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Playlist
Dedicatória
Just Give Me a Reason – Pink e feat. Nate Ruess
Mastermind – Taylor Swift
Não fosse tão tarde – Lou Garcia
Mercy – Shawn Mendes
Hate you - Jordi
Night Changes - One Direction
Tell Me You Love Me - Demi Lovato
Dias de luta- Charlie Brown Jr.
July – Noah Cyrus
Devil Doesn’t Bargain - Alec Benjamin
Decode - Paramore
Ela já que o amor não existia - Juliana Simonetti (Poema)
As it was – Harry Styles
Count on me – Bruno Mars
Oops!... I Did It Again - Britney Spears
Please Don't Leave Me - P!nk
Kill You To Try- Daisy Jones & The Six
Photograph – Ed Sheeran
Why – Shawn Mendes
Crowded Room - Selena Gomez
Hey there, Delilah - Plain White T's
The way I loved you – Taylor Swift
Devil Doesn't Bargain - Alec Benjamin
Flowers - Lauren Spencer-Smith
All I Want - Olivia Rodrigo
Matilda - Harry Stiles
Wrong Direction - Hailee Steinfeld
She Will Be Loved - Maroon 5
More Than You Know - Axwell /\ Ingrosso
THE LONELIEST - Måneskin
Big Girls Don't Cry - Fergie
Pais e Filhos – Legião Urbana
Moral Of The Story - Ashe
My Immortal – Evanescence
All I Want – Olivia Rodrigo
Closer - The Chainsmokers ft. Halsey
Anti-hero – Taylor Swift
Be Kind – Marshmello feat. Halsey
Fearless- Taylor Swift
Aurora – Daisy Jones and The Six
Nota da autora
Agradecimentos
Ao meu marido, que trouxe de volta meu amor pela F1. Um que eu nunca deveria
ter perdido. À Ana Caroline Rodrigues, que queria uma fanfic dela com George
Russel, não rolou a fanfic, mas chamei a mocinha desse livro de Ana, espero que
baste.
Dedicatória
Amor de verdade.
Aquele que vai conquistar o mundo, mas ainda terá você como maior prêmio.
Carol
Existe um momento muito específico no qual, ainda que quase
todas as coisas ao redor continuem iguais, tudo dentro de você
muda.
Quando minha diretora me comunicou que eu estava deixando a
redação para me tornar repórter de Paddock, pensei que aquele era
o meu momento específico. Afinal, para uma garota que cresceu
amando Fórmula 1, ser a jornalista que entrevista os pilotos é aquele
tipo de sonho que você cultiva em silêncio, sabendo que é bobeira.
No entanto, vendo-o caminhar em direção ao cercadinho – área
onde os pilotos dão as entrevistas pós-corrida – com um enorme
sorriso no rosto depois da sua primeira vitória na Fórmula 1, meu
coração se aperta por instinto, e algo me diz que, na verdade, esse é
o momento no qual tudo vai mudar.
Daniel Harris está radiante.
Seus olhos brilham enquanto a torcida da equipe grita seu nome.
Jack – o companheiro de equipe – dá dois tapinhas nas costas dele
e se afasta. Como se dissesse que essa tarde fria e cinzenta da
primavera britânica é de Daniel. Só dele. Que segue trocando
abraços e apertos de mão com outros pilotos pelo caminho. Sendo o
cara novo em uma grande equipe, é fácil conquistar a torcida dos
companheiros de grid.
Se você não for uma pessoa escrota, é claro.
E isso, o cara de sorriso fácil que está parando à minha frente
agora nunca foi. Me empertigo enquanto ele pousa as mãos na
grade que nos separa e, finalmente, respira fundo, desviando a
atenção de toda a festa que fazem para ele.
— Carol? — Seus olhos verdes me estudam incrédulos.
— Oi, Daniel, eu sou a Caroline Pimenta, do Garotas no
Padoque. Conta pra gente qual é a sensação de ser o P1 no GP de
um dos seus países de origem. — Mantenho o profissionalismo, mas
ele continua escrutinando cada traço do meu rosto.
— Esse é o dia mais incrível da minha vida. — Vejo-o balançar o
cabelo suado e colocar o boné da equipe, apoiando novamente as
duas mãos na grade em seguida.
O sorriso em seu rosto, unido a como seus olhos invadem os
meus, sugere que a resposta dele tem mais a ver com o fato de eu
estar aqui do que com sua vitória.
E o trouxa do meu coração pula uma batida.
— E você já sabe qual é a expectativa pro próximo GP ou só
quer aproveitar o dia de hoje ao máximo?
— Minhas energias já estão concentradas nas entrevistas pós-
corrida do próximo GP. — O tom é descontraído, contudo, a
sobrancelha erguida faz meu rosto arder em vergonha. — Mas ainda
quero aproveitar meu dia como vencedor.
— Daniel? — a assessora de imprensa da equipe diz atrás dele,
com os fios ruivos voando e um perfeito sotaque britânico.
— Um segundo, Lindsay — pede com o indicador erguido. —
Carol, ser vencedor de um GP tão importante quanto Silverstone é...
sensacional. Principalmente quando você é meio britânico, então
esse é um dia inesquecível — diz, dando de ombros em seguida. —
Agora, a única coisa que falta pra ser perfeito é a garota dos meus
sonhos aceitar sair comigo. — O tom segue profissional e eu sorrio
com cordialidade, mas o “garota dos meus sonhos” me bate com
força.
— Muito obrigada, Daniel. Até o próximo GP. — Encerro a
entrevista, porque é a única coisa que consigo fazer agora.
— Você aceita? — pergunta, chamando a atenção de todos.
— O quê?
— Sair comigo? — Dani franze o cenho ao me entregar um
risinho de canto, como se a pergunta fosse óbvia demais. Fecho os
olhos, respirando fundo por alguns segundos.
Não pela pergunta, mas porque percebo que acabei de passar
de repórter para notícia. Todos os olhos e microfones ao nosso redor
estão virados para mim, e não mais para Daniel.
Na verdade, quase todos: dois rapazes fazem anotações que,
com certeza, vão virar pautas sobre a garota dos sonhos de Daniel
Harris.
Mas eu sempre andei no canto da calçada, nunca me expus
mais que o necessário, e jogar do lado mais seguro é a minha zona
de conforto... Assim, mesmo que meu coração estúpido esteja
tentando rasgar meu peito, desvio o olhar do sorriso que ele sempre
reservou para mim.
— Nossa, Daniel. Apesar de estar lisonjeada... — Encolho os
ombros, encarando-o, e Dani lê em meu olhar que não vou ceder.
Observo-o arrastar os dentes, frustrado, mas ele trata de manter a
postura. —
Vou precisar dizer não. — A surpresa generalizada é
ouvida pelos suspiros ao redor, e não consigo acreditar que ele fez
isso.
Qual é o direito que ele acha que tem depois de me deixar para
trás há 5 anos para perseguir os próprios sonhos?
— Tudo bem, Pimentinha. — Ele bate na grade, se afastando, e
o apelido quase me faz revirar os olhos. — Corrida que vem a gente
se vê, e na próxima, e na outra também. — Enumera na mão direita,
deixando claro em cada palavra que o convite vai ser refeito em
todos os fins de semana que nos encontrarmos.
— Boa sorte, Novato. — Fico na ponta dos pés para devolver o
desafio a um Daniel já distante, que bate continência e se vira de
costas.
Antes que comecem a me fazer perguntas, me desvencilho dos
outros repórteres e ignoro completamente Miyeko, minha
camerawoman, tentando manter a compostura. Ela se esforça para
me acompanhar enquanto carrega os equipamentos pesados, e sei
que ela tem um milhão de perguntas sobre o que acabou de
acontecer, mas não consigo prestar atenção a ela.
A única coisa que penso é nesse inferno de vida: Ele realiza o
sonho e vira o piloto de ouro. Eu realizo o meu e preciso entrevistar o
ex toda semana.
Ótimo.
Capítulo 2
Ou: Eu preparei o terreno e, como o mecanismo de um relógio, os dominós desabaram em fila. E se eu te dissesse que sou uma mestra da manipulação?
Daniel
“Você só pode estar brincando.”, consigo escutar a voz de Carol
quando o elevador se abre.
Apesar de ela não ter dito essas palavras com os lábios, pude
ouvi-las nas ondas de desaprovação e raiva que iam e vinham em
seus olhos.
É impressionante como ela sempre foi essa garota petulante,
chata, irritante e... Linda! Só que agora Carol está
perturbadoramente linda, profissional e... adulta.
O sorriso ainda é igual ao que me fazia sorrir junto, mesmo
quando o dia tinha sido uma merda; o cabelo volumoso, com mechas
mais claras, coroou seu rosto de um jeito diferente. A única coisa na
qual eu conseguia pensar era no quanto queria beijá-la, como se
fosse normal, natural, como se tê-la comigo fosse o certo.
Ver Carol diante de mim no Paddock[2] me fez sentir como se as
coisas não tivessem mudado, como se cinco anos não tivessem
passado.
Cinco anos inteiros desde que ela decidiu que não deveríamos
ser mais um casal, e aqui estou eu: saí de fininho da minha própria
festa de comemoração porque não consigo parar de pensar nela.
Largo os sapatos na entrada do quarto e caminho pela suíte,
jogando a blusa em algum lugar que só a camareira vai ser capaz de
achar, enquanto tento me convencer de que vou conseguir dormir
essa noite.
Me sento na cama com os cotovelos apoiados nos joelhos e
deixo a cabeça descansar em meus dedos. Coço os olhos e flashes
da tarde de hoje invadem minha mente. Minhas pernas balançam
mais que estrutura de viaduto superfaturado, e é óbvio que não vou
conseguir dormir. Pelo menos não agora.
Pulo da cama e vou até a mesa do quarto, quase jurando que só
quero pegar algo para comer, mas, no fundo, sei o que estou
fazendo. Antes mesmo de me sentar, abro a nuvem e clico duas
vezes sobre a pasta Não Falar Sobre Ela, coçando os olhos ao me
sentar enquanto os arquivos carregam.
Abro o arquivo 1, um print da primeira matéria escrita pela Carol
para o site no qual ela trabalha. O texto, sobre o anúncio do retorno
do Fernando Alonso à F1, estava bom, mas cru. Eu o li numa tarde,
deitado na rede da casa da árvore da minha mãe. Senti inveja do
Alonso naquele momento e, com certeza, não foi porque ele tinha
dois títulos mundiais. Fiquei observando a tela e pensando se, algum
dia, ela escreveria sobre mim.
Meses depois, em palavras mais maduras e empolgadas, Carol
falava sobre as expectativas e o peso do nome no início da carreira
de Mick Schumacher.
Ainda tem algumas dezenas de prints antes que eu chegue ao
que me interessa e, por mais que o trabalho de Carol valha o tempo,
não tenho como reler todos agora. Arrasto a tela até o artigo “O que
esperar do Novato?”.
Rio de canto ao pensar no quanto ela deve ter brigado para
manter “Novato” com letra maiúscula no fim de uma frase.
Provavelmente alguém achou que ela tinha se equivocado na grafia,
mas eu sabia o que aquilo significava.
Caroline Pimenta esteve ao meu lado por muito tempo enquanto
eu traçava meus caminhos até a Fórmula 1 e até antes disso. Se não
fosse por ela, talvez eu nunca tivesse conseguido ser um
“Novato”[3]..
Carol
A entrevista no cercadinho acabou pouco depois da cena de
Daniel, mas ainda passei boas horas no Paddock com Miyeko.
Primeiro, fomos à coletiva pós-corrida; em seguida, gravamos takes
externos para as reportagens sobre o fim de semana e, por fim,
material extra para o outro projeto no qual ela está trabalhando.
Foram as horas mais longas da minha vida de repórter, e as
mensagens no meu celular eram tantas que o desliguei.
Estava ciente de que a grande maioria eram felicitações pelo
meu primeiro dia como repórter de campo. Contudo, sabia que as
pessoas mais próximas e as minhas chefes não falariam de nada
além de Daniel Harris. O último assunto sobre o qual eu estava a fim
de debater.
Assim que terminamos, os olhares evasivos e o tom de voz
manso de Miyeko deixavam claro que ela queria falar sobre a
entrevista de Daniel. Era normal ela estar curiosa. Mas eu não tinha
a menor condição de explicar a ela, que nem fazia ideia de que eu
conhecia Daniel Harris, tudo o que tinha acontecido entre a gente.
Então decidi sair pela tangente, pelo menos por hoje.
Não foi fácil, afinal, estamos hospedadas na mesma pousada.
Mas aproveitei a vontade dela de jantar num restaurante local para
voltar sozinha. Argumentei que jantaria por aqui mesmo porque
precisava começar a escrever o artigo sobre o fim de semana.
Não é mentira, realmente tenho que fazer isso. No entanto, não
era segredo que só voltei porque queria me esconder.
Não queria falar de Daniel para Miyeko.
Não queria falar dele para ninguém.
Adiei esse assunto o máximo possível, mas, recostada a uma
cadeira acolchoada ao lado de uma janela embaçada enquanto bebo
uma xícara de chá, encaro a mensagem de Laís. A primeira na longa
lista de não respondidas ao longo do dia.
Laís: Meu Deus, Amiga.
Consigo ver o rosto apreensivo e ouvir a voz animada da minha
melhor amiga enquanto leio as palavras.
Laís: Ele simplesmente GANHOU o primeiro GP que você
COBRIU.
Eu: Sim...
Digito e, em seguida, apago, decidindo postergar um pouco mais
esse momento.
Deixo o celular e a xícara na escrivaninha ao meu lado e me
levanto. Segurando a manga do meu casaco na palma da mão, uso
o punho direito para limpar a janela. Mesmo que o lado de fora não
esteja tão limpo, observo uma área quase rural, com muito verde e
poucas pessoas. Por alguns segundos, me permito fingir que não
sou uma carioca friorenta e abro a janela apenas o suficiente para
sentir o ar que corre lá fora.
Talvez porque o aquecedor esteja mantendo o quarto quente
demais, talvez porque o dia de hoje tenha me deixado sufocada, não
sei. Mas, quando abraço meu corpo, tenho certeza de que não é só
pelo frio que estou fazendo isso.
Daniel Harris era o meu namorado, sim. Mas também era meu
melhor amigo e minha pessoa favorita no mundo. É estranho pensar
que ele ganhou sua primeira corrida na Fórmula 1, um sonho que
nós sonhávamos juntos, e eu não estava lá.
Até estava. Mas não como a gente imaginou.
Meu celular toca, me despertando do devaneio, e fecho a janela.
Mesmo no espaço minúsculo do quarto, consigo tropeçar nos meus
próprios pés – lindas pranchas de surf tamanho 39 – no caminho de
três passos até a cama.
O nome Gabriel ♥ brilha na tela e me faz sorrir quando me jogo
na cama.
— Oi, amor...
— Oi, Vida, tudo bom? — Ouço a voz aveludada que tanto me
acalma e me deito, sentindo meu corpo ser abraçado pelo colchão
macio.
— Tudo, sim, quer dizer, ainda não jantei, mas tirando a fome...
— Então... E o babaca do seu ex? — A pergunta chega
embebida em desdém, mas regada a ciúmes. O canto direito da
minha boca se repuxa num meio sorriso.
— Você quer saber como ele está, se eu o vi, se falei com ele...
— Para de brincar, Carol. — Gabriel me repreende, e eu seguro
o riso.
— Tá bem. Eu o vi hoje. Mas ele foi profissional e… — Minha
voz morre quando lembro que não, ele não foi profissional e, no fim,
eu também não fui.
— E?
— E foi estranho como eu achei que seria.
Um risinho invade meus ouvidos antes de o comentário chegar:
— Ele ficou surpreso de te ver aí, né? — Respondo com um
uhum. — Se eu tivesse perdido a mulher mais incrível do mundo e a
reencontrado cinco anos depois: linda, gostosa e dona e proprietária
da Fórmula 1 no Brasil, eu também ficaria.
— Para de ser bobo. — Minha risada enche o pequeno espaço.
Amo meu trabalho, mas ainda tenho muito chão para andar se
quiser ser levada a sério como jornalista. Ser a “garota nova” de um
veículo que deixou de ser apenas imprensa escrita há dois anos não
é, necessariamente, o ideal de dona e proprietária de nada.
— Sério, eu fiquei com medo de ele ser babaca com você, te
desprezar ou falar gracinhas... — Gabriel diz com tanto desprezo que
me assusta.
— Eu sei me cuidar, esqueceu?
— Sabe tanto que está deitada, enrolando a ponta de um cacho
no dedo enquanto escuta o estômago roncar.
Reviro os olhos para o quão bem ele me conhece.
— Eu ia descer pra jantar quando você me ligou, tá?
— Vou fingir que acredito. Vou entrar no canal mais tarde, eu
queria ter visto ao vivo, mas não deu.
— Não precisa. — As palavras voam da minha boca. — É
domingo, descansa.
— Eu tô com saudade, sabia? — A confissão sussurrada acaba
comigo.
Estou na Europa há um mês. Vim conhecer o trabalho e
entender a rotina com a antiga repórter, Patrícia, minha chefinha
querida, e não nos vemos desde então.
— Sim, eu também estou.
— E quando eu te vejo, Vida?
Rio da pergunta.
Com o budget que a gente tem, ficar indo ao Brasil é impossível.
O máximo que o canal consegue é bancar nossas viagens com a
ajuda de patrocinadores e alugar um apezinho nos arredores de
Paris, uma vez que a França é a melhor localização para viajar para
qualquer canto da Europa. Mas fazer ponte aérea com o Brasil é
totalmente fora de cogitação.
Esse foi o principal motivo que fez a Paty desistir de acompanhar
a temporada. Ela queria se casar. Também foi o motivo que me fez
pensar muito se deveria vir ou não. Ainda bem que eu tenho o
Gabriel, que não só apoiou minha decisão, como me incentivou a vir.
— Você tá pensando em me visitar? — brinco.
— Ou eu vou te ver, ou eu mantenho nossa casinha em ordem.
Nossa casinha. Borboletas voam por todo canto com essa frase.
— Tudo bem, eu acho que é hora de ir jantar. Ainda preciso
trabalhar hoje.
— São o quê? Nove da noite aí?
— Sim, mas eu tenho contas para pagar em euro agora, tô
escrevendo textos no freela para qualquer site que quiser me pagar.
— Entendi, Vida. Então vai lá, vou desligar, te amo.
— Também te amo.
— Mas eu te amo mais.
E eu desligo assim que ele diz isso. Gosto de ouvir e gosto ainda
mais de acreditar que seja verdade.
Daniel
Na primeira vez que falei com Carol Pimenta, eu tinha treze
anos. Nós estudávamos na mesma sala, tivemos um atrito público
que resultou numa disputa de quem prega mais pegadinhas em
quem e que, ao fim de três meses, já tinha se tornado minha
amizade favorita da escola.
Contudo, isso não significa, de forma alguma, que aquela foi a
primeira vez que a vi.
No fim do ano anterior, Dona Claire, ou melhor, Miss Claire –
vulgo, a minha mãe –, estava me visitando em suas férias de
trabalho. Como ela era a única pessoa na família que levava minha
paixão por automobilismo a sério, me carregou para a única corrida
de F1 que acontece no Brasil até hoje, o Grande Prêmio de
Interlagos.
A corrida foi, como quase sempre é no Brasil, uma corrida linda.
Cheia de ultrapassagens e emoção. Só que o que mais chamou
minha atenção naquele dia não foi a corrida de gênio que um novato
aplicava durante uma prova embaixo de chuva, mas sim, a garota
escandalosa que estava na fileira de cima.
Trajada da cabeça aos pés com roupas da RedBull, o cabelo
encaracoladinho preso num rabo de cavalo e uma voz muito potente,
gritava para os pilotos de sua equipe como se eles pudessem ouvi-
la.
Passei boa parte da prova vendo-a dizer o que deveriam fazer e
como deveriam. A garota intercalava os olhares entre a tela de um
celular e a pista e seguia gritando que aquilo estava errado, que
daria errado, cutucando o pai para dizer que “agora sim” aquele
novato estava no caminho certo.
Como eu disse, era como se eles pudessem ouvi-la e, de alguma
forma, eles puderam. Porque hoje, quando você menciona aquele
Grande Prêmio, ninguém lembra da disputa violenta entre o líder e
vice-líder do campeonato, as pessoas só falam sobre o novato e
como ele dominou a arte de correr na chuva.
Honestamente, o que sei sobre essa corrida foi o que vi na
internet depois, eu estava realmente vidrado demais na garota
barulhenta para prestar atenção a qualquer outra coisa. Não tinha
me dado conta disso, mas quando minha mãe me cutucou, dizendo
“Você perdeu alguma coisa lá atrás, meu amor?” enquanto eu
observava a garota gritar pelo pódio do piloto que ela gostava,
percebi que mal tinha assistido à última volta.
Naquele dia, passei a noite no hotel com a minha mãe, estava
cansado demais para pensar em deixar meus dias preciosos com ela
e voltar para a casa do papai.
Antes de nos deitarmos, ela me deu chá com leite, como bebem
os ingleses, e um beijo de boa noite. Assim que Miss Claire se deitou
em sua cama, encarei o teto me lembrando da garota barulhenta e
pensando que eu daria qualquer coisa para ter uma amiga que
gostasse tanto de F1 quanto eu.
Aquela foi a primeira noite na qual sonhei com Caroline Pimenta,
mas não foi, nem de longe, a última.
jeito nenhum.
Carol
Uma parte de mim esperava que o dia de ontem tivesse sido
apenas um pesadelo, mas acordar pela manhã e ver meu celular
ainda cheio de mensagens não respondidas deixa claro que foi bem
real.
Com toda a minha maturidade de mulher independente, coloco o
travesseiro na cara e grito com todo o ódio que sinto por Daniel
Harris. Como se só o burburinho não fosse me incomodar o
suficiente, Gabriel viu nossa entrevista.
Gabriel ♥: Carol, você deu pra mentir pra mim agora?
Gabriel ♥: Perguntei como as coisas tinham sido e o babaca do
teu ex quase te beijou no meio de tudo mundo e você disse que tinha
sido “profissional”.
Gabriel ♥ : Quando você saiu daqui, sua profissão era repórter,
tô confuso com essa atualização de trabalho que inclui flertes.
Hoje, se Deus não me levar, eu vou sozinha.
Deixo o celular em cima da cama e vou me trocar para encontrar
Miyeko para o café. Não tenho a menor condição de lidar com o
chilique de Gabriel agora.
muda?
Daniel
It’s lights out and away we go. Essa frase, algo como: as luzes
se apagam e a corrida começa, é o que me faz amar assistir Fórmula
1 no idioma original, ainda que as narrações brasileiras sejam mais
emocionantes.
Começou na adolescência, quando eu costumava passar as
férias na casa da minha mãe. Miss Claire sabia o quanto eu amava
Fórmula 1, então domingos de corrida eram nossos dias de ficar em
casa e não receber ninguém. Esses eram meus domingos preferidos.
Toda vez que entro no meu carro e as cinco luzes se acendem,
sinalizando que a largada vai ser dada em alguns milésimos de
segundo, ainda escuto essa voz em algum lugar dentro de mim.
Hoje, como em todas as outras vezes, no apagar das luzes,
minha mente também se apaga.
Estratégias e estudos cercam a vida de todo piloto, mas a
verdade é que você não tem vários planos na sua cabeça durante
uma largada. Quando acelera e firma seu corpo atrás do volante, não
imagina como vai ser se ultrapassar um ou seis carros de uma vez.
A única coisa que você sabe é que a corrida começou.
Daí em diante, conta com sua equipe e seu subconsciente para
a maioria das decisões, porque você está a centímetros do chão, seu
veículo treme, a força G te atinge e correr se torna um jogo de foco,
equilíbrio e concentração. Um jogo no qual qualquer erro pode ser
fatal, se não para você, ao menos para sua corrida.
Ouço o barulho do meu rádio e, em seguida, a voz de Phillip.
— Quinto lugar. Daniel. Quinto lugar. Bom trabalho.
Me forço a sorrir. Largar em sétimo e ter ganhado duas posições
no início da corrida é um ótimo sinal. Mas a próxima curva se
aproxima, e concentro minhas forças em manter meu corpo no lugar.
Num esporte tão rápido quanto esse, poucas coisas fazem você se
dar conta da marcação exata de onde terminam as retas e começam
as curvas quanto a pressão da Força G.
Ela chega, comprime seu corpo e te força a acompanhar o lado
da curva, seja ele qual for. Nesse momento, sua mente entende por
que você precisa tanto malhar e por que precisa malhar os músculos
do pescoço: para ele não sair do lugar.
Depois da quinta volta – de um total de cinquenta e três – as
coisas parecem se acalmar, meu carro desliza sobre a pista, o som
natural dos motores vibra no asfalto e, apesar do frio, não há sinais
de chuva no radar, e as condições da pista também estão ótimas.
assim.
Carol
— Boa tarde, galera do Garotas no Padoque, aqui é a Carol
Pimenta direto do Circuito de Monza. A corrida acabou e, em
instantes, a gente vai conseguir entrevistar os pilotos. — Abro a
transmissão com um sorriso enorme e vendendo uma emoção que a
corrida não entregou. — Mas, antes disso, preciso comentar que
essa foi uma corrida limpa e sem confusão com a diretoria de prova.
Além de ter sido a primeira na temporada na qual todos os carros
cruzaram a linha de chegada, o que significa que, para a grande
maioria do público, a corrida foi um sonífero. — Dou um espaço de
três segundos para as risadinhas e memes no chat antes de
continuar. — Já para nós, brasileiros, o resultado foi outro. Pela
terceira vez na temporada, Daniel Harris está no pódio. Depois de
dois anos vendo-o correr em uma equipe com orçamento baixo, acho
que a gente acabou esquecendo que ele era um fenômeno nas
categorias de base. — Mais dois segundos para que o pessoal do
chat levante essa discussão. — Agora, vendo-o correr numa grande
equipe, estamos sendo finalmente recompensados pelo talento que
sabíamos que ele estava guardando em algum lugar. — Meneio a
cabeça e espero Miyeko fazer o sinal de positivo, que denota o fim
da transmissão, e me posiciono rente à grade.
— Nossa, Daniel Harris, o talento da Fórmula 1 — Miyeko
sussurra ao se aproximar. Seguro minha vontade de mostrar a língua
para ela, uma vez que estamos em público e vou em direção à área
de entrevistas.
— Cala a boca, o Jack tá chegando. — Me posiciono de frente
para a grade e aguardo minha vez. Miyeko começa a gravação.
Nem sempre conseguimos entrar ao vivo com tudo, então
gravamos o máximo de material possível para hospedar no canal
depois.
— A gente vai fazer o Jack ao vivo — ela informa assim que o
piloto se aproxima.
— Grande dia, Jack, pronto para um tricampeonato? —
pergunto, e ele joga a cabeça para trás antes de responder.
— Eu queria ser um cara legal e dizer que ainda estamos no
início da temporada e que é um pouco cedo para isso. — Jack se
vira para ter o boné da equipe, com os logos dos patrocinadores,
colocado na cabeça. — Mas a verdade é que qualquer piloto bom
nasce pronto pra ser campeão do mundo. — Pisca como se fosse
óbvio.
— E foi com esse pensamento que você fez aquela largada
brilhante hoje?
— Não, a largada precisou ser boa porque o carro do Juan —
cita o segundo colocado —, estava mais rápido esse fim de semana.
Tive de tirar o possível e o impossível do carro e assumir a liderança,
seria muito difícil ultrapassá-lo depois. — Jack demonstra toda a sua
grande performance soltando os músculos dos ombros enquanto
fala.
— Só para a gente terminar: você teve uma pequena dificuldade
nisso depois da primeira parada, certo?
— Como eu disse, eles estavam mais rápidos, acho que se eu
não tivesse parado antes, não teria conseguido retomar a liderança
depois.
— Obrigada, Jack.
— Até semana que vem, Carol. — Jack me dá as costas, Miyeko
sinaliza que saímos do ao vivo, e eu aproveito para entrevistar outros
dois pilotos que terminaram a corrida na zona de pontuação. Passo
para as próximas entrevistas me perguntando como eu cheguei aqui
semana passada e ele já me conhece pelo nome. Harris, óbvio.
Como a etapa da Itália foi um sonífero, as perguntas também
não carregam tantas emoções. Mas os rapazes pontuaram e estão
felizes, então isso gera uma boa quantidade de materiais extras.
— O próximo a gente vai fazer no ao vivo, hein — Miyeko diz
num tom divertido, semicerrando os olhos.
Não entendo o porquê, mas antes que eu possa perguntar, ela
acena que está se comunicando com a produção pelo ponto
eletrônico, que é o máximo de ajuda que temos por aqui. Observo a
movimentação das equipes de TV europeias, muito maiores e com
estruturas que nem se comparam à nossa. Ainda assim, sou grata
por fazer parte de um projeto tão legal quanto um canal que acredita
nas mulheres como jornalistas e fãs de esporte.
Meus olhos ainda vagueiam pelo espaço de entrevistas pós-
corrida quando batem nos de Daniel, que pisca para mim no meio da
entrevista que está dando. Desvio o olhar, deixando-o cair em
Miyeko, que encolhe os ombros de maneira teatral.
— O Harris é o próximo.
Entendo que essa é a maneira de ela me dizer que vamos entrar
ao vivo, mas nesse caso, deveríamos estar seguindo uma ordem.
— Cadê o Juan? — Olho em volta confusa, mas não avisto o
segundo colocado.
— Lá do outro lado, ele vem depois. Foca o seu piloto agora.
Não tenho tempo nem de reagir ao “seu piloto”, porque entramos
ao vivo de novo e o Daniel para na minha frente com seu sorrisinho
de canto petulante.
— Boa tarde, Daniel. Apesar da pole do Jack, esse não foi um
fim de semana fácil para vocês. Depois de terminar a corrida
passada num P1, você ainda considera o P3 um bom lugar? —
pergunto e finjo ajustar meu microfone para poder desviar os olhos
dos dele.
— Depois de ter saído do P7, sim. Gostaria de ter feito um tempo
melhor ontem para largar das fileiras da frente hoje, mas não
aconteceu — pondera, se apoiando na grade e encolhendo os
ombros. — Então, sim, P1 é sempre melhor que P3, mas por hoje
vou me contentar com ele.
— Durante a corrida, você conseguiu duas ultrapassagens de
maneira fácil, mas no final, deixou todo mundo tenso com a disputa
pelo terceiro lugar. Vocês tinham uma estratégia traçada para isso ou
foi no improviso?
— Não sabia que tinha deixado vocês tensos. — Seus olhos
verdes brilham enquanto suas palavras me provocam. — E não
foram fáceis, na largada principalmente. — Faz questão de pontuar.
— Mas sobre o final, a gente tinha uma estratégia, sim. Pneus
macios, terceiro lugar e volta mais rápida.
— Vocês conseguiram os três, então — concluo, e ele meneia a
cabeça. — Bom, nas últimas voltas você foi enfático em pedir o
silêncio do seu engenheiro, como isso te ajuda?
Ele digere minha pergunta por alguns segundos e vira o boné
para trás antes de responder.
— Conheci uma garota uma vez que me disse que se eu ficasse
pensando demais o tempo todo, nunca terminaria uma corrida. “As
voltas duram menos de dois minutos, não dá pra ficar pensando no
que fazer, você precisa sentir”, ela dizia. — Engulo em seco e me
forço a manter os olhos nos dele, que está sorrindo para mim, de
maneira sutil e misteriosa: o nosso sorriso. — Então pensei nela,
você sabe, a garota dos meus sonhos. — Sinto que minhas pernas
vão derreter com as palavras dele. — Precisava do som do meu
motor, queria senti-lo tremer e ter a confiança de que ele não falharia
se eu empurrasse demais, se acelerasse demais, se eu tentasse
demais.
— O motor falhar era uma opção? — pergunto com a voz
arranhando minha garganta.
— Sim. A gente tava testando algumas coisas no limite, então
era. Mas preferi arriscar. — Assinto com um leve sorriso e agradeço,
essa é a deixa de Daniel para sumir da minha frente, mas ele não o
faz — Às vezes, a gente precisa arriscar. Mesmo parecendo que não
vai funcionar.
— E saímos do ao vivo. — Miyeko praticamente grita. Volto meu
rosto para ela, que está sorrindo e dando dois passos para trás,
como se quisesse me dar privacidade. No entanto, o repórter ao meu
lado engata uma pergunta, e eu me afasto sem nem olhar para
Daniel. — O Juan já está disponível — ela diz, como se não tivesse
acabado de tentar me jogar ao tubarão.
Dou um passo para a direita, onde o segundo colocado na
corrida e no campeonato está e, esperando-o terminar com o
repórter da vez, me posiciono da melhor maneira para voltar ao ar.
O humor do piloto está horrível. Segundo colocado é ruim, muito
ruim. Ele não soa como uma conquista, e sim como um “quase”. No
entanto, nesse caso específico, soa ainda pior. Juan é o ex-
companheiro de Jack, piloto que Daniel substituiu na Arrows Racing.
Ele trocou de equipe quando ficou visível para todos que, mesmo
que ele fosse bicampeão mundial, a Arrows não ia dar preferência a
ele como primeiro piloto se o Jack estava entregando mais na pista.
Infelizmente, apesar de ter ido para uma equipe tão grande quanto a
antiga, o carro de Juan desse ano não é exatamente o que ele
esperava.
Questiono sobre a temporada num geral, e não sobre a corrida
para não focar na derrota nem o ofender com alguma pergunta de
resposta óbvia, mas ainda assim ele claramente só está aqui por
obrigação.
Quando Juan se despede, me viro para Miyeko e cruzo os
braços.
— O que foi?
— Por que fez aquilo? — indago, me aproximando. — Você sabe
tanto quanto eu que ele não estava falando sobre a corrida quando
veio com esse papo de arriscar.
Miyeko não responde, apenas encolhe os ombros e respira
fundo.
Daniel
Uma semana sem corrida foi como um mês sem ver Caroline,
mas fingi não me importar. Na verdade, encarei como uma
desintoxicação. Aproveitei esse tempo para colocar a cabeça no
lugar e me lembrar de que, apesar de esse ser o meu primeiro ano
em uma grande equipe, estou tendo um desempenho acima do
esperado e mostrando na pista aquilo que sou capaz de entregar
para o time.
Passei a semana de “folga” com a Miss Claire, e mesmo sendo a
mulher mais classuda que já conheci, minha mãe segue se sentando
ao meu lado para assistir TV no fim da noite de moletom, como
fazíamos na minha infância.
Estar com ela é sempre bom, e por isso me permiti esquecer os
dias que preciso passar no Brasil, leia-se como o meu pai, em breve.
Contudo, assim como estava fazendo há um bom tempo, ignorei
esse problema e ao fim do meu descanso, voei para a França, onde
tivemos o GP da semana passada. Naquele momento, eu estava
certo de duas coisas:
1 - Manteria toda a minha atenção na corrida.
2 - Ao fim da corrida, entraria na sala de reunião da equipe para
alinhar as melhorias no carro e estratégia para a próxima semana.
E nada além daquele GP chamaria minha atenção.
A decisão de manter os olhos apenas no Grande Prêmio de Paul
Ricard não pareceu tão difícil, afinal, eu precisava mesmo estar com
a guarda alta. Qualquer deslize poderia acabar com o meu fim de
semana, e as coisas em Monza já tinham sido complicadas o
suficiente.
Por isso, quando esbarrei com Caroline pelos motorhomes na
quinta-feira, a cumprimentei e fui gentil, mas não ultrapassei nenhum
limite; na sexta, tivemos alguns segundos de entrevista, mas não fui
nada além de profissional; já no sábado, quando ela e Miyeko
apareceram na garagem para gravar uma reportagem sobre o
desempenho de Jack depois da classificação, me forcei a
permanecer do lado de dentro.
Assim, tive certeza de que conseguiria enfrentar um domingo
vendo-a pelo Paddock sem ter meu foco abalado. E, em grande
parte, consegui.
Combinando uma estratégia arriscada com trocas de pneus
rápidas e precisas num fim de semana no qual o tempo se dividiu
entre calor infernal e chuva torrencial, consegui entregar o segundo
lugar. Terminando apenas depois de Juan, com Jack logo atrás de
mim.
Durante as entrevistas pós-corrida, me segurar diante de Carol
também foi fácil, eu tinha entregado mais uma corrida de ouro, então
todos tinham uma dúzia de perguntas. Contudo, quando esbarrei
com ela perto dos motorhomes, falhei com maestria.
O que deixou aquele domingo muito parecido com todos os
outros foi que cheguei ao autódromo com o sangue fervendo, fiz
uma corrida genial e levei um senhor fora da dona Caroline Pimenta.
O que me deixou full-pistola comigo mesmo.
Não o fora, mas a forma como eu perco o foco perto dela.
Passei uma semana dizendo a minha mãe que faria o que fosse
necessário para focar o campeonato e esquecer as distrações, mas,
na primeira chance, me joguei nos pés de uma delas.
A verdade é que, no fundo, eu tinha esperanças de ficar mais
próximo da Carol a cada corrida. Contudo, parece que quanto mais a
gente interage, mais longe fica e eu não sei mais o que fazer.
Sentado no meio de uma cama kingsize, à meia luz e comendo
pizza enquanto meu companheiro de equipe me julga, tento
encontrar uma desculpa para não ter saído com ele e os outros caras
essa noite. Mas os olhos de Jack, que me estuda de pernas
cruzadas do sofá no pé da minha cama, não saem dos meus.
Ele está esperando uma resposta, mas nada do que eu disser
vai satisfazê-lo.
— Só não queria ir pra balada, cara. — Dou de ombros dando
um gole na minha latinha. — O que tem de mais?
