Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
***
— É aquela.
A casa mais degradada da vizinhança. Telhado faltando telhas,
mato alto tomando conta do quintal, tinta descascada, janelas
lacradas por tábuas podres. A velha construção de madeira não vê
um bom reparo há décadas. Fico me perguntando como é que
ninguém se questiona o tipo de gente que vive numa situação
assim.
— Vou pelos fundos — Ed se adianta, sacando a pistola de
dentro da jaqueta e se esgueirando pelo vão entre a casa e o muro
vizinho.
Sebastian faz sinal para que Bola meta o pé na porta.
Em questão de segundos, estamos dentro do lugar. E é o
mesmo que ser transportado a um cenário de filme de terror barato.
O interior parou no tempo. É escuro, fede a mofo e algo semelhante
a naftalina. Mobília velha. Um horripilante papel de parede florido.
Tão feia quanto o saco austero de ossos feminino parado sob o
umbral, pele seca, olhos afundados em manchas escuras
arregalados de choque.
— Quem são vocês…? — grita, horrorizada.
— Perdeu, perdeu, porra! — avisa Bola. — Vai sentando e
calando a boca, vamos, vamos, vamos! — Empurra-a para o velho
sofá estampado.
Fecho a porta com tranquilidade. Ao fazê-lo, somos cercados
pelo breu. As tábuas lacrando a janela bloqueiam completamente a
luz do sol.
— Ah, diabos! Que merda de lugar escuro e fedido é esse? —
reclama Bola enojado. — O que é que essa gente tem contra deixar
o ar puro entrar?! Não dá para respirar aqui, porra!
O cara de aparência assustadora, que já frequentou mais
becos e vielas nas entranhas do submundo do que é capaz de
lembrar, é claustrofóbico, é mole?
— Relaxe, irmão — digo —, seremos breves.
Com o cabo da arma, bato no disjuntor de luz amarela
trepidante.
Paro à frente da mulher e apenas a observo por um momento.
A conversa que tive com Penélope, alguns dias atrás, na varanda da
casa da avó de Sebastian, vem à mente. Mal acredito que agora,
finalmente, estou aqui, onde a espanhola passou por tudo aquilo.
Arrisco um olhar para meu amigo, ciente de que
compartilhamos a mesma energia. Ele fita a velha sombriamente
calado, escorado à parede. Pelo modo como comprime a
mandíbula, sei da fúria correndo em suas veias. Nada de bom
espera os Molina pela frente.
Aproximo-me um passo dela.
Noto que se encolhe.
— Olá, minha senhora — cumprimento, cordial. — Como vai?
— Q-quem são vocês?!
— Digamos que não deva nos considerar seus amigos. Há
mais alguém nesta bela casa, além da senhora?
— O-o que querem?
— Responda.
Antes que a mulher volte a abrir a boca, o som de passos
desuniformes vem rangendo o chão através de um corredor estreito.
Desço meu olhar para a perna do velho. É manco.
Ed vem logo atrás dele, com a arma apontada para suas
costas.
— Peguei um dos ratos tentando escapar pelos fundos.
— Quem são vocês? — exige o pedaço de merda.
Não deixo de notar que até o modo como se vestem mostra
que essa família parou no tempo.
Ed empurra-o com um tranco pesado para o lado da esposa.
— Aqui você não faz pergunta, idiota. Cadê seus filhos? Onde
eles estão, vamos, fale!
— Vocês não pod…
— Faça uma busca na casa — ordena Sebastian a Bola.
Assentindo, o cara sai derrubando portas. Não demora dois
minutos, vem carregando uma réplica jovem do velho manco.
— Escondido debaixo da cama — zomba Bola, segurando o
sujeito pela gola puída.
É então que Sebastian finalmente se desloca. Lento. Olhar
nublado pela ira.
— Qual deles é você?
— Eu já chamei a polícia! — blefa, o cagalhão.
Calmo, e mais letal do que nunca, Sebastian gira a cabeça,
alongando o pescoço de um lado, depois do outro.
Quase me compadeço desse Molina.
— Fiz uma pergunta — exige. — Qual. Deles. É. Você?
— Vete al carajo[3]… — antes que ele conclua o insulto, sem
aviso Sebastian desfere um golpe seco no fundo do estômago do
imbecil.
Bola assovia, elogiando o som de ossos se chocando contra
carne.
— Quem. É. Você? — repete Sebastian, a boca perto da
orelha do cara debruçado sobre seu punho.
— Sal… — o Molina tenta, sem ar, avermelhado pela dor.
— Não entendi. Pode, por favor, dizer mais alto?
— Salvador — murmura sem forças.
— O mais velho?
— Sim — sopra com dificuldade.
Meu amigo sorri. Conheço esse sorriso. Contém a nota dura e
cruel de um prenúncio.
— Finalmente tenho você.
Com uma cabeçada, arrebenta o nariz do infeliz. E de novo, e
de novo, uma sucessão de golpes duros, violentos. Os punhos de
Sebastian são uma arma muito mais danosa do que a misericórdia
de sua Skyph 9 milímetros.
É o começo do fim para essa família.
De repente, um barulho quase imperceptível nos fundos da
casa chama a minha atenção. O rilhar de uma dobradiça. Faço um
sinal para Ed, avisando que eu mesmo irei verificar. Engatilho a
pistola e, pé por pé, vou silenciosamente atrás da origem.
Na cozinha suja, nos fundos da casa, encontro algo que não
combina com uma família que se esconde detrás de janelas
lacradas.
— Ed, por acaso essa porta estava aberta? — grito.
— Não — afirma colado às minhas costas. O cara é bom em
se aproximar sem ser notado.
Dou uma risada.
— Então acho que temos outro rato fujão.
— Diabos, logo hoje. Essa calça é nova.
Sem precisar de um comando, passa por mim e, com
facilidade, escala a cerca dos fundos e some de vista. Se depender
da habilidade do cara em caçar, esse Molina não tem a menor
chance.
Prestes a retornar à sala, sou detido por um novo ruído; baixo;
semelhante ao tilintar de uma corrente.
Aguço bem os ouvidos e vou escaneando o cômodo até avistar
a porta velha, trancada do lado de fora por um cadeado, além das
escoras de madeira atravessadas em cima e embaixo.
Com duas passadas largas, me aproximo e forço o cadeado.
Não cede.
Saco a pistola, desfiro um disparo abafado pelo silenciador
contra o metal. A coisa explode, ruidosa. Retiro as duas tábuas e
chuto a porta aberta.
Tudo escuro e fedido no pequeno anexo com no máximo
quatro metros quadrados, também. Janelas lacradas. Silencioso.
Exceto por uma respiração acelerada.
Semicerro os olhos e os ajusto à penumbra. Demora para o
formato, diante de mim, fazer sentido.
Mas… mas que porra é essa…?!
De tudo o que já vi na vida, e não foi pouca coisa em meu
trabalho recuperando pessoas traficadas das mãos da escória, ou
na linha de combate das FAR, dificilmente algo me fez recuar um
passo, como agora.
Preciso me concentrar em tentar compreender tudo o que
meus olhos enxergam: a cama estreita. A corrente ligada à parede
ao lado da cama, prendendo… prendendo uma criança pelo
pescoço.
Maldição!
Sem poder evitar, tenho de me escorar ao batente e sorver
uma respiração profunda para então assimilar a figura sobre o
colchão fino. Pequena, composta por nada além de trapos e um
cabelo imenso, negro, escorrido escondendo o rosto. Não preciso
vê-la por inteiro para saber que está subnutrida.
Penélope não foi a única menina adotada por essa maldita
família para ser abusada. A constatação ferve e sacode todos os
ossos de meu corpo.
— Bando de filhos de uma…! — sibilo, rígido por uma fúria
crescente. Mas me calo quando a figura à minha frente reage à
minha voz.
Sobre a cabeleira negra suja, a mão de dedos finos cria
timidamente uma fenda por entre os fios.
Estático, apenas espero seu próximo movimento.
E quando ele acontece, porra, sei, apenas sei, que esse
momento ficará gravado em minha memória enquanto eu viver: o
dia em que um par de olhos acinzentados e incríveis encontrou os
meus com mais dor do que um ser humano deveria ser capaz de
suportar.
E basta isso, essa visão, para que eu decida atear fogo até no
último rastro de que um Molina esteve nessa terra.
Mas não sem antes fazê-los pagarem como merecem.
***
Três dias, três longos dias desde que a trouxemos para essa
clínica sem que a menina esboce qualquer reação. “Ela está em
estado de choque” explicou Saavedra, uma das médicas, “não falar
e bloquear-se é um tipo de defesa natural do cérebro. Chamamos
de Transtorno de Estresse Pós-Traumático”.
“Quanto tempo isso dura?” perguntei e recebi em troca um
olhar agudo de reprovação. “Quanto tempo ela precisar” foi tudo o
que a maldita doutora respondeu, ácida, contrariada. Sei suas
opiniões a meu respeito, as de Saavedra e Cassandra, terapeutas e
sócias da clínica. Vi a relutância em aceitarem minha exigência de
sigilo na admissão de Amália. Por elas, teriam chamado a polícia.
Precisei desembolsar uma grana alta e comprar o silêncio das
mulheres, apesar de elas não encararem assim.
Talvez ainda desconfiem que sou o responsável por degradar a
menina desse jeito. Se soubessem que quando penso nisso, que
quanto mais penso nisso, mais gostaria de ter prolongado a morte
daqueles malditos! Ter arrancado suas vísceras devagar e
metodicamente. Era o que mereciam, porra.
Coço a nuca, estocado no corredor do lado de fora do quarto
onde Amália está. Esse é o nome da menina, um que agora
sabemos. Sabemos tudo sobre ela. Ed encontrou os documentos da
adoção, levantou seu histórico. Ao contrário do que cheguei a
acreditar quando arrombei a porta daquele cômodo imundo onde ela
era mantida, Amália não é uma criança, é uma jovem de dezoito
anos, dezenove em alguns dias. Uma jovem que teve a vida
roubada.
Que tipo de animal desgraçado faz o que eles fizeram com
ela?
Privaram-na de comida, de comida, porra, o básico!
Se eu pudesse, arrancaria dela qualquer dor ou memória.
Devolveria os anos perdidos de sua infância e adolescência, a vida
que uma garota normal deveria estar vivendo, impedida por aqueles
doentes. Mas, dentre todas as coisas que posso fazer, isso não está
em meu alcance.
Foda.
Meu telefone tocando é o que consegue dissipar um pouco da
energia mortal que me faz apertar os punhos.
Sebastian.
— Fale — rosno, mentalmente fodido, sem fazer nenhuma
questão de esconder dele.
— Onde você está?
Encaro as botas em meus pés.
— Você sabe onde.
Seu silêncio do outro lado me diz mais do que eu gostaria de
saber. Do que gostaria que ele soubesse. Meu irmão certamente
está preocupado com a minha reação no que diz respeito a essa
menina. Não consigo evitar. Amália é… porra, ela é um anjo caído
nessa terra de merda, um lindo anjo de olhos cor de gelo. Gelo, não.
É mais precioso do que isso. Um tom único de cinza, valioso,
doloroso. Алмаз[4]. Seus olhos são como diamantes. De alguma
forma, sinto que é minha obrigação protegê-la, agora que a
encontrei. Não posso permitir que aquela dor a consuma, a
consuma mais do que já consumiu. É um tipo de dever cuidar dela,
como se… como se isso fosse tudo o que fui preparado para ser por
uma maldita vida inteira.
Aperto minha nuca com força. Talvez Sebastian tenha razão,
devo estar ficando louco mesmo. E não posso evitar.
— Penélope quer vê-la — avisa ele.
Penélope, a mulher do cara. Por quem viemos a Madri.
Ela já foi adotada por aquela família. Provavelmente passou
pelo mesmo que Amália.
— Acha que será bom pra ela? — Não me importo que a
urgência em minha voz denuncie minha esperança de fazer alguma
coisa por essa menina.
A franqueza dura do cara, de algum modo, é esperada:
— Nada será capaz de mudar as coisas como são, não depois
de como a vi. Essa menina não pode mais ser resgatada do lugar
em que os desgraçados a colocaram.
Fecho os olhos e inspiro devagar para aplacar a raiva. Para
não focar no peso do que ele diz.
E Sebastian parece saber disto, saber o que significa para
mim. Sua voz baixa uma nota, quando retorna.
— Talvez haja uma chance. Penélope é determinada. Se ela
quer ajudar, fará tudo o que for necessário para isso. Elas têm algo
em comum.
— Quando? — indago.
— Ela está no banho. Acho que pretende fazer isso ainda hoje.
Partiremos para o Brasil em dois dias.
Brasil.
Sair de Madri agora…
— Nahuí[5] — praguejo baixo.
— Não quero que viaje comigo, cara. Falarei com Ed e Bola
para que fiquem também.
Não digo nada a esse respeito. Não por telefone, não agora.
Então trato de apenas resolver primeiro a questão da visita de
Penélope. Quem sabe seja bom para a Amália.
— Vejo vocês daqui a pouco.
— Elliot? — chama ele antes que eu desligue.
Merda.
— Fale.
— Odeio ser aquele a te dizer isto, mas… tenha cuidado.
Volto a apertar o punho, repelindo o maldito alerta.
— Não pedi um conselho, Sebastian. — Desligo de uma vez.
Não conto que parte de mim, depois destes três dias aqui com
dela, desconfia que já é tarde. Que não dá mais para voltar atrás e
fingir que essa menina, do outro lado da parede, não está se
tornando alguém importante para mim. Importante a ponto de eu
não conseguir deixá-la sozinha ali.
Guardo o aparelho no bolso e dou dois passos em direção ao
parapeito de balaústres, observando o lago lá embaixo, me
perguntando se eu deveria entrar no quarto e tentar falar com ela
mais uma vez, contar que terá visitas em breve.
A menina não fala comigo. Não fala com ninguém. Mal se
levanta da cama.
Isto está me matando. Ver a luz apagada dentro de seu olhar,
a desesperança.
Agarro a superfície de cimento frio e inspiro profundamente o
ar que vem por entre as copas das árvores altas, antes de me virar
e fazer isto, entrar lá e tentar de novo.
Não vou desistir dela, meu interior determinou isto, espalhou
essa certeza dentro de mim como células surfando em meu sangue.
Bato duas vezes, e como sei que não terei uma resposta,
entro.
Ela está na cama, na mesma posição de antes, como se
apenas seu corpo repousasse ali. A mente, não.
Linda, quase que sobrenaturalmente linda. Triste. Ferida.
— Oi. — Limpo a garganta, afastando a rouquidão e
modulando meu tom para não a assustar, não ativar algum tipo de
medo.
Não quero jamais que tenha medo de mim, embora minha
aparência não ajude muito neste quesito.
Confiro a comida, intocada, na mesa do quarto de paredes
brancas.
— Também não gostei da sopa daqui — brinco, suavemente.
— Acho que nem eles gostam. Desconfio que enquanto servem isto,
estão comendo hambúrgueres dentro daquela cozinha. Posso? —
pergunto apontando a cadeira.
Não recebo um sim.
Mas recebo algo.
Algo que para alguns é nada, mas para mim, tudo. Um baixar
da cortina de cílios grossa. Quase um assentir.
Sento-me na cadeira, com o corpo para frente, apoiando os
antebraços nos cotovelos.
— Para ser sincero, tenho aversão à sopa. — Busco dizer a
primeira coisa aleatória que me vem à mente, é uma maneira meio
desesperada de transmitir a ela a ideia de que estou aqui como um
amigo, alguém em quem ela pode confiar. — Em meu primeiro ano
nas Forças Armadas, ficamos presos em uma nevasca que durou
quase trinta dias. A comida havia praticamente acabado, tudo o que
nos restava era meter qualquer coisa comível dentro de um
caldeirão e tentar tornar aquilo palatável, chamando de sopa. Sopa
de gravetos foi meu limite, ainda bem que aquele foi o último dia
antes de conseguirmos dar o fora de lá.
Amália não esboça qualquer reação ou comentário, só que,
olhando para ela tão atentamente quanto estou, percebo que está
comigo. Seu corpo relaxa um pouco, quase que imperceptivelmente.
— Se bem que eu não rejeitaria uma Harira marroquina. O
cordeiro vale a pena. Espero um dia poder mostrar a você o que é
uma sopa de verdade. — Essa última declaração é intencional.
Quero que saiba que há futuro para ela, uma vida inteira a
esperando lá fora.
Meu olhar é guiado para a marca em seu pescoço fino. A
maldita marca de uma coleira. Amaldiçoo a existência dos Molina
mentalmente mais uma vez.
