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Copyright © 2023 M. R. Barbosa.
 

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e


acontecimentos descritos, são produtos de imaginação do autor.
Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é
mera coincidência.
 
Capa: LA Designer Editorial
Diagramação: Layce Design
Ilustração 1: Fernanda @calorethorn_arts
Ilustração 2: Gabriele Moreira @gabmoreirart
Revisão: M. R. Barbosa
 
Todos os direitos reservados.
 

São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer


parte dessa obra, através de quaisquer meios — tangível ou
intangível — sem o consentimento escrito da autora. A violação dos
direitos autorais é crime estabelecido pela lei nº. 9.610./98 e punido
pelo artigo 184 do Código Penal.
 

Edição Digital | Criado no Brasil.


 
Sumário

Sinopse
Playlist
Glossário
Nota da Autora
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Epílogo 1
Epílogo 2
Agradecimentos
Sobre a autora
Outras obras
Contato

 
 
 
 
 
 
 
 
Dedico este livro para quem, assim como eu, deseja
encontrar um grande amor; alguém com quem dividir as dores e as
delícias de uma existência inteira.
 

“Sua vida inteira pode realmente mudar em um ano… Você


só precisa se amar o suficiente para saber que merece mais, ser
corajosa o suficiente para exigir mais e ser disciplinada o suficiente
para realmente trabalhar por mais.” *
– Charlotte Flair.
(Contributor of Second Nature.).
*Texto traduzido do inglês.
 
Sinopse

Age Gap + Grumpy & Sunshine + Found Family +


Gravidez Inesperada + Slow Burn

O CEO Michael Foster tinha 41 anos, sempre desejou ser


pai, mas viu o seu sonho virar cinzas, quando a esposa veio a
óbito logo após o parto, seguida pela recém-nascida. A dupla
perda o deixou traumatizado e, desde então, ele passou a levar
uma vida quase reclusa, até o dia em que a irmã apareceu em sua
casa, implorando por ajuda.
Quando o viúvo aceitou abrigar Kylie Foster e a filha dela
em sua casa, jamais imaginou conviver com uma terceira
pessoa: a nova babá da Zoe. Mas o nome da au pair brasileira não
lhe era estranho e ele logo descobriria o porquê.
Letícia Mancini tinha 21 anos quando entrou no seu
segundo ano de intercâmbio, nos Estados Unidos, mas já estava em
processo de rematch, ou seja, troca de família. Ela não se sentia
mais segura e acolhida, e para completar o casal a expulsou de
casa de forma arbitrária. Porém, a sorte voltou a sorrir, quando
conseguiu o rematch, com uma mãe solo!
O CEO viúvo sabia que a jovem babá, sexualmente
inexperiente, despertou sentimentos há muito adormecidos. Ele
só não esperava engravidá-la, justo quando não queria mais ser
pai.

Será que Michael a ama o suficiente para superar o luto e


reviver o sonho da paternidade?
 
Playlist

 
Para ouvir a playlist de “O viúvo que (não) queria ser pai” no Spotify, abra o
app no seu celular, selecione buscar, clique na câmera e posicione sobre o
code abaixo.
 

 
Ou clique aqui -> Spotify
 
 

 
Glossário

Au Pair – Termo usado para designar um(a) jovem que mora


com uma família anfitriã no exterior, com o intuito de aprimorar um
idioma e cuidar de crianças.
Curfew - Horário estabelecido pela família anfitriã para a au
pair voltar pra casa. “Toque de recolher.”

Extensão - Prorrogação do tempo de intercâmbio, após o 1º


ano no país. Tempo máximo de permanência: 2 anos.

Homestay - Significa morar na casa de uma família nativa.


Host Dad – O patriarca da família que recebe o(a)
intercambista em sua casa. (Variações: Hosto ou Fofo.) Host
kid/Kido - A criança que a au pair vai cuidar ao longo do
intercâmbio.
Host family – Significa família anfitriã., mas não
necessariamente é composta por pai, mãe e filhos; também pode
representar duas pessoas que vivem juntas, seja por laços afetivos
ou consanguíneos.

Host Mom - A matriarca da família que recebe um(a)


intercambista em sua casa, durante o período do intercâmbio.
(Variações: hosta e fofa, podendo ser um apelido carinhoso ou
irônico).

LCC - Trata-se de uma abreviação em inglês (Local


Community Counselor), que se refere à pessoa que coordena o
programa de au pair, em cada região dos Estados Unidos, e cuja
principal função é prestar toda a assistência necessária às au pairs
e suas respectivas famílias anfitriãs.

Match – Termo usado quando a au pair e a família anfitriã se


escolhem mutuamente (combinação).

Rematch – Termo usado quando a au pair e/ou a família


anfitriã está insatisfeita e não quer mais conviver, por algum motivo.
Ou seja, uma ou ambas as partes podem solicitar uma troca, mas
no caso da au pair, ela tem apenas duas semanas para encontrar
outra família para morar, caso contrário, ela é obrigada a voltar para
o seu país de origem.
 
Nota da Autora

Se você chegou até aqui é porque se identifica com a minha


escrita, e essa constatação é muito gratificante.
Quero avisar antecipadamente que a história aborda temas
que alguns leitores podem achar perturbadores, como luto e parto
traumático, embora não tenha inserido cenas gráficas porque se
trata de um livro conforto, do gênero comédia romântica, ideal para
quem precisa sair da ressaca literária.
Não espere um livro sobre abandono parental, pois não curto
esta temática.
Passei por algumas situações desagradáveis ao escrever a
história do casal, mas tentei dar o meu melhor para quem sempre
apoiou meu trabalho. Se você gosta da Mariana Zapata, minha xará,
famosa por seus livros bem slow burns, com desenvolvimento mais
lento do relacionamento dos protagonistas, talvez goste de O Viúvo
que (não) queria ser Pai.
Quanto às ilustrações de MILHÕES, uma delas será
visualizada apenas se acessar o link ou através do QR Code,
disponibilizado ao final do capítulo em que foi inserido no livro,
embora não retrate cena hot, muito pelo contrário. Leitores com 16
anos ou mais podem ler o livro, sem problemas. A segunda está
inserida no e-book, mas o local exato é surpresa! Espero que goste
do resultado, porque as meninas capricharam.
E, por último, mas não menos importante: Sempre que puder,
avalie o ebook lido, seja atribuindo apenas a nota de sua preferência
e/ou deixando uma opinião sincera. Gratidão!
Com carinho,

 
Prólogo
Michael Foster

Girei as baquetas entre os dedos, antes de bater uma na


outra e dar início à execução da música Drain You, da banda
Nirvana, na minha bateria acústica.
O meu coração bateu acelerado, enquanto alternava as
batidas no prato e na caixa, um tambor que produzia um som mais
agudo e seco, enquanto pressionava e soltava rapidamente o pedal
do bumbo e acompanhava as marcações pelos fones de ouvido.
Aquela música descrevia com exatidão a minha relação com
Susan.
Um relacionamento marcado por exigências de minha parte e
conceções da parte dela. Susan se sentiu coagida a interromper a
carreira, para se dedicar integralmente à maternidade.
Eu era o parceiro egoísta retratado na música, que se
beneficiou com o sofrimento causado à mulher. Porém, ao contrário
dele, eu aprendi a lição da pior maneira possível: com uma viuvez
precoce.

♫ Um “bebê” diz para o outro: "Tenho sorte de ter conhecido você".


Eu não me importo com o que você pensa, a menos que seja sobre

mim. ♫
Suor brotava da minha testa e escorria pela lateral do rosto,
as bochechas queimavam, e nem o ar condicionado da sala foi
capaz de reduzir a temperatura corporal.
Uma inexplicável onda de calor me invadiu à medida que
mais lembranças emergiam na superfície.
Parecia cena de filme o momento em que atravessei o
corredor, em direção ao centro de triagem, conduzindo velozmente a
cadeira de rodas, sob os olhares curiosos de alguns funcionários.
Não demorou muito para constatar que Susan seria
submetida a uma cesariana de emergência.
Nossa bebê nasceu rapidamente, mas a condição de saúde
dela exigia cuidados imediatos, na UTI Neonatal. Aparentemente,
ela estava fora de perigo, mas ainda faltava reverter o quadro de
choque hemorrágico de Susan.

“Quadro grave de HPP[1]. Proceda à infusão endovenosa


rápida de 10 UI de ocitocina.”
Eu entrei em desespero ao ver o rosto dela ficando azulado,
enquanto minha mulher dizia que mal conseguia respirar, que tinha
medo de partir sem ver nossa filha pelo menos uma última vez.
“Eu não quero morrer...”
“Shhh. Não diga isso, amor. Tudo vai correr bem.”

♫ Agora é meu dever drenar você completamente.


Eu drenei toda a força vital dela.
“Paciente apresenta respiração ausente, e sem pulso central
palpável.”
“Iniciar RCP com compressões torácicas, imediatamente!”

♫ Viajar através do tubo Que termina na sua infecção ♫


“O senhor vai ter que aguardar lá fora. Sinto muito.”
A equipe médica me obrigou a deixar o centro cirúrgico,
coberto com o sangue dela, alegando que eu precisava assinar
formulários autorizando uma histerectomia. Senti meu corpo
paralisar em um ataque de pânico, uma sucessão de eventos
transcorrendo ao redor, sem que eu pudesse fazer absolutamente
nada, além de voltar a rezar, de forma fervorosa, pedindo à Deus
que zelasse pelo bem-estar e pela saúde tanto dela quanto da
nossa bebê.
Passei a respirar com dificuldade, o muco já se avolumava
nas narinas, e se juntou às lágrimas e ao suor que deslizavam pelo
meu rosto, enquanto marcava o ritmo da música pisando no pedal e
produzindo o som grave, característico do bumbo: Bum, Bum, Bum,
Bum, Bum, Bum, Bum, Bum.
Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum.
Continuei golpeando a borda do prato de ataque, o chimbal, e
a cúpula do prato de condução, mas dando atenção especial para
as crescentes entre surdo, tom e bumbo.
Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Crash, Bum,
Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Crash, Bum, Bum, Bum,
Bum, Bum, Bum, Bum, Bum.
(...)

♫ Você, Você, Você, Você, Você. ♫


Os meus olhos ardiam com as lágrimas abundantes, mas eu
continuei investindo furiosamente as baquetas contra o instrumento,
durante o 3º refrão da música: (...)

♫ Agora é meu dever drenar você completamente.


Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Crash, Bum,
Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Crash, Bum, Bum, Bum,
Bum, Bum, Bum, Bum, Bum.
“Preciso vê-la, nem que seja para dizer adeus, abraçá-la e
dar um beijo. Por favor, eu suplico!”

♫ Em um beijo apaixonado Da minha boca para a sua ♫


“Paciente arresponsivo, doutor!”
Seguiu-se um silêncio tenebroso, quebrado apenas pelo som
intermitente do monitor cardíaco, cada vez mais espaçado: BIP –
BIP - BIP – BIP. BIIIIIIIIIII Aquele procedimento de emergência não
foi suficiente para conter o sangramento, que durou
aproximadamente duas horas.
Susan sangrou até a morte.
Pagou com a própria vida para satisfazer meus caprichos. Ela
tentou me alertar diversas vezes, alegando que as tentativas
fracassadas de levar a gestação adiante eram um sinal de que
ainda não era o momento para ser mãe.
O que eu fiz com minha adorável esposa era imperdoável.
Carregaria o peso da culpa até o fim dos meus dias.
Parti para a execução final da música, batendo os tambores e
os pratos com tanta força, e gerando uma descarga intensa de fúria,
o que fez meu coração disparar, o suor brotava por todos os poros,
o sangue fervilhava nas veias, a respiração saía ofegante pelas
narinas, e meu rosto se manteve contraído, com a mandíbula
cerrada.
Joguei minha cabeça para trás e fechei os olhos, tomado pelo
frenesi da carga sonora da música, enquanto golpeava o prato de
ataque repetidas vezes com as baquetas, provocando um som alto
e de longa duração, o som de "splash” reverberou pela sala,
finalizando assim a reprodução da música.
Eu me levantei do banco de um salto e joguei as baquetas
violentamente no chão, e passei a andar de um lado para o outro,
com as mãos cruzadas atrás da cabeça e o rosto quase batendo de
encontro ao peito, dando livre curso às lágrimas, uma sensação de
completo desamparo se abateu sobre mim com a força de um
tsunami.
O contato com minha filha durou aproximadamente cinco
minutos, tempo cronometrado para a despedida, afinal a médica
responsável pela UTIN foi taxativa ao dizer: “Não tenha esperanças,
Sr. Foster”.
Só me foi permitido tocar no bracinho dela, sentindo a pele
fria, fina e frágil entre meus dedos, enquanto contemplava o rosto
angelical coberto pela máscara, uma sonda gástrica passava pela
boca entreaberta, e o peito coberto por eletrodos ligados a um
aparelho, subia e descia de forma espaçada.
Jurei nunca mais pisar em uma maternidade, a partir daquela
data.

 
Capítulo 1
Michael Foster

Seattle, Washington.
 

Acordei sobressaltado, sentindo que algo ou alguém impôs o


seu peso sobre o colchão. Eu nem tive tempo de me situar, porque a
claridade atingiu em cheio os meus olhos. Pisquei repetidas vezes,
observando a minha irmã acionar o botão do controle, fazendo as
cortinas de blackout automatizadas se abrirem.
Kylie deve ter usado a chave escondida embaixo do tapete
da porta dos fundos — Pensei comigo mesmo, ao puxar rápido o
lençol para cobrir o meu rosto.
— Por que não acorda o seu tio, Zoe? — sugeriu ela, em tom
matreiro.
Elas escolheram um péssimo dia para me fazer uma visita
surpresa.
Como ainda me sentia um pouco sonolento, meu coração
bateu em disparada, assim que a Zoe pulou na cama, se debruçou
sobre mim e passou a sacudir o meu ombro, enquanto soltava
gritinhos estridentes.
— A mamãe me pediu para te acordar, tio Mike! — A menina
puxou o lençol para baixo e minha única reação foi olhar para ela
com uma expressão aborrecida.
Havia qualquer coisa na minha sobrinha que me fazia lembrar
a filha que eu perdi naquele dia fatídico, e isso me martirizava tanto,
mas tanto, que chegava a doer no fundo do peito. Se a minha bebê
tivesse sobrevivido, a diferença de idade entre elas seria de apenas
1 ano e três meses, de acordo com o cálculo feito pelos médicos
nos casos de prematuridade.
Minha irmã e Susan engravidaram praticamente ao mesmo
tempo.
Eu estava muito abalado pela perda naquela época, e por
isso me acovardei, evitando ter algum contato com a Zoe, desde os
primeiros meses de vida dela.
O motivo pelo qual estranhei a visita repentina da minha irmã,
mesmo após mais de três anos, foi o fato de ter deixado bem claro
que eu não queria ser importunado. Fazer chamadas de vídeo em
ocasiões como datas de aniversário, Natal e Réveillon eram mais do
que suficientes para manter os laços familiares.
Faz duas semanas que liguei para ela para desejar Feliz Ano
Novo.
Eu realmente amava as duas, mais do que tudo na vida, por
isso evitava a todo custo arrastá-las para o meu inferno pessoal.
Optei pelo isolamento nos dias, meses e anos subsequentes ao
funeral de Susan. Minha esposa faleceu dias antes da pandemia
estourar, em decorrência de complicações durante a cesariana de
emergência. A nossa filha até chegou a nascer, mas só teve poucas
horas de vida, e a dupla perda me deixou completamente
devastado, desde então.
Ao todo foram cinco anos de tentativas para concebermos um
filho, sendo dois deles despendidos com tratamentos de fertilidade.
Susan sofreu dois abortos espontâneos e gestações ectópicas, mas
só prosseguiu com o processo após muita insistência de minha
parte. Ela relutou bastante, alegando nutrir um mal pressentimento,
mas eu era um homem tão obstinado que me recusei a desistir de
ser pai.
E havia dado certo, pelo menos daquela vez.
Nossos esforços não tinham sido em vão, e imaginei que
Deus havia nos concedido a oportunidade de constituirmos uma
família.
Susan tinha apenas 37 anos de idade, e vivenciava a melhor
fase de sua vida, tanto a nível pessoal quanto profissional. Seguia
rigorosamente todas as orientações da ginecologista durante o
acompanhamento do pré-natal, para garantir que o bebê se
desenvolvesse sem nenhuma intercorrência.
Tudo parecia transcorrer bem até o dia em que ela alcançou
a 28º semana.
Minha esposa sofreu uma ruptura uterina, uma grave
complicação da gravidez e foi levada às pressas para o hospital,
mas perdeu muito sangue e não resistiu, vindo à óbito na mesa de
cirurgia. Uma onda de culpa e remorso invadiu minha alma, por tê-la
submetido a várias rodadas fracassadas de tratamento de
fertilidade.
Por outro lado, como eu poderia imaginar que uma gestante,
acompanhada pelos melhores especialistas na área de obstetrícia,
viria à óbito após o trabalho de parto, no país mais rico do mundo?
A minha insistência em ter um filho custou a vida da mulher
que eu amava.
— A gente vai passear no parque, tio Mike! — Zoe anunciou,
alegremente, me tirando dos meus devaneios.
— O dia está tão lindo lá fora, que seria um desperdício
passar enfurnado neste quarto o dia todo, irmão... — Kylie se
aproximou da filha e a pegou nos braços para que eu pudesse me
levantar. — E nós dois sabemos que Seattle tem poucos dias de sol,
ainda mais no mês de janeiro.
— Não estou com disposição suficiente para fazer uma
caminhada no parque, Kylie.
— O seu tio não quer nos acompanhar, Zoe — Kylie se
queixou, torcendo um pouco os lábios numa expressão fingida de
desapontamento, o qual foi imitado pela filha, que passou a me
encarar com os braços cruzados sobre o peito, visivelmente
emburrada. — Como acha que eu me sinto?
— Você está triste, mamãe, e eu também! — respondeu a
menina, inconformada.
Desconfiei logo que as duas combinaram de usar a
chantagem emocional como estratégia para se saírem vitoriosas
daquela missão maluca de me tirar da cama em plena manhã de
domingo.
Não deixei de me perguntar se elas não arredariam o pé
daqui, enquanto não me fizessem mudar de ideia. Conhecendo bem
a minha irmã, achei melhor não arriscar.
— Você sabe que eu sou uma péssima companhia, não
sabe?
— Devo considerar isso um sim absoluto? — perguntou Kylie,
erguendo as sobrancelhas, em expectativa.
O pequeno rosto da minha sobrinha se iluminou mais do que
a claridade vinda da enorme janela. Meu coração logo se aqueceu,
dando um novo sentido à minha existência, mas a vergonha me
atingiu, ao constatar que o meu afastamento não anulou o afeto e a
consideração delas por mim, sentimentos esses que eu nem mesmo
merecia.
— Sim, vocês duas me convenceram a sair da toca. Estão
satisfeitas agora? — respondi sem muito entusiasmo, enquanto me
espreguiçava ainda deitado na cama.
As duas comemoraram, soltando gritinhos estridentes que
ecoaram por todo o quarto.
— Vocês já tomaram o café da manhã? Talvez tenha um
pouco de leite na geladeira e cereal no armário. Não tive tempo de ir
ao supermercado...
Eu era um péssimo mentiroso e Kylie sabia muito bem disso.
— Está vivendo a base de delivery, acertei? Não tem
problema, a gente vai fazer compras na volta para casa. E quanto
ao café da manhã, uma ida ao Starbucks já resolve.
— Imagina, não precisa se incomodar, Kylie — Eu me
apressei em dizer, com receio de que a visita se estendesse além
do necessário. — Eu cuidarei disso amanhã.
— Eu não pretendia falar nada por enquanto, porque você
acabou de acordar, mas a Zoe e eu vamos morar aqui por um
tempo...
Afastei o lençol com um movimento rápido, e me levantei de
um salto, assim que ouvi as últimas palavras dela.
— Quando você disse morar “aqui,” seria aqui em Seattle, ou
seria nesta casa mais especificamente? — perguntei, com a voz
engasgada.
— Claro que eu me referi a esta casa. Onde mais poderia
ser? — Kylie rebateu, com um brilho de divertimento no olhar.
Pensei em dizer que a casa dos nossos pais era o lar temporário
ideal, mas ela não deu nenhuma brecha para recusas. — Troque
logo de roupa, Mike. E não me olhe com essa cara. Eu explico toda
a situação no caminho, ok?
— Nossos pais já sabem que está na cidade? — perguntei,
incapaz de conter a curiosidade.
— Não deu tempo de avisar... as coisas aconteceram muito
rápido, mas não se preocupe. Eu falarei com eles no momento
certo...
A relação dela com nossos pais não era das melhores,
especialmente após Kylie ter engravidado do então namorado, e
justo quando estava prestes a iniciar o curso de Medicina, na
Universidade de Stanford.
Ela não voltaria para Seattle por qualquer motivo.
O que Kylie estava escondendo de mim, afinal?
Troquei o pijama por um suéter de cashmere na cor bege, de
manga longa e justa o bastante para evidenciar os braços
musculosos e o peitoral definido, além da calça de moletom e
cashmere na cor preta, e um par de tênis de alta performance.
O trajeto até o West Woodland Park Playground não levava
mais do que 15 minutos, saindo da Lake Washington Boulevard,
mas no caminho passamos no Starbucks e fizemos nossos pedidos
de bebidas e snacks para viagem.
Kylie e eu nos sentamos em um dos bancos de piquenique,
enquanto a Zoe corria em direção ao escorregador, na área de
recreação destinada às crianças com idades de 2 à 5 anos.
Nós dois passamos algum tempo comendo em silêncio o
lanche, mas sem descuidar da atenção em Zoe brincando com mais
duas crianças, que estavam acompanhadas por suas respectivas
babás no playground.
— Pode me dizer agora o motivo da sua mudança para
Seattle? — Decidi quebrar o silêncio entre um gole e outro de café
descafeinado preparado com leite de amêndoas. — Posso apostar
que o pai da sua filha tem algo a ver com isso, acertei? — A simples
menção àquele desgraçado já fazia minhas entranhas se revirarem.
— Mas antes, você deve me prometer, que nada do que eu
disser sairá daqui, está bem? — Adotou uma postura confidencial,
ao se debruçar sobre a mesa de madeira.
— Tudo bem. Eu te dou a minha palavra. Agora, me fale o
que está acontecendo, Kylie.
— Você sabe que o Dylan e eu tínhamos uma conta bancária
conjunta, cujo saldo correspondia ao montante recebido como
adiantamento da minha parte da herança, não sabe?
— Eu sempre achei que era loucura deixá-lo administrar essa
conta.
— Eu me sinto profundamente envergonhada por não ter
seguido os seus conselhos, Mike... — Notei a voz a voz dela ficar
embargada e os olhos marejados, mas parecia se controlar para
não cair no choro em local público. — Você e papai tinham razão.
Dylan não passa de um vigarista.
— Como assim? — Pisquei repetidas vezes, confuso.
— Pensei que fiz o certo ao me mudar para San Francisco. A
startup dele parecia bem, quando na verdade não gerava resultado
satisfatório algum. E quanto a mim, eu estava empenhada em
terminar a faculdade, mas uma visita ao banco logo se transformou
em pesadelo.
— Não me diga que aquele desgraçado se apropriou do seu
dinheiro, indevidamente?
Kylie confirmou, com um gesto de cabeça, e fungou,
esfregando o nariz com o dorso da mão.
— Dylan usou o montante para saldar as dívidas originadas
de investimentos malsucedidos que fez, em prol da empresa.
Confiei a ele a administração do dinheiro, justo a pessoa que eu
mais amava na vida... Não me restou quase nada e tive que
devolver o apartamento para a imobiliária.
— Você não o denunciou para as autoridades?
— Não sei nada sobre o paradeiro dele... E como se não
bastasse trazer a ruína financeira para nossa família, descobri que
ele teve um caso com uma amiga minha, quando ainda namorava
comigo.
Kylie escondeu o rosto entre os braços, e caiu num choro
convulso.
— Fui duplamente traída, Mike. Não sei o que será de mim e
da minha filha daqui pra frente...
Olhei para os lados, supondo que os transeuntes do parque
estariam nos observando, mesmo à distância, mas aparentemente
cada um deles se ocupava em cuidar de suas próprias vidas. Deixei
escapar um longo suspiro, sem saber o que deveria fazer naquela
situação, uma vez que nunca tive muito tato para lidar com o estado
emocional das mulheres, mas eu me senti na obrigação de
expressar algum gesto de solidariedade.
— Fique tranquila, Kylie. Eu vou prestar toda a assistência de
que precisa — Coloquei a mão sobre o braço dela, com suavidade.
Ela parou de chorar por um instante, ergueu o rosto banhado em
lágrimas, e me lançou um olhar de gratidão. — Jamais te deixaria
desamparada. Pode ficar na minha casa pelo tempo que julgar
necessário.
— Em pensar que eu só me mudei para Califórnia como
forma de ajudá-lo a realizar os sonhos dele... Tudo não passou de
uma grande ilusão...
— Nunca é tarde para trilhar um novo caminho e refazer a
própria vida... — Eu pensei alto, olhando distraidamente para além
do horizonte.
— Você também deveria seguir o seu próprio conselho,
sabia? — Saí do transe repentino, quando senti o toque suave da
mão dela sobre a minha.
Eu sabia exatamente aonde ela queria chegar com aquele
comentário, mas tratei logo de desconversar, pois o que estava em
pauta era a vida pessoal dela e não a minha, obviamente.
— E como pretende finalizar os estudos? Vai mesmo
transferir de escola?
— Já passei pelas entrevistas para o programa de residência.
Eu prefiro ficar mais perto da família e ainda economizo alguns
milhares de dólares. Tudo bem que Stanford tem mais prestígio,
mas a UW também é uma excelente instituição.
Ter um bebê no primeiro ano da faculdade de medicina não
estava nos planos da minha irmã, mas ela soube administrar bem a
nova condição, mesmo após o nascimento da Zoe. A pandemia
forçou a instituições de ensino a ministrarem as aulas de modo
remoto.
— A sorte é que o meu ex não teve acesso ao fundo
destinado à minha formação acadêmica, senão eu estaria mais
fodida ainda. E como essa reserva continua intacta, imagino que
seja suficiente para arcar com os custos associados ao programa de
residência, já que não estarei mais na minha instituição de origem.
— Você vai dedicar entre 70 a 80 horas de trabalho por
semana. Precisa definir com que deixará sua filha, não acha?
— Já estou cuidando disso, não se preocupe. Por acaso,
você achou que assumiria a função de babá da sua sobrinha? —
Ela se permitiu rir um pouco, o que acabou me contagiando, embora
só tivesse lhe oferecido um esboço fugaz de sorriso.
— A minha próxima viagem a negócios será para Seul, então
sugiro que encontre uma babá o mais rápido possível. E assim que
contratar, eu assumo todas as despesas, ok?
— Eu sei que me tornei um fardo, e sinto muito por isso,
irmão — murmurou ela, secando uma lágrima do rosto.
— Eu me sinto culpado por ter deixado de manter contato nos
últimos anos... Até pensei em me reaproximar, mas o orgulho e a
vergonha me impediram de dar esse passo. Isso é o mínimo que eu
posso fazer por você e pela minha sobrinha.
Kylie estava prestes a dizer algo, quando de repente ouviu o
grito da Zoe, chamando bem alto o nome dela. A minha irmã se
dirigiu apressadamente para o playground, e aproveitei a ausência
dela para recolher as embalagens vazias do Starbucks e descartá-
las na lixeira mais próxima.
Havia uma mulher de meia idade, segurando firmemente na
coleira do cachorro da raça boxer, que não parava de latir para mim.
— Não queria assustá-lo, mas Toby e eu acabamos de ver
uma mulher bonita, com cabelos loiros, a pele bem pálida, usando
um vestido branco, tão longo a ponto de praticamente se arrastar no
chão, logo ali atrás daquela árvore.
Olhei para os lados, alarmado, porque correspondia
exatamente à descrição da minha falecida esposa, mas só consegui
ver algumas crianças correndo pelo gramado e, na sequência uma
jovem com seu bebê no carrinho.
— Ela não parava de olhar para você — A mulher voltou a
falar, de repente.
— Acabou de descrever a minha esposa, mas ela faleceu há
três anos. — comentei, franzindo a testa, confuso. — Foi logo após
o parto e nossa filha também não resistiu...
— E você ainda deseja se tornar pai? — Deveria ter
imaginado que aquela mulher começaria a me bombardear com
perguntas.
— Não! — Neguei em tom ríspido, incapaz de disfarçar minha
irritação.
— Eu a vi sorrir e fazer um gesto afirmativo com a cabeça,
agora mesmo.
— E quem é você, afinal? — Não deixei de me perguntar se
tudo aquilo não passava de uma brincadeira de mau gosto.
— Pode parecer loucura o que vou te dizer, mas eu consigo
ver e ouvir os espíritos... Acho que a sua esposa queria passar uma
mensagem através de mim. Sei que estava prestes a se tornar pai,
mas ainda não era o momento.
— Queira me desculpar, mas eu nunca ouvi tamanho absurdo
em toda a minha vida — Virei as costas e saí andando, sem olhar
para trás.
A simples ideia de me tornar pai me deixava completamente
aterrorizado.
 
Capítulo 2
Letícia Mancini

Dias depois...
 

Sempre fui fascinada pela língua inglesa.


Frequentei um cursinho de idiomas na cidade de Patrocínio,
em Minas Gerais, quando tinha apenas 9 anos de idade, sendo que
eu terminei aos 17. Naquele mesmo ano eu fui contratada como
instrutora de inglês e dei aulas para crianças e adolescentes,
enquanto tentava conciliar com os estudos técnicos de auxiliar de
enfermagem.
Não consegui concluir o curso, mas obtive uma certificação
que permitia buscar oportunidades de trabalho na área, uma vez
completado o currículo mínimo.
Foi no estágio que eu percebi que não me adaptava à rotina
dos plantões e viver sob pressão constante me fez adoecer. Acabei
desistindo da enfermagem pouco antes de completar 18 anos,
decidida a retornar ao antigo emprego, embora sentisse que faltava
alguma coisa. Na verdade, eu não me considerava suficientemente
qualificada para lecionar.
Naquela época, as minhas colegas do cursinho contavam
maravilhas sobre fazer intercâmbio no exterior para aprimorar o
idioma. Todas me recomendaram o programa de au pair nos
Estados Unidos. Os custos eram mais baixos em relação à outras
modalidades, além de poder receber um salário em dólar, não ter
despesas com alimentação e nem com acomodação, no período
máximo de dois anos.
Uma vez escolhido trabalhar como babá em casa de família,
precisei levantar o valor necessário para participar do programa, o
que só foi possível graças aos meus pais que arriscaram todas as
economias da produção de café no pequeno sítio, pois o que
consegui só cobriria os gastos com documentação, os custos com a
autoescola — porque um dos requisitos era ter carteira de motorista,
— entre outras despesas não incluídas no programa.
Dei a sorte de embarcar para os EUA antes de a pandemia
estourar e com ela as restrições de viagens, mas eu só consegui
permanecer no país durante um ano, devido ao medo dos
desdobramentos futuros, aprofundando a sensação de vazio e
solidão estando longe da minha família, aliada à frustração pelo
tanto de coisas que deixei de fazer, além dos lugares que não pude
visitar.
Apesar do caos que perdurou por mais tempo do que o
esperado, eu pude aprimorar mais o inglês e estabeleci um vínculo
emocional com meus kidos[2], que foram criados num lar frio e
pouco afetuoso, em Brookline, subúrbio de Boston, Massachusetts.
Enfim, chegou o tão aguardado dia do meu retorno para os
Estados Unidos, mais precisamente dois anos após minha primeira
experiência como au pair [3].
Os gêmeos Megan e Benjamin Cohen tinham 5 e 7 anos,
respectivamente. Ambos sempre me trataram como uma irmã mais
velha, e sentia que era meu dever assegurar o bem-estar deles.
— Só espero que eles não tenham se esquecido de mim —
sussurrei, contemplando o céu carregado de nuvens pela minúscula
janela do avião.
Embarquei cedo no Aeroporto Internacional de Confins, para
minha longa viagem com destino à Seattle. O certo seria pegar um
voo para Boston, mas recebi uma mensagem de texto inesperada
da hosta[4], solicitando a minha presença na casa dos pais dela
porque as crianças ficaram doentes, prolongando a estadia deles
além do esperado.
Eles se queixavam de dores abdominais fortes, diarreia e
febre. Os avós já não sabiam mais o que fazer, embora tivessem
levado os netos ao pronto-socorro. Então, caberia a mim prestar a
assistência necessária até que os dois estivessem em condições de
voltar para casa.
A primeira parada na Cidade do Panamá durou cerca de 1 h
49 min, enquanto que a segunda conexão passaria das 6 horas, as
quais não pretendia desperdiçar nem um pouco. A minha amiga de
infância, que também era au pair e vivia na bela cidade de Santa
Mônica, estava de folga e tinha planos de me livrar do confinamento
no aeroporto.
Clara deixou o carro bem ao lado da entrada do píer de Santa
Mônica, onde havia um enorme estacionamento, mas antes de
visitar a maior atração do lugar, a nossa primeira parada foi no
restaurante The Albright, porque eu já estava morrendo de fome.

Nós escolhemos um prato de fish and chips [5]para o almoço.


— Por que decidiu passar mais um ano trabalhando para a
família perigo[6]? — Minha amiga levou uma porção de batata frita à
boca, sem deixar de me olhar nos olhos. — Você desperdiçou uma
grande oportunidade de conhecer gente nova.
— Três anos se passaram, amiga. Nós já não somos mais os
mesmos... — Apesar dos pesares, os Evans me acolheram, e juntos
enfrentamos o pior momento da pandemia. Eu me sinto em dívida
com o casal, sabe?
— Você se apegou muito aos gêmeos, e não fosse por eles,
certamente teria optado em fazer o match [7]com outra Host
Family[8], não é mesmo?
— Sim, admito que esse fator pesou muito em minha
decisão. A pandemia deixou os nervos de todos à flor da pele. Não
que isso justifique, mas as circunstâncias afetaram a personalidade
das pessoas, de uma forma ou de outra.
Talvez os transtornos causados pela hosta tenham ficado
para trás.
Deus queira que sim, porque só Ele mesmo sabe tudo o que
passei.
— Acho que a Covid só trouxe à tona o que havia de pior no
mundo, amiga. Não acredito que aquela mulher conseguiu mudar o
temperamento dela, não.
— Falando assim vai me deixar ainda mais nervosa do que
eu já estou, Clara.
De repente, eu perdi o apetite, mas continuei me servindo de
peixe empanado mergulhado no molho com sabor mais azedinho,
enquanto observava a paisagem pela janela, distraidamente.
— Me desculpe por isso, Leti — Ela apoiou a mão no meu
braço, tentando sorrir de leve, mas não havia humor na expressão.
— Vamos deixar o passado no passado e desfrutar as poucas horas
que nos resta, ok?
— As horas passam num piscar de olhos mesmo. Acho
melhor nos apressarmos. — Enfiei um punhado de batata frita
restante na boca e tomei um longo gole da Coca gelada.
Minha amiga e eu passeamos pela 3rd Street Promenade,
admirando as vitrines de grandes marcas, e uma vez no píer, nós
adentramos o Pacific Park, um parque de diversões pequeno, mas
com boas opções de brinquedos. Após algumas tentativas de tiro ao
alvo, usando uma pistola de água, consegui ganhar uma pelúcia
como prêmio.
Nós nos divertimos também na montanha russa e no barco
viking, mas o ponto alto foi, sem sombra de dúvida, o passeio na
roda gigante ao entardecer, momento perfeito para apreciar a vista
lá de cima, quando o tom dourado se fazia presente no horizonte,
mesmo com o céu encoberto.
Fiquei balançando as pernas para frente e para trás, sentada
na roda gigante e admirando toda a extensão do parque ao redor,
enquanto Clara registrava nosso passeio em vídeo.
— Eu não me divirto assim faz um bom tempo — comentei,
toda sorridente.
— Amiga, aproveita e já manda um recado pro seu namo —
sugeriu ela, repentinamente, apontando o celular para mim.
— Eu não estou namorando ninguém, Clara — Eu a fitei com
uma expressão séria no rosto. Minha amiga interrompeu
imediatamente a gravação e guardou seu smartphone na pequena
bolsa transversal. — Eu menti para você e para as meninas. Nunca
houve um namorado. Também nunca fui beijada, por assim dizer...
Tive vergonha de contar a verdade e ser julgada por isso. Sinto
muito... — Olhei para baixo, encarando as próprias mãos unidas no
colo.
— Imagina, Leti! — Clara pegou minhas mãos entre as delas.
— Você não me deve satisfação alguma. Fez bem em se proteger.
Às vezes a mentira é necessária e traz algum conforto.
— Fui criada no interior, e quase não tive vida social, sem
contar que os meus pais sempre foram muito autoritários e
superprotetores.
Agora que completei 21 anos, sinto que não mudei nada.
Permaneci sendo a mesma garota tímida, introvertida, e incapaz de
manter amizades por muito tempo.
— Prevejo um giro na roda da vida, Leti — comentou Clara,
assim do nada, e com tanta empolgação na voz, que acabei levando
um susto. — Tal como a roda gigante deste parque, que ao mesmo
tempo em que sobe, ela desce. Amiga, não foi à toa que você
retornou aos Estados Unidos! O destino deve ter preparado um
encontro de almas.
— Você assiste filmes de comédia romântica demais, amiga!
— Eu ri e a empurrei de leve. — Esse papo de almas gêmeas não
passa de uma grande bobagem.
— Pense comigo: Se anos atrás a gente ficou enfurnada na
casa dos hosts o tempo todo, agora nós teremos a chance de nos
aventurarmos mais, conhecer novas pessoas, fazer novos amigos.
Escreve o que estou te dizendo!
A roda-gigante parou e o operador do equipamento nos
ajudou a sair da nossa gôndola. Àquela altura não paramos de
gargalhar, atraindo a atenção de outros visitantes.
Uma pena não poder permanecer mais tempo ali. Era hora de
voltar ao aeroporto para fazer um novo check-in rumo a Seattle,
cidade conhecida pela série médica Grey's Anatomy, e por estar
situada na chuvosa parte ocidental do estado de Washington.
 
 

Clara me acompanhou até a entrada do portão de embarque.


Nós nos abraçamos em despedida, com a promessa de repetirmos
o passeio, e quem sabe explorar mais lugares da Califórnia,
pegando a estrada de ponta a ponta durante as férias.
— Mande mensagem assim que chegar lá, ok? E também me
prometa que vai pedir o rematch[9], ao menor sinal de desrespeito,
por favor.
— Pode deixar, amiga — assegurei, com a voz abafada pelo
abraço. — Eu era muito ingênua naquela época, mas sou uma nova
pessoa agora. Não vou permitir ser intimidada, nem por ela e nem
por ninguém.
— Assim é que se fala, garota!
Voltei para o Brasil com o emocional fodido, e pouco tempo
depois enfrentei o pior momento da minha vida: a perda trágica e
repentina dos meus pais.
As pessoas costumavam falar muito da dor dos pais quando
perdiam um filho, mas e quanto à dor dos filhos quando perdiam os
pais? Em ambos os casos, o que prevalecia era uma dor
imensurável, e sem qualquer possibilidade de superação.
Em pensar que três anos antes, nutri a crença de que não
enxergava mais propósito nos sonhos porque não seria possível
partilhá-los com meus maiores incentivadores. O coração ficou
apertado, e durante algum tempo vivenciei os extremos das fases
do luto. Presenciei meus tios assumirem a administração do sítio, e
com ela a responsabilidade pela produção de café, enquanto
passava por um processo pesado de depressão. Na minha cabeça,
a perda simultânea daqueles que me deram a vida era algum tipo de
castigo ou punição por erros cometidos em vidas passadas.
Quando enfim eu reuni coragem para procurar ajuda
especializada, cheguei à conclusão de que por mais irreparável e
devastadora que fosse a perda dos meus pais, impor um sofrimento
a mim mesma não os traria de volta.
Compreendi também que aonde quer que eles estivessem,
sentiam orgulho de mim por eu ter reassumindo o controle da minha
vida, dando um novo sentido para ela, mesmo quando tudo parecia
conspirar contra.
Naquele momento, ouvi alguém pigarrear, o que me tirou
abruptamente dos meus devaneios.
— Boa noite — Um homem me saudou, antes de se sentar
na poltrona do meio, sendo que por sorte consegui ocupar a do lado
da janela. Dei uma rápida olhada nele e apenas me limitei a
cumprimentá-lo com um aceno de cabeça e um meio sorriso.
Tirei o meu Kindle da bolsa, ao me lembrar de retomar a
leitura de um livro, que a meu ver servia mais para identificar um
parceiro potencialmente abusivo do que para entretenimento puro e
simples. Parei justo em uma cena hot e já nas primeiras linhas, a
descrição detalhada do ato provocou uma fisgada num ponto muito
específico entre as pernas, seguida pela sensação de umidade que
se espalhava pelo tecido grosso da calcinha.
O desconhecido ao meu lado começou a cantarolar baixinho
alguma canção em inglês, o que subitamente tirou toda minha
concentração na leitura. Lancei um olhar furioso na direção dele,
que passou a movimentar os braços e os ombros como se estivesse
segurando as baquetas de uma bateria. Os olhos dele permaneciam
fechados, a cabeça balançava ao ritmo da música, que saía dos
fones de ouvido, enquanto que a boca pequena e de traços finos —
muito beijável por sinal — emitia um som irritante como se tentasse
reproduzir o som do instrumento.
Eu me inclinei um pouco para observar bem o rosto dele, e
constatei que meu companheiro de voo era um homem bem bonito
mesmo, com feições marcantes, a mandíbula bem estruturada,
enquanto que a barba curta e preta contrastava com a pele muito
clara. O cabelo preto era bem liso e cortado em camadas, fazendo
com que parte dos fios caíssem no rosto de maçãs salientes, mas o
charme extra ficava por conta do sinal de nascença no lado
esquerdo do rosto, mais precisamente ao lado do nariz.
Como se pressentisse que estava sendo observado, ele abriu
os olhos e olhou em minha direção, fazendo um sorriso forçado
surgir nos lábios. Eu instintivamente revirei os olhos, indicando com
um gesto que ele deveria baixar o volume do som, mas de nada
adiantou.
— Ei, senhor... Eu estou tentando ler um pouco.
Fui totalmente ignorada.
Suspirei bem fundo, guardei meu Kindle na bolsa e ajeitei a
almofada de pescoço sob a nuca, decidida a tirar um cochilo. Quem
sabe assim as horas passavam mais rápido, uma vez que o tempo
de viagem duraria em torno de 2 h 54 min.
Fui acordada pela comissária de bordo, indicando que caí
num sono profundo tamanho era o cansaço daquela jornada.
— Com licença, senhora. O desembarque vai começar dentro
de instantes.
— Ah, certo — Balbuciei, constrangida. — Obrigada pelo
aviso.
Consultei as horas no relógio. Já passava das 10 horas da
noite e o passageiro inconveniente já se preparava para partir.
Observei distraidamente os demais passageiros retirarem suas
bagagens de mão de dentro dos compartimentos superiores.
Ainda me sentia sonolenta quando me levantei e tive certa
dificuldade para tirar minha mala de rodinhas, mas de repente meu
companheiro de viagem interveio em meu auxílio.
— Permita que eu carregue isso para você — comentou ele,
de modo gentil.
— Muito obrigada... — Levantei a alça da pequena mala, que
por coincidência era idêntica à dele, me virei e saí andando
depressa pelo corredor praticamente vazio. Um hábito adquirido
anos antes, durante minha primeira viagem ao exterior ainda
permanecia: evitar contato visual ou verbal prolongado e manter
uma distância segura de desconhecidos. Especialmente se eles
forem do sexo oposto.
A minha mãe em vida sempre dizia: “Nunca aceite ajuda de
estranhos.”
Meu maior medo era ser sequestrada por traficantes que
submetiam mulheres e crianças à exploração sexual no exterior. O
instinto de autopreservação sempre falava mais alto, me levando a
agir de forma automática, ainda que fosse só uma paranoia minha.
Caminhei pelo saguão junto aos demais passageiros, rumo
às esteiras de bagagem, e aguardei ansiosa pela única mala
despachada, pois a outra excedia o limite de peso e mandei
antecipadamente através do USPS, o serviço postal dos Estados
Unidos.
Para minha surpresa, o meu companheiro de voo se
posicionou ao meu lado e notei a sobrancelha dele se erguer,
quando nossos olhares se encontraram. Revirei os olhos mais uma
vez, incomodada com o ar presunçoso e arrogante daquele homem,
que parecia disposto a me irritar até na área de desembarque.
Suspirei de alívio ao avistar a minha mala no carrossel de
bagagem, puxei pela alça lateral e a posicionei de pé, antes de
agarrar a alça retrátil da mala menor e sair arrastando as duas pelo
saguão afora, sem olhar para trás.
Capítulo 3
Letícia Mancini

Os pais da minha hosta viviam no bairro de Queen Anne,


conhecido pelas casas datadas do século 19 e pelas lojas e cafés
estilosos. Como nenhum dos dois gostava de dirigir à noite, peguei
um táxi ciente de que o trajeto não levaria mais do que vinte
minutos.
O senhor Andersen abriu a porta e me cumprimentou com um
aperto firme de mão. Já a mulher dele surgiu de algum outro
cômodo, acompanhada pelos gêmeos, que correram ao meu
encontro, de braços estendidos, e emitindo gritinhos de alegria.
— Letixa! — Como ambos não conseguiam pronunciar o meu
nome corretamente, acabei me acostumando a ser chamada de
“Letixa” mesmo. Comecei a chorar, enquanto cobria os rostos deles
de beijos estalados.
— Senti tanta falta de vocês, meus amores! — Olhei nos
olhos de cada um, embevecida pela recepção calorosa. — E vocês?
Também sentiram muito minha falta?
— Claro que sim! — Gritaram em uníssono.
— Eu trouxe presentes. Será que conseguem adivinhar?
— Seja bem-vinda de volta. — A senhora Andersen se
adiantou e me cumprimentou com um rápido abraço. — Eles
parecem mais corados e dispostos, se comparado a horas atrás.
Seu retorno operou milagres mesmo, sabia?
— Eu nem sei o que dizer... Fico aliviada em contribuir para a
melhora deles de alguma forma.
— Mas o médico recomendou repouso pelos próximos dias.
— O marido dela ponderou, com a expressão séria. — Agora, vocês
dois precisam voltar para a cama.
— Mas a gente ainda nem viu os presentes, vovô! —
protestou Ben, inconformado.
— Amanhã poderão ver o que a babá trouxe para vocês, ok?
Já para a cama!
— Já preparei o quarto de hóspedes, portanto sinta-se em
casa — A Sra. Andersen me ofereceu um sorriso gentil.
— Muito obrigada — Depois eu voltei a me agachar diante
das crianças até estar no nível de seus olhos. — Precisam obedecer
ao vovô, ok? Nós teremos tempo de sobra. Os presentes não vão
criar pernas e sair andando por aí.
Eles se entreolharam em silêncio, e então caíram numa
gargalhada gostosa.
Tomei um banho rápido para trocar de roupa e pensei em ir
até cozinha para comer alguma coisa antes de dormir, mas resolvi
tirar logo os meus pertences da mala de mão. Quando coloquei a
mala menor sobre a cama, percebi que a trava de segurança não
aceitava o código que gravei. Tentei inserir de novo, mas de nada
adiantou. Repeti o processo várias vezes, com o suor brotando na
testa, de tanto nervoso.
Tudo o que fiz foi aguardar a mala despachada aparecer na
esteira, antes de puxar a menor e sair apressadamente, arrastando
as duas pela área de desembarque. Talvez algum passageiro pegou
a minha por engano, aquela era a única explicação possível.
Procurei pela etiqueta de bagagem para me certificar de que
minhas suspeitas não eram infundadas e imediatamente senti um
aperto no peito.
A mala pertencia mesmo a outra pessoa.
Havia o nome de um homem escrito nela, seguido pelo
endereço completo dele e o telefone para contato:
 

Michael Gallagher
Foster.
1212 39th Ave E.
Seattle, WA.
555 – 708 - 2356

— Meu Deus, não é possível! — Passei as mãos trêmulas


pelo cabelo.
Por um momento, o quarto pareceu girar à minha volta, e
precisei me sentar na cama. Era como se um filme passasse pela
cabeça, me fazendo relembrar o momento em que meu
companheiro de viagem se posicionou ao meu lado.
Notei o brilho de reconhecimento no olhar dele, antes de
esboçar um sorriso de leve para me cumprimentar, mas a espera
não durou mais do que cinco minutos. Eu avistei logo a minha
bagagem na esteira e deixei o local antes dele.
Eu era a culpada por toda aquela confusão.
De repente, meu celular começou a tocar e me levantei
apressada para pegar a bolsa em cima da cômoda. Com o coração
já batendo na garganta, e a palma da mão suando muito, eu deslizei
o dedo na tela para atender a chamada, na esperança de ouvir a
voz dele.
— Boa noite. Eu falo com Lexicia Mancini? — Ele acabou de
criar uma nova variante do meu nome, o que quase me fez rir, mas
de nervoso.
— Boa noite. Eu me chamo Letícia — Eu o corrigi, de modo
seco e direto. — L-e - t-í- c-i- a — soletrei, devagar, com toda a
paciência do mundo.
— Peço desculpas por ligar a essa hora, mas precisava
entrar em contato com você, o quanto antes. Houve uma troca de
malas no Aeroporto Internacional de Seattle-Tacoma.
— Eu acabei de me certificar disso... Presumo que o senhor
seja Michael G. Foster, acertei?
— Sim, exato. Nós inclusive nos sentamos na mesma fileira
da aeronave.
— Eu me recordo bem do passageiro que escutou música no
volume máximo, mesmo com fones de ouvido... Pensei em ler um
livro para passar o tempo, mas a sua cantoria me desconcentrou,
sabia?
— Oh, me desculpe. — Havia certo tom de deboche na voz
ou era impressão minha? — Não tive a intenção de importuná-la.
— Tudo bem... Eu aceito suas desculpas.
— Espero que não se importe de desfazer essa troca ainda
hoje... Eu sempre levo o meu notebook na bagagem de mão e
preciso dele com certa urgência.
— Acontece que eu não moro aqui... — Eu me apressei em
dizer, antes que ele sugerisse vir buscar a mala pessoalmente. —
Estou hospedada na casa de uma amiga e não posso passar o
endereço dela por questões de segurança — menti,
deliberadamente.
— Não era isso o que eu tinha em mente, não se preocupe.
Pensei em sugerir um encontro em algum local público à sua
escolha. O que acha?
— Acho ótimo. Que tal o Kerry Park? Quem chegar primeiro
aguarda o outro próximo à escultura de aço, em frente ao mirante.
— Kerry Park foi o primeiro local que me veio à mente por ser
relativamente próximo daqui, além de estar no topo da lista de
atrações para conhecer durante a estadia na casa dos Andersen.
— Perfeito! Nós nos vemos lá, então — respondeu ele,
encerrando a chamada. Não sei por que, mas fui tomada por uma
sensação de alívio quase eufórico.
Achei que nunca mais o veria de novo.
Engraçado nutrir o desejo de vê-lo nem que fosse pela última
vez.
 

Saltei do veículo e agradeci ao motorista pela corrida até o


Kerry Park.
Tratava-se de um pequeno parque público além de mirante,
situado na encosta sul de Queen Anne Hill. Era uma noite de
inverno tipicamente fria e chuvosa, por isso coloquei uma jaqueta e
sapatos impermeáveis. Pelo menos, àquela altura a chuva já tinha
dado uma trégua.
Arrastei a mala do meu companheiro de viagem pelo
calçamento que circundava o pequeno gramado, com seus bancos
de madeira e a tão falada escultura de aço no centro, que dava para
o mirante descortinando a bela vista dos arranha-céus iluminados
do entorno até o centro de Seattle, além da densa vegetação na
área urbana.
Os meus olhos estavam fixos nele, o que atraiu de imediato
sua atenção, como se estivessem carregados de magnetismo.
Michael virou o rosto e me encarou de modo penetrante, e com um
brilho diferente espreitando a íris, o qual não ousaria identificar.
Senti a boca seca e minhas bochechas queimavam de vergonha. As
rodinhas da mala trepidavam um pouco no chão molhado, o que só
contribuiu para aumentar o meu nervosismo.

Notei que Michel usava uma jaqueta preta de couro sobre a


camiseta de malha slim cinza, combinada a uma calça jeans e
coturnos. Meus olhos passearam pelos contornos do peitoral bem
definido e pela barriga trincada, enquanto me inclinava diante dele
para pegar na alça da minha mala.

Nós dois sustentamos o olhar um do outro, como se um imã


gigantesco nos detivesse, com a sua força esmagadora.

Um de nós dois precisava quebrar aquele silêncio


constrangedor.

— Reparando bem agora, as nossas malas são mesmo


idênticas — Ele estreitou o olhar, e notei a sobrancelha se
arqueando em um arco perfeito, enquanto sua boca se curvava
ligeiramente em um sorriso enigmático. — Eu também teria me
confundido na correria do desembarque.

— A culpa foi minha por ter pegado a mala errada. Peço


desculpas pelo transtorno.
Contemplei admirada as marcas de expressão no canto dos
olhos dele, além das covinhas na bochecha sob a barba aparada,
que se formaram no rosto de traços marcantes.

Deve haver uma grande diferença de idade entre nós dois.


De 15 a 20 anos.

— Não precisa se desculpar, Lexicia — Michael puxou a alça


da mala dele, trazendo-a para junto de si.

— O meu nome é Letícia, e não Lexicia — Eu o corrigi,


gentilmente.

— Parece a Hermione falando com o Ron, em Harry Potter e


a Pedra Filosofal. “É LeviÔsa, não LeviosÁ”! — comentou ele em
tom bem-humorado, o que me fez rir um pouco. — Agora sou em
quem peço desculpas por não pronunciar direito o seu nome.

— Tudo bem, com o tempo as pessoas se acostumam...

— O seu nome e sotaque já entregam que vem de outro país.


Espanha, acertei?

— Não — Neguei, toda sorridente. — Eu sou brasileira... —


Completei, orgulhosa, estufando o peito.

— Então, você escolheu fazer intercâmbio aqui em Seattle?


Seja bem-vinda!

— Na verdade, eu seguirei para Boston. Eu só estou aqui de


passagem...

— Espero que não deixe de visitar outros pontos turístico


antes de partir. Este mirante mesmo é um deles, pois oferece uma
das vistas mais incríveis de Seattle!
— Acho que a vista da cidade durante o dia deve ser ainda
melhor...
Fez-se um silêncio incômodo, cortado apenas pelo barulho
de algum inseto e por vozes abafadas dos visitantes do parque.
— Eu vou discordar de você. Qualquer horário vale a pena.
Por que não vê por si mesma? — Michael fez um gesto, indicando o
gradil de proteção que cercava o mirante.
Hesitei por alguns instantes, mas acabei dando de ombros,
assumindo um ar de despreocupação e uma naturalidade que
estava longe de sentir, ao lado daquele homem. Eu me adiantei até
o local, seguida de perto por ele, que também arrastava sua
pequena mala de rodinhas no piso quadriculado.
— A gente já consegue ver o Space Needle logo de cara.
— Parece uma nave espacial — Apoiei um dos braços no
parapeito do mirante, embora prevalecesse a sensação de que ia
perder o equilíbrio e cair a qualquer momento.
— Abaixo dela, ainda dá para ver os arcos góticos do Pacific
Science Center, o topo do telhado da KeyArena, uma arena multiuso
e casa do time de hóquei no gelo Seattle Kraken da NHL, além da
estrutura colorida do EMP Museum.
— Você tem razão. Visitar o mirante à noite também tem o
seu charme.
O meu companheiro de viagem voltou a apontar o dedo para
um imponente conjunto de edifícios bastante iluminados, e depois
para a roda gigante sobre o píer.
— Mais adiante tem os arranha-céus do centro da cidade, a
Seattle Great Wheel no Seattle Waterfront, e bem ao fundo o
belíssimo Monte Rainier com seu topo coberto de neve, embora não
consiga ver no momento...
Ele explicou ainda que durante o dia daria para ver melhor as
águas da Baía de Elliott, o Porto de Seattle ao fundo, além da
Bainbridge Island e a cadeia de montanhas Olímpicas (Olympic
Mountains).
Quando nós dois voltamos para a escultura, e nosso ponto de
encontro, senti a necessidade de me despedir dele e agradecer pela
gentileza em me apresentar os pontos turísticos da cidade.
Não tive a oportunidade de conhecer Seattle antes porque a
pandemia restringiu o convívio entre os gêmeos e seus avós, que
passaram a se comunicar apenas por chamadas de vídeo durante o
período em que servi como au pair deles.
Abri minha bolsa transversal e peguei o celular, com o intuito
de fingir que lia uma mensagem de texto.
— Preciso voltar para a casa da minha amiga. Ela estranhou
minha demora...
— Eu posso te dar uma carona, Lexi... Letícia. Falei certo
dessa vez?
— Sim, para o que acabou de dizer, e não, para o que disse
antes. Não precisa se incomodar. Eu posso voltar de Uber — Eu
estava mesmo ponderando se era mais seguro pegar um Uber ou
um táxi, depois da meia-noite.
— Nesse caso você deixará duas pessoas preocupadas: a
sua amiga e eu.
— Não sei se eu devo... — Baixei os olhos, constrangida,
apertando bem a alça da mala de mão.
— Pode tirar uma foto do meu cartão de visitas e enviar para
sua amiga — Ele estendeu o papel em minha direção, e abriu um
sorriso de encorajamento. Li rapidamente as informações e fiz o que
ele me sugeriu. Capturei uma imagem dele com meu celular e
encaminhei para o Whatsapp da minha amiga, Clara.
 

Michael G. Foster, Cofundador e CEO.


Lockhead Technologies, LLC
Redmond, WA 98052-5317
+1 206-221-3685
 
— Pegar um Uber a essa hora da noite não é exatamente a
melhor maneira de se sentir segura — o executivo comentou, de
repente, fazendo o meu coração bater acelerado no peito.
Precisava admitir que ele tinha razão, mas pegar carona com
um desconhecido era algo que eu abominava, completamente.
Porém, ficar plantada naquele mirante à espera de um carro por
aplicativo àquela hora da noite estava longe de ser uma opção
viável.
Havia algo nele que me inspirava confiança. Talvez fosse o
porte típico de um homem na casa dos 40 anos, possivelmente rico
e bem seguro de si, mas o fato era que eu já não o via mais como
uma ameaça. De repente, os meus ombros relaxaram um pouco e
me permiti respirar normalmente.

 
Capítulo 4
Michael Foster

A brasileira continuou me encarando com profundidade,


como se quisesse ler a minha mente, mas acabou consentindo com
um gesto de cabeça, de modo quase imperceptível.
— Já estou quase me arrependendo do que eu vou dizer
agora — disse ela, de repente, munida de coragem, após alguns
instantes de silêncio. — Tudo bem, eu aceito a sua carona.
— Permita-me colocar a sua bagagem no porta-malas, então
— Quando eu estava prestes a pegar na alça, ela rapidamente
colocou a mão sobre a minha para me deter. Sentir o leve contato
dos seus dedos contra os meus estimulou uma descarga eléctrica,
capaz de me percorrer dos pés à cabeça, e eriçando cada poro da
minha pele.
— Acho melhor amarrar um lenço antes para não confundir
nossas malas de novo — A jovem foi tomada pela mesma
sensação, não tinha a menor dúvida disso. A expressão no rosto
dela já dizia tudo.
Letícia estava perto o suficiente para sentir o calor irradiando
pelo seu corpo, além da agradável fragrância do perfume com
componentes floral e frutado. Um leve frescor vibrante invadiu
minhas narinas, e instintivamente fechei os olhos, tentando
memorizar cada nota de sua composição.
Uma pena ela ter deixado o cabelo preso em um rabo de
cavalo, diferente de quando estava na aeronave, pois do contrário,
observaria o vento bagunçar suas longas e lisas madeixas de
tonalidade louro-escuro.
— Acho uma ótima ideia — Dei um passo para trás, me
afastando dela, ainda que de maneira hesitante.
A intercambista brasileira deveria ter por volta de vinte ou
vinte e poucos anos de idade, era bem alta e magra, com o rosto
meigo de traços finos, maçãs do rosto salientes e rosadas, além do
queixo pequeno, um nariz fino e ligeiramente arrebitado, e olhos de
cor verde oliva, que realçava ainda mais a aparência angelical.
Nós dois seguimos até o sedã de luxo, imersos em um
silêncio constrangedor.
— Qual é o endereço da sua amiga? — perguntei, enquanto
acessava o aplicativo de GPS no celular.
— 1522 4th Avenue W.
Acelerei o Lexus LS 500h pela úmida e gelada pista de
Seattle.
— Nós estamos passando agora pela Galer Street. Aqui você
encontra um dos melhores cafés de Seattle, o Cafe Fiore, mas
também recomendo os sorvetes do Molly Moon's.
— Dizem que o parque fica próximo da casa de Meredith
Grey.
— Meredith Grey? — repeti, virando o rosto ligeiramente para
encará-la, confuso.
— Nunca assistiu a série Grey's Anatomy?

— A minha série médica favorita sempre foi House MD[10].


— Não gosto do protagonista dessa série. Acho ele muito
cínico, mal-humorado, manipulador e egoísta.
— Ele é um gênio incompreendido, e convenhamos que
nenhuma outra série apresenta um retrato tão fiel da medicina atual
quanto House.
— Você se refere à desumanização da medicina? — Eu me
limitei apenas a fazer que sim com a cabeça. — Hum, pensando por
esse lado, faz todo sentido mesmo.
— Espero que não se importe em ouvir Nirvana pelos
próximos minutos — comentei, casualmente, estreitando um olhar
curioso na direção dela. — Imagino que você nem era nascida
quando o Kurt morreu...
— Quando aconteceu? Você sabe o que quero dizer... —
Imaginei que ela se referia ao dia em que ele pôs fim à própria vida.
— Foi em abril de 1994. Eu já escutava rock desde moleque.
— E ainda curte as músicas da banda, mesmo agora aos...
— Ela se deteve por um momento e suspirou. — Quantos anos tem
mesmo?
— Eu fiz 41 anos de idade. E você? — Perguntei na
sequência, mal contendo a curiosidade.
— Tenho 21 — Ela baixou os olhos, ruborizada, e colocou
uma mecha atrás da orelha de um jeito meigo.
— Imaginei que tivesse entre 18 e 21. A minha mãe diria que
está na “flor da juventude”.
— Quer dizer então que mora aqui perto?
— Eu moro em uma rua tranquila, ao lado de um cinturão
verde no bairro chamado Denny Blaine. E não por coincidência,
próximo a mansão onde Kurt viveu os seus últimos dias de vida...
Peguei o meu celular, abri o aplicativo de streaming de
música, busquei pelo famoso especial da MTV gravado em 1993, o
“MTV Unplugged in New York”, e escolhi a canção The Man Who
Sold the World, composta por David Bowie e interpretada por Kurt
Cobain. Logo o sistema de som do carro fez os acordes de guitarra
e violão preencherem o interior do veículo, enquanto dirigia veloz
pelas ruas de Queen Anne.
— Aparenta alguém que também carrega uma grande tristeza
dentro de si... — disse ela, de repente.
— Você fala inglês muito bem, sabia? — Desconversei,
mudando completamente de assunto.
— Sério? — Confirmei, balançando afirmativamente a cabeça
e exibi um meio sorriso para ela. — Eu não me considero fluente,
não.
Mantive a atenção no trânsito, com o cotovelo sobre o apoio
da janela, refletindo sobre esse inusitado reencontro. A garota só
estava em Seattle de passagem, e sempre me considerei um cara
cético, do tipo que não acreditava em coincidências.
Parece que o destino me concedeu a chance de vê-la uma
última vez. Mas por quê?
— Vire à esquerda! — Ela se apressou em dizer, apontando
com o dedo, e me tirando abruptamente dos meus devaneios.
— Me desculpe, eu acabei me distraindo... — Eu dei um
sorriso sem graça. — Não me diga que escolheu o Estado de
Massachusetts para fazer o intercâmbio de estudos?
— Pode-se dizer que sim... — respondeu ela, com certo ar de
mistério.
— Não poderia ter escolhido um destino melhor. Boston
concentra algumas das melhores universidades do país, e do
mundo também, é claro.
— Você cursou alguma faculdade lá? — Apesar de ser uma
pergunta casual, a julgar pelo brilho no olhar dela, podia jurar que
ela parecia genuinamente interessada.
— Eu me formei em Engenharia e Ciência da Computação no
MIT[11]. E por falar em profissão, estou curioso para saber qual você
escolheu...
— Relações Internacionais — disse a brasileira, de modo
rápido e direto.
É impressão minha ou ela falou a primeira coisa que veio à
mente?
Antes mesmo de eu ter a chance de satisfazer minha
curiosidade, ela voltou a falar: — Então quer dizer que ouviu a
música deles o voo inteiro?
Eu fiz que sim com a cabeça, abrindo um fraco sorriso e me
limitei a batucar o volante com a ponta dos dedos, distraidamente.

— Everything is my fault / I'll take all the blame [12]— Em


determinada parte da música All Apologies, cantarolei a letra
baixinho, pois ainda prevalecia o sentimento de ter falhado como
marido, levando a pessoa que eu mais amava direto para as garras
da morte.
— Eu tenho evitado ouvir músicas que me colocam para
baixo...
— Elas só refletem o meu estado de espírito atual, Lexicia.
— Já disse que é Letícia, e não Lexicia — Ela estava quase
revirando os olhos, e por mais previsível que fosse a reação dela,
por pouco não me fez rir.
Admito que eu só errei a pronúncia do nome dela de
propósito.
— E quanto ao seu gosto musical?
— Eu sou bem eclética, ouço de tudo, praticamente —
respondeu ela com timidez. — É aquela ali, a casa azul — informou,
de repente. Então, eu reduzi a marcha e estacionei no meio-fio, bem
diante da residência. — Muito obrigada pela carona — agradeceu,
abrindo a porta depressa, aparentando estar ansiosa para ir
embora.
— Ainda falta pegar a sua mala de mão. — Eu fiz questão de
lembrar, ao tentar detê-la, segurando-a delicadamente pelo braço.
— Mas deixe que eu mesmo cuido disso. — E dizendo isso, eu fui
até a parte traseira do veículo e abri o porta-malas. — Boa sorte
com os estudos... — Comecei a coçar a cabeça, constrangido.
Provavelmente, eu estava tão envergonhado quanto ela naquele
exato momento. O momento da despedida. — Você vai gostar de
Boston, com certeza.
— Foi muita gentileza de sua parte... Obrigada.
Ela olhou para mim por alguns segundos e sorriu, antes de
segurar a alça retrátil e sair arrastando a mala pelo caminho que
cortava toda a extensão do jardim frontal da casa, sem nem mesmo
olhar para trás.
Letícia. Dona do sorriso mais encantador que eu já vi em toda
a minha vida.
Foi um gesto doce e tão genuíno, capaz de aquecer um
ponto particularmente sensível e que nem mesmo sabia que existia
dentro de mim.
Estranhei aquela comoção toda por uma jovem que tinha a
idade da minha irmã, praticamente, e nem mesmo sabia se voltaria
a vê-la algum dia.
Talvez nunca mais — Uma voz se fez ouvir em minha
cabeça, provocando um profundo estremecimento, que se espalhou
sutilmente pelo corpo.
 

