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Copyright © 2022 Anne Marck

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos


descritos são produtos de imaginação do autor. Qualquer semelhança com
nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.

Revisão: Mariely Santos


Capa: Layce Design
Diagramação Digital: Layce Design
Imagem de capa: Oleh Phoenix - AdobeStock

Esta obra segue as regras do Novo Acordo Ortográfico.

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através de quaisquer meios — tangível ou intangível — sem o consentimento
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Edição digital | Criado no Brasil.


Dedicatória
Avisos
Anteriormente…
Prólogo
Prólogo
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Epílogo
Epílogo
Bônus 01
Bônus 02
Papo com a autora
Agradecimentos
Um vem aí de milhões!
Sobre a autora
Outras obras
Contato
Para você, que já teve de juntar seus pedaços quebrados e se
reconstruiu com eles.
Para você, que está no processo de se curar.
E para você, que nesse momento se encontra no olho do
furacão.
Este livro aborda alguns temas sensíveis, como violência
física, sexual e psicológica; automutilação, depressão, ansiedade,
suicídio, especialmente o capítulo intitulado “Prólogo Amália”. Estes
temas podem causar possíveis gatilhos e desconforto. Só leia se
você se sentir confortável com a temática.
Elliot pode ser lido de forma independente do livro anterior,
mas se você ainda não leu Sebastian - Protetores III, certamente
está perdendo uma das melhores estórias.
Antes de ler, tome um fôlego e esteja preparada para
mergulhar em algo que te marcará, em algum nível, de maneira
irremediável.
Ah, e não deixe de conferir os bônus!
Boa leitura!
ELLIOT

Sentado na varanda dos fundos da casa da velha Zhena, com


vista para o lago parcialmente encoberto pelo nevoeiro da noite,
baixo o olhar para a garrafa pela metade entre mim e Penélope. Se
eu disser que não me sinto um tanto culpado por embebedá-la,
estaria mentindo. Mas que outro jeito melhor para acalmar e distrair
alguém do que um pouco de álcool?
Penélope está preocupada, acha que colocou Sebastian em
perigo ao enviá-lo para resgatar uma garota de quem ela tinha sido
contratada para descobrir o paradeiro. Mal sabe que o cara é o
próprio perigo para quem cruza seu caminho. E que se importa com
ela, muito. Parte de minha missão aqui é protegê-la a pedido dele,
em sua ausência. A outra parte, a que o puto não admitiria nem sob
tortura, é que está morrendo de medo de que essa espanhola volte
para Madri sem dar a ele uma chance de conversarem.
Apesar de se conhecerem há pouco tempo, essa mulher tem
um efeito raro sobre o cara.
O que é perfeitamente entendível. Penélope é de fato uma
figura única, cativante. Eu mesmo, se não soubesse o que
Sebastian sente – embora o idiota se recuse a fazer algo a respeito
– teria investido nela.
— Você vê isso? A neblina está em cima do lago de um jeito
que não dá pra saber que ele está ali — comenta Penélope,
pensativa. Está ligeiramente bêbada. Uma graça.
— Sim, eu vejo — tento permanecer sério.
— Um dia eu tive de entrar numa sauna gay para investigar um
homem. Lá dentro estava quase desse jeito, sabe, nublado, mas de
vapor. É vapor que fala, não é? Aquela nuvem de fumaça lá dentro?
— É, é sim…
— Eu nunca tive certeza de se era assim que chamava, dá
medo de falar errado.
— E conseguiu? — pergunto.
— O quê?
Guardo meu sorriso. Sebastian vai me matar quando souber
que sua garota finalmente conheceu o poder da boa e velha vodca
russa.
— Dar um flagra nele — explico.
— Ah, sim. Consegui, sim. Quase apanhei dos dois baita
homens, mas no final saí de lá com boas fotos para comprovar a
traição. — Inclina-se para frente, para detalhar. — Veja, eu me
vesti toda de branco naquele dia, supondo que era como os
funcionários da sauna se vestiam, por causa daqueles filmes
americanos, sabe? Quando cheguei lá para me infiltrar, estavam
todos de uniforme cor-de-rosa, desde as meninas da recepção até o
rapaz que repõe as toalhas. Meu plano de passar despercebida
estava fadado ao fracasso ali mesmo.
Além de cativante, a mulher também tem uma veia meio
cômica, capaz de capturar o interesse por essas histórias malucas
de seu trabalho como detetive particular. De repente, pego-me
interessado em ouvir.
— E o que aconteceu?
— Bem, foi um infortúnio essa questão do uniforme, é claro…
— Leva um dedo ao queixo, mais lenta do que em seu estado
normal. — Pensando bem, a pista de que se tratava de uma sauna
gay estava na minha cara, não é? Note: uma sauna somente para
homens e onde todos os funcionários se vestiam de rosa?!
— Você não investigou o lugar antes?
Ela nega com a cabeça.
— Descobri no momento do flagrante. E acredite, aquilo foi
uma visão da qual nunca vou me esquecer. Os dois estavam
mandando ver, mandando ver de verdade.
Quero não rir, mas é difícil pra caralho.
— Como conseguiu entrar?
Penélope suspira fundo.
— Essa parte não me orgulha. Tive de pegar o caminho mais
duro: dei a volta e escalei uma janelinha nos fundos. Hombre[1], não
vou mentir: estive bem perto de ficar entalada lá. Por sorte, alguém
na rua, ao me ver naquele estado, se compadeceu e me deu uma
mãozinha… — pigarreia, parecendo meio constrangida, então
diminui a voz para contar como: —, empurrando minha bunda até eu
atravessar. Até hoje não faço ideia de quem foi. Prefiro pensar que
obtive uma ajudinha divina.
Foda. A gargalhada explode de mim sem que eu tenha
qualquer controle. Essa espanhola é demais. O puto teve uma sorte
enorme.
— As pessoas acham que ser investigador profissional é um
trabalho fácil. Não é mesmo — afirma séria e vira mais um gole da
vodca. Em seguida limpa a boca com as costas da mão, fazendo
uma careta.
Culpa cinge meu peito, só um pouco.
Abasteço seu copo novamente. Meia dose. Não quero
realmente incapacitá-la, mas tenho a sensação de que, esperta
como é, se não for assim, logo se dará conta de que estou aqui
ganhando tempo para o puto.
— Como foi que você começou com isso, de investigar? —
continuo incentivando que fale.
— Essa é uma boa pergunta. Boa pergunta.
Dou de ombros, convencido.
— Legado — afirma.
Fico surpreso com a resposta. Não havia nada em seus
registros que mencionasse um parente detetive ou algo assim,
quando a pesquisamos.
Penélope explica:
— Sim, costumo pensar que foi um legado. Quando eu tinha
22 anos, peguei um bico para limpar o escritório de um detetive.
Embora eu não goste deste termo: detetive. Prefiro investigadora.
Acho que as pessoas levam mais a sério.
Aceno que continue, gosto de ouvi-la.
— Ele era um homem já de certa idade. — Aponta o dedo
como quem fará uma observação. — Note: quando digo isso, quero
dizer na verdade que ele era velho. Bem velho. Tão velho que deve
ter participado da primeira edição do Novo Testamento. Eu tinha
muito cuidado até ao apertar a mão dele, para não fazer isso forte
demais e o pobre hombre virar pó.
Mulher terrível!
Dou uma risada.
A espanhola, por iniciativa própria, se serve de mais uma dose.
Será a última, faço essa nota mental. Não vou deixar que se
embriague de verdade.
— Fiquei limpando a sala comercial dele por mais de sete
meses e, durante o trabalho, a gente conversava muito. Ele estava
no ramo havia quase 50 anos, tinha uma porção de histórias,
aventuras, coisas assim. Aquilo me envolveu, sabe?
— Então ele te passou o negócio?
— Não. Ele morreu. A família me contratou para limpar as
coisas dele, encaixotá-las e deixar a sala vazia. E eu até estava
fazendo isso… mas então uma mulher entrou naquele momento e
perguntou se eu era a detetive que atendia ali. — Penélope se
inclina, aproximando-se para cochichar: — A placa do lado de fora
trazia o sobrenome dele, não o nome, entende? — Volta ao lugar. —
Eu ia negar, quando de repente ela se sentou diante da mesa e caiu
em pranto. Elliot, você está entendendo o que aconteceu?
— Estou, sim, Loupe. — Aperto os lábios para não rir.
— Pois é. Ela estava muito nervosa. Nervosa mesmo. Então
disse: “Quero que você os siga e me diga se eles estão saindo pelas
minhas costas” — imita uma voz fina que só posso imaginar ser da
tal mulher. — Sabe a quem ela se referia? À própria irmã e ao
marido. Nossa. Achei aquilo um absurdo. Não é um absurdo?
— É. É, sim.
— Sim, com certeza é. Aí ela abriu a bolsa, tirou dinheiro e o
colocou na mesa. Aquele valor pagaria metade do meu aluguel. Eu
olhei para o dinheiro, e ela olhou para mim. Então disse: “Se for
mais do que isso, eu posso pagar, só me ajude a descobrir a
verdade”.
Suspirando, a espanhola chega a fechar os olhos.
— Eu parei, olhei em volta e pensei: por que não? — começa a
listar suas razões: — O detetive de verdade estava morto; ela
precisava de respostas; eu precisava de dinheiro.
Sacode os ombros, solenemente.
— E foi assim. Compreendi que a profissão era um legado do
velho homem pra mim. Durante nossos meses de convivência, com
todas aquelas histórias que contava, ele estava na verdade me
ensinando o ofício. Além disso, eu já havia passado tanto perrengue
na vida, o que perderia tentando?
Volta a bebericar a bebida, pensativa, como se meditasse.
Aproveito sua introspecção para observá-la. Há algo de
profundo em seu olhar, se reparar bem, algo que a faz usar o humor
como cortina de fumaça. Penso no que sabemos a seu respeito, e a
sensação que tenho é a de que falta alguma coisa, deixamos passar
alguma informação que talvez justifique ela se arriscar numa
profissão fodida destas tão jovem.
— Com que idade você deixou o orfanato?
Duas coisas acontecem. Ela me olha de olhos arregalados por
cima do copo. E perto de nós, folhas secas crepitam sob os pés de
alguém. Não preciso conferir para saber que Penélope e eu não
estamos mais sozinhos do lado de fora da casa. Temos companhia.
— Vocês me investigaram… — conclui ela.
Infelizmente fazemos isso com todos que se aproximam, meu
bem. Não leve para o pessoal.
— Também fazemos nossas investigações quando necessário.
— Dou de ombros. — É sempre bom saber com quem se está
lidando.
— Isso é verdade.
— E então? — insisto.
— 14. Eu tinha 14 anos quando deixei o orfanato. Se bem que
está mais para “quando fui jogada para fora do convento
diretamente à casa dos horrores”.
A maneira como fala de sua casa adotiva me desperta
atenção. Aguço meus sentidos.
Penélope explica:
— A diretora do orfanato mal via a hora de se livrar de mim e
nem se importou em investigar a família que estava me adotando…
— Se ela tivesse investigado, o que descobriria?
A espanhola sorve uma respiração profunda, como se
buscasse por forças para resgatar essas memórias. Dá para sacar
que é algo do qual ela não gosta de falar. Mais um indício de que
deixamos passar informações importantes a seu respeito.
— Minha adoção é um assunto ruim para mim. Nunca falei
sobre isso com ninguém. Bem, nunca tive ninguém para conversar.
Com 26 anos, mal posso dizer que já tive uma amiga na vida.
— Não teve?
— Não tive o quê?
— Amiga. Você nunca teve uma amiga?
Com os reflexos um pouco mais lentos, sua expressão é de
surpresa, como se não pretendesse revelar isso em voz alta.
O modo como baixa as pálpebras em seguida demonstra tanta
vulnerabilidade que, porra, isso me mata.
— Até os 14, havia todas aquelas crianças entrando e saindo o
tempo todo, a gente nem tinha tempo de se apegar a ninguém de
verdade. E as que ficavam eram garotas más. Más mesmo. Então
fui levada para a casa dos horrores. Fiquei presa lá sem contato
com o mundo. E, depois disso, eu estava mais focada em
sobreviver, pagar o próximo aluguel, colocar comida sobre a mesa,
coisas assim. Acabei não tendo disponibilidade para conhecer
ninguém. Uma amiga, no caso, porque eu já tive um ou dois
namorados. Bem, nem eram namorados, eram uns idiotas que
nunca me assumiriam.
Chega de álcool para ela, definitivamente. Apanho a garrafa e
a coloco do meu lado, aos meus pés.
— Por que você chama o lugar para onde foi enviada de casa
dos horrores?
— Ah, nem quero falar…
Meu olhar encontra o do nosso expectador oculto pela
escuridão. Certeiro. Ele me fita intensamente de volta, avisando que
também quer essas respostas.
— Fale — mudo meu tom para algo mais manso, afastando a
descontração de vez. Quero que confie em mim. Que se abra. — Às
vezes desabafar faz bem.
Penélope comprime os lábios, como se ponderasse. Então dá
de ombros.
— Veja se eu não tenho razão: o pai da família era um
pervertido; a mãe, uma lunática agressiva; os três garotos, pessoas
realmente horríveis; o mais velho deles, que também era mais velho
do que eu uns dois anos, era igualzinho ao pai. Cara, eu nem sei
como sobrevivi por quatro anos.
— Por que diz que o pai e o garoto mais velho eram iguais?
— Porque ele agia igual ao pai, ora.
— Em que sentido?
De antemão, já detesto o motivo que a faz ter vergonha de me
encarar, que a faz desviar os olhos para o chão, tentando esconder
a humilhação que enxerguei em seu rosto bonito.
— Eles se revezavam em forçar a entrada no meu quarto. Foi
assim desde a primeira noite… E aquilo me assustou pra burro. Eu
era muito ingênua em relação a algumas coisas da vida, sabe? As
freiras do convento não conversavam sobre certos assuntos com a
gente, se é que você me entende…
— E algum dia conseguiram? Algum deles conseguiu?
Involuntariamente, ela se abraça.
— Pai e filho tornaram isso um hábito.
O copo de vodca em minha mão se parte ao meio com a força
com que o comprimo. Minha raiva se concentrando toda ali.
— E a mãe?
Sorri, sem graça.
— Ela me punia com surras realmente ruins. Aquela mulher
tinha uma criatividade surpreendente em encontrar objetos para me
bater. Já apanhei até com panelas, se quer saber. Tudo era motivo
de uma surra: vestígio de gordura na louça recém-lavada; pó em
algum armário; se o uniforme do filho mais novo estava manchado.
— Boceja, cansada. — Ela queria uma escrava doméstica para
manter a casa limpa, a comida feita, as coisas dos filhos
organizadas e, principalmente, alguém em quem descontar a
frustração por ser casada com o homem mais nojento que já existiu.
O segundo mais nojento era o garoto que ela pôs no mundo.
Percebo que falar sobre seu passado drena as energias da
espanhola. Espero que boceje outra vez para então questionar:
— Você ficou lá até que idade?
— Quase 18 — conta, sonolenta.
— E não tentou fugir?
— Todos os dias…
Basta que ela adormeça na cadeira, roncando baixinho,
derrubada, para que o puto saia da penumbra e se aproxime. Sua
expressão é aquela familiar, de quando está prestes a declarar uma
caçada. Mandíbula retesada, olhos sombrios. Punhos cerrados.
Ouvir sobre essa merda o abalou de verdade.
— Eu disse para distraí-la, não para deixar Penélope bêbada
— acusa Sebastian.
Sacudo os ombros, relaxado.
— Que outra forma de distração que não uma boa bebida?
O cara corre os dedos pelos cabelos, fodido.
— Vou acabar com todos eles — declara.
Bom que pensamos o mesmo. Pretendo caçar os filhos da
puta que a adotaram, um por um, e fazê-los pagarem.
— Considere feito. Eles já foram exterminados, apenas não
sabem. Ainda.
— Ainda.
Viro o restante da garrafa enquanto o observo levantá-la nos
braços e entrar para a casa de sua avó. Espero realmente que
Sebastian se dê conta, e logo, de que está apaixonado por essa
mulher. Isso, ou irá perdê-la.
AMÁLIA

O som dos chinelos arrastados no chão anuncia sua entrada.


Quando se senta à beira da cama, pelo modo como o colchão
afunda, sei quem deles é. Com o tempo, acabei criando um tipo
novo de sentido, uma habilidade de distingui-los. Posso até mesmo
vislumbrar a expressão vaga em seu rosto, talvez me olhando com
condescendência, talvez com raiva.
Deve ter esperado à espreita o momento de entrar.
Sinto vontade de virar para o canto e me encolher, mas não
me mexo, permaneço deitada de barriga para cima, pálpebras
baixadas, braços esticados ao lado do corpo. Vazia.
Dedos longos envolvem meu pulso. O polegar frio passa a
exercer uma carícia acima de onde a veia pulsa, calado.
Pelo farfalhar de sua roupa, sei que retira alguma coisa de
dentro do bolso da calça. Algo mais frio que seus dedos. Ele roça o
que quer que seja em minha pele.
Meu coração acelera um pouco, somente um pouco, e é
rápido. Não me movo. Acho que não quero saber o que pretende.
— Eles têm que saber a quem você pertence. Estou cansado
de falar — reclama, aborrecido, botando mais força no que tem em
sua mão contra meu pulso preso. Parece a ponta cortante de uma
agulha grossa, ou algo assim.
Espremo os olhos, suportando a dor em silêncio.
Meu sangue quente percorre o pulso. Uma linha que desce até
o colchão.
Ele passa então a recitar em voz baixa o que faz,
meticulosamente:
— San…
Seus dedos trabalham com cuidado, em movimentos
estudados.
— Ti…
Interrompe por um instante o trabalho para limpar o corte com
a barra do lençol.
— A…
Gira levemente o pulso.
— Go.
Com isso, acaba de marcar seu nome em mim.
Uma lágrima fina corre furtivamente por minha bochecha e
mergulha no travesseiro. Somente uma.
O pulso marcado é deixado de lado. A atenção dele vem ao
meu rosto, enquanto uma de suas mãos pousa no interior de meu
joelho, subindo aos poucos por minhas coxas, com gentileza, até
encontrar a barra da camiseta. Ele a levanta parcialmente, expondo
minha nudez.
Expira ruidosamente.
— Não gosto quando está com o cheiro dele — afirma,
chateado. — Às vezes, penso até em matá-lo. Matar todos eles.
As pontas de seus dedos invadem sob a camiseta grudenta.
— Você fede a ele, Mel. Detesto isso.
O peso do corpo de Santiago debruça-se sobre o meu,
devagar, e vai se encaixando, até que sua rigidez sob a calça se
aninha em minha virilha.
A tira larga de couro que contorna meu pescoço é afastada
para o lado, promovendo o tilintar dos gomos da corrente ligada à
parede. Sua respiração quente se aproxima antes mesmo do toque
de sua boca.
— Vou deixar minha porra por cima da dele, amor — diz
colado ao meu pescoço. — Sei que você não gosta quando ele vem.
Gosta só de mim, não é, Mel?
Meu corpo tensiona, preparando-se para uma nova invasão.
Santiago abaixa o cós elástico de sua calça e se afunda em
uma estocada brusca. A invasão é facilitada pelos fluidos que seu
pai deixou momentos antes.
— Você também me ama, não ama?
Tranco minha mente, bloqueando-o para o lado de fora,
ignorando o ranger dos pés da cama no piso de madeira; o bater da
corrente na parede; o sacudir de meu corpo vazio. Transporto-me,
de pés descalços sobre as folhas secas, o som do vento chiando
por entre as árvores.
De lá, tenho a consciência de quando Santiago termina o que
veio fazer. Afasta meu cabelo do rosto e cantarola aquela canção
bem baixinho, lábios colados à minha testa, como em todas as
vezes antes de sair. A cantiga é abafada pela distância do lugar
seguro onde estou.

“Duérmete, niñito mío,


que tu madre no está en casa;
que se la llevó la Virgen
de compañera a su casa”[2]

Sozinha outra vez na escuridão, aquela voz em minha cabeça


tenta me alcançar. Ela é a pior parte de tudo isso. A que tortura, que
me impede de não sentir.
A que sussurra constantemente:
“Por quê?”.
Se eu tivesse uma escolha, escolheria não sentir. Escolheria
ser forte.
ELLIOT

— Está morrendo de medo de levar um pé na bunda daquela


espanhola, não é? — provoco, me sentando ao lado do cara na
aeronave.
— Vá se ferrar — resmunga Sebastian.
Idiota. Qualquer um pode ver a ansiedade do cara em
aterrissar de uma vez na Espanha e recuperar a mulher que o botou
de joelhos e depois partiu orgulhosa de si mesma por não aceitar as
merdas dele.
Meu amigo precisava disso. De um sacode da vida. Estava
cultivando o luto pela noiva morta há tempo demais. Precisou que
uma espanhola de língua afiada e comportamento mordaz viesse
esfregar em sua cara que ele estava vivo.
— Vocês não precisavam ter vindo — diz, depois de alguns
minutos em silêncio.
Percorro um olhar pelos outros dois bancos ocupados. Ed e
Bola. Nossos irmãos de vida. Os anos nas Forças Armadas Russas
mostraram que somos uns pelos outros. Onde um estiver e precisar,
os demais também estarão.
— Não perderíamos o show por nada. — Dou de ombros.
Viro-me para encará-lo quando sei que está me lançando um
olhar agudo.
— Sabe que tenho mais coisa a fazer em Madri, Elliot, além de
pegar minha mulher de volta.
— Sua mulher — assovio, zombeteiro. — Uau, gostei de ver.
Mas a brincadeira não tira a seriedade de seu semblante. Opto
por falar sério também.
— Você quer vingança, Sebastian. Quer fazer com que os
desgraçados que adotaram e abusaram de sua espanhola paguem.
Eu te disse naquela noite, quando Penélope me contou, e repito
agora: vou atrás dos Molina com você. Quero que paguem por tudo.
Dito isso, ambos sabemos que é irrefutável.
Estou com esta história entalada na garganta desde que
Penélope revelou, sob os efeitos de uma boa vodca russa, ter sido
terrivelmente abusada pela maldita família que a retirou de um
orfanato. Tudo o que fiz nestes últimos anos foi caçar a escória do
mundo a serviço de agências internacionais. Não será diferente
agora com os Molina. Pretendo fazer com que paguem cada minuto
de dor que infligiram a alguém tão inocente.
Essa família mal sabe o que está por vir.

***

— É aquela.
A casa mais degradada da vizinhança. Telhado faltando telhas,
mato alto tomando conta do quintal, tinta descascada, janelas
lacradas por tábuas podres. A velha construção de madeira não vê
um bom reparo há décadas. Fico me perguntando como é que
ninguém se questiona o tipo de gente que vive numa situação
assim.
— Vou pelos fundos — Ed se adianta, sacando a pistola de
dentro da jaqueta e se esgueirando pelo vão entre a casa e o muro
vizinho.
Sebastian faz sinal para que Bola meta o pé na porta.
Em questão de segundos, estamos dentro do lugar. E é o
mesmo que ser transportado a um cenário de filme de terror barato.
O interior parou no tempo. É escuro, fede a mofo e algo semelhante
a naftalina. Mobília velha. Um horripilante papel de parede florido.
Tão feia quanto o saco austero de ossos feminino parado sob o
umbral, pele seca, olhos afundados em manchas escuras
arregalados de choque.
— Quem são vocês…? — grita, horrorizada.
— Perdeu, perdeu, porra! — avisa Bola. — Vai sentando e
calando a boca, vamos, vamos, vamos! — Empurra-a para o velho
sofá estampado.
Fecho a porta com tranquilidade. Ao fazê-lo, somos cercados
pelo breu. As tábuas lacrando a janela bloqueiam completamente a
luz do sol.
— Ah, diabos! Que merda de lugar escuro e fedido é esse? —
reclama Bola enojado. — O que é que essa gente tem contra deixar
o ar puro entrar?! Não dá para respirar aqui, porra!
O cara de aparência assustadora, que já frequentou mais
becos e vielas nas entranhas do submundo do que é capaz de
lembrar, é claustrofóbico, é mole?
— Relaxe, irmão — digo —, seremos breves.
Com o cabo da arma, bato no disjuntor de luz amarela
trepidante.
Paro à frente da mulher e apenas a observo por um momento.
A conversa que tive com Penélope, alguns dias atrás, na varanda da
casa da avó de Sebastian, vem à mente. Mal acredito que agora,
finalmente, estou aqui, onde a espanhola passou por tudo aquilo.
Arrisco um olhar para meu amigo, ciente de que
compartilhamos a mesma energia. Ele fita a velha sombriamente
calado, escorado à parede. Pelo modo como comprime a
mandíbula, sei da fúria correndo em suas veias. Nada de bom
espera os Molina pela frente.
Aproximo-me um passo dela.
Noto que se encolhe.
— Olá, minha senhora — cumprimento, cordial. — Como vai?
— Q-quem são vocês?!
— Digamos que não deva nos considerar seus amigos. Há
mais alguém nesta bela casa, além da senhora?
— O-o que querem?
— Responda.
Antes que a mulher volte a abrir a boca, o som de passos
desuniformes vem rangendo o chão através de um corredor estreito.
Desço meu olhar para a perna do velho. É manco.
Ed vem logo atrás dele, com a arma apontada para suas
costas.
— Peguei um dos ratos tentando escapar pelos fundos.
— Quem são vocês? — exige o pedaço de merda.
Não deixo de notar que até o modo como se vestem mostra
que essa família parou no tempo.
Ed empurra-o com um tranco pesado para o lado da esposa.
— Aqui você não faz pergunta, idiota. Cadê seus filhos? Onde
eles estão, vamos, fale!
— Vocês não pod…
— Faça uma busca na casa — ordena Sebastian a Bola.
Assentindo, o cara sai derrubando portas. Não demora dois
minutos, vem carregando uma réplica jovem do velho manco.
— Escondido debaixo da cama — zomba Bola, segurando o
sujeito pela gola puída.
É então que Sebastian finalmente se desloca. Lento. Olhar
nublado pela ira.
— Qual deles é você?
— Eu já chamei a polícia! — blefa, o cagalhão.
Calmo, e mais letal do que nunca, Sebastian gira a cabeça,
alongando o pescoço de um lado, depois do outro.
Quase me compadeço desse Molina.
— Fiz uma pergunta — exige. — Qual. Deles. É. Você?
— Vete al carajo[3]… — antes que ele conclua o insulto, sem
aviso Sebastian desfere um golpe seco no fundo do estômago do
imbecil.
Bola assovia, elogiando o som de ossos se chocando contra
carne.
— Quem. É. Você? — repete Sebastian, a boca perto da
orelha do cara debruçado sobre seu punho.
— Sal… — o Molina tenta, sem ar, avermelhado pela dor.
— Não entendi. Pode, por favor, dizer mais alto?
— Salvador — murmura sem forças.
— O mais velho?
— Sim — sopra com dificuldade.
Meu amigo sorri. Conheço esse sorriso. Contém a nota dura e
cruel de um prenúncio.
— Finalmente tenho você.
Com uma cabeçada, arrebenta o nariz do infeliz. E de novo, e
de novo, uma sucessão de golpes duros, violentos. Os punhos de
Sebastian são uma arma muito mais danosa do que a misericórdia
de sua Skyph 9 milímetros.
É o começo do fim para essa família.
De repente, um barulho quase imperceptível nos fundos da
casa chama a minha atenção. O rilhar de uma dobradiça. Faço um
sinal para Ed, avisando que eu mesmo irei verificar. Engatilho a
pistola e, pé por pé, vou silenciosamente atrás da origem.
Na cozinha suja, nos fundos da casa, encontro algo que não
combina com uma família que se esconde detrás de janelas
lacradas.
— Ed, por acaso essa porta estava aberta? — grito.
— Não — afirma colado às minhas costas. O cara é bom em
se aproximar sem ser notado.
Dou uma risada.
— Então acho que temos outro rato fujão.
— Diabos, logo hoje. Essa calça é nova.
Sem precisar de um comando, passa por mim e, com
facilidade, escala a cerca dos fundos e some de vista. Se depender
da habilidade do cara em caçar, esse Molina não tem a menor
chance.
Prestes a retornar à sala, sou detido por um novo ruído; baixo;
semelhante ao tilintar de uma corrente.
Aguço bem os ouvidos e vou escaneando o cômodo até avistar
a porta velha, trancada do lado de fora por um cadeado, além das
escoras de madeira atravessadas em cima e embaixo.
Com duas passadas largas, me aproximo e forço o cadeado.
Não cede.
Saco a pistola, desfiro um disparo abafado pelo silenciador
contra o metal. A coisa explode, ruidosa. Retiro as duas tábuas e
chuto a porta aberta.
Tudo escuro e fedido no pequeno anexo com no máximo
quatro metros quadrados, também. Janelas lacradas. Silencioso.
Exceto por uma respiração acelerada.
Semicerro os olhos e os ajusto à penumbra. Demora para o
formato, diante de mim, fazer sentido.
Mas… mas que porra é essa…?!
De tudo o que já vi na vida, e não foi pouca coisa em meu
trabalho recuperando pessoas traficadas das mãos da escória, ou
na linha de combate das FAR, dificilmente algo me fez recuar um
passo, como agora.
Preciso me concentrar em tentar compreender tudo o que
meus olhos enxergam: a cama estreita. A corrente ligada à parede
ao lado da cama, prendendo… prendendo uma criança pelo
pescoço.
Maldição!
Sem poder evitar, tenho de me escorar ao batente e sorver
uma respiração profunda para então assimilar a figura sobre o
colchão fino. Pequena, composta por nada além de trapos e um
cabelo imenso, negro, escorrido escondendo o rosto. Não preciso
vê-la por inteiro para saber que está subnutrida.
Penélope não foi a única menina adotada por essa maldita
família para ser abusada. A constatação ferve e sacode todos os
ossos de meu corpo.
— Bando de filhos de uma…! — sibilo, rígido por uma fúria
crescente. Mas me calo quando a figura à minha frente reage à
minha voz.
Sobre a cabeleira negra suja, a mão de dedos finos cria
timidamente uma fenda por entre os fios.
Estático, apenas espero seu próximo movimento.
E quando ele acontece, porra, sei, apenas sei, que esse
momento ficará gravado em minha memória enquanto eu viver: o
dia em que um par de olhos acinzentados e incríveis encontrou os
meus com mais dor do que um ser humano deveria ser capaz de
suportar.
E basta isso, essa visão, para que eu decida atear fogo até no
último rastro de que um Molina esteve nessa terra.
Mas não sem antes fazê-los pagarem como merecem.

***

Três dias, três longos dias desde que a trouxemos para essa
clínica sem que a menina esboce qualquer reação. “Ela está em
estado de choque” explicou Saavedra, uma das médicas, “não falar
e bloquear-se é um tipo de defesa natural do cérebro. Chamamos
de Transtorno de Estresse Pós-Traumático”.
“Quanto tempo isso dura?” perguntei e recebi em troca um
olhar agudo de reprovação. “Quanto tempo ela precisar” foi tudo o
que a maldita doutora respondeu, ácida, contrariada. Sei suas
opiniões a meu respeito, as de Saavedra e Cassandra, terapeutas e
sócias da clínica. Vi a relutância em aceitarem minha exigência de
sigilo na admissão de Amália. Por elas, teriam chamado a polícia.
Precisei desembolsar uma grana alta e comprar o silêncio das
mulheres, apesar de elas não encararem assim.
Talvez ainda desconfiem que sou o responsável por degradar a
menina desse jeito. Se soubessem que quando penso nisso, que
quanto mais penso nisso, mais gostaria de ter prolongado a morte
daqueles malditos! Ter arrancado suas vísceras devagar e
metodicamente. Era o que mereciam, porra.
Coço a nuca, estocado no corredor do lado de fora do quarto
onde Amália está. Esse é o nome da menina, um que agora
sabemos. Sabemos tudo sobre ela. Ed encontrou os documentos da
adoção, levantou seu histórico. Ao contrário do que cheguei a
acreditar quando arrombei a porta daquele cômodo imundo onde ela
era mantida, Amália não é uma criança, é uma jovem de dezoito
anos, dezenove em alguns dias. Uma jovem que teve a vida
roubada.
Que tipo de animal desgraçado faz o que eles fizeram com
ela?
Privaram-na de comida, de comida, porra, o básico!
Se eu pudesse, arrancaria dela qualquer dor ou memória.
Devolveria os anos perdidos de sua infância e adolescência, a vida
que uma garota normal deveria estar vivendo, impedida por aqueles
doentes. Mas, dentre todas as coisas que posso fazer, isso não está
em meu alcance.
Foda.
Meu telefone tocando é o que consegue dissipar um pouco da
energia mortal que me faz apertar os punhos.
Sebastian.
— Fale — rosno, mentalmente fodido, sem fazer nenhuma
questão de esconder dele.
— Onde você está?
Encaro as botas em meus pés.
— Você sabe onde.
Seu silêncio do outro lado me diz mais do que eu gostaria de
saber. Do que gostaria que ele soubesse. Meu irmão certamente
está preocupado com a minha reação no que diz respeito a essa
menina. Não consigo evitar. Amália é… porra, ela é um anjo caído
nessa terra de merda, um lindo anjo de olhos cor de gelo. Gelo, não.
É mais precioso do que isso. Um tom único de cinza, valioso,
doloroso. Алмаз[4]. Seus olhos são como diamantes. De alguma
forma, sinto que é minha obrigação protegê-la, agora que a
encontrei. Não posso permitir que aquela dor a consuma, a
consuma mais do que já consumiu. É um tipo de dever cuidar dela,
como se… como se isso fosse tudo o que fui preparado para ser por
uma maldita vida inteira.
Aperto minha nuca com força. Talvez Sebastian tenha razão,
devo estar ficando louco mesmo. E não posso evitar.
— Penélope quer vê-la — avisa ele.
Penélope, a mulher do cara. Por quem viemos a Madri.
Ela já foi adotada por aquela família. Provavelmente passou
pelo mesmo que Amália.
— Acha que será bom pra ela? — Não me importo que a
urgência em minha voz denuncie minha esperança de fazer alguma
coisa por essa menina.
A franqueza dura do cara, de algum modo, é esperada:
— Nada será capaz de mudar as coisas como são, não depois
de como a vi. Essa menina não pode mais ser resgatada do lugar
em que os desgraçados a colocaram.
Fecho os olhos e inspiro devagar para aplacar a raiva. Para
não focar no peso do que ele diz.
E Sebastian parece saber disto, saber o que significa para
mim. Sua voz baixa uma nota, quando retorna.
— Talvez haja uma chance. Penélope é determinada. Se ela
quer ajudar, fará tudo o que for necessário para isso. Elas têm algo
em comum.
— Quando? — indago.
— Ela está no banho. Acho que pretende fazer isso ainda hoje.
Partiremos para o Brasil em dois dias.
Brasil.
Sair de Madri agora…
— Nahuí[5] — praguejo baixo.
— Não quero que viaje comigo, cara. Falarei com Ed e Bola
para que fiquem também.
Não digo nada a esse respeito. Não por telefone, não agora.
Então trato de apenas resolver primeiro a questão da visita de
Penélope. Quem sabe seja bom para a Amália.
— Vejo vocês daqui a pouco.
— Elliot? — chama ele antes que eu desligue.
Merda.
— Fale.
— Odeio ser aquele a te dizer isto, mas… tenha cuidado.
Volto a apertar o punho, repelindo o maldito alerta.
— Não pedi um conselho, Sebastian. — Desligo de uma vez.
Não conto que parte de mim, depois destes três dias aqui com
dela, desconfia que já é tarde. Que não dá mais para voltar atrás e
fingir que essa menina, do outro lado da parede, não está se
tornando alguém importante para mim. Importante a ponto de eu
não conseguir deixá-la sozinha ali.
Guardo o aparelho no bolso e dou dois passos em direção ao
parapeito de balaústres, observando o lago lá embaixo, me
perguntando se eu deveria entrar no quarto e tentar falar com ela
mais uma vez, contar que terá visitas em breve.
A menina não fala comigo. Não fala com ninguém. Mal se
levanta da cama.
Isto está me matando. Ver a luz apagada dentro de seu olhar,
a desesperança.
Agarro a superfície de cimento frio e inspiro profundamente o
ar que vem por entre as copas das árvores altas, antes de me virar
e fazer isto, entrar lá e tentar de novo.
Não vou desistir dela, meu interior determinou isto, espalhou
essa certeza dentro de mim como células surfando em meu sangue.
Bato duas vezes, e como sei que não terei uma resposta,
entro.
Ela está na cama, na mesma posição de antes, como se
apenas seu corpo repousasse ali. A mente, não.
Linda, quase que sobrenaturalmente linda. Triste. Ferida.
— Oi. — Limpo a garganta, afastando a rouquidão e
modulando meu tom para não a assustar, não ativar algum tipo de
medo.
Não quero jamais que tenha medo de mim, embora minha
aparência não ajude muito neste quesito.
Confiro a comida, intocada, na mesa do quarto de paredes
brancas.
— Também não gostei da sopa daqui — brinco, suavemente.
— Acho que nem eles gostam. Desconfio que enquanto servem isto,
estão comendo hambúrgueres dentro daquela cozinha. Posso? —
pergunto apontando a cadeira.
Não recebo um sim.
Mas recebo algo.
Algo que para alguns é nada, mas para mim, tudo. Um baixar
da cortina de cílios grossa. Quase um assentir.
Sento-me na cadeira, com o corpo para frente, apoiando os
antebraços nos cotovelos.
— Para ser sincero, tenho aversão à sopa. — Busco dizer a
primeira coisa aleatória que me vem à mente, é uma maneira meio
desesperada de transmitir a ela a ideia de que estou aqui como um
amigo, alguém em quem ela pode confiar. — Em meu primeiro ano
nas Forças Armadas, ficamos presos em uma nevasca que durou
quase trinta dias. A comida havia praticamente acabado, tudo o que
nos restava era meter qualquer coisa comível dentro de um
caldeirão e tentar tornar aquilo palatável, chamando de sopa. Sopa
de gravetos foi meu limite, ainda bem que aquele foi o último dia
antes de conseguirmos dar o fora de lá.
Amália não esboça qualquer reação ou comentário, só que,
olhando para ela tão atentamente quanto estou, percebo que está
comigo. Seu corpo relaxa um pouco, quase que imperceptivelmente.
— Se bem que eu não rejeitaria uma Harira marroquina. O
cordeiro vale a pena. Espero um dia poder mostrar a você o que é
uma sopa de verdade. — Essa última declaração é intencional.
Quero que saiba que há futuro para ela, uma vida inteira a
esperando lá fora.
Meu olhar é guiado para a marca em seu pescoço fino. A
maldita marca de uma coleira. Amaldiçoo a existência dos Molina
mentalmente mais uma vez.
Especialmente daquele que rasgou seu braço com um nome,
uma tatuagem rudimentar, grosseira, fodida.
Pego a percepção de que ela sabe a direção de meu olhar e
pensamento. Enxergo a humilhação em seu rosto, uma que me
rasga por dentro. Principalmente quando a vejo enterrar as unhas
na palma da mão.
Aliso minhas pernas, me preparando para levantar. Sebastian
e Penélope já devem estar chegando.
— Volto em breve — Preciso de ar. Preciso socar alguma
coisa, porque a outra opção é trazer aquela família desgraçada de
volta à vida só para matá-los outra vez. E isso, infelizmente, sou
incapaz de fazer, não importa o quanto deseje.
. Em poucos minutos, os encontro subindo os lances de
escada em direção ao corredor aberto ladeando os quartos da
clínica. Penélope e Sebastian, de mãos dadas, unidos como deveria
ser. É bom saber que se entenderam. Que um dos caras que
considero irmão finalmente se permitiu aceitar o lugar que aquela
mulher forjou em seu peito, em sua vida.
— Oi, Elli. — Penélope me abraça, apesar do sorriso, noto o
nervosismo em seu rosto.
— Oi, espanhola.
— Onde ela…?
Aponto para o quarto.
Ela respira fundo.
Pego-me fazendo a mesma coisa.
Penélope alisa as mãos nas laterais da calça.
— Será que…?
— Acho que será bom — decreto, compreendendo a direção
de seu questionamento.
— Tudo bem, então. — Sorvendo mais uma inspiração forte,
levantando a cabeça, a espanhola se prepara para o que encontrará
naquele quarto. Presumo que faça uma ideia. Que já tenha estado
nesta mesma situação em algum momento.
Com uma batida suave, e um incentivo meu, ela entra no
quarto.
Enquanto conversam, fico do lado de fora, me controlando
para não andar de um lado para o outro.
— Ela mexeu mesmo com você, não é? — observa Sebastian,
tranquilo, dando-me aquele escrutínio sombrio.
— Não da maneira como pensa — rosno, sentindo a
necessidade tola de descartar qualquer tipo de interpretação errada
do que ela, do que Amália, significa para mim. Não a quero desse
jeito, isso não tem a ver com alguma atração estúpida.
O cara continua a me encarar.
— Não quero que quebre seu coração, irmão.
É a primeira vez que usa esse tom comigo. Uma mistura de
condescendência e aceitação. Dou a ele um sorriso de escárnio.
— Há quem diga que não tenho coração.
Sebastian sacode a cabeça, algo salpica em seus olhos
escuros. Algo que afunda uma pedra em meu estômago.
— Você tem. De todos nós, é o que tem. E é por isso que sei
que aquela menina já está muito mais enraizada aí do que você
sabe, ou gostaria de admitir. Vejo sua relutância em deixá-la, e algo
me diz que sua decisão está tomada sobre o que fazer.
Desvio meu olhar do dele, incapaz de permitir que continue.
Que verbalize o que ainda não estou pronto para ouvir. Que
não vou deixar essa menina, enquanto ela precisar de mim.
Não importa o que aconteça.
Amália agora é minha responsabilidade, minha para proteger.
AMÁLIA

Um ano e meio depois

Todos os dias, atravesso a rua para não cruzar com o grupo


empoleirado na mureta do prédio da esquina, no caminho para
casa. Não gosto do cheiro da nuvem de fumaça sobre eles, e nem
das gracinhas que fazem quando passo. E tenho medo deles
também. Mas hoje eu nem consigo ligar para isso.
Demitida. De novo.
É a quarta vez em poucos meses.
O dono da lanchonete disse que tenho mãos fracas demais
para segurar uma bandeja. Mas não tenho. O problema não é o
peso. Ou a quantidade de louças para lavar, ou os banheiros que
me colocou para esfregar. O problema sou eu.
Quando aquele homem chegou por trás, me tocando daquele
jeito, não consegui evitar o instante de pavor que cruzou meu corpo
e amoleceu os braços. Foi apenas reação. Jamais tive a intenção de
derrubar as canecas de chope sobre ele.
Sou inútil e assustada, exatamente como o gerente do
emprego anterior a esse disse, antes de me demitir.
Abraçada ao corpo, belisco meu cotovelo.
“Você está pronta para encarar o mundo lá fora, Amália”. A voz
suave da Dra. Saavedra fica repetindo em minha mente. Só que ela
estava errada. Não me sentia pronta há um ano, e não me sinto
pronta agora. Acho que nunca vou me sentir.
— Hummm, ela não atravessou, hoje… — comenta o garoto
de gorro vermelho, em tom de elogio, quando passo pela roda
deles.
— A niña[6] criou coragem! — exclama outro.
Continuo andando.
Um deles cruza meu caminho e passa a andar de costas em
minha frente. É jovem, veste um moletom grande do Barcelona.
— Pela sua cara, teve um dia de merda, hein, chica[7]?! Mas
você está com sorte, sei de algo que vai tirar essa tristeza do seu
rosto.
Fazendo floreio, retira de cima da orelha um cigarro fino
envolvido em papel amarelado.
— Cortesia da casa — oferece, com ar amigável.
Sacudo a cabeça, negando, sem parar de andar.
Sei que vai insistir.
Mas me surpreende ao se calar e sair imediatamente do
caminho com olhos arregalados, como se tivesse visto um
fantasma. Ou me viu de verdade. Percebeu que não valho um
minuto do seu dia. Não o culpo.
No bolso da minha mochila, o telefone vibra mais uma vez.
Não pego para atender. Somente duas pessoas me ligam e com a
mesma frequência: Dra. Saavedra, a terapeuta, e Penélope.
Se for a doutora, já nem saberia mais o que falar a ela. Venho
ignorando suas chamadas há mais de um mês. Não sei por que
ainda insiste comigo. Ela, melhor do que ninguém, deveria saber
que não se pode curar todo mundo. Há pessoas que são casos
perdidos.
Penso então em Penélope, se for ela ao telefone, exatamente
como ontem, e antes de ontem, e antes de antes de ontem, em que
não atendi. Eu me sinto culpada por ignorá-la. Penélope fez muito
por mim desde que recebi alta da clínica psiquiátrica, há um ano.
Muitos meses antes disso até, desde que fui resgatada daquela
casa. O apartamento onde moro é pago por ela. Tentei repassar
meus salários para compensá-la, mas Penélope se recusou a
receber, afirma que somos família, que sou tia da Sol de Maria, sua
bebê. Não consigo negar esse título, principalmente quando ela
coloca a garotinha nas chamadas de vídeo.
Só que não somos família de verdade, nem tenho qualquer
parentesco com Penélope. A única ligação que temos é ter sido
adotadas pela mesma família perversa, em épocas diferentes. E
desde que descobriu sobre mim, eu me tornei um fardo para ela e
seu marido, Sebastian.
Impossível não pensar no amigo deles, também.
E pensar nele causa um mal-estar em meu estômago.
Cheguei a acreditar que se importava comigo, quando tornou
suas visitas na clínica constantes durante muito tempo. Mas, de
uma hora para outra, simplesmente desapareceu. Elliot deve ter lido
a minha ficha e percebido o que a Dra. Saavedra se recusa a
aceitar. Sou um saco de traumas ambulante, que mal sabe como
começar uma conversa. Por isso se mandou. Também não o culpo.
Ele só não precisava ter fingido que se importava.
Belisco mais forte meu cotovelo magro quando tenho aquela
sensação desagradável de estar sendo vigiada. O sentimento me
acompanha como uma sombra. Às vezes tenho quase certeza de
que é Santiago Molina. De que ele finalmente veio cumprir sua
promessa de me levar de volta àquela casa.
Apresso os passos até entrar no prédio. Subo os degraus de
dois em dois para meu apartamento. É um alívio.
Tremendo um pouco, escoro-me à porta e mentalizo as frases
que as doutoras Cassandra e Saavedra recomendaram para
quando eu me sentisse assim, prestes a ter uma crise de ansiedade.
“Você é forte, Amália. É uma sobrevivente”. “Cada vez que se
esforça para superar os sentimentos negativos, é seu subconsciente
afirmando que quer viver”. “Só precisa respirar fundo e se lembrar
de todas as coisas que deseja realizar. Tudo é possível, para você”.
O problema é que não resolve nada.
Há dois meses, Dra. Cassandra suspendeu a medicação.
Recomendou fitoterápicos que não têm o mesmo efeito dos
ansiolíticos. Se ao menos eu pudesse tomar uma pílula agora, acho
que tudo ficaria sob controle outra vez.
Chuto o All Star dos pés para um canto e deixo a mochila no
chão. Odeio a escuridão, só por isso acendo o pendente fraco.
Passo pelo quarto e não paro, caminho para o fim do corredor. Entro
no banheiro, ligo a válvula de água quente da banheira de ferro
antiga, deixo na temperatura mais alta possível.
Ao me despir, evito olhar no espelho. Odeio o que vejo. Meu
reflexo e as marcas me fazem lembrar de tudo. Durante anos fui
presa por uma coleira. Guardo em meu corpo os sinais das surras,
das humilhações. Da degradação.
Acho que sentiam prazer no que faziam comigo. Talvez eu
merecesse tudo aquilo. Não tenho nenhuma utilidade no mundo.
Nem minha mãe me quis, depois que a abuela morreu.
Não sou ninguém.
Não sou nada.
Pego a lâmina em cima da pia e a levo comigo para a
banheira. Um hábito que adquiri há alguns meses. Dentro da água,
atravesso-a vagarosamente em meu pulso, sobre o monte de
cicatrizes encobrindo aquele nome. A dor física traz uma sensação
reconfortante de alívio. Ela me acalma.
Somente então consigo afundar na banheira. Deixo apenas o
braço ferido pendendo para fora.
“Você está pronta, Amália”. Submersa, a frase volta a
repercutir dentro de minha cabeça, como um eco que nunca perde a
força e vai se alastrando por todo o meu corpo.
Não estou pronta. Nunca vou estar. O mundo aqui fora não é
para mim.
Aperto as pálpebras cerradas debaixo da água fervente. A pele
arde. Depois de alguns minutos, meu peito começa a queimar,
avisando que é hora de emergir. Percebi que preciso desta parte.
Do limiar. Quando a vertigem se aproxima.
Só que, desta vez, não tenho vontade de recuar. Sair para
quê? Para viver mais dias iguais ao de hoje, ou de ontem, ou todos
até aqui? O que há de bom em estar viva?
Vou relaxando o corpo e aceitando a queimação no peito como
um presente.
Uma bolha de ar sai do meu nariz. E outra. São as últimas, eu
acho.
“Eu venho te buscar, Mel, não se preocupe”. “Eu venho te
buscar”. “Eu venho te buscar, Mel”, do fundo da banheira, ainda
escuto a voz de Santiago, a ameaça.
Afundo-me mais.
Para onde vou, ele não poderá mais me encontrar.
Submersa, sinto uma explosão e a vibração de passos fortes
contra o piso. Sons comuns que tentam me enlouquecer
constantemente, produzidos pela minha própria mente. Só que,
nesse momento, não me dão mais medo.
Vou acabar com isso de uma vez por todas.
— Ad na zemle![8] Que porra você está tentando fazer,
menina?! — ruge uma voz masculina, forte.
Então é assim que acaba? O fim é um homem? Eles estão em
toda parte?
ELLIOT

Se eu tivesse que contar todas as vezes em que não estive no


controle de uma situação crítica, apenas os dedos de uma das mãos
seriam o bastante. Estar no controle é condição imprescindível para
pessoas como eu. Aprendi a me antecipar, a agir e não ser pego
pelo acaso.
O problema é que o acaso é um elemento traiçoeiro.
Sorrateiro. Costuma se esgueirar pelas frestas do previsível. Basta
um vacilo, e tudo pode simplesmente ruir.
Como agora.
— Ad na zemle!
Ao ser retirado da banheira, o corpo frágil se curva para frente
tossindo convulsivamente. Levanto-a em meus braços. Quando a
água penetra minha camiseta, por baixo da jaqueta de couro aberta,
sinto o quanto está quente como o diabo.
— O que…? — ela tenta dizer, mas a tosse e a necessidade
de recuperar o ar não permitem.
— Que besteira você está tentando fazer, devchonka[9]!? — o
fio de autocontrole conjurado em minha voz é enganoso. Mal posso
acreditar nessa merda. Um minuto. Se eu tivesse esperado um
maldito minuto para entrar, teria sido tarde demais.
A ideia me preenche de um pavor responsável por enrijecer
cada músculo do meu corpo.
É isso o que acontece quando você deixa nas mãos do acaso,
ele fode tudo.
Se eu não tivesse me ausentado da cidade por tantos dias
para ir resolver a bagunça de Yulian, se estivesse aqui, teria
identificado os sinais em Amália. Teria percebido que a garota
precisa de ajuda mais do que nunca.
Deixá-la sozinha na Espanha para ir livrar a bunda de meu
irmão mais novo de outra enrascada foi um erro.
Levo a menina em meus braços para o quarto. O cabelo
comprido, negro como a noite, esconde seu rosto e seios, grudando
nela como uma segunda pele.
Magra demais, marcada, pálida. Vê-la assim, mais vulnerável
do que nunca, me mata.
Deposito o corpo fraco sobre a cama e estendo o cobertor para
cobrir a nudez. Amália não para de tossir e tremer. Meu olhar recai
sobre o ferimento sangrando em seu pulso. Basta olhar para saber
que não é profundo. Tampouco o primeiro. A menina se automutila
com frequência.
Eto bylo prakliátiie.[10]
De cabeça baixa, esfregando a nuca raspada, sento-me ao
seu lado na cama. Nem sei o que dizer que consiga ocultar a
irritação e frustração que estou sentindo no momento. Não com ela,
mas comigo. Falhei com essa menina. Falhei na tentativa de dar a
ela uma vida nova e normal, uma que a fizesse superar toda a
porcaria que viveu.
Olho para ela, encolhida, envergonhada, e só consigo pensar
que tudo até aqui foi um erro.
Preciso sair do quarto por um instante para colocar os
pensamentos em ordem antes de conseguir fazer ou falar qualquer
coisa coerente. Antes de domar a urgência martelando em meu
peito.
Nunca me senti mais incapaz do que agora.
— Preciso de um minuto — aviso. A rouquidão miserável em
minha voz é pouco familiar até mesmo para mim.
No corredor, ando de um lado para o outro até que minhas
botas quase perfurem o chão.
A realidade rapidamente se faz presente: acabo de invadir o
apartamento dela e me revelar. É real. Está acontecendo. Não há
mais como voltar atrás. Não dá para continuar escondendo que
minha vida passou a ser em função dela desde que a encontrei na
casa daqueles desgraçados. Esconder que eu a vigio, que estou
sempre por perto como um maldito stalker, zelando por sua
segurança.
Temia por esse dia. Ansiava por ele.
Procuro em seu banheiro itens de primeiros socorros. Não há
nada além do essencial para sua higiene. Na cozinha, abro e fecho
os armários cada vez mais decepcionado. Vazios. Geladeira vazia.
Não há comida em sua casa.
Escoro-me na pia, mãos apertando firmemente a pedra entre
os dedos, e respiro fundo por um minuto, retomando um mínimo de
controle sobre o caos, antes de retirar o telefone do bolso.
— Ey, hermano![11] — O garoto atende ao primeiro toque. —
Eu não pretendia oferecer um baseado para sua protegida, juro! —
a voz alarmada quase me faz perder a paciência.
Seguro a ponte do meu nariz depois de respirar fundo.
— Se tentar outra vez, faço você comer essa merda, Ruiz.
Agora, preciso de um favor. Vá correndo à drogaria, no meio do
quarteirão, e traga tudo o que vou te dizer. Você tem cinco minutos.
Aproveito para enviar uma mensagem de texto rápida para
Penélope, antes que ela me enlouqueça com todas estas ligações.

Estou com ela.

A resposta imediata não me surpreende.


Reflito sobre ser sincero. No momento, não há nada que a
espanhola possa fazer a quatro mil quilômetros daqui. É inútil
sobrecarregá-la.

Amália está bem, Elli?

Não se preocupe. Está tudo bem.


Ligo mais tarde.

Abro então o aplicativo de entrega de comida e peço de tudo


um pouco do que o menu oferece.
Ainda que eu não tivesse visto que não há nada aqui, seria
impossível não perceber que Amália emagreceu desde a última vez
em que estive na Espanha, há duas semanas. Seu corpo não está
tão debilitado como quando a resgatamos daquela maldita família,
não, nem de longe. Naquele dia, cheguei a confundir a garota com
uma criança, de tão subnutrida. Mas é nítido que parte do peso que
ganhou desde então se foi em poucos dias.
É frustrante pra caralho encontrar a garota nesse estado.
Eu deveria ter suspeitado que a coisa estava ruim quando
Saavedra me ligou relatando que a menina não vai às sessões de
terapia há mais de um mês. E passou a se automutilar. Tudo o que
vejo aqui, o que ela acaba de tentar fazer, só me faz chegar à
conclusão mais óbvia. Amália está desistindo, a verdade é essa.
Só que isso, isso eu não posso permitir.
Não sou de aceitar derrotas e não estou disposto a aceitar
esta, de jeito nenhum. Não depois de tudo o que ela já passou.
A imagem da menina submersa na banheira, pálida, o sangue
deslizando por seu braço pendurado para fora… não, não dá mais.
Há mais de um ano eu me afastei e passei a monitorar de longe,
como todo mundo disse que era o melhor a fazer, e é evidente que
não está funcionando.
Então acaba aqui. Essa coisa de ficar nas sombras acaba
aqui.
Bato rapidamente os dedos pela tela do celular outra vez. Do
outro lado, o cara atende no segundo toque.
— Por que imaginei que me ligaria… — Sebastian cantarola
arrogante, o imbecil.
— Ainda está na Espanha?
— Eu disse que ficaria até o fim do dia, não disse? O que
quer?
Apertando minha nuca, encaro as botas em meus pés.
— Você sabe o que quero.
— Não exatamente, mas posso tentar adivinhar? Decidiu
finalmente ir viver sua própria vida, e quer uma carona para casa, é
isso?
Aperto a mandíbula por um instante, naquele hábito ruim de
pressionar os dentes num aperto de morte.
— Vou levar Amália comigo, cara.
O silêncio do outro lado não é novidade. Sei o que Sebastian
pensa. O que todos os caras pensam. Para eles, estou numa guerra
em que não se pode vencer.
Mas ao contrário do que espero, o cara parece aliviado.
— Já não era sem tempo, irmão.
Inspiro com força.
— Eu sei.
Desligo. É isso. A decisão está tomada. Vou levar Amália para
casa, para minha Rússia. Só preciso encontrar um jeito de fazer
com que a menina confie em mim outra vez. No cara que, na
cabeça dela, a abandonou. E aceite embarcar comigo para longe
desse maldito lugar. Para uma vida nova.
Ao retornar ao quarto, encontro-a embolada nos cobertores,
exatamente como deixei. Antes de me aproximar, tomo um tempo
para observá-la. Cabeça baixa, rosto fino. Olhar distante. A visão
toca em algum ponto forte dentro de mim, que não faço questão de
compreender. Só incomoda. Pra caralho.
Com as mãos guardadas nos bolsos, em um tipo de código de
que vim em paz, entro devagar.
— Olá, Amália — cumprimento pela primeira vez.
Não responde. Ela nunca foi de falar muito. Mas o par de olhos
de diamante, profundos, carregados de mais dor do que deveria ser
possível, encontram momentaneamente os meus como um disparo
do melhor franco-atirador. Tão familiares. Conheço cada raio cinza
que circunda a íris, cada manchinha preta que existe neles. E não
tem nada a ver com a memória fotográfica que me colocou na linha
de elite das Forças Armadas.
A verdade é que, mesmo contra a minha vontade, esses olhos
me perseguem dia e noite, desde a primeira vez em que se
direcionaram para mim. Estão marcados em minha pele.
— Desculpe invadir sua casa deste jeito. Você sabe quem eu
sou?
Ela assente. Apenas isso, desviando o olhar. Por uma fração
de segundo, tenho a sensação de que pego algo mais em seu
semblante. Sutil, porém muito parecido com ressentimento.
Semicerro os olhos em busca de confirmação. No instante
seguinte, não está mais lá.
Sem deixar de escanear seu rosto, não perco a maneira como
os dedos finos se fecham em uma parte do cobertor, tensa.
— Fico feliz que se lembre. Até porque, um careca feio como
eu é bem difícil de esquecer, não é?
Ciente de que não haverá uma resposta à minha tentativa de
quebrar o gelo, pego uma toalha de cima da cadeira e ofereço para
que envolva no cabelo molhado.
Amália não faz qualquer menção de aceitar. Sei que não quer
soltar o cobertor por estar nua sob ele. E ela tem razão. Não sou
alguém de confiança ou próximo a ela. Sua defesa é natural.
— Pedi alguns itens da farmácia aqui perto. Para o ferimento.
— Aponto com a cabeça o pulso cortado. — E vou lá na sala
esperar. Pode, por favor, se vestir para conversarmos?
Não se move. É como se nem me ouvisse.
— Amália? — digo o seu nome com um pouco mais de
firmeza.
Odeio a maneira submissa e amedrontada como ela
automaticamente reage ao comando, como abaixa a cabeça rápido
e assente. Reflexo da vida de antes.
Um nó seco em minha glote me impede de fazer um
comentário a esse respeito.
Saio do quarto me sentindo um fodido derrotado.
Na sala novamente, retiro a jaqueta e a deixo sobre o encosto
de uma cadeira. Tenho vontade de ligar para a Saavedra e pedir que
me diga o que fazer. Que me oriente sobre como agir com a menina
para não a fazer se fechar ainda mais.
Mas não ligo. Opto apenas por seguir os meus instintos, desta
vez. Errei em me afastar a pedido da terapeuta. Não errarei
novamente com Amália.
Abro a porta da frente quando ouço o rangido dos passos do
moleque do lado de fora do apartamento.
— Ei, cara! Eu…
Arranco o saco de papel de suas mãos e fecho a porta na cara
dele. Oferecer maconha para a menina, sério?
Abro a embalagem e checo os itens. Tudo o que pedi.
Vou até a cozinha, lavo bem as mãos com água e sabão e sigo
para o quarto levando o que preciso comigo.
Amália está vestida com uma camiseta e calça jeans. Arrasto a
cadeira para ficar de frente com ela, sentada na beira da cama.
Meticulosamente, deposito a gaze, o soro fisiológico, a solução
antisséptica, as ataduras e o esparadrapo alinhados ao seu lado, no
colchão.
— Posso? — peço seu pulso ferido.
Faz um não com a cabeça.
Arqueio a sobrancelha, esperando que use sua voz. Ela
sempre foi silenciosa, mas ao menos antes me respondia.
— Não precisa — murmura muito baixo, desconfortável. O que
a voz ligeiramente rouca transmite é que não a usa há muito tempo.
— Por favor — insisto.
Sem me olhar, provavelmente querendo apenas que isto acabe
logo e eu me mande daqui, estende o braço fino, de pele pálida
demais para alguém que vive numa cidade tão quente nessa época
do ano.
— Tenho treinamento médico, sabia? — revelo, tranquilo. Sinto
seu olhar em mim. Não subo o meu para confirmar. Sigo avaliando o
ferimento como se ele fosse tudo o que me importa. — Não conte a
ninguém, mas já fiz muita sutura em criancinhas e bêbados, até ser
levado a sério.
Evito expressar em meu semblante o desgosto de ver o corte
fresco por cima de outros mal cicatrizados na pele de mármore.
— Não dói? — pergunto por uma questão de querer ouvi-la.
Seu silêncio me faz subir os olhos e arquear a sobrancelha
outra vez, como quem avisa que espera uma resposta.
— A dor ajuda — sibila desviando o olhar, quase inaudível. E
ainda assim, é a mesma melodia que ouço quando ela sequer está
por perto. O som que ondula como uma canção profunda e
melancólica.
— Sei como é. Tenho meus próprios meios, também — digo,
enganosamente concentrado em limpar o ferimento. — Mas em vez
de me cortar, como você, aprendi a extravasar de outra forma. Se
um dia quiser, posso te ensinar.
— Como sabia? — pergunta ela, surpreendendo-me por ser
apenas direta.
Da mesma forma, não hesito em responder. Subo os olhos e a
encaro, intensamente.
— Percebi que havia algo de errado pela maneira como saiu
do trabalho.
— Você me seguiu — não é uma pergunta. Penso captar outra
vez a nota de ressentimento junto à afirmação.
Meus métodos não envolvem mentir. Odeio mentiras porque já
tive minha cota delas por muito tempo.
— Sim. Acompanho você desde que saiu da clínica, Amália.
Estou sempre por perto.
Se eu não estivesse encarando-a tão atentamente, se não
estivesse bebendo cada respiração dela, teria perdido o choque que
dilata a íris. É a primeira demonstração de emoção desde que
cheguei.
— Pelo menos nisto, não estou louca — resmunga para si.
Sinto a afirmação como um golpe bem dado. Paro
completamente meu trabalho de limpar o corte apenas para revelar
o que eu já deveria ter contado desde o início:
— Moro neste prédio. Tive de retornar à Rússia algumas
semanas atrás, mas minha casa é aqui há um ano. Desde que se
mudou para cá.
Espero que me diga o que pensa. Encaro-a pacientemente,
aguardando isso.
Seu lábio inferior, naturalmente avermelhado, treme um pouco.
A outra mão se fecha na colcha sobre a cama. E isso é tudo o que
tenho dela antes de a menina desviar o olhar, assumindo aquela
expressão distante e impenetrável. Saavedra havia me alertado de
que Amália tem a capacidade de se esconder dentro de si mesma
às vezes, de uma forma inacessível, ao que nomeou de
dissociação. Uma proteção, em outras palavras.
Mas não quero que se proteja de mim. E nem que se esconda
onde quer que sua mente a leve.
Na verdade, inferno, tudo o que mais quero é vê-la bem. Que
confie. Que me deixe ajudar.
Com cuidado, enfaixo seu pulso.
— Por que parou de ver a Dra. Saavedra?
Nenhuma resposta. Ela não é de conversar, mas preciso disto,
preciso que fale comigo.
— Amália? — insisto.
— Não muda nada — sussurra. A aceitação em sua voz é um
punhal em meu peito. Qualquer pessoa com o mínimo de atenção
pode ver que a garota está mergulhada numa depressão pesada.
A força com que aperto o maxilar provoca um rangido em
meus dentes. Não é o momento de pressionar. Não quando estou
tocando nela contra sua vontade.
— Pronto — digo, soltando seu braço que segurei por um
pouco mais de tempo que o necessário.
O som no celular em meu bolso de trás avisa uma notificação
do aplicativo de comida.
— Pedi algumas coisas para você. Vi que sua geladeira está
vazia. — Digito uma mensagem para que o entregador suba. —
Acabou de chegar.
Amália se abraça. Não perco a forma como belisca forte o
cotovelo.
— Não estou com fome.
Levanto, trazendo comigo as embalagens vazias.
— Mas eu gostaria que tentasse. Pelo menos um pouco —
nisto, sou contundente. — Vou atender a porta. Estarei na sala te
esperando.
Ciente de que ela precisa de tempo para digerir minha
presença, deixo que fique sozinha. Acho que também preciso de
alguns minutos para lidar com minhas próprias emoções, com a
frustração principalmente.
Quero ajudar. Quero que fique bem. E não tem nada a ver com
alguma atração idiota. É sobre ela. Sobre uma garota jovem que só
teve o pior da vida.
Porra, é sobre justiça.
Cerca de quinze minutos mais tarde, Amália finalmente sai do
quarto. Encontrar a abundância de comida sobre a mesa a
surpreende, posso ver em seu rosto.
Sem intenção de intimidar, por ser tão grande perto dela,
escoro o ombro à parede próxima.
— Não sabia do que gostava, pedi um pouco de cada coisa.
Ela aperta os lábios numa linha trêmula.
— Obrigada. Eu realmente agradeço, mas…
— Há algo que gostaria de conversar com você. Preciso que
se alimente, antes.
As mãos se perdem dentro de um moletom maior que seu
corpo, nervosamente.
— Pode falar.
— Coma primeiro, por favor.
Tenho a impressão de que a sutil animosidade que enxergo em
seus olhos quando me sustentam por um breve momento não tem
nada a ver com estar deprimida. É pessoal.
Sem intenção, ela me faz querer sorrir.
Vagarosamente, me desprendo da parede e puxo uma cadeira
diante dela, do outro lado da mesa.
— Também estou morto de fome, Amália. Tive um dia de
merda. E não consigo conversar de estômago vazio.
Relutante, ela se senta.
Em silêncio, passo os próximos minutos acompanhando a
menina se forçar a comer a sopa de tomate. Cada colherada exige
muito esforço, sei disso porque não consigo tirar meus olhos dela. É
a primeira vez, em mais de um ano, que finalmente posso olhá-la de
frente, sem precisar de subterfúgios. Sem me esconder.
Parar de visitá-la na clínica exigiu muito esforço. Muito mais do
que pensei. Mas foi recomendado. Suas médicas disseram que eu
estava atrapalhando o progresso de Amália. Segundo eles, minha
presença a estava tornando emocionalmente dependente.
Jamais deveria ter escutado. Se eu estivesse lá, talvez hoje as
coisas fossem diferentes. Diabos, certamente eu daria motivos para
ela jamais desejar se matar em uma maldita banheira de água
quente.
Uma única coisa é certa. Essa cidade, viver sozinha, ao
contrário do que todos acreditavam, não está sendo bom para ela.
Pelo contrário, a está adoecendo.
Liberdade e independência não são nada se você não souber
o que fazer com isso.
Refleti muito, ao segui-la até em casa esta tarde. Acho que é
hora de respirar novos ares. De mostrar a ela que o mundo é muito
maior do que essa maldita cidade.
— Penélope está preocupada com você.
Amália para a colher no caminho para a boca. Mas não fala
nada.
— Ela sente sua falta — digo.
Estou indo em seu ponto fraco. Sei da maneira como ela
permite que Penélope tagarele sem parar ao telefone, sem coragem
de desligar. Querendo ou não, aquela espanhola é importante para
Amália. E é por isso que dou meu próximo passo.
— Penélope gostaria que você fosse visitá-la.
Vagarosamente, a menina solta a colher.
— Não posso, agora.
Semicerro os olhos e a fito.
— Por quê?
— Tenho que trabalhar.
Quero rir. Ela vai mentir para mim a esse respeito, sério?
Escoro-me para trás na cadeira, um pouco mais relaxado.
— Pelo que sei, não tem mais.
Cor. É a primeira vez que cor toma conta das maçãs do rosto
sempre tão pálidas. Um vermelho vivo que atinge até mesmo as
orelhas.
A satisfação que sinto ao ver isto é perturbadora.
— Preciso procurar um novo emprego.
Segue encarando o prato como se algo muito interessante
estivesse prestes a brotar dali.
Acho que já pisamos em ovos demais para uma conversa.
Inclino-me um pouco para frente.
— Responda honestamente, Amália: você gosta daqui? De
Madri?
A garota engole com dificuldade. Depois de alguns segundos,
quando penso que não responderá, ela diz:
— Não.
Balanço a cabeça, satisfeito pela sinceridade.
— Então o que a impede?
Seu lábio de baixo, cheio, vermelho, treme daquele modo
nervoso, à medida que os olhos cinzas fitam o prato
compenetrados. Mas são seus punhos, se fechando sobre a mesa,
que acendem um alerta.
— Amália?
— Quero que vá embora — de repente, ela diz isto. Assim,
sem rodeios. Baixo e determinada.
Arqueio a sobrancelha, surpreso como o inferno.
— O que disse?
Olhos tempestuosos vêm aos meus, diretos, acusatórios.
— Quero que vá embora — repete com todas as letras, mais
audível, com mais firmeza.
Uau.
Por essa, eu não esperava.
— Por quê? — indago, calmamente.
As narinas, no nariz pequeno, de ponta avermelhada, se
abrem.
— Por quê, Amália? — pressiono.
E a coisa acontece. Finalmente, acontece.
— Porque é o que você já fez! — Abruptamente, ela se
levanta, derrubando a cadeira atrás de si sem querer, numa
explosão inesperada. — Porque é um mentiroso! E agora… e agora
vem me dizer que… que mora aqui esse tempo todo?! Que tipo de
pessoa faz isso?!
Recuo a cabeça para trás, como se algo tivesse me acertado
fisicamente.
Porra.
Amália aponta o dedo em riste para mim.
— Eu odeio você! Odeio! Odeio!
Quase não me movo, surpreso pra caralho, quase. Tenho
tempo de levantar e interceptar seu caminho, quando tenta correr de
volta para o quarto.
Seguro-a pelo cotovelo, um toque firme, mas com o cuidado de
não a machucar.
— Você não me odeia, Amália — refuto, calmo. — Está
magoada comigo, é evidente. Mas não me odeia.
Chamas prateadas correm freneticamente por meu peito, para
o lado, qualquer lugar menos para os meus olhos.
— Olhe para mim — desafio.
— Vá embora. — Tampa os ouvidos, como se não quisesse
mais me escutar. — Vá embora, vá embora, vá embora…
Vê-la reagindo assim comigo me arrebenta. De todas as
coisas, isto me arrebenta.
Seguro seus braços, apenas para que me escute.
— Não pretendo tocá-la sem a sua autorização. Esta será a
primeira e última vez. Só quero que ouça o que vou te dizer, Amália.
Pode fazer isso?
Amália fecha os olhos, apertados, me bloqueando para fora do
jeito que pode.
— Tudo o que fiz foi querendo o seu bem. Suas médicas, na
clínica, pediram que eu me afastasse. Disseram que minha
presença atrapalhava sua recuperação. Mas não consegui —
suavemente, toco seu queixo, levantando o rosto pequeno num
convite para que abra os olhos e me encare —, não consigo me
afastar. Eu me preocupo com você, malyshka[12], mais do que já me
preocupei com qualquer pessoa no mundo.
Um ponto dentro do meu peito lateja por ser o causador da
expressão contraída que desfigura seu rosto, como se sentisse dor
reagindo ao que digo.
— Você necessita de tempo para absorver tudo. Isso eu
compreendo e posso te dar. Mas preciso que me olhe, nem que seja
apenas por um momento, para o que vou dizer agora.
Espero. Ela não reage. Sinto que estou perdendo a menina
para si mesma.
— Amália, por favor, olhe para mim. Estou te pedindo. — Se
pela ênfase, ou pela urgência em minha voz, após um instante de
hesitação, ela finalmente abre os olhos.
Marejados. Magoados.
Preciso exalar devagar para afastar essa sensação apertando
minha glote, enquanto detenho o seu olhar.
— Meu apartamento é esse em frente ao seu, e sei que é
terrível descobrir isso assim, depois de tantos meses. É um fato que
não posso mudar: sempre estive por perto. — Encaro-a
profundamente. — Se decidir vir comigo para a Rússia, basta bater
em minha porta.
Uma lágrima grossa despenca por seu rosto e cai em minha
mão. Sem controle de meu gesto, aliso a bochecha suave com o
polegar, limpando a umidade.
— Mas se decidir ficar, Amália. Eu também ficarei. Estarei com
você onde estiver.
— Vá embora, por favor — murmura com mais desespero.
Meu peito é esmagado.
— Eu vou. Só quero que se pergunte, com toda a sinceridade,
o que tem a perder indo comigo? O que tem a perder estando perto
de quem se importa de verdade?
AMÁLIA

Um ano antes

— O sol já está se pondo — doutora Cassandra comenta atrás


de mim, parecendo ler meus pensamentos.
Mais um dia indo embora sem visita ou notícias.
Abraço meu corpo, voltada para a janela, para o jardim lá fora.
Ele não veio ontem, e nem antes de ontem. Já faz semanas que não
aparece. Não sei ao certo quantas. Nunca fui boa em contar a
passagem de tempo. Só sei que é a mesma quantidade que estou
sem sair deste quarto. Sem passear pelo jardim ou me sentar no
banco próximo à fonte. Não sinto vontade.
Sinto falta dele. De ouvir sobre seu dia, sua vida. Suas
aventuras pelo mundo. Só ouvir. Sem precisar falar.
Estou preocupada que tenha acontecido alguma coisa. Eles
sabem que Elliot me tirou de casa. Tenho medo de que tenham feito
mal a ele por ter me ajudado. Elliot é um homem bom, é paciente,
gentil. Disse que me protegeria. Só que não sabe quem eles são de
verdade. Que são gente ruim e perigosa. Sempre disseram que, se
eu fugisse, me encontrariam e algo muito ruim aconteceria.
E se o pegaram?
Não consigo parar de pensar nisso. Minha cabeça também não
para de doer.
Espreito o reflexo da Dra. Cassandra na janela. Está sentada
na cadeira ao lado da minha cama, como faz quase todos os dias,
assistindo meu silêncio. Será que sabe de alguma coisa?
Viro-me por cima do ombro. Preciso lamber o lábio para
desgrudar um do outro, antes de falar.
— Você tem notícias dele? — minha voz falha, a garganta arde
um pouco também, acho que porque não tenho usado com
frequência ultimamente.
As sobrancelhas castanhas da Dra. Cassandra se unem e um
vinco que marca o meio da testa, talvez de surpresa. Não costumo
dizer nada em sua presença.
— Do seu amigo, querida? — pergunta.
Ela sabe de quem estou falando. Quer apenas me ouvir dizer.
— Sim.
Sinto que está me estudando. Daquele jeito que elas fazem.
Ela e a Dra. Saavedra.
— Estou preocupada — conto, não sei por quê.
Meu olhar se concentra no sorriso tranquilizador em seus
lábios, e na forma como então se movem quando fala.
— Não fique. Ele está bem. Já, já estará de volta, tenho
certeza — o tom seguro na voz dela, por alguma razão, me
decepciona. — Enquanto Elliot não pode vir, por que não
experimenta sair um pouco deste quarto e tentar fazer novas
amizades lá fora?
Ele desistiu de mim. Só pode ser isso o que significa a
expressão de pena em seu rosto.
Encosto a testa contra o vidro. Minha cabeça vai explodir.
— Quer conversar, falar sobre como se sente?
Nego com a cabeça.
— Você pode me dar mais remédio? — sussurro.
— Qual remédio, querida? — questiona com suavidade.
— Lorazepam… minha cabeça vai explodir.
— Entendo — mas acho que não entende, não. Pois se
levanta e vem para o meu lado na janela. Ela quer me ouvir. — O
que acha de tentarmos encontrar a causa desta dor, juntas?
Exalo o ar de meu peito, que também começou a doer.
— Não vou pedir que converse comigo. Na verdade, o que
acha de fazermos diferente, hoje? Eu falo e você precisa somente
confirmar se estou certa ou errada.
Belisco meu cotovelo. A dor ajuda a distrair o resto.
— Amália?
Engulo a saliva que tem gosto amargo.
— Está bem — respondo, porque é o que ela espera que eu
faça.
— Ótimo. Sua cabeça não para nem um minuto. Você tem
muitos pensamentos aí dentro, não é?
Aceno que sim. Muitos, tantos que já não sei mais distinguir o
que é real. Acho que estou enlouquecendo.
— Normalmente são pensamentos persistentes sobre coisas
que ainda não aconteceram, mas que podem acontecer a qualquer
momento.
Minha garganta arde quando confirmo com outro "sim".
— É difícil controlá-los. Quando se dá conta, dominaram sua
cabeça até se sentir exaurida.
Meus olhos empoçam. Balanço a cabeça novamente.
A voz dela baixa uma nota, mais profunda e compreensiva.
— E você sente muito medo que estas possibilidades
aconteçam. Sente medo o tempo todo.
Sim, sim, sim! Abraço meu corpo e me belisco com mais força.
Preciso me sentar no peitoril da janela para tentar respirar, porque
estou sufocando. Já não aguento mais sentir tanto medo. Eles
sempre disseram que iriam me encontrar se eu tentasse fugir. Que
possuíam olhos em toda a parte. Que as câmeras estavam sempre
me vigiando, até o que havia dentro da minha cabeça.
E agora, Elliot também não está aqui.
Dra. Cassandra se senta ao meu lado e toca suavemente
minha mão.
— Respire bem fundo, querida.
— Não consigo.
— Consegue sim. Só levante seu queixo e puxe o ar bem
devagar.
Eu tento, e queima, queima tudo. Meu peito virou brasa.
— Isso, assim. A falta de ar, a sensação de coração acelerado,
tonturas, é uma reação extrema do seu cérebro. Mas está tudo bem.
Você está aqui, está segura. Sente a minha mão?
Sua mão segurando a minha aperta um pouco mais.
— Quero que vão embora… que me deixem em paz — que
parem de me enlouquecer!
— Os pensamentos?
Sacudo a cabeça, respondendo que sim.
— E o medo — murmuro quase sem voz de tanto que a
garganta arde.
— Posso te assegurar, querida, nada vai acontecer. Esses
pensamentos em sua cabeça não têm poder, não são previsão ou
antecipação de absolutamente nada. É a maneira como seu
subconsciente lida com o estresse, criando situações e projetando
medo e preocupação numa carga extrema. Lembra que a Dra.
Saavedra falou a respeito do distúrbio de ansiedade chamado TEPT,
o Transtorno de Estresse Pós-Traumático? Tudo o que passou,
Amália, foi muito traumatizante. Exigiu defesas de seu cérebro. Ele
agora acha que precisa se preparar, estar um passo à frente, para
que nada daquilo se repita.
— Então, como faço parar? Por favor, me diga, como?
— Abra os olhos, querida — o som calmante de sua voz, de
algum jeito, parece conseguir me guiar para fora do barulho
ensurdecedor em minha mente.
— Infelizmente não há uma palavra mágica ou medicamento
que possa fazer parar de uma hora para outra, Amália. Nisto,
terapeutas e psiquiatras são unânimes em afirmar.
Ela sorri de um jeito otimista e continua.
— Mas há maneiras de exercitar sua mente em outra direção.
Costumo dizer que é como estar de frente a um labirinto. Em vez de
entrar nele, respire bem fundo algumas vezes e olhe ao redor. Onde
você está no momento? Se for preciso, descreva o lugar para si
mesma em voz alta. O que há de positivo? Parece que não, mas
você se surpreenderá sobre como existem coisas boas no nosso dia
para celebrar, até as menores. Veja esse pôr do sol, por exemplo. —
Aponta para o horizonte lá fora, atrás de nós. — Ele nunca acontece
de maneira igual. Não é uma dádiva que podemos assistir a um
fenômeno tão único e bonito da natureza todos os dias?
Meu olhar varre os tons de laranja, vermelho, amarelo e cinza
no céu. Ele é lindo mesmo. Não podia ver o céu daquela casa.
Havia somente o escuro.
O aperto fechando minha garganta cede um pouco.
Derrubo a testa contra o vidro, sem tirar os olhos do horizonte.
Doutora Cassandra também está olhando para lá.
— Lutar contra o que há dentro de nossa cabeça é um
exercício diário e muitas vezes exaustivo, Amália, mas posso
assegurar: você é mais forte do que pensa. É uma sobrevivente.
Tudo é possível para você, e quando descobrir isso, descobrir o
tamanho de sua força, irá compreender que pode realizar qualquer
coisa que desejar. — Ouço a respiração sair devagar de seu peito,
ou talvez do meu. — Mas até o mais forte de nós, às vezes também
precisa de ajuda.

Agora

Continuo embalando meu corpo para frente e para trás,


sentada no chão, mas mais devagar. Lembrar daquela conversa
ajuda a me acalmar um pouco. A limpar minha cabeça.
Ele diz que todo esse tempo esteve aqui. Que se preocupa
comigo mais do que já se preocupou com qualquer outra pessoa.
No fundo, acho que sempre senti sua presença. E que bom
que, pelo menos nisto, não estava enganada. É o ponto positivo que
a Dra. Cassandra disse para eu enxergar da situação: não estar
completamente louca por sentir que alguém me vigiava.
Não houve um só dia em que não pensei nele.
Sua presença me fazia bem. Eu podia ser eu mesma, me
sentar lá e apenas respirar sem temer minha própria sombra.
Não disse a ele, quando Elliot perguntou, mas não gosto daqui,
desta cidade. Do medo de ser levada de volta para aquela família a
qualquer momento. De só ter meus pensamentos como companhia.
Esta é a parte da qual tenho mais medo, do que minha cabeça pode
fazer comigo.
“Mas se decidir ficar, Amália. Eu também ficarei.”. Por que ele
fez isso, ficou aqui esse tempo todo?
O brilho da tela de meu celular ilumina dentro do bolso da
mochila no chão. Vou me engatinhando até ela. Abro a notificação
da mensagem que Penélope acaba de enviar.

Eu te amo muito, Am.


Com todo o meu coração.
Você é minha irmãzinha, lembre-se sempre disso, tá?!

Fechando os olhos, limpo uma lágrima que escorre pela


bochecha.
Eu me sinto tão, tão sozinha.
O rosto duro, mas de olhar gentil, inunda minha mente. “O que
tem a perder indo comigo? O que tem a perder estando perto de
quem se importa de verdade?”
Sem pensar direito, levanto do chão. Limpo uma mão na outra,
nervosamente, e vou até a porta. Tremendo muito, abro e encaro a
porta em frente, do outro lado do corredor. Ele sempre esteve ali.
Esse tempo todo, Elliot foi meu vizinho.
Agora dá para entender as compras de mercado deixadas em
minha porta. Quando tomei coragem para perguntar ao senhorio, ele
falou que era da “vizinha solitária que morava no meu andar”, a qual
nunca consegui ver ou agradecer.
Atravesso os poucos passos até a porta com o número 06 e
ensaio bater.
Levanto o pulso enfaixado, só que o abaixo em seguida.
Não sei se é o certo.
Mas e se…?
Levanto-me de novo e fico com a mão fechada no ar,
congelada.
É uma decisão tão, tão difícil.
Derrubo a testa contra a porta e fecho os olhos apertados.
— Basta bater — uma voz rouca, grave, de repente me
surpreende.
Quase salto no lugar ao olhar para trás e encontrar o homem
grande sentado no chão, escorado na parede do meu apartamento.
Mãos descansadas nos joelhos. Cabeça baixa. Olhar penetrante
segurando o meu.
Em seu rosto de traços rígidos, a expressão me incentiva e
desafia.
— Oi, Elliot — não sei se ele é capaz de ouvir. Meu corpo, até
mesmo minha voz, de repente estão fracos.
É a primeira vez que digo seu nome em voz alta.
ELLIOT

Eu mentiria se dissesse que ela não me surpreendeu. Talvez


até mais do que quando finalmente explodiu lá dentro. E isso, isso
me arrebata de tanto orgulho que é difícil não deixar que atravesse
minha expressão. Mas em vez de sorrir, eu aguardo. Se há algo que
o tempo me ensinou é que não se comemora nada antes da hora.
Sustento seu olhar com a intensidade do meu. Não posso
soltar agora. Isso é tudo o que ela necessita de mim: minha força.
Posso ver no pavor profundo nas esferas cinzas o quanto este
passo está exigindo dela.
Não me importaria de esperar, se fosse o oposto. Por ela,
esperaria quanto fosse necessário.
Quando seus lábios se contraem numa expressão de
desalento, porra, é como se meu próprio coração também se
contraísse.
— Preciso de ajuda… — ela murmura.
E o mundo implode.
Eu esperava que discutisse, esperava que não falasse comigo
como fez durante todo o tempo em que fui visitá-la na clínica, mas
jamais pensei que diria isto.
— Estou aqui, malyshka… — Levanto-me do chão e não me
impeço de trazê-la para os meus braços. É o que ela precisa.
Amália precisa de mim. Quando derruba a cabeça contra meu peito
e desmorona, eu a abraço com mais força. Já vivi muitas coisas
fodidas nessa vida, mas nada, absolutamente nada se compara ao
choro copioso de uma alma tão destruída.
Envolvo o pequeno corpo com meus braços e me permito ser
sua fortaleza. Só que não me torno imune. A glote se fechando. O
coração acelerado. O ar se tornando insuficiente. Estou afundando
em emoções que sequer sei classificar. Trinta e oito anos vivendo
uma vida condenada não me prepararam para isso.
— Estou aqui para você. Sempre estarei — vou dizendo, lábios
encostados no alto dos cabelos negros, enquanto soluços sacodem
seus ombros.
Se já não estivessem no inferno, era para lá que eu enviaria os
Molina de novo e de novo e de novo. E quantas vezes eu pudesse
através da eternidade por machucarem o que há de mais puro
nesse mundo sujo.
— Não suporto mais… não suporto mais lutar — sua voz, que
nas poucas vezes em que ouvi senti penetrar meu espírito como a
mais bela música, agora me destrói. Aperto-a um pouco mais.
— Não precisa fazer isso sozinha, moy almás[13]. Estou aqui
com você, podemos lutar juntos.
— Estou tão, tão cansada.
Exige cada centelha de força que tenho para manter meu tom
sereno e sob controle. Estar cansada significa que falhei, que todos
falhamos com ela.
— Então descanse. Descanse sempre que achar que está
sendo demais para você, mas não pare de lutar. Não pare nunca.
Suas lágrimas transpassam minha camiseta. Minha pele.
Minha alma.
— Prometi que jamais a tocarei sem o seu consentimento,
Amália. Mas tudo o que mais quero agora é te levantar em meus
braços e te tirar daqui. — Aproximo minha boca de seu ouvido. A
densidade de minha voz é assustadora até mesmo aos meus
ouvidos. — Por favor, moy almás, me deixe cuidar de você, me
deixe te ajudar. Por favor.
Quando recebo um aceno, quase imperceptível, meu peito
infla. É difícil respirar quando se tem uma responsabilidade tão
urgente em suas mãos. Amália está confiando em mim outra vez.
Se por desespero ou não, não importa. Essa menina está me dando
tudo o que possui.
Sem hesitar, eu a levanto. Sou grande demais perto de alguém
tão pequena. Talvez por isto ela se sinta segura em se embolar nos
meus braços e enterrar o rosto em meu peito.
Encaro as duas portas, a dela, e a que tem sido minha por um
ano.
É hora de fazer diferente do que foi feito até aqui.
Entro com Amália em meu apartamento.
Está escuro, exceto pela luz do abajur do outro lado da sala.
Não paro, caminho com Amália em meus braços até o quarto e a
deposito em minha cama. Tal qual um animal machucado, ela rola
para o lado, de frente para a parede e de costas para mim. O corpo
sacoleja pelo choro mudo. Quantas vezes ela deve ter feito isso?
Quantas vezes deve ter se encolhido desse jeito, solitária e ferida?
Preciso esfregar meu peito, o ponto onde sinto uma pressão
desgraçada.
— A diferença entre Penélope e essa garota, Elliot —
Sebastian falou esta manhã, enquanto pilotava para cá —, é que
minha espanhola foi teimosa o bastante para não permitir que
aqueles malditos vencessem no final. Ela me confessou uma noite,
disse que desistir de tentar ser feliz era o mesmo que dar a vitória
aos Molina. Isso foi o que a motivou.
— O mesmo acontecerá com a menina — asseverei, olhando
para as nuvens abaixo de nós, detestando o caminho que aquela
conversa tentava tomar. Conhecia muito bem a opinião dele a esse
respeito.
— Não, e você sabe disso. Aquela garota não é tão forte
quanto Penélope.
Cerrei meu maxilar num aperto firme. Não queria escutar
aquilo.
— Cuidado. Você pode se surpreender.
— Espero que sim, sinceramente. Mas sejam quais forem os
sentimentos que Amália despertou em você, irmão, mantenha seus
pés no chão quanto ao que esperar. Já estive no fundo do poço
antes para reconhecer alguém nesse mesmo lugar, e posso garantir:
alguns são mais fundos do que outros, mas no final, o chão é feito
da mesma maldita areia movediça. — Senti seu olhar em mim. —
Não quero que se afunde junto.
Meus punhos se fecharam tão forte que senti a unha cravando
em minhas palmas.
— Você conseguiu sair, não conseguiu? Ela também vai —
rosnei, encerrando aquele papo. Não queria, não podia aceitar que
a menina não terá uma vida boa e feliz.
Amália merece ser feliz.
Ligo a televisão e a coloco no mudo. Tenho a sensação de que
Amália não gosta do escuro. Observei, da rua, vezes demais a
janela de seu quarto para saber que sempre havia um feixe de luz.
Sem me desfazer das botas, me sento na cama. Não consigo
deixá-la sozinha. Acho que também preciso estar com ela, garantir
que está segura. É para minha própria paz de espírito, tem sido uma
merda difícil me manter longe. Tudo o que eu podia fazer por ela à
distância, fiz. Desde que recebeu alta médica, venho mantendo um
olhar atento, do meu lugar nas sombras. Garanti, por exemplo, que
Amália fizesse no mínimo três refeições ao dia nos empregos em
que trabalhou. Em todos eles. Paguei cada um daqueles gerentes
imbecis para mentir sobre se alimentar ser regra da casa, e cobri os
custos. Esse último teve a capacidade de cobrar duas vezes o
salário dela.
Tudo para que Amália ficasse forte e protegida.
Mas assim que ela atravessava aquela porta para entrar em
seu apartamento, minhas mãos ficavam atadas. Não havia como
saber seu verdadeiro estado entre aquelas paredes. Saavedra
tampouco oferecia qualquer informação completa, sempre se
limitando a relatos rasos, apoiando-se no maldito sigilo entre
terapeuta-paciente.
Sei o que todo mundo pensa: que estou obcecado por ela.
Provavelmente têm razão. Essa garota desperta em meu
sangue uma necessidade visceral de protegê-la, e não tem nada a
ver com atração física ou qualquer merda depravada que possam
cogitar.
Chega a ser uma peça irônica do destino: um fodido de alma
suja que já tirou mais vidas do que é capaz de contar, e não se
arrepende, desesperado por cuidar de um anjo inocente maculado
pelo mal.
Escoro a cabeça contra a cabeceira e a observo dormir. O
choro baixo enfim cede à exaustão do sono, mudando a cadência
de sua respiração.
Impossível não notar o quanto ela é linda. Rosto delicado, pele
lisa, o nariz pequeno. Cabelos grossos tão negros quanto a noite.
Aqueles desgraçados não tinham o direito.
Aperto meu crânio para aplacar o latejar nas têmporas, e então
puxo o celular e faço a coisa mais idiota, mas a única que me
ocorre. Acesso a internet e digito na barra de buscas: como ajudar
alguém em depressão.
Preciso de toda informação possível para traçar um bom plano.
Jamais entrei numa missão sem me preparar antes. E jamais para
perder.
Vou rolando a tela para os resultados.
Incentive tratamento; esteja perto; ouça; acolha; incentive a
prática de atividades físicas e prazerosas; saiba o momento de
apoiar e o momento de dar espaço.
Tudo isso, eu posso fazer. Se Amália permitir, posso ser todo o
suporte que ela precisar.
Digito uma mensagem para a Penélope.

Prepare um quarto em sua casa.


Ela vai comigo.

A réplica vem quase que imediatamente, me deixando saber


que Penélope esteve grudada no celular para ter notícias.

Graças a Deus!
Obrigada por isso, meu amigo

Sorrio para a tela. Seu sentimento pela menina é verdadeiro.


Não esperaria outra coisa de Penélope.
O aplicativo indica que a espanhola está digitando mais
alguma coisa.
Espero. Ela demora. Para. Hesita. Então finalmente vem um
novo texto.

Você gosta mesmo dela, não é?

Talvez pelo cansaço mental, talvez apenas porque não quero


refletir sobre o que significa, fico apenas olhando para a questão por
um tempo.
Mais uma mensagem chega.

Você é um bom homem, Elliot.


Não que precise, mas saiba que se for da vontade
dela, vocês têm meu apoio.

