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COPYRIGHT © 2021 J BREE
COPYRIGHT © 2022 EDITORA CABANA VERMELHA
TÍTULO ORIGINAL: BROKEN BONDS
Todos os direitos reservados.
 
 
Diretora Editorial: Elaine Cardoso
Editora: Mari Vieira
Tradução: Naiara Chiquetto
Preparação: Elaine Lima
Revisão: Elaine Cardoso / Sara Lima
Leitura Final: Gisele Oliveira
Ilustração Capa: Emilie Snaith
Tipografia: Bellaluna Designer
Diagramação digital: Elaine Cardoso
 
 
Nenhum trecho deste livro pode ser reproduzido em qualquer forma, eletrônica ou
mecânica, incluindo armazenamento de informações e sistemas de recuperação,
sem a permissão por escrito da autora, exceto para o uso de breves citações em
uma crítica do livro.

 
Aviso de gatilho: bullying, abuso sexual, tortura, violência e
morte.
SUMÁRIO
 
PROLÓGO
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SOBRE A AUTORA
 
 
 
 
 
Sinopse
 
Depois da morte de minha mãe e de seus Vínculos, fiquei aliviada
ao encontrar os meus. Eu tinha certeza de que com eles tudo ficaria
bem. Não ficou. O destino do nosso povo está em minhas mãos, e
sei que vai ser melhor se eu ficasse sozinha. Depois de cinco anos
fugindo, sou pega e arrastada de volta para encarar os homens de
quem fugi. Achei que estava fazendo a coisa certa. Agora, nem
tanto. North, Nox, Gryphon, Atlas e Gabe talvez nunca me perdoem,
mas de uma coisa eu sei, nunca vou me perdoar.
 
Gatilhos: bullying, abuso sexual, tortura, violência e morte.

 
 
PROLÓGO

É SEMPRE O mesmo sonho.


Estamos todos juntos no carro, viajando na rodovia. Estou
discutindo com minha mãe, sentada ao meu lado, e é porque estou
furiosa demais com ela por nos fazer mudar de novo. Fiz amigos em
Connecticut, amigos de verdade, e, pela primeira vez na vida, eu me
senti... normal. Comum. Era só uma das garotas, não uma
aberração da natureza.
Aquela seria a última vez em que eu me sentiria assim.
Meu pai está dirigindo, somos tão parecidos que não há dúvidas
de que vim dele. Está ouvindo as notícias e franzindo a testa,
sempre olhando para trás para verificar se estou bem. Está sempre
de olho em mim, sua filha amada.
Andrew, outro dos Vinculados de minha mãe, está no banco do
passageiro, trabalhando em seu notebook aberto. É um cara muito
sério, frio e indiferente com qualquer um que não seja de nossa
família, mas muito afetuoso e carinhoso comigo. Ele me chama de
seu “motivo”. O motivo pelo qual trabalha muito, pelo qual está
sempre batalhando por mais.
Vicenzo é o terceiro e último dos Vinculados dela, e está sentado
no banco traseiro com a gente, segurando minha mão com força e
fazendo carinho em meu dedão com o dele, confortando-me. Ele é
aquele que sempre é gentil, o que a todo momento é afetuoso e
amável comigo, não importa onde estejamos. Quase sempre,
quando estamos vivendo entre os não-Vinculados, as pessoas
presumem que ele seja meu pai biológico, porque ele é quem passa
mais tempo comigo. Ele é um pai que não trabalha fora, o tipo de
homem que fica mais feliz cuidando da casa e de seu Vínculo.
Estou furiosa, mas esta também é a última vez em que me senti
em paz... e segura.
Luto para não chorar; sempre fui do tipo que explode em lágrimas
de raiva. Minha mãe está tentando me convencer a conversar com
ela, com palavras tranquilas das quais não me lembro, mas o som
acalma até as profundezas mais íntimas de minha alma. É a última
coisa de que me lembro deles e esses são os últimos instantes do
sonho.
Logo depois, ele se torna meu pesadelo.
Um do qual não posso acordar, aquele que me diz que isso não é
um sonho, de forma alguma. E sim a memória de um dia que não
consigo apagar da minha mente, por mais que eu tente.
Alguma coisa atinge a lateral do veículo em alta velocidade e o
arrasta até o carro capotar e voar pela lateral de um desfiladeiro.
O choque faz meu dom fluir para fora de mim.
Entro em pânico e tento puxá-lo de volta para dentro do meu
corpo, mas bato a cabeça e fico tão atordoada que não tenho como
impedi-lo.
Sou a única sobrevivente.
E nunca vou parar de me odiar por isso.
Nunca.
1

Cinco Anos Depois

A SALA DE INTERROGATÓRIO está fria como gelo.


Ainda estou vestindo as mesmas roupas de quando fui apanhada
na rua pela Equipe de Intervenção Tática, peças que de fato,
deveria ter jogado fora meses atrás, mas não queria desperdiçar
meu dinheiro em roupas novas quando essas ainda estavam
decentes. Viver fugindo não era fácil, ou barato, e eu não estava
esperando ser arrastada do calor do sul para o estado congelante
do Oregon.
Também tenho bastante certeza de que estão tentando me deixar
no limite.
O que fiz... fugir de seus Vinculados, das pessoas destinadas a
ficarem com você, não é algo que aconteça muito. Na verdade,
nunca aconteceu. Fugir daqueles que completam sua alma é algo
que apenas a porra de uma louca faria.
Eu sou essa louca.
Mas fiz isso por um motivo... ou melhor, fiz por um monte de
motivos, e todos eles são completamente razoáveis. Só não são
algo sobre o qual eu possa falar sem arriscar minha vida, meus
vínculos, e todas as outras pessoas no planeta. Sério.
No entanto, não posso dizer isso para eles.
Acho que vou ter que ficar de boca fechada e encarar quaisquer
consequências que minhas ações tenham causado.
Tento não esfregar meus braços ou deixar meu desconforto tão
óbvio, porque é isso mesmo que eles querem. Minha pele está
formigando com a necessidade de sair, ir embora, fugir até
encontrar uma cidade grande onde ninguém me conheça e nunca
possam tentar me enjaular de novo. Meus olhos disparam para a
porta, mas sei, com absoluta certeza, que há um guarda gigante do
outro lado, só esperando que eu tente alguma coisa.
Eles se certificaram de me contar tudo a respeito dele e de suas
habilidades, quando me jogaram aqui, só para terem certeza de que
eu manteria minha bunda nessa cadeira como uma garotinha bem-
comportada. A questão é, vou manter meu traseiro aqui só porque
ser paralisada não está na minha lista de coisas para fazer hoje.
Não, de jeito nenhum. Uma gota congelante de pavor escorre por
minha espinha só de pensar nisso.
Por um instante, fervo de raiva pela atitude dos homens mais
uma vez, então a porta enfim se abre e um homem entra. Ele é alto
e imponente, uma verdadeira parede, e droga, espero que ele não
seja um dos meus vínculos.
Era provável que ele me amarrasse e torturasse só para
satisfazer seu próprio prazer doentio.
— Ah, srta. Fallows. Acho que ainda não nos conhecemos. Meu
nome é Brian Noakes, e estou aqui para te passar alguns detalhes
importantes antes da chegada dos seus Vínculos.
Juro que posso sentir as gotas de suor começarem a se formar
na minha testa, apesar do frio da sala.
— Claro, não é como se você tivesse me dado muita escolha.
Ele se senta na cadeira à minha frente e desliza uma pasta por
cima da mesa.
— Acho que você não está bem ciente da situação em que se
encontra, srta. Fallows. É extremamente incomum um vínculo fugir.
Tento manter meu rosto calmo e inexpressivo.
— Não violei nenhuma lei, vocês não podem me manter aqui
contra minha vontade.
Enquanto seus olhos me examinam, o homem sorri, mas não é
um gesto gentil, é mais um exibir de dentes, como se fosse um
predador se preparando para matar.
— O Conselho deliberou. Embora não haja nenhuma lei que
proíba abandonar seus Vínculos, este caso precisa ser tratado com
atenção especial. North Draven está no Conselho, ele é um pilar de
nossa sociedade, e considerando a posição social dele, toda essa
sua... “aventura” foi bastante constrangedora para ele.
Cerro meus dentes e minha mandíbula trava, então eu não
conseguiria responder nem se quisesse, mas sejamos honestos,
não tem muita coisa passando na minha cabeça agora, exceto o
quanto gostaria de poder sufocar esse cara com nada além da
minha mente.
Esse seria um dom maravilhoso para se ter.
Ele concorda com a cabeça para mim, como se eu tivesse falado,
e continua com seu monólogo condescendente:
— Então tivemos que tomar uma decisão, entende. Você não
pode fugir de novo, ainda mais com seus Vínculos sendo quem são,
e suas artimanhas no decorrer dos anos comprovam que não
podemos confiar em você.
Preciso de mais autocontrole do que achei que tinha, mas forço
minha mandíbula a relaxar o suficiente para desembuchar:
— Então você vai me prender aqui? Vai colocar grades nas
janelas e vou ser mantida como a porra de um bichinho de
estimação? Não importa quem sejam meus Vínculos, me forçar a
completar o vínculo é estupro e não vou ficar de quatro para eles
como uma boa escravinha.
Toda fachada de civilidade o abandona quando seu sorriso
desagradável se transforma em uma careta. Ele murmura alguma
coisa sobre meus terríveis modos e a porta volta a abrir, dessa vez,
o guarda brutamontes entra e eu me encolho na cadeira. Não tinha
percebido em quanta desvantagem realmente estava nesse
momento, sem poder usar meu dom.
Apesar de ser a pior coisa a se fazer agora, começo a entrar em
pânico.
Só a ideia de ser paralisada nessa sala com esses dois homens...
Naquele momento, nada é capaz de impedir o terror de me dominar.
O suor fica pior e minhas mãos começam a tremer enquanto agarro
meus joelhos por baixo da mesa para que não vejam, mas é inútil. O
guarda me dá um sorrisinho, percebe meu terror e com certeza fica
excitado com isso. Porra de psicopata.
— Ah, Jennings, obrigado por vir. Tenho esperanças de que a
srta. Fallows concorde em fazer isso sem precisarmos tomar
medidas extremas.
Concorde em fazer o que, porra?!
Ele pega uma bolsinha de couro e abre o zíper. Tudo que vejo é o
bisturi antes de perder a droga da minha cabeça.
— Que merda você pensa que vai fazer comigo?
Jennings dá um sorrisinho, então sinto o toque escaldante de seu
poder escorrendo sobre mim, meus músculos travam e fico presa na
porra do meu próprio corpo.
Não consigo mexer nem meus globos oculares para olhar feio
para ele ou ver o que está para acontecer. Sou obrigada a apenas
ficar sentada aqui e aguentar.
Nunca vou me esquecer deste homem. Um dia, vou fazê-lo pagar
por isso. Se não fosse colocar em risco tudo pelo que estive fugindo
todo esse tempo, eu soltaria meu próprio poder nele, e veríamos se
ele ia gostar, mas, ao invés disso, tenho que só... aguentar.
Por enquanto.
— Ora, Jennings. Achei que íamos dar uma chance para ela se
comportar, embora eu prefira acabar logo com isso sem
interferência dos comentários espertinhos dela. Não tenho nem um
pouco de inveja de Draven.
Jennings ri, eles dão a volta em mim e param nas minhas costas,
de modo que não tenho a menor ideia do que estão fazendo.
— Sei lá, ia ser divertido domar essa aí. As mais espertinhas são
sempre as que se submetem do jeito mais bonito.
Puta merda, porra.
É isso, vou ter que usar meu poder e fugir, de jeito nenhum que
vou ser estuprada por esse cara hoje. Negativo. Não vai rolar.
Meu cabelo é erguido do pescoço e o pânico começa de verdade
a apertar meu peito. Meu dom cresce na minha barriga, forçando as
restrições com que me prenderam, querendo sair e me proteger.
Não consigo pensar direito. Mal consigo respirar. Se isso não acabar
logo, não vou conseguir me controlar. Assim como um movimento
reflexo, quando é desencadeado, não tem como impedir seu poder
de sair para te proteger.
— Pode relaxar os músculos dela um pouquinho? Não vou
conseguir enfiar se não fizer isso.
Minha visão começa a esbranquiçar, sem dúvida estou
hiperventilando.
— Posso deixar um pouco mais macia.
Então sinto uma dor aguda na minha nuca que me arranca do
pânico. Esse merda está me cortando! Ele empurra e puxa minha
pele para abrir o ferimento, então força alguma coisa para dentro.
Mas que caralhos está acontecendo?
Jennings se debruça para frente, então sinto seu hálito no meu
pescoço.
— É só uma coisinha para sempre sabermos onde está,
Oleander. Se o sr. Draven precisar de uma ajudinha com você, vou
ser o primeiro a me oferecer.
Um rastreador GPS.
Colocaram a merda de um rastreador GPS dentro da minha pele.
Nem conheci a porra dos meus Vínculos ainda e já os odeio. Sei
que fugi, mas foi por um bom motivo. Não que eu possa contar isso
a eles um dia, não sem arriscar suas vidas de novo. Nem sequer
sabem sobre todas as coisas que tive que abrir mão por eles.
Além disso, sou um ser humano. Um Vínculo. Tenho minha
própria cabeça e tomo minhas próprias decisões. Não podem me
forçar a essa merda!
Um deles literalmente costura a minha ferida, não vejo qual, mas
espero que seja Noakes, então os dois voltam a dar a volta na
mesa, até estarem de novo no meu campo de visão.
Ambos estão na minha lista agora. A porra da lista de pessoas
das quais irei atrás algum dia, quando usar meu poder não for tão
arriscado assim. Vou caçar os dois e transformar minha vingança
em um verdadeiro espetáculo.
— Pode sair agora, Jennings. Consigo lidar com o restante
sozinho.
O poder dele me aperta como um torniquete antes de enfim me
soltar, como se quisesse me lembrar bem de quanto controle tem
sobre mim nesse momento. Inspiro profunda e tremulamente.
Pelo menos eles não tentaram me estuprar de verdade. Tenho
certeza de que posso tirar o GPS se precisar.
— Esse dispositivo pode conduzir uma corrente elétrica forte o
suficiente para te matar se tentar tirá-lo. Eu também poderia deixá-la
inconsciente com ele se quisesse. Toda a sua existência está na
palma da minha mão agora, Fallows. Seus Vínculos estarão aqui em
breve, mas eu queria você de focinheira antes deles chegarem.
Draven é um amigo íntimo meu. Não há muito que eu considere
excessivo quando se trata de manter o Vínculo dele por perto. Você
faria bem em completar o vínculo com ele o mais cedo possível. É
só deitar lá e se submeter.
Certo, só que não.
A bile sobe pela minha garganta ao mesmo tempo em que as
lágrimas de raiva surgem.
Ele sorri e volta a se levantar, gesticulando para a pasta que
deixou para mim.
— Aí estão todas as regras e diretrizes que esperamos de você.
Sugiro que as memorize, viva de acordo com elas. Quanto mais
rápido entrar na linha, melhor vai ser para você.
Após isso, ele se retira.
Estou presa nessa porra de lugar.
 
*
 
Não me dou ao trabalho de olhar o arquivo por enquanto, em
especial porque não quero saber absolutamente nada sobre os
homens com quem estou presa e o que podem fazer. Em vez disso,
passo os dedos sobre o ferimento com pontos na minha nuca,
encolhendo-me com a dor aguda e latejante que sinto. Cretinos de
merda.
Tenho que me controlar, encontrar aquela calma dentro de mim
para não perder o controle do meu dom. Pode parecer perturbador,
mas me acalmo imaginando como eu usaria minhas habilidades
para sair daqui. Planejo cada pequeno momento de como eu
escaparia e como me vingaria daqueles homens que acabaram de
tocar em mim. Repasso esses planos, sem parar, até me sentir
calma de novo.
Os minutos se transformam em horas, até que chega o momento
em que sei que o sol se pôs e ainda estou presa aqui nessa porra.
Preciso fazer xixi com urgência, mas não vou bater à porta e pedir
para ir ao banheiro. Meu estômago começa a roncar. Quando foi
que me acharam e me arrancaram da rua, dois dias atrás? Talvez já
faça três. Eu estava a caminho do trabalho, atrasada e tive que
pular o café da manhã.
Ninguém me deu comida desde então. Um dos motoristas jogou
uma garrafa d’água para mim, que bebi com avidez, mas isso deve
fazer, pelo menos, um dia. Esses caras não têm nem um pouco de
medo de me torturar, porque nesse momento estou me sentindo a
porra de uma prisioneira de guerra.
A porta abre de novo, e dessa vez, uma mulher mais velha, de
aparência severa, entra. Minha perna começa a balançar de forma
ansiosa por baixo da mesa, um velho tique que não consigo largar.
— Me siga, vou te levar para tomar um banho.
Banho? Abaixo os olhos para o desastre em que minhas roupas
se encontram. Provável que eu esteja fedendo também, depois de
dias sem me trocar.
— Ah, sim. Valeu.
Minha cabeça gira quando me levanto. Se é pela perda de
sangue ou fome, não sei, mas a senhora sequer nota que estou
balançando em cima dos meus pés. Ela só torce o nariz para mim,
então se vira e me conduz para fora da sala.
O lugar em que estamos parece ser um prédio comercial, todos
estão vestindo ternos e gravatas. Enquanto percorremos os
corredores juntas, minha pele começa a arrepiar ao sentir os olhos
dos funcionários em mim. Há muita curiosidade e é bastante óbvio
que todos sabem quem sou.
Oleander Fallows.
O Vínculo fugitivo.
A assassina.
Não que saibam que sou uma assassina, tenho certeza de que
tudo isso teria transcorrido de uma forma muito diferente se
soubessem. Um caroço forma na minha garganta quando penso
nisso. Que inferno, esse é o jeito mais rápido de surtar e perder o
controle. Eu me dou uma sacudida. Para de pensar nessa porra, Oli!
O banheiro está até bem limpo e o chuveiro tem um box de
verdade, graças a Deus. A mulher empurra uma sacola para mim,
uma que não notei que ela estava carregando graças ao meu surto,
e ralha:
— Não tenho a noite toda, então é bom você agilizar. Vou te
arrastar pelada daí se precisar.
Certo.
Foda-se essa vaca.
Olho feio para ela e pego a sacola, cambaleando até o box como
se eu fosse uma criança de quatro anos, não a mulher madura de
dezenove que sou. Bem, acho que sou madura. Sobrevivi cinco
anos fugindo, vivendo nas ruas quando precisei. Não foi fácil, mas
era melhor que a alternativa.
A alternativa é isso aqui.
Colocarem um chip em mim e ser forçada a viver com homens
que são biologicamente destinados a serem meus... essa é a pior
porra de infernoverso que posso imaginar. Não que eu os conheça.
Só vi fotos deles, pequenos retratos que me entregaram no dia
seguinte ao da morte da minha família. Mal me lembro da aparência
de qualquer um deles, mas lembro seus nomes.
Tiro minhas roupas e me esfrego, fazendo uma careta para meu
próprio estado. Estou coberta por hematomas. A Equipe Tática não
foi gentil ao me derrubar no chão, três homens adultos se jogaram
em cima de mim. Não diria que sou minúscula, mas porra... um cara
me segurando teria sido suficiente.
Meu cabelo está uma bagunça, então o lavo e seco com cuidado.
As roupas que deixaram para mim são feias, calças de moletom
pelo menos três tamanhos maiores que o meu, e uma blusa de
moletom velha. O cheiro de colônia nelas me dá vontade de vomitar,
meu vínculo é exigente até demais quanto a cheiros.
Ouço a mulher começar a bater o pé no chão e reviro os olhos.
Que vaca.
Saio do box segurando em uma mão minhas roupas velhas
enfiadas na sacola e a escova de cabelo na outra.
— Você não tem tempo para tentar ficar bonita. Duvido que teria
muito resultado, de qualquer forma — estoura a mulher.
Sou uma garota teimosa, o jeito mais fácil de me fazer
desacelerar é jogando esse tipo de insulto em mim.
Então, fico parada ali, na frente do espelho, escovando meu
cabelo lenta e meticulosamente até estar livre de nós, em seguida
faço uma trança. Faço a trança mais complicada que consigo com
só um elástico para prendê-la. Tenho que me concentrar para
minhas mãos não tremerem ao ver os fios prateados, acho que
nunca vou me acostumar de verdade com essa cor.
Ela bufa e resmunga baixinho, mas eu a ignoro. Ela não sabe o
que posso fazer, então está hesitante em tentar de fato me arrastar
para fora. O que é bom, porque como não posso usar minhas
habilidades, seria obrigada a dar um soco na garganta dela.
E eu daria.
Eu desfrutaria de cada merda de segundo disso, também.
Por fim, quando não posso mais procrastinar, a acompanho de
volta à pequena sala de interrogatório que agora é meu inferno na
Terra. Nada mudou, o arquivo ainda está ali esperando por mim. A
mulher me deixa lá sem dizer mais nada.
Dessa vez, cedo e abro a pasta.
Porra.
Que grande erro.
Há fotos atuais dos meus vínculos ali. Merda, se minha vida não
fosse essa porra de zona gigantesca que é, ficaria extasiada. É uma
foto mais sexy do que a outra. Todos eles são ridiculamente bonitos,
até demais para alguém como eu.
Está bem, sei que não sou, tipo, horrível ou coisa assim, mas a
foto de Gabriel o mostra correndo sem camisa, e acho que o cara
tem um tanquinho. Preciso dizer para o vínculo no meu peito manter
a merda da calma, porque não posso ficar com ele. Além disso, de
maneira nenhuma vou poder completar o vínculo com ele.
Eu com certeza não tenho um tanquinho. Tenho uma leve
pochete que diz que gosto demais de chocolate quando meus
hormônios estão em alta e, vou te contar, jamais abriria mão disso
por uma barriga chapada.
De jeito nenhum.
Eu também não tinha percebido que dois dos meus vínculos
eram irmãos. Isso vai ser... diferente. O conselheiro e seu irmão
acadêmico. Que inferno, esse negócio todo é uma droga de
confusão.
Folheio as outras fotos, determinada a encontrar algum tipo de
rota de fuga. Quero dizer, vai ser complicado por causa do GPS
assassino, mas já me livrei de merdas antes. Tenho certeza de que
posso dar um jeitinho, e preciso fazer isso logo. Levo um segundo
para perceber que está faltando uma coisa essencial nos
documentos, e escrutino todas as páginas só para ter certeza.
Os dons deles não estão listados.
Em cada documento há um campo intitulado “dons”, mas foi
deixado em branco em cada uma das páginas. Não há sequer uma
pista que me diga do que cada um deles é capaz, e de repente me
encontro em um desespero insano para saber o que eles podem
fazer.
Ainda estou concentrada nos documentos quando o cadeado da
porta destranca, e sinto o puxão no peito que diz que um dos meus
vínculos está aqui. Cada músculo do meu corpo petrifica enquanto
espero.
Meu corpo inteiro está quase que vibrando de tensão quando a
porta abre e eu olho para cima, fazendo contato visual com o
gostosão do tanquinho em pessoa, mas ele desvia o olhar no
mesmo instante.
Inferno.
Sempre presumi que eles estariam chateados ou decepcionados
comigo, mas não estou nenhum pouco preparada para ver o ódio
puro e simples em seus olhos quando quatro dos meus parceiros
predestinados entram na sala de interrogatório.
Ódio pra caralho.
Engulo e abaixo minha cabeça.
Um deles emite um som de deboche para mim, mas ignoro,
mantendo os olhos colados em minhas mãos, entrelaçadas na mesa
à minha frente. Não preciso ver mais do ódio deles. Já me odeio o
suficiente por todos nós, mais um pouco e talvez eu acabe
encontrando a porra de uma ponte para me jogar.
Assassina.
Não. Não posso pensar nisso agora, ainda mais quando já estou
no meu limite e surtando. Onde foi parar o fogo que havia dentro de
mim? É como se tivesse sido abafado no momento em que eles
entraram na sala.
Ouço cadeiras arrastando, tomo coragem e volto a olhar para
cima. Encaro um de cada vez, analisando-os de forma demorada. É
fácil distingui-los uns dos outros, mesmo sem as fotos espalhadas
em cima da mesa na minha frente.
Gryphon está fazendo uma carranca e parece rabugento, o que
dá ainda mais destaque à cicatriz que atravessa sua sobrancelha.
Ele é exatamente igual a sua foto, incluindo a testa franzida.
Gabriel está mexendo no copo de café em suas mãos, tão
nervoso a respeito disso quanto eu, pelo visto. O bonitão sorridente
não está em nenhum lugar à vista. Quero dizer, ele ainda é bonito,
mas parece... miserável.
Porra.
North, o conselheiro e motivo do meu chip de localização, está
sentado vestindo seu terno perfeito e sob medida. É o único que
tenta disfarçar um pouco o ódio. Está fracassando, mas acho que
sou grata pelo esforço.
Nox só continua me encarando como se eu fosse a pior coisa que
já aconteceu com ele. E porra, talvez eu seja, mas, pelo menos, não
vou ser a pior coisa que já soltaram contra a população inteira do
país.
Posso viver com ser odiada. Já odeio a mim mesma o suficiente
para saber como é fácil me desprezar.
2

FICAMOS ALI, SENTADOS, em silêncio absoluto, pelo que parecem


horas, mas tenho certeza de que são só cerca de dez minutos.
É angustiante. Um pesadelo completo. Ficar ali, sentada, com
quatro dos cinco homens que deveriam se sentir atraídos por mim, e
um dia me amar mais do que tudo no mundo, enquanto eles me
encaram com puro desprezo... Entendo, de verdade, sei o que fiz,
mas isso não significa que não seja insuportável pra caramba.
Por fim, Gabriel bufa e estoura:
— Será que sequer devíamos nos incomodar de perguntar onde
diabos você esteve? Ou por que foi embora?
É difícil, mas me controlo para não me encolher com a acusação
de traição em seu tom de voz. North e Gryphon me observam com
atenção, mas é o sorrisinho malicioso no rosto de Nox que faz os
pelos da minha nuca arrepiarem. Ele não apenas me odeia... ele
está pronto para me torturar, para buscar algum tipo de vingança por
tê-lo deixado.
Inspiro fundo e expiro bem devagar, pronta para qualquer que
seja o veneno que ele vai cuspir em mim. Posso ver que está se
enchendo dele aos poucos, e é questão de tempo até que exploda.
— Você tem sido bem difícil de encontrar. Desperdicei muitos
recursos te rastreando — diz North, tirando alguma poeira invisível
de seu terno.
Ele e Nox são muito parecidos, com olhos escuros e cabelos
pretos como breu. O de North é curto e penteado com perfeição,
enquanto o de Nox é mais comprido e se curva de leve em volta de
suas bochechas. Os dois são frios como gelo, com completa
indiferença para o que está acontecendo.
Meu vínculo começa a se afligir no meu peito, mas mando ele se
lascar.
Fiz o que tive que fazer por todos nós.
Gryphon não diz uma palavra. Só faz uma carranca para mim
como se estivesse tentando encontrar alguma coisa escrita sob
minha pele, algo que só acharia se encarasse o suficiente. Mas sou
boa demais em continuar uma perfeita tela em branco, então ele
não vai arrancar nada de mim hoje.
Nox zomba:
— Eu fiquei imaginando como você estava sobrevivendo por aí.
Suponho que estava se vendendo, já que não tem mais nada a
oferecer. Vou ter que esperar o resultado dos exames chegarem
antes de completar o vínculo e pegar de você o que é meu por
direito.
Com a porra da licença?
O que é desse filho da puta por direito?
Isso me ajuda a lidar com toda a lamentação do meu vínculo
dentro de mim, porque nem ferrando vou deixar um riquinho
convencido me dizer que meu valor se resume a uma foda rápida
para completar nosso vínculo e lhe dar mais poder.
De jeito nenhum, porra.
Ranjo meus dentes e tento falar de forma civilizada.
— Isso é presumir que eu queira que você toque em mim. Nem
fodendo, Draven.
O sorrisinho só aumenta.
— E como exatamente vai me impedir, Vínculo? Seu exame de
sangue não mostrou sua habilidade, está escondendo suas presas
de nós? Ou você é sem dom e a porra de um completo desperdício
de tempo?
Por acaso ele acabou de... dizer que vai me atacar? Estou
prestes a meter meu pé no saco dele e encerrar essa conversa, mas
seu irmão vem ao resgate.
North desliza um envelope grande e grosso por cima da mesa em
minha direção, enquanto me olha de nariz empinado.
— Esse telefone tem que ficar com você o tempo todo também.
Se eu te ligar, você vai atender. Se eu tiver que te ligar uma
segunda vez, as consequências serão severas. Se não atender, vou
presumir ou que você fugiu ou que foi sequestrada, e vou mandar
cada recurso sob meu controle atrás de você. Está entendido,
Fallows?
Fallows, como se eu fosse uma de suas subordinadas. Falo
entredentes:
— Entendido.
Nox zomba.
— Com ele você é bem agradável. Parece que vai conseguir seu
vínculo no fim das contas, irmão.
Meus olhos disparam de volta para ele.
— Não vou tocar em nenhum de vocês. Se tentarem relar um
dedo em mim, cometerão um crime, e vou ficar com prazer diante
do Conselho e contar pra eles o quanto, sem sombra de dúvidas,
não quero nenhum de vocês.
Gabriel se levanta de forma abrupta e sai batendo a porta com
força atrás de si. Mas estou furiosa demais para me sentir mal a
respeito, e minha atenção está toda em Nox e na bosta da atitude
dele.
Não querer que eles me toquem vai muito além da parte
emocional. Claro, não quero caras que me odeiam tentando me
arrastar para a cama só para fortalecer suas habilidades, mas ter
minhas habilidades ampliadas?
Porra. Não.
Absolutamente não.
— Volto amanhã de manhã para te levar ao seu dormitório. O
arquivo que Noakes te deu tem tudo de que precisa saber sobre sua
vida agora. Leia, aprenda e viva de acordo. Esse é o único caminho
que você tem, Fallows.
Então ele se levanta, acompanhado dos outros dois, sai pela
porta e a tranca com firmeza atrás deles.
Estou presa nessa porra de sala mais uma vez.
E, ainda assim, ninguém me traz comida.
 
*
 
Mal consigo dormir.
A cama é terrivelmente desconfortável, as molas cutucam minhas
costas e o cobertor fino não contribui em nada para me manter
aquecida.
Pela manhã, uma mulher diferente aparece para me levar ao
banheiro, e as roupas que ela me entrega são muito melhores do
que o pesadelo do conjunto de moletom de ontem. Há calcinha e
sutiã limpos, um vestido e botas na altura do tornozelo. Meu
estômago está doendo de fome, as bolachas secas que me deram
na noite anterior não estavam nem perto de ser comida suficiente
para me manter de pé e, depois de passar uma noite trançado, meu
cabelo está uma bagunça.
No entanto, esta mulher é pouco mais gentil. Ela me ajuda com
meu cabelo e até me entrega uma bolsinha com maquiagem dentro.
Sorrio para ela.
— Obrigada. Sinto muito que tenha ficado de babá hoje.
Ela sorri de volta para mim, negando brevemente com a cabeça.
— Não me incomodo tanto. Tenho certeza de que a Olivia foi um
pesadelo com você ontem.
Olivia, então esse é o nome da vaca.
— É, ela não estava muito feliz de ficar comigo. Não sei bem o
porquê ela me odeia tanto.
A mulher faz uma careta.
— Ela é... apaixonada por um dos seus Vínculos.
Ah.
Ah, porra.
— Sinto muito. Sei que deve ser difícil ouvir isso. Não tenho
certeza se Gryphon algum dia... correspondeu.
Gryphon. Meu Vínculo silencioso, com cicatrizes, que usa coturno
e olhou para mim como se eu não fosse nada para ele. Como se
não estivesse nem aí se voltei ou não.
Tenho que ignorar meu vínculo chorão de novo e, porra, espero
que isso não vá ser uma ocorrência habitual agora. Será que
sempre vou ter que lidar com isso no meu peito, esse desejo por
homens que não posso ter? Acho que preferiria morrer. Enterro bem
aquele o sentimento, cada vez mais fundo, até conseguir respirar de
novo.
— Obrigada por me avisar. Só achei que todos na nossa
comunidade me odiassem por fugir. Sei que não é... algo que
aconteça muito.
A mulher, droga, eu devia perguntar o nome dela, nega com a
cabeça.
— Não acontece muito, mas... no fim das contas, se não quiser
completar um vínculo, é escolha sua.
Dou um sorrisinho.
— Enfiaram um chip em mim como se eu fosse um cão de rua,
não é mais escolha minha.
Ela abaixa a cabeça, seu desconforto com o que seus superiores
fizeram era evidente, mas não o suficiente para me ajudar, e deixo
para lá. Ela foi bem gentil comigo, e a maquiagem significa que vou
para a faculdade hoje sem parecer um caos completo.
Vou me contentar com o que me derem, por enquanto.
Ela me conduz de volta à sala de interrogatório, onde
encontramos North esperando por mim, em outro terno imaculado e
recém passado, com o celular na mão.
— Obrigado, Carrie. Ela está uma aparência bem melhor hoje.
Ele fala sem me olhar uma única vez, mas o sorriso que oferece
a Carrie é caloroso e gentil. Então existe uma alma em algum lugar
ali, por baixo do terno e gravata.
Seus olhos estão muito menos gentis quando por fim me
encontram.
— Temos uma reunião com o reitor da Universidade Draven,
depois vou te levar ao seu dormitório.
Eu lhe dou um aceno breve com a cabeça, não é como se
pudesse dizer não para ele, de qualquer modo, então o acompanho
para fora do prédio. Ele acena e sorri para a maioria das pessoas
por quem passamos, e todos me olham como se eu fosse algum
tipo de experimento científico. Minha pele fica arrepiada de modo
desconfortável com toda essa atenção. Fiz tudo que podia para me
camuflar nos últimos cinco anos, então, de repente, estar no centro
das atenções é... chocante, desagradável e esquisito pra caralho.
Um Rolls-Royce com motorista está esperando na calçada, e por
um segundo rezo para que não esteja aqui por nossa causa.
É claro que está.
A porra do North Draven tem um motorista para seu Rolls-Royce.
Quero vomitar. Não é à toa que todo mundo me odeia. Eu sabia que
ele era um conselheiro, mas não estava esperando esse tipo de...
riqueza. O tipo que vem com motoristas e ternos e só o diabo sabe
mais o que.
Meus pais tinham boas condições, mas nem eles tinham uma
droga de motorista.
— Vai entrar no carro ou vou ter que te forçar? Vai lutar comigo a
cada etapa do dia hoje? Estou tentando ser civilizado.
Isso é civilidade? Puta merda.
— Sua demonstração obscena de riqueza me distraiu.
Ele abre a porta do carro para eu entrar, em um show de
cavalheirismo completamente falso.
— Obsceno? Isso é uma necessidade.
Meu estômago ronca quando entro no veículo.
— Fico feliz que seu motorista seja uma necessidade, mas me
deixar comer não.
Ele se senta ao meu lado e me olha de esguelha.
— Eles não te alimentaram?
Semicerro meus olhos para ele.
— É seu pessoal, certo? Então você deveria saber que faz quatro
dias desde a última vez que comi. Eu tenho um pouco de dinheiro,
me ofereci para comprar alguma coisa, mas me disseram que era
para esperar por você. Então é, vamos logo com isso aqui porque
estou prestes a desmaiar nessa porra.
Ele não demonstra nenhuma reação, só pisca para mim.
— Eles sabem muito bem que não era para te deixar morrer de
fome. Se o que está tentando é despertar compaixão, então está
enganada.
Certo.
Foda-se ele, cansei de ser civilizada.
Cruzo os braços e fecho a boca. Não digo outra palavra para ele
durante o restante do trajeto até o campus da faculdade. A
paisagem lá fora é bonita, mas não o suficiente para me animar.
Merdas de vínculos. Eu sabia que seria ruim, mas não estava
esperando sentir... tanto. Sinto tudo através do vínculo dentro de
mim, cada olhada feia e palavra ríspida corta minha alma como se
fosse uma faca.
Quando o carro enfim estaciona, North sai e abre minha porta de
novo, um perfeito deboche de cavalheirismo, porque agora estou
tonta de fome.
Foda-se ele.
Vou continuar pensando isso até ele desaparecer.
Ele me conduz em direção ao prédio e para dentro, encantando a
todos no caminho com os mesmos sorrisos cálidos, e começo a
achar que eu poderia vomitar assistindo isso. É tudo tão falso.
O reitor nos recebe assim que chegamos, ele nos acomoda e em
seguida sai apressado do escritório para buscar a papelada.
Suponho que essa seja o melhor momento de dizer a North que
larguei os estudos enquanto estava fugindo e que, de jeito nenhum,
vou conseguir entrar nesse lugar, nem mesmo com a ajuda dele.
E o nome dele está na porra do prédio.
Os olhos de North estão gélidos enquanto me observa.
— Como assim você não terminou o ensino médio?
Apesar de todos os meus esforços, minhas bochechas coram de
vergonha. Maldito seja, por que algumas simples palavras dele têm
a habilidade de picotar a merda do meu coração?
— Me mudava demais, não tinha como permanecer na escola.
Passei todo meu tempo livre em bibliotecas, fazendo o que podia
para estar sempre aprendendo, mas não quero dizer isso a ele. E se
ele rir de mim? E se eu parecer patética aos olhos dele, mais do que
já pareço?
A mandíbula dele contrai e espero pelo seu comentário mordaz.
Meu coração está na garganta de novo, não importa o quanto eu
engula para tentar fazê-lo descer. Preciso ficar mais resistente perto
desse cara. Por que os outros não me afetam desse jeito?
A porta do escritório volta a se abrir e o reitor entra, com uma
pilha de papéis nas mãos.
— Aqui está tudo que você precisa para se matricular, só precisa
entregar seu histórico do ensino médio e documentos.
Não tenho nenhum dos dois.
Abro a boca, mas North me interrompe:
— Enviaremos tudo esta tarde. Se estiver tudo bem para você,
temos outros compromissos a que precisamos comparecer hoje.
O reitor concorda e entrega os documentos enquanto nós dois
nos levantamos. Não faço ideia de como North pretende entregar
coisas que não existem, mas fico de boca fechada. Não há
necessidade de cutucar a onça.
Me pergunto se ele é mesmo uma onça? Mas não sei por que
fariam tanto segredo sobre ele ser um metamorfo, então não faz
muito sentido, mas talvez seja por isso que eu o temo tanto. Talvez
sejam meus próprios instintos dizendo que, vinculados ou não, ele
não é coisa boa. Porra.
Ele posiciona uma mão firme na base das minhas costas e me
conduz para fora da sala. Eu me encolho, mas consigo me impedir
de me afastar dele, graças a Deus. Ele não percebe, só me empurra
para fora do prédio e para dentro de seu carro, sendo que o
motorista abre a porta para nós dois e depois nos fecha de forma
resoluta, juntos no banco de trás.
Quero sair da minha própria maldita pele.
— Algum problema, srta. Fallows? — pergunta ele com os olhos
fixos no celular. Ele não se importa nem um pouco comigo, só com a
porra do nosso vínculo.
— Nadinha. Nenhum problema mesmo. — Não consigo evitar
que minhas palavras saiam encharcadas de sarcasmo.
Ele estreita os olhos para mim.
— Entendo que você é uma adolescente petulante, mas se puder
tentar ser civilizada, isso vai ser muito mais tranquilo para todos nós.
Porra, está quase me matando não poder contar a ele, ter que
guardar meus segredos e não jogar em sua cara, mas meus lábios
continuam selados.
— Nada a dizer? Me pergunto por que é que fui amaldiçoado com
um Vínculo egoísta? Já é ruim o suficiente que você seja
praticamente uma criança, simples e sem graça. Considerando o
poder de todos os seus vínculos, presumi que você seria algo...
espetacular. Que decepção.
Não vou chorar. Porra, não vou chorar.
O motorista estaciona na frente das acomodações estudantis e
logo sai para abrir a porta.
Pisco para afastar as lágrimas.
— Existe algum motivo para estarmos aqui? Não posso
frequentar a universidade.
North gesticula para que eu saia antes dele, seu olhar está
ríspido e cortante.
— Vai cursar. Farei os arranjos necessários. Sugiro que aproveite
seu tempo aqui com sabedoria, não vou tolerar preguiça e se você
acha que ter Vínculos ricos significa que não vai precisar trabalhar e
se sustentar, bem... entendeu tudo errado.
Meu rosto arde como se ele tivesse me dado um tapa. Por acaso
ele acabou de... me chamar de uma droga de interesseira? Caralho,
que petulância a desse cara.
Prefiro morrer a completar meu vínculo com ele.
— Obrigada pela carona e por mexer seus pauzinhos por mim. —
Quase engasgo com as palavras, mas de jeito nenhum vou deixá-lo
me chamar de criança petulante e egoísta de novo.
Ele sai do carro depois de mim, que droga, e acena para o
motorista.
— Vou te acompanhar até lá em cima. Há outras coisas que
precisamos discutir sobre nossa situação.
Ah, porra nenhuma.
Se ele está achando que vai formar o vínculo comigo agora, só
para pegar o poder extra que quer de forma tão desesperada, vai ter
uma surpresa.
Por que não tenho uma faca ou uma arma, ou algo do tipo?
Preciso me proteger contra esses caras.
Eu o acompanho escada acima, e o examino de forma
meticulosa. Ele é pelo menos trinta centímetros mais alto do que eu
e preenche bem o terno. Mais cedo, quando tropecei e ele me
segurou, não senti nenhuma suavidade nele. Todo o seu maldito
tronco era duro feito uma pedra. Qual parte do seu trabalho em
escritório o deixa tão musculoso assim?
Em resumo, com exceção de usar meu dom, o que não posso
fazer em circunstância alguma, não tenho nenhuma chance de me
defender se ele tentar forçar o vínculo. Preciso de um spray de
pimenta ou uma arma. Sorrio quando minha mente conjura como
seria a imagem de seu rosto caso eu apontasse uma arma para ele.
É boa pra caralho.
Recebemos muitos olhares curiosos enquanto nos locomovemos
através do dormitório, e mais do que alguns poucos sorrisos de
flerte. Todo o rosto de North se transforma na máscara
deslumbrante, sorridente e acolhedora de um político bajulador. Não
consigo conter meu revirar de olhos. É claro que ele é adorado. É
claro que ele é o tipo de homem por quem as outras mulheres ficam
molhadas.
Com toda maldita certeza que é.
Ele me conduz por uma escadaria... Por que diabos não tem um
elevador aqui? Em seguida, aponta para um quarto no fim do
corredor, indicando para eu entrar antes. O quarto é simples, não
tem nada além de uma cama velha de aparência frágil no canto e
uma escrivaninha de madeira barata.
— Este é seu quarto e onde você vai passar todas as noites. Vai
estar aqui às seis e não vai sair de novo até às sete da manhã.
Quaisquer exercícios, grupos de estudo ou socialização deverão
ocorrer fora desses horários. Vai comparecer a todas as aulas,
entregar todos os seus trabalhos e ser aprovada em cada disciplina.
Eu não estava ciente dos vácuos na sua educação quando te
matriculei, mas tenho certeza de que vai conseguir acompanhar.
Minhas bochechas queimam de novo e engulo a fúria que sua
ousadia está fazendo crescer em minhas entranhas.
— E se eu não obedecer a essas suas regrinhas?
Ele enfim se vira para me olhar e passa uma mão pela linha de
botões em seu paletó feito perfeitamente sob medida.
— Deixar você aqui, onde posso ficar de olho em você, é um jeito
de te dar liberdade. A alternativa é te acorrentar pela garganta no
piso do meu porão. Eu não gostaria de fazer isso, mas não se
engane, Fallows, vou te manter aqui.
O ar escapa chiando dos meus pulmões.
Meu vínculo é a porra de um psicopata.
Ele avança para a porta de novo e para com a mão na maçaneta
quando me dirige um último olhar.
— Você não é capaz nem de começar a compreender o dano que
causou ao nos deixar. Pretendo garantir que não aconteça outra
vez. Faria bem em aprender sua lição aqui e se submeter.
Então, ele se vai e sou deixada encarando o batente vazio com
um olhar perdido.
Submeter.
Acho que prefiro morrer.
3

JÁ TIVE O SONHO DE PODER frequentar a Universidade Draven.


De todas as faculdades do país que se dedicam aos Favorecidos,
Draven é famosa por ser a melhor. Ela oferece todas as mesmas
matérias regulares que as instituições humanas, mas com aulas
estruturadas de modo específico para nós, como História dos
Favorecidos e Introdução ao Controle de Impulsos.
No entanto, tive que abrir mão de qualquer esperança de um
diploma superior quando fui forçada a abandonar a escola e fugir,
então, embora eu esteja furiosa e frustrada por ser submetida a ficar
nesse lugar, acho que também estou bastante grata por ter a
oportunidade de estar aqui e estudar em uma faculdade tão
respeitada... pelo tempo que isso durar. Não significa que não estou
tentando achar um jeito de escapar, enquanto a Resistência estiver
atrás de mim, não vou me sentir confortável parada em um lugar só,
mas vou absorver o máximo de informação e conhecimento que
puder.
Levanto-me cedo no meu primeiro dia, meu estômago está se
revoltando de ansiedade, e tomo cuidado extra com minha
aparência. Minha bagagem já estava no quarto quando North me
deixou aqui, eu não sabia nem que a Equipe Tática tinha pegado
minhas coisas quando me encontrou.
Não tenho roupas de grife como a maioria das outras garotas do
dormitório, mas posso parecer limpa e bem-arrumada, que é o que
importa de verdade. Espero não chamar muita atenção, só quero
me camuflar até conseguir escapar daqui.
Quando já estou trançando meu cabelo, meu celular vibra com
uma mensagem de North. Meu estômago revira quando vejo o
nome dele, mas o texto em si não é tão ruim.
Gabe irá buscá-la em seu dormitório para escoltá-la às suas
aulas desta manhã.
Então, tenho meu próprio segurança para me levar ao prédio.
Ótimo. Mas suponho que, de todos os meus vínculos, Gabe é quem
eu escolheria para me acompanhar. Ele parecia tão infeliz quanto eu
me sentia ontem à noite, então, com sorte, isso significa que não vai
tentar conversar comigo. Podemos só ir até o prédio juntos em um
silêncio completo. Eba.
Quando estou pronta, sento-me na cama e olho para meu quarto
vazio enquanto o espero chegar. Posso fazer isso, claro que posso
alcançar o nível de todos ao meu redor. Não é nada demais, já
passei tanto tempo em bibliotecas lendo e usando a internet, vou
ficar bem. Continuo dizendo isso para mim, várias vezes, e rezando
muito para ser verdade.
A batida em minha porta me arranca de vez do meu transe.
Levanto e penduro minha mochila no ombro, ajeitando a barra da
camiseta por um instante para atrasar a abertura da porta por mais
um segundo. Inspiro fundo e abro de uma vez, colocando um sorriso
falso na cara.
Meu coração saltita com a perfeição que é meu Vínculo, então
me lembro de que ele me odeia e que preciso vazar logo daqui
antes que todos sejamos assassinados pela Resistência enquanto
nossas guardas estão baixas.
Porra, não posso pensar neles agora.
Não sem minhas mãos começarem a tremer e meu corpo todo
suar.
Os olhos dele se arrastam pelas minhas roupas, um pouco
avaliativos demais para meu gosto, então diz:
— Melhor que da última vez que te vi, acho. Como foi sua
primeira noite no dormitório?
Foda-se ele, não vou morder a isca. Ao invés disso, finjo
indiferença.
— Foi tudo bem. Já dormi na rua antes, isso aqui é bem melhor.
Ele faz uma careta para mim, curvando um pouco o lábio, então
acena com a cabeça para o acompanhar, como se eu fosse a merda
de um cachorrinho. Andamos juntos pelo corredor e noto todo o
interesse que ele recebe das outras garotas daqui. Em minha
mente, não me importo com isso, sei que ele me odeia, sei que
todos eles me odeiam, mas é como se eu sentisse o vínculo em
meu peito protestar contra essa atenção. A falta de interesse que
ele está me demonstrando é como sal na ferida, e não tem nada
que eu amaria mais do que arrancar esse vínculo de mim e vê-lo
desaparecer. Se pelo menos esse fosse meu poder. Em vez disso,
faço o que faço de melhor: tiro meu vínculo da minha cabeça e tomo
o cuidado de deixar meu rosto inexpressivo.
Gabe não percebe a batalha interna que estou travando. Não, ele
está ocupado demais flertando no caminho pelos corredores,
piscando para as garotas na escada, e até mandando a droga de
um beijo para a assistente do prédio. Porra, ele é um galinha, com
certeza dormiu com metade das garotas aqui, e seu plano de ir para
a cama com o restante mais tarde já está em andamento.
Quando chegamos do lado de fora, fico surpresa quando ele se
vira para mim, sem todos aqueles sorrisos fáceis e brilho nos olhos.
— Você pelo menos se importa, porra? Se importa com qualquer
um além de si mesma?
Eu me seguro para não me encolher e endireito meus ombros,
olhando ao redor como se não soubesse em que direção estamos
indo, quando na verdade, pesquisei meus arredores de modo
obsessivo no Google na noite passada.
— Se precisa desabafar alguma coisa, pode fazer isso agora.
Ele segura meu braço e coloca um pedaço de papel na minha
cara.
— Se um cara enfiasse o número do celular dele no seu bolso
perto de mim, eu rasgaria a porra da garganta dele, mas você tá aí,
imperturbável e pronta pra merda da aula?
Pisco para ele como uma idiota. Ele está de brincadeira comigo?
— Então você quer que eu fique puta com as garotas que estão
flertando com você? Não é como se você tivesse tentado impedir.
Por que eu deveria dar a mínima pra onde você enfia seu pau?
Se eu achava que ele estava extremamente irritado antes,
subestimei sua raiva.
— Nox estava certo. Você é só uma vaca egoísta. Que porra a
gente fez para merecer um Vínculo como você?
Ele solta meu braço como se eu tivesse alguma doença e sai
andando, sem esperar por mim para atravessar a rua.
Digo a mim mesma que isso é bom, que quanto mais meus
vínculos me odiarem e quiserem distância de mim, mais rápido
posso fugir de novo, mas suas palavras deixam meu próprio vínculo
devastado pra caralho dentro de mim.
Tenho que correr para alcançá-lo, porque não quero de jeito
nenhum que North encha o meu saco por ficar para trás assim tão
cedo. Chegamos no campus bem a tempo para a primeira aula, e
logo fica bem óbvio que todos nessa faculdade sabem exatamente
quem sou.
Ninguém quer olhar para mim ou falar comigo. Isso só piora no
decorrer do dia, cada vez que me sento em uma sala, descubro que
todos os lugares ao meu redor permanecem vazios. Gabe tem as
mesmas aulas que eu o dia todo, algo que sei que foi planejado de
forma minuciosa, mas ele se senta o mais longe possível de mim
todas as vezes, e cada aluno aqui faz o mesmo.
É como se eu estivesse com a praga.
Depois de cinco anos fugindo, nunca me senti tão solitária na
vida como me sinto aqui. Começou como um rebuliço ansioso no
estômago enquanto andávamos, mas no momento em que fomos
dispensados para o almoço, esse rebuliço tinha se tornado um vazio
profundo. Quero vomitar.
Penso em repreender com meus Vínculos quanto a isso, dizer a
eles que nunca vou completar nosso vínculo se é desse jeito que
vão me tratar, mas, ao invés disso, fico de boca fechada e ignoro
tudo o melhor que posso. Não melhora nem um pouco quando
chegamos à cafeteria para almoçar. Gabe continua rindo e flertando
o caminho todo, e me olhando feio de esguelha, coisa que faço de
tudo para ignorar. Nem me dou ao trabalho de olhar as opções de
comida do dia, apenas encho o prato sem prestar atenção. Era difícil
arranjar comida e eu nunca desperdiçaria nada. Nunca cheguei ao
ponto de passar fome, graças a Deus, mas também vou desfrutar de
ter acesso fácil a alimento.
Gabe é muito mais seletivo quanto a esse assunto. Ele parece
um garoto propaganda de nutrição saudável: proteína, vegetais e
uma pequena quantidade de carboidratos ricos em amido. Balanço
a cabeça para ele sem nem perceber o que estou fazendo.
— O que foi? Acha que fiquei tão bonito assim comendo
porcaria? — ele diz, e quase parece que está flertando comigo.
Esse garoto conseguiria me dar dor de cabeça.
— Eu realmente não tenho como me importar menos com
qualquer coisa que você faça — digo, dando um olhar apático para
ele.
Seus olhos estreitam em um olhar irritado e resmunga:
— Porra de vaca insensível.
Pois é, essa sou eu todinha.
Tão insensível que fugi das pessoas predestinadas a me amarem
para tentar impedir o fim da merda do mundo como conhecemos.
Totalmente uma vaca maldita.
Sento-me à mesa com lugar livre mais próximo e os três alunos
que já estão sentados ali se levantam e vão embora. Reviro os
olhos, já meio que estou ficando imune a isso, e começo a comer.
Assaram a pizza um pouco demais, mas ainda está gostosa o
suficiente.
Gabe se senta comigo, que droga.
— Precisa de mais alguma coisa? — digo de boca cheia, porque
duvido que a opinião dele a meu respeito possa piorar mais.
Ele me dá um sorrisinho por trás de seu prato saudável.
— Você tem sido objeto de interesse hoje. Estou me certificando
de que todos saibam que você não está disponível.
Não consigo evitar de olhar para ele de boca aberta.
— Interesse? As pessoas estão me tratando como se eu
estivesse doente, duvido que qualquer um aqui tenha qualquer tipo
de interesse em mim. Qual seu objetivo verdadeiro aqui?
Ele encolhe os ombros.
— Já te disse, estou me certificando que você não pense em fugir
com mais ninguém. Você pode achar que seus Vínculos não são
bons o suficiente, mas se arrumou hoje para chamar a atenção de
alguém.
Certo, ele com certeza está gozando com a minha cara.
Não é possível que ele realmente pense que meu jeans e
camiseta de brechó sejam “se arrumar”. Meu Deus, por que ele tem
que ser tão babaca assim? Já entendi, todos eles me odeiam, mas
então é só me deixar em paz.
Entro na defensiva, minha boca sempre fica afiada quando
preciso.
— Então, quando você quer completar o vínculo? Posso te
encaixar na programação da semana que vem.
Ele joga a cabeça para trás.
— Quê?
Dou um sorrisinho.
— Você me quer, certo? É por isso que ficou tão chateado por eu
ter ido embora? Bom, dou pra você e a gente acaba logo com isso.
É só me dizer quando.
Isso causa o exato efeito que eu estava esperando, a cabeça
dele balança para trás como se ele tivesse sido estapeado. Ele sem
dúvida é um romântico, alguém que ficou devastado quando fui
embora, provável que já tinha planejado toda a nossa vida juntos,
antes de sequer saber que eu existia.
— Acho que preferiria ter qualquer porra de Vínculo, menos você
— resmunga, e eu encolho os ombros.
— Sinto o mesmo. Me deixe comer sozinha, não é como se eu
pudesse ir a qualquer lugar, agora que vocês colocaram essa merda
de chip em mim.
Ele forma um vinco entre as sobrancelhas, então empurra o prato
para longe e sai dando passadas furiosas em direção à porta.
Enfim, paz e silêncio.
Porém, aquilo só dura cerca de um segundo.
Uma garota quieta e tímida se aproxima e desliza bem devagar
para a cadeira à minha frente. Ela está de cabeça baixa e suas
mãos tremem um pouco quando as estende em direção ao seu café.
Tento não encarar demais, é evidente que tem alguma coisa rolando
com ela, mas meus olhos apenas continuam se voltando para ela.
— Espero que tudo bem eu me sentar aqui — murmura, e eu
concordo com a cabeça.
— É claro. Tem certeza de que quer se sentar com a pária social?
Ela dá de ombros e um sorriso curva os cantos de seus lábios.
— Tem um espaço ótimo para os braços aqui e ninguém vai
chegar perto, graças a Gabe.
Meu humor azeda.
— Você o conhece?
Meu tom mordaz a faz se encolher.
— Todo mundo conhece seus vínculos. Desculpa, não somos
amigos nem nada, só sei que você fugiu pois... bom, todo mundo
sabe disso.
Não é novidade para mim, mesmo assim dói. Eu me pergunto
quanta merda eles tiveram que aguentar por eu ter ido embora,
então penso a respeito da recepção fria de North e dos olhos cheios
de aversão de Nox. Não, acho que não me importo.
Pelo menos eles tinham uns aos outros. Eu não tinha ninguém.
— Não era minha intenção te deixar constrangida. Só queria
comer em paz — murmura ela, arrancando-me de minhas reflexões.
Franzo a testa.
— E por que não iria comer em paz?
A garota revira a salada. Sua comida tem uma aparência ainda
mais triste do que a de Gabe.
— Meio que sou uma pária aqui também. Meu Vínculo prefere
sua outra Vinculada. Riley já deixou claro que não sou boa o
suficiente pra ele. Ele já se formou, mas Giovanna ainda frequenta
Draven. Ela odeia não ser o centro do Vínculo, então decidiu que
me arruinar seria a missão da vida dela. Pronto, acho que agora
estamos quites. Sabe todas minhas merdas também.
Não deixo de notar a distinta escolha de palavra aqui: Vinculada.
No nosso mundo, uma pessoa é sempre o Favorecido Central no
vínculo, destinada a estar com duas ou mais pessoas. Uma vez que
o Centro completa seu vínculo através do sexo, eles se tornam
Vinculados, algo reverenciado e extremamente almejado. Seu poder
cresce e todos forjam uma ligação inquebrável.
O Vínculo dela escolheu ter isso com a outra garota, mas não
com ela.
Eu já o odeio.
Minha pele formiga sob minhas roupas.
— Mas você quer mesmo ficar perto de alguém que rejeitou seus
Vínculos? Quero dizer, você meio que está do outro lado disso.
Eu devia apenas calar minha boca e aceitar a amizade, porque
muito provável que essa será a única oferta de uma que irei receber,
mas nunca fui boa em fingir esse tipo de coisa.
Ela sorri para mim e concorda com a cabeça.
— O fato de você não fazer ideia de quem sou, ou qualquer coisa
sobre a baderna que é meu Vínculo, faz de você a pessoa perfeita
com quem fazer amizade aqui. Meu nome é Sage, a propósito, e eu
não me incomodaria de passar o tempo com você. Eu poderia te
ajudar com seus trabalhos, sei que deve ser difícil entrar no meio do
semestre. Além disso, ter uma mesa inteira só para nós vai ser...
legal.
Acho que é um jeito de ver as coisas.
 
