Você está na página 1de 373

Copyright © by Tayana Alvez

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

Título | O caminho que me leva até você


Ano de lançamento | 2023
Edição | 1ª
Arte da capa | - Jaynarte
Ilustração 1 | Cris Bomfim
Ilustração 2 | Kakau
Ilustração 3 | Emily Dutra
Revisão | - Liv Salgado
Diagramação | - Andresa Rios
Sinopse | Julie Pedrosa

Playlist

Dedicatória
Just Give Me a Reason – Pink e feat. Nate Ruess
Mastermind – Taylor Swift
Não fosse tão tarde – Lou Garcia
Mercy – Shawn Mendes
Hate you - Jordi
Night Changes - One Direction
Tell Me You Love Me - Demi Lovato
Dias de luta- Charlie Brown Jr.
July – Noah Cyrus
Devil Doesn’t Bargain - Alec Benjamin
Decode - Paramore
Ela já que o amor não existia - Juliana Simonetti (Poema)
As it was – Harry Styles
Count on me – Bruno Mars
Oops!... I Did It Again - Britney Spears
Please Don't Leave Me - P!nk
Kill You To Try- Daisy Jones & The Six
Photograph – Ed Sheeran
Why – Shawn Mendes
Crowded Room - Selena Gomez
Hey there, Delilah - Plain White T's
The way I loved you – Taylor Swift
Devil Doesn't Bargain - Alec Benjamin
Flowers - Lauren Spencer-Smith
All I Want - Olivia Rodrigo
Matilda - Harry Stiles
Wrong Direction - Hailee Steinfeld
She Will Be Loved - Maroon 5
More Than You Know - Axwell /\ Ingrosso
THE LONELIEST - Måneskin
Big Girls Don't Cry - Fergie
Pais e Filhos – Legião Urbana
Moral Of The Story - Ashe
My Immortal – Evanescence
All I Want – Olivia Rodrigo
Closer - The Chainsmokers  ft. Halsey
Anti-hero – Taylor Swift
Be Kind – Marshmello feat. Halsey
Fearless- Taylor Swift
Aurora – Daisy Jones and The Six
Nota da autora
Agradecimentos

Ao meu marido, que trouxe de volta meu amor pela F1. Um que eu nunca deveria
ter perdido. À Ana Caroline Rodrigues, que queria uma fanfic dela com George
Russel, não rolou a fanfic, mas chamei a mocinha desse livro de Ana, espero que
baste.
Dedicatória

Para todos aqueles que acreditam no amor.

Amor de verdade.

Aquele que vai lutar por você e ao seu lado.

Aquele para todas as horas.

Aquele que vai conquistar o mundo, mas ainda terá você como maior prêmio.

O amor que parece que nunca vai chegar:

Acredite em mim, ele chega.


Capítulo 1
Ou: Desde o início você foi um ladrão, roubou meu coração.

E eu fui... a sua vítima voluntária.[1]

Just Give Me a Reason – Pink e feat. Nate Ruess

Carol
 
Existe um momento muito específico no qual, ainda que quase
todas as coisas ao redor continuem iguais, tudo dentro de você
muda.
Quando minha diretora me comunicou que eu estava deixando a
redação para me tornar repórter de Paddock, pensei que aquele era
o meu momento específico. Afinal, para uma garota que cresceu
amando Fórmula 1, ser a jornalista que entrevista os pilotos é aquele
tipo de sonho que você cultiva em silêncio, sabendo que é bobeira.
No entanto, vendo-o caminhar em direção ao cercadinho – área
onde os pilotos dão as entrevistas pós-corrida – com um enorme
sorriso no rosto depois da sua primeira vitória na Fórmula 1, meu
coração se aperta por instinto, e algo me diz que, na verdade, esse é
o momento no qual tudo vai mudar.
Daniel Harris está radiante.
Seus olhos brilham enquanto a torcida da equipe grita seu nome.
Jack – o companheiro de equipe – dá dois tapinhas nas costas dele
e se afasta. Como se dissesse que essa tarde fria e cinzenta da
primavera britânica é de Daniel. Só dele. Que segue trocando
abraços e apertos de mão com outros pilotos pelo caminho. Sendo o
cara novo em uma grande equipe, é fácil conquistar a torcida dos
companheiros de grid.
Se você não for uma pessoa escrota, é claro.
E isso, o cara de sorriso fácil que está parando à minha frente
agora nunca foi. Me empertigo enquanto ele pousa as mãos na
grade que nos separa e, finalmente, respira fundo, desviando a
atenção de toda a festa que fazem para ele.
— Carol? — Seus olhos verdes me estudam incrédulos.
— Oi, Daniel, eu sou a Caroline Pimenta, do Garotas no
Padoque. Conta pra gente qual é a sensação de ser o P1 no GP de
um dos seus países de origem. — Mantenho o profissionalismo, mas
ele continua escrutinando cada traço do meu rosto.
— Esse é o dia mais incrível da minha vida. — Vejo-o balançar o
cabelo suado e colocar o boné da equipe, apoiando novamente as
duas mãos na grade em seguida.
O sorriso em seu rosto, unido a como seus olhos invadem os
meus, sugere que a resposta dele tem mais a ver com o fato de eu
estar aqui do que com sua vitória.
E o trouxa do meu coração pula uma batida.
— E você já sabe qual é a expectativa pro próximo GP ou só
quer aproveitar o dia de hoje ao máximo?
— Minhas energias já estão concentradas nas entrevistas pós-
corrida do próximo GP. — O tom é descontraído, contudo, a
sobrancelha erguida faz meu rosto arder em vergonha. — Mas ainda
quero aproveitar meu dia como vencedor.
— Daniel? — a assessora de imprensa da equipe diz atrás dele,
com os fios ruivos voando e um perfeito sotaque britânico.
— Um segundo, Lindsay — pede com o indicador erguido. —
Carol, ser vencedor de um GP tão importante quanto Silverstone é...
sensacional. Principalmente quando você é meio britânico, então
esse é um dia inesquecível — diz, dando de ombros em seguida. —
Agora, a única coisa que falta pra ser perfeito é a garota dos meus
sonhos aceitar sair comigo. — O tom segue profissional e eu sorrio
com cordialidade, mas o “garota dos meus sonhos” me bate com
força.
— Muito obrigada, Daniel. Até o próximo GP. — Encerro a
entrevista, porque é a única coisa que consigo fazer agora.
— Você aceita? — pergunta, chamando a atenção de todos.
— O quê?
— Sair comigo? — Dani franze o cenho ao me entregar um
risinho de canto, como se a pergunta fosse óbvia demais. Fecho os
olhos, respirando fundo por alguns segundos.
Não pela pergunta, mas porque percebo que acabei de passar
de repórter para notícia. Todos os olhos e microfones ao nosso redor
estão virados para mim, e não mais para Daniel.
Na verdade, quase todos: dois rapazes fazem anotações que,
com certeza, vão virar pautas sobre a garota dos sonhos de Daniel
Harris.
Mas eu sempre andei no canto da calçada, nunca me expus
mais que o necessário, e jogar do lado mais seguro é a minha zona
de conforto... Assim, mesmo que meu coração estúpido esteja
tentando rasgar meu peito, desvio o olhar do sorriso que ele sempre
reservou para mim.
— Nossa, Daniel. Apesar de estar lisonjeada... — Encolho os
ombros, encarando-o, e Dani lê em meu olhar que não vou ceder.
Observo-o arrastar os dentes, frustrado, mas ele trata de manter a
postura. —
Vou precisar dizer não. — A surpresa generalizada é
ouvida pelos suspiros ao redor, e não consigo acreditar que ele fez
isso.
Qual é o direito que ele acha que tem depois de me deixar para
trás há 5 anos para perseguir os próprios sonhos?
— Tudo bem, Pimentinha. — Ele bate na grade, se afastando, e
o apelido quase me faz revirar os olhos. — Corrida que vem a gente
se vê, e na próxima, e na outra também. — Enumera na mão direita,
deixando claro em cada palavra que o convite vai ser refeito em
todos os fins de semana que nos encontrarmos.
— Boa sorte, Novato. — Fico na ponta dos pés para devolver o
desafio a um Daniel já distante, que bate continência e se vira de
costas.
Antes que comecem a me fazer perguntas, me desvencilho dos
outros repórteres e ignoro completamente Miyeko, minha
camerawoman, tentando manter a compostura. Ela se esforça para
me acompanhar enquanto carrega os equipamentos pesados, e sei
que ela tem um milhão de perguntas sobre o que acabou de
acontecer, mas não consigo prestar atenção a ela.
A única coisa que penso é nesse inferno de vida: Ele realiza o
sonho e vira o piloto de ouro. Eu realizo o meu e preciso entrevistar o
ex toda semana.
Ótimo.
Capítulo 2
Ou: Eu preparei o terreno e, como o mecanismo de um relógio, os dominós desabaram em fila. E se eu te dissesse que sou uma mestra da manipulação?

Mastermind – Taylor Swift

Daniel
“Você só pode estar brincando.”, consigo escutar a voz de Carol
quando o elevador se abre.
Apesar de ela não ter dito essas palavras com os lábios, pude
ouvi-las nas ondas de desaprovação e raiva que iam e vinham em
seus olhos.
É impressionante como ela sempre foi essa garota petulante,
chata, irritante e... Linda! Só que agora Carol está
perturbadoramente linda, profissional e... adulta.
O sorriso ainda é igual ao que me fazia sorrir junto, mesmo
quando o dia tinha sido uma merda; o cabelo volumoso, com mechas
mais claras, coroou seu rosto de um jeito diferente. A única coisa na
qual eu conseguia pensar era no quanto queria beijá-la, como se
fosse normal, natural, como se tê-la comigo fosse o certo.
Ver Carol diante de mim no Paddock[2] me fez sentir como se as
coisas não tivessem mudado, como se cinco anos não tivessem
passado.
Cinco anos inteiros desde que ela decidiu que não deveríamos
ser mais um casal, e aqui estou eu: saí de fininho da minha própria
festa de comemoração porque não consigo parar de pensar nela.
Largo os sapatos na entrada do quarto e caminho pela suíte,
jogando a blusa em algum lugar que só a camareira vai ser capaz de
achar, enquanto tento me convencer de que vou conseguir dormir
essa noite.
Me sento na cama com os cotovelos apoiados nos joelhos e
deixo a cabeça descansar em meus dedos. Coço os olhos e flashes
da tarde de hoje invadem minha mente. Minhas pernas balançam
mais que estrutura de viaduto superfaturado, e é óbvio que não vou
conseguir dormir. Pelo menos não agora.
Pulo da cama e vou até a mesa do quarto, quase jurando que só
quero pegar algo para comer, mas, no fundo, sei o que estou
fazendo. Antes mesmo de me sentar, abro a nuvem e clico duas
vezes sobre a pasta Não Falar Sobre Ela, coçando os olhos ao me
sentar enquanto os arquivos carregam.
Abro o arquivo 1, um print da primeira matéria escrita pela Carol
para o site no qual ela trabalha. O texto, sobre o anúncio do retorno
do Fernando Alonso à F1, estava bom, mas cru. Eu o li numa tarde,
deitado na rede da casa da árvore da minha mãe. Senti inveja do
Alonso naquele momento e, com certeza, não foi porque ele tinha
dois títulos mundiais. Fiquei observando a tela e pensando se, algum
dia, ela escreveria sobre mim.
Meses depois, em palavras mais maduras e empolgadas, Carol
falava sobre as expectativas e o peso do nome no início da carreira
de Mick Schumacher.
Ainda tem algumas dezenas de prints antes que eu chegue ao
que me interessa e, por mais que o trabalho de Carol valha o tempo,
não tenho como reler todos agora. Arrasto a tela até o artigo “O que
esperar do Novato?”.
Rio de canto ao pensar no quanto ela deve ter brigado para
manter “Novato” com letra maiúscula no fim de uma frase.
Provavelmente alguém achou que ela tinha se equivocado na grafia,
mas eu sabia o que aquilo significava.
Caroline Pimenta esteve ao meu lado por muito tempo enquanto
eu traçava meus caminhos até a Fórmula 1 e até antes disso. Se não
fosse por ela, talvez eu nunca tivesse conseguido ser um
“Novato”[3]..

Era o primeiro dia de aula do nono ano, um dia comum. Eu


estava sentado na mesa de um dos meus colegas, nos fundos da
sala, conversando sobre minhas férias na Inglaterra quando Caroline
Pimenta passou pela porta em toda a sua glória.
A garota de cabelos longos, pele escura e semblante leve
transformou o uniforme sem sentido que usávamos em algo digno de
elogios. Era como se aquela roupa de colégio americano — com
direito a suéter e blusa social de gola mesmo em pleno verão carioca
— não ficasse tão brega nela.
Meu pé, que estava apoiado na carteira da frente, escorregou
assim que ela passou ao meu lado, e eu quase caí. Meus colegas
me seguraram ao mesmo tempo em que riram por eu ter caído “do
nada” e voltaram a perguntar sobre o Kart ao qual eu tinha ido na
cidade natal da minha mãe. Até falei o que queriam saber, mas,
naquele momento, eu não enxergava nada além de Carol. Só
conseguia pensar que ela, com seus cachos, os lábios cheios e os
olhos profundos de tão escuros, era a coisa mais bonita que eu já
tinha visto na vida.
E eu queria dizer que fui o menino calado que se aproxima da
aluna nova e sem amigos que começou a sofrer bullying antes
mesmo de ter a chance de se apresentar para a turma.
Mas a verdade é que passei a primeira semana inteira a
cumprimentando entre as aulas e observando-a de longe. Carol era
reservada, e algo me dizia que não era só porque ainda não tinha
feito amigos.
Sempre quieta e atenta, respondendo meus cumprimentos com
pequenos sorrisos, chegando à sala em cima da hora do sinal,
pronta para sair no momento que o relógio batia duas da tarde e só
abaixando a guarda e demonstrando alguma expressão facial
quando tinha fones nos ouvidos.
Na sexta-feira da semana seguinte, eu já tinha estourado os
limites da minha curiosidade. Precisava me aproximar dela, queria
saber mais sobre Carol. Porém, na minha mente de garoto de treze
anos, perguntar parecia um tipo de derrota.
— Eu não sou um cara chato, na verdade, sou bem legal. —
Nosso professor de geografia caminhava diante da turma rodando
um piloto nos dedos como algumas pessoas rodam moedas. — Mas
não gosto e não admito conversa, cochicho, barulho, ou qualquer
manifestação de vocês além de copiar quando estou escrevendo no
quadro.
A turma soltou um muxoxo coletivo, e ele coçou a ponte do nariz.
— Vocês vão ter tempo para tudo isso, mas odeio quando
atrapalham minha programação.
Como se uma fada madrinha do mal tivesse ouvido as preces
nas quais pedi por um modo de fazer Carol me ver, sorri de canto
com o estalo da ideia que me atingiu. Durante a próxima meia hora,
fiquei dobrando e ajustando uma folha de caderno em uma bolinha
bem pequena.
No momento que o professor colocou o ponto final no último
terço do quadro branco, disparei no pescoço dela.
Carol gritou como se tivesse tomado um tiro, e a sala explodiu
em gargalhadas. Na verdade, uma ou duas pessoas se assustaram e
gritaram junto dela, o que só os fez rir mais.
Em minha defesa, eu não queria que doesse, era para ser
apenas um susto. Mas ela tirou o cabelo — que era meu alvo — das
costas no mesmo momento.
O professor até tentou acalmar a turma, mas não deu em nada.
A maioria dos alunos tinha se perdido na algazarra que Carol, que
estava na primeira fila, como a CDF que era, criou.
Apesar do constrangimento, ela não se levantou. Apenas olhou
em volta da sala enquanto todo mundo tirava um pouco de sarro dela
e, então, pousou os olhos em mim.
Diretamente em mim.
Como se tivesse certeza de que eu tinha jogado a bolinha. Mas
não dava para ela ter certeza, então relaxei os ombros e abaixei os
olhos para o caderno.

Na volta do intervalo, Janaína, a professora de inglês e a


monitora do andar estavam paradas na porta da sala. Quando todos
os alunos se sentaram, Soraya deu um passo à frente.
— Pessoal, o negócio é o seguinte: hoje é sexta-feira, e eu estou
tão cansada quanto vocês. — Nossa monitora gesticulava como se
isso pudesse deixá-la mais amigável. — Então, por favor, quem quer
que tenha pegado a agenda da Caroline Pimenta, faça o favor de
devolver.
Aquele foi um momento de tensão. A turma respirou fundo; os
meninos começaram a se entreolhar numa espécie de
camaradagem, já que essas pegadinhas eram, quase sempre, obras
nossas. Já as meninas se solidarizaram com a Carol, uma vez que
agendas são muito pessoais.
Alguns minutos se passaram antes que Soraya voltasse a falar.
— A professora Janaína quer dar a aula dela, e nós a estamos
atrasando. Vamos fazer assim — A palma que ela bateu chamou a
atenção de todos os vinte alunos da sala —, já que ninguém quer se
entregar por vergonha, vou pedir para vocês saírem um a um com a
mochila para eu dar uma olhada, tudo bem?
— Vocês não podem fazer isso! — Alice estufou o peito, falando
no tom mais estridente que uma menina mimada pode emitir.
— Alice, meu amor, se você não quiser mostrar sua mochila, não
precisa, mas isso só te torna ainda mais suspeita.
O queixo da loirinha caiu com a afronta da funcionária e a garota
ficou tão vermelha que esperei que ela entrasse em combustão.
— Dona Soraya, não precisa. Não tem por que fazer isso. Já
disse à senhora que sei quem está com a minha agenda. — Carol
pronunciou as palavras em alto e bom tom, depois disso correu os
olhos pela sala e parou em mim, novamente em mim. Desviei o olhar
outra vez.
— Você não pode acusar alguém sem provas, Carol — Janaína
pontuou, apoiada na própria mesa.
Acredito que aquilo era só ela dizendo: não vamos usar nomes
nesta sala.
Mas Carol tinha outros planos.
— Mas, professora, eu sei que foi o Daniel Harris que pegou
minha agenda, por que não podemos revistar a mochila dele? —
disse numa voz baixa, e sua expressão de injustiçada enganou a
quase todo mundo.
Quase, porque eu percebi que Carol não era apenas uma
menina inocente separada de seus segredos mais profundos: ela era
uma grande duas caras que estava tentando se vingar.
— Calma aí, princesa. Sou preto, mas sou rico igual a todo
mundo aqui. — Ergui meus braços. — Não preciso roubar um diário.
— Desdenhei da fala dela, porque aquilo só podia ser uma piada.
— Então, senhor endinheirado, que tal você tirar o que tem na
sua mochila pra gente passar isso a limpo? — Carol me desafiou,
cruzando os braços.
Era uma fedelha petulante e me encarava com os olhos
semicerrados.
“Você fica ainda mais linda brava” não era uma frase que
habitava a mente do Daniel de treze anos, mas agora, sei que era
exatamente isso que o “que mina babaca, mas eu daria tudo para
implicar mais vezes” significava.
— Ótimo! — Estendi o braço para o chão, mas não achei minha
mochila. Estava pendurada no encosto da cadeira, e eu não
lembrava de tê-la colocado ali.
De qualquer forma, só queria que todo mundo parasse de me
encarar. Então me levantei pronto para uma encenação sobre como
as únicas coisas que eu tinha na bolsa eram cadernos, livros e
chocolate. Contudo, no segundo que o zíper cruzou de uma lateral a
outra, lá estava uma coisa rosa e brilhante.
Fechei os olhos e deixei a risada da derrota encher a sala,
virando a cabeça de lado e encarando Carol Pimenta, que não
parecia nem um pouco surpresa com a minha reação.
Capítulo 3
Ou: Por que é que eu fui me apaixonar por você?

Talvez se eu não tivesse ainda estaríamos aqui.

Não fosse tão tarde – Lou Garcia

Carol
A entrevista no cercadinho acabou pouco depois da cena de
Daniel, mas ainda passei boas horas no Paddock com Miyeko.
Primeiro, fomos à coletiva pós-corrida; em seguida, gravamos takes
externos para as reportagens sobre o fim de semana e, por fim,
material extra para o outro projeto no qual ela está trabalhando.
Foram as horas mais longas da minha vida de repórter, e as
mensagens no meu celular eram tantas que o desliguei.
Estava ciente de que a grande maioria eram felicitações pelo
meu primeiro dia como repórter de campo. Contudo, sabia que as
pessoas mais próximas e as minhas chefes não falariam de nada
além de Daniel Harris. O último assunto sobre o qual eu estava a fim
de debater.
Assim que terminamos, os olhares evasivos e o tom de voz
manso de Miyeko deixavam claro que ela queria falar sobre a
entrevista de Daniel. Era normal ela estar curiosa. Mas eu não tinha
a menor condição de explicar a ela, que nem fazia ideia de que eu
conhecia Daniel Harris, tudo o que tinha acontecido entre a gente.
Então decidi sair pela tangente, pelo menos por hoje.
Não foi fácil, afinal, estamos hospedadas na mesma pousada.
Mas aproveitei a vontade dela de jantar num restaurante local para
voltar sozinha. Argumentei que jantaria por aqui mesmo porque
precisava começar a escrever o artigo sobre o fim de semana.
Não é mentira, realmente tenho que fazer isso. No entanto, não
era segredo que só voltei porque queria me esconder.
Não queria falar de Daniel para Miyeko.
Não queria falar dele para ninguém.
Adiei esse assunto o máximo possível, mas, recostada a uma
cadeira acolchoada ao lado de uma janela embaçada enquanto bebo
uma xícara de chá, encaro a mensagem de Laís. A primeira na longa
lista de não respondidas ao longo do dia.
Laís: Meu Deus, Amiga.
Consigo ver o rosto apreensivo e ouvir a voz animada da minha
melhor amiga enquanto leio as palavras.
Laís: Ele simplesmente GANHOU o primeiro GP que você
COBRIU.
Eu: Sim...
Digito e, em seguida, apago, decidindo postergar um pouco mais
esse momento.
Deixo o celular e a xícara na escrivaninha ao meu lado e me
levanto. Segurando a manga do meu casaco na palma da mão, uso
o punho direito para limpar a janela. Mesmo que o lado de fora não
esteja tão limpo, observo uma área quase rural, com muito verde e
poucas pessoas. Por alguns segundos, me permito fingir que não
sou uma carioca friorenta e abro a janela apenas o suficiente para
sentir o ar que corre lá fora.
Talvez porque o aquecedor esteja mantendo o quarto quente
demais, talvez porque o dia de hoje tenha me deixado sufocada, não
sei. Mas, quando abraço meu corpo, tenho certeza de que não é só
pelo frio que estou fazendo isso.
Daniel Harris era o meu namorado, sim. Mas também era meu
melhor amigo e minha pessoa favorita no mundo. É estranho pensar
que ele ganhou sua primeira corrida na Fórmula 1, um sonho que
nós sonhávamos juntos, e eu não estava lá.
Até estava. Mas não como a gente imaginou.
Meu celular toca, me despertando do devaneio, e fecho a janela.
Mesmo no espaço minúsculo do quarto, consigo tropeçar nos meus
próprios pés – lindas pranchas de surf tamanho 39 – no caminho de
três passos até a cama.
O nome Gabriel ♥ brilha na tela e me faz sorrir quando me jogo
na cama.
— Oi, amor...
— Oi, Vida, tudo bom? — Ouço a voz aveludada que tanto me
acalma e me deito, sentindo meu corpo ser abraçado pelo colchão
macio.
— Tudo, sim, quer dizer, ainda não jantei, mas tirando a fome...
— Então... E o babaca do seu ex? — A pergunta chega
embebida em desdém, mas regada a ciúmes. O canto direito da
minha boca se repuxa num meio sorriso.
— Você quer saber como ele está, se eu o vi, se falei com ele...
— Para de brincar, Carol. — Gabriel me repreende, e eu seguro
o riso.
— Tá bem. Eu o vi hoje. Mas ele foi profissional e… — Minha
voz morre quando lembro que não, ele não foi profissional e, no fim,
eu também não fui.
— E?
— E foi estranho como eu achei que seria.
Um risinho invade meus ouvidos antes de o comentário chegar:
— Ele ficou surpreso de te ver aí, né? — Respondo com um
uhum. — Se eu tivesse perdido a mulher mais incrível do mundo e a
reencontrado cinco anos depois: linda, gostosa e dona e proprietária
da Fórmula 1 no Brasil, eu também ficaria.
— Para de ser bobo. — Minha risada enche o pequeno espaço.
Amo meu trabalho, mas ainda tenho muito chão para andar se
quiser ser levada a sério como jornalista. Ser a “garota nova” de um
veículo que deixou de ser apenas imprensa escrita há dois anos não
é, necessariamente, o ideal de dona e proprietária de nada.
— Sério, eu fiquei com medo de ele ser babaca com você, te
desprezar ou falar gracinhas... — Gabriel diz com tanto desprezo que
me assusta.
— Eu sei me cuidar, esqueceu?
— Sabe tanto que está deitada, enrolando a ponta de um cacho
no dedo enquanto escuta o estômago roncar.
Reviro os olhos para o quão bem ele me conhece.
— Eu ia descer pra jantar quando você me ligou, tá?
— Vou fingir que acredito. Vou entrar no canal mais tarde, eu
queria ter visto ao vivo, mas não deu.
— Não precisa. — As palavras voam da minha boca. — É
domingo, descansa.
— Eu tô com saudade, sabia? — A confissão sussurrada acaba
comigo.
Estou na Europa há um mês. Vim conhecer o trabalho e
entender a rotina com a antiga repórter, Patrícia, minha chefinha
querida, e não nos vemos desde então.
— Sim, eu também estou.
— E quando eu te vejo, Vida?
Rio da pergunta.
Com o budget que a gente tem, ficar indo ao Brasil é impossível.
O máximo que o canal consegue é bancar nossas viagens com a
ajuda de patrocinadores e alugar um apezinho nos arredores de
Paris, uma vez que a França é a melhor localização para viajar para
qualquer canto da Europa. Mas fazer ponte aérea com o Brasil é
totalmente fora de cogitação.
Esse foi o principal motivo que fez a Paty desistir de acompanhar
a temporada. Ela queria se casar. Também foi o motivo que me fez
pensar muito se deveria vir ou não. Ainda bem que eu tenho o
Gabriel, que não só apoiou minha decisão, como me incentivou a vir.
— Você tá pensando em me visitar? — brinco.
— Ou eu vou te ver, ou eu mantenho nossa casinha em ordem.
Nossa casinha. Borboletas voam por todo canto com essa frase.
— Tudo bem, eu acho que é hora de ir jantar. Ainda preciso
trabalhar hoje.
— São o quê? Nove da noite aí?
— Sim, mas eu tenho contas para pagar em euro agora, tô
escrevendo textos no freela para qualquer site que quiser me pagar.
— Entendi, Vida. Então vai lá, vou desligar, te amo.
— Também te amo.
— Mas eu te amo mais.
E eu desligo assim que ele diz isso. Gosto de ouvir e gosto ainda
mais de acreditar que seja verdade.

Para o meu último jantar na Inglaterra, opto por comer a comida


inglesa mais tradicional: Fish and Chips.
O restaurante da pousada não é espaçoso, mas é
aconchegante, as mesas são pequenas e a decoração minimalista,
mas as cadeiras extremamente confortáveis. O único problema é a
comida mesmo. Tem vinagre na batata frita, vi-na-gre. Mordo a parte
interna da minha bochecha e dou alguns bons goles no meu
refrigerante.
Antes de voltar ao sacrilégio dessa comida, decido dar o braço a
torcer e respondo a Laís.
Eu: Sim, ele ganhou. Nem nos meus sonhos mais fantasiosos,
Laís.
A mensagem é lida antes que eu coloque o celular de volta à
mesa.
Laís: Amiga, eu simplesmente achei tão incrível. Foi meio que o
momento de vocês, né?
Laís: Eu não me surpreenderia se ele tivesse pulado o
cercadinho e te abraçado.
Finjo que não li a primeira mensagem e seleciono a segunda
para responder.
Eu: Eu me surpreenderia, teria chamado a segurança.
Eu: Mas fiquei feliz por ele, muito feliz mesmo.
Laís: Mas foi estranho, né?
Leio a mensagem e minha garganta arranha.
Eu: Foi.
Laís: E deu merda com seu namorado ele ter flertado com você?
Quase digito “ele não flertou comigo, aquilo era brincadeira”, mas
sei que estaria sendo sonsa.
Eu: Graças a Deus o Gabriel ainda não assistiu.
Laís: Ha. Óbvio que não.
Minha amiga ironiza, não preciso ouvir a voz dela para sentir o
ranço que ela tem do meu namorado.
Eu: E eu espero, sinceramente, que ele nem veja.
Rebato.
Laís: Não se preocupe, amiga. Se ele não pode parar por dez
minutos de um domingo para assistir o momento mais emocionante
da vida da namorada dele, não vai ser depois que vai fazer isso.
Reviro meus olhos com tanta força que tenho certeza de que
fiquei estrábica.
Eu: Como você é insuportável quando fala do Gabriel, meu
Deus.
Laís: Veja pelo lado bom, seu namorado só pensar em si mesmo
evitou uma briga enorme. O Gabriel certamente se faria de maior
vítima do mundo.
Eu: Ótimo, Laís. Até amanhã.
Pouso o celular com a tela para baixo no tampo da mesa e foco
em comer pelo menos o peixe, que também não está lá essas
coisas, mas pelo menos dá para engolir.
Estalo o pescoço na tentativa de tirar a tensão que Laís deixou
sobre mim e pego o celular novamente, mas não abro o aplicativo de
mensagens, vou ao Twitter ver o que estão falando da corrida. E me
sinto aliviada quando percebo que o “Garota dos Sonhos” não
repercutiu tanto fora do Brasil. É o meu primeiro ano na Fórmula 1,
não quero ficar marcada como a repórter que recebeu uma cantada.
Abro os principais portais sobre o esporte, e Daniel estampa o
topo de todos eles. Sorrio para o celular pensando em todas as
tardes que passei vendo-o correr no kart, em cada briga que tivemos
com o pai dele para que ele pudesse correr – sim, tivemos, porque
Daniel nunca conseguiu confrontar o pai sozinho – e lembro cada
momento dele se emocionando quando entrou para a Fórmula 3 aqui
na Inglaterra e o sonho começou a se concretizar.
A Pimentinha de cinco anos atrás estaria eufórica, e eu estou
feliz pelo Dani, estou mesmo.
Mas queria não me sentir tão nostálgica.
Capítulo 4
Ou: Amor, por favor, tenha piedade de mim.

Pegue leve com meu coração

Mercy – Shawn Mendes

Daniel
Na primeira vez que falei com Carol Pimenta, eu tinha treze
anos. Nós estudávamos na mesma sala, tivemos um atrito público
que resultou numa disputa de quem prega mais pegadinhas em
quem e que, ao fim de três meses, já tinha se tornado minha
amizade favorita da escola.
Contudo, isso não significa, de forma alguma, que aquela foi a
primeira vez que a vi.
No fim do ano anterior, Dona Claire, ou melhor, Miss Claire –
vulgo, a minha mãe –, estava me visitando em suas férias de
trabalho. Como ela era a única pessoa na família que levava minha
paixão por automobilismo a sério, me carregou para a única corrida
de F1 que acontece no Brasil até hoje, o Grande Prêmio de
Interlagos.
A corrida foi, como quase sempre é no Brasil, uma corrida linda.
Cheia de ultrapassagens e emoção. Só que o que mais chamou
minha atenção naquele dia não foi a corrida de gênio que um novato
aplicava durante uma prova embaixo de chuva, mas sim, a garota
escandalosa que estava na fileira de cima.
Trajada da cabeça aos pés com roupas da RedBull, o cabelo
encaracoladinho preso num rabo de cavalo e uma voz muito potente,
gritava para os pilotos de sua equipe como se eles pudessem ouvi-
la.
Passei boa parte da prova vendo-a dizer o que deveriam fazer e
como deveriam. A garota intercalava os olhares entre a tela de um
celular e a pista e seguia gritando que aquilo estava errado, que
daria errado, cutucando o pai para dizer que “agora sim” aquele
novato estava no caminho certo.
Como eu disse, era como se eles pudessem ouvi-la e, de alguma
forma, eles puderam. Porque hoje, quando você menciona aquele
Grande Prêmio, ninguém lembra da disputa violenta entre o líder e
vice-líder do campeonato, as pessoas só falam sobre o novato e
como ele dominou a arte de correr na chuva.
Honestamente, o que sei sobre essa corrida foi o que vi na
internet depois, eu estava realmente vidrado demais na garota
barulhenta para prestar atenção a qualquer outra coisa. Não tinha
me dado conta disso, mas quando minha mãe me cutucou, dizendo
“Você perdeu alguma coisa lá atrás, meu amor?” enquanto eu
observava a garota gritar pelo pódio do piloto que ela gostava,
percebi que mal tinha assistido à última volta.
Naquele dia, passei a noite no hotel com a minha mãe, estava
cansado demais para pensar em deixar meus dias preciosos com ela
e voltar para a casa do papai.
Antes de nos deitarmos, ela me deu chá com leite, como bebem
os ingleses, e um beijo de boa noite. Assim que Miss Claire se deitou
em sua cama, encarei o teto me lembrando da garota barulhenta e
pensando que eu daria qualquer coisa para ter uma amiga que
gostasse tanto de F1 quanto eu.
Aquela foi a primeira noite na qual sonhei com Caroline Pimenta,
mas não foi, nem de longe, a última.

Ter deixado o Brasil e, consequentemente, a Carol, foi uma das


coisas mais difíceis que já fiz. No entanto, contar com o apoio dela
para vir para a Inglaterra correr – tanto em categorias de base
quanto atrás de patrocinadores –, fez toda a diferença para que hoje
eu possa ser o piloto de uma equipe grande da F1.
Infelizmente, esse apoio incondicional não foi o suficiente para
que nós conseguíssemos lidar com a distância, o fuso-horário, as
fofocas, a imaturidade típica dos dezoito e, muito menos, com a
rotina.
Eu e Caroline éramos uma coisa só.
Nunca aprendemos a ser metade de algo.
Quando não pudemos mais ser Novato e Pimentinha, preferimos
não ser nada.
E, apesar disso, vivi uma boa vida.
Acompanhando seu trabalho e redes sociais, tinha certeza de
que ela também estava vivendo.
Outra coisa da qual estava certo era que já tinha superado nós
dois há um bom tempo. A verdade, contudo, é que só ao reencontrar
Carol hoje consegui entender por que minha resposta para “Como
você está?” depois que terminamos era sempre: tentando seguir em
frente.
Corro os olhos pela pasta com todas as reportagens que ela fez
nos últimos anos e bato a tela do notebook, parando de me enganar.
Eu não estava seguindo em frente há cinco anos e não existe a
menor possibilidade de eu seguir agora que ela está de volta na
minha vida.
De alguma forma, estou grato por ter a garota dos meus sonhos
por perto de novo. No fundo, eu sempre soube que encontraria um
caminho que me levaria até ela. A única coisa que preciso agora é o
que uma pessoa acostumada a pilotar uma caixa de gasolina a
300KM/h menos tem:
Paciência.
Capítulo 5
Ou: odeio como você me amou da maneira certa, como você nos transformou em um clichê, odeio como você me fez cair, odeio como eu não te odeio de

jeito nenhum.

Hate you - Jordi

Carol
Uma parte de mim esperava que o dia de ontem tivesse sido
apenas um pesadelo, mas acordar pela manhã e ver meu celular
ainda cheio de mensagens não respondidas deixa claro que foi bem
real.
Com toda a minha maturidade de mulher independente, coloco o
travesseiro na cara e grito com todo o ódio que sinto por Daniel
Harris. Como se só o burburinho não fosse me incomodar o
suficiente, Gabriel viu nossa entrevista.
Gabriel ♥: Carol, você deu pra mentir pra mim agora?
Gabriel ♥: Perguntei como as coisas tinham sido e o babaca do
teu ex quase te beijou no meio de tudo mundo e você disse que tinha
sido “profissional”.
Gabriel ♥ : Quando você saiu daqui, sua profissão era repórter,
tô confuso com essa atualização de trabalho que inclui flertes.
Hoje, se Deus não me levar, eu vou sozinha.
Deixo o celular em cima da cama e vou me trocar para encontrar
Miyeko para o café. Não tenho a menor condição de lidar com o
chilique de Gabriel agora.

Miyeko está atrasada, o que não é nenhuma novidade. Me


concentro no meu chocolate quente enquanto a espero. A mesa que
estou hoje, próxima à janela, é menos confortável. O que é normal, já
que esse precisa ser um ponto rotativo. Mas a madeira é tão pesada,
que mesmo que eu precise me curvar para descansar os cotovelos
sobre ela, é mais fácil fazer isso do que puxá-la para perto.
Encarando a janela ao meu lado, rio comigo mesma de como
Silverstone, um dos GPs mais importantes do ano, não retrata em
nada a realidade do vilarejo no qual é realizado.
Os mesmos inúmeros tons de verde que ocupavam minha janela
à noite ainda estão aqui, dessa vez iluminados pelo dia, e não de
maneira artificial; algumas crianças correm, adultos os seguem, e
pessoas mais velhas caminham em seu próprio ritmo.
Durante o fim de semana, a cidade estava lotada de turistas.
Agora, a única coisa cheia são os restaurantes dos hotéis e as
estradas, ambos se despedindo dos visitantes.
— Tudo bem. Desembucha. — Miyeko dispara antes de se
sentar.
— Não é engraçado como uma cidadezinha dessas se torna tão
relevante por causa de uma corrida? — Viro lentamente meu rosto
de frente para ela enquanto faço a pergunta.
Minha amiga está elegante como sempre. Os cabelos ondulados
presos num coque alto trazem certa maturidade, mesmo que ela
tenha um metro e cinquenta. O rosto carrega uma maquiagem quase
imperceptível, mas que ainda a deixa mais parecida com uma
boneca de porcelana do que o normal e os óculos, seu acessório
favorito, tem uma lente tão fina que não só não esconde a beleza do
mel de seus olhos, como a destaca.
— Não, não é. — Com um batom da cor da própria boca
desenhando as palavras em seu rosto, ela força um sorriso
impaciente. — A maioria das corridas é em cidadezinhas longe de
tudo. Agora anda, o que foi aquilo ontem? — Miyeko me passa a
palavra com um aceno e eu inspiro.
Não queria falar sobre isso, queria simplesmente sumir. Me
parece um tipo de derrota dos grandes o fato de eu saber que aquilo
aconteceria e ainda assim ter tido aquela reação patética.
— Bom dia, Miyeko. Tudo bom? Você dormiu bem? Não vai
tomar café? — Entre uma dúvida genuína e a ironia, tento ganhar
tempo.
Pousando as mãos em cima da mesa, ela me observa com o
pescoço inclinado para a direita, e eu ergo a sobrancelha com
deboche.
— Bom dia, amiga — diz, por fim. — Vou pedir um café, sim. —
Ela ergue as mãos chamando o garçom. — Como você está?
— Com ódio! — digo quando ela volta a me olhar. Minha
resposta a deixa alerta, mas o garçom se aproxima, e eu espero que
ela faça seu pedido
— Tudo bem, você surtou, foi?
— Claro que surtei! — asseguro e enumero os motivos: — Você
chega aqui querendo saber o que aconteceu ontem; o Gabriel, que
ontem estava uma flor, mandou mensagem hoje de manhã super
ríspido, — O revirar de olhos de Miyeko é tão intenso que eu quase
rio — a Lu e a Paty — menciono nossas chefes, o que a deixa em
alerta, mas não o suficiente para se importar de verdade — querem
me matar, e até minha mãe mandou mensagem!
— Até sua mãe, é? — Miyeko pergunta, em choque, e eu
meneio a cabeça. — Okay. Só pra eu entender... Você e o Daniel
Harris... — É engraçado ver a confusão no olhar dela.
Miyeko me conhece há um bom tempo. Mesmo que nossa
amizade esteja se fortalecendo agora, que trabalhamos e moramos
juntas, estamos no Garotas No Padoque há anos. E, ainda assim,
ela não tinha ideia de que eu e Dani tivemos uma história.
— High School Sweethearts, namoradinhos da adolescência,
primeiro amor... Chame como preferir... — Dou de ombros como se
não fosse nada de mais, porque realmente não é.
— Muito tempo?
— Três ou quatro anos...
— E por que você nunca...?
Miyeko não conclui. Não sei se ela quer entender por que nunca
dividi com ela, por que nunca mencionei isso no trabalho ou por que
simplesmente nunca disse, sequer, que o conhecia.
— Porque não importa, sabe? — Deixo o ar escapar, e ele nubla
o vidro ao meu lado expondo o frio que nos espera lá fora. — Eu só...
Achei que tinha me preparado psicologicamente nos últimos meses.
Eu sabia que ia voltar a vê-lo, afinal. Até achei que seria estranho,
mas a verdade é que foi tão...
— Confuso? — Ela tenta me ajudar depois de um tempo, mas eu
nego com a cabeça.
— Familiar. Tão familiar que me assustou. — Dou um gole em
meu chocolate quente enquanto o Flat White de Miyeko é entregue,
mas sei que só estou ocupando as mãos para não me abraçar.
— Familiar na questão dos sentimentos, tipo, uma chama que
não se apagou? — ela pergunta isso séria. Como se não estivesse
pronta para me zoar assim que eu respondesse, mas decido ser
honesta.
Miyeko é minha única companheira nessa estrada, não dá mais
para esconder isso.
— Eu estava pronta pra ser profissional e tinha vantagem no
jogo, afinal, ele não sabia do nosso reencontro. Passei um bom
tempo pensando em como seria revê-lo e buscando meios de não
deixar transparecer que a gente já se conhecia, não queria nenhum
climão no meu primeiro momento em transmissão ao vivo. — Bebo
mais um gole do chocolate, o último, mais para tentar engolir minha
vergonha do que por vontade. — Então ele foi... Ele foi tão ele e
aquilo foi tão... nós. E num instante eu estava resistindo e sendo
firme, e no fim das contas, tava me debruçando na grade pra falar
gracinha pro cara irritante que tem um sorriso bonito. — Descanso o
tronco nas costas da cadeira e jogo a cabeça para trás.
O silêncio de Miyeko dura uma eternidade, mas não me movo.
Assumir um momento de vulnerabilidade não quer dizer que estou
pronta para ser vulnerável o tempo todo.
— E isso não é a definição de “chama que não se apagou”? —
minha amiga praticamente sussurra. Volto a encará-la tão rápido que
minha cabeça dói com o movimento.
— Não é de gostar do Daniel que eu estou falando, Miyeko. É de
ter passado um minuto com ele e só ter conseguido pensar que ele
era o meu melhor amigo, minha pessoa favorita no mundo e não o
cara que jurou estar do meu lado pra sempre e me abandonou na
primeira oportunidade. — Finalizo com um sorriso de deboche.
— Uau. É bastante coisa pra duas pessoas de vinte e poucos
anos, não? — Miyeko franze o cenho e beberica seu café. —
Quando vocês terminaram?
— Ele foi embora no fim do ensino médio, a gente tinha uns 17.
Mas só terminamos uns meses depois, com 18.
— Por quê?
— A sensação do abandono, acho. — Coço a nuca,
desconfortável com as lembranças que me invadem quando penso
naquele momento da minha vida..
— Tudo bem, a jornalista que habita em mim não consegue se
conter. — Ela se remexe na cadeira e se debruça sobre a mesa. —
Vamos voltar lá do início, como vocês se conheceram? — pergunta,
tentando manter o rosto impassível, mas sei que ela está muito mais
curiosa do que sendo jornalista agora.
No entanto, gosto da minha história com Daniel, pelo menos do
início.
E do meio.
E talvez até de antes do fim.
Faço um Ted Talk sobre como foi bom encontrar um carinha
bobo para implicar na escola nova. Falo que foi reconfortante ficar
amiga do menino negro, porque não éramos muitos na escola elitista
em que estudávamos. E não consigo conter os sorrisos quando
explico que nossas brigas se transformaram em amizade
instantaneamente quando eu soube que ele era fã de Fórmula 1.
Miyeko ri com todos os atritos do início e com o fato de que os pais
de Daniel foram chamados à secretaria da escola por ele ter
“roubado minha agenda”.
Conto então sobre como Daniel deixou tudo mais fácil, como se
tornou meu ponto de paz, melhor amigo, pessoa favorita e amor.
Miyeko convive comigo há tempo o suficiente para saber que
meus pais não são presentes, mas talvez ela nunca tenha parado
para pensar que eles nunca foram. Mesmo quando morávamos
juntos, ainda quando eu era criança, meus pais nunca foram como
os outros, nunca se importaram.
O que não significa que eles não me amam, sei que amam, e
muito. Sofia e Carlos só nunca souberam ser pais. Algumas pessoas
simplesmente não nascem para isso.
Então explico que, com o fim da escola e a chegada do ano no
qual eu entraria para a faculdade e Daniel se dedicaria à Fórmula 3,
as coisas começaram a ruir para mim. Mas ele só se deu conta disso
quando era tarde demais.
— Então você terminou com o garoto porque ele veio tentar ser
piloto?
Meu queixo cai com o julgamento embutido na voz de Miyeko,
que ergue ambas as sobrancelhas para mim.
— O garoto veio ser, né — digo, por fim. — Com o dinheiro dos
pais, não foi nada difícil arrumar uma equipe.
— E aí você terminou por causa da distância? — O julgamento
continua ali, e semicerro os olhos para ela, que ergue as mãos em
rendição.
— Não. Era okay. Daniel ia ao Brasil pelo menos uma ou duas
vezes por mês. Não era muito, mas a gente conseguia lidar.
— Então o que aconteceu, cacete? — Miyeko desiste da
gentileza e bate nas coxas.
— Foi muito difícil, sabe, Miy? — Me remexo na cadeira, que de
repente parece menor, desconfortável. — O Dani era a minha pessoa
e então ele foi embora e tinha outra vida. E tudo bem, porque eu
estava feliz por ele. De verdade. — Vejo a descrença nos olhos da
Miyeko e rio da situação.
— E o que deu errado nesse mundo mágico de amor e lutas?
— Algum tempo depois, uns quatro meses depois, a Laís foi pro
Canadá fazer um intercâmbio e eu percebi o quão sozinha estava.
Me dei conta de que tinha ficado mais próxima dela do que nunca
porque precisava de alguém pra ocupar o espaço que o Dani deixou,
e quando ela foi... — As palavras somem. Enrolo a ponta do cabelo
com o indicador e balanço a perna direita, mas nenhuma dessas
distrações apaga o fato de que meu peito ainda aperta hoje como
fazia há cinco anos. — Era como se eu tivesse ficado oficialmente
sozinha num mundo com sete bilhões de pessoas.
— Ele só parou de se importar? — Miyeko pergunta na
defensiva, com medo de ter defendido Daniel e ele ser um completo
idiota.
— Ele estava sempre ocupado. O tempo todo correndo, não
apenas literalmente, mas com muitas viagens. — O restaurante do
hotel continua aquecido, mas por dentro das roupas uma brisa fria se
arrasta pelas minhas costas, me fazendo retesar. — Comecei a
perceber que estava sempre aqui por ele. Para atender ligação às
cinco da manhã; entender os dramas, as crises; falar que ele
conseguiria e para torcer por ele — enumero. — Mas eu não
conseguia tempo para falar de mim, da minha vida, dos meus
problemas… — Lembrar da sensação de ser deixada numa estante
pela pessoa que você mais ama na vida é doloroso, e eu engulo em
seco. — Talvez, se isso acontecesse hoje, a gente tentasse dar um
jeito, mas eu era uma menina perdida e sozinha que tinha acabado
de fazer dezoito anos...
— E você se culpa?
— Pelo término?
Sim, penso.
— Não, nunca teria dado certo de qualquer jeito — respondo.
— E vocês nem tentaram continuar amigos?
— Eu tentei, mas ele não quis e estava certo. Também nunca
teríamos dado certo como amigos.
— Então vocês eram um casalzão, a vida atrapalhou isso e
vocês só... aceitaram? — Miyeko afasta o corpo da mesa me
estudando, como se eu tivesse comunicado a ela que estou com
uma doença transmissível pelo ar. — Ele não fez nada quando você
terminou com ele? Que frouxo do cacete!
Frouxo.
Ah, tá.
Ela não conhece o Daniel Harris mesmo.
— Tão frouxo que me chamou pra sair na frente do mundo
inteiro ontem e agora eu preciso lidar com um monte de tweets e
matérias especulativas ao meu respeito — rebato quando Miyeko
tenta dar outro gole em seu café, mas desiste com cara de quem
cheirou um defunto. — Depois de toda essa falação, o café está frio,
óbvio.
— É, eu sinto muito pelo seu namorado detestável... — Miyeko ri
de canto.
— Para de falar assim dele, Miyeko. Quando eu me vi no olho do
furacão, o Gabriel esteve lá — digo, me controlando para não ser
grossa e tentando não pensar naquela época. — Ele segurou minha
mão, foi meu amigo quando ninguém mais parecia se importar... —
Beberico meu café sob seu olhar atento. — Ele não é essa pessoa
que você está pintando.
— Ainda assim, sinto muito por ele. Sinto que o resto dessa
temporada vai ser sen-sa-cio-nal. — Ela ri, alto dessa vez. — Já
estou shippando você e o Harris, vocês que lutem. — Miyeko
encolhe os ombros, e eu jogo um guardanapo amassado nela. —
Fazer o quê? Eu adoro histórias de segunda chance.
— Sinto muito por você, amiga. Porque eu tenho um namorado e
sou apaixonada por ele. Diferente do Daniel, o Gabriel ficou — digo,
alfinetando minha amiga. — Quando precisei me mudar pra São
Paulo, ele foi comigo; quando decidi voltar pro Rio, ele voltou.
Quando comecei a viajar, o Gabriel continuou do meu lado; agora
que eu moro mais aqui do que lá, é ele quem está cuidando da
nossa casinha. Então sinto te desapontar, mas não vai ser pelo
detestável do Daniel Harris que eu vou abrir mão disso.
— Detestável. Uhum. O detestável que te deixou de pernas
bambas com três frases cinco anos depois. — A risada dela chama a
atenção de duas pessoas nas mesas ao lado, mas minha amiga não
se importa, só levanta animada e me estende a mão. — É tão bom
saber que semana que vem já tem corrida de novo.
— Miyeko, eu vou jogar esse resto de café na sua cara. —
Semicerro os olhos para ela, me levantando.
— Meu Deus, o que é isso? Cadê a minha Carolzinha, boazinha,
sorridente, quietinha... Quem é você, pessoa irritadiça e afrontosa, e
o que você fez com a minha amiga?
— Isso não sou eu! — Me apresso em deixar claro. — Isso é ele.
Aquele garoto desperta o pior de mim. — Empunho o indicador, e a
única resposta de Miyeko é gargalhar.
A miserável ri da minha desgraça.
— Vambora, garota dos sonhos do Daniel Harris. Temos um
transfer pra pegar em poucas horas.
Finjo um sorriso descontraído e sigo Miyeko até o caixa, mas a
insegurança de como vai ser lidar com essa proximidade com Daniel
me assombra a cada passo.
Capítulo 6
Ou: Nós só estamos ficando mais velhos, baby e eu tenho pensado muito em você ultimamente. Será que te deixa louca, às vezes, o quão rápido a noite

muda?

Night Changes - One Direction

Daniel
It’s lights out and away we go. Essa frase, algo como: as luzes
se apagam e a corrida começa, é o que me faz amar assistir Fórmula
1 no idioma original, ainda que as narrações brasileiras sejam mais
emocionantes.
Começou na adolescência, quando eu costumava passar as
férias na casa da minha mãe. Miss Claire sabia o quanto eu amava
Fórmula 1, então domingos de corrida eram nossos dias de ficar em
casa e não receber ninguém. Esses eram meus domingos preferidos.
Toda vez que entro no meu carro e as cinco luzes se acendem,
sinalizando que a largada vai ser dada em alguns milésimos de
segundo, ainda escuto essa voz em algum lugar dentro de mim.
Hoje, como em todas as outras vezes, no apagar das luzes,
minha mente também se apaga.
Estratégias e estudos cercam a vida de todo piloto, mas a
verdade é que você não tem vários planos na sua cabeça durante
uma largada. Quando acelera e firma seu corpo atrás do volante, não
imagina como vai ser se ultrapassar um ou seis carros de uma vez.
A única coisa que você sabe é que a corrida começou.
Daí em diante, conta com sua equipe e seu subconsciente para
a maioria das decisões, porque você está a centímetros do chão, seu
veículo treme, a força G te atinge e correr se torna um jogo de foco,
equilíbrio e concentração. Um jogo no qual qualquer erro pode ser
fatal, se não para você, ao menos para sua corrida.
Ouço o barulho do meu rádio e, em seguida, a voz de Phillip.
— Quinto lugar. Daniel. Quinto lugar. Bom trabalho.
Me forço a sorrir. Largar em sétimo e ter ganhado duas posições
no início da corrida é um ótimo sinal. Mas a próxima curva se
aproxima, e concentro minhas forças em manter meu corpo no lugar.
Num esporte tão rápido quanto esse, poucas coisas fazem você se
dar conta da marcação exata de onde terminam as retas e começam
as curvas quanto a pressão da Força G.
Ela chega, comprime seu corpo e te força a acompanhar o lado
da curva, seja ele qual for. Nesse momento, sua mente entende por
que você precisa tanto malhar e por que precisa malhar os músculos
do pescoço: para ele não sair do lugar.
Depois da quinta volta – de um total de cinquenta e três – as
coisas parecem se acalmar, meu carro desliza sobre a pista, o som
natural dos motores vibra no asfalto e, apesar do frio, não há sinais
de chuva no radar, e as condições da pista também estão ótimas.

Entro nos boxes para minha última troca de pneus. É o tudo ou


nada, faltam seis voltas para o fim da corrida e preciso de mais uma
ultrapassagem para chegar no pódio. Jack, meu companheiro, está
liderando a prova, e eu coloco pneus macios para tentar manter a
equipe com um bom número de pontos no campeonato de
construtores.
O Pitstop poderia ser mais rápido, no entanto, 2,3 não é ruim. O
carro vai morrinhando nos míseros 80KM/h do limite de velocidade e,
assim que passo da saída dos boxes, acelero.
— Você ainda está em quarto, cara. A estratégia foi perfeita —
Phill diz, animado, e eu grito de volta:
— Vamos pro pódio, Sir Phillip. Por favor, fique quieto — peço, e
meu engenheiro sabe que preciso de solidão e silêncio agora.
Tenho que tirar quase dois segundos de diferença e ultrapassar
o terceiro colocado. Enrijeço os músculos e firmo o pescoço e as
mãos cruzando a linha de chegada que, agora, conta exatas cinco
voltas para o fim da corrida. Ao respirar fundo, tudo é casa.
Eu, meu capacete e minha máquina somos, mais do que nunca,
uma coisa só. Cortando o vento mais rápido do que seria possível
em qualquer outro lugar do mundo, as arquibancadas e limites da
pista se confundem na minha visão periférica, acelero e empurro o
carro o máximo que nós aguentamos. Os pneus macios fazem seu
trabalho de me deixar deslizar na pista com mais facilidade do que
antes.
Quatro voltas.
Três voltas.
Duas voltas.
Um corte por dentro da curva.
E uma ultrapassagem.
O movimento que fiz para tomar o lugar do terceiro colocado não
é tradicional, mas precisei passar no espaço que apareceu. Não
demoro para me afastar dele que, diferente de mim, está com pneus
gastos.
No segundo que cruzo a linha de chegada, o jejum de palavras
de Phillip acaba.
— P3, Dani. Você conseguiu um P3.
Mesmo que eu já soubesse disso, meu coração acelera. Mais
uma corrida finalizada, mais um bom resultado, e eu estou no
terceiro pódio depois de apenas seis corridas.
Estaciono o carro diante no número 3 e, depois de suar por mais
de duas horas, deixo o veículo pelo menos dois quilos mais magro.
Estou exausto, mas agora é hora de encontrar a garota dos meus
sonhos e subir no pódio.
Capítulo 7
Ou: E todos os meus amigos sabem e é verdade, não sei quem eu sou sem você. Eu errei, amor, eu errei. Diga que me ama eu preciso de alguém em dias

assim.

Tell Me You Love Me - Demi Lovato

Carol
— Boa tarde, galera do Garotas no Padoque, aqui é a Carol
Pimenta direto do Circuito de Monza. A corrida acabou e, em
instantes, a gente vai conseguir entrevistar os pilotos. — Abro a
transmissão com um sorriso enorme e vendendo uma emoção que a
corrida não entregou. — Mas, antes disso, preciso comentar que
essa foi uma corrida limpa e sem confusão com a diretoria de prova.
Além de ter sido a primeira na temporada na qual todos os carros
cruzaram a linha de chegada, o que significa que, para a grande
maioria do público, a corrida foi um sonífero. — Dou um espaço de
três segundos para as risadinhas e memes no chat antes de
continuar. — Já para nós, brasileiros, o resultado foi outro. Pela
terceira vez na temporada, Daniel Harris está no pódio. Depois de
dois anos vendo-o correr em uma equipe com orçamento baixo, acho
que a gente acabou esquecendo que ele era um fenômeno nas
categorias de base. — Mais dois segundos para que o pessoal do
chat levante essa discussão. — Agora, vendo-o correr numa grande
equipe, estamos sendo finalmente recompensados pelo talento que
sabíamos que ele estava guardando em algum lugar. — Meneio a
cabeça e espero Miyeko fazer o sinal de positivo, que denota o fim
da transmissão, e me posiciono rente à grade.
— Nossa, Daniel Harris, o talento da Fórmula 1 — Miyeko
sussurra ao se aproximar. Seguro minha vontade de mostrar a língua
para ela, uma vez que estamos em público e vou em direção à área
de entrevistas.
— Cala a boca, o Jack tá chegando. — Me posiciono de frente
para a grade e aguardo minha vez. Miyeko começa a gravação.
Nem sempre conseguimos entrar ao vivo com tudo, então
gravamos o máximo de material possível para hospedar no canal
depois.
— A gente vai fazer o Jack ao vivo — ela informa assim que o
piloto se aproxima.
— Grande dia, Jack, pronto para um tricampeonato? —
pergunto, e ele joga a cabeça para trás antes de responder.
— Eu queria ser um cara legal e dizer que ainda estamos no
início da temporada e que é um pouco cedo para isso. — Jack se
vira para ter o boné da equipe, com os logos dos patrocinadores,
colocado na cabeça. — Mas a verdade é que qualquer piloto bom
nasce pronto pra ser campeão do mundo. — Pisca como se fosse
óbvio.
— E foi com esse pensamento que você fez aquela largada
brilhante hoje?
— Não, a largada precisou ser boa porque o carro do Juan —
cita o segundo colocado —, estava mais rápido esse fim de semana.
Tive de tirar o possível e o impossível do carro e assumir a liderança,
seria muito difícil ultrapassá-lo depois. — Jack demonstra toda a sua
grande performance soltando os músculos dos ombros enquanto
fala.
— Só para a gente terminar: você teve uma pequena dificuldade
nisso depois da primeira parada, certo?
— Como eu disse, eles estavam mais rápidos, acho que se eu
não tivesse parado antes, não teria conseguido retomar a liderança
depois.
— Obrigada, Jack.
— Até semana que vem, Carol. — Jack me dá as costas, Miyeko
sinaliza que saímos do ao vivo, e eu aproveito para entrevistar outros
dois pilotos que terminaram a corrida na zona de pontuação. Passo
para as próximas entrevistas me perguntando como eu cheguei aqui
semana passada e ele já me conhece pelo nome. Harris, óbvio.
Como a etapa da Itália foi um sonífero, as perguntas também
não carregam tantas emoções. Mas os rapazes pontuaram e estão
felizes, então isso gera uma boa quantidade de materiais extras.
— O próximo a gente vai fazer no ao vivo, hein — Miyeko diz
num tom divertido, semicerrando os olhos.
Não entendo o porquê, mas antes que eu possa perguntar, ela
acena que está se comunicando com a produção pelo ponto
eletrônico, que é o máximo de ajuda que temos por aqui. Observo a
movimentação das equipes de TV europeias, muito maiores e com
estruturas que nem se comparam à nossa. Ainda assim, sou grata
por fazer parte de um projeto tão legal quanto um canal que acredita
nas mulheres como jornalistas e fãs de esporte.
Meus olhos ainda vagueiam pelo espaço de entrevistas pós-
corrida quando batem nos de Daniel, que pisca para mim no meio da
entrevista que está dando. Desvio o olhar, deixando-o cair em
Miyeko, que encolhe os ombros de maneira teatral.
— O Harris é o próximo.
Entendo que essa é a maneira de ela me dizer que vamos entrar
ao vivo, mas nesse caso, deveríamos estar seguindo uma ordem.
— Cadê o Juan? — Olho em volta confusa, mas não avisto o
segundo colocado.
— Lá do outro lado, ele vem depois. Foca o seu piloto agora.
Não tenho tempo nem de reagir ao “seu piloto”, porque entramos
ao vivo de novo e o Daniel para na minha frente com seu sorrisinho
de canto petulante.
— Boa tarde, Daniel. Apesar da pole do Jack, esse não foi um
fim de semana fácil para vocês. Depois de terminar a corrida
passada num P1, você ainda considera o P3 um bom lugar? —
pergunto e finjo ajustar meu microfone para poder desviar os olhos
dos dele.
— Depois de ter saído do P7, sim. Gostaria de ter feito um tempo
melhor ontem para largar das fileiras da frente hoje, mas não
aconteceu — pondera, se apoiando na grade e encolhendo os
ombros. — Então, sim, P1 é sempre melhor que P3, mas por hoje
vou me contentar com ele.
— Durante a corrida, você conseguiu duas ultrapassagens de
maneira fácil, mas no final, deixou todo mundo tenso com a disputa
pelo terceiro lugar. Vocês tinham uma estratégia traçada para isso ou
foi no improviso?
— Não sabia que tinha deixado vocês tensos. — Seus olhos
verdes brilham enquanto suas palavras me provocam. — E não
foram fáceis, na largada principalmente. — Faz questão de pontuar.
— Mas sobre o final, a gente tinha uma estratégia, sim. Pneus
macios, terceiro lugar e volta mais rápida.
— Vocês conseguiram os três, então — concluo, e ele meneia a
cabeça. — Bom, nas últimas voltas você foi enfático em pedir o
silêncio do seu engenheiro, como isso te ajuda?
Ele digere minha pergunta por alguns segundos e vira o boné
para trás antes de responder.
— Conheci uma garota uma vez que me disse que se eu ficasse
pensando demais o tempo todo, nunca terminaria uma corrida. “As
voltas duram menos de dois minutos, não dá pra ficar pensando no
que fazer, você precisa sentir”, ela dizia. — Engulo em seco e me
forço a manter os olhos nos dele, que está sorrindo para mim, de
maneira sutil e misteriosa: o nosso sorriso. — Então pensei nela,
você sabe, a garota dos meus sonhos. — Sinto que minhas pernas
vão derreter com as palavras dele. — Precisava do som do meu
motor, queria senti-lo tremer e ter a confiança de que ele não falharia
se eu empurrasse demais, se acelerasse demais, se eu tentasse
demais.
— O motor falhar era uma opção? — pergunto com a voz
arranhando minha garganta.
— Sim. A gente tava testando algumas coisas no limite, então
era. Mas preferi arriscar. — Assinto com um leve sorriso e agradeço,
essa é a deixa de Daniel para sumir da minha frente, mas ele não o
faz — Às vezes, a gente precisa arriscar. Mesmo parecendo que não
vai funcionar.
— E saímos do ao vivo. — Miyeko praticamente grita. Volto meu
rosto para ela, que está sorrindo e dando dois passos para trás,
como se quisesse me dar privacidade. No entanto, o repórter ao meu
lado engata uma pergunta, e eu me afasto sem nem olhar para
Daniel. — O Juan já está disponível — ela diz, como se não tivesse
acabado de tentar me jogar ao tubarão.
Dou um passo para a direita, onde o segundo colocado na
corrida e no campeonato está e, esperando-o terminar com o
repórter da vez, me posiciono da melhor maneira para voltar ao ar.
O humor do piloto está horrível. Segundo colocado é ruim, muito
ruim. Ele não soa como uma conquista, e sim como um “quase”. No
entanto, nesse caso específico, soa ainda pior. Juan é o ex-
companheiro de Jack, piloto que Daniel substituiu na Arrows Racing.
Ele trocou de equipe quando ficou visível para todos que, mesmo
que ele fosse bicampeão mundial, a Arrows não ia dar preferência a
ele como primeiro piloto se o Jack estava entregando mais na pista.
Infelizmente, apesar de ter ido para uma equipe tão grande quanto a
antiga, o carro de Juan desse ano não é exatamente o que ele
esperava.
Questiono sobre a temporada num geral, e não sobre a corrida
para não focar na derrota nem o ofender com alguma pergunta de
resposta óbvia, mas ainda assim ele claramente só está aqui por
obrigação.
Quando Juan se despede, me viro para Miyeko e cruzo os
braços.
— O que foi?
— Por que fez aquilo? — indago, me aproximando. — Você sabe
tanto quanto eu que ele não estava falando sobre a corrida quando
veio com esse papo de arriscar.
Miyeko não responde, apenas encolhe os ombros e respira
fundo.

Seria mentira dizer que o clima da coletiva foi leve e amigável.


Jack e Daniel até estavam nesse ritmo, mas Juan não fez a menor
questão de ser gentil ou não demonstrar seu descontentamento.
O que é normal. Mas Miyeko disse que poderia ficar dez horas
em cima de um palanque falando mal dele e que eu deveria escrever
um artigo só sobre como a soberba pode destruir reputações.
— Eu até posso deixar um comentário, mas não vejo por que
escrever sobre isso.
— Ele foi bem babaca com todo mundo que tinha pergunta para
ele — Miyeko diz, como se isso fosse o suficiente, enquanto
caminhamos próximo aos motorhomes das equipes.
Guardamos nossos equipamentos e decidimos conhecer tudo o
que pudermos do lugar, é nosso segundo GP e está na hora de
aproveitarmos as tão raras e disputadas credenciais.
No entanto, mesmo que eu ame Fórmula 1 e acompanhe desde
que me entendo por gente, observar esses prédios de dois, três
andares ainda me assusta. Os motorhomes são as casas das
equipes durante os fins de semana, mas o que realmente surpreende
é que essas estruturas com sala, banheiro, cozinha, bar, refeitório –
alguns têm até quartos – são desmontados e remontados a cada
Grande Prêmio, como se fosse fácil ficar carregando uma casa
desmontada por aí.
— É porque você trabalha com Fórmula 1, mas não liga para
Fórmula 1. — Tento não defender Juan com tanta veemência, mas
ele não é nenhum monstro. Talvez seja só um daddy badboy. —
Então não entende como são as coisas. Quando não está insatisfeito
com a própria equipe, o Juan é um cara bem legal.
— Como alguém que diz “Não vou responder sua pergunta
porque ela é muito estupida” pode ser um cara legal, Carol? — Ela
me olha como se eu fosse o próprio meme do pica-pau passando
pano.
— Sabia que Michael Schumacher foi desclassificado de um
campeonato inteiro por causar uma batida para ficar com o título? —
Jogo na mesa o quão tóxico esse ambiente pode ser.
— Mas ele não era um multicampeão amado por todos? —
Miyeko pergunta, parando de repente, e eu seguro o riso.
— Não naquela época. Ele teve seus dias de bad guy. — Me
divirto com o choque da minha amiga e, lembrando outro detalhe, me
preparo para assoprar mais um pedaço do castelo de cartas dela. —
Ah, quem viu Hamilton e Alonso emotivos com a despedida de
Sebastian Vettel nem imaginava que os dois se juntavam para
insinuar que Vettel não tinha méritos pelas próprias vitórias na
década anterior. — Ergo os braços para mostrar que estou isenta,
mas que não existe isso de bom moço em tempo algum na F1.
— Eu tô chocada.
— Meu Deus, Miyeko. São filhinhos de papai disputando racha.
Sério que um puxar o tapete do outro te choca?
— E você sabia que alguns desses filhinhos de papai são tão
ricos, mas tão ricos que nunca voaram num voo comercial na vida,
Miyeko? — A voz de Daniel chega aos meus ouvidos, e eu dou um
pulo para a direita, saindo da frente dele.
Que entende isso como um convite para nossa conversa.
— Não. Quer dizer, eu sei que vocês têm jatinhos e tal... —
Minha amiga está tão surpresa que é engraçado vê-la tentando
encontrar as palavras. — Mas, nunca na vida? Nunca na vida é
muito tempo.
— Pois é — Daniel diz, cruzando os braços de frente para nós,
como se fosse normal estarmos os três parados e conversando. —
Parece um esporte radical e amigável, mas tem seus podres.
— Estou vendo, mas e você? É um desses caras? — Miyeko
joga a pergunta.
— Claro que não, o Harris faz o estilo humilde, Miyeko —
respondo no lugar dele. — A família dele tem dinheiro para bancar
essa vida? Com certeza. Mas o Daniel gosta de fingir que é gente
como a gente.
— Você é impossível, Caroline Pimenta — repreende, me
encarando como se eu estivesse exagerando. — E você também
tem dinheiro, muito dinheiro, todo mundo sabe.
— Só que não é o meu pai que anda de helicóptero para
qualquer compromisso desde que a gente tem quinze anos...
— Que lindas as crianças implicando — Miyeko interrompe
nossa briga de quem é menos rico, e eu poderia abrir um buraco no
chão e pular de tanta vergonha. — Vou atender uma ligação, não sai
daqui. — Ela dispara com o celular na mão e me mostra a tela para
que eu saiba que está sendo honesta.
A quantidade de pessoas à nossa volta me deixa em alerta, eu
não deveria estar conversando com ele, e com certeza não deveria
parecer tão confortável com isso.
Onde estão os assessores de imprensa quando a gente precisa
deles?
— Deixando essa vida de filho de milionário que brinca de
racha... — Daniel coça a nuca e estica as costas antes de continuar.
— A corrida de hoje foi meio merda, né?
— Sem emoção? Sim. — Não preciso mentir, ele sabe que foi.
— Mas você correu muito bem, então os brasileiros saíram dela bem
servidos.
— E você? — pergunta com um riso de canto.
— O que tem eu? — rebato, me fazendo de desentendida.
— Gostou da minha performance? — Suas sobrancelhas se
erguem, como se ele estivesse realmente esperando minha
aprovação e eu mudo o cabelo de lado, tirando os olhos dos de
Daniel no processo.
— Você saiu de P7 com um carro cheio de problemas e colocou
ele no pódio, foi bonito de ver.
— Sabe o que também seria muito bonito de ver?
— Não tenho ideia, Daniel — digo no tom menos amistoso que
conheço.
Afinal, nós dois falando sobre aleatoriedades e de maneira
casual? Estava muito bom para ser verdade.
— Calma, Pimentinha. Não vou te chamar para uma corrida da
NASCAR, não. — Tanto a frase quanto o tom ofendido dele me
fazem gargalhar e Daniel me acompanha.
É um momento gostoso, mas que não dura muito. Logo Miyeko
volta, nos fazendo reassumir a postura e, se por um lado eu sinto
que ela interrompeu uma coisa legal, por outro estou grata. É
desconcertante estar com ele e sentir tudo ser tão suave, gentil e
familiar.
Eu odeio essa palavra.
— Bom. — Ele finalmente para de rir e cruza os braços. — Vai
ter um Happy Hour de comemoração num restaurante próximo do
hotel, ninguém da equipe. — Se apressa em dizer. — Só alguns
pilotos e amigos, vocês estão convidadas.
— E por mim a gente iria com certeza — Miyeko diz, me
abraçando pela cintura.
— Mas a gente não vai. — Olho para ela, que se deita em meu
ombro com olhinhos pidões, e franzo o cenho em repreensão. — E,
na verdade, a gente ainda precisa ver outros lugares. Então até
semana que vem, Novato.
Ele não responde de imediato, apenas me observa, e eu detesto
como seus olhos parecem ver mais do que eu estou mostrando.
Graças a Deus, Lindsay passa pelas portas de vidro do motorhome
da Arrows Racing e, antes mesmo de ela se dirigir até nós, ele
começa a se afastar.
— Até, Pimentinha — diz, por fim.
Observo-o caminhar entre mecânicos, pilotos, imprensa e
assessores. Inclino a cabeça para a direita, onde Miyeko ainda
descansa em meu ombro, e digo:
— Nunca mais, nunca mais mesmo, brinca desse jeito com o
Daniel. Ele é um sujeito perigoso, parece legal, um bom moço, mas
você sabe tanto quanto eu que ele não quer só me levar num happy
hour.
— Claro que sei, por isso mesmo que eu queria que você fosse.
— Minha amiga pisca para mim com inocência fingida e eu puxo a
mão dela para começarmos a caminhar.
— Miyeko, você é podre, para com isso — digo e ela volta a falar
sobre como o Juan merecia uma matéria bem exposed, mas eu não
presto atenção.
Meu pescoço segue seus próprios interesses e vira na direção
da garagem da Arrows, Daniel me dá um tchau tímido, e eu sorrio
para ele me afastando e me perguntando se essa trégua de minutos
significou algo além disso, se existe alguma possibilidade de sermos,
ao menos, bons colegas.
Tiro o celular do bolso ao mesmo tempo que me desfaço dos
sapatos e me preparo para entrar num bom banho. Abro a cortina e
então a janela para correr um vento, mas a fecho imediatamente, a
brisa que chega está mais quente que o quarto. O calor italiano só
não vai me matar porque o cansaço vai fazer isso primeiro.
Me dirijo para o banheiro com minha necessaire em mãos e
removo a maquiagem, lavo o rosto com a água fria, que relaxa todo o
meu corpo e o seco gentilmente. Desfaço o coque em seguida,
soltando os cachos e deixando meu cabelo respirar. Estalo o
pescoço para os dois lados e logo depois é a vez de as roupas
serem descartadas.
Encarando meu reflexo, sorrio com o que vejo: uma garota com
a postura de quem está exausta há mais dias do que gostaria, com
dois ou três centímetros de pontas duplas, a sobrancelha por fazer e
olheiras enormes.
Mas totalmente realizada com meu trabalho.
Conseguimos, Pimentinha, somos repórter de Fórmula 1. Não
estamos na TV, mas agora a TV não é mais tudo isso e nós
conseguimos trabalhar num dos melhores sites do país, sussurro e
sorrio só mais uma vez. Ciente de que a próxima semana trará o
descanso que vai fazer tudo isso valer ainda mais a pena.
Pelo menos por agora, acabou. A água toca meus cabelos e
costas, me fazendo arquear levemente, mas logo volto a descansar
aqui. A água fria me faz esquecer que tenho seis chamadas não
atendidas do Gabriel no telefone e que eu acabei de me referir a mim
mesma como Pimentinha.
Algo que não fazia desde que Daniel saiu da minha vida.

— Alô. — Gabriel me atende no primeiro toque.


