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“Há uns que nos falam e não ouvimos; há aqueles que nos tocam e
não sentimos; há aqueles que nos fere e nem cicatrizes deixam, mas... há
aqueles que simplesmente vivem e nos marcam por toda vida."
Hannah Arendt
PRÓLOGO
“Há casos que em que a sentença já está escrita antes do crime”
José Saramago
MIKAEL
A
noite promete ser infernal. Devido à situação, cogitei a possibilidade de
extravasar essa tensão no ar com algumas piadas infames, mas seria difícil de
falar algo e não parecer forçado, idiota, por isto desisti.
Angélica entrou na sala passando os últimos ajustes antes do
grande show. Deveria estar com minha atenção toda voltada para a megera,
que contrariando a expectativa, está desempenhando o papel de James Bond
com perfeição. Mas, é impossível. Apenas uma pessoa consegue fazer isto
agora, apesar do ar melancólico, ela está radiante.
Algumas mechas do seu cabelo, estão presas por grampos
cravejados de diamantes e o restante jogado por sobre o ombro direito,
fazendo com que um lado do seu rosto fique encoberto. De longe quase me
sinto um poeta admirando-a, pensando no que ela transmite com a sua
postura rígida, quase etérea.
Seria mistério, sedução, ou um casulo para esconder o seu medo?
Alguém ri engasgadamente, o que me parece ser forçado. Sinto um
bater leve sobre os meus ombros, mas não dou conta de quem seja, meus
olhos parecem não ter conexão com o resto do meu corpo, eles não se
desviam da figura a minha frente.
Um desejo latente me invade, quero me aproximar e emaranhar
meus dedos nos fios sedosos desfazendo seu penteado elegante, só para vê-
los desabarem livres por suas costas à mostra no detalhe provocante do
vestido de seda cor-de-rosa; este que realça ainda mais os traços do corpo
cheio de curvas sinuosas e perigosas.
Seguro um riso sarcástico que teima em rasgar o canto da boca.
A maquiagem realça a beleza da sua pele morena cor de jambo,
sem mencionar o detalhe da boca carnuda, o lábio inferior preso entre os
dentes… — suspiro de forma audível com uma conclusão clara: meus olhos
não desgrudam dela e o meu pau sobe, justo agora e, esta clássica descrição,
vai para a vala, quando a imagino curvada sobre a próxima mesa.
— Puta merda! — exclamo entre dentes.
— Atenção! — ouço o chamado no comunicador auricular.
Todos se voltam em direção à Angélica. Com o canto dos olhos,
observo Lia apertar os dedos da mão direita contra a palma e respirar fundo.
A loira se aproxima do semicírculo que fazemos, ela fala
demostrando como agir, faz piadas sobre suas roupas e tenta aliviar o clima,
para ajudar entro na onda e a provoco.
— Ok! Isso é sexy pra cacete!
— Eu sei ovinho, — ela pisca e ruboriza em simultâneo —, é uma
pena que me rejeitou em favor da sua Anjinha!
— Você é boa nisto… — comento ao perceber que o seu “rubor” é
forçado e ignoro a parte que se refere a Lia.
— Sou boa em muitas coisas… — ela gesticula com os lábios.
Giovane entra na nossa conversa para bloquear minha visão,
tentando chamar a atenção de Angélica, mas a megera o reprende e se afasta
ainda falando sobre os planos, enquanto Lia permanece alheia a tudo, com os
olhos focados ao longe.
Horas antes da festa se iniciar, fiz questão de entrar em contato
com Angélica, para ter a certeza de que tudo estava bem orquestrado, não que
haja desconfiança da minha parte quanto ao trabalho da sua equipe. Mas, só
depois de me garantir que as crianças incluindo o filho da Lia, estavam bem
seguras, me senti menos filho da puta por arrastá-la até aqui.
Ramon e Angel explanam os últimos detalhes e algo estranho
começa a me incomodar, não sei o que é, mas um calor, algo abafado me faz
respirar com dificuldade, tenho a sensação de que algo está preso em minha
garganta, é como se eu quisesse gritar e não pudesse.
Olho para o celular que vibra em minha mão, a mensagem que
chega é uma foto da suposta Verônica. Após olhar bem para o rosto desta
mulher, mil gatilhos se acionam na minha mente, tenho a sensação de passar
por um túnel do tempo.
— Ainda falta algo que não consigo me lembrar. A única coisa que
sei, é que jamais a esquecerei novamente, — falo alto, contudo, ninguém me
responde.
Todos se mantêm em suas posições.
Uma sucessão de acontecimentos se desenrola na minha frente.
Álvaro, que se tornou alguém mais próximo e necessário para nós e a nossa
empresa, entra na sala e não tenho certeza exatamente em que momento isto
aconteceu. Estou enrodilhado nos meus pensamentos, apenas a observando,
aguardando.
Alguém pergunta algo a ela, sua voz é tremula ao responder, e pela
primeira vez na noite, eu realmente posso ver e sentir aquilo que não foi
expresso ainda.
Ramon se aproxima ainda explicando os planos, repassando alguns
pontos necessários, tais como o falso noivado que vamos interpretar essa
noite.
Tento a todo custo deixar a cara de jogo em alta. Isto acaba sendo
fácil, para todos se o Mikael for aquele que brinca, faz alguma zoação, o que
não tem emoções adversas que os deixe desconfortáveis, é bom.
Na verdade, é bom até mesmo para mim. Por que o que não
suporto é sentir? Seja lá o que for, essa vulnerabilidade que expõe o paradoxo
que me tornei é algo que abomino com certeza. Uma fraqueza que não me
permito sentir. Algo que não quero mostrar a ninguém.
Troco um olhar com Ramon, e quase posso ouvir seus
pensamentos. No mínimo meu amigo sente compaixão por nós, enlameados
com nossos demônios, atormentados por algo velho e enterrado a tanto
tempo, sendo revisitado. Ouço na sua voz o esforço para ser delicado ao falar
com ela, mas a expressão de descontentamento, o franzir do sobrecenho e na
forma como Lia morde os lábios, está claro que de nada adianta o
cavalheirismo exagerado do Argentino.
Antes que ela possa se afastar, dou um passo à frente e tomo o anel
das mãos de Ramon. Aquele sufocamento de antes se intensifica ao ponto de
obstruir minha respiração, mas é algo rápido, quase imperceptível.
— Lia, — minha voz sai grossa arranhando minha garganta —, não
será por mais de duas horas, já conversamos sobre isto.
Ela tem os punhos cerrados em paralelo ao corpo, tento demonstrar
gentileza.
— Eu também não estou confortável com a situação. Então, por
favor, estenda a mão e me deixa colocar esse anel no seu dedo, — tomo sua
mão fria que está trêmula, não pretendia ser rude, mas antes que perceba já
fui.
— Não preciso de um discurso Mikael, farei isto. — Ela baixa o
tom da sua voz. — Dei minha palavra.
Olho em seus olhos e seguro firme sua mão aberta e estou pronto a
deslizar a joia pelo dedo anelar, por um segundo o seu sussurro me paralisa.
— Espera… — não me permito esperar.
Com relutância, deslizo o maldito anel em seu dedo, sua mão
molhada de suor frio escorrega sobre a minha. Amaldiçoou entredentes ao
perceber que não fiz o que ela pediu. Por isto, me aproximo diminuindo a
nossa distância, e falo no tom mais baixo que posso com ela, para impedir
que os expectadores à nossa volta possam ver as portas do nosso inferno
serem escancaradas da pior forma possível.
— Não exagere Lia, é só um anel! — exclamo.
— Um maldito anel! — ela rebate entredentes.
— Odeio isso tanto quanto você, mulher, então… — replico.
Lia ergue o seu rosto e pela primeira vez na noite nos encaramos de
fato. Ela chora ao vê-lo em seu dedo. Não consigo reprimir velhas
lembranças, talvez, por isso as palavras saem da minha boca, ou,
simplesmente porque sou um monstro e não mais o seu anjo.
— Odeio você! — ela afirma.
— Isto deveria me importar?
Ao ver o que Ramon me entrega, as suas lágrimas se tornam fel, a
fragilidade enquanto ele explica sobre o falso colar se evapora e sua fúria tão
conhecida fica aparente.
— Oh! Meu Deus! Isso… Isso vai ser o inferno quando eu sair! —
Lia exclama pasmada. — Um inferno particularmente desnecessário na
minha opinião, — seu olhar incide sobre o meu.
— Está é a intenção! — afirmo entredentes. — No entanto, pode
ficar tranquila, não a deixarei sozinha.
Ela bufa. — Mesmo?!
Tomo a frente mais uma vez e retiro a peça do estojo, Lia fecha os
olhos e fica claro a sua repulsa em usar tanto a joia verdadeira, quanto a
réplica. No fundo, não a culpo.
Me encosto contra seu corpo fazendo dar-me às costas, a diferença
da sua estatura e estrutura corporal para a minha, mesmo estando de saltos
alto, é grande, o velho comichão da excitação volta a atormentar meu corpo.
Sempre quando se tratar dela, estarei excitado. Lia é como uma droga
viciante, difícil de ser deixada.
Com ela, nunca seria diferente!
Uso isto em meu favor para enclausurá-la dentro dos meus braços,
passo a joia pelo seu pescoço, assim que as frias pedras de vidro se
encontram com sua pele, um arrepio percorre seus braços de forma tão
intensa que posso acompanhar com meus olhos, aproximo minha boca ao seu
ouvido e dou a ela um motivo para ser forte.
Não é uma piada, muito menos uma forma de consolar, é apenas
uma verdade. Um desejo primitivo entre nós.
— Use o seu ódio por mim, saia altiva desta sala, – pauso—pense
em como e o quanto quero fodê-la o resto da noite depois que está maldita
festa acabar, como uma recompensa.
Não ouço sua resposta, nem preciso, sinto-a estremecer ao encontro
do meu peito, fecho meus olhos por um segundo apreciando a sensação.
Não me dou conta de como chegamos ao salão de festas, é como se
um filme estivesse sendo acelerado e de repente o play fosse acionado
novamente.
Estamos andando pelo salão recebendo cumprimentos de vários
sócios e colegas de trabalho, quando uma mulher vagamente familiar para à
nossa frente, seu olhar é especulativo antes de fazer um comentário sobre
como somos perfeitos um para o outro. Seguro uma réplica ao perceber no
seu olhar, o desdenho e cólera. Agradecemos gentilmente, seguro Lia com
mais força do que o necessário e a guio para a outra ponta da sala, ela se
desvencilha e se afasta.
Vejo que algo a deixou ainda mais incomodada, tentei alcançá-la
com a mão estendida, mas em algum momento a atmosfera mudou. Lia que
estava aqui bem ao meu lado, desapareceu. Ouço alguém chamando o seu
nome, e um riso esganiçado ecoa em meus ouvidos.
— Não. Isto não é um riso, e sim uma gargalhada. —Afirmo para
mim mesmo. Dou um giro sobre meus pés observando a minha volta e
percebo que mais uma vez, tudo mudou.
Estou lá, ou melhor. Estou aqui e posso sentir isto!
Diante de mim apenas as escadas indicam o caminho que devo
tomar, ouço a voz naturalmente enrouquecida de Lia, mas não posso vê-la e
isso me angustia. O aperto no meu peito é grande, sinto falta de ar, a
queimação estranha está pior.
Nunca senti isto, mas é como se houvesse uma bola atravessada em
minha garganta, minhas mãos tremem as pernas tão potentes acostumadas ao
esforço físico, parecem um peso morto e não consigo chegar até onde ela
está.
— Lia…
Eu a chamo, porém, o som que vem aos meus ouvidos é asqueroso,
reconheço a voz esganiçada daquela mulher.
Como pôde ter passado tantos anos, ao ponto de ter me esquecido
deste som? Como poderia isso acontecer, o que mais eu esqueci?
Uma fúria cega me invade, deixo de lado as máscaras de bom rapaz
que estou sempre me esforçando para manter, e extravaso os sentimentos
destroçados que carrego dentro de mim. — Sei quem é você Verônica.
— Eu sei! — grito.
Atrás de mim, ouço passos apressados, Ramon, Edu e Anderson
me seguem, não os vejo, mas sinto-os. Meu corpo se agita, tem algo errado,
sei que há algo estranho em toda essa situação.
Angélica me prometeu que Lia estaria segura, antes mesmo desta
noite, estive com ela há duas semanas em seu apartamento, a fiz me prometer
que nada daria errado, porque me sinto sufocado com um medo que não é
meu, mas que vem de Lia.
— Que porra de sensação é essa?
Por um instante minha consciência ficou nebulosa, é como se uma
porta fosse aberta rapidamente e batesse com toda força contra uma parede,
me dizendo que isso é um pesadelo e nada mais, porém, tudo que posso ouvir
são as ameaças feitas ao filho dela e uma confusão de corpos se chocando em
algum lugar.
Meu foco está em encontrá-la, desço mais um lance de escadas e
ouço um grito de dor enquanto uma dor horrenda se instala na lateral do meu
corpo. Posso sentir algo profundo entrando entre minhas costelas e se
retorcendo, tudo isso enquanto desço as malditas escadas.
O tempo está passando e experimento a sensação angustiante de
que nunca vou conseguir sair deste labirinto, sempre descendo de andar em
andar ouvindo-a chamar meu nome, sentindo o seu desespero crescer junto ao
meu.
— Lia… — sussurro em meus pensamentos.
Tomo fôlego e tento enviar uma resposta que quase sai dos meus
lábios retraídos, percebo outras coisas nesta tentativa falha, estou rouco, o
suor que escorre pelo meu rosto. O fedor ferruginoso do sangue, calafrios e a
voz dela que parece esmorecer ao longe, é como se houvesse uma bruma nos
separando.
Me esforço para alcançá-la, grito o mais alto que posso: —Lia,
aguenta firme, estou chegando!
De alguma forma diante de mim, vejo a porta do escritório onde
Anderson trabalha trancada, com o pé a derrubo facilmente invadindo o
ambiente, a luz é fraca e mal posso enxergar, mas uma voz debochada grita:
— Você nunca vai chegar a tempo, Mikael, quer apostar?
— Não! — exclamo com força.
A seguir o que vejo me destroça, não tem ninguém à vista a não ser
um rastro de sangue, as vozes voltam a gritar no meu ouvido e um barulho
agudo corta a comunicação, ouço um novo grito, me viro e as vejo.
A cena que se desenrola adiante me choca. Lia está caindo de
joelhos sobre uma poça carmesim, seus olhos estão vidrados nos meus sem
vida, o vestido sexy de outrora não passa de trapos rasgados e embebecidos
em sangue, por detrás dela, aquela mulher de antes, ri escancaradamente.
— Avisei a Niko que levaria todas embora. Uma a uma. E agora
novamente, irei tirar outra mulher dos Nikolaievitch, — ela ri e em uma das
suas mãos reluz o falso colar de diamantes salpicado de sangue, e na outra ela
segura o cabo de um punhal ainda cravado ao lado de Lia, retorcendo-o
lentamente.
Meu peito infla, minhas pernas não me obedecem, meus olhos
ardem, minhas narinas parecem ter sido lavadas com ácido, sufoco em
desespero e apenas um estrondo torturado ecoa em meus ouvidos.
— Não! Lia…
TUDO É UM TORMENTO
“A saudade é o pior tormento. É pior que o esquecimento.”
Chico Buarque
MIKAEL
A
s horas no relógio correm a passos morosos, as salas de audiências estão com
suas portas cerradas, pior do que nos demais dias, hoje me sinto sufocado.
Uma sensação angustiante para quem não tem o costume de se importar com
sentimentos alheios.
Ouço atentamente enquanto o juiz lê a sentença final do processo
dando por encerrado outro importante caso.
Geralmente após as audiências um batalhão de repórteres estão
apostos para saber o veredicto e ter alguns minutos com advogados e o
Promotor. Para minha sorte, conseguimos restringir o acesso à imprensa para
preservar às vítimas e testemunhas.
Deixo a sala de audiência seguido por outros colegas, espero o
burburinho passar, os apertos de mãos e congratulações, me esquivo como
posso até estar no corredor um nível abaixo e aliviado posso respirar,
podendo conferir finalmente o que há no envelope que me foi entregue assim
que cheguei no tribunal.
A revista em minhas mãos parece uma zombaria. Ainda não
acredito que deixei publicarem uma matéria sobre mim. A foto usada para a
capa da edição, apesar de ser muito sugestiva, não é um problema.
Realmente sou um Promotor solteiro, faço o estilo linha dura,
motivo pelo qual tenho meu rabo vigiado, vinte quatro horas por dia. Um
físico bem avantajado que mesmo por debaixo da toga[1] chama a atenção, e
para azar ou sorte, uma expressão naturalmente cafajeste.
O que não esperava era que além das respostas que dei sobre a
carreira jurídica, a jornalista faria sua análise pessoal sem me consultar e a
publicaria junto à matéria.
— Cacete!
Fechei a revista e a coloquei por baixo das pastas de processos que
tenho nas mãos. — Como se não houvesse merdas suficiente em minha vida,
agora terei mais uma para lidar.
Por ser véspera de feriado é esperado que o Tribunal esteja vazio,
já que alguns “colegas de trabalho” tendem a aumentar por conta própria o
recesso, mas pelo visto hoje, não será esse dia.
Esqueço a matéria e me concentro novamente no trabalho.
Encontro um banco vazio ao longo do corredor e confiro as últimas páginas
do processo que tem se arrastado por um longo período e me dado dor de
cabeça.
Como se não bastasse as ameaças que recebo diariamente dos
bandidos e advogados de defesa que tentam a todo custo colocá-los na rua,
agora tenho de lidar com mais uma dor de cabeça.
Um dos maiores traficantes da América Latina, preso no porto de
Vitória, passou a ameaçar-me diretamente, colocando preço para a execução
das minhas testemunhas; isto coloca em risco a segurança da esposa e o filho
dele que estão sobre proteção judicial.
— Puta merda! — resmungo ao ver que o meu pedido de
transferência foi negado, — se eles não mudarem logo minhas testemunhas
de lugar, vou ser obrigado a pedir ajuda.
Isto é algo que não gostaria de fazer. Após ter os pneus da moto e
do carro furados em diversas ocasiões, ser perseguido por veículos aleatórios
e receber mensagens suspeitas de números desconhecidos que deixa
subentendido que estão perto de encontrá-los, não vejo outra saída.
— Ajuda de quem?
A voz abafada em meu ouvido me faz erguer a cabeça. Carlos
Eduardo Santorini, me encara com olhar especulativo tomando assento ao
meu lado. Nego a resposta com aceno simples e ele compreende.
Desde que me tornei Promotor Público, poucas foram às vezes que
discutimos um caso abertamente, não por falta de confiança entre nós, mas
optei por deixar meu trabalho em sigilo, assim como faço com a minha vida,
evitando que ele e nossos amigos, se coloquem em perigo por saber demais.
— Onde está Ramon? — pergunto fechando a pasta, evitando que
ele veja tanto o maldito exemplar da revista, quanto as informações sobre o
caso. — Ele deveria estar aqui, não?
— Staeler passou os seus casos para o Santana, definitivamente.
Você saberia se comparecesse às reuniões marcadas. — ele bufa.
— Este caso, — aponto a pasta em suas mãos — não é especial?
— Sim, trabalhamos em conjunto e Anderson fazia parte da equipe,
então não foi preciso, grandes mudanças.
Edu aponta nosso amigo que está do outro lado da sala falando ao
telefone. Anderson percebe que estamos olhando em sua direção, acena e
caminha até onde estamos sentados.
O cliente ao qual representam está mais a frente com olhos
pregados no iPhone em suas mãos.
A típica tranquilidade de quem tem bons advogados e sabe que a
causa está ganha.
— Ele realmente vai deixar o escritório? — pergunto apenas para
manter uma conversa trivial.
— Ramon não seria o primeiro. — Edu rebate e sinto a indireta
como um chute na bunda.
— Não havia como permanecer por lá cacete! — replico em voz
baixa fechando a cara.
— Você é um cuzão, isto sim! — ele apoia os cotovelos sobre os
joelhos e me encara por sobre o ombro. — Poderia manter a sala e participar
mais, porém só aparece para arrumar confusão.
Coço a cabeça na altura da nuca e evito responder. Sei exatamente
sobre o que Carlos Eduardo está falando.
Das duas últimas vezes que estive no escritório só aconteceram
merdas: uma briga feia entre Angélica e Giovane, da qual acabei por me
meter, mesmo que a megera tenha esmagado a cara dele.
Achei pouco e a coisa saiu de controle ao trocarmos meia dúzia de
insultos e alguns socos.
A segunda e última vez, foi uma puta discussão com Lia. Não
acreditei quando Anderson, me mandou mensagem, dizendo que ela recusou
o afastamento e voltou a trabalhar um dia após remover os pontos, devido ao
ataque que sofreu.
Mesmo faltando pouco para termos um recesso de final de ano,
ainda assim ela não deveria ter voltado. Só de lembrar em como estava
abatida ao entrar em sua sala, sinto a raiva subindo novamente.
Essa sem dúvida foi a pior briga que nossos funcionários já
presenciaram, quase sinto meu rosto corar de vergonha, no entanto, sei que
estive certo, por isto, foda-se!
— Reservo o direito de manter minha opinião sobre os fatos. —
Rebato.
— Ou seja, você não vai se desculpar?
— Você se desculparia? — inclino minha cabeça e estreito os
olhos esperando por sua resposta.
— Prefiro não comentar. — Ele resmunga e não esconde o sorriso
irônico.
— Imaginei!
Sou sarcástico ao dar por encerrado o assunto. Ficamos calados,
cada um imerso em seus próprios pensamentos.
As coisas entre o quarteto geralmente, têm ficado cada vez mais
complicadas e sempre que estamos juntos, acabamos por ter estas pequenas
discussões, não chega a ser uma briga de fato, mas sinto que não estamos
confortáveis uns com os outros.
Quem sabe seja algo da minha cabeça, ou finalmente as garras
envenenadas da maldita Verônica, tenham cravado fundo entre nós.
Carlos Eduardo é um ótimo amigo, temos uma boa relação, talvez
não sejamos tão próximos como antigamente, e por um tempo a explicação
era lógica: a vida de casado com a sua eterna moranguinho o consome. Os
quatro filhos, o trabalho que deixa pouco tempo para os amigos, as badernas
e as santas orgias.
É notório que a situação em que vivemos hoje, rodeados de
seguranças, com a incerteza de estarmos seguros é o que de fato tem lhe dado
cabelos brancos.
Não apenas ele, mas Anderson e agora Ramon também vivem mais
suas vidas como pais de família e maridos dedicados.
Anderson diminuiu a sua carga horária para poder ficar mais tempo
com Aline e sua ninhada desde que nasceram, e vem mantendo este ritmo. O
que lhe fez bem! Nunca vi meu amigo sorrir tanto ao mesmo tanto que
boceja. Ainda não sei se são os filhos que causam a canseira, ou o sexo
regado a Nutella.
Ramon a quem considero como um amigo íntimo, foi o último do
quarteto a se entregar de vez ao papel de marido, aliás o primeiro. Ainda
ficamos chocados quando o assunto é seu casamento secreto com Carla e a
forma como soubemos.
Não mencionamos sobre o filho deles que foi brutalmente
assassinado, jamais poderemos dimensionar o que nossos amigos têm
enfrentado. Por isto, quando July sugeriu que prestássemos uma homenagem
ao pequenino há algumas semanas, aceitamos de imediato.
Foi um momento de dor e amor que compartilhamos, no qual
percebemos que existem elos inquebráveis nesta vida. Ramon e Carla vive
um dia de cada vez, aproveitando ao máximo todos os momentos com Pérola,
sua filhinha em busca de superar o tempo perdido.
INCOMPETÊNCIA
“Não que ela saiba disso ainda, mas sem dúvida deixei que caminhasse lentamente para
SANTIAGO
Se passou mais dez, vinte minutos ou meia hora não faço ideia, o
som de passos vindo em minha direção me despertou do meu transe.
Ergui os meus olhos ao ver o responsável pela clínica especializada
em DNA que o tribunal superior designou para dar-nos suporte em um caso
delicado no final de 2014. O Médico referido é Doutor Emerson Guedes.
Com uma situação financeira e familiar estável, carreira sólida e de
meia-idade, ou seja, todos os pontos positivos para ser escolhido neste caso.
Ele é um homem que aparentemente não tem motivos para ceder a qualquer
categoria de chantagem, não há motivos para vazar informações.
Tudo o que eu preciso!
— Boa tarde, Doutor…
— Nikolaievitch! — Me ergo estendendo a mão com aperto firme
ao apresentar-me a ele. — Sou Promotor público, como tem passado?
— Tudo joia, nós já nos conhecemos! Trabalhamos juntos em um
caso no final de 2014!?
Excelente! Se ele se lembra de mim, então sabe que sou linha dura
com o sigilo.
— Exatamente Doutor Emerson! O que me trouxe aqui, foi a sua
índole. Preciso dos seus serviços.
— Um homem direto, isto é, ótimo Doutor, ou melhor, Promotor!
— Como quiser, podemos falar em algum lugar mais reservado?
— Claro, por aqui.
Ele seguiu pelo corredor de onde veio em direção ao consultório no
final deste.
A sala clara, o ambiente é calmo, porém o que me traz aqui não me
permite sentir essa tranquilidade fantasiosa.
— Pronto, estamos em privado, por favor, sente-se! Estou à
disposição da justiça para ajudar no que for necessário.
— Doutor Emerson, antes de passar este caso ao senhor, tenho que
ressaltar que isto requer um sigilo absoluto e, é por este motivo, que trouxe
um documento que precisa ser assinado.
— Claro! Lembro-me da sua forma de trabalhar, diferente de
muitos outros profissionais em sua área como Promotor, a sua índole ao
conduzir o caso, deixou a todos surpresos.
— Infelizmente estas exceções acontecem. Concordamos que a
honestidade é um requisito para vida?
— Sem dúvidas, tem a minha palavra.
Ele não faz nenhum comentário sobre a documentação e após ler,
assinou e me devolveu. Confiro e guardo na pasta aberta a minha frente, onde
também tenho o meu motivo por estar aqui.
— Serei breve e direto! Preciso da análise de DNA, porém, há
circunstâncias especiais neste caso.
Sem demora, coloco sobre a mesa o envelope de evidências
propício para guardar e preservar às amostras genéticas para análises.
— Do que se trata?
Ele pergunta ao me ver abri-lo e retirar de dentro dele, um saco de
lixo que foi cuidadosamente cortado e dobrado para preservá-las.
Respiro fundo e discorro apenas o essencial para que ele tenha a
base do que precisa ser analisado.
— Em meados de fevereiro do ano passado, essa amostra de
cabelos e sangue, foram encontradas dentro de um piano, em uma cena de um
possível crime.
— Há quase um ano? Por que só agora o trouxe? Apesar de estar
bem preservado, a ação do tempo pode ser propícia ou prejudicial para uma
investigação.
— Aconteceram muitos entraves posteriormente a essa descoberta,
o que incidiu em uma investigação sobre o possível indivíduo a quem
pertença isto.
Mostro a embalagem que ele pega após colocar luvas de látex e o
abre com cuidado para examinar usando pinças.
— Meu Deus! Isto pode ser o cabelo de uma mulher, talvez pelo
tamanho?
— É o que espero descobrir com o senhor.
— E qual seria o material genético comparativo?
Eis a pergunta que, na verdade, foi o entrave que me impediu de
falar com qualquer um sobre essa descoberta, e até mesmo, de trazer antes
isto aqui.
Com fôlego retomado, ergo o meu braço sobre a mesa e o apoio
estendido olhando-o seriamente, digo pausadamente o que me faz tremer
internamente.
— O material genético é o meu. Pelo que eu saiba, esse tom de
cabelo e onde estava… — pauso — exclusivamente este tom, apenas três
pessoas além de mim o tinham, e que remotamente, quase que usando a
imaginação, posso afirmar que eles poderiam ter acesso ao local onde isso foi
encontrado.
O médico arregala os olhos e nem mesmo pisca ao me encarar
estupefato.
—Entretanto, um destes indivíduos foi declarado como morto
ainda criança, e… — respiro mais uma vez — os demais, deveriam estar
mortos a mais de seis anos.
— Sendo assim…
Me aproximo da mesa e baixo o tom de voz. — Posso estar sendo
ridículo ao descartar qualquer outro individuo, mas tenho meus motivos para
querer investigar e comparar o DNA.
—Compreendo.
— Sendo assim Doutor, o senhor terá que me dizer de quem é o
DNA neste cabelo.
O médico continua assustado, mas não diz nada apenas me informa
os procedimentos a seguir e traz toda a papelada a ser assinada.
INDISSOLÚVEL
“Havia muitas escolhas a serem feitas, entre tantas escolhi a mais
arriscada…”
LIA
A
s portas do elevador se abrem, os sapatos de saltos alto martela contra a
cerâmica antiga do átrio. Entro, espero às portas se fecharem, só então me
viro e pressiono o botão que me levara ao estacionamento.
Não ouso sequer mirar meu reflexo no painel de aço escovado a
minha frente, ou posso simplesmente quebrar.
“Desta vez, o pai do moleque veio para assumir as coisas, ou só…
comer?”
A voz grossa se reproduz em meus ouvidos zombeteiramente. Bufo
e um riso sarcástico explode em meus lábios.
Sinto a vibração do celular na bolsa e a ignoro. A mágoa se
enfronha entre a tristeza, mas quem vence e emerge no meu peito é a raiva.
Uma fúria que não posso medir, apenas extravasar.
— Filho da mãe! — esbravejo ao ouvir o apito sonoro indicando o
andar desejado.
Abro minha bolsa e alcanço as chaves do carro, aciono o alarme, o
‘bip’ estala do outro lado do amplo espaço, o que me faz dar uma parada
abrupta.
Droga!
Me encosto contra a pilastra e respiro lentamente tentando me
refazer, encrespo os lábios contra os dentes, fecho os dedos contra o punho e
aperto firme.
— Cretino, miserável. Vai para o inferno Mikael! — ouço minha
voz explodindo em minha mente.
Meus olhos ardem, mas longe de ser por lágrimas reprimidas. Me
sinto péssima, fraca e lamentável por não poder falar, não ter como rebatê-lo,
ou estaria renunciando à escolha que fiz.
Sinto-me sufocar, e para não dar meia volta, entrar naquele
elevador e ir até onde estiver, preciso sair deste lugar. Desencosto-me da
pilastra e me forço a caminhar.
O espaço vazio e com pouca iluminação não me ajuda. Estar em
lugares desertos, escuros tem sido meu maior desafio nos últimos tempos,
mesmo que não admita, voltar a trabalhar foi a melhor forma que encontrei de
vencer o trauma sofrido após ser atacada por Verônica.
Meu trabalho sempre foi minha maior paixão, de todas as formas
possíveis, advogar sempre me ajudou e agora pensei que não seria diferente.
Contudo, parece que isto se tornou o maior motivo de embate entre nós.
Desde o primeiro dia que voltei ao trabalho, cada vez que nos
encontramos, Mikael fez questão de me espezinhar, e não vou negar, sempre
o respondi à altura. Nunca fui de baixar a cabeça para qualquer um, muito
menos para ele.
Ser mãe solteira só me fez ter a certeza de que: ser forte não é uma
escolha, é meu dever! Sendo assim me levantar a cada paulada é proteger
meu filho, isto é o que faço.
Bufo. Desanimada reconheço que mesmo que em meio as suas
grosserias, vejo a sua preocupação com o meu bem-estar, porém, hoje foi a
gota d’água no copo cheio.
“Desta vez, o pai do moleque veio para assumir as coisas, ou só…
comer?”
— Porra! Custa ser uma pessoa normal que apenas se preocupe,
sem ser um cretino? Ah! Mas, um dia Mikael… — resmungo em voz baixa.
Um turbilhão cresce dentro de mim e controlo o melhor possível.
Não sou uma mulher de dizer o que pensa com receios, não levo desaforos
para casa. Sou conhecida por ser grossa, direta e franca demais. Alguns
podem até não sentir empatia por mim de cara, mas isso não me preocupa,
desde que jamais atinjam meu filho de alguma forma.
Tudo em minha vida sempre girou em torno dos meus pais, depois
dele e agora somente por meu filho. Quando penso que por todos eles me
sacrifiquei de várias formas, o mesmo desconforto que carrego comigo na
altura do peito volta a esmurrar meu corpo. Apenas por meu Anjinho, não
vejo como sacrifício, e sim amor.
Ter consciência do que se perde ou ganha com suas escolhas pode
ser benção ou maldição, e dentro da minha perspectiva, parecemos viver uma
imprecação do que um dia sonhamos.
Bato a mão contra a bolsa transpassada por sobre meu corpo e
abaixo do couro fino sinto o volume quadrado menor que a palma da minha
mão.
Meus olhos voltam a desfocar, mas como há muito tempo não sei o
que é derramar lágrimas, deixo a queimação consumir as minhas retinas,
enquanto sinto as vibrações do maldito anel ultrapassando o material frio até
alcançar-me.
Eu preciso me livrar disto! — minha mente grita em desespero.
Por várias vezes tentei jogar fora, me livrar dele para sempre, mas
por pertencer a Sarah, desisti. Essa é a desculpa que meu cérebro sempre dá a
cada vez que o toco e a dor sobrevém de maneira voraz.
Em outros momentos pensei em arrancá-lo da bolsa e jogar contra
Mikael, essa desculpa me trava, porque sei que traria dolorosas lembranças e
o machucaria de uma forma que não suportaria.
Mesmo que ele não tenha pensado nisto, ao colocá-lo em seu dedo
naquela noite… — uma voz sarcástica zomba em meus ouvidos.
— Não vá por este caminho Lia. — Replico em voz alta. — Agora
não é o momento de deixar está história vir à tona.
Tento manter a aparência serena ao dar alguns passos em direção
ao utilitário vermelho, percebo a movimentação de dois homens vestidos com
roupas casuais me seguindo de longe.
Ainda não me acostumei em ter dois seguranças em meu encalço o
tempo todo, às vezes tenho a impressão de que não só eles me seguem e sim
um batalhão invisível.
Ignoro a situação o melhor possível, depois de várias discussões
com Angélica e Ramon me recusando a passar por isto, cedi ao imaginar que
se não fosse pelos mesmos seguranças, meu filho poderia ter sido raptado.
Sinto as mãos trêmulas ao abrir a porta do carro, jogo minha pasta
de couro e a bolsa sobre o banco do carona, me sento diante da direção,
coloco a chave na ignição sem dar partida.
INCONFESSÁVEL
“Dizem que a vida é para quem sabe viver, mas ninguém nasce pronto. A
LIA
O
uço minha própria voz, ecoando em minha mente entre o choro e desespero
que meu filho sente. Agarrada ao seu corpinho tento o consolar de alguma
forma, enquanto grossas lágrimas escorrem por nossos rostos. Porque não
posso derramar lágrimas por nada e ninguém, além do meu filho.
— Anjinho, filho fica calmo…
— Nina o que aconteceu? — pergunto e não escuto sua resposta.
Olhando em sua direção vejo minha amiga com olhos fixos em
mim, sua pele negra tem um aspecto esmaecido, os lábios estão entreabertos
em choque, assim como os olhos cor de chocolate, ela amassa com a mão os
cachos acobreados contra a cabeça.
— Nina?
O meu grito a tira do transe, ela me dá as costas e responde algo
para Aline, que ainda está em chamada.
— MAH… MAH…MAH!
Anjinho se joga sobre mim com força e enterra seu rostinho no
meu pescoço cruzando os braços em volta da minha garganta, sinto me
sufocar com seus dedinhos apertando-me a pele da nuca. A toalha em meus
cabelos desliza e cobre-nos com os fios molhados. Me sento no chão e tento
embalar seu corpinho com balanço suave. Nem sempre consigo acalmá-lo
com isto, mas não posso deixar de tentar.
Nina vem em minha direção e agora com seu próprio celular nas
mãos, sua expressão é de pesar, pois sabemos o quanto Anjinho sofre quando
algo interfere em sua rotina. Isto pode causar sensações desconfortantes e que
o faz ter estas crises.
Com o tratamento elas passaram a ser mais espaçadas, mas ainda
assim quando acontece parecem arrancar um pedaço da minha alma, imagino
que para ele seja mil vezes pior.
Desde que fui atacada por Verônica, meu filho parece ter
desenvolvido um sentido extrassensorial para diversas situações. Ele está
mais sensível à algumas coisas, tem pesadelos, acorda chorando de
madrugada e em algumas ocasiões ele precisa dormir na minha cama
cheirando meu cabelo, como se eu pudesse sumir, é algo tão intenso que me
faltam palavras para explicar.
— Nina, por favor, me diz o que aconteceu com ele? — pergunto
na esperança de poder contornar sua crise.
Anjinho chora e seus gritos agudos machucam sua garganta e meus
ouvidos.
— Não sei, — ela responde acariciando a cabecinha dele —
estávamos prontos para fazer a aula de equitação, ele estava feliz, apesar de
hoje não termos visto a Fadinha.
Assim que a ouço me sinto péssima e com o que vou dizer.
— Eu disse para não o deixar muito próximo a ela, não quero que
ele tenha crises, assim quando não puder vê-la.
Repreendo Nina entredentes, mesmo sabendo que o meu pedido é
ridículo. Entretanto, desde que Anjinho conheceu essa moça que todos tratam
por Fadinha, em suas aulas de equitação, sua ansiedade para ir ao Haras se
tornou visível, em algumas vezes até preocupante.
A primeira vez que eles não se encontraram, ele teve febre e
chorou a noite toda chamando por ela.
— Tento ao máximo! — Nina responde entredentes, ela se afasta
para falar ao celular, sua expressão é pior que antes, bufa e morde os lábios
exasperada. — Que inferno!
— Nina!
Ela muda sua posição, abaixa a cabeça e fala bruscamente com
alguém, enquanto tento controlar Anjinho.
— Eles estão chegando. — Ela joga o celular no chão e tenta
acariciar os cabelos suados do meu filho. — Mudei os horários da fisioterapia
como combinamos, mas adivinha? Ela também mudou os seus horários,
porque gosta de estar perto dele.
A gravidade em sua voz faz a minha raiva ceder lugar a uma dor
em meu peito. Não poderia tirar do meu filho a única amiguinha que ele fez e
que o mantém tão feliz. Nem mesmo as crianças da escolinha o animam tanto
quanto a tal Fadinha.
— Entendo, mas é por ela, que ele está assim?
— Acredito que não, do nada ele disse querer o tal… — ela
gesticula com os lábios às três letrinhas que aprendemos a não mencionar em
casa. “MAH” — e começou a ofegar.
— Anjinho, você vai ver a sua Fadinha em outro dia, meu amor.
Fica calmo… — peço com carinho beijando o alto da sua cabecinha.
Seu corpinho estremece com força, antes de amolecer de forma que
me aterroriza.
— Filho? — me assusto, a única vez que de fato perdeu os sentidos
foi como morrer em vida de tão apavorante que foi. — Anjinho!
Ele parece se afogar e com esforço estremece gritando, chamando.
— MAH. MAH. MAH!
Suas mãozinhas batem em meu peito sinto o golpe dolorido com
sua força infantil, mesmo que não vá causar grandes hematomas, ainda sim,
certamente terei manchas roxas amanhã.
Anjinho grita com força e se choca contra meu corpo se debatendo.
Quando ele começou a pedir por MAH pensava ser uma nova forma de
expressar um chamado como mamãe, mas desconfio que não seja isto, já essa
junção de letras está invariavelmente ligada a momentos como este.
Ele se afasta, leva as mãozinhas em sua cabeça e começa a esfregar
com força.
— Está doendo meu amor? Diz para mamãe, onde doí?
— Aquiii… Aquiii… — de olhinhos fechados ele bate com força
contra a sua nuca e o alto da cabeça. — Dói, aaah mamãe… aaahhh!
Os seus gritos torturados me estremecem com força e sacode seu
corpinho mais uma vez. Me ergo do chão com o meu filho nos braços indo
em direção a minha cama, o sento com cuidado e tento apalpá-lo com
delicadeza em busca de ferimentos.
— Ele não caiu Lia! Anjinho nem subiu no cavalo, estávamos
passeando pelos estábulos, senti que ele estava agitado, chateado, e de
repente começou a pedir para vir embora, — Nina senta-se sobre seus joelhos
a nossa frente, — assim que entramos no carro ele começou a apertar a
garganta em desespero, o ofego piorou, tentei distraí-lo, mas…
Nina trava sua boca e morde os lábios, ela tem os olhos marejados
e os meus ardem com lágrimas, uma entendendo o sentimento da outra.
— Faz tão poucos dias que ele finalmente se acalmou. — Sua voz é
um sussurro que se equipara ao meu ao abraçá-lo.
No conforto dos meus braços tento entender o que tanto dói no meu
filho, me desespera perceber que talvez o progresso que ele fez em seu
tratamento esteja desmoronando por minha incapacidade de reconhecer suas
necessidades.
Estou a ponto de desistir e me erguer com ele para irmos a um
hospital. Ouvimos a campainha da porta e logo passos pesados pelo corredor,
acompanhados da voz do Giovane, mas quem entra no quarto é Gabriel, ele
se joga de joelhos no chão seguido por Estevão.
— Hei! Meu campeão, o que foi? O tio Gabe está aqui.
Estevão e Gio, cercam a cama do outro lado querendo falar com
ele, mas Anjinho continua dizendo que está com dor.
O celular vibra com mais mensagens em meio ao pandemônio, não
quero ver nada, pego o aparelho para jogá-lo no chão e algo me ocorre.
Com as mãos trêmulas deslizo os dedos pela tela rastreando o clipe
de voz atrás da música que poderia acalmar meu filho. Mesmo duvidando que
entre essa dor, o terror no rostinho e de todos, aquilo vá fazer alguma
diferença.
A toalha em volta do meu corpo desata e começa escorregar sem
me importar a mínima para o decoro, mas rapidamente alguém me cobre com
uma jaqueta pesada.
— Achei! — exclamo enquanto aperto o play.
Logo as primeiras notas dedilhadas no violão tentam se infiltrar
entre os gritos do meu filho, a intensidade do seu choro diminuiu à medida
que a voz grave e rouca se enfronha entre o solo, ela começa em um tom
baixo ganhando força e a cada pausa perfeitamente orquestrada para se
ganhar fôlego, arrepios percorrem-me do alto da cabeça até a planta dos pés.
Anjinho respira com dificuldade, os lábios sempre rosadinhos têm
várias marquinhas feitas pelos dentes, uma delas formou uma bolhinha de
sangue, tremulo pede o meu colo, deita a cabeça nas minhas coxas ainda
soluçando dolorosamente, segura meu celular e coloca contra sua orelhinha
pequena e delicada.
O seu corpinho balança conforme a letra e a melodia vão se
desenvolvendo, mesmo que a música termine, recomeçará em loop e aos
poucos o seu rostinho vai perdendo o tom inflamado do vermelhão para
ganhar o tom rosado até se tornar claro. Os seus olhinhos espremidos e
injetados de dor se fecham, ele soluça algumas vezes com força como se
estivesse se afogando.
Hum-hum-aam… hum-hum aam… hum-hum aam…
Consigo ouvir um sussurro saindo entres os seus lábios
machucados, para minha miséria, dor e alívio.
— MAH… MAH… MAH…
— Oh! — perco minhas forças e dobro o meu corpo sobre meu
filho me rendendo a um choro que não queria deixar derramar, além do que já
fiz. —Meu Deus! Finalmente entendo, o que exatamente é MAH.
Fiquei na mesma posição desde o momento que trouxe Anjinho
para seu quarto, com a ajuda de Nina o deitei sobre a caminha dele. Acendi
seu abajur refletindo na parede milhares de notas musicais vazadas na cúpula.
Vestimos o seu pijama sem que ele se desgrudasse do celular, até ligamos o
aparelho de som portátil ao lado da sua cabeceira com um CD no caso de a
bateria acabar, nem assim quando ela finalmente morreu, ele largou o
aparelho.
Nina apareceu pelo vão da porta e fez sinal para que deixasse o
quarto, mas não poderia fazer isso, ainda não. Eu precisava passar mais um
tempo com ele.
Ela retirou o celular das mãozinhas e conectou a um carregador
deixando-o ao meu lado.
Ouvi seus passos pela casa certamente organizando algumas coisas
fora do lugar enquanto me mantive no lugar, senti minhas pernas formigarem,
mesmo assim não me movi.
A jaqueta que antes me impediu de ficar nua diante dos meus
amigos, está no chão junto à toalha, de alguma forma, Nina conseguiu me
fazer vestir um jeans e camiseta.
Giovane e os primos após verem que Anjinho tinha se acalmado,
saíram do meu quarto acompanhado dela sem dizer nada, o que eles
discutiram acaloradamente na sala, nunca ficarei sabendo.
De qualquer forma não me interessa. A minha única motivação,
razão e preocupação, está há alguns passos de mim, dormindo
tranquilamente, mesmo que entre um momento e outro ainda possa ouvir seus
resmungos e o resfolegar sentido de quem chorou tão intensamente.
— Lia, preciso falar sobre algo importante. — Nina sussurra
encostada no batente da porta.
— Agora não, Nina. — Respondo no mesmo tom.
Ela se aproxima e deixa seu corpo deslizar ao lado do meu, não
quero ouvir o que tem a falar, mas ela insiste.
— Eu sinceramente não gostaria de falar sobre isto agora, até
porque você está muito nervosa ainda, mas se não fizer certamente amanhã
arrancará minha cabeça.
Nina é uma pessoa expansiva e que geralmente fala muito, mas não
dessa forma, ser explicativa demais ou arrumar pretextos para fazer o que dá
vontade não faz parte da sua natureza. Movida por uma curiosidade incomum
desvio meus olhos de Anjinho por alguns segundo e indico com a cabeça que
ela comece a falar me jogando do precipício com poucas palavras.
Eu estava em luto, mas eu fui à luta. Meu filho não sofreria um dia,
se eu pudesse sofrer tudo em seu lugar.
Outras consultas, novos exames, mais testes, o tempo passando,
pré-diagnósticos um atrás do outro, até conseguir uma consulta com
Neurologista e por fim, com dois aninhos o diagnóstico final.
Meu bebezinho lindo, era portador de TEA — Transtorno do
Espectro Autista.
Já imaginávamos isto e a cada dia aprendíamos a lidar com as
novidades. Depois do diagnóstico veio então a busca por saber em qual grau
ele se encontrava, na época havia uma discussão sobre a forma de
nomenclatura, para que as variações dentro do TEA, fossem reconhecidas
mundialmente.
A minha alma jurídica e analítica se envolvia amplamente
buscando todos os meandros para ajudá-lo, mas quem ganhou a batalha foi o
meu coração de mãe.
Não era denominar, rotular, classificar meu filho que daria a ele
uma oportunidade de vida melhor. Era preciso me entregar totalmente,
abandonar de vez tudo que pudesse me ferir como mulher e ser apenas mãe.
A mãe do Anjinho. Meu anjo azul.
Uma buzina soou ao meu lado, alta o bastante para me fazer pular
na calçada. Olhei para o lado e vi Dionísio apontando para cima e fazendo
sinais com as mãos, ignorei sua teimosia em me fazer entrar naquele carro e
continuei andando.
Uma vez que a avalanche de lembranças e sensações explodem
diante de nossas memórias, é impossível pará-las até que tudo se torne calmo
como um mar voltando ao oceano.
INACREDITÁVEL
“Quero te deitar numa cama de rosas.
Pois, hoje à noite vou dormir numa cama de pregos…”
Bed Of Roses — Bom Jovi
MIKAEL
M
inha mente atordoada gradualmente ganhou foco, após ter dado entrada no
hospital e passado por vários exames e um interrogatório digno do CSI
comandado por Angel, Edu e Dinho, enfim tenho alguns minutos de paz.
Alcancei a lateral da cama engolindo a vontade de vomitar, respiro
com certa dificuldade, mas se ninguém vir a miséria em que estou, não
poderão argumentar quando eu me der alta.
Sentado na beira da cama, nem consigo alcançar o imenso curativo
que tenho atrás da cabeça. Espero sinceramente que não tenham raspado meu
cabelo, não tenho a menor intensão de fazer o corte do Ramon, apesar da
Megera insistir em me chamar de Ovinho, os únicos ovos raspados que
pretendo manter, são os que estão grudados no meu pau.
— Cacete! Que dor mais filha da puta! — reclamo ao sentir
pontadas pelo meu corpo todo!
Ainda não parei para analisar o “acidente” ou tentativa de
homicídio, com a bondade do meu salvador e nem mesmo como foi fácil me
encontrarem com celular desligado e longe dos armários — guarda-costas,
que agora montam guarda do lado de fora da porta do quarto.
— Se está doendo, é porque você precisa se manter aqui!
A voz irritada alcança aos meus ouvidos. Com canto dos olhos vejo
Angélica, sentada no sofá do outro lado do quarto, ela balança o pé cruzado
sobre a perna impacientemente me encarando como um tigre pronto para dar-
me uma patada.
Lembro-me vagamente dela dispensar os policiais que fizeram a
ocorrência do “acidente”, mas depois disto apenas uma lacuna persiste em
minha mente.
— Eu já não a mandei embora, Megera?
— No dia que você me mandar, seguramente o mundo acaba.
— Não vou ficar aqui, chama o médico de plantão para me dar alta.
— Chama você, já que está tão bem assim.
Rosno. Literalmente me sinto um cão preso em uma corrente,
castrado de sua liberdade. Coloco os meus pés no chão frio e o choque que
recebo ao fazê-lo me faz encolher contra a cama.
Não quero admitir, mas talvez precise de mais alguns minutos para
me recuperar.
— Já que não vai fazer o que pedi, me consegue mais analgésicos.
— Não trabalho aqui meu caro. — Ela cantarola olhando para as
unhas como se fossem mais importantes do que minha dor.
— Angélica, que porra está fazendo aqui então, que não pode fazer
nada do que peço? — minha garganta está seca e parece ter pregos
arranhando a cada palavra.
— Evitando que meta a testa no chão!? — o riso cínico em seu
rosto diz muito sobre o que realmente está insinuando.
— Está debochando do meu acidente?
— Lógico que não, mas estou dizendo na sua cara que a culpa é
sua. — Ela olha em minha direção. — Se não houvesse enganando os
seguranças, certamente nada disto teria acontecido. Ainda bem que você
tomou um tombo e não foi atropelado. Imagina o estrago que seria?
— Por que estou sentindo um ar de deboche na sua voz?
— Porque, no fundo, — ela se inclinou para frente com braços
cruzados contra os seios, — estou debochando!
Dois toques na porta e o médico responsável pelo plantão aparece
pela fresta me impedindo de mandá-la ao inferno.
— Senhor Nikolaievitch, — ele expressa gravidade —, não deveria
estar de pé, precisamos que fique em observação.
— Prefiro me auto-observar em casa e na minha cama, Doutor!
O médico é um senhor de idade com cabelos grisalhos e um
enorme sorriso que alcança aos olhos.
— Os jovens são realmente impressionantes. Mesmo que o senhor,
esteja dando piruetas, a concussão que sofreu foi séria, não foram somente
alguns pontos, mas três horas inconscientes é algo a ser observado.
Ele coloca a mão no meu peito e me faz deitar novamente.
— Muito obrigado Doutor Marcondes, por ter a bondade de
explicar a gravidade da situação a ele.
Angélica que há alguns minutos estava debochando da minha cara,
agora está de pé ao lado do médico, com sua falsa performance, quase
acredito que de fato esteja mortificada com meu acidente.
— Não me agradeça, senhorita Campus, é sempre um prazer poder
ajudar a um paciente. — O médico se aproxima e afere os meus sinais vitais e
a pressão arterial.
— Sem querer parecer ingrato Doutor, no entanto, realmente
desejo que assine a minha alta.
O médico bondoso, nem me responde, ele troca meia dúzias de
palavras com Angélica, e depois sai acompanhado da Megera.
Os minutos se arrastam como as gotas do soro caindo no copinho
acrílico conectado ao meu braço.
Fecho meus olhos esperando as pontadas diminuírem e logo o sono
pesa me vencendo, sinto meu corpo lutando para relaxar em uma cama
estranha, mesmo cansado não me desligo completamente.
Alguém entra no quarto e pelos passos pesados diria que é Edu,
uma mão suave percorre meu rosto, estranho a sensação então o cheiro de
morangos invade minhas narinas. July.
July sussurra algo para Edu, ele reclama e é ignorado. Sinto as
mãos suaves ajeitando o travesseiro que está de lado sobre a lateral do meu
rosto, me impedindo de pressionar o ferimento. Ela ajeita o lençol sobre o
meu corpo, sinto mais afagos e o aroma adocicado coçar minhas narinas.
Debruçada sobre mim, com a voz chorosa ouço os seus sussurros
desejando melhoras em meu ouvido e se despede com um beija no alto da
minha cabeça. Ainda assim não consigo me despertar por completo para
retribuir seu carinho.
Posso imaginar a cara de revolta que o Morangão está fazendo,
coberto de ciúmes. Novos passos no quarto, outra mão pequena desliza sobre
meu rosto, desta vez sem beijos, só um carinho leve e pelo tom das vozes
devem ser Aline e Anderson.
Que caralhos, isso tudo por um tombo? Não que eu vá dar razão a
Angélica, mas me sinto à beira da morte, ainda mais sem conseguir despregar
os olhos.
Muitos passam por minha cama, tenho a impressão de que Carla
também está aqui. A porta se abre e fecha algumas vezes, os sussurros advêm
do lado de fora, vozes se alteram e logo um timbre mais forte os faz calar.
Silêncio.
Até que enfim, o silêncio reina no quarto e fora dela, só desta
forma consigo recuperar um pouco da minha força. De todas as visitas,
apenas uma me faria realmente bem, mas justo esta pessoa, duvido que viria.
Realmente esse segundo cochilo não foi tão longo, mas com
certeza revigorante.
Ao abrir os olhos, percebo Angélica no canto do sofá com a mesma
expressão séria de quando não está sendo observada, digitando em seu
notebook com uma agilidade impressionante.
Vê-la assim faz minha mente voltar até o momento em que fui
quase atropelado por aquele carro, a sensação que tenho não é de que o
motorista fosse uma mulher, mas sem dúvida a intenção era um susto, já que
no último minuto ele desviou.
A pergunta é: com que intenção alguém tentaria me atropelar, ou
melhor assustar? É um aviso por parte de Verônica, ou de algum mafioso
descontente com minha atuação nos casos?
Nunca revelei aos meus amigos sobre as ameaças constantes e
atentados de menor gravidade que tenho sofrido constantemente, para não os
preocupar e de alguma foram evitar que se tornem alvos, mas depois de hoje
sinto que terei de ceder em algum momento e falar abertamente sobre isto.
Espero não colocar ninguém em perigo.
Ouço um suspiro longo e Angélica se ergue do sofá espreguiçando
como uma gata preguiçosa. A roupa de couro cai bem em seu corpo que está
longe de ser miúdo e sem curvas como ela tenta aparentar, olhando-a
furtivamente percebo mais uma vez o porquê de o Santana não largar a
mulher, mesmo após ser pisado feito uma barata.
Admiro-a, mas sem segundas intenções, talvez meu pau tenha
morrido na queda, ou apenas respeite alguém que considero como uma
irmãzinha.
— Não baba Ovinho ou vai direto para a ala da psiquiatria.
— Bem que gostaria, mas nem se quisesse, conseguiria babar. —
Seguro o riso ao vê-la ficar vermelha.
Ela bufa enquanto esconde um riso.
— O que foi? — pergunto.
— Nada! Já ouviu falar que anestesia causa impotência?
— Era para ser engraçada essa piada?
— Não, mas poderia ser, se você tivesse senso de humor.
— Rá. Rá. Rá. — replico sua risada debochada.
— Ei! Essa risada é minha. — Ela reclama.
— Quanto tempo dormi?
— Uma hora e vinte minutos.
— Ótimo! — exulto erguendo-me de uma vez só sem demonstrar
nenhum sinal de fragilidade apoiando o corpo nos cotovelos. — Chama o
médico, estou indo embora.
Ela morde o lábio e confere o celular antes de explodir sua
resposta.
— Mikael, realmente não tenho paciência para drama, quer ir
embora, vai? Dane-se!
Angélica saiu bufando do quarto e se não for muita cretinice da
minha parte, agradeço aos céus.
Coloquei meu corpo moído para fora da cama segurando para não
gemer com dor. Uma queda infeliz não poderia fazer tanto mal assim a um
homem do meu porte, porém os sete pontos um pouco acima da nuca faz jus
ao ditado “quanto maior a altura, pior a queda “se for isto mesmo.
A porta se abre mais uma vez, irritado dou as costas ao próximo
que tentará me fazer dormir neste hospital. Arranquei o maldito pijama
hospitalar sentindo o ar frio do quarto contra minha pele aquecida, por sorte
me mantiveram com minha boxer preta.
— Já disse que não vou ficar em observação, não tem necessidade
disto! — expresso meu descontentamento com a voz enfadada.
Silêncio.
Imagino que deva ser Ramon, pois de todos só falta o Argentino
para fazer um sermão. Ergo os meus braços doloridos acima da cabeça
sentindo o final da anestesia local passar, os dobro em um arco perfeito, giro
os ombros ainda doloridos me alongando e alcanço roupa dobrada sobre o
sofá, a camisa já era, parece mais um pano de limpar balcão de açougue, o
que me resta é vestir o paletó do terno sobre o corpo nu.
— Cacete, deveria ao menos ter feito um deles me dar uma camisa
antes…— resmungando e ignorando a presença silenciosa as minhas costas
continuo na minha trágica tentativa de me vestir com dignidade.
O cheiro característico dos hospitais nublou os meus sentidos, e
isto é um dos muitos motivos que me apresso para sair assim que voltei a
consciência. Outro deles é saber que se dormir profundamente, com certeza
irei passar um vexame acordando em algumas horas socando o travesseiro e
em lágrimas.
Nem fodendo que fico aqui!
Meus músculos queimam ao menor esforço, travo os lábios entres
os dentes para não gritar, abotoo as calças e me inclino em busca da próxima
peça.
O leve farfalhar atrás de mim, traz consigo um aroma único, para
alguém desatento poderia identificar como algo cítrico, um aroma
amadeirado, algumas notas de musk que inibiram o odor horripilante de
materiais de desinfecção no quarto.
Posso sentir cada pequena diferença como se fossem partículas
separadas no ar, um aroma que me faz pensar em âmbar, porém tudo é muito
sutil perto do principal aroma que conheço muito bem… orquídeas negras.
Uma combinação explosiva para meu olfato, minha mente e meu
corpo que reagem com violência, minha cabeça lateja, meu pau parece uma
barra de ferro, pronto a rasgar os tecidos das calças.
Aplumo o meu corpo e sinto um arrepio percorrendo por minha
coluna pinicando toda à extensão da pele sob as asas tatuadas. Os arrepios
são tão intensos, que tenho a sensação de milhares de formigas passeando por
sobre ela.
Puxo o ar com mais intensidade e meu crânio dolorido recebe uma
nova pancada dos meus sentidos. Só tem uma pessoa que usa esse perfume.
— O que faz aqui? — pergunto ao virar-me de frente para minha
última visita da noite.
Os cabelos negros estão molhados, a jaqueta jeans esconde uma
camiseta preta colada ao corpo e tem o mesmo aspecto das calças jeans preta
e os tênis molhados formando uma poça de água à sua volta.
A pergunta foi ríspida, mas a sensação em vê-la diante de mim me
trouxe a realidade do que poderia ter acontecido de verdade esta tarde e com
isto outra realidade mais chocante.
Se tivesse mesmo sido atropelado, talvez estivesse em coma sério,
ou teria morrido e a última coisa que disse a ela foi…
— Você está bem? — sua voz estremeceu.
Sem entender a mim mesmo ou pensar muito, dou alguns passos
adiante para segurá-la em meus braços, mesmo sabendo que provavelmente
um dos rapazes a tenha feito vir aqui, pois ela não o faria por vontade própria.
Contudo, só de saber que veio, me faz sentir coisas que não quero
definir.
— Lia…— minha garganta dói ao pronunciar o seu nome.
— Vo-você está bem? — sua voz naturalmente rouca parece falhar.
— Estou. Estou ótimo!
Sinto as roupas encharcadas molhando o meu corpo, só então
percebo pela janela o quanto está chovendo.
— Por que está molhada assim?
— Meu carro quebrou.
A resposta simples não explica nada, mas arrancar algo dela seria
custoso e minha cabeça está a ponto de explodir pela dor e pela louca vontade
de gritar com ela pela hora avançada, andando sozinha na rua, na chuva sem
atinar para os perigos que esteve correndo, por tantas coisas e, ao mesmo
tempo, quero dizer… o quanto estou feliz em vê-la aqui.
— Mikael?
— Sim! — sussurro.
— Você está me apertando com muita força.
A ouço e tento me afastar, mas percebo ser ela quem está me
segurando como um polvo. — Se você me soltar…
— Hum? — Lia dá um passo atrás, me olhando fixamente com
uma expressão que não consigo decifrar.
Na verdade, nem são os meus olhos que ela encara, mas parece ser
um ponto em meu rosto, como se tivesse travada no enorme curativo por trás
da minha cabeça.
— Lia, sobre hoje no tribunal.
— Você está bem?
— Sim, já disse que sim!
— Ok! Eu já vou então.
— Espera…
— Você está bem?
Reconheço minhas inúmeras falhas e a falta de paciência e
gentileza faz parte de uma longa lista, por este motivo, freio minha língua.
— Como pode ver por si mesma, estou bem! — respondo
pausadamente.
Lia me olha de cima a baixo e fixa seus olhos nos meus. Ela não
diz nada, apenas suspira lentamente, passa a mão pelos longos fios,
parecendo se dar conta só agora do quanto está molhada.
— Preciso ir.
Aceno de leve para ela, essa com certeza é a nossa pior conversa
dos últimos tempos e provavelmente a mais pacífica.
O celular em seu bolso vibra, ela o pesca entre os dedos sem perder
o foco em mim, eleva a mão na altura do rosto e confere muito rapidamente a
tela se sobressaltando.
— Preciso ir, — ela diz com urgência. — Você…
— Lia, eu estou bem, vai… — digo acenando em direção a porta.
Ela sacode sua cabeça e retrocede dois passos, me dá as costas e
segue para a porta sem atender a maldita chamada. Lia coloca a mão sobre a
maçaneta e hesita por um segundo.
Provavelmente em algum momento do futuro quando precisar me
lembrar deste dia, seguramente não gostaria que fosse esse olhar perdido e
sem vida em seu rosto.
— Lia!
— Mikael!
Nós nos olhamos ao mesmo tempo, não sei quem deu o primeiro
passo, porém é certo dizer que a minha língua foi a primeira a invadir seus
lábios e sentir o doce sabor do seu beijo.
O seu corpo estremece contra o meu, seja de frio ou prazer, prefiro
acreditar que seja pelo o mesmo motivo que sinto.
Mesmo que nossas vidas tenham se tornado um verdadeiro cabo de
guerra, e que nossos mais gloriosos embates nos levem a um sexo alucinado,
por hoje ficarei feliz de poder beijá-la, só mais uma vez.
Minha boca desliza sobre a sua, os lábios gelados aquecem rápido
contra os meus, minhas mãos descem pela lateral do seu rosto até tocar a
altura da sua nuca. O latejar infernal da minha cabeça triplicou por me curvar
até alcançá-la, mesmo se colocando nas pontas dos pés, Lia ainda é pequena
dentro do meu abraço.
Sua língua desliza sobre a minha, os gemidos sutis que ela emite,
discorrem dentro da minha boca e reverbera com força no meu pau a cada
segundo mais duro, quero aprofundar cada vez mais o beijo, comemorar que
ainda estou aqui, que mesmo me odiando, ela veio até a mim. No entanto, o
som de uma nova chamada nos traz a realidade e com muito esforço a solto
lentamente.
— Estou bem, não fica preocupada, — olho de soslaio para o
celular em sua mão —, volte para casa, o moleque deve estar sentindo sua
falta.
Poderia ser pelo som do celular apoiado contra meu peito, ou o fato
de ter lembrado o seu filho, faz com que Lia desperte do seu transe e encare-
me de uma forma que conheço bem, adeus beijos ardentes e uma sarrada
antes de receber alta.
— Exato! — sua voz é enérgica —, tenho um filho para cuidar e
não deveria me preocupar com alguém que não o faz por si mesmo.
— Como é?
— Você deve pernoitar em observação! — ela diz dando um passo
atrás, assumindo a porra da postura que me deixa louco.
— Eu não preciso!
— Seu diploma é de quê? Tem Bacharelado, Doutorado e
Mestrado em que mesmo?
Impossível não rir com a forma que fala.
— Lia…?
— Medicina? Se você não tem diploma em medicina, não tem voz
ativa para argumentar. Tira essas calças e mete essa bunda na cama até o
MÉDICO responsável lhe dar alta. Passar bem, boa noite.
Explodi sentindo minha cabeça ferroar, enquanto ela fecha a porta
do quarto com delicadeza. — OBVIO! Ela tem consideração com os outros
pacientes, mas pode agir como uma Mata Hari molhada só para me
infernizar. — Debocho em voz alta.
O que estou fazendo? Resmungo comigo mesmo enquanto arranco
a porcaria das calças que agora estão molhadas e me deito com cuidado na
droga da cama hospitalar.
Inacreditável! Um beijo e ela me convence a pernoitar aqui?
— Droga! — reclamo, me ergo e apago as luzes no painel sobre a
cama.
DUAS SEMANAS DEPOIS
Duas horas de exercícios e uma corrida na praia é uma rotina diária
para manter o corpo funcionando, apesar de ter passado alguns dias
impossibilitado, ainda sinto dores de cabeça fortes o suficiente para tomar
sedativos, o que de certa forma me ajudou com os pesadelos, pois uma vez
que apagado passei a dormir como uma pedra, mesmo que ao acordar a
sensação estranha ainda esteja lá.
Após um bom banho relaxante, uma hora de prática no piano ou
violão, meu corpo grita por cafeína. Sou um homem que necessito de no
mínimo três xícaras de café e outras tantas ao longo do dia, sei que não é
saudável, mas compenso o excesso com outras coisas.
Um detalhe muito importante, não é qualquer café, tem que ser
preto, forte sem açúcar ao ponto de o sabor amargo e intenso no fim deixar
uma sensação doce no paladar.
Essa é minha hora mágica, talvez o único momento do meu dia que
posso ser eu mesmo, sem ficar me limitando, podando movimentos e ações
para não criar uma situação que no futuro não saiba lidar.
Deixo a toalha que estava secando os cabelos após o banho na
lavanderia, retorno à cozinha, ligo o aparelho de som no canto do balcão,
logo a letra de Bed Of Roses na voz do bom e velho — Bom Jovi preenche o
ambiente, não hesito e me junto à canção.
Abastecendo a minha máquina de café expresso, mas nada de
cápsulas, amo um café feito com grãos torrados e moídos na hora. Assim que
os grãos começam a ser torrados, um forte aroma preenche a cozinha,
automaticamente suspiro em deleite.
— Não tem nada melhor... — pauso refazendo minha frase —, a
não ser o sexo, ele é melhor!
De imediato algumas cenas se formam na minha mente, indo
contra o bom senso que rigorosamente manda ater-me ao fato de que: o que
quero não é o que preciso, pelo menos em primeira instância.
Continuo com o processo em preparar um ótimo café da manhã, o
celular sobre a bancada emite o sinal de mensagem, olhando por cima vejo
nome do Ramon piscar na tela, não dou atenção e prossigo o que estou
fazendo.
Estou a ponto de ligar a máquina quando a campainha toca e isto
sim, me faz parar.
Olho o relógio sobre o balcão, são exatamente sete e quinze da
manhã, hoje não é o dia de limpeza e com certeza não estou esperando
ninguém.
Ao contrário dos meus amigos, mantenho meus domínios apenas
para mim, não sou adepto de receber visitas, de promover encontros em
minha casa, tirando Lia que invadiu minha sala há algum tempo, ninguém
mais tem acesso, a não ser…
Deixo de lado o que estou fazendo, com o celular nas mãos
caminho em direção ao vestíbulo de entrada. Desbloqueando a tela, leio a
mensagem, como imaginava só poderia ser, Staeler em minha porta.
INVASÃO
“Quando defendemos os nossos amigos, justificamos a nossa amizade.”
Marquês de Maricá
MIKAEL
S
aio do transe ouvindo Ramon resmungar novamente, respondo-o mesmo sem
saber o que disse.
— O que você quer ouvir, uma meia verdade, uma mentira ou o
mesmo que venho dizendo? — sou impaciente. — Eu não vi nada, não posso
afirmar que tenha sido aquela mulher!
— Quero saber o que anda o perturbando e não mentiras.
— É um assunto particular. Para quem escondeu um casamento
dezessete anos, está muito interessado na minha vida!
— Touche! Todavia, pouco me importa se quiser usar meus erros
contra mim. Driblou a segurança sem importar com os esforços que temos
feito para que todos fiquem EM SEGURANÇA. Você foi em direção ao
carro! O motorista seja lá quem for, avançou na sua direção e em vez de
desviar-se, permaneceu no mesmo lugar. Continuo ou já vai começar a falar?
— Não sei por que deveria interrompê-lo. — respondo com
tranquilidade.
— Você queria se matar? Está acontecendo mais alguma merda,
além das que já enfrentamos diariamente? Porque o fato de ter ficado lá
estirado no asfalto esperando o carro dar uma ré por cima de você, não me
parece coisa de alguém estável, mentalmente falando.
— Onde foi que conseguiu seu diploma em psicologia? Supus que
fosse formado direito. — ri lembrando-me de Lia me dizer algo semelhante
no hospital.
— Existem coisas que não precisamos estudar para ver, qualquer
um pode enxergar que tem algo muito errado com você. Mikael se precisar de
ajuda é só pedir, já temos gente ferrada demais em nosso meio, não
precisamos de mais um assim.
— Não tenho nada a declarar, a não ser que queira levar um chute
para fora desta casa, pare com esse interrogatório inapropriado
imediatamente.
— É algo relacionado ao aparecimento de Verônica. Não estou
perguntando, estou afirmando pelos diários que encontrei da minha mãe, essa
mulher infernizava a todos incluindo seus pais, por que não se abre comigo?
— Vou colocá-lo para fora, mesmo sendo o pai da coisinha mais
fofa do mundo e foda-se, se no processo quebrar algumas costelas. — ironizo
enquanto solto uma risada, mesmo sem querer.
Ramon me encara sentindo a batalha perdida, ele se ergue, vai até a
máquina me dando às costas e uma oportunidade de me tranquilizar. Por que
falar da minha família me coloca em um inferno sem volta.
Gradualmente o humor, mesmo sendo forçado, volta a ganhar
espaço sob mim e consigo retomar o controle da situação, ao menos, por um
momento.
— Vai usar a tática do bebê fofinho, para desviar do assunto? —
ele pergunta ainda de costas.
— Está dando certo? — rebato levantando-me.
Staeler não contrapõe minha forma de agir. Com sutileza ele
começa a falar sobre sua vida como pai e marido ativo, não consigo ainda
entender como eles têm superado dia após dia. Descobrir que foi pai, acusar a
mulher que ama de roubar-lhe um filho e no final ouvirem da boca da
assassina uma confissão monstruosa. Putz!
Entre risos não tão forçados assim, ouço descrever, como a Pérola
com alguns meses já tem ganhado corações por aí.
Ramon é uma prova de que nem tudo que foi plantado contra nós
no passado vingou, ainda bem que algumas histórias não se perderam no
caminho. Garantidamente, esses homens que tanto presam a questão familiar,
conseguiram reencontrar-se com suas amadas e conquistaram o que tanto
desejaram.
Depois da nossa terceira caneca de café, deixei a cozinha e fui para
meu quarto me vestir, conseguir manter o máximo da minha sanidade dentro
dos meus limites.
A ligação levou dois toques para ser conectada, ainda não sei por
que ceder a um impulso idiota, provavelmente a tensão ou essa sensação
ruim.
— O que quer, Mikael?
A voz sai abafada e pelos ruídos é fácil de deduzir que ela colocou
a chamada em viva voz.
— SEXO!
— Puta merda!
— Epa! Temos criança nessa casa. — Ouço uma voz ao fundo e o
som de uma porta sendo fechada.
— Que desgrama, Mikael!
— Quem mandou me colocar em chamada de viva voz? —
Debocho enquanto vou ao banheiro, pego a toalha e passo pelo rosto
molhado.
— Diz logo o que você quer, estou ocupada!
Sua voz continua longe e pelo eco, deduzo que esteja terminando o
banho, ou seja está nua? Para alguém prestes a entrar em um ataque de
pânico, qualquer distração é bem-vinda, ao menos o meu pau aprecia a visão
que tenho em minha mente.
— Eu já disse: QUERO SEXO! — aumento minha voz.
— Vou me cortar assim…
— Humm… — foi a minha vez de travar com esta nova informação
—, depilada do jeito que gosto, de quatro sobre uma mesa baixa de vidro,
com essa bunda redonda me servindo gostoso… porra Anjinha, meu pau está
duro feito uma barra de ferro, só de imaginar a cena.
— MIKAEL!
O grito sai engasgado. Pelos sons de frascos caindo, ela está
tentando alcançar o celular, a tentação de continuar a descrever o que quero é
grande.
— Prometo começar com beijos lentos, percorrer minha língua por
entre a fenda da sua bunda e descendo lentamente…
— Desgrama! Onde essa porcaria de celular caiu? — ela está
ofegante.
— Quando encostar a ponta da minha língua nesse…
— ACHEI! — O grito agudo interrompe a minha linha de
pensamentos sacana. — Seu pervertido! — ela bufa — sabia que está em
chamada de viva voz e falando sacanagem a essa hora da manhã? Não
acredito que tenha me ligado, só para isto. — Ela pausa e sinto que fui
descoberto. — Você ainda está com pontos?
Sua respiração está acelerada, a voz rouca arrepia minha pele. — O
que os pontos na cabeça têm a ver com meu pau querendo te foder? Além
disso, vou tirá-los hoje à tarde, então…
— Então… Você precisa de repouso, porque deve estar faltando
neurônios nessa sua cabeça rachada, — ela resmunga algo, ouço água
corrente —, não estamos nesta categoria de relacionamento no momento,
esqueceu? Se o digníssimo Promotor, acredita que esqueci o que me disse no
tribunal, está enganado.
— Dois meses é o nosso maior e pior tempo de abstinência em um
ano, — afirmo e não deixo que rebata. — Lia, quer ser fodida bem gostoso?
Silêncio.
Já imagino ela criando uma resposta da qual vai estragar o resto do
meu dia. Dois meses sem sexo, Mikael? Refaça as contas de quantos anos
passaram sem isto.
— Onde e quando…
Um frenesi de tesão percorre o meu corpo até estalar na minha
ereção pulsante, não era a resposta que esperava e isto me deixa em alerta.
Prevejo o que realmente ela vai sugerir, por isto a interrompo bruscamente
mantendo entre nós um falso encontro marcado.
—Estou esperando, para quando precisa ser aliviado do seu
tormento e fugir do interrogatório dos rapazes?
Por que minha Anjinha é tão boa que descobriu os meus ardis?
— Só esperar por mim, eu acho você.
Encerro a ligação com minha cabeça girando, me escoro contra a
parede e foco no que acabamos de falar, ao menos tento.
@Doutora_anjinha: sei que não era “só” sexo que tinha em mente
mais cedo. Está acontecendo algo, se quer conversar, me encontre no lugar
de sempre, vou te pagar um café.
CAPÍTULO 7
INESTIMÁVEL
“Aquele amor, mesmo não retribuído, tornou-se um souvenir,
lembrança de uma época bonita que foi vivida? Passou a ser um bem de
valor inestimável, é uma sensação à qual a gente se apega.”
Martha Medeiros
MIKAEL
N
o caminho para o cartório, recebi uma mensagem de Carlos Eduardo, dizendo
que faríamos a reunião no escritório. Ao visualizar pensei em discordar, por
vários motivos óbvios, entre eles que isto poderia de alguma forma me atrasar
para minha audiência na parte da tarde, mas sabia que isto seria perda de
tempo da minha parte, por isto, sinalizei em concordância.
Depois de alguns meses afastado, confesso que estar na sala de
reuniões dos escritórios A&A Associados, é revigorante. Menos a parte onde
os presentes, superam o número de cadeiras disponíveis.
A imensa mesa com tampo quadrado de madeira bruta, pés
cromados normalmente é rodeada por oito cadeiras deslizantes que seguem o
mesmo padrão de luxo e modernidade do designer.
Graças à Staeler que sempre manteve os escritórios alinhados com
bom gosto para atender aos diversos clientes de renome, dentro e fora do
nosso Estado. Elas foram realocadas de forma que outras cadeiras trazidas
das baias de atendimento da sala ao lado, usada pelos auxiliares jurídicos e
estagiários que prestam diversos serviços, sirvam de assento para July, Aline,
Carla e Angélica que descansa tranquilamente seus pés calçados em botas
militares, sobre a mesa enquanto folheia um arquivo em suas mãos.
Cada um de nós seguiu em direção aos assentos disponíveis
formando pares. Ergui minha mão com meu melhor sorriso e cumprimentei
as meninas, que retribuíram, como Angélica sentou-se à cabeceira da mesa,
havia dois lugares vagos, um de cada lado.
Escolhi a cadeira à sua direita, mas antes de soltar meu corpo
contra o estofado, bati com minha pasta em seus pés. Ela me encarou com
cenho franzido, então notei os fones escondidos pela gola da jaqueta.
— Senta direito! — gesticulo, e como ela não se move, dou outro
empurrão contra o solado das botas.
— Chato! — ela resmunga, mas senta-se como uma “mocinha”
deveria.
Escondo o riso, me reclino contra o encosto da cadeira passando os
olhos pelo local. A TV de tela plana, parece ser maior que a última em que
fizemos uma conferência, na qual Edu exigiu que Lia voltasse para Vitória.
Os vasos de plantas parecem bem cuidados e as orquídeas, que fiz
questão de comprar pessoalmente para a área do jardim de inverno, próximo
às imensas janelas de vidros, estão em flor. Aspiro o aroma e de imediato
meu humor é amainado.
Continuo minha inspeção visual, enquanto o falatório a minha volta
segue o fluxo. Angélica deixou de lado o documento e passou a enviar
mensagens em seu celular, aparentemente alheia ao seu redor. Ramon pediu
para que o seu antigo assistente, Pedro distribuísse pasta iguais a da Megera
para todos.
Ergui o documento, alcancei a caneta-tinteiro no bolso do meu
terno e comecei a girá-la entre meus dedos enquanto faço uma breve leitura
sob o documento.
De acordo com o material entregue, essa é uma das malditas
reuniões que evito a todo custo. Um balancete financeiro, relação de clientes,
funcionários e toda a burocracia das assembleias e algumas pautas de
medidas a serem tomadas no escritório junto a aposentadoria de um dos
sócios, a promoção e formalização do Xuxa ao cargo de Administrador da
empresa.
Com meus olhos encaro aos meus amigos de forma acusatória, Edu
dá de ombros, seguido por Anderson e o beneficiado, Ramon.
Ramon faz uma breve ressalva sobre o que será tratado na reunião
e pede que aguardemos ao Doutor Santana, que está terminando uma ligação
importante.
— Ele não é o único ausente. — ressalto me lembrando da pressa
que Lia estava pela manhã, enquanto falávamos em ligação.
— Lia não fará parte da reunião, Mikael. — Desta vez é Angélica
quem responde, colocando o celular no bolso da sua jaqueta.
— Por que não? Ela é uma das sócias, todos somos obrigados a
participar.
Angélica coça a nuca, suas bochechas coram e imagino que a troca
de mensagens tenha sido com Lia.
— Ela tem um compromisso importante com o filho, e além disto,
tenho a procuração para assinar qualquer documento em relação à empresa.
— Como assim? Você não entregou a herança dela, não passou
tudo para o nome dela? — pergunto me sentindo um idiota, já que vejo meus
amigos desviarem o olhar. — Que porra está acontecendo aqui?
Um incômodo cerca meu peito. Nunca procurei saber se ela já teria
recebido a sua herança, quando o moleque dela nasceu. Esse era um dos
termos do Testamento. Ao completarmos trinta e cinco anos, formalizarmos
casamento e as filhas terem seus próprios filhos, seriamos validados para
receber a sua parte correspondente da herança.
Por Lia e Aline morarem longe, sabíamos que Orestes às
representava. Contudo, depois que boa parte dos segredos vieram à tona,
descobrimos que, na verdade, Angélica detinha o poder sobre toda a nossa
herança e Orestes era apenas um funcionário, testa de ferro é o melhor termo.
Nunca dei devida importância se ela recebeu ou não, pois sabíamos
que Aline o fez, são as regras. Uma cláusula, sem motivo algum para que não
fosse cumprida. A não ser que…
— Puta que pariu! — explodo me erguendo, sinto meu corpo
aquecer.
Ramon se ergue seguindo-me de perto quando me aproximo de
Angélica e me debruço contra a sua cadeira, apoiando um das mãos no
encosto e outra sobre o tampo da mesa. A Megera nem se move, ela sabe que
não sou uma ameaça física, mas não posso impedir meu temperamento de
explodir em rugidos.
— Angélica, me responde com muita assertividade. — Exalo com
força e retorno o ar nos pulmões inalando devagar. — Você não entregou o
que era de direito a Lia, por conta daquela maldita acusação de roubo contra
o tio Joaquim?
Eu mal consigo formar uma frase congruente com a raiva
espiralando por sobre a borda. É certo que no passado as rusgas,
desconfianças e tantas outras questões que rodeavam aos nossos pais, causou
desentendimento a certo nível, mas nem mesmo nos meus piores pesadelos,
imaginei que pudessem de alguma forma lesar uma herdeira legítima.
— Mikael, — ela diz em tom baixo. — Espaço.
Uma única palavra e compreendo o que me pede, dou a ela o
espaço solicitado caminhando para o outro lado da sala.
— Ramon?
— Mikael, deixe que Angélica explique a situação.
— Você, sabia disto? Foi isto que não conseguiu me dizer pela
manhã, me fez vir aqui com essa desculpa de reunião, para me contarem essa
merda? Não se atrevam a tirar algo dela!
— Não é o que está pensando. De certa forma tem a ver, mas está
longe do real motivo da nossa conversa.
— Angélica, fala logo. Porque a Lia não está aqui, no lugar que é
de direito e dever filial da parte dela?
— Bom, — a Megera se joga contra o encosto da cadeira e encara-
nos com ar enfadado —, quando ela foi notificada de que receberia sua
herança, assim como todos os bens relacionados ao espólio pertencente, casa,
carros e apólices de seguro… — sua voz hesita, ela coça a nuca e depois
aperta as têmporas, visivelmente irritada, como se dar continuidade ao que
tem de dizer, fosse um crime inafiançável.
— Fala!
— A sua amável Anjinha, se recusou a receber o que é dela!
— O quê?
— Em vez de me livrar de um problema oculto, agora tenho um
real, pois não disponho de tempo para encontros burocráticos, ou estas
reuniões infernais. Ela não me fez a gentileza de aceitar o que o pai dela
deixou, me livrando de uma inerente responsabilidade.
— Como assim não aceita? — de imediato me vem à mente os
problemas financeiros que parecem se amontoar em sua mesa. — A Lia vive
de quê?
Outro silêncio, desta vez até mesmo July e as meninas desviam o
olhar. Me sinto um idiota que por preferência vive a margem de tudo, não
deixando que invadam minha privacidade, assim como não faço com os
demais.
Com ela, é diferente. Sempre faço perguntas, mesmo sendo
aleatórias, mesmo que nossos encontros sejam para fodas, sempre deixei
claro que tudo a seu respeito me interessa, mesmo que não consiga dar a ela a
mesma liberdade de interferir na minha vida. Isto funcionaria bem se ela me
respondesse tudo.
Tudo faz sentido, a compra do apartamento da Aline, em vez de
morar em uma puta mansão em um dos bairros mais nobres de VIX,
trabalhos excessivos, hora extra, a porra daquele carro velho cheio de defeitos
que vive quebrando.
Meu peito dispara, corro em direção a mesa e pego o maldito
relatório. O balancete do último semestre está na segunda página, não perco
tempo lendo resumos, corro os olhos até os valores pagos aos associados e
meu peito aperta. Lia recebe uma boa soma em dinheiro, mas de longe se
equipara ao valor que os demais recebem.
— Que caralho é isto, Ramon? Por que não paga a ela o mesmo
que nós?
— Porque ela devolve! — Ele bufa irritado tanto com minha
observação, quanto pelo fato de Lia se recusar a receber.
Conhecendo bem o gênio da mulher que povoa meus pensamentos
e orbita a minha volta, eu sei do que ela é capaz ao ser contrariada. Ainda
mais se tratando de dinheiro. Me recuso a acreditar que tenha algo a ver com
nosso passado.
— Essa mulher enlouqueceu? — perco a pouca paciência que me
resta. — Que porra ela está pensando da vida, com um filho para criar, quem
em sã consciência recusaria dinheiro?
Minha voz está alterada, a porta do escritório se abre e nem me dou
ao trabalho de olhar, provavelmente deve ser Giovane.
— Uma pessoa que teve a sua vida arruinada, quando o pai foi
injustamente acusado de roubo? Roubo deste mesmo patrimônio, devo
ressaltar, Promotor Nikolaievitch. A mulher que recusa é a mesma que viu o
pai ser algemado em seu aniversário de dezoito anos, não foi o melhor
presente que o SEU pai deu a ela.
As palavras de Giovane caem como uma bomba na sala, não
apenas eu, como os rapazes se erguem debatendo o que ele diz. As
lembranças daquele dia, arrebentando com nossa manhã, como uma picareta
afiada em gelo fino.
— O quanto você sabe sobre nós, para poder sair falando de coisas
que não lhe dizem respeito, Doutor Santana? — Ramon inquiri de forma a
calar a todos.
Olho para baixo ao sentir a pressão dos dedos magros contra meu
punho fechado, ele está a minha frente, não sei se me bloqueando, ou
protegendo Giovane.
— Posso dizer que sei o que ela mesma me contou e nada mais.
Peço perdão por invadir uma discussão particular da “família”, mas se o
assunto envolve alguém que considero como uma irmã, não posso me calar.
— Vai para a puta que te pariu, ela não é nada sua! — rebato.
— Não concordo com ela, — ele se faz de surdo —, ao negar algo
que o pai lutou tanto para adquirir, é o mesmo que atestar a incapacidade dele
de se provar inocente, porém ela é adulta e sabe melhor do que ninguém,
como gerir a própria vida. Devo ressaltar que faz muito bem sem a ajuda de
ninguém!
— Se essa é a sua única informação, ou se há mais, — Edu entra à
frente de Ramon, criando mais uma camada na porra da barreira —, peço que
conservar-se à margem, não interfira em algo que vai além da sua
compreensão.
— Tenho certeza de que ele entende perfeitamente, que se
intrometer em assuntos de FAMÍLIA, não faz parte das suas funções como
administrador da A&A, não é mesmo, Doutor Santana?
Anderson completa a sentença de Edu bem ao meu lado seguindo o
exemplo de Ramon segurando meu punho cerrado com os documentos
macerados entre os dedos.
— Eu mais uma vez, peço perdão se de alguma forma, fui
inconveniente.
Um riso sarcástico é escanteado em lábios, pois somente um idiota
levaria a suas palavras com alguma seriedade.