*
 
Já que meu dia está amaldiçoado pra caramba, minha primeira
aula depois do almoço é História dos Favorecidos. No geral, isso
seria bem a minha praia. Amo aprender sobre de onde viemos e
como nossas habilidades se desenvolveram. O problema?
Meu horário mostra que o professor é Nox Draven.
Caralho, alguém me mate agora.
Dos quatro vínculos que conheci até então, ele foi o que deixou
mais explícito seu ódio e desprezo por mim.
Enquanto entro com Sage no auditório, meus olhos são no
mesmo instante atraídos para a frente da sala, onde Nox está
conversando com duas alunas do sexo feminino, uma das quais
está acariciando seu braço e dando risadinha.
Ótimo.
Meu estômago revira e digo para meu vínculo idiota superar isso,
ele me odeia e eu acho que ele é um cuzão egocêntrico. Não ajuda
nada todos os olhos da sala estarem em mim enquanto desço os
degraus devagar para me sentar o mais longe possível de Gabe,
que está sorrindo abertamente para Nox. Eu me sento e ignoro tudo
isso.
É claro que acabei com Vínculos que são gostosos pra caralho e
populares, pilares de nossa sociedade e reconhecidos por seus atos
de serviço.
É claro que eu sou a vilã.
Quer dizer, sou mesmo a vilã dessa história no momento. Mesmo
que eles soubessem como foram os últimos cinco anos para mim...
mesmo assim, é provável que continuaria sendo a inimiga. Não que
eles vão descobrir um dia. Se o fizerem, eles morrem. Seria o
momento exato em que a Resistência chegaria aqui e mataria todo
mundo. Mas não eu, não, comigo eles ficariam.
Sou valiosa demais para morrer com dignidade.
Graças a Deus, Sage está aqui comigo e tenho alguém com
quem revirar meus olhos para a absoluta bobagem acontecendo
nessa sala. Os murmúrios nem sequer são sutis, todos estão
apenas falando abertamente sobre a bosta que eu sou.
Fazer o quê.
— Uau. Ele tá muito chateado com você, não é? — sussurra
Sage, enquanto tira o notebook da mochila e se acomoda.
Encolho os ombros.
— Chateado significa que ele poderia superar. Tenho quase
certeza de que passamos desse ponto e estamos firmes na fase
“espero que Fallows morra”.
Sage faz uma careta.
— Isso é... de fato muito horrível. Giovanna também é assim.
Encolho os ombros de novo. Não posso fazer nada quanto a isso,
exceto encontrar uma saída desse buraco infernal antes de acabar
causando a morte de todo mundo.
Mesmo quando a sala termina de encher, os assentos ao nosso
redor continuam vazios, como se estivéssemos com uma doença
contagiosa ou algo assim. Os sussurros não são nem um pouco
discretos, ninguém aqui dá a mínima para o que penso sobre todos
estarem falando sobre mim.
Ao menos, sou grata pela porra do espaço para os braços que
essa merda me proporciona.
Por fim, as garotas que estão na frente se afastam de Nox e se
sentam na primeira fileira, mas continuam com os risinhos
assanhados barulhentos, mesmo enquanto o resto da sala começa
a fazer silêncio. Meu vínculo se contorce nas profundezas de
minhas entranhas, infeliz com essa situação toda, mas eu o esmago
lá mesmo.
— Certo. Silêncio, todo mundo! Temos um monte de matéria para
cobrir hoje.
A classe silencia bem rápido, todos os caras parecem respeitá-lo
e as garotas da turma estão de olho nele. Até as que são
Vinculadas estão olhando para ele em apreciação, e eu entendo.
Ele realmente é gostoso pra caralho, mas também é um otário,
então suponho que o segundo cancele o primeiro.
Ele não olha para mim nem uma vez depois que começa a aula,
mas dispara olhares de flerte para as garotas da primeira fileira
durante todo o tempo em que está falando.
— Então, na semana passada, paramos no começo da cisão
entre os Favorecidos e ascensão da Resistência. Alguém aqui se
lembra do primeiro ato de violência da Resistência contra os
Favorecidos?
Uma das garotas ergue a mão, estufando o peito e arqueando a
coluna como se estivesse em um estúdio de filme pornô e não em
uma sala de aula. Porra, a ideia de passar os próximos três anos
presa aqui com essas meninas... não, isso seria um nível novo de
estar ferrada.
Nox dá um sorrisinho para ela quando a chama, e a garota sorri
jubilosa ao responder:
— Eles encontraram todos os Desfavorecidos nascidos de
Favorecidos. As anomalias e aqueles sem Vínculos. Então os
caçaram e mataram, alegando que não eram dignos de nossa
ancestralidade.
Porra.
Sei muito bem o que Nox está pensando, mas nada me prepara
para quando ele direciona aquele seu olhar sombrio para mim. Sage
se ajeita na cadeira, desconfortável com seus olhos ardentes que
agora que estão fixos em nossa direção, mas ela não deveria se
preocupar. É o meu sangue que ele quer tirar.
— Fallows, junte-se a mim em uma demonstração. — Os olhos
de Nox estão cravados em mim, desafiadores, e minha pele fica
arrepiada quando sinto a sala toda se virar para me encarar
também. Ergo o queixo, embora esteja muito constrangida, não vou
abaixar a cabeça para esse cuzão.
Nox não faz ideia de tudo que sacrifiquei por ele.
Eu me levanto e desço pelas fileiras até parar na frente da sala e
toda a classe estar olhando para mim de cima. Os risinhos das
garotas na primeira fileira já estão beirando o estúpido e, elas soam
como se tivessem doze anos de idade.
— Vínculos sem dom são raros, mas, infelizmente, acontecem.
Oleander aqui é um ótimo exemplo de quando as coisas dão errado.
É um esforço enorme, mas mantenho meu rosto inexpressivo
quando os risinhos e sussurros recomeçam. Gabe esfrega o rosto
com a mão, mas não faz menção de impedir Nox. A amizade e
lealdade entre eles é muito mais forte do que o Vínculo frágil que
compartilhamos.
Aquele para o qual ele acha que dei as costas.
— Ela tem cinco Vínculos, todos acima da média em força e
habilidade, mas, mesmo assim, ela tem... nada. Nenhuma
habilidade, nenhuma afinidade, absolutamente nada que compense
mantê-la por perto.
Os sussurros ficam mais altos e eu luto para bloqueá-los. Sei o
que estão pensando, que estou sendo rejeitada pelo meu próprio
Vínculo em meio a um espetáculo grandioso, mas não é nada que
ele ainda não tenha me dito.
— Não somos como a Resistência, então não matamos as
pessoas por nascerem sem qualquer utilidade real na nossa
sociedade, mas é importante se lembrar da história, não acha,
Fallows?
Encaro todos eles e memorizo seus rostos.
Eu poderia matar todos nesse exato instante sem suar nem uma
gota, mas não sou a porra de um monstro, não importa quão mal
eles me tratem. Sou melhor que essa merda.
Repito meu mantra mentalmente mais uma vez. Melhor ser
odiada e estar viva, melhor sofrer do que ser uma assassina, melhor
estar sozinha e a salvo.
4

SAGE ME CONVIDA PARA estudar no quarto dela, mas quando


confiro a localização no meu celular, está fora do perímetro que
North me deu e de modo algum quero ter que lidar com aquele
cuzão hoje. Não depois de o babaca do irmão dele ter me
humilhado na frente de todos da turma do primeiro ano.
Porra.
Não consigo pensar nisso sem sentir aquele tipo especial de
raiva que significa que minha habilidade quer sair para brincar, e
isso não pode acontecer de jeito nenhum. Mas me permito pensar a
respeito, só por um segundo. Só para gastar um pouco da raiva.
Então opto por voltar ao meu próprio quarto para... porra, sentar e
me lastimar, na verdade. O quarto é ainda mais sem graça à luz do
dia. Paredes vazias, armário vazio e a pior cama já vista pela
humanidade. É sério, já dormi em abrigos para pessoas em situação
de rua com colchões melhores, e o cobertor é um pesadelo de tanto
que pinica.
Eu também só tenho cerca de oito dólares para chamar de meus,
então comprar coisas novas não está no meu orçamento.
Desfaço as malas e vasculho a pouca roupa que ainda tenho.
Tenho um pouco de maquiagem e três pares de sapatos. Isso não é
muito bom, sapatos são tipo as coisas mais importantes da minha, e
a Equipe Tática deixou para trás um par de botas de cano baixo de
couro que foram a melhor descoberta de brechó da minha vida toda.
Só que me recuso a admitir o quanto essa perda dói em mim.
Digamos que... pode haver lágrimas.
Então passo algumas horas no celular procurando empregos que
estejam dentro do perímetro que North me deu, mas nenhum dos
horários se encaixam nesse toque de recolher idiota. Parece que
ganhar dinheiro está fora de questão e estou presa nessa bosta de
quarto do jeito que está.
Merda de vida.
Mesmo fugindo, consegui encontrar pequenas peças de arte e
quinquilharias para deixar meus espaços mais bonitinhos. Eu
também tinha um carro. Vou ter que falar com North sobre isso,
porque está registrado no meu nome e não preciso acumular multas
por tê-lo abandonado.
Caralho, se pelo menos eu conseguisse recuperar meu carro.
O verdadeiro problema aqui é o chip de GPS assassino. Se eu
pudesse tirá-lo, sairia desse lugar e estaria no próximo ônibus... ou,
porra, iria de carona até a Costa Leste. Ou talvez para o Canadá. Só
que precisaria de um passaporte para isso.
Porra.
Por fim, escurece lá fora e eu fico entediada o suficiente no meu
quartinho de merda para me preparar para dormir. Os chuveiros do
dormitório são um tipo especial de inferno, graças aos sussurros e
fofocas, mas não é necessário muito esforço cerebral para perceber
que há horas do dia em que esse lugar é uma cidade fantasma, e
uso isso a meu favor.
Estou secando o cabelo no meu quarto quando o celular toca
com uma mensagem.
Que estranho.
Só Sage tem meu número, e está trabalhando agora. Ela já me
deu uma noção básica de como são suas semanas para podermos
encontrar tempo e estudar juntas. Eu me preparo para ver qual dos
meus Vínculos estão começando uma nova investida de ódio contra
mim, porque tenho certeza de que North passou meu número para
todos eles, mas quando olho, encontro uma mensagem do meu
último Vínculo, o que estava faltando até agora.
Eu me jogo na cama enquanto leio a mensagem dele uma, duas,
oito vezes.
Porra.
Acho que devíamos nos conhecer por aqui primeiro. Meu nome é
Atlas Bassinger, e moro do outro lado do país. Vou terminar este
semestre e depois irei até você, minha faculdade não me deixou
transferir no meio do período, caso contrário, estaria aí agora.
Espero que entenda.
Meu Deus, acho que ele está me pedindo desculpas por não
abandonar tudo e vir atrás de mim. De mim! Encaro meu celular por
mais um segundo antes de responder, tentando encontrar as
palavras para dizer a ele que sou a pior merda de opção que ele
tem.
Você já falou com os outros caras? Tenho certeza de que eles
têm muito a dizer sobre porque você não precisa largar tudo para vir
atrás de mim.
A resposta dele é muito mais rápida.
Não dou a mínima para a porra da opinião deles sobre meu
Vínculo. Conversei com eles quando recebi o resultado dos meus
exames de sangue e eles me disseram que você fugiu. Não sou
imbecil que nem eles, você fugiu porque precisou. Sei disso. Estarei
aí assim que puder, e se isso não for cedo o suficiente para você,
vou agora e começo o semestre de novo.
Meu estômago revira. Derrubo no chão a toalha com a qual
estava secando meu cabelo e me concentro apenas no meu celular.
Você não pode fazer isso! Te fiz esperar por bastante tempo e,
sendo sincera, ainda não estou muito a fim de ficar por aqui.
Sinto vontade de chorar, porra, chorar até soluçar em cima do
celular por esse pequeno pedacinho de gentileza, mas talvez isso
rompa a barragem dentro de mim e, nessa altura, já sou uma
especialista em compartimentalizar meu próprio trauma. Hesito
quando meu celular vibra de novo em minha mão, então inspiro
fundo e olho.
Se apresente, Vínculo. Não quero conversar sobre nada que não
seja você e eu. É isso que vai me fazer suportar os próximos dois
meses.
Engulo. Que mal um pouquinho de honestidade pode fazer?
Posso contar o suficiente para ele não me odiar, mas não o
suficiente para colocar nós dois em risco. Além disso, mensagens
de texto me ajudam a ser um pouquinho mais honesta do que
normalmente sou, assim como o fato de ele estar a milhares de
quilômetros de distância quer dizer que nada que eu diga... vá na
verdade significar alguma coisa, acho. Tudo isso é problema da Oli
do futuro e, porra, não quero mesmo pensar nela agora, porque,
com sorte, terei ido embora antes de ele chegar aqui. Sempre fui o
tipo de pessoa que vive no presente.
Você tem que ser, quando está sempre fugindo para continuar
viva.
Não tem muito o que dizer sobre mim. Meu nome é Oleander
Fallows, tenho dezenove anos, e não quero estar aqui. A Equipe
Tática me encontrou e o Conselho fez com que me trouxessem para
cá. Eles colocaram um rastreador por GPS em mim agora, então
não tenho como sair daqui. Ainda.
O texto mal tinha sido registrado como entregue quando o
telefone toca. Ai meu Deus. Encaro o celular por um segundo,
então, com a mão trêmula, atendo a ligação.
— Ei, o que quer dizer com rastreador por GPS?
A voz dele é como mel quente, líquida e tranquilizadora. Tento
manter minha própria voz calma, mas é uma situação difícil de se
estar. Porra, por que fui contar qualquer coisa para ele? O que eu
estava esperando ao fazer isso?
Pigarreio.
— O Conselho me trancou e implantou um rastreador GPS por
baixo da minha pele enquanto eu resistia. Bem, teria resistido se o
Favorecido que estava na sala não tivesse me paralisado. Tem
algum tipo de proteção nele, então não posso apenas arrancar
sozinha. Pelo visto, um dos meus outros Vínculos é um homem
muito importante e eu o irritei o suficiente para minha autonomia ser
tirada de mim.
Há um instante de silêncio, então ele diz:
— Estou indo agora, foda-se as aulas da faculdade.
Minhas bochechas coram.
— É culpa minha. Eu fugi. Nunca vão me deixar esquecer isso
também. Porra, se eu fosse eles, com certeza me odiaria também.
Ele grunhe e o escuto remexendo as coisas ao fundo. Rezo para
não estar procurando por, sei lá, chaves de carro ou um computador
para comprar passagens de avião.
— Mas você tinha um motivo, certo? Você não foi embora apenas
porque achou que seria divertido.
Bufo:
— Como pode ter tanta certeza disso? Talvez eu seja uma
babaca completa.
Ele bufa de volta e imagino um sorriso irônico em seu rosto. Na
verdade, não tenho ideia de como ele é, com exceção daquela
pequena foto que estava no arquivo que North me deu, mas algo em
seu tom me diz que ele está cheio de presunção e flertando agora:
— Não tente me distrair, Vínculo. Você não me abandonaria de
jeito nenhum, ao menos não de propósito.
Sua calma e fé inabalável em mim me deixam sem chão e eu me
jogo na cama.
— Bem arrogante da sua parte presumir isso, posso muito bem
ser uma vaca de merda. Porra, nem importa de qualquer modo. Não
posso falar sobre nada disso, não importa quão legal você seja.
Ele grunhe para mim pela linha.
— Certo, foda-se isso, estou comprando a passagem agora
mesmo.
Fecho meus olhos com força.
— Você não pode, eles vão só usar isso contra mim também.
Será que... talvez a gente pode só ligar um para o outro e mandar
mensagens às vezes? Seria legal conversar com alguém que não...
me odeie, eu acho.
Ele ri pelo telefone e meus joelhos fraquejam.
— Sim, eu gostaria de conhecer meu Vínculo. Desse jeito
podemos fazer isso sem todo o sexo interrompendo, embora eu
tenha que admitir, fico bem mais feliz sabendo que não sou o único
que está perdendo. Prefiro que todos continuem chateados com
você, assim posso te provar antes.
Porra.
Bem, isso não é simplesmente fabuloso?
É uma pena que na verdade nenhum deles possa me provar.
Nunca.
Não sem arriscar tudo pelo qual fugi para manter todos em
segurança.
 
*
 
Caio no sono em minha minúscula cama desconfortável com o
celular na mão e as meigas mensagens de Atlas repassando na
cabeça. Ele é tão... normal. Chega a ser assustador, ele apenas
flerta comigo e se interessa pela minha vida como se fôssemos
duas pessoas normais se conhecendo pela primeira vez, não
Vínculos com grande quantidade de bagagem.
Não quero nem saber o que meus outros Vínculos vão achar dele
caso Atlas chegue na Universidade Draven antes de eu descobrir
como sair daqui.
Consigo passar pelos próximos dias de aulas sem matar
ninguém, o que é um de milagre, porque esse lugar está lotado de
cuzões e vacas mal-educadas. Sage fica comigo em todas as aulas
que compartilhamos e no refeitório enquanto comemos. Ela ainda é
quieta, e parece meio abatida, mas quanto mais tempo passamos
juntas, mais ela se abre.
O Vínculo dela é um verdadeiro cuzão de merda.
Tipo, ainda mais que os meus. Certo, talvez ele não fale tanta
merda quanto Nox, nem seja tão controlador quanto North, mas o
fato de ele ter abandonado Sage por Giovanna depois de passarem
a porra da vida toda juntos... um canalha absoluto. Pelo menos sei
que meus Vínculos têm um motivo para me odiar. Eu os traí... aos
olhos deles, eu os abandonei.
Sage é o ser humano mais meigo que existe, e a merda que ela
recebe de todo mundo é vil pra caralho.
Acordo na sexta-feira com um humor rabugento e nem um pouco
pronta para enfrentar o dia, ainda mais porque, depois de minhas
aulas da manhã, só terei uma aula vespertina, mas é um bloco de
três horas, o que soa como tortura. Que aula poderia precisar de
tanto tempo assim? Foi abreviada para “TT”, como se eu já devesse
saber que droga é essa.
Quando pergunto a Sage a respeito, ela faz uma careta e morde
o lábio como se eu estivesse sendo mandada para o próprio
esquadrão de execução.
— Quê? Ai meu Deus, para o que diabos foi que North me
matriculou?
Ela se atrapalha para falar:
— É–hã, TT significa... Treinamento Tático. Você só faz se estiver
planejando... entrar para a Força Tática um dia. É bem, hã... brutal.
Sei que você não tem uma habilidade então... não sei o porquê te
matricularam.
Tomei no cu.
Tomei no cu de lado, de ponta cabeça e duas vezes aos
domingos.
Um dia, quando eu estiver longe pra caralho desse lugar e dos
meus Vínculos, vou mandar uma carta para North dizendo o tipo de
cuzão absoluto que ele de fato é. Farei isso com minha melhor
caligrafia e em um papel de carta de qualidade, porque acho que
esse tipo de merda doeria ainda mais nele, esse psicopata do
caralho.
— Certo. Então vou ser colocada pra fazer, tipo, exercícios muito
pesados ou o quê?
Sage faz uma careta.
— Isso, pelas primeiras horas. Depois vão... simular alguns
cenários. É aí que... ah... é aí que acho que você vai odiar aquela
aula.
Cenários?
O semblante que assumo a faz suspirar, e ela continua, sem
dúvida, odiando ser a portadora desta péssima notícia:
— Há três diferentes circuitos de treinamento no campus. Todos
são cheios de perigos e você tem que se juntar a uma equipe e se
esforçar para completar. Precisa completar todos os circuitos para
se formar, então... vamos torcer para te colocarem em uma equipe
muito boa.
De jeito nenhum vou estar numa equipe boa.
Mesmo que o professor não seja amigo de Nox ou North, existe
zero chance de eu ser colocada com gente que tenha experiência
com esse tipo de merda só para ser um incômodo. Vou ser colocada
com outros alunos inexperientes e debilitados, e vou tomar um chute
na bunda em toda porra de aula.
Gabe nos acompanha a todas as nossas aulas da manhã, nossa
costumeira sombra carrancuda. Eu me acostumei tanto a tê-lo por
perto que, se não fosse pelo meu vínculo choramingando por ele no
meu peito, nem notaria sua presença.
Eu me pergunto se algum dia vou me acostumar com a
sensação, se a dor aguda e perversa no meu peito, causada por
esse abismo entre nós, algum dia vai diminuir até se tornar um ruído
de fundo no meu corpo, até eu nem a notar mais.
Espero com todas as minhas forças que sim.
O tempo que fui forçada a ficar sozinha no quarto estudando já
está começando a melhorar meu desempenho nas matérias. A
sensação esmagadora que senti no primeiro dia já amenizou um
pouco, e não estou mais perdida nas aulas. Sage até comentou que
minhas notas estão melhores que as dela, o que me deixa uma
vadia presunçosa quando a escuto dizer isso, porque ela é
extremamente inteligente.
É bom saber que não destruí minha vida por completo enquanto
fugia.
A presença taciturna de Gabe mantém as cadeiras ao nosso
redor desocupadas, mas não tenho interesse em fazer um monte de
amigos. Sage é meiga, gentil e hilária depois que se abre um pouco,
e isso é tudo de que preciso.
Nós duas nos sentamos juntas no almoço e, quando chega a
hora, ela hesita por um segundo:
— Posso... te acompanhar ao centro de treinamento, se quiser.
Dou um meio sorriso para ela e aceno com a cabeça na direção
de Gabe, que já está vindo em nossa direção.
— Tenho certeza de que meu agente penitenciário vai me
conduzir até lá, mas valeu. Te mando mensagem mais tarde para
chorar sobre quão ruim foi.
Ela faz uma cara feia e olha para Gabe.
— Não estou com inveja. Meus pais queriam que eu fizesse esse
ano, só para aprender um pouco de autodefesa, mas salientei que
literalmente posso atear fogo nas pessoas, então não preciso.
Porra, quase matei meu irmão com um espirro alguns anos atrás,
então preciso de controle, não de encorajamento.
Eu gargalho, porque duvido muito que tenha chegado tão perto
assim, e dou tchau para ela. Sage está se dirigindo para uma aula
de Política que parece tão tediosa que eu daria meu rim esquerdo
ser transferida para ela. Olho feio quando vejo os outros alunos
abrindo um espaço excessivo para Sage passar, como se tivesse
alguma doença, graças ao cuzão do Vínculo dela.
Fodam-se todos eles.
Talvez eu tente convencê-la a fugir comigo quando descobrir
como dar o fora daqui com esse chip de GPS idiota... exceto que
isso a colocaria em risco, e não só de ser um alvo social.
— Estou começando a achar que você tá apaixonada por ela —
resmunga Gabe, e reviro os olhos para ele.
— Vamos para a sessão de tortura ou não? Suspeito que você
ame essa aula. É sua favorita, não é? Que nojo.
Ele solta um suspiro forte e sai andando, com passos tão largos
que quase tenho que correr para acompanhar.
— Sou excelente nela, mas não significa que amo. Vivian é bem
exigente e tenta matar a gente. Espero que esteja em forma, senão
vai ser péssimo pra você.
Considerando que já estou ofegante só de tentar acompanhar os
passos dele, acho que vou morrer hoje. Vou apenas capotar no
chão e falecer.
O centro de treinamento fica do outro lado do campus, e há um
circuito externo para treinar que é cercado na frente e parece ter
sido feito para fuzileiros navais, de jeito nenhum aquilo seria para
universitários. Engulo em seco, já tendo a porra de um colapso, e
Gabe ri de mim como o cuzão que é. Tem um certo tom nesse riso,
como se ele estivesse gostando pra caralho do meu terror, e, se eu
não estivesse dando meu melhor para não encostar nele, bem
provável que lhe daria um soco.
Sem dúvida que também seria igual socar uma parede.
Os outros alunos ao nosso redor são todos muito atléticos, altos e
musculosos, e fica bastante óbvio que não vou só morrer aqui, vou
ser humilhada de todas as formas também.
Foda-se minha vida e que North Draven seja condenado ao
inferno que é seu lugar.
Sei antes de abrir a porta que um de meus outros Vínculos está
na sala. Deduzo bem rápido que é Gryphon, porque é o único dos
quatro que estão aqui no Oregon com quem não passei nenhum
tempo perto. Sinto-me estranhamente nervosa por ele estar aqui, de
todas as minhas aulas em que poderia estar, ele escolhe justo a que
está me preocupando mais?
Não vou ser a garota mais rápida ali, nem a mais forte. Conheço
um pouco de autodefesa, mas sei muito pouco sobre lutar de fato
com alguém e, quando formos colocados em qualquer tipo de
cenário ou luta, vou falhar porque farei tudo o que puder para
impedir que alguém saiba que tenho algum poder.
Ele vai me ver fracassar.
Tem alguma coisa nele que faz com que meu vínculo queira
impressioná-lo. É idiota pra caralho. Não me importo desse jeito
com Gabe, ou North ou com aquele idiota do Nox. Porra, Nox me
chamou na frente da classe e me humilhou diante de todos os
outros alunos como se eu não fosse nada e, embora meu vínculo
tenha ficado puto, eu já esperava algo assim dele.
Alguma coisa em Gryphon tem o potencial de me derrubar.
Gabe abre a porta e me incentiva a entrar com um sorrisinho na
cara.
5

SIGO O EXEMPLO DE GABE e entro nos vestiários para deixar


minha mochila no armário que me foi designado, e uma etiqueta
com o nome “Fallows” já está colada nele. Há um uniforme e um
pedaço de papel com a senha do armário.
As outras garotas estão todas rindo e conversando enquanto se
trocam, e não posso evitar notar que todas elas parecem estar bem
em forma. Nunca me importei o suficiente com as opiniões das
pessoas sobre mim para ter vergonha do meu corpo, mas droga,
nunca estive tão consciente das minhas limitações antes.
Eu vou morrer.
O short é curto demais e a camiseta muito comprida, então
parece que não estou usando nada na parte de baixo. Nenhuma das
outras garotas tenta falar comigo, mas todas me dão uma olhada
breve, como se eu estivesse doente, sussurrando e murmurando
sem sequer tentarem ser sutis.
Inspiro fundo antes de voltar à sala de treinamento, só para me
recompor e tentar encontrar algum tipo de força interior para superar
isso, mas... nada. Não há nenhum poço secreto dentro de mim
transbordando com coragem e autoconfiança.
Contudo, tem um punhado de mau humor e autoaversão, então
acho que vou usar um pouco disso e torcer pelo melhor.
Gabe está encostado na parede do lado de fora do vestiário,
rindo e zoando com alguns dos seus amigos do time de futebol
americano. Todos ficam em silêncio quando saio, e eles olham um
para o outro como se estivessem conversando por telepatia sobre a
bosta que sou. Porra, talvez estejam mesmo, e que seja.
— Estava prestes a entrar lá atrás de você. Não pode se
esconder de Vivian, sabe. Ele apenas iria atrás de você.
Finjo indiferença e tento esconder meu choque por esse Vivian
bem exigente ser um homem. Claro que vai ser outro homem para
me tratar como um capacho e arruinar minha vida. Gabe revira os
olhos para o meu silêncio, fazendo um showzinho para os amigos
porque é claro que ele não quer que saibam o quanto minha
rejeição na verdade dói nele. Para mim é bem óbvio, mas todos
começam a fazer piadinhas sobre o Vínculo defeituoso dele como
se eu não estivesse bem aqui, ouvindo tudo.
Porcos malditos.
Eu me afasto deles em direção à turma, e encontro Gryphon
parado ali em um uniforme tático com um homem muito velho e
roliço, que parece estar furioso com o mundo porque acordou esta
manhã e tem que lidar com universitários.
Reconheço o sentimento, porque me sinto bem do mesmo jeito.
Gryphon me dirige um olhar frio e desinteressado, então olha
para longe, coisa que meu vínculo não gosta nem um pouco, mas
afasto o sentimento. Vivian fica bem mais interessado em mim,
franze a testa e me olha de cima.
— Você que é o Vínculo? Parece ter doze anos de idade, tem
certeza de que tem idade suficiente para estar aqui?
Cruzo os braços.
— Não, posso ir embora agora?
Gryphon ignora minha insolência e passa por mim para ir ladrar
ordens para o resto da classe, conduzindo-os a um circuito de
treinamento que eu preferiria que Sage ateasse fogo em mim do
que ter que completar aquilo.
Vivian olha para mim de novo enquanto Gryphon volta a passos
largos e diz:
— Esperava mais. Qual o seu dom? É melhor ter algo bom para
me oferecer.
Para oferecer a ele? Que porra esquisita. Encolho o ombro.
— Nada. Não tenho nada pra te oferecer.
Os olhos de Gryphon disparam para os meus quando ele franze a
testa, mas não faz nenhum comentário sobre eu finalmente
confirmar todos seus piores pesadelos: um Vínculo sem dom.
Porra, queria que fosse verdade.
Vivian estreita ainda mais os olhos para mim, até estarem quase
fechados, e curva os lábios para baixo.
— Vou arrancar essa atitude de você, sabe. Tenho certeza de
que vai desmoronar até o final do dia.
Meu Deus, é bem provável que sim. Vai ser uma sorte se eu
durar dez minutos, mas não dou a ele a satisfação de dizer isso. Só
aguardo até que comece a me dar ordens.
É muito pior do que achei que seria.
Vivian cria meu próprio circuito para poder avaliar como está
minha forma física, e depois de um minuto meus pulmões já estão
gritando. Após meia hora, não sinto mais minhas pernas. Quando
uma hora se passa, sinto gosto de sangue e vejo pontos brancos
nos cantos da minha vista.
É só por pura teimosa que continuo.
Quando Gryphon sopra o apito para avisar o fim desta parte do
treinamento, estou chocada de perceber que sou a única ainda se
exercitando, todos os outros estão sentados ao redor bebendo água
ou me assistindo suar a bunda no elíptico.
Quero me jogar em um montinho no chão, mas então Gryphon
grita:
— O aquecimento acabou, levem essas bundas para a sala de
controle para podermos repassar o plano de aula de hoje.
Aquecimento?
Você só pode estar gozando com a minha cara.
Quero matar alguém, quero tanto que meu dom desperta no meu
peito e preciso dizer a ele para se acalmar porque não posso de fato
soltar ele nem agora, nem nunca.
Preciso de três tentativas para fazer minhas pernas funcionarem,
mas cambaleio atrás do grupo através do prédio até estarmos na
sala de controle, que parece ser só uma sala de reunião com telas
de imagens de segurança. Estão todas ligadas e mostram as pistas
de obstáculos. As imagens passam até eu querer chorar, todas
parecem impossíveis de atravessar.
Gabe se apoia na parede ao meu lado, seus olhos estão em
Gryphon enquanto ele beberica de sua garrafa de água. Eu mataria
por um pouco, mas de jeito nenhum vou pedir a ele. Não enquanto
estamos enfiados nessa sala com pelo menos outros cinquenta
alunos, todos ouvindo e me julgando, porque o campus todo ouviria
que ele me mandou tomar no cu.
Então volto a me concentrar em Vivian e no meu Vínculo
carrancudo na frente da classe.
— Vamos começar com algo fácil. Vão se dividir em dois grupos
e, o primeiro grupo em que todos terminarem o percurso, ganha.
Simples — diz Vivian, fazendo uma carranca para todo mundo, mas
ele não me engana nem por um segundo.
Não tem nada de fácil nisso. Parece impossível, muito
impossível, e quando ele começa a falar os nomes das pessoas que
estão na equipe vermelha, não fico nem um pouco chocada com os
sons de resmungos e reclamações gerados por ele colocar o meu
nome nesse.
Com certeza serei o maior peso morto que meu time já teve.
Quando as equipes já estão formadas, todos vão para a sala ao
lado, pegam braçadeiras vermelhas ou azuis, e as prendem no
braço. Mais de uma pessoa do meu time faz comentários maldosos
sobre estarem fadados à derrota graças a minha presença, mas eu
não poderia começar uma briga nem se quisesse.
Porra, não tenho chance de completar o percurso, não sem
ajuda, e não tem uma única pessoa aqui que não me olhe com um
desprezo descarado.
Nem mesmo meus próprios vínculos.
Certo, muito provável que esse não é o melhor exemplo, porque
é claro que ambos os Vínculos que rejeitei estão olhando ao redor
como se preferissem arrancar a própria pele a ficar na mesma
merda de sala que eu. No segundo em que eu sair daqui hoje, vou
até o escritório do reitor e exigirei uma mudança no meu horário.
Não vou fazer essa merda o ano todo. Eu poderia aguentar o
treinamento e os exercícios, são brutais, só que não impossíveis,
mas trabalhar com outros alunos que iriam amar me assistir bater as
botas?
Não.
Nem fodendo, obrigada.
Sou a última pessoa a pegar uma braçadeira, e Vivian me assiste
colocá-la no braço com uma carranca. Quando está presa, olho para
ele, que acena para eu me aproximar de onde está. Inspiro fundo e
me preparo para seja lá qual merda que esteja prestes a jogar em
mim.
Ele é um homem mais velho, seu rosto é um pouco abatido e tem
cicatrizes, e, quando ele fala, uma grossa linha branca atravessando
seu lábio superior distorce um pouco o som, fazendo parecer que
tem a língua um pouco presa.
— Está em desvantagem aqui porque todos os outros já fizeram
esse percurso antes e sabem como é. Vou te emparelhar com seu
Vínculo só dessa vez, então ele pode te ajudar.
Meu bom Deus, não.
— Duvido que ele queira isso. Tá tudo bem, se eu morrer, pelo
menos não vou ter que fazer isso de novo.
Ele me olha de um jeito como se achasse que estou brincando,
então olha por cima de mim para ver qualquer que seja a expressão
que o rosto de Gabe está fazendo agora, e dá de ombros.
— Você que sabe, não me meto em treta de Vínculo. Tem outras
três pessoas com dons inferiores, todos estão indo bem, mas todos
eles estão com seus Vinculados e estão numa forma melhor que
você.
Ótimo.
Excelente. Perfeito. Concordo com a cabeça e volto em direção à
parede, onde Gabe está olhando feio para o chão, como se o piso o
tivesse ofendido de forma pessoal. A sala está tão barulhenta que
quase não escuto quando ele resmunga:
— Porra, queria que você nunca tivesse voltado.
 
*
 
A equipe azul fica com o lado esquerdo do circuito, enquanto o
vermelho, com o direito. Permaneço no final do grupo, em grande
parte para me manter fora do caminho, mas também para conseguir
ver o que os outros estão fazendo. O objetivo aqui é atravessar o
circuito todo sem ser eliminado e estou em desvantagem em
comparação a todo mundo, então qualquer ajuda que eu possa
conseguir é válida.
Um grupo de rapazes está na frente, empurrando e ralhando uns
com os outros com aquela bravata exagerada que me faz rolar os
olhos, e um grupo de garotas está dando risadinha desse
comportamento. Todas estão vestidas em shortinhos minúsculos e
regatas, exibindo um monte de pele tonificada. Para ser sincera,
estou com inveja de como todas elas são lindas, enquanto estou
aqui parecendo um saco de batatas nesse uniforme gigantesco.
Sempre me importei com minha aparência, mas aqui, cercada pelos
sussurros e olhos julgadores de todos, estou subitamente muito
consciente de cada um dos meus defeitos.
Minha bunda não parece nem um pouquinho com a bunda
maravilhosa que a garota de olho em Gabe está ostentando. O olhar
dele encontra o meu por cima da cabeça dela durante um segundo,
então ele dá uma piscadinha para ela, constante em seus esforços
para me provocar ciúmes. Meu vínculo não está feliz, mas o enterro
no meu peito de novo, pois foda-se ele.
Gabe já deixou claro que não me quer e todas suas artimanhas
para me provocar são infantis pra caralho.
Ainda estou ocupada escolhendo todas as características das
outras garotas que eu gostaria de ter quando uma buzina soa e as
portas abrem. Gabe é um dos primeiros a entrar na pista,
disparando para fora da sala e desaparecendo no aglomerado de
árvores bem em frente à porta. Eu me aproximo devagar e olho para
as figuras soturnas de Vivian e Gryphon antes de enfim sair para o
percurso.
É muito maior uma vez que você está dentro dele.
Sabia que cobriria um grande terreno, as cercas se estendiam
por quilômetros, mas no momento em que a porta se fecha atrás de
mim com um ressoante tum, sei que está muito acima do meu nível.
O único ponto positivo é que não podemos usar nossos dons,
então pelo menos o jogo está equilibrado para mim, continua não
sendo justo, porque todo mundo aqui já fez esse percurso antes e
sabe o que esperar. E há também o pequeno fator de que todos têm
músculos definidos e eu não, mas, pelo menos, ninguém vai jogar
bolas de fogo na minha cabeça, ou se transformar em animal ou,
porra, ficar invisível e cortar minha garganta.
Certo, esse último pode ter sido minha tendência ao drama
transparecendo.
A primeira coisa que preciso fazer é correr até um rio que tenho
certeza de que não pode ser de verdade. O financiamento que
devem ter injetado nesse programa é insano. Se eu já não soubesse
que os Draven são podres de rico, teria plena consciência agora. Os
outros alunos todos estão atravessando em grupo, rindo e brincando
uns com os outros, porque isso é uma merda normal para eles, e eu
olho com tristeza para meu short e tênis.
Correr o resto do percurso com sapatos molhados vai ser uma
verdadeira tortura. Eu poderia tirá-los, quem se importa com o
tempo que isso vai levar, mas e se houver pedras afiadas ou...
criaturas lá dentro?
Se eu pensar sobre quaisquer criaturas que podem estar na
água, é bem possível que eu fuja gritando, o que seria vergonhoso
demais, então acho que vou precisar manter os sapatos, danem-se
os pés ensopados.
Espero até todos os outros já ter atravessado a água, observando
sua travessia. Há um sumidouro se você seguir bem pelo meio do
caminho, e todos estão evitando o lado esquerdo, então deve haver
um motivo para isso.
Uma vez que eles desaparecem pela vegetação densa mais uma
vez, começo a me mover, eu me encolho com a temperatura
congelante, mas cerro os dentes e entro de uma vez. Odeio muito,
muito isso. A lama é espessa suficiente para eu senti-la entrar em
meus tênis, e quando enfim chego do outro lado, preciso tirar o
sapato para tentar botar o limo para fora.
Quando já fiz o melhor que pude para esvaziá-los e voltei a
amarrar meus tênis, olho para cima e encontro Gabe disparando em
direção às árvores, como se tivesse parado para me assistir. O
vínculo canta no meu peito, como se ele dar a mínima sobre eu
conseguir atravessar ou não fosse uma vitória, mas, até onde sei,
ele estava torcendo para me ver afogar.
A tristeza que se agarra a ele quando estou por perto, diz o
quanto se preocupa comigo, mas não quero pensar nisso.
Depois disso, preciso correr por mais quatrocentos quilômetros, e
o solo fica muito mais irregular e perigoso com os tênis molhados e
escorregadios. Estou congelando e minhas coxas estão esfoladas,
graças ao clima e ao short, eu meio que quero morrer.
Vou ligar para North e picar ele em pedaços por causa dessa aula
idiota.
As árvores voltam a se abrir e encontro a maioria dos outros
alunos fugindo do próximo obstáculo, que já completaram,
ganhando ainda mais vantagem sobre mim. Posso ver as costas de
Gabe quando ele me deixa para trás, dessa vez, sem olhar em
minha direção, e inspiro fundo.
Tem arame farpado preso entre postes, bem perto do chão, e os
alunos precisam rastejar por baixo deles. Ao chegarem do outro
lado, estão cobertos de terra e lama, com arranhões e cortes nos
braços porque isso aqui é não é para nos incentivar, é para destruir
nossa determinação e nos derrubar.
Não fico enrolando dessa vez, quanto mais olho para o arame
farpado, menos quero rastejar embaixo dele, então ainda há outros
alunos seguindo na minha frente. Claro, todos estão encarando isso
muito melhor do que eu, não fazem quase nenhuma merda de
barulho, enquanto estou seguindo o caminho grunhindo e ofegando,
mas tento não focar nisso.
Pelo menos estar fora de forma me ajuda a escorregar debaixo
do arame, graças à minha completa falta de bunda. Ultrapasso a
garota que estava na minha frente, graças a ela ter que tomar
cuidado com sua maravilhosa bundinha redonda. Não estou mais
com inveja por ela ter uma dessas.
Tudo bem, ainda estou com um pouco de inveja.
Meus braços estão destroçados quando, por fim, atinjo a saída do
percurso e preciso dar meu melhor para tirar o cascalho e os galhos
que grudaram nos ferimentos. A garota que ultrapassei não se dá ao
trabalho de se limpar, apenas me joga um olhar selvagem e sai
correndo pela trilha como se essa fosse uma tarde de sexta-feira
normal para ela.
Mas que porra de psicopata.
Percorro os próximos quatrocentos quilômetros em uma corrida
lenta, cada pedaço do meu corpo está gritando comigo para parar.
Com certeza, terei bolhas por todos os meus pobres pés ensopados
quando essa merda acabar. Concentro-me em respirar e digo a mim
mesma que isso tudo vai acabar logo. Posso estar errada, ainda
pode ter mais cinquenta coisas idiotas para eu me arrastar por
baixo, por cima e pelo meio, mas minha mente vai entrar em
colapso se eu pensar muito nisso.
Quando a clareira, por fim, aparece do nada, lágrimas estão
pinicando os cantos dos meus olhos e meu nariz está escorrendo.
Devo parecer um desastre total e sou grata por ninguém estar por
perto para me ver assim.
O próximo obstáculo é uma estrutura em forma de A com uma
rede por cima e uma grande piscina de água lamacenta por baixo, e
o fedor que se ergue dela revira meu estômago. Se eu cair nisso,
tenho cem porcento de chance de acabar com uma bactéria
comedora de carne, então mesmo que eu vá falhar nessa merda
hoje, não é nesse obstáculo que quero bombar.
Não tenho muita certeza de que algum dos meus vínculos
acreditaria que preciso de cuidados médicos antes de eu cair morta.
Meus braços tremem e meus dedos estão todos dormentes
quando tento agarrar a rede de cordas, então desacelero e dane-se
a corrida, e experimento minha pegada com cuidado até ter certeza
de que não vou escorregar e cair antes de sequer começar a
escalar a estrutura. Não dou a mínima se vou ser a última pessoa a
atravessar a linha de chegada, chegar lá é suficiente para mim.
Vou deixar para pensar no grupo quando ele começar a dar a
mínima para mim.
Quando alcanço o topo, preciso parar por um segundo para
engolir o vômito subindo pela minha garganta, o gosto de cobre do
sangue está na minha boca, e eu só sento ali e respiro fundo,
engolindo o ar. Posso ver o fim do percurso daqui. Localizo a linha
de árvores que fica logo antes do portão para cair fora desse buraco
dos infernos, e me dou mais um instante para inspirar fundo antes
de começar a descer pelo outro lado.
Estou quase acabando, quase para sair desse lugar e me enfiar
de volta no meu quarto no dormitório para morrer em paz, longe de
todos os olhares de julgamento.
Não que tenha sobrado alguém nesse lugar.
Acho que mais ninguém está tendo a mesma dificuldade para
atravessar o circuito, e faz pelo menos uma hora desde que vi
alguém. Considerando que é para ser uma corrida, não é tão
estranho assim, mas conforme as cordas se enterram nas minhas
mãos enquanto escorrego e tropeço para baixo, eu me vejo um
pouco ansiosa para dar o fora daqui. Estou tão perto de acabar, tão
perto, e não preciso cair em uma armadilha agora e estragar tudo.
Preciso correr por mais quatrocentos quilômetros antes de
finalmente ver a cerca e o portão por entre as árvores. Quero gritar
pela vitória, mas meus pulmões estão berrando no meu torso e,
acho que vou vomitar por todos os lados no segundo em que
atravessar a linha de chegada. Preciso entrar em forma se minha
vida vai ser assim de agora em diante, mas saber que de fato
consegui sobreviver à minha primeira aula sem morrer ou passar
vergonha?
É incrível.
No momento em que alcanço o perímetro das árvores, minha
guarda está baixa, então não vejo a sombra da garota até ser tarde
demais. O punho na minha cabeça me nocauteia e eu apago.
6

ACORDO EM UM quarto branco.


Paredes brancas, chão branco, lençóis brancos em uma cama
branca. Jesus, é como se eu tivesse acordado em um pesadelo, e
tenho que dizer a mim mesma que ser nocauteada significa que
devo estar na enfermaria do centro de treinamento.
Então a porta branca se abre e aquilo sem dúvida é a merda de
um pesadelo.
North entra com uma expressão azeda no rosto enquanto me
olha com reprovação.
— Se está planejando se machucar regularmente para chamar
minha atenção, preciso te avisar que ficaria feliz em te jogar em uma
sala acolchoada até essa compulsão passar.
Levo um segundo para perceber que ele está irritado comigo, que
não está aqui por ter qualquer tipo de preocupação por mim e que
acha que eu ter sido atacada na droga do percurso era um jeito de
provocá-lo.
— Sei que não está aqui só para me repreender porque alguma
vagabunda me atacou de forma covarde. Sei que não está aqui pra
isso porque se estiver, vou perder a cabeça.
Ele semicerra os olhos enquanto me assiste sentar com
dificuldade. Coloco uma das mãos em minha cabeça latejante e, é
claro, tem um galo onde o punho da garota acertou meu crânio.
Minha cabeça está girando, sinto meu estômago revirando e a
bile subindo pela minha garganta quando ele passa um minuto me
olhando direto. É óbvio que ele não acredita em mim, e que não
está nem um pouco impressionado com esta suposta farsa.
Porra, sinto vontade de berrar.
— Por que eu esperaria até os últimos quilômetros pra dar uma
dessas? Por que eu atravessaria o rio, rastejaria de barriga em cima
de pedra e lama e escalaria aquela estrutura fedorenta ridícula se
eu estivesse planejando... espera, por acaso como você acha que
eu me nocauteei? Meu Deus do céu, porra. — Gesticulo frustrada
com o braço na direção dele e, quando minha cabeça começa a
girar de novo, eu me arrependo no mesmo instante. Fico enjoada
mais uma vez e engulo rápido para me impedir de vomitar no sapato
dele.
É difícil decifrar os olhos frios e o rosto inexpressivo de North,
mas, por um segundo, acho que o vejo duvidar de si mesmo, mas é
uma coisinha tão fugaz que passa antes de eu sequer ter certeza do
que vi.
— Não é fácil assim me enganar, está desesperada por atenção
e não conseguiu se controlar na presença de dois dos seus
Vínculos.
Se algum dia precisei do meu dom, é nesse momento. Não me
importo mais com os sapatos dele, se ralhar com North vai me fazer
vomitar neles, que seja.
— E como eu receberia atenção de qualquer um deles se Gabe
saiu correndo na minha frente e Gryphon nem mesmo reconhece
minha existência?
A expressão no seu rosto me diz que atingi um ponto fraco, mas
até parece que sei qual é.
— Você deveria agradecê-lo. Gryphon te colocou no percurso
fácil.
No percurso fácil? Foda-se isso, não vou voltar naquela aula
bizarra e não vou ficar sentada aqui enquanto ele conduz esse
interrogatório absolutamente ridículo. Cerro os dentes de novo e
afasto o lençol que está cobrindo minhas pernas, fazendo uma
careta ao ver que cada centímetro delas, está suja de lama e grama.
Estou uma bagunça e preciso de duas tentativas para estabilizar
minhas pernas embaixo de mim, e no segundo que tenho certeza de
que elas não vão vacilar, disparo para fora do quarto.
North mal precisa ajustar seus passos para me acompanhar, e
sua mão fecha ao redor do meu cotovelo para me puxar na direção
certa quando estava prestes a virar no caminho errado.
— Você não pode apenas sair andando sempre que te
repreenderem por seu comportamento tóxico.
Fúria congelante escorre pela minha coluna, e tem força demais
no movimento quando puxo meu braço para soltá-lo de Nox, já que,
só por um instante, meu dom consegue escorregar pelo controle
firme que mantenho sobre ele. North franze a testa olhando para a
própria mão, como se estivesse se perguntando se sentiu mesmo
aquele poder extra, e isso me faz surtar um pouquinho.
Distração.
Preciso tirar a atenção dele disso agora mesmo.
— Você deve saber muito sobre comportamento tóxico, já te
ocorreu alguma vez que talvez não devesse ameaçar a merda do
seu próprio Vínculo? Que talvez, dizer que vai me acorrentar no seu
porão, pode não ser a melhor forma de lidar com essa... bagunça?
Digo isso alto o bastante para que alguns dos outros alunos
perambulando por perto ouçam e comecem a murmurar entre eles,
e não apenas North percebe isso como, pela primeira vez, acho que
estou vendo-o constrangido.
Não por causa de suas atitudes, mas porque as pessoas estão
falando sobre ele.
Seus lábios se contorcem e, quando ele segura meu braço de
novo, sinto seu poder palpitando através de seus dedos, pulsando
como um aviso da força que ele esconde por baixo de seus ternos
engomados e sorrisos perfeitamente calculados.
Ele é cuidadoso com a forma como me leva para fora do prédio,
certificando-se de que ninguém, de fato, perceba que ele está
usando sua força para me arrastar através do prédio em direção ao
seu carro, que o aguarda.
— Acho que se você não tivesse fugido como uma garotinha
egoísta, manipuladora e infantil, teríamos lhe dado o mundo. Não
haveria uma única coisa nesse planeta que recusaríamos se você
pedisse, mas agora está encarando as consequências de seus atos,
e tenho certeza de que é a primeira vez na sua vida. Está muito
claro para mim que você não foi nada além de mimada em toda sua
vida e não consegue pensar em nada além de si mesma. É óbvio
que seus pais...
Eu mal consigo me controlar.
— Não se atreva a falar dos meus pais, porra. Vou arrancar esse
rastreador com minhas próprias mãos e sumir, não me force.
O motorista escuta tudo enquanto abre a porta a tempo para
North me jogar lá dentro sem comentários, e a fecha com firmeza
atrás de mim quando o cuzão do chefe dele se afasta, então os dois
ficam parados ali, juntos, ignorando-me por completo enquanto
conversam de forma agradável sobre o clima ou alguma outra
porcaria inútil.
Estou espumando de raiva.
O que é uma ideia muito ruim, e sei que é porque meu dom
começa a despertar nas minhas entranhas, minha pele formiga e
minha vista começa a ficar brilhante aos poucos.
Eu me transformo em uma droga de vaga-lume, e de jeito
nenhum posso acender nesse maldito carro hoje, com um dos meus
Vínculos parado bem ali, porra. Fecho meus olhos com força e
desacelero minha respiração, contando e cantarolando baixinho
para ter algo mais em que me concentrar, mas tenho lutado contra
meu dom há tempo demais para ele se acalmar tão fácil assim.
O pânico que se espalha por meu corpo só vai tornar as coisas
piores, mas não sou capaz de impedi-lo. Consigo sentir o suor
começando a gotejar na minha testa, minha respiração começa a
falhar e tremo tanto que não tem como esconder a espiral em que
estou entrando. Acho que vou desmaiar.
Um som de vibração interrompe minha concentração.
Pisco várias vezes, tentando afastar a luz dos meus olhos, mas
embora eu só consiga enxergar um pouco da mochila aos meus
pés, reconheço logo que é a minha.
É meu celular que está vibrando.
Reviro dentro da mochila com as mãos trêmulas até encontrá-lo,
tem uma mensagem de Atlas ali para mim e, embora fúria e
ansiedade ainda estejam revirando em minha barriga, os cantos de
minha boca se curvam para cima ao ver a bolinha azul do lado do
nome dele.
Como ele sempre adivinha quando preciso que algo me tire de
uma espiral?
Sei que os Dravens são podres de rico, mas o que os outros
Vínculos fazem para ganhar uma grana? Está faltando só mais uma
aula bosta de economia para abandonar tudo e ir viver às custas
deles. Me diga que um deles é decente e cheio do dinheiro, preciso
decidir com qual vou fazer amizade.
Eu rio dele, ainda mais porque, graças as nossas constantes
mensagens, sei que Atlas está brincando e nunca aceitaria nada de
nenhum deles, então digito minha resposta.
Eu preferiria enfiar alfinetes nos meus olhos a aceitar qualquer
coisa de um deles, mas se pra você tudo bem em vender seu rabo
pra eles em troca de uma vida boa, quem sou eu pra julgar? Vai
saber, talvez você se dê bem de verdade com eles.
Ainda estou sorrindo para meu celular, as três bolinhas pulam na
tela quando ele começa a digitar sua resposta, quando a porta do
passageiro abre e North senta comigo no banco de trás. Minha
visão voltou ao normal, então acho que devo ter colocado meu dom
sob controle de novo, mas tanto faz, porque North não olha para
mim, nem mesmo por um segundo.
Eu deveria ficar aliviada, mas, sendo honesta, fico irritada com o
quão rápido ele consegue me rejeitar, e apenas me ignorar como se
eu não fosse nada para ele, enquanto ainda estou lidando com toda
a merda que ele joga sobre de mim. Dou uma bufada de desprezo
baixinho, soando exatamente como a criança petulante que North
pensa que sou, mas ele me ignora em favor de seu celular.
Nós dois podemos jogar esse joguinho.
Converso com Atlas, mais flertes do que qualquer outra coisa, e
me concentro apenas na tela. De início, só estou fazendo isso para
provocar North, mas Atlas é muito bom em me distrair, e quando
digo a ele que estou provocando os outros Vínculos porque estão
sendo uns babacas, ele fica mais do que contente em me manter
ocupada.
Não tenho certeza se algum dia ele vai superar o fato de eles
terem enfiado esse rastreador por baixo da minha pele.
Quando o carro por fim para e o motor é desligado, olho para
cima e me assusto com meus arredores, pois não estamos nos
dormitórios. Droga, não estamos nem no campus mais! A casa na
frente da qual paramos sequer é uma casa, é uma maldita mansão,
e só preciso de uma olhada rápida em volta para ver que, sem
dúvida, estamos em um condomínio fechado de mega mansões.
North me trouxe para a casa dele.
Olho em sua direção e vejo que está me encarando, seus olhos
são um vácuo gélido, deixando jorrar todo o desprezo que sente por
mim.
Foda-se ele. Cruzo meus braços e solto meu peso no banco.
— Não vou sair desse carro.
O motorista logo sai do banco da frente e dá a volta para abrir
minha porta, como se esperasse que eu fosse ceder ao chefe dele
só por causa desse pequeno ato de consideração.
Engano dele, eu não dou a mínima.
— Não sei por que você gosta de ser ameaçada, Fallows, mas
tenha certeza de que farei o que for preciso para te tirar desse carro.
Estamos aqui para jantar com o restante dos seus Vínculos, guarde
o celular e se mexa.
Desço do carro, mas só porque não posso discutir com North
depois que ele sai, a não ser que eu vá atrás. O motorista fecha a
porta atrás de mim e tranca o veículo, como se estivesse com medo
de eu tentar voltar para dentro a qualquer momento se algo me
assustar.
A irritação sobe pela minha espinha, mas antes que eu tenha
oportunidade de brigar com os dois, North o dispensa com um
aceno educado de cabeça e diz:
— Tenho certeza de que se tentar com bastante afinco, pode
jantar com seus Vínculos esta noite sem precisar agir como uma
pirralha, Fallows. Além disso, não há necessidade de se automutilar.
Ele se vira para subir o caminho que leva até a porta da frente
sem olhar para trás, enquanto meu cérebro reflete sobre suas
palavras. Automutilação? Que porra ele quer dizer com isso?
E aí minha ficha cai.
Eu preferiria enfiar alfinetes nos meus olhos a aceitar qualquer
coisa de qualquer um deles. Acabei de dizer isso para Atlas, e North
não estava perto o suficiente para ter lido a mensagem por cima do
meu ombro. Filho da puta.
Um rubor toma minhas bochechas e desce pelo meu corpo.
— Seu cuzão maldito! Você grampeou meu telefone?
Ele ajeita a gravata e anda em direção à casa, seus passos
largos me obrigam a correr para alcançá-lo, mas não vou deixá-lo
simplesmente se afastar de mim.
— Essa é uma violação de privacidade repugnante...
— Não, é a consequência dos seus atos. Esse celular aí é meu.
Te dei acesso a ele para poder entrar em contato com você, não
para você reclamar para Bassinger dos privilégios que já te concedi.
Você frequenta a faculdade graças a mim. Você tem uma cama em
que dormir, comida para comer, acesso aos seus Vínculos e a esse
celular graças a mim. E o que recebo em troca? Uma Vínculo
malcriada que quer ficar por aí reclamando das pessoas a quem
traiu.
Ele abre a porta da frente colocando o dedo em um escâner,
porque é claro que ele viveria em uma casa pomposa e
vanguardista dentro de um condomínio exclusivo, em seguida, entra
sem sequer olhar na minha direção para se certificar de que estou
acompanhando.
Eu poderia fugir.
Nem ligo mais para o chip, a morte não parece mais tão ruim
quando a alternativa é ficar aqui com esse homem desgraçado que
acha que é meu dono só porque compartilhamos um vínculo. Quem
ele pensa que é? Ser um conselheiro não o transforma em um deus,
pelo amor de um caralho!
Estou dividida entre sair correndo ou abrir um buraco novo na
bunda de North quando vejo o motorista, que agora está segurando
a porta da frente aberta para mim, mantendo os olhos afastados do
espetáculo que estamos causando, como se isso tudo fosse algo
vergonhoso.
Minhas bochechas coram.
Será que ele correria atrás de mim e me pararia, até mesmo me
jogaria no chão e ralharia comigo por ser a vilã de todos esses
homens exemplares de nossa sociedade? Agora estou imaginando
uma Equipe Tática inteira aparecendo do nada e me levando
embora. Deus, meus ossos ainda estão doendo de quando eles me
encontraram e me arrastaram para cá, não quero passar por aquilo
de novo.
Entro na mansão e tento não ficar de queixo caído ao vê-la. Pisos
de mármore, tapetes luxuosos, arte nas paredes, tudo parece tão
absurdamente caro que estou com medo de respirar perto demais
de alguma coisa e quebrá-la.
— Por aqui, Fallows.
Eu sobressalto com o tom feroz de North e me apresso em segui-
lo, tentando não parecer tão surtada quanto estou. Há pinturas de
um monte de caras velhos que parecem muito ricos nas paredes,
com certeza eram gerações de homens da família Draven, e me
sinto intimidada demais para reagir.
O corredor é comprido e mais largo do que meu quarto no
dormitório, com portas que levam a outros cômodos gigantescos e
ornamentados. Até chegarmos à sala de jantar, posso afirmar, sem
sombra de dúvida, que não conseguiria encontrar o caminho da
saída nem se me pagassem, e talvez essa seja exatamente a
intenção de North aqui.
Fico paralisada na soleira ao ver a imensa mesa, era grande o
suficiente para caber trinta pessoas sem nenhum problema, e North
aproveita a oportunidade para fechar os dedos em volta do meu
cotovelo, puxar-me em direção a uma das extremidades e me
depositar em uma cadeira ao lado de Gabe, que já está colocando
uma pilha de carne assada no prato.
Ele mal olha para mim, mas grunhe um cumprimento para North,
que se senta à cabeceira da mesa, à minha direita. Ninguém fala e
eu fico sentada ali emburrada, furiosa a respeito do grampo
telefônico e do fato de que essa é minha vida agora. North enche
um prato com um pouco de tudo e o desliza para mim sem dizer
nada.
Babaca controlador.
Só de orgulho, não quero comer, mas no instante em que o
cheiro maravilhoso alcança minhas narinas, meu estômago ronca e
eu cedo, mergulhando na comida.
A mesa está em silêncio, apenas os barulhos baixos dos talheres
raspando os pratos de leve podem ser ouvidos. A comida está
maravilhosa, mas não consigo aproveitar com toda essa tensão no
cômodo. Meio que quero engolir tudo de uma vez e pedir para voltar
à concha vazia que é o quarto do dormitório, que agora chamo de
lar, mas depois de tudo que aconteceu hoje, não tenho certeza de
que essa opção exista.
— Como estão indo suas aulas, Fallows?
Ergo os olhos para North, mas ele ainda não está olhando para
mim. Brinco com as cenouras no prato enquanto me pergunto por
que diabos ele se dá ao trabalho de fingir se importar.
— Vão bem. Já estou acompanhando. Fiz amizades.
Ele olha para Gabe com olhos semicerrados:
— Com quem?
Meu queixo cai. Bem, suponho que eu deveria ficar feliz por
minhas suspeitas terem sido confirmadas. Ele tem ficado por perto
de mim para espionar para North. Perfeito pra caramba.
— Sage Benson. É uma Flama, parece simpática até. Não
encorajou nenhuma aventura — resmunga Gabe, parecendo infeliz,
embora esteja comendo comida suficiente para me manter por uma
semana.
North inclina a cabeça para o lado e franze o cenho para Gabe:
— Benson? A filha Vinculada de Maria? Ela não é um dos
Vínculos de Riley?
Gabe concorda com a cabeça, suspirando quando olha para mim.
— É, ela e Giovanna. Ela também odeia Giovanna pra caralho,
então está tentando se concentrar nos estudos. Oleander e Sage
têm feito hora extra na biblioteca.
Coloco meus talheres sobre a mesa. De jeito nenhum vou ficar
sentada aqui ouvindo essa droga de resumo.
North percebe isso no mesmo instante.
— Não está do seu gosto, Fallows? Vou avisar ao chef para a
semana que vem.
— Semana que vem? Não vou voltar.
Gabe fica rígido, seus movimentos ficam mais bruscos, mas ele
não para de comer. Acho que nessa altura nada o faria parar.
North o observa, então se volta para mim com um olhar ríspido.
— Virá aqui todas as sextas-feiras. Precisei de algumas semanas
para encontrar um dia que funcione para todos, mas agora que
encontrei, vai ocorrer com regularidade.
Debocho:
— Dá pra ver que todos estão levando a sério. Posso ir embora
agora? Meu toque de recolher começa daqui dez minutos e não
quero me atrasar.
Gabe faz uma careta e toma um grande gole de sua cerveja. É
claro que ele ganha álcool e eu só uma merda de água. O que eu
não daria por uma soda com vodca ou por uma cerveja, ou qualquer
coisa assim nesse momento. Qualquer coisa para relaxar, porque
posso sentir a besteirada no ar, como se as coisas ainda fossem
piorar.
— Seu toque de recolher não se aplica durante nossos jantares.
Meu chef teve muito trabalho para fazer essa refeição para todos
nós, o mínimo que você pode fazer é comer.
Meus lábios se curvam e estou prestes a dar na cara dele quando
a porta abre e Gryphon entra. Ele me ignora por completo e escolhe
um lugar mais distante na mesa, onde não vai ter que olhar para
mim.
Reviro meus olhos, será que nenhum deles pode fingir ser
civilizado? Então Nox entra pela porta com uma de suas muitas
tietes, enfiada debaixo do braço, dando risadinhas como uma
criança.
O vínculo idiota e traidor no meu peito desperta.
Porra, não me importo com o que esse cuzão faz, mas, pelo
visto, meu vínculo sim.
— Ora, se não é meu pequeno Vínculo venenoso. Está aqui para
estragar o jantar de todos? Que tal se fizer o que faz de melhor e
fugir para podermos jantar em paz.
Há dois minutos eu queria, com todas as minhas forças, sair
dessa mesa, mas agora vou comer até a última coisa no meu prato,
mesmo que eu me engasgue.
Nox Draven que se foda.
A tiete dá uma risadinha enquanto se senta na cadeira. North
ignora a presença dela, mas diz para seu irmão:
— Está atrasado. Se não vai conseguir chegar na hora para o
jantar, por favor me avise com antecedência. Posso remarcar.
Nox encolhe os ombros com indiferença e a vadia risonha se joga
na cadeira ao lado de Gryphon, inclinando-se sobre ele para pegar
um prato.
Meu vínculo não gosta disso.
Nem um pouquinho.
Gryphon ergue a cabeça para me olhar nos olhos, e mantenho o
contato visual por um segundo, hipnotizada por completo pela fúria
em meu peito, antes de ele desviar os olhos e interromper o
momento.
Ele não a afasta.
Seguro minha faca com tanta força que meu punho vibra. Penso
em tudo que eu gostaria de dizer agora, todas as verdades que
queria jogar na cara desses Vínculos arrogantes, ingratos e cretinos,
então engulho tudo.
Mas ser uma pessoa mais evoluída, definitivamente, não é para
mim, e tentar fazer isso vai acabar me matando.
7

CONSIGO PASSAR O JANTAR todo sem esfaquear nenhum dos


meus vínculos, ou o pesadelo risonho que Nox trouxe com ele, o
que por si só é um milagre, porque depois que terminamos os pratos
principais, uma série de sobremesas elaboradas é trazida por uma
horda de funcionários de North.
Tudo parece maravilhoso, e qualquer coisa com chocolate é
absolutamente necessária para mim, mas, por orgulho, tento
recusar mais uma vez.
North enche outro prato até a borda para mim.
Não sei se isso é só ele tentando provar sua dominância sobre
mim ou se está tentando dizer algo a respeito de todas as curvas a
mais que tenho em comparação às lindíssimas mulheres
magérrimas de que ele gosta. Está bom, estou generalizando
bastante aqui, porque só vi uma das peguetes de North e você não
pode definir os gostos de um homem com base em uma
amostragem tão pequena, mas algo nele grita “bilionário
espalhafatoso e convencido que gosta de modelos”.
Como um pouco de tudo.
A torta de chocolate é uma experiência religiosa, e preciso
controlar um gemido de prazer porque em hipótese nenhuma quero
que saibam o quanto eu amei. Percebo que devo ter feito algum
barulho porque Gabe se sobressalta ao meu lado e me olha como
se nunca tivesse me visto antes.
Interessante.
— Então, Oli, ouvi dizer que você não tem dom nenhum. Isso
deve ser uma droga.
E lá se vai minha serotonina de chocolate. Viro na cadeira para
olhar para a tiete risonha que está olhando para mim como se eu
estivesse fazendo o cômodo feder. Gryphon a ignora sem a menor
consideração, conversando com North sobre novos programas de
treinamento que está implementando com as Equipes Táticas, e
Gabe está apenas concentrado no prato de sobremesa à sua frente.
Na verdade, é a primeira vez que o vejo comer algo que não seja
super saudável, e ele está devorando tudo como se estivesse no
corredor da morte e essa fosse a sua última refeição.
Nox me encara do outro lado da mesa como se arrancar a carne
dos meus ossos fosse a coisa que mais gostaria de fazer na vida.
Talvez ele seja um metamorfo, porque o olhar em seus olhos é
completamente predatório.
Olho para a garota e finjo indiferença, mantendo meu tom de voz
casual e impassível:
— Não vou perder o sono por causa disso.
Ela dá uma risadinha de novo e posso jurar que esse barulho
ainda vai me assombrar.
— Eu só não consigo acreditar, você ser o Vínculo Central
desses homens e não ter nada. Que vergonhoso. Não é à toa que
eles saem com tanta gente, ninguém seria fiel a uma defeituosa
como você.
Volto a fechar a mão em volta do garfo, mas dessa vez não
consigo me controlar e retruco:
— E qual é o seu dom? Se eu enfiar esse garfo em você, vai
conseguir se curar imediatamente ou só consegue fazer alguma
porcaria do tipo: falar com pombos ou cagar ouro?
Gabe ri, então cobre a boca com a mão como se tivesse sido
pego confraternizando com o inimigo, depois olha para North como
se fosse ser posto de castigo. Reviro os olhos, mas sei contar
minhas vitórias quando posso e me debruço para perto dele para
murmurar de forma debochada:
— Ela parece o tipo de garota que consegue mudar a cor da
unha só com a força de vontade.
Gabe pigarreia e responde:
— Ashlee é uma Elemental. Ela consegue conjurar água, mas só
o suficiente para encher um jarro.
Gargalho alto. Devo parecer uma vaca aos olhos deles neste
momento, porém sempre fui ensinada a nunca iniciar uma briga, só
sempre me certificar de acabar com elas.
— Uau, isso com certeza me deixa com inveja de você, Ashlee.
Os olhos dela brilham com o sarcasmo que está pingando de
minhas palavras, e ela retruca:
— Palavras bonitas vindas de uma garota com nada. Você não
tem nenhuma vergonha de ser uma grande decepção?
Pode até ser idiota, mas dou de ombros.
— Acho que você nunca vai ficar sabendo.
Gabe empurra o prato para longe e limpa a garganta.
— Vou voltar para o dormitório. Posso te deixar lá, Fallows... a
não ser que queira que o North te leve?
Porra, não, não quero.
Tento não parecer tão ansiosa e aliviada quanto estou ao me
levantar, cerrando os dentes e forçando um tenso:
— Obrigada pelo jantar — digo para North, só para que não
possa me acusar de ser malcriada de novo.
Ninguém mais diz nada sobre nossa saída, então dou as costas
para todos eles e quase corro atrás de Gabe. Ele pode ser um
babaca comigo em Draven, mas nesse momento ele é meu único
aliado, já que vai me tirar daqui.
Mal presto atenção em nosso entorno enquanto percorremos o
gigantesco labirinto que é essa casa. Meu celular vibra no bolso
quando entro na garagem espaçosa, o que mal consegue desviar
minha atenção dos milhões de dólares em veículos que estão
armazenados aqui. Enquanto acompanho Gabe até uma das motos,
tiro meu celular do bolso.
Estou com saudade, Oli.
Não sei nem como responder a isso. Não tenho nenhuma maldita
ideia, então, quando lembro que North está lendo todas minhas
mensagens, meu estômago fica um pouco mais pesado que antes.
Volto a enfiar o celular no bolso a tempo de ver Gabe tirar um
capacete de sua mochila e oferecer para mim. Olho para o objeto e
então o encaro, mas ele dá um sorrisinho e encolhe um ombro.
— Se não quer que North ou Nox te levem, vai ter que ser isso,
Fallows.
Ele é muito convincente.
Pego o capacete e o coloco, atrapalhando-me um pouco para
apertar a correia no queixo. Gabe me observa, parecendo que quer
estender a mão e me ajudar, mas se controla e, quando estou
pronta, ele sobe na moto e me oferece um braço para me ajudar a
subir enquanto a porta da garagem abre à nossa frente.
Faz anos que não subo em uma.
Não posso pensar no meu pai e em seu amor por motocross
agora. Não posso pensar sobre ter seis anos de idade e estar
sentada na frente dele em uma moto, com meu longo cabelo escuro
esvoaçando ao redor de nós enquanto ele pilotava pelas trilhas. Eu
me lembro de sentir que estávamos indo tão rápido, quando na
verdade, devíamos estar a alguns quilômetros por hora.
Ainda assim, há um momento de déjà-vu ao subir no banco atrás
de Gabe. Hesito por um instante antes de passar os braços ao redor
de sua cintura e colar meu corpo às suas costas quando o motor
ganha vida embaixo de nós. Ele sobe o cavalete, então partimos,
voando para fora da garagem e através do pavimento sem nos
importarmos com ninguém ao nosso redor.
Gabe pilota como se estivesse pronto para morrer, um
comportamento que posso apoiar.
Mesmo depois de anos em fuga e fazer tudo que pude para
sobreviver, tem uma parte profunda e sombria dentro de mim que
escuta o chamado de uma morte suja em um veículo no asfalto e
anseia por isso de modo desesperador. Eu me pergunto o quanto
meus Vínculos me odiariam então, se soubessem que eu escolheria
uma morte horrível a ficar perto deles.
Imaginar suas reações é o que me mantém ocupada pelo trajeto
todo até os dormitórios.
Gabe desliga o motor no segundo em que paramos, mas não sai
do assento enquanto desço. Entrego o capacete para ele e pigarreio
um pouco, bem desconcertada agora que preciso lhe agradecer
pela ajuda.
Ele me poupa da tentativa:
— Ashlee é a porra de uma vaca, mas você precisa se preparar.
Nox vai trazer alguém toda semana e você não vai poder ameaçar
todas elas. Crystal é uma Flama e vai tacar fogo nas suas
sobrancelhas na primeira oportunidade que tiver. Além disso,
Yasmine é uma Boneca Vodu de carne e osso, e vai se esfaquear
sem pensar duas vezes.
Bufo e ajeito a mochila em minhas costas.
— É claro que ele trepa com loucas, parece mesmo fazer o
gênero dele.
Gabe finge indiferença e olha para a rua para não precisar olhar
para mim enquanto responde:
— Você não pode culpá-lo, foi você quem fugiu e estragou tudo.
 