— Oi, amor. — Forço a animação na voz enquanto espalho óleo
pelos meus cachos. — Vi que você me ligou algumas vezes.
Desculpa não atender, tava trabalhando e...
— Onde você tá, Carol? — ele me corta, a voz não carrega
emoção. Nada de negativo, mas nada de positivo também.
— No quarto do hotel. Cuidando do meu cabelo e me
preparando para a minha semana de folga que eu...
— Que você vai passar? — me interrompe novamente.
— Na França? — respondo, irritadiça. — Para de me cortar,
Gabriel.
— Você vai passar as suas férias com quem? — A pergunta é
tão rude que me encolho na cadeira e deixo o óleo de lado.
— Gabriel, o que aconteceu? — sussurro, apoiando minha testa
na parte externa do pulso direito.
— Quero saber por que você ainda não deu um corte no babaca
do seu ex. É isso o que está acontecendo.
Por Deus, esse assunto de novo não.
— Amor, eu já falei para você que não vou confrontar um piloto
no ar, sem contar que ele não fez nada de mais hoje e, além disso...
— Porra, Caroline. Você tá de sacanagem! — Gabriel grita, me
fazendo estremecer enquanto o escuto marchar pela casa. — Aquele
idiota ficou falando de você, do passado, sobre essa viadagem de
garota dos sonhos e...
— Para com isso. — É minha vez de cortá-lo.
— Ah, então a minha mulher pode ficar sendo cantada por aí e
eu não posso falar nada? — Gabriel gargalha com ironia, e eu
suspiro.
— Pedi pra você parar de usar “viadagem” de maneira
pejorativa, de qualquer maneira na verdade, isso não é coisa que se
diga. — Consigo sussurrar mesmo que seu comentário tenha me
chateado.
— Desculpa — diz, a contragosto.
— Por ter dito isso, por estar agindo como se eu tivesse me
oferecendo pro Daniel ou por ter gritado comigo?
Ele limpa a garganta antes de responder.
— Caroline. — Pelo tom didático, sei que se estivéssemos juntos
agora, meu namorado se sentaria na minha frente e seguraria meu
rosto nas mãos para que eu pudesse prestar total atenção ao que ele
tá dizendo. — Não estou pedindo para você falar com o Harris no ar,
estou pedindo pra você falar com ele. Não quero um show no pay-
per-view, só quero... — Ouço-o inspirar como se precisasse de todo
o ar do mundo. — Só quero parar de sentir que você gosta disso, é
uma puta angústia pensar que está sendo legal para você ser... sei
lá, cortejada pelo seu primeiro namorado enquanto eu tô do outro
lado do mundo. — murmura as palavras finais, e eu fecho o pote do
óleo dando um nós com o cabelo no topo da minha cabeça.
Não é possível que ele esteja com ciúmes de verdade.
Me levanto e me dirijo para o banheiro.
— Sabia que você não precisa se sentir assim porque eu te
amo? — Coloco o celular, ainda no viva-voz, na bancada enquanto
espero a resposta e começo a lavar a mão para tirar o excesso do
óleo.
— Você tá fazendo xixi? — É a resposta dele, e eu rio.
— Claro que não, tô lavando a mão. Tava umectando o cabelo.
— Nossa, que bom que eu tô do outro lado do oceano, então.
Odeio quando você dorme cheirando a óleo.
— Ah, sonso. O brilho do meu cabelo você ama, né?
— Sim. O brilho do seu cabelo, sua pele macia, seus lábios
desenhados... — enumera, me fazendo sorrir. Finalmente estamos
bem. — Sinto tanta falta de você que estou ficando maluco. Eu
estava a ponto de pegar um avião pra partir a cara desse idiota.
— Ah, então você está com saudades de mim, mas sua
prioridade de encontro é o Harris?
Silêncio. Deixo que ele se dê conta da merda que está falando e,
quando ele o faz, dá para ouvi-lo limpando a garganta.
— Você está certa. Mas precisa me prometer que vai conversar
com esse... com esse cara, para ele parar com essa merda, Carol.
— Eu não acho que o Harris fale essas coisas a sério, amor.
Mesmo. Eu não preciso ficar falando por aí que eu namoro, ele sabe
disso, você está por toda parte no meu Instagram...
— Mas você vai falar, não vai? — insiste, e eu reviro os olhos ao
mesmo tempo que me forço a murmurar um uhum. — Obrigado —
diz, como se tivesse esperado muito por isso. — Vou desligar aqui.
Te amo.
Meu rosto vira por instinto até o celular e eu rio.
— Que brincadeira boba. Anda, me conta como foi o dia?
— Nossa, Vida. Amanhã, tô cansadão. Amanhã a gente se fala.
Semicerro os olhos para o celular como se ele pudesse ver meu
rosto, são seis da tarde no Brasil.
— Vida?
— Até amanhã — digo, mesmo pensando que algo ainda está
muito errado. — Também te amo.
— Mas eu te amo mais — ele diz de maneira mecânica e
desliga.
Do nada.
Sem mais nem menos.
Como se tivesse ligado para mim por causa do que aconteceu
com Daniel, e então percebo que não nos falamos além de
mensagens ontem e sexta.
Rolo nossa conversa para saber se existe alguma chance de ele
estar chateado com mais alguma coisa ou de eu não ter percebido
algo por causa do trabalho nesses dois dias, mas não.
Nossas mensagens também foram bem genéricas de quinta à
noite para cá.
Cogito o twitter e todas as gracinhas que podem estar rolando lá,
mas a verdade é que Gabriel se acha bom demais para qualquer
rede social. Então descarto a possibilidade e repasso a ligação na
cabeça uma, duas, três vezes. Nós estamos bem, não estamos?
Conseguimos resolver isso ou não?
Se não conseguimos, por que ele agiu como se tivesse tudo
bem?
E, se resolvemos, por que ele me descartou um segundo depois
de me dizer o que eu deveria fazer com Daniel?
Capítulo 8
Ou: Histórias, nossas histórias. Dias de luta, dias de Glória.

Dias de luta- Charlie Brown Jr.

Daniel
Uma semana sem corrida foi como um mês sem ver Caroline,
mas fingi não me importar. Na verdade, encarei como uma
desintoxicação. Aproveitei esse tempo para colocar a cabeça no
lugar e me lembrar de que, apesar de esse ser o meu primeiro ano
em uma grande equipe, estou tendo um desempenho acima do
esperado e mostrando na pista aquilo que sou capaz de entregar
para o time.
Passei a semana de “folga” com a Miss Claire, e mesmo sendo a
mulher mais classuda que já conheci, minha mãe segue se sentando
ao meu lado para assistir TV no fim da noite de moletom, como
fazíamos na minha infância.
Estar com ela é sempre bom, e por isso me permiti esquecer os
dias que preciso passar no Brasil, leia-se como o meu pai, em breve.
Contudo, assim como estava fazendo há um bom tempo, ignorei
esse problema e ao fim do meu descanso, voei para a França, onde
tivemos o GP da semana passada. Naquele momento, eu estava
certo de duas coisas:
1 - Manteria toda a minha atenção na corrida.
2 - Ao fim da corrida, entraria na sala de reunião da equipe para
alinhar as melhorias no carro e estratégia para a próxima semana.
E nada além daquele GP chamaria minha atenção.
A decisão de manter os olhos apenas no Grande Prêmio de Paul
Ricard não pareceu tão difícil, afinal, eu precisava mesmo estar com
a guarda alta. Qualquer deslize poderia acabar com o meu fim de
semana, e as coisas em Monza já tinham sido complicadas o
suficiente.
Por isso, quando esbarrei com Caroline pelos motorhomes na
quinta-feira, a cumprimentei e fui gentil, mas não ultrapassei nenhum
limite; na sexta, tivemos alguns segundos de entrevista, mas não fui
nada além de profissional; já no sábado, quando ela e Miyeko
apareceram na garagem para gravar uma reportagem sobre o
desempenho de Jack depois da classificação, me forcei a
permanecer do lado de dentro.
Assim, tive certeza de que conseguiria enfrentar um domingo
vendo-a pelo Paddock sem ter meu foco abalado. E, em grande
parte, consegui.
Combinando uma estratégia arriscada com trocas de pneus
rápidas e precisas num fim de semana no qual o tempo se dividiu
entre calor infernal e chuva torrencial, consegui entregar o segundo
lugar. Terminando apenas depois de Juan, com Jack logo atrás de
mim.
Durante as entrevistas pós-corrida, me segurar diante de Carol
também foi fácil, eu tinha entregado mais uma corrida de ouro, então
todos tinham uma dúzia de perguntas. Contudo, quando esbarrei
com ela perto dos motorhomes, falhei com maestria.
O que deixou aquele domingo muito parecido com todos os
outros foi que  cheguei ao autódromo com o sangue fervendo, fiz
uma corrida genial e levei um senhor fora da dona Caroline Pimenta.
O que me deixou full-pistola comigo mesmo.
Não o fora, mas a forma como  eu perco o foco perto dela.
Passei uma semana dizendo a minha mãe que faria o que fosse
necessário para focar o campeonato e esquecer as distrações, mas,
na primeira chance, me joguei nos pés de uma delas.
A verdade é que, no fundo, eu tinha esperanças de ficar mais
próximo da Carol a cada corrida. Contudo, parece que quanto mais a
gente interage, mais longe fica e eu não sei mais o que fazer.
Sentado no meio de uma cama kingsize, à meia luz e comendo
pizza enquanto meu companheiro de equipe me julga, tento
encontrar uma desculpa para não ter saído com ele e os outros caras
essa noite. Mas os olhos de Jack, que me estuda de pernas
cruzadas do sofá no pé da minha cama, não saem dos meus.
Ele está esperando uma resposta, mas nada do que eu disser
vai satisfazê-lo.
— Só não queria ir pra balada, cara. — Dou de ombros dando
um gole na minha latinha. — O que tem de mais?
— Nada de mais. O problema não é a gente ter passado o
domingo do GP de Mônaco que eu ganhei e você pegou mais um P3
comendo pizza com a TV desligada na bagunça do seu quarto. —
Ele enfatiza todas as palavras que acha necessário enquanto corre
os olhos pelo cômodo, e eu seguro o riso.
— Obrigado por ter ficado, cara — digo, ligando a TV, e Jack
bufa a minha frente. — Seria uma bosta terminar esse dia sozinho.
— Ah, é. Sozinho, porque ainda tem mais essa. Você tá
fissurado numa mulher que não te suporta.
— Eu tenho coração, filho da mãe. Vai com calma. — Jogo uma
latinha vazia na direção de Jack, que a pega no ar, mostrando que os
treinos de reflexo estão em dia.
— E é mentira?
Espero que sim.
— Não sei.
— Não sabe?
— Não. Ela nunca me pediu diretamente pra não a convidar para
sair. Então continuo. — Encolho as pernas em cima da cama como
se mentir para mim mesmo pudesse me proteger.
Caroline nunca pediu para parar, mas também nunca me pediu
para continuar.
— A Miyeko comentou que o namorado da sua garota está
pegando no pé dela. — A risadinha dele deixa claro que não adianta
nem eu tentar refutar. — Relaxa, cara. Ele está do outro lado do
mundo, e você, aqui. Não precisa ficar tão desesperado, é só deixar
o tempo e a distância fazerem o trabalho deles.
Quase argumento que não estou esperando pelo fim do namoro
de Carol, uma vez que tê-la de volta a minha vida tem mais a ver
com a companhia e o quanto minha Pimentinha significa para mim
do que ter um envolvimento romântico com ela. Mas outra coisa me
soa mais relevante agora.
— Desde quando você é íntimo da Miyeko?
— Ela faz parte da equipe que está gravando meu documentário,
seu trouxa. — Jack desvia o olhar e sorri de canto enquanto leva seu
copo à boca. Conheço esse sorriso desde quando não éramos
companheiros de equipe. — E a Miyeko também é produtora, sabia?
Geralmente é ela quem conversa com as equipes e colhe
informações — rebate, querendo me tirar de louco.
— Jack, não sei como você, o líder do campeonato, resolveu ser
acessível para uma produtora/câmera de um canal de streaming —
digo, com o indicador erguido — Mas deixe o pequeno Jack longe da
amiga da Carol — exijo.
— Posso te garantir que não é pequeno — ironiza, mas o olhar
culpado não me engana.
— Cala a boca, babaca.
— Enfim, voltando ao assunto da sua garota. — Jack
desconversa e dá um gole em sua latinha. — Deixa ela quieta. Vai
ser melhor pra todo mundo.
— Todo mundo, menos pra mim. Eu não vejo a Carol só como
minha ex, cara. Ela era minha amiga. — Estico as pernas e passo
uma por cima da outra ao mesmo tempo que cruzo os braços. —
Não me importo se Carol tem alguém, não a quero na minha vida só
se ela for minha namorada. — Jack apoia o cotovelo na mesa e me
encara confuso. — Quero poder conversar com ela, saber onde ela
está hospedada ou em qual andar do hotel ela está e ir até lá
conversar. Quero rir das coisas absurdas do Paddock e da corrida,
estar perto dela, conhecer essa nova Carol. — Despejo em cima
dele, que me encara com olhos arregalados.
Se Jack soubesse o que eu ocultei então, que quero poder ter de
volta na minha vida a única pessoa perto de quem eu me sinto em
casa, ele cairia duro na minha frente.
— Nossa, meu Deus. Você realmente gosta dela, né?
Sim.
— Não sei. Eu nem conheço essa Carol... — minto.
Ela é a mesma pessoa. Exatamente a mesma. E eu amo cada
pedacinho dela.
Jack não responde, e eu paro de observá-lo. Fixo o olhar na TV
a minha frente e penso que eu amo a Carol Pimenta. Amo de
verdade, e dói saber que isso não faz a menor diferença.
Meu amigo se levanta da cadeira, ainda sem dizer nada, e vai
até o canto do quarto, pegando a lixeira e recolhendo as latinhas que
deixamos espalhadas. Pela visão periférica, vejo-o partir para as
caixas de pizza em seguida, amassando-as e jogando na lixeira junto
dos guardanapos que eu o ensinei a usar.
Quando ele para ao meu lado, me preparo para me despedir,
mas Jack acende a luz fluorescente que ilumina todo o cômodo
como um clarão indesejado. Fecho os olhos com o impacto e,
quando volto a abri-los, ele está inspecionando meu quarto, então se
vira para mim com o indicador erguido:
— Vai dormir e deixa esse quarto organizado, porque a
camareira não é sua empregada, e esquece essa garota — diz,
abrindo a porta do meu quarto. — Pelo menos por um tempo.
— Jack, eu não...
— Pelo menos por um tempo, porra — pede, se dirigindo à
saída.
— Tá bom, Jack, tá bom. Não vou nem dar entrevista semana
que vem.
— Se você não der entrevista, a multa sai do seu bolso, não do
da equipe. —  Jack me encara com a mão na maçaneta.
Sai batendo a porta, e eu jogo o corpo no colchão, encarando o
teto e pensando onde, exatamente, eu errei.
Se foi em ter visto Carol Pimenta em uma corrida aleatória
quando tinha 13 anos;
Se foi ter me aproximado dela na escola;
Se foi ter virado seu amigo;
Se foi ter namorado com ela ou
Se foi ter seguido os sonhos que nós sonhamos juntos.
Quando o sono chega, me fazendo bocejar e deixando meu
corpo leve, desisto de lutar contra ele e fecho os olhos ainda sem ter
a resposta.

Na primeira vez que vi Carol no cercadinho pós-corrida, meu


coração tremeu, então gelou, e achei que ele ia explodir. Já tinha
quase ido pelos ares quando a bandeira quadriculada selou minha
vitória, mas parado diante dela, precisei me apoiar na grade.
Na verdade, tive de segurar na grade para não pular e abraçá-la.
Parecia um tipo de sinal reencontrar a minha Pimentinha fazendo o
que ela sempre sonhou na primeira corrida que eu ganhei.
Minha única reação foi querer dividir aquele dia com ela. E,
naquele momento, a última resposta que eu esperava era um “não”.
Talvez por causa da minha emoção e adrenalina, talvez por achar
que minha vitória também mexeu com ela. Mas o “não” veio, seguido
de um desafio, e eu adorei recebê-lo.
Provavelmente é por causa do sabor do desafio que, mesmo
tendo falado para a minha mãe que deixaria essa história de lado e
tendo prometido a Jack domingo passado que me manteria longe de
Carol, here I am, como diria Miss Claire.
Parado diante dela, feito um dois de paus, esperando uma
resposta que, pela quinta vez, leio em seus olhos que vai ser não.
— Daniel, você já sabe a minha resposta, cara. Pra que fica
perguntando? — Carol troca o peso de perna, na frente dos boxes da
Arrows, me encarando como se tivesse exausta. O que ela
provavelmente está, é domingo, afinal, dia de trabalhar doze horas.
Ela e Miyeko estão filmando conteúdo para uma matéria sobre a
nossa equipe, a líder do campeonato pelo quarto ano seguido, e eu
me aproveitei disso para esbarrar nas duas.
— Porque eu não quero me casar com você, pelo menos não
ainda. Quero tomar um café, conversar, saber como você está...
— Pra quê?
— Cacete, Pimentinha. Você era minha melhor amiga, o que é
que custa? — Minha indignação faz Miyeko rir, e Carol olha para a
amiga, fulminando-a com os olhos semicerrados que sempre me
faziam calar a boca. Rio também.
— Ah, não. Não joga essa cartada pra mim. — Carol ergue os
braços, se declarando inocente. — Foi você que quis parar de falar
comigo quando a gente terminou.
— Eu era um moleque de ego ferido, Caroline Pimenta. —
Respiro fundo, olhando-a de cima a baixo — E a gente nunca teria
conseguido ser amigo naquela época — rebato, porque essa é a
verdade.
Tanto que Carol meneia a cabeça lentamente.
— Você tá certo, Daniel. Mas... se eu topar sair com você, você
vai me deixar em paz depois? — pergunta, cruzando os braços e
revirando os olhos.
Petulante como eu me lembrava.
Petulante como eu amo.
— Então eu ando tirando sua paz? — Ergo a sobrancelha
esquerda e percebo quando ela troca o peso de perna outra vez,
claramente querendo me agredir. — Você vai adorar sair comigo,
sabia?
— Ah, é? Por quê?
— Porque você não vai estar no seu local de trabalho, vai poder
rebater quando eu te tirar do sério.
O queixo dela cai e seu olhar se ilumina.
— Meu Deus, como eu não pensei nisso antes? Vamos sair o
mais rápido possível.
Eu gostaria de dizer que ela está debochando, mas seria
mentira. Carol é a figura da satisfação agora.
— Hoje, então?
— Não — diz de imediato.
— Por quê? — indago mais pela surpresa do que por
curiosidade.
— Porque eu me comprometi em ajudar a Miy com a filmagem
que ela precisa fazer pro Doc do Jack e vou descansar depois disso.
Você deveria fazer o mesmo, Novato — dispara, querendo que eu
apenas concorde e me cale. Então eu meneio a cabeça. — Terça-
feira, no Carrete, no Trocadero.
— Em Paris, Pimentinha?
Se ela pode usar apelidos, eu também posso.
— Eu moro em Paris. — Joga em mim como um desafio, e eu a
olho de cima a baixo sabendo que caí, pelo menos um pouco, em
uma pegadinha, mas não rebato.
Eu tenho um jato à minha disposição, afinal.
— Tudo bem. Te vejo lá às duas. — Escolho a hora, pelo menos.
— Vou deixar vocês terminarem a gravação.
— Muito obrigada, porque eu não tenho dois empregos à toa —
é Miyeko quem responde, e eu rio, me afastando.

Entro numa das salas do box e bato a cabeça três vezes na


parede. Richard, nosso chefe de equipe, vira apenas os olhos em
minha direção.
— Você está bem?
— Ele está bem, Rick. Só fez papel de trouxa pela milésima vez.
Não preciso nem descolar a testa da parede para saber que é o
Jack que está falando.
— Como assim? — Richard pergunta, o atrito da cadeira com o
chão deixa claro que, o que quer que ele estivesse fazendo, perdeu
a atenção para o showman do meu companheiro de equipe.
— Ele está apaixonado por uma repórter.
— Todo mundo sabe disso. — Meu chefe ri e eu me viro de
frente para eles. Cruzo os braços diante do meu peito, que treme
mais do que os carros com porpoising da temporada de 2022, e os
encaro. — E você precisa ser mais discreto! — Rick ergue o
indicador, me repreendendo. — A Lindsay vai comer seu fígado se
qualquer coisa sobressair ao ano de ouro da estrela em ascensão
dela, vulgo você — ele menciona a nossa assessora de imprensa e
eu assinto.
— Eu vou conversar com a sua garota agora, aliás. Na verdade,
com a câmera dela — Jack finge que esqueceu o nome de Miyeko,
mas eu o olho de baixo para cima balançando a cabeça
negativamente, e ele morde o lábio inferior para não rir. — Devo ser
babaca com elas?
— Por que você seria? — digo, dando de ombros. — Ela aceitou
sair comigo...
— Sério? — Os olhos de Jack se arregalam instantaneamente.
— Sério!
— Finalmente! — Meu companheiro vem até mim e me
cumprimenta como se eu tivesse feito a volta mais rápida da corrida.
Depois se afasta e me encara arredio: — Quais foram as ameaças
que você teve que fazer?
— Jack, some daqui. — O empurro enquanto Richard gargalha.
— Espera, se ela aceitou sair com você, por que estava tentando
furar a parede há dois minutos? — Nosso chefe de equipe pergunta
confuso.
— Por quê? Ué, porque eu levei tanto não que achei que esse
dia nunca chegaria e agora estou nervoso.
— Vai levar ela aonde? — Jack estala as costas, ansioso.
— Graças a você, não saio com ela hoje, só terça. Vamos tomar
um café no Trocadero.
— Paris? — Richard pergunta, e eu apenas assinto. — Eu não
vou pagar por isso — brinca, mas é obvio que vai.
— Ou você paga, ou eu voo de companhia aérea baratinha —
digo em tom de ameaça, Richard jamais deixaria sua promessa voar
nessas condições.
E eu estou certo, porque a única coisa que ele faz é me olhar
como se eu tivesse xingado sua mãe.
— Vou tentar ser breve, quem sabe você ainda consegue algo
com ela hoje. — Jack pisca para mim e corre porta afora.
Logo que ele sai, o clima na sala muda. Richard me observa
mais sério e respira fundo.
— Pode falar, chefe. — digo, me preparando para algum tipo de
bronca, mesmo que eu não saiba o motivo, seu semblante telegrafa
o esporro.
— Você realmente precisa ser discreto, Dani. Todos os olhos
estão em você agora. Como se fosse Novato outra vez, e ela acabou
de chegar aqui — Rick diz de maneira paternal, mas firme. — Não
quero me meter na sua vida, só que ninguém a conhece, procure
deixar o trabalho da garota repercutir mais que o nome dela por aqui.
Tem muitos outros lugares para vocês conversarem além do
autódromo... — Ele finaliza, e eu sei o que está querendo dizer.
Não posso deixar nada repercutir mais que meu tempo na pista,
e posso estar prejudicando a Carol tanto quanto a mim.
Essa não é minha intenção, nunca foi. Mas fico grato pelo nosso
encontro, ao menos agora terei acesso menos restrito a ela e vou
poder parar de mendigar por atenção nos momentos mais insanos
do pós-corrida.
Capítulo 9
Ou: Encontre alguém que te ame melhor do que eu, querido, eu sei. Porque você me lembra todo dia que não sou suficiente, mas mesmo assim eu fico.

July – Noah Cyrus

Carol
Budapeste, você é linda.
Finalmente me sinto num lugar “diferente”, a Europa é incrível.
Tecnologia de ponta em cenários que beiram o medieval, muitos
castelos, ruínas, morros, parques... Apesar do clima frio, é possível
lidar com a maioria dos lugares por causa do aquecedor e das três
camadas de roupas que usamos.
O único problema é que quando olho meu feed do Instagram,
nunca sei se tirei aquela foto em Londres ou Paris, se era a Espanha
ou Portugal... É tudo igual.
Em todo lugar.
Até os passeios de City Tour que eu e Miyeko tínhamos
acordado de fazer em todos os países foram ficando para trás ao
longo desses três meses. Pelo menos metade dos pontos turísticos
se resumiam a parque, museu e igreja histórica, nas quais a gente
precisa pagar para entrar. Eu nunca vi isso, pagar para entrar em
igreja.
Enfim.
Chegar a Budapeste foi uma experiência diferente, até a paleta
de cores da cidade difere dos tons frios dos outros lugares. Aqui,
apesar de a temperatura estar baixíssima, a cidade tem tons muito
expressivos e a noite... A noite nessa cidade é a coisa mais linda.
Infelizmente, não vou poder vê-la tanto quanto gostaria.
Chegamos na quarta à noite e quinta já começaram os trabalhos.
Como eu não tenho a disposição de Miyeko, pensar em sair à noite
num domingo pós-corrida é inimaginável e meu voo para Paris é
amanhã.
Ou seja, anotar no caderninho mental de ficar mais tempo na
Hungria no GP do ano que vem.
Faz duas horas que deixamos o autódromo e “Eu tenho um
encontro com Daniel Harris” martelou na minha cabeça durante todo
o tempo que permanecemos com o Jack.
Então chegamos ao hotel, subimos para tomar um banho, e a
frase já tinha mudado para “Eu vejo o Daniel fora de um dia de
corrida”, o que era bem melhor do que “encontro”.
Sentada no restaurante do melhor hotel da cidade – alegrias
proporcionadas por uma estar num país no qual a moeda oficial não
é o euro –, aceito que não é porque teremos uma refeição juntos que
preciso ficar nervosa.
— Você tem mesmo um encontro com o seu Novato, né? —
Miyeko coloca o último pedaço de carne na boca e espera por minha
resposta. Ela fez a pergunta de maneira tão tranquila e descontraída
que é como se falássemos sobre isso toda semana.
Me pergunto se ela lê mentes para saber que eu estou tentando
ressignificar esse acontecimento.
— Tenho um café com o Daniel para deixar claro que podemos
ter uma relação profissional — sentencio, pousando meu refrigerante
na mesa, e Miyeko nem esboça uma reação. E é assim que eu sei
que ela está me julgando. — Talvez até um coleguismo, mas nada
próximo da amizade de ensino médio que ele está esperando.
— Entendo. E você acha que seu namorado vai ficar de boa com
esse coleguismo de vocês?
— Gabriel já sabia que eu iria conviver com Daniel. — Dou de
ombros. — Não vejo ele sendo babaca quanto ao fato de eu
conversar com alguém com quem vou conviver.
— Sério? — Minha amiga teatraliza. — Porque vocês estão há
tipo, duas semanas sem se falar direito.
— Claro que não estamos. — Rio quase com rispidez. — As
coisas se resolveram, eu cortei o Daniel no ao vivo semana passada.
De um jeito educado, mas cortei — ressalto, e ela meneia.
Mas continua me estudando por um tempo. Ignoro seus olhares
e foco em terminar minha sopa. Ou melhor, meu gulyás. Apesar da
quantidade exacerbada de páprica que eles colocam nessa coisa, o
prato é uma delícia e mil vezes melhor que a comida típica da
Inglaterra.
— É que vocês se falavam o dia inteiro quando chegamos aqui e
agora é no máximo bom dia, boa noite... — Joga no ar.
— Porque a gente tá se acostumando com a distância, Miyeko,
pelo amor de Deus. Não falo nem com meus pais com essa
frequência. — Coloco o argumento na mesa e, antes que ele se
assente, percebo, na risadinha de Miyeko, que ele não é valido.
— Não está me dizendo nada, Carol. E você sabe disso. Seus
pais não falavam com você todo dia nem quando você morava a
meia hora da casa deles. — Semicerro os olhos para ela entender
que está passando dos limites, e Miyeko engata a marcha ré. — Se
você, que é a namorada dele, acha que esse comportamento é
normal, quem sou eu pra julgar.
— Exatamente. E eu nem sei por que aceitei esse café com o
irritante do Harris. Só de pensar nele me dá coceira — verbalizo
irritada, coçando a nuca.
— Ah, Carol, por favor. Você adora que o Harris te tire do sério!
— Miyeko ri alto, mas não o suficiente para chamar atenção de
alguém dessa vez.
O que seria muito constrangedor, porque quando pensamos
“melhor hotel”, só queríamos ter onde descansar antes da próxima
corrida, que já é domingo que vem. Não esperávamos que fosse um
lugar tão luxuoso a ponto de a maioria dos pilotos e repórteres
grandes também ficarem aqui.
— Deixa de ser idiota — rebato.
— Sério, você vive evitando conflito. Mas, se o Harris diz que
você está bonita, você nega só para não dar razão a ele. — Miyeko
termina o conteúdo de seu refrigerante e deixa o copo na mesa. — É
engraçado, legal... Mas acho que se você fingir que ele não te afeta,
vai ser pior.
— Como assim?
— Conversa com ele, seja honesta. Diz tudo o que você me
disse sobre a perda, o abandono... Fala que não quer ser amiga
dele, mas toparia ter algum contato cordial pelo profissional e tal.
— Nossa, não sei se quero falar pro cara que me abandonou
que o abandono dele há cinco anos me machucou... Parece que eu
não superei nada.
— E superou? — Miyeko pergunta, cruzando os braços, e eu
enfio minha cara no prato. — No momento, você só está tapando o
sol com a peneira. E isso uma hora vai dar merda.
— Miyeko, eu não estou — tento argumentar, coçando a
têmpora.
Eu poderia pedir, simplesmente, para ela parar de se meter na
minha vida; poderia ser mais enfática sobre ela estar se
preocupando sem motivo, já que eu e Gabriel estamos ótimos,
apesar de não nos falarmos desde ontem; outra coisa que eu
poderia, é jogar na cara da minha querida amiga os olhares e
risadinhas que ela e Jack estavam trocando durante a entrevista.
Mas não vou.
Porque, no fim do dia, eu ainda sou eu, e ela está certa quando
diz que eu evito o conflito.
Apesar de como o Daniel me tira de mim.
— Dizer pro Harris que talvez as cantadas dele funcionem
melhor com mulheres solteiras não é, exatamente, a ideia de fora
que seu namorado estava esperando e você sabe. Não é como se o
Harris não soubesse que você namora, Caroline. — Miyeko toca
minha mão em cima da mesa e assinto.
Sei que ela está certa, mas não ia ser grossa com Daniel no
horário de trabalho e não consigo conversar com ele por três
segundos sem querer socá-lo. Foi realmente o melhor que pude
fazer.
— Na real, eu não vou conversar com o Harris sobre isso. Vou
conversar com o Gabriel — digo, surpreendendo mais a mim do que
a Miyeko. — Sério, é o melhor a ser feito, porque o Harris não é o
único homem no mundo e ele vai precisar lidar com o fato de que eu
vou receber cantadas. — Encolho os ombros. — Não tenho a
intenção de traí-lo e isso vai precisar bastar.
O sorriso de Miyeko se abre.
— É isso, garota. Bota as verdades na mesa! E paga a conta,
que eu preciso correr agora. — Miyeko se levanta em um tubinho
preto com sobretudo marfim e joga as ondas do cabelo de lado.
— Você vai pra onde?
— Não faço ideia. Uma festa privada de algum piloto e blá-blá-
blá.
— Você vai com quem, Miyeko?
— O pessoal do Paddock, relaxa. — Minha amiga pede e eu
reviro os olhos enquanto ela vem até mim.
— Vai, minha filha, amanhã nove horas aqui.
— Dez e meia, o café vai até às onze! — Miyeko se curva
deixando um beijo em minha testa e se afasta.
Quem vê essa boneca de porcelana de um metro e cinquenta se
equilibrando em 15cm de salto nem imagina o quão sem limites e
afrontosa ela é.
Limites, Miyeko. Você precisa de limites.
Um dos garçons se aproxima para retirar o prato e os copos
dela, de água e bebida, e aproveito para pedir o cardápio de
sobremesas, se estou na chuva, quero me molhar de vez. Mas não
encontro dificuldades de escolha, meus olhos caem direto no
desenho de uma coisa que não entendo muito, mas tem chocolate e
ele sempre vence.
Enquanto espero, rolo o feed do Instagram e respondo alguns
seguidores, é coisa pouca, mas é a galera que acompanha o
Garotas no Padoque e eu simplesmente amo o quanto eles
interagem e são gentis comigo.
Termino de responder e abro o aplicativo de mensagens
instantâneas. Rolo para cima e para baixo como se a resposta de
Gabriel à minha mensagem de “Bom dia” fosse chegar a qualquer
momento, mas sei que não vai, ele nem a recebeu ainda.
Suspiro cansada dessa coisa de estar vivendo o melhor
momento da minha vida e estar preocupada com como o meu ex vai
agir ou o que o meu atual vai fazer. Coço a têmpora, doida para
conversar com os dois e resolver essa situação que está me
deixando a beira de um surto.
Quando meu doce chega, quase não consigo acreditar que ele é
real. Pedi um Somlói Galuska, que é um doce tradicional da Hungria.
Um bolo de chocolate com rum e baunilha que é coberto com mais
chocolate e chantili. Só a apresentação do prato já me faz salivar.
Coloco um pequeno pedaço na colher, tentando equilibrar o bolo
e as coberturas. Sinto a textura esponjosa da massa logo que o
coloco na boca, é estranho, mas o sabor faz qualquer textura valer a
pena. O chocolate do bolo encontra a calda, e uma explosão de
cacau dá sentido a tudo, o chantili quase o deixa doce demais, mas o
rum coroa o sabor com o perfeito equilíbrio.
Me delicio com o prato pelos minutos seguintes e, quando
acabo, pago a conta e me preparo para encerrar a noite na minha
cama. Tenho de trabalhar? Tenho, mas estou num fuso horário de
quatro horas à frente do Brasil, posso mandar o artigo amanhã.
Deixo o restaurante passando pela recepção, em direção ao
elevador, porque estou cansada demais para subir escadas.
— Carol? — Uma voz muito semelhante à de Gabriel me para.
Mas não me viro. O saguão do hotel está cheio, e eu provavelmente
estou ouvindo coisas por causa do combo: saudades e cansaço. —
Vida? — A voz se aproxima e eu me viro, não posso estar ficando
louca.
— Gabriel? — Sorrio ao ver seus olhos cor de mel pousados em
mim. — O que você tá fazendo aqui? — Antes que ele responda, já
me joguei em seus braços. Sinto-o largar a mochila no chão e sorrio
comigo mesma da cena que estou vivendo.
Reencontrando meu amor, no saguão de um hotel, do outro lado
do mundo, com direito a mala caindo e abraço que me tira do chão.
Quando Gabriel se afasta, beija minha testa e acaricia minha
bochecha.
— É uma longa história — diz, cruzando os braços nas minhas
costas, como adora fazer.
— Por que não me disse que vinha? — pergunto em seu abraço
— Você quer comer alguma coisa? A comida aqui é ótima.
— Não, eu quero ficar com você, posso subir? — Gabriel pega
sua mochila do chão e joga sobre o ombro.
— Não sei se eu posso levar visitantes, então a gente vai
precisar correr daqui até o elevador.
Dou um passo para a frente, mas ele me para. Segurando minha
mão de maneira suave, ele estufa o peito e pisca para mim.
— Relaxa, fica calminha e faz cara de paisagem. Se a gente sair
correndo, todo mundo vai perceber.
Seguro o riso, mas permaneço ao seu lado caminhando devagar
e com o queixo tão erguido quanto o seu.
— Viu, só. Ninguém reparou na gente, e se reparou, devem
achar que você é a namorada exótica do europeu. — Essa parte ele
sussurra com deboche em meu ouvido. Me trazendo para si pela
cintura e me fazendo rir de como é fácil para as pessoas
estereotiparem o relacionamento alheio.
— Você está certo. — O puxo para dentro do elevador quando
as portas se abrem e outro casal nos acompanha, parando à nossa
frente. — Se bem que cê está bem coradinho para o verão Europeu
— implico, e ele morde o lóbulo da minha orelha.
O encaro incrédula, indicando o casal com o queixo, e ele me
entrega o risinho sem vergonha que eu adoro.
— A gente fica aqui — digo quando chegamos ao segundo
andar.
De certa maneira, deixar um elevador bonito, espaçoso e limpo e
sair num andar com carpete macio, parede com textura em tons
pastel e quadros assinados por artistas locais me deixa feliz.
É bom que ele tenha vindo me visitar na corrida que estou
hospedada num lugar bonito. Não que eu estivesse em muquifos nas
outras, seria impossível trabalhar bem tendo noites de sono ruins.
Esse, no entanto, é o único com um pouco mais de luxo.
— A Miyeko está por aqui? — pergunta quando paro na porta do
meu quarto, o último à esquerda num longo corredor de quatro
suítes.
— Ela tá lá em cima. — Gabriel franze o cenho e eu rio. —
Terceiro andar — digo, abrindo a porta.
O quarto está com a janela, que tem vista para a cidade,
fechada, mas a temperatura é amena, bato o olho no aquecedor, 23
graus. Graças a Deus não vou cozinhar aqui como na Itália.
— Pensei que vocês ficavam sempre no mesmo andar. — Ele
nem tenta mais esconder o desdém na voz.
Meu namorado gosta tanto da minha amiga quanto ela dele.
— Só quando dá. Quer beber alguma coisa? — pergunto, me
livrando do meu casaco, mas Gabriel não faz nem menção a tirar o
dele.
— Uma água, Vida — pede, jogando a mochila de lado e se
sentando na cama king size. Abaixo para pegar a garrafinha no
frigobar. — E o Harris?
Me viro com o cenho franzido e, provavelmente, a cara do
desespero, porque ele ri.
— O que tem ele? — Entrego a garrafa enquanto ele bate na
própria coxa para que eu me sente. Abraço seu pescoço, me
aninhando em seu colo, e espero uma resposta.
— Está aqui também?
— Tu acha que eu sou babá do Daniel? — Solto meus braços de
seu pescoço e tento sair de seu colo, mas Gabriel não deixa. — Que
pergunta ridícula.
Franzo o cenho para ele, que me mantém sentada, abaixando
minhas pernas e me equilibrando em sua coxa. E, então, me beija.
Um beijo regado a saudade e... ciúmes. Gabriel me beija como quem
quer marcar território, e eu não consigo continuar com isso.
— E então, o que você veio fazer aqui? — Afasto meu rosto
gentilmente. — Quanto tempo fica? Vou embora amanhã e...
— Eu sei. Tenho o seu e-mail no celular, esqueceu? Sei todo o
seu itinerário — diz, mas dessa vez, sua voz beira a frieza.
— Você não respondeu minhas perguntas. — Tento soar firme,
mas minha voz beira um miado patético.
— Vou responder assim que você me disser uma coisinha... —
Tira o celular do bolso sorrindo, mas seu semblante não transmite
nenhuma paz ou carinho.
É como se ele estivesse furioso, na verdade. Aguardo o tempo
que o aparelho demora para ligar e percebo que é por isso que não
tive nenhuma resposta das minhas mensagens.
— Acho tão bonitinho como você consegue ser sonsa. — Seus
olhos estão nos meus e, mais uma vez, tento me levantar, mas ele
me prende em seu colo com uma mão. — Carol, estou falando com
você.
— Gabriel, o que está acontecendo? — pergunto, ainda
desconfortável em seu colo.
— Foi isso o que eu vim fazer aqui, Vida — diz, empunhando o
celular na minha cara e eu desisto de levantar porque Gabriel é bem
mais forte que eu. — Refrescar sua memória. Isso é o seu primeiro
fim de semana de trabalho. — Ele me mostra uma imagem minha,
montando na grade, com um sorriso no rosto. — Isso aqui, é o
segundo. — Uma foto tirada tremida e sem sentido da entrevista no
GP de Monza, quando Daniel sorria para mim como se eu fosse a
única luz que conseguia enxergar e eu encaro Gabriel confusa.
— Isso é sério? — Respiro fundo, incrédula. — Você tem... um
dossiê das minhas interações com um piloto?
— Não é um piloto, é a porra do seu ex-namorado! — Me
encolho e afasto o olhar do dele instintivamente com o grito. — E
ainda melhora. — Cospe as palavras e vejo pelo canto dos olhos
direito quando ele passa os dedos rapidamente até o print de uma
reportagem. — Você vai olhar ou prefere que eu leia?
O layout é de um site inglês. De fofocas, não de esportes. A
reportagem é uma lista de curiosidades sobre o Daniel e vem
acompanhada de uma pequena entrevista, com três ou quatro
perguntas, mas sei que só uma delas interessa a Gabriel de fato:
“No GP de Silverstone a gente conheceu uma repórter que tirou
os eixos do piloto, hein. O que você pode dizer sobre ela?”
“Ah, não tem nada de mais. Ela é minha amiga de infância,
minha primeira namorada e a vida acabou afastando a gente. É bom
poder conviver com ela novamente depois de tanto tempo.”
— Ótimo. Lido. Mas ainda não sei por que você está gritando
comigo. — Percebo seu aperto mais frouxo em minha cintura e me
levanto. — E realmente não acredito que você atravessou o oceano
pra fazer essa cena de ciúmes por causa do Harris contando uma
vantagem que não faz a menor diferença.
— Caroline, ele está dando a entender que vocês...
— Eu não me importo, Gabriel. — Esfrego o rosto com as duas
mãos, cansada dessa merda. — Há dois meses você estava com
saudades e não podia vir me ver, agora está aqui, sendo um imbecil
por causa de algo que eu não tenho controle.
— Você deveria ter falado para aquele filho de uma...
— Eu falei! — grito, cortando-o. Minha voz sai tão alta que ele se
levanta assustado, tão alta que fico imediatamente sem graça. — Me
desculpa, eu...
— Nossa, você acabou de dizer pra eu não gritar com você e
agora tá totalmente descontrolada e fazendo papel de maluca. — A
risada dele enche o quarto. — Se você está dizendo pra mim que
falou com ele, e que não tem nada a ver, por que tem fotos de vocês
em tudo o que é conta sobre Fórmula 1 no twitter? Tem videozinho
de casal no tiktok... As pessoas acham que tem alguma coisa a ver,
e não é porque eu sou ciumento que elas acham isso, é porque você
está se comportando para que elas pensem, porra! Acorda e assume
postura de mulher comprometida.
— Não vou conversar com você enquanto você não parar de me
tratar como uma vagabunda. — Ele tenta falar, mas eu ergo a mão
esquerda, calando-o. — Não posso controlar adolescentes
fanfiqueiros, não posso fazer nada se o Harris anda por aí falando
que eu sou ex-namorada dele e amiga de infância, porque bem, é a
verdade, não é? Você sabe disso desde que me conheceu. E se for
pra você ficar fazendo tratamento de silêncio e sumindo do celular
quando vir alguma coisa que desagrada a vossa majestade, vai ser
muito difícil manter esse relacionamento funcionando.
— Para de falar merda. — Gabriel não se aproxima, mas me
encara como se eu tivesse afirmado que Piquet foi melhor que o
Senna.
— Estou falando muito sério — sussurro as palavras, mirando o
chão.
— Então você ainda acha que tá certa? — pergunta indignado, e
sou obrigada a olhar para ele.
Como esse homem não percebe que está sendo patético?
— Eu não vou ficar sendo tratada assim por alguém que não
confia nem um pouco em mim — digo e espero uma resposta que
não vem.
Ele pega a mochila do chão e para diante da porta, me lançando
um olhar sem emoção, que arrepia até o último fio de cabelo da
minha alma.
Capítulo 10
Ou: E assim como antes, posso ver que você tem certeza de que pode mudá-lo, mas eu sei que você não vai, o diabo não barganha.

Devil Doesn’t Bargain - Alec Benjamin

Daniel

— É, mas adivinha só, eu também não vou ficar aqui olhando pra
minha namorada, que está se comportando como uma vagabunda,
que acha normal ficar de conversinha com o ex com o argumento de
que “É meu trabalho”, e sim, eu vou sumir quando eu tiver me
sentindo traído.
As palavras ditas em alto e bom português, com uma rispidez
que chamaria a atenção de qualquer pessoa, me param entre o
corredor e o quarto com a maçaneta na mão. Volto o pé direito, que
já estava dentro do cômodo para o corredor, e me atento ao que está
acontecendo na última porta. A mulher não fala nada que eu
compreenda, mas consigo ouvir um choramingo baixo, um pedido
com palavras embaralhadas e a risada que sai do homem em
seguida gela minha espinha.
— Não me vem com essa história de que eu estou me exaltando,
eu já estou exaltado, porra. Quando você lembrar que tem um
homem, você me procura — vocifera, claramente tentando intimidá-
la e, em seguida, puxa a porta, e o barulho que invade o corredor
mostra que ele não teve o menor cuidado.
Entro e fecho a porta. Não quero que ele saiba que presenciei a
cena. No entanto, permaneço alerta. Ninguém saiu dos quartos
quando os gritos cessaram, nenhum funcionário apareceu ainda.
Assim, logo que vejo a silhueta do infeliz passando pela minha porta,
saio do cômodo e vou até a porta de número 6.
Bato sem saber exatamente o que dizer, mas preocupado.
Independente do que está acontecendo, ninguém deveria tratar outra
pessoa daquele jeito, mas quando a porta abre, meu coração gela.
— Pimentinha? — O nome sai dos meus lábios como uma
pergunta enquanto ela desvia o olhar de mim e abraça o próprio
corpo.
A imagem dói, e antes mesmo que eu pense no que estou
fazendo, a puxo para um abraço porque essa é a única reação que
consigo ter a uma Carol tão devastada.
Ela não se afasta nem me empurra e, pelo menos por alguns
instantes, se prende a mim como se eu devesse segurá-la.
Mantenho-a em meus braços como sei que minha Pimentinha ama.
Um braço no meio das costas e o outro na altura dos ombros
enquanto faço cafuné em sua nuca.
Carol quer chorar.
Ela quer muito chorar. Mas não vai. Porque a Carol não é assim
e isso também dói, esse jeito supermulher dela de ser.
No entanto, antes que esse pensamento acabe, a sinto fungar
contra meu ombro. Caroline Pimenta chora de soluçar no meu
abraço, e eu não sei como agir.
— Carol, o que está acontecendo? — sussurro de maneira
branda, para que ela saiba que pode me contar qualquer coisa, mas
que não estou pressionando-a a fazer isso.
Ela nega com a cabeça em meu ombro, como se esse sinal
devesse ser o suficiente, e beijo o topo de sua cabeça ainda fazendo
o cafuné que a relaxa. Permanecemos assim por tempo o suficiente
para que eu sinta falta de tê-la em meu abraço quando ela se afasta.
— Dani... — Carol inspira com um passo para trás. — Eu preciso
muito que você pare. — Franzo o cenho e ela tira as mãos de mim,
limpando o próprio rosto. — Não consigo ser sua amiga, não sei
brincar com você sem que isso tenha um peso muito maior do que
estamos admitindo, não dá pra tentar te encaixar na minha vida
agora. Preciso que você me trate como uma repórter e só isso. Não
alimenta essa coisa de garota dos sonhos, de shipp na internet, de...
sei lá. Só esquece que eu existo, por favor.
Carol morde a parte inferior do lábio e limpa as lágrimas do rosto
enquanto seu queixo treme. A observo por alguns instantes antes de
me dar conta de que esse circo, essa coisa horrível pela qual ela
passou, foi uma crise de ciúmes.
O cara simplesmente atravessou o oceano para humilhar a
namorada por causa de ciúmes.
— Carol, eu juro que não sabia que isso ia te fazer tão mal. Me
perdoa, Pimentinha. — Ergo seu queixo com o indicador com carinho
e cuidado — Realmente não tinha ideia de que ele era... — Um
idiota, um babaca territorialista, um energúmeno sem caráter. Penso
essas opções, mas ela já está mal o suficiente, então não as digo —
Desse jeito... Tudo bem, você não me querer por perto. Tudo bem se
eu não puder mais te ver fora dos circuitos. — Minto, segurando sua
mão direita. Só preciso que ela se acalme. — Mas olha pra você, não
tem a menor condição de eu te deixar sozinha agora. Vamos entrar,
você precisa de um banho, uma água... — Dou um passo para
frente, mas ela me para.
— Do que você tá falando. — Ela joga o cabelo para trás e
checa algo no celular que tira do bolso. — Eu preciso ir atrás do
Gabriel e...
— Não precisa, Carol. Você não precisa. — A corto, porque isso
não faz o menor sentido.
— Você pode tomar conta da sua vida, por favor? — Ela alinha a
postura e me encara com a sobrancelha erguida, apagando a garota
fragilizada que estava na minha frente há segundos. — Para de
achar que sabe o que está acontecendo, porque você não sabe. —
Finaliza, me empurrando.
— Caroline?
— Me dá licença, Daniel. Eu estava de saída quando você bateu
aqui e ainda tenho um lugar para ir.
— Meu Deus, quem é você? — Tento expressar meu completo
choque, mas minha voz não passa de um sussurro.
Carol não responde. Ela bate a porta, passa por mim e me deixa
aqui, parado, no corredor, depois de presenciar uma das cenas mais
absurdas da minha vida.
Me arrasto até o quarto como se carregasse um peso constante
e doloroso, que não consigo ver, mas sei que está lá. Entro jogando
o cartão da porta na minha mesa de cabeceira, o celular na cama e
largo os sapatos pelo caminho.
No banheiro, abro o chuveiro e a água esquenta enquanto tiro a
roupa. Pequenos flashes dos últimos minutos tomam minha mente e,
por mais que eu queira, não consigo não pensar em Carol.
Jogo toda a roupa no chão com uma raiva incomum só de
pensar no jeito que o namorado gritava com ela. Meu estômago
embrulha só de lembrar da minha Pimentinha, afrontosa e irritante,
se tornando tão pequena naquele quarto, quase engolida por ele,
diminuta nas próprias dores. O banheiro é tomado pela fumaça, e o
espelho na minha frente embaça ao mesmo tempo que meu sangue
esquenta.
Arrasto a porta do box para o lado e entro debaixo do chuveiro,
sendo recebido pelo calor escaldante e, por mais que eu tente lutar
contra as memórias, a dor; o medo; a vergonha e a tristeza de Carol
na porta daquele quarto só me fazem voltar até a última semana que
tivemos juntos.

Era a primeira vez que eu ficava mais de um mês sem ver


Caroline, mas ela sabia que era por uma boa causa. Eu estava
correndo. Finalmente tinha encontrado uma boa equipe, o patrocínio
da empresa do meu pai com certeza ajudou, mas eu era bom
naquilo.
De verdade. Como sempre acreditamos que eu seria.
Cheguei ao Brasil numa segunda-feira de manhã. Estava
exausto, tinha voado três horas depois de deixar o autódromo, e
dormir em voo nunca foi meu forte. Mas, assim que saí do aeroporto,
me dirigi para a casa da minha Pimentinha. Morria de saudades dela
e sabia que aquela seria uma semana incrível.
Toquei a campainha e esperei. Não era surpresa, ela sabia que
eu estava chegando, mas quando a porta foi aberta, nem tive tempo
de fazer alguma das nossas brincadeiras. Carol se jogou nos meus
braços e eu a segurei, tirando-a do chão e antes que eu pudesse
dizer qualquer coisa, Carol me roubou um selinho.
— Meu Deus, Novato, que saudade! — gritou enquanto eu a
colocava no chão. — Achei que você não ia chegar antes da minha
hora de sair.
— Tá brincando, Pimentinha? Se eu passasse mais uma hora
sem te ver, meu coração pararia com certeza — rebati, puxando-a
para um beijo.
Ela quase resistiu. Estávamos na varanda da casa e os vizinhos
podiam facilmente nos ver se quisessem. No entanto, a saudade que
sentíamos falou mais alto. Eu não era tão presente quanto gostaria,
não a via tanto quanto queria e sentia que não demonstrava meu
amor tanto quanto deveria. Por isso, quando estávamos juntos, eu
tentava fazer cada segundo dos nossos beijos expressarem amor,
carinho e saudade.
Tenho certeza de que, ao menos naquele dia, consegui transmitir
a ela tudo o que eu desejava, porque quando nossos lábios se
tocaram, eu a senti mais perto; quando segurei em sua nuca
aprofundando o beijo, o som de ouvi-la respirando mais fundo quase
me fez delirar e, sentindo seus dentes em meu lábio inferior, tive
certeza de que poderia beijá-la para sempre, de que deveria fazer
isso.
Nos encostamos na parede atrás dela e conseguimos deixar a
afobação de lado e se entregar para o momento.
O momento de estar com a nossa pessoa favorita no mundo
depois de semanas, que pareceram anos. Ter Carol em meu abraço,
afagar seu cabelo, sentir o gosto de seu beijo... Tudo isso era como
provar um pedacinho do céu.
Seus lábios tinham sabor de casa, os braços ao redor da minha
cintura traziam a sensação de que haviam sido criados para me
abraçar e o sorriso que ela dava, quase sempre, no beijo, me fazia
ter certeza de que ela era meu paraíso pessoal.
— Vamos entrar? — Carol afastou meus lábios de seu pescoço
gentilmente e me encarou como se quisesse dizer que eu estava
passando dos limites. Sorri a contragosto e esperei que ela entrasse
na casa para dar um tapa em sua bunda.
— Você é doente? — Ela gargalhou, se virando para mim. —
Sabia que a Sofia tá em casa?
— Sabia. — Puxei Carol para mim novamente, porque era
impossível estar com ela e não ficar perto dela. — Mas eu suporto
uns esporros pela mulher que eu amo. — Pisquei para ela, que
revirou os olhos, mas riu de canto.
— Para de querer me seduzir, Novato. Vamos subir, preciso
terminar de arrumar as coisas para a faculdade.
Carol se virou e eu a segui.
Como sempre foi.
Como era para ter sido para sempre.
Ficávamos juntos todas as manhãs, tardes e fins de noite. E,
contanto que eu estivesse em casa quando o senhor Fernando
Torres chegasse do trabalho e só saísse depois de jantar com ele,
meu pai não reclamava. Afinal, meu papel de “filho de milionário que
esperava o pai chegar em casa para ouvi-lo falar sobre coisas que
não me interessavam enquanto fingia que não tinha uma vida ou
coisas para contar também” eu estava cumprindo com louvor, e isso
era o suficiente.
Passar a semana com Carol não era só bom, mas também me
revigorava. Não como se ela fosse o lugar onde eu recarregava
minhas energias, mas como se eu tivesse passado tempo demais
longe de onde realmente pertencia. Todos os dias, eu ficava com ela
até a hora da faculdade, a levava até o prédio e a buscava no fim da
noite. Íamos para algum lugar aleatório como uma lanchonete, um
bar perto da praia ou até o heliponto do prédio da empresa do meu
pai para ficar observando as estrelas e fazendo planos para o futuro.
Foi na quinta, nosso segundo dia no heliponto, que eu senti que
alguma coisa estava errada. Assim que o segurança levou a gente
lá, ela se sentou no parapeito, fazendo meu peito, literalmente, parar.
— O que você tá fazendo, Pimentinha?
— Eu vou sair de casa. — O meu choque foi tanto que não tive
reação. — Consegui achar um quarto num apartamento perto da
faculdade, Sofia e Carlos já disseram que me ajudam. Estão loucos
para me ver longe mesmo. — Carol forçou um sorriso de desdém.
— Você tomou essa decisão do nada? — Minha pergunta fez
com que Carol virasse o rosto em minha direção, ela me encarou
quase segurando o riso.
— Você sabe muito bem que eu queria ter alugado um lugar com
a Laís no fim da escola. Mas ela arrumou esse intercâmbio e isso
acabou me deixando sem saída. — A tristeza que a frase carregava
quase me surpreendeu.
Quase, porque Carol não ligava muito para o jeito dos pais. “Eles
são diferentes”, ela dizia, e isso geralmente encerrava o assunto.
Mas, naquele dia, era como se Carol tivesse chegado no ponto mais
alto e se sentado num lugar do qual eu nunca me aproximaria para
mostrar como ela se sentia.
Ilhada.
Sozinha.
— Você sente falta dela, né?
— Um pouco, mas às vezes sinto que tô me tornando um peso
pra ela, daí prefiro ficar na minha.
— Mas vocês são melhores amigas, certo? — Ela assentiu —
Nós somos melhores amigos e você jamais seria um peso pra mim,
Pimentinha.
— Você não vai falar nada sobre a minha mudança?
— Vou. Mas depois. — Se olhar inquisidor encontrou o meu. —
Porque eu estou te sentindo extremamente triste e não gosto de te
ver assim.
— Vai passar, Novato. Sempre passa — Ela suspirou, desviando
o olhar.
— Por que você não me disse nada antes, que ia se mudar, que
está se sentindo um peso pra Laís... Você está guardando alguma
coisa sobre mim também? Pode dizer, eu estou aqui com você —
perguntei porque eu senti, senti que algo estava muito errado.
Não apenas com ela, mas com a gente.
— Eu sinto sua falta — respondeu, dando de ombros. — Mas
isso você já sabe.
Carol não olhou para mim ao dizer as palavras, ela mirava o
horizonte e a luz da lua emoldurava seu perfil com o Rio de Janeiro
de fundo.
Era como se ela fosse arte. O tipo mais triste e belo de arte.
— Sinto sua falta todos os dias, o tempo todo. Morar longe de
você tem sido uma tortura maior do que eu achei que poderia
suportar. Pensar em ficar mais três anos sem você me deixa sem
chão. — Dividi meus pensamentos com ela para que Carol soubesse
que poderia fazer o mesmo. — Eu acordo quatro horas antes de
você e durmo quando você ainda tá na aula. Eu nunca posso gastar
o fim de semana com você numa chamada, nunca tenho tempo para
assistir a um filme com a minha namorada no fim de domingo e tudo
isso me machuca, porque eu sinto que já não sou o seu Novato, que
não sou bom o suficiente para você.
— Para de show, Novato — Carol disse, em alto e bom tom. — A
gente sempre soube que seria assim, agora anda, me ajuda a descer
daqui.
Dei três passos até ela, ajudando-a a descer. Carol passou os
braços pela minha cintura e entrelaçou os dedos nas minhas costas,
ela sorriu para mim como se estivesse vendo a coisa mais bonita do
mundo, mas as lágrimas dançavam em seus olhos e meu coração se
apertou.
E ali estava ela, a coisa mais preciosa da minha vida, de pé, com
o brilho do sorriso contrastando com o brilho das estrelas ao fundo,
com os cabelos voando dentro dos braços do Cristo Redentor e a cor
da pele emoldurada pelo mar.
— Você é linda. — As palavras voaram de mim, não era como se
eu quisesse dizer, era como se fosse impossível não fazê-lo. —
Apesar dos seus pais, você é amada. Você é preciosa demais,
Pimentinha. — A puxei para perto, inspirando seu pescoço e subindo
minha mão até os seus cabelos, afagando sua nuca. — Carol eu... —
Abri a boca para dizer algo, mas as palavras simplesmente não
saíram.
Estávamos juntos, abraçados e tão próximos que meu coração
conversava com o dela.
Mas a sensação era de que havia um abismo entre nós.
— Eu te amo. — Carol conseguiu falar antes que eu recuperasse
as palavras. Eu queria dizer que sabia que precisava ser um
namorado melhor, eu pediria desculpas, eu diria que seria mais
presente. — Não sei como as coisas serão amanhã, mas eu te amo
muito hoje. — Ela disse, e meu coração rachou.
— Eu não tenho um amanhã sem você, Pimentinha.
— Mas eu vou ser a sua Pimentinha para sempre. — Pude ver
em seus olhos que ela estava falando a verdade. Aquele era o seu
juramento.
Que ela selou com um beijo.
Febril.
Profundo.
E doloroso.
E a brisa intensa da noite de outono do Rio de Janeiro nos
abraçou enquanto eu a sentia sangrar em meus braços.
— Tá tudo bem, Pimentinha? — perguntei, ainda abraçado a ela,
e Carol se afastou.
— Está tudo uma merda, Novato. — Eu esperava por algo
negativo, mas a exaustão na resposta me surpreendeu. — Eu sei
que você, a Laís, a Sofia e o Carlos me amam muito. Eu sei, de
verdade. Mas tem dias que eu acordo e é só... Como se eu não
tivesse ninguém. Como se eu não fizesse diferença pra ninguém. —
A fala dela doeria de qualquer jeito.
Mas doeu muito mais porque ela me comparou com os pais, que
nunca estiveram lá por ela. Eu não queria ser essa pessoa. Decidi,
naquele momento, que minha volta para a Inglaterra traria um novo
momento, eu me esforçaria mais, acordaria mais tarde e dormiria
mais tarde, treinaria de madrugada para ter mais tempo com ela, me
dividiria entre dois fusos, mas eu seria bom para a minha Pimentinha
como ela era para mim.
— Tem dias que eu só... Não tenho pai, não tenho mãe, não
tenho melhor amiga, não tenho namorado...
— Claro que você...
— É um período de transição, eu vou conseguir lidar com ele
logo, só... — Ela fungou, mirando o chão. — Alguns dias são mais
difíceis que outros.
— Carol, olha pra mim — pedi, mas ela não conseguiu. — Carol,
por favor. — Ela se afastou aos poucos e me encarou. — Você não
pode fazer isso. Não pode segurar essas coisas, não pode esperar
até estar mal nesse nível pra dizer algo. — Minha Pimentinha
assentiu, como se quisesse que eu calasse a boca, mas eu ainda
não tinha terminado. — Não pode agir como se estivesse sozinha
porque você não está, meu amor. Eu sei que eu tenho sido um
namorado de merda, mas eu vou fazer o possível e o impossível pra
isso mudar.
— Eu estou bem, Novato. Vai passar — ela me garantiu.
Mas não passou.
Sexta-feira era a minha última noite no Brasil e a convidei para
fazermos um dos nossos passeios favoritos: ir a um parque de
diversões. Meu pai detestava que eu ficasse horas circulando pelo
Rio de Janeiro, à noite, num parque público, por isso fechou o
parque mais pomposo da cidade.
Escolhi aquela noite para deixar claro o quanto Carol era
importante para mim. Desde o primeiro segundo, tentei fazer o
possível e o impossível para que ela se sentisse especial.
Entre ursinhos espalhados pelos brinquedos e balões de coração
com o nome dela pendurados na barca, carrocinhas de pipoca e
churros só para nós dois, disse que a amava mais vezes do que sou
capaz de lembrar. Beijei seus lábios, morei em seus olhos e tinha
certeza de que estava tocando seu coração.
Nos últimos minutos da noite, saímos do autopista e fomos para
a Roda Gigante aproveitar o fim da nossa noite observando o Rio de
Janeiro do alto.
Assim que nos sentamos e o operador deu a partida, tirei meu
último presente da noite do bolso e a entreguei.
— Mais presente não, Novato. Eu não trouxe nada pra você. —
Carol me olhou como se eu estivesse sendo injusto, mas dispensei
seu lamento com a mão e um cheiro no cangote e ela sorriu
enquanto abria a caixinha. Vi seu olhar se acender e então apagar
antes que ela voltasse a olhar para mim. — É linda. — Carol segurou
o colar com o pingente de uma pequena pimenta no ar.
— Como você.
Estávamos no topo da cidade, mas qualquer lugar ao lado dela
era como o topo do mundo.
— Obrigada, Novato. — Carol beijou meu rosto e segurou o
coque frouxo no ar para que eu o colocasse nela.
Depois disso, descansou em meu abraço, observávamos a
cidade em silêncio e meu coração batia tão rápido que eu tinha a
impressão de estar ouvindo-o.
— Carol, posso te dizer uma coisa? — perguntei na segunda vez
que a Roda Gigante parou no topo, era a minha deixa para entender
que nosso tempo estava acabando.
— Claro. — Ela se afastou o suficiente para me encarar.
— Eu sei que a gente é novo, que ainda temos a vida inteira pela
frente e blá-blá-blá, mas tenho certeza de que você é a mulher da
minha vida desde o dia que me acusou de roubar sua agenda. —
Mesmo com a tensão que pairava no ar, foi impossível não rirmos. —
Então, por favor, eu sei que as coisas estão difíceis, mas a gente vai
dar um jeito. — Exalei o ar balançando as pernas, tentando organizar
minhas ideias, mas Caroline me beijou.
Eu ainda tinha coisas para dizer, promessas para jogar no ar e
pedidos para fazer, mas ela me beijou tão intensamente que não
pude não corresponder. Suas mãos entravam pela minha blusa, as
minhas bagunçavam seu cabelo, nós dois gemíamos no beijo e me
arrisquei até a subir a mão pela sua coxa.
Então a roda gigante voltou a andar. O barulho nos dispersou e
nós dois encaramos o horizonte depois disso. Como dois
adolescentes sorrateiros brincando com as linhas do limite.
Só voltei a olhar para Caroline quando chegamos ao chão, meu
risinho safado de quem estava, talvez, até cogitando estender aquela
noite se esvaiu quando avistei o rosto dela, debulhado em lágrimas.
— Pimentinha o que aconteceu? — perguntei, ainda sentado no
brinquedo.
O som da trava se soltando chegou até nós e Carol desceu,
andando rápido. Fui atrás dela depois de agradecer ao operador do
brinquedo.
— Caroline — gritei seu nome em desespero, porque ela não era
de chorar e aquilo estava de assustando. Carol parou no meio do
caminho, em direção à saída. — O que está acontecendo? —
perguntei ainda correndo até ela, que finalmente se virou.
—  Eu te amo, Novato — disse como um lamento. — E quero
que você suba no topo do mundo, mas não posso me colocar nesse
lugar. Não posso fingir que está tudo bem namorar uma pessoa que
só vejo às vezes e só falo pelo telefone quando dá, porque não está.
— As lágrimas corriam livremente pelo seu rosto. — Não posso agir
como se você me dar uma noite incrível dessas uma vez por
semestre fosse o suficiente, porque não é.
Caroline disse e foi embora. Não me dando a chance de explicar,
de pedir, de implorar.

Ela terminou comigo no nosso lugar favorito no mundo porque


não queria manter um relacionamento a distância. Mas agora está
por aí, se humilhando por causa daquele energúmeno.
Saio do box me dando conta de que estar trancado num
banheiro sofrendo pela garota que terminou comigo do nada não
pode ser a minha nova rotina.
Não vou deixar Caroline Pimenta desgraçar minha cabeça.
De novo.
Pensar em resolver as coisas entre a gente parecia impossível
para ela, mas se tornar uma pessoa que ela não é para estar com
um cara que nunca conseguiria lidar com a Carol de verdade é
possível?
Esperar por mim era ser a garota escrota que vive a vida em
torno do namorado, por ele é preservar o relacionamento?
Estar comigo era difícil, com aquele imbecil, é fácil?
Lutar por nós não fazia sentido, correr atrás dele depois de ser
humilhada, faz?
Que se dane então, ela não é mais problema meu.
Capítulo 11
Ou: Como chegamos até aqui? Eu achei que te conhecia tão bem.

Decode - Paramore

Carol
Poucas vezes na vida me odiei tanto quanto agora.
Abrir aquela porta, dar de cara com Daniel e me jogar nos braços
dele já seria um problema se minha motivação fosse a tristeza e
desamparo que encheram meu quarto depois da partida de Gabriel.
Ter feito isso por saudade foi ainda pior.
Sentir o toque do meu Novato, quente, terno e carinhoso, me
transportou no tempo e espaço para um local que eu costumava
chamar de meu lugar favorito no mundo. Tê-lo me consolando
encheu meu peito de uma paz quase desconhecida, e descansar
com os braços ao redor dele me carregou até um lugar que há muito
tempo tenho evitado e tentado esquecer, um que costumava chamar
de casa.
No segundo em que abri a porta, tinha esperanças de que fosse
Gabriel. Queria que meu namorado, meu amor, pessoa com quem
tenho contado há anos, tivesse se arrependido de falar comigo como
falou. Até mesmo de olhar para mim como se eu fosse suja, ou uma
vagabunda, como ele mesmo disse no final. Mas, no fim das contas,
não era o Gabriel.
Perceber aquelas reações tomando conta de mim nos braços de
Daniel, como se fosse algo natural, me levou à beira do desespero.
Por isso, mesmo que eu queira dizer que larguei Daniel no hotel
e estou sentada num banco, às margens do rio Danúbio, com Gabriel
porque deveria ter vindo atrás do meu namorado, seria mentira.
Dizer que corri atrás dele e pedi, por favor, para que Gabriel
conversasse comigo porque entendeu tudo errado com o intuito de
as coisas ficarem bem novamente, também seria.
A verdade é que liguei desesperada para o Gabriel, perguntando
onde ele estava e se a gente podia conversar, porque não sabia
como lidar com tudo o que senti enquanto os braços de Daniel me
sustentavam.
Me afastei de Daniel porque a proximidade dos nossos corpos
queimou minha pele, me fazendo pensar em como com ele as coisas
eram diferentes. Fugi daquele quarto porque odiei o quanto me senti
compreendida. Passei por Daniel resmungando de maneira
arrogante porque o alívio que tomou meu corpo inteiro quando ele
me abraçou é injusto comigo.
Corri escada abaixo, sem a menor intenção de ficar esperando
pelo elevador para descer dois andares, porque não conseguiria
mais estar tão perto do único lugar ao qual realmente pertenci e não
desejar voltar no tempo.
Caminhei oito minutos até o rio Danúbio, ponto turístico que
corta a cidade, porque Gabriel me pediu para encontrá-lo aqui e
porque precisava tentar, de todas as formas, acertar as coisas entre
a gente. Perder Gabriel nesse momento seria doloroso e
transformaria meus sentimentos em uma salada feita apenas de
frutas azedas.
Mas, mesmo agora, me assusta piscar e, pelos milésimos de
segundo que minhas pálpebras se fecham, visualizar o desespero
que tomou os olhos de Daniel quando abri aquela porta e o vi se
dando conta de que a pessoa no quarto era eu.
Sentada num banquinho de maneira, tremendo de frio à beira do
rio, não tiro os olhos de Gabriel. Espero que ele diga algo, me
esforçando para ignorar meu coração, que continua batendo
desesperadamente em meu peito, como se precisasse voltar quinze
minutos no tempo e reencontrar a paz.
Mas eu o ignoro, porque é mentira. A paz que te preenche e diz
que, independente do que aconteça, você está segura,
simplesmente, não existe.
— Você veio aqui ficar olhando pra minha cara? — Gabriel
pergunta por fim, e cruzo os braços antes de responder.
— Vim saber se você já está mais calmo.
— Calmo? — O risinho zombeteiro responde por si só — Não
tem como ficar calmo com uma coisa dessas, Carol. — Gabriel vira o
corpo todo de frente para mim, deixando sua perna esquerda
descansar no banquinho de praça no qual estamos sentados. — Eu
tô sendo feito de palhaço diante do mundo todo...
— Gabriel, para — corto-o, me virando de frente para ele
também. — Você está criando uma situação absurda. Eu trabalho
com o Daniel, converso com ele, o vejo quase toda semana, e você
vai ver a gente interagindo, sim. Ponto. É o meu trabalho. — Observo
a fumaça da minha respiração no ar, ciente de que Daniel mexe
comigo, mas também de que isso nunca seria o suficiente para me
fazer trair meu namorado.
— A questão não é essa, Carol — ele tenta falar, mas nego com
a cabeça, erguendo o indicador e prossigo:
— Gabriel, estou tentando entender por que você prefere confiar
em página de fofoca do que em mim. — Engulo em seco antes de
concluir porque queria que Gabriel soubesse que eu nunca, nunca
faria isso com ele. — Por que precisou atravessar um oceano para
me humilhar, ao invés de fazer uma chamada de vídeo e me
questionar?
O vento frio corta o ar entre nós e observo Gabriel expirar
lentamente, acompanho as linhas de sua respiração no ar enquanto
espero uma resposta.
— Sabe o que acontece, Vida? — A pergunta retórica vem
depois de um bom tempo. — Quando cheguei na sua vida, você era
a porra de uma menininha triste e boba. Quando você foi humilhada,
o que eu fiz com você lá em cima foi só um namorado expressando
seus sentimentos, humilhação foi o que você passou na época da
faculdade.
— Você acha realmente que o que você fez foi algo normal? —
questiono segurando o riso.
— Ah, para, Carol — Gabriel diz firme, mas sem nenhuma
alteração na expressão ou no tom de voz e continua o raciocínio que
eu interrompi: — Quando você foi escorraçada, era eu quem estava
lá, fui eu quem segurou sua mão. Quando seus pais não se
importaram com o que fizeram com você, eu fui a única pessoa que
ficou do seu lado. — Odeio que ele fale sobre isso. Odeio ainda mais
não conseguir esquecer. Miro o rio a minha frente para não precisar
olhar nos olhos dele enquanto as lembranças dos piores meses da
minha vida me invadem. — Não vem falar pra mim de humilhação,
Carol Pimenta. Porque você sabe muito bem o que é ser humilhada,
e eu não fiz isso com você — finaliza com o indicador em meu
queixo, puxando meu rosto para si, e eu odeio que ele me trate como
uma criança.
— Para, Gabriel. — Abaixo seu dedo, e ele guarda a mão no
bolso do sobretudo bufando de raiva.
— Então quando eu perguntar pra você se você pode se manter
afastada da porra do frouxo que nem percebeu o quão mal você
estava, eu espero que você diga sim. Quando eu pedir pra você dizer
aquele... pilotinho de merda que tem um compromisso e colocá-lo no
lugar dele, espero que você seja grata o suficiente pra fazer o que
estou pedindo. Não adianta dizer que me ama se nem consideração
por mim você tem.
Me mantenho observando o rio e foco minhas forças em não
chorar. Descendo a perna do banco, observo a noite gélida nos
envolver. O tempo passa, mas ele não cura merda nenhuma.
Algumas cicatrizes, por mais antigas que sejam, sempre vão doer
quando pressionadas.
— Carol? — A pergunta é urgente, como se ele esperasse e
merecesse uma resposta.
— Eu não acredito que você está jogando isso na minha cara. —
É tudo o que consigo dizer.
— Não estou jogando nada na sua cara, Vida. Só estou falando
que essas coisas aconteceram. — Gabriel apoia a mão direita na
minha perna, mas a afasto.
— Então tudo bem. Você não me humilhou — digo, determinada
a mudar de assunto. — Mas você acha certo o que você fez? —
Volto a encará-lo.
— Eu me exaltei, Carol. É isso o que você quer ouvir?
— Não. O que eu quero ouvir é um pedido de desculpas.
— Se eu pedir agora, não vou estar sendo sincero.
Meneio a cabeça e me resguardo o direito de ficar em silêncio.
Às vezes, a honestidade dói. Me sentiria menos estupida se ele
tivesse pedido desculpas e ponto.
— Posso te fazer uma pergunta, Vida? Você vai ser sincera? De
verdade? — Assinto sem encará-lo — Carol, por favor, não mente
pra mim.
— Gabriel, faz a pergunta. — Jogo a cabeça para o lado e
espero.
— Você gosta dele?
Meu Deus, lá vem ele com o Daniel.
Estou a cinco passos de me jogar nesse rio.
— Não — respondo sem demonstrar minha vontade de sumir.
— Você sente falta dele?
— Alguns dias sinto falta do que ele representava no meu
passado. — Entrego a honestidade que ele tanto quer. — Mas não
sei se é dele ou daquela Carol que tenho saudades.
— Você se sente... sexualmente atraída por ele? — A pergunta
me assusta.
Não faz sentido meu namorado perguntar se sinto vontade de
transar com um cara que eu não via há cinco anos. Mas o medo da
resposta no olhar de Gabriel e o jeito que ele se inclina para frente
com a sua voz tão baixa que poderia ser um sussurro me assusta
ainda mais.
Quando ele perguntou se eu gostava do Daniel e se sentia falta
dele, o olhar trazia o temor de um ego ferido, mas agora parece que
se eu disser sim, a vida dele vai acabar.
— Às vezes eu fico desconcertada perto dele, mas não acho que
seja atração. A gente não, você sabe, nunca evoluímos para nada
mais... — Que situação patética, a única parte de mim atraída por
Daniel é minha mão, que está sempre pronta para agredi-lo.
— Nunca engoli essa história de vocês não terem transado,
Caroline — ele diz, me fazendo arregalar os olhos. — Qual é, vocês
tinham dezoito anos…
— Gabriel, cala a boca. — Controlo a minha voz e respiro fundo.
— Eu era o quê? Obrigada a transar porque fiz dezoito anos? Isso é
o quê? Noite do baile de colégio americano?
— Vocês estudaram num colégio americano — rebate, me
fazendo revirar os olhos.
Nós, de fato, estudamos. E isso talvez tenha sido o que fez com
que a gente não transasse. Era como se, ao fazer dezessete, todo
mundo precisasse transar para concluir o ensino médio. Mas eu e o
Daniel não caímos nessa pilha. Naquela época, pensávamos que
ficaríamos juntos para sempre, e se você vai ficar com alguém a vida
toda, não precisa ter pressa.
Éramos adolescentes, obviamente os hormônios também nos
pressionavam, e as coisas até começaram a evoluir, só que eu só
senti que estava pronta quase que ao mesmo tempo em que tudo
desandou, quando Daniel foi embora. Então, não, não fui a garota
sonhadora que perdeu a virgindade com o primeiro amor. Mas
também não fui a que transou por pressão. Fui a garota comum que
transou porque isso ajudaria a melhorar as coisas no
relacionamento.
— Você foi, literalmente, o cara que tirou minha virgindade, e
teve todas as provas necessárias — digo, tremendo não pelo frio,
mas pela vergonha.
— Você tá certa — diz, como se tivesse magicamente se
lembrado da nossa primeira vez. — Eu não devia ter te questionado
sobre isso.
— Não, não devia.
Gabriel me estuda por alguns segundos que se tornam minutos e
permaneço em silêncio. A luz da lua reflete em sua pele clara e
avermelhada pelo vento frio. Ele está chateado, óbvio que está, e
tudo bem se sentir assim. Mas a forma que me tratou me feriu de um
jeito diferente, pequeno e quase imperceptível, mas doloroso.
Como uma cutícula retirada de maneira errada, que deixa um
machucado com o qual a gente para de se importar depois de um
tempo, e só lembra da ferida quando espreme um limão. Ou como
aquelas pequenas peles no cantinho do dedo que a gente se propõe
a arrancar. Quase sempre, isso dá muito errado e ao fim do processo
estamos com uma ferida enorme. Só que, nesse caso, é como se ele
tivesse colocado meu dedo esfolado num pote de sal.
— Eu te amo pra caramba, Carol. Quando você chegou na
minha vida, eu também era um garoto perdido. — Sua mão chega à
minha face e acaricia a bochecha direita, me fazendo encará-lo. —
Eu não tinha ninguém, e você apareceu, transformando tudo.
Mudando minha vida para melhor, então eu tenho medo... Muito
medo de perder você. Mesmo que eu tenha a vida dos sonhos hoje,
você ainda é parte essencial dela. — Toco sua mão, tirando-a do
meu rosto, mas a seguro em meu colo.
— Você sabe que me sinto igual. — Curvo o canto esquerdo da
boca.
— Quanto tempo você acha que aguenta o frio desse lugar?
— Frio? Eles chamam isso de verão. — Rio com a inocência. —
Mas um bom tempo, estou amando trabalhar aqui. De verdade. Era
um sonho pra mim, então...
— E a grana, quanto tempo você acha que consegue ficar na
correria sem pegar dinheiro com seus pais? — A pergunta carrega
um deboche leve e eu limpo a garganta antes de responder.
— Não é algo que eu pense. Gosto de viver do meu trabalho,
eles têm dinheiro, se eu precisar de dinheiro amanhã, eles me
mandam. — Rio com o absurdo da pergunta. —  Mas vivo bem com
o que ganho, não é uma vida de herdeira, mas viver de um trabalho
que eu amo precisa ser responsabilidade minha no fim das contas,
né? — Encolho os ombros.
— Fico feliz. — Gabriel não esboça emoção ao dizer isso, e
quase questiono se ele fica mesmo, mas não quero mais brigar essa
noite.
— Quando você volta pro Brasil? — Tento trazer um ar mais
leve. — Como foi essa loucura de comprar passagem?
— A gente pode conversar no hotel? — Ele pergunta com sua
mão correndo até a minha. — Eu pego um quarto lá se não quiser
me esconder no seu.
— É domingo de corrida, Gabriel. Não vai ter quarto disponível.
O que a gente pode fazer é adicionar você como hóspede por uma
noite.
— Tipo pedir pra adicionar uma cama?
— Isso, só que sem a cama. — Estendo a mão para ele, como
uma bandeira branca e, quando ele a pega com um pequeno sorriso,
sei que estamos bem.
Fazemos o trajeto de volta até o hotel, só paramos uma vez,
para ver o monumento “Sapatos à beira do Danúbio”, que se
caracteriza como metros de sapatos de chumbo presos ao chão. O
monumento é em memória aos judeus mortos pela milícia Cruz de
Ferro, que basicamente seguia as ideias de Hitler. Observando os
sapatos no chão, grandes e pequenos, percebo que essa é a forma
sutil de eles deixarem explícito que crianças também eram mortas
aqui. Respiro fundo sentindo os olhos encherem de lágrimas, mas
não as derramo.
Sinto que se começar a chorar agora, não vou parar nunca mais.

