor puro e coragem irreverente.
Mas também vejo um homem engraçadinho e safado até no próprio
casamento.
— Porra... que dificuldade pra chegar até aqui, meu anjo. Já estava
achando que você tinha desistido e estava a caminho do Alaska. — Ele faz
graça, arrancando risadas dos convidados.
— Você deve dois dólares para o meu potinho dos palavrões — Garden
puxa a barra do terno dele.
— Papai vai ter que passar no crédito, porque não tem como olhar para
sua mãe e não soltar alguns bons palavrões... ela está magnífica... não acha?
— Francis fala com nosso filho, mas seus olhos não saem de mim. Em
momento algum.
— Mamãe parece um anjo.
Sorrio, soprando um beijo para meu garotinho que mais se parece um
homem feito com o terno idêntico ao do pai.
— Ela é um.
— Podemos começar? — o juiz tenta iniciar a cerimônia.
— Calma aí, me deixa olhar pra ela só mais um momento — Francis
segura minha mão, me fazendo dar uma voltinha no altar. Meu rosto
esquenta de vergonha com o assovio que ele dá. — Eu sou um homem de
sorte. Minhas duas meninas estão deslumbrantes. Será que vou viver até os
quarenta?
— Falta só nove anos — Garden o lembra, me arrancando uma risada.
— Pode começar — Francis se apressa em falar ao juiz. — Antes que ele
cite tudo que me torna velho e essa mulher desista do casamento.
Bato em seu peito.
— Sou acostumada a te ver enrugadinho na piscina — provoco, mas
nada tira o sorriso satisfeito do rosto dele. E apenas isso é motivo para eu
agradecer a Deus por tê-lo aqui. Minha doce tempestade.
Não optamos por um casamento religioso por um único motivo. Francis
e eu não somos religiosos. Cremos em Deus, mas a religião nunca fez parte
da minha vida e seria hipocrisia nos casar em uma igreja apenas por
convenção. A praia sempre significou mais para nós. Deus também está
aqui, em cada detalhe da natureza que desenhou.
Francis gesticula com a boca que me ama e devolvo o gesto, achando
graça com o quanto ele está inquieto. E feliz. Ele está feliz como nunca
antes e posso dizer o mesmo sobre mim. É como finalmente chegar ao fim
de um campeonato e ter certeza que levou a medalha de ouro.
— Repita comigo. — O juiz começa e respiro fundo para conter os
tremores em meu corpo. — Eu, Francis Thomas Hopkins, prometo te amar,
ser fiel...
— Espera! — Francis grita, assustando todos nós. Meus olhos se
arregalam.
— O que você tá fazendo? — ele não é maluco de desistir agora, né?
— Eu só preciso fazer uma correção. — Francis se volta para o juiz. —
O senhor pode, pelo amor de Deus, pular a parte das promessas? É que elas
já causaram confusão demais.
Aperto os lábios, mas não consigo conter a gargalhada que explode
dentro de mim. Os convidados têm a mesma reação.
— Ainda bem, eu não aguento mais mil páginas dessa história de vocês!
— Ethan grita dos bancos. Francis ergue o dedo do meio disfarçadamente
para ele.
— Então, eu vou para qual parte? — O juiz pergunta confuso.
— A parte em que ele pode beijar a noiva — dessa vez sou eu a
responder.
— Devo presumir que estão aceitando um ao outro como marido e
mulher?
— Não — Francis nega com a cabeça, se voltando para Garden. Ele
pisca para nosso filho, que o entrega algo que tirou do bolsinho do terno.
Franzo o cenho. Mas a confusão dura só alguns segundos, para dar lugar ao
choque. Nas mãos dele, o colar que meu deu anos atrás brilha com a luz do
sol.
— Mas... — ofego. — Eu achei que o tinha perdido...
— Eu também achei que havia perdido você — Francis sorri, tomando
meu rosto nas mãos. — Mas assim como está escrito nesse colar, a onda
sempre voltará para sua praia. Então é isso que deve presumir, senhor juiz.
Que a onda finalmente, voltou para sua praia.
Engulo duramente, o deixando colocar o colar em meu pescoço, seu
lugar de direito. Toco o pingente com a ponta dos dedos, suspirando
aliviada.
— Obrigada por me dar de volta.
— O colar?
— Não... — Sorrio, tomando seu rosto nas mãos. — Você. Minha onda.
Minha tempestade. Minha loucura... meu marido.
Tomo seus lábios para os meus, não querendo mais esperar.
Não há mais promessas. Não há espera. Não há perdão. Há apenas a
liberdade de sermos quem somos, apaixonados, intensos e dramáticos.
— Bom, eu vos declaro marido e mulher então... pode continuar
beijando a noiva.
Erguemos o polegar para o juiz, sem desgrudar nossas bocas.
— O papai está engolindo a mamãe — escuto Garden reclamar com
alguém, mas permaneço aqui.
Sendo engolida por esse maldito nadador de olhos claros.
 