*
 
Quando meu despertador toca na manhã seguinte, sinto o pavor
se acumulando fundo dentro de mim.
Fico deitada ali, no colchão cheio de caroços, tentando descobrir
por que meu corpo inteiro parece ser de chumbo, porque a ideia de
sair dessa cama me preenche com as gavinhas gélidas do medo,
mas não tenho nada, nenhum motivo para eu ficar de repouso hoje.
Então afasto o sentimento e me levanto.
Os banheiros compartilhados estão ocupados e, por mais que eu
odeie estar ali, não tinha conseguido tomar banho depois da zona
que foi a aula de TT de ontem e minhas pernas ainda estão
cobertas de terra, então isso não é negociável.
Quanto mais tempo passo no campus, melhor fico em bloquear a
merda que essas garotas petulantes têm a dizer. A maioria começou
a fingir que não existo, como se os crimes que cometi ao fugir, me
tornasse indigna de sequer um segundo de seu tempo, então, elas
estão me evitando.
Isso eu posso aguentar.
São só umas quatro ou cinco em meio a essas garotas
arrogantes, linguarudas e filhas da mãe que fazem da minha vida
aqui um inferno. Eu me lavo o mais rápido que posso e me visto no
box. Não sou idiota de sair daqui de toalha porque, mesmo com
todas as regras do campus a respeito do uso apropriado de dons,
não confiaria que nenhuma delas evitaria aprontar comigo em um
estado tão vulnerável.
Quando Gabe chega à minha porta para me acompanhar, estou
ocupada demais com minha mochila cheia de trabalhos para reparar
nele ou no fato de que está espumando de raiva.
Só quando chegamos ao refeitório descubro que todo o corpo
estudantil está assim. Não estou acostumada a ficar na fila sem
comentários maldosos ou risadinhas de fofocas ridículas me
acompanhando. Mas não escuto nada disso.
Olho para trás e enfim percebo o mau humor de Gabe.
— Aconteceu alguma coisa? Achei só que você odiava ficar perto
de mim, mas agora está bem claro que não é só você — pergunto
hesitante. Tenho certeza de que mesmo sem receber uma resposta
minha ontem à noite, Atlas teria me dito o que aconteceu se fosse
notícia importante o suficiente para chegar na Costa Leste. Isso
deve ser regional.
— Você está sabendo que alguns Vínculos e Vinculados estão
desaparecendo agora, certo? Bem, mais três foram levados na noite
passada. Um quarto foi encontrado morto.
Ele parece infeliz, então fico em silêncio por um momento, até
estarmos os dois acomodados em nossa mesa de costume, então
pergunto:
— Você conhecia a pessoa que morreu?
Ele afasta o próprio prato e esfrega o rosto com a mão,
suspirando.
— Ele estava no time de futebol comigo. Era do último ano, mas
me acolheu porque também era um metamorfo e sabia como era
difícil controlar a transformação num esporte tão violento.
Certo.
Não posso nem desfrutar do fato de que ele acabou de me contar
seu dom, porque a bile está subindo pela minha garganta. A
Resistência esteve aqui na noite passada, eles levaram gente com
eles e eu sei em primeira mão o que vai acontecer com essas
pessoas.
Preciso de um segundo para conseguir forçar um:
— Sinto muito. Sei como é perder alguém assim, sinto muito
mesmo.
As palavras são muito reveladoras, o choque me deixa menos
cuidadosa, mas ele está distraído demais para perceber. Ele só
nega com a cabeça, como se para clarear seus pensamentos, e diz:
— Brayden era um garoto legal, não merecia isso. É bastante
óbvio que mataram ele porque tentou impedi-los de levar os outros.
A Resistência não está atrás de metamorfos. Uma de suas
Vinculadas foi levada, e eu gostaria de trazê-la de volta. Sei que ele
morreu e isso não importa mais para ele, mas em sua memória, eu
gostaria de trazê-la de volta.
Meus dedos começam a tremer ao pensar nele se aproximando
demais daquelas pessoas depois de tudo que fiz para mantê-los
longe. Mas, mesmo que ele tenha notado a mudança, não tem como
ele fazer ideia de que esse é o motivo pelo qual estou tão abalada.
Alguns de seus amigos do futebol passam por nós e lhe dão
tapinhas no ombro. Ele pega o prato de novo e tenta comer alguma
coisa, e uma vez que ele não está mais afundando em sua tristeza,
eu me vejo capaz de comer também. Estou tão perdida em meus
pensamentos a respeito da Resistência e o quão urgente preciso
sair daqui, que não percebo Sage se aproximando até ela arrastar a
cadeira ao meu lado e se sentar.
— Ouviu falar sobre Brayden, então? — ela murmura, e eu faço
que sim com a cabeça.
— Riley está bem? Sei que ele mora no dormitório dos garotos.
Sage faz uma careta.
— Ele está morando na casa da Giovanna. Já faz meses.
Gabe a repreende com um olhar severo:
— Eles são Vinculados, espera-se que ele queira morar com ela.
Sage se encolhe, mas só chega a ser perceptível para mim
porque sei como é tentar esconder. Meus dedos começam a tremer
com algo que não é medo.
— Você precisa ser um babaca insensível assim? Ela nem disse
que estava chateada com isso.
Ele me dá um sorrisinho.
— Ah, então você é toda sensível quando se trata da sua
namoradinha, mas não dá a mínima para os seus Vínculos? Talvez
Nox esteja certo e você seja lésbica. Isso explicaria muita coisa.
Porra, bem que eu queria ser. Esbarro em Sage gentilmente com
o ombro e dou um sorriso suave para ela.
— Que bom que ele está a salvo, e sinto muito que vocês ainda
estejam... com dificuldades.
Sage sorri para mim e finge indiferença.
— As coisas são como elas são. Também fico feliz que ele esteja
bem, enquanto ele estiver vivo, acho que tem uma chance de
conseguirmos resolver as coisas.
Gabe se constrange um pouco.
— Desculpa, Sage. Não quis ser tão babaca. Só estou... abalado
por causa de Brayden e da bagunça no meu próprio vínculo.
Ai.
Ignoro e dou um sorriso para ela ao invés de responder.
— Quer ir à biblioteca hoje à tarde? Adoraria sua ajuda com o
trabalho de Economia que temos que fazer. Você é genial pra
caramba com essas coisas.
Sage ri e encolhe os ombros, mas fica claro que é um gesto
forçado.
— Não sou não. Além disso, você está indo tão bem. De jeito
nenhum eu estaria como você se tivesse abandonado o ensino
médio no primeiro ano, você é incrível.
Os olhos de Gabe disparam para mim.
— Você abandonou o ensino médio?
Fico agitada na cadeira. Presumi que North tivesse contado a ele
e ao restante dos meus vínculos, mas, pelo visto, não.
— Eu me mudava demais para continuar frequentando a escola.
Mas passei muito tempo em bibliotecas.
Não sei nem porque estou me explicando para ele. Deve ser por
causa da vulnerabilidade em seus olhos causada pela morte de seu
amigo, mas eu devia ter imaginado sua reação.
— Você estava tão determinada a escapar da gente que
abandonou a escola? Porra, Fallows, você realmente é uma vaca.
Ele empurra o próprio prato, ainda meio cheio, e vai embora.
Esfrego o rosto com a mão e, por fim, desisto da minha própria
comida. Do que adianta tentar?
— Desculpa, continuo te causando problemas com ele, preciso
aprender a ficar calada — resmunga Sage, e tenho vontade de
abraçá-la para fazer com que se livre de todo esse ódio por si
mesma que tem preso dentro dela. É um eco do meu próprio, mas o
escondo melhor perto de outras pessoas.
— Se não fosse isso, ele acabaria encontrando outra coisa pra
jogar na minha cara, e quer saber? Fugi mesmo. Ele não está
errado quanto a essa parte, então acho que mereço sua raiva.
Sage se levanta e pega sua mochila, esperando eu fazer o
mesmo, então andamos até nossa aula de Economia.
— Só te conheço há poucas semanas e já sei que mais alguma
coisa deve estar acontecendo, Oli. — Olho de soslaio para ela, que
encolhe os ombros de novo. — Não estou pedindo detalhes, mas
sei que deve ser algo muito ruim para você não querer contar para
seus Vínculos, nem que seja para que parem de pegar no seu pé.
Só quero que saiba que acredito que você é uma pessoa boa, não
importa o que eles digam.
Devem ser meus hormônios ou algo do tipo, porque isso faz eu
querer desabar em lágrimas no banheiro por algumas horas. Em vez
disso, enlaço o braço com o dela e sussurro de volta:
— Vai ser a primeira pessoa pra quem vou contar. Quer dizer, se
um dia eu puder.
 
*
 
Depois que nossas aulas do dia terminam, Sage e eu passamos
duas horas juntas na biblioteca e, para ser sincera, nunca me senti
tão em paz desde que cheguei à Universidade Draven. O pânico
que eu estava sentindo a respeito desse trabalho começa a diminuir
quando ela me mostra os trabalhos anteriores que fez para nosso
professor de Economia, e sei o que esperar. Tenho um esboço
decente e um plano de como executá-lo, vou arrasar, caramba!
Mal posso esperar para ver o rosto de Draven quando eu trouxer
uma nota 10 para casa. Isso vai ensiná-lo a não presumir que sou
uma desistente sem cérebro.
Meu estômago ronca alto, olho para meu relógio e percebo que
só falta uma hora para meu toque de recolher. Suspiro e ofereço a
Sage um sorriso triste, irritada de que vou ter que interromper nosso
compromisso mais uma vez.
— Meu carcereiro vai ficar bravo se eu não estiver trancada na
minha torre logo. Desculpa, eu queria ficar mais algumas horas se
pudesse. Isso foi ótimo.
Sage morde o lábio por um momento, então abre um sorriso
tímido para mim, mostrando suas covinhas.
— O que acha de margaritas e tacos?
Meu sorriso fica mais largo.
— Acho que são coisas maravilhosas. Mas teríamos que fazer
isso no meu quarto, North sabe exatamente onde estou, então não
posso nem usar as áreas comuns do dormitório.
Sage faz uma careta.
— Isso não parece ser muito... normal. Acho que seu Vínculo
talvez seja um cretino possessivo.
Gargalho alto.
— É, também tenho essa impressão. Se você não se importar
com meu quarto sem graça ao extremo, eu adoraria passar mais um
tempo juntas.
Ela parece tão feliz e chocada por eu estar concordando que
passo o braço pelos ombros dela para lhe dar uma apertadinha. Ela
está tão traumatizada, muito mais do que eu. Ou, talvez, ela apenas
expõe suas mágoas de modo que todos podemos vê-las. Já eu,
enterro as minhas o mais fundo que posso, o mais abaixo possível
da minha pele, então finjo que não está me matando aos poucos, de
forma dolorosa e constante. Mesmo agora, só de pensar no fato de
que tenho esses problemas, nem sequer lembrando quais são, meu
sangue congela. Porra.
Afasto esses pensamentos enquanto tento entregar um pouco de
dinheiro para Sage, o pouco que ainda tenho do meu tempo sozinha
por aí no mundo, mas ela rejeita.
— Dessa vez é por minha conta. Sei que North não vai te deixar
arrumar um trabalho, então é o mínimo que posso fazer.
Reviro meus olhos para ela.
— É você quem está me ajudando. Deveria ser eu comprando
nosso jantar.
Ela ri enquanto nós duas nos levantamos e saímos juntas da
biblioteca.
— Ah é? Seu documento falso é bom o suficiente para
comprarmos umas margaritas?
Droga. Tinha esquecido disso. Suspiro de forma dramática,
erguendo as mãos para o céu como se estivesse implorando a
algum deus benevolente no paraíso.
— Ele era fantástico, mas então North o apreendeu e agora ele
não existe mais.
Sage ri e passa o braço no meu.
— É, foi o que suspeitei. Não esquenta, Riley arrumou um bom
para mim.
O sorriso some no mesmo instante de seu rosto ao mencionar
seu nome. Meio que quero conhecê-lo só para ver se ele é tão bom
quanto ela acha que é por baixo de todo esse drama.
Também gostaria de dar uma bronca nele por causa dela, só
repreendê-lo por não ver o quão incrível ela é.
Aperto seu braço.
— Ok, primeira regra da noite: nada de falar sobre nossos
Vínculos idiotas. Vamos nos ater às coisas importantes, tipo: de que
cor eu deveria pintar meu cabelo em breve. Estou pensando em
madeixas verde limão.
Não acrescento que estou pensando em verde limão porque
tenho certeza de que essa seria a cor que mais irritaria North,
porque estou falando sério quanto a manter a conversa afastada
dos caras. Não tenho a chance de me divertir com garotas da minha
idade desde os quatorze anos, quando meu mundo inteiro mudou,
então estou empolgada pra caramba de ter a chance agora.
Além disso, Sage é uma ótima pessoa. Um ser humano nota 10
fantástico que não merece a montanha de merda que Riley e
Giovanna insistem em jogar em cima dela.
Eles deveriam ser gratos por eu não poder usar meus poderes,
caso contrário, os dois estariam fodidos pra caralho.
Somos obrigadas a nos separar do lado de fora da biblioteca para
eu poder obedecer ao meu toque de recolher e Sage poder buscar
nossa comida. Ela entra em seu fusquinha velho fofo e eu tiro rápido
uma foto com o celular porque ela fica adorável pra caramba dentro
dele. Salvo como foto de contato dela e sorrio um pouco mais.
Merda, ter uma amiga é muito melhor do que eu me lembrava.
Em geral, minhas amigas da pré-adolescência adoravam um
drama. Costumávamos brigar por causa de garotos e roupas,
nenhuma das outras garotas era Favorecida, então não entendiam
por que eu insistia em ter uma quedinha por tipo... doze meninos de
uma vez.
Eu me lembro de uma das meninas me dizer que eu me tornaria
uma puta como minha mãe e que ela via caras entrando e saindo da
nossa casa o tempo todo. Minha mãe era o Vínculo Central e eu
tinha três pais. Não consigo me lembrar por que vivíamos entre os
humanos, acho que tinha algo a ver com o trabalho de minha mãe,
mas eles faziam o melhor que podiam para serem discretos a esse
respeito.
Meio que estraguei esses esforços no dia em que disse para
Alexandra Hargraves que todos os meus três pais, podiam chutar a
bunda magrela do pai dela se ela não aprendesse a manter sua
boca atrevida e fofoqueira calada.
Minha mãe não gostou disso.
Mas ganhei três consecutivos gestos de “toca aqui” dos meus
pais.
Valeu a pena.
Essa memória me mantém feliz e quentinha por dentro durante
toda a caminhada de volta ao dormitório.
8

— UM TONALIZANTE LAVANDA? Você quer que eu deixe meu


cabelo da mesma cor que o das velhinhas safadas da padaria? —
Engasgo com a margarita e Sage ri descontroladamente.
Há sacolas espalhadas por cima da minha cama e no chão ao
redor de nós, cheias de lanchinhos e produtos de beleza, porque
Sage decidiu no caminho que uma noite das garotas só seria boa
para nós duas se ela pudesse mexer na minha maquiagem.
Eu me pergunto quanto tempo tem desde a última vez que ela fez
algo desse tipo, porque para mim faz anos. E eu também acho que
ela pressupôs isso e quis fazer algo especial, pois ela é tão
carinhosa assim.
— Você disse que não suporta o visual prateado, o que é uma
loucura, pois da última vez que tentei esse tom de loiro me custou
uma fortuna e nunca ficou claro o suficiente para ficar bom em mim.
Conversar sobre essas coisas enquanto bebemos não é uma
ideia inteligente, mas nossa amizade me deixa um pouco
imprudente. Como se os anos sem ter ninguém com quem falar ou
confidenciar tivessem me deixado idiota para as gentilezas que ela
diz com sua voz suave.
Eu me recuso a olhar para meu reflexo no espelho ao lado da
porta quando respondo:
— Não é por causa da cor, é pelas memórias que vêm com ela.
Tentei pintar de preto de novo há alguns anos, mas a cor nunca
chegou a pegar. É como se meu cabelo tivesse... rejeitado a tinta.
Arrisco olhar para onde Sage está enchendo nossos copos, mas
ela está franzindo um pouco a testa para a mistura de álcool e
açúcar que ela inventou.
— Bem, qual a pior coisa que pode acontecer com a tinta roxa?
Se não pegar, pelo menos vamos ter tentado, e se pegar, acabam
as memórias ruins sobre... coisas ruins te perseguindo.
O resto da noite é um borrão de bebidas, tinta roxa espalhada
pelo meu lençol, e eu parada de roupa de baixo no chuveiro
comunal com Sage às três da madrugada para enxaguar o troço. É
um momento de bagunça e idiotices, e bem o tipo de coisa que
salva minha vida.
Acordamos algumas horas depois de ressaca e desesperadas
por comida.
Gabe não aparece para me acompanhar até as aulas e North
manda uma mensagem dizendo que ainda tenho que ir mesmo sem
minha sombra carrancuda, o que por mim tudo bem. Recebo
olhares e sussurros o dia todo, mas o latejar na minha cabeça abafa
a maior parte disso e consigo suportar aquilo graças à presença de
Sage, que está tão de ressaca quanto eu.
Quando as aulas do dia terminam, ela se cola do meu lado e
andamos até meu dormitório. O trabalho em duplas que temos já
está pronto, mas logo descubro que Sage prefere muito mais ficar
comigo no meu quarto patético do que ir para casa. Ela nunca faz
comentários sobre a ridícula falta de coisas ou quão horrível e
desconfortável a cama é, apenas age como se a situação fosse
normal.
E isso é essencial para minha sobrevivência.
Ela se tornou minha rocha, a única pessoa mantendo minha
sanidade sob controle, porque se eu não a tivesse, tenho certeza de
que eu seria um caos berrando de fúria nessa altura.
Quando chegamos em seu carro para ela deixar os livros
sobressalentes, seu celular toca e ela revira os olhos para o que vê
na tela.
— Riley? Ou aquela vadia da Giovanna?
Sage bufa e diz:
— Nenhum dos dois, é meu pai. Meus pais estão irritados porque
me tornei muito “isolada”. Pois na visão deles, tudo bem eu ser
excluída, mas totalmente irracional eu me recusar a ir a qualquer
reunião social. Mamãe e eu discutimos sobre isso hoje de manhã e
agora papai está implorando para eu ir ao jogo de futebol.
Encolho os ombros e ajeito as alças da minha mochila neles.
— Você odeia futebol? Eu poderia... talvez tentar dar um jeito pra
nós duas irmos?
Não quero ter que ligar para North, mas se isso for importante
para ela, eu ligo. Sage me olha de um jeito tímido.
— Na verdade, meio que amo futebol. Meu irmão joga. Sinto falta
de ir, mas odeio ficar lá sozinha, porque me sentar com meus pais é
uma tortura. Minha mãe ainda me culpa por estragar tudo com Riley.
Dane-se isso. Vou ligar para o filho da mãe do meu Vínculo e nós
vamos, não importa o que isso me custe.
Aperto o botão para ligar e inspiro fundo, preparando-me para a
briga que isso vai se tornar, e o tom de voz frio de North ao atender,
já me faz ranger os dentes.
— Estou prestes a entrar em reunião, Fallows, não é uma boa
hora.
Não se exalte, não o xingue, fique calma.
— Tudo bem, serei breve. Gabe tem um jogo de futebol hoje à
noite e eu gostaria de ir. Sage vai e nós vamos comprar cachorros-
quentes e comida ruim. Só preciso saber que você não vai mandar
uma Equipe Tática pra me arrancar da arquibancada enquanto
assisto ao jogo.
Há uma pausa, como se ele estivesse pesando cada uma de
minhas palavras e testando se estou sendo honesta com ele, e mais
uma vez, inspiro profunda e demoradamente para manter a calma.
Por fim, ele diz:
— Certo. Vou ficar de olho em você e Gabe vai te encontrar
depois do jogo para levá-la de volta ao dormitório. Se isso for uma
tentativa de fugir de novo, vou transformar sua vida num inferno.
Foda-se ele.
— Tipo, como se ainda não fosse?
Desligo antes que ele possa dizer mais alguma coisa e volto a
enfiar o celular no bolso, dando um sorrisinho para Sage, mas ela
ainda está fazendo uma cara feia na minha direção depois de ouvir
essa... bagunça toda.
— Ele te odeia mesmo, né? Meu Deus, e eu achava que Riley já
era ruim demais.
Enlaço meu braço com o dela e o aperto.
— Riley é horrível pra caralho. Pelo menos dei motivo para North
ser um babaca, seu Vínculo não tem desculpas.
Ela suspira e olha ao redor como se tivesse medo de Giovanna
saltar para fora de uma moita e nos atacar. Esse é um assunto
sobre o qual não conversamos na noite passada, mas ela não foge
dele agora.
— Também fiz algo errado. Não sou uma modelo italiana de um
metro e oitenta com pernas que homens querem escalar e peitos
maravilhosos. Sou só... a Sage sem graça. Meu Deus, precisamos
mudar de assunto antes que minha autoaversão, me domine e eu
passe o resto da noite bebendo de uma garrafa nas arquibancadas.
Não tem nada que eu queira mais nesse momento do que encher
a cara de novo e esquecer dessa porra de confusão toda, e embora
beber nunca tenha sido algo que eu evitasse antes, alguma coisa
sobre a conversa com North me faz hesitar.
De alguma forma, sinto que estou me agarrando ao meu dom
com mais força do que nunca, mas, ao mesmo tempo, nunca tive
tão pouco controle sobre ele. Todos os dias em que estive aqui
precisei forçá-lo para baixo, implorar, suplicar, ignorar e reprimir os
desejos do meu vínculo, a cada dia ele tem clamado pelos homens
com quem estou destinada a ficar, e em todos esses momentos eu
tive que sufocá-lo até não haver mais nenhum sinal de quão fundo
essa separação toda tem me machucado.
Beber esta noite está fora de cogitação, pelo menos até eu
conseguir me controlar de novo.
Eu me visto com um jeans rasgado e um suéter velho. Estou
chocada de como eles me servem bem, porque da última vez que
os provei estavam um pouquinho apertados. Acho que esse tempo
todo cercada de pessoas que me odeiam tem me feito emagrecer.
Sage está sentada no chão na frente do meu espelho, arrumando
seu cabelo e maquiagem. Ela é bem discreta quanto a isso, só faz
algumas ondas nas mechas e passa um pouquinho de rímel, mas
ela é tão bonita que não precisa de mais nada.
Dói em mim que ela tenha uma opinião tão ruim de si mesma por
causa de Giovanna.
Nada me deixaria mais feliz do que matar aquela vaca, e sendo
honesta, acho que seria a primeira morte da qual eu não me sentiria
tão culpada. Seria a primeira pessoa que eu teria certeza de que é
uma escrota.
Mas ser uma pessoa escrota é o suficiente para justificar a morte
de alguém?
Porra, hoje foi um dia longo e cansativo demais para ficar
pensando nessa baboseira moralista. Tudo que importa é que eu
não deveria matar ninguém no campus porque North está tão no
meu pé que descobriria tudo. Ele veria através de cada mentira que
contei desde que cheguei aqui e usaria isso como desculpa para me
acorrentar no seu porão.
Sage pega uma cadeira para eu me sentar e arruma meu cabelo
enquanto aplico minha maquiagem. Ela faz o pouco que pode para
domar os fios recém-pintados, pegando grandes mechas e as
curvando em ondas soltas para parecerem um pouco mais naturais,
como se não tivesse feito nada... bom, tão natural quanto um cabelo
cor de lavanda consegue parecer. Ela me conta histórias sobre
crescer em uma comunidade unida de Vinculados, pequenas
histórias sobre todos, menos meus próprios Vínculos, e preciso me
concentrar para manter minha mão firme enquanto me acabo de rir.
Capricho bastante na minha maquiagem.
Preciso me esforçar muito mais para alcançar metade da beleza
de Sage, e nessa altura, já faz meses desde que pude me sentir tão
bem comigo mesma. Escolho cores que ressaltam os tons azulados
no meu cabelo e, quando acabo, Sage se joga na minha cama
enquanto passo um produto para manter as ondas no meu cabelo.
Está frio lá fora e não quero perder todo o trabalho que ela teve.
— Me sinto culpada — diz Sage, rompendo o silêncio.
Olho para ela, que está muito ocupada mexendo à toa no celular
para encontrar meu olhar.
— Pelo quê? Não é culpa sua que estou presa aqui e você pode
sair e ter uma vida.
Ela suspira e coloca o aparelho de lado.
— Sou uma amiga terrível. Tem uma parte de mim que fica feliz
por North ter te encurralado, pois isso significa que você vai
continuar aqui. Nunca tive uma amiga como você. Meu Deus, nem
as pessoas que achei que fossem minhas amigas antes de Riley me
jogar de lado chegavam perto. Eu... meu Deus, sinto muito, Oli.
Nem mesmo meus Vínculos despedaçados fazem eu me sentir
assim.
— Por que eu ficaria brava com isso? Como eu poderia ficar com
raiva por você de fato gostar de mim e querer ser minha amiga?
Escuta, se as coisas fossem ao contrário, posso garantir que eu
sentiria o mesmo.
Ela sorri, mas seus olhos ainda estão tristes demais.
— Não sentiria. Você é a pessoa mais altruísta que já conheci.
Você aguenta tudo que seus Vínculos jogam em você e só... segue
em frente.
Queria que isso fosse verdade.
Será que eu estaria tão certa assim do que estou fazendo se não
existisse um risco tão grande? Será que seria tão forte como sou
agora se já não estivesse ciente de quantas pessoas vão morrer se
eu não conseguir me afastar dos meus Vínculos, ou se a
Resistência me encontrar de novo?
Não estou tão certa disso.
Finjo indiferença e guardo a maquiagem com cuidado de volta na
bolsa de Sage, faço isso não apenas por não serem minhas, mas
porque são todos produtos caros e de ótima qualidade, coisas que
nunca nem considerei comprar antes, pois sou falida.
— Não me importo com essa merda, Sage. Me importo com
todas as outras qualidades que você tem que te tornam a melhor
amiga possível para mim. O que importa é você aparecendo aqui
com os braços cheios de maquiagem mesmo sem eu ter pedido
porque sabia que de jeito nenhum eu conseguiria me embonecar
sem sua ajuda. O que importa é você ter me convidado para tacos e
margaritas. Que quando faço anotações das aulas que você perdeu,
você me agradece como se eu tivesse conquistado um reino em seu
nome. O que importa é que você não dá a mínima para todas as
coisas que as pessoas dizem sobre mim, e escolhe me conhecer
antes de julgar. Tenho um milhão de outras coisas que poderia te
dizer, mas vamos deixar por isso mesmo. Você é incrível pra caralho
e um dia vai acreditar quando eu disser isso.
Ela sorri e abaixa o rosto.
— Você também é ótima, Fallows. Tanto que vou junto se você
decidir fugir de novo.
 
*
 
Vamos cedo para o jogo, porque acontece que Sage talvez não
tenha sido clara o bastante sobre o quanto ela ama futebol
americano e do quanto ama os jogos, ela é bastante exigente
quanto ao lugar em que vamos nos sentar. Ela está em um outro
nível de empolgação quanto a esse lance, falando sem parar no
caminho todo até o estádio sobre os jogadores e as estatísticas do
time. Até elogia Gabe, ignorando por completo sua habitual
relutância em falar sobre meus Vínculos, de tão animada que está
por assistirmos ao jogo de hoje.
Não me importo nem um pouco, porque vê-la tão feliz assim é
inédito. Somos amigas há semanas e o máximo que já arranquei
dela foi um sorriso tímido e uma risada sarcástica ocasional, mas,
neste momento, ela está irradiando alegria.
Precisamos parar na casa dela no caminho até o estádio e fico
esperando no carro, mandando mensagens de atualização para
North como uma possezinha obediente. Ele manda um monte de
respostas de uma palavra só, como se eu realmente não valesse
seu tempo, então faço questão de que minhas próprias mensagens
sejam muito longas e detalhadas, por pura petulância.
Porra, espero que ele odeie isso.
Estou rindo sozinha como uma criança quando a porta do carro
volta a abrir e Sage se senta no banco do motorista.
— Peguei o passe de temporada da Maria pra você, assim pode
entrar direto. Ela vai trabalhar até mais tarde hoje, então papai vai
avisá-la. E dessa forma não temos que lidar com ela — diz Sage,
enquanto dá partida no carro e sai da garagem. A playlist dela
começa e bandas punk indie ecoam no veículo.
Maria é a outra Vinculada do pai dela e completa a tríade do
vínculo de seus pais. Ela trabalha no Conselho como advogada e,
sendo uma das principais assessoras de North, está enchendo o
saco de Sage por ser minha amiga.
Sage a evita a todo custo.
Também vou fazer o possível para ficar longe dessa psicótica. Dá
para imaginar estar tão envolvida com seu chefe a ponto de fazer o
que pode para interferir com as amizades do Vínculo dele?
Não, obrigada.
Chegamos tão cedo que é fácil estacionar e Sage conversa com
todos que vemos como se fossem seus velhos amigos. Mas isso é
de forma contida, porque todos a olham com uma pena e
desconfiança mal disfarçada, mas pelo menos falam com ela, então
já é meio caminho andado comparado aos outros alunos da
faculdade.
Sage suspira e aponta para um casal.
— Aqueles são meus pais. Estão sentados no meu lugar,
esperando por nós.
Que merda.
Isso parece muita pressão, pela qual eu não estava preparada no
momento, mas Sage morde o lábio e volto para o modo melhor
amiga protetora porque fico irritada por nem seus pais serem mais
um espaço seguro em sua vida. Todos viraram as costas para ela,
graças a algo que está fora de seu controle.
Então, como se minha atitude de merda tivesse o invocado, Riley
chega com Giovanna no braço e eles passeiam pela pequena
multidão que começou a se formar. Ele está olhando para sua
Vinculada como se ela iluminasse toda sua vida com a beleza dela,
e há um certo ar de convencimento em torno dos dois. Como se
estarem juntos não fosse suficiente, eles também precisassem
esfregar na cara de todo mundo.
Assim que Riley vê os pais de Sage, ele liga todo seu charme e
bajula os dois como o babaca completo que é. E eles engolem tudo,
fazendo um esforço gigante só para falar com ele, como se ele não
tivesse enfiado uma faca bem no coração da filha deles.
Repulsivos, todos eles.
Sage hesita por um instante, depois puxa meu braço para tirar
minha atenção do rosto sorridente de Riley.
— Podemos ir ao vestiário ver meu irmão? Preciso de ar.
Sim, porque aqui fora no espaço aberto o ar noturno está
sufocante pra caralho agora que o cuzão do Vínculo dela está bem
ali fingindo ser um cara legal.
Ele é uma escória de merda.
Concordo e caminho na outra direção com ela, observando-a se
livrar com facilidade de cada barreira no caminho na base da
conversa, ignorando todos os olhares feios das pessoas como uma
profissional. Não levo isso tão na boa assim, e quando chegamos
em uma das salas de treinamento, já estou fazendo carranca para
todos ali como se estivesse prestes a causar problemas.
Sage esbarra no meu ombro com o dela para eu desfazer meu
semblante furioso, enquanto manda uma mensagem de texto para
seu irmão sair e vir nos encontrar. Ele não a responde, mas
decidimos esperar. Por sorte, não demora muito.
Sawyer parece muito com Sage, seu cabelo castanho
acinzentado é curto e ele já tem uma mancha de terra no rosto
graças à seja lá o que eles estiveram fazendo para se aquecer. Ele
está rindo e fazendo piada com seus colegas de time, mas quando
Sage o chama, ele a olha com surpresa e carinho genuíno.
Eles são próximos, e dá para ver que sentiu falta de sua irmã
aparecendo para assisti-lo.
Sendo sincera, não me importo com quanta merda vou ter que
aguentar de North e dos meus outros vínculos por estar aqui, vou
fazer tudo que posso para vir com Sage a todos os jogos de agora
em diante.
Sawyer franze um pouco o cenho para mim quando se aproxima,
mas puxa Sage para um abraço.
— Desbravando a tempestade? Não achei que você fosse ceder
à mamãe.
Sage zomba e encolhe os ombros.
— Ela enfim me venceu pelo cansaço, e passei a semana toda
com vontade de comer cachorro-quente. Como está se sentindo?
Eu me distraio um pouco enquanto eles falam sobre as
estatísticas do jogo desta noite, e todos os jargões esportivos
entram por um ouvido e saem pelo outro, porque por mais que eu
tenha uma ideia geral do esporte, definitivamente não entendo
metade do que estão dizendo agora.
Em vez disso, olho pelo corredor para todos os caras se
preparando para o jogo. A maioria deles já estão vestidos e prontos
para o jogo, alguns estão repassando seus rituais pré-jogo, e todos
estão sorrindo de forma descontrolada.
O quarterback sorri para mim, afastando seu cabelo molhado do
rosto, mas seus olhos se demoram em Sage por um instante antes
de ele se virar. Sem dúvida é mais velho do que a gente, provável
que esteja no último ano, e é gostoso pra caramba. Tem cabelos
loiros escuros e olhos azuis claros, e a covinha em sua bochecha
com certeza derreteria a maioria das garotas, mas estou imune a
garotos e seus charmes, graças à situação confusa do meu vínculo.
Também há uma certa tristeza se prendendo a ele quando olha para
Sage que me faz contrair a mandíbula.
Por que todo mundo é tão obcecado com ter pena dela e a tratar
como merda?
— Merda, desculpa, Sawyer, esta é Oli. Esqueci que vocês ainda
não tinham se conhecido de verdade.
Afasto os olhos do cara e sorrio para Sawyer, tentando não me
ofender com o olhar apreensivo que ele está me dando. Provável
que só esteja preocupado que Gabe vá encher seu saco se dirigir
um pouquinho que seja de simpatia na minha direção, então me viro
para ele e lhe dou um sorriso contido.
— Prazer em te conhecer, e boa sorte com o jogo de hoje.
Ele me dá um aceno breve com a cabeça, então hesita antes de
dizer:
— Obrigada por vir com Sage hoje. Significa muito para mim ela
estar aqui.
Finjo indiferença e me afasto um pouco mais dele.
— Sem problemas, eu queria ver o motivo de toda essa
algazarra.
Sage sorri para mim, mas o sorriso não alcança seus olhos, e me
afasto dos dois para lhes dar um instante para conversarem sem a
minha presença sondando e causando incômodo. Tento me misturar
entre as pessoas, o que é impossível graças à minha notoriedade, e
me vejo voltando a um dos corredores. Sei em qual direção teria
que ir para chegar aos nossos lugares, mas paro e mexo no meu
celular para parecer ocupada enquanto a espero. Não quero me
afastar demais e deixá-la sozinha com toda essa merda de gente.
Estou ali há alguns minutos quando algo chama minha atenção.
A porta para outra das salas de treinamento está entreaberta, e
consigo ver Gabe apertando a mão do capitão do outro time. Nada
de estranho nessa demonstração de espírito esportivo, exceto que...
ele está segurando alguma coisa que o outro cara acabou de
entregar a ele. Drogas? Espera, não, é um pedaço de papel. Os
dois estão olhando ao redor como se estivessem fazendo alguma
coisa muito ilegal, então os olhos de Gabe encontram os meus
através da porta.
Ele olha para mim.
Eu olho para ele.
Não tenho a menor porra de ideia do que ele está fazendo, mas
tenho certeza de que eu poderia ir até o vestiário, encontrar seu
técnico e arruinar a vida dele agora. A pequena faísca de pânico em
seus olhos me diz que não estou errada, ele está mesmo fazendo
alguma coisa que o faria ser expulso do time... ou passar a noite na
cadeia.
Só ficamos ali, olhando um para o outro por um segundo longo
demais, com um monte de porcaria pairando em silêncio entre nós
dois.
— Ei, desculpa pela demora. Devíamos ir nos sentar.
Eu me sobressalto e encontro Sage olhando para os próprios
pés, com os olhos um pouco vermelhos. Isso me tira do pequeno
transe em que estava e afasto os olhos de Gabe, passando meu
braço pelo dela até estarmos andando coladas uma na outra.
Nunca fui dedo-duro, e não vou me tornar uma só porque Gabe
tem sido um babaca comigo.
Voltamos para nossos lugares e Sage me apresenta para seus
pais na conversa mais constrangedora que tive desde que cheguei
aqui. Está claro que os dois não me querem perto de sua filha, mas
sorriem e fingem ser educados, sem dúvida porque ela só veio hoje
por minha causa.
Vou no embalo e os ignoro, conversando e fingindo com Sage
que está tudo bem, então o jogo começa e ela realmente se anima.
Algum tempo após o intervalo do meio do jogo, no qual comemos e
rimos até minha barriga doer, os pais dela atendem uma ligação e
vão buscar alguma coisa para comer. Uma garota que nunca vi
antes desliza para o lado de Sage no banco, minha amiga logo fica
tensa, entrando em estado instantâneo de alerta.
Por que as baboseiras dessa noite não acabam nunca?
Há um instante de silêncio enquanto a torcida ao nosso redor faz
um barulho ensurdecedor, mas quando o público se acalma, Sage
fala:
— Oli, essa é Gracie. O irmão dela, Félix, faz parte do time.
Ela não soa preocupada ou chateada, então sigo sua deixa e me
inclino para a frente para olhar a garota. Ela é bonita, seu cabelo
loiro está arrumado em um belo penteado, mas ela está usando
uma camiseta de banda e tem um piercing no nariz. Ela parece
deslocada aqui, mas está bem à vontade.
Gracie acena para mim sorrindo.
— Obrigada por fazer companhia para minha garota. Ela tem
estado triste demais ultimamente, mas também não vem me visitar
para que eu possa animá-la um pouco.
Olho para ela e depois para Sage, mas os olhos de Sage estão
fixos em seu irmão. Eu me atenho à energia de melhor amiga fiel.
— Ela é minha melhor amiga, sempre vou estar com ela.
Sage se sobressalta e me olha nos olhos, em seguida sorri.
— É você quem está arriscando um encontro com a Equipe
Tática para me fazer companhia, acho que merece um pouco de
gratidão.
Reviro os olhos.
— Nem me lembre. Então, Gracie, qual deles é Félix? Mal
consegui entender as regras direito, não conseguiria distinguir entre
os jogadores nem para salvar minha própria vida.
Ela ri e aponta para o quarterback, o mesmo que vi no vestiário
mais cedo.
— Aquele. A Sage te contou que ele é obcecado por ela? Tenho
tentado convencê-la a sair com ele desde que Riley se tornou o
maior cuzão do mundo, mas ela ignora.
Olho para ela em choque, mas Sage encolhe os ombros.
— Não quero um encontro por pena. Entendo que ele seja amigo
de Sawyer e goste de mim, mas não vou deixar que uma situação
que já é ruim, fique ainda pior.
Gracie revira os olhos, um espelho da minha própria reação.
— Ele é obcecado por você há anos. Ele destruiu a sala de
treinamento quando descobriu que você e Riley eram vinculados.
Isso não tem absolutamente nada a ver com Sawyer.
Olho de uma para a outra, mas Sage aperta bem os lábios e se
recusa a dizer qualquer outra coisa, mesmo depois que Gracie diz
tchau e se afasta.
É só depois que Gabe e seu time ganham o jogo, e estamos
esperando na porta do vestiário para ele me levar de volta ao
dormitório, que ela enfim volta a falar.
— Ele vai encontrar os próprios Vínculos um dia, e não vou
suportar perder mais alguém. Muito tempo atrás... cheguei a pensar
que talvez eu fosse o Vínculo central e pudesse ficar com os dois.
Burrice. Tento ficar longe de Félix porque, mesmo que não sejamos
vínculos, ver ele com outra pessoa vai doer. Não posso saber como
é estar com ele e depois perdê-lo. Riley já é ruim o suficiente.
Concordo com a cabeça porque entendo, mais do que qualquer
outra pessoa poderia. Estando perto dos meus Vínculos agora, a
melhor proteção que tenho é a fúria e o ódio que eles sentem por
mim. Se não tivesse isso, eu me despedaçaria sob o peso de tudo
que temos contra nós.
Eu ficaria destruída.
9

MINHA VIDA ENTRA EM uma rotina estranhamente normal.


É tão bizarro notar os padrões mundanos que começam a tomar
espaço. Estudar com Sage, ir para as aulas tendo Gabe como
minha sombra, morrer durante as aulas de TT, e me sentar à mesa
na mansão de North em um silêncio desconfortável durante os
jantares torturantes. Não estou nem um pouco complacente a
respeito de tentar dar o fora desse lugar, mas, acordar todas as
manhãs já sabendo, com exatidão, como meu dia vai ser, faz com
que eu comece a pensar que vou ficar presa aqui... pelo menos até
meu passado me encontrar e tudo de que estive fugindo nos últimos
cinco anos, por fim, conseguir me engolir inteira.
Porém, estou ocupada o suficiente para não pensar nisso com
tanta frequência.
Quando meu primeiro trabalho para a aula de economia volta da
correção com um 9, quero gritar do alto de um prédio porque estou
orgulhosa pra caramba de mim mesma. Sage busca dois cupcakes
com grandes redemoinhos de glacê por cima para celebrar durante
o almoço, e até Gabe consegue resmungar um “muito bem” para
mim enquanto mastiga sua comida de coelho.
Faço o que posso para ficar fora do radar dos meus Vínculos, a
paz frágil que encontramos tem tudo a ver com nossa habilidade de
ficarmos bem longe uns dos outros. Vejo Gabe todos os dias e Nox
durante as aulas, mas só encontro North e Gryphon durante o jantar
uma vez por semana, e assim está Ó-TI-MO para mim.
Eu me torno complacente.
Começo a me esquecer do quanto todos eles me odeiam.
A batida à minha porta depois das aulas e do jantar me assusta.
Abro e encontro Gracie parada ali, sexy pra caramba, vestindo short
jeans e uma regata minúscula, com um sorriso tímido no rosto
enquanto me olha de cima a baixo de um jeito gentil, mas analítico,
como as garotas bonitas costumam fazer. Eu pareço um monte de
merda em uma calça velha de moletom e suéter de tricô três
números maiores do que o meu, mas que é confortável pra caralho
para relaxar.
Seguro a porta entreaberta para ela não conseguir olhar dentro
do meu vergonhoso quarto estéril, mas ela não dá atenção
nenhuma para ele.
— Desculpa aparecer do nada, mas é impossível te encontrar
online. Caramba, até seu número de celular tem uma proteção, tipo,
do nível da CIA! Por acaso Sage tem esse número? Ela não atende
minhas ligações mais, então eu não conseguiria com ela de
qualquer forma.
Meu Deus.
— Ahn, certo... como posso te ajudar?
Ela dá uma olhada para o corredor vazio, parecendo
desconfortável e um pouco tímida.
— Posso entrar? Não acho que a Sage ia gostar de eu divulgar
isso em público com toda a merda com a qual ela lida diariamente.
Droga.
É como se ela soubesse que Sage é o único motivo pelo qual eu
deixaria alguma garota estranha entrar no meu espaço, porque
aquela menina é tudo para mim.
— Certo, entre.
Gracie sorri e passa por mim, olhando para o espaço sem graça
com a mesma curiosidade que demonstrou pela minha aparência. O
lance é, não sinto como se ela estivesse me julgando, é mais como
se estivesse catalogando tudo e arquivando para o caso de precisar
algum dia, e isso também não é algo com o que eu queira colaborar.
— Sem querer ofender, mas estou ocupada, você tem tipo três
minutos antes de eu voltar para meus livros.
Ela sorri, então diz tudo de uma vez:
— Sage faz aniversário essa semana. Os pais dela estão
organizando uma festa enorme, convidando metade do Conselho e
um monte de gente que não poderia se importar menos com nossa
garota completando dezenove anos. Preciso que venha também.
Não acho que Sage vá te convidar porque ela não iria querer te
causar essa inconveniência, e a coisa toda vai ser um desastre, mas
você precisa vir.
Sage mencionou isso comigo e, quando me ofereci para ir, ela
recusou. Considerando que Maria, vínculo de seu pai, trabalha para
Nox, Sage não queria que eu tivesse que lidar com a animosidade
com a qual sem dúvida seria sujeita.
Dou uma olhada para Gracie e ela se encolhe, mas logo começa
a argumentar:
— Escuta, não quero te pedir isso tanto quanto você não quer
que te peçam, mas Riley e Giovanna vão aparecer lá e transformar
a noite toda na porra de um pesadelo para Sage, e eu cansei de não
fazer nada quanto a essa merda. Ela está... sei lá, acho que não
exatamente mais forte, mas mais resiliente agora que tem você,
então não me sinto tão esquisita de tentar ajudá-la desse jeito.
Faço o melhor que posso para não deixar evidente o quão
desconfiada estou dela, porque Sage já me disse que todos seus
amigos a abandonaram por causa de Riley e Giovanna, então por
que Gracie de repente está tentando se intrometer tanto nas merdas
dela?
Para mim, não parece nem um pouco genuíno, mas isso só me
faz querer mais ir a essa festa, porque Sage precisa de apoio.
Suspiro e aceno com a mão para ela.
— Certo. Vou falar sobre isso com Sage e informar para ela que
vou.
Digo como se fosse fácil, como se eu não fosse ter que implorar
de forma patética para North me deixar ir. Não confio nessa garota,
então não vou dar a ela nenhum detalhe sobre a confusão entre
meus Vínculos.
A comunidade Favorecida já tem coisa demais para comentar a
respeito.
Quando ligo para North na manhã seguinte, ele recebe meu
pedido melhor do que eu esperava, e esse é meu primeiro
verdadeiro aviso de que esta não é uma festa a qual eu queira
comparecer, mas quando falo com Sage sobre isso antes da aula, a
expressão de puro alívio no seu rosto é o suficiente para minha
vadia interior teimosa assumir o controle.
Eu vou, mesmo que isso me mate.
Fico de cabeça baixa e me concentro nas aulas pelo resto do dia,
esquecendo-me da festa até a hora em que me separo de Sage
para me dirigir para o TT e Gabe corre para me alcançar. No mesmo
instante, fico desconfiada, porque chegamos a um acordo tácito em
que eu não reclamo e o incomodo por estar me seguindo, desde
que ele fique de boca fechada e não chegue perto demais de mim.
Meu vínculo gosta demais da proximidade dele, e isso me
aterroriza, porque pensar que vou deixá-lo de novo assim que puder
e perder essa sensação de paz e contentamento... é insuportável.
Então o mantenho tão longe de mim quanto consigo sem ter que
aguentar a merda da fúria do North, e ele esteve de acordo com
esses limites, até hoje.
— O que foi agora? — resmungo, uma pequena concessão
porque é um tom mais gentil do que o que eu de fato quero usar.
— Vou te buscar para a festa de Sage amanhã, não saia do
dormitório sem mim.
Reviro meus olhos para ele, mas Gabe só balança a cabeça, sem
ignorar minha atitude como costuma fazer.
— Não, isso não tem nada a ver com ter que ficar no seu pé
porque não confio em você, é porque... muitos membros do
Conselho vão por causa dos pais de Sage, e nenhum deles vai ser...
gente com quem você deva conversar.
Não quero falar com ninguém lá que não seja Sage, mas também
não gosto de Gabe me dizendo com quem posso ou não falar.
— Está com medo de que eu te faça passar vergonha?
Ele bufa e segura meu braço, puxando-me para fora do caminho
e na direção da lateral do prédio, onde temos um pouco de
privacidade.
— Talvez você devesse parar de ser tão apaixonada por essa
maldita narrativa de vítima que você fica repassando na sua cabeça
e pensar por um segundo a respeito dessa situação como um ser
humano racional. Nem todos no Conselho são nossos amigos. Não
é um clubinho de garotos do qual North participa e que está
tentando estragar sua vida. Eles são os líderes da nossa
comunidade e a base da nossa sociedade... e metade deles acham
que North deveria te forçar a completar o vínculo com ele porque
você não deveria ter o direito de dizer não. Metade deles acha que
estupro é o curso de ação apropriado para esse caso.
Meu estômago revira, ele faz que sim com a cabeça para mim e
em seguida continua.
— Nem todos são boas pessoas. Só foram eleitos chefes de suas
famílias e, por consequência, têm um lugar à mesa. Eu vou te levar
e ficar ao seu lado para você não acabar sentada num canto escuro
com Sharpe ou Vittorio revirando seu cérebro com os dons deles.
Sharpe e Vittorio, registro seus nomes porque tenho segredos
demais espreitando nas profundezas de minha mente que poderiam
arruinar a todos nós.
Encaro Gabe por um minuto, refletindo se posso confiar nele, e
há um sentimento pulsando no meu peito que me faz pender só um
pouquinho em sua direção. Um músculo salta em sua bochecha
quando ele contrai a mandíbula, o que me diz que ele está tão
afetado por essa proximidade quanto eu e, de repente, essa
situação toda me parece perigosa.
Lembre-se de que todos eles te odeiam.
Empurro ele para longe do meu corpo, sobressaltando ao
perceber que minhas mãos já estavam deslizando por seu peito sem
que eu percebesse, e subitamente meu cérebro está cheio de
informações das quais não preciso nesse momento.
Tipo como ele parece ser musculoso e sólido por baixo da
camiseta que está vestindo.
Ficamos só olhando um para o outro por um momento, então o
feitiço quebra quando meu cérebro, enfim, compreende o fato de
que as drogas das minhas mãos ainda estão coladas em seu peito,
e eu as tiro de uma vez, virando-me e me afastando dele.
Meu tom é mordaz e um pouco trêmulo quando digo:
— Vou te esperar me levar para a festa, mas vou ficar com Sage.
Não me importo se ficar atrás de nós, mas não vou deixá-la sozinha
só porque você quer ficar com os otários dos seus amigos.
Espero ele retrucar ou me xingar como costuma fazer, mas ele só
me acompanha de modo obediente, com os habituais dois passos
de distância, como se nada tivesse acontecido. Chegamos ao prédio
de treinamento do TT e, quando paro para abrir a porta, Gabe se
aproxima do meu corpo e se debruça para perto para murmurar no
meu ouvido:
— Talvez você não seja tão frígida quanto finge ser.
Porra, preciso ser.
 
*
 
Justo quando acho que estou tendo um desempenho melhor
durante a parte de exercícios da aula de TT, Vivian muda meu treino
e, mais uma vez, destrói minha vontade de viver. Ainda treino
separada dos outros da classe, porque estou muito atrás deles, mas
já comecei a notar a força crescendo nos meus membros e que
estou ficando um pouco mais esbelta.
Eu ainda falho em cada um dos cenários de treinamento.
Depois daquela primeira aula em que fui nocauteada, Vivian
deixa a classe toda usar seus dons durante os cenários, e de jeito
nenhum sou capaz competir com eles.
Uma das garotas é uma dose de clorofórmio ambulante.
Ela também me detesta e me ataca toda santa vez que
atravessamos a linha de partida. Vivian altera o plano de jogo dela
no mesmo instante e começa a tornar mais difícil para ela me atingir,
o motivo principal dele é para ensiná-la estratégia e para que eu
aprenda a fugir dessa vaca, mas ela parece um maldito cão de
caça.
Eu a odeio.
Naturalmente, Zoey é apaixonada por Gabe e passa cada
segundo que pode flertando com ele na minha frente. O que com
certeza deveria me incomodar mais do que de fato faz, só que tem
uma parte irritada e cruel de mim que gosta de ver quão
desesperado Gabe está para que eu reaja. Cada vez que vejo Zoey
passar a mão no bíceps dele sem um mínimo de hesitação, posso
ver o quanto isso o irrita.
No entanto, ele nunca a afasta, e isso diz muita coisa sobre como
ele na verdade se sente.
A única parte boa de fazer essa aula com Gabe é que, depois
que acabamos, ele me leva até a casa de North para o jantar
semanal, reduzindo o tempo que preciso ficar confinada em um
espaço pequeno com North e seu motorista.
Estar na moto com ele é íntimo, mas o flerte com a morte faz que
seja meu método preferido de ser arrastada a esses jantares
semanais estúpidos. Gabe também não tenta falar comigo ou me
humilhar pela minha existência em geral, então é mais um ponto a
seu favor.
Ele se senta ao meu lado à mesa, acrescentando pequenos
comentários e fragmentos de informações sempre que uma das
convidadas de Nox começa a encher meu saco, o que acontece a
porra do tempo todo.
Estou convencida de que Nox só traz para o jantar as garotas
mais barraqueiras e completamente insanas que consegue
encontrar.
Esta noite não é diferente e, embora Lana seja menos óbvia
quanto a sua paixonite por Nox, seus golpes farpados me cortam
um pouco mais fundo do que os das outras cabeças de vento
risonhas.
— Ouvi dizer que você morou na rua por anos, vendendo seu
corpo para conseguir comer. Deve ser difícil voltar a viver uma vida
“direita” depois de ser usada desse jeito.
Vendendo meu corpo.
Gabe fica rígido e olha feio para ela, curvando os lábios em uma
careta. Mas eu já sei que ele não vai fazer nada quanto a isso e,
quando ele olha para mim, vejo essa hesitação nele que me
machuca, porque uma parte sua acredita nessas besteiras a meu
respeito.
Estou prestes a causar um mundo inteiro de dor nele quando
North interrompe:
— Precisamos discutir algumas regras para a festa.
Quase engasgo com ar.
— Por que precisaríamos fazer isso? Vou te evitar como se você
fosse uma peste, Gabe vai ficar colado no meu traseiro, e vou ficar
num canto com Sage enquanto nós duas rezamos para a morte nos
levar para podermos dar o fora de lá.
Nox enfim se inclina para longe de Lana, que ainda está me
dando um sorrisinho como se tivesse me vencido em alguma
disputa, e se interessa pela conversa pela primeira vez.
— Trepei com uma Flama uma vez, ela gozou de forma tão
intensa que ateou fogo na cama. Eu devia ligar para sua amiguinha
e ver se ela precisa... relaxar um pouco.
É o maior desafio que já encarei para manter meu dom sob
controle, e meus dentes sofrem as consequências disso, porque
contraio tanto a mandíbula que eles rangem e se esfregam de modo
brutal uns nos outros.
É a primeira vez que o vínculo no meu peito não se empertigou
por ele, lamentando-se pela ideia de ele tocar em alguém que não
seja eu, e estou grata por essa pequena misericórdia, porque talvez
finalmente ele tenha compreendido o fato de que não temos como
sair dessa situação.
Nox vai me odiar até morrer.
Empurro meu prato para longe de mim, com bile subindo pela
minha garganta ao pensar nele transando com minha única amiga.
Gabe olha para o prato, depois para mim e diz:
— North precisa que eu dê uma olhada em alguns documentos,
ainda não podemos ir embora.
Olho para baixo e vejo minhas mãos tremendo de forma violenta
e, no mesmo instante, as prendo por baixo de minhas coxas.
— Então vou voltar andando. Não vou ficar aqui com ele.
— Eu te levo — diz Gryphon, e eu fico pálida.
Ele nem tenta falar comigo, nunca nem me olhou de verdade.
Pensei que faria tudo que pudesse para ficar bem longe de mim.
— Obrigada — digo, e ele se afasta da mesa sem dizer mais
nada ou sequer olhar na minha direção. Não me importo com
gentilezas, só preciso sair da porra desse lugar.
Ele me conduz até o Camaro na frente da casa e destranca
minha porta antes de dar a volta para seu lado. Nunca estive num
carro sem fechadura central antes. Ele parece pristino, os assentos
de couro são mais velhos, mas fica claro que ele toma muito
cuidado com essa coisa. Eu me sento com delicadeza, como se de
alguma forma minha bunda fosse destruir esse carro só por estar
nele.
Gryphon desliza para dentro com menos hesitação, mas não com
menos cuidado, fica claro que ele ama esse carro e percebo que
essa é a primeira coisa que fico sabendo a seu respeito, além do
fato de que ele trabalha em uma Equipe Tática e do jeito como se
veste.
Sei muito sobre Gabe, graças à nossa proximidade forçada, e
ambos os irmãos Draven já exibiram muito de suas maravilhosas
personalidades à mesa de jantar. Atlas passou nossas primeiras
semanas de contato um com o outro me enviando pequenas
historinhas e curiosidades sobre si mesmo, sem nunca me
pressionar a fazer o mesmo em troca, mas inevitavelmente
conseguindo me induzir a falar. Desde que contei a ele sobre North
estar monitorando meu celular, ele tem sido rigoroso em suas
tentativas de me conhecer melhor.
Já Gryphon tem feito tudo que pode para ficar a um braço de
distância de mim.
Meu vínculo tenta alcançá-lo, forçando as firmes restrições que
mantenho sobre ele enquanto o afasto antes que eu encoste em
Gryphon. Alguma coisa a respeito de sua distância, de como ele se
mantém longe de mim, deixa meu vínculo desesperado por ele.
Ele é o mais perigoso de todos.
Gryphon desliga o motor quando para na frente do dormitório, e o
silêncio repentino no veículo, sem o ronco do carro, é
desconfortável. Espero por um instante, mas quando ele não diz
nada eu saio, murmurando um obrigada baixinho e disparando para
meu quarto em seguida.
Com meu vínculo chorando como nunca em meu peito.
10

