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Copyright © 2021 Jo Magrini

Editorial Bella Donna


© 2021Capista – @icarvalhodesigner
© 2021 Revisão – Ivy Carvalho
© 2021 Revisão – Nanda Ventura
© 2021 Revisão –Jory
© 2021 Diagramação – Jo Magrini

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e


acontecimentos descritos é produto da imaginação da autora. Qualquer
semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais, é mera coincidência.
Esta obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua
Portuguesa.
Todos os direitos reservados.
É proibido o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte
dessa obra, através de quaisquer meios — tangível ou intangível — sem o
consentimento escrito da autora.
Edição Digital | Criado no Brasil.
Sumário
DEDICÁTORIA
SINOPSE
NOTA DE AUTORA
PLAYLIST
PREFÁCIO
PRÓLOGO
CAPÍTULO 1
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
INTERLÚDIO I
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
CAPÍTULO 25
CAPÍTULO 26
CAPÍTULO 27
CAPÍTULO 28
CAPÍTULO 29
CAPÍTULO 30
CAPÍTULO 31
CAPÍTULO 32
CAPÍTULO 33
CAPÍTULO 34
CAPÍTULO 35
CAPÍTULO 36
INTERLÚDIO II
CAPÍTULO 37
CAPÍTULO 38
CAPÍTULO 39
CAPÍTULO 40
CAPÍTULO 41
CAPÍTULO 42
CAPÍTULO 43
CAPÍTULO 44
CAPÍTULO 45
CAPÍTULO 46
CAPÍTULO 47
CAPÍTULO 48
CAPÍTULO 49
CAPÍTULO 50
EPÍLOGO
AGRADECIMENOS
REDES SOCIAIS
Conheça outros Livros da Autora
DEDICÁTORIA

A vida é como as teclas de um piano, pode até desafinar,


mas basta um quarto de volta para produzirem o som desejado.
Dedico este livro aos anjos da minha vida e ao meu filho, meu anjo azul!
SINOPSE

Você acredita que exista um amor que nem mesmo as ranhuras do


tempo poderia apagar?
Mikael Nikolaevich é um Promotor renomado, amigo dedicado,
músico por dom e paixão. Um homem cheio de segredos, dominado por seus
traumas, suas frustrações e com uma grande ferida não cicatrizada em seu
peito. O quarto integrante do Quarteto Listradinho Fantástico, se aperfeiçoou
no uso das máscaras sentimentais, para camuflar a sua verdadeira essência e
proteger o pouco que lhe restou do seu coração quebrado. Um anjo mau de
asas quebradas à espera da peça única que poderá mudar toda a sua história.

Lia dos Anjos é uma mulher forte, batalhadora, uma advogada


incansável. Após dez anos, exilada em Portugal, ela retornou ao Brasil em
busca do que foi obrigada a abandonar; do amor e a esperança de viver os
seus sonhos. Contudo, se viu envolvida por velhas intrigas, segredos,
mentiras e decepções, além da perda brutal do seu amado pai e a única
família que conheceu. Dominada pelos sentimentos de ódio, dor e desilusão,
a jovem esteve a ponto de perder muito mais do que poderia imaginar, mas a
fé, a garra e forteza nascida do desejo de proteger a pequena vida gerada
dentro de si, mudou a sua trajetória, os seus planos e a levou direto para um
confronto, com o único homem que sempre amou.

Tão pequeno, frágil e inocente, mas com uma missão celestial, a de


ser um anjo bom. Anjinho é um presente que veio para unir dois corações
quebrados, enlaçar dois seres de asas rasgadas com seu jeito único. Em tão
tenra idade, com a sua condição autista, ele demonstra ao mundo que tudo é
possível, desde que as peças do quebra-cabeças, que é a vida, se encaixem.
Sua missão é unir e fortalecer aos seus anjos protetores para
enfrentarem um inimigo em comum. Ele está em busca da parte que lhe falta,
com isto colocará a mamãe em uma prova de fogo e conseguira vencer a
barreira que há no coração do papai?
O passado e o presente se encontram, as cartas estão sobre à mesa,
não existem mais máscaras, não há tempo para protelar, o amor rugi e um
anjo inocente precisa de um lugar para chamar de lar.
NOTA DE AUTORA

Por um longo tempo esperei o momento de trazer para os leitores o


fechamento da Série Quarteto Listradinho Fantástico e com grande prazer
dou boas-vindas para nosso Anjo Ruivo, sua anja e a criança mais fofa e
especial, Anjinho.
O livro 4.1 do livro Meu Anjo Bom e Mau, traz revelações
bombásticas para fecharmos pontas dos mistérios dos três volumes anteriores,
e o mais importante, nos mostrar a real face dos personagens enigmáticos e
com tantas ranhuras como Mikael, Lia e Anjinho demonstraram ter.
Como um acorde perfeito, um encaixe Fantástico, nossos anjos que
floreiam esse fechamento de trama, nos brindam com sentimentos, emoções,
momentos que jamais poderíamos imaginar.
O livro é dividido em dois momentos para melhor compreensão do
leitor e soluções dos mistérios. Meu intuito é que vocês possam se deliciar
com a amizade, as loucuras, amores e todos os segredos desvendados nesta
série.
Para você leitor que veio do WATTAPAD em busca do final tão
desejado, minha dica é que: inicie tudo novamente, isto ajuda a autora ao
contabilizar a parte financeira, mas acima de tudo tenho aqui um
PRESENTE: entre os capítulos há bônus, momentos a mais que vieram com
a revisão, aproveitem!
Tomem nota, classifiquem na amazon, façam as suas resenhas, me
marquem nas redes sociais e usem o destacar do kindle para destacar às suas
passagens preferidas, os momentos que marcaram sua leitura.
Crie memórias em sua leitura.
Como autora e responsável é IMPORTANTE DIZER: é um livro
com gatilhos emocionais, cenas de sexo com descrição gráfica. Não é
recomendado para menores de 18 anos. Contém violência física e
psicológica. Se você não se sentir confortável com alguns destes assuntos,
está não é uma leitura recomendável.
PLAYLIST

Para ouvir a playlist de “MEU ANJO BOM E MAU” no Spotify,


abra o app no seu celular, selecione “buscar”, clique na câmera e posicione
sobre o QR Code abaixo. Aproveite!
PREFÁCIO

“Há uns que nos falam e não ouvimos; há aqueles que nos tocam e
não sentimos; há aqueles que nos fere e nem cicatrizes deixam, mas... há
aqueles que simplesmente vivem e nos marcam por toda vida."
Hannah Arendt
PRÓLOGO
“Há casos que em que a sentença já está escrita antes do crime”
José Saramago

MIKAEL

A
noite promete ser infernal. Devido à situação, cogitei a possibilidade de
extravasar essa tensão no ar com algumas piadas infames, mas seria difícil de
falar algo e não parecer forçado, idiota, por isto desisti.
Angélica entrou na sala passando os últimos ajustes antes do
grande show. Deveria estar com minha atenção toda voltada para a megera,
que contrariando a expectativa, está desempenhando o papel de James Bond
com perfeição. Mas, é impossível. Apenas uma pessoa consegue fazer isto
agora, apesar do ar melancólico, ela está radiante.
Algumas mechas do seu cabelo, estão presas por grampos
cravejados de diamantes e o restante jogado por sobre o ombro direito,
fazendo com que um lado do seu rosto fique encoberto. De longe quase me
sinto um poeta admirando-a, pensando no que ela transmite com a sua
postura rígida, quase etérea.
Seria mistério, sedução, ou um casulo para esconder o seu medo?
Alguém ri engasgadamente, o que me parece ser forçado. Sinto um
bater leve sobre os meus ombros, mas não dou conta de quem seja, meus
olhos parecem não ter conexão com o resto do meu corpo, eles não se
desviam da figura a minha frente.
Um desejo latente me invade, quero me aproximar e emaranhar
meus dedos nos fios sedosos desfazendo seu penteado elegante, só para vê-
los desabarem livres por suas costas à mostra no detalhe provocante do
vestido de seda cor-de-rosa; este que realça ainda mais os traços do corpo
cheio de curvas sinuosas e perigosas.
Seguro um riso sarcástico que teima em rasgar o canto da boca.
A maquiagem realça a beleza da sua pele morena cor de jambo,
sem mencionar o detalhe da boca carnuda, o lábio inferior preso entre os
dentes… — suspiro de forma audível com uma conclusão clara: meus olhos
não desgrudam dela e o meu pau sobe, justo agora e, esta clássica descrição,
vai para a vala, quando a imagino curvada sobre a próxima mesa.
— Puta merda! — exclamo entre dentes.
— Atenção! — ouço o chamado no comunicador auricular.
Todos se voltam em direção à Angélica. Com o canto dos olhos,
observo Lia apertar os dedos da mão direita contra a palma e respirar fundo.
A loira se aproxima do semicírculo que fazemos, ela fala
demostrando como agir, faz piadas sobre suas roupas e tenta aliviar o clima,
para ajudar entro na onda e a provoco.
— Ok! Isso é sexy pra cacete!
— Eu sei ovinho, — ela pisca e ruboriza em simultâneo —, é uma
pena que me rejeitou em favor da sua Anjinha!
— Você é boa nisto… — comento ao perceber que o seu “rubor” é
forçado e ignoro a parte que se refere a Lia.
— Sou boa em muitas coisas… — ela gesticula com os lábios.
Giovane entra na nossa conversa para bloquear minha visão,
tentando chamar a atenção de Angélica, mas a megera o reprende e se afasta
ainda falando sobre os planos, enquanto Lia permanece alheia a tudo, com os
olhos focados ao longe.
Horas antes da festa se iniciar, fiz questão de entrar em contato
com Angélica, para ter a certeza de que tudo estava bem orquestrado, não que
haja desconfiança da minha parte quanto ao trabalho da sua equipe. Mas, só
depois de me garantir que as crianças incluindo o filho da Lia, estavam bem
seguras, me senti menos filho da puta por arrastá-la até aqui.
Ramon e Angel explanam os últimos detalhes e algo estranho
começa a me incomodar, não sei o que é, mas um calor, algo abafado me faz
respirar com dificuldade, tenho a sensação de que algo está preso em minha
garganta, é como se eu quisesse gritar e não pudesse.
Olho para o celular que vibra em minha mão, a mensagem que
chega é uma foto da suposta Verônica. Após olhar bem para o rosto desta
mulher, mil gatilhos se acionam na minha mente, tenho a sensação de passar
por um túnel do tempo.
— Ainda falta algo que não consigo me lembrar. A única coisa que
sei, é que jamais a esquecerei novamente, — falo alto, contudo, ninguém me
responde.
Todos se mantêm em suas posições.
Uma sucessão de acontecimentos se desenrola na minha frente.
Álvaro, que se tornou alguém mais próximo e necessário para nós e a nossa
empresa, entra na sala e não tenho certeza exatamente em que momento isto
aconteceu. Estou enrodilhado nos meus pensamentos, apenas a observando,
aguardando.
Alguém pergunta algo a ela, sua voz é tremula ao responder, e pela
primeira vez na noite, eu realmente posso ver e sentir aquilo que não foi
expresso ainda.
Ramon se aproxima ainda explicando os planos, repassando alguns
pontos necessários, tais como o falso noivado que vamos interpretar essa
noite.
Tento a todo custo deixar a cara de jogo em alta. Isto acaba sendo
fácil, para todos se o Mikael for aquele que brinca, faz alguma zoação, o que
não tem emoções adversas que os deixe desconfortáveis, é bom.
Na verdade, é bom até mesmo para mim. Por que o que não
suporto é sentir? Seja lá o que for, essa vulnerabilidade que expõe o paradoxo
que me tornei é algo que abomino com certeza. Uma fraqueza que não me
permito sentir. Algo que não quero mostrar a ninguém.
Troco um olhar com Ramon, e quase posso ouvir seus
pensamentos. No mínimo meu amigo sente compaixão por nós, enlameados
com nossos demônios, atormentados por algo velho e enterrado a tanto
tempo, sendo revisitado. Ouço na sua voz o esforço para ser delicado ao falar
com ela, mas a expressão de descontentamento, o franzir do sobrecenho e na
forma como Lia morde os lábios, está claro que de nada adianta o
cavalheirismo exagerado do Argentino.
Antes que ela possa se afastar, dou um passo à frente e tomo o anel
das mãos de Ramon. Aquele sufocamento de antes se intensifica ao ponto de
obstruir minha respiração, mas é algo rápido, quase imperceptível.
— Lia, — minha voz sai grossa arranhando minha garganta —, não
será por mais de duas horas, já conversamos sobre isto.
Ela tem os punhos cerrados em paralelo ao corpo, tento demonstrar
gentileza.
— Eu também não estou confortável com a situação. Então, por
favor, estenda a mão e me deixa colocar esse anel no seu dedo, — tomo sua
mão fria que está trêmula, não pretendia ser rude, mas antes que perceba já
fui.
— Não preciso de um discurso Mikael, farei isto. — Ela baixa o
tom da sua voz. — Dei minha palavra.
Olho em seus olhos e seguro firme sua mão aberta e estou pronto a
deslizar a joia pelo dedo anelar, por um segundo o seu sussurro me paralisa.
— Espera… — não me permito esperar.
Com relutância, deslizo o maldito anel em seu dedo, sua mão
molhada de suor frio escorrega sobre a minha. Amaldiçoou entredentes ao
perceber que não fiz o que ela pediu. Por isto, me aproximo diminuindo a
nossa distância, e falo no tom mais baixo que posso com ela, para impedir
que os expectadores à nossa volta possam ver as portas do nosso inferno
serem escancaradas da pior forma possível.
— Não exagere Lia, é só um anel! — exclamo.
— Um maldito anel! — ela rebate entredentes.
— Odeio isso tanto quanto você, mulher, então… — replico.
Lia ergue o seu rosto e pela primeira vez na noite nos encaramos de
fato. Ela chora ao vê-lo em seu dedo. Não consigo reprimir velhas
lembranças, talvez, por isso as palavras saem da minha boca, ou,
simplesmente porque sou um monstro e não mais o seu anjo.
— Odeio você! — ela afirma.
— Isto deveria me importar?
Ao ver o que Ramon me entrega, as suas lágrimas se tornam fel, a
fragilidade enquanto ele explica sobre o falso colar se evapora e sua fúria tão
conhecida fica aparente.
— Oh! Meu Deus! Isso… Isso vai ser o inferno quando eu sair! —
Lia exclama pasmada. — Um inferno particularmente desnecessário na
minha opinião, — seu olhar incide sobre o meu.
— Está é a intenção! — afirmo entredentes. — No entanto, pode
ficar tranquila, não a deixarei sozinha.
Ela bufa. — Mesmo?!
Tomo a frente mais uma vez e retiro a peça do estojo, Lia fecha os
olhos e fica claro a sua repulsa em usar tanto a joia verdadeira, quanto a
réplica. No fundo, não a culpo.
Me encosto contra seu corpo fazendo dar-me às costas, a diferença
da sua estatura e estrutura corporal para a minha, mesmo estando de saltos
alto, é grande, o velho comichão da excitação volta a atormentar meu corpo.
Sempre quando se tratar dela, estarei excitado. Lia é como uma droga
viciante, difícil de ser deixada.
Com ela, nunca seria diferente!
Uso isto em meu favor para enclausurá-la dentro dos meus braços,
passo a joia pelo seu pescoço, assim que as frias pedras de vidro se
encontram com sua pele, um arrepio percorre seus braços de forma tão
intensa que posso acompanhar com meus olhos, aproximo minha boca ao seu
ouvido e dou a ela um motivo para ser forte.
Não é uma piada, muito menos uma forma de consolar, é apenas
uma verdade. Um desejo primitivo entre nós.
— Use o seu ódio por mim, saia altiva desta sala, – pauso—pense
em como e o quanto quero fodê-la o resto da noite depois que está maldita
festa acabar, como uma recompensa.
Não ouço sua resposta, nem preciso, sinto-a estremecer ao encontro
do meu peito, fecho meus olhos por um segundo apreciando a sensação.
Não me dou conta de como chegamos ao salão de festas, é como se
um filme estivesse sendo acelerado e de repente o play fosse acionado
novamente.
Estamos andando pelo salão recebendo cumprimentos de vários
sócios e colegas de trabalho, quando uma mulher vagamente familiar para à
nossa frente, seu olhar é especulativo antes de fazer um comentário sobre
como somos perfeitos um para o outro. Seguro uma réplica ao perceber no
seu olhar, o desdenho e cólera. Agradecemos gentilmente, seguro Lia com
mais força do que o necessário e a guio para a outra ponta da sala, ela se
desvencilha e se afasta.
Vejo que algo a deixou ainda mais incomodada, tentei alcançá-la
com a mão estendida, mas em algum momento a atmosfera mudou. Lia que
estava aqui bem ao meu lado, desapareceu. Ouço alguém chamando o seu
nome, e um riso esganiçado ecoa em meus ouvidos.
— Não. Isto não é um riso, e sim uma gargalhada. —Afirmo para
mim mesmo. Dou um giro sobre meus pés observando a minha volta e
percebo que mais uma vez, tudo mudou.
Estou lá, ou melhor. Estou aqui e posso sentir isto!
Diante de mim apenas as escadas indicam o caminho que devo
tomar, ouço a voz naturalmente enrouquecida de Lia, mas não posso vê-la e
isso me angustia. O aperto no meu peito é grande, sinto falta de ar, a
queimação estranha está pior.
Nunca senti isto, mas é como se houvesse uma bola atravessada em
minha garganta, minhas mãos tremem as pernas tão potentes acostumadas ao
esforço físico, parecem um peso morto e não consigo chegar até onde ela
está.
— Lia…
Eu a chamo, porém, o som que vem aos meus ouvidos é asqueroso,
reconheço a voz esganiçada daquela mulher.
Como pôde ter passado tantos anos, ao ponto de ter me esquecido
deste som? Como poderia isso acontecer, o que mais eu esqueci?
Uma fúria cega me invade, deixo de lado as máscaras de bom rapaz
que estou sempre me esforçando para manter, e extravaso os sentimentos
destroçados que carrego dentro de mim. — Sei quem é você Verônica.
— Eu sei! — grito.
Atrás de mim, ouço passos apressados, Ramon, Edu e Anderson
me seguem, não os vejo, mas sinto-os. Meu corpo se agita, tem algo errado,
sei que há algo estranho em toda essa situação.
Angélica me prometeu que Lia estaria segura, antes mesmo desta
noite, estive com ela há duas semanas em seu apartamento, a fiz me prometer
que nada daria errado, porque me sinto sufocado com um medo que não é
meu, mas que vem de Lia.
— Que porra de sensação é essa?
Por um instante minha consciência ficou nebulosa, é como se uma
porta fosse aberta rapidamente e batesse com toda força contra uma parede,
me dizendo que isso é um pesadelo e nada mais, porém, tudo que posso ouvir
são as ameaças feitas ao filho dela e uma confusão de corpos se chocando em
algum lugar.
Meu foco está em encontrá-la, desço mais um lance de escadas e
ouço um grito de dor enquanto uma dor horrenda se instala na lateral do meu
corpo. Posso sentir algo profundo entrando entre minhas costelas e se
retorcendo, tudo isso enquanto desço as malditas escadas.
O tempo está passando e experimento a sensação angustiante de
que nunca vou conseguir sair deste labirinto, sempre descendo de andar em
andar ouvindo-a chamar meu nome, sentindo o seu desespero crescer junto ao
meu.
— Lia… — sussurro em meus pensamentos.
Tomo fôlego e tento enviar uma resposta que quase sai dos meus
lábios retraídos, percebo outras coisas nesta tentativa falha, estou rouco, o
suor que escorre pelo meu rosto. O fedor ferruginoso do sangue, calafrios e a
voz dela que parece esmorecer ao longe, é como se houvesse uma bruma nos
separando.
Me esforço para alcançá-la, grito o mais alto que posso: —Lia,
aguenta firme, estou chegando!
De alguma forma diante de mim, vejo a porta do escritório onde
Anderson trabalha trancada, com o pé a derrubo facilmente invadindo o
ambiente, a luz é fraca e mal posso enxergar, mas uma voz debochada grita:
— Você nunca vai chegar a tempo, Mikael, quer apostar?
— Não! — exclamo com força.
A seguir o que vejo me destroça, não tem ninguém à vista a não ser
um rastro de sangue, as vozes voltam a gritar no meu ouvido e um barulho
agudo corta a comunicação, ouço um novo grito, me viro e as vejo.
A cena que se desenrola adiante me choca. Lia está caindo de
joelhos sobre uma poça carmesim, seus olhos estão vidrados nos meus sem
vida, o vestido sexy de outrora não passa de trapos rasgados e embebecidos
em sangue, por detrás dela, aquela mulher de antes, ri escancaradamente.
— Avisei a Niko que levaria todas embora. Uma a uma. E agora
novamente, irei tirar outra mulher dos Nikolaievitch, — ela ri e em uma das
suas mãos reluz o falso colar de diamantes salpicado de sangue, e na outra ela
segura o cabo de um punhal ainda cravado ao lado de Lia, retorcendo-o
lentamente.
Meu peito infla, minhas pernas não me obedecem, meus olhos
ardem, minhas narinas parecem ter sido lavadas com ácido, sufoco em
desespero e apenas um estrondo torturado ecoa em meus ouvidos.
— Não! Lia…

Acordo arfando, sinto o maldito suor escorrendo pelo meu rosto e


nem sei mais se é apenas suor, meus olhos estão embaçados e ardendo. Com
as mãos afasto o lençol emaranhado pelas pernas e as coloco para fora da
cama, puxo o ar uma, duas, três vezes antes de abrir os olhos novamente e
olhar para a mesa de cabeceira.
— Puta que pariu!
Duas da manhã, religiosamente acordei com o mesmo pesadelo
miserável que há quase dois meses têm perturbado meu juízo, me deixado
exausto, enfurecido e com vários sentimentos desconexos atormentando
minha mente.
Desta vez não me deixo torturar. — Chega dessa porra de
pesadelo! — exclamo com a voz rouca expressando toda minha raiva.
Me ergo da cama, caminho nu até o closet e pego um moletom
qualquer, estou enfadado de acordar diariamente banhado em suor, trêmulo
como uma criancinha assustada, meu único desejo agora é de mandar tudo
para o inferno, incluindo a maldita Verônica que sumiu no mapa.
Vestido com um par de tênis nas mãos, conecto os fones ao
bluetooth do celular, seleciono minha playlist matinal, as vozes de Scarlet e
Yorn — Bad Dreams, invadem meus ouvidos sobrepondo-se os gritos
torturados de antes, minha garganta arde e sei que parte destes gritos são
meus. Uma nova onda de raiva me envolve e neste estágio só duas coisas me
acalmaria: foder loucamente uma buceta em especial, até sentir meu pau
doer ou correr até minhas pernas doerem.
Como foder não vai rolar, estou pronto para uma corrida. Saio de
casa, o asfalto está úmido, as luzes dos postes são minhas companhias, por
enquanto…
Ignoro o SUV preto encostado próximo à minha casa, são os
seguranças que Angel designou para mim. O movimento repentino da sombra
que se aproxima na mesma velocidade que mantenho em minha corrida, não
me espanta mais.
Pego a via, tomo impulso e aumento minha velocidade,
quilômetros percorridos me enchem de exaustão e me dão a sensação de paz
de espírito. Nem mesmo o vento gelado rasgando meu rosto me incomoda.
Quero apenas exorcizar os mil demônios que me perseguem, noite após noite
desde o ano novo.
O vulto silencioso que tem me acompanhado todas as madrugadas
pelas últimas semanas, acelera o passo me desafiando. É como se soubesse o
quanto preciso disto, o aroma adocicado de canela passa por minhas narinas,
mal posso ver seu rosto encoberto pelo capuz do moletom, mas isto não
importa, nosso objetivo ao que tudo indica, é o mesmo.
Amortecer a porra do nosso tormento, até que peguemos essa
maldita Verônica, e eu possa exorcizá-la da face da terra, por minhas
próprias mãos.
CAPÍTULO 1

TUDO É UM TORMENTO
“A saudade é o pior tormento. É pior que o esquecimento.”
Chico Buarque

MIKAEL

A
s horas no relógio correm a passos morosos, as salas de audiências estão com
suas portas cerradas, pior do que nos demais dias, hoje me sinto sufocado.
Uma sensação angustiante para quem não tem o costume de se importar com
sentimentos alheios.
Ouço atentamente enquanto o juiz lê a sentença final do processo
dando por encerrado outro importante caso.
Geralmente após as audiências um batalhão de repórteres estão
apostos para saber o veredicto e ter alguns minutos com advogados e o
Promotor. Para minha sorte, conseguimos restringir o acesso à imprensa para
preservar às vítimas e testemunhas.
Deixo a sala de audiência seguido por outros colegas, espero o
burburinho passar, os apertos de mãos e congratulações, me esquivo como
posso até estar no corredor um nível abaixo e aliviado posso respirar,
podendo conferir finalmente o que há no envelope que me foi entregue assim
que cheguei no tribunal.
A revista em minhas mãos parece uma zombaria. Ainda não
acredito que deixei publicarem uma matéria sobre mim. A foto usada para a
capa da edição, apesar de ser muito sugestiva, não é um problema.
Realmente sou um Promotor solteiro, faço o estilo linha dura,
motivo pelo qual tenho meu rabo vigiado, vinte quatro horas por dia. Um
físico bem avantajado que mesmo por debaixo da toga[1] chama a atenção, e
para azar ou sorte, uma expressão naturalmente cafajeste.
O que não esperava era que além das respostas que dei sobre a
carreira jurídica, a jornalista faria sua análise pessoal sem me consultar e a
publicaria junto à matéria.

MIKAEL NIKOLAIEVITCH é um Promotor, linha dura que


tem se destacado na sua incansável luta contra o crime organizado,
mostrando que a justiça tarda, mas em suas mãos, ela nunca falha. O
defensor devotado é apaixonado pela sua carreira e amigos. Trinta e quatro
anos, solteiro, mas segundo fontes seguras, essa nossa alegria pode acabar,
pois, o ruivo bonitão, foi flagrado na festa da A. Associados no final de ano,
desfilando com uma suposta noiva, que vamos chamar de Doutora L., por
enquanto.
SERÁ ISTO VERDADE? Estamos preparadas para perder o
solteiro mais cobiçado do momento? Não vamos esquecer que nos últimos
dois anos, os advogados desta mesma firma, parecem ter sido flechados pelo
Cupido.
HUMOR: para ele manter um sorriso no rosto é melhor para
evitar perguntas desagradáveis, mas quando está só, libera sua natureza
indômita. — Frase de fonte segura.
HOBBIES: sexo de altíssima qualidade, não vou contar como
descobri —Strong and sweaty. Sua secreta paixão pelo cultivo de orquídeas,
motos velozes e claro a música, que ao longo de toda vida foi um escape.
Quem quiser, pode conferir essa voz terrivelmente sexy acompanhada por um
rock de ótima qualidade em uma das casas noturnas mais badalas de VIX,
onde o Promotor deixa a toga de lado e se dedica à guitarra.
FASE DE ACONSELHAMENTO: leve-a para cama em cada
oportunidade. Só não leve seu coração junto.

— Cacete!
Fechei a revista e a coloquei por baixo das pastas de processos que
tenho nas mãos. — Como se não houvesse merdas suficiente em minha vida,
agora terei mais uma para lidar.
Por ser véspera de feriado é esperado que o Tribunal esteja vazio,
já que alguns “colegas de trabalho” tendem a aumentar por conta própria o
recesso, mas pelo visto hoje, não será esse dia.
Esqueço a matéria e me concentro novamente no trabalho.
Encontro um banco vazio ao longo do corredor e confiro as últimas páginas
do processo que tem se arrastado por um longo período e me dado dor de
cabeça.
Como se não bastasse as ameaças que recebo diariamente dos
bandidos e advogados de defesa que tentam a todo custo colocá-los na rua,
agora tenho de lidar com mais uma dor de cabeça.
Um dos maiores traficantes da América Latina, preso no porto de
Vitória, passou a ameaçar-me diretamente, colocando preço para a execução
das minhas testemunhas; isto coloca em risco a segurança da esposa e o filho
dele que estão sobre proteção judicial.
— Puta merda! — resmungo ao ver que o meu pedido de
transferência foi negado, — se eles não mudarem logo minhas testemunhas
de lugar, vou ser obrigado a pedir ajuda.
Isto é algo que não gostaria de fazer. Após ter os pneus da moto e
do carro furados em diversas ocasiões, ser perseguido por veículos aleatórios
e receber mensagens suspeitas de números desconhecidos que deixa
subentendido que estão perto de encontrá-los, não vejo outra saída.
— Ajuda de quem?
A voz abafada em meu ouvido me faz erguer a cabeça. Carlos
Eduardo Santorini, me encara com olhar especulativo tomando assento ao
meu lado. Nego a resposta com aceno simples e ele compreende.
Desde que me tornei Promotor Público, poucas foram às vezes que
discutimos um caso abertamente, não por falta de confiança entre nós, mas
optei por deixar meu trabalho em sigilo, assim como faço com a minha vida,
evitando que ele e nossos amigos, se coloquem em perigo por saber demais.
— Onde está Ramon? — pergunto fechando a pasta, evitando que
ele veja tanto o maldito exemplar da revista, quanto as informações sobre o
caso. — Ele deveria estar aqui, não?
— Staeler passou os seus casos para o Santana, definitivamente.
Você saberia se comparecesse às reuniões marcadas. — ele bufa.
— Este caso, — aponto a pasta em suas mãos — não é especial?
— Sim, trabalhamos em conjunto e Anderson fazia parte da equipe,
então não foi preciso, grandes mudanças.
Edu aponta nosso amigo que está do outro lado da sala falando ao
telefone. Anderson percebe que estamos olhando em sua direção, acena e
caminha até onde estamos sentados.
O cliente ao qual representam está mais a frente com olhos
pregados no iPhone em suas mãos.
A típica tranquilidade de quem tem bons advogados e sabe que a
causa está ganha.
— Ele realmente vai deixar o escritório? — pergunto apenas para
manter uma conversa trivial.
— Ramon não seria o primeiro. — Edu rebate e sinto a indireta
como um chute na bunda.
— Não havia como permanecer por lá cacete! — replico em voz
baixa fechando a cara.
— Você é um cuzão, isto sim! — ele apoia os cotovelos sobre os
joelhos e me encara por sobre o ombro. — Poderia manter a sala e participar
mais, porém só aparece para arrumar confusão.
Coço a cabeça na altura da nuca e evito responder. Sei exatamente
sobre o que Carlos Eduardo está falando.
Das duas últimas vezes que estive no escritório só aconteceram
merdas: uma briga feia entre Angélica e Giovane, da qual acabei por me
meter, mesmo que a megera tenha esmagado a cara dele.
Achei pouco e a coisa saiu de controle ao trocarmos meia dúzia de
insultos e alguns socos.
A segunda e última vez, foi uma puta discussão com Lia. Não
acreditei quando Anderson, me mandou mensagem, dizendo que ela recusou
o afastamento e voltou a trabalhar um dia após remover os pontos, devido ao
ataque que sofreu.
Mesmo faltando pouco para termos um recesso de final de ano,
ainda assim ela não deveria ter voltado. Só de lembrar em como estava
abatida ao entrar em sua sala, sinto a raiva subindo novamente.
Essa sem dúvida foi a pior briga que nossos funcionários já
presenciaram, quase sinto meu rosto corar de vergonha, no entanto, sei que
estive certo, por isto, foda-se!
— Reservo o direito de manter minha opinião sobre os fatos. —
Rebato.
— Ou seja, você não vai se desculpar?
— Você se desculparia? — inclino minha cabeça e estreito os
olhos esperando por sua resposta.
— Prefiro não comentar. — Ele resmunga e não esconde o sorriso
irônico.
— Imaginei!
Sou sarcástico ao dar por encerrado o assunto. Ficamos calados,
cada um imerso em seus próprios pensamentos.
As coisas entre o quarteto geralmente, têm ficado cada vez mais
complicadas e sempre que estamos juntos, acabamos por ter estas pequenas
discussões, não chega a ser uma briga de fato, mas sinto que não estamos
confortáveis uns com os outros.
Quem sabe seja algo da minha cabeça, ou finalmente as garras
envenenadas da maldita Verônica, tenham cravado fundo entre nós.
Carlos Eduardo é um ótimo amigo, temos uma boa relação, talvez
não sejamos tão próximos como antigamente, e por um tempo a explicação
era lógica: a vida de casado com a sua eterna moranguinho o consome. Os
quatro filhos, o trabalho que deixa pouco tempo para os amigos, as badernas
e as santas orgias.
É notório que a situação em que vivemos hoje, rodeados de
seguranças, com a incerteza de estarmos seguros é o que de fato tem lhe dado
cabelos brancos.
Não apenas ele, mas Anderson e agora Ramon também vivem mais
suas vidas como pais de família e maridos dedicados.
Anderson diminuiu a sua carga horária para poder ficar mais tempo
com Aline e sua ninhada desde que nasceram, e vem mantendo este ritmo. O
que lhe fez bem! Nunca vi meu amigo sorrir tanto ao mesmo tanto que
boceja. Ainda não sei se são os filhos que causam a canseira, ou o sexo
regado a Nutella.
Ramon a quem considero como um amigo íntimo, foi o último do
quarteto a se entregar de vez ao papel de marido, aliás o primeiro. Ainda
ficamos chocados quando o assunto é seu casamento secreto com Carla e a
forma como soubemos.
Não mencionamos sobre o filho deles que foi brutalmente
assassinado, jamais poderemos dimensionar o que nossos amigos têm
enfrentado. Por isto, quando July sugeriu que prestássemos uma homenagem
ao pequenino há algumas semanas, aceitamos de imediato.
Foi um momento de dor e amor que compartilhamos, no qual
percebemos que existem elos inquebráveis nesta vida. Ramon e Carla vive
um dia de cada vez, aproveitando ao máximo todos os momentos com Pérola,
sua filhinha em busca de superar o tempo perdido.

A chamada para o próximo julgamento interrompe meus


pensamentos, olho para o lado e vejo que Edu tem seus olhos fixos em mim.
— O que foi? — pergunto.
— Processo de número um, cinco… — a ordem para o próximo
processo soa nos alto-falantes.
— Ei, somos nós. — Edu estica o braço por sobre mim e cutuca
Anderson que continua a falar no celular.
— Estrelinha tenho que desligar, assim que acabarmos aqui, irei
direto para casa. — Ele ri com ar safado e não precisamos ser gênios para
saber que ali, já está rolando uma sacanagem. — Porra, não diz essas coisas
ou…
— Ou nós, seremos repreendidos, Vasquez! — Edu se coloca sobre
seus pés, segura o pulso do Pangaré e o faz levantar-se. — Mika, espere por
nós, quero falar-lhe algo.
— Hoje não vai rolar, — dou de ombros, imaginando o que seja,
— tenho um compromisso!
Ele não diz nada. Dispenso os dois com um gesto de mãos e sigo
para o segundo andar.
A sala reservada aos Promotores está vazia, aproveito este
momento para trocar de roupa e verificar alguns e-mails. Guardo as pastas de
documentos na bolsa de couro, passo a alça por sobre o ombro e alcanço meu
capacete. Estou pronto para fazer um movimento estratégico e deixar o fórum
sem ser visto pelos seguranças, a megera não brinca em serviço, quanto mais
reclamo dos machos me cercando, mais aparecem diante de mim.
Abro a porta da sala e tenho minha passagem bloqueada. —
Puta merda!
— Promotor? — a voz forçadamente sedutora cai em meus ouvidos
como um tiro. — Estava à sua procura, o senhor, não atende as minhas
ligações.
Milla Sampaio, a minha nova assistente sorri ao se aproximar, e o
tom acusatório não passou despercebido, nem os três botões da sua blusa de
seda abertos evidenciando o vale proeminente entre os seios fartos.
Cruzo os braços à altura do peito e isto faz com que a camiseta
preta por debaixo da jaqueta de couro evidencie os músculos, para o seu
deleite que não esconde no seu escrutínio.
— Talvez tenha me escapado algo, mas quando a contratei deixei
claro que, sou eu quem entra em contato, quando for necessário.
— Me desculpa se disse algo errado, mas é que preciso…
— Senhorita Sampaio, desculpas é outra coisa que também não
preciso.
A mulher a minha frente fica rubra, tenho vontade de me socar
mentalmente por não conseguir me controlar. Este é o preço das noites mal
dormidas, a cada dia fica mais difícil manter a máscara do bon-vivant intacta,
diante do seu avanço que não me interessa no momento.
— Do que precisa, já que se deu ao trabalho de vir ao tribunal me
procurar?
— Bem… — ela ri e me mostra uma pasta similar em suas mãos.
Se fosse há alguns meses, certamente a levaria direto para o hotel
mais próximo para uma boa foda. Ignoraria por completo a forma possessiva
com que ela tem se dirigido a mim. Aliás, pelo empenho que Milla tem feito
no último mês para chamar minha atenção, me diz que esse era o seu único
objetivo em mente ao se candidatar para vaga e, na verdade, usaria isto ao
meu favor.
Enquanto ela se debruça sobre o calhamaço de papéis para mostrar
mais do seu decote, observo com canto dos olhos um movimento na porta da
sala ao lado.
Não preciso me virar para saber quem está deixando o recinto. O
riso enrouquecido, o vislumbre do cabelo negro balançando no ar na mesma
sintonia que o corpo torneado faz, me deixam de pau duro, e completamente
puto!
— Aqui está o que solicitou está manhã, julguei que deveria ser
muito importante, como ficou tudo pronto, posso deixar estes documentos no
escritório para o senhor, se desejar. — Milla atém minha atenção novamente.
Se fosse para deixar no escritório não precisaria vira aqui! Minha
língua coça para contrapor.
— Senhorita Sampaio, — interrompo minha assistente, retirando
das suas mãos a pasta — posso ver isto depois. Agradeço a gentileza.
A mulher parece disposta a não só a me ajudar com casos. Não vou
dizer que o meu pau não reaja a uma buceta. Por que seria uma mentira?
Neste momento, ele está a ponto de arrebentar o zíper das calças,
mas o problema é na hora do vamos ver, mesmo o corpo de Milla sendo
escultural, o cabelo loiro sedoso caindo em ondas perfeitas pelas costas, a
boca carnuda e o olhar de puta devassa do jeito que me atiça, só há um,
porém: o desgraçado cabeçudo, só se levanta para a anja endiabrada ao
lado.
— Se precisar de algo mais, sabe que pode me pedir…— Milla
pausa, estreita os olhos e morde os lábios de forma sexy.
Quero responder, mas deixo de fazer ao ver com quem Lia está,
Giovane Santana. Dispenso Milla com dar de mãos e me aproximo dos dois.
É involuntário! Afirmo como uma desculpa esfarrapada.

— Vamos te esperar hoje à noite então. — Giovane afirma ao


confirmar algo na tela do celular. — Se preferir vamos a um bar.
— Nenhum e nem outro, — Lia rebate — estamos morrendo de
saudades, por isso espero vocês para o jantar.
Eles parecem bem íntimos, vejo a proximidade não só pela forma
que falam, mas o jeito que se tocam a cada frase, procuro não interpretar
erradamente, mas a porra do Santana, aproximando-a pelo cotovelo para
cochichar algo em seu ouvido, me tira o esforço em manter a lisura.
— Idiota! — ela ri alto e se afasta empurrando-o pelo peito.
Olho para os lados, ninguém em especial parece notá-los, é como
se fosse habitual andarem juntos por aqui.
— Quem vai cozinhar, você? — Santana pergunta com ar
descrente.
Paro próximo a eles, só posso ver o rosto de perfil dele e Lia por
trás. As calças de cor branca têm o tecido fino que cai por seu corpo,
marcando levemente a bunda arrebitada, o blazer preto parece elegante
insinuando a cintura fina, ela balança o corpo com uma risada e o cabelo
solto volta a sacudir de um lado a outro, minha mão coça por agarrar as
mexas. Desde o nosso último encontro não nos falamos mais,
consequentemente não fodemos, há um bom tempo.
— É sério! Estevão e Gabriel, não vão querer correr o risco, não se
esqueça…
— Cala a boca, idiota! Estevão não pode reclamar já que o trato
sempre muito bem. Quanto a Gabe, com certeza ama a minha comida, Ok?
Gabe? Quem diabos é esse? Um estalo e então as lembranças veem
com força. Gabriel Santana, o primo que me foi apresentado no casamento do
Dinho e Aline, o mesmo filho da puta que abriu a porta do apartamento em
que Lia supostamente morava em São Paulo, alguns anos quando
insanamente corri atrás dela.
O pai do moleque?
Enfurecido encurto a distância entre nós. — Pelo jeito as coisas no
escritório devem estar tornando-se pior, ou muito boas, já que podemos ter os
funcionários matando tempo, inventando desculpas em pleno horário de
trabalho?
As palavras saem pior do que esperava, a atenção que eles não
estavam chamando, consegui só por me aproximar abruptamente.
— Promotor Nikolaievitch, que prazer em revê-lo. — Santana
ergue a mão para cumprimentar-me.
— Não perca seu tempo. — Lia segura em seu pulso e o faz baixar
o braço. — Nosso trabalho por hoje terminou, mas se quiser saber sobre as
horas trabalhadas e se os pagamentos efetuados concordam, compareça às
reuniões mensais, como sócio.
— Não preciso comparecer, o envio de relatórios serve para isto.
Porém, é bom ver um pouco de ação dos associados.
— Concordo! — Ela finalmente se vira de frente e sinto o golpe na
forma que me encara. — Toda ação tem uma reação, a lei de Newton se
aplica na vida, geralmente se deseja ver produtividade, se faça produtivo.
Se de ouvi-la meu corpo deu sinal, ver face a face à mulher que é
um tormento, noite após noite, me enlouquece.
— Está defendendo algum ponto aqui Doutora Anjos?
— Imagina! — o sorriso que ela tem nos lábios não alcança os
olhos.
Encaramos um ao outro por um tempo sem dizer nada, Giovane
pede licença para atender uma ligação. Tenho vontade de arrastá-la para uma
sala vazia longe da atenção de todos, porém isto seria como soltar a dinamite
no tribunal.
Giovane se aproxima e diz algo em seu ouvido, ela sorri daquele
jeito que me enlouquece, confirma o tal jantar e se despedem. Ao estarmos
sozinhos deixo transparecer o que realmente está me incomodando.
— Quer dizer então que além de boa para trabalhar, já pode dar
festas? E que porra é essa do Santana ficar te colocando a mão quando bem
entender?
— Não sabia que gosta de escutar conversas alheias.
— Não se faça de desentendida, Lia. Fiz uma pergunta. Está bem o
suficiente para isto?
— Na verdade, — ela se aproxima abaixando o tom de voz. —
Bem demais, posso até trepar se quiser. — Ela ergue um dedo e toca o queixo
contemplativamente, — o que me faltava era oportunidade, não mais.
— Você está tirando uma com a minha cara? — Ergo a mão para
segurar em seu braço, mas recuo de imediato sem fazê-lo.
— Imagina… — seu tom é de puro sarcasmo. — Ainda mais
depois daquela entrevista, nunca estaria à altura de quem não perde uma
oportunidade de estar na cama. — Lia pisca um olho, joga o cabelo por cima
do ombro dando-me às costas.
— Lia? — a chamo entredentes.
Como ela me ignora, solto uma provocação. Afinal o que é uma
faísca em meio a um incêndio prestes a eclodir?
— Desta vez, o pai do moleque veio para assumir as coisas, ou
só… comer?
Ela para, olha por sobre o ombro, seus lábios se mexem articulando
um xingamento.
Dou um passo em sua direção, porém a mensagem que recebo no
celular, indica que está na hora de despistar os seguranças.
“Se não for agora, perderá a sua oportunidade.”
— Inferno! — bufo irritado fazendo um caminho contrário ao dela.
— Isto vai ter volta sua Anja endiabrada.
Que caralho de dia é esse? — penso, — e algo me diz que ainda
está longe de terminar.
CAPÍTULO 2

INCOMPETÊNCIA
“Não que ela saiba disso ainda, mas sem dúvida deixei que caminhasse lentamente para

armadilha dos incompetentes.”

SANTIAGO

porta do apartamento abre e fecha com um baque. Sigo o movimento,


desviando a atenção da tela do computador, reprimindo um sorriso. Confesso
A
que adoro quando ela quebra suas próprias promessas e vem me ver.
— Não precisa disfarçar, sei o que est pensando.
— Não estou pensando em nada. — rebato.
Ela bufa, passa por minha mesa, joga a mochila sobre o sofá de
canto, logo em seguida a jaqueta de couro e as botas são largadas de qualquer
jeito sobre o chão acarpetado. Sigo olhando-a com o canto dos olhos.
— Devo me retirar enquanto se despe, ou é algum show prive?
Ela me ignora. As novas cicatrizes nos braços e pescoço ainda
estão avermelhadas, mas bem fechadas e isto me dá uma sensação de alívio.
Diante do seu silêncio volto a provocá-la.
— O que veio fazer aqui, além de se despir na minha sala?
— Rá. Rá. Rá!
Ela debocha, mas continua com seus movimentos, seja lá, o que
esteja fazendo.
Fecho as abas abertas no notebook sem chamar sua atenção, retiro
o pen drive discretamente e faço como se fosse me alongar, soltando-o atrás
da mesa. O carpete no chão impede que produza barulhos ao cair.
Me ergo da cadeira e caminho em sua direção, os olhos azuis
percorrem meu corpo de cima a baixo, um riso sarcástico esmiúça entre meus
lábios.
— Está gostando do que vê?
Cruzo os braços na altura do peito desnudo, as calças jeans com os
botões abertos, deixa à vista o cós da boxer preta por baixo.
— Como conseguiu as manchas roxas? — ela pergunta, mas o tom
travesso é de quem sabe a resposta.
— Digamos que uma gata arisca cruzou meu caminho.
— Hum!
Ela resmunga algo, desfaz o coque em seus cabelos corre os dedos
entre os fios deixando-os soltos caindo em ondas sobre os ombros.
— Então patroa, o que faz em meu humilde apartamento após dizer
claramente que não desejaria mais me ver?
— Continuo não querendo ver sua cara, mas você trabalha para
mim e temos assuntos inacabados, um deles é Verônica. Estou aqui porque
quero que me entregue a cabeça dela.
— Então voltamos ao assunto principal das nossas discussões, —
resmungo — pensei que houvesse outro motivo.
— Se você não for fazer um novo sermão sobre minha viagem de
final de ano com o Santana, não teremos motivos para brigar.
— O problema não foi ir com ele, mas sim para o que foi e não me
deixou a par, — ergo as mãos em rendição — não tenho a intenção de
discutir sobre isto, o que fazemos em nossas vidas privadas não é da conta
um do outro.
— Você ficou mesmo ressentido com o que disse?
— De forma alguma, porém sei que quando a merda ficar feia, vou
esperar para recolher os cacos.
— Você e a Fernanda tem algo em comum.
— O que seria?
—Acham que sou a porra de uma jarra de cristal pronta a ser
quebrada.
— E, não é?
— O que tinha para quebrar meu caro, o senhor Gustavo fez as
honras.
Ela suspira alto e se ergue em minha direção, travo o maxilar ao
ouvir o nome dele, desvio meu olhar, não quero demonstrar o que estou
pensando. Angélica fecha a distância entre nós, e empurra o meu peito com
dedo em riste.
— Chega de enrolação e me responde o que quero ouvir.
— Eu já disse que não tenho contato com ela e continuo
procurando, nos últimos meses foi só o que fiz. A sua última localização foi
Guararapes, no estado de São Paulo, tenho alguns batedores ainda pela região
e as cidades do interior.
— Como ela conseguiu passar pela barreira que fizemos e chegar
tão longe?
— Recursos. Isto ela tem de sobra.
Comento ao observar a carranca que ela faz. Me sinto um pouco
culpado por enganá-la e de certa forma usar seu empenho e recursos para
despistá-la do real paradeiro de Verônica.
Ela continua me recriminando enquanto caminha para a cozinha,
não importo por tê-la circulando livremente no apartamento, aqui não é mais
que uma “casa de espelhos”, um lugar para refletir o que quero, não meu real
lar.
Enquanto abre a geladeira e armário retirando ingredientes para
fazer uma massa, Angélica ressalta que quão ineficiente fomos ao deixar uma
assassina como Verônica escapar.
Observo sua desenvoltura na cozinha como se fosse a mesma do
seu apartamento, puxo um banco alto e em silêncio volto toda a minha
atenção visual para ela, enquanto meu cérebro trabalha em outra direção.
Um pouco mais de dois meses atrás quando soube da intenção de
Ramon sobre capturar Verônica, eu estava no meu limbo venenoso,
completamente dominado pelo ódio e ressentimento que ela me causou
durante toda a minha vida, principalmente após ter mexido com alguém
extremamente importante para mim.
Ao levar Fadinha em cárcere privado e feri-la daquela forma,
Verônica abriu um precedente em nossa relação. A maldita em busca de uma
obediência cega, conseguiu, na verdade, quebrar o último e fraco elo que
tínhamos entre nós.
Não que ela saiba disso ainda, mas sem dúvida deixei que
caminhasse lentamente para armadilha dos incompetentes.
Foi fácil dar a ela suporte necessário para chegar até os escritórios.
Contudo, a velha víbora realmente gosta de flertar com o perigo ao mexer
com inocentes, o que mesmo eu sendo um demônio quebrado, jamais
admitiria fazer.
Primeiro a filha da puta armou um esquema para sequestrar uma
das crianças que Angélica tanto gosta, para impedi-la dei um jeito de reforçar
a segurança dos pirralhos sem que a patroa percebesse, só não esperava que
Verônica fosse desviar do seu próprio plano e colocar capangas para vigiar a
rotina de Lia e seu filho.
Confesso, foi um choque ouvir pelos comunicadores que ela tinha
alguém pronto para pegar a criança. O que me fez voltar no tempo e
relembrar a forma como me entregou Mikaella, a situação deplorável que a
minha Fadinha viveu por anos após ter sido tirada dos pais.
Por este motivo, deixei aberto o comunicador de Lia quando a
interferência aconteceu, assim puderam alcançá-las a tempo.
Mesmo tendo um momento de bom samaritano, ainda assim não
pagaria pelo que minha tia fez anos antes. Ela não roubou apenas uma criança
e estava pronta a roubar outra, ela matou um inocente e isto não poderia
perdoar, além da morte de Lourdes.
Como Ramon disse naquela noite: “a morte não perdoa os
pecados”.
Quem sabe, por este motivo ao saber dos seus planos de vingança
para sabotar o elevador após confirmar a gravidez de Carla, tenha interferido
mais uma vez, trancando Verônica em uma casa no interior do Espírito Santo,
e salvando literalmente a família Staeler.
Suspiro de forma audível ao lembrar do ocorrido e isto chama a
tenção de Angélica.
— O que foi, estou te enfadando?
— De forma alguma patroa, só não entendi ainda o que está
fazendo. — Sorrio de lado e sinto minha cicatriz repuxar.
— Tenho outro motivo para estar aqui.
— Que seria?
Ela bufa, se vira com uma colher de pau nas mãos repleta de
molho. — Comemorarmos seu aniversário! Afinal acontece uma única vez no
ano, — ela sorri, quebrando meu coração — e, pelo que me lembre, apenas
nós dois comemoramos.
— Não acredito! — Realmente me sinto chocado ao ter de fato me
esquecido da data.
Coloco a mão no bolso da calça e saco o celular conferindo a data e
vejo que há três mensagens na caixa de entrada.
— Nem se atreva a atender o celular enquanto estou aqui
contrariando minha natureza e cozinhando para você!
Ela avança em minha direção, para agradá-la solto o celular, uma
mensagem é da minha Fadinha e imagino o que seja. A segunda é certamente
de Verônica, mas a que me interessa de verdade, é a terceira…
— Não se preocupe. Quero aproveitar esse momento histórico, que
tal até mudarmos de assunto e falarmos de coisas interessantes?
— Até parece que nunca fizemos isto. — Ela se refere à
comemoração e dou de ombros. — Ok! Vamos falar sobre a nova Ducati que
quero comprar?
— Vermelha? — brinco fazendo uma careta, ela sorri de modo
travesso e volta atenção para o molho, enquanto abro a terceira mensagem.
Angélica coloca sobre o balcão dois imensos pratos fundos com
massa ao sugo e almôndegas, meu prato predileto. Ela retira do bolso traseiro
do jeans uma chave de moto e coloca diante de mim.
— O que é isto? — pergunto controlando minha respiração, pois a
mensagem ainda aberta no celular me deixou tenso.
— Se você descer até o estacionamento vai ver uma Ducati
novinha, negra como a noite com laço cor-de-rosa. — Ela ri com deboche. —
É sua!
— Você só pode estar brincando.
Ela dá de ombros e sem cerimônia começa a comer seu macarrão
antes que esfrie. Quero comemorar o fato de estar me presenteando, pelo
menos por educação, mas sei que abraços e qualquer categoria de
demonstração afetuosa está fora de cogitação, até mesmo porque agora estou
pronto para fugir quanto antes deste apartamento.
Pergunto se aceita uma taça de vinho, diante da sua recusa perco a
oportunidade de sair da cozinha. O jeito é comer com ela e ignorar o quanto
puder uma nova mensagem que brilha no ecrã do celular.
Comemos em silêncio por um tempo, me sinto estranho pela
atmosfera que nos envolve, talvez a tensão de esconder tantas coisas dela, a
forma como vez ou outra ergue a cabeça e olha para meu celular e depois
para mim.
Angélica não é burra, longe disto. Ela sabe que algo grande está
acontecendo e, fica frustrada e decepcionada por mantê-la longe disto.
— Você é mais velho que Don Raton, certo? — ela pergunta e
resmungo uma afirmação. — Quais hobbies pretende adquirir agora que está
ficando velho?
— Velho, o cacete! — respondo de forma humorada. — Não tenho
hobbies, nem me interesso por isto.
— Por quê?
— Porque a mente humana pode guardar sentimentos e lembranças
preciosas tão bem guardadas, que nos faz esquecer aquilo que não queremos
perder. Ter passatempos me deixaria distraído dos meus propósitos.
Ela me encara. Seu silêncio fala mais do que palavras, voltamos a
comer, mas a vibração de várias mensagens chegando em simultâneo, quebra
o momento.
— Porra! Atende logo, estão desesperados atrás de você.
— Não se irrite, patroa.
Brinco, limpo aos meus lábios e abro a caixa de mensagens. A
situação que parecia sobre controle acaba de virar um caos. Envio uma
mensagem e aguardo a resposta.
Pelo canto dos olhos vejo que Angélica tem a atenção no seu
celular, ela esbraveja, envia uma mensagem e volta a comer rápido, como se
quisesse terminar logo seu prato.
A resposta que aguardo chega e me aterroriza.
“Ele tem amostras de DNA”
Salto da banqueta, pego a chave da moto e sorrio para ela que me
olha séria ao mesmo tempo que os dois aparelhos começam a tocar
desesperadamente.
— Patroazinha, agradeço imensamente por vir cozinhar para mim e
pelo presente, — balanço a chave — me deseje feliz aniversário e bata porta
quando sair.
— Santiago? — ela grita meu nome, mas a ouço atender uma
ligação. — Puta que pariu, como ele fez isso? Santiago?
Já estou no corredor fora do apartamento, colocando os pés no
tênis, uma camisa por sobre o ombro e o capacete que ela chegou, no
tamanho exato do meu. Ela realmente pensou em mim. Posso ouvi-la
esbravejar, abrir à porta da frente, enquanto entro no elevador. Encaramos um
ao outro, falando ao telefone.
— Achem ele! — ela grita e me olha desconfiada.
— Impeça-o! — esbravejo, ela se assusta e corre em minha direção,
contudo é tarde demais, as portas se fecham enquanto ouço gritar meu nome.
MIKAEL
A rua deserta parece zombar da minha cara, principalmente por ser
hora do rush no centro de Vitória. Ainda sinto meus nervos retesados por
discutir com Lia, mas de longe esse é o foco agora.
Estranhamente o cenário atípico da rua deserta serve como uma
comparação esdrúxula das nossas vidas.
— Aquilo que está visível aos olhos, não é real! — resmungo
batendo o pé contra o descanso da moto estacionando-a contra o meio fio.
Ao longo dos anos crescemos no mais absoluto sigilo sobre nossa
história real e tudo que a cercava.
Fomos privados de muitos conhecimentos, alvos de grandes
tragédias, segredos e vontades impostas por aqueles que apenas nos amavam.
Que em nome desse amor para nos proteger, causaram feridas que
nunca poderão ser cicatrizadas.
Ironicamente tenho me perguntado diariamente depois de tantos
segredos revelados, a que custo fomos protegidos?
O preço mais alto foi às suas próprias vidas. E por consequência às
nossas?
Vidas inteiras arruinadas, sonhos perdidos, roubados, carreiras
impostas e as verdadeiras vocações jogadas no lixo, como restos de um nada!
— Porra! Que lástima! — ironizo em voz alta.
Desço da moto, retiro meu capacete e olho para a fachada do
prédio diante de mim, estreito os olhos ao observar que o carro que me seguiu
do escritório até aqui finalmente parou na esquina, mas os vidros fumê não
me permitem ver quem permanece dentro.
Caminho até a entrada, sei que deveria dar meia volta e ir para casa
ou qualquer outro lugar, mas adiei demais essa decisão. Já é hora de dar um
basta nestes mistérios todos, principalmente agora que meus pensamentos
estão tomados por tantas lacunas a serem preenchidas.
À medida que os segredos malfadados dos nossos pais começaram
a surgir, outros mais profanos, enterrados abaixo de sete palmos também
vieram à tona.
Um avião sabotado e a morte dos nossos pais.
Uma traição que nunca existiu.
Separações.
Um casamento escondido.
O assassinato de uma criança…
A face oculta da nossa maior inimiga escancarada para todos nós,
e nem com essa vantagem conseguimos capturá-la.
Aperto as mãos até sentir os nós dos dedos ficarem dormentes,
sinto o gosto amargo na boca ao segurar a alça de couro da pasta cruzada
sobre o peito e imaginar o que tem dentro.
— Pessoas que deveriam estar mortas, não deveriam estar andando
entre nós! — resmungo comigo mesmo.
O ar quente do verão não pode ser totalmente aplacado pelo ar-
condicionado do ambiente amplo e claro da recepção, ou talvez seja meu
sangue fervendo nas veias.
Respiro profundamente tentando pôr a máscara sob o rosto de
forma a não assustar a atendente que me olha de cima a baixo com lascívia.
Descaradamente ela sorri e mordisca os lábios, não me lembro do seu nome,
mas ela me conhece de outra época e com certeza as lembranças ainda estão
vívidas em sua memória pelo rubor no rosto.
— Promotor! — a voz arrastada e o olhar jocoso combinam com a
ruiva peituda.
— Tenho um horário… — mal termino de falar e para mostrar
eficiência ela sai detrás do balcão e me pede para segui-la até a sala de espera
do consultório.
Não deixei de notar os olhares das outras atendentes, e de algumas
mulheres sentadas na recepção as quais atraio ao passar, isso é algo natural
para mim, por ter o porte grande em estatura e massa muscular, ser ruivo e
manter uma aparência sempre bem apresentável causa muitos olhares de
cobiça. Em qualquer outra ocasião, talvez retornaria a elas com um sorriso e
até mesmo um convite para um drinque em um lugar mais propício.
Entretanto, desde fevereiro do ano anterior, muitas coisas mudaram
em minha vida, entre elas a fachada fácil de bom humor que mantinha sempre
e que agora é cada vez mais escassa, e para completar, a minha relação
extraoficial com a Lia se deteriorando rapidamente, devido a inúmeros
incidentes entre nós.
— Houve uma emergência, o Doutor irá atrasar um pouco. Se não
se importar de esperar nesta sala, — ela pausa e aponta uma porta fechada —
posso fazer companhia até ser atendido?
Sorrio. — Agradeço, mas prefiro esperar aqui mesmo na recepção.
Minha recusa, não a agradou.
— É uma pena, queria muito falar sobre sua entrevista…
A mulher morde o canto do lábio e me devora por completo. A
porra da revista já chegou aqui? Olho novamente a minha volta e percebo
que não só a ruiva leu a maldita matéria, mas como todas as mulheres me
encarando na recepção.
Fecho uma carranca e a mulher desiste da sua insistência, da às
costas e sai rebolando, enquanto os meus pensamentos retornam a correr
perigosamente pelas minhas conjecturas.
Abro o celular e a foto que aparece me remete ao passado. Nada
absolutamente nada é comparado à história soterrada sobre um monte de
trapos velhos, poeira e esquecimento, jogado dentro daquele quarto oculto na
adega.
Uma história revisitada e que foi levianamente exposta para todos,
arremessada sobre a mesa dentro de uma requintada caixa de veludo.
Libertando antigas mágoas, dores, promessas, rancores passados,
uma vida que foi sonhada e planejada, porém esquecida. Que agora faz parte
de uma notinha infame em uma Biografia não autorizada!
Sempre sufoquei as minhas próprias lágrimas. Poucas foram às
vezes que deixei me verem chorar. Nunca me deixei abalar pelas lágrimas de
outro alguém, até vê-la chorar diante daquela velha lembrança.
Em alguns momentos imaginei que nada de bom realmente poderia
acontecer em minha vida, e por mais triste e dramático que pareça nada
realmente aconteceu. Até o primeiro beijo e uma paixão desenfreada me
dominar.
Naquela época Lia realmente me fez acreditar que poderia ser o seu
anjo, que juntos poderíamos voar, sonhar e ter aquilo que desejávamos nas
palmas das nossas mãos.
Um dia já fui um garoto bobo que acreditava em coisas
encantadas… O que antes era escuro, sombrio ganhou luz e cor.
Tsc… Idiota!
Quando as palavras se tornam a semântica das ações, podemos
dizer que tudo aquilo que acreditamos se perdeu no caminho.
Tudo realmente parecia perfeito! Perfeito demais eu diria, até
perceber que anjos não podem sonhar.
Tão pouco, amar. Hoje eu definitivamente não acredito em amor,
mas não posso afirmar que ele não exista, até que se prove o contrário.
O celular em minha mão vibra, mensagens de ligações começam a
surgir, rapidamente desligo o aparelho, agora que sei do que Angel é capaz,
rastrear um número ativo para ela é fichinha.
— Acorda, Mikael e se concentre na sua missão.

Se passou mais dez, vinte minutos ou meia hora não faço ideia, o
som de passos vindo em minha direção me despertou do meu transe.
Ergui os meus olhos ao ver o responsável pela clínica especializada
em DNA que o tribunal superior designou para dar-nos suporte em um caso
delicado no final de 2014. O Médico referido é Doutor Emerson Guedes.
Com uma situação financeira e familiar estável, carreira sólida e de
meia-idade, ou seja, todos os pontos positivos para ser escolhido neste caso.
Ele é um homem que aparentemente não tem motivos para ceder a qualquer
categoria de chantagem, não há motivos para vazar informações.
Tudo o que eu preciso!
— Boa tarde, Doutor…
— Nikolaievitch! — Me ergo estendendo a mão com aperto firme
ao apresentar-me a ele. — Sou Promotor público, como tem passado?
— Tudo joia, nós já nos conhecemos! Trabalhamos juntos em um
caso no final de 2014!?
Excelente! Se ele se lembra de mim, então sabe que sou linha dura
com o sigilo.
— Exatamente Doutor Emerson! O que me trouxe aqui, foi a sua
índole. Preciso dos seus serviços.
— Um homem direto, isto é, ótimo Doutor, ou melhor, Promotor!
— Como quiser, podemos falar em algum lugar mais reservado?
— Claro, por aqui.
Ele seguiu pelo corredor de onde veio em direção ao consultório no
final deste.
A sala clara, o ambiente é calmo, porém o que me traz aqui não me
permite sentir essa tranquilidade fantasiosa.
— Pronto, estamos em privado, por favor, sente-se! Estou à
disposição da justiça para ajudar no que for necessário.
— Doutor Emerson, antes de passar este caso ao senhor, tenho que
ressaltar que isto requer um sigilo absoluto e, é por este motivo, que trouxe
um documento que precisa ser assinado.
— Claro! Lembro-me da sua forma de trabalhar, diferente de
muitos outros profissionais em sua área como Promotor, a sua índole ao
conduzir o caso, deixou a todos surpresos.
— Infelizmente estas exceções acontecem. Concordamos que a
honestidade é um requisito para vida?
— Sem dúvidas, tem a minha palavra.
Ele não faz nenhum comentário sobre a documentação e após ler,
assinou e me devolveu. Confiro e guardo na pasta aberta a minha frente, onde
também tenho o meu motivo por estar aqui.
— Serei breve e direto! Preciso da análise de DNA, porém, há
circunstâncias especiais neste caso.
Sem demora, coloco sobre a mesa o envelope de evidências
propício para guardar e preservar às amostras genéticas para análises.
— Do que se trata?
Ele pergunta ao me ver abri-lo e retirar de dentro dele, um saco de
lixo que foi cuidadosamente cortado e dobrado para preservá-las.
Respiro fundo e discorro apenas o essencial para que ele tenha a
base do que precisa ser analisado.
— Em meados de fevereiro do ano passado, essa amostra de
cabelos e sangue, foram encontradas dentro de um piano, em uma cena de um
possível crime.
— Há quase um ano? Por que só agora o trouxe? Apesar de estar
bem preservado, a ação do tempo pode ser propícia ou prejudicial para uma
investigação.
— Aconteceram muitos entraves posteriormente a essa descoberta,
o que incidiu em uma investigação sobre o possível indivíduo a quem
pertença isto.
Mostro a embalagem que ele pega após colocar luvas de látex e o
abre com cuidado para examinar usando pinças.
— Meu Deus! Isto pode ser o cabelo de uma mulher, talvez pelo
tamanho?
— É o que espero descobrir com o senhor.
— E qual seria o material genético comparativo?
Eis a pergunta que, na verdade, foi o entrave que me impediu de
falar com qualquer um sobre essa descoberta, e até mesmo, de trazer antes
isto aqui.
Com fôlego retomado, ergo o meu braço sobre a mesa e o apoio
estendido olhando-o seriamente, digo pausadamente o que me faz tremer
internamente.
— O material genético é o meu. Pelo que eu saiba, esse tom de
cabelo e onde estava… — pauso — exclusivamente este tom, apenas três
pessoas além de mim o tinham, e que remotamente, quase que usando a
imaginação, posso afirmar que eles poderiam ter acesso ao local onde isso foi
encontrado.
O médico arregala os olhos e nem mesmo pisca ao me encarar
estupefato.
—Entretanto, um destes indivíduos foi declarado como morto
ainda criança, e… — respiro mais uma vez — os demais, deveriam estar
mortos a mais de seis anos.
— Sendo assim…
Me aproximo da mesa e baixo o tom de voz. — Posso estar sendo
ridículo ao descartar qualquer outro individuo, mas tenho meus motivos para
querer investigar e comparar o DNA.
—Compreendo.
— Sendo assim Doutor, o senhor terá que me dizer de quem é o
DNA neste cabelo.
O médico continua assustado, mas não diz nada apenas me informa
os procedimentos a seguir e traz toda a papelada a ser assinada.

Ajo mecanicamente desde a coleta do material até o aperto de mãos


ao sair do ambiente malditamente claro e arejado, para o bem-vindo inferno
calorento e agitado das ruas.
O carro ainda continua no mesmo lugar de antes, o celular continua
desligado, me sinto péssimo de várias formas, penso na minha casa, cama,
em Lia e na porra de uma garrafa de uísque o que me daria alívio mais
rápido?
Coloco meu capacete no automático, subo na moto estou pronto
para dar a partida, encaro o carro misterioso, estranhamente meu demônio
interior me faz pular da Harley e marchar em direção ao maldito automóvel.
Levo a mão ao capacete e o retiro, fechando os dedos por entre o vão da
viseira virando a parte abaloada para dentro ao contrário, o que serviria bem
como um porrete, caso necessário. Concluo que agora, uma troca de socos
com quem for, será um alívio imediato.
A poucos metros do carro consigo ouvir o ronco do motor
possante, o veículo todo preto dá a partida em alta velocidade em minha
direção, porém não consigo me desviar da sua reta, sinto a porra do meu
coração ameaçar sair pela boca.
Tenho a sensação de ouvir o meu nome, mas o foco é o maldito
automóvel vindo na minha direção em alta velocidade.
Apenas no último minuto, o filho da puta joga a direção para a
esquerda e desvia entrando na contramão.
Com o movimento repentino sinto meu corpo deslocar e caio
contra o asfalto, logo em seguida ouço o carro derrapar e parar abruptamente.
Tenho a sensação de que o maldito está engatando a ré… Sorrio,
pois, no mínimo perdi a porra da minha mente.
— Mikael! — A voz possante grita novamente, tenho a sensação
de que minha visão está escurecendo ou é o céu?
Algo escorre quente pela parte de trás do meu pescoço, o carro
continua roncando forte, vejo o momento que o pneu traseiro faz a rotação
contrária vindo em minha direção e não sinto nada, absolutamente nada.
Uma vez me disseram que só anjos bons sobrevivem, creio que os
maus também o façam! Isso me faz voltar a um passado que fiz questão de
apagar da minha memória, enquanto sinto o meu corpo desligar no último
momento.
CAPÍTULO 3

INDISSOLÚVEL
“Havia muitas escolhas a serem feitas, entre tantas escolhi a mais
arriscada…”

LIA

A
s portas do elevador se abrem, os sapatos de saltos alto martela contra a
cerâmica antiga do átrio. Entro, espero às portas se fecharem, só então me
viro e pressiono o botão que me levara ao estacionamento.
Não ouso sequer mirar meu reflexo no painel de aço escovado a
minha frente, ou posso simplesmente quebrar.
“Desta vez, o pai do moleque veio para assumir as coisas, ou só…
comer?”
A voz grossa se reproduz em meus ouvidos zombeteiramente. Bufo
e um riso sarcástico explode em meus lábios.
Sinto a vibração do celular na bolsa e a ignoro. A mágoa se
enfronha entre a tristeza, mas quem vence e emerge no meu peito é a raiva.
Uma fúria que não posso medir, apenas extravasar.
— Filho da mãe! — esbravejo ao ouvir o apito sonoro indicando o
andar desejado.
Abro minha bolsa e alcanço as chaves do carro, aciono o alarme, o
‘bip’ estala do outro lado do amplo espaço, o que me faz dar uma parada
abrupta.
Droga!
Me encosto contra a pilastra e respiro lentamente tentando me
refazer, encrespo os lábios contra os dentes, fecho os dedos contra o punho e
aperto firme.
— Cretino, miserável. Vai para o inferno Mikael! — ouço minha
voz explodindo em minha mente.
Meus olhos ardem, mas longe de ser por lágrimas reprimidas. Me
sinto péssima, fraca e lamentável por não poder falar, não ter como rebatê-lo,
ou estaria renunciando à escolha que fiz.
Sinto-me sufocar, e para não dar meia volta, entrar naquele
elevador e ir até onde estiver, preciso sair deste lugar. Desencosto-me da
pilastra e me forço a caminhar.
O espaço vazio e com pouca iluminação não me ajuda. Estar em
lugares desertos, escuros tem sido meu maior desafio nos últimos tempos,
mesmo que não admita, voltar a trabalhar foi a melhor forma que encontrei de
vencer o trauma sofrido após ser atacada por Verônica.
Meu trabalho sempre foi minha maior paixão, de todas as formas
possíveis, advogar sempre me ajudou e agora pensei que não seria diferente.
Contudo, parece que isto se tornou o maior motivo de embate entre nós.
Desde o primeiro dia que voltei ao trabalho, cada vez que nos
encontramos, Mikael fez questão de me espezinhar, e não vou negar, sempre
o respondi à altura. Nunca fui de baixar a cabeça para qualquer um, muito
menos para ele.
Ser mãe solteira só me fez ter a certeza de que: ser forte não é uma
escolha, é meu dever! Sendo assim me levantar a cada paulada é proteger
meu filho, isto é o que faço.
Bufo. Desanimada reconheço que mesmo que em meio as suas
grosserias, vejo a sua preocupação com o meu bem-estar, porém, hoje foi a
gota d’água no copo cheio.
“Desta vez, o pai do moleque veio para assumir as coisas, ou só…
comer?”
— Porra! Custa ser uma pessoa normal que apenas se preocupe,
sem ser um cretino? Ah! Mas, um dia Mikael… — resmungo em voz baixa.
Um turbilhão cresce dentro de mim e controlo o melhor possível.
Não sou uma mulher de dizer o que pensa com receios, não levo desaforos
para casa. Sou conhecida por ser grossa, direta e franca demais. Alguns
podem até não sentir empatia por mim de cara, mas isso não me preocupa,
desde que jamais atinjam meu filho de alguma forma.
Tudo em minha vida sempre girou em torno dos meus pais, depois
dele e agora somente por meu filho. Quando penso que por todos eles me
sacrifiquei de várias formas, o mesmo desconforto que carrego comigo na
altura do peito volta a esmurrar meu corpo. Apenas por meu Anjinho, não
vejo como sacrifício, e sim amor.
Ter consciência do que se perde ou ganha com suas escolhas pode
ser benção ou maldição, e dentro da minha perspectiva, parecemos viver uma
imprecação do que um dia sonhamos.
Bato a mão contra a bolsa transpassada por sobre meu corpo e
abaixo do couro fino sinto o volume quadrado menor que a palma da minha
mão.
Meus olhos voltam a desfocar, mas como há muito tempo não sei o
que é derramar lágrimas, deixo a queimação consumir as minhas retinas,
enquanto sinto as vibrações do maldito anel ultrapassando o material frio até
alcançar-me.
Eu preciso me livrar disto! — minha mente grita em desespero.
Por várias vezes tentei jogar fora, me livrar dele para sempre, mas
por pertencer a Sarah, desisti. Essa é a desculpa que meu cérebro sempre dá a
cada vez que o toco e a dor sobrevém de maneira voraz.
Em outros momentos pensei em arrancá-lo da bolsa e jogar contra
Mikael, essa desculpa me trava, porque sei que traria dolorosas lembranças e
o machucaria de uma forma que não suportaria.
Mesmo que ele não tenha pensado nisto, ao colocá-lo em seu dedo
naquela noite… — uma voz sarcástica zomba em meus ouvidos.
— Não vá por este caminho Lia. — Replico em voz alta. — Agora
não é o momento de deixar está história vir à tona.
Tento manter a aparência serena ao dar alguns passos em direção
ao utilitário vermelho, percebo a movimentação de dois homens vestidos com
roupas casuais me seguindo de longe.
Ainda não me acostumei em ter dois seguranças em meu encalço o
tempo todo, às vezes tenho a impressão de que não só eles me seguem e sim
um batalhão invisível.
Ignoro a situação o melhor possível, depois de várias discussões
com Angélica e Ramon me recusando a passar por isto, cedi ao imaginar que
se não fosse pelos mesmos seguranças, meu filho poderia ter sido raptado.
Sinto as mãos trêmulas ao abrir a porta do carro, jogo minha pasta
de couro e a bolsa sobre o banco do carona, me sento diante da direção,
coloco a chave na ignição sem dar partida.

No silêncio do espaço fechado aguço minha audição, o celular


vibra na bolsa, penso em ignorar, mas podendo ser algo relacionado a
Anjinho.
A chamada é de Aline, mesmo que não queira falar com alguém,
ela pode desviar-me dessa sensação angustiante, a atendo no quarto toque,
aciono o viva voz.
— Alô. — Puxo o cinto de segurança sobre o peito.
— Lia? — A voz cheia de vida invade o espaço fechado, ao fundo
o balbuciar das crianças brincando.
— Oi! Tudo bem com você e as crianças? — Tento responder com
a mesma intensidade, mas falho.
Retiro os saltos e tento alcançar as sapatilhas no espaço entre o
banco da frente e o painel.
— O que aconteceu? Algo com o seu caso? Não conseguiu o
veredito positivo, ou é algo com Anjinho?
Paro em meio a ação de calçar-me e olho para o celular sobre a
bolsa, um sorriso sincero esboça sobre meus lábios e um sentimento de
gratidão por sua preocupação.
Aline sempre foi mais próxima de mim do que as outras meninas,
nossa ligação, está além da amizade, quem diria que a nossa estrelinha seria a
minha irmã de alma que em momentos como este, me liga apenas por
intuição.
— Lia, fala comigo, por favor?
Ter alguém em que confiasse meus temores e segredos me ajudou
em boa parte da minha vida. Contudo, mesmo assim ainda há detalhes que
jamais poderei compartilhar, nem mesmo com minha amiga.
— Calma Aline! Nada disso, ganhei o caso e meu filho está bem,
graças ao bom Deus!
— Hum! Então acredito que o problema tem quase dois metros de
altura, é ruivo e, tenha se agravado ao envolver uma revista, Doutora L?
Reviro os olhos, ergo os meus cabelos, os fios lisos e escuros
pesam em meus dedos, torço os fios algumas vezes dando um nó formando
um coque frouxo.
A melancolia que as memórias trazem começam a evaporar e só a
raiva continua a arder dentro de mim.
— Se eu te contasse, Aline — pauso —, certamente me faria gastar
o meu réu-primário.
Porque além das merdas que ele tinha de falar sempre que queria,
agora as publicara também para todos lerem.
— É melhor ouvir o que você tem a dizer, — tento transpassar um
sorriso na fala.
Ela ri, mas sinto a reticente. — Ah! Lia… — ouço seus suspiros e
os gritos infantis —, não suba aí, Amanda. Menina sapeca!
Ela repreende as crianças por suas travessuras e volta a falar
comigo.
Como imaginei, era apenas a intuição que a fez ligar e algumas
dúvidas com a papelada sobre a sociedade que ela e July, mantém em uma
confecção de roupas Plus Size.
O projeto ficou parado por um longo tempo, a cerca de seis meses a
fábrica voltou a funcionar trabalhando intensamente. Finalmente a loja e a
grife serão inauguradas com um grande desfile e um show especial, outra
coisa que por enquanto, não quero pensar.
— Aline, depois te envio por e-mail o que precisa, se não tiver
nada mais de importante vou desligar. Hoje tenho convidados para o jantar.
— Hum, Gabriel?
— Convidados no plural… —, dou uma risada com a insinuação e
dou partida no carro, mas nada acontece. — Ah! Não…
Meu gemido derrotado chama a sua atenção e ela fica em silêncio
enquanto tento mais algumas vezes dar partida no meu velho carrinho. Robert
já é conhecido por ser um carro de certa idade e sempre dá problema quando
mais preciso da sua agilidade robusta.
— Vamos lá, Robert querido. Pega!
— Lia! Não acredito nisso, dessa vez nem vou rir, estou falando
sério — assim diz ela estourando na gargalhada. — Robert é um ancião e
precisa de descanso.
— Ele pode dar conta do recado, contudo tem dias em que está
mais cansado, não é mesmo querido?
Dou tapas no painel da frente acima do volante, um incentivo forte
para que ele não me abandone.
Aline ri ao telefone o que não me ajuda. Tento mais algumas vezes
fazer o carro dar partida, mas como nada funciona, desisto batendo a mão no
volante soltando alguns impropérios.
— Não adianta ficar nervosa, quantas vezes já disse para comprar
outro carro?
— Não posso fazer isto agora, estou pagando o apartamento que
comprei de você, se esqueceu?
— Lia! — Aline exclama e a sua voz se torna séria.
— Nem comece, o dia hoje era para ser de paz! — murmuro.
— Não preciso começar nada. Só não posso aceitar que uma
mulher rica como você é, se submeta a passar tantas privações por nada.
— Não é nada, Aline! — minha voz altera. — Não estou passando
privações, estou vivendo como a maioria dos brasileiros. DO MEU
SALÁRIO!
— É louvável isto e não desmereceria você em nada ao fazê-lo,
mas a situação aqui é outra. — Ela pausa. — Estupidez, seria a palavra?
Lia, você tem um gasto imenso com Anjinho todos os meses, está pagando o
apartamento e várias outras coisas…
— Aline, chega!
Já estou puta com Mikael, com meu passado e com Robert, isto é o
suficiente por um dia. A interrompo quando começa seu discurso se
recusando a deixar de lado o assunto.
— Vou desligar e chamar um mecânico.
— Não se atreva, estou falando sério, Lia. É seu direito.
Desde que nossos pais morreram e o maldito testamento foi
finalmente aberto, a condição para podermos receber nossas heranças seria:
manter-nos como advogados trabalhando no escritório da família, completar
trinta e cinco anos, casamento ou maternidade.
— Você está me ouvindo? — o grito reverbera dentro de Robert
estalando em meus ouvidos.
Não respondi, e ela continuou a sua ladainha. Com raiva soquei o
volante novamente disparando a buzina, nem assim, ela se calou, pois está
acostumada às minhas explosões.
— Inferno!
— Eu não quero essa porra de herança, Aline! — Exclamo com
raiva.
Ela calou-se por um segundo antes de voltar a martelar minha
mente com os sacrifícios e anseios que meu pai, o senhor Joaquim tinha ao
criar o fundo pensando em meu bem-estar.
Fechei meus olhos que parecem estar crivados de areia, pois a
ardência causa dor.
Mesmo que não queira voltar ao meu passado como um ‘loop’
eterno, era algo impossível, visto que tudo que me rodeia acaba no mesmo
ponto obscuro onde rompemos.
— Aline, é sério. — Suspiro. — Hoje eu não quero mesmo falar
sobre isso. Você sabe que eu não aceito esse dinheiro, sabe pelo que o meu
pai passou, tem noção de boa parte das merdas que passei e todo inferno que
minha vida é… EU. NÃO.QUERO!
— EU. ATÉ. ENTENDO, e por um tempo fiz o mesmo que você
deixando tudo com Angel, pois não suportava imaginar que o dinheiro que
me sustentava vinha através das minhas filhas que abandonei… — Aline
pausa — todavia, ignorar o trabalho e sacrifício do tio Joaquim, que tanto te
amou, por ser orgulhosa, não vai fazê-lo voltar a vida!
— Que droga, Aline!
— O que foi? Toquei em feridas das quais você não fala? Lia
acabou… Você chegou em um ponto, minha amiga, sem volta. Até aqui a sua
história com Mikael ficou enterrada em um passado profundo, sombrio cheio
de mágoas, dor, arrependimentos. Quem sabe seja até o foco dos nossos mais
profundos infortúnios, mas entenda de uma vez por todas: uma vez que a
porta é aberta, os monstros que tentamos ocultar não podem mais se
esconder. O fato de você se sacrificar dessa forma, não vai espezinhar o que
te atormenta.
— Eu, preciso desligar e chamar alguém.
Minha voz naturalmente rouca está dois tons abaixo e quase não é
audível.
— Anderson está no Fórum e pode te dar uma carona. — Aline
por fim, deixa de lado o seu ponto de vista e tenta de alguma forma me
ajudar.
Agradeço o oferecimento, mas recuso, pois, seria outra discussão e
se continuarmos neste embalo, certamente meu réu-primário será pouco para
dar conta de tudo que pode explodir.
Aline desligou contrariada. Curvo a cabeça contra o volante com a
respiração ofegantemente, tento acalmar meus tremores e a raiva
borbulhando. Sem erguer meu olhar, tento dar partida em Robert mais uma
vez sem sucesso.
— Quer saber? Foda-se! — grito.
Deixo extravasar literalmente minha raiva, socando o maldito
volante. Arranco a revista desgraçada de dentro do porta-luvas, amasso em
minhas mãos fazendo um canudo com ela, e destruo as páginas arrebentando
a porra do painel com todas as minhas forças.
Com a voz travada de ódio xingo aquele maldito Anjo Mau que
atormenta meu juízo. Porque o pior de tudo, não é a merda da afronta que ele
sempre tem pronta a jogar contra mim, mas sim a falta que sinto dele, mesmo
nos piores momentos, que quero vê-lo.
Sempre haverá quem diga ser fácil deixar a dor de lado e seguir,
quem nesta vida quer sofrer? De fato, é! Desde a tenra idade nos foi ensinado
aproveitarmos o melhor das nossas experiências e desconsiderar o pior, mas o
que acontece quando as lembranças mais bonitas do nosso passado acabam
causando danos irreversíveis ao nosso futuro?
Como deixo ir, o que está gravado sob a pele? Como avançar se o
passado é confortável, familiar, mesmo que seja uma prisão da qual tento me
libertar.
Se foram dez minutos, meia hora ou o resto dia não sei, o tempo
que descarreguei minha raiva no pobre Robert passou em um piscar de olhos.
A respiração ofegante começou a serenar, levanto a cabeça com
olhos fechados, e recosto contra o banco, não quero olhar para o espelho
retrovisor e ver minha fisionomia. Passo a mão pelo coque meio desfeito,
solto os fios ainda presos e deixo cair por sobre os seios até tocar a cintura.
Dois toques no vidro me fazem saltar em alerta. Só o que me
faltava era começarem a dizer no meio jurídico que a Doutora dos Anjos,
tinha surtos psicóticos no estacionamento.
Respiro fundo e olho através do vidro.
— Ah! Meu Deus! — resmungo e tento ao máximo manter alguma
postura.
Nada é tão ruim que não possa piorar…
Angélica designou o chefe de segurança para acompanhar-me, por
qual motivo não faço ideia. Ele é quem está diante da porta do carro. Dionísio
faz um sinal para que desça o vidro, mas ignoro.
Toc… Toc…
Ele bate outra vez e faz um sinal de manivela com a mão erguida,
— outra das muitas piadas sobre Robert.
Não tenho a menor intenção de fazê-lo, mas ao lembrar-me que
hoje não é a sua escala, me vem a curiosidade, por qual motivo estaria aqui?
Sua expressão é neutra como a de um bom guarda-costas que não
vê, não fala e nem ouve nada que não convém, mas tenho certeza de que se
ele está aqui, é porque os outros dois o chamaram.
— O que faz aqui?
Corro os meus olhos pela musculatura imponente do negro de um
metro e oitenta a minha frente. Corpo sarado em todos os lugares imagináveis
através do terno preto de corte impecável, que enquadra os ombros largos e
as coxas fortes, os lábios carnudos repuxados em um sorriso sacana, recebem
o charme da barba estilizada, pausa para viajar nos impressionantes olhos
verdes. Enquanto tenho um Anjo Mau fodendo com meu dia, um Deus do
Olimpo faz as honras me protegendo.
— Então? — repito.
Ele leva a mão sobre a cabeça raspada, desce pela barba e morde o
lábio inferior antes de se inclinar sobre a janela do carro.
— Eu tinha um compromisso aqui perto e resolvi ver se estava tudo
em ordem.
— Hum!?— encaro o volante.
— Robert está com problemas? — ele não segura a risadinha sob o
tom da pergunta. — Posso te dar uma carona.
— Ele tem o de sempre, não fique preocupado, vou ligar para um
mecânico. Agradeço a gentileza, mas não será preciso.
— Vamos lá, quero levá-la para casa.
— Obrigada, mas não quero dar trabalho.
— Será um prazer.
— Dionísio, aproveita a sua folga. Tchau! — movo os dedos da
mão querendo me livrar.
— Só um minuto.
Ele pede e recua, olho mais uma vez o espécime surreal a minha
frente, por que não me apaixono perdidamente por um desses? Gentil,
sorridente, sempre de bom-humor, o famoso “YES-MAN” aquele homem
que sempre diz sim, mesmo que não queira, ele sempre vai fazer o possível
para agradar.
Muito provavelmente, seja uma ilusão criada pela síndrome de
Rachel Marrom e Frank Farmer ao som de Whitney Houston no filme — O
Guarda Costas — contudo, esse homem é um gentleman quase surreal. O
que só me faz correr dele como diabo da cruz, já tenho muitos problemas
para adicionar mais um à lista.
Dionísio ignora meu chamado. Ele retira da parte interna da gola
do paletó um ponto transparente conectado por um fio quase invisível e
acopla ao seu ouvido.
Com o celular em mãos ele digita rapidamente e envia uma
mensagem que deduzo ser para o suporte, pois logo em seguida o ouço
confirmar algo com um código em meia voz aproximando a gola do terno à
boca.
Só então percebo o microfone escondido pela lapela. Em algum
lugar na garagem ouvimos um bipe e o som de partida de outro veículo. Ele
sorri coloca a mão sobre a maçaneta do carro abrindo a porta com ar
vitorioso.
— Senhorita dos Anjos, minha folga foi revogada e a partir deste
momento, serei o seu único guarda-costas. Até a segunda ordem, não a
deixarei sozinha.
Ri sentindo-me sem graça, e um tanto quanto desconfortável. Isto
não vai prestar! — a voz na minha mente grita.
Sem ter como recusar recolho os meus pertences e o sigo, o seu
carro está estacionado duas vagas depois da minha, o que me faz concluir: ele
realmente assistiu minha pequena destemperança.
Aperto nas mãos o resto da revista em frangalhos, entro na parte
traseira do SUV em silêncio. Dionísio liga para o tal mecânico e faz os ajustes
para que Robert, seja bem cuidado.
— Pronto Doutora, — ele ri me encarando pelo espelho —,
enquanto alguém cuida do seu carro, eu cuido da senhorita.
Fixo o meu olhar com o sobrecenho erguido, no espelho retrovisor
por onde ele devolve a ação, faço um sinal de negação com a cabeça, ele dá
de ombros e mira a revista que ainda retorço em minhas mãos, escondendo o
riso ao desviar seu olhar.

O veículo deixa a segurança do estacionamento e gradualmente


ganha velocidade em meio ao tráfego pesado das ruas.
— Parece que vai chover. — O comentário de Dionísio me faz
desviar o olhar da revista e buscar o céu acinzentado sobre nós através do
vidro escuro.
Minha garganta se fecha. Um sorriso sarcástico surgi no canto dos
lábios.
— Seria bom que caísse mesmo um pouco de chuva antes de
chegarmos em casa.
— Por quê?
— Porque eu gostaria de caminhar debaixo de um bom
aguaceiro… — sei que meu comentário pode parecer-lhe estranho, por este
motivo solto a revista sobre as pernas, alcanço o meu celular e os fones
colocando-os.
Mergulhando na melodia de Slip — Elliot Moss, consumindo os
sentimentos que não desejo ter.
O automóvel para abruptamente no acostamento, encaro Dionísio
pelo retrovisor. O riso enigmático que ele sempre dá ao se dirigir a mim, está
lá mais uma vez. Não retiro os fones, mas abaixo o volume para poder ouvi-
lo.
— Chorar em meio a chuva, faz bem. No entanto, Doutora, comigo
isto não irá acontecer. Tudo bem?
Bufo. Aumento o volume e volto a encarar o lado de fora através do
vidro blindado. Sei que ele resmungou algo antes de dar a partida novamente,
mas não dou atenção. Seria muito fácil permitir-me ir por este caminho,
porém, falar, pensar e agir são três paradigmas completamente diferentes.
Fecho meus olhos, embalada pela canção.

A chuva que desejei, não passou de uma breve nuvem. Dionísio


deixou-me diante do prédio em que moro, disse algo, mas ficou perdido em
meio aos meus pensamentos, de qualquer forma, sei que ele estará por perto.
As janelas do terceiro andar estão fechadas, e pelas horas, Nina
deveria estar com Anjinho no haras, o que seria ótimo, pois ele com sua
intuição apuradíssima ficaria muito agitado se me visse no estado em que
estou.
Entrei e fui direto ao meu quarto, arranquei as roupas, sapatos e
joguei a pasta com a bolsa sobre o sofá de canto. Entrei sobre o jato d’água
fria sentindo meu corpo pular em protesto.
O celular sobre a bancada fez um sinal de mensagem, mas não dei
importância. Consumida por meu estado de espírito, me permiti ficar debaixo
d’água por um tempo.
De banho tomado, enrolei uma toalha sobre os cabelos e outra
maior em meu corpo, voltei ao quarto e me joguei sobre a minha cama;
novamente ouvi o ‘bip’ do celular e preferi me fingir de morta por mais
alguns minutos.
Permiti meu cérebro caçar memórias felizes para retornar ao bom
ânimo, pois em algumas horas terei de estar sorrindo enquanto sirvo um
jantar para meus queridos amigos. Pensando nisto a recordação desta manhã
veio em meu auxílio.

As horas no relógio marcavam o início de um novo dia, mas o meu


corpo queria permanecer na cama de preferência em estado catatônico, porém
meu despertador particular não me permitiria.
Sorri ao sentir um afago inocente na minha bochecha, a pontinha
do nariz roçando a lateral do meu rosto desceu pelo pescoço até a parte de
trás da minha orelha, e deu aquela cafungada gostosa seguida de um gemido
de apreciação.
— Cheirosa mamãe?! — a voz infantil em sussurros me aqueceu
na sua forma única de fazer uma afirmação, ao mesmo tempo, parecendo
uma pergunta.
Virando-me segurei o corpinho leve contra meus braços e nos rolei
por sobre o colchão macio. A risada que meu pequeno refém emitiu,
balançou o meu coração.
Quem tivesse o privilégio de ver aquela cena, e soubesse tudo que
fiz para que pudesse viver diariamente ao lado do ser mais puro, iluminado e
amado do mundo, jamais me julgaria. Em verdade, essa é a minha esperança,
para quando e se um dia, tiver de revelar sua existência e sobre o que vivi ao
longo dos anos que estive longe de tudo.
Contemplei Anjinho que mantinha os seus olhos escondidos por
longos cílios curvados de cor única olhando para um ponto a baixo. A
boquinha carnuda semiaberta mostrando os dentinhos miúdos e as bochechas
coradas pelos risos.
— Meu bebê…— sussurrei.
Sussurrei em seu ouvido, pois com cinco aninhos ele já se acha um
menino crescido e não quer mais ser o meu bebê. Mesmo que para muitos
não seja tão nenê, para mim, a sua mãe, ele sempre será!
O sorriso mais uma vez cruzou meu rosto, pois o vendo daquela
forma jamais poderiam imaginar o quão profundo e isolado pode ser o seu
mundo particular.
Acariciei os cabelos lisos que caíram por sobre sua testa sentido a
maciez dos fios escorrerem entre os meus dedos. Ele se distraiu fazendo o
mesmo em um gesto repetitivo como se me tocar dessa forma o confortasse,
fosse o ponto inicial do seu dia.
— Anjinho? — o chamei e sabia que teria de fazer mais algumas
vezes até que ele me notasse.
Depois de conseguir sua atenção, vem a parte complicada,
convencê-lo a ir para a escola, e isto se resume a ver minhas tatuagens,
deslizar os dedinhos sobre as notas musicais gravadas em minha coxa, depois
ouvir sua música favorita no meu celular. Só então estamos prontos para
tomar banho, o café da manhã e sair.
Estes desde sempre, são os primeiros minutos das nossas manhãs.
O meu maior prazer desde que me tornei mãe é acordar com um beijinho de
esquimó do meu Anjo bom.

O celular voltou a disparar mensagens interrompendo meu


momento coruja e desta vez várias em sequência. Dei um salto de sobre a
cama e corri até a bancada do banheiro onde o deixei. Ao mesmo tempo, ouvi
a porta da sala ser aberta e passos apressados correndo pelo corredor no andar
de baixo.
Instantaneamente um alívio correu por meu corpo já que Anjinho e
Nina estão chegando em casa, mas assim que destravei a tela percebi que as
mensagens vinham de vários amigos e a minha mãe, mas a que me chamou
atenção era uma que havia chegado minutos após ter entrado no elevador
nesta tarde.
Cogitei em ignorar, mas como as demais continuam subindo sem
parar, e o toque de chamada com o rosto de Aline preencheu minha tela,
resolvi abri-la enquanto atendia a ligação.
— Lia…
A mensagem era curta, como se tivesse sido deixada pela metade,
no entanto, não resolveria o problema e nem tão pouco era um pedido de
desculpas que pudesse aceitar.

@Promotor_nikolaievitch: não queria que fosse assim. Sinto a sua


falta. Às vezes falamos mais do que devemos, mesmo que seja apenas para
evidenciar uma verdade. Sinto muito Lia.

Tudo acontece muito rápido. Leio a mensagem e não tenho tempo


de absorvê-la, pois Aline tem a voz chorosa do outro lado da linha. Anjinho
para abruptamente na porta ofegante com a mãozinha segurando a garganta,
logo atrás vem Nina da mesma forma e então compreendo o que Aline diz.
— Lia, tente se controlar, mas o Mika, ele… ele…
Não a escuto mais, pois ao primeiro som agudo de um grito
infantil, deixo o celular cair das minhas mãos e corro para porta.
Uma frase que minha mãe vive dizendo irrompe a minha mente:
por mais que usemos tesouras afiadas para quebrar os elos do destino,
estamos ligados por um fio invisível e indissolúvel.
CAPÍTULO 4

INCONFESSÁVEL
“Dizem que a vida é para quem sabe viver, mas ninguém nasce pronto. A

vida é para quem é corajoso o suficiente para se arriscar e humilde o


bastante para aprender.”
Clarice Lispector

LIA

O
uço minha própria voz, ecoando em minha mente entre o choro e desespero
que meu filho sente. Agarrada ao seu corpinho tento o consolar de alguma
forma, enquanto grossas lágrimas escorrem por nossos rostos. Porque não
posso derramar lágrimas por nada e ninguém, além do meu filho.
— Anjinho, filho fica calmo…
— Nina o que aconteceu? — pergunto e não escuto sua resposta.
Olhando em sua direção vejo minha amiga com olhos fixos em
mim, sua pele negra tem um aspecto esmaecido, os lábios estão entreabertos
em choque, assim como os olhos cor de chocolate, ela amassa com a mão os
cachos acobreados contra a cabeça.
— Nina?
O meu grito a tira do transe, ela me dá as costas e responde algo
para Aline, que ainda está em chamada.
— MAH… MAH…MAH!
Anjinho se joga sobre mim com força e enterra seu rostinho no
meu pescoço cruzando os braços em volta da minha garganta, sinto me
sufocar com seus dedinhos apertando-me a pele da nuca. A toalha em meus
cabelos desliza e cobre-nos com os fios molhados. Me sento no chão e tento
embalar seu corpinho com balanço suave. Nem sempre consigo acalmá-lo
com isto, mas não posso deixar de tentar.
Nina vem em minha direção e agora com seu próprio celular nas
mãos, sua expressão é de pesar, pois sabemos o quanto Anjinho sofre quando
algo interfere em sua rotina. Isto pode causar sensações desconfortantes e que
o faz ter estas crises.
Com o tratamento elas passaram a ser mais espaçadas, mas ainda
assim quando acontece parecem arrancar um pedaço da minha alma, imagino
que para ele seja mil vezes pior.
Desde que fui atacada por Verônica, meu filho parece ter
desenvolvido um sentido extrassensorial para diversas situações. Ele está
mais sensível à algumas coisas, tem pesadelos, acorda chorando de
madrugada e em algumas ocasiões ele precisa dormir na minha cama
cheirando meu cabelo, como se eu pudesse sumir, é algo tão intenso que me
faltam palavras para explicar.
— Nina, por favor, me diz o que aconteceu com ele? — pergunto
na esperança de poder contornar sua crise.
Anjinho chora e seus gritos agudos machucam sua garganta e meus
ouvidos.
— Não sei, — ela responde acariciando a cabecinha dele —
estávamos prontos para fazer a aula de equitação, ele estava feliz, apesar de
hoje não termos visto a Fadinha.
Assim que a ouço me sinto péssima e com o que vou dizer.
— Eu disse para não o deixar muito próximo a ela, não quero que
ele tenha crises, assim quando não puder vê-la.
Repreendo Nina entredentes, mesmo sabendo que o meu pedido é
ridículo. Entretanto, desde que Anjinho conheceu essa moça que todos tratam
por Fadinha, em suas aulas de equitação, sua ansiedade para ir ao Haras se
tornou visível, em algumas vezes até preocupante.
A primeira vez que eles não se encontraram, ele teve febre e
chorou a noite toda chamando por ela.
— Tento ao máximo! — Nina responde entredentes, ela se afasta
para falar ao celular, sua expressão é pior que antes, bufa e morde os lábios
exasperada. — Que inferno!
— Nina!
Ela muda sua posição, abaixa a cabeça e fala bruscamente com
alguém, enquanto tento controlar Anjinho.
— Eles estão chegando. — Ela joga o celular no chão e tenta
acariciar os cabelos suados do meu filho. — Mudei os horários da fisioterapia
como combinamos, mas adivinha? Ela também mudou os seus horários,
porque gosta de estar perto dele.
A gravidade em sua voz faz a minha raiva ceder lugar a uma dor
em meu peito. Não poderia tirar do meu filho a única amiguinha que ele fez e
que o mantém tão feliz. Nem mesmo as crianças da escolinha o animam tanto
quanto a tal Fadinha.
— Entendo, mas é por ela, que ele está assim?
— Acredito que não, do nada ele disse querer o tal… — ela
gesticula com os lábios às três letrinhas que aprendemos a não mencionar em
casa. “MAH” — e começou a ofegar.
— Anjinho, você vai ver a sua Fadinha em outro dia, meu amor.
Fica calmo… — peço com carinho beijando o alto da sua cabecinha.
Seu corpinho estremece com força, antes de amolecer de forma que
me aterroriza.
— Filho? — me assusto, a única vez que de fato perdeu os sentidos
foi como morrer em vida de tão apavorante que foi. — Anjinho!
Ele parece se afogar e com esforço estremece gritando, chamando.
— MAH. MAH. MAH!
Suas mãozinhas batem em meu peito sinto o golpe dolorido com
sua força infantil, mesmo que não vá causar grandes hematomas, ainda sim,
certamente terei manchas roxas amanhã.
Anjinho grita com força e se choca contra meu corpo se debatendo.
Quando ele começou a pedir por MAH pensava ser uma nova forma de
expressar um chamado como mamãe, mas desconfio que não seja isto, já essa
junção de letras está invariavelmente ligada a momentos como este.
Ele se afasta, leva as mãozinhas em sua cabeça e começa a esfregar
com força.
— Está doendo meu amor? Diz para mamãe, onde doí?
— Aquiii… Aquiii… — de olhinhos fechados ele bate com força
contra a sua nuca e o alto da cabeça. — Dói, aaah mamãe… aaahhh!
Os seus gritos torturados me estremecem com força e sacode seu
corpinho mais uma vez. Me ergo do chão com o meu filho nos braços indo
em direção a minha cama, o sento com cuidado e tento apalpá-lo com
delicadeza em busca de ferimentos.
— Ele não caiu Lia! Anjinho nem subiu no cavalo, estávamos
passeando pelos estábulos, senti que ele estava agitado, chateado, e de
repente começou a pedir para vir embora, — Nina senta-se sobre seus joelhos
a nossa frente, — assim que entramos no carro ele começou a apertar a
garganta em desespero, o ofego piorou, tentei distraí-lo, mas…
Nina trava sua boca e morde os lábios, ela tem os olhos marejados
e os meus ardem com lágrimas, uma entendendo o sentimento da outra.
— Faz tão poucos dias que ele finalmente se acalmou. — Sua voz é
um sussurro que se equipara ao meu ao abraçá-lo.
No conforto dos meus braços tento entender o que tanto dói no meu
filho, me desespera perceber que talvez o progresso que ele fez em seu
tratamento esteja desmoronando por minha incapacidade de reconhecer suas
necessidades.
Estou a ponto de desistir e me erguer com ele para irmos a um
hospital. Ouvimos a campainha da porta e logo passos pesados pelo corredor,
acompanhados da voz do Giovane, mas quem entra no quarto é Gabriel, ele
se joga de joelhos no chão seguido por Estevão.
— Hei! Meu campeão, o que foi? O tio Gabe está aqui.
Estevão e Gio, cercam a cama do outro lado querendo falar com
ele, mas Anjinho continua dizendo que está com dor.
O celular vibra com mais mensagens em meio ao pandemônio, não
quero ver nada, pego o aparelho para jogá-lo no chão e algo me ocorre.
Com as mãos trêmulas deslizo os dedos pela tela rastreando o clipe
de voz atrás da música que poderia acalmar meu filho. Mesmo duvidando que
entre essa dor, o terror no rostinho e de todos, aquilo vá fazer alguma
diferença.
A toalha em volta do meu corpo desata e começa escorregar sem
me importar a mínima para o decoro, mas rapidamente alguém me cobre com
uma jaqueta pesada.
— Achei! — exclamo enquanto aperto o play.
Logo as primeiras notas dedilhadas no violão tentam se infiltrar
entre os gritos do meu filho, a intensidade do seu choro diminuiu à medida
que a voz grave e rouca se enfronha entre o solo, ela começa em um tom
baixo ganhando força e a cada pausa perfeitamente orquestrada para se
ganhar fôlego, arrepios percorrem-me do alto da cabeça até a planta dos pés.
Anjinho respira com dificuldade, os lábios sempre rosadinhos têm
várias marquinhas feitas pelos dentes, uma delas formou uma bolhinha de
sangue, tremulo pede o meu colo, deita a cabeça nas minhas coxas ainda
soluçando dolorosamente, segura meu celular e coloca contra sua orelhinha
pequena e delicada.
O seu corpinho balança conforme a letra e a melodia vão se
desenvolvendo, mesmo que a música termine, recomeçará em loop e aos
poucos o seu rostinho vai perdendo o tom inflamado do vermelhão para
ganhar o tom rosado até se tornar claro. Os seus olhinhos espremidos e
injetados de dor se fecham, ele soluça algumas vezes com força como se
estivesse se afogando.
Hum-hum-aam… hum-hum aam… hum-hum aam…
Consigo ouvir um sussurro saindo entres os seus lábios
machucados, para minha miséria, dor e alívio.
— MAH… MAH… MAH…
— Oh! — perco minhas forças e dobro o meu corpo sobre meu
filho me rendendo a um choro que não queria deixar derramar, além do que já
fiz. —Meu Deus! Finalmente entendo, o que exatamente é MAH.
Fiquei na mesma posição desde o momento que trouxe Anjinho
para seu quarto, com a ajuda de Nina o deitei sobre a caminha dele. Acendi
seu abajur refletindo na parede milhares de notas musicais vazadas na cúpula.
Vestimos o seu pijama sem que ele se desgrudasse do celular, até ligamos o
aparelho de som portátil ao lado da sua cabeceira com um CD no caso de a
bateria acabar, nem assim quando ela finalmente morreu, ele largou o
aparelho.
Nina apareceu pelo vão da porta e fez sinal para que deixasse o
quarto, mas não poderia fazer isso, ainda não. Eu precisava passar mais um
tempo com ele.
Ela retirou o celular das mãozinhas e conectou a um carregador
deixando-o ao meu lado.
Ouvi seus passos pela casa certamente organizando algumas coisas
fora do lugar enquanto me mantive no lugar, senti minhas pernas formigarem,
mesmo assim não me movi.
A jaqueta que antes me impediu de ficar nua diante dos meus
amigos, está no chão junto à toalha, de alguma forma, Nina conseguiu me
fazer vestir um jeans e camiseta.
Giovane e os primos após verem que Anjinho tinha se acalmado,
saíram do meu quarto acompanhado dela sem dizer nada, o que eles
discutiram acaloradamente na sala, nunca ficarei sabendo.
De qualquer forma não me interessa. A minha única motivação,
razão e preocupação, está há alguns passos de mim, dormindo
tranquilamente, mesmo que entre um momento e outro ainda possa ouvir seus
resmungos e o resfolegar sentido de quem chorou tão intensamente.
— Lia, preciso falar sobre algo importante. — Nina sussurra
encostada no batente da porta.
— Agora não, Nina. — Respondo no mesmo tom.
Ela se aproxima e deixa seu corpo deslizar ao lado do meu, não
quero ouvir o que tem a falar, mas ela insiste.
— Eu sinceramente não gostaria de falar sobre isto agora, até
porque você está muito nervosa ainda, mas se não fizer certamente amanhã
arrancará minha cabeça.
Nina é uma pessoa expansiva e que geralmente fala muito, mas não
dessa forma, ser explicativa demais ou arrumar pretextos para fazer o que dá
vontade não faz parte da sua natureza. Movida por uma curiosidade incomum
desvio meus olhos de Anjinho por alguns segundo e indico com a cabeça que
ela comece a falar me jogando do precipício com poucas palavras.