Adicionar Gabriel à minha reserva não demorou e nem deu


trabalho, aguardar o funcionário do hotel levar sabonetes novos e
toalha limpa para ele tomar um banho também não. Mas esperar
Gabriel sair do banheiro e se deitar ao meu lado levou uma
eternidade.
— E então, vamos conversar sobre essa sua visita? — digo no
segundo que ele se deita, me encoxando e cheirando meu cangote.
— Amanhã — Gabriel diz me virando. — Agora quero terminar
de me reconciliar com a minha mulher — avisa, aproximando os
lábios dos meus.
— Por que parece que você não quer falar sobre esse assunto?
— Seguro seu rosto a centímetros do meu por tempo o suficiente
para ele rir de canto e semicerrar os olhos de maneira divertida.
— Porque eu não quero, ué — pontua com um beijo em meu
ombro direito. — Tô com saudade de você — Então vai até o
esquerdo —, do seu beijo — Seus lábios pousam no meu pescoço
agora e eu perco toda a compostura —, do seu cheiro... — Sussurra
ao pé do meu ouvido, e eu seguro seus cabelos, trazendo sua boca
até a minha.
Descanso meu corpo no colchão e, através do toque de Gabriel,
sinto a tensão se esvair enquanto ele me beija com calma e
necessidade; carinho e vontade e cuidado e paixão.
Como qualquer casal, nós temos problemas. Mas, apesar de
hoje as coisas terem saído um pouco do controle, me permito relaxar
nos braços do meu amor. Se tenho alguma certeza, é a de que, pelo
menos aqui, encontramos a solução sempre que precisamos.
Capítulo 12
Ou: Ela já sabia que o amor não existia. Por isso, tratou de inventá-lo.

Ela já que o amor não existia - Juliana Simonetti (Poema)

Carol
Enquanto o alarme afasta o silêncio do quarto, Gabriel
espreguiça ao meu lado. O barulho cessa, e logo o toque de seus
dedos chega a minha cintura, me puxando para perto. Meu corpo se
deixa levar pelos braços firmes que eu tanto amava, mas minha
mente permanece onde está.
No fato de que eu não dormi.
Diferente de todas as outras vezes, Gabriel me trouxe para a
cama e isso não resolveu nenhum dos nossos problemas. Minha
garganta continua arranhando quando penso nele me chamando de
vagabunda. Meu peito ainda dói com a sensação de ser descartada
que se apossou de mim quando me vi sozinha nesse mesmo quarto,
e meu coração definitivamente não acredita que ele jogou os piores
meses da minha vida na minha cara em nome dos ciúmes de um
homem que eu não via há cinco anos.
Durante os momentos que dividimos e até depois de Gabriel
dormir, vi a certeza do “encontramos a solução sempre que
precisamos” se dissipando pelo quarto, e eu não tinha o menor
controle sobre isso. Não era como a areia contida numa ampulheta
que você direciona para onde quer, era como grãos que se dissipam
em uma tempestade no deserto.
Talvez o amor não resolva as coisas por si só, talvez sexo e
amor não sejam apenas coisas diferentes, mas também
independentes. Porque mesmo que o sexo tenha sido sensacional,
eu sentia que o amor não estava aqui.
Não estava em Gabriel, não estava em mim, não estava em nós
dois juntos, não estava no quarto, não estava em canto nenhum.
E eu tentei.
Tentei várias e várias vezes encontrá-lo.
Mas era como se as areias da certeza dissipada pelo quarto me
sufocassem. Talvez o amor não compactue com pessoas quebradas
tendo seus pedaços ainda mais partidos por quem diz amá-las,
afinal.
— Bom dia, meu amor — digo. A tentativa de resgatar o
significado dessas palavras é, no mínimo, falha.
— Bom dia, mulher insaciável. — Gabriel beija a curva do meu
pescoço. — Dormiu bem? — Ele sobe em mim, mas minha única
intenção é fugir daqui.
— Uhum. — Jogo-o de volta na cama. — Encontro a Miyeko no
restaurante em duas horas, você tem voo de volta? — pergunto me
levantando e indo até o armário do outro lado do quarto.
— Tenho, sim. Você não pode remarcar com ela e tomar café
comigo? — pede, e eu teria rido dessa implicância em outra ocasião.
— Você só voa à noite, né?
— Fim da tarde. E você? — Corro os olhos pelas roupas que
ainda tenho limpas e tiro um moletom e uma camiseta do cabide.
Está frio e eu preciso trabalhar, essa dupla está ótima.  — Voo pra
fora da Europa é um processo bem demorado. — Me volto para ele.
Deitado de cueca boxer preta, as pernas cruzadas, sem camisa e
com os braços atrás da cabeça.
É difícil lidar com um homem que sabe que além de padrão é
gostoso, porque caminhando pelo quarto agora, sei que em qualquer
outro momento pularia em cima dele e nós pediríamos café na cama.
Mas não hoje.
Hoje, pisco para Gabriel e me recosto na porta do banheiro
enquanto ele responde.
— Não, relaxa. Meu voo sai quase uma da tarde e ainda são oito
da manhã — diz, encolhendo os ombros. — Podemos tomar café
antes do checkout.
— Não faço checkout agora. Meu voo é bem tarde, então a
gente pegou uma diária a mais para trabalhar nas coisas que
entregamos hoje. — Abro a porta atrás de mim e entro. — Vou tomar
um banho pra gente descer. Miyeko marcou comigo lá às dez da
manhã, então deve estar no quinto sono agora.
— Perfeito, Vida.
Fecho a porta e finalmente posso respirar de novo. Encaro a
Carol do espelho e, apesar de ela parecer preocupada, não
demonstra nem metade das minhas dores. Fico grata por isso, expor
a confusão que eu estou não seria bom para ninguém.
Entro no box desejando tomar o banho mais demorado da
história e querendo que Gabriel vá embora. Tenho que falar com
Laís, preciso conversar com Laís. Não sei o que está acontecendo
comigo e esse é um dos momentos que só uma melhor amiga pode
solucionar.
Deixo o chuveiro pronta para vestir minha melhor cara de
paisagem, entro nas roupas que peguei num pulo, prendo o cabelo
num coque e saio do banheiro.
Gabriel está de pé ao lado da cama organizando sua mochila,
ele ergue o rosto para me jogar um beijo e volta a atenção para a
bolsa em seguida, e eu o observo.
Tão fofo, tão carinhoso, tão organizado, tão bom para mim.
Mas, ao mesmo tempo, tão grosso, tão descontrolado, beirando
o agressivo, tão... desconhecido.
Um calafrio corta minha espinha e desencosto do batente da
porta.
— Hora do banho, deixa que eu guardo as roupas — digo,
depois que ele já dobrou tudo.
— Não bagunça tudo, Vida. Pelo amor de Deus — pede, com as
mãos na cintura.
— Pode deixar, anda, vai se banhar.
Gabriel passa por mim me puxando para si e, com um selinho,
se vai.
Observo as roupas que ele trouxe. Três blusas, uma calça, um
short e duas cuecas, tirando o que levou para vestir e o casaco de
inverno, óbvio. Coloco tudo na bolsa gentilmente, ainda sobra
espaço, mas quando falamos de mala é melhor sobrar do que faltar.
Me sento na cama com a mochila na minha mão e a fecho,
pensando que é patético que ele tenha feito essa mala só para me
ver. Me levanto e tiro o carregador de Gabriel da tomada. Enrolando
o fio, abro o bolso da frente para colocá-lo, mas ao enfiar a mão,
amasso algo. Me xingo duas vezes e tiro para desamassar o mais
rápido possível para que ele não surte.
É um cartão de embarque. O que ele vai usar a uma da tarde,
mas nele tem apenas um trecho, Budapeste x Praga, e não
Budapeste x Praga – Praga x Algum lugar do Brasil. Mexo no bolso
em busca do outro cartão e não encontro, só encontro o usado para
vir para cá:
Praga x Budapeste.
E nenhum deles é de avião. Gabriel passou sete horas e meia no
ônibus de Praga até aqui. O que significa que ele não estava no
Brasil há dois dias, ele estava aqui, na Europa.
Guardo tudo da maneira que encontrei e acabo colocando o
carregador no bolso grande, para ele nem desconfiar que achei
esses papéis. Me sento na cama e fico aguardando, mas não sem
antes revirar minha mala atrás de alguma coisa boa o bastante para
fazê-lo confessar.
— Estou pronto, podemos tomar nosso café agora? — indaga,
secando o cabelo com minha toalha de rosto.
— Claro, só queria te pedir pra entregar uma coisa pra Laís, é
um presente bobo, já coloquei na sua mala. — Ele muda de cor e
volta ao banheiro para estender a toalha. — Vou pedir para ela ir no
seu trabalho quarta-feira pegar.
— Não pede, eu não vou estar lá — responde, colocando a blusa
para dentro da calça.
— Não? — Franzo o cenho, dissimulando confusão. — Quando
ela pode ir?
— Ah, é uma história engraçada — diz, desviando o olhar para
as mangas da blusa social que está enrolando do cotovelo até o
antebraço — Mas eu estou viajando.
— O quê? — Meu queixo realmente cai como se eu já não
soubesse que tinha caroço nesse angu.
— Dois amigos do trabalho estavam marcando essa eurotrip há
um tempo e de última hora resolvi fazer os trechos finais com eles.
— Dá de ombros, como se não fosse nada.
Mas até ele sabe que é.
Gabriel está corando de vergonha e, apesar dos esforços para
mantê-las em ordem, suas palavras se atropelam, maculando seu
teatrinho.
— Então você estava viajando e não me falou nada? Tipo, você
não falaria? Você não viria me ver?
Gabriel joga o pescoço para trás rindo.
— É óbvio que eu viria te ver. Justamente por isso não falei
nada, porque queria fazer uma surpresa. — Ele se aproxima de mim,
tocando meus braços, então corre as mãos para as minhas costas e
me puxa para perto. — Vou encontrar com eles em Praga hoje mais
tarde e a gente vai fazer Praga, Viena, Bélgica, Portugal e vai
embora — finaliza com os olhos nos meus.
“Você não tinha dinheiro para vir me ver, mas está fazendo uma
eurotrip por lugares altamente turísticos, ou seja, extremamente cara,
com amigos que nem vale a pena mencionar o nome” bate na minha
garganta, mas eu engulo.
Não quero brigar com ele novamente, não só pelo desgaste, mas
porque sei que ele vai fazer isso ser algo ruim sobre mim e não estou
com paciência. Mas meu silêncio não passa despercebido, porque
ele volta a falar mais rápido que o esperado.
— Eu sei que parece estranho e tudo mais, mas consegui pegar
umas promoções muito boas e eu queria muito te ver. — Seus olhos
parecem sinceros, mas cada palavra que sai da sua boca é uma gota
de mentira.
Queria tanto que veio brigar comigo e transar.
— Tudo bem, amor. — Me inclino em sua direção e deixo um
selinho em seus lábios que queima os meus. — Vamos para o café?
E mais um talvez corre nos meus pensamentos enquanto saímos
e fechamos a porta.
Talvez, ser a pessoa que sempre cede no relacionamento não
quer dizer que você é resiliente.

Jogo minhas costas na porta do quarto depois de fechá-la e


permaneço parada aqui, olhando o rio Danúbio pela janela infinita do
outro lado do quarto e respirando fundo.
Sozinha.
Estar sozinha é ruim. Sempre foi.
Mas, aparentemente, sufoca menos.
Quando foi que comecei a me sentir assim por causa de
Gabriel? Não tenho ideia. Não éramos assim. Estamos juntos há
quase três anos, mas somos amigos há bem mais do que isso e ele
sempre foi uma boa companhia. Um ponto de paz em meio ao caos
que minha vida se tornou em determinado momento, mas agora…
agora ele parece outra pessoa.
Verifico se a porta está trancada antes de caminhar até minha
cama, tirando meu celular do bolso, e ligar para Laís.
Estou sendo muito idiota, porque é segunda-feira e são seis e
meia da manhã no Brasil, mas não consigo pensar em mais ninguém
agora. Por mais que Miyeko seja o amorzinho da minha vida, ela não
conhece a mim como Laís.
— Amiga? — Ela atende o telefone no segundo toque, e eu
agradeço.
— Já acordada?
— Uhum. — Ouço o barulho de gaveta se fechando e porta se
abrindo. — Fazendo café da manhã.
— Atrapalho?
— Por ora não, mas eu saio sete e quinze.
— Tudo bem, vou ser rápida. — Inspiro antes de continuar —
Alguma coisa está acontecendo com o Gabriel, desde... Não sei se
foi desde que eu vim embora, mas sei lá, ele está estranho. Parece
outra pessoa.
— Ele não parece outra pessoa, Caroline Pimenta. Ele sempre
foi assim. Você só escolheu não ver. — A repreensão chega. Mas,
dessa vez, eu não a ignoro.
— Laís, é impossível que ele tenha sido assim a vida toda.
— Assim como? Ciumento, morde e assopra, paternal,
manipulador… É pra eu continuar?
— Eu nunca tinha reparado que ele era ciumento... — Deixo as
palavras saírem porque ainda estou em choque.
A gargalhada de Laís me faz afastar o celular do ouvido.
— Você tá falando sério, Carol?
Ouço-a perguntar.
— Sim.
— Carol, pelo amor de Deus. Esse homem fez você ir morar com
ele só porque a gente tinha um vizinho gostoso! O Gabriel era
extremamente ciumento e você achava bonitinho.
— Não, amiga, eu fui morar com ele porque... — As palavras se
perdem, porque a verdade é que eu não sei.
Um dia, numa bela manhã de sol, ele começou a falar sobre isso
e só parou quando me mudei.
— Caroline. — O tom sério da minha amiga me alarma. — O
Gabriel sempre foi ciumento e manipula você o tempo todo para te
fazer sentir como ele quer. Se ele te deseja feliz, ele transforma
palha em ouro pra você. Se quer te fazer sentir culpada, faz com que
você se sinta a menor pessoa do mundo, e faz isso sorrindo pra você
enquanto uma das mãos afaga seu rosto e você acha bonitinho,
porque ele está cuidando de você — ironiza no final, e eu engulo em
seco.
— Porque eu sou uma criatura patética que está sempre
querendo agradar a todo mundo.
— Que está sempre querendo agradar todo mundo que não se
importa. — Ela me corrige. — Você não tenta me agradar, não tenta
agradar Miyeko, não liga para os limites que suas chefes tentam
impor se acha que pode fazer algo melhor burlando-os, você nunca
tentou agradar o...
A frase morre, mas eu sei que ela está falando de Daniel.
— Eu odeio meus pais.
— Não, você se odeia, porque não é possível que uma pessoa
de vinte e três anos passe por seis psicólogos e não se dê com
nenhum.
— Eu não me dei com nenhum! — rebato, tentando jogar essa
culpa longe.
— Na minha terra, a gente chama isso de autossabotagem.
— Laís, a gente já teve essa conversa...
— Um monte de vezes — minha amiga vocifera, me cortando e
me trazendo para a realidade.
Fico em silêncio, tanto pela verdade que ela joga na minha cara
quanto pela forma que Laís está exaltada agora. Sua respiração
profunda do outro lado da linha me faz sentir mal.
Laís conviveu comigo minha vida inteira. Mesmo antes de
Daniel, havia Laís. Se alguém me conhece, esse alguém está do
outro lado da linha agora.
— Eu nunca mentiria pra você, Caroline. O Gabriel não é um
cara legal. Você precisa perceber isso e se livrar dele. Você está
vivendo a coisa mais incrível da sua vida e ele vai tirar isso de você
alguma hora.
— Como assim?
— Ele vai fazer você se sentir mal por ficar. Quando não
conseguir mais te manipular, vai fazer você acreditar que o
relacionamento de vocês está ruim porque você escolheu ir pra longe
e...
— Acho que ele fez isso ontem — corto Laís, me dando conta de
que não tinha mesmo motivos para Gabriel me perguntar quanto
tempo eu acho que suporto o frio da Europa e quanto tempo eu vou
ficar aqui sem o dinheiro dos meus pais.
— Como assim?
— Desculpa, mas você provavelmente vai se atrasar pro
trabalho, porque a história é longa.
— Esse é um problema da Laís do futuro. — É sua resposta, boa
o bastante para me fazer falar.
Conto à minha amiga tudo o que aconteceu do momento que
encontrei Gabriel, até a partida dele. Escondo a parte do Daniel
porque não quero que esse circo fique ainda maior.
Digo como ele agiu, como reagiu. Falo que me senti pequena,
que me senti mal. Mesmo sem querer, falo de como ele me segurou
em seu colo e me apertou, porque o lado direito ainda tem a marca
da mão dele e isso me incomodou muito. Conto como a noite
passada parecia uma tortura. Como eu queria que a intimidade
reacendesse meu amor e como isso não aconteceu.
— Sexo e intimidade são duas coisas tão distantes que eu nem
sei começar a listar as diferenças para você, Carol. — Minha amiga
expira tão pesado que é como se ela pudesse sentir a minha
exaustão. — Ele já tinha te machucado antes ou essa é a primeira
vez?
— Ele nunca tinha feito nada assim.
— Tá, entendi. E depois de tudo o que você me falou, o que te
impediu de terminar com ele?
— Honestamente? Tô meio perdida. Não perdida, mas... Já te
falei, eu nunca tinha visto ele assim. Ele era bom pra mim, nós
tínhamos uma vida estável e eu gostava dele.
— Gostava?
— Ele literalmente me humilhou, me chamou de vagabunda, me
fez sentir culpada por algo que eu ainda nem fiz e transou comigo
como se isso fosse resolver as coisas.
— Calma, aí. Calma aí... Tem muita coisa nessa frase. — Ouço
minha amiga se sentando. — Vamos por partes. Como assim, te fez
sentir culpada por algo que você ainda não fez, hein, Carol Pimenta?
— A diversão em seu tom de voz me faz fechar os olhos de raiva.
— Eu não disse ainda.
— Disse, sim.
— Talvez tenha dito, o Daniel tá um grande gostoso mesmo,
satisfeita?
— Meu Deus, eu não tenho coração pra vocês, hein! Quando
você for atrás do Dani pedir desculpas por ter demorado tanto pra se
jogar nos braços dele, me avise com antecedência.
— Não seja ridícula. — Uma gargalhada sincera enche meu
peito. — Eu, correndo atrás daquele Novato de araque. Tenha a
santa paciência.
— Tudo bem, Carol. Você está me enrolando. Sabe o que eu
tenho a dizer sobre sexo de reconciliação, né? — Ela volta ao nosso
assunto principal.
— Remendo fraco — digo, porque não preciso escutá-la falando
isso pela milésima vez.
— Posso te fazer uma pergunta?
— Claro que pode, ué. — Rio, confusa — Estamos conversando.
— Como você está?
Abro a boca para responder, mas as palavras se perdem. Meu
queixo treme e sinto os olhos marejarem. Tento dizer bem, e não
consigo. Então engulo as lágrimas e quase digo que eu estou
apenas sobrevivendo, mas isso também não sai.
— Estou me sentindo uma burra. — Minha boca se abre
finalmente e queria chorar, queria muito, mas não consigo. A
sensação que fica é o vazio de um buraco negro no meu peito. — Me
sinto tão estupida, tão dependente. Sinto que me apeguei ao Gabriel
porque ele foi a única pessoa que me fez sentir algo relevante num
momento de solidão e sinto... — O ar me falta, então faço uma
pausa. — Sinto que estou nessa situação de merda porque eu
escolhi namorar uma pessoa escrota, que jogaria na minha cara o
quanto me ajudou na primeira oportunidade. Sinto que ainda sou
aquela garotinha de oito anos que perdeu o primeiro dia de aula na
escola nova porque os pais esqueceram de ativar o despertador e
ficou na sala. Sentada, sozinha, uniformizada, até às dez da manhã,
segurando uma lancheira, com a mochila nas costas, dizendo pra si
mesma que tinha acordado cedo demais.
— Não pode namorar uma pessoa só para não estar sozinha,
Carol.
— Eu sei — minto.
— Não pode achar que o Gabriel é um cara legal só porque um
dia ele te defendeu quando ninguém mais fez isso. Qualquer pessoa
com o mínimo de decência teria feito o mesmo.
— Meus pais não fizeram.
— Seus pais estavam felizes porque você tinha entrado na sua
universidade dos sonhos, no seu curso dos sonhos, não queriam que
um bando de racistinhas escrotos tivessem arrancado seu sonho de
você, Carol. Eu sei que eles são péssimos pais, mas eles jamais
diminuiriam sua dor.
— Então eles me pediram para não fazer nada porque me
amavam? — Não consigo conter o deboche.
— Eles sabiam que, mesmo se você fizesse algo, não teria dado
em nada, Carol. E por mais que me doa dizer isso, no fim das contas
você fez e não deu mesmo. — Escuto o molho de chaves
balançando do outro lado da linha e entendo que essa ligação
acabou. — Amiga, eu preciso muito ir trabalhar e você precisa muito
de uma psicóloga. Vou pegar algum contato com a minha.
— Tá bom — respondo entredentes.
— Eu te amo — ela diz, e aproveito porque Laís não é a mais
carinhosa das pessoas.
— Também amo você. — Desligo o telefone e me preparo para
avisar a Miyeko que já tomei café, mas que preciso falar com ela
antes de viajarmos.
Hora de repetir todo esse drama para outra amiga.
Capítulo 13
Ou: Tocando a campainha, mas ninguém está vindo para ajudar.

Seu pai mora sozinho, ele só quer saber se você está bem.

As it was – Harry Styles

Daniel
Muitos acreditam que o dia mais tenso do fim de semana de um
piloto é o domingo. De fato, existe muita coisa em jogo na corrida.
Contudo, dois dias antes, acontecem os treinos livres, nos quais a
gente consegue conhecer ou reconhecer a pista na qual vamos
correr. As retas, as curvas, as zonas de DRS[4], o controle do carro...
Tudo isso está na nossa cabeça desde sexta.
Então vem o sábado e o verdadeiro tudo ou nada: o qualifying,
ou treino classificatório. No qual a gente descobre de onde vai largar
no domingo.
A meta de Melbourne é largar numa das primeiras filas, entre 1º
e 4º lugares. O que significa que, se chover, preciso fazer uma volta
completa abaixo de 1min.19seg. Caso contrário, o ideal é abaixo de
1min.15seg.
Dou a partida para a minha terceira volta no classificatório
quando, de repente, a chuva estipulada para daqui a oito minutos
começa a cair. Fina e tímida, mas ainda chuva. Seguro o volante
com mais intensidade e os olhos focados na pista. Phillip está
falando comigo no rádio, mas, honestamente, não estou ouvindo.
Uma vez que a chuva se intensificar, não vai ser possível baixar os
tempos, então preciso conseguir fazer isso agora.
Até o momento, largo em quarto lugar, com o tempo que
consegui fazer na minha segunda volta, mas não acho que ele seja o
bastante. Por mais que a Arrows seja uma casa ótima e que não haja
uma pressão exacerbada por esse ser meu primeiro ano, se tenho o
melhor carro do grid, preciso performar bem.
É com esse pensamento que cruzo a linha com um sorriso
enorme dentro do capacete e me permito escutar a voz de Phillip.
— 1.14.42 — meu engenheiro celebra. — P2. Daniel. P2.
— Conseguimos, Sir Phillip — grito enquanto a chuva se
intensifica.

Tirando a roupa molhada do corpo no banheiro, abro o chuveiro


para que a água aqueça o ambiente enquanto mando mensagem
para minha mãe avisando que vou atrasar alguns minutos. Enrolo as
roupas e faço uma anotação mental de pedir para que o hotel as
seque assim que desligar.
O sábado de um piloto é cronometrado. Por isso, a chuva de
hoje quase estragou meus planos. Tanto por ela ter caído antes do
esperado quanto pelo trânsito que se formou no caminho do
autódromo até o hotel. Se estar num carro a setenta quilômetros por
hora já é angustiante, ficar dentro desse limite de velocidade na
chuva, com engarrafamento e o carro andando a quarenta, é meu
inferno pessoal.
A água quente acalma meus pensamentos e quase não lembro
que meu carro está dando mais trabalho do que deveria. Depois de
um começo fenomenal, é como se ele estivesse gasto, como se
tivesse algo de errado com ele que eu não sei o que é e meus
mecânicos dizem que não existe.
Classificar numa boa posição não é tão difícil, você só precisa
dar uma volta rápida em uma pista praticamente vazia. Mas como
vou conseguir segurar a posição numa corrida de 58 voltas? Não
tenho ideia.
Assim que meu corpo para de tremer e identifico que mesmo
tendo saído de uma chuva torrencial gélida e entrado debaixo de um
chuveiro ardente, não peguei uma hipotermia. Desligo o registro e
saio deixando o banheiro na bagunça que está.
Inicio a chamada entrando no short e me sento passando uma
regata pela cabeça. Quando a câmera de Miss Claire finalmente
abre, é inútil tentar conter o sorriso.
— Oi, mãe — digo enquanto esquadrinho cada pedacinho da
tela.
Os olhos dela estão ali, não posso dizer que encontram os meus
porque estamos separados por um pedaço de oceano e duas
câmeras, mas ainda são verdes e intensos, como eu amo.
— Oi, meu amor. Que saudade que mamãe está de você. — Ela
toca a tela, como se fosse fazer alguma diferença, e me entrega seu
sorriso de canto. — Onde você tá? — pergunta antes de levar a
xícara de café à boca.
— Austrália. — Sua surpresa me diverte enquanto ela força os
olhos para ver que realmente não está de manhã na janela atrás de
mim.
— Pegou sol por aí?
— Previsão de chuva o fim de semana inteiro.
Ela encolhe os ombros, ciente de que eu preferia o sol
— Quando eu te vejo?
— Quando vier me ver correndo, Miss Claire. — Implico.
— Não, meu filho, não consigo. É muito perigoso.
Gargalho ao vê-la balançando a cabeça de maneira rápida,
como um tique nervoso.
— Para de bobeira, mãe. Sinto sua falta, sabia? Você sempre
me apoiou tanto.
— Sim, sempre. Mas isso não quer dizer que não sinto medo. —
Ela cruza os braços, olhando para a tela e franzindo a testa. — Você
não sente nem um pouquinho?
— Medo de morrer?
— Não fala essa palavra, garoto.
— De bater? — Me corrijo diante da careta dela, e minha mãe
assente. — Claro que sinto. É uma coisa muito possível. — Seu
queixo cai e eu seguro o riso — Mas ninguém morre na F1 desde
2015, então já dá para perceber que as tecnologias e medicina,
trabalhando juntas, evitam isso.
— Meu Deus, é tão absurdo como vocês, jovens, não têm amor
à vida — resmunga amassando o cabelo crespo, mania que ela tem
desde que me entendo por gente. — A gente vai fazer o lançamento
de um produto novo em dois meses e eu estou tão nervosa.
— Em alto mar? — pergunto, ciente de seu medo, e ela meneia
a cabeça — Bom, se até a CEO da maior construtora de navios da
Europa fica nervosa quando precisa entrar em um, quem sou eu para
não ter medo de dirigir minha caixinha de gasolina a 300KM/h.
— É diferente, e você sabe. Como estão as coisas por aí? Jack
continua mulherengo, Rick segue um gostoso e Phillip ainda te
obedece quando você impede o pobre de falar?
— Eu não proíbo o Phillip de falar. — Ela tenta segurar o riso,
mas ainda percebo-a balançando de maneira divertida.  — Tudo
bem, só um pouco. E Jack segue sendo ele, né?
— Mas e o Rick?
— Mãe, não! — Balanço os dois indicadores negativamente na
frente da câmera e ela me dá língua.
— Tudo bem... E Carol? Tem falado com ela?
— Não, não tenho. Mas espero que esteja bem. — Desvio o
olhar, tencionando o maxilar, e me recosto na cadeira antes de voltar
a falar. — E seu aplicativo de encontros, hein, Miss Claire. Nada?
— Não, não encontrei o Rick por lá, então desinstalei.
Fixo meus olhos na altura da câmera e faço uma careta bem
feia, que a leva gargalhar.
— Você nem encontrou e nem vai encontrar, ele não usa os
mesmos aplicativos que a senhora, mãe. — Dá para perceber que
ela não entende, mas não quero passar meu tempo com ela falando
sobre a orientação sexual do meu chefe. — Bom, me diz, o que você
anda fazendo desde que a gente se viu?
Nossa conversa fica nostálgica depois disso. Falamos tanto
sobre meus últimos dias lá há poucas semanas e sobre minha
infância. Minha mãe ama falar desse tempo porque ama o Brasil,
gosta de dizer que além de mim, o Brasil foi a única coisa boa que
papai deu a ela. O que nos leva a um assunto que eu detesto.
O papai.
Não é que eu deteste meu pai, não é isso. É só que quando você
passa a vida ouvindo de terceiros que é o melhor ou um dos
melhores em tudo o que faz, conviver com um pai que te trata, fala
com você e até te olha como se você não fosse bom o bastante, não
é sua coisa favorita no mundo.
— Mas quando você vai ao Brasil, então?
— Em duas semanas. A gente vai ter um daqueles intervalos de
quinze dias e eu vou ficar uma semana lá.
— Só uma semana?
— Não são férias, Miss Claire. Ainda preciso treinar, sabia?
— Claro, claro... E seu pai já sabe, certo?
— Eu não faria uma visita ao Doutor Torres sem marcar horários
na agenda dele.
— Daniel Harris. — A repreensão é muito mais pelo meu
deboche do que pelas palavras, ela sabe que estou certo.
— Desculpa, desculpa. Eu preciso ir, mãe.
— Já? — Os 31 minutos que contam no cronômetro da chamada
são mais do que o meu limite para uma ligação, mas não digo isso.
Ela não entenderia a fobia que o jovem tem de ligações e
acharia que é algo pessoal.
— Tenho que descansar para a corrida de amanhã, me deseje
sorte.
— Vai com Deus, meu filho, boa sorte. Eu amo você.
— Eu sei, mãe. Também te amo.
Desligamos a chamada ao mesmo tempo, e me sinto um pouco
mais leve. Faço questão de apagar os comentários dela sobre meu
pai da cabeça e fico apenas com as partes boas.
Me preparo para arrumar o banheiro e descansar. Se depender
da previsão do tempo, amanhã, o dia vai ser longo.
Longo. O dia deveria ser longo. Mas, graças à merda do motor,
que estou sinalizando desde sexta-feira que está estranho, meu dia
acaba meia hora depois de começar. Apesar de largar bem e manter
minha posição, não preciso de dez voltas para me ver sendo
ultrapassado por outros carros por causa da minha perda de
velocidade. Na volta 15/58, me vejo em sétimo lugar e o carro
simplesmente não anda, como se algo o puxasse para trás.
— Daniel, box. Box, Daniel. — Phillip grita em meu ouvido
enquanto outros dois carros me ultrapassam.
Phillip não era o único ciente de que eu tinha identificado algum
problema no carro, todos os meus mecânicos sabiam. Mas, como
eles não viram nenhuma alteração nos gráficos, nada foi feito. Me
pergunto o que farão agora para que essa corrida não esteja
arruinada por completo.
No entanto, quando chego aos boxes, me dou conta de que não
estou aqui para alguma medida paliativa, estou sendo retirado da
corrida. Retirado porque o carro, que eu avisei que não estava
andando direito, parou de andar direito.
Saio do carro num pulo e passo pela fila de mecânicos furioso,
caminhando até Rick. Não é possível que ele esteja de acordo com
uma palhaçada dessas.
— Rick. — Paro ao lado da mesa na qual nosso chefe de equipe
acompanha a corrida e a previsão do tempo.
— Agora não, Daniel. — Ele nem se dá o trabalho de tirar o
headphone para me responder.
— Rick, cacete. — Elevo a voz e paro a mão em sua mesa para
que ele me dê ao menos um pingo de atenção.
— Daniel, vá descansar ou assistir à corrida. — Indica as salas
laterais com a cabeça. — Preciso entender o que está acontecendo
no seu carro e esperar que Jack vença essa corrida para mantermos
nossa vantagem na liderança do campeonato.
— Sim, agora estamos mendigando pontos por causa de uma
falha mecânica — digo, e alguns membros da equipe congelam, mas
Rick finalmente olha para mim.
Sem dizer uma palavra, ele se levanta me encarando como se
eu tivesse ofendido sua mãe e apoia uma mão em meu braço direito,
me puxando para o corredor lateral onde ficam as salas dos boxes.
— Sou todo ouvidos, o que você tanto quer dizer? — indaga
assim que entramos numa das salas de descanso.
— Que eu queria ter terminado a corrida. Que tenho certeza de
que conseguiria pontuar e...
— Que nós não erramos tirando você da sua equipezinha de fim
de grid e te trazendo pra cá? — Rick me interrompe, jogando meu
maior medo na minha cara e eu engulo em seco, desviando o olhar.
— Tão previsível, Daniel, era só isso? — Meu silêncio responde por
mim e não sei exatamente o que dizer além de que tenho tudo para
provar que mereço estar aqui. — Então você queria tirar minha
atenção das operações para me dizer que eu, um chefe de equipe
com a sua idade em anos de experiência, tomei uma boa decisão te
contratando? — A ironia me faz fechar os olhos de vergonha.
— Rick, eu... — Tento falar, mas nem sei o que dizer agora.
— Você ao menos sabe o que havia de errado com seu carro?
— indaga, coçando a têmpora. — Tem alguma suspeita do que pode
ter causado esse abandono da corrida?
— Não, Rick. — Expiro o ar com o peso das palavras.
— Esse é o único motivo plausível para você dar o showzinho
que deu lá fora, entendeu? Nunca mais repita isso, Daniel. Nunca
mais. — Meu chefe não está gritando, mas eu preferia que estivesse.
Seria melhor lidar com a raiva do que com a indiferença.
— Sim, senhor.
— Se você não sabe o que pode melhorar no seu carro, você
não entra aqui e diz pra mim que a falha na porcaria do carro que
você dirige é nossa. — Richard grita, roxo e com o dedo em riste. —
Quando você bate seu carro na parede de pneus e abandona,
ninguém diz que nossa posição no campeonato está melhor ou pior
por culpa sua, a gente considera um acidente. Quando você perde
posição por trepidar na brita, ninguém diz que se você não tivesse
feito isso, nos teríamos mais pontos, Daniel. — Arranca os óculos da
cara e esfrega o rosto antes de sair.
— Rick, eu realmente sinto m...
— Seja homem, Daniel. Isso não é a sua casa, onde você erra e
precisa ser compreendido e outras pessoas erram e têm de ser
punidas porque vossa majestade está chateadinha. — Ele se volta
para mim ao chegar à porta. —  Todo mundo aqui é humano. Você
comete erros, eles também. Espero não chegar ao fim da temporada
achando que fui eu quem errou.
Rick finaliza e sai da sala batendo a porta, me deixando com a
certeza de que ele quer dizer que eu não posso dar a ele a certeza
de que errou me contratando.
Ótimo, Daniel.
Parabéns por achar que um esporte que depende de uma equipe
de 800 pessoas é um esporte individual.
Capítulo 14
Ou: Você pode contar comigo como um, dois, três. Eu estarei lá e sei que quando eu precisar, posso contar com você como quatro, três, dois e você estará

lá. Porque é isso que os amigos devem fazer.

Count on me – Bruno Mars

Carol
Me inclino para frente e deposito minha garrafinha d’água na
mesa de centro, desviando os olhos do notebook para a janela. A
cidade está tão nublada que nem parece verão.
— Falta muito pouco pro meio da temporada agora e vocês
estão indo muito bem — Luciana diz, arrastando meus olhos para a
tela novamente. — O crescimento do canal e do site deve muito à
dedicação de vocês, meninas.
— Estou ficando com ciúmes — Patrícia fala, e forço uma leve
revirada de olhos enquanto Miyeko deixa um palavrão escapar.
Patrícia está só fazendo charme, afinal, abriu mão da vaga na
qual eu trabalho hoje para se casar. Ainda lembro do medo que senti
de como esse trabalho afetaria minha vida com Gabriel, um medo
que hoje parece bobo e me sinto muito grata à Carol do passado por
não ter desistido de um sonho por causa de um namorado.
— Não precisa ficar, você era maravilhosa também — Miyeko,
que acompanhava Paty, diz, mas aperta minha mão em cima do
sofá. Como se quisesse me alertar de que é mentira. Seguro o riso.
— E, Carol, a sua matéria sobre o GP da Hungria foi realmente
muito boa, foi replicada em tantos sites que perdemos a conta — Lu
ressalta.
— Trabalhar na base do ódio dá resultado, pelo visto.
— Daniel? Olha, Carol, se ele tiver te assediando, a gente
pode...
— Não, Paty. Não tem nada a ver com ele. O Harris parou de
encher meu saco. — Tento soar o mais convincente possível.
A última coisa de que preciso é esse tipo de holofote em mim
agora.
— Algo com o que a gente possa ajudar? — A pergunta é
sincera, Miyeko se apressa em dizer que não, e eu apenas nego com
a cabeça.
— Então, acho que é isso. Duas corridas e férias. — Miyeko bate
uma palma como se quisesse encerrar a reunião o mais rápido
possível, e a olho de rabo de olho.
— Bom, antes de desligar, a gente tem uma notícia meio chata
para vocês. — Patrícia arrasta as palavras, como se não quisesse
pronunciá-las, então eu tiro o elefante da sala.
— A gente também não conseguiu patrocínio pro oriente médio,
né? — pergunto, já sem esperanças.
Desde o início da temporada, oriente médio e Austrália eram
dúvidas. Os custos são muito altos, então precisamos de patrocínios
bem maiores que para rodar pela Europa.
— Não. Eu realmente sinto muito. — Luciana suspira antes de
continuar: — Queria que você pudesse ir para todas as corridas,
Carol.
Eu assinto. E por mim, tudo bem. Eu estou bem.
Mas a Pimentinha, aquela que entrou na faculdade para ser
repórter e rodar o mundo nas temporadas de Fórmula 1, está
inconsolável. Miyeko aperta minha mão e eu esboço um risinho.
— Está tudo bem, outras oportunidades virão. — Consigo falar,
mesmo que isso não melhore as coisas.
Sentada no pequeno sofá azul de dois lugares da nossa casa,
diante da única janela que permite uma boa iluminação para nossas
reuniões, coço o pescoço como se isso pudesse parar minha coceira
na garganta enquanto escuto Luciana falando algo como:
— Isso é certeza. Do jeito que nosso público te adorou, não
estamos pensando em abrir mão de você tão cedo.
E sinto Miyeko esbarrar no meu ombro, como se devêssemos rir,
mais abertamente dessa vez. Contudo, mesmo que o sorriso esteja
estampado na minha cara, é o meu quadro com repórteres
brasileiras de Fórmula 1 que pende na parede atrás de nós que
estou mirando.
Se eu focar meus olhos em um único lugar, as chances de
chorar são pequenas.
— Um bando de país misógino, Carol. Não está perdendo muita
coisa.
Corro meus olhos da Mariana Becker para a Julianne Cerasoli, e
então para a Bruna Rodrigues quando Miyeko, que já esteve em
todos eles ao menos duas vezes, desdenha.
— O lado bom é que Estados Unidos e México estão mais do
que confirmados — Patrícia diz numa voz bem mais animada que o
necessário.
— Além do nosso Brasil, é claro — Luciana completa.
— Perfeito, então. — Encerro o assunto. — A matéria sobre a
Austrália foi bem recebida, posso seguir nessa linha para as outras
corridas que não vamos?
— Claro. Foi uma matéria com muitos acessos. Quando a gente
não tem repórter no local geralmente é, e o padrão está perfeito.
Miyeko bufa ao meu lado, e sei que é porque nada disso tem a
ver com ela.
— Bom, até a silly season — digo por fim, e Paty e Lu se
despedem de nós.
Bato a tela do notebook e dedilho em cima dele algumas vezes
antes de Miyeko se levantar e apoiar as mãos nos meus ombros,
massageando-os.
— A gente sempre soube que só tinha patrocínio para as
corridas dentro da Europa, amiga. Não fica chateada.
— Não estou. — Me apresso em dizer, descansando a cabeça
no braço dela.
— Carol, você está. — O meio metro de gente atrás de mim
aperta meus músculos mais do que o necessário, e eu jogo o
pescoço para trás, olhando feio para ela.
— Tudo bem, estou — confesso. — Mas também tô feliz que a
gente tenha conseguido patrocínio pra bancar nossa ida pras
américas. Estava com medo... — Termino minha fala num sussurro.
— Duvidei desde o início de que eles não viriam. — Minha amiga
aperta meus músculos, gentilmente dessa vez, jogando minha
tensão pela janela enquanto fala. — Estados Unidos querem crescer
cada vez mais no esporte, México tem público demais para ser
ignorado e o Brasil é um clássico, obviamente a gente iria, nem que
o Garotas No Padoque tivesse que colocar dinheiro do próprio bolso.
Suspiro e deixo um gemido escapar antes de voltar a falar.
— Espero que tenham conseguido algo bem legal pro Brasil,
sério. Acesso aos boxes, camarote, tudo. É nossa última corrida do
ano.
— Você queria real assistir Abu Dhabi? É tipo a corrida mais
chata do calendário.
— Mas é a última e é a noite. Eu amo os fogos — digo com um
muxoxo e Miyeko gargalha, sem parar de mexer suas mãos mágicas.
— Sério, Carol. Você tem gostos muito estranhos.
— Miyeko, não adianta me fazer massagem se você ficar me
estressando.
— Você tem um ponto ótimo, vou ficar quieta. Mas, antes, só vou
perguntar como estão as coisas com o Gabriel.
— Não faço ideia, Miyeko. Ele ainda está viajando, me manda
fotos, eu curto, trocamos algumas mensagens monossilábicas, mas
é isso.
— Pergunto por que você mora com ele, né? Falta menos de um
mês pras férias, não sei o que você vai fazer.
— Laís já disse que posso passar as férias lá.
— Então você vai mesmo terminar, né, amiga? — A pergunta é
gentil, mas a dúvida está ali.
— Miyeko. — Não quero falar, pela trigésima vez, que não vou
ceder ao Gabriel. Então dou meu jeito de enterrar esse assunto.
— O quê?
— Faz a massagem e fica quieta.
Fecho os olhos enquanto deixo as mãos dela me levarem para
outro lugar.
Um calmo e pacífico, onde não tenho estado desde que essa
loucura de viver na estrada começou. Me permito esvaziar minha
mente e, só por alguns instantes, não penso em trabalho, namoro,
compromissos e nem mesmo em Daniel.
Nesse momento, sou só eu. Na minha casa, em Paris, a vinte
minutos de trem do lugar mais lindo do mundo, o jardim da Torre
Eiffel.
Por alguns minutos, somos só eu e as coisas que tenho
conquistado. Me permito ficar feliz. Feliz por estar conseguindo tudo
o que sempre acreditei que conquistaria.
É aqui, nesse pequeno apartamento, recebendo massagem de
uma das minhas pessoas favoritas no mundo, onde me dou conta de
tudo de incrível que já conquistei: meu trabalho dos sonhos, viagens
para lugares incríveis, amigas maravilhosas, um apartamento que eu
adoro na cidade mais bonita do mundo e o coração menos pesado
do que estava antes. Talvez o primeiro passo seja esse: ver o copo
meio cheio.
— Na próxima semana de folga, eu não volto pra cá, tá? —
Miyeko anuncia minutos mais tarde, tirando as mãos dos meus
ombros. E eu apenas ergo a cabeça questionando-a com o olhar. —
Vou viajar.
— Viajar? — pergunto surpresa, porque é uma semana sem
corridas, ou seja, uma semana  “de folga” e nós, geralmente,
passamos as folgas juntas.
— Uhum, coisa do outro trabalho. — Minha amiga responde,
mas já cruzou nossa pequena sala e entrou na cozinha, do outro
lado do balcão que divide os dois cômodos.
— Então você viaja com o Jack? — Tento não dizer isso com um
risinho na voz, mas é inevitável e ela me fuzila com o olhar.
— Eu viajo sozinha — rebate, como se eu tivesse dito o maior
dos absurdos. — Encontro ele lá pra seguir nessa luta de limpar a
imagem dele com esse documentário.
— Gente, as pessoas realmente não gostam dele, né? —
Levanto, soltando o coque do cabelo e subindo o jeans que desce
toda vez que me sento.
— O que tem nele pra gostar, Carol? — Miyeko segura seu copo
d’água no ar e me encara apoiada na porta da geladeira. Seu
semblante me diz que não é um bom momento para elogiá-lo.
— Não sei, mas as pessoas também não gostavam do Vettel, do
Alonso, do Hamilton, do Verstappen... As pessoas sempre querem
um campeão pra odiar. 
— Mas, no caso do Jack, elas estão certas. Ele é péssimo.
Me dou por vencida indo para o meu quarto e grito no caminho:
— Bom, senhorita viagens, eu vou ficar por aqui mesmo.
— Você vive querendo ir pra Disney, mas quando eu sugiro
nunca pode, talvez esteja querendo ir sozinha, pode aproveitar
agora. — Miyeko surge na porta do meu quarto e eu semicerro os
olhos.
— Não, ainda não é o momento. — Reviro os olhos só de pensar
em pisar sozinha num parque de diversões.
A sombra do fato de que eu não quero fazer isso porque é algo
que sempre achei que faria com Daniel quase nubla minha mente,
mas a jogo para debaixo de um tapete mental e finjo que ela nunca
existiu.
— Versalhes, então? — Sua sobrancelha direita se ergue
enquanto me sento na cama.
— Não quero ir pra Versalhes sozinha... — Antes que meu corpo
consiga se acomodar, me levanto com uma ideia maluca e Miyeko,
que conhece minha cara de ideias malucas, já está com um risinho
de canto e as mãos na cintura, esperando a proposta. — Mas a
gente só voa pra Itália quarta, quer ir amanhã?
— Amanhã?
— Você tem algo pra fazer?
— Não.
— Então, bora?
— Bora.
Miyeko dá pulinhos animados e corre até seu quarto. Em alguns
segundos, ela vai invadir meu pequeno quartinho com oito opções de
roupas e me fazer escolher exatamente a que ela tinha como favorita
desde o princípio.

Depois de quinze dias longe de um Paddock, meu corpo já


estava com saudades. Poder voltar a pisar em um na Itália, o lugar
com a melhor culinária dessa Europa – junto de Portugal – é um
presente, e o dia ensolarado faz tudo valer ainda mais a pena.
— Vamos entrar ao vivo em um minuto, tá? — Miyeko avisa
enquanto tento parar num ponto com fundo apelativo entre os carros.
Esse é um dos meus momentos favoritos. Quando podemos
caminhar entre os carros e filmá-los enfileirados antes da corrida.
Caminhar perto de máquinas e pilotos tão velozes me permite sentir
ao menos um pouco da adrenalina que eles sentem.
Fala, galera do Garotas no Padoque, aqui é a Carol e nós
falamos direto da pista do Autodromo Enzo e Dino Ferrari. Hoje
temos uma corrida que pode ser decisiva! Isso porque o Juan,
segundo colocado no campeonato, está largando em primeiro, e
Jack, o primeiro colocado, larga em terceiro. Entre eles dois temos,
sem surpresa, Daniel Harris, que corre pela pontuação de duas
semanas, já que ele acabou abandonando a última corrida. —
Começo a andar entre os carros e Miyeko me acompanha, é normal
fazer isso porque outras repórteres querem se locomover e estar
parada no caminho provocaria um engarrafamento desnecessário. —
Apesar de o GP do ano passado ter sido, consideravelmente, um
sonífero por causa da chuva torrencial, como vocês podem ver hoje,
nós temos o sol reinando e, segundo a previsão, que acertou sexta e
ontem, não teremos chuva até o fim da corrida.
A gente consegue ver, mostra aqui, Miyeko, que no meio do
pelotão, o pneu macio impera, e mais para frente, os médios.
Aparentemente, a estratégia de quem está atrás é chegar nos da
frente e lá nas primeiras filas a estratégia é parar para trocar menos
vezes.
Ontem, depois do classificatório, pudemos conversar com alguns
dos pilotos, e essas imagens vocês vão ver agora, antes de a corrida
começar.
É com você, Paty.
Finalizo e começo a fazer o caminho inverso, para sair da pista,
sendo seguida por Miyeko.
— Nossa, você tá tão animada hoje, mas não te vi falar com seu
novato ontem. — grita, se colocando ao meu lado.
A fuzilo com o olhar e mostro a língua para ela antes de falar:
— Itália, sol e uma corrida que promete, amiga. Eu a assistiria na
sala de imprensa se não tivesse que ficar perto do cercadinho — falo
por cima do barulho de música e dos motores roncando que busca
animar a plateia.
— Mas a gente não tem — Miyeko diz quando saímos da pista.
—  Vamos lá.
— Não, Miy, eu gosto de entrar na transmissão se alguma coisa
muito absurda acontecer.
— A gente sempre fica do lado de fora, tomando sol ou chuva,
vamos entrar, só hoje!
Penso em rebater, mas minha amiga tem razão. Então apenas
assinto com um meio sorriso e a sigo.
A primeira vez que escutei o termo “sala de imprensa”, achei que
elas eram grandes salões, com níveis diferentes para cada tipo de
repórter ou veículo, com cadeiras acolchoadas. Também achei que
os pilotos ficariam sentados atrás de um balcão, que mesmo que não
fosse grande, trouxesse certa sensação de distanciamento, com
garrafas de bebidas dos patrocinadores e microfones modernos em
cima deles, algo como acontece no futebol.
Eu estava redondamente enganada. No nosso racha de
bilionário, a sala de imprensa muitas vezes tem cadeiras de plástico
e os pilotos se sentam cada um em uma cadeira que também não é
das mais confortáveis e seguram sua própria bebida ou mantêm as
garrafinhas no chão.
Mas, pelo menos por agora, esse é o espaço dos repórteres e é
até engraçado saber que vou poder assistir à corrida ao vivo para
escrever sobre ela.
— Tá cheio, né? — Miyeko sussurra.
— Sim, e todo dia alguém abre a boca pra falar que a imprensa
escrita morreu. — Suspiro olhando em volta. Tem, brincando,
dezenas de pessoas aqui.
— Nossa, nem acredito que a gente sentou esse fim de semana
— Miyeko confessa enquanto os carros fazem a volta de
apresentação no telão a nossa frente.
— A gente sempre senta em algum momento. — rebato com
uma careta confusa.
— Pouquíssimo tempo, são dez horas de Paddock por dia,
sabe?
— Tá, não é como se sentar nessas cadeiras de plástico por
duas horas fosse confortável de qualquer jeito. Mas você tem razão.
Tô exausta. Nem acredito que vamos ter uma semana de folga.
— Você vai ter, né?
— Privilégios. — Brinco, observando os carros se alinharem em
suas posições de largada, e não tem erro: meu coração ainda se
aperta como se fosse a primeira.
Desgrudando as costas da cadeira e jogando o corpo para
frente, apoio os cotovelos nos joelhos. É involuntário, mas o canto
direito da minha boca se curva num meio sorriso ao mesmo tempo
em que meu coração acelera com tanta expectativa. As luzes de
largada começam a se acender e o silêncio da sala é sepulcral.
Como se todos prendêssemos a respiração ao mesmo tempo para
ouvir a doce música dos cinco bipes de cada uma das luzes. E, em
seguida, o vazio que preenche tudo quando elas se apagam.
O momento no qual finalmente conquistamos o que estamos
buscando desde o segundo que aterrissamos em cada país: a
largada do Grande Prêmio.
Capítulo 15
Ou: Opa! Eu fiz de novo.

Oops!... I Did It Again - Britney Spears

Daniel
Todas as vezes que eu entro na garagem, desde a minha antiga
equipe, a sensação é a mesma: estou à beira da transcendência.
Nesse lugar, fazendo o que faço, eu me torno quem nasci para ser.
A garagem cheira a óleo, suor e pneus novos. Já o som
ambiente é algo entre um show de metal e um manicômio.
Do outro lado dos boxes, Rick grita no headphone, o que é
normal. No momento que nossos olhos se cruzam, meneio a cabeça
para ele, que pisca para mim e procura Jack em seguida. Menos de
um segundo se passa até que Rick perceba que meu companheiro
não está aqui e volte o olhar para a tela do computador, de onde nem
gostaria de tê-lo tirado se bem conheço meu chefe.
Os nervos de Rick estão à flor da pele porque, se tem uma coisa
que quase ninguém fora do automobilismo acredita, mas que é
verdade, é que até o carro chegar na pista para a corrida, ele ainda
está sendo ajustado. E cada um desses ajustes é relevante.
Observo a correria de mecânicos e outros funcionários da equipe
para fazerem os últimos ajustes nos carros. Me mantenho longe do
meu veículo o suficiente para admirá-lo e, ao mesmo tempo, dar
espaço para que o mecânico embaixo dele possa fazer seu serviço.
— Ela é linda, né? — Jack, que sempre se refere ao seu carro
como “minha garota”, para ao meu lado gritando em meu ouvido.
— Sem querer me gabar, mas ela é a mais bonita do grid. — Rio,
observando cada detalhe do AR31, nosso carro para esse ano.
Predominantemente preto com detalhes em prata, sua única
distinção é a listra que faz alusão ao nosso patrocinador master,
cortando todo o chassi num vermelho intenso. É um carro imponente,
robusto, e o símbolo da equipe, um A com uma flecha cortando-o, só
carimba a autoridade que apenas a melhor equipe do grid poderia
carregar.
É impressionante como a adrenalina, que comicha nos pés faz
as pernas tremerem, fecha a garganta por alguns segundos e deixa
o coração acelerado a corrida inteira, não começa quando a gente
chega na pista, mas sim, quando estamos cara-a-cara com o carro.
— Beleza, Harris. Fala com ela. — Jack dá dois tapas em
minhas costas e me viro para ele.
— Agora? Tem, tipo, seis pessoas em volta dela.
— Daniel. Agora. — A sobrancelha empinada de Jack não
permite contrariá-lo. — Vou conversar com a minha garota também.
— Avisa me dando as costas, seguro de que vou fazer o que pediu.
E ele está certo, eu vou. Porque depois de todo o estresse da
corrida passada, a única coisa que eu quero é fazer a minha parte
bem-feita. Me aproximando do meu veículo, me ajoelho diante dele e
apoio a cabeça na roda.
— Camon, baby girl. Seja uma boa garota hoje, tá bom? Você só
precisa aguentar essa corrida, depois vai ter duas semanas de Spa.
Rick me comunicou isso ainda na Austrália. No fim da noite de
domingo, ele foi até o meu quarto levantar uma bandeira branca. Não
pedimos desculpas, agimos como se nossa discussão, ou melhor,
minha humilhação, da tarde não tivesse acontecido, e falamos sobre
o carro. Rick me deu alguns conselhos preciosos, outros nem tanto,
como, por exemplo, conversar com Jack.
Segundo Rick, “Ele já foi o cara novo numa equipe grande um
dia e saberia te ajudar.”.
Jack realmente ajudou, mas não porque ele tinha palavras de
sabedoria para compartilhar, e sim porque meu amigo riu da minha
cara quando eu disse que estava inseguro quanto ao assento na
equipe.
Ele olhou no fundo dos meus olhos, como se fosse me contar um
segredo precioso, e disse: ninguém vai te demitir, Harris. Tu é o
terceiro colocado do campeonato no seu primeiro ano numa equipe
grande e seu contrato dura cinco temporadas, meu anjo, ninguém vai
te pagar quatro anos pra ficar em casa. Levanta essa bunda, trata
bem a sua garota e bota ela pra andar na linha.
A lembrança me faz revirar os olhos e suspirar aliviado, antes de
levantar, faço apenas mais um apelo:
— Você realmente precisa andar na linha hoje, baby girl. —
sussurro para a roda do carro antes de depositar um beijo nela e me
levantar.
Estranhamente, não me sinto um idiota fazendo isso.

É bom estar de volta.


Richard me garantiu que teríamos uma boa corrida hoje e estava
certo. A largada foi tão suave, que não tive nem dificuldade de
segurar posição, as duas primeiras voltas me ajudaram a acalmar
meus nervos e conseguir controlar essa caixa de combustível.
Jack não me dá um segundo de paz, mas depois de nove voltas
é bom saber que apesar dos pesares ainda consigo segurá-lo atrás
de mim.
— Por ora, não vai haver disputa. — Meu rádio traz uma notícia
pela qual não estou esperando.
— Não sei o que você está vendo por aí, Sir Phillip, mas consigo
sentir o calor do carro dele no meu cangote.
— Harris, não vai haver disputa. — Phillip não precisa ser mais
específico para me fazer entender.
Existe uma regra que diz que todo piloto que está a menos de 1
segundo de distância do carro da frente pode, em áreas pré-
determinadas da pista, a zona de DRS, abrir a asa móvel e pegar
mais velocidade para ultrapassar o carro da frente.
No entanto, uma vez que você ultrapassa, perde a possibilidade
de abrir essa asa móvel, ou seja, o carro volta a ficar mais lento.
Então se sua máquina não for, naturalmente, mais rápida que a de
trás, você vai ser ultrapassado novamente. No fim do dia, Fórmula 1
é ritmo.
Vence quem tem o melhor ritmo e, ao menos hoje, esse alguém
não é Jack.
Foco meus olhos na pista à frente e sigo em busca de Juan, que
já está a bem mais do que um segundo na minha frente. Contudo,
preciso ultrapassá-lo se quiser terminar essa corrida bem.
Tem uma outra regra na Fórmula 1, essa não regulamentada,
mas estabelecida há muito tempo: o segundo piloto de uma equipe,
nesse caso, eu, é obrigado a dar passagem para o piloto com mais
chances de um título mundial.
Voltas, voltas e mais voltas se passam, e eu ainda estou a 2
segundos de Juan. Phillip grita que eu preciso acelerar mais o carro,
respondo que estou fazendo tudo o que posso, mas nós dois
sabemos que não estou.
— Vamos, garota, a gente consegue. — Seguro o volante com
mais força e tento, com tudo o que tenho, fazer esse carro andar.
Mas, numa fração de segundo, isso muda. Deixo o acelerador e
busco pelo freio na tentativa de desviar de uma... asa dianteira.
Não é como se eu conseguisse ver algo a 260Km/h, mas alguns
borrões são inconfundíveis. Dois carros. Dois pilotos. Um acidente.
E o meu coração, assim como o dos outros 17 pilotos, para por
alguns instantes. Até que nossos engenheiros entram no rádio para
dar a notícia.
— Incidente de corrida, Harris. Vamos ter safety-car por causa
de destroços, mas os dois já saíram dos carros e estão bem.
— Bem mesmo ou bem vão precisar ir para o hospital?
— No máximo uma enfermaria, Daniel. Eles estão bem.
O suspiro de alívio que deixa meu corpo é inexplicável. Não é
como se ninguém soubesse o que pode acontecer. Eles sabem,
nossas famílias sabem, eu sei. Mas, às vezes, preferimos ignorar.
Circulamos seis voltas atrás do safety-car, das quais vamos aos
boxes, trocamos os pneus e voltamos para a pista. Uma vez que o
safety-car serve para controlar a velocidade que podemos atingir e
impede ultrapassagens enquanto destroços são retirados do circuito,
essa é a melhor hora, senão um momento obrigatório, para visitar os
boxes sem prejuízos.
Por mais frouxo que possa parecer, eu teria ficado mais tempo
andando lentamente atrás dele. Com um fim de semana tão ruim
quanto o passado, é como se eu e meu carro estivéssemos reatando
o relacionamento depois de uma briga feia e a confiança não chega
só porque vocês decidiram reatar.
Sendo assim, poder desacelerar, fazer os movimentos
necessários para manter os pneus aquecidos e sentir o carro me
ajuda a me conectar com ele. Como se eu tivesse me reconectando
a uma parte de mim. Percebo, então, que Jack está errado.
Pelo menos no meu caso.
Eu e meu carro não somos um casal de namorados brigados,
mas uma dupla de irmãos que se desentendeu, mas sabe que
funciona melhor junto.
Quando o Safety-car deixa a pista, um sorriso toma meu rosto.
Seguindo a traseira de Juan, muito mais perto do que antes,
chamo Phillip para entendermos a estratégia.
— Até o fim da corrida com esses pneus?
— Sim. Principalmente se ele parar de novo.
— Você acha que ele para?
— Ele colocou pneus macios, faltam mais de 20 voltas.
— Então vou manter o ritmo e vou até o final.

Não, você não vai manter nada, você vai acelerar. — Phillip
diz as palavras como se não acelerar pudesse custar minha vida, e
entendo assim que a parada de Jack durante o safety-car deu
resultado em seu carro e que, caso precisem priorizar algum piloto, o
felizardo não serei eu.
— Sir Phillip, me deixe sozinho agora, tudo bem?
— Positivo.
A resposta de Phillip é exatamente o que eu queria ouvir.
Falta muito pouco agora e preciso, urgentemente, parar de
pensar.
Silenciando o mundo todo lá fora, foco em apenas em dois
barulhos: minha respiração e o ronco do motor do meu carro. Todo o
resto está distante agora. A segurança que faltava no início da
corrida já não falta mais, e eu sei, simplesmente sei, que estou muito
perto de alcançar meu alvo e ultrapassá-lo.
Inspiro o ar de maneira pesada e o vento que cortava minha face
há segundos agora rasga minhas narinas, mas não me importo com
o frio do ar. Dentro do carro está quente o suficiente.
Acelero o carro até o limite e então o botão da asa móvel apita,
me avisando que estou a menos de 1 segundo de Juan. O aperto e
jogo o carro ao lado do de Juan, tentando uma ultrapassagem em
cima da curva, mas ele defende. Me mantendo atrás. Na reta,
contudo, a história é diferente.
Jogo meu carro ao lado do dele e passo direto. Juan sabe que
está mais lento, não adiantaria resistir. Assim, tomo a liderança da
corrida, algo que não acontecia desde Silverstone. Até espero, mas
Phillip não diz nada, é o nosso acordo, então entendo.
Mas gostaria de ter com quem comemorar esse momento, então
grito mesmo que sozinho. É apenas um primeiro lugar, no meio de
uma corrida, mas com a confiança negativa que entrei nesse carro,
esse primeiro lugar significa muita coisa.
Meu ritmo está bom, a corrida nos eixos, o carro voando, como
se não tivesse me deixado na mão na última semana, e entrar e sair
das curvas também não apresenta nenhuma dificuldade. De repente,
Phillip chama meu nome, mas não respondo, porque agora só
preciso contin—
Capítulo 16
Ou: Por favor, não me deixe. Eu sempre digo que não preciso de você, mas nós

sempre acabamos voltando a este ponto por favor, não me deixe!

Please Don't Leave Me - P!nk

Carol
Toda a sala de imprensa vibra quando Daniel finalmente
consegue ultrapassar Juan, então eu vibro também. Mas não sem o
olhar julgador de Miyeko para cima de mim.
Todo mundo, absolutamente todo mundo, se joga para frente,
sentando-se na ponta da cadeira quando Dani faz a curva dos boxes.
Isso porque têm dois carros se dirigindo à saída. Por mais que eles
não atrapalhem Daniel diretamente, já que estão no fundo do grid, a
tentativa de evitá-los ou o ato de estarem à sua frente podem ajudar
Juan a se aproximar, fazendo-o perder a posição recém-conquistada.
No entanto, o primeiro piloto corta a linha dos boxes antes que
Daniel se aproxime da saída e, quando ele abre distância para a
esquerda, os suspiros de alívio são ouvidos, já que Daniel se
mantém à direita. Em seguida, ele segue rente à linha da saída dos
boxes para não diminuir o ritmo e deixar Juan ainda mais distante.
Parece impossível que tanta coisa possa acontecer em menos
de um segundo e transformar corações em baterias e testas em
verdadeiros suadouros, mas é exatamente isso o que acontece.
Contudo, nos damos conta tarde demais de que Daniel talvez não
tenha notado o segundo carro que sairia dos boxes.
Um arrepio corta meu corpo dos pés à cabeça, me fazendo me
levantar, mas antes mesmo que eu esteja de pé, a roda dianteira do
segundo retardatário bate na traseira de Daniel. Não com violência,
uma vez que na saída o carro está mais lento, mas o suficiente para
tirá-lo da pista.
É Emilia Romagna, não existe um grande canteiro de britas no
qual o carro chega e fica atolado. Com isso, o carro de Daniel roda
para a direita com tudo e, quando entra na grama e bate no limite da
pista, ele volta, fazendo meu coração parar. Eu não sou mais a única
pessoa de pé, sem falar, sem respirar, com as pernas trêmulas
enquanto observa se Juan e Jack vão ter tempo de desviar de
Daniel.
Mesmo quando os carros conseguem contornar a Arrows
amassada e fumegante, parada com metade do cockpit dentro da
pista, evitando que um acidente ainda mais sério aconteça, tudo em
mim dói.
Minha cabeça dói, minhas pernas de gelatina me forçam a me
sentar novamente e, no segundo que a imagem de Daniel é retirada
da tela, o ar que entra em meus pulmões vem como se alguém
tivesse quebrado milhares de pedacinhos de vidro e soltado no
vento.
Cortando minhas narinas, meus pulmões, minha alma, porque
não existe nenhum motivo bom para que a transmissão de um
acidente seja cortada.
Metade dos repórteres se senta logo depois de mim, e a outra
metade corre para o lado de fora. Eu deveria correr, deveria coletar
informações e abrir transmissão ao vivo com o canal, mas nada em
mim se move.
É como se, de repente, meu corpo não obedecesse mais ao meu
cérebro.
Miyeko não diz nada, apenas segura minha mão e deita minha
cabeça em seu ombro enquanto uma lágrima involuntária escorre
pelo meu rosto.

A pior parte de estar trabalhando nessas ocasiões é: estar


trabalhando e precisar terminar seu expediente como se aquilo não
tivesse abalado até seus ossos.
Não apenas porque o acidente envolveu Daniel. Mesmo na
batida mais cedo, todo mundo ficou um pouco abalado e só respirou
direito depois da confirmação de que ambos os pilotos estavam bem.
No caso de Dani, no entanto, foi mais difícil. Não tivemos
transmissão do momento depois da batida, ninguém tinha
informações de como ele estava. Ao mesmo tempo que chegou a
notícia de que Daniel tinha saído do carro andando, chegou a de que
ele tinha ido para o hospital, e não para a enfermaria.
Piloto nenhum vai para o hospital porque saiu do carro tonto.
Era visível como tanto profissionais da comunicação, quanto
equipes e atletas passaram o resto do dia meio que no piloto
automático. A corrida acabou, as entrevistas pós-GP vieram, a
cerimônia do pódio aconteceu, mas as notícias de Daniel só
chegaram depois disso.
— Que tipo de pessoa “bem” precisa ficar 24h em observação,
Miyeko? — pergunto batendo a porta porque, não faz o menor
sentido.
Simplesmente não faz. Jogo o celular na cabeceira da cama, tiro
os sapatos de qualquer jeito, jogando-os no canto, e vou até o
armário abrindo as portas, sem saber o que fazer.
— Eu estou bem, sabe como sei disso? Estou de pé, num quarto
de hotel, distinguindo os cheiros das flores de quinta que deixaram
no quarto e o de aromatizante que vem do armário. E, é claro, não
preciso de 24h de observação. — Fecho as portas que nem sei por
que abri.
Minha amiga fica parada, recostada na porta enquanto me
observa andar de um lado para o outro no quarto do hotel. Que nem
é o menor dos que fiquei hospedada esse ano, mas me sufoca
mesmo assim.
— Você sabe que está sendo irracional, não sabe?
Abro a janela que dá direto para a rua e o barulho dos carros me
incomoda, mas vou até o frigobar, na parede paralela a do armário,
para pegar uma água e ignoro a feira lá fora, assim como a pergunta
de Miyeko.
— Carol, senta. — Minha amiga pede, e sei por que ela está
fazendo isso: minhas pernas.
Elas não param. Não tenho nem lembrança da última vez que
elas não estavam tremendo.
— Não quero.
— Meu Deus, que ansiedade é essa. — Miyeko vem até mim e,
antes que eu possa protestar, seu pequeno corpo já me empurrou
até a cama e ela apoiou as mãos nos meus ombros, me forçando
para baixo até que eu sente. — Para de tremer essas pernas — ela
grita e eu me encolho, firmando os músculos na tentativa de mantê-
las paradas e levando o copo, que molhou boa parte do chão e do
carpete, até a boca.
Ainda nem terminei de beber a água quando minha perna direita
volta a balançar.
— Carol, ele está bem, o Jack saiu de lá agora. — Ela diz
baixinho. Como se eu não fosse escutar de qualquer forma. — O
Harris está acordado, falando...
— Você tava lá, Miyeko, você viu. — digo porque as palavras
dela não me convencem. Ele estar acordado é totalmente diferente
de estar bem, mas não quero verbalizar esses medos. — O carro
dele rodou como se fosse uma folha de papel, e ainda voltou pra
pista, em tempo de... — Minhas palavras se perdem, se perdem
porque não consigo nem imaginar o que teria acontecido com Daniel
se o carro dele parasse no meio da pista e Jack ou Juan não
conseguissem desviar.
Na verdade, o que teria acontecido com os três.
Ouço quando Miyeko respira fundo antes de se sentar ao meu
lado, o jeito que ela afunda no colchão exageradamente mole teria
me feito rir em outro momento.
— Amiga, eu sei que você está mal porque vocês tretaram e seu
medo era esse homem morrer sem saber o quanto você o ama e —
— Eu não amo o Daniel, Miyeko — interrompo-a porque a última
coisa de que eu preciso é desse fantasma em cima de mim agora.
— Tudo bem. Seu medo era ele morrer achando que você o
odeia. — Dessa vez não a corrijo, e minha amiga segura meu rosto,
me observando um tempo. — Eu vou sair do quarto, e já mandei o
número pra você. Conversa com ele.
— Você está louca. — Uma risada sem emoção deixa meus
lábios.
— Quem vai ficar doidinha da cabeça é você se não tiver certeza
de que ele está bem. Então, por favor, vamos fingir que você não vai
ligar pra ele assim que eu sair, tá bom?
— Eu não vou. Você está dizendo que ele está bem, conseguiu
informações diretamente de alguém que está lá, por que eu ligaria
pra ele?
— Você não sabe? É isso o que fazemos quando não amamos
alguém. — Miyeko ironiza e se levanta. Juntando as duas mãos, as
eleva acima da cabeça e se espreguiça. — Vou tomar um banho, e a
senhorita devia fazer o mesmo. — Miyeko beija minha bochecha e
começa a se afastar. — Já, já, eu venho ficar com você, tá bom?
Assinto, engolindo novamente outro bolo que se forma em minha
garganta.
— E, Carol — ela me chama, abrindo a porta do quarto. — Não é
pra mim que você tem que perguntar por que seus olhos não saem
do seu celular desde que eu te falei que o número do Harris está lá.
É pra ela. — Miyeko aponta para trás de mim e quase me assusto,
mas logo me dou conta de quem ela está falando.
De mim.
Minha amiga está apontando para o espelho do armário.
Miyeko sai do quarto, e eu ainda estou me encarando.
Questionando por que tenho sido tão dura com Daniel. Tentando
entender por que briguei com ele e joguei em cima dele a culpa do
que o Gabriel fez. O pensamento de Daniel morrendo naquela pista
me invade mais uma vez e eu não consigo nem dizer que me sinto
mal, nervosa ou desesperada.
Só me sinto vazia.
Capítulo 17
Ou: Eu fui um anjo o verão inteiro, juro que não fiz nada de errado. Quero que todas as suas lágrimas sumam, venha comigo.