— Nada de mais. O problema não é a gente ter passado o
domingo do GP de Mônaco que eu ganhei e você pegou mais um P3
comendo pizza com a TV desligada na bagunça do seu quarto. —
Ele enfatiza todas as palavras que acha necessário enquanto corre
os olhos pelo cômodo, e eu seguro o riso.
— Obrigado por ter ficado, cara — digo, ligando a TV, e Jack
bufa a minha frente. — Seria uma bosta terminar esse dia sozinho.
— Ah, é. Sozinho, porque ainda tem mais essa. Você tá
fissurado numa mulher que não te suporta.
— Eu tenho coração, filho da mãe. Vai com calma. — Jogo uma
latinha vazia na direção de Jack, que a pega no ar, mostrando que os
treinos de reflexo estão em dia.
— E é mentira?
Espero que sim.
— Não sei.
— Não sabe?
— Não. Ela nunca me pediu diretamente pra não a convidar para
sair. Então continuo. — Encolho as pernas em cima da cama como
se mentir para mim mesmo pudesse me proteger.
Caroline nunca pediu para parar, mas também nunca me pediu
para continuar.
— A Miyeko comentou que o namorado da sua garota está
pegando no pé dela. — A risadinha dele deixa claro que não adianta
nem eu tentar refutar. — Relaxa, cara. Ele está do outro lado do
mundo, e você, aqui. Não precisa ficar tão desesperado, é só deixar
o tempo e a distância fazerem o trabalho deles.
Quase argumento que não estou esperando pelo fim do namoro
de Carol, uma vez que tê-la de volta a minha vida tem mais a ver
com a companhia e o quanto minha Pimentinha significa para mim
do que ter um envolvimento romântico com ela. Mas outra coisa me
soa mais relevante agora.
— Desde quando você é íntimo da Miyeko?
— Ela faz parte da equipe que está gravando meu documentário,
seu trouxa. — Jack desvia o olhar e sorri de canto enquanto leva seu
copo à boca. Conheço esse sorriso desde quando não éramos
companheiros de equipe. — E a Miyeko também é produtora, sabia?
Geralmente é ela quem conversa com as equipes e colhe
informações — rebate, querendo me tirar de louco.
— Jack, não sei como você, o líder do campeonato, resolveu ser
acessível para uma produtora/câmera de um canal de streaming —
digo, com o indicador erguido — Mas deixe o pequeno Jack longe da
amiga da Carol — exijo.
— Posso te garantir que não é pequeno — ironiza, mas o olhar
culpado não me engana.
— Cala a boca, babaca.
— Enfim, voltando ao assunto da sua garota. — Jack
desconversa e dá um gole em sua latinha. — Deixa ela quieta. Vai
ser melhor pra todo mundo.
— Todo mundo, menos pra mim. Eu não vejo a Carol só como
minha ex, cara. Ela era minha amiga. — Estico as pernas e passo
uma por cima da outra ao mesmo tempo que cruzo os braços. —
Não me importo se Carol tem alguém, não a quero na minha vida só
se ela for minha namorada. — Jack apoia o cotovelo na mesa e me
encara confuso. — Quero poder conversar com ela, saber onde ela
está hospedada ou em qual andar do hotel ela está e ir até lá
conversar. Quero rir das coisas absurdas do Paddock e da corrida,
estar perto dela, conhecer essa nova Carol. — Despejo em cima
dele, que me encara com olhos arregalados.
Se Jack soubesse o que eu ocultei então, que quero poder ter de
volta na minha vida a única pessoa perto de quem eu me sinto em
casa, ele cairia duro na minha frente.
— Nossa, meu Deus. Você realmente gosta dela, né?
Sim.
— Não sei. Eu nem conheço essa Carol... — minto.
Ela é a mesma pessoa. Exatamente a mesma. E eu amo cada
pedacinho dela.
Jack não responde, e eu paro de observá-lo. Fixo o olhar na TV
a minha frente e penso que eu amo a Carol Pimenta. Amo de
verdade, e dói saber que isso não faz a menor diferença.
Meu amigo se levanta da cadeira, ainda sem dizer nada, e vai
até o canto do quarto, pegando a lixeira e recolhendo as latinhas que
deixamos espalhadas. Pela visão periférica, vejo-o partir para as
caixas de pizza em seguida, amassando-as e jogando na lixeira junto
dos guardanapos que eu o ensinei a usar.
Quando ele para ao meu lado, me preparo para me despedir,
mas Jack acende a luz fluorescente que ilumina todo o cômodo
como um clarão indesejado. Fecho os olhos com o impacto e,
quando volto a abri-los, ele está inspecionando meu quarto, então se
vira para mim com o indicador erguido:
— Vai dormir e deixa esse quarto organizado, porque a
camareira não é sua empregada, e esquece essa garota — diz,
abrindo a porta do meu quarto. — Pelo menos por um tempo.
— Jack, eu não...
— Pelo menos por um tempo, porra — pede, se dirigindo à
saída.
— Tá bom, Jack, tá bom. Não vou nem dar entrevista semana
que vem.
— Se você não der entrevista, a multa sai do seu bolso, não do
da equipe. — Jack me encara com a mão na maçaneta.
Sai batendo a porta, e eu jogo o corpo no colchão, encarando o
teto e pensando onde, exatamente, eu errei.
Se foi em ter visto Carol Pimenta em uma corrida aleatória
quando tinha 13 anos;
Se foi ter me aproximado dela na escola;
Se foi ter virado seu amigo;
Se foi ter namorado com ela ou
Se foi ter seguido os sonhos que nós sonhamos juntos.
Quando o sono chega, me fazendo bocejar e deixando meu
corpo leve, desisto de lutar contra ele e fecho os olhos ainda sem ter
a resposta.
Carol
Budapeste, você é linda.
Finalmente me sinto num lugar “diferente”, a Europa é incrível.
Tecnologia de ponta em cenários que beiram o medieval, muitos
castelos, ruínas, morros, parques... Apesar do clima frio, é possível
lidar com a maioria dos lugares por causa do aquecedor e das três
camadas de roupas que usamos.
O único problema é que quando olho meu feed do Instagram,
nunca sei se tirei aquela foto em Londres ou Paris, se era a Espanha
ou Portugal... É tudo igual.
Em todo lugar.
Até os passeios de City Tour que eu e Miyeko tínhamos
acordado de fazer em todos os países foram ficando para trás ao
longo desses três meses. Pelo menos metade dos pontos turísticos
se resumiam a parque, museu e igreja histórica, nas quais a gente
precisa pagar para entrar. Eu nunca vi isso, pagar para entrar em
igreja.
Enfim.
Chegar a Budapeste foi uma experiência diferente, até a paleta
de cores da cidade difere dos tons frios dos outros lugares. Aqui,
apesar de a temperatura estar baixíssima, a cidade tem tons muito
expressivos e a noite... A noite nessa cidade é a coisa mais linda.
Infelizmente, não vou poder vê-la tanto quanto gostaria.
Chegamos na quarta à noite e quinta já começaram os trabalhos.
Como eu não tenho a disposição de Miyeko, pensar em sair à noite
num domingo pós-corrida é inimaginável e meu voo para Paris é
amanhã.
Ou seja, anotar no caderninho mental de ficar mais tempo na
Hungria no GP do ano que vem.
Faz duas horas que deixamos o autódromo e “Eu tenho um
encontro com Daniel Harris” martelou na minha cabeça durante todo
o tempo que permanecemos com o Jack.
Então chegamos ao hotel, subimos para tomar um banho, e a
frase já tinha mudado para “Eu vejo o Daniel fora de um dia de
corrida”, o que era bem melhor do que “encontro”.
Sentada no restaurante do melhor hotel da cidade – alegrias
proporcionadas por uma estar num país no qual a moeda oficial não
é o euro –, aceito que não é porque teremos uma refeição juntos que
preciso ficar nervosa.
— Você tem mesmo um encontro com o seu Novato, né? —
Miyeko coloca o último pedaço de carne na boca e espera por minha
resposta. Ela fez a pergunta de maneira tão tranquila e descontraída
que é como se falássemos sobre isso toda semana.
Me pergunto se ela lê mentes para saber que eu estou tentando
ressignificar esse acontecimento.
— Tenho um café com o Daniel para deixar claro que podemos
ter uma relação profissional — sentencio, pousando meu refrigerante
na mesa, e Miyeko nem esboça uma reação. E é assim que eu sei
que ela está me julgando. — Talvez até um coleguismo, mas nada
próximo da amizade de ensino médio que ele está esperando.
— Entendo. E você acha que seu namorado vai ficar de boa com
esse coleguismo de vocês?
— Gabriel já sabia que eu iria conviver com Daniel. — Dou de
ombros. — Não vejo ele sendo babaca quanto ao fato de eu
conversar com alguém com quem vou conviver.
— Sério? — Minha amiga teatraliza. — Porque vocês estão há
tipo, duas semanas sem se falar direito.
— Claro que não estamos. — Rio quase com rispidez. — As
coisas se resolveram, eu cortei o Daniel no ao vivo semana passada.
De um jeito educado, mas cortei — ressalto, e ela meneia.
Mas continua me estudando por um tempo. Ignoro seus olhares
e foco em terminar minha sopa. Ou melhor, meu gulyás. Apesar da
quantidade exacerbada de páprica que eles colocam nessa coisa, o
prato é uma delícia e mil vezes melhor que a comida típica da
Inglaterra.
— É que vocês se falavam o dia inteiro quando chegamos aqui e
agora é no máximo bom dia, boa noite... — Joga no ar.
— Porque a gente tá se acostumando com a distância, Miyeko,
pelo amor de Deus. Não falo nem com meus pais com essa
frequência. — Coloco o argumento na mesa e, antes que ele se
assente, percebo, na risadinha de Miyeko, que ele não é valido.
— Não está me dizendo nada, Carol. E você sabe disso. Seus
pais não falavam com você todo dia nem quando você morava a
meia hora da casa deles. — Semicerro os olhos para ela entender
que está passando dos limites, e Miyeko engata a marcha ré. — Se
você, que é a namorada dele, acha que esse comportamento é
normal, quem sou eu pra julgar.
— Exatamente. E eu nem sei por que aceitei esse café com o
irritante do Harris. Só de pensar nele me dá coceira — verbalizo
irritada, coçando a nuca.
— Ah, Carol, por favor. Você adora que o Harris te tire do sério!
— Miyeko ri alto, mas não o suficiente para chamar atenção de
alguém dessa vez.
O que seria muito constrangedor, porque quando pensamos
“melhor hotel”, só queríamos ter onde descansar antes da próxima
corrida, que já é domingo que vem. Não esperávamos que fosse um
lugar tão luxuoso a ponto de a maioria dos pilotos e repórteres
grandes também ficarem aqui.
— Deixa de ser idiota — rebato.
— Sério, você vive evitando conflito. Mas, se o Harris diz que
você está bonita, você nega só para não dar razão a ele. — Miyeko
termina o conteúdo de seu refrigerante e deixa o copo na mesa. — É
engraçado, legal... Mas acho que se você fingir que ele não te afeta,
vai ser pior.
— Como assim?
— Conversa com ele, seja honesta. Diz tudo o que você me
disse sobre a perda, o abandono... Fala que não quer ser amiga
dele, mas toparia ter algum contato cordial pelo profissional e tal.
— Nossa, não sei se quero falar pro cara que me abandonou
que o abandono dele há cinco anos me machucou... Parece que eu
não superei nada.
— E superou? — Miyeko pergunta, cruzando os braços, e eu
enfio minha cara no prato. — No momento, você só está tapando o
sol com a peneira. E isso uma hora vai dar merda.
— Miyeko, eu não estou — tento argumentar, coçando a
têmpora.
Eu poderia pedir, simplesmente, para ela parar de se meter na
minha vida; poderia ser mais enfática sobre ela estar se
preocupando sem motivo, já que eu e Gabriel estamos ótimos,
apesar de não nos falarmos desde ontem; outra coisa que eu
poderia, é jogar na cara da minha querida amiga os olhares e
risadinhas que ela e Jack estavam trocando durante a entrevista.
Mas não vou.
Porque, no fim do dia, eu ainda sou eu, e ela está certa quando
diz que eu evito o conflito.
Apesar de como o Daniel me tira de mim.
— Dizer pro Harris que talvez as cantadas dele funcionem
melhor com mulheres solteiras não é, exatamente, a ideia de fora
que seu namorado estava esperando e você sabe. Não é como se o
Harris não soubesse que você namora, Caroline. — Miyeko toca
minha mão em cima da mesa e assinto.
Sei que ela está certa, mas não ia ser grossa com Daniel no
horário de trabalho e não consigo conversar com ele por três
segundos sem querer socá-lo. Foi realmente o melhor que pude
fazer.
— Na real, eu não vou conversar com o Harris sobre isso. Vou
conversar com o Gabriel — digo, surpreendendo mais a mim do que
a Miyeko. — Sério, é o melhor a ser feito, porque o Harris não é o
único homem no mundo e ele vai precisar lidar com o fato de que eu
vou receber cantadas. — Encolho os ombros. — Não tenho a
intenção de traí-lo e isso vai precisar bastar.
O sorriso de Miyeko se abre.
— É isso, garota. Bota as verdades na mesa! E paga a conta,
que eu preciso correr agora. — Miyeko se levanta em um tubinho
preto com sobretudo marfim e joga as ondas do cabelo de lado.
— Você vai pra onde?
— Não faço ideia. Uma festa privada de algum piloto e blá-blá-
blá.
— Você vai com quem, Miyeko?
— O pessoal do Paddock, relaxa. — Minha amiga pede e eu
reviro os olhos enquanto ela vem até mim.
— Vai, minha filha, amanhã nove horas aqui.
— Dez e meia, o café vai até às onze! — Miyeko se curva
deixando um beijo em minha testa e se afasta.
Quem vê essa boneca de porcelana de um metro e cinquenta se
equilibrando em 15cm de salto nem imagina o quão sem limites e
afrontosa ela é.
Limites, Miyeko. Você precisa de limites.
Um dos garçons se aproxima para retirar o prato e os copos
dela, de água e bebida, e aproveito para pedir o cardápio de
sobremesas, se estou na chuva, quero me molhar de vez. Mas não
encontro dificuldades de escolha, meus olhos caem direto no
desenho de uma coisa que não entendo muito, mas tem chocolate e
ele sempre vence.
Enquanto espero, rolo o feed do Instagram e respondo alguns
seguidores, é coisa pouca, mas é a galera que acompanha o
Garotas no Padoque e eu simplesmente amo o quanto eles
interagem e são gentis comigo.
Termino de responder e abro o aplicativo de mensagens
instantâneas. Rolo para cima e para baixo como se a resposta de
Gabriel à minha mensagem de “Bom dia” fosse chegar a qualquer
momento, mas sei que não vai, ele nem a recebeu ainda.
Suspiro cansada dessa coisa de estar vivendo o melhor
momento da minha vida e estar preocupada com como o meu ex vai
agir ou o que o meu atual vai fazer. Coço a têmpora, doida para
conversar com os dois e resolver essa situação que está me
deixando a beira de um surto.
Quando meu doce chega, quase não consigo acreditar que ele é
real. Pedi um Somlói Galuska, que é um doce tradicional da Hungria.
Um bolo de chocolate com rum e baunilha que é coberto com mais
chocolate e chantili. Só a apresentação do prato já me faz salivar.
Coloco um pequeno pedaço na colher, tentando equilibrar o bolo
e as coberturas. Sinto a textura esponjosa da massa logo que o
coloco na boca, é estranho, mas o sabor faz qualquer textura valer a
pena. O chocolate do bolo encontra a calda, e uma explosão de
cacau dá sentido a tudo, o chantili quase o deixa doce demais, mas o
rum coroa o sabor com o perfeito equilíbrio.
Me delicio com o prato pelos minutos seguintes e, quando
acabo, pago a conta e me preparo para encerrar a noite na minha
cama. Tenho de trabalhar? Tenho, mas estou num fuso horário de
quatro horas à frente do Brasil, posso mandar o artigo amanhã.
Deixo o restaurante passando pela recepção, em direção ao
elevador, porque estou cansada demais para subir escadas.
— Carol? — Uma voz muito semelhante à de Gabriel me para.
Mas não me viro. O saguão do hotel está cheio, e eu provavelmente
estou ouvindo coisas por causa do combo: saudades e cansaço. —
Vida? — A voz se aproxima e eu me viro, não posso estar ficando
louca.
— Gabriel? — Sorrio ao ver seus olhos cor de mel pousados em
mim. — O que você tá fazendo aqui? — Antes que ele responda, já
me joguei em seus braços. Sinto-o largar a mochila no chão e sorrio
comigo mesma da cena que estou vivendo.
Reencontrando meu amor, no saguão de um hotel, do outro lado
do mundo, com direito a mala caindo e abraço que me tira do chão.
Quando Gabriel se afasta, beija minha testa e acaricia minha
bochecha.
— É uma longa história — diz, cruzando os braços nas minhas
costas, como adora fazer.
— Por que não me disse que vinha? — pergunto em seu abraço
— Você quer comer alguma coisa? A comida aqui é ótima.
— Não, eu quero ficar com você, posso subir? — Gabriel pega
sua mochila do chão e joga sobre o ombro.
— Não sei se eu posso levar visitantes, então a gente vai
precisar correr daqui até o elevador.
Dou um passo para a frente, mas ele me para. Segurando minha
mão de maneira suave, ele estufa o peito e pisca para mim.
— Relaxa, fica calminha e faz cara de paisagem. Se a gente sair
correndo, todo mundo vai perceber.
Seguro o riso, mas permaneço ao seu lado caminhando devagar
e com o queixo tão erguido quanto o seu.
— Viu, só. Ninguém reparou na gente, e se reparou, devem
achar que você é a namorada exótica do europeu. — Essa parte ele
sussurra com deboche em meu ouvido. Me trazendo para si pela
cintura e me fazendo rir de como é fácil para as pessoas
estereotiparem o relacionamento alheio.
— Você está certo. — O puxo para dentro do elevador quando
as portas se abrem e outro casal nos acompanha, parando à nossa
frente. — Se bem que cê está bem coradinho para o verão Europeu
— implico, e ele morde o lóbulo da minha orelha.
O encaro incrédula, indicando o casal com o queixo, e ele me
entrega o risinho sem vergonha que eu adoro.
— A gente fica aqui — digo quando chegamos ao segundo
andar.
De certa maneira, deixar um elevador bonito, espaçoso e limpo e
sair num andar com carpete macio, parede com textura em tons
pastel e quadros assinados por artistas locais me deixa feliz.
É bom que ele tenha vindo me visitar na corrida que estou
hospedada num lugar bonito. Não que eu estivesse em muquifos nas
outras, seria impossível trabalhar bem tendo noites de sono ruins.
Esse, no entanto, é o único com um pouco mais de luxo.
— A Miyeko está por aqui? — pergunta quando paro na porta do
meu quarto, o último à esquerda num longo corredor de quatro
suítes.
— Ela tá lá em cima. — Gabriel franze o cenho e eu rio. —
Terceiro andar — digo, abrindo a porta.
O quarto está com a janela, que tem vista para a cidade,
fechada, mas a temperatura é amena, bato o olho no aquecedor, 23
graus. Graças a Deus não vou cozinhar aqui como na Itália.
— Pensei que vocês ficavam sempre no mesmo andar. — Ele
nem tenta mais esconder o desdém na voz.
Meu namorado gosta tanto da minha amiga quanto ela dele.
— Só quando dá. Quer beber alguma coisa? — pergunto, me
livrando do meu casaco, mas Gabriel não faz nem menção a tirar o
dele.
— Uma água, Vida — pede, jogando a mochila de lado e se
sentando na cama king size. Abaixo para pegar a garrafinha no
frigobar. — E o Harris?
Me viro com o cenho franzido e, provavelmente, a cara do
desespero, porque ele ri.
— O que tem ele? — Entrego a garrafa enquanto ele bate na
própria coxa para que eu me sente. Abraço seu pescoço, me
aninhando em seu colo, e espero uma resposta.
— Está aqui também?
— Tu acha que eu sou babá do Daniel? — Solto meus braços de
seu pescoço e tento sair de seu colo, mas Gabriel não deixa. — Que
pergunta ridícula.
Franzo o cenho para ele, que me mantém sentada, abaixando
minhas pernas e me equilibrando em sua coxa. E, então, me beija.
Um beijo regado a saudade e... ciúmes. Gabriel me beija como quem
quer marcar território, e eu não consigo continuar com isso.
— E então, o que você veio fazer aqui? — Afasto meu rosto
gentilmente. — Quanto tempo fica? Vou embora amanhã e...
— Eu sei. Tenho o seu e-mail no celular, esqueceu? Sei todo o
seu itinerário — diz, mas dessa vez, sua voz beira a frieza.
— Você não respondeu minhas perguntas. — Tento soar firme,
mas minha voz beira um miado patético.
— Vou responder assim que você me disser uma coisinha... —
Tira o celular do bolso sorrindo, mas seu semblante não transmite
nenhuma paz ou carinho.
É como se ele estivesse furioso, na verdade. Aguardo o tempo
que o aparelho demora para ligar e percebo que é por isso que não
tive nenhuma resposta das minhas mensagens.
— Acho tão bonitinho como você consegue ser sonsa. — Seus
olhos estão nos meus e, mais uma vez, tento me levantar, mas ele
me prende em seu colo com uma mão. — Carol, estou falando com
você.
— Gabriel, o que está acontecendo? — pergunto, ainda
desconfortável em seu colo.
— Foi isso o que eu vim fazer aqui, Vida — diz, empunhando o
celular na minha cara e eu desisto de levantar porque Gabriel é bem
mais forte que eu. — Refrescar sua memória. Isso é o seu primeiro
fim de semana de trabalho. — Ele me mostra uma imagem minha,
montando na grade, com um sorriso no rosto. — Isso aqui, é o
segundo. — Uma foto tirada tremida e sem sentido da entrevista no
GP de Monza, quando Daniel sorria para mim como se eu fosse a
única luz que conseguia enxergar e eu encaro Gabriel confusa.
— Isso é sério? — Respiro fundo, incrédula. — Você tem... um
dossiê das minhas interações com um piloto?
— Não é um piloto, é a porra do seu ex-namorado! — Me
encolho e afasto o olhar do dele instintivamente com o grito. — E
ainda melhora. — Cospe as palavras e vejo pelo canto dos olhos
direito quando ele passa os dedos rapidamente até o print de uma
reportagem. — Você vai olhar ou prefere que eu leia?
O layout é de um site inglês. De fofocas, não de esportes. A
reportagem é uma lista de curiosidades sobre o Daniel e vem
acompanhada de uma pequena entrevista, com três ou quatro
perguntas, mas sei que só uma delas interessa a Gabriel de fato:
“No GP de Silverstone a gente conheceu uma repórter que tirou
os eixos do piloto, hein. O que você pode dizer sobre ela?”
“Ah, não tem nada de mais. Ela é minha amiga de infância,
minha primeira namorada e a vida acabou afastando a gente. É bom
poder conviver com ela novamente depois de tanto tempo.”
— Ótimo. Lido. Mas ainda não sei por que você está gritando
comigo. — Percebo seu aperto mais frouxo em minha cintura e me
levanto. — E realmente não acredito que você atravessou o oceano
pra fazer essa cena de ciúmes por causa do Harris contando uma
vantagem que não faz a menor diferença.
— Caroline, ele está dando a entender que vocês...
— Eu não me importo, Gabriel. — Esfrego o rosto com as duas
mãos, cansada dessa merda. — Há dois meses você estava com
saudades e não podia vir me ver, agora está aqui, sendo um imbecil
por causa de algo que eu não tenho controle.
— Você deveria ter falado para aquele filho de uma...
— Eu falei! — grito, cortando-o. Minha voz sai tão alta que ele se
levanta assustado, tão alta que fico imediatamente sem graça. — Me
desculpa, eu...
— Nossa, você acabou de dizer pra eu não gritar com você e
agora tá totalmente descontrolada e fazendo papel de maluca. — A
risada dele enche o quarto. — Se você está dizendo pra mim que
falou com ele, e que não tem nada a ver, por que tem fotos de vocês
em tudo o que é conta sobre Fórmula 1 no twitter? Tem videozinho
de casal no tiktok... As pessoas acham que tem alguma coisa a ver,
e não é porque eu sou ciumento que elas acham isso, é porque você
está se comportando para que elas pensem, porra! Acorda e assume
postura de mulher comprometida.
— Não vou conversar com você enquanto você não parar de me
tratar como uma vagabunda. — Ele tenta falar, mas eu ergo a mão
esquerda, calando-o. — Não posso controlar adolescentes
fanfiqueiros, não posso fazer nada se o Harris anda por aí falando
que eu sou ex-namorada dele e amiga de infância, porque bem, é a
verdade, não é? Você sabe disso desde que me conheceu. E se for
pra você ficar fazendo tratamento de silêncio e sumindo do celular
quando vir alguma coisa que desagrada a vossa majestade, vai ser
muito difícil manter esse relacionamento funcionando.
— Para de falar merda. — Gabriel não se aproxima, mas me
encara como se eu tivesse afirmado que Piquet foi melhor que o
Senna.
— Estou falando muito sério — sussurro as palavras, mirando o
chão.
— Então você ainda acha que tá certa? — pergunta indignado, e
sou obrigada a olhar para ele.
Como esse homem não percebe que está sendo patético?
— Eu não vou ficar sendo tratada assim por alguém que não
confia nem um pouco em mim — digo e espero uma resposta que
não vem.
Ele pega a mochila do chão e para diante da porta, me lançando
um olhar sem emoção, que arrepia até o último fio de cabelo da
minha alma.
Capítulo 10
Ou: E assim como antes, posso ver que você tem certeza de que pode mudá-lo, mas eu sei que você não vai, o diabo não barganha.
Daniel
— É, mas adivinha só, eu também não vou ficar aqui olhando pra
minha namorada, que está se comportando como uma vagabunda,
que acha normal ficar de conversinha com o ex com o argumento de
que “É meu trabalho”, e sim, eu vou sumir quando eu tiver me
sentindo traído.
As palavras ditas em alto e bom português, com uma rispidez
que chamaria a atenção de qualquer pessoa, me param entre o
corredor e o quarto com a maçaneta na mão. Volto o pé direito, que
já estava dentro do cômodo para o corredor, e me atento ao que está
acontecendo na última porta. A mulher não fala nada que eu
compreenda, mas consigo ouvir um choramingo baixo, um pedido
com palavras embaralhadas e a risada que sai do homem em
seguida gela minha espinha.
— Não me vem com essa história de que eu estou me exaltando,
eu já estou exaltado, porra. Quando você lembrar que tem um
homem, você me procura — vocifera, claramente tentando intimidá-
la e, em seguida, puxa a porta, e o barulho que invade o corredor
mostra que ele não teve o menor cuidado.
Entro e fecho a porta. Não quero que ele saiba que presenciei a
cena. No entanto, permaneço alerta. Ninguém saiu dos quartos
quando os gritos cessaram, nenhum funcionário apareceu ainda.
Assim, logo que vejo a silhueta do infeliz passando pela minha porta,
saio do cômodo e vou até a porta de número 6.
Bato sem saber exatamente o que dizer, mas preocupado.
Independente do que está acontecendo, ninguém deveria tratar outra
pessoa daquele jeito, mas quando a porta abre, meu coração gela.
— Pimentinha? — O nome sai dos meus lábios como uma
pergunta enquanto ela desvia o olhar de mim e abraça o próprio
corpo.
A imagem dói, e antes mesmo que eu pense no que estou
fazendo, a puxo para um abraço porque essa é a única reação que
consigo ter a uma Carol tão devastada.
Ela não se afasta nem me empurra e, pelo menos por alguns
instantes, se prende a mim como se eu devesse segurá-la.
Mantenho-a em meus braços como sei que minha Pimentinha ama.
Um braço no meio das costas e o outro na altura dos ombros
enquanto faço cafuné em sua nuca.
Carol quer chorar.
Ela quer muito chorar. Mas não vai. Porque a Carol não é assim
e isso também dói, esse jeito supermulher dela de ser.
No entanto, antes que esse pensamento acabe, a sinto fungar
contra meu ombro. Caroline Pimenta chora de soluçar no meu
abraço, e eu não sei como agir.
— Carol, o que está acontecendo? — sussurro de maneira
branda, para que ela saiba que pode me contar qualquer coisa, mas
que não estou pressionando-a a fazer isso.
Ela nega com a cabeça em meu ombro, como se esse sinal
devesse ser o suficiente, e beijo o topo de sua cabeça ainda fazendo
o cafuné que a relaxa. Permanecemos assim por tempo o suficiente
para que eu sinta falta de tê-la em meu abraço quando ela se afasta.
— Dani... — Carol inspira com um passo para trás. — Eu preciso
muito que você pare. — Franzo o cenho e ela tira as mãos de mim,
limpando o próprio rosto. — Não consigo ser sua amiga, não sei
brincar com você sem que isso tenha um peso muito maior do que
estamos admitindo, não dá pra tentar te encaixar na minha vida
agora. Preciso que você me trate como uma repórter e só isso. Não
alimenta essa coisa de garota dos sonhos, de shipp na internet, de...
sei lá. Só esquece que eu existo, por favor.
Carol morde a parte inferior do lábio e limpa as lágrimas do rosto
enquanto seu queixo treme. A observo por alguns instantes antes de
me dar conta de que esse circo, essa coisa horrível pela qual ela
passou, foi uma crise de ciúmes.
O cara simplesmente atravessou o oceano para humilhar a
namorada por causa de ciúmes.
— Carol, eu juro que não sabia que isso ia te fazer tão mal. Me
perdoa, Pimentinha. — Ergo seu queixo com o indicador com carinho
e cuidado — Realmente não tinha ideia de que ele era... — Um
idiota, um babaca territorialista, um energúmeno sem caráter. Penso
essas opções, mas ela já está mal o suficiente, então não as digo —
Desse jeito... Tudo bem, você não me querer por perto. Tudo bem se
eu não puder mais te ver fora dos circuitos. — Minto, segurando sua
mão direita. Só preciso que ela se acalme. — Mas olha pra você, não
tem a menor condição de eu te deixar sozinha agora. Vamos entrar,
você precisa de um banho, uma água... — Dou um passo para
frente, mas ela me para.
— Do que você tá falando. — Ela joga o cabelo para trás e
checa algo no celular que tira do bolso. — Eu preciso ir atrás do
Gabriel e...
— Não precisa, Carol. Você não precisa. — A corto, porque isso
não faz o menor sentido.
— Você pode tomar conta da sua vida, por favor? — Ela alinha a
postura e me encara com a sobrancelha erguida, apagando a garota
fragilizada que estava na minha frente há segundos. — Para de
achar que sabe o que está acontecendo, porque você não sabe. —
Finaliza, me empurrando.
— Caroline?
— Me dá licença, Daniel. Eu estava de saída quando você bateu
aqui e ainda tenho um lugar para ir.
— Meu Deus, quem é você? — Tento expressar meu completo
choque, mas minha voz não passa de um sussurro.
Carol não responde. Ela bate a porta, passa por mim e me deixa
aqui, parado, no corredor, depois de presenciar uma das cenas mais
absurdas da minha vida.
Me arrasto até o quarto como se carregasse um peso constante
e doloroso, que não consigo ver, mas sei que está lá. Entro jogando
o cartão da porta na minha mesa de cabeceira, o celular na cama e
largo os sapatos pelo caminho.
No banheiro, abro o chuveiro e a água esquenta enquanto tiro a
roupa. Pequenos flashes dos últimos minutos tomam minha mente e,
por mais que eu queira, não consigo não pensar em Carol.
Jogo toda a roupa no chão com uma raiva incomum só de
pensar no jeito que o namorado gritava com ela. Meu estômago
embrulha só de lembrar da minha Pimentinha, afrontosa e irritante,
se tornando tão pequena naquele quarto, quase engolida por ele,
diminuta nas próprias dores. O banheiro é tomado pela fumaça, e o
espelho na minha frente embaça ao mesmo tempo que meu sangue
esquenta.
Arrasto a porta do box para o lado e entro debaixo do chuveiro,
sendo recebido pelo calor escaldante e, por mais que eu tente lutar
contra as memórias, a dor; o medo; a vergonha e a tristeza de Carol
na porta daquele quarto só me fazem voltar até a última semana que
tivemos juntos.
Decode - Paramore
Carol
Poucas vezes na vida me odiei tanto quanto agora.
Abrir aquela porta, dar de cara com Daniel e me jogar nos braços
dele já seria um problema se minha motivação fosse a tristeza e
desamparo que encheram meu quarto depois da partida de Gabriel.
Ter feito isso por saudade foi ainda pior.
Sentir o toque do meu Novato, quente, terno e carinhoso, me
transportou no tempo e espaço para um local que eu costumava
chamar de meu lugar favorito no mundo. Tê-lo me consolando
encheu meu peito de uma paz quase desconhecida, e descansar
com os braços ao redor dele me carregou até um lugar que há muito
tempo tenho evitado e tentado esquecer, um que costumava chamar
de casa.
No segundo em que abri a porta, tinha esperanças de que fosse
Gabriel. Queria que meu namorado, meu amor, pessoa com quem
tenho contado há anos, tivesse se arrependido de falar comigo como
falou. Até mesmo de olhar para mim como se eu fosse suja, ou uma
vagabunda, como ele mesmo disse no final. Mas, no fim das contas,
não era o Gabriel.
Perceber aquelas reações tomando conta de mim nos braços de
Daniel, como se fosse algo natural, me levou à beira do desespero.
Por isso, mesmo que eu queira dizer que larguei Daniel no hotel
e estou sentada num banco, às margens do rio Danúbio, com Gabriel
porque deveria ter vindo atrás do meu namorado, seria mentira.
Dizer que corri atrás dele e pedi, por favor, para que Gabriel
conversasse comigo porque entendeu tudo errado com o intuito de
as coisas ficarem bem novamente, também seria.
A verdade é que liguei desesperada para o Gabriel, perguntando
onde ele estava e se a gente podia conversar, porque não sabia
como lidar com tudo o que senti enquanto os braços de Daniel me
sustentavam.
Me afastei de Daniel porque a proximidade dos nossos corpos
queimou minha pele, me fazendo pensar em como com ele as coisas
eram diferentes. Fugi daquele quarto porque odiei o quanto me senti
compreendida. Passei por Daniel resmungando de maneira
arrogante porque o alívio que tomou meu corpo inteiro quando ele
me abraçou é injusto comigo.
Corri escada abaixo, sem a menor intenção de ficar esperando
pelo elevador para descer dois andares, porque não conseguiria
mais estar tão perto do único lugar ao qual realmente pertenci e não
desejar voltar no tempo.
Caminhei oito minutos até o rio Danúbio, ponto turístico que
corta a cidade, porque Gabriel me pediu para encontrá-lo aqui e
porque precisava tentar, de todas as formas, acertar as coisas entre
a gente. Perder Gabriel nesse momento seria doloroso e
transformaria meus sentimentos em uma salada feita apenas de
frutas azedas.
Mas, mesmo agora, me assusta piscar e, pelos milésimos de
segundo que minhas pálpebras se fecham, visualizar o desespero
que tomou os olhos de Daniel quando abri aquela porta e o vi se
dando conta de que a pessoa no quarto era eu.
Sentada num banquinho de maneira, tremendo de frio à beira do
rio, não tiro os olhos de Gabriel. Espero que ele diga algo, me
esforçando para ignorar meu coração, que continua batendo
desesperadamente em meu peito, como se precisasse voltar quinze
minutos no tempo e reencontrar a paz.
Mas eu o ignoro, porque é mentira. A paz que te preenche e diz
que, independente do que aconteça, você está segura,
simplesmente, não existe.
— Você veio aqui ficar olhando pra minha cara? — Gabriel
pergunta por fim, e cruzo os braços antes de responder.
— Vim saber se você já está mais calmo.
— Calmo? — O risinho zombeteiro responde por si só — Não
tem como ficar calmo com uma coisa dessas, Carol. — Gabriel vira o
corpo todo de frente para mim, deixando sua perna esquerda
descansar no banquinho de praça no qual estamos sentados. — Eu
tô sendo feito de palhaço diante do mundo todo...
— Gabriel, para — corto-o, me virando de frente para ele
também. — Você está criando uma situação absurda. Eu trabalho
com o Daniel, converso com ele, o vejo quase toda semana, e você
vai ver a gente interagindo, sim. Ponto. É o meu trabalho. — Observo
a fumaça da minha respiração no ar, ciente de que Daniel mexe
comigo, mas também de que isso nunca seria o suficiente para me
fazer trair meu namorado.
— A questão não é essa, Carol — ele tenta falar, mas nego com
a cabeça, erguendo o indicador e prossigo:
— Gabriel, estou tentando entender por que você prefere confiar
em página de fofoca do que em mim. — Engulo em seco antes de
concluir porque queria que Gabriel soubesse que eu nunca, nunca
faria isso com ele. — Por que precisou atravessar um oceano para
me humilhar, ao invés de fazer uma chamada de vídeo e me
questionar?
O vento frio corta o ar entre nós e observo Gabriel expirar
lentamente, acompanho as linhas de sua respiração no ar enquanto
espero uma resposta.
— Sabe o que acontece, Vida? — A pergunta retórica vem
depois de um bom tempo. — Quando cheguei na sua vida, você era
a porra de uma menininha triste e boba. Quando você foi humilhada,
o que eu fiz com você lá em cima foi só um namorado expressando
seus sentimentos, humilhação foi o que você passou na época da
faculdade.
— Você acha realmente que o que você fez foi algo normal? —
questiono segurando o riso.