Desci as escadas de mármore ainda meio atordoada, sem esperar os


spots de luz automática se acenderem. Assim que coloquei meus pés na
garagem uma sombra imensa atravessou o meu caminho tentando me impedir
de seguir adiante.
— Pretende sair, Doutora?
O susto poderia ter me desestabilizado e lançado longe, mas com a
minha mente flamejando, poderia facilmente ter quebrado o nariz dele.
— Dionísio!
— Em pessoa, o seu guarda-costas.
— Estou de saída e prefiro ir sozinha. — Minha voz é baixa e
firme.
Ele me olha de cima a baixo e confere as horas em seu relógio de
pulso. Pela expressão em seu rosto está pronto a argumentar. Reparo
vagamente que as roupas que está vestindo, são diferentes. A blusa de linho
de algodão fino na cor branca, está solta por cima dos jeans desbotados e
tênis casuais e não dão um ar de guarda-costas em serviço.
— Você não estava de serviço! — não é uma pergunta, mas como
já passamos por isto mais cedo, prefiro cortar logo suas investidas.
Definitivamente este não é momento para as cantadas do Yes-man.
— Estou de serviço, porém resolvi vestir algo mais confortável
para pernoitar aqui.
Ele diz e aponta para a janela do terceiro andar que está às escuras.
— Não é necessário.
— Julgo que sim, ouvi o choro do seu filho, e me disponho a
ajudar se preciso for, em qualquer momento.
Um suspiro abandona os meus lábios ao imaginar o meu filho
dormindo, ainda embalado pela música que o tirou de um momento terrível.
— Agradeço, mas está tudo bem.
— Insisto que me permita fazer algo.
Seguro o ar por alguns segundos e solto lentamente. — Dionísio,
entendo de verdade suas obrigações e sua boa vontade em oferecer ajuda.
Contudo, agora, — sou enérgica —, prefiro que me obedeça. Mesmo que
pareça infantil ou petulante da minha parte, não me leve a mal, mas não quero
uma babá.
Dou alguns passos para fora da proteção da pequena varanda,
atravesso o jardim que cerca a entrada do prédio, um trovão estronda no céu
me assustando, mas sigo reto.
O vento frio vindo do mar logo à frente me faz encolher, fecho
melhor a minha jaqueta jeans, abro o portão e saio.
O jogo de paralelepípedos coloridos da calçada reflete a luz dos
potes, involuntariamente outros suspiros saem pelos meus lábios, encho meu
pulmão com ar impregnado pelo cheiro da maresia, e isto me traz sensação de
nostalgia.
Ouço o som de um motor roncando às minhas costas, próximo à
calçada o SUV desliza lentamente até parar a alguns metros adiante, caminho
a esmo, passando pelo veículo e o motorista parado na porta do lado de fora
da porta do carona.
Meu medo ainda reside e esmurra com força meu peito, quando
Nina me contou sobre o motivo da ligação de Aline, os primeiros minutos
não fizeram sentido algum, porque minha mente e todos meus sentimentos
estavam focados em Anjinho.
Só depois que aceitei me levantar, e tomar uma caneca de chá que
ela forçou em minhas mãos, as mensagens que não li voltaram a minha
mente. Peguei o aparelho e por fim, li todas me alarmando e em especial a
única que ainda beirava à borda da minha consciência.
“não queria que fosse assim. Sinto a sua falta…”
Uma frase idiota que em momento algum o redimiria da sua
estupidez e nem faz, mas neste instante esfacela parte daquilo que não quero
dar voz.
A realidade do que houve me bateu com uma força gigantesca e
uma necessidade de sair de casa gritou dentro de mim.
Dei mais alguns passos e Dionísio parou a minha frente.
— Doutora, está tarde e prestes a cair um temporal.
— Sou bem grandinha e chuva não mata ninguém, eu já disse que
gosto.
— Da mesma forma, a Doutora sabe que comigo, não vai caminhar
na chuva.
— Sai da minha frente!
Sendo grossa e sem paciência contorno o meu guarda-costas, meto
as mãos no bolso da jaqueta e continuo a passos acelerados seguindo pela
avenida em sentido contrário ao meu apartamento. Se ele está me seguindo
ou não, não faz a menor diferença.
Sei que em algum momento no futuro pedirei desculpas pela
estupidez, mas por hora preciso só fugir e não enlouquecer com as
lembranças traumáticas de alguns meses em que a minha própria vida e de
Anjinho estiveram em risco, nem as consequências do que aconteceu hoje.
Minha mente desliza em várias direções, aperto as mãos em torno
do celular dentro do meu bolso, sinto meus olhos arderem, seguro firme para
não chorar e me forço a pensar apenas em meu pequeno Anjinho e em como
tudo isto começou…

A forma que descobri minha gravidez, não poderia ser a mais


inusitada possível. — Defendendo um dos meus maiores casos até hoje.
Naquela manhã eu me senti poderosa como nunca, orgulhosa de atuar naquilo
que mais amava. Porque o meu objetivo, sempre foi ser reconhecida como
uma advogada competente.
Aquele dia era para ser a minha ascensão dentro e fora dos
tribunais, e tudo o que fiz foi colocar meu café da manhã, composto por
bolachas de água e sal para fora durante minhas alegações finais diante
daquele Juiz pomposo.
Na altura eu já estava à mingua da minha saúde precária, focada
apenas no trabalho para manter a sanidade. Os problemas que me envolviam
iam além de um capricho. Estão além, muito além de um simples desejo de
permanecer na incógnita.
— Você já chegou causando Anjinho… — sussurro para a noite.
Encolhendo-me com o vento, novos relâmpagos e trovões cortam
os céus.
Os acontecimentos a seguir foram traumáticos e nada do que se
espera para uma mulher que está gestando. Por sorte já morava com Gabriel,
Nina e Estevão, eles foram o meu porto seguro, porque até os oito meses de
gestação não tive coragem de contar à minha mãe que ela, seria vovó.
Optei por passar todas as dificuldades de uma gravidez sozinha,
por conveniência, medo, egoísmo, seja lá que porra denominassem, parecia
ser o ideal, ainda mais diante do tumulto que o genitor havia feito sem nem
mesmo ter consciência da vida que estava se formando e lutando para viver
dentro de mim.
Mantive uma esperança estranha de que algum milagre aconteceria
e todos os meus anseios e medos passariam, — medos que me perseguiam
dia e noite, mas, evidentemente nada passou. Pelo contrário, a cada dia se
tornava ainda mais difícil, foi notório que minhas decisões eram as melhores
para o momento. Estava feliz por me tornar mãe, infeliz por não poder ser
como sonhei.
Eu teria o meu filho e mesmo que fosse difícil, quis mantê-lo só
para mim pelo máximo de tempo que pudesse, pois, o futuro seria incerto a
partir do momento que decidi tê-lo.
A histeria de Dona Maria não foi leve, mas passou rapidamente
quando conheceu o netinho, com ele ao menos ela era só amores, já comigo
pedra e paus não fariam estragos melhores.
Quando Anjinho completou um aninho, algumas coisas começaram
a me deixar insegura. A forma como ele reagia, ou melhor, a falta de reação.
Meu filho não sorria. Não expressava reações, sempre preso em seu
mundinho, mas estava convicta que “era o jeitinho dele”.
Mesmo com tantos sinais, ainda assim o medo de confirmar algo
que poderia ruir de vez o pequeno mundo idílico que estava a duras penas
construindo, me aterrorizava.
Neste período, Nina já estava estagiando em uma escolinha, eu
trabalhava apenas meio-período equilibrando com ela e os meninos a
responsabilidade de cuidar do bebê, e todos nós ao final do dia sempre
tínhamos as mesmas impressões. Anjinho estava em seu mundinho isolado.
Com um ano e quatro meses, as minhas discussões com a sua
pediatra beiravam a grosseria, de início ela me dizia ser o momento de
desenvolvimento dele, e que com o tempo, Anjinho começaria a interagir.
Como mãe, debatia que aquilo não estava certo. Diante de uma
profissional diplomada na área, com tantas recomendações, o que eu como
advogada poderia saber? Então munida desse achismo, parei de questionar.
No entanto, minha mãe sempre diz que quando uma mulher
engravida, a primeira coisa que muda é o coração, e como dizem: coração de
mãe não se engana.
Com um ano e oito meses, Anjinho não respondia aos chamados, e
só gostava de brincar sozinho, com gestos repetitivos e sempre com os
mesmos objetos como se eles lhe dessem segurança de alguma forma.
Era estranho, embora mantivesse na mente a esperança de que
aquilo fosse “o seu jeitinho”. Contudo, foi ouvindo Nina contar suas
experiências com uma das crianças na escolinha, que algo estalou em nossas
mentes. Principalmente por remeter a alguém que tinha passado por minha
vida.
Naquele dia o desespero veio de uma forma ensandecida e em vez
de buscar um médico responsável cai na besteira de me jogar no “Doutor
Google”. Sinto arrepios apenas de lembrar dos casos e vídeos que assisti
sobre o assunto, foram três dias ininterruptos de pesquisas, choro e desespero
até que tomei a decisão de procurar uma ajuda para obter uma opinião
profissional.
Marquei uma consulta com a fonoaudióloga, me cerquei de todos
os cuidados para que minha mãe que sempre ligava para saber do neto, não
desconfiasse de nada, antes que eu mesma pudesse saber a real situação.
Em consulta com a Doutora Mônica, não poderia ter sido mais
aterrorizante, pois a cada teste que fazia, as perguntas que eu respondia de
forma afirmativa, ela anotava em sua prancheta com uma expressão que
causava calafrios.
A forma como a fonoaudióloga olhava para o meu filho fazendo
seus movimentos repetitivos, a falta de reação ao ouvir seu nome, me
inervava de tal forma, que se Nina não estivesse comigo, certamente teria
partido para a ignorância.
Naquela altura, tentei debater que ela estava errada e que ele não
falar era “normal” assim como a pediatra havia tratado, mas de acordo com as
estatísticas, na idade dele, crianças até dois anos já falam cerca de duzentas
palavras e meu filho não dizia nada, nem balbucios.
Pela forma como ela me jogou certas verdades, hoje sou grata. Foi
o seu empenho e sinceridade que me fizeram dar início a uma jornada em
busca de ajuda.
Uma tentativa fraca de sorriso repuxa o canto dos meus lábios,
sinto algo frio batendo em meu rosto, mas não dou importância, continuo
meu trajeto, com minha mente fervilhando.
Depois daquela consulta, Anjinho foi encaminhado a fazer um
exame para avaliar sua audição. Ele ainda não falava e mesmo que ao nascer
o teste da orelhinha não tenha identificado nada, poderia ter desenvolvido
algo depois, mas graças a Deus, ele ouve e hoje constato que muito bem,
para falar a verdade, tenho até desconfiança que essa sua desenvoltura
musical, venha de um bom ouvido.
Eu me sentia péssima só por imaginar tudo aquilo que estava
destinado a ele. O processo que passaria e todas as coisas que seria submetido
por… — eu não sabia classificar na época e ainda não sei, mas as perguntas
jamais deixaram-me em paz: será que foi por que errei? Ele está pagando
por algo que fiz?

As gotas grossas que escorrem por meu rosto ao remoer meus


sentimentos, parecem um rio descendo pelo meu queixo e pescoço, passo a
palma da mão virada para afastar o incomodo, mas é inútil, por isso aperto o
passo marchando com força sobre o pavimento.

Eu estava em luto, mas eu fui à luta. Meu filho não sofreria um dia,
se eu pudesse sofrer tudo em seu lugar.
Outras consultas, novos exames, mais testes, o tempo passando,
pré-diagnósticos um atrás do outro, até conseguir uma consulta com
Neurologista e por fim, com dois aninhos o diagnóstico final.
Meu bebezinho lindo, era portador de TEA — Transtorno do
Espectro Autista.
Já imaginávamos isto e a cada dia aprendíamos a lidar com as
novidades. Depois do diagnóstico veio então a busca por saber em qual grau
ele se encontrava, na época havia uma discussão sobre a forma de
nomenclatura, para que as variações dentro do TEA, fossem reconhecidas
mundialmente.
A minha alma jurídica e analítica se envolvia amplamente
buscando todos os meandros para ajudá-lo, mas quem ganhou a batalha foi o
meu coração de mãe.
Não era denominar, rotular, classificar meu filho que daria a ele
uma oportunidade de vida melhor. Era preciso me entregar totalmente,
abandonar de vez tudo que pudesse me ferir como mulher e ser apenas mãe.
A mãe do Anjinho. Meu anjo azul.

Uma buzina soou ao meu lado, alta o bastante para me fazer pular
na calçada. Olhei para o lado e vi Dionísio apontando para cima e fazendo
sinais com as mãos, ignorei sua teimosia em me fazer entrar naquele carro e
continuei andando.
Uma vez que a avalanche de lembranças e sensações explodem
diante de nossas memórias, é impossível pará-las até que tudo se torne calmo
como um mar voltando ao oceano.

O meu mundo estava caótico, com o início da terapia e o


tratamento, Anjinho começou a se libertar do seu silêncio, mas com sua nova
percepção vieram as crises, os choros e a dor… Em alguns momentos
cheguei a cogitar a possibilidade de pedir ajuda, socorro a uma única pessoa,
mas esta jamais aceitaria aquela situação.
A realidade me machucava, mas jamais deixaria que machucassem
ao meu filho.
Sem nenhuma saída, em um ‘loop’ eterno de amargura, me vi
travando batalhas desumanas.
Enfim, veio o diagnóstico de Autismo leve, aquilo martelava minha
mente, dia e noite, e uma das frases preferidas de Lispector que ouvia Nina
repetindo constantemente era: “que a vida é para quem sabe viver, mas
ninguém nasce pronto. A vida é para quem é corajoso o suficiente para se
arriscar e humilde o bastante para aprender.”
Eu estava apita a aprender.
Claro que houve os dias de trevas, onde imaginei que não
aguentaria passar por mais médicos, exames, testes, gritos, choros,
convulsões causadas por dosagens experimentais de remédios e tudo que
poderia acontecer.
Foi nesse caos que em meio a mais dura crise e desespero, um bipe
alertou-me ter uma nova mensagem em meu celular.
Ri como uma louca naquele dia e agora. Ofeguei naquele dia como
faço neste momento. Senti mil agulhas geladas pinicando o meu corpo
mesmo que parecesse um alívio, a mensagem causou um incêndio em minha
alma.

— Como uma chuva… — o sussurro sai entre meus lábios frios,


olho para cima e uma torrente gelada bate com força contra meu rosto me
fazendo entender que as gotas grossas de antes, é a bendita chuva que tanto
implorei, finalmente posso deixar as lágrimas descerem.
Meus passos ligeiros voltam a ser lentos, os faróis do SUV
iluminam à frente por onde vou caminhando, carros passam velozes
mandando ondas de água em minha direção, mas a proteção da muralha feita
pelo veículo me mantém segura.

A mensagem daquele dia foi um bálsamo, uma afronta e muitas


coisas inomináveis. Era um clipe de voz, uma música que nunca ouvi,
poderia ter sido enviada por engano, mas algo me dizia que a letra foi escrita
para mim.
A acústica somada àquele timbre de voz, me tranquilizava e de
certa forma, ao bebê do meu lado contorcido na sua dor indecifrável. Sentir o
seu alívio foi surreal, mesmo que aquilo o fizesse mergulhar no seu
mundinho de solidão, ainda assim era essa calmaria que ele necessitava.
Com seis meses de terapia e alguns progressos, conseguimos uma
consulta com um renomado neuropediatra de São Paulo, Doutor Cesar Guerra
que juntamente a psicoterapeuta, fonoaudióloga e pediatra, montou um
tratamento para o Anjinho, uma rotina diária com estímulos, fisioterapias,
alimentação, medicação e todo o suporte que pudéssemos precisar.
Nesta época minha mãe já havia superado a segunda informação
tão importante que ocultei dela, e isto foi maravilhoso, pois, entramos em
uma rotina pesada onde o seu apoio moral era fundamental, já que ela não
pode renunciar a cuidar das filhas do Carlos Eduardo e Aline para ficar
conosco em São Paulo, foi justamente nesta época que começaram as
pequenas brigas para o meu retorno iminente à Vitória.
Confesso que me ressenti por um tempo de ter sido deixada
sozinha, mas reconheci que a primeira a adotar essa posição fui eu, por este
motivo, jamais questionei mamãe por não me ajudar.
Gradualmente aprendi a superar as situações difíceis entre os casos
jurídicos no escritório da família Santana, onde continuei a trabalhar por
meio-período, e os cuidados com meu filho, mantive-me ocupada de sol a sol.
Quando as coisas se tornavam extremas, nos sentávamos na
varanda do nosso pequeno apartamento, cercados por quinquilharias que mal
cabiam em casa e nos escondíamos do mundo ao som da mesma música. Eu e
meu bebê.
Os meses foram passando a sensibilidade sensorial do Anjinho se
ampliando, a percepção de um mundo ao seu redor, ainda era nula, mas ele já
sabia que a mamãe estava ali, assim como os “tios” prontos a cuidar e fazer o
impossível por ele.
Com dois anos e meio descobrimos que a música de certa forma
era o seu hiperfoco, e isto se tornava claro a cada dia, quando ele já
amanhecia em busca do meu celular e o clipe único. Mediante a isto, todos
passamos a ter em mãos, não apenas os celulares, mas CDs nos carros e em
casa com a música tocando em loop por várias vezes.
Às vezes mesmo vendo seu progresso, me batia o desespero e
sempre que precisava levá-lo a alguma festinha, ou ter interação com outras
pessoas tornava-se evidente a dificuldade de interação social, ainda hoje é
assim.
Anjinho tem sua rotina escolar, mas só após termos a nossa rotina
particular, pois é difícil para ele as grandes multidões, invadir seu espaço
pessoal e muitos toques.
Geralmente em festas ou parques, quando encontramos com
conhecidos ou aqueles adultos super simpáticos, cheios de dedos para apertar
bochechas, bagunçar os cabelos, encher de perguntas, algo tão corriqueiro o
deixavam e ainda o deixa apavorado.

Outra buzinada e agora uma batida de porta metálica me tira das


minhas lembranças.
— Doutora! — Dionísio contorna o carro e vem às pressas em
minha direção, segura meu braço e me puxa em direção ao SUV — Está
desabando o mundo em água, vai acabar adoecendo, me diz para onde quer ir
que a levo.
Custei a reagir mediante a sua voz alterada, mas o fiz ao ver onde
quer me enfiar.
— Dionísio, me solta! — gritei livrando o meu braço.
O Deus grego está visivelmente frustrado a minha frente e molhado
na mesma proporção que estou.
— Entra na porcaria do carro, por favor?
— Me deixa andando na chuva, porra!
Sei que a consideração de palavras entre nós, não está em mesmo
nível e grau, mas como da outra vez preciso andar, se até então não havia
percebido, neste exato momento o faço.
Meu coração está tão acelerado e dolorido que estou a ponto de
perder as forças. Pensar em Anjinho me inibi de pensar em Mikael e na porra
do seu acidente, ou seja, lá o que aconteceu.
Essa intrusão de Dionísio me faz lembrar as coisas que li nas
mensagens recebidas e meu corpo estremece como se levasse um choque.
— Andar debaixo da chuva sem rumo, não vai resolver suas
questões, sejam sólidas ou não. Nem mesmo…
Ele se interrompe e então volto minha atenção ao homem que
agora está praticamente nu da cintura para cima com a sua camisa
transparente agarrada ao peito, mostrando mais do que a largura dos ombros,
posso ver os gominhos salientes em seu abdômen, mas essa vai ser uma
observação para outro momento.
— Você tem algo para me falar?
— A senhorita é muito mais esperta do que aparenta e sabe do que
estou falando.
— Para a sua informação, nenhum homem me faria andar na
chuva, não que lhe deva qualquer satisfação, entre no seu carro e me segue se
quiser. — Pauso e me aproximo ao ponto de quase me encostar contra seu
peito e encaro-o na medida que me é possível. — Se eu quiser, — friso —
farei o mesmo.
Dei-lhe às costas e dois passos nos separou.
— Como a senhorita desejar, no entanto, se me permiti dizer, às
vezes nossos piores demônios, são alimentados por nossa falta de coragem
em enfrentá-los cara a cara.
— Nem sempre eles são demônios, às vezes podem ser Anjos.
Sem me virar, sussurro, se ele ouviu o ou não, é mais um fato que
não fará diferença.
Voltando a percorrer a calçada, notei que já estava muito longe e
indo em direção ao centro, meu celular no bolso da jaqueta vibrou com
intensidade, certamente seria Nina querendo saber onde estou.
Ignorei a mensagem ou a ligação, seja lá o que for. Atravessei a
avenida e peguei uma viela que me deixaria em outro acesso, talvez meus pés
estejam me levando a algum lugar que minha mente não quer processar.
Ignorando os perigos que não deveria desprezar — pensei com deboche.
É estranho e curioso como nossa mente funciona, mesmo que uma
linha de pensamentos, ou lembranças sejam cortadas bruscamente, se é o
momento de explodirem, tudo vem à tona de qualquer jeito.

Após progredir tanto com Anjinho e ter suas primeiras palavrinhas


soltas sendo pronunciadas, não que fossem palavras corretas que qualquer um
pudesse identificar, eu dizia a mim mesma que estávamos no caminho certo,
que nada poderia dar errado.
Nenhum obstáculo se tornaria intransponível, até passarmos por
sua maior e mais dolorosa crise, uma decepção que não tinha tamanho e na
época, nem imaginava que aquilo estava machucando ao meu bebê.
Foi uma quase regressão, um choque tão grande que naquele dia
diante do meu filho deitado em uma maca de hospital, jurei a mim mesma
que jamais daria a ele algo que pudesse ser retirado de forma tão brusca, ou
alguém que pudesse machucá-lo com sua ausência ou indiferença.
Eu poderia e posso sofrer com qualquer desilusão, mas ele não.
Com dois anos e dez meses, Anjinho já pedia um brinquedo, com
seus balbucios cada vez mais fáceis de se entender, começava a perceber que
comer, banhar-se e dormir, tinha hora e não poderia ser contestado.
A sua paixão por música era algo fora do comum, até mesmo
espantava a pediatra que tinha indicado musicoterapia para ele, com isto os
“tios” imbuídos de agradá-lo lotaram nosso pequeno apartamento com todos
os tipos de instrumentos musicais de cordas a tambores, que pudessem
interessá-lo.
Entretanto, o que realmente fez toda a diferença, foi quando
Gabriel se mudou para um loft e nós pudemos redecorar seu quarto para
Anjinho que já estava com três aninhos e dois meses.
Nina querendo fazer uma surpresa, providenciou um papel de
parede sob medida com um piano enorme envolvido por Claves de Sol, Fá,
Dó e muitas notas músicas dançantes. O mesmo papel que hoje decora seu
novo quarto.
O fascínio de Anjinho ao ver a parede foi instantâneo, assim que
entramos no quarto, ele imediatamente forçou suas perninhas para baixo e
com resmungos desceu do meu colo às pressas até chegar à parede.
Como se ele houvesse tocado piano toda a sua vidinha, curvou seus
dedinhos gordinhos com a pele clara e começou a dedilhar as teclas
adesivadas na parede.
Obviamente ele já assistiu a muitos vídeos com músicas, desenhos
animados e pessoas tocando piano, mas a forma que ele expressava aquilo
nos emocionou.
Sentadas sobre o tapete novo, eu e Nina, observávamos ele ir e vir
nas teclas, aproveitando da sua atenção focada como em tudo que ele fazia de
novo, retirei o celular do bolso e comecei a filmar em silêncio o seu
progresso.
À medida que ele deslizava os dedinhos, me veio a vontade de
verbalizar o que estava fazendo, aliás, era parte da sua terapia.
— Está tocando piano, amor. Que bonito! Tocando! Piano!
Pontuei as palavrinhas da forma correta para as crianças não
verbais, até que ele olhou de relance para nós, roubando nosso fôlego. Seus
olhinhos brilharam, meu filho sorriu para a câmera, mostrando duas imensas
covinhas nas bochechas gordinhas. Ele voltou a atenção para o piano
adesivado na parede e começou a balbuciar palavrinhas soltas, mas com
ritmo.
— Anjinho. Está cantando. —Tentei mais uma vez e então veio
algo que só em meus sonhos mais gananciosos esperava ouvir.
Ele começou a cantar de forma tímida a sua música preferida. A
primeira estrofe foi surrada e meio embolada, mas o refrão no meio da
canção, foi um acerto de notas claras e a voz infantil, levemente enrouquecida
ganhando força, fazendo os acordes perfeitos de palavras perfeitas.
Eu estava em transe, mesmo depois que ele deixou o piano na
parede e foi mexer em outro brinquedo, ainda permaneci com o celular
ligado, envolvida pelos braços de Nina, totalmente emocionada.
Nossas vidas nunca mais foram as mesmas.
A cada progresso ouvíamos elogios e alerta, sempre com dois pés
no chão, muito esforço e garra para vê-lo progredir. Anjinho mudou, como se
muito rapidamente, uma trava em seu sistema tivesse sido removida.
A fala passou a ser clara, ainda com uma ou outra necessidade de
repetição, o seu hiperfoco com a música aumentou gradualmente, mas ele
começou a interagir conosco. Aceitou melhor a escola e o mais
impressionante, passou a ler e escrever aos quatro anos, além de tocar
perfeitamente músicas inteiras em um piano de verdade que Giovane o
presenteou. Após dar a ele um celular descobrirmos sua facilidade com
eletrônicos e a paixão incondicional com a música em geral.
A sensibilidade com sons gradualmente foi deixada de lado, pois
ele aprendeu a controlar sua própria intensidade para volumes.

O celular no meu bolso volta a vibrar, tenho uma sensação feliz


pairando em meu coração com estas últimas recordações, mesmo que
lágrimas teimem em descer.
Paro debaixo da marquise e retiro do bolso o aparelho que por sorte
é a prova d’água.
A mensagem é da Angélica e isso me deixa temerosa, não quero
ler, mesmo que as mãos tremulem e deslizem pela tela e desbloqueando o
aparelho. Olhado para o lado, perdida em meus pensamentos, concluo:
mesmo depois de tantos progressos, acabei colocando Anjinho em perigo ao
voltar para Vitória.
Aqui tudo que nos cerca pode desmoronar o pouco que temos
conseguido. Não faz muito tempo que os novos exames mudaram seu
diagnóstico inicial, hoje meu filho está dentro do que foi relacionado como
síndrome de Asperger, um autismo um pouco mais leve, ele pode verbalizar,
seu QI está muito bem desenvolvido.
Anjinho consegue manter sua rotina, mesmo com a dificuldade de
socialização, não olha diretamente aos olhos das pessoas, até que se sinta
confortável na presença dela, ainda precisa de manter um controle sobre
algum medicamento.
Retirar seu hiperfoco ou causar uma situação tensa pode levá-lo a
um estresse e pequenas crises como hoje, mas ainda assim, estou lutando para
que ele tenha o mínimo de normalidade e o quanto for possível.
Entretanto, me cercar destes problemas, destas pessoas e especial
Dele, não é a segurança que planejei para meu filho. Correr os riscos de vê-lo
dia após dia sofrendo por algo que não posso dá-lo, pode quebrar o nosso elo
de confiança, me deixa de mãos e pés atados, com medo feroz de que ele
regrida em seu progresso.
Presa no limbo que são as minhas sensações, sem a coragem como
Dionísio frisou. Indo contra o meu cérebro racional, abri a mensagem e ao
ler, entendi perfeitamente onde meus pés estão me levando.
CAPÍTULO 5

INACREDITÁVEL
“Quero te deitar numa cama de rosas.
Pois, hoje à noite vou dormir numa cama de pregos…”
Bed Of Roses — Bom Jovi

MIKAEL

M
inha mente atordoada gradualmente ganhou foco, após ter dado entrada no
hospital e passado por vários exames e um interrogatório digno do CSI
comandado por Angel, Edu e Dinho, enfim tenho alguns minutos de paz.
Alcancei a lateral da cama engolindo a vontade de vomitar, respiro
com certa dificuldade, mas se ninguém vir a miséria em que estou, não
poderão argumentar quando eu me der alta.
Sentado na beira da cama, nem consigo alcançar o imenso curativo
que tenho atrás da cabeça. Espero sinceramente que não tenham raspado meu
cabelo, não tenho a menor intensão de fazer o corte do Ramon, apesar da
Megera insistir em me chamar de Ovinho, os únicos ovos raspados que
pretendo manter, são os que estão grudados no meu pau.
— Cacete! Que dor mais filha da puta! — reclamo ao sentir
pontadas pelo meu corpo todo!
Ainda não parei para analisar o “acidente” ou tentativa de
homicídio, com a bondade do meu salvador e nem mesmo como foi fácil me
encontrarem com celular desligado e longe dos armários — guarda-costas,
que agora montam guarda do lado de fora da porta do quarto.
— Se está doendo, é porque você precisa se manter aqui!
A voz irritada alcança aos meus ouvidos. Com canto dos olhos vejo
Angélica, sentada no sofá do outro lado do quarto, ela balança o pé cruzado
sobre a perna impacientemente me encarando como um tigre pronto para dar-
me uma patada.
Lembro-me vagamente dela dispensar os policiais que fizeram a
ocorrência do “acidente”, mas depois disto apenas uma lacuna persiste em
minha mente.
— Eu já não a mandei embora, Megera?
— No dia que você me mandar, seguramente o mundo acaba.
— Não vou ficar aqui, chama o médico de plantão para me dar alta.
— Chama você, já que está tão bem assim.
Rosno. Literalmente me sinto um cão preso em uma corrente,
castrado de sua liberdade. Coloco os meus pés no chão frio e o choque que
recebo ao fazê-lo me faz encolher contra a cama.
Não quero admitir, mas talvez precise de mais alguns minutos para
me recuperar.
— Já que não vai fazer o que pedi, me consegue mais analgésicos.
— Não trabalho aqui meu caro. — Ela cantarola olhando para as
unhas como se fossem mais importantes do que minha dor.
— Angélica, que porra está fazendo aqui então, que não pode fazer
nada do que peço? — minha garganta está seca e parece ter pregos
arranhando a cada palavra.
— Evitando que meta a testa no chão!? — o riso cínico em seu
rosto diz muito sobre o que realmente está insinuando.
— Está debochando do meu acidente?
— Lógico que não, mas estou dizendo na sua cara que a culpa é
sua. — Ela olha em minha direção. — Se não houvesse enganando os
seguranças, certamente nada disto teria acontecido. Ainda bem que você
tomou um tombo e não foi atropelado. Imagina o estrago que seria?
— Por que estou sentindo um ar de deboche na sua voz?
— Porque, no fundo, — ela se inclinou para frente com braços
cruzados contra os seios, — estou debochando!
Dois toques na porta e o médico responsável pelo plantão aparece
pela fresta me impedindo de mandá-la ao inferno.
— Senhor Nikolaievitch, — ele expressa gravidade —, não deveria
estar de pé, precisamos que fique em observação.
— Prefiro me auto-observar em casa e na minha cama, Doutor!
O médico é um senhor de idade com cabelos grisalhos e um
enorme sorriso que alcança aos olhos.
— Os jovens são realmente impressionantes. Mesmo que o senhor,
esteja dando piruetas, a concussão que sofreu foi séria, não foram somente
alguns pontos, mas três horas inconscientes é algo a ser observado.
Ele coloca a mão no meu peito e me faz deitar novamente.
— Muito obrigado Doutor Marcondes, por ter a bondade de
explicar a gravidade da situação a ele.
Angélica que há alguns minutos estava debochando da minha cara,
agora está de pé ao lado do médico, com sua falsa performance, quase
acredito que de fato esteja mortificada com meu acidente.
— Não me agradeça, senhorita Campus, é sempre um prazer poder
ajudar a um paciente. — O médico se aproxima e afere os meus sinais vitais e
a pressão arterial.
— Sem querer parecer ingrato Doutor, no entanto, realmente
desejo que assine a minha alta.
O médico bondoso, nem me responde, ele troca meia dúzias de
palavras com Angélica, e depois sai acompanhado da Megera.
Os minutos se arrastam como as gotas do soro caindo no copinho
acrílico conectado ao meu braço.
Fecho meus olhos esperando as pontadas diminuírem e logo o sono
pesa me vencendo, sinto meu corpo lutando para relaxar em uma cama
estranha, mesmo cansado não me desligo completamente.
Alguém entra no quarto e pelos passos pesados diria que é Edu,
uma mão suave percorre meu rosto, estranho a sensação então o cheiro de
morangos invade minhas narinas. July.
July sussurra algo para Edu, ele reclama e é ignorado. Sinto as
mãos suaves ajeitando o travesseiro que está de lado sobre a lateral do meu
rosto, me impedindo de pressionar o ferimento. Ela ajeita o lençol sobre o
meu corpo, sinto mais afagos e o aroma adocicado coçar minhas narinas.
Debruçada sobre mim, com a voz chorosa ouço os seus sussurros
desejando melhoras em meu ouvido e se despede com um beija no alto da
minha cabeça. Ainda assim não consigo me despertar por completo para
retribuir seu carinho.
Posso imaginar a cara de revolta que o Morangão está fazendo,
coberto de ciúmes. Novos passos no quarto, outra mão pequena desliza sobre
meu rosto, desta vez sem beijos, só um carinho leve e pelo tom das vozes
devem ser Aline e Anderson.
Que caralhos, isso tudo por um tombo? Não que eu vá dar razão a
Angélica, mas me sinto à beira da morte, ainda mais sem conseguir despregar
os olhos.
Muitos passam por minha cama, tenho a impressão de que Carla
também está aqui. A porta se abre e fecha algumas vezes, os sussurros advêm
do lado de fora, vozes se alteram e logo um timbre mais forte os faz calar.
Silêncio.
Até que enfim, o silêncio reina no quarto e fora dela, só desta
forma consigo recuperar um pouco da minha força. De todas as visitas,
apenas uma me faria realmente bem, mas justo esta pessoa, duvido que viria.

Realmente esse segundo cochilo não foi tão longo, mas com
certeza revigorante.
Ao abrir os olhos, percebo Angélica no canto do sofá com a mesma
expressão séria de quando não está sendo observada, digitando em seu
notebook com uma agilidade impressionante.
Vê-la assim faz minha mente voltar até o momento em que fui
quase atropelado por aquele carro, a sensação que tenho não é de que o
motorista fosse uma mulher, mas sem dúvida a intenção era um susto, já que
no último minuto ele desviou.
A pergunta é: com que intenção alguém tentaria me atropelar, ou
melhor assustar? É um aviso por parte de Verônica, ou de algum mafioso
descontente com minha atuação nos casos?
Nunca revelei aos meus amigos sobre as ameaças constantes e
atentados de menor gravidade que tenho sofrido constantemente, para não os
preocupar e de alguma foram evitar que se tornem alvos, mas depois de hoje
sinto que terei de ceder em algum momento e falar abertamente sobre isto.
Espero não colocar ninguém em perigo.
Ouço um suspiro longo e Angélica se ergue do sofá espreguiçando
como uma gata preguiçosa. A roupa de couro cai bem em seu corpo que está
longe de ser miúdo e sem curvas como ela tenta aparentar, olhando-a
furtivamente percebo mais uma vez o porquê de o Santana não largar a
mulher, mesmo após ser pisado feito uma barata.
Admiro-a, mas sem segundas intenções, talvez meu pau tenha
morrido na queda, ou apenas respeite alguém que considero como uma
irmãzinha.
— Não baba Ovinho ou vai direto para a ala da psiquiatria.
— Bem que gostaria, mas nem se quisesse, conseguiria babar. —
Seguro o riso ao vê-la ficar vermelha.
Ela bufa enquanto esconde um riso.
— O que foi? — pergunto.
— Nada! Já ouviu falar que anestesia causa impotência?
— Era para ser engraçada essa piada?
— Não, mas poderia ser, se você tivesse senso de humor.
— Rá. Rá. Rá. — replico sua risada debochada.
— Ei! Essa risada é minha. — Ela reclama.
— Quanto tempo dormi?
— Uma hora e vinte minutos.
— Ótimo! — exulto erguendo-me de uma vez só sem demonstrar
nenhum sinal de fragilidade apoiando o corpo nos cotovelos. — Chama o
médico, estou indo embora.
Ela morde o lábio e confere o celular antes de explodir sua
resposta.
— Mikael, realmente não tenho paciência para drama, quer ir
embora, vai? Dane-se!
Angélica saiu bufando do quarto e se não for muita cretinice da
minha parte, agradeço aos céus.
Coloquei meu corpo moído para fora da cama segurando para não
gemer com dor. Uma queda infeliz não poderia fazer tanto mal assim a um
homem do meu porte, porém os sete pontos um pouco acima da nuca faz jus
ao ditado “quanto maior a altura, pior a queda “se for isto mesmo.
A porta se abre mais uma vez, irritado dou as costas ao próximo
que tentará me fazer dormir neste hospital. Arranquei o maldito pijama
hospitalar sentindo o ar frio do quarto contra minha pele aquecida, por sorte
me mantiveram com minha boxer preta.
— Já disse que não vou ficar em observação, não tem necessidade
disto! — expresso meu descontentamento com a voz enfadada.
Silêncio.
Imagino que deva ser Ramon, pois de todos só falta o Argentino
para fazer um sermão. Ergo os meus braços doloridos acima da cabeça
sentindo o final da anestesia local passar, os dobro em um arco perfeito, giro
os ombros ainda doloridos me alongando e alcanço roupa dobrada sobre o
sofá, a camisa já era, parece mais um pano de limpar balcão de açougue, o
que me resta é vestir o paletó do terno sobre o corpo nu.
— Cacete, deveria ao menos ter feito um deles me dar uma camisa
antes…— resmungando e ignorando a presença silenciosa as minhas costas
continuo na minha trágica tentativa de me vestir com dignidade.
O cheiro característico dos hospitais nublou os meus sentidos, e
isto é um dos muitos motivos que me apresso para sair assim que voltei a
consciência. Outro deles é saber que se dormir profundamente, com certeza
irei passar um vexame acordando em algumas horas socando o travesseiro e
em lágrimas.
Nem fodendo que fico aqui!
Meus músculos queimam ao menor esforço, travo os lábios entres
os dentes para não gritar, abotoo as calças e me inclino em busca da próxima
peça.
O leve farfalhar atrás de mim, traz consigo um aroma único, para
alguém desatento poderia identificar como algo cítrico, um aroma
amadeirado, algumas notas de musk que inibiram o odor horripilante de
materiais de desinfecção no quarto.
Posso sentir cada pequena diferença como se fossem partículas
separadas no ar, um aroma que me faz pensar em âmbar, porém tudo é muito
sutil perto do principal aroma que conheço muito bem… orquídeas negras.
Uma combinação explosiva para meu olfato, minha mente e meu
corpo que reagem com violência, minha cabeça lateja, meu pau parece uma
barra de ferro, pronto a rasgar os tecidos das calças.
Aplumo o meu corpo e sinto um arrepio percorrendo por minha
coluna pinicando toda à extensão da pele sob as asas tatuadas. Os arrepios
são tão intensos, que tenho a sensação de milhares de formigas passeando por
sobre ela.
Puxo o ar com mais intensidade e meu crânio dolorido recebe uma
nova pancada dos meus sentidos. Só tem uma pessoa que usa esse perfume.
— O que faz aqui? — pergunto ao virar-me de frente para minha
última visita da noite.
Os cabelos negros estão molhados, a jaqueta jeans esconde uma
camiseta preta colada ao corpo e tem o mesmo aspecto das calças jeans preta
e os tênis molhados formando uma poça de água à sua volta.
A pergunta foi ríspida, mas a sensação em vê-la diante de mim me
trouxe a realidade do que poderia ter acontecido de verdade esta tarde e com
isto outra realidade mais chocante.
Se tivesse mesmo sido atropelado, talvez estivesse em coma sério,
ou teria morrido e a última coisa que disse a ela foi…
— Você está bem? — sua voz estremeceu.
Sem entender a mim mesmo ou pensar muito, dou alguns passos
adiante para segurá-la em meus braços, mesmo sabendo que provavelmente
um dos rapazes a tenha feito vir aqui, pois ela não o faria por vontade própria.
Contudo, só de saber que veio, me faz sentir coisas que não quero
definir.
— Lia…— minha garganta dói ao pronunciar o seu nome.
— Vo-você está bem? — sua voz naturalmente rouca parece falhar.
— Estou. Estou ótimo!
Sinto as roupas encharcadas molhando o meu corpo, só então
percebo pela janela o quanto está chovendo.
— Por que está molhada assim?
— Meu carro quebrou.
A resposta simples não explica nada, mas arrancar algo dela seria
custoso e minha cabeça está a ponto de explodir pela dor e pela louca vontade
de gritar com ela pela hora avançada, andando sozinha na rua, na chuva sem
atinar para os perigos que esteve correndo, por tantas coisas e, ao mesmo
tempo, quero dizer… o quanto estou feliz em vê-la aqui.
— Mikael?
— Sim! — sussurro.
— Você está me apertando com muita força.
A ouço e tento me afastar, mas percebo ser ela quem está me
segurando como um polvo. — Se você me soltar…
— Hum? — Lia dá um passo atrás, me olhando fixamente com
uma expressão que não consigo decifrar.
Na verdade, nem são os meus olhos que ela encara, mas parece ser
um ponto em meu rosto, como se tivesse travada no enorme curativo por trás
da minha cabeça.
— Lia, sobre hoje no tribunal.
— Você está bem?
— Sim, já disse que sim!
— Ok! Eu já vou então.
— Espera…
— Você está bem?
Reconheço minhas inúmeras falhas e a falta de paciência e
gentileza faz parte de uma longa lista, por este motivo, freio minha língua.
— Como pode ver por si mesma, estou bem! — respondo
pausadamente.
Lia me olha de cima a baixo e fixa seus olhos nos meus. Ela não
diz nada, apenas suspira lentamente, passa a mão pelos longos fios,
parecendo se dar conta só agora do quanto está molhada.
— Preciso ir.
Aceno de leve para ela, essa com certeza é a nossa pior conversa
dos últimos tempos e provavelmente a mais pacífica.
O celular em seu bolso vibra, ela o pesca entre os dedos sem perder
o foco em mim, eleva a mão na altura do rosto e confere muito rapidamente a
tela se sobressaltando.
— Preciso ir, — ela diz com urgência. — Você…
— Lia, eu estou bem, vai… — digo acenando em direção a porta.
Ela sacode sua cabeça e retrocede dois passos, me dá as costas e
segue para a porta sem atender a maldita chamada. Lia coloca a mão sobre a
maçaneta e hesita por um segundo.
Provavelmente em algum momento do futuro quando precisar me
lembrar deste dia, seguramente não gostaria que fosse esse olhar perdido e
sem vida em seu rosto.
— Lia!
— Mikael!
Nós nos olhamos ao mesmo tempo, não sei quem deu o primeiro
passo, porém é certo dizer que a minha língua foi a primeira a invadir seus
lábios e sentir o doce sabor do seu beijo.
O seu corpo estremece contra o meu, seja de frio ou prazer, prefiro
acreditar que seja pelo o mesmo motivo que sinto.
Mesmo que nossas vidas tenham se tornado um verdadeiro cabo de
guerra, e que nossos mais gloriosos embates nos levem a um sexo alucinado,
por hoje ficarei feliz de poder beijá-la, só mais uma vez.
Minha boca desliza sobre a sua, os lábios gelados aquecem rápido
contra os meus, minhas mãos descem pela lateral do seu rosto até tocar a
altura da sua nuca. O latejar infernal da minha cabeça triplicou por me curvar
até alcançá-la, mesmo se colocando nas pontas dos pés, Lia ainda é pequena
dentro do meu abraço.
Sua língua desliza sobre a minha, os gemidos sutis que ela emite,
discorrem dentro da minha boca e reverbera com força no meu pau a cada
segundo mais duro, quero aprofundar cada vez mais o beijo, comemorar que
ainda estou aqui, que mesmo me odiando, ela veio até a mim. No entanto, o
som de uma nova chamada nos traz a realidade e com muito esforço a solto
lentamente.
— Estou bem, não fica preocupada, — olho de soslaio para o
celular em sua mão —, volte para casa, o moleque deve estar sentindo sua
falta.
Poderia ser pelo som do celular apoiado contra meu peito, ou o fato
de ter lembrado o seu filho, faz com que Lia desperte do seu transe e encare-
me de uma forma que conheço bem, adeus beijos ardentes e uma sarrada
antes de receber alta.
— Exato! — sua voz é enérgica —, tenho um filho para cuidar e
não deveria me preocupar com alguém que não o faz por si mesmo.
— Como é?
— Você deve pernoitar em observação! — ela diz dando um passo
atrás, assumindo a porra da postura que me deixa louco.
— Eu não preciso!
— Seu diploma é de quê? Tem Bacharelado, Doutorado e
Mestrado em que mesmo?
Impossível não rir com a forma que fala.
— Lia…?
— Medicina? Se você não tem diploma em medicina, não tem voz
ativa para argumentar. Tira essas calças e mete essa bunda na cama até o
MÉDICO responsável lhe dar alta. Passar bem, boa noite.
Explodi sentindo minha cabeça ferroar, enquanto ela fecha a porta
do quarto com delicadeza. — OBVIO! Ela tem consideração com os outros
pacientes, mas pode agir como uma Mata Hari molhada só para me
infernizar. — Debocho em voz alta.
O que estou fazendo? Resmungo comigo mesmo enquanto arranco
a porcaria das calças que agora estão molhadas e me deito com cuidado na
droga da cama hospitalar.
Inacreditável! Um beijo e ela me convence a pernoitar aqui?
— Droga! — reclamo, me ergo e apago as luzes no painel sobre a
cama.
DUAS SEMANAS DEPOIS
Duas horas de exercícios e uma corrida na praia é uma rotina diária
para manter o corpo funcionando, apesar de ter passado alguns dias
impossibilitado, ainda sinto dores de cabeça fortes o suficiente para tomar
sedativos, o que de certa forma me ajudou com os pesadelos, pois uma vez
que apagado passei a dormir como uma pedra, mesmo que ao acordar a
sensação estranha ainda esteja lá.
Após um bom banho relaxante, uma hora de prática no piano ou
violão, meu corpo grita por cafeína. Sou um homem que necessito de no
mínimo três xícaras de café e outras tantas ao longo do dia, sei que não é
saudável, mas compenso o excesso com outras coisas.
Um detalhe muito importante, não é qualquer café, tem que ser
preto, forte sem açúcar ao ponto de o sabor amargo e intenso no fim deixar
uma sensação doce no paladar.
Essa é minha hora mágica, talvez o único momento do meu dia que
posso ser eu mesmo, sem ficar me limitando, podando movimentos e ações
para não criar uma situação que no futuro não saiba lidar.
Deixo a toalha que estava secando os cabelos após o banho na
lavanderia, retorno à cozinha, ligo o aparelho de som no canto do balcão,
logo a letra de Bed Of Roses na voz do bom e velho — Bom Jovi preenche o
ambiente, não hesito e me junto à canção.
Abastecendo a minha máquina de café expresso, mas nada de
cápsulas, amo um café feito com grãos torrados e moídos na hora. Assim que
os grãos começam a ser torrados, um forte aroma preenche a cozinha,
automaticamente suspiro em deleite.
— Não tem nada melhor... — pauso refazendo minha frase —, a
não ser o sexo, ele é melhor!
De imediato algumas cenas se formam na minha mente, indo
contra o bom senso que rigorosamente manda ater-me ao fato de que: o que
quero não é o que preciso, pelo menos em primeira instância.
Continuo com o processo em preparar um ótimo café da manhã, o
celular sobre a bancada emite o sinal de mensagem, olhando por cima vejo
nome do Ramon piscar na tela, não dou atenção e prossigo o que estou
fazendo.
Estou a ponto de ligar a máquina quando a campainha toca e isto
sim, me faz parar.
Olho o relógio sobre o balcão, são exatamente sete e quinze da
manhã, hoje não é o dia de limpeza e com certeza não estou esperando
ninguém.
Ao contrário dos meus amigos, mantenho meus domínios apenas
para mim, não sou adepto de receber visitas, de promover encontros em
minha casa, tirando Lia que invadiu minha sala há algum tempo, ninguém
mais tem acesso, a não ser…
Deixo de lado o que estou fazendo, com o celular nas mãos
caminho em direção ao vestíbulo de entrada. Desbloqueando a tela, leio a
mensagem, como imaginava só poderia ser, Staeler em minha porta.

@paidoano_staeler: abra a porta, já estou sentindo cheiro de


@Promotor_nikolaievitch: não sou de dividir o meu café!

Parei diante da porta de madeira maciça, respirei testando o sorriso


de bom dia, fazendo movimentos circulares com os ombros, jogando o
pescoço de um lado a outro estalando.
Às vezes tenho a sensação de que sou um ator me preparando
diariamente, para a vida.
Nunca refleti bem sobre isto, mas minha vida é uma verdadeira
encenação e para minha desgraça, sou um protagonista muito bom. Tenho a
consciência de que nem sempre poderei responder às expectativas de outras
pessoas, para isso mantenho a fabulosa desenvoltura em mascarar meus
sentimentos.
Para alguns, essas habilidades são sorte, para outros um inferno!
— Bom dia! Não tenho pão velho, meu caro. — Abro a porta e
tento soar o mais simpático possível.
— Bom dia! Quero café, ahãm… — Ramon faz uma leve pausa e
me olha de cima a baixo arqueando o sobrecenho.
Não posso fazer nada quanto à minha aparência se ele veio até aqui
sem ser convidado. Segui seu olhar e sorri de forma sarcástica.
Geralmente só me visto após o desjejum, por isso ter um homem
de cem quilos em músculos bem distribuídos por um e noventa de altura
vestindo apenas uma boxer preta abrindo à porta, não remete a uma imagem
elegante.
— Gostou, quer que dê uma rodadinha? — pergunto indicando o
movimento com os dedos.
Ramon estreita os olhos e dispensa a réplica. De braços cruzados
sobre o peito apesar da estrutura mais magra, ele impõe presença.
— A que devo a honra da sua visita ilustre no começo do dia? —
ironizo.
— Por um acaso, existe aí dentro alguma mulher correndo para se
vestir, antes de sair porta afora?
— Eu fodo, porém, nunca em minha casa, essa é a regra.
— Só para garantir! — ele afirma.
Apesar do tom, ele tem um ar de quem se sente aliviado com a
minha resposta, e algo na borda da minha mente grita que é por conta da
maldita matéria naquela revista de quinta.
Mesmo depois de todo transtorno que foi o acidente e as
consequências dele, minha primeira medida foi fazer publicarem uma
retratação, e tirar de circulação aquela porcaria. Uma coisa é eu saber da
verdade, outra completamente diferente é divulgarem inverdades abalizadas
em relatos de uma pessoa anônima.
Ouço dois estalos diante dos meus olhos, inferno odeio quando isto
acontece.
— Então, me diz meu caro, Cacá te expulsou do ninho? — faço-
me de desentendido.
— Você irá mesmo me deixar do lado de fora? Não vai me
convidar para entrar, Nikolaievitch?
— Claro que vou, mas só depois que me disser para que veio.
— Filho da mãe! — ele resmunga. — Muito bem, você quase teve
sua gloriosa carcaça esmagada há duas semanas, desde então a única coisa
que ouvimos a respeito da história são desculpas e nenhuma explicação.
— Ramon, não tenho nada a dizer; um louco em alta velocidade na
rua resolveu me fazer de panqueca no asfalto e só, ponto!
Uso o sarcasmo, tento ser excêntrico, mas ele não se move, não diz
nada apenas me encara como um leão de chácara pronto a dar o bote. Recuo
na minha forçada ignorância, faço uma piada para quebrar o clima e dou
passagem para que Ramon entre.
Deslizo a mão dando algumas voltas no ar com salamaleques. —
Por favor, sinta-se convidado.
Ele ignora e adentra o Hall, fecho a porta e sigo a sua frente.
Desde o dia em que estive na clínica para fazer o teste de DNA,
realmente evitei falar sobre o incidente, até mesmo porque não tenho de fato
o que falar, não vi a cara do motorista, a placa do carro era fria e não foi pego
em nenhuma câmera de segurança nas redondezas.
No entanto, o fato de ter sido arrancado da rua por Álvaro bem
quando o maldito sedã preto deu uma ré violenta, perturbou a nós todos desde
a surpresa, alívio e uma curiosidade sobre o que ele estava fazendo ali
também.
— Bom, já que tenho visita, vou fazer mais café! — exclamo indo
em direção à cozinha.
Ramon me segue de perto, mantendo o olhar nas minhas costas, sei
disto por sentir a sensação ruim de ser observado.
— A frase correta não seria: vou colocar calças?
— Minha casa, minhas regras, lembra?
— Então já que estamos, na sua casa, que tal parar com as
gracinhas e deixar de lado esse lado do eterno Peter Pan?
Estaquei entre o vão da passagem que liga o corredor lateral à porta
da cozinha, senti meus músculos ficarem tensos, fechei e abri as mãos
algumas vezes, travei a mandíbula com força contando mentalmente até dez
para não responder.
— Mikael, relaxe e seja você mesmo em sua casa, não estou aqui
para intimidá-lo ou causar desconforto.
— Staeler meu velho, — me viro e dou meio sorriso —, acredito
que está ficando muito melancólico, seria as consequências de se tornar
papai?
— Sou um pai coruja, não preciso negar, — ele esbanja um imenso
sorriso —, era tudo o que imaginava e além do que poderia sonhar, Pérola é
meu mundo!
Como previsto é só falar na filha e a conversa como o clima
mudam, não só com ele, mas com os outros também.
— Coruja? Creio que esteja mais para uma espécie de
empregada/babá de meio-período, vai passar o cetro para o Santana,
finalmente? — solto uma risada entrando na cozinha.
— De papel passado e tudo, não é por este motivo que estamos nos
reunindo hoje?
— De fato aquele idiota agora terá um motivo para não ir embora,
— resmungo e não escondo minha contrariedade.
— Os motivos, sinceramente creio que ele já os tenha!
— Não me obrigue a imaginar isto. Será que ele passou o Natal
com a Megera mesmo? — ligo a máquina sob a bancada que logo começa a
torrar e moer os grãos de café no automático.
— Não faço ideia, mas bem que a veia da fofoca anda pulsando em
minha mente.
— Isso são resultados de só ficar viver em casa, o que faz depois
de arrumar tudo e colocar Pérola para dormir?
— Muitas coisas! Algo que você deveria experimentar, nunca vivi
dias melhores.
— Cara, sou o homem certo para foder, não para se casar.
— Isto é machista! Acredito que seria um excelente marido e pai.
— Ramon, está de sacanagem? Não sou machista, — rebato com
veemência a acusação, — estou longe disto, melhor do que ninguém, você
entende o que estou dizendo.
Ele não responde de imediato, mas observa a nossa volta. A
cozinha está bem equipada e limpa da forma que me agrada. Os balcões de
mármore sempre limpos e livres de quaisquer utensílios desnecessários, o
chão brilha de igual modo, a única “coisa” que destoa da impecável
arrumação, é a pequena mesa redonda no centro do cômodo iluminado por
amplas janelas nas três paredes que ladeiam a parte externa da casa.
O tampo de carvalho acompanha o mesmo entalhe bruto das quatro
cadeiras à sua volta, mas está protegido pela toalha de linho branco que
adorna o móvel com sua delicadeza, mas o que chama a atenção é o conjunto
de louças para duas pessoas tomarem café posta sobre ela. Um pequeno
lembrete e uma mania que me persegue desde sempre.
Me angustia e inerva compartilhar isso com outra pessoa, seguro
meus sentimentos controversos, para minha sorte a máquina termina de
passar o primeiro café. Coloco a caneca sobre o balcão para que Ramon a
alcance e reinício o procedimento para fazer tudo novamente.
— Entendo, — ele pausa e absorve com prazer o líquido
escaldante, verbaliza seu contentamento —, estou falando sério. Quero muito
segurar seus filhos no colo, e por eles para correr para longe da minha
princesinha.
— Isto não vai acontecer! — afirmo querendo mudar o teor da
conversa.
— Por que não? Não podemos nos limitar a viver de coisas do
passado Mikael, está na hora de...
— Caralho! — explodo e nem percebo socando a bancada de
mármore com o punho fechado. — Quer me tirar do sério? — engrosso a
voz. — Não vai conseguir, se veio saber da porra do acidente, então
mantenha a sua linha de raciocínio.
— Olha só quem apareceu, — Ramon ironiza. — Olá Mikael, a
quanto tempo não o vejo.
Não respondo, dou-lhe às costas e retiro outra caneca de café da
máquina, sento-me indicando com o olhar a cadeira à minha frente.
— O que você quer saber do acidente?
Até meu tom de voz muda, ainda mantenho sobre a borda uma
calmaria aparente, mas por dentro estou a ponto de pôr ele para fora.
Uma das verdadeiras razões para não tocar no assunto do acidente,
é que desde o acontecido muitas memórias que não queria lembrar voltaram a
circundar minha mente, me fazendo o favor de desequilibrar meu mundo
perfeitamente blindado.
— Por que foi a uma clínica especializada em genética?
Outro motivo pelo qual não quero falar, é ter de explicar sobre a
clínica, poderia mentir sobre isso falando ser algum processo, mas mentir não
é meu forte. Nunca foi, prefiro ser um cretino, mas um que fala a verdade.
Isto me consome, para negar uma verdade é preciso esquecê-la, e
estou longe de conseguir.
Negar que o DNA encontrado nos cabelos e sangue que recolhi na
fazenda são, na verdade, de uma mulher relativamente jovem — pela
estrutura do fio capilar e idade do mesmo averiguado com precisão pela
ausência de química no material. Uma mulher que provavelmente tem uma
forte ligação comigo… Não é a porra da verdade, que se pode ser esquecida!
— Se for tão difícil assim me dizer os motivos, apenas aponte um
caminho que eu possa trilhar até encontrar a verdade.
— Não é um assunto que queira discutir, Ramon.
— Porque é profissional, ou pessoal?
— Do que está falando?
— Não sei, tenho tantas coisas rodando a minha mente que tenho
medo de levantar alguma suspeita.
Ramon leva a mão para tocar na xícara com o pires à sua frente e
por instinto eu o impeço. Ele recolhe a mão envolta da sua própria caneca e
não diz nada. Me constranjo pela reação exagerada, concentro-me em meu
café e volto a pensar em como respondê-lo.
Não foi preciso repetir o exame nem mesmo desacreditar nas
palavras impressas no documento — que está guardado em um cofre — ou
duvidar da longa explicação do Médico responsável, uma vez que o dinheiro
para ter um resultado preciso, rápido e sigiloso não foi poupado.
“O teste de DNA entre possíveis parentes consanguíneos às vezes
podem ser complexo, pois não necessariamente herdam as mesmas
proporções do DNA dos pais, o que significa que em alguns casos, por
exemplo, dois irmãos podem ter quase nenhum DNA em comum ou
compartilhar apenas pouco DNA. Neste caso, não podemos afirmar que seja
um irmão ou não, mas com certeza é alguém que carrega os mesmos genes.”
CAPÍTULO 6

INVASÃO
“Quando defendemos os nossos amigos, justificamos a nossa amizade.”
Marquês de Maricá

MIKAEL

S
aio do transe ouvindo Ramon resmungar novamente, respondo-o mesmo sem
saber o que disse.
— O que você quer ouvir, uma meia verdade, uma mentira ou o
mesmo que venho dizendo? — sou impaciente. — Eu não vi nada, não posso
afirmar que tenha sido aquela mulher!
— Quero saber o que anda o perturbando e não mentiras.
— É um assunto particular. Para quem escondeu um casamento
dezessete anos, está muito interessado na minha vida!
— Touche! Todavia, pouco me importa se quiser usar meus erros
contra mim. Driblou a segurança sem importar com os esforços que temos
feito para que todos fiquem EM SEGURANÇA. Você foi em direção ao
carro! O motorista seja lá quem for, avançou na sua direção e em vez de
desviar-se, permaneceu no mesmo lugar. Continuo ou já vai começar a falar?
— Não sei por que deveria interrompê-lo. — respondo com
tranquilidade.
— Você queria se matar? Está acontecendo mais alguma merda,
além das que já enfrentamos diariamente? Porque o fato de ter ficado lá
estirado no asfalto esperando o carro dar uma ré por cima de você, não me
parece coisa de alguém estável, mentalmente falando.
— Onde foi que conseguiu seu diploma em psicologia? Supus que
fosse formado direito. — ri lembrando-me de Lia me dizer algo semelhante
no hospital.
— Existem coisas que não precisamos estudar para ver, qualquer
um pode enxergar que tem algo muito errado com você. Mikael se precisar de
ajuda é só pedir, já temos gente ferrada demais em nosso meio, não
precisamos de mais um assim.
— Não tenho nada a declarar, a não ser que queira levar um chute
para fora desta casa, pare com esse interrogatório inapropriado
imediatamente.
— É algo relacionado ao aparecimento de Verônica. Não estou
perguntando, estou afirmando pelos diários que encontrei da minha mãe, essa
mulher infernizava a todos incluindo seus pais, por que não se abre comigo?
— Vou colocá-lo para fora, mesmo sendo o pai da coisinha mais
fofa do mundo e foda-se, se no processo quebrar algumas costelas. — ironizo
enquanto solto uma risada, mesmo sem querer.
Ramon me encara sentindo a batalha perdida, ele se ergue, vai até a
máquina me dando às costas e uma oportunidade de me tranquilizar. Por que
falar da minha família me coloca em um inferno sem volta.
Gradualmente o humor, mesmo sendo forçado, volta a ganhar
espaço sob mim e consigo retomar o controle da situação, ao menos, por um
momento.
— Vai usar a tática do bebê fofinho, para desviar do assunto? —
ele pergunta ainda de costas.
— Está dando certo? — rebato levantando-me.
Staeler não contrapõe minha forma de agir. Com sutileza ele
começa a falar sobre sua vida como pai e marido ativo, não consigo ainda
entender como eles têm superado dia após dia. Descobrir que foi pai, acusar a
mulher que ama de roubar-lhe um filho e no final ouvirem da boca da
assassina uma confissão monstruosa. Putz!
Entre risos não tão forçados assim, ouço descrever, como a Pérola
com alguns meses já tem ganhado corações por aí.
Ramon é uma prova de que nem tudo que foi plantado contra nós
no passado vingou, ainda bem que algumas histórias não se perderam no
caminho. Garantidamente, esses homens que tanto presam a questão familiar,
conseguiram reencontrar-se com suas amadas e conquistaram o que tanto
desejaram.
Depois da nossa terceira caneca de café, deixei a cozinha e fui para
meu quarto me vestir, conseguir manter o máximo da minha sanidade dentro
dos meus limites.

É irônico como o cômodo perfeitamente arejado, é o oposto do que


sinto ao rever todas as minhas memórias desfilando diante de mim e, uma vez
que elas vêm nada pode detê-las. Sinto-me mal, o calor estranho que esmurra
meu peito, gotículas de suor escorrendo por minha fronte até sumir sob a
barba na lateral do rosto, um formigamento ruim nas extremidades dos dedos
das mãos e pés.
Sem pensar travo os dedos sobre a tela do celular e começo a
digitar.

@Promotor_nikolaievitch: oi, está aí?

Ela visualiza a mensagem, mas não responde. Espero um minuto


inteiro e envio outra.

@Promotor_nikolaievitch: Lia, isso me irrita, me responde.

Novamente visualiza não respondo. O senso criterioso, me proíbe


de reenviar outra, provavelmente ela pode estar ocupada com o filho, contudo
o mal-estar estranho me estremece de uma forma que preciso me distrair.

@Promotor_nikolaievitch: vou ter que implorar, caralho?


@Doutora_anjinha: se te irrita, não deveria mandar mensagem
tão cedo, para uma pessoa ocupada.
@Promotor_nikolaievitch: então vou ligar, me atende.
@Doutora_anjinha: dará no mesmo, espera…

A ligação levou dois toques para ser conectada, ainda não sei por
que ceder a um impulso idiota, provavelmente a tensão ou essa sensação
ruim.
— O que quer, Mikael?
A voz sai abafada e pelos ruídos é fácil de deduzir que ela colocou
a chamada em viva voz.
— SEXO!
— Puta merda!
— Epa! Temos criança nessa casa. — Ouço uma voz ao fundo e o
som de uma porta sendo fechada.
— Que desgrama, Mikael!
— Quem mandou me colocar em chamada de viva voz? —
Debocho enquanto vou ao banheiro, pego a toalha e passo pelo rosto
molhado.
— Diz logo o que você quer, estou ocupada!
Sua voz continua longe e pelo eco, deduzo que esteja terminando o
banho, ou seja está nua? Para alguém prestes a entrar em um ataque de
pânico, qualquer distração é bem-vinda, ao menos o meu pau aprecia a visão
que tenho em minha mente.
— Eu já disse: QUERO SEXO! — aumento minha voz.
— Vou me cortar assim…
— Humm… — foi a minha vez de travar com esta nova informação
—, depilada do jeito que gosto, de quatro sobre uma mesa baixa de vidro,
com essa bunda redonda me servindo gostoso… porra Anjinha, meu pau está
duro feito uma barra de ferro, só de imaginar a cena.
— MIKAEL!
O grito sai engasgado. Pelos sons de frascos caindo, ela está
tentando alcançar o celular, a tentação de continuar a descrever o que quero é
grande.
— Prometo começar com beijos lentos, percorrer minha língua por
entre a fenda da sua bunda e descendo lentamente…
— Desgrama! Onde essa porcaria de celular caiu? — ela está
ofegante.
— Quando encostar a ponta da minha língua nesse…
— ACHEI! — O grito agudo interrompe a minha linha de
pensamentos sacana. — Seu pervertido! — ela bufa — sabia que está em
chamada de viva voz e falando sacanagem a essa hora da manhã? Não
acredito que tenha me ligado, só para isto. — Ela pausa e sinto que fui
descoberto. — Você ainda está com pontos?
Sua respiração está acelerada, a voz rouca arrepia minha pele. — O
que os pontos na cabeça têm a ver com meu pau querendo te foder? Além
disso, vou tirá-los hoje à tarde, então…
— Então… Você precisa de repouso, porque deve estar faltando
neurônios nessa sua cabeça rachada, — ela resmunga algo, ouço água
corrente —, não estamos nesta categoria de relacionamento no momento,
esqueceu? Se o digníssimo Promotor, acredita que esqueci o que me disse no
tribunal, está enganado.
— Dois meses é o nosso maior e pior tempo de abstinência em um
ano, — afirmo e não deixo que rebata. — Lia, quer ser fodida bem gostoso?
Silêncio.
Já imagino ela criando uma resposta da qual vai estragar o resto do
meu dia. Dois meses sem sexo, Mikael? Refaça as contas de quantos anos
passaram sem isto.
— Onde e quando…
Um frenesi de tesão percorre o meu corpo até estalar na minha
ereção pulsante, não era a resposta que esperava e isto me deixa em alerta.
Prevejo o que realmente ela vai sugerir, por isto a interrompo bruscamente
mantendo entre nós um falso encontro marcado.
—Estou esperando, para quando precisa ser aliviado do seu
tormento e fugir do interrogatório dos rapazes?
Por que minha Anjinha é tão boa que descobriu os meus ardis?
— Só esperar por mim, eu acho você.
Encerro a ligação com minha cabeça girando, me escoro contra a
parede e foco no que acabamos de falar, ao menos tento.

Me assusto com som de mensagem do celular e vejo que passei


mais tempo no quarto do que seria o normal, o suor que escorreu pelo meu
corpo secou deixando uma sensação pegajosa, as mãos não estão mais
dormentes, encaro meu reflexo no espelho de corpo inteiro, inspiro e expiro o
ar, me livro da boxer e entro no chuveiro frio.
Com a cabeça no lugar após o banho rápido, vejo que a mensagem
é Ramon perguntando o motivo pela demora, respondo qualquer coisa e volto
a abotoar minha camisa. No momento em que estou finalizando o nó da
gravata a campainha toca novamente.
— Puta merda, por que me levantei da cama? — pergunto para
ninguém em especial.
Não faço ideia do que estejam planejando com essa intervenção
disfarçada de uma reunião matinal, ou seja, lá o que for.
Talvez uma pessoa maleável, com a guarda baixa, que não tenha a
mesma blindagem que a minha, teria cedido às intrusões logo de cara, mas
para essas atitudes sou vacinado, marcado e carimbado.
Alcanço o paletó, o cabide com minha toga e abro a porta do quarto
e quase derrapo com a sombra a minha frente.
— Qual seu problema, Staeler?
— Vim oferecer café, mas estava ocupado com sua ligação,
preferir não o interromper, voltei para a cozinha, mas como disse na
mensagem, estava demorando. — ele dá de ombros.
— Nós já passamos por algo semelhante, não é mesmo?
— Hum!
Ramon estende a caneca de café a frente do meu rosto, sua postura
relaxada contra a parede do corredor enganaria a qualquer um que não o
conhecesse tão bem.
Por um instante me recordo da vez que fui eu a esperar por ele e
seu café, enquanto Carla, desabava em meio a uma torrente de chuva e
lágrimas, expondo para mim um dos seus maiores segredos. Não resisto a
deixar extravasar um comentário, principalmente por odiar a postura do meu
amigo naquela época.
— Pobre Ratinha! Você sabe que ela poderia ter pegado uma
pneumonia?
Aceito o seu oferecimento, puxo a porta do meu quarto ouvindo o
estalo sutil da fechadura trancando-a, outra das manias adquiridas que são
difíceis de perder, mesmo morando sozinho por quase dez anos. Ele arqueia o
sobrecenho interrogativo, mas respeitando-me ao ponto de não questionar.
— Muchas gracias! — agradeço e saboreio o gole de café preto e
bem forte inundando minhas papilas gustativas de um prazer imensurável. —
Que cheiro é esse?
Ele dá de ombros, seu olhar vagueia pelo corredor inundado de luz
solar, as paredes fechadas por imensas portas de correr de vidro dão a ele
uma visão dos jardins laterais e o caminho de pedra que leva até minha
estufa.
Ele não comenta o fato de nunca o ter convidado para conhecer
minha casa, nem mesmo quando éramos crianças, mas percebo em seu olhar
o quanto admira o que vê.
— Acho melhor verificarmos a cozinha, ou pôr certo terei de
chamar os bombeiros, esse cheiro está me preocupando.
— Por que ela é um assunto proibido? Por que o sexo flui tão bem
entre vocês e não uma relação que faça bem aos dois?
— Ramon, não faça isso.
— Eu me sinto culpado, se não houvesse insistido para que ela
usasse o anel, participasse da emboscada, talvez vocês já tivessem se
acertado. Não teria sido tão brutalmente ferida. — sua voz de pesar me
destroça. — Confesso que me dispus a fazer o que preciso for para ver os
dois felizes, mas não me perdoo por vê-los assim.
— Não tem nada a ver, com o nosso problema, se é que podemos
denominá-lo assim, vai além de uma encenação, e nada tem a ver com você
ou qualquer outra pessoa. Nossa história de forma romântica, acabou faz
muito tempo.
— Não acredito!
— Isto é um completo desperdício de tempo, Staeler. Vamos pôr
um ponto final aqui? Não tem argumentos, apelações, júri e nada que mude
um veredito tão antigo.
— Tem certeza? Se realmente a queria, por que não a segurou
firmemente?
— Foi há muito tempo. Durante estes anos todos, nos encontramos
algumas vezes, rolou sexo, brigas, risadas em algum momento entre nossos
encontros explosivos, mas é só isso. Nem todo mundo nasceu para ter uma
história como a sua.
— Pois é pela minha experiência que vou te dizer algo, não é um
conselho é só a minha opinião. — Ele se aproxima e coloca a mão sobre meu
ombro apertando firme. — Se você não quiser se arrepender mais tarde, tente
manter o que deseja firme entre os seus dedos.
— Essa é uma via de duas mãos.
Ele não retrucou, apenas fez aquele ar enigmático de sempre,
pegou a caneca meio cheia em minha mão e me deixou sozinho para engolir
os nós na garganta.

O som proveniente da cozinha é igual a uma suruba bem armada ou


a sala de sinuca no boteco da esquina. A visão, o cheiro e a fumaça então, são
ainda mais peculiares.
De pé no fogão, Anderson com a gravata jogada para as costas
parece mexer ovos e bacon em uma frigideira grande o suficiente para
alimentar dez famílias.
No balcão de mármore antes organizado, jaz entulhado. Edu tem
sua gravata da mesma forma, porém com um avental que não faço a menor
ideia de onde veio, e está cortando laranjas enquanto Ramon que se juntou ao
trio de Master Chef usa o espremedor automático.
A torradeira solta duas fatias de pão levemente tostadas, as
mesmas que Anderson joga sobre um prato antes de adicionar mais duas para
torrar.
Encostado no batente observo curiosamente que em pouco tempo
eles transformaram minha adorável e impecável cozinha na zona de guerra
gourmet. Algo inusitado.
Tento não demonstrar meu desagrado com a bagunça feita pela
disputa saudável que está rolando entre risos e piadas sujas, cada um tem um
palpite sobre hábitos alimentares matutinos, e se acham um mais sábio do que
o outro.
— Rum! — Raspo a garganta tentando chamar atenção e nada, o
som que esqueci continua ligado e agora um rock pauleira cria uma cacofonia
de sons. — Rum, rum! — Anderson se vira em minha direção.
— Bom dia idiota! Por que o café não está pronto? Teve a manhã
toda para fazer.
— A porta da rua é a serventia da casa. — Rebato de imediato.
— Então sente-se para comer, antes que ela bata na sua bunda! —
Edu exclama retirando da minha preciosa máquina de café um bule
transbordante.
— Podem me dizer, o que estão fazendo?
— Preparando o desjejum! — o coral de Viena perde para os três
respondendo em uníssono.
Desisto, remeto minha mente há algum lugar entre o aqui e o nunca
e os deixo se divertirem.
Segundo Edu, hoje como é a despedida oficial do Ramon,
deveríamos fazer tudo juntos como em nosso primeiro dia como advogados
trabalhando na firma, quando nossos pais eram vivos.
Talvez lembrar a rebeldia em negar a imposição dos nossos pais, a
loucura que foi desde o início, os primeiros dias, as coincidências nas roupas,
as bobas apostas que nos fazia vestirmos como um quarteto listradinho, os
casos mais estranhos que enfrentamos, realmente não sei o que foi, mas as
muitas lembranças vieram como um maremoto destruindo os bloqueios e
abrindo caminho para todo meu inferno esquecido.
Me senti letárgico e nostálgico em proporções estranhas. Após o
lauto desjejum, organizamos a cozinha e seguimos para o cartório, recusei a
carona e preferi deixar-me ao encargo dos seguranças, sem poder pilotar
enquanto não remover os pontos.
Entrei no carro me acomodando no banco traseiro, retirei o celular
do bolso para checar a agenda do dia, logo em seguida o aparelho vibrou
entre meus dedos, corri o indicador sobre a tela abrindo o aplicativo de
mensagens, e não pude esconder um riso que ameaça a crescer no canto da
boca.

@Doutora_anjinha: sei que não era “só” sexo que tinha em mente
mais cedo. Está acontecendo algo, se quer conversar, me encontre no lugar
de sempre, vou te pagar um café.
CAPÍTULO 7

INESTIMÁVEL
“Aquele amor, mesmo não retribuído, tornou-se um souvenir,
lembrança de uma época bonita que foi vivida? Passou a ser um bem de
valor inestimável, é uma sensação à qual a gente se apega.”
Martha Medeiros

MIKAEL

N
o caminho para o cartório, recebi uma mensagem de Carlos Eduardo, dizendo
que faríamos a reunião no escritório. Ao visualizar pensei em discordar, por
vários motivos óbvios, entre eles que isto poderia de alguma forma me atrasar
para minha audiência na parte da tarde, mas sabia que isto seria perda de
tempo da minha parte, por isto, sinalizei em concordância.
Depois de alguns meses afastado, confesso que estar na sala de
reuniões dos escritórios A&A Associados, é revigorante. Menos a parte onde
os presentes, superam o número de cadeiras disponíveis.
A imensa mesa com tampo quadrado de madeira bruta, pés
cromados normalmente é rodeada por oito cadeiras deslizantes que seguem o
mesmo padrão de luxo e modernidade do designer.
Graças à Staeler que sempre manteve os escritórios alinhados com
bom gosto para atender aos diversos clientes de renome, dentro e fora do
nosso Estado. Elas foram realocadas de forma que outras cadeiras trazidas
das baias de atendimento da sala ao lado, usada pelos auxiliares jurídicos e
estagiários que prestam diversos serviços, sirvam de assento para July, Aline,
Carla e Angélica que descansa tranquilamente seus pés calçados em botas
militares, sobre a mesa enquanto folheia um arquivo em suas mãos.
Cada um de nós seguiu em direção aos assentos disponíveis
formando pares. Ergui minha mão com meu melhor sorriso e cumprimentei
as meninas, que retribuíram, como Angélica sentou-se à cabeceira da mesa,
havia dois lugares vagos, um de cada lado.
Escolhi a cadeira à sua direita, mas antes de soltar meu corpo
contra o estofado, bati com minha pasta em seus pés. Ela me encarou com
cenho franzido, então notei os fones escondidos pela gola da jaqueta.
— Senta direito! — gesticulo, e como ela não se move, dou outro
empurrão contra o solado das botas.
— Chato! — ela resmunga, mas senta-se como uma “mocinha”
deveria.
Escondo o riso, me reclino contra o encosto da cadeira passando os
olhos pelo local. A TV de tela plana, parece ser maior que a última em que
fizemos uma conferência, na qual Edu exigiu que Lia voltasse para Vitória.
Os vasos de plantas parecem bem cuidados e as orquídeas, que fiz
questão de comprar pessoalmente para a área do jardim de inverno, próximo
às imensas janelas de vidros, estão em flor. Aspiro o aroma e de imediato
meu humor é amainado.
Continuo minha inspeção visual, enquanto o falatório a minha volta
segue o fluxo. Angélica deixou de lado o documento e passou a enviar
mensagens em seu celular, aparentemente alheia ao seu redor. Ramon pediu
para que o seu antigo assistente, Pedro distribuísse pasta iguais a da Megera
para todos.
Ergui o documento, alcancei a caneta-tinteiro no bolso do meu
terno e comecei a girá-la entre meus dedos enquanto faço uma breve leitura
sob o documento.
De acordo com o material entregue, essa é uma das malditas
reuniões que evito a todo custo. Um balancete financeiro, relação de clientes,
funcionários e toda a burocracia das assembleias e algumas pautas de
medidas a serem tomadas no escritório junto a aposentadoria de um dos
sócios, a promoção e formalização do Xuxa ao cargo de Administrador da
empresa.
Com meus olhos encaro aos meus amigos de forma acusatória, Edu
dá de ombros, seguido por Anderson e o beneficiado, Ramon.
Ramon faz uma breve ressalva sobre o que será tratado na reunião
e pede que aguardemos ao Doutor Santana, que está terminando uma ligação
importante.
— Ele não é o único ausente. — ressalto me lembrando da pressa
que Lia estava pela manhã, enquanto falávamos em ligação.
— Lia não fará parte da reunião, Mikael. — Desta vez é Angélica
quem responde, colocando o celular no bolso da sua jaqueta.
— Por que não? Ela é uma das sócias, todos somos obrigados a
participar.
Angélica coça a nuca, suas bochechas coram e imagino que a troca
de mensagens tenha sido com Lia.
— Ela tem um compromisso importante com o filho, e além disto,
tenho a procuração para assinar qualquer documento em relação à empresa.
— Como assim? Você não entregou a herança dela, não passou
tudo para o nome dela? — pergunto me sentindo um idiota, já que vejo meus
amigos desviarem o olhar. — Que porra está acontecendo aqui?
Um incômodo cerca meu peito. Nunca procurei saber se ela já teria
recebido a sua herança, quando o moleque dela nasceu. Esse era um dos
termos do Testamento. Ao completarmos trinta e cinco anos, formalizarmos
casamento e as filhas terem seus próprios filhos, seriamos validados para
receber a sua parte correspondente da herança.
Por Lia e Aline morarem longe, sabíamos que Orestes às
representava. Contudo, depois que boa parte dos segredos vieram à tona,
descobrimos que, na verdade, Angélica detinha o poder sobre toda a nossa
herança e Orestes era apenas um funcionário, testa de ferro é o melhor termo.
Nunca dei devida importância se ela recebeu ou não, pois sabíamos
que Aline o fez, são as regras. Uma cláusula, sem motivo algum para que não
fosse cumprida. A não ser que…
— Puta que pariu! — explodo me erguendo, sinto meu corpo
aquecer.
Ramon se ergue seguindo-me de perto quando me aproximo de
Angélica e me debruço contra a sua cadeira, apoiando um das mãos no
encosto e outra sobre o tampo da mesa. A Megera nem se move, ela sabe que
não sou uma ameaça física, mas não posso impedir meu temperamento de
explodir em rugidos.
— Angélica, me responde com muita assertividade. — Exalo com
força e retorno o ar nos pulmões inalando devagar. — Você não entregou o
que era de direito a Lia, por conta daquela maldita acusação de roubo contra
o tio Joaquim?
Eu mal consigo formar uma frase congruente com a raiva
espiralando por sobre a borda. É certo que no passado as rusgas,
desconfianças e tantas outras questões que rodeavam aos nossos pais, causou
desentendimento a certo nível, mas nem mesmo nos meus piores pesadelos,
imaginei que pudessem de alguma forma lesar uma herdeira legítima.
— Mikael, — ela diz em tom baixo. — Espaço.
Uma única palavra e compreendo o que me pede, dou a ela o
espaço solicitado caminhando para o outro lado da sala.
— Ramon?
— Mikael, deixe que Angélica explique a situação.
— Você, sabia disto? Foi isto que não conseguiu me dizer pela
manhã, me fez vir aqui com essa desculpa de reunião, para me contarem essa
merda? Não se atrevam a tirar algo dela!
— Não é o que está pensando. De certa forma tem a ver, mas está
longe do real motivo da nossa conversa.
— Angélica, fala logo. Porque a Lia não está aqui, no lugar que é
de direito e dever filial da parte dela?
— Bom, — a Megera se joga contra o encosto da cadeira e encara-
nos com ar enfadado —, quando ela foi notificada de que receberia sua
herança, assim como todos os bens relacionados ao espólio pertencente, casa,
carros e apólices de seguro… — sua voz hesita, ela coça a nuca e depois
aperta as têmporas, visivelmente irritada, como se dar continuidade ao que
tem de dizer, fosse um crime inafiançável.
— Fala!
— A sua amável Anjinha, se recusou a receber o que é dela!
— O quê?
— Em vez de me livrar de um problema oculto, agora tenho um
real, pois não disponho de tempo para encontros burocráticos, ou estas
reuniões infernais. Ela não me fez a gentileza de aceitar o que o pai dela
deixou, me livrando de uma inerente responsabilidade.
— Como assim não aceita? — de imediato me vem à mente os
problemas financeiros que parecem se amontoar em sua mesa. — A Lia vive
de quê?
Outro silêncio, desta vez até mesmo July e as meninas desviam o
olhar. Me sinto um idiota que por preferência vive a margem de tudo, não
deixando que invadam minha privacidade, assim como não faço com os
demais.
Com ela, é diferente. Sempre faço perguntas, mesmo sendo
aleatórias, mesmo que nossos encontros sejam para fodas, sempre deixei
claro que tudo a seu respeito me interessa, mesmo que não consiga dar a ela a
mesma liberdade de interferir na minha vida. Isto funcionaria bem se ela me
respondesse tudo.
Tudo faz sentido, a compra do apartamento da Aline, em vez de
morar em uma puta mansão em um dos bairros mais nobres de VIX,
trabalhos excessivos, hora extra, a porra daquele carro velho cheio de defeitos
que vive quebrando.
Meu peito dispara, corro em direção a mesa e pego o maldito
relatório. O balancete do último semestre está na segunda página, não perco
tempo lendo resumos, corro os olhos até os valores pagos aos associados e
meu peito aperta. Lia recebe uma boa soma em dinheiro, mas de longe se
equipara ao valor que os demais recebem.
— Que caralho é isto, Ramon? Por que não paga a ela o mesmo
que nós?
— Porque ela devolve! — Ele bufa irritado tanto com minha
observação, quanto pelo fato de Lia se recusar a receber.
Conhecendo bem o gênio da mulher que povoa meus pensamentos
e orbita a minha volta, eu sei do que ela é capaz ao ser contrariada. Ainda
mais se tratando de dinheiro. Me recuso a acreditar que tenha algo a ver com
nosso passado.
— Essa mulher enlouqueceu? — perco a pouca paciência que me
resta. — Que porra ela está pensando da vida, com um filho para criar, quem
em sã consciência recusaria dinheiro?
Minha voz está alterada, a porta do escritório se abre e nem me dou
ao trabalho de olhar, provavelmente deve ser Giovane.
— Uma pessoa que teve a sua vida arruinada, quando o pai foi
injustamente acusado de roubo? Roubo deste mesmo patrimônio, devo
ressaltar, Promotor Nikolaievitch. A mulher que recusa é a mesma que viu o
pai ser algemado em seu aniversário de dezoito anos, não foi o melhor
presente que o SEU pai deu a ela.
As palavras de Giovane caem como uma bomba na sala, não
apenas eu, como os rapazes se erguem debatendo o que ele diz. As
lembranças daquele dia, arrebentando com nossa manhã, como uma picareta
afiada em gelo fino.
— O quanto você sabe sobre nós, para poder sair falando de coisas
que não lhe dizem respeito, Doutor Santana? — Ramon inquiri de forma a
calar a todos.
Olho para baixo ao sentir a pressão dos dedos magros contra meu
punho fechado, ele está a minha frente, não sei se me bloqueando, ou
protegendo Giovane.
— Posso dizer que sei o que ela mesma me contou e nada mais.
Peço perdão por invadir uma discussão particular da “família”, mas se o
assunto envolve alguém que considero como uma irmã, não posso me calar.
— Vai para a puta que te pariu, ela não é nada sua! — rebato.
— Não concordo com ela, — ele se faz de surdo —, ao negar algo
que o pai lutou tanto para adquirir, é o mesmo que atestar a incapacidade dele
de se provar inocente, porém ela é adulta e sabe melhor do que ninguém,
como gerir a própria vida. Devo ressaltar que faz muito bem sem a ajuda de
ninguém!
— Se essa é a sua única informação, ou se há mais, — Edu entra à
frente de Ramon, criando mais uma camada na porra da barreira —, peço que
conservar-se à margem, não interfira em algo que vai além da sua
compreensão.
— Tenho certeza de que ele entende perfeitamente, que se
intrometer em assuntos de FAMÍLIA, não faz parte das suas funções como
administrador da A&A, não é mesmo, Doutor Santana?
Anderson completa a sentença de Edu bem ao meu lado seguindo o
exemplo de Ramon segurando meu punho cerrado com os documentos
macerados entre os dedos.
— Eu mais uma vez, peço perdão se de alguma forma, fui
inconveniente.
Um riso sarcástico é escanteado em lábios, pois somente um idiota
levaria a suas palavras com alguma seriedade.
— Ok! — Angélica se ergue. — Por hoje, só teremos uma simples
reunião, sem massacres sanguinários, por isso podem largar o Ovinho,
meninos. Ele não vai matar o Santana. — Ela volve seu corpo de lado e o
encara com adagas nos olhos. — Porque ele não irá se meter naquilo que não
lhe concerne! — Ela exclama com ar sombrio.
— Não preciso que me segurem, — digo, dando um passo atrás e
me libertando do aperto firme dos meus amigos — tão pouco me interessa,
que ele julgue saber de algo, isto — ergo os papéis —, muda aqui e agora! —
ressalto e entoo as palavras com a mesma ênfase que faço ao dar minhas
conclusões nos tribunais.
— Ramon, antes que passe o cargo em definitivo, ajuste os ganhos
da Doutora dos Anjos. Angélica, prepare os papéis para transferência e
endossamento da herança. Vocês têm três dias, a partir de hoje.
— Adoro quando o cheiro de testosterona invade o ar. — July
comenta, retira um caderninho da bolsa e o coloca sobre a mesa fazendo
anotações.
Jogo a pasta sobre a mesa e me retiro da sala, preciso de um
momento para esfriar os ânimos, ou serei capaz de perder a educação e
realmente matar um.

Foram precisos mais do que alguns minutos para que pudéssemos


voltar a uma aprazível tranquilidade que nos permitisse fazer a reunião.
Me sentei no mesmo lugar de antes, mantendo os meus olhos sobre
os documentos que foram substituídos pelos destruídos. Ramon faz uma
leitura pausada, dando ênfase em alguns pontos para esclarecer qualquer
dúvida que surja.
Por mais que tenhamos brincado em nossa juventude, e em
determinado ponto das nossas vidas fomos considerados por nossos pais
como irresponsáveis e propensos a ações inconsequentes, provamos que está
nunca foi a nossa realidade.
A prova disto é termos tornado a empresa cinco vezes mais
rentável, expandido nosso escritório que antes ocupava apenas dois andares
de um prédio no centro de Vitória. Hoje possuirmos a estrutura física, nossos
escritórios ocupam os cinco andares, sendo o último, a sala de reuniões, salão
reservado a festas e conferências, e um pequeno loft no mesmo andar.
Financeiramente, todos temos mais do que o suficiente para viver
sem qualquer dificuldade, e após recebermos nossa parte da herança, teremos
mais do que seria possível gastar em uma vida inteira regada a luxos e
excessos.
Com uma área de atuação muito maior do que nossos pais jamais
imaginaram, criamos um projeto e abrimos escritórios em outros três Estados,
em conformidade com todos os associados, Ramon e Carlos Eduardo dão
suporte a alguns advogados contratados que trabalham como freelance nestes
novos escritórios.
De acordo com os relatórios, Giovane Santana, apesar da sua
intromissão é um excelente administrador, sem erros e com auxílio de todos,
é possível que ele consiga manter um nível aceitável que Staeler vinha
fazendo durante os últimos quase dez anos.
Nunca fiz questão realmente de estar nos meandros e
gerenciamento empresarial que os escritórios necessitam, pelo simples fato de
que este, nunca foi meu sonho, mas entre nós, há aqueles que se entregaram
ao Direito por amor e paixão.
A minha formação foi à custa de algo precioso para mim, por isso
não me permiti falhar. Eu quis e quero provar e me aprovar como o melhor
dentro da minha área. Ser Promotor, veio dessa absurda necessidade, por isto,
quando abandonei o escritório e mudei-me para o prédio da Promotoria, foi
um alívio e um tormento, por estar longe das garras dos nossos pais e longe
dela.
Após saber sobre a condição em que Lia se alto impôs, e que
ninguém foi capaz de reverter sua opinião, me arrependo de não ter me
interessado pelos mínimos detalhes sobre tudo que nos cerca.
Entretanto, fazer o quê? Essa é a nossa realidade!
O que se dá a entender é que sermos tolhidos pelas vontades dos
nossos pais, foi uma forma premeditada de nos manter em guerras e rebeldias
constantes, assim jamais perceberíamos as legítimas merdas que aconteciam
com os “adultos”.

Ramon encerra a leitura das atas, Anderson toma a palavras e dá


uma pequena introdução sobre a troca de Administração. Carla abraça seu
marido, e não esconde o quanto está emocionada.
July e Aline seguem de perto a amiga, de mãos dadas seguram a
emoção, afinal está chegando um momento que jamais esperei ver.
Anderson, visivelmente tem dificuldade em falar. Edu ergue as
mãos e com gestos imprecisos, se recusa a tomar a palavra. De olho em
Ramon, não imagino o que poderia ser dito a um amigo tão precioso que está
deixando de lado algo que é parte da sua essência.
Dinho faz uma ressalva sobre como tudo começou e o porquê de
seguirmos dentro desta carreira mesmo após a morte de nossos pais.
— Creio que dentre todos nós, o Doutor Ramon Staeler é aquele
que mais amor dedicou a sua carreira. Se dispondo até a afastar da família
para estudar fora, na faculdade dos seus sonhos, ele abraçou as leis com tanto
afinco que ouso dizer… — Dinho se engasga. — Ouso dizer que, como isto é
difícil cara! Você ama tanto isto aqui, que é estranho vê-lo deixar de lado,
enquanto é reconfortante, por saber que é para cuidar da sua filha, então…
Angélica aproxima sua cadeira da minha e sussurra em meu
ouvido, me fazendo prestar atenção a ela e ao próprio Giovane, que a encara
com cara de cachorro que caiu da mudança.
Fiz o possível para não os perceber, mas é impossível não ver as
tentativas sutis de se aproximar, e a Megera esnobá-lo. O que me faz
imaginar que algo realmente está acontecendo entre eles.
— Ei, Ovinho, presta atenção.
— O que foi Megera? — respondo entredentes.
— Fala algo.
— Falar o quê?
— Meu cunhadinho está a ponto de ter uma síncope.
— Fique à vontade. — Tento me afastar, mas ela segura a manga
do meu terno com as pontas dos dedos. — Não! — exclamo.
— Anderson? — Ela se afasta com sorriso diabólico no rosto. —
Mikael, tem algo a dizer.
Ela solta o tecido e esfrega os dedos como se estivesse limpando-os
de alguma poeira, em seguida inicia um aplauso estranho.
— Megera…

Ramon olhou-me com ar espantado, e nem imagino o porquê.


Sem ter saída alguma da porra de enrosco que a loira do mau me
colocou, me ergo constrangido, deixo a caneta sobre a pasta fechada, abotoo
o terno e com passos firmes caminho até a cabeceira da mesa.
— Serei breve. — Anuncio a ninguém em particular.
Com a mão fechada em punho cubro a boca, preparo minha voz
para que possa sair em um tom conciliatório e caloroso. Evito cruzar meus
olhos com meus amigos, pois cada um ao seu modo já está enternecido além
da borda.
— Não seja tão breve, mas sincero, cara. — Edu funga e deita a
cabeça no ombro de July que o abraça e estala um beijo em sua têmpora.
— Pelo amor de Deus, Carlos Eduardo, se controla. — recrimino
entredentes.
Coloco as mãos nos bolsos das calças, projeto o peito para frente
aplumando os ombros, com as pernas ligeiramente afastadas, me dou o
impulso físico que o mental necessita para poder dizer algo que seja
condizente com o momento.
— Não seja ranzinza Mika, vejo que está se esforçando. —
Anderson replica.
— Oh! Meu pangaré! Não fique assim, se saiu muito bem, amor.
— Aline fala da mesma forma que July mima o marido.
Envolto nessa aura melosa pra cacete, finalmente foco meus olhos
em Ramon.
Ele ao contrário dos demais, não está mais apoiado em Carla. O
Argentino que conhecemos como o homem sempre à frente de todos,
responsável por tudo, está ali, de olhos presos a minha postura e no seu rosto
há um ar de orgulho. Como se me ver de pé diante dele, fosse a prova de que
cumpriu seu dever.
Um sorriso constrangido, mas de fato caloroso cresce em meu
rosto. Retiro a mão direita do bolso e a estendo, ele se ergue e aceita meu
cumprimento com um aperto firme de mãos.
— Certa vez, ouvi de um sábio o seguinte: que bater a minha
cabeça na parede, não era sinal de inteligência. — Ramon reconhece a fala e
ergue o sobrecenho.
— Ele também me disse que poderia me dar seu ombro se
precisasse. Que eu poderia chorar tranquilamente, pois ele me emprestaria os
seus sorrisos, assim me esconderia pelo tempo que quisesse.
— Incrivelmente este sábio amigo, estava disposto a ser uma
parede intransponível ao meu redor, para que eu pudesse com minhas poucas
habilidades, crescer e alcançar o que queria. Eu vi neste amigo um exemplo,
talvez não tivesse consciência naquela época, mas hoje, tenho certeza, foi
nele em que me espelhei.
Aproximo-me dele e com a mão esquerda toco seu ombro direito.
— Não preciso desejar-lhe que seja feliz, porque você descobriu como fazer
isto, apesar de todas as adversidades. Não preciso dizer que este lugar te
pertence, e que sempre poderá voltar quando bem-quiser, pois, sem a sua
administração, não teríamos o êxito que alcançamos.
— Vocês são parte disto, não menospreze o que fizemos juntos. —
ele sussurra.
— Dou por verdade o que diz, — enfatizo segurando minha própria
emoção —, mas quero agradecer, por ser um mentor, não apenas na minha
vida profissional, mas por sabiamente, saber se calar no momento que desejo
gritar, e ser a voz que preciso ouvir, nos momentos que não consigo falar.
Sinto as lágrimas represadas ameaçarem a transbordar, ouço alguns
fungados e nem desejo saber quem está chorando para não seguir atrás. Puxo
meu amigo em um abraço apertado e com tapas firmes contra suas costas,
sussurro em seu ouvido o que poucas vezes disse em minha vida para
qualquer pessoa.
— Obrigado. Eu te amo. — pauso. — Com certeza, não irei me
arrepender, pois, pretendo manter firme em minhas mãos o que desejo.
Me afasto rápido dando aos outros, a oportunidade cumprimentá-lo
e volto ao meu lugar.
Ramon retorna a palavra e descreve emocionado seus
cumprimentos, depois transfere formalmente a Administração para Giovane.
O documento que assinamos há alguns meses foi como um contrato de
experiência.
Um escrevente do cartório está presente para as assinaturas
necessárias. Não faço questão de cumprimentar o Xuxa, porém não desejo
causar um constrangimento diante das emoções tumultuadas de todos.
Após um brinde proposto por Anderson com champanhe, a qual
recusei, pois, tenho uma audiência. July anuncia o almoço em comemoração
que ela e as amigas prepararam para nós. Tento declinar do convite, mas ela é
irredutível.
Desta forma me vejo sendo arrastado para o restaurante de Carla,
para mais uma sessão de torturas sentimentais.
CAPÍTULO 8

IMPASSÍVEL
“É preciso querer ser feliz e contribuir para isso. Se ficarmos na
posição do espectador impassível, deixando para a felicidade apenas a
entrada livre e as portas abertas, serão as tristezas quem entrarão
Émile-Auguste Chartier

LIA

P
referia não ter vindo ao almoço que July preparou, mas justamente por sua
dedicação não poderia deixar de vir.
Conseguir escapar da reunião foi um golpe de sorte, se meu celular
me desse um choque a cada vez que Angélica me perturbou com mensagens
do tipo: “Arraste sua bunda para cá, agora!” — “Onde você está se
escondendo Pocahontas?” Ou então. “Quando eu te encontrar, vou
arrancar esse seu cabelinho de Barbie.”
Essa última, confesso me fez rir. Será que Angel tem noção de que
ela de fato se parece com uma bonequinha Barbie com aquelas madeixas
loiras?
Após deixar Anjinho na escolinha, segui até o escritório e me
mantive escondida para receber um cliente. Contei os minutos até a minha
reunião acabar e poder sair antes deles.
Ouvi por alto comentarem que a sala de reuniões virou um campo
de concentração, mas era algo previsível.
Desde que foi anunciado os preparativos para aposentadoria de
Ramon, todos sabíamos que no derradeiro dia, uma bomba apocalíptica cairia
sobre nós.
Entre alguns dos motivos que me fizeram fugir às escondidas, esse
foi de longe o mais brando, como não teria escapatória, seguimos para o
restaurante antes do combinado e passei às duas últimas horas trabalhando no
banco detrás do veículo.
Dionísio abriu a porta traseira do SUV e sorriu com aquele ar
sempre sexy, é inevitável não retribuir. O Yes-man, não perde uma única
oportunidade de ser galanteador. Hoje para roubar o juízo de almas inocentes
— feito a minha, ele veio para fazer sucesso.
Perco alguns segundos no veículo, calçando meus saltos, mas tudo
uma desculpa para apreciar a peça rara em minha frente. Diferente do seu
habitual terno preto, Dionísio escolheu a cor cinza-claro, o que combinou
com seus exóticos olhos verdes.
O corte perfeito me diz ser um Armani, e tenho a impressão de ter
sido feito sob medida, para abarcar a largura dos ombros, bíceps e coxas
musculosas perfeitamente visíveis. A camisa social preta com colarinho entre
aberto permite ver o início do trapézio, a pele negra lustrosa é um chamariz.
Vejo sua expressão e me sinto corar, creio ter perdido mais do que
alguns segundos visualizando o conjunto da obra. Feliz a mulher que brincar
neste parquinho. — Penso.
Como diria July: se tesão tivesse rosto, ele seria idêntico ao meu
segurança.
Ele leva a mão fechada aos lábios produzindo um som de “rum-
rum” me encara através dos óculos de sol do tipo agente secreto, e abre
aquele sorrisão.
— Não eleve suas esperanças meu caro, — salto do carro e dou
dois toques em seu ombro —, a culpa é do seu bom gosto para roupas.
— Isto me basta, já que estando de serviço, não posso responder
outra coisa.
— Você está muito elegante para um guarda-costas.
— Digamos que, — ele pausa, bate à porta do carro e apluma os
ombros —, estou protegendo uma pessoa preciosa, que merece este cuidado.
— Ele arremata sua fala passando a mão indiscretamente sobre o peitoral.
O riso preso na garganta explode, mas o contenho a tempo, não que
vá ferir seus sentimentos, porque estou descobrindo no meu “segurança” um
amigo interessante. Contudo, estas frases bregas que ele solta aqui e acolá,
sempre alegram meu dia.
— Você quer almoçar conosco? — o convite sai de forma
espontânea e pega a ambos de surpresa.
— Agradeço, mas terei de declinar. Tenha um bom encontro com
os seus amigos.
— Duvido muito e… obrigada.
— Pelo quê?
— Por me distrair.
— Tentei soar galanteador, poxa… — ele faz um estalo com a
língua no céu da boca.
Não tenho a oportunidade de respondê-lo. Angélica estaciona sua
moto no pátio do restaurante e nos encarou com ar assassino.