 
 
— Espera um pouco, preciso me sentar porque sua filha é muito pesada
— Angel se cansa de tanta dançar na pista e a sento nas cadeiras dispostas
pela praia, iluminada agora por luzes artificiais.
— Mas eu aceito dançar! — Donna se ergue da cadeira, correndo na
minha direção. No mesmo instante, puxo Blue de onde estava sentada, as
fazendo ter um encontrão, cara a cara.
— Então dança com ela.
Empurro as duas para a pista de dança e elas não tem como recusar sem
causar uma cena. Dizem que casamentos tornam todos românticos, espero
que funcione para essas duas se reconciliarem. É bom aproveitar agora que
minha irmã voltou.
— É... você... — Donna coça a nuca, seu vestido vermelho esvoaçando
com o vento. — Você aceita dançar comigo?
Ela oferece a mão para Blue, que a encara confusa e abalada. Angelina e
eu mantemos os olhos nelas, compenetrados. Só desviamos quando Blue
sobe o olhar para minha irmã, balançando a cabeça.
— Não, docinho — ela usa o apelido antigo, carregado de mágoa
disfarçada de deboche. — Não aceito dançar com você, nem hoje nem
nunca.
— Mas eu finalmente voltei para ficar — minha irmã dá um passo na
direção dela.
— E você acha que sou tão miserável assim, para te deixar voltar para
minha vida depois de oito anos de solidão, com tanta facilidade? — Blue
gargalha, recolhendo a barra do vestido azul. — Você vai ter que rebolar se
quiser ao menos que eu te cumprimente na rua, Donna Hopkins.
Ela se vira para ir embora e minha irmã grita ao vento:
— Ainda bem que sou ótima mexendo a bunda, Regina George...
Encaro Angelina, que dá de ombros.
— Acho que vem aí mais uma história de segunda chance — ela sorri,
acariciando sua barriga. Gargalho, me agachando à sua frente, beijando
nossa menininha agitada.
— Lavender, talvez quando nascer, vá presenciar uma guerra entre duas
abelhas rainhas. No fim, vamos torcer para elas se unirem pelo mesmo
reino, ou vamos viver uma hecatombe de luta por poder.
Garden vem correndo na nossa direção, com um punhado de morangos
nas mãos. Ele coloca um na boca de Angelina.
— Você não pode ficar muito tempo sem comer, mamãe. Minha
irmãzinha sente fome.
Sorrio, abraçando meu garotinho.
— Promete sempre cuidar da mamãe e da Lavender?
— Prometo nada, eu escutei que promessas causam muitas confusões.
Angelina e eu gargalhamos, o puxando para nosso colo.
— Tem razão, filho. Basta que você as ame. — Beijo os lábios da minha
mulher, suspirando. — Porque sim, o amor vence até mesmo promessas
quebradas.
Angelina morde meu lábio.
— Mas no fim das contas... nós nos esperamos e perdoamos. Elas estão
de pé, meu amor. Todas as promessas que fizemos, foram cumpridas.
Podemos finalmente colocar um ponto final para o enredo da nossa história.
— Nada de post-it cor-de-rosa? — indago acariciando suas costas.
— Não é preciso um post-it para eu me lembrar dessa página. Nossa
história não precisa de lembretes. Porque se faz decorar pelos sentimentos
que transmitimos. É a promessa do destino para nós. Que se lembrem, que
um dia uma garota de cabelos dourados, esperou pelo garoto de olhos
cristalinos.
— E que um dia, o garoto de olhos cristalinos, perdoou a garota de
cabelos dourados — termino sua frase.
 