— Ah, para, Carol — Gabriel diz firme, mas sem nenhuma
alteração na expressão ou no tom de voz e continua o raciocínio que
eu interrompi: — Quando você foi escorraçada, era eu quem estava
lá, fui eu quem segurou sua mão. Quando seus pais não se
importaram com o que fizeram com você, eu fui a única pessoa que
ficou do seu lado. — Odeio que ele fale sobre isso. Odeio ainda mais
não conseguir esquecer. Miro o rio a minha frente para não precisar
olhar nos olhos dele enquanto as lembranças dos piores meses da
minha vida me invadem. — Não vem falar pra mim de humilhação,
Carol Pimenta. Porque você sabe muito bem o que é ser humilhada,
e eu não fiz isso com você — finaliza com o indicador em meu
queixo, puxando meu rosto para si, e eu odeio que ele me trate como
uma criança.
— Para, Gabriel. — Abaixo seu dedo, e ele guarda a mão no
bolso do sobretudo bufando de raiva.
— Então quando eu perguntar pra você se você pode se manter
afastada da porra do frouxo que nem percebeu o quão mal você
estava, eu espero que você diga sim. Quando eu pedir pra você dizer
aquele... pilotinho de merda que tem um compromisso e colocá-lo no
lugar dele, espero que você seja grata o suficiente pra fazer o que
estou pedindo. Não adianta dizer que me ama se nem consideração
por mim você tem.
Me mantenho observando o rio e foco minhas forças em não
chorar. Descendo a perna do banco, observo a noite gélida nos
envolver. O tempo passa, mas ele não cura merda nenhuma.
Algumas cicatrizes, por mais antigas que sejam, sempre vão doer
quando pressionadas.
— Carol? — A pergunta é urgente, como se ele esperasse e
merecesse uma resposta.
— Eu não acredito que você está jogando isso na minha cara. —
É tudo o que consigo dizer.
— Não estou jogando nada na sua cara, Vida. Só estou falando
que essas coisas aconteceram. — Gabriel apoia a mão direita na
minha perna, mas a afasto.
— Então tudo bem. Você não me humilhou — digo, determinada
a mudar de assunto. — Mas você acha certo o que você fez? —
Volto a encará-lo.
— Eu me exaltei, Carol. É isso o que você quer ouvir?
— Não. O que eu quero ouvir é um pedido de desculpas.
— Se eu pedir agora, não vou estar sendo sincero.
Meneio a cabeça e me resguardo o direito de ficar em silêncio.
Às vezes, a honestidade dói. Me sentiria menos estupida se ele
tivesse pedido desculpas e ponto.
— Posso te fazer uma pergunta, Vida? Você vai ser sincera? De
verdade? — Assinto sem encará-lo — Carol, por favor, não mente
pra mim.
— Gabriel, faz a pergunta. — Jogo a cabeça para o lado e
espero.
— Você gosta dele?
Meu Deus, lá vem ele com o Daniel.
Estou a cinco passos de me jogar nesse rio.
— Não — respondo sem demonstrar minha vontade de sumir.
— Você sente falta dele?
— Alguns dias sinto falta do que ele representava no meu
passado. — Entrego a honestidade que ele tanto quer. — Mas não
sei se é dele ou daquela Carol que tenho saudades.
— Você se sente... sexualmente atraída por ele? — A pergunta
me assusta.
Não faz sentido meu namorado perguntar se sinto vontade de
transar com um cara que eu não via há cinco anos. Mas o medo da
resposta no olhar de Gabriel e o jeito que ele se inclina para frente
com a sua voz tão baixa que poderia ser um sussurro me assusta
ainda mais.
Quando ele perguntou se eu gostava do Daniel e se sentia falta
dele, o olhar trazia o temor de um ego ferido, mas agora parece que
se eu disser sim, a vida dele vai acabar.
— Às vezes eu fico desconcertada perto dele, mas não acho que
seja atração. A gente não, você sabe, nunca evoluímos para nada
mais... — Que situação patética, a única parte de mim atraída por
Daniel é minha mão, que está sempre pronta para agredi-lo.
— Nunca engoli essa história de vocês não terem transado,
Caroline — ele diz, me fazendo arregalar os olhos. — Qual é, vocês
tinham dezoito anos…
— Gabriel, cala a boca. — Controlo a minha voz e respiro fundo.
— Eu era o quê? Obrigada a transar porque fiz dezoito anos? Isso é
o quê? Noite do baile de colégio americano?
— Vocês estudaram num colégio americano — rebate, me
fazendo revirar os olhos.
Nós, de fato, estudamos. E isso talvez tenha sido o que fez com
que a gente não transasse. Era como se, ao fazer dezessete, todo
mundo precisasse transar para concluir o ensino médio. Mas eu e o
Daniel não caímos nessa pilha. Naquela época, pensávamos que
ficaríamos juntos para sempre, e se você vai ficar com alguém a vida
toda, não precisa ter pressa.
Éramos adolescentes, obviamente os hormônios também nos
pressionavam, e as coisas até começaram a evoluir, só que eu só
senti que estava pronta quase que ao mesmo tempo em que tudo
desandou, quando Daniel foi embora. Então, não, não fui a garota
sonhadora que perdeu a virgindade com o primeiro amor. Mas
também não fui a que transou por pressão. Fui a garota comum que
transou porque isso ajudaria a melhorar as coisas no
relacionamento.
— Você foi, literalmente, o cara que tirou minha virgindade, e
teve todas as provas necessárias — digo, tremendo não pelo frio,
mas pela vergonha.
— Você tá certa — diz, como se tivesse magicamente se
lembrado da nossa primeira vez. — Eu não devia ter te questionado
sobre isso.
— Não, não devia.
Gabriel me estuda por alguns segundos que se tornam minutos e
permaneço em silêncio. A luz da lua reflete em sua pele clara e
avermelhada pelo vento frio. Ele está chateado, óbvio que está, e
tudo bem se sentir assim. Mas a forma que me tratou me feriu de um
jeito diferente, pequeno e quase imperceptível, mas doloroso.
Como uma cutícula retirada de maneira errada, que deixa um
machucado com o qual a gente para de se importar depois de um
tempo, e só lembra da ferida quando espreme um limão. Ou como
aquelas pequenas peles no cantinho do dedo que a gente se propõe
a arrancar. Quase sempre, isso dá muito errado e ao fim do processo
estamos com uma ferida enorme. Só que, nesse caso, é como se ele
tivesse colocado meu dedo esfolado num pote de sal.
— Eu te amo pra caramba, Carol. Quando você chegou na
minha vida, eu também era um garoto perdido. — Sua mão chega à
minha face e acaricia a bochecha direita, me fazendo encará-lo. —
Eu não tinha ninguém, e você apareceu, transformando tudo.
Mudando minha vida para melhor, então eu tenho medo... Muito
medo de perder você. Mesmo que eu tenha a vida dos sonhos hoje,
você ainda é parte essencial dela. — Toco sua mão, tirando-a do
meu rosto, mas a seguro em meu colo.
— Você sabe que me sinto igual. — Curvo o canto esquerdo da
boca.
— Quanto tempo você acha que aguenta o frio desse lugar?
— Frio? Eles chamam isso de verão. — Rio com a inocência. —
Mas um bom tempo, estou amando trabalhar aqui. De verdade. Era
um sonho pra mim, então...
— E a grana, quanto tempo você acha que consegue ficar na
correria sem pegar dinheiro com seus pais? — A pergunta carrega
um deboche leve e eu limpo a garganta antes de responder.
— Não é algo que eu pense. Gosto de viver do meu trabalho,
eles têm dinheiro, se eu precisar de dinheiro amanhã, eles me
mandam. — Rio com o absurdo da pergunta. — Mas vivo bem com
o que ganho, não é uma vida de herdeira, mas viver de um trabalho
que eu amo precisa ser responsabilidade minha no fim das contas,
né? — Encolho os ombros.
— Fico feliz. — Gabriel não esboça emoção ao dizer isso, e
quase questiono se ele fica mesmo, mas não quero mais brigar essa
noite.
— Quando você volta pro Brasil? — Tento trazer um ar mais
leve. — Como foi essa loucura de comprar passagem?
— A gente pode conversar no hotel? — Ele pergunta com sua
mão correndo até a minha. — Eu pego um quarto lá se não quiser
me esconder no seu.
— É domingo de corrida, Gabriel. Não vai ter quarto disponível.
O que a gente pode fazer é adicionar você como hóspede por uma
noite.
— Tipo pedir pra adicionar uma cama?
— Isso, só que sem a cama. — Estendo a mão para ele, como
uma bandeira branca e, quando ele a pega com um pequeno sorriso,
sei que estamos bem.
Fazemos o trajeto de volta até o hotel, só paramos uma vez,
para ver o monumento “Sapatos à beira do Danúbio”, que se
caracteriza como metros de sapatos de chumbo presos ao chão. O
monumento é em memória aos judeus mortos pela milícia Cruz de
Ferro, que basicamente seguia as ideias de Hitler. Observando os
sapatos no chão, grandes e pequenos, percebo que essa é a forma
sutil de eles deixarem explícito que crianças também eram mortas
aqui. Respiro fundo sentindo os olhos encherem de lágrimas, mas
não as derramo.
Sinto que se começar a chorar agora, não vou parar nunca mais.
Carol
Enquanto o alarme afasta o silêncio do quarto, Gabriel
espreguiça ao meu lado. O barulho cessa, e logo o toque de seus
dedos chega a minha cintura, me puxando para perto. Meu corpo se
deixa levar pelos braços firmes que eu tanto amava, mas minha
mente permanece onde está.
No fato de que eu não dormi.
Diferente de todas as outras vezes, Gabriel me trouxe para a
cama e isso não resolveu nenhum dos nossos problemas. Minha
garganta continua arranhando quando penso nele me chamando de
vagabunda. Meu peito ainda dói com a sensação de ser descartada
que se apossou de mim quando me vi sozinha nesse mesmo quarto,
e meu coração definitivamente não acredita que ele jogou os piores
meses da minha vida na minha cara em nome dos ciúmes de um
homem que eu não via há cinco anos.
Durante os momentos que dividimos e até depois de Gabriel
dormir, vi a certeza do “encontramos a solução sempre que
precisamos” se dissipando pelo quarto, e eu não tinha o menor
controle sobre isso. Não era como a areia contida numa ampulheta
que você direciona para onde quer, era como grãos que se dissipam
em uma tempestade no deserto.
Talvez o amor não resolva as coisas por si só, talvez sexo e
amor não sejam apenas coisas diferentes, mas também
independentes. Porque mesmo que o sexo tenha sido sensacional,
eu sentia que o amor não estava aqui.
Não estava em Gabriel, não estava em mim, não estava em nós
dois juntos, não estava no quarto, não estava em canto nenhum.
E eu tentei.
Tentei várias e várias vezes encontrá-lo.
Mas era como se as areias da certeza dissipada pelo quarto me
sufocassem. Talvez o amor não compactue com pessoas quebradas
tendo seus pedaços ainda mais partidos por quem diz amá-las,
afinal.
— Bom dia, meu amor — digo. A tentativa de resgatar o
significado dessas palavras é, no mínimo, falha.
— Bom dia, mulher insaciável. — Gabriel beija a curva do meu
pescoço. — Dormiu bem? — Ele sobe em mim, mas minha única
intenção é fugir daqui.
— Uhum. — Jogo-o de volta na cama. — Encontro a Miyeko no
restaurante em duas horas, você tem voo de volta? — pergunto me
levantando e indo até o armário do outro lado do quarto.
— Tenho, sim. Você não pode remarcar com ela e tomar café
comigo? — pede, e eu teria rido dessa implicância em outra ocasião.
— Você só voa à noite, né?
— Fim da tarde. E você? — Corro os olhos pelas roupas que
ainda tenho limpas e tiro um moletom e uma camiseta do cabide.
Está frio e eu preciso trabalhar, essa dupla está ótima. — Voo pra
fora da Europa é um processo bem demorado. — Me volto para ele.
Deitado de cueca boxer preta, as pernas cruzadas, sem camisa e
com os braços atrás da cabeça.
É difícil lidar com um homem que sabe que além de padrão é
gostoso, porque caminhando pelo quarto agora, sei que em qualquer
outro momento pularia em cima dele e nós pediríamos café na cama.
Mas não hoje.
Hoje, pisco para Gabriel e me recosto na porta do banheiro
enquanto ele responde.
— Não, relaxa. Meu voo sai quase uma da tarde e ainda são oito
da manhã — diz, encolhendo os ombros. — Podemos tomar café
antes do checkout.
— Não faço checkout agora. Meu voo é bem tarde, então a
gente pegou uma diária a mais para trabalhar nas coisas que
entregamos hoje. — Abro a porta atrás de mim e entro. — Vou tomar
um banho pra gente descer. Miyeko marcou comigo lá às dez da
manhã, então deve estar no quinto sono agora.
— Perfeito, Vida.
Fecho a porta e finalmente posso respirar de novo. Encaro a
Carol do espelho e, apesar de ela parecer preocupada, não
demonstra nem metade das minhas dores. Fico grata por isso, expor
a confusão que eu estou não seria bom para ninguém.
Entro no box desejando tomar o banho mais demorado da
história e querendo que Gabriel vá embora. Tenho que falar com
Laís, preciso conversar com Laís. Não sei o que está acontecendo
comigo e esse é um dos momentos que só uma melhor amiga pode
solucionar.
Deixo o chuveiro pronta para vestir minha melhor cara de
paisagem, entro nas roupas que peguei num pulo, prendo o cabelo
num coque e saio do banheiro.
Gabriel está de pé ao lado da cama organizando sua mochila,
ele ergue o rosto para me jogar um beijo e volta a atenção para a
bolsa em seguida, e eu o observo.
Tão fofo, tão carinhoso, tão organizado, tão bom para mim.
Mas, ao mesmo tempo, tão grosso, tão descontrolado, beirando
o agressivo, tão... desconhecido.
Um calafrio corta minha espinha e desencosto do batente da
porta.
— Hora do banho, deixa que eu guardo as roupas — digo,
depois que ele já dobrou tudo.
— Não bagunça tudo, Vida. Pelo amor de Deus — pede, com as
mãos na cintura.
— Pode deixar, anda, vai se banhar.
Gabriel passa por mim me puxando para si e, com um selinho,
se vai.
Observo as roupas que ele trouxe. Três blusas, uma calça, um
short e duas cuecas, tirando o que levou para vestir e o casaco de
inverno, óbvio. Coloco tudo na bolsa gentilmente, ainda sobra
espaço, mas quando falamos de mala é melhor sobrar do que faltar.
Me sento na cama com a mochila na minha mão e a fecho,
pensando que é patético que ele tenha feito essa mala só para me
ver. Me levanto e tiro o carregador de Gabriel da tomada. Enrolando
o fio, abro o bolso da frente para colocá-lo, mas ao enfiar a mão,
amasso algo. Me xingo duas vezes e tiro para desamassar o mais
rápido possível para que ele não surte.
É um cartão de embarque. O que ele vai usar a uma da tarde,
mas nele tem apenas um trecho, Budapeste x Praga, e não
Budapeste x Praga – Praga x Algum lugar do Brasil. Mexo no bolso
em busca do outro cartão e não encontro, só encontro o usado para
vir para cá:
Praga x Budapeste.
E nenhum deles é de avião. Gabriel passou sete horas e meia no
ônibus de Praga até aqui. O que significa que ele não estava no
Brasil há dois dias, ele estava aqui, na Europa.
Guardo tudo da maneira que encontrei e acabo colocando o
carregador no bolso grande, para ele nem desconfiar que achei
esses papéis. Me sento na cama e fico aguardando, mas não sem
antes revirar minha mala atrás de alguma coisa boa o bastante para
fazê-lo confessar.
— Estou pronto, podemos tomar nosso café agora? — indaga,
secando o cabelo com minha toalha de rosto.
— Claro, só queria te pedir pra entregar uma coisa pra Laís, é
um presente bobo, já coloquei na sua mala. — Ele muda de cor e
volta ao banheiro para estender a toalha. — Vou pedir para ela ir no
seu trabalho quarta-feira pegar.
— Não pede, eu não vou estar lá — responde, colocando a blusa
para dentro da calça.
— Não? — Franzo o cenho, dissimulando confusão. — Quando
ela pode ir?
— Ah, é uma história engraçada — diz, desviando o olhar para
as mangas da blusa social que está enrolando do cotovelo até o
antebraço — Mas eu estou viajando.
— O quê? — Meu queixo realmente cai como se eu já não
soubesse que tinha caroço nesse angu.
— Dois amigos do trabalho estavam marcando essa eurotrip há
um tempo e de última hora resolvi fazer os trechos finais com eles.
— Dá de ombros, como se não fosse nada.
Mas até ele sabe que é.
Gabriel está corando de vergonha e, apesar dos esforços para
mantê-las em ordem, suas palavras se atropelam, maculando seu
teatrinho.
— Então você estava viajando e não me falou nada? Tipo, você
não falaria? Você não viria me ver?
Gabriel joga o pescoço para trás rindo.
— É óbvio que eu viria te ver. Justamente por isso não falei
nada, porque queria fazer uma surpresa. — Ele se aproxima de mim,
tocando meus braços, então corre as mãos para as minhas costas e
me puxa para perto. — Vou encontrar com eles em Praga hoje mais
tarde e a gente vai fazer Praga, Viena, Bélgica, Portugal e vai
embora — finaliza com os olhos nos meus.
“Você não tinha dinheiro para vir me ver, mas está fazendo uma
eurotrip por lugares altamente turísticos, ou seja, extremamente cara,
com amigos que nem vale a pena mencionar o nome” bate na minha
garganta, mas eu engulo.
Não quero brigar com ele novamente, não só pelo desgaste, mas
porque sei que ele vai fazer isso ser algo ruim sobre mim e não estou
com paciência. Mas meu silêncio não passa despercebido, porque
ele volta a falar mais rápido que o esperado.
— Eu sei que parece estranho e tudo mais, mas consegui pegar
umas promoções muito boas e eu queria muito te ver. — Seus olhos
parecem sinceros, mas cada palavra que sai da sua boca é uma gota
de mentira.
Queria tanto que veio brigar comigo e transar.
— Tudo bem, amor. — Me inclino em sua direção e deixo um
selinho em seus lábios que queima os meus. — Vamos para o café?
E mais um talvez corre nos meus pensamentos enquanto saímos
e fechamos a porta.
Talvez, ser a pessoa que sempre cede no relacionamento não
quer dizer que você é resiliente.
Seu pai mora sozinho, ele só quer saber se você está bem.
Daniel
Muitos acreditam que o dia mais tenso do fim de semana de um
piloto é o domingo. De fato, existe muita coisa em jogo na corrida.
Contudo, dois dias antes, acontecem os treinos livres, nos quais a
gente consegue conhecer ou reconhecer a pista na qual vamos
correr. As retas, as curvas, as zonas de DRS[4], o controle do carro...
Tudo isso está na nossa cabeça desde sexta.
Então vem o sábado e o verdadeiro tudo ou nada: o qualifying,
ou treino classificatório. No qual a gente descobre de onde vai largar
no domingo.
A meta de Melbourne é largar numa das primeiras filas, entre 1º
e 4º lugares. O que significa que, se chover, preciso fazer uma volta
completa abaixo de 1min.19seg. Caso contrário, o ideal é abaixo de
1min.15seg.
Dou a partida para a minha terceira volta no classificatório
quando, de repente, a chuva estipulada para daqui a oito minutos
começa a cair. Fina e tímida, mas ainda chuva. Seguro o volante
com mais intensidade e os olhos focados na pista. Phillip está
falando comigo no rádio, mas, honestamente, não estou ouvindo.
Uma vez que a chuva se intensificar, não vai ser possível baixar os
tempos, então preciso conseguir fazer isso agora.
Até o momento, largo em quarto lugar, com o tempo que
consegui fazer na minha segunda volta, mas não acho que ele seja o
bastante. Por mais que a Arrows seja uma casa ótima e que não haja
uma pressão exacerbada por esse ser meu primeiro ano, se tenho o
melhor carro do grid, preciso performar bem.
É com esse pensamento que cruzo a linha com um sorriso
enorme dentro do capacete e me permito escutar a voz de Phillip.
— 1.14.42 — meu engenheiro celebra. — P2. Daniel. P2.
— Conseguimos, Sir Phillip — grito enquanto a chuva se
intensifica.
Carol
Me inclino para frente e deposito minha garrafinha d’água na
mesa de centro, desviando os olhos do notebook para a janela. A
cidade está tão nublada que nem parece verão.
— Falta muito pouco pro meio da temporada agora e vocês
estão indo muito bem — Luciana diz, arrastando meus olhos para a
tela novamente. — O crescimento do canal e do site deve muito à
dedicação de vocês, meninas.
— Estou ficando com ciúmes — Patrícia fala, e forço uma leve
revirada de olhos enquanto Miyeko deixa um palavrão escapar.
Patrícia está só fazendo charme, afinal, abriu mão da vaga na
qual eu trabalho hoje para se casar. Ainda lembro do medo que senti
de como esse trabalho afetaria minha vida com Gabriel, um medo
que hoje parece bobo e me sinto muito grata à Carol do passado por
não ter desistido de um sonho por causa de um namorado.
— Não precisa ficar, você era maravilhosa também — Miyeko,
que acompanhava Paty, diz, mas aperta minha mão em cima do
sofá. Como se quisesse me alertar de que é mentira. Seguro o riso.
— E, Carol, a sua matéria sobre o GP da Hungria foi realmente
muito boa, foi replicada em tantos sites que perdemos a conta — Lu
ressalta.
— Trabalhar na base do ódio dá resultado, pelo visto.
— Daniel? Olha, Carol, se ele tiver te assediando, a gente
pode...
— Não, Paty. Não tem nada a ver com ele. O Harris parou de
encher meu saco. — Tento soar o mais convincente possível.
A última coisa de que preciso é esse tipo de holofote em mim
agora.
— Algo com o que a gente possa ajudar? — A pergunta é
sincera, Miyeko se apressa em dizer que não, e eu apenas nego com
a cabeça.
— Então, acho que é isso. Duas corridas e férias. — Miyeko bate
uma palma como se quisesse encerrar a reunião o mais rápido
possível, e a olho de rabo de olho.
— Bom, antes de desligar, a gente tem uma notícia meio chata
para vocês. — Patrícia arrasta as palavras, como se não quisesse
pronunciá-las, então eu tiro o elefante da sala.
— A gente também não conseguiu patrocínio pro oriente médio,
né? — pergunto, já sem esperanças.
Desde o início da temporada, oriente médio e Austrália eram
dúvidas. Os custos são muito altos, então precisamos de patrocínios
bem maiores que para rodar pela Europa.
— Não. Eu realmente sinto muito. — Luciana suspira antes de
continuar: — Queria que você pudesse ir para todas as corridas,
Carol.
Eu assinto. E por mim, tudo bem. Eu estou bem.
Mas a Pimentinha, aquela que entrou na faculdade para ser
repórter e rodar o mundo nas temporadas de Fórmula 1, está
inconsolável. Miyeko aperta minha mão e eu esboço um risinho.
— Está tudo bem, outras oportunidades virão. — Consigo falar,
mesmo que isso não melhore as coisas.
Sentada no pequeno sofá azul de dois lugares da nossa casa,
diante da única janela que permite uma boa iluminação para nossas
reuniões, coço o pescoço como se isso pudesse parar minha coceira
na garganta enquanto escuto Luciana falando algo como:
— Isso é certeza. Do jeito que nosso público te adorou, não
estamos pensando em abrir mão de você tão cedo.
E sinto Miyeko esbarrar no meu ombro, como se devêssemos rir,
mais abertamente dessa vez. Contudo, mesmo que o sorriso esteja
estampado na minha cara, é o meu quadro com repórteres
brasileiras de Fórmula 1 que pende na parede atrás de nós que
estou mirando.
Se eu focar meus olhos em um único lugar, as chances de
chorar são pequenas.
— Um bando de país misógino, Carol. Não está perdendo muita
coisa.
Corro meus olhos da Mariana Becker para a Julianne Cerasoli, e
então para a Bruna Rodrigues quando Miyeko, que já esteve em
todos eles ao menos duas vezes, desdenha.
— O lado bom é que Estados Unidos e México estão mais do
que confirmados — Patrícia diz numa voz bem mais animada que o
necessário.
— Além do nosso Brasil, é claro — Luciana completa.
— Perfeito, então. — Encerro o assunto. — A matéria sobre a
Austrália foi bem recebida, posso seguir nessa linha para as outras
corridas que não vamos?
— Claro. Foi uma matéria com muitos acessos. Quando a gente
não tem repórter no local geralmente é, e o padrão está perfeito.
Miyeko bufa ao meu lado, e sei que é porque nada disso tem a
ver com ela.
— Bom, até a silly season — digo por fim, e Paty e Lu se
despedem de nós.
Bato a tela do notebook e dedilho em cima dele algumas vezes
antes de Miyeko se levantar e apoiar as mãos nos meus ombros,
massageando-os.
— A gente sempre soube que só tinha patrocínio para as
corridas dentro da Europa, amiga. Não fica chateada.
— Não estou. — Me apresso em dizer, descansando a cabeça
no braço dela.
— Carol, você está. — O meio metro de gente atrás de mim
aperta meus músculos mais do que o necessário, e eu jogo o
pescoço para trás, olhando feio para ela.
— Tudo bem, estou — confesso. — Mas também tô feliz que a
gente tenha conseguido patrocínio pra bancar nossa ida pras
américas. Estava com medo... — Termino minha fala num sussurro.
— Duvidei desde o início de que eles não viriam. — Minha amiga
aperta meus músculos, gentilmente dessa vez, jogando minha
tensão pela janela enquanto fala. — Estados Unidos querem crescer
cada vez mais no esporte, México tem público demais para ser
ignorado e o Brasil é um clássico, obviamente a gente iria, nem que
o Garotas No Padoque tivesse que colocar dinheiro do próprio bolso.
Suspiro e deixo um gemido escapar antes de voltar a falar.
— Espero que tenham conseguido algo bem legal pro Brasil,
sério. Acesso aos boxes, camarote, tudo. É nossa última corrida do
ano.
— Você queria real assistir Abu Dhabi? É tipo a corrida mais
chata do calendário.
— Mas é a última e é a noite. Eu amo os fogos — digo com um
muxoxo e Miyeko gargalha, sem parar de mexer suas mãos mágicas.
— Sério, Carol. Você tem gostos muito estranhos.
— Miyeko, não adianta me fazer massagem se você ficar me
estressando.
— Você tem um ponto ótimo, vou ficar quieta. Mas, antes, só vou
perguntar como estão as coisas com o Gabriel.
— Não faço ideia, Miyeko. Ele ainda está viajando, me manda
fotos, eu curto, trocamos algumas mensagens monossilábicas, mas
é isso.
— Pergunto por que você mora com ele, né? Falta menos de um
mês pras férias, não sei o que você vai fazer.
— Laís já disse que posso passar as férias lá.
— Então você vai mesmo terminar, né, amiga? — A pergunta é
gentil, mas a dúvida está ali.
— Miyeko. — Não quero falar, pela trigésima vez, que não vou
ceder ao Gabriel. Então dou meu jeito de enterrar esse assunto.
— O quê?
— Faz a massagem e fica quieta.
Fecho os olhos enquanto deixo as mãos dela me levarem para
outro lugar.
Um calmo e pacífico, onde não tenho estado desde que essa
loucura de viver na estrada começou. Me permito esvaziar minha
mente e, só por alguns instantes, não penso em trabalho, namoro,
compromissos e nem mesmo em Daniel.
Nesse momento, sou só eu. Na minha casa, em Paris, a vinte
minutos de trem do lugar mais lindo do mundo, o jardim da Torre
Eiffel.
Por alguns minutos, somos só eu e as coisas que tenho
conquistado. Me permito ficar feliz. Feliz por estar conseguindo tudo
o que sempre acreditei que conquistaria.
É aqui, nesse pequeno apartamento, recebendo massagem de
uma das minhas pessoas favoritas no mundo, onde me dou conta de
tudo de incrível que já conquistei: meu trabalho dos sonhos, viagens
para lugares incríveis, amigas maravilhosas, um apartamento que eu
adoro na cidade mais bonita do mundo e o coração menos pesado
do que estava antes. Talvez o primeiro passo seja esse: ver o copo
meio cheio.
— Na próxima semana de folga, eu não volto pra cá, tá? —
Miyeko anuncia minutos mais tarde, tirando as mãos dos meus
ombros. E eu apenas ergo a cabeça questionando-a com o olhar. —
Vou viajar.
— Viajar? — pergunto surpresa, porque é uma semana sem
corridas, ou seja, uma semana “de folga” e nós, geralmente,
passamos as folgas juntas.
— Uhum, coisa do outro trabalho. — Minha amiga responde,
mas já cruzou nossa pequena sala e entrou na cozinha, do outro
lado do balcão que divide os dois cômodos.
— Então você viaja com o Jack? — Tento não dizer isso com um
risinho na voz, mas é inevitável e ela me fuzila com o olhar.
— Eu viajo sozinha — rebate, como se eu tivesse dito o maior
dos absurdos. — Encontro ele lá pra seguir nessa luta de limpar a
imagem dele com esse documentário.
— Gente, as pessoas realmente não gostam dele, né? —
Levanto, soltando o coque do cabelo e subindo o jeans que desce
toda vez que me sento.
— O que tem nele pra gostar, Carol? — Miyeko segura seu copo
d’água no ar e me encara apoiada na porta da geladeira. Seu
semblante me diz que não é um bom momento para elogiá-lo.
— Não sei, mas as pessoas também não gostavam do Vettel, do
Alonso, do Hamilton, do Verstappen... As pessoas sempre querem
um campeão pra odiar.
— Mas, no caso do Jack, elas estão certas. Ele é péssimo.
Me dou por vencida indo para o meu quarto e grito no caminho:
— Bom, senhorita viagens, eu vou ficar por aqui mesmo.
— Você vive querendo ir pra Disney, mas quando eu sugiro
nunca pode, talvez esteja querendo ir sozinha, pode aproveitar
agora. — Miyeko surge na porta do meu quarto e eu semicerro os
olhos.
— Não, ainda não é o momento. — Reviro os olhos só de pensar
em pisar sozinha num parque de diversões.
A sombra do fato de que eu não quero fazer isso porque é algo
que sempre achei que faria com Daniel quase nubla minha mente,
mas a jogo para debaixo de um tapete mental e finjo que ela nunca
existiu.
— Versalhes, então? — Sua sobrancelha direita se ergue
enquanto me sento na cama.
— Não quero ir pra Versalhes sozinha... — Antes que meu corpo
consiga se acomodar, me levanto com uma ideia maluca e Miyeko,
que conhece minha cara de ideias malucas, já está com um risinho
de canto e as mãos na cintura, esperando a proposta. — Mas a
gente só voa pra Itália quarta, quer ir amanhã?
— Amanhã?
— Você tem algo pra fazer?
— Não.
— Então, bora?
— Bora.
Miyeko dá pulinhos animados e corre até seu quarto. Em alguns
segundos, ela vai invadir meu pequeno quartinho com oito opções de
roupas e me fazer escolher exatamente a que ela tinha como favorita
desde o princípio.
Daniel
Todas as vezes que eu entro na garagem, desde a minha antiga
equipe, a sensação é a mesma: estou à beira da transcendência.
Nesse lugar, fazendo o que faço, eu me torno quem nasci para ser.
A garagem cheira a óleo, suor e pneus novos. Já o som
ambiente é algo entre um show de metal e um manicômio.
Do outro lado dos boxes, Rick grita no headphone, o que é
normal. No momento que nossos olhos se cruzam, meneio a cabeça
para ele, que pisca para mim e procura Jack em seguida. Menos de
um segundo se passa até que Rick perceba que meu companheiro
não está aqui e volte o olhar para a tela do computador, de onde nem
gostaria de tê-lo tirado se bem conheço meu chefe.
Os nervos de Rick estão à flor da pele porque, se tem uma coisa
que quase ninguém fora do automobilismo acredita, mas que é
verdade, é que até o carro chegar na pista para a corrida, ele ainda
está sendo ajustado. E cada um desses ajustes é relevante.
Observo a correria de mecânicos e outros funcionários da equipe
para fazerem os últimos ajustes nos carros. Me mantenho longe do
meu veículo o suficiente para admirá-lo e, ao mesmo tempo, dar
espaço para que o mecânico embaixo dele possa fazer seu serviço.
— Ela é linda, né? — Jack, que sempre se refere ao seu carro
como “minha garota”, para ao meu lado gritando em meu ouvido.
— Sem querer me gabar, mas ela é a mais bonita do grid. — Rio,
observando cada detalhe do AR31, nosso carro para esse ano.
Predominantemente preto com detalhes em prata, sua única
distinção é a listra que faz alusão ao nosso patrocinador master,
cortando todo o chassi num vermelho intenso. É um carro imponente,
robusto, e o símbolo da equipe, um A com uma flecha cortando-o, só
carimba a autoridade que apenas a melhor equipe do grid poderia
carregar.
É impressionante como a adrenalina, que comicha nos pés faz
as pernas tremerem, fecha a garganta por alguns segundos e deixa
o coração acelerado a corrida inteira, não começa quando a gente
chega na pista, mas sim, quando estamos cara-a-cara com o carro.
— Beleza, Harris. Fala com ela. — Jack dá dois tapas em
minhas costas e me viro para ele.
— Agora? Tem, tipo, seis pessoas em volta dela.
— Daniel. Agora. — A sobrancelha empinada de Jack não
permite contrariá-lo. — Vou conversar com a minha garota também.
— Avisa me dando as costas, seguro de que vou fazer o que pediu.
E ele está certo, eu vou. Porque depois de todo o estresse da
corrida passada, a única coisa que eu quero é fazer a minha parte
bem-feita. Me aproximando do meu veículo, me ajoelho diante dele e
apoio a cabeça na roda.
— Camon, baby girl. Seja uma boa garota hoje, tá bom? Você só
precisa aguentar essa corrida, depois vai ter duas semanas de Spa.
Rick me comunicou isso ainda na Austrália. No fim da noite de
domingo, ele foi até o meu quarto levantar uma bandeira branca. Não
pedimos desculpas, agimos como se nossa discussão, ou melhor,
minha humilhação, da tarde não tivesse acontecido, e falamos sobre
o carro. Rick me deu alguns conselhos preciosos, outros nem tanto,
como, por exemplo, conversar com Jack.
Segundo Rick, “Ele já foi o cara novo numa equipe grande um
dia e saberia te ajudar.”.
Jack realmente ajudou, mas não porque ele tinha palavras de
sabedoria para compartilhar, e sim porque meu amigo riu da minha
cara quando eu disse que estava inseguro quanto ao assento na
equipe.
Ele olhou no fundo dos meus olhos, como se fosse me contar um
segredo precioso, e disse: ninguém vai te demitir, Harris. Tu é o
terceiro colocado do campeonato no seu primeiro ano numa equipe
grande e seu contrato dura cinco temporadas, meu anjo, ninguém vai
te pagar quatro anos pra ficar em casa. Levanta essa bunda, trata
bem a sua garota e bota ela pra andar na linha.
A lembrança me faz revirar os olhos e suspirar aliviado, antes de
levantar, faço apenas mais um apelo:
— Você realmente precisa andar na linha hoje, baby girl. —
sussurro para a roda do carro antes de depositar um beijo nela e me
levantar.
Estranhamente, não me sinto um idiota fazendo isso.
Carol
Toda a sala de imprensa vibra quando Daniel finalmente
consegue ultrapassar Juan, então eu vibro também. Mas não sem o
olhar julgador de Miyeko para cima de mim.
Todo mundo, absolutamente todo mundo, se joga para frente,
sentando-se na ponta da cadeira quando Dani faz a curva dos boxes.
Isso porque têm dois carros se dirigindo à saída. Por mais que eles
não atrapalhem Daniel diretamente, já que estão no fundo do grid, a
tentativa de evitá-los ou o ato de estarem à sua frente podem ajudar
Juan a se aproximar, fazendo-o perder a posição recém-conquistada.
No entanto, o primeiro piloto corta a linha dos boxes antes que
Daniel se aproxime da saída e, quando ele abre distância para a
esquerda, os suspiros de alívio são ouvidos, já que Daniel se
mantém à direita. Em seguida, ele segue rente à linha da saída dos
boxes para não diminuir o ritmo e deixar Juan ainda mais distante.
Parece impossível que tanta coisa possa acontecer em menos
de um segundo e transformar corações em baterias e testas em
verdadeiros suadouros, mas é exatamente isso o que acontece.
Contudo, nos damos conta tarde demais de que Daniel talvez não
tenha notado o segundo carro que sairia dos boxes.
Um arrepio corta meu corpo dos pés à cabeça, me fazendo me
levantar, mas antes mesmo que eu esteja de pé, a roda dianteira do
segundo retardatário bate na traseira de Daniel. Não com violência,
uma vez que na saída o carro está mais lento, mas o suficiente para
tirá-lo da pista.
É Emilia Romagna, não existe um grande canteiro de britas no
qual o carro chega e fica atolado. Com isso, o carro de Daniel roda
para a direita com tudo e, quando entra na grama e bate no limite da
pista, ele volta, fazendo meu coração parar. Eu não sou mais a única
pessoa de pé, sem falar, sem respirar, com as pernas trêmulas
enquanto observa se Juan e Jack vão ter tempo de desviar de
Daniel.
Mesmo quando os carros conseguem contornar a Arrows
amassada e fumegante, parada com metade do cockpit dentro da
pista, evitando que um acidente ainda mais sério aconteça, tudo em
mim dói.
Minha cabeça dói, minhas pernas de gelatina me forçam a me
sentar novamente e, no segundo que a imagem de Daniel é retirada
da tela, o ar que entra em meus pulmões vem como se alguém
tivesse quebrado milhares de pedacinhos de vidro e soltado no
vento.