O restaurante de Carla é situado no centro, um casarão antigo que


ela namorou por anos, um presente que Ramon não economizou esforços
para adquirir, na época em segredo fiquei encarregada dos trâmites legais do
patrimônio, minha área de atuação. Lembro-me vividamente da sua alegria na
inauguração, parecia uma criança com um brinquedo novo.
A famosa Cheff Staeler Santorini, já alcançou um prêmio após a
inauguração. Como não sou especialista em gastronomia, o que posso dizer é
que cada prato que ela faz, nos leva aos céus de joelhos.
O interior do restaurante foi conservado em sua estrutura original.
Algumas paredes onde o reboco havia cedido, recebeu um tratamento
especial sobre os tijolos de cerâmica antigos, o chão de tábua corrida foi
raspado e envernizado para reviver sua antiga glória.
O amplo espaço térreo ganhou dois salões de refeição e no andar
superior, lustres de gotas em cristal iluminam o ambiente com delicadeza.
Uma música suave soa por discretas caixas de som, mas aos finais de semana
o enorme piano de cauda é o foco e glamour durante as refeições.
O hall de entrada foi dividido em uma elegante chapelaria e um
mezanino com um balcão antigo reformado, onde os clientes podem apreciar
uma bebida enquanto aguardam por sua mesa reservada. Deixei, minha pasta
e o blazer com a charmosa atendente, sorri em agradecimento e fui informada
que nossa mesa estava reservada no andar superior.
Parei diante de um espelho gigante que reveste a parede entre as
escadas de mogno e a porta que leva aos toaletes, penso em descartar a
echarpe, mas a visão me agrada, passo os dedos de leve sobre o coque bem
firme e sigo adiante.
Todos estão em volta da mesa, conversando, se acomodando,
enquanto o Metre disserta sobre a carta de vinhos exclusivos da vinícola
Argentina dos Staeler, e um garçom acompanha fazendo anotações.
Apesar de estarmos isolados de certa forma dos outros salões, uma
parte do teto, piso superior foi recuada, para dar espaço a um guarda corpo de
vidro preservando a intimidade sonora do ambiente, mas ainda assim dando
uma visão do enorme salão principal apinhado de quadros famosos e
anônimos. É uma coleção impressionante que Anderson cedeu do acervo
particular do seu pai para o local.
A pintura mais impressionante é de uma mulher lindíssima, olhos
verdes misturados ao azul, cabelos de um loiro platinado, corpo delgado e
expressão indecifrável. O vestido branco chega a ser indecoroso para sua
expressão inocente, mas o que brilha na tela são as joias. Um conjunto
completo de águas marinhas, que repousam contra o colo, quase por sobre os
seios fartos, no tom exato dos olhos incomuns.
— Todos se fascinam com essa pintura. — o comentário vem de
Aline que me abraça por trás.
— Concordo! O fato de não sabermos quem pintou, mas fazer parte
da coleção do tio Vasquez é o mais interessante.
— Ela é tão linda que chega me arrepiar. Você não tem impressão
de já ter visto olhos assim?
— Hum! Não, acredito que não.
— Angel viaja neste quadro, todas às vezes que vem aqui, Carla
diz que ela tira milhares de fotos.
Me lembro vagamente de Aline externando seu pavor por ter essa
pintura em casa: “Eu me sentia estranha todas às vezes que via esse quadro,
quando Anderson me questionou sobre trazê-los para cá, esse foi o primeiro
que arranquei da parede.”
— Coisas de Angélica! — rimos.
Me viro dentro do seu abraço e transpasso minhas mãos a sua volta
corretamente. — Como você está?
— Sobrevivi a reunião. — Ela sussurra, quero saber todos os
detalhes, mas Dinho a rouba dos meus braços e o assunto se perde.
Cumprimentos e alguns fragmentos da reunião preenchem o ar,
mas July com seu jeito único logo retira o foco de todos para algo leve e
cômico.
A disposição dos assentos ficou casais nas partes superiores e os
solteiros na inferior, o que conta como um completo zero em divisão se
pensarmos em Angélica e Giovane dividindo a cabeceira e Mikael a minha
frente.
Me senti constrangida com seu escrutínio assim que me sentei à
mesa, mas gradualmente e com alguns goles de um excelente vinho estou
tentando relaxar.
Conferi meu celular algumas vezes querendo uma mensagem ou
ligação para ter uma desculpa perfeita para dar uma escapulida.
Carla está explicando algo sobre os pratos elaborados, que serão
servidos. July elogia o empenho da amiga e cita meu nome, eu concordo com
a cabeça, ergo minha taça e lá está ele me comendo com os olhos, mas sem
nenhuma expressão aparente.
Os pratos começam a ser servidos, a entrada são camarões
empanados com coco, sopa fria e algumas saladas. Mordisco uma torradinha
molhada na sopa, levo aos lábios e o sabor aguça minhas papilas, fito seus
olhos enquanto beberico mais um gole de vinho e ele faz o mesmo
movimento, porém com copo de água lindamente decorado com limão e
hortelã.
— Não vai beber? — pergunto em tom baixo para quebrar o gelo,
já que nem mesmo nos cumprimentamos.
— Tenho audiência às 15 horas.
— Nossa! — exclamo e olho o relógio em meu pulso. — Você não
vai se atrasar?
— Não.
Suas respostas curtas, são completamente diferentes do tom que
usou pela manhã em sua ligação escandalosa, que obviamente estava
mascarando algo que perturbou. Eu estava certa em meu julgamento.
A comida a minha frente parece apetitosa, entre uma meia garfada
e um riso forçado, aguentei por mais alguns minutos a tensão no ar, mas por
fim, me ergui e pedi licença.
Se acharam estranho ou não sair abruptamente no meio da refeição,
não sei. Contudo, precisava disto. Coloquei minhas mãos sobre o jato de água
fria e toquei sobre as bochechas e a testa, mesmo que arruinasse a
maquiagem, eu precisava…
Suspirei um pouco mais calma, a tensão de antes abandonando
meus ombros e pensamentos. Sequei meu rosto, dei um passo atrás. Suponho
que por vê-lo e saber que algo está errado me deixa assim, ou talvez seja por
vê-lo depois do acidente e querer abraçá-lo com força sabendo que ele
realmente está bem.
— Lia se controla! — exclamo e bato a mão em punho contra a
bancada.
A pior coisa que pode nos acontecer é estarmos cheios de
pensamentos, sentimentos e desejos, que não ousamos de forma alguma a dar
nomes, pois o medo de torná-los real é mais cruel do que a falta de não o
fazer.
O toalete como o resto do restaurante, preservou algo do antigo
casarão e ganhou outras inúmeras modernidades. Uma das reformas que mais
gostei, foi Carla transformar o armário de roupas, ou de limpeza em uma
antessala aconchegante com sofá canapé, antes de entrar no lavabo.
Abri a porta de carvalho pesada e passei para o cômodo pensando
em dar-me mais dez minutos de pausa, porém meus planos são frustrados.
Assim que ouço a porta do banheiro se fechando, uma mão firme agarra-me
pela cintura e gira meu corpo contra uma massa forte de músculos.
Um clic soa baixinho às minhas costas informando que estou ilhada
no pequeno cômodo com Ele…
Mikael me prende contra seu corpo mantendo-se em silêncio,
graças aos céus resolvi usar uma echarpe fina de verão para compor o look do
dia, ou entregaria de bandeja o quanto sua proximidade física me afeta. Não
que ele não saiba, foi esse o motivo da minha fuga. A pulsação acelerada na
base do meu pescoço ameaça parti-lo ao meio.
— O que está fazendo? — tento me livrar do seu agarre, mas a
expressão tensa vincando o cenho a minha frente me faz retroceder. — Pode
me soltar, por favor?
Ele continua calado me olhando, estudando minha feição com olhar
arguido. Mikael parece afundado em seus pensamentos. Algo me diz que a
reunião só piorou a sua situação.
— Aconteceu algo? Precisa conversar?
Seu aperto firme na minha cintura intensifica, meu corpo cede ao
seu poder físico e os saltos batem contra o piso de madeira. Minhas mãos
apoiam contra seu peito musculoso e involuntariamente deslizam sentindo as
elevações do peitoral até o início dos gominhos saliente em seu abdômen.
Ele se encosta contra a parede às suas costas levando-me junto,
suas pernas musculosas cedem ao peso e seu corpo escorrega um pouco nos
deixando quase na mesma altura.
Mantenho o rosto impassível, e me esforço para não expressar
nenhum sentimento e os anseios que turbilhoa minha mente.
— Mikael, me solta! — suspiro empurrando para longe sem
sucesso. — Alguém pode entrar e será constrangedor dar explicações.
Uso o argumento errado, pois, não faríamos. Não daríamos
quaisquer explicações. Se tem algo em que combinamos bem, é não dever
satisfação de nossas vidas a ninguém. Seguro o riso, mas não consigo
esconder o tremor nos lábios.
Ele relaxa o corpo, minhas pernas se embrenham entre as suas e
sinto o volume do sexo a meio mastro contra o início das minhas coxas. Seria
novidade se ele não se excitasse ao ter uma mulher contra o seu corpo.
— Tê-la…
— O quê?
— Não deveria acreditar em tudo que lê em revistas de fofoca. —
Sua voz grossa me arrepia.
— Está praticando telepatia? Se for, precisa se esforçar mais.
Ele bufa e não responde. Nunca, daria a ele o gostinho de saber que
aquela entrevista me magoou.
Mikael ergue uma das mãos até a altura da minha cabeça e puxa o
pauzinho de bambu-chinês que prende o meu coque, meticulosamente
arrumado.
O choque de ver meu cabelo desabando sobre meus ombros é tão
grande que perco o momento em que ele se aproxima. Sou pega de surpresa
ao sentir seu rosto enterrando-se entre os fios e meu pescoço. Ele escava o
lenço com o queixo, arranhando a minha pele com sua barba, aspira forte
sentindo o cheiro do meu cabelo entre a junção da nuca e pescoço.
Um gesto tão simples e tão familiar.
— Mikael… — ele puxa o ar com mais força, arranha minha pele
com a barba procurando um lugar específico.
A pele arde e meu corpo se arrepia. Desisto da batalha em afastá-
lo. Ergo minha mão e passeio sobre seu ombro até tocar a suas costas. — Está
tudo bem… — dou batidas leves sobre o ombro forte.
Um consolo simples, para algo que não tem explicação. Ele se
afasta deixando o seu rosto a milímetros do meu. Seus olhos estão dominados
pelo tom de cinza, a pupila escura parece um pontinho em meio a tempestade.
Quase permito-me sorrir com um pensamento fugaz.
O tom de voz que ele usa, me coloca no limiar novamente.
— O quanto você se ressente?
— De que está falando?
Ele se cala mais uma vez, isso me enerva. Mordo o meu lábio
inferior, a tensão nesta situação anormal me preocupa; geralmente vamos do
sexo às ofensas e esse meio-termo, é no mínimo estranho.
— Eu disse que iria até você, mas isto foi antes. Não tome isto
como uma forma de estar cumprindo o que disse pela manhã. Ainda vou até
você.
— Não acredito que isso…
As palavras ficaram perdidas em meio ao beijo. Não um beijo, mas
algo entre isso e… Oh, Deus!
A boca de lábios carnudos resvala sobre a minha com uma leve
pressão, subindo e descendo em um ritmo suave. Ele entreabre os lábios
mordisca carne contra carne, agarrando meu lábio inferior entre os dele,
saboreando e lentamente deixando ceder a sua posse até deixá-lo livre,
ascendendo para o lábio superior.
Inspiro profundamente o aroma másculo que se desprende do seu
corpo embrenhando-se por meus poros, e o gosto mentolado de hortelã e
limão penetram minha boca.
Mikael captura-me desde a comissura do lábio superior até o meio
do arco do cupido, deslizando-os de formas a se encaixarem, prendendo-o
para novamente liberar a carne polpuda, voltando ao inferior refazendo o
mesmo caminho para o superior sucessivamente em uma dança inocente de
lábios, em um vaivém catapultando diversas sensações físicas e emocionais
que percebo através dos nossos corpos de forma palpável.
Sem perder o fôlego, ou deixar de eriçar seus lábios contra os
meus, ele escorre suas mãos contra a base da minha nuca deixando-me livre
do agarre na altura da cintura.
Não tenho forças e nem vontade de me afastar.
Sua boca puxa meu lábio inferior e segura-o por alguns segundos a
mais incendiando minha mente com fagulhas.
Espero ansiosa pela invasão explosiva da sua língua, mas ele, não
toma iniciativa. Por algum motivo, permito-me ser envolvida por esta
sensação estranha como um déjà-vu…
Ele reclama com um som rouco que reverbera por minha boca,
avocando minha atenção para nós. Nossos corpos ainda colados, suas mãos
acariciando minha nuca, e as minhas seguindo por seu peito até estarem por
sobre seus ombros, cruzadas por detrás da sua nuca replicando os mesmos
gestos. Deixando a tal fagulha arder entre nós, com esse beijo inocente,
estranho, gostoso e revelador.
Uma lembrança há muito tempo esquecida implode em minha
memória, ouço um riso sarcástico, um muxoxo, resmungos, outra risada
baixa e então um estalo…
O cheiro de umidade, poeira, de madeira molhada se misturam ao
aroma adocicado das garrafas de vinho roubadas da adega do tio Gustavo.
Novas risadinhas ecoavam pelo cômodo, sabíamos que assim que
os adultos fossem para os quartos, poderíamos descer as escondidas, porém
não imaginávamos que os meninos teriam a mesma ideia que nós.
— Se ficarem bêbados, serão pegos, — sussurrou uma voz grossa
meio adulta, em algum lugar do enorme cômodo escuro.
— Você vai nos dedurar? — alguém o questionou.
— Se está fosse minha intenção, já teria feito, — a voz saiu como
um bufo.
Ele resmungou algo, mas nós já estávamos muito alterados para
nos darmos conta. Senti uma mão pesada batendo sobre a minha, me
esforçando para não rir alto, virei-me e meu rosto ficou a milímetros do seu,
iluminados por uma luz fantasmagórica que a lanterna minúscula de um
chaveiro produzia.
— Você está bêbada?
Neguei com a cabeça e as mãos unidas sobre minha boca.
— Quer ir para cama?
Arregalei meus olhos encarando-o e levei um cutucão na testa.
— Dormir! Sua mente é mais suja que a minha. — Ele riu com tom
de escárnio.
Ouvimos mais risos abafados um pouco mais distantes. A rodinha
de antes se desfez cada um indo para um lado.
— O que você queria falar mais cedo? — Ele perguntou se
acomodando melhor.
O rosto de adolescente/jovem marrento impondo presença com seu
primeiro projeto de barba, está mais próximo. Os olhos multicores que nem
eram azuis e nem cinza, pareciam tempestade líquida dançando contra a luz.
— Queria mostrar! — minha voz saiu enrolada, de certo que a
prova da minha ousadia estava vindo de uma ou duas garrafas de vinho
vazia aos meus pés.
— Mostrar?
— É! — me aproximei. — Eu vou te beijar.
A sua expressão se tornou neutra. Provavelmente me mandaria
sumir da frente dele, desabaria na risada como das outras vezes. Eu já
estava pronta com meu argumento para convencê-lo.
— Ok! Me beija.
Se soubesse que ele aceitaria, teria realmente treinado mais com
as indicações loucas da Carla, ou então prestado alguma atenção àquelas
cenas ridículas de Malhação, que Aline amava ver. Todavia isto, não me
impediria de mostrar a ele o quanto cresci.
Contei até três e o beijei. Do jeito que imaginei. Da forma que me
fez arrepiar. Meio estranho, muito infantil, mas com toda a ousadia de um
primeiro beijo, afinal eu nunca fui beijada e tão pouco beijei ninguém.
Se demorou ou foi rápido demais, não sei, mas assim que me
afastei ele estava… rindo. O cretino estava rindo e não era de um jeito
romântico. Seu rosto se contraiu com uma careta e uma gargalhada escrota
vazou pelos lábios pressionados.
— Você chama isso de beijo?
— Sim! — respondi de imediato, rebater idiotices sempre será a
minha especialidade. — Este foi o melhor beijo da sua vida!
Um blefe ridículo, já que nem eu mesma sabia se aquilo foi um
beijo.
— Com certeza é único, mas o melhor?
— Miguel… — bufo irritada voltando para a minha sobriedade
aos tapas.
— Adoro quando me chama assim, — ele para com o escárnio e
encosta sua testa contra a minha, — quer mesmo ser beijada, Anjinha? —
movo de leve minha cabeça dando um pequeno clic contra a sua testa. —
Então amanhã, quando estiver sóbria, eu vou te ensinar a beijar.
— Eu não estou bêbada! — rechaço sentindo as letras escorrerem
por meus lábios como sopa de letrinhas.
Ele riu mais uma vez, escaneou o meu rosto com sua enorme mão,
os calinhos feitos pelas cordas do violão arranharam minha bochecha, seu
nariz roçou o meu e a barba ridícula raspou contra o meu queixo.
— Tudo bem! Como não está bêbada, vamos guardar esse beijo
para os momentos especiais, que tal?
— Como assim? — me afasto temendo que ele nunca mais volte a
me beijar.
Do jeito que é galinha e idiota, vai beijar várias, e a mim só nos
aniversários e natais, como: beijos de datas especiais.
— Você precisa treinar sua atuação facial, Lia… — ele ri —,
mesmo com pouca luz, posso ler tudo o que está se passando nessa
cabecinha suja.
— Hei! — empurrei o seu ombro.
Ele segurou o meu pulso e me trouxe para perto até que pude
sentir o seu peito contra a lateral do meu corpo.
— Todas às vezes que estivermos muito tristes, ou muito felizes,
nós podemos usar esse seu beijo especial, para nos lembrarmos como tudo
começou. Que tal?
— Você é romântico?! — a pergunta saiu e arregalei os meus
olhos, porque isto deveria ser um pensamento. — Será que realmente estou
bêbada?
Ele ri, escovando meus longos cabelos para trás. Odeio meu
cabelo muito liso e muito grande, mas só porque ele disse gostar, deixei
crescer tanto que já estão quase cobrindo minha bunda. Divaguei um pouco
e não percebi o que ele respondeu.
— O que disse?
— Nada de mais, — ele pausou. — Eu não sou romântico, mas por
você, eu posso ser.”

Me afasto separando os nossos lábios. Ele tem uma expressão


serena, enquanto me encontro prestes a ter uma síncope.
Ao deixarmos aflorar as emoções suplantadas, abrimos passagem
para nossas lembranças vagarem por sobre a borda da nossa consciência, e
nos surpreendermos ao reconhecer detalhes que passaram despercebidos por
nós ao longo de uma jornada. Pode não ser nada relevante, no entanto, pode
ser a fagulha que nos falta para reavivarmos um sentimento inestimável.
— Miguel, isto…
— Adorava quando me chamava assim… — ele sussurra, apruma
o corpo e dá um passo para o lado.
Não consigo formar uma frase coerente, não com esta lembrança
brincando com minha mente.
— Em alguns dias, Angélica enviará a você alguns documentos.
Assine-os. — Sua voz é avessa a expressão serena de segundos antes.
— O quê?
— Ramon já deve ter feito uma transferência corrigida dos seus
rendimentos como uma associada para sua conta, não os devolva.
— Do que está falando, eu… — sinto a sutileza me abandonando e
algo muito perigoso pairando no ar. — Sobre o que exatamente está falando,
Mikael?
— Não demore a subir ou July pode mandar uma equipe para
buscá-la.
Ele deu outro passo para longe abriu a porta e saiu tranquilamente,
como se não houvesse feito, falado e nem explodido a porra da minha mente
com lembranças e informações, não assimiladas.

— Da próxima vez podemos ter as crianças no almoço. — Aline


comenta abocanhado um camarão com gosto.
— Seria bom mesmo sócia, vamos fazer isto lá em casa, o que acha
Morangão?
— O que quiser, amor.
O beijinho roubado acaba provocando uma onda de assovios e
provocações, por instinto os casais trocam beijinhos entre si.
Remexo a salada em meu prato, ouço um engasgo, olho com o
canto dos olhos e vejo Giovane levar a mão a altura do estômago enquanto
Angel permanece plácida degustando o mesmo prato que a irmã.
Seguro o riso.
— Então estamos combinados! Próximo final de semana faremos a
festinha para as crianças. — July bate palmas agitadas.
Por alguns minutos ela, Aline e Carla se esquecem que estamos em
um almoço misto. As ideias para festa, temas, e cardápio rapidamente são
decididos. Incrível!
Não quero ser sarcástica ou dar a impressão de que o assunto me
incômoda, por isto deixo minha mente viajar pela troca de mensagens, a
ligação que ele me fez pela manhã e o que acabou de acontecer na ex-
antessala adorável do toalete.
— Liaaa? Olá, terra chamando.
— Ah! Desculpe-me July, — tento sorrir enquanto finjo me
empolgar com o assunto.
— Estamos combinando o melhor horário, na parte da tarde, o que
acha?
— Ok! Tudo bem. — Com o que estou concordando, meu Deus!
— Ótimo, vou esperar por você e Anjinho.
O quê? Esperar? Esperar onde?
Estou pronta para recusar o convite, mas July com sua
metralhadora na ponta da língua já está intimando a Mikael para comparecer.
Meus olhos se deslocam até o outro lado da mesa, ele arqueia o sobrecenho
com ar debochado.
Provavelmente percebendo meu desconforto.
— Você também está convidado, ouviu Ruivão?
— Para uma festa de pais e filhos? — ele ri e toma um gole da sua
água. — Sabe que te amo Moranguinho, mas é sem cabimento essa sua ideia.
— Não senhor! Quero todos lá, e é bom que já vai treinando de tio
gostosão, super bacana, para o Paizão do ano. — Ela sorri e pisca para ele.
Mikael para com o copo a meio caminho da boca, rapidamente o
clima muda a nossa volta, mas na sua inocência, July e as suas parceiras de
organização de festas não percebem.
Mikael desce o olhar e solta uma gargalhada amofinada, as
meninas entram na onda, mas sem imaginar o quão falso é esse som gutural.
— Pai? Moranguinho, só mesmo essa sua cabecinha de sonhos
para dizer algo assim.
— Mikael!?
Ramon tenta interferir, mas eles continuam como se não o tivesse
ouvido.
— Pai sim! Imagina um bebê fofo, gorducho com esses olhos
lindos e essa cor de cabelo? — July sorri com olhar sonhador abanando as
mãos no ar.
Mikael ainda mantém o sorriso, mas seus olhos são adagas frias
penetrando a minha carne.
— Nem em sonhos. Existem espécies que jamais deveriam ser
reproduzidas.
— Como assim?
Tenho ímpetos de pedir July que pare de fazer perguntas. Edu
percebendo o que vai acontecer segura as mãos dela sinalizando, mas já é
tarde.
— Como EU! — Ele bate a mão no peito. — Não tenho a menor
vontade de me reproduzir. Farei um enorme bem a humanidade se… — ele
pausa e me antecipo ao que vem, não posso suportar ouvir se menosprezando.
Ele ri. Ninguém o faz.
Me ergo sem me dar conta. — July, agradeço o almoço, mas
preciso ir.
— Você nem se alimentou direito.
— Tenho um compromisso, lembra? — Não a deixo continuar,
com o celular nas mãos, dou um passo atrás. — Giovane seja bem-vindo a
firma, agora formalmente. Ramon, parabéns pela sua aposentadoria. Pérola
vai amar ter você o tempo todo. Agradeço o convite.
Estou prestes a sair, minhas mãos tremem levemente e meus olhos
ardem.
— Espera, Lia, — Aline se vira para Anderson em seu olhar
percebo a sua aflição — amor, Lia está sem carro, me deixa em casa que vou
emprestar o meu a ela.
— Claro, Estrelinha! — Anderson mais que depressa aperta a mão
da esposa.
Toques sutis, gestos abafados, mecânicos. O Quarteto fez algo a
Mikael e isto somado a reunião é a motivação para sua resposta afiada.
Que porra! Não quero justificá-lo, mas este é o mal de uma mente
analítica, em busca de provas e motivos.
— Não precisa, Aline — dispenso rápido —, sou grata, mas
Dionísio está lá fora.
— Dionísio?
O burburinho feminino vem acompanhando de risinhos e
incrivelmente quem me salva do constrangimento é Angélica.
— Dionísio, o segurança. — Curta e grossa ela encerra o buchicho.
— Pelo menos, uma de vocês faz o que é esperado e deixa a segurança fazer
o trabalho para o qual é paga.
Com resmungos ela joga sobre a mesa o guardanapo de linho, sua
postura é de um gângster encerrando uma reunião.
— Preciso sair. Faço das palavras da Pocahontas, as minhas.
Com sua deixa, a sigo para fora do restaurante ignorando os
protestos.
A luz solar é intensa e me faz piscar algumas vezes, meus olhos
umedecem. Leves batidas as minhas costas me fazem recuar bruscamente.
— Entra no carro e vai para casa. — Angélica aponta o SUV preto
parado diante de mim.
— Vou para o escritório.
— Você quem sabe. — Ela pausa e parece ter algo a dizer, mas
morde o lábio inferior.
Raras vezes a vi hesitar assim, estou surpresa e a ponto de
perguntar o que tem a dizer, mas como esperado sua pausa foi apenas para
tomar fôlego.
Angélica se aproxima, sua estatura é menor que a minha por uma
cabeça. Ela ergue os olhos tão sagazes como os de um felino. O cheirinho de
canela esquenta minhas narinas.
— Você sempre soube como ele era, e mesmo assim, arriscou
tudo!
— Do que está falando?
— Você não sabe? — ela ri, mas a sensação que tenho é de pesar.
— Ah, Pocahontas! Admiro a mulher que você é, não me decepciona.
Ela se afasta colocando o capacete e subindo em sua moto tão
rápido que mal consigo assimilar suas palavras, até um estalo agudo soar em
minha mente como um gongo tibetano.
— Angélica!?
Grito, mas já é tarde, o ronco da moto possante dispara em meio ao
trânsito e assim que o silêncio retorna, a sensação amarga volta a minha boca,
mas com ela a fúria de mil infernos.
Revoltada e com meus sentimentos confusos me recuso a entrar no
veículo. Dionísio tenta impedir de seguir em direção à entrada do restaurante,
sem sucesso. Dou alguns passos furtivos e estaco em meio ao hall de entrada.
Mikael vem em minha direção, cabisbaixo com ar melancólico, o
corpo contraído. Sua atenção está no aparelho celular em suas mãos onde
digita algo furiosamente, ele passa por mim tão concentrado, que não me
nota.
Observo-o seguir pela calçada ignorando pedestres que saem da
frente para não serem esmagados no seu passo ligeiro e truculento.
Penso em segui-lo, mas sou impedida pelo som do celular.
@Promotor_nikolaievitch: não gosto de ser colocado contra a
parede. Não suporto que invadam minha privacidade. Não gosto que andem
pela minha casa e não quero falar de filhos com ninguém. Por que essa
porra de assunto tem sempre que vir à tona? São MINHAS escolhas, por que
ninguém pode respeitar isto?
@Promotor_nikolaievitch: porra!
@Promotor_nikolaievitch: Lia, não estou bem. Pensando melhor,
não me espere ou vou acabar te machucando, mais do que já fiz.
CAPÍTULO 9

INSPETORA
“Com o tempo você vai perceber que para ser feliz com outra
pessoa,
precisa em primeiro lugar, não precisar dela…”
Autor Desconhecido.

JULY

A
vista da enorme mansão sempre me arranca o fôlego. Chamá-la de lar é o
reverso de tudo que já tenha experimentado em minha vida, meu corpo e
alma se enchem de uma satisfação que não sei explicar. Talvez, seja a tal
alegria por sempre voltar ao LAR?
Desliguei o motor do carro, pelo espelho retrovisor observo os dois
armários embutidos em um SUV preto estacionado no meu portão.
Quem nunca quis homens bonitos e troncudos correndo atrás de
si? — penso com um riso sacana. No entanto, realmente tê-los fazendo isso a
cada segundo do dia, é de cair o cu da bunda!
— Principalmente pelos motivos que nos fizeram ter guarda-costas.
— assopro minha franja longe, me sentindo irritada.
Ao aceitar meu emprego, não esperava encontrar o amor. Um pai
de verdade para meus filhos, e nem mesmo um homem que me amasse e
valorizasse por quem era realmente, e está é a parte que mais emociona.
Amadurecemos mais nestes últimos três anos de relacionamento, do que em
toda nossa vida, as nossas diferenças apimentaram nossa relação e aquilo que
muitos julgaram que em breve poderia ofuscar esse amor, apenas fortaleceu.
Não vivemos em um mar de rosas, até porque, são os espinhos que criam a
couraça para passar dia após dia juntos, mas sempre buscamos nos entender.
É um fato, e sei que Edu concordaria comigo.
Alcanço a bolsa no banco detrás, retiro meu caderninho de
anotações, repassando página a página.
Com o tempo que levei do restaurante até chegar em casa, muitas
coisas passaram por minha mente de forma frenética. Entre elas, os novos
motivos que fizeram declinar-me da decisão de me manter longe deste caos.
Já fazia algum tempo que desisti de entender as minúcias, mentiras
e segredos deste amontoado de gente que formou uma estranha família, como
um quebra-cabeças gigante de peças obscuras e pontiagudas. Estar envolvida
com histórias macabras e atentados à vida, não era o que sonhei para minha
história de amor, por isso imaginei que se me mantivesse longe disto poderia
proteger a mim e minha família.
Mesmo que neste processo, me sentisse um pouquinho magoada e
excluída de alguma forma; — um pouco dramático, porém é justificável.
— É claro, que sei que cheguei por último, querer meter minha
colher de pau na vida de outras pessoas, pode ser indelicado e até xereta da
minha parte, mas se eu não o fizer? Quem faria? — argumento em voz alta,
olhando às duas últimas notas e as reflexões que fiz sobre elas.
A minha prévia conclusão é: não são apenas segredos sobre bens
materiais que ainda não foram revelados. São sentimentos de amor e ódio
enterrados. E se, não puderem superar isto, jamais teremos paz, e nem
mesmo a capacidade de combater o inimigo real de frente.
Munida destes argumentos válidos e pela minha curiosidade que
foi alimentada com tantas descobertas, estou disposta a voltar à ativa.
Abro a porta do motorista, coloco meus pezinhos calçados em um
Prada escandaloso no cascalho de pedras, o vestido vermelho de alças largas
sobe deixando boa parte das minhas pernas e coxas grossas à mostra, com
impulso saio do veículo, bato a porta, jogo os longos cachos negros para trás
e sinto o tecido leve sambar ao redor dos quadris largos.
Olho por sobre os ombros e não perco os olhares dos seguranças.
— dou a eles um sorrisinho e um tchau balançando os dedinhos. Sei que sou
ousada, não apenas em demonstrar-me orgulhosa das minhas curvas plus
size, mas por manter minha arma secreta, — meu caderninho de mistérios,
bem seguro em minhas mãos.
— O mundo que se cuide, a CSI Moranguinho está de volta!

Pelo silêncio as crianças devem estar jogando algum game em seus


quartos, aproveito o momento e me esgueiro até a cozinha. Como imaginei,
Maria e Celeste, a nossa fiel ajudante, que após o incidente em que Verônica
se passou como empregada para se infiltrar em minha casa, veio morar
conosco. Às duas estão dando risadas diante da tela do celular,
provavelmente vendo vídeos de gatinhos endiabrados em alguma rede social.
— Olá? — entro me fazendo de celebridade, desfilando meus
novos passos de passarela.
— Olha quem chegou, a Miss Moranguinho! — Celeste dá a volta
no balcão e bate palmas.
Desde que reabrimos a confecção e montamos o primeiro catálogo
para inauguração da loja e marca, ensaio em casa para subir às passarelas,
Celeste que é uma senhora na casa dos cinquenta anos e de muito bom humor
passou a se juntar às crianças para serem meu público. Isto tem nos rendidos
alguns bons momentos de descontração antes do jantar.
— Sempre bela e cheirosa, a nossa Miss Moranguinho, hoje desfila
seu vestido vermelho plissado que o patrão vai queimar assim que chegar em
casa.
— Não me lembre disto! — estaco em meio aos meus passos
estratégicos corando de raiva. — Ele me deu o vestido, como pode dizer que
agora vai queimá-lo? — bufo irritada ao lembrar-me da pequena discussão
pela manhã antes de sairmos.
— Você quem o provocou! — Maria continua focada nos gatinhos,
mas consegue dar pitacos na conversa. — Se lembra do vestido amarelo?
Coloco a mão de forma dramática sobre o peito; o meu lindo
vestido amarelo que ele amou, usou e abusou naquele escritório, só para
transformá-lo em cinzas, depois que Dinho me elogiou.
— Eu? — me faço de desentendida, confesso, o vestido serviu ao
seu propósito naquela altura e era bem sexy. — Ele que é um louco e muito
ciumento.
— Também, com uma… — Celeste ergue as mãos gesticula no ar
um desenho de coração, indicando a minha bunda generosa. — Qual homem
não teria ciúmes?
— Vocês não vão acabar com o meu bom humor, ok!? — rebato e
sigo rebolando até a banqueta ao lado de Maria, que finalmente ergue seus
olhos e me dá um sorriso.
— Como foi tudo? — ela pergunta.
— Hã!? — suspiro. — Foi emocionante.
— Imaginei. — a forma como me responde, diz mais do que as
palavras.
— Tão emocionante, que vou fazer o jantar desta noite, — anuncio
com entusiasmo.
— O quê?
— Mesmo?
Elas me olham com ar descrente. É verdade que deixei a função
das refeições para Celeste já faz um bom tempo, mas ainda sou capaz de
fazer um jantar delicioso para minha família.
— Ei! — rebato.
— Se é assim, vou trancar-me no meu quartinho e assistir as
minhas novelas atrasadas. — Celeste não perde tempo, arranca seu avental e
segue para a porta lateral que dá acesso a uma pequena suíte que designei
para ela como moradia no andar térreo.
Maria desliga o celular, alonga o corpo e se ergue. — Creio que
farei o mesmo que Celeste, porém com meu neto. Faz dias que tem pedido
para dormir com ele, acredito ser uma boa oportunidade se estiver tudo bem
para vocês.
— Por todos os cosmos no Universo! — exclamo jogando as mãos
aos céus. — Maria, já cansei de dizer: é livre para fazer seus horários e suas
folgas. Não precisa esperar por minha aquiescência. Imagina!?
— Trabalho aqui, July. É claro que preciso de seguir às regras.
Não contenho um bufo de indignação, reviro meus olhos. Como
pode uma mulher rica como ela, preferir manter um emprego, em vez de estar
apreciando sua vida?
— Faça como achar melhor. — dou de ombros e me preparo para o
embate. — Contudo, antes de você ir, podemos conversar um pouquinho?
Maria solta uma gargalhada escandalosa, para a milímetros de onde
estou curva o rosto e me fita com olhos estreitados.
— Eu sabia! O que a senhorita aprontou?
— Não aprontei nada. É apenas curiosidade.
— Ah, não! De novo não. — Maria se afasta abanando as mãos por
sobre a cabeça e resmungando. — Não comece com as suas loucuras. – ela
coloca a xícara na pia. — Já tivemos confusão demais nesta casa, por conta
das suas investigações. Hoje você e Edu estão bem, graças a Deus e ao fato
de ter desistido de ser uma super agente secreta.
Tento não pensar sobre isto. Ela realmente tem razão, minha
relação com Edu amadureceu, e em parte porque tivemos de aprender a
superar pequenos segredos, e as revelações bombásticas que cada um deles
representou em nossas vidas.
Todavia, não posso deixar de pensar que a minha resistência em
dizer SIM ao casamento, e a outra questão nos últimos tempos, tem me
angustiado e vem justamente do fato de viver em suspense constante, com
medo até de abrir as correspondências e ter Anthrax em vez de um boleto.
— O fato de não falarmos sobre isto, não fará o problema
desaparecer… — cantarolo chamando sua atenção.
Ela se vira e cruza os braços com ar embasbacado.
— Vai usar minhas próprias palavras contra mim?
— Funcionou? Outra coisa, não sou uma simples agente secreta,
sou uma CSI.
— CSI?
— Sim! CSI que é igual a: CAÇANDO SOZINHA ‘a’ INIMIGA.
Reclino-me contra o encosto da banqueta e cruzo minhas pernas
dando um ar sexy a minha expressão sabichona.
— Ah, tudo bem! — ela desiste e vem sentar-se ao meu lado. —
Desembucha, mas não espere que eu tenha todas as respostas.
Bato palmas extasiada e sem perder tempo coloco meu caderninho
sobre o balcão, abrindo na página certa, mas tomo cuidado para manter
minha mão sobre certa parte.

Maria prestou atenção em cada detalhe do que fui relatando sobre a


ida dos meninos até à casa do Mikael, o que a deixou incomodada e até
entendo, ela bem ou mal cuidou de todos como uma mãe zelosa.
— Acho muito ruim que eles tenham ido até à casa dele, todos
sabem que Mikael não gosta desta invasão na sua vida particular.
— Não só ele, não é mesmo? – faço uma referência sobre Lia ter
uma atitude similar. — Mas, concordo com você. Contudo, não penso que
algo lá tenha saído do controle, ele pareceu bem equilibrado na reunião, –
onde realmente as coisas saíram de controle. — Porém, antes de falarmos da
reunião. Quero fazer algumas perguntas.
Ela aquiesceu com a cabeça e cruzou os braços. Não faço ideia de
como perguntar sobre o seu marido ser preso e o que isso tem a ver com toda
essa confusão que envolve Verônica, por isso decido entrar em outro assunto
e de uma forma sorrateira, chegar aonde quero.
— No restaurante da Carla, tem um quadro de uma mulher… –
rapidamente relato de qual pintura se trata e o fato de não reconhecer o
pintor, não que eu seja especialista, mas pelas outras telas imagino que tenha
sido alguém muito famoso. — Você conheceu o artista ou sabe quem seria a
mulher retratada?
— Não. – resposta rápida demais.
— Hum! Entretanto, se lembra de qual moldura estou falando?
— Não.
— Engraçado, supus que tivesse observado os quadros na
inauguração.
— Observei, ainda mais quando a senhorita foi muito delicada com
seu comentário. – ela abre aspas com as mãos. — “Não sei para que tantos
quadros em um restaurante, em um mês vão ser apenas uma pilha de poeira
e gordura.”
— Minha Santa periquita! Vocês guardam cada coisa escabrosa na
mente. Não me lembre disto, ainda sinto frio com olhar assassino da minha
cunhada.
Maria solta uma risada e volta a ficar séria.
— É uma pena que não se lembre, – coloco a mão sob o queixo
com cotovelo apoiado sobre a bancada e suspiro. — Angélica adora aquele
quadro… – comento.
Maria não me responde de imediato, sua expressão facial continua
a mesma, contudo os meus olhos treinados na captura de pequenas mentiras,
estão atentos. São anos de prática sendo mãe de quatro pestinhas, percebo o
leve balançar do pé no ar, dedinho indicador apertando a manga da blusa.
— Lia, também se interessou. Realmente o olhar daquela mulher é
único, estou realmente pensando em pesquisar mais sobre o pintor, acredito
que anotei o nome dele em algum lugar. Quem sabe, não encontro mais
algumas obras dele por aqui em Vitória?
— Juliana, é só isto? — Maria me interrompe um pouco exaltada.
— Eu queria sair antes de escurecer.
— Ah! Me desculpa, divaguei um pouquinho né? Mas, não vou
atrapalhar sua saída, só mais uma coisinha. Vamos fazer uma festinha para as
crianças no final de semana e convidei seu netinho e Lia.
— Mesmo? O que ela disse? — Maria parece surpresa.
— Não disse. – rebato. — Se levantou e fugiu. — lamento.
— Ela é parecida com o pai…
— Esquiva? — sussurro.
— Não gosta de festas.
—Hum... – resmungo. — Se o clima não tivesse ficado tenso
novamente, teria insistido. Mas, Mikael já tinha surtado no escritório sobre o
que Giovane falou do Sr. Joaquim, – suspirei e joguei minhas cartas. —
Arrisquei distrair-nos falando sobre os futuros filhos do Ruivo, querendo
convidá-lo para a festa, assim quem sabe ela não se animaria, mas…
— Espera. — Maria se ergueu. — O que falaram sobre o meu
Joaquim?
Mordi meu lábio inferior, não queria usar esse artifício para tocar
no assunto, mas ela não me deixou outra saída.
— Algo que aconteceu no aniversário de dezoito anos da Lia.
— O quê? – ela praticamente gritou. — Vocês não têm de falar dos
mortos. Não tem de falar de coisas que não os dizem respeito!
— Eu não falei NADA. Mas, o fato de Lia não aceitar a herança foi
questionado por Mikael, que não sabia e ficou muito irritado, e Giovane quis
validar a atitude dela com esta justificativa.
— Meu Deus!
Maria exclama aterrorizada, sinto dó da minha amiga, pois do
terror vejo uma dor imensa cortar seu rosto e lágrimas verterem de seus olhos
sem que possa impedi-las.
— Maria?
Me ergo, mas permaneço onde estou, enquanto ela anda em
círculos pela cozinha resmungando consigo mesma, imaginei que isto fosse
um assunto delicado, mas não que realmente fosse um segredo.
— Isto era um segredo? — pergunto inocentemente.
— Não está obvio, que sim? Se ela quisesse contar, teria feito
antes, ou melhor, – ela pausa, — não é um segredo. É a vida dela! É a nossa
vida! O fato de Lia, não aceitar sua herança não tem de ser discutido com
NINGUÉM, a não ser que ela queira.
— Era um segredo escondido, apenas do Mikael, por quê? E
quanto ao seu marido…
— O que aconteceu com o meu Joaquim foi algo… Algo que custei
muito a perdoar, Juliana. Meu amado marido foi acusado de roubo, sofreu a
pior das agressões que poderia sofrer em vida.
— Que tipo de agressão e de quem?
— Eu te amo, respeito, admiro, mas não vou falar sobre isto
Juliana. Levarei a minha vida toda para superar o que meu Joaquim passou, e
provavelmente não conseguirei.
— Me desculpa, Maria. Não vou te incomodar mais com isto.
— Não a culpo por querer desvendar certas histórias, mas se
realmente quiser ajudar, pense em outros meios que não seja fazendo aqueles
dois encararem demônios enjaulados, reviver dores que não cabe a nós trazer
à tona. Minha filha já foi esfaqueada mais vezes do que poderia suportar.
Maria por fim para em um canto da cozinha, onde alcanço-a
envolvendo meus braços por seu corpo esguio que estremece com lágrimas,
não era minha intenção me enfronhar em meio a sua vida ao ponto de trazer-
lhe dor, mas se aprendi algo com minha falecida tia é que: remédios bons que
curam, consecutivamente serão amargos.
A verdade por mais nua e crua que seja, dolorosa, feia e escabrosa,
ainda assim será libertadora. Algo me diz que minha visita à Lia será antes
que planejei.
— Maria, sei que dói revelar certas coisas, falar sobre o passado
sempre traz um novo entendimento sobre um assuntou, ou só revive tristezas,
mas estamos cansadas de assuntos inacabados, minha amiga. Cansadas de
vivermos com medo, não acredita que quanto antes todos puderem resolver
seus problemas, seremos capazes de sermos felizes?
— Provavelmente tem razão no que diz. Hoje não serei capaz de
falar mais nada sobre este assunto, mas prometo que em breve, contarei tudo
a respeito do passado. – ela pausa. — Às vezes me pergunto se Joaquim
realmente tivesse cometido um crime, teria poupado sua vida. Pois, bastaria
apenas entregar àquela mulher o que queria e não teríamos perdido tanto.
Me afasto e fito os olhos inchados de Maria. Como suspeitei desde
sempre, Verônica já havia de certa forma exigido algo deles abertamente.
— Você estava certa, em determinado momento do passado, fomos
confrontados por aquela mulher. Todavia, como tudo aconteceu de uma
forma inesperada, ela apenas sumiu e julgamos que finalmente estávamos
livres, apesar das decorrências graves que se abateram sobre todos nós na
época e depois.
— A primeira regra de uma guerra, é não subestimar o inimigo. –
esfrego às mãos em seus braços aquecendo-a com conforto. — Não será fácil,
mas vamos nos livrar de verdade desse demônio que nos atormenta.
— Você realmente acredita nisto?
— Sim! Antes precisamos ajudar um certo casal de anjos.
— É mais fácil capturar Verônica. – com gentileza, Maria se solta e
segura minhas mãos. — Deixe-os seguirem sozinhos o seu próprio caminho,
se estiver escrito, vai acontecer, do contrário só deixe ir…
Sorrio para minha amiga e concordo com a cabeça para que ela
possa se tranquilizar, mas a minha mente já está às voltas com meu plano de
como bater à porta de Lia em breve.

De modo a me desfazer da sensação tensa que a conversa com a


Maria deixou no ar, meti a July sensata no bolso. Subi ao meu quarto, após
um banho relaxante, lavei os cabelos e os prendi em um coque frouxo, vesti
um short curto, com uma camiseta folgada, a imagem ideal para a mamãe
sexy, que faz hambúrguer e salada para o jantar.
As crianças estavam de banho tomado quando desci, e estavam na
sala vendo um filme na TV. Maria, deixou sobre a bancada os ingredientes
para o jantar e um bilhete informando que voltaria na tarde do dia seguinte.
— Ótimo! — exulto com sinceridade. — Melhor que ela se
espaireça um pouquinho.
Ligo a caixinha de bluetooth conectada ao meu celular, de imediato
uma das minhas músicas prediletas da seleção musical intitulada “Meu
Amigo Patrão” invadi a cozinha. Ao som de Meghan Trainor, cantando All
about that bass, início minha sessão de culinária.
Com as mãos contra a bancada da cozinha dou alguns passos
sincronizados com o ritmo da música, rebolo os quadris, mastigo uma
rodelinha de tomate e solto a voz me divertindo enquanto a alface e o picles
fazem às vezes de plateia.
Distraída não percebi o momento em que Edu chegou, nem quando
tomou seu banho, só percebo a sua presença, após ter dado um show inteiro
para ele com caras e bocas. Meu morangão se aproximou por trás e me
encaixou contra o balcão de refeição roçando seu corpo limpo e cheiroso
contra o meu. Senti um arrepio de cima a baixo e a leve estocada do seu pau
enrijecido contra a minha bunda empinada na posição em que me colocou.
— Carlos Eduardo! — exclamo. — Assim meu coração vai saltar
pela boca.
Ele ri com a boca contra minhas costas, sobe beijos estalados
contra a curva da minha coluna, até chegar ao meu pescoço, a boca dele se
abre contra a minha pele arrepiada e a sua língua desliza de leve na junção do
ombro e pescoço para alcançar aquela parte especial que me faz cruzar as
pernas.
— Deixa ele saltar para fora, que dou um jeito de “meter” ele
dentro.
— Estou falando do meu coração, seu sacana. — rebato sentindo
suas mãos agarradas à minha cintura subir de encontro aos meus seios presos
em um top por baixo da camiseta folgada.
— Eu não estou falando de coração, mas de algo que pulsa na
mesma intensidade.
Dou tapas em suas mãos. Ele ri alto, me faz virar dentro do seu
abraço e antes que possa protestar cobre minha boca com a sua.
O beijo vem gostoso rápido e intenso, mas assim que nossas
línguas se tocam e o primeiro gemido ecoa em meus ouvidos, Edu abranda a
sua pegada e mata a sua saudade como diariamente. Lento e harmonioso,
deliciando-me com sabor mentolado do seu hálito e o calor ardente que seus
beijos produzem. Meu corpo é uma massa derretendo em suas mãos, arrepios
sobem e descem em uma viagem alucinante por entre os poros da minha pele.
Ele me toca, na extensão de todo o significado da palavra.
Ergo meus braços e cruzo por detrás da sua cabeça, enrosco meus
dedos no cabelo que estão um pouco maior na nuca, sinto a barba que
sombreia o seu rosto roçando contra meu queixo. O peito enorme comprime
meus seios que já estão doloridos, as pernas fortes na bermuda são pilares
que sustentam as minhas.
Beijamos por algum tempo, entregues, mas o som de gritos
eufóricos vindo de algum lugar da casa, nos lembra que temos filhos
pequenos e curiosos que a qualquer momento irão invadir a cozinha.
Edu se afasta com aquele olhar tarado que me excita. — Senti
saudades meu moranguinho.
— Estivemos juntos hoje por boa parte do dia.
— Então vou refazer a frase. Senti saudades dessa boca, meu amor!
— Digo o mesmo, morangão.
Aspiro o ar com cheiro gostoso da sua colônia e sabonete, sexy e
muito másculo. Edu cruza seu olhar no meu e desce apreciando a vista. Ele
não consegue esconder o que está pensando, e se não fosse pelas crianças, de
certo que estaria sob a mesa com ele por cima. Algo que deseja muito, e que
nos últimos tempos, é o seu foco. SEXO! Intenso, suado gostoso, orgástico,
porém com um único objetivo, e isto tira a graça destes arroubos fodásticos.
— Pare de me olhar assim. — implico empurrando seu peito para
longe. — Me sinto a chapeuzinho vermelho diante do lobo mau.
— Ah! Não fale assim. — ele se faz de sonso. — A chapeuzinho
nunca teria uma bunda tão gostosa. — sussurra arqueando uma das
sobrancelhas no modo cafajeste.
Rindo dou-lhe às costas e termino de montar os hambúrgueres. —
Bem que Celeste falou… — começo e estaco em meio a frase.
Aí Juliana, que burra, tinha de lembrar disto? — tenho ganas de
me bater mentalmente.
— Por falar em Celeste, — ele começa, me abraça novamente e
sussurra em meus ouvidos. — Ela concordou comigo pela manhã, quando eu
disse que aquele maldito vestido, estava demais.
— O que ela quis dizer, na verdade, é que ele era lindo! — rebato.
— Lindo, sim! A mulher dentro dele, nem se fala, mas aquele
pedaço de pano profanado irá fazer companhia ao amarelo. Na terra do
nunca. Nunca mais irá vesti-lo, Juliana. Estou falando com total certeza, de
tal modo, que quando colocar minhas mãos nele, já era.
— Se não quer me ver com estes vestidos, por que me dá? — Não
altero em nada minha voz, sou um poço de plenitude em relação à ameaça
cataclísmica.
— Porque são perfeitos em você! — ele admite com pesar. — Não
resisto quando vejo sua alegria entrando e saindo dos provadores nas lojas,
mesmo que sua felicidade seja em torrar o meu dinheiro. A minha é ver esse
corpo desfilando em seda.
Prendo um riso, aperto os lábios com força e faço cara de
paisagem. — Consegue ver a contradição? — permaneço no jogo.
— Sim, — ele bufa — e não quero discutir sobre isso.
— Ok! Meu vestido está a salvo então.
— July…
— Sem discussão morangão. Se não consegue entender a si mesmo
que ama e odeia meu vestidinho lindo, não tem base para argumentar. — olho
por sobre o ombro. — Sou mulher de um listradinho, uma quase advogada
por tabela, nem tente.
— Por agora passa, porque meu interesse está em outro lugar. —
ele fecha o cerco apertado contra meu corpo. — Amanhã estou de folga e
pretendo passar o dia todo na cama com você.
— Parafraseando dona Bela: Você só pensa, naquilo!
— Penso e faço!
— Mas, é uma pena que os seus planos serão frustrados, amanhã as
crianças não terão aulas, e já pediram um dia de praia.
— Sério? — ele mal consegue esconder sua decepção. — Não
pode pedir à tia Maria, para ficar com eles e nós dois fugirmos?
— Não posso. Ela e Celeste, estarão de folga.
Edu se afasta. Imediatamente sinto o clima mudar por completo,
mas antes que ele de voz ao que está pensando, entro de sola em outro
assunto e conto por alto a minha conversa com Maria.
Se temos de azedar o momento, que seja por algo que já nos
perturba mesmo, e não por ter de certa forma, me aproveitado de toda uma
situação para conseguir me livrar de outra.
A conversa é unilateral, Edu se afasta. A postura rígida, com as
mãos no bolso da bermuda jeans e olhando em torno como ser buscasse uma
desculpa para sumir da minha frente é clara. Ele olha pela janela,
ocasionalmente balança a cabeça afirmativamente. Sei que não o agrada saber
que falei sobre o tio Joaquim, isto fica evidente quando me fita com uma
carranca profunda, mas assim mesmo se mantém longe e sem dar palpites.
Com a mesa posta, chamo as crianças para jantar, esperando o
momento em que ele volte a falar comigo sobre sua folga, ou qualquer coisa.
Encerro o assunto sobre minhas anotações e suspeitas, sobre sua folga e o
nosso momento juntos. Durante o jantar Carlos Eduardo se concentra nos
filhos e todas as novidades que eles possam querer contar.
Jamais poderei me queixar do amor que ele dedica aos meus filhos.
É tão intenso e real quanto o que tem por suas meninas. A cada dia que passa
João, está mais próximo e parecido a ele. Com o tempo até pequenas manias
como sentar-se com uma perna cruzada por sobre a outra enquanto conversa,
bagunçar os cabelos quando está lendo algo que exija sua concentração, e a
forma que gargalha com gosto das piadas bobas das irmãs.
Jessica sendo tímida, demorou mais a se entrosar, mas agora é uma
das três princesas do papai, antes mesmo de falar comigo sobre qualquer
coisa, procura a ele, pois sabe que com Edu, sendo o seu intermediário,
certamente vou conceder o que quiser.
Já Annya e Anna que sempre foram apegadas a mim, chamar-me
de mamãe foi tão natural, que às vezes não sinto que mereça tanto. É
justamente pelo amor que estas crianças nos dão, que nos fez querer ter mais
um filho.
Esse é o ponto em qual vivemos um novo entrave. Edu quer ter
mais um filho. Quero ter mais um filho. Para isto me submeti a uma cirurgia
de retrocesso da laqueadura, algo que nem sempre dá certo, que de certa
forma foi doloroso, perigoso como qualquer cirurgia, mas que no final, foi
um sucesso.
Há alguns meses quando passei pela reversão, estava certa de que
tudo aquilo era o que queria. Ainda que não tenha aceitado me casar de papel
passado, acaricio inconscientemente a aliança de noivado na mão direita,
outro tema que sempre volta a balela com ele.
Mesmo sabendo que as nossas vidas ainda estavam bagunçadas
depois da revelação que os pais de Edu e seus amigos foram assassinados,
que a tal maluca demoníaca queria uma brecha para me fazer mal durante a
cirurgia, ainda assim almejávamos ter o nosso bebê. Este era o nosso maior
sonho.
Contudo, depois que Lia sofreu aquele ataque, algo em mim
mudou. Não nele. Mesmo tentando de alguma forma superar meu trauma,
não consigo confessar isto em voz alta para Edu.
O sexo entre nós, sempre foi e é algo natural, muito intenso. Só
mesmo uma pessoa idiota não teria percebido que às suas folgas coincidem
perfeitamente com os meus dias férteis e que ele faz a sua parte para realizar
nosso sonho em conjunto, o que só aumenta minha culpa e pesar.
— Ô manheeee?
— Mamãe, podemos comer nossa sobremesa na sala de TV? —
Annya interrompeu meus pensamentos.
— Oi? Desculpa filha, mamãe não te ouviu.
— Papai nos deu os parabéns pelas notas no teste e disse que
poderíamos ver um filme até mais tarde em recompensa. — Anna com seu
jeitinho meigo resumiu toda a conversa do jantar que perdi.
— Meus parabéns amores. Sempre fico orgulhosa de boas notas,
sabem disto. Me desculpe por estar desatenta hoje.
— Mamãe está com a cabeça no multiverso. — João cutucou a
irmã.
Os quatro começam a rir, provavelmente eles já deveriam estar me
perguntando várias coisas a um bom tempo e como estava desligada devo ter
respondido algumas bobeiras. Para desanuviar a mente entro no clima.
— Bem… — me faço de boba. — Se estou no multiverso, então
não posso deixá-los comerem SORVETE na sala de TV, não é mesmo?
— Sorvete! — os quatro gritam em uníssono fazendo uma
algazarra.
— Terra chamando a mamãe! Terra chamando a mamãe… —
Jessica aperta o nariz fazendo um som anasalado. — Aterrize mamãe
terráquea, e nos deixe ver o filme do Homem Aranha na sala comendo muito
sorvete, por favor.
Eles gargalham.
— Solta esse nariz, menina! — puxo seus dedinhos que prendem o
nariz arrebitado que está vermelho como um tomate.
— Podem ir! Mas, com uma condição, sem derramar uma gota.
OK?
As crianças vibram. Edu se ergue, recolhe os pratos e talheres indo
até à pia. Com uma bandeja em mãos apanha o sorvete do freezer, os
utensílios necessários como taças acrílicas, colheres, calda e um imenso pote
de granulados de chocolate.
— Já que conseguiram o aval, vamos fazer a festa do sorvete
pirralhada?
Ele faz um alvoroço com as crianças que correm à sua dianteira.
— Edu? — o chamo ainda sentada à mesa. — Vamos conversar
um pouco, deixa que eles se virem por enquanto.
— Acredito que já conversamos o bastante Juliana. — ele usa
aquele tom de tribunal comigo. — Posso estar me fazendo de bobo, mas
estou longe disto. Aquilo que você não quer falar, já percebi há algum tempo.
— Posso então ter a oportunidade de dar uma breve explicação?
— Não precisamos de explicações e nem discussões
desnecessárias, meu amor. Se me dá licença, vou brincar com as crianças,
deixe a louça do jantar que depois venho lavar. Suba e vá descansar, o dia
hoje foi bem carregado.
— Precisamos conversar! — enfatizo.
— Amor, — ele vem até onde estou, se curva, com os dedos
gelados segura meu queixo e toca os seus lábios contra os meus. — Não
precisamos. Quanto ao que conversou com tia Maria, não tenho nada a
acrescentar. Concordo quando diz que, se não fizermos nada a respeito, não
teremos nossas vidas de volta. Por isto, junto aos rapazes tomamos algumas
decisões hoje à tarde. Em breve vocês tomarão conhecimento.
— Carlos Eduardo…
— No mais, só deixa passar, nós sempre nos entenderemos.

As crianças se animaram com o jantar, o sorvete na sala de TV, foi


a apoteose. Ainda estou surda com a falação, risos e agito que os cinco
fizeram. Após deixar tudo em ordem na cozinha, coloquei todos em um
segundo banho, pijamas limpos, cama e uma historinha para dormir.
Ser mãe na minha cabeça era um desafio e uma sobrecarga da qual
não me imaginava capaz de aguentar. Antes de conhecer Edu, Jessica e João
eram meus únicos amores, preocupação, dívidas, alegrias, surtos e paixão…
Os meus sentimentos, emoções e o estado mental, viviam em uma
montanha-russa, quase equilibrada. Não, que eu não pudesse dar conta
sozinha, mas reconheço o quanto era difícil, mesmo tendo o meio pau, asno e
imbecil do genitor — vulgo pai, ao lado.
Depois do divórcio, ser mãe solteira foi um desafio maior ainda.
Creio que às pessoas nem fazem ideia, que entre responsabilidades, fraldas,
choro e noites de insônia já classificadas como normais, ainda tem os olhares
recriminatórios, aquelas pessoas que sempre sabem um pouco a mais e se
acham a enciclopédia da existência, prontas a dar conselhos e mostrar o que
elas julgam de melhor para sua vida.
Quando não é isto, é a humilhação de ser avaliada, pois, ao ver da
maioria, a mulher divorciada é sempre a errada. “Por que se separou?
Homem sempre trai. Mulher sozinha não cria filho.”
— Uma pinoia, que não cria!
Confesso que é doloroso, e às vezes o cansaço é tanto que só
queremos a lasquinha do ombro de alguém para chorar. Naquela altura, o que
eu precisava era de um trabalho e não de um homem. E isto, consegui com o
meu jeito louco, atirado, sempre sendo muito ousada.
Talvez, para compensar o coração arrebentado, meu Universo
querido, certamente conspirou a meu favor, pois me deu alguém que me
possibilitou ter um ombro em que posso me acomodar, o trabalho dos meus
sonhos, amigos e principalmente a família cercada de filhos e um amor que
sempre quis ter.
Suspiro e me encaro no espelho de corpo inteiro. O reflexo que
vejo é de uma mulher capaz de muitas coisas, que por um pequeno período
está passando por algo fora do seu controle, mas como já disse em outras
épocas, tanto para Aline e Carla que são minhas fiéis amigas: tudo passa.
Nesta vida seja bom ou ruim, tudo passa!
— É hora de retroceder numa decisão Juliana. — afirmo para meu
reflexo.
Retiro a toalha molhada em volta do meu corpo, aplico uma
generosa camada de hidratante sobre a pele massageando até que tenha uma
sensação aveludada entre os dedos. Penteio os cabelos com vigor para que
caiam como uma moldura por minhas costas. Aplico gotinhas do meu
perfume predileto atrás das orelhas e pulso, visto um negligê curto por sobre
o baby-doll preto de seda e rendas.
Uma mulher decidida, é aquela que não tem medo de encarar as
consequências dos seus atos. Abro a porta do quarto com cuidado para não
despertar a curiosidade dos meus pimpolhos e vou em busca do meu
Morangão.

A porta do escritório está fechada, entreabro devagar uma fresta e


observo Edu, debruçado sobre um calhamaço de papéis, cabelos revoltos com
as marcas dos dedos que dê certo dançaram por ali algumas vezes. Os óculos
de leitura dão a ele um ar de nerd charmoso.
A tela do computador cria um padrão azulado de luz sobre seu
rosto, mas não esconde suas feições.
Mesmo que esteja tão compenetrado na leitura, sei que algo está
fora do contexto, vejo pela forma como masca os lábios. Sinto-me mal por
vê-lo assim e espero poder mudar isto.
Dou dois toques na madeira maciça do umbral. Ele ergue seus
olhos do papel e não demonstra surpresa ao me ver. Sorrio e faço um sinal,
perguntando se posso entrar, já que não abriu aquele sorriso convidativo de
sempre.
— Entre amor, — a voz soa baixo.
Atravesso o marco da porta rebolando discretamente, caminho até à
sua mesa. Edu solta o maço de folhas e as retorna para dentro da pasta aberta.
— Deseja algo, July?
Penso em responder com uma piada sacana tipo: você.
Diante da forma contida que fala, prefiro não me antecipar a um
fora mal-humorado, apesar de não ter perdido a sua inspeção completa pelo
meu corpo se detendo na altura das minhas coxas à mostra.
— Vim ver se já está pronto para nos deitarmos. Vamos?
Estendo a mão para ele o chamando, abro um sorriso, ele reclina-se
contra a cadeira estofada e a gira ficando com as pernas livres, o que me dá
um pouco de confiança. Dou à volta entorno da mesa, encosto meu quadril na
lateral do tampo de madeira, ele cruza os braços na altura do peito após
retirar os óculos e deixá-los de lado.
O negligê se abre expondo-me um pouco mais, cruzo um tornozelo
sobre o outro e apoio as mãos no tampo empinando meus seios fartos, uma
pose que ele adora e sempre o atiça sensualmente.
— Eu ainda preciso ler mais alguns documentos, e enviar alguns e-
mails, mas pode ir dormir. Amanhã temos um dia cheio!
— Teremos sim, mas já se passou da meia-noite, — inclino a
cabeça mostrando a ele o relógio antigo sobre o carrilhão da lareira. Se não
me engano, é seu dia de folga? Podemos começar a aproveitá-lo desde já.
Edu esboça um riso amofinado. Tento mais uma vez ser carinhosa
e pacífica diante da sua cara amarrada, mas não sou conhecida por ter um
temperamento brando.
Respira fundo Juliana, pense em pombos branquinhos da paz,
flores nos campos, brisa suave de primavera, barulho de chuva, um, dois,
três…
— Se está cansada, é melhor se recolher, a sua programação com
as crianças envolvendo a praia, sempre é um “Deus nos acuda”.
Essa foi de cair o cu da bunda! Minha programação? A intenção
era manter-me pacífica, mas está difícil.
— Carlos Eduardo! — bato a mão sobre a coxa exposta. — Eu não
sou idiota, sei que está chateado, mas a pirraça fica com quem faz, sabia
disto? Estou tentando ser a boa samaritana, que vem aqui recolher o farrapo
humano e consolá-lo da forma que sei, mas assim não dá! Ok? Se está puto
por conta de algo que falei, ou fiz, é melhor esbravejar de uma vez, assim
brigamos e partimos para ação fazendo as pazes.
— Uma hora você ainda vai se engasgar. Respira lentamente.
— Respira o cacete! Vai se lascar. — perco a minha paciência e
não minha dignidade.
Dou-lhe as costas soltando tudo que vem à mente e há tempos está
preso na garganta, se ele está com raiva e não tem coragem de falar o porquê,
eu com certeza o farei, mesmo que no final, me arrependa.
Carlos Eduardo ouve atentamente, observo sua expressão variar do
choque à piedade. Não sei se por mim, nós ou por tudo que há em nossa
volta.
— Sei que falar é o caminho mais fácil, afinal bato nesta tecla, mas
tenho tanto medo de externar meus temores em voz alta, Edu.
— Continue, você está indo bem até aqui.
Ele não invade meu espaço ao se erguer e caminhar em minha
direção, não percebo o quanto me descontrolei até que ele para em minha
frente como um escudo, porque estou encolhida contra a estante de livros e
isso me deixa mortificada. Edu está ali e pronto a ser alvejado em meu lugar.
— Imagina… — balbucio. — Aliás, não sei se posso fazê-lo, sem
surtar. Pois, já passamos por isso quando Angélica, pegou as crianças daquela
vez, mas só imagina se realmente engravido, e aquela maldita mulher
consegue fazer algo conosco? Com o nosso bebê? — minha voz falha e
finalmente noto que dou voz ao meu maior temor.
Meu corpo treme de forma incontrolável e percebo que estou aos
prantos e aos gritos, lágrimas brotam dos meus olhos como uma bica
quebrada.
— July, amor fica calma. — ele ainda se mantém afastado.
— Estou calma! — respiro fundo três vezes para dar credibilidade
ao que estou dizendo. — Na verdade, não estou calma estou uma pilha de
nervos. Não é só pelo ataque da Lia, mas a crueldade desse ser tenebroso.
Uma mulher assassina, que mata bebezinhos inocentes! — me altero além da
conta.
Edu dá o passo que nos separa, me enlaça em seus braços. Uma
raiva aflora dentro de mim e vai além da minha capacidade de controlá-la. Se
pudesse certamente passaria com um tanque blindado sobre aquela mulher e
sua corja de malfeitores.
— Eu seria capaz de matá-la se colocasse minhas mãos sobre ela!
— grito.
— Não permitiria ela se aproximar de você ou dos nossos filhos.
Morro, mas a levo comigo antes! — ele responde na mesma intensidade e
isto me arrepia.
— Não diz essas coisas, por favor!
O seu abraço é firme, o seu silêncio me acalma, pois, ele permite-
me deflagrar todas as minhas emoções.
Com um passar de dedos suaves sobre minhas bochechas
empoçadas ele recolhe as lágrimas que vão se amontoando. Elevo meu rosto
e paraliso. Meu morangão manteve-se quieto, porque a seu modo também
sente a sua dor, e esta vai além do medo em termos mais um filho, é a tal dor
antiga e mal resolvida que se arrasta por entre ele e seus amigos.
— Carlos Eduardo… — estendo minha mão tocando suavemente
seu rosto.
— Esbraveje o quanto preciso for, para depois poder acalentá-la.
— Só se puder fazer o mesmo. Não me deixe de fora, não me
ignore ou demonstre indiferença quando o que preciso é conversar sobre isto.
Com certeza, dói muito mais saber que está sofrendo e não me falar, do que
termos uma discussão.
— Faço das suas as minhas palavras, pois se tivesse dito antes o
que a estava perturbando, não teria passado por toda essa tortura.
— Estar com você ou pensarmos em termos um filho, não é uma
tortura. Pelo amor de Deus, não diz isto, que o Universo castiga!
— Por que não disse antes?
— Porque não queria magoá-lo e não quero aceitar que sou refém
psicológica de uma louca, lunática qualquer.
— Ela não é uma qualquer, por este motivo mesmo que isto
deveria ter sido esclarecido, mas que bom que estamos fazendo agora.
— Só não queria desabar assim de novo. Não sou de me dar por
vencida e isto aqui… — aponto para meu próprio estado físico. — não é a
minha melhor versão.
— Concordo! Não quero vê-la assim, sabia que de alguma forma
estava sofrendo por tudo que temos passado, mas jamais supus que fosse
neste nível. Me perdoa?
— Eu que peço perdão, por às vezes cobrar tanto que não me
esconda nada, para no final ser pega em minha própria armadilha de urso. Me
perdoa amor, por não ter tido confiança o suficiente para expressar meus
medos.
— Juntos seremos mais fortes.
Edu em um gesto de carinho coloca sua mão sobre a minha,
envolvendo meus dedos com gentileza entre os seus, deslizando-os por sobre
a barba serrada. O toque áspero dos pelos recém-aparados arranham a palma
macia até alcançar os seus lábios, onde ele deposita um beijo suave
acalmando a pele, mas incendiando o corpo.
— Somos felizes, mesmo com tantas coisas pendentes ao nosso
derredor?
— Somos! — afirmo. — Mesmo que às vezes a estrada infinita
para lugar nenhum pareça mais agradável do que esse pandemônio todo,
somos felizes.
— Então isso nos basta!
— Creio que sim.
— Sente-se mais calma?
— Depois que me beijar e disser que me perdoa por esconder meus
temores de você, prometo ficar.
— Com todo prazer. Perdoo sim, porque te amo. Porque você pode
me perdoar, pois, da mesma forma que escondeu o que sentia, também fiz ao
não dizer o quanto me ressenti em perceber suas reações, e ser deixado de
lado.
— Morangão…
Minha voz sai tremula e cheia de emoção. Edu segura-me firme
junto ao seu corpo, sua boca desce sobre a minha com leveza. O beijo
incendeia-me por dentro. Sua língua passa por cima da polpa carnuda dos
meus lábios e lentamente atravessa de comissura a comissura, em uma dança
sensual, abrindo caminho para sua posse.
Suspiro rendida de prazer, sua mão abandona a minha para se
enroscar em meus cabelos até chegar à nuca e enganchar os dedos nos fios
puxando-os suavemente, fazendo uma pressão contra meu crânio, à medida
que o beijo cálido ganha força.
A posse da sua língua desliza sobre a minha, meu corpo agitado
pelo medo e pelas revelações fortes, muda de sensações na velocidade da luz.
As palpitações por dentro do meu sexo, faz escorrer prazer contra a seda do
pijama.
Gemendo me enrosco contra seu corpo sentindo nele a sua
excitação, o volume que sua bermuda não pode esconder espeta contra meu
baixo ventre, os bicos dos meus seios roçam contra seu peito e pinicam
doloridos.
— Diz, que a briga acabou e vamos fazer as pazes. — resmungo
trocando as pernas de posição para erguer-me na ponta dos pés e enlaçá-lo
pelo pescoço.
— Certamente que estamos fazendo as pazes. — ele replica. Beija-
me e se afasta. — Você se sente em paz?
— Sim! Completamente, sou capaz de arrancar meu pijama e
hasteá-lo como uma bandeira flamejante no seu mastro. — respondo com
uma graça, deslizando minha mão por seu corpo e abarcando seu pau entre
meus dedos.
Edu fecha os olhos e exclama com força, o quanto bem faz minha
ousadia.
— Bem, se estamos resolvidos, e se não temos mais nada a
esconder um do outro. Se estamos relaxados, aceito seu convite para
subirmos e… — ele pausa, respira fundo e dá um passo atrás. — dormirmos,
afinal, amanhã o dia com as crianças será cheio.
— Do-dormir? — ele quer dizer trepar finalmente até o dia raiar,
não seria isto? — O que quer dizer com dormir?
— Vem, que te mostro.
CAPÍTULO 10

IMUTÁVEL
“Olhei para você fixamente por instantes.
Tais momentos são meu segredo.”
Clarice Lispector

LIA

A
bro à porta corta-fogo do terceiro andar, me encosto contra a parede do
corredor de frente a porta do meu apartamento. Preferi subir pelas escadas
ganhando mais alguns minutos para poder pensar em tudo que ocorreu, pois
após entrar em casa, pretendo com muita força desligar-me por completo de
toda essa loucura.
Alcanço o celular no bolso das calças, desbloqueio a tela, confiro a
última mensagem que ele me enviou, as suas palavras martelam em minha
mente.
Estou curiosa e reticente em querer saber exatamente sobre o que
aconteceu pela manhã para me procurar e depois durante a reunião. Contudo,
no fundo, o meu sexto sentido me diz que procurar saber sobre isto, só me
deixará ainda mais frustrada.
Um sinal de bipe soa com a chegada de uma nova mensagem. É
Nina querendo saber se já estou a caminho. Não a respondo e uso os minutos
que faltam para abafar tais pensamentos e a sensação de formigamento em
meus lábios desde que ele me beijou…
Existem sentimentos que estão enraizados em nós, e estes são
imutáveis. Ter saudades é um destes e creio que nunca machucou tanto
quanto nos últimos tempos.
Mesmo com todo o meu palavrório extenso, conhecimento de
causa, argumentações jurídicas, não poderia realmente explicar a dor que
irradia pelo meu peito quando o assunto é saudades.
De uma forma racional imbui tudo isto ao fato de que em algum
momento, senti a falta de algo ou alguém, por voltar à proximidade com
todos meus amigos, por estar de volta à Vitória revivendo memórias
dolorosas e os grandes momentos de tensão com minha mãe. No entanto, a
verdadeira roda gigante de emoções que tem me abalado se chama, Mikael.
Com ele é do sexo quente às piores brigas que já tivemos.
Saio do meu estado de torpor físico, aplumo os ombros, passo a
mão sobre o coque em meus cabelos e meu rosto, como se o gesto pudesse
apagar qualquer resquício destes sentimentos. Coloco a chave na fechadura e
a giro, abrindo a porta com o meu melhor sorriso.
Dentro de toda está odisseia louca que a minha vida se tornou, o
único que me suga toda a energia e a recarrega na mesma intensidade me
fazendo sorrir ao final do dia, é meu filho, minha melhor escolha.
Trago o ar fresco para dentro do peito e atravesso o marco da porta.
— Olá, a mamãe está em casa, onde está meu Anjinho?
— Mamãe? — coloco minha bolsa e a pasta com documentos
sobre o sofá, chuto os saltos para longe e deixo meu pequeno que vem
correndo em minha direção, saltar sobre meu colo.
— Ai que saudades! — exclamo enchendo-o de beijos.
Anjinho ri sentindo cócegas, enruga seu narizinho e encosta contra
o meu.
— Beijinho… — ele pede apertando-me com o seu rosto
rechonchudo.
O cheirinho do sabonete infantil enriquece o ar, abraço meu filho,
sentindo minhas forças sendo recarregadas. Brinco com os seus cabelos que
estão quase cobrindo os olhos, pensando no dia que precisar levá-lo para
cortar e o quão difícil será para nós.
O pensamento vem e vai, há muito tempo decidi viver uma
situação de cada vez em relação as suas debilidades. Sofrer por antecipação,
tira o brilho e a alegria de viver as descobertas diárias que ser mãe de uma
criança autista pode me favorecer.
Nina aparece no corredor, ela indica que está indo para a cozinha.
Nosso acordo é: um dia sim, outro não, uma fica responsável pelo jantar e
para minha sorte hoje é o dia dela.
Roço mais uma vez o meu nariz contra o dele, fazendo um beijinho
de esquimó. — O que tem para me contar de novo hoje?
Anjinho não responde. Se ergue, tira do bolso um papelzinho
dobrado em um quadradinho perfeito e me entrega. Abro com cuidado, não
tem nada escrito na folha, pergunto-lhe que seria isto, e antes que possa
desenvolver uma conversa, Anjinho volta para a sala de música, onde deveria
ser minha sala de estar.
Suspiro, imagino que o significado do papel em branco, seja algo
que tenha ouvido, ou aprendido que não agradou.
Ergo-me recolhendo meus pertences e caminho direto ao meu
quarto para tomar um bom banho. Chegar do trabalho, cansada depois de dias
como o de hoje com encontros nada agradáveis, conversas desnecessárias e
uma volta ao passado como Mikael me fez ter, só um bom banho e horas,
agarrada em meu filho para aliviar a tensão.

Anjinho sentado ao piano dedilha sua música predileta. Uma


música que é só nossa. Mesmo com suas limitações de comunicação social,
mas com uma inteligência acima da média, conseguiu extrair de uma
tatuagem em minha coxa direita e das inúmeras vezes em que a ouviu
assimilando o tom exato.
— O jantar está pronto. — Nina anuncia da porta balançando um
pano de prato.
— Oba! Que delícia! Anjinho, vamos jantar.
Ele continua dedilhando a canção, sem me dar a atenção.
— Nina, aconteceu algo? — pergunto.
Ela se aproxima de mim, se inclina e sussurra em meu ouvido. —
Não sei exatamente o que possa ser, hoje tive uma discussão com a tal
professora nova, ela não sabe lidar com crianças autistas.
Afasto-me e olho de esguelha para Nina, isto para nós, não é uma
novidade.
Infelizmente não são todos os professores que são preparados para
as mudanças que uma criança autista requer dentro de uma classe de alunos
que se julgam “normais”.
É preciso além do preparo pedagógico, psicológico, uma aceitação
do profissional em saber que nem tudo que for passado será absorvido por
aquela criança, ou o inverso. Às vezes o conteúdo é absorvido com tanta
facilidade, que a criança acaba perdendo o interesse enquanto os outros
alunos ainda estão aprendendo.
— Você chegou a falar com a tutora? — Tutora é a profissional
que a escola contrata para poder cuidar de crianças com síndromes e
comorbidades especiais, entre elas as com síndrome de TEA, auxiliando na
interação e aprendizado.
— Falei, mas da mesma forma que dá outra vez, justificou que algo
externo está afetando Anjinho, porque na sala de aula tudo está bem.
— Não pode ser! — exclamo com um sussurro.
Nina dá de ombros, pois assim como eu não consigo imaginar o
que possa ser. A questão familiar é algo que venho trabalhando com ele,
junto à psicóloga, mas noto que há algo além.
— Nina, e a Fadinha? — gesticulo com os lábios sem som o nome
da amiguinha que ele gosta.
— Sumiu!
A resposta simples me deixa chocada. Isto pode ser um fator ruim
para o dia a dia do meu filho, porém por se tratar de uma moça que tem sua
própria condição especial, é inevitável me preocupar.
— Não procurou saber? — Continuamos a trocar informações em
voz baixa.
— Sim! Me informaram que ela às vezes falta, mas por segurança
não poderiam me dar nenhuma das informações pessoais dela, porém… —
Nina esboça um sorriso sabichão. — Tenho como contatar o irmão, estava só
esperando para discutir isto com você.
— O irmão? — Pergunto segurando o riso.
— Foca no detalhe que podemos encontrar a Fadinha, por favor?
Concordo com menear de cabeça. Nina pisca um olho e saca o
celular do bolso, ela rapidamente desbloqueia a tela, digita algo e leva o
aparelho ao ouvido.
— Alô! San, como tem passado? — Ela pisca mais uma vez, me
joga o pano de prato no colo e indica a porta, ainda a ouço após cruzar o
portal. — Estamos muito bem, com saudades da sua irmã…
Suspiro, sento-me ao lado de Anjinho no banco diante do piano,
coloco minha mão sobre as teclas e dedilho algumas notas acompanhando.
Finalizamos a música, então seguro sua mãozinha antes que comece
novamente outra canção chamando sua atenção.
— Anjinho, vamos jantar.
— Hum!
Ele segura minha mão e juntos deixamos a sala.

Anjinho ficou calado e muito pensativo durante todo jantar, nem


mesmo sua sobremesa predileta quis comer, por isso tentei outro método o
levando para o seu quarto, às vezes a distração com suas canetinhas e bloco
de folhas o ajuda a externar os pensamentos.
— Anjinho? — Chamei com a voz em um tom musical. — O que
aprendeu hoje na escola?
Tento puxar assunto, já que todas as perguntas que fiz foram
respondidas com apenas um “hum” o que me faz pensar: humor é uma
característica que pode ser herdada?
Ele se inclina sobre a folha em que está colorindo e força a
canetinha sobre o papel. Isto me mostra o quanto está irritado.
— Que tal desenharmos o nosso dia? A mamãe hoje teve uma… —
pauso imaginando qual momento do meu dia seria bom para poder falar com
ele? — A mamãe hoje escreveu em muitos papéis diferente e aprendeu uma
nova regra. O que o Anjinho fez hoje?
— Dobrei um papel e, hum…! Uma música. — A voz rouca dele
soa bem baixinho.
Aproveito esse momento para aproximar-me mais dele, e com uma
das suas canetinhas, faço corações no pequeno espaço da folha em branco.
— Uma música, que legal!
— Hum!
— Que música?
— Estranha!
— Pode cantar para a mamãe?
— Posso. — Ele logo começou a cantar: meu pintinho amarelinho.
Meu pintinho amarelinho
Cabe aqui na minha mão (na minha mão)
Quando quer comer bichinhos
Com seus pezinhos ele cisca o chão…
Antes de terminar a música parou e olhou de novo para suas mãos.
— Por que parou? Se não lembra a letra, a mamãe pode te ensinar.
— Não quero ser o pintinho. — Ele abandona o desenho, fecha o
semblante e cruza os bracinhos na altura do peito.
— Você não é um pintinho meu amor, — faço um carinho em seu
rostinho.
— Hum! — Ele não responde, mas seu bufo irritadiço diz que algo
além da música o incômoda.
Além da resposta “hum" ele começa a flexionar os dedinhos do pé
impaciente. Aguardo um pouco mais, por fim Anjinho segura minha mão e
olha para cima.
— Mamãe, não quero ser pintinho! Não quero ficar na palma da
mão. Não quero comer bichinhos.
— Meu amor, – seguro suas mãozinhas entre as minhas. — Você
não é um pintinho, é um menino…
— Hum! Sou menino. Ela disse que sou pintinho. — Meu filho
expressa seus sentimentos através de sentenças curtas e enfáticas. — Não sou
um pintinho, sou o Anjinho!
Ao expressar da sua forma o que está deixando descontente, acabo
por entender que a professora provavelmente usou a música como alguma
metáfora em sala e isto o deixou desconfortável.
Por ser uma criança que busca a todo momento sua independência
e que usa a lógica como ferramenta para se auto explicar, usar certas
comparações que a muitos não é nada, para ele é como uma agressão. Mesmo
sendo algo tão bobo e inofensivo.
— Meu amor, quando a mamãe era pequenininha, assim como o
Anjinho, a vovó Maria também cantava essa musiquinha. É só uma
musiquinha.
Ele não reage bem, inclina a cabeça desviando o seu olhar. Anjinho
faz um beicinho e para evitar que se inicie um choro do qual não tenha
nenhuma ideia do real motivo, dou por encerrado o assunto.
— Ok! Que tal uma historinha antes de dormir? Vamos escovar
esses dentinhos, colocar um pijama e cair na cama.
Na parte da manhã irei falar com a professora para entender o que
houve.
Coloco Anjinho sentado sobre o colchão. Quando se trata com
crianças autistas é preciso seguir algumas rotinas, e nas mesmas criar uma
dinâmica que as faça reagir a estímulos.
É preciso diferenciar as tarefas que não se pode negociar, junto às
opções de escolha que criam uma autonomia.
— Está na hora de dormir.
— Não quero dormir. — Ele responde muito baixo, olhando para o
lado.
Toco seu ombro com carinho e repito o que disse, mas desta vez
enfatizando cada palavra. Anjinho não verbaliza, mas o breve aceno com a
cabeça indica que irá obedecer, ele ergue os bracinhos, me ajudando a retirar
o moletom.
— Olha só, que legal! Hoje temos dois pijamas para você escolher.
Um de pinguins e o outro de carrinhos.
Por sua cooperação, a sua gratificação é escolher o tema dos
pijamas.
— Pinguins.
Novamente ele fala muito baixo, desta vez pego na gaveta o nosso
“falometro” nome que demos a uma folha colorida onde indico a ele, a altura
em que está falando, e o ideal que desejo para mantermos uma conversa
saudável, na verdade, um medidor de volume.
O fato de reduzir o volume da voz, pode ser ainda pela sua
reclamação em relação à aula.
— Anjinho, — o chamo e ele me fita —, você está falando muito
baixo — indico com a seta o volume que está usando —, a mamãe não
consegue ouvi-lo. Então o Anjinho precisa falar assim, — coloco a seta na
casa do meio indicando o melhor modo para nossa comunicação.
— Quero de pinguins. — Ele sobe um pouco o volume e
demonstro que ainda não alcançou o certo.
Ele tenta novamente, e desta finaliza com um meio sorriso,
correspondente ao meu.
— Ah! Agora sim, a mamãe entendeu.
Sorrindo, vou à cômoda e alcanço o pijama escolhido. Após
trocarmos suas roupas vocalizando cada ação. Deito-o sob o edredom, e fico
por cima da roupa de cama abraçando o seu corpinho.
Anjinho não quer ouvir historinhas e isto é atípico dele. Puxo
alguns assuntos variados, mas ainda se mantém reticente. Para animá-lo
prometo a nós dois uma noite de pipoca e cinema antes da viagem que já
estava programada com os tios e Nina para fazer uma consulta em São Paulo.
— Meu amor, que tal um beijinho de esquimó para darmos boa
noite? — Falo me aconchegando a ele
— Não quero ser pintinho. — O assunto volta a pauta com força
total.
— Tudo bem, meu amor.
Tento tranquilizá-lo, geralmente deixo que ele se acostume com os
métodos e as atividades da escola, uma vez que a sua tutora, está lá para
facilitar essa interação, mas é preciso entender que forçar um autista a se
assumir como algo que não é, mesmo que seja em uma brincadeira, pode
perturbar a forma de compreensão, assim como a dificuldade em manter um
filtro para expor seus pensamentos.
— Não quero ser pintinho! — ele exclama um pouco alterado.
Imediatamente meu instinto materno acende vários alerta. Ele se
senta, junta suas mãozinhas retorcendo-as de forma frenética.
— Anjinho, me fala, o que você quer ser?
Até o momento, a sua negação não me indicou que ele desejasse
ser outra coisa. No entanto, usar outra forma de abordagem, como dar a ele
uma oportunidade de viajar em sua mente para expor o seu desejo, pode
ajudar-me a entender o que deseja.
— Quero ser um pinguim.
Me surpreendo com a sua resposta, me sento de pernas cruzadas e
espero sua conclusão mantendo minha expressão neutra.
— Um pinguim, igual do filme Happy Feet?
— Um pinguim da An-An-tár-tica.
— Da Antártica? — me surpreende a sua resposta.
— Hum! — Ele resmunga, vem até meu colo, se inclina e segura
meu cabelo, levando até seu nariz.
Aproveito o momento para nos deitar novamente sobre a cama. Ele
se afasta, mas leva consigo uma mexa de cabelo que mantém próxima ao seu
rostinho.
— Me conte sobre os pinguins então. — Nos aconchegamos e
deixo levar o seu tempo.
— Os Pinguins são da Antár-ti-ca. Lá é frio! Uuuhh — ele faz um
som com a boquinha em formato de U para expressar o quanto é frio.
— Sim, meu amor muito frio. — Replico o som.
— A mamãe Pinguim, coloca o seu ovinho. — Ele para, atento-me
na sua expressão onde as engrenagens do seu cérebro super ativo, estão
fazendo a correlação entre o ovo do pintinho e do pinguim.
— Continua amor, a mamãe Pinguim coloca o seu ovinho e…
O incentivo a continuar, me sinto maravilhada com sua dissertação.
Faz algum tempo que compramos novos livros de histórias infantis, baseado
por suas preferências em alguns filmes entre eles este do Happy Feet, naquele
dia lemos todas por pelo menos, duas vezes. Sabíamos que ele tinha se
encantado com o livro do Pinguim, mas não imaginava que tivesse gravado a
historinha com tanta riqueza de detalhes.
— A mamãe Pinguim “faz” seu ovinho quando tem as tempestades
de neve geladas. Depois ela sai para trabalhar no oceano. Looonge, muito
longe para buscar comidinhas.
— Meu Deus! Que aventura, meu amor! — na sua pausa,
demonstro o meu interesse e sinto muito orgulho.
— Shiu… — ele me repreende, e tenho a impressão de que isto é o
que a professora na escolinha deva fazer com os alunos que conversam entre
si durante as aulas.
Seguro o riso, aperto os lábios um contra o outro e o deixo narrar
sua historinha.
Ele repete toda a parte inicial até ter sua pausa como se analisasse o
que falar. — O papai pinguim, guarda o ovinho, nos seus pés, — ele pausa,
— o papai pinguim, protege o ovinho com seu corpo grandão, enquanto luta,
contra a fome e o frio.
Anjinho pausa mais uma vez, chega mais perto do meu corpo, se
ergue novamente um pouquinho e coloca seu narizinho contra a base do meu
pescoço e a linha do cabelo, para aspirar profundamente.
— Cheirosa… — ele comenta e permanece assim.
Por um momento me crivo de ansiedade e déjà-vus que deixei do
lado de fora da porta ao entrar em casa junto a uma sensação estranha.
A voz volta a baixar, mas desta vez é pelo sono que está chegando.
— Quando o tempo passa, e o ovinho já tem quatro meses, o bebê pinguim
nasce, — pausa — mas, não tem comidinha, tudo é frio e gelado. Uuuuuh! —
O uso da onomatopeia é um sopro suave contra minha pele.
Anjinho fica em silêncio e imagino que tenha adormecido. Estou a
ponto de me desvencilhar quando ele continua a sua história em sussurros e
meu coração que estava valente depois de tantas pancadas nestes dias, se
quebra em milhares de pedaços.
— É tão triste, mamãe! — Sua voz tem um tom de lamento. —
Quando o bebê pinguim está com fome. Não tem nada para dar de comer. O
pinguim papai, vomita o último pedaço de comidinha dentro da sua barrigona
para dar o bebezinho. Que fica com a barriguinha cheia e bem quentinho!
A realidade da inocente história me rasga por dentro. Anjinho
aperta meu pescoço, tento me livrar com carinho para encará-lo, mas ele se
mantém escondido.
Quero consolar meu filho e protegê-lo dessa dor que nem faz ideia
do que seja. Ele não me permite e isto me destrói.
— Quero ser um pinguim, — a sua voz é um sopro cristalino, mas
que cai em meus ouvidos com um estrondo catastrófico.
Tento falar-lhe, mas a minha própria voz não sai, então ouço o seu
ressonar suave indicando que adormeceu.

Meu filho não pode expressar o que o afligi. E como sendo sua
mãe, a pessoa que enfrentaria qualquer tempestade para assegurar sua
felicidade e proteção, não poderia compreender sua analogia tão sábia?
Ele quer ser um pinguim, porque assim poderia ter um papai
pinguim?!
Nunca a presença paterna fez diferença para ele, pois nos
bastávamos. Eu não tenho noção de quando isto começou. Tenho medo de
fazer julgamentos precipitados, mas às vezes tenho a impressão de que
alguém, ou até mesmo algum coleguinha da escola o tem pressionado sobre
quem seria seu pai.
Deus do céu! Que precipício terei de andar agora? Porque tanta
prova, por que tem de ser com meu filho?
— Oh! Meu Anjinho, — as lágrimas me envolvem —, perdoa a
mamãe. — Abraço meu filho com força.
Não posso crer nas palavras que brotam em meus lábios, pois este é
um desejo que jamais permiti nascer em meu coração. Porque sei das
consequências dolorosas que isto causará aos envolvidos.
Não posso prometer o que está longe das minhas mãos. Todavia,
prometo que a mamãe, vai entrar no oceano para buscar o que o meu
Anjinho desejar.
Deixo as lágrimas derramarem por meu rosto. Existem lutas que
não posso evitar, apesar de todas as dores que vivi.
Observo o meu bebê com todo carinho, sentindo seu corpinho
frágil se entregando ao meu conforto, enquanto ressona baixinho, a boquinha
rosada se entreabre fazendo um beijinho inocente, os lábios se mexem
formando sulcos nas bochechas suaves revelando suas covinhas.
Os dedinhos inquietos, finalmente repousam emaranhados nos fios
do meu cabelo. Com cuidado desvencilho o meu corpo do seu agarre. Meu
estado emocional é pior que uma montanha-russa desencarrilhada. Beijo o
alto da sua cabeça, esfrego meu nariz sobre o dorso da sua mãozinha e me
afasto deixando meu Anjinho protegido em seu ninho de sonhos.
O meu Eu racional, não compreende o que meu Eu emocional está
gritando contra meus ouvidos, martelando minha mente como se fosse um
aríete.
Deixo a cama, apago a luz do quarto deixando ligado somente o
abajur sobre o criado mudo. Dois passos me separam do corredor. Dez
passos de um telefone. Alguns quilômetros de um embate.
Saio e deixo a porta entreaberta, mais uma vez me escoro contra
uma parede e faço uma rápida reflexão para pautar minha decisão.
Durante os anos que me preparei para cursar a faculdade de Direito
em Lisboa, viver em Portugal era o meu sonho, no final transformei meus
sonhos em cinzas, pois o ato de liberdade tornou-se minha prisão.
Minhas vontades se curvaram à minha realidade.
Todos os planos traçados, foram rechaçados e ironicamente a
primeira fala do meu professor dentro de uma sala apinhada de pessoas
estranhas que não imaginavam o que de fato ocorria no meu íntimo, foi a
sentença que me deixou nua e desprotegida.
Foi ali que aprendi a criar minha couraça.
Aprendi a usá-la para me defender e o mais importante, aprendi
que ela poderia abrir caminhos que jamais imaginei querer trilhar. Está na
hora de colocar estes pensamentos em prática mais uma vez.
Para aqueles que compreendem a grandeza da verdade, analisem
a si mesmo e se julguem, pois, como diria Rui Barbosa: “A maior que a
tristeza de não haver vencido é a vergonha de não ter lutado!

Caminho a passos trôpegos, abro a porta do meu quarto, pretendo


trocar o pijama leve por jeans, moletom e tênis, com o celular em mãos penso
em qual melhor saída tenho neste momento, mas duas batidas na porta me
distraem.
— Entre!
Nina aparece e pelo seu olhar algo está errado.
— O que foi, Nina? Conseguiu notícias de Fadinha? — pergunto
voltando a atenção para abrir o aplicativo de mensagem.
— Sim, mas podemos deixar para amanhã está parte. Temos uma
visita, que veio pernoitar.
De imediato retrocedo os meus passos em direção ao closet. —
Quem?
— Sua mãe. Ela está na sala.
— Nina, eu preciso sair.
— Ok! É só me dizer o que fazer.
— Não precisa fazer nada, Nina. — Minha mãe nos surpreende
entrando no quarto. — Se minha filha tem de ir a algum lugar, ela pode sair.
Vim para passar um tempo com meu neto, creio que preciso desse aconchego
hoje.
— Nina, pode nos dar licença? — peço.
— Claro. Tenham uma boa noite, amanhã nos falamos.
Espero que Nina saia — Que bom que veio mamãe, Anjinho ama
quando passa um tempo com ele.
— Eu sei, gostaria de fazê-lo mais vezes e por maior tempo.
— Isto é algo que está em suas mãos, não nas minhas.
— Não vamos falar disto hoje, mas do pedido que o seu filho fez.
— A senhora estava ouvindo atrás da porta?
— Guarde este tom para as audiências, — mamãe caminha em
torno do quarto, sua pose está rígida além da conta —, sinto tanta falta do seu
pai…
— Mamãe…
— Ele saberia o que fazer, nos conectaria com sua cola
superbonder. — Ela sorri, mas vejo-a limpando as lágrimas discretamente. —
Se tem algo que aprendi com ele, foi que nascer nos possibilita errar e acertar
na mesma proporção.
— Mamãe, eu aprendi com o meu pai a fazer escolhas.
— E ser responsável por elas?
— Sim!
— Então, suponho que você tenha acabado de escolher algo? —
Ela me fita e percebo certa compaixão em sua expressão. — Não precisa me
responder, mas em vez de sair intempestivamente a está hora da noite, depois
de tantas coisas vieram à tona, — ela pausa —, porque não espera amanhecer
e usa esta noite para traçar um bom plano que não cause dor, nem
arrependimentos?
— Mãe, sei que a senhora quer o melhor para mim, mas desta vez,
seja o que decidir, ninguém vai interferir.
— Não esperava nada ao contrário, sendo filha de quem é. — Ela
sorri, se aproxima de mim, me abraça apertado da mesma forma que fiz com
Anjinho, afaga meus cabelos. — Quando fazemos uma escolha é desejável
que não retrocedamos. Você pode fazer isto?
Está sem dúvida é a pergunta que me farei dia e noite, até que
cumpra a promessa silenciosamente acabo de fazer em meu coração para
Anjinho.
INTERLÚDIO I
Eu não sei tudo o que está chegando, mas seja o que for, eu vou até lá
rindo.
Herman Melville

SANTIAGO

A
escuridão dos enormes cômodos faz uma alusão com meu estado de espírito,
hoje em especial me sinto dominado por lembranças tortuosas. A minha
primeira medida é conectar meu celular ao aparelho de home theater e
inundar o ambiente com uma boa ópera, de preferência em um volume que
me impeça de ouvir meus próprios pensamentos.
Hoje é um daqueles dias que como qualquer ser humano enfadado,
desejaria caminhar a esmo sem olhar para trás. No entanto, não me dou esse
luxo, porque por mais que tente me afastar, no final o desejo de me vingar
ferve dentro de mim, de uma forma que me revira as entranhas.
A cada cômodo checado, deixo uma luz ligada, as cortinas com
blackout impedem que pessoas do lado de fora possam ver a parte interna da
casa. Uma medida útil e conveniente para alguém que não suporta escuridão.
Uma risada sardônica me escapa. É desconfortável e vergonhoso,
saber que um homem capaz de fazer o que já fiz e ainda pretendo fazer, tenha
medo do escuro.
— Uma vergonha e afronta para o velho Gustavo, se ainda
estivesse vivo. Certamente me enterraria em um buraco debaixo da terra e me
deixaria lá por um mês. Maldito, filho da puta! — falo comigo, enquanto
checo um dos quartos vazios.
Procuro não pensar nisto e nem em qualquer lembrança que me
aterre.
Após passar por todos os cômodos do primeiro e segundo nível,
faço o abastecimento da dispensa e confiro a caixa de força no porão.
A melodia de Strauss ressona pelos cômodos da imensa mansão.
Ainda não consigo compreender o porquê de Angélica querer mantê-la, por
mim, teria incinerado até que só sobrasse apenas cinzas.
No entanto, aprovo o uso como “casa segura” como uma rota de
fuga para mulheres e crianças fugindo dos seus algozes. O que é irônico, uma
vez que o “nosso” antigo lar, que foi o palco das mais horrendas e perversas
atrocidades que um demônio com alcunha de pai poderia cometer.
Minha intenção era usar como desculpa o fato de passar e deixar
alguns suprimentos médicos e alimentos na despensa, já que ainda me
mantenho ativo ajudando-a na Guardian e vasculhar a casa, mas assim que
coloquei meus pés na soleira fui aterrado por essas malditas e inconvenientes
lembranças.
Existem perturbações que podem levar toda uma vida, mas assim
como sentimentos, estas são imutáveis.
Realizar o seu desejo de ter uma empresa onde pudesse aplicar
todo o conhecimento de defesa e ataque que foi forçado em seu sistema, para
um bem maior, consistiu em um desejo pessoal e a forma de manter meus
planos em ação.
Angélica, estava em sua pior crise mental e física, havia uma
súplica velada em seus olhos, ela precisa de todo o suporte para seguir, após a
perda da mãe e de quebra ter de enviar Aline, para fora do país, após as
consequências da armadilha implantada para Carlos Eduardo, render frutos,
não desejáveis.
Este foi o disfarce plausível que abriu caminho, não apenas para
novos contatos, como movimentar minha própria fortuna, fazendo-a se
multiplicar sem a real necessidade de me expor e atrair a atenção indesejada
tanto dos herdeiros, quanto da mídia, ou qualquer um que pudesse
reconhecer-me.
Mantive isto em mente por um tempo, mas a cada caso resolvido
onde realmente salvamos vítimas de violências domésticas, similares ao que
passamos, fez com que aliviasse um pouco do meu próprio tormento; mesmo
que, no fundo, aja de forma pior em benefício próprio e sem o peso de me
sentir culpado por isto.
Trazer Fernanda, para a equipe foi um golpe de sorte no início,
imaginava que colocando uma aliada extremamente grata por ser salva,
resultaria em subserviência, um erro não calculado, já que ela, na verdade,
tornou-se o braço direito da patroa.
Tentei outras formas de controlá-la, como, por exemplo, o medo
atroz de que o ex-marido, tido como foragido da polícia, pudesse voltar e
terminar o serviço que a deixou paraplégica.
Porém, a pequena fera não retrocedeu numa decisão, preferiu se
esconder a dar-me o que queria.
Foi demoníaco perturbá-la, lembro me com exatidão o nosso
último encontro aqui, nesta mesma sala, me ressenti por sua traição, e devolvi
a altura. Mas, fiz por não poder controlar minha sede de vingança, ao
perturbá-la com uma ameaça vazia, já que eu mesmo executei o desgraçado,
logo após cuidar para que o filho deles, fosse enterrado com todos os
cuidados e honrarias que uma criança cruelmente assassinada pelo próprio
pai, poderia ter.
Sinto algo pingando sobre as costas da minha mão crispada contra
o encosto do sofá. Um riso cínico arranha minha garganta e prefiro não
conferir se realmente são lágrimas que estão rolando por meus olhos.
— Que o inferno esteja em alta fervura com tantos inquilinos
miseráveis! — esbravejo com os dentes trincados.
O celular no bolso de trás do jeans vibra, com reflexos lentos o
retiro do bolso, ainda não compreendo o porquê estou envolto em toda essa
infrutífera melancolia. — Provavelmente em breve irei descobrir, — reflito
em voz alta observando o número restrito no visor.
Poucas pessoas têm acesso a este número em específico, por isso
não hesito em atender a chamada. — Santiago.
— O que está fazendo?
Ouça a voz melodiosa de menina, que poderia tranquilamente
pertencer a uma adolescente, ergo meus olhos e encaro a câmera fixada no
canto esquerdo da sala, a luz vermelha pisca algumas vezes e o movimento
circulatório é interrompido. Sorrio para o equipamento, ergo minha mão e
aceno.
— Fazendo algo útil, — replico — porque está me vigiando,
Fernanda? Sentiu saudades ou resolveu beneficiar a mão que te salvou?
— Nem em seus mais doces sonhos, sentiria sua falta, Santiago. O
sensor de movimento acusou uma presença na casa com todas as luzes
acesas.
— Isto é um problema?
— Não.
— Entendo. Esteve esse tempo todo em que andei por todo lugar,
me vigiando, — afirmo— o que deseja?
Talvez o fato de estar sendo vigiado e só agora me dar conta disto,
tenha me impulsionado a fazer o que realmente é minha intenção desde o
minuto que entrei nesse lugar.
A raiva de mim mesmo tremula contra minha mente, esmurrando o
bom senso, coloca a cara de jogo, onde as emoções estejam dentro de uma
caixa fortemente fechada, mas não rápido o bastante quando deveria.
Caminho em direção a saída da sala, o corredor amplo é ladeado
por várias portas, sei que ela está me acompanhando através das câmeras
dispostas por todo lugar, por isso não faço questão de esconder para onde
estou indo.
Abro a porta e aspiro. O cheiro mesmo depois de anos ainda está
presente no ar. É inconfundível e impossível não sentir, o aroma doce do
charuto cubano e o traço quente do Jack Daniel’s, que ele se embriagava
diariamente, como se fosse uma fonte de água.
Provavelmente o cheiro tenha ficado impregnado na madeira, após
todas aquelas garrafas do bar terem sido arremessadas contra mim ao voltar
da faculdade para levar Angélica sob minha responsabilidade.
Meus pés metidos nos sapatos de couro italiano pinicam, tenho
vontade de arrancá-los e acariciar as minhas cicatrizes grossas que se
alastram pelas solas. Quase sinto a poça de sangue fluindo pelo chão de
madeira impecavelmente polida.
— Santiago? — a voz vem de longe — San, está tudo bem? — a
preocupação na voz de Fernanda me enerva.
— Por que não estaria? Diz logo pelo qual motivo está me ligando.
Se está me vigiando desde o primeiro momento que entrei aqui, sabe
exatamente o que estou fazendo.
— Você geralmente entra e sai, não fica vagando pelos cômodos.
Suspiro. Entro na sala, cruzo o centro indo em direção a enorme
estante de livros, retiro um volume em especial que gosto de ler, o ergo em
direção a câmera, dando a entender que estou pegando emprestado o livro.
O som cristalino da sua risada não me engana, há muito tempo
aprendi ler as pessoas, não apenas visivelmente. É importante saber o tom de
voz que falam, o sorriso que expressam e este de Fernanda é de alguém que
deseja fazer perguntas, mas o medo das respostas a deixa nervosa.
Me sento na imensa cadeira estofada por trás da mesa de mogno,
abro a primeira gaveta onde ele sempre guardava sua caixa de charutos,
isqueiro e cortador para as pontas, o fundo vazio, manchado, esconde um
pequeno botão na lateral, que levei muitos anos a descobrir.
Sorrindo encaro a câmera bem à frente no teto o silêncio
constrangedor na linha me causa irritabilidade.
— Santiago…
— Vá em frente, pergunte. — a dou uma oportunidade de falar,
abro o livro, Moby Dick, um romance do escritor Herman Melville, a história
de uma Baleia Cachalote branca, que mesmo sendo ferida por vários
baleeiros, por diversas vezes, lutou para sobreviver e destruir todos aqueles
que a feriram.
Com cuidado passo as páginas tão usadas pela leitura intensa e as
muitas frases grifadas. Não me recordo exatamente a primeira vez que li este
livro, mas recordo-me com perfeição a primeira vez que tive meu supercílio
cortado com o peso ao ser arremessado contra meu rosto e o quanto a
lombada quadrada poderia ser perigosa.
Passo as mãos nas páginas manchadas com digitais diminutas que
após tanto tempo estão amarronzadas, as únicas evidências de que um dia
foram gotas de sangue.
— Sei por que me ligou, mas não entendo o motivo do silêncio.
Deixo sobre a mesa o celular, colocando-o no viva voz, me reclino
contra a cadeira com o livro nas mãos e passo página a página, lendo
pequenas frases que fiz questão de gravá-las para nunca mais esquecer.
— Adoro esse livro, Fernanda, é o meu preferido. Sabe por quê? —
ergo meus olhos para a câmera. — Existem verdadeiras pérolas escondidas
aqui. Uma das minhas passagens preferidas é esta: — leio em voz alta
pausadamente. — “Ninguém pode salvar ninguém. Temos de nos salvar a nós
próprios.”
— O desejo de vingança era uma obsessão.
— Não importa. Mesmo sendo a um duro preço…
— O que você quer, no fim pode ser fatal, Santiago.
— Depende para quem. — bufo fechando o livro e jogando-o na
gaveta, fazendo o peso exato contra o mecanismo de trava, colocando o botão
secreto para fora. — Você quer saber se ele está vivo? — me refiro ao seu ex-
marido.
— Você ameaçou contar a ele, sobre a minha localização. — Sua
voz estremece.
Aliso com a mão direita a barba em meu rosto, mantenho o olhar
fixo no ponto de luz vermelha piscando em minha direção, posso quase sentir
o odor de uísque e a densa fumaça do charuto que ele expelia a todo
momento enquanto sua voz embriagada arrazoava meus ouvidos.
“A culpa vem do arrependimento. O arrependimento de
sentimentos como amor, zelo, cuidado entre outros aos quais aprendemos a
não cultivar, pois, aquilo que não nos beneficia, não abre portas, não faz
fortuna e nos torna subservientes, não é aceitável.”
A primeira lição que jamais esquecerei. Toco uma pequena cicatriz
interna no lábio superior com a ponta da língua.
— A primeira de muitas… — resmungo.
— San? — a voz estremecida me arrepia e enoja por meu próprio
eu, imerso na mais profunda fealdade.
— Ele está morto, Fernanda! — digo bem alto, recolhendo o
telefone sobre a mesa. — Morto e posso garantir que não ficou sequer um fio
de cabelo para assombrá-la.
— Jesus de misericórdia! — ela grita. — Você o matou?
— No mesmo dia que enterrei ao seu filho. — Respondo
pacificamente.
— E mesmo assim, usou-o para me ameaçar? — sua voz é cheia de
indignação.
— Sinta-se livre para odiar-me por isto, garanto que não fará
diferença.
Silêncio…
— Seria pecado, agradecer-lhe?
— Seria pecado, entregá-la a ele?
— Sim!
— Sendo assim, decida você mesma para onde apontar sua bússola
moral.
Ouço os ruídos mecânicos da sua cadeira se locomovendo, seus
suspiros e um choro contido que cresce à medida que a ligação parece falhar.
Estou pronto a encerrar a chamada, quando ela volta a falar, sua voz infantil
tem um tom enrouquecido, quase envelhecido.
— Obrigada, por me libertar. — ela diz e encerra a ligação.
Não tenho o que pensar, ou reação que reconheça tal ato. Por isso,
ignoro esse momento em que nos falamos como se tudo isto, tivesse sido
apenas uma alucinação. Prefiro assim.
A luz vermelha que estava piscando de forma frenética foi
desligada, o que indica que as câmeras estão offline. Um sorriso frio cruza
meu rosto.
— Eu poderia pedir que as desligasse e de certo que ela não o faria,
mas bastou dar algo e voilà…
Retiro o livro que além de ter a melhor história, é a chave para a
gaveta secreta de Gustavo Campus. O tampo de madeira solta com facilidade
assim que o botão é inserido novamente em seu esconderijo. Removo o fundo
falso.
Foi uma infeliz coincidência a forma que descobri sobre o lugar
secreto daquele demônio, custou-me muito, porém após ler parcialmente o
testamento, e ouvir suas últimas palavras, antes de caminhar a passos largos
para sua morte, eu soube que o maldito escondeu muito mais do que
aparentava daqueles amigos imbecis. Eu só precisava encontrar a segunda
parte do Testamento, e achar o mapa do MEU tesouro.
Infelizmente, demorei tempo demais para conseguir pôr as mãos no
documento em posse de Angélica, só agora que ele passou para a guarda de
Staeler, foi possível encontrar as pistas necessárias. Um serviço que Álvaro,
executou com louvor.
No fundo, falso da gaveta tem alguns livros-caixa empoeirados,
envelopes com documentos, fotos e algumas rasgadas, apólices e um
envelope pardo lacrado. Afasto a caixa comprida que está sobre todo o
material e puxo o envelope. O lacre é facilmente quebrado, e ao ver o
cabeçalho das folhas que estão do lado de dentro não posso conter meu urro
de prazer.
— Te peguei, seu maldito desgraçado. Espero que esteja se
revirando em seu túmulo e ardendo no fogo do inferno, Gustavo Campus!
Não tenho tempo para apreciar minha descoberta. Recolho
rapidamente todo o conteúdo da gaveta colocando dentro da minha jaqueta.
Incluindo a caixa, anexo o fundo no lugar, fecho a gaveta e devolvo o livro
para a estante, olho para o teto e em três segundos as luzes voltam a piscar, a
câmera faz um giro de cento e oitenta graus, varrendo todo o ambiente, não
espero um segundo além do previsível, deixo o cômodo, apagando as luzes.
Não chego a dar dois passos e outra ligação estremece o aparelho
celular, em minha mão.
— Santigo. — atendo no automático, enquanto vou desligando as
lâmpadas em meu caminho.
— Alô! Oi! San como tem passado? — estaco no lugar olhando
para o visor, na pressa não percebi qual operadora foi acionada.
Segundo erro da noite. Que caralhos está acontecendo comigo?
— Nina! — faço a voz soar sedutora e surpresa de uma forma
agradável. — Como tem passado? Estou com saudades de você e do Anjinho.
— outro segredinho dos herdeiros.
— Estamos muito bem, com saudades da sua irmã e de você, é
claro…
Sim, é claro!