Kill You To Try- Daisy Jones & The Six

Daniel
— Alô? — Atendo meu telefone pessoal, o único que Jack me
trouxe, com a cabeça inclinada para trás e tentando não me mover
tanto.
Cada músculo do meu corpo ainda dói, e o bip incessante do
monitor cardíaco não ajuda com a dor de cabeça. Mas mantenho os
olhos fechados. Abri-los nessa imensidão de luzes frias seria minha
morte.
Ouço a respiração do outro lado da linha, não é tão pesada
quanto imaginei que seria, mas espero que ele se manifeste. Já tem
quatro horas que cheguei aqui e só a mamãe me ligou até então.
— Estou tendo um dia péssimo. Então, por favor, se você puder
só falar... — O incômodo em minha voz é muito mais intenso do que
a dor que estou sentindo, mas um cara pode exagerar de vez em
quando.
Um longo suspiro toma o lugar das respirações curtas, e eu
desisto. Ele nunca consegue fazer as coisas certas. Não sei por que
achei que conseguiria dessa vez.
— Se você não tem nada a dizer, vou desligar. — As palavras
voam duas vezes mais rude que o necessário, mas não consigo me
conter.
— Dani? — O sussurro trêmulo e amedrontado que desliza em
meu ouvido faz minha pele arrepiar e minha espinha enrijecer.
Não é o meu pai. Mas eu reconheceria aquela voz em qualquer
momento.
— Pimentinha? Aconteceu alguma coisa?
Ouço-a rir, um riso rápido e desajeitado.
— Você bateu na corrida, Daniel Harris. Rodou para tudo que é
lado, quase foi acertado por outros dois carros — enumera
praticamente gritando. — O que aconteceu com você? — pergunta.
Ela está definitivamente exaltada agora.
— Eu estou acamado, Caroline Pimenta. Não grita comigo.
— Não gritei com você. — A fala amena me deixa de queixo
caído com a coragem de mentir bem no meu ouvido. — Anda, o que
aconteceu lá? Foi problema no carro e ninguém quis falar?
— Não, por quê?
— Você tava beijando a roda do seu carro semana passada...
nunca vi você fazendo aquilo.
— Então você estuda meus rituais pré-corrida, é, Pimentinha? —
Brinco e meus olhos fechados me permitem imaginar seus olhos
semicerrados e sua boca meio aberta em recusa.
— Isso faz parte do meu trabalho. — A resposta é boa, mas nós
dois sabemos que é mentira.
— É, o carro tava brigando comigo mesmo. Mas você não pode
publicar isso. — Não preciso especificar para ela o quão prejudicial à
nossa estratégia seria as outras equipes terem ciência dos próximos
passos com meu carro.
— Eu não te liguei como repórter, Daniel.
— Ah, não? — Já que ela não é a repórter, posso brincar um
pouco. — Bom, tive que beijar o carro, porque sabe como é, né?
— Sei? Sei o quê?
— A roda do carro é a única coisa que eu tô podendo beijar.
Carol Pimenta bufa, e eu seguro o riso.
— Daniel. Se não foi o carro, o que aconteceu naquela pista? —
pergunta com a voz irritadiça, mas o medo presente quando ela falou
pela primeira vez está de volta.
— Eu tava pensando. — Exalo frustrado.
— Por que você tava pensando? — Só o tom de voz me faz
visualizar Carol fazendo caras e bocas enquanto anda pelo cômodo.
— “Não pensar” é o básico do seu esporte. Você reage, você não
pensa.
— Tem um monte de coisa acontecendo, tá legal? — Me esquivo
do esporro da maneira que posso.
Carol volta a ficar em silêncio e apenas sua respiração fala
comigo. Ela inspira e expira de maneira rápida, cortando a sequência
apenas quando engole em seco, duas vezes.
Ela está hesitante, talvez um pouco ansiosa.
“Carol Pimenta me ligou.”
Para a minha surpresa, não me levantei da cama e comecei a
correr em círculos no quarto tropeçando em aparelhos de hospital
quando ouvi sua voz.
“Carol Pimenta me ligou.”
Seu cheiro, seu sorriso, o modo como semicerra os olhos para
mim ou desdenha das minhas investidas preenchem minha mente
enquanto espero Carol dizer alguma coisa, se ela não o fizer nos
próximos três segundos, eu farei.
— Você tá bem? —  A pergunta é direta e rápida, mas sua voz a
entrega no final da frase. Trêmula o suficiente para mostrar o quanto
ela está preocupada.
— Por que a pergunta? — desafio. Vamos ver o quanto ela
consegue se fazer de sonsa.
— Porque eu sou jornalista, ué.
— Pimentinha... — Chamo sua atenção, no tom de quem sabe
que ela está sendo dissimulada e mordo o lábio inferior, sorrindo. —
Você não me ligou como jornalista, lembra?
— Claro que lembro, te liguei por um único motivo, mas você já
me fez perder o fio da meada. — Ela não está para brincadeiras.
— Qual é o motivo, Caroline Pimenta?
— Se você me deixar falar, vai saber — rebate, como se eu a
tivesse interrompido.
— Grossa — debocho.
— Assertiva — ironiza.
— Tudo bem, Pimentinha. Fala.
— Como você tá? — repete a pergunta anterior, quase num
sussurro, e eu cedo.
— Cansado. Dolorido. Mas com tudo no lugar.
— Dani, você não mentiria para mim, não é? — A voz dela
murcha uma vez mais e isso não deveria me afetar, mas afeta. — Eu
sei que a gente não...  Mas, você me diria se...
— Pergunta o que você quer perguntar, Carol — corto-a antes
que ela se enrole ainda mais.
— Como estão suas pernas? — As palavras se atropelam e ela
respira fundo por fim.
Apesar da luz, observo meus dedos dos pés fora do lençol azul
que já está todo amassado porque, mesmo dolorido, não consigo
parar quieto. Mexo os dez como se eu não soubesse que todos
estão em perfeito estado. Giro as duas pernas lentamente para a
direita e depois para a esquerda, as encolho e dobro o joelho por
completo devagar. Apesar da dor, elas estão tão funcionais quanto
antes.
— Daniel? — A voz estridente me desperta do momento
analítico.
— Tudo no lugar. Tudo certo. Perna, joelhos, pés, dedos...  — O
alívio de Carol pode ser sentido em um suspiro profundo e... Ela
acabou de fungar? — Você tá chorando, Pimentinha? — pergunto, e
a coisa mais importante do mundo nesse momento para mim é
abraçá-la.
Pena que ela esteja tão longe. Fecho os olhos para me esquivar
da luz e afastar a angústia que bate em minha garganta.
— Não, é que... — Tenta iniciar, mas é desmentida por outra
fungada. — Nossa, Daniel, quando eu vi aquele carro te jogando
para fora da pista parecia...
— Parecia?
— Que era mentira. Você nunca faria aquilo, andar rente à saída
dos boxes? — Carol força uma risada, mas é como se eu pudesse
enxergá-la secando o rosto com o dorso da mão. — Quer dizer, seu
engenheiro te avisaria, sua equipe falaria alguma coisa e... — Ela
engole em seco. — Não fez sentido, só não fez. A primeira coisa que
eu pensei...
— A primeira coisa que você pensou?
— Que eu não queria que você morresse.
Uau. Pelo menos ela não me quer morto.
Mas, verdade seja dita: Carol Pimenta sabe que não estou
morto, ou seja, não é exatamente por essa razão que estamos nos
falando agora.
— Bom, não morri. E você sabe disso, então por que me ligou?
— Porque queria saber se suas pernas estavam bem — diz
como se fosse óbvio.
Consigo ouvi-la engolindo algumas vezes em seguida,
provavelmente está bebendo água depois de parar de chorar.
— Não foi, Carol. Você poderia ter esperado, ter perguntado a
outras pessoas... Por que você ligou? — pergunto novamente,
porque preciso da verdade.
— Por causa do meu segundo pensamento.
Temos um avanço aqui.
— Que foi?
— Eu-eu não queria que você morresse achando que eu te
odiava.
— Você me odeia?
— Não.
— E quer que eu viva achando que odeia?
— Não, Daniel. — O farfalhar de tecidos no telefone e a
alteração no tom de voz entrega que ela se deitou.
— Então por que faz tanta questão de demonstrar o contrário?
— Não demonstro que te odeeeeio, odeio... — diz, na defensiva.
— Também não é nada amigááável, amigável... — rebato, e ela
deixa um riso sem humor escapar.
— É complicado.
— Eu não vou a lugar algum... Se quiser falar. — Encolho os
ombros, mesmo que ela não possa ver, e me arrependo em seguida.
Dói pra cacete.
— Não tem mistério — diz ela, logo depois de dizer que é
complicado. — Eu só queria muito ser eu. Não a sua ex-namorada, e
como a gente perdeu contato com o tempo, não tinha por que forçar
algo quando cheguei. E depois...
— Depois eu fui um babaca?
— Não foi, você foi você. E eu gosto. — Me permito imaginá-la
rindo de canto e me observando de rabo de olho — Mas eu tinha
alguém e...
— Tinha?
— Tenho. — Se apressa em jogar minhas esperanças no chão.
— Foi modo de falar. Eu tenho alguém e não queria que você ficasse
entre a gente.
— E eu acabei ficando, né?
Carol demora um tempo incômodo para responder, mas não
quero pressioná-la. Forço meu olho direito a abrir e, para a minha
surpresa, as luzes estão um pouco menos intensas. Não baixas, não
escuras, só pararam de parecer neon, então abro o esquerdo
também.
— Na verdade, não quero falar com você sobre isso, Dani. Não
faz sentido.
Tudo bem, não faz.
— Sem problemas. Mudando de assunto, eu que não te vi na
Austrália ou você não tava lá?
— Não tava. A gente não conseguiu patrocínio para estar, na
verdade. Oriente Médio, Oceania, Ásia...
— Ah, que chato. Mas veículo independente é uma merda
mesmo nesse sentido.
— Sim. A Miyeko tem mais rodagem, né? Acho que se ainda
fossem ela e Paula, elas conseguiriam. Mas nem todo mundo quer
investir na menina nova. — Sua frustração é evidente.
— Para de ser boba. Você é extremamente competente. Eu amo
sua escrita, sua postura, como você tem intimidade com a câmera...
Você é ótima. Uma hora vai acontecer.
O silêncio absoluto do outro lado quase me faz perguntar se ela
ainda está aqui, mas Caroline suspira e entendo que sim.
— Espero que meus patrocinadores entendam tanto da minha
carreira quanto você — diz com um sorriso na voz.
Eu poderia tentar dizer que ela me interpretou mal, ou que eu só
li uma coisa ou duas. No entanto, só consigo pensar em seus lábios
grossos, dentes alinhados e bochechas empinadas que sempre me
contaram a história de que ela tem o sorriso mais bonito do mundo.
— Eu também. — Me exponho, por fim.
— Bom, já é tarde e ainda preciso trabalhar, fico feliz de saber
que você está bem, Dani. De verdade.
— Carol — chamo, e ela me responde com um “uhum”. — Eu sei
que vacilei e foi por minha causa que a gente parou de se falar...
— Esquece o passado e diz o que você quer, Novato.
— A gente pode, por favor, não parar de se falar de novo? —
Fecho os olhos e pressiono a ponte do nariz.
Se essa mulher me disser um não, vai ser pior do que se ela
nunca tivesse me ligado.
— Só se você prometer não forçar a barra!
— Prometido. — Abro os olhos e um sorriso.
— Então, tá bom. Até mais.
— Não, calma... — Preciso continuar aqui, só mais um pouco. —
Eu sou um homem que nasceu de novo, tenha dó da minha solidão.
— A tia não vem ficar com você?
— Não, porque eu tenho alta amanhã.
— Ah, é verdade.
Uma ideia aleatória e insana cruza meus pensamentos.
— O que você vai fazer semana que vem?
— No fim de semana de folga? — ela pergunta, e eu murmuro
um “uhum”. — Descansar, ver uns vídeos no youtube, ficar com as
pernas para o alto em vez de passar doze horas em pé. Por quê?
Uma segunda chamada se apresenta, ouço os bips, mas ignoro.
— Vamos pro Brasil?
— Eu vou pro Brasil no fim da temporada. Não tenho grana para
um bate e volta semana que vem e para ir de novo duas semanas
depois.
— Carol, não seja lerda. — Ouço seu arfar revoltado e rio. — Te
fiz um convite. Vou pro Brasil no jatinho da equipe.
— Nossa, não precisa. Eu realmente tenho coisas para resolver
aqui e...
— Tem certeza? Cabem umas oito pessoas naquele jato, tem
mesa de refeições e até cama. — Exalto a maior conquista da minha
vida de piloto.
Depois de um carro bom, é claro.
— Duas camas? — O tom inquisitivo me faz gargalhar.
— Uma cama. Mas eu tô acostumado a dormir nas poltronas. —
Me apresso em deixar claro que a cama é dela.
— Posso te dar a resposta até quando?
— Viajo terça à noite, só preciso avisar à tripulação que seremos
dois.
Carol se cala por um tempo e acho que está ponderando as
opções. A escuto se levantando da cama. Então um som de gaveta
abrindo e logo em seguida fechando invade a ligação.
— Tudo bem, pode avisar. Mas se você fizer alguma gracinha,
Daniel... — O tom de ameaça dela jamais permitiria.
— Não vou. Já falei, sou um homem doente.
— Ah, a gente chega quando a Zandvoort?
— Terça. É uma viagem rápida. Só pra gente rever nossas
famílias incríveis.
Carol segura o riso.
— Agora eu preciso ir, Dani. Até depois de amanhã.
— Te vejo logo, Pimentinha.
Desligo depois dela e vejo que meu pai ligou. Na verdade,
percebi a chamada dele em algum momento da conversa com Carol,
mas ignorei.
Não quero retornar e, ao que tudo indica, não preciso. Porque
seu Fernando Torres me mandou mensagens, e é assim que prefiro
me comunicar com ele.

Oi, filho. Como estão as coisas? Estou tentando te ligar, mas


só dá caixa postal ou ocupado. Você deve estar longe do
telefone agora, espero que esteja bem. Sua mãe me falou que
está, na verdade. Mas, se você preferir não vir, eu vou
entender.Não tem problema você ir pra Londres ou até ficar
onde está, eu pego um hotel por perto no fim de semana e a
gente ainda consegue passar alguns dias junto.
Te amo, filho.

Cada uma dessas linhas me diz algo.


Cada palavra da mensagem é carregada de saudade, amor e
preocupação. Eu sei. Mas também está envolta em ressentimento.
Ser a decepção do papai vem com um peso, e não é todo dia que é
fácil carregar.
A proposta dele é tentadora, não por irmos a Londres ou ele vir
aqui, mas por só passarmos dois dias juntos, acho que isso é o
máximo que eu aguentaria sem a gente se chocar.
Mas não tem a menor chance de eu não ir para o Brasil, não
agora que Carol Pimenta vai comigo.
Capítulo 18
Ou: Nós fizemos estas memórias para nós mesmos, onde nossos olhos nunca fecham, nossos corações nunca estiveram partidos e o tempo está

congelado para sempre.

Photograph – Ed Sheeran

Carol
Sentada à mesa do quarto, pressiono o botão de chamada de
vídeo no celular. Enquanto Laís não me atende, meus olhos seguem
fixos no notebook e nas pendências que preciso resolver antes de
viajar. Adiciono o envio de um artigo sobre as equipes que estão se
desenhando como as decepções da temporada para um site que
faço freelas e isso me dá taquicardia, parece que essa lista só
cresce.
— Oi, amiga. — Laís atende, e meu coração automaticamente
se acalma.
— Oi, meu amor. — Encaro a tela, me surpreendendo com seu
novo corte, na altura do queixo. Mas é uma surpresa boa, tudo
combina com sua carinha fina e oliva de boneca latina, então ela não
está nada menos que linda.
— Carol? — me chama de volta à Terra, franzindo o cenho
enquanto caminha pelas paredes do corredor da minha antiga casa.
— Tá tudo bem?
Me dou conta de que a saudade é tanta, que estou estudando
cada pedacinho do rosto dela e balanço a cabeça para afastar esse
pensamento.
— Claro. Por quê? — respondo com um risinho de canto.
— Tá animada... Parece, pelo menos. — Assinto com
veemência. — É por que faltam três semanas pra você dar um pé
naquele babaca ou porque vai passar as férias comigo?
— Porque vou te ver em menos de uma semana! — anuncio ao
que minha amiga se joga na cama e me encara confusa. Com o
cabelo mais claro, a escuridão de seus olhos parece ainda mais
profunda.
— Ou eu não sei mais fazer conta, ou algo aconteceu.
— Ah, o Daniel...
— Menina, o Daniel. — Laís se assusta à menção do nome e
cobre a boca com a mão livre. — Você tem notícias dele? Da última
vez que atualizaram algo no Twitter, diziam que ele está em perfeito
estado, mas que vai ficar em observação.
— Laís, calma. — Abaixo a tela do notebook me levantando da
cadeira e dou três passos até a cama. — O Daniel está, sim, em
observação, mas ele está bem. E irritante. — O sorriso de orelha a
orelha em minha cara denuncia o alívio que senti ao conversar com o
Novato.
— Ah, vocês se falaram, então?
— Eu liguei para ele... — O riso da minha amiga preenche o
visor com a imagem dela se balançando na cama aos gritinhos de
“meu Deus”. — Queria saber se ele estava realmente bem, Laís. Só
isso. — Desvio o olhar, sem jeito.
— Tá, tá, só isso — ironiza. — E como assim você vem me ver,
quando chega?
— Então... — Observo a tela reticente porque logo depois de
dizer que era “só isso” preciso assumir que talvez não tenha sido. —
O Daniel vai me dar uma carona no jatinho da equipe dele, a gente
viaja terça à noite, quarta eu chego aí.
Laís volta a se balançar na cama, mas dessa vez seus “meu
Deus” dão lugar a um grito silencioso no qual ela abre a boca o
máximo que pode.
— Não vou criar expectativas, mas eu shippo tanto vocês dois.
Sorrio quando me lembro de Miyeko me dizendo isso no
restaurante de um hotelzinho em Silverstone há quase 3 meses e...
se alguém me dissesse naquela mesa que em poucos meses eu
estaria viajando com Daniel, eu chamaria um médico para a pessoa.
— Esse escândalo aí é “não criar expectativas”, é?
— Exatamente. Se algum dia vocês ficarem juntos, os gritos
terão som — pontua, me fazendo rir.
— Ótimo. Enfim, como os meus planos estão girando em torno
de terminar com o Gabriel...
— Pode ficar aqui em casa, sem problemas — responde antes
que eu termine. — Estou ansiosa para essa viagem de vocês, me
mantenha atualizada, por favor — pede com um riso bobo.
— Laís, o Dani é legal, mesmo que eu não saiba exatamente o
que ele me faz sentir. — Os olhos dela arregalam ao mesmo tempo
que o queixo cai e eu estalo a língua. — Sei que a gente teve uma
história e eu respeito isso, jamais ficaria com ele namorando outro
cara.
— Pensando por esse lado, você tem razão — diz, encarando a
tela do celular pensativa, mas não de verdade, apenas de um jeito
teatral. — Apesar de o Gabriel merecer uns bons chifres...
— Você é impossível, Laís! — A repreendo, tentando não rir.
— Presta atenção, dependendo da hora que você chegar na
quarta-feira, a gente pode almoçar juntas e eu te dou a chave ou
posso deixar a chave em algum lugar.
— Não se preocupa, vou ficar na casa dos meus pais. Passar o
dia com dona Sofia, na verdade.
— Faz zero sentido ficar andando com sua bagagem por aí,
Carol Pimenta.
— Não tem bagagem, Laís Carneiro — insisto. Não tem mesmo,
mas ainda que tivesse jamais atrapalharia a rotina dela. — Vou levar
só uma mochila e no fim do dia vou lá conversar com Gabriel.
— Beleza, vou sair mais cedo para arrumar algo legal pra gente
comer e assistir.
— Perfeito! Agora, eu vou trabalhar! — Pulo do colchão, voltando
para a pequena escrivaninha. — Te amo.
— Te amo mais. — Laís desliga depois de me dar uma piscadela
e eu dou língua para ela antes de desligar.
Me sento e abro o notebook para fazer o que estou evitando
desde cedo: pesquisar sobre o acidente de Daniel. Leio a
repercussão pelos sites especializados, vejo os absurdos falados em
páginas de fofoca e pelo Twitter afora. Até gente dizendo que ele
tinha que ter morrido por ser tão imbecil na pista eu encontro, e
percebo que é hora de parar de ler notas e chamadas vazias
repetindo as mesmas coisas e escrever meu próprio artigo completo
sobre o assunto.
Patrícia já me notificou de que essa será a capa do site. Ainda
que Jack tenha vencido a corrida e Juan abandonado, o que isolou o
companheiro de equipe do meu Novato na liderança do campeonato,
um acidente da magnitude que o do Daniel tem não pode ser
segunda manchete em lugar algum.
Bocejo e me espreguiço para começar a escrever, movimento
que me lembra o quão desconfortável a cadeira acolchoada, mas de
madeira simples, do hotel é.

O relógio da cabeceira já marca dez da noite quando passo a


mão no meu celular.
Eu:
Oi, princesa, não apareceu aqui no quarto por quê?
Mando mensagem para Miyeko, ainda estou nervosa demais
para começar a trabalhar e também porque talvez esse nervosismo
seja fome, já que não como nada desde... Desde muito tempo.
Miy: Eu apareci, mas você estava dando risadinhas e sendo
uma menina petulante.
Sinto meu rosto esquentar na mesma hora.
Miy: Deduzi que tinha ligado para o Harris, no fim das contas.
Eu: Idiota. Vamos pedir comida?
Respondo e, mesmo sem querer, um sorriso toma meu rosto.
Miy: Claro! No meu quarto ou no seu?
Eu: Pode vir pra cá.
Miy: Preciso tomar um banho antes, em quinze minutos aí?
Eu: Perfeito.
Eu: A gente decide o que comer quando você chegar.
Jogo o celular na cama e tiro o jeans a caminho do closet, onde
separo um pijama confortável. Sigo ao banheiro e abro o registro,
deixando a água quente enchendo o ambiente de vapor enquanto
me livro do restante das roupas
Paro por dois segundos, me observando no espelho. Cansada,
com o cabelo num mafuá, a pele do rosto necessitando de um
tratamento intenso e a profundidade da clavícula gritando que
preciso me alimentar melhor, respiro fundo massageando o encontro
dos ombros com o pescoço.
Apesar de tudo, um sorriso cujo motivo tem nome e sobrenome
toma meu rosto e eu não consigo impedi-lo de crescer.
Você me paga por ter invadido minha vida de novo, Novato.

O que quer que Daniel Harris me deva acaba de ser quitado.


Pela primeira vez na vida estou experimentando não precisar
fazer check-in, não pegar filas e ter até uma sala de espera a menos
de trinta passos da aeronave, diante da qual estou parada nesse
momento.
O barulho dos voos comerciais não é tão intenso aqui, uma vez
que eles ficam em outra parte do aeroporto. Apesar de termos vários
aviões ainda estacionados nessa área, não reconheço o símbolo de
uma equipe ou as iniciais de um piloto em nenhum deles,
provavelmente todos foram embora ontem ou domingo depois da
corrida.
Passo os olhos pelo gramado, iluminado por refletores, que torna
pontos específicos dessa enorme selva de pedra algo vivo, e volto
meu olhar para o jatinho.
Uma flecha reluzente cortando a noite.
Ao menos por fora, ele parece enorme e, tanto o tom de gelo da
aeronave quanto as cores do símbolo da Arrows Racing que o
estampa, parecem ter sido pintados ontem.
Suspiro com o fato de que seremos nós dois – e a tripulação –
por algumas horas, quando a mão de Dani se apoia em meu ombro.
Eu o pediria para tirar, mas ainda estou embasbacada observando a
aeronave.
Se a vida de pessoas ricas nunca me surpreendeu muito porque
meus pais eram ricos e os luxos do dinheiro se estendiam a mim
também. A vida dos milionários, à qual nunca tive acesso, é uma
maravilha.
Cheguei há dez minutos e partiremos em menos de vinte.
— Lindo meu brinquedo, né? — Ele balança meu ombro como
se estivesse esperando que eu verbalizasse o que meus olhos já
declaram, mas a única coisa que vem a minha mente é:
Frases que podem ser ditas num parquinho ou na cama.
— Caroline Pimenta. — Daniel tira a mão do meu ombro, me
repreendendo como se soubesse o que eu estou pensando, e eu
paro de rir.
— Daniel Harris? — O encaro como se não soubesse do que ele
está falando.
— Enfim, vou te apresentar meu brinquedo — diz, sério.
Mas não tem como.
— Se você continuar com isso, eu não vou entrar aí de jeito
nenhum.
— Ele é bem grande, mas você se acostuma.
— Daniel! — Dou um tapa em seu braço com os olhos
arregalados, e ele gargalha enquanto geme de dor por causa do
acidente, me fazendo rir junto.
— Se não sabe brincar, Pimentinha. — Seus olhos focam os
meus enquanto sua mão sobe até meu queixo, e eu paraliso. — Não
desce pro play. — Finaliza puxando meu rosto gentilmente, e eu fico
de frente para ele.
— Você falou que não ia forçar a barra.
— Então não começa. — Dani solta meu rosto com um risinho
de canto tão convidativo que meu queixo queima com a ausência de
seu toque.
Antes que eu consiga voltar a respirar direito, ele já subiu as
escadas correndo.
— Venha, minha convidada de honra — grita, chegando ao topo
da pequena escada, e se mantém com a mão estendida.
Quando estou a três degraus dele, Daniel toma minha mão e a
beija.
— Me sinto a Rose no Titanic. — Brinco, tentando quebrar a
tensão formada lá embaixo.
— Tá amarrado. — Ele joga minha mão longe, e eu o encaro, em
choque. — Não sei se você sabe, mas o Titanic afundou — justifica.
— O que eu não sabia é que você tinha medo de voar, Daniel
Harris — debocho, cruzando os braços, e a tripulação, parada bem
atrás de Daniel, finge que não está nos vendo.
— Não tenho medo de voar. — Ele ergue os braços em defesa
própria. — Tenho medo de cair.
— A gente não vai entrar? — pergunto, e ele volta a si.
Dani faz meia reverência, voltando ao seu personagem
cavalheiro, e eu entro cumprimentando os dois homens altos e a
mulher loira que sorriem para nós.
O material das paredes internas do jato simula madeira, num tom
escuro de marrom. Cada uma das “paredes” brilham de tão bem
cuidadas. Daniel me explica que na parte frontal da aeronave, está a
sala da tripulação. A gente viaja com dois pilotos e uma comissária.
Não entendi a necessidade de dois pilotos, mas ele disse que para
voos longos, jatos privados têm essa exigência.
Caminhamos pelo pequeno corredor, e observo os móveis.
Todos num tom similar a madeira. Já o acolchoado é marfim. À
primeira vista, conto oito assentos. Dois ficam de frente para uma
pequena mesa, Dani mostra que os outros seis têm a possibilidade
de se transformarem em camas. Batendo os olhos numa delas
agora, entendo por que ele disse que estava acostumado a dormir
assim.
Eu também estaria, melhores que algumas das camas que dormi
desde o início da temporada.
— É lindo, Daniel.
— Você achou? — Assinto devagar, ainda observando os
detalhes, como a TV que fica no canto superior direito e a forma
como a mesinha entre as duas cadeiras pode ser aberta e ficar
maior. — Então vem — Ele toma minha mão, me puxando para os
fundos e eu apenas o sigo —, hora de conhecer as partes legais!
— Tem partes mais legais? — Ainda estou fazendo a pergunta
quando a porta de uma sala com uma TV e videogame é aberta. —
Nossa!
— A gente pode jogar se você quiser.
— Eu não sou uma garota de jogos — rebato como se ele não
soubesse dessa informação.
— Mas tem todos os clássicos Nintendo. — Dani me observa
indignado, com o pescoço inclinado e o cenho franzido em dúvidas e
eu odeio como meu coração se derrete por ele lembrar que esses
são os únicos que sei jogar.
Eram os que eu jogava com meu pai quando ele tinha algum
tempo para mim.
— É tão espaçoso e... — Solto minha mão da dele e me jogo no
sofá. — Confortável.
— Sim, é. — Daniel se joga ao meu lado, mas sua boca abre
instantaneamente num O perfeito.
— Você ainda está dolorido, né?
Ele ergue um dedo com a cara retorcida, como se me pedisse
um minuto, e eu fico parada, mas querendo muito saber o que fazer
para ajudar.
— Você quer alguma coisa?
Daniel nega com a cabeça.
— Ao que parece, se jogar num sofá não é repouso. — Ele se
levanta depois de um tempo e estala a coluna.
— Você me assustou. — Me ponho de pé ao seu lado.
— Meus joelhos e minhas costas ainda estão doendo um pouco,
mas logo passa — diz como se acreditasse na mentira.
— Você não precisa fazer fisioterapia ou algo assim?
— Qual é, Pimentinha. — Ele me empurra com o ombro de
brincadeira. — Foi só uma batida leve, logo passa. Agora vai, anda.
— Dani me vira de frente e eu sinto sua mão em meus ombros algum
tempo depois, me guiando.
Mas Daniel hesitou.
E eu sei o porquê.
Ele não me virou para colocar a mão no meu ombro, me virou
para me fazer caminhar com um tapa na minha bunda, jogando na
minha cara toda a intimidade presente no ar que eu estava
ignorando.
— Dani, eu preciso te falar uma coisa...
— Depois. Temos cinco minutos pra sentar, e eu ainda preciso te
mostrar dois espaços. — Ele se apressa em dizer enquanto saímos
da sala de jogos e entramos em uma cozinha. — Hoje, eu faço a
janta. Na volta, você cozinha. — Avisa com o indicador apontado
para mim.
Em seguida, ele abre a geladeira e tira duas pizzas pré-assadas.
Coloco as mãos na cintura, erguendo as sobrancelhas.
— Essas coisas de gente milionária não deviam ter comida
pronta e servida? — Ergo a sobrancelha direita.
— Deviam. Mas preferi dispensar essas coisas, nenhum jantar
feito por um funcionário bateria suas pizzas favoritas.
— Pois eu vou cozinhar hambúrguer de micro-ondas na volta.
— Fique sabendo que são pizzas artesanais e o restaurante não
fazia pré-assada, tá? Abriram uma exceção pra gente.
Desvio o olhar sem argumentos enquanto percebo meus sabores
favoritos bem na minha frente: Marguerita e Daviola[5].
— Não vou discutir, Daniel. Mas se estiver pensando que eu vou
fazer estrogonofe de camarão para você, pode tirar seu cavalinho da
chuva, okay? Isso aqui — Aponto para o fogão elétrico —, não vai
ser usado.
— Tudo bem. Esse nem é mais meu prato preferido mesmo. —
Ele se vira para guardar as pizzas na geladeira.
Homenzinho petulante. Sabe meus jogos favoritos, minhas
pizzas favoritas e acha mesmo que esse sorrisinho dele me engana?
— Claro que não é, tem cinco anos que você não come o meu —
desdenho, estalando a língua em seguida.
Daniel não me responde, apenas coça a nuca e me estende a
mão.
— Vem pro quarto comigo, convencida.
Saímos da cozinha entrando num ambiente que é, literalmente,
um quarto. Ou melhor… Uma suíte. Atravesso o pequeno espaço em
sete passos e entro no banheiro, que não é nada de mais, e acredito
que num avião nem teria como ser. Mas o quarto...
No canto esquerdo, fica a cama. Uma cama grande, arrumada,
na qual o lençol não tem uma mísera ruga. O conjunto de quatro
travesseiros e o duvet[6]
posto ao pé da cama completam o sonho e
quase me fazem pular os jogos e o jantar para dormir direto.
No canto direito, fica uma poltrona um pouco maior que as de
fora do quarto, e entendo que é ali que Daniel vai dormir.
A comissária surge à porta, pedindo para que nos sentemos e
coloquemos os cintos porque o avião vai decolar, e nós a seguimos.
Depois que fazemos o recomendado, ela se dirige à cabine da
tripulação e eu me sinto livre para voltar a falar.
— Meu Deus, quando você disse cama eu achei que vocês
tinham, sei lá, um sofá cama, sabe? — comento, tirando os tênis.
— Alguns têm. A maioria, na verdade.
— Mas os meninos de ouro da Arrows merecem o melhor —
ironizo, sentindo o avião taxiar e me mantenho encostada. Daniel faz
o mesmo, mas sua respiração está entrecortada.
— São seis títulos de construtores nos últimos oito anos. — Dá
de ombros enquanto a aeronave começa a acelerar. Vejo-o segurar
nos braços da poltrona com força, mas ignoro.
Cada um com seus medos.
— Cara, é doido demais pensar que dos últimos oito anos,
tivemos três campeões mundiais, dois deles da Arrows. — Menciono
Jack e Juan.
— Ah, daqui a uns três anos serão três pilotos da Arrows os
últimos campeões... — Daniel fecha os olhos quando o avião
propulsiona para cima, e eu não quero rir, mas é absurdo um piloto
de fórmula 1 ter medo de um veículo cujo as chances de bater são...
Não sei exatamente, mas que é bem menos do que um carro de
F1, isso é.
— Você acha que o Jack vai largar o osso fácil assim? — Rendo
o assunto para distraí-lo enquanto a aeronave segue em sua subida.
— Não, mas eu sou melhor que ele. — Os olhos de Daniel se
abrem e me encontram em choque com a soberba. — Quando
conseguir me adaptar a tudo, vamos ter uma disputa justa.
— Não existe disputa justa na Fórmula 1, Dani. — Quase
lamento, apoiando minha cabeça de lado para encará-lo com mais
facilidade.
— Quando você tem um piloto claramente melhor que o outro,
não, mas quando os dois estão no mesmo nível... — O rosto de
Daniel entrega que, mesmo se a equipe quiser priorizar o Jack, ele
não vai se contentar em ser o segundo piloto até a aposentadoria do
companheiro. — Não preciso dizer, você sabe o que aconteceu em
2016.
Sei, a disputa absurda pelo título entre Hamilton e Rosberg
quase implodiu a Mercedes.
— Certeza de que no fim da temporada o Toto Wolff agradeceu a
Deus quando o Rosberg aposentou. — A lembrança nos faz rir de
nervosismo. — Mais um ano daquele e tudo ruiria.
— Como na Redbull. — Dani encolhe os ombros. — Com o
Vettel e o Webber. 
— De pensar que, quando o Vettel aposentou, ele era o tiozão
legal da F1. — Jogo no ar e Dani se desencosta do assento quando
o avião finalmente estabiliza.
— O bonito era um grande babaca em seus anos de ouro. Mas
as pessoas têm memória curta — Daniel diz com um leve suspiro,
voltando a respirar normalmente e observar o céu pela janela, e viro
meu rosto na mesma direção. A única coisa que vemos na vastidão
da noite são pequenos pontos de luz brilhando ao longe.
— O Jack não viu problema em você pegar o jatinho da equipe
para usar sozinho?
— O Jack tem o jato dele, tipo dele mesmo. — Daniel responde,
tirando os olhos da janela e pousando-os em mim.
— Uau. — Meu queixo cai.
— Sim, uau. Mas o cara é bicampeão mundial, né. Não é como
se fosse caro para ele. 
— Ele foi pra casa, né? — Dani responde que sim, e me encara
como se quisesse saber como descobri a informação. — A Miyeko
vai pra lá gravar a família dele.
— Ah, esses dois que insistem em fingir que se odeiam... —
ironiza falando dos nossos amigos, mas seu olhar me diz que ele
está, na verdade, falando de nós.
Meneio a cabeça para ele e volto meus olhos para a janela.
Mesmo que nada lá fora seja interessante a essa altura, o conforto, a
intimidade e a dinâmica fluida entre nós é algo que eu não esperava
e que gostaria de conseguir ignorar. Quer dizer, não é como se a
gente fosse amigo e falasse sobre a vida nos últimos cinco anos. No
entanto, ainda que tudo tenha mudado, nada mudou.
Ele é só o Daniel, o meu Novato, a pessoa com quem é mais
fácil ser eu no mundo, o ser humanozinho com quem posso falar e
falar e falar sobre qualquer coisa. E isso me assusta. Me assusta
tanto.
Eu tinha certeza de que a gente não ia ter assunto a não ser
coisas de antigamente para conversar. Mas aqui estamos nós,
sentados em poltronas mais confortáveis do que qualquer classe
executiva que eu já peguei na vida, com nossos olhos dizendo muito
mais coisas do que eu sou capaz de ouvir.
Só de pensar que ainda tenho nove horas e meia nessa
situação, meu coração quase pula pela boca. No entanto, se eu
dissesse que estar nessa cabine com Daniel não é um dos
momentos mais acolhedores do meu ano, estaria mentindo. E não
quero fazer isso. Nem para mim mesma.
Capítulo 19
Ou: Eu conheço uma garota, ela é como uma maldição. Nós dois nos queremos, mas ninguém vai ceder. Tantas noites, tentando encontrar alguém novo

elas não significam nada comparadas a ela.

Why – Shawn Mendes

 
Daniel
Levou apenas o espaço de cinco anos, três meses, doze dias e
um acidente para que eu e Caroline Pimenta conversássemos como
dois adultos. A partir daí, quarenta e oito horas se passaram e é
como se eu tivesse vindo embora do Brasil ontem.
Menos de um metro nos separa, ainda assim, tento não fixar
meu olhar nela deliberadamente. Mantenho o celular à minha frente,
na altura do meu rosto, para fingir que não estou estudando Carol,
com o olhar vago e um pequeno vinco na testa, perdida em
pensamentos que eu não sou capaz de decifrar.
E isso é uma agonia.
Nunca entendi nosso término. Tudo bem, entendi. Eu estava
preocupado demais com minha carreira e todas as oportunidades
que não podia perder. Mas Carol sabia que isso aconteceria. Ela
sempre soube e sempre, sempre mesmo, apoiou.
Ouvi-la dizendo que me amava, mas não queria mais estar
comigo, me destruiu para todas as outras mulheres do mundo e me
entregou para a Fórmula 1.
Vivi cinco anos de um relacionamento sério e amor intenso pelo
esporte, mas dentro de um espaço tão pequeno com Carol não
consigo pensar em nada do que deveria.
Nem que acabei de sofrer um acidente que quase me matou; ou
que preciso passar dias com meu pai sendo o filho que não deu
certo; que tenho de repousar e beber muita água ou sei lá, que
preciso voltar muito melhor na segunda metade da temporada
porque se meu time não ganhar o campeonato de construtores a
culpa vai ser do Daniel, a grande promessa que fez tudo errado.
Só consigo pensar nela.
Só consigo rir e perceber que a perdi sem nem ao menos tentar,
porque era um moleque com ego sensível e burro.
Só consigo olhar para tudo o que já fiz na minha carreira e me
sentir feliz, mas sorrir de canto com a ironia de que, por mais que a
Fórmula 1 tenha sido o meu melhor amor, Carol Pimenta sempre
será o maior.
Abro o cinto curvando meu corpo para frente e em seguida e
apoio os cotovelos nos joelhos. Desvio o olhar de Carol porque só de
pensar que ela está com aquele energúmeno agora, que ainda está
com ele apesar do que ele fez... meu ego frágil volta a querer gritar.
— Tá tudo bem? — Ouço-a perguntar.
Me dou conta de que estou esfregando o rosto com as duas
mãos na esperança de apagar as imagens dela naquele quarto de
hotel, pequena e quebrada, da minha mente.
— Sim, sim. Quer beber alguma coisa?
— Tem refri?
Faço menção a chamar a comissária, mas o olhar dela me para.
— Tenho certeza de que a gente consegue caminhar até a
cozinha. — Carol ri, abrindo seu cinto, e eu me levanto.
Opto por dois copos descartáveis, sirvo o refrigerante dela e
pego água para mim.
— Então sua dieta não te permite nem um refri? — indaga
recostada à bancada do fogão.
— Permite — digo, puxando uma embalagem plástica do bolso.
— É que eu preciso tomar remédio agora.
— Quantos você tá tomando?
— Dois desses por dia e um relaxante muscular quando dói. —
Jogo o comprimido na boca e engulo-o com três generosos goles
d’água. — Mas o relaxante eu evito.
— Eu sabia que jatinhos eram equipados, mas nunca imaginei
que dava para ter tantos ambientes assim. — Ela aponta para a
saída à direita, onde vemos a sala de jogos e a esquerda, onde ficam
o quarto e o banheiro.
— Nem todo jato é assim — explico e caminhamos até a área
principal, onde nos sentamos em uma pequena mesa, um de frente
para o outro.
— Enorme?
— E tão equipado. Quando eu comprar o meu, por exemplo, vai
ser bem mais simples.
— O seu? — Carol para o copo no caminho até sua boca e pisca
duas vezes antes de completar o trajeto e beber.
— Sim, pelo menos o primeiro. Esse é muito bom. Mas não
tenho privacidade. — A expressão confusa dela me leva a continuar.
— Quando a gente viaja de um GP para o outro. Tem uma galera do
staff que vem aqui também.
— Tipo sua assessora de imprensa?
— Nunca precisei de uma. — Dou de ombros. — Meu
empresário resolve essas coisas e eu conto com a Lindsay, a
assessora da equipe, para o resto.
— Nossa, ia morrer e não ia saber que você não tem uma
assessoria particular.
— Você tem interesse na vaga?
— Não, obrigada. —  Carol força um sorriso debochado e eu
gargalho.
— A recusa é pela vaga ou por mim.
— Os dois. A vida do assessor é uma perturbação.
Rimos juntos do desespero na voz dela.
— E você gosta do seu trabalho, né? — pergunto, me
debruçando na mesa à espera de uma resposta apaixonada, afinal,
ela sonhou com isso a vida toda. Mas Carol Pimenta termina sua
bebida e abaixa a cabeça, encarando o encontro da mesa com a
parede do avião e, achando que ela está distraída, tento de novo. —
Né, Carol?
— Gosto. Mas não sei se é algo que eu quero fazer para
sempre...
— Como assim?
Carol pousa os olhos em mim suspirando e os fecha por alguns
segundos.
— Nenhum trabalho é fácil — diz, abrindo os olhos novamente.
— Mas sendo mídia alternativa, é quase como se a gente fosse
independente, sabe? Eu e Miyeko. Como somos nós que estamos
aqui, o patrocínio vem direto para as nossas contas. A Paty preferiu
fazer isso do que administrar um dinheiro que é para as corridas, ela
não acha justo — explica, como se concordasse — Com isso...
— Com isso?
— A gente tem muita coisa para fazer. Somos nós que
pesquisamos hotéis, voos, contratamos isso. A gente precisa ter fé
que a cama do hotel mais barato da cidade vai ser boa, que o voo
não vai ser o pior possível, que a gente vai conseguir se locomover
de táxi ou alugando carro sem gastar tanto...
— Vocês são basicamente estagiárias de si mesmas, então? —
pergunto entendendo aonde ela quer chegar, e Carol assente.
— E é algo que eu amo fazer, só não vejo como uma carreira de
longa duração. — Ela expira por um tempo longo demais e me
mantenho em silêncio, é óbvio que ainda tem mais coisa ali. —
Principalmente porque o que a gente ganha no Garotas No Padoque
é o suficiente para a gente se manter, apenas. Se não fossem os
freelas, não teríamos o mínimo de conforto.
— Mas e o sonho de ser uma Mariana Becker ou Ju Cerasoli?
— Não dá pra ser a Mari ou a Ju trabalhando para um canal da
Twitch, Dani. Sejamos honestos.
— Seus pais reclamam? — pergunto com uma careta de quem
já sabe a resposta, e ela coça a nuca antes de responder.
— Óbvio. Como assim eu deixei minha vida incrível para trás e
agora fico dormindo em hotéis sem estrelas? — Teatraliza, fazendo
minha risada encher o ambiente.
— Como eles tão?
— Num geral, bem... Tem um tempo que não falo com o papai.
Dona Sofia me ligou depois de um pequeno incidente em
Silverstone, sabe?
— Incidente? Não. Não sei. Me conta o que aconteceu de tão
interessante para a sua mãe falar com você.
— É que eu tenho um ex-namorado. Um babaca, sabe? O bom é
que ele compensa sendo um puta gato. — Não consigo conter o
risinho de canto a tempo, e Carol desvia o olhar para janela,
escondendo um sorriso. — E ele resolveu me cantar em rede
mundial de computadores, mesmo sabendo que eu tenho outro
namorado agora.
— Levando em conta que seu atual é um babaca e nem é um
puta gato, apoio a atitude dele.
— Voltando ao assunto. — Arrasta a língua no lábio inferior para
não sorrir. — Conversei com a Sofia naquele dia. A gente tem um
grupinho no WhatsApp onde eu mando fotos dos lugares, eles
comentam o que tão fazendo de diferente, mas nunca vira uma
conversa de verdade. Resumindo: um espaço seguro.
— E é confortável para você?
— Ser a amiga distante dos meus pais enquanto eles são
eternos namorados? — Carol encolhe os ombros e meneia a cabeça
positivamente. — Desde que eu saí da casa deles, tem sido.
— Hoje você consegue disfarçar melhor?
Ela franze o cenho e nega com a cabeça.
— Ir embora melhorou tudo. O problema era estar lá. Morar com
eles e saber que, de alguma forma, eu não pertencia àquele lugar.
Não era parte da minha família.
— Como você conseguiu... Lidar?
— Eu tentei terapia... algumas vezes. Com o tempo eles só
pararam de ser o primeiro assunto que eu trazia. O problema não era
eu, era o fato de que meus pais não perceberam que não queriam
filhos antes de me colocarem no mundo.
É uma afirmação forte e, ainda que não doa o suficiente para
impedi-la de falar sobre, incomoda o bastante para Carol se remexer
na cadeira e pegar o copo vazio da mesa na esperança de ter o que
fazer agora.
Fico quieto enquanto o clima se esvai. Continuar falando nisso
não vai fazer bem a ninguém. Estive presente em situações de Carol
sendo responsável pelos pais e pela casa mais vezes do que
gostaria. No fundo, todo mundo sabia que ela cuidava muito mais
deles do que o contrário.
E isso era estranho, porque eles a amavam, mas é exatamente o
que ela fala, Carol era a amiga mais nova que dividia a casa com
eles.
— Eu sinto falta do colégio, sabia? — Tento um momento do
passado menos complicado.
— Eu também! Da nossa rotina, dos nossos dias no Kart... —
Carol divaga sorrindo pela primeira vez na conversa.
— Da vez que a gente quebrou a mesa de vidro temperado da
mamãe e ela quase matou nós dois... — Adiciono com uma
gargalhada, e Carol pensa por dois ou três segundos, mas logo sua
risada transborda.
— Sujamos a sala de jantar inteira. Foi vidro para todo lado. Eu
nem sabia que uma mesa podia se partir em tantos pedaços.
— Até hoje acho que aquela mesa já tava quebrada, quer dizer,
“o vidro mais resistente do mercado” e quebra só porque eu te sentei
em cima dele? — As palavras voam e mesmo que eu tentasse, não
teria como amenizar a situação.
O risinho de Carol Pimenta é substituído por um queixo meio
caído. A memória da fase na qual a gente aproveitava qualquer
segundo sozinho para se agarrar ainda não tinha chegado para ela
e, agora, sinto que se ela pudesse corar, estaria roxa de vergonha.
— Enfim, a escola foi mais fácil.
— Era fácil porque a gente se tinha. — Brinco, mas Carol não
sorri.
— A faculdade foi difícil exatamente pelo mesmo motivo. — Ela
cospe as palavras. — E porque as pessoas são estúpidas — diz e,
de maneira quase involuntária, abraça o próprio corpo.
— Mas foi questão de adaptação ou...? — pergunto, arredio, e
Carol meneia sem me olhar.
Verbalizar a palavra racismo não é tão fácil para pessoas negras
quanto os outros acham que é.
— Segunda opção, mas deixa isso pra lá. — A voz de Carol é
tão baixa que é como se o pensamento a sufocasse, e minha mão
instintivamente se dirige até a dela em cima da mesa. — Vamos
jogar? — Vejo-a se levantar com um sorriso falso, antes que meus
dedos a alcancem, e me levanto com uma piscadela.
— Só se você passar as fases difíceis do Mário.
— Combinado se você não me der uma volta completa na
Fórmula 1.
— Não posso prometer nada.
— Então vou te ver morrer sem o menor dó. — Ela se vira da
entrada da sala me dando língua.
— Você ainda é tão petulante...
Carol ri se jogando no sofá, e eu ligo a TV e o videogame, me
sentando ao lado dela em seguida.
— E você ainda é tão bobinho e previsível. — Encaro-a
boquiaberto enquanto a entrego o controle já configurado e ela finge
que não acabou de me ofender. — Sabe, Dani, é meio estranho a
gente ainda se dar tão bem, mesmo depois de tanto tempo. — Tenta
se redimir.
— Não é o que acontece com melhores amigos? — Devolvo
fazendo um riso de canto se apresentar em seu rosto. — Mesmo que
o tempo passe, algumas coisas nunca mudam, não é?
— Sim. Com a gente é diferente, você sabe, mas é bom não
querer te matar o tempo todo.
— Isso é o quanto eu sinto sua falta na minha vida, Caroline
Pimenta. Estou aceitando seu rótulo de friendszone sem demonstrar
a menor resistência.
Carol ri jogando o pescoço para trás e puxando os dois pés para
o sofá. O som da sua risada é tão gostoso que seria um pecado não
acompanhá-la.
É claro que prefiro a amizade ao fogo na bunda que estávamos
tendo, com certeza me sinto muito mais feliz com ela aqui do que me
dando patada em algum Paddock ou na garagem da minha própria
equipe. Mas é impossível estar perto de Carol Pimenta e não pensar
em tudo o que eu gostaria de viver com ela.
Capítulo 20
Ou: Envolta nas chamas, envolta na vergonha, traída por sua imaginação... Dentro da minha cabeça, mas está tudo bem.

Crowded Room - Selena Gomez

 
Carol
Já passa da meia-noite e o sono ainda não chegou. Não posso
dizer o mesmo sobre a fome, no entanto. Me sento com as pernas
dobradas no sofá branquinho da sala de jogos, o qual Daniel quase
morreu me vendo colocar os pés, enquanto o aguardo com as pizzas
que ele foi buscar.
Com os olhos em meu celular, observo o estoque de mensagens
de Laís, mas não quero falar sobre Daniel quando ele está no
cômodo ao lado. Corro os olhos pela conversa com Gabriel. Sua
última mensagem me diz, em tom de aviso, que faltam menos de três
semanas pra gente se encontrar. Como se eu não soubesse que
recebi um e-mail da companhia aérea com essa informação.
A pizza começa a cheirar e eu aproveito para alterar todas as
senhas das minhas contas de e-mail e redes sociais. Odeio fazer
isso, eram números importantes, mas sabe-se lá até quando ele vai
ficar checando minhas coisas depois do término. Nem sei por que ele
está mexendo nisso quando sabe que estamos estranhos desde
aquela visita patética.
Escuto uma bateção de forno, prato, garfos... E entendo que
Daniel está a caminho. Volto para o aplicativo de mensagens e morro
de rir com as fotos da conversa que abro em seguida: Miyeko
ordenhando uma vaca.
Uma vaca.
— Aproveitando os prazeres que o wi-fi em um avião pode
proporcionar, Pimentinha? — Daniel chega sem a pizza e me entrega
o ketchup e os copos de refrigerante, que eu coloco num suporte no
braço do sofá.
— Sim, a família do Jack tá ensinando a Miy a tirar leite.
— Meu Deus! — Daniel se joga ao meu lado e reclama de dor,
mas não se move.
Sua cabeça está apoiada em meu ombro e ele observa a
imagem estático, como se não tivesse percebido todos os pelos do
meu braço se arrepiando ao seu toque. Arrasto a imagem para o
lado e Miyeko sentada no chão ao lado da vaca nos diz que ela caiu
do banquinho, nossos olhos se encontram por dois segundos e nós
gargalhamos.
Então tem uma imagem de Jack ajudando Miyeko a montar num
cavalo.
— Se a próxima imagem for dela caindo eu juro que — Mas
Daniel não termina, porque Miyeko está caída em cima de Jack e a
forma intensa com a qual os dois se olham faz com que eu abaixe a
cabeça na direção de Daniel, buscando em seus olhos a confirmação
de que eu não estou doida.
— Eles se beijaram na próxima foto? — ele pergunta, passando
o dedo em minha tela, e nós dois exalamos, frustrados.
A imagem seguinte é de Miyeko já montada.
— Você acha que eles tão de fogo na bunda ou que eles se
gostam?
— Se eles não se gostam, vão começar a se gostar. É sempre
assim, muita implicância, muita gracinha e aí pronto, você piscou e
os dois tão pelados — Daniel diz de maneira descontraída e se
levanta para buscar as pizzas.
Não havia segundas intenções em sua fala, mas não dá para
negar que esse clichê de fogo-na-bunda-to-lovers é exatamente o
que a gente tá vivendo aqui.
Meu Deus, Gabriel, por que você precisava ser tão idiota?
Eu só queria estar voltando para casa e para o meu namorado
maravilhoso que me faria esquecer esse meu lado que está
arrastando um bonde pelo Harris agora.

Quando Daniel volta a se sentar ao meu lado, a sensação é de


que eu vou derreter, mas permaneço inteira.
Conversamos sobre a escola, sobre casos engraçados da minha
época de estagiária e os primeiros meses dele como um novato na
sua primeira equipe de Fórmula 1. Conto que conheci Gabriel na
faculdade e que quando as coisas ficaram difíceis e eu pedi
transferência, ele foi comigo, se tornando a coisa mais próxima de
um amigo por muito tempo. E por mais que eu não deva essa
satisfação ao Harris, também deixo escapar que a gente já estava
separado há quase dois anos quando comecei a ficar com Gabriel.
Dani me fala sobre como era ser o novato, como era não ter uma
vida propriamente dita e explica que até pensou em fazer faculdade,
mas que ao fim da Fórmula 3 trocaria a Inglaterra pela Itália e ele
teria de parar, então nem começou.
Me deixando no sofá e se deitando no carpete por conta do
desconforto de não estar em uma superfície reta, Daniel relata os
desafios de sua carreira meteórica para mim como se eu não
soubesse cada passo que ele deu em detalhes: um ano de fórmula
3, campeão da fórmula 2, piloto de testes na F1 durante seis meses,
e então piloto oficial por quase dois anos. A seguir, numa jogada que
todos já esperavam, ele foi para a Arrows Racing e voilá, uma das
maiores e melhores histórias de ascensão dos últimos anos.
Ouço tudo o que Dani tem a dizer com um risinho bobo no rosto
porque, no fim do dia, ele é o meu Novato. Eu estava lá quando ele
começou a correr no Kart, quando passou a levar o automobilismo a
sério e a desejar as coisas que tem hoje.
Mas, em todo esse relato, falta algo... Faltam pessoas, então
aproveito sua deixa para questionar.
— E amigos, Dani? Você não fez nenhum? — Ele tenciona o
maxilar e cerra os dentes antes de responder.
— Tenho o Jack, os meninos do grid num geral. — Ele encolhe
os ombros o mínimo possível, acho que para não sentir dor. — Tenho
o pessoal da equipe... Eu falo com algumas pessoas da escola, mas
cheguei naquele ponto do dinheiro que você não sabe se os amigos
são de verdade.
— Como se você já não fosse extremamente rico antes.
— Como você mesma gosta de falar, nossos pais é que eram
ricos naquela época, agora eu ganho dez milhões de euros por ano.
— Nossa, Daniel. Acho que também estou me aproximando de
você pelo dinheiro, hein. Pelo menos pelo jatinho... — Ele pega uma
das almofadas do sofá e joga em mim.
Me encolho, mas consigo agarrar a almofada no ar.
— Mas você tá feliz, não é? — indaga, sério. — Por ter
conseguido chegar aonde sempre quis?
— Sou correspondente oficial do meu esporte favorito no mundo
aos vinte e três anos. Não tem como não estar feliz. — Encolho os
ombros porque isso é difícil, é pesado, é puxado, mas é a melhor
coisa do mundo. — E eu me sinto plena vendo você voando pelas
pistas, sei como foi difícil acreditar que você era capaz.
— O bom é que você estava lá, o tempo todo.
Mordo a parte interna da bochecha.
Não quero sorrir para a frase dele e não quero que meus olhos
rebatam com um “É, mas quando eu precisei, você não estava.”.
Porque Daniel sempre esteve lá. Ele falhou nisso uma única vez e
não posso passar a vida inteira culpando-o por algo sobre o qual ele
não tinha o menor controle.
— E quando você olha para sua vida, o que ainda falta? —
indago, e Dani semicerra os olhos confuso e me pergunta o que
exatamente quero dizer. — Você saiu da casa do seu pai, conseguiu
mais patrocínios, provou que é bom, tem um contrato com a melhor
equipe do Grid. O que ainda falta para Daniel Harris? — Minha
pergunta não consegue sair natural, eu pareço uma repórter no meio
de uma entrevista e acabo rindo, mas Daniel não faz o mesmo.
Ele se senta, me observando. Me estuda por um tempo
desconfortável e, quando acho que ele vai me responder “Ser
campeão mundial, Carol, óbvio.”, ele se levanta.
— Acho que você já sabe a resposta. — As mãos dele
massageiam sua nuca agora e seus olhos esmeralda roubam toda a
luz do ambiente enquanto ele me observa. — Se eu te disser o que
falta, as coisas vão ficar estranhas entre nós dois, e eu não quero
isso — diz, desviando o olhar e eu consigo respirar sem dificuldade
novamente enquanto ele pega os controles do videogame do sofá. —
Você ainda quer jogar ou quer dormir?
— Quero ver um filme — respondo no reflexo, porque não estou
pronta para dormir no mesmo lugar que ele, mas também não quero
mais conversar.
O silêncio que um filme exige é minha pista mais segura com
esse piloto.
— Filme? — Daniel segura o riso. — Você sabe que vai dormir
em dez minutos, né?
Reviro os olhos em deboche, porque houve um tempo que
assistir a filmes com o meu namorado, Daniel, era o mesmo que me
deitar em seu ombro e dormir por duas horas.
— Eu mudei, tá? Aguento ver filmes e mais filmes agora. Só
preciso fazer xixi, já volto.
Mesmo já estando aqui há quase 3 horas, ainda é estranho
caminhar nesse avião de um lado para o outro e passar por
cômodos, o avião simplesmente tem cômodos e eu não sei lidar com
isso.
Paro no quarto e pego meu pijama, entro no banheiro e me sento
no pequeno e estranho vaso sanitário. Prendendo meu cabelo num
coque, tiro a roupa ainda sentada, porque imagina bem se esse
avião faz uma manobra e eu caio no chão pelada? Entro na calça e
na blusa de manga longa do meu pijama preto e volto até a sala de
jogos, onde Daniel me espera com uma calça de pijama e sem blusa.
— E o senso, vamos querer?
— Você é boba. — Harris se levanta, trombando em mim
propositalmente — Escolhe o filme. — Ele me entrega um controle
com seis opções de streaming e eu aperto o menos conhecido.
Amo streamings pequenos porque eles produzem poucas coisas
e geralmente são boas. Opto por um thriller psicológico que tem cara
de que vai prender minha atenção e abraço uma das almofadas ao
mesmo tempo que Harris entra na sala com uma calça de moletom
preta de cós baixo e uma blusa branca tão transparente que eu conto
seus seis gominhos.
É hoje que eu vou de arrasta pra cima.
Ele mimetiza um controle em sua mão me pedindo para apertar
o play e eu o faço enquanto ele se senta ao meu lado.
— Cinco minutos e você já bocejou — implica cantando.
— São duas da manhã, para de ser chato. — Dou uma
cotovelada nele, que grita.
— Já tá doendo o suficiente, Carol!
— Meu Deus, me perdoa — peço rindo e vejo que ele se segura
para não rir também, então relaxo e volto a olhar para a tela.
Infelizmente, escolhi o pior dos thrillers psicológicos, aquele em
que a protagonista é não confiável porque, veja só, ela toma
remédios controlados. O sono vem, e eu não resisto, jogo a cabeça
para trás, apoiando-a no sofá e rezo para o Daniel não me zoar
quando perceber.
— Tudo bem, quinze minutos de filme. — Sinto o sofá sacudir e
abro os olhos, apenas para ver que eu não estou apoiada no sofá e
sim nos ombros de Daniel. — Vamos deitar?
Me desencosto sem deixar meus olhos cruzarem os dele e me
levanto pegando meu celular.
— O filme era ruim — digo quando Dani desliga a TV e se
levanta.
— Você que escolheu — ele rebate com meio sorriso,
caminhando para o quarto.
Sem dizer nada, ele pega um pequeno cobertor em cima da
cama e se senta na poltrona, tiro o duvet de cima do colchão e me
deito, puxando a coberta branca e macia para cima de mim logo
depois. A cama não é a melhor em que já deitei, mas com certeza é
mais confortável que a cadeira reclinável de Daniel, que já se deitou
e está virado para a janela.
— A gente pode apagar a luz?
— Claro — ele responde e apaga. — Boa noite, Pimentinha.
— Boa noite, Novato — digo e me viro de costas para ele.
Desbloqueio a tela do celular e abro o Twitter. Segundo o que
está em alta, nada de importante aconteceu no mundo nas últimas
horas, dentro do F1TT o acidente de Daniel e suas complicações
ainda é assunto relevante. Saio da rede social e abro o Instagram,
rolando feed e explorar pelo menos duas vezes.
Sei o que estou fazendo. Estou evitando pensar. Deixo o celular
ao meu lado na cama e faço um leve exercício de respiração para
me ajudar a dormir.
“Você não está sentindo nada pelo Harris, Carol. Isso é só vocês
sendo vocês, como era antes”. Repito mentalmente tentando calar
todas as vozes que me atormentam, mas tem uma que não consigo.
Percebo em segundos que não me esquivo dessa voz porque ela
não está dentro da minha mente. É a voz do Daniel, mas ele não
está falando, está gemendo.
Tateio o colchão em busca do meu celular, acendo a lanterna e a
viro com cuidado. Dani está numa posição muito confusa naquela
poltrona.
Apago a lanterna quando o noto se mexer, mas mantenho os
ouvidos atentos e não sei se ele está roncando ou gemendo de dor.
De qualquer forma, tento dormir.
Mas a contagem de respirações se mistura a uma contagem de
gemidos, e eu amaldiçoo o momento que eu achei que viajar com
alguém que acabou de bater um carro a 280Km/h num veículo com
apenas uma cama daria certo.
Fecho os olhos e aperto-os o máximo que consigo, com todo
meu ódio dessa situação. Parando apenas quando os pontos de luz
brilham dentro da minha visão avisando que estou pressionando
demais.
— Daniel — chamo-o alto, com a lanterna na cara dele e vejo-o
pular.
— Oi. Que foi? — responde, escondendo o rosto com a mão
direita.
— Vem deitar na cama, eu vou pro sofá da sala de jogos — digo
a primeira coisa que penso.
— Você tá doida? Vai dormir. Eu já tava dormindo. — O rosto
retorcido com o incômodo da luz me observa.
— Não consigo, você não para de gemer.
— Sério? Deve ser a dor na minha lombar. — A mão dele vai até
o lugar da dor por reflexo. — Ainda incomoda um pouco.
— Imaginei. Enfim, vem pra cama. — Me sento e ele acende a
luz. Com um olho meio aberto e outro meio fechado, Daniel balança
o indicador em negativa.
— Deita aí, não vou colocar você pra dormir no sofá de um
veículo em movimento. Eu durmo por cima do duvet, ninguém
precisa se encostar. — Está na cara dele que ou dividimos a cama
ou ele vai seguir com a gemeção, e eu me deito por fim, me virando
de costas para ele, que apaga a luz e deita ao meu lado.
Não sem me deixar ouvir suas risadinhas escaparem.
— Sem gracinha, Daniel. Boa noite.
— Até logo, Pimentinha — ele responde, e sua voz indica que
está virado para o corredor, o que deixa meu coração quentinho com
a consideração.
— Eles acordam a gente? — indago por cima do ombro. —
Coloquei despertador pra meia hora antes de pousar.
— Acordam se a gente chegar e não tiver acordado — Daniel
responde também por cima do ombro. — Mas meu despertador toca
uma hora antes, quero tomar um banho e trocar de roupa...
— Por que você não faz isso em casa? — questiono, me virando
de barriga para cima.
— Porque… — Sinto-o se virar, mas ele para de frente para mim.
— Ai, cacete. — Choraminga. — Eu não quero ir pra casa tão cedo.
Vou pra algum lugar bem carioca tomar café da manhã e devo
caminhar na orla de algum canto.
— Entendi. É uma boa ideia. — As palavras voam de mim e eu
me surpreendo. — Mas me deixa dormir. Tô exausta, um cara que
não sabe jogar videogame ficou me fazendo passar todas as fases
para ele por quase uma hora.
— Vai dormir, vai — diz Daniel, jogando o duvet em cima da
minha cara.
— Vou te jogar no chão, Harris — grito, puxando a coberta para
baixo enquanto ele gargalha.
Fico quieta, fingindo que não estou rindo também, e me viro para
a parede do avião, fechando os olhos.

Estar aqui com ele faz todas as terminações nervosas do meu


corpo tencionarem. Me deixa suando frio, mesmo que a temperatura
do avião esteja abaixo de vinte graus e me faz pensar se ele não
consegue ouvir meu coração, que bate tão rápido e forte que preciso
me curvar para mantê-lo dentro de mim.
Mesmo com sono, é difícil dormir, é complicado me deixar
dormir, porque tudo o que essa viagem está sendo é normal. O que
significa bizarro, porque esse não é o meu normal com Harris, ao
menos não com esse Harris.
Meu corpo sua em bicas e saio de baixo do duvet, enrolando-o
como uma almofada gigante entre Dani e eu.
— Pimentinha? — A voz sonolenta dele invade meus ouvidos.
— Desculpa, eu não queria te acordar.
— Não acordou, eu também não estou conseguindo dormir.
— Está calor aqui, não está?
Sinto o colchão ao meu lado descer e logo depois voltar ao
normal. Daniel levantou. A luz logo é acendida, mas não me
incomoda porque o tom amarelado é apenas o suficiente para
podermos nos ver.
— Quer água? Vou pegar para mim.
Assinto, e ele sai coçando a nuca.
— Aqui. — Dani volta com a blusa dobrada, com seu cós baixo
me permitindo observar o tanquinho sem defeitos que ele sustenta e
a curvatura dos oblíquos que me faz desviar o olhar, noto duas
almofadas se sustentando em sua mão esquerda e aceno de cabeça
para saber o que é enquanto viro a água. — Trouxe pra dividir a
cama. Não vai ter a menor condição de dormir com esse forno em
cima da gente. Tudo bem?
— Sim, sim. — Claro que não tá tudo bem, de onde eu tirei
“sim”?
Daniel coloca o copo em cima da poltrona na qual estava
dormindo, joga a roupa de cama no chão e apoia as duas almofadas
mais frágeis que uma pena no meio da cama.
— Carol, posso te fazer uma pergunta? — Seus olhos me
encontram e eu meneio a cabeça. — Sou só eu, ou tem algo
estranho? — Ele se senta ao meu lado.
— Não é só você. — Eu poderia dar um milhão de desculpas,
mas prefiro não fazer isso.
— Quando te convidei para viajar comigo, queria que a gente se
aproximasse, queria ter tempo com você e que as coisas
funcionassem entre a gente, porque não aguentava mais tanta
picuinha sem fundamento, mas...
— Mas?
— Agora que você tá aqui, só consigo pensar em como isso é o
certo. Eu e você. Nós dois vivendo de Fórmula 1 ao redor do mundo
e eu...
— Dani, não faz isso. De verdade.
— Se é por causa do seu namorado, eu entendo. Eu não
conheço vocês como um casal, só os vi um dia, e eu realmente
entendo que você o respeite, mas não consigo fingir que não sinto
nada quando você é tudo o que eu quero, Carol.
— Não é só por ele. É por mim. Foi difícil demais te perder — O
olhar dele me repreende, eu nunca o perdi, fiz questão de deixá-lo.
— Te deixar ir. E agora, pensar em ter você na minha vida de novo...
me deixa desnorteada. — confesso, desviando o olhar.
— Perto de você eu fico sem chão, Pimentinha. — Daniel
acaricia meu rosto, seu toque é como veludo e, diferente do que eu
pensei, não queima minha pele, ele se amolda a ela. — Mas tenho
total certeza de que esse é o único lugar que eu quero ficar.
— Eu realmente estaria mentindo se dissesse que não sinto
nada, mas também não sei o que eu sinto, Dani. E não sei o que
fazer.
— Então não faz nada. — Daniel pede com os olhos tão fixos
nos meus que o único movimento que consigo fazer é entregar o
meneio mais leve do mundo. O que Daniel recebe de bom grado, e
antes mesmo que meus olhos estejam fechados por completo,
minhas costas estão na cama e seus lábios estão nos meus.
É impossível não respirar fundo com seu beijo. Quando a língua
dele toca a minha, meu coração se enfurece, como se eu o tivesse
impedido de bater normalmente desde que deixei Daniel, e quando a
mão dele chega aos meus cabelos, não consigo conter um leve
gemido que me trai e conta a ele o quanto eu gosto de beijá-lo.
Daniel morde meu lábio inferior com um meio sorriso no rosto e
eu volto a beijá-lo apenas para fazer o mesmo, tocando suas costas
por dentro da blusa e sentindo sua pele se incendiar.
Eu nunca quis tanto alguém em toda a minha vida, e ele
percebe, porque me puxa para cima de si num movimento que
desfaz meu coque.
Pela primeira vez na noite, o gemido que Daniel solta não é de
dor.
— Eu amo seus cabelos — ele diz, me puxando para si, e eu o
beijo mais uma vez. Como uma viciada que volta de novo e de novo
para sua droga favorita.
Como um beija-flor que volta à sua flor favorita.
Como uma pessoa perdida que encontrou uma placa indicando o
melhor caminho.
Daniel para o beijo por alguns instantes, segura meu rosto no ar
pelo queixo e, assim que sorrio para ele, meu Novato me sorri de
volta.
— Eu gosto tanto de você, Daniel — digo as palavras mais
impensadas da face da Terra e espero que ele me diga de volta.
Tenho certeza de que ele vai dizer.
Mas, no segundo que os lábios do meu novato se abrem, eu
acordo.
Capítulo 21
Ou: Nossos amigos iriam rir de nós e nós riríamos porque nós sabemos que nenhum deles nunca se sentiu assim.

Hey there, Delilah - Plain White T's

Daniel
Meu celular já marca vinte para as oito quando os passos de
Carol me seguem até a cozinha. Vamos começar a descer logo, mas
o café está pronto.
— Bom dia, moço das golas polo, tudo bom?
A implicância com minha roupa me faz estalar a língua. Viro o
rosto na direção da voz sonolenta e encontro Carol, com o pijama já
substituído por roupas comuns, escorada na entrada da cozinha.
— Bom dia, Pimentinha. — Me afasto da bancada para guardar
o leite na geladeira. — Vamos sentar? — Entrego uma xícara para
ela.
— É muito estranho ter mesas no avião, sabe? — Carol comenta
por cima do ombro enquanto caminha até a mesa na área principal
da aeronave. — Esse trabalho me desacostumou até da primeira
classe — diz, se jogando na poltrona e apoiando seu café na mesa.
— Agora são só aquelas tábuas de 30 centímetros na poltrona da
frente.
— Pelo menos dormiu bem?
— Claro que não. — A resposta vem rápido demais, aflição está
ali e eu não consigo não rir do descaramento. — Essa cama é muito
desconfortável, na volta vou dormir numa poltrona.
— Sabe, não parecia desconfortável quando você... — Ergo os
olhos para ela e Carol desvia o rosto, então, contra todas as apostas,
permaneço com minha bandeira branca em riste — começou a
roncar.
— Eu não ronco, Daniel Harris! — Ela semicerra os olhos, e eu
enfio a cara na minha xícara para me manter sério.
— Você pode achar que não ronca, Pimentinha, mas você ronca,
sim, senhora. — digo, bebendo um gole em seguida.
— Você deve ter sonhado isso, Harris. — rebate dando de
ombros, e eu rio de canto.
— Eu não sonhei com você, você é quem deve ter sonhado
comigo — desdenho, pensando em como ela dormiu no meu abraço
a noite quase toda, mas em vez de rebater, Caroline leva a xícara de
volta à boca, bebendo todo o café de uma vez, sem pousar os olhos
em mim.
— Carol? — chamo sua atenção com a sobrancelha erguida em
dúvida.
— O que foi? — ela responde, mirando a janela.
— Eu quero os detalhes — sussurro, fazendo-a me olhar nos
olhos.
— Detalhes?
— Do seu sonho.
Ela abre a boca, mas perde as palavras por alguns segundos e
eu não contenho minha risada.
— Eu sou a garota dos seus sonhos, Daniel Harris. Não a que
sonha com você, se toca.
O deboche intrínseco às palavras, me atinge.
— Você é mesmo. E é sempre maravilhosa neles. — Suspiro
antes de desafiá-la — Gostaria de saber como eu sou nos seus.
Carol me encara como quem não quer dar o braço a torcer.
— Para de ser babaca.
— Só quando você parar de ser mentirosa.
— Eu não vou falar nada, Harris — diz, desviando o olhar e seu
risinho de canto me mata.
— Tudo bem, se você não quer falar como eu estava nos seus
sonhos, me conta seus planos pro Brasil, Pimentinha...
Carol se recosta na cadeira e começa ser vaga sobre o que quer
fazer aqui. Mas, num geral, nosso roteiro é o mesmo: viemos ver
nossas famílias ao mesmo tempo que vamos evitar passar tempo
com elas.