Especialmente daquele que rasgou seu braço com um nome,
uma tatuagem rudimentar, grosseira, fodida.
Pego a percepção de que ela sabe a direção de meu olhar e
pensamento. Enxergo a humilhação em seu rosto, uma que me
rasga por dentro. Principalmente quando a vejo enterrar as unhas
na palma da mão.
Aliso minhas pernas, me preparando para levantar. Sebastian
e Penélope já devem estar chegando.
— Volto em breve — Preciso de ar. Preciso socar alguma
coisa, porque a outra opção é trazer aquela família desgraçada de
volta à vida só para matá-los outra vez. E isso, infelizmente, sou
incapaz de fazer, não importa o quanto deseje.
. Em poucos minutos, os encontro subindo os lances de
escada em direção ao corredor aberto ladeando os quartos da
clínica. Penélope e Sebastian, de mãos dadas, unidos como deveria
ser. É bom saber que se entenderam. Que um dos caras que
considero irmão finalmente se permitiu aceitar o lugar que aquela
mulher forjou em seu peito, em sua vida.
— Oi, Elli. — Penélope me abraça, apesar do sorriso, noto o
nervosismo em seu rosto.
— Oi, espanhola.
— Onde ela…?
Aponto para o quarto.
Ela respira fundo.
Pego-me fazendo a mesma coisa.
Penélope alisa as mãos nas laterais da calça.
— Será que…?
— Acho que será bom — decreto, compreendendo a direção
de seu questionamento.
— Tudo bem, então. — Sorvendo mais uma inspiração forte,
levantando a cabeça, a espanhola se prepara para o que encontrará
naquele quarto. Presumo que faça uma ideia. Que já tenha estado
nesta mesma situação em algum momento.
Com uma batida suave, e um incentivo meu, ela entra no
quarto.
Enquanto conversam, fico do lado de fora, me controlando
para não andar de um lado para o outro.
— Ela mexeu mesmo com você, não é? — observa Sebastian,
tranquilo, dando-me aquele escrutínio sombrio.
— Não da maneira como pensa — rosno, sentindo a
necessidade tola de descartar qualquer tipo de interpretação errada
do que ela, do que Amália, significa para mim. Não a quero desse
jeito, isso não tem a ver com alguma atração estúpida.
O cara continua a me encarar.
— Não quero que quebre seu coração, irmão.
É a primeira vez que usa esse tom comigo. Uma mistura de
condescendência e aceitação. Dou a ele um sorriso de escárnio.
— Há quem diga que não tenho coração.
Sebastian sacode a cabeça, algo salpica em seus olhos
escuros. Algo que afunda uma pedra em meu estômago.
— Você tem. De todos nós, é o que tem. E é por isso que sei
que aquela menina já está muito mais enraizada aí do que você
sabe, ou gostaria de admitir. Vejo sua relutância em deixá-la, e algo
me diz que sua decisão está tomada sobre o que fazer.
Desvio meu olhar do dele, incapaz de permitir que continue.
Que verbalize o que ainda não estou pronto para ouvir. Que
não vou deixar essa menina, enquanto ela precisar de mim.
Não importa o que aconteça.
Amália agora é minha responsabilidade, minha para proteger.
AMÁLIA
Um ano antes
Agora
Graças a Deus!
Obrigada por isso, meu amigo
Idiota.
Vá buscá-la.
Elliot
As marcas arroxeadas debaixo dos olhos cinzas que se
arregalam ao som de minha voz denunciam que não dormiu à noite.
O receio e certa mágoa que vejo refletidos nas esferas magníficas
dizem que está chateada comigo. Mas o que me abala de verdade é
descer o olhar por toda ela, num escrutínio rápido, e encontrar as
malditas marcas.
Ela trouxe as porcarias com ela. De tudo o que poderia pôr na
mochila, Amália decidiu não deixar as lâminas para trás.
— Bom dia. — Visto uma máscara plácida, que esconde o
quanto a automutilação me incomoda, e entro na cozinha.
— Oi, Elliot — ela resmunga, a atenção volta para a tigela
sobre a mesa.
— Soube que teve um dia diferente, ontem… — comento,
puxando uma banqueta e me sentando de frente para ela.
Mal acreditei quando recebi o vídeo que Ed me enviou. Amália,
numa versão nova, destituída de toda a carga que a cerca, correndo
descalça pelo gramado, ensaboada, parecendo uma criança. Vi e
revi aqueles dois minutos de gravação mais vezes do que sou capaz
de admitir. E me peguei sorrindo também.
Sabia que isso daria certo. Que estar próxima de Penélope e
dessa família faria bem a ela.
— Fomos ao parque — ela comenta. E só.
Faço um beicinho de “entendi”. Não é impressão minha,
Amália está mesmo chateada comigo.
— Quer me dizer alguma coisa? — desafio, suavemente.
Ela sacode a cabeça, informando que não. Mas a ponta do
nariz avermelhando, ah, isso a denuncia.
— Pode, por favor, colocar mais dois ovos. Vou ficar para o
café.
— Como sabe o que ela vai fazer? — pergunta, sem me
encarar uma única vez.
— Panquecas. Venho sempre a essa hora para pegar as
primeiras.
Assisto seus ombros caírem, como um balão que murcha.
— Então é por isso que veio…
— Não. Vim para ver você — sou direto ao admitir. Arqueio a
sobrancelha, à espera de que me olhe.
E não erro. O calor está de volta à íris.
Porra, que vontade de puxar essa menina pela mão e a
abraçar. Que vontade de mergulhar o nariz na curva de seu pescoço
e absorver diretamente da pele o cheiro suave que sinto dela toda
vez que me aproximo. É difícil controlar as mãos. Controlar as
marteladas implacáveis bem no meio do meu peito.
— Ontem eu tive um imprevisto que me segurou por tempo
demais fora da cidade. Cheguei agora pouco, para ser franco.
— Algo ruim? — pergunta com uma preocupação tocante pra
caralho.
É ruim, sim. Mas não para mim. Brejnev mal sabe que está
prestes a cair na própria armadilha, em alguns dias.
— Nada com que deva se preocupar — tranquilizo. Desço
então meu olhar de volta ao seu pulso. — E quanto a você?
Ela sabe a que me refiro, pois esconde os braços, devolvendo
as mangas ao lugar.
— Nada com que deva se preocupar.
Uma ova que não.
— Saavedra está na Rússia — falo de uma vez, enquanto
ainda temos a privacidade da cozinha só para nós. Dona Zhena é
uma aliada e tanto nestas horas.
A notícia a surpreende. As sobrancelhas sobem, expressivas.
— Pedi que viesse — revelo.
— Obrigada, eu acho…
Sem poder evitar, apanho seu pulso com gentileza e esfrego
meu polegar por cima do corte recém-feito.
— Se você ainda precisa disto para se sentir bem, acho
importante que converse com ela, Amália.
Rapidamente, recolhe o braço. Permito.
— Quer dar um passeio, depois do café?
Gosto de como assente e parece feliz nisto. De como o rosto
ganha cor, diferente da palidez de quando a vi há pouco. Gosto
dessa menina, a verdade é essa. Poderia ficar aqui, em uma
cozinha, conversando amenidades com Amália pelo resto de minha
vida, e estaria bem.
Essa visão de futuro perturba, assusta pra diabo. Amália tem
vinte anos, quase a metade da minha idade. Sou velho demais,
vivido demais, fodido demais, para ela.
Zhena, tia Merian e o jardineiro escolhem esse momento para
invadir a cozinha. Em pouco tempo, Penélope e a bebê falante
também entram, seguidas do cara que, numa troca de olhar comigo,
diz tudo o que preciso saber. Jurgen, nosso contato da Interpol – e
que durante muito tempo nos chantageou para trabalharmos para
ele a seu bel-prazer – está dentro.
A ideia do maldito Brejnev de vir atrás de mim vai sair muito
mais cara do que pensa. Em vez de contrabandear para ele,
entregarei sua cabeça numa bandeja.
Só um doente como Vladimir poderia acreditar que eu, ou
qualquer pessoa inteligente o bastante e com os contatos certos,
confiaria em suas mãos um grama que seja de urânio enriquecido
contrabandeado de algum governante lunático por aí.
Uma bomba nuclear vai explodir em seu rabo, antes que o
imbecil tenha acesso aos componentes para produzir uma.
Depois do café, saio com Amália pela porta da frente. Pretendo
levá-la a alguns lugares, conhecer a cidade, agora que tenho
certeza de que é seguro, enquanto Brejnev pensa que vou trabalhar
para ele.
— Elliot. — Ela se vira para mim, assim que abro a porta da
caminhonete.
Encaro-a intensamente, mas não consigo me impedir de fitar
sua boca antes. Lábios presos entre os dentes.
— Sim, Amália.
— Sobre o que eu fiz…
— O que você fez? — indago com falsa ingenuidade.
— Sobre o beijo — explica, bochechas coradas, linda.
— O que tem ele? — Estou forçando aqui, eu sei. Só que não
consigo evitar. Posso não ser um corrompedor de garotas jovens e
inocentes, porém tampouco sou um santo.
— Gostaria de me desculpar — diz, corajosamente, depois de
hesitar por um instante.
Quero rir. Quero segurar seu rosto e repetir tudo.
— Por ter me beijado? — Levanto a sobrancelha, levemente
zombeteiro.
— Por ter fantasiado com você. — Sobe os olhos e encara os
meus diretamente. — Prometo que vou tentar tirar isso da minha
cabeça.
Maldição.
Sinto o ar a nossa volta um pouco mais denso de
repente, dilata minhas narinas na passagem abrupta. Meu peito,
maldito, sobe e desce profundamente. Há limites que um homem
consegue suportar. O meu, é esse. Essa garota inocente dizendo
que pensa em mim.
— Honestamente, espero que consiga, Amália. Confesso que
tenho tentado te tirar da minha há algum tempo, e é difícil pra
caralho.
É uma tremenda estupidez admitir isso para ela. Jogar em seu
colo que, de alguma forma deslocada, a garota está se enraizando
em mim. É errado sentir esse tipo de coisa. Amália é minha
protegida, é assim que as coisas precisam ser. Encaro seu rosto,
abaixo do meu, atrás de uma reação à minha confissão. Mas em
vez da repulsa, ou medo, o que ouviu a faz me fitar de um jeito
esquisito, parecendo me olhar, olhar de verdade, e enxergar tudo o
que escondo do mundo. Pior, é como se a menina apreciasse o que
vê.
E meu maldito corpo reage a ela.
Sinto na ponta da língua um sabor familiar completamente fora
de hora. Aquela necessidade pulsante de percorrer sua boca, provar
o sabor doce da geleia de amoras em suas panquecas diretamente
dela. Tão forte que penetra minha pele, ossos, veias e se mistura ao
sangue.
Tanto para quebrar o que quer que esteja prestes a acontecer,
quanto para livrá-la do vento frio da manhã, abro a porta do
passageiro de minha caminhonete.
— Por favor, entre, Amália.
Sem tirar os olhos claros dos meus, ela assente. Mas não se
mexe.
Abaixo a cabeça um pouco mais perto da dela.
— Tente não pensar tanto — peço, baixo, voz enrouquecida
por essa coisa que pulsa e circunda e me atrai com tanta força para
ela.
Com qualquer outra, o pedido seria apenas um flerte leve,
nada além disso. Mas com ela, com essa garota que sente tudo tão
intensamente, é um pedido honesto. Há coisas em que não
devemos pensar, é preciso simplesmente deixar de lado e ignorar
tanto quanto possível.
— Não consigo — admite honesta demais.
Um meio-sorriso rasga minha boca.
— Eu sei. Mas vamos fazer assim: hoje vou levá-la por aí,
conhecer a cidade, e vamos apenas curtir, o que acha?
Colocando uma mecha do cabelo grosso detrás da orelha, ela
concorda com um aceno.
Linda demais.
Meio que sacudo a cabeça, exigindo de mim mesmo que
cumpra o que proponho.
— Ótimo. Por favor, senhorita… — Faço um floreio de mão
para que entre.
Ajudo-a com o cinto de segurança, ao mesmo tempo que
ignoro seu olhar em mim, acompanhando cada passo. Antes de ligar
o motor, peço que abra o porta-luvas e retire a caixa pequena ali.
— É um celular com uma linha local — explico. — Seu número
estava fora de área ontem, quando tentei ligar.
— Ah… — Os lábios se separam, como quem não esperava
pela informação. — Nossa, me desculpe.
— Pelo quê? — Finjo a boa e velha ignorância.
— Por pensar que você… que você… enfim.
Como eu imaginei.
— Jamais vou deixar de estar presente novamente, Amália —
digo bem sério, fitando-a intensamente. — Fiz errado no passado,
mas aprendi a lição.
Ela aperta os lábios, daquele jeito desconcertado.
— Você tem sua vida, Elliot. Eu entendo se precisar… você
sabe… se afastar. — Desvia o olhar do meu para o zíper de minha
jaqueta.
— Só se for um caso de vida ou morte. E mesmo assim, eu te
deixarei saber. Combinado?
Nunca falei mais sério antes.
Sei o que Saavedra provavelmente vai pensar disso, minha
intenção aqui não é causar a dependência dela em mim, mas fazê-
la saber que sou e sempre serei um local seguro, enquanto Amália
precisar.
Por falar em Saavedra…
— Saavedra está organizando um espaço em seu novo
apartamento para receber você, Amália.
A garota esconde as mãos sob as mangas da blusa.
— Não pensei que ela viria por mim.
— Veio. Ela se importa. Será bom conversar. — Tomo o pulso
delicadamente outra vez. — Isso… — percorro o dedo sobre o
rasgo na pele — precisa parar.
Noto que hesita, que não gosta de ser confrontada a respeito.
Mas resiste e não puxa o pulso de meu domínio.
— Não consigo — admite, envergonhada.
— Imagino que seja assim, mas diga isso a ela, vamos tentar
encontrar outro jeito de desopilar. — Porra, quero tanto que essa
merda pare.
Amália aperta os lábios.
— Lá no apartamento, na Espanha, você me disse que fazia
de outra forma. Como?
Concordo com a cabeça. Sim, eu disse. Só não revelo que
minha maneira de desobstruir envolvia uma trepada suja com
alguma desconhecida até que aquela sensação sombria, que
fervilhava constantemente dentro de mim, me desse algum
descanso. Isto até eu conhecer Amália. Depois dela, algo mudou.
Vasculho minha cabeça atrás de uma resposta adequada. Algo
que, de fato, ajude. A pesquisa na internet que fiz naquela noite me
vem à mente. Incentive tratamento; esteja perto; ouça; acolha;
incentive a prática de atividades físicas e prazerosas; saiba o
momento de apoiar e o momento de dar espaço.
Incentive a prática de atividades físicas.
— Socando alguma coisa — respondo de pronto.
É isso. Sebastian deu aulas de defesa pessoal à Penélope.
Posso fazer o mesmo. Toda mulher, aliás, deveria aprender uma
técnica ou duas de como se defender de algum desgraçado com
más intenções.
Como foi que não cogitei isto antes?
— Se quiser tentar, podemos começar ainda hoje. Você ficará
surpresa com o quanto ajuda.
Dúvida cintila em seus poros, misturada a algo mais forte. E é
nesse algo que me apego para insistir. Passei a conhecer demais
essa menina para saber o que quer, pensa, gosta.
Encaro-a profundamente.
— Não perderá nada tentando, Amália.
A partir da respiração longa que exala, acho que posso afirmar
que temos uma mudança nos planos para o dia.
— Está bem…
Quero rir. Merda, quero agarrar seu rosto e beijá-la até que
implore por fôlego.
— Legal.
Antes de dar partida, tamborilo brevemente os dedos no
volante, pensando na garagem de Bola, e todo o equipamento que
mantemos por lá. Mas não sei, não. O cara deve estar treinando, a
uma hora destas. Colocou na cabeça que vai emagrecer de todo
jeito. Não sei se a menina se sentiria confortável com a presença
dele.
A segunda alternativa de lugar que me ocorre, essa não cai
bem em meu estômago. Talvez não seja apropriado. Não, com
certeza não é apropriado… Mas não consigo pensar em um local
melhor.
— Vou levá-la ao meu apartamento, tenho um pequeno estúdio
de treino lá. — Minha voz parece encrostada de algo denso
escorregando pelas paredes da garganta.
Como ela não diz nada, sou eu a questionar.
— Tudo bem para você?