POR MAIS QUE EU FOSSE adorar usar um vestido fofo e


minúsculo que mostrasse todo meu trabalho árduo naquela aula
idiota de TT, também estou muito ciente do fato de que vou subir em
uma moto com Gabe e que talvez não seja a melhor das ideias
provocá-lo desse jeito, ainda mais depois daquele pequeno... clima
que rolou no outro dia. Nunca estive tão consciente do meu próprio
vínculo e de como ele reage ao mundo ao meu redor.
Algo sobre estar aqui, perto desses homens com quem estou
fadada a ficar, acendeu um fogo dentro de mim que estou
desesperada para abafar.
Confiro minha roupa no espelho uma última vez ao sair e suspiro,
pois não é como se eu tivesse um monte de opções. Esse lance
todo de privação em que North me colocou é uma tortura perfeita,
porque pode ser que eu ceda só para conseguir um par de botas
decentes e um jeans que envolva minha bunda de um jeito melhor.
Mas não estou feia, e a jaqueta que Sage me emprestou cobre o
suficiente de mim para que o decote de minha blusa de cetim fique
sexy, mas sem exagero.
Quando chego no final das escadas, onde Gabe está me
esperando, a aparência dele me deixa sem ar. De calça jeans azul
escura, uma camiseta branca esticada sobre seu peitoral largo e a
jaqueta do time de futebol sobre seus amplos ombros, ele é o sonho
sexy de toda universitária. Seu cabelo castanho claro está penteado
pela primeira vez, não muito, só o suficiente para eu saber que ele
se esforçou com sua aparência esta noite, o que levanta os
questionamentos: ele quer impressionar a mim ou as outras
pessoas que estarão na festa? É por que membros do Conselho
estarão lá e ele não quer que North passe vergonha? Será que ele
sequer deveria se preocupar com esse tipo de coisa?
É muito difícil e complicado pensar em tudo isso e, meu Deus,
não é muito inteligente, mas meu vínculo se contorce de ciúmes
dentro do meu peito por ele estar por aí com essa aparência,
enquanto metade das garotas do meu dormitório estavam ao nosso
redor tentando chamar a sua atenção.
Não sou idiota de fazer algo quanto a isso agora, mas porra, bem
que eu queria.
Quando seus olhos azuis penetrantes encontram os meus, tem
uma expressão presunçosa em seu rosto, ele sabe que eu o estava
secando e preciso improvisar para não ficar feio para mim.
— Está esperando pegar alguém hoje?
Ele bufa e me oferece o capacete sobressalente.
— Se minha intenção fosse transar, eu não precisaria me
esforçar. Poderia comer qualquer uma dessas garotas sem sequer
dizer uma palavra para elas.
Ele sorri para alguém às minhas costas como se estivesse
tentando provar seu argumento e, com certeza, ouço a risadinha e o
suspiro. Isso me faz ranger os dentes e eu arranco o capacete de
sua mão. Tento me controlar e engulo a raiva, antes que o ciúme
que estou sentindo fique óbvio demais.
Gabe me oferece um braço para que eu possa subir atrás dele, e
ele hesita por um segundo antes de dar partida, continua só sentado
ali e olhando para a rua antes de colocar o próprio capacete.
Meus instintos começam a gritar no mesmo instante.
— Qual o problema?
Ele dá de ombros e suspende o cavalete lateral.
— Nada. Nada com que precise se preocupar, de qualquer forma.
Foda-se isso, dou um soco em suas costelas, mas ele é uma
parede de músculos e mal reage enquanto liga o motor, e então
partimos, costurando pelo tráfego e voando pela noite em uma
velocidade que não tem como ser lícita.
Não consigo ver nada fora do normal sem usar meu dom, o que
Gabe sem dúvidas sentiria, considerando quão perto um do outro
estamos, então preciso confiar nele por enquanto.
Eu teria dificuldades com isso mesmo se ele não me odiasse,
mas sabendo o quanto ele sofreu com meu desaparecimento? Faz
com que seja quase impossível ficar sentada ali e saber que tem
algo acontecendo, sem ser capaz de entender o que.
Felizmente, a casa de Sage não é tão longe do campus e
chegamos muito rápido, devido à direção imprudente de Gabe. É
em um condomínio fechado como o de North, e embora seja um
pouco menor do que o dele, é óbvio que eles também são cheios da
grana.
A maioria das famílias Favorecidas são.
Faz sentido, é claro, porque costuma haver três ou mais adultos
em cada grupo Vinculado, todos eles trabalhando e sustentando a
unidade familiar. Meu Deus, é surreal pensar no potencial de ganhos
dos meus Vínculos, mesmo que os Draven já não fossem ricos ao
extremo. Seis salários podem fazer muita diferença, e depois de
anos fugindo e sobrevivendo com nada, é uma ideia tentadora.
Então penso sobre North ter presumido que sou uma pirralha
interesseira e essa pequena fantasia toda de não passar fome e
talvez ter algumas roupas bonitinhas, desaparecem no mesmo
instante.
Eu ainda não pensei direito em um plano sobre o que quero fazer
depois da faculdade, ainda mais porque nunca considerei um futuro
em que minha vida não estivesse em risco... ou ser o risco.
Paramos na frente da casa e me forço a afastar meus
pensamentos, porque foi bem sobre isso que Gabe me alertou.
Favorecidos que podem ler minha mente, vasculhar dentro dela e
arrancar meus segredos até a Resistência chegar para me buscar.
Desço da moto, tiro o capacete e o entrego para Gabe guardar na
bolsa da moto. Hesito por um segundo, então cedo e espero por ele.
Não quero causar uma cena o provocando a ponto de ele estragar a
festa de Sage.
Ela já está ansiosa demais com a situação.
Quando ele termina de guardar tudo, dá um puxãozinho em sua
jaqueta para ajeitá-la, então se vira para me olhar e ergue uma
sobrancelha ao perceber que estou ali.
— Não achei que te pedir para ficar por perto seria suficiente.
Reviro os olhos para ele, embora eu o acompanhe como um
cãozinho obediente.
— Estou passando em todas as matérias graças à Sage e ela é o
único motivo pelo qual não enlouqueci por completo nesse lugar
estúpido, então, se eu tiver que ficar perto de você para apoiá-la
durante essa noite, é o que farei.
Ele não bate à porta ou toca a campainha, apenas a abre como
se já tivesse estado aqui um milhão de vezes. Sei que ele está no
time de futebol com Sawyer, mas ainda me parece estranho.
— Tem certeza de que não está trepando com ela? Nox tem...
Interrompo:
— Se quer que eu fique com você, pare de falar na porra dos
irmãos Draven. North é um cuzão controlador e Nox é um psicopata
completo. Você pelo menos é tolerável quando fica de boca
fechada.
As bochechas bronzeadas de Gabe coram um pouco, e ele diz
entredentes:
— Você também é uma porra de pesadelo, Fallows, não pode
falar muita coisa. E quanto a Gryphon ou Bassinger? Eles também
são toleráveis?
Os dois são totalmente inatingíveis e distantes, então são
seguros, mas não vou dizer isso a ele. Sou poupada de responder
por um grupo de pessoas conversando e rindo pelo corredor,
fazendo barulho e exalando aquele tipo de alegria familiar que você
percebe entre pessoas que se conhecem desde que nasceram.
Faz meu peito doer de inveja, e acho que esse vai ser o
sentimento oficial da noite para mim, que droga.
Eu ficaria feliz só de passar por eles e ir encontrar Sage, mas um
dos caras se vira e chama Gabe, acenando para ele se aproximar.
Faço uma carranca, mas Gabe fecha os dedos ao redor do meu
braço e me puxa em direção ao grupo, com aquele sorriso fácil de
volta em sua cara como se nós dois não tivéssemos acabado de
tentar atacar a garganta um do outro.
É só quando chegamos perto que vejo Riley parado ali com eles
e congelo, sentindo-me muito deslocada e constrangida de ficar
parada no corredor da casa de Sage, com o cretino que é o Vínculo
de Sage, como se isso não fosse uma baita traição a ela.
Certo, estou sendo dramática, mas é assim que me sinto, sou
uma amiga leal até o fim.
— Achei que você odiasse seu Vínculo, Ardern, o que está
fazendo tão perto dela? — diz uma das garotas, como se eu não
estivesse parada bem ali com todos eles.
Estou ocupada demais tentando me afastar, mas Gabe passa um
braço sobre meus ombros e dá um sorrisinho.
— Tivemos alguns problemas iniciais, mas agora a Oli já
entendeu qual é o lugar dela.
Todos riem como se isso fosse uma grande piada, e eu decido
que prefiro que o pior inimigo de North revire meu cérebro a ficar
perto desses imbecis. Eu me solto do braço de Gabe e sigo pelo
corredor, ignorando as vaias e provocações que o grupo dirige a
mim.
No momento em que chego à cozinha, tenho sorte ao escolher
uma porta ao acaso, Gabe corre para me alcançar e volta a colocar
o braço sobre meus ombros.
— Já que estou sendo obrigado a te manter fora de confusão, o
mínimo que você pode fazer é aguentar um pouco de provocação.
Aquela merda não foi nada comparado ao que tive que aguentar
desde que você foi embora.
— Não me importo, e a culpa é sua se você se relaciona com
esse tipo de gente. Estou aqui pela Sage, e se você quiser ficar com
idiotas de merda, vá em frente — retruco bem quando Giovanna
entra no meu caminho, e é isso, esse é o momento em que vou ser
chutada dessa festa, porque a expressão na cara dessa garota me
faz contrair a mandíbula e meu temperamento está prestes a
explodir.
— Idiotas? Todos eles são a próxima geração de membros do
Conselho e líderes da comunidade Favorecida. Cada um deles vem
de famílias Vinculadas distintas que mereceram o lugar que ocupam
aqui. Você que é a estranha que veio do lixo.
Posso aguentar um monte de merda, estar aqui me provou isso,
mas de jeito nenhum vou tolerar essa menina falando merda dos
meus pais.
— Cala sua boca antes que eu quebre seus dentes.
Gabe tira o braço dos meus ombros só para conseguir segurar
meu bíceps de novo e me puxa para trás, como se fosse ser capaz
de me impedir de partir para cima dessa vagabunda. Sage já me
contou tudo sobre o dom dela, e telecinesia não significa
absolutamente nada para mim agora.
Ela não é forte o suficiente para usá-lo contra mim.
Giovanna estala a língua para Gabe em condescendência.
— Deveria mantê-la numa coleira melhor, ela está insultando a
família errada.
Olho para ela de cima a baixo bem devagar, com desprezo
exalando por cada poro do meu corpo e digo:
— Se a sua família é tão importante assim, então a comunidade
está fodida porque você é a vadiazinha mais vil e petulante com
quem já fui obrigada a interagir.
Os lábios dela se retorcem e percebo, com um grãozinho extra de
vitória, que estão pintados em um batom vermelho que está puxado
até demais para o laranja, e que não combina em nada com o seu
tom de pele.
— Por que eu deveria me importar com a opinião de uma puta
fugitiva? Você não é nada para a comunidade, para mim ou meu
Vinculado.
Vinculado, até a palavra já é um tapa na cara porque ela tirou
isso de Sage. Gabe tenta me levar para longe mais uma vez, mas
agora estou muito furiosa, com a boca muito fora de controle, e
ralho de volta:
— Fiz mais por essa comunidade do que você jamais fará, sua
putinha patética desesperada por atenção.
Ela recua a mão para me dar um tapa, mas antes que tenha a
chance de tentar, uma parede de homem surge entre nós, e tudo
que consigo ver é couro, mas meu Vínculo ronrona no meu peito
com a proximidade súbita de Gryphon.
Ele nunca esteve tão perto assim de mim antes.
A voz dele é rouca de todos os melhores jeitos, maldito seja,
quando diz:
— Tenho certeza de que não está tentando começar uma briga
na cozinha dos Benson agora, Giovanna, porque isso seria muita
burrice, até mesmo para seus padrões.
As bochechas dela coram e, por fim, Giovanna sai andando,
virando no lugar para que sua saia rode e exiba suas longas pernas
bronzeadas que deixam Sage tão insegura.
Eu pessoalmente, não acho que sejam tão maravilhosas assim, e
o resto dela é repulsivo pra caramba. Não sei como Riley aguenta
encostar nela, porque sua aparência não é suficiente para
compensar sua personalidade de merda.
Gryphon se vira, seu rosto está solene e mal-humorado como de
costume, mas tenho outro Vínculo com quem lidar agora.
— Oli está... — Gabe começa a falar, mas puxo meu braço para
fora de seu aperto com tanta brutalidade que ele dá um passo para
longe de mim enquanto disparo contra ele.
— Você é um cretino covarde e se encostar um dedo em mim de
novo vou quebrá-lo, entendeu?
Os olhos dele se movem rápido para Gryphon, e o que ele vê em
seu rosto o faz baixar a bola bem rápido e xingar baixinho.
Eu gostaria de dizer várias outras coisas a respeito, mas Gryphon
me interrompe:
— Se você quer ficar fora do radar de North, irritar a irmã de
Daniella não é uma boa ideia.
Olho feio para ele, mas ele não está olhando para mim, e sim
acenando para algum homem mais velho do outro lado do cômodo,
e ele mal me destina outro segundo de sua atenção, embora tenha
vindo intervir a meu favor. Bem, tenho certeza de que ele veio se
certificar de que eu não jogasse Giovanna numa parede por ousar
falar merda dos meus pais mortos. Eu já a odiava antes, mas agora
quero caçá-la e... bom, não posso continuar pensando sobre todas
as formas com que meu dom acabaria com ela, senão vou acabar
indo atrás da vadia e a destruindo.
Eu me viro, pronta para procurar Sage e desaparecer pelo
restante da noite, mas dou de cara com Gabe fazendo uma
carranca para nós dois, amargurado como um cachorrinho que foi
chutado, e já aguentei mais do que o suficiente da atitude de merda
dele por hoje.
Ele não fez nenhuma tentativa de me apoiar, e se estivesse
mesmo tão determinado assim a me manter em segurança hoje, já
falhou na primeira oportunidade. Eu definitivamente não sou o tipo
de garota que dá mais de uma chance.
— Oli! Você veio, graças a Deus! Sage está se escondendo na
piscina, pode me ajudar a tirar ela de lá? Oh! Gryphon, eu não tinha
te visto!
Gracie não é nem de perto a salvadora que eu queria agora, mas
aceito. Passo por Gryphon e faço o melhor que posso para ignorar o
jeito animadinho e sedutor com que Gracie está olhando para ele.
— Me aponte na direção certa que eu a encontro sozinha.
Meu tom grosseiro só a faz piscar, sem parecer nem um pouco
arrependida por babar em cima de Gryphon, e gesticula de qualquer
jeito com o braço para um lado. Pois é, vir falar comigo foi de fato só
o jeito dela de se aproximar do meu Vínculo, do homem a quem
estou destinada a estar.
Odeio essa porra de lugar.
Saio andando sem pensar duas vezes, muito menos
considerando se Gryphon está ou não sendo recíproco aos charmes
e risadinhas sedutoras de Gracie. Desvio dos outros convidados
com facilidade, localizando North em um canto, com um copo com
um líquido cor de âmbar e pedras de gelo, encantando outros
homens de terno como se tivesse nascido para essa vida. Abaixo a
cabeça antes que ele me veja, e acelero meus passos até chegar no
amplo quintal, guarnecido com uma piscina, cozinha externa e
fogueira.
Está uma noite linda aqui fora, o ar quente e as luzinhas cobrindo
uma das sebes faz com que aquele cenário pareça ter saído de um
conto de fadas. Passo um segundo admirando, então me lembro do
tanque de tubarões do qual acabei de sair e vou atrás de Sage, e a
encontro encolhida perto de uma fogueira com seu irmão, como se
os dois estivessem se escondendo da festa.
Quando me aproximo deles, Sawyer olha para cima assustado,
então faz uma careta como se olhar para mim fosse um grande
sofrimento. Admito que isso fere meus sentimentos um pouco, mas
também estou exaltada demais nesse momento para lidar com a
baboseira de qualquer pessoa.
— Ai meu Deus, o que aconteceu lá dentro? — grunhe Sage,
parecendo um pouquinho alcoolizada, e eu logo quero uma bebida
também.
— Vou te contar cena por cena de como eu quase arranquei a
cabeça de Giovanna se você me arranjar uma bebida. Preciso
esquecer como é a voz daquela vaca. Sage, você é a porra de uma
santa. Como você a tolera sem tacar fogo na bunda dela, nunca vou
entender.
Sawyer ri de mim, então se abaixa, dá um beijo na bochecha de
Sage e se levanta.
— Vou buscar bebida para as duas... tentem não causar
problemas enquanto eu estiver fora.
Assinto para ele com um sorriso forçado, aquela careta ainda
está doendo um pouquinho em mim, mas então começo a contar
uma versão bem honesta e nem um pouco exagerada do que
aconteceu com aquela vagabunda bronzeada.
Nós duas estamos morrendo de rir quando Sawyer e Félix nos
encontram ali, trazendo garrafas suficientes de cerveja para afogar
um hipopótamo. Faço uma cara feia porque cerveja não é minha
bebida favorita, mas Félix sorri e encolhe os ombros para mim.
— Maria nos pegou no flagra quando tentamos furtar a coisa boa,
então tivemos que ceder.
Encolho o ombro em resposta e aceito uma das garrafas dele.
— Tudo bem, só preciso de álcool para esquecer o quanto estou
irritada, na verdade.
Sage torce o nariz, mas também pega uma garrafa, apresentando
Félix e eu de modo apropriado, embora eu tenha certeza de que nós
dois já sabemos muito um sobre o outro. É constrangedor por um
instante, já que Sage está tentando chegar mais perto de mim para
abrir espaço e os olhos de Félix a acompanham com uma
voracidade que ele nem sequer está tentando disfarçar, mas então
começo a contar de novo a história do meu encontro com Giovanna,
com alguns floretes e comentários novos, e o ar fica leve entre nós,
sem mais nenhum silêncio constrangedor.
É uma noite boa, de um jeito que jamais esperei que seria.
Quando olho para o grupo de fofoqueiros, depois de Gabe mais
uma vez ter sido aceito entre eles, faço questão de me debruçar
sobre Sawyer para ouvir a história que está contando, e o olhar de
puro ódio que Gabe dispara para mim, faz com que eu me sinta
vitoriosa.
11

LEVA TRÊS SEMANAS PARA recebermos a nota dos trabalhos,


mas no segundo que entro pelas portas do auditório, meu vínculo
me diz que alguma coisa está muito errada nesse lugar.
Posso odiar ter esse chamado esquisito, quase senciente, dentro
do meu peito, mas ele também nunca está errado. Morei em LA por
um verão alguns anos atrás, e ele me salvou de beber um drinque
batizado, assim como de um ladrão de carros. Desde que cheguei
na Universidade Draven, sob gritos e chutes, ele ficou ainda mais
aguçado, como se a simples proximidade de meus Vínculos tivesse
deixado esse chamado mais acentuado e apurado, como a mira de
um rifle de precisão.
Quando meus passos desaceleram, Sage olha para mim e
acompanha meu ritmo, o que eu já esperava, mas quando Gabe faz
a mesma coisa, com uma carranca marcando seu lindo rosto,
começo a me preocupar.
Será que tem uma bomba aqui?
Um atirador?
Por que estou toda arrepiada assim?
Todos entram no auditório como se nada estivesse errado,
ocupando seus assentos e conversando uns com os outros, e eu
começo a suar, afinal, como eles não estão sentindo esse pânico
também, como um punho apertando o peito?
Será que estou enlouquecendo?!
Nox entra na sala sozinho pela primeira vez em meses. E basta
uma olhada em seu rosto para saber que a sensação agourenta no
cômodo, que apenas Gabe e eu sentimos, é, sem dúvida, obra de
Draven.
Puta merda.
Relaxo um pouco na cadeira, agora que não estou procurando
por um maldito terrorista. Sage bate o ombro no meu de leve e me
dá um sorriso triste, mostrando solidariedade em face às baboseiras
do meu vínculo, porque se alguém aqui pode entender isso, é ela.
Assim que ele começa a falar, todos os olhos disparam para Nox,
e toda a conversa e todas as fofocas cessam de imediato. Ele não
pede atenção, sua mera presença a requisita e, como uma
hierarquia de matilha, cada aluno entra na linha de modo obediente.
Há um respeito cultivado por ele aqui que mais uma vez me deixa
curiosa sobre seu dom, qual o real perigo que ele apresenta para
todos nós, porque tem que haver mais aí do que simples
consideração por um professor.
Estou ocupada demais pensando em potenciais poderes para
notar Gabe se debruçando na minha direção, até que seu hálito
atinge a curva da minha orelha, dançando pelo meu pescoço e
provocando arrepios que não quero que ele perceba.
— O que quer que seja, reagir só vai piorar as coisas. Você não
merece o alerta, mas estou dando mesmo assim.
Mantenho meus olhos em Nox quando dou a Gabe um breve
aceno com a cabeça. Sei que consigo ficar calma aqui, já enfrentei
coisas piores do que ser humilhada por um filho da mãe. Porém,
não posso pensar nas coisas que já enfrentei agora, não nesse
momento, com minhas barreiras mentais destruídas graças a
qualquer que seja a bruxaria do mal que Nox jogou no mundo e que
meu vínculo detectou. Estou me sentindo muito... vulnerável.
A aula se arrasta por uma eternidade.
Já conheço toda essa história, graças às minhas sessões de
estudo com Sage. A rivalidade de longa data com a Resistência não
é algo que eu leve na brincadeira, não posso me dar ao luxo, mas
há um limite de vezes em que consigo ouvir sobre as abduções e
doutrinações de Vínculos e Vinculados sem sentir que estou
sofrendo um tipo novo e muito específico de tortura.
As teorias sobre qual família de fato deu início à Resistência são
interessantes. Ninguém nunca assumiu responsabilidade pelo grupo
de verdade, embora haja rumores de que tenha sido uma das
famílias mais antigas e prestigiadas. Os Dravens são uma das oito
famílias Favorecidas que administram o Conselho na costa oeste, e
faço algumas anotações sobre o potencial disso.
Já vi alguns membros do círculo íntimo da Resistência.
Eu poderia identificar essas pessoas, seus rostos ficaram
registrados no meu cérebro e, de jeito nenhum, não os reconheceria
se os visse. O que é difícil de acontecer, mas porra, o que mais
posso fazer por aqui até descobrir como arrancar meu chip?
Quando Nox enfim encerra a aula, anuncia que os trabalhos
foram corrigidos e entrega uma pilha de papeis para sua monitora
entregar. Os alunos começam a sair da sala à medida que recebem
seus trabalhos, ansiosos para chegar à próxima aula. Gabe fica
para trás, movendo seus olhos entre Nox e eu. Mas o ignoro,
enfiando minhas coisas de volta na mochila e murmurando com
Sage a respeito da aula de economia que teremos a seguir,
enquanto esperamos nossas notas.
Quando a monitora por fim chega na nossa fileira e entrega meu
trabalho com uma risadinha, eu o tiro de suas mãos com dedos
dormentes, porque é impossível não ver a nota que recebi.
Um gigantesco, vermelho e circulado: ZERO.
— Que porra é essa? — As palavras escapam de mim, o aviso
de Gabe foi jogado de escanteio, porque de jeito nenhum meu
trabalho merece essa nota. Olho para Sage e, sim, com certeza, ela
tem um respeitável nove no dela. Nós estudamos juntas, fizemos
anotações juntas, lemos o trabalho uma da outra... de jeito nenhum
ela recebeu nove e eu reprovei.
— É a porcaria que você escreveu dizendo que é um trabalho,
Fallows. Se não quer reprovar, deveria se esforçar mais. — A voz de
Nox ecoa pela sala com clareza, anunciando o que fez comigo, mas
ninguém aqui vai acreditar que ele está mentindo na cara dura.
Todos na sala param e me encaram. Minhas bochechas coram
com a atenção e não tem nada que ele ame mais do que
humilhação pública, mas ergo meu queixo.
— Você não pode fazer isso. Não pode me dar uma nota de
merda só porque me odeia.
Um sorrisinho sarcástico se espalha lentamente por seu rosto, ao
mesmo tempo em que seus olhos ficam frios e escuros de uma
maneira sobrenatural. Qualquer que seja o dom dele, quer sair para
brincar.
— Quanta arrogância vinda de uma desistente do ensino médio
sem dom.
Meu temperamento queima mais rápido do que um incêndio
florestal no auge do verão.
— Você é um merda, Draven. Você é um filho da mãe de merda
incapaz de lidar com a rejeição com um pingo de integridade. Que
Vínculo iria querer ficar amarrada a um idiota como você?
Sage arfa e puxa minha mão, mas Gabe apenas vira e sai
andando, abandonando-me com a mesma facilidade com que pensa
que eu os deixei. Olho ao redor e há celulares por todos os lados, as
garotas estão filmando, de um jeito bem explícito, toda essa merda.
Nox gesticula a mão com desdém para mim.
— Siga-me até o escritório do reitor, Fallows.
 
*
 
Eu me recuso a pensar a respeito ou a me sentir mal pela minha
reação, mas me sento na frente do escritório do reitor com lágrimas
quentes escorrendo pelas bochechas. Não estou assustada ou
chateada, elas foram desencadeadas apenas pela fúria impotente
que me assola.
Impotente, porque não tem nada que eu possa fazer além de
usar minhas malditas palavras inúteis e rezar para que isso seja
suficiente para corrigirem meu trabalho de novo, mas eu também
estou bem ciente de que esta é a Universidade Draven. Como se
existisse alguma chance real do reitor ficar do meu lado contra a
droga do cara que carrega o nome da instituição.
Quando um grupo de alunas risonhas entra para resolver alguma
baboseira das líderes de torcida, a assistente do reitor manda todas
para fora antes que elas possam me dar uma boa olhada, e enfia
um pacotinho de lenços na minha mão quando passa por mim. É
uma mulher mais velha, mais do que minha mãe seria se ainda
estivesse aqui, e esse pensamento só faz as lágrimas caírem ainda
mais.
Mantenho os olhos colados nos arranhões do velho tênis que
estou usando, mais uma vez lembrando dos sapatos idiotas que a
Equipe Tática abandonou quando pegou minhas coisas, pois não
me sinto eu mesma aqui. Não tenho nenhum dos meus bens
preciosos, nenhuma das liberdades das quais desfrutava até
quando estava em fuga e tinha dificuldades de ganhar meu próprio
dinheiro. Toda minha identidade foi arrancada de mim ao vir para cá,
e em troca do quê?
De Vínculos que fariam de tudo para me destruir.
Talvez eu devesse começar a revidar. Ou arriscar a pequena
bomba que eles enterraram na minha pele e apenas fazer as malas
e dar o fora desse lugar. Não tem como as coisas ficarem piores,
certo? Estou fazendo tudo que posso para ser aprovada em todas
as minhas aulas, apareço para o TT toda semana e quase morro
toda merda de vez por nenhum outro motivo além de ser mantida ao
alcance dos meus Vínculos o tempo todo.
Mas nada que faço importa aqui.
— Obrigado por ligar, Sherry. Vou resolver isso para você não ter
que continuar olhando para meu Vínculo chorão.
Fico paralisada, é claro que as coisas podem piorar e já pioraram,
porque North acabou de chegar, parecendo o ricaço de terno dos
sonhos de qualquer garota, forçando um sorriso para a assistente
ao desfilar pelo escritório.
A assistente, Sherry, faz uma careta para ele e me dirige um olhar
gentil.
— Ela não é nenhum incômodo, sr. Draven, só achei que ela
precisasse de um apoio.
Apoio.
Como se ele fosse fazer qualquer coisa para me ajudar aqui.
Ele murmura alguma resposta para ela, baixo demais para eu
entender, mas não quero saber o que foi quando Sherry suspira um
pouco e diz:
— Tão jovem, e sem pais! Que bom que ela tem a você.
Meu Deus, quero arrancar os olhos dele por isso. Ele vem
fingindo ser meu herói, um cavaleiro de armadura reluzente que
chegou para salvar o dia, quando na verdade está aqui para
prolongar a tortura.
North para na minha frente e eu ergo os olhos para o ver
franzindo o cenho.
— Sherry disse que isso é por causa de um trabalho, você está
com ele?
Concordo com a cabeça e ele não diz mais nada ao se virar para
entrar no escritório do reitor. Sou idiota o suficiente para olhar pela
porta aberta e meus olhos encontram os de Nox, mas o brilho
sinistro de satisfação que vejo ali me congela até os ossos.
Ele está se sentindo bastante satisfeito com essa confusão toda.
Eu quero morrer.
Meu celular vibra no bolso, mas não posso pegá-lo aqui, não com
os espiões de North por todos os lados e considerando que é o
celular novo que Atlas enviou para mim. Coloco a mão sobre ele por
cima da calça, o peso do aparelho me consola, pois Atlas é um
refúgio para mim. Ele é o vínculo com quem posso conversar sem
me preocupar, porque está a milhares de quilômetros de distância, e
é alguém com quem posso ser pelo menos um pouco honesta,
porque vou dar o fora desse lugar antes de ele chegar.
Ele é um pequeno fragmento de esperança.
Quando a porta volta a se abrir, Nox sai sem dizer nada ou dirigir
um olhar para mim ou para Sherry, e eu murcho como um balão.
Toda a tensão que estava me segurando escapa de mim até eu
estar jogada na cadeira.
— Srta. Fallows, por favor se junte a nós — o reitor diz, com um
tom um pouco mais gentil do que quando Nox me arrastou até aqui.
Sherry sorri para mim quando o acompanho, sento-me na cadeira
que Nox acabou de desocupar e tento não vomitar de nervoso ao
sentir o cheiro dele ainda se agarrando ao tecido. Por que o cheiro
dele precisa ser tão bom? Por que ele tem que me fazer odiar
Acqua di Giò?
Filho da puta.
O reitor volta a se sentar em sua cadeira, folheia alguns papéis
em sua mesa por um instante, pigarreia e estufa o peito como se
fosse muito importante. A mudança de postura é bem óbvia e com
certeza não é para o meu benefício, já que os olhares que ele dirige
a North beiram à obsessão.
— Srta. Fallows, esta é em uma situação muito inusitada e estou
considerando isso para tomar minha decisão. Embora o sr. Draven
seja seu professor e deveria ter a palavra final a respeito de suas
notas, entendo que as... particularidades delicadas do seu vínculo
requerem que algumas mudanças sejam feitas.
A única coisa delicada aqui é a porra do ego de Nox.
Concordo com a cabeça e mantenho meus olhos nele, minha
determinação não é nem de longe forte o suficiente para arriscar
olhar na direção de North agora. Os olhos do reitor disparam de
modo breve para meu Vínculo filho da mãe ao continuar:
— O conselheiro Draven tem as mesmas qualificações que o
irmão dele, e se ofereceu para corrigir seus trabalhos pelo restante
de suas aulas com o sr. Draven. Dadas as circunstâncias, estou
disposto a levar isso à diretoria da faculdade e estou confiante de
que vão concordar com esses termos. Você ainda será obrigada a
comparecer às aulas e atividades, todos seus prazos e datas vão
continuar os mesmos, a única mudança é que seus trabalhos serão
enviados para o conselheiro.
Quero virar a mesa.
Quero soltar meu poder nos dois e assisti-los enfrentarem a fúria
que está correndo pelas minhas veias.
Quero socar a cara de North e do merda do irmão covarde dele.
Em vez disso, digo:
— Obrigada, reitor Myers. Agradeço sua leniência e esforço
nessa questão delicada.
Não consigo evitar o sarcasmo que exala de mim, mas o reitor
não percebe, só sorri para North como se tivesse feito um trabalho
incrível nesse caso e estivéssemos todos unidos do mesmo lado.
Estou pronta para caminhar até o dormitório para acalmar um
pouco da minha raiva, contudo, North se levanta à minha esquerda
e diz:
— Oleander, vou te levar para casa.
Meu nome. Ele diz meu primeiro nome inteiro, sem nada da
entonação irônica e da baboseira controladora de quando fala o
meu sobrenome e, caramba, o som do meu nome saindo por entre
aqueles lábios deliciosos me causa um arrepio.
Mas que porra foi essa?!
Certo, preciso alvejar meu cérebro assim que chegar no meu
quarto, porque eu definitivamente não vou ficar pensando nesse
babaca dominador desse jeito, não importa o que meu vínculo
pense. Porra. Eu me lembro de onde infernos estou e ofereço um
aceno educado ao reitor antes de acompanhar North para fora do
prédio.
Ele não faz nenhuma tentativa de andar mais devagar por mim e,
mais uma vez, eu me vejo correndo para acompanhar suas pernas
compridas até demais. Preciso ofegar as palavras, sem fôlego e
exasperada:
— Sei que você me odeia e, sendo honesta, eu sentiria a mesma
droga de coisa no seu lugar, mas eu me esforcei pra caramba
naquele trabalho. Não tenho feito nada além de estudar e respeitar
as merdas das suas regras, não tenho nenhuma liberdade,
nenhuma porra de vida e, mesmo assim, você vai ficar sentado aí
no alto do seu cavalo e me dizer que sou uma pirralhinha inútil?
Não, vai se foder, North. Não mereço isso.
Ele para ao chegar no carro e segura a porta aberta para mim,
indicando para que eu entrasse, e estou tão distraída pelas
baboseiras na minha cabeça que não percebo a presença de
Gryphon até estar sentada. Ele já está com o cinto afivelado no
meio do assento virado para trás, e eu deslizo no banco para ficar o
mais longe possível dele e de North. Mais uma vez, fazem da minha
humilhação um esporte com torcida e tudo, e a vergonha disso faz
as minhas entranhas se contorcerem. Os olhos de Gryphon me
esquadrinham com uma apatia fria, fazendo uma pausa em minhas
bochechas, e eu as esfrego rápido com a mão, para o caso de ter
feito algo mortificante, tipo chorar na frente deles.
North entra depois de mim e se senta em seu lugar de costume.
— Nox não é conhecido por ser sutil, você o ofendeu e ele vai se
certificar de que todos saibam disso. Não pode culpá-lo por presumir
que você faria um trabalho péssimo, ele sabe que você abandonou
o ensino médio por capricho, Fallows.
Falo rangendo os dentes:
— Não é como se eu tivesse escolha na época, Draven.
North olha para Gryphon com a testa franzida, e Gryphon encolhe
o ombro para ele.
— Ela está dizendo a verdade.
Rio de escárnio.
— Bem, valeu pelo seu voto de confiança, Gryphon. Por que
diabos você está aqui? Não deveria estar torturando gente em outro
lugar, um que seja bem longe de mim?
Ele me encara até me deixar agoniada, e quero muito desviar o
olhar, mas uma teimosia pura me diz que tenho que manter o
contato visual até ser ele a interrompê-lo. E estou arrasando na
competição, até North me assustar com seu tom rabugento e idiota:
— Não estávamos esperando fazer esse desvio para vir lidar com
você, há Vínculos e Vinculados desaparecendo, sabe.
É como uma faca cortando meu coração, mas ele nunca poderia
saber o quanto essas palavras me machucam. Forço um:
— Estou ciente.
Um silêncio gélido domina o carro, e resisto à ânsia de pegar
meu celular e olhar para ele como um escudo. North apenas
espiaria tudo que eu fizer, e não posso ficar sentada aqui enquanto
esse presunçoso faz isso. O trajeto até meu dormitório só leva
alguns minutos e, quando o motorista abre minha porta, eu pego a
minha mochila e vasculho dentro dela em busca do trabalho que
começou essa merda toda.
O ZERO gigantesco escrito em caneta vermelha com um círculo
ao redor é como um farol, todos os olhos disparam para ele e me
julgam de novo por ser um fracasso.
Só que dessa vez, não sou.
Não vou permitir que minha própria fúria por essa merda de
situação destrua todo meu trabalho árduo. Engulo o nó da garganta
e ofereço os papéis para North.
— Agradeço sua oferta para corrigir meus trabalhos no lugar de
Nox. Se você concordar com a avaliação dele, então vou aceitar e
me candidatar para fazer um trabalho de recuperação. Eu posso...
fazer isso, né?
North não parece impressionado pela minha fala ou pelo trabalho
que tira de minhas mãos.
— Você não tem escolha a não ser passar em todas suas
matérias. Vai reescrever seu trabalho até estar adequado.
Eu me recuso a responder, desço do carro e bato a porta antes
que o motorista tenha chance de fechá-la para mim. É um longo
caminho até meu quarto, ainda mais tendo que ignorar as outras
estudantes, que já ouviram a respeito do que aconteceu hoje. Eu me
visto com roupas confortáveis e me deito na cama para respirar por
alguns instantes. As molas cutucam minhas costas, mas nessa
altura já estou tão acostumada que é quase um consolo.
Eu me dou cinco minutos para chafurdar em minha fúria e meu
rancor.
Em seguida, levanto-me e começo a me dedicar ao meu trabalho
de recuperação, porque de jeito nenhum vou permitir que o merda
do Nox Draven vença.
12

NORTH ME ENVIA UM e-mail uma semana depois com uma nota


sete, e embora eu esteja certa de que meu trabalho mereça uma
melhor do que essa, respondo com um agradecimento e logo em
seguida mergulho ainda mais nos livros.
Sage faz uma reserva permanente de uma das mesas da
biblioteca para nós duas e se junta a mim em minha missão de
destruir a merda do Nox Draven usando apenas as minhas notas.
Bem, ela também me contou que seus pais só a deixam se isolar do
mundo se lhes disser que está estudando. Fico feliz por meio
segundo, então Sage acrescenta que sua família tem esperanças de
que Riley mude de ideia a respeito de rejeitar o vínculo entre eles
caso ela se forme com honras e consiga um emprego com um ótimo
salário... como se quando ela passasse a ganhar um monte de
dinheiro, talvez se tornasse útil para o seu Vínculo.
Algum dia, vou matar todos eles.
Posso sentir essa vontade crescendo dentro de mim, como se
fosse transbordar em algum momento e não terei escolha a não ser
destruir todos eles. Quero dizer, já estou nesse ponto com
Giovanna, porque Sage não estava exagerando quando disse quão
maligna aquela vaca é. Na verdade, acho Sage gentil demais a
respeito dela. Tem alguma coisa nos olhares e sorrisos presunçosos
daquela garota que me incomodam demais e me deixam irritada ao
extremo. Nunca fui elitista quanto a dons, o tempo que passei com a
Resistência me ensinou isso, mas algo a respeito dessa garota se
dando bem apenas por conta de sua aparência me perturba.
Depois da primeira semana que passamos juntas na biblioteca,
Sawyer começa a aparecer para estudar conosco. Ele é educado,
mas ainda me trata com frieza e distância. Sage nota e se oferece
para pedir para seu irmão ir embora, mas sou teimosa e quero que
ele goste de mim, então opto por me dedicar a conquistá-lo. Não
tenho certeza se está funcionando, mas ele nunca é rude comigo,
então considero uma vitória.
Gracie tenta se sentar com a gente uma vez, mas Sage a rejeita
tão rápido que preciso controlar minhas lágrimas de riso. Quando
contei sobre Gracie ter babado em cima de Gryphon, Sage não ficou
surpresa, só revirou os olhos e a cortou todas as vezes que ela
tentou se juntar a nós.
A verdadeira complicação é quando Félix e Gabe aparecem.
Em primeiro lugar, eles chegam juntos, o que faz Félix perder
todos os pontinhos que eu lhe dei mentalmente depois da festa de
Sage. Em segundo, Gabe olha para Sawyer como se estivesse
prestes a arrastá-lo para fora e matá-lo na base da porrada quando
nos vê sentados juntos.
— Todos temos absoluta certeza de que Oli é lésbica, Benson, é
inútil tentar dar uns pegas no meu Vínculo — Gabe ralha, mas antes
que eu tenha a chance de acabar com o ego dele o lembrando que,
com ou sem Vínculo, nunca vou tocar nele, Sage interrompe.
— Se começar essa merda com meu irmão, Gabe, vou tacar fogo
em tudo que você ama. Sua moto, seu estádio de futebol, seu
pinto... tudo.
Eu me viro para olhar para ela porque quem diabos é essa
valentona e onde caralhos Sage a escondeu esse tempo todo?
Talvez eu esteja mesmo apaixonada por ela.
Félix olha de um para o outro, e em seguida para mim.
— Você vai intervir ou devo eu?
Finjo indiferença e sorrio para ele, apoiando o queixo em minha
mão.
— Eu preferiria assistir Sage assassinar todo mundo nessa sala
do que sufocar essa atitude dela hoje. Provável que seja por isso
que meus vínculos são tão obcecados pela ideia de eu estar
trepando com ela... ou talvez seja algum fetiche deles, não ligo o
suficiente pra tentar descobrir.
Os olhos de Gabe disparam para mim e eu sei que atingi um
ponto fraco, mas como foi ele quem começou, ele que aguente as
consequências. Félix olha para cada um de nós e depois puxa uma
cadeira ao lado de Sage, senta-se e abre seus próprios livros. Ela o
olha de soslaio, mas quando Félix não faz nenhuma tentativa de se
aproximar dela ou conversar, ela deixa passar.
Na verdade, acho que ele é perfeito para ela e que o mundo é um
lugar terrível por não os destinarem a ficarem juntos.
Quando todos nós o ignoramos por tempo suficiente, Gabe enfim
bufa e puxa uma cadeira ao meu lado, então espalha seus livros e
seu material pela mesa até ocupar metade do meu espaço também.
Sei que ele está fazendo isso para tentar provocar alguma reação,
mas apenas faço meu melhor para não tomar o espaço de Sawyer e
estragar o progresso que já fiz com ele.
Sage observa tudo isso com olhos semicerrados, mas só faço
que não com a cabeça porque brigar com Gabe nunca leva a lugar
nenhum. O melhor pelo que posso esperar é ele cansar de ficar
perto de mim e me deixar em paz. Tenho certeza de que ele poderia
convencer North a concordar com isso, já que não fiz nenhuma
tentativa de fugir.
Ainda.
Quando nosso tempo de estudos acaba e eu tenho que me dirigir
ao meu Treinamento Torturante, que é como Sage chama o TT
agora, guardo todas minhas coisas e dou um abraço rápido nela,
esmagando-a por um segundo e torcendo para que ela sinta toda
minha gratidão por sua amizade feroz e protetora.
Fico em choque quando Sawyer também me puxa para um
abraço rápido, ignorando o suspiro rabugento de Gabe às nossas
costas. Depois ele leva Sage para fora, Félix me dá um aceno e os
acompanha.
Tudo o que eu queria naquele momento era ir para a aula com
eles, mas talvez uma tarde destruindo meu corpo naquelas
máquinas de tortura faça eu me sentir melhor. Que ótimo, de alguma
forma Vivian e seu programa de treinamento conseguiram me
doutrinar a amar a sensação do meu corpo queimando e virando
gelatina.
Que nojo.
Saio da biblioteca para o sol do lado de fora e Gabe corre para
me acompanhar, ficando do meu lado em vez dos três passos de
distância que costuma manter de mim. Ranjo os dentes e o ignoro,
acelerando meu ritmo para poder me esconder no vestiário do
centro de treinamento até a aula começar e Vivian ficar tão no
pescoço de Gabe que ele não consiga me incomodar.
O problema é que claramente Gabe está com algum problema
comigo hoje, e não vai deixar nada passar. Ele entra na minha frente
para bloquear meu caminho, e não tenho outra opção a não ser
parar de andar para não esbarrar nele.
Nesse exato momento, não tenho condições de ficar com o corpo
colado no dele de novo.
— Não vou entrar nessa com você hoje. O aviso de Sage não foi
suficiente pra você deixar isso pra lá?
— Nunca vou deixar isso pra lá, Fallows. Como eu poderia
quando você deveria ser meu Vínculo e em vez disso fica se
jogando em cima de qualquer outro cara do campus? Qual a porra
do seu problema pra você conseguir agir assim?
Ele perdeu a cabeça. Minha voz sai que nem um guincho
revoltado e eu soo como uma idiota.
— Eu?! Tudo que fiz desde que fui arrastada pra essa merda de
campus foi respeitar suas regrinhas. Qual é, você estava esperando
que eu viria e me curvaria pra vocês? Que me deitaria e me
submeteria pra vocês conseguirem seu vínculo comigo e todo o
poder que viria com ele? Prefiro morrer. É sério, Gabe, olha bem
nos meus olhos agora e aceite porque eu prefiro morrer a fazer isso.
Seus lábios se curvam para cima e toda sua hesitação de
costume desaparece quando ele se inclina para baixo até estar cara
a cara comigo.
— E eu prefiro morrer a ficar sentado assistindo você rodar pela
classe do primeiro ano toda. Se seus Vínculos não são bons o
suficiente pra você, então vou me certificar de que você fique
sozinha e miserável.
Debocho dele e me viro, pronta para disparar na direção do
centro de treinamento se isso for o necessário para escapar da sua
loucura do dia, mas ele agarra meu braço e me vira para encará-lo,
rosnando na minha cara:
— Você foi embora, você fez isso, qualquer merda com que tenha
que lidar agora é por causa do que fez. Se odeia a gente, ótimo,
mas aguente as consequências.
Reviro os olhos e puxo para soltar meu braço, mas ele me segura
com mais força.
— Me solta...
— E o que você vai fazer, quebrar meu braço? Como vai
conseguir isso? Pelo visto, Gryphon acha que você poderia fazer
algum estrago se quisesse, mas não acredito nisso.
Humm. Não achei que Gryphon tivesse prestado atenção
suficiente em mim para saber do que sou capaz, mas tudo indica
que estou fazendo alguma coisa certa no TT se ele acha que
consigo enfrentar um jogador de futebol americano e sobreviver.
Mas não preciso nem do meu dom e nem de treinamento para
derrotar Gabe, ele deixa seus sentimentos tão à tona que é fácil
demais fazer isso.
Avanço na direção dele, colo meu corpo em seu peitoral e o
assisto se sobressaltar. O que quer que estivesse passando pela
sua cabeça antes que disfarçava suas reações, não está presente
agora, e Gabe fica tenso ao sentir meu corpo no dele.
— Tire sua mão de mim antes que eu prove que Gryphon está
certo. Posso estar obedecendo as regras por enquanto, mas se
forçar a barra, vai descobrir exatamente do que sou capaz.
 
*
 
— Vamos para o porão hoje, então planejem seus exercícios de
acordo.
A classe toda geme como se tivéssemos acabado de ouvir que
estamos prestes a sermos enviados para o inferno para lutar com o
diabo em pessoa, mas, como sempre, não faço ideia do que Vivian
está falando. Todos se dirigem para os equipamentos da academia,
arrastando os pés mais do que de costume, e fico perto de Vivian,
preparando-me para seja lá qual circuito ele vai jogar para cima de
mim dessa vez.
Ele não se aproxima de mim assim que dispensa os outros, como
costuma fazer, em vez disso, observa os demais alunos por um
instante, como se estivesse averiguando o que estão escolhendo
fazer. É tão confuso que também me viro e observo, mas não
consigo descobrir o que é tão interessante assim para ele.
Todos estão escolhendo os equipamentos mais fáceis, as coisas
que acham mais tranquilas. Já passei tanto tempo na esteira e no
elíptico, assistindo aos outros alunos em seus próprios exercícios
para tentar me esquecer da dor que sentia, que sei que Gabe e
seus amiguinhos sempre acabam nos equipamentos de peso depois
de um jogo particularmente difícil de futebol. Vivian em geral grita
ordens para os caras irem logo para o cardio e acabarem logo com
isso, mas hoje ele só fica parado observando tudo.
Quando ele por fim se aproxima de mim, acena com a cabeça
para a esteira e diz:
— Pega leve hoje, é só um aquecimento.
Franzo o cenho para ele.
— O que tem de tão aterrorizante no porão? Se o bicho-papão
está lá embaixo, eu gostaria de saber agora, para poder me matar
antes, em vez de descer lá. Eu já estava mesmo planejando me
jogar de uma ponte, só vou ter que antecipar um pouco.
Ele me olha com severidade, e suas cicatrizes lhe dão uma
aparência ainda mais ranzinza, mas já estou nessa aula com ele há
tempo suficiente para só piscar os olhos de um jeito adorável como
resposta.
Vivian grunhe:
— Sou obrigado a relatar sobre alunos em crise, não diga essas
merdas na minha frente porque prefiro não ter que preencher toda
aquela papelada, menina.
Sorrio para ele e encolho os ombros, fingindo timidez.
— Tem algum professor que você odeie? Ficaria feliz em falar
essas coisas em outras aulas como forma de pedir desculpas.
Ele balança a cabeça e resmunga baixinho alguma coisa sobre
seu salário e ter que lidar com essa baboseira, mas isso não é nada
fora do comum.
Opto por me ater a meus exercícios de sempre porque às vezes
sou, ao mesmo tempo, teimosa e burra. O que quer que se esconda
no porão não vai me impedir de provar meu valor para Vivian, e não
é como se North fosse permitir que eu morresse aqui, não importa o
quanto eu queira isso de vez em quando.
Acho que não vou morrer antes de ele dar a ordem.
Depois que a primeira hora acaba, cada músculo do meu corpo
parece gelatina e minhas pernas mal estão aguentando meu peso.
Estou tão acostumada a isso agora que mal noto os tremores, só
suspiro frustrada quando minha garrafa balança demais na minha
mão para eu conseguir tomar um gole decente de água.
Vivian só nos dá um minuto para nos hidratarmos antes de ladrar
ordens e andar em direção à porta na parede mais distante, uma
pela qual nunca passamos antes e eu só presumi que fosse um
armário.
Acho que errei quanto a isso.
— Vai se arrepender de ter se forçado tanto assim, rejeitada —
Zoey resmunga e me empurra para passar, colidindo com tanta
força contra meu ombro que dói. A sensação de formigamento que
se espalha até as pontas dos meus dedos me diz que estou
encrencada, mas faço o melhor que posso para ignorar, esfregando
meus ombros e meu pescoço o melhor que posso com a mão
trêmula.
— Ela não está errada.
Reviro os olhos ao ouvir o som da voz de Gabe, mas não
respondo nem reajo, não tenho energia para gastar com ele e suas
baboseiras agora.
Preciso descobrir como sobreviver ao que Vivian está planejando
para nós hoje.
— Vai ser eliminada nos primeiros três minutos se não fizer dupla
com ninguém. É uma pena que Sage ou Sawyer não façam essa
aula, talvez você sobreviveria se sua namorada estivesse aqui pra
salvá-la.
Estamos atrás do resto do grupo, então me sinto confortável o
bastante para responsabilizá-lo por sua atitude mais uma vez.
— Está mostrando que se contorce de ciúmes de novo. Sabe,
nós poderíamos ser amigos também se você parasse de ser um
babaca. Se quer tanto assim ter a relação que Sage e Sawyer têm
comigo, tudo que precisa é parar de puxar o saco de North e apenas
ser meu amigo.
Ele grunhe e nega com a cabeça.
— Não quero ser a porra do seu amigo, Fallows.
Rio para ele, um som sinistro e zombeteiro.
— Não, você quer ser meu dono e tirar o que acha que é seu por
direito. Você é tão ruim quanto o resto deles.
Alguns dos seus colegas de futebol olham para nós, ouvindo o
suficiente do que estamos dizendo para verificar. Mostro o dedo do
meio e Gabe me empurra de leve com o ombro, mas graças ao
tratamento bruto de Zoey, eu cambaleio e fico sem ar.
— Fique longe de todo mundo no labirinto. O pessoal de Vivian
vai assistir e acompanhar a simulação inteira, mas, mesmo assim,
pode acabar se ferindo de forma grave se não tomar cuidado. Esse
é o único lugar do campus onde temos permissão de usar a
extensão máxima dos nossos dons, e vários caras gostam de
aproveitar porque aqui é seguro o suficiente pra isso. O porão todo é
à prova de bombas. Unser uma vez disparou ali e o lugar ainda está
de pé, então sabemos que é seguro.
Unser? Ergo uma sobrancelha para ele, mas Gabe ainda está
irritado comigo e só me dá um sorrisinho, dando de ombros para
fingir indiferença. Eu me viro para ele não ver o quanto me
incomoda não saber sobre quem está falando.
Que diabos “disparou” significa? Uma bomba humana? Um
Flama que tem um pouco de vigor extra em seu poder? As
possibilidades são, literalmente, infinitas na comunidade de
Favorecidos, então vou ter que perguntar para Sage mais tarde.
A escadaria é longa e curvada, e a temperatura sobe quanto mais
descemos, até parecer que o ar é feito de sopa, quente e espesso
em meus pulmões. Estou com uma pequena pontada de pânico na
barriga, e é o pior lugar para isso, porque meu dom começa a forçar
o controle firme que mantenho sobre ele em resposta.
Dá última vez em que fiquei encurralada no subsolo desse jeito,
fui torturada.
Eu me forço a pensar em alguma coisa, qualquer coisa, que não
seja aquela ocasião. Eu me obrigo a pensar em Sage e Félix, a me
perguntar se Félix vai conseguir encontrar algum jeito de convencer
Sage a lhe dar uma chance. É algo em que tenho pensado muito
desde o aniversário dela, porque não havia como confundir a
adoração nos olhos dele sempre que olhava para Sage. Às vezes,
os vínculos não são nenhuma benção e só complicam mais as
coisas, e aqueles dois são um exemplo clássico disso.
Gabe olhando para mim como se estivesse imaginando como
seria me sufocar até a morte é outro.
Quando chegamos ao fundo da escada, encontro uma pequena
sala. Três das paredes são de pedra, e a do lado oposto é composta
apenas de enormes portas corta-fogo acopladas em concreto. O
que quer que esteja do outro lado, está óbvio que vou entrar às
cegas.
Vivian espera até estarmos todos aglomerados no espaço, então
grita, sua voz ecoando no espaço minúsculo:
— Vocês serão divididos de novo, dessa vez em grupos de três.
Não, não podem escolher com quem vão ficar. Não, não dou a
mínima se acham que isso é justo ou não. Não, não adianta
reclamar, pois não ligo para as suas opiniões e sentimentos aqui.
Minha preocupação é treiná-los o melhor que posso. Já tive
duzentos e quarenta três alunos que se formaram aqui e entraram
em Equipes Táticas, e a maioria ainda está viva hoje, graças a esse
treinamento, então calem a boca e cheguem no meio vivos se
quiserem ser aprovados nessa matéria. Os primeiros a alcançarem
a bandeira, serão aprovados de forma automática nessa aula para o
resto do ano.
Certo.
Chegar no meio sem morrer.
Nem vou tentar fingir que tenho chance de chegar no meio
primeiro, mas porra, vou pelo menos tentar fazer o percurso dentro
de uma hora. Não parece tão ruim assim, e se eu tiver outros dois
alunos que precisam de mim viva e consciente para passar, talvez
eu fique bem. Não é tão ruim assim.
Pelo menos, não era tão ruim antes de eu ser colocada com Zoey
e algum cara de quem nunca ouvi falar antes, mas que sorri para
Zoey como se isso fosse ser uma festinha ótima.
Gabe me dirige um olhar estranho, mas não faz menção de falar
com seus amiguinhos e mandar eles não serem uns cuzões comigo,
só sai andando na direção do seu próprio grupo e começa a
murmurar com eles. Suponho que o labirinto requeira estratégia,
mas Zoey e Brenton não dizem nada para mim quando me junto aos
dois. Eu também não falo nada para eles, já sei que é inútil.
Estou nessa sozinha.
No momento em que as portas abrem, vejo o que eles querem
dizer com simulação e, sendo sincera?
Estou total e completamente fodida.
Pois é, só mais uma sexta-feira normal para mim.
13

O ESPAÇO É ESCURO como breu.


Como sempre, sou a última a entrar no labirinto, mas, dessa vez,
isso não me dá nenhuma vantagem, porque é óbvio que todos os
outros já fizeram o percurso vezes suficientes para saber que, assim
que nossos pés atravessam a soleira da simulação, todos nossos
sentidos são tirados de nós.
Pelo menos espero que seja com todos, não só comigo.
Imagino que ter um derrame deve ser assim. Não consigo ver
nem ouvir nada, e apenas uma vaga sensação do chão sob meus
pés me diz que eles ainda devem estar se mexendo. Não tenho
nenhuma droga de ideia de como essa simulação é possível, como
o campus Draven conseguiu criar esse inferno, mas estou
absolutamente indefesa.
E eu também deveria ter pegado leve no meu exercício.
Não sei por quanto tempo ando pelo desolado nada, só sei que,
quando ele acaba e enfim consigo enxergar de novo, a luz é
cegante, meus olhos marejam e minha cabeça dói com uma dor
aguda. No mesmo instante, meu vínculo reage à dor, meu dom
resiste ao meu controle, e sou obrigada a parar por um segundo
para recuperá-lo. Não tem ninguém perto de mim, nenhum sinal das
dúzias de outras pessoas da turma, e não sei se é só porque estive
indo muito devagar ou se a... magia ou sei lá o que está rolando
aqui nos colocou em diferentes lugares do labirinto.
Tudo que sei que é que as paredes são feitas de tijolos pretos e o
chão é de concreto, manchado em vários lugares, e é bem óbvio
que a substância derramada era sangue. Porra, uma das manchas é
tão grande que não tinha como a pessoa não ter morrido ali, não
importa o que Gabe disse sobre esse lugar ser monitorado.
Morrer não é bem a pior alternativa aqui, contudo, não seria
minha primeira escolha.
Estou ocupada demais surtando para notar os sons de passos,
mas o rugido de alguma coisa definitivamente chama minha
atenção.
Um metamorfo está por perto.
Não sei no que Gabe se transforma, mas tem outros três
metamorfos na nossa turma, então não posso presumir que ele
tenha vindo me encontrar. Com a minha sorte, Brenton também é
um metamorfo e veio rasgar minha garganta e fazer uma mancha
novinha no chão. É preciso que todos cheguem ao centro para
vencermos, mas tenho certeza de que Zoey não se importaria de
perder uns pontos para se livrar de mim.
Ando para trás, estou grudando as costas na parede atrás de
mim e me preparando para o que diabos está prestes a acontecer,
quando há um barulho de trituração, gemido, estalido...
E as paredes começam a se mover.
Mas que porra à lá Harry Potter é essa?! Preciso correr para
longe da parede às minhas costas, mas não é essa que está se
mexendo. Não, é a que está na minha frente que está correndo na
minha direção e estou prestes a ser esmagada até a morte se não
controlar meus joelhos trêmulos e mexer minha bunda.
Na verdade, é bom que o pânico esteja jorrando por todo meu
corpo, porque estou condicionada a dar meu desempenho máximo
enquanto me cago de medo, então consigo fazer minhas pernas se
moverem e saio do caminho. Há um barulho de estalo e de baque,
seguido de uma breve luz, em seguida escuto o gemido de quem
quer que seja o metamorfo que agora está preso do outro lado da
parede, com certeza ferido.
Devo chamá-lo? Será que grito e torço para alguém vir ajudar, ou
será que só vou divulgar minha localização fazendo isso e acabar
morrendo por ter sido gentil?
Uma voz grita e decide por mim:
— Porra, Martinez, qual é a sua sendo preso pelas paredes? Isso
é merda de principiante!
Não tenho ideia de quem seja, mas o metamorfo ofegante
responde:
— Senti o cheiro da garota nova, achei que a gente podia usar
ela de isca pra vaca do lago.
Hum, primeiro, vai se foder, Martinez. Não acredito que eu ia
ajudar esse otário, segundo, e mais importante, que porra é a vaca
do lago?
Acho que vou vomitar.
Também não tenho tempo para deixar a ansiedade me dominar,
então me forço a continuar e escolho o único caminho que posso, o
que parece cercar o labirinto. A única outra direção em que
conseguiria ir é para trás, e não quero passar pela área de privação
dos sentidos de novo, muito obrigada. Preciso ignorar os gritos dos
outros alunos o máximo possível, já que ecoam pelo espaço.
Começo andando, mas fico com medo das paredes me
esmagarem e acelero até um trote, para não ficar sem energia tão
cedo.
Os barulhos ao redor são meio que aterrorizantes.
Um Flama está em algum lugar por aqui, e cada vez que vejo as
explosões de luz refletidas no teto ridiculamente alto, começo a
surtar mais uma vez a respeito da qualidade do ar e do porão todo
pegando fogo. Meus pés se movem mais rápido sem que eu sequer
tente, com a adrenalina surtindo efeito, e só desacelero quando
enfim alcanço a esquina na extremidade do prédio.
Paro para respirar, forçando meus batimentos a diminuírem
porque, apesar do pânico ser um ótimo motivador, preciso usar meu
cérebro aqui. Não tenho acesso ao meu dom, e embora todo o
treinamento nessa aula idiota tenha melhorado minha estamina,
ainda não sou muito boa em defesa pessoal.
Se eu virar essa esquina e me encontrar de cara com alguém
todo transformado em um lobo ou uma onça ou algo do tipo, estarei
ferrada pra caralho.
Eu me obrigo a tentar ouvir alguma coisa, mas não tem nada lá,
apenas os sons distantes dos alunos lutando e gritando uns com os
outros, então avanço bem devagar para espiar ao redor da parede
de pedra.
Tem um jardim ali.
Uma porra de sala toda escavada no porão com plantas por
todos os lados. É... bom, é meio que deslumbrante, com trepadeiras
subindo pelas paredes e flores de cores vibrantes irrompendo da
linda folhagem escura. É como um cenário saído do País das
Maravilhas, como se esse porão todo fosse uma versão distorcida e
doentia dos meus contos favoritos.
Só que quanto mais eu olho, mais vejo que esse não é nenhum
paraíso.
Para começar, as trepadeiras estão se mexendo, estendendo-se
aos poucos na minha direção como se estivessem prestes a
envolver meu corpo e me derrubar. Todas as flores estão chorando,
e o líquido que sai delas corrói o chão ao pingar nele, além disso,
ainda há o pequeno problema dos espinhos.
Estão surgindo em todos os lugares.
Olho para mim mesma e xingo o short e a camiseta que estou
usando, porque eles não vão me proteger de merda nenhuma, mas
o tempo não está a meu favor, e quanto mais fico parada aqui
indecisa, os horrores do lugar se tornam maiores e mais perigosos.
Certo.
Certo, está tudo bem. Posso atravessar espinhos e ácido
enquanto desvio de trepadeiras rastejantes. É algo bem razoável.
Meu dom não ajudaria com isso, de qualquer forma, então não
adianta me sentir mal por não poder usá-lo. Só atravessa isso logo,
Oleander.
Conversar comigo mesma não ajuda muito, mas imaginar tudo
que vou fazer com essa droga de faculdade no instante em que não
estiver mais sem poderes, com certeza, ajuda. Quando o primeiro
espinho penetra na minha coxa, imagino deixar North Draven de
joelhos. Quando o ácido começa a corroer as solas dos meus
sapatos, imagino a expressão na cara de Nox quando eu mostrar a
ele como conseguiria quebrá-lo no meio. Imagino provar meu valor
para Gryphon, mostrando a ele que não sou uma merda de pirralha
inútil.
E Gabe.
Ah, cara, imaginar todas as coisas que vou dizer para Gabe
bloqueia de vez a dor lancinante das trepadeiras envolvendo meus
pulsos e puxando meu braço lesionado. Quando mais dor consigo
ignorar e superar, mais agressivo o jardim se torna na tentativa de
me deter, tentando me machucar o suficiente para que eu pare de
tentar atravessá-lo.
Quando por fim chego na pequena passagem, as solas dos meus
sapatos desapareceram por completo e minha camiseta está em
frangalhos, e há sangue escorrendo pela minha barriga, dos
ferimentos espalhados por todo meu tronco. Trepadeiras estão
enroladas nos meus dois braços e coxas, torcendo e apertando de
forma dolorosa, e preciso me jogar na parede e me arrastar pela
esquina para conseguir arrancá-las. Caio de joelhos quando elas
enfim rompem e se soltam da planta principal. Entro em pânico,
presumindo que ainda vão conseguir se enrolar em mim ou que do
nada se tornarão cobras, porque esse é o nível da merda do show
de horrores que estou esperando desse lugar, mas elas me soltam e
caem no mesmo instante, como se tivessem sido meras plantas o
tempo todo.
Fico de joelhos por mais alguns segundos, ofegando e rolando
meus ombros doloridos para trás, tentando testar os músculos, e os
gritos ao meu redor atingem um nível extremo.
Por acaso Vivian tem algum fetiche esquisito de
sadomasoquismo do qual eu não quero nunca saber a respeito?
Será que ele sente prazer em torturar seus alunos e ouvir seus sons
de terror?
Com toda certeza vou perguntar isso para ele mais tarde, porque
não tenho vergonha nenhuma de repreendê-lo. Isso deveria ser uma
aula de universidade, porra. Quem em sã consciência faz isso com
seus alunos?
O barulho de movimento chama minha atenção primeiro.
Eu me assusto e me arrasto para trás antes que meu cérebro
entenda o que estou vendo. Na entrada do jardim assassino, está o
que achei que fosse um tronco de árvore, mas que na verdade é
uma aluna toda envolta por trepadeiras. Ela está viva, vejo que está
respirando, mas está desmaiada. Há cortes por todo seu corpo
causados pelos espinhos, e seus pés estão descalços, mas ela
parece quase que em paz agora que está inconsciente.
Qual é mesmo o protocolo aqui?
Não estou mesmo com vontade nenhuma de morrer ou me
machucar para ajudar mais uma aluna que me detesta, mas se tiver
alguma chance desse negócio matá-la... será que sou de fato o tipo
de pessoa que apenas a abandonaria?
— Vivian, uma orientaçãozinha teria sido massa — murmuro para
mim mesma, em maior parte para não me sentir tão culpada pra
caramba por apenas ir embora porque, sejamos honestos, eu vou
cair fora dali.
Uma luz acende na parede.
É vermelha e está bem acima da garota, como se estivesse
chamando atenção para ela. Decido que é sinal suficiente de que
alguém está vindo buscá-la e começo a me mexer. Tiro o que
sobrou dos meus tênis e jogo de lado, encolhendo-me um pouco
com o frio do concreto sob meus pés descalços quando começo a
correr. Olhando para as outras paredes pelas quais passo, vejo
outras luzinhas vermelhas piscando, e meu coração enfim se
acalma. Deve ser normal, algo que acontece quando um aluno foi
eliminado da competição, e contando rápido as que consigo ver,
pelo menos dez pessoas estão fora. Sou capaz de enxergar só uma
pequena parte das paredes de onde estou, então torço para não ter
mais tanta gente aqui para me enfrentar.
Os gritos também silenciam um pouco quanto mais no fundo do
labirinto entro, estão menos frequentes agora, o que prova que tem
menos gente sendo torturada aqui. Preciso me agachar por trás de
um canto para evitar um trio de estudantes. Um deles é uma garota
com a palma da mão cheia de fogo, enquanto um dos caras mantém
um campo de força e os olhos do outro brilham. Todos parecem
exaustos e feridos, mas estão vivos e trabalhando em grupo, então
é óbvio que são minha chance de chegar ao centro e ganhar a
aprovação.
O cara com olhos brilhantes olhou na minha direção, mas não fez
nenhum comentário sobre ter me visto ou de ter notado qualquer
coisa fora do comum, então ou ele não me viu, ou não tem nenhum
interesse em me servir de comida pra vaca do lago como aquele
imbecil do Martinez.
Martinez de merda.
Vou socar a cara dele no segundo em que sair desse labirinto.
Quando o trio desaparece, volto a me levantar com cada
centímetro do meu corpo gritando em protesto, e então continuo
percorrendo o labirinto devagar, voltando para trás em cada canto
sem saída. É frustrante e lento, ainda mais agora que estou
descalça, e passo algumas vezes por algum aluno inconsciente ou
uma poça misteriosa de sangue que faz meu estômago revirar.
O verdadeiro terror começa quando encontro outra sala, dessa
vez com um enorme corpo d’água, e começo a me preocupar que
tenha me deparado com o infame lago, porque não estou certa de
que possa lutar com uma criatura marinha agora.
Só tem um jeito de sair, e é a passagem aberta na parede do
outro lado.
De jeito nenhum vou atravessar essa porra nadando, mesmo que
não tivesse sido alertada, porque a água fede e não estou a fim de
vomitar no trajeto todo. De um lado, há pedras e rochas, pelas quais
eu poderia atravessar escalando, mas meus braços de gelatina
odeiam essa opção, então caminho pela beira da água por um
segundo, como se pudesse fazer uma ponte firme aparecer com
nada além da força do meu desespero.
Não tenho essa sorte.
Escalar as pedras, então. As pequenas beliscam meus pés, e as
rochas maiores cedem um pouco sob o peso do meu corpo, o que é,
ao mesmo tempo, ofensivo e perturbador. Engatinho até o ponto
mais alto, em seguida passo um minuto respirando e tentando
recuperar um pouco da força dos braços. Agora vejo o resultado das
sessões de treinamento, porque a eu de seis meses atrás estaria
presa nas trepadeiras.
Desse ponto de vantagem, consigo ver a distância em que estou
do centro e, puta merda, está perto. Memorizo o caminho, e graças
a Deus escalei essa porcaria, porque há três cômodos que posso
evitar se fizer isso direito.
Não consigo ver Gabe, mas tem um leopardo-das-neves gigante
pra caramba em um dos cômodos lutando contra... ok, é tão nojento
que não quero nem falar, mas uma das salas está repleta de ratos e,
de repente, entendo a razão de todos aqueles gritos, porque não.
Não, prefiro enfrentar a silenciosa e ausente vadia do pântano do
que um milhão de ratos mortos nojentos, obrigada.
Estou aflita como se eu fosse apenas apagar e morrer, então
decido que é hora de dar o fora daqui e rezar para as paredes não
virem para cima de mim, pois, droga, preciso ter um pouco de sorte
uma vez!
No instante em que começo a descer pelo outro lado das pedras,
fico cara a cara com a vadia do lago e eu gostaria muito de apagá-la
da minha memória porque que puta pesadelo, como ela é
repugnante.
Acho que foi humana um dia. Sua pele é cinza e está
desgrudando do osso no crânio, seu cabelo já quase que
desapareceu, só restam pequenos tufos grudados em alguns
lugares. Vejo que seus dentes estão quebrados e têm pontas
afiadas quando ela me olha de boca aberta com aqueles olhos de
um branco leitoso, e sua mandíbula está balançando como se
estivesse tentando engolir o ar, e eu oficialmente nunca mais vou
dormir porque essa vaca com certeza vai me assombrar.
A mão dela fecha no meu tornozelo, a água suja do lago
pingando do pesadelo que é seu corpo direto na pele do meu pé, e
tudo que consigo pensar é que ela vai me passar algum parasita
comedor de carne.
Desligo a parte do meu cérebro que está surtando pra caralho e
volto a ligar meu modo sobrevivência, agarro as beiradas da pedra,
balanço minha perna livre até conseguir dar um bom chute nela e
atinjo seu ombro primeiro. Quando isso não a faz me soltar, arrisco
e chuto sua cara, seus dentes cortam meu calcanhar, mas, soltando
um grito gorgolejante, ela folga a mão o suficiente para eu conseguir
puxar meu pé.
Escorrego pela pedra, esfolando minhas coxas e cortando
minhas mãos, mas é aquele lance todo de tempos desesperadores.
Quando pouso no fundo, quebrando a bunda e arrancando meu
próprio ar, arrasto-me para longe o mais rápido que meu corpo
detonado me permite. Continuo engatinhando mesmo depois de
passar pela soleira e chegar em um corredor, enquanto os sons
gorgolejantes da vaca do lago ecoam pelas paredes de tijolos.
Vou desistir dessa maldita aula.
Viro duas esquinas engatinhando antes de enfim recolher meu
orgulho e me esforçar para ficar de pé. Meu nariz está escorrendo,
meus olhos ardem, e meu peito dói com cada inspiração, mas estou
viva.
Vou precisar de um curandeiro assim que sair daqui, e vou
quebrar North no meio se ele tentar me impedir de ter acesso a um.
Por sorte e benção, as paredes continuam no lugar e chego no
centro da porra do labirinto. Meu corpo colapsa no chão em uma
confusão ofegante e trêmula.
O filho da puta do centro desse labirinto estúpido, assassino e
idiota.
Nem tenho chance de sentir orgulho de mim mesma, de ficar feliz
por ter chegado aqui sozinha e sem usar meu dom nem uma vez,
porque vejo Zoey e Brenton entrarem correndo pela porta do outro
lado, olharem a bandeira por um segundo e depois notarem que
estou jogada aqui.
Zoey sorri quando anda até onde estou, o cropped dela está
colado em seu peito, ensopado com seja lá o que tiver enfrentado
no labirinto até agora, mas, em geral, parece estar um milhão de
vezes melhor do que eu. O que quer que ela tenha enfrentado, foi
Brenton quem aguentou a pior parte. Ele está tão destroçado quanto
eu, mas ainda de pé.
Meus olhos disparam para a bandeira a poucos metros de
distância, mas com meu clorofórmio em carne e osso presente, de
jeito nenhum vou conseguir pegá-la.
Odeio essa vagabunda.
Sinto o dom dela me dominar, seu veneno toca minha pele e flui
por minhas veias. Meu corpo já está tão acostumado nessa altura, já
que é uma ocorrência habitual das sextas-feiras, que não me
surpreendo quando o sangue começa a pingar do meu nariz e
enche minha boca em reação.
É revoltante pra caralho.
Cuspo nela, atingindo sua bochecha com meu sangue vermelho-
vivo, e o gritinho dela é a porra de uma música para meus ouvidos.
— Você é uma vagabunda completa e um dia vai se arrepender
dessa merda. Sou paciente, posso esperar.
Ela me dá um sorrisinho.
— Como se eu tivesse medo de uma rejeitada sem dons. Durma
bem, vadia.
E aí ela me nocauteia.
14