 
3 anos depois
 
— Filha, tenha calma, a mamãe já vai aparecer — tento manter Lavender
no colo, mas ela está irredutível. Já correu por toda essa arquibancada com
uma energia sem fim. Ao contrário do Garden, ela não obedece a ninguém,
simplesmente faz o que quer.
Minha filha é a mistura perfeita da personalidade de Donna e Blue.
Meus cabelos estão ficando brancos só de imaginar quando ela ficar
mais velha.
— Lav, senta e se comporta como uma mocinha! — Garden se esconde
atrás de mim, com vergonha da malcriação da irmã.
— Quelo mamãe! — Ela cruza seus bracinhos, balançando os cabelinhos
castanhos como os meus. É a única parte que ela puxou de mim em
aparência, porque todo o resto é de Angelina. Isso só piora minha situação,
porque é beleza demais só para Garden e eu cuidarmos.
— A mamãe ganhou o segundo lugar nas olimpíadas, ela vai receber a
medalha de prata agorinha. Se você tiver paciência, poderá vê-la — tento
convencê-la a se sentar.
Hoje é um dia mais que especial. Angelina finalmente realizou seu sonho
e mesmo que nosso time não tenha ganhado o ouro, o sorriso que vejo no
rosto da mulher que entra em quadra nesse exato momento, só demonstra
felicidade.
Seus olhos nos procuram nas arquibancadas e ergo Lavender nos braços,
assim como Garden ergue os seus, chamando atenção dela. Tão logo
Angelina nos vê, seu sorriso se alarga e ela toca o próprio coração, dizendo
que nos ama.
— Acenem para a mamãe. — Coloco cada filho em um ombro, tendo a
certeza que a fábrica fechou. Eu só tenho dois braços e mais nenhum lugar
digno de tatuagem para homenagear. Lavender ganhou meu braço direito e
parte do meu peito, com flores de lavanda desenhados por ele. É como
Ethan falou, mais um filho e vou ter que tatuar a bunda.
E por falar em Ethan... olho para o lado, o vendo conversar com Isabela.
Ela se divorciou há um ano.
Pelo visto, meu amigo não vai perder tempo dessa vez. Ele pisca para
mim e pisco de volta, desejando boa sorte.
Espero que ele fique com seu amor, exatamente como fiquei com o meu.
Meus olhos voltam-se para Angelina, no momento que ela recebe sua
medalha de prata. Eu sei que não segui meu antigo sonho na natação. Mas
essa mulher, que agora realiza o seu, me deu dois maiores, que medalha
alguma seria capaz de superar. E ainda agora, a vendo brilhar naquela
quadra, eu tenho certeza: vê-la concretizar seu mais sincero desejo, é
melhor do que qualquer realização minha.
Amar a Angelina me ensinou que nem sempre as abdicações significam
sacrifícios. Às vezes, as abdicações, te presenteiam com algo que valha
mais.
E ela vale.
Meus filhos valem.
Olho para eles com lágrimas escorrendo, os colocando sentados de volta
às arquibancadas.
— Quero que me prometam uma coisa... quando pensarem em desistir
das pessoas que amam e dos seus mais sinceros sonhos, olhem para a mãe
de vocês. Ela nunca desistiu de nada disso. Se estamos aqui hoje, é porque
ela sempre foi o lar para o qual pudemos voltar.
— Você também nunca desistiu dela, papai — Garden deita a cabeça no
meu ombro.
— Eu prometi esperá-la. Assim como ela prometeu me perdoar. E
promessas não podem ser quebradas. Não quando feitas para a pessoa que
se ama. Um dia você entenderá.
— Será que um dia vou gostar de alguém como você gosta da mamãe?
— Seus olhinhos azuis brilham curiosos.
Sorrio, abraçando meu filho e segurando a mão da sua irmã dançante,
que pula animada olhando para a mãe. Angelina é sua heroína. Assim como
é a minha.
— Um dia, você encontrará o seu pedacinho de paraíso e sua irmã
encontrará seu pedacinho de paz. Até lá, confiem no amor que sua mãe e eu
sentimos... ele é a promessa que nunca precisamos fazer. Mas que sempre
iremos cumprir.
 
 
 
FIM...
 
 
Para Francis e Angel... você ainda conhecerá a história de Donna e Blue.
 