Parado no ponto de Uber do aeroporto, mexo no meu celular,


observando Carol fazer o mesmo. Tudo é mecânico e confuso,
diferente da intimidade que estabelecemos no ar.
— E então, oito e meia, vai fazer o quê? — ela pergunta com os
olhos focados no aparelho.
— Tomar meu café e caminhar na Orla. E a senhorita?
— Nada planejado. — Dá de ombros.
— Então é por isso a curiosidade? — A entrego uma piscadela e
me aproximo. — Você quer tomar café comigo? — A empurro com o
ombro no dela, de maneira implicante.
— Não é que eu queira tomar café com você. — Começa, com a
mão direita erguida. — É que, você sabe, eu passaria o dia com a
minha mãe...
— Ela desmarcou?
— Não. Não é ela, eu só não... Quero sair daqui direto para lá.
— Sei como é, também não quero sair direto para a casa do meu
pai. — Não dizemos nada por um tempo. A Carol e os pais, eu e meu
pai. Sempre um ponto “complicado”, nunca normal. Nunca “apenas
família”. — Bom, Colombo de Copacabana ou o café do Parque
Lage?
— Pode ser a Colombo? — pergunta com os olhos do gato do
Shrek, e eu assinto.
O sorriso de Carol se ilumina e eu noto quando seus pés a
impulsionam em minha direção, como se ela fosse me abraçar, e
então os assenta no chão novamente e cruza os braços, perdendo a
coragem.

O café do Parque Lage é meu lugar favorito no Rio de Janeiro.


Comer uma boa comida de frente para o antigo casarão, respirar o ar
puro e a sensação de estar aos pés do Cristo Redentor é uma das
experiências mais bonitas que alguém pode ter.
Principalmente num dia como o de hoje, no qual o sol
potencializa tanto a vista.
Contudo, o sorriso que Carol Pimenta me entrega quando
nossos pedidos são postos à mesa da confeitaria Colombo do Forte
de Copacabana supera qualquer manifestação da natureza.
— Eu. Amo. Esse. Lugar — Carol diz com os olhos ainda
fechados depois de morder seu croissant recheado com queijo e
presunto. — A brisa, a maresia, a comida... Me fazem sentir tanto,
mas tanto, no meu Rio de Janeiro. — Ela respira fundo, finalmente
abrindo os olhos. — Sem contar a vista.
— A vista não poderia ser mais bonita — concordo, observando
o marrom de sua pele refletir o sol matutino.
— Sim! Eu amo essa praia e... — Sua fala se perde no ar. Ela
está de frente para mim e eu de costas para a paisagem. Carol tem a
visão de um Rio de Janeiro ensolarado, das ondas indo e vindo com
o reflexo do sol sobre elas e o Cristo e o Pão de açúcar ao fundo.
Eu não. Tudo o que vejo é Caroline Pimenta.
— Você não tá falando de Copa — diz, como se brigasse
comigo.
— Não, mas a minha vista também é maravilhosa. — Me
defendo como posso.
— Harris, se começar a se comportar como se estarmos juntos
fosse uma oportunidade para você investir em mim, a gente não vai
continuar com a nossa... amizade. Eu tenho um namorado, sabe?
— Então seu namorado é a sua única desculpa para isso aqui
não ser mais do que uma amizade?
— Daniel. — O tom de voz e a força com a qual ela segura o
conjunto de garfo e faca me fazem recuar e grudar as costas na
mesa. — Tenha o senso.
— Bandeira branca, então, vamos lá. — Ergo as mãos em
rendição — Me lembre sobre o que amigos conversam. — Pisco
para ela, jogando uma empada de queijo na boca.
— Quando eles estão sentados na confeitaria favorita das
amigas, eles ficam quietos e esperam elas acabarem de comer os
pães e doces mais gostosos do mundo para depois conversarem —
pontua com os pulsos sobre a mesa, como se me desse uma aula de
etiqueta.
— Muito bem, posso fazer isso.
Com um gole em meu suco de laranja, tiro o celular do bolso.
Estou sentado, de frente para a garota dos meus sonhos, com as
mãos suando frio apesar dos trinta e sete graus e evitando olhar em
seus olhos escuros e profundos, porque meu coração perde o
controle quando o faço.
— Harris — Carol chama minha atenção e ergo o rosto. — Sem
celulares à mesa, faz parecer que você não está tendo prazer na
companhia silenciosa da sua amiga.
— Você é insuportável, Caroline Pimenta — pronuncio a palavra
sorrindo como se fosse um elogio.
— E você quer estar aqui ainda assim. — Ela me mostra a língua
ao mesmo tempo que encolhe os ombros, e eu afogo minhas
mágoas numa bomba de chocolate branco.
Mas estar com ela é bom. E eu preciso me lembrar de que
somos amigos. Não porque quero estar por perto até que ela mude
de ideia, mas porque a vida é melhor assim.
Bebo meu café com bastante açúcar e como dois waffles
enquanto observo Carol de maneira furtiva. Feliz como uma criança
que acabou de ganhar um brinquedo, ela come tudo o que vê pela
frente.
Eu gosto da Carol. Pensei que gostava quando nos
reencontramos. Segui com essa sensação a cada “não” que ela me
deu. Percebi que precisava mesmo dela quando sofri o acidente e
ouvi sua voz. Mas, acima de qualquer outro momento, senti o quanto
meu coração ainda bate por ela essa noite, acariciando seus cabelos
enquanto ela dormia em meu peito.
Mordo uma empada de camarão que desce rasgando minha
garganta, não pelo sabor, mas pela sensação sufocante que essa
constatação traz.
Seco o suor da minha testa e rio vendo-a terminar de comer seu
banquete perdida entre beber seu café com leite e o suco de laranja
natural e sem açúcar – que quase nunca é bom na Europa.
— Isso estava muito, muito bom. — Bate o guardanapo nos
lábios, fechando os olhos novamente.
— Tava mesmo.
— Você mal comeu — acusa, estalando o pescoço para os dois
lados.
Encolho os ombros de nervoso.
— Você tava comendo igual a uma draga.
— Ah, comi mesmo. Agora vamos pra orla?
— Você vem caminhar comigo? — A pergunta voa dos meus
lábios, mas sorrio condescendente.
— Claro. Preciso me movimentar pra comida assentar. — Carol
se levanta jogando a mochila nas costas.
Faço o mesmo, mas antes de segui-la, olho para trás para
admirar a paisagem daquela vista. Meu Rio de Janeiro continua
lindo.

Passeando pelo Mar Largo – nome dado à calcita preta e branca


que forma o calçadão ondulado da cidade – rimos dos casos de
bastidores da minha trajetória. Sigo respondendo Carol, que continua
me enchendo de perguntas – tão técnicas quanto só alguém
apaixonado por F1 poderia fazer.
A maresia nos abraça, as poucas pessoas que estão na praia
numa manhã de terça nos causam inveja e já estamos finalizando
nossa segunda água de coco.
— Tá, mas voltando do início — ela indaga, segurando o canudo
como se ele pudesse voar a qualquer momento — Como foi a
transição da Fórmula 3 pra 2?
Minha mudança de categoria aconteceu meses depois dela
terminar comigo, vê-la ansiando pela informação seria cômico se não
fosse trágico.
— Fácil. — A choco com minha resposta. Carol sabe que nunca
é fácil, se sair bem na F3 não garante vaga para ninguém na F2. —
Eu só tinha aquilo pra pensar — explico, mas ela sinaliza com a mão
para que eu desenvolva o pensamento. — Não tinha amigos
próximos em Londres. Não ia fazer faculdade. Meu pai ainda não era
um problema, porque na cabeça dele eu era só “mais uma promessa
que falharia como todas as outras” e logo estaria de volta para cuidar
da empresa. E eu tinha muito ódio dentro de mim. — Encolho os
ombros. — Era uma mistura de sentimentos ótima de canalizar pra
pista.
— Ódio do seu pai? — Os olhos dela me estudam com pesar,
mas não seria justo comigo mentir agora.
— Ódio de ter planejado toda a minha vida do lado de uma
pessoa que, de repente, disse que me amava, mas precisava
terminar comigo — digo, e Carol vira o rosto em direção à praia. — A
gente não precisa falar disso, só tô explicando o processo. — Vejo-a
assentir, mas ela ainda não me olha. — Desde então, decidi que meu
único foco seria chegar aonde eu queria, e agora que cheguei, não
me arrependo das minhas escolhas.
— Então você nunca mais teve uma namorada? — ironiza,
pousando os olhos levemente avermelhados em mim.
— Você é a repórter que cobre o esporte há anos, acho que
saberia se eu tivesse — rebato, querendo bater minha cabeça num
poste.
— Entendi. — Carol joga seu coco em uma lixeira e me pede o
meu.
Mesmo sem entender por que ela quer meu coco, o pé direito de
Carol batendo no chão enquanto ela segura o cabelo que se perde
no vento com uma mão e me estende a outra me obriga a obedecê-
la.
Sorvo o líquido restante e entrego a fruta a ela.
— Tá tudo bem?
— Claro, vem comigo. — Seguro sua mão e corremos para
atravessar.
— Você tá louca? — grito enquanto chegamos à faixa de
pedestres, e ela gargalha.
— Não, Harris, você que está. Vamos comprar um chinelo pra
você — diz enquanto cruzamos a Avenida Atlântica. — E pelo amor
de Deus, vestir uma camisa sem mangas também, o que você tinha
na cabeça quando escolheu essa roupa?
Tento responder, mas ela ergue a mão livre para que eu me cale
enquanto atravessamos outro sinal e caminhamos até a rua
República do Peru.
Eu poderia até tentar contra-argumentar, mas Carol está com
uma sandália de dedos desde que saímos do avião, sua blusa tem
alças fininhas e até o jeans que ela veste é largo. Sem deixar de
notar que a cintura alta modela suas curvas, me dou conta de que
Caroline estava bem mais preparada para o Brasil do que eu.
— Chega de falar de mim, vamos falar de você — peço quando
voltamos a caminhar como duas pessoas normais.
— Sobre o quê? — A sobrancelha erguida me arranca um
risinho.
— Baixa essa guarda, Carol Pimenta. — Estalo a língua,
exalando o ar. — Me fala da Miyeko.
— O que tem ela?
— Vocês trabalham juntas ou são amigas?
— Os dois, acho. — Carol coloca um cacho perdido atrás da
orelha. — É meio recente, né? — diz, não como uma afirmação, mas
como uma pergunta.
— Não sei, Carol. Vocês não se conheciam antes?
— Conhecíamos, mas era diferente, eu não morava com ela. —
Encolhe os ombros.
— Ela trabalhava como câmera já, né? Com a outra garota do
seu canal?
— Sim, como você sabe?
— Eu acompanho o trabalho das repórteres que cobrem F1.
— Todo mundo? — pergunta, descrente, quando viramos na
famosa e movimentada Avenida Nossa Senhora de Copacabana.
— Sim — digo, convicto.
— Do. Mundo. Todo? — A pausa que ela faz entre as palavras e
a forma como segura o riso numa careta divertida me fazem ser
direto.
— Todo mundo que me importa. Eu sabia que você trabalhava
para eles, te acompanho como você me acompanha, então... — Dou
de ombros e ela para na frente da loja de chinelos.
— Te acompanhar é meu trabalho, Harris. Apenas — desdenha
por cima do ombro e eu esbarro nela na entrada, parando ao seu
lado.
— Se repetir essa mentira mais três vezes em voz alta. — Corro
a língua pelo meu lábio inferior. — Talvez você acredite.
Carol semicerra os olhos e engole em seco. Ela até faz menção
a dizer algo, mas a atendente, Alicia, nos dá “bom dia”. Tomando a
frente da compra, minha Pimentinha pede quatro modelos diferentes
a ela, que vai até o estoque.
Logo depois, Carol pega minha mochila, sem aviso, e se põe a
revirá-la. Encontrando uma camisa branca, com tecido fino que tem a
logo da Arrows no peito e nas costas, avisa que devo vesti-la.
Mesmo chocado com a audácia dela de mexer nas minhas
coisas e me dizer o que fazer, começo a tirar minha camisa.
— Harris? — Carol me repreende, com os olhos arregalados e o
queixo caído.
— O que foi agora? — resmungo, pegando a camiseta.
— Eu ia perguntar se elas têm um banheiro, sabe? — Revira os
olhos, me dispensando com a mão enquanto Alicia se reaproxima de
nós.
Quatro minutos depois estou com um chinelo em mãos e outro
na mochila.
— Ainda não acredito que você tirou a roupa dentro da loja. —
Carol resmunga enquanto saímos do estabelecimento.
— Tá reclamando de quê? Ficou me manjando, pensa que eu
não vi? — implico, mas para a minha surpresa ela não nega, apenas
gargalha.
— Claro que fiquei, tu tá gostoso pra cacete.
— Carol? — Meu queixo cai e o som da risada dela anula todas
as buzinas e freadas ao redor.
— Quem fala a verdade não merece castigo, você tá gostoso
mesmo. O que não quer dizer que eu quero me casar com você por
isso — ressalta, revirando os olhos com ar de deboche.
— Tudo bem, bom saber que quando a gente se casar não vai
ser apenas pelo meu tanquinho. — Tropeço em uma rachadura na
calçada e Carol me segura com um risinho de canto.
— Nem pelo trapézio definidíssimo. — Caroline canta as
palavras.
Filha de uma...
— Mas, voltando a falar sobre a Myieko... Ela diz as verdades
que preciso ouvir e me ajuda a não surtar.
— Por que você surtaria? — Aperto o passo ao lado dela assim
que o sinal abre, sentindo falta de quando fizemos o trajeto de mãos
dadas.
— Porque, Novato, eu sou novata nessa área.
— Você é ótima, Carol. — Garanto, aguardando no segundo
cruzamento. — Eu assisto a todos os cortes com a sua participação
no programa, você não falha, nunca — falo um pouco mais alto
quando o sinal fecha e os carros freiam, mas quando dou o terceiro
passo, percebo que Carol não está no mar de gente que cruza a rua
ao meu lado.
Volto até ela sem entender por que Carol Pimenta está parada
numa calçada enquanto pedestres a contornam e ciclistas buzinam
desviando dela, mas antes que eu possa dizer qualquer coisa, Carol
me encara como se eu fosse o primeiro dia de sol do verão europeu.
— Todas? — Franzo o cenho confuso. — Você assistiu a todas
as minhas participações no Garotas No Padoque?
— Todas, por quê? — indago, caminhando com ela para o canto
enquanto pessoas se aglomeram à espera do próximo sinal verde
para pedestres.
— De verdade? — Carol enrola o cabelo num coque, impedindo
que o vento continue levando-o para todos os lados.
É como se ela estivesse em choque demais e eu não sei como
descontraí-la sem me humilhar, então me humilho porque é minha
única opção.
— Se você não fosse me zoar pelo resto da minha vida, eu diria
para você que tenho uma pasta no drive com todas as suas
reportagens escritas também, mas como você é uma pentelh... —
Não completo a frase, porque Carol Pimenta jogou os braços ao
redor do meu pescoço em plena avenida atlântica.
Sem mais nem menos. O abraço é apertado, e eu acaricio suas
costas por baixo da sua mochila porque ela se prende a mim como
se eu devesse me prender a ela.
— Você não sabe, Harris — diz sem jeito, se afastando. — Mas
ouvir isso foi muito especial.
Ouvir isso.
Não “ouvir isso de você”.
— Ninguém nunca disse? — Rio, porque só pode ser uma piada,
Carol Pimenta nasceu para falar sobre Fórmula 1.
— Ninguém que importe. — Ela mira o chão, trocando o peso de
perna.
Seguro seu queixo, erguendo seu rosto.
— É sério, você é incrível. Como ninguém te disse isso antes?
Carol sorri para mim tomando minha mão com a dela e me puxa
para finalmente atravessarmos.
— Digamos que meus pais, minha melhor amiga e meu
namorado não se importam tanto assim com Fórmula 1 — diz, ainda
segurando minha mão, enquanto atravessamos a rua.
— Seu pai amava Fórmula 1.
— Meu pai assistia comigo, depois que fui embora ele perdeu o
hábito.
— Ah, não. Vamos ter de conversar sobre minhas reportagens
favoritas então.
Já do outro lado da pista, decidimos ir em direção ao Arpoador, e
eu aproveito para contar a ela como foi acompanhar sua evolução
como repórter. Ler as matérias pequenas, as médias, as de capa do
site. Carol gargalha e me dá um tapa quando expresso meu
descontentamento por não ter recebido uma matéria tão aprofundada
quanto a do Mick Schumacher quando cheguei até a Fórmula 1.
Isso dá espaço, ou segurança, para que Carol fale da
experiência dela mais abertamente. Sobre o site, sobre as chefes,
Miyeko, Paris e a questão de ter deixado de ser a menina dos posts
escritos para se tornar repórter de campo.
Chegamos ao arpoador meia hora depois e, como se tivéssemos
combinado, no segundo que avistamos o Posto 7, nos sentamos na
calçada que é nivelada alguns metros acima do mar.
Deixamos as pernas penduradas para dentro da areia,
respirando o ar carioca e nos refrescando com a brisa do mar.
— Eu amo morar na Europa, de verdade, mas a natureza tem
mais cores e mais vida aqui. — As palavras que circulam meus
pensamentos voam pelos meus lábios, e Carol assente com um leve
sorriso ainda mirando a vista.
A imensidão de anil do céu beija o azul escuro do mar na linha
do horizonte e o sol bate na areia da praia como se pudesse deixá-la
ainda mais clara e brilhante. Tudo isso coroado com uma diversidade
de pessoas tão intensa que, se fosse um cartão postal, ninguém
precisaria olhar duas vezes para saber de qual país seria.
— E traz paz — diz ela, com o pescoço erguido, ainda
admirando a paisagem.
Voltamos a aproveitar a vista em silêncio, vez ou outra Carol
fecha os olhos e respira fundo. Não quero atrapalhar seus
pensamentos, então faço o mesmo. Algum tempo depois, tiro meu
celular do bolso.
Jack, Rick e minha mãe mandaram mensagens que respondo
com prazer, já a de meu pai, mesmo que pareça ser algo bom “Oi,
filho. Que bom que você...”, eu abro para ler o restante ainda
apreensivo.
Pai: Oi, filho, que bom que você chega hoje. Te espero para
jantarmos juntos, estou com saudades.
Eu: Já estou no Rio, pai. Te vejo à noite, saudades.
Não é exatamente uma mentira, eu sinto saudades do meu pai,
só não sinto saudades da parte dele que acha que eu preciso
assumir a empresa um dia.
— Se você pudesse fazer alguma coisa bem doida agora, o que
seria? — Jogo a pergunta no ar quando Carol me vê guardado o
celular.
— Chamar um Uber pra gente pilotar Kart — diz como se fosse
um convite, e eu gargalho.
— Acabei de me acidentar, Caroline Pimenta. Quer que minha
equipe me demita me vendo pilotar durante minha recuperação?
— Você perguntou e eu respondi, oras.
— Entendi. Bom, eu não posso pilotar kart, mas acho que a
gente tem tempo o bastante para uma autopista, o que você acha?
Carol segura o riso virando o tronco em minha direção.
— Um carrinho de bate-bate?
— Eu sou um homem acidentado, Caroline Pimenta.
— Por mim, perfeito, mas preciso estar na Laís às 14:30h. — Ela
se levanta num pulo e me oferece a mão. Eu a pego e me levanto,
concordando com seus termos.
O quão ferrado da cabeça eu estou por escolher conviver com a
mulher que eu quero e não posso ter?
Capítulo 22
Ou: Eu sinto falta de gritar e brigar e beijar na chuva. E são duas da manhã e eu estou amaldiçoando o seu nome, eu estava tão apaixonada que agi de

maneira insana e esse é o jeito que eu te amava.

The way I loved you – Taylor Swift

Carol
— Harris: Eu. Odeio. Você — grito depois que ele me fecha no
canto da pista pela terceira vez.
— Em primeiro lugar, você não me odeia — Daniel ergue um
dedo e fala mais alto que a música irritante do parque. — Em
segundo, você já ganhou duas vezes.
— Sim, e ganharia a terceira da nossa melhor de três se você
não estivesse roubando — vocifero, tentando tirar o carro do canto,
sem sucesso.
— Não estou roubando, estou jogando com o regulamento
debaixo do braço — rebate, como se isso fizesse algum sentido.
Mais dois carros estão ocupados à nossa volta, andando
livremente, duas crianças com seus pais que passam por nós e nos
observam como se fossemos dois doidos perdendo o tempo do
brinquedo.
E elas estão certas.
— Desde quando impedir outro piloto de correr é válido? — Soco
o volante com as duas mãos e a risada de Daniel faz o monitor do
brinquedo parar de segurar o riso.
Me pergunto como pode ser tão cínico, me roubar na cara dura e
ainda se defender tão sério. Abro a boca para protestar, mas o tempo
do nosso ingresso para essa rodada acaba e o som do alarme me
faz encará-lo com toda a minha raiva.
Daniel ergue os braços em rendição e eu bufo.
— Ganhei duas partidas da melhor de três — ressalto, pulando
do carrinho. — Isso significa que eu venci.
— Significa que eu deixei você ganhar. — Daniel salta para fora
do carrinho no momento que passo ao lado dele e me encara. —
Sou um piloto profissional, Pimentinha. Acha mesmo que eu não
ganharia de você?
Gargalho com a coragem e dou um passo para o lado, seguindo
meu caminho.
— Nunca ganhou de mim antes, não seria agora que iria ganhar.
— Desvio das duas crianças com seus pais que também estão
deixando a pista.
— Você quer ir mais uma ou já precisa ir embora?
Dou um tchauzinho para o monitor do brinquedo, que ri de nós
dois.
— Não, você rouba.
— Vamos fazer algo juntos, então. — propõe, me alcançando do
lado de fora.
— Máquina de dança! — digo no meu tom inegociável ao avistar
o brinquedo do outro lado da barca à nossa frente e ele junta as
sobrancelhas num muxoxo.
— Carol, pelo amor de Deus, eu sou horrível nisso.
— Eu tenho de ir embora em vinte minutos, Harris... — Finjo
checar as unhas enquanto caminhamos, e ele expira com força ao
meu lado.
— Tá, coisinha irritante, vamos lá. — Me desafia, correndo em
direção ao brinquedo, e vou atrás dele com meu preparo físico de
centavos.
Ou pelo menos tento ir, porque Daniel é parado bem no meio do
caminho, na frente da carrocinha de pipoca, por um casal de
adolescentes.
Fãs.
Fico exatamente onde estou e finjo observar o carrossel vazio.
De rabo de olho vejo quando o sorriso de Daniel se abre de orelha a
orelha. Sorrio junto porque o momento não é só sobre ele, é o todo.
Mesmo correndo pela bandeira da Inglaterra, Daniel é brasileiro e
sabe o quanto significa ter alguém do Brasil com tanta expressão na
F1.
Os anos de ouro nos deram Fittipaldi, Pace, Piquet e Senna.
Depois disso, Rubinho e Massa. Então tivemos de nos conformar
com o Hamilton sendo um cidadão honorário, mas alguém que
nasceu aqui? Harris é o primeiro! Então não consigo conter o sorriso
quando Dani os abraça. Esse é outro motivo para ficar longe, deixá-
lo ter seu momento.
Uma coisa que estranhei quando chegamos é que ninguém veio
falar com Daniel. Na saída do aeroporto, algumas pessoas o
encararam, outras tiraram foto de longe e ele fingiu não ver, mas sei
que estava ciente.
Na orla da praia isso aconteceu de novo, e confesso que até
fiquei com medo de estar ao seu lado nessa situação, quer dizer, se
quando ele me deu aquela fatídica primeira entrevista surgiu gente
do bueiro na internet para especular se éramos um casal, imagina
nos vendo juntos por aí.
— Carol! — Daniel me grita, assim que esse pensamento passa
pela minha cabeça, e meu pescoço vira imediatamente para que eu
possa fulminá-lo com o olhar.
Harris me chama com a mão no ar, fazendo sinal de “vem”, junto
do casal que está com ele. A garota de sorriso fácil e olhar
encantado não pisca durante todo o meu trajeto. Já o rapaz, alto
como um exímio namorado catador de mangas, me observa sem
expressão.
— Meu Deus, Carol. Eu te acho tão incrível. — A menina joga os
braços no meu pescoço e eu olho para o Harris, na minha lateral,
tentando entender essa reação ao mesmo tempo que tento não
amassar o black power dela.
— A Joana faz jornalismo — explica — e disse que se inspira
muito em você.
— E é verdade. Ela fala de você o tempo todo — o namorado
comenta, tentando puxá-la.
— Só comecei a amar Fórmula 1 por causa de vocês dois,
sabia? Sempre gostei de assistir, mas parecia algo tão distante —
diz, me soltando depois de eu começar a empurrá-la levemente. —
Só que ver você na Arrows esse ano e você comentando deixou tudo
mais interessante.
— Por quê? — Daniel indaga de cenho franzido.
— Porque vocês são — Pelamor de Deus, não diz um casal —
pretos , uai. — Meu alívio é tão grande que a respiração sai mais alta
do que o programado. — É complicado encontrar repórteres
mulheres de destaque na F1, preta então... E piloto, você é o quê? O
Primeiro desde o Hamilton? — A pergunta é retórica, mas Daniel
assente. — É isso, vocês tornaram o sonho mais possível.
— Ah. — Rio aliviada. — Fico muito feliz de ser uma referência
pra você, Joana. De verdade. Eu sei a falta que a representatividade
faz no dia a dia.
— Você sabe que ela está tentando parecer normal, mas tem
#CarDan na BIO, né? — o rapaz diz rindo de canto, e eu ficaria roxa
como um pimentão se fosse branca e, pela cotovelada que dá no
namorado, Joana também.
— O que é #CarDan? — Daniel, o sonso, pergunta ao meu lado.
— O shipp de vocês — Joana responde como se fosse óbvio, e
eu me afundo mais cinco palmos no chão.
— Ah, o negócio que quase acabou com meu namoro... — Jogo
no ar.
— Sim! E, com todo o respeito, a gente segue na torcida para
que acabe logo — diz, e Daniel gargalha.
Ele simplesmente gargalha ao meu lado.
— Agora que minha gatinha passou de todos os limites, a gente
vai indo nessa. — O rapaz se despede corado e sem jeito. —
Obrigado pelo tempo de vocês.
— Nada disso. — Joana se desvencilha do abraço em sua
cintura. — A gente pode tirar uma foto?
— Eu tiro. Vão vocês dois com ele. Sou ótima em bater fotos. —
Me adianto, mesmo mentindo.
Os três param de costas para o barco Viking que é o único
brinquedo com luz do sol a favor, e eu faço seis fotos.
— Prontinho — digo, entregando o celular dela e empurrando
Harris com o olhar. Quero sumir daqui o mais rápido possível.
— Ah, vamos fazer uma selfie? — ela pede, e eu gelo na hora,
Deus me livre o Gabriel ver essa foto. — Eu não posto em lugar
nenhum, juro. O Mathias jura por mim também. — Indica o
namorado.
— Sei... a senhora estava na torcida pelo fim dele há poucos
minutos.
— Se tu tá aqui com o Daniel agora, é obvio que esse namoro
não dura muito, não preciso me meter...
— A senhorita é muito bocuda, sabia? — Mathias a repreende, e
eu reviro os olhos para a carinha risonha de Daniel.
— Meninos de um lado, meninas de outro — decreto, assumindo
a ponta direita, e Daniel assume a esquerda.
Sorrio para a foto porque, bem, não é só sobre o Harris, é sobre
a Joana ter uma foto com alguém que a inspira.
— Você posta essa foto antes de a Carol ficar solteira e eu não
te convido para o nosso casamento! — Harris alerta com o dedo em
riste e os olhos dela se arregalam mais que os meus. — Agora a
gente precisa ir. Até mais. — Ele passa o braço por cima do meu
ombro, fazendo Joana abrir um sorriso enorme.
— Até, futuro campeão — Joana diz e, com um tchauzinho
saltitante, o casal nos deixa.
— Harris? — Meu queixo caído com sua audácia o faz desviar o
olhar.
— A menina foi embora motivada e feliz, você não precisa ficar
com raivinha, era brincadeira.
— Eu vou acabar com você naquela máquina. — Passo por ele
trombando em seu braço e finjo que a dor de bater num homem
malhado não me atinge.

Só me dou conta de como o tempo voou quando Harris começa


a escolher outra música.
— Dani, eu preciso ir embora, já são duas e meia! — grito
pegando minha mochila do suporte.
— Calma, Pimentinha. Vamos só mais uma — pede, como se eu
tivesse tirado um doce da boca da criança.
— Já te bati seis vezes e não sou Alemanha para chegar
metendo 7 a 1. — O olhar de Daniel dança entre o inseguro e o
apreensivo, como se ele não quisesse que esse dia acabasse, mas
ele se dá por vencido e pega sua mochila. — Você me segurou aqui
por tanto tempo que já estou atrasada, a Laís saiu antes do trabalho
para ficar comigo, sabia? — repreendo-o enquanto o puxo para a
saída, tentando descontrair o clima pesado que o olhar vacilante dele
instaurou no meu coração.

Eu deveria estar em paz agora, mas não estou. Entrando no


Uber, tento entender tudo o que aconteceu nos últimos dias.
Ligar para o Harris.
Conversar com Harris sem reservas.
Viajar com Harris.
Ser amiga do Harris.
Sonhar com o Harris.
Beijar a boca do Harris num sonho real demais para ser apenas
material do meu inconsciente.
Passear com o Harris na praia.
Derrotar o Harris na autopista e na máquina de dança e estar
dividindo um Uber com ele no caminho de volta.
Tudo isso é distante e inimaginável. Ou era, até agora. Apesar
do sonho, consegui não deixar as coisas ficarem estranhas e, contra
minhas próprias apostas, nossa manhã juntos foi ótima. E eu poderia
mentir para mim. Dizer que fiquei com ele porque não estava no
clima de ver meus familiares, mas a verdade é uma só:
O medo de ver uma coisa muito boa acabar que tomou os olhos
de Daniel quando eu disse que tínhamos mesmo de ir foi o mesmo
que senti quando chegamos ao aeroporto de manhã. Fiquei com
Harris porque foi muito bom estar com ele e eu não queria que aquilo
acabasse tão rápido.
Minhas horas trancafiada com esse homem irritante dentro
daquele avião foram de longe as mais legais em semanas, e ver
Daniel sendo um babaca, brincando, sorrindo, gemendo de dor ou
implicando comigo me deu a segurança de que ele está bem apesar
do acidente. E agora ele sabe que eu não o odeio.
— Nem acredito que ganhei de você na máquina de músicas. —
Dani apoia a cabeça no encosto, me encarando, e eu seguro o riso.
— Nós jogamos sete músicas e você ganhou uma. Mas, sou
uma boa perdedora, diferente de algumas pessoas, sabe? E assumo
que você me derrotou — minto, porque quero que ele fale a verdade.
— Não adianta, Carol. Eu não vou assumir por aí que você é
melhor do que eu no bate-bate.
O encaro com uma careta de ódio e gargalho. O motorista do
Uber disfarça, mas também está rindo.
— Adorei nosso tempo, Harris — confesso, aproveitando a
descontração, porque se eu tiver de dizer isso a ele séria, talvez
nunca consiga juntar as palavras. — Mesmo você sendo meio besta.
— Também adorei nosso tempo, Pimentinha, e eu... — Daniel
fica em silêncio por tempo de mais, então toco sua mão sobre o
banco, incentivando-o a falar. — A gente é amigo de novo, certo? —
O temor nas palavras me pega de surpresa.
— Sim. Eu acho que sim, por quê?
— Porque você era minha amiga, minha melhor amiga e
provavelmente a única de verdade. Perder você como minha
Pimentinha foi ruim, mas não ter mais a minha amiga para chorar, rir,
pedir conselhos, dividir tudo antes de dizer para qualquer outra
pessoa, acabou comigo, Carol . — Vejo seu pomo de Adão subir e
descer com o amargor das palavras.
Ele vira sua mão para cima e entrelaça nossos dedos.
— Novato, eu queria muito... — Começo uma frase que não
tenho ideia de como terminar, mas o indicador de Daniel chega aos
meus lábios, me dizendo que o interrompi.
— Se eu nunca mais tiver você como minha namorada, eu vou
entender. Mas não ter você na minha vida de jeito nenhum é uma
tortura a qual eu não estou mais disposto.
O olhar perdido de Daniel me atinge e suas palavras me
machucam.
Machucam porque eu senti tanta falta do meu Novato, eu sinto
tanta falta de nós dois sendo idiotas e brigando e rindo e se
provocando...
— Eu estou uma bagunça, Daniel, e no fundo sei que a gente é
uma coisa complicada, mas obrigada por estar aqui agora. Desculpa
por ter sido... estúpida com você no início. — Cuspo as palavras, me
remexendo no banco do carro. — Eu não sabia como estabelecer
limites entre a gente e acabei te jogando longe.
— Talvez a gente ainda não saiba. — Observo seu olhar em
nossas mãos. Íntimas, entrelaçadas, se acariciando, e meneio a
cabeça, puxando a minha para o meu colo.
— Mas vamos aprender, Novato — garanto com um leve sorriso
quando o carro para.
Abro a porta, agradecendo ao motorista e deixo o carro tão
animada quanto estava ao entrar.
Ainda dou um tchauzinho para o Daniel antes de tocar o
interfone. O carro bordô se afasta e Laís autoriza minha entrada.
Passo pelo pequeno portão cinzento de abertura automática e, em
três passos equilibrados em cima da madeira de lei que protege o
gramado, chego à varanda no mesmo instante em que a porta se
abre.
O vento quente do meio da tarde carioca corta o espaço entre
nós duas e minha amiga sorri. Jogo meus braços ao redor de seu
pescoço e, enquanto Laís diz que estava morrendo de saudades e
louca para me ver, suspiro podendo, finalmente, sentir que estou
segura.
— Nem acredito que você está aqui. — Me solta com um gritinho
animado.
— Nem eu. — Laís abre um pouco mais a porta para que eu
entre. — Uau, quantas mudanças. — Caminho até o meio da sala e
giro no meu próprio eixo, observando os detalhes.
As paredes eram amarelas quando eu morava aqui, se tornaram
azuis antes da minha mudança para Paris e agora são marfim, como
eu já tinha visto por ligação. Mas o que me surpreende é que os
móveis foram trocados, todos são bem escuros e contrastam com o
tom das paredes. Durante o dia, esse contraste ganha ainda mais
força com a luz do sol entrando pela janela e iluminando tudo.
É adulto, moderno e aconchegante.
— Adotei um estilo mais monotom nos últimos meses — diz na
defensiva. — Tá estranho? — Laís joga o cabelo curtinho para o lado
direito.
— Não, mas também não imaginava que você seguiria tentando
ser mãe de planta. — Indico o vaso em cima de uma mesinha ao
meu lado e atravesso o cômodo, me jogando na poltrona embaixo da
janela.
— Ah, isso... Ela é de mentira. Sabemos que eu não tenho
cabeça pra cuidar de ser vivo. — Laís ri se sentando no sofá à minha
frente. — Só de você, que bom que você chegou. Senta aqui comigo.
Estou morrendo de saudades!
Não questiono, corro até o sofá do qual fugi antes por causa da
claridade e deito com a cabeça no colo dela.
— Estou muito orgulhosa de você, sabia? — Balanço a cabeça
negativamente, sem jeito. — É que eu queria dizer assim, olhando
nos seus olhos enquanto te vejo exausta, mas satisfeita.
— Isso é verdade. Morar em outro continente parecia loucura no
início, depois me joguei. É estranho, obviamente, mas nada que me
mate.
— É, perdeu o status afropaty mesmo, né?
— Meus pais odiaram saber que eu vivo uma vida classe média
por lá, mas prefiro seguir sem o dinheiro deles por ora.
— Orgulho? — Laís quase sussurra a pergunta e eu rio tanto
que as coxas dela tremem.
— Que orgulho? Nunca me deram atenção, têm mais é que me
dar dinheiro mesmo. — Sigo rindo de desespero e Laís me dá um
tapa por eu tê-la feito rir disso. — Mas quero entender o que o meu
trabalho pode fazer por mim, sabe?
— Sei, sim, meu amor. — Ela me observa por alguns instantes
traçando a linha das minhas sobrancelhas por fazer. — Mas também
sei que quando a gente mora fora, nem sempre consegue contar
tudo o que está acontecendo. Desembucha, garota da Twitch, como
estão as coisas na sua vida dos sonhos?
— Incríveis. Na medida do possível. — Dou de ombros, e o olhar
de Laís me implora por detalhes.
Então respiro fundo antes de começar a explicar o misto de
prazer e agonia que é a minha vida de repórter de F1. Mesmo
sabendo que Laís não está interessada em meu trabalho e sim
naquele Novato irritante, decido não mencioná-lo.
Ao menos aqui, agora, somos apenas eu, o mundo da Fórmula 1
e minha melhor amiga.
Capítulo 23
Ou: O diabo não barganha. Ele só vai quebrar seu coração novamente.

Não vale a pena, querida. Ele nunca vai mudar

Devil Doesn't Bargain - Alec Benjamin

Daniel
Algumas coisas nunca mudam.
O toque, o cheiro, os trejeitos ainda estão todos ali. Carol muda
o cabelo de lado quando está ansiosa. Faz um coque quando fica
com raiva ou perde a paciência, semicerra os olhos querendo passar
a mensagem de que ela está certa e ponto final.
Ah, ela também tem mania de, do nada, estalar o pescoço, e
isso sempre me assustou o suficiente para me irritar, mas agora não
incomoda mais. Ter de ouvi-la fazendo isso significa que Carol está
na minha vida de alguma forma, e isso é certo.
Ter a minha Pimentinha por perto é o certo.
Eu gosto dela, gosto demais, mas se o único espaço que posso
ter é o de amigo, vou fazer a coisa que mais odeio na vida: tirar o pé
do acelerador, ao menos por ora.

Desço do Uber na porta da residência dos Torres e vejo-o fazer o


retorno em direção à saída do condomínio enquanto respiro fundo
antes de girar a chave no portão.
Caminho até a entrada da casa e, antes mesmo que eu empurre
a porta, ela se abre e uma mulher branca de baixa estatura sorri
cordialmente para mim dentro de um uniforme.
— Boa tarde, Daniel. — Meneio entrando na minha antiga casa
com o pé direito.
Nunca fui dado a superstições, mas quero muito que esse tempo
com meu pai seja bom.
— Você é? — indago assim que ela fecha a porta e para à minha
esquerda como se esperasse algum comando.
— Amália, senhor.
Estendo a mão. Amália hesita, mas me cumprimenta.
— Bom, Amália, obrigado pela recepção. Vou tomar um banho e
descansar — digo, caminhando em direção à escada.
Os trinta e dois degraus que me levam ao segundo andar da
residência Torres ficam do outro lado do cômodo. Passo pela sala de
estar, grande demais, com teto alto demais, e cada um dos 30
metros quadrados desse lugar é tão soturno que nem a luz do sol
escaldante, que invade as janelas, consegue iluminar o ambiente por
completo.
— O senhor vai almoçar? — A voz doce e gentil de Amália me
para no meio da escada, desvio os olhos do verde musgo que cobre
a parede até o andar superior e volto a olhar para ela.
— Não. Mas por volta das quatro da tarde eu aceito um café —
digo e corro os degraus finais.
Fui embora daqui há cinco anos, mas meu quarto ainda tem uma
cama grande demais para eu dormir sozinho bem no meio da parede
à direita da porta. Passo por ela, indo até minha antiga escrivaninha,
e abro as cortinas com o controle remoto. A janela infinita revela o
verde do gramado lá embaixo e o límpido céu azul. Duas coisas das
quais eu sinto mais falta do que gosto de admitir.
Do lado oposto do cômodo está o meu pedacinho do paraíso:
minha mesa gamer. Planejada com todos os equipamentos
possíveis, incluindo o assento especial para dirigir Fórmula 1, ela
ainda magnetiza meus olhos como se eu tivesse dezesseis anos. E é
bem atrás dessa mesa que estão meus posters do Senna, Rubinho e
Hamilton. 
Meu pai me deu esses posters quando a Fórmula 1 ainda não
era o que nos separava. Assim como o lego de 1500 peças da
McLaren clássica que fica em cima da minha escrivaninha. Puxo a
cadeira acolchoada, me sentando. Trago o lego para mais perto e me
pego brincando com o volante do veículo. Mexo as rodas de um lado
para o outro enquanto a imensidão do ambiente, combinada com
solidão, me engolem.
Bem-vindo ao lar, Daniel Harris Torres. Penso me levantando e
abrindo a porta ao lado da cama que dá no meu closet com banheiro.

Saio do banho secando o cabelo e me observo pelo espelho do


closet. Minha coluna parece reta o suficiente, e eu não sinto tanta dor
quando espreguiço ou faço agachamento. Meu maior medo depois
do acidente era precisar ficar sem correr para me recuperar, mas
isso não vai acontecer.
Sacudo a cabeça para afastar o pensamento e jogo a toalha na
roupa de lavar. Abrindo a porta do quarto em seguida, dou um pulo
de susto. São três da tarde de uma quarta-feira e o senhor Fernando
Torres está sentado na minha cama.
— Pai? — Puxo a porta atrás de mim com o cenho franzido
enquanto ele se levanta e vem em minha direção.
Sua expressão é triste e suas mãos estendidas, tentando me
segurar como se eu pudesse quebrar a qualquer momento, me
surpreendem.
— Daniel. — Ele me puxa para si, me mostrando que minha
lombar ainda não está 100% recuperada. No entanto, não reclamo.
Dizer algo significaria sair desse abraço, e não estou pronto para
isso ainda. — Como você faz isso? — pergunta, se afastando, e
apalpa meus braços, rosto e peitoral. — Como que você dá um susto
desse no seu pai?
— O que eu fiz? — As mãos trêmulas dele me assustam.
— Você quase morreu?! — A resposta dele se torna uma
pergunta e eu engulo em seco para segurar o riso.
— Pai, eu tô bem. — Me sento na cama e espero que ele faça o
mesmo. — Foi só uma batidinha, não aconteceu nada de mais.
— Daniel, não mente para o seu pai, eu vi o acidente. — Ele
estende a mão, como se fosse tocar meu rosto, mas sem saber
como estabelecer esse tipo de contato, deixa que ela se recolha até
o colchão.
— Só que o senhor não sabe como funcionam os carros... —
digo, gentilmente apoiando minha mão na sua. — Eu senti a
pancada, óbvio, e ainda sinto um pouco de desconforto na coluna,
mas tá tudo bem. Vou voltar pra lá segunda-feira, terminar de me
recuperar, e no domingo já vou estar tinindo. — Garanto com um
tapa no ombro.
— Foi uma sensação… — A tez escura franze e posso ver pelo
seu pomo de Adão quando ele engole o choro. — Horrível. Um vazio,
uma dor... Se não fosse sua mãe ficar dez minutos me dizendo que
você estava bem, não sei o que teria feito. — A mão direita esfrega
seu rosto, como se limpá-lo pudesse apagar todos os pensamentos.
— Não tinha um voo, não tinha... Nada. — Seus olhos encontram o
chão e eu vejo em suas pálpebras trêmulas, pela primeira vez em
muito tempo, amor.
— Tá tudo bem. Eu bobeei. Foi um erro meu. Vou tomar mais
cuidado.
— Você não entende, não é? — O olhar vazio e sem vida que
ele me lança me assusta e eu me remexo desconfortável.
— Como assim?
— Perder sua mãe acabou comigo. Mas eu nem consigo
imaginar uma vida sem você. — Meu pai segura a ponte do nariz,
respirando fundo por alguns instantes antes de prosseguir.
— Nossa, pai. Credo. Que vibe ruim. — Levanto num pulo. — Eu
ia tomar um café, o senhor quer vir? — minto. Ele se levanta com o
braço em meu ombro, e eu quase rio dizendo que não vou morrer
daqui até lá embaixo.
Mesmo que estivesse planejando dormir essa tarde, decido
adiantar meu café e ficar com meu pai, é o mínimo que posso fazer
já que ele está aqui.
— Como vai essa vida de nômade? — pergunta enquanto
caminhamos pelo corredor em direção à escada.
— A gente fala disso depois. Agora me fala de você — peço, e
seu Fernando Torres me observa como se eu tivesse cometido um
crime. — Me fala do senhor. O senhor não devia estar na empresa?
— enfatizo e repito a palavra para me livrar dos olhares feios na
descida da escada.
— Devia. Mas almocei com alguns clientes e passei as outras
reuniões pro diretor de operações. Não é todo dia que vejo meu filho.
— As palavras saem tímidas.
— Entendo, e tá tudo bem por lá? — pergunto o mais neutro que
consigo, estou fazendo isso apenas por educação, Deus me livre de
ele ficar falando de planilhas comigo.
— Bom, se tudo correr conforme as provisões, esse ano a gente
passa oficialmente de Milionário para Bilionário — diz quando
chegamos ao primeiro andar. — Então acredito que sim. Dois queijos
e salame pra você?
— E café com leite, por favor.
— Pode vir comigo, a gente come na varandinha.
Passamos pela sala de estar e a de jantar e chegamos à
cozinha. Não vejo a empregada em lugar nenhum, mas tem uma
cozinheira de avental pronta para qualquer pedido. Meu pai diz a ela
o que queremos e a mulher, que não deve ter mais do que trinta
anos, começa a preparar.
— A Amália trabalha aqui há muito tempo? — pergunto enquanto
damos a volta nos fundos da mansão em direção à varanda externa.
— Desde que a Lucinda aposentou. — Meu pai se senta de
frente para mim. — Março, eu acho. Ela é ótima. A chef, Janine,
também.
— Não tive a oportunidade de conversar, mas acredito em vo-,
no senhor.
— Obrigado pela confiança — brinca. — Onde estávamos
mesmo?
— Na sua entrada para o hall dos bilionários, já quero saber se
vou ficar sem patrocínio. — É minha vez de brincar.
— Nossa, por que eu tiraria seu patrocínio agora que você pilota
uma equipe enorme? — ele ri, cruzando os braços.
— Bom, sabe como é, o meio mais rápido de se ficar milionário
quando você é bilionário é investindo em Fórmula 1. — Jogo na
mesa um dos ditados mais conhecidos do esporte.
Nossos risos enchem a varanda e percebo que, diferente da
parte interna da casa, o teto transparente e o jardim suspenso
deixam esse cômodo tão vivo que o prazer de sorrir aqui é maior.
— Não, nada disso. Seu patrocínio está me levando para
Inglaterra ainda esse ano.
— Sério?
— Uhum. — Janine, a chefe de cozinha, coloca dois cafés na
mesa à nossa frente com alguns biscoitos de champanhe e eu jogo
um na boca enquanto meu pai beberica seu latte. — A gente vai
construir uns pequenos bairros, como se fossem condomínios em
zonas metropolitanas. Ao que parece, os grandes centros não estão
mais dando conta de tudo.
— A mamãe já sabe? — pergunto, arredio.
Não consigo evitar a surpresa quando os lábios dele se abrem
num imenso sorriso antes de responder:
— Sabe, claro. Eu vou ficar com ela por um tempo, umas duas
semanas, até ter algo meu. E ela foi uma ponte muito importante pra
gente.
— Como assim?
— Miss Claire é uma paisagista renomada demais para uma
indicação não ser, pelo menos, consultada. — A pele preta enruga
no cantinho dos olhos de tão largo que o sorriso dele está agora.

Por que você tá rindo tanto falando da mamãe? — indago,
mas a pergunta não sai tão amigável quanto eu gostaria.
— Que julgamento é esse? — Meu pai ri quando Janine volta e
pede licença para nos servir. — Vindo logo de você...
— O que tem eu? — rebato, com o tom mais descontraído dessa
vez.
Meu pai se cala até que ela deixa os pratos e copos na mesa
chinesa e se retire.
— Você acha que eu não sei que está ciscando para o lado da
dona turrona de novo, moleque? — Ele franze o cenho e cruza os
braços enquanto eu gargalho.
— Ah, mas a dona turrona sabe que eu estou caidinho nela. E a
mamãe, sabe? — provoco, pegando meu sanduíche.
— Algum dia na minha vida eu não fui caidinho pela sua mãe,
garoto? — indaga, comendo uma fatia de seu croissant recheado, e
eu mordo meu sanduíche também.
Um pedaço do céu desmancha na minha boca. Salame, cream
cheese e queijo prato sempre vai ser meu lanche favorito.
— Então ela sabe?
— Se não souber, é porque está se fazendo de desentendida. —
O jeito sem graça e acanhado com o qual papai fala da minha mãe
me faz rir.
Não por ele, apenas. Mas porque muito tempo se passou e aqui
estamos nós, sofrendo pelas mulheres que amamos. E em ambos os
casos, elas não dão a mínima para nós.
Capítulo 24
Ou: Eu acho que deveria ter prestado mais atenção em como como você falava comigo, porque quando nós brigávamos, você “me dava espaço” em vez de

se comunicar e por um tempo achei que isso era algo que eu deveria apreciar...

Flowers - Lauren Spencer-Smith

Carol
Já são quase quatro da tarde quando Laís desiste de tentar
arrancar algo sobre o Harris de mim e decide que precisamos
almoçar.
— Não tem problema mesmo você ter saído mais cedo do
trabalho, amiga?
— Não. Eu tenho uma reunião às cinco, mas nada absurdo. —
Assinto pensando no que vou fazer sozinha nas últimas horas que
tenho livre até encontrar Gabriel. — Você pode dormir depois do
almoço, parece exausta. — Ela lê meu pensamento, fazendo um
sorriso se abrir no meu rosto instantaneamente.
— Tá aí uma coisa que preciso fazer. — Me levanto sentindo a
maciez do estofado marfim, que também é novo e quase se camufla
na parede.
Estendo a mão para Laís, a puxo, e nós caminhamos para a
cozinha.
— Isso é verdade. Dormi pouco essa noite, e dormir num avião
não é o melhor dos mundos. — Enfio a mão nos cabelos, sacudindo
os cachos enquanto a sigo.
— Nem imagino como deve ter sido ficar num avião com o seu
amor de adolescência. — Laís não está implicando comigo, está
sendo honesta, então também sou:
— Eu não estava com o meu ex, estava com um amigo. —
Passamos pelos dois quartos no corredor e, apesar de a cama do
meu antigo quarto me gritar, continuo firme até a cozinha. — Sei que
parece estranho, mas foi bom. De verdade.
— Então você não vai surtar? — indaga enquanto observo a
enorme samambaia na janela e, diferente da planta da sala, essa é
visivelmente falsa.
— Por que eu surtaria? — Encaro meu reflexo no mármore preto
da pia ouvindo Laís encher dois copos d’água no dispenser da
geladeira ao nosso lado.
— Sei lá, talvez porque você vai ver o Gabriel hoje... — Me viro
de frente para ela, pegando meu copo e levando-o em direção à
boca. — E se ele sonhar que você voou com o Harris, vai ficar
doido?
— Sim, mas ele não vai ter nada a ver com isso, porque nós
estaremos terminados. — Tento me manter firme, mas minha voz
falha no fim.
— Se ele perguntar como você veio, diz que eu comprei a
passagem ou qualquer coisa do gênero, tá bom? Você veio terminar
com ele, Carol. Não deixa aquele babaca virar essa mesa.
— Não vou deixar. — As palavras saem tão fracas que até eu
duvido.
— É melhor você tomar um banho enquanto eu cozinho. Vou
buscar um sabonete pra você, o resto das coisas está no seu antigo
quarto.
Observo a samambaia balançando no ritmo do vento e respiro
fundo, convencendo a mim mesma de que não fiz nada. Não houve
nada errado. Não controlo meus sonhos e não traí Gabriel.
Ele não pode jogar na minha cara uma coisa que não aconteceu.

— Tomei café na Colombo — é o que respondo quando Laís me


pergunta o que fiquei fazendo a manhã inteira se não fui ver a Sofia.
— A do Forte? — A sobrancelha erguida me questiona mais do
que a pergunta enquanto mastigo o maravilhoso arroz com feijão
preto que minha amiga temperou para mim. Junto com o bife, a
farofa de linguiça toscana e a batata frita que não poderia faltar num
almoço de boas-vindas de um bom carioca.
— Sim! Depois fui andar na orla, fiquei um tempo no Arpoador,
tomei uma água de coco... Como estão as coisas por aqui?
— Você fez tudo isso sozinha? — Laís me pergunta rindo, e eu
abaixo o rosto para o prato antes de responder.
— Com o Harris, né, Laís. Não se faz de sonsa.
Minha amiga deixa um gritinho escapar, e eu me recuso a olhar
para ela.
— Juro. Meu Deus. Eu quero detalhes.
— De quê? Acabei de falar tudo o que aconteceu. — Encho a
boca de comida para não dizer mais nada.
—Tudo? Ninguém toma café e anda por horas, sua safada.
Desembucha.
— Tudo bom, linda? — repreendo-a. — A gente chegou, pegou
um uber até a Colombo, tomou café, conversou, caminhou pela orla,
foi comprar um chinelo pra aquele tapado que resolveu fazer esse
passeio de tênis. — Rio e Laís abaixa o garfo e a faca, me
observando sem piscar com um risinho de canto. — Daí compramos,
ele trocou de roupa no meio da loja...
— De roupa?
— De blusa, só, mas não importa, porque ele deixou seis
mulheres babando sem o menor aviso — ressalto com o indicador
erguido.
— Sete com você, né? — ela debocha, implicando.
— Não, eu já tinha me contado entre as seis — respondo sem a
menor vergonha, e Laís tapa a boca em choque. — Te falei que ele
tá uma delícia, olhar não arranca pedaço.
— Nossa, vou até procurar fotos do Harris sem camisa na
internet.
— Pode ir direto no Instagram dele, mais biscoiteiro que o
Hamilton, nunca vi.
— Tá com ciúmes?
— Para de ser ridícula. — Jogo o rolo de papel toalha nela, que
o pega no ar, gargalhando.  — Enfim, a gente caminhou para
Arpoador depois e de lá fomos pra um parque daqueles de
estacionamento de shopping, sabe?
— É o quê?
— Eu queria brincar de carrinho bate-bate.
— Vocês são horríveis, roubando lugar de crianças nos
brinquedos. — Rio, voltando a comer. — Mas como foi? Não rolou
um clima ou algo assim?
— Hoje, não. Hoje foi normal. Tirando a parte que um casal
tietou a gente...
— Eu amo os CarDan shippers.
— Você sabia que a gente tem um nome? — pergunto ofendida
pela traição, porque ela nunca disse que estava ciente desse circo.
— Claro. Eu vivo no Twitter. — Laís gargalha.
— Desde quando?
— Desde que falam de você por lá! — Laís confessa e nos serve
mais guaraná. Quase choro de saudades dessa coisa que só é
gostosa aqui. — Como estava o clima entre vocês?
— Tipo, tem aquela coisa que você sabe que existe pairando em
cima da gente, tipo uma nuvem.
— A nuvem do tesão. — Laís balança as sobrancelhas para
cima e para baixo rápido demais, e eu pego a tampa do refrigerante.
— A nuvem do “E se?” — Jogo a tampa nela, que dessa vez
apenas abaixa para não ser agredida.
Comemos em silêncio por algum tempo e eu penso em falar para
ela do sonho, do beijo, de tudo... Mas não quero fazer isso. A
verdade é que metade de mim quer esquecer esse sonho e a outra
metade está em depressão porque ele foi apenas um sonho.
— E vocês são o que agora? Amigos? — Laís indaga, descrente,
quando eu acabo de comer.
— É o que a gente acha que vai dar certo. — Encolho os
ombros, me levantando. — Eu lavo a louça, você já cozinhou! — Ela
sabe que não é negociável, então começo a recolher os pratos.
Minha amiga se despede de mim indo se preparar para sua
reunião, e eu me viro com um risinho bobo no rosto pensando nos
últimos dias com Daniel.
É engraçado como algumas pessoas causam sensações e
trazem sentimentos mesmo que elas não estejam fisicamente com
você. Me dou conta disso porque meu sorriso dá lugar a uma testa
suada e um coração descompassado quando penso que em poucas
horas verei Gabriel.

Às sete da noite, passo pelo porteiro do prédio onde morava com


Gabriel. Laís se ofereceu para vir comigo, mas preferi fazer isso
sozinha. Não quero brigar. Meu trabalho aqui é entrar e sair o mais
rápido possível. Aperto o número 2 no elevador e tento acalmar meu
coração.
Vou agradecer por todo o tempo que ele esteve comigo e dizer
que eu um relacionamento não se encaixa na minha vida atual. Ou
que o namoro a distância não está funcionando tanto quanto ele
prometeu que funcionaria.
Saio da pequena caixa de metal e madeira e avisto o número 8.
Ainda é a mesma porta, mas tudo está diferente. Os adesivos em
torno do olho mágico foram retirados e o tapete de “Bem-vindo à
Batcaverna” não está aqui. Como se fosse um sinal de que não
pertenço mais a esse lugar. Tiro a mão do bolso da calça sem as
chaves e toco a campainha. Não é mais a minha casa, afinal.
Estalo o pescoço e me afasto da porta, como se isso pudesse
tornar tudo mais simples. Só que na verdade, não preciso de
grandes justificativas. Tudo já está um pouco arruinado desde que
ele mentiu para mim, ou sei lá, omitiu a viagem de mim e fez toda
aquela cena absurda quando chegou na Hungria.
— Oi, quem é?
Ando em círculos no pequeno espaço em frente à porta quando
a voz feminina me desperta. Me viro imediatamente, endireitando a
coluna e, do alto dos meus um metro e setenta, curvo o pescoço
para baixo, na direção de uma mulher loira.
Fecho os olhos por dois segundos, pensando que se Gabriel se
mudou com minhas coisas e não me falou nada, vou matá-lo.
— Posso ajudar? — Ela me oferece um sorriso condecendente,
mas desconfortável.
— Desculpa, eu estava procurando uma pessoa. Mas acho que
ela não mora mais aqui — digo, as palavras fazendo a garganta
fechar e o coração disparar.
— Tem certeza? Meu namorado mora aqui há um bom tempo.
As palavras dela me trazem a necessidade de me segurar em
algo, então coloco as mãos nos bolsos da minha calça jeans.
— Qual é o nome dele? — pergunto, forçando um sorrisinho
amigável.
Mantenho as mãos nos bolsos para o meu corpo não se
encolher com a sensação de que o mundo é um lugar pequeno
demais.
— Gabriel. — Ela sorri, condescendente. — E você, quem é?
Diferente do que eu pensei, as lágrimas que fazem meus olhos
arderem não rolam. Meu coração fica leve, e eu gargalho. Agora ele
zerou o bingo do homem babaca.
Como eu pude me enganar tanto com uma pessoa?
— Ah, é ele mesmo que eu estou procurando. — Bato uma
palma no ar. — Diz pro Gabriel que a Carol esteve aqui, tá bom?
— Carol de quê? — pergunta, realmente interessada, como se
pudesse me ajudar com alguma coisa.
— Diz que é a Carol que ele namora há três anos. — A menina
me encara em choque, e eu dou as costas a ela antes que precise
consolar a amante do meu namorado por ele não ser um cara legal.
— Ele vai saber quem é — grito sobre o meu ombro e volto até o
elevador.
Se metade de mim poderia se jogar nesse chão e ficar aqui para
sempre sentindo toda a dor que tomar conhecimento do fato de que,
até a última pessoa com quem eu achei que poderia contar me traiu,
minha outra metade nunca esteve tão aliviada.

Parada no trânsito num trajeto que deveria durar vinte minutos,


descanso a cabeça no encosto do carro. Entre buzinas e faróis altos,
percebo que esse horário de pico deve ter atrasado Gabriel e me
sinto grata, as coisas foram bem menos humilhantes sem eu precisar
olhar para o meu namorado e a namorada dele.
Mesmo querendo chegar logo na casa da Laís, estou grata pelo
engarrafamento, afinal, não sei o que dizer para minha amiga. Que
sou uma corna? Uma otária? Que estou me sentindo uma
vagabunda há quatro dias por alguém que merecia um belo par de
chifres?
Como se eu o tivesse invocado, Gabriel me liga. Observo a tela
do celular com tanto nojo que apenas o devolvo ao meu bolso e o
deixo vibrar até cansar.
Burra. É assim que me sinto. Se eu tivesse terminado com ele
quando Gabriel foi atrás de mim só para marcar território, não
precisaria estar passando por isso agora. Eu podia ter terminado por
telefone quando tomei a decisão, sei que podia, mas quis ser
educada e grata pelo tempo que passamos juntos.
Grata.
Quanta gratidão é necessária para sustentar três anos de
relacionamento?

Assim que a porta é aberta, abraço Laís com toda a minha força,
e meu coração, desapontado com as minhas escolhas, ainda
esmurra meu peito com raiva.
— Foi tão ruim assim? — Minha amiga dá um passo para trás e
me pergunta. Me sento no sofá, vendo-a fechar a porta, e só
respondo quando Laís se senta ao meu lado.
— Foi pior — respondo segurando sua mão.
— Pior? Ele fez alguma coisa com você? — minha amiga
pergunta fazendo menção a se levantar com o susto das
possibilidades, mas nego com a cabeça.
— Não, ele não estava lá. — Estalo o pescoço, mordendo a
parte interior da bochecha depois de responder.
— Carol, pelo amor de Deus. — Laís se levanta, batendo na
perna. — O que aconteceu?
Abro a boca para falar, mas o interfone toca.
— Se for ele, não atende — imploro com os olhos marejados, e
nunca vi Laís me olhar com tanta pena em toda a minha vida.
Ela meneia a cabeça e vai até a cozinha. Quando Laís não abre
o portão automático, entendo que é Gabriel.
— Amiga, você não acha melhor conversar com ele logo?
Colocar um ponto final nisso? — pergunta enquanto meu celular
vibra dentro da bolsa ao meu lado.
— O ponto final já está colocado, Laís. — Desligo o aparelho e
fecho os olhos, escorando a cabeça no sofá.
— Tem certeza de que você não está sendo ingênua? —
sussurra com cuidado. — Ele apareceu na Europa pra te infernizar
uma vez, pode muito bem fazer isso de novo.
— Quando ele foi até a Hungria ser escroto, fez o escândalo que
quis e depois me deu as costas. Agora é a minha vez de dar espaço
para ele pensar — ironizo. — Quando eu estiver pronta, converso
com ele.
— Você precisa de alguma coisa?
— Você me faz um chá? — Peço porque quero contar a verdade
a ela, mas antes disso preciso limpar esse rosto e me trocar.
Vou até o quarto pegar uma muda de roupa e caminho até o
banheiro. Me escoro na porta me sentindo... estranha. Essa é a
palavra. Tiro a roupa e me enfio no pijama, porque a última coisa que
quero pensar é quando essa coisa do Gabriel começou para ele
enfiar a garota dentro da nossa casa, para dormir na minha cama.
Chegando à sala, encontro a lâmpada principal à meia-luz, Laís
sentada na poltrona e luzinhas de LED iluminando o rodapé de todo
o cômodo, evidenciando que a planta falsa é bonita na fraca
iluminação amarela também. Pego a xícara sobre a mesa atrás do
sofá e dou a volta nele, suspirando com o ar aconchegante que essa
decoração e meu chá fedido trazem.
— O Gabriel não estava em casa quando eu cheguei lá, mas a
namorada dele estava — digo, encarando minha amiga. Seus olhos
se arregalam tanto que quase estendo as mãos para segurá-los caso
caiam.
— Cacete?
— Laís, eu juro pra você. De tudo o que eu esperava do cara
mimado e estouradinho que eu namorava, isso não era um dos itens.
— Eu não sei o que dizer.
— Se você vai dizer que ele era um babaca, não precisa. De
verdade. Porque o Gabriel nunca foi perfeito, mas ele era do que eu
precisava. Ele foi, todo o tempo e eu não faço ideia de quem é essa
pessoa.
— Às vezes, mesmo quando a gente gosta de alguém... — Laís
começa a dizer alguma frase de efeito, mas eu a interrompo.
— Laís, isso não é sobre o Gabriel ter estado lá por mim uma
vez. Não é sobre a faculdade. — Me levanto, respirando com
dificuldade, com a mão no colo como se eu pudesse impedir meu
coração de explodir de tanto desengano. — O Gabriel ficou comigo,
sempre. Todos os dias. Me ajudou pra caramba, me apoiou, segurou
minha mão e acreditou em mim quando nem eu acreditava, sabe?
— Amiga, para. — Laís se levanta e me abraça, um apego
frouxo, mas confortável. Deito minha cabeça no ombro dela e respiro
fundo. — Ele foi incrível, até não ser mais. Ele te amou, até não amar
mais e esteve do seu lado até não estar mais. — Assinto, muito mais
porque não sei o que dizer do que por concordar. — Segue sua vida
agora, deixa ele no passado. Acabou.
Os dedos de Laís alisam minhas costas por cima no pijama, mas
qualquer carinho agora tem muito mais a textura de um arranhão.
— Amiga, me perdoa, mas eu preciso ir pra cama. — Me afasto
dela com dois passos para trás, quase caindo na poltrona. — Não
faço ideia de como processar isso.
— Posso dormir com você se quiser.
— Não precisa. Tá tudo bem. — Ela cruza os braços, me
olhando feio. — Não está, mas vai ficar. Eu vou ficar. — digo,
passando por ela.
Meus pés pesam, minha cabeça roda e meu coração dói.
Acendo a luz do meu antigo quarto e rio com o quanto ele se
parece comigo agora: um espaço vazio em preto e branco.
— Carol — Laís me chama da porta do quarto. — Quando a
gente tem alguém, mesmo que não goste da pessoa, mesmo que
ame outra pessoa... — diz as palavras com tanto cuidado que eu
ignoro a menção descabida ao Harris. — A traição dói, e ainda que
por revolta, a gente chora.
Sei do que ela está falando, mas só quero me enfiar no colchão
e ficar ali, fingindo que não existo, pelo menos por algumas horas.
Capítulo 25
Ou: Tudo que eu quero é um amor que dure. Isso é pedir demais? Será que tem algo de errado comigo?

All I Want - Olivia Rodrigo

Carol
É claro que eu chorei. Todas as noites. Ninguém quer ser
largada, trocada, traída. Mas acho que talvez outras pessoas teriam
sofrido menos, afinal, era um relacionamento chegando ao fim de
qualquer jeito.
No entanto, por mais que eu repetisse isso para mim todas as
vezes que as lágrimas vinham, a minha angústia não era pela
traição, era pelo todo.
No meu aniversário de seis anos, não tive uma festa, pela
primeira vez. “Eu estava grandinha” e meus pais viajaram comigo e
com Nina, a babá. Lembro que pedi, como presente de aniversário,
que a gente fosse para a casa de praia, mas eles disseram que a
casa de campo já estava pronta e que iríamos para a praia no fim de
semana seguinte.
Eles não mentiram, fomos para a casa de Angra uma semana
depois. Mas, no meu aniversário, fiquei trancada numa casa fria e
sem nada para fazer enquanto observava meus pais celebrando a
minha existência sem nunca estar comigo.
Eu tinha 6 anos quando percebi que estava sozinha no mundo,
ter pessoas ou não ter pessoas é sempre uma questão de tempo e
espaço, e agora, o Gabriel, que esteve ao meu lado no pior momento
da minha vida e segurou minha mão por todos os outros, foi só mais
uma pessoa que não ficou.

Pego o copo de suco diante do meu prato de frango à


parmegiana e engulo as lembranças ruins que se acumulam em
minha garganta. Apesar de estar sentada na sala de jantar com
meus pais agora trazer sentimentos conflitantes, não posso deixar
Gabriel minar isso também.
Encontramos uma dinâmica que funciona há anos e estamos
bem. Então jogo esses pensamentos para baixo do tapete e
respondo meu pai sem pensar em explicar os motivos.
— Nós não estamos mais juntos — respondo Carlos, que
arregala os olhos para Sofia.
— Tem muito tempo? — ela indaga sem emoção, e eu nego. —
E como você está?
— Bem. — É impossível segurar o riso de alívio que estampa
meu rosto antes que eu leve o garfo à boca e, quando o faço, a
carne desmancha na ponta da minha língua. — Você estudou
culinária ou algo assim? — pergunto, e meu pai sorri sem jeito.
— Na verdade, eu vejo muito tutorial no youtube. — Carlos coça
o cabelo baixinho, bem mais branco do que marrom a essa altura. O
contraste com a pele retinta só deixa mais evidente que ele já
passou dos cinquenta há um bom tempo. — E sua mãe é uma ótima
cobaia, fiz essa carne três vezes antes de pensar em cozinhar pra
você hoje.
— Estava bom assim em todas elas?
O olhar dele vai direto para o de Sofia e eu rio com a
insegurança estampada ali.
— Não. — A sinceridade de Sofia choca meu pai. — Mas
melhorou a cada vez. — Ela toca a mão dele por cima da mesa.
— Pelo menos isso — brinca, fazendo a gente rir alto.
— Minha filha, como é trabalhar com o que você trabalha? —
Minha mãe pousa o garfo na mesa e joga as ondas loiras de lado.
— Como assim? — Franzo o cenho, porque eles nunca
demonstraram interesse nisso antes.
— Qual é a sensação de estar cada semana num lugar, de pegar
tanto voo, de trabalhar com o canal e os jornais... — Carlos explica.
— Como vocês sabem que eu trabalho pra um jornal?
— Não são dois? — Sofia pergunta, brincando com a salada e
comendo apenas a carne com o arroz em seguida.
— É pra quem pagar pela matéria, na verdade. Mas como vocês
sabem? A gente não fala sobre isso...
— Você é, literalmente, nossa filha. — Sofia me encara com as
bochechas rosadas, como se eu tivesse dito algum absurdo.
— E é muito boa no que faz, eu odeio essa coisa de canal da
internet, mas as matérias sempre leio. Sua escolha de ser...
— Assalariada.
— Herdeira fazendo estágio como assalariada nunca me deixou
feliz, mas você é boa — Carlos diz como se estivesse me informando
as horas, como se eles prestando atenção em mim fosse algo tão
comum que não justificasse meu queixo caído. — Enfim, desenvolve
a pergunta da sua mãe.
— É cansativo, estressante, enche o saco e me deixa ansiosa
sem saber se o hotel em que me hospedei ao menos tem banheiro
privativo. — O barulho dos quatro talheres pousando na mesa ao
mesmo tempo me faz gargalhar. — Mas eu amo. Se a gente pensar
direitinho, eu sou muito sortuda, né? Quais as chances de alguém
fazer estágio e ser contratada no primeiro emprego, um canal de
internet que gente velha não gosta — implico com meu pai —, e
chegar aonde eu sempre quis? — Tento amenizar o choque dos dois
e como meu último pedaço de carne.
— Isso não é sorte, garota. — Sofia bebe um gole de seu suco.
— Isso é competência.
— Nossa, obrigada. Não sabia que vocês andavam tão de olho
em mim assim — digo e quero me arrastar para cima.
Pareço uma criança batendo palma pela atenção dos pais.
— Você foi embora do país, a gente tem que se virar agora.
— Eu não mudei meu número, sabe? Vocês ainda podem
mandar mensagens para mim ou ligar.
— Isso não funciona pra gente, Carol — Carlos diz e eu afasto
meu prato, secando os lábios com guardanapo de tecido que estava
no meu colo.
— Tá, mas e as viagens de vocês... — mudo de assunto o mais
rápido possível — quais estão nos planos?
— A gente não pensou em nada ainda, talvez no Natal — minha
mãe responde depois de um tempo.
— O que acham de me visitar? — As palavras voam. — Passar
o Natal na cidade luz? — Adiciono para não parecer tão carente.
Os olhares de Sofia e Carlos se encontram e, por alguns
instantes, é como se eu não estivesse aqui. Como se fossem só os
dois e os planos não verbalizados de uma viagem de sonhos.
Eles sorriem depois de encontrarem uma resposta, e eu acabo
sorrindo junto. É tão... bonito.
— Se você tiver dicas de hotéis... — É Carlos que verbaliza.
— Ou bairros — Sofia diz, tocando minha mão sobre a mesa. —
Obviamente não queremos atrapalhar, mas eu gostaria de ficar perto
de onde você mora.
— Não atrapalharia — me apresso em dizer, acariciando o
polegar dela com o meu. — A gente tem dois quartos, e a Miyeko
não vai passar o Natal lá, então… — sugiro, tentando não soar
desesperada.
— Não precisa, filha. — Carlos ri, como se eu receber meus pais
na minha casa fosse um incômodo colossal. — A gente não quer
mesmo incomodar.
Meneio a cabeça e foco no meu prato, a comida já está
acabando, mas vai esfriar se eu não comer logo.
Amigos.
Lembro meu lugar na vida deles.
Eles são meus amigos, e amigos não se hospedam na casa dos
outros numa viagem com o amor de suas vidas.
— Sei que talvez você não queira falar sobre isso, mas o que
aconteceu com o Gabriel? — Sofia quebra o gelo que se instaurou
no ar.
— Pra gente terminar? — Ela assente. — Duas coisas. A
primeira foi que ele se tornou extremamente ciumento depois que eu
fui embora e a segunda foi... chifre mesmo.
— Ah, claro que ele ficou ciumento enquanto te metia um chifre,
as pessoas geralmente nos medem com a régua delas — Carlos diz
a frase mais “pai” possível e o resto do gelo em meu humor
despedaça com um risinho.
— E foi difícil?
— Não, eu vim pro Brasil com a intenção de terminar, chegando
aqui só descobri a traição e foi até... mais fácil. — Os olhares dos
meus pais se encontram e eles não dizem nada por um tempo.
— Minha filha, e você e o Dani boy? — Carlos pergunta,
afastando seu prato.
— O que tem ele? — Tento soar natural, mas acendo um letreiro
escrito arredia em minha testa.
— Ah, vocês tiveram uma história e agora estão convivendo...
— A gente se reaproximou bastante, ele era meu melhor amigo,
né? Mas...
— Você estava presa com aquele filhote de jumento — Minha
mãe diz, me arrancando uma gargalhada.
— Sofia?
— Nossa, Carol . Eu nunca fui com a cara dele, você sabe.
— Bom, as meninas vão conversar e eu vou colocar a
sobremesa. — Carlos se levanta e eu olho para Sofia, que segura o
riso. — Avisem quando eu puder voltar.
— Você acabou de perguntar do Daniel e agora tá agindo como
se não tivesse interessado na minha vida amorosa?
— Não vou ficar aqui ouvindo você falando do filhote de jumento.
— Ele coloca a cadeira no lugar. — Já quero socar a cara dele só de
saber que te traiu. — Carlos joga as mãos para o ar se virando para
o corredor à esquerda.
Sofia ri, e eu a acompanho enquanto ele some no corredor.
— Então você nunca foi com a cara do Gabriel? — Sei que não,
mas quero retomar o assunto.
— Isso nunca foi um segredo, Carol. Não gostava dele, do jeito
dele com você, quando vocês começaram a namorar eu até chorei!
— Por que você não falou nada?
Ela encolhe os ombros.
— Você gostava dele, eu ia fazer o quê?
— Sei lá, dizer que não era pra eu namorar?
— Você já era bem grandinha, até parece que eu ia fazer esse
tipo de coisa. — Ela dispensa meu comentário com a mão. — Mas
aquele garoto tinha uma postura protetora que me agoniava, ele agia
como se precisasse proteger você de tudo. Proteger você da gente.
— A revolta dela me faz segurar o riso porque, algumas vezes, ele
realmente precisou. — E ainda teve aquela maluquice de você ir
morar com ele. Dessa vez eu deixei claro que era contra!
— Se você detestava tanto o Gabriel, por que não fez nada? —
A pergunta voa dos meus lábios e carrega acusação. — Por que não
me impediu de ficar com ele? Por que não ameaçou cortar minha
mesada quando eu disse que ia me mudar?
— Eu jamais faria esse tipo de coisa, nunca me meti nas suas
escolhas, Carol.
— Tá, mas você nem perguntou se eu queria uma mãe
moderninha, talvez eu quisesse que você fosse uma chata, careta,
sabia? — Mesmo que não fosse minha intenção, soo tão rude que os
olhos dela se arregalam na mesma proporção que os meus marejam.
— Caroline Pimenta! — Sofia pousa as duas mãos sobre a mesa
e me encara.
— Desculpa — peço mesmo sem querer.
— Não precisa pedir desculpa, você só está com raiva e
procurando culpados. Mas não faz diferença, porque acabou. — A
mulher elegante à minha frente diz, como se estivesse dando uma
palestra. — Só que se acabou, você precisa deixar ir de vez. Não
adianta nada terminar e ficar remoendo.
— Eu me arrependo tanto, Sofia. Tanto. — Mordo o lábio inferior
porque eu odeio chorar na frente dos outros. Mas uma lágrima
teimosa insiste em rolar.
Ouço sua cadeira se arrastando no porcelanato antes mesmo de
escutar sua voz.
— Arrepende porque deu errado, meu amor. — Minha mãe apoia
minha cabeça em sua cintura. — Não foi sua primeira decepção e
talvez não seja a última, mas você é jovem, tem a vida toda pela
frente e vai superar.
— Carlos, pode voltar! — grito porque, para mim, esse assunto
acabou aqui. — Espero, honestamente, que essa seja a última,
porque eu nem amava o Gabriel e esse término me dilacerou —
confesso, passando as mãos por sua cintura e abraçando-a.
Mesmo que Sofia não seja a melhor mãe do mundo ou como eu
queria que ela fosse, é a única que tenho. Por isso, me permito
receber esse carinho pelo tempo que minha mãe estiver disposta a
dar.
Quando Carlos entra na sala, ele não diz nada, só para ao lado
de Sofia me fazendo um cafuné bom demais para eu negar. Deixo
mais algumas lágrimas rolarem esperando que em algum momento o
amor pare de brigar comigo e eu consiga ter uma relação que dure.
Todos esses “às vezes”, “de vez em quando”, “pelo tempo que o
outro estiver disposto” estão acabando comigo.
Capítulo 26
Ou: Você pode deixar pra lá, você pode dar uma festa cheia de todo mundo que você conhece, você pode começar uma família que sempre vai te mostrar

amor.