As semanas seguintes se passaram, sem que eu tivesse


notícias da intercambista brasileira, que insistia em não me sair dos
pensamentos, especialmente quando escutava as minhas músicas
depressivas, fosse durante a corrida matinal ou no meu carro, a
caminho da empresa.
“Eu tenho evitado ouvir músicas que me colocam para baixo”,
ela disse na ocasião.
Como eu passei a alternar o trabalho remoto com o
presencial, com o fim da pandemia, comparecia ao escritório de
duas a quatro vezes por semana, a depender das necessidades da
minha equipe, mas no geral prevalecia o sistema três-dois, ou seja,
três dias no escritório para dois em casa.
Desci as escadas, apressado. Dava pra ouvir uma conversa
baixa, vinda da cozinha.
Kylie levantou os olhos e me avistou no corredor, mas ela
logo desviou o olhar e falou algumas palavras para alguém do outro
lado da tela, antes de acenar em despedida e fechar seu notebook.
— Bom dia, Kylie. — Eu contornei a enorme bancada de
mármore e dei um beijo no topo da cabeça dela. — Eu só estranhei
te encontrar aqui a essa hora da manhã — Consultei as horas no
meu relógio de pulso. Já passava das 7hs. — Não deveria estar no
hospital?
— Às quartas-feiras, os estudantes de medicina e residentes
assistem a sessões didáticas ou palestras sobre diversos temas da
medicina de emergência, das 8:00 ao meio-dia — respondeu,
enquanto passava manteiga de amendoim e geleia na torrada. —
Mas eu já avisei ao pessoal que tinha um compromisso e que me
atrasaria um pouco.
— E com quem você estava conversando? — Abri a
geladeira e peguei uma caixa de suco de laranja, antes de me servir
de um copo.
— Com uma au pair — Aquela informação me deixou ainda
mais confuso. — Esqueci de te contar que eu me inscrevi no site de
uma agência, que intermedia a contração de jovens do exterior que
desejam morar e trabalhar legalmente como babá, aqui nos Estados
Unidos.
Por pouco eu não me engasguei com o suco e passei a
encarar minha irmã com um misto de surpresa e incredulidade.
— Ah, não me diga! Então está pensando em demitir a babá?
— Sim, exatamente, e pretendo fazer isso ainda hoje — Ela
me encarou por um breve instante, com a testa franzida. — Tem
algo estranho no seu rosto... O que houve?
Ela deve ter notado a pequena mancha arroxeada, embaixo
do olho esquerdo, mas que felizmente já começava a empalidecer e
a se desmanchar da pele.
— Não foi nada demais. Pratiquei boxe no fim de semana. —
Eu tentei passar um ar despreocupado. — E quem levou a Zoe para
a creche esta manhã? Foi nossa mãe?
— Ela nem pode sonhar que eu estou em Seattle, se
esqueceu?
— Você e Zoe já estão morando aqui em casa faz dois
meses, Kylie. Precisa avisar aos nossos pais o quanto antes, ou
prefere que eles descubram por algum conhecido nosso em
comum?
— Sabe muito bem que eu preciso organizar a minha vida
antes de tentar ter uma conversa séria com eles. Mas não se
preocupe, eu já pedi para a mãe de uma das coleguinhas da Zoe
passar aqui e levá-la até escola. Foi a única solução que encontrei.
— Por que motivo decidiu demitir Janet, eu posso saber? —
Cruzei os braços sobre o peito. Kylie contratou recentemente a irmã
mais nova de uma de suas amigas, que precisava ganhar uma
renda extra, para tomar conta da Zoe nos dias úteis, além do fim de
semana sim, e fim de semana não.
— Evitei te falar antes para não o alarmar, mas o fato é que
Janet cometeu uma falha gravíssima. As professoras notaram que a
Zoe cochilava muito durante o intervalo e estava com dificuldade
para se concentrar nas tarefas. Desconfiei logo de que havia alguma
coisa errada.
— O que a babá fez, exatamente, Kylie? — Eu fiz a temida
pergunta, com a respiração suspensa por uma fração de segundo,
tomado pela apreensão.
— Eu levei a minha filha ao hospital para fazer alguns
exames, e não fiquei nem um pouco surpresa com o resultado.
Havia vestígios de Melatonina no sangue e na urina dela.
— Janet estava dopando a Zoe esse tempo todo? —
Esmurrei o tampo da bancada com o punho fechado. Permaneci
debruçado, enquanto um tremor me percorria o corpo, em uma onda
terrível de fúria jamais sentida.
— O médico disse que se eu não tivesse procurado
assistência logo, a Zoe poderia apresentar um quadro de
intoxicação grave.
— Me sinto tão culpado, Kylie. — Passei a mão pelos
cabelos, respirando bem fundo. — Fui negligente, e a culpa é toda
minha. Eu passei as últimas semanas preso em reuniões e jantares
de negócios...
— Não diga isso, Mike, por favor! Nós dois achamos que ela
era uma pessoa de confiança. Quando eu a confrontei na presença
da minha amiga, ela admitiu que usava pequenas doses em dias
pontuais para não levantar suspeitas.
— Dias pontuais, como assim? O que ela pretendia, afinal?
— Eu vi pelas câmeras de segurança que Janet permitiu o
namorado entrar algumas vezes durante a noite. Ela sabia que a
gente jamais daria autorização para encontros íntimos.
— O que ela fez foi um crime! — Vociferei, profundamente
enojado.
— Já comuniquei o fato à polícia e me disseram que não há
muito o que se fazer. A melatonina não é uma substância controlada
e alegaram que a babá não tinha nenhuma intenção criminosa. As
gomas de melatonina parecem umas balinhas e têm sido
amplamente utilizadas como indutor do sono em crianças e adultos.
— Ainda mais essa, agora, puta que pariu! — Eu passei a
andar de um lado para o outro, balançando a cabeça, consternado.
De repente me veio à mente o que ela havia dito antes. — E você
acha que essas jovens que trabalham como au pairs para famílias
no exterior são mesmo de confiança?
— Eu não tenho a menor dúvida disso. Fiz algumas
pesquisas durante o tempo livre e conversei também com algumas
mães nesses fóruns online, sabe? Todas foram unânimes, quando
disseram que elas são bem mais comprometidas com o trabalho.
— E como anda o processo? Já encontrou a candidata ideal?
Como se isso fosse possível.
— Para com isso, Mike! — Kylie me repreendeu, com as
sobrancelhas erguidas em uma leve irritação. — Eu estou tão
nervosa com toda essa situação e você ainda me vem com esse
pessimismo. Francamente.
— Esqueça o que eu disse, ok? — Fiz um gesto impaciente
com a mão. — Mas responda logo a minha pergunta.
— Eu me interessei pelo perfil de três meninas: Uma chilena,
uma brasileira e uma polonesa. Mas apenas uma delas está com
larga vantagem, porque consegue falar bem o inglês, possui
experiência como au pair e está em processo de rematch neste
exato momento...
— Como assim? — Eu a interrompi, piscando várias vezes,
confuso.
— Ela não quis entrar em detalhes sobre o motivo de buscar
uma nova família anfitriã. Só alegou que estava em processo de
rematch amigável por falta de alinhamento de expectativas.
— Mas você vai esperar esse tempo todo até obter uma
resposta favorável?
— Se a au pair brasileira aceitar o match, nós já teremos
meio caminho andado, Mike. Ela só vai precisar fazer as malas e
cruzar o país, praticamente. Só preciso convencê-la, mas sinto que
estou bem perto de conseguir isso.
— Ela já está vivendo aqui nos Estados Unidos? — Ela
confirmou com um gesto de cabeça, enquanto comia ovos mexidos
com bacon. — Então precisa ser bem convincente e demonstrar que
é um amor de pessoa, dizer o quanto a sua filha é um anjo, ofereça
o dobro do salário base de au pair, além de outros benefícios acima
do que qualquer outra família anfitriã tenha proposto antes.
— Muito bem pensado! Você é um gênio! — Kylie se levantou
e bebeu o resto de seu café em um único gole, antes de guardar o
notebook em sua mochila. — Bem, agora eu preciso mesmo ir...—
Ela contornou a bancada e me deu um abraço apertado. — Já
passou da hora, e ainda terei que ouvir um sermão do Dr. Greg
Clifford pelo meu atraso.
— É aquele médico gostosão que se exibe no centro
cirúrgico? — Minha irmã me fuzilou com um olhar. — Sei que sente
uma espécie de paixão platônica por ele. — Parece que o médico
em questão era residente do terceiro ano, e supervisionava todos os
estudantes durante as rotações em Medicina Interna.
— Nem nos meus sonhos mais loucos! — Ela bufou alguma
coisa ininteligível. — Ele se considera um deus só porque atua
como residente-chefe do serviço de cirurgia pediátrica.
— Anime-se, Kylie! — Tentei soar otimista daquela vez.
Joguei a maçã para o alto e a agarrei depressa, antes de dar uma
única mordida, com muita vontade. — Boa sorte. Com certeza, você
vai precisar.
Contratar uma pessoa desconhecida, para morar conosco e
trabalhar como babá da Zoe, durante sabe-se lá por quanto tempo,
acarretando na alteração de toda a nossa rotina e comprometendo
nossa privacidade, me parecia um absurdo sem tamanho. Kylie
devia mesmo estar desesperada, mas eu sempre a apoiaria.
Eu receberei uma jovem intercambista em minha casa, por
mais louco que isso possa parecer. De minha parte, eu tentarei
apenas ser um bom anfitrião, na medida do possível.
 
Capítulo 5
Letícia Mancini

Boston, Massachusetts.
Dias antes...
 

Eu tive uma discussão horrível com a host mom.


Ela me acusou de tentar roubar o seu lugar como mãe dos
gêmeos, pois eles demonstravam se afeiçoar mais a mim, apesar de
eu ter me afastado por mais de três anos.
A hosta praticamente fez um escândalo, passou a me insultar
com palavrões, enquanto ne chamava de destruidora de lares,
sendo que me submeteu a humilhações de todo tipo, desde que eu
voltei a conviver com ela, o marido e os filhos. Soube depois por
uma vizinha, que o casamento dela já estava em crise antes mesmo
do meu retorno a Boston.
Passei pelos piores dois meses da minha vida como au pair.

A minha LCC[13] tentou mediar o conflito da melhor forma


possível, mas nem bem a mulher foi embora, Sarah voltou a me
ameaçar, informando que eu só teria uma semana para encontrar
outra host Family, pois do contrário, ela me expulsaria de sua casa,
de uma vez por todas.
Depois de vestir um roupão felpudo, eu comecei a desenrolar
a toalha da cabeça para poder tirar o excesso de água dos cabelos,
quando de repente, eu escutei uma batida à porta. No geral, as
famílias anfitriãs costumavam destinar um quarto no basement
(porão), ou no último andar da casa, para as au pairs se instalarem
com certa privacidade.
A minha hosta abriu a porta que dava para a escada do porão
e gritou o meu nome bem alto: — Letixa! Eu posso falar com você
por um instante?
— Eu estava tomando banho... — Informei, quando apareci
na soleira da porta. — O que houve? — A mulher me encarou de
cima a baixo, com desdém.
— Você está consumindo muita água. Nós já conversamos
sobre isso. — Aquela não era nenhuma novidade. Eu já estava
habituada a tomar banho todos os dias, e até várias vezes ao dia, a
depender da época do ano. Jamais mudei os meus hábitos de
higiene, e como meu cabelo era oleoso, eu lavava de 3 a 4 vezes
por semana. — Não me resta outra alternativa além de descontar do
seu salário.
As au pairs costumavam receber um salário semanal bruto no
valor de $195.75, uma vez que não havia custos com acomodação e
nem com refeição.
— Você não tem esse direito, Sarah. — Eu retruquei,
cruzando os braços na defensiva, tamanha era a indignação. —
Quando a LCC veio aqui, eu reportei todos os abusos, e ainda
assim, se sente à vontade para descumprir o regulamento do
programa?
— Quanto mais tempo passar aqui nesta casa, mais
insatisfeita vai se sentir.
— Há algo mais que eu preciso saber? Eu tenho um
compromisso esta noite.
— O que pretende fazer numa sexta à noite? — Apenas me
limitei a piscar os olhos várias vezes, com ar de deboche. Apesar de
sair pouco nos finais de semana, eu jamais lhe dei qualquer tipo de
satisfação, especialmente sobre o lugar onde pretendia ir e com
quem.
— Preciso espairecer um pouco, na companhia dos meus
amigos.
— Não se esqueça de colocar as crianças para dormir, ok? —
Quando ela fez menção de virar as costas para ir embora, eu
rapidamente disse: — Queira me desculpar, Sarah, mas da última
vez que eu fiz isso, acabei me atrasando e perdi a minha carona.
Lamento, mas o meu expediente já acabou.
— Os gêmeos ficaram muito mal acostumados, então sugiro
que se apresse e não os faça esperar mais — disse ela, em tom
autoritário. Quanto cinismo, meu Deus! Precisei morder a parte
interna da bochecha para segurar as lágrimas. — Vá logo se
arrumar, ok?
— O seu marido pode fazer isso por nós duas — Eu insisti,
esperançosa.
— Ele mal chegou do trabalho e já saiu. Não sei a que horas
volta... — E dizendo isso, ela me deu as costas e subiu os degraus
que levavam até o pavimento superior.
Ela certamente quer descontar em mim todas as suas
frustrações.
Para a vizinhança, o Scott Evans tinha um caso com a
secretária dele, mas eu passei a desconfiar de que a amante não
era outra pessoa senão a melhor amiga de sua esposa. Houve
várias situações em que eu percebi a troca de olhares entre eles.
além de ter flagrado conversas furtivas em algum canto da casa.
Passei os minutos seguintes, secando os cabelos com a
ajuda do secador, diante de um grande espelho de corpo inteiro.
Escolhi no armário um cropped transpassado em tecido franzido e
com mangas bufantes, combinado à calça preta de couro sintético,
uma jaqueta jeans escura e botas de cano médio.
Fiz uma maquiagem leve, coloquei um par de brincos, e
passei apenas um gloss rosado nos lábios. Conferi o meu visual no
espelho uma última vez, antes de pegar minha bolsa e sair do
quarto.
Para minha surpresa, Sarah já se encontrava parada no topo
da escada, acompanhada pelos filhos, que me observavam
sonolentos, enquanto esfregavam os olhos com uma das mãozinhas
livres.
Um músculo se retesou no maxilar, quando eu emiti um
suspiro profundo, mas o longo sopro de ar foi incapaz de me
estabilizar. Não foram poucas as vezes em que minha hosta
solicitava tarefas de última hora, mesmo ciente de que excederia
minha carga horária, que era de 10 horas por dia, e no máximo 45
horas semanais.
Estava completa e profundamente exausta, mas as crianças
precisavam de mim.
— Eu vou contar uma historinha para vocês dormirem, mas
precisam escovar os dentes antes, ok? — Segurei as mãos dos
gêmeos e os conduzi até o pavimento superior — os quartos deles e
dos pais ficavam no segundo andar.
Observei Megan subir na torre de aprendizagem, que
permitia à criança alcançar superfícies mais altas com segurança,
enquanto Benjamim posicionava o pequeno banco de apoio para
acessar a pia. Depois, abri a necessaire e separei os itens de
higiene correspondentes a cada um.
— Onde vai tão arrumada assim, Lets? — Ben inclinou a
cabeça, curioso, estreitando os olhos para mim, e com as mãos
apoiadas na bancada.
— Vou me divertir um pouco no Cheers[14] essa noite —
respondi, ao entregar a ele os produtos de higiene bucal.
— Odeio usar o fio dental — resmungou ele, com um
muxoxo.

— Leti, eu quero ouvir a história de Frog and Toad[15]! —


pediu Meg, pulando entusiasmada. — Eu prometo que vou escovar
meus dentes direitinho.
— Seu pedido é uma ordem, chefa!
Quando eu bati uma continência, ela mal segurou a risada.
Eu me acomodei na cama junto com Megan, enquanto
Benjamim ocupava a dele, situada no lado oposto do quarto. Ele
sempre teve mais dificuldade para pegar no sono, mas acabou se
acostumando a me ouvir contar histórias antes de dormir.
Abri o livro no capítulo intitulado “Primavera” e comecei a ler
em voz alta.
— “Rã subiu correndo pelo caminho que levava à casa de
Sapo. Ele bateu na porta da frente. Ninguém respondeu...”
O tempo foi passando, enquanto folheava mais algumas
páginas, e somente quando Megan estava à beira de pegar no
sono, minha voz foi baixando até ler o seguinte trecho:
“Olha só para esse céu azulzinho e brilhante de abril! É o começo
de mais um ano nosso juntos, Sapo! Imagina só!
Nós vamos saltar pelos campos, correr pelo bosque e tomar banho
de rio.

À noite, vamos nos sentar aqui na varanda e contar estrelas”[16].


 

Apenas quando ouvi a respiração profunda e lenta das


crianças, que eu pude finalmente me esgueirar para fora do quarto.
Eu tirei o meu celular de dentro da bolsa, e notei que havia uma
notificação de nova mensagem de texto. Era Eduardo Pinheiro.

Meu amigo informou que teve um imprevisto e por isso


demoraria um pouco a chegar.

Sorte a minha.

Ele também decidiu ser au pair de novo, justo quando estava


prestes a atingir o limite de idade para participar do programa, que
nos EUA era aos vinte e sete anos.

Eu aguardei a chegada dele do lado de fora da residência.

Eduardo estava acompanhado pelo namorado americano,


que dirigia seu próprio carro, um utilitário esportivo.

Sempre dependi de carona para sair no meu tempo livre,


porque os hosts não quiseram ceder um, embora tivessem se
comprometido a disponibilizar um veículo próprio, a liberdade de ir e
vir, uma escala organizada com folga sempre aos fins de semana,
quando na realidade passaram a me tratar com total descaso e
desrespeito.

Não muito diferente de quando eu vim aos EUA como au pair


pela primeira vez, com a diferença de que naquela época, relevei os
altos e baixos do convívio com eles, devido ao cenário de grande
aflição e incerteza, causado pela pandemia.
— Você fez mal em voltar para a mesma família anfitriã, Leti.
Poderia ter feito o match com qualquer outra. — Eduardo se virou
no assento do carona e olhou para mim, com a testa franzida de
preocupação.
— A Clara me disse a mesma coisa que você...
— Os Evans correspondem ao que vocês, au pairs, chamam
de “família perigo”? — O namorado dele perguntou, curioso.
Um “sim” uníssono ecoou no interior do veículo.
— Me conta, como tem sido o processo de rematch, amiga?
De acordo com o regulamento do programa, caso eu não
consiga o match com nenhuma outra host family, dentro de duas
semanas, eu obrigatoriamente terei que voltar para o Brasil.
Enquanto que os hosts tinham um prazo indeterminado para
encontrar uma nova substituta.
— Ainda bem que a LCC tem me ajudado a encontrar uma
nova família. Passei por entrevistas com um casal de Arlington,
subúrbio de Washington DC, e com um casal que vive no Estado da
Virgínia. Só não fechei com nenhum deles ainda, porque dei
preferência em ser au pair de mãe solo ou casal homoafetivo.
— Amiga, desse jeito você vai carimbar o seu retorno ao
Brasil rapidinho.
— Mas acho que estou com sorte, Edu. Há uma mãe solo de
Seattle interessada no meu perfil. Se tudo der certo, eu serei a
primeira au pair da família. A menina tem apenas 3 anos de idade.
— Filha única? Isso é ótimo! Coincidência ser justo em
Seattle. Você não esteve lá recentemente?
— Sim, mas o mais estranho de tudo isso é que ela possui o
mesmo sobrenome daquele passageiro que eu te falei. — Segurei
com as duas mãos o encosto do banco do carona. — Ela se chama
Kylie Foster. Parece que está no último ano do curso de Medicina e
precisa urgentemente de uma au pair.

— Então ela está no MS4[17], ano em que os estudantes


daqui dos EUA se candidatam para os programas de residência
médica. — O namorado dele comentou, pensativo, enquanto
estacionava o veículo do lado oposto ao do estabelecimento.
O Cheers Bar tinha como nome original Bull & Finch Pub,
situado no porão do sofisticado restaurante Hampshire House na
Beacon Street, próximo ao Boston Common e de frente para o
famoso Jardim Público de Boston. Por mais louco que pudesse
parecer, o estabelecimento permitia a presença de crianças durante
a maior parte do dia, mas obviamente que o consumo de bebidas
alcóolicas ficava restrito aos maiores de 21 anos.
Ficou mundialmente conhecido por ter sido o cenário de uma
sitcom homônima dos anos 1980, embora só tivessem rodado
tomadas externas no local.
Não demorou muito para o garçom trazer as canecas de
chope. Ele as deixou sobre a mesa, e perguntou se nós três
escolhemos algo para comer. Decidimos pedir Chicken Fingers, que
nada mais era do que iscas de frango levemente empanados e
fritos, servidos com acompanhamento de molho de mostarda e mel.
— E como está o seu coraçãozinho? — perguntou meu
amigo, de repente.
— Batendo no peito, uai! — Eu soltei uma risada fraca,
enquanto girava o copo de chope, distraidamente.
— Se você vai mesmo se mudar para Seattle, quem sabe
pode reencontrar o cara que pegou a sua mala por engano... Não
para de falar neste homem há semanas!
— Na verdade, eu peguei a dele primeiro. — Fiz questão de
frisar, enquanto enxugava os lábios com as costas da mão. — Acho
pouco provável. A minha futura hosta reside na casa dos pais, em
Bellevue, região metropolitana de Seattle — expliquei, enquanto
levava uma das mãos à boca para sufocar um soluço. — Já Michael
mora perto da mansão, onde Kurt Cobain viveu seus últimos dias.
Eu inclusive tive que escutar as canções do Nirvana o caminho
inteiro até a casa dos avós dos gêmeos.
— Isso é meio mórbido, não acha? — Edu perguntou,
trocando um olhar com o namorado.
— Não julgo porque se eu pudesse também seria vizinho de
algum famoso.
— Eu tive a impressão de que ele carrega uma tristeza muito
grande dentro de si... Nem mesmo imagino o que seja.
— Proponho um brinde para as tristezas que também
carregamos na alma. Afinal, sem elas não saberíamos aproveitar os
momentos felizes, como esse que estamos compartilhando agora.
— Achei isso tão profundo, amor — elogiou o namorado,
erguendo a sua caneca.
Nós três começamos a rir alto, enquanto erguíamos o braço
para encostar os copos de chope uns nos outros, e fazendo-os
tilintar sobre a mesa.
— Sentirei tanto a sua falta, Edu. Já me sinto triste por isso
— Eu meio que sorri, com os com olhos cheios de lágrimas.
— Eu também sentirei muito a sua falta, Leti — Ele colocou
uma mão reconfortante em meu braço. — Mas a gente ainda vai se
ver, sua boba!
Muito se falava sobre o rematch ser considerado o terror dos
terrores das au pairs, mas eu tinha uma visão completamente
diferente do processo.
Com certeza havia um propósito maior por trás de tudo o que
tem acontecido, desde que eu retornei aos Estados Unidos.
Tem males que vêm para o bem.
 
Capítulo 6
Letícia Mancini

Quando Edu e o namorado dele me deixaram em Brookline,


eu me deparei com o host manobrando o veículo na entrada da
garagem.
Eu me sentia envergonhada toda vez que interagia com o
host, mesmo após mais de três anos. Ele sempre me olhava ou me
tratava de um jeito estranho, especialmente na ausência da esposa
e dos filhos, mas pelo menos nunca foi abusivo ou desrespeitoso.
— Coincidência nós dois chegarmos em casa ao mesmo
tempo... — Ele saltou do veículo e estreitou os olhos, abrindo um
sorriso cordial para mim.
— Sim, tem razão... — Preferi manter distância, sem fixar o
olhar nele.
Scott se afastou da porta, e deixou um espaço suficiente para
eu poder passar.
— Até que enfim você chegou! — Sarah havia se adiantado
na direção do marido, mas estacou ao notar minha presença. —
Vocês estavam juntos?
Scott Evans lançou um olhar desconcertado para a esposa,
mas depois olhou de modo mais significativo para mim, como que a
espera de uma resposta.
— A minha chegada coincidiu com a dele; apenas isso.
— Sim... Foi só uma coincidência — Achei estranho ele ter
olhado para baixo, como se estivesse escondendo algo, ou pior
ainda, como se ele tivesse a intenção de me envolver diretamente
nas suas escapadas noturnas.
Sarah não aparentava estar totalmente convencida, a julgar
pelos lábios cerrados e o olhar de pura desconfiança, ao cruzar os
braços sobre o peito.
— Scott, pode ir na frente. Preciso falar um minuto com a au
pair. — Ela sequer esperou o marido terminar de subir as escadas e
já começou a falar: — Arrume logo as suas coisas, Letixa — Só de
ouvir aquela mulher pronunciar o meu nome errado já me causava
um forte embrulho no estômago. — Eu vou ligar para a LCC nas
primeiras horas da manhã e pedirei para ela vir te buscar.
— Você está me expulsando da sua casa? — perguntei,
incrédula. — Ainda nem finalizei o processo de rematch. Acha isso
justo? — Fechei os punhos com tanta força, a ponto de sentir os
ossos estralarem, e provocando dor na junta entre os dedos.
— Deveria se dar por satisfeita por não te colocar para fora,
agora mesmo.
— Mas o que foi que eu fiz de errado? — A voz falhou e eu
limpei a garganta, sentindo o coração se apertar de tristeza.

— E você ainda pergunta? Quer mesmo que eu enumere as


razões para eu não querer olhar mais para sua cara?

Uma onda de revolta e indignação começou a penetrar nas


entranhas, mas respirei bem fundo, na tentativa de me acalmar.

Discutir só pioraria ainda mais a situação.

— Não se esqueça de recolher todos os presentes que deu


para os meus filhos, sejam eles brinquedos, livros, entre outros.
Quero que os leve daqui.
— Se você prefere assim... tudo bem. Boa noite, Sarah. —
Assenti em concordância, tentando sustentar uma máscara de
indiferença, para não fraquejar diante dela.
Eu fiz menção de seguir para o porão, mas eu nem bem dei
os primeiros passos, ouvi a voz irritante da minha hosta de novo.
— O notebook que tem usado, eu vou precisar dele. Isso
inclui qualquer coisa que os meus filhos e o meu marido te deram
também, é claro.
— Mas você me disse que eu poderia ficar com o laptop... —
Eu sempre preferi ter um computador de mesa em casa, com o
sistema Windows rodando, então não havia necessidade de ter uma
despesa extra, comprando um notebook, quando o tablet já supria
minhas necessidades aqui nos Estados Unidos.
— Você deve ter entendido errado, querida. Foi só um
empréstimo.
— Ah, sei... — Eu apenas meneei a cabeça, e engoli em
seco, sentindo um gosto amargo na boca. Comecei a me afastar,
mas depois eu parei, quando uma pergunta me veio à mente. —
Acha que o seu marido está te traindo? — Ela passou a agir de um
jeito estranho, desde que me viu entrar na casa acompanhada por
ele. — Não quero que faça mal juízo de mim.
Seria cruel demais se ela me acusasse de ser a amante dele.

— Por qual motivo quis voltar para esta casa, senão para
tentar roubar o meu marido?

— Jamais ouvi tamanho absurdo em toda minha vida! — Eu


gritei, fazendo com que algumas gotículas de saliva fossem
expelidas da boca. — Não é a primeira vez que trabalho como au
pair, Sarah — prossegui, moderando a voz, embora a mágoa
ditasse o tom da conversa. — Eu morei com vocês durante um ano,
e jamais te dei motivos para duvidar da minha conduta. Sempre agi
com honestidade e respeito. Não consigo entender como passou a
nutrir tanta desconfiança de mim.
Sarah me dirigiu um olhar frio, mas logo um sorriso de
desdém se desenhou nos lábios finos, antes de virar as costas e
subir as escadas, sem sequer olhar para trás.

Mesmo depois de eu ter alegado que, além de sofrer


retaliações por parte da matriarca, ela ainda descumpria certas
condições essenciais para minha permanência como au pair, a
agência em nenhum momento quis averiguar as irregularidades. Eu
nem mesmo fazia ideia se a LCC prestaria alguma assistência,
especialmente agora que não tinha um lugar para ficar até o
processo de rematch ser concluído.

Meu Deus! Tudo isso parece um pesadelo. — Pensei comigo


mesma em voz alta e fechei os olhos para fazer uma prece em
silêncio, desejando fervorosamente que a mãe solo de Seattle
decida fechar o match comigo o mais rápido possível.

Peguei meu celular, e por impulso, eu digitei o número de


telefone da casa dos meus pais, um hábito adquirido anos antes,
quando eu me sentia triste e desamparada, em um dos vários
momentos de homesick. Aquele era o termo empregado pelas au
pairs, quando a saudade de casa apertava, advinda do vazio de não
ter as pessoas que mais amava por perto para poder desabafar, nas
situações mais difíceis.

Instantes depois da chamada ser completada, uma voz


feminina informou: “O número chamado não existe. Verifique o
número discado e tente novamente.”

A dura realidade me atingiu como um furacão, devastando


tudo numa fração de segundo. Fazia quase três anos que eu perdi
os meus pais, mas às vezes a mente insistia em me fazer esquecer
uma verdade inconveniente: Eles se foram para sempre.

O que eu não daria para poder ouvir a voz da minha mãe de


novo?

Apertei o celular de encontro ao peito, e por um momento, eu


fechei os olhos, sentindo as lágrimas escorrem pelo rosto de forma
rápida e intensa. O simples ato de respirar bem fundo, fez um
pequeno soluço irromper de minha boca, e enquanto chorava
convulsivamente, eu esfregava os olhos com as costas das mãos,
me esforçando ao máximo para retomar o autocontrole.

Como eu estava sem sono, decidi adiantar logo a arrumação


das malas, algo que eu sempre odiei fazer. Comecei pelos itens de
higiene pessoal por dispender um tempo menor, e recolhi os
produtos dispostos na bancada do banheiro para guardá-los nas
necessaires. Depois foi a vez de ir até a penteadeira, amontoada de
cosméticos e frascos de perfume, dispondo cada um dos itens numa
valise.
Passei os minutos seguintes agindo praticamente no piloto
automático: tirei as duas malas do armário e as joguei sobre a
cama; fiz o mesmo com as roupas nos cabides, os casacos de
inverno e os sapatos. Só não demoraria muito para finalizar a
arrumação, porque a terceira mala permanecia envolta em filme
plástico de PVC, desde que eu embarquei no Brasil.
Eu segui até o armário do canto que estava cheio de
brinquedos e jogos de videogame e recolhi lembrancinhas e outros
presentinhos associados ao Brasil. Enfiei tudo dentro de uma
mochila, mas de repente me veio uma ideia: deixar apenas dois
deles, contendo um bilhete de despedida.
Ser afastada do convívio com as crianças já era doloroso por
si só, mas preferencialmente, o meu distanciamento se daria da
forma menos traumática possível.
Lágrimas começaram a embaçar minha visão, assim que eu
iniciei a escrita da cartinha de despedida:
 

Ben & Meg, Quero pedir desculpas


por não poder continuar sendo a ‘au pair’
de vocês. Eu planejei um segundo ano
incrível, com muitos passeios e viagens,
mas aconteceram algumas coisas, e
precisei mudar os planos. Parte de mim se
sente triste por tomar essa decisão, mas a
outra parte reconhece que a minha vida
tomou um novo rumo, ainda que
desconhecido. Vocês devem sempre
visitar os seus avós, porque eu estarei ali
por perto. Basta vocês dizerem quando,
que eu darei um jeito de reencontrar
vocês.
Este será nosso segredinho.
Amo vocês!
Leti.
 

Deixei a caneta cair na escrivaninha e cobri o rosto entre as


mãos, enquanto me rendia ao choro convulso, deixando parte do
corpo curvado sobre o tampo de madeira, o colo subia e descia ao
ritmo da respiração ofegante e entrecortada pela tristeza. Aos
poucos eu fui me acalmando, enquanto respirava bem fundo, ciente
de que precisava deixar o bilhete e dois brinquedos que separei
para eles, antes do amanhecer.

Uma vez no andar principal da casa, eu subi os degraus com


cuidado para não fazer barulho e atravessei o corredor, com o
coração batendo acelerado dentro do peito. Abri cuidadosamente a
porta do quarto dos gêmeos, iluminado apenas pela luz suave da
luminária de teto, que projetava um lindo céu estrelado.

O único som que prevalecia no quarto era o ressonar baixo,


proporcionado pela respiração cadenciada e serena das crianças.

Eu me agachei diante da cama de Megan. Ela aparentava


dormir profundamente. Passei alguns instantes contemplando as
belas feições, enquanto prendia cuidadosamente a boneca de pano
debaixo do braço dela, mas antes de me levantar, eu não resisti e
afaguei os longos e lisos cabelos loiros. Depois eu me aproximei de
Benjamim e coloquei a camisa oficial da seleção brasileira de
futebol, estendida na cabeceira da cama.

Refleti por alguns instantes e cheguei à conclusão de que a


única maneira de evitar que Sarah visse o bilhete era o escondendo
dentro da mochila de um dos gêmeos.
Arrisquei um último olhar na direção deles, assim que eu
alcancei a porta.
Engoli em seco, tentando eliminar o nó da garganta, ao
mesmo tempo em que lágrimas quentes e grossas brotavam e
faziam os meus olhos arderem, me obrigando a fechá-los com força.
É bem provável que eles ainda estarão dormindo, quando eu
for embora.
 

A minha coordenadora estava incomunicável, desde as


primeiras horas daquela manhã de sábado. Evitei ao máximo
incomodar meu amigo, mas não tinha mais a quem recorrer. Não
pretendia passar nem mais um minuto naquela casa, especialmente
após ter ido até a cozinha para comer algo e constatar que Sarah
esvaziou uma geladeira inteira.
Ela se levantou da mesa assim que me viu e nem se dignou a
me dizer ‘bom dia’, mas eu só a cumprimentei por mera formalidade
mesmo.
A hosta simplesmente se virou e saiu, ignorando a minha
presença ali.
Até mesmo as sobras do almoço e do jantar que eu mesma
fiz, e acondicionei em recipientes de vidro, elas já não estavam mais
lá. Para ter certeza disso, eu abri os armários a procura dos potes,
mas só os encontrei no lava-louças.
Os norte-americanos tinham o hábito de descartar restos de
comida diretamente no ralo da pia, uma vez que havia um
mecanismo para triturar os alimentos nela.
— Que droga! — praguejei, em português, enquanto sacava
o meu celular do bolso do moletom. Digitei uma mensagem para
Edu com os dedos trêmulos: “Amigo, preciso de sua ajuda. Fui
expulsa pela hosta e não tenho mais para onde ir. A LCC ainda não
retornou minhas ligações. OBS: Estou com fome”.
De repente, uma nova notificação surgiu na tela: Era a
resposta dele.
Eduardo me pediu para aguardar do lado de fora da
residência, pois ele já estava a caminho. Levantei as mãos para o
céu e fechei os olhos, dando graças a Deus por ter chegado a
primavera, uma estação com temperaturas mais amenas e
agradáveis.
Quando ele chegou, desceu rapidamente do carro, e já foi
logo abrindo o porta-malas.
— Esta mala está muito pesada — resmungou ele, enquanto
me ajudava a acomodar as bagagens no compartimento do veículo.
— O que tem dentro dela, um cadáver?
— Haha, muito engraçado, Edu — ironizei, fazendo uma
careta. — Ainda temos mais duas malas para colocar e poder dar o
fora daqui. Vamos logo com isso!
Sentei-me no banco do carona, prendi o cinto de segurança e
encostei minha cabeça no encosto, soltando um longo suspiro de
alívio.
— Ser expulsa pela família perigo foi o auge, amiga! — Ele
deu uma sonora gargalhada. Não seria meu amigo se não risse
muito da minha situação. — Quem diria que uma au pair vinda do
interior de Minas Gerais, e ainda por cima BVL[18] e virgem, se
tornaria uma pessoa muito apocalíptica?
Aquele comentário inesperado dele me fez arrancar um riso
baixo e abafado.
— Vai que eu permaneça nos Estados Unidos, aí mesmo é
que eu não vou deixar de ser “boca virgem de língua” — Sempre
ouvi dizer que muitos americanos não beijavam direito. As minhas
amigas, que também eram au pairs, confirmaram essa informação.
— Trouxe alguma coisa para mim? Eu não comi nada até agora.
— Ah, eu já ia me esquecendo mesmo, bem lembrado — Edu
esticou o braço até o banco de trás e passou a tatear às cegas, mas
ele logo me entregou uma bandeja, contendo duas bebidas da
Starbucks, sendo que uma delas era a minha favorita: chá gelado
com infusões de flores de hibisco e sabores tropicais, além da
sacola com muffins.
Continuei tentando falar com a LCC durante o trajeto, mas o
celular dela só dava caixa postal.
— A LCC continua incomunicável... Isso é muito estranho. O
pior é que a bateria desse celular já está viciada e minha ex hosta
pediu de volta o aparelho que o marido dela me deu...
— Eu conversei com meus hosts e eles se disponibilizaram a
te dar toda a assistência de que precisa — Quase me engasguei
com a bebida, assim que meu amigo passou a informação. — Você
pode passar a semana restante do rematch conosco, sem
problemas.
Parecia ser bom demais para ser verdade. Não dependeria
mais da boa vontade da coordenadora local, mas ainda assim era
meu dever deixá-la a par de tudo o que ocorreu nas últimas horas.
— Não imagina o alivio que eu estou sentindo, Edu! Gratidão
por tudo! — A empolgação era tanta que deslizei a mão pelo
pescoço dele, puxando-o para mais perto e lhe dei um beijo
estalado no rosto. — Só preciso de mais um favorzinho seu. Kylie
Foster marcou mais um bate-papo por Skype e estou sem notebook
no momento. Você se importaria de me emprestar o seu na segunda
à noite?
— Não, imagina, amiga! Você já me livrou de cada
enrascada... Eu jamais te deixaria na mão.
Enfim, uma preocupação a menos.
O final de semana passou rápido, e com ele parte das minhas
preocupações. Consegui entrar em contato com a coordenadora
local da agência e soube através dela que minha ex Host Family já
estavam escolhendo uma nova au pair. Para mim só interessava
saber se estava tudo bem com as crianças. Relatei tudo o que
aconteceu, mas ela deu a entender que eu era culpada por ter
decidido voltar a trabalhar para a mesma família, sendo que as
circunstâncias não eram normais naquela época.
Os hosts não poderiam mais colocar a culpa na pandemia
para justificar o fato de o ambiente familiar ter se tornado tão
prejudicial e estressante. E quanto a mim, o medo de pedir rematch
e não encontrar outra família em tempo hábil era maior do que a
insatisfação por tolerar as atitudes tóxicas deles. O momento de dar
um basta chegou, quando colocaram em dúvida a minha lealdade e
o respeito que eu tinha por eles, apesar de tudo.
Saí dos meus devaneios, assim que ouvi a coordenadora
local inspirar bem fundo e perguntar do outro lado da linha,
aumentando consideravelmente o tom de voz: — Você está me
ouvindo, Letícia? — Eu me limitei apenas a murmurar: “Uhum”. —
Sobre a carta de recomendação, apenas um dos hosts aceitou
redigi-la. O Sr. Evans muito gentilmente atendeu a minha solicitação
e já anexei o documento ao seu perfil. Agora é torcer para a Sra.
Foster concordar com o match... Manteremos contato ainda. Boa
sorte.
— Muito obrigada, coordenadora. Tenha uma excelente
semana!
A partir daí, as horas praticamente se arrastaram, mas
quando finalmente chegou o momento marcado para a
videochamada com minha possível futura host mom, eu me
endireitei na cadeira e encarei o monitor, esfregando as mãos
suadas umas nas outras, enquanto aguardava o Skype conectar.
Dei uma última olhada nas anotações feitas na agenda, que
elencava os assuntos mais importantes como escala de horário,
horas extras, folga, curfew, que traduzindo literalmente significava
"toque de recolher", mas que no programa era o horário limite
estipulado pela família para voltar para a casa, e que em regra
costumava ser até às 11 horas da noite, entre outros tópicos
relevantes.
Quando eu cliquei em “Atender”, o rosto de Kylie Foster
apareceu na tela.
Ela era dotada de uma beleza angelical, com seus longos
cabelos castanhos encaracolados, mas que talvez tivessem um
toque de ruivo, não dava para ter certeza. Os olhos eram da mesma
cor dos meus, verdes, com cílios longos e a sobrancelha grossa e
bem desenhada, que me fitavam com indisfarçada curiosidade.
— Olá, Kylie, tudo bem? Como foi seu dia? — Tomei a
iniciativa de cumprimentá-la, mesmo com certo constrangimento. A
minha futura hosta havia dispensado o tratamento formal, alegando
que ela se sentia bem mais velha, quando na verdade nós duas
tínhamos pouca diferença de idade.
— Eu estou bem, na medida do possível... Passando pelo
período das muitas rotações clínicas, testes padronizados além das
entrevistas de residência, mas eu já estou contando os dias para
minha formatura. Agora é a sua vez de me contar como passou o
final de semana.
— Bem... Na sexta eu saí com um grande amigo meu e o
namorado dele. Ele inclusive trabalha com au pair também. A gente
foi num bar clássico de Boston, o Cheers, você conhece? — A
empolgação no meu tom de voz era evidente. Talvez fosse um
reflexo do nervosismo ou por querer impressioná-la, tamanho era o
desespero de ser aceitar por ela, e assim garantir minha única forma
de permanência nos EUA: o rematch.
— Um dos meus irmãos deve conhecer esse bar, porque ele
morou alguns anos aí, em Massachusetts. Mas aqui em Seattle
também não faltam opções, sabia? Espero conseguir uma brecha
na minha rotina maluca para te levar até Capitol Hill, qualquer dia
desses....
— Eu sou filha única, mas com o falecimento dos meus pais,
passei a morar com os meus tios, e desde então, os meus primos
me tratam como se eu fosse a irmã deles, sabe? E você possui
quantos irmãos ao todo?
— Eu tenho dois, na verdade. O mais velho mora aqui em
Seattle e nosso irmão do meio está terminando os estudos na
Inglaterra, mais precisamente em Oxford.
Quanto mais a gente conversava mais eu me simpatizava por
ela, e torcia muito para ser sua primeira au pair.
Talvez o rematch me proporcione uma experiência única de
poder conviver com alguém da mesma faixa etária, uma mãe solo
que compartilhava tantas coisas em comum comigo. Cruzei os
dedos e respirei bem fundo.
Escolha a mim, por favor!
— Eu sinto que a gente pode se divertir muito, Lexa... —
Kylie errou o meu nome de novo, mas preferi não a corrigir para não
causar uma má impressão nela. — A conversa realmente estava tão
boa que eu quase perdi a noção do tempo — completou, ao verificar
as horas no relógio de pulso.
Nós duas conversamos sobre trivialidades por cerca de meia
hora.
— Ai, meu Deus, me desculpe — murmurei, preocupada. —
Imagino que esteja bastante atarefada...
— O mais importante agora é esclarecer todas as dúvidas, e
assim poder alinhar as expectativas do que cada uma espera dessa
experiência... Não acha? — Eu apenas concordei com um gesto de
cabeça. — Os estudantes de medicina do 3º e do 4º ano participam
de várias rotações clínicas. Como eu estou cursando o último ano,
as rotações são eletivas, mas isso não quer dizer que elas são
menos importantes ou mais flexíveis. Para você ter uma ideia, eu
trabalho de 12 a 14 horas por dia e inclusive aos finais de semana, a
depender da necessidade, e ainda preciso estudar quando chego
em casa.
— O mais perto que eu cheguei dessa área foi ter cursado
enfermagem. — Quando ela arregalou os olhos, eu rapidamente
esclareci. — Mas foi um curso técnico para ser auxiliar, na verdade.
A partir daí eu percebi que não tinha a menor aptidão para ser
enfermeira.
— Eu compreendo, perfeitamente... — Ela pareceu refletir por
um momento. — A propósito, você se importaria de trabalhar no
final de semana, caso necessário? Eu fiz essa mesma pergunta
para as demais candidatas. Só que o mais provável é que eu
contrate uma babá para me dar esse suporte, especialmente por
levar em conta o limite de 45hs, estipuladas pelo programa.
— Não, de modo algum. — Eu já estava ciente de que minha
escala estaria atrelada à rotina de trabalho, quase sempre
imprevisível, de uma futura médica.
— Só lembrando que a Zoe tem aula de segunda à quinta,
das 09:00 até 1:00 da tarde, e o quarto fica situado no último andar
da casa. Além disso, o salário semanal será o dobro do valor base,
e terá à disposição um veículo para uso próprio, inclusive no seu
tempo livre. E por último, mas não menos importante, todas as
despesas pagas de um curso a sua escolha. Você tem alguma
dúvida?
— Não, nenhuma. Para mim, as condições estão ótimas.
Parecia mesmo um sonho. Era tudo o que eu mais esperava
ouvir.
Antes de Kylie encerrar a chamada, eu perguntei se era
possível ver a filha dela, então, aguardei alguns instantes porque a
menina estava em outro cômodo da casa.
— Zoe, senta aqui no meu colo, por favor? — Ela logo puxou
a menina delicadamente pelo braço, antes de acomodá-la sobre
suas pernas. — Diga “olá” para sua possível nova babá, Lexa... Ou
seria Lecia? Desculpe, como é mesmo o seu nome?
— Letícia... — respondi, presenteando a Zoe com meu
melhor sorriso. — Oi, Zoe. É um prazer conhecer você.
A menina tinha cabelos castanhos, longos e lisos, embora
presos em um rabo de cavalo, e com uma franja cobrindo a testa.
Seu rosto fino tinha traços delicados, o nariz era retilíneo, e os olhos
esverdeados, grandes e expressivos, como os da mãe dela.
— Olá, Titi — Ela demonstrou certa timidez ao atender o
pedido da mãe, mas acenou com sua mãozinha e soltou um beijo, o
qual foi logo retribuído por mim.
Zoe acabou de criar um novo apelido. E não é que eu gostei?
— Imagino que tenha alguma preferência de família anfitriã
para fechar o match, mas espero estar no topo dessa lista. — Eu
cobri a boca em completa surpresa, assim que ouvi as últimas
palavras dela.
— Está mesmo considerando me escolher? — Segurei a
respiração por um segundo, cheia de expectativas. Ela aparentava
estar igualmente surpresa e demonstrou isso ao arregalar os olhos
do outro lado da tela do monitor, o que era bem estranho.
— Mas é claro! Por que eu não deveria? Gostei muito do
nosso bate-papo.
A LCC certamente comunicou o ocorrido para as famílias que
se interessaram pelo meu perfil. Tanto era possível que das três
famílias que eu mantive contato, apenas a mãe solo demonstrou um
interesse genuíno em prosseguir com as reuniões por Skype.
Será que ela estava mesmo disposta a me dar um voto de
confiança?
— Você gostou dela também não foi, querida? — Kylie
estreitou o olhar para a Zoe, que continuava me encarando,
timidamente. A menina fez “sim” com a cabeça e abriu um sorriso.
Só de olhar para as duas, eu já sentia no fundo do meu coração que
tinha feito uma excelente escolha.
Pisquei várias vezes, mas eu não consegui evitar as
lágrimas, ao relembrar todas as humilhações sofridas, desde que
voltei a ingressar no programa, culminando em um conturbado
processo de rematch, mas finalmente as minhas preces foram
atendidas.
Seattle, aqui vou eu. De novo.
 
Capítulo 7
Michael Foster

Seattle, Washington.
 

A “Cidade Esmeralda” sempre ficou conhecida pela


abundância de frutos do mar frescos e de alta qualidade, vindos do
Havaí, Japão e Alasca, como polvo, atum, salmão, facilmente
encontrados nos melhores restaurantes, às margens da baía de
Elliott.
Eu reservei justamente a melhor mesa do estabelecimento,
que proporcionava uma das mais belas vistas para a enseada de
Puget, direto da área de estar ao ar livre, com o intuito de tornar a
reunião de negócios com minha equipe bem mais produtiva.
Aquela tinha sido uma das resoluções que eu me comprometi
a colocar em prática, desde que passei a consultar um terapeuta,
por sugestão do meu sócio, em decorrência dos episódios de
burnout, ansiedade, depressão e transtorno de estresse pós-
traumático, que afetaram a minha relação com os gestores e
funcionários da Lockhead Technologies. Até os demais empresários
do ramo da tecnologia me aconselharam a parar de trabalhar por
um tempo, mas eu encontrei no distanciamento social e no Home
Office o pretexto perfeito para me isolar de tudo e de todos.
A perda da minha esposa e do bebê com poucas horas de
vida, e semanas antes de a pandemia estourar, deixou a minha
saúde mental e emocional em frangalhos.
A partir daí, eu comecei a adotar um comportamento
negligente, impactando a minha gestão nos negócios, e no
relacionamento interpessoal entre pessoas próximas. Achei que
conseguiria enfrentar o processo de luto sozinho, mas a vergonha, o
orgulho e a teimosia quase levaram a empresa a uma crise sem
precedentes, sem contar a perda do vínculo com os meus pais e
com meus dois irmãos, Kylie e Maxwell.
Faltou pouco para eu desistir de tudo, inclusive de mim
mesmo.
Quando Kylie e a filha dela apareceram de surpresa em
minha casa, eu senti que elas expuseram ainda mais a minha
condição de vulnerabilidade, ao mesmo tempo em que me
trouxeram de volta para a realidade nua e crua da vida.
Mike, eu me sinto tão sozinha e perdida! Voltar a viver com os
meus pais não me livraria de estar sob os olhares julgadores deles,
dia após dia. E, eu já perdi tudo. Você se tornou um homem recluso,
desde que a minha cunhada se foi naquele leito de hospital e
raramente interage comigo ou com a Zoe. Se preferir, pode fingir
que nós não existimos, mas por tudo o que é mais sagrado, não nos
deixe desamparadas.
Ouvir aquele apelo emotivo foi como levar um tapa na cara. A
partir daquele momento, eu me conscientizei de que todos nós
tínhamos as nossas dores.
Alguém sentado à mesa soltou uma risada, me tirando
abruptamente dos meus devaneios. As conversas saíram um pouco
do tópico de negócios, enquanto saboreávamos um apetitoso robalo
chileno servido com couve-flor, caranguejo de dungeness
proveniente do Alasca, acompanhado pelo molho beurre blanc de
limão.
O Diretor de Tecnologia da Informação, e também cofundador
da empresa e meu braço direito, se inclinou para me dizer ao
ouvido: — Devo dizer que estou muito orgulhoso de você —
Thomas Cartland comentou, mal contendo o riso, e me dirigindo um
olhar maroto. — Todos estão bastante animados com os múltiplos
projetos de roteadores, switches e cibersegurança.
A nossa empresa fechou um grande contrato recentemente
com o governo federal, o que nos conferiu uma vantagem adicional
no setor de segurança cibernética.
Proporcionar uma refeição requintada em um ambiente
descontraído era um grande passo na retomada da autoconfiança
entre todos que me ajudaram a ocupar um lugar de destaque como
um dos melhores CEOs da área de tecnologia do país.
— Confesso que estou ansioso para a reunião com o
presidente, na Casa Branca.
Outros grandes executivos do setor também foram
convidados para discutir em Washington as ações coletivas que
visavam fortalecer a cibersegurança do país.
Quase dei um salto, quando senti meu celular vibrar no bolso
da calça social. O nome da minha irmã apareceu na tela, e levei
alguns instantes refletindo se eu deveria atender a chamada dela ou
não, mas considerando tudo o que tinha acontecido nos últimos
dias, não seria nada razoável ignorar a ligação, afinal ela sempre foi
muito sensata.
Eu era a única pessoa com quem ela podia contar naquele
momento.
— É a minha irmã e ela não me ligaria se não fosse algo
importante.
— Eu posso iniciar a reunião, sem problemas — Tom me deu
um tapa amigável no ombro. Agradeci com um sorriso e fiz menção
de me levantar da mesa.
— Se me derem licença, eu preciso me ausentar por alguns
instantes. Eu não demoro — E dizendo isso, eu segui em direção ao
canto mais reservado do estabelecimento.
— Olá, Kylie — saudei, suspendendo a respiração, em
expectativa. — A reunião está prestes a começar... Aconteceu
alguma coisa?
— Eu acabei de saber algo muito sério sobre a nova babá —
Minha irmã estava mesmo sem sorte. Coitada! Só não entendi ainda
como eu poderia ajudá-la. — Achei um tremendo absurdo o que a
ex host family dela fez. O casal a expulsou de casa, sem nenhum
motivo aparente, acredita?
— Meu Deus! Mas você entrou em contato com o pessoal da
agência para saber o motivo, pelo menos?
— A coordenadora local apenas comunicou o fato e não quis
entrar em detalhes. Diga se você não concorda comigo, Mike?
Ainda que ela tenha cometido alguma falha grave, nada justifica
uma expulsão, especialmente porque a au pair se encontra em
condição de vulnerabilidade por viver longe do seu país de origem.
A minha irmã estava coberta de razão. Aquela era uma
atitude muito drástica para um casal tomar de uma hora para outra,
sem refletir antes o impacto que isso poderia causar na vida da
jovem. Afinal era de responsabilidade da família anfitriã garantir o
acolhimento e a segurança durante a estadia da intercambista,
mesmo durante o tal rematch, o processo de que tanto ouvi falar nos
últimos dias.
Ela deve estar traumatizada depois de tudo o que aconteceu.
— Mas você já concordou com o match... Está pensando em
voltar atrás?
— Eu li a carta de recomendação redigida pelo ex host, e o
mais estranho é que não constava nada que desabonasse a
conduta dela. Por isso, a minha decisão continua mantida.
— Kylie, você está mesmo segura disso? — Eu perguntei
com um tom de hesitação na voz. — Só conversou com essa jovem
algumas vezes por Skype...
— Eu acredito que ela seja digna de confiança, sim. A
coordenadora me disse que outra família anfitriã se solidarizou com
a situação e a instalou temporariamente na casa deles. Acontece
que é meu dever prestar toda assistência de que ela precisa,
entende?
— Quando ela virá mesmo? — Soltei um longo suspiro,
enquanto olhava distraidamente para a baía.
— A au pair vai embarcar ainda hoje, no final da tarde. Sorte
a minha que eu estou de folga, e já estou adiantando algumas
coisas aqui para poder recebê-la.
— Por que resolveu me ligar com tanta urgência, sendo que
já resolveu tudo?
— Eu vou precisar da sua ajuda e quero causar uma boa
impressão como host mom. Eu até já arrumei o quarto, mas ainda
falta providenciar alguns itens para recepcioná-la como a boa
anfitriã que sou.
— Não acha que levar a au pair para um restaurante já não
está de bom tamanho?
— Criança gosta de festa, Mike. Zoe está tão animada em me
ajudar, que você nem imagina! Nós duas vamos preparar uma
recepção surpresa com bolo, balões, papel picado, doces, essas
coisas... E a sua missão será buscar a au pair no aeroporto e
vendar os olhos dela, assim que chegarem em casa, ok?
— Se não me resta outra opção... — Pressionei a têmpora e
respirei bem fundo. Eu nem havia me preparado psicologicamente
para a perspectiva de conviver com uma estrangeira e ter que
alterar toda minha rotina por causa dela. — Mande uma mensagem
com as informações do voo, além do nome completo e uma foto de
perfil, para saber como ela é fisicamente. Agora, eu preciso voltar
para a reunião. Até logo.
— Prometo que este é o último favor que te peço, irmão.
Obrigada... por tudo! — E dizendo isso, ela encerrou a chamada,
fazendo o som reverberar em meus ouvidos de forma
estranhamente perturbadora.
Quando eu voltei a me sentar à mesa, pedi desculpas a todos
pela demora, e escutei atentamente Thomas relatar os assuntos que
ainda estavam sendo discutidos pelos gestores da empresa.
Eu esperei a reunião terminar para poder conferir a
mensagem de Kylie, contendo informações sobre o voo sem escalas
da companhia aérea Alaska Airlines, além do nome completo da au
pair, e uma foto anexada para poder reconhecê-la entre os demais
passageiros, durante o desembarque.

Nome: MANCINI, LETÍCIA

De: Boston (BOS).


Partida: 17:00
Para: Seattle (SEA).
Chegada: 20:11

OBS: Boston está 3 horas adiantado em relação à Seattle (fuso


horário).

Eu li e reli as informações várias vezes, nutrindo a estranha


sensação de já ter visto o nome dela em algum lugar.
É mesmo possível ser quem eu estou pensando?
Só havia um jeito de descobrir. Então, eu abri depressa a
imagem anexada e me peguei observando um rosto vagamente
familiar.
Era impressionante a semelhança entre a jovem da foto e a
passageira que pegou a minha mala por engano no Aeroporto
Internacional de Seattle, há pouco mais de dois meses. Reparei que
o cabelo dela estava um pouco desgrenhado e o rosto sem
nenhuma maquiagem, mas com a mesma aparência angelical, que
ficou registrada em minha memória.
O jeito doce e frágil da intercambista brasileira me deixou
completamente fascinado. Em poucos minutos de interação, eu
constatei que ela cultivava uma simplicidade e inocência suficientes
para despertar um senso de dever e algo mais que eu não ousei
identificar.
— Michael? — Chamou Thomas, tocando o meu braço e me
assustando. — Você está agindo de um jeito estranho hoje... Nunca
foi do tipo distraído, o que houve?
— Eu conto tudo no caminho para Redmond. É uma longa
história...
 

Consultei meu relógio pela milésima vez, desde que eu


cheguei ao Aeroporto Internacional de Seattle - Tacoma. Conforme
os minutos passavam, a expectativa de ver Letícia cruzar a porta
automática do terminal só fazia aumentar, consideravelmente.
Observei as pessoas passando pelo portão de desembarque,
enquanto trocava o peso do corpo de uma perna para a outra. Só
minha irmã mesmo para me fazer segurar uma folha impressa com
o nome da au pair, como se fosse uma placa de identificação. Por
sorte, eu dispensei o terno e gravata, o que só pioraria o
desconforto por estar à espera de uma estranha, embora ela já não
fosse mais tão desconhecida assim.
Será que ela vai reagir bem ao me reconhecer? — pensei
comigo mesmo, rindo internamente, diante da possibilidade de
colocá-la numa situação constrangedora, mesmo ciente de que nós
dois estávamos no mesmo barco.
Não demorou muito para ver outro grupo de passageiros
saindo do desembarque, e lá estava ela, empurrando o carrinho
com as bagagens, e olhando fixamente para os lados, como que a
procura de alguém no meio da multidão.
Andei alguns passos para entrar no campo de visão da jovem
e acenei discretamente com a mão livre, enquanto a outra
continuava segurando o papel com o nome dela impresso.
Letícia parecia profundamente abatida, mas também não era
para menos. Depois de seis horas e meia de voo, assinalando uma
nova etapa de sua vida, e marcado por dúvidas e incertezas pela
mudança inesperada de moradia, além dos desafios de trabalhar
para outra família anfitriã, com certeza reencontrar o dono da mala
que ela pegou por engano estava longe de ser o que ela esperava.
A jovem não me reconheceu de primeira, mas ao chegar
mais perto dava para notar nitidamente um lampejo de
reconhecimento cintilando nos olhos dela.
— Não sei se ainda se lembra de mim... Eu me chamo
Michael G. Foster.
Eu estendi a mão direita para um cumprimento formal, o qual
foi prontamente retribuído pela jovem, embora ela tivesse hesitado
por uma fração de segundo.
— Oh, sim... Eu me lembro — confirmou ela, num tom seco.
— Só acho que está um pouco diferente — acrescentou, enquanto
encarava para algum ponto acima da minha testa.
— Está se referindo ao meu cabelo? Está mais curto
mesmo... — falei, ao passar a mão direita pelos fios castanhos
escuros, curtos e lisos, mas que já apresentava alguns fios grisalhos
espaçados. — Seja bem-vinda de volta à Seattle.
— Muito obrigada, Sr. Foster.
— Não precisa me tratar pelo sobrenome... Me chame
apenas de Michael ou Mike.
Reparei bem na jovem, que estava ainda mais linda com seu
cabelo louro-escuro e liso, preso em um coque no alto da cabeça,
dando a impressão de que seu pescoço delicado era alongado
também. Ela usava um look básico, mas bem estiloso, composto por
camiseta branca de algodão, calça jeans de lavagem clássica, tênis
brancos air jordan e jaqueta de couro.
Ela passou a olhar de um lado para o outro, evitando o
contato visual comigo.
— Se me permite, eu posso levar o carrinho com a bagagem
até o local onde estacionei o meu carro, ok?
— Ah, sim, claro — Ela se afastou do carrinho de aeroporto,
nervosa e um tanto atrapalhada.
Letícia e eu mal trocamos uma só palavra no caminho para
Denny Blaine Definitivamente, ela tem agido de um jeito estranho,
bem diferente de quando nos conhecemos pela primeira vez, dois
meses antes. Além de ter preferido se sentar no banco de trás, ela
parecia estar entregue aos próprios pensamentos, desde que
saímos do aeroporto Internacional de Seattle - Tacoma.
Lancei um olhar para o banco de trás, através do espelho
retrovisor interno, e me flagrei sendo observado por ela, que
aparentava estar aborrecida e se mantinha agarrada à valise que
levava no colo, como se sua vida dependesse disso.
— Para onde estamos indo? — perguntou ela, bruscamente.
— Deveria ter continuado pela Interestadual 405, sentido Bellevue,
não?
— Por que eu faria isso? — perguntei, franzindo a testa,
desconfiado. Ela deve ter visto o meu endereço na etiqueta, quando
pegou a minha mala por engano, então não deveria estar tão
surpresa assim. — Se esqueceu que eu resido em Seattle?
— Kylie me passou outro endereço... — Letícia levou as
mãos à cabeça e pressionou os dedos nas têmporas como se as
sentisse latejar, de repente.
— Deve ter havido algum mal-entendido... — Foi tudo o que
consegui dizer, preferindo deixar o benefício da dúvida para minha
irmã, que me devia uma explicação plausível por fornecer o
endereço errado ao se inscrever no programa de intercâmbio.
Ela enfiou a mão na bolsa e pegou o celular.
— A bateria do meu celular descarregou, por isso, eu só vi a
mensagem dela, quando deixei a aeronave.
— Há quanto tempo você não troca de celular? — Não
contive a curiosidade.
— Meu ex host me deu um iPhone de presente, mas eu tive
que devolver... Esse aqui tem suprido minhas necessidades, embora
descarregue muito rápido.
— Prometo que amanhã darei jeito nisso, não se preocupe —
Tentei esboçar um sorriso de canto de boca, demonstrando alguma
simpatia. Depois, eu me virei e apontei com o dedo em direção à
imponente propriedade, situada em um belo parque, no coração de
Denny Blaine. — Nós acabamos de passar pela casa onde Kurt
Cobain vivia com a mulher e a filha deles.
— Humm, bacana — Ela esticou o pescoço, tentando ver
pela janela traseira. — Pensei que você colocaria alguma música de
Nirvana para tocar, como na última vez... — O esboço de um sorriso
delineou os lábios bem desenhados e cobertos por batom rosa
claro.
— Você tem alguma preferência? — Eu sorri para ela de
volta, e por Deus, aquele comentário inesperado tirou um grande
peso sobre meus ombros. Mesmo com o ar-condicionado no
máximo, a sensação dentro do carro era sufocante, devido ao jeito
como ela me afetava.
— "Smells Like Teen Spirit" — A voz dela saiu meio rouca e
num tom baixo, o que provocou uma fisgada dolorosa nos meus
testículos. Suas feições finalmente se suavizaram um pouco. — Não
foi essa faixa que explodiu nos seus fones de ouvido durante o voo?
— Eu apenas neguei com um gesto de cabeça, e fiz uma careta ao
trocar um olhar significativo com ela pelo espelho retrovisor.
— Supôs que eu escutava no avião justo a música que eu
menos gosto? Mas tudo bem, é você que manda! — Eu pareei o
bluetooth do celular com o som do carro e coloquei o nome da
canção no campo de busca do aplicativo de streaming, fazendo os
solos de guitarra preencher o ambiente, tornando-o mais leve e
descontraído.
O sorriso dela acabou se transformando num riso solto e
lindo de se ver.
 