As horas passaram depressa, rodei de carro por um bom tempo


pensando em uma forma de abordar um novo problema que estava prestes a
explodir em minha cabeça.
Deixei de lado os documentos e a parte importante e real do
Testamente que encontrei, para concentrar-me em Mikaella, já que ela
conseguiu driblar seus seguranças, essa porra de teimosia deve ser algo
encrustado no sangue.
— Como ela pode, fazer a mesma coisa que Mikael fez? — um dos
seguranças responsáveis retorna ligação.
Dizer que esculachei sua equipe foi o mínimo antes de demitir
todos por sua incompetência. Nos últimos dias em que estive afastado da
Serra a responsabilidade da segurança era deles e minha confiança tem preço
de ouro.
Pago muito bem para ser servido no que for possível e impossível.
É inaceitável, que ela tenha conseguido escapar dos seguranças em três
ocasiões e isso tenha passado despercebido a mim.
— Porra! — esmurro o volante.
Se isso for contar como erro, é o terceiro.
As luzes da casa no andar térreo estão apagadas, mas em
compensação a parte superior brilha como se houvesse ali um sol do meio-dia
em pleno verão.
Compartilhar meu medo do escuro com minha Fadinha, a princípio
me deixou envergonhado, mas gradualmente notei que ela própria nutria seus
medos com traumas da infância, vindos do tempo que viveu em asilos, e na
companhia de Verônica.
Sinto uma mistura de sentimentos ruins se agrupar em meu peito ao
saber que as suas debilidades com coisas tão pequenas, colocadas lá por
outras pessoas, por demônios disfarçados de seres humanos…
Quem sou eu para julgar? Senão o mesmo demônio que a tem
deixado enjaulada para o Gran Finale?
Coloquei o conteúdo da gaveta em uma maleta de couro, desliguei
o carro e entrei na casa pela parte de trás, indo direto ao segundo andar. O
som de violino aqueceu-me, dando boas-vindas ao lar.
No entanto, não será o suficiente para aplacar a raiva fervilhando
sobre a borda.
Parei diante da porta do seu quarto que também é um estúdio onde
treina e se prepara para as aulas de música. Dois toques na porta foram
suficientes para que fosse convidado a entrar.
Abri uma fresta e logo o cheiro doce escapa para o corredor.
Mikaella está sentada de frente para um espelho gigante acima da sua
penteadeira. Os longos cabelos ruivos, estão descendo por suas costas em
uma cascata de cachos, o vestido liso de corte reto a deixa com ar elegante.
— Posso entrar? — pergunto embasbacado com a forma etérea que
ela tem ao sorrir tão tranquilamente.
— Estava esperando por você!
A sua voz rouca, e a dicção característica dos portadores da
síndrome de Down, não ofende a audição, ao contrário, causa uma sensação
calorosa quando a ouço.
— Você tem algum encontro, ou evento que não saiba, está
realmente muito bonita, Mikaella.
Ela sorri, enquanto mira o espelho e com suas mãos de dedos mais
curtos pincela um gloss rosado contra os lábios carnudos, apenas apara avivar
a cor natural.
— Sei que está me ob-beservando, San.
— Estou? — pergunto entrando no quarto e me posicionando por
detrás da banqueta baixa em que está sentada.
Apoio meus braços ao seu redor e aspiro o aroma, é impossível não
me sentir bem ao seu lado. Estava a alguns minutos atrás prestes a brigar e
fazer um verdadeiro discurso crítico sobre suas ações, mas quase me sinto em
transe ao observá-la.
— Sim! Estou linda? — ela ri, me dando a visão de covinhas
profundas nas bochechas salientes.
— Está realmente linda. — Ela sorri, mas logo desvia os olhos. —
Como foi o seu dia?
— Ót-timo. — ela responde sem titubear.
— Onde esteve? — pergunto.
— Vo-cê sabe onde.
— Onde esteve Mikaella? — me reclinei colocando meu queixo
sobre seu ombro, tão próximo ao seu rosto que teve de parar para dar-me
atenção.
— Você sabe, tinha seis, — ela enfatiza com as mãos no ar.—Seis
homens, an-dando atrás de mim, eles não são bons em se esconder.
— Eles não sabem se esconder, mas a senhorita está se mostrando
uma perita em fugir deles, — replico em um tom que não deixa margem para
réplica. — Onde esteve, Mikaella?
— Não precisa saber!
O temperamento dócil esvaiu-se e finalmente a fagulha
característica, que reconheço ser um traço de Mikael Nikolaievitch implodiu.
Seguro a vontade de rir, e mais uma vez pergunto pausadamente por onde
esteve.
Mikaella retoma os movimentos com pincel de maquiagem e
encara-me através do espelho.
— Fui com-prar o seu presente de aniversário. O qual, fez questão
de NÃO passar comigo.
Sim, mas por estar tirando o idiota do seu irmão debaixo de um
carro em alta velocidade que estava a ponto de fazê-lo virar adubo para
asfalto. — penso, porém, não a respondo.
— Você não voltou para ca-sa e o bolo de sorvete virou água! —
ela bateu o pincel sobre o móvel com força.
— Isto não é uma desculpa para fugir dos seguranças.
Devolvo no mesmo tom e me afasto por completo, caminhado em
direção a poltrona do outro lado, me acomodo sobre o estofado esperando
que ela faça o mesmo. Em relutância, Fadinha se ergue e caminha em minha
direção sentando-se do outro lado, ela cruza os braços e ergue o queixo.
— Além de fugir, faltaram as equoterapias e perdeu sua consulta
com a fonoaudióloga.
— Eu não gosto de fo-fono. E não precisa de um monte de pes-soas
me seguindo. Preciso lembrá-lo que só tenho síndrome de Down, não sou
burra.
A forma que terminou cada sentença, piscando repetidamente,
gesticulando e se esforçando para não arrastar as palavras lutando com sua
própria fala, só demonstra sua força de vontade em se superar.
— Sei que não é, por isso mesmo, me espanta fugir dos seus
compromissos; cometer atos de irresponsabilidade deste grau.
— San… — ela me olhou diretamente agora com a voz doce e um
ar encantador, e disse pausadamente. — Não vamos brigar. Hoje é um dia
especial!
— Não vamos brigar. A minha Fadinha sabe como domar meu
gênio, mas ainda assim, quero saber onde esteve, com quem falou e, porque
não está indo as equoterapias, sendo que ama estar com Anjinho.
Mikaella desvia o olhar, retorce os dedos. Algo me diz que não vou
gostar da sua resposta, mas uma das suas qualidades é não mentir. Me
surpreende que tenha fugido, mas sei que não tentará me enganar.
— Fui até Vitória, queria ver meu irmão.
— Você o quê? — me ergo em um salto.
Respiro pausadamente para não a amedrontar, isso jamais passou
pela minha cabeça, imaginei que tivesse ido à praia que tanto ama, ou para a
casa de alguma amiga, ou um dos alunos de conservatório, mas jamais tão
longe.
— Mikaella, tem noção do perigo que se colocou? Onde
exatamente foi?
Ela com sua forma rudimentar causada pelo nervosismo, explicou
com poucas palavras que chamou um táxi, pediu para levá-la até o centro,
mais precisamente o prédio da Promotoria, e lá soube que o Promotor
Nikolaievitch, estava em um almoço de família. Não se dando por satisfeita,
Mikaella conseguiu achar o restaurante através de uma pesquisa feita por
internet e o encontrou.
— Passei boa parte da tarde observando-o almoçar com os
amigos. Ele estava muito triste, eu pude perceber, — sua voz está baixa,
—queria tanto abraçar meu ir-mão, mas se fizesse isto, perderia você, não é
mesmo?
— Mikaella…
Não sei o que responder diante das suas lágrimas que escorrem
pelo rosto arredondado, me aproximo ficando de joelhos à sua frente, toco
seu rosto, a confusão de sentimentos ruins se misturam a sensação gritante de
perda e medo que me invade.
— Ele não me viu! — ela afirma.
Quero repreendê-la, dizer para nunca mais fazer isto, mas algo me
impede, talvez esse seja um caminho para findar meus planos antes do
esperado, não sei.
Me forço para ignorar que ela esteve no mesmo ambiente que
Mikael e Angélica, engulo em seco e continuo com meu interrogatório.
— Por que não tem ido ao Haras?
— Porque… Porque, ele se sente como eu… e Eu queria dar a ele,
algo para ficar feliz.
— Ele é o Anjinho?
— Sim.
— E o que exatamente você quer dar a ele?
Seu sorriso é enigmático, mas não precisa ser um gênio para chegar
ao resultado desta equação.
— Mikaella, onde estão as fotos que tirou do seu amiguinho
montado a cavalo?
Ela aperta os dedinhos contra as palmas das mãos e me olha através
dos cílios alongados pela maquiagem. — Deixei, no restaurante.
Caralho! Agora sim, tudo está fazendo muito sentido. — Quer
dizer então, que a minha Fadinha resolveu usar sua varinha de condão?
Mikaella fica em silêncio. Rapidamente me vem à mente a
lembrança de como se conheceram, a minha intenção era aproximá-los para
chegar até Nina, e dela ir até Lia, mas não imaginava o que me esperava ao
ver o menino, e nem a ligação instantânea que se deu entre eles.
Minha mente começou arquitetar milhares de estratégias e a achar
as vantagens e desvantagens de esta situação.
— San, está com raiva de mim?
— Não, minha menina, jamais ficaria. Estou triste por fugir, mas
posso esquecer tudo isto se me prometer que jamais irá fazê-lo novamente.
— Prometo!
Ela se jogou em meus braços me segurando com força com os seus.
Por um momento senti a vontade de repelir esse conforto, o toque
da minha Fadinha, mas a parte egoísta que ronda meu coração não me
permitiu. Por isto me deixei ser abraçado. Não ignoro os fatos, mas ele não
precisa se martirizar sabendo disto.
— O-bri-gada… — ela sussurrou.
— Hum! Pelo quê?
— Por ser quem é. Conter sua raiva e me mostrar apenas o seu
lado bom.
Por mais que quisesse manter a cara de jogo e não perder o
controle diante dela, não resisto. Uma gargalhada explode em meus lábios,
com tanta intensidade que não consigo controlar-me.
— Eu te amo, San!
Me ergo a trazendo comigo. Mikaella envolve os braços em meu
pescoço ficando nas pontas dos pés espalhando beijos pelo meu rosto, a
detenho segurando seu rosto próximo ao meu. Me curvo lentamente e encosto
meus lábios contra sua fronte, aspiro o aroma doce que se desprende da sua
pele, enquanto a beijo castamente.
— Sei que me ama… — sussurro.
— E você também me ama, não precisa dizer.
— Sim, e é justamente por este motivo, que amanhã a senhorita
tem uma sessão com sua fonoaudióloga e a equoterapia. — ela tentou
protestar. — É para o seu bem, Mikaella. E o bem do seu amiguinho que está
sentindo muito a sua falta. — ela se cala. — Outra coisa, você não é minha
prisioneira e se os seguranças estão ao seu redor, é para que eu me sinta
seguro.
— Vou na fo-no, mas você vai ter que dizer que-e me ama.
— Eu a amo, minha Fadinha! — foi inesperado para nós dois e nos
surpreendeu mutuamente, entretanto, foi sincero.
Sorrindo estou pronto para dar por encerrada essa conversa e
acompanhá-la em um jantar tardio, mas minha Fadinha ainda não acabou de
me surpreender, ou melhor.
Esse louco dia, finalmente descortina a fonte da minha inquietação.
— San? Uma coisa que quase es-queci de dizer, sabe o quadro que
está faltando na sua coleção, aquele que você me mostrou a foto, e disse que
pintou quando era bem mais novo?
— Qual?
— O das joias que me deu de presente.
Um frio invade minha espinha e um arrepio cobre a minha pele ao
ponto de me fazer estremecer.
— Sim, o que tem ele?
— Está no restaurante que fui, assim que vi, reconheci a imagem,
as joias e a sua assinatura.
CAPÍTULO 11

INEVITÁVEL
“Não existe o esquecimento total: as pegadas impressas na alma são
indestrutíveis.”
Thomas De Quincey

MIKAEL

A
sensação de ser estrangulado por uma mão invisível, está pior que na noite
anterior. Melhor dizendo, pior que todas as noites em que fui acorrentado e
atormentado pelo mesmo terrível pesadelo.
Meu cérebro analítico envia comandos ao meu corpo para reagir
rapidamente e me livrar dos minutos restantes, mas de alguma forma, percebo
tarde demais que isto não é possível.
Talvez seja pela carga emocional a qual fui submetido, a pressão
no trabalho, o maldito, maravilhoso e inesperado beijo que troquei com Lia.
Por que fiz aquilo? Há muitos motivos, ou apenas seja o fato de
estar enlouquecendo gradualmente por forçar minha mente a lembrar de
coisas que preferi esquecer?
A voz arrepiante me causa náuseas, sinto meu corpo convulsionar
emaranhado nos lençóis, as malditas lágrimas já estão escorrendo e se
misturando a soluços engolfados.
— Avisei a Niko que levaria todas embora. Uma a uma…
Será que o DNA das mechas do cabelo encontrado, na verdade, é
de alguma mulher da minha família? — indago-me em meio ao pesadelo —,
mas se minha mãe está morta, e minha irmã faleceu antes do meu
nascimento…
— Novamente, irei tirar outra mulher dos Nikolaievitch — ela ri
e em uma das suas mãos reluz o falso colar de diamantes salpicado de
sangue, e na outra ela segura o cabo de um punhal ainda cravado ao lado de
Lia, o retorcendo lentamente.
Ela disse que iria tirar? Não matar, mas sim retirar…
— Olha só quem resolveu colocar essa linda cabecinha para
funcionar.
A imagem de Verônica se desfaz e o ambiente muda, parece um
lugar muito familiar, o aroma entre tantos outros cheiros, a claridade distorce
completamente do corredor secreto na sala de Anderson.
— Sua filha da puta, como ousa ainda falar comigo? — esbravejo
irado.
A risada horrenda arranha meus ouvidos, ela se move e o cheiro
que se desprende da sua pele, não mascara o fétido odor metálico do sangue
jorrando de Lia, mesmo que não possa vê-la mais.
— Não seja idiota, moleque! — essa expressão, já ouvi antes —,
eu não estou conversando, mas sim o seu subconsciente montando um
quebra-cabeças perigoso.
— Quem você tirou de mim?
— Há, Há, Há… Seria fácil demais, se contasse, mas digamos
que você ainda coloca a louça do café da manhã para ela…
— O quê? — pergunto e tento alcançá-la, a imagem a minha frente
tremula voltando a ser o mesmo de sempre, e não sou capaz de ouvir o que
aquela mulher diz.
Retorno meus olhos para onde Lia está, meu peito infla, minhas
pernas não me obedecem, meus olhos ardem, minhas narinas parecem ter
sido lavadas com ácido, sufoco em desespero, a maldita mulher, retorce o
punhal, vejo minha Anja perdendo o viço, e de repente um estrondo torturado
ecoa em meus ouvidos: —Não! Lia! — Dando fim a mais uma madrugada de
puro terror.
O som vem cheio de dor, desta vez não contenho o choro, novas
arcadas de ar são tragadas com força. Levo minhas mãos aos olhos tentando
conter-me, contudo o tremor é tão intenso que me sinto constrangido em
meio ao escuro.
Busco o relógio ao lado da cabeceira, duas horas da manhã, mesmo
horário, e novas cenas em um sonho infernal.
Minha voz arranha a garganta, mas confesso em alto e bom som, o
que tenho segurado por longas semanas, desde o resultado do teste. —
Mikaella! Mikaella, a minha irmã… está viva!?

Sigo os mesmos passos da minha rotina após perder o sono pela


madrugada, porém desta vez, tomo duas aspirinas, minha cabeça parece que
vai explodir, o local da ferida ainda está muito sensível e pareço ter batido
com a cabeça em uma bigorna.
Visto um agasalho esportivo, tênis e alcanço meus fones
conectados ao Iphone no bolso do agasalho. Os seguranças já acostumados a
me verem, não se movem para me acompanhar, porém, o vulto silencioso
está lá, um pouco aérea, mas acompanha meus passos rápidos.
Acelero cruzando sinais que piscam na via de mão dupla, até
alcançar a faixa calçada de paralelepípedos ao longo da costa. O ar salgado
impregna rapidamente em minhas narinas, os flashes do pesadelo me
sobrecarregam, nem mesmo a correria pode me livrar dessa infeliz sensação
desconfortante.
— Que cacete, Ovinho! Está treinando para São Silvestre? —
Angélica que ficou para trás aperta o passo se colocando ao meu lado,
estende o braço e o golpe vem forte.
Antes que perceba, meu corpo desequilibra e rola pelo banco de
areia até cair de costas na faixa larga da praia com zero iluminação.
Furioso me ergo pelos cotovelos e a encaro, enquanto salta com
destreza fazendo o mesmo caminho que desci rolando.
— Que porra!? O que pensa estar fazendo, Angélica?
Ela arfa, e chuta areia molhada sobre mim. — IMPEDINDO que
chegue até do outro lado da cidade correndo, seu imbecil, e que eu morra no
trajeto.
— Foda-se! Não pedi para me acompanhar. — Respondo no
mesmo tom. Tento me erguer, mas logo sinto minhas coxas queimarem. —
Puta merda! — Exclamo puto de raiva.
Não pareço ter estirado um músculo ou coisa parecida. Movimento
o corpo devagar sentindo todos os ossos, músculos, nervos rangerem, como
se estivesse treinando por horas sem parar.
Isso é impossível – penso, — não tenho noção das horas, mas não
posso acreditar que excedi tanto assim na corrida.
Ergo minha cabeça e tento enxergar algo, não reconheço a faixada
de prédios aparente, e a beira-mar não tem sequer um quiosque, o que me diz
que estou bem longe da área central que moro.
— Por quanto tempo estou correndo? — pergunto em voz baixa,
antes de alcançar o aparelho em meu bolso.
Angélica se joga ao meu lado, com fôlego quase completamente
recuperado, ela bate com força o cotovelo contra meu abdômen me fazendo
voltar a posição que cai.
— Puta que pariu, Megera! Qual o seu problema?
— Você! — ela exclama e tenta me acertar novamente, porém sou
agiu e seguro seu pulso, trazendo sua mão firmemente presa contra meu
peito.
— Eu?!
— Você está correndo por quase duas horas sem parar, sou eu que
tenho um problema?
Um silêncio estranho recai sobre nós. Sinto-me arrependido de ter
gritado com ela, mesmo que tenha quase quebrado meu pescoço. No entanto,
sou incapaz de dizer qualquer coisa, por um único motivo: sinto meus olhos
ardendo de uma forma suspeita, e esse conforto silencioso, pode me fazer
desabar de uma forma nada máscula diante da Megera.
Os primeiros clarões da manhã começam a tonalizar o céu. Da
mesma forma que corremos por um longo tempo, passamos aqui deitados na
areia molhada, sinto minhas costas frias e úmidas, me viro em reflexo
olhando para Angel, pois se estou assim ela também está.
Seu agasalho está amarrado na cintura escondendo a parte superior
da calça esportiva, a camiseta regata preta está colada ao corpo, os olhos
fechados e a respiração tranquila dão a entender que adormeceu. Os fios
loiros estão colados contra o rosto pequeno, indicando o quanto de suor
escorreu por ali.
— Não sou obra de arte para ser apreciada! — a voz sai em
sussurros.
— Até que você é bem bonitinha, Megera. — comento e de leve
retiro um fio grudado da sua bochecha corada.
— Se a Pocahontas te ouvir… — ela ri e permanece imóvel, o que
é estranho.
— Por que não abre os olhos?
Percebo ela engolir em seco algumas vezes e sua voz sai um pouco
distorcida, assim que ouço, me sinto culpado de verdade.
— Está perto demais, Mikael e segurando minha mão, isso é
desconfortável para mim.
— Porra! — exclamo. — Me desculpa Angel, não pensei que
pudesse… – me afasto rapidamente soltando-a, e agora a claridade que torna
o céu rosado, me permite ver que o suor continua escorrendo, indicando que
ela suportou algo inevitável por mim.
— Por que não disse nada? — pergunto.
Meu corpo já está bem mais recuperado, minha mente ainda
conturbada, porém sou capaz de falar de forma coerente.
— Porque assim como eu, você precisa de ajuda.
— Eu não preciso! — sou inflexível na resposta.
— Não, imagina! — ela é sarcástica. — Sair pela madrugada
correndo como um louco, ignorar o fato de acordar aos berros noite após
noite, chorar de ter os olhos inchados, entre tantas outras merdas que tem
acontecido, é normal.
Angélica se ergue, alonga o corpo me dando as costas, meus olhos
se expandem ao ver algumas dilacerações embranquecidas misturadas a
linhas rosadas aparentes em seus ombros.
É um fato que sabemos muito bem; desde a adolescência, nunca a
vimos com roupas decotadas nas costas, piscina, praia ou qualquer coisa
similar, mas jamais imaginei que esse fosse o motivo.
— Angélica! O que é isso?
— Cicatrizes. — Uma resposta simples, mas cheia de sentimentos
estranhos. — Tão feias e cheias de significados como as suas. Não faço a
menor ideia do porquê me expor para você. — Ela ri sem humor batendo a
areia da roupa. — Provavelmente se você tocar no assunto em algum
momento no futuro, ou contar para alguém, irei me arrepender de ter lhe
mostrado, um lado do meu monstro. — Ela veste o seu casaco, puxando o
zíper até a altura dos seios e mira seu olhar ferido no meu.
Tenho uma imensa vontade de avançar e pegá-la em meus braços,
abraçá-la com força e interrogar sobre o que houve, mesmo sabendo das suas
limitações e o que isso poderia causar, porém, continuo sem entender o
porquê está agindo assim.
— Você precisa treinar melhor “a cara de jogo” Promotor.
Demonstrar piedade é dar munição ao inimigo. Cuidado! — Ela dá um passo
adiante. — Não estou mostrando nada de mais, você só viu parte dos meus
ombros, não pense muito sobre isso, apenas entenda uma coisa:
existem várias categorias de feridas que causam grandes cicatrizes, e todas
precisam ser bem tratadas, ou podem ficar dessa forma. — ela aponta para
os ombros com os polegares. — Não negue o quanto ficou traumatizado com
o que aconteceu com a Pocahontas, todos ficamos.
— Isto, não tem nada a ver com…
— Tem, tudo a ver. As perguntas que me faz, a forma como exigiu
a mudança nos seguranças, dando a entender que foi ideia minha. Sua
preocupação excede o normal. Apesar de que, isto não me assusta vindo de
você, — Ela ri —, mas querer grampear os telefones, colocar câmeras
escondidas dentro e fora do apartamento da Lia, mais os seguranças extras
para o filho dela, me dizem muitas coisas.
— Não pense demais! Combinamos que eu não teria acesso às
imagens, áudios e nada similar. Quanto ao moleque…
Ao repetir a mesma forma de tratamento que ouvi em meu
pesadelo, uma pontada na minha cabeça me faz passar a mão freneticamente
sobre a têmpora.
— Mikael? Ovinho, o que foi?
— Eu estava dizendo que em relação ao mole… filho da Lia, não
existe nada diferente, pois concordamos em fazer o mesmo com os seus
sobrinhos, Pérola e os filhos do Carlos Eduardo.
— Hum! Sim, é verdade, porém eles não têm de arrendar as casas
ao lado para poder vigiar melhor, não acha? — ela ri — Aliás, não é alugar.
Você comprou todos os apartamentos do prédio onde a Pocahontas mora e
colocou seguranças, como inquilinos!
Putz! — Nós realmente carecemos ter esta conversa?
— Se admitir que está precisando de ajuda, não.
— Eu já disse, não preciso de ajuda, apenas que eles fiquem
seguros. E como já falei, não invado a privacidade deles, só preciso que me
envie uma mensagem diária dizendo: está tudo ok!
— Já pensou o que ela fará se descobrir? Além de que, mesmo com
toda essa segurança, você não foi capaz de dormir uma noite sequer.
— Megera, — tento colocar minha máscara do bom rapaz e levar
para o lado humorado que sempre contorna as situações, me deixando longe
dessa argumentação.
— Comigo isto não funciona, Promotor. — Ela bufa, retira o
celular do bolso do casaco e envia uma mensagem. — Tudo bem, se não quer
admitir agora, acabará fazendo mais a frente e estarei disposta a ajudá-lo.
Vamos falar de algo mais sério?
— E o que seria?
— De quem é o DNA no teste que fez? Onde conseguiu o material,
e, porque está ocultando dos outros, o quanto se lembra da Verônica?
— Estou com uma imensa vontade de mandá-la para…
— Poupe o seu tempo. — Ela ergue a mão espalmada.
Ouço um assovio curto e vejo um dos seguranças acenando.
— Vá para casa, tome mais duas aspirinas e tente dormir, irei
cuidar do seu dia de folga. — Ela cruza os braços e continua discursando
como se estivesse em uma reunião com o seu pessoal. — No carro tem uma
pasta com alguns documentos, são as novas identidades e o local onde sua
testemunha está alocada, assim que gravar as informações, tenha bondade de
destruí-las. Precisando de algum depoimento é só me falar, a partir de agora
ela ficará incomunicável até o julgamento.
— Você é eficiente!
— O Promotor nem imagina o quanto. Referente ao prazo de três
dias que tão amavelmente… — ela alonga as palavras, — solicitou para
resolvermos a questão da herança com Lia…
— Espero que se lembre de só tem mais dois dias.
— Como esqueceria? Os documentos estão prontos, o valor
referente já foi transferido na tarde de ontem para uma conta aberta no nome
dela, e está com a pendência de suas assinaturas, e isto meu caro, é o seu
trabalho conseguir.
— Não foi este o combinado.
— Eu sempre tenho êxito no que faço, mas definitivamente, não
quero ter de enfadar minha alma, tentando convencer a Pocahontas a aceitar
algo que não quer. O Promotor, pode fazer este serviço. Estarei à disposição
da requerente às onze horas da manhã para as assinaturas.
— Ok! Algo mais?
— Infelizmente tenho, mas não há colaboração ainda da sua parte.
Apesar de que não respondendo às minhas perguntas, na verdade, está
dizendo mais do que imagina. — Um meio sorriso tenso desliza por seus
lábios. — Durante anos, você me escondeu na sua casa para me salvar do
Gustavo, nem sempre o som de um piano é o suficiente para encobrir certos
ruídos, gritos e o distinto som de objetos quebrando.
— É melhor irmos… — resmungo, chegando ao limite deste
momento insano entre nós. Suas insinuações se somam ao meu desconforto
mental tão perigosamente, que sinto o tremor das mãos voltando e arrepios de
ansiedade percorrendo meu corpo.
— Sinto muito…
— Concordo. — Dou alguns passos para longe, mas me volto
quando ela me grita. — Aqui vai uma dica para se distrair um pouco, assista
um filme infantil, de preferência Happy Feet, se aprender a tocar e cantar a
trilha sonora, será melhor ainda.
— Está louca, Angélica?
— Não! — Ela gargalha e parece ter um segredo. — Assista o
filme, será bem interessante, Ovinho. Tenho certeza de que vai amar histórias
de pinguins.
Subi o banco de areia até chegar à calçada e minha cabeça
realmente parece prestes a explodir.
— Ah! Ovinho, sabe qual é a minha parte preferida do filme?
— Qual? — pergunto batendo a areia dos tênis.
— A parte em que o bebê pinguim, não pode expressar felicidade!
Ok! Ela conseguiu. Cruzo os braços e a encaro do alto.
— E por quê?
— Porque isso não é coisa de pinguim! — Ela responde com certa
entonação.
— Isso é algo triste, Angélica. Não é para ser a parte preferida.
— Exatamente! — Ela bate palmas. — Para o futuro, mantenha
isso em mente, Promotor Nikolaievitch. Quando um bebê pinguim não pode
expressar sua felicidade, é preciso que algo ou alguém o ajude.

O banho teve o efeito relaxante para o corpo, mas a minha mente


ainda continua trabalhando de forma frenética. Isto causa um desgaste maior
do que as horas correndo como um louco pela madrugada.
Recebi uma mensagem da minha assistente confirmando a
solicitação para um dia de folga.
— A Megera é eficiente.
Seguindo os seus conselhos, tomei mais duas aspirinas, porém em
vez de dormir, resolvi atravessar a minha sala de música e ir até minha estufa.
A paixão por orquídeas vem desde que me entendo por gente, algo
que herdei da minha mãe. O aroma, a textura e cores me causam sensações
adversas que não posso explicar.
Elas retiram de mim, toda dor e tormento que não sou capaz de me
livrar sozinho. Adentro a enorme redoma de vidro e treliças, bem arejado, o
chão pavimentado com lajotas, formam desenhos intricados com sua pintura
gasta. Recordo-me de ainda criança, ver minha mãe ajoelhada pintando cada
uma delas, ela dizia ser como se lembrava do pátio da casa em que nasceu em
Moscou.
A bancada de trabalho está meticulosamente limpa, mesmo sendo
utilizada diariamente. Separei um jarro de vidro para fazer um arranjo novo
para meu escritório e algumas mudas de Cattleyas, Vandas e Oncidiums, para
presentear minha secretária, que com passar dos anos e os vários vasos que
sempre a presenteio, virou uma colecionadora.
Me distrai um pouco arrumando outros vasos de Sapatinhos,
Cymbidiums, mas o meu arranjo de hoje será com a minha verdadeira paixão,
as Phalaenopsis, mais conhecida como Orquídeas Borboletas, tanto as de
tamanho normal quanto as “mini” me fazem relaxar e sentir um momento de
paz ao observá-las. O aroma então, ele me remete a saudades…
As diabólicas memórias voltam a minha mente, e desta vez não as
impeço de chegar, mesmo sentindo gotas salgadas ultrapassando sobre os
pelos da barba e avançando meus lábios, outras apenas saltando dos meus
olhos para cair sobre minhas mãos e as folhas podadas.
Sinto uma pontada tão forte contra minha têmpora que a tesoura de
poda cai da minha mão, no reflexo de impedi-la, esbarro no jarro de vidro
que já preenchi com alguns galhos, arremessando-o longe.
Assim que o som dos vidros se espatifando contra as lajotas do piso
reverbera pelo ambiente, minha mente cai em um limbo perigoso, misturando
a realidade com pesadelo, com as insinuações do que Angélica ouviu há
muito tempo, e me vejo sendo transportado, sentindo tudo aquilo que apaguei
da minha memória.
Eu sempre ouvia meu professor de literatura citar Thomas De
Quincey, e repetir a mesma frase quando alguém dizia ter se esquecido de
algo: “Não existe o esquecimento total: as pegadas impressas na alma são
indestrutíveis.”
Muito provavelmente, tenha sido isto que me fez naquela altura
manter-me longe das situações que pudessem fazer marcas, pregadas de certa
forma em minha alma, em alguns casos, era inevitável.
Minha mãe, a dona Sarah, em seus dias de paz conseguia fazer
piadas com qualquer coisa, seja a aparência do filho à comida meio queimada
de dona Filó, a senhorinha que a ajudava três vezes na semana.
Sarah Nikolaievitch, era uma mulher calma e equilibrada até certo
ponto que me recordava da infância. Havia os dias ruins em que se trancava
no quarto decorado para Mikaella. Era ali que vivia o seu luto pela perda da
primeira filha. O som do choro e horas de cantos com canções de ninar em
russo, me assombravam madrugada adentro.
Em alguns destes dias me sentia culpado por nascer, estar presente
e não ser o suficiente para fazê-la feliz. Em outros preferia estar com meus
amigos a vê-la sofrer.
Estar próximo desse sentimento me angustiou durante toda a
infância, pois querendo ou não, ela fez minha irmã estar presente, a incluindo
em nossa casa, o tempo todo.
As datas comemorativas nunca foram apenas nós três, sempre
houve os presentes do Mikael e da Mikaella. O lugar à mesa para as
refeições, sempre foi posto como se a menina fosse entrar a qualquer
momento pela porta, sentar-se e comer junto a nós.
Detalhes que com passar do tempo afastou não só a mim, como aos
demais, era estranho nos sentarmos todos à mesa e ter um espaço vazio,
ornado para alguém que nunca esteve lá. No entanto, o mais estranho que já
adulto me via fazendo o mesmo automaticamente, ao ajudar pôr a mesa.
Meu pai de certa forma, deixou ela criar seu mundo de fantasias
para mantê-la a salvo de si mesma. Eu preferi acreditar que o amor dele por
minha mãe era tão intenso, que a ver imersa na sua sandice, era natural.
Ao menos naquela época, ele ainda conseguia manter o mínimo de
decência ao tratá-la com carinho e respeito.
Algumas vezes me sentia excluído desse mundo que minha mãe
criou, tanto que para não a ver definhar por uma filha morta, preferi
simplesmente bloquear sentimentos, e as sensações que me angustiava; assim
parei de sofrer, de ser a bengala emocional usada apenas quando necessário.
Claro que com passar dos anos percebia outras coisas, havia os dias
bons onde ela me trazia para dentro da sua loucura boa, risos, cantoria e as
aulas de piano.
A ouvia tocar seu violino com tanta paixão, que podia sentir
lágrimas nos olhos. Aqueles momentos raros e únicos onde se sentava ao meu
lado para fazer a lição de casa, confidenciava coisas da sua família, infância,
a aventura que foi fugir do seu pai para casar-se com o primo e um mundo
que fazia com fadas e música.
Eram momentos em que toda a beleza do seu rosto. do sorriso, a
voz melodiosa com sotaque carregado que não feria os ouvidos, dava aquele
arrepio bom de aconchego.
Somente em ocasiões assim, que Nikolay, meu pai que sempre foi
um homem muito calado, sorria. Ele não passava tanto tempo conosco como
os tios passavam em suas casas, e para mim de certa forma era triste, mas
seguro. Estar próximo a ele só era possível quando fazíamos as festas de
família, quando me levava para o escritório na intenção de fazer-me habituar
a rotina, porque de acordo com meu pai, o meu lugar era atrás de uma
daquelas mesas e nos tribunais.
O senhor Niko, nunca aceitou que amasse a música e que pretendia
viver dela. Muito menos que a minha mãe incentivasse os meus sonhos,
foram inúmeras brigas, discussões e quando para ele falar não bastava, sua
mão agia firmemente.
Provavelmente esse clima tenso entre nós, tenha piorado o estado
psicológico da mamãe e pensar nisto me torturava demais, pois a culpa me
rasgava por dentro. Esquecer me parecia ser a melhor saída, quando isto
acontecia e mais culpa sentia por estar no lugar que não me pertencia, mas
esquecer não é mais minha prioridade.
CAPÍTULO 12

INSPECIONADOS
Mesmo que às vezes a estrada infinita para lugar nenhum pareça mais
agradável do que esse pandemônio todo, somos felizes.

JULY

D
escobrir o significado de dormir para Edu, está provando ser o mesmo que
passar a pão e água diante de uma mesa farta. Meu corpo ainda está dormente
do orgasmo negado na noite passada, porém a minha mente está em paz, —
na medida do possível — pois, de alguma forma parece que chegamos a um
consenso sobre a questão da gravidez.
O sol aqueceu-nos rápido. As crianças assim que colocaram seus
pezinhos na areia dispararam para a água, claro respeitando meu limite
previamente estipulado, o raso. Edu como um bom papai, largou as cadeiras e
sombrinhas, e toda tralha necessária para nosso dia jogados na areia.
— Vou nadar com as crianças.
— Precisa mesmo anunciar? — respondo sarcástica observando-o
fazer aquele strip-tease básico ao arrancar a camiseta.
Sua risada me irrita, mas não retrocedo numa decisão, rebolo
minha bunda, me aproximo bem me coloco na ponta dos pés e dou um
beijinho casto em seus lábios.
— Ok! — dou um sorriso. — A mamãe monta o acampamento. —
comento comigo mesma abluída na ironia.
Não que isso me incomode. Pelo contrário, vê-los se divertirem me
deixa extasiada. Poucas coisas têm significado de família para mim, e
geralmente me foco nos detalhes, como este momento.
Sombrinhas abertas, cadeiras devidamente alinhadas, cooler de
bebidas alocado de forma estratégica para as crianças se fartarem de água,
sucos e frutas. Com o meu livro de romance em mãos, sento-me tentando não
voltar a conversa da noite passada. Mesmo que tudo pareça em paz, vida de
casal é como caixa de marimbondos, parece inofensivo, mas se cutucar leva
ferroadas.
— Mamãe? — Anna me chama. — Vem para a água.
Eles estão em uma guerra de bombas d’água, sorrindo ergo meu
livro e aviso que irei esperar mais um pouco.
Ela manda um beijinho, Jessica e Annya seguem seu exemplo e
voltam para a água.
O celular ao meu lado dispara uma série de mensagens. Aline está
bem animada com a festa para as crianças, já que é uma forma de passar mais
tempo com suas filhas. Olhando às duas pentelhas loirinhas dando um banho
no pai com suas manobras, não a culpo por isto. Eu faria o mesmo se
estivesse em seu lugar.
Deixo o livro de lado por um instante embarco em uma conversa
animada sobre o que devamos fazer. Evito falar sobre meu plano de ir ao
encontro de Lia, pois por serem muito amigas, Aline pode acabar contando o
meu segredo. Não sei quanto tempo se passou, mas percebo a presença de
Edu acompanhado de João, para pegar a primeira leva de água e frutas.
— Estão se divertindo meu amor? — pergunto a ele, enquanto
aproveito para reaplicar protetor solar sobre seu corpinho.
— Hurum… O papai é o melhor arremessador! — ele se agarra nos
detalhes. — Estamos ganhando das três meninas, de lavada.
João empolgado nem percebe o olhar bobo que Edu tem ao admirá-
lo, assim como o pai, ele pediu para deixar os cabelos crescerem um pouco,
não sei se pelo convívio, mas quem diria que não existe um vínculo de
sangue entre eles?
— Fico feliz que estejam ganhando, mas que tal dar uma
oportunidade para as meninas? — olho Edu por sobre a cabeça de João e
estreito meus olhos.
— Posso até pensar, mas se elas tivessem uma líder de equipe à
nossa altura, né papai? — ele dá uma risadinha. — Podíamos pensar, o que
acha?
Edu estala a língua e engole um pedaço de melancia. — Não sei
filhote. Acredito que mesmo com mais uma integrante, não seriam páreo para
nós.
— Opa! Espere aí, vocês vieram aqui para me desafiar? É isto
mesmo produção?
— Que isso meu moranguinho… Estamos falando da liga
profissional de arremesso em bomba d'água.
— É isso aí mamãe, não queremos te provocar para ir brincar. Só
estamos enal… enal… — ele para e olha para o pai que sussurra a palavra em
seu ouvido. — Enaltecendo os fatos.
João nem percebe que entrega o plano do pai, olho de soslaio para
Edu, esse morde os lábios segurando o riso e vira o rosto em outra direção.
Embarcando na brincadeira deixando o celular na bolsa e o livro
sobre a cadeira de praia, me ergo e retiro o vestido-canga que esconde meu
maiô vermelho-paixão. A cor da minha aura. Prendo meus cabelos em um
coque alto. Com as mãos na cintura encaro a dupla de trapaceiros e exclamo
alto.
— Então, se preparem para ver quem é a amadora! A equipe
perdedora vai arrumar a cozinha do jantar. Fechado?
Edu e João se entre olham. O Morangão aperta as mãos uma na
outra e dá um riso sarcástico. João imita o pai.
— Nosso plano está dando certo Pink, — ele faz uma referência ao
desenho predileto dos dois. Pink e o Cérebro.
— Sim, Cérebro, hoje vamos dominar a praia.
— Amanhã o mundo! — Edu se aproxima, pisca o olho enquanto
seguro uma risada. — Fechado, mamãe prepare-se para nos fazer uma rodada
de sanduíches e arrumar a cozinha.
— Isto é o que veremos.
Com uma jogada de quadril me desvio deles e saio correndo em
direção a água.
— Atenção, mini moranguinhos da mamãe, está na hora de virar
esse jogo!

A brincadeira ganhou novos participantes, outras crianças que


estavam por perto vieram motivados pelos gritos entusiasmados,
gradualmente fizemos uma maratona.
Saímos da água para fazermos um lanche, mas o sono já estava
abordando os pequenos, por isso decidimos encerrar nosso dia de praia mais
cedo.
Edu recolheu nossa tralha, enquanto coloquei as crianças no carro,
acomodamo-nos e voltamos para casa. Deixei-as com Celeste, que
prontamente as carregou para um banho, ajudei Edu a limpar tudo que
sujamos, e subi para um longo banho de banheira.
— Amor? Tenho que dar uma saída, vou tomar uma ducha rápida
no quarto de hóspedes. — Edu me informa passando pelo quarto indo direto
ao closet.
— Algo urgente aconteceu? — acho estranho ele sair subitamente.
— Nada de mais, só tenho de pegar umas coisas com Anderson.
— Tudo bem, amor. Quer mesmo sanduíches para o jantar?
— Não se incomode. A dona Celeste disse que deixou uma torta
gelada na geladeira e vai levar as crianças para seu cinema particular.
— Então posso me derreter aqui dentro? — dou uma risada, ele
não responde, mas isto não faz mal, pois já sinto as ondas mornas da água
perfumada com essência de champanhe e morangos fazendo sua magia.
Depois do banho mandei mensagem para Edu, mas fiquei sem
retorno. As crianças já estavam em seu segundo sono, no quarto de Celeste
que, na verdade, adora amontoá-los ao seu redor. Não vendo uma alternativa,
comi um pedaço da torta, subi para o quarto completei meu ritual de
hidratação corporal e nos cabelos e me joguei com meu livro sobre a cama.
As páginas do romance pareciam hastes de fogo e minhas mãos só
aumentando o meu tesão reprimido. A autora não brincou em serviço ao
escrever sobre o Sheik Hassen e a sua Malika, confesso que amo uma
história ardente de Sheiks, mas este aqui está me fazendo subir pelas paredes.
Preciso recomendar para minhas amigas que leiam O sheik de Agrobã, nossa
próxima viagem de férias certamente vai ser para um deserto escaldante.
Envolvida com a leitura, cruzando minhas pernas de um lado para
outro, sentindo meu grelo afogar na expectativa de um orgasmo, alcanço o
celular no criado mudo, sem precisar mirar a tela, desbloqueio e já faço
minha ligação, sentindo minha voz, esbaforida.
— Alô, — ele responde de forma plácida, totalmente o inverso do
vulcão que me incendeia.
— Onde está?
Pergunto cheia de segundas, terceiras e milésimas intenções. Edu
diz que está chegando em casa. Dou uma desculpa qualquer pela ligação.
Assim que encerro a comunicação, resolvo montar um cenário de sedução,
estou fula por ele ter me ensinado o sentindo de dormir, mas meu corpo não
está nem um pouco de modo a ter uma desforra.
— Isso deve ser por conta dos hormônios. — justifico-me, pois é
um fato, após a reversão da laqueadura entrei em um novo processo hormonal
para preparar meu organismo. — Se ele está certo, estou ovulando, ou seja,
uma lagartixa subindo pelas paredes, perde para mim.

Com alguma destreza espalhei velas aromáticas pelo quarto e as


acendi, logo um aroma doce invadiu o ar do jeito que ele gosta. Champanhe
em um balde com gelo, não que estivesse interessada em beber, mas vai que
Edu resolve me fazer de taça? Hoje estou para o jogo.
Conferi cabelo, reapliquei um gloss nos lábios, belisquei as maçãs
do rosto, dei um toque na lingerie ousada da noite, digitei rapidamente no
celular e um som baixinho, — músicas para sexo do YouTube, começou a
tocar, apaguei as luzes e esperei.
Ouvi passos no corredor, na ansiedade desisto da cama e me sento
sensualmente sobre a banqueta próxima a uma penteadeira laqueada com
espelho oval, se possível a brincadeira começaria por ali.
Edu deu dois toques na porta, certamente já sentindo do corredor o
aroma das velas e ouvindo as músicas em reprodução. Ele entra e o seu
sorriso é enigmático, com umas das mãos atrás das costas tento adivinhar o
que ele carrega, mas antes que mate minha curiosidade, a sua voz vem como
um tiro de adrenalina sob minha libido enfurecida.
— Feche os olhos!
A voz enrouquecida me enche de prazer, fecho os meus olhos,
mantenho as pernas cruzadas, roçando uma coxa grossa na outra no afã de
apertar-me entre elas sentindo a seda empapada da calcinha.
— O que tem escondido aí? — pergunto.
Sem uma resposta ouço passos abafados pelo quarto. Um farfalhar
de roupas e logo o calor da sua mão deslizando por meu rosto.
— Preparei algo especial, mas como sempre estamos
irremediavelmente conectados, pois, meu moranguinho se adiantou a mim
e… — ele geme bem próximo ao meu ouvido, —como estou ansioso para
provar cada pedacinho desse doce.
— Que bom! — respondo sentindo minha voz falhar. — Estou
ansiosa apesar de ter me colocado para dormir, pretendo mantê-lo acordado a
noite toda.
Edu dá uma risada abafada, beija o lado do meu rosto e desliza sua
língua pelo contorno do meu queixo até morder um pedacinho da carne.
— Humm… — meu gemido sai alto como um ronronado.
— Isto se entrarmos em um acordo prévio. Se as negociações
forem falhas, tsc… — ele estala a língua, —creio que vai dormir chupando
dedos.
Imediatamente abro os meus olhos e encaro o monstro safado que
criei debaixo do meu lençol. — Nem se atreva! Prefiro mil vezes dormir
chupando outra coisa! — afirmo levando meus olhos para sua ereção na
cueca boxer.
Exclamo enquanto me inclino capturando sua boca com a minha, o
beijo inofensivo da praia nem passa pela minha mente. Prendo seu lábio
grosso entre os meus, chupo a carne macia e deslizo audaciosamente minha
língua dentro da sua boca. Edu reage com volúpia, desliza a sua boca sobre a
minha duelando pela posse do beijo.
Suas mãos vão ao encontro do meu rosto e se embrenha em meus
cabelos, causando um formigamento gostoso no couro cabeludo.
O beijo é erótico, incendiário. Minha buceta escorre de tesão, com
minhas mãos sinto o seu corpo retesado, me apoio sobre seu peito e deixo que
me conduza até estar sobre meus pés.
— Edu… — o gemido sai entre os beijos, suas mãos parecem
tentáculos deslizando pelo pescoço, apertando ombros, meus seios, abarcando
minha cintura roliça e cravando com força na carne avantajada do meu
quadril.
Minhas pernas se enroscam nas suas sentindo os pelos eriçados
fazendo cócegas por dentro das minhas coxas. Seu pau é como um mastro
maciço e por um breve instante me lembro de dizer que deflagaria meu
pijama como uma bandeira sobre ele.
Neste momento quero é me alto hastear sobre ele. Universo
querido, sinto meu tesão como de mil mendigos excitados, batendo firme
dento de mim. — Concentre-se Juliana!
— Hum! Adoro ser beijada por você! — constato um fato.
— Adoro que seja a mulher a quem beijo. Mas, antes de qualquer
coisa. Vamos resolver algo sério?
Há muito tempo perdi a inibição e o medo de que ele pudesse sentir
meu corpo por completo. Edu me ensinou a ser segura com meu peso acima
da média do que a sociedade julga estar na moda.
Ele fez amar-me mais ainda, me mostrou que autoestima não era só
ter a resposta certa para as críticas, mas é me impor sem precisar abrir a boca.
É literalmente desfilar em uma passarela cercada de holofotes sem piscar.
Com estrias, celulites, quilos a mais, sorrisos, sensualidade,
carisma e um gênio arisco, eu sou a mulher que ele ama e deseja. Isto está
mais que claro. Sou a mulher que quero ser! A mãe que desejo ser! A amante
que sou!
Edu, sorri ternamente enlaçando-me pelos braços e juntos damos
um giro sobre o mesmo eixo, ficando contra a cama. Ele segue o ritmo da
música, sempre mantendo seus olhos fixos aos meus, seus braços me
envolvem com força. Mordo meus lábios na expectativa sentindo nossos
corpos se aproximarem ainda mais da cama.
Ele estaca um pouco tenso e isto me faz pausar em meio a órbita de
luxúria.
— Carlos Eduardo, o que seria esse algo sério para resolvermos?
— Quero entregar-lhe algo. — ele se curva e pega o que estava
escondendo sobre a cama.
Essa cena, parece um déjà-vu de quando me pediu em casamento e
me permitiu ler a carta do seu pai.
No entanto, diferente daquela ocasião a caixa que ele me entrega é
trezentas vezes maior do que da joalheira. Rindo de nervoso, puxo a fita de
cetim vermelho e desembrulho o tal presente. Removo a tampa e tenho a
certeza de que meus olhos se arregalam em tamanhos de pratos, se possível
fosse minha mandíbula escancharia como um desenho animado do papa-
léguas.
— Minha Santa Periquita! Carlos Eduardo, o que é isto tudo?
— Nossos novos brinquedinhos.
Ergo minha cabeça, ainda sem acreditar. — Camisinhas? Aliás,
quantas camisinhas tem nesta caixa?
— Não faço ideia, umas duzentas caixas ou mais? — diz como se
isto não fosse nada. Meu morangão parece um pouco tímido. — Tem de
todos os sabores e cores possíveis, acredito que tenha até algumas musicais.
Sei que tem algumas que brilham no escuro.
— Puta que o paralho! Onde, como, quando?
— Algumas horas atrás, em farmácias e todos os postos de gasolina
possíveis.
— Mas, por quê?
— Juliana, o que queremos é estarmos junto, certo? Que seja
apenas eu e você, mais um batalhão de crianças e amigos… Contudo, que
seja eu e você, sempre.
— Amor…
— Nós ainda estamos escrevendo está história, não precisamos ter
pressa. Só precisamos vive-la o melhor possível. Quero ter um bebezinho
com você. No entanto, que tudo seja feito por nossa vontade. Deus, melhor
do que ninguém sabe o quanto me doeu escutar ontem a sua dor, os seus
medos. — ele segura minha mão firmemente. — Quero que saiba o quanto
estou disposto a viver, no seu tempo, ao seu lado. Se este dia chegar, seremos
felizes. Se não chegar, a felicidade será nossa companheira da mesma forma.
— Não me faça chorar… — empurro de leve seu peito
resmungando, mesmo que as lágrimas já estejam derramadas por meu rosto.
— Não é a minha intenção. Se por um acaso a fizer chorar, faço
questão de colher cada lágrima com um beijo.
— Oh, meu Deus! Em uma ocasião similar, você me pediu em
casamento.
— Sei, e me recordo da sua resposta. Por isto, enquanto espero o
dia chegar, meu pedido hoje vai ser outro. — ele se aproxima, tira a caixa das
minhas mãos e a joga sobre a cama. Toca meu queixo com dedo indicador e
ergue meu rosto ao encontro do seu que se inclina em um ângulo perfeito
para o encontro dos nossos lábios.
— Peça o que quiser?
O sussurro é clichê, mas todo o meu ser está em clima de romance
e rendição.
— Faz amor comigo?
Me ergui nas pontas dos pés rendendo-me ao um amor e desejo.
Edu me abraçou firme e nos tombou sobre a cama.

EDU
Sinto-me envolvido por sua doçura, pela voz enrouquecida de
desejo, pelo cheiro que invade minhas narinas, roubando a lucidez.
July se contorce sob meu corpo e meu pau lateja desesperado para
se afundar em sua buceta rosada. As poucas peças de roupa entre nós, voaram
longe. Os seios fartos brilham molhados pela umidade que a minha boca
deixa. Os mamilos turgidos estão empinados, não resisto e mais uma vez
sugo com força o botão rosado a fazendo rebolar abaixo de mim, roçando
contra meu pau.
— Você me enlouquece mulher. Queria tanto ser a porra de um
romântico, mas vai ficar para a segunda rodada.
— Esquece o romantismo. Uma caixa de camisinha contra horas de
espera. Quero me acabar de tanto gozar, Morangão.
O seu humor estala em mim. Não consigo reprimir uma risada, mas
essa é breve, pois estou prestes a dar o outro mamilo o mesmo tratamento.
As mãos suaves se perdem entre nós, ela toca a si mesma
masturbando seu pequeno feixe de nervos com uma mão e a outra agarra meu
pau massageando-o da cabeça à base em um vaivém lento me enchendo de
tesão.
Subo até a sua boca, a beijo com sofreguidão e volto por seu
pescoço, desta vez deslizando por suas costelas, a pele macia do abdômen
curvando-me de joelhos entre suas coxas grossas.
Eu sabia que ao tirar de sobre nós o peso de “uma gravidez e o
casamento” voltaríamos a nos sentir livres para fazer sexo da forma que
gostamos, desenfreado e libidinoso.
Por este motivo ganhei um par de bolas roxas na noite anterior. Por
respeitar seus desejos. Queria poder dar a ela uma escolha e mostrar que está
tudo bem para mim.
— Pelo amor… Edu, minha buceta não é uma pintura, pare de
admirá-la e faça algo!
— A sua ansiedade ainda vai te fazer morder a língua! —
respondo, enquanto abocanho o seu grelinho inchado. — Sou grato por não
ser uma pintura.
Puta que pariu, que mulher gostosa! Minha língua corre por entre
os lábios rosados e muito molhados, até tocar a entrada, July empina o
quadril, revira os olhos e geme alto.
Volto a moer minha língua sobre ela, indo de uma ponta a outra,
descendo pelo vão da sua buceta até deslizar pela linha de pregas do seu ânus
rosado.
— Hoje vou me fartar de July, vou devorar sua buceta e essa
delícia de rabo.
Ela geme, e pelo tanto que arfa a ideia a agrada. Me dedico a sugar
vezes sem fim, deslizo meus dedos sobre a sua umidade e penetro de leve a
entrada fazendo círculos sobre o feixe de nervos que há em volta, enquanto
minha língua faz círculos sobre o clitóris antes de fechar meus lábios sobre o
botão inflamado de desejo e sugá-lo para fora do seu capuz.
July, alça o corpo pelos cotovelos e me segura pelos cabelos, sorrio
e assopro a carne aquecida. Volto a sugá-la na medida certa a fazendo ter seu
primeiro orgasmo da noite.
Sinto o tanto que sua buceta escorre alagando nossa cama, busco
uma das camisinhas que se espalharam pelo colchão, abro o pacote e
desenrolo uma sobre meu pau que está em ponto de bala.
— Ei! — ela reclama e sei o que ela quer. — Quero…
— Eu também quero, temos a noite inteira, mas agora quero muito
sentir você me apertar até que exploda de gozo.
Sem perda de tempo, envolvo minhas mãos sobre suas coxas, a
abrindo ainda mais apoiando suas pernas por sobre as minhas dobradas, meu
pau já sabe o caminho que deve seguir, é questão de alinhar nossos corpos e a
cabeça larga deslizar sobre a sua abertura, dilatando sua passagem,
arrancando de nós suspiros e gemidos.
July se rende às estocadas. A cada arremetida seu corpo sobe e
desce em cadência. O suor que brota sobre nós escorre em nossos corpos, o ar
está carregado de eletricidade, as estocadas aceleram, me inclino sobre o seu
corpo e a beijo mais uma vez.
Ela agarra aos meus ombros fincando suas unhas na minha carne.
Apoio meus cotovelos ao lado da sua cabeça, prendo seu rosto entre minhas
mãos, o sorriso satisfeito em seu rosto que duela com o meu.
— Eu te amo! — declaro.
— Amo você — ela replica.
Juntos embalemos no nosso mundo particular, até o gozo explodir
e nos derrubando em uma vertente de delírios.
Arfando July abraça-me com força, suas pernas envolvem minha
cintura, ela esconde seu rosto em meu pescoço e sinto seu corpo estremecer
pelos arroubos de um novo gozo e uma emoção que não dá para esconder.
— Amor… — tento afastá-la, — July?
— Edu, eu te amo tanto. Sou tão grata por me querer assim. Por me
dar algo tão importante hoje, quero dar a você algo que também deseja.
Ela se afasta brevemente e seus olhos ainda nublados de prazer
brilham em direção aos meus.
— Meu amor, você não precisa me dar nada.
— Shiuu… — ela toca os meus lábios. — Não negue sem saber o
que é. Eu realmente quero esperar mais um pouco para termos o nosso baby.
— ela pausa e sorri, — mas, pode preparar o vestido de noiva. Quero me
casar com você!
Um zunido estala em meu ouvido. Balanço minha cabeça, e
comecei a rir meio desnorteado. Ainda com ela envolta em mim, me ergui da
forma que me permitiu.
— Você irá se casar comigo?
— Já estou noiva, sexo da melhor qualidade, um pai inigualável,
um homem que me ama e respeita, o sexo indiscutível, já falei isto? Bem, o
que mais poderia querer?
— Juliana Guimarães, desta vez não tem volta.
Ela alça o corpo e praticamente senta-se sobre mim, fazendo meu
pau voltar a enrijecer. — Carlos Eduardo Santorini, vou me casar com você!
Marque a data.
— Eu te amo pra caralho, mulher! — exclamo louco de amor e
volto a saquear sua boca. — E quanto aos seus planos de ajudar Mikael e Lia,
conte comigo e com nossos amigos, se antes eu tinha um motivos para vê-los
felizes, agora eu tenho em dobro.
— Amo você, amo muito e a sua generosidade, me excita!
Isto é mais um salto para a nossa felicidade que em breve será
completa, pois, antes que Verônica possa se dar conta, nós vamos colocá-la
atrás das grades. O nosso plano está em andamento, e em breve vou ser um
homem casado.
CAPÍTULO 13
IN MEMORIAM
“Posso perdoar a força bruta, mas a razão bruta é uma coisa
irracional.
É bater abaixo da linha do intelecto.”
Oscar Wilde

MIKAEL
DEZEMBRO DE 2000, VÉSPERA DE NATAL.

D
esliguei o chuveiro e a letra de One Step Closer da banda Linkin Park,
estourava nos alto-falantes dentro do meu quarto. O contratempo forte e
insistente dos instrumentos adicionados à voz marcante do vocalista na letra
bem elaborada, descrevia exatamente o que queria gritar a plenos pulmões,
depois de mais uma discussão com meu pai.
A batida grave me fez seguir a sequência de acordes com o corpo
balançando a cabeça espalhando água para todos os lados, abri a porta do
banheiro para sair o ar quente e o som entrar em total potência. Sentia-me
como se estivesse na prévia do show daquela noite; eu ainda não podia
acreditar que minha banda conseguirá abrir o Show dos Paralamas na
Cultural.
Diz um provérbio russo que aquilo que você quer fazer será bem
feito quando for bem pensado, planejado, apalavrado e alcançado com
cautela
Quando atendi a ligação na parte da manhã, imaginei que seria
outro problema em casa, nunca imaginaria que os meus amigos pudessem ter
voltado na casa de shows e convencido o dono a dar-nos uma chance. Eles
com certeza não têm um pingo de talento musical, mas sempre serão os
melhores empresários.
Diante do espelho embaçado, risquei uma faixa com a toalha de
rosto, joguei para trás os cabelos molhados, em pouco tempo já estão
cobrindo o pescoço. Reparei meu rosto atentamente passando a mão pelo
queixo pensando se deveria raspar ou não a barba? Segundo minha
mamochka, pareço um viking andando em casa
Observei o tanto que o meu corpo havia mudado nos últimos meses
malhando, a cicatrização da nova tatuagem, as enormes asas de anjo que
tomam a parte superior dos ombros descendo por toda extensão das costas, e
os últimos traços de um soco no olho direito, já bem amarelado.
Voltei a olhar para a tattoo, não me imaginava como o cara fresco
que viveria para agradar uma mulher, porém tudo que queria era ver a
minha Anjinha feliz. Mostrar a ela que não está só nos meus pensamentos e
no meu coração. Ela estará gravada em minha pele para sempre.
Lia se recusava a acreditar, quando eu me intitulava um anjo mau.
Mal sabe, que é ela quem consegue tirar o melhor de mim, que jamais seria
capaz de dar-me a qualquer pessoa. Minha anja da guarda, que consegue
curar minhas feridas sem nem mesmo ter ciência disto.
Olhei mais uma vez as asas perfeitas, sinto uma pontada em minha
cabeça e recuo, a tatuagem foi uma forma de assegurar-lhe o quanto a tenho
em mim e pedir perdão pelo que houve com o seu pai, e mesmo assim, sentia
que isto não seria o suficiente…
Sinto meu humor decair rapidamente com a baixa perspectiva que
invade meu coração ao pensar nestas coisas. Para não perder o foco do que
estou para fazer, tento desanuviar-me com o seguinte pensamento: Lia não
tem um humor fácil de ser controlado, mas fizemos um acordo mútuo, uma
promessa de que nada que aconteça entre meu pai e o dela, poderá afetar o
que temos!
Passei a mão sobre o queixo mais uma vez, e acabei desistindo de
fazer a barba. Entrei no closet, para noite vestirei o meu melhor jeans
desbotado, botas de couro, uma camiseta ajustada sobre o corpo de mangas
curtas. Satisfeito com minha aparência, puxei uma jaqueta de couro do
armário, a música parou fazendo um silêncio repentino e foi então que ouvi.
Primeiro veio o som de um grito estridente, e logo em seguida o
som inconfundível de cacos de vidro, se espalhando pelo piso de mármore.
Meu corpo estremeceu por completo, pois o que me veio à mente é
minha mãe tendo uma nova crise nervosa. Deixei o quarto descendo as
escadas saltando de degraus. Segui por um corredor lateral, indo em direção
ao solar ladeado por janelas que vão do chão ao teto. Antes mesmo de
alcançar as portas duplas, outros sons de vidros se quebrando chegou aos
meus ouvidos, acompanhados dos gritos do meu pai, aquilo me fez estacar no
lugar derrapando meus pés contra o piso liso.
— Não… — o som estrangulado deixou meus lábios sem que
percebesse, uma nuvem vermelha desceu sobre meus olhos, ansiedade e
pânico se fundiram como fel sobre minha língua.
Um estalar forte, reproduziu um som que reconheci de imediato,
isto me deu a certeza de que encontraria uma cena lamentável naquele lugar,
novamente.
Desta vez, não ficaria parado!

Desta vez, não deixaria por menos. Desta vez, ele enfrentaria um
homem de igual para igual, afinal como o senhor Niko, havia dito no café
desta manhã: hoje eu ganharia um passe livre para fora desta casa se não
estivesse disposto a seguir suas regras. Uma vez que o relógio batesse meia-
noite, eu já teria a maior idade, seria um homem feito e livre.
Antes disto, daria a ele o mesmo tratamento cortês que dispensa a
nós. Abri as portas com um safanão e como previa, a cena diante dos meus
olhos rolara como um filme gasto na tela de um cinema velho; atrás do
imenso piano a figura miúda, pálida com longos cabelos ruivos, estriados de
mechas brancas escondia o lado direito do rosto com as mãos, enquanto
grossas lágrimas caiam dos seus olhos.
Do outro lado uma sombra corpulenta se avantajava sobre ela.
Difícil admitir, mas a minha compleição física vem de Niko. Os mesmos 1,90
de altura, ombros largos, braços torneados com músculos naturalmente
esculpidos, cabelos e barba no mesmo tom ruivo.
A aparência animalesca em seu rosto tremulou, por um segundo a
sua expressão pareceu ser de agonia, mas não me deixei enganar, há muito
tempo não me engano mais. Aquilo era ódio!
— Cale sua boca e me ouça uma vez, Sarah! — ele grita sem ter
noção de que invadi a sala.
— Não a quero aqui, ela é um monstro, uma assassina que roubou
o meu bebê! Por minha culpa, sua culpa! — mamãe grita de forma histérica,
puxando os cabelos com as mãos enlouquecidamente.
— Não há ninguém aqui, não delira, Sarah! —ele avança, então
grito entrando no seu campo de visão.
—Nayeahbal![2] — me mãe gritou rangendo os dentes. — Não a
quero aqui, monstro, assassino!
Dei um passo à frente ao vê-lo se aproximar dela. Os olhos azuis
enraizados de vasos vermelhos cravaram nos meus acinzentados. O choque
do reconhecimento de ser pego nas suas transgressões levaram o senhor
Niko, a dar um passo para trás.
Eram sempre as mesmas acusações em suas brigas, fossem banais
ou não. Ao final, minha mãe se culparia e a meu pai, por algo que nunca
compreendia.
— Saia Mikael! — ele gritou sua ordem entredentes!
Com um rápido olhar percebi que os cacos de vidro, eram dos
vasos de cristal com arranjos de orquídeas que ajudei a minha mãe a criar, e
agora estavam estilhaçados no chão.
Livros raros das preciosas coleções que amávamos, foram
devastados em meio à terra e plantas machucadas. O seu violino, a última
recordação que trouxe consigo quando fugiu, teve o mesmo destino que meu
primeiro violão, estava partido ao meio, ou seja, tudo o que mais amamos,
são os alvos da sua violência, e quando não há nada mais que possa nos
ferir, ele tem a nossa carne para fazê-lo.
Eu não posso mais aceitar isso!
Isto me faz sofrer e vejo isto no rosto marcado de mamochka[3]. Ela
tenta se esconder, não posso aceitar isso, sinto toda a minha revolta, ódio,
raiva, rancor, nojo de ser fisicamente parecido, de ver nele meu reflexo,
porque se não fosse pelos olhos, poderíamos ser gêmeos e isso me mata mais
do que apenas ser seu filho.
— Saia agora! — ele grita e ameaça vir em minha direção.
—Nahui[4]! — nego com minha cabeça e dou um passo à frente. —
Você é um monstro! — exclamo com a mesma força que me ordena a sair. —
Não vou a lugar nenhum, chega disto, é a última vez que essa merda vai
acontecer aqui!
— Olha como fala comigo, moleque! Saia antes que sobre para
você.
— Foda-se! Sobrar o quê? Uma porrada, palavras ofensivas,
ameaças? Cansei disto, quer saber, saia o senhor das nossas vidas.
— Mikael, por favor… — minha mamãe sussurra chamando minha
atenção.
Olho de relance e a vejo estender-me a sua mão direita, o sangue
escorrer por entre os seus dedos pingando no chão sem parar e isto me leva
a loucura.
— Dê o fora, Mikael! A loucura da sua mãe, está indo longe
demais. Resolverei com ela, e depois com você, estou farto dessa sua
petulância.
Debocho das suas ameaças com um bufo. Ele veio em minha
direção com força empurrando-me para que deixe o lugar. Travei os meus
pés no assoalho de madeira, o solado da bota rangeu com a fricção.
Nunca havia demostrado o quão forte poderia ser, para revidar ou
defender-me em todas às vezes que levantou seus punhos em minha direção,
e a surpresa de descobrir isto, estava visível em seus olhos.
— Terá a ousadia de me afrontar? —Seu grito veio acompanhado
da sua mão aberta descendo contra o lado do meu rosto.
O tapa pegou meio de lado e senti a carne esquentar, e minha
cabeça ficar atordoada. Com repelão o empurrei para longe.
— Se preciso for, o farei! Não tenha dúvidas disto. — grito.
Nunca revidei, sempre aguentei os seus castigos, por entrar no
meio das brigas com a minha mãe, quando se ouvia as palavras duras,
acusações e ofensas. De certa forma, por acreditar que ele era enérgico e
não era um homem violento, que estaria apenas passando por um momento
de insanidade temporária.
Sendo sempre tão calado, imaginei que pudesse estar atormentado
por tudo que haviam passado. Isto não era verdade. Em algum momento as
suas palavras preconceituosas, se tornaram agressões.
— Mandei sair daqui. Mikael. Seu moleque atrevido.
Ele reagiu à minha resposta com força. Senti o meu corpo
cambalear com impacto do seu caindo sobre mim e arremessando minhas
costas contra a estante.
Em nossa casa, quando estávamos a sós era normal falarmos
apenas em russo, durante anos lutei para perder o sotaque que adquiri por
este costume na infância, mesmo que ainda quando agitado a vernáculo
patriarcal predomine sobre o português.
Niko gritou de forma enérgica e escabrosa em russo, deixando a
sua raiva extravasar. Revidei no mesmo tom e idioma, empurrando-me
contra ele, seu corpo cedeu ao choque e caindo contra o piano deslocando-o
para trás.
— Niko! — minha mãe gritou em desespero.
Olhando na direção onde desabou, sentia ainda mais nojo dele,
pois mamãe parecendo uma criança indefesa, na sua pequenez, ferida era
capaz de se preocupar com aquele monstro.
— Como pode tratar uma mulher assim? — gritei tomado de fúria
avançando em sua direção.
— Não fiz nada que não deveria! —sua resposta, revirou-me as
entranhas. — A sua mãe é uma histérica que ataca a qualquer um. Você sabe
muito bem disto!
— Isto não justifica!
Niko se ergueu indicando a distração à nossa volta enquanto fala.
— Ela querer se matar, ou me matar, por não ser levada a sério em sua
loucura, não justifica? Ela precisa tomar os remédios dela e se manter
quieta!
— Ela é algum animal para ficar quieta?
Bradei com a mesma intensidade, o sotaque forte entremeado de
expressões russas tornando ainda mais catastrófica a discussão. Mamãe em
sua desvairada agonia deixou o canto onde estava, com as mãos trêmulas,
partiu para cima de Niko, golpeando-o no peito com punhos cerrados.
No reflexo de se livrar da esposa, Niko a empurrou com força
fazendo-a perder o equilíbrio e cair ao lado do piano, batendo com tanta
força que parecia ter ouvido ossos se partindo. Isto para mim, foi a gota
d’água!
Com os punhos cerrados me joguei contra ele, não consegui
desferir socos, mas o empurrei com toda força sobre a estante o prendendo
contra a madeira, mesmo sendo grande, meu pai ganhava de mim em astúcia
e anos servindo de faz tudo para meu avô.
Criado nos círculos mais violentos e ferozes que já ouvira falar de
acordo com as histórias que sempre contou aos amigos. Para ele, um
excelente pugilista de rua, sair do meu agarre foi fácil. O soco foi com tudo
na lateral do meu rosto, acertando precisamente a minha boca, fazendo o
sangue escorrer pelo lábio partido.
Forcei meus músculos, sentindo-os queimar com o esforço, mesmo
com tudo rodando a minha volta, já na eminência de perder minhas forças
ao ser acertado uma segunda vez, me lembrei de algo e usei isto para atacá-
lo.
— Como pode acusar o tio Gustavo de ser um pária e se portar
como ele?
— Mikael! —ele gritou se desvencilhando.
— O que foi? Acha mesmo que não percebo mais o que acontece à
minha volta? O Senhor diz que o tio Gustavo é um monstro disfarçado. Que o
tio Joaquim é um ladrão! Tem preconceito contra o tio Vasquez, por ser gay,
enquanto diz que o Tio Eduardo, é um fraco. — Tomei um fôlego sentindo o
sangue escorrer pela garganta por dentro e por fora. — Mas, é o senhor
Nikolai, que é um maldito espancador de mulheres!
Ele desferiu outro golpe, e mais sangue desceu pela minha
garganta.
— Se percebesse de verdade o que está à sua volta, seria um alívio,
mas, a sua imaturidade como a dos seus amigos, são mais preocupantes do
que a vida dos adultos.
— Pois, prefiro ser imaturo, a ser um monstro mau-caráter como o
senhor.
— O que disse? — ele me empurra com força e dou alguns passos
atrás. — Monstro?
Jamais, falei assim com o meu pai e, talvez, isso o abalasse ou
fizesse com que caia na real.
— Sim! Nunca serei assim — pauso e o olho com desprezo que
sinto. — Nunca!
Meu pai olhava-me em silêncio, eu podia ver a tempestade em seus
olhos injetados, mas não esperava do nada, ouvir uma risada de escárnio
cheia de palavras corrosivas.
— É melhor se olhar no espelho, moleque, você é mais parecido
comigo do que imagina. Sente repulsa por ser meu filho? O seu destino não
foge de ser o mesmo que o meu.
— Niko pare com isto, saia da minha casa, e a leve com você!
Minha mãe o empurrou, o olhar em sua direção era inexpressivo.
Niko segurava a sua mão machucada e balançava a cabeça
negativamente.
— Acredita que fiz isso? Se for, está enganado, a louca aqui, é ela
que não consegue se conter! — Meu pai a solta com um safanão. — Quanto
a você, que não deseja se parecer comigo, saiba que também não queria ter
de olhar para uma imagem viva minha e saber que é mais estúpido do que
um dia já fui.
— Niko! — Minha mãe chorava e o empurrava, mas ele não se
movia, apenas me encarava e destilava tudo que um dia não pensei ouvir
dele.
— Acha que é muito homem, só porque anda fodendo aquela
Suka[5], filha de um ladrão vigarista?
— Não se atreva! — Berro.
— Não tem vergonha de se misturar com alguém abaixo de você,
vinda de não sei onde? Uma interesseira… — Niko discorre injúrias sobre
Lia, citando lugares e momentos que nos encontramos, e que tínhamos a
certeza de estarmos longe dos olhos de todos.
Me surpreendi ao ouvi-lo falar do nosso relacionamento. Nunca
escondemos dos nossos amigos, a nossa relação, contudo diante das suas
palavras, um novo temor me corroía. Eu não era nenhum santo e nunca quis
ter um relacionamento sério com alguém sendo tão novo, porém havia coisas
que não tinha como controlar.
— Não fale dela! — Rosno entredentes.
Ele continuava com sua chuva de insultos, enquanto um pavor
ganhava espaço dentro de mim, pois querendo ou não, Lia era alguém que
ele pode me tirar. Bastava apenas dizer as mesmas merdas ao tio Joaquim ou
até pior, há muito tempo aprendi que meu pai era um homem que não
retrocederia com suas promessas, mesmo que fosse para levar alguém ao
inferno.
— Por quê? Acha que fará melhor do que eu cuidando dela, como
seria isto? Seguindo os seus planos de fugir para viver desse sonho de
merda? — Ele gritou ao mesmo tempo que esmagou com pé outra parte do
violino já destruído no chão.
Minha mãe se jogou contra o imenso corpo tentando empurrá-lo,
meu pai a segurou firme contra o seu corpo, prendendo seus movimentos.
— O que faremos de nossas vidas, não diz respeito a ninguém!
— Está enganado, Mikael. Pode imaginar ser tão astuto quanto eu
o sou, no entanto, tenha em mente que você jamais fugirá do seu destino. Do
maldito sangue que corre em suas veias, da linhagem amaldiçoada que
pertencemos! Isto nunca acontecerá.
— Um sangue de merda e uma linhagem fodida que só o senhor se
gaba.
— Para a minha infelicidade, isto é indiscutível! Porém, você é um
fraco como a sua mãe e carrega a pior parte que vem dela. Acha que ser
igual a mim, é ser um monstro?
— O senhor é um monstro insensível! Quem mais poderia pôr a
sua família na rota da loucura como fez? Jamais serei uma réplica sua.
Vejo-o estreitar os olhos e avançar perigosamente para mim,
arrastando minha mãe junto.
— Vai fazer como a sua mãe e acusar-me de matar a minha filha
ao deixá-la em um hospital?
— Se a culpa lhe corrói, quem sou eu para tirá-la das suas costas?
— Maldito seja, pedaço de gente inútil!
Com punhos fechados ele me acerta algumas vezes seguidas na
cabeça, no tórax e algumas vezes no estômago. Tento o bloquear, mesmo
dizendo a mim mesmo que hoje iria respondê-lo a altura, por estar com
minha mãe à sua frente isto me impede de agir.
— Aproveite a vida de merda que pensa que tem, foda aquela suka
ladrazinha enquanto pode. Por que esses dias estão contados?
Minha cabeça girava e os ouvidos zuniam, até mesmo vozes
atormentavam meu cérebro bombardeado. Não soube em que momento
minha mãe saiu do seu agarre, mas a vi pegar algo nas mãos e o acerta forte
na cabeça, desnorteando-o, o que me deu espaço para me afastar e cair
sentado em um canto.
Notava as mãos dela passeando sobre o meu rosto, falando
palavras que mal eram compreendidas, mas entre elas uma era
continuamente para mim.
— Izviníte![6] Meu filho, me perdoa… — mamãe chorava ao tentar
me abraçar.
Recusei esse contato e, como em outras vezes, não foi proposital,
mas não estava mais em mim o desejo de ser acalentado por ela.
— Mikael…
Estava a ponto de tranquilizá-la quando um aroma forte pinicou
em nossas narinas. Ouvimos um repicado fino no piso de madeira.
Reconheci de imediato o som de saltos femininos, o cheiro forte de
flores que nada tinha a ver com as orquídeas despedaçadas no chão, e o
bater forte da porta de madeira pesada no hall de entrada.
Só então percebi que alguém além de nós, estava realmente em
casa. Ouvindo e presenciando a humilhação que fomos submetidos. Algo
dentro do meu peito se quebrou, senti ódio, gosto acre do sangue pungente
na boca fazendo revirar o meu estômago e uma decepção que jamais poderia
ser retirada de dentro de mim.
— Eu disse que aquela maldita mulher estava aqui. Eu disse! Eu
disse! — Minha mãe gritava, chorava e se machucava batendo as mãos sobre
os braços causando ainda mais estragos.
— Mamãe! — Exclamei tentando segurá-la.
Meu pai que havia se recuperado parcialmente, veio em nossa
direção, tomou-a dos meus braços e a prendeu contra o seu peito, dizendo
coisas em sua língua materna tentando acalmá-la. O olhar em seu rosto era
estranho, a sua reação totalmente avessa ao comportamento de alguns
minutos.
— Eu disse… — mamãe cedeu à pressão das emoções, indo e
vindo à consciência em seus braços.
— Quem é a mulher que acabou de sair? Sua amante? —
Questionei percebendo que isto foi o início dessa maldita confusão.
Na verdade, não precisava que ele respondesse. Eu sabia quem era
a tal mulher. Assim como os meus amigos, não a suportava. Por isso, não
ficávamos próximos e não fazíamos questão nenhuma de estar no mesmo
ambiente que ela.
— Como pode agir assim com ela, sabendo que não estava
mentindo? — Minha garganta se fechou, a dor no corpo não era nada com a
dor em meu coração.
— Não volte a colocar sua boca diante dos meus punhos Mikael!
Para o seu bem, não se meta nisto, agora saia! O monstro aqui pode muito
bem cuidar da sua mãe.
— Monstro, cruel, mesquinho, narcisista e ainda assim, é pouco
para o que penso a seu respeito!
— Não vamos voltar a isto! Eu não me importo com o que pensa,
desde que faça o que mando. O que aconteceu hoje, não irá se repetir. Não
lhe dou o direto de me enfrentar.
— O que aconteceu hoje, só reforça a minha certeza de que devo
ficar o mais longe possível de você, quanto antes.
— Você pode fugir, Mikael Nikolaievitch, mas isto irá acontecer só
até que os seus próprios filhos nasçam. — Niko se ergueu, retirando mamãe
do meio da bagunça no chão. — Quando isto acontecer, quero ver onde se
esconderá tendo uma cópia viva “nossa”, bem diante dos teus olhos
diariamente!
— Não conte com isto! — Replico.
— Poderá ser até pior, já que deseja misturar-se ao sangue de um
ladrão, mas irei poupá-lo pelo menos dessa desgraça, acabando de vez com
esta história.
— Não se meta na minha vida!
— Outra coisa, tenha em mente que nem mesmo o maldito
Joaquim, irá apoiá-los quando eu terminar com isto!
— Eu jamais terei um filho que carregue o mesmo sangue que o
seu! — Rebato com força vendo-o sair pela porta com a minha mãe
amparada em seus braços. — Nunca, em toda a minha vida, irei levar uma
mulher a sucumbir à loucura e a doença que causou à minha mãe! Jamais
deixarei essa merda me dominar a minha mente, sentimentos tolos
comandarem o meu desejo e a razão ao ponto de me tornar doente na mente,
na alma e no corpo.
— Seu tolo! — Meu pai para em meio ao corredor e me repreende
sem se voltar em minha direção. — Você já é como o seu pai, sua irmã e a
sua mãe. Você é igual a nós!
— Não se atreva…
— Quando o vi a primeira vez, eu soube que outro “Eu” havia
nascido. Analise a si mesmo e me responda, a fruta pode realmente cair
longe do pé?
— Vou repetir em russo, porque acho que não me compreendeu. —
Replico com sotaque tão carregado podendo sentir o tremor da língua
batendo contra o céu da boca.
— YA nikogda ne budu takim zhe, kak ty, i ya nikogda ne ostavlyu
rebenka v mire, kotoryy neset yego krov. — Digo entredentes. — Eu nunca
serei o mesmo que você, e nunca deixarei uma criança no mundo que
carregue seu sangue. A sua linhagem de merda, morre aqui, junto a todo
respeito que já tive pelo Senhor! — Bato no peito.
— Isso é o que veremos!

Os soluços irromperam fortes na estufa. O dia ensolarado parece


ter nublado em questão de minutos, me trazendo à realidade, minutos que, na
verdade, parecem horas.
Lágrimas escorrem pelo meu rosto e abrumam meus olhos, isto é
algo que tem se tornado recorrente, mas inconscientemente quando estou
tendo meus pesadelos. Senti-las agora transbordando sobre meu rosto, me
machuca, muito mais do que possa suportar.
Inspiro e expiro com força tentando controlar-me, ao meu redor
folhas e terra se misturaram aos cacos de vidro e a água que escorre entre as
lajotas pintadas, criando um mosaico deprimente.
Uma paródia realista de como me sinto neste instante. Tento
erguer-me do chão onde estou de joelhos, mas minhas pernas estão
dormentes, ouço o som do celular vindo da bancada, porém me sinto inapto
para falar com alguém agora.
Me esforço novamente apoiando a mão direita no piso e uma dor
aguda rasga a palma da minha mão, a ergo rapidamente por reflexo e vejo a
lâmina do fino cristal cravada na palma da mão, é como um tiro direto em
meu córtex cerebral.
Entre a dor física, mental e a terrível angústia que me sinto
envolvido, as lembranças mais miseráveis de outrora derrubam meus muros
mentais e fodem com o resto da minha sobriedade mental. Seguro firme o
vidro e o desenterro da carne, o sangue quente de vermelho vivido flui pela
dilaceração, o odor ferruginoso me engolfa.
Ainda ridiculamente em lágrimas, a insanidade do momento me
arranca um riso mórbido ao deslizar minha consciência sã para dentro das
minhas pútridas lembranças, e algo sutilmente paira sobre essa borda com
precisão me fazendo externar em palavras uma constatação vergonhosa.
— Niko conseguia ferir as pessoas, de uma forma cruel, e naquela
altura, provou que seria capaz de algo imperdoável.
Me ergo com certa dificuldade apoiando na bancada, o som de
chamada se encerra e logo outras começam a subir. São mensagens chegando
uma após a outra de vários destinatários diferentes, porém só uma prende a
minha atenção.
Com iPhone nas mãos recuo um passo, tento limpar as lágrimas do
meu rosto, mas desisto já que pareço consumido de dentro para fora por um
terror absurdo. Abro a mensagem e a dor estranha oprimi ainda mais meu
peito…
— Lutei para esquecer, tantas coisas, mas sou incapaz de esquecer
o que perdi… — minhas palavras soam estranhas aos meus ouvidos e se
perdem no eco que se reproduz contra as paredes de vidro.
@Doutora_anjinha: ter acordado hoje, já foi o suficiente para
saber que: você foi mais forte do que em todos os seus piores dias. Podemos
conversar? Que tal o lugar de sempre para tomarmos um café?
CAPÍTULO 14

IMENSURÁVEL
“O amor é a melhor música na partitura da vida. Sem ele você será um
eterno desafio no imenso coral da humanidade”
Roque Schneider

LIA

U
ma nova rodada de caixas, estão sendo despejadas do elevador, corri meus
olhos pelos novos inquilinos e depois para Nina, que aparentemente tinha
mais coisas a fazer no seu celular do que prestar a atenção no que dizia.
— Nina! — chamei entredentes, cutucando-a na cintura.
A sonsa em pessoa ergueu os olhos para mim como se estivesse
encarando seu inimigo número um.
— Custo a conversar com a pessoa, mas basta que o milagre
aconteça e bang… alguém me interrompe!
— Conversando, às sete da manhã?
— Óbvio! As pessoas têm por hábito darem bom dia pela manhã.
A sua resposta me fez soltar uma lufada de ar impaciente.
— Ok! Fale comigo, sou todo ouvidos. — ela replica.
Segurando em seu braço a fiz dar mais dois passos para longe do
fluxo de caixas enormes sendo empilhadas à frente do apartamento ao lado.
— Você percebeu que em poucas semanas, praticamente todos os
inquilinos se mudaram? — pergunto em voz baixa.
— Sim! — Nina, aproveitou a deixa para ficar nas pontas dos pés e
espiar os carregadores que entram e saem na porta ao lado.
— Você ficou sabendo o que pode estar acontecendo? Recebi uma
mensagem sobre a reunião de condomínio, mas não pude participar.
— Recebi também, mas era o dia de fisioterapia do Anjinho. O que
fiquei sabendo através do zelador, é que o prédio foi vendido. Como o
apartamento é seu, provavelmente não acharam necessário informa-nos. —
ela gesticula com os ombros.
— Isto é estranho… — comento.
— Para uma advogada que atua na área de patrimônio? Realmente
acredito que pareça estranho.
Com outro bufo acerto uma pequena cotovelada em seu braço.
Quando comprei o apartamento de Aline, o fiz pela comodidade de não ter de
me envolver com senhorio, imobiliárias e nenhuma das pendências que um
aluguel exige.
O fato de os apartamentos serem independentes contribuiu para
minha decisão, mas é intrigante a rapidez com a qual um novo proprietário
adquiriu todas as unidades para fazer uma renda mensal de aluguéis.
— Depois vou averiguar quem é o novo proprietário, espero não
termos problemas no futuro.
Nina, guardou o celular no bolso do casaco esportivo, arrumou a
alça da mochila de Anjinho em seu ombro sem conseguir segurar o riso de
escárnio.
— O que foi? — pergunto de forma lacônica.
— Quem seria idiota de querer arrumar problema com você?
Hum…? Se eu te contasse… — penso, mas deixo passar.
Por fim, as caixas são retiradas, com um sorriso amigável os dois
rapazes pedem desculpas pelo incômodo e logo entram no apartamento.
Entramos no elevador e assim que as portas são fechadas, ergo
minha cabeça para observar a nova iluminação sobre o teto, reparo no
moderno jogo de câmeras, uma em cada extremidade do cubículo impedindo
de haver pontos cegos.
Realmente o proprietário está investindo pesado em segurança, o
que para mim não causa nenhum desconforto. — reflito.
Câmeras nas escadas, garagem, portaria com uma ampla mesa
cheia de monitores, porta corta-fogo nova e rondas com seguranças; se não
fosse pelos pesadelos de Anjinho, que recorrentemente acabam com nossas
noites de sono, poderia dizer que finalmente me sinto segura para dormir em
minha própria casa.
Anjinho, se remexe um pouquinho em meus braços, seu rostinho
colado contra o meu pescoço me permiti sentir o ar morno sair dos seus
lábios rosados direto sobre a minha pele.
As mãozinhas diminutas agarram-se ao meu cabelo puxando a
presilha que com muito cuidado tinha conseguido dominar a massa de fios
lisos caindo contra minhas costas.
— Oh, meu amor! Deixe o cabelo da mama, arrumadinho… —
digo com tom de lamento, sentindo-o puxar as madeixas, deixando-as soltas
contra minhas costas.
— Cheirosa…
Essa única sentença me convenceu a não prender os fios
novamente. Dei um abraço apertado em seu corpinho, coloco beijinhos em
seu ombro.
As portas do elevador se abrem na garagem, somos surpreendidas
por uma claridade quase cegante.
— Puta merda! — Nina exclama colocando os óculos escuros. —
Colocaram o sol no subsolo?
Rindo faço um comentário espirituoso, me sentindo cada vez mais
agradecida com as novidades. A última vez que estive sozinha em uma
garagem escura, ou ouvindo passos foi algo angustiante.
Cada um tem de conviver com seus próprios demônios, mas se
aparecer um Anjo da guarda, para proteger-nos, quem em sã consciência
reclamaria?
Antes mesmo de chegar à área externa do pátio, onde geralmente
me encontro com Dionísio, ouvimos uma buzina.
Meu alto, negro, delicioso e super protetor guarda-costas estava em
seu SUV, bem ao lado na garagem. Após ser confirmada a morte do meu
pobre carrinho, passei a aceitar regularmente a sua carona.
— Bom dia! — a voz grossa nos cumprimenta com vivacidade.
Respondo no mesmo tom. Ele gentilmente pegou toda nossa
bagagem e acomodou no banco da frente. Nina dá a ele um aceno com as
mãos, para logo em seguida ajudar-me a colocar Anjinho na cadeirinha.
— Tem certeza de que não quer uma carona? — pergunto.
— Tenho certeza! Vou dar uma corrida, — ela pisca e percebo que
a sua corrida é mais que apenas o mover das pernas pela ciclovia. — Depois
tenho de me encontrar com os rapazes, o meu dia de folga será cheio.
— Ok. — respondo sem buscar mais detalhes sobre sua vida
privada. — Fica tranquila que hoje passarei o dia por conta do meu Anjinho,
— faço um carinho sobre os cabelos sedoso, antes de ajudá-lo com seu boné.
— Tenho apenas uma reunião agora na parte da manhã, depois…
Engulo o que estou prestes a dizer, me impedindo de demonstrar
como realmente estou me sentindo neste momento. Nina compreendendo de
imediato continua com ar descontraído.
— Ele vai amar passar o dia grudado em você. Vai conversar com
a professora agora, ou mais tarde?
— Ela me respondeu a mensagem, disse que podemos ter uma
reunião após o horário.
— Na parte da tarde, vai ao Haras?
— Sim, quero conversar com a Fadinha pessoalmente, geralmente
só nos cumprimentamos à distância, mas hoje eu realmente quero convidá-la
para um lanche e conversar; se há de fato algo nela que tenha perturbado
Anjinho, ou vice-versa, precisamos resolver.
— Gosto muito dela! Contudo, nem se compara como Anjinho se
sente ao vê-la. — Nina faz um sinal com a cabeça e indicando meu filho que
está sentado quietinho com olhar focado na tela do celular.
— Essa noite ele chorou muito, imaginei que ainda fosse pela
historinha dos pinguins.
— Foram os pesadelos?
— Sim! — falo em tom baixo, sentindo-me miserável. — Se ele
não tivesse passado aquele estresse todo no final do ano; se não tivesse
aceitado participar daquela emboscada; se não tivesse sido ferida daquela
forma.
— Se, se, se… Lia, há coisas que não podemos evitar. Quem
poderia premeditar que aquela mulher estaria planejando algo tão sinistro?
Além disso, você é uma mãe formidável. Para que Anjinho voltasse a ter sua
rotina, o equilíbrio novamente, você sacrificou a si mesma, seu tempo de
recuperação, as recomendações médicas, apenas para cuidar dele.
— Shiiii… Fale baixo!
Olho de esguelha para o carro. Realmente não gosto de falar sobre
esse assunto, muito menos como fomos feridos. A ruptura no baço foi séria
ao ponto de precisar de uma intervenção cirúrgica, mas isto não foi o pior
para mim, nem mesmo a voz e o cheiro daquela mulher que parecem ter se
prendido ao meu corpo, principalmente quando me sinto acuada.
O pior é saber que ela queria levar meu menino, e para que isso não
acontecesse, Anjinho foi exposto à várias pessoas estranhas de uma só vez,
causando uma das suas piores crises. A sua mãe não estava lá para ajudá-lo e
nem pelos longos dias que se seguiram; meu filho chorou dia e noite pedindo
por mim até perder a sua voz. Eu estava na droga da UTI sem saber de nada.
— Lia! Lia… — as mãos mornas de Nina me embalaram. — Hei!
Vai ficar tudo bem. Está tudo bem! — ela sorri com carinho. — Anjinho vai
se animar mais quando falarmos da viagem que vamos fazer e após ver a
Fadinha hoje, ele voltará recarregado para casa. Ok?
Nina aperta os meus braços com carinho e sorri arqueando o cenho
brincalhona. — Ei amiga, não gosto quando você fica assim, esquece esses
pensamentos e essa culpa que não te pertence. Tudo bem?
Sem uma resposta, assenti com a cabeça, desviei meus olhos e
voltei a olhar para Anjinho que continua alheio a tudo a sua volta envolvido
com a exibição do seu filme predileto.
— Meu amor, quando chegarmos na escola, vou precisar do
celular! — digo com a voz firme indicando a ele, que esta é uma ação que
não poderá ser contestada.
— Hum!
A sua resposta, ou falta dela é normal para mim, porém esse ar
abatido que acordou hoje, está mexendo com meu emocional.
Dionísio, postou-se ao seu lado tentando ganhar sua atenção,
erguendo seu rosto em minha direção ele pisca os olhos, com aquele ar de:
está tudo bem, deixa o menino.
O fato do meu guarda-costas ter passado a ser meu motorista, fez
com que ele acabasse se aproximando demais de nós, a princípio, foi muito
difícil e constrangedor os seus olhares de esguelha comparando-nos
fisicamente até o dia que emputecida, entreguei a ele um artigo falando sobre
genética e a variação dos genes.
Ele sem saber o que fazer pediu desculpas e sutilmente insinuou
que Anjinho deveria ser a cara do PAI. Não preciso lembrar de quantas
maldições engoli em seco, para não contar um segredo.
Mesmo que ele tenha uma curiosidade normal como qualquer um
que me veja junto ao meu filho, não pude conter-me, imagino que daqui por
diante serão ainda mais chocantes. Resoluta em seguir com o que prometi a
Anjinho, me curvei até estar com os olhos diante do seu rosto, toquei suas
mãozinhas o fazendo erguer seus olhos brevemente em minha direção. —
Não existe nada que fique oculto nessa vida, não é mesmo filho?
— Hum!
— Vamos mudar algumas coisas? — pergunto um pouco nervosa,
minhas mãos tremem levemente ao erguer em direção ao seu boné. — Que
tal a partir de hoje, não usarmos mais isso?
Você não gosta mesmo.
Com uma ação rápida retiro o boné que esconde os cabelos tão
lisos e brilhantes de Anjinho, sua franja que está comprida cai sobre a parte
superior dos olhos, ele balança com agilidade a cabeça até que os fios fiquem
naturalmente jogados de lado. Seu olhar brevemente posto sobre os meus é
reconfortante, o sorriso aprofunda as covinhas em seu rosto deixando
pequenos furos nas laterais de cada bochecha gordinha.
— Você é lindo, meu bebê pinguim! — exclamo envaidecida,
sentindo lágrimas escorrerem em meus olhos. — Está feliz?
— O Anjinho está feliz! — ele responde voltando a fixar seus
olhos na tela do celular, porém agora mexendo levemente sua cabeça para
sentir os fios de cabelo escorrendo por sua testa.
Me ergo, engulo algumas arfadas e jogo o boné em direção a Nina
que tem os olhos postos em nós com brilho de lágrimas represadas.
— Queime! “Quando fazemos uma escolha é desejável que não
retrocedemos.”
— Dona Maria, passou praticamente a noite toda falando algo
similar…
— Nisto, ela nunca errou.
Olhei mais uma vez para meu filho e seu nome bordado na jaqueta
da escola, pensei: um passo de cada vez, hoje o boné, uma hora o seu nome.
— É melhor sairmos agora, ou vamos nos atrasar. — Dionísio
reportou, fechando bem a porta traseira do carro.
Me despeço de Nina, que acena para Anjinho. Ele permanece em
seu estado silencioso, porém com um sorriso no cantinho da boca. De uma a
duas vezes na semana, tenho esse ajuste com Nina, além de ter as horas de
almoço liberadas para poder encontrá-los e almoçarmos juntos antes de voltar
ao escritório ou ao tribunal em dias de audiências.
Estar com Anjinho durante as terapias, fisioterapias e consultas
médicas, me dá a segurança de que não estou negligenciando meu filho
naquilo que mais precisa, mesmo que no fundo, ainda sinta que faço muito
pouco por ele.
Nina deu alguns passos até seu próprio carro, porém hesitou antes
de entrar no veículo, volvendo o corpo me chamou fazendo um sinal para o
próprio celular.
— Houve uma resposta?
Com a cabeça neguei. Assim como eu, ela deu de ombros e soltou
um suspiro. Para desanuviar-me de uma sensação angustiante sorri para ela e
me despedi com aceno entusiasmado.
Apesar de ser algo da nossa rotina, hoje em especial me sinto
eufórica, temerosa e um pouco estranha, principalmente por enviar a Mikael,
uma mensagem e ainda não ter obtido nenhuma resposta.

Após deixarmos a proteção da garagem, abri o celular e conferi as


mensagens e e-mails que já aviam na caixa de entrada, respondi alguns de
imediato e outros deixarei para fazer quando chegasse ao escritório.
Carla havia enviado uma mensagem às seis e meia da manhã
dizendo que estaria me esperando por volta das nove horas na clínica. Ela e
Angélica ainda estão decidindo como continuará o gerenciamento dos
negócios, agora com a maternidade e o restaurante ocupando boa parte do
tempo de Carla, mas a nossa querida esteticista, que tinha por hobby torturar
as amigas com cera quente, nos garantiu que continuaria cuidando de nós.
Sendo assim, em meio a um dia de resoluções, ainda terei uma
sessão de tortura para arrancar até o último pelo do corpo, sendo um horário
apertado e muito disputado entre as Luluzinhas, não quis renunciar ao meu.
Deito a minha cabeça contra o encosto do banco observando
Anjinho, gradualmente, deslizo o meu corpo até apoiar-me em seu ombro,
para assistirmos ao filme juntos pensando nas suas inocentes palavras ao me
falar sobre seu desejo de ser um pinguim.
Enquanto o personagem Mano dança e canta revelando sua
inquietude e tentando se expressar, uma nova onda de incertezas e medos me
transpassam. Fecho meus olhos para não exprimir de forma audível minha
frustração.
Ergo minha mão e olho mais uma vez para meu próprio aparelho
mudo, sem qualquer resposta, impulsivamente abro a tela do aplicativo de
mensagens e começo a digitar de forma frenética, uma mensagem cheia de
frustração e birra por ser ignorada em algo tão simples como uma resposta se
sim, ou não.
Estou a ponto de enviá-la e ouço uma risada rouca bem baixinha
próximo aos meus ouvidos, abrandando minha fúria. Olho o texto e deleto,
jogando o celular na bolsa. Ouço um pigarro, ergo meus olhos e vejo
Dionísio sorrindo através do espelho retrovisor.
— Está tudo bem com você?
— Sim.
— Entendo.
— Entende o quê? Já disse está tudo bem. Por quê?
Ele com um sorriso misterioso não diz nada por um tempo. O carro
é manobrado para entrar no percurso final até a escolinha, repasso a mão
sobre os fios soltos do meu cabelo, conferindo minha aparência em um
espelho de bolso.
— Estou te achando um pouco quieta/inquieta!?
— Faça sentindo com suas palavras, por favor. — respondo. — Eu
sempre estou calada.
— Não assim, mas pela forma que estava agindo ainda pouco com
Nina, devo concluir ser algo muito pessoal.
Minha língua coçou para respondê-lo que: qualquer que fosse o
assunto relacionado a mim, seria muito pessoal para ser tratado com ele, mas
sendo Dionísio, que passei a confiar em absoluto, não poderia ser tão
descortês, por isso, desconverso com alguma desculpa banal e dou por
encerrada nossa troca rápida de perguntas e respostas.

A escola que escolhi para meu filho é bem conceituada nos


requisitos básicos para uma criança com necessidades especiais. Essa era a
frase chave do folheto ao pesquisarmos. Por uma série de acontecimentos ao
mudar-nos para Vitória e consequentemente trocar uma já estabelecida rotina
de São Paulo, com lugares e pessoas conhecidas para estranhas, eles me
pareceram ser os melhores e Anjinho à primeira vista, parecia ter sentido essa
segurança.
Entretanto, bastou passarmos algumas semanas desde a matrícula
para eventualmente ocorrerem alguns problemas. Foram desde amiguinhos
que implicavam por ele não falar quando solicitado; por manter seus
brinquedos para si mesmo; ou por simplesmente terminar qualquer atividade
imposta pela professora antes que as outras crianças pudessem assimilar.
Isto gerou muitos atritos, pois o interesse de uma criança Autista
vai do zero a cem em questão de segundos, dependendo da escala do espectro
em que ela se enquadra. Ele com sua capacidade pode aprender e executar
qualquer uma lição em minutos, o que acaba exigindo de o profissional ter
outras tarefas para preencher seu tempo.
Até que a direção aceitasse e uma tutora fosse adicionada à classe
de Anjinho, levou algum tempo. Nina, por algum tempo desempenhou esse
papel, uma vez que não havia esse recurso e isto, deu a Anjinho, segurança.
Ele sentiu que a escola era um complemento do que temos em casa.
Para meu filho pareceu ser bom, na verdade, não era. Quando a
falta do profissional e das atividades foram solucionadas, Nina passou a sair
da sala após a entrada, o que gerou algumas crises de choro, novos problemas
de socialização se tornaram maiores, causando um estresse em todos
envolvidos.
Levamos mais alguns meses de ajuste, mas infelizmente depois de
todo o desempenho conquistado, estamos vendo tudo ruir novamente para
aquele mesmo momento desesperador do início. Contudo, os fatores que
temos em mãos agora, vem de várias fontes, o que precisamos identificar, é
de qual delas está partindo a ação mais prejudicial.
Com isto em mente, solicitei uma reunião com a professora e a
tutora da classe, pois se de alguma forma os exercícios propostos têm sido
gatilhos e causando esse mal-estar, é preciso ser remediado quanto antes.
Uma criança com Autismo estará suscetível a sofrer traumas e perder o
desempenho do seu tratamento apenas por se sentir forçado a participar de
atividades que lhe causem dor, seja física ou emocional.
— Chegamos! — Dionísio se virou para trás do seu banco com um
sorrisão direcionado a Anjinho. — Vamos para a escola, pequeno?
Anjinho metodicamente desligou o celular, colocou sobre minha
coxa, abriu o gatilho do cinto de segurança e levou a mãozinha à sua cabeça,
ao conferir a ausência do boné, ergueu o rostinho e abriu mais uma vez o
sorriso cheio de covinhas respondendo com entusiasmo balançando os
cabelos.
— Hum!
— Doutora, irei esperá-la um pouco mais a frente, para não
interromper o fluxo dos carros de outros pais. Assim que sair, por favor me
envie uma mensagem.
— Obrigada, Dionísio.
Desci do carro, dei a volta, impedindo que ele fizesse o mesmo, e
ajudei Anjinho a descer. Após chegarmos ao portão da escola, fomos
recepcionados por uma das ajudantes que riu com entusiasmo dando-nos bom
dia e fazendo um sincero elogio para Anjinho.
— Que menino lindo, olha esse cabelo lindo.
— Obrigada. — agradeci por ele e entrei na escola.
A estrutura do prédio é moderna e colorida, o pátio interno dá
acesso para as salas de aula no primeiro e segundo piso, a quadra coberta
permanece fechada para evitar que alguma criança entre e se machuque.
Um playground bem moderno chama a atenção com seus
brinquedos coloridos. Anjinho permanece calado, mas com uma aura
diferente de outros dias, caminhamos até à sua sala, mas antes de chegarmos
próximo o suficiente, ouvimos a agitação de algumas mães.
Não dei grande importância, já que não me diz respeito, mas a
menção do “é ela” me fez estacar em meio ao pátio.
Percorri meus olhos à volta até pousarem em um grupo distinto de
três mulheres em idades similares a minha, talvez um pouco mais, contudo a
que intitulei como “líder do bando” de imediato é a que tem um sorriso
altamente falso voltado para minha direção.
Alta, loira, olhos claros, boca e nariz retocados, cintura fina e um
corpo cirurgicamente empinado, peitos e bunda numa escala de rainha da
bateria. Roupas de grife, um bom gosto para sapatos, não posso negar ao ver
sua sandália — meu pequeno vício — a Gucci Ankle bege e preto combina
perfeitamente com a sua bolsa.
Isto não vai prestar, controle-se Lia, não gaste o réu primário com
pouca coisa.
Tendo este lembrete em mente, retiro os óculos escuros, jogo os
longos cabelos negros por sobre os ombros… — Preparado filho? —
pergunto entredentes com um sorriso de tribunal enquanto sigo em direção ao
grupo que está visivelmente fechando a porta da sala.
Menos de dois passos nos separam e o sorriso falso se desloca para
uma pequena careta ao ver Anjinho, mas é tão rápido que se não fosse pelos
olhos treinados de mãe/Advogada filha de Maria, teria passado despercebido.
— Bom dia! — cumprimento a todas com um sorriso genuíno e
aceno de mãos.
— Você, — ela acentua —, é a mãe dele? — a pergunta da mulher
é implícita e direta, não deixando margem para qualquer dúvida que aqui,
temos um problema a ser investigado.
— Exato. Muito prazer, Lia dos Anjos. — ergo minha mão e aperto
a sua que ainda está encolhida contra a barriga enxuta com tenacidade.
O rosto da mulher tornou-se um pouco rubro. Sua risada é nervosa.
— Muito prazer, sou Celma Barcelos. — a mulher joga seu nome
com certa fúria enquanto puxa a mão de dentro do meu agarre e circunda os
dedos amassados envolta na palma.
Pela expressão em seus olhos, deduzo que ela espere que eu
reconheça seu nome e sobrenome, mas me faço de desentendida e
literalmente não dou a mínima.
— E vocês? — me dirijo às suas amigas que parecem cópias da
líder, contudo são mais espertas e se distanciam evitando que eu possa
cumprimentá-las de forma tão afável.
— Me chamo Rose Lourenço. — a mais baixinha reconheço de
imediato, esposa de um industriário, cliente do escritório.
— Sou Carmem Hélios. — a terceira segue o padrão da segunda e
provavelmente seu marido é Eduardo Hélios, dono de uma imobiliária no
centro de VIX, meu cliente.
— Enorme prazer conhecê-las. É uma lástima que hoje esteja com
pressa, podemos marcar um encontro entre mães um dia desses.
Solto a frase e tento me desviar do caminho e evitar problemas,
porém a líder tem em mente uma distorcida noção do perigo. Não dou um
passo e ela solta novamente uma frase que soa estranha, porém aos meus
ouvidos é clara como cristal.
— Seu filho tem alguma doença?
— O que disse? — pergunto dissimulada. — Doença?
Seguro meu tom, pois desde o momento em que fomos parados,
sinto Anjinho apertando meus dedos constantemente, sua mãozinha está
escorregando dentro da minha palma, pelo suor que escorre dela.
— Sim, algum probleminha de saúde?
— Você está fazendo alguma propaganda para hospital infantil? —
jogo a frase, sabendo que ela é esposa de um famoso Psiquiatra do Estado. —
Por isso, está perguntando se ele tem alguma doença? — desconverso, ao
menos tento, mas já posso sentir o fogo do inferno queimando minha
garganta.
Ao me ouvirem sendo cínica, às duas mães aliadas soltam seus
guinchos, em forma de risadas. Celma as encara com cenho franzido e de
imediato às duas jiboias murcham.
— Eu não sou médica, mas…
— Então, por que está perguntando sobre a saúde do meu filho?
— É que ele tem algumas, coisas…
— Coisas? Quais, e quando a senhora esteve presente ao lado dele
para observar alguma “coisa”?
Meu tom de voz endurece, não ao ponto de intimidar as crianças
que correm à nossa volta, ou chamar a atenção de outras mães, mas o ponto
exato para fazer a mulher recuar um passo.
A professora Patrícia, percebe que algo está fora do normal e vem
em socorro da mulher. Percebo pelo olhar aflitivo que me lançou.
— Doutora Lia, que prazer tê-la aqui, estou ansiosa para
almoçarmos juntas.
— Bom dia, professora Patrícia.
— Doutora? Você é médica? — a gralha carniceira volta a sua
atenção em minha direção e tenta devolver a mesma pergunta que fiz, porém,
a professora está empenhada em jogar um balde de água na fogueira.
— Ela é advogada.
— Uma advogada? Que eu saiba, advogados não são doutores.
Pronto, pois os portões do inferno se abriram e posso sentir as
chamas ardendo na ponta da língua, mas como sempre meu anjo da guarda
espreme sua mãozinha na minha, me fazendo lembrar que não devo gastar
meu réu-primário com alguém assim.
— A senhora Barcelos, está correta. Um bacharel em direito, no
caso Advogado não é um doutor, até que se faça um Doutorado. No meu
caso, modéstia à parte, tenho um mestrado e Doutorado, mais algumas
especialidades, mas acredito que não tenho tempo hábil para explicar todo o
processo acadêmico para a senhora.
— Mamães, vamos levar as crianças para a sala? — a professora
entra mais uma vez de sola, para impedir uma catástrofe, mas eu ainda não
disse tudo o que tinha a dizer.
— Agora, senhora Barcelos, quanto à sua pergunta inicial, se o
meu filho tem alguma doença, gostaria de esclarecer que não. Meu filho, não
tem uma doença. Ele é autista. O Autismo não é classificado como uma
doença, pois não tem cura, é uma condição, para ser mais clara e dar a
senhora uma base científica, o seu marido que é um renomado Psiquiatra,
pode explicar melhor. Contudo, se houver dúvidas, por favor, fale comigo,
terei um imenso prazer em explicá-la apropriadamente.
Vendo a mulher corada perder a cor dos lábios de vez, me dou por
satisfeita e escolto meu filho até a sala de aula.
— Ah! Só mais um detalhe, senhora Martins: Em que meu filho
difere de outras crianças? Ser Autista, não o impede de ser amado e dar amor!
Eu, tenho um amor imensurável pelo meu filho. Sendo assim, espero
veementemente que a sua pergunta de antes, tenha sido referente a um
resfriado, e não pelo fato dele ser AUTISTA.