ELLIOT
— Isso, um pouco mais para a direita. Hum, não sei. Acho que
mais um pouco. Espere, espere, agora foi muito. — Penélope dobra
as mangas de seu suéter cor de terra soltinho e apoia as mãos na
cintura, analisando criteriosamente o trabalho. — Pensando bem,
para a esquerda fica melhor.
O grande homem solta um grunhido exasperado. De onde
estou, vejo as gotículas de suor cobrindo sua testa.
— Tudo bem aí, Bola? — pergunta ela, inocentemente.
— Sim. Só diga de uma vez onde quer que eu coloque essa
p…
— Cuidado com a boca, hombre, há crianças por perto —
alerta ela. — Só perguntei porque, sei lá, você está tão vermelho…
— Talvez porque o cara está carregando uma mesa que tem o
peso dele em libra?! — provoca Ed, mas sem oferecer ajuda ao
amigo, que leva sozinho a linda e enorme mesa de jantar feita de
madeira maciça para lá e para cá, conforme a vontade de Penélope.
Loupe faz um estalinho com a língua.
— Bobagem. Bola anda malhando, que eu sei. Até perdeu
peso — bajula descaradamente.
Mas é o cantinho da boca dela que a denuncia. Loupe está
adorando dar ordem a todos eles.
— Nisso você está certa — concorda Ed. — Se continuar
nessa, logo ele conseguirá enxergar o próprio p… — Ed dá uma
olhadela para Sol de Maria, no chão bem perto dele, entretida com
alguns balões, e se corrige a tempo — O próprio pé. Pé, né,
neném?! O Bola logo, logo, vai conseguir enxergar aquele pé
pequeno dele, que ele não vê há muitos anos.
— Vá se fo… — Bola se detém de concluir, então revira os
olhos. — Quer saber? Por que não me dá logo uma ajuda aqui,
imbecil?
— Cil! — repete Sol, animadinha.
— Ótimo. Você deve duzentos rublos ao pote — avisa Loupe,
prometendo retaliação aos dois.
— Duzentos rublos por um mísero palavrão? Qual é a desse
maldito câmbio?
— Quatrocentos agora, Bola. Vem, deixe a mesa aí e vamos lá
buscar as cadeiras antes que se endivide mais.
Disfarço um sorriso do meu canto na sala de jantar imensa e
me concentro apenas em encaixar os quadradinhos de queijo nos
palitos, e depois um tomatinho sobre cada um deles. Tia Merian e
vovó Zhena estão na cozinha assando fornadas de minipizzas. Elliot
está carregando as bebidas, depois de cuidar da montagem dos
brinquedos infláveis no quintal. Todo mundo está ajudando.
Segundo Penélope, virão poucos convidados; um casal de
amigos e seus filhos gêmeos; os pais deste amigo; o pai de Loupe,
que Sebastian foi buscar no aeroporto; algumas amigas de carteado
de tia Merian e da babushka; ah, e a Dra. Saavedra, que Loupe
gentilmente quis chamar porque a doutora não conhece
praticamente ninguém nesse país. Por ser o primeiro aniversário da
Sol, Penélope está caprichando na organização, quer que seja farto,
enfeitado, feliz.
Eu me lembro dos aniversários que minha abuela fez para
mim. Do clima alegre, das risadas enquanto a gente enchia balões,
pendurava bandeirolas por toda a sala, dançava e cantava músicas
tradicionais. São memórias marcantes que ficarão para sempre.
Mesmo que Sol ainda seja muito pequena, Penélope faz bem em
festejar, acho que em algum lugar da cabecinha da bebê, esse dia
ficará marcado também.
— Vocês, espanholas, gostam mesmo é de dar trabalho, não
é? — diz Ed, para mim, em tom de brincadeira, quando ficamos
apenas eu, ele e Sol na sala.
Mas vejo que se arrepende no minuto seguinte.
Um pedido de desculpas começa a se formar em seu rosto
quase que imediatamente.
Só que, estranhamente, não me sinto acuada, ou ofendida, ou
qualquer coisa ruim. A brincadeira não me deixa mal porque sei que
essa não é sua intenção. Por alguma razão, sinto que estou com um
amigo, embora a gente mal tenha trocado uma palavra nesse tempo
todo que estou aqui.
E é por isso que me obrigo a sair de minha posição confortável
de apenas me manter silenciosa e observar a interação entre eles
de longe, como fiz desde que cheguei a esta casa, e decido falar:
— Só um pouco. Deve estar no nosso sangue. — Dou de
ombros, para que ele veja que também estou brincando.
Surpresa arregala os olhos azuis. Sobrancelhas meio
acobreadas sobem, impressionado.
Então ele simplesmente gargalha.
Não uma risada baixa e discreta, não. Ele gargalha pra valer,
tão alto e com tanta vontade que faz Sol de Maria rir – a bebê, aliás,
tem certo fascínio por ele, pelo que notei – e ecoa por toda a sala.
E esse som, ele de repente penetra meu interior com um tipo
poderoso de entendimento que é como se uma chave fosse virada
dentro de mim.
Essa é a razão da leveza que enxergo em Penélope, a leveza
pela qual já cheguei a me ressentir. Como alguém pode parecer tão
feliz depois de ter vivido tudo aquilo? Tão de bem com a vida? Mas
estando aqui consigo entender perfeitamente. Penélope decidiu
viver diferente, buscou sua segunda chance, cercou-se de pessoas
que fazem bem para ela, exatamente como disse Dra. Saavedra.
Família tem a ver com os laços que escolhemos formar, e ela
escolheu esses russos.
E nesse momento, enquanto assisto a risada rouca e calorosa
de Ed – um som que revela que não é algo que ele faz com
frequência –, um segundo entendimento clareia minha mente com
toda a força. É por isso que Elliot fez tanta questão de me trazer
para cá também. Não por caridade ou um tipo de obrigação moral
inexistente. Elliot me queria aqui para ter minha própria segunda
chance. Para ser feliz.
Perceber isso inunda um lugar dentro de mim com um
sentimento novo, mas muito forte, muito quente. Meus olhos
marejam desse sentimento. Transbordam. Ele escorre por minha
bochecha. Estou rindo, rindo de verdade, de um jeito que faz a
barriga doer. Rindo e chorando, mas é bom.
E não consigo parar.
Ed passa a me olhar com um misto de confusão e riso que é
engraçado. Sol, sem saber de nada, gargalha mais forte. E gera
uma nova onda de risos. Estamos rindo pra valer, sem um motivo
real, apenas extravasando e colocando para fora.
E quando finalmente consigo tomar uma respiração, percebo
que já não estamos mais somente os três aqui.
Da porta do corredor que leva à cozinha, tia Merian e vovó
Zhena nos observam congeladas no lugar. A babushka com um
pano de prato entre as mãos, e sua prima segurando um pedaço de
massa de pizza. Parecendo terem saído da cozinha às pressas, há
rastros de trigo em suas bochechas, cabelos, aventais, e elas nem
se importam. Suas bocas estão meio abertas de surpresa.
Penélope carregando uma cadeira, e Bola, quatro, também se
interrompem no lugar, confusos com o que veem. Ela sorri de um
jeito incrédulo, engraçado. Ele faz uma careta que muito
provavelmente significa “acho que ficaram doidos”.
O que me faz rir mais, e a Ed também, e por consequência,
minha Solzinha também.
Alguém pigarreia chamando nossas atenções. O som vem da
direção da entrada da frente, onde Sebastian se encontra estagnado
no lugar, segurando uma grande mala, com um homem grisalho alto
ao seu lado. Estão olhando para nós. O semblante do senhor bonito
é simpático, caloroso, e o de Sebastian é meio engraçado,
descrente, seu olhar inquisidor vai de mim para Ed, talvez
perguntando por que é que estamos agindo feito bobos. Embora
também ache graça.
E finalmente meu coração é então atraído para a força que
emana de algum lugar em minhas costas, quando sinto o calor de
seus olhos sobre mim. Limpando uma lágrima, viro-me na direção
da porta dos fundos e encaro diretamente o olhar profundo e
penetrante de Elliot. Assisto uma respiração forte preencher seu
peito, mergulho fundo nele, em seu orgulho, em seu amor. Ele está
sério, mas impactado por me ver feliz, dá para saber. Ele me ama.
Elliot me ama.
Sinto o seu amor em cada pedaço de minha pele.
— Its! Its! — Sol de Maria de repente se levanta no corpinho
de passos errantes e bate palminhas alegres, querendo algo de
todos nós.
— Tánits — vovô Zhena interpreta, jogando o pano sobre os
ombros. — Minha vnúchka quer dança!
Dança, isso eu consigo traduzir.
Batendo palmas no ritmo, a senhora vem para nós entonando
uma canção animada:
— Kogda my byli na voyne. Kogda my byli na voyne. Tam
kazhdyy dumal o svoyey. Lyubimoy ili o zhene. Tam kazhdyy dumal
o svoyey. Lyubimoy ili o zhene[43].
Sem nem pensar duas vezes, Penélope deixa a cadeira que
estava carregando no chão e se junta ao coro da avó
animadamente:
— I ya, konechno, dumat' mog. I ya, konechno, dumat' mog.
Kogda na trubochku glyadel. Na goluboy yeye dymok[44]!
E faz mais: dançando de um jeito engraçado, um tipo de trote,
e batendo palmas na altura do rosto, vai na direção do pai,
recebendo-o com calor em seus olhos e uma alegria viva na voz:
— Seja bem-vindo, pai! Sentimos sua falta.
— Senti falta de vocês também, filha — diz ele, achando a
recepção engraçada.
Eles se abraçam apertado.
Por tudo o que Penélope me contou, seu pai, Antônio Carlos
Duarte, é um ator de novelas brasileiro. Ele não sabia da existência
dela até ser procurado por Sebastian no Brasil. A mãe de Loupe,
Paz Velasco, também era atriz, de teatro, na Espanha. Ela faleceu
quando Loupe tinha quatro anos, foi quando a colocaram no
orfanato das freiras onde ficou até ser adotada pelos Molina.
Penélope me disse que apesar do tempo perdido entre eles, a
conexão de pai e filha surgiu já no primeiro instante em que se
conheceram. Ele esteve presente no casamento dela, e no
nascimento de Sol de Maria.
— E a garotinha do vovô, como é que está? — pergunta
Antônio, afastando-se do abraço.
— O senhor sabe, fazendo o que faz de melhor.
— Sendo uma gracinha?
Loupe ri.
— Bagunçando! — a mãe coruja gira e grita para a menininha:
— Vovô chegou, russinha! Mostre a ele como é que dançamos
nessa casa!
Enquanto o homem grisalho se junta ao centro da sala para
pegar a neta, Penélope vira-se para o marido:
— Obrigada por buscá-lo, cabrón. — Roça amorosamente os
lábios nos de Sebastian.
— Não por isso, espanhola. — Sebastian a envolve pela
cintura e traz para si antes que ela fuja. — Agora me diga que não
estamos dando a festa do “Quando estávamos em Guerra” por
favor.
Com uma expressão divertida, ela se desvencilha dele e canta
com mais alegria:
— “Tam kazhdyy dumal o svoyey. Lyubimoy ili o zhene”. —
Bate em seu peito de leve. — Você também ama essa música, que
eu sei! — Rindo e cantando, ela se afasta do marido e se junta à tia
Merian e babushka em volta de sua filha, entoando numa só voz a
canção em russo, enquanto Antônio ergue a neta no colo e finge
dançar.
Mesmo Ed, depois de cumprimentar o pai de Penélope com
um aperto firme de mão, se une à cantoria numa voz baixa e forte,
fazendo graça para a criança. E Sol, é claro, fica tão alegre com
tanta atenção à sua volta que mal sabe direito para quem olhar.
Seus gritinhos efusivos em êxtase pedindo mais dança são
contagiantes.
Vovó Zhena engancha seu braço no meu e me puxa para a
dança:
— Tánits, chica! Tánits! — O brilho nos olhos aquosos pela
idade dirigidos aos meus contém tanto carinho que me emociona.
Pego-me batendo palmas também, no começo meio tímidas,
mas no ritmo deles.
Vovó aponta o dedo nodoso para Bola e diz alguma coisa em
russo com a autoridade de uma avó. Divertindo-se, Penélope traduz
simultaneamente para seu pai e para mim:
— Ela o chamou de garoto e disse pra ele deixar as cadeiras
no chão e se juntar a nós. — Então, em espanhol, também grita pra
Bola: — Isso, hombre, mexa esse corpo com a gente! Hoje é dia de
festa!
O amigo de Elliot, o maior deles, resmunga alguma coisa sobre
ainda não ter bebido o suficiente para isto, mas, mesmo relutante,
recosta-se à parede e bate palmas também. Acho que até consigo
ver um sorriso em seu rosto.
Vó Zhena chama Elliot, gesticulando sem parar para o
instrumento na parede.
— Babushka quer que o Elliot pegue o acordeon que foi do seu
amado Vyacheslav e toque para nós — traduz Loupe. — Ei, espere
um pouco, você toca acordeon, Elli?!
— Não se eu puder evitar — diz ele com bom humor, mas sem
nunca tirar seus olhos dos meus com todo o calor que alguém pode
olhar outra pessoa.
Sebastian se intromete:
— É uma boa hora para mostrar à Amália a habilidade que
comentou outro dia, não acha, cara? — Parece uma provocação.
Imediatamente, me lembro da conversa no avião a caminho da
Rússia. Elliot elencando três coisas em que é muito bom: cozinhar,
atirar e tocar acordeon. — Você quer ver, não quer, Amália?
Pelo modo zombeteiro do marido de Penélope, talvez Elliot
não quisesse ter dito isso naquele dia. Mas pela expectativa sincera
de vó Zhena e até de tia Merian, ele não estava mentindo sobre
saber tocar o instrumento. E de repente me vejo querendo assistir
isso. Descobrir mais sobre esse lado de Elliot.
— Seria bom — digo baixo, mordendo um sorriso.
Elliot me lança um olhar profundo e afiado, do tipo que
promete retaliação, mas num clima bom, leve, familiar.
E meu coração transborda outra vez. Gosto tanto dele que mal
consigo respirar, a verdade é essa. O que fizemos ontem… o que
fizemos ontem não teve nada de sujo. Não teve nada de feio. Não
senti medo ou pavor.
Eu gostei, gostei de verdade. Foi… bem, foi surpreendente.
Lembrar faz meu rosto corar com força.
Mesmo à distância, percebo que Elliot compreende
exatamente a direção do meu pensamento, sua mandíbula contrai,
os olhos escurecem um pouco.
— Depois não digam que não avisei — brinca com todos, mas
seu olhar intenso permanece no meu, até que ele se obriga a
apanhar o instrumento da parede.
E ele o faz com todo cuidado, de um modo até reverenciador,
como se o objeto tivesse um valor inestimável.
Ao meu lado, vovó Zhena emite um suspiro saudoso,
agraciada. De repente, toda a sala fica em silêncio, só assistindo ao
que ele vai fazer, a como posiciona as alças de couro vermelho em
seus ombros e encaixa a mão à direita, como move os braços
extraindo as primeiras notas do fole, testando e afinando, dedos
grandes, firmes, correm pelas teclas sabendo exatamente o que
fazer.
Há uma beleza indescritível nisso. Em como um homem forte,
rústico, que já pegou em tantas armas, tem a sensibilidade e
sutileza de criar algo tão delicado quanto notas de uma música.
Minha abuela certa vez disse que músicas são sons da alma, e
vendo agora o rosto tão compenetrado de Elliot escutando e
ajustando com cuidado, consigo compreender exatamente ao que
ela se referia.
— Kogda my byli na voyne. Tam kazhdyy dumal o svoyey.
Lyubimoy ili o zhene — babushka recomeça a canção, devagar,
batendo palmas no mesmo ritmo que o fole dita nas mãos de Elliot.
Cada pessoa presente também passa a acompanhar com
palmas, a princípio lentas, e aumentando aos poucos. Tia Merian,
Loupe e Ed então se unem à voz de vó Zhena. Sebastian, Bola,
Antônio e eu seguimos nas palmas.
E vai ficando mais alegre, mais emocionante. Faz as pessoas
baterem os pés, mexerem os quadris. Faz Sol pular no chão, cair e
levantar e saltitar de novo. As mulheres giram em seus corpos,
trotando e movimentando as mãos. Os homens cantam com
vozeirões de tenores batendo palmas fortes.
De repente, me sinto de volta à casa de abuela, àquele mesmo
sentimento de que é um dia alegre, um dia para cantar e dançar!
Que o mundo é um lugar bom e seguro! Que a vida é boa!
Elliot sorri para mim, olhos aquecidos, feliz.
Eu também me sinto assim.
Me sinto feliz.