Cortando minhas narinas, meus pulmões, minha alma, porque
não existe nenhum motivo bom para que a transmissão de um
acidente seja cortada.
Metade dos repórteres se senta logo depois de mim, e a outra
metade corre para o lado de fora. Eu deveria correr, deveria coletar
informações e abrir transmissão ao vivo com o canal, mas nada em
mim se move.
É como se, de repente, meu corpo não obedecesse mais ao meu
cérebro.
Miyeko não diz nada, apenas segura minha mão e deita minha
cabeça em seu ombro enquanto uma lágrima involuntária escorre
pelo meu rosto.
Daniel
— Alô? — Atendo meu telefone pessoal, o único que Jack me
trouxe, com a cabeça inclinada para trás e tentando não me mover
tanto.
Cada músculo do meu corpo ainda dói, e o bip incessante do
monitor cardíaco não ajuda com a dor de cabeça. Mas mantenho os
olhos fechados. Abri-los nessa imensidão de luzes frias seria minha
morte.
Ouço a respiração do outro lado da linha, não é tão pesada
quanto imaginei que seria, mas espero que ele se manifeste. Já tem
quatro horas que cheguei aqui e só a mamãe me ligou até então.
— Estou tendo um dia péssimo. Então, por favor, se você puder
só falar... — O incômodo em minha voz é muito mais intenso do que
a dor que estou sentindo, mas um cara pode exagerar de vez em
quando.
Um longo suspiro toma o lugar das respirações curtas, e eu
desisto. Ele nunca consegue fazer as coisas certas. Não sei por que
achei que conseguiria dessa vez.
— Se você não tem nada a dizer, vou desligar. — As palavras
voam duas vezes mais rude que o necessário, mas não consigo me
conter.
— Dani? — O sussurro trêmulo e amedrontado que desliza em
meu ouvido faz minha pele arrepiar e minha espinha enrijecer.
Não é o meu pai. Mas eu reconheceria aquela voz em qualquer
momento.
— Pimentinha? Aconteceu alguma coisa?
Ouço-a rir, um riso rápido e desajeitado.
— Você bateu na corrida, Daniel Harris. Rodou para tudo que é
lado, quase foi acertado por outros dois carros — enumera
praticamente gritando. — O que aconteceu com você? — pergunta.
Ela está definitivamente exaltada agora.
— Eu estou acamado, Caroline Pimenta. Não grita comigo.
— Não gritei com você. — A fala amena me deixa de queixo
caído com a coragem de mentir bem no meu ouvido. — Anda, o que
aconteceu lá? Foi problema no carro e ninguém quis falar?
— Não, por quê?
— Você tava beijando a roda do seu carro semana passada...
nunca vi você fazendo aquilo.
— Então você estuda meus rituais pré-corrida, é, Pimentinha? —
Brinco e meus olhos fechados me permitem imaginar seus olhos
semicerrados e sua boca meio aberta em recusa.
— Isso faz parte do meu trabalho. — A resposta é boa, mas nós
dois sabemos que é mentira.
— É, o carro tava brigando comigo mesmo. Mas você não pode
publicar isso. — Não preciso especificar para ela o quão prejudicial à
nossa estratégia seria as outras equipes terem ciência dos próximos
passos com meu carro.
— Eu não te liguei como repórter, Daniel.
— Ah, não? — Já que ela não é a repórter, posso brincar um
pouco. — Bom, tive que beijar o carro, porque sabe como é, né?
— Sei? Sei o quê?
— A roda do carro é a única coisa que eu tô podendo beijar.
Carol Pimenta bufa, e eu seguro o riso.
— Daniel. Se não foi o carro, o que aconteceu naquela pista? —
pergunta com a voz irritadiça, mas o medo presente quando ela falou
pela primeira vez está de volta.
— Eu tava pensando. — Exalo frustrado.
— Por que você tava pensando? — Só o tom de voz me faz
visualizar Carol fazendo caras e bocas enquanto anda pelo cômodo.
— “Não pensar” é o básico do seu esporte. Você reage, você não
pensa.
— Tem um monte de coisa acontecendo, tá legal? — Me esquivo
do esporro da maneira que posso.
Carol volta a ficar em silêncio e apenas sua respiração fala
comigo. Ela inspira e expira de maneira rápida, cortando a sequência
apenas quando engole em seco, duas vezes.
Ela está hesitante, talvez um pouco ansiosa.
“Carol Pimenta me ligou.”
Para a minha surpresa, não me levantei da cama e comecei a
correr em círculos no quarto tropeçando em aparelhos de hospital
quando ouvi sua voz.
“Carol Pimenta me ligou.”
Seu cheiro, seu sorriso, o modo como semicerra os olhos para
mim ou desdenha das minhas investidas preenchem minha mente
enquanto espero Carol dizer alguma coisa, se ela não o fizer nos
próximos três segundos, eu farei.
— Você tá bem? — A pergunta é direta e rápida, mas sua voz a
entrega no final da frase. Trêmula o suficiente para mostrar o quanto
ela está preocupada.
— Por que a pergunta? — desafio. Vamos ver o quanto ela
consegue se fazer de sonsa.
— Porque eu sou jornalista, ué.
— Pimentinha... — Chamo sua atenção, no tom de quem sabe
que ela está sendo dissimulada e mordo o lábio inferior, sorrindo. —
Você não me ligou como jornalista, lembra?
— Claro que lembro, te liguei por um único motivo, mas você já
me fez perder o fio da meada. — Ela não está para brincadeiras.
— Qual é o motivo, Caroline Pimenta?
— Se você me deixar falar, vai saber — rebate, como se eu a
tivesse interrompido.
— Grossa — debocho.
— Assertiva — ironiza.
— Tudo bem, Pimentinha. Fala.
— Como você tá? — repete a pergunta anterior, quase num
sussurro, e eu cedo.
— Cansado. Dolorido. Mas com tudo no lugar.
— Dani, você não mentiria para mim, não é? — A voz dela
murcha uma vez mais e isso não deveria me afetar, mas afeta. — Eu
sei que a gente não... Mas, você me diria se...
— Pergunta o que você quer perguntar, Carol — corto-a antes
que ela se enrole ainda mais.
— Como estão suas pernas? — As palavras se atropelam e ela
respira fundo por fim.
Apesar da luz, observo meus dedos dos pés fora do lençol azul
que já está todo amassado porque, mesmo dolorido, não consigo
parar quieto. Mexo os dez como se eu não soubesse que todos
estão em perfeito estado. Giro as duas pernas lentamente para a
direita e depois para a esquerda, as encolho e dobro o joelho por
completo devagar. Apesar da dor, elas estão tão funcionais quanto
antes.
— Daniel? — A voz estridente me desperta do momento
analítico.
— Tudo no lugar. Tudo certo. Perna, joelhos, pés, dedos... — O
alívio de Carol pode ser sentido em um suspiro profundo e... Ela
acabou de fungar? — Você tá chorando, Pimentinha? — pergunto, e
a coisa mais importante do mundo nesse momento para mim é
abraçá-la.
Pena que ela esteja tão longe. Fecho os olhos para me esquivar
da luz e afastar a angústia que bate em minha garganta.
— Não, é que... — Tenta iniciar, mas é desmentida por outra
fungada. — Nossa, Daniel, quando eu vi aquele carro te jogando
para fora da pista parecia...
— Parecia?
— Que era mentira. Você nunca faria aquilo, andar rente à saída
dos boxes? — Carol força uma risada, mas é como se eu pudesse
enxergá-la secando o rosto com o dorso da mão. — Quer dizer, seu
engenheiro te avisaria, sua equipe falaria alguma coisa e... — Ela
engole em seco. — Não fez sentido, só não fez. A primeira coisa que
eu pensei...
— A primeira coisa que você pensou?
— Que eu não queria que você morresse.
Uau. Pelo menos ela não me quer morto.
Mas, verdade seja dita: Carol Pimenta sabe que não estou
morto, ou seja, não é exatamente por essa razão que estamos nos
falando agora.
— Bom, não morri. E você sabe disso, então por que me ligou?
— Porque queria saber se suas pernas estavam bem — diz
como se fosse óbvio.
Consigo ouvi-la engolindo algumas vezes em seguida,
provavelmente está bebendo água depois de parar de chorar.
— Não foi, Carol. Você poderia ter esperado, ter perguntado a
outras pessoas... Por que você ligou? — pergunto novamente,
porque preciso da verdade.
— Por causa do meu segundo pensamento.
Temos um avanço aqui.
— Que foi?
— Eu-eu não queria que você morresse achando que eu te
odiava.
— Você me odeia?
— Não.
— E quer que eu viva achando que odeia?
— Não, Daniel. — O farfalhar de tecidos no telefone e a
alteração no tom de voz entrega que ela se deitou.
— Então por que faz tanta questão de demonstrar o contrário?
— Não demonstro que te odeeeeio, odeio... — diz, na defensiva.
— Também não é nada amigááável, amigável... — rebato, e ela
deixa um riso sem humor escapar.
— É complicado.
— Eu não vou a lugar algum... Se quiser falar. — Encolho os
ombros, mesmo que ela não possa ver, e me arrependo em seguida.
Dói pra cacete.
— Não tem mistério — diz ela, logo depois de dizer que é
complicado. — Eu só queria muito ser eu. Não a sua ex-namorada, e
como a gente perdeu contato com o tempo, não tinha por que forçar
algo quando cheguei. E depois...
— Depois eu fui um babaca?
— Não foi, você foi você. E eu gosto. — Me permito imaginá-la
rindo de canto e me observando de rabo de olho — Mas eu tinha
alguém e...
— Tinha?
— Tenho. — Se apressa em jogar minhas esperanças no chão.
— Foi modo de falar. Eu tenho alguém e não queria que você ficasse
entre a gente.
— E eu acabei ficando, né?
Carol demora um tempo incômodo para responder, mas não
quero pressioná-la. Forço meu olho direito a abrir e, para a minha
surpresa, as luzes estão um pouco menos intensas. Não baixas, não
escuras, só pararam de parecer neon, então abro o esquerdo
também.
— Na verdade, não quero falar com você sobre isso, Dani. Não
faz sentido.
Tudo bem, não faz.
— Sem problemas. Mudando de assunto, eu que não te vi na
Austrália ou você não tava lá?
— Não tava. A gente não conseguiu patrocínio para estar, na
verdade. Oriente Médio, Oceania, Ásia...
— Ah, que chato. Mas veículo independente é uma merda
mesmo nesse sentido.
— Sim. A Miyeko tem mais rodagem, né? Acho que se ainda
fossem ela e Paula, elas conseguiriam. Mas nem todo mundo quer
investir na menina nova. — Sua frustração é evidente.
— Para de ser boba. Você é extremamente competente. Eu amo
sua escrita, sua postura, como você tem intimidade com a câmera...
Você é ótima. Uma hora vai acontecer.
O silêncio absoluto do outro lado quase me faz perguntar se ela
ainda está aqui, mas Caroline suspira e entendo que sim.
— Espero que meus patrocinadores entendam tanto da minha
carreira quanto você — diz com um sorriso na voz.
Eu poderia tentar dizer que ela me interpretou mal, ou que eu só
li uma coisa ou duas. No entanto, só consigo pensar em seus lábios
grossos, dentes alinhados e bochechas empinadas que sempre me
contaram a história de que ela tem o sorriso mais bonito do mundo.
— Eu também. — Me exponho, por fim.
— Bom, já é tarde e ainda preciso trabalhar, fico feliz de saber
que você está bem, Dani. De verdade.
— Carol — chamo, e ela me responde com um “uhum”. — Eu sei
que vacilei e foi por minha causa que a gente parou de se falar...
— Esquece o passado e diz o que você quer, Novato.
— A gente pode, por favor, não parar de se falar de novo? —
Fecho os olhos e pressiono a ponte do nariz.
Se essa mulher me disser um não, vai ser pior do que se ela
nunca tivesse me ligado.
— Só se você prometer não forçar a barra!
— Prometido. — Abro os olhos e um sorriso.
— Então, tá bom. Até mais.
— Não, calma... — Preciso continuar aqui, só mais um pouco. —
Eu sou um homem que nasceu de novo, tenha dó da minha solidão.
— A tia não vem ficar com você?
— Não, porque eu tenho alta amanhã.
— Ah, é verdade.
Uma ideia aleatória e insana cruza meus pensamentos.
— O que você vai fazer semana que vem?
— No fim de semana de folga? — ela pergunta, e eu murmuro
um “uhum”. — Descansar, ver uns vídeos no youtube, ficar com as
pernas para o alto em vez de passar doze horas em pé. Por quê?
Uma segunda chamada se apresenta, ouço os bips, mas ignoro.
— Vamos pro Brasil?
— Eu vou pro Brasil no fim da temporada. Não tenho grana para
um bate e volta semana que vem e para ir de novo duas semanas
depois.
— Carol, não seja lerda. — Ouço seu arfar revoltado e rio. — Te
fiz um convite. Vou pro Brasil no jatinho da equipe.
— Nossa, não precisa. Eu realmente tenho coisas para resolver
aqui e...
— Tem certeza? Cabem umas oito pessoas naquele jato, tem
mesa de refeições e até cama. — Exalto a maior conquista da minha
vida de piloto.
Depois de um carro bom, é claro.
— Duas camas? — O tom inquisitivo me faz gargalhar.
— Uma cama. Mas eu tô acostumado a dormir nas poltronas. —
Me apresso em deixar claro que a cama é dela.
— Posso te dar a resposta até quando?
— Viajo terça à noite, só preciso avisar à tripulação que seremos
dois.
Carol se cala por um tempo e acho que está ponderando as
opções. A escuto se levantando da cama. Então um som de gaveta
abrindo e logo em seguida fechando invade a ligação.
— Tudo bem, pode avisar. Mas se você fizer alguma gracinha,
Daniel... — O tom de ameaça dela jamais permitiria.
— Não vou. Já falei, sou um homem doente.
— Ah, a gente chega quando a Zandvoort?
— Terça. É uma viagem rápida. Só pra gente rever nossas
famílias incríveis.
Carol segura o riso.
— Agora eu preciso ir, Dani. Até depois de amanhã.
— Te vejo logo, Pimentinha.
Desligo depois dela e vejo que meu pai ligou. Na verdade,
percebi a chamada dele em algum momento da conversa com Carol,
mas ignorei.
Não quero retornar e, ao que tudo indica, não preciso. Porque
seu Fernando Torres me mandou mensagens, e é assim que prefiro
me comunicar com ele.
Photograph – Ed Sheeran
Carol
Sentada à mesa do quarto, pressiono o botão de chamada de
vídeo no celular. Enquanto Laís não me atende, meus olhos seguem
fixos no notebook e nas pendências que preciso resolver antes de
viajar. Adiciono o envio de um artigo sobre as equipes que estão se
desenhando como as decepções da temporada para um site que
faço freelas e isso me dá taquicardia, parece que essa lista só
cresce.
— Oi, amiga. — Laís atende, e meu coração automaticamente
se acalma.
— Oi, meu amor. — Encaro a tela, me surpreendendo com seu
novo corte, na altura do queixo. Mas é uma surpresa boa, tudo
combina com sua carinha fina e oliva de boneca latina, então ela não
está nada menos que linda.
— Carol? — me chama de volta à Terra, franzindo o cenho
enquanto caminha pelas paredes do corredor da minha antiga casa.
— Tá tudo bem?
Me dou conta de que a saudade é tanta, que estou estudando
cada pedacinho do rosto dela e balanço a cabeça para afastar esse
pensamento.
— Claro. Por quê? — respondo com um risinho de canto.
— Tá animada... Parece, pelo menos. — Assinto com
veemência. — É por que faltam três semanas pra você dar um pé
naquele babaca ou porque vai passar as férias comigo?
— Porque vou te ver em menos de uma semana! — anuncio ao
que minha amiga se joga na cama e me encara confusa. Com o
cabelo mais claro, a escuridão de seus olhos parece ainda mais
profunda.
— Ou eu não sei mais fazer conta, ou algo aconteceu.
— Ah, o Daniel...
— Menina, o Daniel. — Laís se assusta à menção do nome e
cobre a boca com a mão livre. — Você tem notícias dele? Da última
vez que atualizaram algo no Twitter, diziam que ele está em perfeito
estado, mas que vai ficar em observação.
— Laís, calma. — Abaixo a tela do notebook me levantando da
cadeira e dou três passos até a cama. — O Daniel está, sim, em
observação, mas ele está bem. E irritante. — O sorriso de orelha a
orelha em minha cara denuncia o alívio que senti ao conversar com o
Novato.
— Ah, vocês se falaram, então?
— Eu liguei para ele... — O riso da minha amiga preenche o
visor com a imagem dela se balançando na cama aos gritinhos de
“meu Deus”. — Queria saber se ele estava realmente bem, Laís. Só
isso. — Desvio o olhar, sem jeito.
— Tá, tá, só isso — ironiza. — E como assim você vem me ver,
quando chega?
— Então... — Observo a tela reticente porque logo depois de
dizer que era “só isso” preciso assumir que talvez não tenha sido. —
O Daniel vai me dar uma carona no jatinho da equipe dele, a gente
viaja terça à noite, quarta eu chego aí.
Laís volta a se balançar na cama, mas dessa vez seus “meu
Deus” dão lugar a um grito silencioso no qual ela abre a boca o
máximo que pode.
— Não vou criar expectativas, mas eu shippo tanto vocês dois.
Sorrio quando me lembro de Miyeko me dizendo isso no
restaurante de um hotelzinho em Silverstone há quase 3 meses e...
se alguém me dissesse naquela mesa que em poucos meses eu
estaria viajando com Daniel, eu chamaria um médico para a pessoa.
— Esse escândalo aí é “não criar expectativas”, é?
— Exatamente. Se algum dia vocês ficarem juntos, os gritos
terão som — pontua, me fazendo rir.
— Ótimo. Enfim, como os meus planos estão girando em torno
de terminar com o Gabriel...
— Pode ficar aqui em casa, sem problemas — responde antes
que eu termine. — Estou ansiosa para essa viagem de vocês, me
mantenha atualizada, por favor — pede com um riso bobo.
— Laís, o Dani é legal, mesmo que eu não saiba exatamente o
que ele me faz sentir. — Os olhos dela arregalam ao mesmo tempo
que o queixo cai e eu estalo a língua. — Sei que a gente teve uma
história e eu respeito isso, jamais ficaria com ele namorando outro
cara.
— Pensando por esse lado, você tem razão — diz, encarando a
tela do celular pensativa, mas não de verdade, apenas de um jeito
teatral. — Apesar de o Gabriel merecer uns bons chifres...
— Você é impossível, Laís! — A repreendo, tentando não rir.
— Presta atenção, dependendo da hora que você chegar na
quarta-feira, a gente pode almoçar juntas e eu te dou a chave ou
posso deixar a chave em algum lugar.
— Não se preocupa, vou ficar na casa dos meus pais. Passar o
dia com dona Sofia, na verdade.
— Faz zero sentido ficar andando com sua bagagem por aí,
Carol Pimenta.
— Não tem bagagem, Laís Carneiro — insisto. Não tem mesmo,
mas ainda que tivesse jamais atrapalharia a rotina dela. — Vou levar
só uma mochila e no fim do dia vou lá conversar com Gabriel.
— Beleza, vou sair mais cedo para arrumar algo legal pra gente
comer e assistir.
— Perfeito! Agora, eu vou trabalhar! — Pulo do colchão, voltando
para a pequena escrivaninha. — Te amo.
— Te amo mais. — Laís desliga depois de me dar uma piscadela
e eu dou língua para ela antes de desligar.
Me sento e abro o notebook para fazer o que estou evitando
desde cedo: pesquisar sobre o acidente de Daniel. Leio a
repercussão pelos sites especializados, vejo os absurdos falados em
páginas de fofoca e pelo Twitter afora. Até gente dizendo que ele
tinha que ter morrido por ser tão imbecil na pista eu encontro, e
percebo que é hora de parar de ler notas e chamadas vazias
repetindo as mesmas coisas e escrever meu próprio artigo completo
sobre o assunto.
Patrícia já me notificou de que essa será a capa do site. Ainda
que Jack tenha vencido a corrida e Juan abandonado, o que isolou o
companheiro de equipe do meu Novato na liderança do campeonato,
um acidente da magnitude que o do Daniel tem não pode ser
segunda manchete em lugar algum.
Bocejo e me espreguiço para começar a escrever, movimento
que me lembra o quão desconfortável a cadeira acolchoada, mas de
madeira simples, do hotel é.
Daniel
Levou apenas o espaço de cinco anos, três meses, doze dias e
um acidente para que eu e Caroline Pimenta conversássemos como
dois adultos. A partir daí, quarenta e oito horas se passaram e é
como se eu tivesse vindo embora do Brasil ontem.
Menos de um metro nos separa, ainda assim, tento não fixar
meu olhar nela deliberadamente. Mantenho o celular à minha frente,
na altura do meu rosto, para fingir que não estou estudando Carol,
com o olhar vago e um pequeno vinco na testa, perdida em
pensamentos que eu não sou capaz de decifrar.
E isso é uma agonia.
Nunca entendi nosso término. Tudo bem, entendi. Eu estava
preocupado demais com minha carreira e todas as oportunidades
que não podia perder. Mas Carol sabia que isso aconteceria. Ela
sempre soube e sempre, sempre mesmo, apoiou.
Ouvi-la dizendo que me amava, mas não queria mais estar
comigo, me destruiu para todas as outras mulheres do mundo e me
entregou para a Fórmula 1.
Vivi cinco anos de um relacionamento sério e amor intenso pelo
esporte, mas dentro de um espaço tão pequeno com Carol não
consigo pensar em nada do que deveria.
Nem que acabei de sofrer um acidente que quase me matou; ou
que preciso passar dias com meu pai sendo o filho que não deu
certo; que tenho de repousar e beber muita água ou sei lá, que
preciso voltar muito melhor na segunda metade da temporada
porque se meu time não ganhar o campeonato de construtores a
culpa vai ser do Daniel, a grande promessa que fez tudo errado.
Só consigo pensar nela.
Só consigo rir e perceber que a perdi sem nem ao menos tentar,
porque era um moleque com ego sensível e burro.
Só consigo olhar para tudo o que já fiz na minha carreira e me
sentir feliz, mas sorrir de canto com a ironia de que, por mais que a
Fórmula 1 tenha sido o meu melhor amor, Carol Pimenta sempre
será o maior.
Abro o cinto curvando meu corpo para frente e em seguida e
apoio os cotovelos nos joelhos. Desvio o olhar de Carol porque só de
pensar que ela está com aquele energúmeno agora, que ainda está
com ele apesar do que ele fez... meu ego frágil volta a querer gritar.
— Tá tudo bem? — Ouço-a perguntar.
Me dou conta de que estou esfregando o rosto com as duas
mãos na esperança de apagar as imagens dela naquele quarto de
hotel, pequena e quebrada, da minha mente.
— Sim, sim. Quer beber alguma coisa?
— Tem refri?
Faço menção a chamar a comissária, mas o olhar dela me para.
— Tenho certeza de que a gente consegue caminhar até a
cozinha. — Carol ri, abrindo seu cinto, e eu me levanto.
Opto por dois copos descartáveis, sirvo o refrigerante dela e
pego água para mim.
— Então sua dieta não te permite nem um refri? — indaga
recostada à bancada do fogão.
— Permite — digo, puxando uma embalagem plástica do bolso.
— É que eu preciso tomar remédio agora.
— Quantos você tá tomando?
— Dois desses por dia e um relaxante muscular quando dói. —
Jogo o comprimido na boca e engulo-o com três generosos goles
d’água. — Mas o relaxante eu evito.
— Eu sabia que jatinhos eram equipados, mas nunca imaginei
que dava para ter tantos ambientes assim. — Ela aponta para a
saída à direita, onde vemos a sala de jogos e a esquerda, onde ficam
o quarto e o banheiro.
— Nem todo jato é assim — explico e caminhamos até a área
principal, onde nos sentamos em uma pequena mesa, um de frente
para o outro.
— Enorme?
— E tão equipado. Quando eu comprar o meu, por exemplo, vai
ser bem mais simples.
— O seu? — Carol para o copo no caminho até sua boca e pisca
duas vezes antes de completar o trajeto e beber.
— Sim, pelo menos o primeiro. Esse é muito bom. Mas não
tenho privacidade. — A expressão confusa dela me leva a continuar.
— Quando a gente viaja de um GP para o outro. Tem uma galera do
staff que vem aqui também.
— Tipo sua assessora de imprensa?
— Nunca precisei de uma. — Dou de ombros. — Meu
empresário resolve essas coisas e eu conto com a Lindsay, a
assessora da equipe, para o resto.
— Nossa, ia morrer e não ia saber que você não tem uma
assessoria particular.
— Você tem interesse na vaga?
— Não, obrigada. — Carol força um sorriso debochado e eu
gargalho.
— A recusa é pela vaga ou por mim.
— Os dois. A vida do assessor é uma perturbação.
Rimos juntos do desespero na voz dela.
— E você gosta do seu trabalho, né? — pergunto, me
debruçando na mesa à espera de uma resposta apaixonada, afinal,
ela sonhou com isso a vida toda. Mas Carol Pimenta termina sua
bebida e abaixa a cabeça, encarando o encontro da mesa com a
parede do avião e, achando que ela está distraída, tento de novo. —
Né, Carol?
— Gosto. Mas não sei se é algo que eu quero fazer para
sempre...
— Como assim?
Carol pousa os olhos em mim suspirando e os fecha por alguns
segundos.
— Nenhum trabalho é fácil — diz, abrindo os olhos novamente.
— Mas sendo mídia alternativa, é quase como se a gente fosse
independente, sabe? Eu e Miyeko. Como somos nós que estamos
aqui, o patrocínio vem direto para as nossas contas. A Paty preferiu
fazer isso do que administrar um dinheiro que é para as corridas, ela
não acha justo — explica, como se concordasse — Com isso...
— Com isso?
— A gente tem muita coisa para fazer. Somos nós que
pesquisamos hotéis, voos, contratamos isso. A gente precisa ter fé
que a cama do hotel mais barato da cidade vai ser boa, que o voo
não vai ser o pior possível, que a gente vai conseguir se locomover
de táxi ou alugando carro sem gastar tanto...
— Vocês são basicamente estagiárias de si mesmas, então? —
pergunto entendendo aonde ela quer chegar, e Carol assente.
— E é algo que eu amo fazer, só não vejo como uma carreira de
longa duração. — Ela expira por um tempo longo demais e me
mantenho em silêncio, é óbvio que ainda tem mais coisa ali. —
Principalmente porque o que a gente ganha no Garotas No Padoque
é o suficiente para a gente se manter, apenas. Se não fossem os
freelas, não teríamos o mínimo de conforto.
— Mas e o sonho de ser uma Mariana Becker ou Ju Cerasoli?
— Não dá pra ser a Mari ou a Ju trabalhando para um canal da
Twitch, Dani. Sejamos honestos.
— Seus pais reclamam? — pergunto com uma careta de quem
já sabe a resposta, e ela coça a nuca antes de responder.
— Óbvio. Como assim eu deixei minha vida incrível para trás e
agora fico dormindo em hotéis sem estrelas? — Teatraliza, fazendo
minha risada encher o ambiente.
— Como eles tão?
— Num geral, bem... Tem um tempo que não falo com o papai.
Dona Sofia me ligou depois de um pequeno incidente em
Silverstone, sabe?
— Incidente? Não. Não sei. Me conta o que aconteceu de tão
interessante para a sua mãe falar com você.
— É que eu tenho um ex-namorado. Um babaca, sabe? O bom é
que ele compensa sendo um puta gato. — Não consigo conter o
risinho de canto a tempo, e Carol desvia o olhar para janela,
escondendo um sorriso. — E ele resolveu me cantar em rede
mundial de computadores, mesmo sabendo que eu tenho outro
namorado agora.
— Levando em conta que seu atual é um babaca e nem é um
puta gato, apoio a atitude dele.
— Voltando ao assunto. — Arrasta a língua no lábio inferior para
não sorrir. — Conversei com a Sofia naquele dia. A gente tem um
grupinho no WhatsApp onde eu mando fotos dos lugares, eles
comentam o que tão fazendo de diferente, mas nunca vira uma
conversa de verdade. Resumindo: um espaço seguro.
— E é confortável para você?
— Ser a amiga distante dos meus pais enquanto eles são
eternos namorados? — Carol encolhe os ombros e meneia a cabeça
positivamente. — Desde que eu saí da casa deles, tem sido.
— Hoje você consegue disfarçar melhor?
Ela franze o cenho e nega com a cabeça.
— Ir embora melhorou tudo. O problema era estar lá. Morar com
eles e saber que, de alguma forma, eu não pertencia àquele lugar.
Não era parte da minha família.
— Como você conseguiu... Lidar?
— Eu tentei terapia... algumas vezes. Com o tempo eles só
pararam de ser o primeiro assunto que eu trazia. O problema não era
eu, era o fato de que meus pais não perceberam que não queriam
filhos antes de me colocarem no mundo.
É uma afirmação forte e, ainda que não doa o suficiente para
impedi-la de falar sobre, incomoda o bastante para Carol se remexer
na cadeira e pegar o copo vazio da mesa na esperança de ter o que
fazer agora.
Fico quieto enquanto o clima se esvai. Continuar falando nisso
não vai fazer bem a ninguém. Estive presente em situações de Carol
sendo responsável pelos pais e pela casa mais vezes do que
gostaria. No fundo, todo mundo sabia que ela cuidava muito mais
deles do que o contrário.
E isso era estranho, porque eles a amavam, mas é exatamente o
que ela fala, Carol era a amiga mais nova que dividia a casa com
eles.
— Eu sinto falta do colégio, sabia? — Tento um momento do
passado menos complicado.
— Eu também! Da nossa rotina, dos nossos dias no Kart... —
Carol divaga sorrindo pela primeira vez na conversa.
— Da vez que a gente quebrou a mesa de vidro temperado da
mamãe e ela quase matou nós dois... — Adiciono com uma
gargalhada, e Carol pensa por dois ou três segundos, mas logo sua
risada transborda.
— Sujamos a sala de jantar inteira. Foi vidro para todo lado. Eu
nem sabia que uma mesa podia se partir em tantos pedaços.
— Até hoje acho que aquela mesa já tava quebrada, quer dizer,
“o vidro mais resistente do mercado” e quebra só porque eu te sentei
em cima dele? — As palavras voam e mesmo que eu tentasse, não
teria como amenizar a situação.
O risinho de Carol Pimenta é substituído por um queixo meio
caído. A memória da fase na qual a gente aproveitava qualquer
segundo sozinho para se agarrar ainda não tinha chegado para ela
e, agora, sinto que se ela pudesse corar, estaria roxa de vergonha.
— Enfim, a escola foi mais fácil.
— Era fácil porque a gente se tinha. — Brinco, mas Carol não
sorri.
— A faculdade foi difícil exatamente pelo mesmo motivo. — Ela
cospe as palavras. — E porque as pessoas são estúpidas — diz e,
de maneira quase involuntária, abraça o próprio corpo.
— Mas foi questão de adaptação ou...? — pergunto, arredio, e
Carol meneia sem me olhar.
Verbalizar a palavra racismo não é tão fácil para pessoas negras
quanto os outros acham que é.
— Segunda opção, mas deixa isso pra lá. — A voz de Carol é
tão baixa que é como se o pensamento a sufocasse, e minha mão
instintivamente se dirige até a dela em cima da mesa. — Vamos
jogar? — Vejo-a se levantar com um sorriso falso, antes que meus
dedos a alcancem, e me levanto com uma piscadela.
— Só se você passar as fases difíceis do Mário.
— Combinado se você não me der uma volta completa na
Fórmula 1.
— Não posso prometer nada.
— Então vou te ver morrer sem o menor dó. — Ela se vira da
entrada da sala me dando língua.
— Você ainda é tão petulante...
Carol ri se jogando no sofá, e eu ligo a TV e o videogame, me
sentando ao lado dela em seguida.
— E você ainda é tão bobinho e previsível. — Encaro-a
boquiaberto enquanto a entrego o controle já configurado e ela finge
que não acabou de me ofender. — Sabe, Dani, é meio estranho a
gente ainda se dar tão bem, mesmo depois de tanto tempo. — Tenta
se redimir.
— Não é o que acontece com melhores amigos? — Devolvo
fazendo um riso de canto se apresentar em seu rosto. — Mesmo que
o tempo passe, algumas coisas nunca mudam, não é?
— Sim. Com a gente é diferente, você sabe, mas é bom não
querer te matar o tempo todo.
— Isso é o quanto eu sinto sua falta na minha vida, Caroline
Pimenta. Estou aceitando seu rótulo de friendszone sem demonstrar
a menor resistência.
Carol ri jogando o pescoço para trás e puxando os dois pés para
o sofá. O som da sua risada é tão gostoso que seria um pecado não
acompanhá-la.
É claro que prefiro a amizade ao fogo na bunda que estávamos
tendo, com certeza me sinto muito mais feliz com ela aqui do que me
dando patada em algum Paddock ou na garagem da minha própria
equipe. Mas é impossível estar perto de Carol Pimenta e não pensar
em tudo o que eu gostaria de viver com ela.
Capítulo 20
Ou: Envolta nas chamas, envolta na vergonha, traída por sua imaginação... Dentro da minha cabeça, mas está tudo bem.
Carol
Já passa da meia-noite e o sono ainda não chegou. Não posso
dizer o mesmo sobre a fome, no entanto. Me sento com as pernas
dobradas no sofá branquinho da sala de jogos, o qual Daniel quase
morreu me vendo colocar os pés, enquanto o aguardo com as pizzas
que ele foi buscar.
Com os olhos em meu celular, observo o estoque de mensagens
de Laís, mas não quero falar sobre Daniel quando ele está no
cômodo ao lado. Corro os olhos pela conversa com Gabriel. Sua
última mensagem me diz, em tom de aviso, que faltam menos de três
semanas pra gente se encontrar. Como se eu não soubesse que
recebi um e-mail da companhia aérea com essa informação.
A pizza começa a cheirar e eu aproveito para alterar todas as
senhas das minhas contas de e-mail e redes sociais. Odeio fazer
isso, eram números importantes, mas sabe-se lá até quando ele vai
ficar checando minhas coisas depois do término. Nem sei por que ele
está mexendo nisso quando sabe que estamos estranhos desde
aquela visita patética.
Escuto uma bateção de forno, prato, garfos... E entendo que
Daniel está a caminho. Volto para o aplicativo de mensagens e morro
de rir com as fotos da conversa que abro em seguida: Miyeko
ordenhando uma vaca.
Uma vaca.
— Aproveitando os prazeres que o wi-fi em um avião pode
proporcionar, Pimentinha? — Daniel chega sem a pizza e me entrega
o ketchup e os copos de refrigerante, que eu coloco num suporte no
braço do sofá.
— Sim, a família do Jack tá ensinando a Miy a tirar leite.
— Meu Deus! — Daniel se joga ao meu lado e reclama de dor,
mas não se move.
Sua cabeça está apoiada em meu ombro e ele observa a
imagem estático, como se não tivesse percebido todos os pelos do
meu braço se arrepiando ao seu toque. Arrasto a imagem para o
lado e Miyeko sentada no chão ao lado da vaca nos diz que ela caiu
do banquinho, nossos olhos se encontram por dois segundos e nós
gargalhamos.
Então tem uma imagem de Jack ajudando Miyeko a montar num
cavalo.
— Se a próxima imagem for dela caindo eu juro que — Mas
Daniel não termina, porque Miyeko está caída em cima de Jack e a
forma intensa com a qual os dois se olham faz com que eu abaixe a
cabeça na direção de Daniel, buscando em seus olhos a confirmação
de que eu não estou doida.
— Eles se beijaram na próxima foto? — ele pergunta, passando
o dedo em minha tela, e nós dois exalamos, frustrados.
A imagem seguinte é de Miyeko já montada.
— Você acha que eles tão de fogo na bunda ou que eles se
gostam?
— Se eles não se gostam, vão começar a se gostar. É sempre
assim, muita implicância, muita gracinha e aí pronto, você piscou e
os dois tão pelados — Daniel diz de maneira descontraída e se
levanta para buscar as pizzas.
Não havia segundas intenções em sua fala, mas não dá para
negar que esse clichê de fogo-na-bunda-to-lovers é exatamente o
que a gente tá vivendo aqui.
Meu Deus, Gabriel, por que você precisava ser tão idiota?
Eu só queria estar voltando para casa e para o meu namorado
maravilhoso que me faria esquecer esse meu lado que está
arrastando um bonde pelo Harris agora.
Daniel
Meu celular já marca vinte para as oito quando os passos de
Carol me seguem até a cozinha. Vamos começar a descer logo, mas
o café está pronto.
— Bom dia, moço das golas polo, tudo bom?
A implicância com minha roupa me faz estalar a língua. Viro o
rosto na direção da voz sonolenta e encontro Carol, com o pijama já
substituído por roupas comuns, escorada na entrada da cozinha.
— Bom dia, Pimentinha. — Me afasto da bancada para guardar
o leite na geladeira. — Vamos sentar? — Entrego uma xícara para
ela.
— É muito estranho ter mesas no avião, sabe? — Carol comenta
por cima do ombro enquanto caminha até a mesa na área principal
da aeronave. — Esse trabalho me desacostumou até da primeira
classe — diz, se jogando na poltrona e apoiando seu café na mesa.
— Agora são só aquelas tábuas de 30 centímetros na poltrona da
frente.
— Pelo menos dormiu bem?
— Claro que não. — A resposta vem rápido demais, aflição está
ali e eu não consigo não rir do descaramento. — Essa cama é muito
desconfortável, na volta vou dormir numa poltrona.