Você não precisa se desculpar.

Matilda - Harry Stiles

Daniel
Os primeiros dias com meu pai foram tão diferentes do que eu
esperava, ou melhor, de como normalmente eram, que me deixaram
com um pé atrás. Ele me percebeu arredio algumas vezes, mas
cambaleamos por pouco tempo até encontrarmos o equilíbrio.
Assistimos aos conteúdos sobre Fórmula 1 e conversamos a
respeito do meu trabalho quarta-feira a tarde inteira e antes, durante
e depois do jantar; na quinta, fizemos as três refeições juntos, mas
passei o resto do dia focado em me exercitar. Precisava treinar o
pescoço e as costas, além do reflexo que também ficou levemente
prejudicado depois da batida. Já na sexta-feira, mal nos vimos, ele
tinha que trabalhar e respeitei. Doutor Fernando Torres tem dedicado
muito do seu tempo a mim e aproveitei para manter os treinos em
dia.
Ontem, de um jeito atípico, fomos almoçar na minha lanchonete
favorita, também conhecida como o pavor do meu pai. Uma dessas
lanchonetes de beira de estrada que servem comidas sensacionais,
de procedência duvidosa, a preços que nem todo mundo pode pagar.
Pegávamos sol à beira da piscina, na traseira da casa, enquanto
conversávamos sobre lembranças de família. De uma hora para a
outra seu Fernando levantou, me mostrando a chave do carro no
bolso da bermuda branca, que sob a luz do sol contrastava com sua
pele escura, e disse: “Não lembro quando foi a última vez que comi
um pão com linguiça, o que você acha?”, com um sorriso no rosto
que me convenceria a ir a qualquer lugar.
Assenti, sorrindo de volta e, ao me levantar, puxei a chave da
mão dele. Normalmente, odeio dirigir carros de passeio. A velocidade
é tão lenta que parece que vou dormir no volante, mas pegar a Dutra
com seus 110km/h de limite me deixou animado.
Tão animado quanto agora, que meu pai me garantiu que com a
mudança dele para a Inglaterra, vai me ver correr pelo menos uma
vez ainda esse ano.
— Eu sinto falta, sabia? — Deixo minha cabeça descansar no
encosto do sofá da sala de estar e o encaro.
Meu pai me observa por alguns instantes, e seus olhos me
fazem cruzar as mãos em meu colo, como se quisesse segurar
qualquer coisa que não fosse o controle do videogame.
— De mim? — pergunta com uma leve surpresa, e me sinto o
pior filho do mundo por alguns milésimos de segundo.
— Óbvio. Mas de você lá. — Encolho os ombros. — Sei que
nunca foi muito a sua praia, mas às vezes...
— Às vezes, a gente precisa fazer pequenos esforços, porque as
pessoas valem a pena — diz, com um risinho de canto.
— Exatamente. — Bem como tem acontecido todas as vezes, o
ar pesa quando as coisas caminham para o sentimentalismo, então
trato de manter a conversa nos limites da pista. — Mas, e aí, vai
continuar perdendo para mim ou vamos fazer outra coisa? — indago
com a sobrancelha erguida e ele gargalha ciente de que o placar do
videogame está nove a dois para mim.
— Você é piloto. Faz isso de olhos fechados. Coloca um clássico
aí pra ver se eu não ganho de você — diz, com um tapa em meu
pescoço.
Sorrio pensando na Carol. Apesar de ter a minha idade, ela
também ama os clássicos.
— Tem emulador de Sonic no meu quarto, serve? — sugiro, por
fim.
— Então vambora moleque, vou acabar com você — diz, se
levantando.
— Bora, velhote, o senhor ainda tem de ganhar de mim cinco
vezes para conseguir me passar.
Meu pai cruza os braços me encarando e, quando um homem de
dois metros que tem algum tipo de autoridade sobre a sua vida
assume essa postura, você apenas corre.
Subo a escada de dois em dois degraus e começo a organizar o
ambiente para recebê-lo. Lá no fundo, uma voz me pergunta se
comer em beira de estrada e jogar videogame é o que um pai
deveria fazer com seu filho adulto. Mas trato de silenciá-la porque
essa visita está sendo muito melhor do que eu esperava e, pelo
menos por ora, isso precisa bastar.

Depois de deixar meu pai ganhar uma quantidade de vezes


obscena sem nem me esforçar, me despeço dele na porta e caminho
até o banheiro. Levo o celular para checar as mensagens, e não ter
nada de Carol me decepciona.
Mando um “Oi, tudo bem por aí?”, só porque estou com
saudades e amigos podem fazer isso, mas não fico esperando
resposta. Deixo as roupas pelo chão do banheiro e entro no box pela
porta de vidro.
Ao sair do banheiro, dou dois toques rápidos na tela do meu
celular. O balão de notificação revela que tenho uma mensagem,
mas não é da Carol. Sorrio para a foto de família mais caipira da
história e aperto o botão de ligação para conversar com Jack.
— Acordado a essa hora? São quase duas da manhã aí, infeliz
— digo me jogando na cama.
— Pois é, não estou dormindo a noite toda desde que cheguei
aqui. — A voz dele dança entre o sério e o debochado, e eu fecho os
olhos.
— Jack, você e a Miyeko?
— O quê? Claro que não — responde, tão assustado que
resolvo fingir que acredito. — Me diz, como está sendo com o seu
pai? Não, não, primeiro me conta como foi com a Carol! — pergunta
como um bom fofoqueiro, e eu me preparo para contar a ele como
meus dias de “férias” estão.
Não escondo o que senti com Caroline naquele avião, mas não
entro em detalhes do que fizemos ou conversamos. Sabe-se lá o que
ele diria para a Miyeko, e não quero expor minha Pimentinha de
forma alguma. Assim, o assunto Caroline Pimenta acaba mais rápido
do que eu gostaria, no entanto, pela primeira vez em muito tempo,
não é difícil entrar no assunto Doutor Fernando Torres. Contar para
alguém sobre minha estadia e como as coisas estão realmente boas
torna tudo mais palpável.
Comento que ele vai se mudar para a Inglaterra e, se
continuarmos com esse tom amigável entre nós, esse será o melhor
momento da nossa relação em anos...
— Enfim... Já falamos demais de mim. — Encerro o assunto
antes que eu fique sentimental demais. — Como está sua família?
— Como sempre. Barulhentos, com saudade, querendo que eu
finja uma doença para não voltar para a última corrida antes das
férias — A gargalhada de Jack é uma fonte de esperança. É como se
o universo gritasse “Boas famílias existem, você pode formar uma
também, apesar da sua.” — Mas, no geral, está tudo bem. E eles
perguntaram por você...
— Diz que eu mandei lembranças, cara. E a gravação do
documentário, como está?
— Daniel, a baixinha é maluquinha — sussurra, tão perto do
microfone que seus lábios causam um chiado incômodo enquanto
ele fala. — Fica o tempo inteiro dizendo: aja naturalmente. Aí quando
liga a câmera e eu ajo naturalmente, ela fala que precisamos
regravar. Diz que não tem como limpar minha imagem se eu for eu
mesmo. Minha família está ficando louca com as regravações.
Abafo minha gargalhada com uma almofada, mas lembro que
daqui até o quarto do meu pai são mais de nove metros, ele não me
ouviria nem se quisesse. Me permito rir até o eco encher o quarto.
— E como você achou ela?
— Eu não achei a Miyeko — rebate, quase ofendido. — Os
patrocinadores acharam. Ela é excelente e já recusou proposta de
TV do Brasil, da França e da Inglaterra, sabia?
— Não, Jack — digo, ouvindo-o bocejar, e bocejo em seguida. —
Não sabia.
— Bom, eu preciso ir lá, garotão — diz, de repente. — Até
quarta.
— Do nada? Você não pode falar sobre os assuntos do
documentário?
— Oi, Piloto. Desculpa a demora, eles não dormiam nunca. — A
voz de uma mulher, possivelmente Miyeko, do outro lado, me deixa
em choque.
— A gente conversa na Holanda. — diz e desliga na minha cara
antes que eu possa reagir.
Eu aqui sofrendo para receber uma mensagem da Carol, e ele
recebendo a própria Miyeko em sua cama.
Alguns têm mais sorte que outros mesmo. Penso, me deitando e
pedindo à assistente virtual para apagar a luz.
Mas três batidas na porta param minhas pálpebras na metade do
caminho.
— Pode entrar.
— Oi, filhão, tudo certo por aqui? — Meu pai pergunta da porta,
uma blusa branca e uma samba-canção preta formam sua
vestimenta noturna.
— Sim, sim. O senhor não devia estar dormindo?
— Devia. Mas percebi que minha agenda da manhã está livre,
então acho que esse é o melhor momento para você visitar sua
empresa.
— Como assim? — Me levanto, me equilibrando nos cotovelos e
tentando entender o que ele está dizendo.
— Você não vai dirigir carros de corrida para sempre, não é?
Precisa pelo menos ficar por dentro do que está acontecendo na
empresa que vai conduzir um dia. — Ri, como se fosse óbvio. —
Esteja pronto às sete e meia — diz com uma piscadela e sai batendo
a porta em seguida.
Porque isso não é uma sugestão, um conselho ou um pedido. É
a porra de uma ordem.
Como se eu fosse um cachorro em fase de adestramento. Ele
fez todas as coisas certas, nenhum movimento brusco, nenhuma
ofensa ou grito. Foi bondoso, didático, carinhoso e atencioso, até que
chegasse a hora de me dar uma ordem. Tão certo de que eu
abanaria o rabo para o pedido dele, nem esperou uma resposta.
Eu estava errado. Essa não é uma boa visita, é uma bem ruim,
talvez a pior delas. Ser recebido com amor e encerrar a viagem
assim é ainda pior que a indiferença constante.
Capítulo 27
Ou: Me amou com suas piores intenções, nem sequer me questionei, todas as vezes que você destruiu, não sei como, por um momento, parecia o céu…

Wrong Direction - Hailee Steinfeld

Carol
Eu sabia que ir embora do Brasil sem conversar com Gabriel não
era uma opção. Ainda assim, encaro Laís apreensiva quando o
interfone toca. De alguma forma, ter terminado com ele na minha
cabeça era o suficiente para mim, mas Laís foi cirúrgica me
lembrando de que Gabriel já tinha atravessado o oceano para marcar
território uma vez, e nada o impediria de ir novamente se eu
deixasse a situação como estava.
Ele não é “uma pessoa de gênio forte” no fim das contas, é só
um babaca.
Me levanto batendo a mão no jeans surrado que estou vestindo
desde que fui à casa dos meus pais almoçar, caminho até a cozinha
e tiro o interfone do gancho.
— Laís, foi a Carol quem me chamou para vir aqui. Não vou sair
enquanto não falar com ela. Não adianta, ou você me deixa entrar
ou...
— O portão está aberto — respondo, pressionando o botão de
comando, e encaixo o fone no lugar descansando meu corpo na pia.
— Amiga... — Laís me chama, provavelmente os pés de Gabriel
já deixam sua sombra embaixo da porta de entrada.
— Tô indo. — Volto até a sala rapidamente, passando pelo
banheiro e os dois quartos no pequeno corredor como se eles
pudessem me esmagar. Paro diante da entrada da casa e respiro
fundo.
— Vai dar tudo certo, eu tô aqui — Laís sussurra, e me sinto
segura o bastante para abrir a porta.
—  Carol, pelo amor de Deus. — Gabriel entra, colocando os
braços podres dele ao meu redor. — Que susto você me deu, Vida.
— Susto?
— Essa merda de me dar um gelo, a gente combinou de não
fazer mais isso, lembra? — pergunta como se não tivesse me
largado no meu quarto feito um dois de paus na Hungria.
Gabriel segura meu rosto entre as mãos e é absurdo como cada
movimento dele agora me dá calafrios. Não por eu ter medo de que
ele faça alguma coisa comigo, mas pelo tom manso, a cara sonsa,
os toques sensíveis e o olhar profundamente confuso, como se não
soubesse exatamente o que aconteceu.
— Gabriel, a gente pode conversar no meu quarto?
— Claro, Vida — diz, se inclinando para me beijar, e eu viro o
rosto. — Ah, boa noite, Laís. Com licença. — Meneia a cabeça para
a minha amiga, na poltrona ao lado dele, que o ignora.
Gabriel apoia suas mãos em minha cintura pelos oito passos que
levam até o quarto de hóspedes. Acendo a luz e no segundo que ele
passa pela porta e eu a fecho, o encaro cruzando os braços.
— Onde está a sua namorada?
— Aqui. — Ele ri. — Você é minha namorada.
— Não sou, não. — Seus olhos se arregalam. — Se você passar
o olho pelas minhas redes sociais, vai ver que eu sou a mulher mais
solteira do Rio de Janeiro. — Seu queixo cai.
— Carol, você sabe que eu te amo — diz, com os olhos
marejados. — Por que está fazendo isso com a gente?
— Eu estava sozinha, do outro lado do mundo, e você fez um
mochilão sem me avisar. — As palavras voam e me dou conta de
que, por mais humilhante que possa parecer, o menor dos meus
problemas é o chifre. — Sei como é ter de viajar para a Europa
recebendo em reais, entendo que não tivesse grana no seu
planejamento pra desviar e me ver. Só que eu podia ter ido até você
— digo com o corpo na porta e os braços cruzados. — Eu jamais
teria me negado.
— Desculpa. Me perdoa, Carol. — Com um passo para frente,
Gabriel engole em seco. Quando não me aproximo, ele não dá um
segundo passo. — Eu fui moleque, não pensei direito, só...
— Você pensou direito, só não pensou em nós. — Abro os
braços como se fosse algo a lamentar. — No entanto, quando se
sentiu ameaçado por um cara que eu namorei há anos, você
apareceu. Do dia para a noite, arrumou dinheiro o suficiente para me
encontrar...
— Era o leste europeu, Carol. Você sabe que Budapeste não é
caro. — Me olha de cima a baixo, como se eu tivesse dito algum
absurdo, e eu expiro, desencostando da porta.
— O problema não é esse. — Corro o olhar pelo quarto antes de
continuar, porque parece piada. Quando volto a falar, estou mirando
a cortina de cetim dançando atrás dele com a leve brisa da noite. —
O problema é que você não foi lá por mim, você foi pelo Harris.
— Porra, Carol. Se eu tivesse uma ex-namorada me urubuzando
você também ficaria puta — diz, com as mãos nos bolsos traseiros.
— Não, Gabriel. Porque você era meu namorado. Eu não estava
te amarrando em lugar nenhum, se quisesse ir com ela, podia ter ido.
— Rio sem humor, caminhando até a cama, e ele se senta ao meu
lado. — Se ficasse comigo, teria me escolhido. Assim como eu tinha
escolhido você. Independente da distância, do tempo, do trabalho...
— Apoio minhas mãos no colchão por não ter mais o que fazer com
elas.
— E o que te fez desistir tão fácil? — Seu rosto triste quase
brilha com tamanha inocência nos olhos e eu gargalho.
— Fácil? Chegar na sua casa e ver outra mulher se chamando
de sua namorada é fácil?
— Pelo amor de Deus, Carol. Ela não é minha namorada de
verdade.
— Então quem ela é?
— Ninguém importante — rebate com desdém. — Não significa
nada pra mim.
A desculpa milenar.
— Entendi.  Mas a real é que não terminei com você por causa
dela. — Jogo a verdade no chão à nossa frente e ele se levanta.
— Como é que é? — Aí está, o tom de voz rouco e controlado,
os punhos se fechando e o olhar escurecendo. — Terminar comigo?
Você não pode terminar comigo.
— Todo esse tempo longe, principalmente depois da nossa briga
quando você foi “me visitar” — Faço as aspas com as mãos no ar. —
Me fez perceber que eu não sinto a sua falta, que é indiferente ter
você na minha vida. Eu não gosto mais de você.
— Você me ama, Carol, para de bobeira — diz entredentes,
coçando a barba por fazer, que sempre foi rala demais.
— Gabriel, eu acabei de dizer que não, não amo. — Respiro
fundo controlando as lágrimas, não sei exatamente o porquê, mas eu
quero muito chorar. 
— Você me ama. — Ele se ajoelha na minha frente. — E eu sou
a única pessoa que te ama de volta — diz, de maneira didática,
tentando tocar meu rosto.
— Você. Me. Traiu. — É minha vez de ser didática.
— Eu tive necessidades! Não queria ficar te cobrando, te ligando
e impondo visitas ou qualquer coisa — argumenta mirando o meus
joelhos. — Só queria deixar você fazer o seu trabalho bem.
— Quem ama, quem ama de verdade, não faz isso.
Minha frase faz com que ele se levante e me encare por dois ou
três segundos. Em seguida, uma risada de desdém me atinge.
— Ah, claro. Porque é você, de todas as pessoas no mundo, que
sabe o que é ser amada de verdade.
— Quem ama, não faz a outra pessoa se sentir mal. Isso não
existe e...
— Caralho, eu tô fazendo você se sentir mal? — me interrompe,
num grito reprimido, espalmando o próprio peitoral com as mãos.
Posso vê-lo se controlando para Laís não vir aqui. — Seus pais mal
se lembram do seu aniversário. Você foi amarrada na porra de uma
cadeira no meio de um salão de festa, as pessoas tacaram tinta
preta em você e queriam te colocar no sinal pra pedir esmola, e o
seu namoradinho estava correndo tanto do outro lado do oceano que
não conseguiu atender suas ligações. E a garota que dizia ser sua
melhor amiga? Essa foi embora duas semanas depois. E você
realmente acha que sou eu quem está te fazendo sentir mal?
A frieza com nas palavras dói.
Lembrar do que aconteceu machuca.
— Sabe o que eu acho engraçado, Gabriel? Você adora dizer
que me salvou, que me tirou do momento mais humilhante da minha
vida e me ajudou a superá-lo, mas o que você fez por todas as
outras pessoas que estavam passando pelo mesmo que eu?
— Nada, porque eu estava cuidando de você. — Óbvio, agora a
culpa é minha. — Quando os seus pais disseram que você não
deveria ter denunciado ninguém.
— Quando meus pais tentaram evitar que eu me desgastasse
por uma causa perdida numa universidade que não puniria ninguém
— grito, e minhas lágrimas quase me traem, mas sinto-as rasgando
minha garganta quando as engulo.
— Eu segurei a sua mão e entrei numa delegacia com você
quando sua mãe te falou que não valia a pena — diz com seu dedo
em riste, como se tentasse me lembrar como tudo aconteceu.
— Ela me disse para não tentar brigar com filho de senador e
juíza. — Rio da ingenuidade que os dezessete anos carregam e me
levanto. — Sofia olhou nos meus olhos, chorando e dizendo que eu
precisava entender que aquilo só me causaria mais dor.
Lembro exatamente por que minha mãe me disse isso.
As pessoas dizem que amor não vê cor. Mas isso é mentira.
Qualquer pessoa que se relacione com uma pessoa negra vai saber,
em dois passeios no shopping, em entrar numa loja, até comprando
protetor solar, que todo mundo vê a cor e, por isso, o amor não tem
como não vê-la.
Dona Sofia é uma mulher branca e loira, casada com um homem
negro e com uma filha negra, se alguém entende o que o racismo
pode fazer para quem se ama, esse alguém é ela. E por mais que eu
fosse parecer fraca e desprezível não denunciando o que fizeram
comigo, eu teria sofrido uma vez só.
Não naquele dia.
E no dia seguinte.
E durante um processo que eu nunca tive chance de ganhar.
— Tá, ótimo. Seus pais estavam te protegendo deixando você
passar por toda aquela humilhação sem fazer nada. Mas e a Laís,
ela foi embora e deixou você para trás, isso é amor?
— Eu nunca seria egoísta a ponto de dizer à minha amiga que
ela precisava desistir do intercâmbio dela. — Me levanto e caminho
até ele com o dedo em riste. — A Laís não era como a gente, você
sabe disso — falo baixo o suficiente para que apenas ele ouça.
Eu e Gabriel tínhamos dinheiro, nossos pais tinham. A família de
Laís, não. Ela batalhou muito para ter a vida que tem hoje. Laís só
saiu do país porque ganhou a viagem de intercâmbio no curso de
inglês que fazíamos juntas. Aquela não era uma oportunidade que
ela podia perder ou pagar para adiar.
— Nossa, você agora deu para defender todo mundo que te
abandonou? — ri com ironia e ergue os braços como se estivesse se
rendendo.
— Não estou defendendo ninguém, estou expondo como as
coisas aconteceram. — Dou as costas para Gabriel voltando até o
mais perto da cama possível, ficar perto dele me causa náuseas
agora. — E não foi exatamente como você me fez acreditar.
— Claro que a culpa é minha, Carol. É óbvio que eu devia achar
normal a postura dos seus pais e da sua amiguinha. E o seu
namoradinho? — Gabriel levanta os olhos do chão e, como se
tivesse uma faca na mão, pressiona a lâmina de suas palavras
contra a minha barriga. — Ele também tem desculpas? Eu também
entendi ele te tratar como a garota sem vida que ficava aqui
esperando uma migalha de atenção, errado?
Não. Não entendeu. Mas não quero resumir isso tudo ao Daniel,
porque não tem a ver com ele. Simplesmente não tem.
— Gabriel — grito, apoiando a mão direita na cintura, e ele me
encara arredio. — Não entendi até agora para que você está me
lembrando do que aconteceu há cinco anos — berro as palavras e é
como se elas pudessem romper os tímpanos de alguém. — Nosso
término não tem a ver com isso. Estamos terminando porque você é
um babaca de merda, que me manipula, me trai e trata como se eu
fosse uma criança assustada.
— O que deu em você? — O desprezo se aloja em cada
centímetro dos olhos dele — Eu não te conheço mais, sério. Você tá
me assustando com esses gritos e...
— Se tá ruim pra você, imagina pra mim, que percebi que nunca
te conheci — interrompo-o. — Você é o tipo de cara que entra na
minha casa e começa a dizer que eu não sou digna de amor e que
eu tenho que ficar com você por gratidão, quando no fundo nós dois
sabemos que você não fez nada!
— Nada?
— Nada. Você me tirou de lá porque gostou de mim, só isso.
Poderia ter sido qualquer outra garota. Mas fui eu. Enquanto todos
os outros alunos negros ficaram sendo feitos de pedintes e
chamados das coisas mais horríveis do mundo, porque você não se
importava de verdade. Pelo menos não o suficiente para pedir que as
outras pessoas parassem.
— Carol. Você está parecendo uma retardada, meu Deus. — Ele
coça a cabeça com as duas mãos e rosna. Gabriel simplesmente
rosna de ódio e em qualquer outro momento eu gargalharia. — Eu
lutei com você, mudei de universidade pra você não ficar sozinha, fui
seu amigo todos os dias, me apaixonei por você, te recebi na minha
casa, cuidei de você quando ninguém mais se importava...
— E eu sou grata. Não estou dizendo que você nunca me amou,
só estou dizendo que você acha que eu preciso ficar contigo para
sempre porque um dia fez uma coisa por mim e agora, em cada
oportunidade que tem, joga isso na minha cara.
— Não é possível que você tenha me amado tanto tempo e
agora, de repente, depois do Harris na verdade. — Ele dá uma
risadinha. — Eu seja alguém tão ruim.
— Você está certo, talvez não seja de agora. Talvez você sempre
tenha sido assim. Provavelmente todos os “eu vou cuidar de você”,
eram para isso. Para me amarrar a você, como minha única tábua de
salvação, tão forte, mas tão forte, que eu não conseguisse ver mais
nada.
— Não acredito que você vai jogar nossa história do lixo por
causa daquele pilotinho de merda. São três anos, cara. Três anos
não são três meses. Não pode ser tão fácil assim para você me
trocar por ele. — Gabriel fala baixo, não como se estivesse
controlando a voz, mas com decepção, desapontamento, como se
ele estivesse sendo trocado e isso doesse.
E eu não consigo não explodir em lágrimas.
O complexo de Dom Casmurro desse homem vai me matar.
Quantas vezes mais eu vou precisar dizer que não o traí? Mal respiro
diante dessa cena porque não é possível que ele não tenha escutado
uma palavra do que eu disse. E muito menos que ele realmente ache
que nós vamos reatar depois de eu ter conhecido a nova namorada
dele.
Ouço a porta entreabrir e Laís aparecer, mas balanço a cabeça
negativamente para ela, que sai, mas deixa claro pelo barulho a
seguir que está do lado de fora, recostada a porta.
— Não estou te trocando por ninguém. — Fungo num profundo
suspiro. — Não estou te deixando por alguém. Quero que isso acabe
por causa de mim, eu estou triste sendo sua namorada. Eu me sinto
sozinha estando com você. Namorar a distância foi um erro. — Tento
tirar o foco das coisas externas e explicar que o que não está
funcionando somos nós dois, como um casal. — A gente devia ter
terminado antes de eu ir embora, evitaria muito choro e muita, muita
dor — digo, como se isso fosse o melhor a fazer. Mas o jeito
indiferente com o qual Gabriel me encara me diz que o que doeu até
aqui está se preparando para doer mais.
— Sabe, Carol. Eu vi você, perdida e boba, confusa, até. Como
um bom veterano, tentei ajudar. Eu salvei você no trote e, talvez você
esteja certa, talvez eu tenha feito a escolha errada. — Não entendo o
que ele quer dizer, mas não me parece coisa boa, porque a
respiração profunda é finalizada com um riso debochado. — Eu não
devia ter tirado você de lá, gente como você tem mais é que se foder
mesmo. Ingrata do caralho.
Gabriel me dá as costas, não sem me lançar um olhar de
desprezo tão grande que me deixa me sentindo ainda menor do que
quando descobri que estava sendo traída, e sai.
Ele simplesmente passa pela porta depois de me dizer a coisa
mais horrível que já ouvi na vida.
Laís com certeza escutou cada palavra, porque quando Gabriel
some do meu campo de visão, minha amiga entra no quarto e me
alcança em três passos, logo depois que minhas pernas falham e eu
estou prestes a cair no chão.
Capítulo 28
Ou: Eu não me importo de passar todos os dias do lado de fora, na sua esquina, na chuva torrencial. Procure a garota com o sorriso partido, pergunte a ela

se ela quer ficar por um tempo e ela será amada

She Will Be Loved - Maroon 5

Daniel
Pimentinha:
Oi, Novato. Tudo meio merda por aqui. Espero que
seu tempo com seu pai esteja sendo melhor.
Trancado na sala de reuniões, seguro o celular embaixo da
mesa enquanto o sol das duas brilha lá fora e leio a resposta de
Carol à mensagem que mandei ontem à noite. Meu pai, que está
sentado do outro lado da mesa de vidro, em meio aos diretores,
mantém seus olhos em mim.
Eu: Dia difícil ontem?
Pimentinha: Um tempo difícil no Brasil, mas ao mesmo tempo…
Pimentinha: O melhor que poderia ter acontecido.
Eu: Confuso...
Pimentinha: É confuso até pra mim.
Noto os olhos do meu pai em mim novamente e me forço a parar
de digitar e agir como se não estivesse morrendo de tédio.
Eu: Tô numa reunião da empresa, a gente se fala no avião.
Pimentinha: Wow, papai Torres ataca novamente, boa sorte!
Pimentinha: Desculpa interromper essa reunião importantíssima
que você deve estar adorando. Mas preciso saber que horas chegar
no aeroporto...
Envio a resposta e bloqueio a tela fixando os olhos no homem
que hipnotiza todos os presentes na sala, mesmo que essa seja a
terceira reunião do dia sobre o mesmíssimo assunto.

Sentado na poltrona da sala de espera do aeroporto, encaro a


parede marfim à minha frente. O quadro, de pintura abstrata, está
torto e a madeira que cobre boa parte da parede, numa decoração
que não faz tanto sentido para mim, brilha mais do que parece
possível num sol de seis e meia da tarde.
O canto superior da parede onde minha poltrona está encostada
tem uma pequena teia de aranha e a mesa de centro na minha frente
tem três marcas de copos. Sei de tudo isso porque estou aqui há
duas horas. Ter passado boa parte do dia com meu pai na empresa
já foi o suficiente para mim, não queria vê-lo de novo antes de partir.
As últimas horas que vivi nesse país me tiraram mais do que eu
achei possível, e me despedir de um Fernando Torres diferente
daquele que me recepcionou só me lembraria disso.
Caroline Pimenta não está atrasada, mas faltam quarenta
minutos para o avião decolar e só agora ela mandou mensagem
avisando que chegou. Me preparo para encontrar minha Pimentinha
com um sorriso treinado no rosto. Amigos desabafam com amigas,
mas não consigo nem pensar em falar para ela sobre o meu pai.
Parece que a história nunca muda.
Atualizo meus e-mails pela sexta vez, como se algo pudesse me
deixar feliz vindo dali. Mas se nem o e-mail de Richard me avisando
que para o meu carro voar, só depende de mim, pode me animar,
não sei o que estou esperando.
— Nunca vou me acostumar com fazer todo o trâmite de
embarcação em dez minutos. — A presença da minha Pimentinha
enche a sala de espera e eu me levanto.
— Vai, sim, essa foi só a sua primeira viagem. A gente ainda vai
ter outras — digo, e a revirada de olhos dela juntamente com seu
risinho de canto fazem o que nem a notícia de um carro que preste
fez, coloca um sorriso genuíno em minha cara.
— Você é idiota. — Ela se joga na poltrona ao lado da minha.
A encaro me perguntando quando amigos pararam de se
cumprimentar com beijos e abraços. Carol pega o celular e liga para
Laís, informando-a de que chegou e está tudo bem. Depois disso
responde com uma série de “Uhuns”, virando o rosto para o lado
oposto ao meu, de maneira suspeita demais, e então desliga.
Carol mantém os olhos na tela do celular, mas qualquer pessoa
consegue ver que ela está me evitando. Olhos vidrados sem mal
mover os dedos, perna direita balançando, e, todas as vezes que ela
desvia o olhar da tela, é para a pista de decolagem, e não para mim,
que olha.
— Senhor Daniel, dona Carol. — O comandante Ticiano para na
porta da sala e cruza as mãos na frente do corpo. — O avião está
pronto, os senhores podem aguardar dentro dele se quiserem se
acomodar e beber alguma coisa. Mas a gente vai atrasar a
decolagem em meia-hora — diz, de maneira mecânica. Eu ergo as
sobrancelhas para Carol, que assente, e então nos levantamos.
— Algum problema com a aeronave?
— Não, dona Carol — Ticiano diz, com um riso divertido na voz.
— Houve um problema em outro avião que atrasou as decolagens,
está tudo certo com o nosso — explica, saindo do caminho para que
possamos subir primeiro.
— Então a gente parte em...? — pergunto quando entramos no
jato.
— Por volta de uma hora — responde indo em direção à cabine
da tripulação e eu entro na cabine principal.
A mochila de Carol está ao lado da primeira poltrona e eu sigo
para o interior do avião.
— O que você tá fazendo,Novato? — Carol me grita do quarto.
— Pegando um refri pra gente — respondo da cozinha.
— Nossa, tava apertada. E então. — Carol se escora no batente
cruzando os braços. — Sobre o que era a tal reunião com o seu pai?
Mordo a língua pensando por que não menti quando Carol
mandou mensagem de manhã.
— Coisas que eu realmente não estava interessado. — Entrego
os dois copos a ela, que caminha para cabine principal, e guardo a
garrafa na geladeira. — Mas e você, como foi com seus pais? —
pergunto para riscar esse item da lista.
Diferente do esperado, Carol sorri e me observa por uma fração
de segundos. Ela beberica um pouco do refrigerante e escora a
cabeça na janela, o sol se pondo beija sua pele e eu seguro meu
queixo no lugar.
— E se eu disser que, dessa vez, eles foram o menor dos
problemas? — ela pergunta, mas antes que eu possa responder,
completa: — na verdade, eles nem foram um problema...
— Estamos evoluindo aqui? — Sorrio, genuinamente feliz por
ela.
— Não... Acho que eu só aceito meu lugar de melhor amiga com
mais facilidade a cada dia.
— Então o que aconteceu de tão ruim? — indago, porque a
mensagem dela não trazia nada de positivo nessa manhã. — De
algum jeito a Laís? — Carol balança a cabeça negativamente, como
se não houvesse a menor chance de aquilo acontecer. — Ah, o seu
namorado...
— Sim, e eu preferia que a gente não falasse sobre isso. — As
palavras são um aviso, e acho engraçado o tom que ela usa.
— Ah, qual é, Pimentinha? Não vou te julgar por preferir estar
com aquele troglodita. Nós somos só amigos agora, pode me falar de
como é legal conviver com um energúmeno como ele.
— Você já está me julgando, Daniel. — Semicerra os olhos para
mim, segurando o copo.
— Talvez eu esteja. — Mato meu refrigerante e descanso meu
copo na mesa. — Mas é só porque você faz escolhas horríveis.
— Daniel, não foi um tempo legal, tá bom? — Ela bufa,
mordendo o lábio inferior por dentro. — Não tô com saco pra
brincadeirinha.
— Ah, Pimentinha, é sério? — digo na esperança de ela
perceber que não foi um tempo legal porque ele não é um cara legal.
Por mais que eu tenha jurado para mim mesmo que não me
meteria nisso porque ela não era problema meu, agora a Carol é
minha amiga, e isso significa que ela é problema meu novamente.
— Ótimo, então vamos falar dos nossos encostos.
— Como assim?
— Me fala você primeiro sobre como é ter um troglodita na sua
vida e não poder se livrar dele nem se você quiser. — Carol bate
uma palma, se debruçando sobre a mesa em seguida. — Já que ele
é o seu pai e o cara que tinha dinheiro o suficiente pra te comprar um
assento na Fórmula 1.
Isso foi golpe baixo, mas aceito em silêncio. Eu comecei a
provocação.
— Beleza, Carol. Um a zero pra você.
— Ué, o que aconteceu? Você não teve uma viagem incrível com
o senhor Fernando Torres? — ironiza. — Você percebeu que a
garota que você deixou pra trás se livrou do babaca que namorava e,
ainda assim, não correu pros seus braços?
— Então vocês terminaram? — pergunto com um gosto amargo
me arranhando a garganta.
Entendo que ela não queria conversar sobre isso, mas acho que
estamos indo longe com a animosidade. Longe demais para quem
precisa dividir o mesmo ambiente por quase doze horas.
— Claro que terminamos — diz de maneira ríspida. — Eu posso
me ver livre do idiota que me tratava como lixo, diferente de você.
— Nossa, Carol, você está sendo tão estúpida — bufo, me
debruçando em direção a ela.
Nenhum de nós dois pisca. Eu consigo sentir a respiração dela
nos meus lábios e a apreensão fechando minha garganta.
Não sei como chegamos aqui, mas tenho certeza de que não
precisamos disso.
— Estou? Porque você adora implicar, não é Daniel? E talvez eu
também goste. Então me diz, qual é a sensação de ter ido embora,
largado a garota que você dizia amar no pior momento da vida dela,
conquistado seus sonhos, ser o piloto que todos amam, ter ganhado
GPs e conquistado a atenção do mundo — enumera com a mão
erguida ao lado do rosto. — Mas, no fundo, ainda ser só um
cachorrinho em busca da aprovação do seu dono? — ela finaliza, se
recostando na poltrona, e minha garganta fecha.
Dá para ver na cara dela que ela está esperando que eu rebata,
que a provoque, mas isso não é brincadeira. Esfregar na minha cara
o quanto meu pai queria que eu fosse outra pessoa, o fato de que ele
me patrocina, a forma como ele me trata... Nada disso é brincadeira.
Me levanto e vou até entrada da cozinha, onde joguei minha
mochila.
— Daniel, o que você tá fazendo? — Carol me para na volta,
com a mão em meu braço quando passo por ela.
— Não sei o que te aconteceu esses dias, mas não tem a menor
chance de eu passar doze horas num voo com você. — Me
desvencilho de sua mão e ando a passos largos para a entrada da
aeronave, a porta ainda está aberta, obviamente, então desço a
pequena escada correndo.
— Daniel — Carol me chama do topo da escada, mas continuo
andando com o sangue fervendo. — Daniel, para com isso. — Posso
ouvir seus passos correndo atrás de mim.
Mas já fui humilhado pelo meu pai o suficiente, não preciso ser
por ela também.
— Daniel. — Carol agarra a minha mochila, me puxando, e eu
paro. — Você perdeu a noção? Era brincadeira. Você sabe que a
gente...
— A gente não joga na cara do outro o quanto nossos pais
preferiam que a gente não tivesse nascido. — Me viro e os olhos
dela carregam susto. — A gente implica um com o outro e tenta fazer
o outro ficar bem, a gente não insinua que o outro só chegou aonde
chegou por causa do dinheiro da família.
— Daniel, desculpa — sussurra tão desnorteada e sem graça
que quase cedo, mas mantenho a distância. — Não sabia que você
ia ficar tão chateado.
— Sabia, Carol. — A verdade de que ela disse exatamente tudo
o que me machucaria dói, mas não tem como voltar atrás agora. —
Você sabia.
— Me desculpa, Dani. Eu não tinha o direito.
— Não mesmo.
— Eu vou caçar outro voo, eu realmente sinto muito...
— Você consegue parar de me ofender por cinco segundos? —
Peço sem acreditar que ela acha mesmo que vou deixá-la sem um
voo de volta. — Trouxe você para cá, você volta no avião. — Tiro o
celular do bolso — Vou falar pro comandante que você vai sozinha.
— Não precisa, não é sua culpa. Talvez eu tenha passado dos
limites e...
— Você passou dos limites, Carol, de todos eles — reforço o
problema das palavras dela e aproveito para limpar minha alma: —
Ah, a gente também não olha na cara do outro e diz que foi
abandonado quando o outro nem ao menos foi informado de que as
coisas estavam menos que perfeitas. — Corto sua fala.
— Eu disse que não conseguia mais continuar num
relacionamento. Você olhou na minha cara e falou que não queria a
minha amizade — Caroline abaixa a cabeça e olha para o sentido
contrário ao vento. — Você tinha total ciência de que eu estava na
merda e não se importou, porque se eu não pudesse ser sua
namorada, eu não servia pra você.
A voz baixa, quase inaudível entre os jatos decolando e
pousando, aperta meu coração.
— Você sabe que eu só disse isso porque você terminou comigo
sem motivo nenhum. — Dou um passo para trás abrindo os braços e
luto contra as lágrimas que brotam em meus olhos porque, meu
cacete, como pode isso estar acontecendo? A gente estava bem há
dez minutos. — Você disse que me amava num dia e no outro
terminou comigo do nada, mesmo que eu tenha dito que não tinha
um futuro sem você.
— Quando a gente terminou, eu errei com você. — Ela respira
fundo me encarando. — Fui burra, egoísta e uma menina boba e
mimada. — Carol vê nos meus olhos que não estou entendendo
nada. — E eu me arrependo amargamente por isso. E sei que
machuquei você agora de novo, mas se você quiser ouvir minhas
desculpas, se quiser pelo menos saber o que aconteceu pra gente
terminar, volta pro avião comigo, Dani. Por favor.
— Eu estou chateado, você com certeza não tá bem, porque
você não é assim. Acho que a gente devia voltar, cada um num
avião, e conversar quando chegar em Zandvoort.
— Também acho. — Ela joga o coque que se desfaz no vento
para trás. — Mas te machuquei agora e não quero que você saia
daqui achando que eu realmente quis dizer as coisas que disse,
porque eu não queria, Dani. — Uma lágrima solitária corre pelo lado
esquerdo de seu rosto, e reúno toda a minha força para não enxugá-
la. — Você é um piloto incrível e, mesmo que eu não seja mais a sua
Pimentinha, sei que ela ainda existe em algum lugar e está muito
orgulhosa de você...
— Eu sei, Carol. De verdade. Mas não tenho feito nada além de
tentar ser legal e reatar um contato, mesmo que mínimo, com a
minha pessoa favorita no mundo desde que a gente se reencontrou.
Não achei que você pudesse usar dessa proximidade pra ser tão...
— Expiro devagar coçando a têmpora e não a encarando para não
desistir. — Se você precisou de cinco anos para me explicar por que
resolveu terminar comigo por eu ter feito exatamente o que nós dois
planejamos juntos, acho que eu também posso tirar um tempo para
pensar antes da gente conversar.
— Daniel. — Carol se aproxima tocando meus braços com as
duas mãos e eu tento resistir, respiro fundo e jogo a cabeça para
trás, ao mesmo tempo que, com um passo, meus pés se afastam
dela. — Daniel, por favor. — Sua voz embargada chega aos meus
ouvidos e abro os olhos para encontrá-la com duas lágrimas
escorrendo pelo rosto. — Se eu não falar agora, talvez eu não
consiga falar nunca mais...
— Carol ...
Como eu odeio amar essa mulher.
— Não faz isso. — Seu queixo treme como se ela tentasse
segurar as lágrimas. — Não vai embora de novo quando a única
coisa de que eu preciso é que você fique. — Ela fecha os olhos
liberando mais duas lágrimas e então, várias outras e eu tento, tento
ser forte e não puxá-la para perto de mim. — Eu preciso muito que
você fique, Novato. Só dessa vez — Carol implora e, quando a ouço
soluçar, mando todo o meu controle para a casa do cacete.
Abraço minha Pimentinha e fico parado entre a sala de espera e
o avião. Carol passa os braços ao meu redor com tanta força que é
como se ela precisasse disso para se manter presa ao chão.
Sinto meu peito molhado com suas lágrimas, a camisa
amassada em seu abraço e não faço a menor ideia do que está
acontecendo aqui.
— Pimentinha, vamos voltar pro avião? — Carol responde com
um “Uhum” abafado, mas não se mexe. Então descanso meus
braços ao redor dela e sinto quando uma segunda onda de lágrimas
a invade.
Mantenho-a em meu abraço, mas faço cafuné no encontro da
sua nuca com o cabelo. Acaricio Carol como se pudesse deixá-la
bem.
Como se fosse fazer diferença.
— Dani. — Seu sussurro é tão baixo que só sei que ela falou
comigo porque sinto seus lábios se mexendo contra minha blusa.
— Oi, Pimentinha. — A afasto apenas o suficiente para olhar em
seus olhos. Com os aviões decolando e chegando por aqui, não é a
coisa mais fácil do mundo escutar o outro.
— A gente pode voltar agora — diz e busca a minha mão, como
se eu pudesse fugir se ela não me guiasse.
Fazemos o pequeno trajeto em silêncio e, quando entramos no
avião, ela vai até a sala de jogos e se senta na posição de flor de
lótus. Me sento de frente para ela e empurro os sapatos com os
dedos dos pés.
Vejo-a respirar aliviada, como se eu estar aqui, com a cabeça no
descanso do sofá, sentado de lado com meus olhos atentos nela,
pudesse ser a prova que ela precisa de que eu não vou a lugar
algum.
— Você é meu piloto favorito no mundo. — Tento dizer a ela que
não precisa fazer isso, mas Carol sela meus lábios com a ponta do
indicador. — Nem o Hamilton, nem o Alonso, nem o Vettel, nem a
Tilápia Holandesa. — Ela pronuncia o apelido do Max Verstappen e
eu seguro o riso porque ela ainda está com cara de choro. — Você.
Me perdoa, de verdade, por ter insinuado que você só conseguiu um
assento por causa do seu dinheiro.
— Carol, todo piloto só consegue assento por causa de
patrocínio.
— Eu sei, mas você é diferente, Novato. Nós dois sabemos
disso.
— Beleza, fico feliz por isso. Me prova que eu estava certo em
seguir nossos planos. Mas agora preciso entender o que aconteceu
lá fora.
Carol se remexe desconfortável e vira a cabeça para todos os
lados, como se buscasse uma janela que não temos aqui. Por fim,
me encara.
— Você tava certo. Desde que a gente se reencontrou, você tem
sido legal. Tem tentado e eu tenho te rechaçado. E eu fazia isso
porque tinha um namorado, sim. Mas também porque não sabia
como inserir você na minha vida.
— Só que agora você não tem mais um namorado...
— Não, não é isso. — Ela ri e posso ver em seus olhos que ela
estaria mais feliz se fosse. — Quando você falou do Gabriel, eu me
senti impotente e tentei te machucar, mas achei que...
— Eu já teria superado meu pai a essa altura? — Ela assente. —
Não sou tão forte quanto você, Caroline Pimenta.
— E quando você saiu do avião era como se eu tivesse te
deixando ir sem lutar, de novo. E não romanticamente falando. Mas
se antes eu não sabia como ter você na minha vida, agora não sei
mais como não ter. — Carol encolhe os ombros como se dizer essas
palavras demandasse um esforço sobre-humano. — O dia que a
gente chegou foi com certeza um dos melhores dias do meu ano.
Estar com alguém que me deixa tão... Confortável para ser quem
sou, para agir, pensar... Eu senti tanto falta disso, foi tão familiar...
— Carol. — Toco seu rosto, calando-a por dois segundos.
— O quê? — ela pergunta como se eu a tivesse tirado de um
transe.
— Eu sei o que você tá querendo dizer, você sempre foi a coisa
mais próxima que eu tive de uma casa.
— Daniel. Eu falo, você fica quieto. — Carol semicerra os olhos
para mim, tirando minha mão de seu rosto — Me dei conta de que
talvez, se eu tivesse sido sincera quando a gente terminou...
— A gente não teria terminado? Tipo, a gente terminou por não
conversar? — Reteso e ela ri, mesmo com as feições tristes. —
Porque nós éramos melhores amigos, a gente podia ter conversado.
— Acredita em mim, Daniel, a gente ainda teria terminado. Nem
sempre um bom diálogo e um abraço resolvem todas as coisas que
estão erradas.
O silêncio dela começa a me agoniar, então o quebro.
— Foi muito ruim?
— Promete que você não vai levantar daí e me abraçar mesmo
que eu chore?
— Claro que não.
— Daniel!
— Tá maluca, Caroline? Não vou conseguir fazer isso. Você
não... você não chora por qualquer coisinha.
— Se você soubesse o quanto eu tenho chorado desde que
cheguei aqui... — ironiza.
— Tudo bem, nada de abraço. — Pego uma das almofadas e
coloco em meu colo para ter com o que ocupar as mãos.
— A gente se formou em dezembro, você se mudou em janeiro e
minhas aulas começaram em março, lembra?
— Lembro, eu vim te ver antes de elas começarem...
Ela meneia a cabeça.
— No quarto dia de aula a gente... — Carol apoia as mãos nas
pernas dobradas sobre o sofá — Teve o trote.
— Sabia que tinha a ver com essa merda. Bando de gente
escrota com vontade de ser ditador.
— Sim. Mas, quando você é uma pessoa negra, a ditadura não é
a pior coisa que pode acontecer com você, não é? — ela diz
encarando as próprias mãos, brincando com os polegares.
— Do que você tá falando, Carol?
— A gente tava num barracão. Era o sítio da família de alguém...
Eles disseram que a gente ia se limpar na piscina no fim da noite.
Pediram pra gente sentar e escreveram as coisas padrão: nome do
curso, sigla de faculdade, nota do ENEM, essas coisas... — Ela
respira fundo e eu seguro a almofada com um pouco mais de força.
— E aí pediram pra gente colocar uma venda. Era todo mundo tão
legal, tava tudo tão de boa. — Ela ri com desprezo. — Sentaram a
gente numa rodinha e jogaram uma coisa em nós. Foi meio
asqueroso a princípio, eu já tinha ouvido falar de jogar água de
peixe, sujeira... Mas o cheiro subiu e não era nada disso. — Carol
suspira e exala o ar pela boca como se estivesse controlando-o.
— Era o quê?
— Tinta.
— Tinta?
— Tinta preta, pediram pra gente tirar as vendas e... — Ela puxa
a mão da minha enrolando o cabelo num coque baixo. — Jogaram
pena na gente, tipo, pena de galinha e quando eu olhei em volta,
todo mundo tava rindo e no lugar onde eu tava sentada tínhamos eu
e outros quatro alunos.
Tento buscar a mão de Carol, mas ela recusa. Não preciso que
ela fale para entender.
— Todos negros — verbalizo o que está entalado em sua
garganta.
— Todos. — Vejo-a engolir em seco e aperto a almofada como
se pudesse apertar a cara das pessoas que fizeram isso. — Todo
mundo ria e achava engraçado, diziam que a gente tava parecendo
galinhas da angola. — A primeira lágrima que rola do rosto de Carol
recebe a companhia de uma minha ao mesmo tempo. — Então os
veteranos falaram que era hora de sair pra esmolar.
— Carol, não... — Minhas mãos vão até ela, que se curva para
trás. Seu olhar me diz que minha Pimentinha está evitando o toque
para não chorar mais.
— Todo mundo se sentiu constrangido, mas é o trote. — Encolhe
os ombros. — Só que eu não consegui, eu não me movia. Então o
Gabriel, que era um dos meus veteranos, disse que eu não ia. — Por
Deus, eu vou passar com minha Arrows em cima desse desgraçado.
— O pessoal saiu e ele me levou pra o banheiro do sítio. Me limpei
como deu e ele me levou em casa. Ele pedia mil desculpas e disse
que aquilo precisava parar, porque todo ano alguém entrava em
parafuso e não tinha mais graça.
— Não tinha mais graça? — Minha pergunta é retórica.
Carol encolhe os ombros e apoia a mão no encosto do sofá.
Levo minha mão até a sua e, dessa vez, ela não recusa.
— Não falei nada com meus pais naquela noite. Corri escada
acima gritando que os amava, estava cansada e precisava deitar.
Mas a verdade é que eu não queria falar com eles, naquele momento
eu só precisava ficar com...
— Comigo — deduzo, e meus pés afundariam no chão se eu
estivesse tocando-o agora.
— Me joguei no chuveiro, esfreguei minha pele o máximo que
conseguia, não era uma tinta difícil de sair, mas de algum jeito
parecia que esta ia ficar grudada em mim para sempre. — Outra
lágrima silenciosa rola por seu rosto contornando a bochecha, mas
eu a pego antes que ela atinja sua blusa. — Depois do banho eu me
joguei na cama e te liguei — finaliza dando de ombros, e eu franzo o
cenho, confuso.
— Você não me falou sobre o seu trote, Carol.
— Não falei, porque eu te liguei e você não atendeu. — Ela pisca
por um tempo longo e engole em seco. — E eu liguei de novo, e de
novo... — As lágrimas brilham em seus olhos, mas ela desvia o olhar
e solta a mão da minha. — E mais uma, duas, dez vezes. Quando o
dia amanheceu, eu acordei sentada na cama com uma mensagem
sua. — Ela passa a mão pelo nariz fungando e para o polegar e o
indicador nos olhos, como se pudesse impedir as lágrimas de nascer.
— Você dizia que tinha acabado de chegar de um jantar de um
patrocinador e me ligava de manhã porque eu devia estar dormindo.
Mas eu sorri. Você finalmente tinha chegado, a gente ia poder
conversar e você ia estar lá comigo. Então respondi dizendo que
estava acordada, e você disse...
— Que eram três da manhã para mim e eu precisava dormir para
te dar a atenção que você merecia. — Lembro exatamente desse dia
porque eu estava exausto e fiquei me perguntando por que ela
estaria acordada tão cedo.
Seguro meu choro, porque nessa situação toda não sou eu
quem deve ficar chorando, mas a dor me corrói.
— Eu te liguei 12 vezes e te mandei 6 mensagens, Dani. E você
não tava lá. — Carol funga, os olhos nublados pela dor e pela derrota
penetram a minha alma, e eu aperto a almofada em meu colo, o
suficiente para ouvir a costura avisar que está começando a rasgar.
— Eu não sabia o que fazer, não sabia com quem falar, você era a
única pessoa que eu ainda tinha.
— Carol ...
— De alguma forma, aquilo me quebrou. Eu já achava que tinha
algo de errado comigo pelos meus pais não me amarem, mas aquela
foi a primeira vez em anos que eu me vi realmente sozinha de novo e
isso me matou, Daniel. — Ainda agora dá pra ver o quanto ela está
se segurando para não chorar. Como se não quisesse colocar esse
peso em mim.
O peso de uma dor que eu causei.
— Eu não sei o que dizer, não sei como pedir pra você me
perdoar.
— Não precisa dizer nada. Você estava vivendo a sua vida e eu
disse que só tava com saudade quando você ligou no dia seguinte.
— Mas você me ligou 12 vezes e me mandou 6 mensagens. —
Tomo sua mão novamente como se isso pudesse amenizar alguma
coisa. — Não sei o que deu em mim para acreditar que era só
saudade.
— Sua cabeça tava cheia.
— Não devia estar, não pra você — rebato, afagando seus
dedos como se isso pudesse fazê-la sentir meu arrependimento.
— Mas foi o que aconteceu. — Ela diz e tira a mão da minha
para secar o rosto. Com um suspiro fraco ela força um sorriso antes
de voltar a falar: — Eu contei pros meus pais no dia seguinte, porque
o Gabriel foi lá em casa me dizer que tinha provas de quem estava
envolvido e decidi denunciar.
— Na delegacia, com processo e tudo?
— Sim. Meus pais foram contra a denúncia, mas eu realmente
achei que veria jovens brancos, filhos de políticos, sendo presos. —
Carol gargalha. — Tudo virou de cabeça para baixo e eu... Não
conseguia mais. Meus pais que eu vi como omissos, a Laís que foi
embora, você que nunca estava lá, o processo que eu claramente
perdi antes mesmo de dar entrada... Mudei de universidade, fui
morar sozinha com dezoito anos sem saber fritar um ovo, e eu não
tinha ninguém. Mesmo não sendo a pessoa mais sociável do mundo
antes disso, depois eu me isolei ainda mais.
— E como você e o branco salvador se tornaram um casal?
— Com o tempo — diz com um suspiro. — Ele foi a única
pessoa que ficou. Foi o Gabriel quem me tirou de lá, me apoiou com
a denúncia, testemunhou a meu favor... Quando mudei de
universidade, ele mudou comigo, então a gente fazia muita coisa
junto... Depois de mais de um ano sozinha, achei que era hora de
seguir em frente.
— Por que seus pais não queriam que você denunciasse?
— Porque não. E estavam certos. — Faço menção a dizer algo,
mas a mão dela no ar me para. — A reitoria emitiu a quinta nota de
repúdio consecutiva, porque isso acontecia há anos; meu processo
correu em sigilo; eu fui coagida a aceitar um acordo e… — Carol
respira fundo e exala o ar lentamente desviando o olhar do meu
enquanto meu estômago embrulha. — Dois anos depois uma bixete
negra do meu curso foi hospitalizada depois de ter sido estuprada e
agredida. Dois dos acusados faziam parte do grupo de pessoas
brancas que ingressou na universidade junto comigo. — Dá de
ombros depois de enumerar, e eu me remexo sem reação. — Ou
seja, a humilhação já era institucionalizada.
Sua fala me machuca por tudo o que ela relata, mas mais ainda
porque sei que esse não é um caso isolado.
— Carol, eu realmente não sei o que dizer.
Ela pisca e seus lábios se repuxam num meio sorriso
condescendente.
— Essa é uma daquelas situações que ninguém sabe, Daniel.
— E por que vocês terminaram agora? Você e o Gabriel... —
indago, mas acho que estou me metendo demais. — Não precisa
dizer se não quiser.
Carol ri por alguns instantes e desdobra as pernas, se sentando
de frente para a TV e apoiando os pés no chão. Ela solta o cabelo e
o joga de lado, com um estalar do pescoço.
— Essa é fácil. Terminamos porque me dei conta de que ele não
podia ser a única pessoa na minha vida, e Gabriel sempre deixou
bem claro que esse era o lugar que ele tinha que ocupar — decreta.
— Carol. Posso te fazer uma pergunta?
— Pode, Novato. — Ela não sorri, nem revira os olhos. O que é
um bom sinal.
— Você me odeia?
— Não seja bobo, é claro que não. — Ri da minha ingenuidade.
— Eu era só uma menina confusa e perdida. As coisas aconteceram,
a gente terminou, parou de se falar e agora está se reaproximando.
Achei que seria importante você entender, pelo menos saber, o que
aconteceu que me quebrou desse jeito — ela diz, e eu meneio a
cabeça.
A apreensão aperta meu peito, mas não tenho como fugir agora.
— Você ainda me ama?
— Não. — A resposta é simples e rápida, Carol olha em meus
olhos quando a pronuncia.
— Acha que pode voltar a amar?
— Acho que não posso dizer que não sinto nada por você.
É o que ela responde e isso alivia meu coração. Talvez não seja
mais amor, mas possa voltar a ser.
Só que você não volta para os braços da pessoa que te
prometeu um futuro, mas não conseguia nem te oferecer o presente,
não é? Você não coloca os sentimentos na frente de tudo o que você
teve que aguentar sozinha.
— Se eu conseguisse me redimir, a gente... — gaguejo com os
olhos marejados porque nunca senti tanta vergonha em toda a minha
vida.
— Não tem do que se redimir, Novato. — A mão dela chega ao
meu rosto — Nós éramos crianças, estávamos no início da vida
adulta, você errou, eu errei. — Carol limpa uma lágrima do canto do
meu olho direito e seu toque me deixa.
— Mas por você a gente teria continuado amigos, eu fui um
idiota.
— Foi. — Ela ri. — Mas passou. A gente é amigo de novo agora
— diz, como se fosse simples.
Como se pudesse apagar o passado.
— Carol ...
— A gente ainda tem uma meia-hora, acho que vou aproveitar
para dormir um pouco. — Caroline se levanta, alongando as costas
em seguida. — Minha cabeça tá a ponto de explodir.
— Pimentinha.
— Oi, Novato. — Ela olha para baixo com as mãos nos bolsos
dos Jeans.
— Eu realmente sinto muito — digo a única coisa que posso
dizer agora.
— Eu também — lamenta e se vira.
— Mas, Carol. — Seguro sua mão e ela se volta para mim com
um olhar curioso — Se eu tivesse só mais uma chance... — Ela nem
me deixa terminar de falar e puxa a mão para si.
— Eu sou a garota que entregou tudo o que tinha para alguém
por gratidão e, no fim, ouviu essa pessoa dizer que se arrepende de
ter me defendido. Que pessoas ingratas como eu, merecem o
sofrimento sob os quais são colocadas, Harris. — Ela força um
sorriso sem humor depois de me dar um soco no estômago com
suas palavras. — Meu coração mal consegue bater, Novato. Não
acho que estou em condições de amar alguém agora.
Ela diz e se vai.
Mas não preciso que ela me ame.
Só quero fazê-la se sentir amada.
Capítulo 29
Ou: Chegue um pouco mais perto, me deixe provar seu sorriso até de manhã.

Não tem volta do jeito que você está hoje à noite, eu vejo isso em seus olhos.

More Than You Know - Axwell /\ Ingrosso

Carol
A sensação de impotência não te toma por inteira quando te
fazem algo muito ruim. Não, ela te invade no segundo que se
percebe que não há nada a ser feito sobre isso.
Não porque você não pode, mas porque ninguém se importa o
suficiente com a sua dor. Assim, você luta sozinha. Mas, não é uma
luta justa.
É você contra todos que acham que você só precisa aguentar
um pouco mais. Que só é necessário segurar as pontas para, em
algum momento no futuro, você mostrar para todo mundo que te
subestimou ou humilhou o quão pior a vida deles é comparada a sua.
Como dizia o poeta, no entanto: eu não quero ser melhor do que
os racistas, eu quero que os racistas estejam mortos.
Ter superado o que eu vivi não me torna uma grande guerreira.
Ter tido boa parte da minha vida definida pelo racismo não me
tornou mais eficiente do que uma pessoa branca.
Não ter sucumbido não me deixou mais forte.
A única coisa que eu ganhei com tudo isso foi um grande
emaranhado de desgraçamentos mentais. Não tem nada de bonito
vindo do racismo. Não há nada de proveitoso que se origine no
preconceito.
Acho que esse foi o motivo principal para deixar o Daniel
sentado naquela sala sozinho. Se ele tivesse tentado me tratar como
“a sofrida” ou “a superada”, eu não conseguiria lidar. Falar sobre
esse momento me dá muito mais vergonha do que qualquer outra
coisa. Aquilo separou minha vida em antes e depois, aquilo tirou de
mim a minha inocência, a minha autenticidade e o meu amor.
Deixar o Daniel foi algo que eu fiz muito mais por ele do que por
mim. A gente se viu umas dez vezes depois do meu trote e a cada
vez eu me sentia mais diminuta. Eu era triste, amarga, infeliz... E ele
era... Exatamente o que ele é: luz, calor, felicidade...
E eu tentei muitas vezes falar para ele, mas era impossível. Era
como se falar aquilo fosse me fazer sentir ou viver tudo de novo.
Deixar o Daniel ir era a minha única saída, ele não precisava do peso
morto que eu era àquela altura.
— Carol. — Ouço-o sussurrar e viro meu corpo para a entrada
do quarto. — Ah, você tá acordada?
— Mais ou menos. Já vamos decolar? — Ele assente e eu
começo a me levantar. — Pelo menos eu não fiquei no celular e
minha dor de cabeça diminuiu bastante.
— Ótimo, agora vamos lá. — Daniel dá dois pulinhos correndo
na minha frente. E eu o acompanho. — Coloca o cinto — diz, como
se eu não estivesse vendo a comissária parada à minha frente com
os olhos em mim.
Daniel aperta algum botão para se comunicar com o comandante
e o avião começa a taxiar.
Respiro fundo e meu coração acelera. Os três próximos meses
não vão ser só o fim da minha primeira temporada como repórter de
campo do meu esporte favorito. Eles também vão ser meu momento
de solitude.
Eu, minha vida e minhas escolhas. Sem o peso de o Daniel não
saber do que aconteceu, sem o peso de ter um namorado que eu
não amava. Sem precisar entregar toda a minha vida para
demonstrar eterna gratidão a alguém que nem merecia.
Só eu.
— Como estão os seus pais?
— Bem. — Giro meu pescoço em direção a ele. — Ainda
debochando do meu trabalho assalariado e com planos de viajar
para Paris. Mas bem. E seu pai?
— Estranho — ele diz com o cenho franzido e fica em silêncio
por um tempo. — Seus pais já te fizeram se sentir a pessoa mais
especial do mundo e depois você percebeu que era só... eles
puxando seu saco para você ceder?
— Ah, não. Nunca tive a oportunidade de me sentir especial para
eles, sem esse tipo de decepção por aqui. — Pisco, e Daniel ri.
— É, rolou uma coisa dessas e... Acho que ele tá arrastando asa
pro lado da mamãe?
— Uau. — Meus olhos se arregalam e meu queixo cai.
— Foi estranho. Acho que essa é a melhor definição.
— E a tal reunião, era sobre quando você assume a empresa?
— Não, era sobre como eles vão expandir a empresa para
alguns cantos da Europa e por isso vão substituir o subsídio de
alimentação por um refeitório e não renovar o plano de saúde com
uma empresa top de linha para pagar um mais barato.
— Uau. Seu pai segue me surpreendendo.
— A mim também. Mas não vamos falar dele, me fala de você,
foi bom passar um tempo com a Laís? Você volta para a casa dela
nas férias?
— Foi muito bom. Foi difícil terminar com o Gabriel, querendo ou
não ele era um pouco tóxico e eu uma dependente emocional,
então... Talvez eu não tivesse conseguido sem ela. E sem a Miyeko,
que manteve essa ideia na minha cabeça todos os dias desde
Budapeste.
— Que bom que você tem elas duas, Pimentinha. E que seu
tempo com seus pais não te machucou.
— Não, foi uma boa visita se eu colocar na balança e esquecer
tudo de ruim...
— Que nem você esqueceu nossa janta?
Franzo o cenho sem entender e Daniel ri.
— Nossa janta?
— Você estava incumbida de trazer as coisas para o meu
estrogonofe de camarão, lembra?
Se eu fosse o Gabriel, eu rosnaria agora.
— Nossa, Daniel. Me desculpa, eu esqueci mesmo. — Meu
estômago ronca e Daniel segura o riso. — E eu estou morrendo de
fome — resmungo e ele ri. — Daniel gargalha tão intensamente que
reviro meus olhos. — Para de rir. Que desgraça. Esqueci
completamente da comida.
— Garota, a gente tem comida aqui, sabia? Você não vai ficar
doze horas sem comer.
— Ah, tem?
— Sempre tem. Eles só não fazem aquele algo tão maravilhoso
quanto o seu estrogonofe — Dani diz com os olhos em mim, e eu
meneio a cabeça.
Mas ele não para de me olhar, estudar cada pedacinho do meu
rosto, de mim, e antes que meu rosto esquente, quebro o silêncio.
— Que tanto você me olha?
— Você é linda. E é muito bom poder te dizer isso sem achar
que estou te constrangendo por causa do seu namorado ou do seu
trabalho. — Quase digo que estou constrangida da mesma forma,
mas talvez eu precise de um elogio ou dois. — Quando me mudei
para Inglaterra, coloquei uma foto sua, com o uniforme do nosso
colégio americano, na cabeceira da minha cama. Ela ainda é a última
coisa que vejo todas as noites quando durmo na minha mãe.
Ignoro meu coração quase saindo pela boca.
— Suas namoradinhas devem ter adorado me ver antes de
dormir.
— Eu sou um moço de família, Carol Pimenta. Nunca levei
ninguém para dormir comigo na casa da minha mãe — ironiza. —
Vamos fazer alguma coisa?
— Um filme? — pergunto ao perceber que já podemos nos
levantar.
— Você está com tanto sono assim?
— Eu não vou dormir, seu idiota. — Dessa vez não vou mesmo,
só não quero ser a garota solteira e carente conversando com o ex.
— E você pode escolher dessa vez.
— Vamos assar pizza novamente? Tem lasanha também.
— Então vamos de lasanha — digo, já de pé ao lado da poltrona
dele.