Muito, muito feliz.
Essa felicidade me faz dançar, bater palmas, repetir estrofes
de uma canção que não sei o que significa, mas que tem um poder
indescritível de mexer com o coração, de o fazer querer explodir
para fora. Minha abuela se estivesse aqui estaria dançando.
Vovó Zhena pega minhas mãos e me convida a rodopiar com
ela.
Eu rodopio, fecho os olhos e deixo essa energia vibrante se
aprofundar em meu espírito. Não existe mais dor, não existe medo
aqui. Estou segura com essa gente, são minha gente agora. São
minha família. Por mais que meus fantasmas tentem dizer o
contrário, os dias bons não vão se acabar, não desta vez.
— Toc, toc.
— Ah, oi… — Amália fecha cuidadosamente e guarda o
caderno na gaveta do móvel ao lado da cama. — Você demorou.
Há algo diferente nela. Além da trança em seu cabelo, o que é
uma novidade. Sob a luz quente do abajur, parece mais corada,
ansiosa.
— Estava no escritório com os caras — digo, escorando-me na
porta para tentar entender o que mudou.
— Foi muito legal, a festa…
— Foi, foi sim — principalmente por você estar feliz, menina.
Essa parte guardo para mim.
Demorei a subir para o quarto porque precisava acalmar essa
coisa martelando meu peito. Esse desejo irracional de estar com
ela. Não quero que Amalia se assuste com o quanto eu a quero,
com o tamanho do que sinto por essa menina. Ao mesmo tempo,
está cada dia mais foda de dominar, de conter.
— Estava bebendo? — pergunta ela.
— Ninguém escapa de uma dose ou outra de vodca nesse
país, Amália — curioso, sem ainda conseguir compreender o que
está diferente, continuo perscrutando seu rosto atrás de algum sinal.
— Gostaria de provar.
Semicerro os olhos, surpreso.
— Gostaria?
— Nunca bebi nada com álcool, mas todo mundo fala tanto da
vodca daqui que… — Encolhe os ombros, envergonhada. — Sinto
vontade conhecer.
Aspiro com toda a capacidade do meu peito, mas devagar,
assimilando.
— Olhe para mim — peço. Porque evitando meu olhar, como
ela está, dificulta um pouco tentar ler sua mente, apesar do quão
transparente ela é.
Engolindo em seco, ela faz.
Encaro-a, sentindo a mudança em sua respiração. A pulsação
discreta daquela veia bonita ao lado de seu pescoço.
— Está tudo bem? — pergunto calmo, sondando.
— Está sim — mas sua voz também soa diferente, mais baixa,
até falhada.
Assinto, sem nunca deixar de olhar para ela.
— Quer provar a vodca hoje?
— Hm. — Mordisca o lábio, desviando o olhar para um pedaço
qualquer da colcha de retalhos na cama.
Se essa garota precisa de subterfúgio de uma dose de
coragem líquida para chegar ao ponto principal do que tem em
mente, então algo está realmente fora do lugar.
Mas posso dar isso. Posso apresentá-la ao álcool. E posso
garantir que seja em segurança.
— Espere aí. — Descolo-me da parede.
Apanho uma garrafa no armário de Sebastian e vou à cozinha.
Despejo mais da metade do líquido fora e preencho com água o
restante.
Não quero que Amália tenha uma dor de cabeça horrível pela
manhã logo em sua primeira vez experimentando, e eu conheço
bem o poder dessa belezura aqui. Já vi uma garrafa destas derrubar
um homem com o triplo do tamanho daquela menina.
Apanho um copo e subo ao quarto.
Amália saiu debaixo da coberta, está sentada no centro, sob
as pernas cruzadas. Parece nervosa.
— Aqui — abrando meu tom para tentar tirar seu nervosismo
do caminho, ao lhe oferecer o pequeno copo preenchido com um
terço de líquido transparente.
Ela aceita, noto o tremor na mão. Leva a bebida à boca e
beberica.
— Pensei que fosse pior — comenta, assim que engole um
pouco, franzindo o cenho.
— Fica melhor à medida que a garrafa vai esvaziando —
brinco, sentando-me ao seu lado no colchão. — Agora, quer me
contar o que está te incomodando?
— N-não há nada me incomodando.
— Certo. — Perfuro cada detalhe de seu rosto e decido mudar
a estratégia, modulando meu tom. — Então o que está te deixando
ansiosa, Amália?
Ela lambe um resquício da vodca em seu lábio, o que quase
me distrai. Quase.
— Hoje percebi uma coisa.
— Posso perguntar o quê?
— Pode, pode sim.
Um sorriso involuntário move meu lábio para o lado. Como ela
é linda, até quando está me enrolando.
— Então, por favor… — ofereço.
Amália puxa uma respiração profunda. Alisa a mão na calça de
flanela do pijama.
— Não quero mais perder pensamentos com o passado.
“Perder pensamentos com o passado” é uma forma curiosa de
expressar. Evito tecer qualquer comentário, apenas assinto para que
siga em frente.
— Quero viver o hoje, o agora.
Bem. Uau.
Sem palavras, mas por mera falta delas, arqueio a
sobrancelha, admirado.
— E eu te amo, Elliot.
Meu coração, o fodido, não esperava que fosse tão objetiva.
Luto contra a necessidade de afagar o peito para impedi-lo de se
comportar como um adolescente tolo.
— Fico feliz com isso, Amália — meu timbre é uma massa
densa.
— Te amo muito, na verdade — reafirma, sacudindo
convictamente a cabeça.
Impossível não sorrir.
Corro um dedo por sua bochecha, alisando a pele, e coloco a
mecha de cabelo teimosa para detrás da orelha.
— É bom saber. — Encaro-a intensamente. — Porque também
te amo, Amália.
E foda-se essa merda de esconder.
— Não quero mais perder tempo em relação a isso, Elliot.
— Em relação a quê, exatamente, moy almás? — Não consigo
soltar seu rosto, deixar de acariciar aquele pontinho em sua orelha.
É mais forte do que eu. Tampouco deixar de reagir com cada célula
do meu corpo a essa sua declaração, que na verdade, entendi muito
bem, embora não devesse.
— Tenho vinte anos.
— Sim, você tem.
— Vim para cá, para essa nova vida.
— Você veio.
— Estamos dormindo juntos todas as noites. Acho que
significa que…
Involuntariamente, meu corpo vibra numa intensidade
diferente. Fica mais alerta. Acho que sei aonde ela quer chegar, só
prefiro esperar e observar.
— Significa…?
— Que estamos juntos. Que a gente está… namorando.
Levo a cabeça para trás lentamente, como se um golpe tivesse
me acertado em cheio.
— É o que quer? Namorar comigo? — Porra, que rouquidão
miserável é essa?
— É, é sim. — Sacode a cabeça com convicção, para
corroborar.
Espreito-a. Sei o quanto de coragem ela está exigindo de si
mesma para me dizer essas coisas. E só consigo querê-la ainda
mais. Trazer essa menina para o meu colo e beijá-la até que
nenhum de nós tenha fôlego mais.
Em vez disto, me controlo para não mover um único músculo.
Se em busca de mais coragem ou não, Amália bebe mais um
gole da vodca batizada.
— E tem mais — diz, limpando a boca com as costas da mão.
— Tem?
Mordendo o lábio, assente.
— Depois de ontem… acho que estou pronta para mais.
Ad na zemle.
— Acho que ainda não.
— Estou. Sinto que estou. — Aquelas profundezas de cinzas
finalmente encontram-me, carregadas de uma determinação que
não havia ali antes.
— Não quero mais perder tempo.
— Por que agora, Amália? — Minha questão é absolutamente
genuína. Quero mesmo saber.
— Porque sobrevivi para ser feliz, Elliot. Percebi isso hoje.
Caralho. Como se eu ainda pudesse me orgulhar mais dela,
vem essa agora, martelando meu peito com toda a potência.
— Certo, nisto você tem razão. Você merece ser feliz. E será,
dou a minha palavra.
— Com você — rebate ela, antes que eu consiga dizer o
contrário.
Assovio baixinho.
— Não sabia que uma festa possuía tanto poder — brinco.
Estou encarando a menina tão profundamente, que quase
posso beber cada nuance de sua pupila, cada raio em torno do
diamante cinza, cada linha de expressão suave em seu belo rosto.
De fato, não há rastro daquela insegurança constante, do
medo, daquilo inominável que normalmente a bloqueia para o resto
do mundo.
— Priscila disse alguma coisa para você? — Fico realmente
curioso.
Conheço a história da esposa de Gael, ouvi sobre o abuso que
sofreu, quando ainda estávamos no Brasil. Caçamos os
responsáveis.
— Não precisou dizer. Mas eu senti, e vi o que ela tentou me
mostrar. O que significa para todas nós. O mundo não é muito bom
com as mulheres, mas a gente pode lutar. Pode ser feliz.
Mal consigo respirar, de tanto orgulho. Uma garota tão jovem e
com uma vida de merda na bagagem, com esse tipo de
discernimento do mundo. Porra, que orgulho.
— Tô orgulhoso de você, Amália.
Ela morde um sorriso humilde.
Nossos dedos se entrelaçam sobre a cama, suavemente
acaricio sua pele delicada.
— Obrigada por ter insistido, Elliot — sua voz melodiosa é um
canto doce na noite.
— Não havia outra opção — revelo. Encaro-a e sou apenas
franco. — Você entrou sob minha pele no minuto em que botei meus
olhos em você, Amália.
Imóvel, apenas a observo subir em meu colo, acomodar uma
perna de cada lado das minhas, sentar-se e segurar meu rosto entre
as pequenas mãos.
Impossível não notar o contraste. Enquanto tudo em mim é
grande, duro, calejado, marcado de cicatrizes, ela é suave, macia,
acomoda-se como se fosse feita para esse lugar.
— Você é meu anjo salvador.
Um riso de autodepreciação sai por entre meus lábios.
— Estou longe de ser um anjo, Amália.
— Você é, sim — afirma com convicção. — E te amo tanto que
uma parte do meu coração às vezes sente que vai explodir.
Pego sua mão delicada e subo para o meu peito agitado.
— Bem-vinda ao clube.
Por alguns instantes de puro e contemplativo silêncio, apenas
nos encaramos. Nada é dito e nem precisa. Algo mudou hoje. Mas
também tem sido um processo diário desde que escolheu vir
comigo, quando atravessou aquele corredor e bateu à minha porta.
Amália se obrigou a sair de sua zona de conforto em cada pequeno
passo que deu, e se isso não é coragem, realmente não sei o que
poderia ser.
Sinceramente, talvez Cassandra e Saavedra estivessem
certas, lá atrás, sobre eu ter tido de me afastar dela. Li sobre a tal
dependência emocional e os danos que causa, o atraso no processo
de cura.
Não acho que esse seja o caso agora.
Não acho que hoje o que Amália tenha comigo seja
dependência emocional.
Acho que ela sabe que, com ou sem mim, ela é mais do que
capaz de encontrar seu caminho sozinha, a felicidade que tanto
merece.
Eu, essa família, somos apenas seu suporte. O chão firme sob
seus pés.
O pensamento seguinte não me agrada, mas é inevitável. Se
algo acontecer comigo nos próximos dias, se eu não voltar da
viagem, estou certo de que ela saberá o que fazer.
— Me promete uma coisa — peço, rouco, um pouco atingido
por essa ideia.
— O quê?
— Você lutará por sua felicidade todos os dias, enquanto viver.
Uma ruga marca o centro de sua testa.
— Com ou sem mim, Amália — enfatizo, para que saiba o
quanto isto é importante.
— Você pensa em me deixar? — Há tanta simplicidade e
preocupação em seu semblante, que isso me mata.
— Não — digo bem sério, encarando o fundo de seus olhos. —
Enquanto eu estiver respirando, sempre voltarei para você. Mas
quero que me prometa que, se algum dia eu não estiver aqui, você
continuará em busca de realizar e conquistar tudo o que te faz bem,
os seus sonhos. Tudo o que a deixa feliz. Promete?
— Mas por que está me pedindo isso, Elliot?
— Promete, Amália? Isso é importante para mim, moy almás.
Inspirando fundo, ela assente.
— Tudo bem, eu prometo.
Sou tomado por uma onda de sentimentos que não pensei que
ainda fosse possível. Já vivi e fiz tanta coisa, e nada nunca chegou
nem perto dessa necessidade urgente que sinto por ela. Desse
sentimento que arde e queima, e ao mesmo tempo preenche tudo
com uma paz visceral.
— Agora, preciso de um banho. — Suavemente, afasto-me um
pouco para trás. Do contrário, vou beijá-la, e não sei se consigo
administrar isso agora. — Foi um longo dia, você está aí, toda
limpinha e cheirosa, certamente não quer dividir a cama com um
homem fedendo.
— Posso ir com você?
— Desculpe? — Semicerro os olhos, querendo não ter
escutado direito.
— No banho, posso tomar banho com você?
Foda.
Foda pra caralho.
— Amália… — Seu nome em minha boca é um aviso.
— Por favor.
Esfrego o rosto, tenso em cada osso do meu corpo.
— Não sei se é uma boa ideia.
— Eu quero, Elliot… — Levanta um pouco o queixo com a
mesma humildade e força presente quando afirmou que quer ser
feliz, há pouco. — Estou pronta.
Será que ela sabe o que está dizendo, o que significa estar
pronta?
Espreito seu rosto, conecto-me às pedras de diamantes
valiosos em seus olhos e espero encontrar ali algo que me dê um
norte. Eu detestaria ser o causador do gatilho que vai tirar esse
brilho novo em seu olhar, que vai jogá-la de volta à posição anterior.
E tudo o que vejo é determinação. E coragem.
Maldita menina corajosa e linda.
— Tudo bem — decreto por fim. — Venha comigo.
O mesmo banheiro que venho compartilhando com ela nos
últimos dias, nesse momento se torna subitamente menor, me
fazendo parecer um gigante preso em uma caixa de fósforo,
acompanhado o tempo inteiro por aquele olhar silencioso e atento.
De repente, a simples tarefa de me despir, fica estranha.
Ligo o chuveiro e regulo a temperatura.
Amália observa.
Saio da área molhada, fechando o box de vidro para manter o
vapor preso lá dentro.
Amália acompanha com aqueles olhos grandes e
impressionantes.
Desfaço-me da jaqueta de couro, pendurando no suporte atrás
da porta onde ela está apoiada, muito perto de tocá-la, mas não
faço.
Com cuidado, retiro do meu pescoço o cordão com o token e o
deixo sobre a pia perto dela.
— O que é isso? — pergunta, em voz baixa.
— No exército, chamam de dog tag. — Um riso em forma de
bufo abandona meu peito. — Em tradução: etiqueta de identificação
de cachorro. É onde estão nossos dados essenciais. Carrego a
minha comigo desde que a recebi, em meu primeiro dia servindo.
— Só há uma palavra escrita na sua — nota ela, inteligente e
observadora.
— Cвободно. Livre. Apesar de estar sob um comando, foi a
primeira vez que me senti livre de verdade, que pude decidir meu
destino.
— Entendo esse sentimento.
Retiro então a camiseta branca de mangas compridas e jogo
em um canto no chão.
Um ruído de surpresa sai de seus lábios.
— Você tem tatuagens.
Observo os desenhos aleatórios que descem por meu peito,
costelas, barriga. Há nas costas também.
— Uma águia — diz, passeando os olhos por mim. — Uma
cruz. Um leão.
Uma arma, uma rosa, um urso, cartas de baralho. São tantas e
remontam tantas fases diferentes que algumas eu mesmo não me
recordo de por que estão aqui. Mas uma em especial, eu sei.
Sob meu peito esquerdo, um espaço antes em branco, como
se inconscientemente eu estivesse reservando este lugar, foi
preenchido há cerca de um ano e meio atrás.
Espero pacientemente que sua inspeção a encontre e
identifique, e quando o olhar admirado e curioso bate no desenho,
Amália arfa em reconhecimento.
— Estes são…?
— Seus olhos.
— Minha nossa… Posso? — murmura ela, em reverência,
pedindo autorização para se aproximar.
Assinto.
Devagar, Amália dá um passo para mim, e outro, até as pontas
dos dedos passearem no ar, acima da imagem. Está surpresa pra
caralho.
— Como? Uma foto?
Sacudo a cabeça, respondendo que não.
— Fiz o desenho e entreguei a um tatuador.
— Você desenhou meus olhos, Elliot?
Um sorriso move o canto de minha boca.
— Conheço cada raio, cada manchinha, cada pequeno detalhe
deles, Amália. Tenho memória fotográfica.