— Sabe, não parecia desconfortável quando você... — Ergo os
olhos para ela e Carol desvia o rosto, então, contra todas as apostas,
permaneço com minha bandeira branca em riste — começou a
roncar.
— Eu não ronco, Daniel Harris! — Ela semicerra os olhos, e eu
enfio a cara na minha xícara para me manter sério.
— Você pode achar que não ronca, Pimentinha, mas você ronca,
sim, senhora. — digo, bebendo um gole em seguida.
— Você deve ter sonhado isso, Harris. — rebate dando de
ombros, e eu rio de canto.
— Eu não sonhei com você, você é quem deve ter sonhado
comigo — desdenho, pensando em como ela dormiu no meu abraço
a noite quase toda, mas em vez de rebater, Caroline leva a xícara de
volta à boca, bebendo todo o café de uma vez, sem pousar os olhos
em mim.
— Carol? — chamo sua atenção com a sobrancelha erguida em
dúvida.
— O que foi? — ela responde, mirando a janela.
— Eu quero os detalhes — sussurro, fazendo-a me olhar nos
olhos.
— Detalhes?
— Do seu sonho.
Ela abre a boca, mas perde as palavras por alguns segundos e
eu não contenho minha risada.
— Eu sou a garota dos seus sonhos, Daniel Harris. Não a que
sonha com você, se toca.
O deboche intrínseco às palavras, me atinge.
— Você é mesmo. E é sempre maravilhosa neles. — Suspiro
antes de desafiá-la — Gostaria de saber como eu sou nos seus.
Carol me encara como quem não quer dar o braço a torcer.
— Para de ser babaca.
— Só quando você parar de ser mentirosa.
— Eu não vou falar nada, Harris — diz, desviando o olhar e seu
risinho de canto me mata.
— Tudo bem, se você não quer falar como eu estava nos seus
sonhos, me conta seus planos pro Brasil, Pimentinha...
Carol se recosta na cadeira e começa ser vaga sobre o que quer
fazer aqui. Mas, num geral, nosso roteiro é o mesmo: viemos ver
nossas famílias ao mesmo tempo que vamos evitar passar tempo
com elas.
Carol
— Harris: Eu. Odeio. Você — grito depois que ele me fecha no
canto da pista pela terceira vez.
— Em primeiro lugar, você não me odeia — Daniel ergue um
dedo e fala mais alto que a música irritante do parque. — Em
segundo, você já ganhou duas vezes.
— Sim, e ganharia a terceira da nossa melhor de três se você
não estivesse roubando — vocifero, tentando tirar o carro do canto,
sem sucesso.
— Não estou roubando, estou jogando com o regulamento
debaixo do braço — rebate, como se isso fizesse algum sentido.
Mais dois carros estão ocupados à nossa volta, andando
livremente, duas crianças com seus pais que passam por nós e nos
observam como se fossemos dois doidos perdendo o tempo do
brinquedo.
E elas estão certas.
— Desde quando impedir outro piloto de correr é válido? — Soco
o volante com as duas mãos e a risada de Daniel faz o monitor do
brinquedo parar de segurar o riso.
Me pergunto como pode ser tão cínico, me roubar na cara dura e
ainda se defender tão sério. Abro a boca para protestar, mas o tempo
do nosso ingresso para essa rodada acaba e o som do alarme me
faz encará-lo com toda a minha raiva.
Daniel ergue os braços em rendição e eu bufo.
— Ganhei duas partidas da melhor de três — ressalto, pulando
do carrinho. — Isso significa que eu venci.
— Significa que eu deixei você ganhar. — Daniel salta para fora
do carrinho no momento que passo ao lado dele e me encara. —
Sou um piloto profissional, Pimentinha. Acha mesmo que eu não
ganharia de você?
Gargalho com a coragem e dou um passo para o lado, seguindo
meu caminho.
— Nunca ganhou de mim antes, não seria agora que iria ganhar.
— Desvio das duas crianças com seus pais que também estão
deixando a pista.
— Você quer ir mais uma ou já precisa ir embora?
Dou um tchauzinho para o monitor do brinquedo, que ri de nós
dois.
— Não, você rouba.
— Vamos fazer algo juntos, então. — propõe, me alcançando do
lado de fora.
— Máquina de dança! — digo no meu tom inegociável ao avistar
o brinquedo do outro lado da barca à nossa frente e ele junta as
sobrancelhas num muxoxo.
— Carol, pelo amor de Deus, eu sou horrível nisso.
— Eu tenho de ir embora em vinte minutos, Harris... — Finjo
checar as unhas enquanto caminhamos, e ele expira com força ao
meu lado.
— Tá, coisinha irritante, vamos lá. — Me desafia, correndo em
direção ao brinquedo, e vou atrás dele com meu preparo físico de
centavos.
Ou pelo menos tento ir, porque Daniel é parado bem no meio do
caminho, na frente da carrocinha de pipoca, por um casal de
adolescentes.
Fãs.
Fico exatamente onde estou e finjo observar o carrossel vazio.
De rabo de olho vejo quando o sorriso de Daniel se abre de orelha a
orelha. Sorrio junto porque o momento não é só sobre ele, é o todo.
Mesmo correndo pela bandeira da Inglaterra, Daniel é brasileiro e
sabe o quanto significa ter alguém do Brasil com tanta expressão na
F1.
Os anos de ouro nos deram Fittipaldi, Pace, Piquet e Senna.
Depois disso, Rubinho e Massa. Então tivemos de nos conformar
com o Hamilton sendo um cidadão honorário, mas alguém que
nasceu aqui? Harris é o primeiro! Então não consigo conter o sorriso
quando Dani os abraça. Esse é outro motivo para ficar longe, deixá-
lo ter seu momento.
Uma coisa que estranhei quando chegamos é que ninguém veio
falar com Daniel. Na saída do aeroporto, algumas pessoas o
encararam, outras tiraram foto de longe e ele fingiu não ver, mas sei
que estava ciente.
Na orla da praia isso aconteceu de novo, e confesso que até
fiquei com medo de estar ao seu lado nessa situação, quer dizer, se
quando ele me deu aquela fatídica primeira entrevista surgiu gente
do bueiro na internet para especular se éramos um casal, imagina
nos vendo juntos por aí.
— Carol! — Daniel me grita, assim que esse pensamento passa
pela minha cabeça, e meu pescoço vira imediatamente para que eu
possa fulminá-lo com o olhar.
Harris me chama com a mão no ar, fazendo sinal de “vem”, junto
do casal que está com ele. A garota de sorriso fácil e olhar
encantado não pisca durante todo o meu trajeto. Já o rapaz, alto
como um exímio namorado catador de mangas, me observa sem
expressão.
— Meu Deus, Carol. Eu te acho tão incrível. — A menina joga os
braços no meu pescoço e eu olho para o Harris, na minha lateral,
tentando entender essa reação ao mesmo tempo que tento não
amassar o black power dela.
— A Joana faz jornalismo — explica — e disse que se inspira
muito em você.
— E é verdade. Ela fala de você o tempo todo — o namorado
comenta, tentando puxá-la.
— Só comecei a amar Fórmula 1 por causa de vocês dois,
sabia? Sempre gostei de assistir, mas parecia algo tão distante —
diz, me soltando depois de eu começar a empurrá-la levemente. —
Só que ver você na Arrows esse ano e você comentando deixou tudo
mais interessante.
— Por quê? — Daniel indaga de cenho franzido.
— Porque vocês são — Pelamor de Deus, não diz um casal —
pretos , uai. — Meu alívio é tão grande que a respiração sai mais alta
do que o programado. — É complicado encontrar repórteres
mulheres de destaque na F1, preta então... E piloto, você é o quê? O
Primeiro desde o Hamilton? — A pergunta é retórica, mas Daniel
assente. — É isso, vocês tornaram o sonho mais possível.
— Ah. — Rio aliviada. — Fico muito feliz de ser uma referência
pra você, Joana. De verdade. Eu sei a falta que a representatividade
faz no dia a dia.
— Você sabe que ela está tentando parecer normal, mas tem
#CarDan na BIO, né? — o rapaz diz rindo de canto, e eu ficaria roxa
como um pimentão se fosse branca e, pela cotovelada que dá no
namorado, Joana também.
— O que é #CarDan? — Daniel, o sonso, pergunta ao meu lado.
— O shipp de vocês — Joana responde como se fosse óbvio, e
eu me afundo mais cinco palmos no chão.
— Ah, o negócio que quase acabou com meu namoro... — Jogo
no ar.
— Sim! E, com todo o respeito, a gente segue na torcida para
que acabe logo — diz, e Daniel gargalha.
Ele simplesmente gargalha ao meu lado.
— Agora que minha gatinha passou de todos os limites, a gente
vai indo nessa. — O rapaz se despede corado e sem jeito. —
Obrigado pelo tempo de vocês.
— Nada disso. — Joana se desvencilha do abraço em sua
cintura. — A gente pode tirar uma foto?
— Eu tiro. Vão vocês dois com ele. Sou ótima em bater fotos. —
Me adianto, mesmo mentindo.
Os três param de costas para o barco Viking que é o único
brinquedo com luz do sol a favor, e eu faço seis fotos.
— Prontinho — digo, entregando o celular dela e empurrando
Harris com o olhar. Quero sumir daqui o mais rápido possível.
— Ah, vamos fazer uma selfie? — ela pede, e eu gelo na hora,
Deus me livre o Gabriel ver essa foto. — Eu não posto em lugar
nenhum, juro. O Mathias jura por mim também. — Indica o
namorado.
— Sei... a senhora estava na torcida pelo fim dele há poucos
minutos.
— Se tu tá aqui com o Daniel agora, é obvio que esse namoro
não dura muito, não preciso me meter...
— A senhorita é muito bocuda, sabia? — Mathias a repreende, e
eu reviro os olhos para a carinha risonha de Daniel.
— Meninos de um lado, meninas de outro — decreto, assumindo
a ponta direita, e Daniel assume a esquerda.
Sorrio para a foto porque, bem, não é só sobre o Harris, é sobre
a Joana ter uma foto com alguém que a inspira.
— Você posta essa foto antes de a Carol ficar solteira e eu não
te convido para o nosso casamento! — Harris alerta com o dedo em
riste e os olhos dela se arregalam mais que os meus. — Agora a
gente precisa ir. Até mais. — Ele passa o braço por cima do meu
ombro, fazendo Joana abrir um sorriso enorme.
— Até, futuro campeão — Joana diz e, com um tchauzinho
saltitante, o casal nos deixa.
— Harris? — Meu queixo caído com sua audácia o faz desviar o
olhar.
— A menina foi embora motivada e feliz, você não precisa ficar
com raivinha, era brincadeira.
— Eu vou acabar com você naquela máquina. — Passo por ele
trombando em seu braço e finjo que a dor de bater num homem
malhado não me atinge.
Daniel
Algumas coisas nunca mudam.
O toque, o cheiro, os trejeitos ainda estão todos ali. Carol muda
o cabelo de lado quando está ansiosa. Faz um coque quando fica
com raiva ou perde a paciência, semicerra os olhos querendo passar
a mensagem de que ela está certa e ponto final.
Ah, ela também tem mania de, do nada, estalar o pescoço, e
isso sempre me assustou o suficiente para me irritar, mas agora não
incomoda mais. Ter de ouvi-la fazendo isso significa que Carol está
na minha vida de alguma forma, e isso é certo.
Ter a minha Pimentinha por perto é o certo.
Eu gosto dela, gosto demais, mas se o único espaço que posso
ter é o de amigo, vou fazer a coisa que mais odeio na vida: tirar o pé
do acelerador, ao menos por ora.
se comunicar e por um tempo achei que isso era algo que eu deveria apreciar...
Carol
Já são quase quatro da tarde quando Laís desiste de tentar
arrancar algo sobre o Harris de mim e decide que precisamos
almoçar.
— Não tem problema mesmo você ter saído mais cedo do
trabalho, amiga?
— Não. Eu tenho uma reunião às cinco, mas nada absurdo. —
Assinto pensando no que vou fazer sozinha nas últimas horas que
tenho livre até encontrar Gabriel. — Você pode dormir depois do
almoço, parece exausta. — Ela lê meu pensamento, fazendo um
sorriso se abrir no meu rosto instantaneamente.
— Tá aí uma coisa que preciso fazer. — Me levanto sentindo a
maciez do estofado marfim, que também é novo e quase se camufla
na parede.
Estendo a mão para Laís, a puxo, e nós caminhamos para a
cozinha.
— Isso é verdade. Dormi pouco essa noite, e dormir num avião
não é o melhor dos mundos. — Enfio a mão nos cabelos, sacudindo
os cachos enquanto a sigo.
— Nem imagino como deve ter sido ficar num avião com o seu
amor de adolescência. — Laís não está implicando comigo, está
sendo honesta, então também sou:
— Eu não estava com o meu ex, estava com um amigo. —
Passamos pelos dois quartos no corredor e, apesar de a cama do
meu antigo quarto me gritar, continuo firme até a cozinha. — Sei que
parece estranho, mas foi bom. De verdade.
— Então você não vai surtar? — indaga enquanto observo a
enorme samambaia na janela e, diferente da planta da sala, essa é
visivelmente falsa.
— Por que eu surtaria? — Encaro meu reflexo no mármore preto
da pia ouvindo Laís encher dois copos d’água no dispenser da
geladeira ao nosso lado.
— Sei lá, talvez porque você vai ver o Gabriel hoje... — Me viro
de frente para ela, pegando meu copo e levando-o em direção à
boca. — E se ele sonhar que você voou com o Harris, vai ficar
doido?
— Sim, mas ele não vai ter nada a ver com isso, porque nós
estaremos terminados. — Tento me manter firme, mas minha voz
falha no fim.
— Se ele perguntar como você veio, diz que eu comprei a
passagem ou qualquer coisa do gênero, tá bom? Você veio terminar
com ele, Carol. Não deixa aquele babaca virar essa mesa.
— Não vou deixar. — As palavras saem tão fracas que até eu
duvido.
— É melhor você tomar um banho enquanto eu cozinho. Vou
buscar um sabonete pra você, o resto das coisas está no seu antigo
quarto.
Observo a samambaia balançando no ritmo do vento e respiro
fundo, convencendo a mim mesma de que não fiz nada. Não houve
nada errado. Não controlo meus sonhos e não traí Gabriel.
Ele não pode jogar na minha cara uma coisa que não aconteceu.
Assim que a porta é aberta, abraço Laís com toda a minha força,
e meu coração, desapontado com as minhas escolhas, ainda
esmurra meu peito com raiva.
— Foi tão ruim assim? — Minha amiga dá um passo para trás e
me pergunta. Me sento no sofá, vendo-a fechar a porta, e só
respondo quando Laís se senta ao meu lado.
— Foi pior — respondo segurando sua mão.
— Pior? Ele fez alguma coisa com você? — minha amiga
pergunta fazendo menção a se levantar com o susto das
possibilidades, mas nego com a cabeça.
— Não, ele não estava lá. — Estalo o pescoço, mordendo a
parte interior da bochecha depois de responder.
— Carol, pelo amor de Deus. — Laís se levanta, batendo na
perna. — O que aconteceu?
Abro a boca para falar, mas o interfone toca.
— Se for ele, não atende — imploro com os olhos marejados, e
nunca vi Laís me olhar com tanta pena em toda a minha vida.
Ela meneia a cabeça e vai até a cozinha. Quando Laís não abre
o portão automático, entendo que é Gabriel.
— Amiga, você não acha melhor conversar com ele logo?
Colocar um ponto final nisso? — pergunta enquanto meu celular
vibra dentro da bolsa ao meu lado.
— O ponto final já está colocado, Laís. — Desligo o aparelho e
fecho os olhos, escorando a cabeça no sofá.
— Tem certeza de que você não está sendo ingênua? —
sussurra com cuidado. — Ele apareceu na Europa pra te infernizar
uma vez, pode muito bem fazer isso de novo.
— Quando ele foi até a Hungria ser escroto, fez o escândalo que
quis e depois me deu as costas. Agora é a minha vez de dar espaço
para ele pensar — ironizo. — Quando eu estiver pronta, converso
com ele.
— Você precisa de alguma coisa?
— Você me faz um chá? — Peço porque quero contar a verdade
a ela, mas antes disso preciso limpar esse rosto e me trocar.
Vou até o quarto pegar uma muda de roupa e caminho até o
banheiro. Me escoro na porta me sentindo... estranha. Essa é a
palavra. Tiro a roupa e me enfio no pijama, porque a última coisa que
quero pensar é quando essa coisa do Gabriel começou para ele
enfiar a garota dentro da nossa casa, para dormir na minha cama.
Chegando à sala, encontro a lâmpada principal à meia-luz, Laís
sentada na poltrona e luzinhas de LED iluminando o rodapé de todo
o cômodo, evidenciando que a planta falsa é bonita na fraca
iluminação amarela também. Pego a xícara sobre a mesa atrás do
sofá e dou a volta nele, suspirando com o ar aconchegante que essa
decoração e meu chá fedido trazem.
— O Gabriel não estava em casa quando eu cheguei lá, mas a
namorada dele estava — digo, encarando minha amiga. Seus olhos
se arregalam tanto que quase estendo as mãos para segurá-los caso
caiam.
— Cacete?
— Laís, eu juro pra você. De tudo o que eu esperava do cara
mimado e estouradinho que eu namorava, isso não era um dos itens.
— Eu não sei o que dizer.
— Se você vai dizer que ele era um babaca, não precisa. De
verdade. Porque o Gabriel nunca foi perfeito, mas ele era do que eu
precisava. Ele foi, todo o tempo e eu não faço ideia de quem é essa
pessoa.
— Às vezes, mesmo quando a gente gosta de alguém... — Laís
começa a dizer alguma frase de efeito, mas eu a interrompo.
— Laís, isso não é sobre o Gabriel ter estado lá por mim uma
vez. Não é sobre a faculdade. — Me levanto, respirando com
dificuldade, com a mão no colo como se eu pudesse impedir meu
coração de explodir de tanto desengano. — O Gabriel ficou comigo,
sempre. Todos os dias. Me ajudou pra caramba, me apoiou, segurou
minha mão e acreditou em mim quando nem eu acreditava, sabe?
— Amiga, para. — Laís se levanta e me abraça, um apego
frouxo, mas confortável. Deito minha cabeça no ombro dela e respiro
fundo. — Ele foi incrível, até não ser mais. Ele te amou, até não amar
mais e esteve do seu lado até não estar mais. — Assinto, muito mais
porque não sei o que dizer do que por concordar. — Segue sua vida
agora, deixa ele no passado. Acabou.
Os dedos de Laís alisam minhas costas por cima no pijama, mas
qualquer carinho agora tem muito mais a textura de um arranhão.
— Amiga, me perdoa, mas eu preciso ir pra cama. — Me afasto
dela com dois passos para trás, quase caindo na poltrona. — Não
faço ideia de como processar isso.
— Posso dormir com você se quiser.
— Não precisa. Tá tudo bem. — Ela cruza os braços, me
olhando feio. — Não está, mas vai ficar. Eu vou ficar. — digo,
passando por ela.
Meus pés pesam, minha cabeça roda e meu coração dói.
Acendo a luz do meu antigo quarto e rio com o quanto ele se
parece comigo agora: um espaço vazio em preto e branco.
— Carol — Laís me chama da porta do quarto. — Quando a
gente tem alguém, mesmo que não goste da pessoa, mesmo que
ame outra pessoa... — diz as palavras com tanto cuidado que eu
ignoro a menção descabida ao Harris. — A traição dói, e ainda que
por revolta, a gente chora.
Sei do que ela está falando, mas só quero me enfiar no colchão
e ficar ali, fingindo que não existo, pelo menos por algumas horas.
Capítulo 25
Ou: Tudo que eu quero é um amor que dure. Isso é pedir demais? Será que tem algo de errado comigo?
Carol
É claro que eu chorei. Todas as noites. Ninguém quer ser
largada, trocada, traída. Mas acho que talvez outras pessoas teriam
sofrido menos, afinal, era um relacionamento chegando ao fim de
qualquer jeito.
No entanto, por mais que eu repetisse isso para mim todas as
vezes que as lágrimas vinham, a minha angústia não era pela
traição, era pelo todo.
No meu aniversário de seis anos, não tive uma festa, pela
primeira vez. “Eu estava grandinha” e meus pais viajaram comigo e
com Nina, a babá. Lembro que pedi, como presente de aniversário,
que a gente fosse para a casa de praia, mas eles disseram que a
casa de campo já estava pronta e que iríamos para a praia no fim de
semana seguinte.
Eles não mentiram, fomos para a casa de Angra uma semana
depois. Mas, no meu aniversário, fiquei trancada numa casa fria e
sem nada para fazer enquanto observava meus pais celebrando a
minha existência sem nunca estar comigo.
Eu tinha 6 anos quando percebi que estava sozinha no mundo,
ter pessoas ou não ter pessoas é sempre uma questão de tempo e
espaço, e agora, o Gabriel, que esteve ao meu lado no pior momento
da minha vida e segurou minha mão por todos os outros, foi só mais
uma pessoa que não ficou.
amor.
Daniel
Os primeiros dias com meu pai foram tão diferentes do que eu
esperava, ou melhor, de como normalmente eram, que me deixaram
com um pé atrás. Ele me percebeu arredio algumas vezes, mas
cambaleamos por pouco tempo até encontrarmos o equilíbrio.
Assistimos aos conteúdos sobre Fórmula 1 e conversamos a
respeito do meu trabalho quarta-feira a tarde inteira e antes, durante
e depois do jantar; na quinta, fizemos as três refeições juntos, mas
passei o resto do dia focado em me exercitar. Precisava treinar o
pescoço e as costas, além do reflexo que também ficou levemente
prejudicado depois da batida. Já na sexta-feira, mal nos vimos, ele
tinha que trabalhar e respeitei. Doutor Fernando Torres tem dedicado
muito do seu tempo a mim e aproveitei para manter os treinos em
dia.
Ontem, de um jeito atípico, fomos almoçar na minha lanchonete
favorita, também conhecida como o pavor do meu pai. Uma dessas
lanchonetes de beira de estrada que servem comidas sensacionais,
de procedência duvidosa, a preços que nem todo mundo pode pagar.
Pegávamos sol à beira da piscina, na traseira da casa, enquanto
conversávamos sobre lembranças de família. De uma hora para a
outra seu Fernando levantou, me mostrando a chave do carro no
bolso da bermuda branca, que sob a luz do sol contrastava com sua
pele escura, e disse: “Não lembro quando foi a última vez que comi
um pão com linguiça, o que você acha?”, com um sorriso no rosto
que me convenceria a ir a qualquer lugar.
Assenti, sorrindo de volta e, ao me levantar, puxei a chave da
mão dele. Normalmente, odeio dirigir carros de passeio. A velocidade
é tão lenta que parece que vou dormir no volante, mas pegar a Dutra
com seus 110km/h de limite me deixou animado.
Tão animado quanto agora, que meu pai me garantiu que com a
mudança dele para a Inglaterra, vai me ver correr pelo menos uma
vez ainda esse ano.
— Eu sinto falta, sabia? — Deixo minha cabeça descansar no
encosto do sofá da sala de estar e o encaro.
Meu pai me observa por alguns instantes, e seus olhos me
fazem cruzar as mãos em meu colo, como se quisesse segurar
qualquer coisa que não fosse o controle do videogame.
— De mim? — pergunta com uma leve surpresa, e me sinto o
pior filho do mundo por alguns milésimos de segundo.
— Óbvio. Mas de você lá. — Encolho os ombros. — Sei que
nunca foi muito a sua praia, mas às vezes...
— Às vezes, a gente precisa fazer pequenos esforços, porque as
pessoas valem a pena — diz, com um risinho de canto.
— Exatamente. — Bem como tem acontecido todas as vezes, o
ar pesa quando as coisas caminham para o sentimentalismo, então
trato de manter a conversa nos limites da pista. — Mas, e aí, vai
continuar perdendo para mim ou vamos fazer outra coisa? — indago
com a sobrancelha erguida e ele gargalha ciente de que o placar do
videogame está nove a dois para mim.
— Você é piloto. Faz isso de olhos fechados. Coloca um clássico
aí pra ver se eu não ganho de você — diz, com um tapa em meu
pescoço.
Sorrio pensando na Carol. Apesar de ter a minha idade, ela
também ama os clássicos.
— Tem emulador de Sonic no meu quarto, serve? — sugiro, por
fim.
— Então vambora moleque, vou acabar com você — diz, se
levantando.
— Bora, velhote, o senhor ainda tem de ganhar de mim cinco
vezes para conseguir me passar.
Meu pai cruza os braços me encarando e, quando um homem de
dois metros que tem algum tipo de autoridade sobre a sua vida
assume essa postura, você apenas corre.
Subo a escada de dois em dois degraus e começo a organizar o
ambiente para recebê-lo. Lá no fundo, uma voz me pergunta se
comer em beira de estrada e jogar videogame é o que um pai
deveria fazer com seu filho adulto. Mas trato de silenciá-la porque
essa visita está sendo muito melhor do que eu esperava e, pelo
menos por ora, isso precisa bastar.
Carol
Eu sabia que ir embora do Brasil sem conversar com Gabriel não
era uma opção. Ainda assim, encaro Laís apreensiva quando o
interfone toca. De alguma forma, ter terminado com ele na minha
cabeça era o suficiente para mim, mas Laís foi cirúrgica me
lembrando de que Gabriel já tinha atravessado o oceano para marcar
território uma vez, e nada o impediria de ir novamente se eu
deixasse a situação como estava.
Ele não é “uma pessoa de gênio forte” no fim das contas, é só
um babaca.
Me levanto batendo a mão no jeans surrado que estou vestindo
desde que fui à casa dos meus pais almoçar, caminho até a cozinha
e tiro o interfone do gancho.
— Laís, foi a Carol quem me chamou para vir aqui. Não vou sair
enquanto não falar com ela. Não adianta, ou você me deixa entrar
ou...
— O portão está aberto — respondo, pressionando o botão de
comando, e encaixo o fone no lugar descansando meu corpo na pia.
— Amiga... — Laís me chama, provavelmente os pés de Gabriel
já deixam sua sombra embaixo da porta de entrada.
— Tô indo. — Volto até a sala rapidamente, passando pelo
banheiro e os dois quartos no pequeno corredor como se eles
pudessem me esmagar. Paro diante da entrada da casa e respiro
fundo.
— Vai dar tudo certo, eu tô aqui — Laís sussurra, e me sinto
segura o bastante para abrir a porta.
— Carol, pelo amor de Deus. — Gabriel entra, colocando os
braços podres dele ao meu redor. — Que susto você me deu, Vida.
— Susto?
— Essa merda de me dar um gelo, a gente combinou de não
fazer mais isso, lembra? — pergunta como se não tivesse me
largado no meu quarto feito um dois de paus na Hungria.
Gabriel segura meu rosto entre as mãos e é absurdo como cada
movimento dele agora me dá calafrios. Não por eu ter medo de que
ele faça alguma coisa comigo, mas pelo tom manso, a cara sonsa,
os toques sensíveis e o olhar profundamente confuso, como se não
soubesse exatamente o que aconteceu.
— Gabriel, a gente pode conversar no meu quarto?
— Claro, Vida — diz, se inclinando para me beijar, e eu viro o
rosto. — Ah, boa noite, Laís. Com licença. — Meneia a cabeça para
a minha amiga, na poltrona ao lado dele, que o ignora.
Gabriel apoia suas mãos em minha cintura pelos oito passos que
levam até o quarto de hóspedes. Acendo a luz e no segundo que ele
passa pela porta e eu a fecho, o encaro cruzando os braços.
— Onde está a sua namorada?
— Aqui. — Ele ri. — Você é minha namorada.
— Não sou, não. — Seus olhos se arregalam. — Se você passar
o olho pelas minhas redes sociais, vai ver que eu sou a mulher mais
solteira do Rio de Janeiro. — Seu queixo cai.
— Carol, você sabe que eu te amo — diz, com os olhos
marejados. — Por que está fazendo isso com a gente?
— Eu estava sozinha, do outro lado do mundo, e você fez um
mochilão sem me avisar. — As palavras voam e me dou conta de
que, por mais humilhante que possa parecer, o menor dos meus
problemas é o chifre. — Sei como é ter de viajar para a Europa
recebendo em reais, entendo que não tivesse grana no seu
planejamento pra desviar e me ver. Só que eu podia ter ido até você
— digo com o corpo na porta e os braços cruzados. — Eu jamais
teria me negado.
— Desculpa. Me perdoa, Carol. — Com um passo para frente,
Gabriel engole em seco. Quando não me aproximo, ele não dá um
segundo passo. — Eu fui moleque, não pensei direito, só...
— Você pensou direito, só não pensou em nós. — Abro os
braços como se fosse algo a lamentar. — No entanto, quando se
sentiu ameaçado por um cara que eu namorei há anos, você
apareceu. Do dia para a noite, arrumou dinheiro o suficiente para me
encontrar...
— Era o leste europeu, Carol. Você sabe que Budapeste não é
caro. — Me olha de cima a baixo, como se eu tivesse dito algum
absurdo, e eu expiro, desencostando da porta.
— O problema não é esse. — Corro o olhar pelo quarto antes de
continuar, porque parece piada. Quando volto a falar, estou mirando
a cortina de cetim dançando atrás dele com a leve brisa da noite. —
O problema é que você não foi lá por mim, você foi pelo Harris.
— Porra, Carol. Se eu tivesse uma ex-namorada me urubuzando
você também ficaria puta — diz, com as mãos nos bolsos traseiros.
— Não, Gabriel. Porque você era meu namorado. Eu não estava
te amarrando em lugar nenhum, se quisesse ir com ela, podia ter ido.
— Rio sem humor, caminhando até a cama, e ele se senta ao meu
lado. — Se ficasse comigo, teria me escolhido. Assim como eu tinha
escolhido você. Independente da distância, do tempo, do trabalho...
— Apoio minhas mãos no colchão por não ter mais o que fazer com
elas.
— E o que te fez desistir tão fácil? — Seu rosto triste quase
brilha com tamanha inocência nos olhos e eu gargalho.
— Fácil? Chegar na sua casa e ver outra mulher se chamando
de sua namorada é fácil?
— Pelo amor de Deus, Carol. Ela não é minha namorada de
verdade.
— Então quem ela é?
— Ninguém importante — rebate com desdém. — Não significa
nada pra mim.
A desculpa milenar.
— Entendi. Mas a real é que não terminei com você por causa
dela. — Jogo a verdade no chão à nossa frente e ele se levanta.
— Como é que é? — Aí está, o tom de voz rouco e controlado,
os punhos se fechando e o olhar escurecendo. — Terminar comigo?
Você não pode terminar comigo.
— Todo esse tempo longe, principalmente depois da nossa briga
quando você foi “me visitar” — Faço as aspas com as mãos no ar. —
Me fez perceber que eu não sinto a sua falta, que é indiferente ter
você na minha vida. Eu não gosto mais de você.
— Você me ama, Carol, para de bobeira — diz entredentes,
coçando a barba por fazer, que sempre foi rala demais.
— Gabriel, eu acabei de dizer que não, não amo. — Respiro
fundo controlando as lágrimas, não sei exatamente o porquê, mas eu
quero muito chorar.
— Você me ama. — Ele se ajoelha na minha frente. — E eu sou
a única pessoa que te ama de volta — diz, de maneira didática,
tentando tocar meu rosto.
— Você. Me. Traiu. — É minha vez de ser didática.
— Eu tive necessidades! Não queria ficar te cobrando, te ligando
e impondo visitas ou qualquer coisa — argumenta mirando o meus
joelhos. — Só queria deixar você fazer o seu trabalho bem.
— Quem ama, quem ama de verdade, não faz isso.
Minha frase faz com que ele se levante e me encare por dois ou
três segundos. Em seguida, uma risada de desdém me atinge.
— Ah, claro. Porque é você, de todas as pessoas no mundo, que
sabe o que é ser amada de verdade.
— Quem ama, não faz a outra pessoa se sentir mal. Isso não
existe e...
— Caralho, eu tô fazendo você se sentir mal? — me interrompe,
num grito reprimido, espalmando o próprio peitoral com as mãos.
Posso vê-lo se controlando para Laís não vir aqui. — Seus pais mal
se lembram do seu aniversário. Você foi amarrada na porra de uma
cadeira no meio de um salão de festa, as pessoas tacaram tinta
preta em você e queriam te colocar no sinal pra pedir esmola, e o
seu namoradinho estava correndo tanto do outro lado do oceano que
não conseguiu atender suas ligações. E a garota que dizia ser sua
melhor amiga? Essa foi embora duas semanas depois. E você
realmente acha que sou eu quem está te fazendo sentir mal?
A frieza com nas palavras dói.
Lembrar do que aconteceu machuca.
— Sabe o que eu acho engraçado, Gabriel? Você adora dizer
que me salvou, que me tirou do momento mais humilhante da minha
vida e me ajudou a superá-lo, mas o que você fez por todas as
outras pessoas que estavam passando pelo mesmo que eu?
— Nada, porque eu estava cuidando de você. — Óbvio, agora a
culpa é minha. — Quando os seus pais disseram que você não
deveria ter denunciado ninguém.
— Quando meus pais tentaram evitar que eu me desgastasse
por uma causa perdida numa universidade que não puniria ninguém
— grito, e minhas lágrimas quase me traem, mas sinto-as rasgando
minha garganta quando as engulo.
— Eu segurei a sua mão e entrei numa delegacia com você
quando sua mãe te falou que não valia a pena — diz com seu dedo
em riste, como se tentasse me lembrar como tudo aconteceu.
— Ela me disse para não tentar brigar com filho de senador e
juíza. — Rio da ingenuidade que os dezessete anos carregam e me
levanto. — Sofia olhou nos meus olhos, chorando e dizendo que eu
precisava entender que aquilo só me causaria mais dor.
Lembro exatamente por que minha mãe me disse isso.
As pessoas dizem que amor não vê cor. Mas isso é mentira.
Qualquer pessoa que se relacione com uma pessoa negra vai saber,
em dois passeios no shopping, em entrar numa loja, até comprando
protetor solar, que todo mundo vê a cor e, por isso, o amor não tem
como não vê-la.
Dona Sofia é uma mulher branca e loira, casada com um homem
negro e com uma filha negra, se alguém entende o que o racismo
pode fazer para quem se ama, esse alguém é ela. E por mais que eu
fosse parecer fraca e desprezível não denunciando o que fizeram
comigo, eu teria sofrido uma vez só.
Não naquele dia.
E no dia seguinte.
E durante um processo que eu nunca tive chance de ganhar.
— Tá, ótimo. Seus pais estavam te protegendo deixando você
passar por toda aquela humilhação sem fazer nada. Mas e a Laís,
ela foi embora e deixou você para trás, isso é amor?
— Eu nunca seria egoísta a ponto de dizer à minha amiga que
ela precisava desistir do intercâmbio dela. — Me levanto e caminho
até ele com o dedo em riste. — A Laís não era como a gente, você
sabe disso — falo baixo o suficiente para que apenas ele ouça.
Eu e Gabriel tínhamos dinheiro, nossos pais tinham. A família de
Laís, não. Ela batalhou muito para ter a vida que tem hoje. Laís só
saiu do país porque ganhou a viagem de intercâmbio no curso de
inglês que fazíamos juntas. Aquela não era uma oportunidade que
ela podia perder ou pagar para adiar.
— Nossa, você agora deu para defender todo mundo que te
abandonou? — ri com ironia e ergue os braços como se estivesse se
rendendo.
— Não estou defendendo ninguém, estou expondo como as
coisas aconteceram. — Dou as costas para Gabriel voltando até o
mais perto da cama possível, ficar perto dele me causa náuseas
agora. — E não foi exatamente como você me fez acreditar.
— Claro que a culpa é minha, Carol. É óbvio que eu devia achar
normal a postura dos seus pais e da sua amiguinha. E o seu
namoradinho? — Gabriel levanta os olhos do chão e, como se
tivesse uma faca na mão, pressiona a lâmina de suas palavras
contra a minha barriga. — Ele também tem desculpas? Eu também
entendi ele te tratar como a garota sem vida que ficava aqui
esperando uma migalha de atenção, errado?
Não. Não entendeu. Mas não quero resumir isso tudo ao Daniel,
porque não tem a ver com ele. Simplesmente não tem.
— Gabriel — grito, apoiando a mão direita na cintura, e ele me
encara arredio. — Não entendi até agora para que você está me
lembrando do que aconteceu há cinco anos — berro as palavras e é
como se elas pudessem romper os tímpanos de alguém. — Nosso
término não tem a ver com isso. Estamos terminando porque você é
um babaca de merda, que me manipula, me trai e trata como se eu
fosse uma criança assustada.
— O que deu em você? — O desprezo se aloja em cada
centímetro dos olhos dele — Eu não te conheço mais, sério. Você tá
me assustando com esses gritos e...
— Se tá ruim pra você, imagina pra mim, que percebi que nunca
te conheci — interrompo-o. — Você é o tipo de cara que entra na
minha casa e começa a dizer que eu não sou digna de amor e que
eu tenho que ficar com você por gratidão, quando no fundo nós dois
sabemos que você não fez nada!
— Nada?
— Nada. Você me tirou de lá porque gostou de mim, só isso.
Poderia ter sido qualquer outra garota. Mas fui eu. Enquanto todos
os outros alunos negros ficaram sendo feitos de pedintes e
chamados das coisas mais horríveis do mundo, porque você não se
importava de verdade. Pelo menos não o suficiente para pedir que as
outras pessoas parassem.