— Ok! — Angélica se ergue. — Por hoje, só teremos uma simples
reunião, sem massacres sanguinários, por isso podem largar o Ovinho,
meninos. Ele não vai matar o Santana. — Ela volve seu corpo de lado e o
encara com adagas nos olhos. — Porque ele não irá se meter naquilo que não
lhe concerne! — Ela exclama com ar sombrio.
— Não preciso que me segurem, — digo, dando um passo atrás e
me libertando do aperto firme dos meus amigos — tão pouco me interessa,
que ele julgue saber de algo, isto — ergo os papéis —, muda aqui e agora! —
ressalto e entoo as palavras com a mesma ênfase que faço ao dar minhas
conclusões nos tribunais.
— Ramon, antes que passe o cargo em definitivo, ajuste os ganhos
da Doutora dos Anjos. Angélica, prepare os papéis para transferência e
endossamento da herança. Vocês têm três dias, a partir de hoje.
— Adoro quando o cheiro de testosterona invade o ar. — July
comenta, retira um caderninho da bolsa e o coloca sobre a mesa fazendo
anotações.
Jogo a pasta sobre a mesa e me retiro da sala, preciso de um
momento para esfriar os ânimos, ou serei capaz de perder a educação e
realmente matar um.
IMPASSÍVEL
“É preciso querer ser feliz e contribuir para isso. Se ficarmos na
posição do espectador impassível, deixando para a felicidade apenas a
entrada livre e as portas abertas, serão as tristezas quem entrarão
Émile-Auguste Chartier
LIA
P
referia não ter vindo ao almoço que July preparou, mas justamente por sua
dedicação não poderia deixar de vir.
Conseguir escapar da reunião foi um golpe de sorte, se meu celular
me desse um choque a cada vez que Angélica me perturbou com mensagens
do tipo: “Arraste sua bunda para cá, agora!” — “Onde você está se
escondendo Pocahontas?” Ou então. “Quando eu te encontrar, vou
arrancar esse seu cabelinho de Barbie.”
Essa última, confesso me fez rir. Será que Angel tem noção de que
ela de fato se parece com uma bonequinha Barbie com aquelas madeixas
loiras?
Após deixar Anjinho na escolinha, segui até o escritório e me
mantive escondida para receber um cliente. Contei os minutos até a minha
reunião acabar e poder sair antes deles.
Ouvi por alto comentarem que a sala de reuniões virou um campo
de concentração, mas era algo previsível.
Desde que foi anunciado os preparativos para aposentadoria de
Ramon, todos sabíamos que no derradeiro dia, uma bomba apocalíptica cairia
sobre nós.
Entre alguns dos motivos que me fizeram fugir às escondidas, esse
foi de longe o mais brando, como não teria escapatória, seguimos para o
restaurante antes do combinado e passei às duas últimas horas trabalhando no
banco detrás do veículo.
Dionísio abriu a porta traseira do SUV e sorriu com aquele ar
sempre sexy, é inevitável não retribuir. O Yes-man, não perde uma única
oportunidade de ser galanteador. Hoje para roubar o juízo de almas inocentes
— feito a minha, ele veio para fazer sucesso.
Perco alguns segundos no veículo, calçando meus saltos, mas tudo
uma desculpa para apreciar a peça rara em minha frente. Diferente do seu
habitual terno preto, Dionísio escolheu a cor cinza-claro, o que combinou
com seus exóticos olhos verdes.
O corte perfeito me diz ser um Armani, e tenho a impressão de ter
sido feito sob medida, para abarcar a largura dos ombros, bíceps e coxas
musculosas perfeitamente visíveis. A camisa social preta com colarinho entre
aberto permite ver o início do trapézio, a pele negra lustrosa é um chamariz.
Vejo sua expressão e me sinto corar, creio ter perdido mais do que
alguns segundos visualizando o conjunto da obra. Feliz a mulher que brincar
neste parquinho. — Penso.
Como diria July: se tesão tivesse rosto, ele seria idêntico ao meu
segurança.
Ele leva a mão fechada aos lábios produzindo um som de “rum-
rum” me encara através dos óculos de sol do tipo agente secreto, e abre
aquele sorrisão.
— Não eleve suas esperanças meu caro, — salto do carro e dou
dois toques em seu ombro —, a culpa é do seu bom gosto para roupas.
— Isto me basta, já que estando de serviço, não posso responder
outra coisa.
— Você está muito elegante para um guarda-costas.
— Digamos que, — ele pausa, bate à porta do carro e apluma os
ombros —, estou protegendo uma pessoa preciosa, que merece este cuidado.
— Ele arremata sua fala passando a mão indiscretamente sobre o peitoral.
O riso preso na garganta explode, mas o contenho a tempo, não que
vá ferir seus sentimentos, porque estou descobrindo no meu “segurança” um
amigo interessante. Contudo, estas frases bregas que ele solta aqui e acolá,
sempre alegram meu dia.
— Você quer almoçar conosco? — o convite sai de forma
espontânea e pega a ambos de surpresa.
— Agradeço, mas terei de declinar. Tenha um bom encontro com
os seus amigos.
— Duvido muito e… obrigada.
— Pelo quê?
— Por me distrair.
— Tentei soar galanteador, poxa… — ele faz um estalo com a
língua no céu da boca.
Não tenho a oportunidade de respondê-lo. Angélica estaciona sua
moto no pátio do restaurante e nos encarou com ar assassino.
INSPETORA
“Com o tempo você vai perceber que para ser feliz com outra
pessoa,
precisa em primeiro lugar, não precisar dela…”
Autor Desconhecido.
JULY
A
vista da enorme mansão sempre me arranca o fôlego. Chamá-la de lar é o
reverso de tudo que já tenha experimentado em minha vida, meu corpo e
alma se enchem de uma satisfação que não sei explicar. Talvez, seja a tal
alegria por sempre voltar ao LAR?
Desliguei o motor do carro, pelo espelho retrovisor observo os dois
armários embutidos em um SUV preto estacionado no meu portão.
Quem nunca quis homens bonitos e troncudos correndo atrás de
si? — penso com um riso sacana. No entanto, realmente tê-los fazendo isso a
cada segundo do dia, é de cair o cu da bunda!
— Principalmente pelos motivos que nos fizeram ter guarda-costas.
— assopro minha franja longe, me sentindo irritada.
Ao aceitar meu emprego, não esperava encontrar o amor. Um pai
de verdade para meus filhos, e nem mesmo um homem que me amasse e
valorizasse por quem era realmente, e está é a parte que mais emociona.
Amadurecemos mais nestes últimos três anos de relacionamento, do que em
toda nossa vida, as nossas diferenças apimentaram nossa relação e aquilo que
muitos julgaram que em breve poderia ofuscar esse amor, apenas fortaleceu.
Não vivemos em um mar de rosas, até porque, são os espinhos que criam a
couraça para passar dia após dia juntos, mas sempre buscamos nos entender.
É um fato, e sei que Edu concordaria comigo.
Alcanço a bolsa no banco detrás, retiro meu caderninho de
anotações, repassando página a página.
Com o tempo que levei do restaurante até chegar em casa, muitas
coisas passaram por minha mente de forma frenética. Entre elas, os novos
motivos que fizeram declinar-me da decisão de me manter longe deste caos.
Já fazia algum tempo que desisti de entender as minúcias, mentiras
e segredos deste amontoado de gente que formou uma estranha família, como
um quebra-cabeças gigante de peças obscuras e pontiagudas. Estar envolvida
com histórias macabras e atentados à vida, não era o que sonhei para minha
história de amor, por isso imaginei que se me mantivesse longe disto poderia
proteger a mim e minha família.
Mesmo que neste processo, me sentisse um pouquinho magoada e
excluída de alguma forma; — um pouco dramático, porém é justificável.
— É claro, que sei que cheguei por último, querer meter minha
colher de pau na vida de outras pessoas, pode ser indelicado e até xereta da
minha parte, mas se eu não o fizer? Quem faria? — argumento em voz alta,
olhando às duas últimas notas e as reflexões que fiz sobre elas.
A minha prévia conclusão é: não são apenas segredos sobre bens
materiais que ainda não foram revelados. São sentimentos de amor e ódio
enterrados. E se, não puderem superar isto, jamais teremos paz, e nem
mesmo a capacidade de combater o inimigo real de frente.
Munida destes argumentos válidos e pela minha curiosidade que
foi alimentada com tantas descobertas, estou disposta a voltar à ativa.
Abro a porta do motorista, coloco meus pezinhos calçados em um
Prada escandaloso no cascalho de pedras, o vestido vermelho de alças largas
sobe deixando boa parte das minhas pernas e coxas grossas à mostra, com
impulso saio do veículo, bato a porta, jogo os longos cachos negros para trás
e sinto o tecido leve sambar ao redor dos quadris largos.
Olho por sobre os ombros e não perco os olhares dos seguranças.
— dou a eles um sorrisinho e um tchau balançando os dedinhos. Sei que sou
ousada, não apenas em demonstrar-me orgulhosa das minhas curvas plus
size, mas por manter minha arma secreta, — meu caderninho de mistérios,
bem seguro em minhas mãos.
— O mundo que se cuide, a CSI Moranguinho está de volta!
IMUTÁVEL
“Olhei para você fixamente por instantes.
Tais momentos são meu segredo.”
Clarice Lispector
LIA
A
bro à porta corta-fogo do terceiro andar, me encosto contra a parede do
corredor de frente a porta do meu apartamento. Preferi subir pelas escadas
ganhando mais alguns minutos para poder pensar em tudo que ocorreu, pois
após entrar em casa, pretendo com muita força desligar-me por completo de
toda essa loucura.
Alcanço o celular no bolso das calças, desbloqueio a tela, confiro a
última mensagem que ele me enviou, as suas palavras martelam em minha
mente.
Estou curiosa e reticente em querer saber exatamente sobre o que
aconteceu pela manhã para me procurar e depois durante a reunião. Contudo,
no fundo, o meu sexto sentido me diz que procurar saber sobre isto, só me
deixará ainda mais frustrada.
Um sinal de bipe soa com a chegada de uma nova mensagem. É
Nina querendo saber se já estou a caminho. Não a respondo e uso os minutos
que faltam para abafar tais pensamentos e a sensação de formigamento em
meus lábios desde que ele me beijou…
Existem sentimentos que estão enraizados em nós, e estes são
imutáveis. Ter saudades é um destes e creio que nunca machucou tanto
quanto nos últimos tempos.
Mesmo com todo o meu palavrório extenso, conhecimento de
causa, argumentações jurídicas, não poderia realmente explicar a dor que
irradia pelo meu peito quando o assunto é saudades.
De uma forma racional imbui tudo isto ao fato de que em algum
momento, senti a falta de algo ou alguém, por voltar à proximidade com
todos meus amigos, por estar de volta à Vitória revivendo memórias
dolorosas e os grandes momentos de tensão com minha mãe. No entanto, a
verdadeira roda gigante de emoções que tem me abalado se chama, Mikael.
Com ele é do sexo quente às piores brigas que já tivemos.
Saio do meu estado de torpor físico, aplumo os ombros, passo a
mão sobre o coque em meus cabelos e meu rosto, como se o gesto pudesse
apagar qualquer resquício destes sentimentos. Coloco a chave na fechadura e
a giro, abrindo a porta com o meu melhor sorriso.
Dentro de toda está odisseia louca que a minha vida se tornou, o
único que me suga toda a energia e a recarrega na mesma intensidade me
fazendo sorrir ao final do dia, é meu filho, minha melhor escolha.
Trago o ar fresco para dentro do peito e atravesso o marco da porta.
— Olá, a mamãe está em casa, onde está meu Anjinho?
— Mamãe? — coloco minha bolsa e a pasta com documentos
sobre o sofá, chuto os saltos para longe e deixo meu pequeno que vem
correndo em minha direção, saltar sobre meu colo.
— Ai que saudades! — exclamo enchendo-o de beijos.
Anjinho ri sentindo cócegas, enruga seu narizinho e encosta contra
o meu.
— Beijinho… — ele pede apertando-me com o seu rosto
rechonchudo.
O cheirinho do sabonete infantil enriquece o ar, abraço meu filho,
sentindo minhas forças sendo recarregadas. Brinco com os seus cabelos que
estão quase cobrindo os olhos, pensando no dia que precisar levá-lo para
cortar e o quão difícil será para nós.
O pensamento vem e vai, há muito tempo decidi viver uma
situação de cada vez em relação as suas debilidades. Sofrer por antecipação,
tira o brilho e a alegria de viver as descobertas diárias que ser mãe de uma
criança autista pode me favorecer.
Nina aparece no corredor, ela indica que está indo para a cozinha.
Nosso acordo é: um dia sim, outro não, uma fica responsável pelo jantar e
para minha sorte hoje é o dia dela.
Roço mais uma vez o meu nariz contra o dele, fazendo um beijinho
de esquimó. — O que tem para me contar de novo hoje?
Anjinho não responde. Se ergue, tira do bolso um papelzinho
dobrado em um quadradinho perfeito e me entrega. Abro com cuidado, não
tem nada escrito na folha, pergunto-lhe que seria isto, e antes que possa
desenvolver uma conversa, Anjinho volta para a sala de música, onde deveria
ser minha sala de estar.
Suspiro, imagino que o significado do papel em branco, seja algo
que tenha ouvido, ou aprendido que não agradou.
Ergo-me recolhendo meus pertences e caminho direto ao meu
quarto para tomar um bom banho. Chegar do trabalho, cansada depois de dias
como o de hoje com encontros nada agradáveis, conversas desnecessárias e
uma volta ao passado como Mikael me fez ter, só um bom banho e horas,
agarrada em meu filho para aliviar a tensão.
Meu filho não pode expressar o que o afligi. E como sendo sua
mãe, a pessoa que enfrentaria qualquer tempestade para assegurar sua
felicidade e proteção, não poderia compreender sua analogia tão sábia?
Ele quer ser um pinguim, porque assim poderia ter um papai
pinguim?!
Nunca a presença paterna fez diferença para ele, pois nos
bastávamos. Eu não tenho noção de quando isto começou. Tenho medo de
fazer julgamentos precipitados, mas às vezes tenho a impressão de que
alguém, ou até mesmo algum coleguinha da escola o tem pressionado sobre
quem seria seu pai.
Deus do céu! Que precipício terei de andar agora? Porque tanta
prova, por que tem de ser com meu filho?
— Oh! Meu Anjinho, — as lágrimas me envolvem —, perdoa a
mamãe. — Abraço meu filho com força.
Não posso crer nas palavras que brotam em meus lábios, pois este é
um desejo que jamais permiti nascer em meu coração. Porque sei das
consequências dolorosas que isto causará aos envolvidos.
Não posso prometer o que está longe das minhas mãos. Todavia,
prometo que a mamãe, vai entrar no oceano para buscar o que o meu
Anjinho desejar.
Deixo as lágrimas derramarem por meu rosto. Existem lutas que
não posso evitar, apesar de todas as dores que vivi.
Observo o meu bebê com todo carinho, sentindo seu corpinho
frágil se entregando ao meu conforto, enquanto ressona baixinho, a boquinha
rosada se entreabre fazendo um beijinho inocente, os lábios se mexem
formando sulcos nas bochechas suaves revelando suas covinhas.
Os dedinhos inquietos, finalmente repousam emaranhados nos fios
do meu cabelo. Com cuidado desvencilho o meu corpo do seu agarre. Meu
estado emocional é pior que uma montanha-russa desencarrilhada. Beijo o
alto da sua cabeça, esfrego meu nariz sobre o dorso da sua mãozinha e me
afasto deixando meu Anjinho protegido em seu ninho de sonhos.
O meu Eu racional, não compreende o que meu Eu emocional está
gritando contra meus ouvidos, martelando minha mente como se fosse um
aríete.
Deixo a cama, apago a luz do quarto deixando ligado somente o
abajur sobre o criado mudo. Dois passos me separam do corredor. Dez
passos de um telefone. Alguns quilômetros de um embate.
Saio e deixo a porta entreaberta, mais uma vez me escoro contra
uma parede e faço uma rápida reflexão para pautar minha decisão.
Durante os anos que me preparei para cursar a faculdade de Direito
em Lisboa, viver em Portugal era o meu sonho, no final transformei meus
sonhos em cinzas, pois o ato de liberdade tornou-se minha prisão.
Minhas vontades se curvaram à minha realidade.
Todos os planos traçados, foram rechaçados e ironicamente a
primeira fala do meu professor dentro de uma sala apinhada de pessoas
estranhas que não imaginavam o que de fato ocorria no meu íntimo, foi a
sentença que me deixou nua e desprotegida.
Foi ali que aprendi a criar minha couraça.
Aprendi a usá-la para me defender e o mais importante, aprendi
que ela poderia abrir caminhos que jamais imaginei querer trilhar. Está na
hora de colocar estes pensamentos em prática mais uma vez.
Para aqueles que compreendem a grandeza da verdade, analisem
a si mesmo e se julguem, pois, como diria Rui Barbosa: “A maior que a
tristeza de não haver vencido é a vergonha de não ter lutado!
SANTIAGO
A
escuridão dos enormes cômodos faz uma alusão com meu estado de espírito,
hoje em especial me sinto dominado por lembranças tortuosas. A minha
primeira medida é conectar meu celular ao aparelho de home theater e
inundar o ambiente com uma boa ópera, de preferência em um volume que
me impeça de ouvir meus próprios pensamentos.
Hoje é um daqueles dias que como qualquer ser humano enfadado,
desejaria caminhar a esmo sem olhar para trás. No entanto, não me dou esse
luxo, porque por mais que tente me afastar, no final o desejo de me vingar
ferve dentro de mim, de uma forma que me revira as entranhas.
A cada cômodo checado, deixo uma luz ligada, as cortinas com
blackout impedem que pessoas do lado de fora possam ver a parte interna da
casa. Uma medida útil e conveniente para alguém que não suporta escuridão.
Uma risada sardônica me escapa. É desconfortável e vergonhoso,
saber que um homem capaz de fazer o que já fiz e ainda pretendo fazer, tenha
medo do escuro.
— Uma vergonha e afronta para o velho Gustavo, se ainda
estivesse vivo. Certamente me enterraria em um buraco debaixo da terra e me
deixaria lá por um mês. Maldito, filho da puta! — falo comigo, enquanto
checo um dos quartos vazios.
Procuro não pensar nisto e nem em qualquer lembrança que me
aterre.
Após passar por todos os cômodos do primeiro e segundo nível,
faço o abastecimento da dispensa e confiro a caixa de força no porão.
A melodia de Strauss ressona pelos cômodos da imensa mansão.
Ainda não consigo compreender o porquê de Angélica querer mantê-la, por
mim, teria incinerado até que só sobrasse apenas cinzas.
No entanto, aprovo o uso como “casa segura” como uma rota de
fuga para mulheres e crianças fugindo dos seus algozes. O que é irônico, uma
vez que o “nosso” antigo lar, que foi o palco das mais horrendas e perversas
atrocidades que um demônio com alcunha de pai poderia cometer.
Minha intenção era usar como desculpa o fato de passar e deixar
alguns suprimentos médicos e alimentos na despensa, já que ainda me
mantenho ativo ajudando-a na Guardian e vasculhar a casa, mas assim que
coloquei meus pés na soleira fui aterrado por essas malditas e inconvenientes
lembranças.
Existem perturbações que podem levar toda uma vida, mas assim
como sentimentos, estas são imutáveis.
Realizar o seu desejo de ter uma empresa onde pudesse aplicar
todo o conhecimento de defesa e ataque que foi forçado em seu sistema, para
um bem maior, consistiu em um desejo pessoal e a forma de manter meus
planos em ação.
Angélica, estava em sua pior crise mental e física, havia uma
súplica velada em seus olhos, ela precisa de todo o suporte para seguir, após a
perda da mãe e de quebra ter de enviar Aline, para fora do país, após as
consequências da armadilha implantada para Carlos Eduardo, render frutos,
não desejáveis.
Este foi o disfarce plausível que abriu caminho, não apenas para
novos contatos, como movimentar minha própria fortuna, fazendo-a se
multiplicar sem a real necessidade de me expor e atrair a atenção indesejada
tanto dos herdeiros, quanto da mídia, ou qualquer um que pudesse
reconhecer-me.
Mantive isto em mente por um tempo, mas a cada caso resolvido
onde realmente salvamos vítimas de violências domésticas, similares ao que
passamos, fez com que aliviasse um pouco do meu próprio tormento; mesmo
que, no fundo, aja de forma pior em benefício próprio e sem o peso de me
sentir culpado por isto.
Trazer Fernanda, para a equipe foi um golpe de sorte no início,
imaginava que colocando uma aliada extremamente grata por ser salva,
resultaria em subserviência, um erro não calculado, já que ela, na verdade,
tornou-se o braço direito da patroa.
Tentei outras formas de controlá-la, como, por exemplo, o medo
atroz de que o ex-marido, tido como foragido da polícia, pudesse voltar e
terminar o serviço que a deixou paraplégica.
Porém, a pequena fera não retrocedeu numa decisão, preferiu se
esconder a dar-me o que queria.
Foi demoníaco perturbá-la, lembro me com exatidão o nosso
último encontro aqui, nesta mesma sala, me ressenti por sua traição, e devolvi
a altura. Mas, fiz por não poder controlar minha sede de vingança, ao
perturbá-la com uma ameaça vazia, já que eu mesmo executei o desgraçado,
logo após cuidar para que o filho deles, fosse enterrado com todos os
cuidados e honrarias que uma criança cruelmente assassinada pelo próprio
pai, poderia ter.
Sinto algo pingando sobre as costas da minha mão crispada contra
o encosto do sofá. Um riso cínico arranha minha garganta e prefiro não
conferir se realmente são lágrimas que estão rolando por meus olhos.
— Que o inferno esteja em alta fervura com tantos inquilinos
miseráveis! — esbravejo com os dentes trincados.
O celular no bolso de trás do jeans vibra, com reflexos lentos o
retiro do bolso, ainda não compreendo o porquê estou envolto em toda essa
infrutífera melancolia. — Provavelmente em breve irei descobrir, — reflito
em voz alta observando o número restrito no visor.
Poucas pessoas têm acesso a este número em específico, por isso
não hesito em atender a chamada. — Santiago.
— O que está fazendo?
Ouça a voz melodiosa de menina, que poderia tranquilamente
pertencer a uma adolescente, ergo meus olhos e encaro a câmera fixada no
canto esquerdo da sala, a luz vermelha pisca algumas vezes e o movimento
circulatório é interrompido. Sorrio para o equipamento, ergo minha mão e
aceno.
— Fazendo algo útil, — replico — porque está me vigiando,
Fernanda? Sentiu saudades ou resolveu beneficiar a mão que te salvou?
— Nem em seus mais doces sonhos, sentiria sua falta, Santiago. O
sensor de movimento acusou uma presença na casa com todas as luzes
acesas.
— Isto é um problema?
— Não.
— Entendo. Esteve esse tempo todo em que andei por todo lugar,
me vigiando, — afirmo— o que deseja?
Talvez o fato de estar sendo vigiado e só agora me dar conta disto,
tenha me impulsionado a fazer o que realmente é minha intenção desde o
minuto que entrei nesse lugar.
A raiva de mim mesmo tremula contra minha mente, esmurrando o
bom senso, coloca a cara de jogo, onde as emoções estejam dentro de uma
caixa fortemente fechada, mas não rápido o bastante quando deveria.
Caminho em direção a saída da sala, o corredor amplo é ladeado
por várias portas, sei que ela está me acompanhando através das câmeras
dispostas por todo lugar, por isso não faço questão de esconder para onde
estou indo.
Abro a porta e aspiro. O cheiro mesmo depois de anos ainda está
presente no ar. É inconfundível e impossível não sentir, o aroma doce do
charuto cubano e o traço quente do Jack Daniel’s, que ele se embriagava
diariamente, como se fosse uma fonte de água.
Provavelmente o cheiro tenha ficado impregnado na madeira, após
todas aquelas garrafas do bar terem sido arremessadas contra mim ao voltar
da faculdade para levar Angélica sob minha responsabilidade.
Meus pés metidos nos sapatos de couro italiano pinicam, tenho
vontade de arrancá-los e acariciar as minhas cicatrizes grossas que se
alastram pelas solas. Quase sinto a poça de sangue fluindo pelo chão de
madeira impecavelmente polida.
— Santiago? — a voz vem de longe — San, está tudo bem? — a
preocupação na voz de Fernanda me enerva.
— Por que não estaria? Diz logo pelo qual motivo está me ligando.
Se está me vigiando desde o primeiro momento que entrei aqui, sabe
exatamente o que estou fazendo.
— Você geralmente entra e sai, não fica vagando pelos cômodos.
Suspiro. Entro na sala, cruzo o centro indo em direção a enorme
estante de livros, retiro um volume em especial que gosto de ler, o ergo em
direção a câmera, dando a entender que estou pegando emprestado o livro.
O som cristalino da sua risada não me engana, há muito tempo
aprendi ler as pessoas, não apenas visivelmente. É importante saber o tom de
voz que falam, o sorriso que expressam e este de Fernanda é de alguém que
deseja fazer perguntas, mas o medo das respostas a deixa nervosa.
Me sento na imensa cadeira estofada por trás da mesa de mogno,
abro a primeira gaveta onde ele sempre guardava sua caixa de charutos,
isqueiro e cortador para as pontas, o fundo vazio, manchado, esconde um
pequeno botão na lateral, que levei muitos anos a descobrir.
Sorrindo encaro a câmera bem à frente no teto o silêncio
constrangedor na linha me causa irritabilidade.
— Santiago…
— Vá em frente, pergunte. — a dou uma oportunidade de falar,
abro o livro, Moby Dick, um romance do escritor Herman Melville, a história
de uma Baleia Cachalote branca, que mesmo sendo ferida por vários
baleeiros, por diversas vezes, lutou para sobreviver e destruir todos aqueles
que a feriram.
Com cuidado passo as páginas tão usadas pela leitura intensa e as
muitas frases grifadas. Não me recordo exatamente a primeira vez que li este
livro, mas recordo-me com perfeição a primeira vez que tive meu supercílio
cortado com o peso ao ser arremessado contra meu rosto e o quanto a
lombada quadrada poderia ser perigosa.
Passo as mãos nas páginas manchadas com digitais diminutas que
após tanto tempo estão amarronzadas, as únicas evidências de que um dia
foram gotas de sangue.
— Sei por que me ligou, mas não entendo o motivo do silêncio.
Deixo sobre a mesa o celular, colocando-o no viva voz, me reclino
contra a cadeira com o livro nas mãos e passo página a página, lendo
pequenas frases que fiz questão de gravá-las para nunca mais esquecer.
— Adoro esse livro, Fernanda, é o meu preferido. Sabe por quê? —
ergo meus olhos para a câmera. — Existem verdadeiras pérolas escondidas
aqui. Uma das minhas passagens preferidas é esta: — leio em voz alta
pausadamente. — “Ninguém pode salvar ninguém. Temos de nos salvar a nós
próprios.”
— O desejo de vingança era uma obsessão.
— Não importa. Mesmo sendo a um duro preço…
— O que você quer, no fim pode ser fatal, Santiago.
— Depende para quem. — bufo fechando o livro e jogando-o na
gaveta, fazendo o peso exato contra o mecanismo de trava, colocando o botão
secreto para fora. — Você quer saber se ele está vivo? — me refiro ao seu ex-
marido.
— Você ameaçou contar a ele, sobre a minha localização. — Sua
voz estremece.
Aliso com a mão direita a barba em meu rosto, mantenho o olhar
fixo no ponto de luz vermelha piscando em minha direção, posso quase sentir
o odor de uísque e a densa fumaça do charuto que ele expelia a todo
momento enquanto sua voz embriagada arrazoava meus ouvidos.
“A culpa vem do arrependimento. O arrependimento de
sentimentos como amor, zelo, cuidado entre outros aos quais aprendemos a
não cultivar, pois, aquilo que não nos beneficia, não abre portas, não faz
fortuna e nos torna subservientes, não é aceitável.”
A primeira lição que jamais esquecerei. Toco uma pequena cicatriz
interna no lábio superior com a ponta da língua.
— A primeira de muitas… — resmungo.
— San? — a voz estremecida me arrepia e enoja por meu próprio
eu, imerso na mais profunda fealdade.
— Ele está morto, Fernanda! — digo bem alto, recolhendo o
telefone sobre a mesa. — Morto e posso garantir que não ficou sequer um fio
de cabelo para assombrá-la.
— Jesus de misericórdia! — ela grita. — Você o matou?
— No mesmo dia que enterrei ao seu filho. — Respondo
pacificamente.
— E mesmo assim, usou-o para me ameaçar? — sua voz é cheia de
indignação.
— Sinta-se livre para odiar-me por isto, garanto que não fará
diferença.
Silêncio…
— Seria pecado, agradecer-lhe?
— Seria pecado, entregá-la a ele?
— Sim!
— Sendo assim, decida você mesma para onde apontar sua bússola
moral.
Ouço os ruídos mecânicos da sua cadeira se locomovendo, seus
suspiros e um choro contido que cresce à medida que a ligação parece falhar.
Estou pronto a encerrar a chamada, quando ela volta a falar, sua voz infantil
tem um tom enrouquecido, quase envelhecido.
— Obrigada, por me libertar. — ela diz e encerra a ligação.
Não tenho o que pensar, ou reação que reconheça tal ato. Por isso,
ignoro esse momento em que nos falamos como se tudo isto, tivesse sido
apenas uma alucinação. Prefiro assim.
A luz vermelha que estava piscando de forma frenética foi
desligada, o que indica que as câmeras estão offline. Um sorriso frio cruza
meu rosto.
— Eu poderia pedir que as desligasse e de certo que ela não o faria,
mas bastou dar algo e voilà…
Retiro o livro que além de ter a melhor história, é a chave para a
gaveta secreta de Gustavo Campus. O tampo de madeira solta com facilidade
assim que o botão é inserido novamente em seu esconderijo. Removo o fundo
falso.
Foi uma infeliz coincidência a forma que descobri sobre o lugar
secreto daquele demônio, custou-me muito, porém após ler parcialmente o
testamento, e ouvir suas últimas palavras, antes de caminhar a passos largos
para sua morte, eu soube que o maldito escondeu muito mais do que
aparentava daqueles amigos imbecis. Eu só precisava encontrar a segunda
parte do Testamento, e achar o mapa do MEU tesouro.
Infelizmente, demorei tempo demais para conseguir pôr as mãos no
documento em posse de Angélica, só agora que ele passou para a guarda de
Staeler, foi possível encontrar as pistas necessárias. Um serviço que Álvaro,
executou com louvor.
No fundo, falso da gaveta tem alguns livros-caixa empoeirados,
envelopes com documentos, fotos e algumas rasgadas, apólices e um
envelope pardo lacrado. Afasto a caixa comprida que está sobre todo o
material e puxo o envelope. O lacre é facilmente quebrado, e ao ver o
cabeçalho das folhas que estão do lado de dentro não posso conter meu urro
de prazer.
— Te peguei, seu maldito desgraçado. Espero que esteja se
revirando em seu túmulo e ardendo no fogo do inferno, Gustavo Campus!
Não tenho tempo para apreciar minha descoberta. Recolho
rapidamente todo o conteúdo da gaveta colocando dentro da minha jaqueta.
Incluindo a caixa, anexo o fundo no lugar, fecho a gaveta e devolvo o livro
para a estante, olho para o teto e em três segundos as luzes voltam a piscar, a
câmera faz um giro de cento e oitenta graus, varrendo todo o ambiente, não
espero um segundo além do previsível, deixo o cômodo, apagando as luzes.
Não chego a dar dois passos e outra ligação estremece o aparelho
celular, em minha mão.
— Santigo. — atendo no automático, enquanto vou desligando as
lâmpadas em meu caminho.
— Alô! Oi! San como tem passado? — estaco no lugar olhando
para o visor, na pressa não percebi qual operadora foi acionada.
Segundo erro da noite. Que caralhos está acontecendo comigo?
— Nina! — faço a voz soar sedutora e surpresa de uma forma
agradável. — Como tem passado? Estou com saudades de você e do Anjinho.
— outro segredinho dos herdeiros.
— Estamos muito bem, com saudades da sua irmã e de você, é
claro…
Sim, é claro!
INEVITÁVEL
“Não existe o esquecimento total: as pegadas impressas na alma são
indestrutíveis.”
Thomas De Quincey
MIKAEL
A
sensação de ser estrangulado por uma mão invisível, está pior que na noite
anterior. Melhor dizendo, pior que todas as noites em que fui acorrentado e
atormentado pelo mesmo terrível pesadelo.
Meu cérebro analítico envia comandos ao meu corpo para reagir
rapidamente e me livrar dos minutos restantes, mas de alguma forma, percebo
tarde demais que isto não é possível.
Talvez seja pela carga emocional a qual fui submetido, a pressão
no trabalho, o maldito, maravilhoso e inesperado beijo que troquei com Lia.
Por que fiz aquilo? Há muitos motivos, ou apenas seja o fato de
estar enlouquecendo gradualmente por forçar minha mente a lembrar de
coisas que preferi esquecer?
A voz arrepiante me causa náuseas, sinto meu corpo convulsionar
emaranhado nos lençóis, as malditas lágrimas já estão escorrendo e se
misturando a soluços engolfados.
— Avisei a Niko que levaria todas embora. Uma a uma…
Será que o DNA das mechas do cabelo encontrado, na verdade, é
de alguma mulher da minha família? — indago-me em meio ao pesadelo —,
mas se minha mãe está morta, e minha irmã faleceu antes do meu
nascimento…
— Novamente, irei tirar outra mulher dos Nikolaievitch — ela ri
e em uma das suas mãos reluz o falso colar de diamantes salpicado de
sangue, e na outra ela segura o cabo de um punhal ainda cravado ao lado de
Lia, o retorcendo lentamente.
Ela disse que iria tirar? Não matar, mas sim retirar…
— Olha só quem resolveu colocar essa linda cabecinha para
funcionar.
A imagem de Verônica se desfaz e o ambiente muda, parece um
lugar muito familiar, o aroma entre tantos outros cheiros, a claridade distorce
completamente do corredor secreto na sala de Anderson.
— Sua filha da puta, como ousa ainda falar comigo? — esbravejo
irado.
A risada horrenda arranha meus ouvidos, ela se move e o cheiro
que se desprende da sua pele, não mascara o fétido odor metálico do sangue
jorrando de Lia, mesmo que não possa vê-la mais.
— Não seja idiota, moleque! — essa expressão, já ouvi antes —,
eu não estou conversando, mas sim o seu subconsciente montando um
quebra-cabeças perigoso.
— Quem você tirou de mim?
— Há, Há, Há… Seria fácil demais, se contasse, mas digamos
que você ainda coloca a louça do café da manhã para ela…
— O quê? — pergunto e tento alcançá-la, a imagem a minha frente
tremula voltando a ser o mesmo de sempre, e não sou capaz de ouvir o que
aquela mulher diz.
Retorno meus olhos para onde Lia está, meu peito infla, minhas
pernas não me obedecem, meus olhos ardem, minhas narinas parecem ter
sido lavadas com ácido, sufoco em desespero, a maldita mulher, retorce o
punhal, vejo minha Anja perdendo o viço, e de repente um estrondo torturado
ecoa em meus ouvidos: —Não! Lia! — Dando fim a mais uma madrugada de
puro terror.
O som vem cheio de dor, desta vez não contenho o choro, novas
arcadas de ar são tragadas com força. Levo minhas mãos aos olhos tentando
conter-me, contudo o tremor é tão intenso que me sinto constrangido em
meio ao escuro.
Busco o relógio ao lado da cabeceira, duas horas da manhã, mesmo
horário, e novas cenas em um sonho infernal.
Minha voz arranha a garganta, mas confesso em alto e bom som, o
que tenho segurado por longas semanas, desde o resultado do teste. —
Mikaella! Mikaella, a minha irmã… está viva!?
INSPECIONADOS
Mesmo que às vezes a estrada infinita para lugar nenhum pareça mais
agradável do que esse pandemônio todo, somos felizes.
JULY
D
escobrir o significado de dormir para Edu, está provando ser o mesmo que
passar a pão e água diante de uma mesa farta. Meu corpo ainda está dormente
do orgasmo negado na noite passada, porém a minha mente está em paz, —
na medida do possível — pois, de alguma forma parece que chegamos a um
consenso sobre a questão da gravidez.
O sol aqueceu-nos rápido. As crianças assim que colocaram seus
pezinhos na areia dispararam para a água, claro respeitando meu limite
previamente estipulado, o raso. Edu como um bom papai, largou as cadeiras e
sombrinhas, e toda tralha necessária para nosso dia jogados na areia.
— Vou nadar com as crianças.
— Precisa mesmo anunciar? — respondo sarcástica observando-o
fazer aquele strip-tease básico ao arrancar a camiseta.
Sua risada me irrita, mas não retrocedo numa decisão, rebolo
minha bunda, me aproximo bem me coloco na ponta dos pés e dou um
beijinho casto em seus lábios.
— Ok! — dou um sorriso. — A mamãe monta o acampamento. —
comento comigo mesma abluída na ironia.
Não que isso me incomode. Pelo contrário, vê-los se divertirem me
deixa extasiada. Poucas coisas têm significado de família para mim, e
geralmente me foco nos detalhes, como este momento.
Sombrinhas abertas, cadeiras devidamente alinhadas, cooler de
bebidas alocado de forma estratégica para as crianças se fartarem de água,
sucos e frutas. Com o meu livro de romance em mãos, sento-me tentando não
voltar a conversa da noite passada. Mesmo que tudo pareça em paz, vida de
casal é como caixa de marimbondos, parece inofensivo, mas se cutucar leva
ferroadas.
— Mamãe? — Anna me chama. — Vem para a água.
Eles estão em uma guerra de bombas d’água, sorrindo ergo meu
livro e aviso que irei esperar mais um pouco.
Ela manda um beijinho, Jessica e Annya seguem seu exemplo e
voltam para a água.
O celular ao meu lado dispara uma série de mensagens. Aline está
bem animada com a festa para as crianças, já que é uma forma de passar mais
tempo com suas filhas. Olhando às duas pentelhas loirinhas dando um banho
no pai com suas manobras, não a culpo por isto. Eu faria o mesmo se
estivesse em seu lugar.
Deixo o livro de lado por um instante embarco em uma conversa
animada sobre o que devamos fazer. Evito falar sobre meu plano de ir ao
encontro de Lia, pois por serem muito amigas, Aline pode acabar contando o
meu segredo. Não sei quanto tempo se passou, mas percebo a presença de
Edu acompanhado de João, para pegar a primeira leva de água e frutas.
— Estão se divertindo meu amor? — pergunto a ele, enquanto
aproveito para reaplicar protetor solar sobre seu corpinho.
— Hurum… O papai é o melhor arremessador! — ele se agarra nos
detalhes. — Estamos ganhando das três meninas, de lavada.
João empolgado nem percebe o olhar bobo que Edu tem ao admirá-
lo, assim como o pai, ele pediu para deixar os cabelos crescerem um pouco,
não sei se pelo convívio, mas quem diria que não existe um vínculo de
sangue entre eles?
— Fico feliz que estejam ganhando, mas que tal dar uma
oportunidade para as meninas? — olho Edu por sobre a cabeça de João e
estreito meus olhos.
— Posso até pensar, mas se elas tivessem uma líder de equipe à
nossa altura, né papai? — ele dá uma risadinha. — Podíamos pensar, o que
acha?
Edu estala a língua e engole um pedaço de melancia. — Não sei
filhote. Acredito que mesmo com mais uma integrante, não seriam páreo para
nós.
— Opa! Espere aí, vocês vieram aqui para me desafiar? É isto
mesmo produção?
— Que isso meu moranguinho… Estamos falando da liga
profissional de arremesso em bomba d'água.
— É isso aí mamãe, não queremos te provocar para ir brincar. Só
estamos enal… enal… — ele para e olha para o pai que sussurra a palavra em
seu ouvido. — Enaltecendo os fatos.
João nem percebe que entrega o plano do pai, olho de soslaio para
Edu, esse morde os lábios segurando o riso e vira o rosto em outra direção.
Embarcando na brincadeira deixando o celular na bolsa e o livro
sobre a cadeira de praia, me ergo e retiro o vestido-canga que esconde meu
maiô vermelho-paixão. A cor da minha aura. Prendo meus cabelos em um
coque alto. Com as mãos na cintura encaro a dupla de trapaceiros e exclamo
alto.
— Então, se preparem para ver quem é a amadora! A equipe
perdedora vai arrumar a cozinha do jantar. Fechado?
Edu e João se entre olham. O Morangão aperta as mãos uma na
outra e dá um riso sarcástico. João imita o pai.
— Nosso plano está dando certo Pink, — ele faz uma referência ao
desenho predileto dos dois. Pink e o Cérebro.
— Sim, Cérebro, hoje vamos dominar a praia.
— Amanhã o mundo! — Edu se aproxima, pisca o olho enquanto
seguro uma risada. — Fechado, mamãe prepare-se para nos fazer uma rodada
de sanduíches e arrumar a cozinha.
— Isto é o que veremos.
Com uma jogada de quadril me desvio deles e saio correndo em
direção a água.
— Atenção, mini moranguinhos da mamãe, está na hora de virar
esse jogo!
EDU
Sinto-me envolvido por sua doçura, pela voz enrouquecida de
desejo, pelo cheiro que invade minhas narinas, roubando a lucidez.
July se contorce sob meu corpo e meu pau lateja desesperado para
se afundar em sua buceta rosada. As poucas peças de roupa entre nós, voaram
longe. Os seios fartos brilham molhados pela umidade que a minha boca
deixa. Os mamilos turgidos estão empinados, não resisto e mais uma vez
sugo com força o botão rosado a fazendo rebolar abaixo de mim, roçando
contra meu pau.
— Você me enlouquece mulher. Queria tanto ser a porra de um
romântico, mas vai ficar para a segunda rodada.
— Esquece o romantismo. Uma caixa de camisinha contra horas de
espera. Quero me acabar de tanto gozar, Morangão.
O seu humor estala em mim. Não consigo reprimir uma risada, mas
essa é breve, pois estou prestes a dar o outro mamilo o mesmo tratamento.
As mãos suaves se perdem entre nós, ela toca a si mesma
masturbando seu pequeno feixe de nervos com uma mão e a outra agarra meu
pau massageando-o da cabeça à base em um vaivém lento me enchendo de
tesão.
Subo até a sua boca, a beijo com sofreguidão e volto por seu
pescoço, desta vez deslizando por suas costelas, a pele macia do abdômen
curvando-me de joelhos entre suas coxas grossas.
Eu sabia que ao tirar de sobre nós o peso de “uma gravidez e o
casamento” voltaríamos a nos sentir livres para fazer sexo da forma que
gostamos, desenfreado e libidinoso.
Por este motivo ganhei um par de bolas roxas na noite anterior. Por
respeitar seus desejos. Queria poder dar a ela uma escolha e mostrar que está
tudo bem para mim.
— Pelo amor… Edu, minha buceta não é uma pintura, pare de
admirá-la e faça algo!
— A sua ansiedade ainda vai te fazer morder a língua! —
respondo, enquanto abocanho o seu grelinho inchado. — Sou grato por não
ser uma pintura.
Puta que pariu, que mulher gostosa! Minha língua corre por entre
os lábios rosados e muito molhados, até tocar a entrada, July empina o
quadril, revira os olhos e geme alto.
Volto a moer minha língua sobre ela, indo de uma ponta a outra,
descendo pelo vão da sua buceta até deslizar pela linha de pregas do seu ânus
rosado.
— Hoje vou me fartar de July, vou devorar sua buceta e essa
delícia de rabo.
Ela geme, e pelo tanto que arfa a ideia a agrada. Me dedico a sugar
vezes sem fim, deslizo meus dedos sobre a sua umidade e penetro de leve a
entrada fazendo círculos sobre o feixe de nervos que há em volta, enquanto
minha língua faz círculos sobre o clitóris antes de fechar meus lábios sobre o
botão inflamado de desejo e sugá-lo para fora do seu capuz.
July, alça o corpo pelos cotovelos e me segura pelos cabelos, sorrio
e assopro a carne aquecida. Volto a sugá-la na medida certa a fazendo ter seu
primeiro orgasmo da noite.
Sinto o tanto que sua buceta escorre alagando nossa cama, busco
uma das camisinhas que se espalharam pelo colchão, abro o pacote e
desenrolo uma sobre meu pau que está em ponto de bala.
— Ei! — ela reclama e sei o que ela quer. — Quero…
— Eu também quero, temos a noite inteira, mas agora quero muito
sentir você me apertar até que exploda de gozo.
Sem perda de tempo, envolvo minhas mãos sobre suas coxas, a
abrindo ainda mais apoiando suas pernas por sobre as minhas dobradas, meu
pau já sabe o caminho que deve seguir, é questão de alinhar nossos corpos e a
cabeça larga deslizar sobre a sua abertura, dilatando sua passagem,
arrancando de nós suspiros e gemidos.
July se rende às estocadas. A cada arremetida seu corpo sobe e
desce em cadência. O suor que brota sobre nós escorre em nossos corpos, o ar
está carregado de eletricidade, as estocadas aceleram, me inclino sobre o seu
corpo e a beijo mais uma vez.
Ela agarra aos meus ombros fincando suas unhas na minha carne.
Apoio meus cotovelos ao lado da sua cabeça, prendo seu rosto entre minhas
mãos, o sorriso satisfeito em seu rosto que duela com o meu.
— Eu te amo! — declaro.
— Amo você — ela replica.
Juntos embalemos no nosso mundo particular, até o gozo explodir
e nos derrubando em uma vertente de delírios.
Arfando July abraça-me com força, suas pernas envolvem minha
cintura, ela esconde seu rosto em meu pescoço e sinto seu corpo estremecer
pelos arroubos de um novo gozo e uma emoção que não dá para esconder.
— Amor… — tento afastá-la, — July?
— Edu, eu te amo tanto. Sou tão grata por me querer assim. Por me
dar algo tão importante hoje, quero dar a você algo que também deseja.
Ela se afasta brevemente e seus olhos ainda nublados de prazer
brilham em direção aos meus.
— Meu amor, você não precisa me dar nada.
— Shiuu… — ela toca os meus lábios. — Não negue sem saber o
que é. Eu realmente quero esperar mais um pouco para termos o nosso baby.
— ela pausa e sorri, — mas, pode preparar o vestido de noiva. Quero me
casar com você!
Um zunido estala em meu ouvido. Balanço minha cabeça, e
comecei a rir meio desnorteado. Ainda com ela envolta em mim, me ergui da
forma que me permitiu.
— Você irá se casar comigo?
— Já estou noiva, sexo da melhor qualidade, um pai inigualável,
um homem que me ama e respeita, o sexo indiscutível, já falei isto? Bem, o
que mais poderia querer?
— Juliana Guimarães, desta vez não tem volta.
Ela alça o corpo e praticamente senta-se sobre mim, fazendo meu
pau voltar a enrijecer. — Carlos Eduardo Santorini, vou me casar com você!
Marque a data.
— Eu te amo pra caralho, mulher! — exclamo louco de amor e
volto a saquear sua boca. — E quanto aos seus planos de ajudar Mikael e Lia,
conte comigo e com nossos amigos, se antes eu tinha um motivos para vê-los
felizes, agora eu tenho em dobro.
— Amo você, amo muito e a sua generosidade, me excita!
Isto é mais um salto para a nossa felicidade que em breve será
completa, pois, antes que Verônica possa se dar conta, nós vamos colocá-la
atrás das grades. O nosso plano está em andamento, e em breve vou ser um
homem casado.
CAPÍTULO 13
IN MEMORIAM
“Posso perdoar a força bruta, mas a razão bruta é uma coisa
irracional.
É bater abaixo da linha do intelecto.”
Oscar Wilde
MIKAEL
DEZEMBRO DE 2000, VÉSPERA DE NATAL.
D
esliguei o chuveiro e a letra de One Step Closer da banda Linkin Park,
estourava nos alto-falantes dentro do meu quarto. O contratempo forte e
insistente dos instrumentos adicionados à voz marcante do vocalista na letra
bem elaborada, descrevia exatamente o que queria gritar a plenos pulmões,
depois de mais uma discussão com meu pai.
A batida grave me fez seguir a sequência de acordes com o corpo
balançando a cabeça espalhando água para todos os lados, abri a porta do
banheiro para sair o ar quente e o som entrar em total potência. Sentia-me
como se estivesse na prévia do show daquela noite; eu ainda não podia
acreditar que minha banda conseguirá abrir o Show dos Paralamas na
Cultural.
Diz um provérbio russo que aquilo que você quer fazer será bem
feito quando for bem pensado, planejado, apalavrado e alcançado com
cautela
Quando atendi a ligação na parte da manhã, imaginei que seria
outro problema em casa, nunca imaginaria que os meus amigos pudessem ter
voltado na casa de shows e convencido o dono a dar-nos uma chance. Eles
com certeza não têm um pingo de talento musical, mas sempre serão os
melhores empresários.
Diante do espelho embaçado, risquei uma faixa com a toalha de
rosto, joguei para trás os cabelos molhados, em pouco tempo já estão
cobrindo o pescoço. Reparei meu rosto atentamente passando a mão pelo
queixo pensando se deveria raspar ou não a barba? Segundo minha
mamochka, pareço um viking andando em casa
Observei o tanto que o meu corpo havia mudado nos últimos meses
malhando, a cicatrização da nova tatuagem, as enormes asas de anjo que
tomam a parte superior dos ombros descendo por toda extensão das costas, e
os últimos traços de um soco no olho direito, já bem amarelado.
Voltei a olhar para a tattoo, não me imaginava como o cara fresco
que viveria para agradar uma mulher, porém tudo que queria era ver a
minha Anjinha feliz. Mostrar a ela que não está só nos meus pensamentos e
no meu coração. Ela estará gravada em minha pele para sempre.
Lia se recusava a acreditar, quando eu me intitulava um anjo mau.
Mal sabe, que é ela quem consegue tirar o melhor de mim, que jamais seria
capaz de dar-me a qualquer pessoa. Minha anja da guarda, que consegue
curar minhas feridas sem nem mesmo ter ciência disto.
Olhei mais uma vez as asas perfeitas, sinto uma pontada em minha
cabeça e recuo, a tatuagem foi uma forma de assegurar-lhe o quanto a tenho
em mim e pedir perdão pelo que houve com o seu pai, e mesmo assim, sentia
que isto não seria o suficiente…
Sinto meu humor decair rapidamente com a baixa perspectiva que
invade meu coração ao pensar nestas coisas. Para não perder o foco do que
estou para fazer, tento desanuviar-me com o seguinte pensamento: Lia não
tem um humor fácil de ser controlado, mas fizemos um acordo mútuo, uma
promessa de que nada que aconteça entre meu pai e o dela, poderá afetar o
que temos!
Passei a mão sobre o queixo mais uma vez, e acabei desistindo de
fazer a barba. Entrei no closet, para noite vestirei o meu melhor jeans
desbotado, botas de couro, uma camiseta ajustada sobre o corpo de mangas
curtas. Satisfeito com minha aparência, puxei uma jaqueta de couro do
armário, a música parou fazendo um silêncio repentino e foi então que ouvi.
Primeiro veio o som de um grito estridente, e logo em seguida o
som inconfundível de cacos de vidro, se espalhando pelo piso de mármore.
Meu corpo estremeceu por completo, pois o que me veio à mente é
minha mãe tendo uma nova crise nervosa. Deixei o quarto descendo as
escadas saltando de degraus. Segui por um corredor lateral, indo em direção
ao solar ladeado por janelas que vão do chão ao teto. Antes mesmo de
alcançar as portas duplas, outros sons de vidros se quebrando chegou aos
meus ouvidos, acompanhados dos gritos do meu pai, aquilo me fez estacar no
lugar derrapando meus pés contra o piso liso.
— Não… — o som estrangulado deixou meus lábios sem que
percebesse, uma nuvem vermelha desceu sobre meus olhos, ansiedade e
pânico se fundiram como fel sobre minha língua.
Um estalar forte, reproduziu um som que reconheci de imediato,
isto me deu a certeza de que encontraria uma cena lamentável naquele lugar,
novamente.
Desta vez, não ficaria parado!
Desta vez, não deixaria por menos. Desta vez, ele enfrentaria um
homem de igual para igual, afinal como o senhor Niko, havia dito no café
desta manhã: hoje eu ganharia um passe livre para fora desta casa se não
estivesse disposto a seguir suas regras. Uma vez que o relógio batesse meia-
noite, eu já teria a maior idade, seria um homem feito e livre.
Antes disto, daria a ele o mesmo tratamento cortês que dispensa a
nós. Abri as portas com um safanão e como previa, a cena diante dos meus
olhos rolara como um filme gasto na tela de um cinema velho; atrás do
imenso piano a figura miúda, pálida com longos cabelos ruivos, estriados de
mechas brancas escondia o lado direito do rosto com as mãos, enquanto
grossas lágrimas caiam dos seus olhos.
Do outro lado uma sombra corpulenta se avantajava sobre ela.
Difícil admitir, mas a minha compleição física vem de Niko. Os mesmos 1,90
de altura, ombros largos, braços torneados com músculos naturalmente
esculpidos, cabelos e barba no mesmo tom ruivo.
A aparência animalesca em seu rosto tremulou, por um segundo a
sua expressão pareceu ser de agonia, mas não me deixei enganar, há muito
tempo não me engano mais. Aquilo era ódio!
— Cale sua boca e me ouça uma vez, Sarah! — ele grita sem ter
noção de que invadi a sala.
— Não a quero aqui, ela é um monstro, uma assassina que roubou
o meu bebê! Por minha culpa, sua culpa! — mamãe grita de forma histérica,
puxando os cabelos com as mãos enlouquecidamente.
— Não há ninguém aqui, não delira, Sarah! —ele avança, então
grito entrando no seu campo de visão.
—Nayeahbal![2] — me mãe gritou rangendo os dentes. — Não a
quero aqui, monstro, assassino!
Dei um passo à frente ao vê-lo se aproximar dela. Os olhos azuis
enraizados de vasos vermelhos cravaram nos meus acinzentados. O choque
do reconhecimento de ser pego nas suas transgressões levaram o senhor
Niko, a dar um passo para trás.
Eram sempre as mesmas acusações em suas brigas, fossem banais
ou não. Ao final, minha mãe se culparia e a meu pai, por algo que nunca
compreendia.
— Saia Mikael! — ele gritou sua ordem entredentes!
Com um rápido olhar percebi que os cacos de vidro, eram dos
vasos de cristal com arranjos de orquídeas que ajudei a minha mãe a criar, e
agora estavam estilhaçados no chão.
Livros raros das preciosas coleções que amávamos, foram
devastados em meio à terra e plantas machucadas. O seu violino, a última
recordação que trouxe consigo quando fugiu, teve o mesmo destino que meu
primeiro violão, estava partido ao meio, ou seja, tudo o que mais amamos,
são os alvos da sua violência, e quando não há nada mais que possa nos
ferir, ele tem a nossa carne para fazê-lo.
Eu não posso mais aceitar isso!
Isto me faz sofrer e vejo isto no rosto marcado de mamochka[3]. Ela
tenta se esconder, não posso aceitar isso, sinto toda a minha revolta, ódio,
raiva, rancor, nojo de ser fisicamente parecido, de ver nele meu reflexo,
porque se não fosse pelos olhos, poderíamos ser gêmeos e isso me mata mais
do que apenas ser seu filho.
— Saia agora! — ele grita e ameaça vir em minha direção.
—Nahui[4]! — nego com minha cabeça e dou um passo à frente. —
Você é um monstro! — exclamo com a mesma força que me ordena a sair. —
Não vou a lugar nenhum, chega disto, é a última vez que essa merda vai
acontecer aqui!
— Olha como fala comigo, moleque! Saia antes que sobre para
você.
— Foda-se! Sobrar o quê? Uma porrada, palavras ofensivas,
ameaças? Cansei disto, quer saber, saia o senhor das nossas vidas.
— Mikael, por favor… — minha mamãe sussurra chamando minha
atenção.
Olho de relance e a vejo estender-me a sua mão direita, o sangue
escorrer por entre os seus dedos pingando no chão sem parar e isto me leva
a loucura.
— Dê o fora, Mikael! A loucura da sua mãe, está indo longe
demais. Resolverei com ela, e depois com você, estou farto dessa sua
petulância.
Debocho das suas ameaças com um bufo. Ele veio em minha
direção com força empurrando-me para que deixe o lugar. Travei os meus
pés no assoalho de madeira, o solado da bota rangeu com a fricção.
Nunca havia demostrado o quão forte poderia ser, para revidar ou
defender-me em todas às vezes que levantou seus punhos em minha direção,
e a surpresa de descobrir isto, estava visível em seus olhos.
— Terá a ousadia de me afrontar? —Seu grito veio acompanhado
da sua mão aberta descendo contra o lado do meu rosto.
O tapa pegou meio de lado e senti a carne esquentar, e minha
cabeça ficar atordoada. Com repelão o empurrei para longe.
— Se preciso for, o farei! Não tenha dúvidas disto. — grito.
Nunca revidei, sempre aguentei os seus castigos, por entrar no
meio das brigas com a minha mãe, quando se ouvia as palavras duras,
acusações e ofensas. De certa forma, por acreditar que ele era enérgico e
não era um homem violento, que estaria apenas passando por um momento
de insanidade temporária.
Sendo sempre tão calado, imaginei que pudesse estar atormentado
por tudo que haviam passado. Isto não era verdade. Em algum momento as
suas palavras preconceituosas, se tornaram agressões.
— Mandei sair daqui. Mikael. Seu moleque atrevido.
Ele reagiu à minha resposta com força. Senti o meu corpo
cambalear com impacto do seu caindo sobre mim e arremessando minhas
costas contra a estante.
Em nossa casa, quando estávamos a sós era normal falarmos
apenas em russo, durante anos lutei para perder o sotaque que adquiri por
este costume na infância, mesmo que ainda quando agitado a vernáculo
patriarcal predomine sobre o português.
Niko gritou de forma enérgica e escabrosa em russo, deixando a
sua raiva extravasar. Revidei no mesmo tom e idioma, empurrando-me
contra ele, seu corpo cedeu ao choque e caindo contra o piano deslocando-o
para trás.
— Niko! — minha mãe gritou em desespero.
Olhando na direção onde desabou, sentia ainda mais nojo dele,
pois mamãe parecendo uma criança indefesa, na sua pequenez, ferida era
capaz de se preocupar com aquele monstro.
— Como pode tratar uma mulher assim? — gritei tomado de fúria
avançando em sua direção.
— Não fiz nada que não deveria! —sua resposta, revirou-me as
entranhas. — A sua mãe é uma histérica que ataca a qualquer um. Você sabe
muito bem disto!
— Isto não justifica!
Niko se ergueu indicando a distração à nossa volta enquanto fala.
— Ela querer se matar, ou me matar, por não ser levada a sério em sua
loucura, não justifica? Ela precisa tomar os remédios dela e se manter
quieta!
— Ela é algum animal para ficar quieta?
Bradei com a mesma intensidade, o sotaque forte entremeado de
expressões russas tornando ainda mais catastrófica a discussão. Mamãe em
sua desvairada agonia deixou o canto onde estava, com as mãos trêmulas,
partiu para cima de Niko, golpeando-o no peito com punhos cerrados.
No reflexo de se livrar da esposa, Niko a empurrou com força
fazendo-a perder o equilíbrio e cair ao lado do piano, batendo com tanta
força que parecia ter ouvido ossos se partindo. Isto para mim, foi a gota
d’água!
Com os punhos cerrados me joguei contra ele, não consegui
desferir socos, mas o empurrei com toda força sobre a estante o prendendo
contra a madeira, mesmo sendo grande, meu pai ganhava de mim em astúcia
e anos servindo de faz tudo para meu avô.
Criado nos círculos mais violentos e ferozes que já ouvira falar de
acordo com as histórias que sempre contou aos amigos. Para ele, um
excelente pugilista de rua, sair do meu agarre foi fácil. O soco foi com tudo
na lateral do meu rosto, acertando precisamente a minha boca, fazendo o
sangue escorrer pelo lábio partido.
Forcei meus músculos, sentindo-os queimar com o esforço, mesmo
com tudo rodando a minha volta, já na eminência de perder minhas forças
ao ser acertado uma segunda vez, me lembrei de algo e usei isto para atacá-
lo.
— Como pode acusar o tio Gustavo de ser um pária e se portar
como ele?
— Mikael! —ele gritou se desvencilhando.
— O que foi? Acha mesmo que não percebo mais o que acontece à
minha volta? O Senhor diz que o tio Gustavo é um monstro disfarçado. Que o
tio Joaquim é um ladrão! Tem preconceito contra o tio Vasquez, por ser gay,
enquanto diz que o Tio Eduardo, é um fraco. — Tomei um fôlego sentindo o
sangue escorrer pela garganta por dentro e por fora. — Mas, é o senhor
Nikolai, que é um maldito espancador de mulheres!
Ele desferiu outro golpe, e mais sangue desceu pela minha
garganta.
— Se percebesse de verdade o que está à sua volta, seria um alívio,
mas, a sua imaturidade como a dos seus amigos, são mais preocupantes do
que a vida dos adultos.
— Pois, prefiro ser imaturo, a ser um monstro mau-caráter como o
senhor.
— O que disse? — ele me empurra com força e dou alguns passos
atrás. — Monstro?
Jamais, falei assim com o meu pai e, talvez, isso o abalasse ou
fizesse com que caia na real.
— Sim! Nunca serei assim — pauso e o olho com desprezo que
sinto. — Nunca!
Meu pai olhava-me em silêncio, eu podia ver a tempestade em seus
olhos injetados, mas não esperava do nada, ouvir uma risada de escárnio
cheia de palavras corrosivas.
— É melhor se olhar no espelho, moleque, você é mais parecido
comigo do que imagina. Sente repulsa por ser meu filho? O seu destino não
foge de ser o mesmo que o meu.
— Niko pare com isto, saia da minha casa, e a leve com você!
Minha mãe o empurrou, o olhar em sua direção era inexpressivo.
Niko segurava a sua mão machucada e balançava a cabeça
negativamente.
— Acredita que fiz isso? Se for, está enganado, a louca aqui, é ela
que não consegue se conter! — Meu pai a solta com um safanão. — Quanto
a você, que não deseja se parecer comigo, saiba que também não queria ter
de olhar para uma imagem viva minha e saber que é mais estúpido do que
um dia já fui.
— Niko! — Minha mãe chorava e o empurrava, mas ele não se
movia, apenas me encarava e destilava tudo que um dia não pensei ouvir
dele.
— Acha que é muito homem, só porque anda fodendo aquela
Suka[5], filha de um ladrão vigarista?
— Não se atreva! — Berro.
— Não tem vergonha de se misturar com alguém abaixo de você,
vinda de não sei onde? Uma interesseira… — Niko discorre injúrias sobre
Lia, citando lugares e momentos que nos encontramos, e que tínhamos a
certeza de estarmos longe dos olhos de todos.
Me surpreendi ao ouvi-lo falar do nosso relacionamento. Nunca
escondemos dos nossos amigos, a nossa relação, contudo diante das suas
palavras, um novo temor me corroía. Eu não era nenhum santo e nunca quis
ter um relacionamento sério com alguém sendo tão novo, porém havia coisas
que não tinha como controlar.
— Não fale dela! — Rosno entredentes.
Ele continuava com sua chuva de insultos, enquanto um pavor
ganhava espaço dentro de mim, pois querendo ou não, Lia era alguém que
ele pode me tirar. Bastava apenas dizer as mesmas merdas ao tio Joaquim ou
até pior, há muito tempo aprendi que meu pai era um homem que não
retrocederia com suas promessas, mesmo que fosse para levar alguém ao
inferno.
— Por quê? Acha que fará melhor do que eu cuidando dela, como
seria isto? Seguindo os seus planos de fugir para viver desse sonho de
merda? — Ele gritou ao mesmo tempo que esmagou com pé outra parte do
violino já destruído no chão.
Minha mãe se jogou contra o imenso corpo tentando empurrá-lo,
meu pai a segurou firme contra o seu corpo, prendendo seus movimentos.
— O que faremos de nossas vidas, não diz respeito a ninguém!
— Está enganado, Mikael. Pode imaginar ser tão astuto quanto eu
o sou, no entanto, tenha em mente que você jamais fugirá do seu destino. Do
maldito sangue que corre em suas veias, da linhagem amaldiçoada que
pertencemos! Isto nunca acontecerá.
— Um sangue de merda e uma linhagem fodida que só o senhor se
gaba.
— Para a minha infelicidade, isto é indiscutível! Porém, você é um
fraco como a sua mãe e carrega a pior parte que vem dela. Acha que ser
igual a mim, é ser um monstro?
— O senhor é um monstro insensível! Quem mais poderia pôr a
sua família na rota da loucura como fez? Jamais serei uma réplica sua.
Vejo-o estreitar os olhos e avançar perigosamente para mim,
arrastando minha mãe junto.
— Vai fazer como a sua mãe e acusar-me de matar a minha filha
ao deixá-la em um hospital?
— Se a culpa lhe corrói, quem sou eu para tirá-la das suas costas?
— Maldito seja, pedaço de gente inútil!
Com punhos fechados ele me acerta algumas vezes seguidas na
cabeça, no tórax e algumas vezes no estômago. Tento o bloquear, mesmo
dizendo a mim mesmo que hoje iria respondê-lo a altura, por estar com
minha mãe à sua frente isto me impede de agir.
— Aproveite a vida de merda que pensa que tem, foda aquela suka
ladrazinha enquanto pode. Por que esses dias estão contados?
Minha cabeça girava e os ouvidos zuniam, até mesmo vozes
atormentavam meu cérebro bombardeado. Não soube em que momento
minha mãe saiu do seu agarre, mas a vi pegar algo nas mãos e o acerta forte
na cabeça, desnorteando-o, o que me deu espaço para me afastar e cair
sentado em um canto.
Notava as mãos dela passeando sobre o meu rosto, falando
palavras que mal eram compreendidas, mas entre elas uma era
continuamente para mim.
— Izviníte![6] Meu filho, me perdoa… — mamãe chorava ao tentar
me abraçar.
Recusei esse contato e, como em outras vezes, não foi proposital,
mas não estava mais em mim o desejo de ser acalentado por ela.
— Mikael…
Estava a ponto de tranquilizá-la quando um aroma forte pinicou
em nossas narinas. Ouvimos um repicado fino no piso de madeira.
Reconheci de imediato o som de saltos femininos, o cheiro forte de
flores que nada tinha a ver com as orquídeas despedaçadas no chão, e o
bater forte da porta de madeira pesada no hall de entrada.
Só então percebi que alguém além de nós, estava realmente em
casa. Ouvindo e presenciando a humilhação que fomos submetidos. Algo
dentro do meu peito se quebrou, senti ódio, gosto acre do sangue pungente
na boca fazendo revirar o meu estômago e uma decepção que jamais poderia
ser retirada de dentro de mim.
— Eu disse que aquela maldita mulher estava aqui. Eu disse! Eu
disse! — Minha mãe gritava, chorava e se machucava batendo as mãos sobre
os braços causando ainda mais estragos.
— Mamãe! — Exclamei tentando segurá-la.
Meu pai que havia se recuperado parcialmente, veio em nossa
direção, tomou-a dos meus braços e a prendeu contra o seu peito, dizendo
coisas em sua língua materna tentando acalmá-la. O olhar em seu rosto era
estranho, a sua reação totalmente avessa ao comportamento de alguns
minutos.
— Eu disse… — mamãe cedeu à pressão das emoções, indo e
vindo à consciência em seus braços.
— Quem é a mulher que acabou de sair? Sua amante? —
Questionei percebendo que isto foi o início dessa maldita confusão.
Na verdade, não precisava que ele respondesse. Eu sabia quem era
a tal mulher. Assim como os meus amigos, não a suportava. Por isso, não
ficávamos próximos e não fazíamos questão nenhuma de estar no mesmo
ambiente que ela.
— Como pode agir assim com ela, sabendo que não estava
mentindo? — Minha garganta se fechou, a dor no corpo não era nada com a
dor em meu coração.
— Não volte a colocar sua boca diante dos meus punhos Mikael!
Para o seu bem, não se meta nisto, agora saia! O monstro aqui pode muito
bem cuidar da sua mãe.
— Monstro, cruel, mesquinho, narcisista e ainda assim, é pouco
para o que penso a seu respeito!
— Não vamos voltar a isto! Eu não me importo com o que pensa,
desde que faça o que mando. O que aconteceu hoje, não irá se repetir. Não
lhe dou o direto de me enfrentar.
— O que aconteceu hoje, só reforça a minha certeza de que devo
ficar o mais longe possível de você, quanto antes.
— Você pode fugir, Mikael Nikolaievitch, mas isto irá acontecer só
até que os seus próprios filhos nasçam. — Niko se ergueu, retirando mamãe
do meio da bagunça no chão. — Quando isto acontecer, quero ver onde se
esconderá tendo uma cópia viva “nossa”, bem diante dos teus olhos
diariamente!
— Não conte com isto! — Replico.
— Poderá ser até pior, já que deseja misturar-se ao sangue de um
ladrão, mas irei poupá-lo pelo menos dessa desgraça, acabando de vez com
esta história.
— Não se meta na minha vida!
— Outra coisa, tenha em mente que nem mesmo o maldito
Joaquim, irá apoiá-los quando eu terminar com isto!
— Eu jamais terei um filho que carregue o mesmo sangue que o
seu! — Rebato com força vendo-o sair pela porta com a minha mãe
amparada em seus braços. — Nunca, em toda a minha vida, irei levar uma
mulher a sucumbir à loucura e a doença que causou à minha mãe! Jamais
deixarei essa merda me dominar a minha mente, sentimentos tolos
comandarem o meu desejo e a razão ao ponto de me tornar doente na mente,
na alma e no corpo.
— Seu tolo! — Meu pai para em meio ao corredor e me repreende
sem se voltar em minha direção. — Você já é como o seu pai, sua irmã e a
sua mãe. Você é igual a nós!
— Não se atreva…
— Quando o vi a primeira vez, eu soube que outro “Eu” havia
nascido. Analise a si mesmo e me responda, a fruta pode realmente cair
longe do pé?
— Vou repetir em russo, porque acho que não me compreendeu. —
Replico com sotaque tão carregado podendo sentir o tremor da língua
batendo contra o céu da boca.
— YA nikogda ne budu takim zhe, kak ty, i ya nikogda ne ostavlyu
rebenka v mire, kotoryy neset yego krov. — Digo entredentes. — Eu nunca
serei o mesmo que você, e nunca deixarei uma criança no mundo que
carregue seu sangue. A sua linhagem de merda, morre aqui, junto a todo
respeito que já tive pelo Senhor! — Bato no peito.
— Isso é o que veremos!
IMENSURÁVEL
“O amor é a melhor música na partitura da vida. Sem ele você será um
eterno desafio no imenso coral da humanidade”
Roque Schneider
LIA
U
ma nova rodada de caixas, estão sendo despejadas do elevador, corri meus
olhos pelos novos inquilinos e depois para Nina, que aparentemente tinha
mais coisas a fazer no seu celular do que prestar a atenção no que dizia.
— Nina! — chamei entredentes, cutucando-a na cintura.
A sonsa em pessoa ergueu os olhos para mim como se estivesse
encarando seu inimigo número um.
— Custo a conversar com a pessoa, mas basta que o milagre
aconteça e bang… alguém me interrompe!
— Conversando, às sete da manhã?
— Óbvio! As pessoas têm por hábito darem bom dia pela manhã.
A sua resposta me fez soltar uma lufada de ar impaciente.
— Ok! Fale comigo, sou todo ouvidos. — ela replica.
Segurando em seu braço a fiz dar mais dois passos para longe do
fluxo de caixas enormes sendo empilhadas à frente do apartamento ao lado.
— Você percebeu que em poucas semanas, praticamente todos os
inquilinos se mudaram? — pergunto em voz baixa.
— Sim! — Nina, aproveitou a deixa para ficar nas pontas dos pés e
espiar os carregadores que entram e saem na porta ao lado.
— Você ficou sabendo o que pode estar acontecendo? Recebi uma
mensagem sobre a reunião de condomínio, mas não pude participar.
— Recebi também, mas era o dia de fisioterapia do Anjinho. O que
fiquei sabendo através do zelador, é que o prédio foi vendido. Como o
apartamento é seu, provavelmente não acharam necessário informa-nos. —
ela gesticula com os ombros.
— Isto é estranho… — comento.
— Para uma advogada que atua na área de patrimônio? Realmente
acredito que pareça estranho.
Com outro bufo acerto uma pequena cotovelada em seu braço.
Quando comprei o apartamento de Aline, o fiz pela comodidade de não ter de
me envolver com senhorio, imobiliárias e nenhuma das pendências que um
aluguel exige.
O fato de os apartamentos serem independentes contribuiu para
minha decisão, mas é intrigante a rapidez com a qual um novo proprietário
adquiriu todas as unidades para fazer uma renda mensal de aluguéis.
— Depois vou averiguar quem é o novo proprietário, espero não
termos problemas no futuro.
Nina, guardou o celular no bolso do casaco esportivo, arrumou a
alça da mochila de Anjinho em seu ombro sem conseguir segurar o riso de
escárnio.
— O que foi? — pergunto de forma lacônica.
— Quem seria idiota de querer arrumar problema com você?
Hum…? Se eu te contasse… — penso, mas deixo passar.
Por fim, as caixas são retiradas, com um sorriso amigável os dois
rapazes pedem desculpas pelo incômodo e logo entram no apartamento.
Entramos no elevador e assim que as portas são fechadas, ergo
minha cabeça para observar a nova iluminação sobre o teto, reparo no
moderno jogo de câmeras, uma em cada extremidade do cubículo impedindo
de haver pontos cegos.
Realmente o proprietário está investindo pesado em segurança, o
que para mim não causa nenhum desconforto. — reflito.
Câmeras nas escadas, garagem, portaria com uma ampla mesa
cheia de monitores, porta corta-fogo nova e rondas com seguranças; se não
fosse pelos pesadelos de Anjinho, que recorrentemente acabam com nossas
noites de sono, poderia dizer que finalmente me sinto segura para dormir em
minha própria casa.
Anjinho, se remexe um pouquinho em meus braços, seu rostinho
colado contra o meu pescoço me permiti sentir o ar morno sair dos seus
lábios rosados direto sobre a minha pele.
As mãozinhas diminutas agarram-se ao meu cabelo puxando a
presilha que com muito cuidado tinha conseguido dominar a massa de fios
lisos caindo contra minhas costas.
— Oh, meu amor! Deixe o cabelo da mama, arrumadinho… —
digo com tom de lamento, sentindo-o puxar as madeixas, deixando-as soltas
contra minhas costas.
— Cheirosa…
Essa única sentença me convenceu a não prender os fios
novamente. Dei um abraço apertado em seu corpinho, coloco beijinhos em
seu ombro.
As portas do elevador se abrem na garagem, somos surpreendidas
por uma claridade quase cegante.
— Puta merda! — Nina exclama colocando os óculos escuros. —
Colocaram o sol no subsolo?
Rindo faço um comentário espirituoso, me sentindo cada vez mais
agradecida com as novidades. A última vez que estive sozinha em uma
garagem escura, ou ouvindo passos foi algo angustiante.
Cada um tem de conviver com seus próprios demônios, mas se
aparecer um Anjo da guarda, para proteger-nos, quem em sã consciência
reclamaria?
Antes mesmo de chegar à área externa do pátio, onde geralmente
me encontro com Dionísio, ouvimos uma buzina.
Meu alto, negro, delicioso e super protetor guarda-costas estava em
seu SUV, bem ao lado na garagem. Após ser confirmada a morte do meu
pobre carrinho, passei a aceitar regularmente a sua carona.
— Bom dia! — a voz grossa nos cumprimenta com vivacidade.
Respondo no mesmo tom. Ele gentilmente pegou toda nossa
bagagem e acomodou no banco da frente. Nina dá a ele um aceno com as
mãos, para logo em seguida ajudar-me a colocar Anjinho na cadeirinha.
— Tem certeza de que não quer uma carona? — pergunto.
— Tenho certeza! Vou dar uma corrida, — ela pisca e percebo que
a sua corrida é mais que apenas o mover das pernas pela ciclovia. — Depois
tenho de me encontrar com os rapazes, o meu dia de folga será cheio.
— Ok. — respondo sem buscar mais detalhes sobre sua vida
privada. — Fica tranquila que hoje passarei o dia por conta do meu Anjinho,
— faço um carinho sobre os cabelos sedoso, antes de ajudá-lo com seu boné.
— Tenho apenas uma reunião agora na parte da manhã, depois…
Engulo o que estou prestes a dizer, me impedindo de demonstrar
como realmente estou me sentindo neste momento. Nina compreendendo de
imediato continua com ar descontraído.
— Ele vai amar passar o dia grudado em você. Vai conversar com
a professora agora, ou mais tarde?
— Ela me respondeu a mensagem, disse que podemos ter uma
reunião após o horário.
— Na parte da tarde, vai ao Haras?
— Sim, quero conversar com a Fadinha pessoalmente, geralmente
só nos cumprimentamos à distância, mas hoje eu realmente quero convidá-la
para um lanche e conversar; se há de fato algo nela que tenha perturbado
Anjinho, ou vice-versa, precisamos resolver.
— Gosto muito dela! Contudo, nem se compara como Anjinho se
sente ao vê-la. — Nina faz um sinal com a cabeça e indicando meu filho que
está sentado quietinho com olhar focado na tela do celular.
— Essa noite ele chorou muito, imaginei que ainda fosse pela
historinha dos pinguins.
— Foram os pesadelos?
— Sim! — falo em tom baixo, sentindo-me miserável. — Se ele
não tivesse passado aquele estresse todo no final do ano; se não tivesse
aceitado participar daquela emboscada; se não tivesse sido ferida daquela
forma.
— Se, se, se… Lia, há coisas que não podemos evitar. Quem
poderia premeditar que aquela mulher estaria planejando algo tão sinistro?
Além disso, você é uma mãe formidável. Para que Anjinho voltasse a ter sua
rotina, o equilíbrio novamente, você sacrificou a si mesma, seu tempo de
recuperação, as recomendações médicas, apenas para cuidar dele.
— Shiiii… Fale baixo!
Olho de esguelha para o carro. Realmente não gosto de falar sobre
esse assunto, muito menos como fomos feridos. A ruptura no baço foi séria
ao ponto de precisar de uma intervenção cirúrgica, mas isto não foi o pior
para mim, nem mesmo a voz e o cheiro daquela mulher que parecem ter se
prendido ao meu corpo, principalmente quando me sinto acuada.
O pior é saber que ela queria levar meu menino, e para que isso não
acontecesse, Anjinho foi exposto à várias pessoas estranhas de uma só vez,
causando uma das suas piores crises. A sua mãe não estava lá para ajudá-lo e
nem pelos longos dias que se seguiram; meu filho chorou dia e noite pedindo
por mim até perder a sua voz. Eu estava na droga da UTI sem saber de nada.
— Lia! Lia… — as mãos mornas de Nina me embalaram. — Hei!
Vai ficar tudo bem. Está tudo bem! — ela sorri com carinho. — Anjinho vai
se animar mais quando falarmos da viagem que vamos fazer e após ver a
Fadinha hoje, ele voltará recarregado para casa. Ok?
Nina aperta os meus braços com carinho e sorri arqueando o cenho
brincalhona. — Ei amiga, não gosto quando você fica assim, esquece esses
pensamentos e essa culpa que não te pertence. Tudo bem?
Sem uma resposta, assenti com a cabeça, desviei meus olhos e
voltei a olhar para Anjinho que continua alheio a tudo a sua volta envolvido
com a exibição do seu filme predileto.
— Meu amor, quando chegarmos na escola, vou precisar do
celular! — digo com a voz firme indicando a ele, que esta é uma ação que
não poderá ser contestada.
— Hum!
A sua resposta, ou falta dela é normal para mim, porém esse ar
abatido que acordou hoje, está mexendo com meu emocional.
Dionísio, postou-se ao seu lado tentando ganhar sua atenção,
erguendo seu rosto em minha direção ele pisca os olhos, com aquele ar de:
está tudo bem, deixa o menino.
O fato do meu guarda-costas ter passado a ser meu motorista, fez
com que ele acabasse se aproximando demais de nós, a princípio, foi muito
difícil e constrangedor os seus olhares de esguelha comparando-nos
fisicamente até o dia que emputecida, entreguei a ele um artigo falando sobre
genética e a variação dos genes.
Ele sem saber o que fazer pediu desculpas e sutilmente insinuou
que Anjinho deveria ser a cara do PAI. Não preciso lembrar de quantas
maldições engoli em seco, para não contar um segredo.
Mesmo que ele tenha uma curiosidade normal como qualquer um
que me veja junto ao meu filho, não pude conter-me, imagino que daqui por
diante serão ainda mais chocantes. Resoluta em seguir com o que prometi a
Anjinho, me curvei até estar com os olhos diante do seu rosto, toquei suas
mãozinhas o fazendo erguer seus olhos brevemente em minha direção. —
Não existe nada que fique oculto nessa vida, não é mesmo filho?
— Hum!
— Vamos mudar algumas coisas? — pergunto um pouco nervosa,
minhas mãos tremem levemente ao erguer em direção ao seu boné. — Que
tal a partir de hoje, não usarmos mais isso?
Você não gosta mesmo.
Com uma ação rápida retiro o boné que esconde os cabelos tão
lisos e brilhantes de Anjinho, sua franja que está comprida cai sobre a parte
superior dos olhos, ele balança com agilidade a cabeça até que os fios fiquem
naturalmente jogados de lado. Seu olhar brevemente posto sobre os meus é
reconfortante, o sorriso aprofunda as covinhas em seu rosto deixando
pequenos furos nas laterais de cada bochecha gordinha.
— Você é lindo, meu bebê pinguim! — exclamo envaidecida,
sentindo lágrimas escorrerem em meus olhos. — Está feliz?
— O Anjinho está feliz! — ele responde voltando a fixar seus
olhos na tela do celular, porém agora mexendo levemente sua cabeça para
sentir os fios de cabelo escorrendo por sua testa.
Me ergo, engulo algumas arfadas e jogo o boné em direção a Nina
que tem os olhos postos em nós com brilho de lágrimas represadas.
— Queime! “Quando fazemos uma escolha é desejável que não
retrocedemos.”
— Dona Maria, passou praticamente a noite toda falando algo
similar…
— Nisto, ela nunca errou.
Olhei mais uma vez para meu filho e seu nome bordado na jaqueta
da escola, pensei: um passo de cada vez, hoje o boné, uma hora o seu nome.
— É melhor sairmos agora, ou vamos nos atrasar. — Dionísio
reportou, fechando bem a porta traseira do carro.
Me despeço de Nina, que acena para Anjinho. Ele permanece em
seu estado silencioso, porém com um sorriso no cantinho da boca. De uma a
duas vezes na semana, tenho esse ajuste com Nina, além de ter as horas de
almoço liberadas para poder encontrá-los e almoçarmos juntos antes de voltar
ao escritório ou ao tribunal em dias de audiências.
Estar com Anjinho durante as terapias, fisioterapias e consultas
médicas, me dá a segurança de que não estou negligenciando meu filho
naquilo que mais precisa, mesmo que no fundo, ainda sinta que faço muito
pouco por ele.
Nina deu alguns passos até seu próprio carro, porém hesitou antes
de entrar no veículo, volvendo o corpo me chamou fazendo um sinal para o
próprio celular.
— Houve uma resposta?
Com a cabeça neguei. Assim como eu, ela deu de ombros e soltou
um suspiro. Para desanuviar-me de uma sensação angustiante sorri para ela e
me despedi com aceno entusiasmado.
Apesar de ser algo da nossa rotina, hoje em especial me sinto
eufórica, temerosa e um pouco estranha, principalmente por enviar a Mikael,
uma mensagem e ainda não ter obtido nenhuma resposta.
— Aprendam, de uma vez por todas, nem tudo que se vive nos
tribunais está nos livros. É preciso se valer de algo básico: o cérebro! Que
porra estavam pensando ao emitir isto aqui. – ele joga sobre a mesa uma
pilha de folhas que se espalham sobre o tampo de vidro!
— Quem é o responsável por esse processo? – o silêncio é denso e
essa falta de respostas o coloca ainda mais irritado. — Não sabem? Então
leiam nos autos e procurem descobrir, porque aqui todos são pagos para
trabalhar, não tem supervisão nesse escritório? É isso?
— Se não for o caso, então creio que não leram nada do que está
aqui.
Ele abranda o tom da voz, mas não o volume e de uma forma
indireta está passando um “sabão” no grupo e em todos os presentes.
— Entenda uma coisa, vocês estão lidando com vidas, pessoas
podem ser incriminadas e ter suas vidas arruinadas para sempre com erros
grosseiros assim, da mesma forma que criminosos podem se valer disto para
escaparem da justiça. Se não conseguem ao menos ler um processo, voltem
para as salas de aula e descubram, que porra querem fazer da vida de vocês!
INTOLERÁVEL
“Para ser tolerante, é preciso fixar os limites do intolerável.”
Eco — Umberto
ANGÉLICA
A
s vozes alteradas não me surpreenderam ao subir as escadas e ver Mikael na
sala de reuniões através da parede de vidro.
Desde nosso último contato, ele deixou claro que algo o estava
perturbando. O fato de terem causado problemas envolvendo o nome da
empresa e indiretamente o dele, está óbvio que agravou a situação ao ponto
de perder a camada de verniz que mantém sob sua melhor atuação de bom
rapaz.
Antes mesmo de chegar aos escritórios já ouvi dos seguranças que
ele estava alterado, por este motivo adiei meu outro compromisso e resolvi
vir antes da hora marcada, — me certificando de que o exibido, idiota e
descarado do Giovane não estivesse presente, — já que precisava fazer um
reparo de danos colaterais. Fica cada dia mais notável a necessidade de
Mikael obter alguma ajuda profissional.
Imaginei que alguém pudesse ficar traumatizado depois do que
passaram no Réveillon com o ataque feroz que sofremos de Verônica, e a
morte brutal de Lourdes. Contudo, não imaginava que seria Mikael o
traumatizado e nem esperava ser Lia o motivo. Recuperar o corpo dela dos
seus braços quase sem vida, foi um choque imenso. Nunca o vi tão
transtornado ao ponto de perder o controle como naquele dia. Algo que ficou
entre nós e a equipe presente. Se um dos amigos imaginarem o que vi, não
tenho certeza de como reagiriam.
Prometi a Mikael, que isto ficaria entre nós, desde então tenho
policiado sua falta de sono, seus movimentos e venho me sentindo uma
merda por não poder fazer nada mais por ele.
Vê-lo perder o controle diante de mim naquela altura, trouxe para
fora meus piores demônios, a tortura psicológica é pior do que a física. Nem
se compara a forma como ele está hoje, um riso no canto dos lábios me faz
perceber como já gostei deste idiota. Meto meus dedos no bolso do jeans
dando de ombros com a sensação estranha pairando sobre meu estômago.
Analisar sentimentos ou reviver qualquer situação mesmo em
pensamentos tem se tornado exaustivo. Com uma respiração profunda me
escorei na parede ao lado dos elevadores, esperando que se cansasse e
pudéssemos falar.
Bufei pensando na solução mais assertiva para fazê-lo se curar, —
mesmo que isso não seja nada fácil, se houvesse ao menos um ponto de aterro
para se estabilizar, será um bônus.