Na sala de aula, Anjinho me abraça apertado, aspira algumas vezes


o aroma que se desprende dos meus cabelos na base da nuca até sentir seu
corpinho relaxando.
Acomodo-o sentado à mesa e logo outras crianças se aproximam
admirando-o sem o boné, ele sorri, não responde a ninguém, mas percebo que
aos pouquinhos ele vai se sentindo seguro.
Patrícia entra na sala com as crianças restantes, mas sem sinal
algum do grupo de outrora. Um pouco sem graça ela pede desculpas pelas
perguntas indiscretas de Celma, mas a tranquilizo, e deixo essa discussão
para nossa reunião.
Me despeço do meu filho com um beijinho de esquimó, outras
crianças se aproximam na intenção de ganhar beijos, algumas deslizam as
mãozinhas pelos meus cabelos que chamam a atenção, uma delas me
identifica com a Pocahontas, o que me faz lembrar da tal reunião que terei
ainda hoje.
Dionísio para o carro e sem esperar que desça para abrir a porta,
me jogo na parte traseira, estremeço, a fúria está a um ponto de colapsar
dentro do meu peito.
— Vaca, filha de um puta, miserável. Eu sabia que algo estava
errado, provavelmente Anjinho anda tendo problemas com o filho daquela
mulher, no entanto, isso não dá o direito a ela de me abordar de forma tão
agressiva! — espumo de ódio.
— O que dá o direito a ela de fazer qualquer pergunta sobre ele,
tecer um olhar preconceituoso, ou insinuar qualquer coisa? Metida, esnobe
filha da puta! — esmurro o encosto do banco. — Aquela babaca. Porque meu
Deus, tenho de ser cercada por pessoas tão podres assim em minha vida? Por
quê? Por quê?
Meu segurança, permanece calado me observando enquanto
arranca com o carro em direção ao centro.
O celular vibra na bolsa, recolho o aparelho com urgência, é
Angélica, confirmando nossa reunião com seu habitual bom humor. Bufo.
Não faço ideia do que seja, mas se for algo similar ao motivo que
levou Ramon a depositar em minha conta uma obscena quantia, prevejo uma
terrível enxaqueca para este dia.
— Aquele filho da mãe, nem mesmo para responder uma única e
miserável mensagem. — olho com ódio para o celular e o esmago contra o
banco.
Com uma saraivada de impropérios, alcanço aquela maldita revista
que ainda carrego na bolsa, que já está em pedaços, a retiro da bolsa
enrolando as páginas amassadas em um rolo firme, com força descarrego
minha raiva sobre o encosto do banco até que alguns pedaços de papel
rasgado voem sobre meu rosto. — Seu filho da p…
— Quer que pare em algum lugar?
Bufando de ódio, com os cabelos caindo sobre o rosto encaro
Dionísio por entre as frestas dos olhos estreitados.
— Finge que não está me vendo! — exclamo entredentes.
— É um pouco difícil, mas vou tentar. Suponho que agora entenda
o porquê da Angélica a chamar de Pocahontas.
Ergo uma sobrancelha, fazendo uma carranca em sua direção. Ele
sorri de forma sacana, estica o braço, alcança algo no porta-luvas e estende
em minha direção.
— O que é isto? — ergo minha mão em direção a um envelope
pardo.
— As informações que a gerência do Haras, não quis entregar para
Nina.
— Wou, isto é alguma violação? — pergunto antes de abrir o
envelope.
— Não, talvez!? — ele ri e me encara com seus olhos penetrantes
através do espelho retrovisor. — Não tem muita coisa, mas acredito ser útil
de alguma forma, e quem conseguiu isto, foi Nina não eu…
Ergo minha mão cortando os detalhes, prefiro não imaginar o que
fizeram para tal, isto explica a forma estranha que se cumprimentaram pela
manhã. Sem esperar maiores explicações, abro o envelope e saco a folha
branca, nela contém o nome, que julgo ser real da Fadinha, o que de imediato
me causa arrepios por inteiro e logo abaixo a profissão e um endereço do seu
local de trabalho.
— Puta merda! — resmungo jogando os cabelos para trás. — Ela é
professora de música?
— Sim! Se quiser, posso levá-la ao conservatório, fica em um
vilarejo da Serra.
— Uma coisa de cada vez, antes quero conversar com ela, —
retorno meus olhos para as informações adjacentes. — Agora, mais do nunca.
— Tudo bem. Para onde estamos indo?
Respondo a ele, prefiro seguir meu cronograma e tentar de alguma
forma aliviar meu estresse e aflição nas mãos de uma carrasca ávida por me
depenar por inteiro.

Carla não mostrou nem um pingo de misericórdia. Do momento


que entrei na sua sala e me deitei na maca, a miserável, arrancou, esfolou,
pinçou e apertou cada centímetro do meu corpo.
— Pelo amor de Deus, não aguento mais, chega! — exclamei
irritada com uma voz anasalada, uma vez que ela meteu uma geleca dourada
no rosto, dizendo ser algo de ouro.
— Não seja medrosa, abre as pernas! — a voz autoritária me irrita,
mas obedeço com muito medo.
— Vai com calma, por favor, isto dói!
— A escolha foi sua.
Mesmo que a escolha da depilação seja minha, sempre vou me
estressar ao fazer, porém, me sentirei grata após a dor passar e poder sentir-
me limpa dos pés à cabeça.
— Está correta na sua colocação, cozinheira com fetiche de
carrasca, porém…
— Para quem tem um piercing genital, está com muita frescura
para retirar alguns pelinhos. Só falta mais essa tira e estará lisinha.
— Alguns!? Sua cretina, você está retirando tudo que pode e o que
não existe daí.
A sua risada sarcástica não passa despercebido, me faço de sonsa
para não responder as suas perguntas indiscretas sobre para quem estou me
preparando.
— Você deveria agradecer por seus pelos serem tão finos e fáceis
de remover. — ela deu um tapinha sobre a fita com cera, dois tapinhas na
minha coxa para manter as pernas bem abertas. — Conte até três.
— Um… vraaap…—Puta que pariu, Carla!
Ela apoiou a mão dela sobre minha vagina, dei dois tapas afastando
e preferi eu mesma acalmar a pele. Ouço a sua risada ao se afastar, logo em
seguida minha mão é afastada com a mesma delicadeza que usei com ela e
algo refrescante me entorpece por inteira.
— Pronto, pronto… prontinha para ser comida.
— Vai se lascar! — não suportando mais as suas gracinhas e
implicâncias, tento capturar sua mão, mas a vantagem é dela que não está
com uma venda sobre os olhos. — Está mais calma agora?
— O quê?
— Você chegou aqui em tempo de cometer um homicídio, então
resolvi ajudá-la a relaxar.
— Ah! Entendi seu método, enquanto tento preservar os pedaços
da minha virilha, não penso nos problemas?
— Exato! Dá certo com todas as Luluzinhas.
Sem esperar por tanta sinceridade, acabo por me sentir de verdade
um pouquinho relaxada, e me permito rir com ela, enquanto vem em meu
socorro remover essa máscara de múmia rachada que ainda mantenho no
rosto.
— Você destruiu minha máscara de ouro! — ela reclama, —vamos
ter de refazer…
— Não brinca com isso.
— Tudo bem, mas me promete que volta na semana que vem? —
ela com carinho desliza as mãos pelo meu rosto me limpando.
— Prometo. — realmente gostaria de ter tempo e paciência para
estar me cuidando tão religiosamente, isto é quase impossível, mas me
proponho a fazê-lo.
— Vai fazer sucesso em um traje de banho no final de semana.
A menção sobre o final de semana me fez calar. Ainda hoje,
mesmo com tantas coisas a serem feitas, preciso lembrar-me de mandar uma
mensagem a July recusando com gentileza seu convite para a festa das
crianças.
Droga, isto ainda vai arrebentar uma úlcera no meu estômago!
— Ei! Se voltar a ficar tensa, posso procurar com a pinça se ficou
algum fiozinho para trás.
— Não se atreva!
Carla depois da maternidade tornou-se outra pessoa, não apenas
fisicamente, mas percebo que mental e espiritualmente. Ela transcende algo
agradável e com um jeito único passou a ser mais perceptiva. Por isto tenho
descaradamente evitado ter contato.
Durante a nossa juventude e adolescência o fato dela ser mais velha
e super ligada a Angélica, e eu a Aline, nos manteve em uma distância
segura, mas depois que voltei para Vitória a sua aproximação tem sido cada
vez mais intensa, incluindo July, que por ser uma nova integrante em nossa
“estranha família” facilitou isto para nós.
— Como está seu filho? Você não fala muito dele, mas percebo o
brilho nos olhos quando raramente o faz. Tenho muita vontade de conhecê-lo.
— Carla…
— Respeito sua posição de mãe, Lia. Há muito tempo queria poder
dizer isto abertamente, mas sei que pode acabar gerando uma discussão
desnecessária entre nós, ou até mesmo alguém que ouça, como, por exemplo,
a tia Maria.
— Há muito tempo minha mãe, não tem esse poder sobre minha
vida, Carla.
— Tem sim. Se você ainda vive sob as regras e as imposições que
um dia ela apresentou, então sim! Mas, não é isto que quero falar. Sente-se.
Com ajuda de Carla, fechei melhor o roupão sobre meu corpo e me
sentei diante dela em seu banco de três pés alto.
— Eu nunca a culparia por manter seu filho só para si, ao fazer o
mesmo. Em circunstâncias diferentes aparentemente, mas não sei da sua vida,
não sei qual o seu relacionamento com pai do seu filho, as conjunturas desta
gestação.
— Está curiosa sobre se é ou não uma produção independente?
Carla pausa um instante o que está fazendo do mesmo modo que
suspendo a minha respiração. Não sou de falar do Anjinho, e jamais permiti
que externassem suas curiosidades sobre ele, mas essa sensação que tem me
aterrorizado nos últimos dias parece abrandar minhas defesas.
— Não estou falando isto, e se for uma produção independente, o
que teríamos a ver com suas escolhas?
— Fico comovida de ouvi-la falando assim.
— Não seja sarcástica comigo, amiga. A única coisa clara na sua
maternidade é que: você assumiu os riscos, fez uma escolha e, é uma mãe
feroz em cuidar e proteger sua cria. — ela sorri contundentemente. — Eu
faria o mesmo, até mais se preciso fosse por minha Pérola.
Não consigo falar diante da dor e amor que vejo em seus olhos.
Carla reflete em si, tudo o que sinto em mim.
— Vamos fazer o almoço no final de semana, e antes que você dê
uma desculpa, já sabemos que não irá levar seu menino, mas pense com
carinho em uma aproximação. Você está sozinha a muitos anos Lia, antes
mesmo de ser mãe, já estava sozinha vivendo em Portugal por anos.
— Isto, não foi um escolha minha, e não é nada que deseje
discorrer agora.
— Não vamos falar, só nos dê uma oportunidade. Se dê uma
oportunidade. Confesso que relembrar tudo, que a tanto tempo foi deixado no
passado perturbou-nos sobre maneira e, imagino que para você esteja sendo
um calvário.
Não consigo entender de onde surgiu tal assunto e a fala cheia de
cuidados e um certo ar de consolo, contudo não sou estúpida ao ponto de
cortá-la. Há muito tempo aprendi que quando as pessoas tendem a ser
complacentes em determinados assuntos que são desagradáveis, é saudável
para quem está ouvindo, deixá-las esvaziar-se por completo, para evitar que o
assunto e pauta entre em um loop eterno.
—Carla espera, por favor. — dou a ela um meio sorriso ao erguer
minha mão. — Eu realmente, sinto-me feliz e sensibilizada por me
compreender, mesmo que em momento algum tenha esperado por isto. Na
verdade, de qualquer um de vocês. Como pontuou a pouco, aprendi e prefiro
viver sozinha. Há certas áreas da minha vida que são bem mais do que
restritas.
— Tenho uma ideia.
— Não tem, e se for tão esperta, quanto acredito que seja, ficará
fora disto. – pauso. — Pode ser que em breve isto mude e que me arrependa,
tanto por me manter distante, quanto por abrir certas portas, mas… – pauso
sem saber como agir delicadamente, contrariando minha natureza impulsiva.
— Não se esforce tanto, cresci com você, e sutilmente está
tentando me mandar tomar conta da minha vida.
— Basicamente isto!
— Sincera como um ferro em brasa.
— Não me sinto culpada, principalmente após ser torturada.
— Seria estranho, se fosse diferente.
— Não é uma desculpa, mas realmente Anjinho não estará aqui no
final de semana, há uma viagem que ele faz com os padrinhos todos os anos e
já estava programada.
Carla ri, mas é levemente.
— Tudo bem! Se você quiser, apareça. Será um prazer, mas já
adianto que qualquer coisa que precisar, mesmo que não seja sua primeira
opção para desabafar ou pedir ajuda. Vou estar aqui.
— Agradeço de verdade.
— Só me diz uma coisa, seu menino tem o seu gênio?
Diante da cara dela de pavor, deixo de lado as armas e caio na
gargalhada. Se ela soubesse o gênio que ele tem, fugiria para salvar sua vida.
Só para vê-la se retorcendo na cadeira respondo: —Digamos que ele tem
cinquenta porcento de mim e, cinquenta porcento do pai!
— ZEUS! – ela leva as mãos chocadas no rosto, sem conseguir
esconder as suas suspeitas de quem seja o pai do meu filho.
Gostaria de falar-lhe que existem condições especiais para que
possam conhecer meu filho. Que desde a noite em que ele chorou em meus
braços desejando ser um filhote de pinguim para ser protegido, tracei um
plano para que em breve isso aconteça. Mas, como todo bom plano, este tem
de ser bem pensado, analisado e só então executado.
Deixo passar o momento e me descontraio com suas novidades
sobre Pérola.

A caminho do escritório que não está muito longe, recebo uma


ligação da escola de Anjinho, de acordo com a secretária, a professora teve
uma emergência familiar e precisaria reagendar nossa conversa.
Infelizmente estava colocando um furo na minha agenda, mas para
ela seria muito bom, uma vez que meu humor está crítico, ainda estou
revirando meu café da manhã no estômago graças à aquela infeliz.
Eu ainda teria a tarde de folga para poder ir com anjinho à terapia.
Do estacionamento envio uma mensagem para Nina, confirmando
com ela nossos planos.
Diante das portas fechadas do elevador a conversa de Carla ainda
dá voltas em minha mente, meu senso analítico está desperto, vendo tudo por
outro prisma: sua conduta, a forma como minha mãe tem agido nos últimos
dias, parecendo a todo instante querer me consolar.
A medida drástica de Ramon com a transferência bancária e por
último, Angélica solicitando uma reunião para qual finalidade não tenho a
menor ideia, no entanto, no fundo da mente aquela faísca indesejada começa
uma densa camada de suspeitas.
O vestíbulo modernizado dos elevadores ainda são uma novidade,
o prédio é antigo com cinco andares funcionais, garagem e uma cobertura que
convertemos em salão de festas e um pequeno Loft, é bem localizado no
centro de VIX passou por um bom ajuste de estrutura, decoração e segurança
no final do ano nos mínimos detalhes.
Olho-me no espelho de corpo inteiro e ajusto algumas pregas nas
calças pantalonas, o tecido leve desliza sobre a pele sensível recém-depilada e
emite arrepios por toda minha pele até o centro do meu sexo.
— Caralho! – sussurro contra a palma da mão.
Passar meses me valendo de masturbação com mãos e brinquedos
sexuais, nunca foi tão difícil. Voltar a ter uma vida sexualmente ativa, mesmo
com todos os altos e baixos da relação distorcida com Mikael, fez meu corpo
se adaptar a um ritmo, e o safado se recusa abster desse prazer real.
Aperto as pernas uma contra a outra discretamente, sabendo que na
recepção há seguranças de olho na câmera interna. O piercing genital resvala
contra meu clitóris de uma forma que me faz engolir um urro. Essa é a
vantagem e a desvantagem de se fazer uma depilação geral: o tesão parece
aflorar nos lugares mais impróprios.
Respiro fundo, jogando os longos cabelos para trás dos ombros,
ajusto os óculos de sol sob o rosto e disparo no painel de controle o andar do
escritório central.
Antes mesmo das portas se abrirem ouço os gritos enfurecidos. A
princípio custo a crer que seja mesmo ele a estar passando um sermão na
equipe de estagiários e novatos na sala de reuniões.
Dou alguns passos em direção ao Hall de entrada parando por trás
de alguns funcionários que espiam a cena bizarra à nossa frente.
Digo isto por se tratar de Mikael, ainda vestido com sua toga,
esbravejando com uma fúria que pouquíssimas ou praticamente nenhuma vez
ele tenha demonstrado tão abertamente no escritório. Afinal ele é sempre o
bem-humorado, que leva tudo na esportiva e mantém o clima ameno para
todos.

— Aprendam, de uma vez por todas, nem tudo que se vive nos
tribunais está nos livros. É preciso se valer de algo básico: o cérebro! Que
porra estavam pensando ao emitir isto aqui. – ele joga sobre a mesa uma
pilha de folhas que se espalham sobre o tampo de vidro!
— Quem é o responsável por esse processo? – o silêncio é denso e
essa falta de respostas o coloca ainda mais irritado. — Não sabem? Então
leiam nos autos e procurem descobrir, porque aqui todos são pagos para
trabalhar, não tem supervisão nesse escritório? É isso?
— Se não for o caso, então creio que não leram nada do que está
aqui.
Ele abranda o tom da voz, mas não o volume e de uma forma
indireta está passando um “sabão” no grupo e em todos os presentes.
— Entenda uma coisa, vocês estão lidando com vidas, pessoas
podem ser incriminadas e ter suas vidas arruinadas para sempre com erros
grosseiros assim, da mesma forma que criminosos podem se valer disto para
escaparem da justiça. Se não conseguem ao menos ler um processo, voltem
para as salas de aula e descubram, que porra querem fazer da vida de vocês!

Me aproximo um pouco mais com passos leves evitando que os


saltos cliquem contra o chão para descobrir o que o grupo de funcionários
encostados contra a pilastra tanto cochicham.
Pedro é quem comanda o centro de informações indiscretas do
escritório, todos sabem disto, porém, fazemos ouvidos de mercador. Como
assistente de Giovane, e ex-assistente de Ramon, é a pessoa mais bem
informada e ele certamente sabe todos os detalhes do que está acontecendo.
— Menina, vou te falar, fazia muito tempo que não via o Rei do
inferno dando um show destes. Para falar a verdade, nem me lembro quando
foi que isto aconteceu. – ele comenta com dar de mãos.
— Tirando aquelas briguinhas, não é meu querido? – uma das
assistentes cutuca-o com o cotovelo.
— Ah! Aquilo, é diferente!
— Mas também, vamos combinar? – comentou uma secretária. —
Os estagiários cometeram um enorme amontoado de deslizes.
— Eu nem sei o que dizer, ontem antes de terminar o expediente,
falei com nosso queridíssimo Doutor Grego sobre o assunto, mas ele disse
que hoje resolveria.
Doutor grego? Seria o Edu?
— Mas, quem imaginaria que isso chegaria tão longe? Eles
ousaram ir por seus próprios meios e ainda pedir “favores” o que chegou aos
ouvidos do Promotor Nikolaievitch! – a secretária do Anderson sussurrou
alto o bastante para todos darem suas opiniões.
Pelo tom e as informações que estão passando realmente parece ser
algo sério. A conversa deles está tão animada que nem percebem minha
presença, o que dão liberdade para que usem os apelidos que carinhosamente
nos deram ao longo dos anos de trabalho.
— Se dom Argentino estivesse aqui, ele já teria assumido e sumido
com toda essa confusão! – afirmaram.
Ramon?
— Não sei, ele era bem energético. Eu e meu couro que sabemos o
quanto! — Pedro afirma indecentemente.
— Verdade, amigo!
Neste momento alguém na sala rebate contra Mikael, provocando
uma nova onda de urros alterados. Anderson chega na ponta da sala, coça a
cabeça e dá a volta no mesmo pé em que veio.
— Olha, – Pedro tem um ar conspiratório passando o dedo pelo
lábio inferior como se limpasse a baba. —É difícil de ver o Rei do Inferno em
sua potência máxima, mas vou dizer: é algo sexy!
O Rei do inferno? Mikael? Sexy?
As risadas chamam a atenção dos demais incluindo Mika que
transfere seu olhar irado para fora da sala e cruza diretamente com o meu.
Sinto meu corpo todo despertando, reagindo ao seu olhar penetrante e algo
além da sua fúria externada parece gritar em seus olhos. O tom acinzentado
parece tão frio que de onde estou posso capturar cada nuance e me sentir
enregelar por dentro.
Um olhar sombrio que não faz parte das minhas memórias
preservadas.
— Ah, meu Senhor! É melhor voltarem às suas mesas que ele está
vindo aí! — Pedro enxota suas amigas, mas antes, acaba soltando uma que
me chama a atenção.
— Graças ao bom Cristo, que a Rainha do submundo está de folga,
ou isto aqui seria um Pandemônio.
— Não se alegre muito não querido, que ela está chegando aí para
ter uma reunião com a Miss Simpatia.
Este comentário veio da minha secretária.
— Quem é a rainha do submundo? – pergunto em meia voz.
Pedro rindo volta-se em minha direção respondendo.
— Quem mais poderia ser senão a Doutora dos Anjos? — O seu
sorriso se desfaz e ele trava ao cruzar seus olhos com os meus. —
Misericórdia, Senhor!
— Por acaso a Miss Simpatia, seria eu? — Angélica pergunta
jogando sua mão pequena sobre meu ombro surpreendendo a todos nós.
Quando ela chegou?
— Oh my gosh!
— Pedro querido! – uso o mesmo tom das secretárias. — Você por
acaso, se considera um gatinho com nove vidas para gastar?
Não espero por sua resposta, desvencilho-me de Angélica, passo
pelas secretárias, segurando a vontade de rir, porém de nervoso. Sigo em
direção a minha sala ignorando o caos ao redor.
CAPÍTULO 15

INTOLERÁVEL
“Para ser tolerante, é preciso fixar os limites do intolerável.”
Eco — Umberto

ANGÉLICA

A
s vozes alteradas não me surpreenderam ao subir as escadas e ver Mikael na
sala de reuniões através da parede de vidro.
Desde nosso último contato, ele deixou claro que algo o estava
perturbando. O fato de terem causado problemas envolvendo o nome da
empresa e indiretamente o dele, está óbvio que agravou a situação ao ponto
de perder a camada de verniz que mantém sob sua melhor atuação de bom
rapaz.
Antes mesmo de chegar aos escritórios já ouvi dos seguranças que
ele estava alterado, por este motivo adiei meu outro compromisso e resolvi
vir antes da hora marcada, — me certificando de que o exibido, idiota e
descarado do Giovane não estivesse presente, — já que precisava fazer um
reparo de danos colaterais. Fica cada dia mais notável a necessidade de
Mikael obter alguma ajuda profissional.
Imaginei que alguém pudesse ficar traumatizado depois do que
passaram no Réveillon com o ataque feroz que sofremos de Verônica, e a
morte brutal de Lourdes. Contudo, não imaginava que seria Mikael o
traumatizado e nem esperava ser Lia o motivo. Recuperar o corpo dela dos
seus braços quase sem vida, foi um choque imenso. Nunca o vi tão
transtornado ao ponto de perder o controle como naquele dia. Algo que ficou
entre nós e a equipe presente. Se um dos amigos imaginarem o que vi, não
tenho certeza de como reagiriam.
Prometi a Mikael, que isto ficaria entre nós, desde então tenho
policiado sua falta de sono, seus movimentos e venho me sentindo uma
merda por não poder fazer nada mais por ele.
Vê-lo perder o controle diante de mim naquela altura, trouxe para
fora meus piores demônios, a tortura psicológica é pior do que a física. Nem
se compara a forma como ele está hoje, um riso no canto dos lábios me faz
perceber como já gostei deste idiota. Meto meus dedos no bolso do jeans
dando de ombros com a sensação estranha pairando sobre meu estômago.
Analisar sentimentos ou reviver qualquer situação mesmo em
pensamentos tem se tornado exaustivo. Com uma respiração profunda me
escorei na parede ao lado dos elevadores, esperando que se cansasse e
pudéssemos falar.
Bufei pensando na solução mais assertiva para fazê-lo se curar, —
mesmo que isso não seja nada fácil, se houvesse ao menos um ponto de aterro
para se estabilizar, será um bônus.
Foi justamente em busca de uma solução que sem querer
“querendo” que esbarrei em uma descoberta incrível. A única coisa que
preciso fazer é transformá-lo em um pinguim. O esgar se espalha sobre meus
lábios, mas corto o pensamento para manter meu foco.
Minutos antes recebi uma ligação de Dionísio e segundo o líder de
equipe, a Pocahontas estava subindo e bem alterada devido a um problema na
escola do filho.
A explicação prévia do que aconteceu me deixou alterada para
participar da reunião que estamos prestes a ter, e a minha vontade é de estar
em qualquer lugar, menos aqui após ouvir os rosnados vindo de Mikael.
Se existem situações difíceis com estes dois é sempre bom
repensar, pois, nada é tão ruim que não possa piorar. — estes foram meus
pensamentos antes das portas do elevador se abrirem e Lia passar sem me
notar.
Só por este lapso da sua parte, já queria encerrar a reunião. Não
pude impedir de revirar meus olhos ao perceber como sua atenção focou no
grupinho fofoqueiro à frente, mas o engraçado foi a observar provocando as
secretárias e Pedro que já soltara muitas das suas piadas desde o momento
que cheguei aqui.
Meu celular vibrou, retirei do bolso da minha jaqueta de couro,
ergui a tela diante do meu rosto uma série de mensagens que começaram a
bombardear o aparelho. Espantei-me ao perceber que as mensagens eram de
Santiago, se estivesse diante de mim, poderia jurar que estaria bem alterado.
Não dei muita importância ao que ele estava me enviando, não
fazia ideia do que desejava com esses pedidos estranhos, depois faria uma
releitura do texto e então responderia. Voltei a observar Lia, contudo o
celular trepidando em minha mão roubou minha atenção novamente.
@C_Santiago: porra, Angélica. É uma simples pergunta, o Staeler
está no prédio? Sim ou não?
Isto chamou-me a atenção, não pela curiosidade, mas pela forma
austera da mensagem, geralmente ele é mais polido ao demonstrar seu humor.
@guardiã_A. Campus: qual é o seu problema? Ele não está aqui.
@guardiã_A. Campus: o que quer com ele?
@CSantiago: não minta para mim, se eu tiver de caçá-lo não será
bom para ele.
Um alarme disparou dentro de mim. Por que Santiago estaria atrás
de Ramon? Puxei pela memória se algum alerta de quebra na segurança havia
sido emitido pela manhã e tenho certeza de que não.
@guardiã_A. Campus: o que quer com ele, posso localizá-lo, fiz a
troca da equipe de segurança.
Silêncio.
Joguei com ele imaginando que pudesse ser isto. Santiago não
respondeu, fazendo com que minhas incertezas se agravassem passando por
minha mente uma gama de especulações. No começo, quando minha intenção
de vingança era alimentada por nosso rancor mútuo, estávamos em uma
sintonia onde estas dúvidas, não existiam.
Entendia a forma como os odiava, ainda entendo alguns dos seus
motivos, mesmo que não falemos em voz alta sobre estes. Contudo, nos
últimos dois anos, senti que os meus motivos para agir perderam um pouco
do foco e não penso mais em destruir a todos para obter minha vingança da
mesma forma que antes.
No entanto, San a cada dia que se passa alimenta um ódio ainda
maior por todos eles. É estranha a forma como nos portamos um com outro
hoje, ainda o sinto como meu parceiro, pelo menos na Guardiã onde
resgatamos vítimas de abuso e damos a elas uma oportunidade de uma nova
vida, mas no restante o sinto como outra pessoa.
É como se ele estivesse se esforçando para ser o que não é o tempo
todo, lutando para manter abaixo da superfície o que realmente gostaria de
fazer. Sinto certa apreensão, principalmente por sermos alvo de Verônica e
ela ser sua “mãe adotiva”.
Nunca falei com a família o que realmente sei sobre Verônica, até
porque pode ser uma leva de mentiras e enganos, fora o fato de ter de expor
Santiago, e isto é algo que não faria jamais.
Devo a ele muito mais do que favores, devo minha vida.
Sinto fisicamente a cobrança dessa gratidão. Algumas fisgadas
sobre minha pele dilacerada nas costas e na parte inferior do meu ventre, me
faz eriçar o corpo. Em ambos os momentos de maior perigo da minha vida,
onde estive vulnerável, foi ele quem esteve lá por mim.
Até nas idiotices sentimentais em que me envolvi ao longo dos
anos e recentemente. Lembranças de meses atrás voltam a memória, do
momento em que pisei no meu apartamento logo depois do Natal em que
descobri, senti e me deixei levar por certas coisas sobre Giovane, que não
deveria.
A minha necessidade de pôr distância entre mim e qualquer ser
vivo naquele momento era tão intensa que me causava dor física, um
tormento tão escancarado que me levou a uma crise muito similar à quando
descobri sobre as mentiras de Santana, sobre ser aliciado por July e
companhia para me assediar e obter o testamento.
— Porra… — resmungo sentindo meu café da manhã revirar em
meu estômago.
Só o fato de me relembrar como estava fraca, vulnerável me
atormenta. Era San quem estava lá quando atravessei o marco da porta e tudo
escureceu diante das minhas vistas, foi ele quem impediu minha cabeça de
rachar no chão, que recolheu os pedaços de mim, cuidou mais uma vez das
feridas físicas e mentais, dos meus sentimentos bagunçados, foram os seus
braços que me sustentaram.
Detesto a sensação de que está me escondendo algo, ao ponto de
fazer-me investigá-lo as escondidas com o auxílio de Fernanda, da mesma
forma que odeio saber que ele está manipulando as minhas pistas sobre o
paradeiro da maldita Verônica, me impedindo de encontrá-la.
A raiva flamula dentro de mim, mas o sentimento de gratidão que
não posso esquecer arde em maior intensidade. Voltei a focar o display do
celular.
@guardiam_A. Campus: me diz o que posso ajudá-lo e tentarei.
Mesmo que não seja nada que vá concordar, farei.
@CSantiago: me desculpa a falta de paciência, patroazinha, eu
não sabia da troca de equipes, não fui avisado, está tudo certo.
@guardiam_A. Campus: Ok! Era só isto. Mesmo?
@CSantiago: sim, depois te pago uma pizza para poder me
desculpar pela grosseria. Tudo bem?
@guardiam_A. Campus: pizza?

Suspiro pensando em responder a San, mas sou impedida ao


perceber que algo acaba de explodir — de modo figurativo — no escritório
causando um furdunço. O que foi bom, pois me livrou da sensação estranha
que apertou meu peito com certas lembranças, deixaria por enquanto isto
baixo, mas depois investigaria melhor o que estava acontecendo. Com
cuidado caminhei até Lia e não pude deixar de ouvir a conversa de Pedro e
seu questionamento.
Já tinha conhecimento dos apelidos que rolam pelo escritório e não
estranhei ouvi-los novamente, mas para apaziguar meus próprios demônios
resolvi entrar na brincadeira.
Lia ignorou minhas piadas, mas não dei importância,
principalmente pelo olhar de corça assustada que tinha ao encarar o Ovinho
fervendo de ódio.
Não acredito que foi inteligente ela sair correndo, colocando um
alvo nas suas costas, mas eles são assim.
Mikael passou por mim em direção ao escritório da Lia, se eu fosse
uma pessoa altruísta, preocupada com o bem-estar do próximo, deveria
impedir e convencê-lo remarcar essa conversa para outro dia. No entanto,
como ver o circo pegar fogo é mais divertido, deixei passar.
Eles precisam resolver muitas pendências entre si. Ter uma herança
milionária na conta bancária é o menor dos problemas da Pocahontas, até
mesmo pelo fato de ser imensamente teimosa. Ela pode muito bem pegar este
dinheiro e nunca usar um centavo, doar até a última prata, ou seja, não é ter o
dinheiro que mudará sua vida, mas os motivos pelo qual o aceitaria se o
fizesse.

Sem ter o que fazer, a não ser esperar as cenas do próximo


capítulo, me aproximo mais de Pedro com o envelope balançando entre meus
dedos. Observo o seu rosto vermelho como um pimentão.
— Então meu querido Pedrinho… — sorrio para ele.
— Doutora Campus, me desculpa se fomos indiscretos, sabe como
é a fofoca entre as secretárias.
— Sem a parte do Doutora, e não! Não faço ideia de como seja a
fofoca entre vocês, mas Miss Simpatia, não foi um pouco pesado? Tudo bem
que a referência de Sandra Bullock me envaidece, porém…
— Oh!? Meu Deus! Longe disto, nós queríamos apenas… — Pedro
está tão nervoso tentando se explicar, o suor está formando bolhas sobre o
lábio e testa.
A forma como pisca seus lindos olhos castanhos em minha direção
me divertem. Não tenho a intensão de repreendê-lo, porém causar um certo
medo é o suficiente.
Estava observando Pedro se contorcer para dar explicações quando
o som das portas do elevador às nossas costas chamou nossa atenção.
Movi o meu corpo de maneira descontraída, ainda debruçada sobre
o balcão da recepção dando um inferno de vista para quem estava entrando.
Não me importaria de estar com a bunda empinada em direção às portas se
fosse qualquer outra pessoa, mas o olhar estagnado dele e a forma descarada
que mirou meu corpo ao derrapar no mármore de Carrara que reveste o chão
me deixou constrangida.
Desviei meus olhos da sua boca escancarada para olhar novamente
a Pedro. A sua expressão era de pura felicidade ao cumprimentar seu chefe
direto.
— Doutor Santana, imaginei que não fosse vir na parte da manhã.
— Anderson me ligou! — a resposta curta e rápida resolveu o
enigma da sua presença.
Ah! Pangaré covarde, em vez de resolver a bomba a jogou no colo
do exibido.
— Bom, — Pedro passou a mão pelo terno se alinhando antes de
estender sua mão — posso ajudá-lo com isto?
Segurei a curiosidade em saber do que se tratava e continuei na
mesma posição sentindo sua aproximação as minhas costas. O Desgraçado
audacioso praticamente colocou a milímetros de mim, senti o toque sutil do
seu corpo contra a lateral do meu quadril.
Minha pele formigou, meu corpo retesou de uma forma dura e com
pequenos movimentos deslizei para frente. Desde que voltamos de Gramado,
esta é a segunda vez de verdade que ficamos tão próximos um do outro,
mesmo morando no apartamento em frente ao meu, faço o máximo para
evitá-lo. Perdi as contas de quantas ordens de despejo emiti e todas foram
devolvidas em pedaços por debaixo da minha porta.
— Que surpresa agradável, tê-la aqui senhorita Campus, — sua voz
é densa e arrasta próxima ao meu ouvido como um ronronar.
Engulo em seco ao olhar por sobre meu ombro, mantendo a
posição. Não o respondo, mas com um olhar deixo claro que está invadindo
meu espaço pessoal.
O cretino estingue completamente a distância entre nós. Posso
sentir claramente a pressão da sua coxa contra meu traseiro, meus olhos
estreitam em sua direção.
— Bom dia, Doutor Santana! — Piso contra seu pé. Ele se assusta
e afasta.
Se Pedro percebeu não deixou aparente com o riso bobo encarando
Giovane.
— Doutor Santana?
Giovane volta sua atenção para seu assistente ouvindo um breve
relato sobre a situação.
A minha atenção se volta para as portas fechadas do escritório de
Lia, tenho a sensação de que a qualquer momento ouviremos os gritos, as
ofensas e com alguma sorte, as secretárias terão material de primeira para as
fofocas na hora do café sobre uma sessão de barulhos suspeitos altamente
eróticos que o Ruivão e Pocahontas produzem em seus embates.
Meus pensamentos são coordenados para que seguramente não
preste atenção em Giovane, mas é impossível já que o filho da puta, volta a se
encostar descaradamente contra a lateral do meu quadril. Para evitar que o
derrube no chão, o cínico larga algo pesado aos meus pés e coloca sua mão
direita sobre meu ombro.
De imediato meu corpo se endireita, minha coluna trava e com
lentidão elevo os meus olhos em sua direção, enquanto ele encara Pedro com
olhar tenso, ouvindo tudo atentamente.
Minha respiração começa a falhar, minhas mãos abrem e fecham
em uma repetição desconfortável. A Afefobia[7] não é fácil de ser dominada,
nem sempre temos controle sobre nossas emoções, mesmo que tenha
condicionado meu corpo e cérebro a aguentar cargas sensoriais pesadas, uma
vez que meu trabalho exige isto de mim, porém com Giovane é do zero a cem
em questão de segundos, seja querendo seu toque ou repelindo-o duramente.
Confesso que nos últimos tempos tem sido doloroso suportar
minha fobia, tenho me ressentido de toques e a simples demonstração de
preocupação ou afeto direto e indireto de qualquer um, até mesmo Aline
tenho afastado.
— Giovane…— sussurro seu nome avisando-o que está
ultrapassando a linha.
Em vez de se alarmar e afastar, ele aperta meu ombro com cuidado
e nesse momento chama a atenção de Pedro, para seus dedos que deslizam
por minhas costas até a base da minha cintura. Meu corpo estremece, mas é
sutil e só nos dois sentimos.
Sinto as pontas dos dedos brincando perigosamente com o cós das
calças jeans e segundos depois os retira, dando um passo para o lado.
Giovane encerra a conversa com Pedro, se abaixa e vejo que o que tem em
mãos é uma enorme gaiola de gatos para viagem.
Seus olhos se movem por toda a extensão do meu corpo, se
detendo sobre o envelope que amasso entre os dedos, seu sobrecenho se
enruga, por um instante, mas o sorriso convencido volta a crescer em seus
lábios.
— Podemos falar depois que resolver esta pendência?
— Tenho uma reunião marcada com a Lia.
Ele balançou a cabeça, olhando para o envelope em minha mão.
— Não irá demorar e acredito ser do seu interesse.
— Não temos interesses em comum.
— Ah! Temos sim. Trata-se sobre a minha moradia.
Ao ouvi-lo, meu estômago antes revirado parece ser massacrado
dentro do meu corpo ao ponto de sentir uma sensação de angústia, que
empurro para longe, mais uma vez miro a gaiola em suas mãos e juntando
uma coisa à outra, deixo um sorriso cruel cortar meus lábios.
— Está de mudança?
— Se vier ao meu escritório, saberá.
— Ok! — ergo minha mão fazendo um sinal de positivo com os
dedos, volto a me inclinar sobre o balcão olhando fixamente para a porta do
escritório de Lia.
Ouço um nítido ronronar ao vê-lo se afastando e não posso
esconder o bufo. O desgraçado não desiste desta mania de mexer comigo,
quando não é me chamando de Miau, é ronronando alto para me lembra do
apelido.
Pedro o seguiu tagarelando, e coordenando o que seria feito
durante o dia, ao anotar algumas das suas ordens, mas depois voltou a estar
ao meu lado observando comigo a romaria a seguir.
Os estagiários e funcionários recém-contratados, foram deixados
aos cuidados da administração. Por isto, um a um entrou na sala que era de
Ramon e agora é de Giovane e saiu de lá com uma pequena advertência, já às
duas novatas foram acrescidas de lenços de papel, e um tapinha nas costas ao
atravessarem o marco.
Involuntariamente travei a mandíbula, certamente é só um espasmo
do corpo. Cretino!
Algo me ocorreu, sem desviar os olhos do sorriso idiota dele com
às duas mulheres à sua frente chamei a atenção de Pedro.
— Qual é o apelido dele? — indicando-o com gesto leve de
cabeça.
Não tenho interesse nenhum sobre nada que lhe diga respeito, mas
já que estou aqui, não custa nada perguntar. Me distraí tanto com o entra e sai
do escritório da Administração que por um momento me esqueci de Mikael e
Lia.
— Ah! — ele corou violentamente. — Senhorita Campus, não
temos nenhum apelido. Isto foi apenas um lapso, não fazemos esse tipo de
coisa.
— Pedro, querido… — mais uma vez reforço o tom no querido
imitando a Pocahontas. — Não me faça ser simpática do meu jeitinho, com
você.
O rapaz olhou em volta, se aproximou mantendo o limite do balcão
entre nós e com uma expressão de pesar e medo, largou de supetão.
— Doutor miau!
— O quê? — me virei completamente em sua direção erguendo
meu corpo sem acreditar no que acabei de ouvir.
Pedro desviou o seu olhar diante do meu grito incrédulo.
Giovane me olhou com sobrecenho franzido, fez um gesto com o
dedo me chamando, ignorei sua audácia e voltei a encarar Pedro. Com o
canto dos olhos o vi colocar as mãos sobre a cintura e fazer uma carranca,
antes de dar um passo para fora do escritório.
Tenho a impressão de ter ouvido um estalo em algum lugar, mas
estou mais interessada na porra do apelido dele.
— Porque, Doutor Miau? — pergunto, mas pedindo a uma força
qualquer do tal Universo que July acredita, que não seja o que estou
pensando.
— Po-porque — o homem gagueja.
— Desembucha logo, Pedro! — sinto a pouca paciência, descendo
pelo ralo.
— Aí, essa maldita boca! — ele dá dois tapas contra os lábios
fechados. — Bom, todas às vezes que ele, — pigarreia — quero dizer,
quando vocês se encontram é bem… Ô minha mãe do céu! Senhorita
Campus, é um pouco constrangedor falar-lhe isto.
— Mas, não foi constrangedor nos apelidar, não é mesmo? —
rebato. — Fala, por que o apelido do Santana é miau? — Sibilo entredente
abaixando o tom, vendo o dito cujo vir em nossa direção a passos morosos.
— Porque é assim que a trata, mesmo na frente dos funcionários.
Reviro meus olhos. Não posso acreditar nisto, sempre que nos
encontramos aqui, prefiro ignorá-lo tirando a vez que acertei seu nariz na
recepção, mas Giovane tem uma mania ridícula de me tratar por miau em
qualquer lugar. Aliás, ele fez isso na frente de Pedro ao ronronar.
— Além do que, ele me pediu para fazer cópias de uns documentos
assinados certa ocasião e…
— Ele o quê? — pergunto irritada.
Pedro reduz sua voz ainda mais, coloca a mão sobre a lateral da
boca e cochicha em minha direção. — O Doutor Santana, desenhou uma
mulher gato no canto da folha e deu nome de miau.
Seguro minha vontade de rir, mesmo estando chocada com essa
revelação no mínimo ridícula.
— Só por isso?
— A gatinha estava com um laço de fita vermelha no pescoço, e
tinha uma trança de lado, — ele ergue sua mão e aponta para meu cabelo —
assim com a sua.
Isso só pode ser brincadeira. Penso em algo rápido para retirar essa
imagem da minha mente e da de Pedro, mas Giovane para bem ao seu lado e
segura seu ombro com pressão.
— Não tem nada o que fazer Pedro?
— Doutor Mi… Santana? Que susto, claro que tenho. — o
assistente da administração me encara suplicando com os olhos que
permaneça calada quanto aos apelidos. Despede-se de nós e segue para sua
mesa.
— O que era tão chocante que ele estava segredando em seu
ouvido?
— Quem disse que isto é algo chocante? — rebato.
Se ele soubesse! Seguro o riso, imaginei fazer troça com seu
apelido, mas gato escaldado tem medo de água fria e isto certamente viraria
contra mim. Porém, a analogia que meu cérebro faz da situação me faz rir.
— Seu olhar… — ele morde o lábio inferior mirando seus olhos
em minha boca, — adoro vê-la sorrir, me lembra quando estou te beijando.
— Você é um louco! — exclamo cortando-o.
Ouvimos uma conversa um pouco acalorada vindo do escritório de
Lia, mas não alto o bastante para distinguir se é uma discussão ou não.
— Não quer saber o porquê?
— Por que do quê? Volto meus olhos em sua direção.
— Nada! — ele dá de ombros e me indica o caminho do seu
escritório, tenho a sensação de estar caindo na toca do coelho como Alice, no
País das Maravilhas, ao segui-lo com esse sorriso de Cheshire que tem no
rosto, mas a curiosidade é maior.
Caminho à sua frente e entro no escritório, me surpreendo ao ver
que ele como Ramon manteve a decoração do passado, por ser o escritório do
Tio Niko, o tema Russo continua vivido nas cores e na mobília, as
lembranças do seu país estão espalhadas em cada detalhe, mesmo que seja
algo moderno ainda tem um toque de museu. Não é feio ou ruim de se ver,
apenas nostálgico de certa forma.
Passo em direção a enorme mesa com tampo de vidro no centro do
escritório, as caixas de som ao lado da tela do computador tocam uma seleção
de músicas que me agrada, evito comentar para não dar o gosto de saber algo
a mais sobre mim.
Encaro a enorme parede de vidro a minha frente com uma visão
formidável da cidade, o céu é brilhante e quase me rendo ao calor brando do
sol que ultrapassa o espesso vidro.
Sem me voltar em sua direção, deixo saber que tenho pressa. —
Fale logo o que você quer, tenho uma reunião com Lia como já disse e…
Minhas palavras morrem em meus lábios ao sentir meu corpo ser
puxado com força contra uma parede rígida de músculos. Em seguida
tombamos na mesma intensidade sobre o sofá de couro ao lado da mesinha de
centro entre duas poltronas no mesmo estilo.
— Gio…
— Você não quer saber o porquê do seu sorriso me lembrar o seu
beijo? — sua voz é um sussurro que me arrepia a pele.
— Me solta seu louco! — exclamo sem fôlego pelo susto e a
surpresa de ter sido pega sem qualquer aviso.
— Porque você sorri sempre que me afasto dos seus lábios e volto
a beijá-la.
Meu olhar em sua direção certamente é de confusão, porque
realmente não faço ideia do que esteja falando, e isto ele faz questão de
esclarecer.
Antes que possa empurrá-lo de sobre o meu corpo, a sua boca já
está esmagando a minha. O arquejo que solto dá-lhe a oportunidade
esperada.
Sua língua desliza entre meus lábios tocando a minha com pressão,
seu corpo se move sobre o meu me fazendo sentir cada centímetro desde as
coxas ao peito pressionando sobre mim, é inegável o quanto está excitado,
pois, sinto o volume do seu pau travado entre minhas coxas sobre a costura
do jeans que aperta meu centro.
A sensação do pulsar aumenta, estar próximo já me causa excitação
e seria burrice negar, porém, posso ignorar, mas com ele roçando seu corpo
no meu é impossível.
Giovane suga minha língua, seus olhos estão fechados e observo o
prazer que sente em me beijar, meu sobrecenho se franze, raiva flameja
dentro de mim, enquanto luto para não descer minhas pálpebras e aproveitar
cada detalhe.
O cheiro da colônia, a barba aparada roçando sobre meu queixo, os
braços fortes em volta do meu tronco, seu peito esmagando meus seios, mas
de uma forma sensual e os seus dedos escavando meu couro cabeludo
causando arrepios.
Ele desce sua mão livre, agarra minha coxa abrindo minha perna
em um ângulo que o sinto completamente inserido sobre meu sexo. É algo
cru.
Giovane sorri e se afasta. — Me beija Miau, estou morto de
saudades e tesão para tocar em você?
— Saia de cima de mim. — peço, mas a minha voz é tão fraca,
nem mesmo reconheço a autoridade do pedido.
— Vou sair, mas depois que me beijar, de verdade. Quero sentir
sua língua deslizando sobre a minha, ouvir seus gemidos de gatinha.
— Não sou uma gatinha, Doutor Miau. — não resisto.
Pensei que ele estranharia e se afastaria o que me daria uma
oportunidade, mas o cretino, estreitou o olhar e se aproximou novamente.
— Descobriu meu apelido?
Minha surpresa está clara. Óbvio que ele saberia, a descrição de
Pedro é inexistente?
— Me solta! — peço novamente.
— Me beija, então a soltarei.
Tenho a forma de me livrar e causar a ele danos sérios ao fazê-lo,
mas, porque não o faço é uma incógnita difícil de responder. Giovane retém o
olhar sobre os meus, seus dedos deslocam do meu couro cabeludo, deslizando
sobre meu rosto, seu nariz se encosta na base do meu pescoço, sinto meus
olhos tremerem e se fecharem ao senti-lo aspirar sobre a pele mordiscando-a,
a sensação me faz voltar em momentos que já passamos.
Suas loucuras me atingem da pior forma possível, criando
redemoinhos de sensações por todo meu corpo.
— Quero tanto colocar um laço vermelho sobre essa pele macia. A
quero nua na minha cama, a única coisa flamejante sobre seu corpo será ele,
meu laço vermelho.
Um fleche de nós dois sobre a chuva em cima do capô do carro
rasga minha mente, a primeira vez que o ouvi dizer a mesma coisa, um
gemido se desprende da minha garganta, abro minha boca em busca de ar,
mordo o lábio inferior para evitar mais gemidos.
— Me beija? — ele pede novamente traçando meus lábios com a
ponta da língua.
Sei que vou me arrepender e isto só vai me machucar
garantidamente, mas sem protesto algum deixo sua boca deslizar sobre a
minha e sua língua invadir minha boca.
Correspondo às suas investidas e procuro não imaginar o
desconforto que é ter um corpo tão próximo, ao contrário disto, prefiro
imaginar-me como uma pessoa diferente, alguém que aprecia cada toque e
pode devolver na mesma sintonia.
O beijo é profundo, suas mãos permanecem onde estão sem
ultrapassar a linha do que estou disposta a dar, ouço aquele som de ronronar
que ele faz me provocando.
Minha mão por resposta soca seu peito, ele estremece, mas não é
de dor, os meus gemidos o seguem, sinto seus lábios se abrindo em um
sorriso ainda com sua língua dentro da minha boca, meu rosto se contrai e
acabo sorrindo em resposta, não sei que droga de beijo é este, mas ele vai e
volta e continua sorrindo.
Ora morde as comissuras dos meus lábios, abrasa meu corpo com o
seu e volta a afastar-se dando-me espaço.
— Minha, Miau…
Ele se afasta com sorrido cafajeste nos lábios. — Entendeu agora o
porquê de quando a vejo sorrindo, me faz recordar como é te beijar?
— Idiota! — reclamo e o afasto. — Já beijei, me solta.
Giovane parece querer resistir, mas se ergue gradualmente, porém
muda de ideia e volta me pressionar contra o sofá, isto me irrita.
— Giovane!
— Temos muitas coisas a resolver, muitas!
— Se for profissional, ou em relação à sua mudança, olho para a
gaiola de gato ao lado, podemos falar.
— É mais que isto…
Seu olhar é tão explicito que logo percebo sua intenção. — Isto não
vai rolar. — rebato firmemente.
Sem esperar que me libere, aproveito a oportunidade em que
afrouxa o agarre sobre minha coxa a usando como uma alavanca e em
segundos me livro da sua prisão.
Seu olhar em minha direção é estranho, talvez chateado. No
entanto, não posso simplesmente ignorar que ele sempre, sempre tem algo a
revelar e me magoar no processo.
Ergo-me e me afasto, respirando fundo para lançar longe a
sensação de clausura que me aperta o peito e a ardência que esquenta os
cantos dos meus olhos.
Inúmero em minha mente tudo que ele já me fez e toda dor que já
senti ao deixá-lo pairar à minha volta. A música que invadi a sala seria
perfeita, parece zombar de nós. Ergo meus braços e cruzo-os em volta do
meu corpo.
Giovane me enganou com a verdade sobre se aproximar de mim.
Me levou a um jantar para roubar-me o testamento e agora descubro que ele
me conhecia desde criança…
O que mais vou descobrir?
O que mais ele está escondendo de mim?
Prefiro não saber, pois de uma forma que não sei explicar, ele tem
o dom de magoar uma parte dentro de mim que nem mesmo sabia existir.
— Por que não podemos tentar? — sua pergunta é tão ingênua que
me faz rir.
Caminho para longe em direção à estante de carvalho lotado de
livros do chão ao teto, passo os dedos pela lombar de alguns livros tão
antigos e outros novos, enquanto respiro lentamente colocando minha mente
no lugar.
Ele realmente mexe comigo, porém, não pode mover as pedras que
colocou sobre meus sentimentos e que esmagaram o que queria sentir por ele.
Tesão, beijos, desejo são coisas que é possível sentir e controlar,
como também são fáceis de se extinguir, basta apenas manter o foco e isso
ficará no passado.
É isso Angélica, foque no que você tem de fazer.
Movo o meu corpo para encontrá-lo de pé a uma curta distância, o
envelope que tinha em minhas mãos está caído no chão próximo à mesa.
Com passos firmes em direção a estrutura e capturei-o em minhas mãos.
— O que queria me falar sobre sua mudança? — mudo de assunto
ignorando o corpo dormente, os lábios formigando e a lágrima insistente que
está a um milímetro de cair pelo meu rosto.
— Não vou me mudar! — sua voz é determinada.
— Isto não está em debate. — rebato com força, passo a mão sobre
meu rosto e me recomponho o melhor possível.
— Irei fazer uma viagem no final de semana, vou passar quatro
dias fora, queria que cuidasse do gato.
— Você só pode estar brincando.
— Ele a ama, — ele deu de ombros.
Sua expressão é tão nítida do que realmente parece querer dizer,
mas a forma como cuspiu as palavras demonstra o quanto o desagrada não ter
o que quer.
— Você tem com quem deixá-lo.
— Não, existe alguém em quem confie aqui para fazer isto por
mim. Já disse: ele a ama.
Olho novamente a gaiola no canto da sala, mas não faço perguntas,
provavelmente trouxe isto para dar a alguém, ou seja, lá o que for, não me
interessa.
— Eu o deixarei saber, se puder fazê-lo, contanto que ao voltar,
saia do meu prédio.
Dou-lhe as costas e sigo para porta, e meu corpo trava ao senti-lo
se prender a mim.
— Por favor… Vamos conversar, sobre nós dois? — sua voz se
abaixa e sua boca toca minha nuca acendendo a mesma sensação de antes.
Quero me livrar dele, na mesma intensidade que quero virar-me e
abraçá-lo. Estou prestes a pedir que me solte, quando ouvimos um estouro,
alto o bastante para estremecer-nos por igual.
— Porra! — exclamo alto me livrando do seu aperto seguindo para
a porta.
Os gritos a seguir determinam que a merda do lado de fora é séria.
Toco a maçaneta da porta, mas Giovane me segura de novo, olho com raiva
por sobre o ombro. — Me solta, Santana!
— Espere, me diz que sim, que teremos uma oportunidade de
acertamos as coisas.
— Me solta.
— Angélica! Tenho sido tolerante, primeiro nós e depois o resto,
dane-se eles…
— Rá! Nós? Não existe conjugação para nós em qualquer
circunstância. Tolerante? Para ser tolerante, é preciso fixar os limites do
intolerável. — expresso e pouso meus olhos sob suas mãos antes de voltar a
fixá-lo. — E isto aqui para mim, é intolerável.
Ele não rebate, outro som brutal nos alcança e agora é ele que
esbraveja, colocando-me antes de si e saindo porta afora.
Respiro fundo e me preparo para a guerra armada que vou
enfrentar, e me culpo, pois, se não tivesse me deixado levar, certamente
poderia ter evitado, seja lá o que for isto.
Inferno! Eu estava bem o ignorando, porque sempre que baixo
minha guarda acabo me ferrando, onde mais dói?
CAPÍTULO 16

INDOMÁVEL
“Porque tudo o que sei é que dissemos Oi
E seus olhos são como voltar para casa.
Tudo o que sei é um simples nome.
Tudo mudou”
Everything Has Changed (feat. Ed Sheeran) Taylor Swift.

LIA

E
ste com certeza está sendo um dia como poucos, no entanto, uma sensação de
urgência está gritando dentro de mim, as piadas das secretárias não me
irritaram de forma alguma, na verdade, foi bom para quebrar o clima tenso,
porém o olhar dele e as minhas próprias sensações físicas e emocionais estão
em conflito.
Minha porta se abre de supetão e como estou de costas, não tenho
certeza de quem está parado no marco, mas imaginando ser Angélica para a
tal reunião, resolvo dispensá-la e deixar isto para outro momento.
— Angélica, podemos conversar depois? — aperto as pastas sobre
a mesa com as mãos e olhos fechados contando de zero a dez.
— Antes que fale com ela, nós precisamos conversar.
O tom de voz inflexível, é duro ao ponto de ferir os meus ouvidos.
Sua presença na ampla sala a torna um cubículo, o cheiro do seu perfume
ofusca o ar fresco me fazendo estremecer e sua afirmação me causa uma
sensação agoniante a cada passo duro que dá em minha direção.
— Me ouviu?
— Sim! — respondo e voltando-me em sua direção. — Todavia,
não acredito que este seja um bom momento.
— Dane-se, o bom momento! Teremos esta conversa e será hoje.
Ignoro a minha vontade de respondê-lo a altura, observo sua
postura rígida os traços marcados ao redor dos olhos e os lábios fechados
com certa pressão.
Mikael joga sobre a mesinha de centro uma pasta-arquivo e o
impulso derruba o enfeite sobre o vidro criando um estalo dentro do cômodo.
Me sinto estremecer e percebo o quanto estou abalada, em outro
momento certamente teria resmungado com ele por ser descuidado.
— Precisamos ter uma conversa séria.
— Não temos.
Encontro minha voz, mesmo que pareça um sussurro. Retomo o
fôlego, ele hesita por um instante, arranca a sua toga a largando sobre uma
poltrona, afrouxa gravata, desabotoa os três primeiro botões da sua camisa
branca, antes de passar a mão por sobre os cabelos despenteando-os com
aspereza.
— Acho melhor sair, — indico a porta sentindo melhor o meu
controle, olho para o relógio em meu pulso —, tenho uma reunião em alguns
minutos e logo depois um compromisso fora do escritório.
Mantenho a voz em meio-tom, pois percebo que ele realmente está
fora de si. Não tenho a menor intenção de agravar isto entrando em um
embate com Mikael, principalmente por ser eu a pessoa que lhe enviou uma
mensagem pedindo um encontro entre nós.
— Pois, desmarque! — sua voz se altera um pouco.
Corro meus olhos em volta da minha própria sala buscando uma
saída viável, mas sem sucesso então deixo que a bomba de adrenalina e raiva
se acione.
— Abaixa o tom para falar comigo. Controle-se! — exclamo
fuzilando-o com olhos estreitados.
Mikael estaca a alguns passos de mim, toma uma respiração
profunda tentando se controlar, mas vejo nitidamente a tempestade em seus
olhos.
Ele não tem a menor condição de manter o seu controle e diferente
dos outros, sei como que isto acabará. Tenho a certeza de que não quer as
pessoas no escritório bisbilhotando sobre sua vida, principalmente após
descontrola-se diante de todos.
Raramente estes episódios foram vistos, mas pelos comentários
foram marcantes. Não tenho medo dele, mas pode acabar se ferindo.
— Estou mais que controlado Lia, e nós teremos uma longa
conversa.
— Conversar, neste estado? — bufo, me afasto dele caminhando
em direção a minha bolsa que joguei sobre o sofá do lado oposto onde está.
— Esqueça, Mikael não sou como eles — aponto para fora —, e como disse,
tenho compromissos, vou remarcar minha reunião com Angélica, já que me
fez perder os minutos que pretendia dar a ela.
Pego minha bolsa colocando-a sobre o ombro, o movimento faz os
restos mortais da maldita revista caírem sobre o tapete, a recolho rapidamente
e enrolo contra a palma da mão formando um canudo para que ele não veja.
Meus olhos se relanceiam em sua direção e percebo que ainda me
encara com a mesma expressão austera, porém ele demonstra uma urgência
estanha ao falar.
— Você pretende usar isto como uma desculpa?
— Se quiser tomar como sendo uma, fique à vontade — Dou um
sorriso com sarcasmo e caminho em direção a porta.
— Lia, que porra! — ele aumenta a voz e isto me faz urrar em
mesmo tom com ultraje.
— Não se atreva a gritar comigo, estou falando sério! Não sei que
merda anda acontecendo com você, e nem tenho o interesse em saber.
— Então senta e me escuta. Larga essa bolsa e não de desculpas
esfarrapadas para não me ouvir. Fale comigo, — ele pausa e vejo seu olhar se
obscurecer ainda mais —, porque com qualquer outro, é bem fácil de se
fazer, não é mesmo?
Não gosto do tom que usa na sua insinuação final e isto liga aquele
alarme que soa em minha mente.
— Está se ouvindo? — ergo a revista enrolada e balanço diante dos
seus olhos. — Me recuso a manter o mínimo de diálogo agora.
Ele estreita os olhos e se aproxima cautelosamente como um
predador pronto a dar o bote.
— Ok! — seu tom é baixo. — Então, me acalma.
Seu pedido simples poderia ser encarado como um convite
agradável em outro momento, pois não sou de ferro. Mesmo que o mundo
esteja caindo sobre as minhas costas, ainda sou mulher e tenho um enorme
tesão quando se trata dele. No entanto, por justamente ser quem sou, recuo
um passo e coloco entre nós uma maior distância o rebatendo.
— Sei que sou potente, mas não sou Rivotril, Promotor. Não irá
rolar.
Mikael se aproxima tanto que uso a revista em canudo para
bloquear contra seu peito e empurrá-lo, mas é inútil. Com a minha estatura e
peso para querer tirar um homem de 1,90 de altura e cem quilos de sobre
mim, é uma missão impossível. — Afaste-se!
— Não! — sua resposta é um abuso, mas isto não me atemoriza. —
Certamente que não é um Rivotril, no entanto, é a porra de um tesão
ambulante.
Olho a revista em minha mão e a aperto contra seu peito. Minha
vontade é de realmente afastá-lo, mas usando o resto dessa maldita revista
como ferramenta.
— Lia? — sua voz é rascante. — Me olhe, por favor.
O pedido feito serenamente me pega desprevenida, meu olhar se
prende ao seu, as pupilas claras estão em um tom de cinza tão forte que me
lembram de uma tempestade, — me lembram os olhos do meu filho quando
está em meio às suas crises — esse pensamento cruza a minha mente, perco
um pouco da minha determinação em mantê-lo longe.
Os lábios que foram esmagados com tanta força entre os dentes,
ostentam uma pequena lesão, pelo menos a pele não foi rompida, mas posso
ver nitidamente as marcas profundas deixadas ali. As mãos dele estão nos
bolsos e não sei se estão retorcidas, ou fechadas em punho a ponto de ferir a
palma.
Gradualmente deixo meu braço deslizar ao longo do meu corpo,
Mikael fecha o espaço entre nós e encosta seu peito contra o meu. — Não sou
um sedativo, — sussurro sentindo-o mais do que vendo, uma vez que prefiro
manter meus olhos fechados guardando para mim a minha sanidade ao sentir
sua mão direita roçar o lado do meu rosto.
Ele desliza os dedos mornos sobre minha bochecha até levar para
longe do meu pescoço a massa de fios negros, sinto o peso do cabelo batendo
sobre minhas costas até a altura do quadril, mordo o lábio inferior e seguro a
respiração à espera do que virar a seguir. Como no hospital há algumas
semanas, em sua casa, no escritório, na pequena sala de descanso no
restaurante de Carla e em todas às vezes em que estive em seus braços ele fez
o mesmo.
— Cheirosa… — uma única expressão sussurrada, uma ação
continua e as lágrimas quentes banham meus olhos.
Mikael enterrou seu rosto contra minha pele, aspirou com força
agarrando o cabelo na base da minha nuca e afundando seus dedos de uma
forma quase dolorosa, arrepios dolentes percorrem todo meu corpo, solto a
pressão dos dedos sobre a alça da bolsa em meu ombro e a revista, deixando-
a pendente entre meus dedos.
Tento manter-me o mais pacífica possível, mesmo sabendo que isto
é apenas segundos de calmaria antes de um verdadeiro pandemônio. Ele não
vai desistir de falar seja lá o que for, e provavelmente irei reagir a isto. Há
situações entre nós que nem mesmo litigando fortemente contra, seria
possível de se impedir.
Mikael circula com força minha cintura me aconchegando junto ao
seu corpo, mesmo sob os saltos ergo-me nas pontas dos pés para quase
igualar-me a ele e poder senti-lo por inteiro. Meus pensamentos estão todos
em um inferno de bagunça, quase soluço permitindo-me chorar diante dele,
mas isto de nada poderia nos ajudar, por este motivo, solto a revista e a bolsa
antes de levar minha mão ao meu rosto, limpando as lágrimas rapidamente.
Aspiro o perfume que desprende do seu corpo. Abro meus lábios e
engulo o ar com força para me livrar das sensações físicas.
— Mikael… — digo seu nome tentando afastar-me dele.
— Só mais um segundo, por favor. — ele permanece na mesma
nota.
Todo mundo passa por um momento obscuro na vida, às vezes a
dor é tão intensa que transborda para quem está a nossa volta. A dor é um
urso rugindo ferozmente para nosso coração, queremos apenas protegê-lo e se
para isto for preciso atacar, o faremos. Se tivermos de perder o controle, que
seja.
Eu já fiz tanto isto que chego a sentir o cansaço em meus ossos. Da
mesma forma que a dor me abate me fortalece e, isso me impulsiona erguer
muros, e a atar-me em armaduras. Contudo, ele é o único que coloca brechas
nessa armadura.
Cresci cercada de amor e ternura, tive os melhores pais que sempre
estavam lá para poder me consolar e proteger, para enxugar as minhas
lágrimas se preciso fosse. Até que perdi tudo isto e precisei entender que
nossas lágrimas secam sozinhas.
Todavia, quando há um sentimento maior e um propósito
indomável em nosso peito para protegermos quem amamos, esquecemos da
nossa própria dor e absolvemos a dor deles para que possam ter paz.
Sei que isto está longe do que realmente queremos ou deveríamos
estar fazendo e talvez em alguns minutos me arrependa, no entanto, não
posso e não quero vê-lo e senti-lo tão fragilizado.
— Está tudo bem! — digo em simultâneo, em que minha mão livre
afunda sobre os fios ruivos onde posso sentir a cicatriz do seu acidente
recente, a massa de cabelos se emaranha contra meus dedos e deslizo-os até
tocar a sua nuca.
— Tudo bem…
Repito algumas vezes, convencendo-nos mutuamente que tudo
ficará bem. Somos quebrados, machucados e infinitamente teimosos para que
possamos nos entender, mas da nossa própria forma nos completamos,
mesmo que no final seja apenas com sexo, ainda sim, há mais entre nós do
que possamos realmente dizer um ao outro.
Sinto o momento exato em que retoma o controle sobre si mesmo,
gradualmente se afasta e não tenta nenhuma outra aproximação mais ousada,
só por isto, sei que o que tem a falar é algo que não gostarei.
Em relação a Mikael e meu corpo na mesma equação, de certo que
ele não se afastaria com tanta facilidade, — isto só diz que você deve fazer o
mesmo Lia, e sair deste escritório enquanto ainda tem pernas hábeis para
fazê-lo.
Penso e rebato a mim mesma, ao enviar-lhe uma mensagem
pedindo um encontro dei a Mika a oportunidade de falar-me o que quisesse,
afinal de contas estou em uma missão que vai além do meu querer, dos meus
sentimentos rompidos.
Mikael se afasta, ele passa a mão sobre o rosto e os cabelos da
mesma forma de antes. Os seus olhos ainda estão nublados de certa forma.
Caminho em direção a uma mesa de canto com um frigobar e a máquina de
café.
— Água ou café? — pergunto por educação servindo-me de um
grande copo de água gelada.
Seu silêncio me incômoda, mas não teço comentários e nem
retorno o oferecimento. Após colocar o copo alto sobre a bancada volvo meu
corpo em sua direção ele continua na mesma postura de antes, mãos no bolso,
olhar sombrio, porém com um tom mais leve na voz.
Mikael me pede para assentar-me diante dele, penso em me
prostrar na cadeira atrás da minha mesa, daria a ele e a mim mesma uma
sensação melhor de segurança e distância, no entanto, já passamos dessa fase
principalmente ao vê-lo recolher do chão os restos mortais da revista.
— Anda arrebentando a direção do carro com isto?
Como me conhece bem. — quase digo em voz alta, mas prefiro
ignorar ao sentar-me no sofá de couro marrom.
Olho ao redor tentando me confortar de certa forma, mesmo que
meu escritório precise urgente de um toque de modernidade e ser reformado,
nunca realmente quis me livrar das coisas de papai, por isso a mobília escura
ainda reina no ambiente o tornando bem masculino quase austero para o
conceito do escritório em geral.
— Lia? — ele começa chamando minha atenção ao sentar-se diante
de mim. — Antes de qualquer coisa, me desculpe pela explosão ao entrar.
— Sem problemas, Mikael, já tomei conhecimento por alto sobre o
que aconteceu e se não fosse você a tomar uma atitude certamente alguém o
faria.
Ele balançou a cabeça, esticou uma perna para alcançar o bolso da
calça, retirou o Iphone e conferiu uma mensagem, mas não deve ser algo
importante, já que jogou o aparelho sobre a mesa de centro sem responder.
— Estou ouvindo Mikael, diz o que quer e que seja rápido, por
favor.
— Não sei por onde começar. — ele debocha com um riso torto —
mas, sei que será um inferno quando começarmos a falar.
— Comece da pior parte, não dizem ser melhor arrancar a casca da
ferida para que se cure depressa?
— Ok! — ele concorda. — Ou melhor, o que você queria falar
comigo?
Eu não esperava ter essa conversa aqui e muito menos com os
nervos tão à flor da pele, por este motivo empurro para baixo o que desejo
falar-lhe, ao menos começar a ponderar se possível for um dia.
Dou a ele a deixa para que comece, pois, somente uma pessoa
realmente fora da casinha não veria que o que ele quer falar tem a ver com a
reunião que aconteceu no escritório e não pude participar.
Não só ele está estranho, mas como todos a minha volta. Sinto-os
até constrangidos ao se dirigirem a mim, e o que aconteceu no restaurante da
Carla, foi uma dica forte. Tentei descobrir com Aline e Giovane o que
aconteceu, mas ao desconversarem foi outro ponto.
O fato de Ramon passar por cima do nosso acordo e depositar o
dinheiro que não queria em minha conta bancária, também é outro auto a ser
adicionado neste “caso em aberto”. Sem citar minha conversa para lá de
estranha com Carla durante minha sessão de tortura.
Mas, nada foi mais decisivo sobre minhas dúvidas e receios quanto
a forma e as coisas que mamãe disse ao pernoitar em minha casa. O seu olhar
que hora era de piedade, arrependimento e um sentimento que não gosto de
perceber quando o assunto é nosso passado.
— Podemos discorrer sobre isto em outro momento. Mikael,
prefiro que acabe logo com o que tem a falar, assim passamos para outra
etapa.
— Vivemos de etapas, não é mesmo Lia?
— Sem sarcasmos velados, meu caro Promotor, e sim, nossa vida é
um constante ciclo de etapas, hora nos odiamos, hora transamos.
— Não seria… — ele bufa, se recosta no sofá e volta a passar a
mão sobre os cabelos. — Como queira, em outro momento falaremos sobre
isto.
Mikael volta o corpo para a beirada do sofá demonstrando
claramente o quanto está inquieto, seus olhos não cruzam com os meus, mas
focam em partes do meu corpo, ao redor da sala indo e vindo em minha
direção.
— Mikael?
— Por que não aceitou o dinheiro da herança? — ele diz de
supetão. — E o mais ridículo de toda a situação, como você está aqui
trabalhando, sendo uma das donas deste escritório e nunca recebeu os ativos
que lhe são de direito?
Esbravejo. A coisa é realmente o que pensei, ou melhor, pior do
que pensei, porque ele não consegue esconder a raiva sibilando em cada
pergunta, mesmo que tenha sido feitas em voz baixa.
— Não estamos falando sobre isto, Promotor. Tenha um excelente
dia. — rebato, inclino e alcanço a bolsa ainda no chão e me ergo do sofá.
— Sente-se, agora! — Mikael se fosse um cão estaria rosnando
feito um pitbull ao erguer os olhos e focar diretamente nos meus.
— Você não me dá ordens. — respondo serenamente, mais do que
imaginei que poderia.
— Sente-se Lia, não estou brincando. — ele modera a forma de
falar, mas isto não me impede de sentir o sangue ferver nas veias.
Em vez de me sentar, largo a bolsa sobre o sofá bruscamente e
ando pelo espaço vazio por trás do móvel em direção à parede de vidro que
reveste toda a faixada do escritório.
Olho intensamente para o horizonte, a minha frente e reúno todos
os argumentos, prós e contras que me respaldem nessa discussão iniciada.
Não retrocederei numa decisão, meus motivos são fortes o bastante para
sentir repulso sobre essa herança e isto ninguém poderá mudar.
— Por que nunca me informou? Precisava descobrir tudo em uma
reunião, com aquele idiota jogando em minha cara?
— Não soube, porque a minha vida, não é da conta de ninguém,
muito menos da sua.
— Mesmo assim ainda somos sócios, e isto foi um choque,
principalmente pela forma que descobri.
O jeito da sua entonação me faz estreitar os olhos, mas permaneço
de costas.
— Não fazia ideia de que sua relação com Giovane Santana, era
tão profunda ao ponto de contar-lhe não apenas sua decisão, mas usar uma
história íntima e do nosso passado para justificá-la.
— A forma como descobriu isto, também não me interessa. Na
verdade, não faço a menor ideia do que “nosso passado” signifique para
você, ao ponto de imaginar que não possa falar sobre o assunto com um
amigo.
Rebato sua resposta, mas com meus nervos trêmulos, minhas mãos
estão tão suadas que para evitar demonstrar que sua acusação mexeu comigo
de uma forma ruim, as escondo nos bolsos das calças.
Não faço a menor ideia do que esteja falando. Eu nunca sequer
falei com Giovane sobre algo do tipo, ou que tenha referência à minha
história com Mika, a única vez que cheguei a comentar algo foi no
casamento de Anderson e Aline para confirmar para ele e seu primo quem
era, nada mais, a não ser… PORRA!
Meus olhos se fecham e sinto meu rosto queimando de raiva.
Volvo meu corpo, ele continua na mesma posição, mas o olhar está travado
em mim.
— Do que exatamente você está falando, Mikael? — a pergunta sai
em voz alta, sinto a garganta esbraseando com esforço de conter um berro de
frustração.
— Você melhor do que ninguém deve saber, mas isto não vem
mais ao caso, — ele dá de ombros, — só avise a ele que da próxima vez que
me enfrentar e usar algo do tipo, ele não irá gostar da minha reação.
— Não faço a menor ideia do que algo sobre nós, tenha a ver com
Giovane, a reunião e esse assunto. Para mim essa discussão se dá por
encerrada. É uma perda total do nosso tempo.
— Nada está encerrado. Angélica a aguarda com os papéis da
transação financeira e o endossamento para você assinar.
— Nem em sonhos. Eu não quero, aliás, estou devolvendo para a
conta da empresa todo o montante que Ramon me enviou.
Digo e tento alcançar minha bolsa para pegar o celular, mas ele é
mais rápido e a retira de cima do sofá lançando-a sobre a poltrona em que
estava sentado.
— Mikael! — minha voz se eleva, dou passos adiante, ele cruza os
braços sobre o peito. — Só de pensar em tocar neste dinheiro me sinto doente
e isso não é um eufemismo.
Ando em círculos pelo escritório para me acalmar, não posso sair
assim, ou serei capaz de cometer um desatino. Mikael vem em minha direção
e segura-me novamente.
— Sente-se e me ouça.
— Não quero me sentar, não quero ouvir, apenas não!
— Não irei renunciar a isso Lia, é seu direito e você deve aceitar.
— Se é meu direito, posso recusar.
— Não rebata uma verdade com uma sandice. Como advogada,
tem ciência de que é obrigada a receber a sua herança.
— Não a quero!
— E viverá de quê? — ele grita e abre os braços perdendo a
postura rígida.
— Da mesma forma que fiz até hoje. — rebato.
Ele estreita os olhos e sei que a situação ainda ficará pior, posso
sentir isto.
— Você não está sozinha, precisa cuidar melhor de si e do seu
filho. Ter um recurso financeiro para dar-lhe suporte caso necessite, foi por
isto que nossos pais fizeram esse acordo.
— Está perdendo o seu tempo e me dando enxaqueca. — recuo e o
encaro firmemente. — Pense em mim como alguém que não pode ser
controlada.
— Não desejo fazer isto, e sabe melhor do que ninguém que não
suporto essa pressão. Contudo, se tivermos de viver sob esta condição não
vou me opor.
— Não perca seu tempo com isto, Mikael. Se em algum momento
da minha vida o permiti imaginar que pudesse me controlar de alguma forma,
foi por um mero equívoco. Da minha vida, cuido eu.
— Mesmo que isso interfira de alguma forma na criação do seu
filho?
— Meu filho não é um assunto em pauta. — ergo meu dedo e
aponto diretamente ao seu peito. — E de forma nenhuma receber essa
herança, mudaria a vida dele!
— Claro que mudaria! — ele rebate, desta vez me puxando para o
sofá onde desabo com ele ao meu lado me segurando. — Um orçamento mais
amplo facilitaria muito sua vida.
— Espere. — ergo minha mão e dou uma risada entredentes. —
Não quero supor, que tenha usado seus meios como Promotor, ou pedido a
Angélica para fazer uma investigação financeira da minha vida. Não quero
supor, — ressalto — que ultrapassou esse limite.
— Estamos nos desviando do propósito aqui.
— Mikael, o respeito como homem, mais do que possa imaginar,
mas se por um único segundo eu suspeitar que andam me investigando de
qualquer forma…
— E se fiz? — é a vez dele se erguer, estreito meus olhos não
podendo acreditar no que está se passando por minha cabeça.
Ele não me dá ouvidos e começa a dissertar sobre várias das suas
frustrações por nunca ter sequer suspeitado sobre minha recusa em aceitar
esse dinheiro.
De imediato pensamentos misturados a lembranças do passado
assolam minha mente jogando sujo com minhas emoções, sinto meu corpo
estremecendo a cada palavra. Cada argumento parece um dardo inflamado
contra meu coração, em vez de me convencer a aceitar este dinheiro, só sinto
a minha repulsa aumentando.
O fato de Giovane ter invadido a reunião para acusar Mikael, me
deixa intrigada e muito emputecida. Não aceito, mas compreendo agora por
que ele estava daquela forma no restaurante e o porquê foi um verdadeiro
filho da mãe, ao dizer aquilo sobre ter filhos na frente de todos, mesmo assim
não vou aceitar sua imposição.
Nem ele poderia me fazer mudar de ideia no passado, muito menos
agora.
— Chega! — grito e ele se cala.
Me ergo novamente e o empurro para alcançar minha bolsa, mas
ele segura meu antebraço e me faz parar à sua frente.
— Eu ainda não terminei.
— Pois, eu já! Dane-se se sentiu magoado com o que ele falou. —
pauso. — No entanto, não podemos dizer que ele tenha mentido, concorda?
— Lia, gostaria muito de poder voltar no tempo e mudar tudo isto e
fazer tudo diferente, mas…
— Entretanto, quem tem de pedir desculpas, não está aqui para
fazê-lo. Dado como verdade, digo que: a filha do ladrão está recusando
publicamente e oficialmente ter parte na droga dessa herança, e se continuar a
me pressionar, nem mesmo aqui neste escritório ficarei.
— Não se atreva a me ameaçar.
— Não é uma ameaça! — rebato e puxo meu braço para longe
dele.
— Não diga estas coisas, já passamos por merdas demais por conta
destas acusações. Isto está no passado!
— Em qual passado? — pergunto sentindo a cólera subir em forma
de bílis em minha boca. — Em qual passado está soterrado está história para
que possa esquecer e viver como se nada tivesse acontecido?
— Todos pagamos um alto preço e deveríamos nos livrar disto.
— Você consegue?
— Não, mas você é mais forte do que eu e tem um motivo para
ficar sã.
Sinto a referência ao meu filho, mas meu cérebro tomado de terror
e meu coração de mágoa não dá espaço a esse lenitivo.
— Não estou aqui para medir forças com você. Cada qual carrega o
fardo que suporta, pois, entenda de uma vez por todas, — pauso e não
reprimo às lágrimas que ardem nos meus olhos até escorrer por meu rosto. —
Não quero esse dinheiro. Pois, da forma que foi feito, custou-me muito mais
do que anos longe da minha família Mikael. Ser mandada embora para
Portugal e viver lá como uma reclusa, não foi nada, perto de não estar aqui
quando meu pai morreu.
— Lia, por favor. — ele se aproxima.
— Não me toca! Eu não quero ser consolada. Quero que entenda
de uma vez por todas.
Meus olhos embaçam e minha voz embarga de uma forma que mal
posso suportar. No entanto, respiro fundo, limpo meu rosto e tranco as
malditas lágrimas dentro de mim.
— Passei anos longe, sem poder voltar, mas ainda assim sendo a
filha de um suspeito de roubo, sabendo que meu pai morreu com a alcunha de
ladrão. Porque o seu pai era um racista filho da puta, que o julgou por ser
pobre e negro, o fez parecer ser alguém que pudesse cometer tal crime.
— Não fale assim, nós sabemos que isto não é a verdade.
— Mas, foi o que ele falou por anos. Foi exatamente o que afirmou
quando prenderam meu pai; o melhor advogado criminalista do estado sendo
preso por suspeita de roubo — me aproximo e abaixo o tom de voz, — foi o
que o seu pai disse ao me arrancar da sua cama, depois que você colocou um
anel em meu dedo.
Não queria mencionar o anel, porque tudo mais voltaria como uma
avalanche, posso sentir o momento exato em que as lembranças explodem
sobre o córtex cerebral criando uma dor insuportável.
Mikael tem uma expressão dolorida ao ser afastado e não me
importo, porque sabia que seria assim, se o assunto fosse esse, chegaríamos
aonde não quero. Aonde nossos sentimentos, culpas e nossas decisões
tomadas colocaram uma estaca na linha que nos ligava e nos separou uma
vez.
Seu olhar é duro, ele passa a mão sobre o cabelo e chega tão
próximo a mim que sinto sua respiração morna batendo sobre meu rosto.
— Não posso trazer meu pai dos mortos para se desculpar e nem
me ajoelhar na frente do seu para fazer o mesmo, mas posso mudar as coisas
no presente. E vou fazer isso Lia, nem que tenha de passar por cima dessa
porra de orgulho besta que você tem!
— Belo discurso, mas eu não vou assinar nada!
— Assinará! — Ele se altera, —irá assinar e aceitar sim! Que porra
se passa na sua cabeça para agir assim? Você tem um filho que cria sozinha,
comprou um apartamento financiado a perder de vista, seu filho estuda em
uma das escolas mais caras de Vitória, o que acho uma desgraça. Tem uma
babá em tempo integral, vai me contar o seu segredo, como sobrevive só com
esse salário que recebe?
— Como 90% da população mundial, seu estúpido! — rebato com
força alterando a voz novamente e imagino que o circo lá fora deva estar
lotado de expectadores.
— Mesmo, como? — ele rosna sua pergunta.
— TRABALHANDO!
O fato dele ter uma listagem financeira da minha vida me assusta,
mas não por saber dela, mas o fato de ter ido tão longe e saber onde Anjinho
estuda. Mas, isto acaba ficando em segundo plano ao ouvir o que ainda tem a
dizer-me.
— ÓTIMO! — ele usa o mesmo tom e sua voz é como um trovão
rasgando meus ouvidos. — Você assinará os documentos pautados em sua
própria afirmação e daremos por encerrado o caso. Sabe por quê? Porque
aprendeu com o melhor a dar valor ao trabalho, esse pensamento vem do tio
Joaquim, não é?
— Cala a boca! Você não tem o direito de falar do meu pai.
— E você não tem o direito de menosprezar o que fez para você, o
tanto que lutou e o que deixou em seu nome.
— Mikael, leia os meus lábios…
Ele surta de vez segura-me próximo o bastante para estarmos
ligados e então sibila contra meu rosto suas palavras.
— Você é minha mulher, e quero poder me assegurar de alguma
forma que isto vai ser feito.
— Sua, o quê? — o fato de estar colada a ele não é nada em
relação ao que afirma com tanta força. — Não me faça ter uma crise de risos
em meio a uma discussão, por favor.
— Sempre foi! — ele desce seus olhos sobre meus lábios e retorna
a fixar-me em mim. — garantidamente, sempre que você está em cena,
estamos mutuamente nos fodendo, de todas as formas possíveis. Desde que
renunciei a ter qualquer “transa casual” com outras mulheres pelo último ano,
— ele deu ombros. — passei a considerá-la como minha mulher. Aceito o
fato com muito prazer.
— Acredito que essa conversa tem que ser encerrada, aqui e agora
antes que falemos algo muito errado.
Ele me ignora de propósito dando sequência na sua reivindicação.
— E tem mais Lia, chega dessa porra de distanciamento, se isto que rola entre
nós vai seguir de alguma forma, então será do nosso jeito.
— Nosso jeito? Como, o Promotor estala os dedos e eu me curvo?
— Se te der prazer, — ele encara minha boca e sinto a força da sua
ereção roçando contra meu baixo ventre. — Podemos fazê-lo, no mais
começara com você assinando os papéis.
Relaxo meu corpo e ele afrouxa o agarre, me afasto dele e digo
exatamente o que penso em relação as suas afirmações e as decisões em
relação a mim.
— Eu não vou assinar, e quanto a ser sua mulher, vai para o
inferno! “Seja um bom menino e não se apegue à filha de um ladrão”, foi
exatamente isto que os seus pais disseram naquela altura, não foi?
Não sei exatamente o porquê, mas é a declaração que no momento
me alegra e enfurece numa proporção que mal posso contabilizar.
Pego minha bolsa sobre a poltrona e sigo para porta, mas paro ao
ouvi-lo transbordar toda sua raiva, da forma mais letal que consegue.
— Liana Joaquina dos Anjos. Não me provoque.
Um arrepio cru percorre meu corpo.
Primeiro: porque faz anos que não ouço meu nome ser pronunciado
dessa forma e quase tenho um AVC por ouvi-lo fazendo.
Segundo: por imaginar que isto não termina aqui e ainda tenho que
ter uma conversa com ele, sobre algo que mudará ainda mais nossas vidas e
não faço ideia de como fazê-lo, depois disto.
— Não é provocação quando é a verdade.
Não fico para saber o que ele ainda possa ter a me dizer. Abro a
porta do meu escritório e dou alguns passos, sinto os olhares à minha volta,
de certo que ouviram cada palavra e isto torna tudo muito pior do que
ouvirem um gemido ou um xingamento.
Meu rosto queima pelo constrangimento, no entanto, ergo meus
ombros e jogo o cabelo de lado sobre meu seio direto. Coloco os meus óculos
escuros que rapidamente alcanço no compartimento externo da minha bolsa.
Minhas pernas estão trêmulas e nunca o lobby do elevador pareceu tão longe
como agora.
Mais dois passos e um estrondo ensurdece a todos no escritório.
Sons de cacos de vidro se espalhando dentro da minha sala me congela.
Pedro solta um grito histérico e junto a outras secretárias correm
em direção da minha sala, pelo som parece que a mesa de centro foi
arremessada contra algo.
As portas do elevador se abrem entro cega e agitada de aflição,
meu cérebro me manda fugir, mas meu coração quer que eu volte e veja o
que pode estar acontecendo, porém, não tenho esse tempo, as portas se
fecham e meu corpo desaba contra o painel do elevador.
O arquejo que sai entre meus lábios é alto e logo um par de mãos
fortes me seguram. Assusto-me, mas não ergo meus olhos, percebo quem é e
logo faço algo que é totalmente o oposto ao que normalmente faria.
Peço ajuda.
— Álvaro, por favor, pode me tirar daqui? — odeio o fato da
minha voz estar ridiculamente desfraldada, mas mal posso segurar as
lágrimas que embaçam minha visão.
— Me desculpa, não sou o Álvaro, mas será um prazer ajudá-la a
sair daqui.
A voz rouca me faz recuar, de certo que atrapalhei um cliente a sair
do elevador, ergo meus olhos rapidamente e não consigo registrar bem suas
feições por estar com óculos escuros em uma pequena cabine.
— Oh! Sinto muito senhor, não o vi e o confundi com alguém do
escritório.
— Não tem problema, eu conheço as pessoas do escritório e sei
quem é a senhorita, mas meu oferecimento é sincero.
Algo na voz do homem me soa estranho é como se já o ouvisse e o
cheiro do perfume não é estranho.
— Sou próximo a Álvaro.
— Ah! — isso explica, acho.
Me afasto dele sentindo meu corpo dormente e minhas pernas
fraquejam, percebo que ainda estamos no andar ao ouvir vozes alteradas.
Tento erguer meus dedos para abrir à porta, mas o estranho me impede.
Minhas mãos estão frouxas quando ele gentilmente afasta meu
pulso.
— Quer sair daqui?
— Quero… — o sussurro é tão sincero que as lágrimas não só
caem, como soluços se impõem através dos meus lábios.
— Correto, permita-me ser seu cavaleiro andante por hoje.
O estranho aperta o botão no terreno o que me fará sair sem a
escolta de Dionísio, mas essa é a menor das minhas preocupações no
momento.
— Me chamo Lia. — me apresento tardiamente, quando as portas
do elevador se abrem.
— É um enorme prazer resgatá-la Lia, meu é Christian, — o
homem alto e loiro ergue sua mão, em minha direção e sorri.
Sorrio em resposta, ao menos tento. Consigo registrar os olhos
mais azuis que já vi em toda minha vida, a farta barba, e a cicatriz bem
aparente em seu rosto, o que me causa uma sensação estranha déjà vu.
— Christian Santiago, meus amigos me chamam de… San, espero
que possa fazê-lo no futuro.
CAPÍTULO 17

INAPROPRIADO
“O coração é ordinariamente um termo de que nos servimos, por decência,
para designar outro órgão.”
Eça de Queirós

MIKAEL

A
carga emocional, estava triturando o meu bom senso ao ponto de perder o
foco entre o certo e o errado, privando a minha consciência dessa linha tênue
que tão duramente construo dia a dia.
A densa fúria me abateu de uma forma, que forçar a entrada de ar
nos pulmões tornou-se um custo, a adrenalina, testosterona, falta de sono,
irritabilidade, estresse e medo, sobressaem pelos meus poros através do suor
que escorre pelo meu rosto.
Não é a primeira vez e de certo que não será a última que isto
acontece, porém, cada vez que se repete, a sensação de perda de algo parece
piorar ao ponto de uma exaustão física e mental angustiante.
O gosto ferruginoso sobre a língua e ardência sobre o lábio inferior
é prova de que o massacrei a pele em pelo menos dois pontos diferentes.
Nunca imaginei que coisas como estas pudessem voltar depois de
anos. Minha vaga recordação é muito infantil de perder o controle e ficar em
um estado catatônico após algum estresse muito forte, brigas dos meus pais
ou repreensões por algo, mas não sei a extensão de onde cheguei, ou poderia,
se um dia não pudesse me controlar.
A dor de cabeça que sentia pela manhã ao levantar, só piorou ao ser
abordado no tribunal e receber as insinuações nas quais eu estaria usando os
meus subordinados e estagiários para obter vantagens em um dos processos
em andamento.
Inteirei-me por completo sobre o que havia acontecido no meu dia
de folga e o sangue ferveu. Pensei em chamar Edu, para estar à frente disto e
resolver o problema, mas assim que fui comunicado sobre a presença dos que
causaram problemas antes, e tomar consciência sobre o que queriam falar-me,
simplesmente deixei tudo vir à tona.
Aos despachá-los com uma reprimenda ainda em minha sala, não
imaginei que algo pior pudesse acontecer, mas bastou chegar nos escritórios e
no fim me vi na sala de reuniões esbravejando toda a minha frustração sobre
eles.
No primeiro momento preferi me calar e tentar manter a postura do
rapaz legal, mas a expectativa do que estaria por vir em poucas horas, não me
permitia abrandar.
Ao dar um prazo para Angélica empossar Lia da sua herança, abri
um precedente para envolver-me em definitivo nesta situação. Talvez por
isto, cruelmente tenha deixado me levar e descarregado tudo sobre um
assunto que era de grande relevância do que extrapolar com ela.
Obviamente não foi o suficiente.
Os passos apressados, as vozes de curiosos e as mãos geladas
envolta do meu rosto deveria me devolver calmamente para minha
consciência, contudo apenas um trago do cheiro, da essência, da voz dela
faria isto por mim.
Eu queria apenas que Lia voltasse e para arrebentar qualquer coisa
contra minha cabeça por destruir a mesinha de centro da sua sala ao
arremessá-la para longe, porém isto não vai acontecer.
Certamente se acontecesse, estaríamos na merda, pois voltaríamos
a carga da discussão, dos gritos, da dor física de conter o desejo de
atracarmos sobre qualquer superfície e transarmos até que nossa raiva seja
extinta.
Pois, da mesma forma que está irredutível dizendo não, faço força
na ponta ao contrário do cabo de guerra, dizendo sim.
Ouço meu nome sendo bradejado com força contra meus ouvidos e
isto me tira da letargia. Meus olhos cruzam com os de Angélica, sua
expressão de pavor é encurtada com o riso cínico que esboço em sua direção.
É automático, um artista mantendo sua pose diante dos
espectadores.
— Sem querer, esbarrei meu pé na mesinha. — Explicação no
mínimo parva diante do arremesso que fiz com a peça de mobília para ser
lançada do outro lado da sala.
— Mesmo? — ela devolve com seu sarcasmo natural. — Então
deve ter sido “O” esbarrão, uma vez que a pobre coitada não terá a
oportunidade nem mesmo de ser restaurada.
Sigo a direção que aponta por sobre o ombro e vejo duas coisas que
me estremecem:
A primeira que estou encolhido com um bicho acuado no canto da
sala entre uma estante e a parede, o que não faço ideia de como fiz isto.
A segunda é a maldita mesa que está longe o bastante para ter se
tornado apenas lenha e vidro quebrado. Sobre os detritos uma placa de
gesso em pedaços continua se desfazendo lentamente da parede onde ficou
um buraco.
Ignoro sua carranca e com delicadeza a empurro para que me deixe
sair, percebo com canto dos olhos que apenas três pessoas permanecem no
escritório, mas na porta do lado de fora bloqueando-nos dos olhares curiosos
estão Anderson e Carlos Eduardo, com braços cruzados e semblantes
circunspectos.
Protagonizamos uma cena e tanto. — penso.
Inferno, ela deve estar me odiando por se sentir tão exposta, este é
um assunto sigiloso e tão íntimo que só diz respeito a nós. Porra, Michael
como foi escorregar tão fundo no seu controle?
Angélica alça o corpo e joga sobre a poltrona um envelope, antes
de sentar-se ao lado colocando o tornozelo cruzado sobre o joelho dobrado
ainda me encarando.
Ergo-me sentindo uma dor estranha pelas articulações, mas ignoro
meu desconforto físico e encaro Pedro, me assusto ao vê-lo segurando um
embrulho rosa, mas não tenho oportunidade de perguntar do que se trata,
pois, logo o pai do bebê em seus braços, estaca à minha frente e ele, de certo
não tem uma expressão de pesar ou piedade como os demais.
— Espero, que esteja calmo o suficiente, para assinar os cheques
que vão pagar por estar bagunça, Senhor Mikael Nikolaievitch.
— Staeler. — devolvo o cumprimento com um gesto vago de
mãos, saco a carteira do bolso traseiro da calça social e estendo em sua
direção. — Fique à vontade.
Ele aperta o maxilar e cruza os braços na altura do peito, a postura
é austera, mas o fato de estar com um papai-canguru amarrado ao peito,
abranda um pouco a sua fisionomia e deixa a coisa ainda mais bizarra.
— Pedro? — chamo o assistente da administração sem me ater ao
olhar atendo dos meus amigos.
O rapaz se assusta e recua um passo com Pérola firmemente segura
em seus braços — Sim, senhor?
Estalo os dedos das mãos contra as palmas e sinto as articulações
formigarem, em seguida ergo os braços, alcanço os botões da camisa
amassada para os encasar e me recompor.
— Envie um pedido de férias ao RH. Trinta dias de licença
remunerada para Doutora dos Anjos. Remaneje seus clientes para outros
advogados, envie-lhes uma cesta de iguarias com um pedido formal de
desculpas em nome do escritório.
— Farei isto, Promotor Mikael.
— Cuide para que os processos em aberto sejam remanejados para
os principais, — endureço minha voz esperando uma argumentação contrária
de Edu e Anderson, mas não vem —, peça para que o pessoal da limpeza de
uma geral no escritório, contrate uma empresa especializada em reformas e se
encarregue pessoalmente de deixar o escritório como antes. Use meus
recursos pessoais como associado para todas as despesas.
Passo a mão sobre as mangas da camisa após ajustar a gravata e
retorno as abotoaduras que estão em meu bolso. — Leve a madeira a um
restaurador, o melhor que encontrar e refaça uma peça similar. — suspiro
ciente a cada segundo a enorme proporção do problema que perder o controle
me causou. — Inferno! Está veio de Portugal, entre em contato com algum
antiquário e negocie com eles a compra.
— Pode deixar comigo, Promotor.
— Ótimo, — alcanço a toga amassada sobre o sofá —, mais uma
coisa Pedro, — ergo meus olhos mirando o olhar assustado do assistente —
sugiro fortemente que espalhe para os quatro cantos desta empresa que uma
única palavra sobre o que houve aqui sendo replicada pelos corredores, salas
de café ou fora deste escritório, se tornará uma carta de demissão imediata.
Estamos entendidos?
— Si-sim senhor, fique tranquilo, somos discretíssimos.
Estreito meus olhos sobre o homem para poder fazer valer minha
ameaça. Pedro caminha em direção a Ramon para devolver-lhe a filha,
resmunga algo e sai apressado para cumprir com que foi pedido.
A expressão carrancuda do argentino não se desfez por completo,
mas a docilidade no gesto de pegar a filha trai sua empáfia ao me observar.
Estas medidas não são exatamente um lenitivo, nem servirá como
uma desculpa para o que houve e o que ainda está em curso no que diz a
respeito à Lia e a parte financeira que lhe cabe. Sei das minhas
responsabilidades e do que quero agora, por este motivo não medirei esforços
para que aconteça.
Arrisquei tudo ao ser tão brusco com Lia, mas entre nós, não
existem meios termos. Não gostamos de mentiras. Sem desculpas, tudo é às
claras, cru, se doer, dane-se. Suportamos bem o tranco.
Arqueio o sobrecenho aos meus amigos que permanecem na porta
como seguranças, sem qualquer explicação, se afastam dando espaço para um
vão completamente vazio de funcionários.
— Estamos saindo. — Carlos Eduardo anuncia a ninguém em
particular. Ele e Anderson se destacam da soleira e caminham em direção ao
vestíbulo.
Estou pronto para deixar a sala, mas antes quero os documentos
que estão com Angélica, me preparo para pedi-los quando a megera salta do
lugar onde está sentada drenando a cor dos lábios. O celular em sua mão
trepida, mas rapidamente disfarça isto colocando-o em seu bolso.
— Estou me retirando também, tenho coisas a resolver, — não há
urgência em sua voz, mas passar os últimos meses correndo ao seu lado e
presenciando tantas mensagens estranhas como esta, me permite identificar
detalhes nos seus desempenhos.
— O que houve? — pergunto ignorando Staeler que permanece em
silêncio andando de um lado a outro para embalar a filha.
— Nada! — ela alcança o envelope para colocá-lo na jaqueta.
— Fico com isto.
A megera cessa seus gestos, ergue os olhos e me fita sem nenhuma
expressão.
— Creio que já sabemos que isso aqui, não vai dar certo, não acha?
Olhe à sua volta, não vejo uma Pocahontas saltitante, louca para se tornar
uma milionária.
Sua boca contorce em uma careta desagradável, mas isto não me
intimida e nem desmotiva; permaneço com a mão estendida em sua direção.
— Fico com isto, — replico e acrescento —, transfira os bens para
a conta dela.
— Não é assim que funciona, sabe bem disto.
— Você pode fazer a coisa do procedimento verbal e leitura
testamental para a entrega depois, faça o que estou gentilmente pedindo.
— Desculpa, mas rosnar como um cão raivoso é um pedido gentil?
— Angélica, não me teste.
— Mikael — ela recebe outra mensagem e percebo seu maxilar
travando com força. — Faça como achar melhor, porém seja prudente. Nunca
imaginei que seria esse tipo de abordagem que teria com Lia, se quer saber
minha opinião, foi uma merda o pouco que ouvi, não estou culpando-o,
porém parece que há mais do que isto aqui — ela gira o dedo no ar — para
ser resolvido entre vocês dois.
— Sempre haverá — concordo.
— Disto meu caro, não tenha dúvida. — sua risada é no mínimo
estranha para não dizer outra coisa.
Percebo até Ramon parar em meio ao passeio de um lado a outro
para encará-la. — O que quer dizer com isto?
— Nada! Preciso ir, realmente não deveria me interessar pela vida
de vocês, — ela resmunga. — Sinto falta de quando só os odiava, era tudo
mais fácil.
— Você nunca nos odiou. — Ramon interfere.
— Que seja! — ela exclama irritada, retira o envelope parcialmente
guardado e coloca sobre minha mão produzindo um som de estalo com a
força usada. — O que pretende fazer para que ela assine isto?
— Não sei bem o certo ainda, mas tenho planos.
— Boa sorte!
Angélica abre a boca para falar algo, mas a vejo desistindo. Do
mesmo jeito intempestivo que bufou, deu-nos um aceno de cabeça e
caminhou até a porta, mas não cruzou a soleira, a loira volveu seu corpo e
fixou os seus olhos em mim.
— Você precisa de ajuda, — ergo o sobrecenho — não faço ideia
do que está rolando na sua cabeça, e o quanto essa merda fodeu com seu
juízo Mikael, mas tenho certeza de que precisa de ajuda. — ela bufa. — Eu
não acredito que vou falar isto, vai contra as minhas crenças, mas se de
alguma forma ela é parte da ajuda que precisa, pode contar comigo, no
entanto, tenta não foder com tudo, ovinho…
Angélica faz uma cara de nojo e aponta para mesa no chão. —
Quando a maluquice bater forte, vai correr ou bate uma, mas não faz essa
merda, porque pode acabar machucando alguém. Ok?
— Nunca a ouvi falar tanto — cruzei os braços sobre meu peito.
— Não se acostume, da próxima vez, vai ser dois Haldol, um
Fenergan e faço com que o amarrem em uma cama.
— Hum! Cama? Acredito que quem precisará de uma é você, —
solto uma risada baixa e aponto os meus lábios e em seguida os seus com o
dedo em riste —, foi o idiota do Santana que fez isso aí?
Angélica se surpreende ao passar a língua sobre os lábios
levemente inchados e solta uma leva de palavrões, antes de mandar-me ao
inferno. Ela deixa a sala, mas fecha a porta devagar olhando para a criança
nos braços de Ramon.
O som do clic metálico isolando-me do mundo arremete dentro de
mim como um balde de água fresca em meio ao deserto, sinto meu corpo se
rendendo, manter a pose de indiferença exauriu massivamente o pouco de
controle que reuni para sair do torpor.
Meu corpo desce sobre o sofá, jogo minha cabeça contra o encosto,
e por costume alcanço o celular do bolso e às cegas abro um aplicativo de
música, a melodia em volume baixo da playlist selecionada me traz conforto,
plenitude.
De alguma forma, consigo me centrar melhor absorvendo as notas
musicais como uma espoja. Assim posso redirecionar o meu momento de
estresse para um lugar além de onde esteja.
Moí meus dentes até rangê-los com o maxilar travado. Coloquei o
braço direito por sobre meus olhos e respirei algumas engolfadas de ar,
tentando aplacar meus pensamentos e sensações.
Minutos se passaram até ouvir um resmungo fininho próximo de
onde estou, permaneço estático não me importando com a presença de
Ramon.
— Minha Princesinha Caramelo, agora vai ficar quietinha no seu
bebê-conforto, enquanto o papai terá uma conversa séria com tio Mika, —
ele sussurra para a filha, tenho a curiosidade de ver a cena, pois sempre que o
argentino está em modo babão fazendo voz de ventríloquo com sua filha é
algo engraçado de se ver.
— Ramon, agora não! — suspiro, minha cabeça lateja.
Com o antebraço ainda sobre os olhos, ouço os passos dele em
volta do sofá. Percebo os movimentos e o couro rangendo abaixo do seu
peso.
De todos os meus amigos, Ramon é o mais próximo. É a pessoa,
tirando Lia, que deva me conhecer melhor, por isto seu bufo ao ouvir minha
voz rouca recusando sua presença, parece ser mais de lamento do que
irritadiço.
Mesmo sabendo o quanto não suporto estas ações piedosas, é
totalmente normal que ele se irrite, extrapole e deixe bem claro seu desagrado
como também pode se comportar como um pai.
— Sei que não deseja falar agora, mas escute com atenção. — ele
tem um tom baixo e persistente.
— Não quero… — respondo de má vontade.
— Não me importo se quer algo ou não, Mikael! — sua voz muda
completamente. É a parte onde a piedade entra em conflito com a
irritabilidade.
Permaneço calado, isto é algo que não se pode mudar em cachorro
velho, manias, e ele sempre teve muitas delas, principalmente ser autoritário.
— Você já ouviu a lenda das ostras?
Um riso de escárnio escapa entre meus lábios. — Algumas vezes,
você sempre tem um motivo para falar disto.
— Ótimo! — ele bufa e sinto seu corpo repousar bem ao meu lado
contra o encosto do sofá. — Não preciso me estender em um longo discurso,
pois sabe exatamente o que retirar de dentro de si mesmo após a dor, entre as
cicatrizes.
— Como? — não acredito ao ouvir o sussurro saindo dos meus
próprios lábios, mas uma vez que saiu, o resto como uma enxurrada de lama
e entulhos se despejou de dentro de mim. — Como vamos retirar algo puro e
precioso de tanta dor, de tanta… Merda?
— Vocês estão se fazendo perguntas retóricas. Quer que cite
alguns exemplos de como poderiam começar a resolver isto?
— Ramon, isto seria muito erudito para minha mente agora, se
olhar à sua volta vai ver que as coisas estão em um patamar bem a abaixo do
seu nível.
— No tipo: eu ser troglodita, mim, fazê-la assinar um documento,
mim, dizer ela é minha mulher?
Recuei para longe dele erguendo meu braço de imediato. — Porra!
— exclamei ao encarar meu amigo. — Você ouviu?
— Eu e todos os presentes do lado de fora desta sala. Só faltaram
os murros no peito, Tarzan.
— Foda-se! — me ergui. — Dane-se se ouviram, não minto, ela é
minha mulher Staeler, e muito antes que qualquer um possa imaginar.
— Sei disto, aliás todos nós sabemos. O fato de não demonstramos
nossa torcida abertamente ou querer revisitar esse relacionamento
conturbado. É por respeito a vossa história que vai além do que sabemos.
— E, porque não é da conta de ninguém!
— Exato, não o recrimino por dizer isto.
— Nem poderia, não após ser casado com Carla por dezessete
anos, amigo.
— Meu casamento não está em pauta e fale baixo, para não acordar
Pérola.
Ao mencionar a filha, olho a minha volta e vejo sobre a mesa um
bebê-conforto cor-de-rosa, onde a bebê dorme tranquilamente.
— Ok! Vou sussurrar para entender. — gesticulo com a mão um
foda-se para ele.
Ramon me devolve um esgar dos lábios indicando o assento à sua
frente.
Para evitar aumentar o confronto e manter-nos em uma conversa
civilizada me assento, admitindo minha derrota diante da dor excruciante.
— Posso ter exagerado no volume da voz, meu caro, mas a
afirmação é verdadeira não vou retroceder no que disse.
— Não estou aqui para ajuizar contra, se estivesse em seu lugar,
provavelmente faria o mesmo. Confesso que joguei sujo com minha Ratinha
para colocá-la onde queria. — o estreitar dos olhos ao me fitar diz muito
sobre o que ele fez, posso imaginar. — Não me arrependo de ter a minha
esposa e filha em meus braços diariamente.
— Ela é — friso — a minha mulher, Ramon, e isto é dela. —
aponto o envelope ao seu lado.
— Sei, mas da próxima vez comece com algo mais romântico e
menos brutal.
— Não somos assim. Eu e Lia, somos pessoas muito diretas, não
sou de fazer rodeios.
— Você melhor do que ninguém sabe como agir com ela, porém
tenha em mente duas coisas: você quer que aceite algo que pode feri-la
profundamente, e a mais importante, Lia não é sozinha. Tem certeza de que
quer e pode assumir isto?
— Posso assumir qualquer coisa que queira se for para um
propósito sensato e justo.
— Resposta certeira sem titubear, muito bem. Todavia meu caro, o
sentimento de justiça nada tem a ver em trazer para sua vida definitivamente
uma mulher com um filho, tenha Edu como exemplo. — ele afirma e entendo
a referência ao ex-marido de July.
— Não me interessa com quem ela dormiu e teve um filho. — não
consigo manter submerso minha raiva ao pensar que um babaca filho da puta
possa tê-la engravido e que a deixe passar por qualquer necessidade com a
criança.
Na verdade, me interessa sim, só não quero dar voz a isto, no
fundo, espero que Liana com seu orgulho irredutível tenha afastado o
desgraçado por algum motivo.
— Você não se importa, mas sempre faz menção a isto para
magoá-la. Não é apenas a questão do genitor em jogo, há uma criança na
equação!
Ignoro metade da sua sentença, por não ter uma resposta para isto.
— Nunca foi para magoar, é algo que não conseguia controlar, porém, estou
disposto a fazer uma ab-rogação sobre as nossas regras e por isto de lado. —
cruzo os braços. — Com quem nós fodemos está no passado, importa-nos
aqui e agora. Se ignorar o fato, me dá a oportunidade de fazer uma correção
injusta do passado, entregá-la a herança que é por direito e uma
obrigatoriedade judicial, –dou de ombros — o farei.
— Você parece ter certeza disto, — ele ressalta e chuta em minha
direção a revista destruída que Lia abandonou. — Será que ela teria tanta
certeza assim, me diz que isto aconteceu com ela arremessando-a em sua
cabeça dura.
— Tenho certeza e a farei ter. Ela é minha mulher, já afirmei isto
algumas vezes.
— Ok! Basta saber para quem está afirmando, seria eu ou você?
— O que acha?
Ramon nada diz, mas mantém seus olhos focados em meu rosto me
analisando. Ele realmente me conhece e sente que há muito mais coisas além
daquilo que estou falando, no entanto, não quero dizer a ele, se um dia
precisar de tocar neste assunto será com Lia.
Somente com ela poderia me expor tanto e deixar sangrar aquilo
que não ouso falar em voz alta nem mesmo para mim.
— Então, está disposto a assumir tudo isto?
— Não sei se posso fazê-lo, mas quero. Quero que ela seja feliz,
que fique protegida, que seja restituída daquilo que é seu por direito. A quero
na minha cama, por vários motivos Ramon, e não preciso listá-los, apenas
basta que os sinta e faça o certo para isto. Como disse? Se serei capaz de
alcançar tudo isto… — dou de ombros.
Realmente não me acho capaz de tanto.
— O Mikael que conheço, é melhor do que está supondo. Muito
mais! — ele afirma e tem um olhar calmo sobre mim. — Acha mesmo que
me enganei a seu respeito?
— Enganos acontecem, você lida com eles e supera.
— Não me enganei e nem você pode fazê-lo. Sei que está de
alguma forma ajudando Angélica a caçar aquela mulher. Que mexe com seus
contatos para garantir a segurança para Lia e o filho dela, mas quero
perguntar algo e isto não pode negar a responder a si mesmo.
— O que seria?
— Amor. — sua voz serena ao pronunciar uma única palavra.
— Amor? O que tem isto?
— Você está pronto para lidar com todo esse amor?
— Eu não acredito em amor! — minha voz endurece ao ponto de
sentir minha garganta ferir e as mãos se fecharem com violência. — Este tipo
de sentimento não me cabe, não me instiga a nada. Todo o exemplo que tive
foi brutal, injusto e indigno em nome do amor. Vi mais dor do que desejaria
em toda minha vida, pautados por um sentimento tão absurdo e corrosivo
como este.
Seus olhos se fecham parcialmente antes de voltar a me fixar.
Ramon não consegue esconder a emoção dolorosa que tem, pois, ele sabe que
me refiro aos meus pais e a toda desgraça que envolvia o relacionamento
doentio deles.
Me ergo novamente e encaro meu amigo pronto para me despedir e
dar por encerrado esse dia. Ainda que meus pensamentos estejam
naufragados em vários cacos deste dia, as suas palavras me fazem ter a
certeza do que planejei é o certo a meu modo.
Mais do que dizer que se ama alguém, e usar como subterfúgio
essa afirmação para fazer o outro se curvar contra a sua vontade, é preciso
com ações mostrar que há intenção de respeito, consideração, carinho e
proteção real a quem se quer bem.
Recolho meus pertences, desligo o celular, encaro ao meu amigo.
— Vou me esforçar para fazer melhor hoje do que fiz no passado,
— minha voz não trai minhas emoções, por sorte. — Onde errei antes, hoje
não posso mais e isto fará a diferença.
— Eu o conheço e sei o quanto pode fazer ao ser motivado. No
entanto, se ajoelhar e pedir perdão no lugar dos mais velhos não é uma opção
válida, só isto não basta.
— Não é apenas uma questão de motivação Ramon, mas se for
tenho todas em curso. — suspiro. — Tenho mil razões para fazê-lo e posso
provar que estou empenhado.
Quanto a me ajoelhar, não seria a primeira vez, basta olhar-me no
espelho diariamente e ver o que tenho gravado sobre toda a extensão da
minha pele às costas e o motivo pelo qual foi tatuado.
Ramon se elevou e me olhou profundamente se aproximando,
ergueu sua mão e apertou meu ombro com firmeza.
— Mesmo que não acredite em amor, me ouça com cuidado. Estar
com Lia, requer que aprenda a lidar com os seus piores temores, vencer suas
próprias barreiras, — a criança — terá de aprender a acreditar no invisível,
Mikael. No mais, estarei aqui sempre que precisar conversar.
Me sinto confortado por sua serenidade, porém estou flertando com
meu controle de danos e não posso mais levar adiante está conversa, ou
romperei novamente uma brecha em meu peito.
Inclino minha cabeça me despedindo dele, dou um olhar em
direção ao bebê, que mais uma vez não consigo me aproximar. Não quero
admitir, mas por algum motivo estou mais distante de todas as crianças desde
a ameaça de Verônica contra eles.
Uma angústia estranha me aperta as entranhas ao imaginá-los tão
vulneráveis e raiva aflora por mim com força.
Caminho para fora, não tem ninguém no andar inteiro. Sigo para o
elevador, abro o aplicativo de mensagens e releio o que Lia enviou-me antes
e não sabia o que responder.
Por mais louco que seja, sei o que fazer e como fazê-lo.
@Doutora_anjinha: ter acordado hoje, já foi o suficiente para
saber que: você foi mais forte do que em todos os seus piores dias. Podemos
conversar? Que tal o lugar de sempre para tomarmos um café?
@Promotor_nikolaievitch: ter acordado hoje foi um presente, pois
mais um dia posso afirmar que você é minha mulher e estou disposto a
prová-la o quanto é. Aceito seu convite, mas não quero só um café, quero
acordar ao seu lado.
SANTIAGO
Estar ciente que Mikaella é esperta o suficiente para juntar as peças
e determinar quem é a criança que andei investigando, não lhe custou
realmente nada.
Principalmente por ter se apegado a Anjinho de uma forma natural
e instintiva. Ao ouvir haver deixado no restaurante, fotos dentro de um
envelope me enfureceu, mas saber que um dos meus quadros está
dependurado no salão do restaurante de Carla me fez esquecer a questão
rapidamente.
Se não fosse por nesta manhã, fazer uma pergunta tão inocente
sobre a possibilidade de o irmão já ter visto o envelope, jamais teria
imaginado que a minha Fadinha munida de toda a sua artimanha, não apenas
abandonou o envelope sobre a mesa, como o endereçou explicitamente “Para
Mikael”.
No momento que absorvi a informação coloquei um esquadrão em
busca do maldito. Bastava localizá-lo e deixar que um infiltrado passasse pela
segurança armada da Guardiã e surrupiasse o mesmo.
Porém, há momento que chego a acreditar que estes malditos têm
proteção divina.
A frustração me correu ao descobrir que Ramon estava em poder
do envelope, de acordo com o garçom infiltrado, Carla havia entregado ao
marido momentos antes de entrar no escritório.
A operação seria simples: interceptá-lo e recuperar o envelope,
com muita sorte julgaria ser algum informante de Mikael que havia deixado
vazar informações.
Dadas as ordens claras, esperei o tempo de pausa entre as trocas de
guarda para aguardar no ponto previsto, eles invadiriam o restaurante e seria
o fim do problema. Um assalto simples e fácil, envelope e o quadro em
questão de minutos estariam longe das mãos de Staeler.
Arquitetei o plano e logo depois desmarquei meu encontro com
Nina, outra isca que precisaria ludibriar, com suas perguntas insistentes sobre
Mikaella. Tudo estava a contento, sem erros e sem furos.
Era o que esperava. Cinco minutos após o prazo de entrega recebi a
informação de que Ramon estava com outra equipe, o que não foi me
repassado por Angélica e nem Fernanda, ele estava seguindo em direção ao
escritório.
A rota foi mudada, e isso me deixou irritado ao extremo de ligar
para Angélica, e confirmar se ele realmente estava a caminho. Ela de certo
ficou desconfiada, mas não a daria uma oportunidade de fazer disto mais um
motivo para bisbilhotar.
Estava tudo bem, isto seria um pouco mais dramático, pois sem
meus homens fazendo sua proteção, haveria um choque, talvez tiroteio e isso
poderia causar vítimas.
Entretanto, estava empenhado e o termo decência não estaria
fazendo parte das palavrinhas do dia.
Dada a ordem, esperei a execução até ver seu carro aproximar,
coloquei o capacete e esperei, não entraria diretamente em choque com eles,
mas observaria. Os vidros brindados não possibilitavam ver no carro, mas
sabíamos ser ele e mais dois seguranças.
O sinal estava próximo o bastante para fazer a interceptação, suor
aflorou forte por minhas têmporas sabendo dos riscos, e um foda-se estava
prestes a explodir junto ao sinal para avançarem.
Três dos meus homens pilotando suas motos, pararam ao lado do
Suv, prontos para a abordagem. Quando um deles se virou para o carro e
tombou a cabeça.
Pressenti que algo estava errado, seu olhar nunca chegou em mim,
mas a mão no comunicador foi certeira.
“Abortar, abortar, ele está com a filha.”
A maldita decência moral voltou a burlar minha consciência, a
conformidade com os padrões morais e éticos associados a dignidade,
correção, decoro. Tudo que pudesse agarrar de bom agrado fiz, dei o sinal
para abortar a missão e resolvi partir para outro plano.
Este seria ir pessoalmente atrás dele, mesmo que corresse riscos,
segundo uma das secretárias do escritório, havia um distúrbio criado por
Mikael e Lia. Um bônus para mim, bastava apenas entrar e recolher o pacote
sem interferências.
O que não esperava era ser empurrado para dentro do elevador por
uma mulher desnorteada.