— E desenha.
— Desenhava, quando mais jovem. Como não tinha nenhuma
fotografia sua, reproduzi eu mesmo.
Aquele rosto confuso e admirado sobe para o meu, olhando
para cima, evidenciando nossa diferença de altura.
— Por quê?
— Você já estava marcada aqui dentro. — Apanho sua mão e
a trago para se recostar sobre o desenho, acima de meu coração.
— Tatuar foi só uma maneira de representar isso.
A menina parece sem ter o que dizer, seus olhos marejam, o
lábio inferior treme.
— Ei, não chore, moy almás — peço, levantando seu queixo.
— Não estou, Elli… acho que é… é emoção.
Aperto-a em meus braços. Como se fosse feita para esse
espaço, seu rosto descansa em meu peito, pele contra pele, pela
primeira vez. Ficamos assim, no meio de um banheiro, abraçados,
sentindo essa coisa fodida que já não dá mais para ser evitada ou
ignorada.
Não consigo mais controlar o que sinto por ela. Não consigo
mais ter força de vontade de me manter longe.
Depois de alguns minutos apenas abraçado a ela, ouvindo o
som cálido de sua respiração, afasto-me de seus cabelos.
— Odeio ter que fazer isso, mas preciso realmente de um
banho — brinco suavemente.
Relutante, Amália se afasta, dando um passo para trás, porém
não faz qualquer menção de deixar o banheiro.
— Preciso tirar — aviso, em referência à calça e a boxer.
Ela entende o recado, seu olhar mira o teto, dando-me
privacidade. A falta de intimidade entre nossos corpos ainda é um
ponto sensível.
Desfaço-me do restante da roupa, abro o box e entro nu
debaixo do chuveiro, de costas para ela. A água é uma benção para
todas essas emoções rompendo de mim, querendo me devorar.
Em poucos dias, estarei partindo para aquela missão de
merda, e pela primeira vez, tudo em que penso é que quero voltar.
Quero voltar para ela. Nunca me preocupei com nada disso antes,
mas agora… agora, porra, preciso voltar para essa menina.
Fecho os olhos e, sem perceber, me pego fazendo o que
pensei que não faria mais. Não desde que descarreguei aquela
arma de caça no peito do miserável que chamei de pai, um
desgraçado que distorcia a fé até transformá-la em algo sem sentido
dentro de mim.
Eu converso com O Cara.
Sei que não tenho mais crédito algum com Você, mas me
traga de volta para ela. Em troca, dou o que quiser. Só me traga de
volta e...
Antes que eu consiga oferecer uma barganha a Ele, sou
surpreendido até a morte pela próxima coisa que acontece.
Enrijeço tal qual uma parede de concreto, duvidando que
esteja acontecendo.
Mas é real. O toque suave das mãos de Amália atrás de mim,
em minhas costas, é real.
Sem dizer nada, suas mãos correm à lateral do meu corpo e
se aconchegam em meu abdômen, abraçando-me por trás, debaixo
da água.
— Amália… — advirto.
— Me deixa ficar — pede com aquele toque de deferência que
me modela em suas mãos.
Sei imediatamente que não tenho como negar. Não há
qualquer pedido seu que eu recusaria, é simples assim.
Cruzando os braços em X diante de meu peito, seguro suas
mãos e a acolho comigo. Sua bochecha descansa em minhas
costas. Sei que está vestida, sinto o contato do tecido de sua
camisa de pijama.
— Eu odeio meu corpo, Elliot — revela, baixinho, dividindo
comigo o que parece ser causador de um ponto de dor dentro dela.
— Odeio me olhar no espelho. Não há nada que eu goste em mim.
Porra, isso me mata.
Fecho os olhos debaixo da água abundante.
— Pois eu amo tudo em você — rebato, rouco pra caralho,
tomado por essa coisa me apertando a glote.
— Eu sei — afirma. — Eu sinto.
Viro-me para ela, lentamente. Preciso ver seu rosto.
— Você é a obra mais perfeita já colocada nessa Terra,
malyshka — e não há verdade maior.
Amália me encara com uma urgência que ainda não tinha
visto.
— Me ajude a gostar de mim, Elliot. Me ajude a me limpar de
uma vez por todas. Eu me sinto tão… suja… tão insignificante.
Quero me libertar desse sentimento.
Leva um momento para meu cérebro compreender seu pedido.
Para entender bem o que está dizendo. Um momento doloroso que
me atinge com a precisão de um rifle à queima-roupa.
— Não há nada de sujo ou insignificante em você, Amália.
Seguro seu rosto entre minhas mãos, a água batendo em nós,
se espalhando a nossa volta.
Salpico um beijo em sua testa.
— Você é perfeita.
Outro beijo, na sobrancelha escura, e outro na cortina de cílios
negros.
— Uma obra rara, desenhada por um deus benevolente.
Beijo a maçã do rosto, o nariz, a linha da mandíbula.
— Já vi muita coisa nesse mundo. Vi de tudo. Mas nada,
absolutamente nada se compara a você. E não estou só falando do
que há por fora. Sua beleza vai além do que os olhos podem ver.
Mais e mais beijos salpicados com toda a minha veneração,
com toda a submissão de alguém diante de algo valioso e raro.
— É o que há de mais precioso, entende isso? Em cada
detalhe.
Roço meus lábios pelos seus devotamente.
Parte de Amália a urgência de um beijo de verdade, quando
segura meus ombros com força e inclina o rosto para cima, me
pedindo por isso em silêncio.
Não podendo negar a essa menina nada que queira, eu a beijo
de volta. A reverencio, a adoro, a contemplo. Por um instante, deixo
aquela parte de mim, a que venho contendo em sua presença, se
manifestar para fora da pele, uma torrente do desejo mais feral e
desesperado por ela. Beijo Amália com toda a necessidade que
guardo esse tempo todo, para que ela enxergue a intensidade do
que é essa coisa que queima cada célula do meu corpo, por ela.
Somente por ela.
Nublado por esse sentimento penetrando até os ossos, a
assisto segurar a barra da camiseta, não sem antes notar que o
pijama colado a seu corpo modela os seios pequenos, evidenciando
bicos entumecidos.
— Não precisamos, Amália…
— Eu quero, Elliot. — Puxa a peça encharcada para longe de
seu corpo, deixando que caia aos seus pés. — Quero dar um novo
significado a isso. Q-quero me libertar.
Enfrento apenas a íris cinza perdendo espaço para pupilas
escuras, atrás de um sinal de alerta, algo que me diga que estamos
perto de cometer um grande erro.
Só encontro determinação e um tipo de apelo bonito.
Baixo então meu olhar para sua pele nua, tão clara que quase
posso demarcar as veias que a irrigam. Seios pequenos, mamilos
rosados rígidos, despertos. O estômago liso, a pele firme, maculada
por algumas pequenas cicatrizes, descendo até o cós da calça de
flanela.
É imperioso me agarrar a todo grama de autocontrole que
possuo para impedir que meu corpo reaja, que meu desejo ganhe
evidência e a assuste.
— São lindos — a rouquidão quase ganha a melhor sobre
minha voz.
Noto o apertar de seus lábios, refutando a informação.
Depreciando-se. Mas, corajosamente, ela não os esconde de mim.
Cerra os punhos ao lado do corpo e se deixa ser exposta.
— Toque em mim, Elliot — pede.
Porra.
— Amália…
— Por favor.
Antes de fazer o que pede, trago-a para mais perto.
— Você não tem que implorar, malyshka. Nunca. Se soubesse
o quanto a quero. Olhar para você está me matando, Amália. Me
matando.
Sob o chuveiro, eu a abraço. Deixo nossas peles se unirem
pela primeira vez sem nada entre nós. Seus seios pequenos e
rígidos empurram-se contra mim, contra uma parede de músculos
tensos.
Surpreendendo-me, Amália planta um beijo em meu peito,
acima da tatuagem de seus olhos. E mais um, e outro, e uma
dezena deles. Uma ferroada ganha caminho de minha barriga para
meu maldito pau. Cerro os dentes num aperto implacável para
impedi-lo de ganhar vida.
Sua mão pequena passa a deslizar por meus braços, costelas,
costas, até se voltarem para as minhas. Ela as apanha e leva para
si, para cobrir seus seios.
Grunho um som tão animalesco preso no fundo da garganta,
que chego a temer assustá-la.
Amália também reage ao contato. Um gemido baixinho
atravessa seus lábios semiabertos. Olhos inebriados, levemente
arregalados, buscam os meus. Mas não é medo que enxergo neles,
é antecipação, curiosidade, desejo.
— Você é perfeita. — Desço minha boca para a sua e colo
nossos lábios. — O que quer de mim, Amália? O que mais quer?
— Você — murmura entrecortado. — Quero que me mostre
como é ser amada, Elliot.
A sensação é de que o fio condutor responsável por minha
determinação arrebenta-se fibra a fibra.
Não penso direito ao içá-la em meu colo, tirando-a do chão.
Seguro-a com firmeza e, sem precisar de muito, a recosto contra a
parede. Amália se agarra em mim com tudo que há em si.
Porra, eu amo essa menina. Amo como jamais amei ninguém.
Sequer sabia que ainda seria capaz de conhecer esse sentimento.
Que merecia me sentir assim com alguém.
Assim como ela finca as unhas curtas contra minha carne,
mergulho meu nariz em seu pescoço, com água desabando em
nossas cabeças, e a aspiro, a beijo, percorro os dentes levemente
sobre seu ombro. E não representa nem uma fração do que tenho
vontade de fazer, porque seja como for, ainda estou no controle,
ainda quero dar a ela tudo, sem assustá-la com a intensidade que
percorre minhas veias nesse momento.
Aperto um de seus seios em minha mão, beliscando
ligeiramente o mamilo.
Ela geme, se estica em meus braços.
— Elliot…
— O que quer que eu faça, malyshka? — Percorro a boca
sobre o frenesi que é sua carótida. — Onde quer que eu a toque?
Sua resposta é se alongar ainda mais para trás, agarrada ao
meu pescoço, oferecendo seus seios ao meu alcance.
— Quero lamber você — digo.
Ela estremece, as pernas me circundam com mais força.
— Então… então faça… — murmura sem ar.
Meu coração, desenfreado, se choca contra a caixa torácica
violentamente.
Aperto a mandíbula ao limite dos dentes.
Mas faço o que digo, e faço porque sei que é o que ela
realmente quer: prazer em meus braços.
Percorro a língua pelo bico intumescido, macio e suave, bem
devagar, testando e provocando.
Amália geme mais alto, agarrando-se a mim com mais força,
dedos entrelaçados em minha nuca.
— Te amo, moy almás. — Prendo suavemente um dos
mamilos entre meus dentes. — Te amo.
Ela choraminga, pressiona minha cabeça para mais, ativa.
Dou a mesma atenção ao outro seio.
Unhas me arranham as costas.
— Nunca senti nada como isso por ninguém — digo,
devotamente, amando ser aquele a proporcionar esse tipo de som
nela, esse apelo bonito que reverbera a nossa volta. — Nem pensei
que algum dia seria capaz de sentir. — Corro a boca por seu
pescoço até encontrar a orelha. Mordisco o lóbulo e sussurro em
seu ouvido: — Você é perfeita, está me ouvindo? Cada parte de
você, malyshka.
— Elliot… — Lança a cabeça para trás, um apelo, um pedido.
Água do chuveiro jorra sobre nós.
— O que quer, Amália? O que quer que eu faça? Eu sou seu,
peça e vou fazer.
Sinto a pressão de sua pélvis se empurrando para mim,
respondendo o que palavras não expressam.
Posiciono-a com um braço em sua cintura e me afasto apenas
para ter espaço suficiente para olhar para ela.
Olhos fechados, a trança molhada grudada em seu braço, os
lábios presos entre os dentes. A imagem mais sensual em que já
botei meus olhos. Nem que eu viva um século inteiro, vou me
esquecer disto, desse momento, dessa imagem.
A sensação é de que o ar ficou rarefeito a nossa volta.
— É o que quer, Amália? Que eu a toque?
— Hummmm — grunhe desafinada, inocente do poder de seu
desejo.
— Preciso de palavras, moy almás. Preciso que me diga.
— Me toque, Elliot… por favor, me toque.
Um sorriso desprovido de humor rasga meus lábios. O monstro
bestial e a garota doce e delicada. A inocência contra a experiência.
Devagar, invado o cós de sua calça, tateando e encontrando o
caminho abaixo da calcinha molhada.
Calor, delicadeza, uma bocetinha pequena e incendiária, assim
como imaginei.
Masturbo-a, provocando, ganhando e construindo terreno.
Amália se retorce em meu colo. Geme alto, arranha, aperta,
chega a cravar os dentes em meu ombro.
Apanho o mamilo com a boca, torturando-a, enquanto minha
mão trabalha com precisão em seu ponto mais sensível.
Não demora para que ela exploda.
Olhos arregalados, mais transparentes do que nunca. Um grito
de espanto e poder. Uma convulsão do pequeno corpo amparado
pelo meu.
Meu corpo inteiro reverbera um tremor violento junto dela.
Quando finalmente a menina desaba a cabeça contra meu
pescoço, absorta em seu prazer, gemendo e arfando em meu colo,
retiro minha mão de sua calça, ajeito Amália em meus braços de
modo que apanho meu pau. Com poucos movimentos para cima e
para baixo, me despejo contra o azulejo da parede.
É a porra do orgasmo mais violento e visceral que já tive.
Tem o poder de apagar qualquer outra experiência anterior e
deixar apenas uma no lugar: Amália.
Sou dela. Sem volta, sem culpa.
Chega de culpa.
Chega de tentar me afastar dessa coisa avassaladora que me
atrai para ela.
O restante do banho é apenas para ela. Lavo-a com devoção,
inclusive entre suas pernas. Desfaço a trança em seu cabelo e
espalho xampu, massageando o couro cabeludo, fazendo-a suspirar
de tão relaxada.
Na cama, vestidos, Amália se aninha em meus braços. Seu
sono vem rápido. Antes de entregar-se a ele, no entanto, ela ainda
esboça sonolenta:
— Um dia quero fazer uma tatuagem, também. — Boceja. —
Bem aqui — em seu pulso.
Sou incapaz de descrever as emoções que me percorrem com
essa afirmação.
Na escuridão parcial, encaro o teto, contemplando o ronco
baixinho que a menina emite.
Só não durmo também porque não quero perder um único
minuto disto.
E, se eu for sincero, porque não consigo parar de repassar o
plano em minha mente. Não posso falhar nessa missão. Tenho que
voltar para ela.
Falhar não é uma opção.
Ansioso com essa merda, me levanto da cama, desço
rapidamente ao escritório de Sebastian, procuro e encontro o que
preciso, e volto para o nosso quarto. Passo o restante da noite
fazendo algo que não fazia há pelo menos um ano.
AMÁLIA
ELLIOT
O primeiro porre da menina. É isso, agora sim ela está vivendo
como a garota de vinte anos que deveria ser. Experimentando
coisas, permitindo-se. Aos poucos, a mudança está acontecendo.
— Sabe uma música que eu g-gosto…? ich-ich — pergunta
Amália, interrompida por um soluço, enquanto sobe a escada em
minha frente, minhas mãos a guiando pela cintura estreita. — É
assim. — Bate castanholas imaginárias no ar. — “Plazita del
altozano los niños juegan al toro y el más chico al no tener trapo al
no tener trapo se queda en un rincón llorando solo”[46].
O canto profundo e melodioso ganha sobriedade, ainda que as
pernas estejam um pouco atrapalhadas. Nunca conheci alguém que
cantasse assim, com a alma. É um dom que a menina tem.
— “La gente sale a la calle le tocan las palmas, primo, le le le
le le tocan las palmas le le le le le, tocan palmas”[47].
Olha-me, inclinando o rosto para trás.
— Você já esteve em uma tourada, Elliot?
— Não, Amália.
— É legal, as crianças correm pelas ruas, as pessoas batem
palmas. Mas eu tinha muita pena do touro. Não deveria ser certo
machucar um animal a troco de nada, né?
— É, não deveria.
— Minha abuela me enfeitava para o dia da tourada. Mas
nunca com roupa vermelha. Vermelho atrai a fúria do touro, sabia?
— Não, são sabia.
Um sorriso inunda minha voz.
Acho que nunca vou me acostumar com a versão Amália
falante. Não quando, por meses, enquanto eu frequentava a clínica,
ela mal dizia uma palavra; até bem pouco tempo atrás, na verdade.
Só continue, menina. Liberte-se dessa carcaça que não é sua,
continue florescendo.