Foi justamente em busca de uma solução que sem querer
“querendo” que esbarrei em uma descoberta incrível. A única coisa que
preciso fazer é transformá-lo em um pinguim. O esgar se espalha sobre meus
lábios, mas corto o pensamento para manter meu foco.
Minutos antes recebi uma ligação de Dionísio e segundo o líder de
equipe, a Pocahontas estava subindo e bem alterada devido a um problema na
escola do filho.
A explicação prévia do que aconteceu me deixou alterada para
participar da reunião que estamos prestes a ter, e a minha vontade é de estar
em qualquer lugar, menos aqui após ouvir os rosnados vindo de Mikael.
Se existem situações difíceis com estes dois é sempre bom
repensar, pois, nada é tão ruim que não possa piorar. — estes foram meus
pensamentos antes das portas do elevador se abrirem e Lia passar sem me
notar.
Só por este lapso da sua parte, já queria encerrar a reunião. Não
pude impedir de revirar meus olhos ao perceber como sua atenção focou no
grupinho fofoqueiro à frente, mas o engraçado foi a observar provocando as
secretárias e Pedro que já soltara muitas das suas piadas desde o momento
que cheguei aqui.
Meu celular vibrou, retirei do bolso da minha jaqueta de couro,
ergui a tela diante do meu rosto uma série de mensagens que começaram a
bombardear o aparelho. Espantei-me ao perceber que as mensagens eram de
Santiago, se estivesse diante de mim, poderia jurar que estaria bem alterado.
Não dei muita importância ao que ele estava me enviando, não
fazia ideia do que desejava com esses pedidos estranhos, depois faria uma
releitura do texto e então responderia. Voltei a observar Lia, contudo o
celular trepidando em minha mão roubou minha atenção novamente.
@C_Santiago: porra, Angélica. É uma simples pergunta, o Staeler
está no prédio? Sim ou não?
Isto chamou-me a atenção, não pela curiosidade, mas pela forma
austera da mensagem, geralmente ele é mais polido ao demonstrar seu humor.
@guardiã_A. Campus: qual é o seu problema? Ele não está aqui.
@guardiã_A. Campus: o que quer com ele?
@CSantiago: não minta para mim, se eu tiver de caçá-lo não será
bom para ele.
Um alarme disparou dentro de mim. Por que Santiago estaria atrás
de Ramon? Puxei pela memória se algum alerta de quebra na segurança havia
sido emitido pela manhã e tenho certeza de que não.
@guardiã_A. Campus: o que quer com ele, posso localizá-lo, fiz a
troca da equipe de segurança.
Silêncio.
Joguei com ele imaginando que pudesse ser isto. Santiago não
respondeu, fazendo com que minhas incertezas se agravassem passando por
minha mente uma gama de especulações. No começo, quando minha intenção
de vingança era alimentada por nosso rancor mútuo, estávamos em uma
sintonia onde estas dúvidas, não existiam.
Entendia a forma como os odiava, ainda entendo alguns dos seus
motivos, mesmo que não falemos em voz alta sobre estes. Contudo, nos
últimos dois anos, senti que os meus motivos para agir perderam um pouco
do foco e não penso mais em destruir a todos para obter minha vingança da
mesma forma que antes.
No entanto, San a cada dia que se passa alimenta um ódio ainda
maior por todos eles. É estranha a forma como nos portamos um com outro
hoje, ainda o sinto como meu parceiro, pelo menos na Guardiã onde
resgatamos vítimas de abuso e damos a elas uma oportunidade de uma nova
vida, mas no restante o sinto como outra pessoa.
É como se ele estivesse se esforçando para ser o que não é o tempo
todo, lutando para manter abaixo da superfície o que realmente gostaria de
fazer. Sinto certa apreensão, principalmente por sermos alvo de Verônica e
ela ser sua “mãe adotiva”.
Nunca falei com a família o que realmente sei sobre Verônica, até
porque pode ser uma leva de mentiras e enganos, fora o fato de ter de expor
Santiago, e isto é algo que não faria jamais.
Devo a ele muito mais do que favores, devo minha vida.
Sinto fisicamente a cobrança dessa gratidão. Algumas fisgadas
sobre minha pele dilacerada nas costas e na parte inferior do meu ventre, me
faz eriçar o corpo. Em ambos os momentos de maior perigo da minha vida,
onde estive vulnerável, foi ele quem esteve lá por mim.
Até nas idiotices sentimentais em que me envolvi ao longo dos
anos e recentemente. Lembranças de meses atrás voltam a memória, do
momento em que pisei no meu apartamento logo depois do Natal em que
descobri, senti e me deixei levar por certas coisas sobre Giovane, que não
deveria.
A minha necessidade de pôr distância entre mim e qualquer ser
vivo naquele momento era tão intensa que me causava dor física, um
tormento tão escancarado que me levou a uma crise muito similar à quando
descobri sobre as mentiras de Santana, sobre ser aliciado por July e
companhia para me assediar e obter o testamento.
— Porra… — resmungo sentindo meu café da manhã revirar em
meu estômago.
Só o fato de me relembrar como estava fraca, vulnerável me
atormenta. Era San quem estava lá quando atravessei o marco da porta e tudo
escureceu diante das minhas vistas, foi ele quem impediu minha cabeça de
rachar no chão, que recolheu os pedaços de mim, cuidou mais uma vez das
feridas físicas e mentais, dos meus sentimentos bagunçados, foram os seus
braços que me sustentaram.
Detesto a sensação de que está me escondendo algo, ao ponto de
fazer-me investigá-lo as escondidas com o auxílio de Fernanda, da mesma
forma que odeio saber que ele está manipulando as minhas pistas sobre o
paradeiro da maldita Verônica, me impedindo de encontrá-la.
A raiva flamula dentro de mim, mas o sentimento de gratidão que
não posso esquecer arde em maior intensidade. Voltei a focar o display do
celular.
@guardiam_A. Campus: me diz o que posso ajudá-lo e tentarei.
Mesmo que não seja nada que vá concordar, farei.
@CSantiago: me desculpa a falta de paciência, patroazinha, eu
não sabia da troca de equipes, não fui avisado, está tudo certo.
@guardiam_A. Campus: Ok! Era só isto. Mesmo?
@CSantiago: sim, depois te pago uma pizza para poder me
desculpar pela grosseria. Tudo bem?
@guardiam_A. Campus: pizza?
INDOMÁVEL
“Porque tudo o que sei é que dissemos Oi
E seus olhos são como voltar para casa.
Tudo o que sei é um simples nome.
Tudo mudou”
Everything Has Changed (feat. Ed Sheeran) Taylor Swift.
LIA
E
ste com certeza está sendo um dia como poucos, no entanto, uma sensação de
urgência está gritando dentro de mim, as piadas das secretárias não me
irritaram de forma alguma, na verdade, foi bom para quebrar o clima tenso,
porém o olhar dele e as minhas próprias sensações físicas e emocionais estão
em conflito.
Minha porta se abre de supetão e como estou de costas, não tenho
certeza de quem está parado no marco, mas imaginando ser Angélica para a
tal reunião, resolvo dispensá-la e deixar isto para outro momento.
— Angélica, podemos conversar depois? — aperto as pastas sobre
a mesa com as mãos e olhos fechados contando de zero a dez.
— Antes que fale com ela, nós precisamos conversar.
O tom de voz inflexível, é duro ao ponto de ferir os meus ouvidos.
Sua presença na ampla sala a torna um cubículo, o cheiro do seu perfume
ofusca o ar fresco me fazendo estremecer e sua afirmação me causa uma
sensação agoniante a cada passo duro que dá em minha direção.
— Me ouviu?
— Sim! — respondo e voltando-me em sua direção. — Todavia,
não acredito que este seja um bom momento.
— Dane-se, o bom momento! Teremos esta conversa e será hoje.
Ignoro a minha vontade de respondê-lo a altura, observo sua
postura rígida os traços marcados ao redor dos olhos e os lábios fechados
com certa pressão.
Mikael joga sobre a mesinha de centro uma pasta-arquivo e o
impulso derruba o enfeite sobre o vidro criando um estalo dentro do cômodo.
Me sinto estremecer e percebo o quanto estou abalada, em outro
momento certamente teria resmungado com ele por ser descuidado.
— Precisamos ter uma conversa séria.
— Não temos.
Encontro minha voz, mesmo que pareça um sussurro. Retomo o
fôlego, ele hesita por um instante, arranca a sua toga a largando sobre uma
poltrona, afrouxa gravata, desabotoa os três primeiro botões da sua camisa
branca, antes de passar a mão por sobre os cabelos despenteando-os com
aspereza.
— Acho melhor sair, — indico a porta sentindo melhor o meu
controle, olho para o relógio em meu pulso —, tenho uma reunião em alguns
minutos e logo depois um compromisso fora do escritório.
Mantenho a voz em meio-tom, pois percebo que ele realmente está
fora de si. Não tenho a menor intenção de agravar isto entrando em um
embate com Mikael, principalmente por ser eu a pessoa que lhe enviou uma
mensagem pedindo um encontro entre nós.
— Pois, desmarque! — sua voz se altera um pouco.
Corro meus olhos em volta da minha própria sala buscando uma
saída viável, mas sem sucesso então deixo que a bomba de adrenalina e raiva
se acione.
— Abaixa o tom para falar comigo. Controle-se! — exclamo
fuzilando-o com olhos estreitados.
Mikael estaca a alguns passos de mim, toma uma respiração
profunda tentando se controlar, mas vejo nitidamente a tempestade em seus
olhos.
Ele não tem a menor condição de manter o seu controle e diferente
dos outros, sei como que isto acabará. Tenho a certeza de que não quer as
pessoas no escritório bisbilhotando sobre sua vida, principalmente após
descontrola-se diante de todos.
Raramente estes episódios foram vistos, mas pelos comentários
foram marcantes. Não tenho medo dele, mas pode acabar se ferindo.
— Estou mais que controlado Lia, e nós teremos uma longa
conversa.
— Conversar, neste estado? — bufo, me afasto dele caminhando
em direção a minha bolsa que joguei sobre o sofá do lado oposto onde está.
— Esqueça, Mikael não sou como eles — aponto para fora —, e como disse,
tenho compromissos, vou remarcar minha reunião com Angélica, já que me
fez perder os minutos que pretendia dar a ela.
Pego minha bolsa colocando-a sobre o ombro, o movimento faz os
restos mortais da maldita revista caírem sobre o tapete, a recolho rapidamente
e enrolo contra a palma da mão formando um canudo para que ele não veja.
Meus olhos se relanceiam em sua direção e percebo que ainda me
encara com a mesma expressão austera, porém ele demonstra uma urgência
estanha ao falar.
— Você pretende usar isto como uma desculpa?
— Se quiser tomar como sendo uma, fique à vontade — Dou um
sorriso com sarcasmo e caminho em direção a porta.
— Lia, que porra! — ele aumenta a voz e isto me faz urrar em
mesmo tom com ultraje.
— Não se atreva a gritar comigo, estou falando sério! Não sei que
merda anda acontecendo com você, e nem tenho o interesse em saber.
— Então senta e me escuta. Larga essa bolsa e não de desculpas
esfarrapadas para não me ouvir. Fale comigo, — ele pausa e vejo seu olhar se
obscurecer ainda mais —, porque com qualquer outro, é bem fácil de se
fazer, não é mesmo?
Não gosto do tom que usa na sua insinuação final e isto liga aquele
alarme que soa em minha mente.
— Está se ouvindo? — ergo a revista enrolada e balanço diante dos
seus olhos. — Me recuso a manter o mínimo de diálogo agora.
Ele estreita os olhos e se aproxima cautelosamente como um
predador pronto a dar o bote.
— Ok! — seu tom é baixo. — Então, me acalma.
Seu pedido simples poderia ser encarado como um convite
agradável em outro momento, pois não sou de ferro. Mesmo que o mundo
esteja caindo sobre as minhas costas, ainda sou mulher e tenho um enorme
tesão quando se trata dele. No entanto, por justamente ser quem sou, recuo
um passo e coloco entre nós uma maior distância o rebatendo.
— Sei que sou potente, mas não sou Rivotril, Promotor. Não irá
rolar.
Mikael se aproxima tanto que uso a revista em canudo para
bloquear contra seu peito e empurrá-lo, mas é inútil. Com a minha estatura e
peso para querer tirar um homem de 1,90 de altura e cem quilos de sobre
mim, é uma missão impossível. — Afaste-se!
— Não! — sua resposta é um abuso, mas isto não me atemoriza. —
Certamente que não é um Rivotril, no entanto, é a porra de um tesão
ambulante.
Olho a revista em minha mão e a aperto contra seu peito. Minha
vontade é de realmente afastá-lo, mas usando o resto dessa maldita revista
como ferramenta.
— Lia? — sua voz é rascante. — Me olhe, por favor.
O pedido feito serenamente me pega desprevenida, meu olhar se
prende ao seu, as pupilas claras estão em um tom de cinza tão forte que me
lembram de uma tempestade, — me lembram os olhos do meu filho quando
está em meio às suas crises — esse pensamento cruza a minha mente, perco
um pouco da minha determinação em mantê-lo longe.
Os lábios que foram esmagados com tanta força entre os dentes,
ostentam uma pequena lesão, pelo menos a pele não foi rompida, mas posso
ver nitidamente as marcas profundas deixadas ali. As mãos dele estão nos
bolsos e não sei se estão retorcidas, ou fechadas em punho a ponto de ferir a
palma.
Gradualmente deixo meu braço deslizar ao longo do meu corpo,
Mikael fecha o espaço entre nós e encosta seu peito contra o meu. — Não sou
um sedativo, — sussurro sentindo-o mais do que vendo, uma vez que prefiro
manter meus olhos fechados guardando para mim a minha sanidade ao sentir
sua mão direita roçar o lado do meu rosto.
Ele desliza os dedos mornos sobre minha bochecha até levar para
longe do meu pescoço a massa de fios negros, sinto o peso do cabelo batendo
sobre minhas costas até a altura do quadril, mordo o lábio inferior e seguro a
respiração à espera do que virar a seguir. Como no hospital há algumas
semanas, em sua casa, no escritório, na pequena sala de descanso no
restaurante de Carla e em todas às vezes em que estive em seus braços ele fez
o mesmo.
— Cheirosa… — uma única expressão sussurrada, uma ação
continua e as lágrimas quentes banham meus olhos.
Mikael enterrou seu rosto contra minha pele, aspirou com força
agarrando o cabelo na base da minha nuca e afundando seus dedos de uma
forma quase dolorosa, arrepios dolentes percorrem todo meu corpo, solto a
pressão dos dedos sobre a alça da bolsa em meu ombro e a revista, deixando-
a pendente entre meus dedos.
Tento manter-me o mais pacífica possível, mesmo sabendo que isto
é apenas segundos de calmaria antes de um verdadeiro pandemônio. Ele não
vai desistir de falar seja lá o que for, e provavelmente irei reagir a isto. Há
situações entre nós que nem mesmo litigando fortemente contra, seria
possível de se impedir.
Mikael circula com força minha cintura me aconchegando junto ao
seu corpo, mesmo sob os saltos ergo-me nas pontas dos pés para quase
igualar-me a ele e poder senti-lo por inteiro. Meus pensamentos estão todos
em um inferno de bagunça, quase soluço permitindo-me chorar diante dele,
mas isto de nada poderia nos ajudar, por este motivo, solto a revista e a bolsa
antes de levar minha mão ao meu rosto, limpando as lágrimas rapidamente.
Aspiro o perfume que desprende do seu corpo. Abro meus lábios e
engulo o ar com força para me livrar das sensações físicas.
— Mikael… — digo seu nome tentando afastar-me dele.
— Só mais um segundo, por favor. — ele permanece na mesma
nota.
Todo mundo passa por um momento obscuro na vida, às vezes a
dor é tão intensa que transborda para quem está a nossa volta. A dor é um
urso rugindo ferozmente para nosso coração, queremos apenas protegê-lo e se
para isto for preciso atacar, o faremos. Se tivermos de perder o controle, que
seja.
Eu já fiz tanto isto que chego a sentir o cansaço em meus ossos. Da
mesma forma que a dor me abate me fortalece e, isso me impulsiona erguer
muros, e a atar-me em armaduras. Contudo, ele é o único que coloca brechas
nessa armadura.
Cresci cercada de amor e ternura, tive os melhores pais que sempre
estavam lá para poder me consolar e proteger, para enxugar as minhas
lágrimas se preciso fosse. Até que perdi tudo isto e precisei entender que
nossas lágrimas secam sozinhas.
Todavia, quando há um sentimento maior e um propósito
indomável em nosso peito para protegermos quem amamos, esquecemos da
nossa própria dor e absolvemos a dor deles para que possam ter paz.
Sei que isto está longe do que realmente queremos ou deveríamos
estar fazendo e talvez em alguns minutos me arrependa, no entanto, não
posso e não quero vê-lo e senti-lo tão fragilizado.
— Está tudo bem! — digo em simultâneo, em que minha mão livre
afunda sobre os fios ruivos onde posso sentir a cicatriz do seu acidente
recente, a massa de cabelos se emaranha contra meus dedos e deslizo-os até
tocar a sua nuca.
— Tudo bem…
Repito algumas vezes, convencendo-nos mutuamente que tudo
ficará bem. Somos quebrados, machucados e infinitamente teimosos para que
possamos nos entender, mas da nossa própria forma nos completamos,
mesmo que no final seja apenas com sexo, ainda sim, há mais entre nós do
que possamos realmente dizer um ao outro.
Sinto o momento exato em que retoma o controle sobre si mesmo,
gradualmente se afasta e não tenta nenhuma outra aproximação mais ousada,
só por isto, sei que o que tem a falar é algo que não gostarei.
Em relação a Mikael e meu corpo na mesma equação, de certo que
ele não se afastaria com tanta facilidade, — isto só diz que você deve fazer o
mesmo Lia, e sair deste escritório enquanto ainda tem pernas hábeis para
fazê-lo.
Penso e rebato a mim mesma, ao enviar-lhe uma mensagem
pedindo um encontro dei a Mika a oportunidade de falar-me o que quisesse,
afinal de contas estou em uma missão que vai além do meu querer, dos meus
sentimentos rompidos.
Mikael se afasta, ele passa a mão sobre o rosto e os cabelos da
mesma forma de antes. Os seus olhos ainda estão nublados de certa forma.
Caminho em direção a uma mesa de canto com um frigobar e a máquina de
café.
— Água ou café? — pergunto por educação servindo-me de um
grande copo de água gelada.
Seu silêncio me incômoda, mas não teço comentários e nem
retorno o oferecimento. Após colocar o copo alto sobre a bancada volvo meu
corpo em sua direção ele continua na mesma postura de antes, mãos no bolso,
olhar sombrio, porém com um tom mais leve na voz.
Mikael me pede para assentar-me diante dele, penso em me
prostrar na cadeira atrás da minha mesa, daria a ele e a mim mesma uma
sensação melhor de segurança e distância, no entanto, já passamos dessa fase
principalmente ao vê-lo recolher do chão os restos mortais da revista.
— Anda arrebentando a direção do carro com isto?
Como me conhece bem. — quase digo em voz alta, mas prefiro
ignorar ao sentar-me no sofá de couro marrom.
Olho ao redor tentando me confortar de certa forma, mesmo que
meu escritório precise urgente de um toque de modernidade e ser reformado,
nunca realmente quis me livrar das coisas de papai, por isso a mobília escura
ainda reina no ambiente o tornando bem masculino quase austero para o
conceito do escritório em geral.
— Lia? — ele começa chamando minha atenção ao sentar-se diante
de mim. — Antes de qualquer coisa, me desculpe pela explosão ao entrar.
— Sem problemas, Mikael, já tomei conhecimento por alto sobre o
que aconteceu e se não fosse você a tomar uma atitude certamente alguém o
faria.
Ele balançou a cabeça, esticou uma perna para alcançar o bolso da
calça, retirou o Iphone e conferiu uma mensagem, mas não deve ser algo
importante, já que jogou o aparelho sobre a mesa de centro sem responder.
— Estou ouvindo Mikael, diz o que quer e que seja rápido, por
favor.
— Não sei por onde começar. — ele debocha com um riso torto —
mas, sei que será um inferno quando começarmos a falar.
— Comece da pior parte, não dizem ser melhor arrancar a casca da
ferida para que se cure depressa?
— Ok! — ele concorda. — Ou melhor, o que você queria falar
comigo?
Eu não esperava ter essa conversa aqui e muito menos com os
nervos tão à flor da pele, por este motivo empurro para baixo o que desejo
falar-lhe, ao menos começar a ponderar se possível for um dia.
Dou a ele a deixa para que comece, pois, somente uma pessoa
realmente fora da casinha não veria que o que ele quer falar tem a ver com a
reunião que aconteceu no escritório e não pude participar.
Não só ele está estranho, mas como todos a minha volta. Sinto-os
até constrangidos ao se dirigirem a mim, e o que aconteceu no restaurante da
Carla, foi uma dica forte. Tentei descobrir com Aline e Giovane o que
aconteceu, mas ao desconversarem foi outro ponto.
O fato de Ramon passar por cima do nosso acordo e depositar o
dinheiro que não queria em minha conta bancária, também é outro auto a ser
adicionado neste “caso em aberto”. Sem citar minha conversa para lá de
estranha com Carla durante minha sessão de tortura.
Mas, nada foi mais decisivo sobre minhas dúvidas e receios quanto
a forma e as coisas que mamãe disse ao pernoitar em minha casa. O seu olhar
que hora era de piedade, arrependimento e um sentimento que não gosto de
perceber quando o assunto é nosso passado.
— Podemos discorrer sobre isto em outro momento. Mikael,
prefiro que acabe logo com o que tem a falar, assim passamos para outra
etapa.
— Vivemos de etapas, não é mesmo Lia?
— Sem sarcasmos velados, meu caro Promotor, e sim, nossa vida é
um constante ciclo de etapas, hora nos odiamos, hora transamos.
— Não seria… — ele bufa, se recosta no sofá e volta a passar a
mão sobre os cabelos. — Como queira, em outro momento falaremos sobre
isto.
Mikael volta o corpo para a beirada do sofá demonstrando
claramente o quanto está inquieto, seus olhos não cruzam com os meus, mas
focam em partes do meu corpo, ao redor da sala indo e vindo em minha
direção.
— Mikael?
— Por que não aceitou o dinheiro da herança? — ele diz de
supetão. — E o mais ridículo de toda a situação, como você está aqui
trabalhando, sendo uma das donas deste escritório e nunca recebeu os ativos
que lhe são de direito?
Esbravejo. A coisa é realmente o que pensei, ou melhor, pior do
que pensei, porque ele não consegue esconder a raiva sibilando em cada
pergunta, mesmo que tenha sido feitas em voz baixa.
— Não estamos falando sobre isto, Promotor. Tenha um excelente
dia. — rebato, inclino e alcanço a bolsa ainda no chão e me ergo do sofá.
— Sente-se, agora! — Mikael se fosse um cão estaria rosnando
feito um pitbull ao erguer os olhos e focar diretamente nos meus.
— Você não me dá ordens. — respondo serenamente, mais do que
imaginei que poderia.
— Sente-se Lia, não estou brincando. — ele modera a forma de
falar, mas isto não me impede de sentir o sangue ferver nas veias.
Em vez de me sentar, largo a bolsa sobre o sofá bruscamente e
ando pelo espaço vazio por trás do móvel em direção à parede de vidro que
reveste toda a faixada do escritório.
Olho intensamente para o horizonte, a minha frente e reúno todos
os argumentos, prós e contras que me respaldem nessa discussão iniciada.
Não retrocederei numa decisão, meus motivos são fortes o bastante para
sentir repulso sobre essa herança e isto ninguém poderá mudar.
— Por que nunca me informou? Precisava descobrir tudo em uma
reunião, com aquele idiota jogando em minha cara?
— Não soube, porque a minha vida, não é da conta de ninguém,
muito menos da sua.
— Mesmo assim ainda somos sócios, e isto foi um choque,
principalmente pela forma que descobri.
O jeito da sua entonação me faz estreitar os olhos, mas permaneço
de costas.
— Não fazia ideia de que sua relação com Giovane Santana, era
tão profunda ao ponto de contar-lhe não apenas sua decisão, mas usar uma
história íntima e do nosso passado para justificá-la.
— A forma como descobriu isto, também não me interessa. Na
verdade, não faço a menor ideia do que “nosso passado” signifique para
você, ao ponto de imaginar que não possa falar sobre o assunto com um
amigo.
Rebato sua resposta, mas com meus nervos trêmulos, minhas mãos
estão tão suadas que para evitar demonstrar que sua acusação mexeu comigo
de uma forma ruim, as escondo nos bolsos das calças.
Não faço a menor ideia do que esteja falando. Eu nunca sequer
falei com Giovane sobre algo do tipo, ou que tenha referência à minha
história com Mika, a única vez que cheguei a comentar algo foi no
casamento de Anderson e Aline para confirmar para ele e seu primo quem
era, nada mais, a não ser… PORRA!
Meus olhos se fecham e sinto meu rosto queimando de raiva.
Volvo meu corpo, ele continua na mesma posição, mas o olhar está travado
em mim.
— Do que exatamente você está falando, Mikael? — a pergunta sai
em voz alta, sinto a garganta esbraseando com esforço de conter um berro de
frustração.
— Você melhor do que ninguém deve saber, mas isto não vem
mais ao caso, — ele dá de ombros, — só avise a ele que da próxima vez que
me enfrentar e usar algo do tipo, ele não irá gostar da minha reação.
— Não faço a menor ideia do que algo sobre nós, tenha a ver com
Giovane, a reunião e esse assunto. Para mim essa discussão se dá por
encerrada. É uma perda total do nosso tempo.
— Nada está encerrado. Angélica a aguarda com os papéis da
transação financeira e o endossamento para você assinar.
— Nem em sonhos. Eu não quero, aliás, estou devolvendo para a
conta da empresa todo o montante que Ramon me enviou.
Digo e tento alcançar minha bolsa para pegar o celular, mas ele é
mais rápido e a retira de cima do sofá lançando-a sobre a poltrona em que
estava sentado.
— Mikael! — minha voz se eleva, dou passos adiante, ele cruza os
braços sobre o peito. — Só de pensar em tocar neste dinheiro me sinto doente
e isso não é um eufemismo.
Ando em círculos pelo escritório para me acalmar, não posso sair
assim, ou serei capaz de cometer um desatino. Mikael vem em minha direção
e segura-me novamente.
— Sente-se e me ouça.
— Não quero me sentar, não quero ouvir, apenas não!
— Não irei renunciar a isso Lia, é seu direito e você deve aceitar.
— Se é meu direito, posso recusar.
— Não rebata uma verdade com uma sandice. Como advogada,
tem ciência de que é obrigada a receber a sua herança.
— Não a quero!
— E viverá de quê? — ele grita e abre os braços perdendo a
postura rígida.
— Da mesma forma que fiz até hoje. — rebato.
Ele estreita os olhos e sei que a situação ainda ficará pior, posso
sentir isto.
— Você não está sozinha, precisa cuidar melhor de si e do seu
filho. Ter um recurso financeiro para dar-lhe suporte caso necessite, foi por
isto que nossos pais fizeram esse acordo.
— Está perdendo o seu tempo e me dando enxaqueca. — recuo e o
encaro firmemente. — Pense em mim como alguém que não pode ser
controlada.
— Não desejo fazer isto, e sabe melhor do que ninguém que não
suporto essa pressão. Contudo, se tivermos de viver sob esta condição não
vou me opor.
— Não perca seu tempo com isto, Mikael. Se em algum momento
da minha vida o permiti imaginar que pudesse me controlar de alguma forma,
foi por um mero equívoco. Da minha vida, cuido eu.
— Mesmo que isso interfira de alguma forma na criação do seu
filho?
— Meu filho não é um assunto em pauta. — ergo meu dedo e
aponto diretamente ao seu peito. — E de forma nenhuma receber essa
herança, mudaria a vida dele!
— Claro que mudaria! — ele rebate, desta vez me puxando para o
sofá onde desabo com ele ao meu lado me segurando. — Um orçamento mais
amplo facilitaria muito sua vida.
— Espere. — ergo minha mão e dou uma risada entredentes. —
Não quero supor, que tenha usado seus meios como Promotor, ou pedido a
Angélica para fazer uma investigação financeira da minha vida. Não quero
supor, — ressalto — que ultrapassou esse limite.
— Estamos nos desviando do propósito aqui.
— Mikael, o respeito como homem, mais do que possa imaginar,
mas se por um único segundo eu suspeitar que andam me investigando de
qualquer forma…
— E se fiz? — é a vez dele se erguer, estreito meus olhos não
podendo acreditar no que está se passando por minha cabeça.
Ele não me dá ouvidos e começa a dissertar sobre várias das suas
frustrações por nunca ter sequer suspeitado sobre minha recusa em aceitar
esse dinheiro.
De imediato pensamentos misturados a lembranças do passado
assolam minha mente jogando sujo com minhas emoções, sinto meu corpo
estremecendo a cada palavra. Cada argumento parece um dardo inflamado
contra meu coração, em vez de me convencer a aceitar este dinheiro, só sinto
a minha repulsa aumentando.
O fato de Giovane ter invadido a reunião para acusar Mikael, me
deixa intrigada e muito emputecida. Não aceito, mas compreendo agora por
que ele estava daquela forma no restaurante e o porquê foi um verdadeiro
filho da mãe, ao dizer aquilo sobre ter filhos na frente de todos, mesmo assim
não vou aceitar sua imposição.
Nem ele poderia me fazer mudar de ideia no passado, muito menos
agora.
— Chega! — grito e ele se cala.
Me ergo novamente e o empurro para alcançar minha bolsa, mas
ele segura meu antebraço e me faz parar à sua frente.
— Eu ainda não terminei.
— Pois, eu já! Dane-se se sentiu magoado com o que ele falou. —
pauso. — No entanto, não podemos dizer que ele tenha mentido, concorda?
— Lia, gostaria muito de poder voltar no tempo e mudar tudo isto e
fazer tudo diferente, mas…
— Entretanto, quem tem de pedir desculpas, não está aqui para
fazê-lo. Dado como verdade, digo que: a filha do ladrão está recusando
publicamente e oficialmente ter parte na droga dessa herança, e se continuar a
me pressionar, nem mesmo aqui neste escritório ficarei.
— Não se atreva a me ameaçar.
— Não é uma ameaça! — rebato e puxo meu braço para longe
dele.
— Não diga estas coisas, já passamos por merdas demais por conta
destas acusações. Isto está no passado!
— Em qual passado? — pergunto sentindo a cólera subir em forma
de bílis em minha boca. — Em qual passado está soterrado está história para
que possa esquecer e viver como se nada tivesse acontecido?
— Todos pagamos um alto preço e deveríamos nos livrar disto.
— Você consegue?
— Não, mas você é mais forte do que eu e tem um motivo para
ficar sã.
Sinto a referência ao meu filho, mas meu cérebro tomado de terror
e meu coração de mágoa não dá espaço a esse lenitivo.
— Não estou aqui para medir forças com você. Cada qual carrega o
fardo que suporta, pois, entenda de uma vez por todas, — pauso e não
reprimo às lágrimas que ardem nos meus olhos até escorrer por meu rosto. —
Não quero esse dinheiro. Pois, da forma que foi feito, custou-me muito mais
do que anos longe da minha família Mikael. Ser mandada embora para
Portugal e viver lá como uma reclusa, não foi nada, perto de não estar aqui
quando meu pai morreu.
— Lia, por favor. — ele se aproxima.
— Não me toca! Eu não quero ser consolada. Quero que entenda
de uma vez por todas.
Meus olhos embaçam e minha voz embarga de uma forma que mal
posso suportar. No entanto, respiro fundo, limpo meu rosto e tranco as
malditas lágrimas dentro de mim.
— Passei anos longe, sem poder voltar, mas ainda assim sendo a
filha de um suspeito de roubo, sabendo que meu pai morreu com a alcunha de
ladrão. Porque o seu pai era um racista filho da puta, que o julgou por ser
pobre e negro, o fez parecer ser alguém que pudesse cometer tal crime.
— Não fale assim, nós sabemos que isto não é a verdade.
— Mas, foi o que ele falou por anos. Foi exatamente o que afirmou
quando prenderam meu pai; o melhor advogado criminalista do estado sendo
preso por suspeita de roubo — me aproximo e abaixo o tom de voz, — foi o
que o seu pai disse ao me arrancar da sua cama, depois que você colocou um
anel em meu dedo.
Não queria mencionar o anel, porque tudo mais voltaria como uma
avalanche, posso sentir o momento exato em que as lembranças explodem
sobre o córtex cerebral criando uma dor insuportável.
Mikael tem uma expressão dolorida ao ser afastado e não me
importo, porque sabia que seria assim, se o assunto fosse esse, chegaríamos
aonde não quero. Aonde nossos sentimentos, culpas e nossas decisões
tomadas colocaram uma estaca na linha que nos ligava e nos separou uma
vez.
Seu olhar é duro, ele passa a mão sobre o cabelo e chega tão
próximo a mim que sinto sua respiração morna batendo sobre meu rosto.
— Não posso trazer meu pai dos mortos para se desculpar e nem
me ajoelhar na frente do seu para fazer o mesmo, mas posso mudar as coisas
no presente. E vou fazer isso Lia, nem que tenha de passar por cima dessa
porra de orgulho besta que você tem!
— Belo discurso, mas eu não vou assinar nada!
— Assinará! — Ele se altera, —irá assinar e aceitar sim! Que porra
se passa na sua cabeça para agir assim? Você tem um filho que cria sozinha,
comprou um apartamento financiado a perder de vista, seu filho estuda em
uma das escolas mais caras de Vitória, o que acho uma desgraça. Tem uma
babá em tempo integral, vai me contar o seu segredo, como sobrevive só com
esse salário que recebe?
— Como 90% da população mundial, seu estúpido! — rebato com
força alterando a voz novamente e imagino que o circo lá fora deva estar
lotado de expectadores.
— Mesmo, como? — ele rosna sua pergunta.
— TRABALHANDO!
O fato dele ter uma listagem financeira da minha vida me assusta,
mas não por saber dela, mas o fato de ter ido tão longe e saber onde Anjinho
estuda. Mas, isto acaba ficando em segundo plano ao ouvir o que ainda tem a
dizer-me.
— ÓTIMO! — ele usa o mesmo tom e sua voz é como um trovão
rasgando meus ouvidos. — Você assinará os documentos pautados em sua
própria afirmação e daremos por encerrado o caso. Sabe por quê? Porque
aprendeu com o melhor a dar valor ao trabalho, esse pensamento vem do tio
Joaquim, não é?
— Cala a boca! Você não tem o direito de falar do meu pai.
— E você não tem o direito de menosprezar o que fez para você, o
tanto que lutou e o que deixou em seu nome.
— Mikael, leia os meus lábios…
Ele surta de vez segura-me próximo o bastante para estarmos
ligados e então sibila contra meu rosto suas palavras.
— Você é minha mulher, e quero poder me assegurar de alguma
forma que isto vai ser feito.
— Sua, o quê? — o fato de estar colada a ele não é nada em
relação ao que afirma com tanta força. — Não me faça ter uma crise de risos
em meio a uma discussão, por favor.
— Sempre foi! — ele desce seus olhos sobre meus lábios e retorna
a fixar-me em mim. — garantidamente, sempre que você está em cena,
estamos mutuamente nos fodendo, de todas as formas possíveis. Desde que
renunciei a ter qualquer “transa casual” com outras mulheres pelo último ano,
— ele deu ombros. — passei a considerá-la como minha mulher. Aceito o
fato com muito prazer.
— Acredito que essa conversa tem que ser encerrada, aqui e agora
antes que falemos algo muito errado.
Ele me ignora de propósito dando sequência na sua reivindicação.
— E tem mais Lia, chega dessa porra de distanciamento, se isto que rola entre
nós vai seguir de alguma forma, então será do nosso jeito.
— Nosso jeito? Como, o Promotor estala os dedos e eu me curvo?
— Se te der prazer, — ele encara minha boca e sinto a força da sua
ereção roçando contra meu baixo ventre. — Podemos fazê-lo, no mais
começara com você assinando os papéis.
Relaxo meu corpo e ele afrouxa o agarre, me afasto dele e digo
exatamente o que penso em relação as suas afirmações e as decisões em
relação a mim.
— Eu não vou assinar, e quanto a ser sua mulher, vai para o
inferno! “Seja um bom menino e não se apegue à filha de um ladrão”, foi
exatamente isto que os seus pais disseram naquela altura, não foi?
Não sei exatamente o porquê, mas é a declaração que no momento
me alegra e enfurece numa proporção que mal posso contabilizar.
Pego minha bolsa sobre a poltrona e sigo para porta, mas paro ao
ouvi-lo transbordar toda sua raiva, da forma mais letal que consegue.
— Liana Joaquina dos Anjos. Não me provoque.
Um arrepio cru percorre meu corpo.
Primeiro: porque faz anos que não ouço meu nome ser pronunciado
dessa forma e quase tenho um AVC por ouvi-lo fazendo.
Segundo: por imaginar que isto não termina aqui e ainda tenho que
ter uma conversa com ele, sobre algo que mudará ainda mais nossas vidas e
não faço ideia de como fazê-lo, depois disto.
— Não é provocação quando é a verdade.
Não fico para saber o que ele ainda possa ter a me dizer. Abro a
porta do meu escritório e dou alguns passos, sinto os olhares à minha volta,
de certo que ouviram cada palavra e isto torna tudo muito pior do que
ouvirem um gemido ou um xingamento.
Meu rosto queima pelo constrangimento, no entanto, ergo meus
ombros e jogo o cabelo de lado sobre meu seio direto. Coloco os meus óculos
escuros que rapidamente alcanço no compartimento externo da minha bolsa.
Minhas pernas estão trêmulas e nunca o lobby do elevador pareceu tão longe
como agora.
Mais dois passos e um estrondo ensurdece a todos no escritório.
Sons de cacos de vidro se espalhando dentro da minha sala me congela.
Pedro solta um grito histérico e junto a outras secretárias correm
em direção da minha sala, pelo som parece que a mesa de centro foi
arremessada contra algo.
As portas do elevador se abrem entro cega e agitada de aflição,
meu cérebro me manda fugir, mas meu coração quer que eu volte e veja o
que pode estar acontecendo, porém, não tenho esse tempo, as portas se
fecham e meu corpo desaba contra o painel do elevador.
O arquejo que sai entre meus lábios é alto e logo um par de mãos
fortes me seguram. Assusto-me, mas não ergo meus olhos, percebo quem é e
logo faço algo que é totalmente o oposto ao que normalmente faria.
Peço ajuda.
— Álvaro, por favor, pode me tirar daqui? — odeio o fato da
minha voz estar ridiculamente desfraldada, mas mal posso segurar as
lágrimas que embaçam minha visão.
— Me desculpa, não sou o Álvaro, mas será um prazer ajudá-la a
sair daqui.
A voz rouca me faz recuar, de certo que atrapalhei um cliente a sair
do elevador, ergo meus olhos rapidamente e não consigo registrar bem suas
feições por estar com óculos escuros em uma pequena cabine.
— Oh! Sinto muito senhor, não o vi e o confundi com alguém do
escritório.
— Não tem problema, eu conheço as pessoas do escritório e sei
quem é a senhorita, mas meu oferecimento é sincero.
Algo na voz do homem me soa estranho é como se já o ouvisse e o
cheiro do perfume não é estranho.
— Sou próximo a Álvaro.
— Ah! — isso explica, acho.
Me afasto dele sentindo meu corpo dormente e minhas pernas
fraquejam, percebo que ainda estamos no andar ao ouvir vozes alteradas.
Tento erguer meus dedos para abrir à porta, mas o estranho me impede.
Minhas mãos estão frouxas quando ele gentilmente afasta meu
pulso.
— Quer sair daqui?
— Quero… — o sussurro é tão sincero que as lágrimas não só
caem, como soluços se impõem através dos meus lábios.
— Correto, permita-me ser seu cavaleiro andante por hoje.
O estranho aperta o botão no terreno o que me fará sair sem a
escolta de Dionísio, mas essa é a menor das minhas preocupações no
momento.
— Me chamo Lia. — me apresento tardiamente, quando as portas
do elevador se abrem.
— É um enorme prazer resgatá-la Lia, meu é Christian, — o
homem alto e loiro ergue sua mão, em minha direção e sorri.
Sorrio em resposta, ao menos tento. Consigo registrar os olhos
mais azuis que já vi em toda minha vida, a farta barba, e a cicatriz bem
aparente em seu rosto, o que me causa uma sensação estranha déjà vu.
— Christian Santiago, meus amigos me chamam de… San, espero
que possa fazê-lo no futuro.
CAPÍTULO 17
INAPROPRIADO
“O coração é ordinariamente um termo de que nos servimos, por decência,
para designar outro órgão.”
Eça de Queirós
MIKAEL
A
carga emocional, estava triturando o meu bom senso ao ponto de perder o
foco entre o certo e o errado, privando a minha consciência dessa linha tênue
que tão duramente construo dia a dia.
A densa fúria me abateu de uma forma, que forçar a entrada de ar
nos pulmões tornou-se um custo, a adrenalina, testosterona, falta de sono,
irritabilidade, estresse e medo, sobressaem pelos meus poros através do suor
que escorre pelo meu rosto.
Não é a primeira vez e de certo que não será a última que isto
acontece, porém, cada vez que se repete, a sensação de perda de algo parece
piorar ao ponto de uma exaustão física e mental angustiante.
O gosto ferruginoso sobre a língua e ardência sobre o lábio inferior
é prova de que o massacrei a pele em pelo menos dois pontos diferentes.
Nunca imaginei que coisas como estas pudessem voltar depois de
anos. Minha vaga recordação é muito infantil de perder o controle e ficar em
um estado catatônico após algum estresse muito forte, brigas dos meus pais
ou repreensões por algo, mas não sei a extensão de onde cheguei, ou poderia,
se um dia não pudesse me controlar.
A dor de cabeça que sentia pela manhã ao levantar, só piorou ao ser
abordado no tribunal e receber as insinuações nas quais eu estaria usando os
meus subordinados e estagiários para obter vantagens em um dos processos
em andamento.
Inteirei-me por completo sobre o que havia acontecido no meu dia
de folga e o sangue ferveu. Pensei em chamar Edu, para estar à frente disto e
resolver o problema, mas assim que fui comunicado sobre a presença dos que
causaram problemas antes, e tomar consciência sobre o que queriam falar-me,
simplesmente deixei tudo vir à tona.
Aos despachá-los com uma reprimenda ainda em minha sala, não
imaginei que algo pior pudesse acontecer, mas bastou chegar nos escritórios e
no fim me vi na sala de reuniões esbravejando toda a minha frustração sobre
eles.
No primeiro momento preferi me calar e tentar manter a postura do
rapaz legal, mas a expectativa do que estaria por vir em poucas horas, não me
permitia abrandar.
Ao dar um prazo para Angélica empossar Lia da sua herança, abri
um precedente para envolver-me em definitivo nesta situação. Talvez por
isto, cruelmente tenha deixado me levar e descarregado tudo sobre um
assunto que era de grande relevância do que extrapolar com ela.
Obviamente não foi o suficiente.
Os passos apressados, as vozes de curiosos e as mãos geladas
envolta do meu rosto deveria me devolver calmamente para minha
consciência, contudo apenas um trago do cheiro, da essência, da voz dela
faria isto por mim.
Eu queria apenas que Lia voltasse e para arrebentar qualquer coisa
contra minha cabeça por destruir a mesinha de centro da sua sala ao
arremessá-la para longe, porém isto não vai acontecer.
Certamente se acontecesse, estaríamos na merda, pois voltaríamos
a carga da discussão, dos gritos, da dor física de conter o desejo de
atracarmos sobre qualquer superfície e transarmos até que nossa raiva seja
extinta.
Pois, da mesma forma que está irredutível dizendo não, faço força
na ponta ao contrário do cabo de guerra, dizendo sim.
Ouço meu nome sendo bradejado com força contra meus ouvidos e
isto me tira da letargia. Meus olhos cruzam com os de Angélica, sua
expressão de pavor é encurtada com o riso cínico que esboço em sua direção.
É automático, um artista mantendo sua pose diante dos
espectadores.
— Sem querer, esbarrei meu pé na mesinha. — Explicação no
mínimo parva diante do arremesso que fiz com a peça de mobília para ser
lançada do outro lado da sala.
— Mesmo? — ela devolve com seu sarcasmo natural. — Então
deve ter sido “O” esbarrão, uma vez que a pobre coitada não terá a
oportunidade nem mesmo de ser restaurada.
Sigo a direção que aponta por sobre o ombro e vejo duas coisas que
me estremecem:
A primeira que estou encolhido com um bicho acuado no canto da
sala entre uma estante e a parede, o que não faço ideia de como fiz isto.
A segunda é a maldita mesa que está longe o bastante para ter se
tornado apenas lenha e vidro quebrado. Sobre os detritos uma placa de
gesso em pedaços continua se desfazendo lentamente da parede onde ficou
um buraco.
Ignoro sua carranca e com delicadeza a empurro para que me deixe
sair, percebo com canto dos olhos que apenas três pessoas permanecem no
escritório, mas na porta do lado de fora bloqueando-nos dos olhares curiosos
estão Anderson e Carlos Eduardo, com braços cruzados e semblantes
circunspectos.
Protagonizamos uma cena e tanto. — penso.
Inferno, ela deve estar me odiando por se sentir tão exposta, este é
um assunto sigiloso e tão íntimo que só diz respeito a nós. Porra, Michael
como foi escorregar tão fundo no seu controle?
Angélica alça o corpo e joga sobre a poltrona um envelope, antes
de sentar-se ao lado colocando o tornozelo cruzado sobre o joelho dobrado
ainda me encarando.
Ergo-me sentindo uma dor estranha pelas articulações, mas ignoro
meu desconforto físico e encaro Pedro, me assusto ao vê-lo segurando um
embrulho rosa, mas não tenho oportunidade de perguntar do que se trata,
pois, logo o pai do bebê em seus braços, estaca à minha frente e ele, de certo
não tem uma expressão de pesar ou piedade como os demais.
— Espero, que esteja calmo o suficiente, para assinar os cheques
que vão pagar por estar bagunça, Senhor Mikael Nikolaievitch.
— Staeler. — devolvo o cumprimento com um gesto vago de
mãos, saco a carteira do bolso traseiro da calça social e estendo em sua
direção. — Fique à vontade.
Ele aperta o maxilar e cruza os braços na altura do peito, a postura
é austera, mas o fato de estar com um papai-canguru amarrado ao peito,
abranda um pouco a sua fisionomia e deixa a coisa ainda mais bizarra.
— Pedro? — chamo o assistente da administração sem me ater ao
olhar atendo dos meus amigos.
O rapaz se assusta e recua um passo com Pérola firmemente segura
em seus braços — Sim, senhor?
Estalo os dedos das mãos contra as palmas e sinto as articulações
formigarem, em seguida ergo os braços, alcanço os botões da camisa
amassada para os encasar e me recompor.
— Envie um pedido de férias ao RH. Trinta dias de licença
remunerada para Doutora dos Anjos. Remaneje seus clientes para outros
advogados, envie-lhes uma cesta de iguarias com um pedido formal de
desculpas em nome do escritório.
— Farei isto, Promotor Mikael.
— Cuide para que os processos em aberto sejam remanejados para
os principais, — endureço minha voz esperando uma argumentação contrária
de Edu e Anderson, mas não vem —, peça para que o pessoal da limpeza de
uma geral no escritório, contrate uma empresa especializada em reformas e se
encarregue pessoalmente de deixar o escritório como antes. Use meus
recursos pessoais como associado para todas as despesas.
Passo a mão sobre as mangas da camisa após ajustar a gravata e
retorno as abotoaduras que estão em meu bolso. — Leve a madeira a um
restaurador, o melhor que encontrar e refaça uma peça similar. — suspiro
ciente a cada segundo a enorme proporção do problema que perder o controle
me causou. — Inferno! Está veio de Portugal, entre em contato com algum
antiquário e negocie com eles a compra.
— Pode deixar comigo, Promotor.
— Ótimo, — alcanço a toga amassada sobre o sofá —, mais uma
coisa Pedro, — ergo meus olhos mirando o olhar assustado do assistente —
sugiro fortemente que espalhe para os quatro cantos desta empresa que uma
única palavra sobre o que houve aqui sendo replicada pelos corredores, salas
de café ou fora deste escritório, se tornará uma carta de demissão imediata.
Estamos entendidos?
— Si-sim senhor, fique tranquilo, somos discretíssimos.
Estreito meus olhos sobre o homem para poder fazer valer minha
ameaça. Pedro caminha em direção a Ramon para devolver-lhe a filha,
resmunga algo e sai apressado para cumprir com que foi pedido.
A expressão carrancuda do argentino não se desfez por completo,
mas a docilidade no gesto de pegar a filha trai sua empáfia ao me observar.
Estas medidas não são exatamente um lenitivo, nem servirá como
uma desculpa para o que houve e o que ainda está em curso no que diz a
respeito à Lia e a parte financeira que lhe cabe. Sei das minhas
responsabilidades e do que quero agora, por este motivo não medirei esforços
para que aconteça.
Arrisquei tudo ao ser tão brusco com Lia, mas entre nós, não
existem meios termos. Não gostamos de mentiras. Sem desculpas, tudo é às
claras, cru, se doer, dane-se. Suportamos bem o tranco.
Arqueio o sobrecenho aos meus amigos que permanecem na porta
como seguranças, sem qualquer explicação, se afastam dando espaço para um
vão completamente vazio de funcionários.
— Estamos saindo. — Carlos Eduardo anuncia a ninguém em
particular. Ele e Anderson se destacam da soleira e caminham em direção ao
vestíbulo.
Estou pronto para deixar a sala, mas antes quero os documentos
que estão com Angélica, me preparo para pedi-los quando a megera salta do
lugar onde está sentada drenando a cor dos lábios. O celular em sua mão
trepida, mas rapidamente disfarça isto colocando-o em seu bolso.
— Estou me retirando também, tenho coisas a resolver, — não há
urgência em sua voz, mas passar os últimos meses correndo ao seu lado e
presenciando tantas mensagens estranhas como esta, me permite identificar
detalhes nos seus desempenhos.
— O que houve? — pergunto ignorando Staeler que permanece em
silêncio andando de um lado a outro para embalar a filha.
— Nada! — ela alcança o envelope para colocá-lo na jaqueta.
— Fico com isto.
A megera cessa seus gestos, ergue os olhos e me fita sem nenhuma
expressão.
— Creio que já sabemos que isso aqui, não vai dar certo, não acha?
Olhe à sua volta, não vejo uma Pocahontas saltitante, louca para se tornar
uma milionária.
Sua boca contorce em uma careta desagradável, mas isto não me
intimida e nem desmotiva; permaneço com a mão estendida em sua direção.
— Fico com isto, — replico e acrescento —, transfira os bens para
a conta dela.
— Não é assim que funciona, sabe bem disto.
— Você pode fazer a coisa do procedimento verbal e leitura
testamental para a entrega depois, faça o que estou gentilmente pedindo.
— Desculpa, mas rosnar como um cão raivoso é um pedido gentil?
— Angélica, não me teste.
— Mikael — ela recebe outra mensagem e percebo seu maxilar
travando com força. — Faça como achar melhor, porém seja prudente. Nunca
imaginei que seria esse tipo de abordagem que teria com Lia, se quer saber
minha opinião, foi uma merda o pouco que ouvi, não estou culpando-o,
porém parece que há mais do que isto aqui — ela gira o dedo no ar — para
ser resolvido entre vocês dois.
— Sempre haverá — concordo.
— Disto meu caro, não tenha dúvida. — sua risada é no mínimo
estranha para não dizer outra coisa.
Percebo até Ramon parar em meio ao passeio de um lado a outro
para encará-la. — O que quer dizer com isto?
— Nada! Preciso ir, realmente não deveria me interessar pela vida
de vocês, — ela resmunga. — Sinto falta de quando só os odiava, era tudo
mais fácil.
— Você nunca nos odiou. — Ramon interfere.
— Que seja! — ela exclama irritada, retira o envelope parcialmente
guardado e coloca sobre minha mão produzindo um som de estalo com a
força usada. — O que pretende fazer para que ela assine isto?
— Não sei bem o certo ainda, mas tenho planos.
— Boa sorte!
Angélica abre a boca para falar algo, mas a vejo desistindo. Do
mesmo jeito intempestivo que bufou, deu-nos um aceno de cabeça e
caminhou até a porta, mas não cruzou a soleira, a loira volveu seu corpo e
fixou os seus olhos em mim.
— Você precisa de ajuda, — ergo o sobrecenho — não faço ideia
do que está rolando na sua cabeça, e o quanto essa merda fodeu com seu
juízo Mikael, mas tenho certeza de que precisa de ajuda. — ela bufa. — Eu
não acredito que vou falar isto, vai contra as minhas crenças, mas se de
alguma forma ela é parte da ajuda que precisa, pode contar comigo, no
entanto, tenta não foder com tudo, ovinho…
Angélica faz uma cara de nojo e aponta para mesa no chão. —
Quando a maluquice bater forte, vai correr ou bate uma, mas não faz essa
merda, porque pode acabar machucando alguém. Ok?
— Nunca a ouvi falar tanto — cruzei os braços sobre meu peito.
— Não se acostume, da próxima vez, vai ser dois Haldol, um
Fenergan e faço com que o amarrem em uma cama.
— Hum! Cama? Acredito que quem precisará de uma é você, —
solto uma risada baixa e aponto os meus lábios e em seguida os seus com o
dedo em riste —, foi o idiota do Santana que fez isso aí?
Angélica se surpreende ao passar a língua sobre os lábios
levemente inchados e solta uma leva de palavrões, antes de mandar-me ao
inferno. Ela deixa a sala, mas fecha a porta devagar olhando para a criança
nos braços de Ramon.
O som do clic metálico isolando-me do mundo arremete dentro de
mim como um balde de água fresca em meio ao deserto, sinto meu corpo se
rendendo, manter a pose de indiferença exauriu massivamente o pouco de
controle que reuni para sair do torpor.
Meu corpo desce sobre o sofá, jogo minha cabeça contra o encosto,
e por costume alcanço o celular do bolso e às cegas abro um aplicativo de
música, a melodia em volume baixo da playlist selecionada me traz conforto,
plenitude.
De alguma forma, consigo me centrar melhor absorvendo as notas
musicais como uma espoja. Assim posso redirecionar o meu momento de
estresse para um lugar além de onde esteja.
Moí meus dentes até rangê-los com o maxilar travado. Coloquei o
braço direito por sobre meus olhos e respirei algumas engolfadas de ar,
tentando aplacar meus pensamentos e sensações.
Minutos se passaram até ouvir um resmungo fininho próximo de
onde estou, permaneço estático não me importando com a presença de
Ramon.
— Minha Princesinha Caramelo, agora vai ficar quietinha no seu
bebê-conforto, enquanto o papai terá uma conversa séria com tio Mika, —
ele sussurra para a filha, tenho a curiosidade de ver a cena, pois sempre que o
argentino está em modo babão fazendo voz de ventríloquo com sua filha é
algo engraçado de se ver.
— Ramon, agora não! — suspiro, minha cabeça lateja.
Com o antebraço ainda sobre os olhos, ouço os passos dele em
volta do sofá. Percebo os movimentos e o couro rangendo abaixo do seu
peso.
De todos os meus amigos, Ramon é o mais próximo. É a pessoa,
tirando Lia, que deva me conhecer melhor, por isto seu bufo ao ouvir minha
voz rouca recusando sua presença, parece ser mais de lamento do que
irritadiço.
Mesmo sabendo o quanto não suporto estas ações piedosas, é
totalmente normal que ele se irrite, extrapole e deixe bem claro seu desagrado
como também pode se comportar como um pai.
— Sei que não deseja falar agora, mas escute com atenção. — ele
tem um tom baixo e persistente.
— Não quero… — respondo de má vontade.
— Não me importo se quer algo ou não, Mikael! — sua voz muda
completamente. É a parte onde a piedade entra em conflito com a
irritabilidade.
Permaneço calado, isto é algo que não se pode mudar em cachorro
velho, manias, e ele sempre teve muitas delas, principalmente ser autoritário.
— Você já ouviu a lenda das ostras?
Um riso de escárnio escapa entre meus lábios. — Algumas vezes,
você sempre tem um motivo para falar disto.
— Ótimo! — ele bufa e sinto seu corpo repousar bem ao meu lado
contra o encosto do sofá. — Não preciso me estender em um longo discurso,
pois sabe exatamente o que retirar de dentro de si mesmo após a dor, entre as
cicatrizes.
— Como? — não acredito ao ouvir o sussurro saindo dos meus
próprios lábios, mas uma vez que saiu, o resto como uma enxurrada de lama
e entulhos se despejou de dentro de mim. — Como vamos retirar algo puro e
precioso de tanta dor, de tanta… Merda?
— Vocês estão se fazendo perguntas retóricas. Quer que cite
alguns exemplos de como poderiam começar a resolver isto?
— Ramon, isto seria muito erudito para minha mente agora, se
olhar à sua volta vai ver que as coisas estão em um patamar bem a abaixo do
seu nível.
— No tipo: eu ser troglodita, mim, fazê-la assinar um documento,
mim, dizer ela é minha mulher?
Recuei para longe dele erguendo meu braço de imediato. — Porra!
— exclamei ao encarar meu amigo. — Você ouviu?
— Eu e todos os presentes do lado de fora desta sala. Só faltaram
os murros no peito, Tarzan.
— Foda-se! — me ergui. — Dane-se se ouviram, não minto, ela é
minha mulher Staeler, e muito antes que qualquer um possa imaginar.
— Sei disto, aliás todos nós sabemos. O fato de não demonstramos
nossa torcida abertamente ou querer revisitar esse relacionamento
conturbado. É por respeito a vossa história que vai além do que sabemos.
— E, porque não é da conta de ninguém!
— Exato, não o recrimino por dizer isto.
— Nem poderia, não após ser casado com Carla por dezessete
anos, amigo.
— Meu casamento não está em pauta e fale baixo, para não acordar
Pérola.
Ao mencionar a filha, olho a minha volta e vejo sobre a mesa um
bebê-conforto cor-de-rosa, onde a bebê dorme tranquilamente.
— Ok! Vou sussurrar para entender. — gesticulo com a mão um
foda-se para ele.
Ramon me devolve um esgar dos lábios indicando o assento à sua
frente.
Para evitar aumentar o confronto e manter-nos em uma conversa
civilizada me assento, admitindo minha derrota diante da dor excruciante.
— Posso ter exagerado no volume da voz, meu caro, mas a
afirmação é verdadeira não vou retroceder no que disse.
— Não estou aqui para ajuizar contra, se estivesse em seu lugar,
provavelmente faria o mesmo. Confesso que joguei sujo com minha Ratinha
para colocá-la onde queria. — o estreitar dos olhos ao me fitar diz muito
sobre o que ele fez, posso imaginar. — Não me arrependo de ter a minha
esposa e filha em meus braços diariamente.
— Ela é — friso — a minha mulher, Ramon, e isto é dela. —
aponto o envelope ao seu lado.
— Sei, mas da próxima vez comece com algo mais romântico e
menos brutal.
— Não somos assim. Eu e Lia, somos pessoas muito diretas, não
sou de fazer rodeios.
— Você melhor do que ninguém sabe como agir com ela, porém
tenha em mente duas coisas: você quer que aceite algo que pode feri-la
profundamente, e a mais importante, Lia não é sozinha. Tem certeza de que
quer e pode assumir isto?
— Posso assumir qualquer coisa que queira se for para um
propósito sensato e justo.
— Resposta certeira sem titubear, muito bem. Todavia meu caro, o
sentimento de justiça nada tem a ver em trazer para sua vida definitivamente
uma mulher com um filho, tenha Edu como exemplo. — ele afirma e entendo
a referência ao ex-marido de July.
— Não me interessa com quem ela dormiu e teve um filho. — não
consigo manter submerso minha raiva ao pensar que um babaca filho da puta
possa tê-la engravido e que a deixe passar por qualquer necessidade com a
criança.
Na verdade, me interessa sim, só não quero dar voz a isto, no
fundo, espero que Liana com seu orgulho irredutível tenha afastado o
desgraçado por algum motivo.
— Você não se importa, mas sempre faz menção a isto para
magoá-la. Não é apenas a questão do genitor em jogo, há uma criança na
equação!
Ignoro metade da sua sentença, por não ter uma resposta para isto.
— Nunca foi para magoar, é algo que não conseguia controlar, porém, estou
disposto a fazer uma ab-rogação sobre as nossas regras e por isto de lado. —
cruzo os braços. — Com quem nós fodemos está no passado, importa-nos
aqui e agora. Se ignorar o fato, me dá a oportunidade de fazer uma correção
injusta do passado, entregá-la a herança que é por direito e uma
obrigatoriedade judicial, –dou de ombros — o farei.
— Você parece ter certeza disto, — ele ressalta e chuta em minha
direção a revista destruída que Lia abandonou. — Será que ela teria tanta
certeza assim, me diz que isto aconteceu com ela arremessando-a em sua
cabeça dura.
— Tenho certeza e a farei ter. Ela é minha mulher, já afirmei isto
algumas vezes.
— Ok! Basta saber para quem está afirmando, seria eu ou você?
— O que acha?
Ramon nada diz, mas mantém seus olhos focados em meu rosto me
analisando. Ele realmente me conhece e sente que há muito mais coisas além
daquilo que estou falando, no entanto, não quero dizer a ele, se um dia
precisar de tocar neste assunto será com Lia.
Somente com ela poderia me expor tanto e deixar sangrar aquilo
que não ouso falar em voz alta nem mesmo para mim.
— Então, está disposto a assumir tudo isto?
— Não sei se posso fazê-lo, mas quero. Quero que ela seja feliz,
que fique protegida, que seja restituída daquilo que é seu por direito. A quero
na minha cama, por vários motivos Ramon, e não preciso listá-los, apenas
basta que os sinta e faça o certo para isto. Como disse? Se serei capaz de
alcançar tudo isto… — dou de ombros.
Realmente não me acho capaz de tanto.
— O Mikael que conheço, é melhor do que está supondo. Muito
mais! — ele afirma e tem um olhar calmo sobre mim. — Acha mesmo que
me enganei a seu respeito?
— Enganos acontecem, você lida com eles e supera.
— Não me enganei e nem você pode fazê-lo. Sei que está de
alguma forma ajudando Angélica a caçar aquela mulher. Que mexe com seus
contatos para garantir a segurança para Lia e o filho dela, mas quero
perguntar algo e isto não pode negar a responder a si mesmo.
— O que seria?
— Amor. — sua voz serena ao pronunciar uma única palavra.
— Amor? O que tem isto?
— Você está pronto para lidar com todo esse amor?
— Eu não acredito em amor! — minha voz endurece ao ponto de
sentir minha garganta ferir e as mãos se fecharem com violência. — Este tipo
de sentimento não me cabe, não me instiga a nada. Todo o exemplo que tive
foi brutal, injusto e indigno em nome do amor. Vi mais dor do que desejaria
em toda minha vida, pautados por um sentimento tão absurdo e corrosivo
como este.
Seus olhos se fecham parcialmente antes de voltar a me fixar.
Ramon não consegue esconder a emoção dolorosa que tem, pois, ele sabe que
me refiro aos meus pais e a toda desgraça que envolvia o relacionamento
doentio deles.
Me ergo novamente e encaro meu amigo pronto para me despedir e
dar por encerrado esse dia. Ainda que meus pensamentos estejam
naufragados em vários cacos deste dia, as suas palavras me fazem ter a
certeza do que planejei é o certo a meu modo.
Mais do que dizer que se ama alguém, e usar como subterfúgio
essa afirmação para fazer o outro se curvar contra a sua vontade, é preciso
com ações mostrar que há intenção de respeito, consideração, carinho e
proteção real a quem se quer bem.
Recolho meus pertences, desligo o celular, encaro ao meu amigo.
— Vou me esforçar para fazer melhor hoje do que fiz no passado,
— minha voz não trai minhas emoções, por sorte. — Onde errei antes, hoje
não posso mais e isto fará a diferença.
— Eu o conheço e sei o quanto pode fazer ao ser motivado. No
entanto, se ajoelhar e pedir perdão no lugar dos mais velhos não é uma opção
válida, só isto não basta.
— Não é apenas uma questão de motivação Ramon, mas se for
tenho todas em curso. — suspiro. — Tenho mil razões para fazê-lo e posso
provar que estou empenhado.
Quanto a me ajoelhar, não seria a primeira vez, basta olhar-me no
espelho diariamente e ver o que tenho gravado sobre toda a extensão da
minha pele às costas e o motivo pelo qual foi tatuado.
Ramon se elevou e me olhou profundamente se aproximando,
ergueu sua mão e apertou meu ombro com firmeza.
— Mesmo que não acredite em amor, me ouça com cuidado. Estar
com Lia, requer que aprenda a lidar com os seus piores temores, vencer suas
próprias barreiras, — a criança — terá de aprender a acreditar no invisível,
Mikael. No mais, estarei aqui sempre que precisar conversar.
Me sinto confortado por sua serenidade, porém estou flertando com
meu controle de danos e não posso mais levar adiante está conversa, ou
romperei novamente uma brecha em meu peito.
Inclino minha cabeça me despedindo dele, dou um olhar em
direção ao bebê, que mais uma vez não consigo me aproximar. Não quero
admitir, mas por algum motivo estou mais distante de todas as crianças desde
a ameaça de Verônica contra eles.
Uma angústia estranha me aperta as entranhas ao imaginá-los tão
vulneráveis e raiva aflora por mim com força.
Caminho para fora, não tem ninguém no andar inteiro. Sigo para o
elevador, abro o aplicativo de mensagens e releio o que Lia enviou-me antes
e não sabia o que responder.
Por mais louco que seja, sei o que fazer e como fazê-lo.
@Doutora_anjinha: ter acordado hoje, já foi o suficiente para
saber que: você foi mais forte do que em todos os seus piores dias. Podemos
conversar? Que tal o lugar de sempre para tomarmos um café?
@Promotor_nikolaievitch: ter acordado hoje foi um presente, pois
mais um dia posso afirmar que você é minha mulher e estou disposto a
prová-la o quanto é. Aceito seu convite, mas não quero só um café, quero
acordar ao seu lado.
SANTIAGO
Estar ciente que Mikaella é esperta o suficiente para juntar as peças
e determinar quem é a criança que andei investigando, não lhe custou
realmente nada.
Principalmente por ter se apegado a Anjinho de uma forma natural
e instintiva. Ao ouvir haver deixado no restaurante, fotos dentro de um
envelope me enfureceu, mas saber que um dos meus quadros está
dependurado no salão do restaurante de Carla me fez esquecer a questão
rapidamente.
Se não fosse por nesta manhã, fazer uma pergunta tão inocente
sobre a possibilidade de o irmão já ter visto o envelope, jamais teria
imaginado que a minha Fadinha munida de toda a sua artimanha, não apenas
abandonou o envelope sobre a mesa, como o endereçou explicitamente “Para
Mikael”.
No momento que absorvi a informação coloquei um esquadrão em
busca do maldito. Bastava localizá-lo e deixar que um infiltrado passasse pela
segurança armada da Guardiã e surrupiasse o mesmo.
Porém, há momento que chego a acreditar que estes malditos têm
proteção divina.
A frustração me correu ao descobrir que Ramon estava em poder
do envelope, de acordo com o garçom infiltrado, Carla havia entregado ao
marido momentos antes de entrar no escritório.
A operação seria simples: interceptá-lo e recuperar o envelope,
com muita sorte julgaria ser algum informante de Mikael que havia deixado
vazar informações.
Dadas as ordens claras, esperei o tempo de pausa entre as trocas de
guarda para aguardar no ponto previsto, eles invadiriam o restaurante e seria
o fim do problema. Um assalto simples e fácil, envelope e o quadro em
questão de minutos estariam longe das mãos de Staeler.
Arquitetei o plano e logo depois desmarquei meu encontro com
Nina, outra isca que precisaria ludibriar, com suas perguntas insistentes sobre
Mikaella. Tudo estava a contento, sem erros e sem furos.
Era o que esperava. Cinco minutos após o prazo de entrega recebi a
informação de que Ramon estava com outra equipe, o que não foi me
repassado por Angélica e nem Fernanda, ele estava seguindo em direção ao
escritório.
A rota foi mudada, e isso me deixou irritado ao extremo de ligar
para Angélica, e confirmar se ele realmente estava a caminho. Ela de certo
ficou desconfiada, mas não a daria uma oportunidade de fazer disto mais um
motivo para bisbilhotar.
Estava tudo bem, isto seria um pouco mais dramático, pois sem
meus homens fazendo sua proteção, haveria um choque, talvez tiroteio e isso
poderia causar vítimas.
Entretanto, estava empenhado e o termo decência não estaria
fazendo parte das palavrinhas do dia.
Dada a ordem, esperei a execução até ver seu carro aproximar,
coloquei o capacete e esperei, não entraria diretamente em choque com eles,
mas observaria. Os vidros brindados não possibilitavam ver no carro, mas
sabíamos ser ele e mais dois seguranças.
O sinal estava próximo o bastante para fazer a interceptação, suor
aflorou forte por minhas têmporas sabendo dos riscos, e um foda-se estava
prestes a explodir junto ao sinal para avançarem.
Três dos meus homens pilotando suas motos, pararam ao lado do
Suv, prontos para a abordagem. Quando um deles se virou para o carro e
tombou a cabeça.
Pressenti que algo estava errado, seu olhar nunca chegou em mim,
mas a mão no comunicador foi certeira.
“Abortar, abortar, ele está com a filha.”
A maldita decência moral voltou a burlar minha consciência, a
conformidade com os padrões morais e éticos associados a dignidade,
correção, decoro. Tudo que pudesse agarrar de bom agrado fiz, dei o sinal
para abortar a missão e resolvi partir para outro plano.
Este seria ir pessoalmente atrás dele, mesmo que corresse riscos,
segundo uma das secretárias do escritório, havia um distúrbio criado por
Mikael e Lia. Um bônus para mim, bastava apenas entrar e recolher o pacote
sem interferências.
O que não esperava era ser empurrado para dentro do elevador por
uma mulher desnorteada.
INQUIETANTE
“Madrugada inquietante, pensamentos que não me pertencem invadem a
minha cabeça. No momento estou com desespero, mas, quando te vejo o
desespero vira clareio “Rubens Rezende
LIA
A
porta do apartamento bateu produzindo um som abafado da madeira contra o
marco, as chaves caíram em algum lugar entre o aparador e um jarro alto com
folhagem e flores secas, sapatos foram descartados junto a minha bolsa,
roupas, relógio e joias, enquanto meu corpo caminhou automaticamente em
direção ao meu quarto.
Senti a mudança do piso frio para o carpete macio sob meus pés
descalços, o ar-condicionado que deve ter permanecido ligado ao sair
apressada pela manhã, condensou o ar tornando-o extremamente frio e isto
fez meu corpo estremecer.
Eram apenas sensações físicas naturalmente registradas. Sensações
que passaram por meu sistema e foram ignoradas em seguida. Antes de entrar
no banheiro, bati a mão sobre o aparelho na cômoda fazendo uma seleção de
músicas rugirem dentro do ambiente inibindo qualquer outro som que
pudesse surgir.
Não acendi as luzes do banheiro, então o ambiente parcialmente
cinza com pouco brilho, não me incomodou. Andei em direção ao box de
vidro temperado, correndo meus dedos pela toalha no suporte a levando
comigo.
Deslizar o vidro, entrar, fechar a porta, girar o registro e esperar o
esguicho forte da água sobre minha cabeça foram os movimentos por backup.
A água fria doeu contra minha pele superaquecida e novos arrepios
percorreram meu corpo me fazendo estremecer.
Fechei meus olhos permanecendo estática deixando vir tudo. Todas
as palavras, gritos, ofensas e as dolorosas recordações, lágrimas deslizaram
por sobre meu rosto se misturando à água fria.
Do momento que me confrontei com aquelas mulheres na escola
até saltar do carro de Dionísio há alguns minutos, tudo parecia surreal
demais, porém sei que não é. Isto dói.
Levo a toalha até aos meus lábios e o grito de dor que está preso
em minha garganta se abafa contra ela. Ele se repete por várias e diversas
vezes até que sinta os pontos de luzes explodindo dentro dos meus olhos
fechados, para em seguida se tornarem um borrão enegrecido que me
consome, o último grito contra o tecido atoalhado contra os meus lábios, é
intenso.
O aperto das minhas mãos para impedir que extravase qualquer
som é forte o bastante para fazer com que a água gelada perfure o bloqueio da
toalha e desça por minha garganta que queima engasgando-me.
É uma dor tão grande e intensa que sinto meu corpo desmoronar de
todas as formas, minhas pernas sedem ao meu peso e minha mão livre tenta
se agarrar a parede em frete, mas é inútil. Meu corpo desaba em câmera lenta,
meus joelhos batem contra o piso e o choque da dor física, não é nada com a
que abala meu coração.
— Não… — é o primeiro murmúrio que desliza por meus lábios
após deixar um estranho criar um vácuo dentro do meu desespero e levar-me
para longe de tudo.
Contudo, bastou estar de volta ao ponto de partida e a dura
realidade do que aconteceu no escritório me abate, as ofensas nem são tão
graves, não quanto as lembranças essas sim, são as piores, dolorosas.
Pois, nada dói mais do que ter ciência do que se perdeu. A
ignorância não machuca tanto quanto a inquietante certeza, daquilo que
jamais voltará a ser como antes.
A ânsia de vômito bate forte em meu estômago até bloquear a
garganta, mas a engulo com força, foi isso que aprendi com meu pai: orgulho
não alimenta o corpo, mas protege a alma. Contudo, me pergunto, o quanto
isto poderia me proteger?
Por sorte, Nina e Anjinho não estão ou poderiam ouvir o choro
engolfado que não consigo controlar, os soluços que vão aumentando de
volume ao ponto do meu peito doer fisicamente e na pressão para proteger-
me acabar por feri-los com algumas palavras.
Curvo minha cabeça deixando o jato direcionado sobre minha
nuca, por quanto tempo permaneci nesta posição não faço ideia a única coisa
que posso avaliar é o tanto que a dor física se equipara a dor emocional.
Nunca me foi permitido extravasá-la desta forma. Eu não me
permiti sentir toda a intensidade do que foi perder tanto e em tão pouco
tempo, deixei de ser a menina crescida que um dia sonhei ser; a mulher que
estaria ao lado do homem que amava para sempre; minha liberdade, a minha
família… o meu pai.
Essa é a pior perda, aquilo que não vai voltar. Não consigo
controlar as minhas lágrimas ao imaginar o quanto tive de aprisionar dentro
de mim para não me rebelar, das brigas e discussões, das (milhares) de vezes
que implorei para ele me deixar voltar para casa e da sua resposta sempre
sendo um não.
Ah! Como dói você não estar aqui papai, para olhar em meus
olhos, mesmo se fosse para me repreender eu o queria aqui. Como me dói
que não possa conhecer o seu neto, que não veja como é inteligente. Ele
herdou seu jeitinho ao sentar-se com as suas pernas cruzadas, para ler coloca
a mãozinha fechada em punho sobre o braço da poltrona e se inclina sobre
um livro meio de lado; a mamãe sempre chama sua atenção sobre má postura,
da mesma forma que fazia com o senhor…
— Meu Deus! Eu não posso suportar tamanha dor! — minha voz
falha entre os soluços e o desespero que se agarra em mim.
A dor de relembrar o passado está além daquilo que possa
controlar, minha mente viaja para longe é difícil não mergulhar neste mar de
catástrofes, não apenas pela perda do meu pai, mas por tudo que hoje tenho
de enfrentar. Tudo está corroído por dentro de mim, por motivos diferentes.
Enquanto me sufoca não ter meu pai, e a certeza de que ele não
voltará para minha vida, também me sufoca não ter Mikael. A incerteza de
que um dia poderia de fato tê-lo de volta em minha vida, agita o medo de
perdê-lo de vez ao se deparar com a verdade que nos rodeia.
O quanto teríamos de nos perdoar para alcançar isto? Quanta
abnegação seria preciso termos para que sua afirmação se tornasse real?
Como queria que realmente fosse fácil estalar os dedos e me tornar sua
mulher, dar a Anjinho aquilo que ele mais anseia.
Apesar disso, sei que no fundo isto não vai acontecer. Não serei
capaz de esquecer e nem ele, e eu só queira entender, o porquê tem de ser
assim?
A aflição excruciante agarra meu peito novamente e de uma forma
tão perversa que me abate de vez, desmorono no chão batendo o quadril no
piso e as costas na parede, perdendo a batalha para lembranças que poderiam
ser apenas felizes, mas que no fim se tornaram tão cruéis, que me mortifico
apenas por deixá-las vir a mim.
Todavia como qualquer ser humano propenso a perder a batalha da
razão para a emoção, fecho meus olhos sentindo meu corpo perder o restinho
do calor que ainda tem e mergulho fundo naquilo que ocultei de mim mesma
por anos.
É fácil voltar ao passado quando ele está fresco e agarrado sob a
pele.
JANEIRO DE 2001
Não posso partir. Este era o pensamento que tinha se agarrado à
minha mente nas últimas semanas.
Lendo mais uma vez a carta de recomendação para a faculdade e
acabei por revirar os olhos. Ser a primeira da turma, poder pular um ano e
adiantar matérias, nunca foi grande coisa, a meu ver, até entender que isto
abriria as portas de grandes universidades, — fora do país.
Nunca gostei dos rótulos de CDF — crânio de ferro, pois nunca é
um elogio e sim uma forma de chacota, muito menos me considerava uma
NERD, porém diante da recomendação para ingressar na faculdade antes da
hora, dei a mão à palmatória. Sou a porra de um crânio.
Os livros de direito na estante do meu quarto era provas do quanto
não tinha um gosto muito jovial, enquanto Carla e Aline estão se derretendo
com romances de banca, eu estava me deliciando com “O caso dos
exploradores de caverna — um livro escrito por um professor de Harvard e
jurista Lon Fuller”, era uma fã, não poderia negar.
Nos últimos tempos este era o meu único modo de manter minha
mente completamente ocupada; me dedicar aos estudos e ao planejamento
do meu, ou melhor, nosso futuro.
Não havia como negar que ver meu pai ser acusado de algo
incabível, como o roubo das joias de tia Sarah, me abalava, mas nada me
preparou para a sucessão de horrores que vivemos no final do ano, Mikael
sendo surrado severamente por seu pai, um colapso nervoso da Tia Sarah em
meio a um jantar e por fim, ter meu pai saindo algemado sob custódia da
polícia com a grave suspeita de roubo pairando sobre sua cabeça.
Na altura meu desespero foi ao auge, meus tios estavam prontos
para acreditar e libertá-lo mesmo que algo não se encaixe na forma como
estavam se portanto. Foi diante de tantas loucuras e insanidade que Mikael
me prometeu que nunca me deixaria e mesmo que as suas condições para
nossa vida a dois fosse um pouco dura, aceitei. Porque realmente o amava
como jamais amaria a outro homem em minha vida!
Foi fácil me comprometer em não termos filhos, não passava pela
minha mente de qualquer forma a palavra procriação, mas foi a forma que
ele falou, a ferida da alma e do corpo que colocaram um selo sobre seu
pedido, simplesmente não pude me recusar.
Nem mesmo gostaria de fazer, não depois da forma que o vi
machucado e as obscenidades que ouvi seu pai lhe falar em relação a nós
dois. Não era minha intenção ir até sua casa naquele dia, mas implorei a
mamãe que me permitisse sair sem que papai soubesse. Me esgueirar nos
jardins dos Nikolaievitch foi fácil, difícil foi sair de lá com minhas pernas
bambas e um aperto de morte tão forte em meu peito que se não fosse por
Angélica, e aquele rapaz que a carregava para todos os lugares, jamais
poderia ter chegado à rua sem ser descoberta por tio Niko.
Jamais tive coragem de contar a Mikael que eu estava lá, que vi
toda aquela atrocidade que ouvi cada uma daquelas palavras duras e cruéis
e que naquele dia prometi a mim mesma que cuidaria do meu anjo acima de
qualquer coisa, que seria só dele e que jamais o deixaria.
A situação com tio Niko se tornou insustentável e meus pais
acreditavam que voltar para Portugal era o melhor a se fazer. Às vezes
parecia que ainda me consideravam um bebê inapto para tomar qualquer
decisão sobre minha vida e estavam usando isto para decidirem o que
achavam ser o melhor para mim, sem me consultar.
O fato de agir como uma moleca por vezes, nada tinha a ver com a
maturidade, mas sim uma questão de personalidade, implicar com os
rapazes, aceitar as piadas de Angélica e acabar discutindo faziam parte da
minha diversão. Isto não significava uma falta de claridade sobre os meus
planos.
Ir embora do Brasil definitivamente, não era o que queria! Foi
exatamente isso que deixei claro ao invadir o escritório e interromper uma
conversa restrita dos meus pais. Desde então vivemos em um momento de
tensão constante dentro e fora de casa.
***
Os sussurros dentro do escritório chamaram a minha atenção,
segui em direção à porta na ponta dos pés e me deparei com uma cena
corriqueira.
Papai estava sentado na sua poltrona favorita de pernas cruzadas
vestindo o pijama de listras, o jornal apoiado na perna, um braço dobrado
sobre o braço da poltrona com a mão em punho sob o queixo, na outra ele
segurava uma caneca de café. Já mamãe com seu vestido floral dos
domingos e chinelos de pano sentava-se no outro braço da poltrona
acarinhando a careca lustrosa do senhor Joaquim.
Sorri desejando um dia poder ter a mesma intimidade com o meu
anjo. Me senti corar com a cena que já havia presenciado desde que me
entendia por gente, e prestes a sair de fininho ouvi a voz de papai se tornar
lamentosa, as suas palavras me paralisaram no lugar.
— Maria, tenho certeza de que Liana se sairá muito bem na
faculdade de Lisboa. — Papai afirmou. — Estudei lá e não tenho queixas!
— Joaquim, o meu medo não é este! — Mamãe fechou os olhos e
suspirou. — Meu medo real, vem da teimosia da sua filha. Conheço-a bem, e
sei que não vai aceitar isto com mansidão! Ao tentarmos resolver um
problema arrumaremos dois!
Meu pai disse algo que não compreendi e mamãe passou suas
mãos pelo rosto limpando algumas lágrimas.
— Eu também a conheço, — Papai se inclinou colocando a xícara
ao seu lado sobre uma mesa, para segurar as mãos dela. —Liana tem o
sangue de uma guerreira caiapó nas veias e pode ser bem difícil de se
domar.
— Não seja tolo, acho mais difícil de dominar essa teimosia
portuguesa! — Mamãe sorriu, mas vi em seu rosto que tinha algo a
incomodando.
— Maria, — Papai a trouxe mais para perto colocando-a sentada
em seu colo acariciando seus longos cabelos, tão negros quanto os meus.
— Diz…
— O que de fato está incomodando?
— Renunciar a tudo que construímos. — Ela foi direta. — Mandar
a minha filha para longe de mim e tirar algo dela que realmente parece
querer.
— Também me dói fazer isto e quanto a este querer que está a me
falar, espero que não seja o que penso. — seu olhar percorre pelo ambiente e
para evitá-lo recuo um passo. — Quanto a isto aqui, podemos começar de
novo?
Eu podia ouvir as dúvidas em sua voz e os sussurros engolfados de
mamãe ao apoiar sua cabeça contra o peito de papai e chorar baixinho.
Ergui meus olhos, a minha volta, o sobrado de dois quartos em que
morávamos, diferia dos demais, papai nunca ostentou riqueza, nunca fui a
filha riquinha e mimada.
O senhor Joaquim, sempre fez questão de ressaltar que entrou
nesta sociedade com nada, apenas sua boa vontade, amizade, lealdade e dela
só levaria o seu trabalho e esforço.
Todo dinheiro ganho era aplicado em meus estudos, tínhamos uma
vida razoavelmente confortável, uma vez que ele se dedicava a mais Pro
Bono do que casos rentáveis, mas os que pegava eram sucessos absoluto e
isto dava-lhe renome e privilégios, mas pelo seu esforço.
Minha mãe ainda trabalhava na casa dos Santorini não como
babá, mas sim como governanta e isso complementava a renda. Eu não tinha
um guarda-roupa da moda, e nunca me importei com as peças de segunda
mão que vinham de Carla e Aline. Para qualquer outra despesa extra
recorria a minha inteligência, fazendo trabalhos para alguns alunos das
faculdades, sem que meus pais soubessem.
Se existia um patrimônio, algum dinheiro que foi compartilhado e
meu pai tivesse uma participação, provavelmente estaria intocado em algum
banco. Por isso, ouvi-lo ser acusado de roubo foi algo muito difícil de
digerir, principalmente vindo de tio Niko, o pai do homem que amava.
O tom baixo enrouquecido cheio de lamento deixou-me ainda mais
frustrada, infeliz e furiosa.
— Não podemos mais ficar no Brasil, meu amor. Não tenho
confiança de que estamos seguros aqui, no entanto, quando Niko souber da
nossa partida, fará disto um prato cheio para afirmar suas suspeitas.
— E o que pretende fazer? — mamãe parece aterrada com a
perspectiva.
— Mandar Liana primeiro, já está tudo pronto, logo depois nós
iremos. — ele pausou. — Para sempre!
— Quando será isto? — a voz de mamãe ecoa pelo aposento tão
alto que cheguei a sentir meu peito retumbar.
— Em alguns dias, se ela não nos causar problemas!
— Meu Deus do céu! Joaquim tem certeza de que isto é o melhor?
Meu pai se ergue e mamãe colocou a mão em seu rosto, ele a
apertou em seus braços confortando-a, só então a minha ficha caiu, em
alguns dias estaria indo embora?
Sem esperar ou ponderar invadi a sala e pelo olhar que papai me
deu, sabia que ouvi demais. A briga foi intensa, meu pai não me deixou
nenhuma alternativa, as coisas duras que ouvi do tio Niko enquanto me
escondia no jardim voltaram com tudo e soube que ele falou para o meu pai
sobre meu relacionamento com Mikael.
A humilhação estava clara na sua voz, a dor da indiferença
recebida e o medo de que algo além de acusações viesse a toda.
— Eu não posso ir papai. — foi minha única súplica, mas sua
sentença foi taxativa.
— Infelizmente, não posso dar-lhe esta escolha Liana, após nosso
encontro que já está programado na fazendo do Gustavo e Anna, a levarei ao
aeroporto. — ele pausou e vi a dor em seus olhos. — aproveite esse momento
para se despedir de todos, incluindo o menino Nikolaevich.
— Papai…
— Amor nos torna irracionais Liana, e você é uma menina
racional. Não se esqueça disto.
***
Limpei rapidamente os meus olhos ao ouvir o clicar na janela, não
me assustava mais estas invasões, contei nos dedos até cinco e lá estava o
meu intruso.
Um homem alto, forte todo vestido em couro preto com suas botas
pesadas, pulando a janela do meu quarto no segundo andar do sobrado.
Sentada na banqueta diante da penteadeira antiga continuei a
escovar meus cabelos como se não o tivesse visto, segurei o meu riso ao vê-lo
pisar na ponta dos pés, todo cauteloso, pois se fosse pego aqui, novamente,
seria o fim da sua carreira promissora de invasor.
— Não vai nem olhar para trás? — ele perguntou jogando sobre a
cama a jaqueta.
— Olhar? — estaquei um instante e lhe dei um olhar de
desentendida. — Acredito que deveria gritar, já que tenho um invasor em
casa?