— Vou levá-la comigo — aviso, assim que me sento no sofá do


pequeno consultório particular.
— Bom dia para você também, Elliot — diz Saavedra
descontente, ainda segurando a porta aberta. — Não sabe o quanto
fico feliz quando alguém, que não é meu paciente, exige minha
presença tão cedo. Menos ainda quando sou escoltada da minha
casa como uma foragida, por seu amigo.
— Desculpe, o assunto exigia urgência — ambos sabemos
que não é exatamente um pedido sincero. Não há cerimônia entre
nós. Ela conhece meu método de trabalho e cobra um valor
exorbitante em troca.
Calmamente, a terapeuta se dirige à cafeteira no aparador
próximo à janela. Os cachos, sempre domados em um elegante
coque, agora soltos alcançam o meio de suas costas.
Provavelmente a urgência de minha convocação deixou pouco
tempo para se preparar.
— Então você a convenceu a te seguir… — há uma indubitável
nota de reprovação em sua voz calma.
— Да.
— Acredito que devo traduzir como um sim.
— Deve.
Saavedra assente.
— Imagino que saiba o que está fazendo — enche uma xícara
para ela.
— Faça uma para mim, também.
A mulher me fulmina.
— Por favor — acrescento a formalidade, sem realmente pedir.
Enquanto prepara uma nova xícara, cruzo as pernas e observo
em silêncio. Pensei muito antes de vir. Cheguei à conclusão de que
toda ajuda é bem-vinda.
Quando Saavedra me entrega o café e se senta na poltrona à
minha frente, tenho um leve vislumbre do que seus pacientes
sentem. Ser avaliado, estar sob o olhar experiente de alguém capaz
de penetrar sua mente. Fico me perguntando o que ela diria se
descobrisse minhas verdades, as merdas que já fiz, os fantasmas
que carrego. É uma coisa boa que isso jamais acontecerá.
— Não me olhe assim.
— Assim como? — pergunta tranquila até demais.
— Como se estivesse me analisando. Sabe muito bem que
meu papel aqui é outro.
— E que papel seria esse?
O sorriso em meu rosto avisa que ela não vai gostar nada do
que tenho em mente.
— Comunicar que você fará uma viagem.
Saavedra franze o cenho, confusa.
— Desculpe, acho que não entendi.
Sorvo um bom gole do café ruim antes de prosseguir. Não sei
bem o que estou fazendo, a verdade é essa. Quando deixei Amália
em meu apartamento e vim para cá, meu único pensamento era que
Saavedra, melhor do que ninguém, conhece a mente daquela
menina. É uma peça importante na recuperação de Amália.
— Espero que venha com a gente, Saavedra — sou direto.
A terapeuta deixa a xícara sobre a mesinha entre nós, bem
devagar. Não a tempo de esconder a surpresa.
— Para a Rússia? — indaga com calma.
Arqueio a sobrancelha, respondendo assim. Sou consciente de
como pareço um babaca arrogante quando ajo assim. Não gosto
deste papel. Mas o que posso fazer?
Ela meio que ri, meio que bufa.
— Gostaria que fosse fácil assim, mas não funciona desse
jeito.
— Pelo valor que te pago, deveria.
Saavedra sorri, consternada.
— Dios[14], acho que você é a pessoa mais direta que já
conheci, Elliot. E não é um elogio.
Dou de ombros.
— Pagarei o dobro.
— Não é uma questão de dinheiro — rebate levemente
exasperada.
— É do quê, então?
Ela inspira devagar.
— Não posso abandonar meus pacientes e me dedicar
exclusivamente a ela, em outro país ainda por cima. A clínica
precisa de mim.
— A menina precisa mais.
Algo na forma rápida como replico faz Saavedra me observar
com um pouco mais de interesse. Torno meu semblante impassível,
para que deixe de tentar me ler. Sei como isso funciona. Não
preciso de uma terapeuta confirmando que me tornei um louco
obcecado.
— Sabe, Elliot, acho que não tivemos oportunidade de
conversar a esse respeito antes, mas quando você e seus amigos
estrangeiros nos procuraram na clínica, a primeira coisa que
Cassandra e eu pensamos em fazer foi chamar a polícia. Amália
estava debilitada em um nível que eu, particularmente, jamais havia
visto. Todas aquelas marcas em seu corpo, as evidências de que
esteve presa em uma coleira. A inanição. A garota estava a um
passo da morte. Mas decidimos não ligar, por uma razão…
— Cobrar uma boa grana de mim, como fizeram? — adivinho,
por uma questão de praticidade.
Saavedra sacode a cabeça, serena, sem se abalar com o
insulto.
— Seu dinheiro não foi o que nos impediu.
Arqueio a sobrancelha, interrogativo.
— O que nos fez aceitar as condições daquele acordo foi
saber que vocês não foram responsáveis por causar mal a ela. Vi
em seu rosto, Elliot, o tamanho da sua preocupação com a garota.
Esse foi o fator decisivo para nós.
Inclino-me para frente, escorando os cotovelos nos joelhos.
— E mesmo assim, me pediu para não a ver mais. Para deixar
de visitar a menina — acuso.
Em seu semblante, enxergo que Saavedra agora também
compreende o erro daquilo.
— Não posso falar o que nos levou a tomar essa decisão…
— Por causa do maldito sigilo terapeuta-paciente — corto-a,
tentado a revirar os olhos.
— Você, melhor do que ninguém, sabe que sim. O que posso
dizer, Elliot, é que era importante para Amália que se afastasse
naquele momento. Ela se apegou a você não como um amigo, mas
como uma figura suficiente.
— Figura suficiente?
— É como se ela não precisasse de mais ninguém no mundo,
além de você, então passou a bloquear todo o resto. Não fez
amizades, não conversava nas sessões. Ela se fechou.
— Jamais pretendi ser isso, para ela.
— Sei que não, mas acabou se tornando. Veja bem, Amália foi
privada de construir relações interpessoais ao longo da vida. Não
teve amigos, nem visitou médicos, frequentou escolas ou interagiu
com vizinhos. Nada, apenas o mesmo círculo pequeno e opressor
composto pelos membros da família que a adotou. A visão de
mundo dela não concebe outros elos. Então, quando surge um novo
elemento, alguém que a retira deste ambiente nocivo e a apresenta
a um capaz de suprir a base da pirâmide, onde se encontram as
necessidades biológicas mais básicas e de sobrevivência, como
dormir; comer; beber; respirar; descansar, coisas das quais ela não
tinha controle, o subconsciente dela projeta nessa pessoa a figura
de alguém onipotente, um herói.
Malditos sejam, por terem degradado a menina dessa forma.
Esfrego minha cabeça raspada. Nunca quis que ela pensasse
isso. Que se enganasse a esse respeito.
— Se você se importa com ela, deixe Amália aqui, Elliot, e
incentive que volte a me ver — Saavedra aconselha. — Que
continue o tratamento.
— Fora de cogitação. Não tem funcionado. Essa cidade está
engolindo a menina, e você sabe disso.
— Faz parte do caminho que precisa ser trilhado por ela —
rebate.
Ah, diabos!
— Maldição, Saavedra. Se eu tivesse demorado mais um
minuto para invadir a casa dela na última noite, estaríamos
enterrando a menina agora! Ela tentou se matar, porra!
Saavedra se cala subitamente. A expressão ganha gravidade,
mas não surpresa. É como se a informação, de alguma maneira,
fosse esperada.
E isso me incomoda pra caralho.
Inclino a cabeça e a perscruto.
— Você sabia que, além da automutilação frequente, ela
tentaria o suicídio? — rosno, quase acusando.
A terapeuta perde um pouco da cor.
— Não — afirma honestamente e de pronto. — Claro que não,
Elliot — seus lábios então se apertam —, contudo, confesso que
depois de nosso último encontro fiquei preocupada. Por isso te liguei
para avisar que ela estava faltando às sessões. Tentativa de suicídio
é um ato extremo, mas infelizmente não é incomum em casos como
o dela.
— O que aconteceu na última sessão?
Seu olhar de “você sabe que não posso revelar” por muito
pouco não me faz perder a paciência.
— Ora, por favor, diga de uma vez. Preciso saber para ajudar!
— Acalme-se — a mulher pequena e voluptuosa alerta, sem
qualquer vestígio de medo. — O que posso dizer é que venho
trabalhando com Amália um tipo de segundo degrau da pirâmide. A
necessidade de segurança. Sentir-se segura para sair de casa,
trabalhar, construir uma vida sem perigo ou medo. Neste aspecto,
sobretudo pelo que passou, tenho encontrado severa resistência da
parte dela. Amália sente muito medo, e esse medo não a permite
evoluir de escala.
Estou tão atento ao que diz, que é como se suas palavras
penetrassem minha mente. Estreito os olhos.
— Medo de que, exatamente, Saavedra?
Ela fecha os lábios, hesita. Por fim, revela:
— Medo de que algum membro da família a encontre e a leve
de volta.
— Impossível — relaxo outra vez, exalando o ar.
Saavedra franze o cenho.
— Por que é impossível que eles a encontrem, Elliot? — a
desconfiança permeia o tom de sua voz.
Porque, de onde estão, não são capazes de encontrar nada
além de fogo comendo suas almas apodrecidas. Exceto por um, que
é incapaz de limpar a própria bunda sozinho no momento. Mas não
digo isto à boa terapeuta. Há coisas que ela não precisa saber.
— Porque são espertos o bastante para saberem que não
devem procurar a menina — meu tom de voz duro avisa que isto é
tudo o que direi.
Minhas têmporas latejam pra caralho, não preguei o olho um
único minuto durante a noite, então essa conversa definitivamente
está tomando um rumo que não preciso agora.
— Vamos lá, Saavedra. Sabe que não ficaremos aqui. Então
vamos entrar em um acordo. Quanto quer para se mudar para
Moscou por um tempo?
Colocado desta forma, Saavedra sabe que não estou disposto
a ceder.
— Amália pode continuar se tratando comigo em Madri —
ainda tenta.
— Não. Ela precisa estar perto da família, de pessoas que a
amam — sou incisivo.
— Como você, por exemplo? — lança essa, me desafiando a
confirmar ou negar.
Expiro longamente, expulsando todo o ar do peito, e então a
encaro intensamente, cansado desse jogo.
— Você, tanto quanto eu, sabe que a vida dela foi uma merda
fodida até aqui, Saavedra. E acredito que tenha feito um juramento
quando assumiu essa profissão, portanto aqui está a coisa toda:
preciso que me ajude a não perder aquela menina para ela mesma.
É sua obrigação. Em troca, prometo recompensá-la como merece.
A terapeuta sabe que temos um ponto. Demora alguns
instantes, penso que negará, até que assente.
— Preciso de alguns dias para resolver as coisas por aqui,
Elliot.
— Ótimo — me levanto, colocando os óculos de sol de volta no
lugar. O sol já deve ter nascido lá fora.
Não saio do consultório sem fazer uma última pergunta.
— E qual é a dessa pirâmide? O que vem depois?
Ela me encara de um jeito esquisito. Como se soubesse algo
capaz de mudar tudo.
— Necessidades sociais. — Levanta-se também. — A
necessidade de sentir-se parte de um grupo, uma família, uma
comunidade. Ter amigos.
Meneio a cabeça. Isso, posso arranjar também.
Do lado de fora da porta, Sebastian me espera escorado
contra a parede. Ele olha de mim para Saavedra e então sorri de
seu jeito arrogante.
— Sinto muito se a tirei da cama tão cedo, Saavedra. Não tive
opção. — Pisca para ela, jogando seu maldito charme. — As
pessoas enganosamente acreditam que é a mim que devem temer.
Isso porque não conhecem esse cara de verdade.
Não fico para ouvir o restante da baboseira. Tenho um plano
em mente antes de deixar esse país.
Mostrarei a Amália que nunca mais um maldito Molina colocará
as mãos nela outra vez.
ELLIOT
Enquanto guio a caminhonete pelas ruas tranquilas de
Valdefuentes, pelo canto do olho espreito minha passageira, rosto
voltado para a janela, observando o mundo fora do veículo.
Provavelmente não sabe onde estamos. O bairro residencial
composto por boas casas, escolas públicas, centro de saúde e até
um parque florestal, também é o mesmo que abrigava seu cárcere.
Tamborilo os dedos no volante ao som da rádio local, refletindo
sobre o melhor jeito de contar a ela que não há qualquer hipótese
de ver algum daqueles desgraçados outra vez.
Precisava fazer este desvio antes de partirmos para a pista de
voo particular onde Sebastian nos aguarda com a aeronave
particular do nosso amigo Gael.
— Quer que eu desligue o ar? — pergunto, quando percebo
que está se abraçando.
— Não, tá tudo bem assim — a voz suave e melodiosa ondula
pelo interior da caminhonete.
Isso, continue falando, rogo.
Amália não é de falar muito. Mal conversou desde que voltei
ao apartamento. Perguntei se queria ajuda com suas coisas. Ela
negou. Notei, com um aperto fodido no peito, que tudo o que a
menina possui cabe numa mochila de costas.
— Faz calor pra burro, aqui. Na Rússia temos nosso verão,
mas não chega nem perto deste caldeirão. Penélope diz que é a
única coisa de que sente falta, pode? Como alguém sente falta de
ser cozido vivo?
Pela primeira vez, Amália desvia as esferas cinzas para mim.
— É frio lá, para onde vamos?
Dou a ela um sorriso de canto.
— Depende do que você considera frio. Aqui, -5º. Lá, num bom
inverno, -30º. Acho que vai gostar. Eu gosto.
— Por quê? — Quando ela semicerra as sobrancelhas,
curiosa, aprecio mais do que pode imaginar.
Dou de ombros.
— Porque no frio uma boa bebida quente e um casaco grosso
resolvem tudo. Não se pode dizer o mesmo desse clima, pode?
— Também gosto do frio… — revela, baixo.
Finjo me concentrar na atividade de dirigir, e não no fato de
que está falando, compartilhando algo.
— Por quê? — sou eu a questionar.
Seus olhos se voltam para a janela novamente.
— Porque me lembro de minha abuela[15].
Assinto, mas aperto um pouco mais o volante entre os dedos.
Amália Cruz Peña, hoje Amália Molina, pelos registros adotada
aos oito, quase nove anos, depois de viver por um ano e meio sob
tutela do sistema após o falecimento da avó materna, Carme Cruz
Peña, lavadeira que a criou desde que a mãe a abandonou ainda
bebê e sumiu no mundo. Uma avó estável e amorosa, de acordo
com o que os antigos vizinhos do vilarejo de Astúrias disseram.
A menina tinha tudo para ser uma criança feliz, até vir o
maldito acaso e mudar tudo.
— O que mais a faz lembrar dela? — pergunto em tom
impassível, apesar da rouquidão.
Penso que não dirá.
Mais uma vez, ela me surpreende.
— Chocolate quente, roupa no varal, poemas, buñuelos de
viento[16].
Franzo a resta. Domino o idioma espanhol, compreendi a
tradução, só que a palavra, para mim, é desconhecida.
— O que são buñuelos de viento?
— São buñuelos assim. — Faz um círculo pequeno com os
dedos magros mostrando o tamanho. — Não lembro muito bem o
que la abuela colocava na massa, mas eram muito gostosos.
Quase paro de dirigir apenas para observar com toda atenção
o cintilar bonito totalmente novo que surge em seus olhos à menção
de algo tão simples. Então esse é o seu ponto. O que a resgata de
todo o resto.
Algo pulsa mais forte em mim. É como se eu tivesse
descoberto uma informação secreta capaz de mudar tudo.
— Agora fiquei curioso. — Pego o telefone e o aponto próximo
à sua boca, apenas para mantê-la comigo. — Diga de novo.
Ela olha do aparelho para mim, sem entender.
— Quando não compreendo alguma palavra — explico, dando
de ombros —, uso o tradutor.
O sorriso tímido, porém vivo, em seu rosto é um deleite.
— Buñuelos de viento — repete achando graça.
Em instantes, tenho a tradução para “bolinhos” e imagens de
bolinhos fritos muito semelhantes aos que a velha Zhena, avó
maluca de Sebastian, fez pra gente a vida inteira.
Impossível não rir.
— Então acho que você vai gostar ainda mais da Rússia, em
especial da velha trapaceira que mora na casa da Penélope.
Bolinhos fritos são a especialidade daquela mulher.
Nos minutos seguintes, forço-me a ser justamente o que não
sou: um tagarela. Ensino a pronúncia em russo para os tais bolinhos
e dou a ela boas histórias das trapalhadas de dona Zhena e aquele
ridículo livro de simpatias que já botou Sebastian, Gael e eu em
enrascadas fenomenais. Aquela mulher é uma trapaceira, mas é
como uma avó para mim, também.
O clima leve só é quebrado pelo ingresso na rua pacata
composta somente por casas de no máximo dois pavimentos,
diferente dos prédios que predominam em todos os outros bairros
de Madri. É a rua onde ela morou por uma década. Dos dois lados,
as frentes das casas são limpas e organizadas. Exceto por aquela
que hoje é apenas uma grande marca de queimado no chão. A
prefeitura recolheu os escombros do “incêndio acidental que vitimou
uma família inteira”.
Dirijo um pouco mais devagar.
Quando paro em frente, noto que a menina se abraça ao ver a
construção de tijolinhos do outro lado da rua. Sua fisionomia
também se altera. Sigo seu olhar e observo a residência.
— Por-por que você me trouxe aqui? — a voz de Amália some
drasticamente.
Tremor sacode seu corpo.
— Reconhece essa casa? — pergunto cuidando para manter o
tom de voz tranquilo.
Ela sacode a cabeça que sim.
Em algum momento, vivendo dez anos com os Molina, ela
deve ter visto a casa em frente.
— P-edi ajuda aí uma vez — murmura. — Não acreditaram em
mim.
Respiro bem fundo e solto o ar lentamente. Poderiam ter
poupado a menina, mas optaram por fechar os olhos.
— Então olhe para o outro lado — sugiro, incentivando.
Sacode a cabeça que não, desta vez.
— Confia em mim, Amália?
Não responde. Posso apostar que está prestes a se fechar em
si mesma.
— Amália?
Seus olhos apavorados sobem e encontram os meus, e são
como disparos de dor. Dou a ela um olhar firme, que diz que jamais
faria nada que a magoasse. Não existe verdade maior.
— Por favor, olhe para o outro lado. Faça isso por mim. Há
algo que quero te mostrar.
Tremendo, tremendo pra caralho, a menina vai virando o rosto
em direção ao terreno. Com surpresa, percebe que não há mais
nada ali. Nada além de grama morta e da enorme marca no chão.
— Não existe mais nada deles — garanto. — Nem a casa,
nem a família. De onde estão, não podem fazer mal a mais
ninguém, Amália. Eles queimaram junto com essa casa.
A cabeça vem rapidamente para mim.
— Quando você diz queimaram…? — seu sussurro
fantasmagórico é um misto de terror e apreensão.
Sou duro ao revelar:
— Literalmente viraram cinzas. Não vou te dar os detalhes, a
menos que queira. Hoje ou quando se sentir pronta. Mas achei
importante que soubesse. Estão mortos, garanti isso.
Se me considerará um monstro assassino, é algo com que
terei de lidar. Na verdade, é esperado que considere, e não a
culparei. Minha vida inteira lidei com o olhar desconfiado das
pessoas, com o medo, o julgamento. A acusação. O desprezível
filho que matou o próprio pai. Estou preparado para ver essa
imagem refletida nos olhos de diamante dela, também. Afinal, é
quem eu sou.
Com ela lívida, assimilando tudo, eu a observo assentir quase
que em câmera lenta.
E então, junto de uma solitária lágrima grossa que escorre no
rosto fino, tal qual um balão que esvazia, um suspiro profundo
abandona seu peito. Abandona e alcança o meu.
— Acabou — digo, encarando o fundo de seus olhos úmidos.
— Está me ouvindo, Amália? Acabou.
Seu medo de ser trazida de volta à esta casa, esta família,
acaba aqui. Se o único Molina vivo, o mais novo, fez ou não mal a
ela, vou dar tempo para que ela confie em mim e revele. Pelos
relatos, é inocente. Mas até que eu tenha confirmação, ele está bem
guardado esperando minha sentença. Jamais alguém daquela
família colocará as mãos nesta menina novamente.
Amália lambe o lábio ressecado.
— Elliot…
— Sim.
É quando ela faz aquilo de novo, derruba a testa contra meu
braço.
— Obrigada.
Não sou a merda de um herói e não quero que pense isso a
meu respeito, mas enquanto precisar de mim, estarei aqui para ela.
Antes de dar partida, vejo mensagens de Ed em meu celular.

Finalmente vai trazer sua menina, hein?!


Você é a porra do cara mais lento que já conheci,
Elliot.
Agora, me diga que pedido é esse de encontrar um
apê para aquela doutora esnobe do caralho?!

Idiota.

Amália não é minha, e comece a cuidar da sua vida, imbecil.


Sobre Saavedra, mantenha seu maldito pau longe dela!
Preciso da doutora aí por um tempo.
AMÁLIA

— Bem-vinda, senhorita. — Sebastian, marido de Penélope,


faz uma reverência brincando quando fico diante da porta da
aeronave para subir os dois degraus.
— Obrigada — murmuro sem jeito, apertando as alças da
mochila em minhas costas um pouco mais forte. Não fazia ideia de
que ele também estaria aqui. A gente praticamente nunca teve uma
conversa inteira.
Na verdade, acho que nunca tive com ninguém, exceto por
Elliot.
— Não por isso. Minha espanhola ficou feliz com a notícia, ela
sente saudade — diz mais sério.
Desvio o olhar do meu reflexo nos óculos espelhados dele
para encarar o All Star preto em meus pés, e apenas assinto. Não
gostaria de atrapalhar a vida deles. Atrapalhar mais do que já
atrapalhei.
Só quero muito que dê certo. Que eu seja boa para eles, e que
lá eu encontre um jeito de arrancar de mim todos os sentimentos e
pensamentos ruins. Que tudo fique bem de verdade. Quero
recomeçar, como a Dra. Saavedra disse uma vez.
— Vou ajudar bastante, eu prometo. Posso limpar a casa,
cuidar da bebê, e se eu estiver incomodando de alguma for…
Sebastian me interrompe.
— Você não é empregada, Amália. É da família. — O sotaque
forte se torna mais acentuado em sua voz grave. — Por mim e por
Penélope, já teria vindo morar com a gente há muito tempo.
— Obrigada. — Minha garganta embarga porque acredito nele.
Acredito e sinto que tudo vai ficar bem. — Obrigada.
— Mas devo alertá-la de que há algo do qual você não vai
conseguir se livrar… — fala de um jeito que não dá para saber se
esse algo é bom ou ruim.
Subo meus olhos para Sebastian, esperando enxergar em seu
rosto a resposta.
Ele então sorri, de lado, de um jeito que já vi Elliot fazendo.
— O aniversário da Sol de Maria está se aproximando. Sinto
dizer que elas a deixarão louca com os preparativos, também.
Penélope, dona Zhena e tia Merian, juntas, são um pesadelo para a
sanidade.
Um bufo de Elliot, atrás de mim, me faz olhar para ele por cima
do ombro. Está rindo. Algo acontece em seu rosto quando sorri.
Ganha leveza. E sacode minha barriga de um jeito estranho,
desconfortável.
Viro de novo para Sebastian.
— Por sorte, a minha já não é aquelas coisas, né?
— Sua…? — interroga, arqueando a sobrancelha grossa sem
entender.
— Sanidade.
Por um instante inteiro, o tempo fica em suspenso e nenhum
deles sequer respira. Sacudo os ombros e sorrio, para dizer que foi
uma piada.
Na verdade, admira-me descobrir que sou capaz disto.
Não sei dizer se a risada alta que explode de Sebastian é de
diversão ou alívio. Dou mais uma espiada em Elliot para confirmar
se também ri. Mas não, apenas me observa com mais calor em
seus olhos cercados por algumas marcas finas, e algo parecido com
admiração.
— Bem-vinda à sua nova vida, irmãzinha — o marido de
Penélope diz quando finalmente subo e entro na aeronave.
Atrás de mim, os dois trocam algumas palavras em russo,
impossíveis de compreender.
Mas tudo o que ecoa em minha cabeça é a afirmação que fez.
Nova vida. Respiro bem fundo e expiro devagar. A sensação é boa.
Muito boa. Belisco meu cotovelo apenas para confirmar que não é
um sonho.
Espero que Elliot entre para me dizer onde devo ficar, o interior
é parecido com uma imagem que vi na revista que um cliente
esqueceu na lanchonete, uma vez. Bancos de couro branco e bege,
o carpete macio.
— Fique à vontade. — Ele aponta para as poltronas.
— Em qual eu devo…?
— Na que você quiser.
Escolho a poltrona ao lado da janelinha. Elliot escolhe a que
fica em minha frente.
— Está com medo?
— De ir com você? — pergunto baixinho.
Uma mecha de cabelo cai em frente ao meu rosto, a coloco
atrás da orelha.
Outra vez, aquele calor curioso muda as feições de seu rosto
duro.
— De voar, mas já que perguntou…
— Nunca voei… Nem consigo imaginar como é possível que
um negócio tão grande assim consiga ficar lá em cima.
— Existem aviões com dez vezes este tamanho. Um dia você
voará em um — afirma com convicção. Inclina então o rosto de lado
e me encara intensamente, tão intensamente que aquela coisa em
meu estômago se agita mais forte. — E de vir comigo?
Sinto a boca secar, não sei por quê.
— Você nunca me despertou medo, Elliot — sou bem sincera,
pois é verdade. Nunca senti que estava em perigo perto dele. E
hoje, quando me mostrou o que aconteceu com a casa, também não
consegui sentir. Só um alívio tão grande que tive a sensação de
penetrar minha alma.
Dra. Saavedra diz que as câmeras foram uma invenção deles
para me controlar. Que não me seguiam, que elas nunca existiram.
Mas somente vendo que não há mais nada lá, é que realmente
posso respirar aliviada e confirmar que não podem me ver ou
encontrar nunca mais.
Os sinais sonoros e luzes percorrendo o teto nos distraem do
que confessei. Em seguida, a voz de Sebastian vem de todos os
lados.
— Senhoras e senhores, queiram colocar seus cintos. Vamos
decolar — depois, diz algo em russo outra vez.
Antes que eu pergunte como fazer, Elliot se inclina para frente,
para me ajudar. Com sua mão grande, de unhas curtas e limpas,
pega a fivela de um lado. A outra, de outro. O rosto está tão perto do
meu, olhos baixos, cabeça levemente inclinada para baixo,
concentrado, que posso ver os fios de cabelo curtinhos crescendo
em toda a sua cabeça.
Ele não é careca por falta de cabelo. É por opção.
E cheira bem. O mesmo cheiro que eu lembrava, de quando ia
me visitar.
Sentir o perfume e estar tão perto, por alguma razão, torna o ar
mais difícil de respirar. Fico parada, congelada igual a uma estátua
esperando que termine.
Não gosto de conversar. Acho que nem ele. Mas quando já
não suporto mais esse negócio esquisito na barriga, puxo assunto.
— O que ele disse?
Após dois ou três segundos também imóvel, Elliot levanta seus
olhos para mim. Sério. Os lábios um pouquinho apertados. Penso
que não dirá.
Até que diz, baixo, quase rouco:
— Para eu parar de olhar você como um idiota.

Estive acordada a maior parte da viagem, mas não por medo.


Não consegui me desgrudar da vista lá embaixo, da certeza de que
é tudo real. Tapete de nuvens, luzes, montanhas. O mundo é um
lugar bonito. Muito bonito.
Não percebi o momento em que peguei no sono, e nem vi
quando Elliot me cobriu com uma manta quentinha. Só sei que não
tive pesadelos. É a segunda vez que acontece, a primeira foi na
noite anterior.
Agora acordada, trago os pés para junto do peito e me enrolo
um pouco mais no tecido de lã, até o nariz, e observo o homem à
minha frente.
Elliot está dormindo. Pálpebras baixas, respiração num ritmo
calmo. Mas o aperto entre as sobrancelhas está ali, marcando um
vinco na pele bronzeada como se nunca descansasse realmente.
Ele é tão diferente daquela família. Onde eram brancos,
pálidos, Elliot tem cor. Onde eram magros, Elliot é forte. Onde eram
ruins, Elliot é bom.
— Se continuar a me olhar desse jeito, vou acreditar que estou
babando.
Fico quase que ereta na poltrona, pega de surpresa pela voz
grave e profunda.
Como sabe que estou olhando, se ele está de olhos fechados?
— Eu não… não, você não está babando.
— Ronquei?
— Também não — digo, sorrindo um pouco.
É tão fácil estar perto dele.
— Então é meu cabelo, está desarrumado. — Os olhos
escuros como café cintilando humor me miram certeiros quando se
abrem e provocam outra vez aquela sensação desconfortável em
minha barriga. — Acertei?
Abraço-me, para acalmar essa coisa, e faço um meneio
negativo. Seu olhar me acompanha como se soubesse o que
acontece.
— Por que você raspa? — Aponto sua cabeça com o queixo.
— Para não lembrar.
Confusa com a intensidade na maneira direta como responde,
fico esperando.
— Dizem que me pareço com meu pai — explica.
— E isso é ruim?
Elliot inclina o rosto meio de lado. A atenção corre para a
janela brevemente, antes de voltar para mim.
— É uma maldição.
Assinto. E não faço mais perguntas. Sinto que é um assunto
que o incomoda. Não quero despertar nada do qual ele não queira
falar. Sei bem como é isso.
— Com fome?
Sacudo a cabeça, respondendo que não.
Mas meu estômago ronca alto.
Elliot me lança um sorriso zombeteiro.
— Ah, o corpo humano…
Fico observando quando se levanta e vai para o fundo da
aeronave. Quero me inclinar e espiar o que está fazendo, só que
fico com vergonha. Após alguns minutos e barulhos, ele retorna
trazendo uma bandeja com um prato tampado, guardanapo e
talheres.
O cheiro é bom.
— Cortesia do serviço de bordo — brinca, me ajudando a
puxar o suporte de mesa embutido.
Retira a tampa.
— Macarrão com legumes, de micro-ondas.
Tem uma boa aparência.
— Mas não comemore antes da hora. Já aviso que o sabor
não é lá essas coisas. Comidas pré-prontas nunca são tão boas
quanto parecem.
Minha boca saliva, o que é esquisito. Raramente comida me
desperta essa reação. Sequer me lembro se algum dia despertou.
Esse pensamento traz outro que, no segundo seguinte, forma um nó
na garganta, ainda que eu não queira. Comida, na verdade, me
remete a uma sensação de ansiedade muito forte. Sempre à espera
de uma reação ruim, de receber uma panela de molho quente no
rosto. Ter que me ajoelhar e comer do chão, quando a mãe decidia
me punir por algo que fiz. De cozinhar e não poder comer por causa
dos castigos.
Saiam da minha cabeça, saiam, saiam. Não vou pensar, não
vou pensar, não vou pensar.
Pela expressão grave em seu rosto, acho que Elliot também
escuta o barulho ensurdecedor em minha mente.
— Garanto que minha massa é dez vezes melhor — diz em
tom ameno, provavelmente tentando me distrair.
— Você cozinha? — pergunto quase sem voz.
Se nota o desespero com que tento me agarrar a qualquer
migalha que mude a direção da sensação crescente que tenta me
oprimir, ele não demonstra. Simplesmente sorri com ar de quem
está se gabando, e se senta despreocupado na poltrona em frente.
— Em uma escala, posso dizer que é a terceira melhor coisa
em que sou bom.
É seu jeito de falar que realmente consegue me capturar
daquele lugar.
— Terceira?
Os ombros largos sob a jaqueta de couro se sacodem.
— Deixando de lado a falsa modéstia, sou um dos
melhores snipers que as Forças Armadas já tiveram. Se não o
melhor.
— O que é sniper?
— Franco-atirador. Fui treinado para um alcance de dois
quilômetros. Na verdade, em minha última missão oficial, acertei um
terrorista a um raio de 2,3 quilômetros.
Não faço ideia do que significa, mas pelo jeito é um grande
feito.
O aperto na garganta se dissolve um pouco. Passo o garfo
pelo molho cremoso e fisgo um legume.
— Ser um sniper bom é a segunda melhor coisa?
— Confie em mim que sim.
Um sorriso involuntário repuxa meus lábios como que por
mágica. Consigo levar o pedaço de brócolis à boca e
verdadeiramente querer comer. O sabor é gostoso. Dá vontade de
comer mais um. Fisgo mais dois pedaços pequenos e mastigo
sentindo a textura do molho junto.
— E qual é a primeira?
Tenho a sensação de que não esperava a questão. Sondo-o
para ter certeza de que o súbito desconforto que pego em seu
semblante está mesmo ali, antes de ele desviar o olhar para um
ponto qualquer atrás de mim.
É engraçado que alguém tão confiante pareça de repente…
desconcertado.
Fico olhando, à espera do que quer que o tenha deixado desse
jeito. Quando seu olhar retorna, vem com tanta energia e calor que
engolir se torna mais difícil.
— Toco acordeon.
Não sei se é apenas uma impressão, mas é como se tivesse
dito a primeira coisa que passou por sua cabeça, para encobrir
outra.
A risada abafada de Sebastian, da parte da frente da
aeronave, corrobora com essa desconfiança e faz Elliot bufar.
— Nigadiá[17] — resmunga em russo.
Espero para ver se traduzirá. Não traduz. Alguma coisa me
avisa para não questionar também.
— Obrigada — seguro o prato, mostrando a que me refiro.
— Não por isso — diz apenas.
Aquela sensação de calor continua entre nós, mais estranha e
desconfortável à medida que me sinto ser puxada para dentro da íris
escura. Não consigo piscar ou quebrar isso. Elliot então se inclina
para frente, para mais perto. Vai me dizer alguma coisa séria. Chego
a prender o ar, esperando.
A voz de Sebastian, nos autofalantes, corta o momento.
— Atenção tripulação: pousaremos em poucos minutos… E
Amália?
— Sim? — pergunto, sem saber ao certo se ele pode me ouvir.
Elliot cai para trás no encosto, revirando os olhos, enquanto o
marido de Penélope exclama com uma voz forte e vibrante:
— Dobro pozhalovat' v Rossiyu!
Sorrio, mesmo não sabendo o que disse.
— Bem-vinda à Rússia — traduz o homem diante de mim,
encarando-me profundamente com uma expressão indecifrável no
rosto.
ELLIOT

Basta observar Amália, seus olhos atentos à janela, para sacar


a ansiedade da menina com o que a espera, conforme Ed – que foi
nos buscar na pista de pouso – diminui a velocidade até parar em
frente ao casarão de Sebastian e Penélope, o último da rua. A
propriedade enorme, que conta com um lago particular nos fundos,
é tão exagerada quanto o bastardo. Só não tenho certeza se é
grande o bastante para livrá-lo de cruzar diariamente com as duas
velhinhas enxeridas que também moram aqui e nesse momento nos
esperam na porta, junto da espanhola e da bebê.
Antes mesmo que o motor seja desligado, as três mulheres
atravessam o caminho de calçada até a rua. Do banco de trás, ao
lado de Amália, posso ver a mesma expectativa curiosa no rostinho
da pequena Sol de Maria, pendurada nas ancas de Penélope,
tentando a todo custo ver o que há dentro da caminhonete. Uma
réplicazinha da mãe.
— Chegamos — constato o óbvio em voz baixa, apenas para
que a menina fale comigo, diga o que está pensando.
Suas mãos unidas no colo se retorcem.
— Será que…? — murmura sem terminar a frase e sem tirar o
olhar das mulheres se aproximando.
Reconhecendo a insegurança, posso fazer uma ideia do que
pretendia.
— Vão amar você. São sua família — afirmo contundente.
Se há alguém em quem confio para acolher Amália, esse
alguém é a espanhola. Penélope é passional em se tratando dos
que gosta.
Inspirando coragem, lábios ligeiramente presos entre os
dentes, ela assente.
Impossível desviar os olhos de seu rosto, ainda que eu deva.
Amália é linda. Porra, a menina é linda pra caralho.
E me vê como um maldito herói.
No voo para cá, estive muito perto de esclarecer essa teoria
idiota de Saavedra. Não sou a porcaria de um bom samaritano.
Nunca fui. Esse pedestal não é meu. Acho que Amália, por si só, em
breve também descobrirá, só não quero que se decepcione, quando
esse dia chegar.
— Pronta?
Ela respira fundo e assente outra vez. A coragem de pedir
ajuda, que demonstrou nesses dois últimos dias, talvez não saiba,
mas significa muito.
Antes que eu tenha tempo de contar até três, a porta da
caminhonete é aberta.
— Am! Meu Deus, você está mesmo aqui! Venha cá, chica!
Com a pequena Sol no meio, Amália é puxada para um abraço
sem a menor chance de recusar. Num espanhol tão rápido, que é
difícil de acompanhar, Penélope passa a dizer o quanto a menina é
bem-vinda, o quanto está feliz e mais uma enxurrada de
declarações que o pobre cérebro de Amália possivelmente esteja
dando voltas.
Mas o som que ouço de Amália, em meio à cabeleira de
Penélope, não é de protesto. A garota está fungando. Emocionada.
A cena, por alguma razão estúpida, bate forte em algum lugar
aqui dentro. Elas não são irmãs de sangue, sequer se conheciam
até menos de dois anos atrás, e ainda assim é como se fossem.
— Ei, espanhola, e quanto a mim? — Sebastian, o puto, diz
logo atrás dela, retirando Sol de Maria dos braços da mãe e a
levantando para o alto. — Màma[18] esqueceu do pápa[19], princesa?
E você, sentiu minha falta, sentiu?
A garotinha, que não deve estar entendendo nada, assim que
se vê nos braços do cara, se torna toda gargalhadinhas de gengiva
e quase nenhum dente. Não existe ninguém como ele para a
pequena. É bom ver esse tipo de coisa. Conheço o bastardo desde
moleque, vi a forma como ficou quando Lara foi assassinada. Ele
merece cada minuto da felicidade que encontrou nos braços da
espanhola.
De canto de olho, espreito dona Zhena e a prima, as duas
velhas ardilosas, só esperando para serem apresentadas e
começarem o festival de tagarelice.
E então acontece.
— Am, deixa eu te apresentar, essa aqui é a vovó Zhena — diz
Penélope embargada, afastando-se um passo para que a menina
consiga descer do carro completamente. A espanhola de Sebastian
se dirige então para a velha atenta por trás dos enormes óculos de
grau. — Babushka[20], essa é a minha irmã, a Amália, de quem eu te
falei tanto!
Só que, com a velha, Penélope fala em russo. Um russo cheio
de sotaque, é evidente, porém satisfatoriamente compreensível; a
espanhola teve aulas durante o ano anterior para não ser mais
“passada para trás por vendedores desagradáveis”, segundo ela.
Dona Zhena se aproxima ajeitando os óculos no lugar para
enxergar melhor, o que é uma piada. A velha tem uma visão mais
apurada do que um lince caçando na neve
.
— Santo Deus, sua irmã é linda, Loupe! — A essa altura,
Penélope já foi puxada pelo marido que praticamente a engole viva,
como se o bastardo não tivesse ficado apenas dois dias longe. —
Veja, Merian, veja que olhos lindos essa menina tem. Veja essa
pele! — Mãos enrugadas apalpam e tocam e alisam a menina. —
Ah, venha aqui, vnúchka[21]! Seja bem-vinda! Seja bem-vinda!
Prima Merian, a apenas um passo de distância, sem cerimônia
se envolve no meio do abraço confuso.
— Estou vendo! E olhe o cabelo dela, Zhena, como é preto e
grosso! Se fizer uma franja vai valorizar o rosto redondo. Ficará
fantástica, eu mesma posso cortar!
— E vamos alimentar ela também! — acrescenta Zhena,
empolgadíssima.
Minha vontade é dizer: não toquem no cabelo da menina!
Pacientemente, apenas acompanho a conspiração entre as velhas,
à espera de que libertem Amália.
— Vó Zhena achou você linda — traduzo quando ela
finalmente está livre. — E tia Merian — aponto para a velha de
cabelo vermelho vivo — quer que você faça uma franja —
involuntariamente, meio que grunho essa parte.
— Eu também gostei delas — fala Amália, tímida, acho que
pedindo que eu traduza.
— Que bom — digo baixo, encarando os olhos profundos de
diamante. Não consigo evitar.
— Fiz bolinhos de chuva, fale pra ela, Elliot, fale que fiz os
bolinhos que você me disse que ela gosta! — diz a avó de
Sebastian.
— Obrigado por isso, vó — sou sincero em agradecer. Antes
de decolarmos, enviei mensagem pedindo.
E não escapo de levar palmadinhas em meu braço, que me
reduzem à idade de um moleque:
— Vê se agora você vem me ver mais, garoto! Esse negócio
de morar longe não dá certo!
A velha tem isso. Não importa que você tenha mais de 1,90m e
quase quarenta anos. Ela te coloca em seu lugar.
— Pode deixar, virei.
— Acho bom. — Limpa as mãos no avental. — Agora conte
dos bolinhos.
— Ela fez Buñuelos de viento — conto, e, maldição, o olhar de
grata surpresa da menina me deixa até constrangido. Amália às
vezes me olha como se eu fosse de fato… um maldito herói.
— Oh… como falo “obrigada”?
— Spassíba[22] — ensino.
Ela presta atenção em meus lábios, enquanto falo. E quando
repete, a palavra vem carregada daquele calor espanhol que brinca
e atrai a atenção como se o mundo se resumisse aos movimentos
daqueles músculos em sua face. É a primeira vez que isso traz uma
imagem completamente gráfica à minha mente. Por uma fração de
segundo, capaz de me deixar tenso até os ossos, imagino como
seria provar sua boca. Confirmar se é tão macia quanto parece.
Merda.
Comprimo a mandíbula, punindo-me. Que merda de
pensamento, porra.
Alheias, Zhena e Merian praticamente batem palminhas para a
pronúncia.
— Veja que bonitinho! De nada, minha querida, de nada!
E então Sol de Maria enfim enxerga Amália. Todos em volta
apenas param para acompanhar a reação dela. Primeiro um
biquinho de choro. Depois, bracinhos tímidos se convidam para ir ao
colo da menina.
Estampado no rosto de Amália, vejo o quanto isso mexe com
suas emoções. O quanto a abala.
É isso. Isso é a família que ela merece e precisa ao seu redor.
— Acordeon, hein?! — Sebastian, o puto, debocha quando as
mulheres finalmente tomam o caminho para dentro, Amália levando
a bebê em seu colo.
Quero socar o imbecil. Em vez disto, me mantenho plácido.
Nunca é boa coisa dar munição ao sacana.
— Menti? — Dou de ombros.
Sebastian gargalha alto.
— Você precisa se ver em torno dela. É assustador. Sério.
— Parece cachorro olhando máquina de carne através da
vitrine — Ed, o estúpido, se mete.
Fulmino-o com o olhar.
— Vá se foder. E fique longe da doutora.
Peguei no ponto. É visível a maneira como o assunto
Saavedra tira seu humor, embora eu ainda não saiba que merda foi
que aconteceu entre eles.
— Não chegaria perto daquela esnobe nem com uma vara de
três metros — o idiota fecha a cara.
— Estou falando sério — aviso. — A garota precisa dela aqui.
Sebastian sacode a cabeça, divertindo-se descaradamente.
— Fodidos presos pelas bolas… adoro quando não sou o
único. Vem, vamos entrar. Preciso de uma boa vodca.
Imaginei que uma coisa destas aconteceria, claro. Só não
pensei que seria tão rápido. Num minuto, estou escorado próximo à
janela com vista para o lago da propriedade, no escritório de
Sebastian, girando uma dose de vodca em meu copo; no seguinte,
tia Merian, que na verdade é prima da velha Zhena, invade o
espaço, assustada.
— Você precisa ir lá na cozinha, garoto! Vamos, você precisa ir
lá!
Sebastian, sentado na poltrona, se levanta rapidamente, alerta.
— O que foi, tia?
— Não, não você — é para mim que ela olha, ao responder o
cara.
Antes que a mulher possa responder, me vejo voando pela
casa até a cozinha, onde estão todas elas. Paro à porta para obter
uma visão melhor da coisa toda. Zhena próxima à pia, apertando o
avental entre os dedos e segurando uma panela com a outra mão,
tem em seu rosto uma expressão de assombro que não é comum.
Nada nunca assusta a velha.
Sol de Maria, sentada na cadeirinha de alimentação, também
não emite um ruído sequer.
Escrutino então Penélope, de joelhos no chão, amparando
uma Amália completamente diferente da que chegou. Encolhida,
abraçada às pernas, rosto enterrado nos joelhos, embalando o
corpo para frente e para trás e tapando os ouvidos.
Que porra…?
— Você está segura, Am, está na minha casa, sou eu, Loupe,
querida — Penélope segue murmurando em tom controlado de
consolo.
Lanço um olhar inquisidor para dona Zhena. A culpa no rosto
envelhecido me deixa ainda mais confuso.
— Só derrubei uma panela, filho — explica ela, sem entender.
Desço o olhar para a panela de ferro a que se refere, debaixo
de seu braço, e para a menina.
Penélope se vira para mim, por cima do ombro.
— Ela… ela está tendo um ataque de pânico, Elli — diz em
russo.
O bolinho mordido, caído no chão ao lado da menina, me
reduz ao tamanho de um maldito grão, incapaz. Sem pestanejar,
adentro de vez a cozinha e vou para a menina. Ajoelho-me ao lado
da espanhola.
— O barulho da panela caindo no chão, acho que esse foi um
gatilho. Sei bem como é isso. Levei anos para superar esse som
também… — Penélope sussurra, retraindo os lábios.
Ad na zemle, inferno.
— Ei, moy almás, sou eu, Elliot, estou aqui com você — o
grave em minha voz contém uma nota de apreensão que não
mascaro muito bem.
Amália continua a sacudir o corpo para frente e para trás, em
um universo paralelo.
— Amália — chamo, odiando ter de ser mais firme, mas
somente assim sei que consigo alcançá-la.
O sacudir perde um pouco de velocidade.
— Estou aqui, com você. Está tudo bem — afirmo.
Penélope se afasta e levanta, talvez nos dando privacidade.
— Nada aconteceu, vó Zhena deixou cair uma panela, e foi só.
Está tudo bem, querida — continuo.
Ouço, às minhas costas, a movimentação de todo mundo
abandonando a cozinha. Sol de Maria protesta no colo da mãe.
— Venha com o papai lindão, pequena — a ordem terna do
cara ressoa, avisando que também assistia a cena.
Em questão de segundos, estamos somente Amália e eu na
cozinha. Sento-me ao seu lado.
— Ouça a minha voz, moy almás — peço. — Nós estamos na
cozinha da espanhola. Você está segura aqui. Estou ao seu lado.
Sei quando ela volta à realidade através da fungada triste que
sai pelas frestas de seu rosto contra os joelhos. Os ombros passam
a sacudir de leve, num choro baixo e copioso. Os pequenos soluços
me matam. Matam de verdade.
Sem poder impedir, me pego alisando suas costas. Não gosto
de tocá-la sem permissão. Compreendo o que isso representa.
Porém sinto que é o que necessita.
— Ei, não chore. Tá tudo certo. Está me ouvindo? Tá tudo
certo.
Depois de alguns segundos, a garota finalmente reage.
— Desculpe, me desculpe, me desculpe — sussurra uma
sequência de pedidos, constrangida, quebrada.
— Não tem que se desculpar por absolutamente nada. Todo
mundo aqui compreende e te ama. Só querem o seu bem, Amália.
Não duvide disso, moy almás.
— Eu… me desculpe…
— Ei, olhe pra mim.
Martirizada, não levanta a cabeça.
— Amália, olhe para mim — peço com suavidade.
A cada minuto vendo-a assim, sou esmagado por uma vontade
latente de apenas envolvê-la em meus braços. Não importa a porra
de errado que é esse pensamento, é só o que sinto necessidade de
fazer. Exige todo o grama de esforço que possuo para não me
mover nesse sentido.
— O que acha de sairmos desse chão frio?
Não está frio. O aquecimento não permite. Contudo, quero tirá-
la dessa posição. Vê-la encolhida e envergonhada é demais.
— Há algo que gostaria de te mostrar, lá fora. Por favor…
Minha voz engrossada pelo nó obstruindo a glote nesse “por
favor” talvez seja o que a resgata. Ela assente. Aos pouquinhos,
levanta o rosto e consigo então ver seu real estado. Lágrimas
grossas, olhos vermelhos carregados de dor.
Amália tenta esconder com as mãos. Impeço, segurando
delicadamente o queixo estreito.
— Não se esconda ou sinta vergonha de nada. Todo mundo
tem alguma coisa que desestabiliza, que machuca. As pessoas só
escondem bem. Jamais se envergonhe de sentir enquanto ainda
estiver aí dentro, ok?
Quando olhos cinzas, com a transparência e beleza de
diamantes lapidados, encontram os meus, eu os sustento. Sustento
a agonia neles. A derrota.
— Vamos sair daqui?
Estendo minha mão para que aceite meu toque. Tremendo,
sua mão pálida e delicada pousa no centro da minha, destacando
nossos tamanhos.
A delicadeza pequena e suave contra a aspereza bestial. A
bela sobre a fera.
Fecho meus dedos em torno dos seus. Há tanto nela que,
maldição, atravessa minha pele calejada e alcança as veias, a
sensação é essa. Sinto sua energia em cada célula de mim.
— Estraguei tudo, Elliot — sem que eu espere, Amália derruba
a cabeça em meu peito largo, sobrepujada, envergonhada, e se
afunda contra a camiseta, liberando o pranto que a faz sacolejar.
Abraço-a, abraço-a forte, envolvo meus braços ao redor da
garota pequena e suave, me permito ser seu amparo. Por ela, eu
faria tudo.
Por ela, eu iria até o inferno sem hesitar.
E é esse pensamento que assusta o diabo em mim. Que me
faz cair na real e… implodir.
Até conhecê-la, até conhecer Amália, eu não iria ao inferno por
ninguém.
Porra.
— Vem, vamos lá pra fora um pouco. Vamos respirar —
preciso de ar, tanto quanto ela. Nem mesmo reconheço o som
rascante que sai de minha garganta.
Amália assente.
Trazendo-a comigo pela mão, abro a porta dos fundos da casa
e saio para o lago.
Há alguns meses, num almoço que promoveu nesta casa logo
que se mudou, Penélope revelou que o marido havia fechado o
negócio especialmente pelo lago.
— “Essa é uma das razões pelas quais a coloquei em nossa
lista de opções” — contou à mesa, imitando a voz de Sebastian,
toda derretida. — “Você poderá jogar pedras na água quando
precisar pensar.”
Lembro que dei pontos ao puto por bajular a espanhola de
sangue quente desse jeito. Hoje, compreendo a escolha. Ele quis
criar um refúgio para Penélope sempre que as lembranças daquela
família desgraçada a invadissem.
Gostaria de poder promover um lugar assim para a menina.
Na beira da água, abaixo-me, pego duas pedras, uma para
mim e outra para ela, mas ainda não entrego.
— Sebastian comprou a propriedade por causa deste lago —
revelo, enquanto, pelo canto do olho, a vejo se abraçar ao meu lado
e beliscar o maldito cotovelo.
Brinco com a pedra, jogando-a de leve para cima e para baixo,
testando o peso e força do arremesso.
— Estava desesperado para amarrar Penélope do jeito que
pudesse, depois de quase perder a mulher quando ela decidiu meter
o pé daqui e voltar para a Espanha.
Vou jogando a conversa mole fora, apenas para que a nuvem
de pensamentos sobre a cabeça dela se esvaia.
— Eu estava lá, no aeroporto, no dia em que ela comprou uma
passagem e se mandou. Foi a segunda vez que vi o cara mal, mal
pra caral…— me detenho e corrijo o palavrão a tempo — burro. A
primeira, foi quando assassinaram a noiva dele. Um dia te contarei
sobre a Lara… — faço uma pausa para lançar a pedra do jeito que a
faz quicar três vezes na água antes de afundar. Amália acompanha
o arremesso. — No aeroporto, nesse dia que sua irmã foi embora,
foi a primeira vez que vi o cara tendo um ataque de pânico. Um bem
feio.
Encaro a menina com seriedade, percebendo que se
surpreende com a informação.
— Olhando pra ele, com aquela pose arrogante, você jamais
imaginaria, não é? Pois acredite, todo mundo já teve um momento
ruim na vida, Amália. Alguns piores do que outros, mas todo mundo
já teve pelo menos um ataque de pânico para contar. Inclusive eu.
Não é vergonha. Não a torna mais fraca.
Viro-me completamente para ela, para a humilhação
estampada em seu rosto.
— Se acontecer novamente, não se sinta constrangida por
eles presenciarem. São sua família agora. Você pode confiar em
cada uma daquelas pessoas lá dentro… até no imbecil do Ed —
nessa parte, gracejo para quebrar um pouco da gravidade.
Uma mecha do cabelo grosso e negro vem para a frente do
seu rosto, trazida pelo vento. Sem poder evitar, afasto-a para detrás
de sua orelha, segurando os fios macios pelo tempo suficiente para
registrar a textura.
— Acho que vai demorar um pouco para se acostumar com a
ideia, moy almás, mas tenha em mente que aqui você está segura.
— Por que você teve? — murmura, buscando no fundo dos
meus olhos alguma coisa que me iguale a ela, provavelmente.
Quero rir, de puro escárnio de mim mesmo. Se essa garota
soubesse os esqueletos que carrego em meu armário, sairia
correndo para nunca mais voltar.
— Porque sou humano. É da nossa natureza cair,
eventualmente. Mas assim como eles me ajudaram a levantar,
principalmente Sebastian e a avó, estou certo de que farão o
mesmo por você, Amália. — Seguro seu rosto expressivo demais,
roçando meu dedo pelo queixo delicado. — Você agora está em
casa.
Posso estar enganado, aliás, devo estar é louco mesmo,
porque a maneira como essa garota me fita de volta… o modo como
o olhar desce do meu para minha boca… é como se sentisse a
mesma fodida necessidade que sinto de beijá-la até que essa coisa
estranha aqui dentro encontre paz. E pior, se por uma peça idiota do
destino, eu estiver mesmo certo, há algo que essa garota inocente
não sabe: nossos motivos para fazer uma besteira monumental
destas são completamente diferentes. O dela, por pura gratidão. O
meu, para ter o prazer de tocar o céu pelo menos uma vez.
Só que isto, isto jamais vai acontecer.
— Quer tentar? — sugiro com uma maldita rouquidão que
denuncia emoções que jamais podem ser sentidas, não em relação
a ela, quando levanto a pedra na altura de seu olhar.
— Quero sim — as palavras saem de sua boca como se
sopradas pelo vento para aceitar outra coisa que não a pedra idiota.
Inspiro profundamente, ar queimando a passagem.
Dá para ver na expressão transparente de Amália a confusão
que se passa em sua mente nesse momento. Ela ainda não é capaz
de distinguir o que quer de mim. Não sabe que quer justamente o
que não posso dar.
Mas todo o resto, tudo o que estiver ao meu alcance, eu darei.
— Elliot?
— Sim?
— O que significa moy almás?
Encaro seus olhos doces, inocentes, capazes de eclodir meu
peito a cada vez que me encaram.
— Meu diamante. Seus olhos são como a pedra mais preciosa
do mundo, menina.
Você é.
E eu, um maldito pecador.
ELLIOT

— O que faz aqui? — rosno para o imbecil esticado em meu


sofá de couro, à vontade, segurando uma cerveja que roubou da
geladeira.
Minha paciência para Yulian está cada vez mais escassa. Vinte
e sete anos e o cara não se emenda.
— Ouw… — Apressa-se em se sentar, pego desprevenido
pela minha chegada. — Fiquei sabendo que estava de volta, preciso
falar com você, mano.
— Esqueça.
— Não! Não tem nada a ver com grana. — Coloca a maldita
garrafa diretamente sobre a mesa de centro de madeira maciça. —
Bem… não exatamente.
— Dê o fora, Yulian. — Vou até a geladeira atrás de uma
cerveja para mim.
O miserável deixou apenas uma do pack.
— Preciso de ajuda, El. A parada é séria mesmo.
Passa das dez da noite, estou cansado pra caralho.
Escoro-me à coluna que há entre a sala e a cozinha do
apartamento, ao lado do balcão, e o encaro com desgosto. Fiz de
tudo por esse cara. Depois da morte do maldito que chamávamos
de pai, tomei para mim a responsabilidade de criá-lo, ralei, dei duro,
trabalhei em vários empregos ruins, alguns simultaneamente, mal
tive tempo para viver a minha vida. Só consegui concluir o curso de
medicina de campo porque entrei no programa das Forças
Armadas, e só Deus sabe o que teria me acontecido se não tivesse
entrado… tudo para que esse bastardo tivesse uma vida boa e
decente. Pelo jeito, errei feio em alguma parte.
— Com quem ou no que você se meteu, desta vez?
Pela hesitação, seguida pela expressão culpada no rosto do
infeliz, não é nada bom.
— Os Brejnev. — Ele tem a dignidade de desviar o olhar. —
Eles dizem que peguei uma coisa que é deles.
Comprimo a mandíbula, imediatamente retesado ao som deste
sobrenome.
— E pegou?
Nem preciso de resposta. A maneira como encara o chão diz
tudo.
— Caralho, Yulian!
Preciso jogar a cerveja recém-aberta na lata de lixo, perde
completamente o sabor. Quero esganar o bastardo. Todo mundo
com algum senso de inteligência nessa cidade sabe que não deve
se aproximar uma milha dos malditos Brejnev. Os caras são a
escória, o que há de pior. E com o agravante de estarem blindados
pelo fodido sobrenome.
— Se quer saber, El, desta vez eu nem tenho culpa direito,
ok?! — Esfrega o cabelo castanho freneticamente, abalado. — Acho
que… — hesita. Derruba a cabeça entre as mãos e admite,
envergonhado: — Acho que caí numa cilada.
É claro que caiu, grunho, ao me encaminhar para o lado do
imbecil, sem acreditar no tamanho de sua burrice.
— Vamos, me conte que merda aconteceu, Yulian.
Meu pressentimento não é nada bom.
— Eu estava desesperado para devolver sua grana, está bem?
É importante que saiba.
— Não pedi que devolvesse.
— Não, não pediu, mas você está sempre aí, me tratando
como se eu fosse um cabeça de vento… queria fazer algo por mim
mesmo, desta vez.
O olhar preenchido de ressentimento em seu rosto, de alguma
forma, me faz sentir certo remorso. Esse cara é família. A única de
sangue que me restou, é fácil esquecer isso às vezes.
Inspiro com toda a capacidade do peito.
— Não faz nem duas semanas que limpei sua barra aqui,
Yulian. Como quer que não te considere um cabeça de vento?
— Nem todo mundo é esperto igual você, El — rebate,
magoado.
Tenho de rir, sem qualquer centelha de humor.
— Se ser esperto significa saber com quem me meto, tem
razão. Pensei que tivesse ensinado isso a você também, garoto.
— Não sou mais um garoto.
— Não, você é um homem adulto que deveria saber que os
Brejnev são cilada. Agora, vamos, me diga por que acha que caiu
numa armadilha?
E é aí que me preparo apenas para confirmar uma
desconfiança.
— Queria devolver sua grana — repete. — Então esse cara, o
Sidorova, chegou em mim.
Sidorova, sempre o maldito cão de guarda Sidorova para o
trabalho sujo.
— Disse que tinha um lance rápido e fácil que exigia alguém
com as minhas características para não levantar suspeitas.
— Jovem e burro? — Arqueio a sobrancelha, não acreditando
que o idiota caiu nessa.
— De boa aparência — Yulian se defende.
Boa aparência e sem um maldito neurônio na cabeça.
— Continue. — Gesticulo numa linha fina de humor, ciente de
onde a história vai chegar. Já vi isso acontecendo antes.
— O trabalho era fácil mesmo. Dirigir um furgão de pneus
recauchutados até um galpão aqui perto, em Suzdal. Lá, eles
passariam sei lá o que nos pneus e pareceriam novos.
Bufo uma risada irônica. Não é possível que Yulian seja tão
inocente assim.
— Tráfico de drogas; de armas — vou listando os crimes dos
caras —; execuções; sequestros; fraude; extorsões; e você acha
mesmo que se meteriam com um negocinho sujo de pneus
adulterados, Yulian? Só pode estar brincando, merda!
Rubor sobe pelo pescoço largo de meu irmão até alcançar as
orelhas. Ele sabe que foi feito de trouxa.
— E então, o que aconteceu? — indago, agora sem nenhuma
paciência.
— Na saída de Moscou, na M7, um carro me interceptou. Os
caras estavam armados e levaram o furgão. Peguei uma carona de
volta para casa e, quando fui até esse Sidorova, para contar sobre o
roubo, ele me levou ao chefão deles, o V…
— Vladimir Brejnev.
O maldito Vladimir Brejnev. É até uma surpresa que ele não
tenha vindo atrás de Yulian antes.
— Deixe-me adivinhar o que aconteceu: Brejnev disse que
você tem uma dívida com ele e te deu um prazo para pagar.
— Uma semana.
— Claro, claro que sim. E sabe por quê? — Encaro meu irmão
mais novo, frustrado pra caralho.
— Por você — conclui o evidente, seu rosto vermelho vivo.
Pelo menos nisto Yulian não é tão estúpido.
Esta não é a primeira tentativa que Brejnev faz de se
aproximar de um de nós. Tentaram uma vez com Bola, só que o
cara sacou e virou a mesa. Tentaram também com Sebastian.
Levaram a pior ao descobrir que o único ponto fraco dele, na época,
havia acabado de morrer. E agora, comigo, através de meu irmão
mais novo.
Não é difícil concluir que querem algum serviço sujo de todos
nós. Sabem do que somos capazes e precisam disto.
Esfrego minha cabeça raspada.
Logo agora, com Amália aqui. Não poderia haver momento
pior para ter os Brejnev no caminho.
— Diabos, Yulian. Como foi que caiu nessa? Logo você, que
se enfia numa pior que a outra, como não sacou, porra?
— Eu sei que fui idiota, ok?!… — Esfrega outra vez os
cabelos, nervosamente. — Na verdade, só saquei que havia algo de
errado quando vi um dos seguranças que faziam a guarda desse
Vladimir. Era a mesma tatuagem no pescoço de um dos caras
encapuzados que me roubaram na estrada.
Eu deveria ter desconfiado. Tudo estava calmo demais
ultimamente. Já dizia a velha Zhena: vento que precede tempestade
é silencioso.
— O que vamos fazer? — questiona Yulian, ciente de que,
mais uma vez, tratarei de resolver suas merdas.
Encaro-o profundamente, para que enxergue a seriedade do
que vou dizer.
— Abra bem os ouvidos e ouça, Yulian. Com esse teto que
está sobre nossas cabeças de testemunha: esta é a última vez.
Quer arruinar sua vida? Foda-se. Tudo o que eu podia fazer por
você, fiz, mas agora lavo minhas mãos, ouviu bem? A partir de hoje,
ou você se emenda, ou está pela própria sorte.
Tenho a impressão de que o lábio do cara treme, quando
sacode os ombros.
— Não muda nada… você está sempre fora de qualquer jeito,
El. Nunca se preocupa sobre como estou.
— Quem paga seu aluguel e põe comida na sua mesa, Yulian?
— Você…
— Quem pagava a maldita universidade que você não
frequentava?
— Você.
— Alguma vez deixei de vir ao seu socorro quando precisou?
Relutante, admite:
— Não.
— Pois então não seja um ingrato filho da puta e cresça, porra!

Sou o último a chegar na velha taberna de Samsonov, depois


de um desvio. Bola, Ed e Sebastian ocupam uma das mesas dos
fundos, nosso local habitual. Conforme cruzo o lugar, para minha
surpresa, enxergo Gael também. O puto, em seu terno elegante de
três peças, está de frente para mim e é o primeiro a me notar. Por
trás do copo de uísque caro, sinto sua avaliação meticulosa.
— Cuidar da menina está te envelhecendo — provoca, antes
mesmo de eu me sentar.
— Fico feliz que sua senhora tenha soltado a coleira hoje —
retribuo.
Gael sequer se abala. Priscila é o orgulho do cara.
— Quando encontrar uma coleira como a que tenho,
compreenderá que há vantagens.
Dou a ele um meio-sorriso debochado.
— Quem te viu, quem te vê, Nikolaevich. Um cãozinho
domesticado.
Levanta o copo em um brinde para mim.
— E não reclamo.
— Idiota…
Sento-me ao lado de Ed, de frente para Gael e Sebastian. Bola
ocupa todo o lugar na curva. Está devorando um belo filé com fritas.
— O que aconteceu com seu regime? — pergunto ao cara.
O grandalhão sacode os ombros, do tipo “tô nem aí”.
— Não gosto de sentir fome. Fico de mau humor.
— Gostará menos ainda quando seu pau sumir de vez —
zomba Ed.
Recebe um dedo do meio.
— Com toda essa gordura, meu pau ainda consegue ser maior
do que o seu, então acho que estou bem. — Limpa as mãos sujas
de molho no guardanapo em seu colo.
— E então, Elliot. Que merda você estava fazendo no galpão
daquele porco? — Sebastian, encarando-me como uma águia, vai
direto ao maldito ponto.
O imbecil tem destas. Se não atendem, ele simplesmente
rastreia a porra dos nossos celulares com um de seus
brinquedinhos tecnológicos, sem qualquer culpa.
— Por isso chamou a cavalaria completa? — Relaxo no
encosto de couro, me referindo a todos eles, aqui, quando a
mensagem dizia: “cerveja no Samsonov? Estas mulheres estão me
deixando maluco”.
— Se um irmão vai ao núcleo da escória, acredito que
devemos todos saber, não? Afinal, respinga em todo mundo aqui.
Os caras assentem e emitem uma série de Да; Да.
É justo.
Levanto um dedo para Samsonov, o velho proprietário da
taberna, atrás do balcão secando um copo com o pano de prato em
seu ombro. O avô dele fundou esse lugar. No quintal, é produzida a
centenária vodca Samsonov, a mais forte do mundo. Frequentamos
essa taberna desde que cada um aqui ganhou seu primeiro pelo na
cara, antes mesmo de possuirmos idade legal para beber. O avô de
Sebastian o trouxe aqui, o pai de Ed, de Gael… e o meu, uma das
poucas coisas as quais devo agradecê-lo. Entrar pela primeira vez
na taberna e provar o destilado concentrado é um tipo de iniciação,
onde garotos viram homens.
Eu trouxe Yulian também, quando ele tinha quinze. Achei que
seria legal estender a tradição.
— Yulian — digo aos caras, e isto, por si só, explica muita
coisa.
— Yeb vas! — grunhe Gael.
Seguido por palavrões em cada boca ao redor da mesa.
— Pois é…
— E aí, garotos? — indaga o proprietário do bar. Grande e
bem fisicamente, ninguém diz que tem para mais de sessenta anos.
— Uma da casa, Samsonov.
— Duas — pede Sebastian.
Gael sinaliza também.
— Traga logo a maldita garrafa, Samsonov — aviso.
— Se quiserem, tenho o destilado-base pronto, lá atrás —
sugere Samsonov, malicioso.
— Não tenho mais idade para isso — Sebastian, o bastardo,
nega. — Da última vez, pensei que meu estômago estava
derretendo.
— Usei como anestesia para retirar uma bala dele — explico
ao velho dono da taberna. — Eu te contei, lembra?
— Não existe anestésico melhor —gaba-se Samsonov, dando
uma risadinha.
Espero o velho se afastar para contar logo a merda toda:
— Brejnev armou para o Yulian. Procurei os desgraçados para
quitar a dívida, e, vocês sabem…
— O filho da puta não quis receber a grana — conclui Ed.
— Não.
Todo mundo ao redor da mesa se cala. Por suas expressões,
compreendem o que isso significa.
— Que tipo de serviço? — questiona Bola, afastando o prato
de vez.
— Só saberei amanhã. Mas se teve o trabalho de tentar
chegar até mim, certamente é problema. E tem mais — viro-me para
Ed —, Vladimir sabe de meu retorno a Moscou porque te seguiu até
o hangar.
E viu a Amália. Isto é o que eu não digo. Nem preciso.
Só o fato de aquele desgraçado ter tido um vislumbre de
Amália já me faz pensar em matá-lo, sem hesitar.
— Maldito filho de uma… — cospe Ed, rígido pela raiva.
Após uma respiração profunda, digerindo, Sebastian me
aponta com o queixo.
— Isso explica o ferimento em sua mão.
Cerro o punho sobre a mesa.
— Não gosto de ameaças.
Menos ainda quando ela vem direcionada a alguém importante
para mim. Quebrei o nariz do chefe dos Brejnev, farei coisa pior com
toda a organização, se eu farejar que oferecem qualquer risco à
menina.
— E eu que pensei que tinha me aposentado… — Bola alonga
o pescoço de um lado e depois do outro. — Pelo jeito, estamos de
volta à ativa.
— Não quero meter vocês nisto. — Viro a vodca numa golada,
quando Samsonov deixa a garrafa.
— Estamos metidos desde o minuto em que seu nome passou
pela cabeça de Brejnev, Elliot — Sebastian afirma. — Vladimir agora
é um problema de todos nós.
Gael ajeita a abotoadura dourada em seu pulso.
— Espero que não me deixem de fora, desta vez.
AMÁLIA

“É feita com beterraba defumada”, leio na tela do celular que


vovó Zhena segura em frente ao meu rosto, usando o tradutor para
se referir à sopa que serve em um prato para mim. “São da minha
horta. Vou levar você lá depois do almoço”. Ela pega de volta o
celular e digita alguma coisa, mas em vez de me mostrar, como têm
sido nossa comunicação durante todo o dia, lê:
— É um tradição. Sopa deliçoosa, chica.
O esforço em se comunicar comigo, apesar da pronúncia forte
e um pouco errada, provoca uma sensação tão diferente em meu
peito, que preciso esfregá-lo discretamente.
— Spassíba — retribuo, falando a palavra que Elliot me
ensinou, para obrigada. Não sei mais o que dizer para agradecer a
forma como têm me tratado nesta casa, todos eles, desde que
cheguei.
Vovó Zhena estende as duas mãos quentes, e sem que eu
espere, apanha meu rosto afetuosamente.
— Hermosa, cariño[23].
Um nó se forma em minha garganta. Gostaria de poder dizer à
senhora o quanto me sinto grata, e também culpada por assustá-la
ontem. Não tive coragem de tocar no assunto, senti vergonha.
Quando a encontrei, pela manhã, na cozinha, ela tampouco
comentou nada. Ao contrário, me convidou para conhecer a coleção
de quadros espalhados pela grande casa, paisagens pintadas por
ela, como se nada tivesse acontecido. Em meu interior, a agradeci.
Tia Merian, também à mesa, faz então uma série de mímicas
para, pelo que entendi, dizer que vou comer bastante nesta casa.
Pega meu cabelo, no rabo de cavalo, e o traz para frente, faz um
sinal de tesoura nas pontas e uma linha reta logo acima de minhas
sobrancelhas.
— Hermosa, hermosa! — Vibra como se quisesse dizer que
ficarei bonita.
Concordo com a cabeça, apesar de não estar muito certa se é
isso mesmo.
A senhora de cabelos vermelhos num tom vivo entende a
aceitação, bate palminhas, contente.
— Prontinho, alguém já está limpinha outra vez e pronta para
papar. — Penélope entra na cozinha trazendo Sol de Maria no colo.
A garotinha é uma mistura linda e fofa dela e do marido, cabelos
bem escuros, olhos grandes, sobrancelhas cheias. O nariz, no
entanto, é todo de Penélope, arrebitado.
Vovó Zhena enche o pratinho e ajeita o lugar da bebê à mesa.
— Tia Merian quer cortar o seu cabelo — Penélope sussurra
com bom humor, ao sentar Sol de Maria no cadeirão ao meu lado.
— E fazer uma franja.
Sinto um sorriso involuntário mover minha boca. É estranho.
Fiquei sem sorrir por tanto tempo, que estou tendo que reaprender a
sensação.
— Foi o que entendi… — cochicho também.
— Ela quer cortar — enfatiza.
— Ela é cabelereira?
— Não. — Ri, divertida, e se senta ao lado da filha.
Observo-as interagindo, conversando, rindo à mesa, e parece
tão fora do normal. Quero dizer, a paz, a felicidade que aparentam
sentir nessa casa. Como Penélope conseguiu esquecer tudo aquilo?
Como consegue respirar e não ter a sensação de sentir o cheiro
deles impregnado dentro das narinas, sob a pele? Como consegue
não estar em constante alerta ou se sentir suja?
Parece impossível.
Sol de Maria faz um barulhinho chamando minha atenção
como se quisesse me alcançar dos pensamentos ruins antes que eu
mergulhe no abismo de lama, ou no labirinto, como definia a Dra.
Cassandra. Olho para a colher estendida, está me oferecendo sua
sopa. Pequenas jaboticabas brilham de expectativa.
— Sua tia tem no prato dela, Sol — intervém Penélope. —
Essa é para você.
A criança faz um esforço para reproduzir o som de “tia”, que
vira um “schhia” engraçadinho.
Sem perceber, belisco meu cotovelo por baixo da mesa.
Preciso disto para saber que estou aqui, que está mesmo
acontecendo.
Sinto o olhar de Penélope em mim. Certeiro. Como se
soubesse o que estou fazendo. Mas ela não diz nada. Apenas sorri,
e nesse sorriso compartilhamos mais do que qualquer pessoa possa
entender. Ela também passou por tudo aquilo.
Pego o talher e provo a sopa de beterraba. Borscht.
Após alguns minutos me assistindo comer, vó Zhena digita
algo no celular, outra vez, e o coloca para que eu veja. “Tem algum
prato que você gosta? Posso fazer”.
Enquanto leio, Penélope rindo diz algo para ela em russo,
então se vira para mim:
— Vovó quer te engordar, como fez comigo. Acredite, eu era
magra quando cheguei a essa família, Am… — diz em tom de
lamento. Mas logo uma risada divertida atravessa os lábios corados.
— É brincadeira! Definitivamente, eu não era magra! Só adicionei
alguns quilos a esse corpo volumoso que você vê. Na bunda,
principalmente, e a culpa é dela.
E traduz isso para as duas senhoras, que se divertem.
A refeição se passa toda assim, conversas em dois idiomas,
tradutor do celular, e risadas. Quando Sol de Maria já não quer mais
ficar sentada, ofereço-me para pegá-la no colo enquanto sua mãe
termina de comer a sopa. Mãozinhas quentes apalpam meu rosto,
cabelo, orelhas, tentam se comunicar emitindo grunhidos
incompreensíveis.
Nunca estive com outra criança antes. Não sei o que fazer com
ela direito, mas Sol desperta um desejo muito forte de querer fazê-la
rir, de abraçá-la e agradá-la.
Acho que é por isso que faço pequenas cócegas em sua
barriga, só para ouvir a risadinha gostosa que ecoa por tudo e
parece infiltrar em meu interior. Crianças são anjos que nos
escolheram, estava grafitado em um muro, próximo ao meu
penúltimo emprego.
— Ela gosta de dançar, Am — avisa Penélope e apanha um
celular. — Espere aí.
Digita alguma coisa, e de repente há música saindo do
aparelho. Instrumentos alegres se misturam a uma voz grossa.
Sol de Maria, em meu colo, se anima muito, agita os bracinhos
parecendo querer saltar do meu colo.
— Está pedindo pra você dançar com ela, Am! — a mãe
incentiva.
Meio rindo, meio sem saber o que fazer, apoio uma mão nas
costas da bebê, com medo até de que ela se jogue para trás, de tão
agitada.
Tia Merian também aplaude.
— Tánits[24]! Tánits!
Vó Zhena e ela passam a dizer isso em russo, e quanto mais
estimulam, mais Sol de Maria se empolga.
— Não sei dançar — confesso para elas.
— Só mexa o corpo, chica, você consegue! Está em nós! —
incentiva Penélope.
A criança até grita de empolgação.
Está em nós.
Eu costumava mesmo dançar com minha vovó. Aquilo me
deixava alegre.
Sem ter certeza do que estou fazendo, com Sol de Maria nos
braços, vou me mexendo e embalando nós duas ao som estridente
de um instrumento. Aos poucos, me pego rodopiando, pulando e me
movendo, e a garotinha vai gargalhando. Quanto mais ela ri, tão
pura e alegre, mais eu vou no embalo dela, com as senhoras
aplaudindo e vibrando. Quero rir também e quero que Sol tenha
sempre esse sorrisinho feliz. É contagiante, desperta emoções que
eu não sentia há… há muitos e muitos anos.
Até que ouço Sol chamar pelo pai, num gritinho esfuziante
voltado para algo atrás de mim.
É quando olho para a porta, onde Sebastian se encontra
parado encarando todas nós com um sorriso estranho, como se
estivéssemos loucas.
Mas não é ele que faz meu coração saltar e disparar. É quem
está logo atrás, olhos quentes e penetrantes focados em mim.
Engulo em seco.
A parte atrás de minhas orelhas pega fogo.
Paro no lugar, até porque Sol de Maria também para. Já não
quer outro que não aquele a quem ela estende os bracinhos
abertos.
— Kogda my byli na voyne[25], espanhola? Não há uma canção
menos dramática? — Sebastian encara a esposa com a
sobrancelha arqueada e um sorriso de lado, ao entrar, como se
compartilhassem alguma coisa que só eles sabem.
Penélope só dá de ombros, orgulhosa de si mesma.
— O que posso fazer? Sol gosta desta música.
— Ela gosta é de rir do bobo que se coloca na linha de frente
na guerra para se matar, só porque foi rejeitado. Não é mesmo,
princesinha do papai? — Ele a retira dos meus braços, e então sorri
para mim. — Oi, Amália. Minha garotinha te pôs para dançar, pelo
jeito.
— Oi… — murmuro, sentindo meu rosto queimar. Não
comento sobre a dança. Ainda não me acostumei a sua presença,
não sei como agir ao seu redor. Só sinto que Sebastian é bom.
Ele passou a maior parte do dia fora.
Logo atrás dele, Elliot também entra. Fala alguma coisa em
russo para as mulheres, elas retribuem receptivas. Mas o olhar dele
está em mim, atento, profundo. Faz coisas estranhas em minha
barriga, outra vez. São tão confusas essas reações que meu corpo
tem quando estou com ele.
— Oi, Amália.
— Oi, Elliot — cumprimento baixinho, semelhante ao que fez.
Olhos cor de café forte sobem para minha testa e avaliam meu
rosto inteiro, perspicaz.
— Você está vermelha.
— A-acho que é a dança — murmuro. — Eu… você sabe,
nunca…
— Sei. E acho que deveria fazer isso mais vezes.
Dou uma olhadela para o lado, onde estão tia Merian e vó
Zhena. As duas parecem nos assistir atentas, esperando alguma
coisa.
— Quer dar uma volta lá fora? — pergunta ele.
A questão me pega desprevenida. Estive esperando que
viesse o dia todo, achei até que não fosse aparecer. Está diferente,
de algum jeito. Além de vestir um suéter de lã, em vez da jaqueta de
couro de costume, parece com o semblante tenso, mais sério.
Vai me falar algo de ruim, sinto isso.
Abraço meu corpo.
— Pode ser…
Elliot desce o olhar para meus braços, precisamente onde me
belisco.
— Está chateada?
Torno a olhar em volta, ver se alguém nos escuta. Estão todos
distraídos agora, envolvidos em alguma conversa animada.
— Não — digo, desviando para o tênis em meu pé.
Pelo modo como me encara, buscando algo, Elliot não acredita
em mim. Porém não diz nada a esse respeito. Gentilmente, estende
a sacola grande de papel que tem na mão.
— Para você.
— Pra mim? — Fito a sacola e seu rosto de traços fortes,
surpresa.
— Abra — incentiva, sorrindo. Quando sorri, seu rosto suaviza
um pouco toda a aura densa que marca sua expressão. Fica mais
bonito, de algum jeito. É como se não fizesse isso sempre.
Desengonçada, desfaço o laço de tecido e abro a sacola.
Dentro, espio um pedaço grosso de lã. Nem sei o que dizer. A última
vez que ganhei um presente foi de minha avó. Ela fazia isso sempre
que podia. Coisas pequenas, bobas, mas que vinham com grande
valor sentimental. Vovó fazia pelo prazer de me ver abrir, costumava
falar.
— Para o clima frio — explica ele.
— Eu… eu nem sei o que… — Encaro-o, a voz embargada. —
Não precisava, Elliot.
— Há mais algumas sacolas que deixei na sala. Você não
trouxe muita coisa em sua mochila, então pedi à esposa de um
amigo que comprasse.
Tremendo um pouco, retiro o casaco da sacola. É lindo e
macio. Dá vontade de encostar no rosto.
— Obrigada.
— Não por isso, Amália.
Não consigo parar de olhar para ele.
— Vamos? — sugere. Noto que sua voz está mais grave,
rouca, talvez porque sabe o pensamento que vem em minha
cabeça.
Inspiro bem fundo. De repente, não consigo respirar direito.
Meu peito é comprimido por um peso muito forte.
Dou uma olhadela para Penélope, que está me observando
também. A expressão em seu rosto é de incentivo, como se
apoiasse essa coisa acontecendo aqui dentro que chega a me dar
vertigem.
Assinto para Elliot.
Antes de sairmos, ele me ajuda a vestir o casaco novo, que é
ainda mais macio no corpo.
Do lado de fora da casa, quando estamos longe de olhares,
Elliot para de frente para mim. A mão toca meu queixo de um jeito
que torna impossível não o encarar quando escaneia meu rosto
atrás de algo, intensamente.
— O que está havendo, Amália?
Mordo o cantinho do lábio e desvio meus olhos para as luzes
ao redor do lago. O que dizer? Como falar que… que sinto coisas
por ele. Coisas que não sei explicar. Diferentes de tudo o que já
senti.
— Você veio se despedir?
Elliot não esperava pela questão. Dá para ver em seu
semblante, no modo como a sobrancelha sobe e uma ruga marca o
centro de sua testa.
— Por que acha isso?
Belisco meu cotovelo. É assim com tudo o que é bom na
minha vida. Dura pouco, e depois há apenas a escuridão.
— Não sei, é só que você me trouxe para essa casa e agora
pode querer, sei lá, se afastar de novo.
— É o que quer? Que eu me afaste?
Aperto os lábios numa linha fina e sacudo a cabeça, antes de
responder.
— Não. Quero que fique.
— Então é o que farei — afirma como se não houvesse
verdade maior.
E quero acreditar nisto. Acreditar que coisas boas não acabam
rápido.
Se pelo impulso, se para fugir da ansiedade que começa a se
esgueirar pelo chão feito gavinhas até tentar me alcançar e
consumir tudo, faço algo que surpreende a nós dois. Fico nas
pontas dos pés e quando vejo… quando vejo estou comprimindo
sua boca com a minha.
Acho que estou beijando Elliot.
E ele está imóvel.
ELLIOT

Amália está me beijando. Porra. A garota realmente tomou a


iniciativa e trouxe sua boca morna para a minha. Dizer que é a
última atitude dela que eu esperava é um tremendo eufemismo.
Estou mesmo é surpreso pra caralho. Numa outra situação, num
outro contexto, eu apenas agradeceria o presente improvável do
destino, onde a jovem inocente e bonita deseja o cara fodido e sem
alma, e tomaria sua boca de volta até fazê-la implorar por mais.
Mas a respiração quente, ofegante, quase desesperada saindo
diretamente de suas narinas e invadindo a minha, comprova o
maldito ponto de Saavedra.
Amália me vê com lentes irreais.
Não é difícil imaginar o que se passa em sua mente, o que a
levou a essa atitude. Vi a insegurança em seu rosto, transparente
como água. Ela tem medo que eu faça aquilo de novo, que me
afaste como no passado.
Fecho os olhos e me obrigo a acalmar a coisa implacável que
se choca contra meu peito, enquanto dou a ela tempo de se dar
conta do que faz, mas não afasto minha boca. Maldição, não
consigo. Isso, o roçar suave do tecido aveludado de seus lábios nos
meus, é o mais perto que já estive do céu.
Minhas mãos imploram por tocá-la, por abraçá-la. Mantenho-
as apenas ao lado do meu corpo. Quando faz menção de parar,
coloco-me em modo neutro, pronto para o que vier. Não quero ferrar
tudo.
Devagar, a garota vai se afastando.
Acompanho bebendo cada uma de suas reações. O rubor na
face que preenche até o pescoço por baixo do moletom, o comprimir
dos lábios… e os olhos baixos, fugindo dos meus.
— Desculpe… eu… me desculpe, me desculpe — murmura
sacudindo a cabeça, e é difícil ouvir sua voz. Praticamente leio o
pedido em sua boca, mortificada.
— Olhe para mim.
Gentilmente, mascarando minha própria urgência, apanho seu
queixo. Preciso tirar isso do caminho, esclarecer as coisas.
— Por favor, Amália, olhe para mim.
Devagar, olhos cinzas hesitantes vêm subindo para mim,
carregados de mais constrangimento do que jamais vi.
— Você está bem?
Sacode a cabeça, dizendo que sim.
— Pode me dizer por que fez isso, por que me beijou? — A
suavidade em minha voz a convida a ser sincera.
— Eu… eu não sei.
Arqueio a sobrancelha e acabo não controlando um meio-
sorriso que a desmente.
Amália se abraça forte, a confusão em seu rosto, o embaraço
e a incapacidade de colocar em palavras o que há em sua cabeça
são comoventes. Quero ampará-la, quero que não se sinta mal ou
errada. Faço do único jeito que sei, indo direto ao ponto.
— O que está sentindo, Amália, o que há aqui — bato de leve
meu dedo em sua têmpora — é gratidão. E está tudo bem. Só não
quero que pense que precisa me agradar. Você não precisa,
entende?
Ela abaixa a cabeça e murmura alguma coisa incompreensível.
— O que disse?
— Não fiz para te agradar — repete, me encarando de volta
com honestidade.
Respiro fundo, e, por hábito, coço minha nuca. Essa menina
doce, inocente, mal sabe distinguir seus sentimentos. É meu dever
alertá-la.
— Não sou um tipo de herói, se é o que pensa, Amália. Aliás,
se existe algo oposto a isso, é exatamente o que sou. Não posso
permitir que se engane a meu respeito.
O sacudir da cabeça, veemente, evidencia que discorda de
mim.
— Você é bom, Elliot.
— Para você. Mas a maioria das pessoas não pode dizer o
mesmo.
— É gentil, generoso.
O riso de discordância que ressoa de meu peito não tem o
intuito de ser condescendente, no entanto é o que acaba parecendo.
— Já te disse isso uma vez, moy almás, e vou repetir. Eu me
preocupo com você. Mais do que já me preocupei com qualquer
pessoa no mundo. E não tem a ver com o meu “bom coração”. —
Nesta parte, é difícil conter a autodepreciação cínica. — É sobre
você. Sobre quem você é. E esse fato não me torna um herói, ou
alguém a quem deva sua admiração.
Pela angústia que retrai seus lábios, e o fato de esconder as
mãos dentro das mangas da blusa, sei que entendeu tudo errado.
Merda.
— Vamos, diga o que está pensando — peço, tomando o
cuidado de manter meu tom leve.
Seja o que for, a magoa e muito.
— Você tem pena de mim.
Sacudo a cabeça, desacreditado. De todas as coisas que ela
podia dizer.
— E nojo — acrescenta.
Olho bem para ela, de verdade, dando uma chance para que
também me olhe e visualize tudo o que sou.
— Sabe o que dizem sobre o Céu?
— Sim, eu ia à igreja com minha avó — responde sem
entender a questão, e ainda ferida com a conclusão em sua cabeça.
— É para onde vão as pessoas boas.
— Então também sabe o destino das más?
Assente.
— Lá é o meu, Amália. Meu destino é o Inferno. Compreende o
que quero dizer? Como posso, eu, um demônio sem alma, sentir
nojo da obra mais rara e perfeita já colocada sobre essa Terra?
A convicção com que refuta com a cabeça cada palavra que
digo é comovente.
— Não é verdade. Você não é assim. Convivi com demônios,
Elliot. Sei a aparência que eles têm.
Maldição! O que fazer com essa vontade fodida de envolver
essa menina corajosa, aqui me defendendo e defendendo o que
acha que sente por mim, em meus braços e mostrar a ela o que um
beijo realmente pode ser?
Inspiro com toda a capacidade do meu peito, tanto para
continuar no controle, quanto para afastar a necessidade de fazer
algo de que vou me arrepender com toda a força mais tarde.
Algumas verdades, por mais feias que sejam, precisam ser
ditas.
— Se quer me conhecer de verdade, Amália, comece sabendo
que matei meu pai. E não me arrependo.
A revelação a surpreende, exatamente de acordo com o
esperado.
Não poderia ser diferente. Metade das pessoas do bairro onde
cresci pensam o pior de mim e deixam isso claro com seus olhares
tortos. A outra metade só não tem coragem de demonstrar. Egor
Shumov era homem justo, trabalhador, bom pai e marido, como o
filho pôde fazer uma coisa destas? O que ninguém sabe é que,
entre as paredes daquela casa, ele era o maior filho da puta sádico
que já existiu. Espancava a esposa até desmaiá-la, mas jamais
deixava uma marca que contasse essa história ao mundo. Mantinha
uma imagem impecável enquanto detonava a família física e
mentalmente.
Um belo dia, simplesmente cansei do que fazia, peguei sua
arma de caça e meti uma bala no meio do peito dele. Mamãe alegou
à polícia que foi acidente e eles acreditaram. Afinal de contas,
éramos a família feliz.
— Percebe agora quem é que deve sentir nojo de quem aqui?
Amália se recompõe rápido. E pior, passa a me olhar daquele
jeito estranho, como se me reverenciasse.
— Se fez isso, ele deve ter merecido… Eu teria feito o mesmo
com aquela família, se pudesse.
Jovem demais. Inocente demais. Boa demais para esse
mundo de merda.
E linda. Devastadoramente linda.
Sou salvo de fazer uma besteira por puro impulso, pelo som de
uma mensagem no celular. É Ed.

A doutora acaba de aterrissar

Não me peça para buscá-la. Mande o Bola.

Leio e respondo com brevidade.

Vá buscá-la.

Saber que Saavedra já está em solo russo acaba por ser um


alívio. Ela, de todas as pessoas, vai tirar da cabeça da menina a
ideia errada que faz de mim. E quando a doutora acabar, Amália
estará tão inteira que jamais se lembrará do dia em que tentou me
beijar debaixo da maldita árvore à beira de um lago.
Que cenário estúpido para se enraizar profundamente nas
entranhas de alguém, diabos. Até nisso, ela é perfeita. Em me
marcar irremediavelmente.
— Venha aqui — não resisto a oferecer meus braços abertos.
Como se fosse feita para esse espaço, a menina se encaixa
em meu peito. E eu a abraço, desejando que o relógio simplesmente
pare de contar o tempo.
AMÁLIA

— Calmos e civilizados, todo mundo respeitando a sinalização


de trânsito. Em nada se parece com Madrid, não é? — comenta
Penélope, guiando o carro por uma avenida de quatro pistas,
movimentada. Pelo jeito como seus lábios se fecham num beicinho
desamparado, não soa como elogio.
Sinto um sorriso involuntário repuxar meus lábios. Agora que
estou convivendo mais com ela, tenho percebido o quanto é
espirituosa, confiante, está sempre de bom humor. É difícil imaginar
que já passou por tudo o que passou. De alguma forma, também me
dá esperança.
Tenho evitado cada fagulha de pensamento sobre a vida de
antes, mas às vezes, às vezes é difícil frear uma memória, um
sentimento, um reflexo. Sons de cozinha me fazem encolher, por
mais que eu esteja atenta, ou quando alguém se aproxima sem
fazer barulho…
Queria poder apagar tudo.
Queria poder não lembrar.
Para afastar a sensação de compressão na garganta, mudo
meu olhar para os arranha-céus lá fora. Torres bonitas, espelhadas.
O mundo é um lugar imenso, como disse a Dra. Saavedra, uma vez.
Queria poder falar com ela.
Penélope de repente muda de pista abruptamente.
— Mas que porcaria ele pensa que está fazendo seguindo a
gente? — resmunga, conferindo o retrovisor, sobrancelhas juntas,
incomodada.
Olho para trás, para a fila de carros atrás de nós e não vejo
nada de incomum.
Só que ela vê, porque muda outra vez de pista e resmunga.
— Ah, cabrón[26]…
— Bron! — Sol de Maria imita a mãe, no banco de trás.
— Isso, filha, “coração”, isso mesmo — se corrige, e me lança
um olhar que avisa que algo está acontecendo, antes de dirigir o
carro para a guia ao lado da calçada. — Vou ter que estacionar, Am.
Esperem aqui, um pouco.
Antes que eu diga qualquer coisa, ela desce, mãos na cintura,
e vai marchando até a porta do motorista de uma caminhonete preta
que também estaciona.
— Ed, posso saber por que diabos você está me seguindo?
Não ouço o que ele fala, mas identifico o homem que nos
buscou no aeroporto quando chegamos à Rússia.
Algo que ele diz a faz bufar com ironia.
— Não me venha com essa historinha de coincidência, não!
Você me diz ou ligo para aquele trapaceiro que chamo de marido e
pergunto eu mesma. Como vai ser?
Um carro passa por eles e buzina para ela. Penélope levanta o
dedo do meio em direção ao engraçadinho. Ela tem o sangue
quente, dá para ver, é algo que se destaca de um jeito bom nela.
— Mamá? — questiona Sol de Maria, presa à cadeirinha, sem
entender o sumiço da mãe.
— Ela desceu, mas já vem, Sol. Já, já sua mamãe vem, neném
— tranquilizo a bebê, oferecendo minha mão para que aperte e
brinque com os dedos.
É tão espertinha, parece que entende que a mãe está
resolvendo algum problema lá fora e quer ir junto.
A voz de Penélope sai mais abafada desta vez.
— Esquece que até pouco tempo trabalhei como
investigadora, Ed? Sei muito bem quando algo está errado, não
tente me enrolar.
Gesticula, exasperada para algo que ele diz.
— Deixa que descubro sozinha. Vocês são leais uns aos
outros como cães. Isso, às vezes, é irritante…
Quando volta para o veículo, está aborrecida.
— Odeio quando ele me deixa de fora.
Interrogo-a com o olhar.
— Meu marido, Am, agora deu pra achar que precisamos de
escolta num passeio simples até o parque. Quando eu chegar em
casa, ele vai ver só, cab… — olha para trás e se corrige a tempo —
coração, aquele coração filho de uma mãe.
Tapo a boca para não sorrir. É fácil fazer isso perto dela.
Penélope é engraçada.
— Eu te contei que trabalhei como investigadora particular, não
é?
— Contou sim.
— Chica, conheço uma pessoa quando está aprontando, só de
bater o olho nela. Como na vez em que fui contratada para
investigar um pastor e pai de família acima de qualquer suspeita. A
esposa, também pastora, desconfiava que ele estava tendo um caso
com uma das obreiras. Pois bem, vesti uma roupa recatada,
coloquei uma bíblia debaixo do braço e fui à igreja dele.
Ela volta a guiar, gesticulando com os dedos, a mão
envolvendo o volante. Confiante e de ótimo humor, nem parece que
se chateou há segundos.
— E ele estava tendo um caso?
Apertando os lábios, para não rir, Penélope faz um momento
de expectativa.
— Sim! Mas não com essa obreira! Aliás, não só com essa
obreira, melhor dizendo! Você nem vai acreditar se eu te contar!
Encolho o ombro, rindo mesmo que sem saber do que, porque
é isso o que ela faz, deixa a história empolgante.
— O danado estava tendo um caso com três obreiras, Am!
Três! E nenhuma sabia da outra!
A gargalhada gostosa que ressoa dela é tão viva e alegre que
até Sol de Maria ri também, alto, imitando a mãe.
— Você descobriu isso indo à igreja?
Penélope faz um “poc” com a boca.
— Saquei só de observar a interação dos quatro durante o
culto. A troca de olhares apaixonados da parte delas, com os
discretos dele, mantendo a figura de bom pastor. Mas quando cada
uma tinha de passar a ele algum objeto durante o culto,
assessorando, sempre rolava uma mão resvalando na dele e coisas
assim. — Dá de ombros, orgulhosa de si. — Depois disto, foi só
seguir o garanhão. Quando mostrei as fotos à esposa, a coitada
quase teve um treco!
— Ela se separou?
— Tsc, tsc. Que nada. A boba acreditou na ladainha dele de
que estava possuído por um espírito maligno e promoveu um
exorcismo, ou sei lá o quê.
Dirige para a entrada de um parque onde mais mães passeiam
com crianças.
— Chegamos, meninas! Agora é só aproveitar esse ótimo dia
de sol e comer tudo o que a vovó colocou na nossa cesta!
Não consigo dizer nada, só olhar para ela e sentir um
sentimento tão bom que não sou capaz de descrever. Penélope e
Elliot são duas das poucas pessoas, senão as únicas, que me
tratam com normalidade. Sem pisar em ovos ao meu redor, ou
demonstrar pena mesmo que com o olhar, sem me marcar como
uma vítima, ou mesmo me tratar com rispidez, me considerar burra
por não saber ou conhecer algumas coisas, depois de tantos anos
trancada sem sair de casa.
Ela me faz sentir uma pessoa comum… e realmente sua irmã.
Ajudo a descer Sol de Maria, enquanto ela carrega a cesta e
uma sacola enorme, além da toalha xadrez. Quando encontra uma
parte boa do gramado, onde pega sol, estende a toalha e nos
sentamos.
Sol só espera ser colocada no chão para começar a explorar
tudo com as mãozinhas curiosas e os passinhos errantes. E
Penélope deixa. Mesmo quando a menina cai, ela não salta
correndo desesperada para ajudar. Incentiva, com palavras de
otimismo e amor, que se levante e continue a tentar.
Meu cabelo, preso no rabo de cavalo, cai para frente. Ajeito de
volta no lugar.
— Ele é lindo — comenta ela.
Olho para as pontas desuniformes, e não sei por que, revelo:
— Tenho vontade de raspar tudo.
Penélope me olha profundamente como se compreendesse a
razão. Durante muitos anos, eles foram minha cortina. O que me
bloqueava de ver o rosto daquela gente. O que me escondia de
verem o meu. Tenho raiva do que me lembram, tenho um tipo de
apego pelo que é para mim.
— Meu primeiro impulso foi cortar o meu, também — conta ela.
— Mas depois pensei muito e percebi que se eu fosse cortar, seria
por um desejo meu. Não daria a eles o poder de me dizer o que
amar ou não em mim, sabe? Isso, pensar assim, me ajudou a gostar
inclusive do meu corpo.
Inspiro bem fundo. O sol, penetrando minha pele, traz uma
sensação tão gostosa de liberdade que consigo falar abertamente o
que me vem ao coração:
— Odeio tudo em mim, Penélope.
Por mais forte que ela demonstre ser, o apertar de lábios me
diz que sente muito. Não acho ruim que sinta pena, não ela. Não
alguém que compartilhou de tudo aquilo.
— Demorei a me amar, Am. Demorei muito. Não acontece do
dia para noite. Exige um trabalho mental quase desgastante. Mas
tenho certeza, irmã — pega minha mão —, que o mesmo
acontecerá com você. Acredite em mim: um dia, você olhará suas
marcas com orgulho de si mesma.
De repente, se levanta num pulo.
— E quer saber o que faremos até lá? — pergunta, animada
demais.
Encaro-a, confusa.
— Vamos tirar o atraso e viver tudo o que deixamos de viver!
Já brincou de batalha do sabão, irmã? Pois vai brincar agora! —
Apanha a sacola grande do chão e abre o zíper. — Escolha sua
arma, Am, e tente me pegar!
E assim, subitamente, duas pistolas pretas grandes estão
sendo retiradas da sacola, além de uma pequena e cor-de-rosa para
a menina.
— Você também, dona russazinha, pegue sua arma! —
Entrega a pistolinha à bebê, que grita eufórica.
Permaneço sentada, meio que sem reação.
E mal acredito quando Penélope pega uma pistola, aponta
para mim e atira.
Sou atingida por um golpe completamente inesperado de
espuma e bolhas coloridas. Impiedosamente, ela então atira na
própria filha! Sol de Maria ama, grita, tenta pegar as bolhas, se
diverte pra valer.
É assim que, sem sequer compreender como, me dou conta
de que estou envolvida em uma verdadeira guerra de espuma, com
direito a correr, se esconder atrás de árvore e tudo. Pessoas à
nossa volta nos observam como se fôssemos loucas, algumas até
riem junto. Penélope não se importa com mais ninguém além de nós
três. Estamos em um mundo só nosso, onde só existem Sol de
Maria, ela e eu.
Sou arrastada no tempo, volto a ser criança… e acho que…
acho que é um dos melhores dias da minha vida.

À noite, depois do jantar, subo para o quarto.