No quarto, a assisto desabar na cama.
— Tá tudo dobrado, Elliot.
Cabelos negros mais curtos se esparramam pelo travesseiro.
A franja cai de lado. O novo corte de cabelo deu a ela confiança,
percebo. Isso ou o álcool.
— Imagino que sim. Quanto você bebeu?
— Não foram dois copos. Eu deveria ter ficado só em dois.
— Não tem problema extrapolar de vez em quando, moy
almás. — Eu a ajudo com a sapatilha.
Afasto-me para fechar a cortina e ligar o abajur. Amália não
gosta do escuro.
— Elliot? — chama sonolenta.
— Sim.
— Promete que nunca vai embora? Doeu tanto perder minha
abuela.
Uma espécie de ferroada me atinge o peito em cheio.
Observo seus olhos se fechando, a respiração cadenciada.
— Prometo — digo, ciente de que seu sono promovido pelo
álcool possivelmente levou a melhor e ela sequer está me ouvindo
agora.
Nem que eu tenha que matar meio mundo, prometo voltar para
você.
ELLIOT
— Tem coisa errada aí. Essa merda não está cheirando nada
bem, Elliot.
— Já falamos sobre isso, Ed. — Guardo o silenciador dentro
da mochila.
— Falamos? — Ed refuta, sem esconder a insatisfação. — Ou
você decidiu que é uma boa ideia agir sozinho e deixar a gente de
fora?
— Não estou deixando vocês de fora. Estão todos sabendo,
não estão? — Eu me recuso a encarar de frente qualquer um deles,
enquanto confiro os cartuchos reservas das duas pistolas.
— Que besteira do caralho — grunhe o cara.
— Isto está me lembrando Cáucaso. — Bola desenterra a
história idiota de tantos anos atrás.
Aperto a ponte do meu nariz.
— Em Cáucaso eu era o mais próximo do alvo. Não dava
tempo de esperar a chegada de vocês, e sabem disto. — Guardo
metodicamente as pistolas, uma no coldre na panturrilha e outra
dentro da jaqueta, tentando ignorar a maldita pressão que estão
fazendo.
— Engraçado. — O grandalhão coça o queixo. — Eu me
lembro de uma versão diferente: aquela em que você quis agir por
conta própria, sem esperar nenhum de nós, e acabou no centro de
uma emboscada.
— No final, eliminei todos eles, não eliminei? — Dou meu
melhor olhar arrogante para cara, esperando que entendam o meu
lado de uma vez por todas.
Não escolhi embarcar para essa missão com Brejnev. Estou
fazendo por mim e por todos nós. Será que não entendem?!
Já está difícil ter que me ausentar e deixar Amália.
— Você teve sorte, em Cáucaso, Elliot — acusa Bola. — E
sabe o que dizem sobre contar com a sorte quando é a porra da sua
vida que está em jogo, não sabe?
— Esqueçam. Ele está com a cabeça feita — Sebastian, mais
afastado, recostado à parede, enfim abre a boca.
O cara mal disse uma palavra desde que chegou. Está puto
por eu ir sozinho, e eu sei bem.
Quando ele derruba a cabeça de lado e crava aqueles olhos
sombrios do caralho em mim, sei o que está por vir. Ainda assim,
mantenho-me forçadamente indiferente.
— Acha que é uma boa hora para contar o plano todo, ou
teremos que descobrir sozinhos?
Aperto a mandíbula, detestando essa situação. Detestando
omitir qualquer parte deles.
— Não há nada para contar — desconverso.
— De que merda Sebastian está falando, Elliot? — pressiona
Ed.
Meu silêncio faz Sebastian rir sem qualquer humor.
— Pelo que conheço dele, tenho a sensação de que Elliot quer
repetir o lance “Verhoeven”, Ed.
— Matar Brejnev depois de entregá-lo sob custódia da
Interpol? — Ed semicerra os olhos, me estudando atrás de uma
explicação que faça qualquer sentido.
Sinto cada par de olhos em mim. Ciente de que não vão me
deixar sair desta sem a verdade, derrubo a mochila fechada aos
meus pés, escoro-me no balcão da cozinha cruzando os braços
diante do peito e enfrento o trio de caras que considero irmãos:
— Vladimir é um risco. Não há garantias de que depois a
Interpol não decida usar o cara como barganha para um peixe
maior. Não confio em Jurgen.
— Diabos! — Ed bufa. — Por que não acaba com o cara aqui
então, de uma vez? E não me venha com essa de que não quer
guerra com os Brejnev, ou que tem um esquema com o sobrinho
rato do desgraçado! Sabe que podemos dar um fim em Vladimir de
maneira limpa, sem deixar qualquer vestígio. Qual é, Elliot? O que
não está contando pra gente?
Ele tem um ponto.
Assinto. É justo que conheçam a gravidade e os riscos dessa
situação, talvez sem precedentes.
E sei que vão ficar ainda mais irritados por eu não ter
compartilhado antes:
— Vladimir não está blefando sobre construir uma bomba.
Mais do que uma, possivelmente. Tenho a sensação de que ter
acesso a essas ogivas é só uma etapa de algo maior. — Aperto os
músculos tensos em minha nuca. — Não tem nada a ver com a
guerra pelo domínio das ruas, drogas, armas e essas coisas. É
político. Ele veio com aquela história de quem foi o tio-avô dele;
aliança soviética; e reavivar a “dinastia que vai salvar esse país”.
— Que imbecil — grunhe Ed.
Bola sacode a cabeça, como se não acreditasse no tamanho
da estupidez de Brejnev.
Sebastian, por outro lado, continua apenas me perfurando com
o olhar. Exigindo mais.
Sorvo uma respiração forte, cansado pra caralho dessa merda
toda, e divido meu temor:
— Vladimir não me preocupa. Quem está por trás, sim. É por
isso que não posso simplesmente apagar o cara aqui, mesmo que
de modo limpo. Preciso descobrir a real extensão disso tudo, a
começar por quem é o fornecedor das ogivas, para aí sim ter uma
ideia do tamanho da bagunça… — A próxima parte é como dar voz
a um pensamento que vem me assombrando nos últimos dias. —
Quero saber se alguém do governo tem conhecimento disto.
Cada homem em meu apartamento exala devagar. Por
natureza, somos soldados. Faz parte do nosso instinto reconhecer o
perigo iminente de uma situação. E justamente por isso, todos
compreendem que estamos diante de algo grande.
— Você não pode ir sozinho — decide Ed, irredutível.
— Com certeza, — Bola cruza os braços diante do peito largo
—, vamos com você.
Sebastian é o único que permanece em silêncio, frio e
impassível. Sua mente está em modo Spetsnaz, como éramos
designados na época em que compúnhamos a tropa de elite das
forças especiais de guerra.
— O que quer que a gente faça? — pergunta ele.
Sim, esse finalmente é o ponto.
— Que fiquem aqui, vigilantes e, principalmente, protejam
minha menina. Vladimir deve ter assegurado um plano de
contenção, para o caso de algo dar errado, e com certeza virá para
cima dela. De todos com quem nos importamos. — Esfrego o rosto,
cansado, deixando desabar por terra qualquer rastro de que tenho
tudo sob controle. Não tenho. Não tudo. — Não vou conseguir fazer
o meu trabalho lá, se não souber que vocês estão me cobrindo aqui.
Nos semblantes profundos e sombrios, sei que entendem, e
que estão comigo. Não esperava menos.
Antes de deixar o apartamento e dirigir para o hangar onde
acontecerá o encontro, retiro da gaveta o envelope pardo grosso.
— Uma vez você me pediu para cuidar da espanhola. Hoje
preciso que faça o mesmo por mim. — Estendo-o para Sebastian,
que encara o envelope com expressão ainda mais nebulosa.
— O que é isso?
— A garantia de que a menina vai ficar bem… você sabe, caso
algo me aconteça.
AMÁLIA
Observo mais uma vez meu pulso protegido pelo plástico filme,
não me cansando de ver. Fazer isso foi a coisa mais certa que eu
poderia ter feito. A maneira que encontrei de honrar tudo o que ele
fez por mim.
— Obrigada por ter me levado, Yulian — agradeço mais uma
vez.
Quando liguei para ele e perguntei se poderia me dar uma
carona de volta às galerias de arte, Yulian foi bem legal em aceitar,
e fez de coração, sei que sim.
Ele estava preocupado que as coisas pudessem ter mudado
entre nós depois daquela coisa do beijo. De minha parte, não
mudou. Yulian é irmão de Elliot, alguém importante para ele, e vou
honrar isso. Não tive muitos amigos, quase nenhum, mas essa é
uma coisa que vou me esforçar para melhorar. Não me fecharei
para a amizade dele. Tenho certeza de que é o que Elliot gostaria.
— Não por isso… ei, aquela não é a…? Acho que aconteceu
alguma coisa — diz ele, conforme entra na rua da casa de Loupe.
Mudo o olhar rapidamente para o lado de fora e me alarmo ao
ver vovó Zhena quase no meio da rua sem saída. Desço e corro
para ela.
— Babushka?
Vovó nem tenta pegar o celular para usar o tradutor, só fica
falando sem parar para Yulian, enquanto segura minhas mãos
olhando diretamente para mim, esperando que ele faça a tradução.
— Eles tentaram te ligar — traduz Yulian.
— Deixei o celular em casa — explico, culpada, me
desculpando.
Yulian fala isso para ela. Vovó sacode a cabeça, acho que
dizendo que não importa, e continua falando.
— Penélope foi para o Hospital Central de Moscou.
Perco a firmeza em minhas pernas na mesma hora. Notando,
as mãos macias dela apertam as minhas.
— Loupe está bem? Aconteceu alguma coisa?
Vovó nega outra vez a cabeça, ansiosa, falando sem parar.
Yulian faz a ponte:
— Não, está tudo bem com ela, mas é para a gente ir para lá
agora. E é o que vamos fazer, vem. — Puxando-me pela mão, ele
nos leva de volta ao carro, não sem antes vovó me abraçar bem
forte, alisar meu rosto, meu cabelo, abalada, emocionada, só não
sei se triste ou feliz, não consigo interpretar direito.
Yulian dirige bem mais rápido do que já o havia visto dirigir,
fura sinais, ultrapassa. E vou ficando cada vez mais ansiosa sem
saber o que está acontecendo. Em um momento, acho que estou
me beliscando tão forte, que sua mão intervém, descansando sobre
a minha.
— Ei, fique calma, está bem? Não deve ser nada ruim.
— Então por que ela está em um hospital? — Minha barriga
afunda.
— Não faço a menor ideia, mas não deve ser nada sério.
— Hm… — Não consigo ter a mesma tranquilidade. Hospital
nunca é notícia boa.
Yulian corta um carro bem depressa.
— Seja o que for, vamos descobrir em um minuto, o hospital é
ali.
Mal o espero estacionar para saltar do carro. Yulian grita
alguma coisa sobre procurar uma vaga, só que não consigo ficar
para prestar atenção. Ansiedade começa a queimar atrás das
orelhas, disparar o peito, cegar meus olhos.
Atravesso a porta, e o que encontro do lado de dentro me faz
estancar no lugar.
— Am! — diz Penélope, vindo em minha direção.
Corro um olhar para os que estão atrás dela. Sebastian, Ed,
Bola. Todos aqui, bem.
Meu Deus, então é…
— A Sol… — gemo sem forças.
Loupe me ampara, abraçando com força.
— Não, chica, não é nada com nossa menininha. Ela está
bem, estamos todos bem.
Afastando-me de seus braços, investigo seu rosto. Seus olhos
estão marejados. O lábio inferior tremendo. A expressão de choro,
apesar do sorriso. É meio confuso, não dá para interpretar.
— Mas então?
— É o Elli… Madrecita de Dios, nem sei como te dizer isso,
mas ele está aqui, minha irmã, no hospital, está vivo e…
Vivo. É a última coisa que me lembro de processar, antes de
tudo girar e escurecer. Acho que desmaio, não tenho bem certeza.
— Gostei desse lugar.
Pés descalços, grandes e masculinos invadem meu espaço
pessoal, pisando no gramado úmido.
Amo tanto, tanto, tanto essa voz.
— Elliot?! — Subo o rosto devagar, duvidando de que seja
mesmo ele.
Encontro seu rosto, olhos vívidos me fitando com aquele toque
de seriedade e zombaria que são sua marca registrada. Um sorriso
pequeno e de lado nos lábios. Tão lindo, meu Deus, tão lindo.
— Olá, minha malyshka.
— É mesmo você…
O sorriso em sua boca aumenta, leva rugas ao entorno dos
olhos, clareia o mundo ao nosso redor.
— Posso? — Aponta ele, para o banco debaixo da árvore.
Afasto-me para o lado, dando espaço.
Ele se senta daquele jeito seguro, tomando conta do espaço
com sua força, modos firmes e ao mesmo tempo suaves. Amei essa
mistura desde o primeiro dia.
— Foi aqui onde conversamos pela primeira vez, você se
lembra?
— Aqui? — Olho em volta, o lago, os jardins, os pássaros. Só
então me dou conta de que estamos na clínica.
— Bem, aqui me respondeu pela primeira vez, melhor dizendo
— brinca ele. — Eu já conversava com você antes, quando a
visitava no quarto, mas lá ainda não dizia nada.
— Você me convidou para vir ao jardim — lembro, não sei por
que havia esquecido disto.
— Ah, com certeza eu fiz. Não conseguia te ver se
escondendo dentro daquelas paredes nem mais um dia. Além do
que, esse lugar só fica bonito se você está nele.
Meu coração quase derrete. Só Elliot consegue dizer essas
coisas, fazer meu peito mudar o compasso.
— Você me contou que tinha medo de gansos — digo. A
memória vem com clareza.
Elliot gargalha. É o som mais maravilhoso do mundo.
Reverbera ondas quentes e vibrantes por tudo, inclusive por mim,
eriçando os pelos dos meus braços. Exatamente como naquele dia.
Lembro que achei tão confuso uma risada genuína ter o poder de
arrepiar a pele. Fazia tantos anos que não escutava uma.
— Posso ter exagerado um pouco — admite ele. — Medo é
uma palavra forte. Digamos que essas coisinhas bicudas e bravas
não são meus animais favoritos.
Sem poder evitar, bato com meu ombro no seu, assim como
quis fazer naquela primeira vez, mas me contive.
— Senti tanto a sua falta — meu coração conta para ele.
Um braço forte, macio e protetor passa por cima do meu
ombro e me traz para junto de seu peito, a parede de músculos e
calor, o meu lugar favorito no mundo.
— Estou orgulhoso de você, menina.
Afasto só um pouquinho a bochecha de seu peito para ver seu
rosto.
— Por quê? — Que motivos eu dei para que ele se orgulhasse
de mim?
Outra vez, ele sorri, disparando raios de felicidade por mim.
— Não vê para onde nos trouxe?
Após um momento, compreendo o que está dizendo. O vento
varrendo a pele, o som dos pássaros, a ondulação nas águas do
lago, o calor do sol batendo em meu rosto. A paz no coração, o
sentimento de estar segura.
— Nada de pântanos das armadilhas — reconheço.
— Nada de pântano das armadilhas — confirma, satisfeito.
— Não quero mais ir para lá.
— É a razão de ter feito isso? — Seu polegar roça com
delicadeza meu pulso.
Pensativa, observo sua mão me tocando.
— Também não vou mais me cortar — é uma decisão. — Não
importa quão ruins as coisas estejam. Isso aqui é para quando eu
olhar para elas, para as cicatrizes. O que gravei em cima delas é um
lembrete de por que me libertei.
Seu rosto, apesar de ainda suave, fica com a expressão mais
séria ao me encarar profundamente.
— Você se libertou porque é uma mulher forte, malyshka, e
deve isso apenas a si mesma.
— Mas sem você eu não conseguiria.
— Conseguiria, conseguiria sim. O que sente por mim, por
essas pessoas, só é possível pelo que há em seu interior. Amor,
esperança, bondade, generosidade. São esses os sentimentos que
decidiu cultivar em si mesma muito tempo antes de me conhecer, e
ninguém foi capaz de quebrar, não importa o quanto tenham
tentado. — Elliot apanha meu rosto entre as mãos e sorri. Se ele
soubesse o que faz com o mundo quando sorri. — O sentimento
que a faz levantar da cama todos os dias, o que a fez correr para o
hospital, você é feita dele, moy almás. Sua força vem do conjunto do
que há aí dentro.
Aninho-me em suas mãos e não tento refutar o que diz, só
quero ficar assim, aqui, com ele para sempre.