Mikael mordeu o canto da boca, mas acaba sorrindo para mim.
Não consigo manter o ar sério e faço o mesmo.
Há alguns meses, fomos pegos por minha mãe em uma destas
invasões, por um momento acreditei que fosse morrer de todas as formas
possíveis, porém vê-la tentar pegá-lo de tapas, em silêncio foi demais, para
não atrair a atenção de papai, foi cômico.
O mais certo seria ela dar uns bons gritos com ele e puxá-lo pelas
orelhas para fora, a cena se projetando em minha mente não ajudou muito e
no final, foi uma crise de risos minha que trouxe o papai até meu quarto.
A nossa sorte era que não estávamos em nenhuma situação
comprometedora. Papai não ficou nada satisfeito em saber que Mikael
estava aqui, exigiu uma explicação e se não fosse pela ajuda da mamãe com
uma desculpa esfarrapada, teríamos acabado ajoelhados no milho. Senão
coisa pior.
Conseguimos contornar a situação, ouvimos um sermão imenso
sobre decoro e respeito pelos mais velhos, mesmo minha mamãe afirmando
que pediu a ele para vir ajudá-la a arrastar uns móveis. Estava evidente a
mentira deslavada, já que nada havia sido removido, mas o senhor Joaquim
permitiu passar.
Naquele dia meu pai fez questão de acompanhar Mikael até sua
casa e garantir que ele entrasse antes de vir embora. Esse foi o jeito dele
dizer: “Fique bem longe do meu bebê!”
Se ele soubesse, que já se fazia alguns anos que este bebê se
tornou mulher nas mãos desse anjo — suspirei.
— Pode gritar o quanto quiser, esperei seus pais saírem. — ele
disse se aproximando com olhar safado em minha direção.
— Ah! Que anjo malvadinho… — fiz troça, pois não ouvi meus
pais saírem.
Me virei de frente para ele, inclinei a cabeça de lado e sorri. Com
dois passos gigantes Mikael já estava diante de mim se inclinando e
deixando um beijo suave sobre meus lábios.
— Oi!
— Oi!
— Senti saudades de você minha anjinha.
— Também senti, meu anjo. — disse inclinando meu corpo e
depositando um beijo mais demorado sobre sua boca, sentindo os pelinhos
da barba grossa roçarem contra meu rosto.
Nas últimas semanas temos nos visto muito pouco, falamos muito
por telefone e um sistema de bilhetes que ele criou através de Ramon, Carla
e Aline, assim nunca levantamos suspeitas sobre nós. Não acredito que meu
pai proibisse um namoro por ser Mikael, mas talvez por ser filho de quem é.
Com toda a situação presente.
Contudo, principalmente por querer mandar-me embora.
Mikael se afasta sem esconder que está excitado, o volume que
roça contra meu ventre é o suficiente para isto, mas o olhar oblíquo ressalta
sua condição.
— Está quase tudo acertado para a viagem em turnê. A banda está
animada, pena que nenhum dos rapazes poderá ir junto, mas já estão
demonstrando seu apoio financeiro. — Ele ri e se joga contra o móvel de
madeira encostando o quadril e cruzando os braços fortes acentuando os
músculos pelas mangas da camisa preta esticada contra o peito.
— Sério? — pergunto me levantando, caminho pelo quarto
colocando uma pequena distância entre nós.
— Não faça isto, ou vou agarrá-la, quero conversar um pouco
antes.
Assuntei-me como falou alto e me voltei em sua direção.
— O que fiz?
Ele estreitava os olhos e percebi o que queria dizer, passei as mãos
sobre as bordas do short fino de malha e repuxando a camiseta para ficar
mais folgada sobre o tecido, não percebia estar mostrando abertamente pele
demais ao dar-lhe às costas.
— O contrato será assinado em dois dias. Um ano de estrada para
começar.
— Uau! — exclamo com um sorriso forçado.
Não era segredo para ninguém que a vocação e o sonho dele era a
música, viver dela e senão fosse exagero da minha parte, Mikael viveria por
ela. E saber que ele estava prestes a ir embora me aterrorizava.
As mudanças drásticas que aconteceram em nossas vidas no último
ano atrapalharam seus planos, algumas boas e outras nem tanto. Todos
fomos listados para trabalharmos nos escritórios garantidamente, pois a
ordem era uma só para todos, fazermos faculdade de direito e tomar conta
dos negócios da família.
Por mim, não vi problema nisto, direito é a minha paixão desde
criança, sempre amei ver meu pai atulhado de livros estudando seus casos,
falando com propriedade sobre as leis, ajudando as pessoas de bem a terem
seus direitos preservados, em contrapartida, Mikael não suportava nem ouvir
falar sobre isto.
Após a reunião, em que fomos intimados, sua relação com tio Niko
somado ao problema com meu pai que sempre foi ruim se tornou extrema.
Desde que me entendo por gente e apaixonada por ele,
compartilhei dos seus sonhos e um deles é estudar música em alguma
faculdade fora do país, viajar pelo mundo e só voltar quando estiver
estabilizado.
— Oi? — ele se aproximou pegando-me em seus braços, cheirando
meu pescoço e deslizando a barba sobre minha pele arrepiando-me da
cabeça aos pés com seu gemido sexy. — Cheirosa. O que foi, por que está
com essa carinha?
Nunca me assustei com essa possibilidade porque no meu mundo
perfeito, ele faria sua música. E eu a minha faculdade de direito e estaríamos
sempre juntos partilhando nossos sonhos.
Isso sempre foi a minha verdade e dentro da minha realidade,
sentia ser tudo que ele precisava e queria, mas com um mundo de
possibilidades a sua frente, o medo de perdê-lo me amargurava.
— Precisamos conversar. — empurrei-o ficando séria, me
preparando para esta conversa.
Diante das minhas novas dúvidas e depois do meu jantar
arruinado de aniversário, de ver meu pai passar uma noite na delegacia para
acareação, resolvi abrir-me com mamãe e contar o que ela já sabia.
Contei-lhe sobre o meu namoro escondido, sobre o quanto gostava
de estar com Mikael e até mesmo do meu desejo de segui-lo para onde fosse,
mas a eminente viagem que papai está impetrando para me forçar ir,
acelerou de meus planos.
Vi em seu rosto o medo de ser algo passageiro, de ser apenas um
rapaz se aproveitando da sua menina, por isso ela passou a observá-lo e
mediante ao que sentiu, me deu uma condição para continuar com ele, para
apoiar-nos seja lá o que resolvamos fazer na nossa vida em comum. Que
falasse com ele sobre estudar em Lisboa e que ele aceitasse pelo menos por
um ano estar longe, pois era o tempo que ela daria papai apara trazer-me de
volta. Eu perderia um ano, mas era pouco em comparação a uma vida inteira
ao seu lado.
— Certo podemos conversar. — Mikael voltou a me abraçar, —
mas, depois que matar minhas saudades.
— Não, Miguel! — então me esquivei, ainda estou me
acostumando com essa nova forma de chamá-lo. — Contei para minha mãe
sobre nós.
Ele recuou um passo e fechou o semblante. — Não parece que foi
algo bom, tia Maria já contou ao seu pai, e provavelmente terei de fugir da
espingarda?
— Por enquanto, ela não falou com ele, mas irá falar em breve.
Entretanto, mamãe colocou condições para nosso namoro.
— Namoro? — ele riu. — Nosso lance é um namoro?
Com sua reação não sabia se sentia frustração, ou se me juntava a
ele dando risadas para não me sentir constrangida. Mas de certo que minhas
mãos caçaram para lhe acertar um dos pesos de papéis sobre a escrivaninha
as minhas costas.
— Estou falando sério! — perdi um pouco a serenidade e franzi o
cenho. — Para me namorar tem que ser como os meus pais querem.
— Ok! — ele ria e coçava a cabeça bagunçando o cabelo ruivo
curto, o deixando ainda mais sexy com a aparência desleixada. — Podemos
resolver isso na cama, anjinha?
— Não! — falei e dando a volta na cama, colocando-o a uma
distância segura, joguei os cabelos para trás dos ombros e cruzei os meus
braços.
— Opa! Sem brincadeiras, já entendi. — Mikael ergueu as mãos
em sinal de rendição.
— Primeiro, nada de pular janelas.
— Ok! — ele concordou retirando a camiseta.
Fingi não perceber.
— Segundo, quero namorar sentada no sofá. — ele apertou os
lábios para não rir. Eu sabia estar enrolado, mas era difícil chegar ao ponto.
— Sentados no sofá?
— Todo mundo faz isso, ou já fez, eu também quero, mesmo
achando brega.
— Com os seus pais nos olhando? — ele perguntou com o seu
costumeiro riso safado e balançando a cabeça abrindo os botões do jeans.
— Não! — falei rapidamente, pensando na cena. Deus me livre! —
Quero ter um namoro normal.
— Tudo bem, se você aguentar essa coisa, eu também posso.
Ele praguejou baixinho segurei o riso, vendo-o chutar as botas e
ficar só de cueca boxer, mas não me detive muito nos detalhes, ou não
haveria mais conversa.
— Terceiro…
— Porra, Liana! Não acabou ainda não? Caramba! Ainda nem
casamos e você já tem uma lista pronta? — Mikael exclama abrindo os
braços caminhando até o outro lado do quarto.
Salivei por um instante, ver seu corpo inteiro era algo difícil de
ignorar, minha mente sempre indo mais além, já imaginando quando fosse
mais velho e… puta merda, meu corpo se apertou com tesão e senti minha
calcinha molhar.
Olhar musculosos e longos braços abertos era tentador, mas as
asas enormes recém-tatuadas me derretiam. Meu anjo, em toda a extensão
da palavra, ainda queria saber o porquê da tatuagem, mas ele disse que
ainda não me falaria, porém, em breve.
Para tentar me desligar da fissura batendo forte contra minha
buceta molhada, cruzei as pernas com força mandando tudo para baixo e só
então reparei no que disse.
— Casados?
— Sim, casados! Porque depois dessa ladainha toda de namorar
no sofá, não pular janela e “tals”. É o que você quer, ou não?
Suas palavras caíram sobre mim de uma forma que me deixou
indecisa do que responder. Não éramos as pessoas mais românticas e
prontas para um casamento, ou até mesmo falávamos sobre isto, os planos
eram de morarmos junto, dividir sonhos, viajar ao redor do mundo, mas nos
casarmos?
— Isso é um truque para me levar para cama, Miguel?
— Se der certo! — o riso no canto da boca me arrepiou.
Mikael não perdeu um segundo vindo em minha direção, com
olhar concentrado e o andar de um predador…
— Pode parar aí mesmo! — exclamei erguendo minha mão e
espalmando no seu peito. — Eu não estou brincando, ainda tenho coisas a
falar.
— Nem estou mulher. Só não vou dizer que levo você comigo para
a turnê, porque o seu pai não deixaria, e não vou privá-la de ingressar na
faculdade de sua escolha. Ok? — ele sorriu. — Não vou tirar e nem adiar os
seus sonhos, assim como você prometeu não fazer com os meus.
— Jamais faria isto! — afirmei.
— Sei minha anjinha. E outra, tio Joaquim me mataria antes
mesmo de pôr meus pés na estrada, fora que, — ele me beija os lábios. —
Não sou louco de privar minha mãe e a sua de pirar com essas coisas de
casamento.
— Mas, nós somos muito jovens e isto não é nada que se decide
assim.
— Falou a voz da sabedoria, por isso sou louco por você.
Ele passou a me beijar e cada vez mais envolvidos por desejo e
afeição caímos sobre a cama. Tentei rebater, mas deixei-me embriagar por
seus beijos, absolvendo suas palavras, ele me permitir a estudar, lógico que
faria, jamais imaginei que pudesse impedir e um ano era tudo que mamãe
pediu, havia uma luz no final do túnel.
Tudo era tão perfeito que até nossos planos sem ser
compartilhados se encaixavam. Seu corpo sobre o meu pesava de uma forma
intensa, as suas mãos percorrendo-me de cima a baixo, primeiro para me
livrar do short e tocar seus dedos por cima da calcinha encharcada
apertando levemente o tecido macio contra meu clitóris inchado, fazendo-me
arfar e contorcer abaixo dele.
— Casamento. — gemi enquanto mordia seus lábios.
Há instantes, o meu medo era ele descobrir mil rabos de saia por
aí, enlouquecer com meus pais me mandando para longe, as loucuras do seu
pai jogando sobre o meu e então, Mikael joga isto sobre nós.
— Casamento sim, nós vamos nos casar Liana, — ele se afastou e
além do desejo, podia ver a determinação em seu rosto. A mesma que
separava o menino travesso do homem forte, que me tinha enlaçada em seu
coração. — Porque, eu vou embora e você vai comigo!
A intensidade do seu beijo, equiparava ao desejo e a sua afirmação
e não resistia a isto. Ouvi-lo não só acalentou meu coração como me fez
sonhar com algo que nunca sequer passou por minha cabeça.
Deixei meu corpo correr livre em busca do prazer, suas mãos
desenhando sobre minha pele, sua boca sobre os mamilos turgidos ainda
cobertos pela camiseta, descendo em direção ao meu ventre, até alcançar o
cós da calcinha e se arrastar lentamente sobre minha pele com a boca
aberta.
— Prometo que você sempre será a minha mulher, me perdoa por
talvez exigir demais — ele falava sobre a questão dos filhos. — mas, prometo
de verdade, colocar um anel em seu dedo e amar você. — seus olhos intensos
recaíram sobre os meus prendendo-me no momento. — é uma promessa de
anjo, meu amor.
PRESENTE
— Lia?
O grito veio de algum lugar me arrebatando das minhas doces e
dolorosas lembranças, as lágrimas embaçaram minha visão e não consegui
distinguir nenhuma forma, a não ser a água gelada sobre mim.
— Lia? Onde você está, porque suas roupas estão pela casa. Lia?
— Mamãe?
— Lia? — o grito foi mais forte e luzes explodiram sobre mim. —
Meu Deus! Lia o que aconteceu, você está gelada, vai ter uma hipotermia.
Nina parecia aflita as mãos ágeis correram contra o registro
desligando a água, as palavras que deveriam sair dos meus lábios pareciam
agarradas contra mim, apenas mais lágrimas viriam se tentasse fazer algo.
— Mamãe? Cadê a mamãe? Mamãe? — as perguntas repetidas de
Anjinho me fizeram erguer a minha cabeça.
— Anjinho.
A visão do meu filho me trouxe tudo de volta ao passado, presente
e a premissa de um futuro incerto bateram com força contra meu peito
arrancando-me o fôlego. Tentei estender minha mão, mas o braço parecia
congelado contra meu corpo.
— Fique parada! — a voz de Nina soou alto e longe.
De repente um roupão felpudo caiu sobre meu corpo e suas mãos
esfregavam sobre a pele tentando ativar a circulação. — Estou enchendo a
banheira, e vou te ajudar a entrar. — ela volta seu rosto para o lado. —
Anjinho, pega o celular da tia Nina no sofá?
Ouvimos seus passinhos em disparada para fora do banheiro. —
Vou ligar para a emergência, acredito que você precisa de um médico! — sua
voz escorrega com desespero. — Está toda roxa, a quanto tempo está debaixo
da água gelada?
— Dói. — foi minha única palavra para ela.
— O que dói minha amiga, me diz? Você foi atacada Lia, Dionísio
me ligou querendo saber se estávamos juntas, onde esteve?
Não respondi ainda revivendo minhas lembranças do momento em
que aceitei me casar com ele, das promessas e de tudo que perdemos.
Minha cabeça tomba contra meu peito ao ser erguida por Nina,
tropeço em meus pés instáveis até estar na borda da banheira. Queria ser forte
e afastá-la, pois estou triste, amargurada, mas com raiva e quero respostas
que somente ela pode me dar, mas não tenho forças.
Sinto-me carente, fragilizada, fraca de uma forma inaceitável, estou
prestes a pedir para ficar sozinha quando ouvimos a música preferida de
Anjinho arrebentar a caixa de som no último volume.
A voz que invade os meus ouvidos me aterra até a derradeira grama
de sanidade. Ouvir o timbre grave da voz de Mikael ecoando em notas
musicais me arrepia, não consigo suplantar a aflição e amargura de novas
lágrimas escorrendo por minha pele, porque nem tudo que alimenta nossa
alma e consome os nossos corpos é o desejo, existe muito mais do que não
ousamos falar.
— Mamãe, — as mãozinhas quentes de Anjinho se agarram as
minhas coxas. Percebo-o correr seus olhinhos por meu rosto e meu corpo
várias vezes, apertando seus dedinhos na minha pele gelada — Onde está
dodói?
A pergunta doce na voz infantil me arranca do estupor, me curvo e
o abraço contra meu peito coberto pelo roupão. — Oh, meu filho! — tento
me acalmar, mas é impossível e as palavras que não ousaria em outras
circunstâncias dizer em voz alta, escorrem pelos meus lábios. — Perdão! Por
favor, perdoa a mamãe, porque não sei, se serei capaz de trazer seu pinguim
meu amor. Eu não sei como farei isso.
— Mamãe, o MAH — ele pausa. — O MAH faz sarar o dodói. —
sua voz sussurrada em meu ouvido me consola, conforta e me quebra. —
Quero o MAH, mamãe. Quero o MAH… MAH.
Levo minha mão a boca para morder a palma e impedir de gritar
minha dor, Nina se ajoelha na minha frente, minha amiga durona derrama
lágrimas sem ao menos saber pelo que.
Anjinho eleva seu choro e me agarro em oração pedindo a Deus
para que ele não tenha uma crise, meu desespero se duplica. Nina se joga
sobre nós, ajudando-nos a levantar e entra na banheira de roupa e tudo
mergulhando a nós três em água quente.
— O Anjinho quer o MAH, para curar o dodói, mamãe. — ele
soluça e coloca seu rostinho contra meu pescoço e gagueja. — Chei-chei-ro-
rosa.
— Sim, meu amor. A mamãe sempre vai ser sua cheirosa.
Abraço firme, afundando-nos mais na banheira. — O seu MAH
pode curar o dodói. — ressalto deixando as reservas de lado e me permitindo
espiralar meus pensamentos.
O nosso MAH, poderia curar-me, mesmo que no fim ele possa
acabar fazendo uma ferida pior.
— O Anjinho quer ser um pinguim, — ele se volta com rostinho
colado ao meu acalmando o choro. — Não chora mamãe. — sua mãozinha
desliza sobre minha pele, da mesma forma que o acalento. — O Anjinho vai
ser o pinguim da mamãe, o MAH vai sarar o seu dodói.
— É uma promessa de anjo, meu amor? — pergunto em sussurros.
— É uma promessa de anjo, meu amor. — ele responde em meu
ouvido.
CAPÍTULO 19
INDIVISÍVEL
“Um homem não pode fazer o certo numa área da vida, enquanto
está ocupado em fazer o errado em outra. A vida é um todo indivisível.”
Mahatma Gandhi
SANTIAGO
á era noite
J quando
finalmente
chegamos à casa
segura. A antiga residência dos Campus que de tempos em tempos, é usada
como um porto seguro para as vítimas de violência ou testemunhas
recuperadas que necessitam de proteção. Aqui às se escondemos até que
estejam recuperadas de possíveis feridas, antes do seu destino.
É um lugar secreto e financiado por algumas organizações não
governamentais e parte do meu próprio fundo financeiro, sem que ela tenha
conhecimento, ou rejeitaria a minha ajuda contínua.
— Pronto, estamos em casa. — a nostalgia empregada em sua voz
me soa estranha.
Angélica não é de demonstrar qualquer sentimento por seu antigo
lar, mas às vezes alguns gatilhos emocionais podem levá-la a agir assim, de
certo que a confusão no escritório que mexeu tão malditamente com Lia, teve
algum efeito retroativo em outros mais.
— Podemos descer, ou prefere conversar aqui e depois me
despachar?
Sem uma resposta direta, ela coloca a arma sobre o console do
carro e cruza os braços.
— Melhor ficarmos aqui, eu acho!? — sua dúvida expressada em
um tom mais baixo, confirma as minhas suspeitas.
— Você sabe que meu diploma universitário é um bacharelado em
direito, correto? Não sou psicólogo, patroazinha. Então, não posso brincar de
Divã com você!
— Não! — ela me olha com sarcasmo explícito. — É só a porra de
uma pessoa caridosa, que levou Lia para um passeio, sem permissão.
A provocação acende seus olhos, vejo a raiva tilintar nas bordas
das írises de cor azul, as pintinhas douradas que contornam seu olho esquerdo
crescem ao ponto de se tornarem uma mancha amarela cobrindo metade da
borda azul para o centro, — como um sol em dia de verão.
— Permissão? De quem eu precisaria de tal coisa, se ela
praticamente implorou por isto e, — pauso —não posso negar, que foi um
delicioso prazer tê-la por algumas horas.
Não consigo esconder o riso e isto bate completamente a merda
para fora dela, com movimentos rápidos e fluidos, Angélica alcança a arma e
aponta a casa. Suspiro alto, solto o cinto de segurança para segui-la.
Ficar no automóvel certamente seria mais seguro para minha
integridade física, mas o risco de sermos vistos juntos através das grades ou
algum vizinho curioso em suas sacadas, seria bem pior. A mesma questão
que me fez recuar com Lia à beira da praia. Anos de treinamento não podem
ser ignorados por qualquer motivo.
A casa está às escuras, mas logo ela acende todas as lâmpadas dos
cômodos que nos cercam, aprecio sua consideração.
Angélica coloca a arma sobre a mesa de centro, retira o celular do
bolso traseiro do seu jeans o colocando de lado. Com alguns passos se
posiciona a minha frente de braços cruzados, o indicativo de que espera uma
explicação. Contudo, já que tive o meu dia foi altamente frustrado, desejo
dar-lhe um pouco do mesmo. Replico seus movimentos, minha altura se
excede sobre ela por pelo menos, trinta centímetros, mas a loira em modo de
ataque nem mesmo pisca.
— Estou esperando uma explicação, Santiago.
— Não tenho nenhuma plausível que vá agradá-la patroa.
— Sem sarcasmos e gracinhas, o mínimo que pode me dizer é por
qual motivo levou Lia. Mesmo que ela estivesse desnorteada, deixá-la a cargo
dos seguranças em serviço era o mínimo que deveria fazer. Além de que, o
que passou por sua cabeça de aparecer no escritório? — ela aponta com o
queixo em minha direção.
Penso rapidamente em algumas frases que poderiam encerrar esta
discussão e dar a ela a sensação de segurança e controle, no entanto, mandar
tudo ao inferno parece-me mais divertido, uma vez que a minha paciência
está escorregando perigosamente sobre a borda.
Avanço mais um passo e posso sentir o calor desta proximidade,
invadir seu espaço físico é um pequeno castigo por apontar uma arma em
minha direção.
— Não quero responder às suas perguntas, mas farei para que
possa voltar para minha casa e desfrutar de um belo jantar. Como disse antes,
a levei por que me pediu, já os seus seguranças? É uma verdadeira piada,
querendo ou não retornarei ao comando das guardas e os treinarei melhor, —
não perco o pulsar da têmpora e o ranger discreto em seu maxilar.
— Santiago não se meta com no meu trabalho.
— Foda-se se serei duro ou não, você melhor do que ninguém sabe
que fomos treinados pelo melhor e, se é para ensinar posso garanti-la que
superei o mestre em larga escala.
— Você está indo muito além do que possa controlar, recue. — ela
rebate.
— Está enganada, você está indo além com suas insinuações. —
minha voz sobe e seguro para mantê-la no tom. — Quanto a aparecer no
escritório, por que não poderia? Existe algo lá que não deva saber, ou ver? Se
é este o caso, sabe perfeitamente que de nada adiantaria a tentativa de ocultá-
lo de mim.
— Não tem nada a ser escondido, só não quero que ronde Lia e
faça estes movimentos novamente. Não gostaria de ter problemas neste
sentido com você.
— Mesmo? E quais seriam estes problemas, isto me soa como uma
ameaça e não respondo bem a elas.
— O que queria com ela, onde a levou?
— Você já tem a resposta para às duas perguntas, refaça sua linha
de interrogatório, isto está se tornando cansativo! — endureço minha voz.
Angélica recua um passo.
— Não se atreva a elevar sua voz, ou vou realmente usar minha
arma contra você.
— Quero detalhes do que aconteceu pela manhã, qual é o relatório?
— ignoro sua sentença.
— Não vou discutir sobre isto com você. Apenas, tenha a certeza
de que não se repetirá o que aconteceu hoje, não o quero próximo demais a
eles sem uma cobertura adequada.
— Se eu concordar se sentirá melhor assim? — avanço outro
passo. — Se não tem nada a relatar, não deveria ter me conduzido aqui em
primeiro lugar, no mais cuide dos problemas deles, porque ninguém poderia
ser uma babá melhor do que você para aqueles idiotas.
— Não se atreva a falar comigo assim, ou vai se arrepender. —
ela trinca os dentes. — Se você tem um ponto de argumento sobre como ajo
com eles, faça-o! Você está caminhando sobre uma linha muito frágil, San.
— Digo o mesmo, pois está cruzando essa linha em um lado oposto
ao que começamos a trilhá-la.
— Eu não me importo que os odeie e tenha seus planos para de
alguma forma obter o que deseja, o que aliás, já cansei de oferecê-lo para
pegar e encerrar está história.
— Não quero dinheiro! — rebato com firmeza.
— O que seria então, às joias? — seu rosto se inflama e Angélica
perde a passividade me atacando com a voz alterada e os punhos cerrados. —
Se ainda é a fantasiosa herança da Sarah Nikolaevich, esqueça essa merda!
Não falamos sobre as joias de Sarah e o assunto vir à tona puxa
alguns fios sobre mim. Estreito meus olhos e começo a ligar os pontos sobre
o que possa ter de fato acontecido no escritório e mais me faz pensar que
Angélica, possa estar de alguma forma guardando para si, mais informações
do que possa supor.
— E se eu não quiser? — solto minha pergunta, mas como um
chamariz para uma presa relutante.
— Será um problema sério a ser resolvido! Você está além do
ponto de ruptura Santiago, a mais em si do que aparenta, do que realmente
demonstra, não sei o que possa ser, mas algo mudou em suas atitudes.
Enquanto posso confiar que será um benfeitor, me atemoriza que possa
esquecer sua humanidade no fundo, de uma gaveta e passar dos limites,
colocar vidas em risco de verdade, — ela toma um fôlego. — E tudo por
conta de uma fantasia, algo perdido há tantos anos, e que já destruiu muitas
vidas.
Muitas vidas? Você não tem ideia do que quero Angélica, não sabe
o que foi perdido por conta de todos eles. Por conta da ganância e da sede
de poder. Então não é para mim que o sermão sobre poderio vai cair como
um lenitivo, não me interessa o quanto eles sofram, pois, nunca será um
décimo do que suportei por toda minha vida, em pró de todos eles. As joias
de Sarah, perdidas? Esquecer tudo e deixá-los em paz?
Um fragor de ódio destila forte dentro de mim, a tal ponto que
oprime minha garganta, sinto o controle escorregar e avanço embriagado no
que me melhor alimenta. Ódio, rancor e fúria.
As palavras que disse a Lia ao saímos da praia eram sinceras, pois
se ela cometer os mesmos erros e deixar-se alimentar de maus sentimentos,
não poderá retroceder, e ao contrário dela, não tive a escolha de não o fazer.
— Foda-se! — o meu grito reverbera por todo o cômodo. — Não
me interesso pelos meios, mas quero os resultados, se tiver de ultrapassá-los
não vou ter um décimo de consideração.
Angélica se afasta rapidamente e recupera a arma sobre a mesinha
de centro, mantendo uma distância segura, mas sem erguê-la em minha
direção. Arqueio o sobrecenho com sua atitude, sinto o repuxar forte sobre a
lateral do rosto, minha mandíbula trava com a minha necessidade de
defender-me e desarmá-la em poucos movimentos, porém seguro meu
temperamento um pouco mais.
— Já que estamos neste assunto, me devolva o testamento por livre
e espontânea vontade. Não me faça pegá-lo do meu modo. A minha paciência
foi mais que testada. — aviso.
No fundo, sei que deveria recuar e manter sempre o tom amável e
não dar a ela um tempo ruim do meu temperamento, mas da mesma forma
que tem sido difícil de impedirem de agir de forma estúpida como fiz com
Lia, também tem sido difícil esfriar-me unido a velha revolta se ascendo em
meu interior, trazendo à superfície tudo que abandonei, de fato creio que
chegou o momento de esta história vir à tona e para isto, terei de me livrar
dos meus pontos fracos.
— Não me faça agir contra você, isto nos machucaria. — ela
rebate.
— Você poderia tentar, mas no final quem perderia mais?
— Não faça ameaças vazias.
— Não preciso de fazê-las, eu não aviso quando tenho de morder,
Angélica. — ela passa a mão sobre os cabelos.
Percebo em seu olhar aquela fração de algo que deseja fazer, falar,
mas parece ponderar.
— O que você quer, Santiago?
Sua voz é um pouco trêmula e isto poderia quebrar-me por dentro.
— Uma barganha! — exclamo.
— O quê?
— Entregue-me o que quero por enquanto, e darei a você algo
insonhável.
— Não consigo pensar em nada, a não ser Verônica em uma
bandeja de prata.
— Melhor do que ela, — pauso. — Eu poderia dar a você uma
Fada com poderes inimagináveis de cura, posso afirmar por experiência
própria.
— Me diga que isto é alguma metáfora, não me faça acreditar que
enlouqueceu de vez!? — sua voz não passa de um sussurro.
Uma decisão a ser tomada a queima roupa pode matar ou salvar a
vida de um homem. Ironicamente Mahatma Gandhi me veio à mente com sua
definição do que não é indivisível, “Um homem não pode fazer o certo numa
área da vida, enquanto está ocupado em fazer o errado em outra. A vida é
um todo indivisível.” Eu sempre soube que este dia chegaria e mesmo que
isso romperia o pequeno cristal que separa minha sanidade da vingança, farei,
pois, não posso corromper o que é puro e belo e transformá-la em algo dúbio,
triste e sem vida.
— Procure o seu querido Promotor, ele pode te dizer se enlouqueci
ou não.
— O que quer dizer com isto?
— Quero dizer, que cansei de brincar de esconde-esconde, polícia e
ladrão. Devolva o que é meu e te darei algo em troca.
— O que você quer? E não me fale desse maldito testamento, ou
vou fazê-lo virar cinzas? Que porra há de errado com você, — ela grita, — se
quer dar-me algo, me entregue Verônica.
— Algumas coisas ficam bem quando são deixadas de lado,
patroazinha. Me traga o que quero. Quanto a Verônica, posso dar a vocês,
basta não me contrariar, — afasto-me pisando duro dando-lhe as costas. —
Outra coisa, nunca mais aponte uma arma em minha direção a menos que vá
puxar o gatilho, ou a farei ter uma lição de como se ameaça alguém de
verdade.
— Você não é ele para me dar lições! O seu conselho vale para si
mesmo.
— Realmente não sou ele, mas posso ser o inferno de mil vezes
pior que o Gustavo já tenha sido. — retorno sobre meus passos aproximando-
me até estar a centímetros de distância.
Posso sentir minha respiração bater sobre o seu rosto, afastando os
fios que se soltaram da trança e descansam na lateral do seu rosto.
— Como disse antes, eu com certeza superei o meu mestre, um dia
você saberá como, por hora mantenha o que disse em mente. Ainda preciso
de você, da mesma forma que me necessita, só por isto manterei minhas mãos
longe dos seus queridinhos.
— Ele não está mais aqui! — sua voz fragmenta com dor.
— Você ainda tem pesadelos? Posso te tocar, abraçar, alguém
pode, sem que tenha uma crise de pânico?
— San…
— O passado não pode ser mudado, o que foi tirado não pode ser
devolvido, mas o que quero, — pauso —terei de volta, não importa se ele não
está mais aqui, nós ainda somos o resultado do que ele fez, porém, aprendi
ser bem pior do que um dia ele imagina que seria.
Recuo um passo após o outro deixando-a sozinha no centro da sala.
— Vou me afastar por alguns dias, mas só para que possa fazer o que pedi, e
então as coisas irão mudar em definitivo.
LIA
ALGUNS DIAS DEPOIS
Atchim… Atchim… Atchim…
A rodada seria três espirros e uma tosse engasgada, um aperto em
minha garganta e algumas risadinhas de Anjinho sentado no tapete, enquanto
colore seu milésimo desenho de pinguim.
Nina se aproximou da minha cama colocando a mão sobre minha
testa.
— Opa! — ela exclama animada. — A febre abaixou, sou ótima
como enfermeira.
— Concordo, — alço meu corpo sobre o colchão para me inclinar
contra a cabeceira da cama, aceitando o copo de água e alguns comprimidos.
— Se não fosse por você, de certo teria morrido com essa gripe, obrigada, —
sou sarcástica ao jogar o remédio dentro da minha boca e engolir. — Odeio
comprimidos. — resmungo em tom baixo para Anjinho não me ouvir.
— Sei, por isto adoro dá-los a você, não permito que se esqueça de
nenhum.
Vaca — mexo os lábios e ela desvia o rosto.
O fato de realmente ter contraído um resfriado após toda aquela
água gelada caindo por horas no meu corpo, não me ajudou em nada no
humor, porém foi a desculpa perfeita para não ir ao escritório no dia seguinte.
Entretanto, não precisei realmente me preocupar com isto, pois
para minha grata ou surpresa, na manhã do dia seguinte recebi um documento
do office-boy da empresa com um comunicado do RH informando-me sobre
minhas férias.
Meu primeiro impulso foi de ligar e arrumar algum problema,
jamais concordaria que fizessem isto com algum funcionário sem que ele
soubesse, todavia não nego que estar longe por trinta dias, após o tumulto
com Mikael, foi algo bem-vindo.
Me surpreendeu que a decisão tenha partido dele e me entristeceu
um pouco mais a notícia do que foi destruído em meu escritório, no entanto,
joguei isto para o lado e me concentrei em não morrer com uma febre
horrível.
Nina realmente foi eficiente e conseguiu que um médico viesse em
casa me examinar, já que não queria sair da cama, após ser ligada a um IV
com fluidos, um antibiótico e alguns antitérmicos, apaguei literalmente,
empurrando para longe outra questão que gostaria de discutir com ela.
— Não precisa de ser tão grata assim, faço isto por Anjinho. — ela
se curva e acaricia os cabelos ainda molhados do banho. — Não é meu amor,
a mamãe doente é um “pacote”.
— Pacote! — ele ri e balança a cabeça de um lado a outro.
Notei que após abandonar o boné, essa é a sua nova mania.
— A mamãe é um pacote, amor?
— Pacote! — ele nega com a cabeça, a gargalhada infantil me faz
rir com ele.
Cof-cof… cof-cof… — a tosse me agarra, Anjinho ergue a cabeça
e franze o cenho. Ele se levanta vindo em minha direção, elevo meu braço e o
faço parar com uma mão estendida e a outra cubro os lábios ainda tossindo.
— Amor, mamãe está muito resfriada, por que não fica com a tia
Nina na sala? Vocês irão viajar amanhã e não quero que fique dodói.
Ele torce os dedinhos impacientemente, olha de um lado a outro,
como se buscasse por algo, não sei o que Anjinho tem estes dias, mas sua
agitação anda elevada e isto me preocupa.
Meu filho tende a ser calado e concentrado em suas tarefas,
brincadeiras, na música ou no que chamar sua atenção para o momento.
Sei que não tivemos nenhum dos padrões interrompidos, que seria
a quebra da sua rotina, mesmo de cama, fiz questão de me levantar cedo, dar-
lhe banho, ouvi-lo tocar piano e logo depois arrumá-lo para ir à escola, no
entanto, desde que me viu sob o chuveiro, notei que Anjinho tem se
comportado diferentemente, e me sinto péssima por estar enfronhada na
minha própria fraqueza e não conseguir captar do que se trata.
— Anjinho? Está tudo bem?
Nina se ajoelha ao seu lado e tenta chamar-lhe a atenção repetindo
a pergunta, ele evita encará-la e continua cruzando o quarto com os olhos em
busca de algo.
— Filhote? Me diz o que você quer. — desloco meu corpo para
frente e me sento na beira da cama sem chegar muito próximo a ele, pois
realmente tenho medo de que possa gripar.
Anjinho não responde, ele por si só desiste do que seja o que tenha
incomodado, desliza para o tapete e volta aos desenhos. Outra novidade são
as canetinhas, de acordo com Nina, ontem uma visitante passou pela escola e
deixou presentes para as crianças, achei interessante a escolha do tema, pois
como diria July: O Universo parece realmente estar de olho sobre nós,
conspirando a nosso favor e dando dicas.
Mas no meu caso, se parecem mais com indiretas!
Anjinho ganhou um estojo com dezenas de lápis de cor e
canetinhas hidrocor, adesivadas com milhares de pinguins. A sua felicidade
extrema ao chegar em casa me deixou contagiada, foi só por este motivo que
me animei a levantar e aceitar tomar uma sopa com ele e Nina sentados no
tapete.
A cada vez que ele se senta ao meu lado para colorir, ou apenas
segurar o estojo enquanto assiste a um filme ou um videoclipe de música,
vejo a importância que está brincadeira tem para seu desenvolvimento me faz
lembrar das minhas promessas para ele e o quanto é importante que resolva
as nossas vidas nos próximos dias.
— Tem alguma ideia do que está acontecendo? — pergunto para
Nina.
— Talvez o mesmo de antes?
A referência à saudade de fadinha não passa despercebida.
— Irei até o conservatório, vou aproveitar as minhas férias e
visitarei no meio da semana.
— Isto é ótimo! — Nina olha para as mãos em seguida ergue os
seus olhos astutos em minha direção. — Que tal um banho e depois do jantar
termos uma conversa? Não quero viajar com a sensação de que está com
raiva de mim.
— Não estou com raiva de você.
— Lia, te conheço a muitos anos, e não olha nos meus olhos
quando fala, mantém essa distância e principalmente o fato de não querer me
falar sobre o que aconteceu, são dicas muito boas sobre o seu humor em
relação a mim.
— Pode ficar tranquila, — desconverso — vou só tomar meu
banho e jantaremos.
— E conversaremos, estou indo para outro estado levando o seu
filho, não quero amanhã antes de sair ter você dizendo que Anjinho, não pode
ir com alguma desculpa esfarrapada, só porque está com raiva de mim.
— Eu não faria isto com ele! — exclamo irritada.
— Não com ele, mas comigo, faria sem pensar duas vezes!
Não respondo, mas percebo sua expressão cabisbaixa, não
desmentiria a ela, pois como tenho segurado minha língua, amanhecer bem e
tomar essa atitude, realmente não poderia ser descartada.
Me ergo para caminhar até o closet, no centro do pequeno cômodo
Aline havia instalado um baú capitonê, que nos serve de banco de apoio,
sento-me sobre o estofado e olho para o meu celular, ligado à tomada no
fundo do armário a minha frente.
De propósito deixei-o ali desde a noite em que cheguei em casa
depois que escorada em Nina deixei o banheiro, e não voltei a tocá-lo, talvez
por medo de receber alguma mensagem que pudesse cravar ainda mais o
punhal em meu peito, ou por qualquer outra coisa que acendesse a esperança
de algo surreal.
— Estou levando Anjinho para jantar, ele está com sono. — Nina
fala da porta.
Não desvio meus olhos do celular desligado, mas dou a ela
confirmação visual com movimentos de cabeça de que a ouvi.
— Vamos conversar?
— Sim! — respondo.
— Ok!
Ela sai do quarto com Anjinho, ouço os passos abafados pelo
carpete, em seguida o som de click suave da porta sendo fechada, me ajoelho
e alcanço o aparelho, ainda não o ligo, mas farei em breve.
Mikael foi rude e impositivo, mas suas últimas palavras ainda estão
fragmentas na minha mente, talvez tenha justamente sido sua afirmação
inusitada a responsável por ter aberto a porta do nosso passado.
Após tomar meu banho e dar boa noite a Anjinho, aceitei o caldo
quente que Nina me entregou no quarto antes de correr para o seu, ela queria
tomar um banho rápido. Aproveitei esse momento para voltar a olhar a tela
do meu celular.
Superei cansada de pensar.
— Inferno! — exclamei entredentes, liguei o aparelho e esperei a
tela se iluminar.
Mensagens por SMS e a sinalização de mais algumas acumuladas
de outros aplicativos de redes sociais, ligações perdidas, e-mails começaram a
pipocar na tela. Alguns clientes querendo saber se estava tudo bem, outros
agradecendo a cesta de iguarias que receberam. Clientes preocupados
questionando se era prudente outro advogado assumindo seu caso, fiz uma
listagem do que poderei responder com prioridade na parte da manhã, as mais
urgentes mandei de imediato a resposta.
As ligações perdidas em parte vieram do escritório, algo que
também poderia deixar para depois.
Minhas amigas encheram nosso grupo com fotos, corações e várias
mensagens de apoio até se cansarem de esperar por minhas respostas e
começarem a especular o que teria acontecido; alguma corajosa colocou
Angélica como participante, mas a sua resposta grossa a fez ser excluída logo
em seguida.
Segurei o riso e continuei a minha inspeção, Ramon mandou-me
mensagem profissionalmente dando-me um parecer geral sobre minhas férias
e adicionou ao final que estaria disponível caso quisesse conversar. Os
meninos, foram gentis e deixaram abraços e beijos, Edu foi um pouco grosso,
mas fofamente, me oferecendo um taco de baseball, caso uma desforra sobre
a mesa de centro destruída estivesse se passando por minha mente.
Todos de uma forma humorada e carinhosa mimaram-me à
distância, isto mexeu com minhas emoções.
O ícone ao lado do nome de Mika estava indicando-o online, por
isso evitei abrir a mensagem.
Uma saudade de “nós” corroeu-me por estes dias, lembranças da
juventude, dos risos, gritos, choros, os laços, a forma audaciosa de levar-me a
loucura, de quem éramos, o que sonhávamos para nós e a forma que logo
após seu pedido de namoro transformou-se em um inferno destruidor, que
voltou a nos assombrar por anos.
Anos a fio, enquanto estive fora do Brasil, desejando estar com ele.
E foi nestes anos longe que o vi amadurecer, abandonar a carreira musical
que tanto amava, se tornar um mulherengo cada vez mais audaz, um
advogado competente, renomado tão jovem, estava em várias revistas de
fofocas, algumas colunas de direito entre outras.
Prendo meus lábios entre os dentes, fecho meus olhos e deslizo o
dedo sobre a tela, respiro pausadamente com medo de ler o que deixou aqui,
mas o faço e me surpreendo com suas palavras.
INSEPARÁVEIS
Pela forma como você me olha
E me diz tanto quando não me diz nada
Pela forma como você me toca
Com esse olhar que acaricia a alma
E pela forma como você me abraça
Por Eso Te Amo — Río Roma
LIA
ALGUNS DIAS DEPOIS
U
m pensamento recorrente em minha mente vai e volta dando suas piruetas
descompassando meus dias. Dias intermináveis depois que me despedi de
Nina e Anjinho.
Meu corpo se recuperou rápido do resfriado e pude ocupá-lo com
afazeres domésticos e por estar de férias forçadas, nunca me senti tão
competente como dona de casa. Ótima atleta por disparar em longas corridas
ao pôr do sol na orla, uma obcecada em novos livros de romance nacionais e
a mais nova viciada em músicas de todos os gêneros. Tudo ao mesmo tempo,
pois eu precisava organizar a minha mente e me equilibrar para que pudesse
ter uma conversa séria e definitiva com Mikael.
Minhas lembranças voltaram com toda a força de um furacão de
alta intensidade varrendo-me por dentro sem deixar nada de pé.
Chorar? Não sabia que poderia, com tanta intensidade e com tanta
frequência.
A ambiguidade dos meus sentimentos contraditórios deixou-me
seca, pois, enquanto todo esse tumulto emocional queria levar-me a aceitar
seus convites — vindos em mensagens repetitivas dia após dia, eram os
mesmos que me levavam a afastar ainda mais.
Não me sinto mais irritada ou furiosa com ele, por falar tudo aquilo
no escritório, do que me sinto com tudo o que passamos.
Se erramos?
Erramos todos.
Cada um de nós escondeu e ainda o faz, seus sentimentos, motivos
e segredos que podem no fim nos levar a uma separação fulminante, a uma
morte dolorosa dos nossos mais puros sentimentos, manchados por tantos
segredos.
Minha mente tornou-se esquálida diante de um único pensamento:
eu me perco com ele… me perco por ele.
Talvez, só talvez por este mísero e impactante pensamento tenha
cedido a algo que não controlo, ao meu corpo fatigado, minha mente
deturpada e meu coração ferido, aceitando por fim encontrar-me com ele.
Ainda não queria retroceder numa decisão e dizer-lhe que estava
cansada e que eu e meu filho, precisamos de um lenitivo em nossas vidas,
porque não posso ser carrasco de nós três, não posso dar o que um quer e
impor algo que outro não queira, mas estou cansada.
Cansada!? Imensamente cansada, porém sem a menor pretensão de
promover algo que não possa lidar. No entanto, eis-me aqui cercada dos
pensamentos contraditórios e indefensáveis. Louca, compulsiva, ansiosa, com
lágrimas reprimidas querendo delinear os meus olhos e escorrer pelo meu
rosto, mas ainda assim resoluta, pois acima de mim e de todas as merdas que
nos cercam, está a felicidade, a vida e todo o bem-querer que o meu filho
merece ter, aquilo que jamais falei, ou ousei a pensar.
Aquilo pelo que nunca em meu mais profundo desejo deixei-me
levar.
Sei que não será agora, que não será com uma sentença
pronunciada como em um julgamento ao se ler um veredicto, pois tenho
plena certeza que ao sentar-me nos bancos dos réus, os céus se abrirão e o
verdadeiro julgamento chegará de uma forma nada branda, porque o meu juiz
não é ninguém menos que um anjo torturado, cheio de marcas indeléveis e
destroçado tanto quanto fui.
— Isto nos torna inseparáveis, mesmo que pareça ser o nosso
destino.
Respiro uma, duas, três vezes de forma lenta, absolvendo o ar
fresco da noite, clareando minha mente e apaziguando o tremor em minhas
mãos.
Coloco a menina quebrada e confusa de volta em seu lugar atrás de
um muro blindado em minha mente e deixo a mulher dura e estruturada
assumir o comando, antes de dar sequência aos meus passos firmes para
dentro do prédio, aonde ele me aguarda.
MIKAEL
Retirei o capacete, passei a mão sobre o cabelo com gestos
irritadiços bagunçando os fios, fazendo o mesmo gesto sobre a barba em meu
rosto.
INDECOROSAMENTE
“But touch my tears with your lips
Touch my world with your fingertips
And we can have forever
And we can love forever
Forever is our todayWho”
Wants To Live Forever — Queen
LIA
S
uas mãos percorrem meu corpo de cima a baixo, sinto-me no redemoinho de
sensações, saudades e uma irrefreável necessidade de sentir e me envolver
com sua lascívia e as carícias que estão além do imaginável.
— Não se atreva a arranhar meu carro Promotor, é melhor se
afastar. — digo entredentes capturando seu lábio carnudo entre os meus.
A sua risada sexy de macho excitado, me arrepia por completo, sua
mão sobe pelas minhas costas deslizando de leve as unhas bem aparadas,
deixando um leve arranhado sobre minha pele até alcançar a base da minha
nuca.
— Não quer que arranhe seu brinquedinho novo? — ele debocha.
— Não! — respondo categórica, aceitando outro beijo arrebatador
da sua boca.
O gosto mentolado da sua língua deslizando sobre a minha me
entorpece. Um gemido esmigalhado de prazer ressoa da minha boca para sua.
Como uma potente alavanca, Mikael me afasta do automóvel,
segura por baixo de uma das minhas coxas e me puxa com entusiasmo contra
seu corpo, não perco a oportunidade e rodeio minhas pernas à sua volta
apoiando meus tornozelos cruzados sobre o osso sacro.
Minhas mãos se enredam por sua nuca até deslizar sobre a base da
coluna da mesma forma que faz comigo, todavia sua pegada é bem mais
arisca. Mikael dá voltas com o punho em meu longo cabelo azeviche e o
agarra firme fazendo minha cabeça tombar para trás expondo minha garganta.
— Se não quer inaugurá-lo do lado de fora, de fato o faremos do
lado de dentro.
O grito afogado em êxtase que reverbera em meu peito, sai entre
meus lábios e, é acompanhado de outra risada afrontosa. Sua boca deixa
beijos ao lado do meu rosto, enquanto sua barba arranha minha pele descendo
pela coluna com meu pescoço estirado para trás.
Mikael, dá alguns passos rodeando o automóvel, ouço de leve ao
bater da porta do motorista que ainda estava aberta, mas nem faço caso disto,
pois, sua pose está esmigalhando minha libido, levando-me ao supra sumo do
erotismo.
Adoro a forma que ele me prende com seu corpo contra a coluna de
sustentação da garagem, as leves mordidas que deixa sobre minha pele, os
beijos de boca aberta sobre a altura dos meus seios e potência do roçar que
sinto ao arremeter sua ereção escondida pelo jeans entre minhas pernas.
— Mika… — minha língua parece dopada e se arrasta em meus
lábios, capturando-os para evitar que grite ao sentir a mordida sobre o bico do
seio enrijecido. Nem mesmo o material do body pode impedir a ardência do
ato.
— Adoro sentir seu corpo respondendo ao meu. — ele reduz ainda
mais o espaço que tem entre nós e sinto-me completamente achatada contra o
cimento. — Vou perguntar mais uma vez, porque depois que arrancar a sua
roupa, não vou parar. Está me ouvindo? — ele rugiu em meus ouvidos e
deixando um tapa ardido contra uma banda do meu quadril.
Isso acende-me o desafio, forço minha cabeça para baixo, livrando
parte do meu cabelo da sua prisão e o encaro firmemente.
— Eu disse que sim, no entanto, isso não quer dizer que estamos
resolvidos, — uso o mesmo tom com ele.
O miserável tem um sorriso no canto da boca e não usa palavras
para concordar comigo, mas faz um meneio duro com a cabeça. Mikael trava
seus olhos sobre meus lábios inchados e sem cerimônia me arrebata outro
beijo, porém esse é mais suave, o oposto dos gestos afoitos e severos que tem
com as suas mãos.
Ele dá um passo atrás, descruza minhas pernas me fazendo resvalar
por seu corpo, com agilidade em segundos desabotoa minha calça que desliza
pelas minhas pernas e o ar frio do subsolo me arrepia a pele.
Tomo consciência de onde estamos, mas a sintonia é tão crua e
intensa que descarta meu medo de sermos pegos com um simples arremate de
palavras.
— Ninguém virá aqui, as câmeras estão desligadas, somos só nós
dois.
— Já tinha isso premeditado, Promotor?
Ele não responde e alço seu rosto com uma das mãos por baixo do
seu queixo.
— Não queria audiência para outra conversa entre nós. O que
aconteceu no escritório Lia, não se repetirá jamais.
Isso me aterra, eleva e sacode todas as minhas muralhas. Deixo-me
guiar por suas mãos, pois ele sabe melhor do que ninguém o que gosto e
como me deixar em êxtase.
Mikael se agacha, retira meus sapatos e me deixa à sua frente com
as pernas levemente abertas. Ele literalmente me cheira. Escorrega a boca e
nariz por sobre meu ventre até a curva do meu sexo, me sinto um pouco
envergonhada, pois sei o quanto estou molhada, mas a vergonha é só um
charme do meu consciente querendo manter algum controle sobre a situação.
Entretanto, isso acaba quando ele segura minha coxa rodeada pela tatuagem
com a escala musical, onde as notas da nossa música, foram gravadas após
consolar a mim e Anjinho.
— Isso é algo que me enlouquece, desde a primeira vez que vi, —
ele diz em voz baixa, sua mão transcorre cada nota e depois é a vez da sua
boca, subindo por dentro da minha coxa até tocar o centro do meu sexo.
Sua língua desliza em um vaivém longo e lento apreciando o que
me faz em uma larga escala de tortura.
— Quero fazer tantas coisas, mas a porra da impaciência, não vai
deixar! — ele diz como se estivesse frustrado.
O que posso fazer por ele se me sinto da mesma forma? Por este
motivo não reclamo quando desce minha perna de volta ao chão, se afasta e
com movimentos frenéticos arranca a sua jaqueta, botas, camisa e desabotoa
o jeans. Tudo nessa ordem.
— O que está pensando em fazer? — pergunto olhando dele para o
banco do copiloto que faz deitar-se até virar literalmente uma cama.
— Quero mostrar o conforto do seu brinquedinho, — ele pisca.
Por Deus! Isso é o inferno de sexy.
Mika retira a carteira da calça e a joga sobre o console do carro,
logo em seguida a descarta ficando apenas com uma boxer preta,
completamente estirada pela colossal envergadura do seu pau ereto. Lambo
os meus lábios ao ver como a cabeça da seta ultrapassar o cós, marcando as
veias grossas que deslizam das laterais do abdômen sarado com todos os
gominhos ressaltados, até se esconder pelo elástico maltrato da boxer.
Não resisto, dou um passo à frente e deslizo minha mão por todo
ABS[8] trabalhado até alcançar esse V do inferno que arde as pontas dos meus
dedos. Minha boca alcança um mamilo rosado, a pele com diminutas sardas é
quente e se arrepia com leve toque da minha língua. Sem que perca a posse
do botão eriçado, cruzamos os nossos olhares e estremeço com a expectativa
do prazer.
Uma fúria indolente e intrépida faz com que as aletas do seu nariz
se abram aspirando com força.
— Quero muito fazê-la descer até mais embaixo Anjinha, no
entanto, não aguento mais esperar.
Dito isto, ele volta ao domínio do meu corpo, mas desta vez nos
levando para dentro do automóvel, meu corpo abarcado pelos braços que
mais parecem toras cai por sobre o seu. Minhas pernas se encaixam em sua
cintura e tenho meu sexo diretamente abraçando a coluna erguida entre elas.
— Isso é erótico e muito gostoso! — exclamo extasiada.
— Nunca transamos em um carro, — seu olhar é safado.
— Não. Contudo, imagino que o banco detrás, seja mais
confortável.
— Nem pensar! — ele exclama com firmeza.
— Por quê? — pergunto, mesmo que ele tenha dito algo sobre isto
antes.
— Já disse: é do moleque! Não consigo imaginar foder a mãe dele
ali, e depois colocá-lo para viajar no mesmo lugar. — ele fecha os olhos e
balança a cabeça.
Começo a rir encantada com a sua expressão, mas me calo para
ouvi-lo.
— Não fazia ideia de quanta coisa precisava para abastecer um
carro para o transporte de crianças.
— Do que está falando?
— O porta-malas está cheio de tralhas, cadeirinha para peso X,
assento para idade Y, protetor de cinto, de vidro, pescoço e um monte de
coisas.
A forma que ele faz a sua alocução me deixa sem fôlego, essa
consideração é realmente típica dele, mas sendo direcionado a Anjinho, me
enternece de uma forma que não posso impedir-me de demostrar com meu
corpo.
Me jogo sobre Mikael circundando seu pescoço com meus braços e
o beijo com toda a paixão que nos concerne. Deixo-me levar pelos delírios de
imaginar que não há segredos entre nós, que nunca houve nenhuma
separação, que desde sempre formamos uma família e isso faz com que brilhe
um sentimento intenso dentro do meu peito, e o trago para fora, na mais pura
forma de me entregar a ele.
Mikael corresponde meu beijo com outro ainda mais selvagem, ele
me faz gemer e estremecer sobre si, sua mão vai até à altura do meu pescoço
e faz deslizar as alças que prendem o body, deixando-me nua até a cintura.
Meus seios bamboleiam pesados sobre seu peito, ele não se retém,
me afasta um pouco mais de si, pega-os em suas mãos sopesando-os,
deslizando os polegares sobre os mamilos de cima a baixo, fazendo meu
corpo estremecer.
Sem aviso sua boca captura o mamilo onde outra tatuagem tinge a
pele junto a uma pequena argola de ônix. A língua brinca de um lado a outro
dando pequenos puxões, mas isso rapidamente é deixado de lado quando a
sucção fica mais intensa ao ponto de sentir uma fina dor, a que me coloca no
limite de reclamar e tentar afastar-me, mas ainda querendo que ele continue a
sugar.
— Mikael! — grito e ouço o pop ao ter o mamilo esquerdo
liberado apenas para que ele dê o mesmo tratamento ao outro, enquanto suas
mãos viajam por meu quadril, segurando com força minha bunda de ambos
os lados.
Minha cintura se move sobre seu pau sem qualquer vergonha,
requebro meu corpo buscando alívio para minha ânsia, assim como ele faz,
moendo ao encontro do meu centro.
Sem aviso ele estala um destes tapas bem dados sobre a carne, o
som das chicotadas ricocheteia pelo interior do carro e ganha amplitude pelo
subsolo vazio. Sinto meu corpo respondendo, e mais líquidos vazando pelos
lábios lisos do meu sexo.
— Quero muito foder essa boceta que está empapando meu pau
Anjinha.
O homem versado no sexo ardente está no controle, de longe é o
Promotor centrado, que não pode demostrar um pingo de misericórdia, ou o
amigo cheio de brincadeiras, que usa o riso para camuflar sua verdadeira
natureza.
Esse Mikael, que me tem escarranchada sobre ele, só se mostra
para mim e mais ninguém. Isto me coloca em estado de pré-gozo iminente,
sinto os picos se construindo com gravidade dentro de mim, mas ainda
preciso fechar um último ponto antes de dar-nos o que queremos.
Outro tapa e me sinto a borda. Plás, plás, plás… — ele deixa uma
sequência que me aquece, mas ao passar para o outro lado o grito que sai dos
meus lábios, nada tem a ver com sexo e ele me olha aturdido.
— Porra! Esqueci de falar. Aiiii! — reclamo
— O que foi? — ele me olha aturdido.
— Injeção? — a expressão sai entre lábios com um sopro.
Sua expressão de “como assim?” me faz rir e rapidamente
expliquei sobre o uso anticoncepcional injetável que voltei a usar, mesmo que
não me dê bem com a dor e o hematoma que fica na nádega.
— Porque está usando injetável, já não tínhamos falado sobre isto
meses atrás? — ele rugiu com raiva.
Fez uma carranca com as sobrancelhas curvadas, alavancou meu
corpo para que desabasse por cima do seu e de algum jeito conseguiu se
curvar para ver o estrago.
A polpa avermelhada não esconde um leve amarelado. Não sei o
porquê, mas sempre que tomo a injeção, ela passa praticamente todo o
período que esteja valendo como um calombo doloroso, e com um roxo nada
sexy na bunda.
— Sim, mas tive o problema no final de ano, e minha ginecologista
achou melhor voltarmos o injetável uma vez que tive de tomar muitos
remédios. — minha voz é um sussurro e evito falar com ele sobre esse
assunto, mais um que nunca conversamos.
Seu corpo reage, retesa e mantém o silêncio. Sinto sua mão
deslizando com cuidado sobre a área. Esse detalhe nem de longe nos faz,
esfriar, ao contrário, a carícia intensa da sua mão resvalando é contínua e vai
avançado descaradamente. A cada vez mais em um sobe e desce.
Mikael é perito em me fazer arrulhar de desejo, e isto acontece
quando afunda mais um pouco seus dedos e com alguns movimentos precisos
me penetram por trás a entrada do meu sexo arrancando alguns xingamentos
eróticos dele e mais gemidos meus.
— Para de usar isto, não gosto que sinta dor. — ele demanda.
— Sério? — pergunto com deboche.
— Não desse tipo. — ele sussurra no meu ouvido enquanto beija
ternamente minha garganta até pegar meus lábios.
Algumas carícias a mais e voltamos no mesmo ponto, a adrenalina
subindo, o tesão gritando e meu corpo respondendo à invasão dos dedos
deslizando entre os lábios molhados do meu sexo.
Mika me ergue um pouco, retira seu pau de dentro da cueca e este
me dá as boas-vindas rodeado por uma veia calibrosa, com prepúcio
escorrendo pré-sêmen e o malvado piercing atravessado sobre ele. As esferas
reluzem entre nós, meus dedos emborcam em volta do seu pênis e fluem
fazendo com que mais desse líquido perolado escorra e nos mele.
Os pelos pudicos tão ruivos como seu cabelo, são aparados bem
rentes na área do púbis e fazem cócegas sobre as pontas dos meus dedos, mas
as pesadas bolas do saco devidamente depilado me aguça a vontade de
experimentá-lo.
No entanto, Mikael tem outras ideias e aprecio muito todas.
— Pare de babar por cima, e me encharque com a debaixo minha
Anja endiabrada.
— É romântico como uma tora, Promotor, — o acuso.
— Isso, diz a mulher que quer comer-me vivo, literalmente, — ele
solta uma risada e me busca com o olhar. — Diz o que tem a dizer, antes que
me perca completamente dentro de você, Liana. — a voz séria me faz erguer
meu rosto e afrontá-lo por alguns segundos.
Mesmo que não tenha falado, ele sabe que há algo mais que
precisamos deixar claro entre nós. É essa química da qual jamais pudemos
escapar, durante toda a nossa vida.
Respiro e me ergo um pouco mais, sentindo-o levar para o lado a
parte inferior do body expondo minha vagina completamente a sua mercê, ele
coloca um braço dobrado por debaixo da sua cabeça, fazendo de travesseiro,
me encara com uma expressão séria como se estivéssemos em uma mesa de
negociações.
Sua mão livre escorrega por minha coxa até que seu dedo indicador
pare bem acima do meu clitóris, resvalando sobre o segundo brinco de ônix,
cravado no botão enrijecido, completamente fora do capuz.
Trago uma nova baforada de ar e mantenho a minha concentração
nele, o máximo que consigo.
— Não estamos resolvendo tudo, aqui e agora. Concordo em
começarmos de algum lugar, mas quero que você me diga com todas as
letras, sem subterfúgios, charadas ou qualquer jogada para me ludibriar,
Mikael Nikolaievitch.
— Farei, pergunte Liana.
— Você quer a mim e ao meu filho, na sua vida?
Meu coração falha uma batida, meu corpo continua sendo
embalado por ele e posso sentir o orgasmo se construindo novamente
lentamente enquanto dedilha meu sexo como se fosse seu violão.
— Sim!
— Só sim? — não quero demonstrar dúvidas, mas elas estão aqui.
— Ainda não quero ser pai.
Essa frase poderia me quebrar em milhares de pedaços como tantas
outras vezes, mas desta, mantenho firme meu agarre a convicção de que ele
deseja mudar algo entre nós.
— Ainda não sei se consigo ser um bom substituto. No entanto,
tudo é ainda… Estou propenso a mudar. Sei que você tem medo, já estive
desse lado da balança quando não podia me defender, por isso e por muitos
motivos que quero demonstrar em um futuro bem próximo, pouco a pouco,
dia a dia… — ele suspira e para seu movimento.
— Que quero viver esse momento, sou um bom tio para os filhos
dos nossos amigos, mas sei que se quiser ficar com você vai precisar
aprender a ser outra coisa, então, tenha paciência comigo. Não duvide do que
sou capaz e no momento que precisarmos conversar, vou te escutar como
prometi e você fará o mesmo por mim agora.
Não foi um pedido, e sei que em um momento anterior iria rebelar-
me e gritar com ele, mas posso compreendê-lo, por necessidade e por
respeito. Pois, mesmo que gritemos um com outro e sejamos infames nas
ofensas, nos respeitamos como pessoas.
— Você não conhece a mulher que me tornei, Mikael.
— Da mesma forma, que manteve até hoje em sua mente, o
playboy inconsequente e cheio de amarras do passado, Liana.
— Fora mais de dez anos longe e isto nos forjou de formas,
diferente.
— Contudo, não nos matou.
Suas palavras caem em mim como uma bigorna quente aterrando
em meu estômago. Sua mão desliza mais uma vez pôr todo meu sexo e com
mais afinco, ele rodeia o brinco e puxa levemente me fazendo reprimir um
gemido ao voltar a mover seu dedo por meu clitóris que em momento algum
deixou de palpitar.
— Adoro saber que manteve meus brincos em você durante todo
esse tempo.
Não respondo, mas o sorriso sincero que deixo florescer em meu
rosto faz. Tenho em mim o mesmo sentimento do dia que roubei às duas
argolas que ele exibia nos mamilos e as escondi para mim.
As perfurações foram feitas às escondidas, era um presente para ele
que só as viu por um instante antes das nossas vidas virarem de cabeça para
baixo, no mesmo e último dia em que estivemos junto a muitos, muitos anos.
Lentamente desço meu corpo em sua direção e deixo meus lábios
pousarem sobre ele, com aquele beijo cálido que me deu a pouco mais de um
mês no restaurante da Carla.
— Oi!
— Oi!
Isto sempre foi uma brincadeira entre nós e senti tanta falta, que
esse simples cumprimento saindo dos meus lábios me levam a uma
tormentosa e espantosa explosão de prazer guiada por seus dedos subindo e
descendo pelo meu corpo.
O primeiro gozo me arrebata e me deixa mole por alguns minutos,
fundindo minha mente com lembranças de outra época de quem éramos e o
que queríamos.
Who Wants To Live Forever de Queen ressoa no carro e a doce
melodia de promessas parece nos embalar confrangendo nossas memórias
com a realidade do que somos e quem somos hoje.
Meu cabelo recobre meu rosto, os tremores se alastram por minhas
coxas arreganhadas sobre ele, sinto escorrer mais fluidos e molhá-lo, meus
seios ardem nas pontas e tenho a vontade de apertá-los dentro da sua boca.
Mas são as lágrimas que escorrem pelo meu rosto que tocam sua pele.
Ele é sensível para não dizer nada que possa me quebrar, mas ergue
seu rosto, toca minhas bochechas com os lábios e como na letra da canção
toma em sorvos as lágrimas que transbordam.
— Temos o nosso Pacta sunt servanda… — ele traga o ar com
força, voltando a mesma posição de antes. — Formaremos um pacto que será
respeitado?
Recuperada em partes, jogo meu cabelo por sobre o ombro e fixo
meu olhar no seu.
— Sem ab-rogação. O que está feito, não pode ser desfeito. — alço
meu corpo apoiando as mãos sobre seu peito, ergo meu quadril e sinto a
cabeça larga do seu pau forçando à entrada do meu sexo, deslizando
lentamente pelo canal apertado. — Em algum momento, poderemos nos
arrepender e certamente teremos embates gigantescos, é da nossa natureza,
mas se você concordar com meus termos, darei o primeiro passo.
Mikael está impávido, sei que meu movimento sutil o faz deslizar
pela borda do seu rígido controle, há muito mais entre nós do que apenas um
desejo, existem muitas janelas vedadas. Sempre haverá.
Ironicamente percebo as engrenagens da sua mente altamente
inteligente e analítica, correlacionando o que lhe proponho, com o que
realmente tivemos dentro deste último ano.
A forma como me olha é indecorosamente perturbadora, com um
menear firme dos braços musculosos, ele afasta seu corpo do meu, as mãos
grandes sulcadas por veias ressaltadas envolvem minha cintura e se contraem
com aperto firme.
— Nós sempre iremos tentar acautelar-nos contra qualquer
invasão, — ele ressalta, — em qualquer situação, por instinto, certamente
fecharei uma porta. Mas, tentarei mediar com uma brecha, se estiver disposta
a fazer o mesmo.
Sei que sinalizar um sim, pode ser a ruína de tudo que possuo, mas
é com o meu sutil gesto de aquiescência que ele me toma de supetão, e
ultrapassa todos os nossos limites com um impulso do seu corpo penetrando
fundo meu interior, de todas as formas permissivas.
Grito pela surpresa, a dor fina que a invasão causa e o arroubo de
fogo erótico que se alastra do centro do meu sexo preenchido, até a pulsação
enlouquecida que sinto em minha garganta e me deixo imbramar não apenas
pelo que sinto, mas pelo vejo em seu olhar.
— Se a Doutora, não tem nada mais a litigar, meu pau está a um
passo do colapso, louco para foder sua boceta melada.
— Espera, — respiro afogueada ainda pela colossal invasão. — A
camisinha?
— Você sentiu a porra de uma dor desgraçada para ficar segura, e
quer que eu use camisinha?
A pergunta dele me surpreende, entre nós apenas três vezes
transamos sem camisinha e de todas, mesmo as protegidas ele me
enlouquecia com suas perguntas ridículas sobre estar grávida.
— Pode parar aí, você não vai surtar como das outras vezes! —
rebato tentando me afastar da sua invasão, mas é impossível com seu pau
enorme e grosso como um punho ereto e enterrado até o fundo dentro de
mim.
— Não farei! — a resposta simples me assombra ainda mais,
porém a primeira estocada me tira do plumo.
Mal posso controlar as explosões subindo pelas paredes do meu
sexo, meses sem atenção, vertendo como uma cachoeira e tão ajustado contra
seu pau que posso sentir a pulsação da veia agressiva que reveste o caule
grosso.
— Aaah! Por Deus! — arrevesada pelas múltiplas sensações e o
fogo de mil infernos remoendo minhas entranhas exclamam. — Data vênia,
Promotor. Me fode, gostoso.
Ele só me demonstra um riso no canto da boca, a fenda dos olhos
azuis tornando-se literalmente cinza como uma tempestade, enquanto golpeia
com precisão dentro do meu corpo.
Sua mão abandona minha cintura para segurar meu seio e ali sobre
a tintura ele desliza os dedos e mantém seus olhos sobre a pele gravada,
espero que ele pergunte, mas como em outras vezes nunca o fez, então
mantenho-me em êxtase e em gemidos deixando no fundo da mente esse
embate para outro momento.
A pressão dentro do meu corpo se torna insuportável, mordo o
lábio inferior querendo alívio, Mikael continua sua invasão centímetro a
centímetro empalando-me por completo.
Os gemidos de ambos estão sobrecarregados por testosterona e
feromônios no carro, Mikael aproxima seu peito do meu, os seios latejam, os
bicos eriçados roçam contra os músculos, sendo prensados de uma forma
dominadora.
— Quer mais? — ele pergunta e penso em responder: mais? Só se
você quiser me partir ao meio, seu sádico.
— Não tem espaço para mais! — replico entredentes, pinçando um
novo orgasmo.
— Assim que gosto, arisca e só porque está pedindo com tanto
jeitinho. — seu sarcasmo me faz rir, para logo me pôr a navegar em um
turbulento êxtase. — Vou te dar mais.
A cada arremetida poderosa do seu pau dentro de mim, tenho a
sensação de que vou me partir ao meio de verdade, puta que pariu, isso é
saudade? Sua boca desce… e o beijo… Céus!
Ele beija meu pescoço e volta a saquear a minha boca, brincando
com minha mente e corpo. Quando penso que vou gozar, ele para e se afasta
pega o meu seio, chupa como se fosse um doce e volta para estocadas leves,
avançando novamente em um ritmo insano.
— Mikael, não seja cruel. Quero gozar! — grito pega por outro
torvelinho de sensações.
— Essa é a intensão, foder e gozar, mas de um jeito que faça valer
por tantos meses sem poder te tocar. — sua voz é inflexível, mas o toque das
mãos é fogo puro.
Tento manejar meu corpo sobre o dele para criar meu próprio
orgasmo sem muito sucesso, porque ele me conhece e sabe que não vou me
submeter tão facilmente.
— O que foi? Está apertado? — a pergunta é uma zombaria.
— Sim! — respondo, ele se afasta e me permite erguer minha
perna, para apoiar o pé na lateral da poltrona e isto abre-me como uma flor
para ele, e faz com que a bola superior do piercing roce no ponto exato que
preciso por dentro do meu sexo.
Sorrio como uma gata lasciva, me acomodo o suficiente e o cretino
se aproveita da abertura, ergue mais o corpo e soca fundo dentro de mim,
levando minha outra perna para a mesma posição.
— Que visão! — ele aprecia, pois, assim pode dedilhar meu clitóris
e pinçar a argola me fazendo revirar os olhos. — Melhor assim?
— Com certeza! — quase grito eufórica. — Sua ideia louca de
transar dentro de um carro é trabalhosa, mas você faz bem.
Ele para…
— Faço bem, hein?
— Com certeza, duvido que Rose dentro daquele carro embarcado
no Titanic, teve algo tão bom. — outro gemido sobrevém e apoio minhas
mãos no teto do carro.
— Devo me sentir lisonjeado. — o sarcasmo impera.
— Não se sinta, — rujo entredentes. — Você só é bom, porque sou
gostosa pra caralho! — afirmo sendo aterrada por outra estocada.
— A Rose, tinha uma boca suja assim? — ele pergunta com um
sorriso crescente.
— Não faço ideia. — sinto que estou perdendo a linha do
raciocínio. — Só tenta negar que o Promotor, dá o máximo de si, porque sou
eu…
— Você não é uma anja, é tormento endiabrado! — ele me segura
com firmeza e para todos o movimento.
— Não se atreva a parar Mikael. Temos um acordo. — me perco
na imensidão do desejo que ele retém.
— Temos a porra do acordo que quiser! — ele ergue o peito e volta
a me foder do jeito que gostamos. — Agora Anjinha, goza para seu Anjo
mau. — ele pisca daquela forma descarada e pervertida, assalta minha boca
com um beijo profundo e me faz deslizar para dentro de um gozo arrebatador.
Onde nenhum de nós é melhor que outro, pois se ele dá o melhor
por ser eu, com toda a certeza, dou tudo que tenho, apenas para ele.
MIKAEL
Após gozarmos mais três vezes como loucos, alcancei o banco
detrás do motorista e tirei de lá uma caixa de lenços umedecidos. Lia me
olhou com olhos arregalados e me senti constrangido, não por cuidar dela,
mas por lembrar de como foi ir até uma farmácia e me sentir completamente
inapto diante da balconista comprando para o moleque.
— O que é isto? — ela gemeu com o contato do lenço frio contra o
sexo dolorido e ardido.
Não respondi, usei algumas unidades para limpar o sêmen que
escorreu, depois voltei a arrumar seu body, ou o que sobrou dele, a fiz
descansar sobre meu peito por um tempinho ouvindo o silêncio ser quebrado
pela música ao fundo que continuou tocando.
Seu corpo languido sobre o meu me deixa satisfeito, mas a minha
mente já está em estado combativo me recriminando por não termos recorrido
à camisinha e por gozar dentro dela, mas se preciso mudar, prefiro começar
com o que mais causou mágoas entre nós.
— Você vai me perguntar se estou grávida, não vai? —
Lia pergunta, mas o tom da sua voz se mantém sereno.
— July e Aline, tem extensor para o banco do carro e enchem de
coisas para crianças — dei de ombros sem nenhuma explicação a mais e
ignorando sua pergunta.
Lia não disse nada, ouvi seu suspiro e senti o toque dos lábios
mornos sobre meu peito.
— Mikael?
— Sim, muito provavelmente terei ganas de fazer isto, porém me
esforçarei para não o fazer. Ok?
Ela assentiu e continuou calada acariciando meu peito com a mão
suave.
O tempo transcorreu com lentidão, sua respiração se tornou errática
e podia jurar estar a ponto de dormir, mas o celular em sua bolsa que estava
no chão do carro começou a tocar e isto nos trouxe para o presente.
— Preciso ir, Anjinho está viajando com Nina, mas ele me liga e
gosta de passar horas conversando antes de dormir.
Moleque de sorte — penso. Quanto a deixá-lo viajar com o
Santana, não me agrada, mas depois de um sexo tão espetacular, não quero
puxar briga. O que não significa que provavelmente farei em algum outro
momento quando me lembrar disto!
Erguemos em um acordo, nos vestimos sem constrangimentos, só
com risos sacanas e olhares cobiçosos. Uma vez Lia me disse, que somos
viscerais demais para agirmos como timidez e decoro, e tudo entre nós
sempre seria como detonar uma bomba.
É verdade.
Ela se ergueu nas pontas dos pés e deu-me um beijo, me perguntou
se queria uma carona, com ar maroto.
— Não precisa. Vim de moto, está do outro lado.
— Hum!
— Seu guarda-costas está lá fora e vai te seguir no carro dele. —
não consigo segurar o tom e ela me olha de esguelha.
— O que foi isso?
— O quê? — outra resposta inflexível.
— Esse tom, Mikael. O que foi?
— Não quero minha mulher andando colada em outro homem. —
respondo de má vontade. E ela ri.
— Temos de ter seguranças.
— Pois, agora ele andará colado no seu carro, não no seu traseiro.
— Eu não vou responder a isto, porque me fez gozar três vezes e
sinto que ainda estou no limbo.
— Só três? — pergunto e ela revira os olhos.
— Me reservo o direito de ficar calada.
— Ok! — a trago para meus braços e beijo novamente. — Nos
vemos amanhã?
— Sim!
— Me liga depois que colocar o moleque para dormir.
Ela meneia a cabeça, seu perfume com essência de orquídeas se
espalha mais uma vez à nossa volta, a abraço e deixo que entre no carro.
Lia não diz nada e tão pouco faço, existem momentos que não
precisam de palavras e não quero escorregar em meu gênio dominante e
acabar levando-nos a uma briga por qualquer motivo.
Nos despedimos. Ela segue em direção a saída de veículos,
enquanto vou até minha moto. Saco o celular do bolso e faço uma chamada
que é atendida no segundo toque.
— Ela já está no carro, consegue rastrear!?
— Você conseguiu fazer com que Lia aceitasse o seu presente? —
a pergunta tem o tom de surpresa.
— Tinha alguma dúvida do meu poder de persuasão?
— Nunca, deu até calor. — a voz debochada soa como um miado.
— Come gelo megera, que passa. Então está rastreando?
— Sim!
— E a câmera?
— Ok! Dentro e fora antes que pergunte. E já deletei a caixa preta,
não quero imaginar o conteúdo.
— Tudo bem! — subo na moto e ergo o capacete. — Obrigada por
me ajudar.
— Não há de quê, ovinho. Agora vai me falar porque a urgência
em trocar o carro da Pocahontas?
Titubeie, mas agora que está tudo bem, assim espero, consegui
falar em partes.
— Por vários motivos, o mais importante, — pauso — porque eu
queria.
— Se essa mentira é a melhor explicação que pode me dar, vou
aceitar. — Angélica replica.
Na verdade, é a única que daria a qualquer um. Menos pelo motivo
de ter recebido uma foto do seu carro sendo sabotado com uma ameaça
velada: devolva-me o que é nosso, ou receberá em pedaços a sua
mulherzinha.
Quando assumi o cargo como Promotor de Justiça, de igual modo
assumi riscos ao fazer a lei ser cumprida, ser ameaçado constantemente não
era um problema, até quase perdê-la pelas mãos de Verônica.
Meus inimigos não são suposições de uma louca que queira de
alguma forma nos sabotar. Estes são monstros reais, que matam sem fazer
distinção e nem Verônica e nem ninguém vai me tirar o que me pertence.
Não mais.
CAPÍTULO 22
INTRÍNSECO
“Honeste vivere, neminem laedere, suum cuique tribuere”
(Viver honestamente, não prejudicar ninguém atribuir a cada um o que lhe
pertence)
Direito justiça harmonia
LIA
U
m dos mais deliciosos privilégios de ter comprado o apartamento de Aline, é
que estando deitada em minha cama, enrolada em um fino lençol posso
observar o nascer do sol por sobre o horizonte. Este é um espetáculo digno
dos céus!
Um sorriso bobo está irradiando pelo meu rosto sendo acariciado
pelos raios tímidos que ultrapassam as cortinas de organza as sacudindo com
a brisa da manhã, que vem pelas portas abertas da sacada do meu quarto.
Durante a noite por não conseguir dormir, resolvi ler um pouco na varanda e
me peguei admirando a lua. Não sou uma pessoa poética e romântica, porém
não consigo parar de sorrir desde que deixei aquela garagem na noite anterior
e isto deveria me assombrar.
— Ah! — exclamo e minha voz é quase um murmúrio de tão
rouca. — Não tente se enganar, Lia Você não está exatamente assombrada.
Uma risada me escapa, ergo as mãos e cubro meus lábios evitando
que o som se propague. Espreguiço meu corpo sentindo e relembrando alguns
músculos enferrujados que se colocaram em ação e olha que não foi toda a
ação que ele gosta, mas…
Estico meu braço e alcanço o Iphone sobre a mesa de cabeceira.
Após deixar um bom dia para Anjinho com muitas imagens fofas que ele
ama. Desço o dedo pela tela e abro as mensagens que troquei com Mikael
durante algumas horas depois de nos separarmos.
Não foram nada santas e nem tão pervertidas, não falamos de nada
tão sério, mas nos deixamos levar por conversas dentro daquilo que sempre
gostamos, um pouco de tudo: esporte, carros, motos, viagens, leis etc.
Isto levou a boa parte da noite e quando não aguentei mais, me
despedi.
Deixei o aparelho de lado e espreguicei mais uma vez, geralmente
a está hora já estamos terminando de nos aprontarmos para irmos à escolinha
de Anjinho, e depois para o escritório. Gosto de chegar cedo e por ordem em
tudo antes dos funcionários chegarem, mas por estar de férias resolvi que vou
aproveitar esse tempo de verdade, por isto sem pressa fecho os meus olhos e
deixo aquele soninho da manhã ganhar terreno sobre meu corpo.
Posso sentir a mudança do calor, a brisa aquecer com maior
intensidade e sinto que realmente sou capaz de dormir de novo, mas um
barulho abafado e repetitivo me desperta.
Zum… zum… zum… são mensagens que fazem o aparelho vibrar
entre o lençol.
Minha risada foi estrondosa, não me lembro da última vez que ele
me fez rir assim. Não vou responder, pois, em meio ao áudio abafado percebi
as manobras com a moto para retirá-la da garagem, e ao encerrar o ronco do
motor me diz que ele já deva estar pilotando.
— Seu louco! — exclamo ainda com riso nos lábios ao soltar o
celular.
Completamente desperta e cheia de energia, resolvo me levantar
para cuidar das coisas, pela tarde vou ao escritório a pedido de Pedro, então,
vou aproveitar a manhã para arrumar a casa, ainda tenho “mudança” em
caixas no quarto da lavanderia para desempacotar.
— Não vou dizer que me masturbei em sua homenagem Promotor,
mas não nego que (pensei) muito em tudo! — respondo virada para o
aparelho sobre a cama, alço meu corpo e sinto uma pontada que vai do
clitóris até o mais profundo do meu sexo. — Putz, seu bruto! — grito ainda
olhando o aparelho e me sentindo corar.
Pelo amor de Deus, — resmungo.
Devo ter perdido um neurônio naquela garagem na noite passada,
só isso explicaria essas “coisas” que estou sentindo. De forma alguma acho
ruim sentar e me lembrar dele a cada movimento.
Depois de um longo banho e uma corrida na orla, o café da manhã
foi premiado com suco de frutas e um iogurte com granola. Realmente me vi
disposta a arrumar a desordem no “quartinho”, no entanto, duas mensagens
no celular mudaram meus planos.
A primeira veio de Carlos Eduardo, convidando-me gentilmente
para assistir com ele e Anderson o último julgamento do caso em que Mikael
estava trabalhando, pela tarde ele faria o encerramento.
O único problema era o horário que já estaria comprometido com
Pedro, pois junto às férias ganhei uma reforma em minha sala e ele queria
saber o que desejaria mudar ou se deixaria tudo como antes.
Respondi à mensagem confirmando que iria, mas chegaria mais
tarde.
A segunda mensagem era de Nina. De acordo com minha amiga,
meu filho estava soltando energia para todos os lados como se fosse uma
bateria Duracell, louco para falar comigo. Pedi a ela só alguns minutos para
organizar todas as caixas que tirei do lugar e já ligaria.
Na tradução leia-se, empurrar com os pés toda a tralha de volta ao
quartinho.
Levei meu notebook para o que deveria ser minha sala, mas se
converteu em uma sala de música abarrotada de instrumentos musicais,
sentei-me em uma almofada no formato de bolha no canto próximo à
varanda, abri às portas de correr para que a brisa e a maresia do mar
pudessem entrar em casa. Conectei na sala de bate-papo. A conexão via Wi-
Fi fez sua mágica e em alguns segundos a sala foi preenchida pelos
resmungos de Anjinho e a voz de Nina.
— Você queria falar com a mamãe, então vem ver ela. — Nina está
com os cabelos amarrados com um lenço no alto da cabeça, fazendo um
murundu de cachos glamourosos, os óculos de aros redondos estão
dependurados na ponte do nariz diminuto e pela blusinha dá para perceber
que ainda estão de pijamas.
— Bom dia! — digo com entusiasmo, minha amiga se volta em
minha direção e faz um sinal de STOP com a palma da mão.
Ela se ergue e logo depois volta com meu filhote no colo,
cochichando em seu ouvido e enchendo-o de beijos em seu pescoço o
fazendo rir.
— Oi! Amor da mamãe, que saudades! — exclamo emocionada e
meu coração se apertando no ato.
— Mamãe! — ele olha para a tela e depois foca seus olhos na
câmera. — Mamãe? Mamãe?
— Estou aqui amor, olha para a tela grande.
Anjinho enfoca seu olhar na tela e sorri com todo carinho, pela
câmera vejo se aproximar e sei que está dando um abraço na tela do notebook
de Nina, ouço os estalidos de beijinhos e faço o mesmo do lado de cá.
Smack… smack…
Ele dá gargalhadas ao ouvir os barulhos sendo reproduzidos, se
vira e puxa Nina pelo rosto para que ela faça o mesmo. Dou risadas ao vê-la
fazendo biquinhos e me mandando beijos, batendo as pestanas longas como
uma boneca.
— Hummm! Quantos beijos, me conta Anjinho, está gostoso
passear na casa da vovó Sol? — a mãe de Gio e Nina.
— Vovó Sol. — ele é um repetidor básico, nem sempre o faz, mas
quando se trata de nomes de pessoas ou o dele mesmo, Anjinho repete como
se precisasse assimilar para si mesmo quem é a pessoa, em base de
conversação ele é bem tímido, mas às vezes pode ser que se agite por algum
motivo e nem sempre é algo ruim.
Às vezes é só a inquietante fofura de uma criança normal de cinco
anos, louca para fazer uma traquinagem.
— Conte para a mamãe, tudo que você fez. — Nina olha por sobre
sua cabeça e sorri incentivando-o a falar.
— Oba! A mamãe quer saber, olhe para cima e me conta.
Ele encara a câmera e posso ver com nitidez seu rostinho, confesso
que faço o mesmo que ele e beijo a tela do notebook, arrancando uma risada
de Nina.
— Fala para a mamãe, o Anjinho nadou com o tio Gio na piscina,
— ele sorriu e fez um som com a boquinha juntando os lábios macios em um
biquinho.
Tchibum…
— Isso mesmo! Depois foi andar de bicicleta com o vovô Fefê.
O pai de Gio e Nina e me custa a acreditar, apesar de sempre
mimar meu filho, que aquele homem tão severo tenha deixado de lado o terno
e a gravata para fazer algo assim.
— Foi no parque com os tios Gui e o Estevão, o que mais?
— Nossa, meu amor, quanta coisa. Ah! A mamãe também quer
viajar e passar férias com vocês! — exclamei adorando ver as traquinagens
dele mexendo em tudo que está a sua frente.
Ele coloca os dedinhos indicadores juntinhos e o pressiona no meio
da testa como se estivesse se concentrando para falar, o que é um charme
natural dele.
—Anjinho comeu sorvete com a tia Nina, dormiu com a bolota e a
kiki…
Bolota é a gatinha da casa e kiki é a soberana canina em miniatura
que domina a todos.