Capítulo 8
Michael Foster

O trajeto do aeroporto até minha casa não levava mais do


que trinta minutos. Notei que Letícia parecia impressionada com a
mansão construída em estilo georgiano colonial de quatro andares,
com seis quartos ao todo, uma piscina coberta, área de estar ao ar
livre com sua lareira ecológica, além da sala de ginástica e sauna
seca.
— A sua casa é muito bonita, mesmo — comentou ela,
timidamente.
— Você vai gostar da vista no sótão. Apreciar o sol se pondo
nas Montanhas Cascade, com o lago Washington logo à frente, sem
dúvida alguma, não tem preço.
Peguei o controle que estava em cima do painel do carro e
acionei o botão, fazendo o ruído metálico e agudo do portão de
madeira reverberar pela garagem. Quando eu estacionei o SUV,
cocei a cabeça por alguns instantes, pensando na melhor maneira
de pedir a permissão dela para vendar seus olhos, antes de entrar
na residência.
— Eu nem sei como te pedir isso, mas você tem algum lenço
de tecido?
Ela me encarava pelo espelho retrovisor, com um misto de
surpresa e desconfiança.
— Devo ter algum em minha bolsa, mas por que a pergunta?
— Kylie insistiu muito nessa ideia de te dar as boas-vindas de
um jeito diferente, sabe? — Então, eu me virei para encará-la
melhor, mantendo um braço apoiado no volante. — Não vou deixar
você esbarrar nos móveis e se machucar, se essa for a sua maior
preocupação.
A palidez do rosto dela dizia que aquela era a menor de suas
preocupações, no momento. Aguardei o que pareceu uma
eternidade pela resposta, mas ela acabou concordando com a
cabeça, em um gesto quase imperceptível.
A jovem abriu a bolsa e começou a mexer dentro dela de
forma atrapalhada, mas logo tirou o que parecia ser um encharpe de
seda.
— Isso deve servir — Ela estendeu o tecido em minha
direção, e por pouco não contive o impulso de levá-lo ao nariz para
sentir algum resquício de seu perfume.
— Pode deixar os seus pertences no carro. Levarei até seu
quarto mais tarde.
— Mas não quero causar nenhum incômodo. — A jovem,
tentou protestar ao abrir a porta traseira.
— Imagina, eu sempre procuro dar conta das minhas coisas.
Como eu não tinha empregados em casa, uma equipe
especializada fazia a manutenção e a limpeza dela, semanalmente.
E quando não sobrava tempo para cozinhar, eu pedia comida por
delivery.
Bem mais prático, diga-se de passagem.
— Eu duvido que consiga dar conta de levar três malas, ao
mesmo tempo.
— Tem algum cadáver lá dentro, por acaso? — Fiz um gesto
para ela ficar de costas, mas Letícia fez uma careta, antes de se
virar e levou uma das mãos ao cabelo, na tentativa de ajeitar uma
mecha que se desprendeu do coque.
Uma vontade indescritível emergiu de mim, o que era
bastante perturbador.
Desejava afundar a mão nos fios sedosos para sentir a
textura macia deles.
Talvez fosse uma resposta inconsciente por ter restringido o
contato com pessoas do sexo oposto apenas ao ambiente de
trabalho, sem que nenhuma delas marcasse presença no espaço
particular que eu tanto prezava: o meu lar, a casa que Susan me
ajudou a escolher, para juntos criarmos a nossa filha.
A bebê que teve a vida ceifada ao nascer.
Tudo o que eu mais prezava na vida me foi tirado no espaço
de poucas horas.
Tentei afugentar os pensamentos dolorosos, me
concentrando apenas em atender ao pedido maluco da minha irmã.
— Me avise se estiver apertado demais, ok? — Ela apenas
se limitou a anuir com a cabeça, murmurando “uhum”.
Passei o tecido na altura dos olhos, com as mãos um pouco
trêmulas, e o amarrei, firmemente, atrás da cabeça dela. Podia jurar
que a au pair estava ofegante devido aos batimentos acelerados de
seu coração. Eu mesmo me senti afetado pelo contato mais íntimo,
a respiração entrecortada e quente contra a nuca dela me provocou
um sutil estremecimento.
— Agora eu vou passar seu braço ao redor do meu, tudo
bem? — Logo nós dois andamos devagar em direção à porta que
ligava a garagem à área de serviço.
Uma vez no interior da mansão, ela começou a tatear ao
redor, mesmo às cegas e usando o braço livre.
— É um pouco assustador não poder ver nada...
— Você precisa confiar em mim — Eu comprimi os lábios na
tentativa de sufocar o riso. — Não vou deixar que se machuque.
— Estou com medo de tropeçar, na verdade — Ela comentou
com o rosto virado para o lado direito e quase esteve prestes a
encostar a cabeça em meu ombro.
Eu fechei meus olhos de maneira instintiva, sentindo o cheiro
cítrico e doce do shampoo dela penetrando as narinas, a ponto de
me embriagar por alguns segundos. De repente, um baque surdo se
fez ouvir, seguido por um gemido de dor, me forçando a abrir os
olhos, e saindo dos meus devaneios.
— Você se machucou, Leti? — Ela meneou a cabeça, em
negativa. — Desculpe, a culpa foi minha, eu acabei me distraindo...
— Estou bem, não foi nada demais. Acho que só reagi assim
por causa do susto mesmo.
— Já estamos quase lá... — Então eu voltei a conduzi-la pelo
corredor, com cuidado.
Abri as portas de correr e adentrei o cômodo com seus
pôsteres retratando o universo da cultura POP espalhados nas
paredes, além da estante enorme com itens relacionados ao mundo
dos games, internet e tecnologia, bem como um Xbox, jogos de
fliperama, uma mesa de pebolim, sinuca, e uma máquina de pinball
Star Wars.
Havia outra sala que também servia como refúgio e contava
com alguns instrumentos musicais, como o piano que pertencia à
Susan, além da bateria acústica, extraindo dela um som pesado e
por vezes melancólico, a depender do meu estado de espírito.
Encontrei Kylie e Zoe posicionadas diante da mesa decorada
com arranjos de flores, como gerberas amarelas e brancas, além de
lírios amarelos, dispostas juntamente com os suportes para doces
nas cores verde e azul, remetendo claramente ao país de origem da
au pair.
— Até que enfim, vocês chegaram! — Kylie bateu palmas,
entusiasmada. — Por favor, traga ela até aqui, Mike — Eu me
aproximei da mesa, conforme ela pediu. — Quando nós contarmos
até três, você pode tirar a venda dela, ok? — Instruiu ela, antes de
me passar um cilindro, que servia para lançar papel picado na cor
dourada, proporcionando uma verdadeira chuva de ouro.
Pisquei várias vezes, ainda sem acreditar que minha irmã
realmente pretendia fazer aquele espetáculo todo só para dar as
boas-vindas para a nova babá da filha, mas acabei entrando na
brincadeira.
— Um, dois, três! — Kylie e eu gritamos em uníssono,
enquanto nos preparávamos para disparar o tubo de papel picado.
Quando eu finalmente tirei o tecido que lhe cobria os olhos,
Letícia se deparou com dezenas de papeizinhos metalizados,
caindo a partir do teto da sala de jogos. Então, ela abriu um amplo
sorriso, com os braços estendidos, contemplando a chuva de ouro,
maravilhada.
— Seja muito bem-vinda! — Kylie ajudou a filha a segurar
uma cesta imensa de boas-vindas. Achei impressionante a rapidez
com que ela preparou aquela surpresa. — Espero que goste dos
mimos.
— É muita gentileza a sua, mas não precisava se incomodar,
Kylie.
— Zoe me ajudou a escolher os itens, não foi, meu amor?
— Ajudei a mamãe, sim! — A menina sorriu, orgulhosa.
Letícia se abaixou, ficando na altura da criança e lhe
acariciou o rosto, gentilmente.
— Você é ainda mais linda pessoalmente, sabia? — A voz da
jovem falhou um pouco, e só então eu pude notar que os olhos
verdes estavam bem marejados. O mais estranho era que, parando
para observar bem, o jeito calmo e meigo dela me fazia lembrar
Susan, a minha falecida esposa.
— Mas as surpresas não param por aí... — Kylie
acrescentou, animada. — A mesa está repleta de coisas gostosas.
— Não reconheci metade dos doces e salgados, acredita? —
Lancei um olhar por sobre o ombro, curioso. — Mas eu mal vejo a
hora de poder experimentar.
— Eu tive que me virar nos trinta para trazer um pouco do
Brasil para nossa casa — Minha irmã me deu uma cotovelada,
sorrindo. — Mas tenho meus contatos.
— Nossa, olhando bem para vocês dois agora, realmente faz
sentido aquela crença de que muitos casais se parecem fisicamente
um com o outro...
Kylie e eu nos entreolhamos, confusos, sem saber como
reagir àquela suposição.
— Você achou que Mike e eu somos um casal? — Minha
irmã começou a rir antes de desfazer aquele mal entendido. —
Michael é meu irmão mais velho... aquele que estudou em Boston,
lembra-se? A esposa dele faleceu há pouco mais de três anos.
Pisquei várias vezes, mal conseguindo acreditar que Kylie
teve a coragem de atribuir o equívoco para a au pair.
— Foi você quem confundiu a cabeça dela, quando passou
meu endereço errado e sabe-se lá quais outras informações você
omitiu ao se cadastrar na agência... — Cruzei os braços e lancei um
olhar de censura para ela.
— Mas com certeza há uma boa explicação para isso. Certo?
— Letícia interviu, em tom apaziguador.
— Estou profundamente envergonhada... — respondeu ela,
olhando nos olhos da au pair, de modo suplicante. — Mil desculpas,
Lexa... Leti — Ela se corrigiu, depressa, e lançou um olhar
significativo para a filha, posicionada ao seu lado, antes de
acrescentar: — Eu te devo explicações, mas esse não é um bom
momento, entende?
— Se me permite, eu posso colocar essa cesta na poltrona,
assim você fica mais à vontade... — comentei, tirando a cesta das
mãos de Letícia, mas nem bem me afastei, percebi que minha
sobrinha puxou a babá, enquanto saltitava alegremente em direção
à mesa decorada.
Além de doces e salgados fritos tradicionais da culinária
brasileira, também havia um bolo customizado, feito com doce de
leite e salpicado com canela e açúcar por cima, bem como
guloseimas já conhecidas por mim: brownies, cupcakes, donuts e
muffins.
— Qual é mesmo o nome disso? — Eu perguntei após dar
uma boa mordida no salgado frito tradicional brasileiro.
— Se chama coxinha — Letícia murmurou, enquanto limpava
delicadamente os lábios com um guardanapo de papel. — É a
melhor coxinha do Brasil, em Seattle.
— Gostei da combinação frango desfiado e cream cheese no
recheio.
— Eu nunca comi nada igual antes — Kylie ofereceu um para
a filha, que aparentemente gostava mais de doces. — Isso aqui é
muito bom. Já experimentou, Zoe?
— Só quero um pedacinho... — A menina esticou o bracinho
na tentativa de o pegar das mãos de Kylie. — Gostei mais daquelas
bolas de chocolate preto!
— Eu achei doce demais para o meu gosto — retruquei, com
uma careta.
— Se refere ao brigadeiro? — Letícia sorriu para mim. Seu
comportamento mudou da água para o vinho. Quem diria! Será que
o fato de ter descoberto o meu verdadeiro grau de parentesco com
Kylie afetou a percepção que ela tinha sobre mim?
Um homem aparentemente casado e com uma filha pequena
oferecendo carona para uma mulher que acabou de conhecer, dava
margem mesmo a muitas suposições.
De repente, eu senti meu celular vibrar dentro do bolso da
calça social.
De início, eu achei que fosse alguma notificação de
mensagem, mas o programei também para receber alertas da minha
agenda de compromissos extraoficiais, como a sessão do
Ultraviolence. Consultei o relógio e faltava exatamente 1 hora para o
encontro, que acontecia uma vez a cada duas semanas, em um
galpão abandonado no subúrbio de Seattle.
Decidi reler a mensagem que recebi dos organizadores,
pouco dias antes: Magic Mike [19], o seu adversário está ansioso
para uma revanche. Até breve!
Enfiei o celular no bolso, apressado, mas ao levantar os
olhos, flagrei a minha irmã e Letícia me encarando, desconfiadas.
— Meninas, eu detesto ter que dizer isso, mas preciso me
ausentar por algumas horas... — Torci os lábios, com ar desgostoso,
apenas para aparentar alguma consternação no semblante.
— Está falando sério? — Kylie perguntou, franzindo a testa,
inconformada. Eu apenas me limitei a confirmar com um gesto da
cabeça. — Só tenha juízo, ok?
Apesar de estar submetida a um ritmo alucinante de estudos
e rotações clínicas, a minha irmã não era nenhuma tola. Mesmo nas
ocasiões em que coincidia de encontrá-la na cozinha tomando o
café da manhã, ela notava os pequenos cortes e hematomas,
cobertos com maquiagem ou algum curativo discreto. Ela pelo
menos não tentou saber mais do que deveria. E se tinha uma coisa
que eu admirava nela era justamente o respeito pelo meu espaço
pessoal. Minha irmã só dava de ombros e me aconselhava a tomar
cuidado, afinal eu já era um homem adulto e suficientemente capaz
de assumir as consequências de minhas ações.
— Leti, eu quero te dar as boas-vindas, mais uma vez — Eu
me adiantei com a mão estendida, para cumprimentar a jovem
brasileira, novamente. — Sinta-se em casa e não hesite em falar
com Kylie, mas eu continuo à sua disposição também, basta pedir.
— Eu nunca pensei que seria tão bem recebida aqui. Isso é
muito gratificante.
Ofereci meu melhor sorriso para ela, e quando eu estava
prestes a sair, Kylie me deteve: — Não vai dar um beijo de boa noite
na sua sobrinha? — Ela levantou uma sobrancelha, e notei que seu
olhar transmitia compaixão em vez de censura.
— Tio Mike não gosta de muitos beijinhos e abraços... E
você, Titi? — Zoe puxou o braço dela, na expectativa de satisfazer
sua curiosidade.
— Eu sempre gostei de beijar e abraçar — respondeu Letícia,
enquanto afagava o cabelo sedoso da menina. — Mas acho que
cada pessoa demonstra o afeto da forma que seja mais confortável
para ela, e com seu tio não seria diferente...
— Leti tem toda razão — Direcionei um olhar longo e
profundo para a au pair. E só então eu me agachei e fiz um gesto,
chamando Zoe para junto de mim. — Eu gosto de ser abraçado,
ainda que eu não abrace de vez em quando. Mas preciso que faça
isso por mim hoje. Por nós dois... Por favor.
Aguardei pela reação dela, trazendo no rosto aquela
expressão de cão sem dono, a mais genuína possível. Zoe logo
abriu um sorriso e correu até mim, antes de passar os bracinhos ao
redor do meu pescoço, e me envolveu num abraço apertado.
— Como papai faz falta... — sussurrou ela, com o rosto
afundado em meu ombro.
Zoe nem imaginava que o pai não queria mais saber dela,
que sumiu após ter retirado indevidamente os fundos da conta
conjunta, e privando mãe e filha do direito de usufruir os milhares de
dólares aplicados.
Não demoraria muito para ela me ver como referência
masculina, mas eu não me sentia apto para ocupar um espaço tão
significativo na vida dela, e por Deus, como eu tenho resistido em
estabelecer uma conexão profunda coma a minha sobrinha.
Minutos depois, eu já estava a caminho do único lugar que
me fazia esquecer um pouco de mim mesmo, e de quem eu me
tornei para fugir da realidade.
Faz dois anos que eu tenho lidado com todo o caos interno,
sendo o Lorde das Sombras, sempre recuando e avançando contra
quem quer que seja.
Ora batendo e ora apanhando, ainda que fosse com a alma
lavada em sangue.
 
Capítulo 9
Letícia Mancini

Decidi esperar Kylie colocar a Zoe para dormir, porque eu


não me sentia segura de andar pela casa enorme a procura do
quarto que destinaram para mim pelos próximos meses. Sabia
apenas que ficava no sótão, mas não exatamente como chegar lá.
Não demorou muito e ela me conduziu por um longo corredor,
que dava para uma porta branca, que aliás era a cor predominante
na mansão, e depois nós duas começamos a subir o primeiro lance
de escadas.
A grande claraboia no teto chamou minha atenção, e
continuei segurando bem firme no corrimão, enquanto pisava de
degrau a degrau, com o olhar fixo no céu estrelado.
— A casa está situada a três quarteirões do lago, dos
restaurantes e também das lojas da Madison Park — comentou
Kylie, de repente. — Ah, eu esqueci de avisar antes, mas Mike já
deixou as suas bagagens no quarto — acrescentou, enquanto
girava a maçaneta da porta.
O sótão abrigava um quarto super espaçoso, com cama
queen size, mobílias e paredes na cor branca, exceto pelo espaçoso
sofá com chaise em tom de cinza e posicionada no canto. O chão
era revestido de piso vinílico imitando madeira, propiciando ao
ambiente um ar mais intimista e acolhedor. Havia quatro janelas, em
estilo francês, de vidro e com pequenos quadrados, sendo que três
delas eram maiores e descortinava uma visão panorâmica das
árvores que cercavam outras propriedades, além do lago
Washington ao fundo. A última janela se situava na parede ao lado,
bem diante da mesa de trabalho e da cadeira de rodinhas.
Diferente do padrão encontrado nas casas americanas, as
paredes não eram baixas e assimétricas; o teto acompanhava as
duas inclinações unidas do telhado em estilo colonial.
— Olha só, uma coisa interessante, Leti — disse ela,
apontando para a cobertura. — A TV fica escondida no teto. Basta
acionar o controle do lift, que movimenta a TV de cima para baixo e
de baixo para cima. Agora me diz, o que achou da decoração?
— Achei incrível demais. Ele é bem decorado e muito
aconchegante.
Era bem diferente de onde eu dormia em Boston. O quarto
era pequeno e ficava bem ao lado da sala de brinquedos das
crianças.
— A Zoe me ajudou a dispor os objetos na mesa de estudos.
Como pode ver, tem alguns itens de papelaria, como canetas,
marca-textos, planner, velas aromáticas, um vaso de flores, uma
luminária estilosa, além é claro, de um mural para fotos e lembretes.
Só falta agora você incluir o seu notebook...
— Não tenho nenhum no momento, mas o tablet já atende as
minhas necessidades... — respondi, meio sem jeito. A minha hosta
me olhou com aquela cara de quem diz: “Conte-me tudo e não me
esconda nada.” — O meu ex hosto até me deu um de presente, mas
eu precisei devolver... Provavelmente, o casal planejava doar para a
próxima au pair deles.
— Depois do que aconteceu, eu não me surpreenderia com
mais nada. Esse casal não teve um pingo de empatia, mesmo
quando decidiu voltar a trabalhar lá. Não existe justificativa para o
que fizeram com você.
— Eu propus um rematch amigável em consideração às
crianças, mas a minha ex hosta me acusou de coisas terríveis... Ela
já desconfiava que o marido estava tendo um caso com outra
mulher, alguém que era bem próximo a família. Enfim, ela cogitou
que essa pessoa fosse eu, quando na verdade era a melhor amiga
dela.
— Meu Deus, mas que absurdo! — Kylie se sentou com
relutância no sofá, aparentando estar pensativa. — Então não foi à
toa que você colocou no perfil a preferência por ser au pair de uma
família monoparental ou homoafetiva...
— Sim, exatamente. Kylie, me responda uma coisa: Por que
disse que morava na casa dos seus pais? — Preferi ser cuidadosa
com as palavras, embora a pergunta que ecoou em minha cabeça
foi outra: Por que você mentiu para mim?
— Eu fiquei com muita vergonha de admitir que estou
morando de favor na casa do meu irmão... Sem contar que a
situação é delicada demais para expor numa conversa por Skype,
entende?
— Não precisa me dizer, se não quiser, Kylie — Eu decidi me
sentar ao lado dela, mesmo relutante. — Omitir uma ou outra
informação é só um detalhe...
— Eu faço questão de contar, porque pretendo estabelecer
uma relação de confiança e cumplicidade, afinal nós vamos conviver
juntas pelos próximos meses. Farei o que estiver ao meu alcance
para que se sinta como parte da família.
Ouvir suas últimas palavras me trouxe péssimas
recordações.
Olhei para minhas próprias mãos unidas no colo e respirei
fundo antes de dizer: — Espero que não me leve a mal, mas foi
justamente esse discurso de fazer parte da família que deu margem
para os Evans me manipularem todo esse tempo.
— É compreensível pensar assim, mas parando para analisar
agora, a minha última escolha foi tão desastrosa, e eu tinha motivos
de sobra para não contratar mais babá alguma, mas precisava voltar
a confiar em alguém para cuidar da minha filha — De repente, senti
o toque suave da mão dela sobre a minha. — Imagina só, a irmã de
uma amiga minha foi tão imprudente, que quase colocou a vida da
Zoe em risco — Quando levantei o olhar para ela, notei que seus
olhos transmitiam sinceridade. — Mas algo me diz que, dessa vez,
eu fiz a escolha certa.
— Eu vou fazer por merecer sua confiança, Kylie. Você me
recebeu tão bem, e se mostrou sensível às minhas questões... Sou
muito grata por isso.
— Oh, meu Deus! — exclamou ela, passando a ponta dos
dedos debaixo dos olhos. — Bem que o meu irmão sempre diz que
eu não passo de uma manteiga derretida.
— Qual deles? — perguntei, incapaz de esconder a
curiosidade.
— Maxwell, o meu irmão idiota do meio — Kylie revirou os
olhos. — Ele é um cara incrível, seu único defeito é a necessidade
que tem de me tirar do sério, na maior parte das vezes — Soltou
uma risadinha e apertou minha mão entre a dela. — Não sei por
que, mas eu tive a impressão de que você e Mike já se conheciam...
Não havia razão para mentir, afinal ela saberia isso de uma
forma ou de outra.
— Michael e eu nos conhecemos há pouco mais de dois
meses. Coincidiu de nós dois pegarmos o mesmo voo de conexão
para Seattle... Ele se sentou ao meu lado, inclusive.
— Mas espera aí! — Ela fez um gesto para eu me calar. —
Não me diga que você é a passageira misteriosa que pegou a mala
dele por engano? — Eu confirmei com um gesto de cabeça, e ri
comigo mesma, achando engraçada a expressão no rosto dela. —
Mike me contou que te ofereceu uma carona após se encontrarem
no Kerry Park. Aparentemente, você causou uma boa impressão
nele. Assim, ele não soube explicar muito bem, mas parece que
pairava um magnetismo muito forte entre vocês dois.
— Engraçado você dizer isso, porque eu me senti da mesma
maneira... Como se um imã gigantesco nos envolvesse — Olhei
distraidamente para além do ombro dela.
— Mike só sentiu algo assim antes uma única vez... Quando
ele pôs os olhos em Susan na fila do banheiro da festa da
fraternidade. A relação deles evoluiu muito rapidamente, apesar da
rotina pesada de estudos no MIT. Às vezes eu até me esqueço que
ela não está mais entre nós.
Havia tristeza no olhar dela e uma lágrima sorrateira escorreu
pelo seu rosto.
— É uma perda irreparável, especialmente quando se trata
de um ente querido... — Cobri a mão dela com a minha, para lhe
transmitir algum conforto.
Kylie deu um suspiro, bateu as duas mãos nos joelhos e se
levantou do sofá.
— Bem, Leti, eu vou para o meu quarto agora. Boa noite.
Durma bem.
— Igualmente. Fui muito bem recebida, desde que eu
cheguei. Muito obrigada.
— A gente ainda tem muita coisa para conversar, mas saiba
que a minha percepção sobre você é a melhor possível — declarou
ela, enquanto se dirigia até a porta. — Ah, e antes que eu me
esqueça, eu prefiro não se chamada de hosta, host mom, esses
termos que as au pairs usam, sabe? Não existe outro termo mais
bonitinho, não?
— Fofa. Quando uma au pair se refere à mãe anfitriã como
fofa, pode ter certeza de que ela é a melhor de todas.
— Humm. Interessante. Gostei! Pode me chamar assim a
partir de agora — Ela soltou uma risada e fechou a porta atrás de si.
Uma vez sozinha no quarto, eu coloquei minha mala de mão
sobre a cama, e tirei de dentro dela um pijama de seda, composto
por calça e blusa de manga longa, com o universo estampado, além
da necessaire contendo produtos de higiene pessoal. Tomei uma
ducha rápida, e ao escovar os dentes, eu repassei na mente tudo o
que aconteceu nas últimas horas, quando subitamente senti meu
corpo ser preenchido por uma sensação reconfortante.
Minha nova família anfitriã não mediu esforços ao fazer uma
festa de boas-vindas, mesmo que às pressas, apenas para fazer eu
me sentir um pouco acolhida e pertencente àquele lugar.
Fechar o match com Kylie Foster foi meu maior acerto, desde
que eu voltei a participar do programa de intercâmbio como au pair.
Levei as mãos à cabeça, ao me dar conta de que não dei
notícias para o pessoal, desde que cheguei em Seattle. Eu peguei
meu celular na mesa de cabeceira, com o coração quase entalado
na garganta, ante a expectativa de conferir as mensagens.
Havia várias mensagens no grupo de au pairs, no Whatsapp.
Todos queriam saber sobre as primeiras impressões da nova família
anfitriã. Porém, eu decidi me comunicar antes com a minha tia para
não a deixar preocupada. Pressionei o ícone do microfone e
comecei a gravar uma mensagem de voz: — Oi, tia Ju! Cê tá boa?
Decidi não ligar cadiquê está tarde. Grazadeus a viagem foi
tranquila e minha nova família anfitriã é gente boa por dimais! Tô
com tanta saudade. Um bêjo!
Enviei a mensagem de voz, e esfreguei bem o nariz,
piscando para segurar as lágrimas, enquanto acessava o grupo de
au pairs brasileiros. Todos estavam preocupados com meu processo
de rematch, então tratei logo de tranquilizá-los:
[01:30] Leti: Oi, pessoal! Eu fui muito
bem recebida pela minha fofa. Ganhei
festinha e tudo! A minha menina tbm é
um amor!

[01:32] Clara: Amiga, ainda bem que


você não caiu nas garras de hosts
malucos.
Que bom que deu tudo certo com o
rematch. Vou te chamar no PV...

[01:35] Edu: Eu quero saber os detalhes.


Vou te chamar no PV também!

[01:35] Leti: Não quis falar no grupo, mas


reencontrei o boy no aeroporto. Ele
mesmo! Michael G. Foster.
 

[01:36] Edu: O cara da mala trocada? Sério?!?


Conte mais sobre isso, miga!

[01:36] Clara: Vocês pegaram o mesmo voo de novo?


Eu não acredito em coincidências.

[01:36] Leti: Não, uai! Ele foi me buscar a


pedido da minha fofa. Os dois são irmãos.
Ela está morando na casa dele.

[01:36] Clara: Então ela não mora com


os pais? Que babado!

[01:37] Edu: Não me diga que vai ter que


dar conta dos filhos dele também? Isso
está me cheirando a família perigo.

[01:37] Leti: Sossega, Edu! O boy é viúvo


e não tem filhos...
 

[01:37] Edu: Hmmm. Menos mal.


Agora me diz, pintou um clima entre vocês?

(Mandei vários emojis revirando os olhos).

[01:38] Clara: Para com isso! Leti mal


chegou na casa e já está criando uma fic
dela com o boy da mala?

[01:38] Leti: Ele tem sido respeitoso


comigo.
Não rolou clima nenhum. Agora eu vou
dormir...

[01:38] Edu: Desculpe, amiga. Acabei me


empolgando...

[01:38] Leti: Tudo bem, migo.

 
[01:38] Clara: Não se esqueça de gravar
um tour pelo quarto e depois manda lá no
grupo... Bjos.

Eu sei que meus amigos torciam para que eu encontrasse um


boy para chamar de meu, e inclusive algumas au pairs me levaram
para as baladas de Boston e arredores, mas nenhum dos rapazes
demonstrou um interesse genuíno em me conhecer melhor. O bate-
papo era sempre entediante e cheio de segundas intenções, e
todos, sem exceção, perceberam que eu era virgem, devido ao meu
jeito tímido, ao contrário das meninas, que eram mais ousadas e
abertas para um envolvimento físico. Mas daí a insinuar que o irmão
da minha hosta era um parceiro em potencial, não passava de uma
suposição tola.
Um homem experiente e bem sucedido não me enxergaria
como outra coisa além da babá de sua sobrinha. Alguém que só
estava ali temporariamente, de passagem.
A cama tinha um monte de almofadas, por isso eu as
empilhei num canto, antes de me acomodar nela, em seguida ajeitei
o edredom macio sobre os ombros e fechei meus olhos, pronta para
relaxar e pegar no sono.
Se eu tivesse a sorte de conseguir dormir.

 
Capítulo 10
Letícia Mancini

Abri os olhos e pisquei várias vezes, despertando do que


pareceu ter sido um cochilo. Passei a olhar em volta, tentando me
situar no tempo e no espaço, à medida que os olhos se
acostumavam à claridade artificial que iluminava parcialmente o
quarto.
A mudança de ambiente costuma afetar a qualidade do sono.
Já era de se esperar.
Senti uma secura repentina na garganta e lamentei o fato de
ter esquecido de encher a garrafa de água da coleção Starbucks
Seattle.
O item foi confeccionado em vidro e tinha capacidade para
550ml, a arte era toda inspirada nos icônicos arranha-céus da
cidade. Aquela garrafinha foi incluída junto com uma caneca de café
original da loja da Starbucks, a primeira inaugurada do país, além de
outros mimos, como barras de chocolate locais famosas da Theo
Chocolates, Fran’s, Seattle Chocolate, e Dilettante, entre outras
iguarias exclusivas como as trufas de queijo de cabra, os figos
recheados com queijo de cabra e cobertura de chocolate,
caramelos, e uma variedade de guloseimas da Liberty Orchards,
conhecida por fabricar “os doces de frutas e nozes favoritos da
América”.
Havia mais objetos na cesta de boas-vindas, como um globo
de neve retratando a torre do Space Needle, juntamente com a roda
gigante de Seattle e os arranha-céus ao fundo, além de chaveiro,
cartões postais, itens de papelaria e uma ecobag.
Coloquei a cesta de volta na mesa de centro e saí do quarto,
pisando pé ante pé para não fazer barulho, ao descer as escadas
em formato de semicaracol, me guiando pela claridade suave
proporcionada pelos spots embutidos no teto. Cruzei a imensa sala
de estar e de jantar, até finalmente adentrar a cozinha, com sua ilha
central toda em mármore Calacatta. [20]
Havia algumas garrafas de água na geladeira inverse de
portas duplas. Peguei uma delas, destravei e enchi minha garrafinha
temática da Starbucks. Senti certa dificuldade com o sistema de
fechamento da garrafa de vidro, mas após alguns instantes de
esforço, eu finalmente consegui travar a tampa. Quando eu já
estava prestes a abrir a porta da geladeira, avistei um vulto
passando pelo espaço que integrava a cozinha à sala de jantar e
por pouco eu não derrubei a garrafa no chão.
— Quem diabos é você? — perguntei, com o tom da voz
elevando uma oitava, diante da possibilidade de confrontar um
possível delinquente, ou pior, um serial killer.
O sujeito parou de andar, e ficou estático, mas manteve a
cabeça abaixada, com o rosto escondido pelo capuz da peça. Ele
era alto e forte, o porte atlético todo moldado pela manga da jaqueta
de moletom cinza escuro, o que fez meu olhar se deter por mais
tempo no contorno dos músculos.
De repente, o meliante se virou e fez que iria avançar em
minha direção, mas eu agi rápido e usei toda minha força para
quebrar a garrafa de vidro na bancada.
— Nem pense em dar mais um passo — ameacei, apontando
o gargalo quebrado na direção dele.
— Abaixa isso, por favor — O sujeito levantou as mãos em
um gesto de rendição. — Sou eu, Michael — E dizendo isso, ele
levou a mão à cabeça, e baixou rapidamente o capuz, revelando o
rosto atraente, anguloso e com maxilar bem definido que eu
conhecia tão bem.
Michael continuou me encarando fixamente, os lábios
grossos e ostensivamente sensuais estavam entreabertos, talvez
inalando o ar para dentro dos pulmões, devido ao susto repentino
que eu causei.
Deixei o meu braço cair ao longo do corpo, o pedaço de vidro
se desprendeu lentamente da mão, antes de cair no chão com um
baque surdo.
— Me desculpe... — Eu murmurei, quase gaguejando, o meu
rosto já queimava de vergonha. — E-eu não sei o que deu em mim.
Mas já vou limpar essa bagunça — Eu me agachei e comecei a
recolher os cacos de vidro, mas um deles era maior e mais
pontiagudo, o que acabou provocando um corte na área entre o
polegar e o indicador.
O nervosismo sempre me fazia agir por impulso, e daquela
vez não foi diferente.
— Droga! — praguejei, baixinho, enquanto observava o
pequeno filete de sangue escorrendo. Como eu pude ser tão
imprudente? Justo eu que já atuei na área da saúde, deveria ter
pensado duas vezes antes de recolher os cacos de vidro com a
mão.
— Deixe-me dar uma olhada — disse ele, ao se abaixar ao
meu lado. Podia ser só impressão minha, mas achei que a voz dele
soou alterada, não sabia se era de preocupação ou aborrecimento.
E este último poderia ser referente a mim ou a ele próprio. — Foi um
corte superficial — acrescentou, avaliando atentamente o corte.
Minha pele se arrepiou ao simples toque quente e firme daquelas
mãos masculinas, seguido por um estremecimento involuntário, que
talvez não lhe passou despercebido.
— Eu entendo disso... já fiz estágio como auxiliar de
enfermagem.
Meu rosto ainda queimava de constrangimento, e tinha
evitado manter o contato visual com ele, até então. Contudo,
Michael estava próximo demais e não consegui resistir ao impulso
de observar melhor as feições marcantes dele. Notei que alguns fios
grudaram na testa devido ao suor, e as maçãs de rosto estavam
levemente avermelhadas. Era como se o que quer que ele tivesse
feito, exigiu algum esforço físico considerável.
Não era de se estranhar que um homem tão reservado e
misterioso tivesse o hábito de se exercitar até altas horas da
madrugada.
— Mais um motivo para não ser tão imprudente, Leti —
retrucou Michael de forma incisiva, me tirando dos meus devaneios
e provocando uma dor ainda mais incômoda do que aquela
provocada pelo corte. — Achou mesmo que algum ladrão invadiria a
minha casa?
— Eu mesma posso me virar sozinha — Eu afastei meu
braço de forma brusca, e me apoiei na lateral da bancada, antes de
me levantar do chão. — Basta me dizer onde fica o kit de primeiros
socorros, ok?
— Não queria soar grosseiro ao falar com você... Me
desculpe por isso.
Eu só me limitei a balançar a cabeça, fingindo não me
importar. Então, eu lhe dei as costas e segui até a pia, sentindo
meus olhos arderem, enquanto abria a torneira para lavar o
ferimento, e passei a observar o sangue descer pelo ralo,
distraidamente.
Pensei que o meu coração fosse sair pela boca, quando me
dei conta de que ele estava bem próximo a mim.
— A culpa foi toda minha... Eu me sinto péssimo por ter
causado toda essa confusão — Sentir a lufada de ar quente
provocada pelo hálito dele, fazia cada poro se arrepiar por todo o
meu corpo. O ponto sensível entre as pernas passou a se contrair,
dolorosamente. — Às vezes, eu entro pela porta dos fundos...
Eu tentei ao máximo manter o autocontrole, mantendo o olhar
fixo na torneira aberta, em vez dos lábios cheios e suculentos, que
pareciam querer implorar por um beijo tórrido.
O beijo de uma mulher experiente, alguém que eu estava
bem longe de ser.
— Tudo bem... Pode ir descansar, eu cuidarei de tudo aqui.
Foi um corte pequeno, nada que água e sabão não resolvam... Além
de um antisséptico e curativo, é claro.
— Então, use um pano para estancar o sangramento,
enquanto providencio os itens que me pediu... — sugeriu ele,
enquanto abria uma das gavetas do gabinete. — Eu não demoro —
acrescentou, ao estender o pano bordado em minha direção, o seu
olhar transmitia preocupação e certo remorso também.
Eu me ajeitei na banqueta alta, de madeira maciça e
estofada, enquanto pressionava cuidadosamente o tecido contra o
ferimento. De repente, eu ouvi passos atrás de mim e olhei por
sobre o ombro, no exato instante em que Michael adentrava a
cozinha, segurando a caixa de primeiros-socorros.
Para minha surpresa, ele puxou outra banqueta, em seguida
se sentou ao meu lado e retirou os itens necessários para fazer um
curativo.
— Michael, eu agradeço sua ajuda, mas não se incomode,
por favor — Tentei protestar, mas ele ignorou completamente o meu
comentário e segurou bem firme o meu antebraço, posicionando-o
em cima do móvel.
— É o mínimo que eu posso fazer por você, Leti. Ainda me
sinto culpado por tê-la assustado agora há pouco... — A voz dele
saiu baixa, mas com intensidade suficiente para fazer o meu corpo
inteiro estremecer, sutilmente.
Não tive outra escolha além de observar Michael pegar um
algodão com antisséptico e passar sobre o ferimento,
cuidadosamente para não magoar a pele, um gesto despretensioso
que me sensibilizou, sobremaneira.
— Eu parecia assustada, enquanto apontava o gargalo
quebrado, ameaçadoramente, em sua direção? — perguntei, com
um leve tom de divertimento na voz. Ele desviou a atenção do corte,
e me encarou diretamente nos olhos por uma fração de minuto, mas
que para mim pareceu uma eternidade.
Era quase como se o tempo tivesse congelado de tão intensa
que foi a nossa troca de olhares.
— Estou na dúvida entre dizer que foi muito corajoso de sua
parte ou que foi muita loucura de sua parte. Tudo indica que a
segunda opção se encaixa mais, não acha? — Ele fingiu seriedade,
seus olhos ainda fixos em mim, e com um brilho oscilando entre a
admiração e o desejo.
De repente, Michael fez um rápido movimento de cabeça e
voltou a se concentrar na finalização do curativo, mas reparei que os
fios parcialmente secos se desgrudaram da testa, revelando uma
pequena mancha avermelhada, um pouco acima do supercílio
direito.
— Acho melhor você passar alguma pomada anti-inflamatória
nesta mancha — sugeri, tocando o pequeno hematoma com a ponta
dos dedos. — Parece até que você andou brigando por aí... — Eu
nem bem terminei de falar, ele já soltou logo a minha mão, e se
levantou tão abruptamente, que por pouco não derrubou a banqueta
de madeira no chão.
Fez-se um silêncio pesado. Michael se afastou e começou a
recolher todos os cacos com o auxílio de uma pá e vassoura,
demonstrando não querer tocar no assunto que obviamente não me
dizia respeito.
— Bem, eu já vou indo... Muito obrigada por cuidar do meu
ferimento. — Eu me levantei e comecei a andar em direção à saída
da cozinha.
— Nunca fui muito adepto do treino de boxe convencional,
sabe? — Aquele comentário repentino dele me fez parar, e voltei a
encará-lo, aguardando uma explicação. — Eu me desafio sempre
em tudo o que faço e no esporte não seria diferente... Pratico boxe
intensa e sistematicamente até meu corpo não poder mais aguentar,
sempre testando até onde vai os meus limites. É assim que eu me
mantenho vivo nesses últimos anos: fazendo a dor física se
sobrepor a qualquer outra.
— Por que você está me contando tudo isso? — Levei
instintivamente a mão ao braço, esfregando a pele arrepiada. Não
esperava ouvir um relato tão verdadeiro e profundo, ainda mais se
tratando de algo tão íntimo. — A sua irmã desconfia de alguma
coisa? De minha parte, pode ficar despreocupado. Eu não contarei
nada.
— Kylie está quase se formando em Medicina. Esse tipo de
coisa não passa despercebido por médico nenhum. E como você
entende de enfermagem já deve ter ligado os pontos...
— Você não me deve nenhuma explicação, Michael — Eu me
aproximei da ilha e peguei minha garrafinha de água, antes de me
despedir. — Bom descanso, e se cuida.
— Eu digo o mesmo, Lexicia... — Ele errou meu nome só
para me provocar.
A minha única reação foi revirar os olhos, embora sorrindo
internamente e continuei seguindo em direção às escadas, cada vez
mais convencida de que Michael estava metido em algum clube de
luta clandestina.
Impossível não pensar no quão errado ele estava ao se
envolver naquele tipo de atividade, mas também me senti solidária à
dor dele, especialmente porque não me saía mais da cabeça as
suas últimas palavras: É assim que eu me mantenho vivo nesses
últimos anos: fazendo a dor física se sobrepor a qualquer outra.
 

 
Acordei cedo naquela manhã de sábado, mal contendo a
ansiedade em aproveitar bem o dia ao lado da Zoe. O nosso contato
se restringiu à festa de boas-vindas, na sala de jogos da mansão,
por isso eu estabeleci um cronograma de atividades ao ar livre, que
se estenderia até a semana seguinte, período em que as escolas
dos Estados Unidos suspenderiam as aulas.
A semana do “saco cheio” ocorria sempre no mês da
primeva, durante cinco dias, que variavam entre final de março e
início de abril, a depender do ano.
Eu só trabalharia oficialmente como au pair daqui a dez dias,
por isso eu me coloquei à disposição para entreter a Zoe durante os
dias de descanso, ao mesmo tempo em que poderia estabelecer um
vínculo maior com ela.
Tomei uma ducha rápida, então comecei a famigerada busca
por uma roupa adequada, já que nem tive tempo ainda de
desarrumar as bagagens. Espalhei algumas peças sobre a cama, e
depois de refletir por alguns instantes, acabei optando pela
simplicidade do conjunto de moletom, composto por top e calça
jogger. E para completar, eu escolhi um par de tênis brancos e um
cardigã para enfrentar o ar refrigerado do sistema de climatização
da residência.
Uma vez na cozinha, eu encontrei Kylie junto ao fogão,
parecia estar compenetrada na preparação dos ovos mexidos com
bacon, a julgar pelo aroma característico que circulava o ambiente.
— Bom dia, fofa! — saudei, com um sorriso, ao me posicionar
ao lado dela.
— Oh, muito bom dia, Lexa — Pelo visto, eu me tornei
oficialmente a xará de uma cantora e apresentadora brasileira bem
conhecida. — Eu estava tão distraída, que nem percebi sua
aproximação, acredita?
— Eu posso usar o forno elétrico? — perguntei, meio
receosa.
— Claro que sim! — respondeu ela, abrindo um amplo
sorriso, enquanto gesticulava na direção da bancada da cozinha
branca e chique. — Já disse que pode ficar à vontade, mesmo que
eu não seja a dona da casa.
— Zoe costuma acordar tarde, quando não tem aula? — Meu
olhar se deteve no monitor da babá eletrônica, posicionada em um
suporte sobre o móvel, proporcionando uma visão panorâmica do
quarto da criança. Ela estava deitada de lado na cama, com as
mãos unidas sob o queixo, o rosto meigo aparentava a tranquilidade
de quem se entregava ao sono profundo.
— Eu tento manter um horário regular para minha filha dormir
e acordar, mas nem sempre isso é possível... Acho que ela ainda
não se habituou à nova rotina, escola, casa, enfim... tudo ainda é
muito recente sabe?
— Eu lembro que você me contou que morou um tempo em
San Francisco...
Eu abri o freezer e peguei um dos cinco pacotes de pão de
queijo tradicional mineiro congelado, que havia comprado em um
supermercado de Boston, e distribui alguns pãezinhos numa
assadeira, antes de os levar ao forno elétrico para assar por 20 a 25
minutos, ou até que estivessem levemente dourados por cima.
Já estava habituada a pedir permissão para fazer quase tudo
na casa dos Evans. A alimentação era um tópico delicado, porque
eu não gostava da comida que eles comiam, que se limitava
basicamente aos pratos congelados, industrializados, além do
famigerado fast-food. Se eu consegui manter uma alimentação
balanceada foi graças à coordenadora do programa, que lembrou a
eles que cabia às famílias anfitriãs atenderem as necessidades
básicas das au pairs, garantindo o bem-estar delas até o fim do
contrato.
— Não entrei em detalhes sobre os motivos de ter voltado
para Seattle, mas basicamente o meu ex-noivo me traiu e tirou
quase tudo de mim — comentou Kylie, de repente, sem desviar o
olhar da frigideira. Seu rosto estava contraído, transparecendo
grande mágoa e ressentimento. Eu logo notei uma lágrima sorrateira
ameaçando cair, mas ela piscou os olhos e deu um longo suspiro.
— Você pode desabafar comigo quando quiser, fofa — falei,
ao colocar minha mão no ombro dela de modo reconfortante.
— Você que é uma fofa, sabia? — Kylie se permitiu um breve
sorriso. — Eu fiquei um tempo afastada de Seattle, e agora que
voltei, parece que não consigo me entrosar com ninguém, por mais
louco que isso possa parecer.
— Eu imagino como se sente, mas não se cobre muito por
isso — Dei uma boa olhada nos ovos mexidos com bacon. — Esse
cheiro me deu até água na boca!
— É muito bom saber disso, porque eu estou morrendo de
fome! — Suspendi a respiração por uma fração de segundo, quando
reconheci a voz marcante do irmão dela. — Bom dia, meninas —
Michael nos cumprimentou, enquanto abria um dos armários
suspensos. — Senti um aroma diferente no ar, assim que eu entrei.
Posso saber do que se trata?
— Deve ser alguma iguaria brasileira — supôs Kylie,
enquanto despejava o conteúdo da frigideira num prato oval grande.
— Pão de queijo, original de Minas Gerais, Estado onde eu
orgulhosamente nasci — expliquei, enquanto calçava a luva térmica,
em seguida abri o forno, e tirei de dentro dela a assadeira de inox.
— Oh, então está ligado a uma memória afetiva. Mas isso é
mesmo incrível!
— Às vezes o cheiro promete tudo, mas o gosto não entrega
nada... — comentou ele, usando um tom claramente provocativo, ao
cruzar os braços sobre o peito, enquanto me observava distribuir os
pãezinhos numa travessa redonda de cerâmica.
— Não se cansa de destilar o seu mau-humor irritante, não?
— Kylie ironizou, fazendo uma careta engraçada. — Para com isso,
hoje é sábado!
Nós três nos sentamos à mesa, e nos servimos de café, suco
de laranja, frutas variadas, ovos mexidos com cogumelos e bacon,
além panquecas com calda, waffles, pães de queijo mineiro, e
torradas.
Em determinado momento, Kylie e Michael decidiram provar
os pãezinhos, e passei a observar a menor reação deles, cheia de
expectativas.
— E aí? Gostaram? — Levei a xícara aos lábios e dei um
longo gole de café, fingindo uma aparente naturalidade.
— Sobre o pão de queijo... — começou Michael, fazendo um
certo suspense. — Para ser sincero eu achei bem borrachudo,
sabe?
Afastei a xícara dos lábios e a deixei sobre a mesa, não sem
antes dirigir um olhar de desdém na direção dele, não sem antes
ceder ao impulso de revirar os olhos.
— Sabe, eu acho o café que vocês fazem bem aguado —
rebati, em tom mordaz. — E sobre o pão de queijo, a massa é
crocante por fora e macia por dentro. Eu avisei que deveria ter
começado por ele, quando ainda estava quente.
Michael não demonstrou nenhuma emoção, mas pressenti
que ele estava rindo internamente, como se divertisse às minhas
custas. Era irritante reconhecer que ele conseguiu me tirar do sério,
mas também não era para menos: Ele teve a audácia de colocar
defeito no melhor pão de queijo do mundo.
O silêncio se fez presente por alguns instantes, mas foi logo
quebrado pela irmã dele: — Para ser sincera, sendo mastigável, eu
vou comer com o maior prazer.
— Olha, eu não disse que achei ruim, ok? — Na mesma hora
ele enfiou outro pão de queijo na boca, mantendo os cotovelos
apoiados na mesa, e as mãos entrelaçadas diante do rosto,
enquanto mastigava bem devagar, com a expressão mais cínica do
mundo.
— Eu não falei que odiava tomar café ralo e sem gosto... —
Eu dei de ombros, fingindo indiferença, e mordi outro pãozinho de
queijo, com ar triunfante.
— Parece que o clima entre vocês é de "guerra fria" — Kylie
comentou, enquanto se levantava da mesa. — E por falar em guerra
fria, eu preciso partir para a minha batalha diária, porque o inimigo
não descansa nunca. Impressionante!
— O que seu chefe aprontou dessa vez? — Michael soltou
uma risada abafada.
— Eu me tornei um alvo predileto daquele médico arrogante.
Não há um só dia de rotação clínica, sem que a minha paciência e
resiliência sejam testadas — Ela contornou a mesa, pegou o monitor
da babá eletrônica, e o estendeu em minha direção. acrescentou
com expressão consternada: — Zoe ainda não acordou, e estou
devendo a ela um beijo de bom dia, mas hoje eu não posso me
atrasar. Vejo vocês mais tarde — Ela se despediu com um aceno e
saiu apressada da cozinha.
— A minha irmã só atende chamadas ou responde
mensagens, em caso de emergência — Michael informou, ao ficar
de pé, e enfiou as mãos nos bolsos da calça social. — Eu me
responsabilizo pela Zoe na ausência dela, então se precisar de
qualquer coisa, não hesite em falar comigo. Estarei no meu
escritório, em trabalho remoto.
Ele lançou um último olhar carregado de magnetismo e me
deixou à sós, com minha mente em um turbilhão de pensamentos
conflitantes.
Acho que conviver com Michael não será uma tarefa tão
difícil assim — falei para mim mesma, tentando imprimir um tom
animador à voz, mas as palavras soaram pouco convincentes até
para os meus próprios ouvidos.
Ledo engano.
Eu me esbarrei no irmão da minha hosta várias vezes ao
longo do dia.
Michael apareceu na cozinha, no momento em que eu
preparava o meu almoço e o da Zoe. Sim, a minha menina preferiu
comida feita na hora ao invés de prato congelado ou delivery. Até
considerei chamá-lo para se juntar a nós duas, mas então eu me
lembrei que os americanos não tinham o hábito de almoçar. Eles
optavam sempre em fazer um lanche rápido. Meu hosto preparou
um Reuben, um sanduíche popular no país, que combinava
pastrami com queijo suíço e chucrute.
Horas depois, a Zoe quis assistir a um filme de animação da
Disney e nós duas nos sentamos no sofá de uma das salas,
adjacente à área de recreação e da academia completa,
acompanhadas por dois baldes de pipoca. Porém, eu não consegui
prestar atenção nas cenas, porque Michael resolveu passar mais de
quarenta minutos, levantando pesos e correndo na esteira, com sua
roupa de treino: camiseta de malha slim, ajustada ao corpo e short
de tecido leve.
Observei disfarçadamente cada um de seus movimentos. Um
prazer indescritível queimou cada célula do meu corpo, enquanto
comia devagar a pipoca, os meus olhos passearam desde os
ombros largos, passando pelos músculos bem desenhados do
peitoral, bíceps e tríceps, sem contar o abdome bem trincado,
formando os gominhos.
Aquele milionário deveria pagar um imposto adicional por ser
tão gostoso.
 
Capítulo 11
Michael Foster

Girei as baquetas entre os dedos, antes de bater uma na


outra e dar início à execução da música Drain You, da banda
Nirvana, na minha bateria acústica.
Senti meu coração bater depressa, enquanto alternava as
batidas no prato e na caixa, um tambor que produzia um som mais
agudo e seco, enquanto pressionava e soltava rapidamente o pedal
do bumbo e acompanhava as marcações pelos fones de ouvido.
Aquela música descrevia com exatidão a minha relação com
Susan.
Um relacionamento marcado por exigências de minha parte e
conceções da parte dela. Eu exigia de minha esposa mais do que
eu estava disposto a dar. Ela se sentiu compelida a interromper a
carreira, para se dedicar integralmente à maternidade.
Eu era o parceiro egoísta retratado na música, que se
beneficiou com o sofrimento causado à mulher. Porém, ao contrário
dele, eu aprendi a lição da pior maneira possível: com uma viuvez
precoce.

♫ Um “bebê” diz para o outro: "Tenho sorte de ter


conhecido você".

Eu não me importo com o que você pensa, a menos que


seja sobre mim. ♫
Suor brotava da minha testa e escorria pela lateral do rosto,
as bochechas queimavam, e nem o ar condicionado da sala foi
capaz de reduzir a temperatura corporal.
Uma inexplicável onda de calor me invadiu à medida que
mais lembranças emergiam na superfície.
O obstetra mostrou o recém-nascido rapidamente, pois a
condição de saúde dele exigia cuidados imediatos, na UTI Neonatal.
Aparentemente, ele estava fora de perigo, mas ainda faltava reverter
o quadro de choque hemorrágico de Susan.

“Quadro grave de HPP[21]. Proceda à infusão endovenosa


rápida de 10 UI de ocitocina.”
Eu entrei em desespero ao ver o rosto dela ficando azulado,
enquanto dizia que mal conseguia respirar, que tinha medo de partir
sem ver nossa filha.
“Eu não quero morrer...”
“Shhh. Não diga isso, amor. Tudo vai correr bem.”

♫ Agora é meu dever drenar você completamente.


Eu drenei toda a força vital dela.
“Paciente apresenta respiração ausente, e sem pulso central
palpável.”
“Iniciar RCP com compressões torácicas, imediatamente!”

♫ Viajar através do tubo Que termina na sua infecção ♫


“O senhor vai ter que aguardar lá fora. Sinto muito.”
Passei a respirar com dificuldade, o muco já se avolumava
nas narinas, e se juntou às lágrimas e ao suor que deslizavam pelo
meu rosto, enquanto marcava o ritmo da música pisando no pedal e
produzindo o som grave, característico do bumbo: Bum, Bum, Bum,
Bum, Bum, Bum, Bum, Bum.
“Estamos perdendo a paciente, doutor”.
Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum.
Continuei golpeando a borda do prato de ataque, o chimbal, e
a cúpula do prato de condução, mas dando atenção especial para
as crescentes entre surdo, tom e bumbo.
Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Crash, Bum,
Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Crash, Bum, Bum, Bum,
Bum, Bum, Bum, Bum, Bum.
(...)

♫ Você, Você, Você, Você, Você. ♫


Os meus olhos ardiam com as lágrimas abundantes, mas eu
continuei investindo furiosamente as baquetas contra o instrumento,
durante o 3º refrão da música: (...)

♫ Agora é meu dever drenar você completamente.


Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Crash, Bum,
Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Bum, Crash, Bum, Bum, Bum,
Bum, Bum, Bum, Bum, Bum.
“Preciso vê-la, nem que seja para dizer adeus, abraçá-la e
dar um beijo. Por favor, eu suplico!”

♫ Em um beijo apaixonado Da minha boca para a sua ♫


Nem mesmo uma histerectomia de emergência foi suficiente
para parar o sangramento que durou aproximadamente duas horas.
“Paciente arresponsivo, doutor!”
Seguiu-se um silêncio tenebroso, quebrado apenas pelo som
intermitente do monitor cardíaco, cada vez mais espaçado: BIP –
BIP - BIP – BIP. BIIIIIIIIIII Susan sangrou até a morte.
O que eu fiz era imperdoável.
Carregaria o peso da culpa até o fim dos meus dias.
Parti para a execução final da música, batendo os tambores e
os pratos com tanta força, e gerando uma descarga intensa de fúria,
o que fez meu coração disparar, o suor brotava por todos os poros,
o sangue fervilhava nas veias, a respiração saía ofegante pelas
narinas, e meu rosto se manteve contraído, com a mandíbula
cerrada.
Joguei minha cabeça para trás e fechei os olhos, tomado pelo
frenesi da carga sonora da música, enquanto golpeava o prato de
ataque repetidas vezes com as baquetas, provocando um som alto
e de longa duração, o som de "splash” reverberou pela sala,
finalizando assim a reprodução dela.
Eu me levantei do banco com um salto e atirei as baquetas
no chão.
Passei a andar de um lado para o outro, com as mãos
cruzadas atrás da cabeça e o rosto quase batendo de encontro ao
peito, dando livre curso às lágrimas, uma sensação de completo
desamparo se abateu sobre mim com a força de um tsunami.
O contato com minha filha durou aproximadamente cinco
minutos, tempo cronometrado para a despedida, afinal a médica
responsável pela UTIN foi taxativa ao dizer: “Não tenha esperanças,
Sr. Foster”.
Só me foi permitido tocar no bracinho dela, sentindo a pele
fria, fina e frágil entre meus dedos, enquanto contemplava o rosto
angelical coberto pela máscara, uma sonda gástrica passava pela
boca entreaberta, e o peito coberto por eletrodos ligados a um
aparelho, subia e descia de forma espaçada.
Jurei nunca mais adentrar uma maternidade, a partir daquela
data.
Tanto a família de minha esposa quanto eu decidimos de
comum acordo atender ao último desejo dela, já que Susan em vida
nunca escondeu a preferência em ser cremada para que suas
cinzas fossem espalhadas pelo espaço. Os restos mortais da nossa
anjinha também foram armazenados na cápsula, cujo material seria
totalmente consumido ao completar sua viagem na órbita da Terra, o
que poderia levar meses ou até mesmo anos.
Formada em bioquímica e biofísica molecular, Susan sempre
nutriu o sonho de ser astronauta. O doutorado em engenharia
biológica pelo MIT garantiria sua participação no processo seletivo
da NASA, mas ela abdicou desse sonho para realizar o meu,
suportando um longo e difícil tratamento para conseguir engravidar.
Minhas pernas cederam e eu caí de joelhos no chão,
entregue à dor imensurável da dupla perda, que voltava a cada
lembrança daquele dia fatídico.
Eu condenei minha mulher a uma gestação de risco, que
ceifou sua vida, e consequentemente, resultou em uma recém-
nascida em processo de morte. De repente, uma pontada aguda
pressionou minha cabeça, o peito queimava como se tivesse sido
atingido por um ferro em brasa, a garganta subitamente se fechou,
não me dando outra escolha além de dar vazão à imensa vontade
de chorar, enquanto curvava o meu corpo até deixá-lo em posição
fetal.
Talvez o meu cérebro tenha se desligado, temporariamente,
me levando a um desmaio. De repente, eu senti o que parecia ser
um toque suave em meu ombro. A minha cabeça doía tanto, que me
custou muito abrir os olhos, por isso eu pisquei várias vezes até
conseguir focar a visão em duas silhuetas femininas, curvadas
diante de mim.
— Tio Mike! Você está dodói? — Havia uma nota de
preocupação na voz da minha sobrinha.
— Como se sente? — Letícia encostou a mão com suavidade
em minha testa.
— Eu estou bem... — Apoiei uma das mãos no chão, e ergui
o corpo lentamente até me sentar, embora ainda me sentisse
entorpecido pelo “apagão” temporário. — O que fazem aqui? —
Minha voz soou mais ríspida do que eu gostaria.
— Zoe e eu ficamos preocupadas com você. — E dizendo
isso, ela se posicionou ao meu lado, cruzando as longas pernas em
posição de lótus, e fez um sinal para a menina se sentar no colo
dela. — Kylie me enviou uma mensagem, informando que já está a
caminho. Espero que não se importe de eu ter preparado o jantar...
— Meu Deus! — Consultei o relógio de pulso, e constatei que
já passava das 6:30 da noite. Eu me esqueci completamente que
minha irmã e eu tínhamos o hábito de pedir delivery de comida aos
finais de semana. — Mas essa não é a sua função, Lexicia.
— As pessoas no meu país costumam dizer que “Onde come
um, comem dois; onde comem quatro, comem dez.”
Zoe inclinou o rosto e fixou seus expressivos olhos azuis
sobre mim, curiosa.
— Você andou chorando, tio. — Aquela era uma afirmação;
não uma pergunta.
Não queria que ela me olhasse como se eu fosse alguém
digno de pena.
Nem precisaria encarar o meu reflexo no espelho para notar
os cabelos desgrenhados, os olhos injetados e lacrimejantes, além
do rosto todo convulsionado pelo meu descontrole emocional de
agora há pouco.
Letícia também me encarava, seu olhar transmitia empatia e
compaixão, mas eu não me sentia merecedor de sentimentos tão
nobres, por isso eu virei meu rosto bruscamente, com um nó
asfixiante na garganta.
Forcei uma tosse seca para resguardar o pouco da dignidade
que me restava.
— Existe algo que eu possa fazer por você? — perguntou
Letícia, com cautela. Talvez me deixar aqui sozinho. Era exatamente
a frase que havia pensado em dizer, mas acabei ficando em
silêncio.
— Quando tio Mike chora muito é porque sente muita falta de
tia Susan. — Eu voltei a encarar minha sobrinha, com uma das
sobrancelhas erguida, surpreso com aquela declaração inesperada.
— Eu também choro sempre que me lembro do papai. Mamãe disse
que ele foi para bem longe, Titi. Não sei quando volta...
Um músculo se contraiu no maxilar só de relembrar aquele
desgraçado.
— Mas tia Susan foi para um lugar mais longe ainda, sabia?
— A menina voltou a falar, com aquela genuína inocência. — Ela
está flutuando no espaço!
— Jura? — perguntou a jovem, arqueando uma das
sobrancelhas. — Então a gente pode ir lá fora mais tarde. Talvez a
gente consiga ver a sua tia flutuando no céu estrelado. — E dizendo
isso, ela aconchegou ainda mais a criança contra o peito. — Se o
seu tio permitir, é claro. — Ela direcionou um olhar indeciso para
mim, mas eu apenas concordei com um gesto de cabeça e me
permiti dar um breve esboço de sorriso.
— E você, Titi? Do que mais sente falta? — perguntou minha
sobrinha, com a cabeça apoiada no côncavo do braço da babá.
— Bem, eu sinto muita falta dos meus pais... — A voz de
Letícia falhou. Então, ela emitiu um pigarro seco, enquanto se
ajeitava nervosamente no chão.
— Mas só tem três meses que você saiu do Brasil, não? —
Abracei meus joelhos e a estudei atentamente, ansiando poder
saber mais sobre a vida pessoal dela.
— Eles também partiram, Michael... — Ela não conseguiu
conter mais as lágrimas. — Só que ao contrário da sua esposa, os
meus pais não estão flutuando no espaço. Mas sinto que, onde quer
que eles estejam, eles sempre vão olhar por mim.
— Não chora não, Titi. Você não está mais sozinha —
sussurrou minha sobrinha, ao passar os bracinhos em volta de seu
pescoço. Depois, ela se afastou um pouco, apenas o suficiente para
me puxar pela manga do casaco. — Tio Mike, você também não
está só... — prosseguiu enumerando com os dedinhos cada
membro da nossa família. — Tem eu, tem a mamãe, tem o tio Max,
além do vovô e da vovó.
— Eu sei disso, princesa. — Eu estiquei meu braço e passei
a acariciar o cabelo da Zoe, com suavidade, enquanto um sorriso
tímido se formava nos lábios dela.
Minha sobrinha estava coberta de razão. E apesar de ser
apenas uma criança, ela já tinha um entendimento claro e sagaz
sobre tudo o que acontecia à sua volta.
Meus entes queridos prezavam pela minha existência, e não
era justo puni-los com meu isolamento e negligência emocional.
Talvez a Zoe tem sido a pessoa que mais sofreu na minha
família.
A ausência do pai só ganhava força, ainda que para ela fosse
algo temporário.
— Quero propor então um abraço coletivo. Que tal? —
Sugeri, ficando imediatamente de pé, e estendi meus braços num
convite para elas se juntarem a mim.
— Tio Mike, não me leve a mal... — Zoe encolheu os ombros,
constrangida. — Titi, por favor, me ajuda! — sussurrou, no ouvido da
babá. O que será que deu nela?
Letícia também ficou de pé e pegou a menina no colo, antes
de ajeitar as pernas dela ao redor de sua cintura.
— Talvez seja melhor você tomar um banho antes. Mas é só
uma sugestão, ok?
— Estou fedendo tanto assim? — Puxei a gola do casaco e a
encostei no nariz para conferir se estava com mau odor. — Estou
fedendo a suor mesmo — constatei, fazendo uma careta
autodepreciativa, o que provocou uma sonora gargalhada nas duas.
— Tire um tempo para se recompor... — Letícia sugeriu, com
um sorriso matreiro estampado no rosto. — A gente se encontra na
sala de jantar.
— Titi fez um risoto delicioso — informou minha sobrinha, ao
unir os dedos na frente dos lábios, indicando com esse gesto que o
prato estava de dar água na boca.
— Você tem sido muito gentil, Leti. Mas por tudo o que é mais
sagrado, não desempenhe tarefas que não são atribuições de uma
au pair, ok? Não convém cozinhar para toda a família, entende?
Daqui a pouco, a sua coordenadora aparece aqui e nos dá uma
bronca daquelas!
— Eu sei bem quais são as minhas atribuições. Não precisa
se preocupar. — Notei os lábios cheios e suculentos abrirem um
sorriso cordial.
— A Titi não vai mais fazer lanche pra mim? — Zoe fez um
muxoxo.
— Não foi isso o que eu quis dizer, Zoe. — Eu me apressei
em dizer, ao tentar sufocar o riso. — Ela vai continuar preparando
suas refeições e os seus lanches normalmente.
— Ufa! — Deu um longo suspiro. — Agora eu entendi.
Eu observei as duas saírem da sala de música, nutrindo uma
sensação reconfortante. A presença de Letícia se tornou um divisor
de águas na vida da minha sobrinha, e de certa forma amenizava
um pouco a falta da mãe dela por não estar fisicamente próxima
durante a maior parte do dia.
A minha casa se tornou um novo lar para Kylie, mas era
sombria demais para abrigar uma criança de três anos de idade,
além de sua babá estrangeira. As dependências da mansão ― com
seu mobiliário produzido em madeira nobre de tonalidade escura ―
só ampliava aquela sensação mórbida de vazio, de tristeza e de
melancolia, ainda mais opressor para elas. O mais triste de tudo
isso era que minha mulher, em vida, promovia eventos beneficentes
e recebia os amigos e familiares em diferentes espaços da casa,
contagiando a todos com sua alegria e vivacidade.
Talvez a missão de Letícia seja trazer um pouco de cor para a
vida da Zoe.
E, consequentemente, ela acenderia uma luz em minha
escuridão.
 