Na cama, encaro o teto avaliando tudo o que aconteceu desde
que acordei. No peito uma sensação diferente. Por hábito, vou
pegando a ponta dos meus dedos e contando um por um. Faço de
trás para frente também. Penso em minha avó, em quando vivíamos
em Astúrias. Durante muitos anos, lembrar dela era tudo o que me
restava. Trazia conforto.
Viro de lado.
Elliot não apareceu. Essa parte tenta suprimir toda a coisa boa
que aconteceu.
Acho que não gostou do que fiz. Deve estar querendo me
evitar. E se não vier mais?
Beijá-lo foi um erro.
Encolho-me um pouco na cama. Aquela sensação inquietante
tenta se aproximar de novo. Aliso meu pulso. Não queria mais fazer
isso.
Não consigo evitar.
ELLIOT

O filho da puta só pode estar de brincadeira. Sete horas,


malditas sete horas dirigindo para encontrar com esse desgraçado.
— Moscou está perigosa demais para você, Brejnev, por isso
me fez vir a essa maldita cidade?
Vladimir, pomposo com a ridícula gravata borboleta e
suspensórios, gargalha abrindo os braços assim que me vê
atravessar o galpão, no porto, até ele, como se eu fosse um velho
conhecido e não alguém querendo arrancar sua jugular.
— São Petersburgo tem um cheiro melhor, meu caro. Não
concorda?
Sem pressa, praticamente mandando o cara comer merda,
caminho até ele, sob a vigilância de seus caras armados colocados
em pontos estratégicos do lugar. Um imbecil previsível.
— Costumam acreditar que foi exatamente o que Pedro, O
Grande, disse quando roubou essa cidade dos suecos. — Dou de
ombros, displicente. — Acho que não teve nada a ver com isso aqui
ser uma cidade portuária com saída para o Mar Báltico. Nem no
caso dele, nem no seu, não é?
— Touché, Elliot! Me alertaram de que você é um cara
inteligente.
Meneio a cabeça, fingindo refletir.
— Não precisa ser inteligente para saber de seus negócios
sendo transportados de navio para cá. Basta ter ouvidos. — Inclino
a cabeça de lado e observo minha obra. — Vejo que seu nariz está
melhor — depois de eu afundá-lo com meu punho em nosso último
encontro.
As narinas do cara se abrem, noto também que aperta os
dentes, contendo a irritação.
— Você me pegou desprevenido.
— Por isso tratou de se cercar com toda essa segurança? —
Aponto ao redor, seus capangas a postos, prontos para me fuzilar.
— Um homem sábio erra uma vez só.
Debocho, com uma risada.
— E você é isso? Um homem sábio?
— Estamos aqui, não estamos? — refuta, lembrando-me que
minha presença aqui se deve a sua maldita chantagem.
Minhas têmporas estão latejando pra caralho. Não dormi na
noite anterior pensando sem parar no que rolou à beira daquele
lago, no que foi ter um vislumbre do céu puro e morno na boca da
menina doce e inocente. E nesse momento estou bem longe dela
para saber como se sente depois daquele beijo. Ou seja, estou sem
qualquer paciência para merdas hoje.
— Diga de uma vez o que quer, Brejnev. Se teve o trabalho de
ir atrás do meu irmão; tentar me ameaçar — aponto para seu
ferimento —, e nesse caso vimos que não foi uma boa ideia; para
depois me fazer dirigir setecentos quilômetros até aqui, acredito que
deva ser algo importante para você.
O sujeito de olhos mortos, dentes amarelados pelo tabaco, e
um bigode idiota, ajusta a gravata borboleta. Alguém deveria dizer a
ele o quanto parece um bobo da corte, em vez de um mafioso.
— Muito bem, meus passarinhos me disseram que gosta de ir
direto ao ponto.
— Seus passarinhos são pombas futriqueiras, pelo visto.
Enruga os lábios finos de lado, refletindo.
— É um ponto de vista. O importante é que são eficientes, não
acha? As informações que trouxeram me mostraram que você é o
cara certo.
Não gosto nada do sorriso cínico em sua boca. Sinto vontade
de arrancá-lo com meu punho.
— Ah, sou?
— Preciso de uma pessoa que tenha amigos poderosos, meu
caro. E esse é o seu caso.
— Amigos poderosos — repito, dando a ele a chance de fazer
algum sentido. — Para quê?
— Para conseguir o que preciso.
— Que é…?
— Um produto, digamos assim.
Corro um olhar dele para o galpão abarrotado de caixas
provavelmente recheadas de cocaína, óxi e todas as porcarias que
ele vende nas ruas.
— Não me meto com essas merdas e não tenho nenhum
contato que forneça. Perdeu seu tempo.
Os olhos de Vladimir acompanham os meus. Seu cabelo preto
penteado de lado mal se move sob as camadas de um tipo de cera
brilhante.
— Não estou falando disso, meu caro. Como pode
testemunhar, esse tipo de mercadoria não me falta.
— E está falando de quê? — Semicerro os olhos e o observo
melhor, não gostando nada da presunção em seu maldito rosto.
— Algo um pouco mais difícil de conseguir por aqui.
— Fale logo, porra.
Antes de abrir a boca de uma vez, percebo que hesita. Inferno,
deve ser algo realmente ruim para que um merda, sangue-frio como
ele, demonstre algum receio.
Vladimir levanta o queixo, imponente.
— Urânio.
Rá.
— Urânio — repito.
— Enriquecido.
— Urânio enriquecido — digo calmo e lento. — E pra quê
diabos você precis… — mas antes que eu conclua, a ficha
finalmente cai.
Esse filho da puta só pode estar de sacanagem!
É a minha vez de gargalhar, alto, mal acreditando nos meus
ouvidos. O som ressoa pelo galpão, criando ecos. A minha volta, os
homens de Brejnev se entreolham, tensos.
— Acho que você está consumindo essas drogas que vende. E
— levanto um dedo no ar, enfatizando o “e” — elas estão derretendo
seu cérebro, Vladimir.
Dissimulando confiança, o cara sorri com frieza. Mas, ao
apertar de volta a porra da gravata, demonstra que até ele sabe o
quanto esse pedido é a maior besteira que já disse.
— Não misturo negócios com diversão, Elliot.
— Só por curiosidade, onde acha que vai conseguir essa
merda? Porque, se sabe o que está me pedindo, deve saber
também que esse é um produto que não está disponível, menos
ainda para homens como você.
— Onde é algo que já está sendo resolvido. Preciso que
viabilize o restante.
— Com meus amigos poderosos — repito o que ele mesmo
disse há pouco.
Esse imbecil é um doente.
— Exatamente. — Vladimir vira as costas e vai até uma mesa
solitária, apanha uma garrafa de vodca. Serve-se. Bebe. Limpa a
boca e arremessa o copo no chão, estilhaçando o vidro: — À
Rússia!
Vira-se novamente para mim.
— E então, meu caro, posso contar com sua colaboração?
Cruzo os braços em frente ao peito. Minha vontade é mandar
esse imbecil logo à merda, mas há uma regra a seguir em
negociações como esta. Além do quê, quero entender o que diabos
o cara tem em mente caso, numa probabilidade mínima, consiga
colocar as mãos nesse material.
— Numa hipótese remota de eu te ajudar com isso, o que
exatamente está pensando em fazer? Qual é o plano?
O sorriso úmido cintila na boca estreita.
— Uma nova era, meu amigo. Vou construir uma nova era.
— Explodindo a anterior — debocho com escárnio.
— Sacrifícios necessários.
— Não acha que é um pouco extremo? Quero dizer, sei que
você tem inimigos, que muita gente te considera um rato traiçoeiro e
sem escrúpulos e está mais do que disposta a esmagar sua cabeça,
essa coisa toda. Mas você pretende o quê, mandar todo mundo
pelos ares?
Que lunático filho da puta tenta construir uma bomba nuclear,
porra?!
Conferindo as unhas desapaixonadamente, Vladimir encolhe
os ombros.
— Como eu disse, sacrifícios necessários.
Certo. Até aqui, subestimei a capacidade do cara de ser um
psicopata doentio. Mas a maneira como seus olhos apagados não
vacilam, com a possibilidade de causar um dano monumental como
este, me faz ficar um pouco mais alerta. Vladimir não está
brincando.
Por uma questão de sanar uma desconfiança, questiono:
— Quem vai te vender o urânio?
— Tenho meus contatos, também. Você só precisa me colocar
lá — diz, convencido. Não é um blefe.
No mundo inteiro, menos de uma dúzia de nações possuem
instalações para o processamento deste material. Armas nucleares
são um assunto delicado, por assim dizer. E se esse cara realmente
tem um fornecedor em mãos, só pode vir de um lugar:
— Irã.
Vladimir bate palminhas alegres e insanas.
— Bravo! Eu sabia, Elliot! Sabia que você era o cara!
— Por isso foi atrás da minha família? — rosno.
— Lamento, mas não é nada pessoal.
Sacudo a cabeça. Devo estar dormindo e isso aqui é um
sonho. Só pode.
— Esqueça.
— Tsc, tsc. Uma recusa não é um ato de um amigo.
— Não sou seu amigo. E se está achando que vou contribuir
com esse seu delírio, então é muito mais estúpido do que pensei.
Armas, ao menos duas dezenas delas, são apontadas em
minha direção.
— É perigoso ser um homem honesto, meu amigo, nunca te
disseram? — Vladimir sorri, fazendo um círculo com as mãos ao
nosso redor, uma demonstração de poder. Como se dissesse que,
sem mover um dedo, apenas com uma ordem sua, posso ser
transformado em uma peneira humana.
O problema é que já estive em situações muito piores, antes, e
somente uma das partes triunfou. Neste caso, eu.
Não é um estereótipo de gângster que me impressionará.
— Vladimir, ouça o que vou te dizer, e ouça com atenção: em
primeiro lugar, essas suas frases de efeito roubadas de filmes
americanos são patéticas, aposto que é o que todo mundo aqui
também pensa. — O rosto do cara avermelha, ira cria sombras nos
sucos de sua pele. Continuo: — E é óbvio que não vou mover um
dedo para te ajudar nessa sua empreitada de merda. Aliás, se quer
mesmo a minha opinião, você mal sabe o que fazer com um
Winchester[27] sozinho, sem seus capangas, que dirá com uma
maldita bomba nuclear. Tire sua cabeça de dentro da bunda e volte
para a realidade, ok?
Ajeitando a coluna, numa postura rígida, o sorriso insano dá
lugar a uma seriedade quase sóbria.
— Você se esquece que a escolha de trabalhar para mim não
é sua, Elliot.
— Claro, claro. Armou para o meu irmão, um garoto burro, e
pensa em me chantagear com isso. Faça o seguinte: dê um fim no
bostinha por mim. Ele só me causa problemas, e já me cansei —
blefo.
Com uma serenidade que não gosto nada, nada, o sujeito à
minha frente sacode a cabeça.
— Não, não é o garoto que irá arcar com as consequências de
sua, digamos assim, inflexibilidade.
Meus músculos retesam, instantaneamente. Ainda assim,
consigo ser calmo e frio.
— Ah, não?
— Tsc, tsc. — Dentes amarelados vão aparecendo, um a um.
— Recebi relatos recentes de que há uma nova aquisição à famíl…
Antes que ele termine, já estou com sua jugular sob meus
dedos rígidos. Vou esmagar a garganta desse filho da puta.
Arrancar sua língua com minhas próprias mãos, porra!
Aperto tão forte que vermelho vivo sobe e vai ganhando
centímetro a centímetro do rosto do desgraçado, até os olhos
arregalarem.
Pistolas são engatilhadas contra mim, mas foda-se, vou acabar
com a vida dele aqui e agora, nem que essa seja a última coisa que
eu faça.
Ciente de que a qualquer minuto disparos, centenas deles, me
rasgarão, esmago a traqueia com mais potência, fazendo questão
de encarar as esferas saltando das órbitas, o completo e vazio
fundo delas. E basta isso para, porra!, para me devolver uma carga
inescrutável de racionalidade e me fazer congelar meu aperto quase
que imediatamente, a partir do que enxergo na mente do
desgraçado.
Duas verdades esmagadoras.
A primeira delas é que independente do que aconteça com
qualquer um de nós aqui e agora, esse plano de explodir e devastar
milhares de vidas inocentes é real e está em curso. Há mais gente
nisto.
E a segunda, a que mais me fode, e que me faz ceder o aperto
de meus dedos em sua glote, é que Vladimir Brejnev acaba de
retirar uma informação vital de mim também. Ele agora sabe que
Amália é muito mais do que meramente a mulher que tem meu peito
em suas mãos: ela é o que há de mais precioso e raro no mundo.
Algo único. A ganância que traz pela primeira vez um brilho de
vivacidade em seu olhar vazio me avisa que ele irá atrás dela. Com
ou seu mim em seu caminho.
Preciso estar vivo, bem vivo, para impedi-lo.
Não me cabe outra escolha que não a de aceitar essa
missão… enquanto planejo a melhor forma de acabar com esse
desgraçado de uma vez por todas.
— Espero que saiba o que está fazendo, Vladimir. — Solto o
saco de merda tossindo e me afasto sem olhar para trás. Ele venceu
essa, e sabe que sim.
Do lado de fora do galpão, surpreende-me encontrar um cara
recostado à minha caminhonete, tranquilo até demais, sorrindo
como se estivesse à minha espera.
Yuri Brejnev, o segundo na linha de sucessão no comando dos
negócios da família. Sobrinho de Vladimir.
— Precisamos conversar.
— E, pelo visto, seu tio não pode saber, não é? — refuto com
cinismo.
AMÁLIA

É madrugada. Ouço passos no corredor. Estão se


aproximando. Sinto meu coração acelerar. Sei que não é real, mas
ao mesmo tempo, não sei. Se eu fechar os olhos, vou descobrir que
é um sonho?
O coração dispara.
Saiam da minha cabeça, saiam da minha cabeça!
Uma batida suave na porta entreaberta.
— Posso entrar, Am? — Penélope surge no vão estreito.
Meu Deus, obrigada, obrigada. Não é real.
Ela se senta comigo no chão do quarto, mas não diz nada por
algum tempo. Tapo o rosto com as mãos. Estou louca. Sou louca.
Eles me enlouqueceram.
— Desculpe se fiz algum barulho que a acordou…
— Não fez. Estou sem sono. E você, também não consegue
dormir? — pergunta, suavemente.
Aperto os lábios. Mas revelo, quase sem voz:
— Não consigo respirar.
— Ah, Am… sinto muito. — Braços quentes me envolvem num
abraço no chão. — Sinto muito que tenha passado por tudo aquilo.
Você não sabe o quanto eu sinto…
— Não é culpa sua.
— Em parte, é sim. Se eu tivesse… se eu tivesse denunciado
quando fugi… fui uma covarde. — A derrota na admissão exibe
tanta carga que me entristece saber que pensa isso.
Penélope não é covarde. É forte. É alegre. Tudo o que não
consigo ser. Não é justo que alguém bom carregue a culpa por
pessoas más.
— Também não denunciei. Tive medo. Ainda tenho. — Encaro
nossas silhuetas no tapete, duas sombras que partilham as mesmas
memórias. Com vergonha do que há em meu coração, mesmo
assim, decido falar: — Gostaria de pensar que estão queimando no
inferno agora…
Odeio dizer isso. Odeio em que isso me transforma.
Penélope se afasta para observar meu rosto iluminado pela
fresta de luz que vem do corredor.
— E estão, pode apostar que estão, Amália. — Segura
minhas mãos. — Se eu pudesse, teria ateado fogo naquela casa, eu
mesma. Mas nós vencemos. Vencemos. Quer saber qual é a pior
coisa para eles? Estarmos aqui, juntas, como uma família de
verdade. Eu te amo, saiba disso.
Algo transborda dentro de mim, algo bom, capaz de aquecer, e
se transforma numa lágrima que desliza por minha bochecha.
— Também te amo, Loupe — chamo-a pelo apelido que toda
sua família a chama, e que Penélope já me pediu que usasse.
É a primeira vez que digo isso a alguém. Gostaria de ter dito à
minha abuela também. Se eu pudesse voltar ao passado, teria dito
todos os dias.
Não sei quanto tempo se passa enquanto permanecemos no
chão. Acho que até cochilamos sentadas no tapete, juntas, ombro
no ombro. Deve ser o mais perto que já estive de ter uma irmã.
Pela manhã bem cedo, entro na cozinha e encontro vovó
Zhena sozinha. Enche uma chaleira e a coloca sobre o fogão aceso.
Ao se virar e me ver, sorri com verdade. Está feliz em me ver. E vai
logo tateando o bolso do avental, atrás do celular.
Mas não o utiliza, ao dizer:
— Boa dia, chica! — A pronúncia forte e levemente errada me
faz sorrir também de gratidão por saber que andou treinando
espanhol.
Peço seu celular, estendendo a mão. Ela compreende minha
intenção e coloca na página do tradutor.
“Bom dia, vovó. Quer ajuda?”
É muito legal ver sua reação encantada.
“Pode me ajudar quebrando os ovos”.
E vai me mostrando quantos e onde colocá-los. Gostaria de
poder dobrar as mangas da camiseta, mas se eu puxar para cima,
ela verá as marcas. Saberá o que faço. O que fiz ontem mesmo.
Vovó me surpreende ao me circular e amarrar um avental em
minha cintura.
Não quero que pense que sou mal-educada. Dobro um
pedacinho das mangas. Mas não tenho coragem de olhar para seu
rosto e saber se vê os cortes. Vou fazendo a tarefa que me
destinou, de cabeça baixa.
A campainha soa vindo da frente da casa. Vovó Zhena faz
mímicas para a garrafa de leite sobre a mesa. Acho que quer dizer
que é o leiteiro para fazer a entrega. Sorrio e continuo quebrando a
dúzia de ovos. A paz que a atividade simples me proporciona é
inesperada. Gostaria de poder me comunicar de verdade com eles,
sem precisar de tradutor de celular. Se eu for ficar aqui, na Rússia,
tenho que aprender o idioma.
Quero ficar nesse país para sempre? A questão ainda não
havia me ocorrido.
Só que não há nada para mim em nenhum outro lugar no
mundo, a verdade é essa.
— Olá, Amália…
Essa voz. Ela me tira do labirinto que são meus pensamentos.
Giro a cabeça depressa para a porta.
Elliot, ele está aqui.

Elliot
As marcas arroxeadas debaixo dos olhos cinzas que se
arregalam ao som de minha voz denunciam que não dormiu à noite.
O receio e certa mágoa que vejo refletidos nas esferas magníficas
dizem que está chateada comigo. Mas o que me abala de verdade é
descer o olhar por toda ela, num escrutínio rápido, e encontrar as
malditas marcas.
Ela trouxe as porcarias com ela. De tudo o que poderia pôr na
mochila, Amália decidiu não deixar as lâminas para trás.
— Bom dia. — Visto uma máscara plácida, que esconde o
quanto a automutilação me incomoda, e entro na cozinha.
— Oi, Elliot — ela resmunga, a atenção volta para a tigela
sobre a mesa.
— Soube que teve um dia diferente, ontem… — comento,
puxando uma banqueta e me sentando de frente para ela.
Mal acreditei quando recebi o vídeo que Ed me enviou. Amália,
numa versão nova, destituída de toda a carga que a cerca, correndo
descalça pelo gramado, ensaboada, parecendo uma criança. Vi e
revi aqueles dois minutos de gravação mais vezes do que sou capaz
de admitir. E me peguei sorrindo também.
Sabia que isso daria certo. Que estar próxima de Penélope e
dessa família faria bem a ela.
— Fomos ao parque — ela comenta. E só.
Faço um beicinho de “entendi”. Não é impressão minha,
Amália está mesmo chateada comigo.
— Quer me dizer alguma coisa? — desafio, suavemente.
Ela sacode a cabeça, informando que não. Mas a ponta do
nariz avermelhando, ah, isso a denuncia.
— Pode, por favor, colocar mais dois ovos. Vou ficar para o
café.
— Como sabe o que ela vai fazer? — pergunta, sem me
encarar uma única vez.
— Panquecas. Venho sempre a essa hora para pegar as
primeiras.
Assisto seus ombros caírem, como um balão que murcha.
— Então é por isso que veio…
— Não. Vim para ver você — sou direto ao admitir. Arqueio a
sobrancelha, à espera de que me olhe.
E não erro. O calor está de volta à íris.
Porra, que vontade de puxar essa menina pela mão e a
abraçar. Que vontade de mergulhar o nariz na curva de seu pescoço
e absorver diretamente da pele o cheiro suave que sinto dela toda
vez que me aproximo. É difícil controlar as mãos. Controlar as
marteladas implacáveis bem no meio do meu peito.
— Ontem eu tive um imprevisto que me segurou por tempo
demais fora da cidade. Cheguei agora pouco, para ser franco.
— Algo ruim? — pergunta com uma preocupação tocante pra
caralho.
É ruim, sim. Mas não para mim. Brejnev mal sabe que está
prestes a cair na própria armadilha, em alguns dias.
— Nada com que deva se preocupar — tranquilizo. Desço
então meu olhar de volta ao seu pulso. — E quanto a você?
Ela sabe a que me refiro, pois esconde os braços, devolvendo
as mangas ao lugar.
— Nada com que deva se preocupar.
Uma ova que não.
— Saavedra está na Rússia — falo de uma vez, enquanto
ainda temos a privacidade da cozinha só para nós. Dona Zhena é
uma aliada e tanto nestas horas.
A notícia a surpreende. As sobrancelhas sobem, expressivas.
— Pedi que viesse — revelo.
— Obrigada, eu acho…
Sem poder evitar, apanho seu pulso com gentileza e esfrego
meu polegar por cima do corte recém-feito.
— Se você ainda precisa disto para se sentir bem, acho
importante que converse com ela, Amália.
Rapidamente, recolhe o braço. Permito.
— Quer dar um passeio, depois do café?
Gosto de como assente e parece feliz nisto. De como o rosto
ganha cor, diferente da palidez de quando a vi há pouco. Gosto
dessa menina, a verdade é essa. Poderia ficar aqui, em uma
cozinha, conversando amenidades com Amália pelo resto de minha
vida, e estaria bem.
Essa visão de futuro perturba, assusta pra diabo. Amália tem
vinte anos, quase a metade da minha idade. Sou velho demais,
vivido demais, fodido demais, para ela.
Zhena, tia Merian e o jardineiro escolhem esse momento para
invadir a cozinha. Em pouco tempo, Penélope e a bebê falante
também entram, seguidas do cara que, numa troca de olhar comigo,
diz tudo o que preciso saber. Jurgen, nosso contato da Interpol – e
que durante muito tempo nos chantageou para trabalharmos para
ele a seu bel-prazer – está dentro.
A ideia do maldito Brejnev de vir atrás de mim vai sair muito
mais cara do que pensa. Em vez de contrabandear para ele,
entregarei sua cabeça numa bandeja.
Só um doente como Vladimir poderia acreditar que eu, ou
qualquer pessoa inteligente o bastante e com os contatos certos,
confiaria em suas mãos um grama que seja de urânio enriquecido
contrabandeado de algum governante lunático por aí.
Uma bomba nuclear vai explodir em seu rabo, antes que o
imbecil tenha acesso aos componentes para produzir uma.
Depois do café, saio com Amália pela porta da frente. Pretendo
levá-la a alguns lugares, conhecer a cidade, agora que tenho
certeza de que é seguro, enquanto Brejnev pensa que vou trabalhar
para ele.
— Elliot. — Ela se vira para mim, assim que abro a porta da
caminhonete.
Encaro-a intensamente, mas não consigo me impedir de fitar
sua boca antes. Lábios presos entre os dentes.
— Sim, Amália.
— Sobre o que eu fiz…
— O que você fez? — indago com falsa ingenuidade.
— Sobre o beijo — explica, bochechas coradas, linda.
— O que tem ele? — Estou forçando aqui, eu sei. Só que não
consigo evitar. Posso não ser um corrompedor de garotas jovens e
inocentes, porém tampouco sou um santo.
— Gostaria de me desculpar — diz, corajosamente, depois de
hesitar por um instante.
Quero rir. Quero segurar seu rosto e repetir tudo.
— Por ter me beijado? — Levanto a sobrancelha, levemente
zombeteiro.
— Por ter fantasiado com você. — Sobe os olhos e encara os
meus diretamente. — Prometo que vou tentar tirar isso da minha
cabeça.
Maldição.
Sinto o ar a nossa volta um pouco mais denso de
repente, dilata minhas narinas na passagem abrupta. Meu peito,
maldito, sobe e desce profundamente. Há limites que um homem
consegue suportar. O meu, é esse. Essa garota inocente dizendo
que pensa em mim.
— Honestamente, espero que consiga, Amália. Confesso que
tenho tentado te tirar da minha há algum tempo, e é difícil pra
caralho.
É uma tremenda estupidez admitir isso para ela. Jogar em seu
colo que, de alguma forma deslocada, a garota está se enraizando
em mim. É errado sentir esse tipo de coisa. Amália é minha
protegida, é assim que as coisas precisam ser. Encaro seu rosto,
abaixo do meu, atrás de uma reação à minha confissão. Mas em
vez da repulsa, ou medo, o que ouviu a faz me fitar de um jeito
esquisito, parecendo me olhar, olhar de verdade, e enxergar tudo o
que escondo do mundo. Pior, é como se a menina apreciasse o que
vê.
E meu maldito corpo reage a ela.
Sinto na ponta da língua um sabor familiar completamente fora
de hora. Aquela necessidade pulsante de percorrer sua boca, provar
o sabor doce da geleia de amoras em suas panquecas diretamente
dela. Tão forte que penetra minha pele, ossos, veias e se mistura ao
sangue.
Tanto para quebrar o que quer que esteja prestes a acontecer,
quanto para livrá-la do vento frio da manhã, abro a porta do
passageiro de minha caminhonete.
— Por favor, entre, Amália.
Sem tirar os olhos claros dos meus, ela assente. Mas não se
mexe.
Abaixo a cabeça um pouco mais perto da dela.
— Tente não pensar tanto — peço, baixo, voz enrouquecida
por essa coisa que pulsa e circunda e me atrai com tanta força para
ela.
Com qualquer outra, o pedido seria apenas um flerte leve,
nada além disso. Mas com ela, com essa garota que sente tudo tão
intensamente, é um pedido honesto. Há coisas em que não
devemos pensar, é preciso simplesmente deixar de lado e ignorar
tanto quanto possível.
— Não consigo — admite honesta demais.
Um meio-sorriso rasga minha boca.
— Eu sei. Mas vamos fazer assim: hoje vou levá-la por aí,
conhecer a cidade, e vamos apenas curtir, o que acha?
Colocando uma mecha do cabelo grosso detrás da orelha, ela
concorda com um aceno.
Linda demais.
Meio que sacudo a cabeça, exigindo de mim mesmo que
cumpra o que proponho.
— Ótimo. Por favor, senhorita… — Faço um floreio de mão
para que entre.
Ajudo-a com o cinto de segurança, ao mesmo tempo que
ignoro seu olhar em mim, acompanhando cada passo. Antes de ligar
o motor, peço que abra o porta-luvas e retire a caixa pequena ali.
— É um celular com uma linha local — explico. — Seu número
estava fora de área ontem, quando tentei ligar.
— Ah… — Os lábios se separam, como quem não esperava
pela informação. — Nossa, me desculpe.
— Pelo quê? — Finjo a boa e velha ignorância.
— Por pensar que você… que você… enfim.
Como eu imaginei.
— Jamais vou deixar de estar presente novamente, Amália —
digo bem sério, fitando-a intensamente. — Fiz errado no passado,
mas aprendi a lição.
Ela aperta os lábios, daquele jeito desconcertado.
— Você tem sua vida, Elliot. Eu entendo se precisar… você
sabe… se afastar. — Desvia o olhar do meu para o zíper de minha
jaqueta.
— Só se for um caso de vida ou morte. E mesmo assim, eu te
deixarei saber. Combinado?
Nunca falei mais sério antes.
Sei o que Saavedra provavelmente vai pensar disso, minha
intenção aqui não é causar a dependência dela em mim, mas fazê-
la saber que sou e sempre serei um local seguro, enquanto Amália
precisar.
Por falar em Saavedra…
— Saavedra está organizando um espaço em seu novo
apartamento para receber você, Amália.
A garota esconde as mãos sob as mangas da blusa.
— Não pensei que ela viria por mim.
— Veio. Ela se importa. Será bom conversar. — Tomo o pulso
delicadamente outra vez. — Isso… — percorro o dedo sobre o
rasgo na pele — precisa parar.
Noto que hesita, que não gosta de ser confrontada a respeito.
Mas resiste e não puxa o pulso de meu domínio.
— Não consigo — admite, envergonhada.
— Imagino que seja assim, mas diga isso a ela, vamos tentar
encontrar outro jeito de desopilar. — Porra, quero tanto que essa
merda pare.
Amália aperta os lábios.
— Lá no apartamento, na Espanha, você me disse que fazia
de outra forma. Como?
Concordo com a cabeça. Sim, eu disse. Só não revelo que
minha maneira de desobstruir envolvia uma trepada suja com
alguma desconhecida até que aquela sensação sombria, que
fervilhava constantemente dentro de mim, me desse algum
descanso. Isto até eu conhecer Amália. Depois dela, algo mudou.
Vasculho minha cabeça atrás de uma resposta adequada. Algo
que, de fato, ajude. A pesquisa na internet que fiz naquela noite me
vem à mente. Incentive tratamento; esteja perto; ouça; acolha;
incentive a prática de atividades físicas e prazerosas; saiba o
momento de apoiar e o momento de dar espaço.
Incentive a prática de atividades físicas.
— Socando alguma coisa — respondo de pronto.
É isso. Sebastian deu aulas de defesa pessoal à Penélope.
Posso fazer o mesmo. Toda mulher, aliás, deveria aprender uma
técnica ou duas de como se defender de algum desgraçado com
más intenções.
Como foi que não cogitei isto antes?
— Se quiser tentar, podemos começar ainda hoje. Você ficará
surpresa com o quanto ajuda.
Dúvida cintila em seus poros, misturada a algo mais forte. E é
nesse algo que me apego para insistir. Passei a conhecer demais
essa menina para saber o que quer, pensa, gosta.
Encaro-a profundamente.
— Não perderá nada tentando, Amália.
A partir da respiração longa que exala, acho que posso afirmar
que temos uma mudança nos planos para o dia.
— Está bem…
Quero rir. Merda, quero agarrar seu rosto e beijá-la até que
implore por fôlego.
— Legal.
Antes de dar partida, tamborilo brevemente os dedos no
volante, pensando na garagem de Bola, e todo o equipamento que
mantemos por lá. Mas não sei, não. O cara deve estar treinando, a
uma hora destas. Colocou na cabeça que vai emagrecer de todo
jeito. Não sei se a menina se sentiria confortável com a presença
dele.
A segunda alternativa de lugar que me ocorre, essa não cai
bem em meu estômago. Talvez não seja apropriado. Não, com
certeza não é apropriado… Mas não consigo pensar em um local
melhor.
— Vou levá-la ao meu apartamento, tenho um pequeno estúdio
de treino lá. — Minha voz parece encrostada de algo denso
escorregando pelas paredes da garganta.
Como ela não diz nada, sou eu a questionar.
— Tudo bem para você?
ELLIOT

— Quer tirar a blusa?


Sugiro enquanto penduro minha jaqueta sobre um gancho na
parede no quarto reservado ao treino e fico somente com a
camiseta de mangas compridas, dando a ela espaço para que se
ambiente ao lugar. A calefação ligada regula a temperatura e
descarta a necessidade do agasalho.
Amália ainda está próxima à porta, silenciosa, sem dar
qualquer pista do que está pensando. Mas passei a conhecer a
menina o bastante para sacar a ansiedade que a faz beliscar o
cotovelo, o modo como os lábios ressecados pelo frio lá fora se
apertam.
— Está tudo bem?
— Hm.
Bufo uma risada suave.
— Qual o problema, Amália?
— Nunca fiz isso… quer dizer, soquei alguma coisa. — Aponta
para o saco.
Meu sorriso aumenta.
— Vai gostar. Daqui a pouco, estará querendo socar a cara de
um ou dois, por aí.
O objetivo de arrancar a expressão nervosa em seu rosto é
cumprido com louvor.
— Há alguma música de que goste? — pergunto.
Ela dá de ombros. Não há. Outra coisa da qual aqueles
malditos a privaram.
— Vou colocar o que escuto, quando estou aqui. Se for
demais, ou não gostar, me deixe saber, ok?
Puxo o celular e conecto uma playlist ao sistema de som do
apartamento. Os acordes da primeira música passam a preencher
cada pequeno espaço à nossa volta, Muse - Time Is Running Out.
Não alto, mas de algum modo suficiente para que apenas as batidas
do rock ocupem a mente dela enquanto seu corpo estiver em
movimento.
Amália então retira o casaco. Fica somente com uma camiseta
estampada de segunda mão. Percorro um olhar pelos braços finos,
pálidos, marcados. Sob o monte de cicatrizes em seu pulso, ainda
há vestígios da maldita tatuagem rudimentar que o desgraçado fez
nela, marcando-a com o nome do filho da puta.
Pego de uma gaveta um rolo de faixa.
Devagar, caminho para o meio do cômodo, para o saco de
areia pendurado no teto, e a convido para que se aproxime.
Amália vem. Hesitante, mas vem.
— Estenda as mãos — peço, mostrando a faixa e deixando
evidente minha intenção.
Mãos magras de dedos finos se entendem para mim. Antes de
enfaixá-los, seguro-os em minha palma um pouco além do que seria
bom.
— Sua mão é delicada.
Suavemente, ela retribui o contato, desliza a dela pela minha,
áspera, deformada por calos, e principalmente pela marca profunda
de uma cicatriz de quando eu ainda era garoto.
— Como aconteceu?
Observo a mistura de nossas mãos unidas, ao responder:
— Nada de mais. Sou feito delas.
— Cicatrizes?
— Да.
— Dói?
Bufo baixinho, com um sorriso de lado.
— Não. Foi há muito tempo.
De alguma forma, de repente lá estamos nós outra vez. Ela,
rosto inclinado para cima, me encarando tão profundamente que
penso ser possível enxergar meus segredos mais sombrios… e
eu… eu estou bebendo das esferas de diamantes, carregadas com
o que não deveria ser destinado a pessoas como eu. Tão linda que
consegue arrancar o fôlego de dentro do meu peito.
Preciso recuar para quebrar essa coisa acontecendo enquanto
ainda consigo.
— Nosso objetivo é usar isto — seguro seus punhos — para
esvaziar isto. — Toco um dedo suavemente em sua têmpora.
Ela fecha os olhos por um breve momento e aspira com toda a
capacidade.
— Que bom. Estou tão cansada do que há aqui dentro.
A revelação, humilde, destituída de orgulho, faz meu peito
comprimir de um jeito quase impossível. Com a voz enrouquecida,
consigo dizer:
— Logo você a dominará, acredite, sou versado nisto.
Meticulosamente, passo a enfaixar cada uma de suas mãos.
Normalmente não uso faixas nas minhas, mas nas dela é preciso.
Quero evitar que se machuque no processo.
Amália apenas me observa trabalhar, quieta. Discretamente,
absorvo o cheiro gostoso que vem de seu cabelo preso, algo com
um toque refrescante. Trinco os dentes ao pensar em como seria
aspirar diretamente de sua pele, naquele ponto abaixo de sua
orelha, quente, onde a veia pulsa com calor e vida.
— Pronta? — O tom grave, baixo demais, em minha voz por
muito pouco não denuncia o pensamento errado.
Ela assente.
— Ótimo. Separe um pouco suas pernas, socar também tem a
ver com equilíbrio. Com seu centro de gravidade em contato com o
chão.
— Assim?
— Um pouco mais.
Ela as separa, colocando uma distância de uns quarenta
centímetros entre um pé e outro.
— Deixei seus polegares de fora, percebeu?
Amália observa as mãos enfaixadas.
— Esta é a posição em que você o manterá. — Envolvo sua
mão fechada e ajeito o polegar por cima das articulações. — E
agora… — Seguro o saco de quinze quilos, que pendurei
especialmente para ela no teto, me colocando ao lado dele e
liberando o caminho. — Sinta. Experimente sua força nele, devagar.
Ela olha de mim para o saco de treino, e depois para mim
novamente, como se não soubesse o que fazer.
— Bata de leve — incentivo.
De um jeito desengonçado, quase sem força, vem o primeiro
contato dos nós de seus dedos contra o couro. Braço reto demais.
— Dobre um pouquinho o cotovelo e faça outra vez.
E ela repete, e repete, passo a passo quebrando o embaraço,
a timidez. Um golpe um pouco mais firme que o outro. Não sei se
nota quando me afasto. Ou quando vou até o canto, mas o faço,
pego um saco ainda maior, de trinta quilos, o penduro no outro
extremo e passo a também me exercitar nele, tanto porque quero
dar a ela privacidade, quanto porque preciso pôr para fora essa
energia que me agita como um trem desgovernado quando estou
com ela.
Pelo canto do olho, a espreito puxar o rabo de cavalo com
força, domando os fios de volta ao lugar. Bochechas coradas de um
jeito que nunca vi, e diabos, de alguma maneira, consegue a deixar
ainda mais bonita.
Ao som de batidas pesadas de rock, lanço golpes de braços e
pernas em meu saco, um atrás do outro, até que minha mente mude
o foco. Suor escorre por minhas costas, braços, gruda a camiseta
de manga comprida na pele. Se eu estivesse sozinho, arrancaria o
trapo úmido. Mas não com ela aqui.
Sei quando Amália chega ao seu nível de exaustão a partir de
como o peito sobe e desce com respirações aceleradas. Por hoje,
acho que temos o bastante. Diminuo o meu ritmo também até parar.
— E então? — Deslizo o antebraço pela umidade em minha
testa. — Como foi?
Amália praticamente cai sentada no chão.
— Isso é… isso é… minha nossa.
Jesus; gargalho alto, completamente revigorado, coberto por
uma energia impossível de descrever. Me lanço para o chão ao seu
lado.
— É viciante, não é? — Encaro aquela luz potente em seus
olhos, aquela que mostra quanta vida há pulsando ali dentro.
Quanta energia para gastar como bem quiser, porque o mundo se
curvaria facilmente aos seus pés, se ela desejasse.
— Se quiser, podemos repetir mais vezes.
Seu assentir, como se dissesse mais para si mesma do que
para mim que sim, esse é um bom caminho, é tudo o que eu
esperava. Levanto do chão.
— Sabe o que precisamos agora? — Estendo a mão para ela.
— Repor o que gastamos. Vem, vamos comer alguma coisa.
Amália aceita o toque tão naturalmente que impressiona. É
como se confiasse integralmente em mim.
Desenfaixo cuidadosamente suas mãos, assistindo novamente
de perto. Ela flexiona os dedos, observando-os por um breve
instante.
— Elliot… — diz em voz baixa, naquele timbre melodioso e
profundo que me marcou desde que a ouvi no caminho para a
clínica, há mais de um ano.
— Sim, Amália? — Encaro-a completamente detido.
— É a primeira vez que… que não sinto nada. Obrigada.
O ar que abandona minhas narinas vem dilatando, rasgando,
carregado de um orgulho fodido.
— Que bom. Que bom, malyshka.
Estamos tão próximos que bastaria um inclinar de cabeça para
que eu apenas roçasse seus lábios, e ela parece saber disto. Saber
que a necessidade queima e expurga de mim. Tanto que tenho a
maldita sensação de que a garota também se aproxima mais, quase
nas pontas dos pés.
Um dia você vai querer alguém tão forte, que essa merda será
tudo o que conseguirá sentir… as palavras de Gael, na madrugada
em que destruiu seu escritório no Brasil, depois do rompimento com
Priscila, vem com toda a força. Na época, não compreendi o que
movia um cara como ele a se reduzir àquilo. Hoje, eu sei.
Sei que Amália, seu olhar quebrado e sua alma pura têm esse
poder sobre mim. De ser tudo.
— Vamos te alimentar.
— Ela parece diferente — comenta Sebastian, ao entrar na
caminhonete.
— É, eu sei… — Continuo olhando para a porta da frente da
casa do cara, por onde a menina sumiu há alguns minutos sorrindo,
leve. Quanto mais tempo passo ao lado dela, mais difícil fica lidar
com esse sentimento que mal me possibilita pensar. Essa maldita
vontade de não fazer outra coisa na vida, além de servi-la.
— E então, está mesmo decidido?
Encaro o cara.
— Se seu amigo na Interpol — ironizo a palavra “amigo” com
certo amargor. Jurgen é tudo, menos um amigo — acha que o
melhor caminho é pegar Brejnev em flagrante, não vejo outra saída,
você vê?
— Não.
— Eu, ao contrário de vocês, vejo perfeitamente — diz Ed, do
banco de trás, em tom prático. — Entregamos Vladimir ao Serguei,
o concorrente direto dele nas ruas, e esquecemos essa merda de
nos meter em mais problemas.
— Serguei quer a cabeça do Vladimir há muito tempo —
concorda Bola. — O cara nem precisa de pretexto.
— E aí essa cidade virará um verdadeiro inferno — refuta
Sebastian. — Serguei é um filho da puta sociopata, já pensou no
que fará se tiver o domínio completo de toda a porcaria que esses
drogados consomem nas ruas? Armas, propinas.
— O equilíbrio natural das coisas por aqui exige que haja
concorrência entre eles… — concordo com Sebastian.
— E o que acham que acontecerá se Vladimir cair? A paz
reinará e todos viverão felizes para sempre? — Ed bufa, irônico. —
Serguei pegará o domínio completo das ruas de qualquer jeito assim
que o desgraçado estiver fora do caminho.
Troco um olhar com Sebastian, um que diz que já
conjecturamos as possibilidades, então viro a cabeça por cima do
ombro para encarar os caras no banco de trás.
— É por isso que faremos um acordo com Yuri Brejnev.
— O sobrinho do Vladimir? — Bola assovia, sacudindo a
cabeça. — Que ideia ruim da porra.
— É, é uma merda, mas o único jeito de tirar Vladimir do
caminho sem dar um império de poder nas mãos de Serguei. Yuri
não quer saber dessa nova merda em que Vladimir está se
metendo. Ele só quer continuar com os negócios.
— Vocês só podem estar malucos… — Ed diz.
— Alguma novidade nisto? — Dou a ele um sorriso de merda,
do tipo que aceita a carapuça.
O cara revira os olhos, me chamando de idiota. Mas não se
esquiva.
— E qual é o plano?
Inspiro profundamente, voltando a fitar a porta da frente da
casa. Será foda ficar longe dela, muito foda.
— Em alguns dias, colocarei Vladimir em território iraniano.
Quando ele e o atravessador estiverem fazendo a troca, avisarei
Jurgen.
— É um plano bem idiota, sabia? — Ed aponta o óbvio.
— Com certeza é — concordo.
— Você é um bastardo, Elliot. Um maldito bastardo. — Ed ri. —
Tudo bem, vou deixar minha mala de prontidão.
Comprimo a mandíbula por um instante para a próxima
informação que terei de dar. Sei que ninguém aqui aprovará, mas é
o que é.
— Não, irmão. Desta vez vou sozinho…
Sebastian semicerra os olhos escurecidos sobre mim, não
esperava por essa. Bola inclina a cabeça de lado, como se não
tivesse escutado direito. E Ed, o filho da puta ri, como quem ouve
uma piada ruim.
— Nem fodendo. Esqueça.
Encaro Ed, encaro todos eles. Um pedido de irmão para irmão.
— Preciso que fiquem aqui e cuidem de tudo em minha
ausência. Principalmente dela.
ELLIOT

— Sabe, eu… eu estive pensando em fazer aulas de russo…


— Amália revela, assim que entra em meu carro.
Paro meu trabalho de envolvê-la com o cinto – um que ela
pode perfeitamente bem fazer sozinha, mas, como o desgraçado
que sou, me dou esse pequeno momento de prazer de estar tão
perto que seu cheiro se enraíza dentro de mim. Subo o rosto em
busca do olhar de esferas que rivalizam em sobriedade com o cinza
do céu nublado.
— Você quer aprender minha língua?
Aperta os lábios antes de murmurar um “aham” inseguro.
— É pela babushka — explica, meio sem graça. — Vó Zhena
me pediu para chamar ela assim. Todas as manhãs, ela me espera
com o celular nas mãos para traduzir alguma coisa que quer me
dizer. Hoje, me levou à estufa e mostrou o que cultiva lá, tudo
traduzido. Deu trabalho para ela, sabe? Quero poder compreender o
que fala e me comunicar também.
Assinto, por dentro vibrando com mais esse passo. A menina
tem se saído muito bem aqui, como imaginei que aconteceria desde
que recebeu alta da clínica. Maldito seja eu por não a ter trazido à
Rússia antes. Outra conta que Saavedra e Cassandra me devem.
— É legal de sua parte, Amália.
Ela encolhe os ombros.
— Eles têm sido legais comigo desde que cheguei, Elliot.
— É porque te amam — afirmo com a convicção de que não
existe verdade maior.
Noto que suga uma grande respiração e muda seu olhar para
longe, para a casa de Penélope, meditativa.
— Desde muito tempo, é a primeira vez que sinto isso… o
amor.
Meus punhos se fecham num aperto em torno da fivela do
cinto, como que por reflexo. É difícil engolir que ela ficou tantos anos
naquela vida fodida.
— Acostume-se — afirmo e sustento o brilho de algo muito
parecido com esperança que capto em seu olhar quando volta para
mim. — Você merece o melhor, Amália. No que depender de mim e
deles, daqui para frente terá.
A menina inspira fundo, absorvendo. Então exala devagar pela
boca, digerindo o significado de ter pessoas que se importam de
verdade.
Tão perto como estou, aspiro quase que diretamente o ar de
seus lábios semiabertos.
— Isso tudo é como um sonho — diz baixinho.
Sem poder evitar, deixo minha testa encontrar a sua.
— Mas é real. — Passo uma mecha grossa de seu cabelo
macio para detrás do ombro. — Eles estão aqui. — Encarando a
menina tão próximo, é possível ver suas pupilas dilatando. Há algo
de belo nisso, em assistir em primeira mão a forma como as esferas
expandem e redesenham o círculo cinza ao seu entorno. — Eu
estou aqui, Amália — minha voz rouca baixa uma nota.
Ela suspira.
E eu prendo minha maldita respiração quando sinto o toque
delicado de sua mão em meu rosto.
— Obrigada, Elliot. Obrigada por não desistir de mim.
Preciso cerrar os olhos bem apertados.
Amália é algo como uma criptonita. Minha criptonita. Sentir o
calor de sua pele contra a minha irrompe uma energia brutal que se
prende a tudo, me devasta de dentro para fora e deixa apenas o
desespero por ansiá-la tanto e tão intensamente.
Se afaste. Se afaste, porra!
Obedecendo ao comando do meu cérebro, limpo a garganta,
afastando-me lentamente.
Desço o olhar para o cinto de segurança. Afivelo focado,
fingindo que a tarefa exige toda a minha atenção.
— Pronta para mais um dia de treino? — digo, a voz uma
merda de falhada.
Mas Amália continua ali, o olhar preso no meu rosto. A
cabecinha provavelmente tomada por pensamentos que não
deveriam estar lá.
Levanto a sobrancelha, com ar de graça, questionador, quando
não recebo uma resposta.
Ela prende um pequeno sorriso na boca também.
— Meus braços amanheceram doendo — revela.
E, maldito seja eu, a vontade que tenho é a de tomar seu rosto
entre as mãos e lamber a boca carnuda da menina.
— Então estamos no caminho certo. A dor faz parte do
crescimento.
Algo nisto, no que eu digo, a faz ficar com o semblante um
pouco mais sério, pensativo.
— O que foi? — pergunto, porque quero saber. Quero
compreender tudo o que se passa com ela, até quando não deveria
querer.
Seus dentes fisgam o lábio inferior, antes de ela finalmente
dizer:
— Ontem enquanto batia naquele saco, o barulho aqui dentro,
aquilo tudo virou apenas… silêncio. Gostaria que fosse assim para
sempre.
Respiro fundo.
— Será, Amália. Um dia, não passarão de ruídos inaudíveis.
Nem que para isso eu tenha de dedicar uma vida inteira.

— Um, dois. Um, dois, três — oriento as passadas em


coordenação com os movimentos de seus braços, enquanto seguro
o saco para ela.
O suor umedecendo parte do cabelo que se gruda à testa, a
bochecha vermelha, o som do punho contra o couro, fraco, mas
cadenciado. Amália está dando o melhor de si, compenetrada. Isso
é muito bom.
Só que não pude deixar de notar que ainda se automutila. Ao
enfaixar seu braço, vi a marca recente. Uma que é diferente da que
estava ali ontem.
Sei que é uma questão de tempo para que não precise mais
deste recurso. Meu trabalho nesse momento com ela, aqui,
orientando, é justamente para que aprenda a administrar toda a
merda. Mas, maldição, imaginá-la encolhida no quarto à noite, tendo
de usar uma maldita lâmina… é foda.
— Levante um pouco o cotovelo.
— Assim?
— Isso.
Um, dois. Um, dois, três.
— Consegue com um pouco mais de força?
Os golpes ganham mais intensidade.
— Isso. Mais forte, Amália — comando.
Rosto focado, punhos fechados da maneira como ensinei, e é
assim, entregue ao treino, que ela permanece por pelo menos uma
hora. Sinalizo quando sinto que é o bastante para o dia. Não adianta
forçar músculos e resistência.
Amália cai sentada no tatame. A umidade que brilha em torno
de seus braços, pescoço, revelando que deu o melhor de si.
Um segundo, um maldito segundo contemplando-a assim e de
repente meus pensamentos tomam uma direção absolutamente
traiçoeira. Imagens são projetadas, vívidas, de peles grudentas
embaladas em um atrito poderoso, minha língua deslizando pelos
pontos mais salgados dela, em cada pequena reentrância de calor e
umidade, enchendo-a dessa coisa impossível de ser descrita que
sinto quando apenas olho para a menina. Vejo Amália nua, curvada
de desejo, mordendo os lábios e gemendo enquanto eu me
banqueteio em idolatrá-la.
E me sinto um lixo por permitir que minha mente vá por esse
caminho. Sujo pra caralho.
— Descanse, vou treinar um pouco mais — aviso, rouco,
fodido, quando passo a desferir chutes e socos contra o saco,
descarregando a energia inapropriada.
Golpe atrás de golpe, vou em busca do meu autocontrole de
volta. Golpe atrás de golpe, tento recuperar o equilíbrio e pôr a
mente no lugar. Honestamente, pensei que conseguiria administrar
essa merda. Pensei que bastava ignorar o sentimento que a garota
provoca em mim, que ele desapareceria e tudo ficaria bem. Mas
quanto mais tempo passo com ela, mais essa coisa fica forte. Mais
difícil é ignorar que Amália é tudo o que nunca pensei que
necessitaria.
De repente, o som da campainha na porta da frente me faz
parar os golpes. Seguro o saco de areia no lugar e limpo o suor do
rosto. Poucas pessoas vêm a esse apartamento. Posso apostar que
é um dos caras. Ou todos eles. Possuem cópias das chaves, assim
como tenho a da casa deles, mas provavelmente sabem que não
estou sozinho.
— Deve ser algum dos caras — explico.
Ela assente e se levanta.
— Posso usar o banheiro?
— Não precisa pedir, Amália. Considere esse apartamento
como seu também.
Ao atender a porta, tenho não uma, mas duas surpresas.
— Yulian, Polina — cumprimento meu irmão e a mulher que,
eventualmente, no passado, compartilhou minha cama.
— Encontrei com ela aqui embaixo — explica Yulian, a
coincidência. — Essa bela moça me pediu para segurar a porta do
elevador. — Lança uma piscadela juvenil para ela, mas os olhos do
cara estão mesmo é nos seios fartos de Polina.
Ela sorri, ciente da reação que provoca no sexo oposto. Mas
vejo em seu rosto o pedido de desculpas direcionado a mim.
Sempre fomos discretos.
— Olá, Elli. Estava aqui perto e decidi aparecer. Faz tanto
tempo…
Levanto uma sobrancelha, ambos cientes da mentira. Esse
complexo de apartamentos fica completamente fora de mão para
ela. E sim, Polina tem razão. Não a vejo há pelo menos um ano.
— É, faz tempo.
— Você pretende nos deixar entrar ou…? — Yulian aponta
para onde estou, ocupando toda a abertura da porta.
Merda.
Encaro meu irmão.
— Tenho novidades, El.
Fico tentado a revirar os olhos.
— Imagino que tenha…
— Ei, são boas desta vez, cara! Juro!
Contrariado pra caralho, me afasto da porta, permitindo que
entrem.
— Você primeiro, gata. — O imbecil floreia com as mãos.
Polina sacode a cabeça, achando graça, e passa por ele.
Evidentemente, Yulian acompanha o balançar da bela bunda na
calça justa de couro.
Caminho para a geladeira, em busca de uma garrafa de água.
— Tudo ainda está igual por aqui… — a loira comenta baixo,
percorrendo um olhar indiscreto pelo lugar que ela frequentou por
um tempo. — Ou quase tudo.
Ao ouvir isso, me viro para saber do que está falando.
Encontro Amália parada no início do corredor, olhos levemente
arregalados para as presenças não previstas.
Yulian também a vê. Espero alguma gracinha, galanteio ou
coisa do tipo, mas, contrariando o óbvio, o cara fica apenas mudo.
Espreito-o, curioso com a repentina mudança, e o que encontro,
merda, não me agrada em nada. Não há aquele olhar ganancioso
que lançou em Polina. Não, nem perto… é mais como um…
reverenciador.
Um que reconhece estar diante de algo único.
Por um instante impensável, quero apenas esconder Amália
dele, e também da atenção experiente de Polina. Sempre a
considerei uma amiga, além de foda casual. Mas nesse momento,
quero apenas que não estrague tudo por aqui.
— Água? — ofereço da cozinha, apontando a garrafa em
minha mão.
Amália faz apenas uma negação sutil de cabeça. Está
desconfortável.
Busco seu olhar com um dos meus, um que diz que está tudo
bem. E vou para ela levando uma garrafa mesmo assim. Treinou por
mais de uma hora, deve estar com sede.
— Esse é meu irmão, Amália, Yulian. E ela é a Polina… uma
amiga.
Meu irmão, o babaca, dá um passo à frente, em direção à
menina:
— Yulian. — Estende a mão um cumprimento.
Ela não pega, mas diz:
— Oi — baixinho.
Yulian assente e limpa na lateral da calça a mão deixada no
vácuo, parece subitamente sem jeito. Por que diabos ele está sem
jeito na frente dela, porra?!
— Vim contar uma novidade ao meu irmão. — Desvia
brevemente os olhos dela para mim. — Arranjei um emprego.
— É mesmo? — indago, não querendo nem escutar em que
nova lambança ele se meteu desta vez.
— Um legal, El, é sério agora. — Enfia as mãos dentro dos
bolsos e encolhe os ombros. — Bem, não legal no sentido de “da
hora” e coisa assim. Legal no sentido de que não me meterá em
nenhuma enrascada. Ou a você.
O jeito como fala essa última parte, meio envergonhado, atrai
meu interesse de verdade.
— Onde?
— No mercadinho do Chalov. Sou o novo faz-tudo por lá…
você sabe, reponho mercadoria, limpo a loja, atendo no caixa.
Tenho uniforme e tudo. Se é que alguém pode chamar aquele
avental de uniforme.
Bem, eis uma novidade.
— Fico feliz por você, Yulian — sou sincero em dizer. Não é o
emprego ideal para quem durante muito tempo fingiu frequentar o
curso de engenharia, pago com meu dinheiro. Mas é um bom
começo.
— Não quero mais te causar problemas, El — retribui
igualmente honesto.
Pela primeira vez, desde que começou a ter pelos em seu
rosto, Yulian parece estar disposto a uma mudança de
comportamento. Finalmente. Não quero me empolgar demais, mas
isso é muito mais progresso do que jamais aconteceu.
— É um começo, parabéns.
— Eu sei… tô me esforçando. — Yulian encolhe o ombro, e
então sorri para as mulheres na sala, jogando um pouco do charme
de garoto bonito. — Acho que é um bom motivo para comemorar,
não acham? Você ainda tem alguma daquelas cervejas artesanais
em sua geladeira?
Merda.
Polina, de onde está, limpa a garganta, colocando as mãos
nos bolsos detrás. Notei sua perscrutação discreta em Amália
enquanto meu irmão contava a novidade. Provavelmente já fez
alguma conexão em sua mente sobre o que a menina significa para
mim.
— Eu só vim dar um oi mesmo, Elli. Preciso voltar ao trabalho,
você sabe como o gerente da boate é insano sobre horários.
Sinto que é uma desculpa e silenciosamente a agradeço por
isso.
Acompanho-a até a porta. Antes de sair, vira-se para mim:
— Desculpa vir sem avisar — pede, baixo.
— Tá tudo bem. Só ligue, na próxima.
Ela ri de um jeito conhecedor.
— Se eu tivesse ligado, teria me convidado?
Em respeito à sua inteligência, encaro o rosto atraente com
seriedade. Polina é uma mulher legal, do bem, nunca causou
problema. Tivemos um bom tempo juntos, bom para os dois. Só que
agora faz parte do passado.
— Nada mudou desde a última vez que conversamos, Polina.
Ela assente e baixa os olhos sob os cílios grossos.
— E você terminou comigo. Eu sei. Só decidi checar. Você
sabe que não sou de desistir, não sem uma última tentativa.
Meneio a cabeça, mas não a engano:
— Vamos deixar como está, ok?
Inspirando devagar, ela concorda. Estica-se um pouco sobre
os saltos e me beija o rosto, apoiando uma mão em meu peito.
— Se cuide, Elli.
Aceno em reverência.
— Digo o mesmo, Polina.
Ao fechar a porta e me virar para a sala, encontro o olhar de
Amália em mim. Sei que não escutou uma palavra do que foi dito,
ou, se sim, não entendeu o idioma, mas pela maneira como aperta
ligeiramente os lábios e se abraça, deve ter sacado as coisas. A
garota não é boba, e não a tratarei como uma. Assim que
estivermos sozinhos, esclarecerei o que viu.
— E então? — questiona Yulian, depois de nos observar por
um instante. — Rola aquela cerveja para comemorar?
Diabos, o moleque nem cogita dar o fora.
E passa os próximos minutos estranhamente cuidadoso, sendo
gentil demais, contando coisas engraçadas de seu primeiro dia no
emprego novo para impressionar a garota num espanhol sofrível
que aprendeu de nossa avó.
O pirralho mal esconde o interesse.

— Chegamos — digo, espreitando seu rosto. Ela normalmente


não é muito de conversar com as pessoas, é mais fechada, só que
seu silêncio não vem se aplicando a mim ultimamente, então vê-la
fazê-lo agora é o suficiente para eu sacar que está chateada.
— Obrigada — sibila ela, unindo os dedos nervosamente em
meu banco do passageiro.
— Não há nada entre mim e Polina. — Toco logo no maldito
assunto que a fez ficar introspectiva desde que a mulher esteve em
meu apartamento. Mal falou comigo, ou deu atenção às tentativas
inúteis de Yulian de impressioná-la com chame. Apenas se fechou
naquela concha que a protege.
— Você não precisa…
Antes que uma mentira saia de seus lábios direcionada a mim,
pego gentilmente seu rosto. Não gosto de mentiras, não é assim
que desejo as coisas entre nós.
— Não mesmo? — Mergulho fundo nas esferas cor de
diamante, profundas, carregadas de uma vida foda, desafiando-a a
negar. Desafiando-a a dizer que não se importa se há ou não uma
mulher em minha vida.
Já passamos dessa fase no momento em que entrei em seu
apartamento, na Espanha, e me revelei.
— Não me deve nada, Elliot. — Amália baixa a cortina negra
de cílios, escondendo-se de mim.
— Tem razão, não devo. Mas não quer dizer que vou permitir
que tenha uma ideia errada sobre alguma coisa. Polina e eu tivemos
um lance, sim, no passado. E é só. Acabou há mais um de ano.
Vejo o quanto a informação a afeta. Está no tremor de seu
queixo, no apertar de lábios.
O que estamos fazendo, afinal?
Deslizo meu polegar lentamente por sua boca. Não consigo
evitar.
— Não houve mais ninguém desde que me mudei para a
Espanha. Desde que… — merda —… desde que te conheci,
Amália.
Se eu pudesse gravar uma última imagem em minha mente
para a eternidade, seria essa. Dela, olhando para mim desse jeito,
como se a informação injetasse uma dose de algo bom em suas
veias… como se eu fosse importante.
E essa coisa acontecendo aqui dentro, me sacudindo a cada
segundo mais que passamos juntos desde que a conheci, vem se
tornando maior e maior, tomando conta de mim, de minha
capacidade de lembrar que não sou merecedor de um anjo
inocente.
— Se as coisas fossem diferentes… — eu me pego
verbalizando, numa voz fodida, rouca.
— Se eu não fosse assim? — Amália murmura, e, inferno, sua
interpretação não poderia estar mais equivocada. Ela jamais deveria
se sentir menos. Jamais.
— Se eu não fosse assim — corrijo. — Você é pureza, é
bondade, é… — um bufo irônico abandona meu peito, em
autodepreciação — é luz. Não é justo que eu a suje com minhas
sombras, quando pode ter algo muito melhor.
Amália belisca um ponto em sua mão, um autoflagelo.
— Também sou sombra, já pensou nisso? Já pensou que
posso não ter mais nada aqui dentro, Elliot? — sua voz, a tortura
nela, me quebra inteiro.
Que se foda essa merda!
— Venha aqui — peço, grotescamente sem voz.
— Onde?
Minhas narinas se dilatam com a passagem arrasadora de
uma expiração.
— No meu colo, Amália.
Meu coração, fodido, está louco no peito. Perdeu a sanidade
junto comigo. Sem pensarmos direito no que estamos fazendo, e
sem questionar, a garota se inclina para mim, pequena, perfeita,
dando-me sua completa confiança. Ajudo-a a me montar e a
posiciono sobre minhas coxas, de frente para meu rosto. Minha mão
grande segura o quadril estreito.
— Quero fazer um trato com você.
Ela aperta os lábios, antes de questionar.
— Que trato?
— Você frequentará a terapia, se exercitará, se permitirá ser
parte daquela família. — Refiro-me à casa de sua irmã, diante de
onde estamos estacionados. — De coração aberto. Terá sonhos;
estudará meu idioma, se quiser, ou qualquer outra coisa que tenha
vontade de aprender. Terá amigos; fará tudo o que um dia sonhou. E
quando se sentir pronta, pronta de verdade, e se ainda quiser, eu
estarei aqui.
É uma promessa. Nunca deixo de cumprir as promessas que
faço.
Amália encara minha boca, e meus olhos, e de novo minha
boca. Linda, devastadoramente linda. Se ela soubesse o quanto
está me matando.
— Não posso fazer tudo isso com você?
Como manter intacta essa muralha de resistência quando ela,
meu ponto fraco, me questiona assim?
Acabo rindo, consternado.
— É o que eu mais desejo no mundo. Mas, acredite em mim,
tenho experiência de vida, Amália. Já vi e fiz coisas demais, e você
poderia muito bem desejar me manter o mais longe possível por
causa delas. E por isso quero que também adquira vivência o
suficiente para compreender o que quero dizer e fazer sua escolha.
Quero ter você, mas de igual para igual.
Mesmo sabendo que, ao tomar essa decisão, corro o risco de
perdê-la para sempre.
Ainda assim, acrescento:
— E, até que compreenda e faça sua escolha, estarei aqui.
Não haverá mais ninguém.
Ela não gosta do que escuta, está estampado no franzir do
cenho. É sua juventude falando. A pressa que temos de viver tudo
quando somos jovens.
— Vamos, diga o que está acontecendo aqui. — Toco
suavemente sua testa.
Amália inspira entrecortado, seu corpo vibra um pouco, sobre o
meu.
— Sabe, Elliot, tudo isso, a liberdade, a escolha, são coisas
que não me parecem reais ainda. É como se a qualquer momento
isso tudo fosse acabar. Sei o que parece, às vezes penso que estou
louca. Só não quero esperar até…
Até ser tragada de volta ao inferno, é o que ela não diz, e nem
precisa.
— Não será — afirmo. — Nada mais será como antes, dou a
minha palavra.
Apanho sua mão pequena e a trago para junto do meu peito,
do lado esquerdo.
— Sente isso? Isso é real.
Amália separa sutilmente os lábios, surpresa com o ritmo
frenético sob sua palma, e exala uma expiração quente que
atravessa o pequeno vão, toca e seca minha boca de um jeito quase
desesperador.
Um grunhido arranha o fundo de minha garganta. Os músculos
de meu corpo retesam, tornando-me uma fortaleza de aço e
necessidade.
Em resposta, observo de perto a linha fina escura que
contorna sua íris se expandir sobre o cinza.
— Quero tanto te beijar — confesso, rouco.
— Então… então beija — murmura numa voz tão esperançosa
que me arrasa.
Posso fazer isto sem foder tudo. Posso ter esse beijo, minto
para mim.
Nenhum de nós fecha os olhos quando subo minha mão para
sua nuca delicada e a acaricio ali. Os cílios negros e pesados, tal
qual uma cortina da noite, baixam e o corpo pequeno estremece,
reagindo ao contato.
Meu sangue pulsa nos tímpanos.
Será apenas para selar nosso acordo, minto para mim
novamente.
Gentilmente, a trago para mais perto. A menina apoia as mãos
em meus ombros. Minhas mãos deslizam para apanhar seu rosto.
Não tem volta. Não será como aquele roçar de lábios à beira do
lago, ela precisa saber.
— Vou te beijar — reforço, para que fique claro.
Tenho a sensação de que trombetas no caminho em V que liga
o Inferno e o Céu rugem no ar quando ela lambe o lábio inferior
sutilmente, se preparando para isto. Como essa menina pode
parecer tão doce e ao mesmo tempo tão necessitada desse contato,
como eu?
Sugo uma lufada difícil de ar e me aproximo mais dela,
cortando o espaço entre nossos rostos.
Nossas bocas se roçam, respiração com respiração.
Suavemente, beijo seus lábios fechados.
Porra!
Ela arfa. Beijo novamente, sem pressa, curtindo o momento.
Por iniciativa, Amália se ajeita mais em mim, aproximando-se até
seus seios estarem colados em meu peito, parecendo querer
encontrar um ângulo melhor, um que tenha tudo.
O atrito e a nova maneira como se encaixa em meu colo me
obrigam a apertar a mandíbula cerrada. É o confronto entre a
inocência e a experiência.
Lambo seu lábio macio. Amália se assusta. Estremece.
Meu maldito pau reage à fricção.
Cogito parar.
Ela segura meus ombros com mais força.
Não consigo voltar atrás. Não tenho essa força de vontade.
Mergulho em sua boca, segurando seu rosto, e mostro a ela o
tamanho de seu poder sobre mim. Em cada carícia de minha língua
na sua inexperiente, mostro o quanto a quero, o quanto a desejo.
Mais do que qualquer filho da puta nesse mundo já desejou alguém.
Ela arfa outra vez.
Absorvo cada ruído, gemido, choramingo.
Quero rir quando suas mãos deslizam por minha cabeça. É a
primeira vez, desde que decidi manter sempre raspado, que me
arrependo. Se eu tivesse cabelo, aposto que ela os puxaria nesse
momento.
Menina doce. Menina linda!
Suavemente, eu a devoro com minha devoção. Beijá-la não é
como nada que já experimentei. É infinitamente melhor. Amália tem
gosto do céu puro, límpido. Gosto de salvação. De casa. Não é o
tipo de contato que precede algo melhor, como o sexo duro e
impessoal que já tive centenas de vezes antes. Esse beijo é o que
há de melhor. Moraria nele, lenta e devastadoramente.
Estou ferrado.
Separar nossas bocas é a coisa mais difícil que já tive de fazer.
Exige toda a minha capacidade de controlar corpo e mente.
Mordisco o lábio macio antes de me afastar aos pouquinhos, não
sem antes engolir seu gemidinho de protesto.
Se ela soubesse que meu corpo também protesta
violentamente nesse momento.
— Respire — peço, rindo um pouco e apreciando mais do que
qualquer coisa o inchaço de seus lábios.
Amália respira profundamente.
Por sua próxima reação, acho que somente então se dá conta
de que está montada sobre mim, sobre o volume que tentei
controlar até os músculos da barriga doerem.
Assisto em primeira mão a mudança abrupta em sua
fisionomia. O desejo inocente dar lugar a algo que eu jamais
gostaria de ver nela. Um olhar arregalado de puro pânico que dilata
suas pupilas. A cor de suas bochechas coradas se transforma em
uma palidez reveladora.
Minha ereção é seu gatilho para a vida de antes. O sexo é.
Ad na zemle, me sinto um lixo. Um fodido. Minha
responsabilidade é ajudar em sua cura, e não esfregar suas feridas,
disparar seus gatilhos.
Porra. Porra!
É óbvio que Amália ainda não está pronta, seu filho da puta
egoísta do caralho!
— Ei, ei, moy almás, está tudo bem. Tá tudo bem — chamo
baixinho, com cuidado e firmeza, tentando desesperadamente
resgatá-la do lugar profundo e inalcançável em que sua mente tenta
mergulhar como medida de autoproteção. — Sou eu, você está
segura, Amália. Jamais vou fazer algo para te ferir, ok?
A cena a seguir me arrebenta.
Amália derruba a cabeça entre as mãos, humilhada, um
segundo depois de lágrimas despontarem nos olhos mais lindos e
tristes que já vi em alguém.
Dói pra caralho essa sensação de impotência, de não poder
arrancar todos os seus traumas com minhas próprias mãos.
Dói pra caralho a culpa de ser aquele a evocar seus demônios.
Esse não será um caminho fácil. Para nenhum de nós.
AMÁLIA

Ele segura meus dedos dentro do elevador. O polegar exerce


uma carícia suave, distraída, enquanto encara o mostrador com
números subindo. Elliot está mais sério do que o normal essa
manhã. Não tocou no assunto sobre o beijo de ontem. Eu também
não. Mas isto está me apertando o peito. Me envergonha ser assim,
carregada de sujeira. Daria tudo para ser como sua amiga de
ontem, segura, confiante, sem todos esses sentimentos ruins
afetando até a maneira como eu respiro.
— Está tudo bem? — questiona Elliot, buscando meu rosto.
Pelas rugas de cansaço ao entorno de seus olhos, não deve
ter dormido nada na última noite. Também não dormi. Me sinto
cansada, exausta na mente.
— Aham. — Tento sorrir com otimismo.
— Será bom conversar com ela. — Ele sobe nossas mãos
juntas até seus lábios e beija a minha.
Impossível explicar em palavras o que sinto por ele. É tão forte
que muda o jeito como bate meu coração. Dói e alegra, ao mesmo
tempo.
— Elliot, eu queria me desc…. — Tomo coragem de dizer, mas
me calo quando as portas do elevador se abrem. Dra. Saavedra
está em pé do lado de fora de uma porta alaranjada. Ela olha para
nossas mãos unidas.
Mesmo com a presença da terapeuta logo ali, Elliot não se
move dentro do elevador, permanece me olhando à espera do que
tenho a dizer. Ele não me deixará sair sem isso, sem me ouvir.
— Desculpa… por ontem — murmuro.
Sem se preocupar que estamos sendo assistidos, segura meu
rosto.
— Não faça isso, não se desculpe, malyshka — repreende
baixinho, uma voz suave e macia. — Nunca, ok?
Assinto.
A terapeuta limpa a garganta.
— Saavedra — Elliot a cumprimenta um pouco seco, dando
um passo para fora da caixa de aço, sem soltar minha mão.
É engraçada a mudança em como ele me trata para como fala
com o resto do mundo.
— Oi, doutora, bom dia… é… é muito bom te ver — digo meio
envergonhada por ela ter presenciado nós dois.
A terapeuta surpreende ao me puxar para seus braços, num
abraço forte, caloroso.
— Quanto tempo desde que nos vimos, querida! Você está
com uma carinha tão boa. Estava com saudade — diz ela,
arrumando meu rabo de cavalo para trás outra vez.
— Eu também, doutora — e descubro que é uma verdade.
Fazia um tempo que eu não a via, que não atendia mais suas
ligações. Tê-la aqui, tão longe de Madri, é como ter uma parte de
algo que é familiar e bom. Embora a palavra “familiar” tenha um
sentido ruim para mim.
Segurando minhas mãos entre as suas, Dra. Saavedra
finalmente se dirige ao homem ao meu lado.
— Elliot.
— Saavedra — retribui ele, um pouco provocador.
— Então aqui estamos — diz ela.
Elliot sacode os ombros, displicentemente. Percebo que há
algo de frio e ao mesmo tempo respeitoso entre eles.
— Como você vê.
— É, eu vejo. Vejo muita coisa.
Parecendo, por alguma razão, contrariado, Elliot semicerra os
olhos castanhos para ela.
— Ed mandou lembrança.
O sorriso que minha terapeuta dá em retribuição mal alcança
os olhos. É mais como uma demonstração de dentes retos e
enfileirados.
— Mande a ele minhas lembranças, também. — Apesar do
tamanho e aparência perigosa de Elliot, que chama bastante
atenção, a sensação que tenho é de que, com educação, a mulher o
manda comer merda.
— Farei.
Ignorando-o completamente, Dra. Saavedra se volta para mim
outra vez.
— Venha, querida, vamos entrar, conversar sobre as
novidades.
— Essa poltrona se parece com a que tinha no consultório —
comento, sentada no sofá cheirando a novo, mas apontando para
onde ela está.
Dra. Saavedra alisa o braço de sua poltrona, de um jeito
bastante afetuoso.
— É a minha. Eu a trouxe comigo no avião particular
daqueles… uh… senhores gentis. — Por “senhores gentis”, sinto
que quer dizer outra coisa, completamente oposta. — Às vezes é
bom termos um ponto de apoio. Algo que nos transmita segurança
quando precisamos — diz ela.
É estranho pensar que alguém que cuida de problemas na
cabeça dos outros também tenha inseguranças. Reflito sobre isso e
me pergunto se a razão de ela precisar de um ponto de apoio se
deve à sua presença aqui.
— Ele… — Limpo a garganta, receosa em perguntar: — Elliot
a obrigou a vir para cá?
Dra. Saavedra ri exibindo de novo a fileira de dentes bonitos,
retos e brancos, mas desta vez ilumina tudo, por ser sincero. Noto
que seu visual, em geral, também está diferente, menos rigoroso do
que normalmente é. Cabelos cacheados estão presos num rabo
frouxo, está usando maquiagem.
— Seu amigo é como um urso grande e de aparência feroz,
querida. Assusta se você olhar de frente. Mas, no fundo, ele só quer
um bom pote de mel para sossegar.
Pensar em Elliot como um urso me faz sorrir. Ainda assim, ela
não respondeu diretamente à minha pergunta. E sabe disso.
Cruzando as pernas, esclarece:
— Ele foi bem persuasivo, digamos assim. Inclusive, montou
esse consultório em tempo recorde, com tudo novinho em folha,
como pode ver. Mas eu teria estado aqui de qualquer jeito, Amália.
Se não presencialmente, online. Você é importante para mim.
Precisava saber como se sente com todas essas mudanças
acontecendo em sua vida. E, para ser sincera, acho que estão te
fazendo bem, vejo algo novo em você.
Encolho-me internamente. Se ela soubesse como as noites
ainda são as mesmas, ou como mal consigo controlar o pavor
paralisante em reação aos simples sons que acontecem na cozinha
da babushka diariamente. Ou como meu corpo inteiro ficou doente
de um jeito horrível quando senti Elliot naquele estado, excitado.
Não sou inocente, sei que é da natureza dos homens, mas ali,
naquele momento, não consegui fazer minha mente distinguir que
era Elliot comigo e não aquele homem nojento e seus filhos.
Sinto que estou dando passos sobre uma corda fina e que a
qualquer momento posso cair, cair profundamente. E se eu cair, irei
decepcionar todos eles.
— Quer compartilhar o que a faz se abraçar desse modo,
querida?
Somente então me dou conta de que estou me apertando e
beliscando o cotovelo mais forte.
— É complicado…
Ela sorri suavemente.
— Sempre é, para todos nós. Mas ajuda se colocar para fora.
Costumo dizer que é como abrir uma caixa cheia de novelos de lã,
de várias cores e tamanhos, todos embolados entre si num grande
emaranhado. Organizá-los parece ser um trabalho impossível, não
é? Mas se fizermos com paciência e carinho, um novelo de cada
vez, conseguimos desatar os nós, colocá-los em seus lugares,
compreender a importância de cada um, entende?
Assinto. Não quero parecer pessimista. Quero desatar os nós.
— Vamos com uma cor de cada vez, o que acha?
Assinto de novo.
— Como está sendo a experiência em outro país?
Respiro bem fundo e falo o que me vem à cabeça. Conto sobre
a casa e a família da Penélope, como tudo lá tem vida, cor, sons,
alegria. Como Sol de Maria é tão perfeita e destemida. Como vovó
Zhena e tia Merian me fazem rir e me sentir em casa. Como
Penélope é uma pessoa incrível e o quanto eu gostaria de ser como
ela.
— Em que sentido?
— Em que sentido o quê?
— Você disse que gostaria de ser como Penélope. Em que
sentido?
— Ah, sim. Bem… ela é inteligente, divertida, alegre. — Desvio
meus olhos, evitando os seus, para a próxima coisa que vou dizer.
— É como se não tivesse passado por nada daquilo.
Tamborilo o dedo em meu cotovelo. Nem sei por que falei isso.
— E ela é corajosa — acrescento, sentindo necessidade de
dizer.
— Por que diz que ela é corajosa?
— Porque Penélope não sente medo de nada.
Sinto seus olhos em mim e é como se me olhasse de dentro.
A terapeuta deixa de lado o tablete em suas mãos e se inclina
um pouco para frente, para mais perto.
— Coragem e medo não são opostos, Amália. Eles coexistem
e um precisa do outro. Medo, aliás, é elemento fundamental em
nossas vidas, responsável por nos dar senso de perigo. Posso
afirmar com toda certeza que Penélope também sente. O que
acontece é que muito provavelmente ela os conhece e aprendeu a
conviver com eles. Todos nós somos capazes disto, e começa pelo
autoconhecimento. Se conhecer é parte importante do caminho. Na
última vez em que nos falamos, você disse que sentia medo o
tempo todo. Ainda se sente assim?
— Sim… — murmuro quase sem voz.
— Das mesmas coisas?
— Também.
Ela lê minha resposta com exatidão, sacudindo a cabeça de
levinho.
— Então temos acréscimos aí. Vamos fazer um exercício,
pode ser? Escolha um medo, aquele primeiro a vir em sua mente, e
me fale sobre ele. Descreva-o como se pudesse enxergá-lo. Que
tamanho tem, qual é a cor dele, o que ele a faz sentir. Nosso plano é
derrotá-lo conhecendo-o.
Preciso sugar algumas lufadas de ar para poder me concentrar
em responder. É difícil escolher um, estão todos misturados,
bagunçados. Minha mente é a caixa de novelos de lã, fios sujos,
enlameados.
— Você está indo bem em se abrir, querida, continue, só
coloque para fora. O que mais a perturba?
Abraço-me mais forte.
— Tenho medo de que se cansem de mim e desistam, não
deve estar sendo fácil conviver comigo, vejo isso, a preocupação
nos rostos de todos. Essas pessoas são tudo o que eu tenho, mas…
mas eu não sou tudo o que elas têm. — Observo minhas mãos,
pálidas, dedos finos. — Você pediu uma descrição? Esse medo é
escuro e eu… odeio o escuro — porque estive na escuridão quase
uma vida inteira.
Dra. Saavedra me escuta concentrada, há muito acontecendo
em seu rosto, embora ela tente não transparecer.
— Na psicologia, chamamos isso de monofobia. É, digamos
assim, uma desordem emocional muito comum em pessoas que
vêm de núcleos familiares disfuncionais. — Inclina-se um pouco
mais para frente. — Perceba que é importante que a gente
estabeleça isso, Amália, que provém de ambientes disfuncionais.
Por quê? Porque ambiente disfuncional não é regra, é exceção. Via
de regra, nossa casa e nossa família deveriam ser sinônimos tão
somente de bem-estar e segurança, em todos os aspectos.
— Eles são isso — me apresso em dizer —, Penélope, vó
Zhena, tia Merian, Sebastian, na casa deles é assim.
— Esse é o ponto. A monofobia é a responsável por essa
projeção de insegurança de que tudo mude a qualquer momento e
você se veja sozinha no mundo, abandonada. É natural, faz pouco
mais de um ano e meio somente desde que se libertou daquela
situação anterior. Mas, por tudo o que observei, posso assegurar
que não vai acontecer. Você agora está convivendo num ambiente
saudável, sólido. Todos a amam e formaram uma grande rede de
proteção ao seu entorno. É o que famílias, famílias de verdade,
fazem.
Ela enche dois copos de água do jarro que está na mesinha de
centro entre nós e me oferece um. Pego, apenas para ter algo nas
mãos.
Seu rosto então ganha certa gravidade.
— Contudo, também é necessário compreender, querida, que
sua felicidade e seu bem-estar pessoal não devem depender disto.
De como agirão com você. É preciso que conheça seu valor e
posição no mundo. Você é incrivelmente linda, doce, se preocupa
com as pessoas, é inteligentíssima. Merece uma vida boa e feliz.
Quando conseguir se conhecer de verdade e, principalmente, se
amar, irá perceber que nossos elos, as pessoas com quem nos
relacionamos, devem ser complementares, e não fundamentais.
Fundamental, para você, é se sentir bem e feliz, onde e com quem
escolha estar, compreende?
Em sua boca, a explicação, palavras difíceis e bonitas, tudo
parece tão simples. Nem sei se alguma vez já me senti bem comigo
mesma na vida. Até bem pouco tempo atrás, eu sequer existia.
Difícil acreditar que um dia vou ser outra pessoa. Mas se eu
pudesse escolher uma coisa, escolheria isso.
Lendo minha mente outra vez, Dra. Saavedra sorri de um jeito
que é como se soubesse algo que eu não sei.
— Leva um pouquinho de tempo para se autoconhecer e se
amar integralmente. Mas isso vai acontecer. E nesse dia, você se
surpreenderá. Foi o que, provavelmente, aconteceu com Penélope.
Vai acontecer. Vai acontecer. Vai acontecer, a afirmação cria
ecos dentro de mim.
Deixo o copo sobre a mesinha, esfrego a palma de minha mão
afundando um dedo e a encaro.
— O que preciso fazer para isso?
Dra. Saavedra sorri com os olhos.
— Muito bem, gosto de ouvir você falando assim, querida,
positiva. Esse é o começo e é por isso que estou aqui, para ajudá-la
a se conhecer, no seu tempo, conhecer e construir essa nova
Amália. Ajudá-la também a identificar certos entraves criados por
sua mente. Um deles é a falsa ideia de que essas pessoas vão se
cansar de você. Não vão. A preocupação que você enxerga nos
olhos deles, a que se referiu, é uma demonstração do quanto se
importam. E a gente só se importa com aqueles que amamos.
— Também gosto muito deles.
— E sobre aquele homem lá fora?
Acho que meu rosto avermelha.
— O que tem ele?
— Como está sendo o convívio desde que se reencontraram?
— Bem.
— Bem? — instiga.
Entrelaço os dedos nervosamente.
— Gosto dele.
— Entendo.
— Elliot é tão…
— Tão…?
— Bom, incrível, gentil.
— Interessante essa escolha de palavras — comenta mais
para si.
— Gosto dele. — Mordisco o lábio, desviando meus olhos para
o chão.
— Você disse isso duas vezes.
— Eu disse?
— Sim. Há alguma razão para a necessidade de reafirmar,
Amália? — pergunta com amabilidade.
Belisco meu cotovelo. Não consigo parar de pensar no que
aconteceu ontem. Gosto tanto dele, tanto. E ao mesmo tempo me
sinto paralisada com a ideia de que em algum momento Elliot vai
querer mais de mim. Mais do que poderei dar. Ele é homem.
Homens precisam disso.
Não suporto a ideia de ser tocada intimamente outra vez. Meu
corpo repele a ideia com tanta violência que me sinto atordoada,
enjoada… derrotada. Se eu apenas fechar os olhos, estou de volta
àquele quarto fedido, frio, escuro, acorrentada. O peso deles sobre
mim. Me sinto suja. Gostaria de nunca mais sentir outra vez
alguém… alguém me invadindo.
E é por isso que Elliot vai me deixar.
— Só respire, querida. Respire bem fundo e solte o ar devagar.
E se concentre em uma cor, querida. Uma cor de cada vez.
Tento focar em sua voz, mas me sinto sendo engolida. Aceno
com a cabeça, avisando que estou ouvindo, e sugo uma respiração
com toda a minha força.
Dra. Saavedra vem até mim e segura minhas mãos.
— Ele vai me deixar… — murmuro em um pânico profundo.
Suavemente, ela questiona:
— Por que acha isso?
— Não posso dar… dar o que precisa.
— Beba a água — sugere com suavidade.
Tremendo como se estivesse doente, sorvo pequenos goles,
lutando apenas para não cair outra vez no espiral de caos que são
meus pensamentos. Dra. Saavedra sustenta firmemente minha
mão. Somente depois que sente que sou capaz de ouvi-la, é que
continua:
— O que, exatamente, você acha que ele precisa?
— Que eu… que nós… — só de falar, me sinto nauseada.
— Sexo?
Assinto, não consigo fazer outra coisa.
Ela me estuda um pouco, talvez se questionando sobre o que
dizer, talvez apenas decidindo que sou um caso perdido.
— Ele pediu isso a você? — Seu tom neutro não me deixa ter
certeza do que se passa em sua cabeça.
Nego com veemência.
Elliot não pediu. Mas senti. Vi como seu corpo ficou. Só que
isso, eu não tenho vontade de compartilhar. É pessoal demais.
— Ele não pediu. — Sinto necessidade de defender. — Ele
jamais pediria. Elliot é uma pessoa boa.
— Somente pessoas que não são boas é que pedem, certo?
“Pedem”. “Pedem”. “Pedem”. A palavra fica se repetindo em
minha cabeça, e não encontra um lugar certo. Não se encaixa.
— Não, não pedem. Elas tomam à força, obrigam — verbalizo.
— Entendo seu raciocínio. Foi o que te fizeram acreditar,
afinal. — Assente. — Pode parecer impossível de visualizar o que
vou dizer, Amália, mas com o tempo, com o que fazemos aqui e a
sua nova vida, muitas das visões distorcidas de mundo
apresentadas a você serão desconstruídas. Você as enxergará de
modo diferente. Esse tema, sexo, por exemplo, será um deles. Verá
que há um outro ângulo, um outro sentimento correspondente,
entende?
Nunca vou gostar de sexo, isso eu tenho certeza, só não digo.
— Uma cor de cada vez, lembra? — acrescenta ela, usando o
lema para mostrar-se ciente do que estou pensando. — O que acha
de escolhermos um caminho hoje e seguirmos por ele? Vamos nos
concentrar apenas em seu medo de Elliot te deixar, pode ser?
— Sim.
— Vocês estão construindo algo juntos. Um relacionamento,
pelo que vejo.
Relacionamento. A palavra é tão distante, tão estranha, que
não consigo conectá-la com nada.
— Ele foi a melhor coisa que me aconteceu… não gostaria que
fosse embora — digo a verdade.
— Entendo. Mas você já parou para pensar que essa hipótese
pode sequer ter passado pela cabeça dele? Que pode ser só mais
um dos medos criados por sua mente em um instinto de
autopreservação?
— Ele já foi embora uma vez. — E lembrar isso faz com que
eu precise me abraçar com força, experimentando tudo de novo,
aquela sensação vazia e cinzenta de quando ele parou de me
visitar. Foi como respirar ar fresco por alguns curtos instantes, e ser
lançada de volta à escuridão.
— Ele não vai — diz ela, com grande confiança. — Acredite
em mim, aquele homem lá fora é mais forte do que pensa. Elliot
relutou muito em parar de vê-la, a nosso pedido, de Cassandra e
meu. — Um sorriso pequeno repuxa de leve sua boca. — Pensei até
que ele a levaria da clínica à força.
Seus médicos, na clínica, pediram que eu me afastasse.
Disseram que minha presença atrapalhava sua recuperação. Mas
não consegui. Não consigo me afastar. Eu me preocupo com você,
menina, mais do que já me preocupei com qualquer pessoa no
mundo.
Uma camada de algo quente, parecido com um cobertor
macio, envolve a bagunça gelada em algum lugar dentro de mim.
Essa é a sensação que tenho. É isso que Elliot provocou em mim
desde a primeira vez, a sensação de segurança, de conforto,
proteção.
— Elliot é experiente o bastante para saber o que quer. E já fez
uma escolha. Mas ele não é o que importa, aqui, querida. Você é.
Suas vontades, seu bem-estar. Sua felicidade. Entende aonde quero
chegar? É uma mudança de perspectiva, onde o sentimento do
outro deve ser considerado, sim, mas o seu tem um papel
protagonista.
“Há pouco, falamos sobre autoconhecimento e você me
perguntou o que precisa fazer, pois bem, vou deixar um exercício
para nossa próxima sessão, um primeiro passo, por assim dizer:
você se questionará, Amália. Para obter consciência de quem é, se
fará uma série de questionamentos. O que te faz bem, do que gosta,
o que a faz se sentir feliz. O que não a faz. O que te dá medo, o que
te dá forças. Essas questões, muitas delas incômodas, nos ajudam
a conhecer quem somos e impedir que fatores externos, ou
armadilhas da mente, afetem nossa estabilidade”.
Alisando a saia, ela se levanta.
— Tenho um presente para você. — Abre uma gaveta da mesa
nova e retira de dentro um caderno de capa florida e um jogo de
canetas coloridas. — Uma vez me disse que sua avó escrevia
poemas, e que sentia vontade de escrever também, lembra-se?
Assinto. Não esperava que ela lembrasse disto.
— Se quiser, escreva aqui. Traga para nosso próximo
encontro, ou o mantenha só para você. Mas tente colocar nele o que
sente. Escrever é também um bom remédio.
Fico olhando para o caderno por alguns instantes, tentando me
imaginar escrevendo. A ideia encontra um lugar em mim e o
acalenta.
— Obrigada, doutora — aceito, tremendo um pouco.
— Ah, antes que eu me esqueça. — Ela rabisca alguma coisa
na contracapa. — Aqui está o meu número em Moscou. Se precisar,
me ligue. Não importa o horário.
Ao sairmos da sala, encontro Elliot em pé, um tornozelo
cruzado em frente ao outro, descansando o ombro contra a parede
ao lado do elevador. O corpo parece relaxado, mas seu olhar de
águia perscruta meu rosto atentamente.
Ele se importa comigo.
Despeço-me da doutora com gratidão. Ela está tentando me
ajudar, tentando desatar os nós dos meus novelos de lã, e a
agradeço por isso.
Dra. Saavedra me abraça de volta.
— Está tudo bem? — pergunta Elliot, apoiando uma mão nas
minhas enquanto esperamos o elevador, assim que ficamos
sozinhos.
— Tudo, sim. — Eu me esforço para sorrir e tranquilizá-lo. Me
sinto muito culpada por ser a razão desta ruga franzindo seu cenho.
Como ele pode gostar de alguém como eu?
ELLIOT

— Ela nunca teve um pesadelo assim antes aqui, Elli. —


Penélope, enrolada em um roupão de dormir, sobe as escadas atrás
de mim.
— Você fez bem em me ligar.
No corredor do lado de fora do quarto de Amália, Zhena
segura uma Sol de Maria de olhinhos arregalados, no colo. É
madrugada, a garotinha deveria estar dormindo.
— Ajude ela, filho. — A velha avó de Sebastian aperta meu
braço, num pedido honesto. Dá para ver o quanto essa família se
importa de verdade com Amália.
Avalio a porta do quarto semiaberta, pensando na conversa ao
telefone que tive com Saavedra no caminho para cá, depois que
peguei minhas chaves e praticamente voei a quase duzentos por
hora até aqui.
— Você me acordou, Elliot. Aconteceu alguma coisa com a
Amália?
— Eu é que te pergunto, Saavedra. Que porra aconteceu na
sessão com ela?
Diabos, o objetivo de terapia é fazer você se sentir melhor e
não te dar pesadelos.
Após um momento de silêncio e um longo suspiro, a maldita
mulher responde:
— Sabe que não posso falar.
Aperto mais firmemente o volante entre os dedos.
— Ah, por favor, não me venha de novo com esse papo de
sigilo, Saavedra! Preciso te lembrar que fui eu a te chamar aqui?
— Elliot, faça um favor a nós dois e me diga por que está me
ligando a essa hora? Aconteceu alguma coisa com a Amália?
Mordo firme meu punho cerrado, antes de dizer:
— Não sei. Estou indo para a casa dela agora. Me ligaram
dizendo que teve algum tipo de sonho fodido. — Baixo os olhos para
o mostrador de velocidade, atingindo mais de cento e noventa. Não
gostaria de admitir, mas me sinto de mãos atadas e detesto essa
sensação. — Como faço isso parar?
Outro instante de exasperante silêncio.
— Só continue com o que está fazendo. E tenha paciência.
— Eu tenho — rebato rápido. — Todo o tempo do mundo, se
for necessário.
— Sei disso.
Encarando a avenida principal ficando para trás no retrovisor,
praticamente murmuro a próxima parte.
— Só quero ter certeza de que não estou estragando tudo —
confesso meu maior temor. Não existe orgulho quando a menina
está em causa.
— Por que acha isso? — A voz profissional me faz sacudir a
cabeça.
— Não queira me analisar agora, Saavedra. Não é sobre mim
e sabe muito bem.
— Não estou, Elliot. Mas preciso que me diga, por que tem
medo de estar estragando tudo?
A desgraçada quer me ouvir com todas as letras… e quer
saber? Foda-se essa merda, estou cansado pra caralho.
— Porque não consigo mais evitar o que sinto por ela. Porque
resistir a isso é a maldita coisa mais difícil que já precisei fazer. E
acho que não é certo permitir que algo entre nós aconteça, ok?! Não
quero foder tudo na cabeça da menina!
Ela exala ar.
Eu aspiro uma grande lufada.
É isso. Verbalizei o que têm me tirado o sono, também.
— Por que não acha certo? Quero dizer, se gosta dela e ela de
você, qual é o problema?
— Como ainda me pergunta?! Olhe só para mim, quem eu sou
e o que já fiz. Uma carga fodida de vida, e ela só está começando a
dela. Amália só tem vinte anos, tem toda uma vida pela frente,
oportunidades, experiências para viver.
— E você a privaria disto por estarem juntos?
— Não, é claro que não, porra!
— Bem, Elliot. São três e quinze da manhã. E para mim, o que
está me dizendo é sobre os seus dilemas pessoais, e não os dela.
Amália está indo bem, no caminho para se conhecer, se encontrar.
É evidente que não se pode apagar o passado de uma hora para a
outra, a jornada é longa, lenta e tudo o mais que já conversamos.
Mas o que acontecer agora, no presente dela, será em grande parte
responsável por retirar o papel protagonista do passado. E pelo que
tenho visto, você está indo bem nisso.
— Então…?
— Continue o que está fazendo, mas não esqueça de manter o
canal de diálogo honesto aberto. Se quer saber o que a incomoda,
não ligue para mim. Pergunte diretamente a ela!
Um conselho e ao mesmo tempo uma lavada. Ponto para a
maldita mulher.
— Ed mandou lembranças, Saavedra.
Desliguei na cara da doutora. Idiota de minha parte?
Totalmente. Mas, de alguma forma, consegui me sentir menos
apreensivo, quando estacionei na garagem da casa de Sebastian.
Empurro a porta devagar, avisando minha entrada no quarto
de Amália. O feixe de luz do corredor atravessa uma parcela da
cama. A imagem que avisto, porra, me esmaga um pouco por
dentro. A menina está encolhida em posição fetal sobre a cama, um
bichinho indefeso e derrotado, tremendo sem parar.
— Oi… — digo tomando o cuidado de manter minha voz baixa,
leve.
— Elliot? — Limpando uma lágrima com as mangas, ela se
senta sobre a cama e puxa os joelhos para junto do peito. — Eu não
queria…
— Sei que não.
— Sonhei que estava de volta àquela casa e … — Ela tapa o
rosto, humilhada. — Estou estragando tudo, não é? Vão se cansar
de mim.
— Shhh. — Sento-me ao seu lado e a trago para os meus
braços. — Não fale isso, moy almás. Você não está estragando
nada.
Cuidadosamente, subo seu rosto com meu polegar em seu
queixo para olhá-la bem. Basta isso para identificar a agonia
encobrindo as esferas acinzentadas.
— Quer me contar o que a está incomodando?
Percebo que tenta desviar o olhar.
— Só tive um pesadelo e…
— Amália. — Seu nome em meus lábios é um pedido para que
seja honesta.
Ela aperta os lábios numa linha. Não é só o pesadelo. Há algo
aí.
— Você mal saiu deste quarto desde que a deixei aqui, depois
da terapia. Não quis treinar comigo — constato.
Amália sacode a cabeça, meio sem energia.
— Não é nada.
— Vamos. — Coloco uma mecha do cabelo negro detrás da
orelha delicada. — Converse comigo. Por favor — insisto, baixinho.
Respirando fundo, mãos escondidas sobre as mangas da
blusa, ela finalmente me encara.
— Acho que você vai se afastar de mim.
Perscruto seu rosto contraído e paro em seus olhos, um pouco
surpreso.
— Por que acha isso?
Para que não se desvie de mim, levo minhas mãos grandes e
calejadas para apanhar o rosto frágil em concha. Lindo e frágil.
Destituído de qualquer orgulho. Olhos empoçados, como se
estivesse lutando para não derrubar as lágrimas que a afligem.
— Ei, fale comigo, moy almás. Por favor, me diz o que está
acontecendo aqui. — Acaricio as têmporas com meus polegares.
— Eu…
— Sim, continue falando.
— Não posso te dar tudo o que precisa. Você é homem, tem
necessidades que não sou capaz de…
Uma maldita bala no centro do meu peito teria doído menos.
— Devchonka… — Colo nossas testas juntas, buscando seus
olhos nos meus. Culpado até a alma.
Acrescentei mais preocupação desnecessária em sua cabeça
porque fui incapaz de controlar meu maldito pau. Tô de parabéns,
porra.
— Nem sei o que dizer. Só… diabos, me perdoe por te
assustar, malyshka.
— Você não…
— Eu sim.
Ela baixa a cabeça, sacudindo em negação.
— Queria poder ser diferente, Elliot. Queria poder ser normal,
mas…
Sinto dor física com suas palavras. Elas me batem mais forte
do que uma pancada.
— Você é mais do que isso, Amália. Você é perfeita. Eu ou a
pessoa que escolher ter ao seu lado será a mais sortuda que já
pisou nessa Terra, acredite em mim.
— Não posso te dar o que precisa.
— Não preciso de nada, além de você, bem, inteira. Nada é
mais importante do que você. Entende o que quero dizer?
Uma lágrima grossa escorre dos olhos dela para meus dedos.
Sinto-a tal qual uma navalha me rasgando a pele.
Sem conseguir dizer mais nada, trago-a para junto do meu
peito e a envolvo em meus braços. Espero que seu rosto, colado ao
meu peito, seja capaz de sentir as porradas do meu coração e o
quanto essa menina é importante para mim.
E dá para ver que está cansada. Que tudo isso tem sido
demais para ela.
— Há quanto tempo não tem uma noite inteira de sono?
Ela suspira.
— Não sei.
Ad na zemle.
Desvencilho-me cuidadosamente dela e me levanto.
— Nós dois precisamos urgente de uma coisa que é inevitável,
Amália.
— O quê?
Afofo seu travesseiro. Debaixo dele, meu dedo resvala no
metal frio. A maldita lâmina. Não quero que se mutile mais. Também
não quero tirar dela o direito de decidir sobre essa coisa. É um
dilema. Deixo o objeto no mesmo lugar. Em breve, Amália mesmo
irá se desfazer dessa porcaria, sei que sim.
— Dormir.
Jogo um travesseiro para mim, sobre o tapete no chão.
— Você vai…?
— Posso ficar? — Não quero assustá-la outra vez. Mas a ideia
de deixá-la sozinha é uma merda de ruim.
Olhos sinceros sobem e seguram os meus.
— Eu ia te pedir para ficar. Só que…
Arqueio uma sobrancelha.
— “Só que”?
— Não precisa ser no chão. A cama… a cama é grande, não é
justo.
— Você me quer aí? — Preciso das palavras.
Corajosamente, admite:
— Quero.
Coço a nuca. Mas não nego. Ao contrário, pego o travesseiro
de volta.
Inteiramente vestido, deito-me ao lado do corpo pequeno e
suave. Cabelos negros espalham-se ao seu redor tal qual uma
cortina da noite iluminada pela fresta de luz que vem do corredor.
Sinto vontade de apanhar meu celular e imortalizar o momento em
uma foto de nós. Se essa menina soubesse o quanto é única, o
quanto significa para mim.
Lado a lado, nós apenas nos olhamos.
— Se eu pudesse, faria o tempo parar agora — sussurra ela,
olhos grandes e cansados prendendo os meus, dando voz aos
meus próprios desejos.
Acaricio a bochecha pálida com os nós dos meus dedos.
— Não há nenhum lugar no mundo que eu queira estar mais
do que aqui — revelo, voz grave, enrouquecida. — Mas, se parar o
tempo, então não viverá tudo o que pode ser vivido.
— Elliot…. — murmura meu nome.
— Sim, Amália?
Ela hesita, respira fundo, e então prende a respiração, antes
de dizer.
— Obrigada.
Uma palavra simples, curta. E capaz de me implodir.
Sem pensar muito, trago-a para mais perto até que seu rosto
descansa sobre meu peito.
— Não me agradeça. — Quando ouço um suspiro baixinho
que indica que pegou no sono empurrada pela exaustão, revelo
para a noite silenciosa: — Ya lyúblyu tyebyá, malyshka.[28]
É a primeira vez que digo isso a alguém. É a coisa mais séria
que eu já disse.