— Mais o quê? — Nina pisca um olho e já sabemos que ele vai
literalmente fugir do seu interrogatório.
— Quero brincar! — Anjinho da mesma forma que se entusiasmou
a relatar suas atividades, enjoou e fez uma dança da cobrinha para sair do
colo de Nina.
— Vai brincar então depois vem falar com a mamãe, te amo bebê.
— Vou ver os pinguins!
Meus olhos se arregalaram e encarei Nina, está revirou os seus e
deixou que saísse do seu colo para correr de volta ao outro lado do quarto
que, na verdade, é um grande sótão na casa dos pais, no terceiro piso.
— O que seria isto?
Nina rapidamente explica que ele comoveu o avô Fefê com a
historinha do seu livro favorito, que ele fez questão de contar, e nisto o pai
dela, para agradar o menino comprou uma vasta coleção de filmes com temas
de pinguins, pijamas, camisas estampadas e várias pelúcias.
— Jesus! — levei a mão ao rosto, emocionada sim, mas pensando
onde colocar toda essa nova “coleção”.
Deixando de lado as fofocas de Sampa e os passeios, quis saber
como foi a consulta com a Fonoaudióloga, Psicóloga e o Pediatra que mesmo
a distância continuam dando apoio ao tratamento de Anjinho e não poderia
estar mais feliz com os resultados.
— Ele está ótimo, Lia. Foi surpreendente para eles a evolução que
está apresentando, mesmo à distância. Elogiou o trabalho dos profissionais de
Vitória e indicou uma clínica no centro, dois médicos da clínica daqui se
transferiram para lá no mês passado.
— Uau, isto é ótimo, estava preocupada. Conversou sobre a
questão da escola, o que está acontecendo?
— Sim, eles passaram um bom tempo com ele, sabe como funciona
e Anjinho, não se queixou nenhuma vez, acredito que sair da rotina, desta vez
foi bom.
O alívio que desceu sobre meu peito é bem-vindo, não queria
pensar que qualquer coisa externa pudesse atrapalhá-lo de alguma forma, mas
que tudo está bem, só me faz sentir gratidão para com Deus.
— Mas… — a pausa longa e tom mais baixo na voz me deixa em
alerta.
Sinceramente hoje é o dia de ficar em suspense com tudo e todos?
— Mas, o quê?
— Anjinho, se queixou de saudades da Fadinha e tive de falar
dessa relação. Tem pretensão de ir até ela?
—Oh Deus! Claro que sim, farei isso no meio da semana, tenho
alguns compromissos e depois vou ao conservatório.
— Fico feliz.
Nina me mostrou pelas câmeras os laudos médicos, mas depois
disse que escanearia e enviaria por e-mail, o que de fato agradeci.
Falamos sobre ela um pouco, muito superficialmente, assim como
Giovane, minha amiga tem o dom de se manter imparcial e quase sobre a
superfície quando o assunto gira à sua volta.
A nossa conversa não se alongaria muito, por ter outro
compromisso, por isto quis que ela chamasse Anjinho, que estava se
divertindo em algum cantinho do sótão, mas Nina se recusou com meneio
lento de cabeça e aquele olhar escuro estreitado em minha direção.
— Bom, falamos de tudo e todos, agora vai me dizer, onde estava
àquela hora da noite, senhorita? — ela sorri com malícia. — Porque viada, a
sua pele está resplandecente!
Sinceramente não saberia o que responder por isso tentei dar de
ombros e fingir literalmente que não era comigo a pergunta, mas seria um
esforço inútil esconder qualquer coisa, afinal além de voltar para casa em
alguns dias, nós moramos junto. Ela melhor que ninguém sabe da minha
relação-não-relação com Mikael.
— Estava em uma reunião com o Promotor — o fato de usar a
profissão para indicar quem seja, é justamente para não chamar a atenção de
Anjinho.
— Mesmo? Está reunião foi calorosa? — ela gesticula com as
mãos e ri de forma sacana.
— Sim! Curiosa, foi intensamente calorosa.
— Opa! Essa é uma informação quente, excitante, mas o assunto
que concerne as partes, como ficou?
— Sabe que ainda não posso expor tudo, ou veremos um Promotor,
amarrado em camisa de força dentro de uma salinha de 4m × 4m, acolchoada.
— Lia, sinto por ser difícil, mas fico feliz por darem um passo em
direção a algum lugar.
— É exatamente isso que está acontecendo Nina, um passo em
direção a algum lugar, não resolvemos todas as coisas do passado e tão
pouco, as que julgo como futuro, mas estamos tentando mover as fichas do
presente.
— É um jogo de xadrez e perigoso demais.
— Sim! Muito, tem noção de que com ele pode perder tudo?
— Ou ganhar amiga, o não, nós sempre teremos, é provavelmente
uma das leis de Murphy.
— O que tiver de dar errado, dará? — pergunto.
— Não, a males que vem para o bem. Talvez agora você seja capaz
de falar em voz alta o nome do — ela gesticula com os lábios e posso ler
perfeitamente o que diz. — O nome do pai do seu filho — em voz alta, vai
admitir para si mesma quem ele é?
— Eu nunca fiz isto, não é? — pergunto tomando consciência da
minha auto negligência.
Ou minha única ferramenta de sobrevivência.
— Nunca. Estou ansiosa por ouvir isto. — Ela sorri com carinho e
ergue um fio de fone no ar. — será libertador, Lia. Por que não experimenta?
Pauso um instante e me reclino contra a bolha macia, meus olhos
vão de encontro o céu azul que observo pelas vidraças e meus olhos marejam
com as benditas lágrimas represadas.
Nina suspira e sua voz vem cálida pelo alto-falante. — Não é uma
pressão, mas veja, você decidiu ir adiante, quer tornar algo necessário real,
mas não se permite libertar? O que falta?
— Coragem. — Me surpreendo ao ouvir-me falar. — Falta me
perdoar, Nina.
— Do quê?
— Do mais importante. — pauso, não quero dizer tudo, porque
considero que isto teria de ser uma conversa entre mim e Mikael, no entanto,
me vejo destravando algumas trancas mentais e me dou conta que meus
lábios se mexem por si só.
— Quando fui embora e deixei tudo para trás, me fechei demais,
sofri o suficiente para que isto acontecesse e ao voltar, já era outra pessoa —
pauso. — Minha única vontade diante da minha nova realidade era odiar
profundamente a todos. Desde os meus pais até a grama que crescia no
jardim. Ele então? Nem se fala.
—Você teve motivos.
— Não me recusei a usar cada um deles para isto, não é mesmo?
— sou sarcástica. — Meses após ter voltado, recebi uma ligação de Aline, se
lembra? Ela me pediu para ser sua representante legal na questão das suas
filhas com Edu e — tranco o ar no pulmão inflando-me ao lembrar de como
meus sentimentos e pensamentos estavam na altura. — Voei na mesma hora
cheia de sangue nos olhos, fiz o melhor acordo para minha amiga e arranquei
um valor exorbitante dele, na hora nem passou pela minha cabeça que Aline
estaria abandonando as filhas; — olhei para Nina. — Não questionei sua
atitude moralmente, como teria feito em uma situação que não estivesse cega
de ódio, Nina! Isto é uma das coisas que me culpo, pois, deveria ter
interferido e a impedido de abandonar as filhas.
— Contudo, a males que vem para o bem, July é uma mãe
maravilhosa para elas, e se não fosse Edu enlouquecendo com as gêmeas, ela
não teria entrado na vida deles, e não seriam essa enorme família Dó, Ré, Mi
feliz…
— Me daria por satisfeita se fosse só isso.
Minha garganta se fecha e a sensação de fragilidade me deixa
irritada, ergo meus braços, levantando os cabelos pela nuca e faço um coque
no alto da cabeça com um nó.
— Lia…
— Quando entrei naquele escritório e vi quem representaria o
Carlos Eduardo, meu mundo ruiu de todas as formas possíveis, Nina. Após
dez anos vê-lo, só havia uma única coisa a dizer um ao outro, e era:
apresentar armas.
Nada poderia parar as ofensas, as disputas, os joguinhos de
palavras com duplo sentindo, usamos os problemas dos nossos amigos para
cavar em volta do nosso, pois do mesmo jeito que não me importei em
impedir a Aline, ele fez questão de tirar oficialmente as filhas dela, e fez de
uma forma grotesca, e eu concordei.
— Era o que Aline queria.
— Ela dizia querer isto e, não vi mal algum em acatar. Só queria
ferir a todos eles.
— Foi nessa data que…
— Sim, — suspiro —, foi na última audiência, antes de assinarmos
os termos, que tivemos uma briga horrenda e praticamente nos colocaram
para fora do Fórum, e não me pergunte como acabamos no primeiro motel
que vimos no centro.
— Uau?!
— Ah, sim! Uau, sem flores, sem jantares e muito menos um rolê
de mãos dadas.
Ri e desta vez foi mais de vergonha que dor.
— Eu nunca entrei em um motel na minha vida, mas fui lá com ele,
briguei e transei com ele. O melhor e o pior sexo da minha vida.
— Mas isto te deu algo maravilhoso… — O sussurro de Nina me
faz derramar de verdade, as tais lágrimas.
Com tapas sobre a face as expulso do meu campo de visão e encaro
minha amiga através da câmera.
— Sim, mas como sempre tem um, mas… lembra como voltei
destruída para São Paulo? Eu estava devastada Nina, de uma forma que
queria morrer.
— Não me lembre disto!
— Pois, aqui reside em mim a culpa. — Nina sacode a cabeça e os
cachos dançam a sua volta, mas não dou importância e continuo a falar com
toda a minha flama explodindo pelas narinas. — Na altura, estava tão
saturada, magoada e tão impelida na minha dor, que deixei de comer, e só
trabalhava, loucamente, por quase sete dias sem sair do escritório.
— O que jamais permitiria se fosse hoje.
—Você não permitiu, no primeiro lapso de cansaço me colocaram
para dormir, não foi? — ela dá de ombros. — Mas, depois voltei a toda carga
e desta vez, não tinha IV na veia, não tinha garrafinhas de água se
acumulando pelo chão, não tinha ninguém que me fizesse querer viver.
E nesse tempo passados quase uma semana o colapso real veio e
fui internada às pressas, à beira de uma inanição, desidratação profunda,
privação de sono, estresse e tudo que poderiam alegar.
— Me tornei uma morta viva!
— Eu estava lá, caramba! Não quero lembrar.
— Contudo, não posso esquecer! Foi em meio àquela quantidade
insana de fios conectados ao meu corpo e o desejo de morrer de tristeza,
apareceu uma médica possessa correndo em minha direção, balançando uma
folha como louca na minha cara, gritando, me sacudindo para acordar, —
Nina secou as lágrimas, mas não desviou o olhar. — Ela dizia: porque não
quer viver, tem um milagre agarrado às suas entranhas tentando sobreviver!
Deus meu! Levo minhas mãos a boca segurando o café da manhã
ao me lembrar disto, meu corpo estremece e quase que o notebook vai ao
chão.
— Me diz Nina, por que eu não reagia?
—Você reagiu, Lia. Saiu do CTI no dia seguinte.
— Não! Você não entende, enquanto meu bebê estava dando início
ao ciclo da sua vida, a mãe dele, quem deveria dar suporte, alimento e abrigo
estava destruindo seu casulo, tentando se matar! — gritei.
—Você não fez isto, você o guardou e trouxe ao mundo.
— E ele… Meu Deus! Ele…
— Ele é normal, tem saúde, é lindo e muito feliz Lia! Não se atreva
a voltar para essa loucura de pensar que a culpa é sua.
— Ele nasceu prematuro.
— Porque era para ser.
— Machuquei meu corpo. Imagina — sussurro e ela para me
olhando.
Respiro agitada e com minhas mãos tremulas toco a tela. — Só
imagina, o que Ele faria comigo, o que Ele fará, quando souber que não
queria ser pai, mas é. E que eu, quase matei o filho dele.
— Bendito Jesus! Liana, não fala uma coisa destas. É mentira.
Você é a melhor mãe que já conheci, mil vezes, melhor que a minha que me
abandonou. Por favor, não faça isto.
—Você queria que admitisse? Ok! — falo de supetão. — O Mikael
Nikolaievitch, é o pai do meu filho. E quer saber o mais chocante, como foi
que nós o fizemos? — Não me importo dela sacudira a cabeça em negação e
continuo externando tudo com a voz alterada.
— Dizendo um ao outro o quanto nos odiávamos. Olhando nos
olhos um do outro, naquele quarto de motel que nem sequer sei onde fica,
repetindo a todo momento o quanto nos odiávamos.
Silêncio
O mais denso, duro e concreto silêncio. Aquilo que nunca disse a
ninguém nem mesmo tive coragem de admitir em voz alta, acaba de sair dos
meus lábios, sem freio, sem barreiras.
De fato, algo parece que foi arrebatado do meu peito, o Band-Aid
que estava tampando a ferida foi arrancado, o medo e um dos motivos pelo
qual jamais cogitei contar a Mikael, que ele é o pai do meu filho acabou de
ser exposto para mim mesma em alta voz.
— Melhor? — a voz de Nina me puxa a realidade.
— Melhor?!
— Sim, o sufocamento, a dor é inevitável, mas sente que um peso
saiu das suas costas? Você acabou de suspirar com alívio.
— Acredito que sim.
Ou talvez não, mas não quero realmente ponderar mais nada neste
instante.
— Então aproveita a caçamba de entulho passando e joga fora essa
merda de culpa, pois não tem nada disto acontecendo aqui. Você é uma mãe
incrível, com um filho maravilhoso e o Promotor será uma pessoa
inexplicável, quando estiver pronto.
— O que te faz pensar isso Nina?
— Porque, todas às vezes que você disse que o odiava no passado,
eram mentiras que contava para si mesma e tenho certeza de que de igual
modo é com ele, — ela sorri, — Ou o homem de hoje, não é o mesmo de
antes?
Em partes sim, em outras não. Ele é alguém quem quero descobrir
e experimentar tudo em minha vida, com certeza.
— É uma ótima amiga Nina, mas não sei se posso.
— O k.c.t., que não pode. — Ela evita falar palavra próximo de
Anjinho e isso me faz rir. — Tanto pode que já começou. Estou esperando,
sem gritar com um belo sorrisão, me diz: quem é o pontinho, pontinho,
pontinho do pontinho?
— Ridícula! — suspiro, fecho meus olhos por um momento e
deixo a imagem do meu anjo mau vir a frente da memória com aquele olhar
azul acinzentado me entorpecer. — O pai do meu filho é o renomeando
Promotor de Justiça, Mikael Nikolaievitch.
— OH MEU DEUS! — Nina grita e bate palmas de forma
ensandecia e só posso sorrir para ela.
Realmente sinto que algo está esvaindo do meu peito como se um
balão que me sufocava estivesse se esvaziando.
— Ótimo! Agora é só seguir o plano.
Anjinho atraído por toda a bagunça de Nina, volta para seu coloco
e foca sua atenção no teclado, Nina muda a forma da imagem e ele passa a se
ver em tela maior. Em silêncio do lado de cá, observo meu filho rindo e
brincando, mudando seu foco para a câmera, quando Nina explica que ali é
onde se projeta a imagem.
Sim. Agora é seguir o plano, como ele mesmo pediu, pouco a
pouco. Mikael precisa de tempo para diferenciar preceito de realidade.
Entender o que é uma possibilidade do que realmente será efetivo e
para sempre. Essa é uma porta, que depois de aberta não poderá ser fechada e
qualquer coisa que façamos um ao outro, pode machucar alguém inocente. —
Sorri e relanceei meus olhos para Anjinho, que continuava a encarar a câmera
do notebook, com olhos tão azuis acinzentados como do pai.
— A mamãe ama o Anjinho! — exclamo alto quando Nina retira
os fones.
— O Anjinho ama a mamãe! — ele responde sorrindo com todo
entusiasmo.
— Ah! Será que esse Anjinho, tem um pouquinho de amor para a
tia Nina?
Ela fez cócegas nas laterais do corpinho fazendo com que a nossa
ligação se enchesse de gargalhadas infantis. Seu rostinho rechonchudo com
pequenas sardas a volta do nariz corou, e os solavancos que deu no colo de
Nina fizeram o cabelo lisos no tom raro e intenso de ruivo se espalharem para
todos os lados.
— Anjinho… — ele gritou — hahaha — o Anjinho ama a tia Ni-
nina.
Nina deu beijos em suas bochechas e me senti ciumenta por não
poder fazer o mesmo, mas foi apenas um segundo, pois em alguns dias
poderei encher meu filho de beijos e muitos abraços.
Ele suspirou e voltou a encarar câmera e se vendo em tela maior,
seus olhos brilhantes fixos nos meus sem que tivesse consciência disso então
como a cada dia desde que foi concebido, surpreendeu-me com sua natureza
celestial. Arrancando nosso fôlego de uma só tacada.
— Anjinho ama o MAH.
INTUITO
“Fiz essa canção simples pra dizer
Tem coisas que só Deus pode responder pra nós”
Thaeme e Thiago —Beautiful
MIKAEL
C
omo previsto no dia anterior depois que o julgamento foi encerrado, uma
chuva de repórteres aguardava do lado de fora para uma coletiva de imprensa,
mais alguns veículos de comunicação, até poder me desvencilhar de todos e
estar livre para ir atrás de Lia, era tarde.
Anderson e Edu ficaram comigo e juntos comemos um podraõ[9] na
barraquinha da esquina, como sempre improvisávamos após o trabalho, não
houve chacotas e nem perguntas sobre ter roubado um beijo de Lia, nem o
“anúncio sobre namoro”. — isto me faz rir. Eles sabiam que o caso, foi
indigesto por vários motivos, por isso ficamos conversando apenas dos
acontecimentos e do sucesso na sentença.
Depois de nos despedirmos, segui para casa, sempre consciente dos
seguranças fazendo seu papel de bolha protetora me seguindo de perto. A
sequência foi simples: banho, rega obrigatória das minhas orquídeas, um
pouco de exercício em um dos quartos no segundo andar feito de academia,
leitura de alguns processos, até sucumbir a vontade de ouvir a voz dela.
Porém, conhecendo-a como faço, preferi evitar que encrespasse por conta de
expor-nos diante de nossos amigos sem aviso, e para evitar qualquer
problema, enviei uma mensagem antes de capotar.
— Está tudo bem, Promotor? — a voz adoçada da senhora Marta
tirou-me das minhas reminiscências.
Ergui meus olhos dos muitos arquivos sobre a mesa em meu
gabinete no prédio da Promotoria. A senhora Marta Martins, foi secretária do
meu pai quando ainda era vivo desde o início do escritório, depois passou ser
a minha assistente e quando deixei o escritório para assumir o gabinete a
trouxe comigo.
Ela esteve nos melhores e piores momentos, testemunhando toda a
nossa trajetória, as brigas, as recusas, a dor com a perda dos pais e
obviamente, sabia o que de fato Lia representava para mim, e o que houve no
passado.
— Promotor? — a risada baixa combinada com sua aparência de
senhorinha me alcança. — Vou ficar falando com as paredes? Se for o caso,
darei meia volta porque tenho o que fazer.
Rindo da sua língua afiada, dei sinal para entrar e indiquei que se
sentasse a minha frente. Os cabelos escovados em ondas no estilo anos 70
com frisos brancos entremeados ao castanho escuro balançaram ao jogar os
ombros finos para trás. A blusa de seda cor-de-rosa, por baixo do terninho
preto combinado com calças, é elegante. Dona Marta, deve ter cerca de 1,60
de altura se não menos, as sapatilhas confortáveis de bico fino, completam o
traje, mas o que gosto é a forma engraçada de pousar os óculos na ponta do
nariz e olhar-me desconfiada vez sim e outra também, como se ainda fosse
um menino traquinas.
— Dormi relativamente bem até perder o sono, — ou seja, mais
pesadelos — penso — contudo, estou bem só pensando em algumas coisas.
O que tem aí para mim?
— Pensando em algumas coisas ou em alguém?
Soltei uma risada e logo, voltei a minha expressão “sem
comentários”, mas geralmente não funciona muito com alguém que o
conhece a vida toda.
— Não é relacionado apenas ao trabalho pelo visto. — ela cutuca o
queixo com dedo magro. — De certo que tem a ver com a senhorita Lia?
— Geralmente não é tão curiosa.
— Geralmente o senhor não é de faltar, ou de arrebentar uma porta
de armário por frustração, e nem é de rir atoa como se estivesse vendo
passarinhos verdes. Isto só acontece quando, Ela está envolvida.
— Me diz: por que inda não a fiz se aposentar?
— Porque ainda não fizeram um clone da minha eficiência.
— Modesta.
— Aprendi a me expressar com o senhor.
— Ok! — me rendo. — Não estou confirmando, mas…
— Ah! Que maravilha, podemos mandar a sua assistonta embora,
agora?
— Não entendo a implicância com minha assistente. A Senhorita
Mendes é eficiente e não me causou problemas. — refiro-me ao fato de
aparecer nua em cima da mesa pronta a ser comida. Ela pode ter usado seu
charme e feito muito para chamar minha atenção, mas até então não
ultrapassou a linha.
— Se me lembro bem, a senhorita dos Anjos não suporta
determinadas coisas, e como disse antes, aquela matéria…
— Eu imagino! Vamos deixar isso de lado por enquanto, quero
focar no que tem em mãos. Posso?
Pergunto e indico o envelope. Com olhos estreitados fita-me,
balança a cabeleira e faz um gesto com a mão livre.
— Se assim deseja, mas acredito que o fará em breve. — Ela
sorriu. — Aqui está o que me pediu, — ela pausa com ar contrito — e,
mandato que solicitou.
— Cacete! — exclamo jogando-me à frente tomando o papel em
mãos.
Com a constância das ameaças seja por cartas, ligações, mensagens
e e-mails, sempre há em curso uma investigação para saber de qual fonte é
proveniente. No entanto, há quase um ano a insistência desse mesmo Cartel,
dificulta as coisas para nosso trabalho; desde que prendi o Chefe e resguardei
com a ajuda da Megera a ex-esposa e filho, minhas únicas testemunhas de
peso, as ameaças deixaram de ser verbais e começaram a surgir problemas
sérios aqui e acolá.
Como se me preocupar com Verônica, não bastasse. Por isso,
apertamos o cerco e finalmente rastreamos um dos IPs usados para enviar e-
mails e a mensagem com mídias. A princípio a área nobre localizada mostrou
ser um problema, conhecida pela quantidade de políticos, juízes e alguns dos
empresários mais ricos de Vitória residirem, no entanto, a lei, a que se preze e
faça valer, não pode ser barrada diante de fatos e provas reais.
— Não posso acreditar, que finalmente conseguimos, — expresso
ao ler o mandato —, entre em contato com comandante Caleb, de certo ele
fará a busca e apreensão e quero estar junto.
— Já fiz isto, — ela se adianta e me entrega outra folha com todos
os dados. — Ele já está ciente e o aguarda em uma hora nessa localização,
contudo sabe o que penso disto, é perigoso e desnecessário se pôr na linha de
frente.
— Compreendo seus medos Martinha, mas isto é muito importante.
É pessoal! — afirmo encerro qualquer argumento em relação a isto.
Dado as circunstâncias os meus planos para o dia foram
completamente alterados visto que não perderia esta ação. Coloquei todos os
que trabalham em minha equipe no gabinete da Promotoria em alerta.
Distribui as tarefas e dei por encerrado ali o dia. Antes de me pôr a cargo do
comandante e sua equipe, enviei duas mensagens, e para às duas recebi
respostas tão satisfatórias que me injetou de um ânimo renovado.
Dois pesos e duas medidas, esta parece ser a fórmula mágica para
lidar com as mulheres que rodeiam minha vida.
Os acontecimentos envolvendo toda a operação da força tarefa que
foi conduzida pelo comandante em serviço Caleb Dias, ao mesmo tempo,
com a equipe responsável para que se faça cumprir uma ordem judicial,
poderia ser narrada como uma cena de filme de ação.
Após encontrar-me com eles no ponto marcado, deixei minha moto
no subsolo de um estacionamento privativo, e subi em um dos SUVs que
fariam a guarnição monitorada.
As recomendações do comandante sempre são as mesmas, quase
me fazem acreditar que ele tem a porra de uma queda romântica por mim, um
ponto de comunicação foi adicionado no meu ouvido direito, enquanto ele
literalmente me ajudou a vestir o equipamento, sempre rosnando em meus
ouvidos.
— Olhos atentos — paletó, gravata e todos os acessórios foram
removidos — coloque o colete Kevlar a prova de balas, — repassamos todo
o plano de ataque — fique longe da cena, —testamos o ponto de comunicação
e paramos na esquina da rua a ser interceptada. — O senhor é só um
observador, não a porra de um herói!
Após envolver meu peito com o aparato e sentir as presilhas de
velcro serem conferidas duas vezes pelo homenzarrão a minha frente, dei um
passo atrás impedindo-o de revistar minhas costas, ou acharia a 9 mm
escondida sob a camisa social solta por sobre o cós das calças.
— Comandante está tudo bem, não é minha primeira vez.
— Está armado Promotor? — a voz é impaciente.
Caleb é quase da mesma estatura que eu, perdendo aí talvez por
uns cinco a sete centímetros, mas o físico não deixa nada a desejar. Como
comandante das forças táticas é um homem centrado, muito dedicado e um
puta cara responsável, que jamais deixa furo em suas ações. Extremista nas
operações e por isto sempre que posso optar por quem trabalhar, ele é minha
primeira opção, além de nos conhecermos há muitos anos.
— Estamos perdendo tempo com amenidades, — informo
empurrando sua mão —, seus homens já estão impacientes.
— Porra Mikael, está ou não armado? — o grunhido me irrita, mas
aqui não sou o líder e sim ele, além claro da sua obstinação como a
responsabilidade de obter sucesso na operação, Caleb é o baterista da minha
banda e isto nos torna muito chegados.
Levo minha mão a nuca e passo os dedos de forma enérgica pelos
cabelos bagunçando-os.
— Preciso responder?
— Porra! — ele pausa e olha em volta. — Não use sua arma, está
me ouvindo? Fica longe da cena e não use sua arma, ou vai foder com tudo.
— Sei exatamente o que posso ou não fazer, no entanto, não viria
sem me sentir seguro.
— Pra isso, a loira do caralho já meteu os bonequinhos dela aqui!
Seguro o riso e mantenho a carranca, outro detalhe porque gosto de
trabalhar com Caleb, o idiota viu Angel uma única vez, quando fizemos o
resgate da minha testemunha e literalmente caiu de quatro pelo gênio do cão
que a Megera dispensou a ele.
Ouvimos um raspar de garganta e logo um dos meus seguranças,
Jairo que particularmente creio que ser muito parecido comigo de forma
proposital — como chamariz — por parte da Megera, se apresenta e com
poucas e efusivas palavras explica que Angel, não apenas os designou para
minha segurança, mas também equipamentos para uma ajuda extra.
Ele tem nas mãos uma bolsa de lona preta que apoiou sobre o capô
do carro, ao abrir mostrou um micro e uma tela menor, uma caixa em forma
de maletinha, além de outros dois teclados que pareciam ser para a tela menor
e o objeto na pequena maleta. — Com os cumprimentos da senhorita
Campus, tenho um detector de calor corporal, isso nos mostrará, onde tem
sinapses de calor e cerca de quantas pessoas temos na residência.
— Sabia, após ver a loira do caralho arrebentar a porta com uma
caneta explosiva, não esperaria nada menos.
Jairo deu um sorriso e dois toques na maleta.
— Ela mandou algumas para o senhor comandante.
— Porra! — Caleb passou a mão pela cabeça raspada, mas sem
comentários.
De homem para homem, nem preciso saber o que se passou na
cabeça dele.
Com auxílio de Jairo nos posicionamos e ele fez uma varredura da
casa.
— Vejam — ele mostrou na tela do que parecia ser um tablet um
pouco mais robusto. — Temos a captura de oito temperaturas diferente,
sendo que duas estão em outro cômodo e parecem se manter juntas.
— Um casal? — Caleb perguntou.
— Não, vê a sombra senhor? Está bem menor.
— Uma criança? — pergunto sentindo um aperto no estômago.
— Não posso afirmar, somente dar a prévia localização, que pode
mudar de acordo com o desenrolar da abordagem.
— Mesmo que ocorra já é um ganho, sabemos quantas pessoas tem
na casa e quantas estão no cômodo principal.
— Diz a loira, que quero agradecê-la pessoalmente. — Caleb deu
um tapa forte sobre o ombro de Jairo e se não fosse pela estrutura maciça do
meu guarda-costas ele teria caído de cara sobre asfalto.
Dado todos os comandos a cena se desenrolou amplamente à nossa
frente. A mansão localizada em um bairro nobre não parece um ponto
suspeito, de forma alguma. Jardins cuidados, casa de dois andares bem ampla
com pé direito alto fechado em vidro com cortinas brancas postas de modo a
bloquear qualquer visão.
— Estou achando isto estranho. — Comento olhando para direita,
vendo no final da rua duas motos serem paradas pelos oficiais que colocaram
dois SUVs, virados a modo de barreira.
— Não tem nada mais estranho do que isto, é um fato, porém foi
aqui que a investigação nos trouxe, correto? — a voz tensa à minha frente me
faz calar.
Olho o comandante que repassa com as mãos os sinais de
comunicação com sua equipe. Ao meu lado dois dos seguranças de Angel,
Jairo e Aylton que mantém olhos atentos e mãos nos coldres na lateral do
corpo, a cerca de três metros do outro lado do carro à paisana que foi
estacionado propositalmente por um dos oficiais, estão mais três homens
altamente paramentados e armados.
A minha frente o comandante junto a dois agentes e o oficial de
justiça atravessam a rua tranquilamente. O oficial tocou o interfone da
mansão, por duas vezes até que um homem moreno trajando calças jeans e
um moletom azul-marinho apareceu no gramado de longe.
A conversa foi uma réplica de praxe, mas percebo a tensão que se
desenrola nos participantes.
— Bom dia, sou oficial de justiça e estou aqui para entregar um
mandato ao senhor Enrique Sintra. — Proprietário da casa e “dono” do IP
utilizado.
— Ele não está aqui, é o dono da casa. — Bingo.
A voz do homem não é muito alta, mas tem um arrasto de sotaque,
mesmo que seja leve quase imperceptível para alguém que tenha uma boa
audição, mas não para mim. Não me gabo e nem faço uso disto em minha
área atuante, mas ter o ouvido absoluto me faz notar e perceber características
nos sons que passam despercebidas a outros.
— O senhor poderia vir aqui e abrir o portão por favor, temos um
mandado de busca e apreensão.
À medida que o oficial dizia que o rapaz deveria vir recebê-los o
nervosismo dos oficiais se tornava claro, mas por algum motivo o jovem
disse que buscaria as chaves. Ele deu meia volta na pilastra que recobre
parcialmente a porta por onde passou e sumiu.
Toquei meu ponto no ouvido e quebrei um dos protocolos de
Caleb, abri uma comunicação sem sua autorização.
— Comandante, posso estar imaginando coisa, mas isto está muito
estranho, parece fácil demais e muito…
— Alguém subiu ao segundo andar! — a voz de Jairo me
interrompe e, ao mesmo tempo, Caleb responde.
— Suspeito? — ele inqueriu ao mesmo tempo, enviando ordens em
uma tática diferenciada.
Contudo, não houve tempo de que isto acontecesse, pois, o
primeiro tiro veio tão fulminante que o vidro do carro que nos servia de
escudo explodiu antes que pudéssemos agir.
— Porra! Isso é uma cilada, abaixa! — o grito do comandante veio
alto e claro.
De imediato senti meu corpo mergulhar no chão com o peso de um
dos homens á minhas costas, logo em seguida os oficiais abriram fogo; o
espocar das balas ricocheteando por todos os lados foram ensurdecedores.
Ergui minha cabeça a tempo de ver o oficial ser empurrado para o
lado atrás de um muro da casa vizinha e logo em seguida Caleb se apoiar de
lado no portão e pela fresta mirar o segundo andar de onde a maior parte dos
tiros disparavam por outro homem moreno de cabelos escuros como o
primeiro, porém mais longos até os ombros, vestindo jeans e um moletom
que parecia ser preto à distância.
Levei minha mão até a cintura, mas antes de tocar a arma, um
único tiro seco derrubou o indivíduo do parapeito, fazendo-o estatelar na
grama do jardim.
Provavelmente deveria ser uma espécie de líder, pois bastou que
caísse para gritos e xingamentos em espanhol estourassem de dentro da casa,
dois outros meliantes vieram para cena portando dois Fuzil AK 47[10].
—Puta que pariu! — exclamou Jairo. — Esses desgraçados estão
preparados para uma guerra?
— Sai de cima, porra! — aproveitei a distração do homem, retirei a
arma do coldre às costas e fiz mira.
— Não Promotor, volta para o chão!
O homem nem fez caso de que poderia tomar ou me fazer atirar,
em mim mesmo com movimentos preciso e de muito treino o filho da mãe
me desarmou e se jogou sobre mim. Aylton o segundo segurança puxou a tela
e gritou nos comunicadores que dois estavam saindo pelo outro lado da casa,
nisto um terceiro veio se juntar a outros dois, mas um dos oficiais conseguiu
uma mira boa e desferiu um tiro certeiro no meio da testa.
— Menos um! — gritaram.
— Menos dois! — outro grito.
Não demorou muito, pela visão parcialmente bloqueada vi dois
novos personagens correndo em nossa direção com capacetes postos e
empunhando armas, pelo tamanho de um deles posso quase jurar ser
Angélica.
— Parado! Mãos sobre a cabeça!
A voz do comandante Caleb sou alta e clara, tudo foi muito rápido
o portão estava com a tranca estourada e um dos meliantes estava virado de
costas no chão com as mãos sobre a cabeça, enquanto os outros três
permaneceram tombados e dois deles em má posição indicando a morte certa.
— Inferno! — resmunguei, mas ainda não pude me libertar, pois,
duas evidências de calor permaneceram onde estava e enquanto não houvesse
uma averiguação nada poderia ser feito.
Rapidamente os homens invadiram o perímetro, com ação rápida
deram busca pela casa e seguiram para os fundos onde constataram que os
dois marginais escaparam pelo muro da casa caindo em uma pequena reserva
florestal atrás do lote.
Às duas figuras que vieram em nosso auxílio permaneceram a
cerca de três metros junto a outros oficiais esperando autorização para
avançar.
Assim que o oficial saiu de dentro da casa chamou com urgência o
comandante que entregou o bandido após dar ordem de prisão a um
subordinado e adentrou a casa, para em seguida sair fazendo um gesto
nervoso para que pudesse entrar com ele.
Sem perda de tempo me livrei de Jairo e corri em direção a casa.
— Mikael! — ouvi o grito abafado e não tenho mais dúvida, uma
das figuras cobertas de preto e capacete é Angélica.
Assim que entrei na casa tive a certeza de que era aqui o centro de
comando da facção que Dela Cruz geria no território brasileiro, ou ao menos
parte dela. Além de restos de comida em várias embalagens descartáveis,
muitas armas, malotes de dinheiro, drogas em caixas espalhadas no piso de
mármore há uma infinidade de celulares sobre a mesa baixa de vidro no
centro da sala, mais três notebooks.
— Porra! Isso sim! São provas incontestáveis.
— Acredito ser mais que isto Promotor, dê uma olhada nessa tela.
— Caleb apontou com a cabeça.
Caminhei até seu lado sentindo meu corpo trêmulo, segurei o
fôlego até o esterno arder com a pressão. Uma foto de Lia segurando uma
criança no colo, com as perninhas e os braços curtinhos, agarrado em sua
cintura e pescoço, me fez cambalear.
A foto parecia ser recente, pois me lembro o dia em que estava com
esta roupa, foi o mesmo que brigamos no escritório. Na imagem Lia está
saindo de dentro do elevador na garagem do seu prédio, a criança com
agasalho está com um boné que esconde totalmente a cabeça, e o rostinho
enterrado no seu pescoço, no rosto ela tem um sorriso e olha para cima, como
se estivesse apreciando a lâmpada sobre sua cabeça.
— Que filhos da puta! — exclamo sentindo o chão aos meus pés
trepidar.
— Calma cara, vamos pegar todos eles! Já passei o comando e um
destacamento desceu atrás dos filhos da puta. — Caleb fala enquanto aperta
meu ombro com força. — É a sua mulher, não é? Não tivemos muito contato,
mas jamais me esqueceria da morena, é a Lia?
Olho para ele e só confirmo com manear sutil de cabeça.
— Porra cara, fica calmo, tenho certeza de que vamos capturar
esses filhos da puta antes de o pôr do sol, — ele me fez olhá-lo —, é uma
promessa meu irmão.
— Faça isto!
Olho mais uma vez para a imagem e uma urgência avassaladora me
corrói de uma forma que me tira o ar, tenho vontade de sacar o celular só para
conferir onde ela está, mas após conviver com o lado secreto da Megera,
descobri que câmeras e microfones escondidos são essenciais para uma vida
toda. E pela parafernália moderna que está sobre essas mesas, não me
surpreenderia que estivessem nos observando agora.
— Tem mais, e isto aqui vai fechar seu caso Promotor.
Olho de esguelha para a porta aberta que ele aponta, onde dois
oficiais se mantêm de pé em guarda. Não penso duas vezes marcho com
passos firmes invadindo o local pronto a esmurrar qualquer filho da puta que
esteja lá até arrancar dele toda informação que necessite, mas paro
abruptamente ao dar de cara com duas pessoas miúdas encolhidas em um
canto. Me assombro ao ver o rosto da mulher que deve ter no máximo trinta
anos e olhe lá.
— O que você está fazendo aqui? — a mulher que deveria estar
escondida por Angel está a minha frente abraçada a uma criança encolhida
contra o peito, que deve ter o tamanho do moleque da Lia.
— Ho sento, senyor, però no parlo molt bé el portuguesismo. —
a mulher com a voz rouca e aos prantos ergue as mãos com pulsos feridos e
sussurra em desespero.
— Ela está pedindo desculpas, por não falar muito bem o
português, — informa um dos oficiais.
— Obrigado, entendi o que ela disse. Apesar de ser catalão. —
volvei meu rosto para a mulher sem querer dar a entender que já a conhecia.
— Entender español, ¿podemos hablar así? – pergunto se podemos
conversar em espanhol, viva ao meu amigo Ramon Staeler.
Logo a vejo afirmando com a cabeça de forma frenética, me
aproximo e a criança até então calada encolhida contra seu corpo grita e vejo
a longa trança de cabelos negros caindo, isto me faz atinar para algo. Minha
testemunha tem um menino e não uma menina.
Respirei fundo e pedi aos demais que nos deixassem, a princípio
não queriam, porque talvez ela esteja escondendo uma arma, mas pela
condição física e emocional, a última coisa que essa mulher poderia ter é uma
arma.
Baixei o tom de voz e perguntei se poderia me aproximar um
pouco, ela meneou a cabeça e nisto me fiz o menos ameaçador que consegui
com o tamanho do meu corpo.
— Qual seu nome senhora? – pergunto em espanhol e ela me
responde da mesma forma.
— Maristela De la Fuente e está e minha filha Olívia.
— Prazer, sou Promotor de Justiça do Estado do Espírito Santo,
Mikael Nikolaievitch.
O assombro da mulher é notório percebo que reconhece o meu
nome e de imediato dispara em um jorro de palavras sem que faça quaisquer
perguntas.
— Senhor, não sou bandida, moro em Lérida na Catalunha,
apenas eu e minha filha, não tenho contato com parentes há muitos anos, por
opção própria, essa não é uma vida que prezo, entende? – ela gesticula com
as mãos e cada vez que faz, percebo as semelhanças com a outra mulher, mas
não a mesma.
Outra coisa que vejo é as imensas manchas roxas nos braços e na
lateral do rosto. A menina em seu colo se vira de lado, percebo que mesmo
tendo a tez morena como da mãe e cabelos negros, os olhos são tão verdes
como folhas na primavera, não me contenho e dou a ela um meio sorriso.
— Não faço parte disto, e não sei o que fizeram com a minha irmã
Marisol, – minha testemunha — foi levada por nosso pai há muitos anos
para se casar, ela não quis fugir comigo por isto, não sei o que se passa com
ela, mas estes homens disseram que ela é uma… – ela pausa e estala os dedos
tentando achar a palavra, —informante?
— Uma informante?
— Sim, que ela traiu o marido e está marcada para morrer, me
trouxeram para cá, não sei dizer como cheguei aqui, mas por favor me
deixem ir embora com minha filha, não temos nada com isto.
A mulher parece muito desesperada, de certo ouviu meu nome
vindo destes homens, e mesmo que pudesse mandá-la embora agora seria
para uma morte rápida, pois a pegariam novamente. Ouço passos na casa e a
voz abafada de Angélica em uma discussão com Caleb.
— Senhora vou ajudá-la, mas precisarei que me ajude, agora o que
precisamos fazer é que coopere e seja paciente.
— Sim, farei o que precisar senhor. Só peço que não faça nada
comigo e minha filha, — a mulher volta às lágrimas e vejo que a solução será
a mesma que arranjei para sua irmã a questão é como conseguir tirá-la daqui
sem passar por cima das leis?
Estou em desespero para sair daqui quanto antes e ter a certeza de
que Lia está em segurança, quanto colocar estas pessoas em um local seguro.
— Promotor? – o grito do comandante estremece a Maristela e a
menina volta a chorar.
Peço a senhora que tenha calma e ofereço a garrafa de água que um
dos oficiais me passa e um pacote de bolachas.
— Promotor!
Filho da mãe — penso ao sair do quarto.
— Porra, pode não gritar? — me enfureço e vou ao seu encontro.
Na porta Angélica está a postos e segura o capacete nas mãos
diante do corpo, seu rosto e cabeça está coberto por uma máscara preta de
esqui, só vejo seus olhos e eles estão soltando dardos de fogo. Logo atrás
outro corpo meio encoberto pela lateral espera autorização para entrar, a mão
coberta por uma luva de couro segura uma Glock destravada.
— Ela não vai entrar, porque já prevejo o que vai acontecer: a loira
do caralho entra, vai usar alguma tática com a minha vítima resgatada, se é
que é uma vítima, e logo em seguida vai me esfregar algum papel de alto
escalão e sumir. — ele me olha por sobre o ombro e diz energicamente. —
Não!
Ignorando todo o processo e protocolo encaro Angel e solto a
bomba.
— Preciso que a leve da mesma forma que fez com a anterior, —
ela estreita os olhos —, o caso é idêntico sem qualquer alteração dos fatos.
Tenho certeza de que o comandante Caleb estava certo, com auxílio da
senhora De La Fuente, teremos êxito.
Ao proferir o sobrenome, Angel muda a posição e solta uma das
mãos tocando o dedo sobre o pulso do seu acompanhante, de imediato eles
mudam de posição. O homem até então de cabeça baixa, guarda a arma no
coldre, coloca os dois capacetes no chão e abre a jaqueta que faz o mesmo
trajeto, depois é a vez do cinto de utilidades do Batman que os dois carregam.
— Satisfeito agora, senhor? — Angel pergunta encarando Caleb.
— Estamos desarmados e sendo solicitados no local, vamos entrar.
— Não vão! – ele teima.
Toco o seu ombro e ele bufa se colocando de lado. Seus resmungos
são impronunciáveis, Angélica retira a máscara e a trança cai sobre o ombro.
Com um resumo esclareço o que foi me passado por Maristela e logo dou
meu parecer do que suponho que aconteceu.
— Ela parece ter muitas fraturas e escoriações, a criança não
apresenta nenhuma delas, mas tenho a sensação de que a mãe sofre algum
abuso.
— Estupro? – o homem misterioso pergunta e só então vejo parte
dos ombros aparecendo na lateral da porta.
— Provavelmente.
— Ok! — Angel suspira. — Vamos assumir daqui Promotor, e isto
é outro favor que vou cobrar.
— Como queira.
— Contudo, para isto o senhor não pode estar aqui. – O estranho
diz e vejo que retira a máscara, os cabelos bagunçados loiros estão espetados
para todos os lados, bem-parecidos aos meus agora.
— Sairei.
Talvez pela situação tensa, o fato de o homem permanecer
escondido me deixa com uma sensação desconfortável, mas logo descarto
isto ao ver Angel passar e seguir em direção ao quarto, já entrando em
contato com seu apoio ao falar em seu comunicador auricular.
— Você não vai com ela?
— Em um momento, se ela precisar.
Ele responde com a voz baixa, me livro dos resmungos de Caleb
que sai para coordenar a retirada e conter o fluxo de curiosos e repórteres que
já devem ameaçar a aparecer.
Estou pronto a sair de cena quando Angel volta pelo portal com
olhar transtornado. O assobio curto faz o homem alto entrar em disparada
pela porta, quase não vejo o seu rosto, mas pela estatura e corpo somos bem
próximos em tamanho. A curiosidade me invade e em vez de ir ver minha
Anjinha, sigo os passos apressados do loiro e paro junto à porta vendo-os
trabalhar.
Confesso, já imaginei Angel em muitas cenas e presenciei o perigo
que ela representa sobre pressão, mas essa mulher a minha frente não é a
mulher má que poderia se associar ao nosso inimigo e nos fazer mal. Me
recuso a acreditar que ela possa de alguma forma estar ocultando o paradeiro
de Verônica, como uma vez no passado suspeitamos.
Angélica se aproximou da mulher com um largo sorriso, olhos
tranquilos e palavras mansas, a voz sempre tirânica está adoçada e parece
quase hipnótica.
— Senhora Maristela De La Fuente, me chamo Cristina estou aqui
para ajudá-las.
— Senhora não sei de nada, só quero ir para minha casa.
— Entendo, mas para isto precisamos tratar suas feridas e verificar
se estão bem, depois garantir que possam ter segurança.
— Me desculpe se não consigo me mover e aceitar de pronto. Fui
arrancada da cama em minha casa, espancada, amordaçada e… – a mulher
pausa e olha nervosa para Angel e o seu acompanhante. — Quero voltar para
Lérida.
— Temo não ser possível Senhora! – a voz do homem, mesmo
sendo em um espanhol cadenciado, melódico é firme e propensa causar mais
desespero na mulher. Ele se colocou de joelhos à sua frente próximo o
suficiente para tocar os pés se estendesse um pouco a mão.
Ao menos foi o que imaginei, mas parece que ela o olhou como se
ele pudesse tocar-lhe a alma.
— Meu nome é Christian e estou aqui para dar-lhes uma
oportunidade de sobreviver.
— Senhor, por favor… – ela suplicou e isto cortou minha alma.
— Senhora vamos ser objetivos! – ele endurece o tom, mas
mantém o timbre. — Não tem mais um lar seguro aonde ir, sua filha não terá
mais segurança. A sua casa será um túmulo frio se voltar. A senhora
presenciou e ouviu muitas coisas desde que foi sequestrada, correto?
A mulher baixou os olhos e olhou para a menina.
— Sim, – a voz sussurrada arrancou um olhar de esguelha de
Angel.
— Pode me permitir pegar Olívia? — Angel se aproxima e mexe
com a menina, que timidamente sorri para a Megera.
Maristela relanceia seus olhos da filha ao casal à sua frente, não há
dúvidas da intenção de Angel ao cuidar da menina, percebo em que na
situação presente, ela é a melhor opção e um porto de confiança para a
criança.
— Quero fazer xixi… – a menina sussurra.
A mãe chora e da mesma forma de antes conta que estão a muitas
horas sem comer, sem ir ao banheiro e agora que tomaram a água e a menina
quer sair, pelo que entendo, elas tinham apenas duas oportunidades de sair do
quarto e isto não havia acontecido ainda.
Angélica prontamente se ofereceu para ir até o banheiro com a
criança, intuindo que os dois estranhos à sua frente eram de paz, e talvez por
me visualizar bem diante da porta, a mulher permitiu.
Angel ergueu a criança e ao me ver os seus olhos se arregalaram,
mas foi apenas uma coisa momentânea. Em seguida ela deu três toques no
ombro do loiro que não a olhou. Percebi que isto parecia ser algum código,
ela fez algo similar na porta enquanto segurava a arma. Não fez?
— Senhora, vou aproveitar que sua menina está com Cristina no
toalete para lhe fazer algumas perguntas e dar-lhe uma rota de fuga.
— Sim.
— Foi estuprada?
Porra! Que cavalo, – penso. Contudo, em se tratando do que é
preciso, a verdade talvez a fizesse se decidir pelo correto quanto antes.
— S-sim…
— Sua filha?
— Não, para que nada a acontecesse com minha Olívia, fiquei
calada.
O homem respira ruidosamente e só neste momento vejo a quebra
na armadura serena e impositiva que tem. Quanto a mim, a flama da raiva se
espalha com tanta pressão que minha cabeça lateja dá têmpora a nuca.
— Espancada?
— Sim.
— Tem algum osso que desconfie que está fraturado?
— Não.
— Sente dores intensas em alguma parte do corpo?
— Por todo o corpo, mas nenhum órgão. Sou enfermeira e saberia
se houvesse rompido algum órgão.
— Das feridas e de qualquer consequência do estupro podemos
cuidar imediatamente, assim que uma ambulância especial chegar, porém,
quero que faça algo por mim.
— Oh, minha santa!
— O comandante da Operação a informará que precisa ir a um
hospital, ele permitirá que paramédicos entrem neste quarto, quando isto
acontecer, vão fazer uma avaliação, colocá-la em uma maca, junto à sua filha
e conectá-la a uma IV ligado a uma solução salina para hidratação. Talvez
antes de chegar à ambulância, a senhora sentira uma dormência no corpo e
sonolência, logo em seguida será transportada a um local seguro, passará por
uma triagem, enfermeiras e médicos irão cuidá-las, mas antes que volte a
acordar, irei retirá-las deste hospital e depois disto, Maristela e Olívia não
existirão mais.
— Madre…
— Consegue compreender o que estou falando?
— S-sim.
— Posso dar-lhe uma nova vida. Posso libertá-las, mas para isto,
tem que me dizer aqui e agora, que aceita por suas vidas em minhas mãos.
Prendo minha respiração junto à Maristela, percebo o jogo de
Angel ao deixar que seu parceiro falasse com a vítima, talvez pela cultura, ou
a percepção de que a mulher foi mais propensa a se submeter ao tal Christian
por ser homem, por sentir-se segura com uma figura máscula que a
tranquilize.
Foi um jogo arriscado.
A Megera retirou a criança da cena, isto o deu total controle e
impossibilitou a mãe de ter um apoio emocional para se esconder, ficando à
mercê dele. Além claro do jogo de perguntas e respostas ao colocar frente a
frente com a situação grotesca que foi submetida.
Parabéns para a dupla de loiros do caralho, como diz Caleb.
Cruzo os meus braços amplamente satisfeito e a única coisa que ainda preciso
é que ela concorde em ser testemunha. Só assim terei a certeza de estar livre
de qualquer bandido filho da puta que ousou ameaçar não apenas a mim, mas
também Lia e ao moleque.
Um arrepio me percorre e a sensação de embrulho no estômago me
aterra. Porra, se não tivéssemos invadido essa casa hoje o que aconteceria?
— Tem mais uma coisa senhora, o Promotor as minhas costas,
precisará que responda algumas perguntas daqui há algum tempo, precisarei
que colabore com ele, fazendo isto está a um passo de se reunir à sua família.
Os olhos negros da mulher se arregalam, não sei o que viu na face
do homem, pois não posso vê-lo, talvez um sorriso cordial, pois malmente
Maristela se ergue do lugar que esteve escorada, para se jogar nos braços de
Christian agradecendo efusivamente por ajudá-la.
— Agora, em alto e bom som Maristela, diga: Christian me ajude!
– ele se afasta. — Peça minha ajuda, para que no futuro não tenha nenhuma
dúvida de que fiz o que me pediu.
— Sim, por favor Christian, Ajude-me! A mim e minha filha, por
favor?
— Com prazer farei isto, Maristela. Tranquila!
Não tenho tempo de compreender o que diz em catalão para ela em
sua língua regional, pois logo a ambulância que ele falou para dentro do
gramado, quase invadindo a calçada da varanda. Angélica retorna com a
criança, sorrindo e conversando em espanhol, três paramédicos vestidos com
macacões azuis-escuros entram no quarto e todos incrivelmente falam
espanhol.
Olho de esguelha para Angel, está eleva o canto da boca com um
sorriso toda sabichona.
— Time perfeito! — a elogio.
Em silêncio acompanho o desenrolar de tudo que foi falado por
Christian até ver que a ambulância da ré e parte silenciosamente.
Caleb se aproxima e me diz para sair de cena, antes de liberar a
passagem dos peritos. Estou pronto a fazê-lo acompanhando Angel e seu
parceiro para fora, vejo como coordenadamente se armam e escondem as
mãos e estão prontos a fazer com o rosto, é nesse momento que tenho um
vislumbre dos olhos do homem e um choque me percorre.
— Hei! – quase grito assuntando a porra para fora dos oficiais que
nos cercam. — Espera, Christian, não é?
— Sim! – ele responde com capacete nas mãos.
Só vejo os olhos dele, mas o faixo luminoso é muito intenso e
minha mente não brinca comigo, de forma alguma.
— Sei quem é você! – relanceio meus olhos para Angélica que
ainda está por cobrir o rosto. — É ele, não é?
— Ele quem? – ela pergunta e dá de ombros.
— O garoto da fazenda! — digo com entusiasmo. — Conheço ele.
— Me desculpa, mas acho…
— Nem tenta cara, eu sei quem é você. Porra está muito diferente,
altura e físico, da última vez que te vi, eu deveria ter uns quinze anos acho,
foi quando roubamos várias garrafas de vinho do seu pai. — digo olhando
Angel de esguelha.
— Pelo amor de Deus, quase vinte anos atrás?
O rapaz olha Angel e depois me olha, ele estufa o peito em toda
sua altura e faço o mesmo, se temos diferença no tamanho deve ser por uns
quatro centímetros e olhe lá.
— Não liguei o nome à pessoa, porque enfim não sei, mas
reconheci os seus olhos, acredito que ficou gravado na minha memória.
Justamente essa posição que estamos, é como um flashback.
— Isto é estranho. — Ele disse querendo dar um ar deturpado a
minha frase.
— Pode até ser, mas tenho certeza de que é você e não sei por qual
motivo há negação, mas fico feliz que esteja bem e que trabalhe com ela. Não
fazia ideia do que aconteceu a você, nos vimos naquela época e depois nunca
mais, suponho que foi estudar fora, era isto?
— Como você pode saber se é essa pessoa baseado nos olhos,
Promotor? — Angel pergunta com enfado vestindo a máscara e, o fato dê os
dois não confirmarem de pronto minha afirmação só me esquenta os
neurônios em busca de uma resposta.
— Simples! Naquela noite depois de todos beberem até cair, passei
o resta dela jogando conversa fora, com o rapaz que morava na fazenda e
ajudou a você montar o quarto secreto.
— Mikael, nós temos de ir, dá para soltar meu parceiro?
Só então percebo que estou segurando o pulso do indivíduo com
força.
— Me desculpa. – soltei-o e permaneci a sua frente. — Não sei
qual motivo o faria negar algo óbvio. Mas como disse que bom que está
trabalhando com ela. Não lembro muita coisa daquela noite, mas tenho quase
certeza de que seu sonho era ser pintor.
— O quê? — assombrada Angel pergunta.
O homem em questão abaixa os olhos, roda o capacete nas mãos,
mas ao voltar a me fitar, o seu olhar é completamente diferente, posso quase
imaginar o riso escanteado por baixo da máscara.
— Você disse que não se lembra de muita coisa daquela época.
— Mas isto não esqueci, porque como você, teria de renunciar ao
meu sonho para fazer a vontade do meu pai. — Digo e para mostrar que não
precisa mais confirmar minhas suspeitas, dou dois bons tapas em seu ombro
direito e me aproximo. — É bom ver você de novo, Christian. É esse seu
nome?
— Sim, é esse Mikael. – ele estende a mão e o aperto é firme. —
Bom te ver de novo.
— Pintor? — Angel parece não acreditar no que houve e seus olhos
fixos no parceiro demonstram isto.
— Agradeço imensamente a ajuda de ambos e espero podermos
nos encontrar novamente.
Não espero resposta, me despeço e sigo com minha escolta até um
SUV parado em frente à rua, pois agora minha preocupação é Lia, mas antes
confirmo com Caleb que ele cumprirá sua promessa e peço a Deus que a
segurança destacada para minha Anja e o moleque dela seja efetiva e
suficiente.
Não sou muito adepto da oração, mas é o meu mais singelo
pedido!
Contudo, não posso deixar essa informação esfriar, olho para fora
do vidro blindado e completamente escuro do carro e confirmo que Christian
ainda mantém seus olhos pregados em minha direção. Porque se me recordo
quem ele é, também recordo de quem ele era sobrinho.
CAPÍTULO 24
INDUBITÁVEL
“É melhor atirar-se à luta em busca de dias melhores, mesmo correndo o risco de perder
tudo, do que permanecer estático, como os pobres de espírito, que não lutam…”
Bob Marley
RAMON
SANTIAGO
Quem poderia prever que os vilões não teriam alguns dias de cão?
Provavelmente os dois últimos têm sido. Entre os dois não posso
decidir qual o pior, mas acredito que este é um daqueles dias que acordamos
para nos arrependermos logo em seguida.
Se por um puto momento suspeitasse de que passaria por toda
situação inusitada, teria posto uma tranca na porta e permanecido na cama.
Primeiro foi Mikaella que resolveu se rebelar contra seu tratamento
e as rotinas com as terapias, como uma criança mimada, simplesmente por
sentir que tenho me afastado dela.
Isto me faz sentir as vísceras se revirando, mas desde que tomei
minha decisão, não posso e não quero retroceder, o melhor a se fazer é
devolvê-la ao seu lugar em que pertence, quanto antes, mesmo que só depois
possa fazer-lhe justiça.
Contudo, minha Fadinha é uma mulher que além de linda,
engenhosa e talentosa é terrivelmente geniosa, e tem provado isto a cada dia
que se passa. Deixá-la dois dias atrás depois de outra discussão fez-me muito
mal, porém tinha de sair e resolver o segundo problema que estava em curso
de explodir como uma bomba.
Desde que Verônica criou seu show de horrores no final do ano,
Angélica a tem caçado como um cão perdigueiro atrás da sua presa, mantê-la
escondida não tem sido fácil, até porque não a dou de fato uma hospedagem
gentil, ela é minha prisioneira e experimenta o doce tratamento que destinou
a minha Fadinha quando a manteve sequestrada, mas nem assim esse
demônio consegue deixar de espalhar seus tentáculos por todos os lados me
criando problemas.
O melhor lugar para se esconder algo que não deseja ser
encontrado é colocá-lo bem debaixo dos seus narizes. Eles vão cheirar em
volta, rodar em círculos e nunca vão encontrar.
Uma das muitas propriedades que adquiri, está tão próxima a eles
que mal fazem ideia. Praticamente no quintal de Staeler. Uma proximidade
segura para manter a maldita escondida, mas perigosa o suficiente para que
ela de alguma forma tenha contato com seus capangas que não tiveram o
menor problema em desafiar meus homens para obedecê-la.
Maldita!
Me enfureço só por lembrar que teve a audácia de ameaçar-me se
não a colocar na liderança dos planos novamente, para isto causou um inferno
de comoção ao cortar um dos pulsos. Uma ferida profunda o bastante para
necessitar de atendimento clínico. Por estarmos tão próximo à casa de
Staeler, não poderíamos fazer alarde com isto. Por sorte, Verônica não
contava com minha presença.
As fotos que foram deixadas com Staeler, ainda poderiam ser
entregues a Mikael. Não quero impedi-lo de saber do filho, muito pelo
contrário, não só deve como é a obrigação dele cuidar da criança, porém isto
colocaria os meus planos em ponto morto por alguns motivos. Não o quero
distraído e enlouquecido em um momento que pretendo devolver-lhe a sua
irmã.
Conheço bem o Nikolaievitch e sei que irá perder a porra da sua
mente. Então recuperar o envelope, é um favor que estou lhe concedendo por
um pequeno momento. Além de perceber como Liana vem agindo nos
últimos tempos, creio que deva ter em mente colocá-lo a par da paternidade,
por fim, e para isto minha aposta é que esteja preparando o terreno para que
nenhuma mina exploda em sua cara. Ela é uma mulher que realmente admiro,
pois, é perspicaz e valente.
Muito provável está seja a segunda razão pela qual me empenhei
em recuperar o envelope, só para ajudá-la. Melhor admitir do que usar
subterfúgios.
Este foi o motivo de me hospedar na Ilha do Frade em tempo de
descobrir a artimanha de Verônica e conseguir assistência médica sem
chamar a atenção dos vizinhos, e aproveitar um convite feito a Álvaro por
Staeler, assim matamos dois coelhos com uma só cajadada. Uma vez
ocupados degustando longas garrafas de vinho, foi fácil deslizar um dos meus
homens para dentro da casa e surripiar o que precisava.
Fim de um dia longo, exaustivo e cheio de problemas, mas como
disse dia de cão não tem fim.
Pouco antes das nove da manhã uma ligação urgente mudou todos
os meus planos. Geralmente quando a necessidade de dois agentes na cena
para recuperar uma vítima ou recolher possíveis refugiadas com seus filhos é
um Alfa e um Ômega, — apelidos carinhosos dados a equipe por Fernanda,
mais uma equipe com um médico, enfermeiro e dois batedores.
Por estes motivos eu e Angélica na mesma cena, é quase
improvável, cada um comanda sua própria equipe e não interfere na forma
que o outro trabalha, por isto ao receber a ligação dela pedindo ajuda e em
um tom aflito, não pensei duas vezes, desviei do meu caminho, me coloquei
em contato com a equipe e me juntei a eles.
Entretanto, se por um momento ela tivesse falado para ajudar
qualquer um desses filhos da mãe, teria de pronto recusado. Nem mesmo pelo
fogo do inferno teria vindo. No entanto, mantive para mim mesmo minhas
opiniões e fúria ao ver seu tormento quando os tiros começaram a ser
disparados e não poderíamos fazer nada. Todavia, a coisa não poderia ser
pior que já esperava, por comunicadores, Jairo um dos seguranças designados
havia informado a situação e nos preparamos para o pior.
Contudo, o pior, para mim não seria ter uma mulher e uma criança
na cena. Com todas as previsões feitas e cuidados para não me pôr na mira do
olhar de escrutínio do Promotor, tomei a liderança assumindo a posição do
Alfa e deixando Angel como Ômega para cuidar da criança, que a uma
primeira avaliação não apresentou nenhum dano físico a não ser, fome, sede.
Já a mãe da criança era outro caso, assim que entramos no quarto o
odor de sexo forçado veio tão forte às minhas narinas que senti meu
estômago se revirar.
Esse é um trabalho que faço por querer realmente, por me permitir
manter uma linha tênue entre a minha humanidade e o monstro que ronda
minha mente, Maristela, não é a primeira mulher que resgatei em tal posição,
talvez nem a pior, Fernanda foi a pior até hoje, mas ainda assim qualquer
uma das frágeis criaturas que encontro sodomizadas, espancadas e violadas
de todas as formas possíveis me endurece o corpo e quebra o coração, — se é
que tenho algum ainda.
Não me dei ao trabalho de imaginar pelo que mais teria passado,
uma vez no quarto, continuei a observar a comunicação rasa com Angélica,
mas após avaliá-la e saber ao qual timbre e tom de conversa a mulher reagiria
melhor assumi a liderança.
Minha comunicação com Angélica é através de sutis toques no
dorso da mão, mais conhecido como código Morse[11] e com o passar dos
anos aprimoramos nossa própria telegrafia através do tato sutil e
imperceptível para olhos desatentos, leigos do que pudesse ser. Optamos por
não usarmos comunicadores entre nós dois, isso nos força a manter a
proximidade em alguma ação.
Fui rápido e um pouco ríspido em minha abordagem, mas o que
não temos em um caso atípico como este é tempo. Foi bem executado o plano
e antes mesmo que os responsáveis pela operação se dessem conta já
tínhamos em uma ambulância mãe e filha, sedadas e prontas a serem tratadas.
Este seria o fim do meu trabalho e poderia seguir caminho para a
segunda parte, onde retiraria em segurança a morena castelhana e sua filha do
hospital, mas o improvável aconteceu.
Mikael com sua mente brilhante me reconheceu, e mais, totalmente
encapuzado. Quem diria que a mente humana pode ser tão detalhista com
coisas mínimas como um par de olhos expostos por uma fresta de toca?
— Sei quem é você! — ele cruzou seus olhos com Angel e depois
volta a me fitar. — É ele, não é?
Poderia ter desconversado, ter mentido, feito qualquer coisa, até
sair correndo para que ele não tivesse a oportunidade de continuar com suas
observações e insinuações, porém para que mentir? Um dia isto teria de
acontecer, porém, não contava que ele lembrasse de tantos detalhes.
Observo o momento que ele entra no carro e continua a me fitar
com intensidade, sem perder um segundo do seu foco e me pergunto, do que
mais ele pode estar se lembrando?
MIKAEL
— Senhor, o que podemos fazer é deixá-lo na garagem e seguirmos
no mesmo modus operandi. — Aylton que é o mais calado dos meus dois
seguranças retruca ao ouvir que farei um desvio da rota traçada antes desta
operação.
— Não me importo e, na verdade, agradeço o empenho dos dois.
De toda a equipe, sei que não somos os melhores clientes que já tiveram —
refiro-me a mim e meus amigos que sempre tentamos burlar a segurança —
mas reconheço o esforço e profissionalismo de todos.
Os homens sentados nos bancos da frente pigarreiam e tentam
disfarçar que o elogio sincero não os deixou encabulados, mas preciso
reconhecer um bom trabalho quando é feito.
Encerrada a ligação com Ramon, enviei uma mensagem para
Caleb, Lia e Angélica cada uma com uma finalidade.
Segundo Caleb, não muito distante do local onde os meliantes
escaparam, cães de rastreamento foram levados e conseguiram pegar algo, e
neste momento estão dando caça dos bandidos.
Angélica foi mais sarcástica com o “não faço mágica, tenha
paciência” antes de me assegurar que às duas castelhanas estavam a salvo
com ela e que as acompanharia até poderem se reunir com a sua irmã
Marisol.
A terceira e que me deixou um pouco mais aliviado e redobrou
minha ansiedade veio de Lia.
@Promotor_nikolaievitch:Oi
@Doutora_anjinha:Oi
@Promotor_nikolaievitch: onde está?
@Doutora_anjinha: em casa
@Promotor_nikolaievitch: vou te buscar mais cedo. Que tal?
@Doutora_anjinha: Hum… Acho melhor não.
@Promotor_nikolaievitch:Por quê? Não está com saudades de
mim?
@Doutora_anjinha: não seja convencido, Promotor. Estou
cercada de caixas da mudança, tentando esvaziá-las.
@Promotor_nikolaievitch: posso te ajudar.
@Doutora_anjinha:Há, há, há … isto nunca daria certo.
@Promotor_nikolaievitch: estou indo aí, se apresse
@Doutora_anjinha: não recebo ordens e disse que não, seja um
bom menino e passe aqui lá pelas 19 horas.
@Promotor_nikolaievitch: não sou um bom menino, sou um anjo
mau.
@Doutora_anjinha: Tchauzinho Promotor ��
IDÍLIO
Lá vai o meu coração batendo
Porque você é o motivo
De eu perder o meu sono
Por favor, volte agora
LIA
M
inha língua deslizou sobre a sua, senti todos os recônditos do meu corpo se
inflamando de desejo e por algo mais. O cheiro do seu perfume é uma droga
que vicia de uma forma que me faz estremecer.
Deslizei para meu lugar aceitando de pronto suas demandas, pois é
o que quero e seria muito idiota da minha parte me negar isto.
Olhei para a bolsa de viagem pequena no banco de trás e senti um
frio na espinha, uma contração no baixo ventre e nenhuma das duas
sensações tem a ver com tesão, mas sim com medo.
— Pelo amor de Deus, Lia! — ralho comigo mesma colocando
uma das unhas a bater contra meu lábio.
Deixando Mikael tomar a dianteira da situação passei a segui-lo em
sua moto e dei passe livre para minha mente viajar em um show de slides.
Passei a manhã toda com coração apertado, me sentindo estranha
após conversar com Mikael por mensagem, mas logo fui distraída por minha
missão de esvaziar o quartinho da bagunça entre uma mensagem e outra de
July e companhia.
Minhas adoráveis amigas e suas mil e uma perguntas foram
implacáveis querendo saber sobre a bendita foto que Edu enviou ao grupo de
família.
Para meu benefício e histeria delas, o horário de almoço das
crianças e horários de saída do colégio colocou um fim nisto, mas não sem
antes Juliana prometer visitar-me para conversarmos, pois, de alguma forma
ela intuiu que devo me livrar do idílio que me coloquei e viver — seja lá o
que isso signifique para ela.
Logo após nos despedirmos, conectei o home theater via bluetooth
com meu celular e escolhi uma seleção de músicas de uma nova lista de
reprodução. Uma melodia suave começou a tocar e invadir todos os espaços
vazios e conturbados do meu coração; a voz de Calum Scott, cantando You
Are The Reason sobressaltou-me com sua letra.
Sem ter mais o que pensar, lamentar e sentir, pois bloquei todos os
canais que pudessem me enlouquecer, mudei a lista de reprodução, para um
sertanejo, deixei a diva Marília Mendonça e companhia arregaça com o resto
do que sobrou de mim. Pelo menos cantando e me sentindo mais leve,
adiantei bem o que queria.
Empenhada na melhor parte do meu show particular, Mikael entrou
em contato querendo encontrar-me antes do combinado, isto não estava nos
planos imediatos, porém depois de vê-lo pousar de baixo da minha janela
como um Romeu irado e ciumento ao ver-me, realmente me levou a loucura.
Putz!
Não tive muitas opções, era deixá-lo subir, o que não farei até que
estejamos bem mais em sintonia, ou concordar com ele? Minhas risadas
foram sinceras em relação à cena de ciúme bobo que protagonizou, jamais em
minha vida pensei em ver o Promotor Mikael, se render a sentimentos tão
mundanos, os mesmo que usa como zombaria para atormentar os próprios
amigos.
A sua implicância com Gio e seus primos, nunca levei como
ciúme, até porque mais parece ser antipatia gratuita de macho do que outra
coisa. No entanto, não vou negar meu ego está em alta.
Seguro a gargalhada, não quero parecer a louca por trás de um
volante para os demais motoristas que seguem ao meu lado na via.
Confesso que me senti tão leve com ele, que ao ouvi-lo perguntar
sobre os instrumentos, — algo que não poderia esconder depois de quase
morrer soterrada por pratos de bateria —, fiquei feliz em compartilhar algo
sobre Anjinho, algo tão familiar aos dois.
O que mais me deixou em completo êxtase o que em parte explica
atacá-lo com um beijo tão possessivo assim que o vi, foi perceber o quanto
estava interessado no que dizia e mais, a mensagem de Nina que chegou
enquanto tomava um banho rápido.
Saber que Mikael de certa forma se preocupou com a segurança do
meu filho foi um bálsamo e um choque, pena não ter como saber se ele
chegou a ouvir a voz do filho, geralmente Anjinho quando atende o celular,
fica em silêncio ouvindo a outra pessoa falar. Só de lembrar isto o aperto que
me corrói o corpo todo se intensifica.
Uma vez ouvi Carla dizer que Ramon tinha fotos suas de corpo
inteiro espalhadas pelo quarto, inclusive no closet e Edu já viu, July
confirmou. Achei aquilo tão romântico, erótico e possessivo da parte do
argentino, mas jurei jamais permitir que fizessem algo assim comigo.
Talvez tenha sido despeito, porque sabia que isto não aconteceria,
pois, quem poderia ter fotos minhas ou até querê-las desta forma? Jamais,
faria algo assim, no entanto…
— Mi-miakael…
Meu assombro esvai-se entre meus lábios junto a incredulidade
dando lugar a uma insondável, crescente e louca disfunção cardíaca. — Você
está pretendendo me fazer acreditar em amor, Promotor?
Diante de mim várias molduras de fotos minhas de outra época
enfeitam o arco da parede. Fotos que nem imaginei que tivessem sido tiradas,
situações que não recordo. Contudo, a que me deixa sem qualquer reação é
uma, a maior.
Localizada bem ao centro da parede no ângulo exato do “meio da
cama” e sei exatamente quando foi tirada. No dia que mostrei a ele minha
tatuagem de asas, o dia que ele me pediu em casamento e deslizou um anel
no meu dedo anelar, o dia que disse que me amava com todo seu coração o
dia que…
Deixo de pensar no passado e forço a ver-me no presente, diante de
uma imensa moldura.
Na imagem, estou sentada com as pernas em posição de lótus, nua,
de costas para ele e de frente para a cabeceira da cama de ferro batido. Meus
cabelos estão presos em um coque que seguro com auxílio de uma mão, as
asas descem desde o ombro até a altura do quadril, deixando livre toda a linha
da coluna como se tivesse em repouso sobre minha pele, diferente das dele
que se estende por toda parte das costas, mas em posição de voo.
Na época em que a fiz, queria que Mikael entendesse que sempre
estaria ao seu lado, que nunca partiria, pois, sua proteção me deixava serena
para permanecer com ele.
A moldura antiga destaca a imagem em preto e branco. É algo tão
etéreo que mal consigo respirar.
Inconsciente levo minha mão às costas e sinto o relevo quase
imperceptível da tinta sobre a lateral.
Um choque percorre as pontas dos meus dedos como se estivesse
conectando a Lia daquela imagem com a do presente. Sentindo o que ela
sentia. Deixando chegar à superfície o que ela perdeu.
— Mika, meu anjo…
Sem pensar direito.
Sem poder entender bem, deixo a razão, a mulher centrada e
objetiva de lado, corro para a porta fechada que e o separa de mim.
Toco a maçanete fria e meu peito dispara, logo as palavras de July
vem como látego sobre mim: “você precisa deixar de viver nesse idílio que
criou como uma bolha protetora e aprender a viver de verdade, não é só
porque somos fortes e encaramos bem a dor, que temos de continuar
sentindo-a dia após dia.”
A música tocando não permitiu que ele me ouvisse gritar no quarto
nem entrar no banheiro, mas ao fechar a porta, Mikael que estava com a
cabeça erguida contra a água, olha por sobre o ombro.
Seu olhar azul está preso ao meu, não sei o que vê, porque não
tenho coragem de olhar-me no espelho. Sei o que sente, porque ele é um
reflexo do que sou.
— Tem certeza? — Foi a única coisa que perguntou, antes de
estender-me sua mão.
Sorri sem esperar um novo convite. Com gestos rápidos larguei
sobre o piso, minhas roupas e entrei no boxe com ele, seu olhar não percorreu
meu corpo, apenas permaneceu fixo nos meus olhos.
— Oi!
— Oi, meu anjo!
Seu leve arquear de sobrancelha me diz tudo que quero saber e sem
perda de tempo enlaço seu pescoço e o beijo com tanto amor, porque é isso
que estou sentindo.
Amor.
O mesmo louco amor que senti por ele a minha vida toda. As
lágrimas que descem por meus olhos são camufladas pela água do chuveiro,
suas mãos seguram em minha cintura e com manejo e precisão me ergue,
colocando-me na altura certa para envolver minhas pernas em sua cintura.
De certo que não estamos prestes a fazer amor como se espera dos
casais apaixonados, lentamente recheada de juras profundamente
apaixonadas, até porque somos carnais e viscerais demais para se ter tanta
paciência, — pelo menos é o que penso.
Em verdade, não me importo em queimar as etapas das
preliminares ensandecidas, quero-o dentro de mim, me lembrando da forma
mais crua e distinta o quanto gosto de estar com ele, de senti-lo dentro de
mim. Porque, sempre foi ele.
Sempre.
Sua boca me doma, domina, ensoberbece, me busca e permito.
— Lia… — Mikael murmura deslizando os lábios sobre meu rosto,
pescoço, colo e as suas mãos percorrem minhas costas, minhas asas. — Você
achou o meu tesouro.
Não é uma pergunta, mas uma afirmação.
— Sim.
Não preciso de mentir. Ele não faz nenhum comentário, e não farei
perguntas. Às vezes, algumas deduções são tão lógicas que muitas
explicações sobre o fato distorce a emoção do momento.
Ele rugiu de desejo ao apertar o mamilo enrijecido dentro da sua
boca, ele usa a ponta da língua para puxar a argola, a sucção é tão intensa que
dói, arde e depois espalha aquele formigamento prazeroso.
— Quero você… — resmungo e ajeito meu corpo para ser
preenchida.
Mikael não recusa e logo seu pau duro como ferro abre meus lábios
e ganha espaço pelo canal apertado do meu sexo. Nossa excitação permite
que ele deslize e com arremetidas profundas se adequando às paredes
escorregadias, arranhando-me com o piercing que prende à glande, estou tão
sensível que sinto o bombeamento da veia calibrosa inchado com mais
sangue, endurecendo-o ainda mais ao ponto de ele gemer com um pouco de
desconforto ao ser pressionado por meus movimentos.
— Vai me estrangular?
— Vou deixá-lo seco.
Brincamos, volto a serpentear meu corpo em um vaivém descendo
sobre seu pau. As mãos dele estão firmes sobre minhas coxas me permitindo
cavalgá-lo. Mikael segue em direção a parede oposta e sinto o frio do azulejo
contra minha pele aquecida.
— Quero provar você. — ele avisa.
— Já está provando. — rebato.
— Não, quero com a minha boca! — Ele decreta. — Levante os
braços e segura a barra.
— Barra?
Pergunto erguendo meus olhos, percebo que há uma barra afixada
na parede do lado contrário do chuveiro e não tenho ideia do porquê estaria
ali, mas como pede, assim o faço e logo entendo o que é, um cano de cobre
levemente aquecido.
— Tem certeza?
— Faz!
Seguro e logo minhas pernas são erguidas soltando-se da lateral da
cintura para pousar sobre seus ombros.
— Ah, meu Deus!
— Nada de apelo religioso agora, minha anja safada. Só apenas
eu. — Ele pisca e com os dedos pinça por sobre as coxas me fazendo abri-las
e colocando meu sexo molhado bem à sua frente.
Mikael estende sua língua e como se experimentasse uma
casquinha de sorvete lambe de baixo para cima superficialmente.
Meu corpo dá um pinote e sinto as entranhas se revirarem.
— Humm… — meu gemido se espalha no boxe e sua respiração
acelerada me arrepia a pele sensível.
Ele volta a fazer o mesmo movimento, mas desta vez a ponta
enrijecida da língua desliza sobre as fatias meladas e para bem abaixo do meu
clitóris pincelando o outro brinco da mesma forma que fez com o do mamilo.
— Mikael! — Grito e travo os calcanhares sobre as costas, solto
uma das mãos e embrenho os dedos em seus cabelos molhados.
Parece ser o incentivo que ele precisava para me levar a loucura.
Com dentes afiados ele joga com meu sexo pesca entre as pontas duras e
deixa a carne deslizar levemente até soltá-la, para logo fazer isto mais
algumas vezes entremeando com chupões por sobre os lábios, alternando-se.
Sua língua correu por entre os lábios lisos, e encharcados do meu
sexo, indo e vindo causando tremores pelo meu corpo, me fazendo arfar com
espasmos.
Seus dedos brincam no canal roçando o ponto de ebulição,
invadindo, alargando, centímetro a centímetro para ele.
Gemi. E perdi a conta de quantas vezes o fiz, além de praguejar por
estar me torturando ou ovacionando essa boca descarada.
O olhar dele ao encontro do meu me arrepia, o desejo falando mais
alto através das suas pupilas brincam com minha libido.
Os dentes dele raspam sobre meu clitóris e é um pequeno grito sai
pela minha garganta.
Mikael tem aquela risada debochada, sexy e agressiva que me
tortura dia após dia, suas mãos rudes apertam as laterais do meu corpo
erguendo meu quadril ainda mais em direção a sua boca, o ofego e o delírio
rondam em minha mente.
Ele morde os lábios do meu sexo novamente e desta vez sinto a dor
afiada que causa um formigamento, ao ponto de me fazer morder com força
meu lábio. O ruivo desliza os dentes, vez ou outra, causando apreensão e
desejo desmedidamente.
— Abra os olhos e observe, Anjinha. Tem que ver tudo que faço
com essa buceta gostosa, que me rouba o juízo.
— Porra!
— Daqui a pouco vou enchê-la disto, sem pressa.
— Sacana!
— Gostosa! — a mão dele sobre a coxa atiça uma bofetada pela
parte de dentro da carne e seu olhar desvia do meu rosto e recai sobre meu
seio tatuado.
Ele geme e volta a atacar com vontade meu sexo. Não posso mais
fechar meus olhos ao vê-lo fazer minhas coxas se abrirem mais em volta dos
ombros largos e chupar-me com força. Meu clitóris sensível estremece, e o
cretino sabe disso, ele faz de propósito, sua língua afiada me desarma, me
enlouquece.
Me desligo das últimas amarras.
Que se dane amanhã!
— Vou gozar! — aviso, mas nem preciso, vejo na forma como me
degusta que pode sentir no paladar o quanto estou escorrendo de desejo.
Um gozo alucinante toca meu corpo, nas notas ressonantes que ele
cria, de olhos fechados, ouço sua risada, seus gemidos, Mikael desliza meu
corpo sobre o seu e voltamos para os jatos de água que agora parecem vir de
vários lugares.
Sinto o momento exato que substitui sua mão deliciosa me
acalmando a carne tremula por uma investida dura e prazerosa do membro
enrijecido com estocadas tão fortes que se não estivesse segura em seus
braços cairia ao chão.
Travo meus lábios para não falar o que não devo, mas deixo meu
corpo fazê-lo sem restrição.
Não sei quantas arremetidas foram, apenas posso falar da
intensidade delas, meu corpo volta para o ponto de eclosão, ouço palavras
sussurradas em russo ao meu ouvido, o idioma que ele recorre quando perde
completamente a compostura, e isto é no sexo.
Suas mãos seguram com tanta força meus quadris que vou ter
marcas roxas por uma semana. A música que ainda podia ser ouvida foi
abafada pelo som erótico das estocadas, meus seios doloridos se espremem
contra seu peito, perco o fim da minha sanidade sentindo um novo orgasmo
sendo construído e este acompanhado do dele.
Com urro e um beijo firme contra meus lábios, sinto o momento
exato que ele goza, os jatos de sêmen disparam com força dentro do meu
corpo sensível, aquecendo-me e me enchendo.
Me marcando novamente com seu cheiro, com sua essência.
— Moya lyubov' — ele resmunga.
— O que disse? — pergunto no mesmo tom, mas o beijo que me
dá, faz o resto do mundo girar até que nada mais importe.
CAPÍTULO 26
ÍNTIMOS
“E quando penso no que vivemos. Fecho os olhos me perco no tempo”.
LIA
MIKAEL
É surpreendente como posso viver e reviver momentos que nem
mesmo imagino estar na memória.
Por um segundo a letra da música da banda Malta vem a minha
mente, fecho meus olhos e como na letra por um instante me deixo levar. Por
mais que não possa compreender toda essa gama de cores, tons e sons que
parecem revirar meu interior, minha intenção de recomeçar com ela, não
posso deixar de não a querer.
Todas as noites e pelas manhãs ela é a primeira e a última coisa que
vejo deitado em minha cama, e tê-la agora realmente sobre os lençóis, rindo,
arfando, suada, coberta de prazer e das provas de que nós dois passamos
horas fazendo o melhor sexo, conversando sobre coisas bobas e sérias já que
também acabamos falando do seu filho, parece algo inacreditável.
Trazer Lia para pernoitar aqui surpreendeu a mim mesmo pelo
pedido, depois pelo momento de constrangimento quando chegamos, a
confissão sincera que achei necessária ao falar que nunca trouxe ninguém
aqui e agora isto. Ela está apoiada sobre meu bíceps e me olhando entre cílios
quase fechados.
Ela tentou puxar assunto sobre o trabalho, a diligência que tive,
mas compreendeu quando não falei nada relevante sobre o caso.
Esse sempre foi o melhor de nós, não precisa explicação apenas um
olhar e se faz compreender o que deseja. Ao deixá-la no quarto li a
mensagem que Caleb me enviou. Para sorte um dos marginais foi capturado e
confirmou que o outro estava ferido na perna, mas não foi encontrado.
Ainda persiste o medo, mas confio que logo isso terminará.
Por parte de Angélica, não houve nenhuma informação, mas
conhecendo seus métodos como faço, sabemos que se precisasse ela entraria
em contato.
Isto foi o alívio que precisava, para realmente me deixar levar pele
presença da minha mulher ao meu lado e não posso negar está sendo uma
descoberta maravilhosa.
Outra vez a letra da música bate contra a maré de pensamentos e
me prendo ao último refrão. Acrescentando à letra ao meu mantra, mas
fazendo minha própria analogia.
E quanto eu me perco em suas memórias
Vejo um espelho contando histórias
Sei que é difícil de esquecer essa dor
E quando penso no que vivemos
Fecho os olhos me perco no tempo
Para mim não acabou, acabou
IDEM
LIA
Um… Dois… Três… braços em posição da oração e dez
respirações profundas… quatro… cinco… seis…
M
inhas pernas ainda permanecem trêmulas, ao ponto de desprender do corpo
enquanto meu sexo se pudesse, sairia correndo. Isso, sem falar na cintura que
está doendo. Será que existe isso de dor de cintura?
Alongue o tronco… e oh! Vejamos quem mais está dolorido!?
Relanceio um olhar para baixo e os meus seios estremecem, se é
que isto existe, eles a aparência de terem sido deliciosamente sugados,
marcados, apertados e comidos por um vampiro. Seguro o riso voltando a me
concentrar nos exercícios matinais da ioga que fazem o meu corpo despertar,
mas não consigo. Por que não posso concatenar todos os acontecimentos das
últimas doze, ou melhor, catorze horas?
Minha cabeça parece estar girando em um loop eterno com tantas
informações, sensações e, tantas primeiras vezes, que não tenho ideia de
como me portar.
Suponho que deveria começar a registrar tudo em um diário, como
se fosse uma adolescente — mal cruza o pensamento em minha mente e
tenho de segurar outro riso.
E aqui vai a primeira observação do tal diário: não sou uma pessoa
que deixo de sorrir, mas que porra está acontecendo com o meu cérebro?
Pareço um fusível desencapado soltando faíscas. Nunca ri tanto e o que dizer
de Mikael? Provavelmente, deve ter deslocado o maxilar de tanto rir e isto é
algo reconhecidamente estranho. Na verdade Lia, se ele deslocou o maxilar,
foi pela quantidade de sexo oral e não por rir.
— Porra! — exclamo em meia voz e levo as minhas mãos aos
lábios pressionando-os. Isto faz o meu corpo sacolejar e os músculos que nem
sabia possuir reagem automaticamente.
Sexo bom, quente, suado e cheio de malabarismos é o que sempre
fizemos, mas nunca em minha vida, fiz tantas vezes e com tanta intensidade.
Meu corpo drenado reage com arrepios de reconhecimento. Um gemido
suave me escapa e fica abafado contra a palma da minha mão.
Sinto o rosto corar em êxtase.
Encaro o meu reflexo no espelho mais uma vez por sobre a pia do
banheiro e me sinto divertida com o que vejo.
— Putz! Realmente estou parecendo o primo Itt da família
Addams.
Pareço, não por acordar revirada, mas por não ter dormido após
acordar com os gritos de Mikael.