— Sempre é tempo demais — diz ele em tom zombeteiro. —
Logo estará enjoada de mim.
Franzo o cenho, curiosa que tenha ouvido algo que eu nem
mesmo verbalizei.
Mas é a outra parte do que diz que me deixa mais atenta.
— Então é verdade?
Elliot encosta a testa na minha, alisando minhas bochechas
com os polegares. É tão bom que por um tempo até esqueço de que
não respondeu. Implorando para que seja real, subo minhas mãos e
também toco em seu rosto.
É do calor de sua pele abaixo de minhas palmas que vou me
lembrar quando pensar nesse momento.
— Am, acorde, querida, por favor… — Penélope?
A claridade cegante no teto me obriga a piscar algumas vezes
antes de finalmente conseguir focar no rosto acima do meu. É
Penélope. Não estou mais na clínica.
— Ele está vivo. — Quando as palavras abandonam meus
lábios, não formam uma pergunta.
Embargada, limpando uma lágrima no cantinho dos olhos
castanhos, ela confirma.
— Está, mi cariño, Elliot está vivo. Não está bem, mas está
vivo.
É como se meu corpo flutuasse enquanto sigo a enfermeira
pelos corredores vazios limpos, assépticos, cheirando a algo
químico. Mal sinto minhas pernas, só ouço um zunido baixinho bem
no fundo dos ouvidos. Para ser bem sincera, não sei distinguir se
isso aqui é real, se está mesmo acontecendo.
A mulher vestida com a proteção azul do hospital, igual a que
estou, ajeita os cabelos dentro da touca. Automaticamente, repito o
gesto em mim. Então faz um sinal para a porta dupla, acho que
dizendo que é aqui.
O zunido aumenta, tambores fazem uma música agitada
dentro de mim.
A enfermeira gesticula para que eu não retire a máscara.
Assinto, dizendo que entendi.
Lentamente, tão lentamente que parece durar uma eternidade,
as portas são empurradas. Ela se coloca de lado, me permitindo
passar… e me dando uma visão geral do ambiente.
O mundo, nessa fração de minuto, simplesmente congela. Não
há som. Não há tremores. Não há nada, exceto pela visão mais
improvável e indescritível, a que confunde minha sanidade, põe em
dúvida.
Sobre uma cama, ligado a mais fios do que posso
compreender, há um homem adormecido. Está diferente, uma
camada espessa de barba esconde metade do rosto; cabelos loiro-
escuros grossos e baixos se apossam de onde antes não havia nem
um fio; a cavidade funda e escurecida ao redor dos olhos deixa
notável que perdeu um pouco de peso.
Passeio o olhar por todo ele, o lençol do hospital cobrindo a
parte inferior de seu corpo grande, mas é no peito que me detenho.
Na cadência subindo e descendo sob as ataduras quase que
imperceptivelmente.
Minhas pernas amolecem a ponto de não suportarem meu
peso, caio de joelhos, as duas mãos espalmadas no chão. Um som
sem nome explode do fundo da minha garganta. Um soluço, um
gemido, um choro… vêm diretamente da alma.
Por favor, por favor, por favor, não seja fruto dos labirintos da
minha mente, eu não suportaria.
Uma mão aperta meu ombro. Levanto os olhos para a
enfermeira, me perguntando em sinais se estou bem. Ela é real. O
piso frio abaixo de minhas palmas. O cheiro de limpeza e remédios.
Com os olhos empossados d’água, assinto. Não conseguiria
pôr em palavras esse sentimento, palavras não o descreveriam.
É uma rajada de algo vital voltando ao meu corpo.
Levanto-me um pouco cambaleante.
Limpando as lágrimas, com muito medo de que Elliot evapore
a qualquer momento, aproximo-me da cama. Primeiro o toco
hesitante, e quando sinto o calor de sua pele, então fica difícil não
envolver sua mão grande entre as minhas e a trazer para meus
lábios. Aspiro, beijo. Acaricio minha bochecha com ela. Minhas
lágrimas o molham.
Demora para eu me lembrar da outra presença no quarto.
Quero perguntar por que todos estes fios. Saber quando acordará. A
barreira de idiomas é frustrante.
Prometo que vou aprender russo. Vou me empenhar mais e
dominar essa língua!
Não sei quanto tempo se passa enquanto essa enfermeira se
vai e outra vem checar os sinais de Elliot. Penélope passou pelo
quarto, os amigos dele também, mas ninguém me pede para sair.
Acho que entendem que eu não conseguiria. Loupe providenciou
que trouxessem uma cama para a noite, cobertor e travesseiros.
Trouxe uma mochila com alguns itens pessoais para mim. Mas não
arredo o pé, ou me permito dormir. Quero estar aqui para quando
ele acordar. Anseio por isso.
— Você não escapará dos treinos, nem se tentar — diz Ed,
surgindo de repente ao meu lado. O relógio no monitor informa que
já é madrugada. — Então é melhor dormir um pouco.
Por reflexo, levo a mão ao peito, pega pelo susto.
— Não te ouvi se aproximar…
— Especialidade da casa, como eu disse. Agora, por que não
aproveita aquela cama para cochilar?
Reparo seu rosto. Pelo que noto, ele esteve lá fora esse tempo
todo.
— Você também deveria dormir — observo.
— E quem é que vai proteger os médicos da ira do Bola?
— Ele também não foi para casa?
— O cara pensa que, por ser feio, vai assustar a morte. — Dá
de ombros. — Eu é que não sou idiota de tentar mudar sua mente
— brinca, pelo menos é o que eu acho. É difícil interpretar em se
tratando dele.
Ed tem um humor meio maligno quase sempre.
— Elliot não vai morrer — afirmo, com toda a certeza que há
em meu coração.
— É o que espero. Essa coisa de fazer dois funerais dá muito
trabalho.
Você
Você é respiro.
Trecho de grama verde entre os espinhos
Explosão de cores no vazio
Calor como as chamas que crepitam em seus olhos
É paz que me dá abrigo
Sorriso que transforma o mundo
Elliot
— Ah, maldição… — Um praguejo espantado me faz abrir os
olhos e encarar Bola na porta.
O olhar do cara sai do meu braço ao entorno da menina e foca
em meu rosto, parecendo enxergar um maldito fantasma. Devo
estar uma merda para o filho da puta ficar tão surpreso.
Antes que diga mais alguma coisa, lanço um olhar de
advertência: Amália está dormindo, não quero que a acorde!
— Quando…? — indaga Bola em um cochicho, respeitando
meu pedido.
— Há algumas horas, provavelmente — respondo à pergunta
não completada.
— Você é um filho da puta, Elliot. — Bola escora a mão na
parede, e, não nego, seu alívio me comove. É um irmão, esse
desgraçado.
— Vou chamar o médico.
— Não — rosno. Inferno, até falar dói.
— Ele precisa saber que você acordou. Vai que alguma coisa
aí dentro esteja sangrando ou sei lá. Sabe o que dizem sobre
pacientes que acordam do coma, não é?
Sorrindo, porque esse imbecil é um sacana, nego com a
cabeça, embora ciente.
— O moribundo só acorda para se despedir. É melhor aquele
sujeitinho dar uma boa olhada em você e fazer valer a grana que
estamos socando no rabo dele.
— Não o chame, ainda, irmão. Preciso de um pouco mais de
tempo. — Ele sabe a que me refiro. Preciso de mais tempo com a
menina. Para ser sincero, nem sei como estou aqui.
— Você tem meia hora. Além de quê — o grandalhão pondera
—, é bem possível que aquele pomposo nem nesse hospital esteja.
Vou ter que caçar o preguiçoso.
Bola não está brincando sobre me dar apenas esse tempo,
conheço o cara. Há muito o que precisa ser feito, ele tem razão.
Mas nesse momento só quero contemplar o corpo pequeno
agarrado ao meu, cochilando como se não o fizesse há dias. Vi em
seu rosto que as coisas não estão bem para ela, também. Não deve
ter dormido, perdeu peso, seu emocional deve ter sido fodido.
Amália precisa de descanso.
Após a porta ser fechada como se jamais houvesse sido
aberta em primeiro lugar, encaro o teto de gesso e respiro bem
fundo.
Estou confuso pra caralho com alguns pensamentos e
memórias. Há dores por toda a parte. Minha garganta está seca
como areia. Os membros pesam. Minhas costas, coluna
especificamente, parece terem virado pó. Numa análise fria, estou
uma merda.
E ainda assim, me pego sorrindo.
Estamos juntos. Voltei para ela. Porra, voltei para minha
menina.
Como se me sentisse acordado, Amália vai se mexendo aos
pouquinhos. Mãos macias e pequenas abraçam meu peito, penso
que até aspira meu cheiro… por falar nisto.
— Pensei ter ouvido que eu ganharia um banho hoje — brinco,
baixinho, pagando o preço por gastar essa energia.
— Você ouviu, então… — rebate Amália, sua voz contém um
sorriso, nem preciso ver seu rosto para ter esse conhecimento.
— Teria detestado se você permitisse que ela colocasse as
mãos em mim. Aquela mulher tinha uma voz odiosa.
Recebo um tapinha de leve no ombro, que me faz rir mais alto,
o que só descarrega pontadas agudas de dor em cada maldita
célula.
Amália se coloca sobre um cotovelo, estudando-me com uma
ruga no centro da testa.
— Como você está?
Encaro seu rosto lindo, olhos preciosos de diamante levemente
inchados, talvez de chorar, talvez do cochilo. A magreza
aprofundando as maçãs do rosto.
— Estou aqui, com você. Isso por si só já é razão para eu ser o
cara mais sortudo desse mundo, Amália.
Deslizo os dedos por suas sobrancelhas, nariz, lábios. Ela
fecha os olhos e aprecia o carinho, despejando o rosto em minha
mão.
— O dia mais feliz da minha vida foi quando eu o vi aqui,
quando descobri que estava vivo, sabia?
Meu peito, porra, é esmagado por essa declaração tão
genuína, tão honesta.
Trago a menina para mim, correndo a mão por seu pescoço e
nuca, e me perdendo entre os fios.
Beijar seus lábios macios é a tortura mais maravilhosa que
existe. Sentir o corpo pequeno se encaixando sobre o meu, o joelho
encontrando abrigo entre minhas pernas, é tão fodido que me
pergunto se estou mesmo acordado e isto aqui é algum tipo de
delírio.
A batida forte na porta é um maldito balde de água fria. Bola,
miserável, cumpriu a palavra de voltar.
A menina desce da cama, ajeitando a blusa, puxando as
mangas. Sondo o movimento, me perguntando se andou se
cortando enquanto estive fora. A questão, no entanto, fica no vazio
porque após alguns segundos, um batalhão invade o quarto. Bola,
Ed, Sebastian, Gael, Yulian, e um sujeito que presumo ser o médico.
Cada par de olhos me inspeciona a seu próprio modo, mas
apenas o de jaleco se manifesta.
— Olá, Elliot. Como se sente?
— Vivo.
— Posso? — pede autorização para se aproximar e me
checar. Colaboro pacientemente com cada pergunta, exame,
checagem.
Em geral, os ferimentos que causaram a inflamação em meu
sistema estão respondendo bem. A infecção recuou. Não há febre.
Porém, segundo ele, ainda é necessário monitoramento. Não
discordo ou concordo, só espero que faça seu trabalho e dê o fora
de uma vez. E parece que é um desejo mútuo. Quando sai, quase
posso visualizar o desconforto abandonando os ombros do cara.
— Vocês fizeram um belo trabalho em assustar o médico —
debocho, numa tentativa de quebrar a tensão em seus semblantes.
É meu irmão mais novo que se manifesta primeiro. A presença
do garoto me surpreende positivamente.
— Oi, El. — Ele se aproxima da cama. — É bom ter você de
volta.
— É bom estar de volta também, Yulian. — Examino seu rosto
para ter certeza de que não estou perdendo nada.
Ele saca.
— Não se preocupe, irmão, não me meti em nenhuma
encrenca enquanto esteve fora. — Abaixa a cabeça e ri mostrando
que é só um jovem um pouco tolo, mas descente. — Pelo menos
nada tão grave que você não possa resolver.
— Não duvido — grunhe Bola atrás dele.
Minha menina pigarreia, em pé ao lado da cama.
— Acho que vou dar uma volta lá embaixo um pouco, tudo
bem?
Conhecendo-a, sei que está fazendo isto para me dar
privacidade com os caras. Seguro sua mão, entrelaçando nossos
dedos.
— Coma, malyshka. Preciso de você alimentada e saudável —
falo baixinho, só para ela.
Minha menina assente, encarando-me com aquele brilho
bonito em seus olhos cinzas. Pensei que nunca mais teria essa
visão, que nunca mais mergulharia fundo na piscina preciosa de
diamantes.
— Pode deixar.
— Se não se importar, vou te acompanhar nessa, Amália. —
Meu irmão mais novo se oferece, com as mãos enfiadas nos bolsos
da calça de moletom.
Curioso, percebo que Amália não se mostra incomodada com
isto. É bom. Algumas coisas parecem ter mudado.
— Algo que eu deva saber? — Checo com os caras quando
Yulian fecha a porta atrás de si.
— Além de ele ter comprado um Mustang GT com a sua
grana? — debocha Ed.
Um a um, meus irmãos de vida vão formando um círculo em
volta da cama. Semblantes sérios, preocupados, cansados.
— Como você realmente se sente? — inquire Gael, cruzando
os braços diante do peito sobre um de seus ternos caros. O olhar
nebuloso do cara mostra que não quer nada além de uma resposta
honesta.
— Um saco de merda — admito.
— Então espero que não tenha nenhuma objeção quanto a
passar a quantidade de dias que forem necessários aqui — o
desgraçado sombrio está me dando um ultimato?
— Não contaria tanto com isso. — Atrapalho-me com a porra
de um cateter enfiado em meu braço, quando levo a mão aos olhos
fechados. Essa claridade está me matando. E essa porcaria de cano
me irritando pra caralho.
— Quer que a gente dê o fora para que descanse um pouco?
— A questão parte de Sebastian. Fito seu rosto impassível.
Conheço o cara o suficiente para saber que está puto comigo, com
certo fundo de razão.
— Acho que já dormi o suficiente… aliás, que dia é hoje?
— Vinte de novembro.
Ad na zemle. Não acredito que passei todo esse tempo fora do
ar.
— Como ela ficou?
— Como acha? — Sebastian me joga essa. — Fizemos seu
maldito funeral.
Porra.
Fecho os olhos, sentindo o peso da culpa se sobressair a
qualquer dor física. Saber que cravei mais uma cicatriz no coração
da menina me arrebenta. Nunca foi a minha intenção, mas me
coloquei em risco e, ao fazer isso, assumi a possibilidade de feri-la,
de uma forma ou de outra. Nem que eu viva um século ao seu lado,
poderei compensá-la.
— O que não mata, fortalece — diz Ed, frio, o maldito
psicopata.
— Isso é para ser um consolo? — rosno para ele.
— Não — refuta, com um brilho letal nos olhos azuis. — É para
ser um lembrete. Suas merdas não refletem só em você, para o
caso de pensar em deixar qualquer um de nós de fora novamente.
Inspiro com força, ignorando o que isso faz em meu peito.
— Foi um erro — admito.
— Guarde a culpa para quando estiver fora desse hospital —
Sebastian ataca com a mesma impassibilidade de quem me
recomenda uma xícara de chá e descanso. Sei que ainda tem muito
a dizer, porém decidiu me poupar por agora.
— Como vim parar aqui? — pergunto, depois de um tempo
digerindo essa merda.
— Te encontramos desacordado numa tenda no meio das
montanhas. Um ancião cuidador de ovelhas estava te mantendo
vivo. Acredite, mas não por benevolência.
Tento remontar esse quebra-cabeças, compreender o que me
lembro, passo a passo. Exige esforço, e uma dor infernal atrás dos
olhos.
— Não precisamos falar destas merdas hoje. Você esteve em
coma, seu corpo necessita de tempo e descanso para se recuperar
— Bola adianta-se, como um aviso sem humor a todos.
— E talvez Bola até te faça um boquete — zomba Ed. — Não
sei o que foi pior, lidar com a sua morte, ou com o humor do cara.
— O humor de todos vocês — acusa Gael.
Desligo-me por um momento do que dizem e me foco na
informação sobre onde me encontraram. Uma tenda no meio das
montanhas… como é que fui parar lá? Qual é a última coisa de que
me lembro? Entrei naquela aeronave. Fui atacado por trás.
Brejnev…
— Brejnev estava armando para mim.
— O quê? — Sebastian se aproxima um passo, talvez porque
não tenha me escutado.