Capítulo 12
Michael Foster

Encontrei Letícia sentada no sofá de 2 lugares, que fazia


parte de um conjunto de móveis resistentes ao sol e à chuva, e
dispostos ao redor da lareira externa de aço inoxidável, em formato
circular, e com funcionamento à base de etano, algo mais moderno,
pois não produzia fumaça e nem aquele odor característico das
lareiras tradicionais.
Refleti por alguns instantes, tentando deliberar em minha
consciência se seria prudente eu me aproximar do lounge e
estabelecer uma conversa trivial com a au pair.
O mais curioso era que as babás anteriores da Zoe sempre
voltavam para suas respectivas casas, no final do expediente. Então
era, no mínimo, desconcertante, saber que eu poderia me esbarrar
com Letícia a qualquer hora do dia ou da noite, em minha própria
casa. E, como se isso não bastasse, o episódio da troca de malas e
o posterior reencontro no aeroporto simbolizavam que nossos
caminhos estavam estreitamente conectados. Aqueles
acontecimentos poderiam passar despercebidos por mim, se não
tivesse que lidar com a presença constante de alguém que me
atraía tanto fisicamente.
Havia uma força misteriosa que me levava a estar perto dela.
Letícia ajeitou a manta que cobria os ombros, totalmente
alheia à minha presença, uma vez que manteve o olhar fixo, e um
tanto perdido, nas chamas crepitando entre as pedras vulcânicas.
Os olhos verdes apresentavam aquele brilho inocente que me
hipnotizava toda vez que eu tentava mergulhar em direção às
profundezas tempestuosas deles.
Soltei o ar nos pulmões e limpei a garganta, antes de me
aproximar do lounge.
— Boa noite, Leti. Posso me sentar ao seu lado? —
perguntei, com cautela, mas acabei me arrependendo, assim que
ela ergueu os olhos com uma expressão assustada no rosto.
— Claro... Fique à vontade — murmurou, ao fazer um gesto
vago com a mão.
Eu me acomodei no sofá, mas deliberadamente mantive certa
distância dela.
— Você e Zoe conseguiram ver as estrelas? — perguntei,
enquanto olhava para o céu escuro.
— Não conseguimos ver nada, mas amanhã faremos uma
nova tentativa.
— Eu faço isso todas as noites... — Abaixei minha cabeça e
virei o rosto na direção dela, então nossos olhares se encontraram e
se detiveram um no outro, como se um imã gigantesco nos atraísse,
com a sua força esmagadora.
— É muito doloroso perder quem a gente ama. E no meu
caso, tudo aconteceu da maneira mais cruel e inesperada possível...
Eu nem mesmo tive a chance de poder me despedir dos meus pais,
sabe?
— Você ainda estava vivendo aqui, nos Estados Unidos? —
Eu franzi a testa um tanto surpreso e confuso.
— Naquela época eu tinha completado nove meses de
intercâmbio, e tomei a decisão de renovar por mais 12 meses. O
pedido de extensão[22] deve ser feito com antecedência, para dar
tempo de receber um novo visto antes que o anterior vença. Só que
passados três meses, tudo virou um caos, com o avanço da
pandemia.
— Então achou mais prudente voltar, devido à incerteza dos
desdobramentos futuros?
— Com certeza — confirmou ela, assumindo uma expressão
pensativa. — Além disso, eu senti um mau pressentimento, não sei
explicar muito bem... O fato é que, se acontecesse alguma coisa
durante o meu segundo ano, eu ficaria impossibilitada de sair do
país. E eu jamais me perdoaria por isso, entende?
— Ficaria impedida de visitar a sua família? Mas isso é um
absurdo!
— Mas às vezes eu me pergunto, se eu fiz mesmo a escolha
certa... — comentou ela, de repente, desviando o olhar para o chão.
— Quando eu cheguei em casa, os meus tios deram a notícia da
internação dos meus pais e foi daí que o meu mundo desabou — A
voz saiu embargada pelas lágrimas que lhe preenchiam os olhos. —
Os médicos não me deram permissão para visitá-los no hospital...
Apesar do teste ter dado negativo, eu fui obrigada a ficar em
isolamento por 14 dias. Não me conformava em manter contato com
eles apenas por chamadas de vídeo — Ela se inclinou para a frente,
apoiou os cotovelos nos joelhos, e o rosto banhado em lágrimas
entre as mãos. — Foi doloroso demais não poder abraçá-los, e
beijá-los novamente... Não esperava ter que me despedir dos meus
pais daquela forma...
Senti um impulso inesperado de puxá-la para confortá-la em
meus braços, mas me contive a tempo, e me limitei apenas a apoiar
a mão no ombro dela.
— Eles contraíram a forma mais grave da doença?
Letícia confirmou com um gesto de cabeça de modo quase
imperceptível, em seguida respirou bem fundo, endireitou o corpo e
me encarou, assumindo uma expressão sombria no belo rosto
convulsionado de lágrimas.
— Os dois precisaram ser entubados, mas não resistiram...
— murmurou, enquanto esfregava o rosto para afastar as lágrimas
abundantes. — Eu os perdi para a Covid dias depois, e com poucas
horas de diferença, Michael. Nunca vou me perdoar por ter passado
tanto tempo longe deles... havia tanta coisa a ser dita, momentos
não desfrutados, saudades acumuladas...
— Eu também me senti assim, quando perdi a minha esposa
e nosso bebê...
— Ela teve complicações durante o parto?
— Susan sofreu um choque hipovolêmico resultante de
hemorragia logo após a cesariana. Nem mesmo a histerectomia e
as múltiplas transfusões de concentrados de hemácias, plasma,
plaquetas e medicamentos puderem evitar que ela viesse a óbito. A
bebê era extremamente prematura e acabou morrendo, horas
depois, na UTI neonatal...
As minhas mãos tremeram de súbito, e precisei esfregá-las
uma na outra.
— Sinto muito... — Foi tudo o que ela conseguiu dizer, em um
sussurro.
— Jurei nunca mais adentrar uma maternidade, a partir
daquela data Eu levantei meu rosto e a encarei, surpreso, assim que
senti o toque suave da mão dela, que se agarrava firmemente à
minha, como que para transmitir algum consolo. A pele dela era
quente e macia, elementos suficientes para gerar um profundo bem-
estar, seguido por uma onda de calor reconfortante e um tremor
involuntário da cabeça aos pés.
— Eu digo o mesmo sobre sua perda. — Tomei a mão dela e
a apertei, com firmeza. — Não se culpe, Letícia. Aconteceu o que
tinha que acontecer.
— Não se culpe, Michael — repetiu ela, olhando bem no
fundo dos meus olhos, seu semblante demonstrava uma
preocupação genuína por mim, talvez em decorrência do momento
em que me viu prostrado no chão, após minha última crise
emocional.
Deixei escapar um longo suspiro, enquanto as lágrimas
ameaçavam brotar nos olhos, mas eu pisquei depressa para afastá-
las e endireitei meu corpo, nutrindo um súbito mal estar.
Letícia afastou a mão dela e fez menção de se levantar,
murmurando: — Já está ficando tarde, e pretendo acordar cedo
amanhã para poder aproveitar bem o domingo... — Ela se levantou
lentamente, enquanto ajeitava a manta sobre os ombros. — Boa
noite.
Não sei o que deu em mim, mas eu fiquei de pé e segurei na
mão da au pair, antes que ela pudesse se afastar. Simplesmente me
veio uma vontade irresistível de convidá-la para um simples passeio
de bicicleta ou uma corrida no parque.
Qualquer que fosse o lugar, eu me sentiria mais do que
satisfeito em estar na companhia dela, a única pessoa capaz de me
fazer esquecer um pouco de mim mesmo e das velhas dores que
carregava no fundo da alma.
— Você tem algo em mente para fazer pela manhã? —
perguntei, um tanto afoito, o que de certa forma a surpreendeu um
pouco.
— Não sei... Talvez dar um passeio...
— Você também aprecia uma corrida matinal para começar
bem o dia?
— Eu me descuidei um pouco nos últimos meses... —
respondeu ela, encarando o chão, constrangida. — Acho que estou
fora de forma.
— Prometo que vai ser só alguns minutinhos de um percurso
tranquilo, Leti — assegurei, esboçando um sorriso encorajador para
ela. — Estamos na primavera, ocasião perfeita para percorrer a
trilha das cerejeiras em flor do Washington Park Arboretum.
— Nós dois? Sozinhos? — perguntou ela, com uma
expressão assustada nos olhos verdes.
— Kylie detesta acordar cedo aos domingos, então só restam
os meus dois cachorros, um golden retriever e um bulldog francês,
para nos acompanhar...
— E a sua sobrinha não conta? Quando foi a última vez que
levou a Zoe para dar um passeio no parque? — indagou Letícia,
mas antes que eu pudesse abrir minha boca para responder, ela
prosseguiu logo em seguida: — Você precisa se comprometer a
passar um tempo a sós com ela, Michael. Quanto mais se distancia
de sua sobrinha, mais ela vai se sentir rejeitada. Me desculpe a
sinceridade, mas a vida da Zoe foi virada de ponta-cabeça e ela é
apenas uma criança. Você se tornou a única referência masculina
disponível.
Fechei os olhos, tomado por uma onda de culpa e remorso, e
instintivamente fechei os punhos até sentir dor na junta entre os
dedos.
— Não precisa ficar esfregando isso na minha cara, Leti. —
Eu meneei a cabeça e acrescentei, com amargura: — Eu, mais do
que ninguém, tenho consciência de que falhei como filho, tio, irmão,
marido...
Senti repentinamente o toque suave da mão dela em meu
braço, o que me fez voltar à realidade, livre das amarras do lado
obscuro da mente.
— Eu penso que nunca é tarde para retomar o vínculo com
quem a gente ama, Michael...
Aquele comentário tocou em um ponto tão sensível para mim,
que quase me levou a uma atitude impensada: segurar naquele
rosto meigo dela. Eu até cheguei a erguer meu braço, que ficou
paralisado no ar por alguns instantes, mas apenas me limitei a levar
a mão à nuca, e esfreguei a base, disfarçadamente.
— Obrigado, Leti... Durma bem — Foi tudo o que consegui
dizer, num sussurro.
— Boa noite e bom descanso.
Eu a observei se afastar, mal não acreditando no que estava
prestes a fazer.
Decerto que eu tocaria aquele belo rosto de traços delicados,
mas e depois?
Pressionaria os meus lábios aos dela, para sentir a textura e
o sabor deles.
— Puta que pariu! — praguejei, em voz alta, enquanto
passava a mão pelos cabelos, sentindo um misto de impotência e
frustração, ao mesmo tempo. — Isso seria errado em tantos níveis.
Eu precisava esfriar a cabeça e racionalizar tudo o que
estava sentindo.
No corredor a caminho do quarto, eu me deparei com minha
sobrinha andando pé ante pé, em direção ao sótão, e a chamei pelo
nome, em voz alta.
— Zoe! — Chamei de novo, correndo ao encontro dela. —
Aonde pensa que vai? — perguntei, curioso, ao cruzar os braços
sobre o peito. — Não é hora de criança estar fora da cama.
— A mamãe não quis ler uma história para mim — protestou
ela, apertando com força a boneca de pano de encontro ao peito. —
Ela disse que precisa estudar. Prefere os livrões dela aos meus
livrinhos. — Esfregou os olhos marejados com a mão livre, a
expressão cabisbaixa ocultando a tristeza. — Só que não consigo
mais dormir.
— Mas eu posso ler para você. — Tentei imprimir à voz um
tom animador, mesmo sem muita convicção ou vontade.
— A Titi já faz isso de bom grado. — E dizendo isso, ela me
deu as costas e saiu andando, apressadamente.
— O expediente da au pair já encerrou por hoje, Zoe. Ela
deve estar dormindo agora.
Eu quase havia me esquecido de que ela era tão teimosa
quanto a mãe.
Zoe continuou me ignorando, enquanto subia degrau por
degrau, segurando bem firme no corrimão, munida de sua teimosia
infantil irritante. Quando eu finalmente a alcancei, senti o coração
parar por uma fração de segundo até disparar, batendo
furiosamente dentro do peito.
Ela bateu na porta uma vez e esperou. Não houve resposta.
Bateu de novo.
— Eu não te disse que Letícia estava dormindo? — Fiz
menção de puxá-la pelo braço, mas ela recuou de modo brusco.
Imprimi à voz um tom de voz baixo, mas suficientemente incisivo. —
Zoe, vamos embora. Agora.

Eu já estava prestes a descer as escadas, achando que


minha sobrinha me seguiria logo atrás, mas ela simplesmente girou
a maçaneta da porta e entrou de rompante no quarto da au pair.

— Titi! — gritou na maior empolgação. — Onde você está?

Lancei um longo olhar em torno, mas não vi a jovem babá em


parte alguma. Como Zoe parecia confusa, andando de um lado para
o outro, eu rapidamente me adiantei na direção dela, e a ergui nos
braços para tirá-la dali, de uma vez por todas.
— Não se pode entrar no quarto de ninguém, sem permissão.
Quando eu fiz menção de virar as costas para ir embora,
notei pelo canto do olho outra porta sendo aberta, seguido por uma
voz feminina cantarolando baixinho. Virei meu rosto a tempo de ver
Letícia saindo do banheiro, usando apenas uma toalha branca presa
à cintura.
Não esperava surpreendê-la saindo do banho àquela hora da
noite.
Acompanhei com o olhar as gotículas de água escorrerem
pelo pescoço delicado, até se perderem no vale entre seus seios,
que subiam e desciam ao ritmo da respiração agitada, provocando
uma fisgada dolorosa nos testículos rijos e prestes a explodir de
tesão.
— Nossa, me desculpe... — murmurei, constrangido. Os
meus olhos percorreram o corpo seminu dela, de cima a baixo,
emoldurado apenas em uma toalha felpuda, que mais pretendia
revelar do que esconder.
Nunca pensei que voltaria a estar diante de uma mulher
seminua, e justo no espaço privado de sua intimidade.

Já fazia mais de três anos que eu não chegava nem a olhar


para outras mulheres.

Os olhos verdes se arregalaram de espanto, e ela quase


gaguejou: — Eu deveria usar um roupão, mas não tive tempo de
desfazer as malas...

— Peço mil desculpas pelo incômodo... Tentei impedir a Zoe


de vir aqui, mas ela me desobedeceu, entrando de rompante no
quarto... — Estreitei os olhos para minha sobrinha, que continuava
em silêncio, o rosto banhado em lágrimas escondido em meu
ombro. — Não sei onde eu vou enfiar a minha cara agora, mocinha.

— Me perdoe, Titi. — Zoe enfim criou coragem para encará-


la. — Prometo que isso não vai acontecer de novo, tio. — Seus
braços rodearam meu pescoço, em um abraço apertado.

— Não precisa pedir desculpas. — Letícia falou, cobrindo a


boca com uma das mãos, incapaz de conter o riso. — Amanhã a
gente conversa melhor. Boa noite.
— Certo, certo — concordei, abrindo um meio sorriso,
visivelmente constrangido. — Boa noite, Leti. Tenha um bom
descanso. — Cerrei os dentes, lutando contra a excitação que ainda
percorria meu corpo.

Precisava inibir os meus instintos a todo custo, mas uma


onda de calor e excitação começou a me invadir, sem nenhum
controle. Respirei fundo e pesadamente, me esforçando muito para
me recompor.

Coloquei minha sobrinha de volta no chão, antes de me dirigir


até a porta.

— Goste você ou não, sou eu quem vou ler a historinha e


ponto final.
 
Capítulo 13
Michael Foster

Uma vez em meu quarto, eu decidi tomar uma ducha rápida e


me despi, antes de entrar no box, em seguida abri o registro do
chuveiro, aguardando alguns segundos até a temperatura da água
ficar morna. Fechei meus olhos, enquanto o jato forte me atingia da
cabeça aos pés, então peguei o sabonete e passei a esfregá-lo
lentamente pelo meu corpo, desde o cabelo, passando pelo
pescoço, braços, peitoral, costas, coxas e partes íntimas, com
movimentos lentos e circulares, agindo quase como um autômato.
A imagem da au pair, que tinha metade da minha idade,
saindo do banheiro seminua, com uma toalha curta envolvendo o
corpo curvilíneo, me veio à mente no instante em que me entregava
a um estado de puro relaxamento e prazer, enquanto abria e
fechava os dedos sobre a glande, em movimentos circulares, bem
devagar.
O meu pau ganhou vida, com o mero pensamento da jovem
babá, completamente nua e prostrada de joelhos diante de mim.
Vislumbrei Letícia cobrindo o meu pau com os lábios bem
desenhados, enquanto passava a língua pela cabecinha rosada e
pulsante, com aquela expressão tão vivaz e inocente no rosto.
Não deixei de me perguntar se o comportamento muito tímido
dela era devido ao fato de ter pouca ou talvez nenhuma experiência
sexual, em seus vinte e poucos anos.
A minha respiração foi se tornando ofegante e meus gemidos
aumentaram gradualmente, à medida que intensificava o ritmo,
torcendo o pênis para cima e para baixo e dando certa atenção às
bolas, que dolorosamente se contraíam. Relaxei ainda mais debaixo
do chuveiro, mantendo os olhos semicerrados, e a boca
ligeiramente aberta proferia o nome dela algumas vezes, com minha
voz saindo em um murmúrio gutural, decorrente do tesão reprimido
por ela.
Letícia.
Ela merecia que a primeira vez fosse especial, e de
preferência com um homem mais velho e experiente, e não com um
moleque qualquer, sendo que a grande maioria dos jovens mal
sabia identificar o clitóris, ou pior, tinha pressa em gozar, sem se
importar com as preliminares, em dar prazer à parceira.
Não demorou muito para sentir um estremecimento brutal
percorrendo meu corpo, os batimentos se tornaram irregulares e me
envolveram num frenesi avassalador até gozar, soltando um gemido
rouco direto das profundezas. Contemplei o sêmen esguichando
contra a parede, e respirei fundo e pesadamente, para retomar o
fôlego.
Não usei o sexo para superar a solidão, muito pelo contrário.
O luto me fez questionar se algum dia eu voltaria a me relacionar
com outra mulher, pois dificilmente ela aceitaria lidar com os altos e
baixos de quem ainda não superou completamente a perda da
pessoa amada.
Esperava me sentir com o ânimo renovado, após bater uma
no banho, mas o arrependimento deixava um gosto amargo na boca
e se sobrepôs ao prazer de ter fantasiado uma experiência sexual
com a babá da minha sobrinha.
Aquilo era errado em muitos níveis.
Fiz um voto de casado pelo resto da vida.
Alimentar uma fantasia erótica com Letícia simbolizava uma
traição à memória de Susan.
 

 
Deixei o carro no estacionamento do Graham Visitors Center,
um centro de visitantes, localizado na parte norte do jardim botânico.
A partir dali o percurso seria feito a pé, sentido leste, em direção ao
Washington Park Arboretum.
O Washington Park Arboretum era um dos lugares mais
incríveis de Seattle. Administrado pela prefeitura e pela
Universidade de Washington, o parque público abrangia uma área
de 230 acres, com muitas trilhas ao longo da floresta de bordos,
magnólias, carvalhos, amoras silvestres, além de pontos ideais para
um piquenique, bem como um campo de jogos e o Jardim Japonês
no canto sudoeste. Havia também uma trilha exclusiva, denominada
Arboretum Waterfront Trail, cortando o maior pântano remanescente
em Seattle através das suas pontes flutuantes.
— Fazer uma corrida matinal só perde para o boxe como
meu hobby favorito — Desafivelei o cinto de segurança, e dei uma
boa olhada nos meus dois cachorros presos ao banco traseiro.
— Acho que qualquer atividade física gera essa sensação de
plenitude e bem-estar — comentou Letícia, enquanto me encarava
com um brilho de divertimento no olhar.
— Não há nada melhor do que se desconectar um pouco do
trabalho, daquela loucura diária... ter a chance de voltar para dentro
de si e recuperar as energias.
— Se sentir com a alma lavada... — Ela complementou,
depressa, com seu sorriso se transformando num riso solto.
— Exatamente! — Eu sorri de volta, admirando aquela
expressão jovial que me teletransportava para a melhor fase da
minha vida, exatamente para a época em que tinha a idade dela.
Uma fase repleta de sonhos, esperanças e de promessas. E
todas elas foram cumpridas, mas a que custo?
— Esqueci de te avisar que infelizmente não permitem a
entrada de animais de estimação no jardim japonês. — Deixei meu
braço apoiado no volante e o outro no encosto do meu assento, mas
o olhar estava perdido em algum ponto, para além do para-brisa.
— Sem problema, Michael... Não vai faltar oportunidade.
— Prefiro que me trate sempre pelo apelido, Leti. Pode ser?
— Eu fiz questão de frisar, com os olhos fixos nela e uma das
sobrancelhas, arqueada. — Vamos colocar logo a Pearl e o Chewy
pra correr. — Bulldog francês e golden retriever, respectivamente.
— Faz tanto tempo assim que eles não se exercitam?
Eu confirmei com a cabeça e fiz uma careta, envergonhado.
Uma vez iniciado o percurso pelo calçadão movimentado do
parque, nós decidimos manter um ritmo razoável, e fizemos pausas
de tempos em tempos para beber água. Em determinado ponto da
trilha, Letícia parou de correr, inclinou o corpo para a frente, e
apoiou as mãos nos joelhos, respirando bem fundo para retomar o
fôlego.

— Bem que você disse que estava mesmo fora de forma...

Aproveitei o momento para observar melhor o look fitness


que ela escolheu usar para a caminhada. Letícia usava uma
combinação que valorizava a silhueta esguia dela, composto por
blusa cropped de manga longa, na cor branca, e com recortes de
telinha vazada, inclusive nas laterais e na barra, além da calça
legging básica preta e tênis cinza.
— Agora eu sou uma piada para você? — perguntou, fingindo
estar ofendida.

Pearl e Chewie olharam um para o outro e começaram a latir,


enquanto corriam pelo gramado verdejante.

— A gente pode fazer uma pausa para descansar, o que


acha? — Eu sugeri, fazendo um gesto na direção dos bancos de
madeira.

Eu me sentei em uma ponta, enquanto que Letícia ocupava a


outra, cada qual mantendo certa distância um do outro. Cruzei as
pernas estiradas e apoiei as costas no encosto do banco, antes de
estreitar os olhos na direção dela.

— Espero que sua estadia conosco corresponda às suas


expectativas.

— As expectativas são as melhores possíveis. Vocês têm


sido incríveis.

— Não imagina o alívio que estou sentindo! — Eu mantive a


respiração suspensa, até então, mas soltei o ar bem devagar. —
Kylie se preocupou muito em causar uma boa impressão em você,
especialmente quando soube que enfrentou uma situação
traumática com seus ex-hosts...

— Se refere à minha expulsão? — Eu apenas confirmei com


um gesto de cabeça. — Eu fiz o possível para viver em harmonia
com eles, mas as coisas saíram totalmente do controle. — Ela se
inclinou para a frente, com as mãos apoiadas em cada lado do
banco. — Enfrentei humilhações, agressões verbais, e acusações
sem fundamento algum. Eu só não pedi o rematch antes porque eu
pensei no bem-estar das crianças... Me apeguei tanto aos gêmeos,
sabe? — A tristeza nublou suas feições, quando baixou o olhar para
o chão. — O mais triste de tudo isso é que eu fui impedida de me
despedir deles.

— Lamento pelas crianças, que perderam a melhor babá do


mundo, mas você fez bem em sair daquele ambiente tóxico, Leti.

— Como pode ter certeza de que sou uma babá melhor do


que as outras?

— Para mim já basta o depoimento da minha irmã, e tudo


aquilo que conversamos... Além do mais, a Zoe nunca esteve tão
animada quanto agora. Você tem demonstrado ter muito zelo,
dedicação e carinho por ela. Obrigado por isso, Leti.

— Imagine... Sou eu que agradeço. A Zoe é uma menina


incrível, de verdade. Apenas me sinto um pouco culpada por ter
saído da vida dos gêmeos de uma maneira tão abrupta, sabe?

— Li uma frase que combina muito com sua situação atual,


Leti. — Eu fechei meus olhos por alguns instantes, tentando puxar
pela memória. — Não sei sobre a autoria, mas ela diz o seguinte:
“Para cada lugar que a gente se despede, existe outro ainda melhor
que nos recebe de braços abertos.”

Fiquei surpreso quando observei Letícia se ajeitar de lado no


banco, antes de cruzar as pernas e ficar de frente para mim. A
expressão facial se manteve relaxada, enquanto me encarava
atentamente, com a cabeça apoiada no braço dobrado, e o cotovelo
posicionado no encosto, de modo que seu rosto estava quase
nivelado ao meu.

Se ela soubesse o efeito provocado pela respiração dela se


mesclando à minha, cada vez mais espaçada curta e ofegante,
tendo em vista que o meu pau já pressionava a cueca, aumentando
de volume e ficando mais rígido.

Ela se assustaria, assim que seu olhar se detivesse entre


minhas pernas.

— Não existe a menor possibilidade de reencontrar os


gêmeos algum dia? — Fiz questão de quebrar o silêncio, e mudei
ligeiramente de posição para esconder a ereção crescente.

— Eu deixei algumas instruções na carta de despedida. Os


avós deles moram em Queen Anne, mais precisamente naquela
casa que você me levou quando nos conhecemos, lembra-se?

— Quer dizer então que você mentiu para mim naquele dia?
— Inclinei a cabeça ligeiramente, com um levantar de sobrancelhas,
a um só tempo curioso e incrédulo. — Por que eu não estou
surpreso? — Cruzei os braços, fingindo estar ofendido.

Notei que ela deixou escapar algo entre um riso e um


arquejo.

— Você era um completo estranho para mim, Mike. Também


não exagera.

— Só assim para eu conseguir arrancar um sorriso de seu


rosto...
A brisa fresca bagunçava os fios que tinham se soltado do
rabo de cavalo, assumindo um tom quase acobreado contra a luz do
sol. Fiquei na dúvida se as bochechas ficaram rosadas devido à
exposição aos raios solares ou se era o resultado do
constrangimento que eu causei com meu último comentário. Talvez
a segunda opção se encaixava melhor, uma vez que Letícia desviou
o olhar por um breve instante, na inútil tentativa de esconder o
sorriso tímido se formando nos lábios.

Eu pensei em dizer a ela o quanto me fazia bem vê-la sorrir,


quando de repente Pearl e Chewie se aproximaram, exigindo nossa
total atenção.

— Não me diga que Chewie faz referência à Chewbacca de


Star Wars? — Eu apenas fiz que sim, com a cabeça, cobrindo a
boca para tentar sufocar o riso. — E quanto à Pearl[23]? — E
dizendo isso, ela se inclinou para pegar a cachorra no colo, e afagou
suavemente os pelos macios de tonalidade preta e branca.

— Eu escolhi esse nome por causa da banda Pearl Jam —


respondi, enquanto esfregava carinhosamente o queixo de Chewie,
que também demonstrava querer um afago. — E quanto a você,
Leti? Sente falta do seu animal de estimação? Se tiver algum, é
claro.

— Não sei se cheguei a te contar, mas eu nasci e fui criada


no interior, por isso os meus bichos de estimação não são nada
convencionais.

Franzi a testa e olhei para Letícia, atentamente, antes de


perguntar, curioso: — Como o quê, por exemplo?
— Os meus avós eram imigrantes italianos e deixaram um
pequeno sítio de café para os meus pais garantirem a própria
subsistência. A minha função era cuidar de alguns animais, mas
dois deles se tornaram bastante especiais para mim: Peter
Rabbit[24], além do meu cavalo, Vicenzo.

— Agora está explicado porque eu nunca comi um risoto tão


bom antes... — Àquela altura, eu já estava com a atenção toda
voltada para ela, mantendo o queixo apoiado no punho, e o cotovelo
no encosto do banco, de maneira relaxada. — Para ser franco, eu
poderia ouvir você contar sua história de vida por horas, sabia? —
Minha voz saiu rouca e baixa. — Nem sentiria o tempo passar...

Um sorriso tímido aflorou naqueles lábios suculentos, e meu


olhar faminto se deteve neles, como que atraído por um imã. Eu me
esforcei ao máximo para resistir à tentação de deslizar o polegar,
acompanhando os contornos naturais deles, de cima a baixo até
senti-los tremer sob meu toque.

— Não precisa me responder se não quiser, Mike — disse


Letícia, de repente, me tirando completamente dos meus devaneios.
— Eu sei que teve pouco contato com a sua irmã nos últimos anos,
mas agora que ela está morando em sua casa, por que tem evitado
tanto interagir com a filha dela? Falo isso porque me parte o coração
ver a Zoe triste...

Um músculo se retesou no maxilar, após emitir um suspiro


profundo, mas o longo sopro de ar foi incapaz de me estabilizar.

— Toda criança espera que os adultos estejam bem o tempo


todo, Leti. Eu não consigo fingir e muito menos ignorar que a
presença dela evoca uma lembrança muito dolorosa. Você sabe
bem a que me refiro...

— Não minimize as dores dela, Mike. — Ela franziu a testa,


sem deixar de me olhar no fundo dos olhos. — A Zoe tem lidado
com outro tipo de luto, sabia? Tudo bem que o pai dela não morreu,
mas ele se sentiu à vontade para lhe dar as costas, talvez para
sempre, deixando um imenso vazio nela. Isso é cruel demais, não
acha? — Suas últimas palavras saíram tão duras quanto uma
lâmina afiada, capazes de causar um profundo rasgo em meu peito.

Letícia se levantou de um salto, colocou Pearl de volta no


chão, e saiu andando pelo gramado, puxando a cadela pela coleira
e acompanhada de perto por Chewie que correu atrás dela e,
consequentemente, me deixou sozinho e entregue aos meus
próprios pensamentos.

Odiava admitir que ela estava coberta de razão, mas uma


vez.
 
Capítulo 14
Letícia Mancini

Acordei bastante animada naquela manhã de segunda-feira,


de modo que a primeira coisa que eu fiz foi abrir as persianas
automatizadas, deixando a luminosidade natural penetrar no
espaçoso quarto.

O primeiro dia da semana do “saco cheio” começou com o


céu claro, mas a cidade “Esmeralda” era conhecida por sua
imprevisibilidade climática, podendo dar lugar para as nuvens
carregadas e cinzas, seguido por um forte aguaceiro, em questão de
minutos, mesmo durante a primavera.

Conferi as mensagens trocadas entre os membros do grupo


de au pairs, na verdade todos compartilhavam os planos de suas
respectivas famílias anfitriãs. Algumas delas optaram por viajar
durante esse período, enquanto outras alegaram que precisavam
trabalhar. De minha parte, eu estava ansiosa para colocar em
prática algumas atividades para entreter a Zoe pelo máximo de
tempo possível, mas sem extrapolar o limite de 10 horas diárias.

Tomei um banho rápido e estava prestes a iniciar a minha


rotina de cuidados com a pele, quando de repente escutei o meu
celular tocar, na mesa de cabeceira. Conferi o contato no visor e
constatei que era minha melhor amiga, Clara. Então, eu voltei para o
banheiro e cuidadosamente posicionei o aparelho junto a um jarro
de flores.

— Com certeza, ela está louca para saber as novidades —


Falei para mim mesma em voz alta, enquanto aceitava a chamada
de vídeo. — Bom dia, amiga! — Eu a cumprimentei, jogando um
beijo no ar e voltei a atenção para o meu reflexo no espelho.

Dei início à higienização do rosto com um sabonete líquido


adequado para minha pele, enquanto fazia um sinal para ela ir direto
ao assunto.

— Amiga, me conta logo quais são os seus planos para a


semana? Esperava ver alguma mensagem sua no grupo, mas você
nem deu sinal de vida.
— Meu plano consiste basicamente em não deixar a Zoe
enfurnada nesta casa. Ela nasceu aqui, mas foi criada em San
Francisco. Não conhece quase nada desta cidade.

— É longe de Santa Mônica pra caramba. Só visitei uma vez


com meus hosts.

— Só espero que o tempo colabore porque há tantas coisas


incríveis para se fazer em Seattle... — Enxuguei o rosto e apliquei
um pouco de vitamina C, antes de espalhar suavemente o produto
pela pele, com a ponta dos dedos. — O tempo aqui é bem
imprevisível.

— E como você passou o final de semana? Se divertiu


muito?

— Eu passei o sábado em casa mesmo... Ah, eu acabei me


esquecendo de te contar que o Michael me convidou para uma
caminhada no parque ontem. Ele tem dois cachorros: Pearl e
Chewie. Eles são muito fofos, e souberam se comportar direitinho.

— Vocês dois já estão nesse nível de intimidade? Amiga,


você não me mandou nenhuma foto dele. Como eu vou saber se ele
é um grande gostoso mesmo?

— E quem te disse que eu sou íntima dele, Clara? —


perguntei, com as mãos apoiadas na cintura. — Se quer tanto
satisfazer a curiosidade, por que não joga o nome dele no Google?
Michael Gallagher Foster. Com certeza encontrará alguma imagem
dele, junto a outros grandes empresários da tecnologia.
Desviei o olhar de forma abrupta, e respirei bem fundo,
tentando controlar o leve tremor nas mãos, enquanto aplicava o
protetor solar no rosto.

— Aposto que rolou um clima entre vocês... Ou não ficaria


tão mexida assim com um simples comentário.

— O comportamento dele oscila algumas vezes... Ora é mais


sisudo, ora é mais brincalhão, e isso me atrai muito. É um trem
diferente... Nem sei explicar.

— Enquanto você estava falando, eu peguei meu iPad e dei


uma olhada nas imagens... Letícia, que homem é esse?!? Eu
confesso que esperava que ele fosse como aqueles nerds que a
gente vê nos filmes, sabe?

— Tipo quem, por exemplo? — Estreitei os olhos, franzindo a


testa, confusa.

— Um cara branco, que usa óculos, bem alto e magro.


Parecido com o Andy Samberg.

— Não conheço... — Escutei Clara soltar uma gargalhada do


outro lado da tela.

— Como assim você não conhece o ator que faz o Jack


Peralta na série Brooklyn Nine-Nine? Ele aparenta aqueles CEOs de
tecnologia, e inclusive interpretou Mark Zuckerberg, no longa “A
Rede Social”. Mas voltando ao Michael, já notou o físico dele
alguma vez?

— Já reparei sim, uai! — Um sorriso maroto aflorou em meus


lábios, quando me veio à memória aquele pequeno incidente na
cozinha em plena madrugada.

— Depois dê uma olhada na imagem em preto e branco do


irmão da sua hosta. Ele está sentado na poltrona, numa postura
bem contemplativa. Cara, o suéter de malha fina está marcando o
peitoral definido e os bíceps dele! Como tem conseguido ficar
indiferente a esse grande gostoso, amiga?

— Sempre sinto um calor subindo pelo estômago, o coração


acelera tanto, parece até que vai sair pela boca, sem contar a
fisgada dolorosa entre as pernas... Quando isso acontece a calcinha
molha, eu fico até com vergonha. Não consigo me controlar.

— Mas isso é absolutamente normal, Leti. O seu corpo reage


assim porque ele te excita... Aliás, não é de hoje que tenho
aconselhado você a se tocar, intimamente. Se permita explorar o
seu próprio corpo, identifique o que te dá prazer, se entregue às
fantasias e à explosão de sensações. Isso é tão libertador!

Senti um embrulho no estômago, seguido por um nó na


garganta, assim que ouvi as últimas palavras dela.

— Amiga, eu amo conversar com você, mas preciso encerrar


a chamada. Ainda tenho um longo dia pela frente. Mas a gente se
fala mais tarde, ok? Beijos!

— Divirta-se, Leti! — Ela me dirigiu um olhar amável e


acolhedor, enquanto acenava em despedida. Pisquei os olhos
rapidamente, sem, no entanto, conseguir evitar que eles ficassem
marejados de lágrimas.
Clara sempre me dizia que o fato de eu ainda ser virgem não
deveria ser algo com que eu devesse me envergonhar. Como eu fui
criada com excesso de proteção pelos meus pais, certos assuntos
não eram discutidos em casa, por serem considerados tabus,
especialmente os que diziam respeito à sexualidade.
Meus pais em vida estabeleciam hora para chegar, e hora
para sair. As minhas amizades se restringiam ao círculo familiar,
então passei a acreditar que era melhor estar na companhia dos
meus primos, em detrimento de outras pessoas. As coisas só
mudaram mesmo quando eu entrei para o programa de intercâmbio
como au pair. Eu sabia que a única maneira de assumir as rédeas
da minha própria vida seria saindo do Brasil, o que sem dúvida foi
fundamental para estabelecer novas conexões com pessoas que se
tornaram grandes amigas.
Mesmo após sair do casulo deles, a minha vida amorosa
continuou inexistente, e talvez seguiria assim até o fim dos meus
dias, sem nem saber como beijar.
Sonho tanto poder viver um romance para além dos livros
que leio no Kindle.
— Melhor voltar para minha realidade... — Falei em voz alta,
respirando bem fundo, antes de guardar depressa os produtos na
necessaire.
Uma vez de volta ao quarto, eu peguei minha mochila
pequena, na qual coloquei alguns objetos pessoais, como carteira,
celular, carregador portátil, protetor labial, documentos, além da
garrafa de água, óculos de sol, capa de chuva, e a mesma encharpe
utilizada por Michael, quando ele vendou os meus olhos na
chegada.
Quando eu dei por mim já estava com o rosto encostado ao
tecido ainda impregnado pelo aroma amadeirado, sensual, suave e
obscenamente masculino do perfume dele. Uma sensação
prazerosa me invadiu, trazendo com ela uma espécie de
formigamento entre as pernas. Usava apenas um roupão felpudo, e
quando eu enfiei minha mão pela abertura, levei os dedos
diretamente para o monte de púbis coberto por uma fina camada de
pelos, que se arrepiaram ao simples toque.
Um gemido estrangulado escapou da garganta à medida que
explorava as dobras da pele, sentindo um líquido escorregadio e
fluído encharcar a ponta dos dedos. De repente, eu fui tomada por
um medo irracional, e tirei rapidamente minha mão, esfregando-a
contra o roupão felpudo, e enfiei a encharpe na mochila, embora
tivesse me atrapalhado no momento em que fechava o zíper.
Depois de passar a toalha pela virilha, eu vesti apressada a
primeira calcinha limpa que encontrei na gaveta da cômoda, seguido
pelo sutiã, além do macacão de malha confortável, na tonalidade
preta, com mangas compridas e gola em V, para compor um look
mais casual com o par de tênis Air Force 1, da Nike.
Contemplei meu reflexo no espelho, com reprovação no
olhar, uma vez que aparentava estar assustada e o rosto ainda
avermelhado, devido ao estado de excitação, só contribuía para o
meu nervosismo, pois era nítido que eu não estava imune a ele.
Passei uma escova pelos cabelos, distraidamente, sem
deixar de me perguntar como nenhum outro homem conseguiu
arrancar uma mísera reação emocional de minha parte em todos
esses anos.
Eu já nem me reconhecia mais. Um sentimento em níveis
nunca antes sentido, parecia querer travar uma verdadeira batalha
para se manifestar com toda sua energia, podendo com o tempo se
tornar algo tão lindo e, ao mesmo tempo, tão assustador. E, justo
por quem o meu corpo reagia ao menor contato, a menor
aproximação? Por um homem mais velho e marcado pelo trauma da
perda da esposa e da filha recém-nascida; alguém cujo coração se
encontrava fechado e endurecido pela dor.
Fiquei com raiva de mim mesma por perder tempo com
aquelas divagações.
 

Desci correndo as escadas e me precipitei em direção à


cozinha, encontrando Kylie e a filha dela, que conversavam
animadamente, durante a primeira refeição do dia.
— Oi, meninas, bom dia! — saudei as duas, aparentando
uma naturalidade que estava longe de sentir, ciente de que Michael
apareceria a qualquer momento.
— Bom dia, Titi! Estou tão feliz que a gente vai passear hoje!
— Eu também, princesa — Dei um beijo estalado no topo da
cabeça dela.
Abri o armário e peguei os itens necessários para preparar o
meu café, que tinha que estar bem quente e feito no dia. Coloquei a
água para ferver, reservei o pacote com grãos produzidos no Brasil
e de boa qualidade, além do mini coador de pano, para o preparo à
moda antiga, mantendo assim a simplicidade das minhas raízes.
— Leti, eu acho admirável o quanto você tem se empenhado
em manter suas origens. Eu também sou amante da bebida, mas
me falta tempo e disposição para esperar o café ficar pronto. Hoje
em dia eu sempre falo: Deus abençoe o inventor do café em
cápsulas, porque não consigo mais viver sem minha cafeteira
Nespresso.
— Eu não me importo de fazer para nós duas todos os dias
— comentei, enquanto despejava parte da água fervente no coador,
fazendo movimentos circulares e observando o vapor subindo e
trazendo com ele o aroma viciante que fazia a minha boca encher
de saliva.
— E quanto a mim? — Por pouco eu não derramei a água na
bancada. Meu corpo estremeceu após ouvir o timbre rouco da voz
de Michael, denunciando sua presença e mais uma vez penetrando
no mais fundo da alma.
— Sim, claro que eu posso — Coloquei a chaleira de volta no
fogão e tirei a luva térmica, as minhas mãos tremiam, ciente de que
não conseguiria sustentar o peso do olhar dele sobre minhas costas.
Escutei o barulho de algo sendo puxado, e imaginei que ele
ocupava uma das banquetas alta, estofada e de madeira maciça.
— Meu tio bem que podia ir com a gente — Zoe comentou
assim, de repente, como se fosse a coisa mais natural do mundo. A
inocência da minha menina era tocante, pois era nítido o anseio dela
em conquistar a afeição de Michael, por meio de brincadeiras,
quando na realidade ele tem evitado manter uma interação maior
com ela. — Não é mesmo, Titi? — Eu me virei rápido para encarar a
criança, com uma expressão aturdida no rosto.
A minha boca se abriu e se fechou, incapaz de dizer qualquer
coisa, mas felizmente a mãe dela percebeu o meu constrangimento
e falou o seguinte: — Se a minha rotina é louca, a do seu tio é
insana, amor — Kylie ponderou. — Mike dificilmente tira férias e
sempre tem alguma demanda para resolver, mesmo durante os dias
de folga. Eu pelo menos serei um elfo livre a partir de sexta-feira, e
já estou contando os dias para as rotações terminarem.
Eu me juntei a eles na ilha e servi o café em duas xícaras;
uma para mim e outra para Michael, já que a minha hosta recusou,
com um gesto.
— Decidi seguir o conselho de uma pessoa especial —
informou Michael, de repente. Ele olhava para mim por cima da
borda da xícara de café. Eu engoli em seco, com o coração batendo
descompassado no peito. — Humm... Tenho que admitir que o
aroma e o sabor desse café são indescritíveis. Mas voltando ao
assunto, eu não posso mais desperdiçar a chance de reconectar
comigo mesmo e com as pessoas que eu amo.
— Quem operou esse verdadeiro milagre em você? Preciso
agradecer pessoalmente.
— Por que não faz isso agora? — sugeriu Michael, pegando
a irmã dele e a mim de surpresa. — Ela está bem diante de você,
sabia? — Por pouco eu não me engasguei com o café, após ao
ouvir o seu último comentário.
— Por essa eu não esperava. — Ela soltou uma risadinha. —
Meus parabéns, Leti!
— Faço questão de deixar a parte da manhã livre, e espero
que as duas aceitem a minha companhia... — Eu apenas me limitei
a concordar com a cabeça, sentindo minhas bochechas arderem de
constrangimento. E a Zoe, por sua vez, começou a bater palmas,
animada. — E quais são os seus planos, Kay? — Ele voltou a
atenção para a irmã, com os olhos fixos nela e uma das
sobrancelhas, arqueada. — Espero que inclua uma ida até Bellevue.
Mamãe se queixou, dizendo que você não retornou suas ligações,
nem respondeu mais as mensagens... Acho justo torturá-la com seu
silêncio?
Para meu total desespero, a conversa tomou um rumo mais
pessoal, e não vi outra opção além de baixar o olhar para o prato
com os ovos mexidos e bacon e continuei comendo, fingindo estar
totalmente alheia àquela situação embaraçosa.
— Acho que dei tempo suficiente para você pensar, Kylie —
insistiu Michael, usando um tom de voz baixo, mas suficientemente
incisivo.
— Ok, você venceu, Mike. Tentarei encaixar uma visita no
próximo final de semana, porque eu combinei com Leti de fazer um
passeio a Forks, não foi mesmo? — Ela me deu um chute de leve
na perna por baixo da mesa, para me chamar a atenção.
— Oh, sim, realmente... — menti, mesmo sem saber se ela
havia planejado me levar à cidade mundialmente conhecida pela
saga Crepúsculo, de fato. — Eu ainda nem consigo acreditar que
finalmente vou conhecer Forks! — Eu falei a verdade daquela vez,
por isso a minha voz saiu mais empolgada do que deveria. Afinal,
toda fã de fantasia que se preze já leu os romances, escritos pela
autora Stephenie Meyer.
Eu me lembrei de uma passagem do livro, em que dizia o
seguinte: “No estado de Washington, sob uma cobertura quase
constante de nuvens e chuva, há uma pequena cidade chamada
Forks.”
— Eu posso ir com vocês? — Michael perguntou,
casualmente, encarando ora para mim, ora para ela. O brilho no
olhar era um misto de divertimento com presunção.
— Acho no mínimo estranho esse interesse todo — Kylie se
inclinou para a frente, com as mãos entrelaçadas, e apoiadas sobre
a mesa. — Você e Max sempre tiraram sarro de mim por gostar de
livros com vampiros.
— Qual é o problema? — Ele suspirou, ao encolher os
ombros. — Eu posso ser útil para vocês, servindo como fotógrafo e
motorista desta excursão...
— Tudo bem, mas nem se atreva a soltar piadinhas, senão
eu acabo com você — disse ela, em tom de ameaça fingida,
enquanto apontava o garfo na direção dele. Depois, consultou o
relógio e fez uma careta de desagrado. — Mas que droga! Meu
tempo aqui acabou. — E dizendo isso, ela se levantou da mesa e se
despediu da filha meio apressada, antes de sair correndo pela
cozinha.
Michael fixou seus olhos castanhos em mim, com a mesma
intensidade hipnotizante de sempre.
— Posso sugerir nossa primeira parada? — perguntou ele,
enquanto mastigava um pedaço da torrada. Eu apenas fiz que sim
com a cabeça. — Pensei em levar vocês ao KidsQuest. É um
museu infantil interativo que fica em Bellevue.
— Então sugiro que leve uma camisa, se não quiser chegar
sujo ou molhado na empresa.
— Acha mesmo necessário?
— Sim, e muito. Você acabou de dizer que se trata de um
museu interativo. Não pense que vai ficar só olhando de longe... —
Um sorriso triunfante se insinuou nos cantos da boca, antes de
encostar a xícara nela e bebi o restante do café, sem desviar os
olhos dele.
— Muito bem pensado, Leti — Ele arqueou a sobrancelha,
rindo abertamente. Depois, voltou sua atenção para a sobrinha, ao
colocar a mão no braço dela. — Zoe, nós três seguiremos para o
museu, e depois faremos uma visita aos seus avós. Promete que
não vai contar nada para sua mãe?
— Prometo, sim, tio — confirmou ela, beijando os dedinhos
cruzados. — Sinto tanta falta deles!
— E você, Leti? — Michael quis saber, em tom baixo e com
intensidade suficiente para provocar um leve, e quase imperceptível,
tremor pelo meu corpo. — Também é capaz de guardar um
segredo? — Na mesma hora, senti os músculos da região íntima se
contraírem, seguido pela sensação de umidade ensopando a
calcinha.
Eu apenas assenti de leve, com a cabeça, de modo quase
imperceptível.
Talvez aquele pedido não fosse o único. Nutri a estranha
sensação de que teria algo bem mais profundo para esconder, por
estar completa e irrevogavelmente atraída por ele.
— Acho melhor eu me apressar, então — Eu me levantei e
estava prestes a recolher a louça, quando Michael me deteve,
segurando o meu braço, com firmeza.
— Pode deixar que eu cuido disso.
— Obrigada, Mike... Eu deixei minha mochila no quarto, mas
não demoro.
Eu subi as escadas correndo, mas ao dobrar para o corredor,
acabei me esbarrando com Kylie, que vinha no sentido contrário.
— Oh, Kylie... — Fiz um gesto atrapalhado com a mão,
pedindo desculpas. — Eu nem esperava te encontrar aqui. Achei
que já estivesse a caminho do hospital.
— Eu realmente estava, mas precisei voltar porque esqueci
meus livros — Ela olhou para além do meu ombro, e exalou o ar
com força, aparentando nervosismo. — Preciso te contar uma
coisa... Acho que vou adiar nosso passeio à Forks. Dr. Greg quer
marcar outro encontro comigo.
— Outro encontro? — Indaguei, meio engasgada, enquanto
lançava um olhar perplexo para ela. — O Dr. Greg não é aquele
médico gostoso que tira você do sério? Você está se relacionando
com ele, fofa? — Cobri a boca com a mão para sufocar o riso.
— Sim, ele mesmo, mas fale mais baixo — Ela me
repreendeu, fingindo seriedade. — Uma estudante de medicina não
pode se dar ao luxo de desaparecer, sem que alguém pergunte
onde ela estava. Ele só esperou o momento certo para me
encurralar no vestiário. Mas foi muito gostoso sentir a adrenalina
correndo nas veias.
— Não vai faltar oportunidade, fofa. Aceite o date com o boy
e divirta-se!
— Obrigada, Leti! — Ela me deu um abraço apertado de
despedida e saiu correndo em direção às escadas.
Imaginei que serem pegos no flagra fazia a rapidinha ser
ainda mais excitante.
A minha mente reproduziu outra fantasia erótica, com Michael
me puxando pelo braço, antes de pressionar o corpo dele junto ao
meu contra a parede mais próxima.
Nossos lábios não se desgrudavam, as nossas mãos
exploravam cada parte do corpo um do outro. Cabia a mim
desafivelar o cinto e baixar tanto a calça quanto a cueca até a altura
dos joelhos. Como eu usava um vestido curto, eu apenas puxei a
barra e afastei a calcinha para o lado, enquanto instintivamente
enlaçava as pernas ao redor da cintura dele, completamente
receptiva à investida do pau grosso, pulsante e cheio de veias,
embora sentindo as paredes internas se fecharem, o levando a
arremeter em uma estocada violenta. Os gemidos se fizeram ouvir,
um som agudo e estrangulado, escapava da garganta, conforme ele
entrava e saía de dentro de mim, repetidas vezes.
Balancei a cabeça para afastar os pensamentos, e andei
apressada até o sótão.
Não posso correr o risco de me apaixonar por ele.

Esse pensamento me devastou mais do que imaginei ser


possível.
 
Capítulo 15
Letícia Mancini

O KidsQuest era uma organização sem fins lucrativos e


museu interativo, voltado para crianças de todas as idades,
incentivando o aprendizado através de brincadeiras associadas à
algumas áreas, como ciência, tecnologia, engenharia, artes e
matemática. O espaço lúdico proporcionava diversas atividades
para as crianças desenvolverem suas capacidades motoras,
cognitivas e sociais.
Michael e eu observamos a Zoe explorar cada seção, desde
a que envolvia brincadeiras aquáticas com avental para não se
molhar, até atividades sensoriais como pintura e arte em argila na
oficina, montagem de trilhos, blocos e escalada, na parte de
engenharia, além dos cuidados com animais, no celeiro.

A minha menina adorou escovar os pelos da vaca, além da


experiência de comprar itens na pequena mercearia, mas o ponto
alto do passeio foi a ida até a biblioteca, situada no andar superior,
que simulava uma casa na árvore.

Ele me fez uma pergunta, me pegando completamente de


surpresa: — Você pensa em ter filhos, Leti? — Eu pisquei os olhos
por alguns instantes, visivelmente aturdida por aquele inesperado
questionamento.

— Apenas quando eu me casar com alguém, naturalmente.


— Frisei bem as últimas palavras, enquanto abraçava a Zoe por
trás, e apertei contra o meu corpo.

— Eu quero um priminho, hein, tio Mike! — Zoe comentou, de


repente, parecendo empolgada em participar da nossa conversa.

Ele se abaixou ao nível da altura da criança e passou a


acariciar os cabelos pretos e sedosos dela, com a ponta dos dedos.

— Isso não vai ser possível, princesa — Uma máscara de dor


nublou suas feições, perceptivelmente. O semblante exprimia
consternação, o maxilar se contraiu, endurecendo suas feições
marcantes, o que provocou um súbito aperto em meu peito.
— Eu vou pedir um irmãozinho pra mamãe, quando o papai
voltar! — Ela informou, sua voz soando esperançosa. Para minha
surpresa, ele a puxou para junto de si, com força, e a envolveu em
um abraço apertado.

Um simples gesto de carinho fez a minha garganta se fechar,


lágrimas quentes e grossas brotaram nos olhos, que arderam a
ponto de embaçarem a visão, e disfarçadamente levei minha mão à
boca, sufocando a tempo um soluço inoportuno.

Não fui a única a ficar sensibilizada pelo comentário inocente


da Zoe. Michael se afastou dela e passou rapidamente a mão pelo
rosto, fingindo secar o suor, quando na verdade era um fio de
lágrima ameaçando cair. Escutei um leve pigarro saindo de sua
garganta, como que para disfarçar o constrangimento.

— Tem algum livro que te interessa, princesa? — perguntou


ele, ficando de pé. — Eu posso ler para você. — A menina fez que
sim, com a cabeça e correu saltitante por entre as prateleiras.

— Conforme o tempo passa, a ausência do pai a oprime


ainda mais...

Seria doloroso demais presenciar o momento em que ela


descobriria a verdade sobre o próprio pai.

— Nem me fala... — Ele deixou escapar um longo suspiro. —


Ela já me fez perguntas sobre o paradeiro dele, e eu apenas disse
que Dylan passou por alguns problemas e precisou ir embora. Não
sabemos onde ele está ou quando volta... Ela perdeu o convívio
com o pai da noite para o dia, e ainda se sente muito confusa. Kylie
tem sofrido bastante também, embora na maior parte das vezes não
transpareça isso.

— Só de você ter vindo já fez um bem enorme para a Zoe.


Significa que levou em consideração o meu conselho, se esforçando
para estar o mais presente possível na vida dela.

— Se você tivesse me dado um tapa na cara teria doído bem


menos, sabia? — Eu o observei relaxar os ombros, as feições duras
se suavizaram, dando lugar a um sorriso matreiro. — A franqueza é
o que te torna ainda mais admirável aos meus olhos...

Uma sensação desconcertante me atingiu, me levando a


desviar o olhar, ciente de que Michael me encarava de modo duro, e
com um inconfundível brilho ardente espreitando a íris, à medida
que forçava um caminho em direção à minha alma.

De repente, a Zoe estava de volta, segurando um livro infantil


na mão, enquanto puxava o tio pelo braço, com a outra, antes de
conduzi-lo em direção a uma das almofadas espalhados pelo local.
Depois de ajeitar a sobrinha no colo, Michael abriu o livro, intitulado
The Velveteen Rabbit, da autora Margery Williams.

Esperei ele contar a sinopse, antes de expressar minha


opinião a respeito: — Nós, que somos adultos, subestimamos tanto
os livros infantis, mas eles têm muito mais a nos ensinar do que se
imagina — Eu me sentei no chão, diante deles e cruzei minhas
pernas em posição de lótus.

— Achei que a função deles fosse apenas entreter as


crianças — Ele inclinou a cabeça ligeiramente para o lado para me
sondar, com cautela.
— Não, necessariamente — retruquei, erguendo a
sobrancelha e sorrindo de maneira sugestiva. — Uma coisa não
exclui a outra.

— Só a capa já me fez lembrar de Peter Rabitt, sabia? — E


dizendo isso, ele estreitou os olhos para encarar a sobrinha. — Zoe,
você sabia que a Leti tem um coelhinho de estimação?

— Oh, jura? A Titi não me contou nada — Zoe se queixou,


com um muxoxo.

— O nome dele é em português mesmo. Pedro, o Coelho.


Agora, se prepara, porque eu acho que ela vai acabar pedindo um
de presente.

— Melhor você nem dar ideia para ela... — Não conseguiu


terminar a frase.

— Tio, eu posso ter um coelhinho também? Por favor! — Zoe


insistiu, manhosa. Michael olhou para mim, visivelmente apavorado.

Como ignorar aqueles olhinhos azuis suplicantes? Isso seria


impossível.

— Eu prometo que vou pensar com carinho. — Ele passou o


braço ao redor dos ombros dela, antes de depositar um beijo no
topo da cabeça, com suavidade.

Eu nem me atrevi a piscar os olhos, quando Michael contou a


história do coelho de pelúcia, que se sentia preterido em relação aos
demais brinquedos. Em certo momento, o dono passou a brincar
com ele, até o dia em que contraiu uma doença, possivelmente
infecciosa, o que interrompeu drasticamente o convívio entre eles.
Uma vez recuperado, o menino se defrontou com a dor da
perda do seu brinquedo mais amado. O médico exigiu que o coelho
fosse incinerado junto com as coisas velhas. O sentimento
compartilhado entre a pelúcia e seu dono era recíproco, e foi
justamente esse amor que o livrou das garras da “morte”. Uma fada
apareceu na floresta e o transformou em um coelho real,
assinalando assim uma nova fase de sua vida.

A vida como um coelho de brinquedo acabou, dando lugar à


vida como um coelho de verdade.

— Engraçado como são as coisas... — comentou Michael,


após finalizar a leitura. — Eu consegui me enxergar através desse
coelho. Afinal, a história trata da importância de deixar ir aqueles a
quem mais amamos... — prosseguiu, tentando imprimir um tom
firme na voz, mas ela saiu trêmula e quase inaudível. — Em pensar
que eu quase desperdicei a oportunidade de estar aqui neste lugar,
acompanhando pela menina mais adorável do mundo, que é a
minha sobrinha, além da menina mulher que me encantou desde o
dia em que a vi sair apressada do desembarque, enquanto
arrastava a minha mala, sem nem se dar conta disso! — Ele
começou a rir de um jeito contagiante. Chegou mesmo a jogar a
cabeça para trás, soltando uma risada alta e longa.

Eu só me limitei a sustentar o olhar dele, com um sorriso


cúmplice.

— Sinto que estou mais leve e o meu peito transborda de


contentamento como há muito tempo não sentia, sabe? — A
franqueza dele era tocante e meus olhos se encheram de lágrimas
de novo. Abri e fechei a boca, incapaz de articular qualquer palavra.
Não que dizer alguma coisa fosse realmente necessário.

Sentir já era o bastante.

Uma vez do lado de fora, Michael e eu combinamos de


levantar a Zoe no ar, antes de descer os degraus, assim os pés dela
não tocariam o chão. Foi divertido observar a expressão de surpresa
dela, enquanto soltava gritinhos estridentes de entusiasmo.

Nós não paramos de rir, mesmo quando alcançamos o


estacionamento. No entanto, eu notei que havia um casal vindo em
sentido contrário, com seus dois filhos pequenos, que não parava de
nos observar à curta distância.

— Como você se chama? — A mulher se inclinou para a


frente, as mãos apoiadas nos joelhos. — Achei a filha de vocês tão
adorável! — acrescentou, ao erguer a mão para acariciar o cabelo
da minha menina.

— Nós não somos os pais dela — Eu me apressei em


desfazer aquele equívoco, sentindo o calor penetrando por cada
poro da pele, e queimando meu rosto.

— Ela é minha sobrinha, e se chama Zoe — Michael exibiu


um sorriso amarelo.

— Oh, me desculpem por isso. Eu achei que vocês fossem


um casal.

Seguiu-se uma sucessão de "nãos", o nosso constrangimento


era quase palpável. Quando eles foram embora, nós três pudemos
seguir até o carro, embora imersos no mais profundo silêncio, que
se estendeu durante todo o percurso até a casa dos Foster’s.
 

A propriedade se situava no topo de um penhasco,


proporcionando uma vista espetacular do lago Washington e da
cidade, visíveis de quase todos os ângulos, sem contar o
exuberante jardim privativo e o cais à beira do lago com capacidade
para até quatro embarcações.

A própria definição do luxo e requinte na área mais exclusiva


de Seattle.

— A minha casa é bem mais modesta se comparada a dos


meus pais. Susan nunca gostou de ostentação, e eu muito menos.
Até pensei em vendê-la diversas vezes, mas acabei desistindo.

— Essa casa magnífica realmente, mas eu ainda prefiro a


sua, sabe?... Às vezes, menos é mais — Não sabia o que fazer com
as mãos, então eu as juntei atrás das costas, enquanto observava a
fachada da mansão. — Você trabalha para o seu pai? — perguntei,
me remoendo de curiosidade.

— O meu pai construiu sua carreira nas maiores empresas


do ramo, até o dia em que abriu seu próprio negócio de
cibersegurança junto a um velho amigo. O primeiro cliente da dupla
foi na mais nada menos do que a CIA.

— Então, você assumiu os negócios dele?


— Digamos que eu me tornei um concorrente à altura —
respondeu Michael, com um sorriso maroto nos lábios. — Não
queria viver à sombra do velho Lionel, e fundei a Lockhead
Technologies, que também presta serviços de consultoria, e gestão
em tecnologia e segurança, principalmente para agências
governamentais civis além dos órgãos de defesa e inteligência.

— Tio Mike! — Zoe gritou para chamar a atenção dele, ao


puxar a barra de sua jaqueta esportiva. — Aquilo é uma casa na
árvore? — perguntou, apontando para a estrutura suspensa numa
árvore frondosa, situada no topo da encosta, e com paredes
cobertas de relva, um telhado de mansarda além da escada em
espiral que levava até a entrada.

— Parece que sim... — respondeu ele, sem muito


entusiasmo. — Acho melhor a gente entrar logo. — Ele puxou a
sobrinha e andou até a porta, apressado.

Nós três andamos em direção à grandiosa entrada frontal de


dois andares, com duas colunas decorativas de grandes dimensões,
toda trabalhada em relevos, delimitando a porta dupla de madeira
colonial em arco e com vidros, além de possuir um piso de mármore
com o desenho de uma bússola, demarcando o acesso à mansão.

A nossa visita não era nenhuma surpresa para o casal, uma


vez que Michael se comunicou com ele, desde que deixamos o
KidsQuest.

Zoe correu para abraçar a avó, já posicionada no hall de


entrada e pronta para recebê-la de braços abertos, com um sorriso
iluminando o belo rosto marcado pela idade. Ela lembrava
vagamente a minha nona, que sempre recebia a mim e a seus
outros netos na varanda, para o “pranzo di domenica”, o tradicional
almoço de domingo.

— Oh, minha querida, eu senti tanto a sua falta! — A Sra.


Foster beijou o topo da cabeça da menina e a apertou ainda mais
contra o peito.

Eu estava tão distraída, que por pouco o meu coração não


saiu pela boca, quando Michael encostou os lábios ao meu ouvido e
sussurrou com sua voz grave: — A minha mãe vai gostar de você
também. Só tem um problema: Quando ela souber que os seus pais
já são falecidos, ela vai querer te adotar como filha dela.

Lancei um olhar assustado para ele, que apertou os lábios


para sufocar o riso.

— É só maneira de dizer... Eu não preciso ter outra irmã mais


nova.

— Até que não seria má ideia — Eu estreitei os olhos, quase


rindo da reação dele, que ficou subitamente sério e incomodado. —
Eu estou falando sério!

Quando nós paramos diante da matriarca, ela inclinou a


cabeça para o lado, enquanto me observava, com um pequeno
sorriso curvado em um dos cantos da boca. Havia marcas distintas
no rosto coberto por uma espessa camada de maquiagem, e rugas
em volta dos olhos. Parecia ter se simpatizado comigo, pelo menos
aparentemente.
— Bom dia, tudo bem? — saudou de modo gentil. — Você
deve ser a Titi... A Zoe acabou de me contar que é a nova babá
dela. Eu me chamo Michelle. É um prazer conhecê-la, Titi — Ela
estendeu a mão direita para um cumprimento formal, o qual eu
prontamente retribuí.

— Bom dia... — Sorri, timidamente. — O prazer é todo meu,


Sra. Foster.

— Titi é só para os íntimos, mãe. E somente a Zoe tem esse


privilégio — E dizendo isso, Michael deu uma piscadela para a
sobrinha, que passou a cair na risada.

— Jura? — Eu notei que ela realmente parecia acreditar no


que o filho disse.

— Não, imagina — Eu me apressei em dizer, fazendo um


gesto vago com a mão. — O meu nome é Letícia, mas pode me
chamar de Titi, sem problemas.

Michelle Foster me puxou pelo braço, e fez algumas


perguntas corriqueiras, enquanto me conduzia até a sala de estar.
Ela quis saber a minha idade, se eu fiz faculdade no Brasil, quanto
tempo levei para aprender o inglês, se já tinha visitado os pontos
turísticos de Seattle, quais eram os meus planos para o futuro, o
que eu gostava de fazer nas horas vagas, parecia até que eu estava
em uma entrevista de emprego.

Só minutos depois que eu notei a ausência do filho mais


velho dela.
— Michael deve ter ido até o escritório para conversar com o
pai — informou Michelle, ao perceber que eu não parava de olhar
para porta. — Por que não me conta quais são os seus planos para
essa semana, minha querida?

— Será que mamãe vai me deixar ficar aqui, vovó? — Zoe


esticou a mão, puxando a manga da blusa dela. — Eu quero ver a
casa da árvore.

— Eu vou conversar com sua mãe, está bem? — Ela encarou


a neta por alguns instantes e depois voltou sua atenção para mim,
dizendo: — Não sei o que planejaram fazer esta tarde, mas espero
poder desfrutar da companhia da minha neta.

— Por mim, tudo bem. Será um prazer, Sra. Foster.

— Opções de lazer aqui é o que não faltam! Vocês podem


dar uma volta no lago Washington, ou quem sabe ver um filme na
sala de cinema, mas a casa conta ainda com salão de jogos, uma
quadra de esportes, além de piscina e jacuzzi.

— A gente pode brincar na casa da árvore também, vovó?

— Mas é claro que pode, meu amor. — Afastou com ternura


o cabelo do rosto dela. — Eu vou roubar a minha neta um
pouquinho, mas pode ficar à vontade, ok? — prosseguiu, colocando
uma mão sobre meu joelho. — Vamos, Zoe. — E dizendo isso, ela
se levantou do sofá, pegou a neta pela mão e saiu andando em
direção à cozinha.

À medida que os minutos passavam, mais nervosa eu ficava.


Passei a andar de um lado para o outro, quando de repente
uma movimentação do lado de fora chamou minha atenção. Eu me
aproximei do semicírculo ao fundo da sala, com suas janelas
amplas, descortinando uma vista da encosta traseira da
propriedade, bem diante do Lago Washington e com o centro de
Seattle, no horizonte.

Avistei Zoe na pequena janela do pavimento superior da casa


da árvore. Ela e a avó passaram a acenar com a mão, assim que
me viram. Eu as imitei do lado oposto, enquanto abria um sorriso,
mas subitamente Michael surgiu do meu lado, esticando o pescoço
para olhar, curioso, para fora do vidro, o que quase fez o meu
coração parar.

Decidi arriscar um olhar na direção dele. Um gemido escapou


da garganta assim que fixei os olhos naquela boca carnuda e
ligeiramente entreaberta. Nossos rostos estavam tão próximos a
ponto de o ar exalado se mesclar entre si, num frenesi envolvente.
Os lábios cheios dele pairando a poucos centímetros dos meus
eram um convite silencioso para um beijo. Por uma fração de
minuto, eu fui capaz de ignorar o alarme interno, desejando um
contato íntimo de embriagar os sentidos, só de pensar na aspereza
da barba dele roçando contra a minha pele.

De repente, Michael levou o polegar ao meu lábio inferior,


que tremia de forma involuntária, e passou a deslizá-lo de um lado
para o outro, bem devagar.

— Seu corpo está tão receptivo a mim, Leti. Deveria ver como
sua boca está ligeiramente entreaberta, ofegante, movida única e
exclusivamente pelo desejo de ser beijada — O timbre rouco de sua
voz penetrava por cada poro da minha pele, os olhos castanhos
vidrados de excitação estavam fixos em mim. — Se continuar me
olhando assim, eu mandarei à merda qualquer resquício de
sensatez que ainda possuo. Me ouviu bem?
— Nenhum outro homem chegou tão perto de mim assim
antes.
Eu desviei o meu rosto, bruscamente, e passei a olhar a
paisagem pela janela, exalando o ar, antes preso nos pulmões e
tornei a inspirar bem fundo, na tentativa de controlar a tremedeira
súbita.
Escutei quando ele soltou um longo suspiro de exasperação.
— Preciso ir agora, mas a gente se vê mais tarde...
— Obrigada por se reaproximar da Zoe.
— Não precisa agradecer, Leti. Eu devo isso a você.
— Não, de forma alguma. — Neguei, balançando a cabeça, e
me virei para encará-lo nos olhos. — Essa escolha partiu de você,
quando se mostrou receptivo tanto para dar quanto para receber
afeto.
Michael sorriu de forma afetuosa, pouco antes de se curvar
para me dar um beijo na testa.
— Meu mundo estava cinza até você chegar, sabia? —
murmurou ele, com a voz dolorosamente rouca. — É a própria
personificação do raio de sol, que preenche internamente e injeta
todo seu frescor, a sua jovialidade, a sua leveza... — Senti os dedos
dele se enroscarem em meu cabelo. O simples fato de respirar
tornava a tarefa árdua demais para ser executada. — Eu nunca me
senti tão vivo quanto agora. Eu me conecto com a melhor versão de
mim mesmo, quando estou perto de você. Não faz ideia de como é
linda, Leti — Ofegou, olhando direto para minha boca, de novo.
Quando Michael estava prestes a capturar meus lábios, eu
me afastei da janela e coloquei a mãos no pescoço de forma
protetora, com o sangue fluindo intensamente pelos vasos
sanguíneos, as veias do pescoço insistiam em latejar, queimando a
minha pele.

A expressão dele era genuína, revelava a sinceridade de


seus sentimentos, e chegar àquela constatação era doloroso
demais. O meu coração se apertou no peito e bateu tão
descompassadamente a ponto de senti-lo subir à garganta. Os
meus olhos começaram a arder, mas eu pisquei com força, para
afastar aquelas lágrimas traidoras.

Permaneci de costas para ele, mas escutei perfeitamente o


som de seus passos, anunciando a sua saída da sala de estar, e me
deixando a sós e entregue aos próprios devaneios.

Um desejo insano me toma de assalto ao menor contato, à


menor aproximação dele, onde quer que eu esteja.

Quero que Michael reivindique não apenas os meus lábios,


mas o meu corpo também.
 
Capítulo 16
Michael Foster

Dias depois...
 