Pensar no que houve, quebra um pouco do feitiço de risinhos
envergonhados e me faz estremecer com o reconhecimento. Não imaginava
que ele tivesse pesadelos. Seria possível, ser o mesmo que Anjinho tem, vez
ou outra? A forma desesperada que ele me segurou e como se quebrou diante
de mim, é perturbador. Jamais serei capaz de me esquecer, mesmo que este
seja o desejo dele.
Não foi preciso que Mikael dissesse com todas as palavras, mas
deixou claro em sua forma de agir, que não deseja tocar no assunto à luz do
dia. E mesmo que ele queira, não posso parar para analisar a situação, nem o
forçar a ir além do que já estou fazendo.
A culpa é uma desgraça velada, pois quando adentra em seu peito,
pouco faz para ser extirpada, ao contrário, ela abre os seus tentáculos com
garras pontiagudas e se instala o mais profundamente possível.
Esta é a minha situação!
Sinto-me culpada por não lhe dizer a verdade e, ao mesmo tempo,
culpada por sentir alívio de que ele ainda não saiba, pois a reação do que
possa vir a acontecer, me atormenta enquanto o medo de fazê-lo sofrer, como
vi nesta madrugada, se expande em meu peito como uma dor aguda sem fim.
Não posso e, nem quero, vê-lo assim novamente!
Sobretudo, após a revelação dos pesadelos e da forma que
conduziu o sexo de imediato como escapismo.
Uma primeira vez para algo diferente, cheio de uma necessidade
cálida e abrangente, que nos desconcertou ao final do ápice. Foi notório a
forma como olhamos um ao outro.
Contudo, o que veio a seguir, virou-me do avesso. Se ele queria
provar que estou viva, conseguiu.
— Porém, agora estou em dúvidas! Humm…
Alonguei o corpo, elevando os braços sobre a cabeça, sentindo a
coluna estalar junto ao osso da clavícula.
— Deus! — Impossível não rir e revirar os olhos. —
Não esqueçamos do sexo de bom dia…
Ah! O famigerado sexo de bom dia! Quando imaginei que
finalmente dormiria, o meu anjo mau resolveu dar-me um bom dia.
Espio por sobre o ombro e aguço a minha audição. A ausência de
som provindo do quarto através da porta aberta do banheiro, diz que ele
dormiu, o que é bom. Não sou tão ingênua em não perceber que a maratona
louca de sexo pós-pesadelo-trauma-do-k.c.t, foi a forma que Mikael
encontrou para não dormir e retornar de onde parou.
Sei por experiência própria como isto funciona.
Relaxo os braços movendo-os para baixo e curvo o corpo apoiando
as mãos nos tornozelos com as pernas paralelas por trinta segundos. Em
seguida, alongando a coluna e a parte de trás das coxas e panturrilhas, por
entre a fresta dos membros inferiores e vejo pés enormes tentando se
desenrolar do lençol próximo à cama, tropeçando algumas vezes e deslizando
pelos dois degraus desajeitadamente. Alguns segundos a mais e ouço um
estrondo rouco invadir o banheiro.
— Porra!
Ergo rapidamente e olho para trás entre as mechas do meu cabelo
que se agarram no corpo levemente suado.
Mikael vence a sua guerra contra o tecido enroscado nos pés,
atravessa o marco da porta e choca o seu corpo contra o meu levando-me
junto a ele para frente.
— Nem se atreva a me olhar assim, seu maníaco pervertido! —
Ergo a mão e empurro o seu peito.
— Você não deveria fazer ioga no meu banheiro. E ainda por cima,
nua —, ele ressalta — para começo de conversa. Agora vem aqui!
Mikael entra no box, levando-me com ele. Mal tenho tempo de
respirar, mudando rapidamente a posição das pernas, tentando me afastar.
Mas quem pode com um homem de 100 quilos de puro músculo, quando está
obstinado a fazer algo?
— Estou falando sério, Mikael — grito e estapeio seu ombro —
não vai rolar! Quantas vezes você acredita que vai me dar bom dia?
Ele ri descaradamente e abre a água fria sobre nós.
— AH! Filho da mãe! — Grito novamente, sentindo o choque
perpassar por todo o meu corpo.
— Queria muito te dar bom dia mais uma vez, mas estou atrasado,
porra! — Ele esbraveja e, ao mesmo tempo, troca de lado, me tirando da
água. — Por que não me acordou? — Ele brame e sacode de leve meu corpo
contra o seu, mudando as nossas posições.
— Desde quando eu sou o seu despertador? — Outro tapa e me
afasto, ou pelo menos, tento.
— Se vamos dormir juntos, precisamos manter um ligado. Eu não
posso me atrasar! — Mikael continua a reclamar enquanto me segura e
alcança o sabonete líquido. — É sério Lia, não posso me atrasar, nunca,
jamais.
— E nós vamos? — pergunto meio incrédula.
— Vamos o quê, precisar de um despertador!?
— Não, quer dizer, sim. Espera —, ergo a mão pedindo uma pausa
para organizar os pensamentos — nós estamos mesmo indo nessa onda de
dormir juntos?
Mikael para no ato de ensaboar o corpo e me olha como se
houvesse chifres nascendo em minha cabeça.
— Porra Liana, onde é que você esteve nas últimas dezesseis
horas?
— Dezesseis? — pergunto, assombrada.
Mikael resmunga alguma coisa e deixa de lado a esponja, me
levando direto para o aconchego dos seus braços. Ele deixa um selinho sobre
os meus lábios ao me virar para a ducha fria.
— Acorda mulher, se pensa que vou retroceder, está ficando louca.
— Me solta, está gelada! — Debato o meu corpo contra o seu.
— Gosto assim pela manhã. Vê se não esquece!
Ele beija o meu pescoço lentamente e sorrindo, muda a temperatura
da água antes de começar a deslizar a esponja macia sobre o meu corpo.
— A propósito —, cochicha em meu ouvido — bom dia!
MIKAEL
A equipe jurídica já estava me esperando quando cheguei ao
fórum. Sem perda de tempo, nos encaminhamos à sala de reuniões e, por
duas horas, minha mente foi entorpecida por trabalho e somente isto.
Após o encerramento, Martinha havia deixado dois recados na
caixa postal, para que não deixasse nenhuma brecha no cronômetro apertado
que estamos trabalhando. Segui para o meu gabinete e, por mais duas horas,
trabalhamos intensamente sem interrupções.
Lia foi pontual em suas mensagens, o que me tranquilizou ao ponto
de poder me concentrar.
C: “O que foi?”
IMERSO
“A estranha sensação de déjà-vu me acompanha, mas é o riso suave que me
faz sentir imerso.”
MIKAEL
O
carro contorna a rotatória de pedra em frente a um jardim bem cuidado.
Crianças correm de um lado a outro brincando de pique-pega, no que parece
ser um intervalo de aulas, visto que tem alguns estojos de instrumentos
encostados à sombra de uma frondosa árvore.
— Jairo, pode encostar aqui, não precisa me levar até a porta —
digo rapidamente. Estou cheio de ansiedade e prefiro caminhar os poucos
metros que faltam debaixo do sol.
— Vou acompanhá-lo, senhor Nikolaievitch! Também ficaremos
por perto no estacionamento — o segundo homem retruca.
— Não precisa! Apenas procurem um bom restaurante e façam
uma refeição por minha conta.
— Nós preferimos esperar, senhor! — Jairo retruca.
Dou de ombros e não faço caso para discutir com os meus
seguranças. Após certo tempo convivendo com estranhos em minha cola
servindo de babá, acabei aprendendo a ignorar certos exageros.
Mal espero o veículo parar por completo antes de saltar e me
afastar rapidamente. O carro segue o seu percurso, enquanto inalo o ar
infestado do aroma das flores nos canteiros e os meus olhos observam
espantado toda a atmosfera do lugar.
— Porra, nunca imaginaria um lugar como este aqui.
Confesso que estou impressionado com tudo. Não foi difícil
encontrar o endereço do conservatório como Lia havia garantido. O prédio
para a condição financeira que ela apontou em sua investigação parece muito
bem conservado. O que é estranho, já que esta foi a instituição indicada para
receber o donativo. É claro que há motivos para isso.
Além do fato de ter uma das amiguinhas do moleque como
professora do lugar —, o que não devo me esquecer.
O ar está abafado e muito diferente do que se é esperado na Serra
—, ou faz muito tempo que não se habilita a sair do gabinete para o ar livre,
Promotor — penso. O calor transbordante me faz suar. A gravata ficou junto
ao paletó no carro. Liberando mais duas casas da camisa, tento desgrudar-lhe
do corpo.
Uma das crianças que está do outro lado brincando, saiu disparada
sem olhar por onde corria e por instinto parei, sabendo que o seu destino seria
colidir contra as minhas pernas —, plaft. Dito e feito! O pequeno de sete ou
oito anos, cabelos e olhos castanhos encaracolados, no afã de não voar para
trás de bunda no chão, se agarrou com força nos meus joelhos.
— Me segura tio!
Gargalhei, pois no ato reflexo, foi o que fiz. Segurei o baixinho
pelos ombros e ele deu um sorriso para mim. Logo em seguida, com um
pinote voltou à sua corrida para subir em um banco de ferro do outro lado.
Balancei a cabeça me divertindo ao ver a pirralhada queimando
energia. Contornei o jardim e em vez de subir até os degraus da entrada,
seguindo pela lateral em busca de sombra e um lugar que pudesse falar com
Lia que ainda não chegou.
Franzi o cenho com uma sensação parecida como aquela no carro,
oprimindo o meu peito. Sento-me sobre uma macieira perdida em meio a
algumas árvores que não reconheci. Ao longe posso ouvir várias notas
viajando através das altas janelas com vidros coloridos, derramando-se com
graciosidade por todo terreno.
Com a sensibilidade auditiva, posso captar as notas e até
reconhecer as duas músicas distintas que estão sendo executadas em
diferentes salas. Um sorriso cruza em meu rosto ao perceber que um violão
parou a execução logo após outro ter errado a nota, mas foi apenas por um
segundo antes de retornarem a erguer o muro musical.
Alcancei o aparelho no bolso das calças e fiz a chamada.
Trim… Trim…
O telefone chamou algumas vezes e quando imaginei que não
atenderia, sua voz abafada encheu os meus ouvidos de prazer.
— Oi?
— Oi, onde está?
— Em uma feirinha, acredita? — Lia não esperou minha resposta e
soltou uma enxurrada de palavras ao mesmo tempo. — Não imaginei que
fazer turismo com seguranças fosse tão divertido. A cada bufo que eles dão,
uma nova barraca aparece em minha frente. É praticamente mágico!
A risada contagiante faz os meus lábios curvarem, mas não posso
compactuar com sua brincadeira perigosa.
— Lia, não abuse! Está em um lugar desconhecido, cercada por
pessoas estranhas e eles estão aí para te proteger.
Ouço resmungos e logo a voz de uma vendedora oferecendo
camisas, ou algo assim.
— Olha só quem fala! — Ela se dirige a outra pessoa e pede para
ver tamanhos variados. — Me diz Promotor, está com os seus leões de
chácara ao seu lado?
Sentindo o rosto corar, o que já é inadmissível para um homem
com o meu temperamento, pigarreio desconversando.
— Que horas pretende subir? Já estou aqui no conservatório.
— Não vou demorar mais — pausa. — Estou saindo daqui a vinte
minutos, talvez meia hora, porque até alcançar os carros, tenho um bom
pedaço de chão para caminhar.
Não gosto muito da ideia de que ela possa estar passeando por aí,
no entanto, não gostaria que me regulassem da mesma forma que ela não
gosta, por isso deixo os meus pensamentos guardados só para mim.
— Você avisou que iríamos fazer uma visita, certo? O que digo na
recepção? — pergunto mudando assunto.
— Avisei, mas não disse que estamos à procura da Fadinha. Eu
não quero parecer uma stalker, porque, na verdade —, Lia hesitou um pouco
antes de continuar — ela não me conhece pessoalmente.
O silêncio que recai após a sua revelação é propício. Tento
relembrar o que me disse na noite passada. — Como assim? Sabe que sou um
Promotor de Justiça e não posso me meter com coisas ilícitas — rebato
desconcertado com a situação. — Não posso ser acusado de perseguir uma
professora de música! — digo a sério, mas nos lábios tenho um riso
sarcástico ao ouvir seu bufo.
Posso imaginá-la parando em meio ao caminho e colocando a mão
fechada com o punho cerrado a meio caminho do tronco.
— Não seja um cretino, Mikael. O que poderíamos fazer com ela?
— Ok! Ela não me conhece, porque não está na turma do Anjinho
e sempre que estou com ele no Haras, os nossos horários não batem,
infelizmente, ou sei lá… estranhamente, quem sabe?
Aqui está o ponto relevante que ficou inerte na sua história, tanto
na noite anterior, quanto hoje pela manhã. Se eu for mesmo sincero com a
minha mente aguçada, este é o ponto de inflexão que não está sendo dito
apropriadamente, desde o primeiro momento em que falamos sobre o
moleque —, não que faça caso de saber de tudo agora, mas sempre sinto que
fica algo por dizer, por completar as frases que ela solta sobre o filho.
— O que exatamente o moleque faz no haras? — me ouço
perguntando segundos, após afirmar que não quero saber. Porra. — E não se
atreva a dizer cavalgar.
Pausa e suspiros.
— Anjinho participa de um grupo… — Lia hesita e isto aumenta a
sensação de alerta, tornando a conversa marota em algo estranho e
desconfortável.
Pelo meu instinto e vontade, quero apertá-la para contar, seja lá o
que for. No entanto, conhecendo-a como o faço, uma palavra errada e todo o
trabalho de aproximação entre nós pode ruir.
Lia não é uma mulher que permita entrar em sua privacidade. Ela
não me rechaçaria por fazer perguntas se fossem sobre o trabalho, uma foda
ou o tempo, porém sendo sobre o seu filho, tenho em mim que isto pode
acontecer.
— Lia, quer me contar isso pessoalmente, talvez depois? —
Ofereço a ela uma saída, a qual me faz sentir melhor por tabela.
— Podemos? Realmente quero te falar sobre isto, mas preferiria
que fosse pessoalmente.
— Ok! — me sinto aliviado, não vou negar. — Acredito que vou
entrar e esperá-la do lado de dentro.
Ela não responde de imediato e o silêncio constrangedor se acentua
por alguns minutos enquanto a sua respiração acelerada bate contra os meus
ouvidos.
— Lia?
—Ó-otimo, estou quase chegando no final da feira.
Percebendo o quanto está ofegante, não me impeço de fazer uma
piada suja em voz baixa para quebrar o clima estranho que se instalou entre
nós. Ela pragueja e logo em seguida geme com a ideia em mente.
— Daqui a pouco estarei aí, aproveite para conhecer as salas e
toda a estrutura do prédio. As fotos disponíveis na internet são bem
interessantes, mesmo que não tenha um patrocinador ativo, parecem ter
mantido o lugar de pé com saraus e algumas apresentações.
Assumindo o lado prático e profissional que é um tesão, Lia
discorre sobre a forma de abordagem que iremos adotar.
Geralmente são as instituições que enviam os pedidos para
avaliações e para saberem se estão aptas para receber o nosso patrocínio, mas
neste caso, seremos nós a oferecer ajuda.
Previamente, Lia me informou que ao conversar com a
administradora do local, deixou subentendido que tínhamos interesse em
fazer uma doação pessoal para a instituição.
Contudo, só pelo padrão, a alegria dos alunos na borda do
conservatório e a atmosfera envolvente que tem o lugar, sinto os dedos
coçarem para trazer uma pequena fortuna a este lugar.
LIA
Se os meus olhos pudessem me pregar uma peça, creio que
estariam fazendo um trabalho minucioso.
Antes de subir a Serra, resolvi atender a chamada telefônica que a
minha mãe fez e por meia hora conversamos a despeito das mensagens
trocadas no dia anterior. Não foi uma conversa branda, tão pouco foi uma
pré-guerra declarada. A dona Maria dos Anjos tem muito em sua conta para
acertar, segundo as suas próprias palavras, mas o seu medo maior é não poder
me salvar caso caia mais uma vez.
Fiz a minha parte como filha e mãe, novamente disse e redisse o
que quero e não vou abrir mão em favor do meu filho e o resultado disto foi
ouvir mais uma vez: “Liana Joaquina, você é toda mulher, só posso desejar-
lhe que Deus seja a sua sorte.”
Em resposta a isso, articulei um amém!
A viagem foi tranquila. Dionísio que parece estar amargando uma
inveja, pouco falou comigo após descermos na feira. Na verdade, deu-me
apenas ordens que é lógico suscitaram a minha veia rebelde, da qual creio
que ele nunca se esquecerá.
Há tempos não faço uma pequena viagem assim e o fato de poder
comprar alguns mimos para Anjinho e, uma longa lista de amigos, me encheu
de energia. Meu corpo ainda reclamava um pouco, mas bastou falar com
Mikael em uma chamada, para me sentir revigorada, até o momento em que
ele fez a pergunta que em breve irei responder.
Não precisaria de muito para perceber o quanto ele ficou curioso
com o assunto. Todavia, a percepção de estar avançando muito no terreno
“filho da Lia”, era tão óbvia que fiz uma prece e me apeguei às palavras de
minha mãe, deixando Deus ser a minha sorte.
Por mais que queira contar tudo, sei que ele não está pronto e
minutos depois, ouvi o suspiro que ele deixou escapar por mudarmos de
assunto. Essa foi a pedra no holocausto dos meus medos.
Assunto encerrado. De volta à minha missão, pouco antes de
chegar ao meu destino, fiz uma ligação para Nina, que me retornou bem no
momento que entrei no prédio. Mal pude observar a beleza do lugar, entretida
com a confirmação dos dados sobre Mikaella. — Porque o nome da Fadinha,
incrivelmente tinha de ser esse? — A falta de uma recepcionista, me fez
caminhar pelo corredor seguindo a música. Foi quando vi Mikael saindo de
uma sala como um vendaval pelo corredor. Ele estava tão tenso que não me
ouviu chamar. Tudo que se seguiu a isto, ficou perdido após encontrá-lo na
porta da sala.
Vendo a Fadinha diante de mim, percebo o porquê do meu Anjo
sair daqui como se houvesse demônios alados em seus calcanhares.
— Ah! Que pena o Mikael ir embora, mas que bom que está aqui,
Lia.
— Mimi, esta é a senhorita que te falei. Eles são o casal interessado
em nos ajudar.
A senhora Selene diz pausadamente, provavelmente para que a
moça visivelmente contrariada, possa compreender.
— Muito prazer, senhorita. — Ela recua. — Selene, vou… vou
embora. Agora!
— Porque, minha querida, não tem mais aulas hoje? Já está na
hora, não quer nos acompanhar, vamos tomar um refresco e conversar.
Não permito nem a mulher e nem a jovem à minha frente
responder. Impulsionada por um assombro gritante, dei um passo adiante
estendendo minha mão.
— Prazer Fadinha — ela me encara, e não vejo surpresa em seus
olhos. — Me chamo Lia dos Anjos e sou a mãe do Anjinho.
A moça olha para as mãos e esfrega as palmas no vestido verde,
aprumou os ombros e ergueu os olhos me encarando com certa ferocidade.
— Sou amiga dele, me chamo Mikaella.
— Sei…
Sei…
Essa não deveria ter sido a resposta, pois teria de explicar como
descobri, no entanto, foi a resposta que assombrou a jovem ao ponto de
começar a gaguejar tão intensamente que me arrependi.
MIKAEL
INOCÊNCIA
“Há uma inocência na admiração: é a daquele a quem ainda não
passou pela cabeça que também ele poderia um dia ser admirado.”
Friedrich Nietzsche
SANTIAGO
O
sol refletia com força ainda no céu. A brisa abafada que soprou contra o meu
rosto ao correr pelo chão asfaltado, parecia um prenúncio das portas do
inferno. Enquanto ao longe, havia um derrapar lento de carro, do outro lado
da entrada ladeada de flores, pessoas riam e conversavam tranquilamente,
mas ao me verem passar, seus rostos paralisaram.
Por medo, angústia, ou seja, que inferno tenha visto. Só percebi
que se afastaram. Que bem fizeram, pois na minha mente, não estava ali para
fugir de demônios. Estava ali para caçá-los com todas as minhas forças.
No meu afã de chegar à maldita porta que nunca alcançava, meus
sentidos estavam fixos na carga preciosa em meus braços, mas também
conectados com o entorno. Anos de treinamento sabendo que as minhas
costas sempre serão somente minhas para me proteger, talvez por isso não
pude pedir ajuda. E não quis arriscar mais do que já faço por estes anos.
No entanto, o pavor de perder a quem se ama, nos leva a dar passos
hesitantes em retrocesso.
Me faz admitir que preciso de ajuda, ao menos por ela…
precisaria.
O baque do corpo foi brutal — preciso de ajuda! — Exclamei
enquanto empurrei as portas de vidro do pequeno hospital local. — Por favor,
alguém me ajuda!? — gritei.
“Desespero é um sentimento que apenas os fracos sentem…” —
foi o que ouvi durante toda a minha vida em treinamento.
Me senti um fraco, porque nunca em toda a minha miserável vida,
me senti tão incapacitado como agora.
— Mikaella — chamei-a enquanto escorregava seu corpo frágil
para a maca que um enfermeiro desconhecido deslizou sobre o chão de
linóleo.
Chamei-a novamente, mas os lábios retorcidos por uma crise
convulsiva e os tremores débeis, dominavam a forma desfalecida da minha
Fadinha.
Meus próprios temores foram tantos, ao ponto de outro enfermeiro
vir em minha direção e precisar de mais alguns homens uniformizados para
manter-me longe da sala de emergência.
Isto foi a horas atrás.
Com meu tronco curvado e minha cabeça entre as mãos, olho para
o chão vendo e revendo as incontáveis rachaduras no piso velho de passos
incertos que já passaram por ali na mesma posição em que me encontro,
esperando.
A porta deslizante da sala de emergência se abre, outro enfermeiro
passa em direção ao balcão de recepção. Olho mais uma vez para o enorme
relógio branco pregado na coluna a frente dos bancos de espera e toda a
sensação de que faz segundos que entrei com Mikaella por estas portas,
explodem a porra da minha mente.
Um dos seguranças aparece pela porta de entrada e faz sinal com a
cabeça. Mesmo que este tenha sido o lugar que me aventurei a pedir ajuda,
não posso deixá-la aqui, seja lá o que estiver acontecendo.
Curvo meu tronco novamente, o maldito celular no bolso tocando
constantemente, mas não tenho forças e nem paciência para qualquer outra
coisa. Meu foco é saber como a minha Fadinha está.
Nunca fui um homem de acreditar em premonições ou em deixar a
intuição falar mais alto, por isto ao deixá-la na escola de música, não dei
atenção alguma ao dizer-me que deveria voltar para casa.
Se por um segundo tivesse dito estar sentindo-se mal fisicamente,
não pensaria duas vezes, mas a única coisa que me disse era estar com um
pressentimento ruim. Isto nunca me demoveria do fato de querer vê-la
retornar às suas atividades.
Nas últimas semanas, a pressão psicológica sobre a minha pequena
fada tem sido grande e me sinto culpado por isto e até mesmo irado com os
demais envolvidos. O ódio nunca foi tão bem usado em expressar os meus
sentimentos, como agora.
Estava a meio caminho de Vitória, quando me lembrei do maldito
envelope com a nova identidade de Maristela e Olívia que havia sido
entregue pela manhã por um dos meus homens de confiança.
Na hora, fiz o contorno e voltei para casa e foi exatamente o
momento em que minha fadinha me ligou.
Nunca vou esquecer o tom do seu desespero e a mágoa de se
imaginar traída de forma sórdida.
Me traiu? Você me traiu?
Irá me entregar para eles, sem minha permissão.
Irá me abandonar como se fosse lixo. Quer me pôr em uma caixa
de papelão também… Não vou perdoar… não vou…
A dor presente em sua fala enrolada, nas frases jogadas sem nexo
me deixaram confuso. Tentei argumentar com ela para entender, mas o seu
medo sussurrado era tão invasivo que parei o que estava fazendo e prestei
atenção ao fundo da ligação. Foi a voz de barítono tão angustiada quanto a
dela que me alertou.
Desliguei, mas antes confirmei que estava indo buscá-la. Sem
esperar que confirmasse o que já estava martelando em minha mente, fiz uma
ligação para seus seguranças e confirmei a presença dos visitantes na escola.
Não ponderei em dizer-lhes nada, mas em algum momento, isso vai
acontecer. Os malditos deveriam tê-la tirado da escola, assim que o seu irmão
apontou nos portões do local.
Imerso na urgência de resgatá-la, não pensei se seria reconhecido
mais uma vez, se teríamos um confronto aberto e nem na possibilidade de Lia
me reconhecer. Inferno, não estava me importando na hora e agora nada tem
importância para mim.
Nada!
Acredito que as tais premonições e as coincidências que algumas
pessoas acreditam reger o cosmos é real.
De nossa casa escondida em uma pequena reserva até a escola no
centro da aldeia, são quase vinte minutos e tenho a certeza de que usei menos
de dez para chegar, ao cruzar com o SUV pelos portões, pude ver de relance
Mikael com a cabeça pendendo contra o encosto do carro.
O maldito ódio ferveu, mas a preocupação foi maior.
Resgatar a minha Fadinha foi fácil, driblar Lia nas escadarias, o
mesmo. Manter a serenidade enquanto contornamos o coreto de flores foi
leve e quase pude respirar tranquilamente. Mas, bastou sairmos aos portões
para Mikaella ter um surto que me remeteu ao passado.
A fala arrastada, os gritos, o choro e as suas mãos fechadas em
punho esmurrando o painel do carro com violência. O medo a drenou de toda
a sua capacidade de se controlar. Foi tão assustador vê-la assim que parei o
carro em meio a avenida tentando segurá-la para impedir de se machucar.
Neste pequeno momento de fragilidade, o nosso controle escorregou.
Seu corpo frágil enrijeceu em meus braços, os lindos olhos se
reviraram e a sua cabeça pendeu para trás, a língua mais grossa — uma
característica comum para síndrome de Down. — Ela se dobrou e a
respiração dificultada pelo estremecimento tornou-se nula, amolecendo seu
corpo e ficando inconsciente.
Em questão de segundos, senti a morte espreitando-nos de
mansinho. Uma sensação antiga e miserável.
SANTIAGO
Deixar Mikaella aos cuidados dos seguranças no hospital estava
totalmente contra a minha vontade, mas não poderia deixar de cumprir com o
meu compromisso com a Angélica.
A transferência de Maristela e a filha, acontecerá nesta madrugada
e mesmo que pudesse pôr de lado e deixá-la assumindo, a ligação de
Fernanda pouco depois das dez da noite me deixou incomodado.
— Santiago!
— Olá, não sou de pedir favores, mas sendo direta, porque não
temos tempo —, ela pausou — por favor, poderia seguir com Cristina neste
comboio?
— Boa noite para você também, Fernanda!
— Corta essa! Apesar de ser um lorde quando quer, comigo não
usa de tantas cerimônias.
— Não é cerimônia, é…
— Por favor, ela está estranha e se imaginar que fiz essa ligação,
pode me esfolar viva. Não estamos lidando com amadores e estou
preocupada.
Isto me alertou e muito. Apesar de saber o motivo do
comportamento apático e silencioso, não tiro a razão de Fernanda. Não
estendi a conversa além do necessário, anotando apenas os detalhes
necessários para o encontro.
Montei uma pequena escala de acompanhantes para Fadinha e pedi
ao seu médico que não fosse liberada do hospital, até o meu retorno. A parte
boa de ser um filantropo generoso é manter as portas abertas e cerradas na
medida da minha necessidade.
Com tudo orquestrado, me encaminhei para Vitória. Após deixar o
hospital, mãe e filha foram transferidas para a mansão. A estadia não seria
longa, apesar de não concordar com uma viagem tão rápida, após uma
intervenção cirúrgica, mesmo sendo pequena como Maristela passou, porém,
temos de ser rápidos e realistas.
Os inimigos que estão atrás das duas, não são pessoas de pouca
influência e o seu poder aquisitivo de acordo com uma investigação prévia
que Fernanda nos enviou, arrancou alguns assobios da equipe. Poder de abrir
bocas delatoras.
O entrevero desta missão é o lugar que Angélica escolheu. Nós não
somos conhecidos visualmente pelos responsáveis. Não, com os nossos reais
rostos e nem por nomes de sondagem, por isto, usaremos os nossos disfarces
habituais para esta ocasião e uma equipe exclusiva.
É um desgaste físico a mais, porém, formidável no quesito: passar
despercebido.
Se em algum momento, Angélica ficou surpresa por me ver chegar
após às onze da noite com uma pequena mala e preparado para uma situação,
não fez comentário algum.
Analisei a casa por inteiro e conferi às duas refugiadas. Pelo
silêncio no cômodo, preferi não abrir a porta, mas as sombras se
movimentando pelo vão indicam que ao menos uma está acordada.
De certo, a pirralha imperativa.
Sete homens e duas mulheres além de nós dois farão parte da
escolta armada. Todos devidamente preparados, permaneceram na cozinha
fazendo um último lanche. Passei direto por eles e subi uma escada estreita
lateral nos fundos do cômodo que me levou direto a um quarto separado para
a ala doméstica da casa.
Assim que entrei no quarto, o sensor de luz se ativou. A claridade
das fortes lâmpadas fluorescentes nas calhas de alumínio resplandeceu por
todo lado. Os móveis de madeira escura brilharam como se tivessem sido
polidos, de certo os anos de conservação que mantém essa crosta de cera fixa.
Tirei a jaqueta de couro e joguei sobre a cama de casal no canto do
quarto, junto à mala pequena. Em seguida, o cinto com os dois coldres com
as duas 9mm, o celular no bolso da frente, carteira e chaves.
Alonguei os braços acima da cabeça e volte-os na altura dos
ombros esticando-os com movimentos circulatórios até sentir os ossos
estalarem.
— Porra, não imaginava estar tão tenso!
Constato um fato. Estar sozinho sem precisar manter certas
barreiras e o tempo todo em atenção total é difícil, mas este pequeno prazer
assim que é possível sentir, me esforço por fazê-lo.
Retiro a camisa de malha colada ao corpo e automaticamente meus
olhos recaem sobre as muitas cicatrizes nas costas e do peito. Com tantos
anos convivendo com as malditas, era de se esperar que o simples reflexo das
mesmas não me causasse nenhum efeito. Termino de me despir das calças,
meias e das botas militares. Outro olhar sobre o meu corpo me deixa irritado.
É difícil negar o formidável DNA, braços e pernas musculosas,
caixa torácica expandida e bem definida. O alongamento dos membros
estirados, bem como a altura imponente. Até a porra do meu pau remete a
indulgência do físico de adônis, mas a semelhança física vai só até aí.
— Na verdade, as piores características, não são realmente estas,
não é mesmo? — resmungo olhando uma última vez o meu reflexo.
Para afastar essa sensação, recuo um passo até o banheiro pequeno,
porém, funcional no canto do quarto. Os ladrilhos brancos estão iluminados
por outra calha de uma ponte luz.
Retiro a boxer e entro debaixo do chuveiro tomando uma ducha
rápida. Na prateleira no diminuto box, uso os produtos que já estão à espera
para poder preparar a pele e receber uma leve camada de maquiagem, quase
imperceptível, apenas para disfarçar melhor a cicatriz do rosto.
De banho tomado, seco meu corpo e cabelo. A roupa para ser usada
está sobre a cama, nada diferente da que usei ao chegar, couro, camiseta e
jeans preto.
Enrolado em uma toalha, me sento na banqueta diante da
penteadeira antiga. As gavetas abertas contêm produtos e acessórios que
facilitam essa brincadeira. Ter a facilidade com os pincéis, ajudou-me a criar
ilusões e algumas lições aprendidas com Verônica, que é realmente uma
mestra em disfarces. Ela me ajudou a criar alguns personagens bem
convincentes para circular em meio a todos sem chamar a atenção.
Com cuidado, contorno e tento ao máximo disfarçar a cicatriz que
ainda tem um leve tom rosado, mesmo depois de anos. A correção cirúrgica
poderia ser feita e me dar um menor trabalho para ser coberta, mas é o motivo
e a importância de vê-la para ressaltar na minha mente o meu propósito. Isso
é o que me faz mantê-la.
Pelo uso constante das lentes de contato escuras, meus olhos ardem
ao colocar um novo par. Elevo o vidro a conta-gotas próximo à retina e deixo
cair duas gotas de colírio em cada uma, anestesiando o incômodo crescente.
Encaro as duas esferas amendoadas e irritadas no espelho. Em
segundos a mágica medicamentosa acontece e os vasos sanguíneos dilatados
começam a retroceder.
A tintura que escurece a barba e as sobrancelhas saem quase
completamente pela lavagem constante do rosto e isso ajuda a camuflar
minha identidade no dia a dia, uma vez que os pelos loiros tendem a clarear à
medida que crescem.
Seria mais fácil, não manter a barba, mas é um ponto válido no
meu disfarce, pois retira a evidência da cicatriz no meu rosto que escondo
parcialmente com a ajuda de um lace masculino com a franja alongada.
Aplicar produtos e montar-me em outra pessoa é fácil, porém o
charme da transformação está em dedilhar as cordas vocais como um mestre
e mudar a intensidade e o volume. Quanto mais tempo se passa caracterizado,
mais fácil é se transformar naquilo que idealiza.
Com um sorriso sarcástico, completei meu visual com um par de
óculos. Não irei usá-los essa noite, mas é bom ver por completo o homem
que me transformo ao caracterizar-me.
O celular sobre a cama dispara um jogo de sinais, me ergo e
recolho o aparelho, é MSPG[14] para todos da equipe. Devemos sair em uma
hora, tempo suficiente para conferir como está Mikaella e comer algo.
Jogo novamente o celular sobre a cama, estou prestes a retirar a
toalha e vesti a minha boxer, mas paro ao ver a porta do quarto se abrir
lentamente e uma perna com uma coxa grossa e panturrilha torneada deslizar
dentro do cômodo sem fazer barulho.
Estreito meus olhos e vejo o corpo da mulher vestida com uma
camisa jeans comprida o suficiente para bater nas coxas, mas não o bastante
para manter certo decoro — se me importasse com isto — pés descalços e
cabelos longos castanhos entremeados com mechas em tons de mel caindo
pelas costas.
Cruzo meus braços a altura do peito, ciente de estar nu e estranha,
está quase no mesmo parâmetro. Ela olha mais uma vez para o corredor e
fecha a porta com cuidado, se vira e o grito que engole diz muito das suas
ações, provavelmente não é a pessoa que procura.
— Precisa de algo, senhora?
— Oh, Deus! Me desculpa, pensei ser onde o senhor Christian
estava, me perdoe. Por favor.
O castelhano fluente que desliza pelos lábios de Maristela parece
uma seda quente contra o meu ouvido. O fato de gostar e aprender vários
idiomas, me possibilitaram a comunicar com ela na sua língua materna,
dando-lhe um certo conforto.
— Quem está procurando? — pergunto e só então percebo que a
minha voz está mais suave acompanhando o personagem ao qual me inseri.
— Um amigo! Alguém que me ajudou, ham… perdão… vou sair.
A mulher se vira toda atrapalhada com a maçaneta. Balanço a
cabeça e a franja cai sobre o olho quase tocando o lábio.
— Maristela? — A chamo e ela se vira rapidamente, olhando em
direção a porta do banheiro. — Aqui! — chamo mais uma vez.
Assustada, a mulher arregala os olhos e me mede de cima a baixo.
Talvez, só agora tomando consciência do meu corpo envolto apenas por uma
toalha.
— Jesus Bendito! — Ela fecha os olhos e volta abrir a porta
colocando metade do corpo para fora. — Me desculpe senhor, de verdade.
Eu… só queria agradecer, não sei por que vim aqui e nem… — a mulher
bufa e se recrimina severamente disparando uma rajada de impropérios,
alguns que jamais ouvi falar.
— Maristela —, dou um passo à frente. — O que gostaria de falar?
Ela em meio a sua retirada sem sucesso, ergue seus olhos, focando
em meu rosto.
— Como pode a voz ser do Christian, mas não ser?
Sem realmente respondê-la, caminho até a porta abrindo-a por
completo. Seguro-a por seu pulso e gentilmente a faço entrar levando-a a se
sentar na cadeira diante da penteadeira.
Um breve olhar sobre todo material disposto, responde às suas
perguntas e as que desejar fazer, mas a impeço.
— Primeiro, onde está Olívia e o que faz aqui?
A mulher cora e só então me deixo prestar atenção no rosto, nos
enormes olhos cor de chocolate, as bochechas salientes e os lábios carnudos.
Meus olhos percorrem a blusa jeans vários números acima do seu,
com as mangas dobradas e os três primeiros botões abertos, deixa entrever o
início de um top branco. Provavelmente um dos sutiãs padrões esportivos
que oferecemos para quem não tem nada. O que me faz pensar que a calcinha
é…
Que caralhos estou pensando! — Pigarreio e me afasto da mulher
recolhendo a calça e o boxer seguindo para o banheiro. Deixo a porta aberta e
me escondo no box.
— Fiz uma pergunta Maristela, e quando as faço, quero respostas.
— Me desculpa. Olívia está dormindo.
Me surpreendo com a resposta, mas não comento. A mulher
começa a falar ritmicamente sobre o porquê de ter vindo atrás de mim, após
perguntar à Cristiana onde me encontrar.
Outra surpresa é saber que Angélica não fez caso e passou a mulher
a minha localização com o seguinte lembrete, não deixe os demais ver você
entrar lá, para não termos comentários impróprios.
— Comentários, impróprios? — Falo em português e a castelhana
me fita esperando que traduza, com a mão deixo a questão de lado.
— Uau —, a mulher não consegue abafar sua admiração —
você está muito diferente.
— Porque precisava me agradecer, se ainda está em perigo? — Sou
direto e não dou atenção ao olhar fascinado da mulher.
— Não é apenas isso. — Ela enrubesce e se coloca de pé. — Quero
agradecer por nos salvar, assim como o Promotor, a senhorita Cristina e o
sargento Caleb. Sou grata a todos e ainda mais por cuidar da minha filha. O
que ninguém pensou em fazer, o senhor, sem qualquer obrigação fez.
— Não foi nada! — Sento-me na cama para calçar os sapatos e
observo a mulher a dar passos para longe. Reflexos dos abusos físicos que
sofreu, sem dúvida.
— Não pode dimensionar o meu desespero em deixá-la sozinha. E
o senhor, foi bom.
— O que disse?
— Bom, caridoso, não sei se compreende o que digo, mas Olívia
contou-me o que fez e até que o homenageou.
Ah, sim! O pendente de cabelo!? Vendo a expressão da mulher e
reconhecendo a sinceridade, não contive um esgar incrédulo.
Seu olhar me fez pensar em Friedrich Nietzsche, um filósofo
alemão que tive o prazer de ler nos tempos de faculdade “Há uma inocência
na admiração: é a daquele a quem ainda não passou pela cabeça que
também ele poderia um dia ser admirado.”
De fato, ser admirado por deixar uma pirralha dormir no meu colo
é estranho e, ao mesmo tempo, é impensável.
— Por que essa expressão? — A pergunta da mulher me deixa sem
resposta.
O que me faz sair da pequena bolha que esse quarto me
proporcionou ao chegar, colocando de volta aos trilhos a locomotiva
desenfreada da raiva, rancor, desprezo e ódio. Ainda mais, depois dos
momentos de pavor que vivi mais cedo com minha Fadinha.
— Não crie ilusões ao meu respeito, senhora De La Fuente. Não
sou material para ser admirado. — Me aproximo. — Tenha em mente que
sou pior que aqueles que a capturaram.
A mulher dá outro passo e mais alguns até pôr as costas contra a
porta. As mãos trêmulas seguravam a maçaneta e o seu olhar tão quente de
chocolate no inverno escrutinava o meu rosto, passando por meu peito, se
detendo nas duas linhas desiguais e correndo por meus ombros, se juntando
nas costas.
Não havia pensado nisto, mas ela viu as marcas em minhas costas
quando entrei no banheiro, por isso esse olhar e essas ternas palavras.
Piedade?
— Está se preparando para uma guerra, Christian?
— Guerra?
— Sim. Destas que já vi muitas em minha vida. — Ela pausa e seus
olhos se turvam. — A guerra não perdoa inocentes e culpados. Ela é
dolorosa e cruel.
— Você parece conhecer muito sobre isto.
— Sim, durante anos eu e meu marido servimos como voluntários
da Cruz Vermelha nas fronteiras. Vi muitas coisas, olhares assim, como o
seu.
Me espanta saber que estou diante de uma mulher com tanto
conhecimento. Como não li nada sobre ela após o resgate, me surpreender é o
menor dos meus problemas.
— Onde ele está?
— Morto. Quando fiquei grávida, fui enviada para casa, mas ele
preferiu ficar e esperar o novo médico, mas o hospital de campanha era um
alvo.
— Essa é uma batalha injusta, Maristela.
— A luta dos homens, dos anjos e a guerra que criamos em nós,
também.
— Por que diz isso?
— Porque mesmo com seus olhos cobertos por lentes, posso ver
uma guerra iminente se aproximando e não acredito que deva lutá-la.
— Esta começou faz tempo. E não é nada que deva se preocupar!
A mulher abaixou a cabeça e assentiu levemente. Em seguida,
ergueu o rosto dando um passo em minha direção.
— Agradeço o que fez, por nós, Christian.
— Álvaro!
— Como disse? — Ela arqueou o sobrecenho.
— Para onde vamos, não conhecem o meu rosto e o meu nome.
Eles não sabem quem sou, doravante, me chame de Álvaro. É como a equipe
me conhece.
Respondo dando todas as claras intenções de que o assunto e
qualquer frase piedosa que possa usar para o que pensa ser um consolo, já
estão vetadas.
— Sim.
— Volte para o seu quarto e se prepare. Perdemos um tempo
precioso aqui.
Dei as costas, mas senti sua aproximação e o leve roçar da mão
morna contra o meu antebraço. Não me virei, mas senti o impulso que fez
para ficar nas pontas dos pés.
— O que é isto?
— Entregue isto a Christian, quando ele estiver livre desta
guerra —, a mulher sussurra e sinto seus lábios tocarem rapidamente sobre a
barba na parte de baixo do meu queixo. — Diga-lhe o quanto sou grata por
salvar a mim e a minha filha. — Ela se afasta e faço o mesmo.
— Diga-lhe que espero um dia vê-lo novamente.
Maristela caminha até a porta e por sobre o ombro me acena com
uma despedida.
— Não se esqueça, entregue a ele a minha lembrança.
— Isto não irá acontecer. O Christian, não vai sobreviver a isto.
CAPÍTULO 31
INALAR
Happy Feet II
ANJINHO
njinho, assim que a tia Nina colocar o cinto, podemos voltar a assistir ao
-A filme, tudo bem?
— Hum!
— Amor, você está triste por estarmos voltando para casa?
—Não. Quero a mamãe!
— Então coloca um sorrisão nesse rostinho…
— Humm.
A tia Nina é assim. Ela não tem paciência de esperar as pessoas
sorrirem, mesmo que não entenda o porquê é importante rir toda hora, eu a
faço feliz. Assim que os dedos dela fazem cosquinhas em minha barriga,
começo a rir.
Ela encontrou os nossos assentos enquanto esperamos o tio Gio.
Olho por sobre o ombro da minha tia e o vejo conversando com os dois novos
tios que ficaram tomando conta da gente diariamente durante o nosso passeio.
O tio Giovane é engraçado e muito inteligente e tem mania de
sorrir fácil. Diz coisas que me fazem rir, tem um gatinho que é quase do meu
tamanho e tem nome de Gato. Mas quando fica bravo é de dar medo. Não
gosto de lembrar quando grita.
Escondo meu rosto no ombro da tia Nina. Gosto quando o tio Gio
me pega no colo e me carrega nos ombros. Quando alguém pergunta se é meu
pai, ele diz: é meu afilhado, mais que um filho.
Isso é bom, mas também é triste. Eu até contei para a minha amiga
Fadinha, e ela falou que logo terei um papai só meu.
— Hummm…
— Suponho que tenha alguém com sono, quantos suspiros. Quer
me contar o que está pensando?
— Hum-hum! — Balanço minha cabeça fazendo meu cabelo
colorido balançar. Não quero responder, porque a titia não vai entender o que
sinto aqui dentro de mim, quando penso em ter um papai.
Ela afaga meu rosto e bate o dedo em meu nariz. A tia Nina e tio
Gio são irmãos de papai e mamãe diferentes. Eles me explicaram algumas
coisas nesta viagem, porque já sou grande e posso entender melhor as coisas.
Não aguento isso e meus olhos se reviram, igual da titia loira.
— Anjinho?! — Tia Nina se inclina e ergue meu rosto. — Amor,
tudo bem aqui?
Ela faz aquela pergunta estranha sempre que fica preocupada, mas
acredito ser por revirar os olhos. Faço de novo e ela se agacha à minha frente
com os olhos iguais de uma pomba, arregalados.
— Anjinho!
Acho engraçado e coloco a mão na boca rindo.
— Seu pestinha, quem te ensinou a fazer isto?
Não respondo, só espero enquanto ela guarda a mochila no
quadradinho, acima das nossas cabeças. Outra coisa que meus tios fazem e
que acho muito legal é quando estão inventando uma luta.
A mamãe detesta que a tia Nina me ensine esses golpes, mas as
cambalhotas podemos dar. E fizemos muito disso esses dias.
A tia Nina, passou o cinto na minha cintura e da janelinha posso
ver o asfalto lá fora. Daqui a pouco vou contar as nuvens para dizer à mamãe
quantas vi.
Me dá uma vontade de soltar o ar, e me deitar no colo da titia
quando penso na saudade que sinto da mamãe.
— Hei, meu campeão, olha só o que tirei da mala? — Tio Gio
senta-se no banco ao lado e balança meu Happy para mim.
— Happy! — Digo feliz de verdade. Seguro meu pinguim que o
vovô Fefê me deu e o abraço com todo carinho. — Queeee saudades, Happy.
— Como ele gosta tanto assim de pinguins de repente?
Meu tio se aproxima e me abraça deixando um beijo sobre minha
cabeça, mas só para perguntar a tia Nina em voz baixa. Os adultos são tão
estranhos. Eles acreditam que falando baixinho não vou saber que estão
falando de mim?
— Depois te conto.
Seguro outro riso e coloco a mão apertada na minha boca. Não
consigo entender os adultos.
O que a tia Nina vai contar para o seu irmão é que quero um papai
Pinguim. Foi o que pedi à mamãe. Não quero ser um pintinho, como a
professora da escola disse. Quero ser protegido igual o Mano[15], mesmo que
fosse diferente, ele tinha um papai que o amava.
Abraço com força ao meu Happy e sinto meus olhos arderem.
Tenho vontade de chorar, mesmo sabendo que a mamãe ficou triste com o
meu pedido, não pude deixar de fazer. Ouvi ela chorar várias e várias vezes.
Sei que ela é a melhor mãe do mundo, me ama, brinca comigo e me
abraça quando sinto dor. Quando choro e não consigo explicar com palavras
o aperto ruim dentro de mim, ela entende.
Quando nada faz sentido e tudo à minha volta me assusta, a mamãe
que fica comigo, me pega no colo e diz que me ama, que vai passar e que
sempre vai estar ali comigo.
Ela sempre chora escondida no quarto ouvindo a nossa música,
mas depois me abraça, diz de novo que me ama de tooooodo o seu coração e
que vai me dar tudo que puder.
Não queria fazer a mamãe sofrer, mas seria tão bom ter um Happy
só meu. E se eu tiver um papai, ele vai cuidar de mim e da mamãe. Porque
enquanto ela me pega no colo quando choro, ninguém faz isto por ela.
— Anjinho, está confortável amor, precisa de algo? Quer os seus
fones, vai fazer um barulhinho como da outra vez. — Tia Nina faz várias
perguntas, mas não espera que a responda. Ela ergue sua mão e coloca os
fones no meu ouvido e logo começo a ouvir a voz do MAH.
A mesma voz que ouvi naquele dia na piscina. Minha barriga treme
e meu coraçãozinho faz tum-tum, muito rápido.
Não suporto barulhos altos, eles fazem meu ouvido doer e
atrapalham minha concentração. Meus olhos doem e começam a chover luzes
fazendo as imagens ficarem estranhas. Me sinto sufocar, mas tudo isso de
uma única vez.
O único som que gosto é da música. A melodia me acalma e posso
através do som, ver as notas em minha frente. Consigo imaginar e tocá-las
com meus dedinhos inquietos.
Depois é só levar as notas para um instrumento e a música logo se
cria. Foi assim com o MAH. A voz não machuca meus ouvidos, e as notas
acalmam as estrelinhas agitadas na minha cabeça.
Tia Nina conversa com o tio Gio e depois entrega a ele algo, não
tenho curiosidade, estou pensando na Fadinha.
Sinto saudades da minha amiguinha. Eu não tenho muitos amigos
na minha escolinha. As crianças têm medo de mim e algumas mamães os
proibiram de brincar comigo.
Só tenho ela que também gosta de cavalos e… Ah! Tenho a titia
loira que me deu as canetinhas. Foi ela que me contou a história do ovinho
de pinguim.
Me lembro das caretas dela tentando chamar a minha atenção,
revirando os olhos, é engraçado! Durante vários dias, ela tentou conversar
comigo, mas não via nada interessante para isto até que a titia loira disse uma
coisa engraçada e bateu na aba do meu boné fazendo-o escorregar.
“Esse moleque parece filho de um ovinho mesmo, liso e sem
graça.”
Não entendi nada. Adultos dizem coisas estranhas, mas foi
engraçado. Lembrar disso me faz rir.
— Adoro essa risadinha gostosa. — Tia Nina cheira o meu pescoço
e o tio Gio espana o meu cabelo com a mão, igual ele faz com a cachorrinha
do vovô, a Kika.
Gosto de pessoas inteligentes que tentam entender a minha forma
de pensar. Apesar de ser muito novinho, a minha mente se concentra em
coisas que são complicadas para os coleguinhas da minha idade.
O que é ruim, porque ninguém gosta de brincar comigo. A titia
loira é inteligente e engraçada. Primeiro ela me contou uma historinha que
inventou, mas foi péssimo.
Depois trouxe um livrinho de pinguins, foi então que me apaixonei
— ela quem disse isso. Quando a mamãe me levou no ‘centro comercial’
para comprar novos livros, eu quis um igual aquele da titia loira.
Depois dos livros, ela levou os filmes e me deu canetinhas, me
dizendo ter um amigo e que daria a ele um filme igual.
Não entendi nada, mas é um adulto — dou de ombros.
Eu estava feliz me sentindo um pinguim, até a professora falar que
éramos pintinhos. Foi assim que tive de pedir à mamãe para mudar isto.
Porque a minha mamãe é muito forte. É como a mamãe do pinguim!
Não ouço o barulho, mas sinto o momento que o avião começa a
subir para o céu, logo meus olhos deslizam para a janelinha e não consigo
deixar de contar.
Uma… duas… três… quatro… cinco… ouço uma risadinha.
Minha curiosidade é atraída para o banco ao lado, vejo um papai
com o seu filhinho. Eles estão tirando da mochilinha, vários bonequinhos. O
menino tem uma risadinha igual a do papai dele. Os dois têm os mesmos
olhos, o cabelo de molinhas e a pele de chocolate igual à da tia Nina.
O papai do menino, entrega a mochila para alguém, — que não
consigo ver –, e os dois começam a brincar. Desvio meus olhos, não quero
ver, me sinto estranho. Aperto meus dedinhos com força e meus dentes
seguram as bochechas por dentro.
Minha atenção se volta para as nuvens que passam bem
devagarinho pelo céu. Volto a contar e fico pensando se aqui é o meu lugar.
A mamãe diz que sou o Anjinho — esse não é o meu nome, mas
tudo bem, não ligo. Ela diz que nasci no dia do aniversário de um anjo.
Mamãe sempre fala que sou especial, porque sou um presente de Deus.
Uma forma que Deus encontrou de devolver a felicidade para a
mamãe.
A vovó Maria, diz a mesma coisa, o teeeempo todo. Ela é muito
boa e carinhosa, mas briga muito com a mamãe. Ela vive dizendo que não
suportaria vê-la triste de novo.
Sei que sou especial de uma forma que algumas pessoas não me
entendem e não conseguem me aceitar. Isto me deixa triste e muitas vezes me
faz chorar, mas só porque sou diferente, não quer dizer que não sou um
menino bonzinho que precisa ser amado!
A mamãe e a tia Nina, falam isso diariamente.
Sou autista, reconheço o termo, porque sempre ouço falar disto
indo a fonoaudióloga, fisioterapias e médicos. E a mamãe sempre fala para as
pessoas que me conhecem: autismo não é doença, é uma condição.
Entendi que sou diferente, porque a minha mente pensa diferente.
Mas o que me faz sentir estranho é a forma que outras pessoas me veem, não
como sou.
Sei que vou encontrar muita gente em minha vida que vai me amar
e outras não, mas desde que vi uma pessoa, quer dizer, não vi. A minha
amiga Fadinha que prometeu me dar uma fotografia e que nela, poderia ver
uma pessoa especial que vai me amar.
Uma pena que ela mentiu para mim e não gosto quando isto
acontece. Desde que fez a sua promessa, nunca mais voltou no haras.
Isto me fez chorar.
Na minha cabeça, onde há muitas luzinhas piscando, posso
desenhar alguém como meu Happy, com a voz do MAH e que seja tão
inteligente como a Fadinha disse que ele é. — O ar sai do meu peito e faz
fuuu…
Só quero que o meu papai me ame, assim como faz quando sonho
com ele. Nunca contei para a mamãe sobre isso, mas, agora que tenho cinco
aninhos, já sou grandinho e não quero ficar do tamanho do tio Gio, para ter
um Happy.
Sem querer volto a olhar para as poltronas ao lado e não posso
segurar as lágrimas que se desprendem dos meus olhinhos.
O papai do menino, pegou outro bonequinho e está fazendo-o voar
bem no alto com a mão esticada. O menino está rindo e tentando levar seu
bonequinho tão perto quanto possível do papai.
Sinto meus dedinhos doerem, mas não olho para eles. Me sinto
triste...
— Anjinho, o que foi amor, por que está triste?
— Hum?
— O que foi campeão?
Sei que os meus tios se preocupam comigo, assim como a mamãe,
a vovó Maria, a Fadinha e a titia loira da escolinha, mas eles não podem
fechar esse buraquinho que dói no meu coração.
— Anjinho, está sentindo algo amor? Por favor, fale com a tia
Nina.
Ergo meus olhos e não consigo mais segurar o choro, não quero
sentir a minha cabeça doer e perder o controle. Ver todos à minha volta com
olhos assustados, me deixa muito nervoso, por isso deixo a tia Nina me pôr
em seu colo e me balançar com carinho.
— Shiii… Shiii… Me conta amor, o que houve?
— Dói aqui. — Aponto o meu peito e vejo que não entende.
Adultos nunca entendem!
— Está sentindo dor?
— Um buraquinho.
— Nina? — Tio Gio a chama e aponta a poltrona do lado e como
antes, fala baixinho como se não soubesse o que dizem. — Ele estava
olhando…
— Ah, meu Deus!
Eles não têm nada mais a falar. Abraço com força ao meu Happy e
aumento o volume da minha canção fechando os meus olhos e penso na voz
do MAH que ouvi no celular do tio Gio.
Quero que o avião chegue logo. Sinto vontade de ter um Happy,
mas também tenho saudades da mamãe. Fecho meus olhos e penso no que o
Sven[16] falou para Erik, filho do papai Mano: “Se você quer, precisa desejar
e o que desejar será seu”
Um… dois… três… quatro… quero meu Happy… seis… sete…
quero o MAH…
LIA
Dizem que as mães têm sexto sentido, eu me permito dizer que
tenho até o décimo.
A noite mal dormida em nada me ajudou a concatenar os meus
pensamentos duvidosos.
Me sinto agitada tanto quanto antes e nada parece me acalmar.
Tenho a sensação de que se não alcançar o meu filho o quanto antes, meu
corpo inteiro vai se estalar e quebrar em pedaços.
Saudades. Era assim que a minha mãe falava ao telefone quando
vivia fora. Só posso atribuir isso às saudades.
E o pai dele não está ajudando! Deus...
Sendo assim, me levantei antes das quatro da manhã e sem opções,
terminei de arrumar toda a bagunça em silêncio.
Com fones de ouvido e o celular em mãos entre um novo cômodo
organizado e uma nova playlist selecionada, enviava mensagens para Nina,
querendo saber a cada instante da partida deles de São Paulo para casa.
Quando por fim me respondeu, não tive coragem de comentar nada
do que houve nos últimos dias e sobre o encontro com Fadinha apenas o
mínimo, sobre a promessa da jovem em retornar para as equoterapias.
Às dez da manhã, já estava saturada de suor, cansaço e mau-humor.
Mikael não retornou a nenhuma outra mensagem e nem me ligou. E como
não sou de correr atrás, deixei de lado.
Se ele quer ficar sozinho, seja lá que porcaria esteja acontecendo,
faça bom proveito. Não sou a pessoa mais doce do mundo e não seria tão
melosa ao ponto de mimá-lo, mas sou alguém racional que poderia fazer
algo. Porém, conheço o Promotor e se isolar é seu método de me fazer pisar
no freio — depois de uma noite insone, sinto muito por ele, desta vez não vai
acontecer.
— Dane-se, não tenho paciência!
A casa foi arrumada e um novo conjunto de lençol e edredom com
temas de pinguim foi estendido sobre a cama de Anjinho — sorrio. Meu filho
com sua nova paixão tem me feito rodar como um hamster na roda da vida.
A notificação de Nina pouco antes do embarque acelerou o meu
coração. E como o aeroporto está praticamente do outro lado da cidade, me
adiantei com um banho rápido, deixando a água lavar toda frustração e me
preparando para encontrar o meu maior tesouro.
Vesti um jeans, camiseta e calcei um louboutin preto de salto, meu
delicioso vício. Alcancei bolsa e as chaves, pronta para sair. O celular ficou
no carregador na sala e ao desconectar, percebi novas mensagens no grupo
das “Luluzinhas” e outra em privado por parte de Juliana.
@July_moranguinho: se não aparecer no grupo, vou aparecer
para você �� BOOO
INTIMAÇÃO
“A posse mal administrada, pode arrebentar tudo que vier pela
frente.
Porém, quando dosada com amor é arrebatadora…”
LIA
OIS DIAS... – pausa – dois dias sem nenhuma notícia sua Mikael, o
>>D
que está acontecendo? Não sou a pessoa mais paciente do mundo e
não tenho a intenção de perder o foco fazendo conjecturas sobre seu silêncio.
Então...
>> Quer saber de uma coisa, dane-se. Quando achar que deve, me
procure e se eu estiver disponível, respondo. Só quero lembrá-lo de algo: foi
você quem veio atrás de mim primeiro.
Termino de colocar os lanches na bolsa térmica e torno a olhar para
o celular largado sobre o balcão da cozinha sem qualquer sinal de mensagem.
Ignoro o aparelho e toda a situação que ronda a minha mente.
Durante os últimos dois dias, conjecturar coisas demais sobre o que
acontece em relação a mim e Mikael, assim como a saúde mental do meu
filho que tem sido bombardeada por sua necessidade infantil é algo externo
que foge ao meu conhecimento.
— Lia, estamos ficando atrasadas. — Nina coloca a cabeça pelo
vão da porta.
— Terminei aqui.
Ela acena e deixa próximo ao portal a bolsa de palha com toalhas,
protetor solar e várias bugigangas que levamos para a praia.
Chamo Anjinho algumas vezes, sem resposta caminho em direção
à pequena sala de jantar.
— Meu amor, o que está fazendo? Vem trocar a roupa! — Anjinho
com os seus olhinhos acesos, com uma ansiedade boa ergue seu olhar e sorri.
Caminho até mesa de jantar, canetas, lápis de cor e as tais
canetinhas mágicas, estão espalhadas, mas de uma forma ordenada por cores.
— Um desenho do Anjinho, no avião.
Assim que ouço o que diz, meu peito se oprime, por medo de que o
episódio do que se passou dias atrás, se repita. Porém, olhando por sobre sua
cabeça inclinada contra o caderno de artes, me surpreendo com a imagem.
Um pinguim anjo, com direito a auréola e tudo, voando lindamente
sobre o céu azul cercado de nuvens.
— Anjinho, que lindo amor! Que desenho mais fofo, vamos pôr em
uma moldura?
Ele balança a cabeça recusando.
— É um presente, mamãe.
— Oh, que lindinho. — Me curvo e faço cócegas em meu bebê.
Não faço comentários sobre para quem é o presente, pois é mais do
que notório. Eu tinha me decidido a não dizer nada sobre o meu encontro
com a Fadinha, mas após ver o estado em que chegou em casa e como
acordou, sabia que se falasse com ele sobre a promessa da sua amiguinha em
encontrá-lo no haras, a alegria voltaria para o seu rostinho.
Eu, tinha razão, bastou saber que a sua Fadinha estará na próxima
sessão de equoterapia esperando por ele, para que meu filho resolvesse
resumir toda a sua viagem em lindos desenhos.
Seu entusiasmo foi tão grande, que antes mesmo do sol raiar, ele já
tocou seu piano, colocando uma música, pedindo um lanche especial para
levarmos à praia e feito várias folhas de desenhos incríveis.
Nina voltou à sala e ao ver o novo desenho elogiou com
sinceridade. A caricatura me chama a atenção, por ser um auto reflexo que
transmite uma paz que meu filho está sentindo. — Está muito bonito.
— É igual o Svem, ele voa.
— Ah, verdade! — Outra referência do seu filme preferido
soluciona o mistério. — Que tal terminar depois?
Ele balança a cabeça negativamente. Seguro o riso e dou de
ombros. Nina faz o mesmo ao sentar-se em uma das cadeiras de espaldar alto
e colocar os fones de ouvido.
— Tudo bem, pode terminar, vou me trocar. — Deixo-os na sala e
sigo para meu quarto, para terminar de colorir, ao ponto que se dê por
satisfeito.
Com o celular jogado sobre a cama espero resposta aos áudios que
enviei. Ainda acho terrivelmente perturbador o meu encontro com Mikaella e
não por achá-la tão parecida com Mika e meu filho, mas pela forma que me
tratou, como se tivesse rancor de mim.
Se realmente Nina, estiver correta em sua análise sobre o
comportamento da jovem, devo deixar isso de lado, pois pode ser impressão
minha, ou o fato de invadir o seu espaço pessoal me aproximando sem ser
convidada, pode ter causado essa antipatia gratuita — bufo exasperada —
não posso deixar de concordar sobre esse aspecto, mas… é intrigante.
Apesar de que ainda me incomoda muito a sua última frase:
conheci o pai do Anjinho.
Isto sem falar que Christian é o irmão dela. O tal San que
conseguiu atrair o interesse de Nina, que mundo pequeno.
Amarrei as tiras do biquíni e escolhi um short jeans e uma camiseta
larga para usar sobre a roupa de banho.
— Esquece isso, Lia, você precisa se concentrar em coisas mais
importantes. — resmungo comigo mesma e ouço Nina chamar-me.
Me ergo e deixo o quarto, levando comigo uma bolsa com câmera
fotográfica, óculos, carteira etc.
Anjinho com um sorrisinho enigmático, olha seu próprio desenho,
depois fecha o caderno e o abraça.
— Hummm, para quem será esse presentinho? — Nina arrulha seus
cabelos desordenadamente.
O menino se inclina soltando uma gargalhada gostosa, com carinho
ele nos ajuda a guardar ordenadamente todos os seus objetos antes de
seguirmos para seu quarto.
— Mamãe, Anjinho ama a praia.
— A mamãe adora ir à praia com você, meu amor. — Seguro pela
lateral do seu corpo e faço cócegas sobre a pele suave da sua barriga macia.
Ele se curva com risadinhas.
Em clima de descontração, deixo de lado meus pensamentos
angustiados e as preocupações para passar o dia com meu filho e minha
amiga.
O condômino à beira-mar tem pontos negativos e positivos e, entre
estes, o fato de só atravessar a avenida e colocar os pés na areia morna supera
todos os pontos negativos.
— Ah, que delícia! — Nina exclama se jogando na cadeira da praia
protegida por um imenso guarda-sol.
— Não acredito! — digo rindo da sua bravata. — Você estava
sentada a menos de cinco minutos, vem para a praia e faz o mesmo? Nem
pensar, levanta-se.
Ordeno ao mesmo tempo, segurando em seu antebraço.
— Não! Quero primeiro abastecer as minhas retinas e só então me
lançarei ao mar.
— Nem se atreva Nina, nós vamos mergulhar. Vem. Anjinho,
ajuda a mamãe.
Anjinho segura do outro lado do seu braço e a farra começa. Nina
se contorce fazendo drama, enquanto nós dois nos divertimos bloqueando sua
visão.
— Não, não, não… me deixem aqui apreciando a vista, por favor.
— Ela reclama, enquanto descaradamente morde e lambe os lábios. Sigo seu
olhar e vejo os mesmos rapazes, que dias antes estavam jogando vôlei diante
do apartamento, um pouco mais afastados na areia.
— Você não vai sumir!
— Não mesmo, preciso tomar conta de tudo aqui.
— Quanto a isto, não precisa se preocupar. — respondo com a voz
enfadada.
Ela ergue os olhos e aponto na direção oposta. Três mesas longe de
nós, está Dionísio e mais um segurança com suas camisas de manga dobradas
até os cotovelos e óculos de aviador.
— Pelo amor de Deus! — diz exasperada. — Poderiam ao menos
colocar roupas mais confortáveis.
— Concordo.
Ela se rende ao apelo de Anjinho e juntos corremos para a água.
Passamos um tempo brincando, apesar de o dia ser mais de
mormaço que sol intenso e resolvemos voltar para as nossas cadeiras e
sombras.
Os jogadores de vôlei fizeram alguns comentários, como sempre,
mas nada que dois imensos guarda-costas nos rodeando não pudessem
desestimular para a tristeza de Nina.
— Anjinho, vamos tomar um suco? — Ofereço a ele uma
garrafinha com um canudo, sentado dentro da sua poça de areia remexida.
Meu filho olha com atenção para o mar.
— Nina? — Chamo-a e entrego uma garrafa de suco, enquanto eu
me servia de água.
— Não conseguiu notícias? — Nina pergunta em voz baixa, mas
sem me olhar.
— Não.
A resposta simples diz muito mais do que gostaria de transparecer.
Não gosto de demonstrar fraqueza, ou deixar que vejam esse lado
que mal consigo suprimir quando se trata de Mikael. Assim como no passado
e em qualquer momento das nossas vidas que nos aproximamos demais, ao
menor sinal de distanciamento, sinto-me devastada.
Droga! Isto não era para estar acontecendo tão rápido, não assim.
Deixo de lado a água e volto a me concentrar em meu filho que
atrai minha atenção.
Apesar do adiantado da hora o sol ainda é brando, o que é bom,
pois a pele muito branquinha de Anjinho se queima fácil, mesmo carregando
seu corpo de protetor solar e o mantendo debaixo do guarda-sol. Ele ainda
não tem as sardas espalhadas pelo corpo como o pai, mas sei que ao longo
dos anos elas virão, e serão charmosas. No entanto, me preocupo com a saúde
da sua pele sensível, principalmente o rosto onde elas são mais intensas.
Coloco mais uma camada de protetor sobre o rosto de Anjinho, ele
reclama e tenta fugir, mas o seguro bem, criando uma espécie de brincadeira
para entreter seu interesse.
— Lia, acredito que vou entrar na água e levar Anjinho, quer vir?
— Não, vão vocês, vou tirar fotos. — Digo entusiasmada. —
Depois que voltarem, nós vamos para casa, já está quase na hora do almoço.
— Ok! Está montando um novo álbum? — Nina pergunta soltando
a canga ao ficar de pé.
— Sim — meu sorriso é discreto, mas o olhar perspicaz da mulata
não perde uma deixa.
— Hum! Esse álbum tem alguma foto explícita?
— Não! — Nego rápido demais.
— Mas, terá!
— Nunca, o Anjinho depois vai querer ver.
— Mas as fotos não são para ele. — Ela dá de ombros segurando
Anjinho pela mão que já está assanhado para correr por todo o caminho.
— Você não estava indo mergulhar? — Aceno com a mão
mandando-a embora, enquanto inclino a máquina na mão.
Clic… clic… clic…
Novas fotos são capturadas pelo obturador da máquina. Anjinho
olhando para cima, sorrindo, saltando e correndo em direção a água.
De fato, as fotos, como este álbum não são para ele, mas para
recordar cada mês de sua vida, cada detalhe do que viveu. Pode parecer uma
forma insana de tentar me redimir com Mikael para quando contar-lhe sobre
o filho. Não que tivesse isto em mente quando iniciei minha coleção, mas por
algum motivo — óbvio demais — não posso evitar fazê-lo.
Mordo o canto do lábio com força. Talvez, uma foto de um certo
homem deslumbrante, dormindo despenteado possa aparecer em meio ao
álbum, mas isto não preciso revelar a ninguém.
Isso me faz pensar em Mikael e estupidamente, procuro o celular
na bolsa e não consigo impedir a mim mesma de fazer uma ligação.
MIKAEL
— Não vai atender ao telefone? — A voz grave interrompe minha
concentração sobre o aparelho que trepida sobre a mesa do restaurante.
— Não.
— Até quando pretende ignorá-la e por qual motivo está fazendo
isto?
— Ramon, o fato de contar as coisas para você, não quer dizer que
pode devolvê-las em perguntas. — respondo entredentes.
— Tudo bem. — Ele se serve de uma taça de vinho e a saboreia. —
Pode então me dizer, por qual motivo marcou um encontro entre nós, mas
resolveu vir me encontrar primeiro?
— Não sei! Realmente ainda não sei o que estou fazendo aqui —
pauso. — E nem por qual motivo não consigo falar com ela.
— Que tal começar, pelo começo? — Meu amigo sorriu, tentando
me encorajar a falar.
Falar. Parece ser algo impossível no momento. A dois dias comi
um espinho que parece ter travado na minha garganta e desde então tem
espetado de uma forma que sinto o gosto ferruginoso do sangue se mesclando
ao meu paladar.
Inconscientemente ergo a taça com água e tomo de um único gole
todo seu conteúdo.
Após deixar Lia passar por aquele momento estranho desde que vi
a moça violinista e até as revelações no porão de casa, tudo se tornou nublado
em minha mente.
Não pude fazer mais do que marcar um encontro com Angel e rugir
algumas coisas inteligíveis para Ramon. Horas depois e mesmo sem entender
nada, meu amigo permaneceu atento ouvindo-me ao telefone.
Para somar a isto, Caleb não me deu nenhuma nova notícia
animadora, ao contrário. Os bandidos presos, estão calados como tumbas. O
que conseguiu escapar, mesmo ferido, ainda não foi encontrado.
Suspirei acompanhando o garçom repor com seu jarro alto a água
na taça, nem mesmo percebi Ramon chamá-lo. Deveria beber algo mais forte,
como um bom uísque, mas embotar os sentidos com álcool não me fará bem
algum.
Sei, pois, foi o que fiz nos dois últimos dias entrando e saindo em
um estado lamentável de semiconsciência alcoólica, para ler e ouvir as
mensagens que Lia me deixou.
Minha secretária, conseguiu-me dias de folga e não faço ideia de
como. Os assistentes assumiram suas tarefas e ao menos isto, pude por certa
ordem, mesmo não estando presente, mas só fui me dar conta de que estava
colocando tudo a perder no pequeno avanço que fiz em meus planos, ao ouvir
os áudios de Lia.
— Lia é uma mulher persistente, quando se trata do seu trabalho e
família, mas não acredito que ser tratada dessa forma irá deixá-la excitada.
Ou vai? — O sarcasmo do argentino esperta em meus ouvidos.
— Você ouviu o áudio. Não se faça de bobo.
— Quem parece estar bancando o bobo aqui é você. Disse que se
sentiu mal no conservatório por recordações antigas e entendo que deva ser
algo fora dos padrões, mas é realmente por este motivo que está se
escondendo?
— Quem está se escondendo aqui, Ramon?
— Bem, eu que não sou.
— Ela vai pensar que estou fugindo devido ao moleque?
— Você está? Realmente está fugindo de algo? O que o levou a
pensar nisso agora?
— Não sei, talvez —, ergo meus olhos irritados — estou na porra
de um interrogatório? Isto era para ser um almoço entre amigos.
— Parece assustador demais estar próximo a eles?
— Ramon!
— Sinto muito, são velhos hábitos. No entanto, parece ser a única
forma de conversarmos desde que chegou aqui, além de rugir feito uma fera
enjaulada e dizer frases desconexas, esta é a primeira vez que está sendo
coerente em algo.
Não posso rebater essa verdade. Ao sair de casa em direção a ilha,
queria poder conversar, ou só passar o dia sentado na praia sem fazer nada,
porém Ramon me convenceu a andar em seus calcanhares como uma sombra
para resolver algumas pendências do restaurante.
Conversamos o que achei plausível, uma vez que estamos rodeados
de outras pessoas, não tive coragem de falar sobre o DNA ainda, mas falei
sobre como me senti encarando a moça no conservatório e o fato de ter
passado dois dias imersos em uma bolha de auto piedade e comiseração.
— Então, é assustador?
— Não sei se assustador seria a palavra —, me rendo às suas
perguntas e dou de ombro — mas, estranho. Estou descobrindo algo que
sempre julguei ridículo em vocês.
— O que seria? — Ramon levou um pedaço do suflê à boca e
mastigou lentamente saboreando a comida refinada de Carla.
— Eu me sinto estranho, possessivo e ciumento. Com raiva? Porra,
não faz o menor sentido isto. Durante todos esses anos, não perdi uma única
oportunidade de comer qualquer buceta que quisesse e o fato de Lia ter
estado com outro homem, jamais me incomodou, — pauso para poder conter
minha voz que vai aumentando de tom — droga, mal consigo falar. —
Sussurro.
— O fato de ter um filho, o incomoda?
— Porra! — Esbravejo alto chamando a atenção de outras pessoas.
— Se me incomoda? Isto arranca o inferno de dentro de mim. Antes, eu
usava este fato para ofendê-la e sabia o que estava fazendo.
— Idiota.
— Foda-se! Eu não dava a mínima, mas agora? Só de pensar nisto
e depois…
Após ver a dedicação da minha mãe em manter a memória de uma
filha, uma irmã que nem conheci viva através de presentes, pertences e até
com as poucas fotos de bebê que encontrei, esse sentimento estranho tornou-
se ainda mais arraigado em minha mente. Quase impossível de controlar.
— Eu nem acredito que estou dizendo isto em voz alta, Ramon,
mas tenho ciúmes. É um absurdo, mas posso jurar que sinto ganas de matar o
desgraçado.
— O pai?
— Óbvio! O moleque parece ser espertinho e pelas coisas que Lia
fala, porra! Como ele abandona assim? E como ela…
— O que faria se o filho fosse seu?
— O que disse?
— Sei que não é o caso, mas o que faria se fosse? Te incomoda ela
ter um filho, OU o fato de ser outro pai?
— O que eu faria? O que me incomoda?
— Isso! — Ele dá de mãos no ar. — Você já analisou o que
realmente tem te deixado chateado na situação?
— Eu não faria porra nenhuma, porque não é. Não sei que droga
faria, não sou o tipo paternal.
— Quando conversamos no escritório, me garantiu que estaria
disposto a ceder espaço para uma criança, e pelo que parece, tem se tornado
algo difícil para você fazer. Imagino que de dez coisas que Lia fale, onze são
sobre o menino.
— Exato!
— Você está se sentindo pressionado por ela.
— Pode ser.
— Contudo, essa pressão não incomoda, verdade?
— Não.
— Então por que acredita que não é paternal?
— Estou no maldito interrogatório de novo? Está embaralhando as
perguntas para me fazer confessar algo, que não sinto, seu idiota?
— Não sente, não sabe que sente, ou tem medo de admitir sentir?
— Ramon, o moleque parece ser alguém especial e o fato de não
querer ser pai, não quer dizer que odeie crianças. Por Deus! Sou um bom tio,
porra!
— Então o que te incomoda é o fato de outro ser o pai?
— Ramon, odeio quando faz isto.
— Quando faço o quê?
— Foda-se!
— Então essa é a razão pela qual está ignorando-a? — Ele bufa,
limpa os lábios com guardanapos de linho e joga ao lado do prato. — Durante
todos os anos em que estive longe — estudando fora do país — muitas coisas
aconteceram e entre essas, o seu namoro com Lia. Quando me contou que
não só ficou com ela, como tirou sua virgindade, lembra do que te disse?
— Claro, acredito que foi a única vez que me deu um soco na cara?
— Exato. O que te disse?
— Que me tornasse a porra de um homem e assumisse minhas
responsabilidades. Fiz isto e você sabe o que houve depois.
— Vou dizer novamente, Mikael. Há pouco tempo você bateu no
peito dizendo que ela era a sua mulher e que não importava o que trouxesse
consigo para esta relação. Assuma isto de uma vez. Não importa o pai
biológico, se você estiver disposto a se tornar um — Ramon cruza os braços
sobre o peito e me encara seriamente. — Carlos Eduardo é o melhor exemplo
que podemos ter.
— Mas…
— Não existe, mas, Nikolaievitch. Não, quando se ama alguém de
todo o coração.
— Amor? — É a minha vez de cruzar os braços e abandonar o
prato intocado.
— Sim, amor! Aqui vai uma lição de alguém que é altamente
dominante. A posse mal administrada, pode arrebentar tudo que vier pela
frente. Porém, quando dosada com amor é arrebatadora.
— Por que acredita que sou capaz disto?
— De amar?
— Sim, de sentir exatamente isto…
Ramon fixa seu olhar sobre mim por um tempo e de repente
começa a rir sem poder se controlar.
— Me diz, alguma vez deixou de amá-la?
CAPÍTULO 33
INVASIVO
O amor é invasivo, quando menos espera ele está lá…
ANGÉLICA
D
iferente de todas às vezes que estivemos em uma missão, essa está sendo a
pior de todas. É difícil controlar meu humor quando a minha vontade é
acertar San com algo duro o bastante para desmontá-lo, mas isto também
colocaria um fim no meu sutil interrogatório.
As nossas passageiras estão descansando em um sono forçado, pois
não podemos arriscar que vejam para onde estão indo, são rotinas de praxe
que usamos ao transferir nossos clientes de um esconderijo ao outro. Por isto
pensei que a conversa com ele seria mais flexível, mas o miserável manteve
boa parte do trajeto em uma constante vigilância enquanto dirigi o SUV.
Bufo e deixo de lado o notebook que vinha trabalhando desde a
última parada. Sinto seu olhar recaindo sobre mim, ignoro, alongo meus
braços à frente do corpo, os cruzou sobre o peito recoberto por um colete a
prova de balas, fecho meus olhos e repouso a cabeça contra o encosto do
banco.
Desde que Mikael o reconheceu a poucos dias, San tem sido
arredio e cauteloso, mas não o bastante para perceber que algo na esfera
pessoal tem perturbado sua mente, e não acredito que seja apenas o
reconhecimento de Mika. Tem algo a ver com pintura e o meu sexto sentido
diz isto.
Me surpreendi ao saber que a mulher no quadro foi pintada por ele,
aliás, a surpresa, foi por não ter percebido a assinatura na borda do quadro.
Bastava juntar as peças e saberia quem era o pintor, mas a preocupação em
saber quem era a mulher tirou o meu foco do principal, os detalhes a minha
frente. Porra! Isto seria motivo para levar uma surra do meu pai. Gustavo
jamais aceitaria um erro de reconhecimento tão importante.
Descobrindo o pintor, o que me resta é saber qual a ligação dele
com uma mulher que estava ao lado do meu pai em uma foto. As joias que
ela está usando não me interessa mais, é fato que foram presentes de Gustavo,
mas com qual intenção e quando?
O pendrive que Santiago deixou cair acidentalmente em seu
apartamento, está muito bem seguro no meu cofre secreto, mas com uma
senha da qual ainda não fui capaz de abrir, se de alguma forma ele quisesse
mesmo mantê-lo escondido, não teria deixado cair bem diante dos meus
olhos, mas sim colocado no bolso ou até mesmo engolido.
Esse é outro mistério que me ronda, sei que ele quer que eu
descubra o que tem ali, mas a senha é algo que ele me dirá ou terei de
arrancar-lhe, da mesma forma que parece aumentar os seus segredos que
esconde de mim?
— Se você soltar outro suspiro, segundo a tradição chinesa uma
desgraça cairá sobre nós, se puder economizar, agradeço.
A voz de barítono invade os meus ouvidos, não abro os olhos, mas
só para provocá-lo solto um novo suspiro tão alto que parece ridículo.
— Tudo bem, vamos lá, me diz o que está te incomodando
patroazinha?
— Me responde o que perguntei e quem sabe, não passe meu
incômodo?
— Não sei exatamente o que quer saber.
— Não se faça e me faça de idiota Santiago. Quero saber sobre a
pintura no restaurante da Carla.
— O que leva a crer que tenho algo a ver com isto?
— Não sei exatamente, talvez a assinatura, — respondo com
petulância perdendo de vez a paciência —, quem sabe a porra da coincidência
do nome na borda do quadro, ou o fato de Ramon dizer que seu “amigo
Álvaro”, amar a pintura. Pode ser também o fato de ter a porra de uma foto
idêntica, nas caixas que recuperei na casa dos meus pais?
O carro que seguia em linha reta, quase breca no meio da pista sem
cortar o fluxo, mas o erro na passagem da marcha me faz abrir os olhos e
olhá-lo com um ar de puro deleite.
— Bingo, seu filho da puta!
Não consigo esconder a sensação de prazer por perturbá-lo da
mesma forma que Mika fez ao reconhecê-lo apenas pelos olhos, o que ainda é
um mistério para mim, como fez isto?
Santiago não diz nenhuma palavra, mas sua expressão está longe
de ser a fria e reservada que ele sempre mantém escondendo seus sentimentos
e emoções.
— O que exatamente tem nestas caixas, Angélica? — Não perco o
tom que usa ao falar meu nome, mas isto está longe de me deixar insegura.
Quando se é o gato e tem a faca e o queijo na mão, o rato por mais
perspicaz que seja, cai na armadilha.
— Tem o que preciso que esteja lá. Agora que tenho a sua atenção.
Pode me responder de uma puta vez, com a verdade de preferência.
— Sua língua anda afiada mocinha, — ele burla com sarcasmo,
mas percebo ser apenas para ganhar tempo.
— Foda-se! Os bons modos. Sou todo ouvidos.
— Pintei o quadro.
— Quem é a mulher?
— Pintei a partir de uma foto.
— Por quê?
— Porque Gustavo pediu.
— Meu pai pediu a você para pintar um quando? Desde quando é
um pintor, ou melhor, reformule sua resposta. O Gustavo que conhecemos,
não deixaria você praticar algo que amasse, analisando a beleza e delicadeza
da pintura, não foi uma ação feita sob disfarce, aquilo é obra de um artista de
verdade.
Ele rumina algo, bate contra o volante e esbraveja, o tom acentuado
das palavras dele agulham minha consciência. San sempre que perde o
controle deixa sua ascendência falar mais alto, talvez por ser acostumada aos
rapazes fazer o mesmo, ou ter sido criada em meio a tantos estrangeiros de
vários lugares, nunca me dei conta de quanto o sotaque dele parece carregado
nos últimos tempos. Como se estivesse treinando constantemente o idioma!?
Sempre achei charmoso demais, mesmo sendo raras às vezes que
isto aconteceu, pois, ele é o catedrático em manter seu controle, suas emoções
bem represadas, no entanto, Santiago parece uma bomba, pronta a explodir.
— Estou esperando uma resposta. — Ergo o sobrecenho e o encaro
deixando-o desconfortável. — Aproveita e refresca a minha memória, por
qual motivo você quer tanto se vingar dos Listradinhos?
— Por quê? — ele grita. — Rá! Só o que me faltava a está altura
do campeonato ter de explicar as regras para você novamente Angélica. Se
precisa disto, então é melhor repensar sua parte nisto, pois deve ter se
esquecido do que passamos, porra! — Sua voz alterada em nada me abala,
mas faz com que nossa passageira mirim remexa no banco de trás.
— Controle-se ou teremos de sedá-la novamente.
— Ok! Pintei o maldito quadro, porque a foto foi rasgada, e ele
queria uma lembrança.
— Você tem a foto inteira? — pergunto surpresa.
San desvia o seu olhar da estrada e me encara fixamente por alguns
instantes.
— Não. Eu apenas me lembro do rosto dela.
— Você pintou um rosto, a partir das suas lembranças? Quem é
essa mulher, Santiago. Por qual motivo meu pai iria querer uma imagem dela,
era para si mesmo?
— Era um presente, Angélica. — Ele bufa e desvia o olhar em
minha direção. — Quem ou o que ela foi, não importa mais. Ela está morta,
assim como ele, fim de papo. Estou dirigindo a porra de um carro em uma
estrada movimentada, se quer mesmo saber mais, vai esperar o momento
certo em que eu possa falar.
— Está me mandando calar a boca?
— Não, mas se precisar vou sedar você, assim como elas.
— Tente, se for capaz.
Ele não respondeu, mas devido a auto preservação não apenas das
nossas vidas, mas de outras inocentes no banco de trás, deixei de lado o
assunto. No entanto, em minha mente um novo motivo está brilhando como
um farol para vasculhar as caixas novamente, uma a uma. E mais, tenho a
sensação de que acabo de descobrir a senha do pendrive. Se essa mulher era
alguém importante para estar gravada no subconsciente de Santiago, talvez
uma das datas que estão no verso e na borda do quadro seja os números que
preciso.
— Hum! — suspiro e desta vez com um riso no canto dos lábios.
— Vamos fazer uma pausa na próxima parada, San. Estou com vontade de
tomar uma enorme caneca de leite quente com canela.
— Louca! — ele resmunga e pisa no acelerador.
— Pode apostar sua vida nisto.
Rebato sem dar atenção, abro meu notebook, conecto os fones sem
fio e clico no filme que estava em pausa, voltando a me deliciar com Happy
Feet, não imaginava que assistir tantas vezes esse filme com o pirralho da Lia
fosse me viciar. Um riso cruza meu rosto. As minhas preocupações com San
e seus segredos foram tão grandes que me esqueci completamente de visitar o
garoto.
O menino é um primor. Especial não pelo autismo, mas por ser
terrivelmente sarcástico como a mãe e nervosinho como o pai de um jeitinho
charmoso.
— Espero que saiba o que está fazendo.
— Assistindo um filme? — respondo olhando de lado e vejo que
ele está com os olhos na tela e um ar estranho. — Você conhece o menino?
— Estou dirigindo.
Minha vontade é de novamente acerta-lhe com algo bem duro na
cabeça, mas me distraio da minha veia assassina e foco no filme, mesmo que
a minha mente por detrás da diversão continue juntando pontinhos, sobre o
que ele não diz, mas posso deduzir.
LIA
De acordo com Marta a assistente da Promotoria, Mikael hoje não
foi trabalhar como nos dois últimos dias. A preocupação com ele só
aumentou após saber disto. Nina e Anjinho resolveram almoçar no quiosque
da praia, o que para mim, foi melhor ainda. Minha amiga foi compreensiva e
agitou o menino para ficar mais tempo com ela na praia enquanto a mamãe
sairia para trabalhar.
Deus que me perdoe por mentir para um anjo.