— Carol. Você está parecendo uma retardada, meu Deus. — Ele
coça a cabeça com as duas mãos e rosna. Gabriel simplesmente
rosna de ódio e em qualquer outro momento eu gargalharia. — Eu
lutei com você, mudei de universidade pra você não ficar sozinha, fui
seu amigo todos os dias, me apaixonei por você, te recebi na minha
casa, cuidei de você quando ninguém mais se importava...
— E eu sou grata. Não estou dizendo que você nunca me amou,
só estou dizendo que você acha que eu preciso ficar contigo para
sempre porque um dia fez uma coisa por mim e agora, em cada
oportunidade que tem, joga isso na minha cara.
— Não é possível que você tenha me amado tanto tempo e
agora, de repente, depois do Harris na verdade. — Ele dá uma
risadinha. — Eu seja alguém tão ruim.
— Você está certo, talvez não seja de agora. Talvez você sempre
tenha sido assim. Provavelmente todos os “eu vou cuidar de você”,
eram para isso. Para me amarrar a você, como minha única tábua de
salvação, tão forte, mas tão forte, que eu não conseguisse ver mais
nada.
— Não acredito que você vai jogar nossa história do lixo por
causa daquele pilotinho de merda. São três anos, cara. Três anos
não são três meses. Não pode ser tão fácil assim para você me
trocar por ele. — Gabriel fala baixo, não como se estivesse
controlando a voz, mas com decepção, desapontamento, como se
ele estivesse sendo trocado e isso doesse.
E eu não consigo não explodir em lágrimas.
O complexo de Dom Casmurro desse homem vai me matar.
Quantas vezes mais eu vou precisar dizer que não o traí? Mal respiro
diante dessa cena porque não é possível que ele não tenha escutado
uma palavra do que eu disse. E muito menos que ele realmente ache
que nós vamos reatar depois de eu ter conhecido a nova namorada
dele.
Ouço a porta entreabrir e Laís aparecer, mas balanço a cabeça
negativamente para ela, que sai, mas deixa claro pelo barulho a
seguir que está do lado de fora, recostada a porta.
— Não estou te trocando por ninguém. — Fungo num profundo
suspiro. — Não estou te deixando por alguém. Quero que isso acabe
por causa de mim, eu estou triste sendo sua namorada. Eu me sinto
sozinha estando com você. Namorar a distância foi um erro. — Tento
tirar o foco das coisas externas e explicar que o que não está
funcionando somos nós dois, como um casal. — A gente devia ter
terminado antes de eu ir embora, evitaria muito choro e muita, muita
dor — digo, como se isso fosse o melhor a fazer. Mas o jeito
indiferente com o qual Gabriel me encara me diz que o que doeu até
aqui está se preparando para doer mais.
— Sabe, Carol. Eu vi você, perdida e boba, confusa, até. Como
um bom veterano, tentei ajudar. Eu salvei você no trote e, talvez você
esteja certa, talvez eu tenha feito a escolha errada. — Não entendo o
que ele quer dizer, mas não me parece coisa boa, porque a
respiração profunda é finalizada com um riso debochado. — Eu não
devia ter tirado você de lá, gente como você tem mais é que se foder
mesmo. Ingrata do caralho.
Gabriel me dá as costas, não sem me lançar um olhar de
desprezo tão grande que me deixa me sentindo ainda menor do que
quando descobri que estava sendo traída, e sai.
Ele simplesmente passa pela porta depois de me dizer a coisa
mais horrível que já ouvi na vida.
Laís com certeza escutou cada palavra, porque quando Gabriel
some do meu campo de visão, minha amiga entra no quarto e me
alcança em três passos, logo depois que minhas pernas falham e eu
estou prestes a cair no chão.
Capítulo 28
Ou: Eu não me importo de passar todos os dias do lado de fora, na sua esquina, na chuva torrencial. Procure a garota com o sorriso partido, pergunte a ela
Daniel
Pimentinha:
Oi, Novato. Tudo meio merda por aqui. Espero que
seu tempo com seu pai esteja sendo melhor.
Trancado na sala de reuniões, seguro o celular embaixo da
mesa enquanto o sol das duas brilha lá fora e leio a resposta de
Carol à mensagem que mandei ontem à noite. Meu pai, que está
sentado do outro lado da mesa de vidro, em meio aos diretores,
mantém seus olhos em mim.
Eu: Dia difícil ontem?
Pimentinha: Um tempo difícil no Brasil, mas ao mesmo tempo…
Pimentinha: O melhor que poderia ter acontecido.
Eu: Confuso...
Pimentinha: É confuso até pra mim.
Noto os olhos do meu pai em mim novamente e me forço a parar
de digitar e agir como se não estivesse morrendo de tédio.
Eu: Tô numa reunião da empresa, a gente se fala no avião.
Pimentinha: Wow, papai Torres ataca novamente, boa sorte!
Pimentinha: Desculpa interromper essa reunião importantíssima
que você deve estar adorando. Mas preciso saber que horas chegar
no aeroporto...
Envio a resposta e bloqueio a tela fixando os olhos no homem
que hipnotiza todos os presentes na sala, mesmo que essa seja a
terceira reunião do dia sobre o mesmíssimo assunto.
Não tem volta do jeito que você está hoje à noite, eu vejo isso em seus olhos.
Carol
A sensação de impotência não te toma por inteira quando te
fazem algo muito ruim. Não, ela te invade no segundo que se
percebe que não há nada a ser feito sobre isso.
Não porque você não pode, mas porque ninguém se importa o
suficiente com a sua dor. Assim, você luta sozinha. Mas, não é uma
luta justa.
É você contra todos que acham que você só precisa aguentar
um pouco mais. Que só é necessário segurar as pontas para, em
algum momento no futuro, você mostrar para todo mundo que te
subestimou ou humilhou o quão pior a vida deles é comparada a sua.
Como dizia o poeta, no entanto: eu não quero ser melhor do que
os racistas, eu quero que os racistas estejam mortos.
Ter superado o que eu vivi não me torna uma grande guerreira.
Ter tido boa parte da minha vida definida pelo racismo não me
tornou mais eficiente do que uma pessoa branca.
Não ter sucumbido não me deixou mais forte.
A única coisa que eu ganhei com tudo isso foi um grande
emaranhado de desgraçamentos mentais. Não tem nada de bonito
vindo do racismo. Não há nada de proveitoso que se origine no
preconceito.
Acho que esse foi o motivo principal para deixar o Daniel
sentado naquela sala sozinho. Se ele tivesse tentado me tratar como
“a sofrida” ou “a superada”, eu não conseguiria lidar. Falar sobre
esse momento me dá muito mais vergonha do que qualquer outra
coisa. Aquilo separou minha vida em antes e depois, aquilo tirou de
mim a minha inocência, a minha autenticidade e o meu amor.
Deixar o Daniel foi algo que eu fiz muito mais por ele do que por
mim. A gente se viu umas dez vezes depois do meu trote e a cada
vez eu me sentia mais diminuta. Eu era triste, amarga, infeliz... E ele
era... Exatamente o que ele é: luz, calor, felicidade...
E eu tentei muitas vezes falar para ele, mas era impossível. Era
como se falar aquilo fosse me fazer sentir ou viver tudo de novo.
Deixar o Daniel ir era a minha única saída, ele não precisava do peso
morto que eu era àquela altura.
— Carol. — Ouço-o sussurrar e viro meu corpo para a entrada
do quarto. — Ah, você tá acordada?
— Mais ou menos. Já vamos decolar? — Ele assente e eu
começo a me levantar. — Pelo menos eu não fiquei no celular e
minha dor de cabeça diminuiu bastante.
— Ótimo, agora vamos lá. — Daniel dá dois pulinhos correndo
na minha frente. E eu o acompanho. — Coloca o cinto — diz, como
se eu não estivesse vendo a comissária parada à minha frente com
os olhos em mim.
Daniel aperta algum botão para se comunicar com o comandante
e o avião começa a taxiar.
Respiro fundo e meu coração acelera. Os três próximos meses
não vão ser só o fim da minha primeira temporada como repórter de
campo do meu esporte favorito. Eles também vão ser meu momento
de solitude.
Eu, minha vida e minhas escolhas. Sem o peso de o Daniel não
saber do que aconteceu, sem o peso de ter um namorado que eu
não amava. Sem precisar entregar toda a minha vida para
demonstrar eterna gratidão a alguém que nem merecia.
Só eu.
— Como estão os seus pais?
— Bem. — Giro meu pescoço em direção a ele. — Ainda
debochando do meu trabalho assalariado e com planos de viajar
para Paris. Mas bem. E seu pai?
— Estranho — ele diz com o cenho franzido e fica em silêncio
por um tempo. — Seus pais já te fizeram se sentir a pessoa mais
especial do mundo e depois você percebeu que era só... eles
puxando seu saco para você ceder?
— Ah, não. Nunca tive a oportunidade de me sentir especial para
eles, sem esse tipo de decepção por aqui. — Pisco, e Daniel ri.
— É, rolou uma coisa dessas e... Acho que ele tá arrastando asa
pro lado da mamãe?
— Uau. — Meus olhos se arregalam e meu queixo cai.
— Foi estranho. Acho que essa é a melhor definição.
— E a tal reunião, era sobre quando você assume a empresa?
— Não, era sobre como eles vão expandir a empresa para
alguns cantos da Europa e por isso vão substituir o subsídio de
alimentação por um refeitório e não renovar o plano de saúde com
uma empresa top de linha para pagar um mais barato.
— Uau. Seu pai segue me surpreendendo.
— A mim também. Mas não vamos falar dele, me fala de você,
foi bom passar um tempo com a Laís? Você volta para a casa dela
nas férias?
— Foi muito bom. Foi difícil terminar com o Gabriel, querendo ou
não ele era um pouco tóxico e eu uma dependente emocional,
então... Talvez eu não tivesse conseguido sem ela. E sem a Miyeko,
que manteve essa ideia na minha cabeça todos os dias desde
Budapeste.
— Que bom que você tem elas duas, Pimentinha. E que seu
tempo com seus pais não te machucou.
— Não, foi uma boa visita se eu colocar na balança e esquecer
tudo de ruim...
— Que nem você esqueceu nossa janta?
Franzo o cenho sem entender e Daniel ri.
— Nossa janta?
— Você estava incumbida de trazer as coisas para o meu
estrogonofe de camarão, lembra?
Se eu fosse o Gabriel, eu rosnaria agora.
— Nossa, Daniel. Me desculpa, eu esqueci mesmo. — Meu
estômago ronca e Daniel segura o riso. — E eu estou morrendo de
fome — resmungo e ele ri. — Daniel gargalha tão intensamente que
reviro meus olhos. — Para de rir. Que desgraça. Esqueci
completamente da comida.
— Garota, a gente tem comida aqui, sabia? Você não vai ficar
doze horas sem comer.
— Ah, tem?
— Sempre tem. Eles só não fazem aquele algo tão maravilhoso
quanto o seu estrogonofe — Dani diz com os olhos em mim, e eu
meneio a cabeça.
Mas ele não para de me olhar, estudar cada pedacinho do meu
rosto, de mim, e antes que meu rosto esquente, quebro o silêncio.
— Que tanto você me olha?
— Você é linda. E é muito bom poder te dizer isso sem achar
que estou te constrangendo por causa do seu namorado ou do seu
trabalho. — Quase digo que estou constrangida da mesma forma,
mas talvez eu precise de um elogio ou dois. — Quando me mudei
para Inglaterra, coloquei uma foto sua, com o uniforme do nosso
colégio americano, na cabeceira da minha cama. Ela ainda é a última
coisa que vejo todas as noites quando durmo na minha mãe.
Ignoro meu coração quase saindo pela boca.
— Suas namoradinhas devem ter adorado me ver antes de
dormir.
— Eu sou um moço de família, Carol Pimenta. Nunca levei
ninguém para dormir comigo na casa da minha mãe — ironiza. —
Vamos fazer alguma coisa?
— Um filme? — pergunto ao perceber que já podemos nos
levantar.
— Você está com tanto sono assim?
— Eu não vou dormir, seu idiota. — Dessa vez não vou mesmo,
só não quero ser a garota solteira e carente conversando com o ex.
— E você pode escolher dessa vez.
— Vamos assar pizza novamente? Tem lasanha também.
— Então vamos de lasanha — digo, já de pé ao lado da poltrona
dele.
Nossa noite tinha tudo para dar certo e todo mundo sair ileso. O
avião decolou por volta das 20h, colocamos a lasanha no forno e
jogamos videogame enquanto ela assava. Jantamos conversando
sobre a temporada e amenidades da nossa semana no Brasil, como
as comidas das quais a gente mais sentia falta. Depois de descartar
as embalagens e trocar os copos de refrigerante por garrafinhas de
água, decidimos ver um filme.
Daniel escolheu A Arte de Correr na Chuva e, honestamente,
não sei quando ele aprendeu a assistir filmes românticos tristes, mas
quero que essa versão dele desapareça. Porque eu estou acordada
chorando com o final do filme enquanto ele dorme. Para piorar,
Daniel está deitado no meu colo, e não sei exatamente como isso
aconteceu.
Tinha uma almofada apoiada na minha perna quando ele se
deitou, agora, no entanto, tem a cabeça dele nas minhas coxas e a
mão na qual ele apoia a cabeça entre elas. Apesar disso, Daniel é
tão lindo quando cala essa boca que mesmo que os créditos estejam
na tela, não quero sair daqui. Não quero acordá-lo.
Sorrio sozinha e levo minha mão até o cabelo dele, então
contorno o lado direito de seu rosto, e sinto sua pele. Macia, combina
com sua respiração serena. Volto os dedos para seu cabelo e faço
cafuné por algum tempo, vendo meu Novato aqui, agora, é como se
o tempo não tivesse passado.
Como se nessa caixa flutuante a centenas de metros do chão,
tudo fosse diferente.
— Não sei por que as pessoas reclamam quando mexem no
cabelo delas, isso é tão bom. — Daniel se vira de frente para mim e
eu mantenho minha mão suspensa no ar. — Por que você parou? —
indaga abrindo os olhos, indignado.
— Eu não estava te fazendo cafuné, tinha algo no seu cabelo e
eu tirei. Para de loucura. — Me levanto, deixando a cabeça dele
desabar.
— Ai, Caroline Pimenta! Isso dói.
— Esse sofá é mais macio que metade das camas que eu dormi
esse ano. Para de show. Vem pra cama. — Me arrependo das
palavras no momento que as digo, porque ele abre a porta do quarto
com o sorriso mais sugestivo do mundo.
— Chamou, Pimentinha?
— Para de ser imbecil. Vou colocar um pijama, está na hora de
deitar.
— Por que? A gente passou a ida inteira acordados.
— Em primeiro lugar você estava dormindo ainda agora. Em
segundo, a gente foi pro Brasil descansar, agora a gente está
voltando para trabalhar e vamos chegar em outro fuso-horário.
— Ah, a troca de fuso é uma desgraça.
— Exatamente. — Jogo a palavra por cima do ombro e entro no
banheiro.
Eu vou morrer se precisar voar com esse homem de novo. Eu
juro que vou.
Encaro a Carol do espelho de olhos semicerrados. Uma
descarada que está conferindo o desodorante e passando um óleo
no corpo. Eu nem lembrava que minha necessaire tinha um óleo
corporal.
Graças ao meu bom Deus a Carol do espelho não escolheu a
roupa de dormir, seria um baby-doll de cetim com a popa da bunda
de fora, com certeza. Entro na minha calça larga e na minha blusa de
flanela e encaro as alças finas dela. Da próxima vez vou colocar um
pijama de casaco.
Não vai ter uma próxima vez, Caroline Pimenta. Digo a mim
mesma e deixo o banheiro.
— O que cê tá fazendo? — Encaro Daniel sentado na cama.
— Indo dormir? — Seus olhos sobem do celular.
— Sua dor na coluna já passou — respondo como se fosse
óbvio enquanto coloco a nécessaire na mochila. — Você não precisa
dormir aí.
— Está com medo de não resistir a mim agora que é solteira?
Pronto. Aceito o desafio e me jogo na cama ao lado dele.
— Claro que não — digo, irritada demais, e ele roça a língua no
lábio inferior, segurando o riso. — Só não lembrava que precisaria
dividir a cama com você.
— Eu entendo que você não consiga resistir, Carol — diz, se
levantando. — Posso dormir na poltrona, sim, ou no sofá se você
preferir que eu fique fora do quarto. — Dá de ombros e cruza os
braços esperando minha resposta.
— Melhore, Daniel. — Reviro os olhos e ele ri. — Já falei que
não quero nada com você. Pode deitar aí... — Me viro a cara para a
parede e Daniel se levanta e abaixa a intensidade da luz, mas volta
para a cama.
Chego para mais perto da parede no passo que ele se senta.
Rolo o feed do Instagram e percebo que não posto nada há um
tempo. Entrei nas redes para apagar absolutamente qualquer
vestígio do Gabriel, mas postar algo mesmo não rolou.
Decido pegar as fotos que tirei do Rio e fazer um #brasildump.
Em seguida vou até o Twitter ver o que está acontecendo no mundo,
é impressionante como tudo o que chega nessa rede com
antecedência. No entanto, nada aconteceu. Nem uma briguinha de
famosos, nem um escândalo político ou rinha na F1TT.
— Você está com sono? — Daniel pergunta se inclinando em
minha direção.
Sua respiração toca a minha nuca e eu travo a mandíbula
impedindo meu corpo de ter qualquer reação, ou ele vai passar a
viagem me infernizando por isso.
— Não. Mas você estava dormindo, então durma.
— Para com isso, Carol. A gente já brigou por causa das suas
malcriações hoje. — Ele debocha e me viro para encará-lo, com
ódio. — Vem cá, quero te mostrar uma coisa. Você pode até usar
numa matéria.
Me sento num pulo.
Daniel me entrega seu celular, com um sorriso no rosto e aperta
o play. Os dois carros da Arrows param no grid de largada e a
câmera foca nos olhos dele e de Jack. Como se ambos estivessem
se cumprimentando antes da largada. As luzes vermelhas se
acendem uma a uma e então, quando eu estou quase dizendo “It’s
lights out and Away we go”, o vídeo rebobina e para na imagem de
Daniel e Jack, nos tempos de Kart.
“Algumas vezes, duas flechas...”, diz a narração. E então a linha
temporal da carreira dos dois começa a se desenhar diante dos
meus olhos. Na montagem é como se eles estivessem lado a lado no
Kart. Então os temos lado a lado num veículo clássico de Fórmula 3,
então de Fórmula 2. Uma sequência de pódios em todos as
categorias passa rápido demais e então a imagem congela.
Rebobinando novamente e mostrando imagens deles com suas
famílias em várias etapas da vida, abraços que parecem de
despedida, choros de tristeza e alegria passam diante dos meus
olhos e percebo sobre o que é o vídeo.
Não é sobre eles, ou melhor, não é apenas sobre eles.
Isso é Fórmula 1.
A infância em cima de karts.
A renúncia.
A distância.
O viver para dirigir e o dirigir para viver.
Eles são pilotos. Desde sempre. Pilotar é o que fazem e, quando
as imagens com os familiares e todo o resto aceleram até o
momento presente, um sorriso tão empolgado quanto o de Daniel
abre em meus lábios. “São o suficiente para conquistar o mundo”. A
narração se encerra com a partida dos dois no presente, e meu
coração surra meu peito com a adrenalina que as imagens me
trouxeram.
— “Algumas vezes, duas flechas são o suficiente para conquistar
o mundo.”. É lindo, Novato.
— Só lindo? — indaga de queixo caído com a ofensa.
— Fez meu coração acelerar e me deixou doida para assistir um
GP. — Tento colocar em palavras a emoção que sinto com esse
esporte desde pequena. — Sobre o que é o vídeo? Quando posso
falar sobre ele?
— Rascunho do rascunho do vídeo de comemoração do
campeonato mundial de equipes. Você pode falar sobre ele se a
gente ganhar — sussurra, erguendo as sobrancelhas.
— Nossa, já? Vocês estão confiantes.
— Precisamos estar. Essas coisas demoram para ficar prontas.
— Daniel desvia o olhar do meu e meu cenho se franze por instinto.
— A gente precisava aprovar algumas imagens e eu...
— Você não gostou? Vi seu pai nos vídeos, achei... Interessante.
Tento demonstrar algum apoio.
— Na verdade, eu queria saber se você se importaria de eu
colocar você aqui — indaga indicando o celular.
— Por quê?
— Porque se não fosse por você, talvez eu nunca teria me
tornado piloto.
— Claro que teria.
— Não da mesma forma. — Daniel tira o celular das minhas
mãos e joga-o em algum lugar da cama, mas mantém os dedos em
volta dos meus e se aproxima. — Você enfrentou meu pai mais
vezes do que eu fui capaz. Esteve lá o tempo todo. Você é o motivo
pelo qual eu estou aqui hoje, Carol — explica segurando minhas
mãos, e acho que nem percebe o quão perto de mim está agora. —
Não ter você nesse vídeo é contar uma mentira pro mundo. Mas eu
vou entender se você não quiser — diz, e sua respiração beija meu
rosto.
Não tem por que não querer. Qualquer pessoa que o acompanhe
sabe que a gente namorou no passado. Mas me surpreende que ele
me queira ali. Talvez cinco anos não seja tanto tempo longe quanto
eu pensei que seria.
— E você tem todo o tempo do mundo para me responder —
Daniel diz, descendo seu rosto sobre o meu e para quando sua testa
descansa na minha me fazendo engolir em seco. — Mas eu preciso
que você pare de sorrir.
— Por quê? — Meu sorriso se expande involuntariamente, como
se quisesse irritá-lo.
— Porque toda vez eu me pergunto se seu sorriso ainda tem o
mesmo gosto de antes — confessa e engole em seco, soltando
minhas mãos. — Ou qual é o gosto que ele tem agora.
Causa da minha morte: todas as falências possíveis em um
coração.
— Dani, eu fico muito feliz que você tenha essa consideração
por mim. — Seguindo algum comando do meu subconsciente, minha
mão sobe até a nuca dele. — E eu quero estar no vídeo de campeã
da sua equipe — sussurro, com os olhos dele nos meus. — Mas eu
realmente preciso que você não durma nessa cama hoje.
— Eu acho que, talvez, mesmo que a gente sofra um pouco —
Sinto seu toque em minha cintura, por cima da costura da calça e
quase choro por não estar com o baby-doll de cetim que me deixaria
sentir seu calor agora — seja melhor eu dormir aqui.
— Por quê? — pergunto enquanto meus dedos entram em seus
cabelos.
— Porque dessa vez, quando você sonhar comigo, disser o meu
nome, e se aninhar nos meus braços, eu não quero ter de fingir que
isso não aconteceu... — sussurra em meus lábios.
— E o que você quer fazer?
99% do meu ser quer me matar agora. Não tem a menor chance
de isso dar certo.
E eu quase verbalizo essas palavras, quase, mas sinto as duas
mãos de Daniel na minha cintura e num piscar de olhos, estou em
cima dele.
Uma perna de cada lado de seu corpo enquanto ele me encara,
me puxando para si e colando nossas testas novamente. Preciso que
esse Novato me diga o que quer fazer ou faça de uma vez antes que
meus joelhos falhem em me equilibrar ou eu derreta em cima dele.
— Para começo de conversa — Daniel sussurra, dançando com
as pontas dos dedos pela lateral do meu corpo, e eu estremeço sob
seu toque. — Não quero fingir que não te ouvi. Em segundo lugar —
Tira a testa da minha e arrasta os lábios pelo meu pescoço, e eu não
consigo mais me equilibrar, me sento sobre suas coxas e recebo
seus lábios no lóbulo da minha orelha —, não quero fingir estar
dormindo e por último — Ele arrasta as mãos até as minhas costas e
me puxa para si, deixando nossos corpos tão próximos que ele
consegue sentir meu coração enquanto inspira em minha pele.
Daniel tira o rosto da curva do meu pescoço e me encara —, não
quero que seja apenas um sonho.
Estou em cima dele, na cama dele a centímetros insignificantes
da boca dele. E tento, tento uma última cartada.
— Parte de mim está dizendo que algo sério é a única coisa que
vale a pena com você, e nós dois sabemos que não posso fazer isso
agora.
— Ótimo. — Ele sussurra nos meus lábios.
— Ótimo? — A indignação em minha voz me trai e ele ri, o riso
que sempre reservou para mim e essas covinhas vão ser a minha
cova.
— Sim, ótimo. — Daniel chega perto dos meus lábios o
suficiente para morder a ponta do meu lábio inferior, e todas as
minhas terminações nervosas reagem. — Porque se só uma parte
está dizendo isso, a gente vai escutar a outra — conclui enfiando as
mãos em meus cabelos, me levando até sua boca e finalmente
colando nossos lábios.
O gemido que solto quando sua língua toca a minha é
vergonhoso, mas ele me entrega um gemido rouco e uma de suas
mãos desce até minha cintura, apertando-a ao mesmo tempo que ele
puxa meu cabelo com a outra, me posicionando como deseja.
Meu Deus, tomara que eu exploda.
Seu toque me acende, os lábios me tiram do prumo e a língua
me deixa doida.
Envolvo meus braços atrás dele, porque qualquer espaço entre
nós agora me agonia. Lembro do sorriso que ele me deu quando nos
reencontramos, de como eu fiquei fraca vendo-o diante de mim e,
enquanto as mãos de Daniel estão em todo lugar pelas minhas
costas, nuca e cabelo, me dou dois tapinhas no ombro me
parabenizando por ter fingido que esse homem não me afetava
quando era comprometida.
Tiro minha boca da sua e desço os lábios pelo seu pescoço. A
última vez que beijei Daniel Harris ele era um adolescente franzino,
agora ele é tão gostoso que eu poderia chorar. Me pressiono contra
seu peitoral enquanto sua língua desliza pela pele nua do meu
ombro e eu preciso parar, mas não consigo.
Então ele para.
— Que saudade que eu tava de você — Dani diz as palavras
com um peso tão intenso na voz, e eu me afasto para olhar em seus
olhos.
— Eu nem sabia que podia ser tão bom beijar alguém —
respondo, finalmente respirando por alguns segundos.
— Esperei 88 dias para fazer isso, sabia? — Ele sorri, me tirando
de cima dele gentilmente e se deitando ao meu lado. — Agora eu
não quero parar tão rápido — diz, e abre os braços, penso e repenso
o que estamos fazendo, mas talvez eu estivesse certa antes.
Nessa caixa flutuante a centenas de metros do chão, tudo é
diferente.
Dessa vez, nosso beijo é mais calmo. A euforia da distância e do
medo não está mais aqui. A vergonha também não. Somos só nós
dois. Não fazendo a menor ideia do que estamos fazendo, mas ainda
assim, muito felizes por termos decidido fazer.
O toque dele em minha cintura, a calma e a devoção com as
quais me beija me leva de volta a um lugar onde amar era bom.
Onde amar era paz. E, principalmente, como ele já disse hoje, a
coisa mais perto que eu já tive de casa.
— Ainda que eu saiba que vou me arrepender disso — digo,
alisando seu peitoral por dentro do pijama —, tudo o que quero na
vida é ter isso para me arrepender amanhã.
— Você vai se arrepender de nós? — Daniel pergunta fingindo
estar ofendido, mas sei que no fundo não é só fingimento.
— Vou me arrepender de mim. — Rio e ele me encara com o
cenho franzido. — De ter cedido sabendo que só poderia fazer isso
uma vez.
Vejo no olhar de Daniel que ele ainda nutria alguma esperança
quanto a isso, mas não posso deixar as emoções nublarem minha
decisão.
— Porém... a gente ainda tem umas algumas horas... — Ele diz,
e se levanta. A princípio não entendo, mas Daniel apaga a luz e volta
para a cama. — E eu ainda não cansei de beijar você. — Ele me
puxa para perto e sobe em cima de mim, pairando a uma distância
segura.
O escuro me deixa um pouco menos passiva e mais corajosa, e
eu o trago para perto, sinto seu corpo se deitar sobre o meu.
— Então me beija, Novato — sussurro no pé do seu ouvido
direito, fechando os olhos. — Me beija como se fosse o nosso último
beijo.
Daniel se aproxima dos meus lábios e seu cheiro, seu toque e
sua pele me envolvem. O beijo derrama em mim todo o seu amor e
por alguns instantes, mesmo que eu não tenha amor para entregar a
ele, eu me lembro da Caroline Pimenta que tinha.
Beijo meu Novato como se o amasse de todo coração. Com
entrega, carinho, paixão, desespero, necessidade e paz. Toco suas
costas como se elas pudessem me proteger do mundo e sorrio no
beijo como se esse fosse o momento mais feliz da minha vida.
Porque talvez, de alguma maneira que ainda não entendo, ele
seja.
Daniel intensifica nosso beijo, seus dedos afundam na pele das
minhas coxas e os meus se perdem em seu cabelo. E isso é tão
bom. Mesmo que nunca tenhamos feito nada semelhante antes, é
como se ele soubesse exatamente o que fazer.
Meu corpo ama esse homem, responde a cada um dos seus
comandos e se desfaz em cada um de seus suspiros ou gemidos e
eu poderia fazer isso dias.
— Como você é gostosa, Caroline Pimenta. — Ele geme em
meus lábios, me fazendo segurar a barra da sua blusa e puxá-la,
passando-a por nós dois.
— Eu poderia, facilmente, lavar roupas aqui para sempre — digo
com um gemido, tocando o taquinho dele, que gargalha e volta a me
beijar.
Mordo seu lábio inferior, tiro minha blusa e dou a ele o espaço
necessário para se livrar da calça do moletom, mas ele não faz isso.
Daniel se mantém em silêncio e imóvel por um momento que parece
interminável e, de repente, beija a minha testa e sai de cima de mim.
— Eu fiz alguma coisa errada? — pergunto confusa e Daniel me
puxa para si, me envolvendo numa conchinha. Mas, eu me viro, me
colocando de frente para ele.
— Claro que não, Pimentinha. Você fez todas as coisas certas.
— O riso em sua voz me faz suspirar aliviada. — A questão é que,
antes de dar mais um passo, acho que é hora de escutar a sua parte
que dizia que algo sério é a única coisa que vale a pena pra gente —
Daniel diz, enquanto passa a mão pelos meus cabelos. — Porque se
dermos um passo como esse, eu não vou conseguir voltar atrás.
As palavras ditas num sussurro arrepiam todos os pelos do meu
corpo.
— Nossa, Daniel. Eu não faria amor com você, pela primeira vez,
numa cama de um avião, com todo o respeito ao seu avião. —
Franzo o cenho com uma leve revolta e sinto quando ele se inclina
para mim e toca meu joelho direito, pedindo passagem.
— Não? — Ele beija meu pescoço e arrasta a mão pela minhas
coxa. —
Porque seu corpo está me dizendo outra coisa.
— Meu corpo não sabe o que diz. — Jogo sua mão para longe
— Você é especial demais para eu fazer isso assim. — As palavras
voam sem controle boca e meu queixo cai com a traição do meu
próprio cérebro.
O Harris vai me infernizar pelo resto da vida. E já começou,
porque ele ri, e alto.
— Ah, é, Pimentinha? — O tom divertido me faz morder o lábio
inferior para não sorrir também. — E como seria a nossa primeira
vez dos sonhos para você? — Daniel pergunta rente à minha boca,
com a mão dançando no cós da minha calça e eu engulo em seco,
mas não respondo.
Apenas me viro de costas e me aninho a ele.
— Seria segura. — Pego sua mão que está ao lado do meu
ombro e aperto seu abraço em volta do meu corpo. — E não é só de
camisinha que estou falando, Harris — murmuro irritada ao ouvir sua
boca abrindo atrás de mim, e Daniel gargalha em meus cabelos.
— Você sabe que eu posso te oferecer segurança… — ele
responde.
Mas nós dois temos consciência de que eu não conseguiria me
comprometer agora.
— Boa noite, Novato — Encerro o assunto com um beijo em sua
mão.
— Boa noite, Pimentinha.
Fecho meus olhos com um sorriso no rosto e, pelo menos por
hoje, me permito estar no abraço de alguém que gosta de mim de
verdade e, se eu for honesta, alguém que eu também gosto.
Apesar das coisas terem tudo para ficar estranhas agora, eu não
me arrependo de ter beijado o Harris.
É obvio, esta noite vai ser a mais solitária. Você ainda é o oxigênio que eu respiro,
vejo seu rosto quando fecho meus olhos é torturante, esta noite vai ser a mais solitária.
Daniel
Com os braços descansando em torno da jacuzzi e os óculos
escuros no rosto, mesmo sem sol, Jack me conta animado sobre os
dias que teve com a família enquanto relaxamos os músculos.
Meneio a cabeça conforme seu tom de voz muda ou feições exigem,
mas meus pensamentos voam. Estou feliz por ele, no entanto, eu
queria estar na jacuzzi da cobertura do hotel observando a praia de
Zandvoort com Caroline Pimenta, não com meu companheiro de
equipe.
Jack me faz perguntas sobre o Brasil e sou monossilábico, dessa
vez, muito mais pelo assunto – meu pai –, do que pelo fato de a
minha cabeça girar em torno do cheiro, do beijo, do sorriso, do gosto,
e da maciez da pele de Caroline.
— Daniel, você está me ouvindo? — Jack abaixa os óculos de
sol e me encara por cima deles. Percebo assim que meu
companheiro não está se contentando com meus “uhuns”.
Faço um breve resumo dos meus dias no Brasil omitindo o final
deles, prefiro lembrar de quando achei que as coisas estavam
diferentes.
— E sua garota? — indaga com a boca curvada num sorriso
sonso, como se só estivesse esperando uma deixa.
— Ela está bem. E ela não é minha garota. — As palavras
arranham minha garganta, mas essa é a verdade no fim das contas.
Não é só por causa do que aconteceu ontem e hoje que as coisas
mudaram. — Mas, e a Miyeko, o que tá rolando? E não adiante dizer
“nada” porque eu não nasci ontem.
— Nada, Daniel. — Ele empurra as bolhas em minha direção. —
Pode ter rolado algo durante a viagem, mas não dá, a gente é
diferente. — Jack leva as mãos até os cabelos, passando-as pelo
cabelo emaranhado e depois as apoia pela borda da jacuzzi.
— Na real, eu nunca entendi a necessidade desse documentário.
— Cruzo minhas pernas. — A Lindsay não explicou e a gente nunca
falou sobre ele, é algo promocional?
— Não. É mais sobre o passado.
— Juan? — menciono seu maior rival e antigo companheiro de
equipe e ouço Jack concordar.
— Não era uma necessidade, eu só... quis fazer. — diz e para,
como se pensasse no que falar depois. — Eu e o Juan éramos
próximos, amigos. Só que meu crescimento dentro da equipe
começou a criar animosidades. — Uma pausa que dura duas
profundas respirações invade meu ouvido. — Nós sabíamos onde as
coisas podiam acabar, por isso, tínhamos um acordo: dentro da pista
tudo era válido, fora da pista a gente nem falava de corrida.
— E o que aconteceu?
— O que você acha? — Jack pergunta como se eu devesse
saber.
— Nem tudo era tão válido assim?
— Jogaram o código de inverter posição no meu rádio e eu não
acatei. — Ele encolhe os ombros. — Depois da corrida, ele me
confrontou e eu falei a verdade.
— Que se ele estivesse melhor teria te ultrapassado sem
precisar de ordem de equipe — deduzo e Jack confirma.
— Na última corrida da temporada, nós dois ainda tínhamos
chances, então veio a batida e...
— Juan disse para todo mundo que você o empurrou e causou o
acidente que tirou ele da pista — completo, porque lembro dessa
entrevista.
Depois dela, um terço das pessoas odiava Jack e queria que seu
título fosse anulado; outro terço o amava por ter ganhado o
campeonato de forma emocionante na última corrida e o terço
restante o adorava porque ele tinha colocado o babaca do badboy
espanhol no lugar dele.
— Exatamente. E por mais que as pessoas gostem da minha
imagem, porque todo mundo abaixa a cabeça para um bicampeão,
sei que não gostam de quem eu sou, por causa disso, porque
acreditam que quase matei meu companheiro de equipe por um
título.
— Então isso tudo é pra...
— Me tornar humano de novo diante das pessoas — Jack diz,
seguido de um longo suspiro.
Cacete.
— Mas vamos parar de falar da baixinha — Jack diz e o encaro
confuso, não estávamos falando de Miyeko, pelo menos eu não
estava. — E aí, o que espera da corrida de hoje?
— Terminar pontuando — respondo, como se não fosse óbvio.
— Jeff já disse que tua garota tá voando, Daniel. — Jack estala a
língua como se eu estivesse exagerando.
— Enfim. Seria bom um pódio pelo menos. — Escorrego na
madeira, deixando meu corpo submerso até o pescoço. — Pra
recuperar a confiança.
— Se você tiver na minha frente, pode até ganhar a corrida —
diz, como um favor, e eu rio.
— Jack, se eu tiver na sua frente, a não ser que seja a última
corrida do ano e você precise dos pontos para ganhar o campeonato,
eu não vou inverter posição com você.
Minhas palavras o fazem olhar por cima dos óculos novamente.
— O que aconteceu com o menino de ouro preocupado com o
próprio contrato?
— Quem me disse que ninguém vai me demitir foi você. — Jogo
no ar erguendo as mãos em rendição.
— Combinado, então. — Jack me estende a mão e eu a aperto.
Achando engraçado que tenhamos tido essa conversa, mas
também aliviado.
A última coisa que eu quero é que um de nós seja o próximo
Juan.
também. (...) Mas é hora de eu ir para casa, está ficando tarde e escuro lá fora, eu preciso estar comigo mesma e me centrar clareza, paz, serenidade
Carol
Saio do banheiro usando uma camisa de meia manga e um
jeans mom, look escolhido para enfrentar a viagem até o Brasil. Com
o cabelo ainda enrolado em uma toalha, desbloqueio a tela para
checar o horário. Faltam quatro horas para o meu voo e Miyeko não
apareceu, mas deu sinal de vida.