— NÃO ACREDITO QUE Zoey preferiu te nocautear a ganhar um


passe em TT. É a aula mais difícil em Draven, todo mundo sabe que
não se joga isso fora!
Dou uma bufada e aperto o gelo com mais força na minha
têmpora, mas não adianta, nada vai fazer o latejar passar.
Assim que acordei, ensanguentada e quebrada no chão da sala
principal do centro de treinamento, fui cambaleando até minha
mochila mandar uma mensagem para Sage cancelando nossos
planos para essa noite, porque não tenho como estudar e comer
pizza no chão da merda do meu quarto no estado em que estou
agora.
Assim que desligamos, ela veio correndo me ver, arrastando Félix
consigo porque ele é um curandeiro. Pelo visto, meus danos são
graves o suficiente para Sage se voluntariar para ligar para o cara.
Tentei pedir desculpas para ele, mas Félix encolheu um ombro e
começou a trabalhar nos muitos ferimentos do meu corpo. Há outros
curandeiros aqui, mas sou a que está em pior estado, obrigada pra
caralho, Vivian. Gabe está no lado mais distante de mim, segurando
um de seus amigos no chão enquanto um curandeiro restaura o
osso de sua perna, e ele só olhou na minha direção uma vez em
todo esse tempo. Não estou nem surpresa, nem decepcionada, é só
mais um ponto contra esse babaca.
— Ela é a porra de uma vadia louca e, Sage, vou literalmente
pagar qualquer coisa pra você se tacar fogo nela por mim. Sua
fiança, dinheiro pra fugir, vamos começar uma vida nova em algum
lugar bem longe daqui, onde Vivian nunca mais consiga me
encontrar e me forçar a entrar numa sala com a vaca do lago de
novo.
Sage me olha horrorizada por um momento e Félix faz uma
careta.
— Enfrentou ela, é? Ela é meio que uma lenda urbana por aqui.
Dou mais uma bufada, olhando para os outros alunos enquanto
ele restaura meu ombro, porque, ao que parece, eu o desloquei ao
desmaiar, quando todas as torções e esforços do dia por fim o
fizeram sair do lugar.
Quero morrer quando ele o recoloca no lugar.
— Coisa mais filha da puta, chupadora de pau, boceta, vou
sinceramente arrancar a pele daquela infeliz...
— Jesus Cristo, que boca mais suja pra uma coisinha tão
pequena.
Olho para Vivian, que agora está pairando sobre mim com uma
carranca, e olho feio de volta.
— Não somos mais amigos, rescindo minha oferta de causar um
monte de papelada pros professores que são seus inimigos.
Félix ri de mim, mas transforma o riso em uma tossida ao ver o
olhar severo no rosto de Vivian, enquanto o durão verifica o
resultado do seu trabalho.
— Ora, ora, você não vai conseguir ser aprovada em TT sem
enfrentar o pior que nossa espécie consegue fazer. Você foi bem,
menina. Se não tivesse tantos dos seus próprios inimigos, estaria
livre e tranquila para o resto do ano. — Ele parece um pouquinho
feliz demais a respeito disso, estou prestes a retrucar de novo
quando Félix se desloca para restaurar minha costela quebrada e
me encontro incapaz de pensar, respirar ou funcionar, muito menos
falar.
Sage para de olhar feio para todos ao nosso redor por um
segundo e acaricia minhas costas com movimentos lentos e
tranquilizantes, evitando tocar em todos os arranhões e cortes.
Tenho até alguns espinhos ainda enfiados ali nos quais não quero
pensar, porque tenho certeza de que vai ser delicioso pra caralho
quando eles saírem.
Vivian pigarreia e resmunga baixinho um pouco antes de, por fim,
dizer:
— Deveria estar orgulhosa de si mesma, você foi perfeita em
tudo que fez lá dentro. Metade dos outros não conseguiu passar
nem da primeira sala deles. Só um punhado foi capaz de sair da
segunda. E só um outro aluno conseguiu passar pelo lago na
primeira tentativa. Ela se alimenta de medo e você não deu quase
nada para ela.
Bem.
Tudo bem, acho que isso faz com que me sinta um pouco melhor
sim. A garota do lago parecia aterrorizante, mas não foi tão difícil
assim passar por ela, desde que eu não pense em quaisquer
doenças que estavam na sua boca e que agora estão no meu pé.
Eeca.
Vivian olha para os outros alunos ao redor, então abaixa um
pouco a voz:
— Trinta anos em uma Equipe Tática me ensinaram que seu dom
não diz bosta nenhuma sobre quem você é... e sim o que você
pretende fazer com ele. Veja Gryphon, com a trajetória profissional
dele você imaginaria que ele é um metamorfo ou que tem algum
outro dom físico, mas ele prova todos os dias que você não precisa
disso. Se a única coisa que você tem é coragem, menina, vai ficar
bem lá fora.
Porra, isso é legal e meigo demais para mim hoje, e agora me
sinto mal por ter xingado tanto o velho na minha cabeça enquanto
eu estava naquele inferno de labirinto dele.
Suspiro e aperto o gelo com mais firmeza na minha têmpora,
encolhendo-me quando Félix desenterra um dos espinhos das
minhas costas.
— Você não deveria me odiar por rejeitar seu aluno preferido?
Ele dá de ombros.
— As melhores coisa da vida exigem esforço. Se ele te quer,
deveria se provar para você. Conheci muitos jovens que não
prestam no meu tempo aqui, você não é um deles.
Então Vivian se vira e sai andando e gritando ordens para os
outros alunos ao nosso redor. Ele não é nem um pouco gentil com
nenhum deles, e isso faz eu me sentir melhor por um segundo
inteiro, até Gabe aparecer e se jogar no chão à minha frente. Ele
está sujo de terra e pó, mas fora isso, parece intacto, o que é
irritante, ainda mais quando Félix encontra outro espinho nas
minhas costas para arrancar.
— Até onde chegou? Ouvi falar que Zoey te sabotou e ela perdeu
a bandeira por causa disso.
Reviro meus olhos para ele.
— Não vem aqui esfregar na minha cara, não estou no clima e se
você já acha que sou uma cretina com você, não faz ideia do que
sou capaz logo depois de ter uma aprovação arrancada de mim.
Ele se endireita e pisca para mim, e seu exterior babaca se
dissolve em um instante.
— Você chegou na bandeira?
Digo, rangendo os dentes:
— Sim, idiota, fui a primeira a chegar lá e aí a sua namoradinha...
— Ela não é a porra da minha namorada. Você encontrou a
bandeira e Zoey a nocauteou lá? Você está de brincadeira, caralho?
Ah, claro, porque uma pirralha sem dom não poderia vencer
todos esses maravilhosos atletas Favorecidos. É claro que eu não
conseguiria controlar meus medos e continuar em frente, apesar da
dor, como os outros. É claro que não.
Então, dou sorrisinho sardônico e finjo indiferença, a imagem
perfeita de uma vadia presunçosa.
— Por que, era difícil? Para ser honesta, estou um pouco
desapontada com suas habilidades se você não conseguiu passar
sem ajuda.
Félix escarnece e olha para Sage por um instante, como se
estivesse avaliando a reação dela ao que ele acrescentou aqui.
Quando seus olhos enfim voltam para mim, ele me dá um sorriso
torto.
— Os ossos estão todos curados e os espinhos saíram. Se eu
puder colocar minha mão no seu peito, posso arrumar todos os
cortes e arranhões de uma vez... tudo bem por você?
As sobrancelhas de Gabe formam um vinco apertado e eu...
apenas explodo:
— Que foi, prefere que eu sare de forma lenta e dolorosa depois
de passar por duas salas e pela porra do labirinto inteiro sozinha?
Não dou a ele chance de responder. Em vez disso, puxo a gola
da camiseta para baixo e falo:
— Obrigada, Félix, sou muito grata por você me ajudar por
nenhum motivo além da nossa amizade.
Sage tosse como se agora fosse ela tentando disfarçar o riso, e
Félix ri, debochando da cara de Gabe ao colocar a palma da mão no
meu peito. Seu dom flui para dentro de mim e cura tudo em que
toca.
Sinto o momento em que encosta no meu próprio dom e desvia
dele de modo respeitoso.
Os olhos de Félix disparam para o meus.
Dou a ele o menor sinal de não com a cabeça que consigo e,
abençoado seja, ele franze os lábios com firmeza em uma resposta
silenciosa. Decido que vou ajudá-lo com Sage se algum dia ela
pedir minha opinião, porque esse homem aí é verdadeiramente
bom.
Assim que estou curada e Félix se afasta, meu corpo inteiro
desliga para uma boa soneca. Sage dá um gritinho quando me
segura, já que meu corpo se soltou em cima do dela, e a última
coisa em que penso é que tenho muita sorte de ter encontrado
amigos como ela e Félix, com suas mágicas mãos de ouro que
curam.
 
*
 
Acordo em minha caminha desconfortável no dormitório.
Ainda estou vestida nos trapos em que meu uniforme de TT se
transformou, mas um cobertor foi jogado sobre mim e um copo
d’água foi deixado no pequeno armário ao lado da cama. Engulo
tudo e olho as horas no celular, encontrando mensagens de Sage,
Atlas e North esperando por mim.
Gabe carregou você o caminho todo de volta para seu quarto.
Félix e eu viemos junto, e a ajeitei na cama, me ligue se precisar de
alguma coisa. Beijo
A mensagem de Sage é minha favorita e, embora Gabe ganhe
pontos por ter me carregado nos próprios braços até meu
dormitório, continua sendo um babaca.
Liguei para Draven quando você não atendeu nossa ligação
rotineira, vou fazer lhe entregarem uma coisa de manhã. Já disse
para seu carcereiro o que é, então provável que ele não vai ser tão
idiota a respeito.
Atlas começou a chamar North de tantos nomes depreciativos e
rudes quanto pode em nossas mensagens e ligações, agora que
sabe que estamos sendo monitorados. Fico um pouco surpresa por
ele ter ligado para North por algo tão pequeno quanto não atender
uma ligação, mas ele sempre me tratou como se eu fosse preciosa.
Ainda me sinto culpada pra caralho por isso.
Então, temos a mensagem de North.
Se estiver machucada demais para comparecer às aulas ou
estudar, vou mandar outro curandeiro. Não há desculpas para
reprovar em suas matérias.
Mando de imediato uma mensagem de volta para Sage e Atlas, e
deixo North sem resposta, porque por mim ele pode se engasgar
com um pau. Depois faço o trajeto lento e doloroso até o banheiro
para fazer xixi e lavar da minha pele os horrores do dia. Félix fez um
trabalho maravilhoso em me consertar, mas ainda resta uma dor nos
meus ossos e músculos que fazem com que respirar seja
excruciante pra caramba. Não que eu esteja reclamando, porque
isso é um milhão de vezes melhor do que me recuperar sem sua
ajuda, mas, cara, quero morrer no instante em que a água atinge
minha pele sensível como mil agulhas em brasa.
Chuveiros, em geral, são meu espaço seguro, a única
experiência agradável do meu dia, e ter isso sendo tirado de mim
me faz xingar Vivian de novo. Gosto do velho babaca, mas isso não
significa que não possa odiá-lo ao mesmo tempo por causa dessa
merda. Quando consigo me arrastar de volta até meu quarto, apago
no mesmo instante e durmo o resto do dia.
Acordo de tarde, desorientada e faminta.
Visto roupas, qualquer coisa confortável, e caminho até o
refeitório do campus sozinha para jantar cedo. Fico esperando ouvir
merda de alguém por parecer uma moradora de rua vestida em meu
moletom com o capuz cobrindo a cabeça, mas ou ninguém me
reconhece, ou estão todos com ressaca demais depois de uma
ótima noite de sexta-feira para notarem que estou aqui.
Como o suficiente para alimentar um time de futebol.
Ser curada por um curandeiro sempre dá fome, mas, puta merda,
depois de três pratos ainda estou pensando em pegar mais um
pãozinho para mergulhar no molho do espaguete, jogar queijo por
cima e... meu Deus, quando enfim me convenço a não pegar um
quinto prato, acho que meu estômago está correndo um risco real
de explodir.
Seria um ótimo jeito de morrer.
A caminhada de volta ao dormitório é mais lenta agora que estou
carregando dez quilos extras de carboidratos e molho não digeridos,
e um pacote está esperando por mim no balcão quando chego no
prédio.
Flores enviadas por Atlas, com um ursinho de pelúcia, um cartão
pedindo desculpas por ser brega... embora eu esteja chorando com
toda essa consideração, e uma caixa cheia de docinhos e
chocolates. De verdade, é a coisa mais legal que um cara já fez por
mim, e não faço ideia de como agradecê-lo sem sentir que estou lhe
dando falsas expectativas.
A culpa volta a rastejar pela minha espinha e preciso afastá-la de
novo porque... bem, tenho sido honesta com ele, o máximo que
posso. Disse-lhe que não quero ficar aqui. Que não posso ficar com
nenhum deles. Será que é o suficiente para eu aceitar esses
presentes sem me sentir a pior das vadias?
Sou inepta demais quando se trata de lidar com vínculos e com a
bagagem emocional que vêm com eles para conseguir lidar com
isso sem fazer estrago.
Volto para meu quarto e ataco os doces como se eu não tivesse
acabado de comer uma refeição enorme no refeitório, mas todas
minhas emoções abriram um buraco negro dentro de mim que
preciso preencher com açúcar. Envio um obrigada apressado para
Atlas, então desligo o celular, porque sou uma covarde e não sei
como falar com ele.
Estou seriamente considerando mandar uma mensagem para
Sage para reclamar da baboseira que é a minha vida, quando batem
à minha porta.
Quem diabos é agora?
Porque Sage avisaria antes e mais ninguém com quem tenho
amizade apareceria sem ela. Quando me aproximo da porta, meu
vínculo dá um puxãozinho no meu peito, e minha mão para a meio
caminho da maçaneta, porque não quero mesmo enfrentar North ou
Gabe agora.
Estou com dor demais para discutir com qualquer um deles, e
não quero que North pense que me derrotou só porque meu modo
pirralha costumeiro não está ligado em toda sua glória agora.
— Abra a porta, Oli.
Típico pra caralho.
É claro que seria Gryphon a aparecer aqui para estragar toda a
merda do meu dia, porque ele é o Vínculo que realmente consegue
me afetar. O frio em minha barriga me alerta do perigo, mas abro a
porta e o enfrento mesmo assim.
De todos eles, Gryphon é o mais difícil de encarar.
Acho que é porque ele ainda não me confrontou, não tentou me
derrubar com suas palavras ou me atacar, ele só fica em silêncio e
me observa, e a expressão em seu rosto sempre me diz muito sobre
o quanto não alcanço suas expectativas.
Seus olhos percorrem minha roupa e minhas bochechas coram
quando me lembro do fato de que pareço uma mendiga, então ele
avança na minha direção, tentando forçar caminho para dentro do
quarto.
Funciona, fujo dele como se seu toque fosse me queimar, e ele
fecha a porta com firmeza atrás de si. A fechadura é frágil e
Gryphon faz uma carranca para ela por um instante, depois a tranca
mesmo assim. Entendo o sentimento, não tenho certeza se
funcionaria para impedir qualquer um que fizesse algum esforço
para entrar.
— O curandeiro fez um serviço decente. Achei que, com certeza,
estaria de cama depois de ser mordida pela vaca do lago.
Faço uma cara feia para ele quando minha bunda pousa no
colchão cheio de caroços. Não há lugar nenhum para ele se sentar
além de ao meu lado na cama, e pode ser que eu morra se ele fizer
isso. Quando foi a última vez que lavei os lençóis?
E por que me importo com a opinião dele sobre meu quarto de
merda e a manchinha de molho no meu moletom? Porra, se
controla, Oleander.
— Ela não foi tão ruim assim.
Quando se recosta na porta, ele me encara cruzando os braços
sobre o peito e, de repente, noto como ele é musculoso. Soube
disso quando ele se colocou entre mim e Giovanna na festa de
Sage, mas o barulho que sua jaqueta de couro faz quando se estica
sobre seus bíceps nesse momento é quase obsceno.
O vínculo no meu peito é uma piranha carente.
— Ela se alimenta de medo. A maioria dos Favorecidos a
enfrenta cagando de medo porque ela se torna o pior pesadelo a
que já tiveram que sobreviver. Você não entregou nada para ela,
mesmo depois que lhe assustou. Essa não é uma reação normal.
Certo, então isso é um interrogatório.
É diferente dos comandos bruscos de North, ou das farpas
mordazes de Nox. Até mesmo as explosões ranzinzas e mal-
humoradas de Gabe estão a anos-luz de distância dessa conversa
calma e direta, e porra se isso não me desarma.
Preciso escolher minhas palavras com muito cuidado.
— Nunca aleguei ser normal.
Se ele não parar de me encarar, pode ser que eu tenha um
colapso e chore como um bebê. Será que esse é o dom dele?
Causar uma crise mental completa só olhando para alguém? Porque
posso confirmar que ele é bom pra caralho usando esse poder.
— Acho que você cometeu um erro e, em vez de assumir e
reparar, você o multiplicou por dois. Você deveria ter confiado em
nós... independentemente do que tenha acontecido naquele quarto
de hospital que a fez correr para longe, deveria ter escolhido correr
para nós.
O terror de pensar naquele dia, quando acordei naquele quarto
estéril, parece gelo correndo pelas minhas veias. Se eu estivesse
enfrentando a vaca do lago nesse momento, ela me comeria viva,
saboreando a refeição que essas lembranças seriam para ela.
Os olhos de Gryphon se estreitam em mim, a cor de jade claro
neles é atordoante e queima minha pele. Todo meu espírito
combativo abandona meu corpo de uma vez, a lástima, o ódio por
mim mesma e pelo inferno em que estou presa me esmagam até
fazer minha boca tagarelar. Eu diria qualquer coisa para fazê-lo sair
daqui antes de acabar perdendo a cabeça de vez.
Quase não consigo enxergar com as lágrimas marejando meus
olhos, mas as ignoro.
— Você ter essas opiniões significa que fiz a coisa certa, e não
me sinto mal por isso. Pode me odiar o quanto quiser, porque, pelo
menos, você está respirando, Gryphon. Por favor vá embora, ainda
estou exausta de ter sido curada e não consigo ter essa conversa
agora.
15

DORMI PELO RESTANTE do fim de semana, acordando a cada


duas horas para beber água e me arrastar até o banheiro, mas meu
corpo basicamente desligou para processar a cura que Félix
executou em mim. É irritante, mas meu cérebro passou a ser nada
além da necessidade de sobreviver, então, pelo menos, não preciso
pensar sobre a visitinha de Gryphon.
No instante em que Gabe chega à minha porta na segunda-feira,
posso sentir a diferença na energia entre nós.
Ainda estou pronta para odiá-lo e resmungar como se o mundo
estivesse acabando e a culpa seja toda dele, mas ele parece tão
miserável, meio que como um filhotinho infeliz de cachorro, e nem
eu sou tão cretina a ponto de chutar um cachorrinho triste.
Ele continua próximo a mim conforme atravessamos o campus
em direção ao refeitório, e seus olhos aguçados observam tudo em
nosso entorno, como se ele estivesse de fato me protegendo de
alguma coisa. Meus sentidos entram em alerta máximo também, e,
quando meu vínculo alcança o dele, tocando-o de leve em busca de
conforto, ele se assusta e me olha de cima. Entendo, mantenho meu
vínculo em uma coleira tão justa que ele nunca o tinha sentido
antes, e me xingo mentalmente por permitir que ele escapasse.
A voz dele está rouca e responde à pergunta que ainda não
encontrei minha própria voz para fazer:
— Mais três Vinculados foram levados ontem à noite de um dos
condomínios fechados a cerca de vinte minutos daqui. Meu primo
era um deles.
Porra.
Meu estômago despenca com tanta força que, se tivesse alguma
coisa dentro dele, talvez vomitaria em seus sapatos agora.
Eles estão chegando perto.
Tenho sido meticulosa a respeito de não deixar meu dom
escapar, nem mesmo um pequeno disparo de poder, então não sei
se é uma coincidência estarem se aproximando da minha
localização, ou se aquela pessoa encontrou um jeito de me rastrear
sem usar meu dom como farol.
Estou tão ocupada surtando pra caralho com as possibilidades,
que Gabe nos conduz para dentro do refeitório e enche um prato
com ovos para mim antes que eu consiga sair do pânico e recebê-
lo. É grosseria minha não oferecer minhas condolências para ele,
mas só Deus sabe o que vai sair se eu abrir minha boca agora.
Provável que eu vá surtar e implorar para ele me deixar ir
embora, para me permitir fugir para longe antes que estejamos
todos mortos e apodrecendo graças à Resistência e sua missão
interminável em busca da completa dominação.
Nós nos sentamos e comemos em silêncio, e o prato de Gabe já
está quase vazio quando ele enfim fala:
— Quando você desapareceu pela primeira vez... todos
pensamos que tivesse sido levada. Eles tinham muitas células
nessa área e, bom, eu era novo demais para saber os detalhes, mas
meus pais eram do Conselho, então ouvi o suficiente para temer por
você. Cada vez que ouvíamos sobre corpos aparecendo, achava
que seria você. Cada vez que havia alguma notícia de crianças
resgatadas com lavagem cerebral, porra, eu torcia para ser você,
para que pudéssemos lhe trazer pra casa e salvá-la, e durante todo
aquele tempo, você estava só por aí em alguma cidade, vivendo a
vida que queria.
É uma historinha triste, mas tem alguns errinhos muito cruciais. A
maioria eu não posso corrigir sem causar um maldito rebuliço, mas
uma coisa sou capaz de explicar:
— Você sabe que eu estava no hospital por causa de um
acidente de carro, certo? Minha família inteira morreu nele. Eu tinha
quatorze anos e fiquei completamente sozinha no mundo. Eu estava
aterrorizada. Não é como se eu tivesse saltitado em direção ao pôr
do sol para viver uma vidinha feliz sozinha. Talvez você devesse
tentar ver além da sua própria narrativa pelo menos uma vez, e
quem sabe as coisas entre nós melhorem um pouco.
Ele engole e olha ao redor do refeitório, mas tão cedo assim,
ainda é um espaço abandonado. Acho que é por isso que nós
gostamos tanto, nenhum dos dois precisa se preocupar com quem
está nos observando comer.
— North contou para minha família toda que você foi vista na
Flórida, trabalhando em uma loja de discos, sem nenhuma marca,
nem ligação com a Resistência. Ele deixou claro que todos os sinais
apontavam para você ter apenas... fugido. Como é que eu deveria
deixar isso pra lá?
Finjo indiferença.
— Imagine como você ficaria se sua família toda tivesse morrido
em um acidente de carro. Se tivessem sido arrancados de você
desse jeito.
Ele me encara, então afasta o próprio prato.
— Não preciso imaginar. Meu pai foi levado há dois anos e
encontramos o corpo dele mutilado uma semana depois. Minha mãe
abandou o Conselho no dia seguinte, mas não é como se ela de fato
tivesse retornado para casa. Já que está me pedindo para ver além
da minha narrativa, talvez devesse olhar além da sua também.
Fico sem respostas para isso, e tento me concentrar em terminar
meu café da manhã, mas os ovos estão com um gosto pior do que
costumam ter, agora que o cômodo está repleto de nosso luto.
Era muito mais fácil odiá-lo quando pensei que fosse só um
Vínculo babaca, irritado e ciumento, sem sua própria história.
Quando termino meu prato e pego minha mochila para irmos para
nossa primeira aula, Gabe me acompanha, seu sorriso tranquilo
está de volta em seu rosto quando cumprimenta os caras ao nosso
redor, com sua energia despreocupada habitual. Paro por um
segundo de ficar ranzinza a respeito do quanto odeio esse lugar e,
em vez disso, assisto tudo ao nosso redor. Todos os caras do
futebol amam Gabe, e as garotas com quem eles estão olham para
ele com corações nos olhos, e até mesmo os professores o
cumprimentam de forma acalorada.
Nenhum deles olha duas vezes na minha direção mais.
Sage nos encontra na porta da sala de economia, disparando os
olhos entre nós dois, mas não faz nenhum comentário. Quando
Gabe se senta ao meu lado, em vez de no seu lugar habitual a três
carteiras de distância, ela ergue as sobrancelhas para mim, mas
não diz nada.
Existe um motivo para ela ser minha melhor amiga.
Espero até a aula começar, e todos estarem concentrados em
suas anotações, para me debruçar na direção dele e sussurrar:
— Não quero completar o vínculo, mas vou parar de atacar se
você fizer o mesmo.
É a única bandeira branca que posso oferecer a ele agora, e
talvez até isso já seja uma má ideia.
Gabe suspira e não me responde até a aula acabar e ele estar
pairando sobre mim e Sage enquanto guardamos nossos materiais.
— Isso se chama “ser amigo”, Oli, e vou tentar se você tentar
também. Podemos resolver as merdas do vínculo depois.
Zombo dele e jogo a mochila por cima do ombro.
— Se isso for algum estratagema de “cara legal”, de fingir ser
meu amigo só pra me comer e conseguir seu vínculo, então vou dar
um soco no seu pinto agora mesmo e me afastar sem pensar duas
vezes.
Sage explode em gargalhadas e cobre a boca com a mão, o que
não tem o menor efeito em disfarçar o riso que sacode seu corpo.
Gabe faz uma cara feia para ela, mas é mais de exasperação.
— Fallows, a essa altura teria que me implorar pra eu comer
você. Vamos ser amigos com zero benefícios, exceto que vou
observar todos os seus movimentos e você vai continuar procurando
uma oportunidade de fugir da gente.
Encolho meu ombro para ele e então me junto a Sage enquanto
saímos da sala.
— Parece ótimo, mas a primeira regra do Clube dos Rejeitados é
que odiamos Giovanna e queremos assassiná-la. Se não puder
apoiar isso, então já está fora.
Ele balança a cabeça para mim quando Sage começa a protestar,
como sempre se colocando para baixo em comparação àquele
pesadelo de garota.
— Não queremos que ela morra, só queremos que ela me odeie
um pouco menos.
Debocho dela.
— Foda-se isso, eu quero que ela morra. Já aviso que ela é
minha quando o apocalipse chegar. Gabe pode acabar com Riley, e
você pode trepar com Félix, ele tem meu voto.
Viramos um canto e encontramos Félix parado ali, sorrindo como
um maldito demônio, e Sage fica da cor de uma beterraba no
mesmo instante.
— Sabia que correr para curar você agiria a meu favor. Valeu,
Fallows! — ele grita quando passamos, dando uma piscadela para
Sage, que está tentando não parecer que quer que o chão a engula
de uma vez.
Gabe gargalha comigo e é super estranho estar em sua presença
sem planejar sua morte. Sei que não vai durar, mas, por um
instante, é uma situação esquisita.
Sage enfia um cotovelo nas minhas costelas e murmura:
— Não está aberto à votação. Temos que nos apressar, estamos
prestes a nos atrasar para história e Nox vai começar uma
campanha de humilhação nova contra você, Oli.
Arg.
Alguém me mate.
 
*
 
Aprendo algo muito importante no instante em que Gabe se senta
comigo na aula de história, e esse algo é exatamente quanto poder
ele tem nessa faculdade. Assim que as pessoas nos veem
conversando em voz baixa um com o outro, uma transformação
imediata ocorre, como se o jeito como falam de mim, agora que ele
me “perdoou”, tivesse alterado.
Eles não precisam saber os detalhes mudarem de ideia e, de
repente, Zoey se encontra muito sozinha.
Sage percebe isso primeiro e aponta, murmurando para mim:
— Bem-feito pra essa vadia.
Concordo em todos os graus, e lanço um olhar questionador para
Gabe, ele é bem menos sútil a respeito:
— Ela quebrou as regras de Vivian. Você merecia a vitória e ele
já a expulsou da disciplina. Os pais dela estão furiosos, mas
Gryphon foi falar com eles. Você não pode fazer parte de uma
Equipe Tática se não é leal à sua equipe.
Caramba.
Nem me importo que não seja de fato por minha causa, e sim por
causa da falta de integridade dela, ainda me sinto vitoriosa. Se esse
foi o resultado, talvez ser interrogada não tenha sido tão ruim assim.
Meu bom humor dura mais dez segundos, depois Nox entra e
suga toda a porra das energias positivas. Ele está bonito hoje
também, gostoso como o diabo enquanto entra na sala de aula
como algum tipo de deus do Submundo que está aqui para
atormentar minha maldita alma.
Preciso dar o fora dessa cidade antes que meus hormônios me
forcem a ir direto para o inferno atrás dele.
Os olhos de Nox passam por onde Gabe está sentado comigo,
mas ele não reage, não demonstra nenhum sinal de estar surpreso
ou irritado de nos ver sentados juntos. Só liga seu notebook e fica
de pé na frente da sala, esperando a classe fazer silêncio, e sua
presença é tudo de que precisa para comandar a classe.
— Alguém me conte sobre o Sistema de Nivelamento.
Eu preferiria morrer a erguer a mão em qualquer das aulas de
Nox, mas há uma coleção inteira de garotas desesperadas para se
exibirem para ele, como se responder sua pergunta fosse o fazer
abaixar as calças e servir seu pinto para elas.
Meu vínculo se contorce dentro de mim ao pensar nisso, e me
torturo com a ideia por mais um segundo, como se talvez eu
pudesse convencê-lo de que Nox é um completo desperdício de
tempo, no que me diz respeito.
Ele escolhe Amy, cujo nome eu sei só porque Sage a despreza, e
até o som da voz dela já me incomoda.
— Quando os três Conselhos das comunidades Favorecidas se
juntaram para criar a rede centralizada de Vínculos, criaram um
sistema para categorizar os Favorecidos e suas habilidades. Os
Favorecidos mais fortes têm três níveis de poder, primário,
secundário e incidental. A maioria dos Favorecidos tem poderes
primários, alguns também têm um secundário, e muito poucos têm
um poder incidental.
Nox assente para ela e dá as costas sem dizer nada, em sua
constante estratégia de tratar todos com maldade que a classe toda
é obrigada a engolir. Ok, tenho certeza de que sou a única que
observa isso de forma obsessiva e odeia cada segundo, mas é
exatamente isso.
— Certo. Os exames de sangue e sequenciamento de DNA
podem nos dizer mais do que só quem são seus Vínculos, também
podem dar sinais de qual é o seu poder. Os exames então são feitos
dentro de parâmetros específicos para averiguar em qual Nível seu
dom está. Por que isso é feito?
Mais mãos se erguem, mas isso é algo que de fato me interessa,
então guardo minhas reflexões irônicas por um momento para poder
ouvir a explicação.
Não que eu ache que ele esteja sempre certo.
Sempre existe uma baboseira amenizada que contam para o
público em geral, e existe a verdade, e sobre assunto tenho certeza
de que eles mentem.
— Para se gabar. Todos querem saber quem é o maioral.
Não sei quem é essa garota, mas a blusa dela é tão decotada
que tenho certeza de que Nox está tendo uma vista ótima de seus
mamilos bem agora.
Não que ele esteja impressionado.
— Está chutando e está errada, não desperdice nosso tempo
aqui. Mais alguém?
Bem menos mãos se erguem agora, mas dessa vez Nox escolhe
Gabe para responder. Na verdade, nunca vi os dois interagirem fora
dos jantares de Vínculos idiotas ao qual estamos todos presos, e
não estou gostando de ter os olhos de Nox em mim enquanto
encara nós dois.
— Os membros das Equipes Táticas são selecionados entre os
que estão nos níveis mais altos dentre os Favorecidos. O Conselho
foi formado pelos mais fortes da nossa comunidade. Hoje em dia é
também um sistema de catalogação. Se a Resistência leva alguém,
precisamos saber qual sua força para quando forem devolvidos com
lavagem cerebral. Não há nada mais perigoso do que uma bomba-
relógio andando por aí com o rosto do seu vizinho.
Jesus Cristo.
Cheguei tão perto de ser um desses zumbis com o cérebro
alterado, devolvido para a comunidade com o único propósito de
encontrar outros Favorecidos de alto Nível e arrastá-los de volta
para a Resistência, matando qualquer um que tentasse me
impedir... é apavorante.
A caneta balança em minha mão quando meus dedos tremem.
Nox se vira e começa a ensinar, destacando tudo que Gabe
disse, porque meu Vínculo estava certo. Sage percebe meu
minicolapso e me olha preocupada, então segura minha mão de
forma gentil em um gesto de conforto, mas não há nada que
possamos fazer ou dizer no meio da aula. Não sem Nox perdendo a
cabeça comigo em outro espetáculo público pelo qual não tenho
nenhum interesse, então respiro fundo e aguento.
Enquanto faço anotações, minha mão sobe até minha nuca,
esfregando o pequeno caroço sob minha pele onde o GPS
assassino está enterrado, como um lembrete para mim mesma de
que não importa o quanto eu queria correr, não tenho essa opção.
16

MEUS ÚNICOS PLANOS para a semana de folga da primavera


eram estudar e explorar um pouco mais o campus, em uma tentativa
de encontrar emprego em algum lugar.
Se eu conseguir um pouco de dinheiro, então vou poder arriscar
ter meu cérebro estourado pelo chip. Nessa altura, estou quase
certa de que North não iria me matar de verdade, a não ser que eu
fizesse algo terrível ou me tornasse um risco para todos eles, mas
sem dinheiro, ainda não tenho como escapar daqui.
Não há ninguém nessa comunidade limitada que não saiba quem
sou e do fato de uma Equipe Tática ter me arrastado até aqui, então
não há nenhuma chance de eu conseguir carona para ir embora.
Preciso de dinheiro e que alguém arranque esse chip enfiado
debaixo da minha pele.
O café e a livraria do campus são empregos em potencial, mas,
quando deixo meu CV, ambos me recusam logo de cara. A livraria
eu entendo, porque é bem provável que North já os alertou sobre
isso, mas o café faz menos sentido, até que Sage aparece na minha
porta para me levar à sua casa e me conta que a dona e gerente é
irmã de Gryphon.
Eu nem fazia ideia de que ele tinha uma irmã.
A mulher que me atendeu parecia ter pelo menos noventa anos,
então, pelo menos, não passei vergonha na frente de um membro
da família dele, mas meu Deus, acho agora que nunca mais vou
mostrar a cara lá.
Sage ri do meu constrangimento e me entrega uma bebida assim
que entramos no quarto dela. Sawyer já está bebendo ali e, embora
eu não queira comparecer à festa a qual os dois estão indo, Gabe já
me mandou uma mensagem dizendo que North me deu autorização,
e não quero ter que falar com o babaca autoritário para explicar por
que eu preferiria ficar em casa.
Em grande parte, é porque a Sage agora está obcecada pela
ideia de Gabe e eu resolvermos nossos problemas. Está tão fixada
nisso que, assim que começa a beber em aquecimento para a festa,
é só nisso que consegue falar.
— Você vai acabar Vinculada a ele. De jeito nenhum vai ver Gabe
sem camisa na festa hoje à noite e não se sentar nele.
Eu me engasgo tão forte com a bebida que ela sobe pela droga
do meu nariz, queimando tudo, pois Sawyer não sabe como fazer
um coquetel que não apresente risco iminente de intoxicação
alcoólica, motivo pelo qual seus drinques são meus preferidos.
Quando consigo respirar de novo, olho com severidade para uma
Sage bêbada.
— Já vi, e embora não possa negar que ele é abençoado pra
caramba, não vou me sentar em ninguém tão cedo. Do jeito que as
coisas estão indo, homem nenhum vai limpar minhas teias de
aranha em tipo, um século ou dois.
Sawyer faz uma cara feia para mim sem olhar na minha direção,
mantendo todo seu foco no celular em frente ao rosto. Sage dá um
chute nele, já tropeçando por cima da linha que separa “levemente
alcoolizada” de “bêbada”, mas ela teve uma semana difícil.
Giovanna fez um post sobre o anel de Vinculados que Riley deu
para ela.
Anéis de Vínculo já são um lance importante em qualquer
ocasião, o mais perto que alguém na comunidade Favorecida chega
de um noivado, mas o verdadeiro problema aqui é que ele deu uma
herança de família para ela, uma que sempre disse a Sage que lhe
daria. Era da avó dele, foi contrabandeado para dentro do país
durante uma guerra e, ao que parece, é um lance importante pra
caralho.
Só mais uma droga de mágoa que ele causou nela, e agora ele
se juntou a Giovanna no alto da minha lista de gente para matar. Se
eles aparecerem na festa na piscina de hoje, vou causar um
escândalo.
Julgando pela expressão no rosto de Sawyer, é possível que ele
se junte a mim.
Não sei se é meu jeitinho encantador ou o fato de que ele foi
forçado a passar tempo comigo todos os dias durante nossas
sessões de estudo, mas acho que Sawyer enfim passou a gostar de
mim. Quer dizer, está claro que ainda não sou sua pessoa preferida,
mas ele não faz mais caretas quando me vê ou se encolhe quando
falo, então estou encarando isso como um sinal de que vamos nos
tornar melhores amigos nessa porra.
Meu segundo celular vibra no bolso, verifico enquanto dou outro
gole e o álcool queima minhas cavidades nasais.
Manda uma foto do que está vestindo esta noite, Vínculo.
Atlas também está bebendo, sei disso porque vai de meigo e
carinhoso para mandão e sexy em um instantinho. Não acredito que
acho isso atraente, considerando a forma como North me trata, mas
alguma coisa na habilidade dele de ignorar todas minhas tentativas
de manter distância entre nós me faz derreter um pouquinho.
Talvez eu também peça uma foto dele se eu ficar bêbada o
suficiente, mas vai ser com bem menos roupas.
— Se você e Atlas começarem a trocar mensagens safadas, vou
confiscar seu celular. Se estou amaldiçoada a ficar sozinha e sem
amor pra sempre, o mínimo que pode fazer é manter essa merda de
pombinhos apaixonados longe de mim. — Sage faz um beicinho e
eu zombo.
— Provável que ele só está com tesão, não tem nada a ver com
amor. Além disso, vou ficar sem meus Vínculos pra sempre, lembra?
Sem pintos pra mim. Nem mesmo com Gabe sendo o gostosão de
tanquinho dos meus sonhos.
— Jesus Cristo, porra, se vocês vão só encher a cara e chorar
por causa de garotos e da vida sexual patética de vocês, vou
abandonar as duas aqui — Sawyer reclama.
Sage ri dele, é um som ótimo de se ouvir mesmo que ela esteja
chapada, em seguida se debruça em minha direção e finge
sussurrar:
— Ninguém merece irmãos. Sawyer só está puto porque o
namorado dele não vai hoje e ele tem que ser nosso babá sem a
esperança de dar uns amassos depois que voltarmos.
Namorado, não Vínculo. É uma escolha de palavras sutil, mas
uma distinção clara em nosso mundo que faz toda a diferença. Com
quem quer que Sawyer esteja destinado a ficar, ele não os
encontrou ainda, e não está esperando sentado. Entendo, encontrei
meus próprios Vínculos em uma idade tão tenra, e isso acabou
prejudicando tomar minhas próprias decisões nessa área.
Sage também teve suas opções arrancadas dela.
— Quem é seu namorado? Alguém que conheço? Ele é gostoso?
Meu Deus, por favor me diga que você está transando com algum
gostoso pra eu poder viver indiretamente através de você.
Ele escarnece, mas dá alguns toques no celular e vira a tela para
me mostrar um jogador de hóquei muito gato, com covinhas e
bíceps mais grossos que minhas coxas.
— Puta merda! Sawyer, você é foda, caramba. Por favor, me diga
que o pinto dele é equivalente ao resto.
Sage grunhe e se joga na cama.
— Não faz ele começar a falar do pinto de Grey. Já ouvi muito a
respeito e isso só me lembra de como estou solitária e
desesperada... sem nenhum pinto. Nem flores, doces e ursinhos de
pelúcia.
Ai meu Deus.
Quando ela viu os presentes que ganhei de Atlas, pensei que
fosse se debulhar em lágrimas. Eu me senti culpada por meio
segundo, então ela declarou que Atlas era seu favorito e que
deveríamos levá-lo com a gente quando fugirmos. Se continuar
assim, vamos ter que arranjar uma droga de ônibus porque é óbvio
que Sawyer não vai deixar sua irmã ir a lugar nenhum sem ele, e eu
nunca permitiria que ele desse um pé na bunda do gatinho do Grey
só para vir junto.
Félix iria atrás de Sage, tenho certeza.
Não quero pensar sobre meus Vínculos ou sobre fugir, ou sobre a
quantidade de pintos que não estou pegando graças a toda essa
merda, então pego meu copo e o viro, acabando com o líquido
ardente em dois goles, então entrego o copo para Sawyer encher de
novo.
Ele o pega com um sorrisinho.
Essa noite vai ser uma confusão dos infernos.
 
*
 
Não estou errada.
Sawyer faz Sage e eu comermos alguma coisa e ficarmos um
pouco mais sóbrias antes de ele nos levar até a mansão dos
Halliwell para a festa na piscina. Mas, ao que parece, é a reunião
social do momento, então precisamos estacionar no outro quarteirão
e andar, já que há carros estacionados em fila por todas as ruas.
Mas a maioria dos condomínios fechados por aqui está cheia de
famílias Favorecidas, então ninguém acha estranho quando nos
aglomeramos. Quando o vento noturno atinge meu rosto, a euforia
do álcool já passou quase toda. Para minha surpresa, está morno
aqui fora, e minha boca fica bem seca. Preciso de outra bebida,
agora.
Eu teria pensado que a casa era luxuosa e maravilhosa há alguns
meses, mas depois de passar tanto tempo na casa de North, e
depois na de Sage, todo o espetáculo dessas mansões não tem
mais graça para mim. Eu não dou mesmo a mínima para quantas
bibliotecas com painéis de madeira ou mordomos uma casa tem.
O que me importa é saber se as pessoas que moram nelas são
filhas da puta ou não.
Sage surrupia umas duas garrafas de vinho enquanto
atravessamos a casa, e embora o vinho esteja com gosto de bunda,
é uma vitória. Nenhuma de nós quer estar aqui ou lidar com
qualquer uma dessas pessoas, então estamos em total acordo com
a ideia de beber até cair.
Decido logo de cara que a comunidade Favorecida é pequena
demais, porque, mais uma vez, há membros do Conselho por todos
os lados, o que significa que é muito provável que North esteja aqui,
espreitando em algum canto e bebendo álcool que não precisou
furtar, enquanto seduz todos os outros babacas condescendentes
presentes.
Sawyer tenta, de forma sorrateira, encontrar taças de vinho
quando passamos pela cozinha e sala de jantar, mas não estou
disposta a esperar por esse tipo de luxo e bebo direto da garrafa.
Sage e eu rimos como crianças quando encontramos uma despensa
no primeiro andar para nos escondermos até os membros do
Conselho saírem para o jardim.
Precisamos ficar tão bêbadas quanto possível antes disso.
Porque estamos em uma mansão tão luxuosa que chega a ser
obsceno, tem um sofá e uma mesa na despensa. Também há
banquetas empilhadas, e o wi-fi é tão bom aqui dentro que Sawyer
puxa um banco e mexe no celular enquanto Sage e eu entornamos
o vinho como se fôssemos profissionais.
Sage olha para o celular.
— Félix não vai conseguir vir, vai estudar com outros alunos de
pré-medicina.
Dou uma bufada zombeteira para ela, porque Sage não está
enganando ninguém com suas tentativas de mantê-lo afastado. Fico
orgulhosa de mim mesma quando minhas palavras saem sem
arrastar nem um pouquinho:
— Você definitivamente devia dar pra ele. Só uma vez, tenta, se
não for tão bom assim, vocês dois voltam pra essa amizade
constrangedora e cada um segue com sua vida.
Ela geme e toma mais um pouco do vinho. Seu celular vibra de
novo e ela volta a trocar mensagens com Félix, depositando todo
seu foco nisso porque está tão obcecada pelo cara quanto ele por
ela. A única coisa que de fato os mantém afastados é medo e os
danos que Riley causou a Sage. Acho que, com bastante paciência
e cutucões gentis, ela vai superar isso e ser muito mais feliz com o
atleta apaixonado.
Gabe nos encontra uma hora depois, grudadas uma na outra e
rindo juntas por cima dos nossos celulares. Ele dá uma olhada para
nós e revira os olhos.
— Puta merda, essa garrafa de vinho que você está virando aí
custa mil dólares, Vínculo.
Dou de ombros e a ofereço para ele.
— Tem gosto de água suja.
Ele balança a cabeça, pega a garrafa e escarnece quando vê que
já está vazia. Não tenho certeza se vou conseguir me levantar e
manter as pernas firmes debaixo de mim se ele insistir em sair para
socializar, mas, pelo menos, não estou me importando mais com...
bom, com nada.
— Vocês pelo menos trouxeram roupa de banho?
Sawyer suspira e revira os olhos para ele.
— Bem, elas não trouxeram boia de braço e vão se afogar se não
usarem uma no estado em que estão.
Decido que esse tipo de difamação com relação à minha
habilidade de resistir ao álcool é inaceitável e me forço a ficar de pé,
bem devagar para me certificar de que não vou cair de cara no chão
de madeira, e minha decisão de me mexer faz Sage grunhir.
— Já que fui forçada a me espremer dentro de um biquíni da
Sage e vir para essa festa idiota do círculo de otários do Conselho,
pode apostar seu traseiro que vou nadar.
Sawyer precisa ajudar Sage a sair da despensa, mas quando
Gabe me oferece um braço, eu recuso. Ele suspira irritado e eu,
com toda gentileza, guardo para mim mesma que eu poderia ter dito
para ele manter seu vínculo idiota bem longe de mim enquanto eu
não estou em minha capacidade máxima, porque meu próprio
vínculo ainda está tentando alcançá-lo dentro do meu peito. Se ele
encostar em mim, posso acabar trepando com ele no meio dessa
maldita festa só pra ter uma folga dessa... ânsia toda por ele.
Eca.
Parece errado sequer pensar assim, mas Deus, o sofrimento e a
tensão toda vez que fico perto de um dos meus Vínculos está me
deixando louca aos poucos. Talvez fazer uma trégua com Gabe não
tenha sido uma boa ideia, porque mal estou conseguindo manter o
controle.
Quando passamos pela cozinha de novo, Sawyer xinga baixinho
e muda de posição para cobrir uma Sage cambaleante. Eu me
sobressalto ao ver que Gabe está fazendo o mesmo por mim, seus
ombros de alguma forma dobram de largura e me escondem por
completo de... seja lá do que eles decidiram nos proteger.
Estou esperta o suficiente para ficar de boca fechada até
estarmos lá fora, mas Sage já passou desse ponto e Sawyer é
obrigado a cobrir a boca da irmã com a mão, abafando suas
ameaças e mandando ela ficar quieta.
Quando encontramos um lugar do lado de fora que não está todo
ocupado por corpos e álcool, Gabe murmura para mim:
— North e Sharpe estão se desentendendo por causa do
protocolo agora que a Resistência está chegando mais perto do
campus. Ele já deixou bem claro que não tem problemas nenhum
em ir atrás de você. Odeie North o quanto quiser, mas ele está
mantendo um monte de merda longe de você nesses últimos
tempos.
Caramba.
Não quero dever nada para aquele homem, mas nem eu posso
negar que ele está sendo de grande ajuda com essa merda.
Tiro meu vestido, dobro e o guardo com cuidado na bolsa de
Sage cuidado, porque meus peitos são um pouco maiores que os
dela e existe um risco verdadeiro de um mamilo escorregar para
fora esta noite. Quando volto a me levantar, encontro Gabe olhando
para mim como se eu tivesse ganhado uma cabeça extra e preciso
olhar para baixo e me certificar se já não estou mostrando minhas
joias para a merda da festa toda.
— Que foi? O que diabos você está olhando?
Ele grunhe para mim, balança a cabeça e murmura antes de
mergulhar de cabeça na piscina:
— Porra, odeio você.
Mas que porra eu fiz para ele agora?
Sawyer esbarra em mim quando se desloca para cobrir Sage,
que está tirando a roupa:
— Fala sério, Fallows, você não está tão bêbada assim. Pega
leve com o cara.
Estou perdida, completamente perdida pra caralho, mas nesse
momento Sage se aproxima e ri:
— Acho que ele precisou se acalmar um pouquinho. Talvez a
gente precise comprar um biquíni em que seus peitos incríveis
caibam melhor.
Debocho dos dois porque não pode ser isso. Tem pelo menos
outras dez garotas aqui com peitos mais bonitos que os meus e,
sem dúvida, Gabe já trepou com todas, os olhares que elas
disparam para ele dizem muito.
Temos um pouquinho de sorte porque Riley não está em lugar
nenhum que possamos ver, só que então vejo Giovanna
empoleirada em uma espreguiçadeira ao lado da piscina, usando
um biquininho minúsculo que faz o meu parecer gigantesco. Para
ser honesta, nem chega a ser um biquíni, ela está com algum tipo
de fio vermelho que mal cobre seus mamilos e vulva. Estamos nas
primeiras horas da noite, a iluminação externa e a fogueira já foram
acesas, então não é como se ela estivesse tentando se bronzear, e
minha intenção não é difamar a garota, mas é que só... não faz
sentido.
Sage a nota no segundo em que entramos na água, e sua alegria
despreocupada desaparece por completo, até ela estar de braços
cruzados, mais uma vez complexada.
Dane-se isso.
— Sawyer, precisamos de alguns coquetéis. De quem é o pinto
que precisamos chupar pra conseguir uns? Sinto que você deveria
fazer isso por nossa equipe, amigo.
Ele suspira para mim, fica claro que está em desacordo com
bebermos mais álcool, enquanto tira a camiseta e pula para se
juntar a nós. Uma tatuagem enorme, que eu não fazia ideia que o
pequeno nerd-da-computação-barra-jogador-universitário tinha, se
espalha por suas costas inteiras.
Estou impressionada. Não é à toa que ele conseguiu agarrar um
jogador de hóquei gostosinho.
Fico de olho no lugar em que Gabe está conversando com alguns
outros jogadores de futebol, rindo e fazendo piada com eles a
poucos metros de distância. Mesmo quando tentam convencê-lo a
participar de um torneio de beer pong ocorrendo o mais longe o
possível da baboseira do Conselho, ele recusa, acenando com a
cabeça na minha direção sem explicar mais nada.
Isso faz com que me sinta um fardo, e não tem nada que eu
odeie mais do que essa merda.
— Não entendo por que tenho que estar aqui — resmungo, e é
bem a porra de um resmungo mesmo, porque não entendo pra que
insistir em eu estar presente aqui se só vou ser um problema para
todos. Uma festa na piscina. Uma cheia de Favorecidos, Vínculos e
Vinculados, o Conselho, Riley, Giovanna, North e vai saber quem
mais?! Parece ser a receita de um desastre.
Sage encolhe os ombros para mim.
— Pelo que parece, é um rito de passagem. Não queria vir, mas
pelo jeito é para ser algo do qual vamos lembrar depois de anos e
ficarmos muito gratas por termos comparecido.
Posso dizer com toda certeza qual dos pais dela falou isso,
porque Maria é obcecada ao extremo por Sage ser “normal”. Ela já
estava dilacerada com a ideia de Riley ter rejeitado Sage, e o que
vai acontecer com o bom nome dos Benson agora que ela é minha
amiga.
É idiota demais e Sage merece coisa melhor.
— A gente devia ir encontrar a mesa de bebidas, com sorte vai
ter algo forte o suficiente lá pra deixar a gente felizinha de novo.
Sage morde o lábio e me dá um meio sorriso, mas está óbvio que
ver Giovanna aqui estragou sua noite. De repente, estou saturada
do quanto essa situação toda é uma merda, porque Sage não fez,
em absoluto, nada de errado. Nada.
Por mais que eu deteste admitir, pelos menos meus Vínculos têm
um motivo para me odiar, e mesmo que estejam me culpando por
algo que está fora do meu controle, não é como se eu pudesse
contar isso a eles.
A água se agita ao meu redor.
Ninguém mais percebe, graças a Deus, mas é um bom lembrete
de que preciso me controlar. Então paro de olhar para Giovanna e
de pensar em Gabe, e no fardo que sou para ele. Paro de pensar
em todas as coisas erradas nessa droga de festa idiota e me divirto.
Arrasto Sage e Sawyer para o ouro lado da piscina, onde há uma
cachoeira e um escorregador. Nós nos sentamos na beirada e
Sawyer consegue convencer alguns alunos do último ano a nos
trazerem umas cervejas. Sage ainda está em silêncio, mas um
pouco de sua melancolia se dissipa e conseguimos nos divertir de
verdade por um total de cinco malditos minutos.
Quando a multidão começa a se dirigir para as mesas de comida
que estão sendo postas pelos garçons, porque é claro que
contrataram um bufê para esta festa universitária, fazemos um
balanço de como estamos nos sentindo e decidimos que comida
não é uma boa ideia neste momento. Bom, a comida é uma ideia
ótima, mas tentar andar perto dela não é.
Gabe se oferece para pegar algo para mim, deixando sua “atitude
de merda” de lado por um momento, mas recuso e o observo se
erguer para fora da água e andar até as mesas, sem se dar ao
trabalho de pegar uma toalha ou se cobrir. Jesus, ele é mesmo
gostoso demais para descrever.
— Está babando. Tem certeza de que não pode só foder com
ele? — Sage sussurra, alto demais o meu gosto, e jogo água nela.
Sawyer revira os olhos para nós duas de onde está sentado na
beira da piscina.
— Não sem se vincular com ele e, pelo visto, isso está fora de
questão.
Concordo com a cabeça, colocando uma imagem de pura
seriedade no meu rosto:
— De jeito nenhum, nada de vincular.
Olho para Gabe e o vejo parado lá com North, conversando um
com o outro, então os dois se viram ao mesmo tempo e olham para
mim.
Caramba.
— Porra, sim, Grey acabou de voltar. Precisamos ir embora,
agora — Sawyer diz, levantando-se e oferecendo as mãos para a
irmã.
Ela ri quando tenta sair da piscina, e fracassa, e é preciso tanto
da ajuda do seu irmão como da minha para tirá-la. As cervejas me
deixaram animadinha de novo, mas não a ponto de perder o
controle.
— Preciso esperar Gabe, só para avisar que vocês vão me levar
pra casa em segurança... vocês vão me levar, né?
Sawyer debocha:
— É óbvio, não vamos deixar você aqui bêbada e vulnerável.
Rio dele, feliz por como as coisas se tornaram fáceis entre nós.
Ele nem se encolhe mais pela minha mera presença.
— Olha essas tetas! Rejeitada, agora entendo por que você é tão
popular.
O som da voz dele me faz congelar, e quando me viro, aham,
com certeza, é o merda do Martinez. Sage faz uma carranca para
ele, mas estendo um braço para impedi-la de fazer qualquer coisa a
respeito.
Só quero ir embora, a opinião de um covarde sobre minha
personalidade ou meu corpo significa menos do que nada para mim.
— Que porra você acabou de dizer para o meu Vínculo,
Martinez?
Eu me viro e me jogo por instinto no peitoral ofegante de Gabe.
Não é uma boa ideia, já que nós dois estamos quase pelados e meu
vínculo fica muito contentinho com toda esse contato pele a pele.
Mas ele mal me nota, a fúria que percorre seu corpo é mais do que
suficiente para desviar sua atenção.
É bem sexy, e preciso me lembrar de que isso não tem nada a
ver com ele estar me protegendo, e tudo a ver com sua própria
reputação.
— Bem quando achei que Gabe não conseguiria ser mais
patético, ele se arrasta atrás da garota que o descartou. Qual o
gosto da boceta da rejeitada, Ardern?
Gabe me contorna tão rápido que tudo que vejo é o borrão de
seu enorme corpo passando, então os dois estão no chão. Esbarro
em Sawyer quando nos jogamos na frente de Sage, o que é ridículo,
porque ela é a fodona que poderia atear fogo em todos nós se
quisesse.
Gritos estão vindo da casa principal, mas estou preocupada
demais fazendo Sage recuar para o cercado da piscina, em uma
tentativa de mantê-la longe da luta de metamorfos, para prestar
atenção. De um jeito estranho, sinto orgulho ao ver que Gabe está
dando um coro em Martinez, socando a cara dele como se pudesse
continuar fazendo isso o resto do dia.
Parece carma.
Sawyer resmunga e se prepara, em seguida entra na briga para
tirar Gabe de cima de Martinez, ele próprio desviando por pouco de
um soco no estômago. Gabe não resiste a ele, mas, quando os dois
se endireitam, seus olhos estão muito felinos, fogo contorna suas
íris, que ainda acompanham sua presa como se estivesse se
imaginando rasgando a pele de seus ossos e arrancando seus
dentes.
Isso não devia ser tão sexy assim.
— Que diabos está acontecendo aqui? O que você fez com meu
filho?
Olho ao redor e vejo que uma pequena multidão se formou na
área em que estávamos, murmurando e apontando vários celulares
em nossa direção. Gostaria de estar coberta por uma toalha, mas
esse é o menor dos nossos problemas agora que o pai de Martinez
chegou com uma expressão feroz no rosto.
Ele é mais baixo do que Gabe e está com um terno, talvez seja
do conselho ou trabalha para alguém que é. Parece muito com o
filho, e tem o mesmo ar de covarde babaca que me faz ranger os
dentes.
Gabe joga os ombros para trás e contrai a mandíbula, pelo visto
planejando apenas aguentar calado tudo que esse idiota disser, mas
isso não me parece nem um pouco certo.
— Você sempre teve um temperamento problemático, vou fazê-lo
ser expulso do time de futebol por essa...
Eu me intrometo, sem pensar em como isso pareceria ou em
quais dos conselheiros rivais de North estão ao nosso redor:
— Foi por minha causa. Gabe estava me defendendo.
Como se tivessem sido convocados pela minha admissão, a
multidão abre caminho e Gryphon e North aparecem. North está
segurando um prato de comida, o que meu cérebro apenas registra
e logo descarta, porque os rostos dos dois são máscaras idênticas
de tempestuosos machos Alfa furiosos.
Que ótimo.
Os olhos de North esquadrinham a cena toda, então ele diz:
— O que aconteceu, David?
Ninguém fala nada, então aproveito o momento para me
intrometer e me jogar aos leões. Gabe me defendeu, e não vou
deixá-lo sofrer as consequências disso. O futebol americano é sua
vida, já eu não tenho mais nada a perder.
— Martinez se transformou durante a aula de TT e me caçou
para me usar de isca para a... garota do lado. Ele começou a
tagarelar sobre isso e Gabe estava me defendendo.
Os olhos de Gryphon disparam entre nós dois, os nós dos dedos
de Gabe ainda estão sangrando onde se cortaram nos dentes do
outro jogador. Prendo a respiração, pronta para ele dar uma bronca
nos dois, mas então ele se vira para o outro homem e diz:
— Não pode culpar Gabe por defender o Vínculo dele... mesmo
que tenha se excedido.
Os olhos de David disparam de volta para mim e, quando
começam a brilhar, Gryphon se planta na minha frente. Suas mãos
estão relaxadas nas laterais de seu corpo, mas a tensão em seus
ombros me diz que ele está pronto para derrubar esse Favorecido
se ele tentar alguma coisa.
North me entrega o prato de comida e, quando avança na direção
de David, a multidão cai em um silêncio repentino. O medo que se
espalha por todos é tão palpável que quase me faz engasgar.
O que quer que ele possa fazer, faz todo mundo tremer de forma
louca.
— Leve-a para casa, Gabriel. Sage também, tire as duas daqui.
Ninguém ousa questioná-lo. Gabe também não parece
incomodado pela ordem ríspida, apenas pega uma toalha e a joga
sobre meus ombros enquanto Sawyer faz o mesmo com Sage, e os
dois nos apressam a sair. Minhas pernas estão estáveis por baixo
do meu corpo e, por incrível que pareça, as de Sage também.
Quando chegamos na casa, Gabe suspira forte e balança a
cabeça para mim, debruçando-se para murmurar:
— Você mente bem pra cacete, Vínculo. Só um profissional sabe
como passar por Gryphon assim, conseguiu convencer até North.
17