O instinto moldou o homem desde os primórdios, tornando-se


uma parte intrínseca de nossa natureza, algo fundamental para
nossa sobrevivência e evolução.
Os impulsos mais conhecidos estavam relacionados à
sobrevivência, além da satisfação do desejo sexual, da competição,
da agressividade ou violência, do altruísmo, da busca por
conhecimento e da nossa sede por liberdade. Quem nunca gostou
de assistir filmes de ação nos cinemas? Ou até mesmo as lutas
brutais nos canais de esportes como o Ultimate Fighting
Championship, mais conhecido pela sigla UFC?
Clube da Luta, obviamente, era um dos meus filmes favoritos
da vida.
Os participantes do clube “Ultraviolence”, eram em sua
maioria, pertencentes à indústria da alta tecnologia. Eu me tornei um
membro assíduo nas lutas clandestinas, graças a um colega do
Instituto de Tecnologia de Massachusetts, Logan Banks, um
engenheiro de software de 37 anos que também era o meu instrutor
de artes marciais, e cofundador do clube restrito apenas para
convidados.
Havia duas modalidades de combate: os oponentes poderiam
optar pelo uso de luvas, como também poderiam se enfrentar com a
mão ‘seca’. Mesmo escolhendo a segunda modalidade, as lesões
decorrentes dos golpes eram de menor gravidade, porque todos
usavam faixas para envolver o pulso, o polegar e parte das mãos.
Dei continuidade à ginga, movimentação no tablado,
cercando o meu instrutor, e mantendo a guarda. Nós dois usamos
uma camisa de compressão térmica de manga longa, um calção de
tecido leve, bandagens para proteção dos pulsos, além de luvas e
tênis de cano médio que protegia bem os tornozelos, mas sem
limitar muito a movimentação.

Eu tentava inutilmente acertar alguns socos, mas Logan


desviava facilmente de todos os golpes desferidos contra ele. Vez
ou outra, o meu instrutor baixava a guarda, então eu dava um passo
para trás e contra-atacava, mas ele imediatamente se protegia e
depois revidava o golpe.

Ele já tinha acertando um potente gancho de direita em meu


rosto.

— Foco, Mike, mantenha o foco! — Meu instrutor me


repreendeu de modo severo. — Não me diga que desperdiçou toda
a energia visceral acumulada com sexo. Ou pior: com a boa e velha
punheta?

Eu grunhi, irritado comigo mesmo por falhar miseravelmente


no treino.

— O que eu faço fora do ringue não é da sua conta.

— Não é da minha conta, mas porra irmão, você sabe muito


bem que eu me preocupo com você.

Logan tentou acertar minha cabeça, com um golpe cruzado


feito em diagonal e de cima para baixo, mas eu fiz o bloqueio,
usando o antebraço, antes de desferir um soco no contra-ataque
rápido.

— Relaxa, irmão — Eu já tinha um rival em mente para a


próxima luta. — Estou muito bem preparado. Vou levá-lo à lona,
pode apostar — assegurei, em tom firme, mas as palavras soaram
pouco convincentes até para os meus próprios ouvidos.

— Aposto que alguma mulher tem tirado o seu sono e sua


concentração...

— A única mulher que tinha esse efeito sobre mim, morreu há


mais de três anos. — Rebati em tom ríspido, enquanto fazia a
movimentação sobre o ringue, estudando a melhor forma de
neutralizar a ação dele.

— Eu sei disso, porra, mas ninguém é de ferro... Parece que


o gigante acordou mesmo, hein? Se estava tão louco assim para se
aliviar, por que não me avisou? Tenho meus contatos. Coisa fina,
sabe? As melhores acompanhantes de luxo de Seattle.

Aproveitei o momento de distração dele e executei o Upper,


um golpe no meio da guarda do oponente, acertando o queixo,
seguido de um direto no rosto.

— A minha alma anseia por conexões reais, Logan. —


Esbravejei, quase cuspindo. — Mas sim, você está certo. Eu
conheci uma mulher, na verdade, uma menina-mulher... — Ele
soltou uma risada abafada.

— Seu filho da mãe safado! — E dizendo isso, ele partiu para


cima de mim, desferindo uma sequência de cruzados de direita e de
esquerda, mas eu consegui bloquear todos. — Quantos anos ela
tem? — perguntou, ao se deslocar ao redor do ringue.

— 21 anos. — Respondi, ofegante, e dei alguns passos para


trás até sentir minhas costas batendo nas cordas. — Ela é brasileira,
se chama Letícia e está morando em minha casa.

Eu medi e sustentei a distância, com a guarda razoavelmente


fechada.

― O quê? ― disse ele, engasgado. — Me explica isso direito,


irmão.
— Ela é a nova babá da minha sobrinha. Neste caso, o termo
certo é au pair.

— Quer dizer que passou a ser o chefe dela, ainda que


indiretamente?

— De certa forma, sim. — Deixei meu corpo cair contra as


cordas do ringue e permaneci ali, de olhos fechados, respirando
fundo e exalando o ar, pesadamente. — Este programa dá a
oportunidade à jovens do mundo todo, com idades entre 18 e 26
anos, de viverem nos EUA, com um visto J-1 de intercambista pelo
período de 12 à 24 meses.

Quando eu abri os olhos, Logan se aproximou e me entregou


uma garrafa de água, além da toalha de rosto. Tomei apenas um
gole para limpar a garganta, em seguida sequei o suor da testa, e
devolvi os itens para ele, que não deixou de observar atentamente
cada um dos meus movimentos, em silêncio.

Precisava lembrá-lo de que eu era imbatível no clube da luta.

— Mas eu continuo sendo o melhor, Logan — Tentei


tranquilizá-lo.

— Contanto que não deixe esse seu lance com a au pair


subir à cabeça... Creio que não teremos maiores problemas. Por
hoje é só, Mike. O treino acabou.

A minha única reação foi levar as duas mãos — calçadas


com as luvas de boxe, — à cabeça, batendo nela sucessivas vezes,
visivelmente frustrado comigo mesmo.
Um desejo feroz me consumia, comprometendo o meu
rendimento no esporte e colocando em risco o triunfo sobre meu
próximo adversário no Ultraviolence.
 

Reuni toda a equipe para uma reunião no início da tarde,


visando acertar os últimos detalhes da nossa participação na RSA
2023, uma conferência anual com os melhores CEOs de segurança
cibernética do mundo, além de pesquisadores em cibersegurança,
formuladores de políticas e investidores, agendado para a última
semana de abril, em San Francisco, Califórnia.

Discuti alguns tópicos importantes como o ChatGPT e as


implicações da IA ​generativa para a segurança cibernética, além
dos desafios relacionados ao ransomware, um tipo de malware de
sequestro de dados, feito por meio de criptografia, ataques à cadeia
de suprimentos de software e o desenvolvimento da computação
quântica.

Na minha visão, apenas os programas de segurança


cibernética centrados no capital humano poderiam ser bem-
sucedidos.

Quando a reunião terminou, cerca de vinte minutos depois,


aguardei os executivos deixarem a sala, e fiz um sinal para Thomas
permanecer no local. De repente, me veio uma vontade súbita de
contemplar a paisagem através da imensa janela do edifício.

Uma chuva fina caía de forma intermitente em Seattle, como


de costume.

Pouco antes de o treino começar, já nas primeiras horas da


manhã, eu recebi uma mensagem do meu irmão, Maxwell: “Mike, eu
estou em Dublin agora, aguardando o embarque do voo de conexão
para Seattle. Quero fazer uma surpresa para nossos pais. Você
pode me buscar no aeroporto? Chegada prevista às 17:05, horário
local.”

— Eu preciso sair mais cedo hoje, Tom. Meu irmão está de


férias e me pediu para buscá-lo no aeroporto, pois pretende
surpreender nossos pais na chegada à Bellevue.

— Pode deixar que eu cuido de tudo, Mike. Então como foi o


treino de hoje?

— Meu instrutor acabou comigo, cara! — Fiz uma careta


autodepreciativa, antes de prossegui: — Mas eu precisava me
aliviar, e obviamente ele percebeu isso. Você sabe que esse tipo de
coisa acaba drenando nossa energia.

— A au apair brasileira virou seu mundo de cabeça para


baixo mesmo, hein?

— Se eu acordo e vou até a cozinha, já sinto o aroma


delicioso do café que ela prepara; se eu sigo até a garagem, ela já
está no carro acomodando a Zoe na cadeirinha dela; se eu volto
mais cedo para casa, ela já está no jardim, brincando com a menina;
se eu decido comer alguma coisa, eu já encontro a mesa posta para
o jantar, mesmo não sendo a função dela.

— Ela cozinha bem, pelo menos? — Ele mordeu a mão para


sufocar o riso.

— Letícia tem ascendência italiana. Está bom para você? —


Ele caiu na gargalhada, claramente se divertindo às minhas custas.
— Ela nunca me escuta, Tom. Insiste em fazer o jantar para a
família toda. Pensa em uma pessoa teimosa? Multiplica por dois
agora.

— Não deve ser nada fácil conviver com uma pessoa que nos
atrai tanto...

— Eu sempre falo para mim mesmo: “Aguente firme, Mike.


Os meses passam rápido.” Só que eu já não sei mais o que fazer
para esconder como me sinto em relação a ela...

— E como a babá se sente em relação a você? — perguntou


ele, cruzando os braços, seus olhos se mantinham fixos em mim,
uma das sobrancelhas, arqueada.

— É recíproco. — Eu desviei o olhar por um instante, com ar


pensativo. — O corpo dela já fala por si, quando olha para minha
boca e morde os lábios... Um jeito meio tímido, meio inocente, que
me deixa louco de tesão... — Soltei um longo suspiro.

— Talvez você tenha mais um motivo para se preocupar... —


Ele deu um tapinha em meu ombro. — Maxwell.

— Puta que pariu! — Esfreguei o queixo, e olhei para ele com


os dentes trincados. — Max vai ficar obcecado por ela, certeza. Ele
sempre gostou de bancar o conquistador.

— Os dois são jovens, e devem ter muitas coisas em comum.


E quanto a você, Mike, sabe muito bem que está em desvantagem
por ser vários anos mais velho do que ela... — A minha única
reação foi levantar as sobrancelhas, e por pouco eu não soltei o ar,
tomando por um sentimento que variava entre a ironia e o despeito.

A bem da verdade, o meu irmão não passava de um moleque


inconsequente.

— Não faz o tipo dela. — Retruquei, sem muita convicção. Eu


lhe dei as costas e passei a arrumar minha pasta, que estava em
cima da mesa. — Melhor eu ir logo ao aeroporto buscar o filhinho da
mamãe. Não quero pegar trânsito na volta para casa. A gente se
fala depois, Tom.

— Boa sorte, Mike! — gritou ele, quando andei em direção à


porta.

— Haha, muito engraçado. — Eu me virei a tempo de dar um


sorriso amarelo, antes de ir embora.

Eu estava passando pelo corredor, quando de repente, um


pensamento me veio à mente. Tirei o celular do bolso e liguei para
Michelle, descumprindo em parte o pedido feito pelo meu irmão. Ela
atendeu no terceiro toque, como de costume.

— Adivinha só quem vai passar o feriado da Páscoa


conosco?

— Oh, já sei. Oh, meu Deus. Não acredito que Maxwell está
vindo! É sério? — Ela mal conteve a empolgação na voz.
— Sim, ele mesmo! Mas por favor, finja surpresa quando
reencontrá-lo, ok?

— Pode deixar, querido. Eu vou preparar um jantar especial


para nós... Estou tão feliz com essa notícia! Só de poder ver os
meus filhos reunidos de novo, não tem preço.

— Acho melhor você avisar as meninas, porque eu já estou a


caminho do aeroporto. A gente se vê mais tarde! — Encerrei a
chamada e guardei o celular no bolso do paletó.

O trânsito estava um pouco lento, em um cruzamento perto


da rampa de acesso à rodovia WA 520, mas não levaria mais do
que trinta minutos para chegar ao meu destino. No entanto, e para
meu completo azar, eu acabei pegando um congestionamento na
altura da Interstate 405.

O problema maior seria evitar as longas filas de carro no nível


inferior do terminal, o que ocorria especialmente entre o final da
tarde e o início da noite, em virtude das férias de primavera, levando
as autoridades a aconselharem o uso do transporte alternativo como
o metrô de superfície. A solução mais viável era pegá-lo no nível
superior, destinado ao embarque de passageiros, uma vez que Max
não tinha nenhuma bagagem despachada.

Uma vez subida a rampa, eu reduzi um pouco a velocidade


até avistar meu irmão, parado no meio-fio com sua mala pequena
de rodinhas. Havia uma vaga disponível diante dele, então parei no
meio-fio e abri a janela pelo lado do passageiro.
— Olá, irmãozinho. — Estreitei os olhos na direção dele. —
Entra logo nesse carro — completei, ao apertar o botão para abrir o
porta-malas.
Maxwell era um rapaz de boa aparência, adotava um visual
mais despojado, típico dos jovens de sua idade, com seu cabelo
castanho curto, o topete arrepiado lhe conferia um charme adicional,
e a barba por fazer era quase na tonalidade ruiva.

O mais engraçado era que Max e eu não éramos nem um


pouco parecidos. Já Kylie e ele compartilhavam os mesmos olhos
verdes, emoldurados por cílios longos, além da sobrancelha grossa
e bem desenhada. Na verdade, os dois herdaram traços
característicos de nossa mãe, Michelle, e dos Gallaghers, sua
família inglesa. Meu pai sempre dizia, orgulhosamente, que eu puxei
mais para o lado da família dele.

— Tem chovido muito em Londres? — Comecei com uma


pergunta retórica só para puxar assunto, assim que ele se ajeitou no
banco do carona. Sua única reação foi revirar os olhos, como se eu
tivesse feito a pergunta mais imbecil do mundo.

— Vou fingir que não ouvi isso para o seu próprio bem.

— Pretende ficar quantos dias? Assim, só por curiosidade


mesmo, é claro.

— Uns três a quatro dias... Ou quem sabe uma semana


inteira — disse ele, com ar distante. Notei pelo canto do olho que
meu irmão estudava atentamente as minhas feições. — Você está
agindo de um jeito estranho, Mike... Parece nervoso, embora
sustente aquela máscara de frieza como sempre.

— Impressão sua, Max — Fiz questão de frisar. — Eu estou


bem...
— Quer dizer que nossos pais ainda não descobriram que
Kylie está na cidade? — Ele ainda aparentava estar desconfiado,
mas pelo menos mudou de assunto.

— Eles souberam até poucos dias atrás, embora por culpa


minha, porque eu levei a neta até a casa deles. Criança nenhuma
guarda segredo por muito tempo. E com a Zoe não seria diferente
— Meu irmão caiu na gargalhada e eu acabei rindo também.

— Ela deve ter ficado uma fera! Nem acredito que você
sobreviveu à ira da futura Dra. Foster.

— Kylie sempre foi bastante orgulhosa, mas no fundo sempre


teve medo de confrontá-los.

Ela imaginou que nossos pais não a apoiariam se soubessem


que Dylan tirou quase todo o dinheiro aplicado na conta conjunta,
sendo que eles a aconselharam a não confiar nele.

— Mas por que Kylie quis tanto ficar na sua casa? Quando
ela me contou que decidiu voltar para Seattle, achei que estava
disposta a engolir o orgulho, visando dar o melhor para a filha dela.
Nossos pais jamais a deixariam desamparada.

— Achou mesmo que eu seria capaz de virar as costas para


ela? — Eu quase engasguei ao fazer aquela pergunta, enquanto
dirigia um olhar indignado para ele.

Não que eu estivesse surpreso, afinal meu irmão nunca


morreu de amores por mim, mas daí a pensar que eu era uma
pessoa ruim? Aquilo era um tremendo absurdo.
— O que queria que eu pensasse, Mike? — Rebateu,
fazendo um gesto com as mãos, as palmas voltadas para cima, e os
ombros encolhidos. — Você passou a viver uma vida quase reclusa,
praticamente, parecendo um lobo solitário vigiando seus domínios
com uma placa de advertência escrito “Mantenha a distância”.

Aquela era exatamente a percepção que as pessoas tinham a


meu respeito.

Não muito diferente de como eu me enxergava, ao longo de


todos esses anos.

— Já faz alguns meses que estou tentando reconstruir a


minha vida, Max — Mantive a atenção no trânsito, com o cotovelo
sobre o apoio da janela, e o dedo indicador pressionando a maçã do
rosto. — Eu retomei a minha rotina habitual, recentemente. Estou
vivendo um dia após o outro... O convívio com Kylie, Zoe e Letícia
tem sido benéfico para mim, sabe? Me sinto bem perto delas.

— Você mencionou um nome que eu nunca ouvi falar. De


quem se trata?

— Letícia é uma jovem de 21 anos, que veio do Brasil como


au pair e está morando conosco há quase um mês. — Minha voz
assumiu um tom neutro. — Uma au pair vive nos EUA,
temporariamente, na casa da família anfitriã, recebe um salário para
cuidar de crianças, e ainda tem a oportunidade de aperfeiçoar o
idioma.

— Eu quero muito poder conhecê-la — comentou ele, com


fingida casualidade. Virei meu rosto de modo brusco para encará-lo,
com um levantar de sobrancelhas, curioso e incrédulo ao mesmo
tempo.

Quando o meu olhar encontrou o dele, notei um sorriso


presunçoso se formando nos lábios e um brilho matreiro espreitando
a íris.

— Eu tenho o direito de saber se minha sobrinha está em


boas mãos, não acha? — disse ele, com inocência fingida.

Um músculo se contraiu no maxilar e voltei minha atenção


para a estrada.

É bem possível que a minha paciência seja testada logo mais


à noite, mas eu não sairei de perto dela nem por um minuto sequer.
 
Capítulo 17
Michael Foster

Passei o caminho todo até Bellevue, planejando uma forma


de evitar que meu irmão interagisse com Letícia, além do
necessário. E por falar na au pair, ela e minha irmã conversavam
animadamente sobre os melhores bares e baladas de Seattle.
Letícia estava com dúvidas sobre qual local escolher para se divertir,
junto com suas amigas.

A vida noturna de Seattle não se limitava apenas a bares e


casas noturnas. As opções eram bem diversificadas, atendendo a
todos os tipos de público. Havia desde bares e cervejarias a lounge
e clubes requintados, além dos pubs no descolado bairro de Capitol
Hill, na moderna e histórica Pioneer Square e no University District.

Diversas feiras e festivais era realizados ao longo do ano,


atraindo centenas de milhares de visitantes. O Seattle International
Film Festival era conhecido por ser o evento mais famoso voltado
para a sétima arte. A cidade também era referência no cenário
musical, por ter sido o berço do movimento grunge e mais
especificamente de bandas como Nirvana, Pearl Jam, Alice in
Chains, entre outras. Os bares de rock alternativo ainda eram muito
populares entre os jovens, assim como os clubes de blues e jazz,
particularmente o Jazz Alley, que atraía músicos famosos de mundo
todo.

— A Q Nightclub é uma das melhores casas noturnas de


Seattle. O lugar que mais concentra gente bonita por metro
quadrado — Minha irmã disse, com empolgação. — Fica em Capitol
Hill, mas vale a pena conhecer outras baladas desse bairro também.

— Já eu indico o bairro de Belltown por ser o epicentro do


movimento grunge. O The Crocodile, por exemplo é parada
obrigatória para todos os fãs de Rock. O local já foi palco de bandas
como Nirvana, R.E.M, Pearl Jam, entre outras.

— Não acho que as amigas da Leti vão curtir, Mike. Os


jovens de hoje em dia preferem baladas de música eletrônica, e não
shows de rock alternativo.

Eu estava ao volante, enquanto Letícia ocupava o banco do


carona; já Kylie e a filha dela se acomodaram no banco de trás. A
au pair trocou um olhar significativo comigo, e um sorriso discreto
aflorou nos lábios dela.

— Agradeço muito sua sugestão, Mike — disse ela, com


aquele seu jeito doce e meigo, que sempre trazia uma sensação
boa, que aquecia o meu peito, e melhorava o meu humor, na maior
parte das vezes.

— Eu também quero ir, mãe! — disse a Zoe, em tom de


súplica.

— Crianças não frequentam esses lugares, meu amor —


Kylie fez carinho no rosto da filha e afagou suavemente sua cabeça.
— A festinha é liberada só para adultos.

Atravessei o caminho de cascalho, ladeado por pinheiros e


cercas-vivas de ambos os lados da propriedade dos meus pais e
estacionei diante da entrada principal.

Kylie saltou primeiro do veículo, para ajudar a filha a sair da


cadeirinha.

As três estavam bem estilosas, cada uma à sua maneira.


Zoe, por exemplo, usava um vestidinho preto estampado, com
mangas bufantes e detalhes vazados na parte superior, além de
possuir uma leve ondulação na barra, proporcionando conforto e
liberdade de movimento. Já Kylie usava um vestido vermelho
confeccionado em tecido de alfaiataria, bem ajustado ao corpo, com
alças largas, decote redondo, e uma fenda discreta na frente. E
quanto a Letícia, ela estava deslumbrante com seu vestido branco
feito em crepe e de comprimento midi, o busto de tule bordado, as
mangas com elástico embutido nos punhos deixavam parte dos
braços delicados dela à mostra e a saia rodada e fluída, conferia um
caimento sofisticado.

Nem bem minha sobrinha desceu do carro, ela já foi logo


correndo em direção à porta principal, mesmo sob os protestos da
mãe, que tentava alcançá-la, pisando desajeitadamente no chão de
paralelepípedos, com suas sandálias de salto fino.

Enfiei minhas mãos nos bolsos da calça social, e estreitei os


olhos na direção de Letícia, que se mantinha em silêncio, enquanto
caminhava ao meu lado.

— Você está linda — Um som baixo de aborrecimento


escapou dos meus lábios, por ter escolhido uma frase bastante
clichê como elogio, mas eu me apressei em corrigir: — O que eu
quis dizer é que esse vestido combina muito com seu jeito de ser,
pois transmite todo seu romantismo, sua graciosidade e leveza.

— Eu sei que foi só um elogio, Mike, mas apreciei muito ouvir


isso de você.

Havia algo nos olhos dela. Um brilho diferente espreitava a


íris verde, sinalizando seu interesse por mim, mas no fundo eu já
sabia que aquele sentimento era recíproco. Semanas se passaram,
sendo consumido por um desejo feroz que fervilhava
silenciosamente dentro de mim, mesmo ciente de que engatar um
romance com uma jovem vinte anos mais nova poderia me custar
muito caro. Toda mulher sonhava se conectar com um homem a um
nível mais profundo, vislumbrando um futuro a dois, mas a iniciativa
de dar esse passo recairia sobre meus ombros, naturalmente.
Letícia não merecia desperdiçar a melhor fase de sua vida,
ao lado de alguém que se sentia morto por dentro.

Um lobo solitário como eu, que desistiu de sonho de formar


uma família.

— Eu fico aliviado em saber disso, Leti.

Nós dois sorrimos um para o outro e adentramos a imponente


mansão.

Encontrei Kylie e Zoe na sala de estar, acompanhadas por


Max e nossos pais.

Michelle estampava um sorriso cordial nos lábios, e nos


saudou com um gesto de cabeça, exalando toda sua elegância e
carisma no alto dos seus 70 anos.

— Fico feliz por terem trazido a Letícia para o nosso jantar.

Relanceei o olhar pela sala de estar até encontrar Maxwell,


posicionado ao lado Lionel, que brincava com a neta nos braços. Só
de identificar o brilho de cobiça despontando nos olhos verdes,
enquanto suas pálpebras subiam a desciam, avaliando Letícia de
cima a baixo, e os lábios curvados em um sorriso satisfeito, não
deixava qualquer sombra de dúvida. Meu irmão também ficou
interessado na au pair brasileira.

Senti os músculos do maxilar se retesarem, tomado por uma


onda de ciúme transpassando o corpo e atingindo em cheio na
alma.
Sem tirar os olhos dele, eu me inclinei para o lado, com o
rosto a apenas alguns centímetros de distância do dela, simulando
querer dizer algo ao ouvido, e realmente ensaiei um pedido de
desculpas pelo o que estava prestes a fazer, mas o instinto me
cegou por completo, e pairei os lábios sobre a maçã do rosto,
selando um beijo suave e rápido demais, mas com intensidade
suficiente para provocar um tremor involuntário nela.

Maxwell nos encarou com as sobrancelhas erguidas e torceu


a boca num claro sinal de desdém. E quanto a Letícia, ela levou a
mão ao rosto, confusa, e rapidamente se afastou de mim,
caminhando em direção à Michelle e Kylie, que aparentemente não
presenciaram a cena. E por falar na minha irmã, ela mesma se
encarregou de fazer as devidas apresentações, e ainda deixou os
dois bem à vontade para conversarem e quem sabe se conhecerem
melhor.

Pelo canto do olho, eu observei meu pai colocar a Zoe no


chão, antes de se dirigir até o aparador de bebidas, em seguida tirou
uma garrafa de uísque, serviu duas doses em cada copo, e se
aproximou de mim, com a testa franzida e uma expressão severa no
rosto.

— Beba isso — disse ele, estendendo o copo. — O que foi


aquilo, Michael?

— Não foi nada. — Eu respondi de modo curto, direto e sem


transparecer qualquer emoção.

Levei o copo aos lábios e bebi tudo num único gole, aliviado
em poder sentir o uísque queimando bem a garganta e fervendo o
estômago. Aquela dose lavou a alma.

Arrisquei um olhar na direção dele, e eu o flagrei me


estudando atentamente com os olhos semicerrados sob as
sobrancelhas grossas, a expressão desconfiada não dava margem
para dúvida. A resposta não convenceu meu velho pai o bastante.

— Já disse que não foi nada — Eu falei de modo tão ríspido,


que algumas gotas de saliva saíram pela boca, incapaz de disfarçar
a irritação pela expressão de censura no rosto dele.

— A quem está tentando enganar, Michael? — A voz dele


saiu baixa, ao assumir uma postura confidencial. — Que você sente
algo por essa jovem, isso eu já percebi. A questão agora é outra: E
se ela estiver sentindo o mesmo? Acha prudente se envolver com
alguém com significativa diferença de idade, e que ainda por cima
está aqui só de passagem? Ela tem data para voltar, se esqueceu?
— Eu apenas concordei em um movimento quase imperceptível de
cabeça, com os lábios cerrados.

Aquele beijo, — supostamente inocente — no rosto foi um


erro. Um erro que talvez me custaria caro, afinal eu me comportei
como um adolescente, mesmo sabendo que meu gesto era
desrespeitoso e inoportuno demais.

Letícia sempre demonstrou uma enorme consideração por


mim, e eu fiz questão de estragar tudo por despeito, só porque meu
irmão pareceu interessado por ela.

— Lionel! — Michelle gritou, chamando a atenção de todos.


Minha mãe levantou o braço e o chamou novamente: — Lionel,
querido, que tal nos reunirmos logo à mesa?
— Perfeitamente, querida — respondeu ele, antes de voltar
sua atenção para mim. — Eu sempre te achei o mais sensato da
família, Mike. Então não me decepcione. — E dizendo isso, ele me
deu um tapa amigável no ombro e se afastou.

Quando eu arrisquei um olhar na direção da au pair, notei


que a expressão dela se suavizou, parecia bem mais calma e
compassiva, o que proporcionou algum alívio, e fez reacender uma
fagulha de esperança no peito.
 

Passei os minutos seguintes no escritório, discutindo alguns


assuntos pendentes com meu pai, quando de repente escutei uma
batida na porta. Virei o rosto no exato instante em que Kylie
colocava a cabeça pela fresta, fazendo um sinal para mim.

— A gente retoma a discussão mais tarde, pode ser? —


Lionel assentiu em concordância e me levantei, ansioso em saber o
motivo daquela interrupção repentina.

Fechei a porta atrás de mim e cruzei os braços sobre o peito,


dirigindo um olhar inquisitivo para ela.

— Max acabou de levar um fora. — disse Kylie, enquanto


cobria a boca para sufocar o riso. — Ele chamou Letícia para ir a
uma festa na casa de algum amigo dele, mas ela recusou
educadamente o convite.
— E o que eu tenho a ver com isso? — Pisquei várias vezes,
confuso.

— Max me contou o que você fez minutos atrás. Deu um


beijo no rosto da au pair, assim sem mais nem menos.

— Eu agi por impulso e vou pedir desculpas a ela depois por


isso.

— Ele acha que você está interessado por ela, mas,


obviamente, isso não é da minha conta. Vocês, que são homens,
que se entendam.

Desviei o olhar, soltando um longo suspiro de resignação.

— Onde Max está agora?

— Imagino que esteja no quarto dele.

Segui a linha de arcos góticos e pisos de mosaico em direção


às escadas, subi rapidamente de dois em dois degraus, e atravessei
o longo corredor, mas ao alcançar a porta, bati nela de leve, então
girei a maçaneta e entrei, sem esperar por uma resposta.

Eu o encontrei sentado na cama, e encostado à cabeceira,


com o olhar perdido em algum ponto do quarto, como se a mente
vagasse a quilômetros de distância dali. Afastei algumas almofadas
e me sentei ao lado dele, mantendo uma perna estendida sobre o
chão, e outra dobrada à altura do joelho.

— E aí, Max. — Ele não esboçou nenhuma reação. Dei um


longo suspiro e me ajeitei melhor na cama. — Kylie me disse que te
encontraria aqui. — Fiz uma pausa, aguardando algum mísero gesto
contrário à minha presença, algo que não aconteceu. — Eu sei
como se sente... — Inclinei a cabeça para encará-lo, e notei a
mesma expressão triste de antes, parecendo perdido em
pensamentos. — Eu também já levei um fora. Imagino que ela tem
suas razões para recusar o convite. Por que isso te afetaria tanto?

— Ela está afim de você, sabia? — rebateu ele, olhando para


mim, com certa frieza.

— Sim, eu já sabia. — Desviei olhar para parede, com um ar


meio contemplativo. — Ela está tão interessada em mim como eu
nela.

— Você sempre deu sorte com as mulheres. — Ele abriu um


sorriso, meio debochado, meio brincalhão. — O que te impede de
tomar a iniciativa?

— E você ainda pergunta? Fiz um voto de celibato, após a


morte de Susan.

— Vocês construíram uma linda história de amor, mas ela


infelizmente chegou ao fim. O que eu quero dizer é que os ciclos se
encerram para que outros possam começar, Mike. Você é bem mais
velho do que eu, mas o seu pau ainda está funcionando! Não
desperdice a chance de ser feliz, cara.

Nós dois nos entreolhamos, sérios, então explodimos numa


gargalhada.
 
 

Subi a escada em espiral que levava até a casa da árvore, já


ciente do que encontraria ali. Ou melhor dizendo, ciente de quem eu
encontraria sozinha ali: Letícia.

Havia uma janela em forma de escotilha, um espaçoso sofá


de couro, além de poltronas e cortinas do tipo blackout penduradas
nas amplas janelas voltadas para o leste, oferecendo vistas
panorâmicas do Lago Washington. O andar superior reservava um
quarto aconchegante, que recebia a luz natural de painéis do
telhado de ferro corrugado e suas próprias janelas com vistas um
pouco mais escondidas entre os galhos próximos. A casa ainda
contava com seu próprio deck, envolvendo um tronco de árvore
adjacente.

Quando Letícia notou minha presença, ela deslizou as mãos


protetoramente pelos próprios braços como se sentisse frio, e se
afastou da janela, indo em direção ao espaçoso sofá de couro.

— Kylie me disse que te encontraria aqui. — Engoli em seco,


com a voz quase falhando. — Mas antes eu quero que te pedir
desculpas, Leti. Mesmo um beijo no rosto precisa ser consentido, e
me sinto muito mal por ter agido de forma inconsequente e
desrespeitosa com você.

— Por que fez aquilo? — perguntou ela, calmamente, sem


nenhum traço de irritação, sua voz denotava apenas curiosidade
mesmo.

— Eu posso? — Indiquei o sofá com um gesto. Como ela


aquiesceu com a cabeça de forma quase imperceptível, eu me
aproximei do móvel e sentei na outra ponta, mantendo uma
distância respeitosa. — Eu meio que agi por impulso, sem medir as
consequências, sabe? Eu vi a maneira como Max olhava para você.
Não que isso justifique, mas eu realmente fiquei com ciúme.

— Nem precisa dizer o quanto isso foi inapropriado, afinal


você é praticamente o meu chefe... meu hosto, alguém que tão
gentilmente me recebeu em sua casa, sendo que eu não passo de
uma estrangeira...

— E eu estraguei tudo como sempre. — Curvei o corpo para


a frente, mantendo os cotovelos apoiados nas coxas, e minhas
mãos unidas diante do rosto.

— Mas eu gostei muito, até mais do que deveria. — Ela se


apressou em dizer, me pegando completamente de surpresa. —
Nem sei como explicar direito... — Sorriu timidamente e colocou
uma mecha de cabelo atrás da orelha. — Foi bem prazeroso e
desconcertante, tudo ao mesmo tempo, sabe?

— Ficou tão mexida assim, com um simples beijo no rosto?


— Franzi a testa, com uma expressão de incredulidade. Ela fez que
sim e virou o rosto para o lado, mas eu rapidamente segurei o
queixo dela entre o polegar e dedo indicador, não lhe dando outra
opção além de me encarar diretamente nos olhos. — Eu posso te
fazer uma pergunta bem pessoal, Leti? — Ela se limitou apenas a
murmurar: “uhum”. — Você me enxerga mais do que como um
amigo?

— E-eu... — Letícia exalou o ar num suspiro profundo. — Eu


não sei bem o que sinto. O que eu quero dizer é que eu nunca senti
isso por ninguém. — Ela frisou bem a última palavra, provocando
um efeito estranhamente confortável em meu peito. Um senso
profundo de urgência fez meu coração disparar. — Nenhum outro
homem chegou tão perto assim de mim antes... Entende o que
quero dizer?

O olhar dela transmitia sinceridade, e engoli em seco, o pomo


de adão subiu e desceu, me obrigando a limpar a garganta antes de
voltar a falar.

— Mas você já está acostumada a sair com seus amigos.


Não é possível que não tenha rolado uns beijos de vez em quando...

— Não, comigo nunca aconteceu — negou ela, com


veemência.

Deixei escapar algo entre um riso e um arquejo, ao processar


aquela informação um tanto inusitada.

— Era para ser engraçado eu ter dito que nunca beijei? — A


voz dela soou rude, de repente, e seu semblante ficou
repentinamente sério. — Além de nunca ter beijado na boca, eu
ainda sou virgem.

— Não me interprete mal, por favor! — Eu me apressei em


dizer, enquanto segurava a mão dela entre as minhas. — Eu juro
que eu não ri de você, mas sim dos caras que te conheceram e não
puderam sentir a textura dos seus lábios — prossegui, soltando a
mão dela apenas para sentir a maciez deles, com um simples toque
do polegar. Ela ofegou em resposta ao toque ousado, seu lábio
inferior tremeu de forma involuntária, assim que passei a deslizar o
dedo, bem devagar. — Lábios nunca antes tocados por um
homem... — A minha voz saiu rouca e tão baixa, que era quase um
sussurro contra a boca entreaberta dela. — Só de pensar que eu
posso ser o primeiro e último a prová-los, Leti... Nem imagina o
quanto isso mexe comigo.

Letícia afastou meu braço, mas manteve a outra mão


segurando firmemente a aba do meu blazer, como se travasse uma
luta interna contra o desejo de me puxar para junto de si. Seus olhos
se detiveram em meus lábios, o decote discreto do vestido deixava
à mostra a leve ondulação dos seios, que subiam e desciam ao
ritmo da respiração curta e rápida.

O meu pau começou a pulsar e inchar, pressionando a cueca,


dolorosamente.

— Você nem mesmo sabe beijar de língua. — Percebi uma


nota de ironia na voz dela.

— De onde tirou essa suposição? — Pisquei várias vezes,


confuso. — Você está muito enganada a meu respeito. Por que não
paga pra ver e tira suas próprias conclusões? — Propus um desafio,
enquanto passava o braço ao redor da cintura esguia e a puxei de
modo firme contra mim.

Mesmo hesitante, Letícia ergueu o braço e traçou o contorno


da minha boca, com um dos dedos, por um breve instante, como se
fizesse um reconhecimento.

Ou, talvez, quem sabe, ela achava que aquela seria a


primeira e última vez.
— Beije-me, então, Mike. — A voz dela saiu como um
lamento rouco. E como resposta, eu emiti um som baixo e gutural,
mal contendo o orgulho e o prazer.

Uma de minhas mãos serpentearam ao longo de suas costas,


enquanto a outra a agarrava pelo queixo, salivando em expectativa.
A boca capturou o lábio superior dela primeiro, sugando-o de leve,
antes de fazer o mesmo com o inferior. Um gemido estrangulado
quase escapou dos lábios suculentos, mas eu decidi sufocá-lo, à
medida que a minha língua forçava passagem, a obrigando a
entreabrir os lábios tão quentes e convidativos.

O hálito mentolado mesclado a fragrância sensual e


adocicada de seu perfume invadiam minhas narinas, contribuindo
para o despertar de um sentimento novo e repleto de significados.
Decidi interromper o beijo para sugar provocativamente o lábio
inferior dela e o mordisquei, provocando um arrepio delicioso pela
base da coluna.

— Eu me sinto honrado por sua entrega, Leti. — A minha voz


vibrou com tesão incontido, enquanto roçava a barba pela lateral do
rosto dela. — Qual foi a sensação de sentir os meus lábios nos
seus? — Não esperei pela resposta. — Espero que o primeiro beijo
tenha sido como imaginou que seria, ou que tenha superado suas
expectativas.

— Foi muito melhor do que eu imaginava... — murmurou ela,


timidamente.

Não resisti ao impulso de tê-la em meus braços novamente, e


a puxei de encontro ao peito, envolvendo seu corpo esguio em um
forte abraço, enquanto fechava os olhos e inalava profundamente o
perfume delicioso que exalava das madeixas muito lisas, a ponto de
embriagar meus sentidos.

— Por que nunca se relacionou com ninguém antes? —


Minhas mãos deslizavam pelas costas dela, percorrendo a linha da
coluna de cima a baixo numa carícia lenta, a ponto de me fazê-la
estremecer, sutilmente.

Letícia se afastou um pouco, apenas o suficiente para me


encarar diretamente nos olhos, e no mesmo instante eu percebi que
os dela estavam marejados, não de tristeza, mas sim de emoção, e
não pude resistir à vontade de passar a mão pelos cabelos dela,
acariciando-os com ternura.

— Eu tive uma criação muito rígida, sabe? — respondeu,


soltando um longo suspiro. — Quase não saía de casa, eu morava
praticamente no meio do mato. — Ela soltou um riso abafado,
quando me viu franzir a testa, com ar confuso. — É apenas um
modo de dizer! O lugar é lindo demais. Eu adorava andar pelas
fileiras de pés de café, sabia? Eu colhia algumas frutinhas já
maduras e as chupava, escondida dos meus pais, é claro.

— Não é possível... — Eu fiz uma careta, horrorizado, o que


provocou uma gargalhada nela. — Você não pode estar falando
sério.

— Caso ainda não saiba, o café é uma bebida extraída de


uma fruta.

— Isso deve deixar um gosto amargo na boca.


— Muito pelo contrário! A polpa é bem adocicada, então não
sabe o que está perdendo.

— Ah, mas eu sei, sim... — Um grito de surpresa escapou da


garganta dela, tão logo eu passei os braços ao redor da cintura, e a
puxei de modo firme contra mim, nossos rostos pairando a poucos
centímetros um do outro. — Conheci algo ainda mais saboroso...
Não imagina o que pode ser?

— Não me diga que é o que estou pensando. — Notei um


estremecimento rápido percorrer o corpo dela e seu leve arfar era
digno de nota.

Sufoquei um leve gemido de protesto, ao reivindicar os lábios


dela. Seu corpo amoleceu em meus braços, a respiração
entrecortada pelo barulho do beijo, nossas línguas se esfregavam
uma na outra num ritmo voraz, a urgência ditava os movimentos,
conforme elas penetravam mais fundo, o hálito carregado de
resquícios do uísque se mesclando ao sabor natural da saliva dela.

Senti que Letícia estremeceu de leve, antes de interromper o


beijo, e passou a me encarar com um brilho intrigado nos olhos.

— Você quase me fez perder o fôlego agora. — Ela abriu um


meio sorriso, visivelmente constrangida, mas seu semblante se
fechou de súbito, e baixou os olhos, ruborizada, colocando uma
mecha atrás da orelha, com a mão trêmula. — Mas eu não te dei
uma resposta concreta, Mike. O fato é que eu sempre me senti
diferente das outras meninas da minha idade. Quando eu saí do
Brasil, imaginava poder estabelecer conexões reais, quer fosse para
amizade quer fosse para algo a mais... Eu gosto de me conectar à
essência das pessoas e os jovens de hoje em dia não valorizam
muito isso.

— Eles têm medo de se sentirem invadidos, de ficarem


vulneráveis, ou de serem despidos de suas armaduras frágeis... Se
entregar de corpo e alma para alguém é, definitivamente, um ato de
coragem.

— Mas me fale um pouco sobre essa casa da árvore — disse


ela, com as mãos apoiadas em meu ombro. — O Sr. Foster mandou
construir pensando nos filhos, ou nos netos que viria a ter no futuro?

— Trata-se de uma construção recente, na verdade. —


Relanceei o olhar em torno, meu rosto se contorceu de tristeza, ao
relembrar o motivo pelo qual Lionel Foster projetou aquele espaço.
Susan estava tão ansiosa para testemunhar a materialização
daquele sonho. Mas ela se foi para sempre, levando junto nossa
filha recém-nascida. — Em pensar que meu pai não quis aceitar a
gravidez de Kylie... Por ironia do destino ou não, a filha dela
finalmente teve condições de ocupar esse espaço. Já a minha não
teve a mesma sorte.

— Sinto muito... — Ela levou a mão ao meu rosto, e o


acariciou lenta e suavemente. — Não era minha intenção trazer à
tona essa lembrança... Eu sei que dói muito, Mike.
— Conhecer você foi a melhor coisa que me aconteceu, Leti.
— Sussurrei bem próximo ao ouvido dela, e em seguida a apertei de
encontro ao peito, ansiando pelo calor que emanava de sua pele,
uma sensação reconfortante me preencheu, internamente.
 
Capítulo 18
Letícia Mancini

O meu expediente se encerrou muito antes do jantar na casa


dos Foster’s, mas eu me disponibilizei a passar um tempo a mais
com a Zoe, assim Kylie teria condições de se encontrar com Greg
Clifford, o chefe dos residentes.

Ajudei a minha menina a entrar na banheira, e passei a


observá-la brincando com seus bichinhos aquáticos, todos feitos de
borracha, com textura super macia e ainda esguichavam água,
enquanto formava bolas de sabão por todos os lados, através de um
tubo de assoprar.

O impacto do primeiro beijo na casa da árvore já não me saía


mais dos lábios. Na verdade, a minha boca ainda estava trêmula e
inchada, o simples ato de assoprar o tubo de bolhas de sabão
provocou um leve ardor, como se a pele estivesse marcada pela
invasão feroz dos lábios dele.

Michael soube conduzir bem o beijo, foi muito prazeroso


sentir nossas línguas úmidas se movimentando e explorando as
paredes internas, enquanto nossos corpos se pressionavam um
contra o outro, ansiando pelo calor emanando dos poros.

Fechei meus olhos por um instante, com um sorriso bobo nos


lábios. Mas eu os abri tão depressa, o coração martelando
ruidosamente nos tímpanos, ante a pulsação frenética daquele
ponto sensível, uma fisgada aguda como eu jamais senti antes.

Voltei a me ocupar em dar banho nela, como forma de


controlar aquela reação inesperada do meu corpo. Coloquei uma
pequena quantidade de shampoo na palma da mão para aplicar no
cabelo dela, massageando o couro cabeludo, e em seguida eu
enxaguei bem os fios até não restar mais nenhum resíduo do
produto.

— Mamãe está toda boba, assim como você, Titi — Zoe


falou, toda risonha.

— Eu não sabia que minha menina era tão observadora. Isso


é bom ou ruim?
— Depende. Você pensou em coisas boas? — Eu apenas me
limitei a confirmar, com um gesto de cabeça. — Então continue
sonhando acordada, Titi.

— Eu vou seguir seu conselho, pequena gafanhota — Apoiei


a mão na borda da banheira e me levantei para pegar uma das
toalhas penduradas no suporte. Depois, eu fiz um gesto, sinalizando
para ela ficar de pé. — Já escolheu a leitura desta noite?

— Quero ouvir a história de Frog and Toad![25] — respondeu


minha menina, abrindo os bracinhos, para que eu pudesse vestir o
roupão nela.

A última vez que eu reli “Rã e Sapo são amigos” foi


justamente na noite da minha expulsão da casa dos Evans. Apesar
de o livro estar relacionado a uma lembrança triste da minha
experiência como au pair, aquele era um dos meus favoritos, pois
falava sobre a importância da amizade verdadeira, uma relação
pautada na cumplicidade, tanto nos bons quanto nos maus
momentos.

— Eu não queria que tio Mike ficasse aqui sozinho... — A


minha menina falou, me tirando dos devaneios. — Mas o vovô quer
que a gente more com ele.

Michael e eu passamos um tempo na casa da árvore. Tempo


suficiente para suscitar alguma suspeita entre os familiares dele.
Talvez o Sr. Foster fez aquela proposta como forma de estabelecer
um distanciamento físico entre nós dois, e evitando ao máximo uma
possível repercussão negativa na imprensa.
— E a sua mãe aceitou a proposta do vovô? — Eu me
esforcei para fazer a voz soar o mais natural possível, enquanto
secava os cabelos dela.

— A mamãe não disse nem que sim, nem que não.

Pisquei os olhos, mas as lágrimas começaram a descer pelo


meu rosto. Um súbito silêncio se instalou no banheiro, enquanto
passava a escova por todo o comprimento do cabelo dela.

— Você e tio Mike brincaram muito na casa da árvore? — A


pergunta inocente me pegou completamente de surpresa. Eu ergui o
olhar e me deparei com nosso reflexo no espelho, seu sorriso
espontâneo contrastava com meu semblante triste.

— Uhum. — Eu respondi, sem dar muita importância.

— Ele gosta muito de você, Titi! — Ela acabou mostrando os


dentinhos brancos, tamanha era a empolgação. — Como o papai
gosta da mamãe...

— Eu também gosto dele, mas de outro jeito. — Menti para


ela, deliberadamente. — Nós somos amigos.

Algo me diz que o sentimento dele por mim vai muito além de
um simples desejo.
Nós dois estabelecemos um vínculo emocional, baseado em
cumplicidade, carinho, compreensão e respeito mútuo. Era como um
encontro de almas, a sensação que eu tinha era a de que nós já nos
conhecíamos há anos, ou talvez de outras vidas.
Nenhum outro homem seria capaz de transmitir a segurança
e a confiança necessárias para vivenciar uma experiência única: nós
dois, juntos, nos tornando um só.
Eu desejava me entregar a ele de corpo e alma, sem medos
e sem reservas.
Nunca imaginei que um simples beijo pudesse abalar tanto as
minhas convicções, as minhas crenças. Engatar um romance com
meu hosto americano talvez fosse algo proibido, mas qualquer
tentativa de tirá-lo dos meus pensamentos seria inútil.
Eu já estava completa e perdidamente apaixonada por
Michael G. Foster.
— Agora é hora de escolher o pijama! — Eu a segurei pelos
braços, balançando-a de um lado para o outro, apenas para
provocar um acesso de riso nela.
Após alguns minutos, mostrando alguns pijamas, minha
menina finalmente conseguiu escolher um deles, e eu a ajudei a se
vestir, antes de colocá-la na cama. Depois, eu me aproximei da mini
estante, meus dedos percorreram as lombadas até encontrar o livro
infantil escolhido por ela. Uma vez recostada na cabeceira estofada,
eu comecei a folhear algumas páginas até me deter no capítulo
intitulado “Primavera”: “Rã entrou na casa. Estava escuro. Todas as
cortinas estavam fechadas. — Sapo, cadê você? — chamou Rã. —
Vai embora! — disse a voz, vinda de um dos cantos da casa. Sapo
estava deitado na cama.”

Eu fiz menção de virar a página, quando a Zoe me deteve,


colocando uma de suas mãozinhas sobre o livro aberto, com
firmeza.
— Mamãe e eu encontramos o Tio Mike dormindo, sabia? —
comentou ela, com a expressão séria. — O quarto estava todo
escuro, Titi. Ele estava igualzinho ao Sapo naquele dia.

— Meu Deus... — Estreitei os olhos na direção dela. — Mas


quando foi isso?

— Foi quando mamãe me trouxe para morar aqui —


responde ela, com ar pensativo. — Ela falou que papai foi para
beeem longe — Tentou soar brincalhona, mas parecia ressentida. —
Mas tio Mike não ficou feliz... Ele ficou muito bravo porque eu pulei
na cama dele.

Sapo, o personagem da fábula infantil, não queria a


companhia de ninguém; muito menos um solitário e amargurado
viúvo, que arrebatou meu coração.

— Deixe-me adivinhar: seu tio também puxou a coberta sobre


a cabeça?

— Como sabe disso, Titi? — Ela me encarou, visivelmente


impressionada.

— Você não me disse que ele se comportou igualzinho ao


Sapo? Veja só o que acontece na página seguinte... — Apontei para
a ilustração, representando a imagem de “Sapo” escondido, sob as
cobertas.

— Tio Mike e Sapo são a mesma pessoa! — Ela constatou,


enquanto jogava a cabeça para trás, rindo bem alto.

O tempo foi passando, folheei mais algumas páginas, e


somente quando a Zoe estava prestes a pegar no sono, minha voz
foi baixando até ler o seguinte trecho: “À noite, vamos nos sentar
aqui na varanda e contar estrelas.”
— Bons sonhos, princesa. — Sussurrei, dando um beijo
estalado no topo da cabeça dela.
 

Uma vez em meu quarto, eu tomei uma ducha rápida e vesti


uma combinação de short jeans e blusa de malha canelada na cor
branca, com manga curta e decote ombro a ombro. Resolvi prender
o cabelo em um coque no alto da cabeça, e algumas mechas
acabaram se desprendendo do penteado, emoldurando as laterais
do meu rosto.
Peguei meu novo laptop em cima da escrivaninha, um
MacBook Pro que ganhei de Michael, no dia seguinte à minha
chegada e me aproximei da cama, aproveitando meu tempo livre
para estudar um pouco.
Todas as au pairs tinham que cumprir uma carga horária
mínima, com cursos de educação continuada, como parte do seu
contrato de trabalho e requisito exigido para renovação do visto J-1.
No meu primeiro ano de intercâmbio, nos Estados Unidos, eu
fiz o curso de Inglês Intensivo como Segunda Língua, mas três anos
se passaram e, desde então, tenho buscado novos aprendizados,
optando pelo Marketing, além do idioma Italiano, Nível III.
Eu me acomodei entre as almofadas decorativas, dispostas
na cabeceira de ferro com suas luzinhas penduradas, que davam
um toque romântico ao ambiente, e comecei a fazer as atividades
da aula passada. Fiquei tão absorta na leitura do texto, quando,
subitamente, eu me assustei, ao ouvir o toque de notificação
recebida pelo aplicativo Whatsapp. Peguei o celular, depressa,
satisfeita ao perceber que Clara e Edu visualizaram minha última
mensagem, quando compartilhei a notícia da perda do BV, termo
usado para designar uma pessoa que nunca beijou na boca, nem
mesmo com um selinho.
 

[21:00] Leti: Fiquei com meu hosto! E,


antes que me perguntem, só rolou uns
beijinhos.

[21:35] Edu: Não sei se eu lamento ou te


parabenizo. Ter seu primeiro beijo logo
com um gringo... Mas, me conta. O boy
viúvo beija bem?

[21:35] Clara: Eu quero saber onde foi o


date, miga! Ele te levou para algum
restaurante chique, e de lá foram para o
Kerry Park?

[21:37] Leti: Não foi bem um encontro...


Aconteceu naturalmente durante um bate-
papo, na casa dos pais dele. Ninguém viu
nada, ok?

[21:37] Edu: Mas, e aí, amiga.


Gostou ou não do primeiro beijo?

[21:37] Leti: Eu disse a ele que todo


americano tem fama de beijar mal. Mas
ele se sentiu ofendido e me fez pagar
com a língua. Literalmente!

Aguardei ansiosa por alguma resposta ao meu último


comentário, quando de repente, eu escutei um barulho, vindo do
lado de fora. Como eu olhei para os lados e não vi nada, voltei
minha atenção para o monitor do MacBook Pro, mas passados
alguns instantes, o som persistiu do lado de fora. Um som que eu
reconhecia muito bem.
Toc, toc, toc.
Deixei o laptop de lado e caminhei descalça até a janela mais
próxima, mais precisamente a menor das três existentes, quando de
repente alguém ergueu o punho para bater no vidro da janela, de
novo.
Toc, toc, toc.
Levei a mão à boca, surpresa, ao constatar que Michael foi
capaz de subir até o sótão de um jeito nada convencional. No
entanto, eu destravei rapidamente o trinco da parte fixa e levantei a
parte móvel, com certo cuidado. Eu o observei passar a parte
superior do corpo pela abertura, antes de saltar com destreza para
dentro do quarto.
Resolvi me debrucei na janela, e olhei para baixo apenas
para confirmar minhas suspeitas.
Michael havia utilizado uma escada portátil do tipo extensível,
uma vez que o quarto dele se situava no andar principal, mas a
sacada se conectava diretamente à parede do sótão. Quando eu
fechei a janela, notei que ele parecia absorto diante do mural de
fotos e lembretes diversos.
Como meu hosto se manteve de costas, eu me deparei com
a visão tentadora dos contornos de sua bunda firme, moldada sob o
tecido felpudo de algodão da calça escura, com modelagem em slim
fit, e fechamento em cordão branco. Continuei inspecionando o
corpo dele, os meus olhos acompanharam o movimento das
omoplatas, quando ele transferiu o peso de um pé para outro, a
manga curta da camisa branca marcava os bíceps e os tríceps bem
delineados.
— Pensei que a distância entre o andar principal e o sótão
fosse maior... — Eu quebrei o silêncio, mas a voz saiu tão fraca, que
era quase um sussurro.
Ele estreitou os olhos para mim, com os braços cruzados.
— Você deve ter pensado que eu enlouqueci, e tem toda
razão. — Um sorriso maroto surgiu no canto dos lábios dele.
— Por que não tentou subir da forma convencional? Não
garanto que abriria a porta para você, mas pelo menos não correria
o risco de fraturar um braço, torcer o pé...
— Eu sou um homem excêntrico e imprevisível, Leti. — Ele
deu uma piscadela rápida para mim, antes de voltar sua atenção
para o mural. — Por que não me diz quem são essas pessoas nas
fotografias?
Senti o impacto daquela proximidade, assim que eu me
posicionei ao lado dele. Sua postura imponente e máscula fazia
vibrar cada célula do meu corpo, os olhos se fecharam por um
instante, ainda embriagada pela fragrância, sensual, amadeirada e
elegante do perfume dele, exalando o ambiente.
— Estes são os meus pais... Giuseppe e Antonella. —
Apontei primeiro para a fotografia correspondente aos meus
genitores, e depois para a imagem de um casal sorridente de meia-
idade. Havia também uma foto com toda a família reunida no sítio.
— Já os meus tios, que me acolheram após o falecimento deles, se
chamam Francesco e Julieta.
— Espero poder conhecê-los algum dia, e quem sabe
percorrer a plantação de café só para comer os frutos maduros,
ainda na árvore.
Inclinei minha cabeça ligeiramente para o lado, e o encarei
com um levantar de sobrancelhas, a um só tempo curiosa e
incrédula. Michel deu um sorrisinho maroto, aproximou os lábios do
meu ouvido, e disse: — Está duvidando de mim? — A voz dele
vibrou numa rouquidão, sexy o bastante para fazer o meu corpo se
agitar, internamente, o coração bateu tão acelerado, como se a
qualquer momento a pressão dos batimentos pudesse estourar os
tímpanos.
— Eu não me atreveria... — Enfiei as mãos nos bolsos do
short jeans, apenas para disfarçar o nervosismo crescente. — Está
vendo aquele grupo de jovens? As coordenadoras locais costumam
promover reuniões, pelo menos uma vez por mês, com au pairs de
diversas nacionalidades.
— Imagino que estes encontros promovem uma troca muito
enriquecedora entre vocês, não? — Eu apenas confirmei com um
gesto de cabeça. — E quem são esses dois? — perguntou ele,
apontando para duas fotografias que Eduardo e Clara.
— Eles são meus conterrâneos e melhores amigos. Eu os
conheço há mais de três anos, e mesmo quando voltei para o Brasil,
não deixamos de manter contato, sabe? Eduardo, por exemplo,
ainda mora em Boston. Você reconhece o local da foto?
— Como eu não reconheceria a Acorn Street? — respondeu
Michael, rindo.
Conhecida por ser a rua mais instagramável de Boston, a
Acorn Street se localizava no bairro de Beacon Hill, conhecida por
suas ladeiras e casas de tijolos, construídas em estilo vitoriano e
iluminadas por lamparinas antigas.
— E quanto a minha amiga Clara, ela também é au pair e
vive na Califórnia. A nossa foto diante da placa icônica que sinaliza
o fim da rota 66, no píer de Santa Monica já diz tudo, obviamente. —
A voz saiu com entonação aguda, me levando a um curto acesso de
tosse, ciente de que a tensão sexual entre nós era quase palpável.
— Ah, faltou mencionar os gêmeos, Megan e Benjamin Cohen
Evans — Apontei para outra imagem, a que retratavam as crianças
da família perigo.
Senti uma espécie de choque, assim que meu braço roçou de
leve o dele, seguido por um estremecimento involuntário, capaz de
me aquecer internamente, como resposta àquela proximidade
tentadora.
— Não tenha medo de mim, Leti — falou ele, quando nossos
olhares se encontraram e se detiveram um no outro. — Eu jamais
ultrapassaria seus limites, embora eu esteja me controlando ao
máximo para não tocar em você.
— É justamente isso que eu quero, Mike. — Levei a mão à
boca, visivelmente surpresa. As palavras saíram com uma
naturalidade inesperada.
 

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Capítulo 19
Letícia Mancini

Michael nem ousou tocar em mim ainda, e o meu corpo já


reagiu à excitação de forma instantânea, o ponto sensível entre as
pernas começou a se contrair, em pulsações agudas e rápidas.
Quando suas mãos fortes envolveram minha cintura, um
gemido ameaçou escapar da garganta, mas foi logo abafado pela
pressão implacável dos lábios grossos, sua língua investiu fundo no
interior da boca, entreaberta e sedenta por um beijo.
— Leti, tudo em você me vicia... — murmurou ele, contra
meus lábios já inchados e doloridos. — Desde o calor que emana da
pele macia, passando pelo cheiro de sua excitação, e o frescor
mentolado intenso que vem dos lábios...

— Então não diga mais nada e me beije novamente. — Exigi,


a voz saiu num sussurro débil.

Um arrepio varreu todo meu corpo, assim que escutei o que


parecia ser um grunhido meio assustador, vindo dos lábios dele, em
resposta à minha completa entrega. Nossas línguas se moviam
lentamente pelo interior úmido, as mãos explorando cada parte do
corpo um do outro. Uma espécie de torpor me envolvia,
completamente embriagada pelo cheiro e pela virilidade dele, e
instintivamente investi meu quadril para a frente, roçando meu short
jeans na calça dele, para sentir sua ereção pulsante.

Um arquejo de surpresa escapou da garganta, assim que


Michael me ergueu no colo, não me dando outra opção além de
prender as pernas ao redor da cintura dele. Ele me fez sentar na
cama espaçosa, antes de tirar a camisa e se inclinou para a frente,
capturando minha boca de novo, em um beijo ardente. Uma de suas
mãos deslizava ao longo da minha perna, enquanto a outra envolvia
minha cintura, arrancando outro gemido abafado, mesmo com a
boca ainda colada à dele.

O beijo foi interrompido repentinamente, seus lábios grossos


passaram a explorar meu pescoço, descendo sem pressa até atingir
a ondulação suave dos seios, o leve roçar de sua barba estimulou
um arrepio de prazer que irradiou ao longo da lombar.
Senti uma de suas mãos deslizar para dentro da blusa,
buscando alcançar um dos meus seios, mas tive o bom senso de o
impedir de prosseguir com os amassos, ao interromper o beijo, e
espalmei as mãos em seu peitoral, mesmo de maneira hesitante.
Não poderia simplesmente ceder ao desejo de transar com
ele justo ali.
Na casa que também pertencia à sua falecida esposa.
— Mike, eu acho melhor nós pararmos. — Um soluço
embargou minha voz mais do que eu gostaria, os olhos marejados
não me deixariam mentir.
Eu precisava desesperadamente daquele contato físico mais
íntimo.
— Tudo bem, Leti. — Ele segurou meu rosto entre as mãos e
depositou um beijo suave em minha testa. — Me desculpe por ter
me excedido um pouco... eu só achei que estava receptiva às
minhas investidas...

— Eu desejo muito mais do que alguns amassos. — Dei


ênfase e profundidade à voz, sentindo um leve estremecimento me
percorrer da cabeça aos pés. — Preciso senti-lo dentro de mim, mas
não aqui, não agora.
Ele acompanhou meu olhar pelo cômodo e pareceu ter
entendido o que eu queria dizer, pois emitiu um longo suspiro e
murmurou algo ininteligível, talvez se dando conta de que esteve
prestes a cometer um erro do qual poderia se arrepender, apenas
pelo desejo de me possuir, de me fazer mulher. Justo onde?
Aquele imóvel era o último lugar onde eu cogitaria perder a
virgindade.
— Você tem toda razão... — Uma máscara de dor e revolta
nublou suas feições, perceptivelmente. — Eu nunca trouxe mulher
nenhuma para esta casa, em respeito à memória de Susan. Quase
coloquei tudo a perder, especialmente com você, que eu considero
tanto... Me desculpe, Leti.
— Mas não muda nada o que eu sinto, Michael. Eu ainda
quero ser sua!
Esbocei um sorriso encorajador, com o coração batendo
descompassado no peito, mas a expressão de seriedade não se
desfez do rosto marcante, o que me levou a suspender a respiração,
enquanto aguardava alguma objeção da parte dele. De repente,
senti as bochechas queimarem ao notar o brilho lascivo
inconfundível de seus olhos castanhos, totalmente fixos em mim.
Meu coração quase saiu pela boca, ao ouvir um murmúrio
baixo de satisfação, que era quase um rosnado.
Quando ele finalmente aproximou nossos rostos, roçou a
barba suavemente pela têmpora, mordiscou o lóbulo da minha
orelha, enquanto me chamava de “gostosa” e fez seus lábios
percorrerem as maçãs, passando pela linha do maxilar e pelo
queixo até encontrar a minha boca e se apossar dela, com
impetuosidade.
— Você não sabe o que te espera... — murmurou ele, rouco,
puxando meu lábio inferior com os dentes, antes de selar um beijo
suave — Agora, eu vou deixar você se remoendo de curiosidade. —
O tom presunçoso com que se dirigiu a mim, provocou logo uma
umidade entre as pernas. — Descanse bem, Leti. E sonhe comigo,
é claro.
Fiz um muxoxo em protesto, quando Michael se levantou e
saiu do quarto.
 

Zoe e eu passamos a véspera da Páscoa na área externa da


mansão dos Foster’s, pintando os ovos cozidos, com tinta guache,
um costume muito popular nos Estados Unidos, chamado de “Caça
aos ovos de Páscoa”. A avó da minha menina também nos ajudou
na tarefa de escolher os ovos, cozinhá-los, esperar secar, para só
depois pintá-los com formas, desenhos geométricos, figuras e
símbolos de cores diversas.
Em determinando momento, Michelle estreitou os olhos para
mim, com a expressão de quem gostaria de dizer algo.
— Se a senhora que me fazer uma pergunta, pode ficar à
vontade — ponderei, esboçando um sorriso encorajador para ela,
enquanto mergulhava o pincel fino na paleta improvisada.
— Tenho observado muito você e o Michael, desde nosso
último jantar em família. Senti um clima de romance no ar, sabe?
As minhas mãos tremiam, enquanto formava uma figura na
casca do ovo. A Sra. Foster deve ter percebido meu nervosismo,
pois segurou firme o meu braço e disse: — Parece que estão na
iminência de se beijar, se é que já não fizeram isso...
— Eu preciso ser franca com a senhora. — Engoli em seco,
tentando desfazer o grande nó que se formava em minha garganta.
— Já aconteceu, sim, naquela mesma noite. Me desculpe... Sei que
não existe justificativa, mas isso não vai mais se repetir.
— Calma, minha jovem... — murmurou ela, numa voz suave
e complacente. — Eu jamais recriminaria você por fazer bem ao
meu filho — prosseguiu, fazendo um leve sorriso iluminar o rosto,
enquanto acariciava o meu antebraço. — Ele me parece bem
disposto, como se tivesse finalmente recobrado a vontade de viver,
sabe? Então, se o meu filho está feliz, eu também estou, acredite.
Obrigada por tudo!
A minha visão embaçou, repentinamente, os meus olhos se
encheram de lágrimas, mas eu virei o rosto, e passei os dedos para
enxugá-las, um tanto constrangida.
— Por que está chorando, Titi? — Minha menina largou o
pincel, demonstrando preocupação no olhar. Então, ela se levantou
de um salto, contornou a mesa para me dar um longo abraço, um
gesto afetuoso que me emocionou, sobremaneira.
— Melhor eu te ajudar logo a limpar as mãos sujas de tinta,
para juntas podermos desbravar o jardim à procura dos esconderijos
perfeitos. O que acha? — Eu sugeri, imprimindo à voz um tom
animador.
— Se me permitem uma sugestão... — disse uma voz
masculina, de repente. Eu me virei e vi o irmão de Michael, vindo
em nossa direção, com um amplo sorriso no rosto. — Não seria
melhor nós dois escondermos os ovos, assim a Zoe pode procurar
amanhã, junto com a mãe dela?
Michelle o encarou, com certa desconfiança no olhar, mas
logo voltou sua atenção para mim.
— Será que é uma boa ideia, Leti? — perguntou ela, em tom
de incerteza.
— Kylie precisa passar mais tempo com a filha dela, não
acha?
— Nisso eu tenho que concordar, querido.
— O que foi que tio Max disse? — Zoe perguntou, piscando
várias vezes, confusa.
— Seu tio Max e eu vamos esconder os ovos, enquanto que
você e a sua mãe terão que achar, juntas. Eu gostei desta ideia. E
você o que me diz?
— Combinado! — concordou ela, saltitando alegremente.
— Então, você vai esperar lá dentro, com a vovó Michelle,
ok? — Ela concordou com um gesto de cabeça e saiu saltitando,
fazendo o seu avental balançar ao vento.
Eu me levantei, peguei as duas cestas de vime, que estavam
em cima da mesa, e entreguei uma delas para Maxwell. Nós dois
percorremos a área do jardim, com suas árvores e carcas vivas a
perder de vista, imersos em um silêncio constrangedor. Eu me
agachei diante de um pequeno arbusto e escondi dois ovos nele,
mas ao me levantar, notei que Max havia se afastado, andando em
direção a um grande vaso de planta, outro esconderijo perfeito para
a “Caça aos ovos de Páscoa”.
— Leti, o que acha de espalhar alguns entre as várias áreas
de descanso?
Nós dois escondemos os ovos entre as pequenas almofadas,
que decoravam o espaçoso sofá além das poltronas, produzidas de
madeira pinus.
— Fico grato por ter me deixado ajudar, Leti — disse ele,
enquanto se sentava no espaçoso sofá, diante da lareira ecológica.
— Imagina, Max. Não precisa me agradecer.
— Engraçado, eu cheguei há poucos dias e já observei a
diferença no ambiente — comentou ele, casualmente, ao balançar a
alça da cesta entre os dedos, como se estivesse brincando com ela.
— Todos me falaram maravilhas a seu respeito, mas também não é
para menos... Você passa uma energia boa, e nos contagia com seu
jeito leve e simples de ser.
— Nossa, assim você me deixa sem graça, Max. — Soltei
uma risadinha de nervoso. — Eu... eu nem sei o que dizer. A sua
família é adorável e me sinto honrada em fazer parte dela, ainda
que temporariamente.
— Você é digna de todos os elogios, Leti. Tem feito um ótimo
trabalho. A Zoe se apegou muito a você, e convenhamos que isso
foi um feito em tanto. Ela trocava de babá com trocava de roupa.
— Não estou acostumada a receber elogios. — Baixei os
olhos, ruborizada, e coloquei uma mecha atrás da orelha. — Eu
sempre tento dar o meu melhor, ainda que eu não receba
reconhecimento algum por isso.
Os olhos arderam, de repente, e minha garganta se fechou,
mas não impus nenhuma resistência, permitindo que as lágrimas
reprimidas fluíssem livremente pelo meu rosto.
— Mas você não fez a diferença apenas na vida dela, Leti —
ponderou ele, enfaticamente, erguendo uma sobrancelha, e sem
deixar de me encarar nos olhos. — O meu irmão alcançou a melhor
fase de sua carreira, quando perdeu a mulher que amava, seguido
pela filha recém-nascida. Talvez ele nunca supere completamente,
mas tem feito avanços bastante significativos por si mesmo. E é aí
que você entra.
— E-eu? — Gaguejei, com o coração martelando
furiosamente o peito.
— Ele passou a interagir mais com a sobrinha, algo que
sempre evitou, desde que ela nasceu. Já ouviu aquela frase: “Nada
é por acaso?” Você deu um novo sentido à vida dele. Talvez esta
tenha sido a sua missão, Leti.
Não sabia ao certo se foi a mensagem por trás da fala dele,
ou a maneira com que ele falou, mas fui tomada por uma emoção
indescritível, atingindo em cheio na alma.
 