— Sabia que te encontraria aqui. — Entro no escritório tomado


pela penumbra do novo dia que está prestes a chegar. A silhueta do
cara, na cadeira virada para a vidraça, se destaca.
— Veio para pedir autorização? — inquire ele, ainda sem se
virar. Sei que tem um copo na mão.
Sirvo-me de um também.
— Para quê?
— Mudar-se para meu quarto de hóspedes. Não é o que
pretende fazer?
O puto me conhece melhor do que ninguém.
— Se — respondo — e eu disse se eu tivesse que pedir, seria
à espanhola. Ela é a dona de tudo por aqui, não?
— Cuzão. — A risada baixa ressoa por trás do copo.
Respiro com toda a capacidade e vou até a vidraça com vista
para o lago.
— Decidi passar algumas noites aqui, sim. Mas não quero
ouvir sua opinião — aviso, antes que ele comece.
— Não pensei em dar. Na verdade, acho que te devo um
ponto.
— Por…?
— Por não me ouvir, antes. A menina está melhor aqui. Dá
para ver que você está fazendo um bom trabalho.
— Mas? — Porque sempre tem um mas, com o cara.
— Mas nada. — Olhos taciturnos estreitam-se quando me
focam. — Nunca te vi mais empenhado em fazer algo dar certo,
como está agora. Acho isso positivo.
— Ah, vamos lá, você é um filho da puta cheio de se meter no
que não é da sua conta. Vá, diga logo o que está pensando.
Revelando-se como é, o fodido bebe um longo gole, antes de
dizer o que realmente tem em sua mente.
— Enquanto está construindo um mundo novo para ela, Elliot,
você também está tramando sua morte com essa operação suicida
que pensa em fazer sozinho. Está permitindo que a menina se
apegue a você, quando pode botar tudo a perder se resolver
embarcar para essa missão kamikaze com Vladimir, e sabe disso.
Cerro os dedos em volta do copo, a mandíbula retesa. Tenso.
— Sei o que estou fazendo, Sebastian.
— É mesmo? Pois, para mim, o que parece é que está
pegando o caminho mais longo, quando poderia facilmente meter
uma bala na cabeça do bosta do Vladimir e resolver tudo em casa
mesmo.
— Como você fez, ao tirar Verhoeven do caminho bem quando
estávamos entregando-o para Jurgen e os caras da Interpol?
Sebastian dá de ombros.
— Verhoeven oferecia risco iminente à minha esposa. Não
podia deixar o cara vivo.
Exausto, mentalmente, esfrego a ponte do nariz.
— Se eu simplesmente apagar o cara aqui, estarei
desencadeando uma guerra local. Em outros tempos, não me
importaria em entrar em uma. Mas não agora. Quero que Moscou
seja um território seguro para a menina, que tenha paz em nossa
terra.
— O que acha que vai acontecer quando os Brejnev souberem
que você armou uma emboscada para o líder deles e o entregou à
Interpol?
— Vão me agradecer. Querem Vladimir longe há muito tempo,
só não podem fazer isso eles mesmos e nem permitir que alguém
daqui faça. Código das ruas. Mas com o desgraçado fora dos limites
da Rússia, fazendo as merdas dele em outro país, aí muda de
figura.
Sinto um novo olhar do cara em mim, atento. Sondando com
mais cuidado.
— Então você já se decidiu sobre aceitar o acordo com o
sobrinho do cara.
Dou de ombros.
— Fiz o que precisava ser feito.
— Não gosto disto, Elliot. Não estou com um bom
pressentimento, e sabe que não sou dado a ter pressentimentos.
Sei dos riscos de fazer uma operação sozinho. Só quero ter
certeza de que não vou meter nenhum deles em alguma merda
grande que irá foder com tudo. Preciso que estejam aqui, em
segurança, para cuidarem da menina caso algo aconteça a mim.
Não sou ingênuo de pensar que sou invencível. Sempre há
riscos. Quero deixar Amália o mais coberta possível.
E garantir que Vladimir Brejnev nunca mais seja um problema.
ELLIOT

Paro na entrada do quarto e tomo um momento para apenas


observá-la. Está escrevendo algo no caderno que ganhou de
Saavedra. Rosto sereno, expressão descansada. Faz cinco dias que
venho passando a noite aqui, e, sendo isso a causa ou não, tenho
notado a mudança expressiva na menina. Não há qualquer
ferimento novo em seus pulsos, ela tem dormido e se alimentado
melhor. Está mais falante. Parece até… feliz.
Aos poucos, as coisas vão se ajustando.
— Toc, toc. — Bato os nós dos dedos contra o batente.
Pega desprevenida, se surpreende com minha presença.
— Ah, oi… — Há algo de belo na maneira como suas
bochechas coram, ou como o sorriso fica preso entre seus dentes.
— Pelo jeito, está inspirada. — Aponto com o queixo,
suavemente, para o caderno.
Ela o abraça contra seu peito.
— É só uma coisa que comecei a fazer. — Olhos desviam-se
dos meus, parecendo envergonhada.
O que aguça minha curiosidade.
— Quer compartilhar?
Amália sacode a cabeça, nem um não, nem um sim.
— Minha avó, ela gostava de escrever poemas e… acho que
eu também, então estou rabiscando algumas coisas e… — A
bochecha corando graciosamente me faz apenas beber da imagem.
— Nem é nada de mais, mas ajuda a esvaziar a cabeça.
Se escondo o espanto que a informação traz, não faço ideia.
Mas que me deixa surpreso pra caralho, ah, deixa. Era a última
coisa que eu esperava, e, porra, fico tão orgulhoso e contente por
ela, que devo estar sorrindo como um bobo.
— Fico muito feliz por você, Amália.
Ela assente com uma expressão confiante. Uma que vi poucas
vezes em seu rosto.
— Tenho uma notícia para você — revelo, sorrindo.
— O que é?
Deus, amo vê-la assim, corada, sem aquela sombra escura
permeando sua íris.
— Há um curso de russo para estrangeiros, numa escola de
idiomas aqui perto. A primeira aula começa na segunda. Caso ainda
esteja pensando nisto.
Vejo que analisa a informação e pondera. Então volta a
assentir.
— Gostaria muito de fazer, Elliot. Só não tenho, você sabe,
nenhum dinheiro. — Essa parte a constrange.
— Não se preocupe com isso, há um esquema de bônus para
familiares de nativos. — Uso-me do que mais abomino, a mentira,
embora seja por uma causa válida. — Se quiser, podemos ir fazer a
inscrição.
— Seria ótimo. Na verdade, acho que a vó Zhena e a tia
Merian também vão gostar muito. — Volta a morder o lábio para não
rir. — Hoje de manhã, tia Merian me disse que quer cortar os meus
pelos. — Aponta para os cabelos negros e brilhantes, um véu da
noite.
Explodo em uma gargalhada. As confusões de linguagem que
a utilização do tradutor do celular tem feito com aquelas duas vem
garantindo momentos, no mínimo, hilários.
— E você vai permitir?
Amália alisa o rabo de cavalo, pensativa, e dá de ombros.
— Acho que vou acabar deixando, sim. Parece importante
para a tia Merian.
Sacudo a cabeça, ainda rindo. Importante uma ova! Aquela
doida só quer fazer da menina uma bonequinha para enfeitar.
— Plantei morangos com a vovó Zhena, hoje. E ela também
me pediu para ficar responsável pelas mudas que já estão brotando.
— É mesmo?
— Gosto disso, de estar com ela todos os dias na estufa e
fazer esse trabalho.
E a velha sabe disto. Faço uma nota mental de agradecer a
velha Zhena mais tarde.
— O que é isso? — Finalmente ela enxerga o embrulho que
escondo atrás de mim.
— Abra. — Entrego-lhe o pacote.
Sorrindo de um jeito novo, as mãos trabalham em abrir o
pacote. Quando vê a caixa, se surpreende.
— É uma lanterna de cabeceira que tanto pode ser um abajur
de luz quente, como projetar o céu noturno estrelado, para que não
sinta mais medo do escuro e tenha que deixar uma fresta da porta
aberta todas as noites.
Se eu soubesse que obteria esse tipo de felicidade cintilando
em seus olhos, teria comprado a maldita coisa muito antes.

Na escola de idiomas, intermedeio as perguntas e a tradução


necessária para tirar as dúvidas de Amália, que são poucas. A
menina tem o hábito de consentir com muita facilidade. Não falei
nada a esse respeito porque sinto que, no futuro, isso também será
notado por ela e, conforme ganhar confiança, será também
melhorado. Um passo de cada vez na construção de alguém forte
que, em breve, não se envergará nem sob um tornado.
Ao atravessar as portas de vidro e descer os degraus para
levar Amália de volta ao carro, fico instantaneamente em alerta.
Há uma picape preta parada a alguns metros do outro lado da
rua. Poderia ser só mais um veículo sob a neve fraca que começou
esta manhã, se não fosse a maneira como os pneus se deformam a
partir do peso da estrutura blindada, ou vidros trazendo uma
camada a mais de película escurecida.
Maldito seja Vladimir e seus cães de guarda.
Eu deveria caçar o filho da puta agora mesmo e estripar sua
garganta por ousar mandar alguém me seguir.
Não faço por uma única razão, Amália está comigo. Protegê-la
é a única coisa que realmente importa. E eles sabem disto. Sabem
que não vou fazer nada a respeito da ameaça velada. Por enquanto.
Não deixo de mudar meus planos do dia por eles. Colocando a
menina dentro da minha caminhonete, que também tem a
blindagem de um carro forte, ajudo-a com o cinto.
— O que acha de almoçarmos fora?
— Mas a babushka… — está cozinhando uma refeição
especial para a menina. Sei disso, tem acontecido todos os dias, em
todas as refeições. Desde a noite do pesadelo, a avó de Sebastian
tem se empenhado em cuidar e mimar Amália com mais devoção do
que já a vi fazer com qualquer um antes. Outra razão pela qual sou
grato. E o carinho certamente é recíproco.
— Posso ligar para ela e avisar — sugiro.
— Bem, se ela não se chatear…
Dentro do meu carro, busco em meu celular a playlist que
andei pesquisando e deixo o sistema interno de som ressoar. Ao
sinal do primeiro acorde da primeira música, noto que Amália se
empertiga, franze o cenho e escuta com mais atenção.
— É música espanhola — diz, parecendo encantada.
— Pensei que gostaria de ouvir — admito, guardando um
sorriso.
Vejo, através do canto do olho, que a menina suspira com
deleite, como se absorvesse profundamente, e assente.
— Gosto de música. Minha avó também gostava muito.
Sei disto. Vi você cantarolando ontem, distraída, penso, porém
não digo em voz alta. Foi uma surpresa do caralho assisti-la
resmungando uma canção antiga em espanhol, enquanto ajudava a
velha Zhena na cozinha. Penélope uma vez me confidenciou que
amava músicas porque elas têm o poder de espantar o silêncio dos
fantasmas, em outras palavras, não havia rádio ou tevê na casa
daquela maldita família. Apenas o silêncio.
Vi que o mesmo se aplica à menina, também.
Vou dirigindo no caminho para os vales de Suzdal, uma das
mais antigas cidades, notória pela beleza campestre e culinária
local, e prestando atenção às suas reações a cada nova canção.
Em alguns momentos, noto que fecha os olhos e aspira o vento
fresco que vem da paisagem. Serena, suave. Linda. O tipo de
beleza que aperta o peito. Preciso controlar a vontade de afagar o
local.
Reconheço a próxima canção que vem dos autofalantes assim
que o som das notas iniciais do violão repercute. Levei algum tempo
para encontrar essa música especificamente, a mesma que a vi
murmurando.
Parecendo não perceber o que faz, talvez até
involuntariamente, o primeiro sinal de que também reconhece a
canção antiga, antes mesmo da voz do cantor aparecer, é o batuque
discreto de seus pés no chão, no ritmo do flamenco.
Nas primeiras estrofes, suas mãos batem uma na outra na
cadência das castanholas. Porra, é contagiante. Até eu me pego
batucando o volante. Que sensação foda. Que satisfação o
momento traz.
Mas o que faz a seguir simplesmente me paralisa com um
orgulho fodido.
Ela canta.
— Como el agua, como el agua, como el agua, Como el agua
clara que abaja del monte, asi quiero verte, de dia y de noche[29]— a
voz melodiosa e rouca, repleta de calor, como nada que já vi na
vida, canta baixinho junto de Camarón de La Isla.
Quero diminuir o volume de Camarón, somente para escutá-la.
Por muito pouco, não faço. Amália está relaxada, distraída,
mergulhada num momento de paz e alegria, vejo isso em suas
feições.
Desta vez, preciso mesmo afagar meu maldito peito. O que
existe de mais belo no mundo. Sem dúvida ela é o que existe de
mais belo.
— Minha avó cantava essa música para mim, quando eu era
criança, acredita? — Lembrando que estou ao seu lado, ela se vira
para me contar, espontaneamente.
— É mesmo? — Finjo que o brilho novo em seus olhos não é a
coisa mais fantástica que já vi e trato com normalidade. Meu interior
grita: “isso, moy almás, seja feliz, cante, lembre só de coisas boas!
O mundo é seu!”. — É uma música bem animada.
— Tinha um chafariz em nosso vilarejo, e enquanto ela e
algumas vizinhas lavavam as roupas lá, minha abuela cantava. Eu e
algumas crianças ficávamos ao redor delas, dançando e brincando,
e, no verão, vovó espirrava água em nós.
— Ela era uma boa avó, pelo jeito.
— Era. Era sim.
Não sei se é algo que enxerga em mim, mas de uma hora para
outra, Amália passa a me encarar daquele modo profundo e doce. O
sorriso da lembrança vai dando lugar a uma expressão mais séria,
não de um jeito ruim.
— Você e ela são as pessoas mais importantes da minha vida,
Elliot. Mesmo que minha abuela não esteja mais aqui.
Sustento seu olhar.
— Fico feliz que me considere importante, Amália.
Assisto seu olhar sair do meu e encontrar minha boca, as
pupilas cresceram sobre os arcos cinzas. Seus pensamentos
praticamente gritam entre nós.
O ar dentro do veículo, mesmo o que entra pela janela, se
torna denso.
Tem sido assim nessa última semana, de uma hora para outra
as faíscas surgem, tal qual uma maldição e uma benção. Me fazem
querê-la com dor e desejo… desconfio que para ela também.
— A gente não… se beijou mais — sussurra.
Não esperava que dissesse isso. Não assim, tão
explicitamente. Mas essa é a Amália. Doce, inocente, sincera. Não
faz joguinhos.
Meus músculos enrijecem como se as palavras me atingissem
fisicamente. Noite após noite, ela se deitou em meus braços e
adormeceu profundamente agarrada a mim. Noite após noite,
desejei tomar seus lábios. Noite após noite, me puni por isso,
controlando minha mente, meus pensamentos.
— A gente tem um acordo, lembra? — Meu timbre grave
entrega que não estou tão passivo quanto quero parecer.
Ela aperta os lábios e assente. As mãos unidas.
— Terapia, exercícios, estudar… — Encolhe os ombros, como
se quisesse dizer que está fazendo tudo isto.
Exalo com toda a capacidade do meu peito.
— Quando se sentir pronta, e ainda quiser, estarei aqui —
repito o que eu disse há alguns dias. Minha parte do combinado.
Mordiscando o lábio inferior, ela balança a cabeça outra vez,
mas a intensidade de seu olhar cinzento continua ali, e o mantém
preso ao meu.
Desvio por um momento. Meu corpo tenso.
E então decido parar no acostamento.
Posso fazer isso. Tenho um autocontrole de ferro, quando
quero. Dessa vez, vou saber o que fazer.
— Venha aqui.
Sem precisar questionar, Amália se inclina e passa a perna
sobre a minha, para se sentar em meu colo. Seu peito sobe e
desce, numa lufada forte. Não sou um maldito monge, identifico as
mudanças em seu corpo com o ganho de peso desses últimos dias.
Mas em vez de explorá-las, como eu faria com qualquer outra
mulher, cerro meus punhos ao lado de suas coxas.
— Você quer fazer isso? Quer que a gente se beije? — Minha
voz é um som rascante.
A cabeça move-se para cima e para baixo.
— Preciso de palavras, Amália.
Acompanho outra vez o movimento da garganta.
— Quero, Elliot.
É como passar as mãos sobre o topo das labaredas de uma
grande fogueira, você se queima, mas não muito, está ali, na linha
iminente de um incêndio que o devastará inteiro, mas ainda tem o
controle e pode escolher.
Recebo o doce calor de sua boca na minha com o peito
batendo um pouco mais rápido. A mente se desliga apenas de uma
parte da racionalidade. Só que ainda estou no comando. Ainda
consigo controlar o desejo que tenta correr e devastar minhas veias.
Engulo seu pequeno gemido, para isso tenho que separar
meus lábios. Ela também separa os dela. Sua língua toma a
iniciativa de buscar a minha, vem devagarinho, timidamente
conquistando território.
Minhas mãos se abrem em suas coxas firmes. Esse é o limite,
digo a mim mesmo.
As mãos dela me seguram pelos ombros. Uma então corre
suavemente pelo meu pescoço e encontra a nuca. É a primeira vez
que me realizo pela decisão de raspar a cabeça permanentemente.
Não há nada entre seus dedos suaves e minha pele. Mas também
consigo lamentar a decisão. Aposto que ela puxaria os fios, se
existissem.
— Gosto tanto de você, Elliot — diz contra minha boca,
impulsivamente.
Meio que grunho em resposta, recebendo a pancada com toda
a força e bebendo as chamas que ardem em minha garganta. É na
impulsividade que moram nossas verdades.
Meu controle urge, como um cão latindo.
Afaste-se das chamas!
Queime-se nelas!
Este é o limite. O querer e a razão entrando em conflito dentro
de mim, alastrando labaredas célula a célula, é meu limite.
Brandamente, controlando a propagação das malditas chamas,
afasto um pouco nossas bocas.
Sou contemplado com um som de abandono fraquinho.
Mas é preciso que seja assim.
— Você também é muito importante para mim, moy almás. —
Dou um último beijo casto em sua boca perfeita, avermelhada. —
Mais do que qualquer outra coisa.
E o que eu tiver que fazer por você, farei.
Mesmo que eu tenha que duelar contra a necessidade
avassaladora de ter mais dela a cada mísera vez. Serei um maldito
celibatário pela eternidade, se necessário for. Ainda que um olhar
nela, inteira, nas bochechas coradas, pupilas completamente
dilatadas, na respiração ofegante do melhor jeito, me diga que pode
ser que um dia as coisas sejam diferentes.
Numa hipótese ou na outra, estou aqui. Sempre estarei.
AMÁLIA

O alfabeto russo é composto por 33 letras. O “B” minúsculo


tem som de “V”, de “vaca”. водка é vodca, a professora explica.
“Vocês vão ouvir muito essa palavra” ela brinca, “Vodca é quase que
como água por aqui”.
Dois traços retos formando meio quadrado é “G”, de gato. O
“D” parece um “A” meio torto, mas tem som de D.
Anoto tudo no caderno, tentando desenhar as letras da mesma
maneira como a professora, uma mulher gentil que já viveu em
Madri por cinco anos, as escreve no quadro. Minha primeira aula de
idioma russo.
Essa manhã, quando Elliot foi me buscar, vovó Zhena me
surpreendeu com uma lancheira preparada com todo o carinho para
eu trazer comigo. Ela estava tão empolgada com a ideia de eu
aprender sua língua que me deu dois abraços antes de eu sair.
Senti a garganta embargar, pois me lembrou muito minha abuela.
Lembro-me de Carme Cruz Peña me arrumando para levar à
escola, quando criança. Lembro do perfume de sua água de cheiro,
do batom rosado nos lábios enrugados enquanto me penteava.
A saudade dela sempre teve um efeito ambíguo dentro de
mim. Trazia a lembrança de um tempo feliz, e ao mesmo tempo a
dor de não poder ter nada daquilo de volta.
“O que te faz bem” a questão levantada pela Dra. Saavedra
me vem à mente. Isso me faz bem, o cuidado da babushka me faz
bem, traz uma sensação de pertencimento e paz.
Assim que a aula termina, recolho o caderno e caneta e os
guardo dentro da mochila. Do lado de fora do prédio de dois
andares, a imagem de quem está me esperando faz algo borbulhar
dentro de mim. Elliot, vestindo a jaqueta de couro preta, óculos
escuros espelhados, escorado na lateral do carro. Aproveito-me de
que está distraído vendo alguma coisa em seu celular para admirá-
lo conforme vou me aproximando. Sua imagem é de alguém forte,
seguro de si, que não dá a mínima para o que pensam a seu
respeito. E bonito de um jeito agressivo, só dele, com marcas só
dele. O que um homem assim viu em mim?, a pergunta serpenteia
em minha mente.
— Vai ficar o dia todo aí parada, ou acha que podemos ir? —
pergunta, de cabeça ainda baixa, fitando a tela do celular. O humor
leve em sua voz me faz querer sorrir.
— Não sabia que tinha me visto. — Aperto as alças da mochila
em meus ombros.
Devagar, ele sobe o rosto para mim, posso enxergar meu
reflexo em seus óculos.
— Vejo você o tempo todo, Amália.
Respirar se torna um pouco difícil quando ele diz esse tipo de
coisa, e sei que é real.
— E então, como foi?
— Zdravstvuy.[30] — Faço junto um gesto com a mão em
saudação.
Rindo, Elliot se desencosta do carro e se aproxima bem
devagar, parando diante de mim. O vento leva uma mecha de meu
cabelo para a frente do meu rosto, gentilmente Elliot a coloca detrás
de minha orelha. Apesar do frio, seus dedos estão quentes.
— Zdravstvuy — repete ele, mais baixo, esticando a pronúncia
da primeira sílaba com a língua entre os dentes, fazendo um som de
“isss”. — Olá, Amália.
A tradução é exatamente essa, “olá”, mas ouvir em seus lábios
torna o som rico, envolvente.
— Olá, Elliot.
— Como foi?
— Bom. — Assinto, sem quebrar o contato visual, olhando
para cima, diretamente para seu rosto, e me vendo refletida.
— Bom? — Arqueia a sobrancelha, zombeteiramente.
— Sou a única aluna da turma — conto, mas acho que isso ele
já sabe. — A professora disse que é uma boa coisa, que estou
tendo uma vantagem, mas que preciso exercitar com as pessoas o
que aprender, você sabe, praticar.
— U tebya krasivyye glaza[31] — diz ele, o timbre grave e
profundo.
— Acho que essa parte ainda não aprendi — pego-me
murmurando, encantada com o idioma.
Primeiro um sorriso move o cantinho de sua boca, depois
recebo uma carícia macia com os nós de seus dedos sobre minha
bochecha, tão sutil quanto um floco de neve.
— Seus olhos são lindos — esclarece. — É o que significa. Os
mais lindos que já vi.
Prendo o fôlego, sem nem me dar conta de que estou fazendo
isto.
— Minha abuela dizia que eram os olhos da minha mãe.
Elliot retira os óculos, um pouco mais sério.
— O que lembra dela?
— Não muito. — Encolho os ombros. — Que ela era alegre,
gostava de viver a vida, e que não gostava de Astúrias.
Segundo vovó, essa foi a razão de ter me deixado, antes de
cair no mundo.
Elliot opta por não fazer qualquer comentário. Só estende a
mão para mim.
— O que quer fazer hoje?
— Eu combinei de ajudar Penélope com os preparativos do
aniversário de Sol de Maria, é amanhã. Vamos a uma loja, comprar
balões.
Ele assente. Antes de entrarmos em seu veículo, dá uma boa
olhada em volta. Algo o preocupa, dá para saber.
— Malysh akula, doo doo doo doo doo doo. Malysh akula, doo
doo doo doo doo doo. Malysh akula, doo doo doo doo doo doo.
Malysh akula![32] — Penélope cantarola para Sol de Maria em seu
colo, na intenção de distraí-la de tentar pegar tudo o que vê pelo
caminho, conforme andamos na loja de artigos para festa.
A mãozinha da bebê não para nunca. Para cada coisa
colorida, é um gritinho vibrando e pedindo para tocar.
Paramos diante da seção de personagens. Sol de Maria
aponta freneticamente para a miniatura de um tubarão em forma de
balão de ar.
— Akula![33] — a menininha tenta verbalizar incongruente.
— Ah, achamos o Baby Shark[34], que beleza… — resmunga
Penélope, mas não me parece muito animada com a descoberta.
Confusa, a questiono com o olhar.
— O quê?! Você ainda não sabe o que é Baby Shark, Am? —
A mulher me olha fingindo horror, então abre um sorriso meio
maligno. — Não se preocupe, chica, em breve irá descobrir. Essa
musiquinha terrível tem o poder de entrar em seu cérebro e grudar
em cada neurônio de sua cabeça. Até quando não está escutando,
você pensa que está. E mais: não existe um idioma que escape
dela, está lá, na internet, em espanhol, russo, inglês. Qualquer um,
é só escolher. Não é mesmo, Ed?
Ed?
Olho em volta e o encontro saindo de trás de uma gôndola de
produtos descartáveis. Mãos enfiadas nos bolsos da calça,
expressão de poucos amigos. Como sempre, veste-se todo de preto
com blusa de manga comprida e gola alta.
— Olá, Penélope.
— Já que está nos seguindo feito um cão de guarda, ao menos
ajude a carregar o cestinho — diz ela, descontente.
— Não estou aqui para isso — resmunga o homem, sério.
Quase dá medo de olhar muito tempo para ele. Não que seja
ameaçador, ou algo assim, só parece… intimidante demais.
O que não significa nada para Penélope.
— Agora está — diz ela, sem uma única centelha de cautela.
— E aí, Sol? — Ed ignora sumariamente o tom sarcástico de
Loupe e passa a mexer com a neném, que dá logo uma
gargalhadinha efusiva.
Engraçado o efeito que crianças causam, mesmo em homens
meio assustadores como ele.
— Então alguém está completando idade, não é? Sabe qual é
o costume de nós, russos, no aniversário? — pergunta ele para a
bebê, ciente de que não obterá nada além de outra risadinha
banguela.
Noto que tomam o cuidado de falar em espanhol, para que eu
também entenda. Ao contrário de Elliot, que domina bem meu
idioma, Ed tem um sotaque forte, carregado.
— Ela é só metade russa, Ed — Penélope o lembra.
Ele finge que não escuta e continua a interação com a
pequena princesa.
— Minha Mama[35] costumava dar um puxão de orelha para
cada ano completado. No seu caso, é apenas um, você tem sorte.
— A mão grande de dedos pálidos vai para a orelha da bebê, a
segura suavemente e então retira algo detrás. — Olhe o que o tio
Ed encontrou aqui, menina sapeca! — Diante dos olhinhos
brilhantes de Sol de Maria, Ed apresenta um Cisne de origami
minúsculo e perfeito.
Loupe revira os olhos, meio sorrindo, meio durona, não
querendo dar o braço a torcer, mas não nega que também se
admira com a façanha.
Fico observando Ed e pensando no que senti na primeira vez
que o vi, no dia em que fui resgatada. Não me lembro de muita
coisa, ou precisamente dele, mas o pouco de que tenho memória foi
de me surpreender com a selvageria perigosa que havia em seu
semblante quando voltou à casa e revelou que um dos irmãos
Molina havia escapado. Era Santiago, eu sabia. Santiago estava no
quartinho, se forçando em mim, quando a voz alterada de sua mãe
avisou que a casa havia sido invadida por Elliot e seus amigos. “Eu
venho te buscar, Mel, não se preocupe”, Santiago jurou antes de
fugir pé por pé do cômodo escuro e logo depois passar o cadeado,
me trancafiando outra vez.
A espera de que Santiago cumprisse a promessa foi uma
companheira agonizante desde então. Sentia a presença dele em
cada respiração, aonde quer que eu fosse, a ameaça, o pavor. A
ideia de que aquele homem me encontraria não me permitia dormir
ou ter paz, principalmente depois que Elliot parou de me visitar na
clínica.
Às vezes ainda consegue me desestabilizar, se eu for sincera.
Sei que está tudo em minha cabeça, mas é difícil ser racional e
separar as coisas. Pensar nele, neles, enfraquece minhas pernas,
causa vertigem, náusea, tudo ao mesmo tempo.
Se não fosse o bastante, um pensamento sorrateiro cria uma
onda de mal-estar… e se Santiago conseguiu mesmo escapar? E
se…?
Abraço meu corpo com força para deter o calafrio.
— Ei, Am, você está bem?! — Penélope questiona um pouco
alarmada.
— E-estou, estou sim — ainda que eu mal consiga ouvir minha
voz, a língua grudou no céu da boca.
Só que dou o meu melhor para simplesmente sorrir e fingir que
nada mudou no último minuto. Que as lembranças e o medo não se
infiltraram em cada pequeno pedaço do meu corpo. Minto que sou
forte.
Não sei se a convenço. Mas, no olhar azul penetrante de Ed,
encontro a certeza de que ele sabe a verdade. Sabe que aquilo tudo
ainda está vivo aqui dentro.
Penélope limpa as mãos nos lados de seu jeans e exala lento
e bem fundo. Acho que ela também sabe. Claro que sabe, ela
esteve lá, passou por tudo aquilo, embora às vezes seja fácil de me
esquecer disso.
Tentando recuperar o clima de antes, Loupe se vira para Ed e
sorri largamente, de um jeito que ele não parece gostar.
— Muito bem, Ed, já que veio sem ser convidado, pode
perfeitamente segurar a Sol de Maria enquanto fazemos compras.
Vamos lá, Am?
— Não sou babá — rosna ele. Então faz cócegas na
barriguinha dela. — Não é mesmo, Solzinha? Tio Ed não é babá,
não é verdade?
Sol de Maria só ri. E é nisso que eu foco, no som precioso de
sua risadinha.
É como estar de frente a um labirinto, disse doutora Cassandra
uma vez, em vez de entrar nele, olhe ao redor e se concentre no
que há de positivo.
Essa família e essa nova vida são o que há de positivo. É no
que me esforço para mentalizar, contra o duelo que aquela parte do
meu cérebro tenta travar.
ELLIOT

Tem sido do mesmo modo todas as noites. Eu me deito em


sua cama, completamente vestido, e ficamos apenas contemplando
a companhia um do outro por um tempo sob a projeção do céu
noturno estrelado no quarto, até que Amália adormeça. Sei
exatamente quando acontece, quando ela consegue se render ao
sono de verdade. É difícil, muitas vezes suas noites são agitadas,
apesar de ela pouco se mexer na cama – neste aspecto, a
disposição do corpo é sempre a mesma, em posição fetal, encolhida
até parecer ter a metade de seu tamanho – mas tenho notado uma
boa melhora em sua capacidade de relaxar. Cada dia que passa,
Amália vem dormindo com mais facilidade, os pesadelos se
tornando menos recorrentes.
Exceto por essa noite.
Em pé, próximo à janela, observo seus cabelos tão escuros
quanto a noite esparramados no travesseiro tal qual um pedaço do
próprio céu no teto, lábios contraídos, choramingando baixinho,
agitada. Penso em intervir, mas me obrigo a apenas aguardar, às
vezes seus pesadelos se esvaem naturalmente.
Corta a porra do meu coração saber que ela ainda os tem. Que
os fantasmas ainda encontram abrigo em sua cabeça.
— Não, não, por favor, me deixe em paz!
Aperto meus punhos diante do pedido fraco, desesperado.
Malditos, todos eles, se pudesse os mataria outra vez.
— Sai, sai, sai de cima de mim, eu não quero, eu não gosto!
Seu clamor é meu limite. Seu sofrimento é o meu próprio.
Aproximo-me da cama e me sento ao seu lado.
— Ei, moy almás, sou eu, Elliot, estou aqui — pronuncio baixo,
em tom apaziguador, esperando que minha voz a envolva e a traga
de volta.
— Elliot, me ajuda — geme, incongruente.
— Isso é só um sonho, Amália. Eles não podem mais te fazer
mal, agora eu estou aqui.
Lágrimas espessas rolam por baixo da cortina de cílios negros
e percorrem a bochecha pálida. Suavemente corro meu polegar por
elas, uma a uma, desejando com todas as forças arrancar com
minhas próprias mãos sua dor.
— Elliot? — murmura ela, com mais sobriedade, naquele
estágio entre o sono e o despertar.
— Sim, estou aqui, moy almás.
Aos pouquinhos, a respiração vai se moderando a um ritmo
cadenciado. Mais lágrimas escorrem. Mas agora Amália está
desperta.
— Foi só um sonho — afirmo.
Ela assente, sem abrir os olhos. Odeio com toda a minha força
a humilhação presente em seu rosto contraído.
— Estou aqui com você. — Trago sua mão fria para minha
boca e beijo suavemente seus dedos fechados.
— Desculpe — sussurra.
— Ei, moy almás, lembra o que conversamos sobre se
desculpar?
— Eu… eu… — Para, absorve uma grande respiração e
finalmente abre os olhos cinzas para mim, me deixando ver toda a
dor dilacerante que há neles. — Eu queria nunca mais ter que
sonhar.
Aquiesço, sentindo como um golpe.
— Um dia só haverá sonhos bons — é uma promessa.
Envolvo sua mão entre as minhas e passo a soprar calor para
ela. Gostaria de fazer mais. De dizer mais, mas o que palavras
podem fazer em situações fodidas?
Após um longo momento de silêncio, um sorriso
desesperançoso move um dos cantos de sua boca bonita, enquanto
ela observa nossas mãos unidas.
— Às vezes é difícil acreditar que aquilo tudo acabou.
— Mas acabou — reafirmo.
A convicção em mim, ela é que faz surgir uma nuvem em seus
olhos acinzentados, quando sobem outra vez para os meus.
Compreendo imediatamente o que quer saber. Ainda assim, espero
que verbalize com todas as letras.
— Como foi que eles…? Estavam dentro da casa, quando
você…?
Aspiro com toda a capacidade. Ela quer saber a história toda.
É um pedido justo. Dei a Amália esta alternativa quando a levei ao
que sobrou daquela maldita casa. E quem sabe a menina precise
mesmo disto. Quem sabe seja o necessário para extrair de vez
qualquer vestígio de medo que ainda insista em atormentá-la.
— Tem certeza?
Amália se senta na cama e puxa o cobertor para junto de si,
até o queixo. Está tremendo muito, e ambos sabemos que não tem
nada a ver com a temperatura aproximando-se de zero lá fora.
— Tenho.
Certo.
Como contar sem parecer um monstro aos seus olhos?
A verdade. Meu lema é que a verdade é a única que salva.
Não poderia faltar com ela quando essa menina está em causa.
Só que não consigo fazer isto olhando diretamente em seu
rosto. Não consigo fazer isto enxergando nela a compreensão de
que sou um assassino frio e não sinto qualquer arrependimento.
Portanto, mudo minha posição, ajeitando-me lado a lado com
ela, e me escoro na cabeceira.
Amália automaticamente descansa sua cabeça em meu
ombro, se ela se dá conta do gesto, não tenho como afirmar, mas
seu primeiro reflexo de procurar amparo em mim me preenche de
uma sensação fodida de grandeza, de satisfação.
No quarto silencioso iluminado apenas pelo efeito de noite
estrelada do abajur, exalo lentamente.
— Penélope um dia me contou o que havia acontecido com
ela. Foi sem querer, na verdade meio que tive que a embriagar para
isso. — Busco moderar meu tom para o menos assustador possível.
Se vou contar a história inteira, com todos os fatos, preciso
equilibrar as coisas.
— Sebastian também ouviu, e prometemos um ao outro fazer
algo a respeito. Então, assim que a oportunidade surgiu, fomos à
Espanha.
Apanho sua mão de volta e passo a afagá-la com o polegar.
— Quando entramos naquela casa, não esperava te encontrar
lá. Pensei que o que fizeram à Penélope havia sido um fato isolado.
Depois, investigando-os, descobri que vocês não foram as únicas.
Seu corpo se retrai.
— Você quer mesmo saber o que fizemos, Amália?
— Você me disse que eles queimaram junto com a casa,
mas… — sua voz falha. Há algo a incomodando, profundamente.
— “Mas”?
Amália se encolhe junto ao cobertor.
— Naquele dia, o Ed… — A voz é tão baixa que mal a ouço.
— O que tem Ed?
— Ele voltou dizendo que um deles havia fugido — ao dizer
isto, percebo que corre os dedos pelo amontoado de cicatrizes em
seu pulso, uma sobre a outra, causadas por ela mesma, encobrindo
um nome. Um maldito nome cravado em sua pele como se Amália
fosse propriedade daquele desgraçado.
A tatuagem rudimentar e grotesca foi uma das primeiras coisas
que me chamou atenção quando a retirei daquele quarto imundo. E
talvez esta seja a razão dos pesadelos recorrentes. Ela ainda
acredita que aquele verme está em algum lugar à espreita.
Quase me sinto aliviado de poder ser o mensageiro da boa
notícia. Santiago, o filho da puta, está agora no lugar de onde nunca
deveria ter saído.
— Nós o encontramos depois, naquele mesmo dia — revelo.
— Ele tentou atacar Penélope no escritório que ela mantinha em
Madri. Por sorte, Sebastian chegou a tempo, e depois…
— Depois?
— Depois Sebastian me chamou. Tínhamos um acordo,
Santiago era meu. — Aliso meu polegar por cima do dela, sobre as
cicatrizes. — Não poderia delegar para mais ninguém a tarefa de
acabar com aquele miserável. Eu o levei de volta àquela casa e
descarreguei minha pistola em sua cabeça. Quando o cartucho por
fim esgotou, joguei gasolina nos corpos de todos eles e ateei fogo,
eu mesmo. Fiquei lá para assistir até à última mísera cinza. Quando
tudo virou apenas um buraco no chão, voltei para a clínica e estive
com você pelos próximos dias sem sair de lá uma única hora.
Amália se enche de uma respiração tão longa que é como se
não fizesse isso há muito tempo, em seguida se esvazia, pouco a
pouco, tal qual um balão de ar. Tapa o rosto, sacudindo a cabeça
para cima e para baixo. Não sou capaz de afirmar se está chorando.
Não gostaria que estivesse.
É quando escuto seu murmúrio, saindo como uma prece:
— Gracias a Dios Padre[36].
— Ele nunca mais vai voltar, malyshka.
Não revelo que venho guardando um segredo dela, que a
família ainda não foi completamente varrida da Terra. Um deles
ainda está vivo, Samuel, o mais novo dos irmãos Molina.
Trancafiado em uma clínica, constantemente monitorado, dopado
com as drogas mais pesadas que existem para não dar a ele um
único dia de lucidez até que eu descubra se aquele moleque
também fez parte daquilo tudo.
Só o encontramos alguns dias depois, vagando pelas ruas,
incoerente, não dizendo coisa com coisa. Para ser sincero, o cara
parecia ter a idade mental de uma criança, e foi apenas isto que me
impediu de acabar com ele de uma vez por todas.
É Amália que me guiará sobre o que fazer com Samuel, mas
não nesse momento. Não quero retirar dela a paz de saber de uma
vez por todas que não há mais qualquer risco para sua segurança.
Tenho tudo sob controle. E quando ela estiver bem, então neste dia,
tomarei minha decisão.
— Elliot? — sussurra ela no escuro.
— Sim, Amália.
— Você acha que algum dia eu… algum dia vou conseguir…
— O quê?
Hesita, respira entrecortado, está envergonhada.
— Querer ser tocada.
Porra. Estaria mentindo se dissesse que esperava por essa.
— Honestamente? Acho que sim. Sexo não é ruim, Amália. Ao
contrário, pode ser a maldita melhor coisa se os dois estiverem de
acordo — sou o mais franco que posso.
Não quero dar a impressão de que estou tentando convencê-la
do meu ponto. De maneira alguma. Não transo ou me masturbo há
mais de um ano e meio, posso viver sem isso. Por ela, eu me
tornarei um celibatário se for preciso. A questão aqui é que não
quero que essa menina pense que aquilo que os malditos fizeram é
alguma referência para qualquer coisa, pois não é.
Busco seu rosto e o levanto gentilmente para mim, com um
dedo em seu queixo pequeno.
— Um dia irá desejar isto, malyshka. Será uma necessidade
natural do seu corpo.
Amália engole em seco.
— Você… — mas se interrompe de dizer. As bochechas
ganham um pouco de cor.
Olhando bem para ela, como estou, preparo-me para alguma
questão que, certamente, me obrigará a ser apenas brutalmente
honesto outra vez. E não fujo.
— O que tem eu?
— Você pode me mostrar? — sua voz é um fio baixo,
envergonhado e apreensivo.
Todos os músculos existentes em meu corpo retesam.
Transformam-se em fios de aço retorcido.
Pela segunda vez, seguida, ela consegue me surpreender pra
caralho.
Demoro a responder.
Penso em dizer que ainda não é o momento. Contudo, é
preciso reconhecer a carga de esforço e coragem que ela precisou
conjurar para fazer o pedido assim, tão direta. Humildemente
disposta a passar por cima de seus maiores medos.
Isto é corajoso demais.
E é por esta coragem que não declino.
Não tem a ver comigo. Tem a ver com ela. Só com ela.
— Se quiser mesmo, Amália, então eu posso, sim.
Na penumbra, ela assente. Ainda assim, dou toda a abertura
para que desista, para que mude de ideia:
— Preciso que diga com todas as letras, moy almás — peço.
— Por favor, Elliot, me mostre como… — sua voz torna-se
carregada de uma emoção nova, mais humilde, mais valente. — Me
mostre como pode ser…
Porra, que menina corajosa. Que menina linda.
Tomando um minuto para colocar meus próprios sentimentos
em ordem, pouso a cabeça para trás e fito o teto.
— Sabe o que pensei a primeira vez que a vi? — A gravidade
em minha voz é incomum até mesmo aos meus ouvidos.
— O quê? — sibila ela.
Baixo meu rosto devagar e a encaro profundamente, em meio
à semiescuridão.
— Que você era a visão mais linda em que já botei meus
olhos. Tudo em você parece desenhado por algum deus
benevolente. Seus olhos, cabelos, sua boca. Você, Amália, é a
mulher mais linda que já conheci.
— O-obrigada — agradece baixinho.
Uma risada sem tanto humor assim abandona meu peito.
— Não agradeça, moy almás, é apenas a verdade. Se importa
se eu colocar no modo abajur? — refiro-me à lanterna projetando o
céu no quarto.
— Por quê? — É ao mesmo tempo uma pergunta e um
protesto.
Porque não quero que seja na escuridão, que seja escondido,
que pareça errado.
— Porque gostaria de olhar pra você. Acho que nunca vou me
cansar disto.
Ao seu aquiescer, estico o braço e aperto o disjuntor que
derrama luz quente sobre o cômodo, é fraca, ilumina parcialmente o
quarto, incidindo sobre seus traços. É o suficiente.
— Venha aqui — peço humildemente.
Ela acata sem hesitar, mas está nervosa, eu sei. Levanta-se
em uma perna e a passa sobre mim. Pequena demais. Sentada, me
encara com tanta expectativa e receio que me comove.
A menina quer algo de mim, quer de verdade. E é um alívio da
porra a constatação disto.
— Posso te beijar? — pergunto.
Seu rosto se move para cima e para baixo, conectada a mim.
Passo suavemente uma mão entre seus cabelos e encontro
abrigo em sua nuca macia e estreita, e então lentamente,
memorizando cada instante disto, eu a beijo, é devagar, não tenho
pressa ao explorar sua língua com a minha, e vou nesse caminho,
derrubando suas defesas pouco a pouco até tê-la ativa no beijo, até
a sentir procurando minha boca também, emitindo murmúrios
baixinhos de desalento a cada pequeno intervalo.
Não sei se Amália percebe o que está fazendo, mas sua mão
desliza sobre minha cabeça raspada como se mal pudesse apenas
parar e segurar uma parte de mim.
Mordisco de leve a carne macia e quente. Recebo uma
mordiscada tímida e intuitiva em retribuição. É doce e inocente, mas
tem a avassaladora capacidade de gerar sensações que me
obrigam imediatamente a manter a mente ainda mais em alerta.
Ainda que eu queira me perder nela como nunca quis mais nada na
vida, aqui é tudo sobre Amália, sobre o prazer dela. É o que preciso
me lembrar. Estou criando pequenas chamas para acendê-la, mas
que ainda podem queimar.
Solto sua boca por um momento para encontrar o lóbulo
delicado de sua orelha.
— Você é linda, Amália, cada parte de você — provoco
baixinho em seu ouvido. — Seu cheiro doce, que é seu mesmo, é a
melhor coisa que já senti. — Apanho sua mão livre e a trago para o
meu peito. — Sente isso? Nada mais no mundo tem esse poder.
Ela geme um grunhido fraquinho. Deslizo pequenos beijos pelo
pescoço leitoso.
Meu nome é um sibilo no ar.
— O seu também está batendo depressa — digo. — Sinto o
ritmo bem aqui. — Planto um beijo suave em sua carótida.
Amália estremece em meu colo.
Afasto-me por um instante só para ter certeza da razão de seu
coração estar nesta velocidade. Quero vê-la, confirmar que estamos
na mesma página.
Bochechas mais coradas sob a luz quente. Olhos grandes de
pupilas dilatadas encontram os meus com um anseio bonito, novo.
Desço meu olhar para sua camisa de flanela, para o pequeno
volume protuberante que se destaca sutilmente sob o tecido.
A visão de seus mamilos despertando me mata, porra, isso me
mata.
— Você pode fazer uma coisa por mim, moy almás? — peço
numa rouquidão difícil de controlar.
Ela assente, confiando no que quer que eu tenha em mente.
Sua confiança é o que há de mais valioso no mundo, acabo de
descobrir que nunca tive em minhas mãos nada com um valor
maior.
— Toque neles. Sinta-os em sua mão.
— M-meus seios?! — murmura um pouco assustada com a
ideia.
— Isso, faça por mim. — Conecto meu olhar seguro no dela,
para que se lembre de que sou eu aqui. Nós. Apenas nós.
Timidamente, sem saber o que fazer direito, ainda assim,
Amália acata meu pedido. Desce para a camisa e sobe devagar por
baixo dela.
Percorro meus lábios novamente em seu pescoço e paro na
base da orelha pequena.
— Estão tão duros quanto parecem? — provoco.
— S-sim — o som inexistente me faz sorrir contra sua pele.
— Aperte-os por mim. Gire os mamilos em seus dedos, moy
almás. São tão sensíveis, não são?
Mordisco suavemente o lóbulo, desço o caminho para seu
ombro com meus lábios e subo de novo, devagar, absorvendo o
cheiro de sua pele quente, a pulsação, me guiando pelos pequenos
gemidos soltos no ar.
Ela está sentada sobre mim, sem perceber se movendo em
busca de algo.
Minhas mãos encontram o caminho por entre os cabelos cor
da noite, tão malditamente macios, aspiro eles, seguro seu rosto
para mim e a beijo de novo, mas desta vez, beijo-a com toda a
devoção de um homem que faz lentamente amor com uma mulher,
com a mulher, aquela por quem esperou uma maldita vida inteira.
Amália abandona os seios para se firmar em meus ombros,
para obter mais de minha boca.
— Você é a luz que minha escuridão procurou com tanto
desespero, Amália — me pego soltando essa afirmação
aparentemente sem pensar, mas que… porra, que faz todo o
sentido.
Vivi uma vida nas trevas, cada vez mais fundo nelas, mas meu
subconsciente sempre pressentiu que havia essa luz esperando por
mim em algum lugar. Não tinha esperança de encontrá-la, tampouco
a mereço, só que eu sabia que estava lá.
— Tudo em mim arde e queima por você, só por você.
— Em mim também, Elliot… queima… e até… até dói.
Não evito sorrir contra sua boca. Ela ainda não faz ideia do
porquê, mas já sente o ardor. E isso é simplesmente fantástico. Seu
tesão é algo novo para ela, mas está aqui, vivo em seu corpo.
— Onde dói?
Ela se nega a dizer.
Mordisco a boca, prendendo o lábio inferior entre meus dentes.
— Onde Amália?
— Em todos os lugares.
— Onde mais dói? — insisto.
Sua resposta é se friccionar contra mim, me mostrando o
caminho.
Leva tudo o que minha mente tem para controlar meu próprio
desejo, impedir que se manifeste dentro da calça de moletom. Essa
situação é a batalha mais difícil que já tive de travar.
Comprimo minha mandíbula em um aperto de morte por dois
ou três segundos. Tá na cabeça, tá tudo na cabeça, porra,
mantenha seu autocontrole!
— Coloque sua mão lá e me diga como está. Me diga se está
tão úmida quanto imagino, por favor, moy almás — peço.
Hesita.
Lambo seu lábio, provocativo.
— É bom, você vai ver.
Ela se contrai inteira. E, de novo, devagar e envergonhada,
mas impedida pelo próprio desejo de se conter, Amália leva os
dedos pálidos para dentro de sua calça de pijama de flanela.
— Está molhada, não está? — sussurro contra seu ouvido,
apoiando minhas mãos grandes nas laterais de seu quadril estreito,
firmando-a para que não se desequilibre.
Não deixo de notar que ainda está um pouco magra, os ossos
se destacam com facilidade. Mas já não é como antes, isto eu tenho
certeza.
— Sabe esse lugar que você sente queimar? Acaricie ele pra
mim, meu bem — oriento, rouco.
Amália derruba a cabeça contra meu ombro, talvez para se
esconder de mim, mas sei que obedece.
— Isso, friccione um pouquinho.
Sinto o movimento inexperiente de sua mão, intuitivo.
— Isso, um pouco mais de pressão, minha malyshka. Deixe a
umidade ajudar a deslizar.
Sua respiração, minuto a minuto, vem ficando mais forte,
menos espaçada. Mistura-se à minha, apesar do controle de ferro
que estou fazendo para mal me mover. O som é lindo. O
desamparo, a falta de fôlego.
— Está toda sensível. É muito gostoso, não é?
Assente depressa, confusa e instigada.
Continuo provocando baixinho, dando a ela o combustível que
faz a fogueira arder, crescer, se alastrar até incinerar tudo. Estamos
no caminho, sei que sim.
— É uma delícia, moy almás. Experimente introduzir seu dedo.
Sinta como está quente lá dentro. É tão gostoso. Coloque o dedo
bem fundo.
Ela resmunga um som incoerente.
Recosto minha boca no lóbulo. Percebo que se encolhe, a
respiração torna-se um sopro entrecortado. Mordo com a pressão
necessária para fazê-la arfar e estremecer com mais força. Passo
minha língua pelo contorno e percorro a cavidade detrás de sua
orelha, subindo minha boca por ali, beijando, lambendo, aspirando o
cheiro perfeito de Amália, dela, único.
— Vivo e morro por você, Amália — declaro com verdade,
rouco, miserável.
Amália exprime um chorinho, a mão mais veloz. O corpo todo
contraído de desejo.
— Eu te amo, moy almás — sopro contra seu ouvido.
E é quando acontece.
Quando explode.
Cravando os dentes no lábio inferior, Amália lança a cabeça
para trás e geme o som espetacular que precede sua libertação.
Cada traço de seu rosto contraindo-se. Olhos bem fechados.
Aterrorizada e enfeitiçada pelas fagulhas iniciais e indescritíveis que
começam a rasgá-la de todos os lados. Seu primeiro orgasmo,
nitidamente. Dá para saber apenas observando os sinais.
— Olhe para mim, moy almás — toda a humildade e urgência
estão impregnadas em meu timbre. Preciso que o faça, que me olhe
enquanto é atingida pela sensação mais magnânima de seu corpo,
que veja que é real, é bonito, é bom.
E mesmo com um tsunami acontecendo dentro de si, ainda
assim, Amália luta para obedecer a meu pedido. Olhos guerrilhando
para se manterem entreabertos, com as pupilas quase engolindo os
arcos cinzas, encontram os meus enquanto é sacudida de dentro
para fora. A bagunça de emoções visível em cada traço do rosto
perfeito é um deleite, assustada até a alma, tentando combater o
desconhecido e ao mesmo tempo surpresa com o que acontece em
seu interior.
Sua carótida pulsa de maneira quase frenética.
— O que…? — O que está acontecendo, é provavelmente o
que quer dizer.
— Sua libertação, Amália. Isso é sua libertação. — Apenas me
mantenho firmando-a pelos quadris e sendo seu suporte.
No alto dos meus trinta e oito anos, é a coisa mais foda que já
vi. Nem que eu viva pela eternidade, me esquecerei desse
momento.
Quando a sensação perde força, seu corpo também perde,
Amália então derruba a cabeça em meu ombro outra vez e desaba
sobre mim, buscando amparo, reduzida a pequenos espasmos.
— Isso foi…
— Eu sei. — Aliso suavemente suas costas, subindo e
descendo as mãos. — Eu sei, moy almás.
ELLIOT

— Sabe quem foi meu tio-avô, Elliot?


— Espero que a razão de querer me ver às seis da manhã não
seja para falar sobre sua família, Brejnev.
O desgraçado ri, esganiçado. É mesmo um imbecil
pretencioso.
— Leonid Brejnev — diz ele solenemente, como se essa
merda não fosse de conhecimento geral. Como se não se gabasse
disso pela cidade o tempo todo, maldito.
Todo mundo aqui sabe a descendência da família Brejnev.
Leonid, o tio-avô de Vladimir, foi ninguém menos do que o número
um à frente da liderança soviética entre os anos 1960 e 1980, tendo
sob seu comando o maior exército e arsenal nuclear do mundo.
Qualquer pessoa mais velha nesse país sabe o que foi sua gestão,
uma versão neostalinista, baseada em silenciar através da opressão
e expandir, enquanto a maior parte da população se encontrava na
mais absoluta miséria, chegando a passar fome. Dificilmente alguém
tenha se chateado com sua morte, supostamente natural, em 1982.
Minha mãe certa vez comentou sobre os suspiros discretos de alívio
por toda a cidade.
— Você ajudou a limpar a bunda dele, no fim? — provoco.
Claro que noto o cara se enrijecer.
— Gorbachev[37] trouxe vergonha a esse país — diz.
— Que eu me lembre, o legado de seu tio-avô não foi muito
melhor.
— As pessoas se orgulhavam de fazer parte de uma potência
como a nossa.
Porra, sério isso? É por causa de doentes como Vladimir, que
mantêm vivo esse tipo de pensamento, que estamos sempre sob o
risco iminente de repetir os mesmos erros do passado. As pessoas
não querem guerra, querem comida no prato, cuidar da própria vida,
seguir em frente. Não querem que seus filhos sejam enviados para
lutar batalhas das quais não tiveram nenhuma escolha. Sebastian,
Ed, Bola, eu, e muitos caras já estivemos lá, alguns nem chegaram
a voltar para suas casas, enquanto engravatados filhos da puta dão
canetadas atrás de suas mesas ostentosas.
Sem saco para isso, para ele, aperto os punhos cerrados
dentro dos bolsos da jaqueta e me obrigo a continuar apenas
encarando impassível o vapor que sobe do Moskva a essa hora.
Estamos sob a ponte que corta o rio nos limites da cidade, na região
mais fodida, aquela a qual os turistas não têm conhecimento quando
se propõem a desbravar as águas que atravessam Moscou em
barcos caros e lanchas alugadas.
Estamos na região dominada por Brejnev e sua gente. Ele fez
questão disto.
— É por isso que me chamou aqui, para desabafar suas
frustrações políticas?
— Tsc, tsc. Esperava mais patriotismo de sua parte, Elliot.
— Fiz muito mais por esse país do que você, Vladimir —
lembro-o. — E então? Qual é a urgência?
Retirando um fiapo invisível do sobretudo preto, da mesma cor
do chapéu ao estilo gângster, ele simplesmente avisa:
— Em uma semana.
Sei a que se refere, e meu corpo retrai pela raiva. Ainda assim,
decido questionar.
— Em uma semana o quê?
— Rá! Gosto do seu senso de humor, Elliot. E olha que me
disseram que você era o mais inacessível, entre seus amigos.
Devagar, tomando tempo para guardar minhas emoções de
fúria no lugar certo, viro-me para encarar o cara, encarar de
verdade.
— O que você realmente pretende, Vladimir?
— Reavivar a dinastia que vai salvar esse país. Pretendo
retomar o que é meu de direito, Elliot.
— Construindo uma bomba? — questiono, cínico, mal
acreditando nessa merda.
— Fazendo uma limpeza.
Vou matar esse cara. Essa coisa de esperar e colaborar com a
Interpol para apanhar Vladimir e os cúmplices internacionais dele é
atraente, mas não consigo esperar. Meu instinto exige que eu faça
isso aqui, agora mesmo, que dê fim a esse insano de uma vez por
todas.
Tateio a pistola, por baixo da jaqueta.
Vladimir afasta-se um passo de mim, inteligente. Pelo canto do
olho, vejo que seus homens, nos vigiando de perto, também se
preparam para revidar a um ataque meu. Encontro o olhar de Yuri
Brejnev, sobrinho de Vladimir e segundo na hierarquia. Ele
discretamente sacode a cabeça, me fazendo um sinal de que não é
uma boa ideia.
Venho conversando com o cara nas sombras. Yuri, tanto
quanto eu, quer o fim de seu tio. Mas, se fizer isso, se acabar com
Vladimir às claras, então perderá o respeito e sua posição na
sucessão. Mafiosos não perdoam traição.
Tenho um pacto com Yuri: eu acabo com Vladimir e ele garante
que não haverá retaliação por parte do clã, desde que seja feito do
jeito certo. Não que eu não me garanta, no caso de uma guerra
contra essa gente, mas agora tudo mudou. Quero que essa cidade
seja um ambiente de paz para aquela garota. Tudo por ela.

— Pense na jovem, Elliot — alerta o desgraçado. — A um sinal


meu de que as coisas não vão bem aqui, ela já era.

— Você saiu cedo — Amália, colocando alguns itens do café


da manhã sobre a mesa, comenta assim que entro na cozinha. Não
há mais ninguém aqui.
Tiro um momento para olhar bem para ela, investigar seu
rosto, seus olhos, atrás de algum sinal de repulsa ou
arrependimento pelo que fizemos na noite anterior. Encontro, é
claro, um leve rubor de timidez, provavelmente sua mente também
está nisso. Mas não há evidência de qualquer outra coisa negativa.
É um alívio do caralho. Minha intenção é quebrar seus traumas, um
a um, reordenando a posição correta das coisas, desmontando tudo
aquilo que foi construído ao longo dos anos por aqueles malditos.
Um fantasma de cada vez.
— Precisei resolver algumas coisas na rua — digo com o
timbre mais ameno que posso.
Amália se demonstrou bastante perceptiva para algumas
coisas. Não quero que se preocupe comigo nem nada do tipo. Em
uma semana, no comando de um jato particular, colocarei Vladimir
em território iraniano, e quando ele e o atravessador ainda
desconhecido estiverem fazendo a troca, então eu os entregarei de
bandeja à Interpol, depois vou destruir Vladimir de uma vez por
todas e voltar para casa, para ela. Um serviço limpo e rápido.
Dinastia Brejnev, essa é boa. O cara é um imbecil completo se
tem mesmo a ambição de reconstruir sozinho uma coisa desse
tamanho. Ninguém aqui sente falta de uma nova união soviética. A
vida está boa assim. Cada coisa está onde deveria.
— Algum problema?
— Nada de mais. — Dou de ombros, afastando qualquer
merda da cabeça. Apenas me concentro nela, em como Amália é
doce, linda, em como seu sorriso é um fenômeno belo e raro. —
Onde está todo mundo?
— Vovó Zhena está lá fora, foi atender um entregador.
Sim, vi a velha praticamente debruçada sobre o porta-malas da
van do comerciante, procurando alguma coisa e testando a
paciência do pobre homem.
— Loupe e Sebastian ainda não desceram. Tia Merian saiu
cedo para ir arrumar o cabelo para a festa da Sol.
O aniversário da pequena, claro, quase me esqueci desse
detalhe.
— Pensei em treinarmos um pouco hoje, o que acha? —
sugiro.
Amália morde o lábio.
— Vou ajudar a Loupe a enfeitar tudo, então… me desculpe.
“Loupe”, é bom vê-la se referindo assim à espanhola. Amália
pode nem perceber, mas o afeto nisso diz muito. Ela está se
adaptando rapidamente à ideia de família, de que faz parte deste
grupo.
— Ah, aí estão vocês! — Dona Zhena entra pela porta dos
fundos, muito animada, trazendo consigo um caixote de madeira.
Engraçadas algumas percepções que temos. Olhando bem
para ela, não passa de uma mulher de idade, pequena, magra,
usando grandes óculos na ponta do nariz, tudo nessa imagem
remete à fragilidade. Por outro lado, poucas pessoas que conheço
conseguem ter a força desta senhora. Está na energia, no modo de
ver o mundo, otimista, em como não se abala com as rasteiras que
a vida já deu nela ao longo dos anos.
— Elliot, diga à menina que tenho uma surpresa! Vamos,
traduza! — Põe a caixa de madeira no chão.
Reprimindo a vontade de revirar os olhos e rir, giro-me para
Amália.
— Vô Zhena pediu para traduzir que ela tem uma surpresa.
Olhos cinzas cintilam como estrelas preenchidos do que
parece ser carinho e gratidão.
— Onde está, onde está…. — A velhota fuça o bolso fundo
apinhado de coisas, no avental em seu corpo. — Achei! — Sinaliza
com o celular no ar, alegre.
Arrasto uma banqueta e me sento para assistir o festival que o
programa de tradução certamente proporcionará.
Zhena digita alguma coisa, então, concentrada, lê na tela,
movendo os lábios sem nenhum som. Treinando. A velha está
treinando! Maldição, como não rir.
— Mira[38], chica, mira! — diz com uma pronúncia carregada,
abaixa-se e, de dentro da caixa, levanta uma peça do tamanho de
um braço do que parece ser um belo presunto. — Diz pra ela que
encomendei diretamente do país dela, filho!
— Jamón[39] — traduzo para Amália. — A velha mandou vir
presunto da Espanha pra você.
Em sinal genuíno de gratidão, Amália leva as duas mãos ao
peito.
— Spassíba, babushka! — Aproxima-se rapidamente da velha,
para ajudar a segurar a coisa. Juntas, rindo uma para outra e
misturando idiomas, levam o presunto para a mesa. Dona Zhena
apanha uma faca, que mais pode ser considerada um machado, e
corta a coisa no meio, cheia de si.
Inclina-se para o presunto e aspira profundamente.
— Apesta[40], chica!
Aperto os lábios para não rir e esclareço:
— A senhora acaba de dizer que o presunto está fedendo,
vovó. — Amália é educada demais para revelar, mas eu não. Dou
então a tradução para a menina: — Contei que ela disse que o
presunto está fedido.
— Elliot! — a menina exclama, preocupada em ferir os
sentimentos da velha.
— Ora, ela precisa saber. — Dou de ombros, muito entretido.
Sem se deixar abater, dona Zhena volta a mover os dedos
nodosos rapidamente contra a tela.
Levanta a cabeça para mim.
— Olo[41]r?
— Quase, mas acho que ainda não é o que a senhora quer
dizer. — Guardo a risada.
A velha resmunga algo como “humpf, em vez de você me dizer
logo de uma vez”, só que é tão baixinho que chego a duvidar dos
meus ouvidos (ou finjo bem). E ela não desiste.
Outra vez, lê a tela e sobe o rosto cheia de expectativa, mas
só para Amália:
— Huele delicioso[42]?
Gentil e amorosa, Amália sacode a cabeça animadamente
para cima e para baixo, confirmando que desta vez a velha acertou.
— Huelo delicioso, sí!
— Huelo delicioso! — repete Zhena, saltitando e levantando os
braços, numa dancinha espalhafatosa demais para sua idade.
Entrando na onda da velha, Amália aspira profundamente o
presunto cortado sobre a mesa e também bate palmas.
— Huelo delicioso!
A risada boba provavelmente repuxando minha boca não tem
nada a ver com o fato de a situação ser bastante cômica. E sim com
ela, com a felicidade e leveza na menina neste momento. Porra, se
ela soubesse o que faz com meu coração, o quanto vê-la
desprendida de toda aquela tristeza de antes, aos poucos se
curando, me preenche de coisas que mal sei explicar.
AMÁLIA

— Isso, um pouco mais para a direita. Hum, não sei. Acho que
mais um pouco. Espere, espere, agora foi muito. — Penélope dobra
as mangas de seu suéter cor de terra soltinho e apoia as mãos na
cintura, analisando criteriosamente o trabalho. — Pensando bem,
para a esquerda fica melhor.
O grande homem solta um grunhido exasperado. De onde
estou, vejo as gotículas de suor cobrindo sua testa.
— Tudo bem aí, Bola? — pergunta ela, inocentemente.
— Sim. Só diga de uma vez onde quer que eu coloque essa
p…
— Cuidado com a boca, hombre, há crianças por perto —
alerta ela. — Só perguntei porque, sei lá, você está tão vermelho…
— Talvez porque o cara está carregando uma mesa que tem o
peso dele em libra?! — provoca Ed, mas sem oferecer ajuda ao
amigo, que leva sozinho a linda e enorme mesa de jantar feita de
madeira maciça para lá e para cá, conforme a vontade de Penélope.
Loupe faz um estalinho com a língua.
— Bobagem. Bola anda malhando, que eu sei. Até perdeu
peso — bajula descaradamente.
Mas é o cantinho da boca dela que a denuncia. Loupe está
adorando dar ordem a todos eles.
— Nisso você está certa — concorda Ed. — Se continuar
nessa, logo ele conseguirá enxergar o próprio p… — Ed dá uma
olhadela para Sol de Maria, no chão bem perto dele, entretida com
alguns balões, e se corrige a tempo — O próprio pé. Pé, né,
neném?! O Bola logo, logo, vai conseguir enxergar aquele pé
pequeno dele, que ele não vê há muitos anos.
— Vá se fo… — Bola se detém de concluir, então revira os
olhos. — Quer saber? Por que não me dá logo uma ajuda aqui,
imbecil?
— Cil! — repete Sol, animadinha.
— Ótimo. Você deve duzentos rublos ao pote — avisa Loupe,
prometendo retaliação aos dois.
— Duzentos rublos por um mísero palavrão? Qual é a desse
maldito câmbio?
— Quatrocentos agora, Bola. Vem, deixe a mesa aí e vamos lá
buscar as cadeiras antes que se endivide mais.
Disfarço um sorriso do meu canto na sala de jantar imensa e
me concentro apenas em encaixar os quadradinhos de queijo nos
palitos, e depois um tomatinho sobre cada um deles. Tia Merian e
vovó Zhena estão na cozinha assando fornadas de minipizzas. Elliot
está carregando as bebidas, depois de cuidar da montagem dos
brinquedos infláveis no quintal. Todo mundo está ajudando.
Segundo Penélope, virão poucos convidados; um casal de
amigos e seus filhos gêmeos; os pais deste amigo; o pai de Loupe,
que Sebastian foi buscar no aeroporto; algumas amigas de carteado
de tia Merian e da babushka; ah, e a Dra. Saavedra, que Loupe
gentilmente quis chamar porque a doutora não conhece
praticamente ninguém nesse país. Por ser o primeiro aniversário da
Sol, Penélope está caprichando na organização, quer que seja farto,
enfeitado, feliz.
Eu me lembro dos aniversários que minha abuela fez para
mim. Do clima alegre, das risadas enquanto a gente enchia balões,
pendurava bandeirolas por toda a sala, dançava e cantava músicas
tradicionais. São memórias marcantes que ficarão para sempre.
Mesmo que Sol ainda seja muito pequena, Penélope faz bem em
festejar, acho que em algum lugar da cabecinha da bebê, esse dia
ficará marcado também.
— Vocês, espanholas, gostam mesmo é de dar trabalho, não
é? — diz Ed, para mim, em tom de brincadeira, quando ficamos
apenas eu, ele e Sol na sala.
Mas vejo que se arrepende no minuto seguinte.
Um pedido de desculpas começa a se formar em seu rosto
quase que imediatamente.
Só que, estranhamente, não me sinto acuada, ou ofendida, ou
qualquer coisa ruim. A brincadeira não me deixa mal porque sei que
essa não é sua intenção. Por alguma razão, sinto que estou com um
amigo, embora a gente mal tenha trocado uma palavra nesse tempo
todo que estou aqui.
E é por isso que me obrigo a sair de minha posição confortável
de apenas me manter silenciosa e observar a interação entre eles
de longe, como fiz desde que cheguei a esta casa, e decido falar:
— Só um pouco. Deve estar no nosso sangue. — Dou de
ombros, para que ele veja que também estou brincando.
Surpresa arregala os olhos azuis. Sobrancelhas meio
acobreadas sobem, impressionado.
Então ele simplesmente gargalha.
Não uma risada baixa e discreta, não. Ele gargalha pra valer,
tão alto e com tanta vontade que faz Sol de Maria rir – a bebê, aliás,
tem certo fascínio por ele, pelo que notei – e ecoa por toda a sala.
E esse som, ele de repente penetra meu interior com um tipo
poderoso de entendimento que é como se uma chave fosse virada
dentro de mim.
Essa é a razão da leveza que enxergo em Penélope, a leveza
pela qual já cheguei a me ressentir. Como alguém pode parecer tão
feliz depois de ter vivido tudo aquilo? Tão de bem com a vida? Mas
estando aqui consigo entender perfeitamente. Penélope decidiu
viver diferente, buscou sua segunda chance, cercou-se de pessoas
que fazem bem para ela, exatamente como disse Dra. Saavedra.
Família tem a ver com os laços que escolhemos formar, e ela
escolheu esses russos.
E nesse momento, enquanto assisto a risada rouca e calorosa
de Ed – um som que revela que não é algo que ele faz com
frequência –, um segundo entendimento clareia minha mente com
toda a força. É por isso que Elliot fez tanta questão de me trazer
para cá também. Não por caridade ou um tipo de obrigação moral
inexistente. Elliot me queria aqui para ter minha própria segunda
chance. Para ser feliz.
Perceber isso inunda um lugar dentro de mim com um
sentimento novo, mas muito forte, muito quente. Meus olhos
marejam desse sentimento. Transbordam. Ele escorre por minha
bochecha. Estou rindo, rindo de verdade, de um jeito que faz a
barriga doer. Rindo e chorando, mas é bom.
E não consigo parar.
Ed passa a me olhar com um misto de confusão e riso que é
engraçado. Sol, sem saber de nada, gargalha mais forte. E gera
uma nova onda de risos. Estamos rindo pra valer, sem um motivo
real, apenas extravasando e colocando para fora.
E quando finalmente consigo tomar uma respiração, percebo
que já não estamos mais somente os três aqui.
Da porta do corredor que leva à cozinha, tia Merian e vovó
Zhena nos observam congeladas no lugar. A babushka com um
pano de prato entre as mãos, e sua prima segurando um pedaço de
massa de pizza. Parecendo terem saído da cozinha às pressas, há
rastros de trigo em suas bochechas, cabelos, aventais, e elas nem
se importam. Suas bocas estão meio abertas de surpresa.
Penélope carregando uma cadeira, e Bola, quatro, também se
interrompem no lugar, confusos com o que veem. Ela sorri de um
jeito incrédulo, engraçado. Ele faz uma careta que muito
provavelmente significa “acho que ficaram doidos”.
O que me faz rir mais, e a Ed também, e por consequência,
minha Solzinha também.
Alguém pigarreia chamando nossas atenções. O som vem da
direção da entrada da frente, onde Sebastian se encontra estagnado
no lugar, segurando uma grande mala, com um homem grisalho alto
ao seu lado. Estão olhando para nós. O semblante do senhor bonito
é simpático, caloroso, e o de Sebastian é meio engraçado,
descrente, seu olhar inquisidor vai de mim para Ed, talvez
perguntando por que é que estamos agindo feito bobos. Embora
também ache graça.
E finalmente meu coração é então atraído para a força que
emana de algum lugar em minhas costas, quando sinto o calor de
seus olhos sobre mim. Limpando uma lágrima, viro-me na direção
da porta dos fundos e encaro diretamente o olhar profundo e
penetrante de Elliot. Assisto uma respiração forte preencher seu
peito, mergulho fundo nele, em seu orgulho, em seu amor. Ele está
sério, mas impactado por me ver feliz, dá para saber. Ele me ama.
Elliot me ama.
Sinto o seu amor em cada pedaço de minha pele.
— Its! Its! — Sol de Maria de repente se levanta no corpinho
de passos errantes e bate palminhas alegres, querendo algo de
todos nós.
— Tánits — vovô Zhena interpreta, jogando o pano sobre os
ombros. — Minha vnúchka quer dança!
Dança, isso eu consigo traduzir.
Batendo palmas no ritmo, a senhora vem para nós entonando
uma canção animada:
— Kogda my byli na voyne. Kogda my byli na voyne. Tam
kazhdyy dumal o svoyey. Lyubimoy ili o zhene. Tam kazhdyy dumal
o svoyey. Lyubimoy ili o zhene[43].
Sem nem pensar duas vezes, Penélope deixa a cadeira que
estava carregando no chão e se junta ao coro da avó
animadamente:
— I ya, konechno, dumat' mog. I ya, konechno, dumat' mog.
Kogda na trubochku glyadel. Na goluboy yeye dymok[44]!
E faz mais: dançando de um jeito engraçado, um tipo de trote,
e batendo palmas na altura do rosto, vai na direção do pai,
recebendo-o com calor em seus olhos e uma alegria viva na voz:
— Seja bem-vindo, pai! Sentimos sua falta.
— Senti falta de vocês também, filha — diz ele, achando a
recepção engraçada.
Eles se abraçam apertado.
Por tudo o que Penélope me contou, seu pai, Antônio Carlos
Duarte, é um ator de novelas brasileiro. Ele não sabia da existência
dela até ser procurado por Sebastian no Brasil. A mãe de Loupe,
Paz Velasco, também era atriz, de teatro, na Espanha. Ela faleceu
quando Loupe tinha quatro anos, foi quando a colocaram no
orfanato das freiras onde ficou até ser adotada pelos Molina.
Penélope me disse que apesar do tempo perdido entre eles, a
conexão de pai e filha surgiu já no primeiro instante em que se
conheceram. Ele esteve presente no casamento dela, e no
nascimento de Sol de Maria.
— E a garotinha do vovô, como é que está? — pergunta
Antônio, afastando-se do abraço.
— O senhor sabe, fazendo o que faz de melhor.
— Sendo uma gracinha?
Loupe ri.
— Bagunçando! — a mãe coruja gira e grita para a menininha:
— Vovô chegou, russinha! Mostre a ele como é que dançamos
nessa casa!
Enquanto o homem grisalho se junta ao centro da sala para
pegar a neta, Penélope vira-se para o marido:
— Obrigada por buscá-lo, cabrón. — Roça amorosamente os
lábios nos de Sebastian.
— Não por isso, espanhola. — Sebastian a envolve pela
cintura e traz para si antes que ela fuja. — Agora me diga que não
estamos dando a festa do “Quando estávamos em Guerra” por
favor.
Com uma expressão divertida, ela se desvencilha dele e canta
com mais alegria:
— “Tam kazhdyy dumal o svoyey. Lyubimoy ili o zhene”. —
Bate em seu peito de leve. — Você também ama essa música, que
eu sei! — Rindo e cantando, ela se afasta do marido e se junta à tia
Merian e babushka em volta de sua filha, entoando numa só voz a
canção em russo, enquanto Antônio ergue a neta no colo e finge
dançar.
Mesmo Ed, depois de cumprimentar o pai de Penélope com
um aperto firme de mão, se une à cantoria numa voz baixa e forte,
fazendo graça para a criança. E Sol, é claro, fica tão alegre com
tanta atenção à sua volta que mal sabe direito para quem olhar.
Seus gritinhos efusivos em êxtase pedindo mais dança são
contagiantes.
Vovó Zhena engancha seu braço no meu e me puxa para a
dança:
— Tánits, chica! Tánits! — O brilho nos olhos aquosos pela
idade dirigidos aos meus contém tanto carinho que me emociona.
Pego-me batendo palmas também, no começo meio tímidas,
mas no ritmo deles.
Vovó aponta o dedo nodoso para Bola e diz alguma coisa em
russo com a autoridade de uma avó. Divertindo-se, Penélope traduz
simultaneamente para seu pai e para mim:
— Ela o chamou de garoto e disse pra ele deixar as cadeiras
no chão e se juntar a nós. — Então, em espanhol, também grita pra
Bola: — Isso, hombre, mexa esse corpo com a gente! Hoje é dia de
festa!
O amigo de Elliot, o maior deles, resmunga alguma coisa sobre
ainda não ter bebido o suficiente para isto, mas, mesmo relutante,
recosta-se à parede e bate palmas também. Acho que até consigo
ver um sorriso em seu rosto.
Vó Zhena chama Elliot, gesticulando sem parar para o
instrumento na parede.
— Babushka quer que o Elliot pegue o acordeon que foi do seu
amado Vyacheslav e toque para nós — traduz Loupe. — Ei, espere
um pouco, você toca acordeon, Elli?!
— Não se eu puder evitar — diz ele com bom humor, mas sem
nunca tirar seus olhos dos meus com todo o calor que alguém pode
olhar outra pessoa.
Sebastian se intromete:
— É uma boa hora para mostrar à Amália a habilidade que
comentou outro dia, não acha, cara? — Parece uma provocação.
Imediatamente, me lembro da conversa no avião a caminho da
Rússia. Elliot elencando três coisas em que é muito bom: cozinhar,
atirar e tocar acordeon. — Você quer ver, não quer, Amália?
Pelo modo zombeteiro do marido de Penélope, talvez Elliot
não quisesse ter dito isso naquele dia. Mas pela expectativa sincera
de vó Zhena e até de tia Merian, ele não estava mentindo sobre
saber tocar o instrumento. E de repente me vejo querendo assistir
isso. Descobrir mais sobre esse lado de Elliot.
— Seria bom — digo baixo, mordendo um sorriso.
Elliot me lança um olhar profundo e afiado, do tipo que
promete retaliação, mas num clima bom, leve, familiar.
E meu coração transborda outra vez. Gosto tanto dele que mal
consigo respirar, a verdade é essa. O que fizemos ontem… o que
fizemos ontem não teve nada de sujo. Não teve nada de feio. Não
senti medo ou pavor.
Eu gostei, gostei de verdade. Foi… bem, foi surpreendente.
Lembrar faz meu rosto corar com força.
Mesmo à distância, percebo que Elliot compreende
exatamente a direção do meu pensamento, sua mandíbula contrai,
os olhos escurecem um pouco.
— Depois não digam que não avisei — brinca com todos, mas
seu olhar intenso permanece no meu, até que ele se obriga a
apanhar o instrumento da parede.
E ele o faz com todo cuidado, de um modo até reverenciador,
como se o objeto tivesse um valor inestimável.
Ao meu lado, vovó Zhena emite um suspiro saudoso,
agraciada. De repente, toda a sala fica em silêncio, só assistindo ao
que ele vai fazer, a como posiciona as alças de couro vermelho em
seus ombros e encaixa a mão à direita, como move os braços
extraindo as primeiras notas do fole, testando e afinando, dedos
grandes, firmes, correm pelas teclas sabendo exatamente o que
fazer.
Há uma beleza indescritível nisso. Em como um homem forte,
rústico, que já pegou em tantas armas, tem a sensibilidade e
sutileza de criar algo tão delicado quanto notas de uma música.
Minha abuela certa vez disse que músicas são sons da alma, e
vendo agora o rosto tão compenetrado de Elliot escutando e
ajustando com cuidado, consigo compreender exatamente ao que
ela se referia.
— Kogda my byli na voyne. Tam kazhdyy dumal o svoyey.
Lyubimoy ili o zhene — babushka recomeça a canção, devagar,
batendo palmas no mesmo ritmo que o fole dita nas mãos de Elliot.
Cada pessoa presente também passa a acompanhar com
palmas, a princípio lentas, e aumentando aos poucos. Tia Merian,
Loupe e Ed então se unem à voz de vó Zhena. Sebastian, Bola,
Antônio e eu seguimos nas palmas.
E vai ficando mais alegre, mais emocionante. Faz as pessoas
baterem os pés, mexerem os quadris. Faz Sol pular no chão, cair e
levantar e saltitar de novo. As mulheres giram em seus corpos,
trotando e movimentando as mãos. Os homens cantam com
vozeirões de tenores batendo palmas fortes.
De repente, me sinto de volta à casa de abuela, àquele mesmo
sentimento de que é um dia alegre, um dia para cantar e dançar!
Que o mundo é um lugar bom e seguro! Que a vida é boa!
Elliot sorri para mim, olhos aquecidos, feliz.
Eu também me sinto assim.
Me sinto feliz.
Muito, muito feliz.
Essa felicidade me faz dançar, bater palmas, repetir estrofes
de uma canção que não sei o que significa, mas que tem um poder
indescritível de mexer com o coração, de o fazer querer explodir
para fora. Minha abuela se estivesse aqui estaria dançando.
Vovó Zhena pega minhas mãos e me convida a rodopiar com
ela.
Eu rodopio, fecho os olhos e deixo essa energia vibrante se
aprofundar em meu espírito. Não existe mais dor, não existe medo
aqui. Estou segura com essa gente, são minha gente agora. São
minha família. Por mais que meus fantasmas tentem dizer o
contrário, os dias bons não vão se acabar, não desta vez.

♫(ouça também aqui)

Kogda my byli na voyne / Quando estávamos em guerra.

Quando estávamos em guerra


Lá cada um pensava em sua esposa ou sua amada
Eu também poderia estar pensando nela
Quando estava observando as chamas azuis do isqueiro e a fumaça abafada
Mas eu não pensei em nada disso
Só estava fumando meu cachimbo
Com um pouco de tabaco amargo Turco
Lembra-se de como mentiu para mim?
Você deu seu coração de menina para outro homem
Há muito tempo
Minha mente já se decidiu
Eu vou peitar um disparo
Aguardo apenas pelo tiro certeiro
Na esperança de me tirar a dor
E acabar com esse nosso ódio
No tempo em que nós estivermos na guerra
Eu vou investir à frente
Para peitar um disparo
Montando em meu cavalo preto
Mas parece que a morte não é mesmo para mim
Pois o meu cavalo preto
Me trouxe para longe do fogo de novo

Quando a música finalmente acaba, as notas dão lugar a sons


de gargalhadas e pessoas recuperando fôlego. É tão bonito quanto
a canção alegre, preenche o espaço com calor e vida. Preenche o
corpo. O coração.
— Minha nossa... — vacila uma voz feminina da entrada da
casa. — Acho que cheguei um pouco cedo demais.
Cabeças se giram ao mesmo tempo para encontrar o rosto
surpreso, impressionado, de quem assistiu cada minuto de toda a
dança e cantoria, e não sabia direito o que dizer. É a primeira vez
que a vejo assim.
— Dra. Saavedra! Que prazer ter você em nossa casa! —
Penélope dirige-se à porta com os braços abertos para receber
minha terapeuta. — Não chegou cedo, não. Chegou no horário!
De onde estou, vejo que a doutora cora um pouco. Reparo
também que está diferente hoje. Os cabelos cacheados caem livres,
passou uma camada de batom, veste jeans, suéter e tênis, nada de
saias ou saltos costumeiros. É estranho vê-la longe de um
consultório.
Como se não soubesse direito como agir com a receptividade
alegre, Dra. Saavedra empurra uma caixa embrulhada para
presente à Loupe, em vez de abraçá-la, sem jeito. Minha irmã não
deixa passar, pega a caixa e mesmo assim consegue envolvê-la
com um braço. É sincero. E confirma que já se conheciam.
— Não sabia bem o que comprar, então... Espero que sua filha
goste.
— Ah, ela vai gostar. Sol gosta de tudo. — Rindo, Loupe vira-
se para trás. — Bebê, olha o que tia Saavedra trouxe! Um presente
pra você!
Sol grita de entusiasmo, de longe, praticamente tentando saltar
dos braços de Ed, que é quem a tem no colo no momento, o que o
obriga a se aproximar das mulheres na entrada.
— Não esperava que viesse — diz ele para a doutora, soando
um pouco rude.
— Não fui convidada por você, e até onde sei essa festa não é
sua, ou é? — Dra. Saavedra faz um carinho na mãozinha da
criança. — É dessa garotinha aqui.
Loupe praticamente se engasga com a saliva e começa a
tossir, então ri.
— Essa é das minhas.
— Sim, com certeza ela é — resmunga Ed, o que não parece
ser um elogio. — Eu me pergunto se no país de vocês todas são
assim, tão agradáveis.
De onde estamos, vovó me cutuca com o cotovelo, curiosa.
Apesar de não estar entendendo nada do que é dito, é evidente que
também notou o clima estranho entre os dois. Babushka me
empurra seu celular na página do tradutor.
“Minha terapeuta” digito e mostro a tela para ela, que faz um
som de entendimento. E traduz imediatamente para tia Merian.
As duas senhoras ficam ali, dizendo coisas entre elas,
parecendo confabular, analisando a desconhecida. Será que estão
pensando em unir a terapeuta e Ed?
Dou uma olhada para eles. A animosidade. O modo como
fingem se ignorar e dar atenção apenas para a criança.
Não, sem chances. Eles nem parecem se gostar.
— Amália, querida, tudo bem? — cumprimenta Dra. Saavedra,
quando se aproxima de nós.
— Oi, doutora. Que bom te ver aqui — sou sincera.
Ela sorri de volta, com a mesma honestidade.
É apresentada para cada pessoa na sala. Quando chega a vez
de tia Merian e vovó Zhena, as senhoras a cumprimentam
esfuziantes, principalmente sobre algum aspecto do quadril da
doutora.
— Estão elogiando suas ancas — traduz Penélope. — Fizeram
o mesmo comigo, quando as conheci. E olha só onde estou agora,
casada com o neto delas, com uma filha nos braços e sendo
cobrada para ter outro bebê logo de uma vez.
Apesar do tom de falso sofrimento, o brilho nos olhos de minha
irmã diz que ela está muito satisfeita com o destino que teve.
— Desculpe, não entendi a relação das ancas com… — A
terapeuta franze a testa, confusa.
— Filhos. Você é boa parideira, segundo a análise delas.
Provavelmente vão tentar te arranjar um marido por aqui.
— Coitado do infeliz — provoca Ed, por entre uma tosse
dissimulada.
— Pois se todos os homens desse país forem iguais a você,
Edmund, eu dispenso.
Edmund?
— Edmund? — verbaliza Penélope. — Seu nome é Edmund?
O ruivo com cara de malvado ruboriza nas orelhas, fulminando
a doutora com o olhar.
— É, é sim.
— E como é que eu não sabia?
— Porque você não costuma xeretar a carteira das pessoas
enquanto elas estão dormindo — responde ele, acusando a
terapeuta de alguma coisa.
— Não xeretei, Edmund. Se não lembra, eu a encontrei caída
no chão do meu consultório.
— Encontrar caída não te dá o direito de abrir — rebate ele.
— E de que outra forma eu saberia quem era o dono?
— Talvez percebesse que era o que estava dormindo a alguns
metros dela? — ironiza Ed.
O rosto de todo mundo vai de um para o outro, e volta e vai,
parecendo em uma partida de ping-pong.
— Depois de invadir meu consultório — esclarece a doutora.
— Espere, espere, espere! — Penélope, assim como a maioria
de nós, parece não ter entendido muito bem como é que a coisa da
carteira aconteceu, ou mesmo quando. — Deixa eu ver se entendi.
Ed perdeu a carteira no consultório da doutora, onde ele estava
dormindo…
— Depois de invadir — acrescenta Dra. Saavedra. — Eu ia
chamar a polícia para ele.
— Não ia, você chamou — acusa Ed.
— Não, meu querido, eu apenas blefei com você.
— Eu a ouvi conversando com eles pelo telefone.
— Era mentira, eu sequer disquei. — A mulher ajeita a bolsa
no ombro, na defensiva. — Antes de chamar a polícia, eu precisava
ter certeza de que você não era algum novo paciente perdido pela
clínica.
— Tenho cara de louco, agora? — diz Ed. Elliot rosna. Ed
levanta a mão em um pedido para mim. — Foi mal, Amália, não
estava me referindo a você. Você, aliás, era a única pessoa normal
naquele lugar.
— Tudo bem — digo. Outra vez, sei que a intenção dele não é
a de me ofender.
Vó Zhena bate uma palma entusiasmada, como se dissesse
“continuem, continuem a brigar, está bom de assistir!”, apesar de
provavelmente não entender uma palavra do que é dito.
— Você é tão… — minha terapeuta praticamente cospe, sem
nada daquela aura profissional e controlada de sempre.
— Incrível? — sugere ele, zombando.
— Ível! — Sol repete, atenta, também prestando atenção como
se tudo fosse muito interessante. É engraçado que esteve tão
caladinha nos últimos minutos, não? Pensando bem, ela é tão
parecida com a avó.
— O tio Ed é incrível, né, Solzinha?
— Ed, pare de pedir para minha filha mentir — Penélope
intervém, séria, mas dá para ver que só está atazanando-o.
E a doutora ri. Basta isso, uma risada genuína, para
transformar a imagem que eu tinha dela. Aqui é uma mulher jovem,
espirituosa, provocativa. Legal saber deste seu lado.
— Obrigada — diz ela para Loupe.
— Não por isso, Saavedra. Aceita uma bebida?
— Seria ótimo, por favor.