ESTEJA PRONTA ÀS 6.
A mensagem de Gabe me acorda às cinco da manhã e minha
cabeça ainda está doendo e que nojo, e não obrigada. Bebo um
pouco de água porque me recuso a acreditar que isso é ressaca, e
desidratação deve ser o verdadeiro culpado.
Depois de ontem, não consigo me obrigar a ficar brava por ele ter
me acordado, mas ainda não estou animada para encontrar com
Gabe tão cedo assim na porcaria da manhã sem um maldito motivo.
Ele me acompanhou até o quarto na noite anterior e me deixou
na minha porta em segurança, sem me julgar por gemer e
cambalear pela escada, então acho que estamos em um verdadeiro
acordo de paz, como se agora que eu me provei para ele, mentindo
a seu favor e o protegendo, ele vá dar uma chance verdadeira a
essa amizade e parar de descontar tudo em mim a cada segundo.
Eu me visto em roupas confortáveis, já que não tem nada aberto
no campus a não ser o refeitório nessa hora da manhã, então não é
como se eu precisasse impressionar alguém lá embaixo. Noto mais
uma vez o quanto minha camiseta está larga em mim, agora que
meus músculos estão bem mais tonificados, e eu de fato, mesmo,
preciso arrumar um jeito de arranjar uma renda para comprar umas
coisas novas.
Não consigo nem exibir meu trabalho árduo, droga.
Desço as escadas pisando forte, fazendo barulho suficiente para
acordar o prédio todo porque elas são todas umas vacas
fofoqueiras, de qualquer forma, então não estou nem aí se eu
arruinar a última chance delas de dormirem até tarde no feriado.
Chego na frente do prédio ao mesmo tempo em que Gabe, e pulo
direto para cima de sua moto quando ele me oferece o capacete
extra.
Já estou especialista em prender o capacete direto e subir na
moto atrás dele, então em um minuto já estamos voando pela rua
com o motor roncando. O sol da manhã já está brilhando no céu,
mas o vento fresco matinal ainda está pinicando a pele nua de
minhas mãos entrelaçadas na cintura dele. Quando enfim
estacionamos na frente do centro de TT, Gabe desliga o motor e
estende o braço para eu poder descer sem cair de bunda.
Não é o lugar que eu estava esperando, mas Gabe tem uma
chave para entrarmos e me conduz para dentro, acendendo luzes e
se enfiando dentro do vestiário masculino para pegar sua mochila.
Entro no vestiário feminino para fazer o mesmo, e o novo par de
tênis, que apareceu de forma mágico após o banho de sangue no
labirinto, ainda está de um branco reluzente, já que só usei uma vez.
Eu não sabia que a faculdade tinha um orçamento para substituir
itens danificados, mas suponho que haja um motivo para Draven
cobrar uma fortuna de mensalidade.
Gabe sorri quando me junto a ele, parecendo animadinho
demais, e resmungo:
— Você me tirou do quarto no raiar do dia, antes de acabar meu
toque de recolher, pra malhar? Como conseguiu contornar a
obsessão que North tem por me manter presa?
Meu tom de voz áspero e rouco faz Gabe sorrir ao colocar a
mochila no chão perto da parede e tirar a camiseta. Faço tudo em
meu poder para não assistir à contração de seus músculos
absurdos, mas sou só um ser humano e, caralho, ele é mesmo
gostoso demais para descrever.
Porra. Não, preciso parar de olhar antes que meu vínculo saia
para brincar.
— North não a matriculou em TT pra lhe torturar, não importa o
quanto você queira acreditar nisso. Vínculos estão sendo
sequestrados na rua pela Resistência todos os dias. Os que
ouvimos falar não são nem metade da quantidade real de casos.
Precisa saber como se defender, ainda mais considerando que você
não tem seu próprio dom para usar. Está indo bem em TT, mas
ainda nem cobrimos nada sobre defesa pessoal, e quando eu disse
para North que vou a ajudar a treinar, ele concordou que você
precisa de todo auxílio que puder.
Ai.
Quer dizer, é verdade, mas isso não significa que não doa ouvir
essas palavras saindo de sua boca. Ainda mais com ele ali sem
camiseta, procurando alguma coisa na mochila. Meu Deus, até suas
costas têm músculos definidos, como diabos você fica trincado
assim na nossa idade? Esse tipo de merda não leva tempo? Talvez
os genes de metamorfo ajudem e, meu Deus, estou gostando do
resultado.
— Você está babando — Gabe diz, com presunção pingando de
cada sílaba, e alguma coisa nesse momento me dá segurança de
flertar também, só um pouquinho.
Sei que não pareço nada com as garotas perfeitamente em forma
e com tudo empinado da classe, mas já demonstraram interesse por
mim o suficiente no passado para eu saber que não sou uma
mocreia completa. Quando solto minha mochila ao lado da dele e
tiro a camiseta, ficando apenas com o top de treino, transformo o ato
de me curvar para a frente, para procurar minha regata de treino na
mochila, em um espetáculo.
Ele solta um gemido e para de respirar.
Preciso engolir a alegria exultante que está subindo pela minha
garganta, e quando visto a regata pela cabeça, arqueio minhas
costas um pouco mais do que é necessário, fazendo meus peitos
parecerem mais empinados que o normal.
— Porra, isso é maldade pura. Estou aqui pra ajudá-la e foi você
quem decidiu que sexo está fora de questão — Gabe reclama, pega
sua garrafa de água e sai andando na direção de um equipamento
de musculação.
Dou risada, soando como uma idiota depravada, mas estou
cansada demais e convencida demais para importar com como me
pareço aos olhos dele neste momento.
— Eu jogo pra ganhar, você devia aprender essa lição agora
antes que seja tarde demais.
Ele encolhe os ombros e começa a preparar o equipamento para
mim.
— Você causou tanto dano que já estou imune, Fallows. Qual o
máximo que você consegue erguer no supino agora?
Droga.
Preciso ignorar a direta e forçar minha voz a continuar estável
quando digo:
— Dois quilos e meio.
Ele revira os olhos para mim, então me olha feio.
— Sei que está sendo insolente agora, mas se tivermos que
começar com dois e meio, isso vai levar uma eternidade. Você não
vai sair daqui nunca.
Bom, na verdade eu não estava brincando, mas não discuto
quando ele coloca dez quilos e acena com a cabeça para eu
começar. Não tenho pressa, em grande parte para irritá-lo, mas
também porque não tenho ideia se realmente vou conseguir fazer
isso.
Meia hora depois, decido que prefiro só... morrer.
Decido que vou deitar e morrer se a Resistência vier atrás de
mim, porque nada no mundo pode ser pior do que essa musculação
toda. Porra, e eu achava que os circuitos de treino de Vivian eram
ruins. Gabe, sem sombra de dúvida, o faria passar vergonha, e
começo a me arrepender de ter oferecido aquela bandeira branca
idiota para ele.
É assim que ele está me punindo por tê-los deixado.
— Não vou fazer mais nada. Se tentar me colocar em outro
aparelho, vou gritar de forma histérica e sair correndo daqui. Vou
procurar a polícia, os Desfavorecidos com certeza vão me ajudar a
escapar desse tipo de abuso.
Gabe revira os olhos para meu drama e, embora ele também
esteja suando por causa do exercício, sua voz sai estável e nem um
pouco ofegante como a minha.
— Pode reclamar para Gryphon mais tarde se está odiando, foi
ele quem montou o treino. Ele parecia achar que você aguentaria,
mas acho que posso ligar para ele e dizer que você desistiu.
Porra.
Que droga, ele descobriu o jeito exato de como me fazer cair que
nem a porra de um patinho, porque essa merda é que nem acenar
uma bandeira vermelha para um touro e no mesmo instante volto a
levantar pesos e torcer para morrer. Preciso de cada técnica de
distração que já aprendi para conseguir, mas aguento uma hora
inteira e meu corpo colapsa no tatame assim que ele murmura que
acabamos.
— Não vou carregá-la de volta para os dormitórios, então é
melhor você se recompor, Vínculo.
Eu o xingo, mas sai como uma confusão ininteligível de gemidos
e ofegos que só faz Gabe rir. Não há chances de que um dia eu vá
conseguir me mexer de novo, então só aceito que agora moro aqui,
nesse exato lugar do tatame. Preciso muito tirar essas roupas
nojentas e suadas, mas minha mochila está a pelo menos um metro
e meio de distância e quase choro ao pensar em alcançá-la sozinha.
Gabe escarnece do meu choramingo e traz a mochila para mim
enquanto se dirige ao vestiário masculino. Ouço o chuveiro ligando
e acho que tenho cerca de dez minutos para me erguer do chão.
Vou precisar de cada segundo.
 
*
 
Decido que ser amiga de Gabe pode acabar sendo uma
complicação que não vale a pena se ele vai insistir em me fazer
malhar todas as manhãs, mas quando enfim consigo sair do chão,
ele nos leva para o refeitório e comemos juntos em um silêncio
agradável que nenhum de nós quer interromper.
É um choque para mim a quantidade de alunos que conhecem e
amam Gabe, e passo metade do tempo em que comemos sendo
apresentada a alguém novo que parou para conversar sobre alguma
coisa de esportes com ele ao passar pela mesa. Sou educada, mas
não amigável porque, sendo sincera, meu círculo social já está
começando a ficar grande demais para o meu gosto. Eu estava feliz
só com Sage, mas agora tenho Sawyer, Félix, Gabe e, merda, Atlas,
cujas mensagens ainda são a primeira coisa que vejo quando
acordo e a última coisa que leio antes de adormecer todas as noites.
Não posso me dar ao luxo de ter todas essas pessoas sentindo
minha falta quando as abandonar.
Invento uma desculpa para Gabe sobre precisar terminar alguns
trabalhos e ele me acompanha de volta ao dormitório sem
questionar minha mudança de humor repentina. Quando estou no
meu quarto, mando mensagens para Sage e Atlas com a mesma
desculpa sobre estudar e depois passo o resto do dia fuçando no
meu celular e tentando não surtar por estar presa aqui com todas
essas pessoas de quem estou começando a... precisar. Porra,
necessito de todos eles. Preciso da amizade deles como nunca
necessitei de nada antes e isso me deixa bem ferrada.
À tarde, por fim me obrigo a abrir meus livros, então por volta da
meia-noite, quando parece que meus olhos já estão sangrando, eu
me arrasto para a cama.
Acordo às quatro da manhã com meu celular tocando.
Ignoro, porque que se foda qualquer um dos meus Vínculos que
esteja tentando estragar minha semana me acordando a essa hora.
Reviro na caminha de merda e cubro a cabeça com o travesseiro
quando o telefone começa a tocar de novo. Sei que é melhor não
ignorar, sei que eles não estariam fazendo isso só para me irritar, e
que com certeza tem algo importante acontecendo, mas depois de
treinar com Gabe ontem, fiquei absolutamente exausta.
Não é tão fácil ignorar as batidas à minha porta que começam
dez minutos depois.
Porra, pode ser que eu assassine quem quer que esteja aqui.
Disparo para fora da cama e abro a porta de uma vez, pronta
para derramar sangue, mas encontro Gabe parado ali, ofegante e
surtado. Esqueço minha fúria por ter sido acordada enquanto o
examino. Ele não está usando nada além de um short de basquete
e cada centímetro de sua pele dourada está brilhando sob a luz do
meu abajur porcaria.
Caramba, ele é magnífico.
Algumas portas se abrem no corredor e garotas mal-humoradas
colocam a cabeça para fora, e me encaram como se fosse minha
culpa Gabe ter aparecido aqui fazendo um escândalo no raiar da
merda do dia.
— Onde está seu celular? Por que diabos não atendeu? — Gabe
diz rouco, mas estou ocupada demais tentando reiniciar meu
cérebro quebrado para responder, todo meu atrevimento e
sarcasmo de costume desapareceram graças à aparência dele e,
quando passa por mim para entrar no meu quarto, noto seus pés
descalços. Meu cérebro pode não estar funcionando por completo,
mas compreendo uma coisa.
Ele mudou de forma e correu até aqui.
— O que aconteceu? Droga, Gabe, o que diabos está
acontecendo? — Fecho a porta e me recosto nela, tentando com
todas as forças não olhar para ele enquanto anda de um lado para o
outro, examinando tudo como se esperasse ter que nos defender
contra um maldito exército inteiro espreitando por trás da porcaria
do meu espelho rachado.
— Doze Favorecidos foram levados hoje à noite. Três deles
desse prédio, estavam voltando de uma festa e foram pegos do lado
de fora. North disse que seu GPS não tinha saído do lugar, mas...
eu precisava ver por mim mesmo.
Porra.
Porra. Isso está saindo de controle, se eles não me deixarem ir
embora logo vou acabar sendo pega, e isso vai ser o fim de tudo. O
medo me faz retrucar:
— Não preciso de uma porra de babá!
Ele volta a se virar para mim e rosna:
— Então atenda a porra do seu celular!
Estou mais aberta do que de costume, porque na verdade é bem
fofo pensar que ele correu o caminho todo até aqui só porque não
atendi meu celular, mas ainda estou tendo um surto a respeito de ter
amigos e Vínculos me segurando aqui.
— Você mesmo disse que North verificou o GPS, não tinha
motivo para correr aqui e acordar a droga do prédio todo!
Ele estreita os olhos para mim, então seu peito sobe e desce
enquanto ele respira fundo para se acalmar, o que talvez signifique
que ele está tentando encontrar um pouquinho de paciência para
lidar com minhas baboseiras.
— Você disse que éramos amigos... bom, é isso que amigos
fazem, Oli. Quando não atendeu seu celular, precisei ter certeza de
que não tinham levado você. Ser minha amiga é desse jeito, é pegar
ou largar.
Não tenho escolha a não ser pegar, porque estou cansada
demais para discutir com Gabe. Não posso mudar nossa situação, e
com certeza não posso baixar a guarda perto dele, mas toda a
disposição para brigar com ele que costumo ter, apenas
desapareceu.
— Ok. Está bem, certo, agora você sabe que estou viva e
prometo que vou atender a merda do celular da próxima vez. Vá pra
casa e me deixe dormir mais algumas horas.
Eu me jogo na cama, e nesse momento percebo que não estou
vestindo nada além de um short velho e regata, mas ou Gabe não
reparou, ou não fez comentários sobre o quanto me pareço com
uma mendiga, graças a Deus. Volto a me deitar sobre o travesseiro
horrível e tento ficar confortável, mas é impossível com ele parado
ali, observando-me como se eu fosse tão absurdamente
interessante aqui no meu quartinho de merda que não tem sequer
um objeto pessoal. Nem mesmo um lençol ou cobertor decente.
Olho feio para Gabe, o que ele ignora por completo ao se sentar
no chão, com as costas apoiadas na porta e os olhos brilhando um
pouco na escuridão, o único sinal de que ele está tendo dificuldades
de controlar seu dom no momento.
Porra, não quero mesmo brigar com ele, e digo com minha voz
esganiçada e exausta:
— Ainda estou cansada, Gabe, por favor, só me deixa dormir.
Ele dá de ombros e olha pela pequena janela suja.
— Não vou deixar você sozinha aqui enquanto a porra da
Resistência está sequestrando gente. Só vai dormir e de manhã vou
ao refeitório com você antes da aula.
Suspiro e puxo o cobertor até meu queixo, mas é bizarro demais
tentar dormir com ele sentado ali, então desisto antes de sequer
tentar.
— O que o Conselho está fazendo quanto a isso? Não vá me
dizer que estão sentados deixando as pessoas serem sequestradas.
Ouço Gabe soltar um longo suspiro, mas mantenho os olhos no
teto.
— Alguns deles querem fazer isso mesmo. São covardes demais
pra montar um plano e ir atrás deles, estão falando umas besteiras
sobre serem pessoas superiores e manterem a paz.
Dane-se isso, não tem essa de ser superior quando se trata
dessa gente. Vão pegar qualquer fraqueza ou demonstração de
moralidade e usá-la para te destruir.
Sei disso por experiência própria.
— E o que North acha disso? O que ele está fazendo pela
comunidade com todo aquele dinheiro e poder que tem? — Minha
voz está mordaz, Gabe não me responde por um minuto, e o quarto
cai em um silêncio carregado, repleto de todos nossos segredos.
Meu celular vibra embaixo do travesseiro e, sem pensar, eu o tiro
para ver a mensagem de Atlas.
Ouvi falar sobre os sequestros. Teve sete aqui durante a noite
também. Vou insistir por uma transferência, não vou ficar sentado
aqui e deixar você enfrentar essa merda sozinha.
Engulo em seco porque não quero que ele venha. Atlas é a
pequena alegria a qual me permito por causa da distância entre nós.
Se ele aparecer aqui, vou ter que afastá-lo assim como fiz com os
demais, e isso me deixa devastada neste momento.
— De quem é esse celular?
Porra.
Eu o enfio debaixo da coberta, mas não adianta esconder agora,
Gabe já viu e já percebeu que não é o modelo mais antigo de
iPhone que North me deu. Não, é o reluzente e novinho em folha
que Atlas me enviou. Está no plano dele, e me permito aceitar isso
porque ele é o único para quem já mandei mensagem por aqui.
— Oli, onde você arrumou isso?
Reviro os olhos, então dou as costas para ele, porque mais uma
vez ele está me provando que todos eles acham que são meus
donos e têm o direito de tirarem cada uma das minhas liberdades.
— Atlas o enviou para mim, agora corre para me entregar para
North como o bom cachorrinho que você é.
O silêncio se faz mais uma vez, então ele murmura baixinho:
— Porra, você é uma vaca, Fallows.
Mesmo assim, ele não se levanta, até que chega o momento em
que o sono me domina.
18

SOMOS MAIS UMA VEZ jogados nas aulas como se nada tivesse
acontecido e é estranho pra caralho.
Gabe finge que não discutimos sobre sua visita espontânea ao
meu quarto e sobre o celular, e começamos a passar todas as
manhãs no centro de treinamento nos exercitando e repassando a
rotina de exercícios de defesa pessoal de Gryphon. North não
aparece na minha porta para arrancar meu celular, então tenho que
presumir que Gabe ficou de boca fechada a respeito. Mais ninguém
parece preocupado com os sequestros, embora eu note a
segurança extra no campus, os guardas nos vigiando de forma
discreta enquanto nos locomovemos entre os blocos.
Sawyer fica colado do lado de Sage, e só a deixa para ir para
suas próprias aulas, e tenho certeza de que só faz isso porque sabe
que Gabe está nos acompanhando. Quanto mais olho pelos
corredores, mais percebo que as pessoas estão andando em
grupos, como se todos os Vinculados estivessem ficando juntos por
segurança, então talvez não estejam tão imperturbados quanto
parecem à primeira vista.
Na sexta-feira, Gabe e eu nos separamos de Sage e Sawyer e
nos dirigimos ao TT, e, mesmo com todos os treinos extras que
estamos encaixando antes das aulas, eu me vejo temerosa em
voltar lá com os outros alunos. Fico esperando que Vivian decida
nos levar de volta ao labirinto, e meu corpo ainda está sentindo as
dores da última vez.
Ele não faz isso.
Quando estou vestida em minhas roupas de ginástica e entro na
área de treinamento, encontro vários caras de Equipes Táticas
espalhados. Metade deles se vira para dar uma boa olhada em mim,
o que é bastante desanimador, em especial quando fica claro que
eu os conheço.
São os que me pegaram e me arrastaram de volta para cá.
Estou prestes a andar até um deles, o cara que me derrubou e
me segurou no chão da cafeteria em que eu trabalhava, e chutar as
bolas dele com tanta força que até seus malditos ancestrais sintam,
quando Vivian grita para começar a aula.
— Vamos voltar para o tatame e trabalhar técnicas de defesa
pessoal.
Espero o mesmo tipo de gemidos que o porão despertou de
todos, mas, em vez disso, uma animação quase que instantânea se
espalha. Todas as garotas começam a olhar umas para as outras, e
os caras a flexionar os músculos, como se essa fosse uma
oportunidade de impressionar.
Continuo no meu lugar de costume atrás do grupo, mas Gabe se
aproxima para ficar comigo e dois dos seus amigos do futebol se
juntam a nós, dando um aceno respeitoso de cabeça na minha
direção. Bato meu ombro de leve em Gabe, aponto para o cara da
Equipe Tática que quero assassinar a sangue frio, e pergunto:
— Qual o nome dele?
Ele franze o cenho e se inclina para murmurar baixo no meu
ouvido.
— Kieran Black. É o segundo em comando de Gryphon e tem um
temperamento difícil, então fique longe dele.
Concordo com a cabeça, mas acho que ele está se esquecendo
de que eu também tenho um temperamento difícil, e ele já foi
incendiado, está queimando dentro de mim e pronto para botar fogo
naquele filho da puta.
— Vamos ver quanto vocês todos já esqueceram, sim? Hanna,
Ty, vão para o tatame e repassem as posições, os ataques e
bloqueios que já treinamos.
Um dos amigos de futebol de Gabe avança, assim como uma das
garotas. Hanna não é uma fofoqueira ou uma das assanhadas, e
seus ombros são tão musculosos e definidos que acho que ela vai
esmagar qualquer um que a enfrente, porque ela sem dúvida é
fodona. É quase o suficiente para fazer me sentir bem intimidada.
Bem, é isso.
Porém o lance é que já tenho treinado essas posições, graças ao
tempo que passo com Gabe, mas não sou idiota a ponto de contar
isso para alguém. Fico só assistindo enquanto Hanna e Ty
repassam os movimentos, como se estivesse vendo algo novo.
Hanna é muito melhor do que eu, é claro, mas a movimentação
de pés de Ty é desleixada. Percebo ao mesmo tempo que Vivian,
cuja boca está curvando para baixo e, quando ele chuta o calcanhar
de Ty, o par vai pro chão em um montinho ofegante, grunhindo.
Abafo um risinho que me rende uma olhada feia de Kieran.
Gryphon não faz nenhuma tentativa de olhar em minha direção, o
que já sei que se deve à sua crença de que sou uma pirralha
desprezível, então isso dói um pouco.
Uma vez que voltam a ficar de pé, Vivian avança para o espaço
vazio e fala com sua voz retumbante:
— As regras são simples, vence o primeiro a colocar os ombros
do oponente no chão, e sob nenhuma circunstância vocês têm
autorização de usar seus dons.
Ah, perfeito, o tipo exato de competição que eu de fato tenho uma
chance de vencer, e considerando as posições e movimentos que
Gabe tem treinado comigo, estou bem confiante de que vou
derrotar... alguém. Mesmo que seja só a primeira pessoa que me
subestime, vai ser bom para minha autoconfiança e meu humor
depois desse show de merda que foi a semana que tivemos.
Talvez meus Vínculos me deem um tempo se souberem que
posso me defender mesmo sem um dom. Duvido, mas, ei, existe
uma esperança.
— Fallows, suba no tatame. Preciso ver o quanto você está
atrasada nisso para poder descobrir como diabos vou lhe nivelar.
Reviro os olhos para Vivian antes de sorrir para ele.
— Se continuar pegando no meu pé, as pessoas vão comentar,
velhote.
Todos os caras da Equipe Tática na minha frente ficam rígidos,
como se estivessem chocados por eu falar com seu amado
treinador desse jeito, mas Gryphon só balança a cabeça, ainda
mantendo os olhos em qualquer lugar, menos em mim.
Odeio tanto isso.
— Para com essa merda. Não vou deixar você de fora só porque
fala demais. Vai lá, derrube Hanna no tatame e vou ficar
impressionado o suficiente para não fazer você dar voltas correndo
por ser uma linguaruda.
Rio dele, embora comece a me aproximar.
— Se você acha que isso é ser linguaruda, ainda não me viu
dando o meu melhor, mas certo, me jogue no precipício para seu
próprio deleite doentio.
Gabe sorri, abaixando a cabeça para o tatame para que Vivian
não veja que ele está se divertindo comigo provocando o velho
treinador. Tenho a impressão de que ele não se safaria disso tão
bem quanto eu.
Hanna é muito musculosa e, quanto mais me aproximo dela, mais
hesito, pois não esperava que ela fosse tão sólida de perto. Ela não
sorri ou tenta me provocar, só espera eu tirar meus sapatos e subir.
Ficamos paradas ali, olhando uma para outra, até Vivian decidir
começar o combate:
— Vai.
O primeiro erro dela é ir direto para a ofensiva, disparando para
mim e atacando, mas, depois de uma semana com Gabe fazendo a
mesma coisa, estou preparada. Usar o impulso dela contra ela
mesma, jogá-la por cima do meu ombro e plantá-la no tatame é tão
fácil como respirar.
Gabe é no mínimo o dobro do tamanho dela, então sou um pouco
brusca, mas antes que eu possa soltá-la e pedir desculpa por ser
uma babaca, ela dispara seu dom contra mim e me manda voando
pela sala, jogando-me contra uma parede.
O gritinho que sai de mim é vergonhoso, mas não consigo
impedir meu choque por ela ter quebrado as regras só porque eu a
derrotei com muita eficiência.
— Jesus Cristo, será que a gente algum dia vai passar uma aula
sem algum de vocês machucar a Fallows? A menina vai precisar de
uma carteirinha do pronto-socorro desse jeito — Vivian resmunga,
mas me forço a ficar de pé e aceno com a mão para ele.
— Estou bem, não precisa ficar nervosinho pensando na
papelada.
Os alunos ao meu redor soltam uma risadinha nervosa, como se
achassem que que vão ser assassinados por estarem rindo comigo.
Esfrego a parte de trás da minha cabeça, mas não estava
fingindo, estou mesmo bem. Fico surpresa quando Hanna aparece
na minha frente franzindo a testa.
— Desculpa, não acredito que fiz isso! Não perco controle do
meu dom há anos. Não faço ideia de como isso aconteceu. Você
está bem? Precisa de ajuda pra ir até a enfermaria?
Ela parece bem sincera, e só gesticulo para ela deixar para lá.
— Não é a primeira parede em que me jogam, sem problemas.
Ela concorda com a cabeça, levanta-se e vira para encarar
Vivian, mas continua perto de mim como se estivesse esperando eu
desmaiar ou algo do tipo. Tento voltar a me concentrar na aula, mas
é como se a energia do lugar tivesse mudado e agora a tensão está
emanando de todos os lados. Olho ao redor, mas não há sinal de
onde isso está vindo, então forço minha atenção de volta aos
combates ocorrendo no tatame.
Sou obrigada a ficar sentada pelo restante da sessão, mas uma
competição árdua se inicia e é legal demais assistir. Rodada após
rodada, assistimos enquanto os grupos se tornam cada vez
menores. Sinto um tipo estranho de orgulho de Vínculo por Gabe
vencer todas as lutas, até ser o último de pé.
Vivian resmunga um “muito bom” para ele, mas Gabe se
empertiga como se tivesse recebido elogios intermináveis, e é bem
bizarro. Todos voltamos aos vestiários para trocar de roupa e Hanna
continua um pouquinho perto demais de mim o tempo todo. Começo
a achar que o pedido de desculpa dela foi só de fachada e ela está
prestes a me dar um soco enquanto estou de calcinha, mas quando
a porta do vestiário fecha, ela inspira fundo.
— Puta merda, sério mesmo, achei que estava prestes a ter
minha vida toda destruída pela Equipe Tática inteira do Shore por
ter jogado você longe. Juro, não tive intenção de fazer isso. Não
tenho ideia por que meu dom se descontrolou.
As palavras dela saem de uma vez e levo um segundo para me
lembrar que o sobrenome de Gryphon é Shore.
— Está tudo bem, é provável que só ficaram chocados por você
ter desrespeitado as regras de Vivian. Não estou ferida, não se
preocupe com isso.
Ela geme e tira as roupas para vestir seu jeans e camiseta. Eu
fico um pouco mais constrangida em me trocar na frente de todos,
mas é só por que metade das minhas roupas não me servem mais e
é vergonhoso não poder me vestir do jeito que eu quero.
— Todos nós sabemos o que aconteceu com Zoey, sei que não
devo perder o controle perto de você. Nunca mais vou deixar isso
acontecer.
Franzo o cenho para ela, mas Hanna ainda está resmungando
pra si mesma e preciso a interromper para dizer:
— Zoey perdeu a posição porque atacou alguém da sua equipe,
não teve nada a ver comigo. Fica de boa, Gryphon na verdade não
me suporta. Você vai ficar bem.
Ela para e me encara por um instante, então nega com a cabeça.
— Ele visitou a família dela pessoalmente. Eu estava na casa
dela terminando um trabalho que fizemos juntas, e foi a coisa mais
aterrorizante que já vi. Merdas pessoais à parte, você ainda é o
Vínculo dele, e Gryphon Shore não é alguém que você decide irritar
por simples capricho.
Hanna joga a mochila por cima do ombro e sai apressada, antes
que eu possa decifrar metade do que ela disse. Fico parada no
vestiário até ele esvaziar, agarrando meu moletom com as mãos,
enquanto questiono tudo que pensei que sabia sobre esses meus
Vínculos.
 
*
 
Quando Gabe e eu chegamos na mansão de North para nosso
jantar de Vínculos, ainda estou uma pilha retorcida e desordenada
de emoções. Não gosto de me sentir assim, não sei qual é minha
situação de verdade com qualquer um deles, e Gabe fica me
olhando como se eu estivesse prestes a me debulhar em lágrimas.
Quer dizer, ele não está tão equivocado, isso talvez aconteça.
Ele destranca a porta da frente como sempre, mas quando
entramos, somos logo interpelados por duas funcionárias da casa e
pelo motorista de North. Gabe não parece preocupado, mas me
sinto muito desconfortável porque já vi essas pessoas dúzias de
vezes e ainda não sei seus nomes. Eu me sinto uma elitista e otária
por não ter me apresentado para eles de forma adequada.
O motorista inclina a cabeça para mim em um gesto respeitoso e
gesticula para as funcionárias.
— Srta. Fallows, o conselheiro Draven vai comparecer a um
jantar na cidade esta noite e a senhorita vai se juntar a ele. Ele está
em um telefonema no momento, mas deixou instruções para que
esteja pronta daqui a uma hora, então precisamos agilizar.
Ah, porra não. Absolutamente não.
— Eu não...
— Srta. Fallows, precisa mesmo se apressar. O conselheiro
Draven não vai estar disponível para conversar com a senhorita por
algum tempo e temos muito a fazer.
Estou prestes a virar e correr gritando de volta para o campus,
mas Gabe planta uma das mãos nas minhas costas e me dá um
empurrão gentil na direção das funcionárias, impelindo-me para toda
essa farsa de noite.
Sou conduzida por um labirinto de casa até um quarto em algum
lugar do segundo andar e, assim que entro, há mulheres
“trabalhando” em mim, despindo-me e se esforçando para me
transformar na Vínculo bonita, obediente e calada que North quer
esta noite.
Entendo que a culpa não é da mulher que está me vestindo em
um deslumbrante vestido Dior, ou da tímida garota cuidando dos fios
em tom de lavanda do meu cabelo, então fico de boca fechada e as
deixo fazerem seu trabalho. Posso assassinar o traseiro pretensioso
de North quando ele rastejar para fora de qualquer que seja a rocha
em que está se escondendo.
Os funcionários são bons demais em saber como lidar comigo,
então, em vez de me conduzirem escada abaixo até onde North
está, eles me levam direto para a garagem em um elevador que eu
não sabia que existia e me depositam direto dentro de um dos Rolls-
Royce dele, trancando as portas para eu não conseguir escapar.
Preciso usar uma variedade de técnicas de meditação que
aprendi no decorrer dos anos para me acalmar, porque estou
prestes a esfaquear alguém. Não ajuda em nada eu estar perto de
menstruar e que todos esses hormônios extras estejam me
deixando tão sedenta por sangue que meu dom está me implorando
para sair para brincar.
Estou envolta de forma segura pela concha de uma atitude fria
quando North enfim chega e escorrega para o assento ao meu lado,
sem ao menos me cumprimentar ou pedir desculpas, e eu o ignoro
por completo.
Vou acabar com ele durante esse jantar.
Ficamos em um silêncio infernal e desconfortável no trajeto até a
cidade.
Faço o melhor que posso para não ficar mexendo no vestido,
mas nunca usei nada tão chique na vida. Uma parte de mim está
preocupada que eu pareça uma idiota, como uma criança brincando
de se fantasiar com as roupas da mãe, e North me ignorar dessa
forma não ajuda nem um pouquinho. Ele nem está com o celular na
mão como desculpa, está apenas olhando pela janela com uma
carranca como se fôssemos um casal de velhinhos que gosta de um
silêncio forçado mais do que tudo.
É só quando paramos em uma luz vermelha na frente do
restaurante que ele por fim fala comigo.
— Esse jantar é sobre mais do que você e sua atitude. Se você
se importa mesmo com a comunidade Favorecida tanto quanto diz,
vai se comportar o melhor que pode, seja lá o que isso signifique.
Odeio esse cara.
Odeio North e todas as suas manipulações. Cada parte dessa
experiência veio de ele ter me observado e aprendido a meu
respeito sem que eu notasse, só para então usar tudo isso contra
mim e conseguir exatamente o que quer.
Odeio não, desprezo.
O motorista para na área dos manobristas, e North o espera abrir
a porta para nós dois, ajeitando o Rolex em seu pulso e endireitando
os ombros como se estivesse se preparando para ir à guerra.
Eu me controlo e me preparo para fazer a coisa certa, posso
esperar até o fim da noite para arrancar seus olhos com as unhas
por ser o pior ser humano que já conheci, e estou incluindo a
escória que ele chama de irmão nessa avaliação.
North me ajuda a descer do carro, então me conduz para dentro
do restaurante e até uma mesa com a mão firme nas minhas costas.
A pele por baixo de sua mão está quente e formigando, e preciso
dizer para meu vínculo se acalmar nessa porra porque nós o
odiamos. Ele não gosta de mim, não me trouxe aqui como seu
amado Vínculo, sou só um peão em seu tabuleiro de xadrez.
Os outros membros do Conselho se levantam de suas cadeiras
quando nos aproximamos. Meus joelhos começam a tremer porque
isso é pressão demais para jogar em mim sem nenhum aviso ou
preparo. Ele apenas espera que eu saiba que porra fazer aqui e,
sendo honesta, é bem provável que vou ferrar tudo mesmo sem
querer.
Há pelo menos vinte pessoas presentes e todas elas sabem meu
nome, e me cumprimentam quando falam com North, e me sinto
uma idiota parada aqui com ele nesse vestido, maquiada, em cima
de salto alto e com essa droga de cabelo lavanda!
Todos me olham de cima a baixo, avaliando cada centímetro
meu, e isso faz com que eu me sinta uma leitoa premiada em uma
feira rural. Cada um deles quer registrar todos meus atributos, como
a extensão das minhas pernas, os tons azuis dos meus olhos, qual
é minha postura exata, e me dar uma nota de acordo. Posso dizer
quais deles decidiram que não estou à altura dos seus padrões e
aquela raiva violenta faísca dentro de mim de novo.
North puxa a cadeira para mim e eu murmuro um “obrigada” ao
me sentar com cuidado, alisando o vestido sobre minhas coxas em
uma tentativa de me acomodar.
Quase pulo para fora da minha própria pele quando North se
debruça e beija o topo da minha cabeça, como se eu fosse alguém
preciosa para ele, e preciso morder a língua. Isso tudo é uma
atuação, uma demonstração de união e controle para ninguém
questionar seu poder e integridade.
Mas sei muito bem quanta tortura consigo aguentar e não tem
ninguém nessa sala que possa arrancar essa verdade de mim. No
entanto, North é mesmo um político bom pra caramba.
Concordo com cada pedacinho de fofoca a respeito das políticas
e projetos dele que ouvi desde que fui arrastada até o campus
Draven, como a comunidade Favorecida fazer mais para ajudar os
Desfavorecidos, ou encontrar soluções melhores para a questão dos
Favorecidos órfãos, agora que a Resistência tem sequestrado e
matado tantos Favorecidos. Ele não quer ficar sentado assistindo as
pessoas sofrerem, ele é proativo quanto à segurança e sobre nivelar
a diferença de riqueza entre as famílias das classes mais altas e os
Favorecidos de áreas mais humildes.
Não tenho escolha aqui, a não ser bancar o Vínculo obediente.
Coloco um sorriso meigo no meu rosto e faço contato visual com
todas as pessoas à mesa. Quando North se senta ao meu lado,
coloco minha mão na dele por cima da mesa, onde todos podem
ver, porque se ele tem direito de fazer um show, também tenho.
North não reage, seus dedos apenas contraem de leve sob meu
toque, e tento não pensar a respeito da repulsa que meu Vínculo
sente com a sensação da minha pele na dele. Porra, como vou
suportar esse jantar inteiro sem ter uma droga de colapso ou
estourar com ele? É muito difícil, mas mantenho o sorriso colado no
meu rosto, mesmo quando meu próprio vínculo começa a se
lamentar dentro de mim.
— Então, tudo voltou a estar bem no seu mundo, Draven? — o
homem diz mais velho de aparência distinta na extremidade da
mesa. Ele é bem bonito, mas há alguma coisa de desconcertante no
sorriso em seu rosto.
Sua Vinculada é uma mulher magra de aparência desesperada,
sentada ao lado dele apontando um sorriso de escárnio na minha
direção. Ela nem mesmo tenta disfarçar o desdém que sente por
mim, e me vejo sentando mais empertigada e me colocando em
uma pose de luta, porque nada me deixa pronta para uma briga
como um olhar de repulsa.
— Oleander precisava de um tempo para se conhecer. Ela tem
uma tendência selvagem que nenhum de seus Vínculos queria
sufocar, embora estejamos felizes de tê-la conosco mais uma vez.
— A voz de North é suave e profunda, e ele gesticula para meu
cabelo como se a cor só provasse que sou muito com o que lidar, e
não uma garota de 19 anos com livre-arbítrio e meu próprio senso
de personalidade.
Sorrio e pisco de forma encantadora para ele como se tivesse me
elogiado e estivéssemos em perfeita sintonia, não temos nenhum
problema aqui, estamos absolutamente encantados de estarmos
presos um ao outro pelo resto de nossas vidas por causa desse
vínculo idiota.
Os dedos dele apertam os meus de novo, e não sei se é um
aviso para eu deixar para lá, ou se está mostrando surpresa pela
facilidade com que decidi concordar com essa besteira que está
forçando para cima de mim.
— Eu mesmo estou muito feliz em ver os dois juntos. North faz
muito pelo nosso povo para merecer ser abandonado por uma
criança indisciplinada — a mulher sentada diz à minha esquerda.
O olhar dela penetra no meu e dou o meu melhor para não
desviar os olhos, para não me acovardar diante dessa tentativa de
demonstração de poder. Ela está arrumada com perfeição, com o
cabelo preso em um penteado cuidadoso e um vestido cujo
caimento sobre o peito exibe seus seios através da renda verde-
esmeralda, fazendo dela a imagem da elegância. Ela está mexendo
o coquetel com seu dom, girando o dedo sobre a borda do copo em
uma tranquila exibição de poder que muitos dos membros do
Conselho à mesa observam com desconfiança.
O que me faz imaginar do que todos eles são capazes.
North ri baixinho e puxa minha mão para debaixo da mesa, de
modo que nossas mãos unidas repousam em cima de sua coxa. Os
olhos da mulher acompanham o movimento e a vejo se encolher. Ai
meu Deus. Ai meu Deus, porra, essa é uma de suas ex-namoradas,
que veio me provocar porque está irritada por eu ser o Vínculo dele.
Ela está sentada aí dizendo besteira para mim não porque deixei
meu Vínculo para trás, mas porque está irritada por eu ter voltado e
agora ela precisa competir comigo.
Bem, isso é uma piada, porque não quero nada com esse filho da
mãe insensível. Meu sorriso se transforma em uma exibição de
dentes.
— Estou ciente de como meu Vínculo é maravilhoso, obrigada.
Será que esse jantar já pode acabar, por favor?
Algo tão simples quanto descobrir que meu Vínculo esteve
mandando ver com uma das convidadas do jantar é o suficiente
para mudar meus planos de apresentar uma frente unida.
North consegue sentir a mudança no mesmo instante, e me
pergunto se é uma habilidade inata de ler as pessoas, ou se tem
algo a ver com qualquer que seja o dom que ele esconda sob seus
ternos perfeitos. Seus dedos apertam os meus de novo, e eu os
arranco de suas garras.
Se ele achava que eu era uma pirralha petulante antes, não faz
ideia do que esse jantar despertou em mim agora. Posso estar
disposta a contrair a mandíbula e me esforçar aqui pelo bem maior,
mas no segundo em que estivermos fora desse lugar, vou destruir
esse cuzão.
19

O JANTAR VAI DE MAL a pior muito rápido, mas consigo me manter


fora da confusão por completo. Não é uma tarefa fácil, ainda mais
com North insistindo em pedir todos meus pratos por mim como se
eu não fosse capaz de escolher nada sozinha. É tão ofensivo e
humilhante que preciso me convencer a não enfiar meu garfo na
garganta desse babaca.
O papillote de salmão está incrível, e odeio que ele o tenha
escolhido para mim, por que como diabos ele sabe que prefiro peixe
e frutos do mar a qualquer outra coisa se tiver opção?
Dois dos conselheiros passam o jantar todo discutindo com ele
naquele jeito educado de “clube do bolinha” que todos eles têm.
Fico de boca fechada e só falo quando se dirigem a mim, e dou
belos sorrisos para todos os garçons, já que ninguém mais aqui está
usando um pouco que seja de sua educação com eles.
Quando por fim voltamos para o carro, quero morrer.
Não só porque essa noite toda sugou minha vontade de viver,
mas também porque estou com uma cólica filha da puta e existe
uma boa chance de eu estar sangrando nesse vestido ridículo
inteiro neste exato momento. Peço para North parar o carro em uma
farmácia no caminho de volta e ele me ignora por completo,
ordenando o motorista a voltar para o dormitório e me deixando lá
sem dizer uma única palavra ou, sei lá, dizer obrigada porra por ter
lidado tão bem com essa noite.
Eu realmente o odeio pra caralho.
Tiro o vestido no instante em que chego no meu quarto e, é claro,
tem sangue por todo os lados. Eu me enrolo em uma toalha e ando
até o banheiro compartilhado, embora seja hora de pico e todas
estejam rindo do meu estado.
Não me importo com as opiniões delas, mas porra, um rosto
amigável seria legal agora. Faço o melhor que posso para ignorar as
garotas e toda a merda com que vou ter que lidar por causa disso e,
em vez disso, engatinho até minha pequena cama desconfortável. O
cobertor fino arranha minha pele que está bem sensível, mas estou
tremendo e preciso de toda ajuda que conseguir para regular minha
temperatura corporal.
A dor na minha barriga está tão forte que posso senti-la
irradiando para os dedos das minhas mãos e pés, nenhum
centímetro do meu corpo é poupado do sofrimento. Confiro rápido
no meu celular se há alguma farmácia perto o suficiente para
conseguir ir e voltar antes do meu toque de recolher, mas não tenho
sorte. Seria um trajeto de pelo menos meia hora a qualquer uma
delas nessa pequena cidade universitária.
Não acho que North consideraria esse um bom motivo para eu
violar meu toque de recolher, em especial considerando que ele
nem quis parar numa farmácia por mim. Tudo que eu receberia dele
é uma palestra sobre como mereço sentir um pouco de desconforto
depois do que fiz todos eles passarem.
Tento descansar, mas acordo o tempo todo, a dor me mantém
mais acordada do que adormecida, e não sei há quanto tempo isso
está acontecendo quando uma batida na minha porta me assusta.
Considero ignorar, porque levantar vai me custar muito. Fico deitada
tentando descobrir se eu sequer consigo me levantar, então ouço a
porta destrancar.
Quem diabos tem a chave do meu quarto?
A porta abre e Gryphon entra. Ele é o último dos meus Vínculos
que eu esperava ver aqui. Ele para e me olha de forma crítica,
examinando com seus olhos cada centímetro da minha figura
desgrenhada. Nunca estive tão ciente de como minha aparência
deve estar ruim. Ele fica em pé ali em seus jeans rasgados e
coturnos, com uma jaqueta de couro sobre os ombros e seu cabelo
caindo em ondas ao redor do queixo. Sua mandíbula continua
flexionada, como se ele estivesse rangendo os dentes, e parece
estar furioso.
— Vou precisar que você seja bem sincera aqui, Oleander. As
garotas lá embaixo estão dizendo que isso foi um aborto malfeito.
Conferi seu rastreador e sei que isso não é possível, a não ser que
tenha tido o banheiro todo para si mesma durante o almoço. Então,
o que está acontecendo?
Lágrimas quentes de ódio enchem meus olhos e penso em
arriscar a ira de North só para poder fugir dessa merda de lugar.
— E por acaso o que digo importa? Você não vai acreditar em
mim de qualquer forma.
Os olhos dele acompanham os rastros silenciosos que as
lágrimas deixam em minhas bochechas, e os seco depressa.
Maldito seja ele por me ver em uma situação tão ruim!
— Só me diga a verdade.
Reviro os olhos, embora até um movimento tão curto assim seja
doloroso.
— Bem, não é a porra de um aborto, nem um instantâneo. Eu
menstruei e estou com muita dor. É sempre desse jeito, mas
normalmente posso tomar remédio pra ajudar com a dor. Não tenho
cartão de crédito pra pedir por delivery, e todas as farmácias
ficavam longe demais pra estar de volta a tempo do meu toque de
recolher. Vou ter que aguentar a noite toda e me atrasar pra aula
amanhã pra comprar o maldito Buscofem.
Ele arregala os olhos, acho que não estava esperando esse tipo
de honestidade vindo de mim esta noite. Ou isso, ou ele não
acredita em mim e, para dizer a verdade, estou com tanta dor que
não me importo. Só quero que ele me deixe em paz até eu estar me
sentindo disposta a esse tipo de interrogatório.
Ele concorda devagar com a cabeça e em seguida apaga as
luzes, mergulhando o quarto em escuridão. Minha respiração fica
um pouco instável o que, de novo, causa dor pra caralho.
— Que porra você está fazendo?
Ele não me responde. Gryphon se aproxima da cama e ouço os
sons dele tirando as roupas. Juro por Deus que eu poderia rir da
cara dele. Acabei de dizer que estou em completa agonia e ele quer
completar o vínculo?
— Você precisa ir embora. Não posso dar o que você quer agora.
Ele bufa e sinto suas mãos me movendo na cama, de modo a me
deixar pendurada na borda, então ele se deita atrás de mim. Meu
coração dispara tanto que o sinto pulsar em minhas orelhas.
— Gryphon, que merda...
— Só cala a boca — retruca.
Ele me puxa contra seu peito, assim fico um pouco mais apoiada
em cima da cama, então uma de suas mãos espalma na minha
barriga nua por baixo do pijama. Sua palma está quente, mas se
torna escaldante quando seu poder flui através de sua pele para
dentro da minha.
A dor para.
Começo a chorar de novo.
Fico rígida em seus braços, em maior parte para impedir que os
soluços dominem meu corpo inteiro e permitam que ele saiba
exatamente quão patética eu sou. Ele não se incomoda, e começa a
me mexer, apenas pequenos ajustes até eu estar mais segura em
seus braços e nós dois estarmos envolvidos um no outro de modo
confortável.
Espero até achar que minha voz vai estar firme, e não
encharcada de lágrimas, para dizer rouca:
— Obrigada.
Ele descarta o agradecimento com um resmungo baixinho. Eu me
sinto a maior vaca de merda do mundo e é por isso, ou por causa da
sensação entorpecedora cálida de seu poder, que acrescento:
— Deixar vocês... foi a coisa mais difícil que já precisei fazer.
Essa dor não é nada comparada com aquela.
Seus braços me apertam até eu achar que não vou conseguir
respirar, mas isso só faz eu me sentir... mais segura.
Adormeço com mais facilidade e de modo mais profundo do que
havia feito em anos.
 
*
 
Acordo sozinha em minha cama.
Minha cólica voltou, mas está suportável, graças a Deus. Sinto-
me inchada, rabugenta e pronta para rasgar a cara das vadias que
me provocarem hoje. Eu me levanto e tomo banho, grata pela
benção do banheiro compartilhado estar vazio.
Mas rio um pouco imaginando a cara de North se ele descobrisse
que me meti em uma briga com algumas dessas garotas. Só posso
imaginar como isso seria terrivelmente vergonhoso para o grande
conselheiro. Então me lembro de seu total pouco caso ao me deixar
aqui na noite passada, e o sorriso escapa do meu rosto. O que eles
pensam não importa. Vou continuar dizendo isso para mim mesma
até ser verdade.
Eu me seco e volto para meu quarto para me vestir para o dia.
Minha meta é ficar confortável e gatinha, pois preciso de qualquer
pequena armadura que puder usar contra essas pessoas. Estou
passando a camiseta pela cabeça quando Gryphon destranca a
porta do meu quarto e entra direto. Ele não olha para mim ou repara
em meu estado de nudez ao segurar a porta e trancá-la atrás de si.
Consigo cobrir meu sutiã com a camiseta antes de seus olhos
enfim me alcançarem. Ele não mostra qualquer sinal de choque,
mas percorre sem pressa minhas pernas nuas com os olhos. Que
bom que escolhi uma calcinha bonita hoje, porque, em geral, prefiro
as confortáveis quando estou menstruada. A calcinha preta do tipo
biquíni é simples, mas sexy o suficiente.
Ele olha no meu rosto.
— Trouxe os comprimidos que você precisa. Também peguei
uma almofada térmica e umas porcarias para comer. Minha irmã
vive na base de doce quando está de TPM, então imaginei que você
fosse querer também — ele diz, oferecendo-me a sacola plástica.
Só fico ali olhando para ele por um segundo.
— Por que você faria isso?
Ele coloca a sacola na minha cama quando fica óbvio que não
vou pegá-la. Por fim me lembro de que não estou usando calça e
corro para pegar uma jeans na minha mala, abandonando meus
planos de usar legging agora que Gryphon está aqui, gostoso pra
caramba. Dou as costas para ele para enfiar minhas pernas na
calça e tento não fazer uma careta quando a puxo para cima. Por
que eles não podem fazer jeans bonitos que não esmaguem seu
útero como um maldito torniquete?
— Vou te fazer uma pergunta e quero que responda com
sinceridade.
Faço uma cara feia e olho de soslaio para ele.
— E por que responderia?
Ele bufa para mim.
— Te ajudei ontem à noite, não foi? É uma pergunta simples,
nada revelador demais.
Estreito meus olhos enquanto o analiso. Ele me ajudou mesmo,
mais do que imagina. Gryphon não aplacou só a dor que eu estava
sentindo, também estava começando a sentir que não conseguiria
continuar em frente, mas ele mudou isso com um único gesto de
gentileza. Acho que devo algo a ele.
Finjo indiferença.
— Vou responder o que puder. Não posso te prometer mais do
que isso.
Pego o Buscofem na sacola e o engulo sem água, e o
comprimido arranha um pouco minha garganta. Depois me sento na
cama para calçar meus sapatos. Não tenho muito tempo antes das
minhas aulas começarem e preciso comer alguma coisa antes,
senão vou ter que esperar até o almoço e isso soa como outra
forma de tortura. Não quero mesmo que nenhum dos irmãos Draven
venha me encher o saco hoje. É bem possível que eu dê um soco
na garganta de um deles e preciso manter o controle.
Está ficando cada vez mais difícil fazer isso.
— Você quis fugir da gente, ou foi forçada?
É uma pergunta abstrata, o suficiente para eu poder responder de
forma honesta sem ferrar de vez minha vida, então suspiro e abro
um sorriso irônico para ele.
— Vou responder, mas você não vai acreditar em mim de
qualquer forma. Eu não tive outra opção. Não posso dizer mais sem
colocar você e os outros Vínculos em risco e, apesar do que todos
vocês pensam, tudo que fiz foi para mantê-los em segurança.
Seus olhos queimam minha pele, mais quentes do que seu poder
em minha barriga ontem à noite.
— Me diga quem está te ameaçando.
Nego com a cabeça.
— Não posso. Não posso dizer pra ninguém.
Observo Gryphon ranger os dentes de novo, o que fica claro que
é algo que ele faz quando eu o tiro do sério. Mal passamos qualquer
tempo juntos e já sei isso a seu respeito.
— E se eu prometer não contar aos outros Vínculos, assim você
me diria? Podemos manter isso entre nós e eu lido com o problema.
Eu rio dele quando me levanto e penduro a mochila no ombro.
— Nox é seu melhor amigo, você assiste quieto todas as merdas
que ele faz durante aqueles jantares idiotas. De jeito nenhum você
não contaria pra ele. Mas não importa mesmo, não posso dizer.
O olhar feio no rosto dele fica mais sinistro e ele não sai do lugar
quando avanço em direção à porta. Vou ter que me esfregar no
corpo dele para passar, mas quando me mexo para fazer isso, o
braço dele dispara e me segura. O ar escapa dos meus pulmões.
Perto demais. Ele está perto demais e eu estou perto demais de
ter a porra de um colapso.
Ele olha nos meus olhos por segundo, depois tira um cartão de
crédito do bolso e coloca dentro do meu.
— Isso é seu. Vai usar para qualquer coisa que precisar de agora
em diante. Peça comida, remédio, uma merda de cama nova, não
ligo. Só use.
Puta merda.
Franzo o cenho para ele e tenho dificuldade em escolher as
palavras certas.
— Por que você faria isso? Não quero tirar nada de você. Se
conseguir convencer North a me deixar arrumar um emprego, posso
cuidar de mim mesma.
A mão que ele ainda mantém fechada em um dos meus braços
me aperta.
— Me diga que vai usá-lo se precisar.
Reviro os olhos por ele ter me ignorado.
— Está bem.
Solto meu braço do aperto dele e dou outro passo em direção à
porta, mas é claro que ele não tem nenhuma intenção de me deixar
ir. Gryphon me segura de novo e me vira até me prender com seu
corpo contra a porta. Um suspiro escapa pela minha garganta e ele
se inclina para baixo, seus olhos ainda estão quentes com aquele
seu calor intenso, e sussurra:
— Diga e fale sério. Não existe nada pior que mentirosos.
Engulo e sussurro:
— Vou usar se precisar, mas ainda quero meu próprio emprego.
Ele ergue uma de suas mãos e acaricia meu rosto.
— North nunca vai arriscar a perder de novo. Acho que ele nunca
vai a deixar arrumar um emprego, mas se pedir direto a ele, vou
ficar do seu lado.
Não consigo respirar com ele tão perto assim de mim, com as
linhas rígidas de seu peitoral coladas no meu, mas ele não faz
menção de se afastar, só continua me prendendo contra a porta. O
celular dele vibrando no bolso esmagado entre nós interrompe o
feitiço, e ele xinga baixinho enquanto se afasta.
— Pegue suas coisas, eu a deixo no refeitório.
Gryphon sai do quarto sem dizer mais nada e espera na porta
enquanto eu a tranco. O corredor está cheio de garotas, e todas
elas o olham como se ele fosse um pedaço de carne, mas ele as
ignora. Meu Vínculo anda devagar o suficiente para eu conseguir
acompanhar sem correr, não que eu fosse correr hoje, sentindo-me
inchada desse jeito, então percebo que ele sabe disso e fez esse
ajuste por mim.
Não sei como lidar com esse tipo de consideração.
Entro no carro dele de modo tão constrangedor como da primeira
vez. Envio uma mensagem para Gabe avisando onde estou e enfio
o celular de volta na mochila. Gryphon não diz nada e fazemos o
trajeto de três minutos de carro em silêncio.
Quando chegamos ao refeitório, pigarreio:
— Realmente agradeço...
— Vai tentar fugir de novo? — ele interrompe, esquadrinhando o
campus com os olhos como se esperasse que eu fosse arrancada
do meio-fio em plena luz do dia.
Franzo a testa e esfrego minha nuca, o pequeno caroço do chip
GPS ainda é bem fácil de encontrar. Ainda está dolorido, e eu o
aperto um pouquinho para sentir melhor a dor.
— Não.
Os olhos de Gryphon focam no meu gesto, e ele diz:
— Você fugiria se não pudéssemos lhe rastrear?
Ele consegue farejar minhas mentiras, então digo a verdade.
— Eu teria que fugir. É melhor assim.
Gryphon concorda devagar com a cabeça.
— Você podia me contar, sabe. Poderia mudar muita coisa para
você aqui.
Dou de ombros.
— Nós dois sabemos que não. Seu amiguinho já me disse que
nenhuma desculpa seria boa o suficiente pra ele aceitar. Estou
presa aqui, e por causa disso, merdas ruins vão acontecer. Estou
fazendo tudo que posso pra impedir, mas... é muito provável que
vão acontecer mesmo assim.
Ele batuca o volante com os dedos.
— O problema é que sei que você acredita nisso. Mas eu
também sei que, o que quer que seja, você devia ter nos procurado
em vez de fugir. Você devia ter confiado na gente.
Dou uma risada, sinistra e desesperadora pra caralho.
— Ah é? Eu tinha 14 anos. Você sabia que meus pais morreram
logo antes de eu ser testada? Sabia que eu perdi tudo e... essa
coisa aconteceu? Eu tinha acabado de descobrir que teria vínculos
e tudo ficaria bem. Eu tinha perdido eles, sabe? Eu tinha perdido
tudo.
Gryphon aperta o volante com tanta força que faz o couro ranger.
— Você queria seus Vínculos? Naquela época?
Pisco para afastar as lágrimas que sempre surgem quando penso
no passado.
— Mais do que tudo, era tudo que eu queria.
Ele faz que sim com a cabeça.
— E agora? Você quer seus Vínculos agora?
Alcanço a maçaneta da porta para escapar. Preciso dar o fora
desse carro antes que ele arranque outra verdade de mim, a única
que me corrói todas as vezes que me vejo presa perto de um deles.
— Oli, me responda. Você quer seus Vínculos ou não? — ele
rosna, apertando o botão para trancar o carro e me impedir de sair.
Volto a olhar para ele e lhe dou um olhar feio por fazer essa
merda comigo.
— Não faz sentido responder isso. Não posso ter esses Vínculos.
Vocês todos me odeiam, e sei que é perigoso demais tentar. É
melhor se eu ficar sozinha.
Saio do carro, mas ouço a voz dele antes que a porta feche atrás
de mim.
— Essa pode ser a sua verdade, mas não é a minha.
Preciso ficar bem longe de todos eles.
20

GABE QUESTIONA O PORQUÊ Gryphon me deu carona para o


campus, mas desconverso com facilidade, ainda estou irritada por
ele ter tido uma participação em me fazer ir àquele jantar de merda
do Conselho com North. Mas ele não percebe que estou puta e só
me segue como de costume.
É só quando estamos sentados com Sage e Sawyer no refeitório
na hora do almoço que ele escuta a narração do que de fato
aconteceu e percebe o quanto estou furiosa com ele por causa
disso.
— Só descobri sobre o jantar no mesmo instante em que você!
Como diabos é culpa minha se foi uma bosta? Se interagir com
garotas que seus Vínculos comeram é o suficiente pra estragar seu
dia, tenho a porra de uma notícia ruim pra lhe dar.
Dou um soco na costela dele, não que ele note, porque é feito de
músculo empilhado em músculo.
— Você me empurrou para os empregados dele e me deixou
sozinha! Quase morri, e depois tive que lidar com a completa bosta
que são as fofoqueiras do meu dormitório porque North não quis
parar numa merda de farmácia por mim.
Sage faz uma careta:
— Também ouvi os rumores. É óbvio que não acreditei neles, e
disse para Gracie que se ela ficar fofocando a respeito vou contar
para a mãe dela que ela está se arrastando atrás dos Vínculos de
outra pessoa.
Gabe franze a testa e olha entre nós duas.
— Que rumores? Não ouvi nada.
Sawyer debocha e enfim ergue os olhos do celular:
— É claro que não ouviu, elas estão falando merda sobre o
Vínculo com quem você acabou de fazer uma trégua. Acha que
Zoey e o grupinho de vadias estúpidas dela diria na sua cara que
estão acusando seu Vínculo de fazer um aborto em si mesma?
Sinto o controle de Gabe sobre seu dom falhar, e não é preciso
ser um gênio para entender que ele não está mentindo a respeito de
não ter ideia. Mantenho os olhos na minha comida, porque não
preciso que ele banque um herói de merda agora.
— É por isso que Gryphon lhe trouxe. Ele ouviu...
O interrompo:
— Sim e tive que o convencer de que não era verdade...
— Bem, é claro que não é verdade, porra! Quem disse isso? Qual
das amigas de Zoey? Porra, vou matar...
— Você não vai matar ninguém...
Sawyer interrompe:
— É melhor vocês dois não começarem a trepar em cima da
mesa aqui no refeitório, porque isso tudo está me parecendo umas
preliminares bem furiosas e, sério mesmo, só quero comer minha
pizza em paz.
Olho feio para ele, mas quase no mesmo instante preciso voltar
meu foco para Gabe, que está prestes a virar uma mesa por causa
disso. Acho que isso o atingiu um pouco perto demais do sofrimento
causado por seu Vínculo ter desaparecido, e agora ele quer
derramar o sangue de alguém.
— Só esquece isso. Sério, estou cagando pro que algumas
menininhas petulantes e ciumentas acham de mim. Contanto que
não me causem problemas com os Draven, não ligo.
Sage faz uma careta de novo, sem dúvida porque tanto North
como Nox a apavoram, e eu olho agradecida para ela. Estou grata
por ela estar aqui e me ouvindo reclamar sem me julgar por ser uma
rabugenta a respeito de tudo.
Gabe enfia o último pedaço de frango grelhado que estava em
seu pratinho triste na boca e diz:
— Gryphon vai esclarecer tudo com North. Nox talvez ainda
toque no assunto porque ele é... desse jeito.
Jogo a mochila sobre o ombro e me levanto, pronta para acabar
logo com esse dia.
— Que jeito bacana de dizer que ele é um completo filho da mãe
que vai falar sobre isso na mesa de jantar durante a porra dos
próximos cinquenta anos.
Passamos pelo dia e, embora Sage me convide para ir a sua
casa comer tacos e estudar, recuso porque meu estômago ainda
está uma confusão inchada e dolorida. Só quero ficar carrancuda no
meu quarto odiando minha vida em silêncio esta noite. Ela entende,
porque qual garota nunca passou por isso, e me deixa com um
abraço e a promessa de ver como estou amanhã.
Janto cedo e em seguida volto ao dormitório para tomar banho e
vestir alguma coisa confortável. Envio uma mensagem de Atlas,
uma bem geral, só para contar sobre meu dia e avisar que estou
bem, e então mergulho nos livros.
É um pouco após a meia-noite, e estou de cara nos meus livros
para fazer o último trabalho que Nox nos passou, quando minha
porta abre e Gryphon entra, com uma sacola pendurada na mão.
— Você nem vai tentar bater mais? — digo, minha voz está
cansada e minha mão treme um pouco enquanto faço minhas
anotações, porque estou tão exausta que chega a ser ridículo.
Deveria ter parado horas atrás, mas meu cérebro ainda não quer
parar.
— Achei que você estaria dormindo, não estudando. Achei que
faltasse meses para as provas.
Encolho os ombros e o observo tirando os sapatos. Não tenho a
menor droga de ideia do que está acontecendo agora.
— Abandonei o ensino médio, lembra? Não tenho escolha a não
ser passar todo meu tempo livre com o nariz nos livros.
Ele tira a jaqueta e a joga no gancho atrás da porta, cobrindo o
espelho rachado de merda. Assisto ele tirar o moletom também e
ficar parado ali, em seus jeans de cintura baixa e uma camiseta
preta macia, parecendo a personificação do sexo.
Merda.
— Está com fome? Trouxe um burrito, mas posso dividir.
Tem um doce literalmente pendurado na minha boca, então nego
com a cabeça para ele. Para ser sincera, ainda estou tentando fazer
meu cérebro exausto compreender o que está acontecendo neste
momento. Ele está aqui, no meu quarto, oferecendo dividir comida
comigo por motivo nenhum, até onde sei.
Parece uma armadilha.
— Pare de olhar assim para mim, Oli. Estou aqui para ter certeza
de que você está bem. Você chorou nos meus braços por horas
ontem à noite, mesmo depois que dormiu.
Ai meu Deus, que vergonha.
— Estou bem. Fica melhor com os remédios e você se certificou
de que eu tivesse um ótimo suprimento deles. Sério, vai pra casa e
esquece de mim.
Ele resmunga e senta a bunda no meu chão, da mesma forma
que Gabe fez há poucas semanas, e começa a comer. Volto a focar
nos meus livros e me perco na história dos exames de sangue, e
sobre como os marcadores genéticos dos Vínculos foram
descobertos.
A próxima coisa que percebo é que estou acordando com as
mãos de Gryphon me colocando de modo gentil na cama. Tento
murmurar um agradecimento, mas só sai um resmungo confuso. Ele
bufa e me puxa em seus braços, e aquela bendita mão mágica dele
escorrega sobre minha barriga.
Eu poderia ficar viciada nisso tão rápido.
Dessa vez, quando acordo, ele ainda está esparramado na cama
ao meu lado, vestindo nada além de uma cueca boxer preta. A
cama é pequena demais para eu rolar para o lado, então só fico
deitada ali, com medo de respirar porque poderia acordá-lo e eu
perderia este momento.
Viveria isso o tempo todo se pudesse completar meu Vínculo com
ele.
Eu me repreendo assim que penso isso, porque no mesmo
instante meu vínculo começa a se forçar na direção dele,
desesperado por Gryphon. Eu o puxo de volta de forma ríspida,
deixando minha frustração aparecer.
Uma batida abrupta na porta acorda Gryphon. Ele dispara para
fora da cama, entrando em estado de alerta de modo instantâneo, e
tira uma arma, que eu não fazia a menor ideia de que estava no
quarto, de dentro da bota à medida em que dá os dois passos até a
porta.
Meu cérebro ainda não entendeu o fato de que alguém está aqui
quando ele segura a maçaneta da porta e a abre, sem camiseta,
desgrenhado do sono e em toda sua glória matinal.
Sage e Sawyer olham para ele com expressões gêmeas de
choque.
Seria muito hilário se também não fosse vergonhoso pra caralho.
É impossível eu sair dessa sem que façam algum comentário que
vai me fazer querer morrer, porque só de olhar para Gryphon, os
dois são obrigados a presumir que passamos a noite toda trepando
como coelhos.
— Bem, com a porra da licença! Sage, precisamos ir. Agora. Se
mexa.
Gemo quando Gryphon o encara de cima, enfim abaixa a arma e
se afasta para deixá-los entrar, só que Sage está cimentada no chão
em choque. Saio da cama e me apresso para tentar explicar a eles
que isso definitivamente não é o que parece.
Ouço Gryphon se movimentando atrás de mim, então presumo
que ele está se vestindo, graças a Deus, mas assim que abro minha
boca, Sawyer interrompe:
— Precisamos trocar nossas histórias de pintos porque existem
muitos rumores sobre ele e preciso saber quais são verdadeiros.
Sage dá uma cotovelada na barriga dele com tanta força que
Sawyer chega a gemer, e eu sorrio para ela.
— Desculpa, esqueci de programar o despertador. Vou levar um
minuto pra vestir umas roupas e podemos pegar comida no
caminho, certo? Vou explicar...
Gryphon me tira do caminho, ele está com suas chaves nas mãos
e olha com uma cara feia para o corredor repleto de garotas que
estão encarando de boca aberta.
— O que tem para explicar? Você é meu Vínculo.
Em seguida, ele sai andando como se não tivesse acabado de
confirmar de forma bem casual para as garotas daqui que ele me
comeu até dizer chega na noite passada, e eu quero morrer. Não
que haja algo de errado com a gente ficar, mas tenho sido tão
irredutível quanto a meu ódio por eles, que parece que eu, de
repente, abri as pernas para Gryphon só porque ele pediu.
Suspiro e faço os irmãos entrarem, gemendo enquanto fecho a
porta atrás deles.
Sage fica parada ali constrangida, como se estivesse tentando
não tocar em nada, mas Sawyer se joga na minha cama.
— Caramba, achei mesmo que você finalmente tinha ido pra
cama com um deles. De algum modo, estou decepcionado.
Começo a vestir minhas roupas depressa, e fico um pouco
quentinha por dentro quando vejo que Gryphon deixou o moletom
para trás.
— Desculpa, ele só estava aqui pra aliviar minha dor. Não achei
que vocês fossem acreditar em mim. Estou surpresa por sua
confiança, Sawyer.
Ele revira os olhos para mim e segura o lençol.
— Não tem cheiro de sexo. Conheço o cheiro de uma boa
trepada quando o sinto.
Isso é, de uma maneira bem estranha, nojento e, quando enfim
penduro a mochila nas costas, vejo Sage olhando preocupada para
mim.
— Tem certeza de que está bem? Será que devia ir para as aulas
se está com tanta dor?
Estou bem agora, e de jeito nenhum vou ligar para North e pedir
para faltar por causa da dor.
— Vamos só esquecer que isso aconteceu. Gryphon ainda me
odeia, só é um ser humano decente. Ele não vai voltar aqui tão
cedo.
 