Deixei os dois aos cuidados de um dos seguranças e com Dionísio
voltei para casa, ofereci a ele para almoçar o lanche que deixei pronto e fui
me arrumar. Dificilmente conseguiria sair de casa sem ser escoltada e
querendo ou não ele, se tornou um amigo.
Ainda não desceu bem a sua afronta no aeroporto, mas se tudo for
levado a ferro e fogo, no fim irei acabar em uma camisa de força, olhando
para paredes estofadas de branco. Essa situação está me exaurindo, me
enlouquecendo.
Enquanto o meu guarda-costas devorava os sanduíches de rosbife e
saladas de batatas na cozinha corri para o meu quarto. A primeira coisa que
fiz foi ler as malditas mensagens acumuladas, entre elas duas de mamãe
avisando que Juliana estava entregando os convites de aniversários das
gêmeas e que possivelmente poderia aparecer sem avisar.
Idiota que fui, por não dar atenção antes.
Me recrimino, mas estou na onda do segue o baile, dane-se o que
está feito, não pode ser desfeito por força da mente. Outras mensagens foram
ouvidas, duas do escritório, Pedro querendo saber se poderia atender um
cliente com sério problema em seu imóvel. Devido à importância e o enorme
rombo que faria em minhas finanças perder este cliente em potencial, enviei
uma mensagem confirmando uma reunião para sexta-feira.
As mensagens do grupo das Luluzinhas pareciam ser as mesmas,
nenhuma menção de July sobre o meu filho, o que me fez ficar calma.
Alguém adicionou Angélica no grupo e ela saiu no mesmo instante, outra
adicionou novamente. Isto parece ser uma constância, por fim creio que ela
tenha desistido, pois, deixou uma mensagem nada agradável como boa tarde,
mas não saiu desta vez.
Pensei em ligar para Mikael, ou um dos rapazes e perguntar sobre
ele, mas seria perda de tempo e só colocaria mais lenha na fogueira, o melhor
mesmo era ir até ele. Correndo o risco de ser enxotada, de uma nova briga e
provavelmente ouvirei o que estou tão temerosa, mas não posso deixar de ir.
Com tudo em mente resolvido, parti para um banho cuidadoso,
para retirar toda areia do cabelo, na verdade, ganhando tempo para montar
uma perfeita estratégia de argumentação e não deixar meu lado indomado ser
invasivo ao ponto de romper a nossa ligação tão tênue.
Conectei o celular com o reprodutor de áudio no quarto, a primeira
música veio como um tiro de adrenalina, para me fazer virar do avesso.
— Não me restam dúvidas, é um sinal dos céus! Como diz July, o
Universo querido, anda conspirando.
INTUIÇÃO
“Às vezes é preciso recuar para seguir”
— Happy Feet 2
MIKAEL
INTUITIVO
“Quando não há interesse em se conhecer a verdade, é fácil se manter à
margem. Contudo, eu quero saber todas as verdades, doa a quem doer.”
Mikael
uando
Q percebi que
o motorista
cortando
outros carros em alta velocidade era Dionísio, senti meu estômago embrulhar
imaginando que algo pudesse estar acontecendo. Sem medir as
consequências, dei seta desviando-me para outra pista acelerando a moto até
conseguir alcançá-la.
Por um longo trecho mantive-me ao seu lado e apesar do carro ser
blindado com vidros escurecidos, é impossível não ver o quanto Lia está
irritada. Por um momento pensei em deixá-la seguir o seu caminho, Pedro no
dia anterior havia enviado uma mensagem, falando sobre o seu retorno ao
trabalho, e que o cliente estava colocando pressão sobre o caso, talvez
pudesse ser esse o motivo. Contudo, um sexto sentido me fez arriscar.
No primeiro sinal em que paramos, avancei entre o corredor de
carros colocando-me na sua lateral. Percebi um movimento no banco traseiro
e deduzi que fosse Nina e o menino. Isto me deixou bem agitado ao ponto de
ligar para ela em meio ao trânsito.
Me arrependo de ter de alguma forma perturbado a criança, pelo
jeito seja lá o que houve na escola, deve ter sido grave. A sensação de
queimação incômoda que senti há alguns dias em meu peito voltou a arder.
Queria poder assegurá-los que tudo ficará bem, mesmo que não saiba como
fazer.
Sinto o seu nervosismo, que a criança esteja gritando, me deixa
ainda mais sem graça e com medo de perturbá-lo. Se alguém me dissesse há
um ano que eu faria uma pesquisa extensiva sobre: como se relacionar e
conquistar o filho da sua namorada.
Sinceramente, eu estaria de mudança para o Polo Norte. Graças a
Deus! Isto não aconteceu. Nunca imaginei que realmente houvesse uma regra
criada para transpassar essas barreiras, que não são apenas dele — se houver,
— mas, em grande parte de mim mesmo.
A primeira regra diz que tenho de manter um afastamento inicial,
até que o nosso relacionamento seja oficial.
Incrivelmente dei o primeiro passo, até pedi-la em namoro fiz, a
questão é convencê-la disto, sem esse passo não é aconselhável me aproximar
da criança, o que por um lado me senti aliviado.
Realmente não tenho cem porcento de certeza de que isto seja uma
boa ideia.
A segunda regra é não competir com a criança, pela atenção da
mãe. Não que pretenda fazer, apesar de ser difícil. Confesso que gostaria
muito de saber o que está acontecendo e fazer o que me dispus ao sair do
tribunal, mas ela foi clara, hoje ele precisa de colo de mãe.
— Mika, eu…
Ouço sua voz transbordar reticências e a terceira regra estala em
minha mente: nunca atue como pai ou mãe da criança, preciso manter-me
neutro e deixar que ela controle e abra espaço para que participe da
situação. O moleque precisa confiar e me respeitar, por se sentir da mesma
forma e não coagido.
— Lia desliga, vai para casa em segurança, não corre, — pauso e
peço com carinho abaixando o tom da voz fazendo valer as tais regras. — Diz
ao moleque que depois, me desculpo com ele. Beijo minha anja.
Encerramos a ligação, Lia segue por mais alguns metros, liga a
seta, sigo-a até perto do posto de gasolina.
A quarta regra diz que devo ser agradável, mas ter cuidado com os
exageros; posso cuidar, o que já faço com a segurança redobrada, ser gentil e
incentivá-lo, contudo não abusar da proximidade. Ou seja, abordá-los em um
lugar público, sendo um estranho está fora de cogitação.
Essa coisa de ser o namorado da mamãe, está sendo muito mais
complicado do que parece. Desvio a moto para pista lateral, Lia encosta no
posto e pelo retrovisor a vejo abrir à porta, porém ela não desce do carro,
acho estranho.
Dou seta parando no acostamento, ergo-me no assento da moto
para poder ver melhor o que está acontecendo, abro a tela do celular
novamente cogitando ligar para ela, mas desisto ao ver que Dionísio
consegue estacionar logo atrás do seu carro. Com o trânsito em horário de
pico, seria mais rápido ir correndo até ela do que dar à volta na pista.
O aparelho em minha mão vibra, a mensagem de Jairo me faz olhar
por sobre o ombro. Confiro no expositor sua pergunta, respondo com menear
de cabeça e volto a olhar para o posto. Dionísio está na porta do carro,
entregando algo a Lia.
— Que seja! Vamos seguindo as regras, é impossível chegar até
ela, ainda mais com a criança alterada. Droga!
Não acredito que esteja conjeturando fazer isto, mas diante da
minha inapetência, é melhor pedir alguns conselhos aos meus amigos.
O tráfego abre uma brecha, aproveito para dar a volta e seguir em
direção oposta.
IMPROVÁVEL
“Dê uma máscara ao homem, e ele mostrará sua verdadeira face.”
Irmãos Grimm
MIKAEL
A
última música de encerramento foi tocada, os fãs da banda se aproximam do
palco querendo fotos, autógrafos e oferecer uma bebida, o que se traduz em
um convite cheio de segundas intenções. Caleb e os rapazes da banda se
deixam levar pelo mar de gente, enquanto me desvio das mais assanhadas,
apanho a jaqueta no canto do palco e sigo em direção à mesa dos meus
amigos.
— Espero que ainda estejam sóbrios, — comento puxando uma
cadeira para juntar-me a eles.
— Estamos, posso jurar que estou vendo quatro dedos em minha
mão. — Edu responde erguendo a mão para mostrar que está consciente.
— Ótimo show, Mika, estava com saudades de ouvi-lo cantar. —
Dinho comenta, ergue o seu copo e brinda.
— Agradeço, — aceito o refrigerante que o barmen coloca sobre a
mesa e tomo um gole, — vamos aproveitar então que ainda estão bem.
— Este é o melhor lugar para falarmos, seja lá, do que for? —
Ramon pergunta, ergue a sua taça de vinho e toma um longo gole.
— Como nos velhos tempos quando tínhamos que falar sobre
alguma merda, gostávamos de bebidas e uma boa agitação. — Dinho
comenta.
— A diferença que antes, as nossas “merdas” não eram nada
relacionadas à nossa sobrevivência. — Edu replica fazendo sinal para o
garçom.
— Aí que está meu caro, creio que sempre houve algo realmente
sério acontecendo às nossas costas, e sinceramente, me sinto um burro a cada
segundo que penso nas coisas que descobri recentemente.
— Edu, triplica o pedido, creio que vamos precisar de uma
anestesia. — Dinho deixa o copo e olha a jaqueta que está sobre à mesa. —
Durante todo o espetáculo, você não tirou seus olhos do canto do palco, tem
algo aqui que deveremos ver?
— Excelente observação meu caro, — sorrio, mas não sinto
felicidade alguma ao abrir o bolso interno da jaqueta. O envelope pardo com
as fotos faz um baque sobre a mesa quando jogo para eles. — Quero
apresentar a vocês o acervo de fotos exclusivas que achei em minha casa.
Ramon abre o envelope e visivelmente se assunta com a primeira
fotografia. — Madre de Dois, ¿que es estou?[17]
— É o que está imaginando, parece que Sarah Nikolaevich, não era
tão louca como imaginávamos.
— Kólasi![18]—Edu passa a mão pelo cabelo desalinhado os fios,
seus olhos se expandem ao reconhecer nas fotos a mesma mulher que
empenha a sua vida em matar-nos.
— Além de aliviar o seu coração, porque sabemos que a alcunha de
louca que Sarah carregava, o machucou durante anos, Mika, em que
exatamente estamos colocando nossos olhos? — Dinho pergunta, erguendo
uma foto. — Quem é esse garoto ao lado da sua mãe?
— Ele está em todas as fotos. — Edu comenta.
— É impressão minha, ou ele está tentando se esconder e Sarah faz
questão de fotografá-lo? — Ramon pergunta erguendo outra foto. —
Estranho, tenho a sensação de conhecê-lo.
— Todos nós o conhecemos, o nome dele é Christian.
— O nome me soa familiar, — Ramon pega outras fotos
comparando-as —, são fotos tiradas da mesma data em especial e anos
diferentes?
— Sim! Creio que seja a reunião que nossos pais faziam para
comemorarem a chegada deles ao Brasil. — Respondo, suspiro sentindo um
embrulho no estômago, falar sobre isto não parecia ser fácil na teoria, na
prática, é pior ainda. — Se lembram do rapaz que andava atrás da Angélica
na fazenda?
— O sobrinho da Lourdes? Aquele rapaz que sempre fugia de nós?
— Espera, — Edu ergue a mão e leva o copo a boca —, começo a
sentir que não vou ficar bem após perguntar isto, está falando da Lourdes, a
irmã da Verônica?
Aceno positivamente para ele, de imediato meu amigo esbraveja e
tão alto que chama a atenção de alguns ocupantes na mesa ao lado.
— Puta que pariu! — Ele passa às duas mãos pelos cabelos. — Eu
não fico bem em pensar nesta mulher, muito menos em saber que tínhamos
por perto mais pessoas da sua família. Pelo amor de Deus! Todas às vezes
que penso que ela esteve dentro da minha casa, perto dos meus filhos, sinto
arrepios e vontade de vomitar.
— Estresse!? — Dinho pergunta.
— Não, — ele responde socando a mesa —, raiva mesmo, pois se
soubesse quem era teria dado fim na maldita.
— Estamos falando então do rapaz da fazenda, ok! Edu se controle,
precisamos ser frios, — Ramon salienta. — Droga! Não deveria ter bebido
tanto.
— Todas as afirmativas estão corretas. — Respondo.
— Esse menino andava atrás da Angel, mas sempre que estávamos
por perto nos evitava. — Edu parece começar a se lembrar dele.
— Nem sempre, me lembro de conversar com ele uma vez, não me
recordo de tudo, mas há algo que ficou gravado em minha memória.
— O que seria? — Ramon pergunta.
— Ele queria ser pintor, — aponto observando as reações dos meus
amigos.
— O que isto tem a ver conosco?
— Ele além de ser alguém, em quem minha mãe tinha uma imensa
curiosidade em retratar, pode estar ligado de alguma forma há tudo que tem
acontecido.
— Sei que vai parecer idiota da minha parte dizer isto, mas —
Dinho dá de ombros, — na época ele não parecia ser um jovem tão esperto
assim, ou alguém diabólico. Ele vivia longe, mal conversava conosco, então o
que o leva a crer que esse rapaz de alguma forma possa ser uma pista para
achar a tal mulher. Porque é isto que está dizendo, não é?
— Sim, precisamente isto que estou tentando falar; o que me leva a
crer nisto, é pela conversa que tivemos na época, que juro, não me lembrava,
contudo, é como se o Universo — como diz July — estivesse conspirando.
Lembrei-me dele, me encontrei com ele poucos dias atrás e curiosamente
trabalhando como um dos seguranças ou independentemente da sua função
ao lado de Angélica.
— Puta merda!
— Porra!
— A loira está nos traindo de novo?
— Não creio que ela esteja nos traindo, mesmo que não tenha dado
muita importância à sua reação, ao ver que reconheci o seu companheiro de
trabalho, percebi o olhar que ela lançou sobre ele ao me ouvir falar dos seus
antigos sonhos.
Quanto a isto, tem algo que está me incomodando e pretendo
confrontar Angel em breve.
VERÔNICA
IMOLAR
“Eu estava machucado, sozinho, chorando como uma criança…”
LIA
S
oltei o ar que estava preso no peito, me afasto um pouco da cama para
recostar contra o criado mudo.
— Finalmente ele dormiu.
— Deveria fazer o mesmo, passou mal durante toda a noite. Está
quase amanhecendo.
— Ainda não estou bem, mas prefiro continuar aqui.
Nina está sentada no tapete atrás de mim, não pretendia virar a
noite sentada de má posição na beirada da cama do meu filho, queria levá-lo
para dormir em meu quarto, mas se recusou a ficar lá, preferiu o seu
quartinho, o seu lençol cheio de pinguins e seus amiguinhos.
Costumo dizer que quando ele se sente acuado de alguma forma,
triste, prefere se esconder em seu ninho, não o impeço que faça, assim como
ele, gosto de ter um lugar onde me sinto confortável, por isto o entendo.
— Tome um pouco mais de água, — Nina indica o copo na
mesinha do criado mudo, só em vê-lo meu estômago se revira.
— Odeio me sentir intoxicada, — reclamo, mas sem fazer
nenhuma outra objeção tomo um pouco mais de água.
— Sua mãe ligou, está preocupada, não conseguiu falar com você
durante o dia, assim que puder fale com ela.
— Mikael também mandou uma mensagem de texto, mas estava
tão empenhada em cuidar do meu filho que não prestei a atenção, — suspiro
—enviarei uma mensagem para mamãe, preciso conversar com dona Maria,
decidi Nina, chega de procrastinar.
— Que decisão é esta?
— Vou falar com Mikael sobre Anjinho.
— Tenho ouvido isto pelos últimos meses, Lia.
Me volto em direção a minha amiga e olho fixamente em seus
olhos. — Não estou dizendo que vou esperar uma oportunidade, preciso dele,
meu filho precisa dele. Amanhã, ou melhor, hoje, vou contar a ele sobre
nosso filho.
— Oh, meu Deus! Tem certeza disto? Quer dizer, sou totalmente a
favor de que faça algo em relação a isto o mais rápido possível, mas tem
certeza de que ele vai ser o apoio que precisa e não um problema?
— Não tenho certeza de nada, — balanço minha cabeça me
sentindo tonta e muito cansada, — pode ser que ele me odeie com todo o seu
coração, mas terei de correr os riscos. Não sei se é meu subconsciente
querendo me pregar peças, mas Mika parece estar mais interessado em
conhecê-lo do que antes, ainda tem pedido para ir com calma, que precisa de
um tempo para assimilar muitas coisas, mas eu não tenho mais esse tempo.
— Concordo, basta vermos como tem sido cada vez mais difícil
para o nosso menino. — Nina comenta, se ergue senta-se próxima à cama. —
Sou sua amiga Lia, estarei do seu lado seja para qual momento for.
— Obrigada! Se Anjinho estiver bem e quiser se encontrar com a
Fadinha, vou aproveitar o momento para falar com Mikael. O que aconteceu
ontem me deu mais um motivo para acelerar as coisas.
— Concordo, não apenas em relação ao problema na escola do
Anjinho, mas já imaginou o que poderia ter acontecido ontem? Se não
fossem os vidros blindados, ele teria tomado um choque ao ver a criança no
banco de trás.
— Não quero que ele descubra assim, isto irá machucá-lo.
— Em qual sentido?
— Será desconfortável para ele, é um elemento inserido
abruptamente na sua vida.
Nina me olha de esguelha, mas não faz comentários, pelo que sou
grata. Ainda não quero falar tão abertamente sobre como acredito que será a
reação de Mika, pelo simples fato de não querer atrair para nós esse carma,
sou muito racional quando se trata do meu trabalho, mas prefiro acreditar em
ação e reação do Universo, quando o assunto envolve a minha família.
Tomo o restante da água, e espero não por tudo para fora. A náusea
vem, mas com esforço controlo a ânsia.
Permanecemos por um tempo ainda sentadas perto da cama de
Anjinho, meu filho precisou de uma dose extra da medicação, a sua reação
violenta o deixou muito fragilizado. Graças a Deus! Consegui uma consulta
fora do dia agendado com a sua psicóloga para o início da semana, o que me
aliviou.
Nina foi para o seu quarto se deitar um pouco, agradeci por ficar
comigo durante a noite, como sempre minha amiga só fez ressaltar o quanto
ama Anjinho e que por ele faria qualquer coisa.
Anjinho remexeu na cama, gemendo sentido, afaguei os seus
cabelos até sentir que pegou firme no sono. Depois de um tempo conferi a
mensagem de Mika e respondi a ele que sim, aceitaria jantar. A resposta dele
veio imediatamente e nem precisei perguntar por que estava acordado, a foto
anexada de três homens seminus dormindo em sua cama respondeu tudo.
Tocou meu coração a preocupação com Anjinho, não escondi nada
dele, contei sobre a perseguição que o menino tem sofrido e sobre a forma
como a escola se portou. Mikael se enfureceu de tal forma, que chegou a me
ligar, mas assim que atendi desligou.
Segundo ele, preferiria não correr o risco de acordar meu filho,
esse cuidado que ele adotou nos últimos dias em relação a Anjinho aumentou
minha admiração e a certeza de que falar com ele é o certo.
Munida desta coragem confirmei novamente nosso encontro mais
tarde, do mesmo modo que ele externou querer falar algo sério comigo,
ressaltei que também tenho o que falar.
Após mais alguns minutos, desligamos, então foi a vez de mandar
uma imensa mensagem de texto para minha mãe, relatando o que pretendo
fazer e quando. Dona Maria, não é completamente avessa à ideia de que Mika
saiba sobre o filho, o seu único medo é o mesmo que o meu: que ele descubra
ao acaso e de tanto não querer, no fim, acabe querendo tomar-me a criança.
— Além do fato que me odiará para sempre. — Resmungo. —
Deus! — sinto o bolo se formar no estômago e tenho de sair correndo pelo
apartamento até o lavabo.
Me ajoelho no chão e deixo todo meu corpo trepidar com as
arcadas de vômito. Nina entra correndo no banheiro, acende a luz, abre a
torneira da pia e molha uma toalha de rosto.
— Droga Lia, eu sabia! — ela exclama e me encosta contra seu
peito.
— Sabia o quê? — pergunto irritada. — Que beber um litro de
água ia acabar lavando-me até a alma?
— Não! Sabia que voltar a trepar feito uma coelha no cio com
Mikael ia dar nisso.
— O quê? — me afasto e a olho por sobre o ombro. — Do que está
falando?
— Quando foi que menstruou pela última vez?
— Tomo injeção esqueceu?
— Os antibióticos que tomou nos dias que ficou gripada, podem
cortar o efeito da injeção e já estava no meio do mês, não é?
— Sem cabimento, se tivesse cortado, teria sangrado e isso não
aconteceu.
— É mesmo espertinha, e as cólicas que sentiu?
— O que tem as cólicas?
— Liana, acorda! Desde quando você passa mal comendo frutos-
do-mar?
— Deus! Nina, não coloque coisas na minha cabeça, não agora.
— Amor, eu não coloquei nada na sua cabeça, mas tenho quase
certeza de que o Promotor possa ter colocado algo, bem aí dentro.
— Vamos dormir, daqui a pouco Anjinho estará de pé querendo
atenção e se preparando para encontrar com sua amiguinha. — Desconverso.
Nina não faz comentários, com sua ajuda me ergo e tento não
demonstrar o quanto ainda estou me sentindo mal.
Caminho em direção ao meu quarto e assim que fico sozinha,
suspiro lentamente e as lágrimas se formam em meus olhos. Me recuso a dar
ouvidos as loucuras de Nina, basta saber dos meus problemas atuais para me
sentir doente, não preciso brincar com isto, logo agora para piorar minha
situação.
SANTIAGO
Ele dormiu segurando uma garrafa de vinho entre as mãos e
dizendo besteiras. Balancei minha cabeça em discordância, parecia que a
algazarra e a falta de compromisso realmente estavam entranhadas no
sangue destes moleques.
Quer dizer, homens, na idade deles a minha consciência sobre
deveres e obrigações já estava mais que sedimentada, nunca me dei ao luxo
de perder uma noite da minha vida em bebedeiras, que dirá nesse nível.
Empurro o corpo pesado de Mikael para longe, cuidando para não
bater com a cabeça contra o chão de pedra, as lanternas apoiadas em vários
lugares permitiam que aquele buraco sujo e escuro, que Angélica deu a ele
como seu ninho de amor, estivesse iluminado o suficiente para que não se
perdessem ao voltarem aos quartos.
Me ergui lentamente, pulei as pernas de Ramon o mais sensato
entre eles, mas que tinha se rendido a bebedeira, provavelmente por serem
coagidos a aceitar a nova ordem dos pais.
Os planos de Verônica e Gustavo parecem caminhar de vento e
popa, desde que ela se meteu em seus negócios, fazendo com que figurões da
alta sociedade passassem a utilizar os gringos como advogados, sua
influência aumentou muito entre os quatro amigos.
Difícil será dobrar a italiana. Sophia não esconde sua aversão por
Verônica, o que tem feito ela armar ainda mais contra os filhos É uma puta
sociopata, quanto mais se irrita, mais se vinga.
Deixo a adega subindo os degraus de cabeça baixa. Esse é o erro
número um de quem é treinado para estar vigilante.
O soco veio e nem o percebi, quando dei por mim já tinha a
têmpora latejando e pontos de luz piscando dentro dos meus olhos fechados.
— O que pensa estar fazendo? — A agressão foi leve perto do ódio
destacado na voz grave.
— Não fiz nada de errado, senhor. — Nego qualquer acusação por
impulso, cometendo o segundo erro, o de nunca o contestar.
O soco na altura do estômago poderia ter me debilitado, mas veio
com um empurrão que fez bem mais do que isto. O ladrilho da cozinha
jamais sairia da minha mente, essa era a certeza que tinha todas às vezes que
meu rosto bateu contra ele, e os chutes nas costelas me mantinham lá.
O primeiro veio forte, resfoleguei segurando o grito, o segundo
não me acertou, porque Lourdes entrou na frente e empurrou meu algoz.
— Sua vadia! — A voz enrolada era a prova de que ele estava
bêbado.
Me ergui como pude, para tirá-lo dali antes que Angélica ou
qualquer outro dos hóspedes aparecessem.
— Fiz uma pergunta, o que estava falando com Mikael? — Ele
voltou a me atacar, não fui tão rápido, o soco não acertou a têmpora, mas o
lado do meu rosto.
O gosto ferruginoso do sangue marcou minha língua, a dor
pulsante da agressão reverberou pelo meu corpo, mas pior do que as marcas
e dores, é apanhar sem saber o porquê, a violência gratuita é ainda mais
dolorida.
— Responde Christian!
— Nada senhor, ele estava falando sobre os seus sonhos bobos de
ser músico, só isto.
— Mentiroso! — A exclamação veio junto de um novo ataque. Tão
feroz quanto antes, mão fechada em punho, socos potentes, o hálito de uísque
e charuto assinando o momento como uma marca registrada.
Quem diria que daquele momento em diante, teria pavor destes
dois vícios, mas fumaria e beberia, para não me esquecer do filho da puta
que ele era?
— Não estou mentindo, — reajo tentando livrar-me.
Não era pequeno quanto antes, com o corpo bem formado e
treinado já em idade adulta, poderia me defender com força, mas isto me
obrigaria fugir depois, e não podia. Não quando devotei cada dia de inferno
à minha vingança.
Além de quê, não poderia abandonar a patroazinha, ela sozinha
morreria nas mãos desse maldito.
— Não vou perguntar, — ele anuncia e me encurrala contra um
armário — vou buscar Angélica, aí vamos saber o que disse. Ela já está me
devendo mesmo, mandei que se livrasse dos malditos gatos, mas adivinha,
descobri onde escondeu aquelas pestes.
— Estou dizendo a verdade, — respondo sentindo o ar faltar, as
mãos pesadas fechadas contra minha garganta parecem ferro fundido.
— Não faça isto, por favor, — Lourdes recuperada do chute que
recebeu na perna, volta e puxa-o pelo braço, — solte o menino, está
matando-o.
O homem tomado por sua fúria libera uma das mãos e a esbofeteia
com força jogando seu corpo miúdo no chão.
— Não bata nela! — grito furioso, Lourdes chora e segura a face
avermelhada. — Ela perdeu o bebê, por favor! — suplico me odiando por
fazê-lo. — Lourdes estava de repouso, só se levantou para cuidar das suas
visitas.
— Está me recriminando? Está se rebelando, maldito?
Sua fúria vem sobre mim, não percebi que o empurrava pelo peito
com força. Um pensamento cruzou minha mente, eu só precisaria empurrá-
lo, talvez com sorte batesse a cabeça na quina do armário e morresse ali
mesmo.
— Não senhor, — afrouxei os braços, pois sabia que não teria essa
sorte. Rebelar-me só colocaria outras pessoas em perigo. — Juro que não
tinha nada de mais na conversa.
— Eu disse para se manter longe, vigiar de longe, não consegue
entender? — Ele bufa, dá um passo atrás soltando minha garganta dolorida.
— Juro que não fiz nada. A conversa era sobre sonhos, de verdade.
— Não foi o que Verônica insinuou. Por que falaria em russo com
ele se não era segredo?
Então era isto? Por ter me ouvido responder a um menino bêbado,
algumas perguntas bobas?
— Não era nada. Mikael está tão bêbado que não vai se lembrar
de nada.
— Por que em russo? Desde quando eles sabem que tem dupla
nacionalidade?
— Eles não sabem, ninguém tem conhecimento disto — ressalto me
sentindo temeroso, o olhar oblíquo parece um poço fundo cheio de
estratégias malignas. — Mikael está bebendo o bastante para trocar o
idioma, todos eles são bilíngues, em algum momento é natural que façam.
Limpo o meu nariz que não percebi sangrar, só me dei conta pelo
olhar aterrorizado de Lourdes sentada no chão, encolhida aos pés da mesa
de madeira.
— Espero que tenha aproveitado e pego algumas informações.
— O de sempre, não querem assumir os negócios.
— Isto não pode acontecer, temos este plano armado há meses.
Custei a dobrar os malditos gringos, precisamos apertar o cerco sobre a
suspeita contra Joaquim e garantir que aceitem a ideia de unificação.
Ele fala sobre o plano de roubar famílias inteiras como se fosse
algo natural. Sinto nojo e tenho vontade de correr dali. O pior de tudo é a
sensação ruim de estar assistindo de camarote, enquanto sou espancado,
humilhado e tenho de rever estes mesmo planos sendo desenhados por uma
mente maligna.
— Não estou convencido do que está afirmando Christian, estou
percebendo seu olhar de recriminação. Primeiro se uniu a malcriada da
Angélica para dar um esconderijo aos moleques, roubou minha adega para
eles, passou parte da noite conversando como se fossem amigos e agora não
compartilha dos meus planos?
— Não disse nada, falávamos de sonhos de criança.
— Isto não importa mais, sua missão é convencê-los a trabalhar
nos escritórios, comece por Ramon e depois Mikael, tenho certeza de que
tudo sairá conforme o plano. Eles não aguentaram a pressão e os problemas
que estão por surgir, — ele ri com escarnio. — Vão acabar passando para
nós os bens, assim liquefaremos as lembranças de qualquer coisa ou pista
que tenha ficado, e possa nos denunciar antes da hora.
Reclino minha cabeça e disfarço para ele não perceber que me
incomoda ouvi-lo, olho para a minha mão e vejo algo estranho, uma cicatriz
que nunca percebi antes, neste ponto que percebo a diferença entre a
realidade e o pesadelo.
Os sentimentos que me incomoda são antigos, estão enterrados no
passado, a raiva que senti por ser espancado se acumulou em anos de
tortura. Anos, que descontei de uma só vez.
Ele continua falando, já não entendo mais nada o que diz porque
me perco nas suas doentias palavras, encharcadas de uísque, a cada nova
ordem ele me sacode, repreende e volta com suas perguntas. Raramente me
deixei esmorecer ou baixei as minhas barreiras para proteger-me e a quem
tinha vontade de fazê-lo, não sei por que me deixei sentar naquele lugar que
tanto odiava para conversar com Mikael.
Maldita hora que me preocupei com um moleque mimado bêbado,
e daí que caísse no escuro e quebrasse o pescoço?
Foda-se! Não me importaria nada. Mesmo que ele fosse a paquera
boba da Angélica e louco de amores por Lia, a filha de Joaquim. Outra que
não ia demorar a cair nas garras de Verônica.
Se Lia não tivesse afrontado a bruxa, não seria alvo dela, mas por
ser uma pessoa muito inteligente e ter sempre que brigar pelo que quer,
percebi que cedo ou tarde a jovem acabaria desmascarando Verônica.
A risada torpe me fez arrepiar. Percebo que me perdi em
pensamentos.
INFÂNCIA
“Ter um lugar para ir é lar.
Ter alguém para amar é família.
Ter os dois é benção.”
FADINHA
O
lugar que escolhi para ver Anjinho serve ao nosso propósito, apesar do San
ter concordado em me deixar fazer uma viagem para a Europa, sei que ele
está me escondendo algo e que vai me enviar para outro lugar.
— Senhorita Mikaella, tem certeza de que este é o endereço? —
Marcus, o segurança que está me acompanhando pergunta pela terceira vez.
— Tenho certeza! Marquei no shop-piping com Anjinho, ele quer
tomar sorvete e ver um filme.
— Tudo bem, vou avisar aos outros para estarem apostos e nos
informar quando a babá e o menino chegarem.
— Faça o que achar melhor, enquanto i-isso, vou ao toalete.
— Ok! Esperarei do lado de fora.
— Lógico, não é Marcus? Não acredito que teria coragem de entrar
no banheiro comigo! — exclamo colocando a mão na cintura.
O segurança olha para o lado, ele é muito mais novo do que eu, e
creio que por ter de tomar conta de uma Down, acredita estar lidando com
uma criança que não tem consciência de nada. O que para os meus planos, é
perfeito.
— Ah, meu Deus! — exclamo levando às mãos a cabeça e
exagerando no drama — Marcus, o presente do meu sobrinho, esqueci no
carro.
— Não precisa ficar nervosa senhorita, — ele se aproxima e vejo
nos seus olhos uma preocupação genuína —, vou pedir a um dos agentes para
trazer aqui, tudo bem?
— N-não! Não está tudo bem, e se eles estragarem o que comprei?
É um violino caríssimo, não posso arriscar, não confio em ninguém, por
favor, — me aproximo dele e me esforço para que tenha um ar choroso, —
por favor, Marcus, busque para mim.
— Não posso deixá-la sozinha.
— Não vou a lugar nenhum, ficarei no banheiro, não tem como sair
de lá.
— Mas…
— Por favor?
— Tudo bem, vou bem rápido, ainda bem que estamos perto do
estacionamento.
— Obrigada Marcus! — sorrio para ele acanhada, e desta vez não é
encenação, coloco um mexa do longo cabelo ruivo atrás da orelha sentindo-
me tímida.
O rapaz cora novamente e acena com a cabeça. Ele é gentil, uma
gracinha, mas tão bobinho. Entro no banheiro e espero alguns minutos, abro à
porta e não vejo nem sinal dele ou qualquer outro segurança.
Os agentes que San designou para cuidarem de mim, terão uma
grande surpresa ao me procurarem. Retiro do bolso do meu vestido o
aparelho telefônico e o meu real presente para Anjinho.
— Alô? Fadinha, onde está? — Nina a babá do meu sobrinho
atende a chamada no segundo toque.
— E-estou quase perto do nosso ponto de encontro.
— Tem certeza de que seu irmão não se importará de passar tanto
tempo conosco?
— Tenho sim, foi minha a ideia do parque de diversão, não
teremos problemas.
— Verdade, — sinto algo estranho em sua voz e me preocupa que
ela tenha ligado para San.
Ainda não entendo o porquê de se aproximar dela, mas quem pode
compreender todos os planos do meu guardião?
— Nina, está tudo bem? — enquanto converso com ela, corro em
direção a saída do shopping, aceno para um táxi que está passando.
Dou o endereço ao motorista, o carro arranca e pelo canto dos
olhos vejo alguns dos meus seguranças passarem pela porta da frente.
Droga! Pensei que teria mais tempo, será que Marcus desconfiou?
— Está sim, na verdade, Anjinho não está muito animado,
aconteceram algumas coisas ontem na escolinha, então hoje ele está um
pouquinho triste, mas louco para vê-la.
— Tenho uma surpresa para ele, tenho certeza de que ele vai ficar
muito feliz!
— Que bom! Então nos vemos daqui a pouco?
— Sim, já estou quase chegando, já posso ver o parque.
— Quer continuar no telefone, até chegar aqui? Estamos no
estacionamento ainda.
— Tudo bem Nina, diz a Anjinho que estou chegando, para pôr um
sorriso ne-esse rostinho lindo.
Desligamos, olho para o envelope de carta que tenho em mãos, sei
que não deveria me meter, mas não sei quando terei uma nova oportunidade
de voltar ao Brasil, por isso quero dar ao meu sobrinho uma oportunidade de
ter uma família completa, o que nunca pude ter.
IMAGINAÇÃO
“Eu a amo…
Era o destino, não pude mais fugir dos sentimentos que um dia neguei.
A reencontrei e ela está me devolvendo a vida que um dia perdi.”
MIKAEL
C
onfiro novamente as horas no relógio de pulso, Lia geralmente não se atrasa,
o que agradeço se não estaria criando um rasgo com meus passos pesados de
um lado a outro sobre o paralelepípedo diante do seu prédio.
Às oito da manhã recebi uma nova mensagem dela, confirmando
nosso jantar, estranhei por não ser o seu habitual e creio que tenha algo sério
para conversar comigo, o que só vai transformar a nossa noite em pura
tensão.
Após deixar meus amigos em casa pela manhã, fui ao apartamento
de Angélica, queria muito conversar e mostrar as fotos que achei, assim como
falar sobre o DNA, mas não encontrei a loira, de acordo com o zelador ela
havia saído bem cedo.
Tentei entrar em contato por telefone e mensagem, mas só
consegui deixar um recado na caixa postal e nenhuma das mensagens foram
lidas. Provavelmente algo relacionado ao seu trabalho deva ter acontecido.
De volta à minha casa, não pude deixar de pensar em tudo o que
meus amigos falaram. Pensando pelo lado positivo de toda essa balburdia que
se tornou as nossas vidas, aos menos tenho mais de um motivo para manter
Lia e o moleque por perto. Mesmo que ela negue ao pedido que tenho para
fazer hoje, jogarei duro e vou contar sobre as ameaças, correndo o enorme
risco de que surte e desapareça com a criança para sempre.
Por volta das duas horas da tarde, não resisti a vontade de ouvir a
sua voz, percebi estar ocupada arrumando a criança para algum passeio e eu
não quis me intrometer, por já estar tranquilo sabendo que estaria com Nina e
cercado de guarda-costas.
Além é claro, da bendita lista das regras de como ser um bom
“namorado da mamãe”.
Ouvi a voz rouca no fundo da ligação, o menino parecia triste pela
perda do caderno de desenho. Por mensagem Lia me contou sobre os
problemas na escola. Não é de todo estranho que haja esse tipo de situação
entre crianças, o que me admira e deixou enfurecido, foi saber que a
responsável pela criança envolvida na confusão, agrediu verbalmente a
Anjinho.
Isto está me consumindo, conhecendo Lia como faço, tenho receio
de que acabe por desnortear-se e acerte literalmente a mulher da próxima vez
e que isto, vá gerar um problema ainda maior.
Segurei a vontade de me intrometer, mas se pudesse opinar sobre a
educação do moleque, já o teria mudado de colégio, denunciado a instituição
por permitir tal coisa no estabelecimento entre várias medidas legais que
tomaria.
Contudo, não posso impor sobre Lia esse tipo de pensamento, nem
sei o que repercutiria para a criança no futuro se de alguma forma tomasse
essa medida como regra de vida: fugir todas às vezes que se sentir acuado,
em vez de lutar e se impor.
Tenho minhas próprias experiências com minhas debilidades e sei
que fugir não é a solução, porém entre querer, saber e fazer o certo há uma
ponte bem estreita.
— Como é complicado, essa coisa de ser pai, — resmungo
olhando para o relógio novamente. — Deus me livre!
— De quê? — a voz dela me estremece, da mesma forma que me
senti ouvindo os resmungos do moleque.
Elevo minha cabeça e olho em direção ao prédio, meu coração
parece que vai saltar pela boca e me sinto ridículo constatando estes
sentimentos e sensações das quais tanto zombei dos meus amigos, parecem
ter se tornado meu habitual.
Lia está radiante. A pele morena reluz, os cabelos longos estão
soltos como gosto, jogados por sobre os ombros, o vestido vermelho é longo
com uma fenda que vai da lateral da coxa ao tornozelo, as pernas torneadas
ressaltam a cada passo que dá, nos pés uma sandália de salto fino deixando à
mostra as unhas esmaltadas em tons claros.
O tecido vermelho parece colar em sua pele do decote
pronunciando nos seios até a cintura, descendo solto pelas pernas, um vestido
de alças finas com um toque sensual e elegante. Os lábios carnudos pintados
de vermelho explanam um riso tímido, ela ergue a mão e coloca por trás da
orelha uma longa mexa de cabelo.
— Uau! Está linda Doutora. — Digo com admiração, faço um
gesto com a mão pedindo para que dê meia volta.
— Hoje é um dia especial, resolvi caprichar. — A voz sensual me
arrepia a nuca, seu perfume domina o ar.
Lia para em minha frente e como pedi, dá meia volta, seguro a
vontade de cobri-la de cima a baixo, nunca concordei com homens que
colocam sua imposição sobre o que uma mulher deva ou não vestir e o que
fazer com seu corpo. Sou completamente avesso a isto, mas pela primeira vez
na vida, senti vontade de retirar meu paletó e jogar sobre os seus ombros.
O decote frontal é perfeito, valoriza o colo, a parte superior dos
seios dá asas à imaginação, mas a parte de trás do vestido, simplesmente não
existe. A pele morena está completamente exposta e ressaltadas pelo tom
vermelho as asas tatuadas parecem querer saltar da sua pele nua.
— Me diz que tem algo a mais por baixo desse vestido.
Toco o meio das suas costas deslizando os meus dedos,
circundando um lado dos traços em relevo, sentindo os arrepios subirem na
pele acompanhando o movimento.
— Isto só descobrirá depois, Promotor, — ela sorri e volta seu
rosto em minha direção — senti a sua falta.
— Sinto diariamente, — desço minha boca sobre a sua e a beijo de
forma cálida. — Está se sentindo melhor, como está o menino? — por
impulso olho para o apartamento às escuras.
— Estou melhor e Anjinho ainda está com Nina e a Fadinha, eles
passaram a tarde no parque de diversões e foram assistir a um filme.
Obrigada por perguntar.
— Não agradeça, estou preocupado com vocês. Eles vão jantar, ou
só comer besteiras?
— Jantar, Nina não deixaria comerem só porcaria, provavelmente
vão parar em algum restaurante no Shopping.
— Ok!
Ela se volta em direção ao carro e sorri. — Nem acreditei quando
disse que não sairíamos de moto, mas confesso que não imaginava que fosse
retirar seu conversível da garagem.
— Sei que minha mulher gosta de velocidade, mas não vamos
correr, não após ver esse pezinho de chumbo em ação.
— Tive motivos… — ela suspira com semblante cabisbaixo
— Podemos falar disto se quiser e estou pronto a ajudar no que
precisar.
— Obrigada, de todo meu coração, ouvir isso de você me deixa
muito feliz.
Sorrio para Lia, deixando-a mais tranquila, não quero que a nossa
noite seja inundada por histórias tristes, se tudo correr como planejado,
pretendo encerrar fazendo amor e sem brigas. Dou a volta no carro, abro a
porta e com floreio indico para que entre, do outro lado da rua em uma
distância segura está o carro com dois seguranças, podemos fingir que está
tudo bem, mas a realidade ainda é viver dentro de uma redoma protetora.
LIA
— Ele é uma graça, — cochicho enquanto escolho o que comer. —
Espero que meu estômago me dê um tempo, — sussurro tentando manter a
tremedeira nas mãos sobre controle.
— Você disse estar bem, é mentira? — Mikael me assusta ao
perguntar, em vez de olhar para o cardápio, seus olhos estão fixos em mim.
— Estou bem, mas passei o dia quase de jejum.
— Se quiser algo bem leve e que não esteja no cardápio, podemos
ver se Mário faz.
— Não! Quero comer uma massa à carbonara, por favor.
Mikael solta uma gargalhada que chama a atenção de outros
clientes, principalmente das mulheres, mordo o meu lábio para não soltar
fagulhas. Não escondo o meu olhar de admiração ao reparar no homem a
minha frente. Os cabelos estão alinhados, a barba grossa bem desenhada e
aparada, o terno preto de grife feito sob medida veste o corpo com perfeição.
A camisa branca com colarinho aberto dá a ele um ar despojado e muito sexy.
— Está admirando a paisagem?
— Dá melhor forma possível.
Enquanto escolhemos os nossos pratos, observamos um ao outro
trocando olhares. Desde que amanheceu me mantive em alerta, o fato de não
ter pregado os olhos durante a noite só contribuiu para a minha inquietação e
mal-estar, mas pior do que isto foi ver como Anjinho acordou.
Pela manhã temos uma rotina, mesmo aos finais de semana, mas
hoje foi diferente como temia, ele não quis tocar piano, ver o seu filme
preferido e nem mesmo tomar o café da manhã, só depois de muita conversa
consegui fazê-lo comer algo. Nina sugeriu que deixássemos sua música
predileta rolando no play e pela primeira vez, meu filho foi até aparelho e
desconectou o celular da base.
Surpresa com a sua atitude senti ser o momento de falarmos sobre
o que acontecera na escolinha, mesmo correndo o risco de trazer lembranças
que pudessem causar até mesmo uma crise.
Com um novo caderno de desenhos em mãos, sentei-me com ele
em meu colo olhando para o mar da nossa sacada. Durante um tempo ele
ficou calado me ouvindo fazer perguntas e colocar as minhas suposições do
que acontecera para fora, mas ao notar o novo caderno que coloquei ao nosso
lado, a dor de perder o antigo falou mais alto.
Apesar das características autistas onde a criança pode se isolar do
restante do mundo, se trancando dentro de si mesma, em alguns casos
recusando até mesmo o conforto físico, Anjinho se jogou em meus braços,
desconsolado, mantive o controle sobre minhas próprias emoções e o
consolei como pude.
O melhor a fazer será trocá-lo de colégio, não prevejo nada de
bom se encontrar-me com esta mulher novamente…
— Lia? — a voz de Mikael me sobressalta.
— Oi?
— O garçom, — ele pausa — ele quer saber se pode anotar o seu
pedido.
Estranho a jeito como se refere ao rapaz, mas assim que vejo a
forma como o jovem me olha, o entendo. Seguro um riso, o garçom aproveita
a minha atenção para explicar novamente sobre o menu.
O rapaz se afasta dando-nos privacidade, também depois do olhar
que recebeu do Promotor, quem em sã consciência ficaria por perto? Levo a
taça com água gelada aos lábios e sorvo um gole.
Mikael dá início a uma conversa tranquila que nem de longe é
como me sinto, espero que tenha um momento certo, com time perfeito para
falarmos sobre o nosso filho.
Fazer uma escolha que pode mudar a nossa vida drasticamente não
é fácil, mas eu preciso perder o medo de que ele surte e tudo dê errado,
existem coisas que são inevitáveis, o que devemos fazer é assumir as
consequências.
— Não tome tanta água, assim não vai aproveitar o seu jantar. —
Ele comenta ao me ver tomar um pouco mais de água.
— Verdade, acredito que estou com crise de ansiedade, — solto e
espero que ele pergunte o porquê e então me faça falar.
— É compreensível, não tenho noção de como é deixar um filho
diariamente aos cuidados de estranhos, mas imagino que deva ser muito pior
ao saber que algo ruim aconteceu.
A sua compreensão em falar sobre Anjinho só me faz ter a certeza
de que escolhi o momento certo, se não for, só aceitarei as consequências. Ele
me pergunta mais detalhes do que houve, a conversa flui naturalmente entre
nós.
O garçom volta com o nosso pedido, ao servir o vinho em minha
taça levanto a mão para recusar, mas desisto e deixo que preencha a minha
taça. Mikael me olha com curiosidade e espera o rapaz se afastar para me
fazer várias perguntas capciosas.
Armo as minhas mãos contra os lábios e ouvidos rindo da sua
curiosidade exacerbada, o que até me faz pensar nas loucuras que Nina ficou
insinuando durante parte do dia.
— Por favor, não me diz que está é a sua nova forma de abordagem
para me perguntar se estou grávida? — Evidencio o lugar com um giro dos
dedos.
Ele deixa de sorrir e fica sério. — Eu disse que não faria isto.
— Ok! Me sinto muito mais tranquila e feliz por não tornar este
jantar maravilhoso em algo desagradável, — pisco um olho em sua direção e
experimento a massa, não resistindo a um gemido de prazer ao ter a mistura
de sabores explodindo em meu paladar.
Ele sorri e balança a sua cabeça positivamente saboreando seu
espaguete.
— Rum… Apesar de que, fizemos sexo três vezes sem camisinha.
— Ele comenta com tanta naturalidade que quase deixo o garfo cair no prato.
— Três vezes, tem certeza disto? — pergunto mordendo os lábios
para não rir alto.
— Sim, as outras não foram sessões de sexos, mas um
acontecimento inexplicável!
— Ah, Deus! — engasgo com a forma safada com que ressaltam as
palavras, olho a nossa volta para ter certeza de que ninguém está nos
ouvindo. — O Promotor está ficando requintado com a idade, se fosse há um
tempo, só bateria na minha porta de madrugada e perguntaria.
— Você não mora sozinha, não seria tão proveitoso uma visita de
madrugada.
— Que indecente! — exclamo.
Mikael faz piadas com o que aconteceu no passado, mas ele sabe o
quanto isto machucou a nós dois.
— Por falar nisto, a festinha sem camisinha vai acabar. —
Sussurro.
— Sério? Poxa que sacanagem, — ele arrasta a voz se curva sobre
a mesa e me olha com intensidade —, estava adorando trepar no pelo.
— Mikael! — exclamo soltando os talheres erguendo o guardanapo
de linho —, não diz isso assim, pelo amor de Deus!
— O que têm, — ele dá de ombros com ar sacana — o pelo é meu
e bem aparado do jeito que você gosta, já a sua, tsc… — ele estala a língua
—, é lisinha, macia e suculenta, do jeito que eu gosto!
— Meu Deus! — sinto minhas bochechas corarem. — Eu preciso
de um ar-condicionado.
— Posso refrescá-la no banheiro, ainda quero aquela rapidinha
contra uma parede.
— Nem tente, você já teve inúmeras destas. — Aviso com tom
sério
— Ok!
Ele concorda, mas desconfio da sua atitude, ainda mais por fazer
dias que não nos vemos.
Controle-se Lia, mantenha o foco, você tem uma missão
importante para hoje.
Minha mente viaja no ensaio que fiz durante o dia, na forma que
vou abordar o assunto e como falar sobre o passado, sem suscitar as velhas
feridas e tentar não causar novas. Dizer a verdade é libertador, mas para nós,
pode ser o fim de algo que está começando a tomar forma.
— Liana, sem álcool, — ele coloca a sua mão sob a minha e só
então percebo que estou segurando a taça de vinho —, se ainda está passando
mal, não vou terminar a noite limpando chão, de novo.
— É um vinho caro e muito bom. — Rebato não resistindo a fazer
uma careta.
— Pois beba água, faz bem para a pele e os rins.
— Ridículo! — Troco de taças e tomo um gole de água gelada. —
Como foi a noite passada?
— Você não quer saber… — ele bufa se afastando.
— Conte-me.
Peço já que durante a nossa conversa falou apenas do Show e por
alto que nossos amigos resolveram beber todas.
— Vai estragar o seu jantar.
— Hum! Ficaram tão ruins assim?
— Uma verdadeira lástima. Se no futuro eu disser que vou chamá-
los para sairmos, me lembra deste episódio?
— Conte comigo. Quem limpou a sujeira?
— Adivinha? Acredito que desde a época que July chutou Edu,
eles não bebiam daquele jeito.
— Então o Promotor foi generoso deixando que ficassem em sua
casa?
— Generosidade é carma. — Ele suspira. — Se tivesse um
cachorro, colocaria os três na casinha dele.
Não resisto e acabo soltando uma gargalhada atraindo mais
atenção, e sinceramente que se dane. Está é a primeira vez que estamos em
um encontro íntimo a dois, um jantar especial e estou passando meu tempo
entre tensão e medo, quero mais do que isto como memórias para este dia.
Saboreio outro bocado do meu prato, não resisto e deixo outro
gemido de prazer extravasar, Mikael sorri me provocando.
— Está tão bom assim?
— Divino!
Terminamos o jantar, o garçom trouxe o menu de sobremesas, mas
desta vez sequer olhou em minha direção. Seguimos falando sobre
amenidades.
Estou realmente me sentindo ansiosa, por isto peço a Mikael um
momento para ir ao toalete, refresco-me rapidamente e aproveito para ouvir o
clipes de voz que Nina me mandou e enviar outro áudio.
Graças a Deus!
Anjinho parece estar se divertindo, segundo ela Mikaella realmente
conseguiu fazer com que ele comer melhor, conversaram sobre a escolinha e
o meu filho reagiu bem melhor, o que me tranquiliza.
MIKAEL
Eu a amo… Era o destino, não pude mais fugir dos sentimentos
que um dia neguei. A reencontrei e ela está me devolvendo a vida que um dia
perdi.
As ondas batendo ao longe, o ar salino, o vento gelado, tudo à
nossa volta cria sensações e aguça os sentidos. Deixamos o restaurante sob
uma chuva de felicitações, Mário queria abrir um champanhe e comemorar,
mas o dissuadi da ideia.
Lia ficou visivelmente emocionada, e não posso negar que me sinto
da mesma forma. Meu desejo era levá-la para minha casa que estava tão
próxima e fazer amor a noite toda para sedimentar minhas palavras com
ações, mas o intuito era dizer a ela o quanto a amo e dar voz a minha
resolução.
Sinto um frio na espinha, o tal medo da rejeição e de receber um
não em resposta voltou a pairar sobre mim desde que deixamos o carro na
avenida e passamos a caminhar à beira-mar. Lia retirou as sandálias, ergueu a
saia do vestido para não molhar e passou a brincar com as marolas que as
ondas fazem indo e vindo em direção ao mar.
Deixei o terno no carro, com chaves e celular, dobrei as mangas da
camisa e retirei meus sapatos para caminhar de mãos dadas com ela.
— Nosso primeiro jantar fora…
— Nossa primeira caminhada de mãos dada…
— Mika…
— Lia…
Falamos ao mesmo tempo e acabamos rindo de nervoso.
— Pode falar, — passo a vez e ela recusa —, estou me sentindo um
adolescente, cacete!
Lia gargalha, sinto a sua mão trêmula na minha, paro e a trago para
o abrigo dos meus braços.
— Por que está nervosa?
— Quero falar com você sobre coisas sérias, — ela respira fundo e
solta lentamente —, sobre o meu filho.
— O meu desejo é o mesmo e agora que oficialmente é a minha
namorada, espero que concorde com o que vou pedir.
— Então fale… — ela sussurra e me sinto mal por estar assim. —
Quero conhecê-lo, na verdade, quero marcar um encontro com ele, estive
estudando em alguns sites para pais solteiros e achei um que tem umas regras
interessantes de “como ser o namorado da mamãe”.
Ela se afasta um pouco, mas ainda envolta por meus braços, a maré
varre nossos pés e a areia que escorre faz cocegas nas solas, Lia me olha e
não consegue esconder sua expressão antes de começar a rir completamente
nervosa.
— Você o quê?
— Estou fazendo um cursinho intensivo para conquistar o coração
do moleque, não ria, estou empenhado.
— Wou! O Promotor é um fofo!
Agora é a minha vez de afastar-me, mas ela me puxa pelo
colarinho se coloca sobre os pés e me beija.
Aceito os seus lábios sobre os meus com fervor, minha língua
devora a sua e minhas mãos deslizam sobre as curvas pegando-a de jeito,
tocando sobre a ereção que está latejando nas calças.
— Quando quer conhecer o meu filho? — sua voz traduz a emoção
que sente.
— No aniversário das gêmeas.
— Daqui a oito dias?
— Exatamente. Será perfeito, ele vai estar relaxado com o
ambiente, teremos nossos amigos que parecem estar empolgados com a nossa
relação e reaproximação.
— A festa? — ela parece um pouco reticente, morde os lábios e se
afasta saindo do aconchego dos meus braços. — Talvez seja um pouco
estressante para ele, não sei.
— Eu também não gosto de festas e sabe disto melhor que
ninguém, mas é um lugar neutro, com muitas pessoas, não quero que ele me
veja como uma ameaça para roubar a sua mamãe, mas como um amigo, e a
ideia veio do desenho que ele fez para mim.
— O desenho?
— Sim! Música, alegria, dança, festa, os pinguins me fizeram
pensar nisto e um filme que vi recentemente.
— Ele ama isto, — Lia toma fôlego, suspira fundo ao fitar meus
olhos —, tem certeza disto, não vai me ligar no sábado e desmarcar? Não vai
fugir, porque assim que eu o preparar para a festa, Anjinho vai ser consumido
por ansiedade e eu vou precisar ter certeza disto. Preciso de segurança!
Ergo minha mão e faço uma pose solene relembrando a cena do
restaurante. — Eu, Mikael Nikolaevich, juro que estarei lá, por ele, — pauso
a beijo brevemente sobre os lábios, — por vocês!
CAPÍTULO 40
INAPTA
Me conte Liana…
LIA
T
enho a sensação de que os meus pés não estão propriamente sobre o chão,
mesmo sentindo a areia da praia deslizando por baixo das solas, fazendo
cócegas, meu corpo inteiro estremece de segundo a segundo com pequenos
choques.
Já não sinto o meu estômago se agitar, pois, o meu coração
sobrepujou todo mal-estar acelerando como um louco.
— Liana, o que me diz?
— A festa…
— Se não me responder o que quero, serei obrigado a persuadi-la
Doutora.
— O quê? — pergunto e mal tenho tempo de refrear suas mãos
descaradas.
Sei que planejei falar sobre o nosso filho, mas definitivamente
Mikael me pegou de surpresa com sua declaração e agora, com a confissão
do seu empenho para que possa se adequar a conhecer o filho, se cercando de
todos os cuidados.
Como farei isto meu Deus, em uma festa? Não só ele mais
qualquer um que colocar os olhos sobre Anjinho vai saber quem é o pai.
Ele está todo sorridente e pronto para receber a minha resposta
afirmativa.
Mika me enlaça pela cintura e projeta seu corpo em minha direção,
a boca de lábios carnudos abatem sobre a minha com voracidade, o beijo de
antes poderia ser considerado como inocente diante da língua tentadora
fazendo movimentos sugestivos sobre a minha.
Ele segura a comissura dos meus lábios entre os dentes, morde
lentamente até me ouvir gemer pela fina dor, depois solta e desliza sua língua
sobre o inchaço acalmando a pele.
No afã de devolver na mesma medida, ergo-me ficando na ponta
dos pés, meus dedos seguram firme contra sua nuca, roço minha cintura
contra seu pau, rebolando escandalosamente.
Mika solta um dos lados da minha cintura e a sua mão viaja até a
lateral do meu seio, estremeço esperando aquele beliscão gostoso contra o
mamilo rígido, mas antes que eu possa me desmanchar em seus braços para
ter um preludio de orgasmo, ele se afasta.
— Caralho! Prometi a mim mesmo que me controlaria, mas só de
pensar em ter você assim, aqui e agora para uma persuasão…
— Nem se atreva, estamos em público e diante da minha casa.
Por instinto ergo os meus olhos e ele faz o mesmo, finco meu olhar
sobre a varanda da sala que tem as luzes acesa, não prestei atenção até então,
a melodia que ouvimos está vindo do meu apartamento.
— Ele está inspirado! — Mikael comenta.
Prefiro não responder sobre isto, pois é estranho a essa hora que o
som esteja tão alto.
— Mika, suponho que terei de ir para casa… — comento me
sentindo perturbada com a sensação aflitiva, talvez uma intuição de mãe.
— Tudo bem!
Ele segura a minha mão e começamos a caminhar em direção ao
calçadão.
O silêncio pelo pequeno trajeto é constrangedor para mim, pois
estou cogitando a melhor forma de falar com ele sobre Anjinho e aceitar o
seu pedido, mas tentar fazer isto em minha casa, um lugar realmente neutro
para que ambos se conheçam, já que não faço ideia de qual será a reação
deles. Contudo, algo estala em minha mente me fazendo estacar no lugar.
— Merda! — exclamo soltando a mão de Mika para coçar minha
nuca.
— O que foi? — ele pergunta olhando-me como se eu fosse uma
louca.
Você é louca, Liana!
Só mesmo alguém desequilibrada acreditaria nas ameaças de
Juliana, ou não? Talvez alguém com muito juízo, saberia que ela estava
falando a sério.
— Mikael, escuta com atenção, aceito a sua proposta, vamos nos
reunir na festa da July, mas antes de estar com todo mundo, preferiria que
conhecesse Anjinho em particular, pode ser? Não sei qual será a reação dos
dois, não quero que nenhum dos dois se sinta desconfortável.
— Não vou me sentir assim, já disse, sou um ótimo tio, até comprei
um presente para ele.
Balanço a cabeça e retorno a caminhada, ele segura a minha mão
firme e juntos atravessamos o asfalto até parar bem abaixo da minha sacada.
— Que bom, mas tem algo sobre Anjinho que precisa saber antes
de qualquer coisa. O motivo pelo qual nunca estive em encontros, festas, ou
levei o meu filho para que pudessem conhecê-lo é que… — pauso, tomo a
coragem para falar o que preciso, — é que…
O som reconfortante nos acalma, suplico aos céus que isto seja o
suficiente e parece que o mesmo céu está de portas abertas sobre nós.
A voz rouca do lado de fora do banheiro, me embargar com ao
cantar junto a canção, Anjinho ergue a sua cabeça gradualmente sobre seu
corpinho até deitar-se contra meu ombro, ele toca a madeira, fecha os
olhinhos e começa a balançar a si mesmo em um vai e vem constante.
A música toca uma, duas, três vezes, em algum momento Mikael
parou de cantar, e o bater contra a madeira cessou.
— Anjinho? — chamo a criança, mas seu corpinho mole contra o
meu me diz que dormiu e dou graças a Deus.
Percebo que ele está com as roupas molhadas de suor, tento me
erguer, mas as minhas pernas estão dormentes.
Um toque suave na porta chama a minha atenção.
— Abra, por favor… — Nina pede em voz baixa.
Trago ar com força em meus pulmões e me preparo para o que não
queria.
Não foi assim que desejei que pai e filho se conhecessem, não era
com uma experiência tão traumática, mas nem tudo posso controlar.
Me preparo para um confronto aterrador, com muito custo me ergo
ainda sentindo as agulhadas nas pernas, destravo à porta e com cuidado a
abro de olhos fechados, esperando o momento de vê-lo face a face.
Contudo, quem está diante de nós, é Nina. Ela se aproxima e não
espera que saia do banheiro, me abraça forte lamentando o ocorrido.
— Está tudo bem, fique calma Nina. — Tento tranquilizá-la, mas
as suas palavras atropelam as minhas.
— Me desculpa, por favor, vou te ajudar a sair daqui.
Caminho com ela para fora, ela claudica sobre o pé machucado, a
seguro e faço se encostar contra a parede.
— Onde ele está? — pergunto olhando para o final do corredor em
direção a sala.
— Foi embora.
— O quê?
— Ele foi embora, assim que teve certeza de que Anjinho parou de
chorar.
— Meu Deus! Ele não pode dirigir, não naquele estado.
— Um dos seguranças o acompanhou até à porta, acredito que deva
ter levado ele.
Suspiro me sentindo mil vezes pior do que se ele estivesse aqui.
— Vou colocar Anjinho na cama e cuidar de você. Precisa de um
médico, creio que vou levá-lo a emergência também. — Caminho em direção
ao quarto do meu filho. — Preciso chamar Gio…
— Já fiz isto! — Nina deixa o corpo escorregar pela parede e
senta-se ao chão. — Por isto, hesitou tanto em falar com ele, não é?
A pergunta me faz estacar no lugar, meus olhos ardem e para não
tropeçar, me escoro contra a parede oposta olhando em direção a minha
amiga. Ela funga, limpa os olhos e olha em direção à porta do banheiro, onde
uma pequena mancha de sangue se destaca na madeira pintada de branco.
— Oh Deus! Ele se machucou? — pergunto em um sussurro me
debulhando em lágrimas.
— Ele ficou batendo com a cabeça contra a madeira até se acalmar.
Por isto, não contou sobre o Anjinho, porque Mikael também é autista?
Assim como o filho? Por ter medo de não saber lidar?
— Existem muitos fatores, Nina, mas o que mais tenho medo é de
uma velha história voltar à tona. O pior temor dele era que tivesse um filho
como ele, com características idênticas em tudo.
— Meu Deus! Você sabia, quando buscou ajuda para o seu filho,
sabia o que era?
— Não, só confirmei uma suspeita.
— Já lidou com uma crise dele antes?
— Algumas… — sinto-me incomodada por dividir algo tão secreto,
mas não estou mais em posição de manter segredos, não quando tudo está
caminhando para uma catástrofe.
— Ele agora sabe sobre Anjinho, — ela dá de ombros —, eu vi a
forma como olhou para porta ao se levantar.
— Como disse a ele, não teria como lidar com os dois, — acaricio
as costas do meu filho, ele suspira e ressona em meus braços — entretanto,
me esforçarei e de agora em diante, vou cuidar dos dois.
— Acredito, estarei ao seu lado para o que for preciso.
— Obrigada!
Me sentindo miserável, sigo para o quarto, mas peço para que Nina
me conte em detalhes tudo que houve.
Ir até à casa de Mikael, pode ser algo que vá me arrepender, não sei
o que ele pode fazer, nem como me receberá, mas pior do que não o ver é a
sensação angustiante de que ele está sofrendo.
O tempo todo que dirigi a sua casa, pensei em vários discursos para
contar o que houve na noite passada, mas nada parece ser melhor que a
verdade, nua e crua.
O que me faz pensar que está história de querer ver o filho no
próximo domingo pode não ser mais o seu desejo.
— Inferno! — Exclamo batendo a mão contra o volante. — Dane-
se ele não pode retroceder em sua palavra, nem farei o mesmo.
Dou graças pelos vidros blindados e escuros, assim os seguranças
que fazem a ronda da casa não vão me achar louca por falar e reagir assim
sozinha.
Me aproximo do portão. — Bom dia, pode abrir, por favor?
O rapaz olha para o companheiro e o sorriso amarelo dele me
indica que algo está errado.
— Senhorita Lia, o doutor pediu para que proibisse a entrada de
qualquer um.
— Não vamos discutir, abre o portão, ou terá que atirar em mim,
porque vou pôr abaixo essa muralha com esse bebê aqui, — sorrio, engato a
marcha e dou uma ré até do outro lado da rua, — a decisão é sua! — grito
fechando o vidro e acelerando o motor a toda potência.
Os seguranças se agitam, Jairo vem correndo de dentro da casa
acenando com os braços, ele vai até os rapazes no portão que acionam a
abertura.
Passo por eles com um sorriso que nada tem a ver com minhas
mãos trêmulas e o coração acelerado.
A casa está silenciosa, caminho como tantas outras vezes em
direção ao estúdio e de lá atravesso as portas de vidro indo para a estufa,
onde vejo Mikael andando de um lado a outro regando às suas orquídeas.
Dou dois toques na porta de vidro, ele não se vira, mas caminha até
o registro e fecha a água.
— Você deveria ir embora. — Sua voz enrouquecida parece
cansada.
— Não. — Suspiro, caminho em sua direção parando a dois passos
das suas costas. — Vim aqui para pedir desculpas e ver como está.
— Não tem motivos para isto. Estou bem e quanto às suas
desculpas, esqueça. É a sua casa. O seu filho. Os seus problemas e suas
regras.
— Não é assim, Mikael, por favor, me deixa falar. — Peço
sentindo a direção perigosa desta conversa.
— Isto é algo que ficou claro entre nós, Liana. Eu que devo me
desculpar por invadir à sua casa.
— Não é assim! Por favor, me ouça, eu estou tentando ceder
espaço e quero fazer isto de uma forma saudável para nós três. — Seguro
pelo braço e faço mover o seu corpo em minha direção. — Eu preciso de
ajuda, Mikael, mas não sei como permitir que façam isso por mim.
— Eu gostaria de ajudar, mas eu não posso. — Sua voz de lamento
corta minha alma, e o que mais temia pode estar prestes a acontecer. —
Tentei, mas acabei revivendo cenas na minha mente que me deixaram
aterrorizado, se tivesse aberto aquela porta é possível que me aliviasse do
desespero, mas o provável é que o assustasse ainda mais.
Mikael passa a mão sobre a cabeça e estremece esbravejando, ele
se afasta de mim e se senta em um banco alto que puxa debaixo da bancada
de trabalho.
— Imagina o que aconteceria se machuco a criança com essa
merda que acontece comigo?
— Não faria, tenho certeza que não. Todavia, poderia machucar a
si mesmo.
— Eu não quero me sentir assim…
A voz quebrada, os ombros firmes esmorecendo com tremores dão
vasão a um mar de lamentos engalfinhados por lágrimas, tanto minhas quanto
dele. Isto é o que me desnorteia.
— Por favor, não fale isto e não se sinta assim.
Corro em sua direção e mesmo contra sua vontade o abraço tão
forte quanto posso. Mikael resiste por alguns segundos, mas acaba cedendo
ao conforto que dou a ele, retribuindo o abraço.
— Não posso evitar. Eles estão aqui! — Mikael grita e bate o
punho fechado contra a fronte.
— Não meu amor, por favor.
Ele tomba a sua cabeça contra a junção do meu pescoço, aperto os
seus ombros e passo a afagá-lo com batidas de mão contra suas costas,
querendo consolá-lo de toda a dor, mas como ele diz, é inevitável não viajar
pela porta do passado escancarada e relembrar momentos difíceis que passou,
sozinho, comigo ou reviver momentos marcantes e traumáticos, em que
presenciou as crises que a mãe tinha.
A voz dele não passa de um sussurro cansado com tanta emoção
que me esmorece, ele se afasta e olha em meus olhos, sinto-me pequenina e
incapaz de dar a ele o que precisa.
Inapta.
— Mikael…
— Lia…
Falamos juntos novamente, desta vez permito que ele fale primeiro.
— Sei que não sou o ideal para a criança, mas ainda quero
conhecê-lo, se me deixar vê-lo na festinha… — ele pausa —, quero muito
isto, mais do que nunca.
Suspiro aliviada, agradecendo aos céus em meu coração.
— Que bom, porque quero que o conheça… — minha voz falha,
minhas mãos tremem — mas, antes quero contar tudo sobre ele, começando
por ser autista, você já conhece algumas das suas características, dos seus
gostos e sua aptidão para música, mas quero que saiba sobre tudo.
Mikael engole com dificuldade e se afasta um pouco, ele me olha
nos olhos com profundidade, como se pudesse alcançar minha alma, sinto-me
enrodilhada por essa sensação dominante.
Suas mãos deslizam pela minha cintura subindo por meus braços,
passando levemente pelas mordidas que estão bem inchadas até alcançar meu
pescoço, ele alcança meu rosto com os polegares deslizando sobre minha pele
fazendo carinho, se aproxima até colocar sua testa contra a minha.
— Me conte Liana… — ele se afasta — me conte tudo que você tem
a falar sobre o seu filho, começando pelo nome dele.
CAPÍTULO 41
INVERDADES
“A verdade pode ter vários significados, desde ser o caso,
estar de acordo com os fatos ou a realidade”
MIKAEL
O
s gritos da criança parecem ter sido aprisionados dentro da minha cabeça,
nem mesmo tentando manter o foco em outra coisa, correr duas vezes a
distância costumeira pela orla da praia, dobrar os exercícios, contar minutos e
segundos vendo a hora passar até amanhecer, foi capaz de pará-los.
Eu vi as ligações e mensagens chegarem uma após a outra e não
pude responder, por medo, tristeza, raiva, vergonha e uma mistura de
sentimentos aterrorizantes que sobreveio a mim assim que ouvi o primeiro
grito de menino.
Senti como se a cada passo trôpego que dei atrás de Lia ao subir as
escadas fosse como uma porta do passado se abrindo diante de mim, a
solidão que sentia quando isto acontecia, os tremores e temores, a dor que
não se pode ser consolada.
Um dos seguranças estava na escada e ao me ver, tentou bloquear
minha passagem, o que só piorou a situação, para sorte dele Jairo apareceu e
o retirou do meu caminho.
Hesitei em entrar no apartamento, não pelas malditas regras, mas
sim por eles, por não estar me sentindo bem, por estar revivendo em uma
velocidade aterrorizantes cenas do passado, me vendo como criança e muitas
destas vezes sozinho, sem ninguém ao meu lado para me entender até…
Cacete! Mikael, chega de pensar nisto! — Esbravejo comigo
mesmo pronto a recorrer a outro meio para aliviar o meu tormento, contudo a
minha mente é uma senhora anarquista que não tem dó do corpo que a
carrega.
O que me impulsionou a invadir a casa, nem sei, só posso me
lembrar de estar esmurrando a porta, ouvindo o som dos berros desesperados
do menino e os rogos de Lia para que pudesse ir embora.
Foram tantas coisas acontecendo em simultâneo, a minha mente
girando, a dor de cabeça chegando com uma voracidade que me fez
escorregar pela madeira.
Ver sangue no chão e não saber de onde vinha me fez recordar
cenas pavorosas da infância, vasos de flores destruídos, instrumentos
quebrados e minha mãe em meio a uma poça horrenda vermelha tingindo o
chão, essa é minha única lembrança consciente da aproximação de uma
dessas crises que machucam o corpo, mente e a alma.
A urgência que senti ainda está aqui rondando minha mente,
reverberando por meu corpo com disparos de adrenalina, não sei por que,
mas ouvir uma música que fiz há tantos anos para nós no que parecia ser o
áudio original, mexeu comigo, com as minhas emoções mais soterradas. Só
me dei conta de estar cantando junto ao terminar a faixa e ela se reiniciar,
pela segunda ou terceira vez não fazia ideia.
No exato instante que tomei essa consciência percebi o silêncio que
vinha da criança e a dor aguda na cabeça, tentei me erguer e senti os pontos
de luzes estalando em minha visão, de acordo com Jairo que para meu
espanto, descobri ser um excelente socorrista, minha pressão arterial estava
elevada.
Foi meu segurança que esteve ali ao lado de Nina de prontidão
esperando que eu voltasse ao meu normal, se é que é isso aconteceu, para me
ajudar a sair do apartamento. A vergonha que senti após voltar aos meus
sentidos, foi tão imensa que não quis ser visto, contudo, não foi isto que me
fez ir embora…
— Mikael.
— Estou ouvindo você.
Me dou conta de que me perdi em pensamentos, mesmo com Lia
falando sobre a criança.
— O Asperger é uma forma branda do transtorno espectro autista.
No caso do Anjinho ele tem uma condição de introspecção, dificuldade
social, mas não da fala, mas do entrosamento. A crise que presenciou ontem,
não é algo habitual, tem tido maiores reincidências, desde que nos mudamos
para Vitória, mas a sua médica que faz o acompanhamento dele aqui, me
garantiu que essa adaptação vai passar à medida que outros fatores forem
agregados ao seu convívio.
Lia anda de um lado a outro enquanto discorre sobre o filho,
movendo as mãos de forma inquietamente. Foco em prestar atenção em tudo
que diz, e cada detalhe sobre a criança, seu desenvolvimento físico e
psíquico, a forma como ela lida com a situação geralmente.
Permaneço calado, ouvindo e revisando os fatos, imagens e dados
em minha mente montando um quebra-cabeças fascinante.
— Mikael? O nome dele é o mesmo que o meu, por quê? — A
interrompo não suportando mais a espera.
— Porque te amo, e amo ao meu filho. Era uma forma de expressar
isto.
— Quando ele nasceu, onde está o pai da criança para ajudar com
as crises, o quanto a criança sabe sobre o ele, como pode ser a minha música
que o fez serenar?
Jogo as perguntas uma por sobre a outra, Lia para de andar e se
senta em um banco de pedra no centro da estufa.
— A primeira vez que ouvi ele falar MAH ao telefone…
— Você o ouviu? — Lia se ergue.
— Pensei que fosse algo relacionado à brinquedos, os rapazes
disseram que poderia ser mamadeira, chupeta, nem sei ao certo, disseram
tantas coisas…
— Você falou com Anjinho ao telefone? — ela caminha em minha
direção com passos incertos.
— Nunca imaginária, — ergo minha cabeça e não evito que um
riso no canto dos lábios aflore assombrando ainda mais minha anja —, nunca
imaginária que MAH, seria a abreviação da minha assinatura no clipe de
música.
— Quando isto aconteceu? — Ela segura em meu antebraço.
— A criança que está descrevendo é inegavelmente como eu, —
bato em meu peito —, não seria estranho se apegar a um acróstico criado
como título da música, ele conseguiu ler o que escrevi.
Lia dá um passo atrás e suspira.
— Não foi o que planejou não é mesmo, não imaginou que isto
aconteceria desta forma…?
— Mikael…
Ergo-me da banqueta, dou um passo em direção a Lia, não quero
demonstrar tudo que está me consumindo
Lia fecha os olhos brevemente, percebo o tremor em seu corpo,
assim como no meu. Seguro o meu impulso para ampará-la, pois sei que se a
tocar, vou ceder a um lado da minha consciência que está gritando para
apagar da minha mente estas informações, tudo que está me consumindo e
fingir que isto nunca aconteceu.
Ela respira fundo abre os olhos e com firmeza fecha o espaço entre
nós mais uma vez.
— O meu filho, o Mikael, ele… — ela pausa.
O meu coração dispara e a porra do telefone começa a tocar com
insistência.
— Esquece o telefone e continua, antes que eu perca paciência.
— Não existem motivos para perder a paciência, não por isto,
escute tudo com atenção até o fim.
— Então comece a falar Liana… — digo entredentes —, aproveita
essa pequena oportunidade de ser honesta comigo, mesmo que eu concorde
com sua opinião, que sou a porra de um homem que não merece uma
explicação.
— Não fale assim Mikael, por favor! — ela se altera.
— Não seria uma mentira Liana Joaquina, apesar de ter vivido
cercado de inverdades, espero avidamente não ter mais uma vindo de você,
porque eu não sei o que é pior: saber ou não saber.
— A verdade tem três lados, o meu, o seu e o que realmente é de
fato. Não faça julgamentos antes de ouvir tudo, seja lá o que estiver
imaginando, pare aí mesmo. — Ela ergue a mão e sentencia, com sua
habitual força, a mesma que me excita e admiro.
Concordo com a cabeça, é só o que estou fazendo desde o
momento que ela começou a falar, escutando, dando a ela tempo para falar.
O aparelho celular silencia, mas não demora meio minuto e volta a
tocar.
— Inferno!
Explodo pronto a arremessar o celular do outro lado da estufa, mas
vejo o nome na tela e não posso ignorar a chamada.
— Droga, agora não!
— O que foi? — Lia segura meu pulso e puxa minha mão em sua
direção. — Agente Caleb, o que está acontecendo?
— Nada. Continue a falar… — Jairo bate na porta, o homem tão
parecido comigo ergue o seu próprio aparelho, constrangido acena —, parece
que terá mais um dia afinal, Liana.
— Do que está falando? — ela me olha com uma expressão
confusa, seguro o seu braço e a levo com delicadeza até à porta. — Jairo
leve-a para casa em segurança e redobre o número de agentes em volta do
prédio.
— Mikael!?
— Você precisa ir, — seguro em seu rosto e olho dentro dos seus
olhos —, essa conversa não terminou.
Beijo os seus lábios e me afasto deixando-a sem entender nada.
Dou uma ordem para Jairo levá-la. Lia reluta um pouco, mas cede ao que
peço e se deixa levar até o portão. Cambaleio contra a parede de vidro, me
encosto, sentindo uma pressão irritante sobre o peito e a cabeça, as minhas
vistas escurecem.
— Doutor?
— Kevin… — sinto minha cabeça latejar e o ar parece se tornar
rarefeito oprimindo meu peito. — O que Caleb disse?
— Acharam os malditos, estão indo atrás deles.
— Graças a Deus! Prepare os homens, vamos nos unir a eles.
— Senhor é perigoso e não está se sentindo bem.
Não consigo evitar uma gargalhada, ergo o meu corpo e os meus
olhos recaem sobre a bancada onde estive o tempo todo impedindo Lia de ver
o envelope, um pequeno maço de dinheiro, um endereço rabiscado e as fotos
que achei no compartimento interno do elevador na noite anterior ao sair do
seu apartamento.
— Meu caro, você não tem ideia do que realmente é perigoso
agora.
CAPÍTULO 42
IMPIEDADE
“Uma virtude simulada é uma impiedade duplicada: há malícia une-se a
falsidade.”
LIA
A
inda tenho sobre os meus lábios a sensação fugaz do seu último beijo. Olho
para o relógio na parede e as horas parecem brincar de esconde-esconde
comigo, quando penso que mais dez minutos se passaram vejo que ainda
estão no mesmo lugar.
Passo minhas mãos sobre os cabelos irritadamente, lavo o meu
rosto pela enésima vez e me olho no espelho sobre o gabinete da pia em meu
escritório.
Após ser gentilmente escoltada até minha casa, perdi
completamente o rumo de tudo que queria fazer, passei o restante do dia
deitada ao lado de Anjinho fazendo maratona de filmes e desenhos, alheia há
tudo.
A conversa que tive com Mikael, me pareceu surreal e
improdutiva, em um momento estava lá para saber como ele estava e no
outro, ele estava me colocando sobre interrogatório.
Não tenho dúvidas de que algo está se passando por sua mente,
algo como a certeza de que o meu filho é, na verdade, o nosso filho.
Me surpreendi ao ouvir a forma que falou sobre a criança, sobre ter
falado com ele e mais perplexa ainda por não saber. Quando isto aconteceu?
Desde quando Mikael está desconfiado de que tem um filho?
— Por Deus!
Sinto minhas vistas turvarem, escoro no balcão da pia e balanço
minha cabeça, o enjoo passou o que só me faz agradecer, mas essa fraqueza
não é normal. — Estresse Lia, puro e completo. — Comento em voz alta.
Deixo o banheiro no canto da sala, caminho até minha mesa e me
jogo sobre a cadeira, ainda não tive o prazer de celebrar e nem mesmo
agradecer com profusão a Mikael pela reforma que fez. Depois da nossa briga
soube através de Pedro tudo o que aconteceu, me senti tão mal por tê-lo
deixado naquele dia nesta condição, mas se não tivéssemos feito isto, nunca
estaríamos tão próximos e tão…
— A ponto de separar-nos, — lamento deitando minha cabeça
sobre os antebraços. — O que farei?
Graças Deus, Anjinho está bem. Acordou melhor e não se importou
em ir para escolinha, na verdade, parecia até feliz. O que me deixou mais
preocupada. Se ele tivesse se recusado a ir seria o seu habitual.
Quanto ao pai dele, depois da nossa conversa interrompida na
manhã de ontem, não obtive nenhuma notícia. Ele não atende o telefone, não
leu nenhuma das minhas mensagens e nem mesmo os rapazes sabem do seu
paradeiro.
Pensei em pedir a Dionísio que verificasse com os seus seguranças,
mas depois desisti, não quero dar motivos para que fiquem especulando sobre
Mikael e nossa relação.
Lágrimas saltam aos meus olhos e tenho a sensação de que estou
vivendo em meio a um tsunami prestes a varrer tudo a minha volta.
Pela tarde recebi uma ligação de Nina que estaria em uma clínica
próxima ao escritório para poder fazer um curativo no pé ferido, o irmão iria
acompanhá-la, mas depois nos reuniríamos para tomar um café e buscar
Anjinho na escolinha.
Por volta das duas horas, o meu cliente chegou e estava em meio a
reunião quando o celular sobre a mesa começou a tocar, geralmente não
atendo nenhuma ligação enquanto estou acompanhada, mas algo estava me
deixando histérica.
Antes que pudesse atender apropriadamente a chamada, já ouvi o
choro e os gritos de desespero do meu filho, uma urgência gritou dentro de
mim e sem pensar duas vezes me ergui da cadeira a deixando bater contra o
vidro que reveste a parede da sala.
Não me despedi do meu cliente, apenas o informei que algo
aconteceu ao meu filho. Me lembro de esbarrar em Pedro e Álvaro no meio
do corredor e pedir para remarcar com o cliente, adiar os meus compromissos
e chamar Nina e Dionísio.
Se é que, foi isto mesmo que disse!?
Ao escolher uma escola particular bem próxima ao escritório foi à
possibilidade de correr literalmente a pé até ela, de carro seria no mínimo
vinte e cinco minutos por conta da localização, mas correndo cinco minutos
são o suficiente.
Uma verdadeira loucura, uma vez que poderia expor Anjinho a
qualquer situação, ao pai dele, por exemplo. No entanto, visto que já estou
alcançando o portão em menos de cinco minutos e correndo com saltos de
dez centímetros, agradeço a Deus, por tê-lo tão próximo.
INALTERADO
“Meu único consolo é saber que quando olhei para os
seus olhos e o tive em meus braços pela primeira vez,
imediatamente o meu mundo se transformou…”
LIA
A
ntes mesmo de chegarmos à delegacia, os advogados da maldita já estavam
prontos esperando ao lado do marido que como suspeitei, é um dos clientes
figurões da A&A.
Giovane de imediato recusou falar com os colegas de profissão,
nem em sonhos farei um acordo com essa miserável, perco o réu primário,
mas não perco um dia mais sendo leniente com está mulher.
Prestei queixa contra a senhora Barcelos e não me surpreendi por
ver outras mães chegarem a tempo de fazerem suas próprias queixas. A louca
veio pouco depois para fazer sua própria queixa contra mim, com escândalo e
choro exacerbado, mas de acordo com o seu próprio marido, para ela seria
melhor ficar calada.
Não me importei com as suas ameaças, desde que nunca mais se
aproxime do meu filho. Ao retalhar sua agressão com outra, tenho
consciência do que se procede judicialmente, contudo há um adendo a cada
caso, no meu a legítima defesa — uma medida, ou moderação de atos para
impedir a injusta agressão, — poderia ser punível com um excedente,
contudo tomei cuidado para que isto não acontecesse.
Nunca foi minha intenção agir de modo arbitrário contra a justiça
que amo e prezo e se, de alguma forma tivesse feito algo que merecesse uma
punição exemplar, não teria fugido.
A pior parte foi expor o meu filho para fazer um exame de corpo
delito, essa lembrança monstruosa vai para o hall das coisas que “nunca”
imaginei ou quis vivenciar com ele.
— Nina, por favor leve-o para casa.
— Claro, não precisava nem pedir, não vejo a hora de chegarmos
em casa, graças a Deus, ele dormiu.
— Agradeço por isto e por tudo, cuide dele, não sei o que vai
acontecer daqui por diante, mas por favor, fica com ele.
— Para onde está indo?
Ela pergunta, mas olhando por cima do meu ombro em direção ao
esquadrão de advogados que estão fazendo uma barreira entre mim e o carro
da agressora.
— Sinceramente não faço ideia, mas espero poder ir para casa,
minha cabeça está prestes a explodir.
Me afasto do SUV, Dionísio fecha à porta e aperta com delicadeza
meu antebraço para me dá forças. Limpo os meus olhos mais uma vez e
aceito a garrafa de água que é colocada a minha frente, me despeço
novamente de Nina com acenos olhando fixamente para o vidro sendo
erguido escondendo do mundo o meu bem mais precioso.
— Às vezes me pergunto se tem alguém com uma caneta e um
corretivo nas mãos escrevendo minha história sabia? — pergunto em voz alta
bebericando a água gelada. — Somente isto, poderia explicar as idas e vindas
que a minha vida tem dado dentro dessa roda de fogo, não acha Ramon?
Olho de esguelha para um dos meus solícitos advogados, seus
olhos estão fixos em um ponto sobre minha cabeça, ignorando o que ele e os
outros sem querer acabaram de descobrir
— Você acredita que em algum lugar deste Universo, tem um autor
tentando recriar um caminho sem volta para mim?
— Acredito, que seja lá quem estiver em posse da caneta, deva
querer o melhor para você, o seu filho e… — ele pausa e pela primeira vez
desde o momento que o vi chegar na delegacia me olha de verdade nos olhos,
— não sei o que dizer e se for sincero comigo mesmo, não quero. Tenho a
minha própria experiência quanto a uma situação similar, — ele aponta para
o carro que começa a contornar o pátio em direção a cancela de segurança, —
só posso desejar que sejam felizes ao final de tudo isto.
— Vocês viram o meu filho?
— Não! Tomamos conhecimento do caso e do nome da criança e
os seus dados, somando a tudo que supomos e o que tem acontecido,
preferimos deixar o Santana à frente para lidar com ele no exame.
Não posso evitar deixar que um suspiro de alívio extravase em
meus lábios, após fazer o Boletim de Ocorrência, um dos guardas me pediu
para segui-lo até uma sala para aguardar a Senhora Barcelos ser ouvida.