— Aposto mil rublos como vão brigar um com o outro em


menos de três minutos — diz com graça a amiga de Loupe ao meu
lado, no jardim, quando me pega observando dois meninos gêmeos
darem saltos na cama elástica. — Aquele de blusa cinza será o
primeiro.
Só dá tempo de ela terminar a frase para uma discussão entre
os meninos começar.
— Não vale, você não esperou!
— Tá reclamando só porque perdeu!
— Não perdi coisa nenhuma! Você colocou o pé na frente!
— Plachushchiy rebenok! — grita o mais esquentadinho,
jogando uma franja escura para longe dos olhos turquesa
impressionantes.
— Não falei? — gaba-se a loira, revirando os olhos, e grita: —
Alex, não chame seu irmão de bebê chorão! — ela então cochicha
para mim, divertindo-se: — Agora vão se virar contra mim, quer ver?
— Mãe, pare de se meter!
— É, e para de me defender! Não sou um bebezinho, mãe! —
reclama o outro.
— O que foi que eu disse? — Olhos verdes sorridentes voltam-
se para os meus. — É infalível. São orgulhosos, iguaizinhos ao pai.
Esses russos, pfff.
Observo os meninos voltarem a brincar um com o outro
novamente, na maior alegria, e acabo sorrindo também.
— A propósito, sou a Priscila.
— Amália — digo baixo.
Ainda é um pouco estranho conversar, socializar. Não ser
invisível. As pessoas que conheci desde que deixei a clínica não
estavam muito dispostas a fazer amizade. Em todos aqueles
empregos, eram apenas gritos e quase nenhuma gentileza.
Mas aqui, a sensação que tenho é de que todo mundo é bom.
— A irmã da Loupe. Ela fala muito de você. E não mentiu
sobre você ser linda.
Encaro meus pés, sem saber direito o que falar.
— Obrigada.
Ela bate seu ombro contra o meu suavemente e pisca.
— Não é um elogio, é só uma constatação mesmo.
Gosto dela, percebo imediatamente.
— Já pulou numa destas antes? — Aponta com o queixo para
a cama elástica.
Surpreende-me a pergunta.
— Não. — Sacudo a cabeça. Apesar de viver uma vida boa e
feliz com abuela, a gente não tinha dinheiro para essas coisas. Mas
eu me divertia muito com as brincadeiras que inventávamos.
— Eu também não. — Ela dá uma olhadela para as pessoas
um pouco mais distantes de nós. — Tô doidinha para subir ali, mas
você sabe, vão dizer que estou velha demais para isso.
— Posso ir com você se quiser — digo sem saber de onde a
ideia sai.
— Estava contando com isso, garota. — Priscila, piscando
para mim, bate palmas chamando a atenção dos filhos, parecendo
não querer me dar tempo de mudar de ideia. — Muito bem, o papai
está chamando, meninos!
— Não está, não — refuta o Alek.
Noto que ela troca um olhar, mesmo à distância, com o marido,
o amigo de Sebastian de aparência elegante. É um homem muito
bonito, de cabelos negros, possui os mesmos olhos turquesas
marcantes dos filhos, mas alguma coisa nele, não sei, provoca um
alerta, um aviso de cuidado. Não que me coloque medo ou algo
assim, porém é como se houvesse algo mais profundo oculto por
baixo da civilidade do terno e gravata e postura relaxada. Um tipo
diferente de perigo.
Seja como for, ele ama a esposa. O olhar aquecido entre os
dois é tão particular que de repente me sinto invadindo a intimidade
deles apenas por observar.
— Está chamando, sim — diz Priscila para os filhos,
convencida.
Gael, o marido dela, então faz um aceno para os gêmeos,
apoiando a esposa.
Sem nem pestanejar, eles descem da cama elástica e seguem
o comando. Dá para ver que respeitam o pai acima de qualquer
coisa.
— Não se engane, garota — brinca Priscila, divertindo-se. — É
a mim que eles obedecem, apesar de fingirem que não. — Rindo,
ela pega minha mão. — Vem, vamos lá!
Tiramos os tênis e, de um jeito meio desengonçado, subo atrás
de Priscila na cama elástica.
É engraçado como as pernas ficam moles e a gente mal
consegue se firmar. A loira, ao meu lado, começa a se mover.
— Vamos lá, Amália, pule também! — incentiva ela.
Timidamente, começo a deixar os pés saírem do chão. Como
esperado, me desequilibro e caio. Ao me levantar, sou logo lançada
para o chão de novo, até pegar o jeito.
— Isso, muito bem! — Não consigo não rir com a animação da
mulher bonita.
E Priscila se empolga, pula alto, cabelos loiros soltam-se, indo
para todos os lados e ela nem se importa.
— Vamos, garota! Volte a ser criança, está tudo bem!
Vacilante, dou meu primeiro pulo sem cair. É legal… é bem
legal, na verdade.
— Isso! Mais alto.
Pulo alto, começando a rir de um jeito que o ar mal consegue
atravessar meus pulmões. A sensação do vento no rosto, de ganhar
altura, é muito boa. Caio, levanto, pulo, caio de novo. De fato, volto
a ser criança.
Priscila apanha minha mão, entre um salto e outro.
— É isso, garota. Vê? A gente é livre! Livres para fazermos o
que quisermos!
Livre, livre, livre, a pequena palavra cria ecos dentro de mim a
cada vez que o vento varre meu rosto, a cada impulso dos músculos
contra a elasticidade, a cada olhar encorajador de Priscila.
— Livre — sopro a palavra para o ar, saltando tão alto que
penso ser capaz de alcançar o céu.
E quando ambas estamos exaustas, caímos lado a lado, sob
os aplausos e assovios de Loupe, tia Merian, vó Zhena, e até da
Dra. Saavedra, que nos assistem bem de perto.
— Isso foi… muito legal.
— Eu não disse? — Priscila ri, ainda segurando minha mão. —
Somos vencedoras, Amália. — Seus dedos apertam os meus. —
Nada pode parar garotas como nós.
Ela sabe, é a sensação que tenho. Sabe o que passei… e
talvez, só talvez, tenha vivido algo parecido…
Penso em dizer alguma coisa, mas perco o momento quando
vejo a babushka fazendo um sinal de “espere” e se apoiando na
barra de ferro da escada. Está tirando os sapatos.
— Ela não…? — Levantando a cabeça, Priscila indaga de
boca aberta. — Meu Deus, vovó Zhena quer pular também! —
Impressionada, a loira rapidamente fica em pé para ajudar a
senhora a subir os degraus, estendendo a mão, em vez de
persuadi-la do contrário.
— Chica, medo cair, né? — diz babushka quando já está sobre
a cama elástica, pernas nas meias de lã tremem instáveis, mas não
é medo que exibe, parece empolgada.
— Gostei de ver, dona Zhena! — elogia Priscila.
A esposa de Gael não solta a mão da vovó quando a traz para
o centro e lentamente começa a embalar as pernas para dar o
movimento, mas sem tirar os pés do chão, cautelosa. Dá para sentir
que está preocupada com vovó Zhena. A babushka, ao contrário,
sorri feito criança. O brilho em seus olhos aquosos por baixo dos
óculos de lentes grossas diz tudo, é a primeira vez dela também e
está adorando.
Que mulher corajosa.
Que mulher inspiradora.
Acho que nunca admirei alguém tanto quanto nesse momento.
— Poydem so mnoy[45]! — Vovó gesticula para tia Merian e
para Loupe, acenando para que venham também, pelo que parece.
Sem nem precisar pensar, Loupe faz exatamente isso, entrega
Sol de Maria ao pai, retira os tênis e se junta a nós. Tia Merian
aplaude, mas não sobe. Loupe traduz que os joelhos da prima da
vovó Zhena não estão bons.
Penélope pega a mão livre de vovó Zhena e a minha.
Entrelaço os dedos na outra mão oferecida por Priscila e, juntas,
formamos um círculo. E algo acontece sobre a cama elástica.
Quatro mulheres se entreolham, com muito mais do que palavras
poderiam expressar, e se reconhecem, e então simplesmente riem
como se lançassem para o céu carregado de nuvens deste pedaço
do mundo, que estão aqui, vivas, firmes, forjando sua felicidade.
Quatro histórias, diferentes gerações, mas a mesma audácia de
brandir para o mundo o som que mais soa como um canto atrevido
de vitória. Um desafio em forma de risadas.
É assim que eu me sinto. É isso que está no brilho do olhar de
cada uma aqui enquanto pulamos, em uma roda, sem soltar nossas
mãos, e extravasamos uma parte de nós, a mais profunda, a mais
ferida, a mais forte.
Pulamos até cansarmos. Ao cairmos, todas, deitadas quase
sem fôlego, cobertas por essa alegria que eu nem me lembrava
mais como era sentir, só então percebo o quanto eu realmente
precisava disso.
Curiosamente, talvez Priscila tenha percebido antes de mim.
Ao me encarar, vejo no verde sincero dos seus olhos o que ela
me permite ver: essa mulher já passou por muita coisa também,
assim como eu. Ela é uma sobrevivente.
A palavra ecoa de um jeito novo e estranho dentro de mim.
Sobrevivente.
Priscila sobreviveu.
Loupe sobreviveu. Minha irmã de vida forte e determinada
sobreviveu.
Eu sobrevivi.
Eu sobrevivi. Aquela família jamais poderá tirar isso de mim.
Eu estou aqui. Estou sendo feliz. Eu tive uma nova chance.
Apoiando-me nos cotovelos, busco Elliot com os olhos, tomada
por essa gratidão que quer sair rasgando o peito. Ele sabia disto o
tempo todo, sabia que aqui eu encontraria esse reconhecimento. Foi
por isso que Elliot insistiu tanto. Por isso que não desistiu de mim.
Seu olhar escurecido e intenso, de longe, ao lado da
churrasqueira, aceita ser capturado pelo meu. Ele arqueia o rosto
para cima, forte, imponente.
— Obrigada — sibilo, ciente de que ainda que nenhum som
tenha saído de minha boca, ele pode me ouvir.
E faço mais, abro meu coração completamente:
— Eu te amo.
A mensagem é recebida com sucesso a partir da maneira
como seu corpo enrijece, o peito sob a jaqueta de couro sobe numa
inspiração densa e pesada, as mãos apertam o copo com mais
força.
— Também te amo, moy almás. — Leio em seus lábios.
ELLIOT

— Toc, toc.
— Ah, oi… — Amália fecha cuidadosamente e guarda o
caderno na gaveta do móvel ao lado da cama. — Você demorou.
Há algo diferente nela. Além da trança em seu cabelo, o que é
uma novidade. Sob a luz quente do abajur, parece mais corada,
ansiosa.
— Estava no escritório com os caras — digo, escorando-me na
porta para tentar entender o que mudou.
— Foi muito legal, a festa…
— Foi, foi sim — principalmente por você estar feliz, menina.
Essa parte guardo para mim.
Demorei a subir para o quarto porque precisava acalmar essa
coisa martelando meu peito. Esse desejo irracional de estar com
ela. Não quero que Amalia se assuste com o quanto eu a quero,
com o tamanho do que sinto por essa menina. Ao mesmo tempo,
está cada dia mais foda de dominar, de conter.
— Estava bebendo? — pergunta ela.
— Ninguém escapa de uma dose ou outra de vodca nesse
país, Amália — curioso, sem ainda conseguir compreender o que
está diferente, continuo perscrutando seu rosto atrás de algum sinal.
— Gostaria de provar.
Semicerro os olhos, surpreso.
— Gostaria?
— Nunca bebi nada com álcool, mas todo mundo fala tanto da
vodca daqui que… — Encolhe os ombros, envergonhada. — Sinto
vontade conhecer.
Aspiro com toda a capacidade do meu peito, mas devagar,
assimilando.
— Olhe para mim — peço. Porque evitando meu olhar, como
ela está, dificulta um pouco tentar ler sua mente, apesar do quão
transparente ela é.
Engolindo em seco, ela faz.
Encaro-a, sentindo a mudança em sua respiração. A pulsação
discreta daquela veia bonita ao lado de seu pescoço.
— Está tudo bem? — pergunto calmo, sondando.
— Está sim — mas sua voz também soa diferente, mais baixa,
até falhada.
Assinto, sem nunca deixar de olhar para ela.
— Quer provar a vodca hoje?
— Hm. — Mordisca o lábio, desviando o olhar para um pedaço
qualquer da colcha de retalhos na cama.
Se essa garota precisa de subterfúgio de uma dose de
coragem líquida para chegar ao ponto principal do que tem em
mente, então algo está realmente fora do lugar.
Mas posso dar isso. Posso apresentá-la ao álcool. E posso
garantir que seja em segurança.
— Espere aí. — Descolo-me da parede.
Apanho uma garrafa no armário de Sebastian e vou à cozinha.
Despejo mais da metade do líquido fora e preencho com água o
restante.
Não quero que Amália tenha uma dor de cabeça horrível pela
manhã logo em sua primeira vez experimentando, e eu conheço
bem o poder dessa belezura aqui. Já vi uma garrafa destas derrubar
um homem com o triplo do tamanho daquela menina.
Apanho um copo e subo ao quarto.
Amália saiu debaixo da coberta, está sentada no centro, sob
as pernas cruzadas. Parece nervosa.
— Aqui — abrando meu tom para tentar tirar seu nervosismo
do caminho, ao lhe oferecer o pequeno copo preenchido com um
terço de líquido transparente.
Ela aceita, noto o tremor na mão. Leva a bebida à boca e
beberica.
— Pensei que fosse pior — comenta, assim que engole um
pouco, franzindo o cenho.
— Fica melhor à medida que a garrafa vai esvaziando —
brinco, sentando-me ao seu lado no colchão. — Agora, quer me
contar o que está te incomodando?
— N-não há nada me incomodando.
— Certo. — Perfuro cada detalhe de seu rosto e decido mudar
a estratégia, modulando meu tom. — Então o que está te deixando
ansiosa, Amália?
Ela lambe um resquício da vodca em seu lábio, o que quase
me distrai. Quase.
— Hoje percebi uma coisa.
— Posso perguntar o quê?
— Pode, pode sim.
Um sorriso involuntário move meu lábio para o lado. Como ela
é linda, até quando está me enrolando.
— Então, por favor… — ofereço.
Amália puxa uma respiração profunda. Alisa a mão na calça de
flanela do pijama.
— Não quero mais perder pensamentos com o passado.
“Perder pensamentos com o passado” é uma forma curiosa de
expressar. Evito tecer qualquer comentário, apenas assinto para que
siga em frente.
— Quero viver o hoje, o agora.
Bem. Uau.
Sem palavras, mas por mera falta delas, arqueio a
sobrancelha, admirado.
— E eu te amo, Elliot.
Meu coração, o fodido, não esperava que fosse tão objetiva.
Luto contra a necessidade de afagar o peito para impedi-lo de se
comportar como um adolescente tolo.
— Fico feliz com isso, Amália — meu timbre é uma massa
densa.
— Te amo muito, na verdade — reafirma, sacudindo
convictamente a cabeça.
Impossível não sorrir.
Corro um dedo por sua bochecha, alisando a pele, e coloco a
mecha de cabelo teimosa para detrás da orelha.
— É bom saber. — Encaro-a intensamente. — Porque também
te amo, Amália.
E foda-se essa merda de esconder.
— Não quero mais perder tempo em relação a isso, Elliot.
— Em relação a quê, exatamente, moy almás? — Não consigo
soltar seu rosto, deixar de acariciar aquele pontinho em sua orelha.
É mais forte do que eu. Tampouco deixar de reagir com cada célula
do meu corpo a essa sua declaração, que na verdade, entendi muito
bem, embora não devesse.
— Tenho vinte anos.
— Sim, você tem.
— Vim para cá, para essa nova vida.
— Você veio.
— Estamos dormindo juntos todas as noites. Acho que
significa que…
Involuntariamente, meu corpo vibra numa intensidade
diferente. Fica mais alerta. Acho que sei aonde ela quer chegar, só
prefiro esperar e observar.
— Significa…?
— Que estamos juntos. Que a gente está… namorando.
Levo a cabeça para trás lentamente, como se um golpe tivesse
me acertado em cheio.
— É o que quer? Namorar comigo? — Porra, que rouquidão
miserável é essa?
— É, é sim. — Sacode a cabeça com convicção, para
corroborar.
Espreito-a. Sei o quanto de coragem ela está exigindo de si
mesma para me dizer essas coisas. E só consigo querê-la ainda
mais. Trazer essa menina para o meu colo e beijá-la até que
nenhum de nós tenha fôlego mais.
Em vez disto, me controlo para não mover um único músculo.
Se em busca de mais coragem ou não, Amália bebe mais um
gole da vodca batizada.
— E tem mais — diz, limpando a boca com as costas da mão.
— Tem?
Mordendo o lábio, assente.
— Depois de ontem… acho que estou pronta para mais.
Ad na zemle.
— Acho que ainda não.
— Estou. Sinto que estou. — Aquelas profundezas de cinzas
finalmente encontram-me, carregadas de uma determinação que
não havia ali antes.
— Não quero mais perder tempo.
— Por que agora, Amália? — Minha questão é absolutamente
genuína. Quero mesmo saber.
— Porque sobrevivi para ser feliz, Elliot. Percebi isso hoje.
Caralho. Como se eu ainda pudesse me orgulhar mais dela,
vem essa agora, martelando meu peito com toda a potência.
— Certo, nisto você tem razão. Você merece ser feliz. E será,
dou a minha palavra.
— Com você — rebate ela, antes que eu consiga dizer o
contrário.
Assovio baixinho.
— Não sabia que uma festa possuía tanto poder — brinco.
Estou encarando a menina tão profundamente, que quase
posso beber cada nuance de sua pupila, cada raio em torno do
diamante cinza, cada linha de expressão suave em seu belo rosto.
De fato, não há rastro daquela insegurança constante, do
medo, daquilo inominável que normalmente a bloqueia para o resto
do mundo.
— Priscila disse alguma coisa para você? — Fico realmente
curioso.
Conheço a história da esposa de Gael, ouvi sobre o abuso que
sofreu, quando ainda estávamos no Brasil. Caçamos os
responsáveis.
— Não precisou dizer. Mas eu senti, e vi o que ela tentou me
mostrar. O que significa para todas nós. O mundo não é muito bom
com as mulheres, mas a gente pode lutar. Pode ser feliz.
Mal consigo respirar, de tanto orgulho. Uma garota tão jovem e
com uma vida de merda na bagagem, com esse tipo de
discernimento do mundo. Porra, que orgulho.
— Tô orgulhoso de você, Amália.
Ela morde um sorriso humilde.
Nossos dedos se entrelaçam sobre a cama, suavemente
acaricio sua pele delicada.
— Obrigada por ter insistido, Elliot — sua voz melodiosa é um
canto doce na noite.
— Não havia outra opção — revelo. Encaro-a e sou apenas
franco. — Você entrou sob minha pele no minuto em que botei meus
olhos em você, Amália.
Imóvel, apenas a observo subir em meu colo, acomodar uma
perna de cada lado das minhas, sentar-se e segurar meu rosto entre
as pequenas mãos.
Impossível não notar o contraste. Enquanto tudo em mim é
grande, duro, calejado, marcado de cicatrizes, ela é suave, macia,
acomoda-se como se fosse feita para esse lugar.
— Você é meu anjo salvador.
Um riso de autodepreciação sai por entre meus lábios.
— Estou longe de ser um anjo, Amália.
— Você é, sim — afirma com convicção. — E te amo tanto que
uma parte do meu coração às vezes sente que vai explodir.
Pego sua mão delicada e subo para o meu peito agitado.
— Bem-vinda ao clube.
Por alguns instantes de puro e contemplativo silêncio, apenas
nos encaramos. Nada é dito e nem precisa. Algo mudou hoje. Mas
também tem sido um processo diário desde que escolheu vir
comigo, quando atravessou aquele corredor e bateu à minha porta.
Amália se obrigou a sair de sua zona de conforto em cada pequeno
passo que deu, e se isso não é coragem, realmente não sei o que
poderia ser.
Sinceramente, talvez Cassandra e Saavedra estivessem
certas, lá atrás, sobre eu ter tido de me afastar dela. Li sobre a tal
dependência emocional e os danos que causa, o atraso no processo
de cura.
Não acho que esse seja o caso agora.
Não acho que hoje o que Amália tenha comigo seja
dependência emocional.
Acho que ela sabe que, com ou sem mim, ela é mais do que
capaz de encontrar seu caminho sozinha, a felicidade que tanto
merece.
Eu, essa família, somos apenas seu suporte. O chão firme sob
seus pés.
O pensamento seguinte não me agrada, mas é inevitável. Se
algo acontecer comigo nos próximos dias, se eu não voltar da
viagem, estou certo de que ela saberá o que fazer.
— Me promete uma coisa — peço, rouco, um pouco atingido
por essa ideia.
— O quê?
— Você lutará por sua felicidade todos os dias, enquanto viver.
Uma ruga marca o centro de sua testa.
— Com ou sem mim, Amália — enfatizo, para que saiba o
quanto isto é importante.
— Você pensa em me deixar? — Há tanta simplicidade e
preocupação em seu semblante, que isso me mata.
— Não — digo bem sério, encarando o fundo de seus olhos. —
Enquanto eu estiver respirando, sempre voltarei para você. Mas
quero que me prometa que, se algum dia eu não estiver aqui, você
continuará em busca de realizar e conquistar tudo o que te faz bem,
os seus sonhos. Tudo o que a deixa feliz. Promete?
— Mas por que está me pedindo isso, Elliot?
— Promete, Amália? Isso é importante para mim, moy almás.
Inspirando fundo, ela assente.
— Tudo bem, eu prometo.
Sou tomado por uma onda de sentimentos que não pensei que
ainda fosse possível. Já vivi e fiz tanta coisa, e nada nunca chegou
nem perto dessa necessidade urgente que sinto por ela. Desse
sentimento que arde e queima, e ao mesmo tempo preenche tudo
com uma paz visceral.
— Agora, preciso de um banho. — Suavemente, afasto-me um
pouco para trás. Do contrário, vou beijá-la, e não sei se consigo
administrar isso agora. — Foi um longo dia, você está aí, toda
limpinha e cheirosa, certamente não quer dividir a cama com um
homem fedendo.
— Posso ir com você?
— Desculpe? — Semicerro os olhos, querendo não ter
escutado direito.
— No banho, posso tomar banho com você?
Foda.
Foda pra caralho.
— Amália… — Seu nome em minha boca é um aviso.
— Por favor.
Esfrego o rosto, tenso em cada osso do meu corpo.
— Não sei se é uma boa ideia.
— Eu quero, Elliot… — Levanta um pouco o queixo com a
mesma humildade e força presente quando afirmou que quer ser
feliz, há pouco. — Estou pronta.
Será que ela sabe o que está dizendo, o que significa estar
pronta?
Espreito seu rosto, conecto-me às pedras de diamantes
valiosos em seus olhos e espero encontrar ali algo que me dê um
norte. Eu detestaria ser o causador do gatilho que vai tirar esse
brilho novo em seu olhar, que vai jogá-la de volta à posição anterior.
E tudo o que vejo é determinação. E coragem.
Maldita menina corajosa e linda.
— Tudo bem — decreto por fim. — Venha comigo.
O mesmo banheiro que venho compartilhando com ela nos
últimos dias, nesse momento se torna subitamente menor, me
fazendo parecer um gigante preso em uma caixa de fósforo,
acompanhado o tempo inteiro por aquele olhar silencioso e atento.
De repente, a simples tarefa de me despir, fica estranha.
Ligo o chuveiro e regulo a temperatura.
Amália observa.
Saio da área molhada, fechando o box de vidro para manter o
vapor preso lá dentro.
Amália acompanha com aqueles olhos grandes e
impressionantes.
Desfaço-me da jaqueta de couro, pendurando no suporte atrás
da porta onde ela está apoiada, muito perto de tocá-la, mas não
faço.
Com cuidado, retiro do meu pescoço o cordão com o token e o
deixo sobre a pia perto dela.
— O que é isso? — pergunta, em voz baixa.
— No exército, chamam de dog tag. — Um riso em forma de
bufo abandona meu peito. — Em tradução: etiqueta de identificação
de cachorro. É onde estão nossos dados essenciais. Carrego a
minha comigo desde que a recebi, em meu primeiro dia servindo.
— Só há uma palavra escrita na sua — nota ela, inteligente e
observadora.
— Cвободно. Livre. Apesar de estar sob um comando, foi a
primeira vez que me senti livre de verdade, que pude decidir meu
destino.
— Entendo esse sentimento.
Retiro então a camiseta branca de mangas compridas e jogo
em um canto no chão.
Um ruído de surpresa sai de seus lábios.
— Você tem tatuagens.
Observo os desenhos aleatórios que descem por meu peito,
costelas, barriga. Há nas costas também.
— Uma águia — diz, passeando os olhos por mim. — Uma
cruz. Um leão.
Uma arma, uma rosa, um urso, cartas de baralho. São tantas e
remontam tantas fases diferentes que algumas eu mesmo não me
recordo de por que estão aqui. Mas uma em especial, eu sei.
Sob meu peito esquerdo, um espaço antes em branco, como
se inconscientemente eu estivesse reservando este lugar, foi
preenchido há cerca de um ano e meio atrás.
Espero pacientemente que sua inspeção a encontre e
identifique, e quando o olhar admirado e curioso bate no desenho,
Amália arfa em reconhecimento.
— Estes são…?
— Seus olhos.
— Minha nossa… Posso? — murmura ela, em reverência,
pedindo autorização para se aproximar.
Assinto.
Devagar, Amália dá um passo para mim, e outro, até as pontas
dos dedos passearem no ar, acima da imagem. Está surpresa pra
caralho.
— Como? Uma foto?
Sacudo a cabeça, respondendo que não.
— Fiz o desenho e entreguei a um tatuador.
— Você desenhou meus olhos, Elliot?
Um sorriso move o canto de minha boca.
— Conheço cada raio, cada manchinha, cada pequeno detalhe
deles, Amália. Tenho memória fotográfica.
— E desenha.
— Desenhava, quando mais jovem. Como não tinha nenhuma
fotografia sua, reproduzi eu mesmo.
Aquele rosto confuso e admirado sobe para o meu, olhando
para cima, evidenciando nossa diferença de altura.
— Por quê?
— Você já estava marcada aqui dentro. — Apanho sua mão e
a trago para se recostar sobre o desenho, acima de meu coração.
— Tatuar foi só uma maneira de representar isso.
A menina parece sem ter o que dizer, seus olhos marejam, o
lábio inferior treme.
— Ei, não chore, moy almás — peço, levantando seu queixo.
— Não estou, Elli… acho que é… é emoção.
Aperto-a em meus braços. Como se fosse feita para esse
espaço, seu rosto descansa em meu peito, pele contra pele, pela
primeira vez. Ficamos assim, no meio de um banheiro, abraçados,
sentindo essa coisa fodida que já não dá mais para ser evitada ou
ignorada.
Não consigo mais controlar o que sinto por ela. Não consigo
mais ter força de vontade de me manter longe.
Depois de alguns minutos apenas abraçado a ela, ouvindo o
som cálido de sua respiração, afasto-me de seus cabelos.
— Odeio ter que fazer isso, mas preciso realmente de um
banho — brinco suavemente.
Relutante, Amália se afasta, dando um passo para trás, porém
não faz qualquer menção de deixar o banheiro.
— Preciso tirar — aviso, em referência à calça e a boxer.
Ela entende o recado, seu olhar mira o teto, dando-me
privacidade. A falta de intimidade entre nossos corpos ainda é um
ponto sensível.
Desfaço-me do restante da roupa, abro o box e entro nu
debaixo do chuveiro, de costas para ela. A água é uma benção para
todas essas emoções rompendo de mim, querendo me devorar.
Em poucos dias, estarei partindo para aquela missão de
merda, e pela primeira vez, tudo em que penso é que quero voltar.
Quero voltar para ela. Nunca me preocupei com nada disso antes,
mas agora… agora, porra, preciso voltar para essa menina.
Fecho os olhos e, sem perceber, me pego fazendo o que
pensei que não faria mais. Não desde que descarreguei aquela
arma de caça no peito do miserável que chamei de pai, um
desgraçado que distorcia a fé até transformá-la em algo sem sentido
dentro de mim.
Eu converso com O Cara.
Sei que não tenho mais crédito algum com Você, mas me
traga de volta para ela. Em troca, dou o que quiser. Só me traga de
volta e...
Antes que eu consiga oferecer uma barganha a Ele, sou
surpreendido até a morte pela próxima coisa que acontece.
Enrijeço tal qual uma parede de concreto, duvidando que
esteja acontecendo.
Mas é real. O toque suave das mãos de Amália atrás de mim,
em minhas costas, é real.
Sem dizer nada, suas mãos correm à lateral do meu corpo e
se aconchegam em meu abdômen, abraçando-me por trás, debaixo
da água.
— Amália… — advirto.
— Me deixa ficar — pede com aquele toque de deferência que
me modela em suas mãos.
Sei imediatamente que não tenho como negar. Não há
qualquer pedido seu que eu recusaria, é simples assim.
Cruzando os braços em X diante de meu peito, seguro suas
mãos e a acolho comigo. Sua bochecha descansa em minhas
costas. Sei que está vestida, sinto o contato do tecido de sua
camisa de pijama.
— Eu odeio meu corpo, Elliot — revela, baixinho, dividindo
comigo o que parece ser causador de um ponto de dor dentro dela.
— Odeio me olhar no espelho. Não há nada que eu goste em mim.
Porra, isso me mata.
Fecho os olhos debaixo da água abundante.
— Pois eu amo tudo em você — rebato, rouco pra caralho,
tomado por essa coisa me apertando a glote.
— Eu sei — afirma. — Eu sinto.
Viro-me para ela, lentamente. Preciso ver seu rosto.
— Você é a obra mais perfeita já colocada nessa Terra,
malyshka — e não há verdade maior.
Amália me encara com uma urgência que ainda não tinha
visto.
— Me ajude a gostar de mim, Elliot. Me ajude a me limpar de
uma vez por todas. Eu me sinto tão… suja… tão insignificante.
Quero me libertar desse sentimento.
Leva um momento para meu cérebro compreender seu pedido.
Para entender bem o que está dizendo. Um momento doloroso que
me atinge com a precisão de um rifle à queima-roupa.
— Não há nada de sujo ou insignificante em você, Amália.
Seguro seu rosto entre minhas mãos, a água batendo em nós,
se espalhando a nossa volta.
Salpico um beijo em sua testa.
— Você é perfeita.
Outro beijo, na sobrancelha escura, e outro na cortina de cílios
negros.
— Uma obra rara, desenhada por um deus benevolente.
Beijo a maçã do rosto, o nariz, a linha da mandíbula.
— Já vi muita coisa nesse mundo. Vi de tudo. Mas nada,
absolutamente nada se compara a você. E não estou só falando do
que há por fora. Sua beleza vai além do que os olhos podem ver.
Mais e mais beijos salpicados com toda a minha veneração,
com toda a submissão de alguém diante de algo valioso e raro.
— É o que há de mais precioso, entende isso? Em cada
detalhe.
Roço meus lábios pelos seus devotamente.
Parte de Amália a urgência de um beijo de verdade, quando
segura meus ombros com força e inclina o rosto para cima, me
pedindo por isso em silêncio.
Não podendo negar a essa menina nada que queira, eu a beijo
de volta. A reverencio, a adoro, a contemplo. Por um instante, deixo
aquela parte de mim, a que venho contendo em sua presença, se
manifestar para fora da pele, uma torrente do desejo mais feral e
desesperado por ela. Beijo Amália com toda a necessidade que
guardo esse tempo todo, para que ela enxergue a intensidade do
que é essa coisa que queima cada célula do meu corpo, por ela.
Somente por ela.
Nublado por esse sentimento penetrando até os ossos, a
assisto segurar a barra da camiseta, não sem antes notar que o
pijama colado a seu corpo modela os seios pequenos, evidenciando
bicos entumecidos.
— Não precisamos, Amália…
— Eu quero, Elliot. — Puxa a peça encharcada para longe de
seu corpo, deixando que caia aos seus pés. — Quero dar um novo
significado a isso. Q-quero me libertar.
Enfrento apenas a íris cinza perdendo espaço para pupilas
escuras, atrás de um sinal de alerta, algo que me diga que estamos
perto de cometer um grande erro.
Só encontro determinação e um tipo de apelo bonito.
Baixo então meu olhar para sua pele nua, tão clara que quase
posso demarcar as veias que a irrigam. Seios pequenos, mamilos
rosados rígidos, despertos. O estômago liso, a pele firme, maculada
por algumas pequenas cicatrizes, descendo até o cós da calça de
flanela.
É imperioso me agarrar a todo grama de autocontrole que
possuo para impedir que meu corpo reaja, que meu desejo ganhe
evidência e a assuste.
— São lindos — a rouquidão quase ganha a melhor sobre
minha voz.
Noto o apertar de seus lábios, refutando a informação.
Depreciando-se. Mas, corajosamente, ela não os esconde de mim.
Cerra os punhos ao lado do corpo e se deixa ser exposta.
— Toque em mim, Elliot — pede.
Porra.
— Amália…
— Por favor.
Antes de fazer o que pede, trago-a para mais perto.
— Você não tem que implorar, malyshka. Nunca. Se soubesse
o quanto a quero. Olhar para você está me matando, Amália. Me
matando.
Sob o chuveiro, eu a abraço. Deixo nossas peles se unirem
pela primeira vez sem nada entre nós. Seus seios pequenos e
rígidos empurram-se contra mim, contra uma parede de músculos
tensos.
Surpreendendo-me, Amália planta um beijo em meu peito,
acima da tatuagem de seus olhos. E mais um, e outro, e uma
dezena deles. Uma ferroada ganha caminho de minha barriga para
meu maldito pau. Cerro os dentes num aperto implacável para
impedi-lo de ganhar vida.
Sua mão pequena passa a deslizar por meus braços, costelas,
costas, até se voltarem para as minhas. Ela as apanha e leva para
si, para cobrir seus seios.
Grunho um som tão animalesco preso no fundo da garganta,
que chego a temer assustá-la.
Amália também reage ao contato. Um gemido baixinho
atravessa seus lábios semiabertos. Olhos inebriados, levemente
arregalados, buscam os meus. Mas não é medo que enxergo neles,
é antecipação, curiosidade, desejo.
— Você é perfeita. — Desço minha boca para a sua e colo
nossos lábios. — O que quer de mim, Amália? O que mais quer?
— Você — murmura entrecortado. — Quero que me mostre
como é ser amada, Elliot.
A sensação é de que o fio condutor responsável por minha
determinação arrebenta-se fibra a fibra.
Não penso direito ao içá-la em meu colo, tirando-a do chão.
Seguro-a com firmeza e, sem precisar de muito, a recosto contra a
parede. Amália se agarra em mim com tudo que há em si.
Porra, eu amo essa menina. Amo como jamais amei ninguém.
Sequer sabia que ainda seria capaz de conhecer esse sentimento.
Que merecia me sentir assim com alguém.
Assim como ela finca as unhas curtas contra minha carne,
mergulho meu nariz em seu pescoço, com água desabando em
nossas cabeças, e a aspiro, a beijo, percorro os dentes levemente
sobre seu ombro. E não representa nem uma fração do que tenho
vontade de fazer, porque seja como for, ainda estou no controle,
ainda quero dar a ela tudo, sem assustá-la com a intensidade que
percorre minhas veias nesse momento.
Aperto um de seus seios em minha mão, beliscando
ligeiramente o mamilo.
Ela geme, se estica em meus braços.
— Elliot…
— O que quer que eu faça, malyshka? — Percorro a boca
sobre o frenesi que é sua carótida. — Onde quer que eu a toque?
Sua resposta é se alongar ainda mais para trás, agarrada ao
meu pescoço, oferecendo seus seios ao meu alcance.
— Quero lamber você — digo.
Ela estremece, as pernas me circundam com mais força.
— Então… então faça… — murmura sem ar.
Meu coração, desenfreado, se choca contra a caixa torácica
violentamente.
Aperto a mandíbula ao limite dos dentes.
Mas faço o que digo, e faço porque sei que é o que ela
realmente quer: prazer em meus braços.
Percorro a língua pelo bico intumescido, macio e suave, bem
devagar, testando e provocando.
Amália geme mais alto, agarrando-se a mim com mais força,
dedos entrelaçados em minha nuca.
— Te amo, moy almás. — Prendo suavemente um dos
mamilos entre meus dentes. — Te amo.
Ela choraminga, pressiona minha cabeça para mais, ativa.
Dou a mesma atenção ao outro seio.
Unhas me arranham as costas.
— Nunca senti nada como isso por ninguém — digo,
devotamente, amando ser aquele a proporcionar esse tipo de som
nela, esse apelo bonito que reverbera a nossa volta. — Nem pensei
que algum dia seria capaz de sentir. — Corro a boca por seu
pescoço até encontrar a orelha. Mordisco o lóbulo e sussurro em
seu ouvido: — Você é perfeita, está me ouvindo? Cada parte de
você, malyshka.
— Elliot… — Lança a cabeça para trás, um apelo, um pedido.
Água do chuveiro jorra sobre nós.
— O que quer, Amália? O que quer que eu faça? Eu sou seu,
peça e vou fazer.
Sinto a pressão de sua pélvis se empurrando para mim,
respondendo o que palavras não expressam.
Posiciono-a com um braço em sua cintura e me afasto apenas
para ter espaço suficiente para olhar para ela.
Olhos fechados, a trança molhada grudada em seu braço, os
lábios presos entre os dentes. A imagem mais sensual em que já
botei meus olhos. Nem que eu viva um século inteiro, vou me
esquecer disto, desse momento, dessa imagem.
A sensação é de que o ar ficou rarefeito a nossa volta.
— É o que quer, Amália? Que eu a toque?
— Hummmm — grunhe desafinada, inocente do poder de seu
desejo.
— Preciso de palavras, moy almás. Preciso que me diga.
— Me toque, Elliot… por favor, me toque.
Um sorriso desprovido de humor rasga meus lábios. O monstro
bestial e a garota doce e delicada. A inocência contra a experiência.
Devagar, invado o cós de sua calça, tateando e encontrando o
caminho abaixo da calcinha molhada.
Calor, delicadeza, uma bocetinha pequena e incendiária, assim
como imaginei.
Masturbo-a, provocando, ganhando e construindo terreno.
Amália se retorce em meu colo. Geme alto, arranha, aperta,
chega a cravar os dentes em meu ombro.
Apanho o mamilo com a boca, torturando-a, enquanto minha
mão trabalha com precisão em seu ponto mais sensível.
Não demora para que ela exploda.
Olhos arregalados, mais transparentes do que nunca. Um grito
de espanto e poder. Uma convulsão do pequeno corpo amparado
pelo meu.
Meu corpo inteiro reverbera um tremor violento junto dela.
Quando finalmente a menina desaba a cabeça contra meu
pescoço, absorta em seu prazer, gemendo e arfando em meu colo,
retiro minha mão de sua calça, ajeito Amália em meus braços de
modo que apanho meu pau. Com poucos movimentos para cima e
para baixo, me despejo contra o azulejo da parede.
É a porra do orgasmo mais violento e visceral que já tive.
Tem o poder de apagar qualquer outra experiência anterior e
deixar apenas uma no lugar: Amália.
Sou dela. Sem volta, sem culpa.
Chega de culpa.
Chega de tentar me afastar dessa coisa avassaladora que me
atrai para ela.
O restante do banho é apenas para ela. Lavo-a com devoção,
inclusive entre suas pernas. Desfaço a trança em seu cabelo e
espalho xampu, massageando o couro cabeludo, fazendo-a suspirar
de tão relaxada.
Na cama, vestidos, Amália se aninha em meus braços. Seu
sono vem rápido. Antes de entregar-se a ele, no entanto, ela ainda
esboça sonolenta:
— Um dia quero fazer uma tatuagem, também. — Boceja. —
Bem aqui — em seu pulso.
Sou incapaz de descrever as emoções que me percorrem com
essa afirmação.
Na escuridão parcial, encaro o teto, contemplando o ronco
baixinho que a menina emite.
Só não durmo também porque não quero perder um único
minuto disto.
E, se eu for sincero, porque não consigo parar de repassar o
plano em minha mente. Não posso falhar nessa missão. Tenho que
voltar para ela.
Falhar não é uma opção.
Ansioso com essa merda, me levanto da cama, desço
rapidamente ao escritório de Sebastian, procuro e encontro o que
preciso, e volto para o nosso quarto. Passo o restante da noite
fazendo algo que não fazia há pelo menos um ano.
AMÁLIA

— Você tem certeza disto, Am? — pergunta Penélope,


espreitando meu rosto. — O momento de desistir é agora.
Sua diversão é quase uma distração.
Mordiscando o lábio, encaro a tesoura que tia Merian segura
nas mãos, cheia de expectativa. E então observo meu reflexo no
espelho, cabelos longos e pretos, sem corte, batendo quase na
cintura. Por anos, foram minha cortina, um casulo. Podia esconder
meu rosto sob eles e impedir que me vissem. Claro que era só uma
ilusão, eu nunca tive realmente poder de decisão sobre meu corpo,
minha mente, naquela casa.
Mas hoje eu tenho. Hoje posso decidir meu destino. E estou
disposta a mudar, a deixar para trás tudo aquilo que me fez tanto
mal, incluindo as memórias.
— Tenho — afirmo assentindo, dando à senhora sinal verde
para fazer o que quiser.
Tia Merian sorri com alegria.
Esborrifa uma água cheirosa em meu cabelo, penteia e
demarca uma linha invisível acima de minhas sobrancelhas, não sei
se me questionando ou apenas me avisando que é onde pretende
passar a tesoura.
Faço um sinal universal de positivo com os dedos.
Quando a primeira mecha grossa e preta cai, leva junto com
ela um suspiro meu, involuntário. Fico à espera de me arrepender,
mas em vez disto o que sinto é uma sensação boa, de que era
necessário.
Fecho os olhos e deixo que ela trabalhe. Primeiro, na frente,
uma franja. Fios caem em meu nariz provocando uma coceirinha
engraçada.
— Quanto ela pode cortar do comprimento, Am? — indaga
Penélope, segurando a filha no colo, assistindo de perto.
Gostaria que vovó Zhena também estivesse aqui, mas ela foi
ao centro comprar tintas para suas telas.
Encolho o ombro, sem ter uma resposta.
— Quanto quiser, eu acho.
Penélope ri.
— Jesus, chica, você está dando munição para um monstro —
e traduz para tia Merian, que também ri, bem satisfeita, dizendo algo
em russo.
Penélope faz a tradução:
— Tia Merian disse que você pode confiar, que ela vai te
deixar ainda mais linda.
Linda. A palavra sempre vazia para mim, hoje encontra uma
posição diferente. Não consigo rejeitá-la como antes. A verdade é
que eu me senti linda nos braços de Elliot. Me senti desejada, me
senti amada, protegida. Esperei que em algum momento aqueles
sentimentos ruins fossem invadir minha mente, enquanto estávamos
juntos, mas não aconteceu.
Tampouco depois.
Como que por um milagre, minha cabeça se esvaziou de todos
os pensamentos extenuantes. A última coisa de que me lembro
antes de fechar os olhos e verdadeiramente descansar, é que amor
é um sentimento muito bom.
Sei que será uma luta diária, um passo de cada vez, mas eu
devo isso a mim mesma.
O som da tesoura é reconfortante.
Sinto as mechas deslizarem por meus braços e caírem.
Depois de um tempo, tia Merian dá um cutucãozinho de leve
em meu ombro, me pedindo para abrir os olhos.
Primeiro, vejo seu rosto entre mim e o espelho, a expectativa
marcando os sinais da idade. É uma mulher vaidosa, passa batom
rosa todas as manhãs, tinge o cabelo de vermelho, está sempre
cheirosa. E é alegre, de bem com a vida.
Sorrindo matreiramente, ela então se afasta devagar para o
lado.
Encaro a garota me olhando. Olhos grandes e claros,
sobrancelhas largas e escuras, e acima delas, uma franja grossa
numa linha reta perfeita. Não se parece comigo. A garota está
sorrindo para mim, mas não se parece com nada que me seja
familiar. Só que eu gosto dela. Gosto da ideia de ser ela.
Tia Merian espalha a franja com os dedos, para mostrar que
posso usar tanto reta, quanto para o lado.
Ela traz então meu cabelo para frente, o que restou dele.
Agora, bate no meio das costas, com um leve repicado nas pontas.
A senhora acena para que eu passe minhas mãos pelos fios.
A maciez, a textura.
Essa Amália é diferente.
— E então…? — Loupe quer saber, curiosa, com a mesma
expectativa de tia Merian.
Tapo a boca para controlar as emoções, e por trás das minhas
mãos, revelo:
— Eu gostei mesmo!
— Ah, Am! — Penélope suspira parecendo aliviada, sorrindo
pra valer.
Tia Merian bate palminhas e me puxa para um abraço.
Retribuo. A abraço com força, com gratidão, sussurrando uma
série de agradecimentos que não sei se ela é capaz de entender.
Segurando suas mãos enrugadas e macias, viro-me para
Penélope.
— Loupe, você pode, por favor, traduzir? — Volto-me à tia
Merian, a mulher que acaba de me dar algo que eu nem sabia que
precisava. — Eu amei o que a senhora fez comigo, muito obrigada
de todo o coração.
Extasiada, a senhora dispara a gesticular e falar para
Penélope em russo, naquele sotaque forte, rápido, impositivo,
segurando meu rosto com as mãos.
— Tia Merian agora quer te maquiar. Falei que você não é uma
boneca, para ela ficar brincando — traduz, divertindo-se muito.
— Pois eu aceito, diz pra ela que pode fazer o que quiser… eu
nunca me maquiei antes.
Duas horas depois, vovó Zhena quase cai para trás quando
nos encontra na cozinha. A sacolinha de papel em suas mãos
despenca sobre o balcão. Ela tira os óculos de grau e os limpa
exageradamente.
E arregala os olhos.
— Chica hermosa! — exclama, admirada, e passa a falar com
a prima, que também fala sem parar, animadamente. Parecem
comemorar.
Babushka faz um sinal de “espere” com a mão, vai até a pia,
abaixa-se para mexer no fundo do armário, procurando alguma
coisa lá.
— Essa não… — Penélope assobia baixinho.
— “Essa não” o quê? — pergunto confusa.
— A gente vai comemorar.
E não dá para saber se isso é bom ou ruim.
— Vai?
— Aham.
Vovó Zhena grita alguma coisa empolgada e retira do armário
uma garrafa com líquido cor âmbar.
Penélope inclina-se na banqueta para cochichar:
— O famoso destilado de mel da babushka. Ela mesma faz e
só serve em ocasiões especiais — explica com certo carinho
zombeteiro. — É uma delícia. Mas não se deixe levar pelo sabor,
Am. Dois copos é o suficiente. Lembre-se disso.
— Dois copos — repito, achando graça.
— Mais do que isso, e você vai desejar não ter nascido,
amanhã de manhã.
Penélope pisca, fazendo graça, mas é a primeira a pular da
banqueta e pegar copos no armário para todas nós. Antes de beber,
pega o celular e digita alguma coisa. Guarda o aparelho de volta e
compartilha com a gente:
— Acabei de avisar meu marido que nossa russazinha está
dormindo, e que quando ela acordar, certamente quem estará
dormindo serei eu. — Gargalha daquela maneira cheia de vida. —
Estou me dando um passe livre.
Penélope não mentiu sobre o sabor. Docinho, sem ser
enjoativo. O álcool só é sentido na língua no final. Percebo também
que é mais forte do que vodca, o que é curioso.
— Isso aqui me lembra o dia em que conheci o cabrón —
Penélope conta para todas nós, dividindo-se entre um idioma e
outro. — Estava no meio de uma missão, procurando um lugar
estratégico para estacionar e de repente ali estava a vaga perfeita,
bem de frente para o local em que eu tinha que entrar para
investigar. Pois bem, estacionei, né?! Aí do nada aparece esse carro
grande, cheio de homens mal-encarados, me acusando de ter
roubado a vaga. — Ela engole todo o conteúdo do copinho e bate
com ele na mesa, alegremente. — Roubado, gente! Claro que eram
eles, Sebastian e os amigos.
Não sei se Penélope percebe que acaba de se servir do
terceiro copo.
— Nem dei bola, afinal, eu estava em uma missão, como eu
disse. Detalhe: eu estava disfarçada. Entrei nessa boate, me
candidatei a uma vaga para atender no bar e consegui o trabalho
para voltar e começar naquela mesma noite. Só que, quando eu saí
da boate, vocês não vão acreditar: meu carro havia sumido!
Evaporado no ar! Foi então que eu vi o bilhete, bem onde o carro
minúsculo deveria estar: Sebastian mandou um dos amigos levar o
Ovo-Medonho para uma vaga a quase um quilometro dali, o cabrón!
Ovo-Medonho é como ela chama o carro que está em sua
garagem até hoje, bem pequeno, mal cabem duas pessoas dentro.
Ela me mostrou, mas disse que só usa quando sai sozinha.
— E o que você fez? — pergunto, envolvida pela história.
Penélope dá de ombros, bebendo mais um pouquinho.
— Tive que ir a pé o caminho todo, sobre saltos de doze
centímetros. Você não faz ideia do que é andar um quilômetro de
salto alto, Amália. Fiquei com bolhas nos pés, doidinha para ver de
novo esse homem e dar um soco no nariz dele… mas eu me
vinguei. Ah, pode acreditar em mim, dei a ele o que merecia.
— O que você fez? — Acho que é o que tia Merian pergunta
desta vez.
— Coloquei sabão na bebida dele! — Ela joga a cabeça para o
alto e ri. — Estava eu lá no bar, investigando enquanto servia
bebidas, e esse homem grande, bonitão, me aparece, pede uma
bebida sem nem me reconhecer. Enchi o copo de detergente,
coloquei a bebida em cima e dei a ele. E Sebastian tomou!
— E depois?
Apesar da expressão de suspense, é o sorrisinho de lado que
a denuncia.
— Poucos minutos depois, acabamos dando uns amassos no
depósito da boate. Foi ali que ele se apaixonou por mim, tenho
certeza — gaba-se.
Enquanto todo mundo ri, movida por um sentimento muito
forte, me pego recostando meu rosto em seu ombro. Que sorte a
minha por nossos caminhos terem se cruzado. Que sorte imensa.
Penélope me lança um olhar afetuoso de entendimento.
— Também te amo, Am. — Então cochicha, zombeteira: — Só
não esqueça: no máximo dois copos, hein.
— Você já está no terceiro — aviso.
— Estou é?
E somente muitas risadas depois, e tentativas frustradas de
fazer bolinhos de chuva, ou qualquer receita, com trigo espalhado
por nossos cabelos e roupas, é que somos surpreendidas pela
mudança lá fora. O dia virou noite. E também pela entrada de
Sebastian e Elliot na cozinha.
— Elas estão…? — indaga Elliot, sem acreditar.
— Bêbadas — afirma Sebastian, com a expressão meio
incrédula e meio achando graça.
— Cabrón! — Loupe levanta o copo no ar, brindando com o
marido. — Meu marido não é um achado, gente? Olhem só para ele,
esse rosto misterioso, ombros largos, e o tanquinho? — Abana-se.
— Ulalá se eu não tive a sorte grande, hein?! Tudo isso por causa
de uma vaga de estacionamento!
— Destilado de mel — conclui Sebastian para Elliot.
Mesmo com a mente um pouco nublada, sinto os olhos
intensos de Elliot em mim, observando-me minuciosamente.
— Tia Merian cortou meu cabelo. — Acho que estou sorrindo.
Espere, eu estou gritando?
— Estou vendo — diz ele, escorando o ombro contra a parede.
Uma faísca zombeteira, mas apreciadora, brinca em seu rosto
imponente.
— Gostou?
— Claro que ele gostou, você está maravilhosa, Am! Quem
que não ia gostar? Elliot, Elliot, você tirou a sorte grande, hein!
— É, tirei sim — responde ele, de bom humor. Os olhos em
fendas, porém, sem se desgrudar um minuto de mim.
— Tô de batom — conto, esfregando os lábios.
— Estou vendo.
— Gosto tanto de você.
A cozinha urra, acho que Penélope traduz isso para as
senhoras, porque elas também aplaudem.
Por que não consigo me impedir de dizer essas coisas?
Elliot está sorrindo daquele jeito que muda seu rosto. Relaxa
os traços, dá a ele um aspecto mais jovem, sem todo o peso do
mundo nas costas.
— Também te amo, malyshka.
As mulheres uivam de novo, explodindo em palmas e gritos
efusivos.
Elliot se afasta da parede e vem até onde estou, na bancada.
— Você comeu alguma coisa, antes de…? — Aponta o queixo
anguloso para a garrafa agora vazia.
Comi? Não consigo me lembrar.
— Pelo jeito, não. — Não perco um ligeiro olhar acusatório que
ele lança para Loupe.
Que se defende, levantando as mãos.
— Culpada! Amanhã, quando não houver dois de você, me
cobre por isso, Elli — diz ela, divertindo-se.
— Pode deixar que me entendo com ela — avisa Sebastian,
lançando para a esposa um olhar prometendo alguma coisa que a
faz abraçar a barriga dele e se derreter.
— Quer subir, descansar um pouco? — indaga baixinho Elliot.
Um suspiro meio bobo deixa meu peito.
Amo esse homem. Amo o jeito como ele me olha e me faz
sentir especial.
— Você vai comigo?
— Não pretendo ir a nenhum outro lugar, moy almás. —
Encosta os lábios em minha testa e murmura: — A propósito, você
está linda.

ELLIOT
O primeiro porre da menina. É isso, agora sim ela está vivendo
como a garota de vinte anos que deveria ser. Experimentando
coisas, permitindo-se. Aos poucos, a mudança está acontecendo.
— Sabe uma música que eu g-gosto…? ich-ich — pergunta
Amália, interrompida por um soluço, enquanto sobe a escada em
minha frente, minhas mãos a guiando pela cintura estreita. — É
assim. — Bate castanholas imaginárias no ar. — “Plazita del
altozano los niños juegan al toro y el más chico al no tener trapo al
no tener trapo se queda en un rincón llorando solo”[46].
O canto profundo e melodioso ganha sobriedade, ainda que as
pernas estejam um pouco atrapalhadas. Nunca conheci alguém que
cantasse assim, com a alma. É um dom que a menina tem.
— “La gente sale a la calle le tocan las palmas, primo, le le le
le le tocan las palmas le le le le le, tocan palmas”[47].
Olha-me, inclinando o rosto para trás.
— Você já esteve em uma tourada, Elliot?
— Não, Amália.
— É legal, as crianças correm pelas ruas, as pessoas batem
palmas. Mas eu tinha muita pena do touro. Não deveria ser certo
machucar um animal a troco de nada, né?
— É, não deveria.
— Minha abuela me enfeitava para o dia da tourada. Mas
nunca com roupa vermelha. Vermelho atrai a fúria do touro, sabia?
— Não, são sabia.
Um sorriso inunda minha voz.
Acho que nunca vou me acostumar com a versão Amália
falante. Não quando, por meses, enquanto eu frequentava a clínica,
ela mal dizia uma palavra; até bem pouco tempo atrás, na verdade.
Só continue, menina. Liberte-se dessa carcaça que não é sua,
continue florescendo.
No quarto, a assisto desabar na cama.
— Tá tudo dobrado, Elliot.
Cabelos negros mais curtos se esparramam pelo travesseiro.
A franja cai de lado. O novo corte de cabelo deu a ela confiança,
percebo. Isso ou o álcool.
— Imagino que sim. Quanto você bebeu?
— Não foram dois copos. Eu deveria ter ficado só em dois.
— Não tem problema extrapolar de vez em quando, moy
almás. — Eu a ajudo com a sapatilha.
Afasto-me para fechar a cortina e ligar o abajur. Amália não
gosta do escuro.
— Elliot? — chama sonolenta.
— Sim.
— Promete que nunca vai embora? Doeu tanto perder minha
abuela.
Uma espécie de ferroada me atinge o peito em cheio.
Observo seus olhos se fechando, a respiração cadenciada.
— Prometo — digo, ciente de que seu sono promovido pelo
álcool possivelmente levou a melhor e ela sequer está me ouvindo
agora.
Nem que eu tenha que matar meio mundo, prometo voltar para
você.
ELLIOT

— Separe um pouco mais os pés e flexione os joelhos, moy


almás. Tente encontrar seu centro de gravidade. — Toco
gentilmente em seu joelho, indicando para abrir um pouco mais as
pernas. — Assim.
— Certo, entendi — ela se reorganiza, um pé na frente do
outro, num ângulo aberto.
— A posição tem influência direta na força do golpe, veja.
Afasto-me dela, contorno o saco de areia e demonstro.
Ela me observa e imita os movimentos. Está melhorando, mais
confiante, mais consciente de seu corpo e do espaço à volta. Meu
objetivo é que saiba se defender em uma situação extrema de
contato físico, não que eu vá dar qualquer oportunidade para o azar
novamente. No que depender de mim, ninguém jamais a tocará.
— Com fome? — pergunto, quando acredito que já é o
suficiente para o dia.
— Morrendo — confessa, sorrindo com a leveza que aos
poucos tem substituído a sombra aparente de antes. A mudança
está acontecendo, lentamente, mas está bem ali.
— Então cabe a mim alimentá-la. — Sem poder evitar, a
enlaço pela cintura. Amália corresponde acomodando as mãos em
meus braços com intimidade. Porra, como é bom. Como é bom não
precisar mais esconder o que sinto por essa menina.
Cheguei a acreditar que uma coisa destas, que nós, nunca
aconteceria.
— O que foi? Por que está me olhando desse jeito? —
questiono, sem poder evitar o sorriso estúpido movendo meus
lábios.
— Você deveria sorrir mais vezes, Elliot.
— É mesmo?
— Aham… — Mordisca o lábio, talvez refletindo sobre ser
completamente aberta a respeito de algum pensamento. Pelo jeito,
decide que sim. — Faz o mundo parecer um lugar diferente.
Por essa eu não esperava.
— Diferente como? — Levanto a sobrancelha.
— Melhor.
Abraço-o um pouco mais, trazendo para mais perto. Jamais
imaginei que eu, no alto de toda a minha carga e experiência, ainda
pudesse me sentir desse jeito por alguém.
— Só é melhor porque você está nele, Amália.
Beijá-la é intuitivo, fácil, magnético. Aproximo minha boca
devagar e sou acolhido pela dela. Lábios macios, que se movem
contra os meus numa dança doce.
Depois da última noite, algo mudou. Consolidou-se entre nós.
É implícito.
Em mim, não consigo mais me conectar com a carga de culpa,
sempre um lembrete constante de que não sou digno dela. Não a
encontro em lugar nenhum de minha mente.
Pelo contrário, isso aqui, de alguma forma, parece… certo.
Cabe a mim interromper o beijo, sem pressa, mas ciente de
que quanto mais me perco nela, mais difícil fica de encontrar o
caminho de volta.
— É com certeza a minha coisa preferida no mundo — diz a
menina, suspirando, mas ainda em meus braços.
— O quê?
Seu sorriso genuíno queima e acalenta ao mesmo tempo meu
peito fodido.
— Beijar você.
— Moy almás… — Minha voz tem o som de um grunhido, de
quem mal sabe o que fazer com esse tipo de declaração, tão
honesta, tão ela. Percorro os nós dos dedos carinhosamente por
sua bochecha corada, linda pra caralho. — Vamos comer alguma
coisa, antes que eu não consiga mais nada além de ficar aqui com
você.
Na cozinha do apartamento, aceito sua oferta de ajuda e
mostro a ela onde fica cada coisa. A visão da menina abrindo meus
armários, movimentando-se com naturalidade, num espaço que por
muito tempo foi só meu, traz outra vez a sensação de que é como
as coisas devem ser.
— Você é organizado — comenta ela, alcançando a espátula
da gaveta que pedi.
— Tento ser. No exército isso é meio que uma regra.
— Como era? Você gostava?
— De estar lá? — Ninguém jamais me perguntou isto antes. —
Não é como se fosse uma coisa divertida. Principalmente quando os
que governam acreditam que somos marionetes num jogo de
guerrear. Mas tudo o que tenho, devo à essa etapa. Entrar para o
exército me salvou de muita coisa, Amália. Ensinou também. E
trouxe a amizade desses caras, que você conhece.
— Você gosta deles — não é uma pergunta.
E não preciso pensar para responder.
— Entraria numa guerra por cada um deles, se fosse
necessário — revelo.
Amália, fatiando uma cebola, para o movimento da faca e se
retrai um pouco. É imperceptível, mas noto.
— O que foi? — Estudo-a.
— Espero que nunca tenha que acontecer, quero dizer, você
ter que entrar em uma guerra… não gosto de pensar que está em
risco.
E isso me leva à razão de a ter trazido para cá hoje, de querer
estar sozinho com ela para conversar. Merda. Tenho que contar que
passarei os próximos dias longe, mas honestamente, não sei se
dizer a verdade completa é mesmo a decisão correta. Abomino
mentiras — talvez tenha a ver com mentir a infância inteira sobre o
real caráter daquele desgraçado que chamei de pai, para o mundo
— só que a ideia de causar preocupação desnecessária nela,
inferno, essa ideia me desagrada demais.
Viro o bife na grelha e abaixo a chama por um instante.
— Amália, há algo que eu gostaria de conversar.
Corajosamente, ela também abandona a faca e se concentra
em mim. O tremor em seus lábios, no entanto, revela que não se
sente confortável com a seriedade em meu tom.
— Esta madrugada, eu terei que fazer uma viajem. Será
rápida, coisa de dois dias, no máximo. — Adianto-me em tranquilizar
e acrescento: — A trabalho.
A menina reflete, e assente, me observando com atenção.
— É algo perigoso?
— Não — minto, odiando ter que fazer essa merda. — Não se
preocupe, voltarei antes que consiga sentir minha falta.
Quase que imediatamente, noto a tensão abandonando seus
ombros. Está depositando em mim toda a sua confiança sem nem
hesitar. Isso tanto me enche de orgulho, quanto faz eu me sentir um
cuzão por omitir a verdade.
— Venha aqui — peço, oferecendo meus braços, seu lugar.
O ritmo calmo das batidas de seu coração é um pequeno oásis
particular. Beijo o topo de sua cabeça, não sem antes aspirar o
cheiro que se tornou meu vício.
— Te amo, minha malyshka.

— Tem coisa errada aí. Essa merda não está cheirando nada
bem, Elliot.
— Já falamos sobre isso, Ed. — Guardo o silenciador dentro
da mochila.
— Falamos? — Ed refuta, sem esconder a insatisfação. — Ou
você decidiu que é uma boa ideia agir sozinho e deixar a gente de
fora?
— Não estou deixando vocês de fora. Estão todos sabendo,
não estão? — Eu me recuso a encarar de frente qualquer um deles,
enquanto confiro os cartuchos reservas das duas pistolas.
— Que besteira do caralho — grunhe o cara.
— Isto está me lembrando Cáucaso. — Bola desenterra a
história idiota de tantos anos atrás.
Aperto a ponte do meu nariz.
— Em Cáucaso eu era o mais próximo do alvo. Não dava
tempo de esperar a chegada de vocês, e sabem disto. — Guardo
metodicamente as pistolas, uma no coldre na panturrilha e outra
dentro da jaqueta, tentando ignorar a maldita pressão que estão
fazendo.
— Engraçado. — O grandalhão coça o queixo. — Eu me
lembro de uma versão diferente: aquela em que você quis agir por
conta própria, sem esperar nenhum de nós, e acabou no centro de
uma emboscada.
— No final, eliminei todos eles, não eliminei? — Dou meu
melhor olhar arrogante para cara, esperando que entendam o meu
lado de uma vez por todas.
Não escolhi embarcar para essa missão com Brejnev. Estou
fazendo por mim e por todos nós. Será que não entendem?!
Já está difícil ter que me ausentar e deixar Amália.
— Você teve sorte, em Cáucaso, Elliot — acusa Bola. — E
sabe o que dizem sobre contar com a sorte quando é a porra da sua
vida que está em jogo, não sabe?
— Esqueçam. Ele está com a cabeça feita — Sebastian, mais
afastado, recostado à parede, enfim abre a boca.
O cara mal disse uma palavra desde que chegou. Está puto
por eu ir sozinho, e eu sei bem.
Quando ele derruba a cabeça de lado e crava aqueles olhos
sombrios do caralho em mim, sei o que está por vir. Ainda assim,
mantenho-me forçadamente indiferente.
— Acha que é uma boa hora para contar o plano todo, ou
teremos que descobrir sozinhos?
Aperto a mandíbula, detestando essa situação. Detestando
omitir qualquer parte deles.
— Não há nada para contar — desconverso.
— De que merda Sebastian está falando, Elliot? — pressiona
Ed.
Meu silêncio faz Sebastian rir sem qualquer humor.
— Pelo que conheço dele, tenho a sensação de que Elliot quer
repetir o lance “Verhoeven”, Ed.
— Matar Brejnev depois de entregá-lo sob custódia da
Interpol? — Ed semicerra os olhos, me estudando atrás de uma
explicação que faça qualquer sentido.
Sinto cada par de olhos em mim. Ciente de que não vão me
deixar sair desta sem a verdade, derrubo a mochila fechada aos
meus pés, escoro-me no balcão da cozinha cruzando os braços
diante do peito e enfrento o trio de caras que considero irmãos:
— Vladimir é um risco. Não há garantias de que depois a
Interpol não decida usar o cara como barganha para um peixe
maior. Não confio em Jurgen.
— Diabos! — Ed bufa. — Por que não acaba com o cara aqui
então, de uma vez? E não me venha com essa de que não quer
guerra com os Brejnev, ou que tem um esquema com o sobrinho
rato do desgraçado! Sabe que podemos dar um fim em Vladimir de
maneira limpa, sem deixar qualquer vestígio. Qual é, Elliot? O que
não está contando pra gente?
Ele tem um ponto.
Assinto. É justo que conheçam a gravidade e os riscos dessa
situação, talvez sem precedentes.
E sei que vão ficar ainda mais irritados por eu não ter
compartilhado antes:
— Vladimir não está blefando sobre construir uma bomba.
Mais do que uma, possivelmente. Tenho a sensação de que ter
acesso a essas ogivas é só uma etapa de algo maior. — Aperto os
músculos tensos em minha nuca. — Não tem nada a ver com a
guerra pelo domínio das ruas, drogas, armas e essas coisas. É
político. Ele veio com aquela história de quem foi o tio-avô dele;
aliança soviética; e reavivar a “dinastia que vai salvar esse país”.
— Que imbecil — grunhe Ed.
Bola sacode a cabeça, como se não acreditasse no tamanho
da estupidez de Brejnev.
Sebastian, por outro lado, continua apenas me perfurando com
o olhar. Exigindo mais.
Sorvo uma respiração forte, cansado pra caralho dessa merda
toda, e divido meu temor:
— Vladimir não me preocupa. Quem está por trás, sim. É por
isso que não posso simplesmente apagar o cara aqui, mesmo que
de modo limpo. Preciso descobrir a real extensão disso tudo, a
começar por quem é o fornecedor das ogivas, para aí sim ter uma
ideia do tamanho da bagunça… — A próxima parte é como dar voz
a um pensamento que vem me assombrando nos últimos dias. —
Quero saber se alguém do governo tem conhecimento disto.
Cada homem em meu apartamento exala devagar. Por
natureza, somos soldados. Faz parte do nosso instinto reconhecer o
perigo iminente de uma situação. E justamente por isso, todos
compreendem que estamos diante de algo grande.
— Você não pode ir sozinho — decide Ed, irredutível.
— Com certeza, — Bola cruza os braços diante do peito largo
—, vamos com você.
Sebastian é o único que permanece em silêncio, frio e
impassível. Sua mente está em modo Spetsnaz, como éramos
designados na época em que compúnhamos a tropa de elite das
forças especiais de guerra.
— O que quer que a gente faça? — pergunta ele.
Sim, esse finalmente é o ponto.
— Que fiquem aqui, vigilantes e, principalmente, protejam
minha menina. Vladimir deve ter assegurado um plano de
contenção, para o caso de algo dar errado, e com certeza virá para
cima dela. De todos com quem nos importamos. — Esfrego o rosto,
cansado, deixando desabar por terra qualquer rastro de que tenho
tudo sob controle. Não tenho. Não tudo. — Não vou conseguir fazer
o meu trabalho lá, se não souber que vocês estão me cobrindo aqui.
Nos semblantes profundos e sombrios, sei que entendem, e
que estão comigo. Não esperava menos.
Antes de deixar o apartamento e dirigir para o hangar onde
acontecerá o encontro, retiro da gaveta o envelope pardo grosso.
— Uma vez você me pediu para cuidar da espanhola. Hoje
preciso que faça o mesmo por mim. — Estendo-o para Sebastian,
que encara o envelope com expressão ainda mais nebulosa.
— O que é isso?
— A garantia de que a menina vai ficar bem… você sabe, caso
algo me aconteça.
AMÁLIA

— A Loupe poderia me levar… — comento meio sem jeito para


o perfil do homem todo de preto dirigindo compenetrado.
— Poderia.
— Ela até se ofereceu… — Sinto-me um pouco ingrata por
estar questionando, até porque ele está me fazendo um favor, mas,
quando Ed apareceu esta manhã para me buscar, realmente foi
inesperado.
— Elliot pediu que eu a levasse pessoalmente, Amália. E você
sabe, ele é um cara um pouco grande demais para ser contrariado.
Mordo a pontinha da língua, porém não consigo me impedir de
comentar:
— Vocês dois têm a mesma altura.
— Ele é mais forte.
Não dá para saber se está brincando ou falando sério. Seu
rosto mal move um músculo. Desvio o olhar para a paisagem
correndo lá fora, o túnel, os prédios. Quando o carro para em um
semáforo, encaro o espelho ao lado da porta e, surpresa, noto que
Bola está no carro logo atrás de nós.
— Ei, é o Bola ali?
Os olhos azuis de Ed correm ligeiramente para o retrovisor.
— Parece que sim.
— Que engraçado, será que ele…?
— Está indo na mesma direção que nós? Há grandes chances.
O cara agora deu para se consultar com nutricionista, deve estar
indo a uma consulta deste lado da cidade.
Mas, ao estacionar em frente ao prédio da terapeuta, percebo
que Bola também estaciona. Ao descer, dou um aceno discreto para
ele, que retribui, apesar da expressão fechada. Não que ele seja
mal-encarado, ele só… não sorri.
Ed, conferindo atentamente e mais de uma vez tudo ao redor,
caminha comigo para a área de elevadores do prédio e sobe junto.
Aperto a campainha do apartamento da Dra. Saavedra e
espero. Ed fica ao meu lado, quase uma sombra.
Ouvimos o barulho da chave destrancando a porta.
A surpresa, no rosto bonito da doutora, fica clara quando se dá
conta de quem está comigo.
— Você? — diz ela, como se falasse a respeito de algo
desagradável que deixaram em sua porta.
— Bom dia pra você também, doutora — Ed a provoca com
certa arrogância.
— Estava mesmo bom.
— Cuidado, sempre pode piorar — refuta ele, ácido, olhando
para baixo, para ela, sem desviar.
Um instante inteiro e desconfortável de silêncio com eles se
encarando me obriga a tomar a iniciativa. Pigarreio baixinho, só para
o caso de ela não ter me visto.
— Amália, querida, bom dia — o tratamento muda
completamente. É meio impressionante como consegue ir da
animosidade com ele, para o acolhimento comigo, fazendo eu me
sentir bem-vinda.
Ela é uma boa pessoa, e no fundo do coração sinto que Ed
também é. Por isso é inevitável não me perguntar por que será que
eles não gostam um do outro.
— Bom dia, doutora. Hoje o Ed me trouxe, porque o Elliot
viajou.
— Ah, entendo. O importante é vir, não é? Não importa como.
Venha. — Estende a mão para pegar a minha. — Vamos entrar.
Passo por ela e escuto a porta ser fechada logo atrás de nós.
Sem uma despedida nem nada. Provavelmente bateu com ela na
cara dele.
— Não gosto de julgar as pessoas, mas esse homem é tão…
tão presunçoso — expressa meio estranha, alisando a saia lápis um
pouco agitada. — E isso de só vestir preto? Até parece um urubu.
Já o viu com outra cor?
— Não…
Ed a incomoda mesmo. Jamais vi a doutora assim.
— Gola alta. Só usa gola alta e preto. Quem só se veste da
mesma maneira todos os dias? — Chacoalha a cabeça. — Dios, o
que é que estou dizendo, o que me importa a maneira desse senhor
se vestir. Desculpe por isso, querida. Por favor, sente-se, sente-se.
— Está tudo bem… — Aperto os lábios, pensando se devo
abrir a boca. Não consigo me impedir. — Na verdade, Ed é um cara
legal.
— Legal? — repete, como se a palavra de alguma forma não
se encaixasse. É até um pouco engraçado.
Leva um pequeno momento para voltar a ser a Dra. Saavedra
de sempre. Quando se senta em sua poltrona, respira fundo e se
concentra em mim.
— E então, Amália, como tem passado? Ah, gostei do corte de
cabelo.
Conto que foi tia Merian que cortou, como me senti, conto
sobre a bebida… e também conto o que tem acontecido entre mim e
Elliot. É importante falar, percebo conforme as frases vão saindo de
minha boca. Antes, eu não me sentia confortável em ter de abrir a
caixa com todos aqueles sentimentos ruins dentro de mim, só havia
aquilo. Hoje percebo que novas coisas aos poucos têm ocupado
espaço. E que falar sobre tudo, bom e ruim, faz bem.
Acho que já consigo enxergar a cor de cada novelo. Não é
mais o emaranhado marrom lamacento.
Compartilho isso com a doutora. Que conversar com ela faz
alguma parte de mim ficar menos… apertada.
— Parece que aquela pressão diminui.
— Que bom, Amália. É exatamente sobre isso. A terapia
possibilita o autoconhecimento. Com ele, vem uma melhor
percepção do passado, de nós mesmos, e respostas internas do
porquê de determinadas atitudes ou pensamentos. Saúde mental é
tão importante quanto a saúde física, embora a maior parte da
população ainda não tenha essa consciência.
— Me desculpe por antes… por faltar às sessões… eu só…
não sentia que alguma coisa poderia mudar.
— Fico muito satisfeita que tenha colocado essa frase no
passado. É sinal de que agora você sente a mudança, que está
conseguindo transpor alguns entraves.
— Por quanto tempo você ficará aqui, doutora?
— Pelo tempo que você precisar de mim. Depois, ainda
poderemos nos falar semanalmente através da internet, se desejar.
Assinto, encarando meus dedos, meus pulsos, e só agora
percebo algo que eu não havia notado até então. A cicatrização da
pele. Já faz algum tempo desde a última vez em que me cortei. E o
mais impressionante é que não senti vontade. Antes, meu corpo
clamava por aquela sensação diariamente, até mais de uma vez por
dia.
A pergunta que vem na ponta da minha língua era inimaginável
para mim, até porque eu não acreditava naquela possibilidade, mas
agora… mas agora…
— Quanto tempo até eu me curar completamente? Até não
haver mais qualquer vestígio de nada daquilo em mim?
Dra. Saavedra não desvia o olhar ou titubeia, apenas me
encara com o profissionalismo de sempre.
— É você que dirá, Amália. Irá perceber isso aí dentro, sou
apenas uma ferramenta. Mas pelo que tenho notado, não demorará.
Não sei explicar esse sentimento que inunda meu peito e
muda a maneira de respirar. É bom, é confortável.
Gostaria que Elliot estivesse aqui agora.
Ao sair do apartamento, encontramos Ed escorado contra a
parede, mexendo no celular. As mangas da camiseta preta estão
puxadas na altura dos cotovelos, revelando antebraços com uma
camada de pelos acobreados. Ele olha para a gente e aperta uma
tecla no aparelho, em seguida o leva à orelha.
— Ela vai descer. Avise para bloquear o elevador. Não deve
parar em nenhum outro andar. — Desliga. — Olá, Amália — Ed me
cumprimenta, apertando um botão no painel de aço.
— Oi, Ed. Obrigada por esperar.
— Não por isso.
Um sinal sonoro avisa que o elevador está chegando.
Viro-me para a doutora, que ainda está na porta, e me
despeço mais uma vez. As portas do elevador se abrem, e eu entro.
Ed, no entanto, faz um sinal com o dedo para mim.
— Me dê um minuto, por favor, Amália, que descerei em
seguida. Bola está lá embaixo esperando por você.
As portas vão se fechando, mas ainda consigo vê-lo
caminhando devagar, tal qual um felino pronto para caçar, até a
doutora, e ouço o que ela profere em voz baixa:
— Não se atreva. Não tenho qualquer assunto para tratar com
você, Edmund…
Após alguns minutos aguardando com Bola no térreo, Ed se
junta a nós.
Acontece o mesmo em relação à aula de idioma. Ed me leva
em seu carro, e Bola nos segue. Não questiono mais. É uma
decisão de Elliot.
Já começo a sentir saudade dele. Por sorte, serão apenas dois
dias.
Pensar nele me faz sorrir. Ed arqueia a sobrancelha ruiva e me
lança um olhar indagador.
ELLIOT

— Sente isso, Elliot? — Vladimir aspira o ar seco em torno da


desértica pista de pouso, com uma irritante satisfação.
Seguindo as instruções de voo, pousei a aeronave ao sul das
montanhas, nos arredores de Teerã. Um jato executivo Gulfstream
de última geração, registrado não como fretagem, mas propriedade
de uma empresa privada anônima. Se essa aeronave pertencer a
Vladimir, corto minhas bolas. É evidente que tem alguém apoiando
seja lá a merda que o traficante estiver planejando.
A essa altura, Jurgen e a Interpol já sabem que pousamos e
estão monitorando nossos passos via satélite, enviei as
coordenadas de nossa localização codificadas assim que entramos
no espaço aéreo de Teerã.
Não que eu esteja contando com eles para coisa alguma.
— Estamos em solo iraniano, conforme combinamos, Brejnev
— rosno para o cara, sem muita paciência. — E agora, qual é o
plano?
O imbecil ri debochado.
— Não seja tão ansioso, meu caro. Em breve, saberá. — Ao
seu sinal, um dos sujeitos que ele trouxe como segurança apanha o
celular e faz uma ligação. Não deixo de notar que o aparelho some
na mão imensa do fodido. O cara certamente é o maior que já vi, por
baixo chuto que tenha mais de dois metros e quinze de altura. Uma
montanha descomunal de músculos e cara de poucos amigos, que
não me intimida em nada. Pela minha experiência, sujeitos desse
tamanho costumam ser tão lentos quanto baratas.
Aliás, são cinco, no total. Jamais vi qualquer um deles antes,
mas sei que possuem treinamento militar a partir da maneira como
se posicionam em torno de Vladimir.
Após alguns minutos, um Hummer empoeirado desponta
levantando uma nuvem de poeira atrás de si, vindo em nossa
direção.
— O transporte chegou! — vibra Vladimir.
Dois sujeitos descem. Vestem túnica branca e gahfiya na
cabeça. Muçulmanos.
— As-Salamu Alaikum[48] — cumprimenta o ocupante
passageiro, um sujeito mal-encarado, trazendo um fuzil M-K44
preso pela bandoleira preenchida de munição.
— Aalaikum As-Salaam[49] — retribuo, com a mesma
austeridade.
— Fala a língua deles, Elliot?
— É uma saudação, Brejnev. Não me diga que não trouxe um
maldito tradutor — grunho para o cara.
Os imbecis responsáveis pela segurança de Brejnev se
entreolham, provavelmente refletindo a respeito.
Inabalável, Vladimir ri daquele jeito exagerado que já está me
irritando pra caralho.
— Não vamos precisar, não se preocupe. A ideia é partir logo.
Agora, diga a esses dois senhores bem-apessoados que nos levem
de uma vez. Está um calor infernal aqui.
Sem perceber, Vladimir acaba de fornecer uma pista sobre a
identidade do atravessador. Duvido muito que algum destes imbecis
se comunique em qualquer outro idioma. Seja quem for que está
vendendo o componente, sabe se comunicar em russo.
Ao entrar na caminhonete, sinto a vigilância de cada homem
sobre meus movimentos, especialmente o sujeito à minha esquerda,
careca, como eu, com provavelmente a mesma estatura e peso, a
tatuagem de serpente em seu pescoço chama a atenção.
É evidente que não confiam em mim. Bem-vindos ao clube.
— E então, o que pretende fazer depois que colocar as mãos
nessa merda? — Uso o tom mais casual que consigo, diante da
vontade de simplesmente resolver isso do velho jeito. A verdade é
que ainda não sei qual é a desse desgraçado. — Explodir milhares
de inocentes que não têm nada a ver com suas aspirações
familiares ultrapassadas há o que, três décadas?
Enxugando a testa úmida com um lenço branco tão
amarrotado quanto o pomposo terno em seu corpo, Vladimir não se
deixa abalar pela provocação.
— Eu não diria milhares. Com sorte, uma centena será o
suficiente — diz enigmático, observando as montanhas ao longe,
conforme nos deslocamos pelas estradas acidentadas.
Meu instinto entra totalmente em modo alerta. É um número
específico demais.
— Onde?
Seu riso esganiçado me faz apertar os punhos.
— Não sabia que era um cara curioso, Elliot.
Imbecil.
— Eu não diria curioso, desde que essa idiotice não respingue
em mim. — Dou de ombros, enganosamente despreocupado.
Sei que, a estas alturas, Jurgen tem essa caminhonete em seu
radar. Não é como se a casa de Vladimir não fosse cair hoje. Ainda
pretendo meter uma bala na cabeça dele ao final do dia. Só que
essa merda… não sei… tem alguma coisa que não estou
enxergando. Essa é a sensação, e não gosto nada, nada disto.
Dentro de Teerã, atravessamos em marcha lenta através do
trânsito ainda mais caótico do que eu me lembrava, passando pelos
prédios do governo, Golestan, e a principal rodovia até a embaixada
americana. Faz uma década desde que estive aqui pela última vez,
em uma missão conjunta organizada para combater o avanço de
tropas islâmicas. Foi minha última oficialmente como sniper das
Forças Armadas Russas. De lá para cá, pouca coisa mudou. Rússia
e Irã estabeleceram essa dança de “ora aliados, ora não aliados”.
Atualmente, não é segredo a aliança entre os dois países. Prova
disto é a base russa em Hamadã, solo iraniano, mesmo com a
proibição por parte do governo do Irã de instalações de bases
militares estrangerias.
O Toyota cabine dupla entra em um estacionamento imundo no
subsolo de um prédio antigo. A porta da garagem é fechada logo
atrás de nós.
Vladimir, seus homens e um dos iranianos descem. Há um
segundo veículo estacionado, um utilitário mais discreto, do tipo
minivan, com vidros escurecidos.
O iraniano assume o volante.
— Iá, Iá! — O motorista do Toyota gesticula, exigindo que eu
também desça e entre no outro automóvel, junto ao grupo.
Bem, não dá para dizer que essa jogada de trocar de carro não
foi inteligente. Ponto para o maldito Brejnev. Por essa, Jurgen
certamente não estava esperando.
Os dois veículos deixam a garagem. O Toyota segue para o
Norte, o utilitário em que estamos pega a direção oposta.
— Por que essa merda?
— Precaução, Elliot. Gosto de me precaver.
— Acha que estou armando para você? — provoco, testando o
cara.
— Não. Você não colocaria a vida daquela bela jovem em
risco, não é, meu amigo?
Meu corpo retesa à menção da segurança de Amália.
— Mencione ela outra vez, Brejnev, e eu juro que será a última
coisa que fará — aviso sem nunca ter falado mais sério antes. Viro-
me para o gigante sombrio à minha direita. — E você, guarde essa
merda, ou acabará com ela enfiada no seu maldito rabo, ouviu bem?
— refiro-me à arma apontada para mim sorrateiramente debaixo de
sua jaqueta, pronto para proteger o chefe.
Pela tensão nos ombros de Vladimir, acho que entende o
recado.
Corro o olhar para fora em busca de recuperar o autocontrole,
ou qualquer coisa que me impeça de arrancar as entranhas desses
filhos da puta. Minha paciência para tudo isso está bem perto do
limite. Amália é meu ponto fraco, sempre será, e é por ela que não
posso perder a mente agora.
Mais alguns quilômetros à frente, a minivan sinaliza a saída da
avenida principal. Reconheço e estranho o destino: a entrada do
Empire Internacional, um dos hotéis mais famosos do país. Um
pandemônio de gente entrando e saindo avisa que está rolando
algum evento aí hoje.
Que porra ele está pretendendo num local com tantos civis
circulando?
— É aqui.
— É aqui o quê?
— Aqui onde você pegará o que preciso, Elliot. Petrovsky
entrará com você. — Petrovsky, o grandalhão musculoso de mais de
dois metros, à minha direita.
— Em um hotel?
— Onde mais poderia? — Vladimir ri esganiçado. — Em uma
caverna nas montanhas? Tsc, tsc, você é engraçado, Elliot.
O fato de que não está se importando com a discrição é um
alerta. Encaro-o, encaro de verdade, buscando ler sua mente fodida
e entender tudo isso.
— Para quê esse teatro? Se as ogivas estão mesmo aí, por
que você próprio não entra?
Seu olhar vazio encontra o meu com um brilho que ainda não
consigo ler.
— Prefiro esperar aqui, para o caso de ter armado para mim.
Acho que me entende, não?
— E quem garante que não é você que está armando para
mim, Brejnev?
Seu riso desprezível ecoa dentro do veículo.
— Teremos que confiar um no outro, meu caro. Teremos que
confiar.
Aproximo-me do cara, inclinando-me para ele, no banco da
frente. Quero que veja, mais do que ouça, o que tenho a dizer.
— O chão te engolirá antes de eu confiar em um cara da
escória como você, Vladimir. — Sem que ele ou qualquer um aqui
tenha tempo de reagir, minha pistola está apontada para a lateral de
sua têmpora. — Seja lá a merda que estiver em sua mente, é
melhor que me conte de uma vez, não tenho qualquer problema em
explodir seu cérebro aqui e agora. Vamos, fale, porra!
— Abaixe — grunhe o gigante de músculos. Sinto o cano de
sua pistola em minha nuca.
— Antes que consiga destravar sua arma, os miolos de seu
chefe estarão grudados nesse teto, filho da puta. Aconselho que
seja rápido — aviso. — O mesmo vale para todos vocês!
A tensão dentro do utilitário é cortante. Foda-se.
— Baixe, Petrovsky. Baixem todos — ordena Brejnev, calmo
até demais para quem está a poucos segundos de voltar para o
lugar de onde nunca deveria ter saído. — Elliot não pretende fazer
nenhuma besteira, não é, Elliot?
— Vou perguntar de novo: por que no hotel, Brejnev?
— Pensei que fosse mais inteligente que isso, Elliot. Mas
vamos lá: quem é que desconfiará de uma transação desse porte,
aqui? Use sua cabeça.
— Então por que não vai você buscar essa merda lá dentro?
— Tenho inimigos em toda parte, meu caro. Você não pode me
julgar por querer resguardar minha segurança, pode?
O inferno virará uma praia paradisíaca antes de eu acreditar
em uma só palavra do maldito.
— Petrovsky pode ir sozinho.
— Petrovsky mal saberia distinguir um ovo de uma pedra. —
Vladimir entreolha o grandalhão. — Com todo respeito, Petrovsky.
O grandalhão ao meu lado grunhe, parecendo um cão idiota,
mas não desmente a acusação.
Vladimir continua:
— Preciso de sua experiência para garantir que estou levando
o produto verdadeiro. Abra a maleta e se assegure de que não
estão me passando para trás, Elliot.
— Idiota. — Baixo a pistola e a guardo novamente na jaqueta.
Quanto antes essa merda acabar, melhor.
O plano inicial era pegar Vladimir e o vendedor, seja ele quem
for, juntos. A Interpol teria os dois entregues em uma bandeja no
exato momento da troca. Preciso avisar para aquele francês
pomposo que as coisas mudaram.
Prestes a descer do veículo, Vladimir me chama.
— Diga — rosno, descontente pra caralho.
— O celular.
— O quê?
— Entregue a Petrovsky seu celular. Não posso arriscar que
faça nenhuma estupidez lá dentro.
Encaro o miserável no fundo dos olhos. Ele sabe. Sabe que
armei. É uma raposa velha.
Não que eu não estivesse contando com isso. Não preciso de
Jurgen para fazer o que preciso com Vladimir. O problema é que,
sem ele, o atravessador sairá ileso, pelo menos por enquanto.
— Esqueça — sou incisivo nisto.
A montanha de músculos gigante chamada Petrovsky fica sem
saber o que fazer, se arrisca tentar tomar o aparelho à força, e neste
caso ele sabe que será seu fim, ou recua. Está à espera de uma
instrução do chefe.
— Nada de telefonemas — ordena Vladimir. — Se Elliot tentar
alguma gracinha, acabe com ele, Petrovsky. Não interessa quem
estiver ao redor, meta uma bala na cabeça dele.
Tenho que rir, de puro desprezo.
— Boa sorte tentando. — Dou um tapa no ombro do
grandalhão, que consegue ser ainda maior do que eu.
Tão desordenado quanto o lado de fora, o saguão do Empire
Internacional é um caos. Devo reconhecer que a ideia de Vladimir
de fazer a troca aqui não poderia ser melhor. Quem é que vai
perceber qualquer coisa em meio a um pandemônio destes?
Lado a lado comigo, Petrovsky vai conjurando espaço entre as
pessoas, empurrando e jogando para fora do caminho sem qualquer
hesitação. Nosso destino é o bar do hotel, mais ao fundo. Um lugar
com baixa iluminação, e muito menos movimentado.
À medida que nos aproximamos, minha curiosidade vai
aumentando para saber quem é que tem acesso a um produto como
estes e que aceita fazer negócios com um porco como Brejnev.
Ou é inescrupuloso demais, ou cúmplice nos planos de
Vladimir. As duas hipóteses são ruins.
Antes mesmo de encontrar nosso alvo, sei de seu esquema
reforçado de segurança à espreita com apenas um olhar. Homens
armados camuflam-se nos cantos, posicionados estrategicamente
para agir em defesa de seja lá quem for.
De costas para a entrada, o sujeito vestido de terno e colarinho
branco, solitário em uma mesa ao centro do bar, sorve um copo de
alguma bebida de cor âmbar. O relógio de grife em seu braço
ostenta grana.
Adrenalina agita mais forte minha pulsação.
Conforme o rosto do cara vai se tornando claro, preciso
controlar minha expressão para não revelar o maldito choque.
Mas. Que. Merda. É. Essa?
Reconheço esse rosto mesmo que uma década tenha se
passado.
Ad na zemle!
Nasser ad-Din.
Político e militar. Ex braço direito de ninguém menos do que o
segundo homem mais poderoso da Síria, Maher al-Assad, irmão de
Bashar al-Assad, presidente sírio.
O curioso de tudo isso, ironicamente falando, é que Nasser ad-
Din, tranquilamente aqui bebendo e prestes a entregar o
componente de uma bomba nuclear em mãos erradas, deveria
estar… morto.
É uma incógnita incômoda pra caralho a questão de como um
criminoso de guerra que as forças americanas juravam ter eliminado
em bombardeios no país dele anos atrás, e dado oficialmente como
morto pelo próprio governo sírio, está por aí bem vivo e negociando
armas potencialmente devastadoras.
E uma incógnita maior ainda é como um bosta feito Vladimir
conseguiu chegar tão longe e ter acesso a Nasser.
— Você. — A palavra sai de minha boca entremeio a um
rosnado de surpresa e desprezo.
Nasser, ignorando-nos sumariamente, como se nossa
presença em pé diante de sua mesa não passasse de um infortúnio,
sinaliza para que um de seus homens traga uma grande maleta,
codificada.
Com poucas palavras em sua língua materna, ordena que a
abram.
Cinco esferas de titânio perfeitamente simétricas descansam
acomodadas lado a lado. Cada uma cabe na palma de uma mão.
Pequenas, mas as mais mortais já inventadas.
Não me contenho, aproximo-me um passo e pego uma delas.
Não resta qualquer dúvida quanto à autenticidade. Isso é real, está
mesmo acontecendo. Que porra.
Minha mente passa a trabalhar em modo Spetsnaz. Nem
fodendo uma coisa destas pode cair nas mãos de Brejnev, ou de
quem quer que seja.
Eu poderia eliminar todos estes filhos da puta – dez até onde
contei, incluindo Nasser e Petrovsky – e dar o fora daqui levando as
ogivas comigo. Jurgen ficaria encarregado de limpar a bagunça
residual.
Só há um elemento nesta equação que inviabiliza tudo isso:
civis por perto. E talvez tenha sido exatamente esta a razão de
Vladimir ter escolhido o hotel. Ele sabe que eu jamais mataria
inocentes.
Miserável.
Devolvo a esfera para seu lugar dentro da mala e assisto a
maldita coisa ser trancafiada. Petrovsky a pega de cima da mesa.
É isso, a transação está feita.
Antes de deixar o bar, encaro uma última vez Nasser ad-Din e
faço-me uma promessa silenciosa: quando tudo isto acabar, ele irá
desejar ter morrido de verdade. Dou a minha palavra.
Aguentar a alegria histérica de Brejnev durante o percurso de
volta à pista de pouso exige todo o meu esforço. E quanto mais ele
se vangloria, mais uma certeza vem ganhando força dentro de mim:
essas ogivas têm que desaparecer.
À medida que nos aproximamos do local onde pousamos,
minha mente está feita a esse respeito.
Espero, um a um, eles subirem de volta à aeronave enquanto
o motorista iraniano se distancia levantando poeira. Petrovsky é o
único que não entra, talvez se sinta enganosamente mais seguro se
ficar às minhas costas.
— Quer um convite? — Dou a ele um sorriso letal.
— Você primeiro — o gigante grunhe de volta.
Prestes a mandá-lo se foder, paro, atraído por um ponto acima
de sua cabeça, no céu. A ave de rapina branca dando um voo
rasante. Bela. Brutal. À espreita de encontrar qualquer ser vivo no
solo em que ela possa cravar suas garras e arrastar consigo para a
morte certa, independente de pesar dez vezes mais do que seu
próprio peso.
Um vento frio atravessa minha espinha. Se estivesse aqui,
Sebastian chamaria de mau agouro, mau pressentimento ou
qualquer besteira assim. A última vez que botei os olhos em uma
ave destas, coincidentemente, foi em Cáucaso.
Odeio admitir que Bola tem razão a esse respeito, as duas
situações têm um ponto em comum.
Por um breve momento, fecho os olhos e sou transportado
para aquela tarde nas montanhas do Sul da Chechênia. Nossa
missão era caçar Shamil Bassaiev, senhor da guerra, guerrilheiro
líder do grupo de extremistas separatistas responsáveis por
arrasarem uma escola infantil em Beslan, em Ossétia do Norte-
Alânia, depois de um sequestro que durou três dias e deixou mais
de trezentos mortos, em sua maioria crianças. Informações da
Inteligência davam conta de que aquele porco e seu grupo estavam
escondidos na região montanhosa de fronteiras.
Éramos poucos. O território potencialmente grande. Tivemos
que nos dividir, mas com o combinado entre Sebastian, Ed, Bola e
eu, de que caso encontrássemos sinais de Bassaiev, avisaríamos
uns aos outros e só agiríamos juntos.
Eu era jovem demais, inexperiente. Um pouco tolo e impulsivo.
Dei sorte de ser eu a descobrir a localização do cara, e ao perceber
que Bassaiev estava prestes a levantar acampamento e continuar
fugindo, decidi agir sozinho.
Aproximei-me sem ser visto, mas quando estava com o cara
sob minha mira, fui traído por uma armadilha de galhos secos no
chão. Em questão de segundos, me vi sozinho e cercado.
A única coisa que eu tinha a meu favor, então, era minha
capacidade de atirar com precisão e agilidade – “um artilheiro letal”
dizia minha ficha na FAR. Derrubei cerca de uma dúzia de
terroristas, entre eles Bassaiev, mas também fui gravemente ferido
no processo. Se os caras não tivessem me encontrado, certamente
meu destino teria sido diferente.
A verdade é que nunca estive mais de frente com a morte do
que em Cáucaso.
Subo os quatro degraus da escada para a aeronave com
apenas uma passada larga, sem me importar com dar as costas a
Petrovsky, a montanha de músculos sem um cérebro. Eles precisam
de mim para pilotar a aeronave, esse é meu trunfo.
Vladimir está em pé no interior, esperando-me.
— E agora que tem as ogivas, o que pretende com essa
idiotice? — indago, realmente interessado, antes de acabar de uma
vez por todas com essa história.
Vladimir escora-se no braço da poltrona atrás de si,
tranquilamente.
— Por acaso já ouviu falar nas ilhas Diomedes, Elliot? Claro
que já, você afinal é um patriota! Não acha curioso que nossa
Pátria-Mãe permitiu que os americanos ficassem com uma delas,
visto que fomos nós, russos, que as descobrimos? Está na hora de
igualar o placar. Eles nos humilharam no passado, nos obrigaram a
dissolver uma união sólida com nossos vizinhos-irmãos, humilham
nosso país o tempo todo com os boicotes ao nosso comércio. Está
mais do que na hora de reagir.
Semicerro meus olhos, mais atento.
— De que merda está falando?
— Estou falando de esquentar as coisas. De dar uma amostra
do Poder Soviético, meu caro.
“Com sorte, uma centena será o suficiente”, suas palavras
retornam, encaixando-se completamente.
Diomedes, duas pequenas ilhas no estreito de Bering,
separando Rússia e Estados Unidos, a apenas quatro quilômetros
de distância uma da outra, uma pertencente a cada país. Na russa,
Diomedes Maior, há uma base militar instalada apenas para
vigilância… mas no lado americano, porra, na Diomedes Menor há
civis habitando, coisa de pouco mais de uma centena, mas estão lá.
Então é isso o que esse bosta pretende, atacar a ilha americana?
— O que ganha explodindo uma ilha de inocentes?
— Uma reação.
— Uma declaração de guerra, você quer dizer.
O desgraçado finge conferir as unhas, desapaixonadamente.
— Estamos contando com isso.
Não consigo não rir.
— E você certamente será o fornecedor de toda a arma
necessária — debocho, ciente de que um traficante como ele jamais
daria um passo que não fosse financeiramente vantajoso. Não tem
nada a ver com orgulho russo.
— Bingo — confirma, inabalável.
Vladimir é mais insano do que eu pensava, sem dúvida.
— Se conseguir explodir a ilha, e eu disse “se”, já pensou que
vão te caçar e acabar com sua raça?
— Tsc, tsc, é aí que se engana. Não vão me caçar. — O riso
de raposa em seus lábios aumenta. — Vão caçar você, Elliot.
— Como é? Acho que não ouvi direito. — Inclino a cabeça de
lado, querendo não acreditar no que entendi.
— Pense um pouco: Quem é que aparece nas imagens das
câmeras de segurança negociando as ogivas? Um ex-combatente
russo! Veja se não será fácil para os americanos ligarem os pontos!
Você, Elliot, será marcado para sempre como o estopim para uma
nova guerra, simplesmente genial!
Então aquele teatro de me fazer entrar e pegar a maleta;
Nasser estar de costas para as câmeras o tempo todo… tudo fez
parte de um propósito: me incriminar. Não é que o imbecil pensou
em tudo?
Só há um detalhe que não considerou.
— E acha que vou ficar parado assistindo? Só pode ter perdido
essa sua cabeça cheia de merda se acredita mesmo nisto, Brejn…
— Uma pancada brutal na parte de trás de minha cabeça me pega
desprevenido.
Chego a cambalear.
Porra, o maldito Petrovsky tem a força de um bate-estaca,
desgraçado!
— Ah, seu filho de uma… — Não tenho tempo de me esquivar
de receber outra coronhada com ainda mais potência, de cima para
baixo.
Caio de joelhos, momentaneamente atordoado, zonzo pra
caralho.
A montanha maldita e traiçoeira se aproveita para me dominar
por trás, encaixando um golpe mata-leão em torno do meu pescoço.
— Feche — Vladimir ordena para um de seus capangas, que
trava a porta da aeronave.
Com sangue jorrando de algum lugar no alto de minha cabeça
e deslizando por meu rosto, sorrio vermelho líquido.
— Vai fazer o que, pilotar esse jato você mesmo? — debocho,
quase sem ar, tentando impedir que os braços de aço do cara
quebrem meu pescoço.
O que capto em seu olhar em seguida lança outra daquelas
sensações desagradáveis de quem tem alguma coisa que não estou
enxergando.
Principalmente quando todos os outros riem também.
— Acha que é o único aqui que sabe pilotar? Depois de tudo o
que acaba de ouvir, acredita mesmo que o que eu precisava de
você era essa sua habilidade, Elliot? — Com um gesto de mão de
Vladimir, um dos sujeitos, o careca dono da tatuagem de serpente
que sobe de seu pescoço para o rosto, desponta em direção à
cabine onde eu deveria estar. — Salman, leve-nos daqui.
Porra, um segundo piloto a bordo. Que burrice a minha não ter
checado essa merda antes.
Aproveitando-me de que Petrovsky fica momentaneamente
distraído pelas risadas, lanço a cabeça para trás, atingindo em cheio
o nariz da montanha traiçoeira, e saco a pistola em minha jaqueta.
O desgraçado ruge de dor, mas nem tenho tempo de me refestelar
dessa merda. Outro dos idiotas consegue ser rápido em chutar meu
braço, jogando a arma para o chão, ao mesmo tempo que o aperto
em meu pescoço ganha ainda mais força. A pouca passagem de
oxigênio me cega por alguns segundos. Tateio o chão, mas não
encontro a pistola.
Vladimir estala a língua, adorando me ver nesta posição.
— São paramilitares especializados em caras como você, Elliot
— zomba Brejnev. — Ou achou que eu viria tão desprevenido? Tsc,
tsc. Você é muito pretencioso de ter embarcado nessa sozinho, sem
seus amigos. Confesso que duvidei que o faria, o que é totalmente
favorável a mim, é claro. Com eles aqui, não sei se o plano seria tão
bem-sucedido. Por falar nisto, respondendo à sua pergunta: não,
não acho que colaborará com nossa causa, garoto. Você e eles são
“escrupulosos” demais para isso. Não ligam se estamos sendo
humilhados dia após dia. Falta a vocês um pouco mais de amor pela
Pátria-Mãe e colhões para fazer alguma coisa.
— Mesmo que acabe comigo e me incrimine, você é um
imbecil, Brejnev, se pensa que vai livrar o seu rabo. Não sei se
percebeu, mas já temos conflitos demais acontecendo no momento
para atacar diretamente os americanos. O Kremlin irá atrás de você
também.
A expressão regozijada em seu rosto sombrio avisa que essa
não é uma preocupação.
— Você e seu amiguinho francês deveriam ter feito uma
pesquisa melhor, Elliot. — Gesticulando para Petrovsky, o
desgraçado decreta: — Acabe com ele.
Movido pela fúria, me desvencilho do aperto da maldita
montanha em dois movimentos de corpo antes mesmo que ele
consiga raciocinar sobre como foi possível. Lento como uma barata.
Avanço para Brejnev, vou matá-lo.
A aeronave ganha velocidade na pista e me antepara
momentaneamente de alcançar o cara, desequilibrando-me,
enquanto todos eles procuram no que se agarrar mais perto.
Tento me apoiar em um dos bancos. Sinto vagamente uma
ferroada no meio das costas. Demora um pouco para meu cérebro
associar o sangue e a dor. Petrovsky me acertou por trás. Levo a
mão ao lado direito de meu peito, sentindo o sangue quente jorrar
pelo rasgo provocado pelo punhal pontiagudo.
Lá fora, o Gulfstream atinge a altura do topo de uma das
montanhas.
Abaixo de mim, uma poça vermelha vai ganhando tamanho.
Não consigo respirar.
— Acabe com ele de uma vez, diabos! — Brejnev vocifera.
Através da visão um pouco turva, sei que o maldito está se
apressando em sentar e tentar colocar o cinto.
Outro golpe atinge a lateral de meu pescoço.
E mais um, no centro de minhas costas.
Pela primeira vez, desde que entrei em meu carro e dirigi para
o ponto de encontro, esta madrugada, permito que uma visão
atravesse minha mente. Amália, adormecida em nossa cama.
Cabelos negros jogados numa bagunça linda pra caralho. Entregue
a um sono profundo de quem está finalmente se libertando de todos
aqueles pesadelos de merda. Pronta para sua nova vida.
Meu diamante.
Meu amor.
Minha malyshka.
Queria poder ter tido mais tempo com ela. Mais tempo para
assistir seus sorrisos, antes tão raros. Para ouvir o som melodioso
perfeito de sua risada e de seu canto. O brilho em seus olhos
dirigidos à sua nova família sem que ela sequer se desse conta
dele. O sabor doce de sua boca.
Só queria ter tido um pouco mais de tempo.
Mas é por ela que arranco de minhas mãos qualquer
esperança disto acontecer. Ter mais tempo ao seu lado, nesse
momento, significa permitir que sua vida seja colocada em risco. E
isso, isso eu jamais faria.
Não posso admitir que sua vida e as das pessoas que a
cercam e a amam sejam ameaçadas por uma guerra estúpida.
Então faço a única coisa certa. Saco a pistola em minha
panturrilha, miro e disparo. Uma vez, certeira, com a precisão que
me tornou uma lenda.
No controle da aeronave, Salman cai apagado para o lado,
puxando consigo o manche. Está morto.
Estou prestes a me juntar a ele. Todos nós.
Irônico como a morte age. O frio que traz junto de si a
sensação de que a vida foi um sopro fraco na linha distante e infinita
do tempo. Tudo se torna pequeno, insignificante.
Exceto pelos momentos com ela, com a minha menina.
Seja feliz, Amália. Seja muito feliz, meu amor.
A ideia de que a farei sofrer consegue me matar antes mesmo
do impacto violento contra as montanhas.
AMÁLIA

“É um livro muito importante. Foi de minha mãe, e da mãe


dela”.
Secando as mãos no pano de prato, depois de lavar toda a
louça e guardar a última travessa no armário, leio a tela do celular
apontada para mim.
Meu olhar vai da tradução para o impressionante livro grosso,
revestido pelo que parece ser camurça verde-musgo com um
broche incrustado no centro da capa, e detalhes em prata
envelhecida nos quatro cantos, que babushka trouxe e colocou
sobre a mesa da cozinha. No broche, há a imagem de dois ramos
de flores entrelaçados.
Estendo a mão para pedir o telefone e digito:
“É muito lindo, vovó”.
“Essas são lavandas” vovó bate o dedo suavemente sobre a
imagem. “É um grimório. Você já ouviu falar em grimório?”
Leio a pergunta na tela do celular e sacudo a cabeça, dizendo
que não.
Os dedos nodosos de vovó Zhena voltam a digitar.
“Alguns acham que é livro de feitiçaria” enquanto percorro os
olhos pela tradução, o rosto envelhecido espera com ar de
gravidade. “Minha mãe foi levada por causa deste livro. Algum
vizinho inventou mentiras sobre ela”.
“Nunca mais vi minha mãezinha. Eu tinha seis anos”. Ela
levanta seis dedos enrugados no ar. “Ela já sabia que iriam levá-la.
Escondeu o livro e só mostrou o esconderijo para mim”.
“Sinto muito” escrevo.
“Povo tolo. Temem o que não compreendem”. Babushka
segura o livro grosso de páginas envelhecidas afetuosamente, como
se estivesse segurando um bem delicado e precioso “Há um
segredo por trás desse livro, um que poderia mudar tudo. Um dia,
vou contar ele a você”.
Estamos somente nós duas na cozinha, depois do almoço.
Penélope e Sol estão na sala de estar. Tia Merian foi encontrar
algumas amigas de carteado.
“Minha abuela também tinha um livro especial” conto. “Só que
o dela era de poemas”.
“Poema é bom para a alma” concorda vovó.
Um pouco envergonhada, confidencio para babushka uma
coisa que ando fazendo: “estou escrevendo algumas coisas”.
“Você tem alma sensível, chica” aprova ela, assentindo com a
cabeça para cima e para baixo. “Eu também tenho. Por isso pinto
esses quadros que você vê pela casa”.
“Seus quadros são lindos, vovó”.
“Arte é resistência” balança a cabeça para cima e para baixo,
dando um significado profundo e sóbrio à frase simples saltando da
tela do celular.
Arte é resistência. Através das palavras, resisto. Por isso Dra.
Saavedra me deu aquele caderno. Porque escrever me liberta
também.
Outra vez, vovó escreve no tradutor:
“Quando eu morrer, gostaria que ficasse com esse livro, chica”.
Preciso ler duas vezes para ter certeza de que entendi.
— Para mim? — digo, apontando para o meu peito.
— Да. Да.
Não consigo evitar o ardor de emoção que umedece os olhos.
Babushka quer confiar a mim algo que tem um valor afetivo muito
grande para ela.
— Spassíba, babushka. Muito obrigada — murmuro, tomada
por um sentimento que tranca a garganta, mas de um jeito bom, de
um jeito que estou começando a me acostumar.
Só que então me dou conta da outra parte do que ela disse, e
essa ideia traz um incômodo que me faz digitar depressa: “Mas não
quero que a senhora se vá”.
“Faz parte de estar vivo, criança, e está tudo bem nisto”, seu
rosto carrega uma expressão pacífica, como se aceitasse esse fato
com serenidade.
Não consigo encarar as coisas dessa forma. A morte levou de
mim além da pessoa que eu mais amava, a vida feliz e segura que
eu tinha antes. Nada de bom vem dela.
Talvez percebendo meu esforço para não sucumbir aos
sentimentos ruins, braços frágeis me cercam em um abraço
afetuoso.
Abraço-a de volta, dizendo a mim mesma que as coisas são
diferentes agora. Eu era uma criança, antes. Não sou mais. Não vou
cair naquela escuridão de novo. Agora eu tenho essa família, tenho
Elliot.
— Todo bien. Esta todo bien, chica[50] — diz ela, num sotaque
forte, mas perfeitamente entendível. Emociona-me que tenha
andado treinando.
Depois de alguns minutos, sorrindo amorosa vovó Zhena então
me solta devagar e volta a digitar:
“Não se preocupe, tem simpatia para longevidade no livro”, dá
uma piscadinha travessa que a faz parecer uma menina: “Vou ficar
aqui por muito tempo, ainda”.
Movida por uma necessidade profunda de mostrar a ela o
quanto é importante para mim, apanho sua mão coberta por marcas
do tempo e planto um beijo suave.
“Agora, vou subir para um cochilo, criança. Dormir bem ajuda a
viver mais” escreve ela, exibindo o texto com uma risadinha
travessa que move todas as marcas da idade ao redor de seus
olhos.
Assinto, me esforçando a sorrir também, e mantenho o sorriso
no rosto enquanto a assisto sair da cozinha.
Mesmo que eu não queira, é difícil lutar contra certos gatilhos.
Olho em volta, na cozinha, procurando alguma tarefa que eu
ainda possa fazer para manter a mente lúcida, só que já limpamos
tudo. Penso em ir à estufa, mas estive lá mais cedo, ajudando a
vovó.
Encontro Penélope e a bebê na grande sala de estar,
entretidas com uma torre de montar. Não deixo de admirar o quanto
ela é uma boa mãe. Atenciosa, amorosa, respeitosa em relação à
filha. Completamente o oposto do que era a mãe daquela casa
nojenta em que crescemos.
Loupe franze o cenho ao estudar meu rosto.
— Está tudo bem, Am?
— Está, está sim. — Escondo as mãos trêmulas me abraçando
e esboço um sorriso para tranquilizá-la. — Quer que eu fique com a
Solzinha um pouco?
Ela ri, sacudindo a cabeça.
— Você já fica com ela demais, chica. Estou até me
aproveitando disso.
— Não está, não. Além de que, gosto de ficar com ela. — Dou
de ombros, desviando o olhar para as mãozinhas rechonchudas
bagunçando as peças coloridas.
Mas Loupe continua me inspecionando daquele jeito que só
ela faz. Imagino que tenha sido uma boa investigadora, quando
trabalhava com isso.
— Conseguiu dormiu essa noite?
Aperto os lábios, pronta para simplesmente dizer que sim. Só
que não me sinto bem mentindo para ela. Penélope é realmente
como uma irmã, e é engraçado que não sei dizer exatamente
quando foi que passei a enxergá-la assim.
Sento-me no braço do sofá perto delas.
— Pareço bobo, mas… sinto falta do Elliot dormindo ao meu
lado.
Em vez de zombar, suspira, sorrindo com os olhos cor de
amêndoa.
— Sei bem como é isso. Quando o cabr… — Limpa a
garganta, se impedindo a tempo de dizer a palavra em frente à
bebê. — Quando Sebastian teve que viajar, me senti igual. Por que
não sobe e descansa um pouco?
— É, acho que vou fazer isso mesmo.
Mas o sono não vem. Depois de me revirar de um lado para o
outro na cama, deito de barriga para cima, mãos cruzadas sobre
ela, e encaro o teto.
O lado bom é que agora conheço os gatilhos que despertam
minha ansiedade, o ruim é que minha mente tenta de todo o jeito
trazer à tona velhos hábitos para lidar com a inquietação.
A lâmina está no lugar onde a deixei da última vez. No vão
entre o colchão e a armação de ferro da cama. Não tateio para
confirmar, apenas sei que está, tenho essa consciência dela.
É uma tentação rasgar a pele para esvaziar a mente.
Pela primeira vez, desde que conheci a sensação do primeiro
corte, questiono-me a respeito de fazer ou não.
Consigo me acalmar de outro jeito?
Imagino o olhar profundo e intenso de Elliot cravado no meu,
também esperando para saber a resposta. Seu amor e fé em mim, a
gentileza, a forma como me incentiva e eleva. A força que faz eu me
sentir segura.
Consigo, consigo sim, digo a mim mesma, é só eu me esforçar,
por mim e por ele. Quero mudar, me libertar de verdade.
Não é fácil. Tremendo, sento-me na cama e pego o caderno
fechado, no móvel de cabeceira. Demoro um pouco para recuperar
a firmeza das mãos e a clareza dos pensamentos.
Um passo de cada vez.
Enfrento a página em branco antes de rabiscar algumas frases
soltas. Escrever ajuda a encontrar minha voz, a expressar coisas
que não consigo de outro modo, a me encontrar. Faz minha mente
silenciar. Resistir.
Elliot se orgulharia de mim, se estivesse aqui.
A saudade que sinto dele é quase física, de tão grande.
SEBASTIAN

— O que deu errado?