*
 
Depois de uma semana, já tinha quase esquecido qual era a
sensação da minha cama sem Gryphon em cima dela. Ele passou a
ser muito mais discreto sobre suas estadias, sempre chega depois
que caí no sono e vai embora antes que eu acorde pela manhã, mas
sempre há pequenos sinais de que ele esteve aqui.
Eu me levanto e tento ignorar o fato de que minha cama está
vazia de novo. Gostaria que ele ficasse para acordar comigo, nem
que fosse só uma vez, mas também sei como isso é perigoso,
porque ele está acabando com minha determinação de manter
todos meus Vínculos a um braço de distância. Não posso me dar ao
luxo de deixar isso acontecer, não importa a forma desesperada
com que os desejo.
O banheiro compartilhado está cheio de garotas e preciso cerrar
os dentes para ignorar todos os olhares e sussurros. Era de se
esperar que elas encontrariam algo melhor para fazer do que fofocar
sobre mim e meus Vínculos babacas, mas não, não tem nada que
elas amem mais do que falar sobre como todos eles são ótimos de
cama enquanto esfrego meu corpo como se estivesse tentando
limpar o próprio diabo da minha pele. Só uma vez eu gostaria de me
lavar sem ouvir que a língua de Nox é maravilhosa ou que o pinto do
Gryphon é enorme. Só uma porra de vez!
Os comentários sobre Gryphon estão doendo um pouco mais nos
últimos dias.
Quando volto para meu quarto, estou tão furiosa sobre o quanto
todas as meninas desse maldito prédio são absurdamente grossas,
que não me dou ao trabalho de olhar a habitual mensagem de bom
dia de Atlas no meu celular. Apenas enfio as pernas em uma legging
e um moletom pela cabeça, apenas com o sutiã por baixo. O
moletom é um dos de Gryphon, o que ele usou aqui na noite
passada, e digo para mim mesma que só estou usando isso porque
está frio, e não porque estou viciada no cheiro dele. Se Gabe
respingar alguma coisa em mim no almoço e me forçar a lavá-lo,
vou... dar uma facada nele, caramba, ou algo do tipo. Droga, vou
pedir para Sage atear fogo na bunda dele.
Mas não vou dizer para ela sobre o motivo de ter ficado irritada.
Enquanto estou rindo sozinha sobre atear fogo em um dos meus
Vínculos, alguém bate à minha porta e rolo meus olhos, esperando
que seja Gryphon voltando para pegar seu moletom de volta ou
reclamar de alguma coisa, então abro a porta com uma carranca e
fogo na alma, pronta para descarregar todo meu péssimo humor
nele. Em vez disso, eu me vejo ficando completamente sem ar.
A foto que Atlas me mandou de si mesmo não lhe fez justiça
nenhuma.
Fico parada ali, perplexa, admirando-o. Alto, moreno e lindo. Eu
me certifico de que não estou babando com a bendita vista dele
pairando sobre mim. Atlas preenche todo o espaço da porta, seus
ombros são largos e definidos por baixo da camiseta justa que está
usando. Caramba! Os braços dele são cobertos por tatuagens, que
sobem até seu pescoço e se aninham por baixo de seu queixo, e
meus olhos as acompanham com total obediência. É só quando
chego em seu rosto que vejo o sorriso atrevido estampado ali por
causa da minha admiração, e fico corada.
— Caramba! Você é ainda mais bonita pessoalmente, e posso
dizer que fiquei impressionado pra caralho com sua foto — ele diz, e
eu rio, recuperando-me do meu constrangimento agora que sua
boca atrevida entrou em ação.
— Você podia ter ligado antes e me avisado que estava vindo!
Estou de legging, pelo amor de Deus! Eu poderia pelo menos ter
tentado ficar bonita.
Ele ri de mim e segura meus quadris com suas grandes mãos,
fazendo-me andar de costas para dentro do quarto e chutando a
porta para fechá-la. Juro por Deus que meu coração acelera, ou
melhor, dispara feito louco.
— Se isso não é você bonita, acho que não estou preparado para
o que é.
Ruborizo e pego minha mochila, e meu rubor se intensifica
quando Atlas a tira de mim e joga por cima do próprio ombro como
um adolescente apaixonadinho.
— Posso carregar isso, sabia? — digo, torcendo para as palavras
soarem sedutoras e não rudes. Minha cabeça ainda está girando
pelo choque de ele estar aqui e pela raiva não gasta de ter que lidar
com as outras garotas.
Ele sorri e dá de ombros.
— Sim, mas me deixa fazer isso hoje. Eu meio que estava
esperando a gente poder ficar aqui o dia inteiro para você ter a
oportunidade de me conhecer um pouco melhor, mas se insiste em
sair, então vai me deixar cuidar um pouco de você.
Os sorrisos meigos que ele está me dando fazem com que olhar
para ele fique ainda mais difícil.
— Não tenho permissão para faltar aulas. O rastreador GPS
significa que North vai ficar sabendo e vai vir me punir em pessoa.
Toda a alegria provocadora e brincalhona de Atlas desaparece.
Seu semblante se transforma de sedutor e doce para o olhar gélido
de uma fera que sentiu o cheiro de sua presa.
— É, vou resolver isso aí para nós dois muito em breve. North
pode estar no Conselho deste lado do país, mas minha família
controla o Conselho da Costa Leste. Se ele vai ser um idiota com
relação a isso, vou te levar pra casa comigo e por mim eles podem
apodrecer aqui.
Um arrepio me percorre.
— Se eu achasse que a gente conseguiria se safar, concordaria
plenamente. Mas tenho a impressão de que North Draven nunca se
rebaixa pra fazer uma concessão.
Atlas me dá um sorrisinho, afasta o cabelo do meu ombro, e dá
um beijinho breve em minha bochecha.
— Doçura, não dou a mínima para o que North Draven quer. Se
ele ficar no meu caminho ou te chatear, vou ferrar ele.
Ok, agora fiquei mesmo derretida por ele.
Tenho que me lembrar de que estou tentando não ficar próxima
demais desses caras, e dou um passo para trás.
— Precisamos ir pra aula. Não quero ficar defasada.
Ele não parece chateado por eu ter me afastado, em vez disso
me oferece a mão e entrelaça os dedos nos meus. Quando abre a
porta para me conduzir para fora, vemos Gabe se aproximando para
me acompanhar até a classe, mas o sorriso em seu rosto é dirigido
para a garota que está colocando a cabeça para fora do quarto ao
lado do meu. O sorriso desaparece quando ele vê Atlas parado ali,
segurando minha mão e minha mochila.
Ah, merda.
Uma risadinha boba sobe pela minha barriga, mas a seguro
dentro de mim. Atlas aperta minha mão de modo gentil e se debruça
para sussurrar no meu ouvido:
— Tranque sua porta, Doçura.
Olho de relance para ele, que com certeza não precisava chegar
tão perto para dizer isso, mas faço o que ele diz e dou as costas aos
dois para trancar a fechadura de segurança extra que Gryphon
instalou.
Um rosnado sai de Gabe e luto contra meu instinto de virar para
enfrentá-lo, confiando que Atlas vá proteger minhas costas expostas
contra meu Vínculo metamorfo. Eu me certifico de que tudo está
bem trancado e depois me viro devagar, como se a ideia de um
maldito lobo arrancando meus membros não fosse nem um pouco
preocupante. O que está prestes a acontecer aqui está gerando
muito interesse, pois todas as portas estão abertas e há garotas por
todos os lados. Até alguns caras estão parados com seus próprios
Vínculos e namoradas, assistindo.
Atlas ri:
— Oli não precisa do carcereiro rabugento dela hoje, Ardern,
então dá o fora.
Os olhos de Gabe começam a brilhar, e eu respiro fundo. Para
quem diabos ligo se ele perder o controle? Pego meu celular,
Gryphon é minha melhor opção, mas ele nunca responde as merdas
das minhas mensagens. Nox é um idiota, e prefiro arrancar meus
globos oculares a falar com North. Mas que porra.
— Não venha me dizer o que caralho posso ou não fazer com
meu Vínculo, Bassinger — ele cospe entredentes e Atlas solta a
minha mão para passar o braço por cima dos meus ombros.
— Ninguém quer um babaca emburrado andando atrás, então dá
o fora, Ardern. Vai antes que eu o force. Você realmente não quer
que eu o force.
Gabe luta para se controlar, e a transformação passa pelo seu
rosto quando seus olhos brilham e a pele de seus braços escurecem
com uma pelagem macia. Nunca o vi perder o controle de verdade
antes, até mesmo quando Martinez o atacou, ele manteve seu dom
sobre controle.
Não quero mesmo ter que fazer isso, ainda mais no corredor do
meu dormitório com todas as garotas fofoqueiras presentes.
— Podemos só ir pra aula, por favor? Não estou a fim de me
atrasar e presumo que você precise definir seus horários de aula,
Atlas?
Ele encolhe os ombros e oferece a mão para eu segurar. Hesito
por um instante, porque dessa vez parece ser mais do que um
pequeno sinal de afeto, mas isso não o incomoda.
— Se quer ir devagar, então é o que faremos. Pegue minha mão,
Vínculo.
Inspiro fundo.
Então, seguro a mão dele.
21

O ALMOÇO COSTUMA ser minha parte favorita do dia, mas ficar


esmagada entre Atlas e Gabe, com Sage e Sawyer morrendo de rir
das tesouradas cruéis que um dá no outro, meio que estraga o
momento para mim. Atlas conseguiu um horário de aulas que o
encaixou em todas as mesmas aulas que Gabe e eu, e sorriu para
mim quando o questionei a respeito.
— Você está no curso geral, já que tenho que repetir, pelo menos
vamos tonar as coisas mais fáceis.
Reviro meus olhos e suspiro, em maior parte porque,
definitivamente, não sinto que está sendo fácil, e nossa familiaridade
tranquila irrita Gabe. Então ele nos segue, fazendo uma carranca e
rosnando para nós sempre que Atlas se inclina para perto de mim
ou me faz rir com seu humor tranquilo.
Peguei minha mochila de volta e mantive as mãos afastadas dele
assim que chegamos no campus, mas Atlas não fez nenhum
comentário, só aceitou os limites que impus como se tudo estivesse
correndo conforme ele esperava.
Sage e Sawyer acolheram Atlas sem problemas, ambos já estão
torcendo por ele na “Corrida dos Vínculos”, como Sawyer, com toda
sua sutileza, nomeou a confusão que é minha vida.
Quando o almoço acaba, Sawyer se dirige para sua aula de
ciências da computação, e passo um momento constrangedor
tentando dar a volta em Gabe para alcançar Sage e irmos para a
próxima aula, mas ele não está disposto a apenas dar um passo
para trás e me deixar andar com ela. Atlas dá um sorrisinho torto
para ele quando enfim o empurro para sair da frente, e decido que
prefiro abandonar os estudos e tolerar a reação feroz de North do
que lidar com isso todos os dias até eu escapar desse lugar.
Chegamos para nossa aula de economia e, de guarda bem na
frente da sala, encontramos Kieran, o segundo em comando da
Equipe Tática de Gryphon. Entre todos os seguranças, ele é o que
eu menos gosto, e tenho dificuldade em manter o desdém fora de
meu rosto quando percebo que é ele quem está conferindo os
documentos dos alunos na entrada e que vou ser obrigada a falar
com ele.
Esqueço que Atlas não faz ideia da história entre nós e, quando
ele dá uma olhada na expressão no meu rosto, desloca-se no
mesmo segundo para me abraçar de lado, curvando um pouco o
corpo, como se estivesse me protegendo.
— Quem é esse merda e o que ele fez com você?
Nego com a cabeça, porque não faço ideia de quem está ao
nosso redor e quais são seus poderes, mas Gabe, que está nos
observando em sua obsessão mal-humorada, murmura:
— Ele é da Equipe Tática de Gryphon. Ela apenas o odeia.
Sage suspira com raiva e olha para Kieran como se ele fosse
venenoso e ela tivesse medo de ser atingida por seu ácido enquanto
diz:
— Foi ele quem a pegou e a jogou no chão em plena luz do dia
como se ela fosse uma criminosa, então a arrastou até aqui para ter
todas as suas liberdades retiradas pelo conselheiro Draven. Por
mais que eu esteja feliz por Oli estar aqui, também o odeio por ter
feito isso com ela.
O braço de Atlas tensiona em volta de mim por um segundo,
então ele relaxa e coloca aquele sorrisinho de volta no rosto, e
descubro bem rápido que esse sorriso é um alerta de perigo.
Precisamos esperar na fila, já que estão conferindo o documento
de todos os estudantes. Eu me atrapalho pegando o meu e Sage
xinga enquanto vasculha a mochila, amassando folhas soltas de
papeis com seu tratamento brusco. Gabe fica parado ali como um
muro de tijolos, fazendo uma carranca e suspirando irritado pela
espera.
Quando nos aproximamos da porta, preciso inspirar fundo para
me acalmar, e confiro meu dom e meu vínculo para me certificar de
que ambos estão bem presos. Kieran é enorme e meio que
assustador tão de perto, mas age como se eu não existisse, sorri
para Gabe e dá um tapinha em seu ombro ao permitir sua entrada
sem questionamento, ignorando por completo a expressão mal-
humorada no rosto do meu Vínculo. Ele confere o documento de
Sage, mas só porque ela já está mostrando, e gesticula para ela
entrar também.
Ele estende um braço quando Atlas se aproxima, puxando-me
junto.
— Quem é você? Não há lugares extras nessa aula para um
observador.
Até a voz dele já me faz apertar a mandíbula, mas Atlas só
mostra o documento para ele.
— Acabei de me transferir. Você deveria tirar esse braço.
Os olhos de Kieran se estreitam até não passarem de fendas
escuras, mas ele não remove o braço.
— Bassinger. Você é parente de Athena Bassinger do Conselho
da Costa Leste?
— Minha tia. Não vou pedir para que saia da minha frente de
novo.
Gabe passa pela porta e diz:
— Ele está dizendo a verdade, é o outro Vínculo da Oli.
Os olhos dele descem até mim, e o repúdio em seu rosto é
palpável como um tapa na minha cara e em um segundo fico
escarlate, como se tivesse feito algo errado.
Atlas não gosta nem um pouco dessa reação e, quando seu
sorriso desaparece, Kieran enfim entende que ele não é só um
garoto sorridente e arrogante. É um Favorecido fazendo uma
ameaça.
Já que as coisas sempre pioram para mim e porque isso é o que
preciso na vida nesse exato momento, Gryphon vira no corredor e
anda em nossa direção, decifrando a atmosfera maligna.
— Se afaste, Black. Eles estão atrasados para a aula, e sei que
você não estava prestes a usar seu dom dentro do campus,
Bassinger. Essa é a primeira regra aqui.
Atlas dá um sorrisinho e encolhe os ombros.
— Tenho uma isenção, Shore. Não consigo desligar o meu, é
parte de mim. Seu marginal aqui não gostou de eu não ter medo
dele. Falando sério? Acho que não gostou foi de eu não ser uma
garota sem dons com metade do tamanho dele e que ele pode jogar
por aí.
Ai meu Deus, não quero ficar aqui para essa competição de
masculinidade, e, sem dúvida, não quero minha vida inteira sendo
anunciada para o corredor todo com tantos olhos nos observando.
— Dane-se isso, vou para a aula. Se vocês quiserem abaixar as
calças e medirem para acabar logo com isso, vão em frente, não
vou ficar aqui pra assistir.
Kieran ri e retruca:
— É claro que você está fugindo. Oleander Fallows é bem o tipo
que apenas desaparece quando as coisas ficam difíceis.
Eu me afasto porque não tem nada que eu possa dizer para ele.
Não quero ver a reação de nenhum dos outros, e Sage logo se
aproxima para passar o braço pelo meu e nos conduz para a última
fileira, onde costumamos nos sentar juntas, como se a sala toda não
estivesse ouvindo o drama que está ocorrendo na porta. A classe
toda está, literalmente, esperando meus Vínculos resolverem seus
problemas e se sentarem para o professor poder começar a aula.
Tenho vontade de gritar.
— Ignora, isso não tem nada a ver com você. Só estão tensos
porque os Favorecidos estão sendo levados e o Atlas apareceu e
causou um rebuliço — sussurra Sage, olhando feio para Zoey e
suas amigas risonhas quando elas viram para nos encarar.
Ignoro todos eles. Quando Atlas se senta ao meu lado, ainda
parece calmo e estável, pegando seu livro e seu notebook para
fazer anotações como se nada tivesse acontecido. Gabe se senta
ao lado de Sage, e espuma de raiva o tempo todo. Tenho certeza de
que ele está planejando me destruir com o chilique que está
preparando.
Quando a aula termina e estamos todos a caminho da biblioteca
para estudar, Atlas passa um braço sobre meus ombros enquanto
saímos. Não vejo Kieran em lugar nenhum, e seu substituto não faz
mais do que olhar de esguelha na nossa direção quando passamos.
A biblioteca está mais agitada do que de costume, e quando
finalmente atravessamos a multidão e chegamos à nossa mesa,
encontramos Sawyer e Félix já esperando por nós. Sorrio para os
dois e apresento Atlas para Félix, que o aceita no grupo como se
tudo isso fosse normal e não houvesse um tipo de raiva furiosa
irradiando de Gabe nesse exato momento.
Estou determinada a ignorar e só me concentrar nos meus
malditos trabalhos, mas também já fico preparada para o jeitinho de
Sawyer de jogar merda no ventilador.
— Fiquei sabendo da discussão desta manhã, mas a verdadeira
pergunta aqui é: qual dos seus Vínculos tem o maior pau? Nos diga
para sabermos quem ganhou, Fallows.
Sage grunhe e enterra o rosto nas mãos:
— Pelo amor de Deus, podemos por favor parar de falar de pintos
por tipo... cinco minutos?
Sawyer sorri como se estivesse prestes a torturar sua irmã, mas
Gabe se intromete:
— Kieran pode ser um idiota, mas não estava errado, estava? É
difícil defender alguém quando todo mundo conhece o histórico
dessa pessoa.
Atlas coloca a mão na minha por cima da mesa, entrelaçando
nossos dedos onde todos possam ver. Acho que tem mais a ver
com estar me reivindicando do que demonstrando algum tipo de
afeto.
Os olhos de Gabe descem e colam ali, e Atlas lhe dá um
sorrisinho.
— Ah é? Bem, ao contrário de você, não tenho medo de mandar
os outros se lascarem e ficar com meu Vínculo toda para mim. Não
ligo para o que aconteceu no passado, essa merda ficou para trás.
Ela é minha e você escolheu que ela não fosse sua.
As narinas de Gabe se alargam.
— Não é tão fácil assim, não basta dizer ela é minha. Tem mais
coisa acontecendo...
— Estou cagando para isso — Atlas interrompe, e então o ignora
por completo pelo restante da tarde, não importa o quanto Gabe
queira brigar.
 
*
 
Estudamos até o refeitório abrir para o jantar, com a mesa caindo
em um silêncio tenso enquanto todos nós enfiamos o máximo de
conhecimento possível em nossos crânios.
Sawyer, Félix e Gabe saem juntos para o treino de futebol
americano. Percebo que Sage está muito mais calma e menos
estressada perto de Félix, e ergo uma sobrancelha para ela em
questionamento enquanto nos dirigimos juntos para o jantar.
Ela lança um olhar breve para Atlas e murmura:
— Disse para ele que quero que a gente saia como amigos... por
enquanto. Ele não insistiu no assunto e, bom, tem sido legal tê-lo de
volta. Ainda tenho certeza de que ele vai encontrar seu central e me
deixar, mas... bem, talvez não seja tão ruim assim aproveitar o
tempo até lá.
Passo meu braço no dela de novo e sussurro de volta:
— Você com certeza tem que fazer isso. Por que deveria ficar
sozinha pra sempre se Riley já tomou a decisão dele? Ele não é seu
dono, Sage. Você pode fazer o que quiser.
Ela dá de ombros com um sorriso breve, e olha para Atlas, que,
de modo gentil, está fingindo que não consegue ouvir o que
estamos dizendo e que não tem interesse na nossa fofoca. Já
desabafei meu ódio sobre a situação dos Vínculos de Sage para ele
antes, só algumas merdas gerais, nenhum dos detalhes pessoais
que ela confiou a mim, então tenho certeza de que ele tem uma boa
ideia sobre o que está acontecendo.
Jantamos juntos, uma lasanha muito seca e sem gosto, na qual
Sage dá só duas garfadas graças ao luxo de ter carro, dinheiro e
acesso a uma geladeira em casa. Atlas come tudo, mas não parece
feliz.
Soco o prato todo goela abaixo e tento não ficar irritada de novo
por minha falta de opções.
Sage me abraça antes de ir embora para casa, deixando Atlas e
eu a sós pela primeira vez desde que ele abriu minha porta e
encontramos Gabe vindo em nossa direção esta manhã.
De repente, estou completamente insegura sobre o que fazer.
Atlas segura minha mão de novo e dá um pequeno aperto.
— Vou te acompanhar de volta ao seu quarto, Oli, a não ser que
queira ir a algum outro lugar antes?
Nego com a cabeça e tento fingir que não estou apavorada, o
que, sendo sincera, estou até demais. É por isso que me mantive
afastada de todos os ouros... certo, não foi bem por esse motivo,
porque no caso dos irmãos Draven, foram eles que se afastaram de
mim. Gabe é uma anomalia, pois acho que ele está, ao mesmo
tempo, desesperado para se aproximar, mas também bem
indisposto a deixar de lado o dano que meu suposto abandono lhe
causou. E aí também temos o pequeno fato de que não apenas
Gryphon dorme na minha cama todas as noites, como também
estou usando seu moletom nesse exato momento e chafurdando em
seu cheiro como se fosse uma droga sem a qual eu vá morrer.
Minhas pernas se movem no modo automático enquanto tento
descobrir que merda vou dizer a Atlas, que explicação poderia lhe
dar para não ser capaz de fazer qualquer coisa com ele, não
importa o quanto goste dele.
No momento em que chegamos ao dormitório, fico angustiada
com os olhos que nos acompanham o caminho todo até meu quarto.
Fica claro que as novidades se espalharam sobre Atlas ser o último
dos meus Vínculos, vindo do outro lado do país para ficar perto do
seu defeituoso Vínculo central, e a atenção que estamos recebendo
é suficiente para me incomodar pra caralho.
Odeio essa porra de lugar.
Sem pensar, faço Atlas entrar depressa no meu quarto,
desesperada para sair da vista do maldito prédio inteiro. Viro a
chave e jogo a mochila na cama, fazendo uma careta para o fato de
que não a arrumei de manhã e está uma bagunça.
Também não quero admitir que não gosto de arrumá-la porque
ainda consigo ver o colchão de merda afundado onde Gryphon
dormiu, o que é muito patético, idiota e um pouquinho tristonho
demais para a imagem que estou tentando projetar aqui.
Fica claro que esqueci quão sem graça esse quarto de fato é,
porque demoro um segundo para entender por que os lábios de
Atlas estão curvados enquanto ele olha o cômodo.
— Como foi que não percebi o tanto que isso aqui é ruim hoje de
manhã? Faça a mala, Oli. Você vai morar comigo.
Um riso nervoso sobe por minha garganta.
— Não posso fazer isso! Foi aqui que o Conselho me colocou,
estão pagando pelo quarto. Não tenho dinheiro, nem nada. Eles não
me deixam arrumar um emprego.
Sinto a vergonha revirando meu estômago. Odeio admitir quão
péssima minha situação realmente é. Não tenho nada, nenhum
dinheiro, nenhum emprego. A educação que estou recebendo é só
para me manter na palma da mão deles, e não para me ajudar de
verdade a conseguir um emprego que eu queira. Estou impotente
pra caramba e isso é uma merda.
O cartão de crédito de Gryphon está me provocando dentro da
mochila, mas já decidi que não vou usar esse pequeno retângulo de
plástico a não ser que alguém esteja morrendo.
— Faça a mala. Parece que não te deixaram ter nada aqui de
qualquer jeito, então vai caber tudo na sua bolsa. Você vem comigo
agora e vou lidar com o Conselho quando eles questionarem. Você
é meu Vínculo, vou cuidar de você.
Minhas bochechas coram de constrangimento.
— Você não precisa fazer isso, posso cuidar de mim mesma.
Bem, poderia se North me deixasse trabalhar. Estou meio que...
entediada sentada aqui o dia todo.
Atlas me conduz de modo gentil até a cama com uma mão no
meu cotovelo.
— Faça a mala. Podemos descobrir como conseguir um emprego
para você mais tarde, quando estiver fora desse buraco de merda.
Seria uma honra cuidar de você até conseguir se estabilizar, Oli.
Você não faria o mesmo por mim?
Respondo sem nem pensar:
— Bem, é claro, mas os outros vão ficar irritados por você estar
fazendo isso e... não posso completar meu vínculo com você.
Também não posso te explicar os motivos, é uma confusão de
merda.
Ele bufa:
— Vamos resolver nosso vínculo quando estivermos prontos,
você não me deve absolutamente nada e, Oli, preciso que você
entenda que não dou a mínima para o que eles acham. Eu me
preocupo é com nosso vínculo, em te conhecer e sobre nós
tomarmos decisões juntos. Minha casa não é luxuosa nem nada, é
só um apartamento, mas é melhor que isso. E lá teremos comida de
verdade, não aquela porcaria do refeitório que acabamos de nos
forçar a engolir.
Não tenho o que discutir com ele, e ele tem razão, só levo um
minuto para guardar tudo na pequena sacola de viagem que tenho.
Sendo sincera, o único motivo pelo qual ela parece tão cheia é
porque tenho outros dois moletons que Gryphon deixou aqui e eles
ocupam um bom espaço.
Ele tira a mala de mim e pendura em suas costas, e quando
saímos juntos, sorri para uma das garotas de um jeito tão arrogante
e convencido que me faz rir. Ela parece surpresa e um pouco
trêmula ao disparar de volta para seu quarto.
— Vamos lá, Doçura, vamos dar o fora desse buraco.
Ele me leva até o pequeno estacionamento atrás do dormitório,
onde nunca coloquei os pés antes porque todos sempre me
apanham no espaço em frente. Só de olhar ao redor, já sei qual
carro é o dele, porque nenhum outro veículo aqui grita “energia de
quem tem quem pau grande” como o Dodge Challenger Hellcat
preto, e o sorriso que ele me dá quando o destranca é, sem dúvida,
o de um cuzão convencido. É fofo, e um pouco grosseiro, o jeito que
ele consegue fazer isso tão bem e sem parecer um absoluto imbecil.
O apartamento dele fica a apenas alguns quarteirões de
distância, ainda posso ir e voltar a pé do campus. Ele dirige com
tanta confiança quanto Gryphon, e um pouco menos insanamente
suicida do que Gabe em sua moto.
O apartamento fica no último andar, e ele, sem a menor sombra
de dúvidas, estava amenizando quando disse que não era nada
chique. Claro, não é a mansão de North, mas tem vista para o
campus inteiro e dois quartos. A cozinha é grande com balcões de
granito, e tem uma banheira no banheiro.
O dormitório parece um casebrezinho sujo comparado a esse
lugar.
Quando Atlas termina o tour que está me dando no banheiro,
coloca a mala na cama, esfrega o cabelo com uma mão, e suspira.
— Posso dormir no sofá.
Dou uma olhada pela porta aberta, então olho incrédula para ele.
O sofá tem dois lugares e de jeito nenhum ele vai caber ali. Inferno,
nem eu caberia.
— Não tem problema, não me importo de dividir. Quer dizer,
somos vínculos, certo? Vamos ter que nos acostumar a isso em
algum momento.
Ele sorri, exibindo suas covinhas:
— Estava torcendo para você ficar mais entusiasmada em dividir
uma cama comigo, mas podemos trabalhar nisso.
Rio e dou um empurrão fraco em seu peito.
— Não é isso, eu só... ainda me sinto mal de abusar de você
estando aqui. Não sei o que fazer quanto a achar um emprego.
North pode me rastrear, se eu chego sequer perto dos limites do
campus, ele me liga e me dá uma bronca.
Atlas aperta o peito onde eu o empurrei de forma dramática, e
passa por mim em direção à geladeira, de onde pega uma garrafa
de água para cada um.
— Tem coisas que você pode fazer pela internet, assim pode ficar
aqui e North nunca vai saber a respeito. Dinheiro e sigilo, todo
mundo sai ganhando.
Eu me empoleiro no sofá, ainda um pouco constrangida.
— O quê? Tipo uma cam-girl? Acho que posso mostrar meus
peitos. Você acha que minha voz serve para trabalho sexual?
Estou brincando, sem chances eu teria a autoconfiança para
fazer esse tipo de coisa, mas o jeito como Atlas me olha é
maravilhoso. Não recebi nenhum tipo de atitude possessiva assim
de nenhum dos meus outros Vínculos, então o ver se importar com
meus peitos... é ótimo mesmo.
— Só por cima da porra do meu cadáver, Fallows. Nunca, e com
certeza não antes de eu chegar a vê-los.
Dou risada e levanto rápido as sobrancelhas para ele.
— Faça suas jogadas direitinho e talvez eu os coloque de fora
mais tarde.
É claro que estou brincando. Conheço ele pessoalmente há cerca
de dez horas, mas o olhar que ele me dá faz minha calcinha
derreter.
— Estou jogando pra ganhar, Oli. Esse jogo eu me recuso a
perder.
Porra, e tenho bastante certeza de que ele vai ganhar, porque
estou tendo dificuldades para ficar de boa nesse momento, e ele
nem está tentando me seduzir. Não vou conseguir lidar com nada
que ele tente agora. Ele percebe meu colapso cerebral e dá uma
risada lasciva, mas liga a televisão e muda de assunto.
De início, é embaraçoso me sentar e passar tempo com ele, mas
ele é um perfeito cavalheiro, nunca força a barra ou me questiona, e
eu me esparramo no chão na frente da televisão com todos meus
livros para fazer o próximo trabalho que tenho que entregar a North.
Isso virou uma obsessão, mas vou provar que aquele homem está
errado quanto a mim, mesmo que isso me mate.
Quando enfim vamos para a cama, há um momento
constrangedor em que quero ficar com vergonha da enorme
camiseta velha de algodão e do short de cetim que uso de pijama,
mas não sou o tipo de garota que dorme de lingerie. De qualquer
forma, os olhos de Atlas me percorrem de forma apreciativa, como
se eu estivesse parada aqui vestida em rendas, e vejo que estou
ficando viciada no calor do seu olhar.
— Tudo bem pra você se eu dormir só de cueca? Está muito
quente pra uma camiseta — ele murmura, enquanto ergo as
cobertas e subo na cama.
Encolho os ombros.
— Como for confortável pra você.
Não menciono Gryphon e sua inclinação a fazer o mesmo.
Pensar nele aparecendo no meu quarto esta noite e o encontrando
desocupado, me dá uma dor no peito, então o envio uma
mensagem breve dizendo que estou aqui. Já sei que ele não vai
responder, mas, pelo menos, tentei.
22

O BARULHO DA PORTA sendo chutada me acorda.


Atlas rola por cima de mim, segurando o próprio peso para não
me machucar, então pula para fora da cama do meu lado,
colocando-se entre a cama e quem quer que tenha acabado de
chegar. É tudo um pouquinho fluído demais para o meu gosto, ele
com certeza foi treinado e estou com inveja de quão rápido o
cérebro dele voltou a funcionar, porque ainda estou tentando
entender que merda está acontecendo agora.
— Quem diabos... você tá de brincadeira? Qual é a porra do seu
problema, Draven?
Meus olhos se ajustam à luz que vem da cozinha para o quarto, e
descubro que é North quem está aqui, invadindo o apartamento com
a porra da Equipe Tática inteira porque ousei desrespeitar suas
regras idiotas... dormindo no apartamento de Atlas, a dois
quarteirões de distância do dormitório.
Talvez seja por ter sido acordada às duas da madrugada, mas do
nada quero explodir em lágrimas de ódio e desesperança. Atlas o
peita e encara os homens vestidos em uniforme tático como se
fosse derrubar todos eles só por aparecerem aqui.
Não sinto um puxão na direção de nenhum deles, então, pelo
menos, Gryphon não está aqui para assistir a essa confusão.
— Ela tem um toque de recolher e sabe disso — diz North, com a
voz soando igual a sempre, fria e imperturbada, mas posso sentir a
diferença nele. Já fui forçada a passar tempo suficiente em sua
presença para saber que, por baixo de todo esse gelo, ele está
fervendo, furioso por eu ter me atrevido a desafiar suas regras.
Eu me sinto a droga de uma criança tomando uma bronca, e a
carranca no rosto de Atlas diz que ele está se sentindo do mesmo
jeito.
— Ela é meu Vínculo e se eu quiser que ela durma na minha
maldita cama, ela vai dormir. Oli não estava fugindo ou fazendo
qualquer outra coisa que você colocou na sua listinha de proibições.
Vou ao Conselho pessoalmente se você tentar impedir que ela
venha aqui.
North alisa a gravata com a mão.
— Boa sorte convencendo o resto do Conselho a me enfrentar.
Ele, por fim, olha para mim, e seus olhos calculistas não se
impressionam com meu estado desgrenhado, sentada aqui em meu
pijama velho e surrado.
— Estamos indo. Levante-se, Fallows.
Puxo os joelhos para o peito e olho para os homens em pé ao
meu redor.
— Não estou nem usando sutiã, não quero...
— Eu não perguntei o que você quer fazer. Estou mandando você
descer e entrar no meu carro, Fallows.
Meu coração sobe até minha garganta e tenta me sufocar.
— Atlas também é um dos meus Vínculos. Por que não posso
ficar aqui?
North não cede, e sua boca está fechada de modo firme em uma
linha desaprovadora. Porra. Atlas avança, como se fosse atacar
todos eles, e eu realmente não quero envolvimento nisso. Não
posso permitir que isso aconteça, se isso desencadear meu dom vai
ser o fim de tudo para mim, então, ao invés disso, suspiro e saio da
cama.
Meus olhos marejam quando saio sem olhar para Atlas. Seja lá o
que está transparecendo em seu rosto, não preciso ver, isso só me
faria perder o maldito controle. Talvez ele tenha percebido que dou
trabalho demais. Quem sabe enfim se deu conta de que não faço
bem para nenhum deles.
Porra.
Penso em fugir, mas a ideia me abandona tão rápido quanto
surgiu. North vai me encontrar, não importa aonde eu vá, ele vai me
achar.
O elevador está congelando, cruzo os braços sobre os peitos
quando um membro da Equipe Tática olha para mim e me conduz
para baixo como se eu estivesse prestes a correr gritando pela noite
na merda do meu pijama.
Mais lágrimas inúteis ameaçam cair e eu as engulo.
O motorista abre a porta quando me aproximo e eu aperto mais
os braços em volta do meu peito para tentar esconder um pouco a
falta de sutiã. Sorrio e agradeço, mas ele me ignora por completo e
fecha a porta com firmeza atrás de mim. Ótimo. Todo mundo me
odeia nessa merda, até o maldito motorista de North.
Eu me sento e afundo em minha própria miséria desoladora, até
a porta abrir e o homem do momento entrar e se sentar à minha
frente, de modo a estarmos olhando um para o outro. O carro dá
partida e disparamos pela rua, na direção errada.
Eu me agito de ansiedade, incapaz de ficar sentada quieta nesse
silêncio sufocante.
North, como sempre, está inalterado. Seu semblante está
tranquilo enquanto olha para o campus da faculdade lá fora.
— Se a moradia fornecida para você é inadequada, vou te
transferir para minha residência. Pode fazer o trajeto para a
faculdade de lá.
Meu bom Deus, não. Mal suporto jantar lá uma noite por semana.
— O campus está bom. Posso voltar pra lá. Posso chamar um
táxi, só me deixe sair.
O olhar que ele me dá é tão afiado que tenho certeza de que
devo estar sangrando.
— Algum problema, Fallows? Algum motivo para você não querer
ficar em um carro comigo? Fornecerei tudo que precisar.
Engulo em seco.
— Eu ia ficar com Atlas para poder estar com um dos meus
Vínculos. O campus está bom, posso voltar... pra casa.
A palavra fica presa na minha garganta, mas a forço sair,
qualquer coisa para dar o fora dessa porra de carro.
— Então está com sorte. Três dos seus Vínculos moram na
minha casa, então vai ter um de nós com você o tempo todo.
Olho pela janela para ele não ver as lágrimas inúteis se formando
nos meus olhos. Perfeito. Fui de um quarto porcaria, mas solitário,
para algo que com certeza está no extremo do luxo, mas cheio de
homens que me odeiam.
— Gostaria de dizer mais alguma coisa, Fallows?
Pisco para afastar as lágrimas.
— Não. Obrigada.
Minha voz sai embargada, mas com clareza o suficiente. North
tira o celular do bolso, então acho que essa conversa acabou.
 
*
 
No momento em que saímos do carro na garagem de North,
somos recebidos por três dos funcionários de sua casa. Mantenho
os braços cruzados com firmeza sobre o peito, como se ninguém
fosse perceber que estou parada aqui parecendo uma mendiga se
eu apenas mantiver o peito coberto, mas nenhum deles olha na
minha direção de qualquer forma.
— O conselheiro Eversong chegou, está esperando no seu
escritório.
North xinga baixinho, pega uma pasta com um dos homens e fala
comigo no mesmo tom frio que usou a noite toda, sem sequer olhar
na minha direção:
— Evelyn vai te levar até seu quarto, Fallows. Vou te buscar lá de
manhã e te acompanhar ao desjejum, espero que fique lá até então.
Perfeito.
Ótimo.
Maravilhoso pra caralho.
Saí de uma existência limitada à uma maldita jaula, e não posso
fazer nada quanto a isso. Agora, essa bela e vulgarmente decorada
mansão é mais do que um lugar em que venho todas as semanas
para ser torturada... é o inferno em que vou ficar presa até o dia da
minha morte.
Talvez a Resistência me encontrar não seria a pior opção.
North e os dois homens se afastam sem notar a raiva fervente na
qual estou presa, deixando Evelyn e eu para trás para nos dirigirmos
a minha nova cela de prisão.
— Se puder me acompanhar, srta. Fallows. Seu quarto fica no
terceiro andar.
Não tem nada que eu gostaria mais do que descontar nela e a
mandar se foder, mas ergo os olhos e a vejo olhando de modo
submisso para o chão. Não faço ideia de como North trata seus
empregados, mas todos eles andam nas pontinhas dos pés como se
todos nós fôssemos monstros que os escravizaram, e isso faz com
que me sinta muito desconfortável.
Então fico de boca fechada e poupo a pobre mulher da crueldade
que está passando pela minha cabeça.
Preciso começar a memorizar as direções desse lugar, porque
depois de virarmos duas vezes, já estou desorientada e perdida.
Quando chegamos ao elevador no fim de um dos compridos
corredores, sobressalto com o barulho da campainha, porque, na
verdade, achei que o elevador ficava do outro lado da construção da
última vez que me forçaram a entrar nele.
Evelyn não fala nada, não olha para nenhum lugar ao redor ou
mexe em sua roupa em agitação. Ela é a imagem perfeita da
empregada doméstica subserviente de uma mansão, que vê tudo e
nada.
Já eu, não tenho sequer a sombra de sua compostura. Eu me
mexo e belisco minha pele como se estivesse sentindo um milhão
de insetos rastejando pelas minhas veias.
Viramos outro canto e ficamos cara a cara com o verdadeiro
motivo para eu não querer ficar nessa merda de casa, porque meu
pior pesadelo maldito está vindo direto em nossa direção, vestido de
modo casual em uma calça de alfaiataria preta e suéter de caxemira
macio. Os olhos de Nox disparam para Evelyn e ele a dispensa com
um simples:
— Nos deixe.
E é isso.
Duas palavras é todo o necessário para que eu fique presa em
um corredor com o único dos meus Vínculos que tenho certeza de
que me quer morta. Evelyn apenas sai apressada, sem dizer nada.
Quando estamos a sós, ele não perde tempo em me atacar:
— Por que está vestida como uma prostituta comum? Por acaso
North teve que te caçar em alguma fraternidade? Você sabe mesmo
irritar meu irmão, não é, Venenosa?
Venenosa.
É claro que seria ele a fazer relação entre meu nome e a terrível
posição em que, por um acaso, coloquei todos nós. Eu sou o
veneno que se espalhou pela família dele.
Eu não vou chorar, e com certeza não vou permitir que ele saiba
o quanto aquilo me afeta.
— Uma garota precisa se divertir como consegue, Nox. Por que
se importa tanto? Não é como se você me desejasse. Já tem
opções demais, certo?
Ele avança, encurralando-me contra a parede.
— Talvez eu devesse completar o vínculo com você, Venenosa.
Talvez devesse te experimentar, assim na próxima vez que eu
comer minha namorada, você vai saber de tudo e sentir que seu
coração está sendo arrancado do seu peito. Talvez te ajude a
entender o que fez todos nós passarmos quando fugiu.
Ele encosta no meu corpo, a diferença de tamanho entre nós faz
com que paire sobre mim e preciso me forçar a ficar firme no lugar.
Ele nunca esteve tão perto assim antes. Eu pensava que a fúria
ardente em seus olhos era quente, mas não é nada comparada ao
calor de seu corpo me empurrando contra a parede. Sinto seu
vínculo roçando pelo meu corpo e seguro o meu com mais força,
resistindo quando ele tenta avançar na direção de Nox. De jeito
nenhum vou acabar vinculada a esse homem.
Prefiro qualquer um dos meus outros Vínculos a ele. Porra,
aceitaria North com um sorriso e um “obrigada, senhor” para não
ficar com esse cuzão.
— Você não consegue esconder, Venenosa. Pode não ter um
dom, mas consigo sentir seu vínculo e ele me deseja.
Eu não poderia estar cagando mais para o que meu vínculo quer,
não vou completar o vínculo com Nox.
Quero colocar as mãos em seu peito e empurrá-lo para bem
longe de mim, mas estou usando cada fibra do meu ser para manter
meu vínculo sob controle. Minhas mãos estão fechadas em punhos
dos meus lados, minha mandíbula está contraída com força, e meus
joelhos estão travados para não tremerem.
Não consigo dizer nada quando ele ergue a mão e a fecha em
minha garganta, seus dedos flexionam ali como se estivessem
imaginando me sufocar até a morte, então ele me empurra ainda
mais para trás e, quando minhas costas atingem a parede, seu
corpo cola no meu. Estou presa de todas as formas possíveis, meu
vínculo está trancado com firmeza, minha mente está travada
tentando segurar as pontas da minha sanidade para eu não
completar meu vínculo com ele e, sendo assim, não tenho como
lutar fisicamente contra Nox.
Ele enfia um de seus joelhos entre minhas pernas e, de repente,
estou muito consciente do fato de que só estou usando um
shortinho velho de cetim, um achado de brechó da seção de “novos
com etiqueta” que, na época, pareceu muito maduro e estiloso, mas
agora estou tremendo como uma droga de ovelhinha com o jeito
como ele está se forçando contra mim, balançando a perna e me
esfregando. Puta merda, essa é a porcaria mais difícil que já tive
que fazer, porque assim que eu gozar, meu vínculo vai se soltar, nos
vinculando para o resto da vida, o que soa terrível pra caralho, mas
não é nem a pior parte dessa situação.
Se meu poder aumentar, estaremos todos fodidos.
A mão dele se aperta um pouco ao redor da minha garganta,
então ele se debruça para frente de novo, roçando os lábios em
minha orelha enquanto sussurra com uma rouquidão sinistra:
— Quero meu poder. Quero o que você me deve. Esperei cinco
anos por isso. Na verdade, faz muito mais tempo. Tenho esperado
há uma década inteira para ter meu poder completo, e você acha
que vai chegar aqui e dizer não para todos nós? Pois é, acho que
não, Venenosa.
Luto para me afastar dele, de jeito nenhum vou ceder a esse
cuzão arrogante em um corredor, mas ele tem toda a facilidade do
mundo em me puxar para frente e prender meus lábios em um beijo
violento.
Meu vínculo reage no mesmo instante.
Nunca me senti assim antes, a onda de poder dentro de mim
quase me deixa de joelhos, e preciso de todas as minhas forças
para impedir que o vínculo complete, atando nossas almas para
sempre.
Nox morde meu lábio e força minha boca a se abrir, nossas
línguas se encontram enquanto ele se aproveita da minha
incapacidade de protestar ou me mexer, e meu vínculo tenta se
libertar com mais força do que nunca, mas eu o controlo e o enfio
para baixo até estar contido.
Estou tão focada em impedir meu vínculo de reivindicá-lo como
meu, que meu corpo se move no modo automático, tornando-se
maleável e muito mais fácil de ser movido, e controlado do jeito que
ele quer. Não há nada de gentil ou sensual no que ele está fazendo.
Ele sabe com precisão o que é necessário para um vínculo se
formar e está implacável em completar todos os passos.
Em algum lugar escuro e longínquo de minha mente, estou quase
impressionada com o quão rápido ele consegue me estimular.
Beijando, acariciando, o joelho entre minhas pernas forçando contra
meu corpo até meus quadris estarem se movendo sozinhos, e não
tenho como resistir a ele e a meu vínculo ao mesmo tempo.
Quando seu vínculo entra em mim, uma força por si próprio,
quase choro porque quero tanto isso. Porra, nem meu cérebro é
meu mais. Tudo que conheço é o vínculo. Tudo em que posso
pensar é nesse Vínculo e eu o desejo pra caralho.
Aceito que ele vai me fazer gozar.
Eu o odeio e desprezo que está fazendo isso comigo, mas o
menor dos males agora é conseguir me controlar. Quando seus
dedos me tocam, deslizando para dentro da velha camiseta
esfarrapada e empurrando o short de cetim para baixo pelas minhas
pernas, até ter acesso total à minha vagina traidora, quase cedo ao
vínculo. Quase perco o controle e retribuo o beijo, afinal, por que
diabos eu não deveria me entregar ao prazer? Por que não posso
ceder ao poder que percorre meu corpo, preso e desesperado
dentro de minha pele, pois não o deixo tocar o vínculo dele que está
me acariciando?
Então meu cérebro volta a funcionar e me lembro de toda a
devastação que já foi causada por meu poder. Não posso me
permitir ficar mais forte. Não posso me tornar o mal que a
Resistência quer que eu seja.
Não posso sequer empurrá-lo para longe, porque se eu mover
um único músculo agora, meu vínculo vai me dominar, então será o
fim. Tudo que me esforcei tanto para impedir vai acontecer, e não
vou deixar que isso seja logo com o pior, mais arrogante e
convencido dos meus vínculos.
Fica óbvio que Nox tem muita experiência com as mulheres,
porque não tem dificuldade nenhuma para encontrar meu clitóris,
desliza um dedo por entre meus lábios molhados e o usa para
circular, esfregar e me estimular como um maldito profissional.
É tudo tão fácil para ele que é quase ofensivo.
Seus dedos são impiedosos à medida em que me estimulam
cada vez mais, e por um segundo acho que ele está sentindo tanto
prazer quanto eu.
Quando afasto meus lábios do dele para gemer e ofegar, em uma
luta desesperada para me controlar, ele volta a se curvar e cantarola
no meu ouvido:
— E aí? Vamos ver do que é capaz, Venenosa.
Quando o orgasmo me atravessa, preciso sufocar minha
habilidade para mantê-la oculta, e a dor que isso causa queima
tanto minha pele e meus músculos que acho que vou explodir em
chamas de verdade. Um soluço sobe por minha garganta e meus
joelhos enfim cedem. Nox nem sequer tenta me manter de pé,
apenas se afasta de mim retorcendo os lábios, e seu vínculo
abandona minha pele ao perceber que não vai conseguir o que quer
comigo. Escorrego parede abaixo até estar ajoelhada na frente dele,
com o corpo todo queimando pela dor de impedir a vinculação de
completar.
Nox escarnece de mim, com sua voz ainda no mesmo tom
mordaz, furioso, que corta minha pele até os ossos.
— Que patético, Venenosa, você não consegue nem completar
um vínculo direito. Não passa de um problema.
Ele sai andando pelo corredor, deixando-me com o short ao redor
dos meus tornozelos e minha dignidade em frangalhos.
O que foi que eu fiz?
Certo, não, não fiz nada de errado dessa vez. Então por que me
sinto a pior droga de pessoa do planeta nesse momento? Fiz a
coisa certa. Não completei vínculo, foi a coisa certa... não foi? A
culpa de tudo isso é dele.
Uma voz suave me sobressalta em minha miséria.
— Senhorita? Posso te levar aos seus aposentos.
As lágrimas escorrem por minhas bochechas quando ergo o rosto
para a empregada que paira acima de mim e sem olhar, seja de
forma intencional ou não, para abaixo da minha cintura, onde estou
muito exposta. Ela é mais nova do que Evelyn, mas não sei se isso
melhora ou piora as coisas.
Fico de pé e me cubro ao dizer rouca:
— Obrigada, ficaria muito grata.
Ela acena com a cabeça e espera eu me recompor, então me
conduz pelo corredor. Meu quarto fica escondido, o mais longe de
tudo quanto é possível, mas é silencioso e reservado, e isso é tudo
que realmente preciso agora.
A empregada permanece por um momento depois que entro,
então diz:
— A porta tranca por dentro, e apenas o sr. Draven tem uma
cópia da chave para abri-la. O sr. North Draven, quero dizer.
Estará... segura aqui, srta. Fallows.
Ah, que ótimo, ela viu o bastante do que aconteceu entre Nox e
eu para ficar preocupada.
— Obrigada... me desculpa, sou tão rude, nem perguntei seu
nome.
A empregada sorri e gesticula com a mão.
— Não se preocupe com isso, senhorita. Vou estar aqui de
manhã para limpar, se precisar de qualquer coisa é só me deixar um
bilhete. O sr. Draven me instruiu a me certificar de que você tenha
tudo que precisar.
Liberdade, independência e uma passagem de avião para longe
daqui.
— Minha mala estava no carro de North, minhas roupas estão
nela.
Ela concorda com a cabeça.
— Vou fazer com que esteja aqui em breve. Boa noite, senhorita.
Ela me deixa sozinha e eu dou uma olhada rápida no banheiro
antes de entrar no chuveiro, para lavar a culpa e a sensação horrível
com que Nox me deixou.
Não tenho escolha a não ser vestir meu pijama de novo, mas
deixo o short na cesta de roupa suja. Nunca mais vou tocar nessa
merda de novo. Na verdade, eu deveria queimá-lo. Fico me
perguntando distraída sobre o quanto vai custar substitui-lo e, de
repente, eu me tornar uma cam-girl está parecendo mais tentador.
Deve ter alguém por aí disposto a pagar para ver meus peitos,
certo?
Minha mala está sobre a cama quando volto para o quarto, e isso
me lembra de virar a chave na fechadura antes de me deitar.
Pego meu celular e encontro uma mensagem de Atlas esperando
por mim.
Já liguei para o Conselho e fiz uma reclamação formal. Provável
que vão decidir a favor de North, mas vou insistir para te ter aqui
algumas noites por semana, Oli. Me desculpa, não tinha percebido o
quão irracional pra caralho ele é a respeito de você. Tenha bons
sonhos, doçura de garota.
Mas não sou uma doçura. Na verdade, sou uma porra de veneno,
assim como Nox disse. Sou tudo que há de errado em nosso
vínculo. Se eu não tivesse nascido... defeituosa, isso nunca teria
acontecido. Não teria mais que deixá-los de novo e todos nós
estaríamos completos agora, em vez de sermos essas pessoas tão
quebradas.
Nox está tão danificado pelo que fui forçada a fazer, que acho ele
nunca vai me perdoar.
Eu sei que nunca vou perdoá-lo.
Nunca mais vou ser capaz de olhar na cara desse homem.
Porra.
Meu celular volta a vibrar em minha mão.
Estou vendo que você leu a mensagem, Oli, me diga se está
bem. Porque se não estiver, vou praí agora mesmo e o Conselho
que se foda.
Passo o dedo sobre a foto dele nos meus contatos. Que se dane,
somos Vínculos, não é?
Nox está irritado e tentou completar o vínculo comigo. Não
funcionou e ele me disse que sou defeituosa. Você deveria ser
alertado de que está tentando solidificar um vínculo com alguém que
não... vale a pena. Vou desligar meu celular para dormir. Boa noite,
Atlas. Você é o melhor cara que já conheci e sinto muito mesmo por
estar preso a um Vínculo defeituoso.
Desligo o celular no segundo em que a mensagem aparece como
entregue. Não preciso saber qual é a resposta dele, só preciso
esquecer dessa absoluta merda que é a minha vida e apagar.
Não posso fugir disso para sempre, mas posso por esta noite.
23

ACORDO COM A CASA tremendo.