Nossa noite tinha tudo para dar certo e todo mundo sair ileso. O
avião decolou por volta das 20h, colocamos a lasanha no forno e
jogamos videogame enquanto ela assava. Jantamos conversando
sobre a temporada e amenidades da nossa semana no Brasil, como
as comidas das quais a gente mais sentia falta. Depois de descartar
as embalagens e trocar os copos de refrigerante por garrafinhas de
água, decidimos ver um filme.
Daniel escolheu A Arte de Correr na Chuva e, honestamente,
não sei quando ele aprendeu a assistir filmes românticos tristes, mas
quero que essa versão dele desapareça. Porque eu estou acordada
chorando com o final do filme enquanto ele dorme. Para piorar,
Daniel está deitado no meu colo, e não sei exatamente como isso
aconteceu.
Tinha uma almofada apoiada na minha perna quando ele se
deitou, agora, no entanto, tem a cabeça dele nas minhas coxas e a
mão na qual ele apoia a cabeça entre elas. Apesar disso, Daniel é
tão lindo quando cala essa boca que mesmo que os créditos estejam
na tela, não quero sair daqui. Não quero acordá-lo.
Sorrio sozinha e levo minha mão até o cabelo dele, então
contorno o lado direito de seu rosto, e sinto sua pele. Macia, combina
com sua respiração serena. Volto os dedos para seu cabelo e faço
cafuné por algum tempo, vendo meu Novato aqui, agora, é como se
o tempo não tivesse passado.
Como se nessa caixa flutuante a centenas de metros do chão,
tudo fosse diferente.
— Não sei por que as pessoas reclamam quando mexem no
cabelo delas, isso é tão bom. — Daniel se vira de frente para mim e
eu mantenho minha mão suspensa no ar. — Por que você parou? —
indaga abrindo os olhos, indignado.
— Eu não estava te fazendo cafuné, tinha algo no seu cabelo e
eu tirei. Para de loucura. — Me levanto, deixando a cabeça dele
desabar.
— Ai, Caroline Pimenta! Isso dói.
— Esse sofá é mais macio que metade das camas que eu dormi
esse ano. Para de show. Vem pra cama. — Me arrependo das
palavras no momento que as digo, porque ele abre a porta do quarto
com o sorriso mais sugestivo do mundo.
— Chamou, Pimentinha?
— Para de ser imbecil. Vou colocar um pijama, está na hora de
deitar.
— Por que? A gente passou a ida inteira acordados.
— Em primeiro lugar você estava dormindo ainda agora. Em
segundo, a gente foi pro Brasil descansar, agora a gente está
voltando para trabalhar e vamos chegar em outro fuso-horário.
— Ah, a troca de fuso é uma desgraça.
— Exatamente. — Jogo a palavra por cima do ombro e entro no
banheiro.
Eu vou morrer se precisar voar com esse homem de novo. Eu
juro que vou.
Encaro a Carol do espelho de olhos semicerrados. Uma
descarada que está conferindo o desodorante e passando um óleo
no corpo. Eu nem lembrava que minha necessaire tinha um óleo
corporal.
Graças ao meu bom Deus a Carol do espelho não escolheu a
roupa de dormir, seria um baby-doll de cetim com a popa da bunda
de fora, com certeza. Entro na minha calça larga e na minha blusa de
flanela e encaro as alças finas dela. Da próxima vez vou colocar um
pijama de casaco.
Não vai ter uma próxima vez, Caroline Pimenta. Digo a mim
mesma e deixo o banheiro.
— O que cê tá fazendo? — Encaro Daniel sentado na cama.
— Indo dormir? — Seus olhos sobem do celular.
— Sua dor na coluna já passou — respondo como se fosse
óbvio enquanto coloco a nécessaire na mochila. — Você não precisa
dormir aí.
— Está com medo de não resistir a mim agora que é solteira?
Pronto. Aceito o desafio e me jogo na cama ao lado dele.
— Claro que não — digo, irritada demais, e ele roça a língua no
lábio inferior, segurando o riso. — Só não lembrava que precisaria
dividir a cama com você.
— Eu entendo que você não consiga resistir, Carol — diz, se
levantando. — Posso dormir na poltrona, sim, ou no sofá se você
preferir que eu fique fora do quarto. — Dá de ombros e cruza os
braços esperando minha resposta.
— Melhore, Daniel. — Reviro os olhos e ele ri. — Já falei que
não quero nada com você. Pode deitar aí... — Me viro a cara para a
parede e Daniel se levanta e abaixa a intensidade da luz, mas volta
para a cama.
Chego para mais perto da parede no passo que ele se senta.
Rolo o feed do Instagram e percebo que não posto nada há um
tempo. Entrei nas redes para apagar absolutamente qualquer
vestígio do Gabriel, mas postar algo mesmo não rolou.
Decido pegar as fotos que tirei do Rio e fazer um #brasildump.
Em seguida vou até o Twitter ver o que está acontecendo no mundo,
é impressionante como tudo o que chega nessa rede com
antecedência. No entanto, nada aconteceu. Nem uma briguinha de
famosos, nem um escândalo político ou rinha na F1TT.
— Você está com sono? — Daniel pergunta se inclinando em
minha direção.
Sua respiração toca a minha nuca e eu travo a mandíbula
impedindo meu corpo de ter qualquer reação, ou ele vai passar a
viagem me infernizando por isso.
— Não. Mas você estava dormindo, então durma.
— Para com isso, Carol. A gente já brigou por causa das suas
malcriações hoje. — Ele debocha e me viro para encará-lo, com
ódio. — Vem cá, quero te mostrar uma coisa. Você pode até usar
numa matéria.
Me sento num pulo.
Daniel me entrega seu celular, com um sorriso no rosto e aperta
o play. Os dois carros da Arrows param no grid de largada e a
câmera foca nos olhos dele e de Jack. Como se ambos estivessem
se cumprimentando antes da largada. As luzes vermelhas se
acendem uma a uma e então, quando eu estou quase dizendo “It’s
lights out and Away we go”, o vídeo rebobina e para na imagem de
Daniel e Jack, nos tempos de Kart.
“Algumas vezes, duas flechas...”, diz a narração. E então a linha
temporal da carreira dos dois começa a se desenhar diante dos
meus olhos. Na montagem é como se eles estivessem lado a lado no
Kart. Então os temos lado a lado num veículo clássico de Fórmula 3,
então de Fórmula 2. Uma sequência de pódios em todos as
categorias passa rápido demais e então a imagem congela.
Rebobinando novamente e mostrando imagens deles com suas
famílias em várias etapas da vida, abraços que parecem de
despedida, choros de tristeza e alegria passam diante dos meus
olhos e percebo sobre o que é o vídeo.
Não é sobre eles, ou melhor, não é apenas sobre eles.
Isso é Fórmula 1.
A infância em cima de karts.
A renúncia.
A distância.
O viver para dirigir e o dirigir para viver.
Eles são pilotos. Desde sempre. Pilotar é o que fazem e, quando
as imagens com os familiares e todo o resto aceleram até o
momento presente, um sorriso tão empolgado quanto o de Daniel
abre em meus lábios. “São o suficiente para conquistar o mundo”. A
narração se encerra com a partida dos dois no presente, e meu
coração surra meu peito com a adrenalina que as imagens me
trouxeram.
— “Algumas vezes, duas flechas são o suficiente para conquistar
o mundo.”. É lindo, Novato.
— Só lindo? — indaga de queixo caído com a ofensa.
— Fez meu coração acelerar e me deixou doida para assistir um
GP. — Tento colocar em palavras a emoção que sinto com esse
esporte desde pequena. — Sobre o que é o vídeo? Quando posso
falar sobre ele?
— Rascunho do rascunho do vídeo de comemoração do
campeonato mundial de equipes. Você pode falar sobre ele se a
gente ganhar — sussurra, erguendo as sobrancelhas.
— Nossa, já? Vocês estão confiantes.
— Precisamos estar. Essas coisas demoram para ficar prontas.
— Daniel desvia o olhar do meu e meu cenho se franze por instinto.
— A gente precisava aprovar algumas imagens e eu...
— Você não gostou? Vi seu pai nos vídeos, achei... Interessante.
Tento demonstrar algum apoio.
— Na verdade, eu queria saber se você se importaria de eu
colocar você aqui — indaga indicando o celular.
— Por quê?
— Porque se não fosse por você, talvez eu nunca teria me
tornado piloto.
— Claro que teria.
— Não da mesma forma. — Daniel tira o celular das minhas
mãos e joga-o em algum lugar da cama, mas mantém os dedos em
volta dos meus e se aproxima. — Você enfrentou meu pai mais
vezes do que eu fui capaz. Esteve lá o tempo todo. Você é o motivo
pelo qual eu estou aqui hoje, Carol — explica segurando minhas
mãos, e acho que nem percebe o quão perto de mim está agora. —
Não ter você nesse vídeo é contar uma mentira pro mundo. Mas eu
vou entender se você não quiser — diz, e sua respiração beija meu
rosto.
Não tem por que não querer. Qualquer pessoa que o acompanhe
sabe que a gente namorou no passado. Mas me surpreende que ele
me queira ali. Talvez cinco anos não seja tanto tempo longe quanto
eu pensei que seria.
— E você tem todo o tempo do mundo para me responder —
Daniel diz, descendo seu rosto sobre o meu e para quando sua testa
descansa na minha me fazendo engolir em seco. — Mas eu preciso
que você pare de sorrir.
— Por quê? — Meu sorriso se expande involuntariamente, como
se quisesse irritá-lo.
— Porque toda vez eu me pergunto se seu sorriso ainda tem o
mesmo gosto de antes — confessa e engole em seco, soltando
minhas mãos. — Ou qual é o gosto que ele tem agora.
Causa da minha morte: todas as falências possíveis em um
coração.
— Dani, eu fico muito feliz que você tenha essa consideração
por mim. — Seguindo algum comando do meu subconsciente, minha
mão sobe até a nuca dele. — E eu quero estar no vídeo de campeã
da sua equipe — sussurro, com os olhos dele nos meus. — Mas eu
realmente preciso que você não durma nessa cama hoje.
— Eu acho que, talvez, mesmo que a gente sofra um pouco —
Sinto seu toque em minha cintura, por cima da costura da calça e
quase choro por não estar com o baby-doll de cetim que me deixaria
sentir seu calor agora — seja melhor eu dormir aqui.
— Por quê? — pergunto enquanto meus dedos entram em seus
cabelos.
— Porque dessa vez, quando você sonhar comigo, disser o meu
nome, e se aninhar nos meus braços, eu não quero ter de fingir que
isso não aconteceu... — sussurra em meus lábios.
— E o que você quer fazer?
99% do meu ser quer me matar agora. Não tem a menor chance
de isso dar certo.
E eu quase verbalizo essas palavras, quase, mas sinto as duas
mãos de Daniel na minha cintura e num piscar de olhos, estou em
cima dele.
Uma perna de cada lado de seu corpo enquanto ele me encara,
me puxando para si e colando nossas testas novamente. Preciso que
esse Novato me diga o que quer fazer ou faça de uma vez antes que
meus joelhos falhem em me equilibrar ou eu derreta em cima dele.
— Para começo de conversa — Daniel sussurra, dançando com
as pontas dos dedos pela lateral do meu corpo, e eu estremeço sob
seu toque. — Não quero fingir que não te ouvi. Em segundo lugar —
Tira a testa da minha e arrasta os lábios pelo meu pescoço, e eu não
consigo mais me equilibrar, me sento sobre suas coxas e recebo
seus lábios no lóbulo da minha orelha —, não quero fingir estar
dormindo e por último — Ele arrasta as mãos até as minhas costas e
me puxa para si, deixando nossos corpos tão próximos que ele
consegue sentir meu coração enquanto inspira em minha pele.
Daniel tira o rosto da curva do meu pescoço e me encara —, não
quero que seja apenas um sonho.
Estou em cima dele, na cama dele a centímetros insignificantes
da boca dele. E tento, tento uma última cartada.
— Parte de mim está dizendo que algo sério é a única coisa que
vale a pena com você, e nós dois sabemos que não posso fazer isso
agora.
— Ótimo. — Ele sussurra nos meus lábios.
— Ótimo? — A indignação em minha voz me trai e ele ri, o riso
que sempre reservou para mim e essas covinhas vão ser a minha
cova.
— Sim, ótimo. — Daniel chega perto dos meus lábios o
suficiente para morder a ponta do meu lábio inferior, e todas as
minhas terminações nervosas reagem. — Porque se só uma parte
está dizendo isso, a gente vai escutar a outra — conclui enfiando as
mãos em meus cabelos, me levando até sua boca e finalmente
colando nossos lábios.
O gemido que solto quando sua língua toca a minha é
vergonhoso, mas ele me entrega um gemido rouco e uma de suas
mãos desce até minha cintura, apertando-a ao mesmo tempo que ele
puxa meu cabelo com a outra, me posicionando como deseja.
Meu Deus, tomara que eu exploda.
Seu toque me acende, os lábios me tiram do prumo e a língua
me deixa doida.
Envolvo meus braços atrás dele, porque qualquer espaço entre
nós agora me agonia. Lembro do sorriso que ele me deu quando nos
reencontramos, de como eu fiquei fraca vendo-o diante de mim e,
enquanto as mãos de Daniel estão em todo lugar pelas minhas
costas, nuca e cabelo, me dou dois tapinhas no ombro me
parabenizando por ter fingido que esse homem não me afetava
quando era comprometida.
Tiro minha boca da sua e desço os lábios pelo seu pescoço. A
última vez que beijei Daniel Harris ele era um adolescente franzino,
agora ele é tão gostoso que eu poderia chorar. Me pressiono contra
seu peitoral enquanto sua língua desliza pela pele nua do meu
ombro e eu preciso parar, mas não consigo.
Então ele para.
— Que saudade que eu tava de você — Dani diz as palavras
com um peso tão intenso na voz, e eu me afasto para olhar em seus
olhos.
— Eu nem sabia que podia ser tão bom beijar alguém —
respondo, finalmente respirando por alguns segundos.
— Esperei 88 dias para fazer isso, sabia? — Ele sorri, me tirando
de cima dele gentilmente e se deitando ao meu lado. — Agora eu
não quero parar tão rápido — diz, e abre os braços, penso e repenso
o que estamos fazendo, mas talvez eu estivesse certa antes.
Nessa caixa flutuante a centenas de metros do chão, tudo é
diferente.
Dessa vez, nosso beijo é mais calmo. A euforia da distância e do
medo não está mais aqui. A vergonha também não. Somos só nós
dois. Não fazendo a menor ideia do que estamos fazendo, mas ainda
assim, muito felizes por termos decidido fazer.
O toque dele em minha cintura, a calma e a devoção com as
quais me beija me leva de volta a um lugar onde amar era bom.
Onde amar era paz. E, principalmente, como ele já disse hoje, a
coisa mais perto que eu já tive de casa.
— Ainda que eu saiba que vou me arrepender disso — digo,
alisando seu peitoral por dentro do pijama —, tudo o que quero na
vida é ter isso para me arrepender amanhã.
— Você vai se arrepender de nós? — Daniel pergunta fingindo
estar ofendido, mas sei que no fundo não é só fingimento.
— Vou me arrepender de mim. — Rio e ele me encara com o
cenho franzido. — De ter cedido sabendo que só poderia fazer isso
uma vez.
Vejo no olhar de Daniel que ele ainda nutria alguma esperança
quanto a isso, mas não posso deixar as emoções nublarem minha
decisão.
— Porém... a gente ainda tem umas algumas horas... — Ele diz,
e se levanta. A princípio não entendo, mas Daniel apaga a luz e volta
para a cama. — E eu ainda não cansei de beijar você. — Ele me
puxa para perto e sobe em cima de mim, pairando a uma distância
segura.
O escuro me deixa um pouco menos passiva e mais corajosa, e
eu o trago para perto, sinto seu corpo se deitar sobre o meu.
— Então me beija, Novato — sussurro no pé do seu ouvido
direito, fechando os olhos. — Me beija como se fosse o nosso último
beijo.
Daniel se aproxima dos meus lábios e seu cheiro, seu toque e
sua pele me envolvem. O beijo derrama em mim todo o seu amor e
por alguns instantes, mesmo que eu não tenha amor para entregar a
ele, eu me lembro da Caroline Pimenta que tinha.
Beijo meu Novato como se o amasse de todo coração. Com
entrega, carinho, paixão, desespero, necessidade e paz. Toco suas
costas como se elas pudessem me proteger do mundo e sorrio no
beijo como se esse fosse o momento mais feliz da minha vida.
Porque talvez, de alguma maneira que ainda não entendo, ele
seja.
Daniel intensifica nosso beijo, seus dedos afundam na pele das
minhas coxas e os meus se perdem em seu cabelo. E isso é tão
bom. Mesmo que nunca tenhamos feito nada semelhante antes, é
como se ele soubesse exatamente o que fazer.
Meu corpo ama esse homem, responde a cada um dos seus
comandos e se desfaz em cada um de seus suspiros ou gemidos e
eu poderia fazer isso dias.
— Como você é gostosa, Caroline Pimenta. — Ele geme em
meus lábios, me fazendo segurar a barra da sua blusa e puxá-la,
passando-a por nós dois.
— Eu poderia, facilmente, lavar roupas aqui para sempre — digo
com um gemido, tocando o taquinho dele, que gargalha e volta a me
beijar.
Mordo seu lábio inferior, tiro minha blusa e dou a ele o espaço
necessário para se livrar da calça do moletom, mas ele não faz isso.
Daniel se mantém em silêncio e imóvel por um momento que parece
interminável e, de repente, beija a minha testa e sai de cima de mim.
— Eu fiz alguma coisa errada? — pergunto confusa e Daniel me
puxa para si, me envolvendo numa conchinha. Mas, eu me viro, me
colocando de frente para ele.
— Claro que não, Pimentinha. Você fez todas as coisas certas.
— O riso em sua voz me faz suspirar aliviada. — A questão é que,
antes de dar mais um passo, acho que é hora de escutar a sua parte
que dizia que algo sério é a única coisa que vale a pena pra gente —
Daniel diz, enquanto passa a mão pelos meus cabelos. — Porque se
dermos um passo como esse, eu não vou conseguir voltar atrás.
As palavras ditas num sussurro arrepiam todos os pelos do meu
corpo.
— Nossa, Daniel. Eu não faria amor com você, pela primeira vez,
numa cama de um avião, com todo o respeito ao seu avião. —
Franzo o cenho com uma leve revolta e sinto quando ele se inclina
para mim e toca meu joelho direito, pedindo passagem.
— Não? — Ele beija meu pescoço e arrasta a mão pela minhas
coxa. —
Porque seu corpo está me dizendo outra coisa.
— Meu corpo não sabe o que diz. — Jogo sua mão para longe
— Você é especial demais para eu fazer isso assim. — As palavras
voam sem controle boca e meu queixo cai com a traição do meu
próprio cérebro.
O Harris vai me infernizar pelo resto da vida. E já começou,
porque ele ri, e alto.
— Ah, é, Pimentinha? — O tom divertido me faz morder o lábio
inferior para não sorrir também. — E como seria a nossa primeira
vez dos sonhos para você? — Daniel pergunta rente à minha boca,
com a mão dançando no cós da minha calça e eu engulo em seco,
mas não respondo. 
Apenas me viro de costas e me aninho a ele.
— Seria segura. — Pego sua mão que está ao lado do meu
ombro e aperto seu abraço em volta do meu corpo. — E não é só de
camisinha que estou falando, Harris — murmuro irritada ao ouvir sua
boca abrindo atrás de mim, e Daniel gargalha em meus cabelos.
— Você sabe que eu posso te oferecer segurança… — ele
responde.
Mas nós dois temos consciência de que eu não conseguiria me
comprometer agora.
— Boa noite, Novato — Encerro o assunto com um beijo em sua
mão.
— Boa noite, Pimentinha.
Fecho meus olhos com um sorriso no rosto e, pelo menos por
hoje, me permito estar no abraço de alguém que gosta de mim de
verdade e, se eu for honesta, alguém que eu também gosto.
Apesar das coisas terem tudo para ficar estranhas agora, eu não
me arrependo de ter beijado o Harris.

O arrependimento de ter beijado Daniel Harris bate no instante


que fecho a porta do meu quarto de hotel em Zandvoort. No que será
que eu estava pensando?
Planejei minhas férias meticulosamente no segundo que
consegui me recuperar da partida de Gabriel, a última coisa que eu
precisava era um complicador desse tamanho. Como se não tivesse
como piorar, o beijei novamente quando acordamos, e no café, e
antes de descermos do avião e até agora, quando ele me deixou
aqui embaixo.
O lado bom, se é que há um lado bom em tudo isso, é que
Daniel não vai estar no Brasil pelas próximas três semanas. Se eu
tivesse de vê-lo, ou de estar no mesmo país que ele, não conseguiria
não passar o tempo inteiro pensando em como beijá-lo é ainda
melhor agora do que antes.
Porém, nós dois sabemos que isso não vai mais acontecer.
Porque ainda que meu discurso de não me envolver seja lindo, no
segundo que a boca desse homem tocou a minha, foi tudo por água
abaixo.
Respirando fundo, passo pela mesa com uma cadeira que fica
quase atrás da porta do minúsculo quarto e observo a janela. Minha
vista é a de outras casas do pequeno bairro. O espaço entre a janela
e a cama é de um passo e o criado mudo à direita é tão pequeno que
mal comportaria um livro de cabeceira. Respiro fundo e dou meu
único passo até a cama. Graças a Deus o colchão é confortável.
Uma boa cama num cubículo sem vista. É isso o que você ganha
quando escolhe uma pensão a cinco minutos de carro do circuito.
Enquanto tento me decidir se tomo um banho ou deito e grito no
travesseiro com minha vergonha, pego o celular para resolver a
última pendência das minhas férias.
Eu:
Oi, tudo bom? Vocês podem me dar uma ajuda?
Mando no meu grupo com meu pais e encaro a tela à espera da
resposta.
Capítulo 30
Ou: Você será a parte mais triste de mim, uma parte de mim que nunca será minha

É obvio, esta noite vai ser a mais solitária. Você ainda é o oxigênio que eu respiro,

vejo seu rosto quando fecho meus olhos é torturante, esta noite vai ser a mais solitária.

THE LONELIEST - Måneskin

Daniel
Com os braços descansando em torno da jacuzzi e os óculos
escuros no rosto, mesmo sem sol, Jack me conta animado sobre os
dias que teve com a família enquanto relaxamos os músculos.
Meneio a cabeça conforme seu tom de voz muda ou feições exigem,
mas meus pensamentos voam. Estou feliz por ele, no entanto, eu
queria estar na jacuzzi da cobertura do hotel observando a praia de
Zandvoort com Caroline Pimenta, não com meu companheiro de
equipe.
Jack me faz perguntas sobre o Brasil e sou monossilábico, dessa
vez, muito mais pelo assunto – meu pai –, do que pelo fato de a
minha cabeça girar em torno do cheiro, do beijo, do sorriso, do gosto,
e da maciez da pele de Caroline.
— Daniel, você está me ouvindo? — Jack abaixa os óculos de
sol e me encara por cima deles. Percebo assim que meu
companheiro não está se contentando com meus “uhuns”.
Faço um breve resumo dos meus dias no Brasil omitindo o final
deles, prefiro lembrar de quando achei que as coisas estavam
diferentes.
— E sua garota? — indaga com a boca curvada num sorriso
sonso, como se só estivesse esperando uma deixa.
— Ela está bem. E ela não é minha garota. — As palavras
arranham minha garganta, mas essa é a verdade no fim das contas.
Não é só por causa do que aconteceu ontem e hoje que as coisas
mudaram. — Mas, e a Miyeko, o que tá rolando? E não adiante dizer
“nada” porque eu não nasci ontem.
— Nada, Daniel. — Ele empurra as bolhas em minha direção. —
Pode ter rolado algo durante a viagem, mas não dá, a gente é
diferente. — Jack leva as mãos até os cabelos, passando-as pelo
cabelo emaranhado e depois as apoia pela borda da jacuzzi.
— Na real, eu nunca entendi a necessidade desse documentário.
— Cruzo minhas pernas. — A Lindsay não explicou e a gente nunca
falou sobre ele, é algo promocional?
— Não. É mais sobre o passado.
— Juan? — menciono seu maior rival e antigo companheiro de
equipe e ouço Jack concordar.
— Não era uma necessidade, eu só... quis fazer. — diz e para,
como se pensasse no que falar depois. — Eu e o Juan éramos
próximos, amigos. Só que meu crescimento dentro da equipe
começou a criar animosidades. — Uma pausa que dura duas
profundas respirações invade meu ouvido. — Nós sabíamos onde as
coisas podiam acabar, por isso, tínhamos um acordo: dentro da pista
tudo era válido, fora da pista a gente nem falava de corrida.
— E o que aconteceu?
— O que você acha? — Jack pergunta como se eu devesse
saber.
— Nem tudo era tão válido assim?
— Jogaram o código de inverter posição no meu rádio e eu não
acatei. — Ele encolhe os ombros. — Depois da corrida, ele me
confrontou e eu falei a verdade.
— Que se ele estivesse melhor teria te ultrapassado sem
precisar de ordem de equipe — deduzo e Jack confirma.
— Na última corrida da temporada, nós dois ainda tínhamos
chances, então veio a batida e...
— Juan disse para todo mundo que você o empurrou e causou o
acidente que tirou ele da pista — completo, porque lembro dessa
entrevista.
Depois dela, um terço das pessoas odiava Jack e queria que seu
título fosse anulado; outro terço o amava por ter ganhado o
campeonato de forma emocionante na última corrida e o terço
restante o adorava porque ele tinha colocado o babaca do badboy
espanhol no lugar dele.
— Exatamente. E por mais que as pessoas gostem da minha
imagem, porque todo mundo abaixa a cabeça para um bicampeão,
sei que não gostam de quem eu sou, por causa disso, porque
acreditam que quase matei meu companheiro de equipe por um
título.
— Então isso tudo é pra...
— Me tornar humano de novo diante das pessoas — Jack diz,
seguido de um longo suspiro.
Cacete.
— Mas vamos parar de falar da baixinha — Jack diz e o encaro
confuso, não estávamos falando de Miyeko, pelo menos eu não
estava. — E aí, o que espera da corrida de hoje?
— Terminar pontuando — respondo, como se não fosse óbvio.
— Jeff já disse que tua garota tá voando, Daniel. — Jack estala a
língua como se eu estivesse exagerando.
— Enfim. Seria bom um pódio pelo menos. — Escorrego na
madeira, deixando meu corpo submerso até o pescoço. — Pra
recuperar a confiança.
— Se você tiver na minha frente, pode até ganhar a corrida —
diz, como um favor, e eu rio.
— Jack, se eu tiver na sua frente, a não ser que seja a última
corrida do ano e você precise dos pontos para ganhar o campeonato,
eu não vou inverter posição com você.
Minhas palavras o fazem olhar por cima dos óculos novamente.
— O que aconteceu com o menino de ouro preocupado com o
próprio contrato?
— Quem me disse que ninguém vai me demitir foi você. — Jogo
no ar erguendo as mãos em rendição.
— Combinado, então. — Jack me estende a mão e eu a aperto.
Achando engraçado que tenhamos tido essa conversa, mas
também aliviado.
A última coisa que eu quero é que um de nós seja o próximo
Juan.

Os treinos de sexta-feira mostram que o carro está melhor e,


apesar do receio que fica depois de um acidente, não preciso de
mais do que três minutos para saber que me encaixo de maneira
confortável dentro dele.
No classificatório de sábado, mantenho meu foco em largar nas
duas primeiras filas. Fazendo voltas infinitas, mas cada vez melhores
e, quando a lista final sai e fica confirmado que vou largar de terceiro,
um peso sai dos meus ombros.
O domingo chega, trazendo o fim da primeira parte da
temporada rápido demais. De pé na pista, à frente do meu carro,
mantenho o foco no coach à minha frente.
Uma das maiores preocupações da equipe com o acidente é o
meu reflexo. Estamos fazendo exercícios para mantê-los na linha
desde que voltei. Poucos minutos antes da largada, não poderia ser
diferente. Ainda que tenham, no mínimo, cem pessoas nessa pista –
entre engenheiros, mecânicos, coaches, pilotos e jornalistas – a
única coisa que vejo são as bolinhas de tênis nas mãos ao lado da
minha cabeça.
O preparador as solta para que eu pegue no ar. Primeiro à
direita, depois à esquerda, às vezes na altura dos meus ombros, às
vezes na altura da minha cintura, e o único lugar para o qual posso
olhar diretamente são seus olhos.
Bem como no resto da semana, minha visão periférica não falha.
Nem uma vez.
— Acho que é isso, garoto — diz, abaixando as mãos. — Bom
trabalho.
Ergo o cotovelo para cumprimentá-lo e, assim que ele me dá
espaço, abaixo ao lado do meu carro e dou dois tapinhas na roda
direita.
— Vamos lá, garoto, só mais uma antes de você descansar. —
Me levanto alongando o pescoço e soltando os músculos das pernas
com alguns pulinhos.
Caroline passa bem atrás de mim com Miyeko. Elas estão ao
vivo, ou gravando algo, mas imploro minha mente para manter o foco
e pego o capacete das mãos de um mecânico.
Coloco-o na cabeça, respiro fundo duas ou três vezes e pulo
dentro do carro.
Pelo menos aqui, somos só eu e ele.
Minutos ainda se passam até que os mecânicos tirem a capa dos
pneus e deixem a pista. Mas quando fazemos a volta de
apresentação, o mundo já virou um borrão silencioso para mim.
— Daniel, checagem de rádio — Phillip diz assim que paro o
carro na marca do P3 e me preparo para a largada oficial.
— Rádio checado.
— Último carro no grid — ele me avisa e eu respiro fundo pela
última vez antes de as luzes vermelhas se acenderem.
Quando elas se apagam, me acoplo ao assento do carro num
encaixe tão perfeito que na quarta curva da primeira volta, faço a
ultrapassagem – na frente da arquibancada da torcida da minha
equipe – e esse é o único barulho externo que me permito ouvir.
Dirigir não parece mais tão perturbador ou cheio de
complicações. É só, natural.
O vento chicoteia a viseira do meu capacete, os vultos passam
ao meu lado e respiro lentamente. Mantenho o foco em me afastar
de Juan cada vez mais, para não correr o risco de ser ultrapassado e
me permito viver uma corrida novamente.
Acelero mais nas retas porque o carro está melhor nelas,
desacelero apenas o suficiente nas curvas para não derrapar ou
escapar da pista, passo pelos pontos críticos em Força G deixo os
músculos do corpo inteiro rígidos o suficiente para não sucumbir a
ela e conduzo meu carro como se mal tocássemos o chão.
Zandvoort não é um circuito ruim ou complexo, mas exige de nós
pelo número de voltas. Mesmo que todas as provas tenham a
mesma quilometragem, fazer o circuito 72 vezes requer uma mente
muito mais limpa do que a que eu tenho agora.
Contundo, metade da prova passa sem grandes percalços,
acidentes ou abandonos. Minha direção está boa e meu ritmo
irretocável, tanto que Juan ficou para trás e eu sigo Jack de perto.
Portanto quando ouço a voz de Phillip no rádio, já sei que é sobre
meu pitstop que ele quer falar.
Giro o volante da entrada dos boxes pela segunda vez do dia na
volta 51. Escolhemos correr as últimas 21 voltas com pneus médios,
eles vão manter meu ritmo e chegar ao final da prova sem se
desgastar demais.
Volto para a pista na mesma posição que saí dela, segundo
lugar. O sol que brilha intensamente acima de mim é minha
esperança para essa pista queimar esses pneus o suficiente para
que ele tenha mais aderência e, consequentemente, mais
velocidade.
— Daniel — Phillip me chama na volta 59, no tom de quem
espera uma resposta.
— Ouvindo...
— A previsão é de chuva. Caso se confirme, você é o primeiro a
vir para o box colocar os intermediários — ele comunica em meu
ouvido e não respondo, não preciso.
Devo parar primeiro para tentar conter o pelotão quando Jack
parar em seguida. Como um bom segundo piloto, preciso garantir a
vitória dele.
O céu escurece tão rápido que mal tenho tempo de lamentar.
Porque as primeiras gotas começam a cair.
— Daniel, dez voltas para o fim da corrida. Vamos tentar segurar
com esses pneus. Mas, se a chuva apertar, vai ser impossível não
trocar.
— Ok — respondo, rezando para que a chuva espere pelo
menos alguns segundos para cair.
Dez voltas.
Menos de quinze minutos me separam de um pódio.
Parar agora talvez não seja o ideal para ninguém.
Três voltas depois, o céu desaba.
— Daniel, box. Daniel, box.
Poucos metros me separam da entrada, mas quando a avisto,
não giro o volante para a me dirigir aos boxes. Meus pneus estão
inteiros, eles aguentam sete voltas na chuva.
Com o chão ainda quente por causa do sol e da temperatura dos
pneus correndo em alta velocidade, não tem a menor chance de ser
melhor trocar por pneus mais apropriados para a chuva agora,
faltando sete voltas para o final.
Contudo, vejo quando, na volta seguinte, Jack entra.
— O Juan parou? — pergunto a Phillip pelo rádio.
Alguns segundos se passam até que ele me responda.
— Negativo — ele responde com a voz arrastada.
— Por que o Jack parou?
A resposta não vem.
Penso em perguntar novamente, mas a voz de Richard invade
meu ouvido.
— Os pneus dele estavam derrapando, macios com vinte voltas.
Pneus macios dão muito mais velocidade, mas gastam muito
mais rápido. Faltando seis voltas para o fim, os de Jack jamais se
sustentariam numa pista minimamente molhada.
— Daniel, acelera. — Phillip diz como um lamento e entendo:
A previsão de Jack não é voltar para a liderança, portanto, hoje,
eu me torno a esperança de pontos para o campeonato de
construtores. E esse é um fardo que estou muito confortável em
carregar.
Acelero meu carro como se pudesse empurrá-lo com a força dos
meus braços.
Firmo meu quadril e meu pescoço no lugar como se estivesse
correndo no olho de um furacão e acelero.
— Daniel, duas voltas para o fim. Juan está a três segundos de
você. Pode segurar o ritmo e administrar os pneus. — A voz paciente
e preocupada de Phillip chega ao meu ouvido, mas é uma coisa
distante.
A única coisa na qual consigo pensar agora é estou há menos de
três minutos de uma vitória e o sorriso de Caroline Pimenta faz o
canto esquerdo da minha boca se curvar.
Você é o meu piloto favorito.
A primeira e última vez que ganhei um GP, foi a primeira vez que
a vi novamente. Cruzando a linha de chegada em primeiro lugar
depois do nosso beijo, entendo que Caroline Pimenta é meu amuleto
da sorte.
— P1, Daniel. Você acaba de vencer o GP de Zandvoort —
Jeffrey vibra em meus ouvidos. — P1.
— Onde está o Jack?
— Terceiro.
Respiro aliviado, dos males o menor.

As entrevistas pós-corrida de um piloto campeão não são as


mais simples. Não é algo com o que eu esteja acostumado, então
até esqueci da sensação de ser sufocado por dezenas de microfones
e perguntas.
Carol estava lá, mas não consegui dar a mínima atenção, ou
melhor, não pude ignorar os outros repórteres como fiz em
Silverstone. Mesmo que a gente... Eu nem sei o que aconteceu com
a gente. Ainda assim, não queria sair de férias oficialmente sem vê-
la.
Por isso, sair da minha sala, a caminho da social que está
acontecendo no terraço do motorhome, e dar de cara com ela é o
segundo melhor momento do meu dia.
— Olá, repórter perdida... — digo, porque Carol ainda está
usando a blusa com o logo da empresa e o jeans básico que montam
seu uniforme.
— Na verdade, vim procurar a Miyeko — diz, dando dois passos
para longe de mim.
— Ela veio filmar o Jack puto com a corrida de hoje?
— Veio saber como ele reage a uma “adversidade” — ela diz,
fazendo aspas com as mãos.
— E você, como está?
— Doida para ir embora. Meu voo sai em... — Ela checa o
celular — cinco horas, e preciso resolver algumas coisas com a
minha garota antes da viagem.
— Você voa a noite toda, então?
— Sim, três voos longos em quinze dias, vou começar a me
acostumar. — Brinca colocando as mãos nos bolsos traseiros. —
Você viaja hoje?
— Não, só amanhã.
— Boas férias, Novato. — Ela está se esforçando para ser
educada. Tentando fingir que não tem um oceano revolto e
irreprimível entre nós dois agora. — Vou lá no terraço buscar a
Miyeko, você vem? — indica a porta de vidro no fim do espaço amplo
com a cabeça e eu expiro com mais força do que gostaria.
— Carol, eu... — Tento tocar seu braço, mas ela esquiva.
— Dani, não... — Engole o resto da frase enquanto dois garçons
passam por nós.
— Eu preciso...
— Eu sei do que você precisa, Novato — diz, mirando o chão e
balançando o pé direito lentamente. — E nós dois sabemos que não
posso te oferecer nada disso.
Levo meus dedos até seu queixo, erguendo seu rosto para mim
e seu olhar perdido só me traz a certeza de que deixá-la ir não é o
certo, de que me afastar não é o que eu deveria fazer.
Seguro sua mão e, quando ela não resiste, entro em minha sala,
trazendo-a junto.
— Por que você precisa ser tão turrona?
— O que você quer, Daniel? — Minha Pimentinha praticamente
grita e se joga na porta atrás de si.
— Você — respondo com a mão em direção a sua nuca, e
Caroline umidifica os lábios enquanto me aproximo.
— A gente não pode fazer isso. — Ela vira o rosto. — Não dá,
Dani. Eu não posso oferecer o que você precisa agora.
— Não estou pedindo nada além de você, Carol. Nada. —
Descanso a testa na dela.
— Eu não quero me oferecer a você toda destruída. — A frase
sai num sussurro.
Apoio minhas mãos em sua cintura e espero que seus olhos
encontrem os meus.
— Precisa parar de achar que só o que está inteiro merece ser
amado, Caroline Pimenta — digo e o brilho do amor cruza seus
olhos, mas se apaga, rápido demais. — Você passar por aquela
porta e atravessar o atlântico não vai fazer com que eu te ame
menos.
— Talvez você esteja certo, mas...
— Por que precisa ter um “mas”?
— Porque eu não estou machucada. — Carol pousa as mãos
sobre as minhas, ainda em sua cintura. — Não estou “na bad” de
uma maneira simples. — O sorriso que ela força não combina em
nada com suas palavras. — Eu sou... como aquela mesa da sua mãe
que a gente quebrou. — A confusão nubla meus olhos, poucos
centímetros à frente dos dela, e Carol respira fundo antes de
continuar. — Uma enorme placa de vidro temperado totalmente
despedaçada. — Ela tira minhas mãos de sua cintura e seu olhar
vazio me afasta.
— Eu não me importaria de andar sobre o vidro por você.
— Dani, eu só não consigo.
— Eu entendo — digo, com dois passos para trás. — Mas eu
não posso estar num relacionamento sem estar num relacionamento.
— O que isso quer dizer?
— Que sou seu amigo, que quero te ligar nas férias, trocar
mensagens, sair com você e ser alguém com quem você possa
contar, mas não posso te esperar para sempre.
— Eu não sou assim, Novato. — Ela balança a cabeça
negativamente com o rosto retorcido em dor. — Não vou voltar pra
sua vida meia década depois e pedir que você me espere.
— Ótimo. Porque não posso fazer isso sozinho. — Dou de
ombros, colocando as mãos nos bolsos.
Como conversamos naquele avião, tudo o que eu tenho feito
desde o dia que a reencontrei é tentar. Só que existe uma diferença
abismal entre tentar e dar murro em ponta de faca.
— Claro — ela diz, tentando soar descontraída, mas os olhos
correm por todo o cômodo apenas para não encontrar os meus. —
Você pode avisar a Myieko que eu preciso de um favor? — diz com
os olhos marejados e movimentos afobados. — Acho melhor eu...

— Tudo bem, Carol. Pode ir. Eu falo com ela.


— Se ela não quiser ir embora agora, pede para ela me ligar ao
menos ou me atender? — Minha Pimentinha pede, abrindo a porta.
Assinto vendo-a sair do meu quarto.
E da minha vida.
Mais uma vez.
E talvez seja isso, talvez minha amizade seja a única coisa que
ela ainda pode ter.
Capítulo 31
Ou: Eu vou ser sua melhor amiga e você vai ser meu namorado, sim, você pode segurar minha mão se você quiser, porque eu quero segurar a sua

também. (...) Mas é hora de eu ir para casa, está ficando tarde e escuro lá fora, eu preciso estar comigo mesma e me centrar clareza, paz, serenidade

Clareza, paz, serenidade.

Big Girls Don't Cry - Fergie

Carol
Saio do banheiro usando uma camisa de meia manga e um
jeans mom, look escolhido para enfrentar a viagem até o Brasil. Com
o cabelo ainda enrolado em uma toalha, desbloqueio a tela para
checar o horário. Faltam quatro horas para o meu voo e Miyeko não
apareceu, mas deu sinal de vida.
Miy: Oi, Carol. Estou agarrada com algumas gravações, precisa
de mim?
Leio novamente a mensagem recebida quando estava no
caminho, e agora ela vem acompanhada de mais duas:
Miy: Sério, aconteceu alguma coisa ou você foi me procurar só
porque ficou com saudades? Eu posso dar uma fugida aqui.
Miy: O Harris me disse que você queria falar comigo, era mentira
ou você resolveu me dar tratamento de gelo?
Eu: Relaxa, só queria te entregar um casaco de inverno e um
sobretudo para você deixar em Paris para mim antes de ir pro Brasil.
Me sento na cama ao lado dos dois e aperto o material  do
casaco, fofo e quente demais para a primavera carioca.
Eu: Vou direto pro Rio e não tem a menor condição de levar ele.
Envio com emojis de carinhas pidonas e me levanto, tirando a
toalha dos fios quase secos do meu cabelo. A estendo no banheiro e
passo nos fios uma quantidade de gelatina capilar boa o bastante
para aguentar uma viagem.
Me sento novamente para colocar as meias e o calçado e minha
tela volta a brilhar.
Miy: Não quero imaginar minha mala com um sobretudo a mais,
e nem a minha imagem vestindo o seu casaco por cima do meu pra
um voo de 3h, sabia?
Gargalho com a mensagem porque pensei exatamente nisso
quando tive a ideia de mandar essas coisas por ela.
Eu: Você sabe que só estou te pedindo isso porque você me
ama muito.
Miy: E eu só estou aceitando porque você me assustou não
respondendo, então dos males o menor.
Miy: Mas não sei que horas vou sair daqui, aparentemente
preciso gravar um cara que ganha a vida dirigindo enquanto ele está
bêbado.
Rio porque é como se eu pudesse ver seu rosto retorcido em
uma raiva fingida.
Miy: Mas deixa na recepção, eu pego com eles.
Eu: Perfeito, você está me salvando.
Miy: Agora, eu estou foragida no banheiro e quero saber...
Miy: Por que veio até onde eu estava e não falou comigo?
Eu: Dei de cara com o Harris e foi... Estranho.
Eu: Não sei o que acontece aqui dentro quando estou perto dele.
Miy: Seu coração reage como se você gostasse dele.
Miy: Porque você gosta dele. Espero ter ajudado.
Eu: Eu não gosto dele, Miy.
Eu: Gosto do fato de que ele gosta de mim.
Um meio sorriso triste se abre com o gosto amargo das palavras
enquanto me lembro do olhar distante de Daniel naquela sala.
Eu: Ou gostava, sei lá.
Miy: GOSTAVA? QUÊ?
Eu: O Dani me pediu uma chance, eu disse que não podia fazer
isso agora e ele meio que deixou claro que não vai passar a vida me
esperando.
Menos de dois segundos depois, meu telefone toca.
— Por que exatamente você não pode ficar com o cara de quem
gosta, mesmo? — Miyeko pergunta como se eu tivesse dito algum
absurdo.
— Porque terminei um relacionamento há dias? — Entrego a
resposta em uma pergunta.
— Ah... aí você vai abrir mão de ficar com alguém de quem você
gosta e que gosta de você porque quer provar para si mesma que...?
— Não quero provar nada pra ninguém, Miyeko. Só quero...
Ficar sozinha.
— Mesmo? Isso não é você pulando do barco por medo de um
capitão ser igual ao outro?
— O Harris não é nada como o Gabriel, não tenho essa dúvida.
— Respiro fundo odiando o fato de que preciso dizer as palavras não
apenas para que Miyeko saiba meus motivos, mas para que eu me
lembre deles. — Eu era uma Caroline antes do Harris, então o
conheci e me tornei outra pessoa. Depois eu quebrei, a gente
terminou, e quando conheci o Gabriel, me moldei a ele. — Suspiro,
puxando a meia pelo pé esquerdo enquanto equilibro o celular entre
o ombro e o ouvido. — Agora, eu tô sozinha e perto do Daniel e não
consigo ser só eu. É como se eu fosse compelida a ser a
Pimentinha!
— E isso é ruim exatamente por quê?
— Porque não posso ser definida pelo cara com quem eu
namoro! — digo, como se fosse óbvio, porque para mim é. — Eu
preciso ser uma pessoa e talvez eu não saiba quem sou — confesso,
desviando o olhar para a janela de vidro embaçado. Mesmo que ela
não esteja aqui, a vergonha me atinge.
— Caroline, meu anjo, você realmente precisa colocar a terapia
em dia. Literalmente, todo mundo é definido pelas experiências que
viveu.
— Talvez você esteja certa. Mas eu preciso estar sozinha, a
última coisa que quero com o Harris é um relacionamento baseado
em dependência emocional como eu tinha com Gabriel. — Enrolo um
dos cachos soltos com a ponta dos dedos antes de dar a ela a
grande notícia. — E eu já tenho terapia marcada pra essa semana.
— Deus é bom o tempo todo, né? — Ouço a respiração de
Miyeko por alguns segundos antes que ela volte a falar. — Ainda
acho que você está perdendo uma oportunidade linda de se
recuperar das surras da vida do lado de um cara que gosta de você.
Pelo menos foi o que eu entendi quando você passou duas horas
falando sobre o momento que vocês tiveram no avião. — Se apressa
em dizer. — Mas entendo. Apesar de não concordar, eu entendo.
Agora preciso correr, a gente vai se falando?
— Vamos, sim. Qualquer coisa me grita.
— Queria que a gente pudesse voar juntas, vou sentir sua falta.
— Claro que vai, não tem o Harris para te dar uns pegas dessa
vez.
— Miyeko, vá gravar o seu piloto — digo com a voz mais grossa
que o normal, e ela gargalha.
— Juízo, mas não muito.

Miyeko estava certa, viajar sem o Harris não é a coisa mais legal
do mundo. Claro que não ter um jatinho particular com mil coisas
para fazer doeria, mas perceber que nenhum dos álbuns do catálogo
me interessa e que não tem nada que eu realmente queira fazer me
deprime ainda mais.
Eu sinto falta dele. Não o tempo todo, mas aqui, agora... Eu
queria que as gargalhadas ou gemidos de dor de Daniel
atrapalhassem meu voo, não as pessoas cochichando e crianças
chorando.
Observo meu copo de vinho tinto pela metade em cima da
mesinha retrátil, meu olhar vagueia dele para alguma das quatro
horas do Snydercut à minha frente. Eu amo esse filme, sei que amo,
mas nem o Superman de uniforme preto vai me animar dessa vez.
Desligando a tela, engulo a metade que ainda resta do vinho e
coloco meu protetor de olhos.
Depois desse vinho de quinta, não vai demorar para o sono
chegar.

O caminho do Galeão até Santa Teresa demora mais do que eu


achei possível, mas observando meu Uber ir embora enquanto um
bondinho faz o trajeto oposto, respiro o ar puro da paisagem que me
cerca aliviada. Aqui está o meu refúgio, no fim das contas. É calmo
ao mesmo tempo que boêmio e sustenta a classe de um bairro
antigo e artístico com todos os casarões, museus e os mais diversos
restaurantes de comidas típicas.
Avanço em direção à entrada da casa na qual vou me hospedar
com as rodinhas trepidando levemente no paralelepípedo. Os
trâmites com a proprietária são rápidos: por opção minha, vou
conhecer a casa sem seu tour. Assim que a mulher de meia idade
passa pelo pequeno portão de grades enferrujado nas laterais, deixo
a mala na varandinha e entro.
A primeira coisa que faço é abrir as cortinas da pequena janela
que fica ao lado da divisória entre a sala e a cozinha. Ela tem uma
única banqueta e eu me apaixonei pela casa por causa dessa foto no
anúncio: uma banqueta, a divisória larga e a paisagem arbórea, que
mais parece um mar verde, ao fundo. Soube naquele exato momento
que comeria aqui em todas as refeições e observaria o pôr do sol
sempre que possível.
Na sala, o contraste entre arquitetura histórica da casa com uma
TV de sessenta polegadas e uma assistente eletrônica grita, mas de
alguma forma ainda faz sentido. No último cômodo, uma suíte, as
paredes de tijolo de barro queimado, o espelho com moldura de
madeira e a penteadeira rústica ao lado de uma cama com cabeceira
entalhada fazem com que o ar-condicionado seja a única coisa
revelando que o quarto pertence a esse século.
Sofia (mãe): Chegou bem?
Carlos (pai): Manda fotos.
Vejo as mensagens depois de buscar a mala e me sentar para
tomar um copo d’água.
Eu: Cheguei bem, e a casa é um amor. Pequeninha, fofinha,
lindinha...
Eu: Vou mandar foto depois do banho, estou acabada.
Sofia (mãe): Quando você vem almoçar com a gente?
Carlos (pai): Ou jantar, eu posso te levar em casa depois.
Eu: Semana que vem, essa semana preciso colocar a vida em
ordem.
Carlos (pai): Você não estava de férias?
Eu: As equipes estão de férias, mas os bastidores continuam a
todo vapor.
Sofia (mãe): Ótimo, quando quiser vir é só avisar. Agora eu vou
correr aqui. Bjs, mamãe te ama.
Eu: Eu também amo vocês. Tchau.
Envio a mensagem antes mesmo que o “te amo” de Carlos
chegue e, já de banho tomado e pijama colocado, decido me dar
folga de tudo e todos.
Pelo menos por uns dias.

Se ontem o jet lag e o cansaço me garantiram o pleno direito de


só sair de casa para jantar no Bar do Gomes ou “Armazém São
Tiago” – um restaurante com comidinhas magnificas a um preço
superfaturado pois estamos numa área turística –  nessa manhã, as
coisas são diferentes e, desde o segundo que acordo, meu coração
já está acelerado.
Me sento na banqueta com um copo d’água em mãos e
agradeço à Caroline do passado por ter feito esse agendamento às
dez da manhã. A ideia de passar horas acordada esperando por
essa ligação me fecha a garganta. Desvio o olhar da tela do
notebook angustiada, ansiosa e nervosa, tudo ao mesmo tempo.
Nem minha vista perfeita faz minhas pernas pararem de tremer.
Meu dedo está a dois centímetros de apertar “ingressar na
chamada” e por alguns segundos meu olhar desvia para a paisagem
na janela mais uma vez, com certa expectativa. Como se estivesse
esperando algo, como se houvesse alguma chance de eu fugir disso,
contudo uma mensagem de Natasha, a psicóloga que me espera do
outro lado da tela, chega no meu celular e percebo que é isso.
Fim da linha. Preciso apertar esse botão.
Capítulo 32
Você me diz que seus pais não o entendem, mas você não entende seus pais, você culpa seus pais por tudo, isso é um absurdo. São crianças como você.

O que você vai ser quando você crescer?

Pais e Filhos – Legião Urbana

Daniel
— Você está enorme! — É a primeira coisa que minha mãe diz
quando passo pela porta da casa e vou em sua direção.
Pulo o último degrau que divide o pequeno hall da sala e ela se
levanta do sofá.
— Eu estou do mesmo tamanho, mãe..
A abraço, tirando seu corpo magro do chão. Em seguida, me
afasto para observar seu rosto. As linhas de expressão no canto dos
olhos, o sorriso de felicidade que provoca covinhas e seus olhos
verdes familiares me fazem abraçá-la novamente.
— Estava morrendo de saudades — digo inspirando entre as
curvas de seus cabelos.
— Eu também, meu amor. Como você está? — pergunta, tirando
a mochila do meu ombro e indica para que eu me sente enquanto a
coloca na lateral do sofá e se joga ao meu lado.
— Um pouco cansado, mas bem. — Recebo-a em meu abraço.
— Óbvio que está bem, voltou de um acidente ganhando a prova
— diz, com dois tapinhas no meu rosto. — Você já se recuperou
completamente ou ainda...?
— 100% novo, Miss Claire. — Acalmo o coração dela mesmo
que, às vezes, a lombar ainda incomode um pouco.
— Tá, mas me conta, como você está? Desde que foi para o
Brasil que a gente só se fala por mensagem. — Mesmo sem querer,
ela me repreende. Ergo os braços, me desculpando. Sei que ela
adora as ligações.
— Posso te dar a versão resumida aqui ou a versão completa
com chá e biscoitos na ilha da cozinha.
— A versão completa será. — Se levanta prontamente, com um
risinho de canto.
A sigo atravessando a sala em direção ao pequeno corredor, que
nos leva para o andar de cima se pegarmos a escada e a cozinha ao
seguirmos reto. Puxo uma das oito banquetas da longa ilha de
mármore, apoio meus cotovelos no topo frio e, enquanto minha mãe
esquenta água na chaleira elétrica, eu começo a falar sobre os
últimos acontecimentos.
Conto primeiro sobre a comida de rabo que o Richard me deu;
minha insegurança com meu assento na equipe; a forma como
Caroline Pimenta surgir do nada me fez sentir coisas que eu não
estava preparado ou não queria sentir; explico um pouco minha
relação com o Jack, porque para Miss Claire é impossível que nós
sejamos oponentes e amigos ao mesmo tempo; falo sobre os dias
com o papai no Brasil e que a Carol viajou comigo, mas faço apenas
a menção, não falo sobre o beijo ou todo o resto. Não faria sentido
remoer algo que não deu em nada.
— Você realmente acha que seu pai te odeia a esse ponto? De
ser legal apenas para te manipular? — Ela se senta com os olhos
semicerrados nos meus.
— Não é o que eu acho, mãe. Foi o que eu vivi — explico,
jogando um biscoito de manteiga na boca.
— Não passou pela sua cabeça, nem por um segundo, que ele
pode te amar e querer que você cuide da empresa e não saber como
conversar com você sobre isso? — A forma como ela pronuncia as
palavras quase faz com que elas tenham sentido.
Me calo por alguns instantes observando o armário que ocupa
toda a parede superior atrás dela e as duas bocas de indução
embaixo dele. Giro a banqueta para a direita e mantenho os olhos
sobre o verde do gramado e a mesa de refeições externas, vazia.
Como minha relação recente com meu pai.
— A gente tinha um diálogo ótimo até ele começar a impor
coisas, então, não. Nunca pensei dessa forma. Pra mim, é bem
claro, ele só lida bem com o que consegue controlar. — Tento não
soar rude, mas não quero continuar nesse assunto. — E então, o
que vamos fazer nessas férias?
— O que você quiser. — Ela beberica o chá. — Temos duas
semanas inteiras para aproveitar.
Paro meus olhos entre o prato de biscoitos e o olhar dela. Tenho
certeza de que Miss Claire me mandou uma mensagem
comemorando duas semanas de férias e uma on-call[7], e não
tínhamos a intenção de passar nenhuma delas em Londres.
— Duas?

É jeito de falar. — Ela força um sorriso. — Na última semana
o seu pai vai ter chegado, então seria bom que estivéssemos aqui.
— Ah, ele já está vindo, então? — Ela assente. — Tem algo
rolando entre vocês? — pergunto de uma vez.
— Daniel? — Seu queixo cai e ela pousa a xícara na ilha.
— Ele é um magnata da construção civil, como não consegue
arrumar uma casa para morar?
— Ele vai arrumar. Só prefere fazer isso daqui, podendo visitar
as opções.
— Você me contaria se algo estivesse acontecendo entre vocês?
— Não vejo seu pai há anos, Daniel. Sempre nos falamos muito,
mas sobre você. E ele está vindo à Inglaterra para trabalhar.
— Você me diria se estivesse, né? — Quebro um biscoito no
meio e jogo metade na boca com o mosquito da dúvida zumbindo no
meu ouvido.
— Eu já sou uma menina grandinha e não te devo satisfação,
certo? — Ela pega a outra metade do biscoito da minha mão. — Mas
não sei de onde você tirou uma coisa dessas. Tudo bem que me
separar do seu pai não foi uma escolha, mas já tem o quê? Dez
anos?
— Doze — respondo, sabendo exatamente por que perguntei
isso a ela, se Miss Claire acha que meu pai vai se alojar aqui apenas
como um amigo, ela está muito enganada. — Acho que vou
descansar, mãe. O pós-corrida foi intenso. — Coço a nuca e
espreguiço, bocejando em seguida.
Ela boceja de volta, meneando a cabeça.
— Bom, vai buscar sua mochila na sala. Vamos levar suas
coisas para o seu quarto que o cansaço tá te fazendo falar coisas
sem nexo.
— Como você mesma disse, vocês não escolheram terminar,
mãe. — Apoio as duas mãos na ilha enquanto ela desce e vem em
minha direção. — E não é segredo que meu pai arrasta um bonde
por você.
— Você sabe, entre ele e o Richard... Meu bonde pende pro lado
do seu chefe gostosão — ela brinca subindo a escada na minha
frente.
Sua fala me faz rir, e eu corro com a mochila em mãos.
— Mas é um segredo muito bem guardado, a sete chaves, que o
chefe de equipe mais alto, forte, definido e que arranca suspiros por
aí, é casado com um outro cara alto, forte, definido e que arranca
suspiros por aí. — Miss Claire para dois degraus na minha frente e
se vira para mim. — Pode tirar seu cavalinho da chuva, Miss Claire.
— Meu Deus, o Rick é gay? — Ela segura o coração e eu rio.
— Mãe, não sei exatamente qual é a orientação dele — digo,
parando ao seu lado. — O que o Jack deixou escapar é que as
pessoas na equipe não falam sobre o melhor amigo com o qual
Richard mora. Porque não seria de bom tom, para um esporte com a
nata da elite do conservadorismo envolvido, a gente ter um chefe de
equipe gay.
— Nossa, que coisa horrível de se falar — ela diz, e eu volto a
andar. Passamos por duas portas e eu paro na frente da terceira,
meu quarto.
— Isso porque a senhora não ouviu quando Jack disse que me
contrataram pra vaga do Juan porque, se tivessem demitido ele,
seriam um gay, um latino e um preto na equipe ao mesmo tempo e
isso estouraria a cabeça da galera.
Minha mãe fecha os olhos.
— Eu não vou rir disso.
— Pode rir, foi engraçado. Jack é babaca, mas é legal. —
Acendo a luz, tiro os sapatos e deixo a mochila no canto.
— E agora, como vou resistir ao charme do príncipe de ébano
que vai se alojar na minha casa por um mês sem ter meu amor
platônico pelo Richard pra me agarrar? — diz num tom teatral,
querendo me provocar.
— Mãe, não me fala essas coisas. Só não fala — digo, e ela
gargalha.
— Vai dormir, te chamo em duas horas. Caso contrário, você não
dorme à noite — decreta e puxa a porta.
Apoio as mãos na cintura, me questionando quais as chances de
uma semana numa casa com meus pais parecer algo minimamente
normal.
Capítulo 33
Ou: Conversando com minha mãe ela disse: Onde você achou esse cara?

Eu disse que algumas pessoas se apaixonam pelas pessoas erradas às vezes.

Alguns erros são cometidos. Tá tudo bem, tudo ok. Você pode pensar que está apaixonada, quando está apenas sofrendo…

Moral Of The Story - Ashe

Carol
Férias, eles disseram.
Para os pilotos e as equipes, os 21 dias da Silly Season são
realmente como férias. Eles não só não devem, como não podem
mexer nos carros nesse período. Para quem cobre a Fórmula 1, no
entanto, não é bem assim.
Uma vez que o meio da temporada é onde a magia do ano
seguinte começa a acontecer, precisamos ficar atentas às mudanças
de pilotos, engenheiros, chefes de equipe, demissões,
contratações... Além de, é claro, seguir qualquer rastro de
especulação sobre os atletas de outras categorias automobilísticas
que podem chegar na F1.
Com isso, é hora de colocar no papel tudo o que a segunda
semana das férias trouxe. Dentre muitos rumores de demissões e
contratações, temos uma única certeza: teremos uma piloto mulher
em uma das equipes da principal categoria do automobilismo no
próximo ano. Essa é uma novidade tão quentinha que já tenho
roteiro para três artigos: Quem é Alyson Sawyer? Como foi sua
trajetória até a Fórmula 1? E, é claro, como a experiência de Juan
Santoro e a ambição de uma novata podem levar a Wolff Racing ao
topo depois de tantos quase?
Encaro o relógio, faltam três minutos para a minha terceira
sessão de terapia. Desço da banqueta e corro para pegar uma
garrafa d’água. Quando me sento, a tela do meu celular brilha com
uma mensagem de Laís, que vem aqui em casa hoje a noite e, de
alguma forma, sinto falta de ver uma mensagem de Daniel ali. Desde
que cheguei, quero falar para ele onde estou e como estão as
coisas, mas nosso último encontro foi tão confuso que achei melhor
esperar e falar sobre isso com a Natasha para saber o que ela
pensa.
Na hora marcada, ingresso na reunião. O rosto fino da minha
psicóloga divide a tela com o meu. Ela com longas tranças ruivas
divididas entre um coque no topo da cabeça e uma parte solta que
desce pelo seu colo, eu com o cabelo preso num rabo de cavalo; ela
maquiada, com um bronzer destacando o marrom claro de sua pele
e eu com marcas da coberta no rosto.
— Bom dia, Carol. Como você está hoje? — pergunta,
provavelmente por ver minhas mãos batucando no balcão da
divisória.
— Bem. Um pouquinho nervosa, mas só um pouquinho. —
Sorrimos, cordialmente, ainda é um campo confuso entre nós duas.
— Já que está tudo bem, vamos começar de onde paramos —
diz, posicionando seu caderninho. — Você conseguiu fazer alguma
das atividades que teve vontade?
Na terça-feira, tivemos nossa sessão anamneses, um jeito
técnico para o que eu chamo de sessão teste. Deveria ter durado
cinquenta minutos, mas durou meia-hora. Eu mal falei, e ela não
tentou insistir. Já Laís não foi tão legal, quando contei a minha amiga
o que tinha acontecido, ela me obrigou a escrever uma lista de
coisas que eu deveria falar na sessão seguinte.
Passei a sessão de sexta-feira inteira falando sobre minha
infância, meus pais e minha dificuldade de entender quem sou.
Quando nossos cinquenta minutos estavam terminando, Natasha me
pediu para aproveitar aquele fim de semana fazendo tudo o que me
desse vontade.
“Sentiu vontade, cabe no orçamento, faz. Não cabe, pensa em
uma opção mais barata, mas dentro da mesma linha. Faça
anotações sobre as atividades e como você se sentiu e traz pra mim
na próxima terça.”.
— Consegui — respondo com um sorriso enorme no rosto e
vejo-a anotando algo.
— E como foi?
— Num geral ou por dia?
— Como você preferir.
— Bom, na sexta-feira, depois da sessão, eu aproveitei para
conhecer cada pedacinho de Santa Teresa. Já tinha feito uma geral
nas redondezas, mas só aqui perto. Peguei o bondinho até a estação
final e voltei, almocei num PF, dei meu celular na mão de uma
estranha para que ela tirasse uma foto minha na escadaria Selaron
— Rio com a lembrança, e Natasha segue anotando —, voltei para
casa e trabalhei um pouco. No fim da noite, fui tomar um chope num
boteco da Lapa e quando me joguei na cama, estava feliz.
Paro de tagarelar para que ela termine de anotar, mas ela sobe
seus olhos escuros para mim e coloca uma trança atrás do ouvido.
— Como foi o seu sábado?
— Levantei às sete da manhã e só me dei conta de para onde
estava indo quando cheguei. — Deixo um riso bobo escapar porque,
de verdade, acordei cedo demais, bebi café demais e, quando dei
por mim, estava do outro lado da cidade. — Desci do Uber na frente
de um Kart e entrei num lugar aonde não ia há pelo menos meia
década, só porque... eu quis. E foi sensacional. — Encolho os
ombros, porque essa é a única definição que eu posso dar. Nunca
pilotei o suficiente para pensar em uma carreira automobilística, mas
também nunca fiz vergonha. — Quando saí do Kart, liguei para a
minha mãe. Queria comer num restaurante bom, um bem caro e se
possível de frente para a praia, ou seja, gastaria uma grana que eu
não podia.
— Você já viu seus pais? — Balanço a cabeça negativamente.
— E qual foi a reação dela ao seu pedido?
— Sofia me mandou três vezes o valor necessário. — Reviro os
olhos porque isso é a cara dela. — Esse é o lado positivo de os
meus pais serem distantes. Mesmo que eu ainda não os tenha
visitado, eles nunca se ofereceriam para comer comigo, então o pix
chegou na minha conta sem questionamentos e eu comi o que foi,
provavelmente, o melhor churrasco em anos.
— É normal para você pedir dinheiro para eles mesmo lendo a
relação de vocês como distante?
— Não é algo que faço com frequência. Pedi para alugarem essa
casa pra mim porque queria ficar sozinha. Parar de estar na casa de
outra pessoa por um tempo. Minhas coisas estão na Laís, seria fácil
ficar lá, só que eu não estaria me dedicando a me cuidar se
estivesse. — Eu não tinha planejado dizer essa última parte. —
Mas... as coisas não são como você está pensando. — Me apresso
em dizer.
— Como eu estou pensando?
— Que me revoltei por eles não gostarem de mim tanto quanto
eu gostaria, que saí de casa ou arrumei trabalho pra afrontar meus
pais, ou desafiá-los.  — Seguro o riso pensando que eles não são
tão relevantes assim. — Não estou tentando provar nada pros dois.
Gosto do que faço hoje, sou feliz trabalhando com isso. Eles
aceitam? Não. Mas eu realmente gosto. É o que sempre sonhei.
— Que bom que isso é algo que você faz por você e não para
atingir outras pessoas, afinal, é a sua vida. — O tom dela é tão
neutro que não sei se ela está me elogiando ou debochando.
— No mais, eles precisavam ser meu suporte em algo, né? Não
foram emocional, ótimo que seja material. — Rio desviando a cara
da tela, porque Natasha com certeza vai tecer anotações sobre isso.
— Ontem, fui ao cinema ver um filme sozinha e, no fim da noite,
acabei dormindo no chão da sala porque é o ambiente mais fresco
da casa. — Termino pensando no pobre ar-condicionado que mais
faz barulho do que gela. — E porque eu quis.
— E como foi a experiência de fazer coisas que você queria?
— Ah, eu gostei. Pensando agora, me incomoda um pouco só ter
feito coisas que eu já estava acostumada de alguma forma, mas tudo
me fez muito bem. — Suspiro, indicando que não tenho mais nada
para dizer.
Preciso parar de falar. Tanto por estar pensando demais nessas
coisas, quanto pela estranheza em ser a pessoa que responde em
vez da que pergunta.
— É comum que você tenha feito coisas que já conhecia, a
gente entende o que gosta ou não pelas experiências, isso não
precisa preocupar você.
— Também escrevi e apaguei um monte de mensagens sobre
essas coisas pro Harris. — Cuspo a última frase como se ela
estivesse queimando minha garganta, porque de fato está.
— Por que não enviou?
— Não sei, não sei se faz muito sentido...
Ótimo que ela tenha entrado nesse assunto, eu não saberia
como fazer isso.
— Você mandou algo para Laís e a Myieko?
— Óbvio.
— E você e o Harris não são amigos?
As palavras se tornam pesadas para mim. Entendo o que ela
quer dizer, mas ignoro. Não é tão fácil reinserir o Harris na minha
vida como meu amigo depois dos últimos acontecimentos entre nós
dois. Os quais talvez eu não tenha falado para ela.
— Somos, mas é diferente. — Suspiro pensando que não tenho
como falar no Harris, sem contar sobre o Harris, então faço o que me
parece mais pertinente agora: — A gente pode falar sobre outra
coisa?
— Claro. No nosso primeiro encontro você mencionou ter
tentado a terapia outras sete vezes. — Assinto, arredia. — Como
estão as sessões dessa vez? Como você se sente sobre elas?
Eu gargalho, mas contenho a vergonha.
— Pode ficar tranquila, eu não tô pensando em te dispensar.
— Eu estou tranquila, Caroline. — Natasha sorri franzindo o
cenho. — Você está?
— Dessa vez, sim — garanto.
— Por quê?
— Porque eu preciso mesmo descobrir quem eu sou.
— Você passou pela terapia das outras vezes pelo mesmo
motivo?
— Não.
— Conseguiu alcançar algum resultado com os objetivos
anteriores? — Nego com a cabeça. — O que te fazia pausar o
tratamento antes?
— A gente ainda não falou sobre isso, mas minha mãe é
psicóloga. — Meu olhar cai em minhas mãos, unidas em meu colo, e
observo minha guerra de polegares. — Eu vejo a terapia como um
suporte emocional, algo para ajudar a gente a lidar ou superar as
coisas... Tipo uma mãe.
— E sua mãe não era essa pessoa para você?
—  Não. E ela é doutora em psicologia. Palestra sobre isso
desde que eu me entendo por gente. — Jogo na mesa porque em
algum momento teria que fazer isso. — Mas o que mais me deixava
incomodada é que era estranho que ela e meu pai fossem um casal
tão carinhoso e próximo e eu ficasse sempre com as sobras.
— E você e seu pai?
— A gente mal se fala. — Franzo o cenho, dando de ombros. —
Quando eu era criança, ele via F1 comigo, eu via futebol com ele, e é
isso. Sentados e quietos. Fazendo coisas juntos, mas nunca juntos
de verdade.
— Você acha que seu amor por Fórmula 1 tem alguma relação
com esses momentos?
— Não, eu comecei a gostar primeiro e o Harris alimentou isso
muito mais do que o Carlos.
— Nosso tempo está bem perto do fim. — Essa frase faz toda a
minha postura relaxar. Volto minhas mãos para a bancada e devolvo
a atenção dos meus olhos a ela. — Vou te pedir pra seguir com isso
de fazer algo que você queira, tudo bem? Não precisa ser nada
muito mirabolante, pense que você precisa fazer ao menos uma
coisa por você no dia. Às vezes, vai ser jantar do outro lado da
cidade, e às vezes, arrumar sua cama.
— Tudo bem se a gente só conversar na próxima terça? —
pergunto, coçando a orelha.
— Tínhamos uma sessão agendada para essa sexta, aconteceu
alguma coisa?
Sei por que Natasha está fazendo isso. Ela acha que eu vou
desistir. Que vou dar para trás. Mas não vou.
— Sei que agendamos duas sessões por semana enquanto eu
estiver no Brasil. Mas na próxima, prefiro ver como isso de fazer
coisas por mim funciona no dia a dia, ao longo de uma semana
inteira, e falar com você no fim, tudo bem?
— Claro. Você está agendada às oito.
— Até lá, Natasha.
— Até, Caroline.
Bato a tela do notebook orgulhosa por ter falado mais do que me
permiti fazer na última sessão e por ter sido sincera. Meu olho corre
para o meu celular na bancada, ao lado do meu notebook. Pego o
aparelho e envio a mensagem que estou adiando há dias.
Eu: Oi, Novato. Como estão as coisas por aí?
Capítulo 34
Ou: Sua presença ainda permanece aqui e ela não vai me deixar sozinha. Essas feridas não vão cicatrizar, essa dor é muito real, tem muita coisa que o

tempo não pode apagar.

My Immortal – Evanescence

Daniel
Com a notícia da chegada do meu pai, muita coisa do que eu
tinha pensado em fazer ao longo de 21 dias se tornou um roteiro
para treze. Mas isso não tirou o brilho dos meus dias com minha
mãe. Eu e Miss Claire fizemos uma roadtrip rodando as cidades nas
quais a família dela já tinha morado e as propriedades dos meus
avós pelo interior.
Além disso, visitamos a Irlanda do Norte, onde eu enlouqueci
com as locações da finada série Game Of Thrones, e minha mãe
tentou manter a compostura, mas suspirou ou chorou em cada uma
das salas do Museu do Titanic. Fomos ainda ao Stonehenge, que eu
nunca tinha ido, e à casa de Shakespeare, que minha mãe adora.
Chegamos a Londres ontem, mortos de cansaço, mas felizes.
Deitado na cama há pelo menos dez minutos e rolando de um
lado para o outro sem querer me levantar, porque sei que meu pai
chega hoje e talvez o meu tempo de paz acabe, estico a mão para a
cabeceira e, tateando o criado mundo, pego meu celular. A tela se
acende, revelando que já passa do meio-dia. Porém, não tenho
tempo de me sobressaltar por isso, o nome de Caroline Pimenta
aparece e eu clico em sua mensagem como se minha mão fosse
queimar se eu não fizesse.
Eu: Oi, Pimentinha...
Escrevo, mas apago. Ela não é mais minha Pimentinha, afinal.
Eu: Oi, Carol, tudo bom?
Eu: Por aqui tá tranquilo...
Pimentinha: Quem é Carol? Tinha certeza de que era
Pimentinha pra você.
Esfrego a testa com a mão direita por alguns instantes
ponderando, mas perco essa batalha.
Eu: Oi, Pimentinha.
Pimentinha: Agora, sim! E como estão as coisas por aí?
“Tranquilo” não é exatamente uma resposta.
Eu: Os dias estão bons, leves... Fiz uma roadtrip com a mamãe
e foi maravilhoso.
Pimentinha: Mas?
Ela manda seguido de uma carinha com olhar suspeito.
Eu: O papai chega hoje e, depois da minha última visita, acho
que não consigo mais abaixar a guarda por completo perto dele.
Pimentinha: Seu pai está chegando na casa da sua mãe?????
Eu: Longa história...
Suspiro, esperando que ela não me peça para contar, nem sei o
que está acontecendo.
Pimentinha: Bom, seu pai.... é seu pai. Acho que no fundo ele
sabe que você não vai ficar com a empresa, Dani. Você só precisa
dizer.
Eu: Não é tão fácil.
Pimentinha: Eu não disse que era.
Eu: Era mais fácil quando você peitava meu pai por mim.
Brinco abaixando a guarda mais uma vez.
Pimentinha: Eu era inconsequente. Você não precisa subir o
tom e nem ser babaca, é só deixar claro.
Encaro a resposta por alguns instantes. De tudo o que pensei
que leria aqui, isso não era uma opção. Mas, ela está certa. As
coisas não precisam ser um cabo de guerra se só um lado está
disposto a puxar.
Eu: Tudo bem, vou tentar...
Pimentinha: Não diz que eu incentivei, hein?! Não quero ser
tachada de osso duro de novo.
Eu: É Turrona.
Digito sorrindo igual a um idiota.
Pimentinha: Isso. Turrona! Que absurdo.
Eu: Vamos falar de você agora, como estão as coisas?
Pimentinha: Ótimas. Eu tô trabalhando bem menos, claro. Então
estou aproveitando para descansar e colocar algumas coisas no
lugar.
Eu: Coisas?
Envio uma carinha curiosa.
Pimentinha:  Minha cabeça, meu coração, minhas emoções...
Eu: E tá fazendo efeito?
Pimentinha:  Honestamente? Ainda não sei, mas tentar é
melhor do que não tentar...
Pimentinha:  Eu encontrei uma psicóloga que não odeio, então
estou feliz.
Pimentinha: Eu… eu precisava mesmo fazer isso, Harris.
Sei o que Caroline está dizendo e por que está dizendo, mas
também sei que nosso bonde passou e não posso ficar nutrindo
esperanças de que ele volte para sempre.
Eu: Fico feliz por você, Carol. De verdade. Agora preciso ir lá,
porque são quase uma da tarde e ainda não levantei
Deixo o celular na cabeceira antes mesmo que ela responda e
saio do meu quarto para não cair em tentação.
No fundo, ele sabe...
É fácil para a Caroline dizer isso, é fácil para mim saber disso.
No entanto, quando mesmo sentado entre meus pais num sofá cama
de quatro lugares, assistindo a um vídeo de alguma das minhas
festas de aniversário, eu me sinto tão distante de seu Fernando
Torres quanto estava antes que ele passasse pela porta, toda essa
facilidade escapa pelos meus dedos.
Como é possível amar tanto uma pessoa e preferir não estar
perto dela?
As imagens da mesa de doces invadem a tela e descubro que eu
estava fazendo oito anos quando a câmera pousa sobre o bolo no
centro da mesa, um sorriso de conforto toma meu rosto. Enquanto
isso, Miss Claire e seu Fernando conversam num idioma que mistura
português e inglês por cima de mim, com risadinhas e memórias de
bastidores que eu não carrego.
— Você lembra que abacaxi era a sua fruta favorita até... — Meu
pai começa a frase, mas uma risada o impede de continuar.
— Dois dias antes da festa. — Minha mãe completa gargalhando
e eu fico sem entender.
— Eu odeio abacaxi. — Intercalo meu olhar entre os dois que
estão se recompondo.
— A gente descobriu nessa hora. — Meu pai aponta para os
parabéns na tela e o olhar de nojo no meu rosto quando mordo uma
fatia do meu bolo no formato de McLaren do Senna deixa bem claro
o quanto eu odiava abacaxi naquele momento.
Os dois tentam me fazer lembrar de quando abacaxi era minha
fruta favorita, me dizendo que eu tinha uma pelúcia nesse formato,
mas o trauma da criança à minha frente é tão grande que a memória
se escondeu. Quando o pequeno Dani, estimulado pela mãe, tenta
comer outro pedaço do bolo e acaba balançando a cabeça
negativamente, seu Fernando o carrega para fora da cena.
— Pelo menos eu era educado. — Rio. — Poderia ter feito um
escândalo e fui chorar sozinho.
— Ah. — Meu pai apoia a mão na minha perna. — Você se
comportou porque prometi que comeríamos brigadeiro na cozinha.
— Até os seus... dez anos, era nossa tradição de família guardar
um pedaço de bolo dos seus aniversários para o café da manhã
seguinte. Aquela foi a única exceção, depois que você virou a chave
do abacaxi em dois dias, fiz questão de dar o bolo inteiro. — Minha
mãe sorri desligando a TV assim que as imagens se tornam meros
chuviscos com o fim do vídeo. — Vamos jantar?
— Ainda são sete horas. — Meu pai dá dois tapas no relógio do
pulso como se isso pudesse fazer o horário mudar para as oito e
meia.
— Não se discute com o horário de jantar da Miss Claire —
aconselho, me levantando. — Você vai sair perdendo.
Sigo minha mãe até a cozinha e meu pai vem logo atrás. Ela tira
dois refratários do forno e deposita sobre o mármore da ilha.
— Bife wellington?! — seu Fernando pergunta, deduzindo com
os olhos brilhando.
Minha mãe pisca duas vezes e pousa as mãos na beirada da
ilha, encarando-o.
— Beef Wellington. — Sorri de canto, corrigindo-o por pura
implicância. Como não faria com mais ninguém, e então completa
com as exatas mesmas palavras de dez anos atrás: — É o seu prato
favorito e você não sabe o nome?
“Isso não quer dizer nada, você é minha pessoa favorita e eu
demorei mais de dois anos para pronunciar seu nome corretamente.”
Meu pai não responde como sempre fazia, não vai até ela e a
abraça por trás como era o normal, e o silêncio que se instaura no
ambiente me diz que os dois pensaram o mesmo que eu. Me sento
do lado oposto ao que minha mãe está e ignoro a tensão com um
gole em meu vinho.
— Agora nós vamos morar perto, você vai ter todo o tempo do
mundo para me ensinar. — Meu pai se senta ao meu lado com um
dar de ombros.
Miss Claire se vira para o armário atrás de si e ele me lança um
olhar cúmplice, como se estivesse deixando claro o que disse para
mim quando eu estava no Brasil. Se ela não sabe que eu sou
apaixonado por ela, é porque está se fingindo de doida.
— Há quanto tempo você não come um desses, filho? — minha
mãe pergunta, colocando alguns temperos à mesa, e se senta.
— Um bom tempo... Aparentemente, não ando valendo comidas
elaboradas. — Entro na brincadeira com meu pai.
— É verdade. — Ela nem tenta negar. — Você desperta o meu
lado preguiçoso. — E ainda joga a culpa em mim.
— Não quero dar trabalho, Claire — meu pai diz, sem jeito. —
Não precisava.
— Não mesmo. Fiz porque me deu vontade — rebate
acariciando o próprio pescoço.
— Como estão as coisas no Brasil, pai? — pergunto porque sinto
que estou sobrando.
— Estão bem. A empresa...
— Ele não perguntou da empresa, Fernando. — O olhar
fulminante de Miss Claire o faz retesar. — Falar sobre trabalho está
proibido nessa mesa!
O suspiro de alívio que eu dou faz com que os dois riam.
— Certo. Bom, então eu não tenho muitas novidades. — Ele
encolhe os ombros dessa vez. — Me contem vocês, como foram as
férias?
Desvio o olhar até minha mãe que assente.
— Tudo começou quando nossa roadtrip de três semanas virou
duas por causa de uma visita... — Alfineto seu Fernando, que deixa
o queixo cair quando o chamo de visita, e então sigo falando sobre o
que fizemos, aonde fomos e o que comemos.
Minha mãe me auxilia floreando algumas histórias e me
obrigando a omitir outras.
Meu pai nos enche de perguntas e, sempre que minha mãe diz
que amou um lugar ou que adoraria voltar a outro, ele se oferece
como se fosse a coisa mais normal do mundo. E, mesmo que às
vezes eu ache que ele está indo longe demais, minha mãe segue
dando corda.
O relógio bate nove da noite e, em vez de seguirmos para os
quartos, abrimos uma segunda garrafa de vinho. A conversa segue
confortável, os dois estão íntimos, na verdade, nós três estamos, o
que me traz a sensação de pertencimento uma vez mais.
Por volta das dez, me despeço dizendo que preciso deitar. Não
sei se foi a sensação de pertencer novamente, se foi a bebida, ou a
troca de mensagens com Carol, o que sei é que tive uma ideia
absurda e decido colocá-la em prática:
— Pai, domingo a gente vai a Silverstone — aviso da porta da
cozinha.
— Parece que recebi uma intimação... — Ele ergue os braços se
rendendo.
— Eu não estou convidada? — Mamãe amassa o cabelo com a
sobrancelha erguida.
— Claro que está. Saímos de casa depois do almoço. — Bato
continência para eles e caminho até o corredor. Quando subo as
escadas, os risinhos dos dois ainda me acompanham.