 
 
Antes de agradecer a todas as pessoas que merecem, quero repercutir o
ato de amor próprio que Francis finalmente adquiriu e me ensinou, então
vou começar esse texto agradecendo a mim. Agradecer a mim por não ter
desistido, mesmo quando a ansiedade e a depressão falaram mais alto.
Agradecer por eu não ter desistido de contar a história dos meus
personagens, apenas por medo de que ficasse extensa demais ou que
tratasse de um plot que as pessoas costumam não gostar (gravidez).
Agradecer por ter sentido medo, mas que como a Angelina sempre fez, não
ter deixado nenhum deles me paralisar e impedir de fazer o que amo.
Obrigada a mim, por, apesar de tudo que deu errado, ter entregado esse
livro da maneira como meu coração mandou.
Em segundo lugar, quero agradecer à minha mãe. Ela muitas vezes foi a
força que não me deixou despencar, que tentou me animar, que brigou
comigo quando necessário, que me deu coragem para continuar. Mãe, sem
você, provavelmente eu nem teria começado essa carreira. Tudo que sou
hoje, se faço o que amo, se tive coragem para me tornar escritora e contar
minhas histórias, é graças a você. Porque um dia, você acreditou em mim
quando eu mesma não acreditei. Obrigada por ter sido na minha vida, o que
o Robert foi na vida do Francis.
Não menos importante, quero agradecer à minha mineira favorita,
adoradora do caos e sofrimento, companheira de sprint, apoiadora número 1
e psicóloga nas horas vagas... Camille Gomes. Amiga, talvez só você saiba
tudo que passei para chegar até o final desse livro. Talvez eu só tenha
chorado para você, todas as vezes que não acreditei ser possível finalizar
esse trabalho. E com seu jeito nada delicado, você me fez cair na real e
entender que Francis e Angelina mereciam contar sua história, ainda que
incomodasse muita gente, ainda fosse sofrer críticas de todos os lados. Você
me fez acreditar naquilo que sempre foi meu sonho na escrita: escrever a
realidade. Seja boa ou ruim. Sofrida ou feliz. Dramática ou leve. Mas a
verdade. E eu entreguei a verdade com essa história. A verdade que esse
casal precisava contar. É tudo graças a você, que desde o princípio abraçou
esse livro comigo e dividiu a maternidade dele lado a lada. Sabe que temos
guarda compartilhada, né? Amo você, como a Angel ama a Donna, como
Francis ama a Blue e do tamanho do nosso amor pelo Garden.
Preciso agradecer também às minhas leitoras sensíveis e críticas, Ana e
Ingrid, por terem me guiado, me ajudado a desenvolver essa história e esses
personagens complexos, da maneira mais responsável e verossímil possível.
Mas para além de profissionais, vocês foram amigas, companheiras que
mesmo quando eu travei e achei que não dava para continuar, me deram
uma luz e acreditaram no meu trabalho. Nada do que foi escrito aqui, seria
possível sem vocês.
Como não poderia deixar de ser, agradecer às minhas betas, com um
comentário especial à Rebecca, que foi um presente dessa duologia para
mim, uma amiga que Francis e Angel me deram, que sempre esteve ali me
apoiando e me erguendo quando necessário. Amiga, obrigada por ter
entrado na minha vida através dos livros, te carrego para além deles. Isa e
Helô, minhas companheiras de sempre, que estiveram aqui desde o primeiro
“FIM” que escrevi, me dando força e coração, puxando minha orelha
quando necessário, vibrando e torcendo comigo, como se fosse o próprio
trabalho de vocês. Eu as amo como Ethan ama a Angie.
Por fim, quero agradecer às minhas leitoras, principalmente as que
participam do meu grupo, que estão ali todos os dias conversando comigo,
dividindo suas experiências, compartilhando suas emoções, oferecendo seus
ombros e amizade. Se há algo de grandioso que os livros me deram, foi
vocês. Cada leitor e leitora que conheci ao longe do caminho. Obrigada por
acreditarem em mim. Obrigada por acreditarem no meu trabalho. Ele só
vale a pena porque tenho vocês para aproveitar e surtar comigo por cada
pedacinho de drama dos meus personagens.
Terminando minhas palavras, obrigada Francis e Angelina. Vocês me
ensinaram muito além do que é o amor. Do que é o romance. Vocês me
ensinaram a ver a vida de um jeito diferente. Seja com a Angelina me
desafiando a enxergar coisas que nunca havia prestado atenção ou o
Francis, ao me fazer ver que sempre há um amanhã. Que a tempestade vai
passar, basta que você sabia esperar. Obrigada, meu casal dramático,
complicado e apaixonante. Eu nunca esquecerei vocês. Assim como estão
tatuados na pele um do outro, vocês estão tatuados no meu coração. No
lugar reservado para tudo aquilo que me faz acreditar no amor.
Nessa última página, eu também colo um post-it cor-de-rosa.
Prometo sempre revisitá-los.
 

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