Tenho certeza de que é um terremoto e entro em pânico, porque
não tenho a menor ideia do que diabos fazer durante um. Então me
lembro de que estou na casa de North e não sei nem como dar o
fora desse lugar em condições normais, imagine durante um
desastre natural. Que porra vou fazer?
Ligo meu celular, pronta para começar a ligar para meus Vínculos
até alguém atender e me dizer que porra faço agora, só para
encontrar trinta mensagens de Atlas.
Quando a casa sacode de novo, percebo que essa chacoalhão é,
com toda certeza, obra dos meus Vínculos e clico depressa para
ligar para o número dele.
— Oli? Onde você está? Vou te levar pra casa.
Saio da cama, vou cambaleando até a janela e puxo as cortinas
até conseguir ver a rua lá fora. E com certeza, ali está ele.
Além disso, o portão virou um entulho.
— Que porra... certo, esquece. Terceiro andar, mas boa sorte
passando pelo...
Ele me interrompe:
— Os Draven que se fodam. Vou demolir essa porra de casa
inteira se tentarem me impedir. Aquele cuzão do North me disse que
você ficaria segura aqui, e aí ele não consegue te proteger nem do
próprio irmão? Vou matar esse desgraçado.
Que Jesus tenha misericórdia.
— Não é bem assim, Atlas. Por favor, escuta...
Há um barulho de chave na minha porta e quase derrubo o
celular antes de me lembrar do que a empregada disse. Apenas
North tem a chave, então pelo menos não é Nox entrando aqui de
repente para me dizer mais uma vez que ser humano e Vínculo inútil
eu sou.
A porta abre e North acende a luz, olha para a cama e depois
através do quarto até me encontrar. Estou chocada demais com sua
aparição para dizer qualquer coisa, porque nunca o vi sem um terno
antes, mas aqui está ele, com calça de moletom de cintura baixa, e
aí meu santinho. Será que todos eles são musculosos? Quem teria
imaginado que ele estava escondendo isso aí por baixo daqueles
ternos Tom Ford?
— Oli? Oleander, que porra está acontecendo aí em cima? — O
som da voz de Atlas no meu ouvido me faz pular, e os olhos de
North se estreitam para mim.
— Você o chamou aqui?
Antes que eu possa dizer qualquer coisa, Atlas retruca:
— Me ponha no viva-voz, Oli.
Não vai ter como eu sair disso sem que minha reputação,
sanidade e vontade de viver sejam destroçadas de vez, mas faço o
que ele diz.
— Abra a merda da sua porta, Draven, porque não vou sair daqui
sem meu Vínculo. E, enquanto isso, diga pra escória do estuprador
do seu irmão que vou matar ele no segundo em que eu o encontrar.
Ah, porra.
Ai meu Deus. Abro a boca, mas não há nada ali, nenhuma
palavra para oferecer a nenhum deles enquanto North me olha de
cima. Ele parece estar furioso, fervendo, e me encolho quando ele
dá um passo em minha direção. Não estou de fato com medo dele,
mas meu ego está ferido demais neste momento para permitir que
mais alguém me ataque verbalmente.
Ele contrai e então relaxa a mandíbula, sua voz está mais baixa e
um pouco mais gentil do que de costume quando diz:
— Vamos descer, Oleander. Vou deixar Atlas entrar enquanto falo
com Nox.
— Melhor se apressar — Atlas retruca e eu desligo, pois preciso
descobrir como diabos vou explicar para os dois que aquilo... aquilo
não foi... porra, alguma coisa com certeza aconteceu, mas talvez
não seja o cenário que os dois estão imaginando.
Não é?
Não foi. De jeito nenhum.
Porra.
— Pegue um suéter, a casa fica fria durante a noite.
Eu poderia discutir sobre essa exigência com ele, porque ele
mais uma vez está me dando ordens, mas não sobrou nada em
mim. Nenhum fogo ou resistência, sou só uma concha vazia
tentando descobrir como dizer que tomei uma decisão esta noite
pela qual tenho certeza de que todos eles vão me constranger,
embora eu tenha feito o melhor que pude.
Porra.
Eu gostaria que North colocasse um suéter, porque no instante
em que o acompanho porta afora, enrolada em camadas extras,
meu vínculo desperta de novo. Estou furiosa com ele por causa
dessa situação ridícula em que estou agora, então o enterro com
toda violência que posso. Com força o suficiente para North olhar
para trás franzindo o cenho, como se estivesse questionando se
realmente sentiu a onda de poder que deixei escapar em minha
frustração. De novo, tento dizer algo para ele, e dessa vez consigo
pronunciar palavras.
— Posso conversar com Atlas e resolver isso. Só necessito de
um minuto, você não precisa interferir.
Ele aperta o botão do elevador sem olhar para mim.
— Não, quero resolver essa confusão toda antes que saia de
controle. Tem coisas demais acontecendo com as quais preciso
tratar sem acrescentar na lista uma batalha em meu grupo de
Vínculos. Vou lidar com Nox, se isso for o necessário.
O elevador é pequeno demais para caber todo meu pânico. Por
que estou tão apavorada? Não fiz nada de errado... exceto que o
vínculo que odeio mais que qualquer outra pessoa ou coisa nesse
mundo me beijou e me empurrou contra uma parede, e me
encorajou a me esfregar em sua perna, em seguida acrescentou
dedos a essa mistura até eu gozar de forma tão intensa que doeu.
Eu também não completei o vínculo.
Esses são todos fatos, e só tive controle sobre algumas dessas
coisas e, com toda certeza, não tive sobre o orgasmo... então por
que não consigo apenas dizer isso a ele agora, antes que Atlas
perca a cabeça por causa da mensagem idiota que mandei?
É claro que ele viria aqui me buscar.
É claro, ele sempre foi protetor e possessivo em relação a mim,
mesmo estando do outro lado do maldito país.
A porta do elevador se abre e North sai, fazendo uma pausa para
ver se estou indo atrás dele, então ele me leva para o saguão de
entrada. Tento memorizar onde estamos, mas dentro de um minuto
já estou perdida, como sempre.
O motorista de North está parado na porta com outros três
homens, e todos estão olhando para a desordem que Atlas está
causando no gramado da frente.
— Já liguei para as autoridades e para a associação de
moradores, estamos controlando os danos, senhor.
North acena para seu motorista:
— Obrigado, Rafe. A partir daqui eu assumo.
Faço uma anotação mental do nome de Rafe, porque não posso
continuar chamando-o de “o motorista” na minha cabeça, então
assisto North avançar e abrir a porta. Seu corpo bloqueia a
passagem, mas posso ver o suficiente da destruição lá fora para me
encolher um pouco pensando nos custos dos danos.
Eu devia ter ficado de boca fechada. Não devia ter mandado
aquela mensagem para Atlas e desabafado com ele.
No momento em que North dá um passo para o lado, Atlas entra
no saguão e fica óbvio que está determinado a me pegar em seus
braços, mas mal estou conseguindo controlar meu vínculo e me
afasto dele.
A energia na sala se torna maligna.
Percebo no mesmo instante o que fiz e, porque o mundo está
contra mim, Nox escolhe esse exato momento para chegar,
entrando pela porta da garagem com cheiro de uísque se agarrando
às suas roupas.
Ele ergue os olhos e olha direto para mim, sua boca se contorce
em um sorriso feio e, por instinto, salto para frente para segurar o
braço de Atlas. Provável que com esse único gesto, tenha acabado
de salvar a vida de Nox.
O sorrisinho continua no lugar quando ele olha para Atlas, seu
corpo inteiro está irradiando sua energia de otário presunçoso, mas
ela vacila um pouco quando ele vê North parado ali, em toda sua
glória seminua e desgrenhada pelo sono.
— O que está acontecendo?
North olha para mim, e é nesse segundo que quero sair correndo
e gritando da sala, para bem longe do constrangimento desse
momento, mas ainda não consigo descobrir como diabos explicar
qualquer coisa que está acontecendo na minha cabeça.
Atlas não espera por nenhuma das cuidadosas políticas
familiares que muito claramente estão ocorrendo ao nosso redor.
— O que está acontecendo é que você tentou forçar o vínculo
com Oli, e acha que ser a merda de um Draven significa que pode
fazer qualquer coisa sem consequências. Vou te torturar e depois te
matar.
Bem, porra.
Eu me encolho um pouco, porque estou esperando uma resposta
mordaz imediata ou que algum soco seja dado, ou mesmo um dom
sendo usado, mas a sala volta a ficar em um silêncio estranho.
North encara Nox por um segundo, então pergunta:
— Você fez isso?
Só os vi interagindo à mesa de jantar e North sempre permite que
ele arranque pedaços de mim com suas palavras, sequer uma vez
interrompeu ou mandou o irmão me deixar em paz. Isso aqui
parece... bizarro. Ele está agindo como se Nox fosse um homem
despedaçado, usando luvas de pelica e palavras calmas com ele.
Este não é nem um pouco o homem que conheço e odeio estar por
perto.
Nox dá um sorrisinho e ergue uma sobrancelha para ele.
— Ela não disse não. Nenhuma vez. E gozou na minha mão,
então não, irmão, não a estuprei.
Será que o chão pode apenas abrir e me engolir inteira? Isso
seria ótimo, obrigada. Não quero mesmo ter que passar por isso.
Não, alguém me dê o abraço aconchegante da morte, porque foda-
se isso aqui.
Estou esperando Atlas direcionar um pouco da sua fúria contra
mim, demandar uma resposta ou só ir embora daqui, mas ele não
faz isso. Não, Atlas dá um passo à minha frente até estar me
ocultando por completo, em um movimento óbvio de proteção.
— Você literalmente ensina Introdução aos Favorecidos, todos
nós sabemos que você usou o vínculo de Oli contra ela. Você sabia
muito bem o que estava fazendo, e não vou deixar que a trate
assim. Você não é tão intimidador quando está enfrentando alguém
com um dom, cuzão.
Um sorrisinho se espalha pelo rosto de Nox, e seus olhos ficam
pretos de ponta a ponta.
— Tem certeza disso? Venha encarar então, tenta.
Meu cérebro desliga por um segundo, porque os olhos dele estão
pretos. Pretos. Nunca vi alguém com os mesmos vazios
intermináveis que os meus, mas nesse momento os de Atlas ficam
brancos e o perigo da situação me atinge. Estou prestes a me ver
no meio de uma porra de briga de Favorecidos e não tenho como
me proteger.
Atlas dá um sorrisinho de volta para Nox e começo a procurar ao
redor por algo atrás do qual me esconder, ou por uma saída
aparecendo de forma mágica.
— Se qualquer um dos dois disparar um único ataque contra o
outro na minha casa, na frente do meu Vínculo, vou encerrar essa
briga e nenhum de vocês quer isso.
Olho para North e quase desmaio, inferno, porque não apenas
seus olhos estão pretos, mas sua mão, que está esticada e pronta
para disparar nos dois seja que lá o que diabos seja seu poder,
também está escurecendo aos poucos.
Eu deveria mesmo ter sido mais insistente a respeito de descobrir
o que todos eles podem fazer, porque... bem, com que porra ele
está ameaçando os dois que faz até mesmo Nox hesitar? Que
outros dons dariam a eles olhos pretos brilhantes, tão parecidos
com os meus?
— Bassinger, você é bem-vindo a passar a noite com Oleander.
Podemos discutir os arranjos de moradia depois, mas, por ora,
todos temos compromissos pela manhã.
Nem Nox consegue discutir com isso.
 
*
 
North leva tanto Atlas quanto eu de volta para meu quarto sem
dizer nada e tranca a porta após sair. Ainda estou me contorcendo
de vergonha por causa de toda essa provação, mas Atlas logo tira
as roupas até ficar de cuecas e se deita na cama como se tudo isso
fosse muito normal, e não a pior noite da minha vida desde que
cheguei aqui.
Durmo mal pra caramba, e todas as vezes que abri os olhos
durante a noite vi Atlas olhando carrancudo para o teto, então sei
que ele também não dormiu nada. Às seis da manhã, acordo com
uma mensagem de Gabe dizendo que ele vem me buscar para
nosso treino da manhã, então decido levantar logo e dar início ao
dia.
Tomo um banho rápido, muito feliz, apesar de tudo, por ter um
banheiro particular sem fofoqueiras falando merda para mim
enquanto me lavo. Quando estou vestida e pronta, volto para o
quarto e encontro Atlas vestido, esperando por mim na cama, com o
rosto ainda solene.
Entro em pânico e minha boca começa a tagarelar um pouco.
— Tenho treinado com Gabe, é um treino brutal que Gryphon
montou, mas tem ajudado com o TT. Vivian está impressionado com
meu desenvolvimento desde que cheguei aqui. Você vai gostar dele,
ele é rabugento e tenta matar a gente no labirinto do porão, mas
gosto do velhote.
— Sei bem quem Vivian Wentley é, Oli, mas agora estou mais
preocupado com você. Precisamos decidir qual nosso plano aqui,
porque já falei com minha família. Eles querem que a gente volte
para a Filadélfia e coloque alguns milhares de quilômetros entre nós
e os merdas dos Draven até termos a chance de nos conhecermos
um pouco melhor... você tem muitas opções aqui, não quero que
façam você achar que essa é a única. Você não é uma prisioneira,
não é uma propriedade de quem Nox pode abusar como bem quer.
Eu me encolho e passo uma mão no rosto.
— Você ouviu o que ele disse, não é o que você está pensando.
Eu poderia ter o empurrado e não fiz isso. A culpa é minha.
Atlas se levanta e suspira.
— Você ouviu o que eu disse também, Oli. Ele sabia o que estava
fazendo. Você é uma Central, literalmente todas as fibras do seu ser
querem esse vínculo, e ele usou isso contra você.
Não gosto do que ele está dizendo, porque estou sentindo que
ele acha que sou impotente contra o vínculo dentro de mim, e acho
que ontem à noite provei que não sou. Fui uma bendita máquina
lutando para impedir a vinculação, e mesmo que o que aconteceu
depois não tenha sido o que chamaria de algo ótimo, estou
orgulhosa pra caramba de mim mesma.
— Não quero mais falar sobre isso. Será que podemos só... ir pro
treino e decidir todo o resto depois? Eu... apenas estou cansada.
Ele suspira de novo e concorda com a cabeça, passando a mão
na nuca e oferecendo a outra para eu segurar. Não importa que
ainda esteja um pouco magoada por suas palavras, mesmo assim,
eu a seguro, pois, pelo menos, sei que ele está tentando fazer o que
é melhor para mim.
Mais ninguém pode dizer o mesmo.
No momento em que a porta fecha atrás de nós, percebo que não
faço nenhuma ideia de como chegar no andar de baixo, mas quando
fico paralisada, Atlas ri e me puxa.
— Memorizei o caminho ontem à noite.
Dou uma bufada para ele por ser tão bom assim em se localizar,
mas fico feliz por não precisarmos chamar North para nos guiar.
Quando chegamos no saguão, Gabe já está esperando por nós,
vestido em suas roupas de treino e com uma carranca no rosto.
Atlas entra na defensiva, sempre pronto para brigar com qualquer
um que não seja eu.
— Se estava esperando ficar sozinho com Oli, você é um merda
sem sorte porque não vou confiar em nenhum de vocês com ela
depois da noite passada. De jeito nenhum.
Os olhos de Gabe se dirigem a mim, mas evito olhar neles.
Sendo honesta, só quero que o dia acabe o mais cedo possível.
Quero subir numa esteira e passar um tempo sozinha tentando
decidir o que diabos vou fazer.
Será que eu deveria ir para Nova Iorque com Atlas e começar
uma vida nova lá? Devo continuar com meu plano de fugir de todos
eles?
Gabe não diz uma palavra a nenhum de nós, ele com certeza já
ouviu a versão de alguém sobre o que aconteceu na noite anterior e
em vez disso só sai andando na direção de sua moto e coloca o
capacete.
Atlas segura minha mão e me leva até seu carro, abre a porta
para mim e me ajuda a entrar como um perfeito cavalheiro. Minha
cabeça está um caos e não tenho um pingo de energia para ficar de
conversa fiada com ele esta manhã.
Ouvimos música no caminho, nenhum de nós diz nada, e é só
quando chegamos ao campus e encontramos a entrada bloqueada
por obras na rua que Atlas xinga baixo:
— Você sabe de algum outro lugar perto onde eu possa
estacionar?
Eu o oriento até o outro lado do campus, e encontramos Gabe já
esperando por nós ali, assim como uma dúzia de outros carros.
A hora seguinte é um tipo especial de tortura.
Atlas transforma “ser melhor que Gabe em tudo” em sua missão,
os dois se cutucam o tempo todo com comentários mordazes, e
nunca desejei tanto fones de ouvido e música pop alta na vida.
Quando Sage me manda uma mensagem para a encontrar no
refeitório e tomar café da manhã, estou pronta para matar os dois e
apenas saio sozinha. Os dois me acompanham, flanqueando-me
como se fossem meus próprios seguranças mal-humorados, mas
não estou a fim de tentar melhorar o clima.
Com sorte, Sawyer está com Sage e pode assumir a tarefa.
Estamos no meio do caminho para o prédio quando meu dom
começa a se retorcer nas minhas entranhas, um primeiro alerta
vindo de dentro de mim de que algo está muito, muito errado aqui.
Os dois garotos param e seguram meus braços para me fazer parar
com eles.
Atlas ergue uma sobrancelha para mim, mas os olhos de Gabe
reluzem brancos enquanto ele olha o entorno, usando sua
habilidade de metamorfo para melhorar sua visão, então ele xinga
com força em voz baixa, pega o celular em um segundo e seus
dedos começam a voar pela tela.
— Corram. Precisamos buscar abrigo agora mesmo.
Ele não precisa dizer duas vezes.
Disparamos em direção ao prédio principal, minhas pernas
doloridas ficam infelizes de terem que correr de novo, mas estou
muito mais rápida e mais resiliente agora que temos treinado há
tanto tempo. Agradeço a Vivian mentalmente por todo o tempo que
passei na esteira graças a ele. Posso ver Atlas se forçando para
manter meu ritmo, é óbvio que ele é mais rápido quando não tem
que cuidar de mim, mas Gabe está acostumado a se manter do meu
lado. Ele pega o celular sem vacilar um passo, dá alguns toques na
tela e volta a enfiá-lo no bolso.
— North está a caminho e Gryphon já está no campus, só
precisamos te levar a um ponto de evacuação — diz Gabe com a
voz em um volume que apenas nós conseguimos ouvir por cima do
barulho de nossos pés pisoteando a calçada.
Atlas acena para ele, pronto para segui-lo, embora eles tenham
se provocado a manhã toda, porque Gabe conhece esse lugar
melhor do que nós dois. Quando chegamos ao refeitório, ocorre
uma explosão no lado leste do campus, e o barulho é tão alto que
meus dentes batem, Atlas me segura rápido e me tira do chão,
curvando-se ao meu redor como um escudo humano. Não consigo
respirar por um segundo, mas, logo em seguida, Gabe está nos
empurrando para fora do caminho, para trás de um prédio.
— Esse é um ponto de evacuação? Achei que a gente precisava
ir para o prédio principal? — reclama Atlas, mas Gabe mal está
ouvindo.
— Dara? Porra, não consigo ver merda nenhuma aqui, você deve
estar por perto.
Ele está literalmente falando com uma parede de tijolos e estou
prestes a conferir se há ferimentos em sua cabeça quando o ar ao
nosso redor tremeluz e, de repente, há um grupo de alunos parados
juntos ali, pálidos como uma folha de papel e murmurando uns com
os outros sobre que porra está acontecendo.
— Graças a Deus! Ardern, onde estão Shore e os Draven? A
gente viu pelo menos oito grupos da Resistência, deve ter cinquenta
ou sessenta deles aqui!
Porra, reconheço a voz no mesmo instante, e sim, é o merda do
Martinez. Tento me convencer de que agora talvez não seja a
melhor hora de me apegar a ranços, mas também não consigo
evitar odiar esse cara.
— As Equipes Táticas já estão os neutralizando, só precisamos
ser discretos e esperar acabar — diz Gabe, com uma voz confiante
e clara. A mudança no grupo é instantânea, um pouco da
preocupação e do pânico se dissipa como se a palavra dele tivesse
de fato importância para o grupo. Gostaria de sentir o mesmo, o
medo ainda está me percorrendo, mas minha cabeça ainda está
clara o suficiente para eu ver o que está acontecendo ao meu redor.
Isso não é bem uma coisa boa, ainda mais quando outro grupo
da Resistência passa correndo por nós em suas roupas de combate.
Fico de boca fechada e abafo minha própria respiração, para o caso
de fazer algum barulho descuidado e entregar nossa posição.
Então as portas do prédio que dão para o pátio abrem e os
estudantes saem correndo em todas as direções. O grupo da
Resistência vira e logo vai atrás deles. Um dos caras na frente
dispara uma onda de fogo e preciso desviar os olhos, pois de jeito
nenhum vou assistir gente sendo queimada viva agora.
— Ardern, não saia de perto de Oli — diz Atlas, então ele se vira
e corre para fora do escudo, indo direto para o Flama na mesma
hora em que os gritos de suas vítimas começam.
Gabe xinga baixinho e olha para ver quem mais está no grupo
conosco, mas nenhum deles faz menção de ajudar. Ele me olha de
novo e eu aceno para ele.
— Vai. Vá ajudar Atlas, vou ficar bem.
Por um momento, ele hesita mais uma vez, então segura meus
dois braços.
— Dara é o melhor escudo que já vi, ninguém vai saber que você
está aqui enquanto ela estiver ao seu lado. Não saia desse lugar,
Oli. Prometa.
Há outro barulho de explosão, então Gabe está arrancando as
roupas, chutando os sapatos e se transformando tão rápido que mal
posso dizer que testemunhei o momento. Em um segundo, ele está
de pé ali, pura pele dourada esticada sobre seu corpo musculoso, e
no seguinte, um enorme lobo está parado em seu lugar.
Nunca tinha visto um metamorfo de perto.
É incrível pra caralho.
Fico parada ali sem a menor intenção de sair. Não posso, não
sem usar meu dom, e não há motivos para fazer isso neste exato
momento. Não posso ajudar as pessoas queimando, e confio que
Gabe e Atlas vão fazer o que puderem para parar a batalha. Os dois
são muito mais úteis do que eu nesse momento, e tenho que
acreditar que os outros estão a caminho para nos encontrar.
Então o escuto, o grito de Gracie que vem de trás de nós.
— Ai meu Deus, Sage! SAGE!
Não.
Porra, não mesmo. Só por cima do meu cadáver que vou deixar
alguma coisa acontecer com a única pessoa que me aceitou sem ter
quaisquer motivos ou expectativas.
— Fallows, caralho, você é idiota. — Não fico esperando para
ouvir o restante da merda da opinião de Martinez e saio correndo.
Há fumaça por todos os lados, mas sigo os sons dos gritos de
Gracie até literalmente atropelá-la por causa da minha visão
prejudicada pelo resultado da explosão.
— Oli? Ai meu Deus, por favor, onde estão seus Vínculos? Eles
pegaram a Sage, eles...
Agarro os braços dela e lhe dou um chacoalhão, como se
pudesse fazer a informação de que preciso sair dela desse jeito.
— Onde, Gracie? Onde ela está, porra?
Ela não chega a responder, porque ouço uma voz, que eu torcia
para nunca mais ouvir na vida, gritar:
— Pico de energia! Peguem aquela lá.
Eu já sei que Sage é forte, ouvi histórias sobre como ela
desenvolveu seus poderes, e seu controle elemental é de elite. E é
por esse motivo que não saio correndo desesperada para me
esconder quando a voz de Olivia interrompe o caos.
Olivia Turner.
O cão farejador da Resistência está aqui para encontrar os
Favorecidos dignos de serem levados, o que significa que já
pegaram Sage, e agora me encontraram. Não posso ajudar Sage, a
não ser que permita que me levem também.
É idiota e irresponsável, e não dou a mínima para isso porque ela
é a porra da minha melhor amiga.
Então fico parada ali, empurro Gracie para longe de mim e
resmungo para ela:
— Corra.
Então deixo eles me levarem. A fumaça está densa demais para
enxergá-los antes que suas mãos já estejam fechando em meus
braços, e resisto um pouco, como se estivesse tentando fugir,
enquanto me carregam. Os dois homens que me seguram estão
com máscaras que cobrem todo o seu rosto, então eles vieram
preparados para o exato ataque que planejaram para hoje.
Quando paramos atrás de um caminhão de comboio, olho para
cima e meus olhos encontram uma Sage bastante aterrorizada,
presa e amordaçada na traseira. Suas pálpebras se arregalam e ela
começa chorar ao me ver. Não são lágrimas de alívio por eu estar
com ela. Não, ela está surtando porque agora eu também estou em
perigo.
Se antes eu não tivesse certeza de que estava fazendo a coisa
certa, teria agora.
— Carrega ela, os Draven estão limpando o pátio, e se não
sairmos daqui nos próximos trinta segundos, vamos morrer.
Abaixo a cabeça ao ouvir a voz de Olivia. Droga, espero que ela
não me veja agora. Os homens que estão segurando meus braços
me erguem e me jogam no caminhão com Sage. Um dos dois sobe
depois de mim, e em seguida partimos, o caminhão dispara rápido
demais, todos esbarramos e empurramos uns aos outros enquanto
tentamos ficar em pé sem poder usar os braços para nos equilibrar
ou ter como nos segurar.
Há outro grito quando o caminhão vira na estrada, acertando um
buraco que quase nos faz cair em uma vala, mas o motorista
consegue corrigir o curso e manter todos vivos. Olho pela abertura
dos fundos e vejo Kieran correndo atrás de nós, já com uma arma
na mão, mas não tem como ele dar um bom tiro, não sem arriscar
atingir um dos prisioneiros ou fazer o caminhão tombar.
Quando o vejo pela última vez, está segurando o celular na
orelha.
24

PERCEBO BEM RÁPIDO QUE não estamos lidando com


brutamontes de nível inferior neste veículo.
Um Abafador está sentado na outra fileira, deixando todos que
capturaram sem poder acessar seus dons, e com certeza há um
Escudo a bordo, porque costuramos pelo tráfego e passamos por
sinais vermelhos sem um único obstáculo ou alguém buzinando
para nós e, depois de meu cativeiro forçado no campus Draven, não
faço ideia de onde estamos ou em que direção nos levam. Sage
mantém a cabeça baixa, mas posso ver que está conferindo a
paisagem de maneira discreta e monitorando nossa posição, então
tenho esperanças de que seremos capazes de encontrar o caminho
de volta quando conseguirmos escapar dessa confusão em que nos
metemos. Estou muito ciente de que nenhuma de nós duas está
Vinculada e temos apenas o chip GPS em minha nuca para ajudar a
nos localizarem.
Poderia ser pior.
Não existe muitos cenários piores que isso, mas não estamos
feridas de forma grave ou morta, ninguém está tentando nos torturar
ou estuprar ainda, e existe um jeito de sermos localizadas, então me
concentro nisso.
O cara que prendeu meus braços para trás está sentado entre
Sage e eu, ainda com a máscara cobrindo o rosto, como se
estivesse preocupado com algum de nós emitindo gases tóxicos e o
nocauteando, ou algo do tipo. Que droga, onde está Zoey quando
precisamos dessa vaca?
Há outros três alunos no caminhão, todos presos e amordaçados,
e mais dois membros da Resistência. Ninguém fala, os sons do
motor e da rua lá fora estão altos demais para discernir qualquer
coisa aqui na traseira aberta. Quando a paisagem começa a se
transformar rápido de prédios e estacionamentos a pastos abertos e
áreas amplamente arborizadas, começo a ficar nervosa. Eu estava
torcendo para terem um prédio protegido na cidade, onde nos
manter por alguns dias. Esse costuma ser o modus operandi deles,
esperar até que a poeira abaixe um pouco antes de transportar sua
carga de humanos.
Um campo significa que estão planejando nos testar e ir embora.
Sage vai sobreviver e ser transportada. Se eu não acessar meu
dom, há uma boa chance de que eles tentem me matar, o que só vai
engatilhar meu dom a me proteger e aí, de novo, estaremos todos
fodidos.
Guardar ou pôr para fora, tenho que decidir agora.
De repente, o caminhão volta a sair da estrada, sem diminuir a
velocidade, e meu corpo esbarra no cara ao meu lado, fazendo o ar
escapar dos meus pulmões. O cara grunhe e me empurra para
longe, como se fosse culpa minha o motorista ser doido e eu não ter
mãos livres para me segurar. Um dos rapazes sentados na outra
fileira sai voando e acaba esparramado no chão na nossa frente,
com sangue jorrando de um ferimento em sua cabeça.
Meu estômago revira e preciso me lembrar de que ferimentos na
cabeça sangram pra caralho e provável que ele não está tão ferido
assim, mas, de qualquer forma, é difícil não ficar enjoada vendo
isso. Ninguém tenta ajudá-lo, e, quando passamos por outro buraco,
ele geme com a dor de estar sendo jogado.
O caminhão para de forma abrupta, e o cara entre mim e Sage
resmunga, soca o painel de metal e grita:
— Puta que pariu, Daniels, se controla antes que você mate
todos nós!
Daniels.
É um hábito antigo, mas registrar tantos nomes quanto posso já
salvou minha vida antes, então logo volto a fazer isso. Há portas
abrindo e batendo ao nosso redor, mas ninguém se move até
abrirem a traseira. É frustrante para mim que todos ainda estejam
usando essas máscaras, porque não sei se algum deles é alguém
que pode me reconhecer.
Não vou saber até ser tarde demais.
Um deles fala, mas é impossível dizer qual:
— Descarreguem eles, vamos ser transportados em cinco
minutos e não vamos levar parasitas ou projetos de caridade.
O cara que está no chão é o primeiro a ser movido, erguido e
jogado para fora do caminhão, e uma integrante da Resistência
retira a máscara para dar uma olhada nele. Ela tem cabelo loiro
cortado rente ao crânio e uma tatuagem de uma rosa sob um dos
olhos. Ela não parece maligna, mas já aprendi que até mesmo as
pessoas de aparência mais meiga e gentil podem ser monstros.
— Ele é forte, um Elemental. Eu ficaria com ele.
Um dos outros remove a máscara e retruca:
— Elementais dão mais trabalho do que valem a pena.
Precisamos de soldados, não de alguém para se certificar que o dia
lá fora tá bonito.
Ela encolhe os ombros e arrasta o cara para a esquerda, tira uma
arma e dá um tiro à queima-roupa na cabeça dele. Um dos
Favorecidos à minha frente no caminhão grita, o barulho é abafado
pela mordaça, mas, ainda assim, de perfurar os ouvidos.
Me ocorre que é nessa hora que meu trauma se deixa
transparecer, porque não há nada nos fragmentos de crânio voando
por todos os lados ou no sangue e massa cinzenta que me
incomode. É como se a versão de mim que ficou enjoada ao ver
sangue um pouco antes tivesse desaparecido e sido substituída por
minha versão sobrevivente. A garota que um dia... bem, vamos só
dizer que minhas mãos não estão tão limpas quanto eu gostaria que
estivessem.
Na verdade, não há muita diferença entre mim e a loirinha com a
arma.
Nada além de em qual lado da disputa estamos.
Um de cada vez, somos levados para sermos testados. Sage é
aprovada no mesmo instante, e a empurram para esperar o resto de
nós. A outra garota é uma metamorfa, e passa. O último cara é um
Flama, mas não é tão forte quanto Sage. Eles debatem por um
minuto antes de decidirem ficar com ele. Sou empurrada para a
frente da examinadora por último, e minha respiração fica parada no
peito.
Dessa distância, eu a reconheço.
Preciso me forçar a não entrar em pânico. O plano não mudou,
se ela lembrar quem sou, vou deixar meu dom sair e usar todo meu
autocontrole para impedir que Sage e os outros Favorecidos
acabem sendo danos colaterais.
Depois, eu fujo.
Carlin, a loirinha com a arma, que era uma morena sem tatuagem
no rosto da última vez que a vi, franze o cenho enquanto me
analisa. Ela não me reconhece, mas também não faz ideia do que
sou e do que sou capaz.
O cara sem máscara estoura:
— E aí? Vamos ficar com ela ou não? Porque agora falta menos
de dois minutos para o transporte, precisamos ir.
Ela curva os lábios e retruca:
— Ela é poderosa demais para descartar, mas não consigo ver o
que ela é. Ela está em... branco.
— Não vamos levar parasitas, mate logo.
Carlin guarda a arma e nega com a cabeça.
— Você não me ouviu, Daniels? Ela literalmente está vazando
poder por todos os lados, não se mata esse tipo de potencial.
Ele bufa e segura meu braço.
— Não consigo sentir, mas certo, você pode cutucar e a examinar
depois para descobrir o que essa aí esconde.
É claro que ele não consegue sentir, apenas gente como Carlin
seria capaz de notar o poder que estou controlando de forma tão
desesperada, só para impedi-los de saberem a respeito. Já a vi
segurar crianças pequenas e determinar suas habilidades com
exatidão, ela é mais forte do que a maioria no que consegue fazer.
Ela vai ficar furiosa quando perceber quem eu sou.
Somos levados até um campo aberto, deixando o caminhão e o
corpo do Favorecido morto sem pensar duas vezes, e, embora eu
não consiga ver nenhuma marcação, paramos em um ponto muito
específico. Então os membros da Resistência tiram suas luvas e
seguram uns nos outros e em cada um de nós até estarmos todos
nos tocando, pele com pele.
Há um som de estalo, então uma mulher aparece do nada e
coloca uma mão em Carlin.
O próximo estalo é mais alto e meu estômago revira quando
somos transportados.
Odeio essa merda.
Podemos estar em qualquer lugar agora. Literalmente qualquer
lugar. Uma vez, fui transportada por duas semanas para o Egito
para escapar de uma Equipe Tática de reconhecimento que era
muito boa. A sensação de ser transportada desse jeito me deixa
enjoada, e caio assim que nossos pés voltam a tocar o chão, com
náuseas e tentando não chegar a vomitar.
Daniels me segura e me coloca de pé com brutalidade,
arrastando-me com ele, e preciso lutar contra o caos em minha
cabeça para conseguir dar uma olhada no lugar em que estamos.
Não reconheço o acampamento, mas já estive em um desses
antes. É um limbo, um lugar para fazer o inventário e peneirar os
Favorecidos que foram sequestrados até encontrarem os que
querem. Passei duas semanas em um quando fui levada pela
primeira vez, e acho que foi mais para me assustar, porque eles
sabiam antes de me levar que eu era valiosa.
Somos todos levados a uma tenda e, quando nos arrastam para
dentro, encontramos jaulas e as babás.
Por um golpe de sorte, Sage e eu somos enfiadas em jaulas
vizinhas, nossas mãos são liberadas e as mordaças retiradas antes
que as portas sejam trancadas às nossas costas. Espero até eles
saírem para olhar ao redor direito.
As babás estão nos ignorando, como se quatro novos rostos não
fosse nada para eles, e tenho certeza de que sequer nos notam. O
trabalho deles é nos nocautear se começarmos a dar problemas e
ouvir tudo que dissermos, coletando informações que possam ser
usadas contra nós.
As abas da tenda voltam a se abrir e três homens enormes
entram carregando outro Favorecido amarrado e amordaçado entre
eles. Fecho meus olhos com força e contenho meu vínculo dentro
de mim, porque não posso permitir que saibam que o Favorecido
que estão carregando e eu somos Vínculos.
Aperto ainda mais os olhos quando ouço eles o jogarem no chão,
grunhindo e o chutando, enquanto fecham a porta atrás de si.
— Ele derrubou dezoito homens, esse cara já tá morto.
Calafrios sobem por minha espinha, mas Carlin diz em um tom
tranquilo para eles da entrada:
— Ele é um dos Vínculos do grupo da família Draven, se algum
de vocês tocar nele, eu mesma vou puni-los. Estamos chegando
perto.
Daniels olha para cada uma das jaulas, mas seus olhos não
veem nada de especial quando passam por mim.
— Ele se entregou. Quando estivermos com toda a carne fresca
aqui, vamos precisar encontrar de quem é que ele veio atrás, pois
aposto que temos o Central dele aqui nesse grupo.
Bem, droga.
Porra.
Carne fresca.
Já faz anos desde que pensei nesse adorável termo, cinco anos
desde que recebi esse rótulo, antes que eu ficasse esperta e
aprendesse como as coisas funcionam nos campos da Resistência.
Vou precisar usar essa merda a nosso favor hoje.
Se consegui escapar uma vez, posso fazer isso de novo. Já
aceitei o que isso vai me custar.
Fecho meus olhos e finalmente, finalmente, deixo meu dom
preencher minhas veias, e sinto meu corpo todo mais aguçado e
mais capaz assim que destranco essa porta dentro de mim e
permito que ele tome o controle. É como se eu tivesse bebido um
elixir de luz pura, e cada célula do meu corpo se transforma e volta
à vida. Faz três longos anos que tenho aprendido a viver sem isso e
me perdendo de mim aos poucos, enquanto meu corpo se adaptava
e se tornava nada além de... humano. Desfavorecido.
Normal.
Os olhos de Sage arregalam quando ela olha para mim, e sentir
meu dom irradiando de cada um dos meus poros faz seus próprios
sentidos entrarem em alerta máximo. Há poder demais pulsando em
minhas veias para que ela não sinta, a maldição da minha vida é
que todos os Favorecidos podem sentir o quanto sou perigosa.
Todos nós temos esse detector de poder dentro de nós para saber
quando o perigo está por perto.
Levo um dedo aos lábios em um gesto para ela ficar em silêncio,
e ela dá um aceno sutil com a cabeça, cuidadosa para não atrair
mais a atenção de nossos captores, mas todos eles estão ocupados
transportando toda sua carne fresca. Mais cinco Favorecidos são
trazidos, e não reconheço nenhum deles.
Mantenho os olhos baixos e me concentro na respiração de
Gabe.
No segundo em que ele acordar, vamos dar o fora dessa porra.
 
*
 
Leva apenas dez minutos para os Favorecidos começarem a
conversar entre si, sussurrando e surtando uns com os outros a
respeito de onde estamos, o que vão fazer com a gente, ou quando
vamos sair dessa confusão. Quando Sage olha para mim, coloco
um dedo nos lábios e nós duas olhamos para os babás de novo.
Só temos que ser pacientes e orar para Gabe acordar logo,
porque nenhuma de nós consegue carregá-lo e nossos dons
também não vão ajudar com isso. Então esperamos. Ficamos
sentadas ali e esperamos conforme o dia passa. Em alguns
momentos, há gritos e berros do lado de fora, mas ninguém mais
entra na tenda. As pontas dos meus dedos começam a formigar
com poder, como se meu dom estivesse irritado por eu tê-lo
chamado, mas não ter feito nada ainda, e os olhos de Sage
arregalam para mim quando ela o sente.
Quando Gabe enfim geme, não consigo evitar um pulsar do meu
poder, meu alívio envia uma onda tangível que faz a tenda toda cair
em silêncio.
Os dois babás olham para mim, sua atenção, por fim, foi
despertada o suficiente para se aproximarem.
— Foi a anomalia, Fiona. Você devia ir lidar com isso para a
gente não tomar uma surra por brincar com ela.
Fiona se levanta da cama dobrável em que estava jogada, e seus
olhos escuros disparam para mim antes de começarem a brilhar.
Nada.
Nem sequer registro a tentativa dela de me nocautear, e meu
poder se empertiga um pouco, todo presunçoso por não estarmos
mais à mercê de ninguém.
Já eu, estou menos presunçosa, pois sei que ser eu mesma de
novo não é motivo de empolgação.
— Forte demais pra você? Bem, não podemos aceitar isso, não
é? — o homem fala de novo, levantando-se e caminhando em
minha direção.
Os olhos dele brilham para mim, mas quando nada acontece, ele
xinga baixinho.
— Ela é um vazio, também não consigo derrubá-la.
É tão fácil quanto respirar. É o mesmo plano que usei para
escapar da Resistência da primeira vez. Gemo e me dobro na
cintura para apertar minha barriga, fingindo estar ferida. Não vão
tentar ajudar, mas como eu previa, eles se aproximam para dar uma
boa olhada em mim.
Há outro gemido e um grunhido, e olho para ver Gabe acordado,
com os olhos abertos olhando direto para mim. Vacilo por um
segundo com meu poder hesitando em minhas veias, porque talvez
eu conseguiria convencer Sage a não falar sobre isso, mas de jeito
nenhum Gabe vai manter meu dom em segredo.
Mas olho nos olhos de Gabe e decido que basta. Não posso
perder mais ninguém.
Não importa que eu não tenha tocado no meu dom em anos, a
fonte ainda está lá, esperando por mim. Sentir todo o verdadeiro
poder dentro de mim quando o chamo é como enfim inspirar fundo
depois de passar todo esse tempo dando apenas arquejos rasos.
Eu me sinto inteira de novo.
Gabe percebe, ele pode farejá-lo em mim, e seus olhos
arregalam. Ele é inteligente e está coerente o suficiente para ficar de
boca fechada, mas posso ver o choque registrado em seu rosto.
Contraio a mandíbula e me concentro, minha mão está tremendo
pendurada ao meu lado, mas preciso fazer isso direito. Se não
canalizar bem, posso perder minha melhor amiga e meu Vínculo, e
já vivi dor e desesperança suficientes. Não preciso adicionar suas
mortes à lista, mesmo que tenha desejado fugir de todos eles.
É nesse momento que Fiona percebe e reconhece o poder,
arregalando os olhos:
— Puta merda. Puta merda, o que ela está fazendo aqui?
O homem avança, como se estivesse tentando me ver melhor, só
que meu poder dispara e inunda seus corpos, agarrando suas
almas. Meu dom quer tomar tudo, mas eu o controlo e, em vez
disso, engatilho a escuridão dentro dos dois.
Ainda é tão apavorante quanto da primeira vez que fiz isso,
assistir seus piores pesadelos, medos e partes mais feias jorrarem
sobre eles, até estarem se contorcendo no chão, com as mentes
quebradas de forma irreparável.
Estão presos em seus próprios horrores e não vão escapar até
que alguém os poupe do sofrimento.
Agradeço a Deus que nenhum dos dois faz barulho, o normal é
que soltem pelo menos um grito abafado ou qualquer coisa assim
quando caem, mas agora que todos estão olhando para eles, tanto
com choque quanto com horror absoluto, não há um único som
dentro da tenda.
— Oli, que porra foi essa? Que porra você fez com eles? — Olho
mais uma vez para Gabe e o encontro se sentando com dificuldade,
com as mãos ainda presas às costas e os olhos arregalados para
mim, mas agora o tempo está correndo contra nós.
Qualquer um pode entrar aqui e ver o que fiz.
Estendo o braço até conseguir fechar a mão na perna do cara e
Sage, abençoada seja sua alma, no mesmo instante se mexe para
me ajudar a puxá-lo. É difícil pra caramba, mas conseguimos
apalpá-lo pelas barras até encontrarmos um conjunto de chaves.
— Que diabos vocês duas estão fazendo?
Eu me sobressalto, mas é só o cara no canto mais longe, enfim
saindo do seu estupor por ter visto o meu dom em ação. Ao invés de
respondê-lo, ergo um dedo até meus lábios para sinalizar que ele
precisa se calar antes que faça com que sejamos pegas. Ele pisca
para mim como se ninguém nunca tivesse mandado ele ficar quieto
antes.
Idiotas de merda.
Destranco minha jaula e depois a de Sage, e vamos depressa
para a de Gabe enquanto uma das outras garotas começa a chorar.
Espero que seja de alívio e que ela supere isso rápido, pois ainda
falta um longo caminho antes de sequer chegarmos perto de
estarmos em segurança.
Sage abre a jaula de Gabe e vai para a próxima pessoa,
enquanto entro para desamarrá-lo e tirá-lo dali. Ele pisca seus olhos
para mim de modo vago, lutando para os focalizar, e meu coração
fica apertado no peito vendo que fizeram sei lá que porra com ele.
Quando me agacho ao seu lado, ele diz rouco:
— Como você impediu eles de te derrubarem? Já vi Zoey fazer
isso uma centena de vezes.
Eu me atrapalho com a corda em volta de seus pulsos enquanto
tento soltá-lo.
— Você viu Zoey derrubar minha versão sem dom. Estou um
pouquinho mais turbinada agora. Não tenho tempo para explicar,
você consegue dar uma de Hulk e tirar essa corda?
A cabeça dele meio que rola nos ombros e começo a me
preocupar de verdade que ele tenha uma concussão ou sofrido
dano demais naquela sua cabecinha linda.
— Um deles me dopou, não consigo acessar minha
transformação. Porra, como você ainda está consciente, Oli?
Escarneço e dou um último puxão na corda, e quase grito de
alegria quando ela finalmente se solta.
— É óbvio que você não tem prestado muita atenção em
Introdução aos Favorecidos. Estou bem mais acima na cadeia
alimentar do que aqueles merdinhas, tanto assim que eles não são
nada pra mim... do mesmo jeito que você também está em um nível
superior e precisaram te drogar para contê-lo. Consegue se
levantar? A gente tem que ir agora.
Eu o ajudo a se levantar e sair da jaula. Por sorte, Gabe
consegue sustentar o próprio peso, só precisa de um pouco de
ajuda para se equilibrar de pé. Quando preciso segurar seu braço
para impedir que tombe para frente, ele contrai a mandíbula e eu o
observo se recompor, piscando de modo furioso e esfregando o
rosto como se pudesse forçar as drogas a saírem de seu organismo
apenas pela força de vontade.
Pigarreio para chamar a atenção dos presentes, todos os dez de
nós, agora fora das jaulas, e digo sem emitir um som que: nós
precisamos sair daqui.
Faço isso devagar, olhando para todos para me certificar de que
estão entendendo o que estou gesticulando. Depois digo da mesma
forma: quem ainda consegue usar seus dons?
Sage pode, e três outros. Temos uma Flama, um Metamorfo e
dois outros que não conseguem gesticular bosta nenhuma direito,
acho que é ou porque suas habilidades são mentais, ou estão
dizendo que foram atingidos na cabeça.
Ótimo.
Fecho os olhos, chamo meu poder para que ele saia e permito
que crie um mapa para mim. Isso é perigoso, mas só se eu alcançar
Carlin ou outro examinador com o mesmo nível de habilidade.
Então, algo mágico pra caralho acontece.
Encontro Gryphon.
Eu o sinto se assustar quando meu dom encosta nele. Sinto sua
incredulidade e então a onda de adrenalina, o alívio por eu estar
viva e aqui. Para onde quer que tenhamos sido levados, ou era
perto ou ele também tem um transportador. Kieran está com ele, e
nem consigo ficar irritada por esse imbecil estar aqui.
Então, encontro Nox.
Certo, esse me deixa menos feliz, ainda mais quando seu dom
tenta alcançar o meu. Ele está tentando descobrir que porra consigo
fazer, como sou capaz de mapeá-los, e todos os outros segredos
que escondi deles.
Eu me afasto deles.
Meus olhos abrem e fico na ponta dos pés para colocar os lábios
no ouvido de Gabe, e sussurro de forma tão suave que mal passa
de um suspiro:
— A cavalaria chegou.
Quando Gabe começa a cambalear, passo o braço dele sobre
meus ombros e envolvo sua cintura com o braço, enquanto nos levo
em direção à abertura da tenda. Desacelero minha respiração o
suficiente para usar meus sentidos aguçados.
Porra, é bom tê-los de volta.
Fico feliz por exato meio segundo, então os tiros e os barulhos de
luta começam.
Meus Vínculos foram encontrados.
25

UMA DAS GAROTAS NOS impede de sair rápido da tenda, o pânico


dela está tão intenso que ela colapsa no chão em meio a uma crise
de choro. Tento me lembrar que ela nunca teve que enfrentar esse
tipo de coisa antes, talvez nunca experienciou esse tipo de pavor e
perda em sua vida, mas é difícil não perder a paciência.
— Um de vocês vai ter que carregá-la, ou vamos deixá-la pra
trás. Precisamos ir agora. — Mantenho meu tom baixo, e embora
Sage olhe para mim, não fica chocada ou enojada pelo que eu
disse.
Ela está me olhando como se esperasse por instruções, uma
soldada perfeita em tempos de crise. Com uma fibra dessas, ela
deveria mesmo estar no TT, mas não vou tentar convencê-la a se
juntar a mim nas sessões de tortura.
Um dos caras agacha, murmura algo para a garota que está
chorando e a segura em seus braços, em seguida volta a se
levantar. Ele pressiona o rosto dela em seu peito e abafa os sons.
Espero até ela estar segura em seus braços, e então aceno em sua
direção.
Ele provavelmente acabou de salvar a vida dela.
Olho para Sage, que logo se aproxima e apoia o outro lado de
Gabe em seu ombro, pronta para defender o meu Vínculo intoxicado
por todo o caminho para sair desse buraco de merda, e eu lhe dou
um olhar de gratidão.
Ela encolhe um ombro em resposta.
— Você seria a primeira a defender Sawyer... ou Félix.
Porra, pode ter certeza de que seria. O único jeito de sair daqui é
se todos colaborarem e a gente fazer o lance de trabalhar em
equipe. Olho ao redor por um segundo, então murmuro para ela,
baixo o suficiente para que apenas ela e Gabe consigam me ouvir:
— Preciso saber se você consegue usar seus poderes se for
preciso... que você pode derrubar alguém se nossas vidas
dependerem disso. Não vou te pressionar nem julgar, preciso saber
para ser capaz te dar cobertura caso você necessite.
Gabe fica rígido em nossos braços, mas Sage só me encara,
firme como nunca.
— Posso fazer isso, Oli. Já vou precisar de uma porrada de
terapia depois disso, por que não acrescentar alguns homicídios no
meio?
Falho miseravelmente na tentativa de manter o sorriso fora do
meu rosto, mas não me sinto culpada, porque foda-se a Resistência.
— Boa, garota. Vou te ensinar a compartimentalizar como uma
profissional quando estivermos em casa, em segurança.
O braço de Gabe aperta em volta de mim e ele murmura:
— Vamos conversar sobre isso quando voltarmos, Oli. Vamos
conversar sobre um monte de merdas.
Reviro os olhos e, em seguida, os fecho para lançar meu poder e
verificar se ainda podemos sair sem obstáculos daqui, no mesmo
instante, eu me assusto e avanço para abrir a tenda.
Kieran está correndo em nossa direção.
— Porra, como ele chegou aqui tão rápido? — resmungo e Gabe
suspira aliviado ao ver meu membro menos favorito da Equipe
Tática.
— Black é um Transportador.
Nós nos afastamos para deixá-lo passar, e o espaço todo se
encolhe no segundo em que ele entra, vestido em seu uniforme
completo, com um monte de armas presas ao corpo.
Ele olha para Gabe, que gesticula para tranquilizá-lo:
— Me drogaram, mas estou bem. Você está ficando mais rápido
em encontrar civis.
Kieran olha de um jeito estranho para ele, então acena com a
cabeça para mim.
— O dom de Fallows é como um farol. Eu o segui até aqui para
encontrar vocês. Algum ferimento? Precisamos nos mobilizar e sair.
Shore só vai conseguir atrasá-los por um certo tempo, mesmo com
a ajuda de Draven.
Os olhos dele por fim encontram Fiona e o amiguinho dela onde
ainda estão se balançando e contorcendo no chão perto das jaulas.
O sangue está começando a escorrer devagar dos seus ouvidos e
olhos, mas estou tentando não olhar muito para nenhum dos dois.
Se eu olho, meu dom fica um pouquinho animado demais, e preciso
ser cuidadosa para não permitir que ele tome o controle, e com isso
me consuma e destrua tudo e todos no meu caminho, quer seja
amigos ou inimigos.
Observo Kieran processar o estado deles e recuar um pouco os
ombros e, quando olha para mim de novo, está cauteloso, como se
esperasse ser o próximo na minha lista de vítimas.
Gosto um pouquinho demais dessa sensação.
— Estamos prontos para ir — Sage responde por todos nós,
atraindo sua atenção para longe de mim e endireitando os ombros
como se estivesse se preparando para uma briga.
Se com Kieran ou com a Resistência, não tenho certeza, mas, de
qualquer forma, aposto meu dinheiro na vitória dela.
— Fallows, fique atrás de mim e por perto o caminho inteiro. Você
é minha prioridade máxima e, se alguma coisa acontecer, minha
única ordem é levar você viva até o ponto de evacuamento, não
importa o custo. Se você quer que Ardern e a Flama saiam daqui
com vida, vai precisar obedecer, porque vou abandonar os dois em
um segundo para te tirar daqui.
Esse homem desgraçado usando meus gatilhos... vou acabar o
matando antes de chegarmos até meus Vínculos.
Minhas mãos seguram Gabe com mais força e meus lábios se
curvam para ele.
— Boa sorte tentando me fazer deixar qualquer um dos dois para
trás, vou te deixar gritando no chão antes de você conseguir
encostar em mim. Não importa, todos nós vamos te seguir. Não vou
quebrar as regras, vamos logo dar o fora daqui.
Kieran sai tão rápido da tenda que não tenho tempo para ficar
nervosa ou preocupada, minhas pernas apenas se movem no modo
automático para acompanhá-lo. Gabe cambaleia um pouco no
primeiro passo, então fica firme como uma rocha, mal precisando do
apoio que eu e Sage estamos lhe dando.
Não olho para trás para ver se todos estão nos seguindo, fizemos
tudo que podíamos pelos outros, tudo que precisam fazer agora é
acompanhar, mas meus olhos estão ocupados observando as
mudanças que ocorreram no acampamento desde que fomos
arrastados para cá duas horas atrás.
Há sangue por todos os lados, buracos de bala e marcas de
queimado estão espalhados por todas as tendas e a grama ao
nosso redor. Há corpos também, gritos e barulhos de tiros vindos de
todas as direções, e preciso me obrigar a respirar de modo normal.
— Precisamos da merda de um Escudo — murmura Gabe,
tentando se afastar de mim, mas eu o seguro com mais força.
Mantê-lo em movimento é uma distração boa pra caramba da
carnificina ao nosso redor, além disso, significa que sei onde ele
está o tempo todo. Meu vínculo está vibrando no meu sangue, em
uma corrente constante que diz proteja todos eles sobre a qual não
tenho nenhum controle.
Preciso que ele fique em segurança.
Kieran derruba três membros da Resistência em fuga para
passarmos pelas tendas, e parece fácil demais para mim, até que
viramos uma esquina e vejo de que porra eles estão fugindo.
Isso não é nem um campo de batalha, é um massacre.
Névoa preta e densa cobre o lugar inteiro, mas é... senciente. E
repleta de criaturas malformadas que parecem mais demônios
saídos de um pesadelo do que qualquer coisa que exista na
natureza. Meus pés tropeçam e Gabe geme ao me segurar,
murmurando:
— É Nox, eles não vão tocar na gente.
Hum.
Não tenho dúvidas de que Nox deixaria seu dom arrancar um ou
dois pedaços de mim, e quando Kieran se ajeita colocando a
máscara de volta no rosto com firmeza, como se também estivesse
preocupado em andar por ali, decido que não quero mesmo ir lá.
— Oli, a evacuação é do outro lado. Precisamos nos mexer...
Kieran interrompe Gabe:
— Faça Fallows andar, Ardern, ou ela vai o resto do caminho em
cima do meu ombro.
Não tenho escolha a não ser segui-los.
Achei que soubesse o quão ruim seria, mas na verdade não tinha
ideia. No momento em que penetramos a escuridão, cobrindo os
olhos para nos ajustarmos ao ambiente turvo, consigo ver todos os
membros da Resistência presos aqui, sendo aleijados e
despedaçados pelas criaturas.
Nem percebo que parei de novo até Kieran agarrar meu braço, o
que não está abraçando Gabe, e rosnar para mim:
— Não temos tempo para você ter um surto por causa das
criações adoráveis dos Draven. Entendo, ele é um monstro, mas
você precisa por essa bunda em movimento.
Por instinto, eu me encolho para longe dele, mas não chego
muito longe com o aperto que ele mantém em mim. Kieran se
recusa a me soltar e me arrasta através do campo, até
encontrarmos a Equipe Tática completa, incluindo Nox e seus olhos
vazios enquanto destrói cada último membro da Resistência em que
seu terror enevoado toca.
Se os Draven são monstros, então o que eu sou?
 
*
 
Dessa vez, Kieran nos transporta para fora do acampamento da
Resistência, e eu vomito em cima de seus sapatos.
O olhar que ele me dirige quando todos começam a se afastar de
nós está carregado de fúria, e depois que limpo minha boca com o
dorso da mão, eu lhe dou um sorrisinho torto porque já que tive que
estragar o sapato de alguém, fico feliz que tenha sido o dele.
Então, Gabe se solta dos meus braços e cai na grama, e tenho
coisas mais importantes em que pensar.
— Temos algum Curandeiro aqui? Porra, por favor, não morra.
Gryphon se aproxima, pressiona aquela sua mão brilhante na
testa de Gabe e, de forma quase que instantânea, ele recupera um
pouco da cor no rosto. Sage vem e entrelaça o braço com o meu,
demonstrando solidariedade, como sempre.
Nox já me deu as costas, fingindo que não existo, como sempre.
Olho para os arredores e percebo que não faço a menor ideia de
onde estamos. Há quilômetros de campos vazios, poderíamos estar
em qualquer lugar do mundo agora.
— Onde estamos? — minha voz sai baixa e áspera graças ao
vômito, mas Gryphon me ouve bem o bastante e olha para mim.
Nox nem se dá ao trabalho, seus olhos continuam fixos no
horizonte.
— Kieran não conseguiria levar todos nós para casa de uma vez
e, ao invés de deixar alguns dos outros para trás, viemos para um
ponto de encontro. Vão nos buscar aqui daqui a algumas horas.
Encontre um lugar por perto para se sentar até lá.
Ando de volta para Gabe e estaciono minha bunda ao lado dele,
pronta para passar as horas lá, e no mesmo segundo meus olhos
começam a fechar. Passei tanto tempo sem usar meu dom que é
exaustivo usá-lo agora, é como passar meses longe da academia,
então quase morrer na primeira sessão ao voltar.
A cabeça de Gabe se desloca aos poucos até estar apoiada em
minha coxa, e a respiração dele se estabiliza. Gryphon por fim se
afasta de nós dois, voltando a se levantar e andando até onde
Kieran está para conversarem entre eles.
Perco a noção do tempo no atordoamento de minha exaustão, e
só volto a ficar desperta quando uma voz feminina grita:
— Estamos esperando alguma equipe terrestre!?
Meus olhos voltam a se abrir bem devagar, a luz é cegante e
encontro muito movimento ao meu redor. É difícil ver do chão, mas
consigo distinguir, pelo espaço entre as pernas dos outros, um
comboio militar se aproximando.
A merda de um comboio inteiro.
— Porra. Samual, nos cubra, depressa.
No mesmo instante, um escudo cobre todos nós, e os membros
da Equipe Tática entram em posição na beirada dele como se
esperassem uma abertura para soltar o inferno em todos aqueles
seres inúteis que se dizem humanos. Mas quando os veículos se
abrem, o fluxo de corpos saindo deles parece não acabar nunca, e a
percepção faz meu estômago despencar.
Estamos em desvantagem, pelo menos dez deles para cada um
de nós.
— Tire Oli daqui, agora.
Ergo a cabeça e vejo Gryphon e Kieran checando suas armas
juntos, movendo rápido as mãos sobre seus corpos. Kieran não
parece feliz com essa sugestão.
— Não tenho energia suficiente para voltar depois, vamos achar
outro jeito.
Quando ele dá uma olhada para Nox, Gryphon nega com a
cabeça:
— Draven não consegue mais uma rodada, ele está drenado e
não vou deixá-lo forçar demais suas habilidades.
Olho para Nox, chocada por ele estar esgotado mesmo quando
parece tão bem, mas assim que o observo, que o vejo de verdade,
consigo notar. Há uma exaustão ao redor de seus olhos e sombras
em seu rosto.
Parece óbvio agora que Gryphon disse, ele pegou dúzias de
membros da Resistência e lidou com eles sozinho. Favorecidos
normalmente têm limites.
Incluindo os Favorecidos de Nível Superior.
Há mais um grito, em seguida, um dos veículos é erguido e
atirado contra o escudo, ricocheteando sem causar danos, mas o
nariz de Samual começa a sangrar, e todos sabemos que estamos
ficando sem tempo.
É hora de um milagre acontecer... vamos morrer aqui sem um. Eu
me levanto com dificuldade e ando em direção ao escudo.
— Fique atrás de nós, Oleander — Gryphon rosna, mas nego
com a cabeça. Luz que cura não vai nos ajudar aqui. A Equipe
Tática está conferindo suas armas, verificando quanta munição
ainda têm, mas não estamos em uma boa posição.
— Não adianta morrer aqui, Venenosa. A culpa vai ser toda sua.
Com dom ou não, eles têm pelo menos cem homens — resmunga
Nox, ainda obstinado a me odiar.
Gabe também se levanta, cambaleante, e Sage parece muito
pálida ao ajudá-lo a ficar de pé. Pálida, mas pronta, como se já
tivesse aceitado qualquer que seja o fim que iremos encontrar aqui
hoje.
Inspiro fundo. Esses dois são importantes para mim, vale a pena
protegê-los a qualquer custo. Gryphon... não posso deixá-lo morrer,
há algo ali. Talvez o potencial para alguma coisa acontecer.
Meu orgulho teimoso e cabeçudo me diz que também não posso
deixar Nox morrer aqui, nem que seja só porque quero provar que
ele está errado.
Jogo os ombros para trás e deixo meu poder sair, de modo gentil
e cuidadoso, e seus fios se estendem como uma rede sendo
lançada no oceano. Ele alcança cada um dos membros da
Resistência, todos eles alheios ao meu toque.
Mas meus três Vínculos que estão aqui podem senti-lo, não
tenho como esconder essa merda deles, e sabem o que estou
fazendo. Viro para olhar nos olhos de Nox, um desafio e uma
demonstração de exatamente o quanto ele me subestimou, seu
Vínculo, a quem ele deveria adorar e proteger.
Então, de uma vez, desencadeio os terrores e pesadelos dentro
deles. Num piscar de olhos, noventa e dois homens e mulheres se
contorcem em agonia.
E eu não sinto nada.
Os olhos de Nox brilham, mas não desvia o olhar, seus olhos
continuam colados nos meus. Os outros ao nosso redor não são tão
contidos.
— Puta merda, porra.
— Foi ela que fez isso? Achei que não tinha dom.
— Como diabos ela derrubou tanta gente de uma vez?
— Monstro.
Gryphon avança rápido e para na minha frente, ocultando-me da
vista de sua equipe inteira e dos outros que foram resgatados. Gabe
segura minha mão e me puxa contra seu corpo, como se estivesse
preocupado de eu estar prestes a ser atacada pelo nosso próprio
grupo. Preciso interromper a competição de quem pisca por último
com Nox, mas acho que provei o que queria.
Eu me afasto de Gabe, meu poder ainda está um pouquinho
animado demais por ter recebido permissão de sair para brincar, e
não posso deixar Gabe me tocar agora. Ele franze a testa para mim,
mas então acompanha meu olhar até meus dedos e engole em seco
ao ver o leve tremor ali.
Ele enfim dá um passo para trás e tropeça um pouco só para ser
segurado por Nox, os dois já estão parecendo zumbis a essa altura.
Nox, ignorando os gemidos de dor de Gabe, explode:
— Não pense que esquecemos suas decisões idiotas também,
Ardern. Que porra estava pensando? Teria sido mais útil para nós se
tivesse ficado para trás e mantido uma focinheira em Bassinger. Seu
merda inútil.
Meu dom explode para fora de mim.
Não consigo impedir ou contê-lo, sua onda atinge todos ao nosso
redor, e o grupo inteiro se afasta de mim depressa, deixando apenas
Gryphon ali comigo. A Equipe Tática inteira se prepara, como se
pudessem me subjugar, mas mal estou pensando em nenhum
deles, cada fibra de meu ser está concentrada no lugar em que Nox
está segurando o braço de Gabe e o repreendendo.
Não gosto disso.
— Nox... solte ele — diz Gryphon, desviando a atenção de mim
quando todos olham para o que está me incomodando.
Muito devagar, como se estivesse sendo cauteloso para não me
assustar, a mão de Nox se afasta de Gabe. Meu corpo se mexe sem
pensar, levando-me até Gabe como se uma força invisível estivesse
nos atraindo um ao outro, e eu me posiciono entre meus dois
Vínculos.
Não tenho a menor ideia do que estou fazendo, mas a droga do
meu vínculo finalmente se acalma um pouco quando minhas costas
estão coladas no peito de Gabe.
— Estão chegando, o avião está aqui.
Há uma comemoração de alegria e a Equipe Tática se recupera
do pequeno chilique do meu vínculo, movendo-se ao nosso redor
para se prepararem para o embarque. Fico parada ali com Gabe e
assistimos ao pouso sem dizer nada um para o outro. Quando o
avião encosta na pista, em um pouso perfeito com o ronco dos
freios e o barulho do empuxo reverso, nós dois soltamos o ar como
se estivéssemos prendendo a respiração por horas, dias, a essa
altura.
— Como diabos vamos contar isso para North? Não sei nem
como chamar isso — Gryphon murmura para Nox, dirigindo os olhos
para mim por cima do ombro, e eu respiro fundo.
Não posso dizer uma palavra para ele porque Gryphon sempre
enxerga através de minhas mentiras, e como eu poderia explicar
essa situação? Como digo a ele que os pesadelos são horríveis,
mas o menor de nossos problemas?
Se ao menos isso fosse o pior que posso fazer.
SOBRE A AUTORA
 
 

 
J Bree é uma sonhadora, escritora, mãe, agricultora e criadora de
gatos.
A ordem das prioridades muda diariamente.
Ela mora em uma pequena fazenda em uma pequena cidade
rural na Austrália, da qual ninguém nunca ouviu falar. Ela passa os
dias sonhando com todos os seus namorados das histórias de
livros.
 
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