Uma agente do conselho tutelar veio acompanhar a acareação com
Anjinho, por ainda estar muito alterada e evitar qualquer influência sobre a
criança, ela achou melhor que Nina e um dos advogados estivessem
presentes. O mais justo seria Giovane, por isto não me preocupei no
momento, contudo, após sair da sala e encontrar, Ramon, Carlos Eduardo e
Anderson na sala conversando com o Delegado Soares, meu mundo
precariamente sustentado sobre minhas pernas, desabou.
O medo de que Mikael estivesse ali foi tão grande que senti uma
vertigem e precisei ser amparada pelo policial que me acompanhava. Pelo
que entendi Gio havia ligado para o escritório pedindo que um dos advogados
viesse ao nosso encontro e trouxesse minha bolsa com os documentos, por
um acaso esse mesmo advogado achou prudente comunicar a Edu que
notificou a Anderson e pelo que percebo a Ramon.
— Você está bem? — Ele segura-me pelo antebraço.
— Estou bem, Ramon. Agradeço por sua ajuda.
— Disponha sempre que precisar. — Ramon retira o Iphone do
bolso. — Ele está ligando, o que falo?
— Não é a minha intenção me fazer de sonsa, porque não sou e
nem faz o meu gênero, se é sobre o Mikael que está falando, diga a verdade,
contudo peço que deixe apenas um fato de fora, por enquanto…
— Não vejo propósito algum, não vi o seu filho, portanto não tenho
a intenção de falar nada além do que concerne ao caso, entretanto se me
permite ressaltar como seu amigo, não arraste isto por mais tempo.
— Arrastar… — solto uma risada de escárnio —, não diria que
tenho arrastado algo, Ramon, mas compreendo sua preocupação e sei os
motivos pelo qual está falando. Tomei atitudes e fiz escolhas pautadas no que
vivi com e sem Mikael, antes dele ou até mesmo de mim, vem o meu filho.
— Não estou te julgando, não fiz isto com a minha esposa, e nem
seria capaz de fazer com qualquer pessoa, principalmente sem ter
experimentado o que passaram, mas sei que isto, tem de ser resolvido para o
bem dos três; e quando digo “isto” me refiro ao fato de que tem uma história
inacabada e um ser humano indefeso precisando de ambos os pais para
protegê-lo.
Ele olha novamente para tela do celular e franze a testa com a
mensagem recebida.
— É fácil julgarem o que fiz ou faço, mas quer me julgar, — ergo
os braços voltando-me em direção aos nossos amigos que estão perto o
suficiente para ouvirem a nossa conversa, — é simples, anda sobre os meus
sapatos uma légua e tenta chegar lá na frente de pé, como eu estou. Se acha
fácil ser posto para fora da sua casa, do seu país, de ver o homem que ama e a
sua família lhe dar às costas, e após dez anos ser trazida como
uma mercadoria de volta para prateleira, só para cair nessa loucura aqui, pode
ficar à vontade para viver a minha vida.
— Lia… — Giovane se aproxima.
— Dane-se o que pensam de mim ou acham sobre as minhas
atitudes, não devo nada a vocês! Quem foi o primeiro a dizer que: abominava
a ideia de ter um filho? Foi ele, se tive e não disse nada a ninguém, é pelo
simples fato de que não devo porra nenhuma a ninguém!
— Lia, nós não estamos julgando nada aqui e nem ninguém, o que
Ramon está dizendo… — Edu se aproxima e se coloca a minha frente.
— Entendi o que ele disse Edu. Há coisas que não se diz com
palavras, olhares falam muito mais alto.
— Está enganada Liana, não precisa ficar na defensiva, —
Anderson cruza os braços diante de mim, — estamos aqui para ajudá-la, o
fato de Ramon ter vindo por intermédio do Mikael, só prova que ele está
preocupado com vocês!
— Por falar nisto, como ele soube? — olho para os quatro
cavalheiros de terno à espera de uma resposta. — Como Mikael soube o que
aconteceu?
— Não faço ideia, recebi uma ligação muito alterada dele, pedindo
para que viesse e não fizesse perguntas, apenas cuidasse para que você e
Mikael ficassem bem. — Ele coça a nuca e me encara. — Confesso que não
entendi nada ao ouvir o nome da criança e nem a sua agitação, ele estava para
entrar em audiência, só por isto não veio pessoalmente e acredito que para
não ter um confronto como este aqui.
— Isto não importa, vou descobrir depois, mas suspeito que deva
haver seguranças que ele mesmo solicitou me rondando, só mesmo um idiota
não perceberia isto.
— Sabemos o quanto ama ao seu filho Lia e espero que tudo se
resolva, não o vi, confesso que queria, contudo, sou da mesma opinião do
nosso amigo, tem alguém que merece conhecê-lo primeiro.
Cambaleio novamente e a vertigem me incomoda. Inferno além da
água o que foi que comi desde o café da manhã? Nada.
— Lia?
Os quatro se aproximam e de alguma forma me amparam,
provavelmente, estou uma bagunça emocional, com a roupa meio molhada, a
maquiagem a prova d’água não resistiu ao sabonete que usei na delegacia e
devo ter um borrão preto abaixo dos olhos, me sinto com a aparência
destruída, mas por dentro está bem pior.
— Amar vai muito além dos sorrisos, beijos e abraços, está na
entrega abnegada. Está em cada amanhecer que ouço meu filho dizer: bom
dia, mamãe, — suspiro e as lágrimas escorrem por meu rosto, Ramon, coloca
o celular no bolso do seu terno e me abraça.
— Não deveria se preocupar com o que pensamos Lia e nem outras
pessoas. Isto só interessa a vocês dois. Três!
— Agora tenho certeza de que não vou me importar com o que
falarem de mim! — com a mão em riste espalmou ela sobre o peito e me
afasto. — Sou a mãe dele, posso te assegurar que sou guerreira o suficiente
para desbancar qualquer um e não me importo com que falem ao meu
respeito, só não toquem no meu filho.
— Isto com certeza ninguém em sã consciência faria, — Edu
comenta.
— Óbvio, quem se arriscaria a levar uma surra de toalha molhada?
— Anderson cochicha, mas alto o suficiente para que eles comecem a rir.
— Não tem graça! — exclamo me afastando.
— Pode não ter agora, mas assim que July souber disto…
— Carlos Eduardo, nem se atreva a contar a ela.
— Você aprendeu isso com a Miau, não foi? — Gio pergunta com
sobrecenho franzido.
— Se prepara Santana, um dia a sua gata arisca pode te pegar de
jeito. — Anderson zomba.
Me afasto deles.
— Agradeço por virem. Me deixem a par do que vai acontecer com
o processo, preciso ir para casa, quero ver o meu filho e comer algo.
— Eu a levo, — Gio se oferece e aceito, — não precisa ficar
preocupada, vai ficar tudo bem.
— Será?
Aceito o abraço reconfortante dos meus amigos, Ramon acena e se
afasta caminhando para longe erguendo o telefone, observo-o falar, gesticular
e coçar a nuca em sinal de frustração. Entro no carro de Gio, afivelo o cinto
de segurança, alcanço o celular no bolso da calça para saber se Nina e
Anjinho já estão chegando em casa.
Não é surpresa ter milhares de mensagens e ligações perdidas, das
minhas amigas, no grupo de aplicativo e individuais, mamãe, a diretora da
escola e do escritório, contudo a única mensagem que fito é a dele. O medo
de abri o clipe de voz é tão grande, que me causa mal-estar. Gio vendo minha
indecisão, salta do carro e fecha à porta se afastando, com dedos trêmulos
toco a tela e aciono o clipe de voz.
>> levando em consideração que não terminamos a nossa
conversa, espero que veja a minha intromissão como a de um namorado, um
amigo preocupado com você e Mikael. Provavelmente Staeler vai colocá-la a
par de que estou em uma audiência e não poderia sair no meio do recesso,
por isto não estou ao seu lado, — ele pausa e ouço vozes ao fundo e a
campainha indicando para que entrem na sala novamente, — não faço ideia
de como está se sentindo, mas se o que eu estou sentindo nesse momento for
um décimo disto, Deus que me ajude Liana… Nunca me senti tão inútil como
agora, não vou pedir para vê-lo, nem me meter neste momento com as suas
decisões, vou esperar. Vou lhe dar o tempo suficiente para podermos
terminar nosso assunto, contudo quero pedir um favor...
Outro sinal toca e ele não diz o que tem a pedir, mas algo dentro de
mim, sabe exatamente o que ele quer.
IRREFUTÁVEL
“O homem prudente não diz tudo quanto pensa, mas pensa tudo quanto diz.”
Aristóteles
LIA
INFINITO
“O menor desvio inicial da verdade multiplica-se ao infinito à medida que
avança.”
Aristóteles
LIA
T
enho a sensação de que não estou em casa, mas isto é o de menos, a brisa
morna percorrendo minha perna me faz imaginar que estou em uma praia,
meu lugar preferido, com sol aquecendo-me, o som das ondas soando
baixinho, — pauso, — estranho que esse som não parece ser do mar…
Gemo e tento me espreguiçar, os lençóis da cama deveriam fazer
um sussurrar mais suave e não parecer um rangido de couro.
A não ser que eu não esteja em minha cama. — Penso.
As lembranças do dia anterior saqueiam a minha mente, — puta
merda que dor de cabeça, — resmungo, — minha boca parece estar cheia de
areia.
O calor gostoso se espalha pelas minhas coxas nuas e um roçar leve
faz cócegas. Levo minha mão até onde sinto a sensação ou imagino fazer, o
meu corpo não responde ao comando, como se não estivesse acordado.
Novas imagens da noite anterior explodem em minha memória,
bebedeira, briga, choro, risos e confissões com minhas amigas em um quarto
de hotel, onde deveria estar dormindo.
Hum…
Deus do céu sinto um formigamento estalar bem no centro do meu
sexo como um tiro.
Esse calor, as sensações me dizem que não estou ao sol em uma
praia… não mesmo, essas mãos deslizando por meu ventre, arrepiando a
minha pele, fazendo os meus seios latejarem até às pontas.
— Não é o hotel, — minha voz quase não sai, minha boca
ressecada cria engulhos horríveis no meu estômago.
O beijo suave bem acima do meu estômago dolorido me desperta
de vez, abro os meus olhos e a primeira imagem me assusta e ao mesmo
tempo me conforta. Uma massa de cabelos ruivos revoltos que brilham com
os raios de sol que atravessam a vidraça.
Olho à minha volta e reconheço a sala em que estou, os móveis, o
sofá de couro, os quadros e assim como o homem que lentamente espalha
beijos por entre os meus seios desnudos e a garganta, Mikael.
Não resisto a soltar outro gemido, sua pele aquecida se acomoda
sobre a minha e as últimas lembranças da madrugada me assaltam.
Após acordar e conversar com Angel, ela me garantiu que estaria
segura indo para meu apartamento, me recordo de adormecer, sentir meu
corpo ser suspenso e vozes em meus ouvidos, depois…
— Oh!?
As lembranças de braços fortes me carregando para dentro de casa
assaltam a minha mente, mas mal entramos e meu estômago resolveu
protestar com o excesso de embriaguez.
— Oh Deus!
— Percebo que se lembra do que aconteceu ontem e nesta
madrugada?
— Mikael, — pauso —, como vim parar aqui e, me desculpa por
ter…
— Vomitado por todo o meu chão e minha cama?
Isto explica o motivo por estarmos dormindo na sala.
Me sinto envergonhada, tento me erguer, mas a cabeça pesa, ele
passa o braço por cima do meu corpo e alcança um copo d’água, aceito e
tomo um gole. Mikael não me olha nos olhos, o lençol que forrou o sofá está
jogado no chão, meu corpo está nu.
Roço minhas pernas e sinto a umidade entre as coxas, mas não por
termos transado e sim por estar me excitando só por tê-lo seminu ao lado.
Pelo amor de Deus, isso é algum caldeirão da libido entornando
dentro de mim?
— Bom dia, — a voz rouca em tom baixo arrepia me causa frisson
— está se sentindo melhor?
— Sim, obrigada.
Ele se afasta o suficiente para deslizar de volta para baixo no sofá
se colocando de joelhos, o deslizar da barba por dentro da minha coxa
esquerda, causa um choque nos meus sentidos, alço o corpo pelos cotovelos,
sentindo-os afundar na maciez do couro que reveste o sofá.
— Como me trouxe, quer dizer… — não consigo formular a frase
— eu…
— Angélica a mandou para mim.
— Ah! Uau, isto me faz sentir como uma entrega de Delivery — só
não tenho a intenção de reclamar.
Talvez, se por um segundo pudessem esquecer tudo e ficar assim,
quem sabe acordo deste pesadelo que a nossa vida está se tornando?
Mikael afasta mais as minhas pernas e a umidade viscosa deslizam
entre os lábios do meu sexo deixando evidente o quanto estou com desejo, e
incrivelmente estou descobrindo que estresse pode acabar com o aparelho
digestivo de alguém e torná-la obcecada por uma foda.
Ele eleva a sua cabeça e me olha fixamente, os seus olhos estão
vermelhos, um pouco inchados como se tivesse passado toda a noite
acordado ou chorado, ver isto machuca o meu coração, iço a minha mão
direta e acaricio o seu rosto, escovo os seus cabelos com carinho.
Mikael fecha os olhos aproveitando o momento de afago, mas ao
abri-los novamente o brilho dominador está lá ocupando toda a sua íris e o
sorriso pecaminoso se alastra no canto da sua boca.
— Oh! Meu Deus! — grito ao sentir seus dedos abrirem meu sexo
e a língua deslizar por inteiro até o fundo.
— Por enquanto, é só o anjo.
Dou um tapa contra o seu ombro, só o que me faltava era receber
castigos por heresias.
— Mikael, — tento falar, mas a mordida próxima a minha virilha
me faz gemer mais alto.
Ele literalmente me come, devora, chupa e não me deixa fechar as
coxas a cada novo puxão que dá sobre meu clitóris. Meus seios bamboleiam
pesadamente a cada movimento, alço mais o meu corpo segurando no
encosto do sofá com uma mão e a outra agarro firme os fios avermelhados
em sua nuca.
Ele geme com a pegada e desforra intensificando as arremetidas da
sua língua contra meu sexo, perfurando o canal, indo e vindo sobre o botão
inchado até prender o brinco de ônix entre os dentes.
Um bip discreto ecoa de algum lugar. Isso parece o alarme do meu
celular. Tento não perder o foco, mas o bip insistente me faz abrir os olhos.
Mikael me fita e faz menção de se afastar, seguro firme contra sua
nuca, — por favor — suplico prestes a gozar.
Ele volta a sugar-me e lamber, posso sentir o fissura do orgasmo
espocar a pele, arrepios eriçam os pelos da nuca e com mais um pouco de
pressão e lá está, a luz no fim do túnel, o meu nirvana orgástico.
Caio contra o estofado sem força, sem fôlego, pronta a retribuir
para ele, contudo o som do celular me faz olhar a bolsa que está na poltrona
do outro lado da sala.
— Que horas são? — pergunto ainda rouca.
— Ainda é cedo… — ele puxa minha perna e engata sua ereção no
meu canal dolorido.
— Cedo? — solto outra pergunta idiota sentindo seu o pau ser
arremessado dentro de mim com uma lanceada única. — Oh, droga!
— Está ruim? — Ele me olha de soslaio e desvia novamente o
olhar.
Mikael segura em minha cintura com força e as suas arremetidas
são fortes o suficiente para me mover pelo estofado.
— Está me castigando? — pergunto entre uma estocada e outa. —
Por que não me olha?
— Se fosse um castigo, não teria duvidas Liana e nem tão pouco
usaria o sexo que amamos fazer com essa finalidade.
— Então… — pauso, ele se curva e me pega pelas axilas me
fazendo erguer e me sentar sobre o seu colo. —Hum… — gemo ao senti-lo
ser enterrado profundamente dentro de mim — me olhe nos olhos, Mikael!
O empurro pelos ombros, o som do bip se interrompe e isto me faz
olhar para fora da vidraça, volto o meu rosto em sua direção e ele está me
encarando, contudo, volta a desviar o seu olhar.
Seguro seu rosto e o faço me olhar. — Está com raiva de mim?
— Quero uma pausa com você.
— O quê? — me alarmo toda ao ouvi-lo, ele trava as investidas
cravando profundamente dentro de mim seu pau, de tal forma que posso
sentir a esfera do piercing pressionar por dentro.
— O que disse ontem no áudio, quero o que pedi.
— Não pediu, cortou a mensagem, o que quer?
O que seria essa pausa? Não tenho coragem de dizer em voz alta,
mas posso sentir os meus olhos arderem e o medo que me dominou por todo
esse tempo parece estar soltando fogos de artifício dentro da minha cabeça.
Ele quer me deixar?
— Quero um dia com você. Quero fingir que nunca estivemos
longe um do outro, um dia só nosso, — ele fala e volta a desviar o seu olhar,
então percebo que como eu, Mikael está na mesma situação.
Cada um sentindo os efeitos de tudo que está acontecendo em
intensidades diferentes, mas com a mesma finalidade, nos machucando.
— Mikael…
— Todavia, antes quero dizer algo e tomar algumas providências,
— agora sou eu quem desvia o olhar e tenho o meu rosto erguido em sua
direção, a sua expressão dolorosa, — sinto muito pelo que houve com ele, me
desculpa. — Ele sussurra
Não… mesmo que não esteja claro, só sendo muito obtusa para
não perceber que ele está se adiantando e colocando a culpa da condição do
filho em si, ou de alguma forma assumindo que o que houve… Deus!
— Não diz isto — o abraço com todas as minhas forças sentindo
seu corpo estremecer — por favor, — espalho beijos por seu rosto, a fronte,
sua testa, a ponta do nariz até tocar sua boca —, por favor, não diz isto!
Volto a beijá-lo sentindo minhas próprias lágrimas deslizarem por
meu rosto. Mikael retribui o abraço, ele nos deita no sofá e volta com
arremetidas suaves que vão se intensificando até estamos arfantes, olhando
fixamente um nos olhos do outro nos perdendo na sensação prazerosa de
voltarmos a fazer amor.
Ele me faz gozar novamente, mordo a comissura dos seus lábios e
o sinto derramar dentro de mim com gozo delirante, não permitindo que
nenhuma outra palavra viesse atrapalhar esse momento, mesmo que nossos
corações estejam sangrando.
INDISSOLÚVEL
“Admirável força indissolúvel das conquistas que, revestida
MIKAEL
O
tic-tac do relógio de pêndulo na sala provavelmente deve ter algum efeito
calmante nos clientes que passam certo tempo sentado à espera de ser
atendido, mas no meu caso estou a ponto de arrancá-lo da parede e pedir para
tirarem da minha frente.
Ainda não entendi por qual motivo Angélica marcaria comigo em
uma clínica psiquiátrica, contudo se considerar em como a minha vida virou
de ponta a cabeça, esse é o melhor lugar para se estar.
A porta da sala ao lado se abriu, a Megera passou acompanhada
por outra mulher, a morena trajada com roupas informais não parece ser uma
médica. Porém, ela não me é estranha, ao ver seu rosto de forma nítida a
reconheço do casamento de Ramon e Carla. Está é Márcia, uma das
endroamigas que participa de uma ação social para ajudar mulheres com
endometriose, a mulher segura um criança em seu colo, a Megera a ajuda a
colocar a bolsa azul de bebê no ombro, enquanto arrulha a bochecha gordinha
do menino.
Elas conversam por um tempo, Angélica entrega a ela um envelope
e se despede com um aceno. Lembro-me de Ramon comentar que a loira usa
a clínica que ainda mantém em sociedade com Carla para poder ajudar
mulheres, e que esse grupo faz parte de um dos centros resgate.
Ainda não tenho certeza da extensão do trabalho que a Megera faz
por debaixo dos panos, mas sei ser algo muito sério, importante e perigoso.
Não faz muito tempo que ela apareceu com o braço imobilizado e não é a
primeira vez que ela é ferida em “acidentes”, mas seja o que for, é algo
louvável, se não fosse por ela, talvez teria perdido Lia.
— Mikael — ouço estalos de dedos à minha frente só então
percebo que ela está parada diante de mim com uma das mãos na cintura —
acordou?
Não respondo de imediato, ergo-me da cadeira e cruzo meus braços
à frente do corpo. — Estou bem acordado, posso saber por que este seria um
bom lugar para conversarmos?
— Porque tenho muitos compromissos para hoje e como disse se
quer minha ajuda, precisa fazer algo por mim.
O tom de voz com que fala me alerta, muito provavelmente é só
um reflexo da minha mente jogando sobre ela o que eu aconselharia para
mim mesmo agora. De forma alguma ela está em uma das suas crises, não
posso crer, para não demonstrar que estou realmente preocupado e alarmado
que algo possa estar acontecendo com ela, uso o humor ácido entre nós para
que com sutileza descubra o que está acontecendo.
— Não me diga que precisa de um responsável para sua internação,
— descruzo os braços e me aproximo mais dela —, se for o caso de precisar
de uma camisa de força Megera, pode ficar tranquila que cuidarei para que
usem a mais forte e não se preocupe, cuido do seu gato.
Ela bufa e começa a rir. — O que disse?
— Sei que não é muito fácil lidar com tantas coisas, e se por acaso
estiver precisando de férias, eu posso ajudá-la. Sabe que sempre vai poder
contar comigo, — digo a sério e com carinho retiro uma mecha de cabelo
solto sobre os seus olhos colocando por detrás da sua orelha — se precisar, eu
cuido de você.
— Hei! — Ela bate na minha mão e estreita os olhos.
— Não precisa de ficar agressiva, acredito que seu tamanho é “p”
de pirada? — não resisto, mas seguro o riso ao vê-la arregalar os olhos e
corar.
— Ovinho, parei de ouvir na parte da camisa de força, é uma pena
o seu tamanho não ser “M” de maluco, seria perfeito!
Não consigo segurar e acabo rindo da sua expressão e palavreado
nada elegante para uma mocinha falar.
— Podemos falar a sério, Promotor? — Ela olha em seu relógio de
pulso e suspira. — Não temos muito tempo, que tal um café?
Concordo seguindo-a até o final do corredor e entrando em um
amplo espaço arejado com sofás e cadeiras, alguns vasos de plantas estão
espalhados estrategicamente ao lado das janelas o que torna o ambiente com
cara de hospital mais acolhedor. A clínica tem um bom histórico, não me
lembro se alguma vez minha mãe passou em consulta por aqui.
Angélica segue até o outro lado e empurra a porta de vidro fosco,
uma pequena cafeteria está vazia, a atendente é ligeira ao anotar e
providenciar nossos pedidos.
— Megera, posso saber o que exatamente estamos fazendo aqui?
Qual o interesse em estarmos em uma clínica para que me ouça, se não é para
interná-la? — Estranho a forma que me olha principalmente por não ser
acompanhado de um riso sínico
Sem uma resposta direta, algo começa a borbulhar na minha mente,
não faz muito tempo que ela vem insinuando que eu preciso buscar ajuda.
Não seria exatamente uma surpresa se por detrás desse balcão saltasse meus
amigos com uma intervenção acompanhados de um profissional na área.
Após o lamentável episódio no escritório de Lia onde perdi o
controle de uma forma que não fazia a anos, meus amigos passaram a ser
mais reticentes comigo, às vezes tenho a impressão de que estão me tratando
como uma bomba prestes a explodir.
Isto seria uma mentira, Mikael? — meu subconsciente grita — não
seria uma mentira e por este motivo, tenho que ter muita certeza se quero
mesmo conhecer o filho da Lia, e levar a diante toda essa história prestes a
vir à tona. Será que é o melhor para minha saúde mental? O medo não é por
mim, mas ferir aqueles a quem amo.
— Tenho uma hora marcada com minha psico.
— Quer que lhe compre um pirulito após a consulta?
— Está sendo um paranoico, Ovinho.
— Não sei, com certeza não estou gostando do que estou
imaginando.
— Vamos por partes, antes que se estresse de forma desnecessária,
me passe o que tem em sua pasta, — ela estende a mão com a palma para
cima.
— O quanto você já sabe da minha conversa com os caras?
— Não muito, contudo você mostrou a eles algo e depois
resolveram fechar o bar, — ela sorri — seja lá o que for, tem a ver com o
DNA?
— Tem sim, e só para deixar claro, odeio essa coisa de você estar
de olho em nós o tempo todo. — Coloco a xícara sobre a mesa e aproveito a
deixa para falar exatamente o que penso sobre a sua espionagem, seja ela do
bem ou não.
— Estou farto de ter nossas vidas reviradas de um lado a outro com
todos esses segredos, a escolha dos nossos pais fodeu com tudo, deixou-nos à
mercê de uma psicopata do caralho que já tentou machucar Aline, que se
infiltrou na casa de Edu, que quase matou Lia e ameaçou a vida do Mikael,
porra!
— Faço das suas as minhas palavras, mas nem por um momento
acredite que não estarei de olho em vocês, se não fosse por isto, muito mais
coisas teriam acontecido.
— Então concorda quando digo que você sabe muito mais do que
nos diz?
— O que sei, só interessa a mim, ao menos até que possa fazer algo
real para mudar a situação, no momento só posso garantir a segurança
vigiando, se recorda que contrataram a minha empresa de segurança?
— Recordo, inclusive que anda com Christian a tiracolo como
parceiro de trabalho.
— Mikael, não vamos fugir do tema central da conversa.
— Não estou fugindo de nada! — exclamo jogando sobre a mesa
as fotos que retiro da pasta. — Só quero entender, como o rapaz que
conhecemos como sobrinho da Lourdes, está trabalhando com você e que
porra de ligação ele tinha com minha mãe?
— Ligação com a sua mãe? Nenhuma pelo que eu saiba.
— Quero acreditar que está tentando não me contar o que sabe,
pois, duvido que não tenha essa informação.
— Mikael, eu não tenho a intenção de mentir, já deixei claro o meu
posicionamento em relação a isto, prometi a você que assim que tivesse
qualquer pista de onde ela está, às entregaria.
— Christian fala russo com perfeição, diria até que ele é um nativo.
— Ele não tem nenhum sotaque, e sim é a porra de um poliglota,
russo, alemão, inglês, francês, catalão, espanhol, coreano e acredito que ele
está estudando mandarim se não me engano.
— Sem deboche, Angélica.
— Eu não estou debochando, o homem é culto, o passatempo dele
é estudar. — Ela dá de ombros.
— Porque nunca apareceu, me diz que ele realmente não sabe nada
da Verônica? Que não tem nada a ver com isto?
— Mikael! — Angélica se exaspera e o alarme do seu relógio no
pulso nos interrompe. — Droga, temos mais vinte minutos, escuta com
atenção, em relação a Christian, deixa que investigo qualquer coisa,
principalmente se ele tinha uma relação com Sarah. Isto para mim é
novidade, se reparar nestas fotos, em raras apareço, não tinha permissão para
fazer parte dos eventos, hora por estar de castigo, hora espancada demais para
aparecer em público.
— Porra!
— É uma porra, mas este não é o assunto aqui, não é? O que quer
de mim?
— Quero que descubra qual Nikolaevich está vivo.
Angélica solta as fotos que tem nas mãos, ergue os olhos e os fixa
sobre mim com uma expressão tão perplexa quanto a dos meus amigos.
— O-o que disse? — Ela estremece de forma visível e tenho a
sensação de que algo está se passando na sua cabeça e não é nada bom.
— Angel…
— Está dizendo, que alguém sobreviveu ao acidente?
— Acidente? — Não entendo o que ela diz de primeira, mas logo o
cenário que está se passando em sua mente fica claro. — Angel… — me ergo
e dou a volta na cadeira me colocando à sua frente, a levanto com rapidez e a
abraço, mesmo que ela me force a afastar. — Ele está morto, ok? O seu pai
está morto, dentre todos os corpos o dele foi o que melhor identificação teve,
o maldito está morto.
— E-eu, n-não… — ela pausa e me empurra com mais força e a
libero. — Estou bem, Ovinho! De onde tirou isso sobre parentes, seu pai
sempre disse que não tinham ninguém e realmente não tenho informações
sobre parentes vivos.
Ela pausa estreitando os olhos, recua um passo e passa a mão pela
trança jogada por sobre o ombro.
— É o que quero descobrir, de onde vem isto, sente-se, vou te
contar uma história, em menos de dez minutos.
LIA
Contorno no semáforo e entro na Avenida Hugo Musso, o GPS vai
triangulando o caminho, já que é a primeira vez que vamos consultar nesta
Clínica Psiquiátrica em Vila Velha. Por ser uma consulta extra de
emergência, a médica que faz o acompanhamento de Anjinho me disse que
estaria aqui pela manhã.
— Tem um Hortifruti por aqui, podemos aproveitar e fazer umas
compras?
Olho pelo retrovisor e Nina ergue o celular pesquisando sobre a
área em volta.
— Podemos, mas depende de como ele vai estar.
Anjinho está com olhinhos focados na paisagem urbana, a avenida
é cheia de prédios altos e alguns chamam a atenção por serem todos
envidraçados refletindo a luz do sol.
— Meu amor, quer ouvir música? — chamo a sua atenção
enquanto sigo lentamente o fluxo de carros após abrir o sinal.
— Anjinho… — ele não me responde, outro daqueles momentos
silenciosos.
O prédio da clínica está logo a frente, estaciono e deixo que Nina
desça para subir as escadarias com Anjinho, enquanto levo o carro mais à
frente para estacionar. Confiro bolsa, documentos, chaves e celular, desligo o
motor do carro e desço, esperando sinceramente que uma consulta o ajude.
O psicólogo que estávamos acostumados, nos indicou essa médica
depois do primeiro episódio de crise séria que meu filho teve após a nossa
mudança, no começo me senti mal e muito preocupada, por ele ter que ver
uma psiquiatra.
Creio que toda mãe e pai, independentemente de seu filho ser ou
não autista, mas que precise do apoio de um profissional de saúde mental, se
sente em algum momento fraco, impotente. Confesso que a minha sensação
foi de ter falhado como mãe, como protetora. Na minha cabeça e mesmo
buscando todas as informações pertinentes em sites e grupos de ajuda para
pais, via esse momento como uma prova cabal da minha maior falha, contudo
aprendo com a Doutora Samira, que isto não é real.
Os sentimentos e medos, vergonha e de falhar, não podem nos
impedir de buscar o melhor para nossos filhos, é procurando ajuda que tudo
se resolve. Somos os super-heróis com capas e os médicos que nos auxiliam
os ajudantes de jaleco.
INEXPLICÁVEL
“É preciso correr riscos. Só entendemos direito o milagre da vida
quando deixamos que o inesperado aconteça.”
Paulo Coelho
LIA
A
lgumas pessoas não sabem realmente o que elas querem, e outras hesitam
mesmo sabendo o que quer, entretanto, o que diligentemente chamamos de
oportunidade, chega de uma forma inesperada e só os que estão forjados,
conseguem aproveitá-la.
É no mínimo inexplicável as voltas que a vida dá, — essa é a
melhor afirmação que posso usar para descrever o que nos acontece, porque
outro termo eu desconheço.
Conecto o celular ao som do carro e deixo rolar a seleção musical
que compartilhei com ele da última vez que estive em sua casa. As músicas
românticas parecem um deboche para alguém na situação que me encontro.
Me sinto egoísta por me preocupar não apenas com meu filho e a reação de
Mikael, mas também pelo medo de perder o homem que amo.
— Eu não deveria ter voltado, não deveria… Se ele não suportar?
Se não conseguirem se adaptar, se… Droga! — esmurro o volante e esbarro
na buzina sem querer.
Passo a mão pelo rosto limpando as lágrimas, pensando em tudo o
que houve antes e depois desta manhã.
“Deus se está me ouvindo, por favor, me mostra como agir, me dê
as palavras certas. Suplico para que eles não se machuquem.”
Devo ser a pessoa que mais fura a fila das orações na última hora
querendo uma resposta, uma solução. Após ver Mikael sair do consultório,
minha única alternativa seria pegar o meu filho e tentar decifrar aquele
sorriso, entender o que ouviu e viu. Contudo, Anjinho não precisaria ser
interrogado por uma mãe a beira de um colapso nervoso, por este motivo,
simplesmente segui como se nada de mais tivesse acabado de acontecer.
— Só não consigo convencer as minhas pernas e mãos a pararem
de tremer. — comento em voz alta.
De volta ao tráfego pesado procuro manter os meus olhos atentos
em que direção estou guiando. Deixei Nina com Gio e Anjinho e segui para o
escritório, para poder me dedicar nestes próximos dias a meu filho e tudo o
que está por vir, pedi a Pedro para auxiliar minha assistente e reorganizar
minha agenda, que por sorte se manteve bem leve desde meu retorno ao
trabalho.
O que foi bom, para evitar um problema maior, já que a maldita
louca Barcelos, resolveu pedir auxílio aos amigos e tem causado certo
pandemônio com os clientes. Porém, isto é algo que sinceramente, não estou
preocupada, o meu foco é outro e bem mais sério.
De acordo com Samira, meu filho precisa ser afastado
imediatamente destes conflitos que parecem ter se tornando rotineiros, ela já
havia notado e feito observações sobre ele estar desenvolvendo um quadro de
ansiedade, minando o seu tratamento evolutivo.
Ouvir isto me deixou muito preocupada, principalmente pelas
reações que ele passou a ter ao expressar a necessidade da presença do pai.
A psiquiatra me explicou que a presença de Mikael para o filho é
algo positivo, mas que em determinadas ocasiões a criança expressou desejos
contraditórios e não sabemos ao certo por qual motivo, já que mesmo sendo
um autista verbal, ele tem certo grau de introspecção quando o assunto se
refere ao pai.
Por algum motivo, Anjinho passou a se fechar nas sessões ao falar
do assunto, a nossa conclusão é que algo tenha feito com que se reprima, e
este é um dos desencadeadores das crises de ansiedade que o leva a outros
episódios mais severos. Eu nunca o proibi de falar nada, mas a impressão que
temos, é que ele está retendo informação, como se uma carga extra tivesse
sido acrescentada à sua rotina.
O celular no suporte vibra indicando uma nova mensagem. Assim
que estaciono no subsolo, alcanço o aparelho revisando as mensagens de
Nina.
Envio uma resposta para ela, desligo o carro, limpo o meu rosto
refazendo a maquiagem e observo Dionísio descendo do SUV.
— Estamos atrasados Doutora, tem certeza de que quer subir?
O chefe de segurança que passei a considerar como a um amigo
sorri com meu ar decidido, ele faz uma mesura ao me ver saindo do carro, às
vezes ele me lembra papai com todo seu charme português e cheio de
salamaleques.
Subimos pelas escadas para evitar chamarmos a atenção, como
imaginei o corredor está lotado de pessoas esperando o veredito. Sabíamos
que esse caso seria complicado e muito divulgado pela mídia, mas nada
comparado ao que realmente está acontecendo.
Outro motivo para não envolver Mikael e o filho em uma relação
extrema. Não sei como o Promotor aguenta os ataques na mídia. As opiniões
não estão divididas, é fato o CEO é o culpado, contudo sua influência está
causando.
Me encontro contra a parede revestida de granito frio ao lado de
algumas obras de arte cara e espero, Dionísio se encosta ao meu lado e cruza
os pés na altura do tornozelo com uma postura despachada.
— Senhorita? Doutora dos Anjos? — ouço meu nome e ao me
virar o guarda que tenho contato direto, faz sinal.
— Boa tarde, Olavo!
— O Promotor, instrui-me a colocá-la na sala assim que chegasse.
— Prefiro esperar, está em andamento, — olho o relógio de pulso,
— quase no final, na verdade. É melhor não atrapalhar.
— Doutora, isto aqui vai virar um inferno quando o Juiz bater o
martelo, pelo menos do lado de dentro, o Promotor poderá ficar tranquilo.
Cedendo aos apelos do guarda aceito sua oferta e ao entrar na sala,
acabamos por chamar atenção de alguns engravatados, provavelmente
colegas de profissão, ávidos para bajular o réu, se aproximam e Dionísio os
coloca para trás.
— Obrigada! — Gesticulo como os lábios.
Entramos na sala, nos sentamos na última fileira, é impossível não
sentir meu coração disparar ao vê-lo vestindo sua toga, fazendo sua apelação
com tamanha desenvoltura e um brilho no olhar tão intenso que me arrepia
até o alto da cabeça.
Não esperava que sua reação ao ver que a casa a qual me referia era
a minha. Ele me olhou com ar sério e não fez nenhuma pergunta até me ver
colocar a chave na porta de entrada.
— Espera, — Mikael segura minha mão e me olha fixamente, —
da última vez que estive aqui, não foi muito bom, não me lembro de nada do
lado de dentro, mas tenho a sensação de ter deixado algo destruído e…
— Está se referindo a minha porta que tentou rachar com sua
cabeça dura?
— Hum…
— Está tudo bem, na primeira vez que nos vimos aqui, você
destruiu um aparelho de jantar caríssimo da Aline.
Abstraio a sensação angustiante que me assalta ao ver que ele não
está me permitindo destrancar a porta.
— Anjinho e Nina estão com Giovane, terão uma sessão de cinema
e festa do pijama na casa do padrinho.
— Tinha que ser o Santana o padrinho dele? — Mikael solta minha
mão e dá um passo para o lado.
Não sei se fico feliz ou triste em saber que estava hesitante com
medo de encontrar a criança em casa, ou por vê-lo relaxar e fazer o possível
para esconder o seu alívio de mim.
— Ele é uma ótima pessoa.
— A Megera não concorda com isto.
— Acho que não deveríamos falar deles, não vamos chegar a lugar
algum.
— Ok! Que tal um acordo? Assim que passarmos por esta porta,
seremos só nós dois.
— Concordo, só nós dois. — Queria poder dizer para sempre e
acrescentar um número a mais na equação, mas prometi a ele e tentarei fazer
o que pediu.
A porta se abre e deixo que a folha de madeira se recue até encostar
na parede oposta, toco o apagador central que Aline adaptou depois do que
passou com o susto no galpão, as luzes centrais se acendem.
— Seja bem-vindo a minha casa, namorado. — Sorrio para ele e
sou novamente surpreendida com outro beijo.
Mikael me pega no colo, protesto dando soquinhos em seu ombro e
acabo pôr rir ao sentir para onde está caminhando.
— Sei que tem uma mesa de jantar aqui.
— Se enganou, pervertido. Agora temos instrumentos, um sofá
gigante e uma TV.
Começo a rir ao vê-lo estacar na porta de entrada da sala de estar
que Aline fazia de jantar, por ser de frente para praia.
— Não acredito! — ele me deixa sobre os meus pés e caminha em
direção aos instrumentos organizados metodicamente pelo filho, já que a
minha arrumação não agradou ao pequeno.
— São perfeitos, — ele ergue um violão do gancho e dedilha
fazendo um som límpido repercutir pela casa — Você quem afinou?
— Não, o máximo que sei fazer é dedilhar o piano, nada mais.
— Cantar…
— Muito pouco, a afinação é por conta do Anjinho, ajudo porque
as cordas são afiadas e tenho medo, mas ele mesmo afina os instrumentos, —
toco em meu ouvido e vejo a expressão no rosto de Mikael. — Quer tocar
algo?
— Não sei… — ele deixa o violão no gancho e se afasta, com as
mãos nos bolsos observando tudo à sua volta.
Sinto que estou à beira de me desmanchar em lágrimas, por isto
peço licença e com passos apressados subo ao segundo andar do apartamento
onde fica o meu quarto. Nunca me senti tão feliz deste lugar ser um duplex.
Encosto minha porta como uma covarde, deixo o meu corpo
escorregar pela madeira, meu coração parece que vai saltar do peito e não
posso dimensionar o que ele esteja sentindo, mas o conheço e sei que esse
primeiro momento precisa de espaço, sentir-se seguro dentro da sua
condição.
“Deus, sou eu novamente, esse é o último pedido, da noite,
provavelmente não, mas só me ouça, — elevo meus olhos focando o teto, —
se por acaso ainda tenho algum favor extra sobrando de tantos que me fez,
me ajuda…”
Não sei exatamente o que quero como ajuda, mas seja qual vier
será bem-vinda.
Retiro minha roupa caminhando para o closet e estaco a meio
passo, meu coração retumba ainda mais forte, levo minhas mãos aos lábios e
olho por sobre o ombro mirando a porta fechada, como se pudesse ver algo
através dela.
Um som maravilhoso, um dedilhado suave de piano vindo do
primeiro andar acompanhado da voz rouca e totalmente emocionada do meu
anjo mau, que na verdade, é o melhor anjo que poderia ter em minha vida.
Iço os meus olhos e agradeço, se este é o começo de um milagre
que seja o maior em nossas vidas.
CAPÍTULO 48
INFINITO
“Que seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.”
Vinícius de Moares.
MIKAEL
C
ertamente uma lembrança não pode ser construída a partir dos relatos de
alguém, é preciso sentir, tocar, viver uma emoção derradeira para que ela
possa enfronhar sobre a pele e espalhar-se como uma camada profunda até
atingir o coração.
Protelamos tanto esse momento, deixamos que as circunstâncias
nos guiassem para lados opostos da mesma estrada e sem pensar que isto um
dia pudesse voltar para nós, demos corda ao acaso, é assim que me sinto.
O som da porta sendo fechada com cuidado no andar de cima, não
amenizou a sensação angustiante e sufocante de ser flagrado em meu
momento de descoberta, mesmo que tenha me esforçado para que ela não
percebesse, foi inevitável não hesitar na entrada.
Ao ver o caminho no qual Lia tomou para trazer-nos para casa,
confesso ter sentido o desejo de refutar a sua ideia, me despedir e fugir.
No exato momento em que estacionou na garagem, um pensamento
me ocorreu: de certo que um encontro precipitado não nos fará nada bem,
esqueça isto Mikael, hoje sem querer provou a ela o quanto é inapropriado
para formar essa família.
Contudo, uma coisa é pensar, deixar que a minha mente jogue com
os meus medos e ansiedades, outra completamente diferente é conseguir
negar que algo aqui me atrai… — a cada nova informação sinto-me mais
perto de perder o controle e não quero imaginar ou supor nada além do que
ela tem me permitido fazer, contudo, tenho me forçado a manter a postura e
ser aquilo que garanti.
Olho a minha volta e o brilho do sol ultrapassando as cortinas
parcialmente fechadas criam fachos de luz pelo cômodo, dando um ar
estranhamente familiar. Não consigo evitar pensar neles aqui, apreciando à
vista, ouvindo música, organizando os seus instrumentos.
— Deus! — pigarreio para impedir de me sufocar.
Estar aqui é novo e estranho. Desde o momento em que as luzes se
acenderam tenho a sensação de que algo travou em minha garganta e não
deixa que o ar passe, é como se mãos invisíveis pudessem me sufocar.
Com as mãos nos bolsos da calça, caminho novamente em direção
aos instrumentos emparelhados lado a lado em pedestais e suportes.
Um riso nervoso escapa aos meus lábios, sinto o meu rosto
esquentar como se fosse um adolescente pego em flagrante. De todas as
reações que poderia ter neste apartamento, jamais imaginaria que correria
como uma criança empolgada ao ver brinquedos dentro de uma loja.
Me senti tão feliz em ver com meus olhos, o quanto o moleque
gosta de música, que não pude me conter, saber que ele mesmo cuida da
afinação é surreal, mas como suspeitava ao ouvir Lia descrevendo suas
aspirações, a criança é alguém especial.
— Especial por muitos motivos, — sem perceber ergo minha mão
direita e sinto sobre o tato a madeira polida do piano, — especial… — repito
como se isto pudesse explicar o que estou sentindo.
Não tenho como elucidar em palavras e talvez seja essa sensação
atordoante da qual meus amigos tanto se gabam sentir, que me faz
empreender uma busca minuciosa por vestígios, por migalhas.
— Graças a Deus! Ele tem uma mãe, está cercado de amor e
carinho.
Com um toque sutil sobre a tecla permito-me ser invadido
completamente pela sensação que está espedaçando meu peito, não quero que
ela me veja assim. Com a palma da mão retiro as lágrimas do meu rosto, mas
é impossível não resfolegar, não sentir o desespero se abater sobre mim.
Deslizo a mão sobre as teclas imaginando a criança escorregar os
dedinhos diminutos por elas. Sento-me no banco à frente do instrumento,
com as mãos sobre o teclado dedilho as notas que estão gravadas na coxa de
Lia, a música é como um bálsamo para a alma, me sinto transportado para um
lugar irreal.
As lágrimas persistentes se vertem em meus olhos, me sinto
envolvido pela sensação única de estar tocando algo dele, tão real e tão
vívido… e isto, me faz pensar nas mãos pequeninas que vi através da porta
aberta, colorindo tranquilamente, alheio a tudo a sua volta.
Não sei bem o que senti pela aproximação, ele precisaria só se
inclina um pouquinho e então essa angustia poderia ser extirpada para sempre
ou não.
Porque tenho a sensação de que ser ou não… alguém… na vida
dele, mudará tudo, é isto que mais me aterroriza.
Por instinto, os meus olhos focam nas escadas, eu não quero
perder, nunca mais quero perder a ninguém que tenha amado mais que a mim
mesmo, não quero perdê-la e não quero machucar a criança.
Minha mente gira com mil conjecturas, me deixo levar pela
melodia e canto, mesmo com a voz enrouquecida, o travo na garganta, sinto-
me em paz, não posso deixar de ver cada detalhe a cada estrofe executada.
Certa vez li um texto, onde dizia que deveríamos pausar por um
momento, tudo e observar em torno os detalhes, pois eles podem me contar
uma história muito mais interessante do que os fatos apresentados.
Creio que a autora estava certa. Sobre o tampo de uma mesa baixa
tem um maço de folhas coloridas repletas de desenhos, chamam a minha
atenção e me faz pensar no carinho que colocou no desenhou que fez para
mim.
Que me leva a outra lembrança: o envelope que achei no elevador.
O aroma adocicado com notas envolventes me atrai, Lia está
sentada nos últimos degraus da escada me observando, os olhos vermelhos
indicam estar chorando, os cabelos molhados jogados por sobre o ombro
cobrem parte da camiseta.
Me recordo vivamente das suas lágrimas e a dor estampada em seu
rosto ao contar-me sobre o autismo; do meu descontrole e na maldita
agressão que sofreu na escola e a possibilidade de tantas outras que tenha
passado.
Praguejo sentindo a raiva crescer dentro de mim. Tomo um fôlego
para que a minha mente entre em ordem.
Lia ergue as mãos e as passa pelo rosto, sorri e encosta a sua
cabeça contra a madeira do corrimão, retribuo o sorriso tocando a nossa
música.
A nossa música, que ela deu para a criança…
LIA
— Deus do céu!
Existe um momento mais constrangedor do que este?
Resmungo comigo mesma seguindo em direção à cozinha, retiro da
bolsa o celular, disco o número da pizzaria que estou acostumada a pedir.
Meu rosto está tão aquecido que preciso lavá-lo com água corrente da pia.
Essa não será uma noite como outra qualquer, disto já sabia, mas
de longe imaginei que as sensações e os sentimentos estivessem tão à flor da
pele em nós dois. Descer as escadas depois de um banho rápido, me deixou
sem ação.
A única coisa que pude fazer foi sentar-me no degrau e observá-lo
tocar. Vi seus olhos marejados e percebi quando limpou o rosto
discretamente. Não faço ideia do que esteja se passando na mente de Mikael,
mas seja o que for, espero que pese em seu julgamento o amor que
declaramos um ao outro, e principalmente o amor e carinho que percebo já
ser algo natural em relação ao filho.
Mesmo que não tenha a confirmação por minha boca, ele
desconfia, sabe que Anjinho é seu filho.
Essa certeza me causa ansiedade, minha vontade real é de pegar
meu filho e sair correndo para longe, apenas para não o ouvir me culpar, ou
de alguma forma, se afastar por sentir-se inadequado.
Contudo, as atitudes dele, que ainda foram poucas, mas tão ferozes
e impressionantes. Como o que fez hoje no tribunal ao deixar claro que está
disposto a proteger a sua família, me dá a esperança que tanto necessito.
Suspiro sentindo-me um pouco mais controlada. Nunca me enganei
e nem ele se fez de rogado ao admitir que o sexo é uma válvula de escape
para ambos, talvez tenha aprendido a abrandar meus desejos com a nossa
separação por tantos anos e o fato de não ter tanta experiência, com o tempo
isso ajudou-me a passar por esse isolamento físico, contudo estar com ele
desencadeou tudo novamente.
Eu o quero, de todas as formas possíveis, e ver ele ter tanto cuidado
com o lugar do Anjinho, só redobra esse desejo. Não sei qual será a reação
dele ao andar pelo restante da casa, se irá querer ver o quarto do filho, ou
como vai entender a decoração do meu quarto que me segue há anos.
— Surpreso? — pergunto em voz alta.
Talvez Mikael se sinta da mesma forma que o fiz em relação às
fotos dependuradas na parede sobre sua cama.
Me afasto do balcão voltando para sala, aproveito que ele está no
banho para conversar brevemente com Nina e saber como Anjinho está.
Graças a Deus! O seu retorno é positivo. Ela me envia uma foto dele sentado
com Giovane sobre o tapete da sala acariciando o gato.
Não posso evitar sorrir com as sequências de fotos que vão
chegando e um clipe de voz com Nina tentando fazer com que o meu filho dê
atenção para a gravação, sem sucesso.
Não me importo que isto aconteça, desde que esteja se divertindo e
sua distração tenha um bom motivo, como acariciar um gato que é
praticamente do tamanho dele.
— O que é engraçado? — sigo com olhar em direção a sua voz e os
travo no homem seminu com uma tolha em volta da cintura e outra sobre os
ombros enxugando com movimentos fluidos os cabelos.
— Nina disse que Anjinho está se divertindo com o gato do
padrinho.
— Ele gosta de animais?
— Adora!
— Vou colocar na área de serviço.
— Pode deixar, eu faço isto. — Estico o braço e esbarro no copo na
beirada da pia.
— Cuidado! — Mikael é rápido me segurando.
Nossos olhos se cruzam, agradeço sentindo os comichões andarem
por meu corpo e somos salvos pelo gongo ou não…
IMPREVISÍVEL
“A vida é imprevisível. Por isso podemos fazer planos, mas segui-los à risca
é bem mais complicado do que divertido”.
As 7 Regras do amor
MIKAEL
E
la resistiu a ideia de assistimos ao filme, mas ver suas risadas e como está
confortável deitada comigo no sofá valeu por toda a insistência. Prefiro
segurar um segundo round de bolas azuis, do que perder cada nuance desta
noite mágica.
Não que todas que passamos juntos desde que voltamos a nos ver
com regularidade, não tenham sido. Todavia, hoje as sensações estão
ampliadas diferentemente, é como se ondas elétricas me percorressem de alto
a baixo e bombardeasse todo o meu sistema, meticulosamente preso sob
rédeas curtas.
O banho frio me ajudou, mas só até perceber que o bastidor vazio
do box, é a lembrança dolorida da noite caótica em que invade o seu
apartamento após ouvirmos os gritos.
A sensação de estar dentro daquele cômodo, onde não pude entrar,
mesmo sem poder explicar a percepção ruim que senti me trouxe um gosto
amargo na boca; senti-me tão desesperado, despreparado e de repente,
aprisionado, mesmo tendo a chave da cela em mãos.
Julgo muito minhas ações e me cobro muito desde que me entendo
por gente, tudo para me obrigar a me manter em linha, não perder o foco, não
me deixar dominar por medo de que algo possa me ferir, mas percebo que o
meu maior medo, nunca foi esse, e sim de ver alguém a quem amo ferido.
A gargalhada dela me faz desviar os meus pensamentos, a abraço
mais apertado, com a cabeça apoiada sobre o meu braço dobrado, Lia
continua a lamber o doce da colher com olhos fixos na tela da TV.
— Anjinho vê esse filme diariamente, mas não me canso de
assistir. — Ela olha por sobre o ombro apoiando a colher sobre o lábio —
Hum… são momentos de risos e lágrimas, acredito ser um vício?!
— Não sei, deve ser, — beijo sua fronte e voltamos a prestar
atenção na cena —, eu me identifico com ele!?
— Quem?
— Mano, o pinguim. — respondo olhando para a tela e não
percebo que Lia está me encarando, até que ela se levanta. — O que foi?
— Por que se identifica com ele?
— Não sei, por ser diferente e ter lutado comigo mesmo para me
adaptar ao mundo externo, mas ainda bem que não fiz isto por um longo
tempo. A primeira visão que tenho dele e do pai também, me identifiquei,
sempre tentando me enquadrar para agradar e querer ser protegido, ou queria
ao menos em partes, — dou de ombros, me sinto inibido com a forma
penetrante que está me olhando, tento trazê-la para meus braços, mas Lia
resiste. — O que foi?
— Você, tem noção do que está dizendo?
— Acredito que não perdi a minha capacidade de raciocínio ainda.
— O maior desejo do meu filho é ser o Mano e ter um… — ela
hesita e tão claro como água o que está se contendo em que diz.
— Liana… — me alço, quero tanto dizer as palavras, mas tenho
tantos receios.
Porque habilmente estou elevando as expectativas, mesmo que elas
sejam assombrosas, de que o moleque é… meu…, mas se não for? E se for, e
não souber lidar?
— Não faço ideia do que queira ouvir Lia, do que possa falar, mas
seja lá o que ele deseje, tenho certeza de que terá. — Aponto a cena
desenrolando, onde o pequeno pinguim sapateia loucamente sobre o pico de
neve e gradualmente contagia a todos. — Mikael será capaz de derrubar
qualquer barreira, sendo ele mesmo.
Ela se aproxima de mim, as suas mãos deslizam sobre a barba, os
seus olhos estão cravados nos meus e o comichão da excitação cresce
novamente e desta vez, não tenho a intenção de parar, a envolvo pela cintura
sentindo o seu corpo se aconchegar ao meu.
Os lábios adocicados resvalam nos meus e me permito ver a sua
expressão, nos beijamos com olhos postos um sobre o outro.
— Ambos serão capazes, Mikael! — sua voz aponta às suas
emoções.
Não tenho o que falar a não ser demonstrar o quanto estas palavras
são importantes, mesmo que não compreenda como um simples comentário
sobre um filme infantil, possa fazê-la se sentir assim. Voltamos a nos beijar,
Lia desliza suas pernas em volta de mim, enganchando o seu corpo ao meu.
— Creio que fizemos todos os itens da nossa lista, — comento
distribuindo beijos ao longo do seu pescoço, deixando marcas de mordidas
como uma trilha de migalhas, só para voltar deslizando minha língua por
elas.
— Quase todas… — ela resmunga e rebola sobre meu colo, sua
língua atrevida invade a minha boca, minhas mãos sobem pela lateral do seu
corpo até alcançar os seios.
— O que falta? — pergunto mesmo sabendo do que se trata.
Seguro o seio empinado e aperto o mamilo com piercing entre meus dedos
rolando a joia de um lado a outro.
Lia solta um gemido alto, suas mãos se agarram aos meus ombros
como se o choque da carícia mais apimentada a conecte em caldeirão de
sensações.
— A massagem, Promotor. Me prometeu, lembra?
— Quem disse que esqueci? — ela gargalha e geme ao sentir meus
dentes tomarem o lugar dos dedos, por cima da camiseta, sugo o mamilo até
senti-lo rígido em meus lábios, retorno o caminho entre os seios com beijos
até me afundar em sua boca, Lia geme se entregando.
Me afasto, pego o controle remoto desligando a TV. A seguro
firme em meus braços, ela entende a deixa enrosca melhor as pernas em meu
corpo e alcança os celulares que ficaram sobre o encosto do sofá.
— Música?
— Todas que quiser, — ela sorri e liga o seu aparelho por via
Bluetooth no andar superior, a playlist que estávamos ouvindo antes volta a
tocar.
Alço nossos corpos do sofá, retomo os beijos excitantes seguindo
em direção das escadas, subimos os degraus em amassos eróticos até alcançar
a porta que ela indica.
— Espera, — ela pede ofegante —, não sei o que o futuro nos
reserva, mas depois que passar por esta porta, nada mais terá volta, tudo
bem?
— Tudo bem! — respondo sem hesitar.
Ela me abraça e deita a sua cabeça em meu ombro, beijo a lateral
do seu rosto e abro à porta só para estacar ao me surpreender.
Tirando a área da sacada fechada por portas de correr com cortinas
finas de organza branca, as paredes do quarto são todas revestidas por papel
de parede marrom com rajadas claras que imitam um granito, o que contrasta
muito com a cabeceira da cama cinza clara e o baú de capitonê, o jogo de
cama mais minimalista, os travesseiros brancos e em tons escuros que se
compõe com as almofadas espalhadas sobre a colcha cinza escuro.
Os criados mudos têm um designer moderno, as luminárias, os
quadros na parede lateral, a porta do lado ao contrário a que entramos, que dê
certo leva ao banheiro e closet, tudo é perfeito. O quarto parece ser tirado de
uma destas revistas de decoração, contudo, os meus olhos mesmo captando
tantos detalhes se focam em duas coisas.
— Caralho! — a seguro com mais firmeza, ela afunda ainda mais o
seu rosto entre meu pescoço e ombro, sinto o toque suave dos seus lábios
com beijos sendo espalhados por minha pele. — Lia, isto são as minhas asas?
— minha voz quase não sai pela emoção que sinto apertando o meu peito.
A luz do abajur está ligada e o brilho da obra de arte em metalão
folheado em tons de ouro branco, Rose Gold e amarelo me fizeram estacar, o
formato da escultura imensa dependurada como um quadro sobre a sua cama
deve ter no mínimo um metro e meio de extensão do arco da asa até as pontas
de cada lado.
— As tenho, já faz alguns anos.
— Como?
— Mandei esculpir antes de voltar para o Brasil, no apartamento
que morei em Portugal tenho outro par idêntico, — ela ergue o seu rosto e
olha em direção as asas de ouro abertas que tomam toda a largura da cama
king size, — sempre quis ter o meu anjo da guarda por perto.
— Creio que conseguiu seu intento. — Respondo, ela se volta e
não seguro mais o meu desejo de tê-la por completo — Dá pra mim?
O sexo entre nós não requer explicações, basta que deixemos rolar,
vai fluir com desejo, apego e muita excitação. Ela desliza as suas pernas nuas
por sobre minhas coxas, abrindo passagem para que volte arremeter com
prazer em seu corpo.
Como prometido estou garantindo que receba sua massagem,
minhas mãos a seguram pelo quadril, para encaixá-la melhor sobre meu colo,
espalmo seu sexo encharcado e dedilho o clitóris.
— Amo quando faz assim, — ela morde o lábio inferior, os seus
olhos reviram nas órbitas. Seus gemidos me excitam desço minha boca sobre
o seio, capturo o mamilo e arrasto meus dentes sobre o broto rígido. —
Mikael!
Seu corpo estremece e o segundo orgasmo a faz estremecer em
meus braços, sinto meu pau ser esmagado por seu sexo, arremeto novamente
dentro dela e me deixo levar.
Elevo meus olhos, meus dedos estão segurando firme o seio com a
joia no bico, a argola brilha molhada pela minha saliva, mas são as letras
tatuadas na carne que me prendem. Nossos olhos se cruzam, inclino-me um
pouco e deslizo minha língua por sobre a tatuagem, o nome de um anjo...
Lia se arrepia, meu corpo continua a arremeter esporrando dentro
da sua buceta, meu orgasmo se prolonga na medida que ela estremece com a
carícia.
— Delícia sentir você me apertar assim… — me inclino sobre ela
deixando beijos sobre seu rosto.
Lia está ofegante e o resvalar da sua respiração aquecida contra
meu pescoço, me arrepia, — porra — mesmo que tenhamos acabado de
gozar, meu pau ainda está meio duro, sinto os espasmos do pós gozo, a
sensação do líquido quente se esparramando para fora a cada investida lenta é
erótica.
Sem tirar meu pau de dentro da sua buceta encharcada e ainda
pulsando a beijo no canto dos lábios. O suor escorre por nossos rostos, por
minhas costas e bíceps. Lia estica as pernas por sobre meu quadril e coxas e
espreme meu corpo com espreguiçar languido, como se eu fosse a porra de
um travesseiro gigante para se aconchegar.
— Adoro fazer sexo com você. — minha voz rouca percute no
quarto.
— Posso fazer da sua declaração a minha?
Ela sorri e novamente se estica toda, mas desta vez reclamando do
meu peso sobre seu corpo.
Com uma das mãos sobre suas costas e outra debaixo da sua bunda,
alço seu corpo sobre a cama, faço uma alavanca com um tombo perfeito para
o outro lado mantendo-a presa a mim por nossos sexos ligados.
— Não vai me soltar?
— Nem por um segundo.
Ela arqueia o sobrecenho e sua careta não passa despercebida.
— O que foi, não está gostando? — pergunto agarrando seu quadril
com força e enterrando meu pau um pouco mais, a fazendo sentir minha
ereção voltando a crescer.
— Deus! — ela exclama e esconde o rosto contra meu peito.
Não seguro um riso por sua timidez pós foda, Lia sempre tem essa
reação, nem de longe lembra a mulher desinibida que gosta de ouvir
sacanagem enquanto é fodida.
— Está dolorida, a machuquei?
— Não me machucou, dolorida por ser virada do avesso? Talvez.
Assada, com certeza ficarei.
Ela ergue o seu rosto, cruza as mãos por debaixo do queixo
apoiando os cotovelos sobre meu tórax.
—Ficará, — faço-me de desentendido, para sua insinuação.
—Pretendo... — seu sussurro vem acompanhado de um gemido
gutural.
Os dentes brancos perfeitamente alinhados, mordisca o lábio
inferior, marcando-os com pequenas linhas ao soltar a carne polpuda
lentamente.
Subo minhas mãos para sua cintura fina, passeio os dedos pela pele
suave, indo e vindo até repousar no osso da bacia. Lia continua na mesma
posição com a parte superior do corpo, já da cintura para baixo ela crava os
joelhos contra o colchão e começa um suave rebolado.
— Lia…
A bunda empinada, com ancas largas se ergue e desce lentamente
sobre meu pau. Os lábios macios da sua buceta depilada deslizam sobre o
caule grosso como um beijo apaixonado.
— Você me deixa louco com isto!
Quem está ofegante agora, sou eu. Ela sorri, mas não é qualquer
sorriso, seus lábios se abrem em espasmos, o gozo anterior escorre em
profusão entre nós facilitando os seus movimentos. O cheiro de sexo, suor, do
seu perfume intoxica o ar, puxo arfadas grandes inundando o meu olfato com
as partículas sabotadoras.
— Desta forma vou gozar em minutos, — reclamo sentindo que
uma vez não foi o suficiente, meu corpo está preparado para mais.
— Quero em segundos, Promotor. Dá pra mim?
Ela usa a mesma expressão que usei ao derrubá-la nesta cama, e se
isto não for o ponto de ebulição que me fará gozar mais uma vez, como um
adolescente descontrolado, provavelmente o beijo doce que ela me dá o fará.
INDECIFRÁVEL
“… colorindo as asas do meu… papai!”
LIA
Hum… humm… hu, hu, hu…
A
melodia infantil perfura o bloqueio do meu sono, não sei se é um sonho, ou se
realmente Anjinho já está acordado. Geralmente ele se levanta bem cedo,
sobe até ao meu quarto para ficar colorindo com suas canetinhas em seu
caderno de desenho ao meu lado.
Meu corpo reage lentamente, mas o conforto dos braços fortes me
rodeando são tentadores demais ao ponto de me fazer navegar pelo sono
pesado. Provavelmente é o meu subconsciente tentando me acordar movido
pela rotina.
Anjinho não está em casa, volte a dormir Lia, hoje é o papai anjo
quem está te fazendo companhia.
Me aconchego melhor contra o corpo musculoso, sinto os músculos
do braço sobre minha cintura se retesar, roço o meu rosto contra o outro
braço por baixo da minha cabeça. Mikael se retraí ao ponto de estremecer por
inteiro, movida pelo medo que seja um pesadelo o acaricio, ao menos é o que
pretendo fazer, mas realmente o sono me vence e sinto que vou voltar para o
limbo.
Hummm… Hum... hu, hu, hu…
A musiquinha é realmente a que Anjinho adora ficar cantarolando,
posso sentir meus lábios se retraindo, não há nada mais precioso do que
acordar com o seu filho te fazendo carinho, dizendo que te ama com um
beijinho de esquimó.
Bocejo incomodada com se tivesse alguém me observando, reviro
o meu corpo tentando me virar, mas sinto a pressão na cintura me impedindo,
Mika me abraça mais apertado até os meus seios estarem esmagados contra
seu peito.
— Hum… te amo…— resmungo ou é o que penso fazer.
Mikael sutilmente aperta minha cintura, as batidas do seu coração
parecem tão aceleradas e tão… humm… tão, que sono.
ANJINHO
Hum… humm… hu, hu, hu…
Coloco minha mão sobre a boca para não rir alto, o Happy está
soltando uma gargalhada por mim, a mamãe parece engraçada quando fala
dormindo, não entendo nada do que diz, só a parte do te amo.
O anjo grande continua a dormir, me aproximo da cama, colo o
Happy bem pertinho dele, tiro a mochilinha das minhas costas, colocando
com meu amiguinho. Me sento no chão, tiro o tênis que a tia Nina me calçou,
a mamãe não gosta que suba com sapatos na cama dela.
O sol está muito forte, quase não consigo ver no quarto, por isso
faço igual à mamãe, caminho até à porta e puxo a cortina para fechar.
Uffa! Assim fica bem melhor para ver, bato um dedinho no outro.
— Happy, é ele? — falo bem baixinho com o meu amiguinho, o
meu coração continua fazendo tum-tum muito forte.
Tão forte que está doendo, ainda quero chorar e não sei por que,
mas quero muito chorar, entretanto, se eu fizer isto, a mamãe vai acordar e
ficar triste. Ela não gosta quando choro.
Devagarinho coloco um pezinho na frente do outro e dou passinhos
até chegar na beirada da cama, seguro com às duas mãos no colchão e pulo
para subir, é muito alto, mas o Anjinho consegue.
Coloco minha mão na perna dele para me segurar e não cair, o anjo
da mamãe não acorda, — riririri — ele dormiu igual o Anjinho.
— Happy, me ajuda? — seguro o meu amiguinho e engatinho na
cama até chegar bem pertinho do anjo gigante, ele tem os cabelos da mesma
cor que o meu e a da Fadinha, coloco o meu rostinho bem pertinho do seu
pescoço, — hum, cheiroso…— ele tem um cheiro bom.
Me sento bem pertinho das suas costas, ainda não consegui ver o
seu rosto direito, mas posso ver o desenho na pele dele, e as várias pintinhas,
a mamãe disse que se chamam sardas, eu tenho no meu rostinho, ainda não
tenho nos meus ombros, será que vou ficar igual ao papai?
Eu amo as tatuagens que a mamãe tem, as asas, a nossa música e o
meu nome, por isso não resisto e coloco o meu dedinho sobre as asas do anjo
gigante.
— Happy, olha tem algumas penas que estão quebradas, o que
será que aconteceu? — com cuidado coloco minha mãozinha sobre elas, bem
no ombro onde são abertas tem um risco alto, cheio de risquinhos, — parece
com aquilo que a tia Nina tem no pé, ela disse que vai ficar com uma
cicatriz, Happy. Que peninha, o meu coração está doendo, será que alguém
machucou o anjo da mamãe?
Não quero chorar e faço um biquinho segurando forte a vontade,
mas meus olhinhos não são obedientes, eles choram sozinhos.
— Tadinho! — fico com tanta dó que deito a minha cabecinha no
seu ombro.
É tão triste machucar. Toco o meu rostinho onde a mamãe do Yuri
bateu, ainda está dói, mas dentro do meu coração. A mamãe disse que são as
lembranças que fazem doer, porque é uma mágoa. Será que anjo gigante
também sente dor?
— O Anjinho vai consertar as suas asas…
LIA
Deus do céu! Como estou sentindo calor e enjoo, mas Mikael
resolveu me trancar dentro do seu abraço de polvo de tal forma que não
consigo me mexer.
— Anjinho! — A voz de Nina perfura o meu sono, meu corpo
desperta e desta vez tenho certeza de que estou bem acordada.
Hummm… Hum... hu, hu, hu…
A musiquinha cantarolada está tão próxima aos meus ouvidos que
não tem como ser um sonho ou imaginação.
— Anjinho desce!
— Anjinho? — pergunto meio atordoada, abro os meus olhos e
vejo o rosto másculo e bonito do meu namorado, sorrio e travo em meio a
ação.
— Sangue de Cristo! — Nina exclama da porta, dando um passo
atrás enquanto tento me erguer, mas Mikael que está acordado me segura,
escondendo minha nudez, ergo minha cabeça e encaro com olhos bem
abertos ao meu filho, sentado às costas do pai com sua mãozinha apoiada no
ombro avantajado e a sua cabecinha tão próxima a ele que mal posso ver o
seu rostinho.
— Nina? — sussurro, olhando por sobre o meu ombro, minha
amiga aparece engatinhando na porta e faz sinal de forca, — me ajuda — ela
balança a cabeça em negação, olha para os lados e se arrasta até onde
deixamos nossas roupas caídas.
“Segura” — ela gesticula e joga a camiseta que Mika vestiu sobre a
cama, depois volta para à porta e a encosta sem fechar.
Trago com força sentindo minha garganta seca, minha boca parece
minar areia em vez de saliva, o enjoo que estava sentindo se tornou dor, e o
calor, calafrios apavorantes. Nunca imaginei tal cena, nem mesmo em meus
sonhos, foi o que projetei, isto não parece se quer algo que aconteça em
romances, quanto mais dirá na realidade.
— Anjinho, filho o que está fazendo? — pergunto, já que ele não
me olha em nenhum momento.
— O Anjinho está consertando.
— Você precisa descer com a Nina.
— Hum! Não!
— Anjinho, não pode teimar com a mamãe.
— O Anjinho está… — ele ergue a sua cabeça e mais uma vez me
surpreende com aquele sorriso enigmático que nunca vi, ele eleva uma
canetinha cor de rosa e a balança, — colorindo as asas do meu… papai!
Estremeço com força e olho diretamente para Mikael, olhos
penetrantes em um azul celestial com tons cinzas matizando suas írises me
encaram. A sua expressão é indecifrável como o sorriso do filho, transcorro
meu olhar de um ao outro, solto o meu braço e cubro minha boca para tentar
conter o fluxo de sensações que querem extravasar de mim.
Vê-los assim é uma imagem que está sendo marcada a ferro e fogo
em minha memória, jamais conseguirei esquecer da primeira vez em que vejo
pai e filho juntos, com os seus olhos idênticos, cabelos em um mesmo tom, as
sardas espalhadas da mesma forma sobre o rosto, lábios carnudos encarando-
me ao mesmo tempo, juntos.
Não sei dizer se com julgamentos, com pedidos de explicação ou
apenas esperando uma palavra de confirmação.
O que digo meu Deus?
Para meu filho: — Sim, filho é o seu pai?
Para Mikael: — Não amor, não é bem assim, posso me explicar.
Mikael diante do meu silêncio e das lágrimas que começam a cair
em meu rosto relaxa seu agarre, tateio atrás de mim até sentir a malha da
camiseta em meus dedos e com movimentos frenéticos, me visto.
Nina não está mais na porta do quarto e nem faço ideia de quando
se foi, também não a culparia e nem exigiria que me ajudasse, este momento
é só nosso seja ele bom ou ruim.
— Querido! — Minha voz tremula, — desce para tomar um banho
e lancharmos, a mamãe vai acordar ele.
— Não!
— Anjinho! — Tento ser mais enérgica, mas o olhar conciso de
Mikael me encarando, só me deixa nervosa. — O que faço? — a pergunta
está direcionada a ele e sou uma covarde por deixar a decisão em suas mãos.
Ele me olha pela última vez e fecha os seus olhos, soluço com
desespero ao ver que lágrimas correm por seu rosto em profusão e não sei se
é por medo do que possa ver ou por se negar a ver.
— Anjinho, — seguro o choro e a voz embargada chamando à
atenção do meu filho.
— Ele está dodói? — ele debruça sobre o pai e tenta me alcançar.
Aproveito a deixa e o pego no colo, ficando de joelhos sobre a
cama, abraço seu corpinho sentindo minhas forças serem carregadas. Meu
filho ergue meus cabelos e cheira-me a nuca como habitual.
— Cheirosa…
Isto é o ponto máximo que posso suportar, abro os meus olhos,
estendo minha mão para tocar o rosto de Mikael, limpando suas lágrimas,
sem que Anjinho veja. Meu anjo eleva a sua mão tremula e segura a minha
com força.
Lentamente ele abre os seus olhos e encara as costas do filho do
alto da cabeça até os pés, seu corpo estremece, os seus dedos estreitam o
aperto sobre minha palma, mordo os meus lábios com tanta força que sinto o
gosto ferruginoso do sangue.
Anjinho percebe algo, porque só isto explicaria o que vem a seguir.
Algo surreal, improvável, mas tão celestial que somente os anjos
poderiam viver. Esta não foi a revelação que planejei. Entretanto, pedi ajuda
ao único ser que poderia tornar tudo isso possível e mesmo que haja
consequências dolorosas para este momento, tudo se tornou perfeito.
LIVRO II
MIKAEL
Será que o cheiro de bebê que os pais sentem quando os filhos nascem
É como o dele, que lembra nuvens, céu azul, algodão, paraíso?
Será que a primeira risada de um bebê pode ser tão encantadora como a sua
Que me faz rir com ele, mesmo em meio as lágrimas?
A pele suave, os olhos, cabelos, as mãozinhas, os dedinhos dos pés
descalços deixando marcas no parquet de madeira polida…
Não sei ao certo o que estes pais sentem, mas posso dizer que pelo
meu filho morreria. Daria meu tudo, minha vida, não sei quantas horas se
fazem que o conheci, mas posso afirmar que jamais, amei alguém assim.
A conversa com Lia, não foi a das melhores e nem poderia ser com
o nosso filho tão próximo e com tantos sentimentos gritando em nós. Deixei-
me anestesiar pela emoção de estar com ele, sentindo a sua agitação e
contornando com carinho o estresse de ter de deixá-lo. Contudo, não posso
negar a minha natureza, nem mesmo as minhas próprias debilidades, o meu
filho é o meu soro da força e controle, mas ela é o cataclisma que aciona os
meus gatilhos.
O equilíbrio, nunca foi algo tão almejado por mim.
Eu disse que sempre fui o melhor tio, por conseguir compreender
as crianças e saber dar atenção, só não saberia jamais que fazer isto com o
meu filho, colocaria a mim mesmo em estado de alerta constante.
Meu filho, — mal posso pronunciar a sentença sem que uma
enxurrada de sentimentos e lágrimas queiram cair dos meus olhos.
Deixar Lia sozinha em seu quarto me doeu, principalmente por vê-
la visivelmente debilidade com seus medos e anseios, mas eu também
precisava respirar. Sentar-me ao piano com o meu filho e dedilhar algumas
canções, formar uma memória em mim.
Percebi Nina passar lentamente e deixar o apartamento, não queria
que a moça saísse, mas agradeço sua descrição.
O celular no bolso da calça começou a vibrar pouco tempo após
descer, olhei a primeira mensagem de Ramon e não precisei ver o restante.
Provavelmente Lia conversou com as meninas e já é pública a
informação de que Mikael, o homem que nunca quis ser pai, tem um filho.
Não a culpo, imagino que tenha um grupo de mulheres prontas a
defendê-la, caso eu tome alguma providência.
Eis aí a questão, o que disse, é o que sinto e farei, mas
sinceramente não sei como executar, sem causar algum dano no caminho.
O tribunal da moral, dos julgamentos, dos porquês, já foi aberto há
anos, ambos fomos julgados, sentenciados e condenados a vivermos dez anos
longe um do outro.
Ela ainda nem sabe das fotos e do que tenho em poder sobre o
nosso passado, por este motivo, prefiro não me focar em nada mais, a não ser
em meu filho. De resto resolveremos depois.
— Papai, quero ver o Mano.
Anjinho salta do meu colo onde esteve o tempo todo, corre para o
controle e liga a TV. Não digo que estou me preparando para ir embora, até
porque Lia ainda não desceu e imagino que esteja me dando um tempo com
nosso filho, contudo, não temos esse prazo todo.
Ergo os meus olhos para a escada, tiro o celular do bolso para
enviar-lhe uma mensagem, vejo que uma nova chamada perdida de um
número privado. Ignoro e dou um toque para ela.
O aparelho vibra em minha mão, abro a caixa de mensagens
imaginando ser ela, porém é do número privado, assim imagino, não há texto
no corpo da mensagem, apenas um “S”.
A campainha toca e o som chama a atenção de Anjinho que se
levanta correndo, mas para ao ver a mãe descendo.
— Não pode abrir à porta, — ela avisa.
— Quem poderia ser, o interfone não tocou, — comento me
erguendo e caminhando à sua frente.
— Pode deixar, provavelmente é o zelador com a correspondência.
Às vezes ele faz essa gentileza.
— Eu abro! — exclamo olhando para o menino, Lia segura em sua
mão e se afasta.
Pelo olho mágico vejo a visitante do outro lado, não seria estranho
que Lia falasse com ela, mas se deslocar até aqui, só me faz sentir-me ainda
mais desconfortável com a situação, pois ela com certeza sabe dos meus
problemas de controle.
Não foi uma ou duas vezes que presenciou coisas em minha casa e
comigo, para se tornar receosa quando o assunto envolve a sua filha, — olho
sobre os meus ombros, — muito menos o seu neto.
A campainha toca novamente e desta vez ela bate na porta
insistentemente.
— Lia, pega o meu capacete e a mochila, por favor — ao
descermos, aproveitei para trocar as minhas roupas.
Na mochila Jairo adicionou um jeans, camiseta preta de malha e
botas.
— Quem é? — ela sussurra indo ao sofá, pegar os objetos.
Não respondo, aceito-os em minhas mãos sob o olhar atento de
Anjinho, dou a ela um meio sorriso, a seguro em meus braços e beijo os seus
lábios. Me agacho bagunçando o cabelo do meu filho o abraçando.
— Eu volto, combinado?
Ele não gosta, mas já havíamos conversado antes sobre minha
partida. Com aceno Anjinho se joga em meus braços mais uma vez, dando-
me o que ele chama de: upaaa
— Lia, está em casa? — a voz de Maria faz com minha anja de um
passo atrás.
— Deus!
— Não somos mais adolescentes, somos pais! — dito isto a
barreira entre o passado e nosso futuro, para o completo assombro e pavor da
minha amada Maria, que mesmo me tratando bem, ajudou tirar a mulher que
amo de mim é revelado.
— Boa tarde tia Maria!
— Mikael!?
Os seus olhos recaem sobre o neto que vem correndo em sua
direção, aproveito este momento para dar passos em direção ao elevador. Lia
passa pela mãe e me segura pelo braço. Os olhos marejados traduzem o que
sente, mas assim como ela, preciso de um momento para extravasar o que
estou segurando.
— Por favor, tome cuidado e volte…
— Voltarei, — as portas do elevador se abrem, sinto o celular
vibrar novamente com insistência, — Liana, a amo! — declaro em tom
baixo, por sobre seu ombro, vejo Maira com olhos cheios de lágrimas
segurando o neto dando-nos às costas. — Amo vocês!
Ela estremece e aperta-me como se receasse me perder, sinto em
mim a mesma emoção, o mesmo temor arrepia-me e tudo parece mais
dramático e piora ao sentir o aparelho telefônico vibrar em meu bolso como
um presságio.
— Volte para mim, para nós, promete? — Sua voz trepida, sua pele
fria se cobre de gotículas de suor gelado.
Me afasto, entro no elevador e contemplo sua visão emoldurada,
ouvindo a voz enrouquecida do meu Mikael vindo do apartamento, algo
nunca imaginado, nunca esperado, mas que jamais poderei abrir mão.
— Mikael? — ela dá um passo colando algo dobrado em minhas
mãos antes de se afastar.
— Eu sempre cumpro minhas promessas… —as portas se fecham
— mesmo que neste momento dentro de mim tudo que um dia acreditei ser o
certo esteja se desmoronando e se reconstruindo como peças de um quebra-
cabeça, que de tal modo jamais imaginei possuir.
QUEM SOU
Jo Magrini, mineira natural de Juiz de Fora, nascida em 4 de
fevereiro é casada, mãe de dois lindos meninos, artesã. Formada em Téc. RH,
ADM e secretariado.
Durante a infância e adolescência ler e escrever suas próprias
histórias a levaram participar de concursos de literatura, entre eles da Ed.
Nova Cultural nos anos 90, e ser ganhadora com um conto “Dia das mães”.
Em 2015 a convite de amigas leitoras do Wattpad, iniciou a
publicação da Série Quarteto Listradinho Fantástico e desde então não parou
mais. Participou de antologias, parceiras de escrita e lançando livros no
Wattpad e Amazon com gêneros variados.
Publicações: (2015) Meu Amigo Patrão. Só Um Motivo Para Dizer
Sim, com participação especial de Lara Smith. Um Encontro Inesperado.
Prazer, sou Destino. (2016) Meu Amor e Ódio. (2018) O Sheik de Agrobã 0.5
–Trilogia Reis do Deserto. (2019/20) Meu Pequeno Cowboy.
EM BREVE:
MEU ANJO BOM E MAU — Livro 2
Resumo: Sou doce, me ame!
*•.¸ ♡ Beijo doce
Autora Jo Magrini ♡ ¸.•*
REDES SOCIAIS
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Wattpad: https://w.tt/2Ry2B7T
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E-mail: autora.jomagrini@outlook.com
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Ramon Staeler
Eu amei de forma imensurável uma única mulher.
Os nossos segredos comprometedores serão expostos. Os nossos
desejos proibidos e as descobertas escandalosas, assim como a luxúria, o
prazer e a fúria... Serão revelados.
A mim, cabe à resignação de aceitar o que estiver por vir. Não
posso fazê-la ver o óbvio, mas um dia, ela se resignará ao seu Destino. Sou
um homem que a Domina sem possuir... que possui ao dominar...
E por isso, não volto atrás em minha palavra dada. Ela sempre será
o Meu Começo e Fim.
Carla Santorini
Mesmo quando me forcei a não ceder, a esperar e a cuidar do nosso
segredo... Dos meus segredos... Nada
poderia me afastar do único homem que amei mais do que a mim
mesma. E mesmo assim, eu fugi.
Gravei o seu nome sob a minha pele, em meu coração e na essência
da minha alma. Porque as escolhas que
fiz, me afastaram dele, mas a força do seu amor me trouxe de volta.
Porque ele sempre será o Meu Começo e Fim.
*Este é o Livro 3 da Série Quarteto Listradinho Fantástico.
MEU NATAL SECRETO
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O ALPHA E A CAÇADORA
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May foi criada com um único propósito, ser a caçadora mãe que
levaria o legado do clã adiante, mas algo flamejava em seu íntimo. Um
segredo que borbulhava a superfície e poderia libertar uma verdade, há muito
tempo escondido.
Um encontro acidental com um lobo em meio a congelada floresta
siberiana, mudaria isto. Haidem Ankor, o poderoso Alpha das Tundras
congeladas, selaria o seu destino.
Onde o sol não brilha e o lado escuro da lua reflete a dura realidade
das sombras, eles correm com a liberdade selvagem da natureza que os
dominam, e é nas sombras que o perigo espreita na veloz flecha de uma
caçadora.
Era uma vez...
Uma história que mudará o mundo que conhecemos através do
vínculo
entre um Alpha e a sua Caçadora.
CORRA COM OS LOBOS E DESCUBRA COMO TUDO
COMEÇOU!
TRILOGIA REIS DO DESERTO
O SHEIK DE AGROBÃ 0.5
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THOMAS DAWSON
De homem da lei cobiçado a pai do ano abandonado. Este é o
comentário geral no pequeno Condado de Bandera. Após Thomas ter sido
abandonado no altar, com um bebê recém-nascido nos braços, o Sheriff se vê
em uma grande dificuldade em coordenar o seu trabalho com a criação do seu
filho. Não tem sido fácil, mas o amor incondicional que o pequeno bebê
trouxe para o seu coração quebrado, valeria cada noite mal dormida, fraldas
sujas, muitas mamadeiras, choros e bolhinhas de baba.
Com a expectativa do primeiro Natal como pai solteiro, entre uma
mamadeira e uma ronda, Thomas decide que a cidade precisa urgentemente
de um subdelegado, mas será que ele está preparado para o presente de Natal
que será deixado em sua porta?
MELISSA BOLTON
As festas de Natal não têm mais o mesmo sentido, brilho e calor,
após a perda do seu esposo e companheiro de equipe, a detetive de crimes
graves da Divisão Texas Ranger em uma medida desesperada resolve voltar
para sua cidade do interior, e assumir a vaga aberta na pequena delegacia do
condado.
O que ela não esperava, era que a sua fuga da cidade grande, as
luzes de Natal e a pressão familiar, a fizesse cair em uma adorável prisão
cercada pelo gugú dadá de um bebê fofinho à espera de uma mamãe e um
Sheriff, mais do que disposto a prendê-la.
[1] [1] Durante atos formais da Justiça, como julgamentos e sessões solenes, os operadores do Direito — Ministros de Tribunais,
Juízes, Promotores e Advogados — usam as chamadas “vestes talares”. Elas são uma espécie de túnica de cor preta, amarrada na
cintura por uma faixa ou cinto de tecido. Chamam-se talares porque, em geral, são compridas e chegam até os calcanhares.
“Talar” significa “calcanhar”, em latim. Fonte MPPR
[2] Expressão francesa para bem-humorado.
[2]
Alguém te enganou/ ferrou.
[3]
Mamãe
[4]
o mesmo que mandar “pra casa do caralho.”
[5]
Palavra ofensiva, puta
[6]
Desculpe/ uma forma de se desculpar.
[7]
[1] ('Afe' vem da palavra “afeto” e 'fobia' do Grego φόβος “medo”) é o medo exagerado de ser
tocado de qualquer modo, geralmente expressando um enorme desconforto, repúdio ou pavor.
[8]
abdômen
[9]
Gíria local, se refere a lanche servido em barracas e lanchonetes
[10]
Fuzil AK-47 Avtomát Kaláshnikova), também conhecida como Kalashnikov, é um fuzil de assalto
de calibre 7,62x39mm criado em 1947 por Mikhail Kalashnikov e produzido na União Soviética pela
indústria estatal IZH. É a arma de fogo originária da família de fuzis Kalashnikov (ou "AK"). O
trabalho de design na AK-47 começou em 1945.
[11]
O Código Morse é um sistema de representação de letras, algarismos e sinais de pontuação através
de um sinal codificado enviado intermitentemente.
[12]
Aparelho para leitura de livros eletrônicos — Kindle
[13]
Os exercícios de kegel são um tipo específico de exercícios que ajuda a fortalecer os músculos da
região pélvica, sendo muito importantes para combater a incontinência urinária, além de aumentar a
circulação de sangue no local.
[14]
Mensagem sistêmica padrão, Guardiãs.
[15]
Referência ao pinguim do filme Happy Feet.
[16]
Essa é uma das mensagens importantes do filme “Happy Feet 2”. O filhote Erik ouve essa lição de
um pinguim meio esquisito chamado Sven e que, ao contrário de todos os pinguins que existem, pode
voar!
[17]
Mãe de Deus, o que é isto?
[18]
Inferno!
[19]
Olá minha querida!
[20]
gatinho
[21]
Meu Deus! Que bela mulher temos aqui!
[22]
Referência ao filme O Terno de 2 Bilhões de Dólares lançados em 2002.