— Como sabe que algo deu errado?
Nahuí! Aperto a ponte de meu nariz, buscando paciência para
lidar com o francês.
— Não agora, Jurgen. Guarde esse joguinho para depois.
Você e Elliot não se encontraram em nenhum momento desde que
ele pousou aí. Que merda está havendo?
O silêncio do cara do outro lado da linha não me traz um bom
pressentimento.
— Nossos homens perderam o grupo de vista.
— E?
Conheço o cara, sei que há algo que não está querendo
compartilhar.
Insisto.
— E o que mais, Jurgen?! Ande, fale logo, porra.
— Acabo de receber a informação de que avistaram um jato se
chocar contra as montanhas, a mais ou menos cinquenta
quilômetros de Teerã.
Continuo encarando fixamente a tela do computador aberto em
minha mesa com as informações do rastreador instalado no telefone
de Elliot. O ponto vermelho que não se movimenta já há alguns
minutos em um local em que é fisicamente impossível estar, em
uma condição normal.
Ele não teria subido tão rápido e tão alto para o topo e
simplesmente parado lá.
— Vá atrás dele — exijo. — Agora, Jurgen. Vá imediatamente.
Evito enfrentar os olhares de Ed e Bola e confirmar o que
estão pensando. Aperto o botão que desliga a chamada.
— Vou avisar Gael e ligar para o hangar — digo, tentando
manter a mente apenas racional. — Já passamos por isso antes. No
final, tudo ficará bem. Sempre fica.
— Faz quase quinze minutos que o sinal está parado lá em
cima. — Bola aponta o que todos sabemos.
Estávamos monitorando desde que Elliot pousou.
— Que merda aconteceu, afinal, que esse bosta do Jurgen não
se encontrou com ele? — questiona Ed.
— Não sei. Ainda não sei, mas em breve vamos descobrir. —
Destranco a gaveta da escrivaninha e confiro minha Glock. — Foi
um erro aceitar que ele fosse sozinho.
— Foi um pedido do cara. Vocês conhecem Elliot, sabem que
a mente daquele puto estava feita.
— Somos todos assim, afinal, não somos? Um bando de
teimosos de merda — cospe Bola, irritado. Ele, mais do que todos,
queria que seguíssemos logo atrás de Elliot, essa madrugada.
— Vamos para lá, agora. Você e eu, Bola. Ed fica para cuidar
do que for preciso por aqui.
— Os Brejnev — conclui Ed.
— É, os Brejnev. Não confio em Yuri. Quero estar preparado,
caso ele resolva fazer uma encenação de “sobrinho leal sofrendo”.
Não há garantias de que não queira encabeçar uma retaliação
contra um de nós, só para livrar o dele da reta.
— Escória.
— Garanta que ninguém saia desta casa, até que as coisas
estejam resolvidas. E que ninguém se aproxime também. Vou pedir
que o sistema de segurança de Gael venha para dar apoio.
— Deixa que eu aviso o hangar — se prontifica Bola, puxando
o celular do bolso dianteiro da calça.
Enquanto digito uma mensagem curta para Gael, sinto o peso
de tudo isso começando a se materializar. O que há menos de vinte
minutos era um receio, tornou-se um fato. Não consigo não me
sentir culpado pelo que está acontecendo. Eu deveria estar lá com
ele. Era minha obrigação.
Um irmão não deixa o outro descoberto assim.
— Em Cáucaso chegamos a tempo. Acontecerá o mesmo
agora, tenho certeza — diz Bola, ciente da direção de minha mente.
Após um momento absorvendo essa afirmação, a realidade
lança um sabor ácido em minha boca.
— A diferença é que em Cáucaso não estávamos a quase três
mil quilômetros de distância dele.
Precisamos de alguém que esteja mais perto, e esse alguém é
o maldito Jurgen. Aquele francês, tão confiável quanto uma víbora
sedenta, por muito tempo nos obrigou a trabalhar em suas causas à
base de chantagem. Só que ele já me ajudou uma vez, quando eu
estava caçando os assassinos de minha noiva. Pode ajudar de novo
– queira ele ou não. Agora, no entanto, as peças do tabuleiro
estarão invertidas. Ele está em minhas mãos, não o contrário.
E é por isso que lhe dou um ultimato:

Você tem dez minutos para resgatar Elliot com vida.


Apresse-se ou o mundo conhecerá aquele vídeo

O vídeo em que a Interpol, liderada por ele, entra ilegalmente


em solo russo e faz uma apreensão. Eu, pessoalmente, fiz questão
de gravar essa merda para ter uma garantia de que as chantagens
de Jurgen acabariam de uma vez por todas.
— Irá contar para a espanhola? — indaga Ed.
Encaro fixamente o celular em minhas mãos, pensando a esse
respeito. A verdade é que optarei sempre por protegê-la quando
sentir que há uma ameaça à espreita, mas mentir para minha
mulher não é uma opção. Não quando é a vida de uma pessoa por
quem ela tem tanto apreço que está em causa.
— Vou contar o que ela precisar saber.
— E quanto a garota?
Sem intenção, meu olhar se desvia para o envelope pardo
grosso queimando sobre minha mesa. “A garantia de que a menina
vai ficar bem… você sabe, caso algo me aconteça”.
— Não ainda. Precisamos resolver essa bagunça primeiro. Vou
subir, pegar algumas coisas e te encontro no carro, Bola. Ed, o
reforço está a caminho, não saia desta casa sob nenhuma hipótese.
Na expressão sombria do cara, sinto que há algo que quer
dizer.
— Mande logo — peço.
— A terapeuta da menina. Não acho que seja seguro deixá-la
fora de nossa proteção.
Aperto os olhos e o observo com mais atenção por um
momento.
— É para a segurança dela, ou para a sua própria paz de
espírito? — Não é da minha conta, numa situação ou na outra. Mas
quero saber. Preciso entender a extensão do que acontece com os
meus.
— Não me pergunte — diz ele, tácito, dando o esclarecimento
que preciso.
— Você tem trinta minutos para trazê-la. É o tempo que
preciso para conversar com minha esposa e partir.
Atravesso o escritório até a estante de livros que preenche
toda uma parede, aciono o botão secreto, escondido atrás de um
volume de Tolstói na terceira fileira de cima para baixo, e abro então
a porta do bunker. Na saleta de dois e meio por dois e meio, há uma
pequena reserva de armas de todo tipo, munições e grana em três
moedas diferentes, para o caso de eventualidade. E na parede de
fundos, camuflado, há o que chamamos de bunker do bunker, um
acesso oculto de corredores que atravessam o subsolo da
propriedade até o outro lado do lago. Espero nunca precisar deste
recurso, mas caso precise, minha família pode ser evacuada da
casa com segurança.
— Pegue o que precisarmos e leve para o carro — oriento
Bola.
Encontro Penélope e minha filha distraídas na sala de estar,
enlevadas com um brinquedo de peças coloridas de empilhar.
Impossível não me deter por apenas um momento para apreciar a
imagem. Porra, amo tanto essas duas que chego a sentir isso
fisicamente, um aperto ansioso bem no centro do peito. Não há um
único dia em que não me questiono sobre como é que uma dádiva
assim aconteceu comigo. Nem em um milênio, sou merecedor
dessa vida.
Mas fato é que aqui estou e agarrei essa oportunidade com
toda a minha força. Nada jamais vai tirá-las de mim. Terão que me
matar primeiro.
Pensando a esse respeito, minha cabeça sente a pressão por
Elliot. De nós dois, ele é o cara de coração bom, justo, generoso.
Ele é que merece uma vida boa e feliz como esta. Família, filhos e
tudo o que vem junto.
Porra, basta ver a dedicação em como decidiu tomar a
responsabilidade sobre aquela garota. Em como lutou por ela,
quando eu mesmo já dava o caso por perdido. Abdicou de uma vida,
para viver em função da dela.
Amália pegou o coração do cara de jeito? É fato. Mas não
acho que tenha acontecido logo de cara. O que penso mesmo é que
muito antes disto, lá, no dia e nos dias seguintes ao seu resgate, ela
tocou onde meu amigo é mais nobre: o maldito senso de justiça.
Elliot tem isso nele. Abriu um buraco no meio do peito do
próprio pai, aquele bosta sádico, porque não suportava mais ver o
sofrimento da mãe e a vista grossa de toda uma sociedade. Cuida
daquele moleque irresponsável do Yulian como se tivesse alguma
obrigação com o idiota.
Nunca disse isso a ele, mas me orgulho demais do cara.
Não suporto a ideia de que ele está em algum lugar por aí,
vulnerável. Não é assim que funciona em nosso grupo. Cobrimos as
costas um do outro.
E falhamos. Hoje, falhamos com ele.
— Papá! — minha garotinha grita alegre ao me avistar
escorado na porta.
Há tanto da mãe nela. Na alegria, no entusiasmo com tudo…
até nesta coisa de dançar ao som de toda a música que escuta,
ainda que seja uma em que um covarde quer se lançar diante de
uma bala porque não aceita a rejeição da mulher amada.
Nahuí, não vejo a hora de dar alguns irmãos para a pequena.
Encher essa casa de réplicas teimosas e vibrantes da minha
esposa, a espanhola que me arrebatou quando me mandou comer
merda por causa de uma vaga de estacionamento.
— Está tudo bem? — Penélope se levanta devagar, cautelosa,
sondando meu rosto.
Encaro minha mulher e não me impeço de me aproximar dela.
Abraço-a trazendo-a para junto de mim pela cintura.
— Por que acha que não?
— Porque está me olhando daquele jeito, de novo… — brinca,
suavemente.
Só para entrar na onda, questiono:
— De que jeito?
— Como um cãozinho que foi deixado para trás na mudança
— fica nas pontas dos pés, para cochichar longe do ouvido de
nossa filha o que já espero: — cabrón.
— Um dia, ela vai entender o que significa, espanhola.
— Um dia, vai — provoca.
Abraço-a mais forte e afundo o nariz em seu pescoço. Seu
cheiro, seu cheiro mesmo, e não me refiro à baunilha do xampu ou
ao açúcar sempre presente, e sim àquele aroma intrínseco a ela tal
qual sua personalidade, é como um vício para mim, preciso de uma
dose diária para o equilíbrio.
— O que há de errado, Seb?
— Vamos subir. Preciso falar com você — mas ainda não me
afasto.
É ela que, devagar, vai saindo dos meus braços para encarar
meu rosto. Após um minuto inteiro, assente, compreendendo a
seriedade do assunto.
Olhando para nossa filha, uma ruga surge em sua testa.
— Tia Merian saiu, e a vovó subiu para um cochilo. Sugeri que
Amália fizesse o mesmo, ainda agora. Ela não dormiu muito bem,
estava precisando descansar um pouco. Vou lá ver se ainda está
acordada e pode ficar uns minutinhos com a Sol.
— Te espero em nosso quarto. — Abaixo-me para um beijo na
testa de nossa pequena, mais demorado do que de costume.
Honestamente, entendo a motivação daquele puto em ir
sozinho para a missão. Para garantir a segurança destas duas, eu
teria feito o mesmo.
— Está me dizendo que o Elli sofreu um acidente, é isso? —
indaga minha esposa em voz baixa, sem reação.
— Provavelmente, sim.
Devagar, minha esposa assente, assimilando.
— Acha que ele está…?
Nahuí, essa não é uma hipótese.
— Não. Nem a morte pode com Elliot.
Minha espanhola inspira profundamente, agarrando-se a isso,
mas o impacto da notícia é visível na palidez que assume seu rosto
lindo pra caralho, sempre corado.
Noto também o tremor nas mãos.
— Madrecita[51], espero que tenha razão… Deus, a Am.
Precisamos contar para ela.
— Não, espanhola — sou incisivo.
— Como assim “não”? Ora, Sebastian, ela precisa saber.
Antes de explicar meus motivos, massageio as têmporas atrás
de um alívio momentâneo para a pressão que se instaurou na
cabeça.
— Não ainda. Me deixa checar as coisas primeiro, descobrir o
que de fato aconteceu, para então, sim, abrir o jogo com ela.
A ideia de omitir da irmã não a agrada em nada. Sei disto.
Penélope é transparente, seus sentimentos estão todos expressos
em seu rosto.
— Você acha que ela não conseguiria lidar com isso — não é
uma pergunta.
— Honestamente? Sim, é o que eu acho.
Sei que sairá em defesa da garota antes mesmo que precise
abrir a boca. É assim que ela age, minha mulher protege os seus.
— Pois Amália é mais forte do que pensa, Sebastian. Aquela
menina — aponta o dedo na direção de onde fica a área de
hóspedes da casa — tem muito mais força do que todos pensam.
Não sei se minha esposa acredita mesmo nisto, ou quer
acreditar. A verdade é que Elliot não iria querer que eu jogasse essa
merda para cima da menina dele sem ter certeza. Ocultar, por
enquanto, para poupá-la, é uma decisão que ele tomaria, e devo
isso a ele.
— Vamos esperar, Penélope. Uma coisa de cada vez, sim?
Encarar as lágrimas em seus olhos me fode. Detesto que essa
droga esteja acontecendo.
— Venha aqui. — Abraço-a forte e afundo o nariz naquele
ponto em seu pescoço. Somos uma equipe. Uma unidade.
Antes de sair, minha espanhola pede que eu leve comigo o
rosário de sua Santa, o cordão com contas e uma cruz de madeira.
A peça é importante para ela, a única lembrança que possui da
mãe. Uma vez, no passado, ela também me entregou o objeto para
que eu levasse comigo em uma empreitada. A diferença entre
aquele dia e agora é que antes eu era burro demais para perceber o
quanto essa mulher significa em minha vida.
Seguro seu rosto entre as mãos e beijo suavemente sua boca.
— Vai ficar tudo bem, espanhola. Prometo a você.
Deixá-la para trás com o olhar encoberto pela névoa do medo
e incerteza é a coisa mais malditamente difícil que tenho de fazer.
Sinto o sangue correr agitado enquanto ordeno a mim mesmo que
mantenha a cabeça no lugar.
Aquele cara está bem. Tem que estar.

— Que porra é essa? — A tensão impressa em minha voz é


um som estranho até mesmo para meus ouvidos.
— Sinto muito, Sebastian.
Nem fodendo. Sequer olho para a caixa de madeira com a
merda de um número qualquer gravado na lateral, rejeitando
sumariamente a hipótese do que supostamente há dentro.
— Sente muito pelo quê? Que brincadeira de mau gosto é
essa, Jurgen?
— Não é nenhuma brincadeira.
— Não, não é ele — afirma Bola atrás de mim, agitado,
andando de um lado para o outro feito um animal enjaulado prestes
a arrancar a cabeça de alguém. — Não. É. Ele.
— Gostaria de estar errado, Kozak, mas esse não é o caso.
Ao som de seu nome real, Bola avança para o cara, irado,
cortando a distância em duas passadas.
— Não me venha com essa de Kozak, seu bosta! Eu tô me
fodendo se você sabe meus dados, se acha que sabe qualquer
merda sobre mim, ouviu bem? Cadê o Elliot, porra?! — Jurgen é
sacudido pelo colarinho da camisa impecável.
— Solte, Kozak! — O francês tenta se desvencilhar, sem ar,
então recorre a mim: — Sebastian?
— Bola. — Toco no ombro do cara.
— Não vê que ele está mentindo, porra?! — Relutante, Bola
empurra Jurgen para longe e se afasta, levando as mãos à cabeça.
— Maldição!
O francês cambaleia, antes de se recompor.
— Não estou, senhores. Gostaria que fosse uma mentira, mas
não é. Se desejarem, confiram vocês mesmos. — Jurgen aponta
para a caixa retangular. — Devo alertá-los de que, infelizmente, não
é algo que recomendo verem. Houve uma explosão, os corpos
foram completamente atingidos pelo fogo. Quase não o
identificamos.
— Então como pode afirmar que é o cara aí dentro, porra?! —
vocifera Bola, levantando o dedo em riste para a cara de Jurgen.
— Ele era o único na cabine do piloto. Estava debruçado sobre
o manche. A compleição física corresponde, também.
Os punhos cerrados de Bola tremem violentamente com o que
escuta, tomado pela incredulidade, pela ira.
Compartilho dos mesmos sentimentos.
Minha vontade é urrar. É esmagar o crânio desse maldito
francês contra o chão até que ele diga que isso não passa de uma
brincadeira ruim de merda.
Mas minha mente foi treinada para situações como estas, e
certamente sucumbir aos instintos não é a coisa certa no momento.
Já estive nesse ponto, antes. Sei como essa droga funciona.
Viro-me para Bola, que instintivamente dá um passo para
longe, avisando-o que vou fazer o que precisa ser feito. Meu amigo,
um dos irmãos da vida, gira-se de costas, sacudindo e esfregando a
cabeça. Não quer ver. Não quer receber a confirmação.
Tremendo pra caralho, abro devagar o caixote de madeira,
desprendendo as fivelas.
O cheiro implacável de carne queimada se arrasta para fora,
encontrando caminho para minhas narinas e se impregnando nelas.
Embrulha o estômago. Minha vontade mais íntima é me acovardar,
fechar o tampo e continuar negando que isso esteja mesmo
acontecendo.
Abro a caixa. E é o mesmo que ser nocauteado pelo golpe
mais violento que se pode receber.
Meu olhar caça cada informação, cada detalhe que conte uma
história diferente. Que dê outra direção à conclusão mais óbvia de
que é mesmo o corpo de meu irmão aqui, carbonizado,
irreconhecível.
Esta é uma das coisas mais difíceis que já tive de fazer na
vida. Compara-se a poucas outras. Duas, talvez.
Uma onda violenta de energia do pior tipo percorre meu corpo
como uma descarga elétrica.
Não preciso de uma fodida fita métrica para confirmar que a
altura corresponde, embora o corpo esteja quase devastado pelo
fogo, a pele desfigurada.
Mas o que me bate forte, tal qual um golpe físico devastador, é
o deslumbre prateado envolvido pelo couro derretido da jaqueta.
Trêmulo como o inferno, levo os dedos incertos e fisgo a peça,
que não encontra dificuldade em se ver livre do caos, cumprindo seu
papel.
O cordão militar com uma única palavra gravada.
Cвободно. Livre.
Enquanto as nossas placas traziam informações vitais como o
tipo sanguíneo, por exemplo, Elliot escolheu escrever apenas isto na
dele, surpreendendo inclusive nosso superior imediato.
A sensação é a de que o objeto queima sobre minha palma,
ainda que não esteja quente de verdade.
Fecho meus dedos ao entorno da placa até os nós se
destacarem.
Elliot jamais o tirou, desde que entramos para as Forças
Armadas.
Fecho o caixote abruptamente.
Não consigo continuar olhando para isso.
Não posso aceitar.
— Como? Como aquela aeronave caiu? — Meu timbre não
passa de um rosnado quebrado e furioso, coberto pela camada de
uma emoção que muito certamente vou lembrar por toda a vida.
Jurgen inteligentemente escolhe se afastar um pouco de mim.
Evito olhar para Bola.
— Ainda não sabemos. Tudo o que temos é o relato de alguns
moradores da aldeia ao pé da montanha. Recolhemos os destroços
para checar a caixa preta.
— Onde estão os outros corpos? Presumindo que estão todos
mortos.
— Estão mortos, Sebastian. Embalados em sacos. — A honra
de um caixote de madeira estúpido é apenas de Elliot, é o que o
francês não diz.
Não posso sucumbir ao lugar fodido que minha mente tenta
me levar. Já estive lá antes. Preciso ser racional, isso não é uma
escolha.
— As ogivas?
— Nem sinal delas. Desconfiamos que a troca não foi
realizada, deve ter havido uma mudança nos planos de última hora.
Encaro Jurgen profundamente, em busca de tudo, de cada
fragmento de informação que ele possa ter e não esteja querendo
compartilhar.
— Por que não se encontrou com ele, como combinado?
O sujeito fino e comprido como um pau, carregado daquele ar
prepotente do caralho, desvia o olhar ao responder:
— Perdemos eles de vista dentro de Teerã. Nosso pessoal foi
despistado. Desconfio que Brejnev descobriu que estávamos
envolvidos.
— Então como pode afirmar que a troca não aconteceu? —
investigo o esforço que faz para se manter impassível, disposto a
apostar que ele não está revelando tudo o que sabe.
— Se as ogivas estivessem em poder deles, teríamos
encontrado. Fomos os únicos a ter acesso aos destroços. E
removemos tudo.
— O que quer dizer com “removeram” tudo?
— Fizemos uma limpeza, Sebastian. Recolhemos para nossa
base os corpos e o que sobrou da aeronave. Esse é o protocolo.
A grande questão é “por quê?” visto que esta não era uma
missão oficial da Interpol.
— Ao menos sabe onde eles estiveram, em Teerã? — Aperto
os olhos, enfrentando os seus, tão confiáveis quanto os de uma
víbora.
Essa resposta eu tenho. Quero saber se ele também tem.
— Não, infelizmente, não.
Assinto, lentamente.
E Jurgen sabe, apenas sabe que isso só está começando. Que
vou até as últimas consequências para descobrir toda a verdade,
inclusive aquela que ele oculta de mim, por alguma razão.
Só que não agora.
Não nesse momento.
Não quando é o corpo de Elliot irreconhecível dentro de uma
merda de caixa, pronto para ser despachado. Não é assim que as
coisas são.
— Deixe-nos — ordeno para Jurgen com o fio de voz mais letal
que me lembro de executar.
Não o quero aqui, não nesse momento. No nosso momento.
Remexendo as abotoaduras em seus punhos, Jurgen não
pensa duas vezes antes de dar o fora do galpão que eles mantêm
clandestinamente em solo iraniano. Não há simpatia ou amizade
entre nós. Nunca houve. Fui chantageado para trabalhar com eles;
ameaçaram a mim e aos meus amigos. Estive nos piores buracos,
arriscando nossas cabeças, cumprindo suas ordens. E encerrei
esse ciclo virando a mesa, botando uma corda permanente no
pescoço do cara. E aqui estamos outra vez, prestes a recomeçar
esse inferno.
Mas não agora.
Porque agora… agora não consigo raciocinar. Não consigo
sequer respirar.
Isso não pode ter acontecido, não com meu amigo, meu irmão,
porra.
— Porra! Pooorraaaaaa! — ruge Bola, feroz, transtornado,
socando uma coluna de concreto. O som cria ecos. — Não é o cara,
não tem como ser.
— É ele. — A dor, a derrota e a culpa sobrepesam cada
movimento de minha boca.
— Elliot recebeu treinamento. Ele saberia o que fazer, teria até
saltado se fosse o caso. Não, tem que ter uma explicação para
isso… — A negação do cara só me deixa ainda mais destroçado.
— Há uma marca de perfuração no crânio. — Encarando o
chão, sem realmente enxergar nada, tento focar nesta informação.
— Pelo formato de saída, foi pela nuca. A questão aqui é por que
Brejnev, ou qualquer pessoa dentro daquela aeronave, atingiria o
piloto por trás, em pleno voo, ciente de quais seriam as
consequências.
— Porque são malditos porcos! — esbraveja o cara. — Burros
do caralho!
Sacudo a cabeça, negando.
— Burros, mas não suicidas, Bola. Tem alguma coisa errada.
— O que vamos fazer agora?
Meu coração sente o impacto de ser esmagado pela perda.
Pela dor, pela fúria.
Dizer isso me arrebenta.
— Levar nosso irmão para casa.
AMÁLIA

— Bom dia — cumprimento Penélope, meio surpresa por a


encontrar tão cedo na cozinha, antes até que a babushka.
Assustando-se comigo, a forma redonda que retira do forno cai
de suas mãos. Por sorte apenas trepida no chão e nada acontece
ao bolo.
— Ah, oi, Am, bom dia… — Seus olhos encontram brevemente
os meus e se desviam depressa.
Discretamente, inspecionando seu rosto contraído, o jeito
como deixa a forma sobre a mesa e torce o pano nervosamente
entre os dedos. Parece tensa com alguma coisa.
Será que fiz algo que a chateou?
— Está tudo bem? — Aproximo-me dela com cautela.
— Está, está sim, e você, mi cariño[52], conseguiu dormir? —
Seu sorriso pela primeira vez mal alcança os olhos. Penélope não é
assim, com ela há sempre sorrisos sinceros e risadas contagiantes,
então há alguma coisa a incomodando de verdade.
— Dormi, sim, obrigada… — minto sobre essa parte, não acho
que ela precise de mais chateação ou preocupação comigo. — É
aniversário de alguém? — pergunto cuidadosa me referindo aos três
bolos grandes assados em cima da mesa.
O olhar perdido pousa sobre os bolos.
Será que brigou com Sebastian? Desde que cheguei, nunca
presenciei uma única discussão sequer entre eles. Ao contrário, são
amorosos e quando estão perto um do outro, vivem com aquela
expressão que vão correr para o quarto a qualquer momento.
— Não, não é aniversário de ninguém. Eu… só perdi o sono e
precisava fazer alguma coisa.
— Entendo.
Cogito perguntar se está tudo bem mesmo, porém me calo
com a chegada de Ed, que resmunga um “bom dia” seco para
ninguém em especial. Não me olha, mas com Penélope, troca um
olhar rápido e estranho. Dra. Saavedra entra logo atrás dele muito
séria, ao se dar conta de mim e de Penélope, assume uma
expressão neutra. Sei que passou a noite aqui por conta de um
problema com seu apartamento, mas ainda não a havia encontrado
desde que chegou.
É engraçado o que é possível notar apenas os observando.
Essa é talvez a vantagem de ser aquela que normalmente fala
pouco em um ambiente. Ed e a Dra. Saavedra, por exemplo,
parecem zangados um com o outro. Possivelmente discutiram há
pouco.
Alheias à atmosfera na cozinha, não demora muito vovó Zhena
e tia Merian adentram conversando animadamente naquele idioma
carregado e forte. Como era de se esperar, babushka exibe espanto
por ter tanta gente em sua cozinha tão cedo. Pelo jeito, as duas
senhoras são as únicas que dormiram bem essa noite.
A terapeuta puxa uma banqueta e se senta perto de mim.
— Bom dia, querida.
— Oi, doutora, bom dia.
— Ontem tive alguns atendimentos online e acabei não me
encontrando com você — comenta. — Está tudo bem?
— Está, está sim. E no seu apartamento?
Ela troca um olhar afiado e descontente com Ed, que
imediatamente deixa a cozinha, taciturno e silencioso.
— Vai se resolver. — Sorri.
Babushka de repente chama a atenção ao gesticular para a
janela.
— Loupe, Pochemu oni zdes'?[53] — De olhos espremidos,
aponta e franze o cenho não parecendo nada satisfeita.
— Oni dlya nashey bezopasnosti, babushka, ya ob"yasnyu
pozzhe[54].
Estico-me um pouco para saber do que estão falando. Do lado
de fora, dois homens desconhecidos vestidos de terno e gravata
andam por partes diferentes da propriedade, comunicando-se entre
si por meio de pequenos fones em suas orelhas e microfone nos
pulsos. Já vi uma postura semelhante nos arredores da clínica em
que estive internada. São vigilantes.
Penélope diz mais alguma coisa que não consegue tirar a ruga
de estranheza na testa de vovó.
E o clima não melhora à medida que os minutos passam. Há
um tipo de tensão estranha no ar, quase cortante. Loupe continua
com aquele ar distraído, agindo de forma automática enquanto
alimenta Sol de Maria, não percebendo a bagunça que a bebê está
fazendo com o mingau.
Vendo que Penélope precisa de um tempo, espero que Sol
termine de comer, levanto-me e retiro a garotinha do cadeirão. Ando
com ela pela cozinha, indo até a janela com vista para o lago. Ela ri,
brinca com minha franja, tenta morder minha bochecha, sapeca
como sempre.
Tanto para me afastar do que quer que seja essa energia
pairando no ar, quanto para proporcionar distração à neném,
pergunto à Penélope:
— Posso levar a Sol à estufa, Loupe?
Ela não me escuta, mergulhada no que quer que seja
responsável por criar uma linha rígida em sua boca.
— Loupe? — chamo um pouco mais alto.
Seus ombros se empertigam.
— Me desculpe, Am, o que disse?
— Sol — explico. — Posso levá-la comigo à estufa? Tem
morangos brotando, gostaria de mostrar as florzinhas a ela.
— Claro, claro. Obrigada. — Suas palavras denotam
normalidade, mas então por que seu olhar aflito diz o oposto?
Do lado de fora, um dos seguranças nos segue a uma
distância discreta e para do lado de fora da estufa. Tento abster a
presença masculina desconhecida.
— Está vendo, Solzinha? São morangos! — brinco com a
neném. — Bem, por enquanto são só essas florzinhas, mas logo
comeremos morangos bem vermelhinhos e maduros, imaginou
isso? — Faço pequenas cócegas em sua barriguinha, que arrancam
gargalhadas dela.
Sol levanta a mãozinha tentando pegar uma das flores
minúsculas. Apanho e entrego a ela. E não consigo evitar de tirar o
celular do bolso do casaco com a mão livre e bater uma foto. Minha
primeira, percebo com grande surpresa. Por que nunca bati foto
antes?
Movida por impulso, abro o aplicativo de mensagens e mando-
a anexado para Elliot:

Meus primeiros morangos ��

Com certa decepção, percebo que as mensagens de ontem


não foram entregues, tampouco essa. Ainda deve estar em algum
lugar onde não há sinal.
— Mas ele chegará hoje. Não é mesmo, bebê?
O sol já está quase desaparecendo na linha do horizonte,
criando aquela coloração única no céu, quando Dra. Saavedra me
convida para um passeio ao redor do lago. Ela esteve trabalhando o
dia todo, atendendo pacientes remotamente. Observando de
maneira discreta seu rosto, principalmente os olhos tão marrons
quanto chocolate derretido, dá para notar os sinais de que seu
trabalho não é nada fácil. Acho que é o efeito colateral de lidar com
a carga emocional de estranhos que precisam de alguém que os
ajude a se libertarem de seus novelos embaralhados, enlameados,
desfeitos.
Dra. Saavedra se dedica a melhorar o mundo de pessoas
como eu.
De repente, um pensamento vindo de um lugar totalmente
desconhecido descarrega um clarão bem diante dos meus olhos.
Quase cegante.
Uma ideia que jamais teria cogitado até bem pouco tempo
atrás.
— Tudo bem? — Estuda-me Dra. Saavedra, cautelosa.
Interrompi meus passos sem me dar conta, e ela também.
— É só que eu… eu… — Nem sei como dizer isto sem parecer
uma tola.
— Você? — incentiva.
— Estive pensando… — Afundo as mãos no bolso do casaco
e chuto um graveto no chão, sem coragem de encará-la. — Uma
vez Dra. Cassandra me disse que eu poderia realizar qualquer coisa
que desejasse. Não tenho bem certeza se é verdade, ou mesmo
possível. Mas me pergunto se, sei lá, um dia conseguiria fazer o que
você faz pelas pessoas. Ajudá-las. — Envergonhada, e com a
certeza de que a ideia é a mais improvável que ela provavelmente já
tenha escutado, sacudo a cabeça, descartando. — É uma ideia
absurda, eu sei. O que alguém quebrada como eu pode fazer por
quem quer que seja?
Atraída por seu silêncio, subo os olhos para ela esperando ser
dissuadida.
Mas o que encontro me admira. Um olhar de encorajamento e
certo orgulho.
— Você se surpreenderia com o que pessoas que já foram
quebradas são capazes de construir. Elas, mais do que ninguém.
Algo na maneira como diz isso me faz pensar que essas
palavras podem não ser tão somente para mim.
— Fala por experiência própria? — pergunto sem pensar
direito.
Saavedra não foge da questão.
— Talvez sim — responde meditativa. Não deixo de reparar
que os últimos resquícios de sol destacam o marrom de seus olhos
e pele de um jeito quase reverenciador, evidenciando a juventude
escondida debaixo da seriedade. — Depois de quebradas, cabe a
nós juntarmos os pedaços, portanto podemos fazer com eles o que
desejarmos, inclusive nos reconstruir em uma nova forma.
Fico pensando profundamente sobre isso durante o restante
do passeio, até me juntar à babushka para ajudá-la com o jantar.
Construir uma nova forma para si mesmo, uma nova vida. Faz
tanto sentido.
Encontro vovó no fogão e tia Merian sentada à mesa diante de
uma revista com uma mulher glamurosa em um vestido cintilante na
capa. Enquanto lavo as mãos para picar legumes, ela me mostra a
foto e gesticula para o meu cabelo. Será que quer que eu também
pinte de vermelho?
Estou prestes a dizer que tudo bem quando passos fortes de
botas contra o piso de madeira vêm em direção à cozinha.
Meu coração bate mais depressa na expectativa de ser Elliot.
Já vou secando as mãos antes mesmo de vê-lo.
Só que não é Elliot quem entra. É o Ed, e ele nota minha
decepção. Nota e inspira com força.
— Será que posso falar com você? — dirige-se à terapeuta,
impassível.
Dra. Saavedra se retesa, mas acata e se levanta.
— Com licença — diz, seguindo-o.
“Moça boa” escreve vovó.
Tia Merian pede o celular.
“Parece chateada com ele”.
“Deve ser o problema no apartamento dela” explica babushka.
O fato de elas estarem usando o tradutor somente para me
envolver na conversa, mesmo eu sendo a única a não falar o
idioma, ainda me emociona muito.
Como em todas as noites, dedico-me a auxiliar a babushka
com o jantar. Vovó Zhena não sabe, mas vem ressignificando o
sentido disto para mim. Está tornando esse lugar da casa um que
não desperta emoções ruins. Ou talvez ela saiba.
Talvez seu objetivo seja apenas me ajudar a construir uma
nova forma para mim mesma.
À noite, recolho-me no quarto como um misto de saudade e
ansiedade. Elliot ainda não voltou. Estava certa de que chegaria
hoje.
Abro o livro de exercícios deixados pela professora na última
aula e passo a praticar o idioma. O aplicativo me ajuda com a
pronúncia, conforme vou reproduzindo as frases. Onde minha língua
normalmente esbarra nos dentes da frente em espanhol, em russo
tenho que a enrolar lá para trás.
Mordendo a pontinha do lápis, de repente volto a pensar na
conversa com a Dra. Saavedra. Na possibilidade de um dia me
tornar uma terapeuta também. Não tenho muito estudo, fui retirada
da escola assim que me adotaram. Mas será que seria possível um
dia?
“Você frequentará a terapia, se exercitará, se permitirá ser
parte daquela família de coração aberto; estudará meu idioma, se
quiser. Terá amigos; terá sonhos”, foi o que Elliot pediu naquele dia.
Curiosamente, sem nem perceber, já estou cumprindo a maior parte
de itens desta lista, exceto por ter sonhos.
Será então que desejar me tornar uma terapeuta é um destes
sonhos a que ele se referiu?
Sorrindo sozinha percebo que sim. É, é um sonho que traz um
sentimento novo e muito bom ao peito. Enche-me de esperança
pela primeira vez em muitos anos.
Gostaria que Elliot estivesse aqui para compartilhar isso com
ele. Sei que ficará orgulhoso. É graças a ele que posso me permitir
sonhar.
Um suspiro abandona meu peito.
Já não caibo em mim de tanta saudade.
Estico-me na cama para pegar o celular sobre a mesinha ao
lado. Novamente, não há qualquer sinal dele, e nem de que as
mensagens que enviei foram entregues. Abraço o aparelho e fico
assim por um tempo, até que ouço uma batida na porta semiaberta,
seguida do vislumbre do cabelo castanho-acobreado de Penélope.
Ela não apareceu para o jantar.
— Posso entrar, Am? — Tenho a impressão de que andou
chorando porque seus olhos estão vermelhos.
— Claro — Fecho o material de estudo rapidamente e me
levanto da cama — Aconteceu alguma coisa?
Seu olhar desvia-se para o chão, corre o quarto, sobe ao teto,
até que se volta para mim outra vez, úmido.
Antes que ela abra a boca, o que vejo em seu rosto
enfraquece um pouco as minhas pernas. Lentamente, me sento de
volta na cama.
— O-o q-que foi? — murmuro.
Loupe finca os dentes no lábio inferior com força, prestes a
desabar.
— Eu… eu nem sei como…
— Diga — peço, o coração passando a bater mais depressa.
Ela me encara com uma dor que jamais vi em seu rosto.
— É o Elli, Am. Ele… ele.
— Ele o quê? — minha voz simplesmente some.
Uma lágrima grossa despenca de seus olhos diretamente para
o tapete no chão. Noto que as fibras a absorvem como se nunca
tivesse existido. Talvez esse pensamento seja o que vou me lembrar
sempre que sentir essa sensação de um buraco se formando bem
dentro da minha barriga. Grande o suficiente para me fazer apertá-la
e me curvar para frente.
— Aconteceu um… — ela mal consegue dizer as palavras,
precisa piscar para o teto várias vezes — um acidente. Sinto muito,
minha irmãzinha.
— Onde ele está?
Ela não vai dizer. Não consegue. Mas preciso ouvir, saber se
ele está bem.
— O-onde ele está?
— Sinto muito, mesmo, Am. Sinto com todo o meu coração.
— Não faz isso comigo, Loupe. Por favor, por favor, não faz
isso.
Não a impeço de secar lágrimas que eu sequer percebi se
derramarem de mim.
— Você precisa ser forte, irmã. O Elli te amava e ia querer te
ver forte, mi cariño. — Ela fica dizendo, mas estou me afundando
rapidamente em alguma coisa. Tão fundo que o som de sua voz é
um eco debaixo d’água.
Amava.
No passado.
Uma dor inimaginável dispara em meu peito. Meu corpo cede
sobre os joelhos porque simplesmente não consigo sustentá-lo
mais.
Sou engolida pela escuridão, arrastada para lá. É lamacenta.
Não consigo enxergar, não consigo!
— Am, fique calma, cariño, por favor, fique calma. — Uma voz
tenta me amparar, só que ela está distante demais, muito distante.
Não pode me ajudar. Não pode.
Mas ele pode.
Na escuridão, grito bem alto chamando por ele, porque sei que
virá. Elliot me deu sua palavra.
Não gosto da escuridão, Elliot! Por favor, me ajude a sair
daqui!
Estou com medo. Me ajude a sair. Acenda a luz, como faz
todas as noites. Segure a minha mão, por favor, por favor, me ajude
a sair daqui.
Você prometeu!
Fale comigo!
Está doendo, tá doendo muito.
Você prometeu.
AMÁLIA

No bosque de galhos secos não há pássaros cantando, ou


qualquer som a não ser os ecos das correntes de ar entre os
troncos. Centenas deles, tão finos quanto braços, lado a lado. Suas
sombras, projetadas pela luz que atravessa a abertura no topo,
formam desenhos semelhantes à teias no chão. Conheço bem o
labirinto que criam, sei deslizar facilmente por cada rota possível.
Desta vez, não vou mais sair daqui.

Não consigo mais sair.


ZHENA

Hoje faz três dias que enterramos o menino. A tristeza se


apossou desta casa sempre tão feliz, se apossou do meu coração
também. Aquele rapaz era como um filho para mim. Prometi à sua
mãe, Anya, que ficaria de olho nele. Ela era uma boa mulher, bem
diferente do maldoso do Egor Shumov, com esse eu tive o
desprazer de cruzar poucas vezes, mas aquela na igreja guardo na
memória. Apesar das palavras adoçadas daquele homem, ninguém
de bom caráter poderia ter aquele tipo de brilho perverso dentro dos
olhos.
Anya morreu cedo porque perdeu a batalha para uma doença,
é o que dizem. Mas acho que só adoeceu mesmo porque foi casada
por tempo demais com aquele horroroso. Maridos ruins tiram a
saúde de esposas boas.
Se o garoto o matou como dizem, aposto que ele mereceu.
Enquanto despejo a água quente para o chá no samovar[55],
me pergunto o que posso fazer por minha gente. Apesar da dor em
meu coração, não posso esmorecer. Eles precisam muito de mim.
Tenho que ser o pilar de sustentação desta família.
Sebastian é durão. Sempre foi. Acho que nisto puxou o avô.
Mas está sofrendo muito, conheço meu neto. Enxergo a dor em seu
rosto nas raras ocasiões que deixa o escritório. Está enfurnado lá
dentro dia e noite, sem dormir ou comer, desde que voltamos do
sepultamento. Eram como irmãos, é natural que sua alma esteja em
luto. Só não gosto nada nada do que certamente ele está
planejando. Vingança é uma emoção ardilosa, ela engana seus
sentimentos, ele já deveria saber.
Penélope também tem estado para baixo. Nunca tinha visto
minha neta infeliz com nada.
E tem a doce criança, Amália, a garotinha ferida que chegou
aqui há poucos meses. Essa precisa de mim um pouco mais do que
todos eles. Acho que até mesmo a natureza sabe disto. A chuva que
já dura três dias caindo lá fora deixa o céu parecido com a cor dos
olhos dela de propósito, numa demonstração de solidariedade.
Por que isso tinha que acontecer justamente quando a
felicidade enfim havia cruzado os caminhos deles?
— Vnuk[56] e os garotos estão tramando. — Prima Merian
entra na cozinha trazendo a bandeja intocada de comida que deixei
no quarto da criança.
— Por que diz isto, prima?
— Porque estão trancados lá dentro confabulando já faz horas.
— O que ouviu?
— Quem disse que ouvi alguma coisa? Está achando que
fiquei com o ouvido lá, colado na porta deles?
— да, да, Merian! Fale de uma vez, prima!
— Estão falando em pegar avião, ir para algum lugar caçar um
homem. Ouvi barulhos de óh:— mostra com as mãos uma arma
grande, uma bazuca pelo tamanho! — E fazer óh: — atira com os
dedos.
— Bog[57]! — Levo as mãos ao céu. — Vai começar tudo de
novo!
— O que pretende fazer, prima?
— Não há nada que eu possa fazer, Merian. É da natureza dos
homens resolver as coisas com sangue.
— Beshenoy sobakye syem' vyerst nye kryuk.
— Sim, para um cachorro louco, sete milhas não são um
desvio — é o que diz o provérbio antigo. — Se eles querem mesmo
isso, não vão medir esforços até conseguirem.
Merian se serve de uma xícara de chá, depois de deixar sobre
a mesa a bandeja trazida do quarto de Amália.
— A criança não come nada há dias — comenta ela com
pesar.
— Está sofrendo muito, pobre coitada. Acho que vou tentar
tirar ela de casa.
Cética, prima Merian sacode a cabeça.
— Se conseguir tirá-la do quarto, considere-se vitoriosa. Será
que ela fez aquilo de novo? — Merian imita uma navalha passando
pelo pulso.
Quando chegou a esta casa, notei que se cortar era um hábito
ruim de Amália. No entanto, ela havia parado com isso, estava feliz
aqui.
Suspirando bem fundo, sirvo-me de um pouco de chá também.
É bom para pensar.
— Para ser sincera, tenho medo que ela tente coisa pior. —
Não preciso explicar a que me refiro. Prima Merian entende. —
Loupe também está muito preocupada. A cada passo, pego ela por
ali, zelando pela irmã. A doutora também está sempre por perto.
— Ela e o garoto Ed deram até uma trégua na briga deles,
notou, prima?
— Deram, deram sim. Vai ver fizeram as pazes. Além de que,
Ed também está muito infeliz.
— Fazer as pazes eu acho que não. Paixão forte como a que
ele e a doutora estão sentindo um pelo outro não permite esse tipo
de coisa, Zhena. Mas que os garotos estão sofrendo, isso está na
cara deles. E vão fazer coisa errada, anote o que estou dizendo.
Meu coração chora por pensar nos tempos difíceis que estão
por vir.
— Por que uma coisa dessas tinha que acontecer logo agora,
Merian? Tudo estava indo tão bem.
— Sabe o que dizem sobre calmaria, não sabe, Zhena?
— Antecede tempestade.
SEBASTIAN

— Você perdeu peso.


— Obrigada.
— Não é um elogio, espanhola — rosno, um pouco impaciente.
— Como acha que vai se manter em pé se não está se alimentando
direito?
Sem abaixar a cabeça para minhas merdas, Penélope arqueia
a sobrancelha desafiadora.
— O mesmo vale para você, Sebastian. Passa trancado aqui a
maior parte do tempo, e aquela garrafa é a terceira, pelas minhas
contas.
— Está contando? — Dou a ela um olhar afiado idiota.
— Sim, estou. Sua resistência a álcool é um dom e tanto, mas
não o torna imbatível.
Depois de um minuto inteiro sustentando a acusação em seu
olhar, esfrego meu rosto com força. Essa porra de situação atingiu a
todos nós feito um maldito rolo compressor, e não há nada que eu
possa fazer para resolver. Isso é que está me matando, nenhuma
ação minha vai trazer o cara de volta.
Já pensei em extinguir todo e qualquer Brejnev dessa Terra.
Caçar Jurgen e quem mais estava naquela missão, por falharem
com Elliot. Mas a verdade é que nada que eu faça vai mudar a
realidade.
— Não tô conseguindo digerir essa merda, espanhola. Eu
deveria ter ido com ele — admito, quebrado pra caralho.
Minha esposa, sentada em meu colo, desaba também, abraça-
me mais forte pelo pescoço com lágrimas não derramadas
inundando os olhos que tanto amo. Dói ver isso.
— Tudo acontece como deveria, você não pode estar em
todos os lugares.
— Lá, eu deveria estar sim.
Ela segura meu rosto.
— Cábron, olhe para mim, por favor.
Relutante, encaro seu rosto. Ela me segura em suas mãos.
— Não se coloque esse peso, já basta a dor de não termos
mais ele aqui. Por favor, não faça isso com você mesmo. Tenho
certeza de que Elliot não gostaria que se sentisse dessa forma. Eu,
essa família, seus amigos, todos nós precisamos de você bem. E
tem mais uma coisa…
Ciente do que é, ainda assim questiono.
— Você vai dizer mesmo que eu não pergunte, então manda
lá, espanhola.
Seus polegares alisam a barba por fazer na linha de minha
mandíbula.
— Sei o que está planejando. Não vou tentar impedir, mas
quero que pense que agora você tem uma filha. Que Sol precisa do
pai. Eu preciso do meu marido.
— Está me pedindo para não fazer nada?
— Estou te pedindo para não se perder, Sebastian. Para não
deixar esse sentimento. — Alisa meu peito. — Tomar conta de quem
você é.
Não tenho uma resposta para isso. Não consigo mentir para
essa mulher.
Depois de um longo silêncio com ela sentada sobre mim, o
envelope em cima da minha mesa chama sua atenção.
— Quando pretende entregar a ela?
Observo também a coisa parda queimando a madeira robusta.
— Não sei como fazer isto.
— Entregando, meu amor. Am está sofrendo muito, talvez o
que tem aí dentro a conforte.
Arqueio uma sobrancelha.
— Escrituras de propriedades? Investimentos, saldo bancário.
Acha que descobrir que herdou uma grana fodida e não precisará
pensar em trabalhar nunca mais na vida vai amenizar a dor dela?
Minha esposa me conhece o suficiente até para compreender
a acidez em meu tom. Por isso releva.
— Saber que ele pensou nela até nesse momento, sim. É
sobre isso, Sebastian. Amália precisa. É o que Elliot iria querer
também.
— Que seja.
Não vou fingir que não sei o que a menina está sentindo. Já
estive nesse exato ponto antes, quando, no passado, minha noiva
foi assassinada. Lembro do que senti em seu velório e nos dias que
o sucederam. A dor. A raiva. A tristeza. Cada uma destas emoções
me é muito familiar. E para ser honesto, devo à menina o crédito de
ainda por cima ter um passado fodido. A vida não é fácil para a
maioria das pessoas, mas para algumas, ela é uma filha da puta
sádica.
— Posso entrar? — Coloco-me na abertura da porta.
A impressão que tenho é que Amália é indiferente à minha
presença.
Reconheço esse olhar vazio, posso arriscar dizer que conheço
cada um de seus pensamentos, por isso não espero uma resposta.
Entro devagar, correndo um olhar ao entorno. Tudo arrumado
e intocado. A cama feita. Não parece que esse quarto está sendo
habitado por alguém.
Puxo uma cadeira do canto, a coloco diante da cama onde ela
está sentada e me permito observá-la por um instante. Elliot
detestaria essa imagem. A magreza. Os vincos marcando a pele de
alguém tão jovem. As olheiras. A falta de brilho em seus olhos.
Elliot simplesmente odiaria vê-la assim.
— Sei que é uma pergunta de merda, mas como você está? —
Desconheço a suavidade em minha voz e agradeço a uma parte de
meu cérebro por conseguir extrair alguma sensibilidade em meio a
tantos sentimentos ferais.
Como esperado, ela não responde. Elliot havia comentado
vagamente sobre essa sua capacidade, digamos assim, de se
fechar em si mesma. Possivelmente é o que está acontecendo.
Não vou fingir que a imagem não me afeta. Uma pontada
aguda quase me obriga a afagar o peito. De repente me sinto um
pouco paternal sobre alguém tão frágil.
Inclino-me para frente na cadeira, pouso os antebraços nas
coxas e fito o chão.
— Pergunta idiota, eu sei. Se quer saber como eu me sinto,
vou te dizer que preferia que essa droga tivesse acontecido comigo.
Elliot era um cara centenas de vezes melhor do que eu. Se alguém
merecia estar aqui, vivo, com certeza era ele. — Encaro meus
dedos, os calos nas palmas, me abrindo honestamente, pela
primeira vez. Amália merece isso de mim. — Estou tão, tão furioso.
Quero matar os responsáveis e o pior é que ainda não sei
exatamente quem ou o que será alvo dessa merda de coisa
queimando aqui dentro, porque os malditos morreram naquele avião
antes que eu pudesse botar minhas mãos neles. — Esfrego meu
rosto, cansado desses pensamentos que não me deixam sequer
respirar um único minuto do dia, variando entre raiva e uma culpa
abrasadora. — Enterrar o cara foi a coisa mais difícil que já tive de
fazer. É como se uma parte de mim fosse enterrada junto, e não sei
o que fazer com esse sentimento.
Um soluço estrangulado por ela é o único sinal de que está me
escutando. Subo meu olhar e reparo que os nós de seus dedos
estão brancos pelo aperto no tecido forrando a cama.
— Perdi meu irmão de vida. Meu parceiro. E não faço ideia do
que fazer com tudo isso. Mas uma coisa eu sei, Amália, Elliot
gostaria que eu tomasse conta de você, e é o que farei. Minhas
palavras talvez não tenham nenhum sentido agora, mas quero que
saiba que, a partir de hoje, estará sob minha proteção. A considero
parte de minha família, e eu protejo os meus. Posso ter falhado com
ele, mas com você, com você não falharei. Só queria que soubesse.
Levanto-me, porque a realidade é que não consigo presenciar
sua dor nem mais um minuto sem que isso acabe comigo.
— Ele deixou isto para você. — Retiro o envelope de dentro da
jaqueta e pouso ao seu lado na cama. — Era importante para ele.
Antes de sair, faço o que já deveria ter feito há alguns dias,
desde que a vi cair de joelhos diante do túmulo do cara.
— Você não está sozinha, Amália. Somos uma família e vou
sempre estar aqui. Se pudesse, arrancaria essa dor de você.
Extraio mais uma reação dela, ou melhor, o conteúdo sobre a
cama extrai. Seus olhos se fecham e uma respiração funda sobe e
desce o peito magro, então o olhar carregado de uma tristeza
indescritível foca o envelope.
No corredor, do lado de fora do quarto, me pergunto quantas
rasteiras da vida uma pessoa é capaz de suportar sem cair. Espero
que haja um número generoso, para o bem da menina.
AMÁLIA

Meus pés hoje me levam um pouco mais longe, onde eu ainda


não havia ido. Ensaiam perto da borda do lago de águas turvas. É a
primeira vez que chego tão perto. As gavinhas cobertas por
espinhos afiados sabem disto, sabem que nunca me aproximei
tanto. E em vez de se prenderem aos meus pulsos e pernas, como
normalmente fazem, desta vez me atraem para a água escura.
Quando me dou conta, garras estreitas e compridas puxam-me para
ele.
Estou em queda livre, caindo lentamente. Bolhas de ar saem
de minhas narinas enquanto avanço para o fundo, deslizando pelo
lodo esverdeado, resvalando nas algas.
Estou caindo e ele não está aqui para me ajudar.
Um pensamento me ocorre: o que o tapete faz com as
lágrimas que ele engole? Para onde as leva?
Isso importa?
Por que ainda estou respirando debaixo d’água? É um sonho?
Será que tudo não passa de um sonho?
Ou ele é que foi apenas um sonho desde o início?
Vou me afogar, mas ainda não sei como, se meu corpo está
apenas sendo levado para baixo, para baixo, para baixo e continuo
respirando.
Pelo menos consigo silenciar os gritos aqui debaixo. E a dor.
Lá em cima dói tanto!
— Elliot era um cara centenas de vezes melhor do que eu. Se
alguém merecia estar aqui, vivo, com certeza era ele.
O que essa voz que invade a água está dizendo? É como se
pensasse que tem opção. Não tem! As garras que arrancam as
coisas boas de nós não dão opções, elas apenas arrancam. Gostam
de ferir, de machucar, de provocar dor.
— Estou tão, tão furioso.
Também estou! É por isso que grito contra o silêncio. Grito até
perder a voz.
— É como se uma parte de mim fosse enterrada junto, e não
sei o que fazer com esse sentimento.
Também estou enterrada. Debaixo d’água. Estou enterrada
aqui, com as vozes, os gritos, as sombras, espinhos, as garras.
Pensei que nunca mais me pegariam.
Elliot era o único que conseguia me ajudar, mas ele não está
aqui.
— Estou sim.
— E-Elliot?!
— Olá, moy almás.
— Onde… onde está? Não consigo ver você!
— Consegue, consegue sim, malyshka. Por que não se senta
um pouco?
— Mas estou caindo.
— Tente.
— Como é possível me sentar em plena queda?
— Talvez porque a queda é uma escolha, pensou nisto?
— Você está sorrindo. Está sorrindo e eu consigo ver seu
sorriso.
Não entendo como, só que consigo. E é lindo. Seu sorriso
transforma o mundo, faz dele um lugar melhor. Elliot deveria sorrir
sempre.
Moy almás.
— Ei, fale comigo, moy almás. Diga o que está se passando
aqui. — Uma carícia roça minha têmpora.
Aperto os olhos para apreciar o contato, morta de saudade.
— Eu… senti tanto, tanto sua falta… estou sonhando?
— É possível que sim, por que não tenta sair daqui para
descobrir?
— Não posso… eu… aqui é seguro.
— Sozinha em um pântano, em vez de com eles, que te
amam?
Em um pântano? Não, esse lugar não é um pântano, é para
onde venho quando não suporto mais estar lá fora. Pântano é um
lugar feio e aqui é… aqui é…
— Não consigo respirar, Elliot.
— Na verdade, é bem mais simples do que parece. Tente,
puxe o ar com toda a sua capacidade, moy almás.
— Dói.
— Vai melhorar. Dou a minha palavra. Só respire, malyshka.
Posso fazer isso, posso tentar.
— Isso, respire. Apenas continue respirando. Isso mesmo. E
quando se sentir pronta, pode então sair daqui.
— Não posso sair! Aqui é… aqui é meu lugar seguro. — Por
que ele não entende?
— Olhe em volta, moy almás, como pode ser seguro se de
todos os lados há armadilhas para te manter presa nesse lugar?
Confie em mim, meu amor, você pode sair, vai ficar tudo bem.
— A-acho que não me lembro do caminho de volta.
— Então segure minha mão. Eu te ajudo. E quando estiver
fora, não olhe para trás, não volte mais. Você não precisa mais
desse lugar.
— Mas quando eu sair, você não estará mais aqui…
— Sempre vou estar. Além de quê, você me prometeu,
lembra?
“Promete para mim, Amália. Você lutará por sua felicidade
todos os dias, enquanto viver.”
— Não… não posso.
Ele está rindo? Deus, como eu amo sua risada.
— A promessa já foi feita, minha menina. Agora vá lá, cumpra,
por nós.
Elliot acha que consigo, está depositando sua fé em mim.
Preciso fazer, preciso sair e não olhar para trás, ele está me
pedindo.
Mas as garras se recusam a me soltar. Fincam firmemente
dedos de unhas pontudas em minha pele.
Debato-me contra elas.
— Me solte! — grito. — Vocês não podem me manter aqui!
Vocês… vocês não são mais fortes do que eu! — Puxo meus braços
com toda a minha força, provocando ondas que vibram sob a água
escura. — Não quero mais ser arrastada para cá! — brado a plenos
pulmões, e de repente simplesmente elas recuam, recolhendo suas
unhas afiadas, e submergem para dentro do lodo.
Elas perdem a batalha.
Com membros pesados pela água, vou rastejando para fora,
passo a passo, cada vez com mais dificuldade de respirar, mas eu
continuo. Por mim, por Elliot.
No quarto, tudo permanece igual. Exceto por passos saindo
pela porta. “Somos uma família”, diz Sebastian, deixando um
envelope grosso sobre a cama.
Encaro o volume por um tempo, mas não abro.
Abraço-o bem apertado contra o peito e me deito, exausta.
“Para onde sua mente te leva, quando se fecha em si,
Amália?” perguntou-me Dra. Saavedra uma vez.
Hoje acho que conseguiria responder o que não fui capaz na
época.
Ela não me leva, ela me arrasta para lá.
Para o pântano das armadilhas.
Para onde nunca mais voltarei porque prometi a Elliot.
Não sei por quanto tempo fico assim, deitada na mesma
posição, com a mente lúcida vagando pelas lembranças, até sentir
um corpo afundando o colchão ao meu lado. Braços macios me
envolvem num abraço quente. Penélope.
— Estoy contigo, mi hermana. Yo siempre seré[58].
ZHENA

— Bom dia, minha velha amiga! Como tem passado?


— Bem, meu amigo. E você? Conseguiu o que pedi?
Enquanto abre o porta-malas da van, os olhinhos caídos de
Boris sorriem por ele, gabando-se de sua eficiência em sempre
encontrar o que encomendo. Conheço o velho comerciante há pelo
menos três décadas e nunca falhou. Sua mágica acontece todas as
segundas-feiras religiosamente, independente de quão difícil seja de
encontrar o que preciso.
— Confesso que deu um pouco de trabalho desta vez, mas
aqui estão.
Ah, Maralnik, as flores selvagens rosadas da família do
alecrim, cuidadosamente embaladas em papel. Aromáticas e belas.
Vovó as descreveu como uma das plantas mais enérgicas já
encontradas. Para o corpo físico, servem como poderoso diurético,
ajudam no sistema imunológico, dores reumáticas, contusões,
fígado, entre mais alguns.
— Se me permite, posso saber por que precisa delas? Vieram
das montanhas da Sibéria, sabia?
Por cima do ombro, olho para a casa em luto.
— São para melhorar a energia, meu velho amigo, tratar
algumas dores da alma.
— Estão passando por momentos ruins, senhora? — cochicha
ele em tom pesaroso.
— Em algum momento da vida, não passamos todos nós?
— Sim, sim, a senhora tem razão.
Conviver com o luto é um sentimento que eu conheço muito
bem. Não que seja um grande feito, em minha idade seria um
milagre não ter vivido isso mais de uma vez. Já me despedi de pai,
mãe, irmãos, filha, genro, marido. E em cada uma destas perdas,
uma cicatriz foi aberta em meu coração de maneira diferente,
algumas tão profundas que ainda doem de vez em quando.
Minha única filha se foi dias após o parto, fraca e muito
deprimida, foi pega por uma meningite e não tentou resistir. Recém-
casada, havia perdido o marido enquanto ainda estava grávida. A
morte dele, por sinal, foi uma das mais tolas que já vi. Fazia a
segurança de um comércio de bairro quando tentou conter um
ladrãozinho franzino com metade de seu tamanho, armado com
canivete. Teve o azar de ser golpeado pela lâmina em uma artéria
importante. Perdeu muito sangue e morreu antes mesmo de chegar
ao hospital.
Ver minha filha partir foi um golpe e tanto. Pais não deveriam
enterrar filhos. Não é a lei natural da vida.
Filhos pequenos tampouco poderiam se tornar órfãos, como
aconteceu comigo. Fui deixada só nesse mundo muito cedo, aos
seis anos. Nessa idade, ninguém é capaz de se defender sozinho,
tampouco tem conhecimento das verdadeiras maldades do mundo.
E também existe a dor de perder o grande amor. Sua outra
metade. É diferente da de perder um filho, ou os pais, mas não dói
menos. Pelo contrário, deixa uma constante lacuna, um espaço
vazio que não pode ser preenchido outra vez, não importa quantas
pessoas venham antes ou depois.
Entristece-me profundamente que aquela criança tenha
passado por perdas duras sendo tão jovem. Entristece-me muito
também que ela e o garoto não tenham tido tempo de viver esse
amor.
As almas de Amália e Elliot certamente sangram por esse
desencontro tão triste.
Entro para preparar uma fusão com a Maralnik selvagem.
Preciso tentar fazer alguma coisa para ajudar. Esta casa nunca
esteve mais infeliz.
— Acha que o chá vai ajudar, prima?
— Piorar é que não vai, Merian. Além de quê, hoje bem
cedinho ela esteve na estufa regando os morangos, isso é um bom
sinal. Sinal de que está tentando.
— Mas nem tocou na comida. Desse jeito, vai ficar pele e
osso. Loupe passou um tempão lá com ela, só não consegui
entender o que diziam.
— Essa sua mania de escutar atrás das portas ainda vai te
causar problemas, Merian.
— Escutar o que se falavam em espanhol? Além disso,
aprendi com você, Zhena. — Merian cheira a infusão e aprova. —
Por falar nisto, descobriu o que o vnuk está tramando? Ele anda
muito quieto, isso não é um bom sinal.
— Sebastian não é mais um menino, prima. Se ele está com
ideias erradas na cabeça, não posso fazer nada, infelizmente. Foi
assim da outra vez, também, não lembra? Quando a noiva morreu.
— Mas agora ele tem a esposa, a filha. Tem que pensar nelas.
Afasto meus óculos para limpar as lentes grossas borradas de
vapor, refletindo a esse respeito.
— Ele pensa, prima Merian. Se não fosse pela espanhola e a
bebê, essa cidade já estaria debaixo de sangue.

— Posso entrar? — Aponto a cabeça na fresta da porta do


quarto da menina, sentada sobre a cama, fazendo sinal do que
estou pedindo.
Não saber falar o idioma dela é uma chateação imensa. Eu
deveria ter me empenhado em aprender com minha neta esses
anos todos, assim saberia me comunicar com essa menina.
Corro um olhar pelo quarto procurando o caderninho onde ela
costuma escrever, o avisto na mesma posição da última vez. Ela
não está escrevendo nada. Dá tristeza no peito vê-la assim, tão
fragilizada, tão infeliz. E o tal envelope continua fechado.
— Vnúchka, eu trouxe chá. — Entro de mansinho, mostrando a
xícara, e me sento um pouco com ela na cama. — El té es bueno[59]
— memorizei a frase no caminho para cá.
Coloco a xícara em suas mãos de dedos finos porque sei que
não vai conseguir me negar. Gesticulo para ela tomar.
— Beba, beba que faz bem para isso aqui ó. — Afago meu
peito.
Tateio o celular no bolso fundo do avental.
“Peguei a receita desse chá no livro. Ele ajuda com a dor da
tristeza”.
— Beba, vnúchka — incentivo.
Por respeito a mim, Amália beberica o líquido morno. Fica
evidente o esforço que faz. Está abatida, olhos fundos, rosto magro.
Se não se alimentar com urgência, certamente vai acabar caindo
doente.
“Gostaria muito que você fosse a um lugar comigo, se puder,
querida. Você só precisa vestir um casaco. Lá fora a temperatura
está caindo rápido”.
Ao ler, sei que pensa em recusar. É natural. Conheço esse
sentimento de só querer estar sozinha e ser engolida para longe,
por isso insisto. Essa menininha tão amável, doce e boa jamais me
negaria um pedido. Ela tem afeto por mim, tanto quanto tenho por
ela. E é a isso que me agarro para ajudá-la a sair desse lugar
doloroso. É o que ela precisa.
“Venha, minha neta, venha comigo”.
Abro seu armário e pego o casaco de lã mais grosso que
encontro, o garoto que deu a ela. Um cachecol também. E botas.
Amália precisa das botas. Ainda que com a lentidão de um corpo
agora velho, a ajudo com o casaco e ameaço me abaixar para
calçá-la, mas isso a criança não permite, mesmo na dor, preocupa-
se comigo.
Na garagem, ela apenas olha entre a velha Lada empoeirada e
eu. Acho que fica um pouco admirada que vou dirigindo.
Não costumo tirar o carro, mas hoje gostaria que fôssemos
apenas nós duas.
“É seguro” escrevo e não me contenho de dar uma risadinha
“Não dirijo desde 1995, mas me lembro muito bem como faz. Dizem
que é igual andar de bicicleta, a gente nunca esquece”.
Digito mais:
“Esse carro foi do meu marido, sabia? Ele era apaixonado por
essa lata velha”.
Aproveito-me que nenhum dos garotos está em casa, é claro.
Se me visse agora, meu neto tentaria me impedir de todo o jeito.
Sentada na pontinha do banco, de modo que meu pé alcance
o pedal e não fique escapando, vou guiando pelas ruas
esbranquiçadas pelo anúncio de nevasca a caminho. Vez ou outra,
preciso limpar as lentes dos óculos com os ombros porque estão
embaçando.
— Não tem sistema de ar, por isso os vidros embaçam —
explico, sem poder usar o celular agora.
Ainda que não entenda uma palavra do que digo, ela assente
com compreensão. Gentil, mesmo de coração partido, minha
criança.
O velho distrito mudou pouco, ainda existem edificações
baixas e acinzentadas, ruas vazias. Estar aqui mistura minhas
emoções. Tenho boas memórias, muitos risos, alegria; e memórias
terríveis de um tempo muito frio, da dor da fome no fundo da
barriga, da perda.
Estaciono o Lada marrom na guia em frente ao prédio em
ruínas. Décadas assim, mas com uma peculiaridade que o destaca
e já fez dele inclusive matéria de grandes jornais internacionais –
talvez seja o que inibe o governo de demoli-lo. Gente de longe vem
visitar. Pessoas curiosas pela atração inesperada do antigo bairro
do subúrbio.
A cada vez que vejo uma imagem do velho edifício, ou a
menção dele na televisão, sou arrastada para uma enxurrada de
sentimentos.
Preciso me concentrar ao reunir as palavras.
Vou falando para o celular e esperando a voz esganiçada do
robô tecnológico dentro do pequeno telefone traduzir por mim. Hoje
de manhã Ed me ensinou que se eu apertar o microfoninho e falar, o
site também traduz. Acho que nunca vou me acostumar com tanta
modernidade, embora venha me prestando um grande serviço.
— Vê esse prédio abandonado? Durante minha infância, aqui
foi o meu lar. Moramos no terceiro andar, papai, mamãe, eu e meus
irmãos.
Neste lugar estão as lembranças mais felizes de minha
infância. Papai, mesmo debilitado, fazendo-nos rir; mamãe amorosa,
cuidando de nós e de quem necessitava de ajuda; meus irmãos
correndo pelo apartamento. Nossos gritos de alegria faziam curva
pelos corredores.
Até que pouco a pouco, a felicidade foi sendo arrancada de
nós. Primeiro a doença dos meninos, meus irmãos mais velhos, que
os levou em pouco mais de seis meses de diferença um do outro,
quando tinham três e cinco anos de idade. Então, a saúde de papai
piorou depois de um pequeno corte no pé. Foram tempos bem
difíceis para mamãe e eu, sozinhas, em luto. Passamos muitas
dificuldades. Eram tempos horrorosos em toda a Rússia, na
verdade. Os empregos estavam escassos, mal fazíamos uma
refeição ao dia, e o frio…
Preciso esfregar meus braços, lembrando daquele frio que
congelava a alma.
… O frio castigava. Não tínhamos dinheiro para comida, muito
menos para lenha. Pouco a pouco mamãe foi queimando nossos
móveis para nos manter aquecidas. Comíamos sopas de tudo o que
pudesse ser cozido que encontrávamos na rua, nos lixos. Era uma
miséria completa e não só para nós, para todos. E quando pensei
que não poderia ficar pior, ficou, mamãe foi levada acusada de
heresia, porque mesmo na dificuldade, continuava a ajudar os
enfermos que iam atrás dela em nossa casa, com rezas e ervas.
Ali, no terceiro andar, uma menininha viu sua mãe ser
arrastada de casa e ficou completamente sozinha no mundo,
indefesa, incapaz de se levantar da cama, de tão debilitada pela
fome e tristeza. E o frio. O frio desesperador. Cada vez que meus
olhos se abriam, eu me admirava de ainda estar viva. Estava
apenas à espera da morte, e ela demorava a vir.
Um dia, não sei dizer depois de quanto tempo sozinha no
apartamento, ouvi passos no corredor. E a porta da frente sendo
arrancada. Pensei que finalmente alguém estava vindo ajudar, ou
melhor ainda, que pudesse ser minha mãe, que a haviam libertado.
Não era.
Um homem cheirando ao pior cheiro que já senti na vida
arrombou a porta com a única intenção de roubá-la para queimá-la e
se aquecer. Pedaço por pedaço, ele a arrancou a machadadas.
Depois revirou o apartamento praticamente vazio de móveis,
provavelmente atrás de qualquer coisa que pudesse comer, queimar
ou vender. E foi quando me encontrou, deitada no colchão no chão.
Tão magra que quase passei despercebida. Deus sabe o quanto eu
gostaria que ele não tivesse me visto.
Nunca tinha presenciado tanta perversidade. Roubou a
inocência de uma criança com a cólera de quem encontra restos de
comida do lixo, e só não me matou porque sabia que em breve isso
aconteceria naturalmente, eu suponho.
E mesmo com tudo que aquele homem fez, a morte continuava
resistindo em me levar.
Com muito medo de que ele retornasse, não sei como, reuni
forças para me levantar e sair do apartamento, levando comigo o
livro da mamãe. Lembro de me arrastar pela escada e chegar ao
jardim de verão centralizado no térreo, entre as quatro paredes do
prédio. De me sentar lá e ficar por um tempo apenas esperando.
Esperando. Esperando. Lembro também da luz do sol e de me
admirar com o calor dela contra minha pele acinzentada. De que
não havia uma única flor, mato, ou vida naquele pedaço de terra que
um dia havia sido um belo jardim. O chão estava seco. Acredito que
foi revirado por pessoas com fome também.
— A velhice apagou um pouco das memórias e deixou outras
meio confusas, sabe?
Abri o grimório e na primeira página havia anotações sobre
uma árvore muito poderosa que possuía a capacidade de proteger
as pessoas do mal. Na mesma página, ao lado, presas com alfinete,
estavam algumas sementes também. Eram de дуб[60].
Cavei um buraco bem fundo no chão com as unhas, até elas
quebraram. E quando não conseguia mais cavar, então depositei as
sementes, e as cobri com a terra.
Descanso o olhar nas ruínas do velho prédio, em especial os
galhos grossos que ao longo dos anos subjugaram e invadiram o
que um dia foram janelas, corredores, telhado, e se estabeleceram,
impondo a vontade soberana da natureza. A extraordinária árvore
de vinte metros que cresceu dentro de um prédio abandonado,
reduzindo-o a um mero vaso de planta.
— Essa árvore tem mais de setenta anos. Fui eu que a plantei,
Amália. Sempre que a vida me passa uma rasteira, tenta me
derrubar, venho aqui para olhá-la. Gosto de pensar que sou como
ela, que não importa o que aconteça, ainda estou em pé.
Os olhos clarinhos da criança enchem-se de lágrimas,
surpresa com tudo o que conto. Continuo falando com o tradutor e
esperando que a voz explique a ela:
— Quando minha filha morreu, quis morrer também de tanta
tristeza. Anos depois, veio o baque de perder meu marido. Como eu
amava aquele velho, querida. Como eu amava. Vyacheslav era
protetor, carinhoso, dedicado. Depois que o conheci, nunca mais
senti medo nesta vida. E sabe de uma coisa? Tenho quase certeza
de que ainda está de olho em mim, zelando lá de cima. Vyacheslav
gostaria de me ver feliz. Minha tristeza o deixa triste, é isso o que
digo a mim mesma quando a saudade aperta.
Esfrego as mãozinhas pálidas da menina, gelada, dedos
magrinhos demais.
Uma lágrima grossa escorre pelo rosto fino. Limpo com todo o
meu afeto.
— Elliot a amava com tudo de si também, querida. Aquele
rapaz teria dado a vida por você, para vê-la bem e feliz. Infelizmente
o destino tem uma mão pesada às vezes. Mas por eles não
podemos quebrar. Por quem amamos, devemos lutar para
permanecer em pé, tal qual aquele carvalho, sabe? Resiliente, forte.
A criança desaba em meus braços, chora copiosamente tudo o
que não a vi chorando ainda. Ombros magros sacodem pelos
soluços. Amparando-a com meu amor, observo a árvore pela janela.
Viva, indestrutível.
Somos como o carvalho. Acredito nisso com toda a minha
alma.
SEBASTIAN

— Se aquele bastardo estivesse aqui ia acabar com a gente —


verbaliza Ed, incomodado, observando da janela alguma coisa lá
fora que impõe um aperto em sua mandíbula. — Estamos fazendo
um trabalho de merda em cuidar dela.
Sei a que se refere, compartilho de sua opinião, mas evito
tecer um comentário. Ver Amália perambulando pela casa feito um
zumbi não é uma visão fácil. É um maldito lembrete de que
falhamos na única missão que o cara nos designou.
A dor da menina pode ser sentida à distância. E essa merda
não é algo que possa ser resolvido com uma ação minha ou de
qualquer um de nós.
Estou exausto de me sentir um pedaço de lixo incapaz.
— Ela já abriu o envelope? — questiona Bola, com um mau
humor dos diabos nos últimos dias. Todos nós estamos, sendo justo.
— Não — responde Ed, por mim. — Está montada na grana,
herdou mais dinheiro do que é capaz de compreender, e ainda não
sabe, porque se recusa a abrir a maldita coisa. Até aquele pivete
imbecil já sacou a grana que Elliot deixou para ele.
— Yulian é um idiota — resmunga Bola.
Afastando-se da janela, Ed se senta em uma das poltronas do
escritório.
— E então, agora que temos isto, o que exatamente vamos
fazer?
Giro a bebida em meu copo observando a imagem congelada
à minha frente. Em um quarto da tela, Elliot e um dos malditos de
Brejnev atravessam o saguão do hotel em direção à saída, a maleta
com as ogivas na mão do sujeito.
Obter a sequência de gravações deu um pouco mais de
trabalho do que esperávamos. Como constamos bem depressa, os
registros das câmeras de vigilância do Empire Internacional não são
armazenados na filial de Teerã. Um único servidor recebe e guarda
os dados de toda a rede global de hotéis, e ninguém sabia ao certo
a localização da maldita coisa, não importa os métodos que Bola
tenha tido de empregar para arrancar a informação de cada infeliz
pelo caminho. Descobrir a pequena empresa de tecnologia em
Kosovo levou alguns dias, e invadi-la, alguns minutos.
E agora temos tudo, inclusive o que a câmera nos fundos do
hotel captou naquele dia.
— Nasser ad-Din, vivo, quem diria. — O vestígio da bebida em
minha boca amarga enquanto encaro o braço direito de um dos
senhores da guerra, supostamente morto, entrando em um Bentley
blindado nos fundos do prédio.
— É mesmo ele? — inquire Ed.
— O sistema de reconhecimento facial confirmou — diz Bola.
— Elliot provavelmente o reconheceu também.
— Acha que o Kremlin ou mesmo os americanos sabem?
— Claro que sim — Bola dá voz aos pensamentos de todos
nós. — Esses desgraçados sabem tudo.
— Pelo menos agora temos a confirmação de que a entrega
aconteceu, e quem forneceu. — Ed desliza as mãos pelas coxas,
inclinando-se para frente na poltrona, respirando fundo. A aparência
tão miserável quanto a de qualquer um de nós. — A questão é: o
que deu errado dentro daquela aeronave? Sabemos que o disparo
foi pelas costas. Se a intenção era acabar com ele desde o início,
não era mais inteligente fazer em solo? As vidas de todos estavam
nas mãos do cara, afinal.
Levanto-me, sentindo o sangue percorrer meu corpo com a
ferocidade que tem se tornado constante nesses últimos dias.
Reabasteço o copo com uma nova sede, muito mais voraz.
— Tem outra coisa que está me intrigando tanto quanto isso.
— Limpo a boca com o dorso da mão, familiarizado com essa nova
energia, de certa forma até grato por ela. — Jurgen diz que não
encontrou as ogivas nos destroços. Ou mentiu, ou há algo que nem
mesmo ele sabe. Precisamos descobrir o que aconteceu com elas,
aquelas merdas não evaporaram no ar.
— Você ainda tem dúvida de que o maldito francês está
omitindo alguma coisa? — Bola se exaspera. — Por que outra razão
se negaria a entregar a caixa-preta e fica se escondendo de nós?
Eu disse que ele é uma víbora.
— Meu contato pediu mais alguns dias para botar as mãos
nisto.
— O problema é que já esperamos demais, Ed — digo, calmo,
calculando tudo o que temos até aqui. — E quanto à lista dos
homens contratados por Vladimir naquele voo, alguma informação
útil do bosta do Yuri?
— Yuri Brejnev não sabe quem são. — Um sorriso diabólico
corta a boca do cara, enquanto confere as próprias unhas curtas. —
E olha que, com o tratamento que dei a ele teria entregado até a
própria mãe.
Ed é um dos melhores em arrancar informações de quem quer
que seja. No relatório sigiloso das Forças Armadas a que tivemos
acesso clandestinamente, foi descrito como um sociopata incapaz
de se sensibilizar com a dor alheia. Era um ponto positivo em sua
personalidade, de acordo com os oficiais do alto comando. E algo
do qual ele se gaba com a gente sempre que pode. O fato de não
ter um coração.
— Aquele verme mereceu, e tem que agradecer por
permitirmos que ainda viva — grunhe Bola. — Elliot foi burro pra
caralho em fazer uma aliança com um rato daqueles.
— Ele não entregou Elliot ao tio, disto estou certo — afirma Ed.
— O idiota não tinha mais medo de Vladimir do que tem de nós.
Não consigo desgrudar os olhos da tela. Meu amigo, meu
irmão, em seus últimos momentos de vida. Essa merda não está
certa. Por mais que eu tenha visto seu corpo incinerado, que o
cordão militar dele esteja sobre minha mesa, e que tenhamos feito
seu funeral, essa merda toda não está certa.
— Tem alguma coisa que não estamos enxergando. — Cravo
meus olhos na imagem do saguão congelada.
— No que está pensando? — inquire Ed.
— Nisso. — Viro a tela para que os caras também a vejam. —
Esse cara — bato com as pontas do dedo no desgraçado ao lado de
Vladimir —, quem é esse maldito, que não sabemos nada a
respeito?
— O resultado do programa de análise facial deu impreciso —
lembra-me Bola. — Provavelmente é alguém que conseguiu se
manter fora do radar.
— Com esse tamanho? — Ed aponta o óbvio. — Porra, olhem
bem para ele, a estatura do miserável. Elliot é um cara grande, forte
pra caralho, pelo que sei beira 1,90m. Mas a montanha ao seu lado
consegue ultrapassá-lo em cerca de uma cabeça e meia e uns bons
cem quilos. Ninguém desse tamanho consegue ficar fora do radar,
meus amigos.
Porra.
— É isso. — Aquele instante de clareza eletrizante vibra minha
pele. — Procure por alguém com essas características físicas no
sistema, Bola. Deve ter alguma coisa.
Dedos gordos e ágeis deslizam pelo teclado de seu próprio
notebook com precisão cirúrgica, sabendo exatamente onde
procurar. Roubamos esse sistema dos federais e o aperfeiçoamos
há alguns anos para nossa própria utilização, o transformamos
numa espécie de sanguessuga de dados das principais agências.
Não o usamos mais com tanta frequência porque as coisas estavam
calmas e todo mundo concordava que era hora de nos
aposentarmos dessa merda. Mas você nunca pode dizer que é o fim
de alguma coisa, até que realmente seja.
Em poucos minutos, numa explosão de adrenalina, Bola bate
na mesa.
— Peguei você, gigante filha da puta! — Gira sua tela para
nós, compartilhando a descoberta. Um rosto duro com mais da
metade coberta por uma barba longa, alcançando abaixo do
pescoço, o que certamente confundiu o sistema de reconhecimento,
mas é ele. — Mikhail Petrovsky. Bielorrusso de Mogilev. Paramilitar.
Já fez parte do grupo de segurança especial de Lukashenko há
cinco anos. Acusado oficialmente por terrorismo contra o próprio
governo de Lukashenko, nos ataques que antecederam as eleições
do ano passado.
— “Ataques que antecederam as eleições” — bufa Ed, irônico.
— Todo mundo sabe que aquilo não passou de uma grande
encenação de Lukashenko. Esse Petrovsky deve ter embolsado
uma boa grana para fazer parte do teatro.
Uma suspeita me faz inclinar mais para frente na poltrona,
mais perto da imagem do miserável.
— Busque quem mais estava com ele nesse atentado. Aposto
meu braço que há um grupo e estão juntos no serviço para Brejnev.
No alvo.
Um a um, outros quatro nomes vão aparecendo, suas imagens
e informações.
Meu coração mete porrada no peito quando meu olhar recai
sobre um deles, especificamente. Suas características. Suas
habilidades.
— Estão vendo o que estou vendo?
Pelo silêncio sepulcral que se apossa do escritório, é bem
possível que sim, chegamos juntos à mesma conclusão.
— Precisamos tirar essa merda a limpo — digo, mais
energizado do que nunca.
— Vou preparar tudo. — Bola se levanta.
— Só não me peçam para ficar desta vez — assevera Ed,
adiantando-se.
Detenho-o com um olhar.
— Preciso de um de nós aqui, cara. — Um pedido honesto,
embora consciente do quanto o contraria.
— Bola pode muito bem ficar — refuta Ed, inflexível.
— Nem pensar. Prefiro levar uma bala. — O grandalhão trata
de tirar o dele da reta. — Não tenho jeito para lidar com elas, todo
mundo aqui sabe.
— Eu tampouco.
— Ah, você tem — zomba Bola. — Especialmente com a
doutora.
— Cale a boca, idiota — mas não vejo Ed contestando essa
afirmação.
AMÁLIA