A primeira intenção era abandoná-la, mas não pude. Não quando a


mulher perdeu o equilíbrio dos passos após adentrar o minúsculo quadrado.
Por instinto a segurei e o fato de me confundir com Álvaro,
surpreendeu-me. Poderia Lia ser tão perceptiva? Agi por impulso, estratégia
e em benefício próprio, estas são as regras, não se perde uma oportunidade
quando está se apresenta à sua frente com tanta facilidade.
Confesso que seu pedido chegou aos meus ouvidos com uma real
surpresa, jamais esperei ver a Doutora Anjos baixar a guarda e pedir ajuda.
Mas, bastou ver o estado emocional da mulher para entender.
Deixei a minha moto na rua detrás, e entrando no carro de um dos
meus seguranças para dar-me cobertura, por isso sair com ela pela porta da
frente, seguir em direção ao carro estacionado paralelo à calçada, foi fácil.
Fácil demais eu diria. Principalmente por seu segurança ser
Dionísio. Como chefe de segurança, perder seu cliente era um erro
imperdoável.
O estado emocional de Lia, ajudou-me a colocá-la no banco de trás
e tomar a direção. A princípio só queria tirá-la dali como pediu, e esperava
que minha mente formulasse um plano para quem sabe obter o envelope com
sua ajuda, não seria interessante simular um sequestro relâmpago com sua
condição atual, mas quem poderia prever tal desfecho para uma sequência de
falhas?
E cobrir falhas era a minha especialidade.
No entanto, a porra do plano foi abortada novamente ao olhar pelo
retrovisor e ver as lágrimas deslizando por seu rosto.
Parei o carro no semáforo, olhei através dos retrovisores, os três
pilotos piscaram os faróis algumas vezes em código. Usei as setas para
respondê-los e permaneci com meus olhos pousados sobre Lia.

Desistir do plano diante do seu estado foi fácil. Me aproveitei da


sua distração e enviei uma mensagem para um agente que deu meia volta na
estrada e seguiu para VIX, precisava de alguma forma recuperar o pacote e
com sorte, Ramon não teria entregado a Mikael o envelope.
Dirigi por cerca de uma hora sem parar até que Lia finalmente
ergueu seus olhos e buscou os meus através do retrovisor.
A voz rouca arrepiou-me a pele, os olhos tão lindos estão estriados
de vermelho, o nariz arrebitado luzindo com todas às vezes que o esfregou.
Os lábios pálidos. E mesmo assim ainda é uma visão lindíssima, como me
lembrava.
— Está melhor? — perguntei.
— A verdade ou um subterfúgio?
— Para mim, sempre a verdade.
— Não estou, mas vou ficar. — ela desviou o olhar e só então
percebeu que não estamos mais no centro de VIX. — Onde estamos?
Sua voz trai um pouco do nervosismo, tento manter o tom o mais
baixo possível para falar com ela sem causar pânico.
— Digamos que hoje, acordei do lado errado da cama e desejo ter
um ato de bondade.
— Isto é para ser cômico ou um aviso?
— Cômico! — expresso com intensidade antes de me virar
rapidamente encará-la. — Não consegui?
Sem respostas, Lia me devolve o olhar ainda desconfiada.
— Você está com seu celular, se quiser pode pedir um Uber ou
alguém que a busque, posso parar aqui mesmo.
Assim que falo, dou a seta, os dois motoqueiros ultrapassam e
seguem viagem já tendo em mente meu destino. Estaciono o carro no
acostamento, desligo o motor e permaneço com as mãos no volante.
— Está melhor assim? — pergunto sem volver o corpo.
— Esta. Só me diz onde estamos, não estou reconhecendo o lugar.
— É um caminho para o Convento da Penha.
— O Convento? Nunca passei por aqui.
— Não é conhecido, mas é um lugar belíssimo, acreditei que para
uma pessoa que pediu uma rota de fuga e está a mais de uma hora chorando,
seria um bom lugar.
— Me desculpa por envolvê-lo senhor Christian, mas se pudermos
voltar, agradeceria. Tenho compromissos profissionais.
— Tudo bem podemos voltar, mas se aguentar mais dez minutos
no carro, te prometo uma vista de tirar o fôlego.
Não sei bem o porquê de insistir em levá-la até lá, na verdade, não
consigo compreender a mim mesmo por trazer Lia até aqui.
Seu olhar se curva para o lado da estrada e ela parece indecisa por
um instante. Em seguida ergue a bolsa em seu colo, pega o celular e envia
uma mensagem. De certo que acabou de enviar a alguém sua localização por
GPS.
Um sorriso espicaça o canto da minha boca e seguro-o, pois, é
inteligente sua atitude, mesmo que venha depois da imprudência de aceitar a
carona de um estranho.
— Dez minutos?
— Sim.
— Tudo bem!
Me surpreendo por aceitar tão rapidamente, de fato seja lá o que
houve entre ela e Mikael, abriu-lhe um abismo.
Olhando-a mais uma vez, me recordo a primeira vez que a vi após
passar alguns anos fora. Não imaginava que a moleca topetuda se tornaria
uma mulher tão instigante e misteriosa. Tudo sobre Lia tornou-se interessante
de se estudar e descobrir, os anos passados em Portugal, o relacionamento
conturbado com Mikael e a maternidade que confesso, mudou-a
completamente.
Liana sempre foi uma mulher empoderada, dona de si ao ponto de
repelir homens e causar desconforto em outros, de certa forma chegava ser
atraente, porém ao se tornar mãe, a mulher ganhou um novo tom, algo que
ficou esclarecido ao constatar a condição da criança.
Ler os relatórios que me foram entregues eram desanimadores com
tantos problemas que ela enfrentava na altura, mas sabia que conseguiria
vencê-los.
Mais surpreendido fiquei ao ver o menino pela primeira vez, nunca
tive curiosidade, mas após receber uma atualização sobre a sua primeira
semana após seu regresso a indiscrição se ascendeu e que revelação
instigante.
— Oito minutos e meio. — sua voz interrompe meu fluxo de
pensamentos.
— Uau! — debocho. — Temos alguém cronometrando nosso
tempo.
Sem respostas, entrei na bifurcação, reduzi a velocidade e deslizei
com o carro no final da vegetação até o início do banco de areia.
— Chegamos, senhorita Lia.
Anuncie e desci do carro caminhando até a frente dele, andei cerca
de meio metro até ouvi-la bufar e bater à porta do carro.
— Isto não é o Convento da Penha.
— É sim, olhe lá. — aponto meu dedo e a nossa direita está a
antiga construção imponente sobre as rochas.
— Na sua perspectiva?
— Exatamente, na minha perspectiva.
Ela balança cabeça dando seu primeiro sorriso, o que realmente
valeu apena essa loucura. Retirei o celular do bolso conferindo a mensagem
salpicada de ódio e ameaças de Angélica, seguro meu riso.
Quer dizer então que Lia enviou um S.O.S. para seu guarda-costas.
Muito bem pensado Doutora!
Limpei a garganta com uma pequena tosse e indiquei a sombra
onde estacionei o carro.
— Melhor ficarmos lá, pode acabar se queimando.
Não era minha real preocupação, mas estarmos longe da visão
aberta de qualquer um daria mais segurança. Anos de treinamento e
vigilância, não podem ser esquecidas em momento algum.
— Tudo bem!
Suas respostas simples parecem automatizadas, isto me intriga
ainda mais.
— Não encoste no capô ainda, vou ver se esfriou um pouco. —
aproximo-me da lataria comprovo que ainda está quente, mas não tanto.
Encostamos e ficamos observando o lugar aberto por um tempo.
Definitivamente não compreendo por que a trouxe aqui, essas atitudes que às
vezes sobrevêm me deixa confuso e me aborrecem. Não quero identificar isto
como compaixão, ela não precisa disto, mas é algo, só não sei o que.
Talvez, gostaria que alguém fizesse o mesmo por minha Fadinha se
um dia se visse em uma situação similar. A tal lei do retorno? É quase uma
heresia pensar nisto.
Me aproximei mais observando, sua respiração acelerar.
— Não precisa olhar-me assim, apenas respire lentamente e aprecie
à vista. — o som reconfortante do mar e o grasnar ao fundo de algumas
gaivotas me deixam nostálgico. — Este é o meu lugar favorito, vou
compartilhá-lo com você por alguns momentos.
— Não estou receosa, apenas incrédula com a minha total falta de
juízo, entrei no carro de um estranho, tão alienada que não percebi o
momento em que saiu da cidade e me trouxe para um lugar distante.
— Não seria inapropriado a pessoa que se ofereceu para salvá-la a
machucar? — seu silêncio me espicaçou a falar, mesmo que isto possa me
deixar desconfortável, consolá-la de certa forma me parece o certo. Por quê?
— Não está confortável comigo, ou com o que aconteceu em seu
escritório?
— Talvez os dois?
— A verdade nua e crua.
— A verdade vos libertará.
— Nem todas as pessoas estão preparadas para viver a verdade
plenamente, senhorita Lia.
Seus olhos recaem sobre mim com uma interrogação, vejo as
lágrimas deslizando sobre seu rosto.
— Cacete! — ela esbraveja. — Faz tempo demais que não choro
pelo passado e agora, pareço uma bica aberta.
— Todavia, está chorando por uma verdade ou por alguém que a
usou contra você?
— Está fazendo algum número de adivinhação, Senhor Christian?
— Vamos continuar fazendo o jogo das mil palavras? — não
espero sua resposta. — Se ainda estamos no tema, verdade, algumas pessoas
como disse antes, não estão preparadas para vivê-las.
— As pessoas não podem viver só de inverdades!
— Não, mas podem viver usando máscaras.
Diante do seu silêncio continuo a falar em um fluxo contínuo.
— Às vezes, elas precisam mascarar seus piores demônios com
halos de anjos, montar um teatro e levar um dia por vez criando um
autodomínio, mas quando isto não for mais possível, e sua real aparência for
revelada, poderá machucar quem está a sua volta…
Como eu poderia machucá-la se soubesse quem sou. — penso e
desvio meu olhar.
Lia permanece rígida encostada contra o capô do carro olhando
fixamente as ondas se arrebentarem na costa, o ar salino nos invade e o vento
moroso fustiga a nossa pele, arranhando com os minúsculos pedriscos de
areia fina.
Não consigo entender a mim mesmo por qual motivo desejo
acalentá-la e um pensamento fugaz me norteia em meio a esta sensação
desconhecida: talvez pelo motivo de ser uma mãe querendo proteger o seu
filho do mundo? Uma mulher apaixonada que não se permite ser feliz para
que outros possam ser?
Um esgar incrédulo deixa meus lábios, poderia até comparar Lia
com qualquer outra mulher, menos com a única mulher que me amou
intensamente ao ponto de dar-me à luz.
— Como você sabe disto? — a pergunta feita em um sussurro
agarra-me os pensamentos novamente.
— Experiência própria! — exclamo em um tom sério. — Por isso,
posso afirmar que nem todo demônio que se esconde por detrás de uma
máscara é de fato tão malvado assim.
— Engraçado usar essa analogia, tenho verdadeira obsessão por
anjos.
— Eu também, — confesso. — Acredito que todos somos anjos —
sorrio em sua direção, sentindo um lado do rosto repuxar, deslizo-o em outra
direção para não evidenciar minha cicatriz. — Acredito que dentro de nós,
exista duas vertentes, uma boa e outra má.
— Então somos anjos bons e maus?
— Sim, por que não? Da mesma forma que temos essas duas
vertentes, nos são atribuídas pessoas com as mesmas características, e essa é
a melhor parte.
— Um inferno de parte.
— Contudo, é a sua parte…
Lia se cala, retorna seus olhos para os meus estreitando-os, ela
realmente é filha de Joaquim e Maria, posso sentir a tenacidade do seu
cérebro atraente, viajando pelas conjecturas de uma analogia boba, quase
poética e retirando para si detalhes do que poderia aliviar a pressão em seu
peito, mesmo que seja apenas por esse pequeno paradoxo que me permiti
estar com ela.
— Ele então é… — ela hesita, mas vejo nitidamente a emoção em
suas palavras. — Meu anjo bom e mau!
Não é uma pergunta, apenas uma constatação.
— Apenas, se você quiser.
Silêncio
Me desencosto do carro e dou um passo ao lado seguindo em
direção à porta do carona, desta vez no banco da frente, destravo o veículo e
com um gesto a convido entrar.
Lia se move mesmo cautelosa, senta-se no banco de couro, retira os
sapatos cheios de areia e os espana lentamente, com a mesma expressão
pensativa.
Me inclino contra a porta e antes de fechá-la, faço o que jamais
deveria, porém, me permito mais esse pequeno pecado contra minha
natureza.
— Senhorita Lia, não sofra em demasia por ver o lado ruim de
quem a feriu, procure nas rachaduras os traços bons e tente conciliá-los. Vou
compartilhar algo que aprendi há muito tempo, — pauso e espero sua total
atenção. — Evite a dor se possível for, senão, aprenda a lidar com ela.
Em retorno a mulher tentadora à minha frente foca seus olhos nos
meus, sorri docemente e me encabula além dos limites.
— Obrigada por me salvar, e por favor, me chame de Lia,
Christian, ou melhor, San?
Sem respostas puxo os óculos do bolso da jaqueta que ainda uso,
colo sobre o rosto e indico o celular preso em sua mão.
— Dê a pessoa que enviou sua localização um endereço para
encontrá-la, a deixarei lá.
Ela não esboça nenhuma reação, mas faz o que pedi e liga o
navegador para saber onde deixá-la.
Fecho a porta do carro, dou a volta e mais uma vez olho em direção
ao meu lugar favorito, mesmo que aqui tenha sido o palco da minha maior
desgraça.
Arremeto para o fundo da minha mente minhas dolorosas
lembranças, dou partida no motor e seguimos em direção ao centro de VIX
novamente.
Lia se mostra mais descontraída, e deixo que sua voz rouca deslize
com docilidade por meus ouvidos me permitindo ao menos esse pequeno
lapso de prazer.
— San? — ela toca meu braço me fazendo olhar em seus olhos. —
Realmente agradeço o que fez por mim hoje, não sei por que tenho a
sensação de já te conhecer de algum lugar, talvez isto tenha facilitado. Por
hora me sinto muito melhor, quem sabe acabe desabando novamente ao
chegar em casa, ou amanhã não sei, mas… — ela pausa. — Obrigada!
— Não me agradeça Lia, só tenha em mente que somos frutos
daqueles sentimentos que mais alimentamos, então cuidado com o que vai
deixar enraizar em seu coração, seria uma pena, uma mulher tão linda torna-
se amarga.
Seu sorriso foi de tímido a uma gargalhada.
— Meu Deus! Parece que acabei de ouvir Ramon falando, ou a
minha mãe. Ui!
Lancei os ombros e deixei-a rindo. Esta foi a nossa conversa até
deixá-la diante de um café onde Dionísio estava estacionando à sua espera.
Assim que entrou no Suv, dei partida no carro, a porta do carona se
abriu e Angélica sentou-se no banco do carona.
— Agora que acabou o passeio com a Pocahontas, pode me
explicar que porra está tramando Santiago?
— Esse dia realmente está interessante.
— Dirige! — a voz irritada não me faz cócegas, mas a Glock 9 mm
que ela colocou sobre a coxa apontada para mim, me vez erguer o
sobrecenho.
— Para onde? — pergunto e o riso sem humor da patroazinha me
dizem coisas que não queria saber.
CAPÍTULO 18

INQUIETANTE
“Madrugada inquietante, pensamentos que não me pertencem invadem a
minha cabeça. No momento estou com desespero, mas, quando te vejo o
desespero vira clareio “Rubens Rezende

LIA

A
porta do apartamento bateu produzindo um som abafado da madeira contra o
marco, as chaves caíram em algum lugar entre o aparador e um jarro alto com
folhagem e flores secas, sapatos foram descartados junto a minha bolsa,
roupas, relógio e joias, enquanto meu corpo caminhou automaticamente em
direção ao meu quarto.
Senti a mudança do piso frio para o carpete macio sob meus pés
descalços, o ar-condicionado que deve ter permanecido ligado ao sair
apressada pela manhã, condensou o ar tornando-o extremamente frio e isto
fez meu corpo estremecer.
Eram apenas sensações físicas naturalmente registradas. Sensações
que passaram por meu sistema e foram ignoradas em seguida. Antes de entrar
no banheiro, bati a mão sobre o aparelho na cômoda fazendo uma seleção de
músicas rugirem dentro do ambiente inibindo qualquer outro som que
pudesse surgir.
Não acendi as luzes do banheiro, então o ambiente parcialmente
cinza com pouco brilho, não me incomodou. Andei em direção ao box de
vidro temperado, correndo meus dedos pela toalha no suporte a levando
comigo.
Deslizar o vidro, entrar, fechar a porta, girar o registro e esperar o
esguicho forte da água sobre minha cabeça foram os movimentos por backup.
A água fria doeu contra minha pele superaquecida e novos arrepios
percorreram meu corpo me fazendo estremecer.
Fechei meus olhos permanecendo estática deixando vir tudo. Todas
as palavras, gritos, ofensas e as dolorosas recordações, lágrimas deslizaram
por sobre meu rosto se misturando à água fria.
Do momento que me confrontei com aquelas mulheres na escola
até saltar do carro de Dionísio há alguns minutos, tudo parecia surreal
demais, porém sei que não é. Isto dói.
Levo a toalha até aos meus lábios e o grito de dor que está preso
em minha garganta se abafa contra ela. Ele se repete por várias e diversas
vezes até que sinta os pontos de luzes explodindo dentro dos meus olhos
fechados, para em seguida se tornarem um borrão enegrecido que me
consome, o último grito contra o tecido atoalhado contra os meus lábios, é
intenso.
O aperto das minhas mãos para impedir que extravase qualquer
som é forte o bastante para fazer com que a água gelada perfure o bloqueio da
toalha e desça por minha garganta que queima engasgando-me.
É uma dor tão grande e intensa que sinto meu corpo desmoronar de
todas as formas, minhas pernas sedem ao meu peso e minha mão livre tenta
se agarrar a parede em frete, mas é inútil. Meu corpo desaba em câmera lenta,
meus joelhos batem contra o piso e o choque da dor física, não é nada com a
que abala meu coração.
— Não… — é o primeiro murmúrio que desliza por meus lábios
após deixar um estranho criar um vácuo dentro do meu desespero e levar-me
para longe de tudo.
Contudo, bastou estar de volta ao ponto de partida e a dura
realidade do que aconteceu no escritório me abate, as ofensas nem são tão
graves, não quanto as lembranças essas sim, são as piores, dolorosas.
Pois, nada dói mais do que ter ciência do que se perdeu. A
ignorância não machuca tanto quanto a inquietante certeza, daquilo que
jamais voltará a ser como antes.
A ânsia de vômito bate forte em meu estômago até bloquear a
garganta, mas a engulo com força, foi isso que aprendi com meu pai: orgulho
não alimenta o corpo, mas protege a alma. Contudo, me pergunto, o quanto
isto poderia me proteger?
Por sorte, Nina e Anjinho não estão ou poderiam ouvir o choro
engolfado que não consigo controlar, os soluços que vão aumentando de
volume ao ponto do meu peito doer fisicamente e na pressão para proteger-
me acabar por feri-los com algumas palavras.
Curvo minha cabeça deixando o jato direcionado sobre minha
nuca, por quanto tempo permaneci nesta posição não faço ideia a única coisa
que posso avaliar é o tanto que a dor física se equipara a dor emocional.
Nunca me foi permitido extravasá-la desta forma. Eu não me
permiti sentir toda a intensidade do que foi perder tanto e em tão pouco
tempo, deixei de ser a menina crescida que um dia sonhei ser; a mulher que
estaria ao lado do homem que amava para sempre; minha liberdade, a minha
família… o meu pai.
Essa é a pior perda, aquilo que não vai voltar. Não consigo
controlar as minhas lágrimas ao imaginar o quanto tive de aprisionar dentro
de mim para não me rebelar, das brigas e discussões, das (milhares) de vezes
que implorei para ele me deixar voltar para casa e da sua resposta sempre
sendo um não.
Ah! Como dói você não estar aqui papai, para olhar em meus
olhos, mesmo se fosse para me repreender eu o queria aqui. Como me dói
que não possa conhecer o seu neto, que não veja como é inteligente. Ele
herdou seu jeitinho ao sentar-se com as suas pernas cruzadas, para ler coloca
a mãozinha fechada em punho sobre o braço da poltrona e se inclina sobre
um livro meio de lado; a mamãe sempre chama sua atenção sobre má postura,
da mesma forma que fazia com o senhor…
— Meu Deus! Eu não posso suportar tamanha dor! — minha voz
falha entre os soluços e o desespero que se agarra em mim.
A dor de relembrar o passado está além daquilo que possa
controlar, minha mente viaja para longe é difícil não mergulhar neste mar de
catástrofes, não apenas pela perda do meu pai, mas por tudo que hoje tenho
de enfrentar. Tudo está corroído por dentro de mim, por motivos diferentes.
Enquanto me sufoca não ter meu pai, e a certeza de que ele não
voltará para minha vida, também me sufoca não ter Mikael. A incerteza de
que um dia poderia de fato tê-lo de volta em minha vida, agita o medo de
perdê-lo de vez ao se deparar com a verdade que nos rodeia.
O quanto teríamos de nos perdoar para alcançar isto? Quanta
abnegação seria preciso termos para que sua afirmação se tornasse real?
Como queria que realmente fosse fácil estalar os dedos e me tornar sua
mulher, dar a Anjinho aquilo que ele mais anseia.
Apesar disso, sei que no fundo isto não vai acontecer. Não serei
capaz de esquecer e nem ele, e eu só queira entender, o porquê tem de ser
assim?
A aflição excruciante agarra meu peito novamente e de uma forma
tão perversa que me abate de vez, desmorono no chão batendo o quadril no
piso e as costas na parede, perdendo a batalha para lembranças que poderiam
ser apenas felizes, mas que no fim se tornaram tão cruéis, que me mortifico
apenas por deixá-las vir a mim.
Todavia como qualquer ser humano propenso a perder a batalha da
razão para a emoção, fecho meus olhos sentindo meu corpo perder o restinho
do calor que ainda tem e mergulho fundo naquilo que ocultei de mim mesma
por anos.
É fácil voltar ao passado quando ele está fresco e agarrado sob a
pele.

JANEIRO DE 2001
Não posso partir. Este era o pensamento que tinha se agarrado à
minha mente nas últimas semanas.
Lendo mais uma vez a carta de recomendação para a faculdade e
acabei por revirar os olhos. Ser a primeira da turma, poder pular um ano e
adiantar matérias, nunca foi grande coisa, a meu ver, até entender que isto
abriria as portas de grandes universidades, — fora do país.
Nunca gostei dos rótulos de CDF — crânio de ferro, pois nunca é
um elogio e sim uma forma de chacota, muito menos me considerava uma
NERD, porém diante da recomendação para ingressar na faculdade antes da
hora, dei a mão à palmatória. Sou a porra de um crânio.
Os livros de direito na estante do meu quarto era provas do quanto
não tinha um gosto muito jovial, enquanto Carla e Aline estão se derretendo
com romances de banca, eu estava me deliciando com “O caso dos
exploradores de caverna — um livro escrito por um professor de Harvard e
jurista Lon Fuller”, era uma fã, não poderia negar.
Nos últimos tempos este era o meu único modo de manter minha
mente completamente ocupada; me dedicar aos estudos e ao planejamento
do meu, ou melhor, nosso futuro.
Não havia como negar que ver meu pai ser acusado de algo
incabível, como o roubo das joias de tia Sarah, me abalava, mas nada me
preparou para a sucessão de horrores que vivemos no final do ano, Mikael
sendo surrado severamente por seu pai, um colapso nervoso da Tia Sarah em
meio a um jantar e por fim, ter meu pai saindo algemado sob custódia da
polícia com a grave suspeita de roubo pairando sobre sua cabeça.
Na altura meu desespero foi ao auge, meus tios estavam prontos
para acreditar e libertá-lo mesmo que algo não se encaixe na forma como
estavam se portanto. Foi diante de tantas loucuras e insanidade que Mikael
me prometeu que nunca me deixaria e mesmo que as suas condições para
nossa vida a dois fosse um pouco dura, aceitei. Porque realmente o amava
como jamais amaria a outro homem em minha vida!
Foi fácil me comprometer em não termos filhos, não passava pela
minha mente de qualquer forma a palavra procriação, mas foi a forma que
ele falou, a ferida da alma e do corpo que colocaram um selo sobre seu
pedido, simplesmente não pude me recusar.
Nem mesmo gostaria de fazer, não depois da forma que o vi
machucado e as obscenidades que ouvi seu pai lhe falar em relação a nós
dois. Não era minha intenção ir até sua casa naquele dia, mas implorei a
mamãe que me permitisse sair sem que papai soubesse. Me esgueirar nos
jardins dos Nikolaievitch foi fácil, difícil foi sair de lá com minhas pernas
bambas e um aperto de morte tão forte em meu peito que se não fosse por
Angélica, e aquele rapaz que a carregava para todos os lugares, jamais
poderia ter chegado à rua sem ser descoberta por tio Niko.
Jamais tive coragem de contar a Mikael que eu estava lá, que vi
toda aquela atrocidade que ouvi cada uma daquelas palavras duras e cruéis
e que naquele dia prometi a mim mesma que cuidaria do meu anjo acima de
qualquer coisa, que seria só dele e que jamais o deixaria.
A situação com tio Niko se tornou insustentável e meus pais
acreditavam que voltar para Portugal era o melhor a se fazer. Às vezes
parecia que ainda me consideravam um bebê inapto para tomar qualquer
decisão sobre minha vida e estavam usando isto para decidirem o que
achavam ser o melhor para mim, sem me consultar.
O fato de agir como uma moleca por vezes, nada tinha a ver com a
maturidade, mas sim uma questão de personalidade, implicar com os
rapazes, aceitar as piadas de Angélica e acabar discutindo faziam parte da
minha diversão. Isto não significava uma falta de claridade sobre os meus
planos.
Ir embora do Brasil definitivamente, não era o que queria! Foi
exatamente isso que deixei claro ao invadir o escritório e interromper uma
conversa restrita dos meus pais. Desde então vivemos em um momento de
tensão constante dentro e fora de casa.
***
Os sussurros dentro do escritório chamaram a minha atenção,
segui em direção à porta na ponta dos pés e me deparei com uma cena
corriqueira.
Papai estava sentado na sua poltrona favorita de pernas cruzadas
vestindo o pijama de listras, o jornal apoiado na perna, um braço dobrado
sobre o braço da poltrona com a mão em punho sob o queixo, na outra ele
segurava uma caneca de café. Já mamãe com seu vestido floral dos
domingos e chinelos de pano sentava-se no outro braço da poltrona
acarinhando a careca lustrosa do senhor Joaquim.
Sorri desejando um dia poder ter a mesma intimidade com o meu
anjo. Me senti corar com a cena que já havia presenciado desde que me
entendia por gente, e prestes a sair de fininho ouvi a voz de papai se tornar
lamentosa, as suas palavras me paralisaram no lugar.
— Maria, tenho certeza de que Liana se sairá muito bem na
faculdade de Lisboa. — Papai afirmou. — Estudei lá e não tenho queixas!
— Joaquim, o meu medo não é este! — Mamãe fechou os olhos e
suspirou. — Meu medo real, vem da teimosia da sua filha. Conheço-a bem, e
sei que não vai aceitar isto com mansidão! Ao tentarmos resolver um
problema arrumaremos dois!
Meu pai disse algo que não compreendi e mamãe passou suas
mãos pelo rosto limpando algumas lágrimas.
— Eu também a conheço, — Papai se inclinou colocando a xícara
ao seu lado sobre uma mesa, para segurar as mãos dela. —Liana tem o
sangue de uma guerreira caiapó nas veias e pode ser bem difícil de se
domar.
— Não seja tolo, acho mais difícil de dominar essa teimosia
portuguesa! — Mamãe sorriu, mas vi em seu rosto que tinha algo a
incomodando.
— Maria, — Papai a trouxe mais para perto colocando-a sentada
em seu colo acariciando seus longos cabelos, tão negros quanto os meus.
— Diz…
— O que de fato está incomodando?
— Renunciar a tudo que construímos. — Ela foi direta. — Mandar
a minha filha para longe de mim e tirar algo dela que realmente parece
querer.
— Também me dói fazer isto e quanto a este querer que está a me
falar, espero que não seja o que penso. — seu olhar percorre pelo ambiente e
para evitá-lo recuo um passo. — Quanto a isto aqui, podemos começar de
novo?
Eu podia ouvir as dúvidas em sua voz e os sussurros engolfados de
mamãe ao apoiar sua cabeça contra o peito de papai e chorar baixinho.
Ergui meus olhos, a minha volta, o sobrado de dois quartos em que
morávamos, diferia dos demais, papai nunca ostentou riqueza, nunca fui a
filha riquinha e mimada.
O senhor Joaquim, sempre fez questão de ressaltar que entrou
nesta sociedade com nada, apenas sua boa vontade, amizade, lealdade e dela
só levaria o seu trabalho e esforço.
Todo dinheiro ganho era aplicado em meus estudos, tínhamos uma
vida razoavelmente confortável, uma vez que ele se dedicava a mais Pro
Bono do que casos rentáveis, mas os que pegava eram sucessos absoluto e
isto dava-lhe renome e privilégios, mas pelo seu esforço.
Minha mãe ainda trabalhava na casa dos Santorini não como
babá, mas sim como governanta e isso complementava a renda. Eu não tinha
um guarda-roupa da moda, e nunca me importei com as peças de segunda
mão que vinham de Carla e Aline. Para qualquer outra despesa extra
recorria a minha inteligência, fazendo trabalhos para alguns alunos das
faculdades, sem que meus pais soubessem.
Se existia um patrimônio, algum dinheiro que foi compartilhado e
meu pai tivesse uma participação, provavelmente estaria intocado em algum
banco. Por isso, ouvi-lo ser acusado de roubo foi algo muito difícil de
digerir, principalmente vindo de tio Niko, o pai do homem que amava.
O tom baixo enrouquecido cheio de lamento deixou-me ainda mais
frustrada, infeliz e furiosa.
— Não podemos mais ficar no Brasil, meu amor. Não tenho
confiança de que estamos seguros aqui, no entanto, quando Niko souber da
nossa partida, fará disto um prato cheio para afirmar suas suspeitas.
— E o que pretende fazer? — mamãe parece aterrada com a
perspectiva.
— Mandar Liana primeiro, já está tudo pronto, logo depois nós
iremos. — ele pausou. — Para sempre!
— Quando será isto? — a voz de mamãe ecoa pelo aposento tão
alto que cheguei a sentir meu peito retumbar.
— Em alguns dias, se ela não nos causar problemas!
— Meu Deus do céu! Joaquim tem certeza de que isto é o melhor?
Meu pai se ergue e mamãe colocou a mão em seu rosto, ele a
apertou em seus braços confortando-a, só então a minha ficha caiu, em
alguns dias estaria indo embora?
Sem esperar ou ponderar invadi a sala e pelo olhar que papai me
deu, sabia que ouvi demais. A briga foi intensa, meu pai não me deixou
nenhuma alternativa, as coisas duras que ouvi do tio Niko enquanto me
escondia no jardim voltaram com tudo e soube que ele falou para o meu pai
sobre meu relacionamento com Mikael.
A humilhação estava clara na sua voz, a dor da indiferença
recebida e o medo de que algo além de acusações viesse a toda.
— Eu não posso ir papai. — foi minha única súplica, mas sua
sentença foi taxativa.
— Infelizmente, não posso dar-lhe esta escolha Liana, após nosso
encontro que já está programado na fazendo do Gustavo e Anna, a levarei ao
aeroporto. — ele pausou e vi a dor em seus olhos. — aproveite esse momento
para se despedir de todos, incluindo o menino Nikolaevich.
— Papai…
— Amor nos torna irracionais Liana, e você é uma menina
racional. Não se esqueça disto.
***
Limpei rapidamente os meus olhos ao ouvir o clicar na janela, não
me assustava mais estas invasões, contei nos dedos até cinco e lá estava o
meu intruso.
Um homem alto, forte todo vestido em couro preto com suas botas
pesadas, pulando a janela do meu quarto no segundo andar do sobrado.
Sentada na banqueta diante da penteadeira antiga continuei a
escovar meus cabelos como se não o tivesse visto, segurei o meu riso ao vê-lo
pisar na ponta dos pés, todo cauteloso, pois se fosse pego aqui, novamente,
seria o fim da sua carreira promissora de invasor.
— Não vai nem olhar para trás? — ele perguntou jogando sobre a
cama a jaqueta.
— Olhar? — estaquei um instante e lhe dei um olhar de
desentendida. — Acredito que deveria gritar, já que tenho um invasor em
casa?
Mikael mordeu o canto da boca, mas acaba sorrindo para mim.
Não consigo manter o ar sério e faço o mesmo.
Há alguns meses, fomos pegos por minha mãe em uma destas
invasões, por um momento acreditei que fosse morrer de todas as formas
possíveis, porém vê-la tentar pegá-lo de tapas, em silêncio foi demais, para
não atrair a atenção de papai, foi cômico.
O mais certo seria ela dar uns bons gritos com ele e puxá-lo pelas
orelhas para fora, a cena se projetando em minha mente não ajudou muito e
no final, foi uma crise de risos minha que trouxe o papai até meu quarto.
A nossa sorte era que não estávamos em nenhuma situação
comprometedora. Papai não ficou nada satisfeito em saber que Mikael
estava aqui, exigiu uma explicação e se não fosse pela ajuda da mamãe com
uma desculpa esfarrapada, teríamos acabado ajoelhados no milho. Senão
coisa pior.
Conseguimos contornar a situação, ouvimos um sermão imenso
sobre decoro e respeito pelos mais velhos, mesmo minha mamãe afirmando
que pediu a ele para vir ajudá-la a arrastar uns móveis. Estava evidente a
mentira deslavada, já que nada havia sido removido, mas o senhor Joaquim
permitiu passar.
Naquele dia meu pai fez questão de acompanhar Mikael até sua
casa e garantir que ele entrasse antes de vir embora. Esse foi o jeito dele
dizer: “Fique bem longe do meu bebê!”
Se ele soubesse, que já se fazia alguns anos que este bebê se
tornou mulher nas mãos desse anjo — suspirei.
— Pode gritar o quanto quiser, esperei seus pais saírem. — ele
disse se aproximando com olhar safado em minha direção.
— Ah! Que anjo malvadinho… — fiz troça, pois não ouvi meus
pais saírem.
Me virei de frente para ele, inclinei a cabeça de lado e sorri. Com
dois passos gigantes Mikael já estava diante de mim se inclinando e
deixando um beijo suave sobre meus lábios.
— Oi!
— Oi!
— Senti saudades de você minha anjinha.
— Também senti, meu anjo. — disse inclinando meu corpo e
depositando um beijo mais demorado sobre sua boca, sentindo os pelinhos
da barba grossa roçarem contra meu rosto.
Nas últimas semanas temos nos visto muito pouco, falamos muito
por telefone e um sistema de bilhetes que ele criou através de Ramon, Carla
e Aline, assim nunca levantamos suspeitas sobre nós. Não acredito que meu
pai proibisse um namoro por ser Mikael, mas talvez por ser filho de quem é.
Com toda a situação presente.
Contudo, principalmente por querer mandar-me embora.
Mikael se afasta sem esconder que está excitado, o volume que
roça contra meu ventre é o suficiente para isto, mas o olhar oblíquo ressalta
sua condição.
— Está quase tudo acertado para a viagem em turnê. A banda está
animada, pena que nenhum dos rapazes poderá ir junto, mas já estão
demonstrando seu apoio financeiro. — Ele ri e se joga contra o móvel de
madeira encostando o quadril e cruzando os braços fortes acentuando os
músculos pelas mangas da camisa preta esticada contra o peito.
— Sério? — pergunto me levantando, caminho pelo quarto
colocando uma pequena distância entre nós.
— Não faça isto, ou vou agarrá-la, quero conversar um pouco
antes.
Assuntei-me como falou alto e me voltei em sua direção.
— O que fiz?
Ele estreitava os olhos e percebi o que queria dizer, passei as mãos
sobre as bordas do short fino de malha e repuxando a camiseta para ficar
mais folgada sobre o tecido, não percebia estar mostrando abertamente pele
demais ao dar-lhe às costas.
— O contrato será assinado em dois dias. Um ano de estrada para
começar.
— Uau! — exclamo com um sorriso forçado.
Não era segredo para ninguém que a vocação e o sonho dele era a
música, viver dela e senão fosse exagero da minha parte, Mikael viveria por
ela. E saber que ele estava prestes a ir embora me aterrorizava.
As mudanças drásticas que aconteceram em nossas vidas no último
ano atrapalharam seus planos, algumas boas e outras nem tanto. Todos
fomos listados para trabalharmos nos escritórios garantidamente, pois a
ordem era uma só para todos, fazermos faculdade de direito e tomar conta
dos negócios da família.
Por mim, não vi problema nisto, direito é a minha paixão desde
criança, sempre amei ver meu pai atulhado de livros estudando seus casos,
falando com propriedade sobre as leis, ajudando as pessoas de bem a terem
seus direitos preservados, em contrapartida, Mikael não suportava nem ouvir
falar sobre isto.
Após a reunião, em que fomos intimados, sua relação com tio Niko
somado ao problema com meu pai que sempre foi ruim se tornou extrema.
Desde que me entendo por gente e apaixonada por ele,
compartilhei dos seus sonhos e um deles é estudar música em alguma
faculdade fora do país, viajar pelo mundo e só voltar quando estiver
estabilizado.
— Oi? — ele se aproximou pegando-me em seus braços, cheirando
meu pescoço e deslizando a barba sobre minha pele arrepiando-me da
cabeça aos pés com seu gemido sexy. — Cheirosa. O que foi, por que está
com essa carinha?
Nunca me assustei com essa possibilidade porque no meu mundo
perfeito, ele faria sua música. E eu a minha faculdade de direito e estaríamos
sempre juntos partilhando nossos sonhos.
Isso sempre foi a minha verdade e dentro da minha realidade,
sentia ser tudo que ele precisava e queria, mas com um mundo de
possibilidades a sua frente, o medo de perdê-lo me amargurava.
— Precisamos conversar. — empurrei-o ficando séria, me
preparando para esta conversa.
Diante das minhas novas dúvidas e depois do meu jantar
arruinado de aniversário, de ver meu pai passar uma noite na delegacia para
acareação, resolvi abrir-me com mamãe e contar o que ela já sabia.
Contei-lhe sobre o meu namoro escondido, sobre o quanto gostava
de estar com Mikael e até mesmo do meu desejo de segui-lo para onde fosse,
mas a eminente viagem que papai está impetrando para me forçar ir,
acelerou de meus planos.
Vi em seu rosto o medo de ser algo passageiro, de ser apenas um
rapaz se aproveitando da sua menina, por isso ela passou a observá-lo e
mediante ao que sentiu, me deu uma condição para continuar com ele, para
apoiar-nos seja lá o que resolvamos fazer na nossa vida em comum. Que
falasse com ele sobre estudar em Lisboa e que ele aceitasse pelo menos por
um ano estar longe, pois era o tempo que ela daria papai apara trazer-me de
volta. Eu perderia um ano, mas era pouco em comparação a uma vida inteira
ao seu lado.
— Certo podemos conversar. — Mikael voltou a me abraçar, —
mas, depois que matar minhas saudades.
— Não, Miguel! — então me esquivei, ainda estou me
acostumando com essa nova forma de chamá-lo. — Contei para minha mãe
sobre nós.
Ele recuou um passo e fechou o semblante. — Não parece que foi
algo bom, tia Maria já contou ao seu pai, e provavelmente terei de fugir da
espingarda?
— Por enquanto, ela não falou com ele, mas irá falar em breve.
Entretanto, mamãe colocou condições para nosso namoro.
— Namoro? — ele riu. — Nosso lance é um namoro?
Com sua reação não sabia se sentia frustração, ou se me juntava a
ele dando risadas para não me sentir constrangida. Mas de certo que minhas
mãos caçaram para lhe acertar um dos pesos de papéis sobre a escrivaninha
as minhas costas.
— Estou falando sério! — perdi um pouco a serenidade e franzi o
cenho. — Para me namorar tem que ser como os meus pais querem.
— Ok! — ele ria e coçava a cabeça bagunçando o cabelo ruivo
curto, o deixando ainda mais sexy com a aparência desleixada. — Podemos
resolver isso na cama, anjinha?
— Não! — falei e dando a volta na cama, colocando-o a uma
distância segura, joguei os cabelos para trás dos ombros e cruzei os meus
braços.
— Opa! Sem brincadeiras, já entendi. — Mikael ergueu as mãos
em sinal de rendição.
— Primeiro, nada de pular janelas.
— Ok! — ele concordou retirando a camiseta.
Fingi não perceber.
— Segundo, quero namorar sentada no sofá. — ele apertou os
lábios para não rir. Eu sabia estar enrolado, mas era difícil chegar ao ponto.
— Sentados no sofá?
— Todo mundo faz isso, ou já fez, eu também quero, mesmo
achando brega.
— Com os seus pais nos olhando? — ele perguntou com o seu
costumeiro riso safado e balançando a cabeça abrindo os botões do jeans.
— Não! — falei rapidamente, pensando na cena. Deus me livre! —
Quero ter um namoro normal.
— Tudo bem, se você aguentar essa coisa, eu também posso.
Ele praguejou baixinho segurei o riso, vendo-o chutar as botas e
ficar só de cueca boxer, mas não me detive muito nos detalhes, ou não
haveria mais conversa.
— Terceiro…
— Porra, Liana! Não acabou ainda não? Caramba! Ainda nem
casamos e você já tem uma lista pronta? — Mikael exclama abrindo os
braços caminhando até o outro lado do quarto.
Salivei por um instante, ver seu corpo inteiro era algo difícil de
ignorar, minha mente sempre indo mais além, já imaginando quando fosse
mais velho e… puta merda, meu corpo se apertou com tesão e senti minha
calcinha molhar.
Olhar musculosos e longos braços abertos era tentador, mas as
asas enormes recém-tatuadas me derretiam. Meu anjo, em toda a extensão
da palavra, ainda queria saber o porquê da tatuagem, mas ele disse que
ainda não me falaria, porém, em breve.
Para tentar me desligar da fissura batendo forte contra minha
buceta molhada, cruzei as pernas com força mandando tudo para baixo e só
então reparei no que disse.
— Casados?
— Sim, casados! Porque depois dessa ladainha toda de namorar
no sofá, não pular janela e “tals”. É o que você quer, ou não?
Suas palavras caíram sobre mim de uma forma que me deixou
indecisa do que responder. Não éramos as pessoas mais românticas e
prontas para um casamento, ou até mesmo falávamos sobre isto, os planos
eram de morarmos junto, dividir sonhos, viajar ao redor do mundo, mas nos
casarmos?
— Isso é um truque para me levar para cama, Miguel?
— Se der certo! — o riso no canto da boca me arrepiou.
Mikael não perdeu um segundo vindo em minha direção, com
olhar concentrado e o andar de um predador…
— Pode parar aí mesmo! — exclamei erguendo minha mão e
espalmando no seu peito. — Eu não estou brincando, ainda tenho coisas a
falar.
— Nem estou mulher. Só não vou dizer que levo você comigo para
a turnê, porque o seu pai não deixaria, e não vou privá-la de ingressar na
faculdade de sua escolha. Ok? — ele sorriu. — Não vou tirar e nem adiar os
seus sonhos, assim como você prometeu não fazer com os meus.
— Jamais faria isto! — afirmei.
— Sei minha anjinha. E outra, tio Joaquim me mataria antes
mesmo de pôr meus pés na estrada, fora que, — ele me beija os lábios. —
Não sou louco de privar minha mãe e a sua de pirar com essas coisas de
casamento.
— Mas, nós somos muito jovens e isto não é nada que se decide
assim.
— Falou a voz da sabedoria, por isso sou louco por você.
Ele passou a me beijar e cada vez mais envolvidos por desejo e
afeição caímos sobre a cama. Tentei rebater, mas deixei-me embriagar por
seus beijos, absolvendo suas palavras, ele me permitir a estudar, lógico que
faria, jamais imaginei que pudesse impedir e um ano era tudo que mamãe
pediu, havia uma luz no final do túnel.
Tudo era tão perfeito que até nossos planos sem ser
compartilhados se encaixavam. Seu corpo sobre o meu pesava de uma forma
intensa, as suas mãos percorrendo-me de cima a baixo, primeiro para me
livrar do short e tocar seus dedos por cima da calcinha encharcada
apertando levemente o tecido macio contra meu clitóris inchado, fazendo-me
arfar e contorcer abaixo dele.
— Casamento. — gemi enquanto mordia seus lábios.
Há instantes, o meu medo era ele descobrir mil rabos de saia por
aí, enlouquecer com meus pais me mandando para longe, as loucuras do seu
pai jogando sobre o meu e então, Mikael joga isto sobre nós.
— Casamento sim, nós vamos nos casar Liana, — ele se afastou e
além do desejo, podia ver a determinação em seu rosto. A mesma que
separava o menino travesso do homem forte, que me tinha enlaçada em seu
coração. — Porque, eu vou embora e você vai comigo!
A intensidade do seu beijo, equiparava ao desejo e a sua afirmação
e não resistia a isto. Ouvi-lo não só acalentou meu coração como me fez
sonhar com algo que nunca sequer passou por minha cabeça.
Deixei meu corpo correr livre em busca do prazer, suas mãos
desenhando sobre minha pele, sua boca sobre os mamilos turgidos ainda
cobertos pela camiseta, descendo em direção ao meu ventre, até alcançar o
cós da calcinha e se arrastar lentamente sobre minha pele com a boca
aberta.
— Prometo que você sempre será a minha mulher, me perdoa por
talvez exigir demais — ele falava sobre a questão dos filhos. — mas, prometo
de verdade, colocar um anel em seu dedo e amar você. — seus olhos intensos
recaíram sobre os meus prendendo-me no momento. — é uma promessa de
anjo, meu amor.

PRESENTE
— Lia?
O grito veio de algum lugar me arrebatando das minhas doces e
dolorosas lembranças, as lágrimas embaçaram minha visão e não consegui
distinguir nenhuma forma, a não ser a água gelada sobre mim.
— Lia? Onde você está, porque suas roupas estão pela casa. Lia?
— Mamãe?
— Lia? — o grito foi mais forte e luzes explodiram sobre mim. —
Meu Deus! Lia o que aconteceu, você está gelada, vai ter uma hipotermia.
Nina parecia aflita as mãos ágeis correram contra o registro
desligando a água, as palavras que deveriam sair dos meus lábios pareciam
agarradas contra mim, apenas mais lágrimas viriam se tentasse fazer algo.
— Mamãe? Cadê a mamãe? Mamãe? — as perguntas repetidas de
Anjinho me fizeram erguer a minha cabeça.
— Anjinho.
A visão do meu filho me trouxe tudo de volta ao passado, presente
e a premissa de um futuro incerto bateram com força contra meu peito
arrancando-me o fôlego. Tentei estender minha mão, mas o braço parecia
congelado contra meu corpo.
— Fique parada! — a voz de Nina soou alto e longe.
De repente um roupão felpudo caiu sobre meu corpo e suas mãos
esfregavam sobre a pele tentando ativar a circulação. — Estou enchendo a
banheira, e vou te ajudar a entrar. — ela volta seu rosto para o lado. —
Anjinho, pega o celular da tia Nina no sofá?
Ouvimos seus passinhos em disparada para fora do banheiro. —
Vou ligar para a emergência, acredito que você precisa de um médico! — sua
voz escorrega com desespero. — Está toda roxa, a quanto tempo está debaixo
da água gelada?
— Dói. — foi minha única palavra para ela.
— O que dói minha amiga, me diz? Você foi atacada Lia, Dionísio
me ligou querendo saber se estávamos juntas, onde esteve?
Não respondi ainda revivendo minhas lembranças do momento em
que aceitei me casar com ele, das promessas e de tudo que perdemos.
Minha cabeça tomba contra meu peito ao ser erguida por Nina,
tropeço em meus pés instáveis até estar na borda da banheira. Queria ser forte
e afastá-la, pois estou triste, amargurada, mas com raiva e quero respostas
que somente ela pode me dar, mas não tenho forças.
Sinto-me carente, fragilizada, fraca de uma forma inaceitável, estou
prestes a pedir para ficar sozinha quando ouvimos a música preferida de
Anjinho arrebentar a caixa de som no último volume.
A voz que invade os meus ouvidos me aterra até a derradeira grama
de sanidade. Ouvir o timbre grave da voz de Mikael ecoando em notas
musicais me arrepia, não consigo suplantar a aflição e amargura de novas
lágrimas escorrendo por minha pele, porque nem tudo que alimenta nossa
alma e consome os nossos corpos é o desejo, existe muito mais do que não
ousamos falar.
— Mamãe, — as mãozinhas quentes de Anjinho se agarram as
minhas coxas. Percebo-o correr seus olhinhos por meu rosto e meu corpo
várias vezes, apertando seus dedinhos na minha pele gelada — Onde está
dodói?
A pergunta doce na voz infantil me arranca do estupor, me curvo e
o abraço contra meu peito coberto pelo roupão. — Oh, meu filho! — tento
me acalmar, mas é impossível e as palavras que não ousaria em outras
circunstâncias dizer em voz alta, escorrem pelos meus lábios. — Perdão! Por
favor, perdoa a mamãe, porque não sei, se serei capaz de trazer seu pinguim
meu amor. Eu não sei como farei isso.
— Mamãe, o MAH — ele pausa. — O MAH faz sarar o dodói. —
sua voz sussurrada em meu ouvido me consola, conforta e me quebra. —
Quero o MAH, mamãe. Quero o MAH… MAH.
Levo minha mão a boca para morder a palma e impedir de gritar
minha dor, Nina se ajoelha na minha frente, minha amiga durona derrama
lágrimas sem ao menos saber pelo que.
Anjinho eleva seu choro e me agarro em oração pedindo a Deus
para que ele não tenha uma crise, meu desespero se duplica. Nina se joga
sobre nós, ajudando-nos a levantar e entra na banheira de roupa e tudo
mergulhando a nós três em água quente.
— O Anjinho quer o MAH, para curar o dodói, mamãe. — ele
soluça e coloca seu rostinho contra meu pescoço e gagueja. — Chei-chei-ro-
rosa.
— Sim, meu amor. A mamãe sempre vai ser sua cheirosa.
Abraço firme, afundando-nos mais na banheira. — O seu MAH
pode curar o dodói. — ressalto deixando as reservas de lado e me permitindo
espiralar meus pensamentos.
O nosso MAH, poderia curar-me, mesmo que no fim ele possa
acabar fazendo uma ferida pior.
— O Anjinho quer ser um pinguim, — ele se volta com rostinho
colado ao meu acalmando o choro. — Não chora mamãe. — sua mãozinha
desliza sobre minha pele, da mesma forma que o acalento. — O Anjinho vai
ser o pinguim da mamãe, o MAH vai sarar o seu dodói.
— É uma promessa de anjo, meu amor? — pergunto em sussurros.
— É uma promessa de anjo, meu amor. — ele responde em meu
ouvido.
CAPÍTULO 19

INDIVISÍVEL
“Um homem não pode fazer o certo numa área da vida, enquanto
está ocupado em fazer o errado em outra. A vida é um todo indivisível.”
Mahatma Gandhi

SANTIAGO
á era noite

J quando
finalmente
chegamos à casa
segura. A antiga residência dos Campus que de tempos em tempos, é usada
como um porto seguro para as vítimas de violência ou testemunhas
recuperadas que necessitam de proteção. Aqui às se escondemos até que
estejam recuperadas de possíveis feridas, antes do seu destino.
É um lugar secreto e financiado por algumas organizações não
governamentais e parte do meu próprio fundo financeiro, sem que ela tenha
conhecimento, ou rejeitaria a minha ajuda contínua.
— Pronto, estamos em casa. — a nostalgia empregada em sua voz
me soa estranha.
Angélica não é de demonstrar qualquer sentimento por seu antigo
lar, mas às vezes alguns gatilhos emocionais podem levá-la a agir assim, de
certo que a confusão no escritório que mexeu tão malditamente com Lia, teve
algum efeito retroativo em outros mais.
— Podemos descer, ou prefere conversar aqui e depois me
despachar?
Sem uma resposta direta, ela coloca a arma sobre o console do
carro e cruza os braços.
— Melhor ficarmos aqui, eu acho!? — sua dúvida expressada em
um tom mais baixo, confirma as minhas suspeitas.
— Você sabe que meu diploma universitário é um bacharelado em
direito, correto? Não sou psicólogo, patroazinha. Então, não posso brincar de
Divã com você!
— Não! — ela me olha com sarcasmo explícito. — É só a porra de
uma pessoa caridosa, que levou Lia para um passeio, sem permissão.
A provocação acende seus olhos, vejo a raiva tilintar nas bordas
das írises de cor azul, as pintinhas douradas que contornam seu olho esquerdo
crescem ao ponto de se tornarem uma mancha amarela cobrindo metade da
borda azul para o centro, — como um sol em dia de verão.
— Permissão? De quem eu precisaria de tal coisa, se ela
praticamente implorou por isto e, — pauso —não posso negar, que foi um
delicioso prazer tê-la por algumas horas.
Não consigo esconder o riso e isto bate completamente a merda
para fora dela, com movimentos rápidos e fluidos, Angélica alcança a arma e
aponta a casa. Suspiro alto, solto o cinto de segurança para segui-la.
Ficar no automóvel certamente seria mais seguro para minha
integridade física, mas o risco de sermos vistos juntos através das grades ou
algum vizinho curioso em suas sacadas, seria bem pior. A mesma questão
que me fez recuar com Lia à beira da praia. Anos de treinamento não podem
ser ignorados por qualquer motivo.

A casa está às escuras, mas logo ela acende todas as lâmpadas dos
cômodos que nos cercam, aprecio sua consideração.
Angélica coloca a arma sobre a mesa de centro, retira o celular do
bolso traseiro do seu jeans o colocando de lado. Com alguns passos se
posiciona a minha frente de braços cruzados, o indicativo de que espera uma
explicação. Contudo, já que tive o meu dia foi altamente frustrado, desejo
dar-lhe um pouco do mesmo. Replico seus movimentos, minha altura se
excede sobre ela por pelo menos, trinta centímetros, mas a loira em modo de
ataque nem mesmo pisca.
— Estou esperando uma explicação, Santiago.
— Não tenho nenhuma plausível que vá agradá-la patroa.
— Sem sarcasmos e gracinhas, o mínimo que pode me dizer é por
qual motivo levou Lia. Mesmo que ela estivesse desnorteada, deixá-la a cargo
dos seguranças em serviço era o mínimo que deveria fazer. Além de que, o
que passou por sua cabeça de aparecer no escritório? — ela aponta com o
queixo em minha direção.
Penso rapidamente em algumas frases que poderiam encerrar esta
discussão e dar a ela a sensação de segurança e controle, no entanto, mandar
tudo ao inferno parece-me mais divertido, uma vez que a minha paciência
está escorregando perigosamente sobre a borda.
Avanço mais um passo e posso sentir o calor desta proximidade,
invadir seu espaço físico é um pequeno castigo por apontar uma arma em
minha direção.
— Não quero responder às suas perguntas, mas farei para que
possa voltar para minha casa e desfrutar de um belo jantar. Como disse antes,
a levei por que me pediu, já os seus seguranças? É uma verdadeira piada,
querendo ou não retornarei ao comando das guardas e os treinarei melhor, —
não perco o pulsar da têmpora e o ranger discreto em seu maxilar.
— Santiago não se meta com no meu trabalho.
— Foda-se se serei duro ou não, você melhor do que ninguém sabe
que fomos treinados pelo melhor e, se é para ensinar posso garanti-la que
superei o mestre em larga escala.
— Você está indo muito além do que possa controlar, recue. — ela
rebate.
— Está enganada, você está indo além com suas insinuações. —
minha voz sobe e seguro para mantê-la no tom. — Quanto a aparecer no
escritório, por que não poderia? Existe algo lá que não deva saber, ou ver? Se
é este o caso, sabe perfeitamente que de nada adiantaria a tentativa de ocultá-
lo de mim.
— Não tem nada a ser escondido, só não quero que ronde Lia e
faça estes movimentos novamente. Não gostaria de ter problemas neste
sentido com você.
— Mesmo? E quais seriam estes problemas, isto me soa como uma
ameaça e não respondo bem a elas.
— O que queria com ela, onde a levou?
— Você já tem a resposta para às duas perguntas, refaça sua linha
de interrogatório, isto está se tornando cansativo! — endureço minha voz.
Angélica recua um passo.
— Não se atreva a elevar sua voz, ou vou realmente usar minha
arma contra você.
— Quero detalhes do que aconteceu pela manhã, qual é o relatório?
— ignoro sua sentença.
— Não vou discutir sobre isto com você. Apenas, tenha a certeza
de que não se repetirá o que aconteceu hoje, não o quero próximo demais a
eles sem uma cobertura adequada.
— Se eu concordar se sentirá melhor assim? — avanço outro
passo. — Se não tem nada a relatar, não deveria ter me conduzido aqui em
primeiro lugar, no mais cuide dos problemas deles, porque ninguém poderia
ser uma babá melhor do que você para aqueles idiotas.
— Não se atreva a falar comigo assim, ou vai se arrepender. —
ela trinca os dentes. — Se você tem um ponto de argumento sobre como ajo
com eles, faça-o! Você está caminhando sobre uma linha muito frágil, San.
— Digo o mesmo, pois está cruzando essa linha em um lado oposto
ao que começamos a trilhá-la.
— Eu não me importo que os odeie e tenha seus planos para de
alguma forma obter o que deseja, o que aliás, já cansei de oferecê-lo para
pegar e encerrar está história.
— Não quero dinheiro! — rebato com firmeza.
— O que seria então, às joias? — seu rosto se inflama e Angélica
perde a passividade me atacando com a voz alterada e os punhos cerrados. —
Se ainda é a fantasiosa herança da Sarah Nikolaevich, esqueça essa merda!
Não falamos sobre as joias de Sarah e o assunto vir à tona puxa
alguns fios sobre mim. Estreito meus olhos e começo a ligar os pontos sobre
o que possa ter de fato acontecido no escritório e mais me faz pensar que
Angélica, possa estar de alguma forma guardando para si, mais informações
do que possa supor.
— E se eu não quiser? — solto minha pergunta, mas como um
chamariz para uma presa relutante.
— Será um problema sério a ser resolvido! Você está além do
ponto de ruptura Santiago, a mais em si do que aparenta, do que realmente
demonstra, não sei o que possa ser, mas algo mudou em suas atitudes.
Enquanto posso confiar que será um benfeitor, me atemoriza que possa
esquecer sua humanidade no fundo, de uma gaveta e passar dos limites,
colocar vidas em risco de verdade, — ela toma um fôlego. — E tudo por
conta de uma fantasia, algo perdido há tantos anos, e que já destruiu muitas
vidas.
Muitas vidas? Você não tem ideia do que quero Angélica, não sabe
o que foi perdido por conta de todos eles. Por conta da ganância e da sede
de poder. Então não é para mim que o sermão sobre poderio vai cair como
um lenitivo, não me interessa o quanto eles sofram, pois, nunca será um
décimo do que suportei por toda minha vida, em pró de todos eles. As joias
de Sarah, perdidas? Esquecer tudo e deixá-los em paz?
Um fragor de ódio destila forte dentro de mim, a tal ponto que
oprime minha garganta, sinto o controle escorregar e avanço embriagado no
que me melhor alimenta. Ódio, rancor e fúria.
As palavras que disse a Lia ao saímos da praia eram sinceras, pois
se ela cometer os mesmos erros e deixar-se alimentar de maus sentimentos,
não poderá retroceder, e ao contrário dela, não tive a escolha de não o fazer.
— Foda-se! — o meu grito reverbera por todo o cômodo. — Não
me interesso pelos meios, mas quero os resultados, se tiver de ultrapassá-los
não vou ter um décimo de consideração.
Angélica se afasta rapidamente e recupera a arma sobre a mesinha
de centro, mantendo uma distância segura, mas sem erguê-la em minha
direção. Arqueio o sobrecenho com sua atitude, sinto o repuxar forte sobre a
lateral do rosto, minha mandíbula trava com a minha necessidade de
defender-me e desarmá-la em poucos movimentos, porém seguro meu
temperamento um pouco mais.
— Já que estamos neste assunto, me devolva o testamento por livre
e espontânea vontade. Não me faça pegá-lo do meu modo. A minha paciência
foi mais que testada. — aviso.
No fundo, sei que deveria recuar e manter sempre o tom amável e
não dar a ela um tempo ruim do meu temperamento, mas da mesma forma
que tem sido difícil de impedirem de agir de forma estúpida como fiz com
Lia, também tem sido difícil esfriar-me unido a velha revolta se ascendo em
meu interior, trazendo à superfície tudo que abandonei, de fato creio que
chegou o momento de esta história vir à tona e para isto, terei de me livrar
dos meus pontos fracos.
— Não me faça agir contra você, isto nos machucaria. — ela
rebate.
— Você poderia tentar, mas no final quem perderia mais?
— Não faça ameaças vazias.
— Não preciso de fazê-las, eu não aviso quando tenho de morder,
Angélica. — ela passa a mão sobre os cabelos.
Percebo em seu olhar aquela fração de algo que deseja fazer, falar,
mas parece ponderar.
— O que você quer, Santiago?
Sua voz é um pouco trêmula e isto poderia quebrar-me por dentro.
— Uma barganha! — exclamo.
— O quê?
— Entregue-me o que quero por enquanto, e darei a você algo
insonhável.
— Não consigo pensar em nada, a não ser Verônica em uma
bandeja de prata.
— Melhor do que ela, — pauso. — Eu poderia dar a você uma
Fada com poderes inimagináveis de cura, posso afirmar por experiência
própria.
— Me diga que isto é alguma metáfora, não me faça acreditar que
enlouqueceu de vez!? — sua voz não passa de um sussurro.
Uma decisão a ser tomada a queima roupa pode matar ou salvar a
vida de um homem. Ironicamente Mahatma Gandhi me veio à mente com sua
definição do que não é indivisível, “Um homem não pode fazer o certo numa
área da vida, enquanto está ocupado em fazer o errado em outra. A vida é
um todo indivisível.” Eu sempre soube que este dia chegaria e mesmo que
isso romperia o pequeno cristal que separa minha sanidade da vingança, farei,
pois, não posso corromper o que é puro e belo e transformá-la em algo dúbio,
triste e sem vida.
— Procure o seu querido Promotor, ele pode te dizer se enlouqueci
ou não.
— O que quer dizer com isto?
— Quero dizer, que cansei de brincar de esconde-esconde, polícia e
ladrão. Devolva o que é meu e te darei algo em troca.
— O que você quer? E não me fale desse maldito testamento, ou
vou fazê-lo virar cinzas? Que porra há de errado com você, — ela grita, — se
quer dar-me algo, me entregue Verônica.
— Algumas coisas ficam bem quando são deixadas de lado,
patroazinha. Me traga o que quero. Quanto a Verônica, posso dar a vocês,
basta não me contrariar, — afasto-me pisando duro dando-lhe as costas. —
Outra coisa, nunca mais aponte uma arma em minha direção a menos que vá
puxar o gatilho, ou a farei ter uma lição de como se ameaça alguém de
verdade.
— Você não é ele para me dar lições! O seu conselho vale para si
mesmo.
— Realmente não sou ele, mas posso ser o inferno de mil vezes
pior que o Gustavo já tenha sido. — retorno sobre meus passos aproximando-
me até estar a centímetros de distância.
Posso sentir minha respiração bater sobre o seu rosto, afastando os
fios que se soltaram da trança e descansam na lateral do seu rosto.
— Como disse antes, eu com certeza superei o meu mestre, um dia
você saberá como, por hora mantenha o que disse em mente. Ainda preciso
de você, da mesma forma que me necessita, só por isto manterei minhas mãos
longe dos seus queridinhos.
— Ele não está mais aqui! — sua voz fragmenta com dor.
— Você ainda tem pesadelos? Posso te tocar, abraçar, alguém
pode, sem que tenha uma crise de pânico?
— San…
— O passado não pode ser mudado, o que foi tirado não pode ser
devolvido, mas o que quero, — pauso —terei de volta, não importa se ele não
está mais aqui, nós ainda somos o resultado do que ele fez, porém, aprendi
ser bem pior do que um dia ele imagina que seria.
Recuo um passo após o outro deixando-a sozinha no centro da sala.
— Vou me afastar por alguns dias, mas só para que possa fazer o que pedi, e
então as coisas irão mudar em definitivo.

LIA
ALGUNS DIAS DEPOIS
Atchim… Atchim… Atchim…
A rodada seria três espirros e uma tosse engasgada, um aperto em
minha garganta e algumas risadinhas de Anjinho sentado no tapete, enquanto
colore seu milésimo desenho de pinguim.
Nina se aproximou da minha cama colocando a mão sobre minha
testa.
— Opa! — ela exclama animada. — A febre abaixou, sou ótima
como enfermeira.
— Concordo, — alço meu corpo sobre o colchão para me inclinar
contra a cabeceira da cama, aceitando o copo de água e alguns comprimidos.
— Se não fosse por você, de certo teria morrido com essa gripe, obrigada, —
sou sarcástica ao jogar o remédio dentro da minha boca e engolir. — Odeio
comprimidos. — resmungo em tom baixo para Anjinho não me ouvir.
— Sei, por isto adoro dá-los a você, não permito que se esqueça de
nenhum.
Vaca — mexo os lábios e ela desvia o rosto.
O fato de realmente ter contraído um resfriado após toda aquela
água gelada caindo por horas no meu corpo, não me ajudou em nada no
humor, porém foi a desculpa perfeita para não ir ao escritório no dia seguinte.
Entretanto, não precisei realmente me preocupar com isto, pois
para minha grata ou surpresa, na manhã do dia seguinte recebi um documento
do office-boy da empresa com um comunicado do RH informando-me sobre
minhas férias.
Meu primeiro impulso foi de ligar e arrumar algum problema,
jamais concordaria que fizessem isto com algum funcionário sem que ele
soubesse, todavia não nego que estar longe por trinta dias, após o tumulto
com Mikael, foi algo bem-vindo.
Me surpreendeu que a decisão tenha partido dele e me entristeceu
um pouco mais a notícia do que foi destruído em meu escritório, no entanto,
joguei isto para o lado e me concentrei em não morrer com uma febre
horrível.
Nina realmente foi eficiente e conseguiu que um médico viesse em
casa me examinar, já que não queria sair da cama, após ser ligada a um IV
com fluidos, um antibiótico e alguns antitérmicos, apaguei literalmente,
empurrando para longe outra questão que gostaria de discutir com ela.
— Não precisa de ser tão grata assim, faço isto por Anjinho. — ela
se curva e acaricia os cabelos ainda molhados do banho. — Não é meu amor,
a mamãe doente é um “pacote”.
— Pacote! — ele ri e balança a cabeça de um lado a outro.
Notei que após abandonar o boné, essa é a sua nova mania.
— A mamãe é um pacote, amor?
— Pacote! — ele nega com a cabeça, a gargalhada infantil me faz
rir com ele.
Cof-cof… cof-cof… — a tosse me agarra, Anjinho ergue a cabeça
e franze o cenho. Ele se levanta vindo em minha direção, elevo meu braço e o
faço parar com uma mão estendida e a outra cubro os lábios ainda tossindo.
— Amor, mamãe está muito resfriada, por que não fica com a tia
Nina na sala? Vocês irão viajar amanhã e não quero que fique dodói.
Ele torce os dedinhos impacientemente, olha de um lado a outro,
como se buscasse por algo, não sei o que Anjinho tem estes dias, mas sua
agitação anda elevada e isto me preocupa.
Meu filho tende a ser calado e concentrado em suas tarefas,
brincadeiras, na música ou no que chamar sua atenção para o momento.
Sei que não tivemos nenhum dos padrões interrompidos, que seria
a quebra da sua rotina, mesmo de cama, fiz questão de me levantar cedo, dar-
lhe banho, ouvi-lo tocar piano e logo depois arrumá-lo para ir à escola, no
entanto, desde que me viu sob o chuveiro, notei que Anjinho tem se
comportado diferentemente, e me sinto péssima por estar enfronhada na
minha própria fraqueza e não conseguir captar do que se trata.
— Anjinho? Está tudo bem?
Nina se ajoelha ao seu lado e tenta chamar-lhe a atenção repetindo
a pergunta, ele evita encará-la e continua cruzando o quarto com os olhos em
busca de algo.
— Filhote? Me diz o que você quer. — desloco meu corpo para
frente e me sento na beira da cama sem chegar muito próximo a ele, pois
realmente tenho medo de que possa gripar.
Anjinho não responde, ele por si só desiste do que seja o que tenha
incomodado, desliza para o tapete e volta aos desenhos. Outra novidade são
as canetinhas, de acordo com Nina, ontem uma visitante passou pela escola e
deixou presentes para as crianças, achei interessante a escolha do tema, pois
como diria July: O Universo parece realmente estar de olho sobre nós,
conspirando a nosso favor e dando dicas.
Mas no meu caso, se parecem mais com indiretas!
Anjinho ganhou um estojo com dezenas de lápis de cor e
canetinhas hidrocor, adesivadas com milhares de pinguins. A sua felicidade
extrema ao chegar em casa me deixou contagiada, foi só por este motivo que
me animei a levantar e aceitar tomar uma sopa com ele e Nina sentados no
tapete.
A cada vez que ele se senta ao meu lado para colorir, ou apenas
segurar o estojo enquanto assiste a um filme ou um videoclipe de música,
vejo a importância que está brincadeira tem para seu desenvolvimento me faz
lembrar das minhas promessas para ele e o quanto é importante que resolva
as nossas vidas nos próximos dias.
— Tem alguma ideia do que está acontecendo? — pergunto para
Nina.
— Talvez o mesmo de antes?
A referência à saudade de fadinha não passa despercebida.
— Irei até o conservatório, vou aproveitar as minhas férias e
visitarei no meio da semana.
— Isto é ótimo! — Nina olha para as mãos em seguida ergue os
seus olhos astutos em minha direção. — Que tal um banho e depois do jantar
termos uma conversa? Não quero viajar com a sensação de que está com
raiva de mim.
— Não estou com raiva de você.
— Lia, te conheço a muitos anos, e não olha nos meus olhos
quando fala, mantém essa distância e principalmente o fato de não querer me
falar sobre o que aconteceu, são dicas muito boas sobre o seu humor em
relação a mim.
— Pode ficar tranquila, — desconverso — vou só tomar meu
banho e jantaremos.
— E conversaremos, estou indo para outro estado levando o seu
filho, não quero amanhã antes de sair ter você dizendo que Anjinho, não pode
ir com alguma desculpa esfarrapada, só porque está com raiva de mim.
— Eu não faria isto com ele! — exclamo irritada.
— Não com ele, mas comigo, faria sem pensar duas vezes!
Não respondo, mas percebo sua expressão cabisbaixa, não
desmentiria a ela, pois como tenho segurado minha língua, amanhecer bem e
tomar essa atitude, realmente não poderia ser descartada.
Me ergo para caminhar até o closet, no centro do pequeno cômodo
Aline havia instalado um baú capitonê, que nos serve de banco de apoio,
sento-me sobre o estofado e olho para o meu celular, ligado à tomada no
fundo do armário a minha frente.
De propósito deixei-o ali desde a noite em que cheguei em casa
depois que escorada em Nina deixei o banheiro, e não voltei a tocá-lo, talvez
por medo de receber alguma mensagem que pudesse cravar ainda mais o
punhal em meu peito, ou por qualquer outra coisa que acendesse a esperança
de algo surreal.
— Estou levando Anjinho para jantar, ele está com sono. — Nina
fala da porta.
Não desvio meus olhos do celular desligado, mas dou a ela
confirmação visual com movimentos de cabeça de que a ouvi.
— Vamos conversar?
— Sim! — respondo.
— Ok!
Ela sai do quarto com Anjinho, ouço os passos abafados pelo
carpete, em seguida o som de click suave da porta sendo fechada, me ajoelho
e alcanço o aparelho, ainda não o ligo, mas farei em breve.
Mikael foi rude e impositivo, mas suas últimas palavras ainda estão
fragmentas na minha mente, talvez tenha justamente sido sua afirmação
inusitada a responsável por ter aberto a porta do nosso passado.

Após tomar meu banho e dar boa noite a Anjinho, aceitei o caldo
quente que Nina me entregou no quarto antes de correr para o seu, ela queria
tomar um banho rápido. Aproveitei esse momento para voltar a olhar a tela
do meu celular.
Superei cansada de pensar.
— Inferno! — exclamei entredentes, liguei o aparelho e esperei a
tela se iluminar.
Mensagens por SMS e a sinalização de mais algumas acumuladas
de outros aplicativos de redes sociais, ligações perdidas, e-mails começaram a
pipocar na tela. Alguns clientes querendo saber se estava tudo bem, outros
agradecendo a cesta de iguarias que receberam. Clientes preocupados
questionando se era prudente outro advogado assumindo seu caso, fiz uma
listagem do que poderei responder com prioridade na parte da manhã, as mais
urgentes mandei de imediato a resposta.
As ligações perdidas em parte vieram do escritório, algo que
também poderia deixar para depois.
Minhas amigas encheram nosso grupo com fotos, corações e várias
mensagens de apoio até se cansarem de esperar por minhas respostas e
começarem a especular o que teria acontecido; alguma corajosa colocou
Angélica como participante, mas a sua resposta grossa a fez ser excluída logo
em seguida.
Segurei o riso e continuei a minha inspeção, Ramon mandou-me
mensagem profissionalmente dando-me um parecer geral sobre minhas férias
e adicionou ao final que estaria disponível caso quisesse conversar. Os
meninos, foram gentis e deixaram abraços e beijos, Edu foi um pouco grosso,
mas fofamente, me oferecendo um taco de baseball, caso uma desforra sobre
a mesa de centro destruída estivesse se passando por minha mente.
Todos de uma forma humorada e carinhosa mimaram-me à
distância, isto mexeu com minhas emoções.
O ícone ao lado do nome de Mika estava indicando-o online, por
isso evitei abrir a mensagem.
Uma saudade de “nós” corroeu-me por estes dias, lembranças da
juventude, dos risos, gritos, choros, os laços, a forma audaciosa de levar-me a
loucura, de quem éramos, o que sonhávamos para nós e a forma que logo
após seu pedido de namoro transformou-se em um inferno destruidor, que
voltou a nos assombrar por anos.
Anos a fio, enquanto estive fora do Brasil, desejando estar com ele.
E foi nestes anos longe que o vi amadurecer, abandonar a carreira musical
que tanto amava, se tornar um mulherengo cada vez mais audaz, um
advogado competente, renomado tão jovem, estava em várias revistas de
fofocas, algumas colunas de direito entre outras.
Prendo meus lábios entre os dentes, fecho meus olhos e deslizo o
dedo sobre a tela, respiro pausadamente com medo de ler o que deixou aqui,
mas o faço e me surpreendo com suas palavras.

@Promotor_nikolaievitch: ter acordado hoje foi um presente,


pois mais um dia posso afirmar que você é minha mulher e estou disposto a
prová-la o quanto é. Aceito seu convite, mas não quero só um café, quero
acordar ao seu lado.

Minha primeira reação é mandá-lo ir para o quinto dos infernos


com sua bravata, mas isto é só uma camada de verniz dura o bastante para
repelir qualquer coisa que venha dele neste sentido.
Minha segunda é de fato a verdadeira reação, está aterra-me em um
sentimento estranho borbulhando em meu peito. Não é da sua natureza sair se
fazendo de Tarzan e colocando um ponto de domínio sobre mim, até porque
jamais aceitei isto, mesmo que nos permitamos brincar com essa vertente no
sexo, fora da cama, somos de igual modo dominantes sobre nós mesmos.
Gostaria de responder, mas não sei o que dizer, por isso permaneço
apenas olhando para a tela correndo meu dedo por várias conversas que já
tivemos, discussões, piadas sexuais, ou apenas um “OI” algo só nosso que
quer dizer tanta coisa.
Mikael jamais admitiria querer-me assim, ou dizer em alto que sou
sua mulher, não neste sentido. Não depois de tantos anos.
Ele fez o que prometeu alcançou a posição como Promotor de
Justiça do Estado e se destacou rápido como nunca vi outro fazer antes.
Mas dizer e me querer como sua mulher, isto nunca.
Não depois daqueles dez anos.

Longos dez anos, trancada do lado de fora da minha família, além


de tudo e todos. Bem longe do homem que amava.
Em dez anos me tornei uma mulher implacável, fria, arredia,
aprendi a colocar-me sobre aquilo que acreditava, impor minha palavra e
presença, estudei e alinhei-me ao melhor na minha área de trabalho.
Em dez anos, aprendi a não amar. A não chorar. A não querer.
Lidei comigo mesma nas menores necessidades e carências e me tornei forte.
Até que um dia o telefone tocou e ouvi a voz do meu pai com uma
única sentença: volte para casa, Liana!
Aquilo transbordou-me de tal forma que não havia palavras, os
soluços eram a resposta que ele ouvia através do telefone.
Dias de preparação para desconectar-me do escritório que
trabalhava, fechar minha casa, dar adeus aos amigos, professores e aos meus
alunos, pois naquela altura, aceitei o convite da minha antiga faculdade para
ocupar uma das cadeiras.
Eu estava me desfazendo de uma vida inteira para voltar, com a
esperança de reconquistar tudo que perdi, porém, não fui rápida o suficiente e
antes de poder pisar no Brasil, recebi uma mensagem ainda em voo, que o
avião onde o meu pai e os seus amigos estavam havia caído e permanecia
desaparecido.
A luz que tinha se acendido em minha mente diante de mim, a
porta aberta para que pudesse voltar e obter tudo que me foi arrancado, se
fechou com toque mórbido de horror.
Ansiei tanto por vê-los e meus desejos foram atendidos, mas não
como esperava.
Calma Lia, respire fundo. — ressoo em minha mente.
O ar frio faz com que as lágrimas permaneçam retidas no fundo dos
meus olhos, desligo o celular e reclino minha cabeça contra as almofadas e
travesseiros. Estou farta de chorar, mesmo que tenha sido pouco, para mim já
foi o suficiente.
Dois toques na porta e um clique suave me faz olhar em direção ao
marco de madeira laqueada. Nina se encosta contra o batente, a pele negra
está reluzente após o banho, os cabelos foram contidos por uma toalha e o
short curto está meio encoberto pelo moletom fechado até a altura dos seios.
O seu olhar crava-se sobre o meu esperando um convite para entrar
em meu quarto.
Eu estava tão entranhada na minha dor, desespero e decepção
quando voltei para o funeral do meu pai, que minha busca por alívio era
quase insuportável de aguentar, porém, só me encontrei cercada de mais
rancor do que poderia suportar.
Mikael era o que eu queria, e o que vi, machucou-me ainda mais,
mas ao ouvir que meu pai, — o senhor Joaquim no auge da sua insana,
desajustada e indivisível forma de me proteger, tinha deixando-me algo, além
daquilo que supostamente estava assegurando pela herança, regozijei, pois,
era uma prova de amor. Estranha, mas uma prova e eu precisava daquilo para
seguir adiante.
No entanto, agora, não sei se fiz o certo em aceitar tal presente.
— Posso entrar, ou vai continuar medindo-me dos pés à cabeça?
— Entre Nina, e feche a porta.

As mãos dela pareceram trêmulas ao pegar a bandeja com a louça e


colocá-la sobre o aparador perto.
Puxei as cobertas e indiquei que se sentasse à minha frente, mas
Nina recusou e buscou a banqueta da penteadeira, abancando longe de mim,
com as costas eretas e olhos firmes nos meus.
— Vamos começar. — ela puxa o assunto e coloca as mãos sobre
as coxas entreabertas.
— Ok! Desde quando se tornou a garota de recados de Giovane?
— sou direta. — O quanto dos meus segredos que comentei apenas com
você, deixou ele saber?
Minha voz é inflexível, sem alterar o tom, mas faço o meu ponto
valer apena, se ela tem uma postura de banco dos réus, não vou me limitar a
não agir como uma advogada.
— Primeiro, me insulta que por um segundo tenha imaginado que
fiz isto, e se imaginou, espero que tenha provas disto. — ela bufa. —
Segundo, Gio não é ninguém que precise ser informado, o que quiser saber,
você sabe perfeitamente como ele pode descobrir. — ela rebate e vejo que se
magoa com minha acusação, mas não estou indo para aliviar isto para ela.
— As provas, é ter Mikael e todos no escritório sabendo sobre os
meus motivos para rejeitar a herança, e isto explodir da pior maneira possível.
— E como isto seria minha culpa?
— Você sabia.
— E não passei adiante.
— Poque não, ele de certa forma é seu patrão, não está reportando
o que ele quer saber?
— Lia, cuidado com as suas palavras, eu não tenho de reportar-me
a ele.
— Ah! É verdade, seu contrato foi fechado com o meu pai, não é
mesmo? Você é só a minha guarda-costas. Interessante, quem te paga Nina!?
Nina bufa e vejo suas mãos se fecharem em punho com força.
— Fui contratada para fazer sua segurança, pelo Senhor Joaquim,
por intermédio do meu tio, que por acaso também morreu no mesmo acidente
que o seu pai. — ela altera a voz. — Não se atreva a jogar merdas no
ventilador, porque não vai fazer bem a nenhuma de nós.
— Me responde, para quem está trabalhando Nina?
— Para ninguém, não estou aqui como sua segurança, estou como
amiga. Confesso que amei a ideia de trabalhar com você ao receber seu
dossiê, seria a minha primeira missão, estava eufórica, mas depois de tudo o
que aconteceu, também me senti sem chão.
— Então, você se aliou a Giovane e vendo o meu desespero levou-
me para São Paulo, e conseguiram a fonte de informação vital para chegarem
aos meus amigos.
— Não foi assim! Eu pedi a ele para continuar com a minha
missão, mas depois…
— Mas, depois o quê? Vocês já tinham suas informações, passado
parte da empresa de segurança para Angélica, estavam com todos os contatos,
por que continuar ao meu lado? Só para colher mais informações. — sou
cruel e me arrependo ao falar, mas não posso deixar passar isto em branco. —
Está de serviço agora Nina? Podemos realmente estar tendo uma conversa, ou
existi um protocolo para isto acontecer?
— Vai para o inferno Lia, — ela explode se colocando de pé. —
Não estou de serviço há anos, e se estivesse você saberia, pois, jamais teria
me dado um chapéu como fez com Dionísio há alguns dias, pois sou eficiente
no que faço.
— Mesmo? — pulo fora da cama sentindo meus nervos reagirem.
— Então me conte, como é a sua eficiência.
— Deixando toda a minha vida para trás, só para estar ao seu lado
e do Anjinho. E antes disto, deixando a minha carreira de lado para ser a sua
amiga, porque você era uma coisa destrutiva pronta a se arrebentar de dor e
sofrimento. A Doutora dos Anjos não precisava de uma guarda-costas,
precisava de uma amiga. — ela esbraveja. — Fui essa amiga, porque queria
ser. Você perdeu o seu pai, — sua voz se quebra. — Porra, Lia!
— Perdi o meu também. O meu tio, era o meu pai biológico e você
sabe disto. O fato de ter sido adotada pelos pais do Gio quando era criança,
não invalida o que ele era na minha vida. — Ela bate sobre o peito e vejo
suas lágrimas caírem sem que as detenha.
— Quero acreditar que posso confiar minha vida a você. —
Afirmo.
— Então confie.
— Não ouse reportar-me como se fosse uma cliente, Nina.
— Eu nunca! Escuta isto, nunca fiz isto! OK? Por mais que Gio
quisesse saber coisas sobre você, ele nunca ousou a me perguntar, pois, sabe
que o quebraria ao meio se fizesse. — Ela se afasta, abre o moletom tirando-o
e jogando no chão junto a toalha.
— Caralho Lia, eu vim ficar com você, porque queria estar perto
do Anjinho e da minha única e melhor amiga, aguento as paranoias das suas
amigas loucas, que me acham uma puta, sem nem saber quem sou. Até a
louca da Angélica cismou comigo. Ela pulou sobre mim como um cão
raivoso na praia me arranhou inteira e mal sabe ela que, o Giovane, aquele
imbecil é meu irmão de criação, tudo isso por quê?
Ela compassa com raiva e seu desabafo começa a me convencer de
que realmente não teve culpa de nada.
— Tudo para que não haja perguntas sobre nós. Sobre você e todas
as merdas que passou após voltar ao Brasil, sobre as ameaças de morte que
enfrentou e que hoje temos a certeza vieram dessa mesma mulher que
Giovane está perseguindo. Sobre seu relacionamento disfuncional com o pai
do seu filho e os problemas que dê certo enfrentaremos quando isso vier à
tona. Anulei qualquer coisa da minha vida, para ser sua sombra. — ela para e
ri. — Porra, como uma perfeita guarda-costas. Contudo, sem a parte legal de
andar, armada.
— Me desculpa, não queria dizer certas coisas.
— Queria sim, se tem algo que aprendi ao longo dos anos, é que
você não perde tempo falando besteiras. — ela se aproxima. — Espero que
tenha ficado claro, para você, que não falei da sua vida para o Gio.
Ela me deu as costas, mas rápido seguro seu braço.
— Me desculpa, nós podemos cair na pancada e quem ganhar fica
com a razão, o que acha?
— Que você perderia feio, e ainda assim se acharia a dona da
razão. — ela bufa e me olha por sobre o ombro.
Sua expressão de tristeza me faz sentir culpa de verdade, não
queria fazê-la jogar para fora estas coisas, mas por um lado foi bom, eu nunca
me esquecerei de que ela esteve sempre que precisei ao meu lado.
— Não seja tão protetora comigo, — peço. — Eu realmente não
quero isto, não quero que se anule para esconder quem é.
— Não é só por você, e sabe disto, nós temos um acordo Lia, —
ela se vira. — O Anjinho vem em primeiro lugar, se fingir que não sou
ninguém só para poder cuidar dele é o preço, dane-se.
— Cuidar dele, sempre. — Confirmo.
Nina esteve lá durante o meu pior momento, a relação distorcida
com o pai dele, o medo ao descobrir a gravidez, a alegria e o terror de ter de
escondê-lo e depois o longo desespero de não saber como lidar com Anjinho,
a cada passo ela esteve ao meu lado, como amiga, como o último desejo do
meu pai, como uma guarda-costas silenciosa.
Como alguém que realmente não quero desacreditar?
Me machucou imaginar que ela tivesse falado com Giovane, ainda
mais que pudesse ter falado tantas outras coisas que contei somente a ela, que
nem mesmo minha mãe poderia saber.
Entretanto, graças a um bom Deus, me sinto bem ao ouvi-la e
analisar suas reações, pois jamais poderia me refazer se perdesse sua
amizade. Se me sentisse e fosse realmente traída por ela.
A puxo em meu abraço, ela não hesita. Seus braços circulam
minhas costas e os meus por cima dos seus ombros, por ser um pouco mais
alta sempre nos abraçamos assim.
— Pelo menos, você é uma puta rica, e não me sinto obrigada a te
pagar um grande salário.
— E o faz, porque é teimosa.
— Amigas? — pergunto em voz baixa.
— Amigas, mas com confiança. — ela me abraça mais apertado.
— Confia em mim, de verdade, por favor. Jamais faria nada para magoá-la,
mesmo que Carla, me ache uma puta safada. Angélica um demônio sedutor e
Aline que roubei a sua melhor amiga, tenta pensar como July, que sou
estranha, mas sou uma boa pessoa.
Rimos das analogias de cada uma das meninas. Me afasto dela,
escovo os cachos castanhos com algumas mechas em tons de mel para trás e
seguro o seu rosto.
— Me desculpa.
— Claro que sim. Servir e proteger é o lema da empresa da família.
— Vai se ferrar! — rio empurrando-a.
— Não amiga, vou deixar isto para você e um certo ruivão.
Seu olhar em minha direção é mordaz, entendo o que ela insinua,
afinal é justamente o mesmo que penso.
CAPÍTULO 20

INSEPARÁVEIS
Pela forma como você me olha
E me diz tanto quando não me diz nada
Pela forma como você me toca
Com esse olhar que acaricia a alma
E pela forma como você me abraça
Por Eso Te Amo — Río Roma

LIA
ALGUNS DIAS DEPOIS

U
m pensamento recorrente em minha mente vai e volta dando suas piruetas
descompassando meus dias. Dias intermináveis depois que me despedi de
Nina e Anjinho.
Meu corpo se recuperou rápido do resfriado e pude ocupá-lo com
afazeres domésticos e por estar de férias forçadas, nunca me senti tão
competente como dona de casa. Ótima atleta por disparar em longas corridas
ao pôr do sol na orla, uma obcecada em novos livros de romance nacionais e
a mais nova viciada em músicas de todos os gêneros. Tudo ao mesmo tempo,
pois eu precisava organizar a minha mente e me equilibrar para que pudesse
ter uma conversa séria e definitiva com Mikael.
Minhas lembranças voltaram com toda a força de um furacão de
alta intensidade varrendo-me por dentro sem deixar nada de pé.
Chorar? Não sabia que poderia, com tanta intensidade e com tanta
frequência.
A ambiguidade dos meus sentimentos contraditórios deixou-me
seca, pois, enquanto todo esse tumulto emocional queria levar-me a aceitar
seus convites — vindos em mensagens repetitivas dia após dia, eram os
mesmos que me levavam a afastar ainda mais.
Não me sinto mais irritada ou furiosa com ele, por falar tudo aquilo
no escritório, do que me sinto com tudo o que passamos.
Se erramos?
Erramos todos.
Cada um de nós escondeu e ainda o faz, seus sentimentos, motivos
e segredos que podem no fim nos levar a uma separação fulminante, a uma
morte dolorosa dos nossos mais puros sentimentos, manchados por tantos
segredos.
Minha mente tornou-se esquálida diante de um único pensamento:
eu me perco com ele… me perco por ele.
Talvez, só talvez por este mísero e impactante pensamento tenha
cedido a algo que não controlo, ao meu corpo fatigado, minha mente
deturpada e meu coração ferido, aceitando por fim encontrar-me com ele.
Ainda não queria retroceder numa decisão e dizer-lhe que estava
cansada e que eu e meu filho, precisamos de um lenitivo em nossas vidas,
porque não posso ser carrasco de nós três, não posso dar o que um quer e
impor algo que outro não queira, mas estou cansada.
Cansada!? Imensamente cansada, porém sem a menor pretensão de
promover algo que não possa lidar. No entanto, eis-me aqui cercada dos
pensamentos contraditórios e indefensáveis. Louca, compulsiva, ansiosa, com
lágrimas reprimidas querendo delinear os meus olhos e escorrer pelo meu
rosto, mas ainda assim resoluta, pois acima de mim e de todas as merdas que
nos cercam, está a felicidade, a vida e todo o bem-querer que o meu filho
merece ter, aquilo que jamais falei, ou ousei a pensar.
Aquilo pelo que nunca em meu mais profundo desejo deixei-me
levar.
Sei que não será agora, que não será com uma sentença
pronunciada como em um julgamento ao se ler um veredicto, pois tenho
plena certeza que ao sentar-me nos bancos dos réus, os céus se abrirão e o
verdadeiro julgamento chegará de uma forma nada branda, porque o meu juiz
não é ninguém menos que um anjo torturado, cheio de marcas indeléveis e
destroçado tanto quanto fui.
— Isto nos torna inseparáveis, mesmo que pareça ser o nosso
destino.
Respiro uma, duas, três vezes de forma lenta, absolvendo o ar
fresco da noite, clareando minha mente e apaziguando o tremor em minhas
mãos.
Coloco a menina quebrada e confusa de volta em seu lugar atrás de
um muro blindado em minha mente e deixo a mulher dura e estruturada
assumir o comando, antes de dar sequência aos meus passos firmes para
dentro do prédio, aonde ele me aguarda.
MIKAEL
Retirei o capacete, passei a mão sobre o cabelo com gestos
irritadiços bagunçando os fios, fazendo o mesmo gesto sobre a barba em meu
rosto.

Aprender a me auto dominar, novamente.


Aprender a me controlar, novamente.
Aprender a ouvi-la, novamente.

Pelo retrovisor da Harley, os olhos azuis acinzentados que me


encaram através do pequeno espelho estão atormentados pela falta de sono,
por resoluções, saudades e uma equidade de sentimentos que jamais pensaria
em deixar me abater.

Aprender a ouvi-la, novamente.