Miy: Oi, Carol. Estou agarrada com algumas gravações, precisa
de mim?
Leio novamente a mensagem recebida quando estava no
caminho, e agora ela vem acompanhada de mais duas:
Miy: Sério, aconteceu alguma coisa ou você foi me procurar só
porque ficou com saudades? Eu posso dar uma fugida aqui.
Miy: O Harris me disse que você queria falar comigo, era mentira
ou você resolveu me dar tratamento de gelo?
Eu: Relaxa, só queria te entregar um casaco de inverno e um
sobretudo para você deixar em Paris para mim antes de ir pro Brasil.
Me sento na cama ao lado dos dois e aperto o material do
casaco, fofo e quente demais para a primavera carioca.
Eu: Vou direto pro Rio e não tem a menor condição de levar ele.
Envio com emojis de carinhas pidonas e me levanto, tirando a
toalha dos fios quase secos do meu cabelo. A estendo no banheiro e
passo nos fios uma quantidade de gelatina capilar boa o bastante
para aguentar uma viagem.
Me sento novamente para colocar as meias e o calçado e minha
tela volta a brilhar.
Miy: Não quero imaginar minha mala com um sobretudo a mais,
e nem a minha imagem vestindo o seu casaco por cima do meu pra
um voo de 3h, sabia?
Gargalho com a mensagem porque pensei exatamente nisso
quando tive a ideia de mandar essas coisas por ela.
Eu: Você sabe que só estou te pedindo isso porque você me
ama muito.
Miy: E eu só estou aceitando porque você me assustou não
respondendo, então dos males o menor.
Miy: Mas não sei que horas vou sair daqui, aparentemente
preciso gravar um cara que ganha a vida dirigindo enquanto ele está
bêbado.
Rio porque é como se eu pudesse ver seu rosto retorcido em
uma raiva fingida.
Miy: Mas deixa na recepção, eu pego com eles.
Eu: Perfeito, você está me salvando.
Miy: Agora, eu estou foragida no banheiro e quero saber...
Miy: Por que veio até onde eu estava e não falou comigo?
Eu: Dei de cara com o Harris e foi... Estranho.
Eu: Não sei o que acontece aqui dentro quando estou perto dele.
Miy: Seu coração reage como se você gostasse dele.
Miy: Porque você gosta dele. Espero ter ajudado.
Eu: Eu não gosto dele, Miy.
Eu: Gosto do fato de que ele gosta de mim.
Um meio sorriso triste se abre com o gosto amargo das palavras
enquanto me lembro do olhar distante de Daniel naquela sala.
Eu: Ou gostava, sei lá.
Miy: GOSTAVA? QUÊ?
Eu: O Dani me pediu uma chance, eu disse que não podia fazer
isso agora e ele meio que deixou claro que não vai passar a vida me
esperando.
Menos de dois segundos depois, meu telefone toca.
— Por que exatamente você não pode ficar com o cara de quem
gosta, mesmo? — Miyeko pergunta como se eu tivesse dito algum
absurdo.
— Porque terminei um relacionamento há dias? — Entrego a
resposta em uma pergunta.
— Ah... aí você vai abrir mão de ficar com alguém de quem você
gosta e que gosta de você porque quer provar para si mesma que...?
— Não quero provar nada pra ninguém, Miyeko. Só quero...
Ficar sozinha.
— Mesmo? Isso não é você pulando do barco por medo de um
capitão ser igual ao outro?
— O Harris não é nada como o Gabriel, não tenho essa dúvida.
— Respiro fundo odiando o fato de que preciso dizer as palavras não
apenas para que Miyeko saiba meus motivos, mas para que eu me
lembre deles. — Eu era uma Caroline antes do Harris, então o
conheci e me tornei outra pessoa. Depois eu quebrei, a gente
terminou, e quando conheci o Gabriel, me moldei a ele. — Suspiro,
puxando a meia pelo pé esquerdo enquanto equilibro o celular entre
o ombro e o ouvido. — Agora, eu tô sozinha e perto do Daniel e não
consigo ser só eu. É como se eu fosse compelida a ser a
Pimentinha!
— E isso é ruim exatamente por quê?
— Porque não posso ser definida pelo cara com quem eu
namoro! — digo, como se fosse óbvio, porque para mim é. — Eu
preciso ser uma pessoa e talvez eu não saiba quem sou — confesso,
desviando o olhar para a janela de vidro embaçado. Mesmo que ela
não esteja aqui, a vergonha me atinge.
— Caroline, meu anjo, você realmente precisa colocar a terapia
em dia. Literalmente, todo mundo é definido pelas experiências que
viveu.
— Talvez você esteja certa. Mas eu preciso estar sozinha, a
última coisa que quero com o Harris é um relacionamento baseado
em dependência emocional como eu tinha com Gabriel. — Enrolo um
dos cachos soltos com a ponta dos dedos antes de dar a ela a
grande notícia. — E eu já tenho terapia marcada pra essa semana.
— Deus é bom o tempo todo, né? — Ouço a respiração de
Miyeko por alguns segundos antes que ela volte a falar. — Ainda
acho que você está perdendo uma oportunidade linda de se
recuperar das surras da vida do lado de um cara que gosta de você.
Pelo menos foi o que eu entendi quando você passou duas horas
falando sobre o momento que vocês tiveram no avião. — Se apressa
em dizer. — Mas entendo. Apesar de não concordar, eu entendo.
Agora preciso correr, a gente vai se falando?
— Vamos, sim. Qualquer coisa me grita.
— Queria que a gente pudesse voar juntas, vou sentir sua falta.
— Claro que vai, não tem o Harris para te dar uns pegas dessa
vez.
— Miyeko, vá gravar o seu piloto — digo com a voz mais grossa
que o normal, e ela gargalha.
— Juízo, mas não muito.
Miyeko estava certa, viajar sem o Harris não é a coisa mais legal
do mundo. Claro que não ter um jatinho particular com mil coisas
para fazer doeria, mas perceber que nenhum dos álbuns do catálogo
me interessa e que não tem nada que eu realmente queira fazer me
deprime ainda mais.
Eu sinto falta dele. Não o tempo todo, mas aqui, agora... Eu
queria que as gargalhadas ou gemidos de dor de Daniel
atrapalhassem meu voo, não as pessoas cochichando e crianças
chorando.
Observo meu copo de vinho tinto pela metade em cima da
mesinha retrátil, meu olhar vagueia dele para alguma das quatro
horas do Snydercut à minha frente. Eu amo esse filme, sei que amo,
mas nem o Superman de uniforme preto vai me animar dessa vez.
Desligando a tela, engulo a metade que ainda resta do vinho e
coloco meu protetor de olhos.
Depois desse vinho de quinta, não vai demorar para o sono
chegar.
Daniel
— Você está enorme! — É a primeira coisa que minha mãe diz
quando passo pela porta da casa e vou em sua direção.
Pulo o último degrau que divide o pequeno hall da sala e ela se
levanta do sofá.
— Eu estou do mesmo tamanho, mãe..
A abraço, tirando seu corpo magro do chão. Em seguida, me
afasto para observar seu rosto. As linhas de expressão no canto dos
olhos, o sorriso de felicidade que provoca covinhas e seus olhos
verdes familiares me fazem abraçá-la novamente.
— Estava morrendo de saudades — digo inspirando entre as
curvas de seus cabelos.
— Eu também, meu amor. Como você está? — pergunta, tirando
a mochila do meu ombro e indica para que eu me sente enquanto a
coloca na lateral do sofá e se joga ao meu lado.
— Um pouco cansado, mas bem. — Recebo-a em meu abraço.
— Óbvio que está bem, voltou de um acidente ganhando a prova
— diz, com dois tapinhas no meu rosto. — Você já se recuperou
completamente ou ainda...?
— 100% novo, Miss Claire. — Acalmo o coração dela mesmo
que, às vezes, a lombar ainda incomode um pouco.
— Tá, mas me conta, como você está? Desde que foi para o
Brasil que a gente só se fala por mensagem. — Mesmo sem querer,
ela me repreende. Ergo os braços, me desculpando. Sei que ela
adora as ligações.
— Posso te dar a versão resumida aqui ou a versão completa
com chá e biscoitos na ilha da cozinha.
— A versão completa será. — Se levanta prontamente, com um
risinho de canto.
A sigo atravessando a sala em direção ao pequeno corredor, que
nos leva para o andar de cima se pegarmos a escada e a cozinha ao
seguirmos reto. Puxo uma das oito banquetas da longa ilha de
mármore, apoio meus cotovelos no topo frio e, enquanto minha mãe
esquenta água na chaleira elétrica, eu começo a falar sobre os
últimos acontecimentos.
Conto primeiro sobre a comida de rabo que o Richard me deu;
minha insegurança com meu assento na equipe; a forma como
Caroline Pimenta surgir do nada me fez sentir coisas que eu não
estava preparado ou não queria sentir; explico um pouco minha
relação com o Jack, porque para Miss Claire é impossível que nós
sejamos oponentes e amigos ao mesmo tempo; falo sobre os dias
com o papai no Brasil e que a Carol viajou comigo, mas faço apenas
a menção, não falo sobre o beijo ou todo o resto. Não faria sentido
remoer algo que não deu em nada.
— Você realmente acha que seu pai te odeia a esse ponto? De
ser legal apenas para te manipular? — Ela se senta com os olhos
semicerrados nos meus.
— Não é o que eu acho, mãe. Foi o que eu vivi — explico,
jogando um biscoito de manteiga na boca.
— Não passou pela sua cabeça, nem por um segundo, que ele
pode te amar e querer que você cuide da empresa e não saber como
conversar com você sobre isso? — A forma como ela pronuncia as
palavras quase faz com que elas tenham sentido.
Me calo por alguns instantes observando o armário que ocupa
toda a parede superior atrás dela e as duas bocas de indução
embaixo dele. Giro a banqueta para a direita e mantenho os olhos
sobre o verde do gramado e a mesa de refeições externas, vazia.
Como minha relação recente com meu pai.
— A gente tinha um diálogo ótimo até ele começar a impor
coisas, então, não. Nunca pensei dessa forma. Pra mim, é bem
claro, ele só lida bem com o que consegue controlar. — Tento não
soar rude, mas não quero continuar nesse assunto. — E então, o
que vamos fazer nessas férias?
— O que você quiser. — Ela beberica o chá. — Temos duas
semanas inteiras para aproveitar.
Paro meus olhos entre o prato de biscoitos e o olhar dela. Tenho
certeza de que Miss Claire me mandou uma mensagem
comemorando duas semanas de férias e uma on-call[7], e não
tínhamos a intenção de passar nenhuma delas em Londres.
— Duas?
—
É jeito de falar. — Ela força um sorriso. — Na última semana
o seu pai vai ter chegado, então seria bom que estivéssemos aqui.
— Ah, ele já está vindo, então? — Ela assente. — Tem algo
rolando entre vocês? — pergunto de uma vez.
— Daniel? — Seu queixo cai e ela pousa a xícara na ilha.
— Ele é um magnata da construção civil, como não consegue
arrumar uma casa para morar?
— Ele vai arrumar. Só prefere fazer isso daqui, podendo visitar
as opções.
— Você me contaria se algo estivesse acontecendo entre vocês?
— Não vejo seu pai há anos, Daniel. Sempre nos falamos muito,
mas sobre você. E ele está vindo à Inglaterra para trabalhar.
— Você me diria se estivesse, né? — Quebro um biscoito no
meio e jogo metade na boca com o mosquito da dúvida zumbindo no
meu ouvido.
— Eu já sou uma menina grandinha e não te devo satisfação,
certo? — Ela pega a outra metade do biscoito da minha mão. — Mas
não sei de onde você tirou uma coisa dessas. Tudo bem que me
separar do seu pai não foi uma escolha, mas já tem o quê? Dez
anos?
— Doze — respondo, sabendo exatamente por que perguntei
isso a ela, se Miss Claire acha que meu pai vai se alojar aqui apenas
como um amigo, ela está muito enganada. — Acho que vou
descansar, mãe. O pós-corrida foi intenso. — Coço a nuca e
espreguiço, bocejando em seguida.
Ela boceja de volta, meneando a cabeça.
— Bom, vai buscar sua mochila na sala. Vamos levar suas
coisas para o seu quarto que o cansaço tá te fazendo falar coisas
sem nexo.
— Como você mesma disse, vocês não escolheram terminar,
mãe. — Apoio as duas mãos na ilha enquanto ela desce e vem em
minha direção. — E não é segredo que meu pai arrasta um bonde
por você.
— Você sabe, entre ele e o Richard... Meu bonde pende pro lado
do seu chefe gostosão — ela brinca subindo a escada na minha
frente.
Sua fala me faz rir, e eu corro com a mochila em mãos.
— Mas é um segredo muito bem guardado, a sete chaves, que o
chefe de equipe mais alto, forte, definido e que arranca suspiros por
aí, é casado com um outro cara alto, forte, definido e que arranca
suspiros por aí. — Miss Claire para dois degraus na minha frente e
se vira para mim. — Pode tirar seu cavalinho da chuva, Miss Claire.
— Meu Deus, o Rick é gay? — Ela segura o coração e eu rio.
— Mãe, não sei exatamente qual é a orientação dele — digo,
parando ao seu lado. — O que o Jack deixou escapar é que as
pessoas na equipe não falam sobre o melhor amigo com o qual
Richard mora. Porque não seria de bom tom, para um esporte com a
nata da elite do conservadorismo envolvido, a gente ter um chefe de
equipe gay.
— Nossa, que coisa horrível de se falar — ela diz, e eu volto a
andar. Passamos por duas portas e eu paro na frente da terceira,
meu quarto.
— Isso porque a senhora não ouviu quando Jack disse que me
contrataram pra vaga do Juan porque, se tivessem demitido ele,
seriam um gay, um latino e um preto na equipe ao mesmo tempo e
isso estouraria a cabeça da galera.
Minha mãe fecha os olhos.
— Eu não vou rir disso.
— Pode rir, foi engraçado. Jack é babaca, mas é legal. —
Acendo a luz, tiro os sapatos e deixo a mochila no canto.
— E agora, como vou resistir ao charme do príncipe de ébano
que vai se alojar na minha casa por um mês sem ter meu amor
platônico pelo Richard pra me agarrar? — diz num tom teatral,
querendo me provocar.
— Mãe, não me fala essas coisas. Só não fala — digo, e ela
gargalha.
— Vai dormir, te chamo em duas horas. Caso contrário, você não
dorme à noite — decreta e puxa a porta.
Apoio as mãos na cintura, me questionando quais as chances de
uma semana numa casa com meus pais parecer algo minimamente
normal.
Capítulo 33
Ou: Conversando com minha mãe ela disse: Onde você achou esse cara?
Alguns erros são cometidos. Tá tudo bem, tudo ok. Você pode pensar que está apaixonada, quando está apenas sofrendo…
Carol
Férias, eles disseram.
Para os pilotos e as equipes, os 21 dias da Silly Season são
realmente como férias. Eles não só não devem, como não podem
mexer nos carros nesse período. Para quem cobre a Fórmula 1, no
entanto, não é bem assim.
Uma vez que o meio da temporada é onde a magia do ano
seguinte começa a acontecer, precisamos ficar atentas às mudanças
de pilotos, engenheiros, chefes de equipe, demissões,
contratações... Além de, é claro, seguir qualquer rastro de
especulação sobre os atletas de outras categorias automobilísticas
que podem chegar na F1.
Com isso, é hora de colocar no papel tudo o que a segunda
semana das férias trouxe. Dentre muitos rumores de demissões e
contratações, temos uma única certeza: teremos uma piloto mulher
em uma das equipes da principal categoria do automobilismo no
próximo ano. Essa é uma novidade tão quentinha que já tenho
roteiro para três artigos: Quem é Alyson Sawyer? Como foi sua
trajetória até a Fórmula 1? E, é claro, como a experiência de Juan
Santoro e a ambição de uma novata podem levar a Wolff Racing ao
topo depois de tantos quase?
Encaro o relógio, faltam três minutos para a minha terceira
sessão de terapia. Desço da banqueta e corro para pegar uma
garrafa d’água. Quando me sento, a tela do meu celular brilha com
uma mensagem de Laís, que vem aqui em casa hoje a noite e, de
alguma forma, sinto falta de ver uma mensagem de Daniel ali. Desde
que cheguei, quero falar para ele onde estou e como estão as
coisas, mas nosso último encontro foi tão confuso que achei melhor
esperar e falar sobre isso com a Natasha para saber o que ela
pensa.
Na hora marcada, ingresso na reunião. O rosto fino da minha
psicóloga divide a tela com o meu. Ela com longas tranças ruivas
divididas entre um coque no topo da cabeça e uma parte solta que
desce pelo seu colo, eu com o cabelo preso num rabo de cavalo; ela
maquiada, com um bronzer destacando o marrom claro de sua pele
e eu com marcas da coberta no rosto.
— Bom dia, Carol. Como você está hoje? — pergunta,
provavelmente por ver minhas mãos batucando no balcão da
divisória.
— Bem. Um pouquinho nervosa, mas só um pouquinho. —
Sorrimos, cordialmente, ainda é um campo confuso entre nós duas.
— Já que está tudo bem, vamos começar de onde paramos —
diz, posicionando seu caderninho. — Você conseguiu fazer alguma
das atividades que teve vontade?
Na terça-feira, tivemos nossa sessão anamneses, um jeito
técnico para o que eu chamo de sessão teste. Deveria ter durado
cinquenta minutos, mas durou meia-hora. Eu mal falei, e ela não
tentou insistir. Já Laís não foi tão legal, quando contei a minha amiga
o que tinha acontecido, ela me obrigou a escrever uma lista de
coisas que eu deveria falar na sessão seguinte.
Passei a sessão de sexta-feira inteira falando sobre minha
infância, meus pais e minha dificuldade de entender quem sou.
Quando nossos cinquenta minutos estavam terminando, Natasha me
pediu para aproveitar aquele fim de semana fazendo tudo o que me
desse vontade.
“Sentiu vontade, cabe no orçamento, faz. Não cabe, pensa em
uma opção mais barata, mas dentro da mesma linha. Faça
anotações sobre as atividades e como você se sentiu e traz pra mim
na próxima terça.”.
— Consegui — respondo com um sorriso enorme no rosto e
vejo-a anotando algo.
— E como foi?
— Num geral ou por dia?
— Como você preferir.
— Bom, na sexta-feira, depois da sessão, eu aproveitei para
conhecer cada pedacinho de Santa Teresa. Já tinha feito uma geral
nas redondezas, mas só aqui perto. Peguei o bondinho até a estação
final e voltei, almocei num PF, dei meu celular na mão de uma
estranha para que ela tirasse uma foto minha na escadaria Selaron
— Rio com a lembrança, e Natasha segue anotando —, voltei para
casa e trabalhei um pouco. No fim da noite, fui tomar um chope num
boteco da Lapa e quando me joguei na cama, estava feliz.
Paro de tagarelar para que ela termine de anotar, mas ela sobe
seus olhos escuros para mim e coloca uma trança atrás do ouvido.
— Como foi o seu sábado?
— Levantei às sete da manhã e só me dei conta de para onde
estava indo quando cheguei. — Deixo um riso bobo escapar porque,
de verdade, acordei cedo demais, bebi café demais e, quando dei
por mim, estava do outro lado da cidade. — Desci do Uber na frente
de um Kart e entrei num lugar aonde não ia há pelo menos meia
década, só porque... eu quis. E foi sensacional. — Encolho os
ombros, porque essa é a única definição que eu posso dar. Nunca
pilotei o suficiente para pensar em uma carreira automobilística, mas
também nunca fiz vergonha. — Quando saí do Kart, liguei para a
minha mãe. Queria comer num restaurante bom, um bem caro e se
possível de frente para a praia, ou seja, gastaria uma grana que eu
não podia.
— Você já viu seus pais? — Balanço a cabeça negativamente.
— E qual foi a reação dela ao seu pedido?
— Sofia me mandou três vezes o valor necessário. — Reviro os
olhos porque isso é a cara dela. — Esse é o lado positivo de os
meus pais serem distantes. Mesmo que eu ainda não os tenha
visitado, eles nunca se ofereceriam para comer comigo, então o pix
chegou na minha conta sem questionamentos e eu comi o que foi,
provavelmente, o melhor churrasco em anos.
— É normal para você pedir dinheiro para eles mesmo lendo a
relação de vocês como distante?
— Não é algo que faço com frequência. Pedi para alugarem essa
casa pra mim porque queria ficar sozinha. Parar de estar na casa de
outra pessoa por um tempo. Minhas coisas estão na Laís, seria fácil
ficar lá, só que eu não estaria me dedicando a me cuidar se
estivesse. — Eu não tinha planejado dizer essa última parte. —
Mas... as coisas não são como você está pensando. — Me apresso
em dizer.
— Como eu estou pensando?
— Que me revoltei por eles não gostarem de mim tanto quanto
eu gostaria, que saí de casa ou arrumei trabalho pra afrontar meus
pais, ou desafiá-los. — Seguro o riso pensando que eles não são
tão relevantes assim. — Não estou tentando provar nada pros dois.
Gosto do que faço hoje, sou feliz trabalhando com isso. Eles
aceitam? Não. Mas eu realmente gosto. É o que sempre sonhei.
— Que bom que isso é algo que você faz por você e não para
atingir outras pessoas, afinal, é a sua vida. — O tom dela é tão
neutro que não sei se ela está me elogiando ou debochando.
— No mais, eles precisavam ser meu suporte em algo, né? Não
foram emocional, ótimo que seja material. — Rio desviando a cara
da tela, porque Natasha com certeza vai tecer anotações sobre isso.
— Ontem, fui ao cinema ver um filme sozinha e, no fim da noite,
acabei dormindo no chão da sala porque é o ambiente mais fresco
da casa. — Termino pensando no pobre ar-condicionado que mais
faz barulho do que gela. — E porque eu quis.
— E como foi a experiência de fazer coisas que você queria?
— Ah, eu gostei. Pensando agora, me incomoda um pouco só ter
feito coisas que eu já estava acostumada de alguma forma, mas tudo
me fez muito bem. — Suspiro, indicando que não tenho mais nada
para dizer.
Preciso parar de falar. Tanto por estar pensando demais nessas
coisas, quanto pela estranheza em ser a pessoa que responde em
vez da que pergunta.
— É comum que você tenha feito coisas que já conhecia, a
gente entende o que gosta ou não pelas experiências, isso não
precisa preocupar você.
— Também escrevi e apaguei um monte de mensagens sobre
essas coisas pro Harris. — Cuspo a última frase como se ela
estivesse queimando minha garganta, porque de fato está.
— Por que não enviou?
— Não sei, não sei se faz muito sentido...
Ótimo que ela tenha entrado nesse assunto, eu não saberia
como fazer isso.
— Você mandou algo para Laís e a Myieko?
— Óbvio.
— E você e o Harris não são amigos?
As palavras se tornam pesadas para mim. Entendo o que ela
quer dizer, mas ignoro. Não é tão fácil reinserir o Harris na minha
vida como meu amigo depois dos últimos acontecimentos entre nós
dois. Os quais talvez eu não tenha falado para ela.
— Somos, mas é diferente. — Suspiro pensando que não tenho
como falar no Harris, sem contar sobre o Harris, então faço o que me
parece mais pertinente agora: — A gente pode falar sobre outra
coisa?
— Claro. No nosso primeiro encontro você mencionou ter
tentado a terapia outras sete vezes. — Assinto, arredia. — Como
estão as sessões dessa vez? Como você se sente sobre elas?
Eu gargalho, mas contenho a vergonha.
— Pode ficar tranquila, eu não tô pensando em te dispensar.
— Eu estou tranquila, Caroline. — Natasha sorri franzindo o
cenho. — Você está?
— Dessa vez, sim — garanto.
— Por quê?
— Porque eu preciso mesmo descobrir quem eu sou.
— Você passou pela terapia das outras vezes pelo mesmo
motivo?
— Não.
— Conseguiu alcançar algum resultado com os objetivos
anteriores? — Nego com a cabeça. — O que te fazia pausar o
tratamento antes?
— A gente ainda não falou sobre isso, mas minha mãe é
psicóloga. — Meu olhar cai em minhas mãos, unidas em meu colo, e
observo minha guerra de polegares. — Eu vejo a terapia como um
suporte emocional, algo para ajudar a gente a lidar ou superar as
coisas... Tipo uma mãe.
— E sua mãe não era essa pessoa para você?
— Não. E ela é doutora em psicologia. Palestra sobre isso
desde que eu me entendo por gente. — Jogo na mesa porque em
algum momento teria que fazer isso. — Mas o que mais me deixava
incomodada é que era estranho que ela e meu pai fossem um casal
tão carinhoso e próximo e eu ficasse sempre com as sobras.
— E você e seu pai?
— A gente mal se fala. — Franzo o cenho, dando de ombros. —
Quando eu era criança, ele via F1 comigo, eu via futebol com ele, e é
isso. Sentados e quietos. Fazendo coisas juntos, mas nunca juntos
de verdade.
— Você acha que seu amor por Fórmula 1 tem alguma relação
com esses momentos?
— Não, eu comecei a gostar primeiro e o Harris alimentou isso
muito mais do que o Carlos.
— Nosso tempo está bem perto do fim. — Essa frase faz toda a
minha postura relaxar. Volto minhas mãos para a bancada e devolvo
a atenção dos meus olhos a ela. — Vou te pedir pra seguir com isso
de fazer algo que você queira, tudo bem? Não precisa ser nada
muito mirabolante, pense que você precisa fazer ao menos uma
coisa por você no dia. Às vezes, vai ser jantar do outro lado da
cidade, e às vezes, arrumar sua cama.
— Tudo bem se a gente só conversar na próxima terça? —
pergunto, coçando a orelha.
— Tínhamos uma sessão agendada para essa sexta, aconteceu
alguma coisa?
Sei por que Natasha está fazendo isso. Ela acha que eu vou
desistir. Que vou dar para trás. Mas não vou.
— Sei que agendamos duas sessões por semana enquanto eu
estiver no Brasil. Mas na próxima, prefiro ver como isso de fazer
coisas por mim funciona no dia a dia, ao longo de uma semana
inteira, e falar com você no fim, tudo bem?
— Claro. Você está agendada às oito.
— Até lá, Natasha.
— Até, Caroline.
Bato a tela do notebook orgulhosa por ter falado mais do que me
permiti fazer na última sessão e por ter sido sincera. Meu olho corre
para o meu celular na bancada, ao lado do meu notebook. Pego o
aparelho e envio a mensagem que estou adiando há dias.
Eu: Oi, Novato. Como estão as coisas por aí?
Capítulo 34
Ou: Sua presença ainda permanece aqui e ela não vai me deixar sozinha. Essas feridas não vão cicatrizar, essa dor é muito real, tem muita coisa que o
My Immortal – Evanescence
Daniel
Com a notícia da chegada do meu pai, muita coisa do que eu
tinha pensado em fazer ao longo de 21 dias se tornou um roteiro
para treze. Mas isso não tirou o brilho dos meus dias com minha
mãe. Eu e Miss Claire fizemos uma roadtrip rodando as cidades nas
quais a família dela já tinha morado e as propriedades dos meus
avós pelo interior.
Além disso, visitamos a Irlanda do Norte, onde eu enlouqueci
com as locações da finada série Game Of Thrones, e minha mãe
tentou manter a compostura, mas suspirou ou chorou em cada uma
das salas do Museu do Titanic. Fomos ainda ao Stonehenge, que eu
nunca tinha ido, e à casa de Shakespeare, que minha mãe adora.
Chegamos a Londres ontem, mortos de cansaço, mas felizes.
Deitado na cama há pelo menos dez minutos e rolando de um
lado para o outro sem querer me levantar, porque sei que meu pai
chega hoje e talvez o meu tempo de paz acabe, estico a mão para a
cabeceira e, tateando o criado mundo, pego meu celular. A tela se
acende, revelando que já passa do meio-dia. Porém, não tenho
tempo de me sobressaltar por isso, o nome de Caroline Pimenta
aparece e eu clico em sua mensagem como se minha mão fosse
queimar se eu não fizesse.
Eu: Oi, Pimentinha...
Escrevo, mas apago. Ela não é mais minha Pimentinha, afinal.
Eu: Oi, Carol, tudo bom?
Eu: Por aqui tá tranquilo...
Pimentinha: Quem é Carol? Tinha certeza de que era
Pimentinha pra você.
Esfrego a testa com a mão direita por alguns instantes
ponderando, mas perco essa batalha.
Eu: Oi, Pimentinha.
Pimentinha: Agora, sim! E como estão as coisas por aí?
“Tranquilo” não é exatamente uma resposta.
Eu: Os dias estão bons, leves... Fiz uma roadtrip com a mamãe
e foi maravilhoso.
Pimentinha: Mas?
Ela manda seguido de uma carinha com olhar suspeito.
Eu: O papai chega hoje e, depois da minha última visita, acho
que não consigo mais abaixar a guarda por completo perto dele.
Pimentinha: Seu pai está chegando na casa da sua mãe?????
Eu: Longa história...
Suspiro, esperando que ela não me peça para contar, nem sei o
que está acontecendo.
Pimentinha: Bom, seu pai.... é seu pai. Acho que no fundo ele
sabe que você não vai ficar com a empresa, Dani. Você só precisa
dizer.
Eu: Não é tão fácil.
Pimentinha: Eu não disse que era.
Eu: Era mais fácil quando você peitava meu pai por mim.
Brinco abaixando a guarda mais uma vez.
Pimentinha: Eu era inconsequente. Você não precisa subir o
tom e nem ser babaca, é só deixar claro.
Encaro a resposta por alguns instantes. De tudo o que pensei
que leria aqui, isso não era uma opção. Mas, ela está certa. As
coisas não precisam ser um cabo de guerra se só um lado está
disposto a puxar.
Eu: Tudo bem, vou tentar...
Pimentinha: Não diz que eu incentivei, hein?! Não quero ser
tachada de osso duro de novo.
Eu: É Turrona.
Digito sorrindo igual a um idiota.
Pimentinha: Isso. Turrona! Que absurdo.
Eu: Vamos falar de você agora, como estão as coisas?
Pimentinha: Ótimas. Eu tô trabalhando bem menos, claro. Então
estou aproveitando para descansar e colocar algumas coisas no
lugar.
Eu: Coisas?
Envio uma carinha curiosa.
Pimentinha: Minha cabeça, meu coração, minhas emoções...
Eu: E tá fazendo efeito?
Pimentinha: Honestamente? Ainda não sei, mas tentar é
melhor do que não tentar...
Pimentinha: Eu encontrei uma psicóloga que não odeio, então
estou feliz.
Pimentinha: Eu… eu precisava mesmo fazer isso, Harris.
Sei o que Caroline está dizendo e por que está dizendo, mas
também sei que nosso bonde passou e não posso ficar nutrindo
esperanças de que ele volte para sempre.
Eu: Fico feliz por você, Carol. De verdade. Agora preciso ir lá,
porque são quase uma da tarde e ainda não levantei
Deixo o celular na cabeceira antes mesmo que ela responda e
saio do meu quarto para não cair em tentação.
No fundo, ele sabe...
É fácil para a Caroline dizer isso, é fácil para mim saber disso.
No entanto, quando mesmo sentado entre meus pais num sofá cama
de quatro lugares, assistindo a um vídeo de alguma das minhas
festas de aniversário, eu me sinto tão distante de seu Fernando
Torres quanto estava antes que ele passasse pela porta, toda essa
facilidade escapa pelos meus dedos.
Como é possível amar tanto uma pessoa e preferir não estar
perto dela?
As imagens da mesa de doces invadem a tela e descubro que eu
estava fazendo oito anos quando a câmera pousa sobre o bolo no
centro da mesa, um sorriso de conforto toma meu rosto. Enquanto
isso, Miss Claire e seu Fernando conversam num idioma que mistura
português e inglês por cima de mim, com risadinhas e memórias de
bastidores que eu não carrego.
— Você lembra que abacaxi era a sua fruta favorita até... — Meu
pai começa a frase, mas uma risada o impede de continuar.
— Dois dias antes da festa. — Minha mãe completa gargalhando
e eu fico sem entender.
— Eu odeio abacaxi. — Intercalo meu olhar entre os dois que
estão se recompondo.
— A gente descobriu nessa hora. — Meu pai aponta para os
parabéns na tela e o olhar de nojo no meu rosto quando mordo uma
fatia do meu bolo no formato de McLaren do Senna deixa bem claro
o quanto eu odiava abacaxi naquele momento.
Os dois tentam me fazer lembrar de quando abacaxi era minha
fruta favorita, me dizendo que eu tinha uma pelúcia nesse formato,
mas o trauma da criança à minha frente é tão grande que a memória
se escondeu. Quando o pequeno Dani, estimulado pela mãe, tenta
comer outro pedaço do bolo e acaba balançando a cabeça
negativamente, seu Fernando o carrega para fora da cena.
— Pelo menos eu era educado. — Rio. — Poderia ter feito um
escândalo e fui chorar sozinho.
— Ah. — Meu pai apoia a mão na minha perna. — Você se
comportou porque prometi que comeríamos brigadeiro na cozinha.
— Até os seus... dez anos, era nossa tradição de família guardar
um pedaço de bolo dos seus aniversários para o café da manhã
seguinte. Aquela foi a única exceção, depois que você virou a chave
do abacaxi em dois dias, fiz questão de dar o bolo inteiro. — Minha
mãe sorri desligando a TV assim que as imagens se tornam meros
chuviscos com o fim do vídeo. — Vamos jantar?
— Ainda são sete horas. — Meu pai dá dois tapas no relógio do
pulso como se isso pudesse fazer o horário mudar para as oito e
meia.
— Não se discute com o horário de jantar da Miss Claire —
aconselho, me levantando. — Você vai sair perdendo.
Sigo minha mãe até a cozinha e meu pai vem logo atrás. Ela tira
dois refratários do forno e deposita sobre o mármore da ilha.
— Bife wellington?! — seu Fernando pergunta, deduzindo com
os olhos brilhando.
Minha mãe pisca duas vezes e pousa as mãos na beirada da
ilha, encarando-o.
— Beef Wellington. — Sorri de canto, corrigindo-o por pura
implicância. Como não faria com mais ninguém, e então completa
com as exatas mesmas palavras de dez anos atrás: — É o seu prato
favorito e você não sabe o nome?
“Isso não quer dizer nada, você é minha pessoa favorita e eu
demorei mais de dois anos para pronunciar seu nome corretamente.”
Meu pai não responde como sempre fazia, não vai até ela e a
abraça por trás como era o normal, e o silêncio que se instaura no
ambiente me diz que os dois pensaram o mesmo que eu. Me sento
do lado oposto ao que minha mãe está e ignoro a tensão com um
gole em meu vinho.
— Agora nós vamos morar perto, você vai ter todo o tempo do
mundo para me ensinar. — Meu pai se senta ao meu lado com um
dar de ombros.
Miss Claire se vira para o armário atrás de si e ele me lança um
olhar cúmplice, como se estivesse deixando claro o que disse para
mim quando eu estava no Brasil. Se ela não sabe que eu sou
apaixonado por ela, é porque está se fingindo de doida.
— Há quanto tempo você não come um desses, filho? — minha
mãe pergunta, colocando alguns temperos à mesa, e se senta.
— Um bom tempo... Aparentemente, não ando valendo comidas
elaboradas. — Entro na brincadeira com meu pai.
— É verdade. — Ela nem tenta negar. — Você desperta o meu
lado preguiçoso. — E ainda joga a culpa em mim.
— Não quero dar trabalho, Claire — meu pai diz, sem jeito. —
Não precisava.
— Não mesmo. Fiz porque me deu vontade — rebate
acariciando o próprio pescoço.
— Como estão as coisas no Brasil, pai? — pergunto porque sinto
que estou sobrando.
— Estão bem. A empresa...
— Ele não perguntou da empresa, Fernando. — O olhar
fulminante de Miss Claire o faz retesar. — Falar sobre trabalho está
proibido nessa mesa!
O suspiro de alívio que eu dou faz com que os dois riam.
— Certo. Bom, então eu não tenho muitas novidades. — Ele
encolhe os ombros dessa vez. — Me contem vocês, como foram as
férias?
Desvio o olhar até minha mãe que assente.
— Tudo começou quando nossa roadtrip de três semanas virou
duas por causa de uma visita... — Alfineto seu Fernando, que deixa
o queixo cair quando o chamo de visita, e então sigo falando sobre o
que fizemos, aonde fomos e o que comemos.
Minha mãe me auxilia floreando algumas histórias e me
obrigando a omitir outras.
Meu pai nos enche de perguntas e, sempre que minha mãe diz
que amou um lugar ou que adoraria voltar a outro, ele se oferece
como se fosse a coisa mais normal do mundo. E, mesmo que às
vezes eu ache que ele está indo longe demais, minha mãe segue
dando corda.
O relógio bate nove da noite e, em vez de seguirmos para os
quartos, abrimos uma segunda garrafa de vinho. A conversa segue
confortável, os dois estão íntimos, na verdade, nós três estamos, o
que me traz a sensação de pertencimento uma vez mais.
Por volta das dez, me despeço dizendo que preciso deitar. Não
sei se foi a sensação de pertencer novamente, se foi a bebida, ou a
troca de mensagens com Carol, o que sei é que tive uma ideia
absurda e decido colocá-la em prática:
— Pai, domingo a gente vai a Silverstone — aviso da porta da
cozinha.
— Parece que recebi uma intimação... — Ele ergue os braços se
rendendo.