Kartódromos e autódromos ao redor do mundo têm mais


funcionalidades do que hospedar algumas poucas corridas ao longo
do ano, afinal, eles precisam sobreviver. Por isso, trouxe meus pais
para aproveitarem um dia ensolarado, no auge dos 20ºC do verão
inglês. Não posso passar a próxima semana inteira fugindo de
momentos a sós com meu pai, preciso falar com ele. Conversar de
verdade para entender por que as coisas começaram tão bem e
acabaram tão mal na minha última visita.
Fazer isso em casa seria ruim. Fazer isso na cidade das novas
instalações da empresa ao longo da semana, pior ainda. A ideia de
passar a manhã em Silverstone veio do fato de que se não me sinto
seguro para jogar num campo neutro e nem no campo dele,
precisava trazê-lo para o meu.
Parado ao lado da minha mãe, observamos seu Fernando Torres
tomar um apavoro de uma Aston Martin Vantage, um modelo usado
para corridas esportivas que, pelo tempo que está levando para
completar suas voltas, ele não tem nenhum domínio.
— As coisas não estão sendo tão ruins. — Miss Claire me
cutuca.
— Não estão. Mas hoje de manhã, quando desci e ele estava
sozinho na cozinha, fingi que tinha ido pegar água e voltei para o
quarto, só desci quando você desceu.
— Daniel?
— Ele só sabe falar dessa empresa.
— Por que você não conduz o assunto para outro lugar? Ele está
aqui há quase uma semana e nós temos tido fins de noite ótimos,
sabia? Conversado sobre a vida, o passado, o futuro... e ele não
mencionou a empresa nem uma vez sequer.
— É claro que não, ele não quer que você dirija a empresa, quer
que você dirija o coração dele.
— E eu já disse que isso não é da sua conta.
— Ficou nervosa, Missa Claire? Ou eu deveria dizer ex-senhora
Torres e Futura Senhora Torres.
Ela me dá um tapa no braço direito.
— Nunca pensei que apanharia pela primeira vez aos vinte e três
anos — digo, com o queixo caído.
— Pra você ver como tudo na vida tem uma primeira vez.
Gargalho vendo meu pai sair do carro do outro lado da pista e o
olhar de “veja bem o que você vai falar para o seu pai se não quiser
apanhar de novo” que Miss Claire me lança quase me coloca medo.
— Como alguém pode gostar de fazer isso? Sério, 180km/h.
— Só isso? Meu mínimo nesse carro seria 195, seu Fernando.
— Mas esse é o máximo que o carro atinge.
— Exatamente. — Pisco diante de seu choque.
O instrutor se aproxima meio sem jeito, meio sorrindo, ansioso
para que a minha vez chegue. Quando eu digo que Miss Claire vai
primeiro, seu semblante murcha.
Os vemos se afastarem e, com alguns passos para trás, nos
recostamos na parede da “garagem” de onde partimos com os
carros.
— Você se lembra de quando eu e sua mãe nos separamos?
É assim que ele começa uma conversa. Muito amigável.
— Eu tinha dez anos? Onze? Lembro que separaram, mas não
como foi.
— Você se lembra do porquê?
— A vovó ficou doente e a mamãe veio cuidar dela.
— E então oito meses se passaram e sua avó faleceu, então seu
avô precisava de cuidados e ela foi ficando, e o trabalho que era no
Brasil passou a ser homeoffice, então ela foi oficialmente
transferida...
— E você decidiu que a gente não viria — digo, sem julgamento,
mas vejo nos olhos do meu pai que ele não entendeu assim. — Não
tô culpando você, eu só... lembrei que ela deveria ter voltado e
depois tentou trazer a gente e mais de um ano se passou nessa
brincadeira?
— Quase dois — ele diz e engole em seco.
— Uhum...
— Eu gosto dela. — As palavras escorrem como uma confissão.
Como se ele nunca tivesse me dito aqui antes e eu entendo o que
ele teme, mas não posso afrouxar.
— Você gosta dela ou quer dar algum significado para a sua
vida?
— Do que você tá falando?
— Eu sei que você nunca superou o divórcio, mas não quero que
fique com ela só porque o único assunto que tem pra falar quando
alguém te pergunta como está a sua vida é a sua empresa.
— Eu não faria isso com a Claire. Nunca. De jeito nenhum. —
Um riso triste preenche seu rosto e ele mira o chão em seguida. —
Você está certo, nunca superei o divórcio, mas sempre fui ótimo em
disfarçar, você era nosso único assunto e as coisas sempre
caminharam bem assim. Acontece que desde que ela me sondou
para a indicação da empresa, e então começamos a conversar sobre
o projeto e a minha mudança... Eu não consigo mais fingir. — Meu
pai volta a me encarar e eu estudo o que os olhos marejados dele
têm para me dizer. — Longe dela, eu conseguia. Mas, sentado num
sofá, tomando um bom vinho no fim da noite enquanto a observo?
Eu jamais conseguiria.
— Se você tem tanta certeza do que sente e do que quer, por
que precisa da minha aprovação?
— Porque sei que ela é tudo o que você tem, então se você não
aprovar, se você não quiser...
A voz dele embarga e eu dou graças a Deus que há uma grade
entre nós e os carros, ou eu ia correr para essa pista e ir de arrasta
para cima, porque não é possível que esse homem não enxergue as
coisas.
— Se você a ama e ela te ama de volta, se você a quer... Eu não
tenho nada a ver com isso. A história de vocês não é sobre mim! —
Me revolto num grito sussurrado, e ele se assusta. — O que eu não
quero, pai, é que ela siga sendo a única coisa que eu tenho. — Nem
tento ser forte, quando nosso olhar se encontra, minha visão já está
turva pelas lágrimas.
— Daniel, achei que tínhamos tido uma boa semana, eu tive
certeza, na verdade, e então você se foi e... — Meu pai prende a
língua entre os dentes para conter as lágrimas. — Eu não sei mais o
que fazer, não sei o que poderia ser diferente.
— Tem certeza, pai? Porque nós, de fato, tivemos uma semana
incrível.
— Mas quando você foi embora...
— Você entrou no meu quarto e me intimou a ir para a sua
empresa — corto-o. — Como se fosse minha obrigação, quando
você sabe que eu não quero aquilo.
— Mas aquilo é seu.
— Não é, é seu. — Fungo, pressionando a ponte do nariz. — E
eu tentei te dizer muitas vezes. — Abro os braços no meio de uma
das apoteoses do automobilismo.
Meu pai me estuda por alguns segundos, como se nós nunca
tivéssemos tido essa conversa.
— Nunca teve a menor chance, porque essa não é a sua vida,
né?
Nego com a cabeça e ele meneia, dando dois passos em minha
direção.
— Eu odeio que você seja piloto — diz, a dois passos de mim,
me fazendo arregalar os olhos. — Toda vez que você vai trabalhar,
eu acho que você pode não voltar. Tentei oferecer uma saída, algo
atrativo, rentável... Nunca foi sobre te impedir de viver seu sonho,
sempre foi sobre não perder você também, porque perder a sua mãe
me matou, Daniel. — Seu queixo treme e ele respira fundo antes de
continuar.
Engulo em seco sentindo a garganta arranhar, porque esse
motivo para tanta resistência não era algo que eu esperava. Não que
eu achasse que era só pela empresa ou só pelo controle... Mas todo
esse ranço da minha profissão ser medo realmente me surpreendeu,
e agora eu gostaria que ele tivesse falado isso antes.
— A morte é implacável, pai. Em um carro a 300km/h ou
atravessando a rua no sinal. Numa corrida automobilística,
caminhando na orla da praia ou infartando depois de uma reunião
estressante. Não é o meu trabalho quem define a hora que eu vou
morrer ou não, isso é departamento de Deus, do destino...
— Eu sei. Dói, mas eu sei. E me arrependo muito por ter te
afastado tanto, ter perdido tanto. — Ele ergue uma mão em minha
direção, mas para no meio do caminho, como se não soubesse se
pode fazer isso. Seguro-a no ar e a apoio em meu rosto. — Mas, se
tiver alguma chance, alguma mínima chance, de eu conseguir ser
seu pai de novo... Eu vou acreditar que você vai viver e nós vamos
ficar bem.
— Enquanto você conseguir respeitar minhas escolhas e tratar a
Miss Claire como ela merece ser tratada, nós vamos encontrar um
jeito de ficar bem, doutor Fernando — digo e ele assente, digerindo
minhas palavras, antes de me puxar para um abraço.
Descanso nesse lugar por um instante e me permito ser só o
garotinho sem bolo que foi comer brigadeiro com o pai na cozinha de
novo. Um que encontra descanso e conforto no pai e não medo ou
ansiedade.
— Para você é só pai a partir de agora, moleque. — Ele seca o
rosto quando nos afastamos e eu faço o mesmo.
É bagunçado e confuso pela falta de prática, mas a esperança
de que isso se tornará cada vez mais normal paira entre nós dois.
Minha mãe corre em nossa direção e quase me sinto culpado por
não ter prestado atenção nas voltas dela.
Mas, com um sorriso enorme no rosto, Miss Claire diz:
— Eu fiz um tempo melhor que o seu! — E, conforme ela se
aproxima, percebo que não está vindo me abraçar, ela está correndo
até o meu pai.
Quando ele a ergue do chão dizendo que ela sempre foi uma
motorista melhor – o que não é mentira –, meu celular vibra, como se
quisesse me fazer parar de urubuzar o flerte dos outros.
Ergo dois dedos, pedindo dois segundos ao instrutor, e
desbloqueio a tela.
Jack: Chego em Spa amanhã, você vai passar as férias todas
sendo o garotinho da mamãe mesmo?
Sorrio para meus pais conversando a alguns passos, e não é
segredo que estou mais atrapalhando aqueles dois do que qualquer
outra coisa.
Eu: Na verdade, acho que posso aproveitar a última semana
com meu companheiro de equipe.
Jack: Ótimo, vou te passar o hotel onde vamos ficar.
Capítulo 35
Tudo o que tenho no final do dia sou eu mesma e tudo o que eu quero

é que isso seja o suficiente

All I Want – Olivia Rodrigo

Carol
Pela janela do meu quarto, o sol invade minha última sexta-feira
no Brasil, avisando que preciso estar na bancada da cozinha para a
minha terapia em quinze minutos. Me arrasto até o pequeno
banheiro anexo ao quarto, faço a higiene matinal e conto doze
passos até a bancada.
Respiro fundo enquanto espero Natasha para a nossa quinta
sessão de terapia. Eu já fui mais longe do que isso, sei que fui. Essa
é, no entanto, a primeira vez que eu tenho planos de continuar ao
invés de “pausar o tratamento”, que é só uma expressão linda para
“desistir”. Então, quando Natasha joga uma trança para trás depois
de me pedir para falar mais sobre minha sensação de abandono, eu
cruzo os braços e penso por alguns instantes.
Na terça, conversamos apenas alguns minutos sobre a questão
“fazer coisas que eu realmente queria”, porque boa parte da sessão
foi dedicada ao meu trote, que foi um agravante para que eu saísse
de casa, e ao meu relacionamento com Gabriel. Deixei claro para
Natasha que sempre planejei me mudar assim que fizesse dezoito
anos, mas que isso foi adiado por causa do intercâmbio da Laís. Em
resumo, expliquei que a reação de Sofia e Carlos ao meu trote foi o
que me motivou a sair dali, além de não me sentir pertencente,
também não me sentia apoiada pelos meus pais, e isso foi o fim para
mim.
— Meus pais são o casal mais apaixonado que eu conheço. E eu
acho lindo, eles se casaram para isso — digo, finalmente.
— Mas?
— Mas eu me sinto uma idiota. Esperando um amor que eu
nunca tive, uma atenção... Menos superficial, que não vai chegar. —
As palavras explodem de dentro de mim. Não grito, não choro, mas é
como se eu estivesse deixando algo que segurei muito tempo sair. —
Eles me amam, na verdade, me amam muito, mas não conseguem
trocar duas mensagens comigo por dia. E tá tudo bem. — Me
adianto, porque está mesmo. — A gente jantou junto essa semana e
foi ótimo. Mas, às vezes, eu me pergunto se duas mensagens por
semana são tão difíceis assim.
— Além dessa carência, como você sente que isso te afeta?
— Minha mãe... Que ensina um monte de coisas sobre
autoconhecimento pra um monte de gente... Não é a primeira pessoa
que eu penso quando preciso de alguma coisa que não seja dinheiro.
— Não poder contar com a sua mãe significa que você a
considera uma mãe ruim? — Os olhos de Natasha sobem para a tela
e os meus marejam. Engulo minha vergonha e meu ego em seco
antes de responder.
—Ela é uma mãe ok, do jeito dela...
— Que não é como você gostaria, certo? — Balanço a cabeça
negativamente com a garganta arranhando. — E quando você pensa
nisso, o que exatamente você gostaria que sua mãe fizesse?
Bebo um pouco d’água e encaro a tela por alguns instantes. O
que eu queria? O que será que eu queria?
— Que ela entendesse que não era a coisa mais fácil e legal do
mundo ser a única criança negra, logo, a criança solitária em tudo o
que ela queria que eu fizesse: natação, balé, dança... Ninguém
ligava pra mim nesses lugares.
Não choro porque isso não me atormenta mais. Então avanço a
narrativa para a parte que conheci Laís e depois para o Harris. As
duas pessoas que eu realmente tive.
— E eles supriram o amor que você não conseguiu ter nem dos
seus pais?
Isso dói, sua v*g*bunda, penso.
— Acho que nunca olhei para as coisas nesse ângulo —
pondero, franzindo o cenho com o desconforto.
— De que seus pais não te amavam?
— De que minha revolta pelos meus pais não me amarem tinha
a ver com não ter sido amada por ninguém de jeito nenhum antes da
Laís e do Dani.
O silêncio é sobreposto pelo barulho da vida acontecendo lá
fora, mas aqui dentro Natasha faz suas anotações e eu abraço meu
corpo como se pudesse me sentir menos nua.
— Focando nas pessoas que amaram, por que você acha que foi
diferente com a Laís?
— Porque ela era pobre — rebato, como se fosse óbvio. — Quer
dizer, ela não era pobre, mas tinha bem menos dinheiro do que todo
mundo... Então ninguém queria falar com ela também — digo, e
meus olhos marejam.  — Às vezes, eu fico pensando que o Daniel foi
o meu primeiro e único amigo próximo quando fui estudar no colégio
americano, porque de tanto que a gente se bicava ele acabou
percebendo o quanto eu era sozinha e resolveu parar de ser meu
inimigo para ser meu amigo. E isso me machuca ainda mais, essa
aproximação por pena e não por identificação.
— Hum... — O tom analítico de Natasha me para. — Você está
dizendo que uma das duas pessoas com quem você sentiu a
possibilidade de ser você mesma durante sua formação, aquele que
você me apresentou como o seu melhor amigo e primeiro amor...
Não era alguém que se identificava com você, e sim, uma pessoa
que se aproximou de você por pena? — Pela primeira vez, um olhar
está ali, e é um olhar quase que de repreensão. — Nossa, aqui está
a autossabotagem que você mencionou na primeira consulta. —
Encaro a tela por tempo demais e ignoro o comentário.
— Quando a Laís viajou e o Harris foi embora, e tudo aquilo do
meu trote aconteceu, eu me vi na mesma situação. Sozinha. De
novo. E acho que isso facilitou para que eu me apoiasse no Gabriel e
não o visse verdadeiramente, sabe?
— Como você se sente pelo fato de os seus pais nunca terem
percebido que você tinha essa carência?
— Meu pai é omisso. Acho que ele me daria beijos de boa noite
e diria que as pessoas humilhadas no presente, são as bem-
sucedidas no futuro. — Rio com esse discurso de quinta. — Minha
mãe... — Penso por alguns instantes e desisto de formular algo
mirabolante. — Na verdade, acho que ela nunca quis aceitar que as
pessoas podiam ser racistas àquele ponto.
— É um cuidado interessante você conseguir olhar o lado dela
dessa equação, Carol.
— Eu entendo, de verdade. Ao mesmo tempo, fico pensando
que se eu tivesse uma filha, daria todo o amor do mundo pra ela,
porque o resto do mundo não vai aliviar. — Minha voz embarga e
uma lágrima solitária escorre pelo meu rosto.
— Você já conversou sobre isso com ela?
— Eu não quero ter que me humilhar a ponto de perguntar para
minha própria mãe por que ela nunca percebeu que ninguém me
amava, então ela deveria ter tentado mais. — Vocifero e gostaria de
explodir em lágrimas, gostaria muito, mas o peso fica entalado na
minha garganta. — Tentei me consertar tantas vezes na terapia sem
falar disso, sem falar deles. Acho que nunca ia acontecer, né?
— Não há o que consertar, Carol. Você não é uma coisa
quebrada, é uma pessoa com questões a serem trabalhadas, como
todo mundo. — Natasha me encara tão séria que eu quase acredito
nela.
— Será que algum dia eu vou conseguir perdoar meus pais? —
Fazer essa pergunta me rasga a garganta.
— Você gosta de ter uma relação com eles hoje ou tem porque
sente que é sua obrigação? — Natasha me pergunta séria, como fez
poucas vezes, então tento ser honesta.
— Eu amo meus pais — respondo de imediato porque não tenho
dúvidas sobre isso. — Posso não aceitar completamente ainda, mas
já entendi que eles são diferentes. E, no mais, as coisas são boas...
na configuração de relacionamento que a gente tem. — Coço a
têmpora antes de continuar. — Por outro lado, por mais que eu goste
deles, de estar com eles... Tem um vazio em algum lugar dessa
relação.
— Então eles são especiais para você?
— São.
— Bom, nesse caso, nossa pergunta não é se você vai
conseguir perdoar seus pais. É se você acha que algum dia vai
conseguir perdoar a garotinha que queria tanto ser amada que
aceitou qualquer migalha de carinho e afeto independente do quanto
isso fosse fazer mal para ela — Natasha diz, e meus olhos arregalam
porque, de todas as pessoas que eu penso em perdoar, a menina
carente que eu era no passado não é uma delas. —Você os ama
hoje. Gosta de ter uma relação com eles hoje. O vazio dessa relação
é a ausência de amor que a Caroline sentia quando estava
crescendo.
— Então eu não preciso perdoar eles? Tipo, como se eles não
tivessem feito algo errado? — indago quase ofendida, mas o olhar
terno de Natasha me acalma.
— Perdoar o que as pessoas te fazem, Caroline, é mais sobre
por que aquilo te afeta do que sobre o que eles estão fazendo.
— Acho que você me deu um caminhão que coisas para pensar,
e não sei se gosto. Como a gente resolve isso?
— Primeiro de tudo, você não pode renunciar ao tratamento
sempre que se sentir desconfortável. — Ela ajusta os óculos no rosto
falando muito sério. — Alguns dias, você vai sair daqui com gás e
felicidade para viver, outros dias, você vai sair da sessão e vai chorar
o que não conseguiu chorar aqui. Mas a gente vai caminhar juntas
até algum lugar bom para você. — Natasha me entrega um sorriso
condescendente, mas sei que ela está certa.
— Bom, eu tinha mencionado que a gente só vai conseguir se
ver às terças daqui para frente, certo?
— Tinha, sim, Carol. Vou deixar seu horário mais flexível na
parte da tarde por causa do fuso, mas sempre às terças. — Natasha
sorri para mim, e pela primeira vez em muito tempo, sinto que
finalmente posso chegar a algum lugar através disso aqui.
Talvez a terapia nunca tenha funcionado porque sempre foi algo
que eu fiz porque me mandaram fazer e talvez eu só precisasse
querer.
— Até terça, então. — Sorrio para ela com um tchauzinho.
— Até.
Bato a tela do notebook, vou até a cafeteira e passo uma
cápsula de flat White. Caminho até a entrada da casa e, abrindo a
porta, me apoio no batente. Durante todo o processo apenas uma
frase fica na minha cabeça:
Não tem nada para ser consertado em você.
Ao mesmo tempo, uma lágrima escorre pensando no que o
Harris me disse em Zandvoort.
Precisa parar de achar que só o que está inteiro merece ser
amado.
Talvez ele esteja certo, talvez eu não só precise de amor, como
uma sanguessuga, como alguém que quer algo que não pode ter.
Talvez eu mereça ser amada e isso deva ser leve.
Me preparando para aproveitar meu último fim de semana no
país, deixo a xícara na pia e vou até meu quarto buscar o celular
para conferir os itinerários com Laís e meus pais. Mas,
desbloqueando a tela, vejo uma notificação de mensagem de
Miyeko.
O sorriso enche meu rosto, se fecha e meu coração
descompassa quando leio as palavras:
Miy: Eu digo que piloto não presta, e você ri de mim.
A mensagem vem acompanhada de um link, uma sequência de
stories. Quando as imagens do perfil de fofoca abrem, revelam fotos
tiradas em uma balada. Ao que parece, os pilotos já chegaram ao
local da próxima corrida e nenhum deles está se preocupando com
nada além de mulheres e bebidas.
Então a outra coisa que Daniel disse naquele dia invade a minha
mente: não posso te esperar para sempre. Eu sabia que ele estava
falando sério, mas não esperava receber uma foto dele com outra
pessoa tão rápido.
Capítulo 36
Ou: Eu sei que isso parte o seu coração, se mudou para a cidade em um carro aos pedaços e quatro anos, nenhuma ligação, agora você está linda em um

bar de hotel e eu não consigo parar.

Closer - The Chainsmokers  ft. Halsey

Daniel
Bom dia, Brasil. Boa tarde, Bélgica. Depois de longas três
semanas, estamos finalmente em Spa-Francorchamps. Com a
chegada da última parte da temporada, é hora de as equipes irem
para o tudo ou nada, afinal, milhões de euros separam cada uma das
posições no ranking de construtores e ninguém quer terminar na
parte inferior da tabela. Como de costume, as atualizações e trocas
de motores e peças são o principal assunto da primeira corrida pós
férias. Neste ano, tanto os pilotos da Arrows quanto da Wollf Racing
estão largando dos fundos do grid por causa das punições que essas
trocas geraram.
O problema de hoje é um só: essa deveria ser uma corrida fácil
para esses carros escalarem o pelotão e chegarem na frente, uma
vez que o circuito é tão enfadonho que muitos fãs e pilotos desejam
que ele seja retirado do calendário. Mas, graças à chuva não prevista
que começou a cair, todas as apostas estão incertas.
Será que os pilotos que largam nos fundos por causa dessas
punições conseguirão chegar ao pódio? Quem será o piloto do dia?
Será que o Juan vai se aproximar do Jack na disputa pelo
campeonato ou será que o Daniel vai se aproximar do Juan na
disputa pelo segundo lugar?
Debruçado no parapeito da “varanda” do motorhome, observo
Caroline dizendo cada uma das palavras da maneira mais assertiva
e segura que consegue. Seu cabelo está preso num coque frouxo e,
apesar de o vento jogar água em seu rosto vez ou outra, ela continua
linda. Limpo a garganta quando Jack para ao meu lado e cruza os
braços como se estivesse me dizendo que sabe o que estou fazendo
e que não vai deixar isso acontecer. Mas não me importo. Caroline
pode não ser mais uma opção, mas é minha amiga, desço os
degraus debaixo da garoa e me mantenho a uma distância segura de
Miyeko.
Por mais que a chuva não esteja pesada, segue insistente. A
previsão é de que até o início da corrida ela pare, e nós esperamos
que essas previsões se cumpram. Afinal, só assim os pilotos
poderão fazer muito mais do que apenas segurar suas posições.
Aqui é Caroline Pimenta, diretamente da Twitch do Garotas No
Padoque.
Depois de finalizar, Carol e Miyeko relaxam o corpo, deixando os
equipamentos embaixo de uma das pequenas tendas disponíveis.
— Apesar da chuva, eu não aguentava mais falar sobre Fórmula
1 sem viver Fórmula 1. — Ouço-a dizendo para a amiga com um
risinho na voz quando me aproximo.
— Pois eu aguentava. As férias foram maravilhosas — Miyeko
responde quando paro atrás das duas, já embaixo da mesma tenda.
— Se eu tivesse passado duas semanas comendo comida
mineira, também teria amado as férias — ela comenta, e as duas
riem.
— Por acaso você está fugindo de alguém, Pimentinha? —
pergunto, fazendo-a pular e se virar para mim.
Caroline escorrega no solo molhado com o movimento, mas a
mantenho de pé pelos braços.
— Até agora de ninguém, por quê? — Ela tenta manter as
feições neutras, olhando em volta.
— Tem certeza? — Cruzo os braços olhando seu descaramento
de cima a baixo.
Pilotos, repórteres e membros das equipes andam de um lado
para o outro embaixo da chuva e eu meneio a cabeça, sorrindo
cordialmente, como se estivéssemos tendo uma conversa banal. A
última coisa de que precisamos é chamar a atenção.
— Se ela tá fugindo de alguém, eu não sei. Mas já que você
apareceu, vou circular e tentar encontrar um lugar legal para a gente
ver a corrida hoje — Miyeko diz e nos deixa.
— Você não respondeu minhas últimas mensagens, achei que
estava fugindo.
Caroline entrou em contato primeiro durante as férias, então
entendi que tínhamos essa abertura. Por isso, mandei mensagens no
último fim de semana para conversar sobre ter resolvido as coisas
com o meu pai e sobre o atual rolo dos meus pais, que é confuso até
para mim. Mas depois da terceira mensagem não respondida,
percebi que estava sendo ignorado.
— Você finalmente se resolveu com seu pai, eu fiquei feliz. Mas
não tinha muito o que falar, eram meus últimos dias no Brasil, minha
mente tava focada em outras coisas... — Ela dá de ombros
colocando as mãos no bolso traseiro.
— Entendi. Bom saber que você não está fugindo, então. —
Cruzo os braços para a sua dissimulação.
— E você, veio seguir na sua insistência de me levar pra sair? —
Ela joga comigo e  percebo que se eu der o braço a torcer, Carol não
vai ceder nunca.
— Na verdade, não.
Caroline troca o peso de perna e me encara com deboche
fervendo no olhar.
— Ah, entendi. Sua agenda não está mais tão livre, né? —
ironiza cruzando os braços e eu franzo o cenho, confuso. —
Provavelmente você vai estar nas baladas de Bruges, beijando
modelos e tal — diz, dando de ombros, e não consigo conter a
risada.
— Ciúmes a essa altura da vida, Caroline? Você nunca foi
assim...
— Ciúmes de você, Harris? Se toca — diz, me dispensando com
a mão, desviando o olhar.  — Sua babá veio te buscar.
Me viro achando que Jack veio se meter onde não foi chamado,
mas dou de cara com Lindsay.
— Você tem uma ação promocional com um patrocinador lá em
cima em cinco minutos — ela diz, parada bem atrás de mim com
cara de poucos amigos.
Bato continência para Caroline me virando para entrar
novamente no motorhome e o olhar de Jack sobre mim não esconde
sua decepção.
— Daniel Harris não é um homem muito firme em suas escolhas
— ele diz quando passamos pela porta e seguimos Lindsay até a
escada que nos levará até a sala de reuniões.
— Se te deixa satisfeito, acho que a gente acabou de tretar.
— O casal chegou ao patamar de estar brigando agora? — Jack
ri balançando a cabeça quando chegamos ao segundo andar.
— Ela é minha amiga, Jack. Não vou parar de falar com ela só
porque você acha que eu deveria. — digo impondo um limite para
essa semetência.
— Uhum... — Jack murmura quando paramos na frente da porta.
— Vocês têm exatamente o tipo de amizade que eu estou tentando
ter com a camerawoman dela.
Meu queixo cai com a confissão, mas a porta é aberta antes que
eu possa dizer qualquer coisa.

A corrida em Spa tem apenas 44 voltas, para quem precisa


escalar um pelotão isso pode ser um problema, mas a chuva parou
antes mesmo da metade da prova, então foi confortável ultrapassar
os carros mais fracos. No entanto, de alguma forma inexplicável,
Juan está vindo com tudo para cima de mim.
Meu carro está mais rápido, mas ele segue na minha cola. No
fundo, compreendo seu desespero, perder o segundo lugar no
campeonato para o cara que ficou com a sua vaga não deve ser
nada legal, mas não entendo a necessidade dele de nos colocar em
risco toda vez que chegamos a uma zona de DRS.
— Daniel, você precisa chegar ao final dessa corrida, ok? —
Phillip diz com uma voz alta e rouca. — Ele está tentando te
desestabilizar e nós precisamos dos seus pontos.
— Ele não vai conseguir, Sir Phillip, não se preocupe. Ainda
tenho muito para dar.
— Nós sabemos. E a FIA também. — Phillip é enfático.
Essa é sua forma de comunicar aos comissários que Juan está
tentando provocar um acidente e seu jeito de dizer para mim que
quem tem de resolver o problema dele não sou eu.
— Ok — respondo, porque não aguento mais Phillip falando no
meu ouvido, mas se Juan acha que eu vou abrir passagem e dar
espaço quando tenho um carro melhor, está muito enganado.
Capítulo 37
Eu acordo gritando depois de sonhar que um dia vou te ver ir embora e a vida perderá todo o sentido. Pela última vez. Sou eu, oi, eu sou o problema, sou

eu.

Anti-hero – Taylor Swift

Carol
Ciúmes.
Nunca vou me perdoar por ter sentido e demonstrado ciúmes
desse Novato. Eu deveria ter respondido a mensagem dele, era só
uma mensagem e eu só precisava escrever o que pensei:
Finalmente, agora vocês vão achar um novo normal, você vai
ver.
Mas não fiz isso. Não fiz, porque ver Daniel naquelas fotos me
deixou insegura, abalada e confusa. Era óbvio que ele não ia me
esperar para sempre e eu agi como se nunca fosse pedir uma coisa
daquelas porque achava que levaria meses, talvez anos, para me
curar.
A verdade, no entanto, é que eu queria que ele me esperasse.
Queria que as coisas fossem como naquele jatinho, quando o mundo
todo era silêncio e só existíamos nós dois. Mas eu não pedi e não dei
nenhuma esperança a ele. Hoje, entendo que sou só uma pessoa
normal e inteira, com algumas feridas a tratar, e ver Daniel seguindo
em frente logo agora que eu sei que conseguiria estar com ele me
deixou com um gosto amargo na boca, carregando a sensação de ter
perdido algo muito precioso porque fui idiota e teimosa.
Vê-lo não foi uma tortura, conversar com ele foi tão fácil quanto
sempre tinha sido, mas ser a pessoa que propõe um encontro e
recebe um não me acordou para a realidade de que talvez eu o
tenha perdido para sempre, e isso dói. Porque Dani estava certo, eu
mereço amor, mas não quero mais qualquer amor.
— Gente, o Juan está tentando tirar o Daniel da pista em todas
as curvas. — Miyeko toca meu joelho esquerdo com o direito dela e
me encara indignada. — A transmissão só fala disso.
Volto meus olhos para a tela e tento focar na corrida. A sala de
imprensa está cheia, esse circuito é um porre e ninguém queria ficar
debaixo de chuva para acompanhá-lo, quando a chuva passou, a
corrida já estava tão monótona que ninguém pensou em sair.
Jack, que largou em décimo primeiro, já está em segundo e
Daniel, que largou em décimo sétimo, chegou ao quarto lugar,
seguido de perto por Juan, que está apenas esperando uma falha
dele para enfiar o carro com tudo.
O rádio de Daniel entra na tela e nós duas nos atentamos.
“Daniel, dez voltas para o fim. Seus pneus estão bons, pode
empurrar. Mas se o Juan forçar, lembre-se de que o importante é
você terminar a corrida.”
“Eu não vou deixar esse filho de uma *** tomar minha posição
depois de todos esses movimentos pelos quais esse *** já deveria ter
sido punido, Phillip. Não abre mais o meu rádio para falar sobre
isso.”
A resposta de Daniel choca pelo menos metade da sala. Como
muitos pilotos, ele odeia o rádio, todos sabem, mas vê-lo xingando e
gritando é uma novidade.
— Se o Daniel bater nessa corrida porque está disputando quem
mija mais longe, eu vou dar na cara dele — sussurro para Miyeko,
que ri me encarando em choque.
— Achei que você gostasse de ele ser agressivo.
— Ele é um piloto, Miyeko, tem de ser. Mas isso não é uma
disputa comum. Foi exatamente desse jeito que o Verstappen
acabou com o carro na Cabeça do Hamilton em 2021.
Lembro desse acidente porque os dois vinham sendo agressivos
e nunca deixando espaço ao longo de várias corridas, todo mundo
sabia que uma hora ia dar merda e ninguém fez nada.
Até que o Hamilton quase morreu.
Nas voltas que se seguem, minhas pernas tremem tanto que mal
consigo respirar. Mas Daniel defende sua posição com maestria,
como o excelente piloto que é.
Juan derrapa na pista em uma curva e quase, quase se afasta
do Daniel o bastante para não conseguir abrir o DRS, mas, como um
imã diabólico, ele se aproxima novamente. Entrando na penúltima
volta da corrida, a batalha entre os dois se intensifica. Juan tenta a
ultrapassagem pela direita numa curva fechada, mas Daniel defende.
Na curva seguinte, no entanto, Juan consegue colocar o carro
lado a lado com o de Daniel. Dessa vez, meu Novato não acelera
nem abre o espaço para que Juan passe, ele joga o carro mais perto
do veículo do espanhol, que perde velocidade ao tentar se defender
e, quando a Arrows passa pela Wolff, a roda traseira de Daniel toca a
frontal de Juan, que roda na pista.
Fecho os olhos imediatamente. Esse tipo de contato pode ser
ruim para apenas um piloto, mas também pode ser bem ruim para os
dois. Todos os jornalistas gritam wow em uníssono, e em seguida a
transmissão notifica que Juan está fora da corrida depois de uma
batalha intensa pelo quarto lugar e Daniel Harris segue firme em sua
posição.
Respiro fundo abrindo os olhos e Miyeko observa minhas pernas
agitadas e mãos trêmulas como quem diz que é hora de sairmos
daqui.
— Topa um ao vivo antes das entrevistas com os pilotos? — ela
pergunta porque obviamente essa disputa deu o que falar e entrar na
live para comentá-la vai ser ótimo para a audiência.
— Claro. Vamos, sim. — Me levanto da cadeira desconfortável e
paro observando a tela. A última volta chega e ainda consigo ver
Daniel se aproximando da linha de chegada antes de sair.
Seguindo Miyeko, só uma frase gira em minha mente: eu vou
matar esse Novato.
Capítulo 38
Ou: Eu não sei por que você se esconde, fecha os olhos, estraga tudo e mente para o cara que você ama. Quando você sabe que pode chorar com ele,

sempre confiar nele e ser gentil com o caro que você ama.

Be Kind – Marshmello feat. Halsey

Daniel
Desde o momento que desceu do pódio, Jack não desgruda de
mim, “nós precisamos conversar” é seu argumento. Assim, fomos à
garagem para que eu me desculpasse com Phillip juntos, nos
trocamos juntos, saímos do autódromo juntos e chegamos ao hotel
juntos. O problema é que Jack não faz o tipo correr e depois discutir
relação, então essa vontade dele de vir para o hotel logo depois da
corrida me deixou com uma pulga atrás da orelha.
— Vamos ao bar? — indago, inclinando o corpo em direção à
entrada do bar do hotel, mas ele me puxa em direção ao elevador. —
Quero comprar um vinho.
— Pede serviço de quarto — diz sem me dar ouvidos.
— Jack, eu vou pedir um vinho — repito pausadamente.
— Daniel, vamos subir. Lá em cima a gente pede a bebida —
Jack rebate caminhando a passos largos, e eu o sigo.
— Você tem algo pra me dizer, Jack? O Rick falou algo sobre a
corrida de hoje? — pergunto o que está me incomodando, não seria
a primeira vez que o Rick faria o Jack de minha babá, e eu não gosto
muito disso.
Mas Jack não responde de imediato, ele me olha como se
estivesse me mandando calar a boca e, quando a porta se abre, nós
entramos na caixa dourada com espelhos nas quatro paredes.
— O Rick não falou nada comigo, ele não se importa com essas
coisas — diz, apertando o botão de seu andar e se colocando na
frente dos números, um modo sutil de me comunicar que estamos
indo para o quarto dele. — Você cruzando a linha de chegada vivo e
com o carro inteiro, ele não vai te encher o saco. Se você tomar
punições, vai te dar um esporro, mas coisa leve.
— Eu realmente preciso de um banho, sabe. Não podemos
conversar depois?
A porta se abre e nós saímos enquanto Jack balança a cabeça
negativamente. Parando na frente do quarto número 3, ele bate à
porta.
— Tem alguém no seu quarto? — pergunto, mas antes mesmo
que ele consiga responder, Miyeko abre a porta.
— Oi, piloto — ela diz com uma voz suave, a mesma que ouvi
pelo telefone quando eles estavam gravando com a família de Jack.
— Oi, Daniel. — Myieko me sorri sem graça e passa por mim,
segurando a porta entreaberta.
— Vai lá, e quando você sair do meu quarto, me avisa, tá bom?
— Jack tenta passar o braço pela cintura de Miyeko, que se
desvencilha dele.
Os dois caminham de volta até o elevador e eu entro.
O quarto de Jack é exatamente igual ao meu. No primeiro
ambiente, está a mesa de refeições, um sofá e a TV. No ambiente ao
lado, uma cama de casal e uma de solteiro e um armário que cabe
roupas para pelo menos dois meses completa o quarto juntamente
da janela infinita embaçada à minha frente que revela o frio lá de
fora.
A única diferença entre o meu quarto e o de Jack é a Caroline
Pimenta de braços cruzados na frente da janela me encarando como
se fosse a própria morte.
— Carol?
— Você realmente achou prudente aquela palhaçada que você e
Juan protagonizaram na corrida de hoje?
De todas as vezes que ela me fez perguntas depois da corrida
ao longo desse ano, essa é, com certeza, a mais esquisita.
— É o quê?
— Você tem noção de que você foi parar no hospital não tem
dois meses? — Caroline bufa andando de um lado pro outro.
Respiro fundo tentando entender o que está acontecendo.
— Você, de todas as pessoas, não pode ser quem vai me encher
o saco por causa de uma corrida, Caroline. — Rio olhando em volta
à procura de câmeras, porque isso só pode ser uma piada.
— Brincar de racha com alguém que está deixando claro que
não tem nada a perder não é correr, Daniel — repreende
gesticulando. — É deixar o outro piloto entrar na sua mente e dirigir o
seu carro.
— Caroline, há uma semana você não respondia minhas
mensagens e agora está querendo ensinar o padre a rezar missa? —
pergunto apoiando as mãos na cintura.
Eu estou a poucos metros da porta, e ela continua tão próxima
da janela quanto antes. O vazio entre nós dois nunca foi tão literal.
— No Brasil, você segurou minha mão e disse que não
conseguia viver sem a minha presença, então estou aqui. — Ela é a
primeira a ceder e dar um passo em minha direção, mas apenas um.
—  Sendo presente e dizendo que você fez merda hoje.
— Você me ignorou no cercadinho, mas teve tempo de
conversar com o Jack e arrumar a chave do quarto dele. — Tento
entender a lógica dos fatos.  — Daí veio pra cá antes da gente e
criou toda essa situação pra me dizer uma coisa que podia ser dita
por mensagem? — A indignação é tão presente em minha voz que
quase se materializa e cruza os braços para encarar Caroline junto
comigo.
— A Miyeko já tinha a chave do quarto dele, Daniel. — Por
alguns segundos, ficamos chocados juntos com o que quer que
esteja acontecendo entre os dois. — Mas a questão não é essa... —
Ela fecha os olhos, coçando a têmpora.
— É essa, sim. A questão é exatamente essa: num dia você age
como se fosse indiferente e no outro age como se se importasse —
digo, batendo as mãos nos meus jeans em desistência.
— Você estava certo o tempo todo, tá legal? Eu tava fugindo de
você e te ignorando… Por ciúmes — rebate, mirando o chão, como
se dizer isso a envergonhasse — E hoje eu estou aqui exatamente
por isso: eu me importo, me importo mais do que conseguiria colocar
em palavras. — Caroline suspira e esfrega o rosto em seguida.
— Por que você se importa? — pergunto com um passo em sua
direção.
— Daniel, não é… — Ela faz menção a sair pela tangente, então
me aproximo um pouco mais.
— Eu quero saber a verdade, Caroline. Por que você está aqui,
agora, me dizendo essas coisas?
Estou perto o suficiente para que ela me olhe nos olhos e diga a
verdade, perto o bastante para que ela não diga nada se preferir me
tocar.
— No dia do seu acidente, foi a Miyeko quem me mandou te
ligar... — diz, com dois passos para trás, e começa a caminhar pelo
quarto. — Ela falou que eu precisava conversar contigo e ter certeza
de que você não tinha morrido sem saber que eu...
— Não me odiava. — Coço o cabelo, mas me mantenho parado.
Se ela quer espaço, não vou sufocá-la. — Eu lembro.
— Não, Novato. — Carol se vira e me encara com os olhos
marejados, abraçando o próprio corpo. — Isso foi o que eu te disse.
Mas a verdade é que não queria que você morresse sem saber que
eu te amava — confessa com num sussurro, e as palavras são como
um murro no meu coração. — Mas, na época, não queria assumir
nem pra mim mesma que te amava, eu tinha outra pessoa e esse
sentimento não era justo com ninguém. Só que hoje… só queria que
você ficasse vivo para que eu mesma te matasse. — Ela impunha o
indicador na minha direção. — Porque não era possível que ia ceder
numa situação daquelas, Daniel. O Juan tava sendo um babaca e
você caiu direitinho — ela diz, irritada, como se ainda quisesse me
agredir. — E talvez você ache que estou aqui por causa dos ciúmes,
ou porque achei que você iria morrer, e tudo bem, talvez isso seja o
que me motivou a falar, mas meu motivo para estar aqui, agora, é
que eu amo você, Novato.
— Eita, cacete. — Percebo que disse isso em voz alta quando
ela ergue a mão me calando.
— Talvez sempre tenha amado e sempre vá amar. E sei que
você já seguiu em frente, mas não posso simplesmente não dizer. Já
te deixei ir embora da minha vida uma vez por não falar as coisas,
então se você quer saber por que armei esse circo... — Ela encolhe
os ombros.  — Foi pra dizer que estou me sentindo péssima por não
ter dito sim quando me pediu pra ficar com você na salinha do
motorhome antes das férias, pra dizer que achei que ia demorar uma
vida pra me curar e estar pronta pra um relacionamento de novo,
mas que eu estava errada, e pra te pedir perdão por ter demorado
demais para perceber o quanto eu amo você.
— Não precisa pedir perdão, Carol. — Minha voz vacila e eu não
sei exatamente o que dizer, então a deixo falar.
— Preciso, Dani. — Ela funga. — Preciso te pedir perdão por
isso; por ter terminado nosso namoro quando senti medo de você se
tornar tão ausente quanto meus pais, foi injusto com a gente; queria
que me perdoasse por ter sido uma vaca contigo na primeira parte
da temporada, sei que já me desculpei por isso, mas a questão é que
eu não esperava que você ainda mexesse tanto comigo e não soube
como reagir. — Caroline força um sorriso, mas as lágrimas não
encontram mais lugar em seus olhos e escorrem livremente pelo seu
rosto.
Meu cérebro me diz para ir até ela, meu coração diz o mesmo,
mas meus pés não se mexem.
— Carol, a gente teve altos e baixos de mais nos últimos meses
e…
— Eu sei — ela me corta e anula o espaço entre a gente com
dois passos apressados. — E sei que existe uma chance enorme de
estar falando um monte de coisas que não fazem mais sentido pra
você, mas Dani, me perdoa por todos os nãos. Eu fui uma idiota.
Acima de tudo isso. — Sua voz embarga e Caroline toca meu rosto.
— Me perdoa por ter te afastado mesmo depois do nosso beijo,
mesmo depois de estar nos seus braços e saber, ter a certeza de
que é você e só você. — Ela vira o rosto para a esquerda na
tentativa de esconder as lágrimas escorrendo num choro contido e,
por Deus, eu amo tanto essa mulher que não sei o que dizer agora
que ela me ama de volta.
Tiro sua mão do meu rosto, mas a seguro com firmeza.
— Carol, depois de ter passado os últimos meses no ciclo de
querer você, aceitar que não teria você, me agarrar a nossa amizade
e entender que a gente não tinha mais espaço para ser um casal,
assimilar o que você está me dizendo é, no mínimo, complicado. —
Ela assente ainda sem me olhar. Toco seu queixo com minha mão
livre, trazendo seu rosto para a frente do meu. — Mas eu estaria
mentindo se dissesse que um mês longe me fizeram te esquecer.
Cinco anos sem contato não fizeram, Caroline, e eu nem tinha ideia
de que poderia ter você de novo naquele tempo, mas…
— Por que precisa ter um mas? — Ela joga a cabeça para trás
com o argumento que eu usei com ela na sala do motorhome antes
das férias e eu rio.
— Porque eu preciso assimilar tudo isso, entender o que você
disse e o que você quis dizer… — digo, finalmente expirando.
Como se estivesse segurando o ar por semanas.
— Tudo bem. — Carol sorri, um riso triste de quem não está
nada bem. — Tive meu tempo, nada mais justo do que você ter o
seu.
— Ótimo — digo, me afastando. — Te encontro no restaurante
do hotel em duas horas, então? — pergunto e o sorriso falso dela se
torna uma careta de dúvida em dois segundos.
— Como assim?
— Você me deve um encontro desde Silverstone, Caroline, não
se faça de desentendida.
— Mas você não queria um tempo?
— Te disse que preciso de um tempo, não de férias de você. —
Encolho os ombros. — Duas horas para mim é o suficiente — digo,
pensando em tudo o que preciso fazer para que tenhamos a noite
perfeita.
Ela meneia com um risinho de canto e eu acaricio seu rosto.
Ficamos assim por um tempo, num quarto de hotel vazio, tentando
entender o que está acontecendo agora, o que estamos sentindo e
onde estamos nessa relação.
Caroline é a primeira a descobrir a resposta, porque ela se
coloca na ponta dos pés e cruza os braços atrás da minha cabeça
me puxando para um beijo.
Doce, calmo e terno. Ao mesmo tempo que cada movimento diz
o quanto ela me ama, grita o quanto ela me quer e sussurra o quanto
ela deseja que eu a ame de volta.
Me afasto, descansando minha testa na dela.
— Te vejo em duas horas, Novato.
— Te vejo no nosso encontro, Pimentinha — digo, correndo o
polegar pelo seu lábio inferior, e ela se vira com um sorriso genuíno
no rosto.
Deixar Caroline perceber que eu não podia correr sozinho por
nós dois exigiu uma frieza que eu só tinha dentro das pistas, mas foi
necessário. Observando-a sair desse quarto, pronta para voltar para
a minha vida, tenho certeza de que, apesar de odiar tirar o pé do
acelerador, essa não foi uma escolha ruim a se fazer.
Capítulo 39
E eu não sei como isso pode ficar melhor você pega minha mão e me joga de cabeça, e eu me sinto destemida. E eu não sei porquê, mas com você eu

dançaria em uma tempestade, com meu melhor vestido, me sentindo destemida.

Fearless- Taylor Swift

Carol
Observo meu reflexo no espelho do quarto e um filme passa pela
minha cabeça. Quando reencontrei o Harris em Silverstone, jamais
imaginei que minha vida poderia mudar tanto, que eu poderia mudar
tanto. Passo a mão pelo vestido preto antes de jogar um sobretudo
azul marinho por cima e sorrio lembrando de como fiquei revoltada
quando Daniel me chamou para sair no meio de todo mundo. Talvez
eu tenha me revoltado tanto porque, no fundo, sempre quis aceitar.
Amasso os cachos apenas o suficiente para que eles fiquem
bonitos quando eu os prender num coque baixo. A ventania da noite
de Liège nunca me permitiria sair com esse cabelo solto.
Indo até o banheiro, coloco os sapatos puxando a meia calça
para que ela fique o mais reta o possível e deixo dois cachos soltos
na frente das minhas orelhas quando prendo o coque.
É hora de ir encontrar o Daniel e, se tudo der certo, é hora de
voltar a ser a Pimentinha do meu Novato.

O caminho do meu hotel confortável, mas sem estrelas, até o


quatro estrelas no qual Daniel está hospedado não leva mais do que
quinze minutos no táxi, e se eu dissesse que prestei atenção na
vista, estaria mentindo. Abro a porta desejando uma boa noite ao
taxista e saio dando de cara com Daniel Harris esperando por mim
na porta do hotel.
O rosto dele se ilumina e seu sorriso me faz sorrir também.
Respiro fundo subindo o primeiro degrau e aceitando a mão que ele
estende.
— Boa noite, Pimentinha. Você está maravilhosa.
— Você também não está nada mal. —  Olho para ele de cima a
baixo. Veste uma camisa branca, um jeans escuro e um sobretudo
marrom que coroa a energia de homem gostoso que ele emite.
— Que bom, eu demorei para decidir exatamente qual camisa de
gola polo usar para te agradar.  — Daniel implica e eu reviro os olhos
enquanto ele passa a mão pela minha cintura e me dirige até a
entrada do restaurante, à esquerda do saguão.
Daniel dá o nome de sua reserva e a mulher nos acompanha. A
seguimos até uma área quase que reservada do restaurante, longe
do salão e distante do bar o suficiente para que o menino de ouro da
Arrows Racing não seja importunado pelos clientes que nos
acompanham com o olhar. Uma luminária paira sobre nosso cantinho
e duas garrafas d'água, uma com e outra sem gás, estão dispostas
sobre a mesa.
A hostess nos apresenta a Alexander, nosso garçom, e Fynn, o
maitre. Depois das apresentações, pegamos os cardápios e eles nos
deixam à vontade para escolher.
— Você fez uma reserva com apenas duas horas de
antecedência num domingo de corrida? — pergunto com a
sobrancelha erguida e ele roça a língua no lábio inferior.
— Eu sou um dos pilotos. Digamos que nós sempre temos
facilidades nesse tipo de situação. — Pisca para mim, se debruçando
sobre a mesa. — Mas me fala das suas férias. Como foram?
— Eu basicamente fui pra um retiro de autoconhecimento —
digo, e sua cabeça inclinada junto do seu olhar confuso quase me
provocam um risinho. — É sério, eu fiquei num apartamento, fazendo
terapia duas vezes por semana e saindo de casa apenas para fazer
as coisas que minha psicóloga pedia.
— Foi bom saber que você estava colocando a cabeça no lugar
com ajuda profissional.
— Foi o único jeito que deu certo. — digo, segurando o riso. — E
acredite, eu já tinha tentado de vários. Mas, foi muito bom. Saber que
consigo ficar bem sozinha, não estar no espaço de outra pessoa,
entender as minhas vontades, as coisas que gosto… Foi importante
e eu nunca teria conseguido sem a Natasha, não largo mais essa
mulher.
— Você já sabia que ia se cuidar quando a gente conversou
antes das férias? — ele pergunta e eu assinto tomando um gole da
água. — Foi por isso que…
— Uhum. Por mais que eu quisesse você, eu precisava de mim
primeiro. — Encolho os ombros e Dani toca minha mão direita sobre
a mesa.
— Agora me fala dos seus pais… Como foi com eles dessa vez?
Tão bom quanto da última?
— Foi incrível — digo e não escondo o sorriso que toma meu
rosto. — Eu conversei com eles abertamente antes de voltar.
— E como foi?
— Um surto. — Coço a têmpora só de lembrar. — Acusações,
lágrimas, sorrisos, abraços…
— E isso é bom ou ruim?
— Isso significa que nós estamos dispostos a tentar, os três. O
passado é uma coisa que a gente nunca vai mudar, mas é pra frente
que se olha, então eu preferi ser sincera e tentar recomeçar daqui.
— Eu estou orgulhoso de você, sabia?
— Porque eu tô fazendo terapia e resolvendo minhas
pendências? — Rio, será que a situação era tão crítica assim?
Daniel segura o riso, fechando os olhos.
— Estou orgulhoso de você, Caroline Pimenta. Da sua
honestidade consigo mesma, da sua coragem, do seu trabalho…
— Eu deveria, inclusive, estar trabalhando — digo, mas o
protesto de criança frustrada de Daniel é interrompido pela volta do
garçom e do maitre que nos faz arregalar os olhos e rir, porque nem
olhamos para os cardápios.
Nosso pedido acaba sendo a sugestão do chef. Para beber,
pedimos água com gás e refrigerante, para tristeza do maitre. O
álcool está fora de cogitação, quero me lembrar desse dia, de cada
detalhe dele.
— Você ainda tem que trabalhar essa noite? — pergunta assim
que os rapazes nos deixam.
— Escrevi um artigo geral pra soltar no site, ficou bom, já tá no
ar. Mas ainda preciso entregar material pra semana, geralmente
escrevo uns 2, 3 artigos no domingo.
— Mas você pode fazer isso amanhã, não pode? Ou terça?
A expectativa presente no olhar, o jeito que Daniel morde o lábio
inferior e une as sobrancelhas em esperança me fazem tocar sua
mão sobre a mesa.
— Amanhã, novato — digo, enquanto ele entrelaça nossos
dedos, pensando que terça tenho terapia e não consigo imaginar
como começar a contar o que está acontecendo aqui para Natasha.
— Agora anda, me conta como foram as suas férias. Menos as
histórias das suas baladinhas.
— Você nem sabe se eu fiquei com alguém. — Ele se diverte
com meu ciúme.
— E nem quero saber. — Minha recusa o faz rir balançando a
cabeça, mas não quero que pareça que estou cobrando algo de um
homem que estava solteiro. — Anda, fala do teu pai.
— Estar com ele perto da minha mãe foi como voltar no tempo.
Éramos uma família de novo e ele não me sufocava. — O sorriso de
Daniel enche o ambiente. — E nosso problema... não era um bicho
de sete cabeças. Eu nunca quis confrontá-lo, porque ele era o cara
que podia tirar meu patrocínio e ele queria que eu olhasse para a
empresa como uma opção de trabalho sem risco de vida...
— Pais são pessoas confusas. Por que ele simplesmente não
disse isso pra você?
— Acho que porque pais são pessoas confusas. — Encolhe os
ombros, e curvo os lábios num meio sorriso.
— Meus pais me pediram para ficar com eles alguns dos fins de
semana sem corrida e me propuseram férias em família também.
Achei fofo.
Daniel me encara semicerrando os olhos.
— Você adorou, Caroline Pimenta.
— Tá, adorei. — Reviro os olhos. — Mas gostei de verdade
porque entendemos que queremos isso juntos e eles vêm passar o
Natal comigo. Vai ser legal.
— A gente pode tentar fazer um Natal com as duas famílias, o
que você acha?
— Tipo, com os seus pais, juntos?
— Digamos que meus pais só precisaram de alguns meses de
conversa e um fim de semana na mesma casa pro assunto namoro
surgir.
— Tipo teria acontecido com nós dois se eu não tivesse um
relacionamento quando a gente se reencontrou, né?
— É diferente. Eles estavam divorciados há mais de dez anos.
— A gente tava sem se falar há cinco anos e só foi preciso o
clichê de só ter uma cama… — Lembro-o e Daniel ri de canto. —
Mas, me fala, você ficou bem com esse namoro?
— Não é um namoro ainda. Eles estão num rolo, mas não é
sobre mim, então… Sim? — pergunta retoricamente e eu dou de
ombros. — Acho que sim. Gosto mais do meu pai quando minha
mãe tá por perto também.
— Então vocês estão bem?
— Nós vamos ficar — diz, as palavras carregadas de certeza.
— Que bom, Novato. E, sabe… Tirando aquela babaquice de
hoje, estou muito orgulhosa também. — Sorrio para ele e acaricio
seus dedos. — Olha pra você, Novato. Terceiro colocado no
campeonato no seu primeiro ano em uma equipe boa.
— Confesso que tem sido um ano difícil, tive altos e baixos com
a Fórmula 1 também, parece que tudo o que eu amo impõe uma
barreira de desafio. Se eu consigo passar por ela, aí sim eu tenho
uma chance válida, mas… Ganhar a última corrida antes das férias e
conseguir pontuar bem nessa me deixou confiante. — Meneio a
cabeça para ele quando dois garçons se aproximam com nossos
pratos.
Pulamos a entrada e começamos nosso jantar no prato principal
porque eu estou sedenta pelos waffles e chocolates belgas. Mas
confesso que a sugestão do chefe, o boulet à la liégeoise, é
maravilhosa. a mistura das carnes suína e bovina coroada com o
molho agridoce não poderia ser mais saborosa.
Continuamos conversando enquanto comemos. Estar com
Daniel é bom, é confortável e é leve. Ele disse um dia que eu sou a
coisa mais próxima que ele tem de uma casa e acho que é
exatamente isso.
Esse cara sentado na minha frente, me fazendo sorrir com
elogios agora como fazia há cinco anos, tocando minha mão
furtivamente quando diz algo não muito casto, me encarando por
mais tempo que o necessário e ouvindo tudo o que eu digo com
atenção é a minha pessoa favorita no mundo.
Daniel Harris é o meu lugar seguro em meio a oito bilhões de
pessoas. E, mesmo que as coisas tenham desandado em algum
momento, estou feliz por estar aqui com ele e poder amá-lo sem
ressalvas agora.
— O que aconteceu que você tá tão quieta? — Daniel afasta seu
prato vazio e segura minhas duas mãos sobre a mesa.
— O gato comeu minha língua — implico.
— Espero que não.
— Você tem planos para ela essa noite? — Ergo minha
sobrancelha com a audácia desse Novato.
— Alguns… — rebate sem pestanejar — E não só pra essa
noite.
— Ótimo. — Pisco para ele. — Mas eu não tô quieta, tô ouvindo
você.
— E tá pensando em quê?
— Por que você me chamou de “garota dos meus sonhos” em
Silverstone? — pergunto a primeira coisa que vem à minha mente e
espero uma resposta boba ou uma implicância.
Mas Daniel solta minha mão, se recostando no acolchoado da
poltrona, e coça a nuca.
— Você sabe quando foi a primeira vez que eu te vi, Caroline
Pimenta?
— Claro que sei, no meu primeiro dia de aula, que pergunta é
essa… — Pego o copo de água com gás porque sinto minhas mãos
vazias.
— Bom, poucos meses antes de as nossas aulas começarem, o
GP de interlagos foi um marco histórico na Fórmula 1. — Ele começa
e eu fico tentando entender aonde esse homem quer chegar. — Miss
Claire estava no Brasil comigo, nós fomos para o autódromo —
Daniel diz, me deixando confusa, mas não o interrompo. — E você
também foi.
— Fui, essa foi uma das nossas primeiras conversas no colégio.
Meu Novato sorri, e então narra para mim tudo o que aconteceu
naquela corrida. Só que ele não fala sobre a pista, e sim, sobre a
arquibancada. Sobre mim e todo o meu amor infantil por milionários
disputando racha legalizado.
— Você me viu? — pergunto, confusa, e ele assente como se
tivesse contando um segredo muito precioso.
— Não sei explicar o que foi ver você entrando pela porta da
nossa sala no primeiro dia de aula. Eu literalmente caí da cadeira. —
Daniel ri sem jeito e eu me concentro em ouvi-lo. — Porque naquele
domingo, debaixo de chuva, em Interlagos, eu me encantei por você.
Não tinha a menor ideia de quem você era, mas conheci a força da
natureza que você era, e acho que ali, mesmo ali, eu te amei. Não
desse jeito — Se apressa em dizer quando meus olhos arregalam —,
não  como casal. Mas como alguém que eu poderia ter na minha
vida para sempre. Dividindo todas as coisas que eu amasse e
aprendendo todas as coisas que você amasse também. Aquela foi a
primeira noite que sonhei com você, mas não foi, nem de longe, a
última.
— E por que você nunca me disse nada disso? — pergunto e
Daniel segura o riso.

Não encontrei um bom momento entre você fingir que eu tinha
roubado seu diário e a gente virar amigos... Depois eu era seu
namorado e... Você tinha deixado de ser sonho para ser realidade. —
Ele encolhe os ombros.
— Agora que eu sou real de novo, o que a gente vai fazer?
— A gente precisa conversar sobre isso.
— Nós estamos conversando, Harris. — Suspiro antes de
continuar. — Naquela noite, no seu jatinho, eu te disse que a única
coisa que valeria a pena com você seria uma coisa séria.
— Você está me pedindo em namoro, Caroline?
— Estou dizendo que eu te amo, Daniel. Mais do que achei que
conseguiria amar alguém, mais do que eu pensei que me permitiria
amar alguém. — Me corrijo e vejo quando sua respiração acelera.
Elese levanta e, antes que eu pergunte o que está fazendo, meu
Novato se senta ao meu lado. — Estou dizendo que dentre todos os
lugares que já estive no mundo, você é o único que eu chamo de
casa, então eu espero que você me ame de volta e me queira na sua
vida. — Sorrio sem jeito. — Caso contrário, eu não tenho a menor
ideia de quem amar, ou de onde morar — finalizo, com o coração na
mão.
Ele me observa por um tempo, em seguida acaricia meu rosto.
— Minha Pimentinha... — Daniel diz, como se estivesse me
chamando, e nunca foi tão bom ouvir um pronome possessivo.
— Oi, Novato.
— Eu vou te beijar agora — ele diz e toma minha boca num beijo
discreto, mas profundo e intenso.
— E você vai me dizer o que esse beijo significa? — pergunto
quando ele descola nossos lábios, mas não se afasta.
—  Que agora você é, oficialmente, minha namorada. — Ele me
dá um selinho. — Que nós vamos pedir a conta e se você quiser
sobremesa, a gente vai comer no meu quarto. — Seus lábios tocam
os meus novamente, mas apenas por uma fração de segundos. —
Que você vai trabalhar daqui amanhã, porque não estou pronto pra
ficar longe de você. — Ele me beija, de verdade dessa vez, me
puxando para si pela nuca, e eu o afasto, porque ainda estamos em
público. — E que quero te levar para as corridas que você não tem
patrocínio pra ir, porque é injusto demais ficar longe logo agora que
você assumiu que eu sou o amor da sua vida.
— Eu disse isso, Daniel? — sussurro rente aos seus lábios.
— Quase… — ele diz e morde meu lábio inferior.
— Temos alguns sims e alguns nãos para os seus pedidos —
respondo, e ele faz um beicinho tão charmoso que eu poderia beijá-
lo por horas. — Mas podemos falar sobre eles amanhã, quando a
gente acordar.

Menos de cinco minutos se passam entre pedirmos a conta e


chegarmos ao andar de Daniel. Tropeçamos nos beijando no
caminho da saída do elevador até a porta.
Ele procura o cartão no bolso afoito, mas quando o encontra, fica
me encarando em vez de abrir.
— Tá tudo bem, Novato?
— Depois de muito tempo apenas seguindo em frente, posso,
finalmente, dizer que está tudo bem. — Ele sorri e me beija, ouço
quando o cartão passa pelo leitor e o sinto me puxando para dentro
do quarto, mas não me afasto.
Não agora que posso beijá-lo livremente e sentir o quanto o amo
estando em seus braços.
— Olha pra mim, Caroline Pimenta — Daniel pede, e, curiosa
com o motivo de ele ter parado o beijo, abro os olhos.
Quase faço uma piadinha com termos voltado no tempo direto
para o início dos anos 2000, mas sorrio sem jeito olhando em volta e
entendendo por que esse Novato me pediu “um tempo” de duas
horas.
— Não sabia que você era do tipo “pétalas de flores”, Harris… —
digo olhando em volta e observando que elas não estão apenas
sobre o colchão num formato de coração, mas também por todo o
chão, como um caminho até a cama.
— Eu não era. — Daniel me puxa para perto, colando nossos
corpos. — Mas a garota dos meus sonhos desdenhou tanto de fazer
amor comigo na cama do meu jatinho que eu percebi que precisava
me esforçar na nossa primeira vez. — Ele finge sussurrar e eu rio,
puxando-o pela nuca para um beijo.
— E aí você quis fazer algo especial para ela…
— Quis fazer algo especial para nós dois. Eu esperei muito
tempo por isso também.
Daniel caminha comigo até a cama e me deita gentilmente sobre
as pétalas.
— Acho que sua garota dos sonhos só não tava pronta pra cama
do seu jatinho. Qualquer lugar com você seria maravilhoso —
confesso quando ele tira a camisa e se deita sobre mim.
— Ótimo, porque agora a gente vai poder ter muitas primeiras
vezes. — Daniel me beija, ainda pairando sobre mim, e eu cruzo as
pernas em sua cintura colando nossos corpos…
— Esse é o nosso caminho sem volta, certo? — pergunto, me
livrando dos meus sapatos.
O olhar de Daniel encontra o meu e nós sorrimos.
— Eu te amo, Caroline Pimenta. Te amei todos os dias da minha
vida e você não pode mais fugir de mim, tudo bem? — declara de
maneira incisiva.
— Acho que, depois de tudo, fugir de você não faria sentido. É
como se a vida fosse um circuito longo, que sempre vai me trazer pro
mesmo lugar. — Corro o indicador até o coração dele. — E, se a
Carol de alguns meses atrás tinha raiva disso, eu me sinto feliz,
porque essa é uma verdade que me traz segurança.
Daniel se inclina sobre mim, inspirando na curva do meu
pescoço. Então ergue o rosto para olhar nos meus olhos enquanto
passa a ponta do polegar pelo meu lábio inferior.
— Minha segurança também é saber que a vida é o caminho que
me leva até você.
Epílogo
Você é o meu Sol da manhã. Aurora, é você, você é o meu Sol da manhã.

Aurora – Daisy Jones and The Six

Carol

Três anos depois


Existe um momento muito específico no qual, ainda que quase
todas as coisas ao redor continuem iguais, tudo dentro de você
muda.
Quando entendi que minha parceria com Miyeko chegar ao fim
não queria dizer que nossa amizade também chegaria e aceitei ser
correspondente exclusiva de um veículo tradicional, pensei que
aquele era o meu momento específico. Afinal, para uma garota que
cresceu amando Fórmula 1, trabalhar com isso ganhando bem o
bastante para uma vida confortável é aquele tipo de sonho que você
cultiva em silêncio, sabendo que é bobeira.
No entanto, vendo-o se aproximar de mim no fim da cerimônia
do pódio que consagrou seu primeiro campeonato mundial e segurar
minha mão, tirando uma aliança do bolso, com um enorme sorriso no
rosto, meu coração se aperta por instinto e algo me diz que, na
verdade, esse é o momento no qual tudo vai mudar.
Daniel Harris está radiante.
Seus olhos brilham enquanto a torcida ainda grita seu nome, e
agora eu entendo por que ele insistiu tanto que nossas famílias
ficassem junto à equipe e não em algum camarote.
Me empertigo ao lado de Rick e minha mãe me empurra mais
para frente enquanto Daniel se ajoelha e respira fundo com os olhos
nos meus.
— Carol? — grita enquanto seus olhos verdes me estudam.
— Oi, Daniel, eu sou Caroline Pimenta, do F1 Around the World.
Conta pra gente qual é a sensação de ser campeão mundial? —
Brinco com a pergunta que fiz a ele em Silverstone há 3 anos,
porque não teria como fazer isso de outro jeito sem explodir em
lágrimas.
Daniel respira por alguns segundos, segurando minha mão com
os olhos marejados, como se um filme da nossa história passasse
pela sua cabeça, e eu sei exatamente no que ele está pensando.
Nos adolescentes bobos e apaixonados que fomos, nos jovens
turrões e debochados que éramos e no casal bobo, apaixonado,
turrão e debochado que nos tornamos.
— É a melhor coisa que eu já senti até agora — ele grita, com
um aquele sorriso que sempre reservou para mim nos lábios. — Mas
acho que você pode tornar isso pequeno, Pimentinha.
— É mesmo? Como? — Berro de volta, quase explodindo de
tanta ansiedade.
— É só a garota dos meus sonhos aceitar se casar comigo. — O
modo como seus olhos escrutinam os meus sugere um nervosismo
que não vi esse homem ter nem quando entrou no carro para um
tudo ou nada quanto ao título nessa corrida.
Desço meu rosto até seus ouvidos, porque não tem como gritar
uma frase enorme.
O autódromo se converte num silêncio quase completo, como se
eu tivesse cometido um crime.
— Não entendo muito sobre casamento, mas falei com a garota
dos seus sonhos e ela disse sim — respondo, com uma lágrima
escorrendo pelo meu rosto.
— Ela disse sim! — Daniel vocifera, nos levantando, e todos
voltam a gritar. A aliança mais bonita que já vi na vida desliza em
meu dedo, fogos estouram no céu e meu novato me pega no colo.
— Esse é o dia mais feliz da minha vida. — Ele grita com um
sorriso enorme, deixando claro que isso tem muito mais a ver comigo
do que com seu título, e eu sorrio de volta.
Ciente de que não foi só Daniel que ganhou ao longo da nossa
jornada. Ao lado do meu Novato, eu descobri que a dor, o sofrimento,
o abandono, o desprezo e qualquer outra coisa que as pessoas
tenham feito comigo não eram quem eu sou.
Eu estava nos braços do meu Novato quando entendi que sou
uma pessoa digna de ser amada e viver uma boa vida. Digna de
falhar e de recomeçar, sempre que necessário. Porque apesar do
amor não curar todas as coisas, ter alguém do seu lado ao longo do
processo pode ser o que você precisa para o seu coração amar
plenamente outra vez.
FIM
Nota da autora
Oi, obrigada por chegar até aqui.
Se você já acompanha meu trabalho há algum tempo, sabe que
terapia é um assunto muito importante para mim e,
consequentemente, para os meus personagens.
Mas se a onda de “fazer terapia até ficar bem para amar alguém”
bateu à minha porta um dia, foi antes de eu ser uma mulher casada.
Não tinha a menor chance de eu estar 100% bem sem o suporte
e apoio do meu marido. Não tinha a menor chance de eu esperar
chegar uma cura completa sobre todos os assuntos que me
perturbavam ou destruíam para que eu amasse o Marcelo. E isso
acontece porque, talvez, esse milagre de superar todas as coisas
nunca vá chegar.
Talvez você precise, sim, ficar sozinha e colocar algumas coisas
no lugar, mas também existe a possibilidade de a pessoa que te ama
com todas essas questões não resolvidas ser a que mais vai te
ajudar.
O Marcelo é o amor da minha vida, e eu até achei que sabia
disso quando me casei, mas eu estava errada.
Eu só soube disso no dia a dia; na caminhada; nos olhares
ternos; nas conversas às 3h da manhã quando estou ansiosa; nas
vezes que ele me deixa no quarto para dormir, mas leva meu
telefone com ele porque sabe que se eu ficar perto do telefone, não
paro de trabalhar e, principalmente, nos dias ruins. Dias nos quais
ele cuida de mim, da casa, da comida e da roupa nos intervalos do
trabalho; dias que ele me abraça e ora por mim e comigo porque
sabe que eu preciso do Senhor e não sei como me achegar a Ele e
dias que ele me arranca da minha posição fetal na cama, me
mandando jogar videogame ou me fazendo caminhar com ele no
parque porque sabe que são coisas que me animam de verdade.
No entanto, não foi uma, nem duas, nem três vezes que eu tentei
terminar com esse homem dizendo que ele merecia uma pessoa
normal. Mas, veja bem, eu sou normal.
Assim como a Carol era.
Assim como a grande maioria das pessoas.
E, acredite em mim, a garota com mais sessões de terapia do
que gostaria na conta:
Você merece ser amada e viver uma vida linda.
E sempre que você achar que não é boa o suficiente para o
super-homem (no meu caso, Batman) ao seu lado, lembre-se:
Amor verdadeiro não é querer ficar ao lado de alguém por causa
dos momentos bons, é querer continuar ao lado desse alguém
apesar dos ruins. A gente se despedaça e se refaz um monte de
vezes ao longo da vida, felizes são os que têm quem permaneça ao
seu lado nesses momentos.
Com amor,
Tay.
Agradecimentos
Meu agradecimento principal é a você, leitora.
Agradeço se você me conheceu por esse livro, afinal, esses dois
são tudo pra mim.
Mas agradeço com o coração ainda mais quentinho se você
chegou aqui antes. Chegar ao topo da Amazon e mudar totalmente o
foco da escrita não foi uma coisa fácil, mas eu só pude fazer isso
porque vocês acreditaram em mim e ficaram.
Agradeço às minhas betas: Carol, Gabi, Nathy e Fran por todo o
apoio e toda a ajuda sem a qual esse livro não seria o que ele é hoje.

Agradeço demais a todos os profissionais que tornaram esse


livro possível:
Emy, que fez a ilustração do epílogo e as artes da Arrows
Racing;
Moisés, meu consultor literário; se não fosse pela insistência
dele, meu professor de escrita, essa história não existiria.
Fran, minha leitora técnica de psicologia;
Liv, que revisou esse livro com a alma;
Andy, que aceitou diagramá-lo num prazo curtíssimo;
Kauan, que ilustrou os dois no muro do amor em Paris (hihihi,
cena extra);
Cris, que aceitou o desafio de desenhar os bebês quando eram
bebês.
Gabes, obrigada pelo lettering que veio aí depois de vários
testes;
Jay, que me deu uma capa linda depois de (sem brincadeira)
vinte versões.
Barbará Sá e Binha Cibelle, essa capa não seria a mesma sem
vocês!

Por fim, agradeço ao Diogo, meu designer que não soltou da


minha mão ao longo do surto que foi esse pré-lançamento.

Best-sellers e Canceladas, eu agradeço demais todo o suporte


de sempre.
Lewis e Naomi, obrigada por serem as pessoas mais bonitas do
mundo e embasarem meus personagens.
Agradeço à minha mãe, que me incentivou tanto para esse livro
sair. Metade da força e escrita dele veio da mamãe Alvez.
Agradeço a Sophia, minha irmãzinha de doze anos que resolveu
como eu faria a narração das férias do Daniel sem deixar maçante.
Agradeço ao meu pai por todo o apoio, saber que fazer o que eu
gosto e escolhi traz orgulho pra ele é um alívio.

Marido, obrigada por ser o melhor marido que eu podia ter, de


verdade. Na minha jornada, eu tive uma carreira linda em
multinacionais com RH e tenho construído uma carreira incrível com
a escrita e a CEO E MOÇA DO CAFEZINHO, e eu amo tudo isso.
Mas nossa família é a maior conquista da minha vida, porque ela é
pra sempre.
Te amo.
 
 

 
[1] As traduções das letras de música contidas no livro serão feitas por mim, a autora, e
adaptadas para o português com fins de facilitar a compreensão do sentido que uma
tradução literal impediria.
[2] A Paddock é o local que abriga as equipes, veículos, oficiais de prova e convidados
durante as corridas.
[3]
ou Rookie, que é como chamam os pilotos em seus primeiros
dois anos de F1.
[4]
"Drag Reduction System", ou "Sistema de Redução de
Arrasto": o DRS auxilia na estabilidade e aerodinâmica do carro nas
retas, diminuindo a resistência do ar e aumentando
consideravelmente a velocidade.
[5] A pizza de Pepperoni é uma variação dessa pizza, que é feita com salame picante
na Itália.
[6] Um tipo de edredom comum na Europa.
[7] On-call é quando o funcionário não está trabalhando na empresa nem em home
office, mas precisa estar de  prontidão para, casa role algum B.O. começar a trabalhar
prontamente.
 

Você também pode gostar