Aprender a aceitá-la, novamente.
Aprender…

— A ter paciência, novamente. — retruco para minha mente


embotada de adrenalina e expectativa.
Como a porra de um mantra tenho esperado e esperando, por uma
resposta há dias. Lia fechou-se em uma ostra como disse Ramon, em uma das
nossas muitas conversas.
Ela precisava de um tempo e eu, não estava disposto a dar-lhe isto,
nunca estive. Nunca pensei em dar a ela o caminho livre para fugir, se
esquivar, pois, sei muito bem o quão capaz é de ir, e o quão longe pode
chegar.
Sua recusa em responder minhas mensagens e ignorar as ligações
de July e as amigas no final de semana para se juntar a nós na casa de
Eduardo, só aumentou em muitos graus essa angustia e a certeza de que mais
uma vez ela estaria se preparando para fugir, e desta vez provavelmente seria
para tão longe, que impossibilitaria de ser encontrada.
Se eu fosse um homem bondoso e solícito a permitiria fazer isto,
mas não sou. Não tenho essa virtude intrínseca em meu peito que me torne
prodigioso ao ponto de deixá-la em paz, longe dos meus olhos, dos meus
tormentos, dos meus mais obscuros desejos de posse de algo que nem mesmo
sei definir.
Nestes dias que se passaram após nossa última batalha de vontades,
me entristeci, enlouqueci, irei-me com todas as minhas forças, amaldiçoei
meus pais por serem fracos e duvidosos, a mim mesmo por não ter escolhido
ela, por tê-la deixado, por ser conhecedor que alguém mais a amou além de
mim.
Ciúmes
Raiva
Paixão
Desejo
Dor e uma ínfima necessidade de ser aquilo que ela precisa. Ser um
escudo para todo mau que porventura pudesse ter causado com a minha
insensibilidade, mas no final sou esse mau. Sou o seu anjo mau, versado na
pior arte. A de fazer sofrer a quem se deveria amar, porque não faço ideia do
que seja isto.
— No entanto, como disse a Ramon, estou disposto a obter tudo
que ela tenha. Mesmo que parte deste tudo, assuste-me como um inferno
aberto.
Conhecendo-a como faço, sei que ao aceitar encontrar-me seria por
já ter em mente tudo o que desejaria me falar, provavelmente um acordo de
paz, ou uma despedida, por isto me preparei para tudo.
Absolutamente tudo.
Aprender o que ela estiver disposta a me ensinar, pela primeira
vez.
Com isto em mente, dei um passo atrás, abri a jaqueta de couro, e
me senti um moleque novo repassando os olhos sobre meu corpo, arrumo
com tapas o jeans escuro ajustado as pernas musculosas com algumas dobras
imperceptíveis, botas de cano curto com ponteiras de ferro, uma camiseta de
malha com estampa de uma banda metaleira local que curto.
Passo a mão pelo peito avantajado e sinto às duas correntes finas
que pendem em meu pescoço. Em uma delas a medalha reluz com o reflexo
das luzes no teto, no pulso as tiras de couro com pinos se apertam contra a
pele ladeando o relógio robusto onde confiro as horas mais uma vez.
Ela está para chegar.
A imagem de metaleiro e motoqueiro é totalmente inversa a de um
Promotor de Justiça, isto me agrada. Um riso sarcástico se abre no canto
esquerdo da boca, sinto-me bem assim. Levo a mão ao bolso da jaqueta,
retiro o celular e confiro as horas, — sinal clássico de ansiedade, — no outro
bolso sinto o aro frio e deslizo entre meus dedos o jogo de chaves.
Afasto-me da Harley, coloco o capacete enganchado no guidão e a
deixo escondida nos fundos da garagem enquanto caminho em direção
oposta.
Novamente as palavras de Ramon repicam em minha mente
endurecendo minha decisão.
“Você melhor do que ninguém sabe como agir com ela, porém
tenha em mente duas coisas importantes: quer que ela aceite algo que pode
feri-la profundamente. E a outra, Lia não é sozinha. Tem certeza de que quer
e pode assumir isto?”
— Posso fazer isto, mesmo que seja um inferno. Posso assumir! —
replico entredentes para mim mesmo.
Atravesso toda a extensão da garagem que está abandonada a essa
hora, o que consegui graças a um pedido de apoio dos meus amigos. Todos
os funcionários do escritório saíram mais cedo e a horda de seguranças que
nos acompanham de perto ficaram do lado de fora.
A princípio, queria ir até seu apartamento ou levá-la a minha casa,
mas no segundo que essa ideia cruzou minha mente a descartei, esse conversa
teria de ser em um lugar neutro e de preferência um que nos remetesse certa
segurança. Aqui é esse local, somos viscerais e gostamos de dominar nosso
ambiente. Não haveria lugar melhor.
Encostado contra a pilastra e abaixo de uma lâmina de luz, o brilho
vermelho do automóvel chama a atenção, mas não me apego a isto, estou
mais inclinado a continuar com meu mantra mental, e afirmar para mim
mesmo que posso assumir qualquer coisa que queria para manter minha
mulher ao meu lado, segura de tudo e de todos.
Desconecto-me completamente dos problemas que nos aflige, da
Verônica que continua solta, do DNA estranho que ronda minha mente vinte
quatro horas por dia, me fazendo transpirar medo por todos os poros e
principalmente do passado.
Ele não será apagado e nem extirpado de alguma forma, pois aquilo
que não é resolvido apenas fica a margem esperando o momento certo de que
exploda, mas agora, aqui neste lugar. Quero apenas intuir que chegaremos a
um acordo daquilo que precisamos.
— Posso. Não posso?
A dúvida corrói a minha mente, mas a vibração do celular em meu
bolso tira-me desse tormento e logo que atendo a chamada, ouço sua voz
suave e enrouquecida aquecer-me, logo um clic de saltos invade o amplo
salão e de longe a vejo.
Linda, séria, com olhar astuto girando a cabeça para todos os lados,
me embebeço na imagem que ela reproduz. Enquanto me vesti como um
metaleiro. Minha anja devassa se vestiu como uma maldita Mata Hari, pronta
para me destroçar de dentro para fora.
Meu pau desperto se comprime no jeans ao vê-la, com uma das
calças que usa para trabalhar, que parecem ser apenas uma longa pantalona,
mas que na verdade, esconde fendas que vão do alto das coxas até os pés
vestidos em um Prada vermelho de altíssimo salto. O body negro que usa,
abraça ao seu corpo com uma segunda pele, o decote entre os seios não é
ousado, mas por se prender na parte detrás do pescoço, sei que está com as
costas nuas. Ela sabe o quanto me excita ao se vestir assim.
Sinto um formigamento na base da coluna como se já estivesse me
preparando para gozar.
Porra! Essa mulher me enlouquece.
Lia joga os longos cabelos para trás e eles deslizam contra a pele
de um lado a outro, ela bufa e para.
— Mikael! Posso ouvir sua respiração, poderia por gentileza me
responder?
Sorrio, perdido em minha contemplação esqueci-me de respondê-
la.
LIA
Meus passos se retêm em meio ao andar subterrâneo, não sou a
pessoa que se tornou fã de uma garagem semiescura nos últimos tempos, e
apesar de não ter comentado com ninguém, sou extremamente grata que
estejam adicionando algumas lâmpadas a mais, comprovo isto ao ver o
material elétrico armazenado em um canto após sair do elevador.
O estranho é que não tem absolutamente nenhum carro à vista, pelo
menos não diante de mim.
Com o telefone contra meu rosto espero que Mikael me responda,
essa sensação angustiante de me sentir sozinha está me matando. No entanto,
em vez de responder, ouço sua respiração se alterando e isto se torna um
pequeno trailer de filme de terror.
— Droga, Mikael, fala algo? — peço com certa urgência.
Sinto o cabelo da minha nuca se arrepiar e o suor escorrer em uma
gota perolada sobre meu lábio superior. Medo ou adrenalina?
— Oi! — sua voz rouca e baixa me arrepia e entorpece.
— Já estou aqui na garagem, Mikael o que quer? — jogo para trás
os ombros e assumo minha pose onde sei que posso me apoiar, sempre.
— Caminha até a minha vaga. — sua voz soa baixa, e cada vez
mais rouca.
— Sério? — olho em direção ao outro lado do salão e vejo uma
lataria vermelha reluzente, a uma virada de esquina. — Não sou ligada nessas
coisas de suspense, — respiro fundo e caminho —, o barulho do meu salto
em uma garagem escura à noite, não é sexy.
Ouvir sua risada, essa sim é sexy. Droga!
Minha mente está resoluta tento cantarolar enquanto me encaminho
até ele, são apenas alguns passos, mas parece que levarei anos-luz até chegar,
não o vejo e isto me irrita.
— Ok! Não estou vendo sua moto e sim uma Range Rover
vermelha.
— Muito bem! É só caminhar até o carro.
Ele encerrou a ligação antes de ouvir minha resposta. Alguns
passos e o carro potente está a menos de meio metro, não consigo ver onde
ele está, mas sinto seu perfume no ar.
— Mikael? — chamo receosa.
— Aqui.
A voz vem baixa, do outro lado do carro, sigo-a e o vejo. Mikael
está agachado contra a parede despojadamente, nas mãos, balança um jogo de
chaves, o que imagino seja do carro novo.
O olhar dele sobre o meu corpo diz muito e não escondo o meu
sobre o seu. No entanto, temos muitas arestas a acertar e por mais que me
deixe molhada e louca de tesão não é sexo ao que vim dar-lhe. Estou aqui
para dar início a um plano bem traçado.
Permaneço aqui para capturar um pinguim selvagem e convertê-lo
em algo para meu Anjinho que deseja muito se tornar um pinguim
protegido… protegido… por que custa tanto falar as palavras mesmo que
seja em minha mente?
Desvio meu olhar por um instante e percorro o carro ao lado, é uma
senhora máquina. A cor me agrada e o designer é bem robusto, o admiro por
uns instantes e volto a fitá-lo com um tom sarcástico.
— Me chamou aqui para ser sua motorista? — sorri ao ver o olhar
safado que me dá dos pés à cabeça.
Ele geme como se estivesse tendo uma satisfação sexual com o que
falei. — Com essa roupa? Isto seria muito sexy não acha?
Sei que ele não leva a sério, mas não vou dar-lhe o gostinho de ver
o quanto esse gemido mexe comigo.
— Você está brincando, né? Poderia ter chamado um dos rapazes.
— estalo a língua e cruzo meus braços na altura dos seios para esconder os
bicos eriçados.
— Lá vai ela, estragar a diversão. — ele resmunga e se ergue.
— Diversão? — pergunto arqueando o sobrecenho.
— Sim, estava adorando à vista. — seus olhos se cravam sobre
meu peito.
Sempre, diariamente até depois da minha morte, irei estremecer ao
vê-lo diante de mim? Toda essa massa muscular distribuída uniformemente,
me faz deslizar a língua sobre os lábios e engolir em seco. Chego a roçar as
coxas uma contra a outra discretamente.
— Rum! — ele pigarreia. — Tenta se controlar mulher ou não serei
capaz de fazê-lo.
O tiro de adrenalina é bobagem perto do que sinto, mas como ele
disse: SE CONTROLE LIA! — grito em meu subconsciente e levo sua
brincadeira adiante.
— Estou no controle, Promotor, só não posso dizer o mesmo de
você. — sorrio e estendo a mão. — Tudo bem! Me dê as chaves e vamos.
— Ok!
Ele se aproxima e coloca o jogo de chaves em minhas mãos, aciono
o controle e destravo a porta. O cheiro de couro novo é uma delícia, o painel
de bordo, volante… Vermelho?
Virei-me para Mikael rindo. — Uau, que volante revelador é esse?
Ele não responde, seus olhos me comem de cima a baixo e percebo
mais do que nunca que estar com ele sem conversamos diligentemente pode
ser um erro, pois se acabarmos em uma cama tudo ficará no mesmo, e isto
não vou permitir.
— Olhos para cima, Promotor.
— Entra logo no carro Pocahontas. — sua voz se assevera, e ao
fundo tem um tom de dominância que me estremece.
— Para com isso! — digo séria.
Sem resposta alguma, olho mais uma vez a parte da frente do carro,
intuo que queira ir a algum lugar privado e não vou perguntar onde, de
verdade estou adorando fazer-lhe um “favor” e dirigir um carro zero e lindo.
Mesmo que seja apenas uma mentira já que ele está completamente lúcido.
Entro e coloco a bolsa no banco passageiro, fuçando todos os
botões e detalhes do painel. Sou uma mulher que realmente ama carros, e este
é um de ponta, com um motor de dianteiro, transversal, 4 cilindros em
linha, 16 válvulas, 1.997 cm³, duplo comando com variador na admissão e
escape, injeção direta, turbo, gasolina, elétrico e a transmissão com câmbio
automático de nove marchas, tração integral. Coloquei a chave na ignição e o
ronco do motor foi suave.
— Uau! Porra, que máquina! — exclamo para mim mesma, sei
que ele está ao meu lado ainda me observando, mas não faço caso, se ele tem
uma tara por motos, tenho por carros.
Passei o cinto de segurança por sobre meu corpo, sentindo a
excitação de ambos os tormentos, me virei para ele. Mikael com as mãos
afundadas nos bolsos dianteiros do jeans, jaqueta de couro aberta e camisa de
malha agarrada ao torso musculoso faz com que o ar se torne algo difícil de
respirar, miro seus olhos e sua boca carnuda delineada por um sorriso safado
e cheio de segredos, desvio o olhar e me cerco da atenção dada ao carro.
— Por que comprou outro carro? Já que não é bem seu veículo
predileto e sei que tem três em sua garagem, ou melhor, tem certeza de que
serei a pessoa a levá-lo?
Porque dirigir esse bebê e excitada como estou, com tantas coisas
em mente vai me fazer pôr os pés de chumbo no acelerador.
— Por que não seria? — ele sorri e se aproxima fechando o espaço
entre a porta e meu corpo. — Você é uma boa motorista, pelo que me lembre
teve o melhor professor.
— Mikael, creio que esteja louco, eu… — a voz travou em minha
garganta ao olhar no espelho retrovisor e ver no banco de trás um assento
infantil.
Me viro para conferir o que vejo, toco com a mão direita o tecido
almofadado. Meu coração perde algumas batidas e sem deixar de tocar o
tecido olho em sua direção questionando-o.
Diante do seu silêncio e olhos fixos indago: — Mika, o que é isto?
A voz falha, meus olhos ardem e meu coração involuntariamente
começa a bater descompensado.
— O que acha? — sua voz está branda, sem qualquer sinal de
emoção, apenas calma.
— Não faço ideia. — sussurro.
— Seu carro já deu defeito duas vezes só esse mês e pelo que
soube desta vez, morreu — ele dá de ombros —, não é isto?
— E daí, o que isso tem a ver com… Isso? — sei que estou sendo
arisca e o modo de defesa acaba de ser ativado.
— É um presente!
Ele diz com toda parcimônia que possa fazer.
O quê? Um presente, me engana que gosto. Sei que não falei, mas
a expressão no meu rosto diz tudo.
Retiro o cinto de segurança tão rápido que quase o bato contra o
rosto dele, o empurro e salto do carro me afastando. Não sei nem o que dizer,
apenas que isso não faz menor sentido.
— Mikael, eu posso comprar um carro! — recrimino-o.
— Eu sei, porém, não fez. — ele dá de ombros novamente e
mantém o tom de voz baixo.
— Outra coisa, isso é um trambolho bruto. — não que me
desagrade.
— É um carro bom, seguro, novo, testado e aprovado, etc.
— Mikael! — exclamo entredentes reunindo meus argumentos.
— Além de que, você gosta de coisas brutas. — ele ri de forma
sacana.
— Sexo não é um carro! — exclamo.
— Porra! Uma mulher sexy, falando em sexo bruto em uma
garagem vazia, me deixa de pau duro e com ideias.
— Não seja obtuso, está assim desde o primeiro momento que me
viu.
— Então não tenho que me preocupar em ser cordial, ao expressar
o que estou pensando. — ele percorre meu corpo de cima a abaixo.
— Não vou aceitar que me compre coisas, Promotor. Me ordene e
nem mesmo tente me controlar.
— Não estou ordenando nada. Só quero mantê-la segura.
— Claro, porque sou “sua mulher frágil”? — abro os dedos em
aspas para enfatizar minha pergunta.
— Sim! Porque a sinto assim, em determinados momentos, — ele
não altera a voz, mas o ar contrito nas suas sentenças o expõe —, quero fazer
por você o que ainda não pude, óbvio que é o sentimento de posse que está
impregnado nisto, porque sou assim.
— Claro e não pode mudá-lo, não é mesmo?
— Não vou mentir, isto vai contra meu código de ética.
— Não quer fazê-lo, é diferente! — rebato tentando me afastar.
— Posso me abster de certas coisas, mas sabe que preciso do
controle sobre minhas mãos para não pirar, porque aqui, — ele aponta sua
cabeça com dedo indicador —, aqui não se negocia. Se não puder controlar o
que vem à frente e pôr em minhas mãos as rédeas do que quero, irei me
perder e nada, absolutamente nada do que me dispor a fazer conseguirei.
Você sabe que sou assim.
— Isto é um carro que está na faixa dos ricos e poderosos, não no
meu orçamento.
— Por favor Lia, escute-me e tente entender.
— Está suplicando? O Promotor Mikael não faz isto.
— Não estou suplicado, estou pedindo, — ele dá um passo —,
abaixa a guarda por um momento que estou fazendo o mesmo.
— Não gosto de me submeter a isto, tão pouco acredito que possa
pedir, já que só sabe gritar, mandar e desmandar.
Lia acalme-se, minha mente grita. Se perder o controle agora tudo
que quer irá desabar, e acima de você está o desejo e a necessidade real do
seu filho.
Consciente dos meus medos, jogo-me contra essa barreira que ergo
naturalmente para me defender. Tento ver a tal vulnerabilidade no homem a
minha frente, mas sei que no fundo, ele está se permitindo isto, para que ao
final obtenha o que deseja.
Seria louca se disse que não é mesmo que quero.
— Mikael! — o uso o mesmo tom que falo com meu filho, para ver
se ele me compreende melhor. — As coisas não são assim, ok? Não são do
jeito que quer. Mesmo que eu queira dar a você esse controle, essa premissa
de fazer o que quiser, bater no peito e me por sobre seu julgo, — que
audazmente acredita ser o melhor para mim, — não vai acontecer. Porque
protejo muito mais, do que a mim mesma.
Digo e tento me afastar mais uma vez, ele me cerca, mas com um
olhar resoluto dando um passo ao lado e me surpreende ao deixar-me afastar
do carro.
— Lia? Só me escuta por um momento, eu realmente estou te
pedindo isto.
Retrocedo um passo e ele se aproxima, mas sem me tocar ou fazer
qualquer exigência.
Os meus olhos recaem sobre o seu rosto e a posição que estamos
me coloca sobre a evidência da luz, assim não posso ler seus olhos, mas sim o
jeito que seu corpo se arma. Mikael eleva a mão sobre a nuca e a deixa ali
deslizando de um lado a outro mostrando o quanto está se esforçando para
manter-se no controle.
A voz baixa e extremamente rouca me surpreende no pedido que
faz, algo bobo e simples a qualquer um, menos a uma mãe que entende
perfeitamente o quanto a música pode relaxar a um ser tão intimidante quanto
ele.
— Posso ligar o som, só para manter-me tranquilo e podermos
conversar?
Espero um pouco para obter a voz firme e com meneio de cabeça
concordo. Ele se vira para o carro, não vejo o que faz, mas poucos segundos
uma música invade o vazio, deixando-me a borda do impacto.
— Porque essa…
— Não sei, talvez porque seja nossa música e nos últimos tempos
tenho ouvido constantemente, — ele dá de ombros.
Assombrada, ouço a melodia ganhando lugar em meio ao vazio e
logo a voz grave desliza pelos alto-falantes, minha cabeça pende contra meu
corpo, meu queixo se cola ao meu peito. Aperto meus olhos para manter-me
serena e jogar para trás as lágrimas que rugem querendo deslizar pelas
órbitas.
Como se fosse Anjinho querendo atenção ao ouvir sua música
predileta, fico sem reação ao sentir seus dedos correrem pela lateral do meu
rosto e colocar os fios de cabelos que escorreram para frente, atrás da minha
orelha.
— Você anda para baixo e para cima com uma criança, precisa de
segurança, um carro com rastreamento, — a voz comedida continua
exortando seus motivos, mas dentro de mim outro argumento cresce
vertiginosamente.
— Quero te dar o carro, faz tempo que não presenteio a você. Sei
que pode comprar dez unidades como está, porém este, fui eu quem o
escolheu pessoalmente e estou te dando.
As malditas lágrimas vencem contra minha vontade e acabam
caindo no pavimento aos meus pés, não sei o que responder, o que rebater.
Sei que devo recusar, mas algo que ele disse me deixou amolecida.
— Mika, eu não devo…
— Se não vai aceitar por mim, nem por você. Faça pelo moleque.
Como pode meu Deus?
— O que disse? — pergunto incrédula.
— Não vou renunciar a sempre querer controlar algo em você, não
sei fazer isto, — ele ignora o que perguntei e segue falando tantas coisas que
me deixam em estado catatônico. — Quero você, quero estar junto, foder,
lidar com suas neuras, brigar, sorrir, conversar, estar perto o tempo que
pudermos aproveitar. Também quero estar seguro de que quando não estiver
por perto tenha segurança, que seja com um carro, um segurança a mais, um
contato por telefone, mas que seja a porra de um contato. Isso não é nada, é
um bem material, não leve em consideração o valor monetário, quero que
sinta apenas a real preocupação e zelo que estou demonstrando.
— Mikael!
— Me escuta, por favor. Sou bruto, insistente e muito beligerante
quando se trata de você. Não meço palavras e se me sentir acuado vou atacar,
mas não faço porque quero machucá-la, é o meu jeito de me defender e juro,
vou me empenhar em mudar.
— Isto não quer dizer que eu deva aceitar, — por fim, minha voz
volta à tona — Escuta você, com atenção. Antes de ser mulher, — e não sua,
— sou uma mãe e estou em uma missão de me tornar um “pinguim fêmea
perfeita” para o meu filho.
— Eu sei que já é, mesmo que não faça ideia do que signifique sua
analogia.
— Sou do tipo que vai atrás daquilo que o filho precisa, e não
necessito de forma alguma, de alguém que quebre meu coração em milhões
de cacos e me faça perder o foco, que o é meu Anjinho.
— Não vou fazer isto!
— Não quero acreditar que ainda possa fazê-lo!
— Não estamos lidando com o passado aqui Lia!
— Nem muito menos com o presente!
— Com o presente, sim; e tentando achar um lugar para o futuro.
Estou disposto a aprender a fazer isto.
— Disposto?
— Sim, e se soubesse que tenho o caralho de um mantra na mente
me incentivando a aprender tantas coisas, não duvidaria de mim.
— Não estou duvidando, contudo, não sou uma mulher sozinha,
não estou vendo certas palavras em suas alegações.
— Sinto muito, mas não as espere. Não me pressione, apenas me
deixe chegar até você da mesma forma que quero que se achegue a mim.
— Não vou bater na tecla, mas tenho um filho e não vou magoá-lo.
— Não vou fazer isto. Sei que tem uma criança na equação e por
mais quebrado que seja, jamais, faria algo com ele. Não vou negar que não
suporte imaginar que esteve com outro homem, e teve um filho com ele. Não
posso me apartar disto.
— Você esteve com muitas outras mulheres, não seja machista! —
não quero, mas o tom de acusação está presente na minha afirmação.
— Não sou machista Liana, contudo não sou capaz de… — ele se
cala e não me deixa ver o seu rosto para deduzir o que não tem coragem de
falar, — não consigo assimilar que…
— Mikael, o que você quer? — pergunto em fio de voz.
— Quero você.
— Eu não sou uma posse!
— Quero ter você.
— Eu não sou uma mulher livre!
— Quero estar com você, — ele dá um passo e finalmente cola
parte do seu peito contra meu corpo, ergo meus olhos avermelhados e
irritados das lágrimas e encontro os seus tempestuosos e lenientes cravados
aos meus. — Quero estar com você e com tudo o que possui. Não vou
conseguir fazê-lo de cara, mas quero aprender a…
As palavras me fogem e sem me dar conta o abraço com força, não
sei por que estou chorando, não é pelo valor simbólico ou os motivos que
tenha o feito me dar o carro, mas talvez por pensar em algo bom para meu
filho. Mesmo que não diga e seja teimoso em negar algo tão explícito, me
sinto abalada.
Porque é isto que ele está falando, não é? Hein? Ele está dizendo
que pode ficar comigo e com Anjinho? Meu Deus! Diz ser verdade, isto que
meus ouvidos estão capitando para que não morra de ansiedade e medo.
Inconscientemente dou um passo colando-me ainda mais a ele,
mesmo de saltos altos, Mikael me passa por uma cabeça, coloco-me na ponta
dos pés e deixo que seu corpo me cubra de todas as formas possíveis.
I Don't Want To Miss A Thing começa a tocar e parece cravar com
força sua letra sobre nós, sinto-o me embalar como se faz a uma criança, não
é o suficiente e Mikael me entende como ninguém, pois me aperta ao ponto
de retirar meus pés do chão e abraçar-me com tanta força cravando seu rosto
contra minha nuca, aspirando daquela forma que ele e meu filho fazem como
se um tivesse ensinado ao outro.
— Cheirosa…
A voz torturada me faz perder o compasso.
— Mikael…
Sussurro com a mesma emoção, como se estivéssemos anos-luz
sem nos ver, sem abraçarmos, sem poder nos tocar.
— Me perdoa pelo que disse no escritório, pela forma que agi e por
perder o controle.
— Você não pede perdão.
— Quero aprender Lia, quero que me ensine.
— Você não pode me acusar por ser mãe. Não pode usar o meu
maior tesouro contra mim, não pode me ofender e me maltratar por escolher o
meu filho sobre tudo e todos.
— Me perdoe por fazê-lo, não fui justo com você e nem com o
moleque. Ainda tenho meus medos, receios e minhas convicções, mas quero
aprender e aceitar, me ensina?
Meu Deus!
Meu corpo estremece de uma forma que não consigo controlar e
ele sente a cada um dos meus tremores e temores.
— Não pode obrigar-me a aceitar a herança que me foi relegada,
porque isso me machuca de uma forma que não pode imaginar.
— Não quero obrigá-la e você sabe que tem de aceitar, mesmo que
depois se desprenda dela, é o que o seu pai queria — abro meus lábios para
repelir o que diz, mas ele me corta — porém, estou disposto a negociar, se
me permitir cuidar de vocês, posso aceitar que ignore algo tão sério, no
entanto, em algum momento sabe que não poderá deixar isso assim.
— Não pode ser a porra de um controlador, Mikael. Sexo, trabalho,
minha vida particular, são coisas distintas, mas todas fazem parte de mim e
quando tenta controlar uma desequilibra a outra, — trago o ar para dentro —
o sexo, trabalho, a amizade, o afeto não atenuam o respeito que devemos um
ao outro. Eu não consigo tirá-lo da minha vida, com a mesma eficácia que
encerro meus casos em um tribunal, porque o meu corpo, sempre apelará. A
minha memória sempre irá impetrar uma forma de me fazer reconhecer o que
arduamente negamos.
— O sexo nos alimenta, é nosso elo mais carnal Lia, e sabe que se
permitir ser levada por mim, não deixarei que se machuque. O trabalho é algo
que poderia abandonar e ficar apenas com o seu filho, enquanto me
encarregaria de cuidar de vocês.
— Não posso — sussurro —, é meu escape, ainda não entenda,
mas o fará em uma oportunidade futura. Vai entender que isso me mantém sã
para ser a mãe que meu filho precisa.
— Meu peito se aperta quando a ouço falando assim e sinto um
orgulho que não sei explicar.
— É a primeira vez que o ouço falar algo tão benéfico pela minha
maternidade.
— Me perdoe por nunca o ter feito antes, — ele me faz deslizar
para o chão, porém ainda me mantém contra o seu corpo —, a sua vida
particular, que seja com os seus amigos e o pai do moleque, — sua voz se
estreita — não vou me intrometer, mas quero que nos abra as portas, você
precisa da sua família e estar em uma maldita bolha, mesmo que não seja o
que queremos. Não é justo afastar a todos, até a sua mãe.
— Não sabe de certas coisas, por isso não entende.
— Então me faça saber, mas no momento que achar propício, não
vou forçar. Quanto ao pai do garoto…
— Meu filho não tem contato com ele, — não sei o porquê, mas
sinto a necessidade de logo cortar qualquer coisa que venha falar.
— Porra!
O silêncio tenso recai sobre nós e isto me magoa, pois, se
pudesse… respiro fundo e me afasto para dizer algo e espero que possa fazê-
lo, mas Mikael se adianta calando-me com uma frase que me aterra ao
mesmo tempo, me dá esperanças.
— Não faz mal, crianças precisam de pais, mas alguns não foram
feitos para isto. Sei que me encaixo nessa categoria, Lia… — ele pausa —
não sou material para ser feito de pai, mas espero poder aprender e mudar
isto, se você me ensinar. Pouco a pouco.
Meu peito se aperta e expande de uma forma que não sei explicar.
Hoje, logo neste dia que realmente queria ter alguém ao meu lado que se
importasse com Anjinho, tanto quanto eu… logo hoje… Ele o faz.
— Você às vezes me enlouquece de uma forma que não consigo
acreditar, Mikael.
Seus olhos brilham com intensidade, suas mãos percorrem meu
rosto e descansam ao lado, o polegar desliza sobre meus lábios fixados com
batom vermelho do jeito que ele gosta.
— Pouco a pouco, Lia?
A pergunta me instiga a fazer uma promessa, não só para sua
satisfação, mas para nossa vida.
— Pouco a pouco, meu anjo mau.
De imediato as palavras de Christian voltam a minha mente e me
vejo acreditando que todos temos um lado bom e mau. Que o homem a minha
frente com olhar perdido de menino grande em um corpo musculoso, com
cérebro astuto, tem em seu coração sombras que podem entorpecer aquilo
que é, mas não podem encobrir o bom homem que nasceu para ser.
— Pouco a pouco, como quiser, mas me prometa algo Mikael.
— O quê?
— Prometa escutar-me, quando eu tiver de falar.
— Estou aprendendo a fazê-lo e prometo, que irei escutar.
Para selar o que disse deixo meus lábios fazerem uma pequena
pressão sobre a digital que desliza de um lado a outro fazendo carinho,
depositando ali um beijo.
— Isso significa que vai entrar no carro sem fazer drama? — ele
pergunta acendendo seus olhos com fagulhas que nada tem a ver com a nossa
conversa cálida, mas sim com algo mais obscuro e perverso. Com um desejo
que não posso negá-lo.
Pauso um instante e olho para o carro a minha frente. Ele comprou
para mim, mas na parte de trás está reservada para meu filho, ele pensou em
Anjinho e quero dar ao meu bebê algo que me pede com tanta afinação,
preciso aprender a ceder.
— Como devo recompensá-lo um presente destes?
— OH! Tenho ideias. Uma motorista… Um sexo quente no banco
de trás… Espera, no banco da frente, já que atrás é do moleque.
Ri e de uma forma que não consegui me controlar, ele riu comigo,
mas entre os risos e algumas palavras desconexas vieram, algo que me deixou
com medo.
Algo que não queria ver, mas está lá… Eu me perco com ele… me
perco por ele.
— Dash? — sua pergunta feita em um sussurro me estremece.
— Falando em russo comigo?
— Sim, qual a sua resposta, dash?
— Sim, vou dar a você o que quer, porque é o que também desejo,
mas ainda não estamos totalmente resolvidos, que fique claro.
— Enquanto vivermos, teremos o que resolver, eu a magoei no
passado da mesma forma que fez comigo. Nestes últimos dias, minha mente
parece a porra de um loop eterno onde tenho revivido memórias que muito
tempo estão enterradas. Não sou idiota Lia, sei que isto não vai se resolver
rapidamente, mas de algum lugar temos de começar.
— Sexo não é remédio Mikael, não resolve nada.
— Todavia, nos mantêm juntos como tantas outras coisas, e seria
um desgraçado se não confessasse o quanto te desejo. Muito além do que um
dia fiz. Quando não se tem ao alcance o que deseja, sentimos falta, mas não
dói, porém, ver você mesmo que seja por poucos segundos diariamente, tem
me deixado louco.
— Você não gosta de dependências.
— Pois é justamente como me sinto, dependente de você. Então vai
ficar comigo?
Não respondo, mas deixo meu corpo falar diante desta confissão
que me arranca o restante de prudência.
Inclino-me contra ele, colo meus lábios sobre os seus. O primeiro
contato é cálido, mas basta que minha língua toque o seu lábio para o fogo
que nos consome emergir com força e sua boca deslizar com ímpeto sobre a
minha. O beijo pronunciado tem uma promessa de sexo suado, ardente
daqueles que desmorona o corpo e a alma.
Suas mãos buscam com afã minhas costas, deslizam pela minha
pele arrepiando-me até chegar ao meu quadril e sem cerimônia me abarca a
carne coberta pelo tecido de linho das calças, apertando as bandas com força,
sinto sua ereção esmagando meu ventre, a fina dor do beliscão que ele me dá,
mas ainda assim não reclamo, pois meu corpo está entregue a um desejo que
está a ponto de eclodir.
— Yebat' menya? — ele recita nesta voz rouca cheia de tesão.
Não posso impedir a gargalhada sexy que brota nos meus lábios.
— Oh! Meu Deus! Como você é romântico Promotor? Fode
comigo? É isto que acabou de perguntar?
—Sim ou não, sua diaba.
—Sou uma anja. — arqueio o sobrecenho.
—Endiabrada e quente como inferno.
Ele come minha boca e me prende contra a lataria do carro,
erguendo-me para minha perdição.
—Sim, — sussurro e meus lábios devoram sua boca gostosa. Sim,
para tudo — penso.
Meu corpo agradece, meu coração enternece e como mãe, me sinto
um pouco mais próxima de fazer meu filho feliz. Porque somos inseparáveis!
CAPÍTULO 21

INDECOROSAMENTE
“But touch my tears with your lips
Touch my world with your fingertips
And we can have forever
And we can love forever
Forever is our todayWho”
Wants To Live Forever — Queen

LIA

S
uas mãos percorrem meu corpo de cima a baixo, sinto-me no redemoinho de
sensações, saudades e uma irrefreável necessidade de sentir e me envolver
com sua lascívia e as carícias que estão além do imaginável.
— Não se atreva a arranhar meu carro Promotor, é melhor se
afastar. — digo entredentes capturando seu lábio carnudo entre os meus.
A sua risada sexy de macho excitado, me arrepia por completo, sua
mão sobe pelas minhas costas deslizando de leve as unhas bem aparadas,
deixando um leve arranhado sobre minha pele até alcançar a base da minha
nuca.
— Não quer que arranhe seu brinquedinho novo? — ele debocha.
— Não! — respondo categórica, aceitando outro beijo arrebatador
da sua boca.
O gosto mentolado da sua língua deslizando sobre a minha me
entorpece. Um gemido esmigalhado de prazer ressoa da minha boca para sua.
Como uma potente alavanca, Mikael me afasta do automóvel,
segura por baixo de uma das minhas coxas e me puxa com entusiasmo contra
seu corpo, não perco a oportunidade e rodeio minhas pernas à sua volta
apoiando meus tornozelos cruzados sobre o osso sacro.
Minhas mãos se enredam por sua nuca até deslizar sobre a base da
coluna da mesma forma que faz comigo, todavia sua pegada é bem mais
arisca. Mikael dá voltas com o punho em meu longo cabelo azeviche e o
agarra firme fazendo minha cabeça tombar para trás expondo minha garganta.
— Se não quer inaugurá-lo do lado de fora, de fato o faremos do
lado de dentro.
O grito afogado em êxtase que reverbera em meu peito, sai entre
meus lábios e, é acompanhado de outra risada afrontosa. Sua boca deixa
beijos ao lado do meu rosto, enquanto sua barba arranha minha pele descendo
pela coluna com meu pescoço estirado para trás.
Mikael, dá alguns passos rodeando o automóvel, ouço de leve ao
bater da porta do motorista que ainda estava aberta, mas nem faço caso disto,
pois, sua pose está esmigalhando minha libido, levando-me ao supra sumo do
erotismo.
Adoro a forma que ele me prende com seu corpo contra a coluna de
sustentação da garagem, as leves mordidas que deixa sobre minha pele, os
beijos de boca aberta sobre a altura dos meus seios e potência do roçar que
sinto ao arremeter sua ereção escondida pelo jeans entre minhas pernas.
— Mika… — minha língua parece dopada e se arrasta em meus
lábios, capturando-os para evitar que grite ao sentir a mordida sobre o bico do
seio enrijecido. Nem mesmo o material do body pode impedir a ardência do
ato.
— Adoro sentir seu corpo respondendo ao meu. — ele reduz ainda
mais o espaço que tem entre nós e sinto-me completamente achatada contra o
cimento. — Vou perguntar mais uma vez, porque depois que arrancar a sua
roupa, não vou parar. Está me ouvindo? — ele rugiu em meus ouvidos e
deixando um tapa ardido contra uma banda do meu quadril.
Isso acende-me o desafio, forço minha cabeça para baixo, livrando
parte do meu cabelo da sua prisão e o encaro firmemente.
— Eu disse que sim, no entanto, isso não quer dizer que estamos
resolvidos, — uso o mesmo tom com ele.
O miserável tem um sorriso no canto da boca e não usa palavras
para concordar comigo, mas faz um meneio duro com a cabeça. Mikael trava
seus olhos sobre meus lábios inchados e sem cerimônia me arrebata outro
beijo, porém esse é mais suave, o oposto dos gestos afoitos e severos que tem
com as suas mãos.
Ele dá um passo atrás, descruza minhas pernas me fazendo resvalar
por seu corpo, com agilidade em segundos desabotoa minha calça que desliza
pelas minhas pernas e o ar frio do subsolo me arrepia a pele.
Tomo consciência de onde estamos, mas a sintonia é tão crua e
intensa que descarta meu medo de sermos pegos com um simples arremate de
palavras.
— Ninguém virá aqui, as câmeras estão desligadas, somos só nós
dois.
— Já tinha isso premeditado, Promotor?
Ele não responde e alço seu rosto com uma das mãos por baixo do
seu queixo.
— Não queria audiência para outra conversa entre nós. O que
aconteceu no escritório Lia, não se repetirá jamais.
Isso me aterra, eleva e sacode todas as minhas muralhas. Deixo-me
guiar por suas mãos, pois ele sabe melhor do que ninguém o que gosto e
como me deixar em êxtase.
Mikael se agacha, retira meus sapatos e me deixa à sua frente com
as pernas levemente abertas. Ele literalmente me cheira. Escorrega a boca e
nariz por sobre meu ventre até a curva do meu sexo, me sinto um pouco
envergonhada, pois sei o quanto estou molhada, mas a vergonha é só um
charme do meu consciente querendo manter algum controle sobre a situação.
Entretanto, isso acaba quando ele segura minha coxa rodeada pela tatuagem
com a escala musical, onde as notas da nossa música, foram gravadas após
consolar a mim e Anjinho.
— Isso é algo que me enlouquece, desde a primeira vez que vi, —
ele diz em voz baixa, sua mão transcorre cada nota e depois é a vez da sua
boca, subindo por dentro da minha coxa até tocar o centro do meu sexo.
Sua língua desliza em um vaivém longo e lento apreciando o que
me faz em uma larga escala de tortura.
— Quero fazer tantas coisas, mas a porra da impaciência, não vai
deixar! — ele diz como se estivesse frustrado.
O que posso fazer por ele se me sinto da mesma forma? Por este
motivo não reclamo quando desce minha perna de volta ao chão, se afasta e
com movimentos frenéticos arranca a sua jaqueta, botas, camisa e desabotoa
o jeans. Tudo nessa ordem.
— O que está pensando em fazer? — pergunto olhando dele para o
banco do copiloto que faz deitar-se até virar literalmente uma cama.
— Quero mostrar o conforto do seu brinquedinho, — ele pisca.
Por Deus! Isso é o inferno de sexy.
Mika retira a carteira da calça e a joga sobre o console do carro,
logo em seguida a descarta ficando apenas com uma boxer preta,
completamente estirada pela colossal envergadura do seu pau ereto. Lambo
os meus lábios ao ver como a cabeça da seta ultrapassar o cós, marcando as
veias grossas que deslizam das laterais do abdômen sarado com todos os
gominhos ressaltados, até se esconder pelo elástico maltrato da boxer.
Não resisto, dou um passo à frente e deslizo minha mão por todo
ABS[8] trabalhado até alcançar esse V do inferno que arde as pontas dos meus
dedos. Minha boca alcança um mamilo rosado, a pele com diminutas sardas é
quente e se arrepia com leve toque da minha língua. Sem que perca a posse
do botão eriçado, cruzamos os nossos olhares e estremeço com a expectativa
do prazer.
Uma fúria indolente e intrépida faz com que as aletas do seu nariz
se abram aspirando com força.
— Quero muito fazê-la descer até mais embaixo Anjinha, no
entanto, não aguento mais esperar.
Dito isto, ele volta ao domínio do meu corpo, mas desta vez nos
levando para dentro do automóvel, meu corpo abarcado pelos braços que
mais parecem toras cai por sobre o seu. Minhas pernas se encaixam em sua
cintura e tenho meu sexo diretamente abraçando a coluna erguida entre elas.
— Isso é erótico e muito gostoso! — exclamo extasiada.
— Nunca transamos em um carro, — seu olhar é safado.
— Não. Contudo, imagino que o banco detrás, seja mais
confortável.
— Nem pensar! — ele exclama com firmeza.
— Por quê? — pergunto, mesmo que ele tenha dito algo sobre isto
antes.
— Já disse: é do moleque! Não consigo imaginar foder a mãe dele
ali, e depois colocá-lo para viajar no mesmo lugar. — ele fecha os olhos e
balança a cabeça.
Começo a rir encantada com a sua expressão, mas me calo para
ouvi-lo.
— Não fazia ideia de quanta coisa precisava para abastecer um
carro para o transporte de crianças.
— Do que está falando?
— O porta-malas está cheio de tralhas, cadeirinha para peso X,
assento para idade Y, protetor de cinto, de vidro, pescoço e um monte de
coisas.
A forma que ele faz a sua alocução me deixa sem fôlego, essa
consideração é realmente típica dele, mas sendo direcionado a Anjinho, me
enternece de uma forma que não posso impedir-me de demostrar com meu
corpo.
Me jogo sobre Mikael circundando seu pescoço com meus braços e
o beijo com toda a paixão que nos concerne. Deixo-me levar pelos delírios de
imaginar que não há segredos entre nós, que nunca houve nenhuma
separação, que desde sempre formamos uma família e isso faz com que brilhe
um sentimento intenso dentro do meu peito, e o trago para fora, na mais pura
forma de me entregar a ele.
Mikael corresponde meu beijo com outro ainda mais selvagem, ele
me faz gemer e estremecer sobre si, sua mão vai até à altura do meu pescoço
e faz deslizar as alças que prendem o body, deixando-me nua até a cintura.
Meus seios bamboleiam pesados sobre seu peito, ele não se retém,
me afasta um pouco mais de si, pega-os em suas mãos sopesando-os,
deslizando os polegares sobre os mamilos de cima a baixo, fazendo meu
corpo estremecer.
Sem aviso sua boca captura o mamilo onde outra tatuagem tinge a
pele junto a uma pequena argola de ônix. A língua brinca de um lado a outro
dando pequenos puxões, mas isso rapidamente é deixado de lado quando a
sucção fica mais intensa ao ponto de sentir uma fina dor, a que me coloca no
limite de reclamar e tentar afastar-me, mas ainda querendo que ele continue a
sugar.
— Mikael! — grito e ouço o pop ao ter o mamilo esquerdo
liberado apenas para que ele dê o mesmo tratamento ao outro, enquanto suas
mãos viajam por meu quadril, segurando com força minha bunda de ambos
os lados.
Minha cintura se move sobre seu pau sem qualquer vergonha,
requebro meu corpo buscando alívio para minha ânsia, assim como ele faz,
moendo ao encontro do meu centro.
Sem aviso ele estala um destes tapas bem dados sobre a carne, o
som das chicotadas ricocheteia pelo interior do carro e ganha amplitude pelo
subsolo vazio. Sinto meu corpo respondendo, e mais líquidos vazando pelos
lábios lisos do meu sexo.
— Quero muito foder essa boceta que está empapando meu pau
Anjinha.
O homem versado no sexo ardente está no controle, de longe é o
Promotor centrado, que não pode demostrar um pingo de misericórdia, ou o
amigo cheio de brincadeiras, que usa o riso para camuflar sua verdadeira
natureza.
Esse Mikael, que me tem escarranchada sobre ele, só se mostra
para mim e mais ninguém. Isto me coloca em estado de pré-gozo iminente,
sinto os picos se construindo com gravidade dentro de mim, mas ainda
preciso fechar um último ponto antes de dar-nos o que queremos.
Outro tapa e me sinto a borda. Plás, plás, plás… — ele deixa uma
sequência que me aquece, mas ao passar para o outro lado o grito que sai dos
meus lábios, nada tem a ver com sexo e ele me olha aturdido.
— Porra! Esqueci de falar. Aiiii! — reclamo
— O que foi? — ele me olha aturdido.
— Injeção? — a expressão sai entre lábios com um sopro.
Sua expressão de “como assim?” me faz rir e rapidamente
expliquei sobre o uso anticoncepcional injetável que voltei a usar, mesmo que
não me dê bem com a dor e o hematoma que fica na nádega.
— Porque está usando injetável, já não tínhamos falado sobre isto
meses atrás? — ele rugiu com raiva.
Fez uma carranca com as sobrancelhas curvadas, alavancou meu
corpo para que desabasse por cima do seu e de algum jeito conseguiu se
curvar para ver o estrago.
A polpa avermelhada não esconde um leve amarelado. Não sei o
porquê, mas sempre que tomo a injeção, ela passa praticamente todo o
período que esteja valendo como um calombo doloroso, e com um roxo nada
sexy na bunda.
— Sim, mas tive o problema no final de ano, e minha ginecologista
achou melhor voltarmos o injetável uma vez que tive de tomar muitos
remédios. — minha voz é um sussurro e evito falar com ele sobre esse
assunto, mais um que nunca conversamos.
Seu corpo reage, retesa e mantém o silêncio. Sinto sua mão
deslizando com cuidado sobre a área. Esse detalhe nem de longe nos faz,
esfriar, ao contrário, a carícia intensa da sua mão resvalando é contínua e vai
avançado descaradamente. A cada vez mais em um sobe e desce.
Mikael é perito em me fazer arrulhar de desejo, e isto acontece
quando afunda mais um pouco seus dedos e com alguns movimentos precisos
me penetram por trás a entrada do meu sexo arrancando alguns xingamentos
eróticos dele e mais gemidos meus.
— Para de usar isto, não gosto que sinta dor. — ele demanda.
— Sério? — pergunto com deboche.
— Não desse tipo. — ele sussurra no meu ouvido enquanto beija
ternamente minha garganta até pegar meus lábios.
Algumas carícias a mais e voltamos no mesmo ponto, a adrenalina
subindo, o tesão gritando e meu corpo respondendo à invasão dos dedos
deslizando entre os lábios molhados do meu sexo.
Mika me ergue um pouco, retira seu pau de dentro da cueca e este
me dá as boas-vindas rodeado por uma veia calibrosa, com prepúcio
escorrendo pré-sêmen e o malvado piercing atravessado sobre ele. As esferas
reluzem entre nós, meus dedos emborcam em volta do seu pênis e fluem
fazendo com que mais desse líquido perolado escorra e nos mele.
Os pelos pudicos tão ruivos como seu cabelo, são aparados bem
rentes na área do púbis e fazem cócegas sobre as pontas dos meus dedos, mas
as pesadas bolas do saco devidamente depilado me aguça a vontade de
experimentá-lo.
No entanto, Mikael tem outras ideias e aprecio muito todas.
— Pare de babar por cima, e me encharque com a debaixo minha
Anja endiabrada.
— É romântico como uma tora, Promotor, — o acuso.
— Isso, diz a mulher que quer comer-me vivo, literalmente, — ele
solta uma risada e me busca com o olhar. — Diz o que tem a dizer, antes que
me perca completamente dentro de você, Liana. — a voz séria me faz erguer
meu rosto e afrontá-lo por alguns segundos.
Mesmo que não tenha falado, ele sabe que há algo mais que
precisamos deixar claro entre nós. É essa química da qual jamais pudemos
escapar, durante toda a nossa vida.
Respiro e me ergo um pouco mais, sentindo-o levar para o lado a
parte inferior do body expondo minha vagina completamente a sua mercê, ele
coloca um braço dobrado por debaixo da sua cabeça, fazendo de travesseiro,
me encara com uma expressão séria como se estivéssemos em uma mesa de
negociações.
Sua mão livre escorrega por minha coxa até que seu dedo indicador
pare bem acima do meu clitóris, resvalando sobre o segundo brinco de ônix,
cravado no botão enrijecido, completamente fora do capuz.
Trago uma nova baforada de ar e mantenho a minha concentração
nele, o máximo que consigo.
— Não estamos resolvendo tudo, aqui e agora. Concordo em
começarmos de algum lugar, mas quero que você me diga com todas as
letras, sem subterfúgios, charadas ou qualquer jogada para me ludibriar,
Mikael Nikolaievitch.
— Farei, pergunte Liana.
— Você quer a mim e ao meu filho, na sua vida?
Meu coração falha uma batida, meu corpo continua sendo
embalado por ele e posso sentir o orgasmo se construindo novamente
lentamente enquanto dedilha meu sexo como se fosse seu violão.
— Sim!
— Só sim? — não quero demonstrar dúvidas, mas elas estão aqui.
— Ainda não quero ser pai.
Essa frase poderia me quebrar em milhares de pedaços como tantas
outras vezes, mas desta, mantenho firme meu agarre a convicção de que ele
deseja mudar algo entre nós.
— Ainda não sei se consigo ser um bom substituto. No entanto,
tudo é ainda… Estou propenso a mudar. Sei que você tem medo, já estive
desse lado da balança quando não podia me defender, por isso e por muitos
motivos que quero demonstrar em um futuro bem próximo, pouco a pouco,
dia a dia… — ele suspira e para seu movimento.
— Que quero viver esse momento, sou um bom tio para os filhos
dos nossos amigos, mas sei que se quiser ficar com você vai precisar
aprender a ser outra coisa, então, tenha paciência comigo. Não duvide do que
sou capaz e no momento que precisarmos conversar, vou te escutar como
prometi e você fará o mesmo por mim agora.
Não foi um pedido, e sei que em um momento anterior iria rebelar-
me e gritar com ele, mas posso compreendê-lo, por necessidade e por
respeito. Pois, mesmo que gritemos um com outro e sejamos infames nas
ofensas, nos respeitamos como pessoas.
— Você não conhece a mulher que me tornei, Mikael.
— Da mesma forma, que manteve até hoje em sua mente, o
playboy inconsequente e cheio de amarras do passado, Liana.
— Fora mais de dez anos longe e isto nos forjou de formas,
diferente.
— Contudo, não nos matou.
Suas palavras caem em mim como uma bigorna quente aterrando
em meu estômago. Sua mão desliza mais uma vez pôr todo meu sexo e com
mais afinco, ele rodeia o brinco e puxa levemente me fazendo reprimir um
gemido ao voltar a mover seu dedo por meu clitóris que em momento algum
deixou de palpitar.
— Adoro saber que manteve meus brincos em você durante todo
esse tempo.
Não respondo, mas o sorriso sincero que deixo florescer em meu
rosto faz. Tenho em mim o mesmo sentimento do dia que roubei às duas
argolas que ele exibia nos mamilos e as escondi para mim.
As perfurações foram feitas às escondidas, era um presente para ele
que só as viu por um instante antes das nossas vidas virarem de cabeça para
baixo, no mesmo e último dia em que estivemos junto a muitos, muitos anos.
Lentamente desço meu corpo em sua direção e deixo meus lábios
pousarem sobre ele, com aquele beijo cálido que me deu a pouco mais de um
mês no restaurante da Carla.
— Oi!
— Oi!
Isto sempre foi uma brincadeira entre nós e senti tanta falta, que
esse simples cumprimento saindo dos meus lábios me levam a uma
tormentosa e espantosa explosão de prazer guiada por seus dedos subindo e
descendo pelo meu corpo.
O primeiro gozo me arrebata e me deixa mole por alguns minutos,
fundindo minha mente com lembranças de outra época de quem éramos e o
que queríamos.
Who Wants To Live Forever de Queen ressoa no carro e a doce
melodia de promessas parece nos embalar confrangendo nossas memórias
com a realidade do que somos e quem somos hoje.
Meu cabelo recobre meu rosto, os tremores se alastram por minhas
coxas arreganhadas sobre ele, sinto escorrer mais fluidos e molhá-lo, meus
seios ardem nas pontas e tenho a vontade de apertá-los dentro da sua boca.
Mas são as lágrimas que escorrem pelo meu rosto que tocam sua pele.

Mas toque minhas lágrimas com seus lábios


Toque meu mundo com as pontas dos seus dedos
E poderemos ter para sempre
E poderemos amar para sempre
Para sempre é nosso hoje

Ele é sensível para não dizer nada que possa me quebrar, mas ergue
seu rosto, toca minhas bochechas com os lábios e como na letra da canção
toma em sorvos as lágrimas que transbordam.
— Temos o nosso Pacta sunt servanda… — ele traga o ar com
força, voltando a mesma posição de antes. — Formaremos um pacto que será
respeitado?
Recuperada em partes, jogo meu cabelo por sobre o ombro e fixo
meu olhar no seu.
— Sem ab-rogação. O que está feito, não pode ser desfeito. — alço
meu corpo apoiando as mãos sobre seu peito, ergo meu quadril e sinto a
cabeça larga do seu pau forçando à entrada do meu sexo, deslizando
lentamente pelo canal apertado. — Em algum momento, poderemos nos
arrepender e certamente teremos embates gigantescos, é da nossa natureza,
mas se você concordar com meus termos, darei o primeiro passo.
Mikael está impávido, sei que meu movimento sutil o faz deslizar
pela borda do seu rígido controle, há muito mais entre nós do que apenas um
desejo, existem muitas janelas vedadas. Sempre haverá.
Ironicamente percebo as engrenagens da sua mente altamente
inteligente e analítica, correlacionando o que lhe proponho, com o que
realmente tivemos dentro deste último ano.
A forma como me olha é indecorosamente perturbadora, com um
menear firme dos braços musculosos, ele afasta seu corpo do meu, as mãos
grandes sulcadas por veias ressaltadas envolvem minha cintura e se contraem
com aperto firme.
— Nós sempre iremos tentar acautelar-nos contra qualquer
invasão, — ele ressalta, — em qualquer situação, por instinto, certamente
fecharei uma porta. Mas, tentarei mediar com uma brecha, se estiver disposta
a fazer o mesmo.
Sei que sinalizar um sim, pode ser a ruína de tudo que possuo, mas
é com o meu sutil gesto de aquiescência que ele me toma de supetão, e
ultrapassa todos os nossos limites com um impulso do seu corpo penetrando
fundo meu interior, de todas as formas permissivas.
Grito pela surpresa, a dor fina que a invasão causa e o arroubo de
fogo erótico que se alastra do centro do meu sexo preenchido, até a pulsação
enlouquecida que sinto em minha garganta e me deixo imbramar não apenas
pelo que sinto, mas pelo vejo em seu olhar.
— Se a Doutora, não tem nada mais a litigar, meu pau está a um
passo do colapso, louco para foder sua boceta melada.
— Espera, — respiro afogueada ainda pela colossal invasão. — A
camisinha?
— Você sentiu a porra de uma dor desgraçada para ficar segura, e
quer que eu use camisinha?
A pergunta dele me surpreende, entre nós apenas três vezes
transamos sem camisinha e de todas, mesmo as protegidas ele me
enlouquecia com suas perguntas ridículas sobre estar grávida.
— Pode parar aí, você não vai surtar como das outras vezes! —
rebato tentando me afastar da sua invasão, mas é impossível com seu pau
enorme e grosso como um punho ereto e enterrado até o fundo dentro de
mim.
— Não farei! — a resposta simples me assombra ainda mais,
porém a primeira estocada me tira do plumo.
Mal posso controlar as explosões subindo pelas paredes do meu
sexo, meses sem atenção, vertendo como uma cachoeira e tão ajustado contra
seu pau que posso sentir a pulsação da veia agressiva que reveste o caule
grosso.
— Aaah! Por Deus! — arrevesada pelas múltiplas sensações e o
fogo de mil infernos remoendo minhas entranhas exclamam. — Data vênia,
Promotor. Me fode, gostoso.
Ele só me demonstra um riso no canto da boca, a fenda dos olhos
azuis tornando-se literalmente cinza como uma tempestade, enquanto golpeia
com precisão dentro do meu corpo.
Sua mão abandona minha cintura para segurar meu seio e ali sobre
a tintura ele desliza os dedos e mantém seus olhos sobre a pele gravada,
espero que ele pergunte, mas como em outras vezes nunca o fez, então
mantenho-me em êxtase e em gemidos deixando no fundo da mente esse
embate para outro momento.
A pressão dentro do meu corpo se torna insuportável, mordo o
lábio inferior querendo alívio, Mikael continua sua invasão centímetro a
centímetro empalando-me por completo.
Os gemidos de ambos estão sobrecarregados por testosterona e
feromônios no carro, Mikael aproxima seu peito do meu, os seios latejam, os
bicos eriçados roçam contra os músculos, sendo prensados de uma forma
dominadora.
— Quer mais? — ele pergunta e penso em responder: mais? Só se
você quiser me partir ao meio, seu sádico.
— Não tem espaço para mais! — replico entredentes, pinçando um
novo orgasmo.
— Assim que gosto, arisca e só porque está pedindo com tanto
jeitinho. — seu sarcasmo me faz rir, para logo me pôr a navegar em um
turbulento êxtase. — Vou te dar mais.
A cada arremetida poderosa do seu pau dentro de mim, tenho a
sensação de que vou me partir ao meio de verdade, puta que pariu, isso é
saudade? Sua boca desce… e o beijo… Céus!
Ele beija meu pescoço e volta a saquear a minha boca, brincando
com minha mente e corpo. Quando penso que vou gozar, ele para e se afasta
pega o meu seio, chupa como se fosse um doce e volta para estocadas leves,
avançando novamente em um ritmo insano.
— Mikael, não seja cruel. Quero gozar! — grito pega por outro
torvelinho de sensações.
— Essa é a intensão, foder e gozar, mas de um jeito que faça valer
por tantos meses sem poder te tocar. — sua voz é inflexível, mas o toque das
mãos é fogo puro.
Tento manejar meu corpo sobre o dele para criar meu próprio
orgasmo sem muito sucesso, porque ele me conhece e sabe que não vou me
submeter tão facilmente.
— O que foi? Está apertado? — a pergunta é uma zombaria.
— Sim! — respondo, ele se afasta e me permite erguer minha
perna, para apoiar o pé na lateral da poltrona e isto abre-me como uma flor
para ele, e faz com que a bola superior do piercing roce no ponto exato que
preciso por dentro do meu sexo.
Sorrio como uma gata lasciva, me acomodo o suficiente e o cretino
se aproveita da abertura, ergue mais o corpo e soca fundo dentro de mim,
levando minha outra perna para a mesma posição.
— Que visão! — ele aprecia, pois, assim pode dedilhar meu clitóris
e pinçar a argola me fazendo revirar os olhos. — Melhor assim?
— Com certeza! — quase grito eufórica. — Sua ideia louca de
transar dentro de um carro é trabalhosa, mas você faz bem.
Ele para…
— Faço bem, hein?
— Com certeza, duvido que Rose dentro daquele carro embarcado
no Titanic, teve algo tão bom. — outro gemido sobrevém e apoio minhas
mãos no teto do carro.
— Devo me sentir lisonjeado. — o sarcasmo impera.
— Não se sinta, — rujo entredentes. — Você só é bom, porque sou
gostosa pra caralho! — afirmo sendo aterrada por outra estocada.
— A Rose, tinha uma boca suja assim? — ele pergunta com um
sorriso crescente.
— Não faço ideia. — sinto que estou perdendo a linha do
raciocínio. — Só tenta negar que o Promotor, dá o máximo de si, porque sou
eu…
— Você não é uma anja, é tormento endiabrado! — ele me segura
com firmeza e para todos o movimento.
— Não se atreva a parar Mikael. Temos um acordo. — me perco
na imensidão do desejo que ele retém.
— Temos a porra do acordo que quiser! — ele ergue o peito e volta
a me foder do jeito que gostamos. — Agora Anjinha, goza para seu Anjo
mau. — ele pisca daquela forma descarada e pervertida, assalta minha boca
com um beijo profundo e me faz deslizar para dentro de um gozo arrebatador.
Onde nenhum de nós é melhor que outro, pois se ele dá o melhor
por ser eu, com toda a certeza, dou tudo que tenho, apenas para ele.

MIKAEL
Após gozarmos mais três vezes como loucos, alcancei o banco
detrás do motorista e tirei de lá uma caixa de lenços umedecidos. Lia me
olhou com olhos arregalados e me senti constrangido, não por cuidar dela,
mas por lembrar de como foi ir até uma farmácia e me sentir completamente
inapto diante da balconista comprando para o moleque.
— O que é isto? — ela gemeu com o contato do lenço frio contra o
sexo dolorido e ardido.
Não respondi, usei algumas unidades para limpar o sêmen que
escorreu, depois voltei a arrumar seu body, ou o que sobrou dele, a fiz
descansar sobre meu peito por um tempinho ouvindo o silêncio ser quebrado
pela música ao fundo que continuou tocando.
Seu corpo languido sobre o meu me deixa satisfeito, mas a minha
mente já está em estado combativo me recriminando por não termos recorrido
à camisinha e por gozar dentro dela, mas se preciso mudar, prefiro começar
com o que mais causou mágoas entre nós.
— Você vai me perguntar se estou grávida, não vai? —
Lia pergunta, mas o tom da sua voz se mantém sereno.
— July e Aline, tem extensor para o banco do carro e enchem de
coisas para crianças — dei de ombros sem nenhuma explicação a mais e
ignorando sua pergunta.
Lia não disse nada, ouvi seu suspiro e senti o toque dos lábios
mornos sobre meu peito.
— Mikael?
— Sim, muito provavelmente terei ganas de fazer isto, porém me
esforçarei para não o fazer. Ok?
Ela assentiu e continuou calada acariciando meu peito com a mão
suave.
O tempo transcorreu com lentidão, sua respiração se tornou errática
e podia jurar estar a ponto de dormir, mas o celular em sua bolsa que estava
no chão do carro começou a tocar e isto nos trouxe para o presente.
— Preciso ir, Anjinho está viajando com Nina, mas ele me liga e
gosta de passar horas conversando antes de dormir.
Moleque de sorte — penso. Quanto a deixá-lo viajar com o
Santana, não me agrada, mas depois de um sexo tão espetacular, não quero
puxar briga. O que não significa que provavelmente farei em algum outro
momento quando me lembrar disto!
Erguemos em um acordo, nos vestimos sem constrangimentos, só
com risos sacanas e olhares cobiçosos. Uma vez Lia me disse, que somos
viscerais demais para agirmos como timidez e decoro, e tudo entre nós
sempre seria como detonar uma bomba.
É verdade.
Ela se ergueu nas pontas dos pés e deu-me um beijo, me perguntou
se queria uma carona, com ar maroto.
— Não precisa. Vim de moto, está do outro lado.
— Hum!
— Seu guarda-costas está lá fora e vai te seguir no carro dele. —
não consigo segurar o tom e ela me olha de esguelha.
— O que foi isso?
— O quê? — outra resposta inflexível.
— Esse tom, Mikael. O que foi?
— Não quero minha mulher andando colada em outro homem. —
respondo de má vontade. E ela ri.
— Temos de ter seguranças.
— Pois, agora ele andará colado no seu carro, não no seu traseiro.
— Eu não vou responder a isto, porque me fez gozar três vezes e
sinto que ainda estou no limbo.
— Só três? — pergunto e ela revira os olhos.
— Me reservo o direito de ficar calada.
— Ok! — a trago para meus braços e beijo novamente. — Nos
vemos amanhã?
— Sim!
— Me liga depois que colocar o moleque para dormir.
Ela meneia a cabeça, seu perfume com essência de orquídeas se
espalha mais uma vez à nossa volta, a abraço e deixo que entre no carro.
Lia não diz nada e tão pouco faço, existem momentos que não
precisam de palavras e não quero escorregar em meu gênio dominante e
acabar levando-nos a uma briga por qualquer motivo.
Nos despedimos. Ela segue em direção a saída de veículos,
enquanto vou até minha moto. Saco o celular do bolso e faço uma chamada
que é atendida no segundo toque.
— Ela já está no carro, consegue rastrear!?
— Você conseguiu fazer com que Lia aceitasse o seu presente? —
a pergunta tem o tom de surpresa.
— Tinha alguma dúvida do meu poder de persuasão?
— Nunca, deu até calor. — a voz debochada soa como um miado.
— Come gelo megera, que passa. Então está rastreando?
— Sim!
— E a câmera?
— Ok! Dentro e fora antes que pergunte. E já deletei a caixa preta,
não quero imaginar o conteúdo.
— Tudo bem! — subo na moto e ergo o capacete. — Obrigada por
me ajudar.
— Não há de quê, ovinho. Agora vai me falar porque a urgência
em trocar o carro da Pocahontas?
Titubeie, mas agora que está tudo bem, assim espero, consegui
falar em partes.
— Por vários motivos, o mais importante, — pauso — porque eu
queria.
— Se essa mentira é a melhor explicação que pode me dar, vou
aceitar. — Angélica replica.
Na verdade, é a única que daria a qualquer um. Menos pelo motivo
de ter recebido uma foto do seu carro sendo sabotado com uma ameaça
velada: devolva-me o que é nosso, ou receberá em pedaços a sua
mulherzinha.
Quando assumi o cargo como Promotor de Justiça, de igual modo
assumi riscos ao fazer a lei ser cumprida, ser ameaçado constantemente não
era um problema, até quase perdê-la pelas mãos de Verônica.
Meus inimigos não são suposições de uma louca que queira de
alguma forma nos sabotar. Estes são monstros reais, que matam sem fazer
distinção e nem Verônica e nem ninguém vai me tirar o que me pertence.
Não mais.
CAPÍTULO 22

INTRÍNSECO
“Honeste vivere, neminem laedere, suum cuique tribuere”
(Viver honestamente, não prejudicar ninguém atribuir a cada um o que lhe
pertence)
Direito justiça harmonia

LIA

U
m dos mais deliciosos privilégios de ter comprado o apartamento de Aline, é
que estando deitada em minha cama, enrolada em um fino lençol posso
observar o nascer do sol por sobre o horizonte. Este é um espetáculo digno
dos céus!
Um sorriso bobo está irradiando pelo meu rosto sendo acariciado
pelos raios tímidos que ultrapassam as cortinas de organza as sacudindo com
a brisa da manhã, que vem pelas portas abertas da sacada do meu quarto.
Durante a noite por não conseguir dormir, resolvi ler um pouco na varanda e
me peguei admirando a lua. Não sou uma pessoa poética e romântica, porém
não consigo parar de sorrir desde que deixei aquela garagem na noite anterior
e isto deveria me assombrar.
— Ah! — exclamo e minha voz é quase um murmúrio de tão
rouca. — Não tente se enganar, Lia Você não está exatamente assombrada.
Uma risada me escapa, ergo as mãos e cubro meus lábios evitando
que o som se propague. Espreguiço meu corpo sentindo e relembrando alguns
músculos enferrujados que se colocaram em ação e olha que não foi toda a
ação que ele gosta, mas…
Estico meu braço e alcanço o Iphone sobre a mesa de cabeceira.
Após deixar um bom dia para Anjinho com muitas imagens fofas que ele
ama. Desço o dedo pela tela e abro as mensagens que troquei com Mikael
durante algumas horas depois de nos separarmos.
Não foram nada santas e nem tão pervertidas, não falamos de nada
tão sério, mas nos deixamos levar por conversas dentro daquilo que sempre
gostamos, um pouco de tudo: esporte, carros, motos, viagens, leis etc.
Isto levou a boa parte da noite e quando não aguentei mais, me
despedi.
Deixei o aparelho de lado e espreguicei mais uma vez, geralmente
a está hora já estamos terminando de nos aprontarmos para irmos à escolinha
de Anjinho, e depois para o escritório. Gosto de chegar cedo e por ordem em
tudo antes dos funcionários chegarem, mas por estar de férias resolvi que vou
aproveitar esse tempo de verdade, por isto sem pressa fecho os meus olhos e
deixo aquele soninho da manhã ganhar terreno sobre meu corpo.
Posso sentir a mudança do calor, a brisa aquecer com maior
intensidade e sinto que realmente sou capaz de dormir de novo, mas um
barulho abafado e repetitivo me desperta.
Zum… zum… zum… são mensagens que fazem o aparelho vibrar
entre o lençol.

@Promotor_nikolaievitch: um bom dia para a minha Anja gostosa


pra caralho.
@Doutora_anjinha: bom dia, podemos começar sem as
conotações?
@Promotor_nikolaievitch:acredita que estou atrasado? Logo eu?
Atrasado?

Ri da quantidade de emoticons furiosos que me envia, um atrás do


outro.

@Doutora_anjinha: por que está atrasado?


@Promotor_nikolaievitch: adivinha?
@Doutora_anjinh:
@Promotor_nikolaievitch: acordei, o que é mágico! Pois, nem sei
qual foi a última vez que dormi depois das três da manhã e dormi de
verdade.
@Doutora_anjinha: insônia?
@Promotor_nikolaievitch: depois te conto, o importante é que
fiquei rememorando nossa conversa de ontem e…

A mensagem parece ter sido cortada e logo um frio intenso parece


ter se estabelecido no quarto, e por um instante me assustei, aguardando
ansiosa o que tem a dizer. Ele enviou um áudio com uma voz extremamente
rouca e sexy, daquelas que fazem uma mulher revirar os olhos pela manhã
com aquele bom dia, que mais parecem uma passada de língua.

@Promotor_nikolaievitch: >> então, estou mesmo atrasado tenho


que estar no gabinete em meia hora, porra. Bom, fiquei lembrando de tudo,
desde o momento que adentrei àquela garagem, até vê-la sair e adivinha?
Tive que te dedicar duas punhetas minha Anja<<

Minha risada foi estrondosa, não me lembro da última vez que ele
me fez rir assim. Não vou responder, pois, em meio ao áudio abafado percebi
as manobras com a moto para retirá-la da garagem, e ao encerrar o ronco do
motor me diz que ele já deva estar pilotando.
— Seu louco! — exclamo ainda com riso nos lábios ao soltar o
celular.
Completamente desperta e cheia de energia, resolvo me levantar
para cuidar das coisas, pela tarde vou ao escritório a pedido de Pedro, então,
vou aproveitar a manhã para arrumar a casa, ainda tenho “mudança” em
caixas no quarto da lavanderia para desempacotar.
— Não vou dizer que me masturbei em sua homenagem Promotor,
mas não nego que (pensei) muito em tudo! — respondo virada para o
aparelho sobre a cama, alço meu corpo e sinto uma pontada que vai do
clitóris até o mais profundo do meu sexo. — Putz, seu bruto! — grito ainda
olhando o aparelho e me sentindo corar.
Pelo amor de Deus, — resmungo.
Devo ter perdido um neurônio naquela garagem na noite passada,
só isso explicaria essas “coisas” que estou sentindo. De forma alguma acho
ruim sentar e me lembrar dele a cada movimento.
Depois de um longo banho e uma corrida na orla, o café da manhã
foi premiado com suco de frutas e um iogurte com granola. Realmente me vi
disposta a arrumar a desordem no “quartinho”, no entanto, duas mensagens
no celular mudaram meus planos.
A primeira veio de Carlos Eduardo, convidando-me gentilmente
para assistir com ele e Anderson o último julgamento do caso em que Mikael
estava trabalhando, pela tarde ele faria o encerramento.
O único problema era o horário que já estaria comprometido com
Pedro, pois junto às férias ganhei uma reforma em minha sala e ele queria
saber o que desejaria mudar ou se deixaria tudo como antes.
Respondi à mensagem confirmando que iria, mas chegaria mais
tarde.
A segunda mensagem era de Nina. De acordo com minha amiga,
meu filho estava soltando energia para todos os lados como se fosse uma
bateria Duracell, louco para falar comigo. Pedi a ela só alguns minutos para
organizar todas as caixas que tirei do lugar e já ligaria.
Na tradução leia-se, empurrar com os pés toda a tralha de volta ao
quartinho.
Levei meu notebook para o que deveria ser minha sala, mas se
converteu em uma sala de música abarrotada de instrumentos musicais,
sentei-me em uma almofada no formato de bolha no canto próximo à
varanda, abri às portas de correr para que a brisa e a maresia do mar
pudessem entrar em casa. Conectei na sala de bate-papo. A conexão via Wi-
Fi fez sua mágica e em alguns segundos a sala foi preenchida pelos
resmungos de Anjinho e a voz de Nina.
— Você queria falar com a mamãe, então vem ver ela. — Nina está
com os cabelos amarrados com um lenço no alto da cabeça, fazendo um
murundu de cachos glamourosos, os óculos de aros redondos estão
dependurados na ponte do nariz diminuto e pela blusinha dá para perceber
que ainda estão de pijamas.
— Bom dia! — digo com entusiasmo, minha amiga se volta em
minha direção e faz um sinal de STOP com a palma da mão.
Ela se ergue e logo depois volta com meu filhote no colo,
cochichando em seu ouvido e enchendo-o de beijos em seu pescoço o
fazendo rir.
— Oi! Amor da mamãe, que saudades! — exclamo emocionada e
meu coração se apertando no ato.
— Mamãe! — ele olha para a tela e depois foca seus olhos na
câmera. — Mamãe? Mamãe?
— Estou aqui amor, olha para a tela grande.
Anjinho enfoca seu olhar na tela e sorri com todo carinho, pela
câmera vejo se aproximar e sei que está dando um abraço na tela do notebook
de Nina, ouço os estalidos de beijinhos e faço o mesmo do lado de cá.
Smack… smack…
Ele dá gargalhadas ao ouvir os barulhos sendo reproduzidos, se
vira e puxa Nina pelo rosto para que ela faça o mesmo. Dou risadas ao vê-la
fazendo biquinhos e me mandando beijos, batendo as pestanas longas como
uma boneca.
— Hummm! Quantos beijos, me conta Anjinho, está gostoso
passear na casa da vovó Sol? — a mãe de Gio e Nina.
— Vovó Sol. — ele é um repetidor básico, nem sempre o faz, mas
quando se trata de nomes de pessoas ou o dele mesmo, Anjinho repete como
se precisasse assimilar para si mesmo quem é a pessoa, em base de
conversação ele é bem tímido, mas às vezes pode ser que se agite por algum
motivo e nem sempre é algo ruim.
Às vezes é só a inquietante fofura de uma criança normal de cinco
anos, louca para fazer uma traquinagem.
— Conte para a mamãe, tudo que você fez. — Nina olha por sobre
sua cabeça e sorri incentivando-o a falar.
— Oba! A mamãe quer saber, olhe para cima e me conta.
Ele encara a câmera e posso ver com nitidez seu rostinho, confesso
que faço o mesmo que ele e beijo a tela do notebook, arrancando uma risada
de Nina.
— Fala para a mamãe, o Anjinho nadou com o tio Gio na piscina,
— ele sorriu e fez um som com a boquinha juntando os lábios macios em um
biquinho.
Tchibum…
— Isso mesmo! Depois foi andar de bicicleta com o vovô Fefê.
O pai de Gio e Nina e me custa a acreditar, apesar de sempre
mimar meu filho, que aquele homem tão severo tenha deixado de lado o terno
e a gravata para fazer algo assim.
— Foi no parque com os tios Gui e o Estevão, o que mais?
— Nossa, meu amor, quanta coisa. Ah! A mamãe também quer
viajar e passar férias com vocês! — exclamei adorando ver as traquinagens
dele mexendo em tudo que está a sua frente.
Ele coloca os dedinhos indicadores juntinhos e o pressiona no meio
da testa como se estivesse se concentrando para falar, o que é um charme
natural dele.
—Anjinho comeu sorvete com a tia Nina, dormiu com a bolota e a
kiki…
Bolota é a gatinha da casa e kiki é a soberana canina em miniatura
que domina a todos.
— Mais o quê? — Nina pisca um olho e já sabemos que ele vai
literalmente fugir do seu interrogatório.
— Quero brincar! — Anjinho da mesma forma que se entusiasmou
a relatar suas atividades, enjoou e fez uma dança da cobrinha para sair do
colo de Nina.
— Vai brincar então depois vem falar com a mamãe, te amo bebê.
— Vou ver os pinguins!
Meus olhos se arregalaram e encarei Nina, está revirou os seus e
deixou que saísse do seu colo para correr de volta ao outro lado do quarto
que, na verdade, é um grande sótão na casa dos pais, no terceiro piso.
— O que seria isto?
Nina rapidamente explica que ele comoveu o avô Fefê com a
historinha do seu livro favorito, que ele fez questão de contar, e nisto o pai
dela, para agradar o menino comprou uma vasta coleção de filmes com temas
de pinguins, pijamas, camisas estampadas e várias pelúcias.
— Jesus! — levei a mão ao rosto, emocionada sim, mas pensando
onde colocar toda essa nova “coleção”.
Deixando de lado as fofocas de Sampa e os passeios, quis saber
como foi a consulta com a Fonoaudióloga, Psicóloga e o Pediatra que mesmo
a distância continuam dando apoio ao tratamento de Anjinho e não poderia
estar mais feliz com os resultados.
— Ele está ótimo, Lia. Foi surpreendente para eles a evolução que
está apresentando, mesmo à distância. Elogiou o trabalho dos profissionais de
Vitória e indicou uma clínica no centro, dois médicos da clínica daqui se
transferiram para lá no mês passado.
— Uau, isto é ótimo, estava preocupada. Conversou sobre a
questão da escola, o que está acontecendo?
— Sim, eles passaram um bom tempo com ele, sabe como funciona
e Anjinho, não se queixou nenhuma vez, acredito que sair da rotina, desta vez
foi bom.
O alívio que desceu sobre meu peito é bem-vindo, não queria
pensar que qualquer coisa externa pudesse atrapalhá-lo de alguma forma, mas
que tudo está bem, só me faz sentir gratidão para com Deus.
— Mas… — a pausa longa e tom mais baixo na voz me deixa em
alerta.
Sinceramente hoje é o dia de ficar em suspense com tudo e todos?
— Mas, o quê?
— Anjinho, se queixou de saudades da Fadinha e tive de falar
dessa relação. Tem pretensão de ir até ela?
—Oh Deus! Claro que sim, farei isso no meio da semana, tenho
alguns compromissos e depois vou ao conservatório.
— Fico feliz.
Nina me mostrou pelas câmeras os laudos médicos, mas depois
disse que escanearia e enviaria por e-mail, o que de fato agradeci.
Falamos sobre ela um pouco, muito superficialmente, assim como
Giovane, minha amiga tem o dom de se manter imparcial e quase sobre a
superfície quando o assunto gira à sua volta.
A nossa conversa não se alongaria muito, por ter outro
compromisso, por isto quis que ela chamasse Anjinho, que estava se
divertindo em algum cantinho do sótão, mas Nina se recusou com meneio
lento de cabeça e aquele olhar escuro estreitado em minha direção.
— Bom, falamos de tudo e todos, agora vai me dizer, onde estava
àquela hora da noite, senhorita? — ela sorri com malícia. — Porque viada, a
sua pele está resplandecente!
Sinceramente não saberia o que responder por isso tentei dar de
ombros e fingir literalmente que não era comigo a pergunta, mas seria um
esforço inútil esconder qualquer coisa, afinal além de voltar para casa em
alguns dias, nós moramos junto. Ela melhor que ninguém sabe da minha
relação-não-relação com Mikael.
— Estava em uma reunião com o Promotor — o fato de usar a
profissão para indicar quem seja, é justamente para não chamar a atenção de
Anjinho.
— Mesmo? Está reunião foi calorosa? — ela gesticula com as
mãos e ri de forma sacana.
— Sim! Curiosa, foi intensamente calorosa.
— Opa! Essa é uma informação quente, excitante, mas o assunto
que concerne as partes, como ficou?
— Sabe que ainda não posso expor tudo, ou veremos um Promotor,
amarrado em camisa de força dentro de uma salinha de 4m × 4m, acolchoada.
— Lia, sinto por ser difícil, mas fico feliz por darem um passo em
direção a algum lugar.
— É exatamente isso que está acontecendo Nina, um passo em
direção a algum lugar, não resolvemos todas as coisas do passado e tão
pouco, as que julgo como futuro, mas estamos tentando mover as fichas do
presente.
— É um jogo de xadrez e perigoso demais.
— Sim! Muito, tem noção de que com ele pode perder tudo?
— Ou ganhar amiga, o não, nós sempre teremos, é provavelmente
uma das leis de Murphy.
— O que tiver de dar errado, dará? — pergunto.
— Não, a males que vem para o bem. Talvez agora você seja capaz
de falar em voz alta o nome do — ela gesticula com os lábios e posso ler
perfeitamente o que diz. — O nome do pai do seu filho — em voz alta, vai
admitir para si mesma quem ele é?
— Eu nunca fiz isto, não é? — pergunto tomando consciência da
minha auto negligência.
Ou minha única ferramenta de sobrevivência.
— Nunca. Estou ansiosa por ouvir isto. — Ela sorri com carinho e
ergue um fio de fone no ar. — será libertador, Lia. Por que não experimenta?
Pauso um instante e me reclino contra a bolha macia, meus olhos
vão de encontro o céu azul que observo pelas vidraças e meus olhos marejam
com as benditas lágrimas represadas.
Nina suspira e sua voz vem cálida pelo alto-falante. — Não é uma
pressão, mas veja, você decidiu ir adiante, quer tornar algo necessário real,
mas não se permite libertar? O que falta?
— Coragem. — Me surpreendo ao ouvir-me falar. — Falta me
perdoar, Nina.
— Do quê?
— Do mais importante. — pauso, não quero dizer tudo, porque
considero que isto teria de ser uma conversa entre mim e Mikael, no entanto,
me vejo destravando algumas trancas mentais e me dou conta que meus
lábios se mexem por si só.
— Quando fui embora e deixei tudo para trás, me fechei demais,
sofri o suficiente para que isto acontecesse e ao voltar, já era outra pessoa —
pauso. — Minha única vontade diante da minha nova realidade era odiar
profundamente a todos. Desde os meus pais até a grama que crescia no
jardim. Ele então? Nem se fala.
—Você teve motivos.
— Não me recusei a usar cada um deles para isto, não é mesmo?
— sou sarcástica. — Meses após ter voltado, recebi uma ligação de Aline, se
lembra? Ela me pediu para ser sua representante legal na questão das suas
filhas com Edu e — tranco o ar no pulmão inflando-me ao lembrar de como
meus sentimentos e pensamentos estavam na altura. — Voei na mesma hora
cheia de sangue nos olhos, fiz o melhor acordo para minha amiga e arranquei
um valor exorbitante dele, na hora nem passou pela minha cabeça que Aline
estaria abandonando as filhas; — olhei para Nina. — Não questionei sua
atitude moralmente, como teria feito em uma situação que não estivesse cega
de ódio, Nina! Isto é uma das coisas que me culpo, pois, deveria ter
interferido e a impedido de abandonar as filhas.
— Contudo, a males que vem para o bem, July é uma mãe
maravilhosa para elas, e se não fosse Edu enlouquecendo com as gêmeas, ela
não teria entrado na vida deles, e não seriam essa enorme família Dó, Ré, Mi
feliz…
— Me daria por satisfeita se fosse só isso.
Minha garganta se fecha e a sensação de fragilidade me deixa
irritada, ergo meus braços, levantando os cabelos pela nuca e faço um coque
no alto da cabeça com um nó.
— Lia…
— Quando entrei naquele escritório e vi quem representaria o
Carlos Eduardo, meu mundo ruiu de todas as formas possíveis, Nina. Após
dez anos vê-lo, só havia uma única coisa a dizer um ao outro, e era:
apresentar armas.
Nada poderia parar as ofensas, as disputas, os joguinhos de
palavras com duplo sentindo, usamos os problemas dos nossos amigos para
cavar em volta do nosso, pois do mesmo jeito que não me importei em
impedir a Aline, ele fez questão de tirar oficialmente as filhas dela, e fez de
uma forma grotesca, e eu concordei.
— Era o que Aline queria.
— Ela dizia querer isto e, não vi mal algum em acatar. Só queria
ferir a todos eles.
— Foi nessa data que…
— Sim, — suspiro —, foi na última audiência, antes de assinarmos
os termos, que tivemos uma briga horrenda e praticamente nos colocaram
para fora do Fórum, e não me pergunte como acabamos no primeiro motel
que vimos no centro.
— Uau?!
— Ah, sim! Uau, sem flores, sem jantares e muito menos um rolê
de mãos dadas.
Ri e desta vez foi mais de vergonha que dor.
— Eu nunca entrei em um motel na minha vida, mas fui lá com ele,
briguei e transei com ele. O melhor e o pior sexo da minha vida.
— Mas isto te deu algo maravilhoso… — O sussurro de Nina me
faz derramar de verdade, as tais lágrimas.
Com tapas sobre a face as expulso do meu campo de visão e encaro
minha amiga através da câmera.
— Sim, mas como sempre tem um, mas… lembra como voltei
destruída para São Paulo? Eu estava devastada Nina, de uma forma que
queria morrer.
— Não me lembre disto!
— Pois, aqui reside em mim a culpa. — Nina sacode a cabeça e os
cachos dançam a sua volta, mas não dou importância e continuo a falar com
toda a minha flama explodindo pelas narinas. — Na altura, estava tão
saturada, magoada e tão impelida na minha dor, que deixei de comer, e só
trabalhava, loucamente, por quase sete dias sem sair do escritório.
— O que jamais permitiria se fosse hoje.
—Você não permitiu, no primeiro lapso de cansaço me colocaram
para dormir, não foi? — ela dá de ombros. — Mas, depois voltei a toda carga
e desta vez, não tinha IV na veia, não tinha garrafinhas de água se
acumulando pelo chão, não tinha ninguém que me fizesse querer viver.
E nesse tempo passados quase uma semana o colapso real veio e
fui internada às pressas, à beira de uma inanição, desidratação profunda,
privação de sono, estresse e tudo que poderiam alegar.
— Me tornei uma morta viva!
— Eu estava lá, caramba! Não quero lembrar.
— Contudo, não posso esquecer! Foi em meio àquela quantidade
insana de fios conectados ao meu corpo e o desejo de morrer de tristeza,
apareceu uma médica possessa correndo em minha direção, balançando uma
folha como louca na minha cara, gritando, me sacudindo para acordar, —
Nina secou as lágrimas, mas não desviou o olhar. — Ela dizia: porque não
quer viver, tem um milagre agarrado às suas entranhas tentando sobreviver!
Deus meu! Levo minhas mãos a boca segurando o café da manhã
ao me lembrar disto, meu corpo estremece e quase que o notebook vai ao
chão.
— Me diz Nina, por que eu não reagia?
—Você reagiu, Lia. Saiu do CTI no dia seguinte.
— Não! Você não entende, enquanto meu bebê estava dando início
ao ciclo da sua vida, a mãe dele, quem deveria dar suporte, alimento e abrigo
estava destruindo seu casulo, tentando se matar! — gritei.
—Você não fez isto, você o guardou e trouxe ao mundo.
— E ele… Meu Deus! Ele…
— Ele é normal, tem saúde, é lindo e muito feliz Lia! Não se atreva
a voltar para essa loucura de pensar que a culpa é sua.
— Ele nasceu prematuro.
— Porque era para ser.
— Machuquei meu corpo. Imagina — sussurro e ela para me
olhando.
Respiro agitada e com minhas mãos tremulas toco a tela. — Só
imagina, o que Ele faria comigo, o que Ele fará, quando souber que não
queria ser pai, mas é. E que eu, quase matei o filho dele.
— Bendito Jesus! Liana, não fala uma coisa destas. É mentira.
Você é a melhor mãe que já conheci, mil vezes, melhor que a minha que me
abandonou. Por favor, não faça isto.
—Você queria que admitisse? Ok! — falo de supetão. — O Mikael
Nikolaievitch, é o pai do meu filho. E quer saber o mais chocante, como foi
que nós o fizemos? — Não me importo dela sacudira a cabeça em negação e
continuo externando tudo com a voz alterada.
— Dizendo um ao outro o quanto nos odiávamos. Olhando nos
olhos um do outro, naquele quarto de motel que nem sequer sei onde fica,
repetindo a todo momento o quanto nos odiávamos.
Silêncio
O mais denso, duro e concreto silêncio. Aquilo que nunca disse a
ninguém nem mesmo tive coragem de admitir em voz alta, acaba de sair dos
meus lábios, sem freio, sem barreiras.
De fato, algo parece que foi arrebatado do meu peito, o Band-Aid
que estava tampando a ferida foi arrancado, o medo e um dos motivos pelo
qual jamais cogitei contar a Mikael, que ele é o pai do meu filho acabou de
ser exposto para mim mesma em alta voz.
— Melhor? — a voz de Nina me puxa a realidade.
— Melhor?!
— Sim, o sufocamento, a dor é inevitável, mas sente que um peso
saiu das suas costas? Você acabou de suspirar com alívio.
— Acredito que sim.
Ou talvez não, mas não quero realmente ponderar mais nada neste
instante.
— Então aproveita a caçamba de entulho passando e joga fora essa
merda de culpa, pois não tem nada disto acontecendo aqui. Você é uma mãe
incrível, com um filho maravilhoso e o Promotor será uma pessoa
inexplicável, quando estiver pronto.
— O que te faz pensar isso Nina?
— Porque, todas às vezes que você disse que o odiava no passado,
eram mentiras que contava para si mesma e tenho certeza de que de igual
modo é com ele, — ela sorri, — Ou o homem de hoje, não é o mesmo de
antes?
Em partes sim, em outras não. Ele é alguém quem quero descobrir
e experimentar tudo em minha vida, com certeza.
— É uma ótima amiga Nina, mas não sei se posso.
— O k.c.t., que não pode. — Ela evita falar palavra próximo de
Anjinho e isso me faz rir. — Tanto pode que já começou. Estou esperando,
sem gritar com um belo sorrisão, me diz: quem é o pontinho, pontinho,
pontinho do pontinho?
— Ridícula! — suspiro, fecho meus olhos por um momento e
deixo a imagem do meu anjo mau vir a frente da memória com aquele olhar
azul acinzentado me entorpecer. — O pai do meu filho é o renomeando
Promotor de Justiça, Mikael Nikolaievitch.
— OH MEU DEUS! — Nina grita e bate palmas de forma
ensandecia e só posso sorrir para ela.
Realmente sinto que algo está esvaindo do meu peito como se um
balão que me sufocava estivesse se esvaziando.
— Ótimo! Agora é só seguir o plano.
Anjinho atraído por toda a bagunça de Nina, volta para seu coloco
e foca sua atenção no teclado, Nina muda a forma da imagem e ele passa a se
ver em tela maior. Em silêncio do lado de cá, observo meu filho rindo e
brincando, mudando seu foco para a câmera, quando Nina explica que ali é
onde se projeta a imagem.
Sim. Agora é seguir o plano, como ele mesmo pediu, pouco a
pouco. Mikael precisa de tempo para diferenciar preceito de realidade.
Entender o que é uma possibilidade do que realmente será efetivo e
para sempre. Essa é uma porta, que depois de aberta não poderá ser fechada e
qualquer coisa que façamos um ao outro, pode machucar alguém inocente. —
Sorri e relanceei meus olhos para Anjinho, que continuava a encarar a câmera
do notebook, com olhos tão azuis acinzentados como do pai.
— A mamãe ama o Anjinho! — exclamo alto quando Nina retira
os fones.
— O Anjinho ama a mamãe! — ele responde sorrindo com todo
entusiasmo.
— Ah! Será que esse Anjinho, tem um pouquinho de amor para a
tia Nina?
Ela fez cócegas nas laterais do corpinho fazendo com que a nossa
ligação se enchesse de gargalhadas infantis. Seu rostinho rechonchudo com
pequenas sardas a volta do nariz corou, e os solavancos que deu no colo de
Nina fizeram o cabelo lisos no tom raro e intenso de ruivo se espalharem para
todos os lados.
— Anjinho… — ele gritou — hahaha — o Anjinho ama a tia Ni-
nina.
Nina deu beijos em suas bochechas e me senti ciumenta por não
poder fazer o mesmo, mas foi apenas um segundo, pois em alguns dias
poderei encher meu filho de beijos e muitos abraços.
Ele suspirou e voltou a encarar câmera e se vendo em tela maior,
seus olhos brilhantes fixos nos meus sem que tivesse consciência disso então
como a cada dia desde que foi concebido, surpreendeu-me com sua natureza
celestial. Arrancando nosso fôlego de uma só tacada.
— Anjinho ama o MAH.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE VITÓRIA


— ES
Deixei o carro no estacionamento e corri as escadarias, sem
paciência para esperar, pelo adiantado da hora não conseguiria ver as
considerações finais de Mikael.
Droga!
Deveria ter saído do escritório no momento que Edu me avisou que
seria um encerramento breve, não sei por que, mas sinto no peito a angústia
de vê-lo com urgência. Talvez seja por começarmos a nos acertar na noite
passada, por não ter dormido pensando em tudo e nele, ou por ter essa
conversa tão perturbadora e gratificante com Nina.
Não importa Lia, essa é a verdade, admita. Qualquer que fosse o
motivo, desculpa ou a falta de uma plausível, viria até ele.
Não esperei para ver se meu guarda-costas recém emputecido por
me ver motorizada estacionou o seu SUV atrás do meu bebê escarlate. Outro
detalhe que não contei a Nina, mas ainda não acredito que ganhei um
bebezinho com tanta potência quanto ele… Hum, esse homem vai me deixar
louca!
O corredor está apinhado de pessoas, civis, alguns amigos do
jurídico e repórteres, muitos. Elevo minha mão chamando a atenção de um
dos seguranças, somos conhecidos e quando desejo assistir audiências me
permite a entrada.
Sem perda de tempo, o cumprimento com rapidez e entro pela
fresta da porta que protege com seu corpo contra a invasão dos repórteres.
Ao entrar e ver que o final do julgamento já estava em
adiantamento, preferi permanecer na última fileira. Não fazia ideia de que
seria aberto ao público, e me surpreendeu ter uma sala abarrotada, mas
percebo pelo comover das pessoas com o discurso em andamento do
Promotor de Justiça que a maior parte parece ser familiar da vítima.
Mikael reluz na sua toga, a máxima altura dos seus 1,90 atordoa a
todos que estão assistindo, desde o excelentíssimo Juiz, a bancada com sete
jurados, advogados, réu, escrevente e os responsáveis que fazem a segurança
do local, todos tem seus olhos fixados nele.
A oratória é perfeita, a voz não se altera. Ele tem o tom hipnótico,
respeitoso e quase poético. Está é a terceira vez que me esgueiro para dentro
de uma sala de tribunal e furtivamente assisto seu encerramento.
Não tem como não me emocionar, ele é humano, mesmo que
pareça ser um aço cortante com suas palavras. É severo, mas seus olhos são
apaixonados, a envergadura que faz ao erguer os braços e gesticular com
tamanha soberania me lembra um maestro com sua batuta conduzindo uma
sinfonia.
Seria omisso da minha parte dizer que a sua paixão por direito
penal é inexistente, somos apaixonados pelo que nos concerne e por mais que
ele tenha se formado e alcançado um elevado cargo público para pôr abaixo
as injúrias do pai, no fundo, é visível o quanto Mikael, ama o que faz.
Certa vez em uma das suas muitas entrevistas no final de um
julgamento com veredito ganho, ele se posicionou diante das câmeras nas
escadarias do prédio e sentenciou: busco a justiça, pois um Promotor está
aqui para defendê-la sempre. O réu está ali para arcar com os resultados
dos seus atos ou ser livre das acusações, mas em tudo defendo que se faça a
justiça para que aqueles que sobrevivem a maldade humana, durma uma
noite a mais tranquilos de que o mal, será extirpado do nosso meio.
A expressão em seu rosto na época era tal como agora, apaixonada
e impoluta.
Senti uma mão sobre meu ombro e me retrai, ergui meus olhos para
dar de cara com Carlos Eduardo e Anderson que vieram assistir às
considerações finais.
— Ele, — Edu indicou Mika, e cochichou em meu ouvido — nos
disse que faria o seu discurso com menos de dez minutos.
— Ele acabou de subir na tribuna, — respondi sem desviar meus
olhos do homem que agora se virava de frente para nós.
— Fiquem quietos! — Anderson exclamou compenetrado.
Edu deu de ombros e eu continuei mirando o homem, o Promotor,
o Pai do meu filho discursar apaixonado, e só me dei conta do que falava,
quando seus olhos nublaram e entendi por que os nossos amigos estão aqui.
— Usando da sua prerrogativa de questionar o réu, o Promotor
apenas faz um questionamento: no momento de desfrechar um golpe de faca,
uma apunhalada nas costas, na nuca da vítima o Senhor fez por amor, ou por
ódio? O réu ficou estático por cerca de dez a doze segundos, ele
simplesmente não consegue dizer a palavra amor.
Mikael olha a cada um com completitude.
— E ao ser capturado ele vociferou que matou imbuído de uma
mistura de ciúme e raiva, sendo que logo após o ato cometido o infame foi a
casa do genitor da vítima, — o pai e disse: vai até à praia buscar o corpo da
sua filha.
Nesta hora a comoção em meio ao público faz-se alta, mas com um
gesto de mão ele coordena que todos se acalmem sem que precise do Juiz
interferir.
— Em um ato de covardia o réu ali comete outro assassinato, pois
ele mata emocional e moralmente, dilacera o pai da vítima com suas
palavras e mais, ele ainda não pode falar que o seu ato foi por amor, por
quê? Porque, punhaladas, tiros, puladas, bofetadas, socos, pontapés, pisadas
que na sua loucura, julga ser atos precedidos de “carinho” ou sucedido de
falsas lágrimas, ou pior ainda, cartas hipócritas, — Mikael estoura. — Não
são gestos de amor!
Sinto meu peito se apertar e meu corpo responde à urgência de
acalentar a dor daqueles que estão a nossa frente e vertem lágrimas ao ouvi-
lo.
— A violência, senhoras e senhores não pode ser justificada com a
palavra amor. Isto são gestos de maldade, covardia e a conduta do réu
resulta de um ciúme desprezível, de uma vingança aliada à prepotência.
Mikael, reclina sua cabeça suspira, ele ergue seu olhar que crava
dentro do meu, porém logo se distância e mantém a entonação.
— O assassino passional, ele nutre um egoísmo qualificado,
senhores jurados, pelo sentimento de posse. Ele objetiva. Ele objeta e torna
uma mulher de sujeito para objeto da sua maldade e tirania. Desumaniza a
pessoa para exercitar a sua prepotência, se fazendo valer do conceito de que
é portador da paixão, na sua forma mais severa e não tenta matar por amor
e sim por puro ódio.
Ele pausa. — É ignavo e indolente, o réu atacar a vida da sua
companheira, pensando agir conforme o que acha ser o seu direito, mas, na
verdade, nada mais faz do que deformar a justiça. O que vemos hoje nos
tribunais, são casos hediondos de crimes impetrados por cidadãos na mesma
condição que o réu — ele pausa novamente — para solucionar problemas
como infidelidade, o que não é este caso, ou, porque a companheira adquiriu
um novo celular, o que também não é parte do nosso caso, como outras
peculiaridades de uma vida a dois, há mil formas de se remediar, com um
divórcio, separação, o diálogo saudável, mas nunca a violência.
— E, nessa altura faço a pergunta, por que alguns matam, Doutor
Castilho?
Mikael se vira em direção ao advogado do outro lado da sala e logo
em seguida encara o réu fixamente.
— Ele discutiu com Mika no corredor, — Edu sussurra em meu
ouvido. — O advogado quis alegar que o réu, tinha um distúrbio, uma
esquizofrenia, mas o laudo da perícia não pautou a sua afirmação.
— Castilho é um sujeito estranho, — resmunguei.
— Ele acusou Mika de estar arrumando seus próprios peritos, por
isso a bagunça no escritório, porque os estagiários foram falar com o
advogado do réu.
Ah! Então foi esse o motivo daquele estouro?
Meu Deus! Estive tão mergulhada na minha própria dor, que
abandonei até meu dever como uma das sócias responsáveis pelos estagiários
para saber o que andavam fazendo. Sinto-me culpada, mas, ao mesmo tempo,
admiro a força e integridade com a qual ele atuou ao defender-nos na
totalidade.
— Responderei, matam para causar sofrimento a todos aqueles
que os rodeiam, pois, a sua história de amor é egocêntrica e fria, na sua vida
sentimental só existe ele e a superioridade que pensa representar, mas —
Mika volve seu corpo e abrange o jurado com braço erguido. — isto não é
maior que este conselho de sentença. Não matam por amar, matam a cada
uma das senhoras aqui presente e as que estão afora, para subjugar.
O silêncio na sala nos faz estremecer, o suspiro que vem de Mikael
que precede às suas palavras com arroubo.
— O amor? O amor é paciente, é benigno, ele não está nas taxas
de mortalidade, está nas taxas de natalidade. O amor não está encravado
nas lápides dos túmulos das vítimas nos cemitérios, mas sim nas mãos que
fazem a merenda da escola dos vossos filhos, nos abraços e sorrisos de bom
dia, nos toques, palavras e alentos benevolentes que se leva aos enfermos em
seus leitos. — pausa. — O amor é fecundo, ele dá a vida, não tira a vida.
Parafraseando o poeta Luís Vaz de Camões: o amor é fogo que arde sem se
ver; é ferida que dói e não se sente; é um contentamento descontente; é dor
que desatina sem doer. — meus olhos ardem com tamanha paixão. — É está-
se preso por vontade, e servir a quem te serve. Ele tudo sofre, tudo crê, tudo
suporta sem nunca agredir, sem apunhalar, socar, pisar, amordaçar,
usurpar, violar e matar.
Sinto-me em um mundo paralelo à realidade, o que foi isso, Deus?
— Agora digo a vós, porque hoje o réu, não pode dizer que matou
por amor, pois se a assim o fizesse presenciaríamos a nítida deformação do
aclamado amor.
Ele pausa, ajusta sua toga de forma eximia como se estivesse
amassada e continua.
— Retorno a falar, violência não é amor. O réu em sua
necessidade de ter um refúgio para que saísse ileso deste tribunal, ao saber
que a vítima, que até então ele assassinou por sua confissão, sobreviveu por
um milagre à sua agressão, mandou-lhe uma carta pedindo perdão.
— Contudo, senhoras e senhores do júri, encube aos senhores
mostrar-lhe que hoje não é dia para ele pedir perdão, mas é sim, um dia de
sanção.
— Hoje, é dia de se anunciar nesta comarca, como nos
reprovamos a conduta desta índole covarde, tirânica, não é tirando a vida de
uma mulher que se dignifica uma existência indigna.
— Hoje, peço que não sucumbam as falsas lágrimas, as cartas e
aos pedidos hipócritas de perdão pautados em um falso sentimento que o réu,
quer fazer descer goela abaixo a todos nós e a vítima, saibam que foi meio
centímetro da lâmina de oito centímetros cravejados em sua nuca, que ela
não está paraplégica.
Ouvimos um lamento vindo dos assentos ao meio e logo vejo um
senhor acariciando às costas de uma senhora de cabelos grisalhos,
possivelmente os pais da vítima.
— Não se deixem enganar pela boa aparência, o diabo de acordo
com a Bíblia era o mais belo dos céus. O réu quis matar! Ele a espancou,
violou, esfaqueou e depois dos seus atos hediondos cravejaram uma faca em
sua nuca e deixou jogada sobre a areia da praia, agonizando em dor e
sangue.
Olho em direção ao banco dos réus e confirmo que visualmente o
moreno, alto de olhos verdes e cabelos castanhos ondulados, tem a aparência
de um modelo das passarelas, o corpo bombado de academia, repuxa as
mangas da camisa nos braços e o olhar de ódio que desfere ao Promotor me
enfurece.
— A vítima, está mulher que sobreviveu por obra de milagre, é um
mártir, um símbolo da sobrevivência feminina. Sabiam que: a cada quatro
minutos uma mulher é agredida no Brasil, a cada duas horas uma morre em
decorrência dessa mesma violência que hoje vemos aqui! A justiça, senhoras
e senhores não pode compactuar com essa infeliz realidade.
Mikael respira fundo e sua voz se possível se torna ainda mais
mortal.
— Quando foi entregue as cédulas de votação que demonstra a
máxima reprovação, sabendo que mesmo frente a condenação essa pena será
diminuída de um a dois terços, ou seja — e lamento muito dizer isto —, a
condenação cairá para oito ou nove anos de reclusão, e quero imputar aqui
a gramatura da minha insatisfação, pois a nossa legislação hoje permite que
ele saia com um sexto da pena. — Ele dá ombros e vejo a fúria latente esvair
e impactar a todos nós, só agora ele destempera sua voz e creio que todos
ouviram dentro e fora desta sala. — O réu, após um ato de tamanha covardia
poderá sair em um ou dois anos de reclusão, mas está é a lei! A mesma que
me outorga como Promotor de Justiça. A mesma lei penal que tem essa série
de benefícios que vem tornando frouxas e difíceis a preservação moral e bens
jurídicos como a vida.
Pausa.
— Agradeço a vossa excelência, o depoimento do réu é a
radiografia deste crime, porque a Promotoria encerra sua oração com
menos de dez minutos de discurso sabendo que cada um dos senhores
jurados, são os representantes não apenas de alguns, mas de toda a nossa
nação. Por isto, tenho plena certeza de que a justiça será eletiva e executada.
Um reclinar sutil de cabeça.
— Obrigado senhores.
A forma apaixonada e tão inabalada do seu discurso causou
arrepios, lágrimas e realmente mexeu com todos.
Discretamente toquei meus olhos e limpei as gotas que se
acumularam.
Edu no que lhe concerne virou o rosto para outro lado, mas
Anderson permaneceu encarando Mikael, e as lágrimas vertendo por seu
rosto são a prova de que ele como todos viram ali não apenas o Promotor,
mas o menino que sofreu ao ver a própria mãe vítima de tantas injustiças.
Viu como vejo o homem que se tornou para defender aqueles que
não podem fazê-lo.
Se o medo da tal sensação que ronda meu corpo e coração já era
grande, agora deixa-me em palpos de aranha, pois temo que não só a
excitação de ver este poderio me atormenta, mas a forma veementemente que
defendeu o amor.
O mesmo amor que ele não acredita ser capaz de sentir.

Preciso confessar que seu encerramento me deixou mexida ainda


mais, queria chegar até ele e falar-lhe, ou só me postar ao seu lado para dar
apoio, enquanto esperamos a sentença final, mas não consegui, logo uma
grande quantidade de repórteres o emborcou com suas perguntas no canto do
corredor, o que pude fazer foi aceitar o café que Anderson me entregou e me
sentar em uma das cadeiras.
Me distrai girando o copo descartável nas mãos e não prestei a
atenção quando um par de lustrosos sapatos de couro italiano costurados a
mão, descansou à minha frente.
— Senhores! — a voz grossa e grave, e os apertos de mãos com
congratulações trocadas entre os rapazes é formal, devido às circunstâncias.
— Meus parabéns, Promotor, foi um primor sua oratória. — Edu o
elogia.
— Eu já me adianto que me emocionei e sinceramente se não fosse
a toga lhe daria um beijo. — Anderson se aproximou tanto para abraçá-lo que
seus joelhos roçaram os meus quando confidenciou em meio-tom, arrancando
risadas de escárnio dos amigos.
— Me desculpe, Doutor Vasquez, mas se tenho de ter um beijo,
aqui não será o seu. — Mikael o repele com leve empurrão, segura me pelo
braço me fazendo erguer, me cobre com seu corpo de forma que fico
literalmente escondida sobre suas asas e me rouba um selinho na frente de
nossos amigos e de costas para a plateia que ainda pavoneia os corredores.
— Mikael! — Exclamo me afastando e olhando a nossa volta.
Ele tem um riso indolente nos lábios, e da aquela piscadela safada e
quase cármica com seu olho esquerdo. Infame!
— Opa, acredito que perdemos algo aqui Doutor Santorini.
— Suponho que perdi algo! — Sussurro o encarando.
— O quê? Acha mesmo que vamos levar isso as escondidas?
— Vamos levar o quê? — pergunto aterrorizada.
— Quer que faça uma declaração pública Doutora dos Anjos?
Posso apresentar minha namorada aqui e agora — ele dá de ombros. — Não
tenho nenhum problema.
Edu que se mantém calado trocando olhares com Dinho, ergue o
celular que tinha nas mãos e bateu uma foto nossa.
— O que é isto? — pergunto.
— Vou postar no grupo da família, assim é menos um caso, para
minha CSI moranguinho investigar.
— Desde quando virou fofoqueiro, Carlos Eduardo?
Anderson riu, Mikael riu e Edu me olhou com ar de ameaça. —
Quer que poste no Instagram?
— Não se atreva! — exclamo ainda passada com as atitudes em
geral dos meus amigos e do… nem sei o que dizer. — Ademais senhores, não
ouvi ninguém me pedindo em namoro, então…
— Quer que faça isso, de novo? — desta vez foi Mikael que
expressou espanto.
Cruzei meus braços na altura dos seios e devolvi o olhar, mas antes
que pudesse responder foi anunciado que os jurados estavam voltando para o
tribunal.
Mikael segurou meu braço com sorriso safado e cochichou em
meus ouvidos.
— Assim que acabar tenho uma coletiva, mas me espera e vamos
para casa juntos.
— Não posso querido. — Bati as pestanas. — Assim que acabar, e
sei que sairá daqui com uma vitória, irei direto para o escritório fiscalizar a
reforma que ganhei junto às minhas férias, — seu olhar de espanto foi
impagável —, e amanhã podemos nos ver, vou manter meu celular ligado.
— Lia?
— Amanhã, Promotor!
Leia-se: me beija em público e anuncia ser meu namorado e sem
me pedir? Espera sentado que irá brincar nesse parquinho hoje.
— Ok, Doutora! Podemos esperar até amanhã, esse será um
encontro intrínseco.
Ele se despede dos amigos e entra na sala, mas antes de
retornarmos, paro Edu e estendo a mão.
— O que foi? — dissimulado.
— Celular!
— Nem tente!
— Carlos Eduardo Santorini!?
— Eu mesmo apago a foto, ok?
Estreito meus olhos, mas algo me diz que ele vai apagar,
entretanto, posso jurar que a minha orelha começou a pinicar. De certo, ele
vai apagar aqui, e a que ele enviou para July?
CAPÍTULO 23

INTUITO
“Fiz essa canção simples pra dizer
Tem coisas que só Deus pode responder pra nós”
Thaeme e Thiago —Beautiful

MIKAEL

C
omo previsto no dia anterior depois que o julgamento foi encerrado, uma
chuva de repórteres aguardava do lado de fora para uma coletiva de imprensa,
mais alguns veículos de comunicação, até poder me desvencilhar de todos e
estar livre para ir atrás de Lia, era tarde.
Anderson e Edu ficaram comigo e juntos comemos um podraõ[9] na
barraquinha da esquina, como sempre improvisávamos após o trabalho, não
houve chacotas e nem perguntas sobre ter roubado um beijo de Lia, nem o
“anúncio sobre namoro”. — isto me faz rir. Eles sabiam que o caso, foi
indigesto por vários motivos, por isso ficamos conversando apenas dos
acontecimentos e do sucesso na sentença.
Depois de nos despedirmos, segui para casa, sempre consciente dos
seguranças fazendo seu papel de bolha protetora me seguindo de perto. A
sequência foi simples: banho, rega obrigatória das minhas orquídeas, um
pouco de exercício em um dos quartos no segundo andar feito de academia,
leitura de alguns processos, até sucumbir a vontade de ouvir a voz dela.
Porém, conhecendo-a como faço, preferi evitar que encrespasse por conta de
expor-nos diante de nossos amigos sem aviso, e para evitar qualquer
problema, enviei uma mensagem antes de capotar.
— Está tudo bem, Promotor? — a voz adoçada da senhora Marta
tirou-me das minhas reminiscências.
Ergui meus olhos dos muitos arquivos sobre a mesa em meu
gabinete no prédio da Promotoria. A senhora Marta Martins, foi secretária do
meu pai quando ainda era vivo desde o início do escritório, depois passou ser
a minha assistente e quando deixei o escritório para assumir o gabinete a
trouxe comigo.
Ela esteve nos melhores e piores momentos, testemunhando toda a
nossa trajetória, as brigas, as recusas, a dor com a perda dos pais e
obviamente, sabia o que de fato Lia representava para mim, e o que houve no
passado.
— Promotor? — a risada baixa combinada com sua aparência de
senhorinha me alcança. — Vou ficar falando com as paredes? Se for o caso,
darei meia volta porque tenho o que fazer.
Rindo da sua língua afiada, dei sinal para entrar e indiquei que se
sentasse a minha frente. Os cabelos escovados em ondas no estilo anos 70
com frisos brancos entremeados ao castanho escuro balançaram ao jogar os
ombros finos para trás. A blusa de seda cor-de-rosa, por baixo do terninho
preto combinado com calças, é elegante. Dona Marta, deve ter cerca de 1,60
de altura se não menos, as sapatilhas confortáveis de bico fino, completam o
traje, mas o que gosto é a forma engraçada de pousar os óculos na ponta do
nariz e olhar-me desconfiada vez sim e outra também, como se ainda fosse
um menino traquinas.
— Dormi relativamente bem até perder o sono, — ou seja, mais
pesadelos — penso — contudo, estou bem só pensando em algumas coisas.
O que tem aí para mim?
— Pensando em algumas coisas ou em alguém?
Soltei uma risada e logo, voltei a minha expressão “sem
comentários”, mas geralmente não funciona muito com alguém que o
conhece a vida toda.
— Não é relacionado apenas ao trabalho pelo visto. — ela cutuca o
queixo com dedo magro. — De certo que tem a ver com a senhorita Lia?
— Geralmente não é tão curiosa.
— Geralmente o senhor não é de faltar, ou de arrebentar uma porta
de armário por frustração, e nem é de rir atoa como se estivesse vendo
passarinhos verdes. Isto só acontece quando, Ela está envolvida.
— Me diz: por que inda não a fiz se aposentar?
— Porque ainda não fizeram um clone da minha eficiência.
— Modesta.
— Aprendi a me expressar com o senhor.
— Ok! — me rendo. — Não estou confirmando, mas…
— Ah! Que maravilha, podemos mandar a sua assistonta embora,
agora?
— Não entendo a implicância com minha assistente. A Senhorita
Mendes é eficiente e não me causou problemas. — refiro-me ao fato de
aparecer nua em cima da mesa pronta a ser comida. Ela pode ter usado seu
charme e feito muito para chamar minha atenção, mas até então não
ultrapassou a linha.
— Se me lembro bem, a senhorita dos Anjos não suporta
determinadas coisas, e como disse antes, aquela matéria…
— Eu imagino! Vamos deixar isso de lado por enquanto, quero
focar no que tem em mãos. Posso?
Pergunto e indico o envelope. Com olhos estreitados fita-me,
balança a cabeleira e faz um gesto com a mão livre.
— Se assim deseja, mas acredito que o fará em breve. — Ela
sorriu. — Aqui está o que me pediu, — ela pausa com ar contrito — e,
mandato que solicitou.
— Cacete! — exclamo jogando-me à frente tomando o papel em
mãos.
Com a constância das ameaças seja por cartas, ligações, mensagens
e e-mails, sempre há em curso uma investigação para saber de qual fonte é
proveniente. No entanto, há quase um ano a insistência desse mesmo Cartel,
dificulta as coisas para nosso trabalho; desde que prendi o Chefe e resguardei
com a ajuda da Megera a ex-esposa e filho, minhas únicas testemunhas de
peso, as ameaças deixaram de ser verbais e começaram a surgir problemas
sérios aqui e acolá.
Como se me preocupar com Verônica, não bastasse. Por isso,
apertamos o cerco e finalmente rastreamos um dos IPs usados para enviar e-
mails e a mensagem com mídias. A princípio a área nobre localizada mostrou
ser um problema, conhecida pela quantidade de políticos, juízes e alguns dos
empresários mais ricos de Vitória residirem, no entanto, a lei, a que se preze e
faça valer, não pode ser barrada diante de fatos e provas reais.
— Não posso acreditar, que finalmente conseguimos, — expresso
ao ler o mandato —, entre em contato com comandante Caleb, de certo ele
fará a busca e apreensão e quero estar junto.
— Já fiz isto, — ela se adianta e me entrega outra folha com todos
os dados. — Ele já está ciente e o aguarda em uma hora nessa localização,
contudo sabe o que penso disto, é perigoso e desnecessário se pôr na linha de
frente.
— Compreendo seus medos Martinha, mas isto é muito importante.
É pessoal! — afirmo encerro qualquer argumento em relação a isto.
Dado as circunstâncias os meus planos para o dia foram
completamente alterados visto que não perderia esta ação. Coloquei todos os
que trabalham em minha equipe no gabinete da Promotoria em alerta.
Distribui as tarefas e dei por encerrado ali o dia. Antes de me pôr a cargo do
comandante e sua equipe, enviei duas mensagens, e para às duas recebi
respostas tão satisfatórias que me injetou de um ânimo renovado.