— Eu não estou convidada? — Mamãe amassa o cabelo com a
sobrancelha erguida.
— Claro que está. Saímos de casa depois do almoço. — Bato
continência para eles e caminho até o corredor. Quando subo as
escadas, os risinhos dos dois ainda me acompanham.
Carol
Pela janela do meu quarto, o sol invade minha última sexta-feira
no Brasil, avisando que preciso estar na bancada da cozinha para a
minha terapia em quinze minutos. Me arrasto até o pequeno
banheiro anexo ao quarto, faço a higiene matinal e conto doze
passos até a bancada.
Respiro fundo enquanto espero Natasha para a nossa quinta
sessão de terapia. Eu já fui mais longe do que isso, sei que fui. Essa
é, no entanto, a primeira vez que eu tenho planos de continuar ao
invés de “pausar o tratamento”, que é só uma expressão linda para
“desistir”. Então, quando Natasha joga uma trança para trás depois
de me pedir para falar mais sobre minha sensação de abandono, eu
cruzo os braços e penso por alguns instantes.
Na terça, conversamos apenas alguns minutos sobre a questão
“fazer coisas que eu realmente queria”, porque boa parte da sessão
foi dedicada ao meu trote, que foi um agravante para que eu saísse
de casa, e ao meu relacionamento com Gabriel. Deixei claro para
Natasha que sempre planejei me mudar assim que fizesse dezoito
anos, mas que isso foi adiado por causa do intercâmbio da Laís. Em
resumo, expliquei que a reação de Sofia e Carlos ao meu trote foi o
que me motivou a sair dali, além de não me sentir pertencente,
também não me sentia apoiada pelos meus pais, e isso foi o fim para
mim.
— Meus pais são o casal mais apaixonado que eu conheço. E eu
acho lindo, eles se casaram para isso — digo, finalmente.
— Mas?
— Mas eu me sinto uma idiota. Esperando um amor que eu
nunca tive, uma atenção... Menos superficial, que não vai chegar. —
As palavras explodem de dentro de mim. Não grito, não choro, mas é
como se eu estivesse deixando algo que segurei muito tempo sair. —
Eles me amam, na verdade, me amam muito, mas não conseguem
trocar duas mensagens comigo por dia. E tá tudo bem. — Me
adianto, porque está mesmo. — A gente jantou junto essa semana e
foi ótimo. Mas, às vezes, eu me pergunto se duas mensagens por
semana são tão difíceis assim.
— Além dessa carência, como você sente que isso te afeta?
— Minha mãe... Que ensina um monte de coisas sobre
autoconhecimento pra um monte de gente... Não é a primeira pessoa
que eu penso quando preciso de alguma coisa que não seja dinheiro.
— Não poder contar com a sua mãe significa que você a
considera uma mãe ruim? — Os olhos de Natasha sobem para a tela
e os meus marejam. Engulo minha vergonha e meu ego em seco
antes de responder.
—Ela é uma mãe ok, do jeito dela...
— Que não é como você gostaria, certo? — Balanço a cabeça
negativamente com a garganta arranhando. — E quando você pensa
nisso, o que exatamente você gostaria que sua mãe fizesse?
Bebo um pouco d’água e encaro a tela por alguns instantes. O
que eu queria? O que será que eu queria?
— Que ela entendesse que não era a coisa mais fácil e legal do
mundo ser a única criança negra, logo, a criança solitária em tudo o
que ela queria que eu fizesse: natação, balé, dança... Ninguém
ligava pra mim nesses lugares.
Não choro porque isso não me atormenta mais. Então avanço a
narrativa para a parte que conheci Laís e depois para o Harris. As
duas pessoas que eu realmente tive.
— E eles supriram o amor que você não conseguiu ter nem dos
seus pais?
Isso dói, sua v*g*bunda, penso.
— Acho que nunca olhei para as coisas nesse ângulo —
pondero, franzindo o cenho com o desconforto.
— De que seus pais não te amavam?
— De que minha revolta pelos meus pais não me amarem tinha
a ver com não ter sido amada por ninguém de jeito nenhum antes da
Laís e do Dani.
O silêncio é sobreposto pelo barulho da vida acontecendo lá
fora, mas aqui dentro Natasha faz suas anotações e eu abraço meu
corpo como se pudesse me sentir menos nua.
— Focando nas pessoas que amaram, por que você acha que foi
diferente com a Laís?
— Porque ela era pobre — rebato, como se fosse óbvio. — Quer
dizer, ela não era pobre, mas tinha bem menos dinheiro do que todo
mundo... Então ninguém queria falar com ela também — digo, e
meus olhos marejam. — Às vezes, eu fico pensando que o Daniel foi
o meu primeiro e único amigo próximo quando fui estudar no colégio
americano, porque de tanto que a gente se bicava ele acabou
percebendo o quanto eu era sozinha e resolveu parar de ser meu
inimigo para ser meu amigo. E isso me machuca ainda mais, essa
aproximação por pena e não por identificação.
— Hum... — O tom analítico de Natasha me para. — Você está
dizendo que uma das duas pessoas com quem você sentiu a
possibilidade de ser você mesma durante sua formação, aquele que
você me apresentou como o seu melhor amigo e primeiro amor...
Não era alguém que se identificava com você, e sim, uma pessoa
que se aproximou de você por pena? — Pela primeira vez, um olhar
está ali, e é um olhar quase que de repreensão. — Nossa, aqui está
a autossabotagem que você mencionou na primeira consulta. —
Encaro a tela por tempo demais e ignoro o comentário.
— Quando a Laís viajou e o Harris foi embora, e tudo aquilo do
meu trote aconteceu, eu me vi na mesma situação. Sozinha. De
novo. E acho que isso facilitou para que eu me apoiasse no Gabriel e
não o visse verdadeiramente, sabe?
— Como você se sente pelo fato de os seus pais nunca terem
percebido que você tinha essa carência?
— Meu pai é omisso. Acho que ele me daria beijos de boa noite
e diria que as pessoas humilhadas no presente, são as bem-
sucedidas no futuro. — Rio com esse discurso de quinta. — Minha
mãe... — Penso por alguns instantes e desisto de formular algo
mirabolante. — Na verdade, acho que ela nunca quis aceitar que as
pessoas podiam ser racistas àquele ponto.
— É um cuidado interessante você conseguir olhar o lado dela
dessa equação, Carol.
— Eu entendo, de verdade. Ao mesmo tempo, fico pensando
que se eu tivesse uma filha, daria todo o amor do mundo pra ela,
porque o resto do mundo não vai aliviar. — Minha voz embarga e
uma lágrima solitária escorre pelo meu rosto.
— Você já conversou sobre isso com ela?
— Eu não quero ter que me humilhar a ponto de perguntar para
minha própria mãe por que ela nunca percebeu que ninguém me
amava, então ela deveria ter tentado mais. — Vocifero e gostaria de
explodir em lágrimas, gostaria muito, mas o peso fica entalado na
minha garganta. — Tentei me consertar tantas vezes na terapia sem
falar disso, sem falar deles. Acho que nunca ia acontecer, né?
— Não há o que consertar, Carol. Você não é uma coisa
quebrada, é uma pessoa com questões a serem trabalhadas, como
todo mundo. — Natasha me encara tão séria que eu quase acredito
nela.
— Será que algum dia eu vou conseguir perdoar meus pais? —
Fazer essa pergunta me rasga a garganta.
— Você gosta de ter uma relação com eles hoje ou tem porque
sente que é sua obrigação? — Natasha me pergunta séria, como fez
poucas vezes, então tento ser honesta.
— Eu amo meus pais — respondo de imediato porque não tenho
dúvidas sobre isso. — Posso não aceitar completamente ainda, mas
já entendi que eles são diferentes. E, no mais, as coisas são boas...
na configuração de relacionamento que a gente tem. — Coço a
têmpora antes de continuar. — Por outro lado, por mais que eu goste
deles, de estar com eles... Tem um vazio em algum lugar dessa
relação.
— Então eles são especiais para você?
— São.
— Bom, nesse caso, nossa pergunta não é se você vai
conseguir perdoar seus pais. É se você acha que algum dia vai
conseguir perdoar a garotinha que queria tanto ser amada que
aceitou qualquer migalha de carinho e afeto independente do quanto
isso fosse fazer mal para ela — Natasha diz, e meus olhos arregalam
porque, de todas as pessoas que eu penso em perdoar, a menina
carente que eu era no passado não é uma delas. —Você os ama
hoje. Gosta de ter uma relação com eles hoje. O vazio dessa relação
é a ausência de amor que a Caroline sentia quando estava
crescendo.
— Então eu não preciso perdoar eles? Tipo, como se eles não
tivessem feito algo errado? — indago quase ofendida, mas o olhar
terno de Natasha me acalma.
— Perdoar o que as pessoas te fazem, Caroline, é mais sobre
por que aquilo te afeta do que sobre o que eles estão fazendo.
— Acho que você me deu um caminhão que coisas para pensar,
e não sei se gosto. Como a gente resolve isso?
— Primeiro de tudo, você não pode renunciar ao tratamento
sempre que se sentir desconfortável. — Ela ajusta os óculos no rosto
falando muito sério. — Alguns dias, você vai sair daqui com gás e
felicidade para viver, outros dias, você vai sair da sessão e vai chorar
o que não conseguiu chorar aqui. Mas a gente vai caminhar juntas
até algum lugar bom para você. — Natasha me entrega um sorriso
condescendente, mas sei que ela está certa.
— Bom, eu tinha mencionado que a gente só vai conseguir se
ver às terças daqui para frente, certo?
— Tinha, sim, Carol. Vou deixar seu horário mais flexível na
parte da tarde por causa do fuso, mas sempre às terças. — Natasha
sorri para mim, e pela primeira vez em muito tempo, sinto que
finalmente posso chegar a algum lugar através disso aqui.
Talvez a terapia nunca tenha funcionado porque sempre foi algo
que eu fiz porque me mandaram fazer e talvez eu só precisasse
querer.
— Até terça, então. — Sorrio para ela com um tchauzinho.
— Até.
Bato a tela do notebook, vou até a cafeteira e passo uma
cápsula de flat White. Caminho até a entrada da casa e, abrindo a
porta, me apoio no batente. Durante todo o processo apenas uma
frase fica na minha cabeça:
Não tem nada para ser consertado em você.
Ao mesmo tempo, uma lágrima escorre pensando no que o
Harris me disse em Zandvoort.
Precisa parar de achar que só o que está inteiro merece ser
amado.
Talvez ele esteja certo, talvez eu não só precise de amor, como
uma sanguessuga, como alguém que quer algo que não pode ter.
Talvez eu mereça ser amada e isso deva ser leve.
Me preparando para aproveitar meu último fim de semana no
país, deixo a xícara na pia e vou até meu quarto buscar o celular
para conferir os itinerários com Laís e meus pais. Mas,
desbloqueando a tela, vejo uma notificação de mensagem de
Miyeko.
O sorriso enche meu rosto, se fecha e meu coração
descompassa quando leio as palavras:
Miy: Eu digo que piloto não presta, e você ri de mim.
A mensagem vem acompanhada de um link, uma sequência de
stories. Quando as imagens do perfil de fofoca abrem, revelam fotos
tiradas em uma balada. Ao que parece, os pilotos já chegaram ao
local da próxima corrida e nenhum deles está se preocupando com
nada além de mulheres e bebidas.
Então a outra coisa que Daniel disse naquele dia invade a minha
mente: não posso te esperar para sempre. Eu sabia que ele estava
falando sério, mas não esperava receber uma foto dele com outra
pessoa tão rápido.
Capítulo 36
Ou: Eu sei que isso parte o seu coração, se mudou para a cidade em um carro aos pedaços e quatro anos, nenhuma ligação, agora você está linda em um
Daniel
Bom dia, Brasil. Boa tarde, Bélgica. Depois de longas três
semanas, estamos finalmente em Spa-Francorchamps. Com a
chegada da última parte da temporada, é hora de as equipes irem
para o tudo ou nada, afinal, milhões de euros separam cada uma das
posições no ranking de construtores e ninguém quer terminar na
parte inferior da tabela. Como de costume, as atualizações e trocas
de motores e peças são o principal assunto da primeira corrida pós
férias. Neste ano, tanto os pilotos da Arrows quanto da Wollf Racing
estão largando dos fundos do grid por causa das punições que essas
trocas geraram.
O problema de hoje é um só: essa deveria ser uma corrida fácil
para esses carros escalarem o pelotão e chegarem na frente, uma
vez que o circuito é tão enfadonho que muitos fãs e pilotos desejam
que ele seja retirado do calendário. Mas, graças à chuva não prevista
que começou a cair, todas as apostas estão incertas.
Será que os pilotos que largam nos fundos por causa dessas
punições conseguirão chegar ao pódio? Quem será o piloto do dia?
Será que o Juan vai se aproximar do Jack na disputa pelo
campeonato ou será que o Daniel vai se aproximar do Juan na
disputa pelo segundo lugar?
Debruçado no parapeito da “varanda” do motorhome, observo
Caroline dizendo cada uma das palavras da maneira mais assertiva
e segura que consegue. Seu cabelo está preso num coque frouxo e,
apesar de o vento jogar água em seu rosto vez ou outra, ela continua
linda. Limpo a garganta quando Jack para ao meu lado e cruza os
braços como se estivesse me dizendo que sabe o que estou fazendo
e que não vai deixar isso acontecer. Mas não me importo. Caroline
pode não ser mais uma opção, mas é minha amiga, desço os
degraus debaixo da garoa e me mantenho a uma distância segura de
Miyeko.
Por mais que a chuva não esteja pesada, segue insistente. A
previsão é de que até o início da corrida ela pare, e nós esperamos
que essas previsões se cumpram. Afinal, só assim os pilotos
poderão fazer muito mais do que apenas segurar suas posições.
Aqui é Caroline Pimenta, diretamente da Twitch do Garotas No
Padoque.
Depois de finalizar, Carol e Miyeko relaxam o corpo, deixando os
equipamentos embaixo de uma das pequenas tendas disponíveis.
— Apesar da chuva, eu não aguentava mais falar sobre Fórmula
1 sem viver Fórmula 1. — Ouço-a dizendo para a amiga com um
risinho na voz quando me aproximo.
— Pois eu aguentava. As férias foram maravilhosas — Miyeko
responde quando paro atrás das duas, já embaixo da mesma tenda.
— Se eu tivesse passado duas semanas comendo comida
mineira, também teria amado as férias — ela comenta, e as duas
riem.
— Por acaso você está fugindo de alguém, Pimentinha? —
pergunto, fazendo-a pular e se virar para mim.
Caroline escorrega no solo molhado com o movimento, mas a
mantenho de pé pelos braços.
— Até agora de ninguém, por quê? — Ela tenta manter as
feições neutras, olhando em volta.
— Tem certeza? — Cruzo os braços olhando seu descaramento
de cima a baixo.
Pilotos, repórteres e membros das equipes andam de um lado
para o outro embaixo da chuva e eu meneio a cabeça, sorrindo
cordialmente, como se estivéssemos tendo uma conversa banal. A
última coisa de que precisamos é chamar a atenção.
— Se ela tá fugindo de alguém, eu não sei. Mas já que você
apareceu, vou circular e tentar encontrar um lugar legal para a gente
ver a corrida hoje — Miyeko diz e nos deixa.
— Você não respondeu minhas últimas mensagens, achei que
estava fugindo.
Caroline entrou em contato primeiro durante as férias, então
entendi que tínhamos essa abertura. Por isso, mandei mensagens no
último fim de semana para conversar sobre ter resolvido as coisas
com o meu pai e sobre o atual rolo dos meus pais, que é confuso até
para mim. Mas depois da terceira mensagem não respondida,
percebi que estava sendo ignorado.
— Você finalmente se resolveu com seu pai, eu fiquei feliz. Mas
não tinha muito o que falar, eram meus últimos dias no Brasil, minha
mente tava focada em outras coisas... — Ela dá de ombros
colocando as mãos no bolso traseiro.
— Entendi. Bom saber que você não está fugindo, então. —
Cruzo os braços para a sua dissimulação.
— E você, veio seguir na sua insistência de me levar pra sair? —
Ela joga comigo e percebo que se eu der o braço a torcer, Carol não
vai ceder nunca.
— Na verdade, não.
Caroline troca o peso de perna e me encara com deboche
fervendo no olhar.
— Ah, entendi. Sua agenda não está mais tão livre, né? —
ironiza cruzando os braços e eu franzo o cenho, confuso. —
Provavelmente você vai estar nas baladas de Bruges, beijando
modelos e tal — diz, dando de ombros, e não consigo conter a
risada.
— Ciúmes a essa altura da vida, Caroline? Você nunca foi
assim...
— Ciúmes de você, Harris? Se toca — diz, me dispensando com
a mão, desviando o olhar. — Sua babá veio te buscar.
Me viro achando que Jack veio se meter onde não foi chamado,
mas dou de cara com Lindsay.
— Você tem uma ação promocional com um patrocinador lá em
cima em cinco minutos — ela diz, parada bem atrás de mim com
cara de poucos amigos.
Bato continência para Caroline me virando para entrar
novamente no motorhome e o olhar de Jack sobre mim não esconde
sua decepção.
— Daniel Harris não é um homem muito firme em suas escolhas
— ele diz quando passamos pela porta e seguimos Lindsay até a
escada que nos levará até a sala de reuniões.
— Se te deixa satisfeito, acho que a gente acabou de tretar.
— O casal chegou ao patamar de estar brigando agora? — Jack
ri balançando a cabeça quando chegamos ao segundo andar.
— Ela é minha amiga, Jack. Não vou parar de falar com ela só
porque você acha que eu deveria. — digo impondo um limite para
essa semetência.
— Uhum... — Jack murmura quando paramos na frente da porta.
— Vocês têm exatamente o tipo de amizade que eu estou tentando
ter com a camerawoman dela.
Meu queixo cai com a confissão, mas a porta é aberta antes que
eu possa dizer qualquer coisa.
eu.
Carol
Ciúmes.
Nunca vou me perdoar por ter sentido e demonstrado ciúmes
desse Novato. Eu deveria ter respondido a mensagem dele, era só
uma mensagem e eu só precisava escrever o que pensei:
Finalmente, agora vocês vão achar um novo normal, você vai
ver.
Mas não fiz isso. Não fiz, porque ver Daniel naquelas fotos me
deixou insegura, abalada e confusa. Era óbvio que ele não ia me
esperar para sempre e eu agi como se nunca fosse pedir uma coisa
daquelas porque achava que levaria meses, talvez anos, para me
curar.
A verdade, no entanto, é que eu queria que ele me esperasse.
Queria que as coisas fossem como naquele jatinho, quando o mundo
todo era silêncio e só existíamos nós dois. Mas eu não pedi e não dei
nenhuma esperança a ele. Hoje, entendo que sou só uma pessoa
normal e inteira, com algumas feridas a tratar, e ver Daniel seguindo
em frente logo agora que eu sei que conseguiria estar com ele me
deixou com um gosto amargo na boca, carregando a sensação de ter
perdido algo muito precioso porque fui idiota e teimosa.
Vê-lo não foi uma tortura, conversar com ele foi tão fácil quanto
sempre tinha sido, mas ser a pessoa que propõe um encontro e
recebe um não me acordou para a realidade de que talvez eu o
tenha perdido para sempre, e isso dói. Porque Dani estava certo, eu
mereço amor, mas não quero mais qualquer amor.
— Gente, o Juan está tentando tirar o Daniel da pista em todas
as curvas. — Miyeko toca meu joelho esquerdo com o direito dela e
me encara indignada. — A transmissão só fala disso.
Volto meus olhos para a tela e tento focar na corrida. A sala de
imprensa está cheia, esse circuito é um porre e ninguém queria ficar
debaixo de chuva para acompanhá-lo, quando a chuva passou, a
corrida já estava tão monótona que ninguém pensou em sair.
Jack, que largou em décimo primeiro, já está em segundo e
Daniel, que largou em décimo sétimo, chegou ao quarto lugar,
seguido de perto por Juan, que está apenas esperando uma falha
dele para enfiar o carro com tudo.
O rádio de Daniel entra na tela e nós duas nos atentamos.
“Daniel, dez voltas para o fim. Seus pneus estão bons, pode
empurrar. Mas se o Juan forçar, lembre-se de que o importante é
você terminar a corrida.”
“Eu não vou deixar esse filho de uma *** tomar minha posição
depois de todos esses movimentos pelos quais esse *** já deveria ter
sido punido, Phillip. Não abre mais o meu rádio para falar sobre
isso.”
A resposta de Daniel choca pelo menos metade da sala. Como
muitos pilotos, ele odeia o rádio, todos sabem, mas vê-lo xingando e
gritando é uma novidade.
— Se o Daniel bater nessa corrida porque está disputando quem
mija mais longe, eu vou dar na cara dele — sussurro para Miyeko,
que ri me encarando em choque.
— Achei que você gostasse de ele ser agressivo.
— Ele é um piloto, Miyeko, tem de ser. Mas isso não é uma
disputa comum. Foi exatamente desse jeito que o Verstappen
acabou com o carro na Cabeça do Hamilton em 2021.
Lembro desse acidente porque os dois vinham sendo agressivos
e nunca deixando espaço ao longo de várias corridas, todo mundo
sabia que uma hora ia dar merda e ninguém fez nada.
Até que o Hamilton quase morreu.
Nas voltas que se seguem, minhas pernas tremem tanto que mal
consigo respirar. Mas Daniel defende sua posição com maestria,
como o excelente piloto que é.
Juan derrapa na pista em uma curva e quase, quase se afasta
do Daniel o bastante para não conseguir abrir o DRS, mas, como um
imã diabólico, ele se aproxima novamente. Entrando na penúltima
volta da corrida, a batalha entre os dois se intensifica. Juan tenta a
ultrapassagem pela direita numa curva fechada, mas Daniel defende.
Na curva seguinte, no entanto, Juan consegue colocar o carro
lado a lado com o de Daniel. Dessa vez, meu Novato não acelera
nem abre o espaço para que Juan passe, ele joga o carro mais perto
do veículo do espanhol, que perde velocidade ao tentar se defender
e, quando a Arrows passa pela Wolff, a roda traseira de Daniel toca a
frontal de Juan, que roda na pista.
Fecho os olhos imediatamente. Esse tipo de contato pode ser
ruim para apenas um piloto, mas também pode ser bem ruim para os
dois. Todos os jornalistas gritam wow em uníssono, e em seguida a
transmissão notifica que Juan está fora da corrida depois de uma
batalha intensa pelo quarto lugar e Daniel Harris segue firme em sua
posição.
Respiro fundo abrindo os olhos e Miyeko observa minhas pernas
agitadas e mãos trêmulas como quem diz que é hora de sairmos
daqui.
— Topa um ao vivo antes das entrevistas com os pilotos? — ela
pergunta porque obviamente essa disputa deu o que falar e entrar na
live para comentá-la vai ser ótimo para a audiência.
— Claro. Vamos, sim. — Me levanto da cadeira desconfortável e
paro observando a tela. A última volta chega e ainda consigo ver
Daniel se aproximando da linha de chegada antes de sair.
Seguindo Miyeko, só uma frase gira em minha mente: eu vou
matar esse Novato.
Capítulo 38
Ou: Eu não sei por que você se esconde, fecha os olhos, estraga tudo e mente para o cara que você ama. Quando você sabe que pode chorar com ele,
sempre confiar nele e ser gentil com o caro que você ama.
Daniel
Desde o momento que desceu do pódio, Jack não desgruda de
mim, “nós precisamos conversar” é seu argumento. Assim, fomos à
garagem para que eu me desculpasse com Phillip juntos, nos
trocamos juntos, saímos do autódromo juntos e chegamos ao hotel
juntos. O problema é que Jack não faz o tipo correr e depois discutir
relação, então essa vontade dele de vir para o hotel logo depois da
corrida me deixou com uma pulga atrás da orelha.
— Vamos ao bar? — indago, inclinando o corpo em direção à
entrada do bar do hotel, mas ele me puxa em direção ao elevador. —
Quero comprar um vinho.
— Pede serviço de quarto — diz sem me dar ouvidos.
— Jack, eu vou pedir um vinho — repito pausadamente.
— Daniel, vamos subir. Lá em cima a gente pede a bebida —
Jack rebate caminhando a passos largos, e eu o sigo.
— Você tem algo pra me dizer, Jack? O Rick falou algo sobre a
corrida de hoje? — pergunto o que está me incomodando, não seria
a primeira vez que o Rick faria o Jack de minha babá, e eu não gosto
muito disso.
Mas Jack não responde de imediato, ele me olha como se
estivesse me mandando calar a boca e, quando a porta se abre, nós
entramos na caixa dourada com espelhos nas quatro paredes.
— O Rick não falou nada comigo, ele não se importa com essas
coisas — diz, apertando o botão de seu andar e se colocando na
frente dos números, um modo sutil de me comunicar que estamos
indo para o quarto dele. — Você cruzando a linha de chegada vivo e
com o carro inteiro, ele não vai te encher o saco. Se você tomar
punições, vai te dar um esporro, mas coisa leve.
— Eu realmente preciso de um banho, sabe. Não podemos
conversar depois?
A porta se abre e nós saímos enquanto Jack balança a cabeça
negativamente. Parando na frente do quarto número 3, ele bate à
porta.
— Tem alguém no seu quarto? — pergunto, mas antes mesmo
que ele consiga responder, Miyeko abre a porta.
— Oi, piloto — ela diz com uma voz suave, a mesma que ouvi
pelo telefone quando eles estavam gravando com a família de Jack.
— Oi, Daniel. — Myieko me sorri sem graça e passa por mim,
segurando a porta entreaberta.
— Vai lá, e quando você sair do meu quarto, me avisa, tá bom?
— Jack tenta passar o braço pela cintura de Miyeko, que se
desvencilha dele.
Os dois caminham de volta até o elevador e eu entro.
O quarto de Jack é exatamente igual ao meu. No primeiro
ambiente, está a mesa de refeições, um sofá e a TV. No ambiente ao
lado, uma cama de casal e uma de solteiro e um armário que cabe
roupas para pelo menos dois meses completa o quarto juntamente
da janela infinita embaçada à minha frente que revela o frio lá de
fora.
A única diferença entre o meu quarto e o de Jack é a Caroline
Pimenta de braços cruzados na frente da janela me encarando como
se fosse a própria morte.
— Carol?
— Você realmente achou prudente aquela palhaçada que você e
Juan protagonizaram na corrida de hoje?
De todas as vezes que ela me fez perguntas depois da corrida
ao longo desse ano, essa é, com certeza, a mais esquisita.
— É o quê?
— Você tem noção de que você foi parar no hospital não tem
dois meses? — Caroline bufa andando de um lado pro outro.
Respiro fundo tentando entender o que está acontecendo.
— Você, de todas as pessoas, não pode ser quem vai me encher
o saco por causa de uma corrida, Caroline. — Rio olhando em volta
à procura de câmeras, porque isso só pode ser uma piada.
— Brincar de racha com alguém que está deixando claro que
não tem nada a perder não é correr, Daniel — repreende
gesticulando. — É deixar o outro piloto entrar na sua mente e dirigir o
seu carro.
— Caroline, há uma semana você não respondia minhas
mensagens e agora está querendo ensinar o padre a rezar missa? —
pergunto apoiando as mãos na cintura.
Eu estou a poucos metros da porta, e ela continua tão próxima
da janela quanto antes. O vazio entre nós dois nunca foi tão literal.
— No Brasil, você segurou minha mão e disse que não
conseguia viver sem a minha presença, então estou aqui. — Ela é a
primeira a ceder e dar um passo em minha direção, mas apenas um.
— Sendo presente e dizendo que você fez merda hoje.
— Você me ignorou no cercadinho, mas teve tempo de
conversar com o Jack e arrumar a chave do quarto dele. — Tento
entender a lógica dos fatos. — Daí veio pra cá antes da gente e
criou toda essa situação pra me dizer uma coisa que podia ser dita
por mensagem? — A indignação é tão presente em minha voz que
quase se materializa e cruza os braços para encarar Caroline junto
comigo.
— A Miyeko já tinha a chave do quarto dele, Daniel. — Por
alguns segundos, ficamos chocados juntos com o que quer que
esteja acontecendo entre os dois. — Mas a questão não é essa... —
Ela fecha os olhos, coçando a têmpora.
— É essa, sim. A questão é exatamente essa: num dia você age
como se fosse indiferente e no outro age como se se importasse —
digo, batendo as mãos nos meus jeans em desistência.
— Você estava certo o tempo todo, tá legal? Eu tava fugindo de
você e te ignorando… Por ciúmes — rebate, mirando o chão, como
se dizer isso a envergonhasse — E hoje eu estou aqui exatamente
por isso: eu me importo, me importo mais do que conseguiria colocar
em palavras. — Caroline suspira e esfrega o rosto em seguida.
— Por que você se importa? — pergunto com um passo em sua
direção.
— Daniel, não é… — Ela faz menção a sair pela tangente, então
me aproximo um pouco mais.
— Eu quero saber a verdade, Caroline. Por que você está aqui,
agora, me dizendo essas coisas?
Estou perto o suficiente para que ela me olhe nos olhos e diga a
verdade, perto o bastante para que ela não diga nada se preferir me
tocar.
— No dia do seu acidente, foi a Miyeko quem me mandou te
ligar... — diz, com dois passos para trás, e começa a caminhar pelo
quarto. — Ela falou que eu precisava conversar contigo e ter certeza
de que você não tinha morrido sem saber que eu...
— Não me odiava. — Coço o cabelo, mas me mantenho parado.
Se ela quer espaço, não vou sufocá-la. — Eu lembro.
— Não, Novato. — Carol se vira e me encara com os olhos
marejados, abraçando o próprio corpo. — Isso foi o que eu te disse.
Mas a verdade é que não queria que você morresse sem saber que
eu te amava — confessa com num sussurro, e as palavras são como
um murro no meu coração. — Mas, na época, não queria assumir
nem pra mim mesma que te amava, eu tinha outra pessoa e esse
sentimento não era justo com ninguém. Só que hoje… só queria que
você ficasse vivo para que eu mesma te matasse. — Ela impunha o
indicador na minha direção. — Porque não era possível que ia ceder
numa situação daquelas, Daniel. O Juan tava sendo um babaca e
você caiu direitinho — ela diz, irritada, como se ainda quisesse me
agredir. — E talvez você ache que estou aqui por causa dos ciúmes,
ou porque achei que você iria morrer, e tudo bem, talvez isso seja o
que me motivou a falar, mas meu motivo para estar aqui, agora, é
que eu amo você, Novato.
— Eita, cacete. — Percebo que disse isso em voz alta quando
ela ergue a mão me calando.
— Talvez sempre tenha amado e sempre vá amar. E sei que
você já seguiu em frente, mas não posso simplesmente não dizer. Já
te deixei ir embora da minha vida uma vez por não falar as coisas,
então se você quer saber por que armei esse circo... — Ela encolhe
os ombros. — Foi pra dizer que estou me sentindo péssima por não
ter dito sim quando me pediu pra ficar com você na salinha do
motorhome antes das férias, pra dizer que achei que ia demorar uma
vida pra me curar e estar pronta pra um relacionamento de novo,
mas que eu estava errada, e pra te pedir perdão por ter demorado
demais para perceber o quanto eu amo você.
— Não precisa pedir perdão, Carol. — Minha voz vacila e eu não
sei exatamente o que dizer, então a deixo falar.
— Preciso, Dani. — Ela funga. — Preciso te pedir perdão por
isso; por ter terminado nosso namoro quando senti medo de você se
tornar tão ausente quanto meus pais, foi injusto com a gente; queria
que me perdoasse por ter sido uma vaca contigo na primeira parte
da temporada, sei que já me desculpei por isso, mas a questão é que
eu não esperava que você ainda mexesse tanto comigo e não soube
como reagir. — Caroline força um sorriso, mas as lágrimas não
encontram mais lugar em seus olhos e escorrem livremente pelo seu
rosto.
Meu cérebro me diz para ir até ela, meu coração diz o mesmo,
mas meus pés não se mexem.
— Carol, a gente teve altos e baixos de mais nos últimos meses
e…
— Eu sei — ela me corta e anula o espaço entre a gente com
dois passos apressados. — E sei que existe uma chance enorme de
estar falando um monte de coisas que não fazem mais sentido pra
você, mas Dani, me perdoa por todos os nãos. Eu fui uma idiota.
Acima de tudo isso. — Sua voz embarga e Caroline toca meu rosto.
— Me perdoa por ter te afastado mesmo depois do nosso beijo,
mesmo depois de estar nos seus braços e saber, ter a certeza de
que é você e só você. — Ela vira o rosto para a esquerda na
tentativa de esconder as lágrimas escorrendo num choro contido e,
por Deus, eu amo tanto essa mulher que não sei o que dizer agora
que ela me ama de volta.
Tiro sua mão do meu rosto, mas a seguro com firmeza.
— Carol, depois de ter passado os últimos meses no ciclo de
querer você, aceitar que não teria você, me agarrar a nossa amizade
e entender que a gente não tinha mais espaço para ser um casal,
assimilar o que você está me dizendo é, no mínimo, complicado. —
Ela assente ainda sem me olhar. Toco seu queixo com minha mão
livre, trazendo seu rosto para a frente do meu. — Mas eu estaria
mentindo se dissesse que um mês longe me fizeram te esquecer.
Cinco anos sem contato não fizeram, Caroline, e eu nem tinha ideia
de que poderia ter você de novo naquele tempo, mas…
— Por que precisa ter um mas? — Ela joga a cabeça para trás
com o argumento que eu usei com ela na sala do motorhome antes
das férias e eu rio.
— Porque eu preciso assimilar tudo isso, entender o que você
disse e o que você quis dizer… — digo, finalmente expirando.
Como se estivesse segurando o ar por semanas.
— Tudo bem. — Carol sorri, um riso triste de quem não está
nada bem. — Tive meu tempo, nada mais justo do que você ter o
seu.
— Ótimo — digo, me afastando. — Te encontro no restaurante
do hotel em duas horas, então? — pergunto e o sorriso falso dela se
torna uma careta de dúvida em dois segundos.
— Como assim?
— Você me deve um encontro desde Silverstone, Caroline, não
se faça de desentendida.
— Mas você não queria um tempo?
— Te disse que preciso de um tempo, não de férias de você. —
Encolho os ombros. — Duas horas para mim é o suficiente — digo,
pensando em tudo o que preciso fazer para que tenhamos a noite
perfeita.
Ela meneia com um risinho de canto e eu acaricio seu rosto.
Ficamos assim por um tempo, num quarto de hotel vazio, tentando
entender o que está acontecendo agora, o que estamos sentindo e
onde estamos nessa relação.
Caroline é a primeira a descobrir a resposta, porque ela se
coloca na ponta dos pés e cruza os braços atrás da minha cabeça
me puxando para um beijo.
Doce, calmo e terno. Ao mesmo tempo que cada movimento diz
o quanto ela me ama, grita o quanto ela me quer e sussurra o quanto
ela deseja que eu a ame de volta.
Me afasto, descansando minha testa na dela.
— Te vejo em duas horas, Novato.
— Te vejo no nosso encontro, Pimentinha — digo, correndo o
polegar pelo seu lábio inferior, e ela se vira com um sorriso genuíno
no rosto.
Deixar Caroline perceber que eu não podia correr sozinho por
nós dois exigiu uma frieza que eu só tinha dentro das pistas, mas foi
necessário. Observando-a sair desse quarto, pronta para voltar para
a minha vida, tenho certeza de que, apesar de odiar tirar o pé do
acelerador, essa não foi uma escolha ruim a se fazer.
Capítulo 39
E eu não sei como isso pode ficar melhor você pega minha mão e me joga de cabeça, e eu me sinto destemida. E eu não sei porquê, mas com você eu
Carol
Observo meu reflexo no espelho do quarto e um filme passa pela
minha cabeça. Quando reencontrei o Harris em Silverstone, jamais
imaginei que minha vida poderia mudar tanto, que eu poderia mudar
tanto. Passo a mão pelo vestido preto antes de jogar um sobretudo
azul marinho por cima e sorrio lembrando de como fiquei revoltada
quando Daniel me chamou para sair no meio de todo mundo. Talvez
eu tenha me revoltado tanto porque, no fundo, sempre quis aceitar.
Amasso os cachos apenas o suficiente para que eles fiquem
bonitos quando eu os prender num coque baixo. A ventania da noite
de Liège nunca me permitiria sair com esse cabelo solto.
Indo até o banheiro, coloco os sapatos puxando a meia calça
para que ela fique o mais reta o possível e deixo dois cachos soltos
na frente das minhas orelhas quando prendo o coque.
É hora de ir encontrar o Daniel e, se tudo der certo, é hora de
voltar a ser a Pimentinha do meu Novato.
Carol
[1] As traduções das letras de música contidas no livro serão feitas por mim, a autora, e
adaptadas para o português com fins de facilitar a compreensão do sentido que uma
tradução literal impediria.
[2] A Paddock é o local que abriga as equipes, veículos, oficiais de prova e convidados
durante as corridas.
[3]
ou Rookie, que é como chamam os pilotos em seus primeiros
dois anos de F1.
[4]
"Drag Reduction System", ou "Sistema de Redução de
Arrasto": o DRS auxilia na estabilidade e aerodinâmica do carro nas
retas, diminuindo a resistência do ar e aumentando
consideravelmente a velocidade.
[5] A pizza de Pepperoni é uma variação dessa pizza, que é feita com salame picante
na Itália.
[6] Um tipo de edredom comum na Europa.
[7] On-call é quando o funcionário não está trabalhando na empresa nem em home
office, mas precisa estar de prontidão para, casa role algum B.O. começar a trabalhar
prontamente.