Dar um passo de cada vez é difícil quando não se vê muito


sentido nas coisas. Todas as manhãs, obrigo-me a levantar da cama
e enfrentar um novo dia como se ele pudesse ser diferente do que
foi ontem. Só que basicamente nada muda. O buraco dentro do meu
peito, tão grande que às vezes acho que é capaz de me engolir, não
cede. A dor não cessa, o vazio não se preenche, e olha que estou
tentando. Com todas as minhas forças, estou tentando continuar
pois é o que Elliot gostaria, prometi a ele. E tem a vovó, Loupe, Sol,
tia Merian.
Estico o lençol, a colcha, arrumo os travesseiros. E deixo o
envelope no mesmo lugar. Não consigo abrir. Abrir significa que é
real, que ele não vai voltar.
Um pensamento me angustia. Será que falei o quanto o amo,
falei o bastante? Falei que ele foi a resposta de orações que eu nem
mesmo me atrevi a fazer? Que ressignificou coisas para mim que
antes pareciam impossíveis de suportar, como o anoitecer por
exemplo? Durante todos aqueles anos, tive verdadeiro pavor do
anoitecer, pois com ele vinham os monstros. Mas, depois que vim
para cá, que passamos a dormir juntos, eu ficava esperando
ansiosamente a chegada da noite só para me deitar em seus
braços.
Não consigo me lembrar de ter dito, e isso está doendo
demais.
Desço, ajudo a babushka na cozinha; cuido da horta; esforço-
me para manter conversas com as pessoas que encontro ao longo
do dia; vou à aula de idioma; brinco com a Sol de Maria – ficar com
ela é um sopro que anestesia todo o resto. O dia termina. Confronto
a vontade desesperadora de me cortar e mais um dia ganho dela –
embora ainda tenha a mania de me beliscar. Não consigo evitar. E
porque não estou mais me cortando, me beliscar se tornou
recorrente. Deito na cama; finjo que durmo, esperando pela hora de
me levantar e fazer tudo de novo.
Exatamente igual.
Desistir é tão tentador.
Só que ele odiaria.
Elliot odiaria saber que estou pensando nisto.
Fecho os olhos apertados e luto para respirar contra a brasa
queimando em meu peito. Só respire. Respire e continue
respirando.
— Hm, oi, Am… — diz Penélope, depois de uma batida suave
na porta.
Abro os olhos e me envergonho um pouco pelo que ela pode
ter testemunhado em meu rosto.
— Oi.
— Pensei que estivesse descansando. Você está bem? —
pergunta suavemente, inspecionando-me com aquele toque de
preocupação que, sem intenção, me faz sentir culpada.
— Aham. Estava fazendo os exercícios que a professora
recomendou e… — Deixo o resto da mentira morrer na boca. É só o
que tenho feito ultimamente, ser uma mentirosa sobre o que estou
sentindo.
E ela sabe disto, sabe e não contesta. Por isso, a amo.
Penélope não me confronta sobre eu sequer ter aberto o caderno
hoje.
— Você tem visita, lá embaixo.
Franzo a testa, confusa.
— Yulian, irmão do Elliot — explica ela.
Uma parte do meu cérebro tenta se lembrar dele, seu rosto, o
que disse na única vez em que nos vimos. Não exatamente na
última, porque a última foi no funeral e tudo o que consigo guardar
daquele dia horrível é a dor excruciante.
Elliot se importava com Yulian. Contou que se considerava
responsável pelo irmão. Me sinto um pouco egoísta por não ter
parado para pensar nele, que provavelmente também está sofrendo.
— Coloque um casaco, para o caso de irem lá fora, Am. Está
um frio dos diabos.
— Tudo bem, obrigada, Loupe.
Ela ainda hesita em me deixar. Tem feito muito isto e talvez
nem perceba.
No modo mãe, me alcança o casaco antes de sair. Coloco-o, e
uma touca na cabeça. Não pelo frio. Só quero me esconder.
— Hm, ei, aí está você! — cumprimenta Yulian, próximo ao pé
da escada. As mãos enfiadas nos bolsos do moletom canguru,
parecendo meio perdido, sem saber direito como falar comigo.
— Oi, Yulian.
Ele ameaça me dar um tipo de abraço desengonçado, mas
desiste no último momento.
— Estava aqui perto e decidi parar para ver como vão as
coisas. Você está bem?
— Ah… eu… estou, obrigada. — Enfio minhas mãos nos
bolsos do casaco também, encarando o All Star em meus pés. — E
você?
Yulian chuta um obstáculo invisível no chão.
— Levando, sabe como é.
— É, sei sim.
— Quer dar uma volta?
— Hm… eu… — antes que eu consiga encontrar uma
desculpa, ele se antecipa:
— Tô precisando conversar um pouco.
Tudo em mim só quer voltar lá para cima, mas eu o entendo.
Sei como se sente, porque também estou assim.
— Tudo bem, podemos ir. — Encolho o ombro.
Pensei que seria só uma volta no quintal, no entanto, ele
aponta um carro preto com duas faixas vermelhas na lateral, que de
alguma forma combina com ele, embora eu não entenda nada de
carros.
O garoto de cabelos loiros bem cheios e um rosto jovem dirige
de maneira descontraída, apoiando o cotovelo na janela, segurando
o volante com apenas uma das mãos, indo devagar, contemplando
o passeio. Lá fora, algumas pessoas que eventualmente passam na
rua dão uma segunda olhada para o carro.
— É bonito. — Gesticulo com a mão dentro das mangas do
casaco de lã preto, em volta.
— Ah, bem, é novo. Comprei há três dias, na verdade. É um
Mustang GT tunado. As listras vermelhas mandei colocar ontem. —
A animação morre de repente, quando ele inclina a cabeça,
pensando por um momento. — Sei o que pode parecer, perdemos
ele há uma semana e já estou torrando a grana que me deixou, mas
não é assim, entende? Tô mal por meu irmão, mal de verdade.
Parece ansioso em me deixar saber, como se tivesse medo do
meu julgamento.
— Entendo. — Encaro a janela, pensando que não me passou
pela cabeça julgá-lo. Cada um lida com a dor da maneira que
consegue.
O silêncio que recai em seguida de certa forma se torna
confortável para os dois, enquanto ele pega o caminho por ruas
movimentadas. Deixo minha mente vagar agradecida por isso.
— Você não é muito de falar, né? Notei aquele dia.
— Desculpe — peço, sem ter outra coisa melhor para dizer.
— Não, quê isso. Te entendo, tem gente que é mais quieta
mesmo. Nesse ponto, você e meu irmão são muito parecidos, se
quer saber. O El também era de falar pouco. Quero dizer, isso você
sabe, afinal era amiga dele. Vocês conversavam bastante? — Seu
olhar ansioso sai do trânsito e vem para mim.
Não sei o que espera que eu diga.
— Elliot é a pessoa com quem eu mais conversei na vida —
respondo honestamente, em seguida mordo a carne da bochecha
bem forte para distrair a sensação de brasa na garganta. As
conversas até adormecer nunca mais acontecerão. Dói tanto que
quase penso que vou sufocar. Abaixo a cabeça e encaro minhas
mãos apertadas.
— Comigo, não. A gente mal se via, não sei praticamente nada
sobre a vida dele. — Um pesar maduro toma conta de sua voz. —
Acho que eu era um estorvo. Só dei trabalho para o meu irmão
desde que me entendo por gente.
— Ele estava orgulhoso de você — falo a única coisa em que
consigo pensar. — Pelo emprego. Deu para ver naquele dia.
Yulian ri sem vontade.
— Por aí se vê que ele já estava de saco cheio. — Sacode um
ombro, em autodepreciação. — Meu irmão sempre cuidou de mim, e
sabe o que fiz em troca? Um monte de merda. Só causei problemas
até o fim. E El nunca me deixou na mão.
Porque ele era um protetor, um homem nobre, bom, e mesmo
assim foi levado. Onde está a justiça nisto? Qual o sentido de levar
as pessoas boas, quando esse mundo já está tão cheio de gente
perversa?
Finco as unhas fundo contra as palmas e mudo meu rosto em
direção ao movimento acontecendo do lado de fora da janela, para
que Yulian não testemunhe essa coisa ebulindo aqui dentro, me
devorando como uma fogueira. Não é só dor… é… é uma… uma
raiva muito grande. Uma raiva que eu ainda não havia
experimentado na vida, que crepita, me faz querer gritar até
explodir.
Será que a vida não se cansa de ser tão injusta?! Tão… tão
horrível?!
— Podemos voltar?
Yulian se sobressalta, não esperando pelo pedido, meio
surpreso com o tom angustiado de minha voz. Não quero descontar
nele esse sentimento feio… só quero… ficar sozinha.
— Nossa, me desculpa ficar te falando essas coisas, desculpe
mesmo, Amália. Não quis te aborrecer, você também está mal, dá
para ver e…
— Não, não é você. É só que — nem sei pôr em palavras. Só
tento respirar bem fundo e ver se isso ajuda a fazer meu coração
parar de bater tão rápido. — Eu que peço desculpa por não ser uma
boa companhia, Yulian.
Em vez de se irritar, ele sorri com resignação.
— Também não venho sendo ultimamente, para ser sincero.
Acho que por isso quis te ver, queria estar com alguém que
entendesse um pouco dessa droga, também. — O garoto de
cabelos claros sacode a cabeça com tristeza. — Meu irmão era
minha única família e… droga, estou me sentindo tão sozinho agora.
Essa revelação me obriga a resistir ao caos acontecendo
dentro de mim. Entendo o que o irmão de Elliot está dizendo,
conheço esse sentimento intimamente. Durante muitos anos, uma
década, eu só tive a solidão como companheira. Mas até nisto Elliot
foi bom comigo, ele me deu uma família. Pessoas em quem me
apegar quando desabar de vez se torna tão tentador. Pessoas que
amo de verdade e sinto que me amam também.
— Sinto muito. — Com lágrimas empoçadas querendo cair,
olho para ele. — Do fundo do coração, Yulian.
— Droga, a gente vai acabar chorando, não é? — Ele ri, só
que também tem os olhos marejados. — É melhor pararmos e dar
uma volta por aí. Você já comeu?
— Acho que nem consigo. — Prendo os lábios, me
desculpando outra vez.
— Eu também não. Tem umas galerias bem legais nessa rua,
só vou achar uma vaga e a gente desce para espairecer um pouco.
Respiro fundo.
— Tudo bem.
Praticamente em silêncio, caminho lado a lado com Yulian por
um centro comercial voltado para o comércio de artesanatos de todo
tipo, e uma cafeteria pequena. Há lojas de quadros em pintura a
óleo, de esculturas de madeira; vasos de cerâmica; pequenas
bonecas umas dentro das outras.
Um senhor sentado do lado de fora de uma vitrine rabisca em
um grande bloco de papel uma caricatura engraçada de uma
criança brincando com um cachorro. Ele sorri para nós e diz alguma
coisa, que faz Yulian sacudir a cabeça.
— Está perguntando se pode fazer nosso retrato — diz Yulian.
— Acha que somos um casal.
— Hm… obrigada por traduzir. — Minhas mãos estão enfiadas
nos bolsos, a touca enterrada na cabeça.
— O El contou como foi que aprendemos espanhol?
— Na verdade, não.
— Ele obviamente era poliglota, falava sei lá, umas seis
línguas diferentes. Mas o espanhol aprendemos juntos, com nossa
avó nas docas.
Fico aliviada por Yulian não perceber o punho se fechando em
meu estômago por estarmos aqui falando de Elliot no passado,
desse jeito. Uma parte de mim só quer voltar para casa, para o
quarto, ficar sozinha.
Mas outra anseia por ouvir histórias sobre ele, coisas que não
teve tempo de me contar. De alguma forma, conforta. Ameniza a
dor.
— Vovó fugiu para a Espanha com um namoradinho quando
era jovem, antes de se casar com nosso avô. Ele e meu pai
detestavam essa história, esse idioma, tinham ciúmes do passado
dela, mas quando a gente ia passar férias com eles, vovó ensinava
Elliot e eu, secretamente. — Seus passos param, obrigando-me a
parar também. — O El te falou sobre nosso pai?
Espreito seu rosto antes de dizer alguma coisa, de revelar que
Elliot me contou o que fez.
Yulian encara meu silêncio como uma negação.
— Não é uma história que valha a pena contar, de qualquer
forma. Houve um acidente com a arma de caça, meu pai morreu e o
El estava lá. Depois daquilo, as coisas ficaram um pouco estranhas
em casa. Não é como se a morte de Egor Shumov fosse uma
notícia ruim para todos nós. Mesmo pirralho, eu sabia que um pai de
verdade não deveria tratar sua família do jeito que ele tratava a
nossa. Mas o El, de alguma forma, mudou com aquilo. Ele
rapidamente assumiu meio que um papel de pai comigo… — Suas
bochechas ganham um tom constrangido de vermelho. — E acho
que acabei me escorando nisso por tempo demais, aceitei ser um
peso na vida do meu irmão e não fiz nada para facilitar.
Não digo nada.
Só fico pensando que enquanto ele cuidava do irmão, de mim,
dos amigos, quem é que estava lá para apertar sua mão no fim,
quando aquele avião caiu?
Sei que esses pensamentos não levam a lugar algum, só me
engolem no espiral de dor e raiva, no entanto, não posso evitar.
— Você deve estar me achando um merda, né?
Esforço-me para não descontar o amargor que não tem nada a
ver com Yulian.
— Não, não estou… — Lambo o lábio seco enquanto minha
cabeça organiza o que dizer. — Sinceramente, acho que é uma
coisa positiva que seja capaz de admitir para si mesmo essas
coisas. Demonstra que é uma pessoa boa, no final das contas. Do
seu jeito, acredito que também o amou.
— Uau! — Mostra-se admirado. — Essa é a frase mais longa
que já me disse hoje.
Um sorriso involuntário repuxa meus lábios.
Yulian pode ter sido egoísta em sua posição de irmão mais
novo e protegido, mas dá para ver que amava Elliot. Ele é do bem,
seu olhar diz isso.
Se a convivência com os Molina me ensinou alguma coisa, foi
reconhecer a diferença.
— O que foi? — pergunto, estranhando a expressão confusa
em seu rosto.
— Nada. — Engole em seco. — É só que é a primeira vez que
te vejo sorrindo e… — Yulian dá um passo mais perto, focado, e
bem devagar vem inclinando sua cabeça para baixo, aproximando-
se de mim de um jeito desconfortavelmente estranho.
Dou um passo para trás, em alerta, mas ele continua vindo.
Uma onda de calor queima dentro dos meus ouvidos. Por puro
instinto, simplesmente reajo.
Não reflito sobre fechar a mão em punho e o acertar com toda
a minha força no nariz.
É tão rápido que o pega totalmente desprevenido. E a mim
também.
Yulian leva as mãos ao rosto e solta um gemido de dor
abafado.
Olhos enormes encaram os meus, lacrimosos.
Dando um passo para trás, esperando sua reação, e
imensamente surpresa com a minha própria, minha boca se move
por mim:
— Eu… eu não quero ser beijada.
— Caramba, isso doeu! — Não há irritação em sua voz quando
tira as mãos do nariz, só um total e completo espanto. — Foi meu
irmão que te ensinou a bater assim?
— Foi.
— Ele fez um bom trabalho. — Mexe no nariz de um lado para
o outro, se certificando de que não quebrou.
AMÁLIA

— Se continuar despejando água desse jeito, a pobre planta


vai morrer afogada — diz uma voz forte e calma, me pegando
completamente de surpresa.
O regador escapa da minha mão ao mesmo tempo em que me
deparo com Ed bem ao meu lado na estufa, todo de preto como
sempre, o que destaca o cabelo e a camada de barba ruivos.
— Não ouvi você entrando — digo baixo, pegando o utensílio
do chão.
— É minha especialidade — interpreta como um elogio.
Fecho a boca numa linha, um pouco desconfortável com sua
presença.
— A velha Zhena não te falou nada sobre a quantidade de
água nessas coisas?
Sinto meu rosto esquentar.
— Eu me distraí — admito, na defensiva.
— Relaxe, só estou brincando, Amália — diz com um toque de
zombaria. — Por mim, elas podem morrer afogadas que nem ligo.
Não gosto de… — olhos bem azuis inspecionam a planta com ar de
nojo —… do que quer que isso seja.
— Rúcula.
— Menos ainda. Por mim, salada é um desperdício de espaço
no prato. Tira o lugar que poderia ser ocupado por mais carne.
Não entendo muito bem por que ele está aqui me dizendo
essas coisas. Na verdade, tive a sensação de que Ed esteve me
evitando nos últimos dias, o que agradeci mentalmente.
— Gostaria de alguma coisa? — pergunto encarando a gola
alta de sua camiseta de mangas compridas, evitando o olhar afiado
que me inspeciona.
— Sim, que subisse e vestisse uma roupa de treino. E tênis.
— Desculpe? — Confusa, finalmente o encaro. É a última
coisa que eu esperava ouvir dele.
— Vamos treinar, Amália. Você e eu. Está sem se exercitar
desde… enfim. Já é hora de voltar a se movimentar.
Mais calor envolve agora meu pescoço e atrás das orelhas.
— Estou me movimentando — defendo-me, meio aguda
demais.
Uma sobrancelha ruiva se levanta.
— Andando de casa para esta estufa todo dia?
Retiro lentamente as luvas de borracha sujas de terra, dedo
por dedo, tomando tempo de respirar fundo.
— Desculpe, Ed, mas não quero treinar. Obrigada.
Ele sorri de um jeito indolente.
— Ah, o maldito gênio espanhol. Cheguei a acreditar que não
se aplicava a você, mas aí está. Todas iguaizinhas. Eu me pergunto
se há algo na genética espanhola que faz ficarem com a ponta do
nariz vermelho quando estão irritadas.
— Não estou irritada. — Movida por aquela coisa pesada e
raivosa começando a ebulir, jogo, um tanto rude demais, as luvas
sobre a mesa no centro da estufa.
Arrependida, as ajeito uma sobre a outra logo em seguida.
— E eu sou um monge. Você tem dez minutos. — Ele confere
o relógio.
— Realmente não quero fazer exercícios, Ed — o que deu
nele?
Recebo um olhar profundo e determinado.
— Elliot pediu que eu cuidasse de você, e é o que vou fazer,
Amália. Ele estava te treinando, não estava? Pois bem, vamos
continuar de onde pararam.
Minha boca se abre, mas som algum sai dela. Minha mente
simplesmente fica em branco sem ter um argumento.
Ed se aproveita disto para sair.
Da porta, vira-se sobre o ombro.
— E Amália.
— Sim?
— Da próxima vez que for bater em alguém maior do que
você, acerte-o na traqueia. No nariz, só servirá para irritar seu
agressor.
— C-como sabe?!
Sua expressão convencida diz tudo. Ele estava seguindo a
gente.
— Yulian é um merdinha mimado. Elliot deveria ter dado uma
lição nele há muito tempo. — Antes de sair totalmente, diz algo que
consegue me emudecer de vez: — A propósito, ele ficaria orgulho
de você. — Vendo meu estado, sorri maquiavélico. — Agora,
apresse-se, restam oito minutos.
Por alguma razão que não sou capaz de explicar, acatei o
pedido de Ed. Nesse momento me vejo descendo para o porão logo
atrás dele. A calça escura de material grosso que ele vestia deu
lugar a um moletom, só não mudou a cor. Acho que Ed gosta muito
de preto.
Espanto-me com a academia montada em um espaço amplo
ao lado da garagem. Há dois sacos de bater pendurados no teto e,
em outro lado, esteira, bicicleta, pesos. Parece que Sebastian tem
tudo o que precisa aqui.
— A maioria desses equipamentos estava na garagem do
Bola. Peguei lá ontem à noite. — Move-se para o tatame no chão.
— Antes de mais nada, preciso alertar que não sou um professor
tão mole quanto Elliot. E isto posto, devo falar que haverá regras.
— Regras — repito baixinho, assimilando.
— Exatamente. — Apesar de impassível, dá a sensação de
que uma pequena parte dele está até se divertindo. — Um: a aula
só acaba quando digo que ela acabou. Dois: corpo mole resultará
em penalidade, neste caso, poderão ser flexões de braços,
polichinelo ou talvez abdominais extras, irá depender do meu humor.
— Mas a gente não fazia nada disto — digo. — Era só o… —
Aponto com o queixo para o saco pendurado no teto.
— Como eu disse, não sou tão benevolente quanto ele. De
nada adianta saber bater, se seus braços têm a força de gravetos.
Sem ofensa.
— Não ofendeu — talvez um pouco.
— E por último: concentração total. Aqui embaixo será tudo
sobre o que estamos fazendo. Qualquer outro pensamento, deixe lá
em cima. Fui claro?
— Parece que sim…
— O que disse? — Inclina o rosto de lado, levando bem a sério
essa coisa de professor.
— Que tudo bem, Ed.
— Ótimo. Vamos começar com um aquecimento. Pegue essa
corda, na estante atrás de você, segunda prateleira de baixo para
cima.
Faço o que ordena sem questionar. Tenho a sensação de que
quanto mais eu for colaborativa, mais rápido essa situação estranha
vai terminar, já que me deixar em paz não mostrou ser uma opção.
— Sabe pular corda?
Encolho os ombros.
— Eu pulava, quando criança.
— Ótimo. Cinco minutos pulando, começando agora.
Atrapalho-me no começo, demorando a dominar a
coordenação de mãos e pernas. Ed programa o tempo em seu
relógio.
— Tem falado com a doutora? — ele acha de perguntar,
enquanto me divido entre pular e tentar respirar.
Desconfio que Ed sabe a resposta. Tenho evitado a Dra.
Saavedra. Não ela, mas fazer uma sessão, embora todos os dias
minha terapeuta se mostre disponível para conversar. Ela continua
hospedada aqui, interagimos, às vezes passeamos pelo lago, mas
ainda não estou pronta para falar com ninguém. Nem saberia por
onde começar.
— Falar ajuda — diz ele, fingindo prestar atenção no visor do
relógio.
Depois do aquecimento, vou com ele para o centro do tatame.
Ed dá algumas orientações sobre a posição do corpo, quadril,
pernas, sem divergir em nada do que Elliot também ensinou.
A falta esmagadora que sinto dele chega a doer fisicamente. É
dilacerante.
— Regra número três, Amália — alerta Ed.
— Tudo bem — consigo dizer depois de engolir com
dificuldade o nó em minha garganta.
Ed enfaixa meus pulsos e mãos, fingindo ignorar as cicatrizes.
Silenciosamente o agradeço por isso.
— Bater no saco é diferente de bater em alguém, como deve
ter percebido. Aqui é para extravasar, além de aprender algumas
técnicas. A aula sobre derrubar um adversário real será amanhã.
Olhe para os meus movimentos e repita, mão de trás: guarda. — Ele
levanta as duas mãos em punho na altura do rosto, demonstrando.
— Mão da frente, jab. — Leva a mão direita contra o saco indo e
vindo. — Vamos lá, guarda; jab; guarda; jab.
Guarda; jab; guarda; jab; guarda; jab; guarda; jab, vou
repetindo em minha cabeça e me movimentando, sem parar, por sei
lá quanto tempo.
— Continue — ordena ele em tom de um treinador exigente —,
com mais força!
Suor escorre pela lateral de meu rosto em direção à nuca,
onde meu cabelo preso em um rabo de cavalo gruda-se contra a
pele. Minha franja também umedece.
— Agora preste atenção aqui: uper; direto; gancho. — Faz a
exibição dos movimentos, cantarolando a ordem em latidos de
comando.
Imito-o, gravando o som de sua voz e a tocando em modo
repetição.
Ed é um técnico exigente, não me permite um só segundo
entre um golpe e outro. Sinto meus pulmões incendiarem, os braços
doerem, os nós dos dedos rígidos. E ele ainda me faz bater mais,
extraindo as últimas gotas de energia.
E com elas, consigo que um pouco da raiva borbulhando
dentro de mim, aquela que queima e me faz querer gritar, acalme-
se, adormeça, talvez para mais tarde vir com tudo outra vez.
Dor e raiva são só o que venho sentindo ultimamente. Uma
raiva tão grande que às vezes penso que vai me devorar a carne.
Quando finalmente sou autorizada, caio sentada no tatame.
Cada pequeno músculo treme, pulsa, arde. Preciso me deitar para
tentar sossegar os batimentos.
Elliot não era tão duro assim.
Ed é um carrasco, e o olhar satisfeito em seu rosto anguloso
avisa que ele sabe muito bem disto.
— Aguenta mais uma rodada?
Será que está zombando de mim?
Nego com a cabeça, sem energia para falar.
— Muito bem, acho que por hoje estou satisfeito. Vou
dispensá-la mais cedo.
Consigo ter forças somente para lhe dar um olhar que mostra
que não tenho intenção de fazer isso outra vez, em dia algum.
— Quer saber onde errou quando socou o merdinha?
Tenho a sensação de que se eu não perguntar, vamos ficar
aqui até anoitecer. Ele quer me dar essa lição e vai fazer isso goste
eu ou não.
— Onde?
— Entre outras coisas, não recolheu seu polegar para dentro
da mão — lista sem emoção —, bateu em uma linha reta e não se
favoreceu do elemento surpresa.
— Me favorecer? — Contra a minha vontade, me vejo
indagando.
Ed exprime um ar arrogante.
— Quando bater em alguém, Amália, esteja preparada ou para
enfiar uma sequência de porradas que vai aniquilar seu adversário
antes que ele sequer se dê conta do que o atingiu, ou correr. Ficar lá
para se explicar é suicídio. Mas isso é assunto para a próxima aula.
Está dispensada.
Nem penso duas vezes ao me arrastar, levantar e sair o mais
depressa e longe dele possível. Não quero que mude de ideia.
Amanhã, vou dar um jeito de Ed não me pegar desprevenida.
Nem que eu tenha que me esconder.
— Amália. — Seu tom de voz é ao mesmo tempo calmo e um
pouco duro quando me intercepta da porta.
— Sim? — questiono receosa, exausta demais para conseguir
fazer mais cinco minutos de qualquer coisa.
— Antes do banho, alongue-se. Não espere o corpo esfriar, ou
não vai conseguir levantar da cama amanhã.
Assinto. A garganta implorando por um copo de água.
— E — acrescenta ele, antes que eu consiga fugir — abra
aquele maldito envelope de uma vez. Elliot o deixou para você por
uma razão.
Essa parte faz uma corrente elétrica percorrer meu corpo dos
pés ao topo da cabeça, concentrando-se no peito. Meus olhos
marejam, a garganta vira brasa, não consigo dizer nada. Só saio dali
e subo as escadas correndo.
Durante o treino, estava tão ocupada em me movimentar e
tentar administrar respirações difíceis, que minha mente se desligou
de todo o resto – e desconfio que esse tenha sido o objetivo de Ed
desde o início –, mas bastou atravessar a porta, para suas palavras
pesarem comigo escada acima.
AMÁLIA

Torço as pontas de meus cabelos úmidos na toalha, sentada


na cama, olhando para o volume pardo sobre o travesseiro que
parece gritar cada vez mais alto comigo. Elliot o deixou para você
por uma razão, essa frase serpenteia dentro de mim, me faz pensar
que ele sabia que isso iria acontecer. Elliot sabia que me deixaria.
Largo a toalha e me empoleiro na cama, puxando os joelhos
para junto do peito, e inspiro respirações longas até tentar abrandar
meu coração.
Se eu abrir, então se torna real. Elliot não voltará.
Se não abrir, nunca saberei o que ele gostaria que eu visse.
Pego o envelope e encaro por um tempo sua caligrafia forte,
imponente, masculina. Combina com ele. Duas palavras escritas:
Moy almás. Meu diamante. Meu coração se derretia a cada vez que
me chamava assim.
Uma lágrima involuntária aquece o caminho por minha
bochecha e pinga no papel pardo. Aliso a umidade enrugada.
Se sou seu diamante, você foi para mim como o ar em meus
pulmões, Elliot. Dói tanto que não consigo mais nem respirar sem
você.
Tremendo, finalmente me sinto pronta para romper o lacre.
Dentro há dezenas de folhas de papel com carimbos em alto-
relevo, coisas em russo que não faço ideia do que significam. E
também duas folhas dobradas em três partes. Meu coração
antecede o conteúdo, o pressente.
Com cuidado, mãos instáveis, desdobro-as, a primeira escrita
com a mesma caligrafia masculina e perfeita.
Quando me dou conta de que está em espanhol, e que é
dirigida a mim, não me contenho. Abraço-a, antes mesmo de ler.
Meus olhos se tornam piscinas. O peito, um lugar pequeno para
tambores ensurdecedores. Encaro o teto e sugo o ar, tentando me
acalmar.
Quando enfim tenho controle de minhas emoções, mas não o
bastante para parar de tremer, bebo cada palavra com a
necessidade vital de alguém queimando por um copo de água. Meu
coração nunca bateu tão violentamente, doído.

Minha malyshka, meu moy almás

Preciso respirar fundo, pois é a voz dele que ouço me


chamando baixinho, arrepiando minha pele, acalmando o coração a
cada vez.

De antemão, peço que releve o que achar demais. Não sou


bom com as palavras como logo perceberá, minha malyshka, mas
se não escrevesse, perderia a última oportunidade de estar com
você, mesmo que deste modo. Sei o quanto soa covarde de minha
parte usar de uma carta para me despedir. Acredite em mim,
provavelmente me culparei até minha última respiração de não fazer
isto olhando em seus olhos. Talvez seja o que me matará no fim, a
culpa.
E chegando neste ponto, então se está lendo essa carta é
porque definitivamente falhei em minha palavra de voltar para você,
e falhar com você, para mim, é o mesmo que a própria morte,
malyshka. Me perdoe. Teria dado minha alma por mais tempo ao
seu lado.
Mas, por favor, não interprete minhas palavras como uma
declaração de tristeza.
Eu seria um cuzão tolo ingrato se me ressentisse. Tive a sorte
de encontrar o que a maioria das pessoas passa a vida buscando.
Ter seu amor, Amália, fez valer uma existência inteira te esperando,
e por isto sou grato. Cada minuto que passei ao seu lado foi muito
mais do que ousei desejar.
A verdade é que naquele dia, no dia em que nos conhecemos,
não fui eu que a resgatei, meu amor. Foi você quem me salvou, me
mostrou que eu não estava louco quando sentia minha alma
clamando pela sua sem ao menos a conhecer. Você me tirou da
escuridão, minha doce Amália. Sua luz tão única e brilhante
iluminou minhas trevas desde o momento em que nossos olhos se
encontraram.
Sim, meu amor, SUA luz. Essa coisa aí dentro que é só sua e
independe de ninguém. Você irradia, minha menina, está destinada
à grandes realizações, é por isso que estou escrevendo, para te
pedir que aproveite seu tempo intensamente e com cada pedaço de
si. Lembra de nossas conversas quando eu a visitava na clínica? Os
lugares que eu descrevia? Cada um deles está esperando por você.
Há um número incalculável de aventuras que pode ter, lugares e
pessoas para conhecer, sonhos a realizar. Prometi a mim mesmo
que você faria isso, que teria uma vida boa e feliz, exatamente como
merece. Cumpra minha promessa por mim, minha malyshka, é só o
que te peço.
Seja feliz, doce menina. Seja muito feliz. E voe. Suas asas
foram feitas para isto. Se não o fizer, então eu terei falhado de novo
e jamais me perdoarei.
E, por favor, mantenha sempre em mente: você não está mais
sozinha. Agora tem ao seu redor pessoas que a amam de verdade.
Sua família. Conte com eles se as coisas ficarem difíceis. Divida, se
estiverem pesadas. E quando encontrar razões para sorrir, sei que
estarão ansiosos por fazerem parte disto.
Mais uma coisa importante a saber: esses caras, Sebastian,
Ed, Bola, Gael, são meus irmãos. O que precisar, não hesite em
pedir a qualquer um deles, a qualquer hora. Não medirão esforços
por você, isso eu sei e é o que me tranquiliza.
Não é fácil me despedir, Amália. Nunca foi, nem mesmo nos
meses em que tive de me manter à distância. Aquilo foi difícil pra
caralho. Mas estarei em paz se souber que ficará bem. Portanto,
viva, amor, viva intensamente. Você é jovem, tem um caminho
inteiro pela frente e deve aproveitar cada minuto disto.
Cuide-se, minha menina brilhante e indestrutível como
diamante.
Para sempre seu,
Elliot.

Lágrimas vertem até o ponto de as vistas embaçarem e os


soluços sacudirem meus ombros. Deito-me abraçada à carta, sendo
açoitada pela dor impiedosa da realidade.
Nós nunca mais nos veremos.
Não haverá mais aquela sensação de finalmente estar em
casa dentro de seu abraço. A intensidade dos olhos escuros e
honestos, a capacidade de transformar esse mundo horrível num
lugar melhor apenas com um dos seus sorrisos. A força, a gentileza.
A sensação de descarga elétrica com um simples toque de sua boca
sobre a minha, me mostrando que é bom estar viva. Que meu corpo
é capaz de sentir um desejo avassalador. Por ele. Só por ele.
Acabou. Tudo acabou e estou me sentindo dilacerada, mas
mais uma vez ele tenta me salvar. Elliot, nesta carta, está me
pedindo para não desistir.
É o pedido mais difícil que ele poderia ter feito.
Como é possível seguir em frente, quando essa dor mal me
permite respirar?
Não sei como me levantar. No passado, construí um lugar para
mim mesma, para onde eu podia fugir, mas aquilo não era real. Ele
não me quer lá.
Sem fugir, e sem Elliot para me fazer querer ficar, o que resta?
Seja feliz, doce menina. Seja muito feliz. Se não o fizer, eu
terei falhado de novo e jamais me perdoarei.
— Só me diz como, sem você aqui.
Tive a sorte de encontrar o que a maioria das pessoas passa a
vida buscando.
Extraindo força de cada célula de meu corpo que quer apenas
sucumbir, sento-me na cama para ler novamente essa parte. Para
ler tudo. Preciso de cada linha.
É quando a segunda folha, a que estava atrás, se solta.
Tenho que inspirar profundamente para poder lidar com o que
vejo.
A garota me olhando de volta.
Eu, sob o olhar dele.
Elliot me desenhou, ou melhor, desenhou a versão mais feliz
de mim, saltando na cama-elástica, cabelos bagunçados, pés fora
do chão, rindo. Há um brilho tão intenso e genuíno nos olhos que
chego a duvidar se são meus.
A Amália do Elliot.
A que ele quer que lute por si mesma.
Limpando as lágrimas com a manga da blusa, me pego
sorrindo e chorando ao mesmo tempo.
Tive a sorte de encontrar o que a maioria das pessoas passa a
vida buscando.
Isso vale para mim. Eu o encontrei. Quando Elliot arrombou
aquele quarto com o brilho mais feroz que já vi nos olhos de alguém,
trazendo consigo luz em todos os sentidos, eu também o encontrei.
Meu salvador. O amor da minha vida.
Dói, dói muito, mas preciso encontrar um jeito de sobreviver.
E não acho que consigo sozinha.
Meio sem pensar muito, desço da cama, prendo os cabelos em
um coque no alto da cabeça e saio do quarto, para o corredor, em
direção à última porta à esquerda. Bato, sentindo as batidas do
coração aceleradas.
A porta se abre.
Dra. Saavedra, de óculos de grau com uma armação grande
quadrada – estava trabalhando no quarto, pelo jeito – arregala os
olhos por um breve momento, antes de compreensão banhar seu
rosto.
— Gostaria de conversar, doutora, se você puder.
— Fico muito feliz, querida. Entre.
SEBASTIAN

Cada maldito minuto é vital, e quanto mais o destino se


aproxima no radar, mais sinto que essa merda não será o suficiente.
Fodam-se os protocolos do espaço aéreo. Foda-se que há uma fila
para adentrar Moscou com segurança.
— Atenção, ATC. Não estou pedindo autorização. Estou
comunicando que vou entrar e pousar nas coordenadas
transmitidas! 6.900 pés, descendo. Aproximação final.
Arranco os fones para não escutar qualquer coisa que venha
da Torre de Controle. Eles me têm em seu sistema, sabem que
estou falando sério, e se não desviarem qualquer outra aeronave
em meu caminho, terão uma grande merda em suas mãos.
Se isso me fará perder minha licença, o que certamente
tentarão fazer, é um problema para mais tarde.
Aviso Bola e o iraniano a bordo que se preparem, e assim que
avisto a pista, começo a aproximação de solo sem qualquer
instrumentação. Não perco tempo com nenhum protocolo terrestre
tampouco. Pouso, desligo os comandos, salto da cabine e abro a
porta, enquanto Bola e o cara desprendem os equipamentos dos
suportes fixos.
Não leva mais do que um minuto para Ed subir a bordo, estava
em solo nos aguardando, conforme o instruí.
Assim que o cara atravessa a porta, estanca no lugar, mal
acreditando em seus olhos.
— Por que não me falaram? — questiona lívido, maxilar
travado pela incredulidade e raiva, esta última direcionada apenas a
mim.
— Não tinha bem certeza de como ele chegaria.
Seu olhar frio encontra o meu, mostrando que está fodido da
cara por ter sido deixado de fora disto, e se foca atrás de mim.
— Está…?
O bip do monitor atrelado ao peito do cara mantém o mesmo
ritmo de quando o conectamos. Confirmo com um menear de
cabeça, mas acrescento:
— Só não sei por quanto tempo.
— Porra — sibila Ed, arrastando os dedos pelos cabelos
acobreados. Acho que nunca o vi tão pálido. Provavelmente devo
ter ficado com essa mesma expressão algumas horas atrás.
— Quando pediu uma ambulância a postos, pensei que era
para um de vocês dois. Não imaginei que ele…
— Ajudem a descer, porra! — vocifera Bola, sem paciência
para explicações agora, atropelando o médico iraniano no processo.
Em poucos segundos, descemos a maca e a enfiamos dentro
da ambulância. É tudo muito rápido. Bola e o médico embarcam
junto. Sigo com Ed para a caminhonete, sem perder tempo.
O cara dirige no rastro do veículo à frente, mas passa bons
cinco minutos em silêncio. Só abre a boca quando a equipe
providenciada por ele tem Elliot em mãos e o carregam para dentro
do Hospital Central de Moscou.
— Como? — quer saber ele, finalmente, desligando o motor da
picape.
Jogo a cabeça para trás no encosto do banco e esfrego o
rosto, cansado pra caralho.
— Desenterramos a cova, no local que Jurgen indicou. Havia
cinco corpos carbonizados.
— Faltava um.
— Dois.
— Porra. Então o cara que enterramos…
— Salman, provavelmente. Por alguma razão, era ele no
comando da aeronave. Meu palpite é que Elliot queria que
pensassem ser ele, por isso colocou seu cordão no cara. Mas isso é
dedução. Só quando o cara acordar é que vamos saber a verdade.
— Se acordar — aponta ele, pragmático, dando voz aos meus
próprios pensamentos.
Ainda não sei como essa merda foi acontecer. Como
demoramos tanto para chegar no cara. Será um milagre se Elliot
passar desta noite.
— Estava numa tenda precária nas montanhas, a uma milha
do local da queda, sendo cuidado por um criador de ovelhas e a
família. Deduziram que era alguém importante e o mantiveram vivo
para pedir compensação financeira, o velho disse.
Ed inspira com força, morde o punho encarando a porta do
hospital.
Perco meu olhar lá fora também.
— Nunca vou me perdoar se ele não conseguir.
— Algum de nós vai? — grunhe o cara. — Somos todos
culpados por essa merda.
Em silêncio, descemos e entramos na recepção vazia. Nossa
grana reservou essa ala do hospital e os melhores médicos desta
cidade somente para Elliot, não à toa havia uma equipe numerosa
esperando a ambulância na porta. Tudo o que estiver ao nosso
alcance, faremos.
Mas ainda não me permito ter esperança de uma boa notícia.
Vi o estado do cara, a quantidade de sangue que perdeu e o tempo
que ficou desacordado no topo de uma das regiões mais
desgraçadas do mundo, exposto ao frio, à contaminações, à
desidratação substancial.
Escoro-me à parede, punhos cerrados, encarando o chão.
Por que demoramos tanto, maldição?!
— Qual é a do iraniano? — pergunta Ed depois de um tempo.
Por falar nisto…
— É um médico, nós o sequestramos — deixo o cara por
dentro. — E entrei no espaço aéreo de Moscou sem obter
autorização. Preciso que contenha os danos.
O olhar firme do cara encontra o meu.
— Da próxima vez que me pedirem para ficar de fora, eu
pessoalmente meto uma bala na cabeça de cada um de vocês, ok?
Aceno.
— É justo.
Assente também, embora eu saiba que ele ainda vai se
ressentir disto por muito tempo.
— E quanto a terra nas unhas do cara?
Inspiro pesadamente.
O detalhe das unhas sujas de Elliot é algo em que cravei os
olhos assim que o encontrei naquela cama improvisada no chão da
tenda. Algo me diz que não é à toa.
— Não sei, mas deve ter alguma explicação.
Enquanto o cara anda de um lado para o outro, ansioso por
uma notícia fodida sequer, puxo o telefone do bolso e disco para
minha mulher. Não sei como contar que encontramos Elliot, sem
dizer que guarde suas esperanças mais um pouco porque talvez
seja um pouco cedo para comemorar.
O fato de ela atender ao segundo toque diz muito.
— Cabrón…
— Espanhola. — Minha voz é uma camada rouca de tensão e
saudade dela, pra caralho.
— Onde você está?
— Em Moscou. Chegamos há poucos minutos.
Seu suspiro de alívio me quebra. Sei que anda preocupada
comigo, com o que eu possivelmente possa fazer. O que ela não se
deu conta é que eu jamais arriscaria perder elas, e isso é o que
colocou um pouco de prudência em meus sentidos.
— Há algo que preciso te contar. Está sozinha?
— Estou, estou sim.
— Encontramos ele.
— Ele quem? — O receio em sua voz me faz fechar os olhos.
É evidente que está pensando tudo, menos o que estou prestes a
dizer.
— Elliot. Encontramos o cara, Penélope.
O silêncio, e o leve ruído me faz imaginá-la deslizando para o
chão.
— Como assim? — murmura.
— Vivo. Ele está vivo.
— Madrecita…
O fungo baixinho me mata.
— Ei, não chore, amor. — Encaro as botas em meus pés,
doente por não estar com ela. — Não chore, espanhola.
— É de emoção, cabrón. — Quase posso visualizar seu rosto
lindo coberto pelas lágrimas. Lamberia cada uma se pudesse. — É
de emoção.
Aperto a base de meu nariz, odiando ter que dizer o que vou
dizer.
— Não comemore ainda, amor. Ele… — inferno —… ele está
há muitos dias desacordado, perdeu sangue e, enfim, as coisas não
estão muito boas.
Após um momento de silêncio, sua voz positiva retorna com
mais energia.
— Ele está vivo, e é isso o que importa. O Elli dobrou a morte,
cabrón.
Só ela. Só essa mulher forte e incrível para dizer uma coisa
destas. Porra, como eu amo essa espanhola.
— Conte para a menina — digo, porque é o que o cara
gostaria. — Mas deixe-a saber que pode ser que… — nem consigo
dizer essa merda em voz alta.
— Vou contar. Vou sim. — Acho que se levanta, injetada
daquela coisa que a forma. Aquela coisa que pulsa sob sua pele e
invade o mundo. — Me fale onde vocês estão, que vamos para aí.
Depois que desligo, Ed revela:
— A garota não está em casa. Saiu com o merdinha do Yulian.
Estão no centrinho antigo.
Arqueio a sobrancelha, não esperando pela informação.
— Ela pediu que ele fosse com ela à região das galerias.
Entraram em um estúdio de tatuagens, e até onde sei, ainda estão
lá.
— Não gosto que o idiota esteja rondando.
— Acredite em mim, Amália sabe se defender.
Algo me diz que Ed tem uma razão para estar dizendo isto.
Não cogito perguntar, até porque Bola de repente empurra as portas
para fora da ala restrita, a expressão tão exausta quanto a de
qualquer um de nós. Imediatamente ficamos em alerta.
— E então? — Ed se adianta.
— Perdeu muito sangue, está desidratado, inconsciente e toda
essa merda que a gente já sabia. Ligaram o cara às máquinas,
colheram materiais para exames, e estão preparando transfusão.
Agora é esperar.
AMÁLIA

Observo mais uma vez meu pulso protegido pelo plástico filme,
não me cansando de ver. Fazer isso foi a coisa mais certa que eu
poderia ter feito. A maneira que encontrei de honrar tudo o que ele
fez por mim.
— Obrigada por ter me levado, Yulian — agradeço mais uma
vez.
Quando liguei para ele e perguntei se poderia me dar uma
carona de volta às galerias de arte, Yulian foi bem legal em aceitar,
e fez de coração, sei que sim.
Ele estava preocupado que as coisas pudessem ter mudado
entre nós depois daquela coisa do beijo. De minha parte, não
mudou. Yulian é irmão de Elliot, alguém importante para ele, e vou
honrar isso. Não tive muitos amigos, quase nenhum, mas essa é
uma coisa que vou me esforçar para melhorar. Não me fecharei
para a amizade dele. Tenho certeza de que é o que Elliot gostaria.
— Não por isso… ei, aquela não é a…? Acho que aconteceu
alguma coisa — diz ele, conforme entra na rua da casa de Loupe.
Mudo o olhar rapidamente para o lado de fora e me alarmo ao
ver vovó Zhena quase no meio da rua sem saída. Desço e corro
para ela.
— Babushka?
Vovó nem tenta pegar o celular para usar o tradutor, só fica
falando sem parar para Yulian, enquanto segura minhas mãos
olhando diretamente para mim, esperando que ele faça a tradução.
— Eles tentaram te ligar — traduz Yulian.
— Deixei o celular em casa — explico, culpada, me
desculpando.
Yulian fala isso para ela. Vovó sacode a cabeça, acho que
dizendo que não importa, e continua falando.
— Penélope foi para o Hospital Central de Moscou.
Perco a firmeza em minhas pernas na mesma hora. Notando,
as mãos macias dela apertam as minhas.
— Loupe está bem? Aconteceu alguma coisa?
Vovó nega outra vez a cabeça, ansiosa, falando sem parar.
Yulian faz a ponte:
— Não, está tudo bem com ela, mas é para a gente ir para lá
agora. E é o que vamos fazer, vem. — Puxando-me pela mão, ele
nos leva de volta ao carro, não sem antes vovó me abraçar bem
forte, alisar meu rosto, meu cabelo, abalada, emocionada, só não
sei se triste ou feliz, não consigo interpretar direito.
Yulian dirige bem mais rápido do que já o havia visto dirigir,
fura sinais, ultrapassa. E vou ficando cada vez mais ansiosa sem
saber o que está acontecendo. Em um momento, acho que estou
me beliscando tão forte, que sua mão intervém, descansando sobre
a minha.
— Ei, fique calma, está bem? Não deve ser nada ruim.
— Então por que ela está em um hospital? — Minha barriga
afunda.
— Não faço a menor ideia, mas não deve ser nada sério.
— Hm… — Não consigo ter a mesma tranquilidade. Hospital
nunca é notícia boa.
Yulian corta um carro bem depressa.
— Seja o que for, vamos descobrir em um minuto, o hospital é
ali.
Mal o espero estacionar para saltar do carro. Yulian grita
alguma coisa sobre procurar uma vaga, só que não consigo ficar
para prestar atenção. Ansiedade começa a queimar atrás das
orelhas, disparar o peito, cegar meus olhos.
Atravesso a porta, e o que encontro do lado de dentro me faz
estancar no lugar.
— Am! — diz Penélope, vindo em minha direção.
Corro um olhar para os que estão atrás dela. Sebastian, Ed,
Bola. Todos aqui, bem.
Meu Deus, então é…
— A Sol… — gemo sem forças.
Loupe me ampara, abraçando com força.
— Não, chica, não é nada com nossa menininha. Ela está
bem, estamos todos bem.
Afastando-me de seus braços, investigo seu rosto. Seus olhos
estão marejados. O lábio inferior tremendo. A expressão de choro,
apesar do sorriso. É meio confuso, não dá para interpretar.
— Mas então?
— É o Elli… Madrecita de Dios, nem sei como te dizer isso,
mas ele está aqui, minha irmã, no hospital, está vivo e…
Vivo. É a última coisa que me lembro de processar, antes de
tudo girar e escurecer. Acho que desmaio, não tenho bem certeza.
— Gostei desse lugar.
Pés descalços, grandes e masculinos invadem meu espaço
pessoal, pisando no gramado úmido.
Amo tanto, tanto, tanto essa voz.
— Elliot?! — Subo o rosto devagar, duvidando de que seja
mesmo ele.
Encontro seu rosto, olhos vívidos me fitando com aquele toque
de seriedade e zombaria que são sua marca registrada. Um sorriso
pequeno e de lado nos lábios. Tão lindo, meu Deus, tão lindo.
— Olá, minha malyshka.
— É mesmo você…
O sorriso em sua boca aumenta, leva rugas ao entorno dos
olhos, clareia o mundo ao nosso redor.
— Posso? — Aponta ele, para o banco debaixo da árvore.
Afasto-me para o lado, dando espaço.
Ele se senta daquele jeito seguro, tomando conta do espaço
com sua força, modos firmes e ao mesmo tempo suaves. Amei essa
mistura desde o primeiro dia.
— Foi aqui onde conversamos pela primeira vez, você se
lembra?
— Aqui? — Olho em volta, o lago, os jardins, os pássaros. Só
então me dou conta de que estamos na clínica.
— Bem, aqui me respondeu pela primeira vez, melhor dizendo
— brinca ele. — Eu já conversava com você antes, quando a
visitava no quarto, mas lá ainda não dizia nada.
— Você me convidou para vir ao jardim — lembro, não sei por
que havia esquecido disto.
— Ah, com certeza eu fiz. Não conseguia te ver se
escondendo dentro daquelas paredes nem mais um dia. Além do
que, esse lugar só fica bonito se você está nele.
Meu coração quase derrete. Só Elliot consegue dizer essas
coisas, fazer meu peito mudar o compasso.
— Você me contou que tinha medo de gansos — digo. A
memória vem com clareza.
Elliot gargalha. É o som mais maravilhoso do mundo.
Reverbera ondas quentes e vibrantes por tudo, inclusive por mim,
eriçando os pelos dos meus braços. Exatamente como naquele dia.
Lembro que achei tão confuso uma risada genuína ter o poder de
arrepiar a pele. Fazia tantos anos que não escutava uma.
— Posso ter exagerado um pouco — admite ele. — Medo é
uma palavra forte. Digamos que essas coisinhas bicudas e bravas
não são meus animais favoritos.
Sem poder evitar, bato com meu ombro no seu, assim como
quis fazer naquela primeira vez, mas me contive.
— Senti tanto a sua falta — meu coração conta para ele.
Um braço forte, macio e protetor passa por cima do meu
ombro e me traz para junto de seu peito, a parede de músculos e
calor, o meu lugar favorito no mundo.
— Estou orgulhoso de você, menina.
Afasto só um pouquinho a bochecha de seu peito para ver seu
rosto.
— Por quê? — Que motivos eu dei para que ele se orgulhasse
de mim?
Outra vez, ele sorri, disparando raios de felicidade por mim.
— Não vê para onde nos trouxe?
Após um momento, compreendo o que está dizendo. O vento
varrendo a pele, o som dos pássaros, a ondulação nas águas do
lago, o calor do sol batendo em meu rosto. A paz no coração, o
sentimento de estar segura.
— Nada de pântanos das armadilhas — reconheço.
— Nada de pântano das armadilhas — confirma, satisfeito.
— Não quero mais ir para lá.
— É a razão de ter feito isso? — Seu polegar roça com
delicadeza meu pulso.
Pensativa, observo sua mão me tocando.
— Também não vou mais me cortar — é uma decisão. — Não
importa quão ruins as coisas estejam. Isso aqui é para quando eu
olhar para elas, para as cicatrizes. O que gravei em cima delas é um
lembrete de por que me libertei.
Seu rosto, apesar de ainda suave, fica com a expressão mais
séria ao me encarar profundamente.
— Você se libertou porque é uma mulher forte, malyshka, e
deve isso apenas a si mesma.
— Mas sem você eu não conseguiria.
— Conseguiria, conseguiria sim. O que sente por mim, por
essas pessoas, só é possível pelo que há em seu interior. Amor,
esperança, bondade, generosidade. São esses os sentimentos que
decidiu cultivar em si mesma muito tempo antes de me conhecer, e
ninguém foi capaz de quebrar, não importa o quanto tenham
tentado. — Elliot apanha meu rosto entre as mãos e sorri. Se ele
soubesse o que faz com o mundo quando sorri. — O sentimento
que a faz levantar da cama todos os dias, o que a fez correr para o
hospital, você é feita dele, moy almás. Sua força vem do conjunto do
que há aí dentro.
Aninho-me em suas mãos e não tento refutar o que diz, só
quero ficar assim, aqui, com ele para sempre.
— Sempre é tempo demais — diz ele em tom zombeteiro. —
Logo estará enjoada de mim.
Franzo o cenho, curiosa que tenha ouvido algo que eu nem
mesmo verbalizei.
Mas é a outra parte do que diz que me deixa mais atenta.
— Então é verdade?
Elliot encosta a testa na minha, alisando minhas bochechas
com os polegares. É tão bom que por um tempo até esqueço de que
não respondeu. Implorando para que seja real, subo minhas mãos e
também toco em seu rosto.
É do calor de sua pele abaixo de minhas palmas que vou me
lembrar quando pensar nesse momento.
— Am, acorde, querida, por favor… — Penélope?
A claridade cegante no teto me obriga a piscar algumas vezes
antes de finalmente conseguir focar no rosto acima do meu. É
Penélope. Não estou mais na clínica.
— Ele está vivo. — Quando as palavras abandonam meus
lábios, não formam uma pergunta.
Embargada, limpando uma lágrima no cantinho dos olhos
castanhos, ela confirma.
— Está, mi cariño, Elliot está vivo. Não está bem, mas está
vivo.
É como se meu corpo flutuasse enquanto sigo a enfermeira
pelos corredores vazios limpos, assépticos, cheirando a algo
químico. Mal sinto minhas pernas, só ouço um zunido baixinho bem
no fundo dos ouvidos. Para ser bem sincera, não sei distinguir se
isso aqui é real, se está mesmo acontecendo.
A mulher vestida com a proteção azul do hospital, igual a que
estou, ajeita os cabelos dentro da touca. Automaticamente, repito o
gesto em mim. Então faz um sinal para a porta dupla, acho que
dizendo que é aqui.
O zunido aumenta, tambores fazem uma música agitada
dentro de mim.
A enfermeira gesticula para que eu não retire a máscara.
Assinto, dizendo que entendi.
Lentamente, tão lentamente que parece durar uma eternidade,
as portas são empurradas. Ela se coloca de lado, me permitindo
passar… e me dando uma visão geral do ambiente.
O mundo, nessa fração de minuto, simplesmente congela. Não
há som. Não há tremores. Não há nada, exceto pela visão mais
improvável e indescritível, a que confunde minha sanidade, põe em
dúvida.
Sobre uma cama, ligado a mais fios do que posso
compreender, há um homem adormecido. Está diferente, uma
camada espessa de barba esconde metade do rosto; cabelos loiro-
escuros grossos e baixos se apossam de onde antes não havia nem
um fio; a cavidade funda e escurecida ao redor dos olhos deixa
notável que perdeu um pouco de peso.
Passeio o olhar por todo ele, o lençol do hospital cobrindo a
parte inferior de seu corpo grande, mas é no peito que me detenho.
Na cadência subindo e descendo sob as ataduras quase que
imperceptivelmente.
Minhas pernas amolecem a ponto de não suportarem meu
peso, caio de joelhos, as duas mãos espalmadas no chão. Um som
sem nome explode do fundo da minha garganta. Um soluço, um
gemido, um choro… vêm diretamente da alma.
Por favor, por favor, por favor, não seja fruto dos labirintos da
minha mente, eu não suportaria.
Uma mão aperta meu ombro. Levanto os olhos para a
enfermeira, me perguntando em sinais se estou bem. Ela é real. O
piso frio abaixo de minhas palmas. O cheiro de limpeza e remédios.
Com os olhos empossados d’água, assinto. Não conseguiria
pôr em palavras esse sentimento, palavras não o descreveriam.
É uma rajada de algo vital voltando ao meu corpo.
Levanto-me um pouco cambaleante.
Limpando as lágrimas, com muito medo de que Elliot evapore
a qualquer momento, aproximo-me da cama. Primeiro o toco
hesitante, e quando sinto o calor de sua pele, então fica difícil não
envolver sua mão grande entre as minhas e a trazer para meus
lábios. Aspiro, beijo. Acaricio minha bochecha com ela. Minhas
lágrimas o molham.
Demora para eu me lembrar da outra presença no quarto.
Quero perguntar por que todos estes fios. Saber quando acordará. A
barreira de idiomas é frustrante.
Prometo que vou aprender russo. Vou me empenhar mais e
dominar essa língua!
Não sei quanto tempo se passa enquanto essa enfermeira se
vai e outra vem checar os sinais de Elliot. Penélope passou pelo
quarto, os amigos dele também, mas ninguém me pede para sair.
Acho que entendem que eu não conseguiria. Loupe providenciou
que trouxessem uma cama para a noite, cobertor e travesseiros.
Trouxe uma mochila com alguns itens pessoais para mim. Mas não
arredo o pé, ou me permito dormir. Quero estar aqui para quando
ele acordar. Anseio por isso.
— Você não escapará dos treinos, nem se tentar — diz Ed,
surgindo de repente ao meu lado. O relógio no monitor informa que
já é madrugada. — Então é melhor dormir um pouco.
Por reflexo, levo a mão ao peito, pega pelo susto.
— Não te ouvi se aproximar…
— Especialidade da casa, como eu disse. Agora, por que não
aproveita aquela cama para cochilar?
Reparo seu rosto. Pelo que noto, ele esteve lá fora esse tempo
todo.
— Você também deveria dormir — observo.
— E quem é que vai proteger os médicos da ira do Bola?
— Ele também não foi para casa?
— O cara pensa que, por ser feio, vai assustar a morte. — Dá
de ombros. — Eu é que não sou idiota de tentar mudar sua mente
— brinca, pelo menos é o que eu acho. É difícil interpretar em se
tratando dele.
Ed tem um humor meio maligno quase sempre.
— Elliot não vai morrer — afirmo, com toda a certeza que há
em meu coração.
— É o que espero. Essa coisa de fazer dois funerais dá muito
trabalho.

Só muito tempo depois que Ed se vai, é que decido me sentar


um pouco. Bebo da água sobre a bandeja, mas na comida não
consigo tocar. Dentro do bolso da mochila, ao pegar um casaco,
tateio um objeto diferente. Fico surpresa que Loupe tenha colocado
meu caderno. Passo alguns segundos apenas olhando para ele. E
sem pensar muito, abro e deixo os sentimentos dentro de mim se
esvaírem em forma de palavras, linhas, versos, estrofes.
Escrever ajuda a relaxar a mente, acalmar aquela parte
temerosa de meu espírito, que receia perder Elliot pela segunda
vez.
Mordendo a pontinha do lápis, levanto-me e me aproximo dele
na cama. Será que me escuta?
Com o caderno aberto entre as mãos, corro um olhar pelas
linhas.
— Venho escrevendo algumas coisas, sabe? — Limpo a
garganta, porque a voz falha. — Desde que ganhei este caderno, na
verdade. A maior parte são coisas ainda meio sem sentido, linhas
inacabadas, pensamentos soltos… mas… quase sempre é sobre
você. — Fecho por um instante, deixando um dedo marcar uma
página específica. Com a mão livre, envolvo os dedos na barra de
ferro da cama hospitalar. — Faz tempo que quero te mostrar, mas,
sei lá, tive um pouco de vergonha. Até pensei em passar a limpo
alguma parte boa e colocar no seu bolso, quando foi viajar.
Esse era um dos arrependimentos: não ter mostrado nada do
que escrevi para ele.
Balanço a cabeça para não ir por aí. Não permitir que nenhum
pensamento inoportuno e sabotador venha tentar tirar o que estou
sentindo.
— A verdade é que quase tudo o que escrevo são coisas que
eu gostaria de dizer a você, que soubesse, e nunca falei. Eu te amo,
sabe, amo muito mesmo. Uma vez me disse que isso, esse
sentimento, era gratidão. Mas acredite em mim, sei bem a diferença,
principalmente agora com todas essas pessoas boas que você
colocou na minha vida. Gratidão eu sinto também, e como poderia
não sentir se você tem se sacrificado por mim desde que nos
conhecemos? Mudou-se para a Espanha, ficou mais de um ano
longe de seus amigos para estar lá comigo, mesmo que eu não
soubesse de sua presença. Sei o quanto eles são importantes para
você, e é claro que sou grata… — Arrasto meu pé no chão em um
semicírculo, observando o tênis gasto. — Gratidão é um dos
sentimentos que tenho aqui dentro. Amor é o maior deles. Amor por
você. Eu te amo com cada respiração, Elliot.
Engolindo a saliva, respiro fundo e reabro a página. Pigarreio e
decido pela primeira vez ler em voz alta algumas linhas, embora ela
falhe de emoção.

Você
Você é respiro.
Trecho de grama verde entre os espinhos
Explosão de cores no vazio
Calor como as chamas que crepitam em seus olhos
É paz que me dá abrigo
Sorriso que transforma o mundo

— Quando você sorri, Elliot, muda o que há em volta, traz a


sensação de que a vida é boa, que é bom viver… o problema é que
só consegui pôr isso em uma linha — repito para ele. — “Sorriso
que transforma o mundo”. Estou trabalhando para melhorar essa
parte.
Brincando com a ponta do lápis com a mão livre, volto a essa
estrofe.
— Sobre ser um “trecho de grama verde entre os espinhos”, é
honestamente o que sinto. Quando você chegou em minha vida,
senti que era a primeira vez que eu podia confiar que estava
pisando em algo sólido, algo que não me machucaria.
Estou prestes a dividir com ele mais algumas estrofes, quando
o som da porta sendo aberta me cala. Por cima do ombro, vejo um
homem grisalho usando óculos e jaleco branco entrando, logo atrás
dele vem Bola, com um semblante fechado de poucos amigos e
olhos fundos, e Ed, nem um pouco melhor.
É só quando me dou conta de que o dia está amanhecendo.
— Não havia necessidade de me buscar em casa. Sei muito
bem vir ao meu trabalho sozinho — reclama o médico, insatisfeito.
Ed faz a gentileza de traduzir, palavra por palavra, irônico.
Bola nem se dá ao trabalho de tecer um comentário a esse
respeito, sua expressão é como se não desse a mínima para a
queixa do doutor.
— E então, por que ele não acorda logo de uma vez?
— Bola perguntou por que Elliot não acorda de uma vez —
outra vez, Ed traduz.
E faz o mesmo com a resposta do doutor:
— Conforme eu expliquei quando me ligou no meio da noite,
Sr… — vendo que Bola não dirá seu nome, o médico sacode a
cabeça, dando a batalha por perdida —, o paciente chegou em um
estado crítico de infecção generalizada em decorrência de um
processo inflamatório nos ferimentos. Este tipo de condição pode
desencadear uma série de reações no organismo, comprometer
órgãos importantes… e até levar a óbito, em caso extremo, como eu
disse antes. Iniciamos o protocolo de antibióticos e fluidos
intravenosos, e agora só nos cabe monitorar as reações à
medicação.
— Quanto tempo?
— Um dia, dois, dez. Não podemos determinar. Dependerá
apenas de como o organismo do Sr. Shumov responderá.
Bola praticamente grunhe:
— Acho que é agora que o cara vai fazer o médico engolir o
estetoscópio pelo rabo — zomba Ed, em espanhol.
Bola lança um olhar que promete matar o amigo, mas destina
sua irritação maior ao médico.
— Tá dizendo que não pode fazer nada, com toda a grana que
estamos colocando em seu bolso, doutor?
O médico engole o desagrado. Acho que só não responde
porque tem amor à própria vida.
Olho para Elliot, seu rosto de traços marcantes, a pele
vigorosa coberta por músculos definidos e tatuagens. Mas são as
ataduras no peito e pescoço e todos estes fios que corroboram a
informação do médico sobre a batalha pela vida sendo travada
dentro dele.
Aperto sua mão. Estou aqui, com você, vamos passar por isto
juntos.
Frustrado, Bola esfrega a cabeça, resmungando algumas
coisas.
O médico fica só o tempo suficiente para algumas checagens
no monitor, confere as pupilas de Elliot, orienta uma enfermeira
sobre algum procedimento e sai aliviado por se ver longe dos dois
homens grandes e nada cordiais.
— Você deveria ir para casa descansar — Bola fala
diretamente para mim.
— Eu estou bem.
— Mas não ficará por muito tempo, se não se organizar. Você
ouviu aquele babaca, é bem possível que o cara demore a acordar.
— Ela quer estar aqui quando isto acontecer — responde Ed,
por mim, mas não é em tom de quem aprova minha escolha.
Bola dá de ombros, bufando.
— Se quer assim, você quem sabe — diz, nada contente. —
Pelo menos use a cama que colocamos aqui. Não quero ter que
lidar com a fúria de Elliot se a garota dele adoecer.
Sua aparência está péssima. A dos dois.
— Vocês podem ir para casa. Vou ficar de olho nele — digo.
Dá para ver que se surpreendem comigo. Não ligo muito. Elliot
está vivo e é o que importa.
Só quero cuidar do homem que eu amo, como ele fez por mim
esse tempo todo.
AMÁLIA

Dois dias inteiros se passam sem que nada mude, mas a


medicação já não é tão forte, explica uma enfermeira, que é
argentina e fala espanhol fluente. Ela explica que o que mantinha
Elliot desacordado não está sendo mais administrado. O cano em
seu nariz também é removido, e ele reage bem a isso. É um alívio
enorme, tanto para mim quanto para os seus amigos, incluindo o
marido de Priscila, que esteve aqui por bastante tempo, e Yulian,
que tem passado as noites do lado de fora do quarto, também.
— Ele vai ficar bem, chica. — Abraça-me Penélope, confiante.
— Vai sim. — Abraço-a pela cintura de volta, encostando meu
rosto em seu peito. Como é bom ter uma irmã, família. Por falar
nisto… — Como a vovó está?
— Usando aquele livro mais do que nunca. É provável que
hoje ela venha aqui.
— Estou com saudade.
— E ela de você, pode ter certeza.
Perto do meio da manhã, estou olhando para a avenida do
lado de fora, quando a porta do quarto é aberta. Uma mulher alta,
bem alta, loira, entra vestindo o uniforme das enfermeiras, mas nela
ele é ajustado de forma diferente. Seu corpo esguio é praticamente
abraçado pelo tecido. O último botão termina onde uma parte de seu
colo desponta, revelando seios grandes, altos, empinados, quando
ela se curva para empurrar o carrinho para frente.
Indiferente, lança um olhar rápido para Elliot na cama e se
desvia logo em seguida. Mas em dois segundos torna a olhar para
ele, por inteiro, passeando pelos detalhes do grande corpo de
músculos desenhados, e não sei se é impressão minha, mas
aparenta apreciar o que vê.
— Oi… — digo, chamando sua atenção.
Ela franze o cenho, percebendo que não falo seu idioma, e diz
alguma coisa que não entendo.
Fico observando quando entra com um pote vazio no banheiro,
liga o chuveiro e sai de lá com ele cheio de água, depositando sobre
o carrinho que logo aproxima da cama.
Gesticula para a porta.
— Você quer que eu saia? — É o que entendo, quando aponta
de novo para mim e para a porta.
— вáннy[61].
— вáннy?
— вáннy. — Ela levanta a esponja e o sabão.
— Banho — digo, compreendendo sua intenção.
Essa mulher quer dar banho em Elliot e quer que eu saia para
isso.
Espreito seu rosto, não gostando muito de como sorri, parece
pretenciosa, com má intenção, sei lá…
— Não. — E essa palavra eu sei como dizer em russo
também: — нет[62]!
— нет? — Ao repetir o “não” devagar, ela o faz como se eu a
estivesse insultando.
Mas não consigo recuar. Não gosto do jeito como olhou para
Elliot, parecendo olhar para um pedaço de carne do qual ela quer
comer. Isso não é certo, nenhuma das enfermeiras foi tão… tão
desrespeitosa.
Não entendo uma palavra do que diz a seguir, mas sei que não
é boa coisa. Penso em procurar o celular na mochila e tentar
traduzir, só que não quero me sentir em desvantagem em relação a
ela, embora saiba o quanto esse pensamento é bobo.
— нет, нет, нет. — É só o que continuo dizendo, elevando o
tom também para me igualar ao da loira de seios grandes e nariz
em pé. Perto dela, sou pequena e magricela, e nem me importo.
Seu rosto bonito faz caretas cada vez mais feias conforme
continua falando e falando e falando.
Yulian entra apressado no quarto, talvez atraído pela
discussão. Estanca na porta, olhando de uma para outra sem
entender nada. Ela reclama de mim, provavelmente, e gesticula sem
parar. Eu, um pouco envergonhada, explico para o irmão de Elliot.
— Ela quer dar banho nele, mas isso eu posso fazer sozinha.
Por favor, Yulian, diga a ela isso.
Ele ri, compreendendo.
— Uau, duas gatas nunca brigaram para dar banho em mim.
— Então se volta para a enfermeira sensual e conversa com ela,
pacificamente.
Tão pacificamente que ela gosta do jeito dele, ri de alguma
coisa que Yulian diz e, dando-me uma última careta, sai do quarto,
passando bem devagar pelo garoto na porta.
Yulian me dá uma piscadela e a fecha atrás dela, deixando-me
sozinha outra vez.
Respiro bem fundo para me acalmar um pouco.
Só depois que faço isso é que percebo a mudança. Há alguns
meses, eu teria me encolhido e simplesmente fugido do confronto.
Foi assim em todos aqueles empregos, desde que saí da clínica. Ao
som do menor grito ou rudeza, em me fechava e fugia, e hoje
enfrentei.
Consegui ter coragem para impor a minha vontade.
É uma sensação muito boa, na verdade.
Sobre o banho, já assisti as enfermeiras limparem os
ferimentos e trocarem os curativos mais de uma vez. Posso fazer
isso sozinha, não tem muito segredo. Além de que, ela deixou o
carrinho aqui.
Confiro cada coisa que trouxe e arregaço as mangas.
— Não vou deixar que uma mulher com más intenções toque
em você — explico para Elliot. — Não mesmo.
Mergulho a esponja na tigela e esfrego um pouco de sabonete
nela.
— Vi o jeito como ela te olhou, não foi nada profissional…
parecia que você era um pedaço de bife suculento.
Retiro o excesso de água morna em seguida, espremendo a
esponja.
— Ciúmes, minha malyshka? — Um timbre baixinho e
incrivelmente rouco ressoa no ar, quase um cochicho.
A esponja cai da minha mão, que enfraquece imediatamente.
Devagar vou subindo o olhar do carrinho para a cama
hospitalar, e pelo homem deitado nela, duvidando dos meus
ouvidos. Não seja minha imaginação, por favor, por favor. Encontro
um sorriso fraco movendo o canto dos lábios ressecados que
estiveram fechados por todos esses dias… e, como que atingido por
um raio, meu coração simplesmente explode, explode porque não
cabe mais no peito, explode gerando uma energia que eletriza das
pontas dos dedos aos cabelos, drenando totalmente as minhas
forças.
Preciso me amparar na barra de ferro da cama.
— Dios mio… — Transbordo em lágrimas e uma emoção
impossível de ser descrita, de tão visceral.
— Não chore, menina — murmura ele sem voz, mas com
aquela carga de afeto e cuidado que quase me desintegra de tanta
saudade que senti.
— Você acordou. — Chorando, tateio seu rosto; ombros; sua
cabeça coberta por cabelos; de novo o rosto; barba; tudo o que
posso, derrubando minha testa para a sua, respirando o mesmo ar,
querendo beijá-lo em cada pedacinho. — Acordou, Elliot! — Minhas
lágrimas pingam em seu rosto, e ele não parece se importar.
Tenta levantar as mãos e me tocar também, mas logo se vê
impedido pelos cateteres em seus braços.
— Mas o que…? — grunhe numa rouquidão indizível.
Impeço.
— Não, não se mexa, por favor, não se mexa. — Seguro
delicadamente suas mãos, entrelaçando nossos dedos por um
momento. — São cateteres, estão aqui por causa da medicação —
explico. — Como se sente? Eu… eu preciso avisar o médico e…
— Não — pede Elliot, com o timbre tão afetado e fraco que é
comovente demais. — Ainda não.
Assinto, assinto e não consigo tirar os olhos dele.
Solto seus dedos e seguro o rosto, roçando pela barba,
querendo acariciar cada parte dele.
— Senti tanto a sua falta, Elliot.
— E eu a sua, Amália. — Teimosamente, ele consegue dar um
jeito de me envolver em um dos braços, não questiono, não
reclamo, quis isso mais do que qualquer coisa ultimamente.
Só não descanso o rosto em seu peito porque sei dos
ferimentos. Tomo o cuidado de não pressionar muito.
— Suba aqui — pede.
— Na cama?
Seu olhar intenso, marcado por círculos mais escuros sob eles,
prende o meu de um jeito que não é preciso palavras.
Sem protestar, chuto os tênis de meus pés e subo com ele,
ajeitando meu corpo ao seu lado.
— Deite a cabeça eu meu peito, malyshka.
— Não posso, vou te machucar.
— Não vai. Deite aqui um pouco. Preciso disto.
Também preciso. Mais do que do próprio oxigênio.
Fecho os olhos e inspiro profundamente, sentindo pela
primeira vez a passagem suficiente de ar.
— Te amo tanto, Elliot, tanto, tanto.
— Não mais do que a amo, Amália.
— Você voltou. — Limpo lágrimas insistentes.
— Por você. Só por você. — O braço me prende para si,
devolvendo minha alma ao seu lugar de origem, meu lar.
É real, digo a mim mesma, escutando as batidas compassadas
cheias de vida abaixo de meu rosto, conforme os minutos vão
passando.
— No que está pensando? — quer saber ele.
— Que você é real, não estou sonhando. E que eu poderia
escrever esse momento e o faria sabendo cada palavra que eu
deveria usar.
— Então recite para mim — pede, tão baixo que dá para notar
que está fazendo um esforço para se manter acordado contra a
medicação forte para dor e a pouca energia de quem esteve
anestesiado até bem pouco tempo.
Mas ainda que pareça bobo, compartilho com ele. Jamais vou
perder nenhuma oportunidade de dividir minha vida, meus
pensamentos, meus sentimentos com Elliot. É uma promessa que
me faço.
Fecho os olhos e recito da maneira como eu escreveria.

Coração furioso cheio de vida


Devolve-me o oxigênio a cada batida
Resgata minha alma que esteve perdida
Retorna ao lugar a que ela pertenceu desde o primeiro dia

— Estar aqui, em seus braços, ouvindo seu coração, é como


finalmente estar em casa outra vez — digo, emocionada.
Seu braço me aperta para si. Os lábios plantam um beijo no
topo dos meus cabelos.
— Porra, moy almás.
Sorrio em silêncio, inspirando suas palavras, permitindo que
elas penetrem meu espírito.
Pensei que nunca mais o ouviria me chamando assim.
— Se sou seu diamante, você é o ar que eu respiro, Elliot.

Elliot
— Ah, maldição… — Um praguejo espantado me faz abrir os
olhos e encarar Bola na porta.
O olhar do cara sai do meu braço ao entorno da menina e foca
em meu rosto, parecendo enxergar um maldito fantasma. Devo
estar uma merda para o filho da puta ficar tão surpreso.
Antes que diga mais alguma coisa, lanço um olhar de
advertência: Amália está dormindo, não quero que a acorde!
— Quando…? — indaga Bola em um cochicho, respeitando
meu pedido.
— Há algumas horas, provavelmente — respondo à pergunta
não completada.
— Você é um filho da puta, Elliot. — Bola escora a mão na
parede, e, não nego, seu alívio me comove. É um irmão, esse
desgraçado.
— Vou chamar o médico.
— Não — rosno. Inferno, até falar dói.
— Ele precisa saber que você acordou. Vai que alguma coisa
aí dentro esteja sangrando ou sei lá. Sabe o que dizem sobre
pacientes que acordam do coma, não é?
Sorrindo, porque esse imbecil é um sacana, nego com a
cabeça, embora ciente.
— O moribundo só acorda para se despedir. É melhor aquele
sujeitinho dar uma boa olhada em você e fazer valer a grana que
estamos socando no rabo dele.
— Não o chame, ainda, irmão. Preciso de um pouco mais de
tempo. — Ele sabe a que me refiro. Preciso de mais tempo com a
menina. Para ser sincero, nem sei como estou aqui.
— Você tem meia hora. Além de quê — o grandalhão pondera
—, é bem possível que aquele pomposo nem nesse hospital esteja.
Vou ter que caçar o preguiçoso.
Bola não está brincando sobre me dar apenas esse tempo,
conheço o cara. Há muito o que precisa ser feito, ele tem razão.
Mas nesse momento só quero contemplar o corpo pequeno
agarrado ao meu, cochilando como se não o fizesse há dias. Vi em
seu rosto que as coisas não estão bem para ela, também. Não deve
ter dormido, perdeu peso, seu emocional deve ter sido fodido.
Amália precisa de descanso.
Após a porta ser fechada como se jamais houvesse sido
aberta em primeiro lugar, encaro o teto de gesso e respiro bem
fundo.
Estou confuso pra caralho com alguns pensamentos e
memórias. Há dores por toda a parte. Minha garganta está seca
como areia. Os membros pesam. Minhas costas, coluna
especificamente, parece terem virado pó. Numa análise fria, estou
uma merda.
E ainda assim, me pego sorrindo.
Estamos juntos. Voltei para ela. Porra, voltei para minha
menina.
Como se me sentisse acordado, Amália vai se mexendo aos
pouquinhos. Mãos macias e pequenas abraçam meu peito, penso
que até aspira meu cheiro… por falar nisto.
— Pensei ter ouvido que eu ganharia um banho hoje — brinco,
baixinho, pagando o preço por gastar essa energia.
— Você ouviu, então… — rebate Amália, sua voz contém um
sorriso, nem preciso ver seu rosto para ter esse conhecimento.
— Teria detestado se você permitisse que ela colocasse as
mãos em mim. Aquela mulher tinha uma voz odiosa.
Recebo um tapinha de leve no ombro, que me faz rir mais alto,
o que só descarrega pontadas agudas de dor em cada maldita
célula.
Amália se coloca sobre um cotovelo, estudando-me com uma
ruga no centro da testa.
— Como você está?
Encaro seu rosto lindo, olhos preciosos de diamante levemente
inchados, talvez de chorar, talvez do cochilo. A magreza
aprofundando as maçãs do rosto.
— Estou aqui, com você. Isso por si só já é razão para eu ser o
cara mais sortudo desse mundo, Amália.
Deslizo os dedos por suas sobrancelhas, nariz, lábios. Ela
fecha os olhos e aprecia o carinho, despejando o rosto em minha
mão.
— O dia mais feliz da minha vida foi quando eu o vi aqui,
quando descobri que estava vivo, sabia?
Meu peito, porra, é esmagado por essa declaração tão
genuína, tão honesta.
Trago a menina para mim, correndo a mão por seu pescoço e
nuca, e me perdendo entre os fios.
Beijar seus lábios macios é a tortura mais maravilhosa que
existe. Sentir o corpo pequeno se encaixando sobre o meu, o joelho
encontrando abrigo entre minhas pernas, é tão fodido que me
pergunto se estou mesmo acordado e isto aqui é algum tipo de
delírio.
A batida forte na porta é um maldito balde de água fria. Bola,
miserável, cumpriu a palavra de voltar.
A menina desce da cama, ajeitando a blusa, puxando as
mangas. Sondo o movimento, me perguntando se andou se
cortando enquanto estive fora. A questão, no entanto, fica no vazio
porque após alguns segundos, um batalhão invade o quarto. Bola,
Ed, Sebastian, Gael, Yulian, e um sujeito que presumo ser o médico.
Cada par de olhos me inspeciona a seu próprio modo, mas
apenas o de jaleco se manifesta.
— Olá, Elliot. Como se sente?
— Vivo.
— Posso? — pede autorização para se aproximar e me
checar. Colaboro pacientemente com cada pergunta, exame,
checagem.
Em geral, os ferimentos que causaram a inflamação em meu
sistema estão respondendo bem. A infecção recuou. Não há febre.
Porém, segundo ele, ainda é necessário monitoramento. Não
discordo ou concordo, só espero que faça seu trabalho e dê o fora
de uma vez. E parece que é um desejo mútuo. Quando sai, quase
posso visualizar o desconforto abandonando os ombros do cara.
— Vocês fizeram um belo trabalho em assustar o médico —
debocho, numa tentativa de quebrar a tensão em seus semblantes.
É meu irmão mais novo que se manifesta primeiro. A presença
do garoto me surpreende positivamente.
— Oi, El. — Ele se aproxima da cama. — É bom ter você de
volta.
— É bom estar de volta também, Yulian. — Examino seu rosto
para ter certeza de que não estou perdendo nada.
Ele saca.
— Não se preocupe, irmão, não me meti em nenhuma
encrenca enquanto esteve fora. — Abaixa a cabeça e ri mostrando
que é só um jovem um pouco tolo, mas descente. — Pelo menos
nada tão grave que você não possa resolver.
— Não duvido — grunhe Bola atrás dele.
Minha menina pigarreia, em pé ao lado da cama.
— Acho que vou dar uma volta lá embaixo um pouco, tudo
bem?
Conhecendo-a, sei que está fazendo isto para me dar
privacidade com os caras. Seguro sua mão, entrelaçando nossos
dedos.
— Coma, malyshka. Preciso de você alimentada e saudável —
falo baixinho, só para ela.
Minha menina assente, encarando-me com aquele brilho
bonito em seus olhos cinzas. Pensei que nunca mais teria essa
visão, que nunca mais mergulharia fundo na piscina preciosa de
diamantes.
— Pode deixar.
— Se não se importar, vou te acompanhar nessa, Amália. —
Meu irmão mais novo se oferece, com as mãos enfiadas nos bolsos
da calça de moletom.
Curioso, percebo que Amália não se mostra incomodada com
isto. É bom. Algumas coisas parecem ter mudado.
— Algo que eu deva saber? — Checo com os caras quando
Yulian fecha a porta atrás de si.
— Além de ele ter comprado um Mustang GT com a sua
grana? — debocha Ed.
Um a um, meus irmãos de vida vão formando um círculo em
volta da cama. Semblantes sérios, preocupados, cansados.
— Como você realmente se sente? — inquire Gael, cruzando
os braços diante do peito sobre um de seus ternos caros. O olhar
nebuloso do cara mostra que não quer nada além de uma resposta
honesta.
— Um saco de merda — admito.
— Então espero que não tenha nenhuma objeção quanto a
passar a quantidade de dias que forem necessários aqui — o
desgraçado sombrio está me dando um ultimato?
— Não contaria tanto com isso. — Atrapalho-me com a porra
de um cateter enfiado em meu braço, quando levo a mão aos olhos
fechados. Essa claridade está me matando. E essa porcaria de cano
me irritando pra caralho.
— Quer que a gente dê o fora para que descanse um pouco?
— A questão parte de Sebastian. Fito seu rosto impassível.
Conheço o cara o suficiente para saber que está puto comigo, com
certo fundo de razão.
— Acho que já dormi o suficiente… aliás, que dia é hoje?
— Vinte de novembro.
Ad na zemle. Não acredito que passei todo esse tempo fora do
ar.
— Como ela ficou?
— Como acha? — Sebastian me joga essa. — Fizemos seu
maldito funeral.
Porra.
Fecho os olhos, sentindo o peso da culpa se sobressair a
qualquer dor física. Saber que cravei mais uma cicatriz no coração
da menina me arrebenta. Nunca foi a minha intenção, mas me
coloquei em risco e, ao fazer isso, assumi a possibilidade de feri-la,
de uma forma ou de outra. Nem que eu viva um século ao seu lado,
poderei compensá-la.
— O que não mata, fortalece — diz Ed, frio, o maldito
psicopata.
— Isso é para ser um consolo? — rosno para ele.
— Não — refuta, com um brilho letal nos olhos azuis. — É para
ser um lembrete. Suas merdas não refletem só em você, para o
caso de pensar em deixar qualquer um de nós de fora novamente.
Inspiro com força, ignorando o que isso faz em meu peito.
— Foi um erro — admito.
— Guarde a culpa para quando estiver fora desse hospital —
Sebastian ataca com a mesma impassibilidade de quem me
recomenda uma xícara de chá e descanso. Sei que ainda tem muito
a dizer, porém decidiu me poupar por agora.
— Como vim parar aqui? — pergunto, depois de um tempo
digerindo essa merda.
— Te encontramos desacordado numa tenda no meio das
montanhas. Um ancião cuidador de ovelhas estava te mantendo
vivo. Acredite, mas não por benevolência.
Tento remontar esse quebra-cabeças, compreender o que me
lembro, passo a passo. Exige esforço, e uma dor infernal atrás dos
olhos.
— Não precisamos falar destas merdas hoje. Você esteve em
coma, seu corpo necessita de tempo e descanso para se recuperar
— Bola adianta-se, como um aviso sem humor a todos.
— E talvez Bola até te faça um boquete — zomba Ed. — Não
sei o que foi pior, lidar com a sua morte, ou com o humor do cara.
— O humor de todos vocês — acusa Gael.
Desligo-me por um momento do que dizem e me foco na
informação sobre onde me encontraram. Uma tenda no meio das
montanhas… como é que fui parar lá? Qual é a última coisa de que
me lembro? Entrei naquela aeronave. Fui atacado por trás.
Brejnev…
— Brejnev estava armando para mim.
— O quê? — Sebastian se aproxima um passo, talvez porque
não tenha me escutado.
Forço minha voz para fora, ainda que isso empurre meu
pulmão para o inferno. Tento até me sentar, mas isto já é um pouco
mais difícil.
— Deite-se, Elliot — ordena Gael. — Se tem algo que queria
falar, faça deitado. Seja o que for, não vai mudar nada por agora, a
não ser prolongar sua estadia aqui.
O cara tem razão.
E ele sabe que sim, por isso sorri daquele jeito sombrio. Eu me
pergunto como é que Priscila nunca percebeu que é casada com um
dos caras mais frios que já existiu. Ou talvez seja o contrário, talvez
ela é que tenha um lado dele que poucas pessoas conhecem.
Não contesto a parte de permanecer deitado.