Forço minha voz para fora, ainda que isso empurre meu
pulmão para o inferno. Tento até me sentar, mas isto já é um pouco
mais difícil.
— Deite-se, Elliot — ordena Gael. — Se tem algo que queria
falar, faça deitado. Seja o que for, não vai mudar nada por agora, a
não ser prolongar sua estadia aqui.
O cara tem razão.
E ele sabe que sim, por isso sorri daquele jeito sombrio. Eu me
pergunto como é que Priscila nunca percebeu que é casada com um
dos caras mais frios que já existiu. Ou talvez seja o contrário, talvez
ela é que tenha um lado dele que poucas pessoas conhecem.
Não contesto a parte de permanecer deitado.
Cura
Minhas cicatrizes um dia foram dores habitando o peito
Hoje são marcas deixadas para trás na linha do tempo
Um processo de pequenos passos
Um de cada vez, em diferentes compassos
Mas não seria possível sem ajuda
Sem mãos estendidas, perseverança e escuta
Alguém um dia me disse
Novas memórias suplantam as antigas
Cicatrizam a alma e fecham feridas
São páginas em branco conquistadas a cada dia
Liberdade para a alma da torrente de anseios
Pedaços quebrados podem ser reconstruídos de um novo jeito
Jorge Santoro
Cordialmente. De todas as palavras no maldito bilhete,
algumas em letras garrafais numa caligrafia feminina, como se
gritasse, esta é a que prende meu olhar por mais tempo. Mal
acredito na coragem da daquela mulher. Como alguém pode ser tão
cabeça-dura a ponto de recusar uma oferta como a que fizemos
nesta espelunca?
Só há uma explicação: a proprietária do único terreno que
ainda não é nosso em todo o quarteirão é uma daquelas pessoas.
Não as que se guiam pela lógica. Não as que ponderam e
pesam suas opções. Mas aquelas que se prendem
indissoluvelmente às convicções, ainda que sejam como blocos de
gelo à deriva no oceano.
É por isto que tantos negócios quebram diariamente neste
país. Muitos empreendedores não estão preparados para enxergar
o caminho se estreitando e tomar decisões necessárias, mudar o
percurso, se reinventar.
E é por isso que o Grupo Santoro triunfa mais a cada dia: uma
das ramificações de negócios do conglomerado da família é
comprar empresas assim, prestes a se tornarem massa falida, e as
transformar em verdadeiras máquinas de fazer dinheiro.
Não que eu esteja diante de um destes casos, no momento.
Não queremos comprar a Luz & Harmonia. Queremos que a
pequena loja de… de sei lá o quê, apenas venda seu terreno, para
então prosseguirmos com a construção de um de nossos
empreendimentos mais ousados na cidade: o maior e mais alto
edifício de São Paulo, híbrido, com projeto de comportar um hotel de
cento e oitenta leitos, cinema, teatro, lajes comerciais, além de
apartamentos residenciais de luxo, em cinquenta andares de alto
padrão. Todo o quarteirão já foi incorporado, compramos todos os
terrenos, exceto um, de propriedade de uma mulher teimosa que se
recusa a vender.
A pequena loja de fachada verde está se tornando um
problema.
— Pretende ir lá ou quer que eu…? — questiona Homero, meu
motorista e segurança particular. Noto a leve zombaria em sua voz.
Confiro o horário no relógio de aço escovado cravado com
diamantes negros, um dos poucos luxos que me permito ostentar.
Quatro e quinze. Estou há quase meia hora sentado no banco de
trás do Jaguar observando o território inimigo a troco de… de ver se
obtenho um vislumbre da tal mulher que provocou diferentes
reações em cada emissário que enviei até sua loja para fazer-lhe
nossa proposta. Mendonça, um dos nossos advogados, retornou ao
escritório tentando me convencer a todo custo a abortar o projeto,
depois que a conheceu. O sujeito pareceu encantado pela
proprietária, se é que essa palavra resume o modo babão como a
descreveu.
Vi que enviar o cara havia sido um erro. Mandei então o
Souza. O mais durão. Mão de ferro em nossas negociações. Temido
por nossos adversários nos tribunais.
Souza retornou pálido como eu nunca havia visto, assustado
feito um bichinho acuado. Mal disse uma frase, e a que disse foi:
desista, aquela mulher é perigosa.
É por isto que decidi cancelar os compromissos do dia e vir eu
mesmo resolver este problema. Se quer algo bem-feito…
— Vou descer.
Enfio o bilhete no bolso. Abro a porta, coloco meus óculos
escuros e abotoo o blazer.
— Boa sorte. — Ouço o balbucio bem-humorado de Homero,
antes de atravessar a rua.
Não preciso de sorte. Talvez ela precise.
Empurro a porta de vidro com a placa de “estamos atendendo”.
Ao passar sob o umbral, sinos e cristais pendurados no teto avisam
minha presença.
Outra característica que percebo logo de cara é o aroma no ar.
Uma erva, ou algo assim. É suave. Ainda não sei se gosto. E há
plantas por todos os lados, penduradas no teto, acima de
prateleiras, no chão nos cantos da loja. Quase uma selva.
— Só um momento, por favor — grita uma voz feminina de
algum lugar nos fundos.
Corro um olhar perscrutador ao redor. Tudo limpo e
organizado. Prateleiras de madeira robusta do chão ao teto em
todas as paredes contendo uma gama de produtos. Uma com
compartimentos menores para centenas de pequenos frascos. Há
também um expositor de livros com títulos sobre o mesmo tema:
terapia holística.
No centro da loja, um balcão de madeira e vidro expõe uma
variedade incontável de pedras.
Ajusto a gravata, enfio as mãos nos bolsos da calça e me
aproximo para observar melhor, um pouco curioso. São de todos os
tipos, formatos e cores, como jamais vi. Transparentes, densas,
reluzentes, opacas, aquosas, manchadas. É uma coleção que
impressiona.
Uma em especial me chama a atenção. Já a vi em brincos,
colares, anéis. Mas nunca nesse formato, sem lapidação.
— É uma Água Marinha — diz uma voz educada atrás de mim.
Antes de me virar para encará-la, talvez apenas pelo desejo de
prolongar o momento de expectativa em descobrir o rosto de minha
adversária, apenas assinto.
— Um elo de comunicação e exteriorização de nosso lado
criativo — informa ela, prestativa, como uma boa vendedora.
Apesar de achar uma grande baboseira, aponto para outra
pedra. Pequena e desuniforme. Uma mistura opaca e translúcida
semelhante a uma mancha de barro em um lago cristalino.
— E esta?
— Citrino. Muito utilizada para revigorar nossas energias,
nossa alegria, quando nos sentimos mais exaustos, desgastados.
Aham. Claro que sim.
— Esta? — Aponto para outra, amarela. Uma parte dentro de
mim se satisfaz com esse joguinho.
Após um estranho momento de silêncio, ela explica:
— Enxofre. Ideal para eliminar negatividade, egoísmo. — Pode
parecer exagero, mas é como se eu sentisse seus olhos em minhas
costas, me percorrendo de cima a baixo.
Controlo a vontade de coçar a nuca.
Lentamente, me viro para desvendar quem é a dona da voz
calma e segura, apesar do comportamento mais irracional que já
conheci.
A visão a minha frente me surpreende um pouco. Esperava
alguém mais… menos… merda. Não esperava encontrar ela.
A primeira coisa que reparo na proprietária é o cabelo. Um tom
vibrante de laranja amarronzado, ou vermelho acobreado, não sei
bem definir que cor é, com a ousadia de cachos soltos, livres,
caindo por toda a parte, cheios de personalidade como se
possuíssem vida própria.
Em seu rosto, não há qualquer vestígio de maquiagem na pele
salpicada de pequenas manchinhas marrons, e ainda assim, é
corada, lábios e bochechas tomados por um rosado saudável. Mas
o que me prende mesmo são os olhos grandes cor de esmeralda,
semelhantes a uma de suas pedras, embora muito mais brilhantes.
Sob o sigilo dos óculos escuros, corro um breve olhar por seu
corpo, mais cor, mais vida nas roupas. Uma estranha mistura de
tons vibrantes e texturas fora de moda, mas que
surpreendentemente nela caem bem.
Não sei o que esperava encontrar, mas não era esse…
carnaval alegre. E não sei se gosto, é como se toda essa energia
que vibra dela confrontasse a sobriedade em mim.
Meu cérebro não está fazendo nenhum sentido, eu sei.
Mas o da proprietária, pelo jeito, começa a fazer algumas
conexões, a partir da maneira como me avalia e em seguida franze
ligeiramente o cenho. O nariz entorna um pouquinho para o lado,
como se eu cheirasse mal.
Bem, acabo de perder o elemento surpresa. O que é ótimo.
Não me senti confortável com ele, de todo modo. Era o mesmo que
tirar vantagem, e não é assim que jogo.
— Posso ajudar? — pergunta ela, pondo as mãos na cintura.
Não há mais qualquer receptividade em sua voz agora.
— O que você vende aqui?
De todas as perguntas, é o que sai.
— Pensei que estivesse escrito na placa lá fora.
— Sim, algo sobre produtos naturais para terapia holística.
Mas o que é isso? — soo meio arrogante, percebo, e não desfaço o
mal-entendido.
— Você quer saber o que é Terapia Holística? — sem dizer
exatamente que sou um ignorante, seu tom um pouco
condescendente me chama de ignorante.
Confirmo com a cabeça, em resposta. Por alguma razão idiota,
gosto do confronto com essa estranha.
— Bem, neste caso… — Vira-se. Vai ao expositor de livros e
retira um exemplar. — Recomendo que leia. Custa 39,90. —
Segura-o com a capa virada para mim.
“Terapia Holística para iniciantes. Conceito e definições:
tratando problemas e doenças a partir de uma visão global do ser
humano, para um equilíbrio físico, emocional e energético.”
— Se o autor acrescentasse mais algumas palavras a este
título, não seria necessário ler o livro — aponto, impassível.
Não perco a maneira como seus lábios se apertam, segurando
uma risadinha. Apesar de contrariada, ela encontrou humor no que
eu disse e gostou – ainda que alguns possam afirmar que humor é
tudo o que não tenho.
Detenho meu olhar por um pouco mais de tempo em sua boca.
É carnuda, larga. Possui o formato de um coração cheio.
Apesar de protegido pelos óculos escuros, a proprietária
parece perceber isso. Perceber que não consigo tirar os olhos desta
parte de seu rosto.
Ela levanta o queixo.
— Agora que sabe o que fazemos — diz no plural, quando
tenho informações de que é somente ela na loja. Sem funcionários
ou sócios. — Posso ajudar?
— Por que se recusa a vender esse lugar? — Vou direto ao
ponto.
— Rá, eu sabia! — Aponta um dedo acusatório para mim. —
Sabia que você era de lá! Senti sua energia assim que atravessou a
minha porta!
— Minha energia? — Arqueio a sobrancelha.
— Arrogante, esnobe, fria!
— Minha mãe ficaria ofendida. Ela diz que sou gentil, justo,
generoso — provoco, tranquilamente.
— Justo e generoso — repete num leve tom de desdém. — E
pelo visto mandaram cavalaria pesada desta vez. — Percorrendo-
me com os olhos, debochada, ela assovia exagerada. — O que é
agora, disseram que se enviassem um bonitão eu mudaria de ideia?
Um sorriso involuntário escapa de mim. A mulher é direta, não
dá para negar.
— Obrigado pela parte que me toca, senhorita.
— Não foi um elogio.
— Eu sei.
— E minha resposta é não. Diga a eles que desejo boa sorte
na próxima tentativa. Quem sabe o Papa me faça mudar de ideia,
sim?
O Papa, hein?!
— Acha que Sua Santidade se deslocaria até sua loja de
mandingas?
— Mandingas?! — Seus olhos esmeralda se arregalam
ultrajados.
Merda, para minha completa surpresa, gosto disto. De tirá-la
dos trilhos.
— Óleos, incenso, pedras — dou de ombros tranquilamente
—, para mim, é o que parece.
Noto a pontinha de seu nariz avermelhar.
— Ora seu…, seu…!
— Arrogante, esnobe, frio — repito suas acusações.
— E prepotente! — acrescenta ela, cruzando os braços em
frente ao peito.
— E — aproximo-me um passo dela, devagar, quase que sem
poder evitar — o homem que veio para falar sobre negócios com
você. Trazer alguma razão a essa sua ideia tola de permanecer
aqui, quando todos os seus vizinhos já se foram.
— É mesmo?
Faço um aceno monótono de que sim.
— Compraremos sua loja, Zaira. Cedo ou tarde.
Ela cruza os braços diante dos seios. As pedras esmeraldas
em seus olhos se escondem parcialmente pelas fendas estreitadas.
— E fará isso como, se posso perguntar, bonitão? Porque
imagino que tenha um plano para me obrigar, já que, de outra forma,
não tenho a menor intenção de vender para você ou quem quer que
seja.
Dou de ombros, sem parar de observá-la por um só instante.
Minhas mãos coçam por devolver um cacho rebelde para detrás de
sua orelha. Um sentimento bem questionável, eu sei.
— Não usaria o termo “obrigar”. Mas, pensando a este
respeito, temos contatos nessa cidade. Há meios de pressioná-la se
eu desejar. Até esse momento estou sendo justo com você. Te
dando a chance de aceitar um bom acordo, aliás, muito mais do que
essa espelunca vale, e sabe disto.
Sinto que a ofendi quando a mulher sacode a cabeça surpresa
e insultada, passando a língua pelos dentes da frente, como se mal
acreditasse em seus ouvidos.
Meus olhos acompanham tudo, atentos.
— Espelunca?
— Que pode muito bem funcionar em qualquer rua de bairro
por aí.
— Mandigas e espelunca — repete, só que desta vez, soa um
pouco ameaçadora.
Ignoro o pequeno desejo de continuar a irritá-la até saber seu
limite. Não me lembro da última vez que alguém me fez sentir
instigado assim. É bom, na verdade, me lembra de que não estou
engessado por dentro, não totalmente, pelo menos. Levando uma
vida sempre regrada, fazendo exatamente o que é esperado de
mim, como primogênito, é fácil esquecer que nem tudo precisa ser
levado tão a sério.
Minha adversária faz um sinal com a mão, de espere aí, e
avança calmamente para detrás do balcão. Sigo-a, do lado de cá.
Ela se abaixa e some de vista.
Confiro um porta-cartões de visita na bancada. Pego um e o
leio.
Zaira Tavares
Terapeuta holística.
Shiatsuterapia | Cristaloterapia | Aromaterapia
Winchester Repeating Arms Company, que foi usado extensivamente nos Estados Unidos
durante a última metade do Século XIX.
[28] Я люблю тебя, малышка (do alfabeto cirílico) – Tradução: Eu te amo, menina
(Russo).
[29] Música: Como a água, como a água, como a água, como a água límpida que desce da
(Russo).
[32] Малыш акула (do alfabeto cirílico) – Canção infantil muito popular cuja tradução é:
da União Soviética.
[38] Tradução: Olhe (Espanhol).
[39] Tradução: Presunto (Espanhol).
[40] Tradução: referente a um cheiro ruim, fedor (Espanhol).
[41] Tradução: odor (Espanhol).
[42] Tradução: Tem um cheiro delicioso (Espanhol).
[43] Когда мы были на войне. Там каждый думал о своей Любимой или о жене (do
alfabeto cirílico) – Tradução: “Eu também poderia estar pensando nela, quando estava
observando as chamas azuis do isqueiro e a fumaça abafada” (trecho de popular canção
russa).
[45] пойдем со мной! (do alfabeto cirílico) – Tradução: Vem comigo! (Russo).
[46] Tradução: Pequena praça do morro, crianças brincam de touro e o mais novo, não
tendo um trapo sem pano, ele fica em um canto chorando sozinho (canção espanhola: Dos
Toreros /Remedios Amaya).
[47] Tradução: As pessoas saem na rua, elas batem palmas, primo, le le le eles batem
palmas, eles batem palmas (canção espanhola: Dos Toreros /Remedios Amaya).
[48] Tradução: Que a paz esteja sobre vós (expressão árabe).
[49] Tradução: Esteja a paz de Deus sobre vós também (expressão árabe).
[50] Tradução: Está tudo bem, menina (Espanhol).
[51] Tradução: Mãezinha (Espanhol).
[52] Tradução: Meu carinho (Espanhol).
[53] Почему они здесь? (do alfabeto cirílico) – Tradução: Por que eles estão aqui? (Russo)
[54] Они для нашей безопасности, бабушка, я объясню позже (do alfabeto cirílico) –