Capítulo 20
Letícia Mancini

Era por volta do meio-dia, quando recebi uma ligação de


Michael, enquanto empurrava o carrinho de compras pelo corredor
do supermercado. Àquela altura, eu já tinha colocado boa parte dos
produtos que faltava para fazer um bolo de brigadeiro gourmet,
afinal eu não podia deixar um dia especial como aquele passar
desapercebido.
Kylie me alertou antes sobre o fato de o irmão detestar o
próprio aniversário, mas não vi inconveniente algum em restringir a
comemoração apenas para nós dois.
— Oi, amor — saudei, imprimindo à voz um tom neutro para
não despertar nenhuma desconfiança. — Quer saber onde eu estou,
exatamente? Então, eu vim ao supermercado, mas já estou
finalizando... Por quê? Ah, você quer se encontrar comigo agora?
Por mim está ótimo! Acho que consigo chegar lá em no máximo
vinte minutos.
Por sorte, o trânsito fluiu normalmente e cheguei ao local do
encontro no tempo previsto. Eu estacionei meu carro do outro lado
da rua, e depois segui em direção ao The Elliott Bay Book
Company, uma livraria tradicional de Seattle, no coração de Capitol
Hill, que abrigava mais de 150.000 títulos, além de possuir uma
cafeteria, chamada Little Oddfellows.
Caminhei entre as prateleiras de livros, relanceando um olhar
em torno, mas eu logo o encontrei sentado em uma poltrona de
couro. O local estava relativamente vazio, o que facilitou a minha
busca, de certa maneira.
— Mike! — Eu o chamei, em voz alta e clara. Ele virou o rosto
e rapidamente ficou de pé, se adiantou até mim, com um amplo
sorriso no rosto, e me estreitou em um abraço apertado. —
Parabéns pelo seu dia, amor. — A voz soou abafada, pois meu rosto
continuou pressionando contra o ombro dele. Inalei o ar bem fundo,
só para sentir o cheiro delicioso de seu perfume. — Achei que
estivesse na empresa...
Ele se afastou o suficiente para olhar no fundo dos meus
olhos, seu belo rosto assumiu uma expressão um tanto aborrecida,
de repente.
— Eu realmente deveria estar lá, mas o meu sócio aprontou
comigo hoje. Ele disse que eu precisava acompanhá-lo no almoço
com os investidores, mas quem eu encontrei no salão privativo do
restaurante, The George, foi a equipe de líderes da Lockhead
Technologies.
— Desculpa, eu não resisti. — Levei a mão à boca, mal
conseguindo conter o riso. Eu logo me dei conta de que era a
segunda vez que o chamava assim. Aquela palavra pequena e tão
profunda em significado, saiu da minha boca, naturalmente. — Mas
você não suspeitou de nada? Aniversário é um evento típico que
todos celebram nas empresas. E, convenhamos, fazer uma
homenagem para quem ocupa o topo da hierarquia não chega a ser
uma surpresa.
Ele enfiou as mãos nos bolsos da calça social, estreitou o
olhar para mim, e, quando falou, o tom era tão sério quanto a
expressão em seu rosto: — Só que eu me isolei nos anos
anteriores, justamente para não ser importunado.
Associei de imediato que seu afastamento do convívio com
outros gestores, se deu em razão da perda da esposa e da bebê, e
baixei meus olhos, um tanto arrependida pela fala inoportuna.
— Por que resolveu marcar o encontro numa livraria? — Fiz
aquela pergunta para desfazer a tensão que se instalou no
ambiente, após o último comentário dele.
— Eu posso ser o aniversariante do dia, mas quem vai
ganhar presente é você. — E dizendo isso, ele me puxou pelo
braço, seguindo em direção a uma das poltronas vazias, existentes
no local.
Havia um número reduzido de pessoas naquele espaço, cada
qual entretido na leitura de um livro qualquer, o que não ajudava em
nada a reduzir o meu nervosismo.
Eu me limitei a encará-lo com a testa franzida, sem entender
ainda a razão para ele fazer aquele suspense todo, ainda mais na
presença de estranhos.
— Já estou sentindo uma leve taquicardia, Mike. — Levei a
mão ao peito, sobressaltada. Notei os olhares se voltando em nossa
direção, mas eu me limitei a esboçar um sorriso simpático, mesmo
ciente de que meu rosto já queimava feito brasa.
Para minha completa surpresa, Michael se prostrou de
joelhos diante de mim, fazendo com que meu coração parasse de
bater por uma fração de segundo, até voltar a acelerar de forma
incontrolável.
Juro que se ele fizer o que eu estou pensando, eu vou cair
dura de vergonha.
— Atrapalhei sua leitura, quando nos conhecemos, lembra-
se? — Eu apenas fiz que sim com a cabeça, de modo quase
imperceptível. — Este lugar é perfeito para o que tenho em mente,
Leti. — Prosseguiu ele, enquanto enfiava a mão no bolso interno do
paletó e tirou de dentro dele uma caixinha preta de veludo.
— Oh, meu Deus! — Levei a mão à boca, surpresa. — É
mesmo o que estou pensando? — Consegui perguntar, engolindo
em seco e com o coração aos pulos.
— Calma, não se assuste! — Ele riu baixinho, enquanto abria
a caixa de joia. — São alianças de compromisso. Elas simbolizam
para o casal o começo de um relacionamento... Quer namorar
comigo, Lexicia?
Eram dois anéis, feitos de ouro branco maciço e diamantes,
com design minimalista, nossas iniciais foram gravadas na parte de
trás do aro, e observando mais de perto, os brilhantes, juntos,
formavam um pequeno, mas significativo coração.
Apertei os olhos e os mantive fechados, mas as lágrimas
começaram a descer pelo rosto de forma vertiginosa.
— Não acredito que errou a pronúncia do meu nome de
propósito. — Eu disse a primeira coisa que me veio à mente, por
não saber ao certo como deveria reagir a um pedido de namoro. —
Mas desconsidere o que eu disse. — Pouco a pouco os meus olhos
ficaram ainda mais marejados, e baixei minha cabeça, na tentativa
de ocultar o constrangimento, enquanto prendia uma mecha solta
atrás da orelha, com os dedos trêmulos. — É tudo tão novo para
mim, que mais parece um sonho, sabe?
Cheguei a pensar que o amor não foi feito para mim. Como
se eu não estivesse à altura de um sentimento tão sublime.
Não sei como reuni coragem para encará-lo nos olhos, mas
só de poder ver os dele cintilando em um misto de ternura e
admiração, já me desmontava inteira.
— Mas eu estou aqui, de joelhos diante de você, e acredite: é
real.
Eu me entreguei àquela emoção transbordante, passando os
braços ao redor do pescoço dele, ansiando sentir seus braços fortes
me envolvendo em um longo abraço, o colo subia e descia ao ritmo
da respiração entrecortada pelos soluços que me subiam à
garganta, de forma incontrolável. De repente, me veio à memória o
fato de não ter respondido à pergunta inicial dele, por isso eu me
afastei um pouco, fazendo um esforço enorme para parar de chorar
e de soluçar.
— Aqui, amor, use o meu lenço — disse ele, ao tirar o tecido
do bolso do paletó. Levei o lenço aos olhos para limpar as lágrimas
cada vez mais abundantes, e depois assoei o nariz, recriminando a
mim mesma pela reação exagerada de agora a pouco.
— Eu não sei o que deu em mim, Mike. Me desculpe por
isso...
— Você ainda não respondeu a minha pergunta... — Ele me
lançou um olhar afetuoso, enquanto afagava os meus cabelos. —
Quer namorar comigo?
— Sim, mas é claro que eu aceito! — Eu estava tão
entusiasmada, que estendi logo a mão direita, ansiando por sentir a
joia delicada no meu dedo anelar.
Eu prendi a respiração, assim que o aro de metal deslizou no
espaço entre os dedos, e depois foi minha vez de repetir o gesto,
mas a minha mão tremia tanto que foi preciso parar para respirar
fundo, enquanto lidava com uma nova torrente de lágrimas.
Jamais me passou pela cabeça ser pedida em namoro em
um lugar tão simbólico quanto aquele, afinal, as inúmeras prateleiras
abrigavam romances que me faziam desejar estar no lugar da
mocinha, que sempre vivenciava uma linda história de amor.
 
 

Horas mais tarde, eu saltei do veículo, estacionado na área


externa da Lockhead Technologies, e contemplei a fachada
imponente, com vidros espelhados a perder de vista, possivelmente
para reduzir o uso de iluminação artificial.
Deixei o deslumbramento de lado, quando passei pelas
portas automáticas e me aproximei da recepção, com o coração
batendo acelerado no peito, ante a possibilidade de não o encontrar
mais no local, ou pior ainda, ter a entrada negada pelos seguranças,
uma vez que desisti de avisar a Michael sobre a minha ida até a
empresa dele.
Só me resta torcer para a secretária dele ter recebido o meu
e-mail.
Uma voz cordial e feminina me tirou completamente dos
meus devaneios.
— Boa tarde. — A recepcionista me saudou, com um sorriso
simpático nos lábios. — Seja bem-vinda à Lockhead Technologies.
Em que posso ajudá-la?
— Boa tarde. Eu me chamo Letícia Mancini e preciso falar
com Linda Carlisle, a Secretária Executiva do CEO, Michael G.
Foster.
— Posso verificar o seu documento, por gentileza? — pediu,
educadamente.
Eu abri logo a minha bolsa, tirando o meu DL (driver license),
equivalente à carteira de motorista, documento utilizado para dirigir
no território americano. Como eu já tinha uma licença válida do
Estado de Massachusetts, o processo para tirar o DL do Estado de
Washington foi menos burocrático.
Como a secretária dele autorizou o meu acesso, a
recepcionista me passou um crachá de identificação como visitante
de curto prazo.
Segui até o elevador, equilibrando a caixa do “Kit Mini Festa”
nas mãos, e apertei o botão do andar correspondente ao escritório
de Michael. Passei a observar o meu reflexo na parede espelhada,
satisfeita por ter me produzido à altura para uma visita surpresa por
ocasião de seu aniversário. Escolhi um vestido de estampa floral,
mais ajustado ao corpo graças a um cinto largo, combinada à
jaqueta de couro preta e botas de salto alto, com cano curto.
Cumprimentei Linda Carlisle com um breve aceno, e expliquei
para ela rapidamente o motivo da minha presença ali. A assistente
executiva era uma mulher de meia-idade, possuía estatura alta, o
corpo magro, seu cabelo grisalho e liso era mais curto e cortado em
camadas. Ela usava um conjunto elegante, composto por blusa
branca social em tecido fluído e saia midi preta.
Permaneci na sala de estar, pois ela me pediu para aguardar
alguns instantes, uma vez que precisava se certificar de que o chefe
estava mesmo disponível, mas ela logo me pediu para acompanhá-
la até a sala dele.
Michael levantou os olhos, sob as lentes de seus óculos de
grau, dos papeis em sua mesa, seus lábios se curvaram em um
sorriso esfuziante ao me ver, parada no limiar da porta. Ele esperou
a secretária nos deixar a sós, para só então se levantar de sua
cadeira giratória, e andar em minha direção.
— A minha namorada é mesmo uma caixinha de surpresas!
Por que não me disse que viria?
— Você me impediria de vir, se eu te dissesse o motivo da
minha visita. — Eu estendi a caixa na direção dele, que a pegou de
minhas mãos, com certa relutância.
Por pouco eu não soltei uma gargalhada, quando ele se
dirigiu até a mesa, com a testa franzida e os lábios apertados numa
linha dura, enquanto carregava meu presente nos braços
estendidos, como se ele fosse uma bomba prestes a ser detonada.
— Vejamos o que temos aqui — disse ele, levantando a
tampa, lentamente. — Ele soltou um som abafado, que era algo
entre um riso e um arquejo. — Um bolo de chocolate com as velas
de 42 anos... Não me diga que fez aquele doce típico brasileiro.
Como é mesmo o nome? — prosseguiu, estalando os dedos, com ar
pensativo. Informei a ele que no Brasil a gente chamava de bolo de
brigadeiro gourmet. — Pelo visto, todo mundo planejou uma
artimanha, só para eu comemorar um ano a menos de vida.
— Eu só pensei que você iria gostar... — Juntei as mãos
atrás das costas, e meu rosto adquiriu uma expressão de fingida
inocência. — Fiz com tanto carinho, sabe?
Michael colocou as mãos nos quadris, um brilho de
divertimento surgiu nos seus olhos, enquanto balançava a cabeça
numa censura fingida.
— Venha até mim, agora. — disse ele, imprimindo à voz um
tom rouco, e suficientemente incisivo. O coração parou de bater por
uma fração de segundo, até acelerar, de forma incontrolável. Aquele
tom impositivo soou excitante aos meus ouvidos, a ponto de deixar
a minha calcinha toda molhada.
Eu me aproximei devagar até parar na frente dele, então
estiquei o braço para tirar os óculos de grau de seu rosto, e os
coloquei sobre a mesa.
— Por favor, não reclame antes de ouvir o que tenho a dizer.
— E quem disse que vou reclamar? — Emiti um pequeno
gemido, surpresa, quando senti a mão grossa passar por dentro da
minha jaqueta de couro, os dedos pressionaram o cinto de couro
preso à cintura, antes de me puxar para junto de si, com firmeza. —
Muito pelo contrário, eu quero recompensá-la por isso.
Os nossos olhares se detiveram um no outro por poucos
segundos, mantendo os rostos tão próximos, a ponto de o ar
exalado pelas narinas se mesclar entre si, quente, ofegante,
vibrando de antecipação. O melhor de tudo foi constatar que os
olhos castanhos cintilavam de paixão, fúria ardente, e algo a mais
que eu não ousei identificar.
Fechei os olhos de maneira instintiva, um arrepio delicioso
varreu meu corpo, quando a mão livre dele segurou a base da
minha nuca. Senti seus dedos afundando nos fios, massageando
lentamente o crânio, enquanto roçava a barba pela lateral do meu
rosto, fazendo o prazer fluir pelos poros já eriçados, em ondas
deliciosas de calor. Entreabri a boca, proferindo algo ininteligível,
pouco antes de ser silenciada pelos lábios grossos dele.
As minhas mãos percorreram os braços firmes e definidos,
pressionando meu corpo ao dele, movida única e exclusivamente
pelo desespero de sentir a rigidez dos seus músculos. O único som
que prevalecia na sala era o da nossa respiração agitada, mesclada
ao barulho do beijo, conforme nossas línguas, mornas e úmidas, se
esfregavam uma na outra, em uma dança lenta e erótica. À certa
altura, o volume por baixo das calças dele comprimia minha barriga,
enviando ondas de prazer para o meu clitóris, que já pulsava como
nunca.

De repente, senti que ele estremeceu de leve antes de


interromper o beijo, quando passou a me encarar, atentamente, com
um brilho intrigado nos olhos.

— Se me recordo bem, você disse que tinha algo a me


dizer... Ou não?
— Eu me sinto pronta para me entregar a você, como eu
jamais estive em toda a minha vida, Mike. — Afirmei, imprimindo à
voz um tom de firmeza inabalável. — Eu me sinto pronta para dar
este passo... porque eu te amo.
— Tem certeza de que... — Não lhe dei tempo de completar a
frase. Eu o calei, imediatamente, colocando o dedo sobre seus
lábios.
— Shh... — Esbocei um leve sorriso, sentindo os olhos se
encherem de lágrimas. — Eu não vou pedir para dizer que me ama
e tampouco pediria que deixe de amar o cônjuge que se foi. Eu
respeito o seu tempo e honro a sua memória afetiva.
Aquela declaração de amor inesperada poderia o assustar,
mas eu precisava extravasar meu sentimento de uma vez por todas,
ainda que não houvesse reciprocidade.
Michael segurou o meu rosto entre as mãos e olhou bem no
fundo dos olhos, possivelmente achando que veria algum sinal de
incerteza, ou de dúvida pairando nele.
— Você só tem 21 anos. É tão jovem, mas também tão sábia.
Eu me sentia morto por dentro até te reencontrar no aeroporto, Leti.
E não acho que isso seja uma obra do acaso. Eu me sinto honrado
por ter sido o escolhido. Por você ter me escolhido.
Assim que suas mãos grossas pousaram delicadamente em
meu ombro, eu me joguei nos braços dele, rendida ao aconchego
que só aquele corpo viril era capaz de me proporcionar. Fechei bem
meus olhos, pressionando o rosto contra o peito largo, e logo as
lágrimas umedeceram o tecido de seu blazer escuro.
O fato de ele te me pedido em namoro publicamente foi um
grande avanço, levando em conta as questões internas que ainda o
impediam de se abrir para o amor, mas o meu coração já
transbordava, podendo amar pelos dois.
— Que tal esticar a comemoração em uma casa noturna? —
perguntou ele, ao se afastar um pouco para me encarar nos olhos,
que reluziam com um brilho afetuoso e ardente, ao mesmo tempo.
— E se de repente colocam uma música lenta na pista de
dança? — rebati na tentativa de dissuadi-lo a mudar de ideia. — Eu
nem sei dançar direito, Mike! — confessei, desviando o olhar,
constrangida.
— Não se nega o pedido de um aniversariante, sabia? — Ele
desatou a rir, se divertindo às minhas custas. E para minha
surpresa, ele me puxou gentilmente pelo braço, enquanto me
conduzia em direção à porta.
— E correr o risco de encontrar outras au pairs? Não acho
que seja uma boa ideia.
— Por que teria vergonha de mim? Eu nem sou tão velho
assim.
Uma vez no elevador, Michael se posicionou diante do
espelho, enquanto o elevador descia até o térreo. De queixo
erguido, ele abotoou o colarinho da camisa branca, ajeitou o blazer
em tom escuro, com um sorriso presunçoso nos lábios, e para
completar passou a mão pelo topete despojado, demonstrando
satisfação com o próprio reflexo.
Nós dois entramos na casa noturna de mãos dadas, quando
avistamos Maxwell sentado em uma mesa, acompanhado por uma
jovem loira e muito bonita. A boate estava relativamente cheia, mas
para minha sorte, eu não reconheci ninguém.
Max fez as devidas apresentações, e passamos os minutos
seguintes tomando alguns coquetéis, conversar alto e gargalhando
mais alto ainda, em meio à profusão de sons do ambiente. Em
determinado momento, mudaram para uma música mais lenta, e
senti a mão de Michael posicionada em um ponto acima do cóccix, o
que provocou um arrepio delicioso ao longo de toda a lombar.
— Você está diante de uma jovem que não sabe dançar, Max
— zombou ele, com um sorriso presunçoso nos lábios.
Estreitei os olhos para ele, a sobrancelha se arqueando em
um arco perfeito — Quem não sabe, aprende. — Rebati, com
alguma ironia divertida.
— E por que vocês não dançam logo de uma vez?
— Então, milady... — Michael fez uma mesura engraçada,
antes de estender a mão direita. — Aceita dançar comigo?
— Achei que jamais pediria, milorde. — Não deixei de
retribuir a brincadeira, fingindo ser uma dama de outras épocas. Ele
abriu um amplo sorriso para mim, ressaltando ainda mais as
covinhas de sua bochecha, agarrou minha mão e me conduziu até a
pista de dança.
Michael posicionou o braço direito na parte inferior das
costas, enquanto o esquerdo segurava a minha mão no ar.
Pressionei o meu corpo junto ao dele, e assim nós dois começamos
a dançar; ele dando um passo para a frente, enquanto eu dava um
passo para trás, sem pressa. Houve vezes em que ele me fez girar
em torno do meu próprio eixo, e me puxava para junto de si, com
nossos rostos bem próximos um do outro permitindo uma intensa
troca de olhares, os lábios quase se encostando, o ar quente saindo
das narinas dele se misturava ao meu em um frenesi louco.
Encostei o nariz na região macia entre o pescoço e o ombro
dele de forma instintiva, e fechei meus olhos, tomada por uma
sensação de completude e de segurança.
 
Capítulo 21
Michael Foster

Semanas depois...
 

Ashford, um município cercado por florestas, no Estado de


Washington, estava distante de Seattle cerca de 130 km, um
percurso que durava pouco mais de uma hora e quarenta minutos,
pela rota mais rápida, a Interestadual 5 em direção ao sul até a 512
e depois pela State Route 706. Aquela pequena cidade, se situava a
oeste do Parque Nacional Mount Rainier, possibilitando acesso a
trilhas para caminhadas e rotas de escalada na Cordilheira
Cascade.
Pelo canto do olho, notei Letícia balançando a cabeça ao
ritmo da música Indie folk, que saía pelos alto-falantes do veículo.
Quando nossos olhares se encontraram, eu dei uma rápida
piscadela para ela, que me presenteou com seu lindo sorriso, então
coloquei minha mão direita sobre a dela, e a apertei, suavemente.
— Suas mãos estão suadas e frias, Leti. — Estreitei os olhos,
com o cenho franzido de preocupação.
— Eu me sinto nervosa, ansiosa, tudo ao mesmo tempo.
A apreensão dela era compreensível, afinal eu não revelei a
ela o local para onde estávamos indo, para não estragar a surpresa.
Apenas enviei uma mensagem de texto, poucos dias antes e sem
nenhum aviso prévio, com os seguintes dizeres: “Leti, use aquele
cartão que eu te dei e vá às compras! Escolha uma mochila de
viagem à prova-d’água, capa de chuva, camadas de roupa, bota
impermeável, etc. Nosso final de semana promete! Com carinho,
Mike.”
Aquela escapada romântica só foi possível graças à minha
fiel assistente, que pesquisou refúgios exclusivos no meio da
floresta, para uma curta estadia de duas noites, e com retorno no
domingo à tarde.
— Não há nada a temer. Confie em mim — Limpei a garganta
só para dizer em tom de brincadeira: — Se bem que existe, sim, o
risco de encontrar um lobo mau lá.
— Como assim? — Piscou algumas vezes, aturdida. — Do
que está falando?
— Não lembra a história do Lobo Mau querendo comer a
Chapeuzinho Vermelho, num grande clássico infantil?
— Já li esta história diversas vezes. — Letícia pareceu refletir
por alguns instantes, com a cabeça inclinada ligeiramente para o
lado, o cenho franzido de desconfiança. — Mas, aonde quer chegar,
Mike? — perguntou, cruzando os braços, mas ela logo soltou um
arquejo de espanto, dando a entender que captou a mensagem. —
Você é que vai me comer. — Era uma afirmação e não uma
pergunta. Eu olhei bem para Letícia e explodi numa sonora
gargalhada.
— Boa garota... Agora você pegou o espírito da coisa.
Avistei uma placa parcialmente escondida entre a vegetação
e segui pelo caminho de cascalho que levava até a área de
estacionamento privativa. Uma chuva fina e persistente nos
acompanhava, desde que saímos de Seattle, algo já esperado em
abril, um mês de alta precipitação e temperaturas ainda mais baixas,
mas nada que uma boa capa de chuva não resolvesse.
— Chegamos, Leti. — Avisei, ao estacionar em uma vaga
próximo a encosta. — Acho melhor a gente inspecionar primeiro o
local, ok? Depois a gente descarrega as nossas coisas.
— Não me diga que existe uma casa na árvore aqui? —
perguntou ela, enquanto vestia sua jaqueta de chuva longa com
capuz.
— Pensei que, trazer você a esse lugar faria com que se
lembrasse da sua terra natal.
— E realmente existem chalés e cabanas incríveis no interior
de Minas Gerais, mas eu nunca tive a oportunidade de conhecer. —
Ela se virou no banco, e passou a me observar vestir a capa de
chuva, os olhos cheios de admiração não se desviavam de mim,
nem por um segundo sequer. — Nunca pensei que um homem se
importaria tanto assim comigo. — Ela fez uma pausa breve, meio
que sorrindo e meio que chorando, ao mesmo tempo. — Você tem
se esforçado tanto em me agradar, fazendo algo que normalmente
não faria...
— Tudo bem que não sou um amante da natureza, mas
consigo me adaptar bem em qualquer lugar, sabia? — Estreitei os
olhos para ela, enquanto cobria a cabeça com o capuz preto, e
ajustei a corda até o queixo.
— Você não gosta de crianças, sendo que elas são a razão
da minha vida...
— Mas eu amo muito a minha sobrinha. — Dei ênfase e
profundidade à voz, um leve estremecimento me percorreu da
cabeça aos pés. — Isto por si só já basta.
Ela ficou calada por alguns instantes, olhando distraidamente
para um ponto atrás de mim, mas depois piscou os olhos, como que
despertando daquele transe momentâneo, com um meio sorriso no
rosto.
— Parecemos dois pinguins, com essa capa de chuva —
comentou ela, rindo.
— Não é que você está certa? — Sorri de volta, me virando
na direção dela, e meu braço se apoiado no recosto do banco. — E
assim como eles, nós dois buscamos um local para acasalar — Eu a
observei franzir a testa, confusa, mas eu rapidamente corrigi,
fingindo seriedade. — Eu quis dizer “namorar”, é claro!
De repente, um silêncio de antecipação caiu sobre nós dois,
quebrado apenas pelo barulho suave da chuva caindo no teto do
carro.
— Nunca imaginei que voltaria a ser um homem mais
cauteloso, sabe?
— Você se acostumou a lidar com mulheres experientes,
Mike. É natural que se sinta desconfortável comigo...
— Mas você me instiga tanto, Leti. — Falei, aproximando o
meu rosto do dela, com o olhar fixo naquela boca bem desenhada e
coberta por um batom rosa. — É particularmente estimulante
calcular cada investida, até o menor contato físico me enlouquece
de tesão, enquanto aguardo um mísero sinal seu, para avançar...
— Oh, Michael... — Aquelas foram as únicas palavras que
ela conseguiu articular, porque meus lábios logo se apossaram dos
dela, exercendo pressão suficiente para calá-la, com um beijo duro,
e de tirar o fôlego.
Esperei Letícia saltar do veículo, e segurei firmemente a mão
dela, antes de conduzi-la pela trilha que cortava o bosque,
conhecido por seus centenários abetos de Douglas, uma das
espécies mais procuradas como árvore de Natal, que separava a
área de estacionamento até a casa da árvore. Quando nós
começamos a subir a escada com pequenas luminárias embutidas
nos degraus, a chuva se tornou mais intensa, nos obrigando a
atravessar correndo a passarela de madeira, que parecia ter saído
de um dos filmes de Indiana Jones.
Não consegui segurar o riso, enquanto Letícia se
desesperava, pedindo para eu me apressar logo em conferir qual
era o código de abertura da porta de entrada.
Uma vez no interior da casa, eu observei as paredes
revestidas de painéis de cedro, com janelas que propiciavam vistas
deslumbrantes da floresta e do rio próximo. Havia uma pequena
área de estar com lareira, duas poltronas de leitura clássicas de
couro, além da cozinha funcional toda completa, com espaço para
fazer as refeições, além do banheiro que ficava no andar superior,
conectado à área de dormir, com sua cama queen-size, um armário
feito à mão, além da mesa de trabalho. O local contava ainda com
uma varanda privativa, além de duas cadeiras rústicas, para relaxar.
— Então, o que achou do nosso refúgio? — perguntei,
enquanto pendurava nossas capas de chuva, molhadas, em um
gancho atrás da porta.
Letícia lançou um olhar longo e demorado em torno,
visivelmente admirada.
— Achei bem aconchegante e intimista. E romântico também,
é claro.
— Bem, eu vou aproveitar que a chuva passou para pegar
nossas coisas. — Eu comentei, na tentativa de aliviar um pouco a
tensão que se instalou entre nós dois. Mesmo sendo uma casa na
árvore, ela contava com todo um sistema de encanamento interno.
— Fique à vontade para se trocar ou tomar um banho...
Talvez o melhor a se fazer fosse deixá-la um pouco a sós, a
mente dela deve estar um turbilhão, ao se dar conta de que perderia
a virgindade nas próximas horas.
— Muito obrigada. — Sorriu timidamente, e se dirigiu à
escada que levava ao pavimento superior. Eu me virei e andei em
direção à porta, quando de repente a ouvi me chamar bem alto. —
Mike, tem até uma banheira de hidromassagem. Você precisa ver!
— Se prepare porque a gente vai usufruir, juntos, de tudo
isso, logo mais à noite. — Gritei de volta, sobre o ombro, rindo à
gargalhada.
 

Um cheiro delicioso invadiu minhas narinas, assim que eu


desci as escadas e adentrei a cozinha compacta. Parei no limiar,
com os braços cruzados, e observei Letícia debruçada sobre o
fogão, parecendo compenetrada no preparo do jantar, enquanto
cantarolava uma música que me era desconhecida, uma vez que
estava em outro idioma.
Ela soltou um arquejo de surpresa, que soou excitante aos
meus ouvidos, assim que eu a abracei por trás, e encostei o queixo
no ombro, afundando o nariz no tricô macio e felpudo de seu suéter
vermelho, combinado ao vestido de veludo no estilo salopete, além
da meia-calça preta e botas de cano baixo.
— O que minha namorada está aprontando? — Sussurrei ao
ouvido dela, imprimindo à voz um tom rouco e urgente. — Comida
sempre foi meu ponto fraco, sabia?
— Mangia che te fa bene! — falou ela, em italiano, ao parar
de mexer a panela e estreitou o olhar. — Aprendi a fazer risoto com
minha mãe, e modéstia parte, o meu não deve em nada aos
grandes chefs de cozinha — explicou ela, com o orgulho
transparecendo nos olhos.
Aquele prato, especificamente, era o risoto caprese, feito com
arroz específico, além de vinho branco seco, tomate cereja,
mozzarella de búfala e manjericão fresco. Nós dois decidimos
preparar refeições fáceis, usando apenas produtos frescos e
ingredientes já prontos para consumo, como filés de salmão
cozidos, carnes curadas, entre outros.
— A sua mãe certamente está muito orgulhosa de você,
esteja onde estiver... — E dizendo isso, eu peguei a garrafa já
aberta do vinho branco seco, utilizado no preparo do risoto, enchi
duas taças até a metade e entreguei uma delas a ela. — Acho que a
ocasião pede um brinde, Leti.
— Ah... é? — Ela quase se engasgou, e seus dedos roçaram
os meus, de leve.
Senti uma espécie de estremecimento involuntário, seguido
pela alteração nas batidas do meu coração, que se tornaram fortes
e descompassadas, como se o corpo inteiro quisesse sinalizar algo,
que o consciente ainda se recusava a identificar.
— Você escolheu a mim como o primeiro homem de sua vida,
Leti. Tem ideia da magnitude disso? — Ergui a taça diante dela,
olhando bem no fundo daqueles enigmáticos olhos verdes, um
sorriso exultante se delineou nos lábios, ao notar que eles
irradiavam um brilho afetuoso e ardente, ao mesmo tempo.
— Nunca estive tão certa sobre minhas escolhas, Mike.
As nossas taças tilintaram, e bebi um longo gole da bebida,
enquanto observava Letícia fazer o mesmo, os meus olhos se
detiveram nos lábios cheios se curvando ao redor da borda, já
ansiando pelo momento em que eles se fechariam em volta do meu
pau, que de tão duro já pressionava dolorosamente a cueca.
Esperei ela desligar o fogo, antes de tomar suas mãos
macias nas minhas, e as levei à altura dos lábios, para selar um
beijo suave e intenso.
— Você ainda pode voltar atrás, não importa a que ponto
chegamos, está bem?
Não consegui dormir direito nos últimos dias, devido ao medo
e à incerteza, sobre uma possível recusa dela, embora tenha
deixado claro que jamais ultrapassaria seus limites, tampouco
forçaria a nada contra sua vontade. Ela poderia voltar atrás em sua
decisão de entregar para mim o que ela tinha de mais precioso: a
virgindade.
— Eu não te pediria isso, ainda mais agora que sei
exatamente o que sinto. — Ela imprimiu um tom de firmeza
inabalável na voz.
— Leti... — Senti minha voz falhar, o timbre soou rouco e
emocionado até para meus próprios ouvidos. — Gosta tanto assim
de mim? — Ela apenas confirmou com um gesto de cabeça, com
um sorriso exultante estampado no rosto.
— Você não imagina o quanto... — O rubor atingiu em cheio
as bochechas dela. Notei um brilho diferente, seus olhos verdes
cintilaram com lágrimas contidas. Eu nem mesmo sabia se estava à
altura de merecer tamanha devoção e confiança de sua parte.
Havia me esforçado ao máximo para não voltar a me
apaixonar. Afinal, eu fiz um voto de celibato após perder o grande
amor da minha vida, e não sucumbiria à tentação, por mais forte que
fosse o sentimento. Eu nem mesmo olhei para outras mulheres
durante esses anos todos, apesar dos amigos terem me incentivado
a manter encontros casuais, como se sexo pelo sexo, pura e
simplesmente, pudesse minimizar a dor da solidão.
Só que eu não enxergava Letícia como uma mulher de uma
noite só.
Qualquer homem desejaria desfrutar bem mais do que
algumas horas de prazer.
— Preciso insistir para que me faça sua esta noite? —
perguntou ela, enquanto me enlaçava pelo pescoço, deixando uma
insinuação provocante no ar.
Era como se eu tivesse despertado de um longo transe.
Minha respiração se manteve suspensa, até então, mas soltei
devagar o ar, a sensação de alívio inundando meu corpo, ante a
expectativa de me enterrar bem fundo nela, sucessivas vezes.
Não resisti mais à vontade de beijá-la, fazendo a minha boca
sedenta capturar a dela, com impaciência. Letícia soltou um gemido
abafado e aprofundou o beijo, movimentando a língua úmida num
ritmo feroz, e como resposta eu entreabri mais os lábios,
esfregando-os nos dela e exigindo maior acesso. Seu hálito quente
e convidativo me arrancou um gemido de prazer, enquanto passava
o braço ao redor da cintura esguia, para só então puxá-la
delicadamente contra o meu corpo febril.

Decidi interromper o beijo apenas para sugar o lábio inferior


dela e o mordisquei, de maneira provocante.
— A gente bem que podia pular o jantar, não acha? — Ela
irrompeu numa risada, fazendo que não com a cabeça. — Estraga
prazeres... Vamos comer logo, então.
Caprichei na arrumação da mesa, posicionando bem os
pratos, talheres, taças, guardanapos, os arranjos de flores, além de
outros itens decorativos e utensílios.
— Você tem certeza de que ninguém desconfiou de nada? —
perguntou Letícia, enquanto servia uma porção de risoto,
acompanhado pelo medalhão de filé-mignon.

— Acho pouco provável. — Respondi, girando


distraidamente a taça de vinho branco. —Todos pensam que eu

estendi a minha viagem à Washington D.C.

— O meu pretexto foi melhor, porque eu planejei mesmo um


passeio até Forks, lembra-se? — retrucou ela, ao apontar o garfo
em minha direção, e uma das sobrancelhas, arqueada.
— Kylie acreditou que você fez uma excursão com outras au
pairs? — Eu cobri a boca para sufocar o riso, e em seguida
continuei: — Ela deve ter ficado envergonhada por ter desmarcado
de última hora, dando prioridade a um encontro romântico.
— Também não exagera. Os encontros da fofa com o doutor
arrogante só acontecem quando as folgas deles coincidem.
— Mas vamos parar de falar neles, ok? Aqueles dois
largaram na frente e nós estamos em desvantagem.
Ela apoiou os cotovelos na mesa e o queixo sobre as mãos
unidas, enquanto assumia uma expressão zombeteira no rosto.
— Você sempre foi tão competitivo assim?
Nós nos entreolhamos intensamente, e sorrimos um para o
outro.
 
Capítulo 22
Michael Foster

Uma vez finalizado o jantar, eu segurei na mão dela, e a


conduzi escada cima até alcançar o quarto. Sentei na beira da
cama, pressionando com força o colchão, para conferir a resistência
e sustentação das molas.
— Parece ser bem confortável... — disse ela, com um sorriso
tímido no rosto.
Decidi cruzar a pequena distância que nos separava, em
seguida eu tomei as mãos dela entre as minhas, e as apertei de
modo firme.
— Sua mão está mais fria do que de costume, Leti. — Falei
ao inclinar a cabeça, e beijei cada um de seus dedos de forma lenta
e suave, os olhos se mantinham fechados à medida que os lábios
roçavam de leve o dorso.
— De-deve ser o nervosismo. — Notei um sutil
estremecimento se espalhar pelo corpo esguio, uma vez que minha
boca continuava de encontro à pele macia dela.
— Não vou mentir para você. — Então, eu me levantei,
apenas para olhar bem no fundo dos olhos dela. — Vai doer um
pouco, ou talvez muito, a depender da sua sensibilidade à dor.
— As minhas amigas já me falaram isso, mas eu posso
aguentar. — A voz dela ressoou com tanta convicção, capaz de
provocar uma onda de calor por todo o meu corpo. — Eu posso
suportar a dor, desde que eu te sinta inteiramente dentro de mim.
— E eu não duvido, mas precisa estar relaxada para me
receber por inteiro. É para isso que serve as preliminares.
— Eu confio em você, Mike — garantiu ela, com toda
convicção.

Grunhi, satisfeito, soltando as mãos dela, apenas para roçar


os dedos às alças da salopete de veludo, que ressaltava as curvas
sensuais que eu estava prestes a explorar, tanto com minhas mãos
quanto com os lábios. Então, eu soltei as fivelas de metal, fazendo o
decote quadrado cair, expondo apenas o suéter vermelho de tricô.
Segurei a mão dela de novo e me adiantei até a cama, mas
fiz um sinal para ela se manter de pé, e quanto a mim, eu me sentei
na ponta, dando a falsa impressão de estar sob seu controle, assim
ela não se sentiria tão intimidada ou vulnerável.

— Leti... — murmurei, rouco, com as mãos percorrendo o


corpo dela de cima a baixo, desde os ombros, passando pelos
braços e pelas costelas, até alcançar o quadril. — Você vai ficar tão
entregue e receptiva, que o meu pau vai deslizar facilmente para
dentro de sua boceta gostosa.

Ouvir seu gemido suave, e ao mesmo tempo, erótico, era


como música para meus ouvidos, enquanto deslizava minhas mãos
por dentro da saia, percorrendo a parte de trás das coxas, e subindo
lentamente até se deter na bunda dela. Espalmei a carne firme em
movimentos circulares, a ponto de levá-la a impulsionar a pelve
contra meu rosto, vibrando pela necessidade de se entregar a um
contato mais íntimo.

Meus dedos se fecharam na cintura da meia-calça preta, e a


puxei com tanta força, a ponto de provocar um longo rasgo nela.
Escutei o que parecia ser um gemido baixo vindo de sua garganta,
mas me concentrei no trabalho de remover de vez aquela peça
apertada, tirando primeiro uma perna e depois a outra.

— Aposto que está bem molhadinha para mim... — Aproveitei


o fato de seu suéter ser curto e mais ajustado à cintura e aos
punhos, e o suspendi um pouco para espalmar minha mão sobre a
barriga lisinha. — Me deixe prová-la até ficar viciado, Leti. —
Prossegui, colando os lábios um pouco acima do umbigo, dando
beijos quentes e úmidos, entremeados por mordidas leves. — Vai
ser gostoso... prometo.

— Oh, Deus! — ofegou ela, com a voz estrangulada —


Parece que estou queimando por dentro. As células do meu corpo
queimam... É indescritível o que sinto.

— Apoie as mãos nos meus ombros e afaste mais as pernas,


amor. — Sussurrei, rouco, com a boca ainda colada à cintura esguia
dela.

Uma vez que Letícia atendeu ao meu pedido, como boa


menina que era, eu puxei a barra da saia para cima, e meus dedos
serpentearam a parte interna das coxas até alcançar a calcinha.
Apalpei o tecido rendado, satisfeito por sentir a umidade tão quente
e convidativa, capaz de arrancar um gemido rude bem no fundo da
garganta.

Afastei o fundo da peça, com a respiração suspensa, e toquei


a vulva coberta por pelos ralos, os dedos tremiam de leve ao
deslizar por toda a extensão dela até estarem completamente
encharcados. Aumentei a fricção do polegar pelo clitóris inchado e
sensível, decidindo inserir apenas um dos dedos na entrada da
vagina, e o movi bem devagar em torno da abertura, sentindo seus
músculos internos se contraírem, pulsando e dificultando a
passagem, mas apenas o meu pau penetraria mais fundo naquela
boceta intocada.

— Se eu te pedir para me despir, você faz isso? — Ela deixou


escapar um suspiro rouco e murmurou algo ininteligível, mas
interpretei como sendo um “sim”.
Uma vez de pé diante dela, Letícia passou suavemente a
mão pelo meu suéter macio de caxemira, antes de prender seus
dedos na barra, a puxando para cima, para tirá-lo pela cabeça e a
jogou no chão. Seu olhar se deteve no meu peito nu, e ela
instintivamente mordeu o lábio inferior, os cílios piscando com
rapidez, ao passear os olhos pelo meu abdome e seus gominhos
salientes. Agarrei a mão dela para incentivá-la a acariciar os
músculos definidos, com os dedos espalmados. Soltei um arquejo
de satisfação ao notar sua respiração ofegante, o ar quente batendo
contra o peito desnudo, provocava um arrepio delicioso pela base
da coluna.

— Você quer que eu tire sua calça, agora? — A voz dela saiu
fraca, era quase um sussurro débil.

— Se permita explorar meu corpo porque ele é todo seu.

Notei um sorriso se insinuando nos cantos dos lábios dela,


enquanto deslizava a mão pela minha barriga até alcançar o cós da
calça, quando então desafivelou o cinto abriu o botão e baixou o
zíper, bem devagar, e sem tirar os olhos de mim.

Minhas mãos afundaram nos cabelos finos, vislumbrando o


momento em que a veria prostada de joelhos diante de mim,
libertando meu pau e o mamando bem gostoso. No entanto, eu
apenas me contentei em observá-la se abaixar enquanto puxava a
peça, a baixando até os joelhos, e tirou uma das pernas, seguido da
outra.

Quase me engasguei, surpreso, quando Letícia baixou minha


cueca, para segurar o meu pênis com uma das mãos, e os
testículos, com a outra.

— Nunca tocou nos órgãos genitais de um homem... — Fiz


questão de relembrar, cauteloso. — Você tem certeza de que se
sente pronta para fazer isso? — Os lábios dela estavam a meio
caminho do meu pau rijo, quente e convidativo, mas ainda custava a
acreditar que ela estava mesmo prestes a me fazer um boquete —
Eu quero te satisfazer, Mike — disse ela, imprimindo um tom rouco e
urgente à voz. — Não negue isso para mim, por favor.

— Vá com calma, tome cuidado para não usar os dentes,


enquanto abocanha meu pau. Só chupe até onde a sua boca puder
alcançar, enquanto faz um movimento de vai e vem com a mão, me
masturbando...

Ela começou lambendo toda a extensão dele bem devagar, e


o deixando molhado com sua saliva, depois sugou cuidadosamente
a cabecinha rosada e pulsante, fazendo o som de sucção soar como
um ronronar baixo, enquanto fixava um olhar demorado e cheio de
malícia.

Se continuar desse jeito, terei que me segurar muito para não


gozar!

— Está indo muito bem... — Afundei os dedos nos cabelos


dela e pressionei sua nuca, à medida que abocanhava e lambia,
com movimentos circulares e de sucção, aumentando e diminuindo
a intensidade, embora seus dentes vez ou outra tivessem arranhado
a pele. — Oh, que delícia, Leti! — murmurei, arfando de tesão.

Notei satisfeito o líquido quente escorrer pela boca dela,


quando afastou um pouco o rosto para me dirigir um olhar cheio de
tesão. Ela passou a língua pelos lábios, arrancando de mim um
gemido gutural da garganta, e não pude resistir em afundar os
dedos nos cabelos longos dela, antes de puxá-los com força.

Não perdi mais tempo e a puxei contra mim, enquanto


andava de costas até alcançar a cama e a fiz se sentar no meu colo,
sem a menor cerimônia. Letícia soltou um gemido estrangulado, ao
sentir meu membro ainda duro se chocando contra a pelve, mas
tentou acomodar desajeitadamente suas pernas longas, desnudas e
bem torneadas ao redor da minha cintura.

— Agora mova seu quadril para a frente e para trás, bem


devagar, amor.

Senti meu corpo se enrijecer, assim que ela começou a


rebolar lentamente no meu colo, ciente de que havia apenas uma
barreira fina de tecido separando nossas genitais. Aquela jovem
nem imaginava o poder que exercia sobre mim, ao ondular o quadril
contra minha pelve, ainda que um tanto desajeitada, prolongando o
martírio de apenas sentir sua boceta ainda coberta, roçando o meu
pau inchado, e elevando o tesão a níveis insustentáveis.

— Assim está bom? — Ela aos poucos demonstrava mais


segurança e ousadia nos movimentos, o que não deixava de ser
excitante tanta disposição em me agradar na cama.

Eu estava louco para ensiná-la a dar e a receber prazer, na


mesma medida.

— Você está se saindo muito bem, amor.


Meus dedos se fecharam em torno de seu pescoço delicado,
coberto pela gola alta, e exerci uma leve pressão nele, um gemido
estrangulado quase escapou dos lábios suculentos, mas eu decidi
sufocá-lo, cobrindo a boca entreaberta e trêmula dela de um jeito
duro e possessivo. Senti que ela também se entregava ao beijo
numa ânsia febril, enquanto enlaçava minha nuca, de tal forma que
eu não resisti e grunhi de prazer, os nossos corpos unidos e se
movimentando de forma coordenada, como em uma dança erótica.

Continuamos nos beijando, sem pressa. Meus dedos


resvalaram por baixo da barra de seu suéter, traçando um caminho
ao longo da costela até alcançar o tecido rendado do sutiã. De
início, eu espalmei um de seus seios firmes, o massageando e o
apertando, para conferir o volume, que cabia perfeitamente na
palma da minha mão.

Àquela altura os meus testículos já se contraíam, o meu pau


insuportavelmente duro ansiava poder preencher a boceta apertada
e intocada, um grunhido assustador se fez ouvir, me levando a
interromper o beijo, quase sem fôlego.

Olhei bem no fundo dos olhos dela, antes de limpar a


garganta e imprimir à voz um tom rouco, mas suficientemente
incisivo.

— Não quero que haja mais nenhuma peça de roupa entre


nós, Leti.

— E se você não gostar do que verá em mim? — Ela baixou


os olhos, constrangida. — Meus seios são pequenos, e nem mesmo
depilei direito a área íntima...
— Os homens têm suas preferências, assim como as
mulheres, certo? — Considerei o silêncio dela como concordância
ao que eu disse e prossegui: — Se a mulher por quem me apaixonei
se olhasse no espelho agora, veria o mesmo que eu vejo: um lindo
rosto emoldurado por cabelos louro-escuros, grandes e expressivos
olhos verdes, lábios bem desenhados que escondem um sorriso
doce e meigo... Ela é tão feminina que esbanja atitude e
graciosidade por onde passa, e ainda é dotada de muita maturidade,
mesmo aos vinte e poucos anos. De que vale um corpo perfeito,
quando existem outros atributos que não se deterioram com o
tempo?

Notei um brilho diferente nos olhos dela. Parecia que as


lágrimas cintilaram por alguns segundos, mas ela piscou
rapidamente, visando afastá-las e esboçou um meio sorriso
esperançoso, na tentativa de disfarçar as emoções conflitantes.
— Você tem sido incrível comigo, desde que nos
conhecemos. Sempre se mostrou um homem respeitoso,
compreensivo e paciente. Eu me sinto tão à vontade para expressar
os meus anseios, as minhas expectativas e as vulnerabilidades,
como eu jamais pensei ser possível. E pela primeira na vida, eu me
sinto livre para ser eu mesma.

Eu a observei, admirado, quando puxou o suéter pela


cabeça, jogando-o longe. Fez o mesmo com seu sutiã rendado,
mantendo apenas a calcinha, e antes que meu cérebro processasse
o efeito causado pela ânsia dela em continuar de onde paramos,
notei um sorriso malicioso se formar nos lábios, antes de segurar
minha mão, posicionando-a na altura do quadril.
— Por que não me ajuda a tirar a peça restante? — Ela nem
precisaria pedir duas vezes. Em um movimento rápido, eu a
carreguei no colo, e a coloquei cuidadosamente na cama espaçosa.

Eu me deitei sobre ela, e tomei o belo rosto entre as mãos,


selando nossos lábios em um profundo e urgente beijo, em seguida,
passei a explorar o pescoço delicado, descendo sem pressa até
atingir a ondulação suave dos seios, produzindo um estremecimento
perceptível nela, que se arqueou toda contra mim, de modo
instintivo. Grunhi, satisfeito, ao abocanhar o mamilo empinado, que
endureceu, com um simples toque da minha língua circulando a
aréola, e procedi à chupada, de maneira torturantemente longa.

Letícia emitiu murmúrios delirantes de prazer, suas mãos


alcançaram meus cabelos, afundando os dedos neles e exercendo
pressão suficiente nos fios, à medida que eu intensificava a
mamada naqueles seios suculentos.
— Oh, Mike! — Ela gemeu, arqueando-se contra mim,
completamente rendida e entregue às preliminares. — Preciso de
muito mais... — Suplicou, com a voz soando fraca e melodiosa. —
Preciso senti-lo dentro de mim!
Ignorei os protestos dela, e deslizei meus lábios pelo
abdome, que se contraía e se expandia rapidamente, ao ritmo da
respiração agitada, enquanto minhas mãos se ocupavam em abrir
mais as pernas dela. Arranquei logo sua calcinha e a arremessei,
longe. Um gemido alto reverberou pelo ambiente, quando passei a
língua pela parte interna da coxa, serpenteando devagar até
alcançar o meu objeto de desejo.
Eu nem bem iniciei uma carícia lenta por toda a vulva, senti
meus dedos ficarem completamente encharcados, e aumentei a
fricção no clitóris inchado e sensível.

— Vai experimentar seu primeiro orgasmo, com a minha boca


colada à sua boceta gostosa, Leti.

— Oh, meu Deus. — Ela choramingou, manhosa, enquanto


tentava em vão juntar as pernas, seus músculos tremiam de
maneira perceptível. — Dói, mas de um jeito tão bom... não sei bem
como explicar...

— Você já está delirando de prazer. — Informei, imprimindo à


voz um tom rouco e urgente. — Apenas relaxe e se permita
vivenciar a experiência, amor.

Substitui logo os dedos pela minha boca sedenta, cobrindo os


grandes e os pequenos lábios, sugando o clitóris e chupando toda a
extensão, enquanto a lubrificação natural se espalhava,
abundantemente, o que a levou a aumentar a pressão do quadril
contra meu rosto, em um vai e vem cadenciado e constante.
Embora Letícia estivesse receptiva às sucções e lambidas no
clitóris intumescido, suas pernas pareciam ter vida própria e
continuaram se fechando contra o meu rosto, mas eu não parei de
dar continuidade à chupada, alternando com lambidas e sucções
por toda a vulva molhada de tesão.

— Acho que eu vou morrer... — Era um sinal de que os


primeiros espasmos sacudiam o corpo dela, antecipando a força
avassaladora de seu orgasmo. — Michael!
Desejei tanto ouvir Letícia gemendo, ofegante, e me
chamando pelo nome!

Ela apertou o lençol com tanta força, a ponto de quase


arrancá-lo do colchão, enquanto jogava a cabeça para trás, um
gemido estrangulado escapou de seus lábios, enquanto seu corpo
era varrido por espasmos violentos.
Aquele era o momento ideal para pegar uma camisinha no
bolso de trás da calça, e logo rasguei o invólucro usando os dentes.
Minhas mãos tremiam, quando desenrolei o preservativo por toda a
extensão do pênis, uma fisgada dolorosa comprimiu os testículos,
um claro sinal do acúmulo de tesão decorrente dos anos de
abstinência.

Eu mesmo vou precisar me segurar muito para não gozar


antes dela.
Voltei a cobrir o corpo esguio, de modo que os ombros
ficaram alinhados na altura do queixo dela. Pincelei devagar a
glande na vulva, friccionando para cima e para baixo. Letícia
respondeu rápido a esse estímulo, ao dobrar os joelhos e mantendo
os pés bem firmes no colchão, antes de impulsionar seu quadril para
a frente, completamente receptiva à invasão do meu membro duro
como pedra.
Os nossos olhares se detiveram um no outro, com os rostos
tão próximos, a ponto de a respiração sair de nossas narinas e se
mesclando entre si, num frenesi de corpos suados e ofegantes.
Eu estava dividido entre o desejo de penetrar fundo, impondo
um ritmo duro e rápido, com o desejo de ir mais devagar até que ela
se acostumasse com a espessura do meu pau.
— Respire fundo, porque eu vou socar tão rápido e forte, que
apenas os seus gritos se farão ouvir neste quarto, em parte devido à
dor, e em parte devido ao prazer de te fazer minha.
— Contanto que não pare... — sussurrou ela, com a voz
ofegante diante da intensidade daquele prazer.
Um fio de suor escorreu pela lateral do meu rosto, assim que
eu apontei a glande em direção à vagina quente e úmida,
introduzindo nela aos poucos, embora as paredes internas
oferecessem certa resistência, se contraindo, involuntariamente.

Soltei um grunhido gutural, quando forcei mais a entrada do


pau até romper a membrana frágil, provocando um grito abafado
bem no fundo de sua garganta. Então, eu dei início às estocadas,
afastando as pernas dela para me encaixar melhor e impondo um
ritmo forte e contínuo, mas ao mesmo tempo, fundo e rápido.

Minhas mãos buscaram as dela, e as ergui acima de sua


cabeça, entrelaçando os nossos dedos, com força. Respirei fundo e
pesadamente, com o suor escorrendo pelo rosto, mas reivindiquei
sua boca em um beijo faminto e necessitado. Letícia entreabriu os
lábios, conforme minha língua invadia o interior úmido, para provar o
hálito doce e quente.

Em determinando momento, eu pensei ter escutado um som


parecido com um estalido, mas não dei muita importância ao fato, e
continuei penetrando de novo, e de novo, repetidas vezes.

— A sua boceta ainda oferece resistência ao meu pau... —


Grunhi, rouco de tesão, com a respiração acelerada vibrando cada
célula do meu corpo. — Não resista! — A voz saiu abafada contra
cabelos dela e inalei profundamente, embriagado pelo perfume
suave. Pouco a pouco, o canal se alargou mais para receber melhor
o membro. — Esvazie a sua mente, Leti, e se entregue a mim.

Não demorou para os gemidos dela darem lugar aos gritos,


enquanto minhas bolas batiam contra a pelve dela a cada estocada
firme e profunda, mas gradualmente diminui o ritmo, ciente de que
seria incapaz de retardar a ejaculação. Eu logo liberei um gemido
rude, vindo das profundezas, enquanto um jato forte de gozo
preenchia a camisinha.

Joguei o corpo para o lado, desabando no colchão macio e


passei a respirar pesadamente, como se o ar me faltasse nos
pulmões. Uma vez que as pulsações se normalizaram, finquei o
cotovelo na cama para levantar a cabeça, e esquadrinhei o rosto
dela, à procura de algum sinal de arrependimento.

Será que eu exagerei ao impor um ritmo muito forte nas


estocadas?

Espero não ter me comportado como um animal, após anos


sem fazer sexo.

— Fui muito bruto com você? — Não esperei pela resposta


dela. — Eu não transo há três anos. Não que isso justifique, mas
acabei perdendo o controle... — Inclinei a cabeça para o lado de
maneira autodepreciativa. — Me desculpe, por favor. Jamais tive a
intenção de te machucar... — Parei de falar, subitamente, ao sentir o
dedo indicador dela em meus lábios.
— Não posso mentir para você. — O meu coração quase
parou, ante a expectativa do que ela diria a seguir. — Agora que o
sangue esfriou, parece que levei uma surra. — Então, ela desatou a
rir do próprio comentário. — Mas, falando sério, eu estou bem, Mike.
Você não me fez mal algum, muito pelo contrário. Foi tudo tão
maravilhoso que eu me sinto praticamente nas nuvens.

— É um alívio poder saber disso. — Com um impulso, eu me


inclinei na direção dela e lhe dei um longo beijo na testa.

Após remover o preservativo, eu dei um nó forte nele, e me


levantei para descartá-lo na lixeira do banheiro. Quando retornei ao
quarto, presenciei Letícia tirando o edredom da cama,
possivelmente por estar manchado de sangue, com seu belo corpo
coberto por um lençol.

— Um banho relaxante de banheira cairia muito bem agora...

— Eu acho estranho ouvir você dizer isso. — Ela mal conteve


o riso, e estreitou os olhos, me dirigindo um olhar maroto. — Porque
eu, sim, gosto de tomar até mais de uma vez por dia, mas esse não
é o seu caso, Mike.
— Primeiro você pensou que eu não sabia beijar de língua;
agora está supondo que eu só tomo um banho por dia? Será que eu
devo me sentir ofendido? Porque são tantos estereótipos...
— Mas e quanto a vocês? Consideram o Brasil uma terra
exótica, em que todos falam espanhol. Já me perguntaram se eu
tinha uma casa na árvore, acredita? — Atravessei, silenciosamente,
a curta distância que nos separava e a abracei por trás, causando
um leve sobressalto nela, que soltou um gritinho de susto.
— Adoro quando você fica irritada, sabia? — Afastei o cabelo
dela da nuca e encostei meus lábios na pele macia, dando beijos
quentes e úmidos, entremeados por mordidas leves.
— Parece que nós estamos quites — murmurou ela, rouca,
enquanto passava o braço direito em volta do meu pescoço, por
trás.
— Será que está pronta para o segundo round? — O meu
coração passou a bater descompassadamente, por conter o ar nos
pulmões, ante a expectativa do que ela diria a seguir. Ela se afastou
um pouco para me encarar, atentamente. Um rubor violento se
espalhou pelo belo rosto, o peito subindo e descendo com a
respiração acelerada. Meus olhos acompanharam vidrados, atento
ao menor movimento, ardendo de desejo por ela. — Nem pense em
jogar a toalha, porque eu ainda não terminei com você.
Letícia se virou, ficando de frente para mim, e deixou o lençol
cair no chão, colando o corpo nu ao meu, enquanto passava os
braços ao redor do meu pescoço, e enroscava uma de suas pernas
na minha, de maneira instintiva. Um sutil estremecimento se
espalhou pelo meu corpo, quando ela investiu o quadril contra
minha ereção, um claro sinal de que estava receptiva a fazer amor
de novo.
 
Capítulo 23
Letícia Mancini

Três meses depois.


 

Eu mal levantei da cama naquela manhã de segunda-feira, e


me veio logo uma vontade súbita de vomitar. Prendi rapidamente os
meus cabelos desgrenhados em um coque, enquanto corria até o
banheiro, levantei a tampa do vaso e me ajoelhei diante dele,
expelindo bile e secreções intestinais.
Esfreguei bem os lábios com a mão trêmula, fazendo uma
careta de nojo.
Uma vez despida, eu tomei uma ducha morna e aproveitei
para lavar o cabelo. Vesti um roupão felpudo, e passei os minutos
seguintes sentada no banco alto em frente ao espelho do banheiro,
secando os cabelos com o auxílio de um secador e uma escova.
A minha aparência não estava nada animadora, para variar.
Voltei para o meu quarto, e vasculhei as gavetas à procura de
alguma calça legging. Escolhi um top lilás e uma camisa telada na
cor branca par usar por cima. Calcei os tênis de alta performance e
prendi os meus cabelos em um rabo-de-cavalo, decidida a
frequentar a academia, algo que vinha adiando ao longo dos meses.
Consultei as horas no Apple Watch e constatei que passava
das 6h30.
Coloquei meus pertences na mochila estilo saco, como a
garrafinha de água, os fones de ouvido sem fio, celular, toalha de
banho e de rosto, entre outros, e me dirigi até a cozinha para
preparar um café da manhã pré-treino. Reservei os ingredientes
para fazer uma omelete italiana, que levava basicamente ovos,
batata rosti, além do mix de queijos (mussarela, parmesão e
mussarela de búfala), tomates picados e ervas frescas
selecionadas.
Quando eu estava prestes a virar a omelete na frigideira, fui
surpreendida por Michael, que passou o braço ao redor da minha
cintura, ao se aproximar silenciosamente por trás.
— Sempre me surpreendendo com seus dotes culinários —
sussurrou ele, rouco, ao meu ouvido, enquanto espiava por cima do
ombro. — Será que já posso te pedir em casamento? — perguntou
ele, dando uma mordida leve no lóbulo da orelha.
Senti um frio gostoso na barriga, após ouvir aquela
insinuação inesperada.
— Nunca sei se você está brincando ou se está falando
sério...
— Qual dos dois prefere? — A pegada firme na cintura,
aliada ao volume duro na calça jogger esportiva batendo contra
minha bunda, serviram de estímulo para a lubrificação fluir de forma
abundante entre as pernas.
— Acho que é muito cedo para falar... — Desconversei,
entristecida.
Apesar de nunca ter me relacionado com alguém antes, eu
não era ingênua.
Fiz algumas buscas na internet, e o nome dele foi
mencionado em colunas sociais, especialmente após a morte de
Susan.
Michael concedeu uma entrevista, alegando ter feito um voto
de “casado” pelo resto da vida. Parando para pensar, era mais fácil
um homem divorciado se casar novamente do que um viúvo, uma
vez que a dissolução do vínculo conjugal desse ocorreu de forma
compulsória, e não por livre escolha daquele.
— Apesar de parecer plena por fora, sinto que está tensa por
dentro — disse ele, em tom brincalhão, me tirando completamente
dos meus devaneios.
Eu desliguei o fogo de maneira abrupta para me desvencilhar
dele, em seguida eu transferi a omelete para o prato, e espalhei
algumas rodelas de tomate cereja e folhas de manjericão frescas
para decorar.
— É impressão sua. — Dei ênfase e profundidade à voz, mas
um leve tremor me percorreu da cabeça aos pés, trazendo consigo
uma sensação incômoda no íntimo.
Quando eu fiz menção de ir até a geladeira de duas portas,
Michael se prostrou à minha frente, não me dando outra opção além
de encará-lo diretamente nos olhos.
— Você não me parece nada bem, Leti... — Ele inclinou a
cabeça para o lado na tentativa de me sondar, enquanto segurava
meu queixo entre o polegar e o dedo indicador. Uma sombra de
preocupação perpassou o semblante. — Sua pele está muito pálida
e os lábios, totalmente sem cor.
— Eu mal acordei, e me veio uma vontade de vomitar. — Fiz
uma careta autodepreciativa. — Deve ter sido alguma coisa que eu
comi no final de semana...
— Também, não é para menos, amor! — Ele me dirigir um
olhar zombeteiro. — Você comeu tudo o que viu pela frente, na
Feira do Estado de Washington.

— Nossa, nem me fale! Eu me arrependo mesmo de ter


comido tanta coisa...
Pelas minhas contas, eu consumi um balde de batatas fritas
com alho, sanduíche de frango crispy, do McDonald’s, almôndegas
com purê de batata, da Maniac Meatballs, o Krusty Pup “corn dog”,
que nada mais era do que salsicha empanada com massa de milho,
frito na hora, além de sorvetes, limonada de algodão doce, e os
Scones Fisher, um bolinho amanteigado com geleia de framboesa.
— Acho que um copo de suco de laranja pode te fazer bem.
— E dizendo isso, ele pegou o prato da minha mão, e me conduziu
até uma das banquetas altas. — Faça sua refeição com calma,
mastigue bem devagar. Eu vou preparar o seu suco.
Foi reconfortante contar com a companhia dele, durante o
café pré-treino, e ele inclusive fez questão de me acompanhar até a
garagem, mantendo o braço ao redor da minha cintura, um gesto
reconfortante que servia como uma injeção de ânimo para lidar com
um mau dia.
— Você tem certeza de que se sente apta a fazer o treino
hoje? — perguntou ele, ao estreitar os olhos para me sondar, com
seu olhar penetrante. — Por que não fica aqui e descansa?
Eu estiquei o braço para cobrir a mão dele com a minha, e a
apertei de leve.
— Imagina, amor. Já me sinto bem melhor, agora que estou
alimentada.
— Mas pare imediatamente os exercícios, caso sinta algum
desconforto, ok?
— Você me faz lembrar o meu pai, falando assim... — Minha
voz falhou um pouco por estar prestes a irromper em lágrimas, mas
tentei eliminar o nó na garganta, antes de prosseguir: — Ele era tão
preocupado e superprotetor comigo, sabe? Dói tanto não o ter por
perto... — Sacudi a cabeça, na tentativa de afastar as lembranças, e
respirei bem fundo, passando os dedos pelo rosto para enxugar as
lágrimas furtivas. — Acho melhor eu me apressar. A gente se vê
mais tarde.
— Se cuida, está bem? — Michael manteve a mão grande
posicionada em minha cintura, enquanto os dedos pressionavam a
carne macia.
Eu me posicionei à frente dele, e dei um selinho rápido nos
lábios, antes de andar em direção ao Tesla, o famoso SUV elétrico,
para uso exclusive meu durante o período do intercâmbio, com suas
portas traseiras do tipo asas de gaivota, exatamente com o
DeLorean, o icônico carro dos filmes da franquia De Volta Para o
Futuro, mas com a diferença de o controle ser todo feito pelo celular.
Uma vez no carro, afivelei o cinto, pressionei a alavanca que
fica atrás do volante, empurrando-a para baixo, para dar a partida
no carro e acenei em despedida.
Deixei a garagem, com um sorriso no rosto, determinada a
não permitir que nada estragasse o meu dia.
 