De olhos fechados, recrio a linha do tempo dos fatos que vêm


surgindo um atrás do outro em minha mente.
— Ele pretendia explodir o lado americano das ilhas no estreito
de Bering. Forçar um conflito. E faria minha imagem circular por aí
como responsável.
— Um ex-spetsnaz das forças armadas russas provocando um
atentado contra os americanos — conclui Ed, o evidente. — Que
prato cheio.
— Nasser ad-Din está vivo, e está envolvido.
— Esta parte, nós sabemos — Sebastian confirma, rígido. Já
fizeram suas investigações, como esperado.
— Desconfio que alguém do Kremlin também esteja metido
nisto — revelo. — E da Interpol. Brejnev sabia do acordo com
Jurgen.
— Aquele francês traiçoeiro do caralho — revolta-se Bola.
— Não, não acho que seja ele. — Ainda que eu não goste de
Jurgen.
— Por isso a troca de veículos no caminho — Gael acerta na
suposição.
— O que aconteceu dentro daquela aeronave? — inquire
Sebastian.
— Fui atacado por trás.
— É como eles fazem — acusa Bola. — Bielorrussos só
exportam ratos para cá.
— Havia um segundo piloto a bordo — vou falando, se eu
parar, então minha cabeça explodirá de vez.
— Rosvik Salman, nós sabemos. Enterramos o cara em seu
lugar — diz Sebastian, sem esconder que essa parte ainda está
pegando entre nós. — Afinal, por que seu cordão estava com ele?
É Gael que tira suas próprias conclusões.
— Para despistar.
Ainda que meus miolos estejam perto de virar gelatina com
essa dor pressionando as têmporas e o fundo dos olhos, forço-me a
manter a mente limpa e expor todos os fatos de que me lembro.
Eles merecem isto, depois de tudo.
— O objetivo era me executar dentro daquela aeronave e
esconder meu corpo, e então colocar em prática o plano de
provocar uma reação dos americanos. Minha nacionalidade e
relação com as Forças Armadas fariam todo o resto. Brejnev
certamente deve ter feito algum acordo para ser ele o fornecedor de
armamentos na iminência de uma guerra.
— Por isso desconfia da participação de alguém de cima —
Sebastian descansa um dedo sobre os lábios, fazendo as conexões.
— Só alguém de lá teria poder de assinar um acordo destes —
aponto a conclusão mais lógica.
— E como isso tudo acabou com aquela aeronave se
chocando contra as montanhas, depois do piloto receber uma bala
por trás? — quer saber Gael.
Encaro o teto branco.
— Atirei nele — revelo. — Quando percebi que eu não sairia
de lá com vida. Não podia permitir que levassem adiante o que
pretendiam. Uma guerra… uma guerra tiraria a paz que
conquistamos aqui para nós… tiraria…
— A paz de Amália — Sebastian termina a frase por mim. Ele,
melhor do que ninguém, sabe o que estava em jogo. Teria feito o
mesmo pela espanhola.
Sinto que todos eles compreendem. Compreendem e não me
julgam por tomar uma decisão extrema.
Depois de um tempo, é Gael que corta o silêncio com a tensão
quente escorrendo em sua garganta:
— Como se o Kremlin gostasse de paz. — O cara ajeita as
abotoadoras em seus pulsos, encarando a janela, tão furioso com
essa merda quanto qualquer um de nós.
— Guerra é lucrativo. — Ed finge examinar o nível de líquido
no suporte sendo enviado para minhas veias. Seu olhar distante e
impenetrável. — Encontram os pretextos mais desprezíveis para
tanto.
— E as ogivas? Por que ninguém as encontrou? — pergunta
Bola. — Isso, ou o francês mentiu.
— Eu as enterrei. A maioria deles já estava morto pela queda,
mas Brejnev e Petrovsky, não. Tive que executá-los, depois ateei
fogo nos destroços e levei a maleta com as ogivas para o mais
longe que pude. Deixei meu cordão no peito do cara para confundir
quem quer que fosse o traidor na Interpol. Sabia que era questão de
tempo até chegarem ao local do acidente, não havia no que pensar.
Se me encontrassem morto, então não me procurariam, e não
encontrariam as ogivas.
Inspirações fortes ecoam pelo quarto de hospital.
— Justifica a terra nas unhas — comenta Ed, quebrando o
silêncio.
— Depois de enterrá-las, o que aconteceu?
Bola me lança um olhar de reprovação, mas responde a
Sebastian por mim:
— Provavelmente sangrou como um porco e apagou, a contar
pelo que o velho das ovelhas nos contou. Ele disse que você estava
desmaiado na beira de um riacho.
De fato, são borrões de memória, mas ainda consigo sentir a
energia sendo drenada de meu corpo, enquanto eu me distanciava
do local onde enterrei a maleta. Depois disto, não há qualquer
lembrança.
— Há possibilidade de alguém encontrar as ogivas?
Bufo um sorriso sem humor.
— Cavei até quase encontrar o diabo. — E por muito pouco ele
não me segurou no inferno junto dele. — Acho difícil que alguém as
encontre.
Sebastian reflete.
— Então elas ficarão lá até decidirmos o que fazer. — Ele se
desencosta da parede. — Acredito que agora deva descansar, Elliot.
Está pálido como esse lençol sob seu corpo.
Não contesto.
Antes que saiam, os impeço:
— Obrigado por… vocês sabem.
— Enterrar seu corpo; manter um olhar em sua menina
enquanto a assistíamos sofrer como uma condenada; permitir que
você fosse para uma missão suicida sozinho e lidar com a culpa
dessa merda — lista Sebastian. — Pelo quê, exatamente, está nos
agradecendo, Elliot?
Cada par de olhos sombrios crava-se em mim. Essa situação
bateu em todos eles.
— Por serem meus irmãos.
ELLIOT

Assisto cada movimento dela pelo quarto, ouço o barulho do


chuveiro, a observo voltando com a vasilha de água. Seu rosto lindo
pra caralho, determinado. Segura de si. Alguma coisa mudou na
menina, se fortaleceu ao que parece. Quando para diante da cama,
sorri para mim.
— Pronto?
— Não sei como me sinto a respeito de não poder me levantar
e tomar um banho eu mesmo, malyshka.
Sem perder nada do brilho cintilando nas duas pedras
preciosas que carrega no rosto, meneia a cabeça:
— Todo mundo precisa de ajuda em algum momento, Elliot. —
Morde o lábio e hesita por um momento. — Além de quê, estou feliz
em poder ajudar.
Encarando-a tão profundamente quanto estou, sorvendo cada
nuance dessa que é a visão do meu paraíso pessoal, quase perco
um detalhe, quando arregaça as mangas do suéter de tricô. Quase.
— O que… o que é isso? — Seguro sua mão, olhos cravados
no que está logo acima delas.
Viro seu braço com cuidado.
— Moy almás… — Não acredito no que está diante de mim. —
Você…
— Tatuei seu nome — diz ela, aguerrida, forte como nunca vi.
— Quando eu olhar para as cicatrizes, me lembrarei agora de por
que não preciso mais disto.
Porra!
Inspiro com toda a capacidade do peito, esquecendo a dor, o
desconforto, qualquer merda. Quero abraçar essa menina, trazê-la
para os meus braços, montá-la em meu colo.
— Amália — seu nome é um som gutural em minha boca. Uma
prece, um apelo.
— Há muitas coisas pelas quais eu sou grata a você, Elliot.
Mas isso não tem só a ver com gratidão — adianta-se em explicar,
corajosamente. — Tem a ver com o amor que sinto. Eu te amo.
— Eu sei.
Se algum dia evitei meus sentimentos por ela, ou duvidei do
que pudesse sentir por mim, isto ficou no passado. Amo essa
menina violentamente. Amo com cada maldita parte de mim.
— Eu sei, minha menina.
Sem desviar seus olhos dos meus, umedece a esponja,
ensaboa e a aperta acima da vasilha para tirar o excesso de água.
— Você não precisa, malyshka…
— Eu quero, Elliot.
Delicadamente, como se eu fosse um fodido bem valioso, ela
percorre minha barriga com a esponja quente, limpando com…
porra, com adoração. Tambores rugem em meu peito.
A esponja desvia-se das bandagens em meu peito e pescoço e
percorre meu braço, do ombro à mão e ao redor, depois o outro,
meu rosto, testa.
Quero tanto beijá-la.
Umedece outra vez a esponja e a traz quase seca, para
percorrer o mesmo caminho.
Inspiro densamente.
Por um breve instante, ela deixa a esponja sobre o carrinho.
As mãos vêm para a barra do lençol cobrindo o que há de minha
cintura para baixo. Apenas o tecido, nada mais. Infelizmente, não
tenho forças o suficiente para evitar uma estúpida ereção. É
fisicamente impossível, não depois da saudade maldita que senti
dela e do olhar em seu rosto nesse momento.
— Amália — advirto, a voz grave e rouca pra caralho.
Ela suspira baixinho. É notável o que há debaixo, pelo volume
que faz sob o lençol. E ela sabe disto. Sabe e não teme… pelo
contrário, a sensação que tenho é a de que quer fazer isso.
Desvio o olhar, tentado a morder meu próprio punho, e encaro
o teto.
O lençol desliza para fora de meu corpo. Meu pau salta livre,
sem um nada que o impeça de apontar para cima.
— Eu… porra, me desculpe — grunho.
— Ele é — sinto que engole em seco, espantada — grande.
E… e lindo.
Cerro os olhos.
— Você não pode dizer uma coisa destas para um homem
com todos esses canos presos ao braço, meu bem.
Seu sorriso é quase palpável, ainda que eu não esteja olhando
seu rosto agora.
— Posso?
— Fique à vontade. — Não consigo ter força de vontade o
bastante para negar.
A esponja ensaboada percorre os pelos pubianos que devem
estar altos, já que não os corto há semanas. Meu corpo se contrai
ao toque suave. E se isso já é uma provação, quando envolve meu
pau, porra, me retraio e enrijeço inteiro.
Amália sabe o que faz, quando o ensaboa demoradamente,
deslizando a espuma para cima e para baixo. A coisa morna, além
da pressão de sua mão, não ajuda em nada.
Travo a mandíbula.
Ela o enxágua demoradamente, pingando gotinhas de água
quente sobre a cabeça, com as pontas de seus dedos. Então
desliza a mão nua sobre toda a extensão. Nada de esponjas,
apenas ela.
Aperto o lençol abaixo de mim entre os dedos rijos.
Ouço sua inspiração forte.
Inspiro com toda a força também.
Quase penso que estou louco com a próxima coisa que
acontece. A respiração quente dela contra minha barriga… porra,
contra meu pau!
— Amália.
— Me deixe fazer isso, Elliot.
— Minha malyshka, por favor, eu não… — merda. Não sou
nada quando sua boca roça a cabeça, num beijo suave, lábios
castos e cheios.
Pulso de um maldito tesão que é quase doloroso.
Sustentando a base com as duas mãos, a menina separa os
lábios e suga o cume. Não sou nada. Sou tudo. Sou um fodido,
porque preciso esmagar o tecido entre as mãos para não afundar
meus dedos em seus cabelos.
Gemo um som baixo, feral.
É a coisa mais doce. A mais bela. A mais extraordinária. A
menina me chupa com devoção. Testando, a princípio,
familiarizando-se com o ato, mas com vontade. Não comporta tudo,
nem poderia, sou um cara grande e não me faço de modesto em
relação a isso.
Seu toque decidido, deliciado, é de longe o melhor que já
existiu. Apaga o rastro de qualquer outro.
— Porra, moy almás. Porra! Cuidado, não… eu vou… — não
quero fazer isto em sua boca.
Mas a maldita menina valente e linda está determinada.
Quando o suga, me contorço. A sucção aumenta. A língua passeia.
Dá para sacar que é intuitivo. É novo para ela, e minha reação é o
que a guia.
Não consigo mais.
— Por favor, meu bem, se afaste um minuto — grunho, a uma
gota de explodir.
Ela solta de sua boca, mas as mãos pequenas e delicadas não
param, sobem e descem, curiosas, guiadas por instinto puro. E
quando a língua vem me provocar numa lambida atrevida, é o fim.
Gozo violentamente, derramando-me em espasmos em suas mãos.
Amália beija o topo, minha barriga, meu peito. Segue subindo
e me beijando. Mergulho fundo os dedos em seus cabelos e a trago
para um beijo. Mordisco seu lábio de leve como uma punição por
não poder trepar da maneira como eu gostaria.
Ela sorri em minha boca.
Essa garota é meu céu, meu fim, meu começo.
Cinco dias é meu limite para permanecer no hospital, mesmo
contra as recomendações do médico que me checou
constantemente como um cão de guarda. Quando declaro minha
decisão de ir para casa, ninguém tenta me impedir, ainda que não
aprovem. As dores não são mais tão intensas. Minhas pernas já têm
firmeza suficiente para andar pelo quarto, usar o banheiro. Não há
nada aqui que eu não possa fazer em casa.
Amália permaneceu comigo por todos esses dias, dormindo na
mesma cama. Apesar do ambiente hospitalar, sua aparência está
melhor do que quando a vi logo que acordei, mais reluzente, mais
feliz. Está fazendo todas as refeições, tenho mantido um olhar nisto.
— Venha aqui um pouco, malyshka — peço, sentado na cama,
estendendo minha mão grande para a dela, pequena, gentil. — Há
algo que gostaria de te perguntar.
Amália se senta cuidadosamente em minhas pernas, com
medo de me machucar, como se fosse possível. Mas não permito.
Abraço-a pela cintura e a firmo sobre mim.
Viro a aba do boné de beisebol para trás, um presente de Ed,
que sabe que me incomoda pra caralho não ter raspado a cabeça
ainda, algo que pretendo corrigir em breve.
— Com a alta, estive pensando — começo, temendo a
maneira como ela interpretará —, gosto da casa de sua irmã e
Sebastian, afinal é onde você está. Mas estive pensando em voltar
para o meu apartamento, saindo daqui.
Tenho a sensação de que a menina perde um pouco a cor.
Era o que eu temia.
— Me desculpe se for demais para você, Amália. Eu só pensei
que…
— Que quer ficar sozinho, e você tem todo o direito — diz ela,
compreensiva, embora pareça meio decepcionada.
Encaro-a, olhos semicerrados, tentando ler o que não diz.
— Não quero ficar sozinho, Amália. Quero estar com você,
pensei que tivesse deixado isso claro.
— Então quer que eu vá com você para o seu apartamento?
— A ideia de morar comigo a assusta? — pergunto
honestamente.
Diamantes cintilam outra vez, abaixo da franja grossa, o que é
um fodido alívio.
— Não, não assusta. Eu quero, Elliot. — Seu rosto franco
enfrenta o meu. A mão descansa em meu peito. — Quero estar com
você, onde estiver.
— Mesmo que signifique não estar mais tão perto da velha
Zhena o tempo todo?
Tenho que rir do flash de indecisão em seus olhos.
— Ainda posso visitar ela todos os dias. Você não mora tão
longe.
Minha menina perfeita.
— Então é um sim, você aceita ir morar comigo, malyshka?
Mordendo o lábio, sorri daquele jeito que despedaça e
reconstrói meu peito.
— Aceito.
Ed está esperando do lado de fora da picape para nos levar
para casa. No caminho, vez ou outra, encontro seu olhar no
retrovisor. Nenhum deles está muito contente com minha auto-alta-
médica, e isso fica claro em seu semblante.
— Como vai Saavedra? — pergunto.
— Não falei com ela essa semana, mas acho que está bem —
inocentemente alheia à minha intenção de alfinetar o cara, é Amália
quem responde, dedos entrelaçados aos meus dentro do carro. — O
apartamento dela teve um problema e ela ficou hospedada na casa
da Loupe por uns dias.
— Um problema no apartamento dela? — Ergo a sobrancelha,
dando um sorriso de merda.
A liquidez azul fria como o ártico sequer pisca, fingindo
compenetração no trânsito.
Nenhuma resposta ácida, nenhum comentário debochado?
Algo realmente está errado, penso com um ótimo humor.
— Que bom que ela ficou na casa de sua irmã. Saavedra deve
estar se sentindo sozinha aqui, longe do noivo.
— Noivo? — Amália se surpreende com a informação. O cara,
não.
— É. A doutora tem um noivo esperando por ela na Espanha.
Meu apartamento permanece igual, exatamente como sempre
foi. Olhando em volta, no entanto, a conclusão a que chego agora é
que apesar de possuir os melhores móveis, eletrônicos, sistemas de
última geração conectando toda a casa, não me trazia a sensação
de estar realmente em um lar, faltava alguma coisa. Ou melhor,
alguém, que neste momento desfaz sua mala, guardando as roupas
diligentemente do seu lado do armário.
Alguma coisa está diferente nela. Sinto Amália mais segura de
si mesma, liberta, espontânea. Mudanças que só têm a ver com ela,
com o que construiu para si mesma, seu mérito. Ainda assim, sinto
que lhe devo algo.
Aguardo pacientemente que termine o que está fazendo, então
me sento sobre a cama e a trago para ficar de pé entre minhas
pernas.
— Como se sente? — Beijo seus dedos, olhando em seus
olhos.
— Muito feliz — diz com sinceridade.
— Também estou. Mas acho que devo algo a você, malyshka.
Uma ruga se forma no centro de sua testa.
— Um pedido de desculpas por tudo o que passou quando
pensava que eu estava… enfim.
Seu pescoço se move com a saliva sendo engolida.
— Consigo imaginar o que aconteceu aqui. — Sem desunir
nossas mãos, toco meu dedo indicador em seu peito. — Porque, se
fosse o contrário, se fosse com você, eu teria caído diretamente no
inferno. Me perdoe, minha menina, perdoe pelo sofrimento que
causei.
Um tremor se manifesta em seu lábio inferior, esferas cinzas
cintilam um pouco mais úmidas.
— Você está aqui agora, e é o que importa.
Assinto.
— Vou compensar, Amália. Cada lágrima que derramou, vou
passar minha vida compensando, prometo a você.
Seguro seu rosto e, sem poder evitar, roço nossos lábios.
— Te farei feliz, muito feliz.
Uma lágrima despenca pela bochecha da menina.
— Você já faz, Elliot. Desde o primeiro dia.
AMÁLIA

Escovo os dentes, apago a luz do banheiro e me enfio debaixo


das cobertas com Elliot. Não me preocupo em deixar uma fresta de
claridade. Não sinto mais medo do escuro. Se ele percebe, não
comenta nada.
Aninho-me em seus braços. Diferente de antes, quando eu só
me deitava em seu peito, hoje coloco uma perna sobre seu quadril e
o abraço também. A outra coisa que está diferente não demora a
ser percebida por ele. Logo que sente o contato de minha perna
nua, Elliot se retesa por um momento. Os músculos de seu peito
sob minha mão tornam-se rocha.
Escolhi vestir somente o camisetão dele, um que encontrei no
banheiro, e calcinha.
Estou me sentindo inquieta, mas não de um jeito ruim. Tem a
ver com essa tensão entre nós, essa sensação de faíscas
chamuscando a pele a cada toque, até nos mais inocentes, no calor
de olhares que se encontravam e se prendiam, e escureciam
durante o dia. Em respirações presas no peito. Como agora, quando
um calor exasperante esquenta o ventre, salpica pequenas
ferroadas e muda até a cadência dos batimentos.
Expulso o ar para fora, e ele sai entrecortado.
— Está tudo bem? — pergunta ele, voz mais rouca do que o
normal, grave e pesada como uma nuvem densa. Será que também
sente isso tudo?
Penso em mentir. Mas não com ele. Com Elliot só cabe
sinceridade.
— Não sei… eu… essa coisa…
Noto o riso abafado contra o topo de minha cabeça.
— Tem um nome para o que está sentindo, malyshka.
Sugo um pouquinho de ar pelos lábios semiabertos.
— Acho que sei qual… — ouso sussurrar.
O peito abaixo de minha mão sobe e desce profundamente,
quando inspira com força.
Elliot passa a exercer uma carícia em círculos em meu joelho
encaixado sobre ele. Lentamente, quase um sopro de tão suave. O
que só agrava a agitação queimando e se espalhando.
Engulo a saliva se secando na boca. E tento mudar a posição
de minha perna para ver se ajuda. Como consequência, acabo
resvalando de leve no volume em sua calça de moletom. A rigidez é
notável. Confirmar que eu também o afeto é como um imã, tudo o
que consigo fazer é me aproximar mais. Com um atrevimento que
não sabia que tinha, desço um pouco a perna.
— Amália… — adverte, o som áspero.
— V-você também sente — murmuro.
— Tesão? — explicita, descaradamente.
Fecho os olhos, coração galopando no peito.
— Sim, tesão — acho que nunca falei essa palavra.
— Desde que fez aquilo com a esponja, é só o que sinto o
maldito tempo todo, malyshka. — Ri sem humor. Há um quê de
vulnerabilidade na confissão, e muito da honestidade brutal de
sempre, que eu tanto amo.
— Mas está se curando ainda… quero dizer, você não pode.
Pode?
Sua risada quente borbulha através de mim.
— Há coisas que nem mesmo o diabo me impediria, minha
moy almás.
Arfo sem ar.
Quero tanto que confunde, lateja, nubla.
— Posso tocar? — pergunto.
Tensão endurece os músculos em seu peito.
— Ele é seu, meu bem.
Devagar, arrasto os dedos pela barriga quente e lisa, formada
por músculos firmes, até o cós da calça de moletom, e me enfio por
baixo. Extraordinariamente grande, quente. Aliso o polegar pelo
topo, uma pequena umidade começa a surgir. Minha boca saliva.
Ameaço me levantar para repetir o que fiz no hospital, mas ele é
mais rápido em, de um minuto para o outro, nos girar na cama e
pairar acima de mim. Nem parece que ainda há ferimentos se
curando em seu corpo, tamanha agilidade e força.
Um gritinho abafado de surpresa foge de minha garganta.
— Não hoje, Amália. — Seu timbre já não tem tanta leveza. —
Hoje não será sobre meu prazer, mas o seu.
— Por que não pode ser o nosso? — Deslizo os dedos por
seus cabelos, que ainda não foram raspados, conforme ele
expressou que faria na primeira oportunidade. Agarro um punhado
entre as mãos. — Quero você, muito… quero dentro.
— Ad na zemle. — Depois de um pequeno instante em silêncio
e uma respiração forte, provavelmente para controlar a si mesmo,
seu braço foge para a lateral da cama, onde aciona um disjuntor que
nos banha com uma luz amarela fraca. — Preciso ver você me
dizendo isso. Repita, malyshka. Repita onde me quer.
Arquejo, abalada pela intensidade devastadora e maravilhosa
em seu rosto lindo, coberto pela barba.
— Quero você dentro de mim, Elliot — atrevo-me sem
vergonha ou constrangimentos.
Um músculo pulsa em sua têmpora.
Ele assente.
— Como ela está?
Levanto a sobrancelha, sem entender por um momento.
Ar dilata suas narinas.
— Sua boceta, Amália. Está tão molhada, quanto acho que
está?
Dios… me derreto. Até respirar fica difícil.
— Veja você mesmo.
É lindo ver o que o desejo faz com ele. Não o torna repulsivo,
como já testemunhei no passado aquelas pessoas horríveis. Torna
Elliot mais feral, mais brutal, mas de um jeito sofrido, como se ele
estivesse fazendo um esforço sobre-humano para não permitir que
toda a sua intensidade venha à tona.
Por instinto, separo minhas pernas, num convite.
Sem quebrar o contato visual, e com aquela profundidade
feroz no olhar, ele vai descendo. Mordo o lábio quando abaixa e… e
faz o inimaginável. Elliot inspira meu cheiro, se enche dele.
Deus…
Contorço-me um pouco porque o formigamento escala a um
nível sufocante.
Encarando-me de um jeito malvado e caloroso, ele afasta
minha calcinha para o lado e desliza uma carícia contra a pele nua.
Quando confirma a umidade latente, sorri como um lobo. O lobo
mau mais perfeito e magnífico de todos. Mais forte. Mais lindo.
Com a clara intenção de me deixar mais perdida nesse furor
crescente, ele esfrega o dedo no ponto mais sensível, gerando uma
ferroada gostosa. Desce. Rodeia a abertura e se enfia um pouco
para dentro. E então… e então traz o polegar para a boca e o suga.
— Gosto de Céu, exatamente como eu pensava.
Lanço a cabeça para trás no travesseiro e me arqueio.
Ele firma meus joelhos.
— Calma, meu diamante. Nós só estamos brincando um
pouco.
— Elliot… — praticamente choramingo, pedindo que não me
torture assim.
— Importa-se se eu provar diretamente dela?
— Não — engasgo com o som.
— Não se importa, ou “não meta sua boca em minha boceta,
Elliot”?
Aperto os olhos, dolorida pela necessidade.
— Não me importo.
Até sua risada consegue mexer com meus nervos, deixá-los
mais sensíveis, mais desesperados.
Minha calcinha é deslizada para baixo, sem pressa,
provocando o caminho. Elliot a traz para o nariz e cheira.
Olhos em chamas grudados nos meus, abaixa-se
vagarosamente. Primeiro me lambe de cima a baixo. Um grunhido
reverbera dele pelo quarto, sensual, eletrizante. Então, sem pressa,
Elliot simplesmente me tortura, estimula o clitóris, enfia um dedo e
me acaricia por dentro, entrando e saindo enquanto sua boca faz
um vulcão crescer dentro de mim.
Quando o orgasmo explode, o sinto com cada parte do meu
corpo. Os ouvidos entopem, meus dedos dos pés se encolhem, as
panturrilhas distendem. O ventre entra em combustão. É como se
fogos de artifício estourassem dentro de mim.
Queimo sob seu olhar potente.
Tateio seu pênis, querendo tocá-lo também. De joelhos na
cama, um de cada lado de meu corpo, Elliot o tira de dentro da
calça, caindo livre e grosso, pesado em sua mão.
É uma visão surpreendente, por este ângulo. Um homem
grande, formado de músculos em cada pedaço de pele firme, tronco
desenhado por tatuagens, o lado direito do peito coberto por um
curativo, assim como aquele na lateral do pescoço largo, onde foi
ferido. No lado esquerdo, meus olhos tatuados, olhando-me,
lembrando-me de sua devoção.
Tudo em Elliot grita potência, coragem, força. Até mesmo seu
pênis.
Apoio-me nos cotovelos e me levanto um pouco, apenas o
suficiente para me aproximar e… e lambê-lo, prendê-lo em minha
boca. A cabeça grossa, rosada, pulsa.
Elliot cerra os olhos.
Ajeito-me melhor para abocanhá-lo o quanto posso. É grande
demais, viril, másculo exatamente como o dono.
— Malyshka… — rosna, feroz. — Se me quer dentro de você,
preciso que pare, do contrário não vou conseguir.
Tiro a boca dele só o suficiente para falar olhando em seus
olhos.
— Eu gosto.
— Porra… — silva, mandíbula apertada pelo desejo e o
autocontrole de ferro.
Gravo cada reação dele em minha memória, cada grunhido,
seu cheiro, principalmente seu cheiro, de pele, de força, de
masculinidade. Um cheiro só dele que ficará marcado em minha
cabeça.
Vendo minha avidez em querer tudo, Elliot gira o punho e
segura meu cabelo em uma corda em sua mão. Sem me machucar,
inclina minha cabeça para cima, obrigando-me a soltá-lo para
encarar seu rosto.
— Preciso estar dentro de você, meu bem. — É a urgência
escurecendo a íris castanha, tornando-a negra, que me faz
compreender que é tanto para ele, quanto para mim.
Nós dois precisamos disto.
Deito-me na cama, ofegante, já viciada nessa adrenalina
percorrendo minhas veias.
Algo passa por sua expressão, algo que o desagrada, o faz
exalar com força, desviando o olhar irritado para o chão.
— Porra, eu… — desliza os dedos pelos cabelos —… maldito
seja eu… não tenho proteção em casa, Amália.
No início não entendo muito bem o que está dizendo. Fico
esperando.
Elliot ri sem vontade.
— Preservativos, minha menina. Não há nenhum por aqui. Na
verdade — coça a cabeça —, não vi a necessidade de manter em
casa, não trepo com ninguém desde que…
Meu coração explode com a compreensão.
— Desde que me conheceu.
— É. — Calor e mais calor inunda seus olhos. — Desde que a
conheci.
— Não podemos… sem? — Encolho os ombros. Se a gente
tiver que parar, eu… eu nem quero cogitar essa possibilidade.
Lendo minha mente, sua intensidade me sustenta por um
momento, prendendo meu olhar.
— Sou limpo. Jamais a colocaria em risco.
— Sei disso. Também sou. Na clínica, fiz exames de saúde.
Há tanto em seu semblante, uma profundidade, um
compromisso.
— Cuidarei de você, malyshka. Eu prometo. Vou colocar para
fora antes de… — antes de ele se derramar dentro de mim.
Alívio por ele não desistir se mistura ao desejo tal qual uma
nuvem macia.
Só não enlaço seu pescoço, porque é onde há uma bandagem
cobrindo um dos ferimentos em recuperação. Em vez disto, seguro-
o pelos ombros largos, puxando-o para junto de mim.
Inclinando-se sobre meu corpo, Elliot prende minha boca entre
seus dentes.
— Quero tanto me afundar aqui. — Um dedo brinca de me
esfregar o clitóris e desliza para dentro, fazendo-me contorcer o
corpo. — Que essa merda até dói.
Tateio seu membro e o trago para mim, roçando-me, dizendo o
caminho. Elliot afasta um pouco o quadril.
— Você é pequena, meu bem. Como vê, sou um cara grande,
não quero machucá-la. Me deixe prepará-la para ele — pede. —
Quero provar cada pedaço de você, me permita isso, malyshka, me
permita te devorar.
Ele nem precisa pedir especificamente para meus seios
pesarem, intumescerem, tornarem-se sensíveis ao menor toque da
camiseta contra a pele. Apesar de pequenos, incham.
Busco sua mão grande, calejada pelo tempo, e incentivo a
invadir sob a camiseta. Autorizando que me explore como bem
desejar. Quero isso mais do que tudo.
Seus lábios exprimem um palavrão indizível quando o espalma
inteiro. O bico rijo no centro de sua mão.
— Quero lamber você.
— Lamba, Elliot… me devore — é quase uma prece em minha
voz. Inclino a cabeça para trás no travesseiro, me torcendo de tanto
desejo, e dou a ele livre acesso ao que quiser fazer comigo. Confio
a esse homem meu desejo, minha vida.
Sua língua chicoteia o mamilo. A descarga de choque em meu
corpo sob esse simples toque é até mais energizada do que naquele
dia no banheiro.
Chamas de um orgasmo, que agora estou aprendendo a
reconhecer, concentram-se nos lugares mais quentes de meu corpo.
Elliot chupa, mordisca, lambe. Embaixo, o dedo roça o clitóris,
invade minha vagina.
É enlouquecedor.
Quando meu corpo colapsa, arqueio a coluna para longe do
colchão, acreditando que finalmente vou me desintegrar. Um gemido
alto de uma voz feminina reverbera em ondas, nem se parece a
minha voz.
— Agora, meu amor — o timbre baixo, rouco e feral invade
meu ouvido como uma ameaça, quando Elliot se curva para mim,
rente à minha orelha, prendendo o lóbulo entre seus dentes —,
agora vou entrar em você. Vou meter tão fundo e tão gostoso, que
você vai implorar por mais, meu diamante. Estou latejando por você,
sente isso? — Pressiona a cabeça do pênis em minha entrada. —
Sente o quão desesperado ele está por se afundar nessa coisa
quente e deliciosa?
A sensação é a de que saio do meu corpo, de tanto prazer.
Cravo as unhas em suas costas e me ofereço para ele.
Ofereço-me para que me preencha, me invada, me marque.
A invasão é lenta, cuidadosa. Ombros tremem violentamente
sob minhas mãos espalmadas, tamanho esforço que faz para me
penetrar devagar, ir com calma.
Mas não quero assim, não quero que tenha de se controlar
comigo.
— Me dê tudo, Elliot — peço. — Me mostre como pode ser,
sem reservas.
É o que vou lembrar para o resto de minha vida. De como o
homem que amo, meu protetor, fez amor comigo como se
dependesse disto para estar vivo. Como nossos corpos se
embalaram e sacudiram ao avesso com uma necessidade visceral
um do outro. O cheiro que exalamos juntos. Os gemidos e sons.
Como gozei pensando até que morreria com ele dentro de mim.
Alcancei o céu e pedi por mais. Muito mais. Pedi por seu lado
amoroso, mas também por aquele seu lado que ele tentou conter, o
animalesco, o feroz.
Vou me lembrar somente dele, de como apagou qualquer
memória, limpou qualquer rastro de sujeira de antes e me marcou
da maneira mais linda.
Como ressignificou o sexo. O transformou em uma parte do
que somos juntos.
Quando estoca uma última vez e se retira de dentro, jorrando
quente em meu estômago.
— Porra, meu amor. — Ofegante, a parede de força e paixão
descansa a testa úmida de suor contra a minha, que também está
empapada. — Isso foi… foi foda pra caralho.
Sorrio sob ele, feliz porque não segurou nem mesmo o
linguajar. Vê-lo proferindo essas palavras em minha presença dá
uma noção de que agora tenho seu cem por cento, e não somente a
parte boa, medida, cuidadosa.
Uma lágrima escorre de meu olho pela lateral do rosto. Elliot
não a perde. Como poderia?
Afasta-se para me olhar nos olhos.
— Eu a machuquei? — Move minha franja para o lado, para
estudar meu rosto inteiro.
— Você me curou.
AMÁLIA

Antes de entrar na cozinha, paro sob a soleira da porta por um


momento somente para contemplar a visão. Elliot, sem camisa
exibindo os músculos das costas definidos, vigorosos, vestindo
apenas uma calça de moletom que lhe contorna com perfeição a
bunda firme e redonda, de frente para o fogão, preparando nosso
café da manhã. O boné virado para trás se tornou um acessório
constante, apesar de já ter se livrado do cabelo há mais de um mês.
Ainda que eu o veja diariamente, ainda é difícil de me
acostumar com a beleza de tudo isso. Não somente dele, mas de
nossa nova vida.
— Gostando da visão? — brinca ele, naquela rouquidão
matinal gostosa que adoro.
— Muito — admito, aproximando-me, atraída também pelo
cheiro de ovos e bacon sendo fritos.
Abraço-o pela cintura, descansando o rosto em seu braço.
— Quer ajuda?
— Se puder, pode colocar os copos no balcão, minha
malyshka. — Uma jarra de suco de laranja pela metade, fresco,
descansa ao lado da máquina. Assim como a tigela de mingau
recém-feito.
Ele tem levado a sério essa coisa de me alimentar.
— Tem certeza de que quer passar na casa de Sebastian
antes da aula? — pergunta, deslizando os ovos para um prato
grande que, com certeza, espera que eu coma.
— Preciso regar os morangos, e há verduras que devem ser
colhidas. — Todos os dias, cuido de tudo o que a babushka e eu
plantamos.
Elliot vira-se para mim, trazendo o prato para o balcão que
separa a sala da cozinha. Analisa meu rosto um pouco inchado por
ter dormido demais.
— Ansiosa?
Penso a esse respeito antes de responder.
— Um pouco, sim — confesso, segurando o encosto de uma
das banquetas. — Voltar a estudar, depois de tantos anos, é um
desafio. Mas estou bem animada, também.
Daquele jeito otimista, como se nada fosse impossível para
mim, Elliot sorri e me abraça pela cintura.
— Você escreve poemas, moy almás — diz orgulhoso,
apostando suas fichas em mim. — Alguém com esse tipo de
capacidade vai tirar de letra um supletivo de dois anos.
Aliso suavemente a mais nova tatuagem em sua pele. O
poema que li para ele quando ainda estava no hospital há dois
meses. De alguma forma, Elliot ouviu e gravou em sua mente cada
palavra. Marcou-a em si, sem me dar oportunidade de reescrever.
Foi uma surpresa.
Meu caderno está cheio de linhas rascunhadas, soltas,
ordenadas, é a maneira de pôr no papel a felicidade que transborda
em mim, que mal cabe no peito. Mas ainda é algo só meu, que
divido apenas com Elliot.
— Hoje é só o primeiro passo, meu amor. — Beija minha testa.
Descanso a bochecha em seu peito e aspiro o cheiro de sua
pele. Cheiro de estar em casa.
— Acha que sou capaz de ser uma psicóloga, algum dia?
Seu sorriso é sentido por cada célula de meu corpo. Injeta
confiança em mim, antes mesmo que o que tem a dizer sobre isso o
faça.
— Não somente disto, mas do que desejar, minha menina dos
olhos de diamante. Do que desejar.
Em seu abraço, é exatamente o que sinto.
— Te amo — sussurro para sua pele, para o seu coração.
— Não mais do que a amo, Amália.
— Oi… — Bato suavemente na porta aberta do quarto de Sol,
assistindo Penélope colocar a menininha adormecida no berço.
— Ah, Am, oi! — sussurra ela, as manchinhas salpicando em
seu rosto limpo, feliz por me ver. — Entre aqui.
Entro com cuidado para não fazer barulho. Loupe inclina-se
para a filha e beija o topo de sua cabeça. Faço um carinho também.
— Minha russazinha perguntou de você hoje. “Dê Alália?”,
acredita nisto?
— Estou com saudades dela — digo baixinho. — Quase
sempre que venho, está dormindo.
Minha irmã de vida me abraça, e em silêncio saímos do quarto
de safari de Sol de Maria. Nosso cristal precioso.
— E então, como foi seu primeiro dia de aula?
— Tive um pouquinho de dificuldade por causa do idioma.
Ainda não consigo acompanhar o ritmo rápido com que falam, mas
pelo menos entendi a maior parte.
— Vai ficar melhor em breve. Com o tempo, essa língua odiosa
gruda em seu cérebro e você vai se pegar até pensando em russo.
— Ri. — É o que eles fazem com a gente. Venha, vamos ao meu
quarto.
Recebi uma mensagem dela, me pedindo para vir aqui quando
eu pudesse.
— Sente-se aqui, Am. — Pegando minha mão, nos leva para
sua cama espaçosa. Sento-me com ela na beirada.
Noto que limpa as mãos nas laterais da calça jeans, parecendo
ansiosa, e então encara os dedos das mãos.
— Há alguns dias, venho pensando em uma coisa.
Pouco a pouco, ela me explica a ideia que teve. Vou ouvindo
ainda sem expressar nenhuma opinião.
— Não é justo que o Estado não se responsabilize por nossas
adoções. Se eles não tivessem sido omissos, certamente não
teríamos passado por nada daquilo. Nunca foram atrás de nós, Am.
Nunca se importaram se não frequentamos a escola, se não fomos
à médicos, nada. Simplesmente nos largaram à nossa própria sorte.
Cada coisa que diz vai fazendo mais sentido.
— Ontem, por acaso, vi uma matéria em um canal de tevê
espanhol. A história não tinha relação com a nossa, era sobre uma
mulher que pediu à justiça uma ordem de restrição contra o marido,
um agressor nojento. A justiça demorou a conceder, e o marido a
assassinou. Mas o que me chamou mesmo a atenção foi a
declaração da advogada desta vítima. A indignação dela me tocou,
sabe, Am?! O discurso acalorado, era uma revolta genuína. Meio
que por impulso, pesquisei sobre ela na internet e… e mandei um e-
mail contando de nós.
— E?
— E ela respondeu, hoje. Disse que aceita pegar nosso caso,
se decidirmos levar isto adiante.
— Mas o que acontece, aquela família está morta, então…?
Sua boca carnuda se une num beicinho deliberativo.
— Pensei em tudo isso. Aqueles imundos já estão no inferno,
provavelmente. Mas e quanto às outras garotas? Aquelas à
margem, largadas em lares adotivos pelo país sem nenhum
resguardo, passando só Deus sabe pelo quê? É por mim, pela
Penélope de 14 anos levada a uma casa de pessoas ruins e
estuprada em sua primeira noite lá, é por você, por tudo o que
passou por uma década inteira, mas também é por elas, Am. Tenho
uma filha, não consigo admitir um mundo onde outras meninas
ainda estejam passando por tudo aquilo. Tem de haver uma rede de
proteção. O Estado precisa ser responsabilizado e tomar
providências.
A ideia de outras crianças submetidas às mesmas condições
me causa náusea.
— Eu apoio — digo, um pouco desestabilizada, emocionada.
— Apoio no que eu puder.
— Haverá exposição, chica — alerta ela. — Vou tentar manter
você resguardada, mas pode ser que nossa história seja trazida à
luz para muitas pessoas.
Tremendo um pouco, assinto, dizendo que entendi.
— A vergonha não é nossa, Loupe. É deles. Eu não me
importo se o mundo souber.
É por isso que vou me dedicar e estudar. Quero poder ajudar
de alguma forma, também. Não posso ficar de mãos atadas.

— E então, aqui estamos nós… — diz Dra. Saavedra. — Em


nossa última sessão pessoalmente, antes que eu retorne à
Espanha.
O sorriso sereno em seu rosto não me deixa saber o que
pensa, mas, no fundo dos olhos cor de chocolate derretido, capto
um brilho de calor que revela mais do que acho que ela gostaria.
Dra. Saavedra sente carinho por mim, aquém de nossa relação
terapeuta x paciente. Uma parte do meu coração fica apertada por
saber que ela está indo embora. Combinamos que ainda haverá
sessões online, só que não sei se será a mesma coisa.
— Vou sentir sua falta — revelo, abordando pela primeira vez o
que nosso elo representou para mim esse tempo todo.
— Não terá tempo de sentir, pelo que vejo, Amália. Seu tempo
está sendo muito bem ocupado aqui, entre o estudo da língua, o
supletivo, a preparação para a faculdade. Seu trabalho na horta da
senhora Zhena. Soube que vocês estão pensando em comercializar
os morangos.
Impossível não sorrir ao pensar na babushka.
— Ela disse que preciso ter meu próprio dinheiro. Que por
mais que Elliot seja um “homem de muitas posses”, é sempre bom
ter alguma liberdade financeira para uma eventualidade.
— Mas não é por isso que a ajuda e está sempre por perto, é?
— questiona, sem qualquer sinal de julgamento, aprovação ou
reprovação.
Observo sua saia de camurça marrom, onde a barra encontra
a bota de couro e cano alto. E então os móveis cobertos por lençóis,
caixas embaladas.
— Amo a babushka — abro-me —, às vezes ela fala sobre
morrer, sobre chegar a sua hora, e embora eu não goste da ideia,
sei que um dia acontecerá. Já perdi uma avó antes e sou consciente
de como a vida é imprevisível. Mas enquanto ela estiver aqui, quero
aproveitar cada momento possível com ela. Vovó tem muita
experiência, muito a ensinar.
Algo que digo a faz inclinar a cabeça de lado e desperta a
pequena ruga em sua testa. O tipo de ruga que demarca anos de
um hábito de estudar as pessoas, embora ela não pareça ter mais
do que trinta.
— A vida é imprevisível — repete o que eu mesma disse. — E
o que pensa disto?
Nada escapa a ela.
Fito meus dedos finos.
— Acho que não é algo que eu possa combater, mas não devo
me permitir ficar paralisada, estancada no lugar com medo. — Giro
o anel que ganhei de presente no Natal, uma joia linda, com
pequenos diamantes circundando a peça, iguais aos meus olhos,
segundo Elliot. — Zona de conforto nem sempre é o lugar mais
confortável para se estar. Às vezes ela é feita de espinhos e garras
afiadas que te prendem e impedem de sair.
O sorriso que emite não move os lábios, inunda seu olhar. Diz
que Dra. Saavedra fica contente com o que escuta.
Por falar nisto.
— Preenchi o caderno. Coloquei nele tudo o que eu sentia, e,
a cada dia, sinto que ainda tenho mais coisas a escrever.
— Porque está se permitindo viver, Amália. A vida ocupa todas
as linhas, é o que ela faz.
Timidamente, retiro da bolsa a última página, a que arranquei
antes de vir. Especialmente para ela.
— Escrevi para você. — Ainda não sou boa em expressar
meus sentimentos falando, mas quando escrevo, meio que
concentro nas palavras sentimentos que eu gostaria de pôr para
fora.

Cura
Minhas cicatrizes um dia foram dores habitando o peito
Hoje são marcas deixadas para trás na linha do tempo
Um processo de pequenos passos
Um de cada vez, em diferentes compassos
Mas não seria possível sem ajuda
Sem mãos estendidas, perseverança e escuta
Alguém um dia me disse
Novas memórias suplantam as antigas
Cicatrizam a alma e fecham feridas
São páginas em branco conquistadas a cada dia
Liberdade para a alma da torrente de anseios
Pedaços quebrados podem ser reconstruídos de um novo jeito

Obrigada por tudo, Doutora. Espero um dia poder ajudar alguém,


como você me ajudou.
Com todo amor,
Amália.
ELLIOT

Dois dias longe, dois malditos dias e a sensação é de que


foram cem. Precisei me ausentar. Havia coisas que mais ninguém
poderia fazer por mim. Desenterrar as ogivas é uma delas. Só eu
sabia as coordenadas, não havia como delegar. Bola não ficou nada
feliz em ser o cara a escavar, é claro. É o preço de ter um amigo
cuzão, segundo as palavras dele.
Caçar alguns ratos também estava no pacote de viagem.
O primeiro, Nasser ad-Din. Confesso que demorou um pouco
mais de tempo do que o planejado para mandar o maldito direto ao
buraco de onde ele nunca deveria ter saído. O inescrupuloso
fornecedor de armas potencialmente devastadoras mal botou a cara
para fora. À distância de mais de dois quilômetros, tive que acertá-lo
dentro de sua mansão, quando se sentou para degustar de uma
bela refeição e vinho. A última, antes de ir para o inferno.
E então, Jean-Paul, homem de confiança de Jurgen, o traidor
que fez jogo duplo e se vendeu para Brejnev. Com esse, fiz questão
de estar cara a cara. Encontrei o porco imundo no estacionamento
do escritório clandestino da Interpol nos arredores da cidade. Ed
rastreou a conta do cara e confirmou depósitos recebidos naquela
manhã. Um disparo em sua testa como lembrete de que não se
pode servir a dois senhores. Jurgen agora tem uma dívida comigo.
Antes de finalmente voltar para casa, para minha menina,
ainda havia uma última parada obrigatória. Outra tarefa indelegável
que me mandou de volta à Espanha, país onde eu não botava os
pés desde que levei Amália embora comigo.
— Samuel, seu primo veio fazer uma visita — avisa a
enfermeira, uma senhora de olhar gentil por baixo de óculos de aros
redondos, abrindo espaço para o quarto amplo e arejado, pago com
minha grana nos últimos anos.
— Primo? — pergunta o garoto de vinte e poucos anos,
sentado diante de um cavalete. Os cabelos penteados com algum
tipo de gel que gruda os fios no couro, dando um aspecto
ultrapassado à sua aparência. Um gosto que herdou de seu pai e
irmãos, pelo visto.
Dá para perceber a lentidão em me buscar com o olhar e
formular um pensamento. Efeitos da medicação forte,
provavelmente. Não me reconhece, não o julgo, em nosso último
encontro ele não estava em seu juízo perfeito. Tampouco está
agora, mas isso ele deve especificamente a mim.
Samuel Molina tem um atraso de desenvolvimento cognitivo
notável, diagnosticado na clínica, o que o infantiliza em relação à
própria idade. E não abusou de Amália, extraí a informação dela
pouco a pouco para chegar a esta conclusão.
Hoje vim cumprir minha palavra de libertá-lo, já que não
representa um perigo para minha menina ou quem quer que seja.
O garoto não tem culpa de ter nascido em uma família de
malditos psicopatas abusadores.
— Fiquem à vontade — diz a mulher, saindo e deixando-nos.
Não tiro minha atenção dele nem quando ela se despede com
um sorriso simpático.
Um pingo de tinta preta do pincel em sua mão respinga na
roupa branca.
Curioso, aproximo-me para ver o conteúdo na tela.
— Posso? — Apesar de ser uma pergunta, não espero
autorização. Contorno-o, percebendo que minha presença o deixa
desconfortável.
Ao seu lado, diante da tela, estanco semicerrando os olhos,
investigando cada traço do que a mente perturbada reproduziu.
— O que é? — A frieza que se apodera de minha voz o faz se
encolher no lugar. Inteligentemente.
— M-meu presente — gagueja.
Porra, dá para acreditar nessa merda?
Abaixo-me à altura de seu rosto fodido, para que enxergue as
cores que replicou na tela, porém dentro de mim. Meu interior tão
negro quanto cada traço, mas muito mais letal.
— Seu presente? — A amabilidade em minha voz é enganosa.
E ele sabe.
Ombros magros se retesam mais.
— Meu p-pai vai me dar. Ele p-prometeu que iria lá buscar uma
só para mim. Que eu não teria que dividir com ninguém.
— Que garoto de sorte é você, hein? Uma só sua.
O garoto compreende o perigo. Tanto sabe que seus olhos se
enchem de lágrimas.
— S-sim. S-só minha.
Sorrio com escárnio.
— Tsc, tsc, más notícias. Ele não te dará nada, Samuel, e sabe
por quê? — Circulo seu corpo devagar, como um gato cercando o
pequeno e indefeso rato. — Porque seu pai, aquele animal imundo,
assim como sua mãe seca e irmãos, estão no inferno agora.
Queimando e queimando e queimando — cochicho o segredo em
seu ouvido. — Eu mesmo os mandei para lá. — Aspiro o cheiro de
seu medo, profundamente. — Faça uma boa viagem no caminho
para encontrá-los.
Um movimento de braço em torno de seu pescoço. O som
inconfundível de algo se partindo. E é o fim do último Molina na
Terra.
Saio deixando para trás o corpo caído e a pavorosa pintura
que poderia muito bem ser uma réplica amadora de O Grito, de
Munch, mas infelizmente é pior. É a versão perturbada, projetada
pela mente doentia de um psicopata, da imagem real que encontrei
naquele quarto escuro no passado. Traços grosseiros de cabelos
compridos, feito cortinas da noite, escondendo parcialmente o rosto
frágil de expressão submissa e triste.
Samuel Molina não ganhará uma menina só para ele. Ganhará
apenas terra sobre seu corpo podre.
— E a garota te venera como se você fosse um deus da
benevolência — provoca Ed, relaxadamente escorado à parede da
cabine do piloto, sorrindo com aquela acidez sombria que só o cara
é capaz.
— O amor é cego — zomba Bola.
— Por falar nisto, falou com ela? — inquire Sebastian, no
comando do jatinho. O cara só não perdeu sua licença porque Ed
mexeu alguns pauzinhos com seus contatos, quando invadiu o
espaço aéreo de Moscou sem autorização.
Sou malditamente grato a cada irmão aqui.
Mas nos próximos minutos, provavelmente, vou querer
esganá-los.
— Ainda não — digo, tentando ser breve e não supervalorizar
o assunto.
De nada adianta, os três riem como os putos que são.
— Com medo de que ela também se encante pelos poderes do
maldito bom samaritano com pinta de galã daquele centro
comunitário? — Bola consegue ser um irritante do caralho.
— Não falei com minha menina sobre a viagem ao Brasil,
ainda. Planejo fazer isso assim que chegar em casa — tentando só
parecer indiferente e acabar de vez com o tema, observo a
formação de nuvens abaixo. Mas não consigo me calar a respeito
de um ponto. — E não, não estou com medo de que ela se encante
pelo imbecil. Eu me garanto.
A onda de risadas me faz apertar os punhos.
— Eu também me garantia. — Uma camada nevosa de algo
escuro inunda os olhos do cara. — Tive que ouvir sobre as
qualidades daquele filho da puta por quase um mês. A espanhola
certamente me trocaria por ele, se pudesse.
É por isso que não pretendo deixar Amália passar nem perto
daquele centro comunitário. No que depender de mim, Dominic não
terá mais um membro para seu fã-clube, nem fodendo.
— Vocês são patéticos. — Ed balança a cabeça.
Espreito o cara mais atentamente. A mente afiada, o
semblante impassível, daquele jeito de quem se importa com muita
pouca coisa no mundo, ou quase nenhuma. Mas ultimamente, não
sei, ele anda diferente.
Mais soturno. Mais esquivo. Algo vem o incomodando, e tenho
minhas suspeitas do que pode ser, apesar de soar improvável.
— Amália me contou que Saavedra vai se casar — digo para
ninguém em específico. — Parece que a temporada em Moscou
adiantou as coisas, a fez apressar a data. Eu me pergunto o
porquê…
Sem exibir um único fio de reação, o cara dá de ombros.
— Vai ver ela achou melhor amarrar o trouxa logo de uma vez,
antes que ele descubra a mulher irritante que ela é.
E com isso, tenho minha resposta. Nada muda na indiferença
displicente de seu corpo alto e enxuto escorado à parede, sob as
roupas pretas; na expressão de tédio focando em lugar algum.
Saavedra não é importante para ele.
Exceto pela tensão envolvendo sua mandíbula quadrada.
Espero que o cara saiba em que está se metendo.
Mas este não é um problema meu, se Ed não quiser que seja.
Só o que me importa agora é quantas milhas me separam de pegar
aquela menina pequena e quente em meus braços, envolver suas
pernas ao entorno de mim e sentir seu coração contra o meu. Meu
próprio pedaço de paraíso.
Minha malyshka.
Moy almás.
Linda, brilhante, indestrutível como diamante.
O segredo do livro

Bárbara era uma garota espevitada, era uma opinião unânime


na pequena vila, além de selvagem e sem modos. Diziam também
que seus cabelos cor de feno nunca viram uma fita ou presilha. O
vestido branco amarronzado poderia muito bem comportar duas
dela, tamanha magreza. Esta última característica, na verdade, se
estendia a quase toda a população do país, talvez do continente, já
que o mundo se encontrava em meio a uma guerra. Mas as
dificuldades não vinham de agora, a crise provocada pela fome e
altos impostos era uma constante há bons anos, isso somado à
insatisfação com o fracasso russo no campo de batalha fatalmente
acabou por fazer a população se virar contra o Imperador e ir às
ruas, na chamada Revolução de Fevereiro, em 1917, que reuniu
camponeses e a classe trabalhadora.
Nicolau II, Imperador de todas as Rússias, foi forçado a
abdicar por si e por seu herdeiro Alexei, seu único filho homem, o
quinto depois de quatro meninas, pondo fim à dinastia Romanov que
já durava 300 anos.
A abdicação acontecera há pouco menos de um ano e meio, e
da Revolução de Fevereiro até então, novas configurações
culminaram por ascender Lênin, o líder dos bolcheviques, ao poder.
O imperador deposto, Nicolau Romanov, sua esposa Imperatriz
Alexandra Feodorovna, e os filhos, Anastásia, Maria, Tatiana, Olga e
o menino Alexei, tornaram-se então prisioneiros do regime, enviados
de residência em residência oficial no país até serem deslocados
pelos bolcheviques para a cidade de Ecaterimburgo em abril de
1918, à Casa Ipatiev.
O que poucos sabiam é que Alexei Romanov sofria de uma
doença hereditária muito comum entre seus pares da realeza, a
hemofilia, herdada conhecidamente de sua bisavó materna, a
Rainha Vitória do Reino Unido. Era um garoto frágil, que aos treze
anos de idade acumulava uma vida de limitações, vigília, cercada de
cuidados por parte dos pais e irmãs. O caçula, herdeiro aparente ao
trono, era certamente muito amado. Diziam que quando ele estava
bem, a felicidade de todos podia ser tocada, pelo palácio.
A doença de Alexei era uma constante fonte de preocupação
para sua mãe, a imperatriz agora deposta. No desespero de
preservar a vida e saúde do filho, Alexandra, que já não era bem
quista pelos súditos pela fama de possuir certa arrogância e
azedume, havia contribuído para parte da insatisfação popular
contra o marido ao aproximar do trono o autoproclamado místico,
Grigori Rasputin. Um charlatão que dizia possuir poderes de cura.
Rasputin rapidamente ganhara grande influência entre os Romanov,
e um fanatismo desmedido por parte da imperatriz, o que
desagradava tanto o povo quanto os nobres, que o acusavam de
espionagem a serviço da Alemanha. O clima estava tão inflamado
que Rasputin acabou por ser assassinado alguns meses antes da
Revolução.
Fato é que, mesmo depostos do poder, e encarcerados em seu
próprio país, a saúde do pequeno Alexei continuava a ser fonte de
apreensão para os Romanov, e agora não podiam mais contar com
os poderes de Rasputin. Foi assim que os caminhos dos czares e
da família de Bárbara se cruzaram.
Bárbara tinha a mesma idade de Alexei, 13 anos, com a
diferença de poucos meses. Era filha da curandeira do vilarejo,
Catrina Pavlovna. Na falta de um médico local, os serviços de
Catrina eram requisitados sempre que havia uma enfermidade em
causa. Por intermédio do cozinheiro da propriedade, sua fama logo
chegou ao conhecimento da matriarca Romanov, que, ainda que
aprisionada com sua família na Casa Ipatiev, mandou chamá-la.
Nos três meses que se seguiram da chegada da família à
Ecaterimburgo, sob absoluto sigilo dos militares que vigiavam
hostilmente os prisioneiros, Catrina passou a cuidar de Alexei, com
rezas, poções, ervas e tratamentos alternativos, conhecimentos
milenares registrados em seu grimório, o livro que alguns
consideravam ser de magia, prática reprovada pela Igreja Ortodoxa
Russa.
E ainda mais em sigilo, principalmente dos Romanov, Bárbara
contribuía para que o menino tivesse uma infância de verdade.
Volta e meia ela o sequestrava por passagens secretas para
alguma aventura, o fazia subir em árvores, nadar no lago, colher
frutas dos pomares, tudo isso enquanto todos pensavam que Alexei
repousava em seu quarto. Um arranhão poderia ser fatal ao corpo
com deficiência na coagulação do sangue, mas as duas crianças
desconsideram os riscos. Era a primeira vez que o mais novo
Romanov experimentava a vida com plenitude.
Apesar do pouco tempo em que se conheciam, a amizade
entre Alexei e Bárbara se consolidou, tornou-se fundamental para
ele. Não passavam um único dia sem se verem.
Mas a felicidade que Alexei sentia logo sofreu um grande
abalo.
O sol ainda não havia dado as caras quando Bárbara e Alexei
atravessavam furtivamente as passagens secretas que cruzavam o
andar de cima da propriedade. O objetivo era o lago, pescariam pela
manhã e voltariam antes que a casa acordasse. Mas ao cruzarem o
túnel na parte que limitava o fundo do quarto dos pais do menino,
muito rapidamente perceberam que Nicolau e Alexandra Romanov
já estavam acordados. E não estavam sozinhos.
— Os vossos parentes tentaram salvar-vos. Eles falharam e
agora temos de vos matar. — Alexei reconheceu a voz dura de
Yurovsky, o líder dos guardas que vigiavam a família. Era um sujeito
agressivo, que nutria pouca simpatia pelos Romanov.
— O que…? — Nicolau II teve tempo de indagar, antes que um
estampido seco cortasse o ar. Um único disparo certeiro na cabeça,
que lhe tirou a vida.
Alexandra uivou de terror. Outro disparo, desta vez ceifou a
vida da imperatriz.
A barbárie se estendeu por outros cômodos da casa, gritos de
pânico das irmãs de Alexei foram ouvidos, seguidos de disparos,
muitos deles em uma ação coordenada para executar todos os
Romanov e seus criados mais próximos.
O próprio grito de Alexei só não foi ouvido, de seu lugar na
passagem secreta atrás da parede fina, porque Bárbara lhe tapou a
boca.
Lágrimas rolavam pelo rosto do garoto quando ela lhe
sussurrou ao ouvido, mantendo o aperto de ferro:
— Estão matando sua família. Precisamos sair daqui, Alexei.
Agora!
O último herdeiro de um regime absolutista que perpetuou por
mais de três séculos, responsável pelos tempos mais prósperos da
Rússia, e os mais miseráveis, estava tendo que fugir por passagens
estreitas, deixando sua família, sua história, e as pessoas que
amava, para trás. Alexei era praticamente uma criança ainda,
apesar das mudanças que a puberdade vinha fazendo em seu
corpo, com expectativa de vida baixa em função da doença, e agora
um órfão.
Bárbara não parou de correr um único fôlego, arrastando seu
amigo pela mão, até que chegaram à sua casa, quase três milhas
depois do bosque. Explicou a situação para a mãe, mal respirando
entre uma frase e outra, desesperada, amedrontada.
Catrina Pavlovna recebeu a notícia com um gélido tremor de
anunciação. Ela sabia o que aquilo significava. O que representava
para ela e Bárbara também. Friamente, sem precisar refletir a
respeito da decisão, colocou os itens mais necessários em sua
carroça, abasteceu com toda a comida disponível em casa, o que
não era muito, pegou cobertores, roupas quentes para os três, água
e mais alguns poucos pertences pessoais, incluindo o livro de curas,
e rumou com Alexei e Bárbara para o mais distante possível de
Ecaterimburgo. Dia e noite viajando sem parar nem mesmo para
necessidades básicas. A filha ao seu lado, com olhos atentos, vez
ou outra cochilava. O imperadorzinho, num torpor profundo, ainda
não havia dito uma palavra sequer.
Era compreensível, seu mundo, como conhecia, havia
rapidamente mudado. Para sempre.
O regime de Lênin não permitiu que nenhuma palavra sobre a
execução da Família Real fosse mencionada em lugar algum, até
mesmo sussurros sobre o assunto eram proibidos. Durante muito
tempo não se soube ao certo o destino dos corpos, onde foram
enterrados, se foram. Houve rumores de que Anastásia Romanov,
uma das irmãs de Alexei, não estava na casa quando o massacre
aconteceu. Por muitos e muitos anos depois, lendas urbanas foram
criadas a respeito do paradeiro da Grã-Duquesa, teorias da
conspiração, farsantes se passaram por ela. Mas nada, ou muito
pouco, foi dito a respeito do filho homem. Alexei Romanov, herdeiro
direto ao trono do último czar.
— Bárbara Pavlovna e Alexei Romanov se casaram anos
depois. Tiveram três filhos, sendo dois meninos e uma menina. Os
meninos não vingaram, morreram nos primeiros anos de vida,
vitimados por doenças da infância. Alexei batalhou contra a
hemofilia o quanto pôde, foi até além das expectativas, muitos
diriam. Faleceu de uma infecção quando sua terceira filha tinha
quase três anos. Bárbara herdou o livro e o dom para tratar doentes
da mãe, e fez isso por muito tempo, até ser denunciada por um
vizinho ao camarada Stalin, acusada de transgressão e bruxaria. Ela
foi levada de casa em uma manhã fria e nunca mais se teve notícias
suas. Minha mãe era uma boa pessoa, sua única transgressão foi
ajudar os que precisavam dela.
— Sua… quando diz sua mãe, está querendo dizer que essa
história é… você é…?
O espanto de Sebastian é comovente. Vejam que ironia,
depois de tantos anos, ainda consigo surpreendê-lo.
Tendo apenas um sorriso meu como resposta, ele sacode a
cabeça.
— Vovó, a senhora está nos dizendo que é neta do czar
Nicolau II, o último imperador da Rússia, cuja família foi dizimada
naquele massacre? É isso?
Ele está duvidando da minha lucidez, está na cara.
— Aparentemente, sim. — Sorvo o chá, sorrindo para a xícara,
enquanto pares de olhos arregalados se entreolham com mistos de
choque e preocupação.
— Não pode ser — meu neto preferido, apesar de ele dizer
que é o único, rejeita a possibilidade como se isso aqui fosse um
blefe em um dos jogos de carta de que tanto gosto.
— Talvez, seja possível… — Elliot pondera, pensativo. —
Lembram o reboliço que a imprensa fez há alguns anos sobre
exames de DNA em dois corpos de membros da Família Real que
estavam faltando, não lembram?
— Mas disseram que os corpos foram encontrados bem perto
de onde a família havia sido enterrada. Confirmaram que todos
foram mortos no mesmo dia, naquela chacina.
Elliot, como o garoto inteligente que eu sempre soube que era,
levanta a sobrancelha debochado.
— E pela nossa experiência, eles sempre falam a verdade, não
é?
Meu neto coça aquela cabeça dura. O que tem de bonito, tem
de teimoso.
— Tataraneta da Rainha Vitória do Reino Unido, então? Neta
de Nicolau II. A última Romanov viva.
— Firme e forte. — Levanto a xícara em saudação.
— Mas e quanto à tia Merian? Ela é sua prima.
Merian responde por mim:
— Ah, não, vnuk. Não somos primas de sangue. Seu avô é
meu primo de segundo grau, não a Zhena.
— A senhora não parece surpresa, tia. Sabia desta história
esse tempo todo? — Sebastian interroga, dando à prima Merian um
olhar acusatório que provavelmente bota medo em alguns pobres
coitados pelo mundo afora.
— Que ela é uma nobre? Claro que sim! Acha que essa metida
ia deixar de se gabar?
— Jamais me gabei, prima — corrijo-a, com um toque de certa
inocência, e uma vontade grande rir.
— Gabou, gabou sim. Até no baralho queria a preferência na
mão boa por ser herdeira do Imperador.
— Nunca disse isso — me defendo, embora tenha um fundo
de verdade.
— Não, mas dava esse seu olhar de realeza.
— Ah, esse? Herdei de mamãe. — Um sorrisinho escapa de
minha boca.
Sebastian olha de uma para a outra com uma expressão de
quem quer nos enforcar.
— Contou para ela, a mulher contra quem a senhora vivia
fazendo essas suas mandingas, mas não para mim, que sou seu
neto.
— Você fez mandinga pra mim, Zhena?! — exclama Merian,
indignada.
— Nunca. — Inclino-me para a prima e cochicho: — Ele nem
sabe o que está dizendo. Está em choque, o pobrezinho, não vê,
prima?
— Fez, fez sim. — Meu neto linguarudo abre aquele sorriso
provocador de um bom dedo-duro. — Lembra quando fomos à casa
da tia Merian para roubar uma peça de roupa dela do varal a mando
da vovó, Elliot? Para que era mesmo? Fazer a prima parar de visitá-
la, se não me engano.
— Não me lembro de nada disso. — Elliot, bajulador como eu
gosto, mostra mais uma vez por que merece o título de mais
inteligente dos garotos.
— Cuzão.
— Olha a boca, marido — Penélope, sua esposa, o repreende.
— Você deve 100 rublos ao pote.
Uma sobrancelha escura igual à do avô sobe, cética.
— Ao pote de palavrões de nossa filha que nem está aqui
nesse momento?!
— Não importa que não esteja, o pote é uma medida de
reeducação. — O sorrisão que o manda comer merda dessa moça
linda me alegra por dentro, tão corada, tão espontânea, bonita que
só vendo. Nisso, pelo menos, Sebastian acertou em cheio.
— Quer que eu a lembre de que em certos momentos é
impossível não soltar uma palavra suja ou outra, espanhola? —
ameaça ele, cheio dessa coisa carnal que os dois têm um pelo
outro.
Ah, a libido da juventude!
— Você jogou mandinga em mim — Merian não esquece,
ofendida.
— Era para sua bronquite, querida. Você vivia tendo aquelas
crises, hoje nem tem mais, notou?
— Fale a verdade, sua velha ardilosa! Tinha ciúmes do
Vyacheslav comigo, eu aposto.
Bem, já que estamos sendo sinceros hoje.
— Só porque era uma perua oferecida.
— Perua oferecida, eu? Ora, sua… sua… diz isso porque
sempre fui mais bonita que você com esse seu nariz fino dos
Romanov!
— Pode ser que sim.
— Então admite que sou mais bonita?
— É possível. — Isso ou vamos ficar aqui até amanhã, com o
gênio brigão que essa mulher tem.
— Hm. — Merian torce o nariz. — Obrigada.
O que seria de mim sem ela? Ou seria o contrário?
— Por que nunca disse nada sobre quem a senhora é. Sou
seu neto, essa informação é algo que eu deveria saber, não acha?
— Sebastian retorna ao assunto principal. Se não o conhecesse
bem, diria que está um pouco chateado.
— Não percebe, cábron? — intervém Penélope. — Se esse
ditador Lênin não deixava nem comentarem o que eles fizeram aos
Romanov, o que acha que aconteceria se descobrissem que uma
herdeira deles andava livremente por aí?
Mulheres têm mais neurônios que os homens, tenho certeza,
basta olhar para ela.
— Por isso mesmo. Eu teria protegido minha avó melhor.
Esse é o ponto para ele. Meu menininho sempre foi um
protetor.
Afago seu ombro.
— Jamais pense isso, querido. Você fez e continua fazendo
um bom trabalho em cuidar de mim. Estou certa de que seu avô
sente muito orgulho de você, onde quer que ele esteja agora. Eu,
sinto. Tome chá.
E é a mais pura verdade. Não teria pedido um neto mais
honrado, basta ver quem ele se tornou, as amizades que fez, a
família que construiu. Só tenho que ser grata à vida por me permitir
ainda estar aqui com eles, assistindo o crescimento de minha
bisneta.
— Então o vovô sabia?
Saudade aperta meu peito.
— Não esconderia nada do meu Vyacheslav. Ele foi o amor da
minha vida. Tomem seus chás!
Em meio ao falatório que se estende em minha cozinha, um
olhar encontra o meu, cheio daquela sensibilidade que registrei logo
que botei meus olhos nela pela primeira vez, quando chegou a essa
casa. Minha querida menininha que por muito tempo foi assustada e
ferida, e hoje é essa fortaleza gentil e amorosa.
Amália estende a mão para pegar a minha por cima da mesa.
— Sinto muito que tenha passado por tudo isso, babushka.
Imagino o quanto foi difícil perder seus pais e irmãos.
Curiosamente, ela não erra uma única frase em russo.
Aprendeu rápido nosso idioma, o que só me enche de orgulho.
Aperto a mão delicada e jovem dando uns tapinhas no dorso.
Amo essa criança como amaria se do meu sangue fosse.
— Não posso reclamar, vnúchka. A vida também foi muito
generosa comigo. Basta olhar a neta que ela me deu.
Tenho planos de ensinar tudo o que sei a ela, tudo o que
minha mãe Bárbara me ensinou, e o que Catrina Pavlovna ensinou
a ela. Amália tem alma sensível, já mostrou que se compadece da
dor alheia. Ninguém melhor do que ela para seguir com essa
missão.
Quanto a mim e quem eu sou, esse país não precisa de mais
instabilidade no momento. Uma Romanov agora só pioraria o que já
está bem ruim. Era o que minha mãe desejava. Foi o que sussurrou
em meu ouvido quando aqueles homens odiosos a levaram:
— Proteja-se, minha Zhenaide, proteja nosso segredo e cuide
do livro.
Me chame de Ed, minha querida Maribel

Precisamos aceitar nossas vulnerabilidades. Ao negá-las,


enfraquecemos, adoecemos. As palavras de Cassandra me
acompanham pelos corredores externos do pavilhão, grudadas não
somente na mente, mas à pele, como o vento frio que sacode a
copa das árvores e cria ondas no lago, no fim do outono.
Irônico que quando os papéis estão invertidos e sou eu do lado
de lá, as coisas pareçam tão mais complexas. Ser ouvida sempre foi
mais difícil do que ouvir, para mim. Mas foi um erro esperar tanto
tempo, acumular tantos resíduos. Uma das bases de trabalhar com
a saúde mental dos outros é saber reconhecer quando nós próprios
não estamos bem, quando o que sentimos está atrapalhando a
nossa escuta, a percepção, compreensão do outro, limitando.
Terapeutas também precisam de terapia. Principalmente
quando as coisas estão um pouco fora de controle.
Envolvo os dedos em torno da caneta no fundo do bolso do
jaleco branco como uma distração para o tremor.
Será que não seria o momento de me afastar por um tempo,
tirar umas férias, como sugeriu Cassandra?
Férias. A ideia é tão pouco palatável.
Há pacientes que dependem de mim. Além dos que estão em
tratamento, novos dão entrada toda semana na clínica. Não posso
pensar em trancar a agenda e sair de cena agora.
Nem saberia o que fazer com férias.
Confiro o horário no relógio em meu braço.
Constato que há tempo para uma fugida ao meu consultório.
Esticar-me no sofá e fechar os olhos por alguns minutos sempre
ajuda.
Ao segurar o trinco e empurrar a porta, antes mesmo de entrar,
sinto uma alteração na atmosfera dentro da sala. Uma densidade
sutil no ar. Instintivamente meu cérebro lança um sinal de alerta,
uma ordem natural de recuo para algo que desconhece, só que o
corpo não o recebe a tempo, de modo que entro.
Tarde demais, percebo que talvez meu subconsciente tenha
reconhecido o perfume e apenas reagiu a ele. Madeira fresca e
vinho, degustado lentamente numa tarde especialmente gélida no
meio de uma floresta úmida. Frio e calor, é a isso que cheira.
Afasto o pensamento inconveniente.
Preciso de meus sentidos todos em alerta, como sentinelas
preparando-se para qualquer que seja o tipo de batalha que tenha
de ser travada.
— Belo lugar você tem aqui — diz a voz baixa, controlada e
profunda, de frente para a janela do outro lado da sala,
contemplando os dois hectares recém-anexados ao terreno da
clínica, graças em parte pelo dinheiro dele e dos seus amigos. —
Quase pode ser confundido.
— Com o quê? — ouso perguntar, sem alterar minha voz,
como se meu visitante indesejado estivesse a apenas alguns
passos de mim.
— Qualquer coisa. — Encolhe um dos ombros largos sob a
camiseta preta, num gesto displicente. — Menos um lugar para
loucos.
Aperto as mãos fechadas ao lado do corpo.
Mas não respondo ao insulto. É o que ele quer.
Faz isto para me atingir. Conheço esse jogo. Já o jogamos
antes.
Vou então pelo caminho conhecido, com ele.
— Olá, Edmund. — Sei que detesta esta formalidade. Talvez
por isto eu o faça. Porque, apesar de resistente, sua camada de
impassibilidade não é tão impenetrável quanto pensa.
Ele não reage imediatamente a isso.
Com a naturalidade de alguém que está em um lugar onde é
bem-vindo, e não que invadiu, vira-se devagar. Descansa o quadril
casualmente no peitoril da janela e cruza um pé diante do outro, de
frente para mim.
Olhos azuis provocativos destacam-se no rosto magro e
austero.
— Por favor, me chame de Ed, minha querida Maribel. — E
apesar de estar a uns bons seis metros de mim, a sensação é que o
prazer em sua voz roça minha pele como um lençol de seda.
Maribel. Ninguém, além de Cassandra, me chama por meu
primeiro nome há pelo menos quinze anos. Cassandra que é minha
melhor amiga e sócia, que me conhece há tanto tempo quanto parei
de usá-lo e me tornei Dra. Saavedra.
Então esta é a sua arma hoje.
Investigo-o atrás de saber o que mais descobriu, quais outras
informações colheu a meu respeito.
Ed, como seus amigos o chamam, sabe que conseguiu um
ponto. De alguma forma, apesar de meu esforço em mostrar-me
indiferente ao nome, ele apenas sabe.
— Por que veio? — Levanto o rosto.
— Depois de tantos meses, é o melhor que tem a me dizer?
— Não tenho nada a dizer para você, na verdade.
O sorriso frio e afiado dele ondula através do espaço entre
nós. E então ele altera a estratégia, passa a correr os olhos através
de mim, uma boa olhada de meus pés, nas botas de cano alto,
correndo para cima, para o vão de joelhos logo abaixo da barra da
saia, sob a meia-calça preta, subindo por meu jaleco fechado, meu
rosto sem maquiagem, os óculos de grau de armação quadrada, e
meu cabelo, preso em um coque apertado.
Esta última parte o faz torcer o nariz.
Não gosta que eu os prenda. Já disse isso.
— Está diferente desde a última vez — comenta plácido,
batucando as pontas dos dedos longos e brancos no peitoril da
janela atrás dele. — Se seu objetivo é parecer uma senhora, tem
feito um bom trabalho.
Aperto os dentes numa pressão que impede a língua de
rebater que ele, ao contrário, permanece exatamente igual, com
essas roupas pretas, o rosto cínico, os olhos tão frios quanto
geleiras.
Mas estou preparada para lidar com pessoas como Edmund.
Ele não é o primeiro. Certamente há algumas particularidades, mas
não é o primeiro a tentar me intimidar.
Relaxo o peso do meu corpo e me forço a dar passos serenos
até minha mesa, não do meu lado. Não quero dar a ideia de que
preciso me colocar atrás dela para me proteger.
— E como você se sente em relação a isso? — pontuo cada
palavra calma e com o distanciamento necessário para que receba
a mensagem certa.
Sou terapeuta, analiso as pessoas, cavo sentimentos que
pensam esconder, emoções escondidas nas entrelinhas.
O problema é que Edmund é calejado neste jogo. Conhece as
artimanhas. Dança através delas.
E acha graça.
— Se vai me analisar, acredito que devo me deitar em seu
sofá, não? — Lentamente, afasta-se da janela e vem vindo em
minha direção, tal qual um prospecto de lobo com garras e dentes
afiados, e não um homem alto, forte, de carne e osso. Confesso que
não estava contando com isso, pensei que manteria espaço entre
nós, sabe que precisamos. Ed está infringindo uma regra essencial.
— Mas, se não estou enganado, não temos um bom precedente
com sofás, não é mesmo, Maribel?
— Afaste-se — exijo, quando seu perfume atravessa minhas
narinas, tentando nublar minhas percepções, e a gola alta de sua
camiseta preta de mangas compridas invade meu campo de visão.
Para não subir o rosto e encarar seus olhos azuis frios e
debochados, desço para os dedos compridos que deslizam por
minha mesa polida. Há algo sobre suas mãos, algo que me intriga,
fascina. São grandes, pálidas, precisas. Como as mãos de um
maestro.
— Você me deve, Saavedra — acusa ele, sussurrando quase
contra a curva de meu pescoço.
Rogo por não me arrepiar diante de seus olhos. Seria admitir
uma fraqueza.
Inspiro com dificuldade o ar denso que gira em espirais ao
nosso redor.
— Você. Me. Deve — grunhe cada palavra com tranquilidade e
raiva, uma mistura que somente ele é capaz.
— Não — murmuro, decepcionada com a instabilidade em
minha voz.
— Sabe que sim. Assim como sabe que vai me pagar, minha
querida. De uma forma ou de outra.
Sua boca larga se aproxima da minha. Por um milésimo de
momento, sei, apenas sei que vai me punir com ela. Fecho os olhos,
porque sou incapaz de presenciar um trem desgovernado vindo em
minha direção, pronto para me esmagar.
Fecho e espero.
Nada acontece, até que eu volte a abrir.
Edmund está tão perto que me surpreende. Praticamente
respiro o ar que ele abandona de si.
Consigo enxergar cada raio preto cortando o azul. Consigo
enxergar o que há dentro deles. O que talvez ele até queira que eu
veja. A escuridão, a ausência, a promessa.
— Não se esqueça, Saavedra. — Abruptamente, ele então se
afasta, deixando um vácuo no espaço, um buraco não preenchido.
Uma falta.
Não consigo observá-lo deixando a sala. Infelizmente, hoje ele
venceu. Hoje Ed conseguiu me desestabilizar. Só ele. Sempre ele.
— A propósito — diz, da porta. A tensão em sua voz é o único
sinal da rachadura na máscara de um impressionante autocontrole
—, parabéns pelo noivado.
A porta se abre e fecha com a sutileza de quem não deixa
rastros. Não há som. É quase como se ele fosse um fantasma e a
atravessasse.
Somente com sua saída é que consigo respirar de verdade.
Um detalhe sobre minha mesa me chama a atenção. Talvez a
culpa tenha atraído meu olhar para o ponto específico.
O retrato deixado virado para baixo, escondendo a foto de
Guilhermo e eu, no dia de nosso noivado, na semana seguinte ao
meu retorno à Espanha.
Edmund o virou para baixo porque não quis vê-lo.
Eu o deixei aqui para me lembrar.
Ah, minha gente, que jornada foi essa, hein? Elliot, o livro que
mais demorei a escrever (três longos anos) e o que mais me
drenou, sugou tudo o que eu nem mesmo sabia que tinha.
Há tanto que eu gostaria de falar, de compartilhar com vocês,
mas, para ser sincera, nem sei como pôr em palavras. Em um
resumo superficial e breve: a luta da Amália, para lidar com a
ansiedade, se misturou à minha, num período muito difícil em minha
vida pessoal. Éramos ela e eu, travando batalhas com nossos
emocionais. De um lado, uma menina machucada demais,
profundamente traumatizada, buscando uma maneira de sobreviver,
de se reconstruir… e do lado de cá, uma mulher lutando para
manter o equilíbrio mental diante de um turbilhão que passou por
sua vida, com o adicional de, no meio disso tudo, existir uma
sementinha em sua barriga.
Precisei fazer algumas pausas na escrita porque às vezes era
simplesmente demais.
Mas quer saber qual o maior desafio em relação à Amália?
Descobrir para onde sua mente a levava quando ela se fechava em
si mesma. Isso me intrigava, e ela não me entregava absolutamente
nada sobre esse lugar. Era um silêncio enlouquecedor (demorei a
conhecê-la de verdade, ao contrário de Elliot, que sempre foi um
“livro aberto” para mim).
E quando descobri, quando entendi que seu refúgio não era
um refúgio, mas aquele lugar, o pântano das armadilhas, desabei.
Chorei junto com essa menina quieta, silenciosa, de coração bom e
uma vontade desesperadora de pertencer a algum lugar. Levei dias
para superar.
Agora, quero muito fazer um adendo sobre uma revelação de
Amália que poderia ter mudado tudo, poderia tê-la poupado de
continuar sob aquele teto agressor muitos anos antes de ser
resgatada por Elliot.
Quando Elliot a levou diante do que sobrou da casa dos
Molina, a primeira coisa que ela enxergou foi a propriedade dos
vizinhos em frente. Ao ser perguntada se reconhecia, sua resposta
cravou um punhal em meu peito (espero que no seu também): “Pedi
ajuda aí uma vez. Não acreditaram em mim”.
Existe crime mais hediondo do que não fazer nada quando
uma criança denuncia um abuso? Para mim, não. Os vizinhos que a
negligenciaram foram tão culpados quanto a família que a agrediu
recorrentemente durante todos aqueles anos.
Na vida, não podemos ser os vizinhos que fazem vista grossa,
a professora que não prestou atenção aos detalhes, o familiar que
achou normal a mudança repentina no comportamento da criança.
Sobre isso, sobre O QUE FAZER para ajudar (sim, faça
alguma coisa, é sua obrigação também!), aqui um trecho retirado
diretamente do site da Unicef: “Se você testemunhar, souber ou
suspeitar de alguma criança ou adolescente vítima de negligência,
violência, exploração ou abuso, Disque 100. Para violências contra
mulheres e meninas, Disque 180. As ligações são gratuitas e você
não precisa se identificar”. Pronto, salve uma criança!
Por fim, Elliot foi o chão firme sob os pés da Amália.
Clara Liz, minha filha, o meu. E como é bom poder dizer isto
agora.
Como é bom poder virar esta página e recomeçar uma nova,
mais feliz. Um passo de cada vez.
Se você também estiver passando por um momento difícil,
confie: vai passar (não importa quanto essa frase soe clichê, é uma
verdade). “Não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se
acabe”.
Mas independentemente de qualquer coisa, peça ajuda. Lutar
sozinha é covardia com a gente mesmo.
Às pessoas que me contaram suas histórias e me ajudaram a
compreender minha personagem (busquei honrá-las em cada linha).
Vocês me ensinaram mais do que podem imaginar.
À Tatiana e Marylene, profissionais da saúde mental que me
ouviram, tiraram dúvidas, aconselharam (Tatiana, obrigada pelas
palavras acolhedoras quando precisei. Às vezes o óbvio também
precisa ser dito).
À Laizy Shayne, design, capista, diagramadora, por ser
sempre tão competente e disponível.
À Mariely Santos, revisora, que se dedicou para tornar este
livro o que ele é. Sua opinião, conselhos, alterações foram
fundamentais.
À Isabela Piperno e Fernanda Seixas, as primeiras a lerem
Elliot. Isa, há tanto de nossas conversas na construção da Amália, a
cena do parque foi para você. Feh, minha amiga querida, palavras
não expressam a gratidão que sinto por sua vida, sua amizade é
preciosa.
À Caroline Nonato, autora, amiga querida, pessoa linda por
dentro e por fora. Obrigada por segurar a minha mão nesse
lançamento.
Às blogueiras que estão sempre movimentando meu trabalho,
espalhando-o por aí. Obrigada de todo o coração.
À minha mãe, irmã, amigas que estiveram comigo no momento
em que mais me senti fragilizada na vida, em especial à Luana Silva
que pegou um avião do Rio de Janeiro para minha casa, em
Curitiba, de surpresa, de última hora, para estar comigo. Lua, há
tanto que eu gostaria de te dizer, me perdoe por ser uma amiga
ruim. Eu te amo muito, muito mesmo.
Por fim, meu mais profundo agradecimento por vocês, leitores,
que esperaram, cobraram insistentemente, me lembraram
constantemente que havia uma estória que precisava ser contada.
Fiz por mim. Fiz por vocês.
Obrigada, sempre!
Por falar nisto, preparadas para a próxima? Espia só o que
vem por aí!
Ah, e por favor, não deixe de avaliar este livro na Amazon.
Sua opinião é muito importante!
Território Inimigo
Jorge Santoro, CEO de uma das construtoras mais bem-
sucedidas do país, tem um impasse pela frente: Zaira, a proprietária
da loja de sei-lá-o-quê que se recusa a vender o único terreno no
quarteirão todo que ainda não pertence a ele, no caminho para a
construção do maior e mais ousado empreendimento de São Paulo.
Todos os emissários enviados por Jorge fracassaram no
objetivo de persuadi-la. O jeito é ele ir pessoalmente mostrar à
mulher teimosa o quanto a proposta que está oferecendo é
vantajosa para ambos.
Zaira Tavares mal acredita na arrogância do bonitão de terno
e gravata parado bem no meio de sua loja, acusando a Luz &
Harmonia de ser uma espelunca. E ela de… ser mandinguenta?!
Como é que é?
Até mesmo a terapeuta holística gentil e amável com todos
tem um limite de quanto desaforo consegue engolir, ainda mais
quando vem de um metido pomposo que não conhece nada de seu
trabalho.
Esse é o começo de uma disputa desleal, engraçada e
sensual, onde cada um jogará com as armas que possui, de
preferência as piores.
Leia o primeiro capítulo:
Caro Sr. Santoro,
Se meu último recado não ficou claro para o senhor, espero
que este seja cristalino: NÃO TENHO INTERESSE EM VENDER
MINHA LOJA PARA SUA EMPRESA E NEM PARA NINGUÉM, DE-
SIS-TA!
Cordialmente,
Zaira Tavares.
Proprietária da Luz & Harmonia Terapia Holística

Jorge Santoro
Cordialmente. De todas as palavras no maldito bilhete,
algumas em letras garrafais numa caligrafia feminina, como se
gritasse, esta é a que prende meu olhar por mais tempo. Mal
acredito na coragem da daquela mulher. Como alguém pode ser tão
cabeça-dura a ponto de recusar uma oferta como a que fizemos
nesta espelunca?
Só há uma explicação: a proprietária do único terreno que
ainda não é nosso em todo o quarteirão é uma daquelas pessoas.
Não as que se guiam pela lógica. Não as que ponderam e
pesam suas opções. Mas aquelas que se prendem
indissoluvelmente às convicções, ainda que sejam como blocos de
gelo à deriva no oceano.
É por isto que tantos negócios quebram diariamente neste
país. Muitos empreendedores não estão preparados para enxergar
o caminho se estreitando e tomar decisões necessárias, mudar o
percurso, se reinventar.
E é por isso que o Grupo Santoro triunfa mais a cada dia: uma
das ramificações de negócios do conglomerado da família é
comprar empresas assim, prestes a se tornarem massa falida, e as
transformar em verdadeiras máquinas de fazer dinheiro.
Não que eu esteja diante de um destes casos, no momento.
Não queremos comprar a Luz & Harmonia. Queremos que a
pequena loja de… de sei lá o quê, apenas venda seu terreno, para
então prosseguirmos com a construção de um de nossos
empreendimentos mais ousados na cidade: o maior e mais alto
edifício de São Paulo, híbrido, com projeto de comportar um hotel de
cento e oitenta leitos, cinema, teatro, lajes comerciais, além de
apartamentos residenciais de luxo, em cinquenta andares de alto
padrão. Todo o quarteirão já foi incorporado, compramos todos os
terrenos, exceto um, de propriedade de uma mulher teimosa que se
recusa a vender.
A pequena loja de fachada verde está se tornando um
problema.
— Pretende ir lá ou quer que eu…? — questiona Homero, meu
motorista e segurança particular. Noto a leve zombaria em sua voz.
Confiro o horário no relógio de aço escovado cravado com
diamantes negros, um dos poucos luxos que me permito ostentar.
Quatro e quinze. Estou há quase meia hora sentado no banco de
trás do Jaguar observando o território inimigo a troco de… de ver se
obtenho um vislumbre da tal mulher que provocou diferentes
reações em cada emissário que enviei até sua loja para fazer-lhe
nossa proposta. Mendonça, um dos nossos advogados, retornou ao
escritório tentando me convencer a todo custo a abortar o projeto,
depois que a conheceu. O sujeito pareceu encantado pela
proprietária, se é que essa palavra resume o modo babão como a
descreveu.
Vi que enviar o cara havia sido um erro. Mandei então o
Souza. O mais durão. Mão de ferro em nossas negociações. Temido
por nossos adversários nos tribunais.
Souza retornou pálido como eu nunca havia visto, assustado
feito um bichinho acuado. Mal disse uma frase, e a que disse foi:
desista, aquela mulher é perigosa.
É por isto que decidi cancelar os compromissos do dia e vir eu
mesmo resolver este problema. Se quer algo bem-feito…
— Vou descer.
Enfio o bilhete no bolso. Abro a porta, coloco meus óculos
escuros e abotoo o blazer.
— Boa sorte. — Ouço o balbucio bem-humorado de Homero,
antes de atravessar a rua.
Não preciso de sorte. Talvez ela precise.
Empurro a porta de vidro com a placa de “estamos atendendo”.
Ao passar sob o umbral, sinos e cristais pendurados no teto avisam
minha presença.
Outra característica que percebo logo de cara é o aroma no ar.
Uma erva, ou algo assim. É suave. Ainda não sei se gosto. E há
plantas por todos os lados, penduradas no teto, acima de
prateleiras, no chão nos cantos da loja. Quase uma selva.
— Só um momento, por favor — grita uma voz feminina de
algum lugar nos fundos.
Corro um olhar perscrutador ao redor. Tudo limpo e
organizado. Prateleiras de madeira robusta do chão ao teto em
todas as paredes contendo uma gama de produtos. Uma com
compartimentos menores para centenas de pequenos frascos. Há
também um expositor de livros com títulos sobre o mesmo tema:
terapia holística.
No centro da loja, um balcão de madeira e vidro expõe uma
variedade incontável de pedras.
Ajusto a gravata, enfio as mãos nos bolsos da calça e me
aproximo para observar melhor, um pouco curioso. São de todos os
tipos, formatos e cores, como jamais vi. Transparentes, densas,
reluzentes, opacas, aquosas, manchadas. É uma coleção que
impressiona.
Uma em especial me chama a atenção. Já a vi em brincos,
colares, anéis. Mas nunca nesse formato, sem lapidação.
— É uma Água Marinha — diz uma voz educada atrás de mim.
Antes de me virar para encará-la, talvez apenas pelo desejo de
prolongar o momento de expectativa em descobrir o rosto de minha
adversária, apenas assinto.
— Um elo de comunicação e exteriorização de nosso lado
criativo — informa ela, prestativa, como uma boa vendedora.
Apesar de achar uma grande baboseira, aponto para outra
pedra. Pequena e desuniforme. Uma mistura opaca e translúcida
semelhante a uma mancha de barro em um lago cristalino.
— E esta?
— Citrino. Muito utilizada para revigorar nossas energias,
nossa alegria, quando nos sentimos mais exaustos, desgastados.
Aham. Claro que sim.
— Esta? — Aponto para outra, amarela. Uma parte dentro de
mim se satisfaz com esse joguinho.
Após um estranho momento de silêncio, ela explica:
— Enxofre. Ideal para eliminar negatividade, egoísmo. — Pode
parecer exagero, mas é como se eu sentisse seus olhos em minhas
costas, me percorrendo de cima a baixo.
Controlo a vontade de coçar a nuca.
Lentamente, me viro para desvendar quem é a dona da voz
calma e segura, apesar do comportamento mais irracional que já
conheci.
A visão a minha frente me surpreende um pouco. Esperava
alguém mais… menos… merda. Não esperava encontrar ela.
A primeira coisa que reparo na proprietária é o cabelo. Um tom
vibrante de laranja amarronzado, ou vermelho acobreado, não sei
bem definir que cor é, com a ousadia de cachos soltos, livres,
caindo por toda a parte, cheios de personalidade como se
possuíssem vida própria.
Em seu rosto, não há qualquer vestígio de maquiagem na pele
salpicada de pequenas manchinhas marrons, e ainda assim, é
corada, lábios e bochechas tomados por um rosado saudável. Mas
o que me prende mesmo são os olhos grandes cor de esmeralda,
semelhantes a uma de suas pedras, embora muito mais brilhantes.
Sob o sigilo dos óculos escuros, corro um breve olhar por seu
corpo, mais cor, mais vida nas roupas. Uma estranha mistura de
tons vibrantes e texturas fora de moda, mas que
surpreendentemente nela caem bem.
Não sei o que esperava encontrar, mas não era esse…
carnaval alegre. E não sei se gosto, é como se toda essa energia
que vibra dela confrontasse a sobriedade em mim.
Meu cérebro não está fazendo nenhum sentido, eu sei.
Mas o da proprietária, pelo jeito, começa a fazer algumas
conexões, a partir da maneira como me avalia e em seguida franze
ligeiramente o cenho. O nariz entorna um pouquinho para o lado,
como se eu cheirasse mal.
Bem, acabo de perder o elemento surpresa. O que é ótimo.
Não me senti confortável com ele, de todo modo. Era o mesmo que
tirar vantagem, e não é assim que jogo.
— Posso ajudar? — pergunta ela, pondo as mãos na cintura.
Não há mais qualquer receptividade em sua voz agora.
— O que você vende aqui?
De todas as perguntas, é o que sai.
— Pensei que estivesse escrito na placa lá fora.
— Sim, algo sobre produtos naturais para terapia holística.
Mas o que é isso? — soo meio arrogante, percebo, e não desfaço o
mal-entendido.
— Você quer saber o que é Terapia Holística? — sem dizer
exatamente que sou um ignorante, seu tom um pouco
condescendente me chama de ignorante.
Confirmo com a cabeça, em resposta. Por alguma razão idiota,
gosto do confronto com essa estranha.
— Bem, neste caso… — Vira-se. Vai ao expositor de livros e
retira um exemplar. — Recomendo que leia. Custa 39,90. —
Segura-o com a capa virada para mim.
“Terapia Holística para iniciantes. Conceito e definições:
tratando problemas e doenças a partir de uma visão global do ser
humano, para um equilíbrio físico, emocional e energético.”
— Se o autor acrescentasse mais algumas palavras a este
título, não seria necessário ler o livro — aponto, impassível.
Não perco a maneira como seus lábios se apertam, segurando
uma risadinha. Apesar de contrariada, ela encontrou humor no que
eu disse e gostou – ainda que alguns possam afirmar que humor é
tudo o que não tenho.
Detenho meu olhar por um pouco mais de tempo em sua boca.
É carnuda, larga. Possui o formato de um coração cheio.
Apesar de protegido pelos óculos escuros, a proprietária
parece perceber isso. Perceber que não consigo tirar os olhos desta
parte de seu rosto.
Ela levanta o queixo.
— Agora que sabe o que fazemos — diz no plural, quando
tenho informações de que é somente ela na loja. Sem funcionários
ou sócios. — Posso ajudar?
— Por que se recusa a vender esse lugar? — Vou direto ao
ponto.
— Rá, eu sabia! — Aponta um dedo acusatório para mim. —
Sabia que você era de lá! Senti sua energia assim que atravessou a
minha porta!
— Minha energia? — Arqueio a sobrancelha.
— Arrogante, esnobe, fria!
— Minha mãe ficaria ofendida. Ela diz que sou gentil, justo,
generoso — provoco, tranquilamente.
— Justo e generoso — repete num leve tom de desdém. — E
pelo visto mandaram cavalaria pesada desta vez. — Percorrendo-
me com os olhos, debochada, ela assovia exagerada. — O que é
agora, disseram que se enviassem um bonitão eu mudaria de ideia?
Um sorriso involuntário escapa de mim. A mulher é direta, não
dá para negar.
— Obrigado pela parte que me toca, senhorita.
— Não foi um elogio.
— Eu sei.
— E minha resposta é não. Diga a eles que desejo boa sorte
na próxima tentativa. Quem sabe o Papa me faça mudar de ideia,
sim?
O Papa, hein?!
— Acha que Sua Santidade se deslocaria até sua loja de
mandingas?
— Mandingas?! — Seus olhos esmeralda se arregalam
ultrajados.
Merda, para minha completa surpresa, gosto disto. De tirá-la
dos trilhos.
— Óleos, incenso, pedras — dou de ombros tranquilamente
—, para mim, é o que parece.
Noto a pontinha de seu nariz avermelhar.
— Ora seu…, seu…!
— Arrogante, esnobe, frio — repito suas acusações.
— E prepotente! — acrescenta ela, cruzando os braços em
frente ao peito.
— E — aproximo-me um passo dela, devagar, quase que sem
poder evitar — o homem que veio para falar sobre negócios com
você. Trazer alguma razão a essa sua ideia tola de permanecer
aqui, quando todos os seus vizinhos já se foram.
— É mesmo?
Faço um aceno monótono de que sim.
— Compraremos sua loja, Zaira. Cedo ou tarde.
Ela cruza os braços diante dos seios. As pedras esmeraldas
em seus olhos se escondem parcialmente pelas fendas estreitadas.
— E fará isso como, se posso perguntar, bonitão? Porque
imagino que tenha um plano para me obrigar, já que, de outra forma,
não tenho a menor intenção de vender para você ou quem quer que
seja.
Dou de ombros, sem parar de observá-la por um só instante.
Minhas mãos coçam por devolver um cacho rebelde para detrás de
sua orelha. Um sentimento bem questionável, eu sei.
— Não usaria o termo “obrigar”. Mas, pensando a este
respeito, temos contatos nessa cidade. Há meios de pressioná-la se
eu desejar. Até esse momento estou sendo justo com você. Te
dando a chance de aceitar um bom acordo, aliás, muito mais do que
essa espelunca vale, e sabe disto.
Sinto que a ofendi quando a mulher sacode a cabeça surpresa
e insultada, passando a língua pelos dentes da frente, como se mal
acreditasse em seus ouvidos.
Meus olhos acompanham tudo, atentos.
— Espelunca?
— Que pode muito bem funcionar em qualquer rua de bairro
por aí.
— Mandigas e espelunca — repete, só que desta vez, soa um
pouco ameaçadora.
Ignoro o pequeno desejo de continuar a irritá-la até saber seu
limite. Não me lembro da última vez que alguém me fez sentir
instigado assim. É bom, na verdade, me lembra de que não estou
engessado por dentro, não totalmente, pelo menos. Levando uma
vida sempre regrada, fazendo exatamente o que é esperado de
mim, como primogênito, é fácil esquecer que nem tudo precisa ser
levado tão a sério.
Minha adversária faz um sinal com a mão, de espere aí, e
avança calmamente para detrás do balcão. Sigo-a, do lado de cá.
Ela se abaixa e some de vista.
Confiro um porta-cartões de visita na bancada. Pego um e o
leio.

Zaira Tavares
Terapeuta holística.
Shiatsuterapia | Cristaloterapia | Aromaterapia

Abaixo, há seu número de telefone e um endereço de site.


Enfio o cartão no bolso. Pego uma caneta de um pote e rabisco no
verso de outro de seus cartões meu nome e contato. Poderia
entregar-lhe um dos meus próprios, mas duvido muito que ela não o
rasgaria em pedacinhos diante do meu rosto.
De repente, Zaira – um nome que até que combina com ela –
se levanta trazendo em suas mãos uma exuberante pedra de
aproximadamente trinta centímetros de diâmetro, sem lapidação.
Negra. Opaca. Sem qualquer sinal de transparência ou reflexo de
luz.
A mulher deposita aquela pedra cerimoniosamente no balcão
entre nós. Seu rosto sério, queixo erguido, olhar misterioso
parecendo saber algo que ainda não sei.
Não gosto muito de sua expressão.
— Que pedra é essa? — questiono adotando um pouco de
cautela.
— Uma obsidiana negra — responde ela, com um toque de
enigma e autoridade que me faz espreitá-la de olhos semicerrados.
— É mesmo? — finjo desinteresse.
Há algo de ameaçador no modo como ela de repente me
encara, ou é impressão minha?
— Obsidianas agem como imã de forças espirituais. São
capazes de expor nossas falhas de caráter, mostrar o mal que já
fizemos. E elas têm um poder: nos despir de nosso egoísmo, nossa
soberba. Esta pedra evoca humildade com métodos que podem não
ser de nossa vontade, digamos assim. Embora sejam necessários.
Que baboseira sem tamanho.
— Você está falando como uma bruxa — provoco,
propositalmente cínico.
O sorriso que se abre na boca de coração tem, de um instante
para o outro, a estranha capacidade de mexer comigo de um jeito
desconfortável. É diabólico e angelical, ao mesmo tempo, se é que
isso é possível.
Parecendo encarar o fundo dos meus olhos – apesar da
proteção dos óculos escuros – tomada por um brilho triunfante de
alguma coisa que ainda não consigo identificar, Zaira coloca uma
mão espalmada sobre a pedra.
— Neroli avashyak tel — dizendo nada com nada em um
idioma que nunca ouvi, mas cada palavra com grande solenidade,
ela esfrega a pedra, enquanto sua expressão vai se equiparando à
de uma assassina em série. — Entre o último pôr do Sol e o próximo
alvorecer, nada mais será como antes para você. Neroli avashyak
tel. Entre o último pôr do Sol e o próximo alvorecer, nada mais será
como antes para você. Neroli avashyak tel. Entre o último pôr do Sol
e o próximo alvorecer, nada mais será como antes para você.
O quê?
— O que está fazendo?
Após um longo instante, Zaira pisca forte, então inspira
profundamente, parecendo esvaziar, muito satisfeita consigo
mesma.
— Seu castigo.
— Meu cast… como assim, meu castigo?
— Você tem razão sobre uma coisa… — Os olhos baixam para
minhas informações, as que anotei para ela, e lê meu nome. —
Santoro. Eu faço mandingas, se é assim que prefere chamar. E
acabo de fazer uma para você.
— Ah, é?
— Aham — responde com segurança e um tipo de serenidade
que me inquieta um pouco.
— E o que vai acontecer? Vou sair daqui e cair duro lá fora?
Maldosamente, a irritante Zaira Tavares lambe o lábio inferior,
quase, quase me distraindo.
— Tsc, tsc. — Estala a língua em negativa.
— “Tsc, tsc”? — Que diabos isso quer dizer?
— Não é você que cairá. Quero dizer, não todo você. — Olhos
maliciosos descem por meu corpo até… porra, até minha virilha. —
E a parte do duro, que questionou? Esqueça. Nunca mais ficará.
— Está dizendo que… mulher, está dizendo que fez uma
mandinga para o meu pau não levantar mais?
— Na mosca, bonitão.
Sacudo a cabeça.
Inacreditável.
Sério, que tipo de pessoa adulta age assim?
— Você é maluca.
— Se você acha.
— E irracional.
Dá de ombros, me encarando com enorme atrevimento e
nenhum abalo.
— E tola, se quer saber.
— Maluca, irracional, tola. Há mais algum adjetivo que queira
mencionar, Sr. Santoro?
Zaira está brincando com essa situação toda. Pois bem, se é
assim que ela quer, ótimo. Não pode dizer que não tentei.
Retiro os óculos escuros, para que ela possa enxergar com
toda a clareza a seriedade do que vou dizer.
— Escute bem, senhorita Tavares. Não vim com a intenção de
discutir ou brigar. Vim porque achei que precisava, eu mesmo, tentar
pôr um pouco de juízo em sua cabeça e mostrar o quanto o que
estamos oferecendo é financeiramente vantajoso para sua loja. Mas
já que prefere brincar de charlatanismo comigo, ok. É do jeito difícil
que quer? É o que terá. Por bem ou por mal, esse pedaço de
terreno também será nosso, ouviu bem?
— Acompanhe meus lábios, bonitão — aponta para a maldita
boca de coração —, NUN-CA.
— Isso, continue com essa atitude infantil e irritante, e vamos
ver aonde vai parar.
— Já disse tudo o que precisava? Ótimo, então a porta é bem
ali. Adeuzinhoooo. — A bruxa tem a capacidade de cantarolar,
cantarolar para mim, é mole?
Sacudo a cabeça, sem acreditar nessa merda.
Essa mulher é maluca!
— Muito bem. Depois não diga que não foi avisada!
Pisando duro, pouco me reconhecendo – visto que
normalmente sou muito mais centrado e racional do que isso –,
marcho para a porta da espelunca.
— Você ficará velho e ainda me verá aqui, Santoro — ela
ainda grita atrás de mim. — Serei seu lembrete de que não
conseguiu. Seu carma!
Curitibana, mãe de uma menininha fofa, formada em
Administração pela PUC/PR, escritora e leitora voraz apaixonada
por romances.
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sociais e na Amazon indicando-o para futuros leitores.
Obrigada!
[1] Tradução: Homem (Espanhol).
[2] Tradução: Vá dormir, meu garotinho, que sua mãe não está em casa; que a Virgem a

levou como um companheiro para sua casa (Espanhol).


[3] Tradução: Vá para o inferno – (Espanhol)
[4] (do alfabeto cirílico) – Tradução: Diamante (Russo).
[5] Нахуй! (do alfabeto cirílico) – Tradução: Porra (Russo).
[6] Menina (Espanhol).
[7] Menina (Espanhol).
[8] (do alfabeto cirílico) – Tradução: Inferno na terra (expressão russa).
[9] девчонка (do alfabeto cirílico) – garota (Russo).
[10] Это было проклятие (do alfabeto cirílico) – Tradução: Isso é uma maldição – (Russo).
[11] Tradução: Ei, irmão – (Espanhol).
[12] малышка (do alfabeto cirílico) – Tradução: Bebê (fem. – modo carinhoso).
[13] мой Алмаз (do alfabeto cirílico) – Tradução: Meu diamante (Russo).
[14] Tradução: Deus (Espanhol).
[15] Tradução: avó (Espanhol).
[16] Tradução: bolinhos de vento (Espanhol).
[17] негодяй (do alfabeto cirílico) – Tradução: patife (Russo).
[18] отец (do alfabeto cirílico) – Tradução: mamãe (Russo).
[19] пáпа (do alfabeto cirílico) – Tradução: papai (Russo).
[20] бабушка (do alfabeto cirílico) – Tradução: avó (Russo).
[21] внучка (do alfabeto cirílico) – Tradução: neta (Russo).
[22] Спасибо (do alfabeto cirílico) – Tradução: Obrigado (Russo).
[23] Tradução: Bonita, querida (Espanhol).
[24] тáнец (do alfabeto cirílico) – Tradução: Dance (Russo).
[25] Когда мы были на войне (do alfabeto cirílico) – Tradução: Quando estávamos em

guerra (música tradicional russa).


[26] Tradução: idiota, bastardo (espanhol).
[27] Rifle Winchester é um rifle de repetição por ação de alavanca, fabricados pela

Winchester Repeating Arms Company, que foi usado extensivamente nos Estados Unidos
durante a última metade do Século XIX.
[28] Я люблю тебя, малышка (do alfabeto cirílico) – Tradução: Eu te amo, menina

(Russo).
[29] Música: Como a água, como a água, como a água, como a água límpida que desce da

montanha, é assim que eu quero te ver, dia e noite (Espanhol).


[30] Здравствуй (do alfabeto cirílico) – Tradução: Olá (Russo).
[31] У тебя красивые глаза (do alfabeto cirílico) – Tradução: Seus olhos são lindos

(Russo).
[32] Малыш акула (do alfabeto cirílico) – Canção infantil muito popular cuja tradução é:

Bebê tubarão (Russo).


[33] акула (do alfabeto cirílico) – Tradução: Tubarão (Russo).
[34] Tradução: Bebê tubarão (popular canção infantil em inglês).
[35] мама (do alfabeto cirílico) – Tradução: Mãe (Russo).
[36] Tradução: Graças a Deus Pai (Espanhol).
[37] Mikhail Sergeevitch Gorbatchov é um estadista e político russo. Oitavo e último líder

da União Soviética.
[38] Tradução: Olhe (Espanhol).
[39] Tradução: Presunto (Espanhol).
[40] Tradução: referente a um cheiro ruim, fedor (Espanhol).
[41] Tradução: odor (Espanhol).
[42] Tradução: Tem um cheiro delicioso (Espanhol).
[43] Когда мы были на войне. Там каждый думал о своей Любимой или о жене (do

alfabeto cirílico) Tradução: “Quando estávamos em guerra, quando estávamos em guerra,


lá cada um pensava em sua esposa ou sua amada” (trecho de popular canção russa).
[44] И я, конечно, думать мог. Когда на трубочку глядел На голубой ее дымок (do

alfabeto cirílico) – Tradução: “Eu também poderia estar pensando nela, quando estava
observando as chamas azuis do isqueiro e a fumaça abafada” (trecho de popular canção
russa).
[45] пойдем со мной! (do alfabeto cirílico) – Tradução: Vem comigo! (Russo).
[46] Tradução: Pequena praça do morro, crianças brincam de touro e o mais novo, não

tendo um trapo sem pano, ele fica em um canto chorando sozinho (canção espanhola: Dos
Toreros /Remedios Amaya).
[47] Tradução: As pessoas saem na rua, elas batem palmas, primo, le le le eles batem

palmas, eles batem palmas (canção espanhola: Dos Toreros /Remedios Amaya).
[48] Tradução: Que a paz esteja sobre vós (expressão árabe).
[49] Tradução: Esteja a paz de Deus sobre vós também (expressão árabe).
[50] Tradução: Está tudo bem, menina (Espanhol).
[51] Tradução: Mãezinha (Espanhol).
[52] Tradução: Meu carinho (Espanhol).
[53] Почему они здесь? (do alfabeto cirílico) – Tradução: Por que eles estão aqui? (Russo)
[54] Они для нашей безопасности, бабушка, я объясню позже (do alfabeto cirílico) –

Tradução: São para nossa segurança, vovó. Depois explico (Russo).


[55] Utensílio culinário de origem russa utilizado para aquecer água e servir chá.
[56] внук (do alfabeto cirílico) – Tradução: neto (Russo).
[57] Бог (do alfabeto cirílico) – Tradução: Deus (Russo).
[58] Tradução: Estou com você, minha irmã. Sempre estarei (Espanhol).

[59] Tradução: Chá faz bem (Espanhol).


[60] (do alfabeto cirílico) – Tradução: carvalho (Russo).
[61] (do alfabeto cirílico) – Tradução: Banho (Russo).
[62] (do alfabeto cirílico) – Tradução: Não (Russo).

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