O exclusivo Olympic Athletic Club, ocupava um edifício


clássico de tijolos datados de 1890, localizado em Ballard, um dos
bairros mais antigos de Seattle. Estar nas dependências daquele
clube era como viajar no tempo, embora os diversos aparelhos de
musculação fizessem um contraponto à arquitetura original, as
grandes janelas, os tijolos aparentes e tetos altos, traziam uma
sensação de amplitude e conforto.
O clube contava ainda com salas para exercícios aeróbicos
em grupo, duas piscinas, além de quadras esportivas e vestiários
com comodidades de spa, incluindo saunas seca e a vapor, para
homens e mulheres, e banheiras de hidromassagem.
A única desvantagem de frequentar um lugar como aquele
era o preço exorbitante, mas Michael insistiu tanto para eu adotar
uma rotina saudável, que ainda fez questão de pagar o plano anual.
Após o aquecimento na esteira ergométrica, eu já me sentia
apta a começar o treino de pernas nos aparelhos de musculação, de
acordo com o cronograma. Entre séries, repetições e descanso,
comecei a sentir um intenso mal-estar, e levei uma das mãos à
barriga, levemente inchada, me esforçando ao máximo para lutar
contra uma súbita onda de vertigem nauseante.
Respirei fundo e pesadamente para retomar o autocontrole,
enquanto me encostava à pilastra, para não perder o equilíbrio.
— Oh, não, de novo não...
De repente, eu comecei a suar frio, e rapidamente cruzei os
braços ao redor dor corpo, decidida a ir o mais rápido possível ao
banheiro feminino. Uma vez no local, eu me adiantei até o
reservado, as minhas mãos tremiam, ao girar a trava da fechadura.
Levantei a tampa do vaso sanitário e me agachei no chão,
expulsando a primeira refeição do dia, a ponto de a bile subir pela
faringe, deixando um gosto amargo na boca.
Quando eu enfim reuni coragem para me levantar, andei até
a pia e acionei a torneira para lavar o rosto, e fazer bochechos com
um pouco da água. Retirei algumas folhas de toalha de papel do
suporte, secando cuidadosamente a pele, enquanto observava o
meu reflexo no espelho, com reprovação no olhar.
De repente, um ruído despertou minha atenção, vindo de
algum ponto atrás de mim, mas era só uma frequentadora do clube,
destravando a porta do reservado. Eu a cumprimentei com um leve
aceno de cabeça, assim que ela se posicionou ao meu lado,
ocupando um dos lavatórios disponíveis.
Tentei melhorar um pouco a minha aparência, ajeitando os
cabelos desgrenhados com os dedos e os prendi no alto da cabeça
em um rabo de cavalo, quando senti o peso do olhar da mulher, que
me encarava detidamente pelo espelho.
— É horrível enfrentar essa fase de enjoo matinal —
comentou ela, casualmente. — Quando eu engravidei do meu
primeiro filho, andava para cima e para baixo, com um balde nas
mãos. Não desejo isso nem para minha pior inimiga.
— Mas eu não estou grávida. — Minha voz saiu tão fraca,
que era quase um sussurro. Então, eu estreitei os olhos na direção
dela. — Acho que comi algo que me fez mal, apenas isso. — Aquela
afirmação não soou convincente nem para os meus próprios
ouvidos.
— É a sua segunda ou terceira ida ao banheiro só nesta
manhã? — Eu nem tive tempo de responder, porque ela logo
emendou: — Desculpe a franqueza, mas o enjoo que tem sentido é
típico de uma gravidez.
Levei a mão à testa, acometida de uma leve tontura, e
respirei bem fundo na vã tentativa de me acalmar, mas um súbito
tremor me percorreu da cabeça aos pés, as forças já se esvaindo do
meu corpo. Posicionei as duas mãos na bancada, e inclinei o corpo
para a frente, mantendo a cabeça baixa a todo instante, para não
ceder a vertigem que me invadia, sem o menor controle.
Olhei para o lado, sobressaltada, ao sentir um leve toque em
meu ombro.
— Você está bem? — perguntou ela, inclinando a cabeça
para o lado para me sondar, com o cenho franzido de preocupação.
Só então eu notei que ela segurava a minha squeeze. — Beba um
pouco de água...
— Muito obrigada. — Eu tomei um longo gole para limpar a
garganta.
— O que acha de se sentar um pouco? Tem um pequeno
sofá ali no canto.
— Não, não será necessário. Prefiro voltar logo para casa.
— Sinto muito... Juro que não tive a intenção de alarmá-la.
Foi só uma suposição mesmo. E talvez eu esteja errada. Ou melhor
dizendo, eu espero estar errada.
— Eu namoro há pouco mais de três meses, mas a gente se
previne.
A mulher arqueou a sobrancelha, olhando para mim como se
eu fosse tola.
— Entendo... — murmurou ela, em tom vago. — Mas, ainda
assim, faça o exame só por desencargo de consciência... — Ela
então consultou seu Apple Watch e deu um longo suspiro. — A
minha aula de pilates já vai começar. Tem certeza de que vai ficar
bem?
— Sim, não se preocupe. Agradeço pela gentileza.
Ela se despediu de mim com um aceno e saiu do banheiro,
apressada.
Foi um feito e tanto conseguir dirigir, pois a conversa inteira
parecia ecoar em minha mente numa repetição eterna. Parei em
uma farmácia, no trajeto de volta à Denny Blaine, atendendo à
sugestão da mulher, e comprei um desses testes de gravidez rápido,
que garante até 99,9% de precisão.
Eu já fazia uso da pílula anticoncepcional por outros motivos,
ainda que não fosse para a anticoncepção, desde a adolescência,
devido à cólicas menstruais, além do fluxo intenso, e os sintomas
associados à TPM. Porém, eu esqueci de colocar a cartela na
mochila e só lembrei de tomar o comprimido horas depois da minha
primeira relação sexual. Não tive outra alternativa além de aguardar
o retorno à Seattle, uma vez que a hospedagem ficava totalmente
isolada do perímetro urbano.
Ainda que tudo conspirasse contra, pelo menos Michael usou
preservativo.
— A menos que... não, isso não é possível. — Eu murmurei
para mim mesma, quase aos prantos ao reduzir a velocidade na
longa fila de carros, parados no sinal vermelho.
Senti os olhos arderem pelas lágrimas abundantes, uma dor
aguda me atravessou o peito, retendo a respiração na garganta,
quase asfixiada.
A camisinha pode ter se rompido durante o ato. Era a
hipótese mais provável.
Aproveitei o sinal fechado para fazer uma rápida pesquisa na
internet.
Corri os olhos marejados pelo texto de um artigo sobre a
eficácia do contraceptivo oral, e a informação nele era clara: se a
mulher esquecia de tomar algum comprimido, especialmente na
primeira semana da cartela, havia a chance de engravidar porque
ela poderia ovular naquele intervalo.
No meu caso, em específico, além de eu ter levado mais de
dois dias para tomar a pílula, ainda o fiz em horários muito
irregulares.
— Letícia, se controle. — Segurei com força o volante, a
ponto de sentir dor na junta entre os dedos. — Não adianta sofrer
por antecipação. — Então eu coloquei o carro em movimento e,
pouco tempo depois, acessei a 39th Ave E.
O jeito era esperar o momento mais oportuno para fazer o
teste e torcer para o resultado dar negativo.
Deixei o Tesla estacionado no meio-fio, usei o cartão para
travar as portas, antes de ajeitar as alças da mochila nos ombros, e
atravessei correndo o gramado, em direção aos fundos da casa.
Parei de andar, quando ouvi as vozes de Michael e Kylie na
cozinha.

Eu até pensei em seguir logo para o meu quarto, mas por


algum motivo o meu nome foi mencionado, e eu precisava saber o
porquê. Pretendia ser cuidadosa o bastante para me manter fora do
campo de visão dos dois, mas perto o suficiente para ouvir pelo
menos uma parte do diálogo.

“Letícia já procurou um médico para investigar as causas


desse mal estar?”

“Ela não deu muita importância, porque acredita que foi só


um desconforto estomacal.”

“Algo me diz que esses sintomas não possuem relação


alguma com excesso de comida, mas eu vou conversar com ela
depois, e sugerir que fique atenta, porque se os enjoos persistirem
nos próximos dias, terá que buscar um atendimento médico.”

“Agora, você me deixou ainda mais preocupado, Kylie.”

“No lugar dela, pediria logo um exame de urina, coisa que eu


deveria ter feito, desde o início...”

“Não acha meio precipitado pensar no pior?”

“Não quando estamos diante de uma jovem que iniciou agora


a vida sexual.”

“Acha mesmo que eu seria louco de transar sem camisinha?

“Nós dois sabemos que não existe método contraceptivo


100% eficaz, Mike.”

“Você acha mesmo que ela pode estar grávida?” — Eu


estremeci ao ouvir a tensão na voz grave dele.

“Existe, sim, essa possibilidade, especialmente se a


menstruação estiver atrasada ou se há a presença de outros sinais,
que indiquem uma gestação em curso.”
A minha menstruação de fato ainda não desceu, o que não
chegava a ser uma surpresa, especialmente levando em conta a
recente mudança de país, ocasionando muitas crises de ansiedade,
preocupação e estresse. Passei dois meses “Eu deveria ter feito
uma vasectomia quando tive a oportunidade. — Não deixei de me
perguntar se ele passou a andar de um lado para o outro, devido ao
som do sapato batendo forte no piso de porcelanato, mas ele logo
voltou a falar: “Acho inconcebível uma gravidez assim do nada. Mas
tomarei as devidas providências.”

O efeito produzido pelas palavras dele foi quase instantâneo:


o meu rosto se contorceu e ficou muito vermelho, como se eu
tivesse levado uma bofetada no rosto. A minha boca abriu e fechou
várias vezes, mas nenhum som saiu dela, dando lugar a uma
espécie de bolo na garganta, que insistia em me sufocar,
dificultando a passagem de ar para os meus pulmões.

Recorrer a um aborto? Será essa a solução que ele tem em


mente?

“Não é hora de tomar uma decisão tão drástica, Mike. Já está


se precipitando, sendo que nem sabe ainda se ‘Lexa’ está mesmo
esperando um filho seu.”

“Não quero ser pai e você sabe muito bem disso, Kylie.”

“Como assim? Você sempre quis formar uma família.

“A família que eu construí está morta, Kylie! — Ele quase


gritou, o timbre duro, seco e ríspido de sua voz penetrou em cheio
os ouvidos, um tremor violento perpassou meu corpo. “Meus sonhos
viraram cinzas, junto com Susan e nossa bebê. Eu não quero
reviver este pesadelo de jeito nenhum. Eu não suportaria outra
rasteira dessa em minha vida.”

Eu me esforcei ao máximo para não fazer barulho, engolindo


as lágrimas e mantendo os olhos fechados, tomada por um estranho
aperto no peito, que insistia em me sufocar, dificultando a passagem
de ar para os pulmões.

“Há algumas coisas das quais você não pode fugir, Mike. E
uma delas é exatamente a possibilidade de ter um filho com Letícia.
Agora vai me dizer que o seu sentimento por ela não é forte o
suficiente? Então, tudo o que viveram juntos ao longo dos meses
não significou nada para você?”

Houve um instante de silêncio, seguido por um longo suspiro,


vindo de um dos dois, mas eu não suportaria ficar ali nem um só
minuto. Não me sentia preparada o suficiente para lidar com a
resposta dele ao último questionamento da irmã.
Respirei longa e profundamente, andando rápido até a porta
dos fundos.
Era minha primeira decepção amorosa, e justo com o homem
a quem me entreguei por inteiro.
Michael não desnudou apenas o meu corpo, mas também a
minha alma.
 
Capítulo 24
Letícia Mancini

O simples ato de engolir a saliva já me causava um profundo


incômodo, a sensação era equivalente à de uma lixa entalada na
garganta, então eu bebi um gole de água, para ingerir o comprimido
de Dramin.
Eu tinha acabado de fazer o teste de gravidez, mas faltava
aguardar o tempo necessário para o aviso indicativo aparecer no
visor de detecção rápida. Levei o dedo mindinho à boca, roendo a
unha, enquanto andava de um lado para o outro do quarto,
deliberando em minha consciência se deveria conferir logo o
resultado, ou se deveria aguardar mais alguns dias, quando poderia
pagar por um exame de sangue, feito em laboratório.
Decidi retornar para o meu quarto e coloquei a caneta do
teste em cima da mesinha de centro, em seguida eu me sentei no
sofá, com as pernas cruzadas em posição de lótus, mantendo o
olhar fixo no visor eletrônico, com o coração batendo
descompassado, cheio de expectativas. Levei minha mão ao
pescoço, tocando instintivamente na correntinha escapulário de
Nossa Senhora do Carmo, reforçando as minhas preces para
visualizar um sinal de negativo (-) no visor do teste.
— Virgem, santíssima, por favor eu suplico! — A voz saiu
pouco mais que um sussurro débil, mas aos poucos um sinal claro
de positivo (+) surgiu bem diante dos meus olhos, para o meu
completo desespero. — Eu estou mesmo grávida, meu Deus...
E justo de quem? Do primeiro homem da minha vida.
Michael Gallagher Foster, o viúvo que não queria ser pai.
Eu me joguei no carpete, prostrada de joelhos, diante da
mesa de centro, e cruzei as mãos atrás da cabeça, com os olhos
ardendo e embaçando parcialmente a visão, ao observar de novo o
resultado “positivo” que parecia piscar no visor. As lágrimas não
demoraram a descer, mas eu as enxuguei de modo brusco, com as
costas da mão.
De repente, os meus pensamentos foram interrompidos pelo
toque de chamada recebida, mas ao conferir o contato e constatar
que era Michael, eu rapidamente recusei a chamada. O celular
voltou para a tela de bloqueio apenas por meio segundo, quando
então passou a tocar de novo, fazendo um ruído insistente, que me
irritou, sobremaneira.
Eu me recuso a falar com ele, agora.
Preciso de tempo para assimilar tudo isso.
Inalei profundamente, então exalei o ar, sentindo meu nariz
escorrendo, enquanto uma notificação de nova mensagem de texto
surgindo na tela do smartphone.
 

Michael: Como se sente, amor? Você não atendeu. Fiquei


preocupado.
 

Apenas me limitei a digitar uma resposta curta, para não


levantar suspeitas.
 

Letícia: Tomei um Dramin e já me sinto bem melhor.


 

Apoiei o braço no sofá para me levantar do chão, mas senti a


cabeça girar e o estômago subitamente roncou de fome. Como cair
no choro, maldizendo a minha falta de sorte não resolveria
absolutamente nada, eu andei devagar em direção ao banheiro,
para me recompor um pouco, embora as pernas já não me
obedecessem mais como antes.
Contemplei o meu reflexo no espelho com reprovação no
olhar. O rosto pálido ficou ainda mais sem cor, as pupilas estavam
contraídas e lacrimejantes, além da expressão atormentada e
abatida, como se em uma fração de segundos, eu tivesse
envelhecido dez anos.
A minha permanência nesta casa está comprometida.
Infelizmente.
Eu sempre prezei pela honestidade, e mesmo vivendo um
verdadeiro dilema sobre dar ou não a notícia para minha família
anfitriã, ainda optaria pela saída mais honesta: escrever uma carta
de despedida.
Uma vez sentada à escrivaninha, eu peguei o papel e uma
caneta, mas a mão pairou a poucos centímetros da folha, ainda
indecisa sobre como deveria redigir o texto.
Não queria que o teor dele parecesse desesperado ou
deprimido demais.
Lágrimas começaram a embaçar minha visão, assim que eu
iniciei a escrita da carta de despedida:
 

Kylie,
Eu quero pedir desculpas,
antecipadamente, por não poder continuar
como ‘au pair’ da Zoe. Eu planejei um
cronograma de atividades para
proporcionar a ela os melhores dias de
férias, com muitos passeios e brincadeiras,
mas as coisas saíram do controle. Como
eu poderia imaginar que o destino me
reservava uma gravidez não planejada? É
meu dever comunicar à agência qualquer
eventualidade, por isso eu tomei a decisão
de rescindir o contrato. Ser tratada como
parte da família foi um alento em meio ao
caos vivido no início do ano. Eu fico muito
grata pela oportunidade e confiança ao
longo dos meses. Sua filha é a menina
mais doce que eu já conheci; você é como
uma irmã e também se tornou minha
confidente; já Mike é meu primeiro e único
amor... Sentirei falta de todos vocês. De
minha parte, eu prometo que manterei
contato.
OBS: Não revele o teor da carta ao
seu irmão, por tudo o que há de mais
sagrado. Confio em você, fofa.
Um grande abraço!
Letícia - Lexa.

Comunicar à agência a minha saída do programa era a única


opção viável.
Engravidar durante o intercâmbio era uma violação grave ao
regulamento, mas esperava não ser impedida de resolver as
pendências, antes de deixar o país, em definitivo. Eu já ouvi relatos
de ex-Au Pairs que continuaram a residir nos Estados Unidos, e os
motivos variavam desde o casamento com um cidadão
estadunidense para obtenção do Green Card, passando pela troca
de status do visto J-1, de intercâmbio, para o F1, de estudante, ou
até mesmo levavam a vida como imigrantes indocumentadas.
Quanto aos meus tios, eles só tomariam conhecimento no
meu retorno ao Brasil. Eu não poderia simplesmente mandar uma
mensagem de texto ou fazer uma chamada de vídeo, para tratar de
um assunto tão delicado quanto uma gravidez inesperada.
Uma das minhas primas engravidou antes de completar a
maioridade. Os pais dela não reagiram favoravelmente à notícia,
mas só não a deixaram desamparada, pois eles sempre se
posicionaram contra o aborto. Ela, pelo menos, teve a sorte de
contar com o apoio do namorado e dos pais deste. E quanto a mim,
eu ainda devia satisfação aos meus tios, por tudo que eles fizeram
por mim nos últimos anos.
Contraí uma dívida de gratidão, desde que perdi meus pais
para a Covid-19.
Só penso no desgosto que darei a eles com essa notícia... —
Pensei em voz alta, olhando distraidamente para as portas do
closet, que estavam entreabertas.
Eu perdi a virgindade com um homem vinte anos mais velho
e irmão da minha “mãe anfitriã”. Alguém marcado pela dor da perda
da esposa e da bebê após o parto; alguém que não imaginava um
futuro ao meu lado na condição de cônjuge, alguém que pretendia
se submeter a uma vasectomia, apenas para não adentrar uma
maternidade de novo; alguém que me rejeitaria por causa de uma
gravidez indesejada.
A significativa diferença de idade e de situação de vida
estavam longe de ser o principal empecilho para nós dois ficarmos
juntos.
Sairei da vida de Michael tão rápido quanto entrei, ainda que
isso me doa muito.
Já se passaram seis meses, desde que eu cheguei aos
Estados Unidos, mas não esperava antecipar o momento de
arrumar as minhas malas de novo. E se existia uma frase com a
qual me identificava era a seguinte: “Amo viajar, mas odeio fazer as
malas” Sem contar que eu também odiava despedidas.
Odeio me colocar na posição de quem diz adeus às pessoas
que ama.
Passei os minutos seguintes agindo praticamente no piloto
automático: eu tirei as malas do armário e as joguei sobre a cama;
fiz o mesmo com as roupas nos cabides, os casacos de inverno e os
sapatos. Só não levaria muito tempo para finalizar a arrumação,
porque a terceira mala permanecia envolta em filme plástico de
PVC, desde que eu deixei a casa da família perigo.
A minha atenção ficou dividida entre a bagagem e o monitor
de vídeo da babá eletrônica. Zoe costumava acordar ao meio-dia,
fosse nos finais de semana ou durante as férias de verão, que nos
Estados Unidos se iniciava entre os meses de junho e julho.
Só me restavam algumas poucas horas como au pair, por
isso eu desfrutaria ao máximo a companhia da minha menina, para
que ela jamais se esquecesse de mim.
Desci, cuidadosamente, um degrau de cada vez, enquanto
segurava uma das malas. Depois de deixá-la ao pé da escada, eu
fiz o mesmo com as outras duas, antes de arrastá-las pelo caminho
até a entrada da casa, e as coloquei no porta-malas do carro.
Uma vez no andar principal da casa, eu subi os degraus e
atravessei o corredor, com o coração batendo acelerado dentro do
peito. Abri cuidadosamente a porta do quarto da Zoe, iluminado
apenas pela luz suave da luminária de teto, que projetava um lindo
céu estrelado.

O único som que prevalecia no quarto era o ressonar baixo,


proporcionado pela respiração cadenciada e serena. Toquei
suavemente no braço dela, enquanto chamava minha menina pelo
nome. Zoe tentou resistir, emitindo um murmúrio inconformado,
aparentando ainda estar sonolenta.
— Bom dia, princesa!
— Ah, não! Eu não quero me levantar da cama hoje —
protestou ela, puxando o edredom até cobrir a cabeça.
— Será que eu me confundi e entrei no quarto errado? —
Perguntei, fingindo estar confusa. — Parece que estou diante do
Sapo” escondido, sob as cobertas! — Era uma alusão ao
personagem do livro infantil “Rã e Sapo são amigos”.
— Eu não sou um sapo, Titi. — Ela resmungou, meu
zangada.
— Será mesmo? — perguntei, fingindo estar incrédula. —
Então prove! — Então, eu me sentei na beira da cama e comecei a
fazer cócegas na barriga dela.
Zoe tentou se debater, enquanto gargalhava sem parar, mas
ela logo se deu por vencida, ao se sentar na cama, e se
espreguiçou toda manhosa.
— O dia hoje está ensolarado, perfeito para um piquenique
no parque. E quanto mais cedo a gente sai, mas tempo a gente tem
para se divertir por lá. Não acha?
— Posso levar minha boneca e meu coelhinho, Titi? —
perguntou ela, estreitando seus olhos azuis grandes e expressivos
para mim.
Michael cumpriu a promessa de presentear a sobrinha com
um coelhinho de estimação, adquirido na Fun Farm da Feira
Estadual de Washington.
— Mas é claro que os dois também podem passear conosco.
Imagina, se eu ia deixar a Lily e o Peter de fora? Jamais!
— Então eu já estou acordada, Titi! — Ela afastou o lençol
para o lado, e se levantou, depressa, mas permaneceu de pé em
cima da cama. — Vamos logo!
Eu quase caí para trás, quando a Zoe deu um pulo, se
agarrando ao meu pescoço, enquanto prendia suas pernas ao redor
da minha cintura.
— Quando foi que você passou a pesar uma tonelada, hein?
— Eu girei tão rápido, a ponto de fazer a minha menina rir,
histericamente.
Dei início às tarefas como arrumar a cama, abrir as cortinas
para arejar um pouco o ambiente, separar uma peça de roupa para
o passeio e encher a banheira para o primeiro banho do dia. Zoe
passou a tomar banho, dia sim e outro também, mas que, a bem da
verdade, foi mais por minha causa mesmo.
Desempenhar a função de babá se tornou um tipo de terapia
para mim.
Quando ela se sentou diante da penteadeira camarim, usei
um pente para dividir seus longos e lisos cabelos em duas partes, e
os prendi em marias-chiquinhas, formando um coque para esconder
o elástico.
— Você vai ser minha titia também? — Aquela pergunta
inesperada por pouco não me fez derrubar a escova no chão. — Tio
Mike vai se casar com você, não vai?
— Isso só o tempo vai dizer, princesa. — Menti,
deliberadamente. — Porque tudo é um processo, como uma
escadinha que a gente sobre degrau por degrau. Pode levar
semanas, meses ou ainda anos e anos...
— Eu já fico feliz só de ver vocês dois juntinhos, Titi!
— Você banca a cupido mirim nas horas vagas? Quer dizer
então que eu vou ter que providenciar o seu uniforme com direito à
asas, além do arco com um coração na ponta da flecha? — Ela
desatou a rir, mais uma vez.
Descontrair, levando a conversa na brincadeira era a melhor
saída para não exteriorizar meus sentimentos.
Uma vez no carro, a caminho de Crossroads Park, — um
lugar perfeito para um piquenique em família, nos arredores de
Bellevue, — eu passei a refletir sobre os meus próximos passos.
Se tudo transcorrer conforme planejado, eu passarei ao
menos essa noite, na casa da LCC. — Pensei comigo mesma,
levando a mão instintivamente à barriga e fechei os olhos, fazendo
uma prece em silêncio, para que Deus me desse forças para
superar aquele momento tão difícil.
Ainda mais agora que tomei a decisão de ter, sim, o bebê,
com ou sem ele.
 
Capítulo 25
Letícia Mancini

Zoe me ajudou a estender uma toalha no gramado,


aproveitando a sombra de uma frondosa árvore, a poucos passos
da área do playground, com seus equipamentos voltados para
crianças de todas as idades.
O Cross Road Park também oferecia um espaço destinado às
atividades ao ar livre, como futebol, frisbee e piqueniques. Em
suma, o parque era limpo e bem conservado, com amplo
estacionamento e instalações acessíveis, além de banheiros e
bebedouros. O local também abrigava vários eventos e atividades,
como as noites de cinema ao ar livre e festivais sazonais, todos
voltados para a comunidade.
— Vejamos o que temos aqui. — Falei, enquanto remexia na
cesta maior de piquenique. — Frutas diversas, biscoitos,
sanduíches, sucos e petiscos. — Depois foi a vez de tirar os itens da
cesta menor, contendo o aparelho de chá de brinquedo, todo feito
de porcelana e com motivos florais.
Peguei o bule de brinquedo, fingindo encher a xícara da Zoe
e da boneca dela.
— Milady prefere puro ou com um pouco de leite?
— Com creme, por favorzinho. Obrigada, Titi. — Ela
respondeu, afagando suavemente o pelo de Peter.
— A senhorita prefere que eu adoce o chá com quantas
pedrinhas de açúcar?
— Humm... — Ela inclinou o rosto, levando um dedo à boca,
pensativa. — Dois já está bom. — Usei um pegador de brinquedo
para pinçar dois cubos de açúcar e em seguida mexi bem o chá,
com a ajuda de uma colherzinha. Estendi a xícara com o pires na
direção dela, e depois foi a vez de servir a minha própria xícara,
embora não tenha colocado o creme e o açúcar, pois consumia a
bebida pura até nas brincadeiras.
— Não se esqueça de soprar para não queimar a língua,
Milady. — Levantei a xícara com a ponta dos dedos e a levei aos
lábios, enquanto observava a Zoe fazer o mesmo.
Nós duas nos entreolhamos, em silêncio, e logo explodimos
numa gargalhada.
— Titi, eu cansei de brincar de “A Hora do chá das
Princesas”. Agora eu quero comer comida de verdade.
— Perfeito! Prefere começar com alguma fruta ou já vai partir
para os doces?
— Mamãe disse que eu devo escolher primeiro o que faz
bem pra saúde.
— Excelente escolha! — Ergui a palma da mão para um high
five, aquele gesto de bater, com as mãos no alto, o qual foi
prontamente retribuído por ela.
Zoe quis passar os minutos seguintes brincando no
playground, então eu a ajudei a subir com segurança até um dos
escorregadores coloridos; depois foi a vez de colocá-la no balanço,
mas fiquei atrás dela, garantindo que o brinquedo se movesse para
frente e para trás; também a ajudei a subir na torre menor, que dava
acesso à rede de escalada, e até mesmo participei ativamente, junto
com outras crianças em uma estrutura de metal, que girava como
um carrossel.
Puxei Zoe pelo braço, enquanto corria pelo extenso gramado
do parque, mas parei de súbito, sob a sombra de uma árvore, com o
coração batendo acelerado no peito, e respirando pela boca,
parecendo que tinha percorrido a maratona de Boston.
— Acho melhor nós deitarmos um pouco para relaxar. —
Sugeri, engasgada e quase sem fôlego, com o corpo inclinado para
a frente, e as mãos apoiadas nas coxas. — Me ajude a estender a
toalha do piquenique, por favor? Muito obrigada, princesa.
Permaneci deitada de lado, com a cabeça apoiada na mão, e
fechei os olhos, por alguns instantes, tomada por uma súbita
vontade de chorar.
Foi um feito e tanto eu ter conseguido sustentar um sorriso no
rosto a tarde inteira, trazendo nas feições um entusiasmo que
estava longe de sentir, mas eu jamais estragaria o passeio, pois
aquele era definitivamente o último na companhia dela.
Zoe se manteve sentada, bem à minha frente, seus olhos
azuis não piscavam, enquanto me observava longa e detidamente,
em um misto de ternura e curiosidade.
— Eu não quero crescer, Titi — disse ela, passando os dedos
pelo meu cabelo, em uma carícia lenta e cuidadosa. — Por que todo
adulto fica triste? Já vi a mamãe triste por causa do papai, e o tio
Mike por causa da tia Susan... Eu nunca te vi assim, mas não fica
tristinha não. Por favor!
Pensei em dizer algo para deixá-la despreocupada, mas
apenas abri e fechei a boca repetidas vezes, incapaz de verbalizar
qualquer palavra. Uma espécie de bolo na garganta insistia em me
sufocar, dificultando a passagem de ar para os pulmões.
Baixei minha cabeça, evitando sustentar o olhar dela, mas
senti inesperadamente uma pontada no peito, amargando a culpa
por ter escolhido a mesma saída do pai dela, que a abandonou
covardemente, sendo que a última coisa que eu queria era me
tornar uma lembrança ruim, alguém que também a rejeitou no
passado.
Fiz um esforço sobre-humano para não desabar na frente
dela.
Sair da vida dela daquela forma seria um ato, no mínimo,
cruel demais.

Com um longo suspiro, eu me apoiei no chão, tentando me


levantar, e me sentei diante dela, na posição de lótus. Tomei as
mãos macias da Zoe entre as minhas, sem deixar de encará-la nos
olhos, tomada por uma resolução inabalável.

— Eu preciso voltar para o Brasil... — Dei tanta ênfase e


profundidade à voz, que o meu corpo reagiu de imediato,
estremecendo sutilmente. — Imediatamente.

— Voltar para o Brasil? — repetiu ela, piscando os olhos,


confusa. — Mas por quê?

Os Fosters já guardavam um enorme segredo sobre o pai


dela.

Uma meia-verdade era melhor do que uma mentira completa.

— Eu te disse antes que eu vivo temporariamente nos


Estados Unidos, lembra-se? — Esperei ela confirmar com um gesto
de cabeça, antes de prosseguir: — Preciso antecipar minha saída
do país, porque a agência decidiu encerrar meu contrato.
Resumindo, eu não vou poder cuidar mais de você, Zoe. Sinto
muito, de verdade.

Àquela altura eu já não aguentava mais conter o choro, e


desabei aos prantos, com o rosto coberto entre as mãos. Eu mal
consegui respirar direito, o corpo sacudia em espasmos, causados
pelos soluços que insistiam em irromper da garganta, sem o menor
controle.
Quando senti os bracinhos dela envolvendo meu ombro, eu
rapidamente a puxei para perto de mim, ansiando ser reconfortada
em um abraço apertado. Uma sensação indescritível de completude
e realização plena me preencheu internamente, e respirei bem
fundo, inalando a fragrância suave que vinha do cabelo sedoso dela.

— Não quero que vá embora — protestou ela, com a voz


abafada de encontro ao meu peito. — Eu vou pedir ao tio Mike para
fazer alguma coisa. — Todos os meus sentidos entraram em estado
de alerta, assim que ouvi suas últimas palavras.

Eu a segurei pelos braços, cuidadosamente, para afastá-la


um pouco.

— O seu tio não pode fazer nada a respeito, princesa. —


Aquela era uma meia verdade e meia mentira. Encolhi os ombros,
passando a mão pelo rosto para afastar as lágrimas abundantes. —
Precisa me prometer que não vai falar nada. Isso vai ficar só entre
mim, você e sua mãe... Tudo bem?

Zoe torceu a boca, contrafeita e suspirou.

— Tudo bem, Titi. Eu prometo. — Ela beijou os dedos


cruzados, confirmando a promessa. O semblante dela se fechou, de
repente, ficando cabisbaixa. —Eu não entendo... Por que as
pessoas que eu amo vão embora? — Foi palpável o impacto
daquelas palavras, proferidas com tristeza e resignação.

Eu já fazia ideia do quão difícil a despedida seria, mas nada


me preparou para ouvir seu último desabafo, como se a Zoe, lá no
fundo, já soubesse que o pai não voltaria mais para a vida dela.
Olhei para a copa das árvores, o vento agitava as folhas
enquanto os raios de sol penetravam por entre os galhos.

Oh, meu Deus! Me ajude.

— Sente-se aqui no meu colo, Zoe. — Pedi, batendo as mãos


de leve nas coxas. Ajeitei minha menina entre as pernas, antes de
envolve seu ombro estreito em um abraço apertado. — O amor que
a gente sente está acima de qualquer circunstância. Ele atravessa
fronteiras, se fortalece com o tempo e nos acompanha até a
eternidade. — Ela virou o rosto e estreitou os olhos azuis
lacrimejantes em minha direção. Àquela altura, ela já tinha chorado
silenciosamente, mas eu passei o polegar pelo rosto dela, para
secar a pele macia. — Princesa nenhuma abaixa a cabeça por
muito tempo. Senão a coroa cai! — Deixei escapar uma risadinha,
que soou mais como um lamento rouco.

— Mas eu vou sentir tanto a sua falta...

— Meu peito já está tão apertado, que só existe uma palavra


que define bem isso — ponderei, olhando distraidamente para além
do horizonte. — É uma palavra que só faz sentido quando é dita em
português. Não existe algo equivalente em inglês.

— E eu posso saber qual é? — perguntou ela, em um misto


de animação com curiosidade. Mencionei a palavra "saudade",
pausadamente, para que ela pudesse repetir, sem errar a pronúncia:
— Saudade!

— Perfeito, parabéns! — Bati palmas, com entusiasmo. —


Agora, o que acha de tomar um sorvete, com várias bolas
empilhadas na casquinha? E de lá a gente vai para a casa da vovó
Michelle.

Ela se levantou de um salto, e começou a pular, toda


animada.

Somente uma criança é capaz de passar da tristeza à alegria,


num piscar de olhos. Ela, sabe que o verdadeiro sentido da vida é
aproveitar o momento presente.
 

Depois de tomar uma ducha para tirar o suor do corpo, no


quarto de hóspedes, eu escolhi um conjunto básico, composto por
camiseta de algodão estampada, calça jeans e um par de tênis
branco. Minutos antes, eu mandei uma mensagem para a LCC,
informando a necessidade de falar pessoalmente com ela, o mais
rápido possível.

Harper Douglas aceitou me receber em sua casa, localizada


na cidade de Kirkland, distante de Bellevue cerca de 10 km, de
carro.

Desci, apressada, a extensa escadaria de mármore, com


suas balaustradas decorativas de ferro forjado e latão, e tetos altos,
que possivelmente alcançavam 17 metros de altura.
Eu dei graças a Deus por encontrar Michelle Foster, sozinha,
na sala de estar.

A distinta senhora desviou os olhos do livro, e me encarou


por cima dos óculos de leitura.

— Oh, minha cara, é você? — murmurou, com um sorriso


cordial nos lábios. — Pelo visto a Zoe se divertiu bastante no
parque... Ela pegou no sono tão rápido, não é mesmo?

— Sim... — Sorri de volta, e me adiantei na direção dela. —


Nós duas fizemos um piquenique. A tarde foi bem proveitosa.

— Imagino que esteja com fome, mas o jantar já está quase


pronto.
— Não precisa se incomodar, Sra. Foster. — Eu me apressei
em dizer, incapaz de ocultar o nervosismo, ao segurar com força na
alça da minha bolsa.
— Achei que nós duas havíamos concordado em dispensar
as formalidades. — Ela colocou os óculos e o livro em cima da
pequena mesa redonda, e se levantou da poltrona. — Tem certeza
de que não quer comer algo antes?
— Absoluta. — Assegurei, convicta. — Eu já estou de saída,
praticamente...
— Mas já vai sair de novo, assim, tão de repente? —
perguntou Michelle, estreitando um olhar curioso em minha direção.
— Parece bastante aflita, Leti.

Ela deve ter percebido que eu transferi o peso do corpo de


uma perna para a outra, enquanto segurava a bolsa bem firme no
ombro, como se minha vida dependesse disso.

— Eu marquei um encontro com a coordenadora local da


agência de intercâmbio, e não quero me atrasar.

Michelle se adiantou, antes que eu pudesse dizer uma só


palavra, e me segurou pelos ombros, com firmeza, e sem deixar de
me encarar nos olhos, o semblante transmitindo confiança e apoio.

— Aconteceu alguma coisa? — Eu prontamente neguei, com


um gesto quase imperceptível de cabeça. — Seja como for, se eu
puder ajudar, não hesite em me dizer... Saiba que também pode
contar comigo.

— Muito obrigada, Michelle. — Agradeci, com lágrimas nos


olhos, mas pisquei diversas vezes para dissipá-las. — Trata-se de
uma situação um tanto delicada quanto burocrática, por assim dizer.

— Ah, sim, eu entendo. Desculpe a indiscrição, por favor.

— Imagina... — Hesitei por alguns instantes, indecisa sobre a


melhor forma de me despedir, sem que as palavras soassem como
uma despedida, em definitivo. — A minha estadia aqui tem sido
maravilhosa e gratificante, desde o início — prossegui, sentindo a
voz ficar embargada por estar à beira de um acesso de choro. —
Todos me receberam bem e se esforçaram para eu me sentir como
parte da família. Jamais me esquecerei disso.

— Oh, minha cara. Por que está chorando? — E dizendo


isso, ela tomou meu rosto entre as mãos, não me dando outra
opção além de encará-la diretamente nos olhos.
— Eu tenho chorado por qualquer coisa, ultimamente. —
Mordi o lábio inferior na tentativa de conter o choro. Baixei os olhos,
surpresa, ao sentir a mão dela em meu peito, posicionada na altura
do coração.

— O que tanto aflige o seu coração, minha menina? —


perguntou ela, os seus lábios se curvaram em um sorriso gentil e,
ao mesmo tempo, compassivo.

— Estou com muito medo. Medo de ser removida do


programa de au pair.

— E você quer conversar a respeito disso? — perguntou ela


em um tom suave, de modo que eu não me sentisse pressionada.

Balancei a cabeça, em negativa, dando um passo inseguro


para trás.

— É um assunto que só diz respeito à sua filha porque ela é


a host mom... E por falar em Kylie... — Abri logo minha bolsa, e
comecei a mexer nela de forma atrapalhada, até encontrar a carta
que eu escrevi para minha fofa. — Preciso que me faça um grande
favor, Michelle. Entregue a Kylie assim que ela chegar, por favor. —
Estendi o envelope na direção dela. — Muito obrigada por tudo!
Agora se me der licença...

Eu fiz menção de me virar para ir embora, mas Michelle


rapidamente me impediu, segurando firme em meu braço.

— Se me permite um conselho, Leti, reflita bem antes de


tomar qualquer decisão, especialmente se envolver o meu filho. Eu
garanto que aconteça o que acontecer, a minha família vai continuar
te apoiando, incondicionalmente.
Meus Deus, será que ela desconfia de algo?
Eu me limitei apenas a confirmar com um gesto de cabeça,
apenas para poder sair dali o quanto antes.
Andei apressadamente até a porta de entrada, mas ao
atravessar o pátio de paralelepípedos, eu me surpreendi ao me
deparar com um veículo parado ao lado do Tesla, e pertencente à
última pessoa que eu desejava ver naquele momento: Michael.
Observei, paralisada, ele saltar do carro e sair correndo,
vindo em minha direção, a seriedade impressa no rosto dele deixou
todos os meus sentidos em estado de alerta.
— Como soube que eu estava aqui? — perguntei, com a voz
embargada e quase inaudível.
— Pode parecer loucura o que eu vou te dizer, mas sopraram
a sua localização em meu ouvido... — admitiu ele, com um encolher
de ombros, demonstrando confusão no semblante. — Você não
retornou mais as mensagens, e nem atendeu minhas ligações. O
que está acontecendo, Leti?
— Eu tenho um compromisso agora, Mike. Não posso me
atrasar... — Dei um passo à frente, mas ele agarrou meu braço, com
força.
— Essa decisão repentina de ir até a casa da LCC tem
relação com uma suposta gravidez? — perguntou, seus olhos
castanhos brilhando de desconfiança se mantiveram completamente
fixos em mim.
— Não! — Eu fiz questão de mentir para ele, negando com
um gesto veemente de cabeça. — De onde tirou isso?
— A minha conversa com Kylie ao café da manhã não me
saiu mais da cabeça... Ela relembrou que os enjoos estão no topo
da lista de sintomas mais comuns de uma gravidez.
— Eu não sou ingênua, Mike. Sei muito bem como me
precaver. — Minha voz se elevou meia oitava, os lábios tremiam de
modo perceptível, mas fechei os olhos por alguns instantes,
respirando bem fundo, na inútil tentativa de me acalmar. — Não
acha que está se precipitando em pensar no pior? — prossegui,
baixando mais o tom. — Não se esqueça de que você usou
preservativo naquela final de semana... E quanto a mim, eu já
tomava pílula anticoncepcional, mesmo quando ainda era virgem.
— Acho melhor você fazer um teste, só por desencargo de
consciência...
— Não vejo necessidade de fazer exame nenhum, ok? —
Vociferei, nervosa, fazendo com que algumas gotículas de saliva
fossem expelidas da minha boca. — Que diferença faz se eu estou
grávida ou não?
Michael avançou um passo, mantendo os olhos fixos nos
meus, a mandíbula trincada e dura como pedra só intensificava a
atmosfera de tensão. Eu mal conseguia respirar direito, cogitando se
ele seria capaz de segurar os meus braços para me sacudir, na
tentativa de extrair alguma confissão.
De minha boca não sairá nada.
— Se existe a possibilidade de eu ter engravidado você
naquela noite, não acha que eu deveria ser o primeiro a saber? —
Ele bradou, espumando saliva pelos cantos da boca, enquanto
gesticulava furioso.
— Digamos então que eu faça o exame nos próximos dias, e
o resultado sai positivo. Como você reagiria a essa notícia? —
Como Michael hesitou por alguns instantes, provavelmente se
sentindo incapaz de racionalizar, eu logo completei, exigente: —
Vamos, Mike, diga logo de uma vez!
— Tudo bem... — concordou ele, passando a mão pela
barba, em um gesto impaciente. — É muito difícil dizer porque eu
odiaria me colocar na posição de quem não consegue lidar com
uma gravidez não planejada.
— Foi o que eu pensei. — Eu estendi os braços em um gesto
de rendição. — Você sempre deixou claro que desistiu de ser pai —
prossegui, ofegante, as lágrimas já ameaçavam rolar pelo rosto,
tomada por uma onda de ressentimento e indignação, a ponto de
sentir o sangue ferver nas veias. — A simples ideia de ter um filho já
te assombra. Eu não suportaria trazer mais sofrimento para sua
vida.
— O que você quer dizer com isso? — perguntou ele,
emitindo um ruído baixo, que mais parecia um arquejo rouco e
desesperado. Previ o movimento seguinte dele, mas eu me
desvencilhei a tempo, erguendo as mãos, na defensiva, e evitando
encará-lo nos olhos para não fraquejar.

— Me desculpe, mas eu preciso mesmo ir. — Sentenciei,


encolhendo os ombros, e esfreguei o rosto de modo brusco para
enxugar as lágrimas inoportunas.
Eu o observei engolir em seco, fazendo o pomo de adão subir
e descer, em seu pescoço, pouco antes de passar por ele, o
deixando completamente à sós com seus próprios devaneios.
 
Capítulo 26
Michael Foster

A conversa com Kylie ao café da manhã não me saiu mais da


cabeça, justo quando tive uma videoconferência com o chefe da
agência federal de segurança cibernética, quando discutimos a
modernização e implementação de padrões de defesa nas
diferentes agências governamentais.
Passei horas no escritório, amargando a longa espera pelo
momento em que veria Letícia de novo, e quando eu finalmente a
encontrei, fui surpreendido pela mudança abrupta de
comportamento dela: antes, amorosa e receptiva; depois, mais fria,
evasiva e até mesmo hostil.
Continuei aguardando pelo retorno dela, sentado em uma
poltrona da sala de estar da casa dos meus paus, o corpo curvado
para a frente, a cabeça abaixada, os cotovelos apoiados nas coxas,
com meus pés batendo repetidamente no chão, mal conseguindo
conter a ansiedade.
Consultei as horas no relógio de pulso. A preocupação logo
deu lugar à raiva, quando constatei que já passava das sete horas
da noite.
Senti o coração apertado e preenchido por um sentimento de
dúvida e incerteza, decorrente do motivo por trás daquela saída
intempestiva.
— Talvez Letícia já esteja em sua casa, querido... — cogitou
minha mãe, quebrando o silêncio e deixando transparecer certa
incerteza na voz.
— Não sei por que, mas estou com um estranho
pressentimento de que não a verei mais hoje.
— Letícia parecia bastante animada, após ter levado a Zoe
para um passeio no parque... — ponderou ela, com ar pensativo. —
Talvez essa mudança de comportamento se deve a sei lá, talvez
alguma notícia, quem sabe? Notícia essa que, possivelmente,
compromete a permanência dela aqui nos Estados Unidos.
Eu me levantei de um salto, e passei a andar de um lado para
o outro, passando uma das mãos trêmulas pelos cabelos.
— Suponhamos então que algum parente tenha entrado em
contato. Nós também a consideramos como parte da família. Tudo
isso é muito estranho. Não acha?
Um suspiro audível se fez ouvir naquela sala, mas ele não
veio de mim, naturalmente.
— Quer mesmo que eu diga o que acho de tudo isso?
A seriedade impressa no semblante de minha mãe me deixou
um tanto apreensivo, a ponto de reter o ar nos pulmões por mais
tempo que o necessário, já prevendo o que ela diria a seguir.
— Quais são as chances de Letícia estar grávida? —
perguntou Michelle, cruzando os braços, com os olhos fixos nos
meus e uma das sobrancelhas, arqueada.
— Eu até toquei neste assunto, mas ela se recusa a fazer o
exame. Talvez por acreditar que seja pouco provável engravidar
logo de primeira...— Tentei imprimir um tom animador à voz, mas as
palavras soaram pouco convincentes até para os meus próprios
ouvidos. — De qualquer forma, eu sempre usei preservativo e ela
toma anticoncepcional... Como nenhum método contraceptivo é
100% eficaz, eu vou me prevenir antes que o pior aconteça. Não sei
por que eu adiei tanto a decisão de fazer uma vasectomia...
Só espero que não seja tarde demais. — Pensei comigo
mesmo, sentindo um profundo estremecimento se espalhar
sutilmente pelo corpo.
— Deve ser porque, lá no fundo, você ainda não se sente
plenamente realizado.
— O sonho de vivenciar a paternidade virou cinzas, junto com
minha esposa e nossa bebê, Michelle. — Eu retruquei de modo
cortante, desviando o olhar, bruscamente.
— Quer dizer então, que você tem enganado essa jovem
esse tempo todo?
— Não, eu jamais faria isso! — Eu me apressei em negar,
visivelmente indignado, com lágrimas brotando nos olhos, que
passaram a arder, me obrigando a fechá-los, com força. — E eu que
pensei ter perdido a capacidade de amar...
Lutei muito contra o que sinto por ela, mas isso já me rasgava
por dentro.
— Acho bom você garantir que Letícia volte para casa, e
rápido. Porque eu vi o desespero nos olhos dela, parecia estar
prestes a tomar uma decisão precipitada... — Eu fiz um sinal para
ela se calar, dominado por uma vertigem súbita, e rapidamente me
afastei, andando meio cambaleante em direção à janela mais
próxima.
Levei a mão instintivamente ao pescoço, desabotoando os
primeiros botões da camisa, e puxando a gravata, como se de
repente o ar me faltasse nos pulmões.

Não podia ser tarde demais, simplesmente não era justo.


Eu me recusava a aceitar uma gravidez não planejada.
O meu coração se apertou no peito, batendo tão
descompassadamente, que eu quase poderia senti-lo subir à
garganta.
E se ela estiver mesmo esperando um filho meu?
Aquele pensamento me devastou mais do que imaginei ser
possível.
— Precisa estar preparado para a provável confirmação da
gravidez dela, Michael — comentou minha mãe, adotando um tom
mais baixo e suave na voz. — Querido, me parte o coração ver você
assim tão transtornado. — O toque suave de sua mão trêmula
provocou um leve, mas perceptível tremor pelo meu corpo. — Por
que resiste tanto em dividir as suas dores comigo? — Ela tentou me
puxar para um abraço, mas eu rapidamente me desvencilhei, e fui
pisando duro até o aparador de bebidas.
— Se meu pai estivesse aqui, ela já teria sugerido tomar um
bom porre, sabia? — Mudei de assunto, deliberadamente, ao abrir a
garrafa de uísque, servindo a bebida no copo baixo, mesmo ciente
de que precisaria bem mais do que uma dose para mascarar a
realidade. — Aliás, a senhora não me disse quando ele volta de
viagem.
Minha mãe se limitou a observar meus movimentos, com uma
expressão severa no rosto.
— Vocês, homens, usam a bebida para anestesiar a dor, mas
ela apenas retarda o enfretamento da experiência traumática.
— Quem está por trás deste discurso pronto? — perguntei,
incapaz de conter a ironia na voz. — A matriarca, Michelle Foster,
ou a psicóloga, Michelle Gallagher?
Ela já estava prestes a rebater meu comentário, mas se
conteve ao direcionar a atenção para a entrada da sala de estar.
Kylie adentrava o local, praticamente correndo, ainda vestida em
seu jaleco branco.
— Eu recebi uma mensagem de Letícia, por isso eu vim
direto para cá. — Kylie gesticulava muito enquanto falava, ofegante,
transparecendo seu nervosismo. — Só não esperava encontrar
minha filha chorando no quarto, mas ela se recusou a me dizer o
porquê... — Fez uma pausa, soltando um longo suspiro cansado. —
Maxwell felizmente conseguiu acalmá-la, e os dois estão na sala de
mídia assistindo uma animação da Disney. — Ela então se deixou
cair no sofá, visivelmente exausta. — Já não sei mais o que fazer.
Tudo está um caos...
— Você conseguiu falar com a Leti, pelo menos? —
perguntei, ainda que de maneira hesitante. — Porque toda vez que
eu ligo para ela, já cai direto na caixa postal.
Kylie me encarou por um longo momento, com a cabeça
inclinada levemente para o lado na tentativa de me sondar, a testa
franzida de desconfiança. O meu coração passou a bater
descompassadamente, e contive o ar nos pulmões, ante a
expectativa do que ela diria a seguir.
— Estou na mesma situação que você... — Algo soou; era o
celular dela. Com a mandíbula cerrada, Kylie enfiou a mão no bolso
e pegou seu celular, atendendo a chamada, em seguida. — Harper
Douglas? É claro que eu me lembro de você, sim... Oh, não, para
falar a verdade, ainda não tive tempo de conferir meus e-mails... A
au pair vai passar a noite aí na sua casa? Humm...compreendo...
Deixe-me pensar um pouco... Eu posso encontrá-la na hora do
almoço. Pode ser? Ótimo! Então, até logo. — E desligou.
— O que foi que ela disse? — A minha voz falhou um pouco
ao formular a pergunta, o que me obrigou a engolir em seco, com
desconforto.
— A LCC marcou uma reunião para amanhã à tarde, mas
não quis dizer o motivo. Estou começando a achar que Letícia
solicitou um rematch...
Fechei meus olhos por um momento, e os abri em seguida, a
incredulidade anterior se transformando em indignação.
— Uma troca de família? — perguntei, ao cruzar os braços
sobre o peito. — Mas, por que ela faria isso?
— Francamente, Michael! — bufou ela, indignada. — Será
que não é tão óbvio assim, para você? Se ainda persiste tanto a
dúvida, por que não vai atrás dela e tire essa história a limpo? Está
com medo de perguntar e confirmar suas suspeitas?
Um sentimento de impotência percorreu meu corpo, o que me
fez cerrar os punhos e trincar o maxilar, ciente de que estava
entregue à vulnerabilidade emocional, algo que eu abominava
completamente.

Definitivamente, ter um filho àquela altura da vida era algo


inconcebível.

De repente, a voz da minha mãe quebrou o silêncio


momentâneo na sala.

— Eu acabei de me lembrar da carta que Letícia deixou,


antes de ir embora. — Ela pegou o envelope que estava em cima da
mesa e o estendeu na direção de Kylie.
— Ela deixou uma carta para mim? — perguntou minha irmã,
surpresa.
A reação do meu corpo foi instantânea: ele começou a
tremer, a suar frio, a garganta apertada e seca me impedindo de
articular qualquer palavra.
Eu nunca me permiti ficar vulnerável na presença delas
antes, mas a dor já me consumia tanto, que em algum momento eu
extravasaria, colocando meu autocontrole à prova. Se eu
permanecesse ali por mais um ou dois minutos, eu acabaria em um
colapso nervoso, ou pior, em um acesso de raiva autodestrutivo.
Deixei a sala sob os olhares consternados e expressões de
tristeza delas.
Odiava ser quem eu era, ou no que eu havia me tornado nos
últimos anos.
 

As portas do elevador se abriram no 32º andar. Atravessei o


corredor em direção à cobertura localizada no que era considerado
o primeiro bairro de Seattle: First Hill. Os arranha-céus mais
exclusivos proporcionavam vistas panorâmicas da cidade, desde a
icônica roda gigante no píer 57, sobre a baía de Elliott, passando
pelo Lago Washington a leste, até a cordilheira Cascades.
Tirei o blazer e o joguei na poltrona mais próxima, depois
segui até o bar para pegar o uísque Bourbon, desenrosquei a tampa
e levei a garrafa diretamente aos lábios, bebendo um longo gole da
bebida. Soltei um soluço trêmulo, entre um gole e outro, enquanto
andava meio trôpego pela ampla sala de estar, mas acabei me
esbarrando no sofá com chaise, aquele sofá em que um dos seus
lados é mais longo.
Eu me sentei desajeitadamente no carpete, tendo à minha
frente as janelas de vidro do piso ao teto.
Os meus olhos lacrimejaram só de observar a vista noturna
da cidade, o que me fez recordar o dia em que Letícia e eu
andamos de mãos dadas como um casal, pela primeira vez,
apreciando a vista ao longo da orla do centro de Seattle, com suas
balsas, veleiros entre outras embarcações que diariamente
cruzavam as águas da Baía de Elliott.
De início, eu mantive as mãos enfiadas nos bolsos da calça,
enquanto que as delas balançavam suavemente ao ritmo da
movimentação do corpo. Então, tomei a iniciativa de segurar na mão
esquerda, fria e ao mesmo tempo, macia ao toque, entrelaçando
nossos dedos o mais forte possível. Letícia estreitou os olhos em
minha direção, a confusão estampada no semblante não me
surpreendeu, tendo em vista que tudo ainda era uma grande
novidade para ela.
— Casais andam de mãos dadas, demonstram carinho, e se
tocam, mesmo em público. Mas já faz tanto tempo que eu não
vivencio isso... Só que agora tem um sabor especial para mim,
afinal, eu sou o seu primeiro namorado. Acho bom você já ir se
acostumando, amor.
— Pode não parecer, mas eu já me sinto mais à vontade. —
Ela riu, divertida, usando a mão livre, para segurar em meu braço, e
se agarrou mais a mim, para se proteger do vento gelado que
soprava da baía. — Até pouco tempo atrás, eu pensei que não era
digna o bastante para vivenciar essa experiência única, mas Deus
quis que nossos caminhos se cruzassem, para me provar o
contrário.
— Só me dei conta do quanto Ele foi misericordioso comigo,
no instante em que eu pus os meus olhos em você.
O luto me roubou tudo, inclusive a vontade de viver. Não
foram poucas as vezes em que cogitei pôr um fim àquele
sofrimento. Sorte a minha ter encontrado em Letícia a luz que
faltava para conseguir sair da escuridão que deliberadamente me
enfiei.
Coloquei a garrafa de uísque no chão, enfiei minha mão no
bolso para tirar o celular, e disquei o número dela, mas a chamada
caiu novamente na caixa postal. Aproveitei para rever nossas fotos
na galeria, e deslizei o dedo pela tela, passando por várias selfies
armazenadas, sendo que algumas delas retratavam somente eu e
ela, mas também havia outras em que a Zoe aparecia, toda
sorridente.
Minha namorada preferiu fugir a me enfrentar.
Que tipo de monstro ela pensa que eu sou?
O tipo que fez um inferno na vida da esposa até ela ceder à
pressão e satisfazer seu desejo de ter um filho, menosprezando o
direito dela de não querer ser mãe. Os sucessivos abortos
espontâneos e gestações ectópicas eram um claro sinal de que
havia algo errado. O sexto sentido de Susan estava certo o tempo
todo.
Ela seguiu corajosamente com a gravidez, se sacrificando até
o último instante para satisfazer o meu sonho de ser pai.
Os meus olhos arderam com as lágrimas reprimidas, mas eu
as sufoquei, entornando a garrafa de um só gole.
Pouco a pouco, eu senti as pálpebras ameaçando se fechar,
e mesmo resistindo ao torpor paralisante, a minha cabeça pendeu
para o lado até cair no sono, entrecortado por várias vigílias
perturbadoras, e flashes do que pareceu ter sido um sonho com
Susan e Letícia, embora não lembrasse de nada substancial.
Esfreguei meu rosto, me sentindo ainda meio sonolento,
enquanto o sol despontava no horizonte, tingindo de dourado
algumas nuvens que ameaçavam encobri-lo, enquanto a claridade
aconchegante se espalhava pela espaçosa sala de estar.
Quando eu finalmente reuni forças para me levantar,
caminhei lentamente até o banheiro, sentindo o corpo todo dolorido
como se eu tivesse levado uma surra. Removi as peças de roupa
quase como um autômato, um arrepio subiu ao longo da espinha
assim que pisei no chão frio com os pés descalços, e abri o
chuveiro, deixando a água morna cair direto sobre minha cabeça.
Espalhei um pouco de shampoo pelo cabelo, depois o removi
dos fios de modo brusco, para em seguida fechar o registro, e
ensaboar cada parte do corpo, enxaguando e tornando a me
ensaboar, mantendo a cabeça abaixada a todo instante, enquanto
observava o a espuma se misturando à água, escorrendo
rapidamente pelo ralo.
A bem da verdade, eu não queria estar presente no que seria
o momento mais significativo da minha vida, revivendo os horrores
do passado, e presenciando Letícia, o meu novo amor, sofrendo de
contrações dolorosas, para trazer um filho ao mundo, e lutando
contra qualquer intercorrência que causasse a própria morte.
Saí do banho cerca de quinze minutos depois, usando uma
toalha presa à cintura, enquanto secava os meus cabelos, com a
outra. Vesti a primeira roupa que encontrei no armário, um conjunto
básico composto por blazer azul escuro, camisa branca combinada
a uma calça de jeans de lavagem escura, além de tênis de couro
envernizado.
Conferi as notificações no celular, mas elas se restringiam às
ligações perdidas da minha mãe, Logan, Thomas, mas também
havia mensagens de texto não visualizadas no iMessage. Constatei
que nenhuma delas era de Letícia.
O silêncio da mulher que eu amo é ensurdecedor.
Como eu gostaria de ser confrontado por ela, ainda que fosse
à distância.
Fiz uma rápida pesquisa na Internet e obtive o endereço do
escritório local da agência de intercâmbio. Pretendia tirar aquela
história de suposto rematch a limpo, horas antes do encontro de
Kylie com a coordenadora local do programa.
Chegando lá, a recepcionista me conduziu até a sala da
diretora, as devidas apresentações foram feitas, então eu me sentei
em uma cadeira, todo empertigado, com as mãos unidas no colo, e
os dedos entrelaçados, esfregando os polegares um no outro.
Em determinado momento, a mulher de meia-idade desviou o
olhar de seu laptop e me encarou, com seriedade através das lentes
dos óculos.
— Quer dizer então que o senhor além de ser o irmão da host
mom, Kylie Foster, também se tornou responsável pelos custos,
salários e outras despesas da Au Pair?
— Sim, exatamente. Nós não sabemos se a au pair solicitou
um rematch, sendo que até ontem ela desempenhou normalmente
as suas funções. Kylie e eu estamos bastante preocupados porque
nos comprometemos a zelar pelo bem-estar dela.
— Entendo... — A mulher exibia aquela expressão
imperturbável e serena de quem se regozijava por dispor de uma
informação sigilosa, o que só contribuía para o meu aborrecimento.
O corpo tremia involuntariamente à medida que minha irritação por
ela só aumentava a cada segundo. — Eu recebi agora há pouco um
e-mail de Harper Douglas, a coordenadora local, comunicando a
decisão da jovem em rescindir o contrato.
— O quê? — murmurei, piscando várias vezes, visivelmente
confuso. — Como assim? Por que ela faria isso? — Disparei mais
perguntas, lutando contra a onda de impotência que já invadia a
minha alma.
— Trata-se de uma situação bastante delicada, Sr. Foster. —
Ela fez uma pausa, olhando bem no fundo dos meus olhos, respirou
bem fundo e disse em seguida: — A jovem nos informou que está
grávida.
Eu mergulhei em uma espécie de apatia mórbida que vem se
arrastando por três longos anos, agindo como alguém que já estava
morto por dentro.
— A julgar por sua reação, imagino que essa notícia não o
pegou de surpresa.
— Eu já suspeitava disso... — confirmei, inclinando a cabeça
para o lado de maneira autodepreciativa.
— Então o senhor já sabe quem é o genitor. — Era uma
afirmação e não uma pergunta. — Só acho lamentável o fato de a
jovem não ter respeitado o período de aviso prévio para dar à sua
irmã a chance de procurar uma substituta.
Abaixei minha cabeça, com o olhar perdido em algum ponto
da sala, confrontado pela certeza de que era o único responsável
por submeter Letícia àquela situação degradante. Ela não viu outra
saída, além de tomar uma atitude drástica: Interromper o
intercâmbio de au pair.
Àquela altura, eu já havia perdido a única mulher que deu
sentido à minha existência.
— Além de prejudicá-la, eu também acabei com os sonhos
dela. — Refleti em voz alta, olhando para o teto, em seguida voltei a
atenção para a mulher e disse: — Letícia está esperando um filho
meu. — Proferi a frase que relutei tanto em dizer, mas a voz soou
baixa e com a intensidade de um abalo sísmico, capaz de provocar
um perceptível tremor pelo meu corpo. — Sei que é algo totalmente
inapropriado, mas nós dois começamos a nos relacionar,
recentemente.
— O senhor não precisa dar explicações sobre a sua relação
com a ex-Au Pair. — Ela abanou uma mão, dispensando qualquer
comentário de foro íntimo.
— E quanto à permanência dela aqui, nos Estados Unidos.
Isso afeta ou não?
— O visto J-1 garante uma estadia temporária, apenas
durante o período do programa. Ela pode continuar vivendo
legalmente no país, desde que o visto ainda esteja na validade, ou
pode estender esse prazo, caso mude de status. Existe casos de
jovens que se candidataram à uma vaga numa universidade, ou
conseguiram um bolsa de estudos, ou ainda tentaram uma estadia
temporária como turista, mas claro que também existem relatos de
quem passou a trabalhar ilegalmente, ou se casou com o intuito de
obter um Green Card...
— Fico muito grato pelas informações. — E dizendo isso, eu
afastei a cadeira para trás e me levantei, tomado por uma sensação
de fraqueza, como se o meu corpo, subitamente, pesasse uma
tonelada.
— Há algo mais que eu possa fazer pelo senhor? —
perguntou ela, solícita.
— Não, obrigado — respondi, negando com um gesto de
cabeça. — Preciso ir agora. Tenha um ótimo dia. — Eu me adiantei
e apertei a mão dela, antes de ir embora.
No caminho até a clínica, onde marquei uma consulta com o
urologista, passei no drive-thru do Starbucks e comprei um
expresso, mas ele nem se comparava ao que me habituei a tomar
nos últimos meses. Letícia e seus cafés especiais me faziam
acordar de bom-humor. Sentia falta até mesmo daquele pão de
queijo borrachudo, típico da cozinha mineira.
Parei o carro em um sinal fechado, então resolvi mandar uma
mensagem de texto para ela: “Acabei de comprar o café que você
detesta: aquele da ‘sereia verde’. Você sempre teve razão, amor.
Ele é ralo e ainda deixa aquele gosto horrível de queimado na
boca.”
Uma vez no consultório, a recepcionista me pediu para
aguardar a saída do paciente, que passava pela consulta com o Dr.
Joseph Lawrence.

Havia filas de cadeiras estofadas, três de cada lado, além da


mesinha de canto com algumas revistas. O chão era coberto com
carpete cinza-claro, e as paredes brancas eram decoradas com dois
quadros: um posicionado na parede em frente; e o outro, no lado
oposto.
Respondia alguns e-mails da conta corporativa, quando de
repente eu escutei a recepcionista me chamar, informando que o Dr.
Lawrence já estava a minha espera.
— Como vai, Sr. Foster. Fique à vontade. — O médico me
saudou de modo gentil, fazendo um gesto com a mão, indicando a
cadeira estofada, à sua frente.

— Bom dia, doutor. Obrigado. — Eu cumprimentei o médico


com um rápido aperto de mão, antes de me sentar, curioso e um
tanto apreensivo.

— Deixe-me explicar no que consiste a vasectomia. É um


procedimento ambulatorial rápido e indolor em que os tubos no
escroto que transportam o esperma são fechados, impedindo assim
a fecundação do espermatozoide com o óvulo.

— Quer dizer então que o homem continua ejaculando


normalmente?
— Não afeta em nada o desejo sexual, e muito menos
interfere na qualidade da ereção — respondeu ele, as mãos
cruzadas sobre a mesa. — O que eu sempre falo para todos os
meus pacientes é o seguinte: Reflitam bem antes de decidirem pelo
procedimento. — Ele me encarou, com seriedade através das lentes
dos óculos. — Reverter é muito mais difícil do que fazer uma
vasectomia. Em outras palavras, o homem precisa estar seguro de
que não quer mesmo ter filhos.

Eu ainda estava dividido entre o desejo inconsciente em prol


da realização do sonho da paternidade e a motivação consciente
contrária a ela, advinda do temor de reviver a experiência traumática
do passado.
A sala pareceu girar ao meu redor, com o peso daquela
constatação.
Pressionei as pontas dos dedos na testa, tomado por uma
súbita enxaqueca. A minha cabeça latejava tanto naquele momento,
que eu mal conseguia raciocinar direito.
O médico inclinou a cabeça ligeiramente para o lado para me
sondar, com o cenho franzido de preocupação.
— Não me parece inteiramente convencido de que é isso o
que quer. Acertei?
Fechei os olhos por alguns instantes e concordei com um
gesto quase imperceptível de cabeça.
— Agora eu me recordo que o senhor já esteve em meu
consultório antes... — comentou ele, me pegando de surpresa. —
Queria fazer o procedimento, imediatamente, mas eu o impedi
naquela ocasião, lembra-se?
— Como eu poderia esquecer, doutor? Eu estava bastante
transtornado, quando tomei aquela decisão...
Contei ao médico o motivo de ter ido à consulta pela primeira
vez.
Kylie e eu levamos a Zoe ao playground, no início do ano. Em
determinado momento, eu fiquei sozinho quando de repente, uma
transeunte qualquer me abordou, dizendo ter visto o espírito de
Susan. A descrição correspondia exatamente à minha esposa e o
mais estranho era que eu nunca vi aquela mulher antes. Ela sabia
detalhes da minha vida íntima, a forma como falava transparecia o
tempo todo que tinha o dom de prever o futuro.
— Ainda não se sente pronto para ser pai? — Ele quis saber,
me tirando completamente dos devaneios.
— Exatamente. — Desviei o olhar de forma abrupta, e passei
a encarar minhas próprias mãos unidas, com os dedos entrelaçados
sobre o colo, enquanto mexia os polegares, distraidamente. — Eu
deveria ter insistido em fazer este procedimento. Mas seja como for,
já é tarde demais para voltar atrás.
— Então por que resolveu marcar uma nova consulta? —
perguntou ele, franzindo a testa, intrigado. Eu fiz menção de
responder, mas me contive e engoli em seco, tentando desfazer o
grande nó que se formava em minha garganta. — A vasectomia não
evita uma gravidez que já está em curso, Sr. Foster. O senhor
obviamente já deve saber disso.
— O senhor tem filhos, doutor? — perguntei, com um meio
sorriso nos lábios.
— Sim, eu tenho um casal. — Era nítido o orgulho estampado
no rosto dele. — Ambos são gêmeos fraternos e têm dez anos de
idade. — Ele me ofereceu um sorriso encorajador, o que fez
reacender uma fagulha de esperança em meu peito. — Ser pai é
uma benção na vida de um homem, Sr. Foster — prosseguiu,
estreitando um olhar curioso em minha direção. — A sua parceira
sabe que está aqui?

— A minha namorada tem me evitado, desde que se


descobriu grávida. — Eu fiz uma careta autodepreciativa, o que
provocou uma gargalhada nele.

— Já parou para pensar que uma gravidez não planejada


pode se tornar um divisor de águas na vida de vocês? A cura pode
vir exatamente na paternidade.
— Talvez o senhor tenha razão, doutor. E fazendo um
retrospecto da minha vida agora, eu sempre quis constituir uma
família.
Eu me levantei de um salto, estendi a mão para ele em
despedida, e saí correndo pela porta do consultório, mas acabei me
esbarrando na atendente, que vinha no sentido contrário. Nós dois
murmuramos pedidos de desculpas um para o outro.
Uma vez no elevador, escutei o som de notificação de
mensagens. Fiz o desbloqueio da tela e toquei no ícone do
aplicativo. Era mensagem de Kylie.
 
Kylie: Acabei de me encontrar com
a LCC. Leti também estava
presente. Me ligue assim que puder,
ok?
 

Segurei o celular de encontro ao ouvido, aguardando minha


irmã atender a chamada, enquanto olhava distraidamente para as
pessoas que passavam por mim, na direção contrária à saída do
centro médico. Até então, eu mantive a respiração suspensa, mas
soltei o ar bem devagar, sentindo uma onda de alívio me preencher,
assim que ouvi a voz dela.
— Não perca mais tempo, Mike. Vá atrás dela! Assuma ser o
pai deste bebê.
— Mas você sabe onde eu posso encontrá-la? — Como ela
respondeu que ‘sim’, eu completei logo em seguida: — Me mande o
endereço por mensagem. Eu estive ausente da empresa a manhã
inteira, então só vou poder ir lá durante a noite.
— Então, boa sorte... Preciso desligar agora. A gente se fala
mais tarde.
Letícia é a única mulher com quem pretendo reviver o meu
maior sonho.
Só espero que não seja tarde demais.
 
Capítulo 27
Michael Foster

Eu tentei me concentrar na leitura de um documento, mas as


palavras pareciam dançar diante dos meus olhos. A mesma voz
feminina sussurrava em meu ouvido, mas certamente era algum tipo
de delírio momentâneo, fruto de uma noite mal dormida, associada à
incapacidade de equilibrar as demandas de trabalho com a
condução desastrosa da minha vida pessoal.
Pressionei as pontas dos dedos na testa, tomado por uma
súbita enxaqueca.
Estou com uma sensação estranha, desde que coloquei
meus pés na empresa.
Praguejei baixinho, batendo com força no tampo da mesa, a
ponto de alguns papeis saltarem. Thomas se sobressaltou,
desviando o olhar do seu laptop, e apoiou a mão fechada sobre o
queixo, passando a estudar atentamente as minhas feições.
— O que houve, Mike? Já se arrependeu de colocar a
mansão à venda?
— Não, de forma alguma — neguei, veementemente. Decidi
reconstruir minha vida do zero, a começar pela mudança de
residência. — Prefiro mudar de endereço a ter que viver na casa
que remete a muitas lembranças de Susan. Adquirir uma casa nova
simboliza um recomeço, sabe? E Letícia faz parte dessa nova etapa
da minha vida.
Não pretendia dar esse passo assim tão rápido, mas é a
única solução viável para ela continuar vivendo legalmente no país.
— Será que ela vai aceitar se casar com você?
— Eu sinceramente não sei... — murmurei, meus olhos
passearam distraidamente sobre o tampo da mesa até me deparar
com um porta-retrato, parcialmente escondido entre grandes
monitores e pilhas de livros. A fotografia retratava Susan e eu,
posicionados de frente um para o outro, sorridentes, as testas
unidas representando aquela intimidade cúmplice de recém-
casados.
De repente, me veio o impulso de tirar a foto da moldura.
Decidi guardá-la dentro de um envelope, antes de recolocar o porta-
retrato de volta na mesa.
Espero em breve ocupar o espaço vazio com uma foto minha
e de Letícia.
— Mas ela vai pensar que tomou essa decisão motivado
apenas pela notícia da gravidez — comentou ele, me tirando dos
meus pensamentos.
— Será que corro mesmo esse risco? — murmurei, levando
as mãos à cabeça.
Uma onda de tristeza me invadiu, ciente de que meu maior
medo poderia se materializar: o medo de perder a mulher que eu
deixei para trás, e que ainda estava viva.
Kylie me contou por mensagem que ela decidiu antecipar o
retorno ao Brasil. Não suportaria um dia a mais longe dela, muito
menos o resto da vida. Eu ficaria devastado de tal forma que jamais
voltaria a ser o mesmo.
— Acho bom você levantar esse seu traseiro logo e trazê-la
de volta, antes que seja tarde demais — sugeriu ele, esboçando um
sorriso encorajador nos lábios.
Respirei bem fundo para ganhar coragem e fiquei de pé,
munido por uma resolução inabalável. Letícia tinha todos os motivos
para se manter distante de mim, mas eu tinha razões de sobra para
desejar tê-la por perto até o fim dos meus dias.

O meu coração disparou dentro do peito, ante à manifestação


do sentimento feroz que me atormentava, quando anos antes jurei
nunca mais sentir algo assim por nenhuma outra mulher.
Letícia se tornou a única capaz de fazer as minhas defesas
caírem por terra.
— Me deseje sorte, Tom! — Tirei o blazer do encosto da
cadeira e saí correndo em direção à porta.
Tentei me concentrar na direção, segurando o volante com
toda força, a ponto de sentir dor na junta entre os dedos, tamanho
era o meu nervosismo no caminho para Kirkland, apesar de o trajeto
não durar mais do que dez minutos, seguindo pela Redmond Way.
A morte de Susan, seguida pela recém-nascida, horas após o
parto, foi uma fatalidade irreparável e devastadora, a ponto de
acreditar que seria praticamente impossível superá-la. Com o tempo
eu percebi que negligenciei minha família, usando o isolamento
social imposto na época, como forma de estabelecer um abismo
entre nós.
Negar minha própria existência?
Minha esposa está morta. Até meu ídolo se foi há mais de
vinte anos.
Havia outras formas de honrar a memória de Susan, mas
sem anular o fato de ter uma vida inteira pela frente.
Não posso repetir o mesmo erro do passado, afastando a
mulher que eu amo.
Estacionei diante da propriedade pertencente à coordenadora
local do programa de Au Pair. Depois de saltar do carro, eu dei uma
boa olhada ao redor, e respirei bem fundo para reunir coragem e
cruzar o pequeno caminho de pedra que levava à entrada principal
da casa.
Assim que toquei a campainha, uma mulher que aparentava
ter por volta de trinta e poucos anos de idade, alta, magra, seus
cabelos loiros estavam presos em um rabo de cavalo, abriu a porta
e me encarou, trazendo no semblante um misto de surpresa e
curiosidade.
— Boa tarde... — saudei de modo gentil, e a mulher se
limitou apenas a repetir o cumprimento, com um gesto de cabeça.
— A senhora não me conhece, mas eu sou o irmão de Kylie Foster.
Me chamo Michael Foster.
— Ah, sim... Eu conversei com sua irmã horas atrás. — Ela
cruzou os braços sobre o peito, possivelmente devido à brisa
cortante de fim de tarde. — Presumo que queira ver Letícia, mas ela
precisou sair e ainda não retornou.
— Não se preocupe comigo. Eu posso aguardar aqui fora,
sem problemas.
— Tem certeza? O senhor ficará muito mais à vontade na
sala de estar.
— Já que insiste, eu aceito, sim. Obrigado pela gentileza.
A LCC me ofereceu uma xícara de café, acompanhado por
alguns biscoitos amanteigados, e nos minutos seguintes a conversa
se resumiu basicamente aos assuntos triviais.
— Parece que os gêmeos que ela cuidava anteriormente
estão passando as férias na casa dos avós... — disse a mulher, de
repente, me pegando de surpresa. Esperei que ela desse mais
detalhes, mas pareceu hesitar um pouco.
— Eu sei que eles moram no bairro de Queen Anne... — Eu
fiz questão de dizer, demonstrando me inteirar no assunto. — Já
estive lá uma vez, mas não cheguei a conhecê-los.
— Exatamente! Letícia estava bastante ansiosa para rever os
gêmeos, então eu sugeri a ela levar meus filhos para brincar um
pouco com eles no parque. — Notei uma sombra se formando
repentinamente, endurecendo as feições dela. — Devia ter visto
como ela chegou aqui, Sr. Foster. Chorava o tempo todo, e ela nem
conseguiu dormir direito, pois se sentia muito deprimida e arrasada,
como se a vida tivesse perdido o sentido...
Desviei o olhar e fechei os olhos com força, sentindo uma
súbita pontada no peito e amargando uma onda de culpa por ter
negligenciado o sofrimento dela, voltando a atenção apenas para os
meus conflitos internos no que diz concerne à paternidade.
A notícia de uma gravidez inesperada impactava mais as
mulheres, afinal elas assumiam a responsabilidade de gestar uma
criança que não desejavam, pelo menos até aquele momento,
enfrentando grandes mudanças físicas e psicológicas, além dos
riscos de intercorrências ao longo da gestação ou até mesmo
durante o parto.
O cenário era ainda pior nos casos de rejeição e abandono
paterno.
— Não acho que um pedido de desculpas seja suficiente para
reparar o meu erro.
— Só o fato de estar aqui, disposto a fazer o que é certo, já
foi um grande avanço. — Ela me ofereceu um sorriso encorajador, o
que fez reacender uma fagulha de esperança em meu peito. — Eu
conheço au pairs que se apaixonaram aqui nos Estados Unidos,
mas as agências desencorajam fortemente esse tipo de coisa,
porque vai de encontro ao que o intercâmbio cultural estabelece. Se
uma jovem engravida durante o programa, o contrato é rescindido, e
ela acaba retornando para casa. O principal motivo da proibição é o
seguro que não cobre o pré-natal e nem as despesas relacionadas.
Imagina o que se passou pela cabeça de Letícia, ciente de tudo isso
que acabei de te falar?
Inclinei o corpo para a frente, com os cotovelos apoiados no
colo, e o queixo descansando nos dedos entrelaçados, mantendo
uma postura reflexiva.
— Soma-se a isso o fato dela saber que eu abominava a
ideia de ser pai.
— Eu fiquei de levá-la até o aeroporto amanhã. — A LCC
tirou o celular do bolso e passou a mexer nele, a testa franzida e o
ar compenetrado. — Deixe-me apenas verificar a informação, só um
instante. — Aguardei ansioso para saber o horário de partida do voo
de retorno dela, pensando que talvez minha última chance fosse
impedi-la de embarcar. — Achei! O voo da American Airlines, com
conexão em Dallas, tem previsão de decolagem ao meio-dia.
Eu desviei o olhar dela, assim que escutei um carro
estacionando lá fora, seguido pelo som dos passos se aproximando
e a porta da frente se abrindo, revelando quatro pessoas, incluindo a
mulher que fazia o meu coração parar de bater por uma fração de
segundo, até acelerar de forma incontrolável.
Jamais imaginei vê-la carregando um menino, que devia ter
entre 1 ou 2 anos de idade. Ele puxou alguns fios do cabelo sedoso,
com uma de suas mãozinhas curiosas, mas Letícia a retirou
cuidadosamente, enquanto balançava o menino nos braços, o
sorriso logo se transformou em um riso solto, lindo de se ver.
Não restava dúvidas de que minha futura esposa estava
destinada a ser mãe.
Quando Letícia enfim notou a minha presença no local, notei
que o rosto pálido ficou ainda mais sem cor, embora ela tivesse
transparecido mais alívio do que aborrecimento. As pupilas estavam
contraídas e lacrimejantes, e trazia no rosto uma expressão abatida
e consternada, como se em poucas horas ela tivesse envelhecido
dez anos.
— Michael? — murmurou ela, a meia voz. Um pequeno
soluço irrompeu de sua boca, e pareceu ter inalado o ar
profundamente, antes de perguntar: — O que está fazendo aqui?
Engoli em seco e pigarreei para limpar a garganta,
constrangido.
— Olá, boa tarde. — Eu os saudei com um breve aceno de
cabeça.
— É hora do banho, crianças — anunciou uma jovem que
pelo visto era a babá dos filhos da coordenadora. Então, ela se
aproximou de Letícia, ainda segurando outro menino pela mão, e
pegou o bebê gentilmente no colo. — Vamos andando! — E dizendo
isso, ela os levou para o pavimento superior.
— Vou deixá-los a sós também. — A LCC se levantou do
sofá e, voltando a atenção para mim, completou: — Foi um prazer
conhecê-lo, Sr. Foster. Com licença...
Balancei a cabeça e pisquei os olhos para afastar as lágrimas
que borravam a minha visão.
— Eu queria ter escutado de seus lábios que está esperando
um filho meu.
— Não faria a menor diferença, Mike — disse ela, em tom
amargo, e encolheu os ombros, impotente. — Eu escutei sua
conversa com Kylie na cozinha. O assunto era minha provável
gravidez. Você refutou aquela possibilidade ao dizer que a sua única
filha morreu, lembra-se?
A minha boca se abriu e fechou várias vezes, mas nenhum
som saiu dela, dando lugar a uma espécie de bolo na garganta, que
insistia em me sufocar, dificultando a passagem de ar para os
pulmões.
Letícia levou, instintivamente, a mão à barriga de forma
protetora.
— A vida que está se formando em meu ventre não
significaria nada para você, não é mesmo? — indagou, uma
expressão triste cobriu as feições dela.
Constatar que nosso relacionamento estava por um fio me
abalou mais do que imaginei, a sensação era equivalente à de um
punhal, rasgando meu coração ao meio.

— Leti... — Tentei dar os primeiros passos na direção dela,


mas parei no instante em que ela ergueu a mão direita, para impedir
qualquer tentativa de aproximação. Seus olhos injetados e
vermelhos se arregalaram, o peito subia e descia ao ritmo da
respiração ofegante, o belo rosto àquela altura já estava banhado
em lágrimas.
Ela desviou o olhar e enxugou as lágrimas, com um gesto
brusco.
— Estou mesmo decidida a voltar para o Brasil amanhã. —
Aquela declaração não me convenceu nem um pouco. Havia uma
nota de incerteza na voz dela.
— Você não pode sair do país, e dar as costas para minha
família. — A minha voz soou estranhamente dura, firme e
categórica. A tensão no ar era palpável. — A Zoe continua
inconsolável, como se já não bastasse a ausência do pai, ainda tem
que lidar com o afastamento de alguém que ela considera como
uma irmã mais velha... Você acha isso justo? Quer dizer que nosso
namoro, o seu primeiro, diga-se de passagem, também não
significou nada para você?
— Meu maior sonho, desde pequena, sempre foi ter minha
própria família, minha própria casa, poder amar os meus filhos como
meus pais me amaram. — E dizendo isso, Letícia se aproximou da
mesa de centro, tirou o anel de compromisso, feito de ouro branco
maciço e diamantes, com nossas iniciais gravadas na parte de trás
do aro e que, juntos formavam um pequeno coração, e o colocou
sobre o móvel. — Não tem sentido algum me relacionar com um
homem que não deseja nada disso. Deu para entender?
Os meus olhos ardiam com as lágrimas reprimidas, mas eu
as sufoquei, entreabrindo os lábios e deixando escapar o eco de um
suspiro, inconformado e perfeitamente audível.
Ergui os olhos para o teto, tomado por uma onda de letargia
que paralisava o corpo, incapaz de lidar com aquela dor excruciante,
por ter ferido a pessoa que eu mais amo na vida.
— Eu posso não ser merecedor de ter uma mulher como
você ao meu lado, mas não existe nenhuma outra, com quem eu
queira passar o resto dos meus dias, sejam eles bons ou ruins. —
Como se as comportas de uma barragem tivessem sido abertas, eu
dei livre curso às lágrimas, sentindo um misto de impotência e
angústia invadindo minha alma. — Não suportaria perder você, Leti.
Volte comigo para Seattle e se case comigo — completei, em tom
de súplica.
— Propor casamento como solução para uma gravidez
inesperada só funciona nos livros, Mike. E nem assim sou
suficientemente convencida. Não acho justo usar um bebê para unir
o casal, quando existem tantas coisas em jogo.
— Parece ser o certo a se fazer, você tem toda razão, mas o
fato de estar grávida não foi a principal motivação para eu estar aqui
hoje, Leti. Por favor, acredite em mim! — Abri os braços em sinal de
rendição, nutrindo uma sensação desconfortável no íntimo, mas eu
não me daria por vencido, assim tão facilmente. — Me conceda a
chance de te fazer feliz, e só então eu serei o homem mais
afortunado deste mundo.
Letícia balançou a cabeça em sinal de negativa, o rosto
vermelho ainda contorcido de tristeza, enquanto as lágrimas
escorriam sem parar de seus olhos verdes.
— Acho melhor você ir embora, Mike. — Ela me deu as
costas e avançou em direção à porta, decidida a colocar um ponto
final na conversa. — Faça as pazes consigo mesmo, porque eu
ainda vejo uma sombra de culpa em seus olhos. — Fez um gesto
indicando que eu deveria ir embora. — Eu nunca cobrei
reciprocidade porque eu aprendi que amar requer desprendimento,
desapego, renúncia... Sinta-se livre para seguir seu caminho, Mike.
Se priorize, sempre. Mande lembranças à Kylie, Zoe, Max e seus
pais.
Eu me inclinei para a frente e peguei o anel sobre a mesa, o
enfiando dentro do bolso, antes de praticamente me arrastar em
direção à porta, mas respirei bem fundo, sentindo meu coração
disparar dentro do peito, ante à manifestação do sentimento feroz
que me atormentava.
— Só Deus sabe o quanto desejo tê-la como minha mulher.
— Dei tanta ênfase e profundidade à voz, que o meu corpo reagiu
de imediato, estremecendo sutilmente. — Eu não pretendo desistir
de nós dois, Leti. — Foi então que meu olhar recaiu sobre sua
barriga, a qual já era possível notar uma leve saliência. — De nós
três...
— Espera que eu acredite mesmo nisso? — indagou ela,
deixando transparecer certa incredulidade na voz. — Eu prefiro criar
meu filho sozinha, a ficar com um homem que não se sente
suficientemente capaz de vivenciar a paternidade.
Desviei o olhar, soltando um longo e profundo suspiro, antes
de ir embora.
Como poderia provar que o desejo de ser pai sempre esteve latente em
meu peito?

 
Capítulo 28
Michael Foster

Os homens sempre foram condicionados a reprimir as


emoções, permitindo apenas que o lado racional assumisse o
controle.
Julguei ter erguido um muro intransponível, desde o
falecimento de Susan, adotando um grande senso de dever pela
promessa feita durante a cerimônia de cremação. Na época eu pedi
para que o caixão dela fosse aberto, permitindo um último ato de
amor: fazer o voto de “casado” pelo resto da vida.
O Michael de antes, queixoso, deprimido, mal-humorado deu
lugar ao Michael espontâneo, alegre, otimista, graças a Letícia e seu
jeito jovial de ser. Sem o apoio dela, eu não teria dado o primeiro
passo na retomada do vínculo com meus pais, meus irmãos, mas
especialmente com a minha sobrinha, que até pouco tempo foi
abandonada pelo próprio pai.
Letícia contribuiu para me reaproximar da Zoe, estreitando
esses laços outrora rompidos, e gerando em mim um senso de
corresponsabilidade pela criação de minha sobrinha.
Após dirigir por alguns quarteirões, eu decidi voltar para a
casa da coordenadora local das au pairs, estacionando meu veículo
no lado oposto da rua.
Passaria a noite toda ali, se preciso fosse. Ela certamente
seguiria para o aeroporto já nas primeiras horas da manhã.
Permanecer no local era a forma mais viável de evitar um
desencontro, que culminaria no embarque dela para o Brasil.
De repente, eu fui surpreendido pelo toque de chamada
recebida, através do sistema de alto-falantes do veículo. Conferi
rapidamente o contato e não fiquei nem um pouco surpreso ao
constatar que era minha irmã, Kylie.
— Mike, ainda bem que você atendeu! Estou na casa dos
nossos pais, e nós estamos ansiosos para saber se já conseguiu
convencer Letícia a ficar no país.
— Eu infelizmente não tenho boas notícias. Ela se mostrou
irredutível, mas continuarei persistindo até o último minuto. Deixei
meu carro estacionado do outro lado da rua, e vou permanecer aqui
o tempo que for preciso.
Escutei uma voz aguda de menina do outro lado da linha, e
logo constatei que era a Zoe, insistindo para a mãe passar o celular,
assim poderia falar comigo também.
— Olá, tio Mike! — Ela me cumprimentou, mal disfarçando a
empolgação. — Quando eu posso ver a Titi de novo? É verdade que
ela está esperando um bebezinho?
— É verdade sim, princesa — confirmei, entre risos e
lágrimas. — Será sua prima e... — Parei de falar por alguns
instantes, ao me dar conta de que aquela informação parecia ter
sido soprada em meu ouvido anteriormente. — Ou talvez seja um
menino, quem sabe?
— Você vai casar com ela, não vai? — Zoe mal fez a
pergunta e já foi logo completando: — Tio Mike, diga que sim, por
favor. Diga, diga!
— Agora só depende dela, mas você pode cruzar os dedos, e
torcer bastante — respondi, enquanto olhava atentamente a casa da
LCC pelo para-brisa do veículo. De repente, uma silhueta feminina
surgiu na janela do pavimento superior. Letícia havia afastado as
cortinas e passou a me observar pela janela. — Preciso desligar
agora, mas prometo fazer até o impossível para Titi voltar comigo
amanhã, ok? Um beijo, princesa!
Eu me debrucei sobre o volante, fixando meus olhos nela, de
tal forma que a deixou na defensiva, pois Letícia cerrou as cortinas e
voltou logo para dentro do quarto.
Senti uma sensação asfixiante, a minha visão embaçou com
as lágrimas reprimidas. Não contive mais o choro, com a cabeça
apoiada nos braços, a respiração se tornando difícil a cada
segundo, o meu peito subia e descia rápido e pesadamente,
enquanto o corpo inteiro se agitava em espasmos violentos.
Não sei por que protelei tanto para seguir meu coração.
Por ela eu tenho perdido o sono, nutrindo um medo irracional
de perdê-la, bem como de ser privado do convívio com meu filho. Só
que o medo paralisa, aprisiona, estagna.
Minha vida perdeu o sentido no instante em que ela foi
embora, levando junto uma parte de mim, um novo ser em seu
ventre, aquele a quem tanto pedi aos céus, fervorosamente, nos
últimos anos.
Não demorou muito para sentir o sono chegar, já vencido
pelo cansaço.
Um barulho me fez despertar, de repente. Era como se
alguém tivesse batido de leve no vidro da janela pelo lado do
motorista. Eu pisquei algumas vezes antes de abrir os olhos,
tentando me acostumar com a primeira claridade da manhã,
atingindo em cheio o meu rosto pelo para-brisa.
Ainda me sentia desorientado e confuso, mas virei o rosto e
reconheci Letícia, que trazia nas mãos uma pequena sacola de
papel, mas assim que baixei o vidro ela logo me repreendeu: —
Ainda custo a acreditar que passou a noite inteira dentro do carro,
Mike. — Ela me repreendeu, fingindo seriedade. — Parece aqueles
participantes de reality show, quando disputam uma prova em que
não podem dormir, cochilar, beber água, comer e nem fazer xixi.
— Bom dia para você também, Leti. — O esboço fugaz de
um sorriso surgiu em meus lábios. — Não durmo direito há duas
noites, por sua causa. Você me tira o sono, desde que nos
conhecemos. Ficaria sem dormir quantas vezes fossem
necessárias.
— Você está tornando tudo ainda mais difícil para mim... —
murmurou ela, com a voz embargada e quase inaudível.
— Eu só quero simplificar as coisas, apenas isso.
Uma máscara de dor e tristeza nublou suas feições, mas ela
endireitou a postura, soltando um suspiro audível, e mordeu o lábio
inferior, possivelmente para conter o choro.
— Imagino que esteja com fome, por isso eu trouxe um
sanduíche, frutas, o café horrível que você gosta, além da garrafa
de água mineral. — Letícia estendeu a sacola, evitando fazer
contato visual comigo.
— Não leu minha última mensagem? — perguntei, curioso,
mas ela apenas balançou a cabeça, confirmando. — O seu café
especial supera qualquer outro, mas eu realmente estou sem
apetite.
Observei Letícia se inclinar para a frente, colocando a cabeça
para dentro da janela, antes de deixar a sacola no painel do carro,
mas ao fazer menção de se afastar, eu rapidamente a impedi,
segurando firme em seu braço.
Um grito de surpresa escapou dos lábios dela, no exato
instante em que os nossos rostos ficaram a poucos centímetros um
do outro. Não ajudava em nada Letícia fixar os olhos em minha
boca, e ela logo entreabriu os lábios, fazendo uma lufada de ar
quente me atingir, a respiração ofegante provocou uma fisgada
dolorosa nos testículos.
A cabeça de baixo já queria assumia o controle, mas respirei
fundo, avaliando os ricos de surpreendê-la com um beijo, o que
poderia fatalmente colocar tudo a perder.

— Eu só preciso de mais uma chance para demonstrar tudo


que eu sinto. E se mesmo depois de conversarmos você ainda
quiser ir embora, não se preocupe... Eu a levarei até o aeroporto.
Garanto que chegará a tempo para o embarque. Tudo bem?
A expressão no rosto dela se suavizou um pouco, o que sem
dúvida fez reacender uma fagulha de esperança no peito.
— Tudo bem... — Ela sussurrou, em concordância, então eu
afrouxei o aperto no braço dela, a deixando livre para sair. — Vou só
tomar um banho e me arrumar.
Minutos depois, enquanto colocava a bagagem dela no porta-
malas, eu experimentei uma sensação de déjà vu. Relembrei o dia
em que eu fui até o aeroporto Seattle-Tacoma para buscar Letícia,
quando passei incontáveis minutos segurando uma folha impressa,
como se fosse uma placa de identificação, contendo o nome que eu
mal conseguia pronunciar na época.
Sorri internamente ao me lembrar que ela se irritava por
chamá-la de Lexicia.
Parando para observá-la melhor, enquanto abria a porta pelo
lado do passageiro, Letícia estava tão esplêndida quanto no dia em
que a vi pela primeira vez. As olheiras foram disfarçadas pela
maquiagem leve, seu cabelo não tinha um fio fora do lugar, pois
estava preso em um rabo de cavalo no topo da cabeça. E, quanto à
roupa, ela optou por uma calça de alfaiataria de cintura alta e
caimento slim, mais ajustada ao quadril, além da blusa branca de
tecido fluído, e um blazer em tweed na cor cinza.
Só espero não fazer o caminho inverso: Levá-la ao terminal
de embarque.
— Para onde você está me levando? — perguntou ela,
enquanto afivelava o cinto de segurança.
— Nós voltaremos ao lugar onde tudo começou: o Kerry
Park.
Mantive a atenção no trânsito, com o cotovelo sobre o apoio
da janela.
Em determinado momento, eu estreitei o olhar na direção
dela, que parecia ter pegado no sono, pois sua cabeça pendia no
encosto e manteve os olhos fechados, a tranquilidade
transparecendo no belo rosto trouxe um alento ao coração
angustiado.
Justo eu que tinha uma verdadeira aversão à ideia de ser pai.
Agora, mais do que nunca, eu estou disposto a me casar
novamente.
Letícia me fez perceber que ciclos se encerram,
possibilitando iniciar outros, mas de um jeito diferente, de forma que
os erros do passado não se repetissem ao longo da vida.
Encostei suavemente o dorso da mão na testa dela, contendo
a respiração por uma fração de segundo, antes de sussurrar
baixinho, para não a assustar: — Leti, acorda, nós já chegamos. —
Ela abriu os olhos e piscou algumas vezes, ligeiramente
desorientada, então se endireitou no assento e desafivelou o cinto
de segurança, aparentando certo nervosismo.
— Nossa, Mike, me desculpe... — murmurou, visivelmente
constrangida. — Acabei pegando no sono.
— O tempo está favorável hoje, com poucas nuvens e tempo
fresco, mas caso sinta um enjoo, tontura, ou qualquer outro mal-
estar, não deixa de me avisar, por favor.
— Fico grata pela preocupação. — Um meio sorriso curvou a
boca dela por um instante.
— Não me disse ainda quanto tempo tem de gestação... —
Eu me virei na direção dela, mantendo o braço apoiado sobre a
costas do banco, para poder observá-la melhor.
— Kylie fez uma estimativa de acordo com a data da última
menstruação. Ela acredita que estou com 13 semanas e 4 dias, mas
eu só posso confirmar mesmo, quando fizer a ultrassom.
— Quer dizer então que ainda não passou por uma consulta
médica?
— O seguro não cobriria os custos com exames e pré-natal,
Mike. Farei isso assim que eu chegar na minha cidade. No Brasil, a
população tem acesso a atendimento médico gratuito, ao contrário
dos Estados Unidos...
— Susan foi acompanhada pelos melhores especialistas na
área de obstetrícia, e mesmo assim, ela veio à óbito após a
cesariana, ironicamente, no país mais rico do mundo. — Só então
eu percebi que falei em voz alta. Um músculo se contraiu no maxilar,
irritado comigo mesmo por ter mencionado o nome da minha
falecida esposa.
Exalei um longo suspiro e abri rapidamente a porta, saindo do
carro. Constatei que o parque não estava tão cheio àquela hora da
manhã, enquanto atravessava o pequeno gramado, em direção ao
famoso mirante, com sua escultura de aço bem no meio da praça.
Talvez Letícia imagine que eu ainda estou preso aos traumas
do passado.
De certa forma, eu não estava preparado para lidar com o
momento do parto.
Eu morreria se algo acontecesse a ela e a nossa filha.
Notei a aproximação dela pelo canto do olho, mas continuei
andando com as mãos enfiadas nos bolsos da calça. Parei diante da
mureta de tijolos, focando o olhar à minha direita, para observar as
águas da Baía de Elliott e o Porto de Seattle ao fundo.
— Tenho fé de que minha gravidez vai transcorrer
normalmente até o nascimento dela — disse Letícia, assim que se
posicionou ao meu lado. — Vai dar tudo certo, acredite.
— Também acha que será uma menina? — perguntei,
curioso, o olhar ainda perdido em algum ponto da cadeia de
montanhas Olímpicas.
— Ela apareceu no meu sonho, para não restar mais
nenhuma dúvida.
— Eu quero tanto poder escutar o coraçãozinho dela
batendo... — murmurei, estreitando os olhos na direção dela, que
abaixou a cabeça, parecendo triste.
À medida que os minutos passavam, a ansiedade já me
corroía por dentro.

Não tinha mais tempo a perder, então eu a puxei pelo braço,


como que por impulso, de modo que ela ficasse de frente para mim,
em seguida levantei seu queixo fino com o indicador,
esquadrinhando suas feições, e não lhe dando outra opção além de
me encarar diretamente nos olhos. As pupilas brilhavam com
lágrimas não derramadas, o que provocou um tremor involuntário
por todo o meu corpo.
— Você ainda me ama? — perguntei, com a voz rouca e tão
baixa, que era quase um sussurro contra o rosto dela, que se
contraiu por estar prestes a chorar.
Letícia fungou, respirando fundo, enquanto confirmava com
um gesto de cabeça.
— Eu também te amo tanto! — A declaração finalmente saiu
dos meus lábios, em um murmúrio rouco e desesperado, e capturei
o rosto dela entre as mãos, encostando sua testa na minha, olhando
bem fundo de seus olhos. — O medo tem me consumido muito
nesses últimos dias, mas eu prometo ser forte o bastante por vocês
duas. Só não vá embora, por favor.
— Não sei se eu devo... — Ela começou a dizer, em tom de
incerteza, mas eu não me daria por vencido.
Eu me afastei um pouco para enfiar a mão no bolso da calça,
tateando dentro dele até encontrar o anel de compromisso, que logo
seria substituído pelo de noivado.
Isto é, se ela ainda me quisesse de volta.
— Quero que ele volte a ocupar o espaço entre seus dedos.
— Eu declarei, enquanto tomava a mão dela e coloquei o anel na
palma, trêmula e um pouco suada, de nervosismo. — Porque ele
pertence a única mulher que deu um novo sentido à minha
existência. — Fiz uma pausa, olhando bem no fundo dos olhos dela,
respirei bem fundo e disse em seguida: — Seja minha esposa, Leti.
Case-se comigo. Eu já coloquei a mansão à venda, assim a gente
pode escolher um novo lar, não importa onde. O importante é nós
dois estarmos juntos pelo resto de nossas vidas.
— Michael... — A voz saiu fraca, era quase um sussurro débil
em meio às lágrimas. Um lampejo de dúvida surgiu nos olhos dela,
o que me fez sentir uma súbita pontada de dor e um aperto
asfixiante no peito.
— A sua bagagem já está no porta-malas do carro — falei,
enquanto segurava sua mão fechada em punho, que ainda abrigava
o anel. — Você pode seguir até o aeroporto com ela, ou pode levá-la
para minha cobertura. Sinta-se livre para decidir, mas espero que
faça uma escolha, que verdadeiramente ressoa em seu coração.
Letícia pareceu refletir sobre suas opções, ao manter a
cabeça baixa, olhando para nossas mãos unidas. Quando ela
finalmente me encarou, seus lábios delinearam um sorriso cúmplice,
antes de se desmanchar em lágrimas.
— Sim, sim mil vezes! — disse ela, chorando e rindo, ao
mesmo tempo. — Eu aceito ser sua esposa, Michael! — Ofegou,
emocionada, se atirando em meus braços. Senti seu corpo relaxar e
a apertei mais de encontro a mim, de tão necessitado que eu estava
por um mísero abraço.
— Não sabe o quanto desejei poder sentir de novo o calor
que emana de sua pele, seu cheiro delicioso que sempre aguça os
meus sentidos, mas acima de tudo... — Eu me afastei apenas o
suficiente para olhar seu belo rosto, antes de prosseguir: — O doce
sabor dos seus lábios.
Passei a roçar minha boca na dela, que se entreabriu de
forma involuntária demonstrando estar receptiva para ser beijada. E
foi então que eu a beijei, terna e apaixonadamente.
 

Observei atentamente o médico espalhar uma fina camada


do produto no aparelho de ultrassom, antes de deslizar sobre a
barriga de Letícia, movendo-o para cima, para baixo e para os
lados, tornando possível ver o sexo do bebê. Ele manteve a atenção
no monitor do equipamento, e por alguns instantes o único som que
prevaleceu na sala foram as batidas aceleradas do meu coração.
Fechei os olhos de forma momentânea e dei um longo
suspiro, na tentativa de afastar a sensação incômoda que vem me
atormentando.
Será que eu serei um bom pai?
— Se o Sr. Foster aparenta estar suando frio agora, imagina
como vai reagir no momento do parto? — comentou o médico, de
repente, em tom bem-humorado.
— Ficou tão evidente assim? — perguntei, com as
sobrancelhas arqueadas. Os dois se entreolharam e riram,
claramente se divertindo às minhas custas.
— Vamos escutar agora as batidas do coração.
Um ruído intermitente reverberou pela sala, que parecia vir do
próprio aparelho. Respirei fundo sucessivas vezes na tentativa de
me acalmar, diante da expectativa de ouvir a primeira manifestação
do bebê dentro do útero da minha mulher.

Continuei segurando firme a mão dela, com os dedos


entrelaçados, mas a palma já suava de nervosismo. Não sei como
estava o coraçãozinho do feto, mas o meu passou a bater
descompassado dentro do peito.

Um silêncio pesado de antecipação se instalou, quebrado


apenas pelo som do equipamento, até que de repente, eu escutei
algo como um tum-tum-tum contínuo, saindo pelo sistema de alto-
falantes.

— Conseguiu ouvir, amor? — perguntei, rindo e chorando ao


mesmo tempo. Senti uma vontade irresistível de beijar o topo da
cabeça, em meio às lágrimas.

Era indescritível a emoção de poder ouvir o som ritmado do


coraçãozinho.

— 160 batimentos por minuto, a frequência cardíaca —


informou o médico, me tirando abruptamente dos meus devaneios.
— Só confirmando o tempo de gestação que é de 13 semanas e 4
dias. Passemos então para o momento mais aguardado pelos pais:
verificar o sexo do bebê — prosseguiu ele, enquanto dava zoom no
vídeo para criar contornos na tela, explicando logo em seguida: —
Se estiver em diagonal, significa que é um menino, quando é reto e
perpendicular à coluna do bebê, indica que é do sexo feminino. No
seu caso, tem 80% de chance de ser mesmo uma menina.

— Meu Deus, doutor! É mesmo uma menina — falei, fingindo


estar surpreso com a revelação, e depois eu me inclinei para falar
no ouvido dela: — Como se nós dois já não soubéssemos...

Letícia e eu nos entreolhamos em um momento de


cumplicidade mútua.

Eu constatei naqueles preciosos segundos, a dádiva de


poder formar uma família com a mulher que eu amo.
 
Epílogo 1
Letícia Mancini

Meses depois.
 

Eu já sabia o quanto seria difícil para Michael presenciar o


nascimento da nossa filha. Assim, eu evitei ao máximo tocar no
assunto à medida que a gestação evoluía, especialmente quando
recebi o diagnóstico da temida pré-eclâmpsia, uma complicação que
se não tratada a tempo poderia evoluir para o quadro mais grave,
trazendo risco de morte.
Minha médica prescreveu uma medicação via vaginal, para
evitar o trabalho de parto prematuro, ainda mais por carregar uma
bebê com percentil 6, — abaixo de 10 era considerado pequeno
para a idade gestacional, — até então, além de ter passado a
monitorar a minha pressão arterial, redobrando os cuidados desde o
início do terceiro trimestre.
Como o único tratamento definitivo para a pré-eclâmpsia era
o parto, a obstetra, que inclusive deu aulas para Kylie durante o
último ano do curso de Medicina, sugeriu marcar a cesárea com 37
semanas, mas eu preferi esperar um pouco mais, resistindo ao
máximo e trabalhando o lado emocional, para evitar o nascimento
prematuro da bebê.
Três dias atrás eu comecei a sentir muitas dores nas costas,
além de cólicas e algumas contrações espaçadas, o que dificultava
o descanso durante a noite. Michael também não conseguiu dormir
direito, e utilizou a vigília para cumprir algumas demandas urgentes,
antes da viagem dele à capital, Washington DC. A Casa Branca
convocou os principais CEOs do setor de tecnologia para uma
reunião, agendada para o dia seguinte, com o objetivo de
regulamentar a IA, mais especificamente em segurança cibernética.
Àquela altura, eu já estava com 39 semanas, e precisei me
levantar para ir ao banheiro mais uma vez naquela madrugada de
sexta-feira. Uma vez no local, eu levantei a tampa do vaso sanitário
e me sentei, liberando toda a urina acumulada.
Eu me mantive sentada durante um tempo, com o corpo
inclinado para a frente, os cotovelos apoiados nos joelhos e a
cabeça entre as mãos, enquanto me rendia ao choro silencioso. A
dor se assemelhava à cólica menstrual, mas com uma intensidade
cinco vezes maior.
Kylie já havia me orientado a seguir para a maternidade, caso
as contrações se mantivessem fortes e regulares, mas eu não dei
muita importância ao fato, pois ainda faltavam alguns dias para a
data agendada do procedimento cirúrgico.
Decidi me secar logo e poder voltar para a cama, mas assim
que passei o papel higiênico, notei uma mancha de sangue, o que
me causou logo uma leve tontura.
Seria um indício de que o nascimento estava próximo ou era
algo mais sério?
Fiquei de pé e tirei a roupa, antes de entrar no box para
tomar um banho rápido. Coloquei um absorvente na calcinha, com
as mãos trêmulas, temendo que o sangramento persistisse, a ponto
de não ter outra alternativa além de ir ao hospital.
Como eu não queria incomodar minha médica, que
possivelmente já deveria estar dormindo, peguei o celular e fiz uma
rápida pesquisa no Google sobre presença de sangue na reta final
da gravidez. Os artigos orientavam a gestante a buscar atendimento
médico, embora o mais provável fosse a eliminação do tampão
mucoso, que ocorria semanas ou dias antes do início do trabalho de
parto.
Quando eu voltei para o quarto, observei Michael sentado na
cama, com a coluna ereta e encostado à cabeceira, exibindo um ar
compenetrado graças aos seus óculos de grau, que definitivamente
lhe conferiam um charme adicional.
— Você passou mais tempo no banheiro desta vez... —
comentou ele, sem desviar a atenção da tela. — Como está se
sentindo, amor? Notou algo estranho?
— Algumas poucas contrações, nada demais. — Menti,
deliberadamente. Um pequeno gemido de dor acabou escapando
dos lábios, assim que a bebê começou a se mexer muito dentro da
barriga. — Aproveitei para tomar um banho bem relaxante.
Michael deixou o laptop de lado antes de se levantar, e andou
em minha direção. Engoli em seco ante a aproximação dele, eu mal
conseguia respirar direito, o meu coração já estava prestes a sair
pela boca, batendo alto contra os tímpanos. Ele segurou meu rosto
entre as mãos e olhou bem no fundo dos olhos, buscando algum
sinal de que faltei com a verdade.
— Você me contaria se pressentisse que a nossa filha já está
para nascer?
— Mas é claro que sim! — respondi, sem titubear, mas um
leve estremecimento me percorreu da cabeça aos pés, em reação
contrária à minha vontade.
— Leti... você está mentindo para mim. — Era uma
afirmação e não uma pergunta.
De que adianta contar a verdade, sendo que em nada
mudaria a decisão dele?
Michael cogitou a possibilidade de ficar em casa durante a
cesariana ou, no máximo, na sala de espera, mesmo ciente de que
eu desejava tê-lo ao meu lado a todo instante, independentemente
de qualquer coisa.
Lágrimas ameaçaram preencher meus olhos, mas pisquei
com força o suficiente para dissipá-las.
Eu jamais pediria a ele para cancelar a viagem.
— Você vai se encontrar com o Presidente e demais
empresários daqui a algumas horas...
— Que se dane todos eles! — Ele praguejou, em um súbito
rompante de irritação. — Nós estamos falando da nossa filha! —
Aquela declaração inesperada me assustou, e de tal maneira que o
melhor a ser feito era manter segredo sobre meu estado.
Senti as mãos grossas envolvendo delicadamente os meus
ombros, e me rendi ao aconchego que só o abraço dele era capaz
de me proporcionar. Fechei os olhos, mantendo o rosto contra o
peito largo, as lágrimas umedeciam seu suéter macio.
— Meu Deus, amor... me desculpe — murmurou, com a voz
abafada de encontro ao meu ombro. — Ele se afastou um pouco
para olhar no fundo dos meus olhos, e notei que seu rosto assumiu
uma expressão sombria, de repente. — Não sei o que deu em mim
para eu ter falado com você dessa maneira...
Os familiares, o terapeuta, a obstetra e eu chegamos à
conclusão de que Michael não estava suficientemente preparado
para voltar ao mesmo local do evento traumático. Ele até poderia
nos surpreender com sua presença, mas as consequências seriam
devastadoras, a depender dos desdobramentos no processo de dar
à luz.
Forcei um sorriso encorajador nos lábios, e peguei na mão
dele, levando-a de encontro à barriga proeminente.
— Já conversei com minha médica e está tudo sob controle.
— Fiquei na ponta dos pés e lhe dei um selinho rápido nos lábios. —
Vamos voltar para a cama, amor.
Quando ele se deitou ao meu lado, deslizei o corpo para mais
perto do dele, e puxei o lençol para nos cobrir. Fechei meus olhos,
assim que seus braços fortes envolveram meu ombro e tentei
relaxar com a cabeça apoiada no peito largo, enquanto entrelaçava
nossas pernas umas nas outras.
De repente, uma onda de tristeza me invadiu, quando eu me
dei conta de que nossa cama estaria vazia, assim que eu acordasse
pela manhã.
 

As dores voltaram no dia seguinte, com muito mais


intensidade e de forma prolongada, acompanhadas pela eliminação
do líquido por ruptura da bolsa amniótica, aumentando a suspeita de
trabalho de parto. Eu entrei logo em contato com a obstetra, que se
comprometeu a me examinar tão logo eu desse entrada na
maternidade.
Kylie aferiu minha pressão arterial, que estava um pouco
elevada, e a partir daí só deu tempo de arrumar a minha bolsa,
porque a bebê pretendia mesmo vir ao mundo, justo no dia em que
Michael partiu rumo à Washington D.C. num jato executivo.
No caminho até o hospital, eu tentei ao máximo disfarçar,
mas fui invadida por uma profunda tristeza, e já nem conseguia mais
conter as lágrimas, que escorriam abundantemente pelo rosto.
— Você deve estar sentindo uma dor muito maior agora, não
é mesmo? — Kylie comentou, ainda segurando minha mão entre a
dela.
— Até que a dor está mais suportável do que antes.
— Eu me refiro a outra dor, Leti. — Ela estreitou os olhos
cheios de preocupação, mas eu virei o rosto de modo brusco,
incapaz de sustentar o olhar dela. — Aquela que atravessa a sua
alma neste exato momento.
— Michael não viria conosco de qualquer forma... —
ponderei, com um encolher de ombros. — Acho que foi melhor
assim, sabe?
— Mas eu não me conformo! — disse ela, exasperada. — Até
tentei ligar inúmeras vezes, mas só deu caixa postal... Agora é
torcer para ele verificar as mensagens, tão logo seja possível.
— Ainda que seu irmão visualize a mensagem, ele jamais
chegaria a tempo e nem seria louco de cancelar a presença dele na
reunião com o presidente.
— Mike moveria céu e terra para estar aqui, não duvide
disso.
Inclinei levemente a cabeça para fitá-la com certa descrença.
— Só de poder contar com sua companhia já me faz um bem
enorme, fofa. — Eu dei muita sorte de ser o dia de folga dela. Deus
mais uma vez não me deixou desamparada. Se bem que minha
sogra também estava a caminho, mas em outro carro.
— Meu irmão buscou culpados pela morte de Susan e da
bebê deles, e como não houve imperícia médica, ele acabou
direcionando a culpa para si mesmo. — A voz dela ficou mais grave,
ao frisar as últimas palavras. — Para nós foi uma terrível fatalidade.
Ela explicou que St. Francis foi reconhecida como uma das
melhores maternidades do país, e inclusive era referência no
diagnóstico e conduta nos casos de hemorragia pós-parto (HPP) e
outras complicações como pré-eclâmpsia.
Tentei vibrar positivamente, nutrindo certo conforto em saber
que seria bem assistida por uma equipe de obstetras,
neonatologistas e intensivistas com vasta experiência em parto de
alto risco.
As horas seguintes praticamente se arrastaram, pois assim
que me examinaram na sala de triagem, constataram 2 cm de
dilatação, a minha pressão arterial subiu para 14/9 e havia proteína
na urina. E mesmo após tomar o medicamento, os valores
permaneciam iguais. A minha cabeça não parava de doer, a ponto
de vomitar até o que não tinha ingerido, parecia que alguém partia
meu crânio ao meio.
Trocaram minha roupa por um traje hospitalar, suspenso até
um pouco abaixo dos seios, permitindo que a minha barriga ficasse
à mostra, e prenderam ao redor dela duas faixas no tom da pele
com sensores de ultrassom, permitindo o monitoramento dos
batimentos cardíacos da bebê.
A médica apareceu para nos dar um parecer sobre a
avaliação e o monitoramento fetal, e tudo transcorria normalmente,
apesar de a ansiedade ter afetado o progresso da dilatação do colo
do útero, levando a uma incoordenação uterina. Ela considerou
aguardar em torno de 6 horas ou mais até poder fazer o parto,
embora uma equipe multidisciplinar já estivesse de prontidão para
realizar o procedimento.
— Imagino o nível de ansiedade, mas precisam ser pacientes
e terem plena confiança em nosso trabalho — disse a obstetra, nos
dirigindo um sorriso reconfortante.
Eu realmente me sentia bastante apreensiva pela longa
espera, mas tentei ao máximo fazer alguns exercícios respiratórios
com a ajuda de Kylie, o que de certa forma possibilitou ter algum
controle sobre as oscilações emocionais e psicológicas.
— Fico muito grata pela paciência, doutora. Essa espera
parece durar uma eternidade e meus nervos já estão à flor da pele.
— É natural que se sinta assim, não se preocupe. — Ela me
ofereceu um sorriso empático, então voltou sua atenção para Kylie.
— Você vai ser a acompanhante dela, certo?
— Sim, eu... — Ela começou a falar, mas se deteve de súbito,
e sacou o celular do bolso. Ela deve ter recebido uma notificação de
mensagem, porque olhou para a tela por alguns instantes, com a
testa franzida de preocupação. — Posso falar com a senhora a sós?
— perguntou ela, repentinamente, me deixando com a impressão de
que havia algo errado, ou não teria optado em esconder alguma
informação de mim.
Cerca de duas horas e meia depois, a médica retornou e
procedeu a mais um exame de toque, informando que a dilatação do
colo do útero evoluiu significativamente, e, por isso, eu já poderia
seguir para o centro cirúrgico.
Tudo foi assustadoramente rápido a partir dali.
Eu fui transferida da maca para a mesa cirúrgica, na posição
adequada para receber a anestesia, depois a equipe de
enfermagem removeu o traje, colocando um lençol sobre os seios,
mantendo todo o abdômen descoberto, além de terem conectado
eletrodos na pele e um sensor em meu dedo, responsável por medir
a oxigenação do sangue. Em suma, os profissionais de saúde
envolvidos se esforçaram ao máximo para tornar o ambiente mais
acolhedor e confortável possível.
Na verdade, eu ficaria mais tranquila se Kylie já estivesse
aqui.
Fechei os olhos com força, mas inesperadamente eu fui
atingida por uma súbita vontade de chorar, mas fiz uma prece em
silêncio, de forma fervorosa, pedindo à Nossa Senhora do Bom
Parto para a cesárea transcorrer bem.
Mal podia esperar pelo primeiro contato pele a pele com
Rebecca.
Já me perguntaram porque Michael e eu escolhemos o nome
Rebecca para nossa pequena. Nós dois optamos por um nome cuja
grafia fosse a mesma, tanto em inglês quanto em português, além
de evocar à ideia de união, devoção e fidelidade.
Eu estava tão distraída, que levei um baita susto, quando o
vulto de um homem surgiu inesperadamente, se posicionando bem
atrás de mim e se abaixou, quase nivelando seu rosto ao meu.
Apesar de usar uma roupa especial, touca descartável, além da
máscara de proteção, era nítido que se tratava de alguém que eu
conhecia.
Por um breve momento, eu imaginei que tudo não passava
de um delírio, fruto de toda tensão acumulada nas últimas horas. Eu
já nem sabia mais se a pessoa diante de mim era mesmo real ou
apenas uma ilusão criada pela minha mente.
Balancei a cabeça e pisquei os olhos para afastar as lágrimas
que borravam a minha visão.
Aqueles olhos castanhos expressivos e familiares
continuavam fixos em mim.
Não, definitivamente, isso seria impossível.

 
Epílogo 2
Michael Foster

Letícia piscou os olhos lacrimejantes, como se custasse a


acreditar que eu pudesse mesmo estar ali presente, no momento
mais significativo de nossas vidas.
— Sou eu mesmo, amor — Encostei minha testa na dela, o
que provocou uma nova torrente de lágrimas. — Shh... relaxa, eu
estou aqui — completei, acariciando suavemente a lateral de seu
rosto.
— Admito que eu menti para você, mas eu só fiz isso para
poupá-lo, Mike.
— Mas eu não queria ser poupado — retruquei, com tanta
firmeza a ponto de provocar um tremor involuntário por todo meu
corpo. Senti uma emoção indescritível preenchendo o peito. — Eu
praticamente cruzei o país para estar aqui agora. Eu não perderia o
nascimento da nossa filha por nada no mundo.
Voltar a pisar em uma maternidade foi a melhor decisão que
tomei na vida.
— Estou muito orgulhosa de você, amor... — sussurrou ela,
com a voz embargada. — Obrigada. Por tudo.
Nós dois nos entreolhamos, com os rostos muito próximos
um do outro, mas em sentidos diferentes, totalmente alheios às
vozes ao redor, e ao ruido emitido pelos aparelhos na sala.
De repente, Letícia soltou um grunhido e franziu a testa,
fazendo uma careta possivelmente de dor ou desconforto, o que me
deixou um tanto apreensivo. Tentei observar o que se passava do
outro lado do lençol e presenciei o momento que a obstetra fazia
algum tipo de pressão no fundo da barriga.
Ver a perda abundante de sangue, algo tão comum em
cesáreas, especialmente no momento da retirada da bebê, podendo
levar a um quadro hemorrágico grave, só me fez reavivar
lembranças terríveis de quatro anos antes.
Eu comecei a suar frio, minha visão ficou turva, a sala
subitamente passou a girar, e precisei respirar bem fundo, lutando
com todas as minhas forças para não entrar em pânico.
— Ei, amor, calma está tudo bem. — Letícia falou, agarrando
com força a minha mão, transmitindo confiança e ânimo.
— Sou eu quem deveria te dizer isso. — Minha voz saiu
abafada de encontro à lateral do rosto dela, quase em prantos. —
Por um momento, eu pensei que perderia vocês duas.
O anestesista se aproximou, questionando se eu ainda
estava em condições de acompanhar o parto.
— Senti uma leve tontura, mas já passou. — Fiz questão de
frisar bem as últimas palavras. — Estou ótimo, doutor, não se
preocupe.
— Eu achei que você desmaiaria diante de mim, amor.
— Papai e mamãe já podem ficar sossegados — disse a
obstetra, em tom bem-humorado. — Vejam só quem chegou!
Rebecca passou a chorar e a se debater um pouco, quando a
médica a levantou nos braços para que Letícia e eu pudéssemos
vê-la melhor, seu corpinho ainda envolvo por uma substância
esbranquiçada, além de ter resquícios de sangue e com parte do
cordão umbilical à mostra.
Em pensar que eu que cheguei a desistir do sonho de ser pai.
Quis o destino que o meu caminho se cruzasse com o da
jovem intercambista brasileira, que fez toda aquela espera valer a
pena.
Letícia era o meu raio de sol, a calmaria em dia de
tempestade, a fortaleza em meio ao caos interno. Ela me fez
retomar a alegria de viver, e diariamente tem feito eu me sentir o
homem mais feliz deste mundo.
Voltei a me debruçar, na mesa de cirurgia, levando os lábios
ao ouvido dela: — Precisa ver como a nossa filha é perfeita, amor!
Nós dois fomos contagiados pela emoção, rindo e chorando,
ao mesmo tempo.
 

Um ano depois...
 

Letícia e eu passamos a morar em Medina, cidade localizada


na margem leste do Lago Washington, e vizinha à Bellevue,
conhecida por ser o reduto de magnatas da tecnologia, que viviam
fora de Seattle.
Lancei um olhar ao redor do salão de festas, observando
cada uma das pessoas presentes na festa de aniversário da nossa
filha, Rebecca. Os meus pais tentavam conversar com os tios da
minha mulher, por meio de uma intérprete, que fazia a tradução
simultânea do português para o inglês, e vice versa.
A coordenadora local Harper Douglas também estava
presente, junto com um grupo de jovens au pairs da região, além
dos melhores amigos de Letícia. E por falar nela, eu consegui
avistá-la perto da mesa de doces, carregando nossa bebê no colo,
com minha sobrinha ao lado, agitando os braços, rindo e fazendo
careta.
Os minutos seguintes ao parto foram sublimes. Duas
enfermeiras pesaram, mediram e limparam o corpo frágil da
pequena Becky, ao som estridente e agudo do choro dela. No
entanto, o ponto alto foi, sem sombra de dúvida, o momento em que
eu cortei o cordão umbilical.
Fiquei eufórico, quando enfim me dei conta de que tudo
transcorreu bem no final. O meu coração antes sobrecarregado pela
incerteza e ansiedade se encheu de alívio, de completude e
realização plena.
Nós dois nos casamos em Forks, conhecida como a cidade
de Crepúsculo, e uma das mais chuvosas dos Estados Unidos, sob
a copa das árvores de Fern Acres, uma propriedade privada
destinada aos eventos mais intimistas e cercada pela densa floresta
exuberante e diversificada da região, como tocos antigos cobertos
de musgo, centenas de samambaias e bordos de videira cobertos
de musgo.
Já Letícia escolheu seus melhores amigos, Clara e Eduardo,
para serem seus padrinhos. E quanto a mim, eu escolhi meus
irmãos, obviamente.
Kylie ainda tinha dúvidas se deveria assumir um
relacionamento sério com o ex-chefe dela, e ensaiava a melhor
maneira de contar a verdade a Zoe sobre Dylan, que sumiu após
trai-la com a melhor amiga, e a deixou quase sem nada, quando
eles viviam na Califórnia.
Maxwell se preparava para ser o sucessor de Lionel no cargo
de CEO, entre noitadas sem compromisso. Ele ainda era jovem e
queria curtir a vida ao máximo. Eu o flagrei conversando com a
melhor amiga de Letícia em um canto, e os dois pelo visto pareciam
bem à vontade.
De repente, eu senti alguém se esbarrando em mim, e ao
virar o rosto constatei que era a Zoe, puxando a perna da calça para
me chamar a atenção.
— Vamos tirar uma foto, tio Mike! — pediu ela, alegremente.
— Mas é claro, princesa. Nem precisa pedir. — Eu a ergui no
colo e tirei uma selfie, antes de carregá-la pelo salão de festas.
Zoe me enxergava como um pai, e eu a via como um divisor
de águas em minha vida.
De repente, senti um toque em meu ombro, e quando me
virei, surpreendi Logan me encarando, com um sorriso de canto de
boca. Coloquei minha sobrinha de volta no chão, e ela saiu correndo
em direção à nova babá que também chegou ao país recentemente
por meio do programa de intercâmbio.
— Desculpe o atraso, amigo. Meu voo atrasou para variar. Eu
olho para você e sinto um orgulho do caralho do homem que se
tornou. Só lamento ter perdido o meu melhor lutador, o insuperável
Magic Mike.
— Há outras maneiras de eu me sentir vivo — falei, socando
de leve o peito dele, com o punho fechado. — Fico feliz em contar
com sua presença, Logan.
Nós conversamos um pouco, mas depois eu pedi licença,
ansiando estar perto da minha esposa de novo. Eu me aproximei de
Letícia por trás de forma sorrateira, aproveitando o momento de
distração dela, enquanto embalava nossa filha nos braços.
— Acho que já podemos fazer mais filhos — sugeri,
encostando os lábios ao ouvido dela, que estremeceu de modo
perceptível, graças ao timbre rouco da minha voz.
— Como dois coelhos? — perguntou ela, jogando a cabeça
para trás e rindo.
— Como você quiser... — Eu a abracei por trás e encostei o
queixo no ombro, firme e macio dela.
Minha esposa deixou escapar um gemido abafado, incapaz
de reprimir o desejo, e mesmo carregando nossa pequena, ela ficou
de frente para mim, selando nossos lábios em um longo e profundo
beijo.
Nós dois nos afastamos, quando soltaram um pigarro bem do
nosso lado. O fotógrafo de algum tabloide deve ter se infiltrado na
festa e acenou com sua potente câmera digital profissional.
— Me desculpem a interrupção... — Ele começou a falar,
parecendo hesitante. — O que acham de eternizar este momento
em família?
Um músculo se retesou no maxilar, mas eu emiti um suspiro
profundo, embora o longo sopro de ar não fosse capaz de me
estabilizar. Eu até fiz menção de avançar na direção dele, para tirá-
lo à força do salão de festas, mas Letícia me impediu.
— Eu não me casei com o imbatível Magic Mike, e sim, com
Michael Foster — sussurrou ela, enquanto deslizava seus dedos
suavemente pela lapela do meu casaco.
Eu me limitei a concordar com um gesto de cabeça, então
voltei a encarar o fotógrafo, colocando meu melhor sorriso no rosto.
— Nós adoraríamos! Será um prazer.
A única pessoa com quem poderia formar uma família
sempre teve muito jogo de cintura para lidar com os meus
rompantes e oscilações de humor.
Eu completei 43. Ela tinha quase 23.
Achei que só amaria uma vez na vida. Ela nunca tinha se
apaixonado antes.
Eu evitava qualquer contato com crianças. Já ela exercia o
ofício de babá.
Até então, eu nem queria ser pai. Ela sonhava em se casar e
ter filhos.
Letícia e eu somos quase opostos, mas o amor permitiu um
encaixe perfeito. O complemento que faltava, para juntos
concebermos Rebecca, a filha que eu sempre quis ter.
 
 
Agradecimentos

O meu agradecimento inicial vai primeiramente à Deus por


sempre me dar forças para resistir nos momentos mais desafiadores
ao longo da escrita de um livro. Aos meus pais pelo apoio e
paciência desde que eu vim ao mundo e minhas leitoras que
aguardaram ansiosas pelo lançamento do livro e expressam o apoio
por meio das redes.

Também quero agradecer à Eli @ladesigndecapas, pela arte


de capa do livro, bem como a Laizy Shayne @laycedesign pela
diagramação incrível que fez, mais uma vez. Quero estender meu
agradecimento para a ilustradora Nanda @ calorethorn_arts,e e em
especial à Gabriele Moreira @gabmoreirart pela paciência e
dedicação na arte que ficou muito satisfatória. Agradeço também à
Vitória Maria @vic.banners e Marina @mbbanners pelos banners
lindíssimos e caprichados para divulgação do livro. Todas elas são
excelentes profissionais, sempre atenciosas e dedicadas a oferecer
o melhor resultado, que satisfaça às expectativas dos autores. Eu
recomendo muito o trabalho delas.

Agradeço também a cada leitora que deu um voto de


confiança em mim, se disponibilizando a ler os meus livros. Terei o
maior prazer em atender vocês por meio das minhas redes sociais.
Fiquem à vontade para entrar em contato sempre que desejar.

Antes de finalizar, eu quero fazer um pedido muito


importante: Avalie o livro antes de sair da tela, seja atribuindo
apenas a nota de sua preferência, mas preferencialmente
escrevendo um breve comentário, com as suas impressões da
leitura. A avaliação na Amazon é imprescindível para dar mais
visibilidade ao livro, e assim ampliar o alcance dele para mais
leitores. Eu fico muito grata desde já pela atenção e confiança. Até
breve!
 
Sobre a autora

M. R. Barbosa é o pseudônimo utilizado por Mariana Ribeiro,


que escreve desde a adolescência, quando criava histórias de
próprio punho em cadernos pequenos, e inspirada em romances de
banca. Não sabe ainda ao certo de onde vem a sua inspiração, mas
as ideias costumam surgir em sua mente quando ela menos espera
em um insight rápido e tem a absoluta convicção de que escrever é
a sua missão de alma.
Ela já possui dois livros de ficção histórica, lançados de forma
independente na Amazon, mas usando o nome Mariana Ribeiro.
Confinada com o Chefe marcou a sua estreia em Ficção
Contemporânea/Hot.
 
Outras obras

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indicando-o para futuros leitores. Obrigada!
 

[1] Hemorragia pós-parto.


[2] Host kid/Kido: Termo usado para designar a criança que a au pair vai cuidar

ao longo do intercâmbio.
[3] Au Pair é uma modalidade de intercâmbio na qual a pessoa viaja para

trabalhar, exercendo a função de babá dos filhos de uma família anfitriã, que
mora no país de destino, possibilitando a realização de um curso durante o
programa, que dura no máximo dois (2) anos.
[4] Host Mom, Hosta ou Fofa. A matriarca da família que recebe um(a)

intercambista em sua casa, durante o período do intercâmbio.


[5] Um prato popular no Reino Unidos, mas os estadunidenses também

consomem o peixe empanado acompanhado por batatas fritas e molho


tártaro, ao invés do purê de ervilha.
[6] Termo usado para designar uma família que descumpre o regulamento do

programa, submetendo a au pair à humilhações constantes, abusos ou


situações que colocam à integridade física dela em risco.
[7] Apesar da escolha caber para a família anfitriã, que visualiza o perfil das

candidatas, a participante do programa tem a opção de aceitar ou negar o


match que foi solicitado. Todo o processo envolve entrevistas e conversas por
videochamadas para que ambas as partes possam tomar uma decisão.
[8] Uma Host Family não necessariamente é composta por pai, mãe e filhos:

também pode representar duas pessoas que vivem juntas, seja por laços
afetivos ou consanguíneos.
[9] Quando ocorre conflitos interpessoais e problemas de convivência entre a
aupair e a família anfitriã, uma ou ambas as partes podem solicitar um
“rematch”. Caso seja a Au Pair que pediu o rematch no programa, ela tem
apenas duas semanas para encontrar outra família para morar; caso contrário
terá que voltar para o Brasil.
[10] No Brasil, Dr. House.
[11] Instituto de Tecnologia de Massachusetts. O MIT está localizado a pouco
mais de três quilômetros de distância de outra potência acadêmica, a Harvard
University, localizada na cidade de Cambridge, Massachusetts, próxima a
Boston.
[12] Tudo é minha culpa / Eu vou levar toda a culpa.
[13] Trata-se de uma coordenadora local do programa de au pair, e cuja
função é prestar a assistência necessária, além de acompanhar todo o ano de
intercâmbio, realizando encontros mensais com as au pairs e suas
respectivas famílias anfitriãs.
[14] Clássico bar de Boston, com fachada famosa e bastante frequentado por

turistas.
[15] Frog and Toad Are Friends é um livro infantil norte-americano, escrito e
ilustrado por Arnold Lobel.
[16] Edição brasileira publicada pela editora Companhia das Letrinhas, selo

infantil do Grupo Companhia das Letras.


[17] Nos EUA, o 4º ano é o último ano da faculdade de medicina, antes de
iniciar a residência.
[18] Boca virgem de língua.
[19] Codinome usado pelo protagonista no clube de Luta clandestina,
Ultraviolence.
[20] Trata-se de um popular mármore branco, contendo uma variedade de
veias cinzas por toda a peça.
[21] Hemorragia pós-parto.
[22] Extensão: Prorrogação do tempo de intercâmbio, após o 1º ano como au
pair.
[23] Significa pérola, em inglês.
[24] Pedro, o coelho é um popular personagem da literatura infantil mundial.
No contexto do livro, a protagonista Letícia fez referência ao desenho
animado, “Peter Rabbit e seus amigos”, transmitido pela TV Cultura.
[25] Frog and Toad Are Friends é um livro infantil norte-americano, escrito e
ilustrado por Arnold Lobel.

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