@Promotor_nikolaievitch: Anjinha, hoje tenho diligência e o dia


está comprometido, não tenho horário certo para encerrar o trabalho, mas
gostaria de te ver. Quer ficar comigo hoje?
@Doutora_anjinha: diligência? O que exatamente vai fazer? E
sim, quero vê-lo, mas não vou estender a noite, viajo cedo para a Serra
amanhã.
@Promotor_nikolaievitch: execução de mandato. Te pego em
casa, ligo quando estiver a caminho, estarei de moto.
@Doutora_anjinha: Ok! Boa sorte e beijos!?

Não pude segurar o riso na última mensagem, mas sem tempo a


perder, terminei de me aprontar, apanhei o capacete e envie a segunda
mensagem.

@Promotor_nikolaievitch: Megera, talvez precise do seu apoio,


fica em alerta.
@Promotor_nikolaievitch: consegui o mandato para uma
apreensão que pode resultar em mais pontos sobre o caso Dela Cruz, estou
saindo para me juntar ao grupo do comandante Caleb.
@guardiam_A.Campus: sabe que não deveria estar envolvido.
Estou enviando um alerta aos seus seguranças. Vou pessoalmente me
certificar de que tudo esteja bem, por que não comentou nada de madrugada
quando corremos?
@Promotor_nikolaievitch: porque não era pertinente ao momento,
e não preciso de uma babá, na verdade, estou com a intuição de que talvez
possa precisar acelerar alguns pormenores e necessite da testemunha.
@guardiam_A. Isso tem a ver com o fato de redobrar a segurança
de Lia?
@Promotor_nikolaievitch: posso contar com sua ajuda?
@guardiam_A. Inferno Mikael! Odeio quando se faz de sonso.
Uma hora perco minha paciência e te encho de porrada.
@Promotor_nikolaievitch: geralmente você não é tão falante
Megera, e nem tão extensa em suas msg* está tudo bem?
@guardiam_A. Envie hora e o local.

Dois pesos e duas medidas, esta parece ser a fórmula mágica para
lidar com as mulheres que rodeiam minha vida.
Os acontecimentos envolvendo toda a operação da força tarefa que
foi conduzida pelo comandante em serviço Caleb Dias, ao mesmo tempo,
com a equipe responsável para que se faça cumprir uma ordem judicial,
poderia ser narrada como uma cena de filme de ação.
Após encontrar-me com eles no ponto marcado, deixei minha moto
no subsolo de um estacionamento privativo, e subi em um dos SUVs que
fariam a guarnição monitorada.
As recomendações do comandante sempre são as mesmas, quase
me fazem acreditar que ele tem a porra de uma queda romântica por mim, um
ponto de comunicação foi adicionado no meu ouvido direito, enquanto ele
literalmente me ajudou a vestir o equipamento, sempre rosnando em meus
ouvidos.
— Olhos atentos — paletó, gravata e todos os acessórios foram
removidos — coloque o colete Kevlar a prova de balas, — repassamos todo
o plano de ataque — fique longe da cena, —testamos o ponto de comunicação
e paramos na esquina da rua a ser interceptada. — O senhor é só um
observador, não a porra de um herói!
Após envolver meu peito com o aparato e sentir as presilhas de
velcro serem conferidas duas vezes pelo homenzarrão a minha frente, dei um
passo atrás impedindo-o de revistar minhas costas, ou acharia a 9 mm
escondida sob a camisa social solta por sobre o cós das calças.
— Comandante está tudo bem, não é minha primeira vez.
— Está armado Promotor? — a voz é impaciente.
Caleb é quase da mesma estatura que eu, perdendo aí talvez por
uns cinco a sete centímetros, mas o físico não deixa nada a desejar. Como
comandante das forças táticas é um homem centrado, muito dedicado e um
puta cara responsável, que jamais deixa furo em suas ações. Extremista nas
operações e por isto sempre que posso optar por quem trabalhar, ele é minha
primeira opção, além de nos conhecermos há muitos anos.
— Estamos perdendo tempo com amenidades, — informo
empurrando sua mão —, seus homens já estão impacientes.
— Porra Mikael, está ou não armado? — o grunhido me irrita, mas
aqui não sou o líder e sim ele, além claro da sua obstinação como a
responsabilidade de obter sucesso na operação, Caleb é o baterista da minha
banda e isto nos torna muito chegados.
Levo minha mão a nuca e passo os dedos de forma enérgica pelos
cabelos bagunçando-os.
— Preciso responder?
— Porra! — ele pausa e olha em volta. — Não use sua arma, está
me ouvindo? Fica longe da cena e não use sua arma, ou vai foder com tudo.
— Sei exatamente o que posso ou não fazer, no entanto, não viria
sem me sentir seguro.
— Pra isso, a loira do caralho já meteu os bonequinhos dela aqui!
Seguro o riso e mantenho a carranca, outro detalhe porque gosto de
trabalhar com Caleb, o idiota viu Angel uma única vez, quando fizemos o
resgate da minha testemunha e literalmente caiu de quatro pelo gênio do cão
que a Megera dispensou a ele.
Ouvimos um raspar de garganta e logo um dos meus seguranças,
Jairo que particularmente creio que ser muito parecido comigo de forma
proposital — como chamariz — por parte da Megera, se apresenta e com
poucas e efusivas palavras explica que Angel, não apenas os designou para
minha segurança, mas também equipamentos para uma ajuda extra.
Ele tem nas mãos uma bolsa de lona preta que apoiou sobre o capô
do carro, ao abrir mostrou um micro e uma tela menor, uma caixa em forma
de maletinha, além de outros dois teclados que pareciam ser para a tela menor
e o objeto na pequena maleta. — Com os cumprimentos da senhorita
Campus, tenho um detector de calor corporal, isso nos mostrará, onde tem
sinapses de calor e cerca de quantas pessoas temos na residência.
— Sabia, após ver a loira do caralho arrebentar a porta com uma
caneta explosiva, não esperaria nada menos.
Jairo deu um sorriso e dois toques na maleta.
— Ela mandou algumas para o senhor comandante.
— Porra! — Caleb passou a mão pela cabeça raspada, mas sem
comentários.
De homem para homem, nem preciso saber o que se passou na
cabeça dele.
Com auxílio de Jairo nos posicionamos e ele fez uma varredura da
casa.
— Vejam — ele mostrou na tela do que parecia ser um tablet um
pouco mais robusto. — Temos a captura de oito temperaturas diferente,
sendo que duas estão em outro cômodo e parecem se manter juntas.
— Um casal? — Caleb perguntou.
— Não, vê a sombra senhor? Está bem menor.
— Uma criança? — pergunto sentindo um aperto no estômago.
— Não posso afirmar, somente dar a prévia localização, que pode
mudar de acordo com o desenrolar da abordagem.
— Mesmo que ocorra já é um ganho, sabemos quantas pessoas tem
na casa e quantas estão no cômodo principal.
— Diz a loira, que quero agradecê-la pessoalmente. — Caleb deu
um tapa forte sobre o ombro de Jairo e se não fosse pela estrutura maciça do
meu guarda-costas ele teria caído de cara sobre asfalto.
Dado todos os comandos a cena se desenrolou amplamente à nossa
frente. A mansão localizada em um bairro nobre não parece um ponto
suspeito, de forma alguma. Jardins cuidados, casa de dois andares bem ampla
com pé direito alto fechado em vidro com cortinas brancas postas de modo a
bloquear qualquer visão.
— Estou achando isto estranho. — Comento olhando para direita,
vendo no final da rua duas motos serem paradas pelos oficiais que colocaram
dois SUVs, virados a modo de barreira.
— Não tem nada mais estranho do que isto, é um fato, porém foi
aqui que a investigação nos trouxe, correto? — a voz tensa à minha frente me
faz calar.
Olho o comandante que repassa com as mãos os sinais de
comunicação com sua equipe. Ao meu lado dois dos seguranças de Angel,
Jairo e Aylton que mantém olhos atentos e mãos nos coldres na lateral do
corpo, a cerca de três metros do outro lado do carro à paisana que foi
estacionado propositalmente por um dos oficiais, estão mais três homens
altamente paramentados e armados.
A minha frente o comandante junto a dois agentes e o oficial de
justiça atravessam a rua tranquilamente. O oficial tocou o interfone da
mansão, por duas vezes até que um homem moreno trajando calças jeans e
um moletom azul-marinho apareceu no gramado de longe.
A conversa foi uma réplica de praxe, mas percebo a tensão que se
desenrola nos participantes.
— Bom dia, sou oficial de justiça e estou aqui para entregar um
mandato ao senhor Enrique Sintra. — Proprietário da casa e “dono” do IP
utilizado.
— Ele não está aqui, é o dono da casa. — Bingo.
A voz do homem não é muito alta, mas tem um arrasto de sotaque,
mesmo que seja leve quase imperceptível para alguém que tenha uma boa
audição, mas não para mim. Não me gabo e nem faço uso disto em minha
área atuante, mas ter o ouvido absoluto me faz notar e perceber características
nos sons que passam despercebidas a outros.
— O senhor poderia vir aqui e abrir o portão por favor, temos um
mandado de busca e apreensão.
À medida que o oficial dizia que o rapaz deveria vir recebê-los o
nervosismo dos oficiais se tornava claro, mas por algum motivo o jovem
disse que buscaria as chaves. Ele deu meia volta na pilastra que recobre
parcialmente a porta por onde passou e sumiu.
Toquei meu ponto no ouvido e quebrei um dos protocolos de
Caleb, abri uma comunicação sem sua autorização.
— Comandante, posso estar imaginando coisa, mas isto está muito
estranho, parece fácil demais e muito…
— Alguém subiu ao segundo andar! — a voz de Jairo me
interrompe e, ao mesmo tempo, Caleb responde.
— Suspeito? — ele inqueriu ao mesmo tempo, enviando ordens em
uma tática diferenciada.
Contudo, não houve tempo de que isto acontecesse, pois, o
primeiro tiro veio tão fulminante que o vidro do carro que nos servia de
escudo explodiu antes que pudéssemos agir.
— Porra! Isso é uma cilada, abaixa! — o grito do comandante veio
alto e claro.
De imediato senti meu corpo mergulhar no chão com o peso de um
dos homens á minhas costas, logo em seguida os oficiais abriram fogo; o
espocar das balas ricocheteando por todos os lados foram ensurdecedores.
Ergui minha cabeça a tempo de ver o oficial ser empurrado para o
lado atrás de um muro da casa vizinha e logo em seguida Caleb se apoiar de
lado no portão e pela fresta mirar o segundo andar de onde a maior parte dos
tiros disparavam por outro homem moreno de cabelos escuros como o
primeiro, porém mais longos até os ombros, vestindo jeans e um moletom
que parecia ser preto à distância.
Levei minha mão até a cintura, mas antes de tocar a arma, um
único tiro seco derrubou o indivíduo do parapeito, fazendo-o estatelar na
grama do jardim.
Provavelmente deveria ser uma espécie de líder, pois bastou que
caísse para gritos e xingamentos em espanhol estourassem de dentro da casa,
dois outros meliantes vieram para cena portando dois Fuzil AK 47[10].
—Puta que pariu! — exclamou Jairo. — Esses desgraçados estão
preparados para uma guerra?
— Sai de cima, porra! — aproveitei a distração do homem, retirei a
arma do coldre às costas e fiz mira.
— Não Promotor, volta para o chão!
O homem nem fez caso de que poderia tomar ou me fazer atirar,
em mim mesmo com movimentos preciso e de muito treino o filho da mãe
me desarmou e se jogou sobre mim. Aylton o segundo segurança puxou a tela
e gritou nos comunicadores que dois estavam saindo pelo outro lado da casa,
nisto um terceiro veio se juntar a outros dois, mas um dos oficiais conseguiu
uma mira boa e desferiu um tiro certeiro no meio da testa.
— Menos um! — gritaram.
— Menos dois! — outro grito.
Não demorou muito, pela visão parcialmente bloqueada vi dois
novos personagens correndo em nossa direção com capacetes postos e
empunhando armas, pelo tamanho de um deles posso quase jurar ser
Angélica.
— Parado! Mãos sobre a cabeça!
A voz do comandante Caleb sou alta e clara, tudo foi muito rápido
o portão estava com a tranca estourada e um dos meliantes estava virado de
costas no chão com as mãos sobre a cabeça, enquanto os outros três
permaneceram tombados e dois deles em má posição indicando a morte certa.
— Inferno! — resmunguei, mas ainda não pude me libertar, pois,
duas evidências de calor permaneceram onde estava e enquanto não houvesse
uma averiguação nada poderia ser feito.
Rapidamente os homens invadiram o perímetro, com ação rápida
deram busca pela casa e seguiram para os fundos onde constataram que os
dois marginais escaparam pelo muro da casa caindo em uma pequena reserva
florestal atrás do lote.
Às duas figuras que vieram em nosso auxílio permaneceram a
cerca de três metros junto a outros oficiais esperando autorização para
avançar.
Assim que o oficial saiu de dentro da casa chamou com urgência o
comandante que entregou o bandido após dar ordem de prisão a um
subordinado e adentrou a casa, para em seguida sair fazendo um gesto
nervoso para que pudesse entrar com ele.
Sem perda de tempo me livrei de Jairo e corri em direção a casa.
— Mikael! — ouvi o grito abafado e não tenho mais dúvida, uma
das figuras cobertas de preto e capacete é Angélica.

Assim que entrei na casa tive a certeza de que era aqui o centro de
comando da facção que Dela Cruz geria no território brasileiro, ou ao menos
parte dela. Além de restos de comida em várias embalagens descartáveis,
muitas armas, malotes de dinheiro, drogas em caixas espalhadas no piso de
mármore há uma infinidade de celulares sobre a mesa baixa de vidro no
centro da sala, mais três notebooks.
— Porra! Isso sim! São provas incontestáveis.
— Acredito ser mais que isto Promotor, dê uma olhada nessa tela.
— Caleb apontou com a cabeça.
Caminhei até seu lado sentindo meu corpo trêmulo, segurei o
fôlego até o esterno arder com a pressão. Uma foto de Lia segurando uma
criança no colo, com as perninhas e os braços curtinhos, agarrado em sua
cintura e pescoço, me fez cambalear.
A foto parecia ser recente, pois me lembro o dia em que estava com
esta roupa, foi o mesmo que brigamos no escritório. Na imagem Lia está
saindo de dentro do elevador na garagem do seu prédio, a criança com
agasalho está com um boné que esconde totalmente a cabeça, e o rostinho
enterrado no seu pescoço, no rosto ela tem um sorriso e olha para cima, como
se estivesse apreciando a lâmpada sobre sua cabeça.
— Que filhos da puta! — exclamo sentindo o chão aos meus pés
trepidar.
— Calma cara, vamos pegar todos eles! Já passei o comando e um
destacamento desceu atrás dos filhos da puta. — Caleb fala enquanto aperta
meu ombro com força. — É a sua mulher, não é? Não tivemos muito contato,
mas jamais me esqueceria da morena, é a Lia?
Olho para ele e só confirmo com manear sutil de cabeça.
— Porra cara, fica calmo, tenho certeza de que vamos capturar
esses filhos da puta antes de o pôr do sol, — ele me fez olhá-lo —, é uma
promessa meu irmão.
— Faça isto!
Olho mais uma vez para a imagem e uma urgência avassaladora me
corrói de uma forma que me tira o ar, tenho vontade de sacar o celular só para
conferir onde ela está, mas após conviver com o lado secreto da Megera,
descobri que câmeras e microfones escondidos são essenciais para uma vida
toda. E pela parafernália moderna que está sobre essas mesas, não me
surpreenderia que estivessem nos observando agora.
— Tem mais, e isto aqui vai fechar seu caso Promotor.
Olho de esguelha para a porta aberta que ele aponta, onde dois
oficiais se mantêm de pé em guarda. Não penso duas vezes marcho com
passos firmes invadindo o local pronto a esmurrar qualquer filho da puta que
esteja lá até arrancar dele toda informação que necessite, mas paro
abruptamente ao dar de cara com duas pessoas miúdas encolhidas em um
canto. Me assombro ao ver o rosto da mulher que deve ter no máximo trinta
anos e olhe lá.
— O que você está fazendo aqui? — a mulher que deveria estar
escondida por Angel está a minha frente abraçada a uma criança encolhida
contra o peito, que deve ter o tamanho do moleque da Lia.
— Ho sento, senyor, però no parlo molt bé el portuguesismo. —
a mulher com a voz rouca e aos prantos ergue as mãos com pulsos feridos e
sussurra em desespero.
— Ela está pedindo desculpas, por não falar muito bem o
português, — informa um dos oficiais.
— Obrigado, entendi o que ela disse. Apesar de ser catalão. —
volvei meu rosto para a mulher sem querer dar a entender que já a conhecia.
— Entender español, ¿podemos hablar así? – pergunto se podemos
conversar em espanhol, viva ao meu amigo Ramon Staeler.
Logo a vejo afirmando com a cabeça de forma frenética, me
aproximo e a criança até então calada encolhida contra seu corpo grita e vejo
a longa trança de cabelos negros caindo, isto me faz atinar para algo. Minha
testemunha tem um menino e não uma menina.
Respirei fundo e pedi aos demais que nos deixassem, a princípio
não queriam, porque talvez ela esteja escondendo uma arma, mas pela
condição física e emocional, a última coisa que essa mulher poderia ter é uma
arma.
Baixei o tom de voz e perguntei se poderia me aproximar um
pouco, ela meneou a cabeça e nisto me fiz o menos ameaçador que consegui
com o tamanho do meu corpo.
— Qual seu nome senhora? – pergunto em espanhol e ela me
responde da mesma forma.
— Maristela De la Fuente e está e minha filha Olívia.
— Prazer, sou Promotor de Justiça do Estado do Espírito Santo,
Mikael Nikolaievitch.
O assombro da mulher é notório percebo que reconhece o meu
nome e de imediato dispara em um jorro de palavras sem que faça quaisquer
perguntas.
— Senhor, não sou bandida, moro em Lérida na Catalunha,
apenas eu e minha filha, não tenho contato com parentes há muitos anos, por
opção própria, essa não é uma vida que prezo, entende? – ela gesticula com
as mãos e cada vez que faz, percebo as semelhanças com a outra mulher, mas
não a mesma.
Outra coisa que vejo é as imensas manchas roxas nos braços e na
lateral do rosto. A menina em seu colo se vira de lado, percebo que mesmo
tendo a tez morena como da mãe e cabelos negros, os olhos são tão verdes
como folhas na primavera, não me contenho e dou a ela um meio sorriso.
— Não faço parte disto, e não sei o que fizeram com a minha irmã
Marisol, – minha testemunha — foi levada por nosso pai há muitos anos
para se casar, ela não quis fugir comigo por isto, não sei o que se passa com
ela, mas estes homens disseram que ela é uma… – ela pausa e estala os dedos
tentando achar a palavra, —informante?
— Uma informante?
— Sim, que ela traiu o marido e está marcada para morrer, me
trouxeram para cá, não sei dizer como cheguei aqui, mas por favor me
deixem ir embora com minha filha, não temos nada com isto.
A mulher parece muito desesperada, de certo ouviu meu nome
vindo destes homens, e mesmo que pudesse mandá-la embora agora seria
para uma morte rápida, pois a pegariam novamente. Ouço passos na casa e a
voz abafada de Angélica em uma discussão com Caleb.
— Senhora vou ajudá-la, mas precisarei que me ajude, agora o que
precisamos fazer é que coopere e seja paciente.
— Sim, farei o que precisar senhor. Só peço que não faça nada
comigo e minha filha, — a mulher volta às lágrimas e vejo que a solução será
a mesma que arranjei para sua irmã a questão é como conseguir tirá-la daqui
sem passar por cima das leis?
Estou em desespero para sair daqui quanto antes e ter a certeza de
que Lia está em segurança, quanto colocar estas pessoas em um local seguro.
— Promotor? – o grito do comandante estremece a Maristela e a
menina volta a chorar.
Peço a senhora que tenha calma e ofereço a garrafa de água que um
dos oficiais me passa e um pacote de bolachas.
— Promotor!
Filho da mãe — penso ao sair do quarto.
— Porra, pode não gritar? — me enfureço e vou ao seu encontro.
Na porta Angélica está a postos e segura o capacete nas mãos
diante do corpo, seu rosto e cabeça está coberto por uma máscara preta de
esqui, só vejo seus olhos e eles estão soltando dardos de fogo. Logo atrás
outro corpo meio encoberto pela lateral espera autorização para entrar, a mão
coberta por uma luva de couro segura uma Glock destravada.
— Ela não vai entrar, porque já prevejo o que vai acontecer: a loira
do caralho entra, vai usar alguma tática com a minha vítima resgatada, se é
que é uma vítima, e logo em seguida vai me esfregar algum papel de alto
escalão e sumir. — ele me olha por sobre o ombro e diz energicamente. —
Não!
Ignorando todo o processo e protocolo encaro Angel e solto a
bomba.
— Preciso que a leve da mesma forma que fez com a anterior, —
ela estreita os olhos —, o caso é idêntico sem qualquer alteração dos fatos.
Tenho certeza de que o comandante Caleb estava certo, com auxílio da
senhora De La Fuente, teremos êxito.
Ao proferir o sobrenome, Angel muda a posição e solta uma das
mãos tocando o dedo sobre o pulso do seu acompanhante, de imediato eles
mudam de posição. O homem até então de cabeça baixa, guarda a arma no
coldre, coloca os dois capacetes no chão e abre a jaqueta que faz o mesmo
trajeto, depois é a vez do cinto de utilidades do Batman que os dois carregam.
— Satisfeito agora, senhor? — Angel pergunta encarando Caleb.
— Estamos desarmados e sendo solicitados no local, vamos entrar.
— Não vão! – ele teima.
Toco o seu ombro e ele bufa se colocando de lado. Seus resmungos
são impronunciáveis, Angélica retira a máscara e a trança cai sobre o ombro.
Com um resumo esclareço o que foi me passado por Maristela e logo dou
meu parecer do que suponho que aconteceu.
— Ela parece ter muitas fraturas e escoriações, a criança não
apresenta nenhuma delas, mas tenho a sensação de que a mãe sofre algum
abuso.
— Estupro? – o homem misterioso pergunta e só então vejo parte
dos ombros aparecendo na lateral da porta.
— Provavelmente.
— Ok! — Angel suspira. — Vamos assumir daqui Promotor, e isto
é outro favor que vou cobrar.
— Como queira.
— Contudo, para isto o senhor não pode estar aqui. – O estranho
diz e vejo que retira a máscara, os cabelos bagunçados loiros estão espetados
para todos os lados, bem-parecidos aos meus agora.
— Sairei.
Talvez pela situação tensa, o fato de o homem permanecer
escondido me deixa com uma sensação desconfortável, mas logo descarto
isto ao ver Angel passar e seguir em direção ao quarto, já entrando em
contato com seu apoio ao falar em seu comunicador auricular.
— Você não vai com ela?
— Em um momento, se ela precisar.
Ele responde com a voz baixa, me livro dos resmungos de Caleb
que sai para coordenar a retirada e conter o fluxo de curiosos e repórteres que
já devem ameaçar a aparecer.
Estou pronto a sair de cena quando Angel volta pelo portal com
olhar transtornado. O assobio curto faz o homem alto entrar em disparada
pela porta, quase não vejo o seu rosto, mas pela estatura e corpo somos bem
próximos em tamanho. A curiosidade me invade e em vez de ir ver minha
Anjinha, sigo os passos apressados do loiro e paro junto à porta vendo-os
trabalhar.
Confesso, já imaginei Angel em muitas cenas e presenciei o perigo
que ela representa sobre pressão, mas essa mulher a minha frente não é a
mulher má que poderia se associar ao nosso inimigo e nos fazer mal. Me
recuso a acreditar que ela possa de alguma forma estar ocultando o paradeiro
de Verônica, como uma vez no passado suspeitamos.
Angélica se aproximou da mulher com um largo sorriso, olhos
tranquilos e palavras mansas, a voz sempre tirânica está adoçada e parece
quase hipnótica.
— Senhora Maristela De La Fuente, me chamo Cristina estou aqui
para ajudá-las.
— Senhora não sei de nada, só quero ir para minha casa.
— Entendo, mas para isto precisamos tratar suas feridas e verificar
se estão bem, depois garantir que possam ter segurança.
— Me desculpe se não consigo me mover e aceitar de pronto. Fui
arrancada da cama em minha casa, espancada, amordaçada e… – a mulher
pausa e olha nervosa para Angel e o seu acompanhante. — Quero voltar para
Lérida.
— Temo não ser possível Senhora! – a voz do homem, mesmo
sendo em um espanhol cadenciado, melódico é firme e propensa causar mais
desespero na mulher. Ele se colocou de joelhos à sua frente próximo o
suficiente para tocar os pés se estendesse um pouco a mão.
Ao menos foi o que imaginei, mas parece que ela o olhou como se
ele pudesse tocar-lhe a alma.
— Meu nome é Christian e estou aqui para dar-lhes uma
oportunidade de sobreviver.
— Senhor, por favor… – ela suplicou e isto cortou minha alma.
— Senhora vamos ser objetivos! – ele endurece o tom, mas
mantém o timbre. — Não tem mais um lar seguro aonde ir, sua filha não terá
mais segurança. A sua casa será um túmulo frio se voltar. A senhora
presenciou e ouviu muitas coisas desde que foi sequestrada, correto?
A mulher baixou os olhos e olhou para a menina.
— Sim, – a voz sussurrada arrancou um olhar de esguelha de
Angel.
— Pode me permitir pegar Olívia? — Angel se aproxima e mexe
com a menina, que timidamente sorri para a Megera.
Maristela relanceia seus olhos da filha ao casal à sua frente, não há
dúvidas da intenção de Angel ao cuidar da menina, percebo em que na
situação presente, ela é a melhor opção e um porto de confiança para a
criança.
— Quero fazer xixi… – a menina sussurra.
A mãe chora e da mesma forma de antes conta que estão a muitas
horas sem comer, sem ir ao banheiro e agora que tomaram a água e a menina
quer sair, pelo que entendo, elas tinham apenas duas oportunidades de sair do
quarto e isto não havia acontecido ainda.
Angélica prontamente se ofereceu para ir até o banheiro com a
criança, intuindo que os dois estranhos à sua frente eram de paz, e talvez por
me visualizar bem diante da porta, a mulher permitiu.
Angel ergueu a criança e ao me ver os seus olhos se arregalaram,
mas foi apenas uma coisa momentânea. Em seguida ela deu três toques no
ombro do loiro que não a olhou. Percebi que isto parecia ser algum código,
ela fez algo similar na porta enquanto segurava a arma. Não fez?
— Senhora, vou aproveitar que sua menina está com Cristina no
toalete para lhe fazer algumas perguntas e dar-lhe uma rota de fuga.
— Sim.
— Foi estuprada?
Porra! Que cavalo, – penso. Contudo, em se tratando do que é
preciso, a verdade talvez a fizesse se decidir pelo correto quanto antes.
— S-sim…
— Sua filha?
— Não, para que nada a acontecesse com minha Olívia, fiquei
calada.
O homem respira ruidosamente e só neste momento vejo a quebra
na armadura serena e impositiva que tem. Quanto a mim, a flama da raiva se
espalha com tanta pressão que minha cabeça lateja dá têmpora a nuca.
— Espancada?
— Sim.
— Tem algum osso que desconfie que está fraturado?
— Não.
— Sente dores intensas em alguma parte do corpo?
— Por todo o corpo, mas nenhum órgão. Sou enfermeira e saberia
se houvesse rompido algum órgão.
— Das feridas e de qualquer consequência do estupro podemos
cuidar imediatamente, assim que uma ambulância especial chegar, porém,
quero que faça algo por mim.
— Oh, minha santa!
— O comandante da Operação a informará que precisa ir a um
hospital, ele permitirá que paramédicos entrem neste quarto, quando isto
acontecer, vão fazer uma avaliação, colocá-la em uma maca, junto à sua filha
e conectá-la a uma IV ligado a uma solução salina para hidratação. Talvez
antes de chegar à ambulância, a senhora sentira uma dormência no corpo e
sonolência, logo em seguida será transportada a um local seguro, passará por
uma triagem, enfermeiras e médicos irão cuidá-las, mas antes que volte a
acordar, irei retirá-las deste hospital e depois disto, Maristela e Olívia não
existirão mais.
— Madre…
— Consegue compreender o que estou falando?
— S-sim.
— Posso dar-lhe uma nova vida. Posso libertá-las, mas para isto,
tem que me dizer aqui e agora, que aceita por suas vidas em minhas mãos.
Prendo minha respiração junto à Maristela, percebo o jogo de
Angel ao deixar que seu parceiro falasse com a vítima, talvez pela cultura, ou
a percepção de que a mulher foi mais propensa a se submeter ao tal Christian
por ser homem, por sentir-se segura com uma figura máscula que a
tranquilize.
Foi um jogo arriscado.
A Megera retirou a criança da cena, isto o deu total controle e
impossibilitou a mãe de ter um apoio emocional para se esconder, ficando à
mercê dele. Além claro do jogo de perguntas e respostas ao colocar frente a
frente com a situação grotesca que foi submetida.
Parabéns para a dupla de loiros do caralho, como diz Caleb.
Cruzo os meus braços amplamente satisfeito e a única coisa que ainda preciso
é que ela concorde em ser testemunha. Só assim terei a certeza de estar livre
de qualquer bandido filho da puta que ousou ameaçar não apenas a mim, mas
também Lia e ao moleque.
Um arrepio me percorre e a sensação de embrulho no estômago me
aterra. Porra, se não tivéssemos invadido essa casa hoje o que aconteceria?
— Tem mais uma coisa senhora, o Promotor as minhas costas,
precisará que responda algumas perguntas daqui há algum tempo, precisarei
que colabore com ele, fazendo isto está a um passo de se reunir à sua família.
Os olhos negros da mulher se arregalam, não sei o que viu na face
do homem, pois não posso vê-lo, talvez um sorriso cordial, pois malmente
Maristela se ergue do lugar que esteve escorada, para se jogar nos braços de
Christian agradecendo efusivamente por ajudá-la.
— Agora, em alto e bom som Maristela, diga: Christian me ajude!
– ele se afasta. — Peça minha ajuda, para que no futuro não tenha nenhuma
dúvida de que fiz o que me pediu.
— Sim, por favor Christian, Ajude-me! A mim e minha filha, por
favor?
— Com prazer farei isto, Maristela. Tranquila!
Não tenho tempo de compreender o que diz em catalão para ela em
sua língua regional, pois logo a ambulância que ele falou para dentro do
gramado, quase invadindo a calçada da varanda. Angélica retorna com a
criança, sorrindo e conversando em espanhol, três paramédicos vestidos com
macacões azuis-escuros entram no quarto e todos incrivelmente falam
espanhol.
Olho de esguelha para Angel, está eleva o canto da boca com um
sorriso toda sabichona.
— Time perfeito! — a elogio.
Em silêncio acompanho o desenrolar de tudo que foi falado por
Christian até ver que a ambulância da ré e parte silenciosamente.
Caleb se aproxima e me diz para sair de cena, antes de liberar a
passagem dos peritos. Estou pronto a fazê-lo acompanhando Angel e seu
parceiro para fora, vejo como coordenadamente se armam e escondem as
mãos e estão prontos a fazer com o rosto, é nesse momento que tenho um
vislumbre dos olhos do homem e um choque me percorre.
— Hei! – quase grito assuntando a porra para fora dos oficiais que
nos cercam. — Espera, Christian, não é?
— Sim! – ele responde com capacete nas mãos.
Só vejo os olhos dele, mas o faixo luminoso é muito intenso e
minha mente não brinca comigo, de forma alguma.
— Sei quem é você! – relanceio meus olhos para Angélica que
ainda está por cobrir o rosto. — É ele, não é?
— Ele quem? – ela pergunta e dá de ombros.
— O garoto da fazenda! — digo com entusiasmo. — Conheço ele.
— Me desculpa, mas acho…
— Nem tenta cara, eu sei quem é você. Porra está muito diferente,
altura e físico, da última vez que te vi, eu deveria ter uns quinze anos acho,
foi quando roubamos várias garrafas de vinho do seu pai. — digo olhando
Angel de esguelha.
— Pelo amor de Deus, quase vinte anos atrás?
O rapaz olha Angel e depois me olha, ele estufa o peito em toda
sua altura e faço o mesmo, se temos diferença no tamanho deve ser por uns
quatro centímetros e olhe lá.
— Não liguei o nome à pessoa, porque enfim não sei, mas
reconheci os seus olhos, acredito que ficou gravado na minha memória.
Justamente essa posição que estamos, é como um flashback.
— Isto é estranho. — Ele disse querendo dar um ar deturpado a
minha frase.
— Pode até ser, mas tenho certeza de que é você e não sei por qual
motivo há negação, mas fico feliz que esteja bem e que trabalhe com ela. Não
fazia ideia do que aconteceu a você, nos vimos naquela época e depois nunca
mais, suponho que foi estudar fora, era isto?
— Como você pode saber se é essa pessoa baseado nos olhos,
Promotor? — Angel pergunta com enfado vestindo a máscara e, o fato dê os
dois não confirmarem de pronto minha afirmação só me esquenta os
neurônios em busca de uma resposta.
— Simples! Naquela noite depois de todos beberem até cair, passei
o resta dela jogando conversa fora, com o rapaz que morava na fazenda e
ajudou a você montar o quarto secreto.
— Mikael, nós temos de ir, dá para soltar meu parceiro?
Só então percebo que estou segurando o pulso do indivíduo com
força.
— Me desculpa. – soltei-o e permaneci a sua frente. — Não sei
qual motivo o faria negar algo óbvio. Mas como disse que bom que está
trabalhando com ela. Não lembro muita coisa daquela noite, mas tenho quase
certeza de que seu sonho era ser pintor.
— O quê? — assombrada Angel pergunta.
O homem em questão abaixa os olhos, roda o capacete nas mãos,
mas ao voltar a me fitar, o seu olhar é completamente diferente, posso quase
imaginar o riso escanteado por baixo da máscara.
— Você disse que não se lembra de muita coisa daquela época.
— Mas isto não esqueci, porque como você, teria de renunciar ao
meu sonho para fazer a vontade do meu pai. — Digo e para mostrar que não
precisa mais confirmar minhas suspeitas, dou dois bons tapas em seu ombro
direito e me aproximo. — É bom ver você de novo, Christian. É esse seu
nome?
— Sim, é esse Mikael. – ele estende a mão e o aperto é firme. —
Bom te ver de novo.
— Pintor? — Angel parece não acreditar no que houve e seus olhos
fixos no parceiro demonstram isto.
— Agradeço imensamente a ajuda de ambos e espero podermos
nos encontrar novamente.
Não espero resposta, me despeço e sigo com minha escolta até um
SUV parado em frente à rua, pois agora minha preocupação é Lia, mas antes
confirmo com Caleb que ele cumprirá sua promessa e peço a Deus que a
segurança destacada para minha Anja e o moleque dela seja efetiva e
suficiente.
Não sou muito adepto da oração, mas é o meu mais singelo
pedido!
Contudo, não posso deixar essa informação esfriar, olho para fora
do vidro blindado e completamente escuro do carro e confirmo que Christian
ainda mantém seus olhos pregados em minha direção. Porque se me recordo
quem ele é, também recordo de quem ele era sobrinho.
CAPÍTULO 24

INDUBITÁVEL
“É melhor atirar-se à luta em busca de dias melhores, mesmo correndo o risco de perder
tudo, do que permanecer estático, como os pobres de espírito, que não lutam…”
Bob Marley

RAMON

toque insistente do celular tirou-me do sério, joguei no chão as pilhas de


revistas de culinária que Carla acumulou sobre minha mesa.
O
— Porra, onde está a droga do envelope? — gostaria de ter gritado
na altura que fiz em minha mente, mas um olhar sobre o cercado no canto do
escritório me fez reduzir ainda mais o tom. Pérola está ressonando como um
anjo sem que nenhuma das atividades à sua volta a incomode.
— Não faço ideia! — minha esposa olha-me com nervos à flor da
pele.
Carla segura seus cabelos com as mãos criando um coque frouxo
preso com uma caneta, a observo de cima a baixo e quase me esqueço do
porquê viemos parar aqui a princípio.
O domo — seu uniforme de Cheff — está parcialmente aberto e
posso ver a renda da camiseta de seda que vestiu pela manhã. O tecido branco
engomado acabou manchado com nódoa da papinha de frutas que fiz para
nossa filha, as mangas dobradas foram arregaçadas e já não estão ornadas
elegantemente sobre os pulsos finos. A calça que pouco deixa ver o corpo
bem formado por baixo, nada sexy aos olhos mal-informados, me faz pensar
nas ancas suculentas que ela adquiriu após a gestação, torço insistentemente
para que pare com as loucas dietas que se impôs a fazer, pois tenho amado
fervorosamente as suas novas curvas.
— Ramon, não vai atender a ligação?
— Sim! — procuro onde está o aparelho, mas logo se silencia.
Deixou-o de lado e volto a procurar o maldito envelope. Tenho
certeza que ao chegar com ele em casa o deixei sobre a mesa do meu
escritório, mas foram tantos acontecimentos após a retirada do restaurante,
que não duvidaria de tê-lo colocado em outro lugar.
— Carla, pense com clareza, por favor. Na arrumação do escritório,
da casa, não jogou nada fora ou guardou em outro lugar?
Minha esposa que está de joelhos sobre o espesso tapete eleva os
seus olhos em minha direção soltando faíscas. As faces rubras indicam que
ainda estamos em vias de discussão por conta da contração de um novo
Cheff, contudo, não estou retrocedendo numa decisão. Nunca!
— Se está é uma nova forma de me lembrar que sou dona de casa,
minha resposta é, — ela olha para o bercinho e depois me encara —, vá se
lascar argentino!
— Eu não disse isto! Da casa cuido eu, se tivesse me casado pelo
seu senso de organização, não estaríamos caminhando para dezenove anos de
união.
Seguro o riso e volto a vasculhar as gavetas. Nunca esperei que ela
se dedicasse à casa, até mesmo porque prefiro fazer isto e cuidar da nossa
filha, enquanto Carla se diverte em seu restaurante. Contudo, às vezes tenho a
sensação de que minha esposa alimenta o receio de que um dia possa cobrá-la
algo neste sentido, mesmo que digo que jamais o farei.
Da minha Ratinha, só quero o seu amor por mim, nossa filha, o seu
trabalho e seu corpo delicioso na minha cama diariamente. Dormir e acordar
ao seu lado é a minha maior realização. O meu mais sincero desejo é que os
nossos amigos possam viver o mesmo, inclusive Mikael e Liana que segundo
Edu, parecem estar caminhando para isto.
Fecho a última gaveta e tento puxar pela memória, ninguém esteve
aqui além de Álvaro, ficamos praticamente todo o tempo na sala e na área da
piscina. Meu amigo estava se sentindo solitário e de alguma forma sinto falta
das longas conversas que tínhamos quando ainda trabalhava no escritório, por
isso às vezes fazemos uma noite regada a vinho e matamos saudades dos
tempos de faculdade, são tantas histórias a relembrar, além é claro, do seu
amor por Pérola, vejo em seus olhos o carinho que sente por minha filha.
Desta vez que estivemos juntos me senti nostálgico por mexer nas
caixas que trouxe da Argentina com recordações dos meus pais, por isso o
chamei para passarmos um tempo remexendo em tudo. — Inferno! —
reclamo um pouco mais alto.
— Eu que o diga. — Carla replica, enquanto se joga na cadeira
diante da mesa, ela cruza as pernas e os braços, mas leva uma das mãos ao
pescoço e começa a deslizar os dedos pelas pérolas do colar.
— Carla, — ela me ignora —, meu amor?
Me levanto e caminho até o bercinho para cobrir Pérola, que dorme
placidamente como se não houvesse uma guerra entre os pais, pronta a ser
deflagrada. Deslizo minha mão sobre a pele macia e ouço seu ressonar como
um miadinho.
Um sorriso se alastra em meu rosto, ela tem a pele no tom de oliva
como da mãe, os traços argentinos herdados do meu sangue, os olhos são tão
negros e astutos como os da minha mãe eram, mas o temperamento… Ah!
Esse é o da minha princesa Caramelo, minha ratinha. Irascível!
Voltando em direção à mesa, observo o currículo do tal Cheff que
Carla deseja contratar no lugar onde deveria estar o envelope endereçado a
Mikael. Olhou mais uma vez para o papel infame e quero destroçá-lo, mas
isto teria de ficar para outro momento.
— Amor preciso da sua ajuda, se concentre, comentei com Mika
sobre o envelope e preciso entregá-lo.
Neste momento meu celular volta a tocar e Carla descruza os
braços se erguendo com um suspiro cansado.
— Me desculpa de verdade, mas como disse: não sei onde foi
parar, — ela bufa irritada —, atende a droga desse celular, antes que acorde
sua filha?!
Passo a mão sobre a cabeça recém-raspada, sinto a aspereza dos
fios e vou até o sofá resgatando o Iphone.
Ela pega o currículo e fica olhando para o papel, me fazendo ferver
de raiva novamente.
— Tente achar! — exclamo. — Outra coisa, esquece essa
contratação, não vou pôr no restaurante um cozinheiro que falou na minha
cara que tem tesão por você!
— Não seja um louco Ramon Staeler! Ele disse que gosta da minha
comida.
— Sí, sí! Com aquela boca cumprida, mas com os olhos ele disse
outra coisa.
— Ciumento!
— Nunca neguei que sou! — emputecido tento recobrar a calma e
atendo a chamada—Staeler! — resmungo sem olhar o identificador.
— Lembra do rapaz que trabalhava na fazenda?
Retiro o aparelho do ouvido e confirmo de quem se trata.
— O tal que andamos caçando, sobrinho da Lourdes? — Mika
logo dispara sem a necessidade de formalidades.
— Sim! — de imediato me esqueço da porra do envelope e o
maldito cozinheiro português que minha mulher quer pôr na cozinha dela. —
conotação errada Staeler, porra. — O que tem ele?
— Acabei de conversar com ele.
— Mierda! Onde, como e com quem ele está? — disparo em um
espanhol irritadiço.
— Exatamente, no entanto, não posso dar detalhes neste momento,
— Mikael pausa, e pelo som parece estar dentro de um carro. — Vamos
marcar um encontro, está na hora do quarteto listradinho ter uma noite
daquelas.
— Feito! — encerro a ligação ao mesmo tempo em que Carla olha-
me de lado, porém não demonstra ter curiosidade sobre o que estávamos
falando.
Minha mente dá um enorme salto. Desde que sofremos a
emboscada no final de ano, separadamente dos demais tenho me reunido com
Mikael em busca de qualquer pista sobre o paradeiro de Verônica, não
queríamos chamar a atenção para os rapazes, por conta das crianças que
precisam de estar em circulação constante com escola e as esposas que fazem
esse trajeto.
Quanto menos modificarmos suas vidas melhor, mas a conspícua
oportunidade de realmente ter algo de concreto em mãos, muda toda nossa
perspectiva.
Essa informação nos coloca muitas casas à frente nesse arriscado
jogo de xadrez. Meu humor sem dúvida está há um passo de mudar
completamente, para isto só resolvendo minha outra pendência que está
bufando e jogando coisas para alto.
— Ratinha, acabei de receber uma notícia que me deixou muito
animado.
— Que bom que alguém tem motivos para isto! — ela usa o
sarcasmo enquanto se abana com uma revista qualquer.
Meus olhos viajam no seu corpo e as lembranças do sexo de bom
dia reavivam meu desejo, uma última conferida no bercinho e um sorriso
cruza meu rosto.
Tsc… Tsc…Tsc…
— Se quiser discutir sobre a contratação do português agora, este é
o melhor momento.
Os olhos cor de café brilharam, Carla coloca as mãos sobre a
cintura fazendo o domo abrir-se mais e posso ver a curva dos seios se
apertando contra o tecido, ela traga o fôlego com mais força e os mamilos
ressaltados imprimem sua presença para meus olhos.
— Quer conversar?
— E o envelope?
— Ele pode esperar.
Minha deliciosa e amada esposa está pronta para o embate, mas
mal sabe ela qual será o meu parecer e veredicto. Com passos lentos coloco
meu corpo junto ao seu, Carla ergue o queixo resoluta, apanho a folha sobre a
mesa balançando-a no ar.
— Como acabo de ficar de muito bom humor, minha princesa
Caramelo, não vamos mais brigar, concorda?
Roço os lábios sobre os seus e ela sorri concordando comigo.
— Sim, meu Don.
Os lábios presos entre os dentes me excitam absurdamente.
— Adoro quando faz isto Carla.
A beijo de leve mais uma vez, seguro o papel infame sobre a mesa
e o rasgo em mil pedaços o currículo do profanador de cozinhas, em seguida
faço uma chuva de papéis picados sobre o piso de madeira.
Carla abre os olhos em pratos e vejo a fúria grega despertando,
com passar de mãos sobre a mesa derrubo o restante dos papéis, sem perder
tempo a deito sobre o mata-borrão de couro.
— Não se atreva Ramon Staeler. — Ela sibila com força
agarrando-se aos meus ombros com suas garras afiadas.
— Não me atrever ao quê? — pergunto deslizando minha mão por
sobre o domo para abarcar um dos seios generosos e apertá-lo sem dó contra
a palma da minha mão. — Vai ter de fazer silêncio, segurar seus gemidos
para não acordar a nossa Pérola.
— Nem se atreva! — ela tenta manter a fúria, mas ao fundo sua
voz vibra, enquanto aperta os lábios da mesma forma que pinço um dos
mamilos túrgidos.
— Já disse o quanto me satisfaz ver que as suas curvas são ainda
mais generosas depois da gravidez?
— Diariamente, argentino. Me solta! — ela diz entredentes.
— Só depois que gozar na minha boca Ratinha.
— Zeus! — ela exclama e arfa ao ter meu pau se esfregando
completamente rijo contra o centro do seu corpo.
Com um sorriso travesso deslizo minha boca pelo vale dos seios
com beijos e volto até sua garganta, pegando o queixo com dentes e
invadindo sua boca com minha língua em um beijo arrebatador. Minhas mãos
percorrem por sobre o tecido deslizando os botões das casas, abrindo-a como
um presente grego, porém recheado com uma mulher deliciosa, quente e
receptiva, pois sua raiva está a um passo do esquecimento.
—Ratinha … — a faço olhar-me fixamente —, não vou colocar
outro Enrico perto de você, já sofri demais no passado. Você é a minha
mulher, a mãe da minha filha, minha esposa, minha vida e não vou perder um
único dia da minha vida brigando, desconfiado ou enlouquecendo por ter
outro homem apaixonado correndo atrás do que é meu.
— Disse tudo, sou sua, então por que sentir-se assim? — ela
sussurra e me beija com leveza.
— Porque levei dezessete anos a tê-la comigo, não quero perder
nenhum dia a mais. Eu te amo Carla!
— Louco, ciumento e possessivo! — suas acusações vêm munidas
de um sorriso sensual. — Eu te amo, mesmo assim!
Em minutos temos nossos corpos completamente desnudados,
nossas bocas rendidas com mordidas e um duelo infame de línguas, mas os
nossos corações estão presos dentro um do outro em paixão, desejo e amor.
O mais puro, louco e eterno amor.
De tantos problemas que nos cercam, dois estão prestes a ser
extirpados das nossas vidas e a melhor parte disto é ter ela comigo.
— Não esqueça o que disse, sem barulhos Ratinha! — cochicho
enquanto mordisco o lóbulo da sua orelha enquanto sinto seu sexo molhado
receber-me com todo seu calor, ganhando espaço centímetro a centímetro até
afundar-me completamente.
— Ok! Sem barulhos — ela ofega e tenta manter-se quieta —, sem
cozinheiro português de fala doce, mas se…
— Sem mais mulher! — arremeto firme dentro do seu corpo e a
beijo bem a tempo de engolir um dos seus gritos cheios de tesão seguidos por
muitos outros.
Adoro discutir e fazer as pazes com minha Ratinha…

SANTIAGO
Quem poderia prever que os vilões não teriam alguns dias de cão?
Provavelmente os dois últimos têm sido. Entre os dois não posso
decidir qual o pior, mas acredito que este é um daqueles dias que acordamos
para nos arrependermos logo em seguida.
Se por um puto momento suspeitasse de que passaria por toda
situação inusitada, teria posto uma tranca na porta e permanecido na cama.
Primeiro foi Mikaella que resolveu se rebelar contra seu tratamento
e as rotinas com as terapias, como uma criança mimada, simplesmente por
sentir que tenho me afastado dela.
Isto me faz sentir as vísceras se revirando, mas desde que tomei
minha decisão, não posso e não quero retroceder, o melhor a se fazer é
devolvê-la ao seu lugar em que pertence, quanto antes, mesmo que só depois
possa fazer-lhe justiça.
Contudo, minha Fadinha é uma mulher que além de linda,
engenhosa e talentosa é terrivelmente geniosa, e tem provado isto a cada dia
que se passa. Deixá-la dois dias atrás depois de outra discussão fez-me muito
mal, porém tinha de sair e resolver o segundo problema que estava em curso
de explodir como uma bomba.
Desde que Verônica criou seu show de horrores no final do ano,
Angélica a tem caçado como um cão perdigueiro atrás da sua presa, mantê-la
escondida não tem sido fácil, até porque não a dou de fato uma hospedagem
gentil, ela é minha prisioneira e experimenta o doce tratamento que destinou
a minha Fadinha quando a manteve sequestrada, mas nem assim esse
demônio consegue deixar de espalhar seus tentáculos por todos os lados me
criando problemas.
O melhor lugar para se esconder algo que não deseja ser
encontrado é colocá-lo bem debaixo dos seus narizes. Eles vão cheirar em
volta, rodar em círculos e nunca vão encontrar.
Uma das muitas propriedades que adquiri, está tão próxima a eles
que mal fazem ideia. Praticamente no quintal de Staeler. Uma proximidade
segura para manter a maldita escondida, mas perigosa o suficiente para que
ela de alguma forma tenha contato com seus capangas que não tiveram o
menor problema em desafiar meus homens para obedecê-la.
Maldita!
Me enfureço só por lembrar que teve a audácia de ameaçar-me se
não a colocar na liderança dos planos novamente, para isto causou um inferno
de comoção ao cortar um dos pulsos. Uma ferida profunda o bastante para
necessitar de atendimento clínico. Por estarmos tão próximo à casa de
Staeler, não poderíamos fazer alarde com isto. Por sorte, Verônica não
contava com minha presença.
As fotos que foram deixadas com Staeler, ainda poderiam ser
entregues a Mikael. Não quero impedi-lo de saber do filho, muito pelo
contrário, não só deve como é a obrigação dele cuidar da criança, porém isto
colocaria os meus planos em ponto morto por alguns motivos. Não o quero
distraído e enlouquecido em um momento que pretendo devolver-lhe a sua
irmã.
Conheço bem o Nikolaievitch e sei que irá perder a porra da sua
mente. Então recuperar o envelope, é um favor que estou lhe concedendo por
um pequeno momento. Além de perceber como Liana vem agindo nos
últimos tempos, creio que deva ter em mente colocá-lo a par da paternidade,
por fim, e para isto minha aposta é que esteja preparando o terreno para que
nenhuma mina exploda em sua cara. Ela é uma mulher que realmente admiro,
pois, é perspicaz e valente.
Muito provável está seja a segunda razão pela qual me empenhei
em recuperar o envelope, só para ajudá-la. Melhor admitir do que usar
subterfúgios.
Este foi o motivo de me hospedar na Ilha do Frade em tempo de
descobrir a artimanha de Verônica e conseguir assistência médica sem
chamar a atenção dos vizinhos, e aproveitar um convite feito a Álvaro por
Staeler, assim matamos dois coelhos com uma só cajadada. Uma vez
ocupados degustando longas garrafas de vinho, foi fácil deslizar um dos meus
homens para dentro da casa e surripiar o que precisava.
Fim de um dia longo, exaustivo e cheio de problemas, mas como
disse dia de cão não tem fim.
Pouco antes das nove da manhã uma ligação urgente mudou todos
os meus planos. Geralmente quando a necessidade de dois agentes na cena
para recuperar uma vítima ou recolher possíveis refugiadas com seus filhos é
um Alfa e um Ômega, — apelidos carinhosos dados a equipe por Fernanda,
mais uma equipe com um médico, enfermeiro e dois batedores.
Por estes motivos eu e Angélica na mesma cena, é quase
improvável, cada um comanda sua própria equipe e não interfere na forma
que o outro trabalha, por isto ao receber a ligação dela pedindo ajuda e em
um tom aflito, não pensei duas vezes, desviei do meu caminho, me coloquei
em contato com a equipe e me juntei a eles.
Entretanto, se por um momento ela tivesse falado para ajudar
qualquer um desses filhos da mãe, teria de pronto recusado. Nem mesmo pelo
fogo do inferno teria vindo. No entanto, mantive para mim mesmo minhas
opiniões e fúria ao ver seu tormento quando os tiros começaram a ser
disparados e não poderíamos fazer nada. Todavia, a coisa não poderia ser
pior que já esperava, por comunicadores, Jairo um dos seguranças designados
havia informado a situação e nos preparamos para o pior.
Contudo, o pior, para mim não seria ter uma mulher e uma criança
na cena. Com todas as previsões feitas e cuidados para não me pôr na mira do
olhar de escrutínio do Promotor, tomei a liderança assumindo a posição do
Alfa e deixando Angel como Ômega para cuidar da criança, que a uma
primeira avaliação não apresentou nenhum dano físico a não ser, fome, sede.
Já a mãe da criança era outro caso, assim que entramos no quarto o
odor de sexo forçado veio tão forte às minhas narinas que senti meu
estômago se revirar.
Esse é um trabalho que faço por querer realmente, por me permitir
manter uma linha tênue entre a minha humanidade e o monstro que ronda
minha mente, Maristela, não é a primeira mulher que resgatei em tal posição,
talvez nem a pior, Fernanda foi a pior até hoje, mas ainda assim qualquer
uma das frágeis criaturas que encontro sodomizadas, espancadas e violadas
de todas as formas possíveis me endurece o corpo e quebra o coração, — se é
que tenho algum ainda.
Não me dei ao trabalho de imaginar pelo que mais teria passado,
uma vez no quarto, continuei a observar a comunicação rasa com Angélica,
mas após avaliá-la e saber ao qual timbre e tom de conversa a mulher reagiria
melhor assumi a liderança.
Minha comunicação com Angélica é através de sutis toques no
dorso da mão, mais conhecido como código Morse[11] e com o passar dos
anos aprimoramos nossa própria telegrafia através do tato sutil e
imperceptível para olhos desatentos, leigos do que pudesse ser. Optamos por
não usarmos comunicadores entre nós dois, isso nos força a manter a
proximidade em alguma ação.
Fui rápido e um pouco ríspido em minha abordagem, mas o que
não temos em um caso atípico como este é tempo. Foi bem executado o plano
e antes mesmo que os responsáveis pela operação se dessem conta já
tínhamos em uma ambulância mãe e filha, sedadas e prontas a serem tratadas.
Este seria o fim do meu trabalho e poderia seguir caminho para a
segunda parte, onde retiraria em segurança a morena castelhana e sua filha do
hospital, mas o improvável aconteceu.
Mikael com sua mente brilhante me reconheceu, e mais, totalmente
encapuzado. Quem diria que a mente humana pode ser tão detalhista com
coisas mínimas como um par de olhos expostos por uma fresta de toca?
— Sei quem é você! — ele cruzou seus olhos com Angel e depois
volta a me fitar. — É ele, não é?
Poderia ter desconversado, ter mentido, feito qualquer coisa, até
sair correndo para que ele não tivesse a oportunidade de continuar com suas
observações e insinuações, porém para que mentir? Um dia isto teria de
acontecer, porém, não contava que ele lembrasse de tantos detalhes.
Observo o momento que ele entra no carro e continua a me fitar
com intensidade, sem perder um segundo do seu foco e me pergunto, do que
mais ele pode estar se lembrando?

— Ei! — senti o cutucão nas costas e isto me fez desligar-me dos


meus pensamentos.
— O que foi patroazinha, temos que sair — resmungo de mau-
humor, deixando claro que não quero conversar.
— Pintor?
Angélica não vai deixar isto passar, porra, deveria ter desmaiado
Mikael com soco em vez de deixá-lo falando feito uma vitrola velha.
— Santiago! — ela sibila e segura firme meu bíceps puxando-me
para a lateral da casa. — Que porra é essa de pintor? Do que Mikael estava
falando?
— De nada, lembranças de uma conversa quando ainda era um
adolescente, irresponsável e bêbado.
— Nem começa com as desculpas, se quisesse, teria dado a ele,
como não fez, quero saber exatamente do que ele estava falando. — ela
pausa. — ou melhor, você é um pintor?
— Sou muitas coisas, Angélica, mas ainda não tenho uma carreira
de Van Gogh.
— Não se atreva a fazer piadas, estou falando sério.
Suspiro. — Ainda estamos trabalhando Cristina, esse não é o
momento e nem o local.
Evito seu olhar e dou alguns passos deixando-a com os olhos
estreitados para trás. Saco o Iphone do bolso e faço uma ligação para a equipe
que está seguindo a ambulância. Logo depois peço Fernanda pelo
comunicador para que receba um relatório prévio que está sendo enviado e
informo que mais tarde passarei uma transcrição de tudo incluindo a conversa
com a senhorita De La Fuente que foi gravada.
Angélica se aproximou quando fiz sinal, pois além de estarmos em
uma posição complicada, aqui ainda temos de terminar nossa missão.
— Vamos? — A chamo, mas novamente ela me segura e desta vez,
coloca uma tela de celular diante do meu rosto e aponta com o dedo.
— Você fez isto? — ela sussurra tão baixo que mal posso ouvi-la.
— O que disse? — pergunto sem entender sua pergunta.
— Posso até deixar passar algumas coisas, Christian, mas isto não
passou, são muitas coincidências para serem ignoradas.
— Estamos perdendo tempo. — Exclamo irritado e afasto sua mão.
— Você pintou o quadro que está no restaurante da Carla, não é?
— Por que acha isso?
— A assinatura. Não queria imaginar que o nome do artista tivesse
algo a ver com você. Contudo, seria muito estupida se não tivesse.
— Escute o que vou te falar com muito cuidado. Não quero ter
qualquer conversa neste lugar, se quer saber algo espere que te fale. — Ergo
minha mão quando ela vem retrucar. — Me pediu ajuda, e estou aqui para
fazê-lo, nada mais e nada menos.
— Quem é a mulher do quadro?
— Onde está seu admirador, o comandante Caleb, precisamos
encerrar nossa participação por aqui.
Dou às costas e caminho pelo jardim até achar o homem que parece
ter se encantado por ela. Mais um.
Não dou dois passos e ela me segura, mas sem violência, apenas as
pontas dos dedos sobre minhas costas e sinto as batidas sutis contra os
músculos retesados.
Sem regatear, ela diz quem acredita que seja a mulher da foto.
Sinto os meus olhos se expandirem, mas recobro minha compostura ao voltar
meu corpo em sua direção e encará-la.
— Por que acha isso?
— Porque nunca vi o rosto dela, mas tenho uma foto rasgada, desta
mesma pintura.
— Esquece isto, não dê tanto crédito ao que seu amigo falou. Ok?!
Ela não tem tempo de rebater, mas não perco seu olhar cair com
misto de decepção e a centelha de estar pensando em algo a mais, pois neste
momento o comandante se aproxima e intercepta nossa passagem.
— Estão de saída? — ele pergunta, mas de olho em Angel e de
pronto ela volta ao personagem como se nada a perturbasse.
— Sim! Muito obrigada por sua colaboração.
— O Promotor fica me devendo essa, mas depois nos acertamos.
— ele suspira, e olha de escanteio e volta a encará-la. — Então, a loira do
caralho, tem um número de telefone que eu possa me comunicar?
— Não!
— Mesmo? Poxa! Pensei que pudesse nos ajudar a perseguir os
dois meliantes que fugiu, tenho uma equipe no rastro deles agora.
— Sinto muito comandante, — tive de interrompê-lo — mas, nossa
missão aqui é outra, e já a encerramos.
— Concordo com meu parceiro! — Angélica olha-o de alto a baixo
e volta a encará-lo. — Tenho de deixar algo para que possa se divertir, não
acha?
O homem aproxima-se, mas sem tolher seu espaço, dá um sorriso
de predador e sem um pingo de medo solta uma cantada que por pouco não
me faz pôr o café da manhã para fora, de novo.
— Eu poderia pensar em mil maneiras de me divertir, com você
loira.
— Continue pensando, isso faz bem para o cérebro. — sem nada
mais a dizer, deu a volta ao corpo imenso do homem e seguiu para o portão.
— Nem pense em continuar comandante, é perda de tempo —
passo ao lado e sigo a “loira”, mas o homem não está convencido de que
perdeu a parada.
— Não vou pensar, sou homem de agir!
Tomei a frente de Angélica e nos conduzi onde as motos e dois dos
nossos agentes nos esperavam.
— Por que você só atrai esse tipo? — Pergunto com ar de deboche.
— Não faço ideia, — ela responde com enfado. — Tenho uma
longa lista de mentirosos, homens que se acham mais espertos do que são.
Sabe qual é a melhor parte disto?
Ela pergunta, sobe em sua moto e me encara após colocar o
capacete.
— Ilumine-me.
— O melhor de tudo é que sempre descubro a verdade, e quando
faço, meto uma bala entre os olhos do filho da puta. — uma sobrancelha bem
delineada se ergue com um vinco enquanto me responde com uma sinuosa
ameaça. — Toma cuidado comigo Santiago, você pode não ver de onde vem
o próximo disparo.
Dito isto ela acelerou e saiu em disparada.
— Sinto muito patroazinha, é a única coisa que posso dizer por
enquanto.

MIKAEL
— Senhor, o que podemos fazer é deixá-lo na garagem e seguirmos
no mesmo modus operandi. — Aylton que é o mais calado dos meus dois
seguranças retruca ao ouvir que farei um desvio da rota traçada antes desta
operação.
— Não me importo e, na verdade, agradeço o empenho dos dois.
De toda a equipe, sei que não somos os melhores clientes que já tiveram —
refiro-me a mim e meus amigos que sempre tentamos burlar a segurança —
mas reconheço o esforço e profissionalismo de todos.
Os homens sentados nos bancos da frente pigarreiam e tentam
disfarçar que o elogio sincero não os deixou encabulados, mas preciso
reconhecer um bom trabalho quando é feito.
Encerrada a ligação com Ramon, enviei uma mensagem para
Caleb, Lia e Angélica cada uma com uma finalidade.
Segundo Caleb, não muito distante do local onde os meliantes
escaparam, cães de rastreamento foram levados e conseguiram pegar algo, e
neste momento estão dando caça dos bandidos.
Angélica foi mais sarcástica com o “não faço mágica, tenha
paciência” antes de me assegurar que às duas castelhanas estavam a salvo
com ela e que as acompanharia até poderem se reunir com a sua irmã
Marisol.
A terceira e que me deixou um pouco mais aliviado e redobrou
minha ansiedade veio de Lia.

@Promotor_nikolaievitch:Oi
@Doutora_anjinha:Oi
@Promotor_nikolaievitch: onde está?
@Doutora_anjinha: em casa
@Promotor_nikolaievitch: vou te buscar mais cedo. Que tal?
@Doutora_anjinha: Hum… Acho melhor não.
@Promotor_nikolaievitch:Por quê? Não está com saudades de
mim?
@Doutora_anjinha: não seja convencido, Promotor. Estou
cercada de caixas da mudança, tentando esvaziá-las.
@Promotor_nikolaievitch: posso te ajudar.
@Doutora_anjinha:Há, há, há … isto nunca daria certo.
@Promotor_nikolaievitch: estou indo aí, se apresse
@Doutora_anjinha: não recebo ordens e disse que não, seja um
bom menino e passe aqui lá pelas 19 horas.
@Promotor_nikolaievitch: não sou um bom menino, sou um anjo
mau.
@Doutora_anjinha: Tchauzinho Promotor ��

Com um riso sarcástico guardo o aparelho no bolso interno do


terno de corte italiano e passo a observar o caminho que fazemos até o local
onde estacionei minha moto. Os últimos dias repassam em minha mente
como um ‘flash’ e tantas coisas aconteceram de uma única vez que custo a
imaginar que poucas semanas atrás, estive em situação similar.
Sentindo medo, sendo encurralado pelas ameaças que passaram a
chegar de forma sistêmica sem saber o que fazer, principalmente por não ter
ao menos uma única oportunidade de falar com Lia.
— Porra! — resmungo em meia voz.
Como posso me sentir assim tão desesperado por ouvir sua voz, vê-
la e ter a certeza de que está bem de forma tão louca e desvairada se
passamos praticamente metade de nossas vidas separados, mas agora…
suspiro. Sinto que se não puder tocá-la, se não souber que está protegida não
poderei respirar. Além disto tenho essa preocupação exacerbada com o filho
dela. Será que Santana realmente tem como proteger essa criança?
Poderia essa horda de bandidos terem rastreado o moleque?
Meu coração dispara no peito e sinto dor física, ao ponto de fazer
pôr a mão por sobre o peitoral e apertar.
— Está tudo bem Promotor? Se feriu quando o derrubei no chão?
— Jairo que dirigi me olha pelo retrovisor.
— Está tudo bem, Jairo. Foi só uma pontada.
— Me desculpa senhor, é protocolo. — O homem fala com pesar.
— Eu entendo. — A resposta firme faz com que volte sua atenção
na pista e percebo que estamos quase chegando.
O estacionamento é fechado e de fácil acesso para quem é sócio do
local. Desembarco do SUV, agradeço mais uma vez enquanto meus
seguranças fazem seu trabalho levo comigo minha pasta com a alça
atravessada no peito, o capacete blindado — presente da Megera, e o Iphone
na mão.
A moto é conferida por Aylton como de praxe, dado o aval de que
está tudo certo passo a perna sobre o banco e me assento envolvendo a
carcaça poderosa com as pernas, ligando o motor e sentindo a trepidação e o
ronco da máquina. Espero os seguranças subirem no automóvel e acenarem
para sairmos do estacionamento, mas antes olho outra vez para o aparelho e
cogito a possibilidade de enviar uma mensagem para o Santana.
— E dizer o quê? — o desgaste mental da indecisão me aborrece, e
eis um dos motivos sobre o porquê não gosto de me envolver com ninguém
além de mim mesmo. — Ser a porra de um egocêntrico me economiza os
neurônios, cacete!
Esbravejo, mas a voz sai abafada por já ter colocado o capacete e
me arrependo do que penso e falo.
Muito bem!? Mikael, é assim que quer mudar? Sendo um filho da
puta?
Arranco o capacete, desbloqueio a tela e faço a chamada.
Trim… Trim…
O telefone é atendido no segundo toque.
— Santana, é o Nikolaievitch, preciso de uma informação sua.
Silêncio
— Santana, está me ouvindo? — afasto o aparelho e vejo que está
conectado. — Será uma interferência, por estar no subsolo? — resmungo. —
Santana?
— MAH? … — ouço um resmungo no mesmo tom que o meu,
parece ser uma voz infantil, bem rouca como se tivesse a garganta obstruída.
— Santana?
— MAH! — agora tenho certeza é uma criança e mesmo que a voz
seja grossa bem rouca é sem dúvida um pirralho.
— Oi?
— Oi?
Um tremor estranho percorre meu corpo, um arrepio que me faz
encolher os ombros como se algo extremamente gelado escorresse pelo
centro das minhas costas. É tão forte que tenho ganas de me abraçar para
deixar de sentir a sensação.
Ao longe ouço passos apressados e logo depois um barulho como
se fosse portas de vai e vem rangendo e então a voz de Santana meio abafada,
meio rindo.
— Hahahah, não… hahahah…
A criança ri com uma gostosa gargalhada e espanta a sensação
estranha de arrepio, mas traz algo que nunca senti, quente no meu peito.
Tenho a impressão de que se essa gargalhada fosse comestível seria como
mel morno sobre panqueca quente, como um gostoso café da manhã que
sacia, que alegra e dá uma sensação estranha de… casa… de fa-família?
“Ei pequeno, não pode atender o telefone do tio, ok! O Anjinho só
pode mexer no seu próprio telefone? — uma risada. — Sapeca, sabia que
estaria aprontado. — um estalo de beijo. — Dá para o tio, muito bem, vai
brincar com a Kiki.”
Os passos correndo descalço sobre um piso são leves e vão se
afastando.
— E coloca o chinelo, Anjinho! — A voz de Santana invade a
ligação, ainda com tom de riso. — Alô? Me desculpa, meu afilhado estava
com o celular e atendeu a ligação. Quem fala?
Silêncio, pois não sei o porquê não consigo articular nenhuma
sílaba.
— Alô?
Pigarreio e tento novamente.
— Santana é o Nikolaevich!
— Wou! Mikael, algum problema? — Sua voz se transforma
completamente e se torna arredio.
Problema? Bem temos vários, mas no momento me sinto estranho.
Coloca a porra da sua cabeça para funcionar Mikael e diz algo.
— Mikael?
— É sobre algo do escritório, mas podemos ver depois, acredito
que pode esperar.
— Sobre o escritório? Bom, não estou perto de um computador
agora, mas posso te ajudar, no que for preciso.
— Não, tudo bem, — pigarreio. — Vocês estão seguros?
— Sim! — ele é certeiro. — Além dos seguranças que vieram de
Vitória conosco, temos aqui uma equipe muito competente, não se preocupe;
e está tudo bem?
— Sim, tudo sob controle. — respiro com tranquilidade. — Ah!
Santana me desculpa ligar, por um momento me esqueci que você está de
licença, nos vemos quando voltar.
— Ok! Em três dias estamos de volta.
— Certo, se precisar de algo, por favor é só ligar.
— Claro, tem algo mais que queira falar?
— Não! Quer dizer, a criança que falou antes é…
— O filho da Lia.
— Certo, cuidado com o moleque, ou ela vai arrancar seu coração.
Ele solta uma risada.
— Ah! Mikael, tenho certeza de que isto seria só o começo. Pode
ficar tranquilo, cuido do Anjinho como se fosse meu filho, mas ele é só meu
afilhado! Ok?
— Entendi da primeira vez que falou! — Não vou dizer em voz
alta, mas sinto alívio de não ser esse imbecil o pai do moleque.
Não perdi tempo em despedidas e nem poderia, não somos amigos
e isto deve ter sido a conversa mais longa que tivemos desde que nos
conhecemos.
Voltei o celular para dentro do bolso, capacete sobre minha cabeça,
retirei o descanso da moto, acelerei e… MAH? … balancei minha cabeça e
tirei o ponto morto, deixando a moto deslizar sobre o concreto abafando na
minha mente a voz infantil que me enterneceu e estremeceu novamente, pela
segunda vez no mesmo dia.
Não sou indiferente à pirralhada, como disse a Lia sou um ótimo
tio, e saber que o moleque era o próximo na lista da chantagem me deixou de
verdade desnorteado e ouvir sua voz rouca que me lembra a da sua mãe, só
reforça isto.

O prédio de Lia, ou melhor, meu, é bem localizado os cinco


andares de frente a praia fazem jus ao nome de Palace, pois a arquitetura é
soberba. O SUV com os seguranças está estacionando a duas vagas à frente,
desci da moto bem diante do portão de garagem, sabendo que ninguém ali vai
entrar ou sair.
Dei de ombros, saquei novamente o Iphone e fiz uma nova ligação.
Trim… Trim…
— Oi! — Falo assim que ouço a conexão.
— Aí, meu Deus! — Ela grita e ouço um barulho metálico como de
pratos caindo. — Oi!
— Que barulho é esse? — Me ergo e salto da moto.
— Não pergunte, tentei retirar as peças da bateria do alto de uma
estante de ferro e resultado, quase morro soterrada. — A risada sexy que
acompanha o relato me deixa excitado.
Que combinação: o filho aquece o peito, a mãe eleva a
temperatura do meu pau. Por que estou me sentindo tão fodido?
— O que disse? — Lia pergunta e outra sequência de barulhos
estranhos vem através do telefone e das portas na sacada do terceiro andar.
— Não disse nada, mas vou subir para te ajudar, depois vamos
embora.
— O quê?
— Estou aqui embaixo esperando.
Ela desliga sem responder e segundos depois aparece na sacada.
— Mikael?! — seu rosto é de assombro.
Dou um sorriso e aceno, mas perco o controle quando vejo como
está vestida, aliás, qualquer um pode ver.
Lia tem os cabelos presos no alto da cabeça no que deveria ter sido
um rabo de cavalo, mas há muitos fios soltos que se grudaram na pele suada,
em suas mãos vejo baquetas e uma haste de violino, mas o que realmente
detém meus olhos são os seios fartos seguros por um cropped, que deveria
tampar mais do que só os mamilos na minha concepção. O short jeans que
pode ser confundido com uma calcinha, tanto na parte baixa da cintura que
posso ver o osso da bacia, quanto na parte de baixo que consigo visualizar a
polpa da bunda fornida de uma vasta carne.
Meu pau grita.
Meus olhos gritam.
Minha mente grita, mas o pior faz a minha boca.
— Que porra você está vestindo? — quando do por mim já fiz, e
como não sei voltar no tempo, foda-se. — Entra!
Lia entorta a cabeça de lado, pisca e começa a gargalhar, poderia
ser sexy ver os seios fartos balançarem desse jeito com ela cavalgando sobre
mim, não com a porrada de marmanjo na praia à frente apreciando a minha
mulher quase pelada na sacada.
— Liana!
— Vou fingir que não ouvi!
Ouvimos um assobio. Cruzei os braços e volvi meu corpo, os
imbecis do outro lado, ao menos tiveram a decência de voltar para seja lá, o
que estiverem fazendo.
Ainda de costas para ela, ergui o telefone e fiz a chamada.
— O que foi, não vai gritar mais? — Ela ri.
— Dez minutos, ou subo aí!
— Isto tudo é saudades de mim Promotor?
— Ah! Anjinha você não tem a menor ideia! — sibilo.
— Vamos fazer assim, meia hora e desço, preciso pelo menos
guardar os instrumentos de corda, nos estojos.
— Instrumentos?
— Sim, vários, tenho uma orquestra filarmônica em casa, — ela
comenta ao mesmo tempo, ouço seus movimentos. — Violão, violino,
violoncelo, ukulele, guitarra, contrabaixo e banjo, sem falar que ele diz que
sabe tocar harpa, meu Deus!
— Uau! — Não sei o que dizer, mas ouvir sua voz vai me
aclamando.
— Só Uau? Temos aqui uma bateria desmontada com todos os
infinitos pratos, um piano de meia cauda, um teclado, uma vasta coleção de
discos de vinil, fora alças e todos os acessórios que estes instrumentos
precisam e duas caixas amplificadoras mais os pedais da guitarra.
Não posso deixar de rir e olhar para a sacada de onde vem um
barulho ensurdecedor de mais pratos caindo. Confesso, estou uma pilha de
nervos e se não me controlar, vou explodir por qualquer detalhe besta, até dá
um de macho alfa com minha mulher seminua na sacada.
Foda-se! Não estou gostando disto, esse definitivamente não sou
eu!
Você pretende abrir uma loja de instrumentos? — Pergunto
olhando para todos os lados tentando me concentrar em outra coisa.
— Não! — Lia ri e fecha a porta da sacada. — Vou deixar do jeito
que está e vou só passar uma água no corpo, ok? — Sua pergunta vem sem
fôlego.
— Ok! — Isto me alivia. — Os instrumentos?
— São — ela hesita, mas é breve. — São do Anjinho, meu filho
ama música e tudo que ele ouve tocar, assiste em um filme ou ver em um
vídeo no YouTube quer aprender e simplesmente toca.
— Espera, — pauso. — Colocou o moleque em aulas de música
para aprender tudo isto?
— Não. Jamais faria isto, ele é novinho demais. Ele simplesmente
ama e diz que sabe tocar, no princípio… — ela pausa novamente e a água
correndo, minha mente vai longe. — No começo ele dizia saber, mas eu
acreditava que fosse coisa de criança, até que um dia o levei em uma loja,
aliás antes disto ele tocava piano, na parede do quarto dele, onde adesivei um
piano infantil. E era tão certinho como os vídeos que via que arrisquei,
assim… — ela pausa e posso imaginar dando de ombros. — Foi naturalmente
todos os amigos do trabalho: Gio, Nina, os primos, minha mãe e todo mundo
que sabia da sua habilidade, seu dom natural para tocar instrumentos de corda
resolveu dar um de presente.
— Estou impressionado!
— Você não é o único, eu fico, diariamente, quando conhecer meu
filho, vai entender perfeitamente o que estou dizendo.
Pausa.
Sei que deveria falar algo, mas neste momento tenho receio de
acabar sendo grosseiro por isso só concordo com o que diz. Ela continua
contando sobre a facilidade musical da criança, e com a voz rouca dele ainda
perdurando em minha audição sensível posso imaginar o talento do moleque.
Lia terminou seu banho e encerrou a ligação, minutos depois
apareceu no portão da garagem dentro do seu carro, não fiz nenhum
comentário, apenas me aproximei da janela do veículo. Ela desceu o vidro,
com óculos escuros e a porra da irmã gêmea da roupa que estava antes.
— Vou queimar esse trapinho! — Ralhei ao ver as coxas sobre o
banco.
— Veremos, Promotor. Coloquei só para meu Promotor, — ela
debruçou na janela do carro, colocou a parte de cima do corpo para fora,
puxou-me com as mãos segurando o meu rosto e atrevidamente meteu a
língua na minha boca.
Adoro sua agressividade em se tratando de pegar o que quer, Lia
não se faz de rogada e nem banca a tímida quando tem algo em mente, sua
língua desliza pela minha boca, passando por dentes e brincando com palato,
seguro-a pela nuca, ouço seu gemido e meus dedos se enroscam nos fios
molhados dos seus longos cabelos.
O cheiro do seu perfume me excita ao ponto da tortura, ela se
afasta por segundos para voltar a assaltar minha boca, mordendo com força,
porém sem ferir meu lábio inferior soltando-o lentamente diante do meu
próprio gemido de satisfação, deslizando a carne por entre os dentes.
Ela é perfeita para mim!
Deixo o beijo se aprofundar, por algum tempo e nos separamos,
com olhos herbários de desejo.
— Oi!
— Oi!
— Para onde?
— Minha casa.
— Ok!
— Dorme comigo?
— Dormir? Você não é o “cara” que nunca dorme junto? — Lia
faz sua observação me olhando de esguelha enquanto coloca óculos escuros.
— Será a nossa primeira vez, — dou de ombros sem deixar que
perceba o quanto isto me parece “estranho.” —Sim ou não minha Anja?
— Sim! — Ela sorri e passa a língua pelos lábios. — Estou
preparada para isto.
— É por isto que para um anjo mau, só poderia haver uma anja
safada. — Pisco sabendo o quanto a perturba, ela geme e aperta suas coxas
contendo um gemido, mas vejo a pulsação forte na base do pescoço e o subir
e descer dos seios agitadamente.
Dou um sorriso sarcástico e faço sinal para que me siga, ela da
partida no carro e espera que faça o mesmo em minha Harley, tudo parece
que está começando a se encaminhar para fechar um dia com saldo positivo,
só preciso de duas coisas mais. Que Caleb, capture os meliantes fugitivos e
que Lia não surte quando souber que liguei para Giovane, porque de um jeito
ou de outro vou ter que soltar essa informação ou ela pode pensar que estou
bisbilhotando sua vida.
Na verdade, estou sim, mas não preciso deixar isto claro.
CAPÍTULO 25

IDÍLIO
Lá vai o meu coração batendo
Porque você é o motivo
De eu perder o meu sono
Por favor, volte agora

LIA

M
inha língua deslizou sobre a sua, senti todos os recônditos do meu corpo se
inflamando de desejo e por algo mais. O cheiro do seu perfume é uma droga
que vicia de uma forma que me faz estremecer.
Deslizei para meu lugar aceitando de pronto suas demandas, pois é
o que quero e seria muito idiota da minha parte me negar isto.
Olhei para a bolsa de viagem pequena no banco de trás e senti um
frio na espinha, uma contração no baixo ventre e nenhuma das duas
sensações tem a ver com tesão, mas sim com medo.
— Pelo amor de Deus, Lia! — ralho comigo mesma colocando
uma das unhas a bater contra meu lábio.
Deixando Mikael tomar a dianteira da situação passei a segui-lo em
sua moto e dei passe livre para minha mente viajar em um show de slides.
Passei a manhã toda com coração apertado, me sentindo estranha
após conversar com Mikael por mensagem, mas logo fui distraída por minha
missão de esvaziar o quartinho da bagunça entre uma mensagem e outra de
July e companhia.
Minhas adoráveis amigas e suas mil e uma perguntas foram
implacáveis querendo saber sobre a bendita foto que Edu enviou ao grupo de
família.
Para meu benefício e histeria delas, o horário de almoço das
crianças e horários de saída do colégio colocou um fim nisto, mas não sem
antes Juliana prometer visitar-me para conversarmos, pois, de alguma forma
ela intuiu que devo me livrar do idílio que me coloquei e viver — seja lá o
que isso signifique para ela.
Logo após nos despedirmos, conectei o home theater via bluetooth
com meu celular e escolhi uma seleção de músicas de uma nova lista de
reprodução. Uma melodia suave começou a tocar e invadir todos os espaços
vazios e conturbados do meu coração; a voz de Calum Scott, cantando You
Are The Reason sobressaltou-me com sua letra.

Eu escalaria todas as montanhas


E nadaria todos os oceanos
Só para estar contigo
E consertar o que quebrei
Oh, porque eu preciso que você veja
Que você é o motivo

Naquele momento não quis dar tanta importância ao fato de sentir


o aperto no peito, um medo estranho me fez encolher em meio às caixas de
instrumentos.
Não, naquele momento só quero imaginar que essa canção de
alguma forma foi feita para nós e só naquele instante de realidade compreendi
o que seria o tal idílio que July me disse, pois, me senti de fato.
Durante tantos anos vivi meu pequeno poema trágico, cercada da
poesia mórbida que a dor e mágoa corrosiva me proporcionou e deixei de
lado a parte lírica, delicada e sincera de um sentimento que nem ouso
pronunciar, mas que já posso sentir se expandindo em meu peito, como uma
avalanche deslizando por um alto penhasco que não pode ser contida.
Provavelmente foi estar envolvida nessa atmosfera de descobertas e
reconhecimentos, embalada por outras canções do mesmo artista, cheias de
verdades e sentimentos assertivos que fizeram a mensagem que recebi de
mamãe, ser a pedra do holocausto para minhas renovadas decisões. Pois, é
um fato a cada dia como o sol que nasce no horizonte, me faço uma nova
promessa, faço-me jurar sobre um altar de determinação, que não
retrocederei.

@mamãe: Liana, vi a foto que foi postada por um dos meninos, e


tenho visto a agitação de todos, porém estou preocupada com a repercussão
disto tudo.
@mamãe: Você fez as suas escolhas contra minha vontade, não
que de alguma forma na altura, pudesse interferir em sua vida, mas ainda
assim temo por você e meu neto.
@mamãe: Mesmo que pense que estou me intrometendo, peço
perdão desde já minha filha, amo-a mais do que a mim mesma e jamais quis
que sofresse.
@mamãe: Não posso agora manter-me quieta e distante se esta for
sua decisão. Por minha vontade não gostaria de vê-la de novo enredada
nesta loucura que foi outrora o seu relacionamento com Mikael, nós duas
sabemos bem o preço que pagamos por isto, mas não irei incutir em seu
coração, a minha vontade, irei apoiá-la.
@mamãe: Contudo, se em algum momento sentir que meu neto
pode acabar ferido. Não permitirei que leve adiante isto. Se antes quis
mantê-lo oculto contra minha vontade, se valendo do seu direito de mãe e
seus traumas, agora é a minha vez de pedir cautela em expô-lo.
@mamãe: Como disse, você é minha filha e te amo, mas Anjinho é
meu neto e por ele morreria. Ele é o brilho nos meus olhos, porque não
sucumbir após a perda do meu amado Joaquim.
@mamãe: Pense bem em tudo que está por vir, o que deseja para
sua vida e as consequências disto, em tudo os amo e estou aqui para lutar
por vocês.

@Doutora_anjinha: A primeira escolha que fiz em minha vida, foi


ser MÃE, e como a senhora bem disse, por nós lutaria, por que intuiu que
não faria o mesmo pelo meu filho?
@Doutora_anjinha: Anjinho é a luz dos meus olhos. Por ele tomei
a decisão certa, que me fira a carne, mas ao meu filho darei o que lhe é de
direito e por amor. Também a amo mamãe, e perdoe-me por tê-la afastado
tanto da minha vida, estou aprendendo pouco a pouco o que é perdão e
espero um dia demonstrar que já não me dói mais o que passei.
@Doutora_anjinha: Porque tudo passa!
@Doutora_anjinha: Aprendi com a senhora isto.

Sem ter mais o que pensar, lamentar e sentir, pois bloquei todos os
canais que pudessem me enlouquecer, mudei a lista de reprodução, para um
sertanejo, deixei a diva Marília Mendonça e companhia arregaça com o resto
do que sobrou de mim. Pelo menos cantando e me sentindo mais leve,
adiantei bem o que queria.
Empenhada na melhor parte do meu show particular, Mikael entrou
em contato querendo encontrar-me antes do combinado, isto não estava nos
planos imediatos, porém depois de vê-lo pousar de baixo da minha janela
como um Romeu irado e ciumento ao ver-me, realmente me levou a loucura.
Putz!
Não tive muitas opções, era deixá-lo subir, o que não farei até que
estejamos bem mais em sintonia, ou concordar com ele? Minhas risadas
foram sinceras em relação à cena de ciúme bobo que protagonizou, jamais em
minha vida pensei em ver o Promotor Mikael, se render a sentimentos tão
mundanos, os mesmo que usa como zombaria para atormentar os próprios
amigos.
A sua implicância com Gio e seus primos, nunca levei como
ciúme, até porque mais parece ser antipatia gratuita de macho do que outra
coisa. No entanto, não vou negar meu ego está em alta.
Seguro a gargalhada, não quero parecer a louca por trás de um
volante para os demais motoristas que seguem ao meu lado na via.
Confesso que me senti tão leve com ele, que ao ouvi-lo perguntar
sobre os instrumentos, — algo que não poderia esconder depois de quase
morrer soterrada por pratos de bateria —, fiquei feliz em compartilhar algo
sobre Anjinho, algo tão familiar aos dois.
O que mais me deixou em completo êxtase o que em parte explica
atacá-lo com um beijo tão possessivo assim que o vi, foi perceber o quanto
estava interessado no que dizia e mais, a mensagem de Nina que chegou
enquanto tomava um banho rápido.
Saber que Mikael de certa forma se preocupou com a segurança do
meu filho foi um bálsamo e um choque, pena não ter como saber se ele
chegou a ouvir a voz do filho, geralmente Anjinho quando atende o celular,
fica em silêncio ouvindo a outra pessoa falar. Só de lembrar isto o aperto que
me corrói o corpo todo se intensifica.

A mansão dos Nikolaievitch sempre foi algo imponente em um dos


bairros mais nobres de Vitória. As colunas brancas de sustentação do
segundo piso todo envidraçado esbanjam riqueza, a parte da frente ladeada
por um imenso jardim gramado e com flores de várias cores e tamanhos
diferenciados perfumam o ar do final de tarde.
O tom rosado do céu faz com que visualizar o caramanchão com
toque de modernidade e a fonte que dá para a lateral da casa, causa uma
sensação de estar dentro de um livro de romance contemporâneo.
Sei que bem em frente à fonte tem um ladrilho de pedras salteadas
entre a grama, que leva a uma enorme estufa de orquídeas, de dentro do carro
só consigo ver a cúpula abolada, e no sentido contrário estão portas de vidro
imensas que ocupa toda uma parede que deve medir seis metros, e ali ficava o
estúdio da Tia Sarah. Por aquelas portas e escondida por detrás da enorme
fonte assisti umas das piores cenas em minha vida, algo que ainda me causa
pesadelos.
Mikael jamais saberá que estive aqui naquele dia, por isso meu
olhar em torno deste imenso jardim é de assombro, mas de curiosidade, esta
será minha primeira vez nesta casa.
Na teoria a primeira, na prática, a terceira, já que a segunda me traz
uma memória ardida e dolorosa, no intuito de manter meu filho escondido e
de alguma forma aplacar a fúria de Mikael, me submeti a sua ordem velada,
me tornar sua amante.
Aquela noite estive com ele na sala, mas logo depois fugi como se
demônios alados me perseguissem, porém, algo aconteceu a nós dois, de
alguma forma sua atitude aliada à minha resignação quebrou parte do que nos
separava.
Talvez por culpa e reconhecendo que ele agiu como um miserável.
Mikael quebrou o acordo e de forma mais sútil tentou me seduzir.
Criando guerras e tomando os espólios. Essa foi a nossa forma de
estarmos juntos pelo último ano.
Desviando minha atenção ao caminho, fiz o contorno por onde os
veículos seguiram para a lateral oposta da casa e adentramos a uma enorme
garagem.
O SUV com os dois seguranças, parou de lado, deixando Mikael
tomar a dianteira, dois seguranças desceram e voltaram correndo em direção
ao portão, pelo espelho retrovisor, vi outros aparecerem em meio ao caminho
e se encontrarem com cumprimentos.
Um conversível está coberto por uma capa de proteção, ao lado um
Jeep dividi sua área com duas motos, uma de trilha e outra Kawasaki Ninja
preta com frisos e detalhes em tons de verde.
Mikael estaciona sua Harley atrás do carro coberto e me indica a
lateral, aceno e faço o que pede, mas antes de descer da Ranger, ele bate no
vidro com dois toques.
— Não desce ainda, os seguranças vão fazer a troca e depois tomar
seus postos, assim que estiver tranquilo, busco você.
— Tudo bem! — confirmo com um sorriso o tranquilizando.
Mikael se aproxima e me rouba um selinho, depois deixa o
capacete sobre uma base contra a parede oposta, e segue pelo caminho
ladrilhado.
Aproveito disto para conferir a aparência e então a ficha cai, não
controlo a gargalhada que explodi em meu peito.
— Cretino! — exclamo alto.
Ele não está preocupado com minha segurança, mas sim que algum
dos seguranças veja como estou vestida!
Minutos depois meu anjo volta com um sorrisão no rosto, sem
paletó e sua pasta, a gravata está solta em volta do colarinho e ele está
dobrando as mangas da camisa.
Abro a porta e salto para fora do carro, por estar dirigindo não uso
sapatos com salto alto, por isso em meus pés apenas um tênis esportivo
completa meu parco figurino. Mikael derrapa na entrada da garagem e nem
disfarça a fome que rugi nos seus olhos.
— Porra mulher! — ele pausa e me encara com as mãos na cintura.
— Ainda bem que dispensei os homens.
— Sabia! — exclamo voltando a rir, no entanto, mais de nervoso
do que outra coisa.
Mikael se aproxima, abarca minha cintura e me leva para colocar
meu corpo junto ao seu.
— Oi?
— Oi!
Cumprimentamos como sempre, ele desliza seu rosto sobre o meu,
coloca a ponta do seu nariz na lateral do meu pescoço, com a mão sobe meus
cabelos ainda úmidos e aspira com força deixando um gemido sexy deslizar
por seus lábios, que logo beijam a pele aquecida.
— Cheirosa…
— Obrigada, você também está muito cheiroso. — respondo e logo
sinto seus lábios se apossarem dos meus em um beijo frenético.
Sua língua desliza sobre a minha com força, sinto o gosto de menta
e adocicado, Mikael envolve-me ainda mais, sinto a protuberância da sua
excitação roçando descaradamente contra meu ventre. Sem meus sapatos de
salto, sou praticamente metade do seu tamanho, e ele faz com que me sinta
assim, pequena e delicada prestes a quebrar.
Os gemidos que seguem ao duelo nada sútil das nossas línguas e
lábios aumentam, com as mãos de ambos deslizando de forma árdua sobre
peles, músculos enrijecidos criando atrito e tesão. A mais pura e crua
sensação erótica que nos rodeia sempre quando a equação nos tem em uma
soma.
— Se não pararmos agora, — ele diz entre um beijo e outro e sua
voz rouca arranha meus ouvidos e arrepia minha pele — vamos transar de
novo no seu carro.
— Jura? — não sei se fico feliz ou não.
— Quero uma cama Lia.
— Ok!
Em acordo nos separamos. Mikael passa a mão sobre minha
pequena mala, tranca o carro e segura minha mão entrelaçando os dedos.
Ele me leva para frente da casa, poderíamos ter entrado pela porta
da garagem que deve dar na área de serviço, mas meu anjo tem certos TOCs
que não o permitem fazer o prático, mas sim o certo.
Com um convite mudo, entro atrás dele. À primeira vista nada
mudou no vestíbulo de entrada que ficou impresso na minha memória logo
depois a ampla sala que só agora percebo ser um espaço bem maior do que
me recordo, praticamente metade da área térrea, dividida em sala de estar,
jantar ladeada por dois corredores e uma escadaria de madeira escura que
leva ao segundo andar.
— Lia, fique à vontade, Mikael deixa minhas coisas ao lado das
suas sobre o amplo sofá cinza que domina parte da parede oposta à entrada.
— Ok! Obrigada, — respondo educadamente.
Agradeço e sem ter o que fazer com as mãos que ele libertou acabo
cruzando meus braços, isto faz meus seios pularem, mas evito seus olhos,
pois o maldito constrangimento deu ar da graça e parece que nós dois fomos
tocados por ele.
— É… Eu… rum-rum… — ele pigarreia —, vou tomar um banho,
preparar algo para comermos, tenho que ir à estufa fazer a rega e depois
responder alguns e-mails e…
— Tudo bem, pode fazer sua rotina, vou ler um pouco no meu
Reader[12]e se quiser posso fazer o lanche? — dou de ombros sem saber o que
falar.
— Ok! — Mikael dá um passo em direção a um dos corredores e
para. — Ah!? Lia, não uso a parte de cima da casa, o meu quarto é aqui
embaixo, se quiser conhecer a casa, pode andar por aí.
— Tudo bem!
Mikael balançou a cabeça e voltou a andar, senti o meu rosto
esquentar, corando, e isto seria o fim da picada, se ele percebesse. — Penso
ao me sentir uma tola por me constranger assim.
No entanto, não tenho a sorte de poder me adaptar e deixar essa
sensação ruim passar, porque ele não deu nem dois passos para dentro do
corredor, fez o corpo dar meia volta vindo em minha direção.
— Que porra estamos fazendo! — sua voz estoura meus ouvidos.
— Não faço ideia, — respondo em tom baixo mordendo os lábios.
— Não sou de receber ninguém em casa. Não sei ser a porra de
anfitrião e sinceramente, não faço ideia de como é ter uma mulher aqui, —
sua pausa é engraçada —, nunca em toda minha vida trouxe alguém aqui,
salvo a única vez em que você esteve nesta sala.
— Uau, muita informação? — tento descontrair.
— Acho pertinente falarmos tudo de uma vez, assim não ficamos
rodando em volta do assunto. — Ele é taxativo.
— Nunca fiz isto. — Sinto a necessidade de devolver-lhe a
gentileza. — Nunca levei homem algum à minha casa, salvo os padrinhos do
meu filho com quem morei e que o visitam, não tem homem algum entrando
na minha casa, então não sei o que fazer.
— Não vamos nos aprofundar nas explicações quando se tratar dos
padrinhos do seu filho, ok? — Ele bufa.
Arqueio o sobrecenho, mas mantenho a boca fechada, só meneio a
cabeça concordando com essa nova versão ciumenta do Promotor.
— Que tal seguirmos nossos instintos? — pergunto com um
sorriso.
— Quero transar com você, agora! Esse é o meu instinto, e se for
ceder, farei isto a nooooite inteira.
Meus olhos relanceiam por seu corpo e percebo que mesmo
constrangido ele está tão excitado que posso visualizar a braguilha das suas
calças arrebentando a qualquer instante.
— Seria ruim? — sei que não deveria dar corda, mas a loba
arranhando a casca por dentro pronta para sair e atacar o Promotor voltou a
perambular à borda.
— Não mesmo! — seu riso sarcástico é de molhar a calcinha, se
estivesse usando uma. — No entanto, — ele se aproxima lentamente —, se
fizemos isto desde já, não vai ser o que quero.
— E o que você quer?
Minha pergunta o surpreende. Mikael estaca a meio passo e
observa-me com olhar atento, percebo as sinapses da sua mente criando
cenários, indo por todos os lados, mudando, determinando o que é ou não
plausível, em um estalo os seus olhos ganham tons acinzentados, mas de um
jeito diferente, é terno e acolhedor.
Sua mão sulcada de veias salientes se ergue com carinho para
deslizar uma mexa dos meus cabelos por detrás da minha orelha, depois toca
minha bochecha esquerda com afago algumas vezes enquanto me fala com
uma voz branda tão suave que entorpece meus sentidos e me faz querer
chorar.
— Quero tudo Lia! Quero algo que nunca vivi, sentir conforto,
companhia, ter você aqui, não só o corpo, mas tudo. Dividir tarefas que são
apenas minhas com você, — ele pausa —, uma primeira vez, diferente de
tudo que nós já vivemos. Provavelmente em algum momento, vou mandar
tudo para o inferno e jogá-la sobre a primeira superfície que achar
desocupada e começaremos uma maratona de sexo do mais vigoroso, suado e
quente que nos é apetecível, mas até lá quero ficar com você, não me sentir
tímido. — ele sorri. — Definitivamente, isto não faz parte da nossa natureza.
Sorrindo diante de tantas palavras que talvez nem mesmo ele possa
compreender o significado, só pude dar minha aquiescia e deixá-lo me
conduzir até seu quarto.

Ao longo do corredor passamos por portas de vidro com cortinas


de organza fechadas e procurei não pensar o que seria, mesmo sabendo a
resposta. Seguimos por mais dois conjuntos de portas ao lado contrário que
pertence à ampla suíte que ele transformou em academia.
O segundo para uma biblioteca/ escritório com uma ampla mesa de
carvalho escuro apinhado de processos, um computador de última geração,
tela plana grande o bastante para abarcar meia parede de frente a mesa, além
do aparelho de som e um violão solitário sobre uma poltrona de encosto alto
sem os braços.
Não tive tempo e paciência de ver todos os detalhes, pois logo
chegamos ao fim do corredor, uma enorme porta dupla estava selada por uma
tranca eletrônica.
— Segurança. — Foi a sua única explicação.
Não fiz comentários, pois os nervos à flor da pele jamais me
permitiriam tal luxo. Respirei o ar do corredor carregado de limpeza e esperei
o som característico do destravamento.
Assim que uma das bandas da porta foi aberta, segui Mikael e se
pudesse, teria fechado os olhos como criança a espera de uma surpresa. Por
tanto, foi a puta surpresa da minha vida.
O quarto provavelmente é do mesmo tamanho que a sala, pois
ocupa na minha leiga noção de arquitetura, toda a extensão do interior da casa
e logo a confirmação disto veio na explicação rápida que Mikael me deu ao
fazer-me percorrer cada metro quadrado do cômodo.
Após a morte dos pais ele derrubou a parede que separava dois
quartos e os uniu, modificando assim o espaço.
Da porta para o lado direito, caminhamos sobre o piso de tábuas
corridas, tão limpo que poderíamos comer sobre ele. As paredes laterais são
adornadas com molduras modernas, mas todas com temáticas de músicas. O
piso se eleva em um degrau, onde uma sala de TV está literalmente montada,
com sofás confortáveis que estão de frente a outra tela enorme, mas aqui tem
um sistema de som de última geração e Mikael faz questão de conectá-lo
carregando o ambiente com música.
— O sistema se conecta com o da casa, em qualquer cômodo irá
ouvir o mesmo, mas pode desligar, as caixas embutidas têm controle
ambiente.
— Inteligente.
— Obrigado.
— Lindas as orquídeas espalhadas pela casa.
— Verá muitas outras lindas! — ele responde e sinto seu orgulho
em observar a linda flor adornando a mesa de centro.
No outro canto, uma mini cozinha poderia ser classificada ali,
frigobar, uma bancada com duas banquetas, uma cafeteira e micro-ondas. A
parede, na verdade, é uma porta de correr enorme.
Mikael deslizou as portas para entrar o ar fresco da noite, e com as
luzes verdes sobre coqueiros imenso ao redor, e uma parede vertical de
orquídeas que fazem meus olhos brilharem com tamanha formosura, um
pensamento rugi em minha mente: toda mulher deveria se casar com um
homem que cultive orquídeas.
Meus olhos recaem sobre a mão que segura firmemente a minha, à
primeira vista, o que vem em minha cabeça são mãos brutas, acostumadas a
coisas pesadas, talhadas para isto, mas a suavidade que tem para o cultivo é a
mesma com que me toca o corpo.
Sinto arrepios cruzando minha pele, inspiro o ar entorpecido pelas
suas flores e me deixo carregar por ele.
Percebo outra parte de jardim, bem mais requintado, cercando uma
piscina longa que vai do canto externo da parede até parte de dentro do
telhado ganhado sobra para os momentos de sol intenso.
Voltando para dentro do quarto, desvio o olhar para o lado que está
a cama, seguimos o lado oposto onde um closet três vezes maior do que Aline
montou ocupa um amplo espaço.
— Meu Deus! Quanta arrumação! — não posso deixar de observar.
Separados por cor e por tipos se assim posso classificar temos,
ternos, calças e camisas sociais de um lado, com uma parte para togas. Não
resisto e caminho por todo o cômodo deslizando meus dedos, como faria se
estivesse em uma loja de roupas. Do outro lado, estão os capacetes e não são
poucos, jaquetas de couro, calças e os jeans, e todo roupa casual, além da
sapateira.
— Meu Deus! — exclamo mais uma vez impressionada com o seu
armário para gravatas. Isso me faz pensar em livros E. L. James, mas omito
meu comentário.
Cansado dos meus suspiros e quantidade de vezes que abria boca
impressionada, Mikael me arrastou para fora.
Imaginei que fosse me deixar ver o banheiro, mas isto ficou de fora
e imagino querer me apresentar o cômodo de uma forma nada explicativa e
sim safada.
Então paramos diante da enorme cama king size ocupando uma
colossal área do tablado de frente a toda área aberta. A colcha negra sobre o
colchão com suas almofadas brancas e vermelhas me fazem imaginar a
decoração deste, agora que percebo ser minimalista, mas meio que
impregnado de luxo, seda e organza.
Dois degraus separam a área da cama do nível restante do piso, os
criados mudos são brancos acompanhando a cabeceira almofadada, os
abajures são modernos cromados, é só o que se tem de ornamento.
Mikael pigarreia, puxa-me de encontro a seu corpo e me beija.
Dois selinhos, uma passada de língua por entre meus lábios, o roce perspicaz
do seu sexo de encontro o meu corpo, beijos espalhados por meu rosto,
ombros e por cima dos seios, uma mordida dolorosa sobre o mamilo excitado
e logo está de volta à minha boca.
Cruzei meus braços em volta do seu pescoço e deixei sua língua
ganhar espaço na minha boca.
Um gemido esmagado escapou-me aos lábios. Sorrindo Mikael deu
um passo atrás e com voz rouca caminhou em direção ao banheiro, deixando-
me excitada, molhada e sentada sobre sua cama.
Suspirei, fechei meus olhos e tombei sobre o colchão macio. Fiquei
assim por alguns minutos até ouvir a água correr do outro lado.
Lentamente retirei os tênis, virei-me de bruços e engatinhei por
sobre o colchão me jogando de barriga para baixo, suspirando e tentando não
pensar em nada.
Agarrei uma das almofadas com cheiro do seu perfume, imagino
que goste de se deitar sobre a cama feita, virei de costas e abri os olhos.
— Puta que pariu! — o grito saiu abafado por minha mão sobre
minha boca.
Percebi o arco que divide a área da cama do restante do quarto, e
não imaginei que sobre ele na parte interna houvesse quadros.
Molduras dependuradas, escondidas do olhar de qualquer um que
entrasse ali. O que duvido que já tenha ocorrido, na verdade, só é possível ao
dono deste quarto que se deitar nesta cama, ver o que está em exposição para
ele.

Uma vez ouvi Carla dizer que Ramon tinha fotos suas de corpo
inteiro espalhadas pelo quarto, inclusive no closet e Edu já viu, July
confirmou. Achei aquilo tão romântico, erótico e possessivo da parte do
argentino, mas jurei jamais permitir que fizessem algo assim comigo.
Talvez tenha sido despeito, porque sabia que isto não aconteceria,
pois, quem poderia ter fotos minhas ou até querê-las desta forma? Jamais,
faria algo assim, no entanto…
— Mi-miakael…
Meu assombro esvai-se entre meus lábios junto a incredulidade
dando lugar a uma insondável, crescente e louca disfunção cardíaca. — Você
está pretendendo me fazer acreditar em amor, Promotor?
Diante de mim várias molduras de fotos minhas de outra época
enfeitam o arco da parede. Fotos que nem imaginei que tivessem sido tiradas,
situações que não recordo. Contudo, a que me deixa sem qualquer reação é
uma, a maior.
Localizada bem ao centro da parede no ângulo exato do “meio da
cama” e sei exatamente quando foi tirada. No dia que mostrei a ele minha
tatuagem de asas, o dia que ele me pediu em casamento e deslizou um anel
no meu dedo anelar, o dia que disse que me amava com todo seu coração o
dia que…
Deixo de pensar no passado e forço a ver-me no presente, diante de
uma imensa moldura.
Na imagem, estou sentada com as pernas em posição de lótus, nua,
de costas para ele e de frente para a cabeceira da cama de ferro batido. Meus
cabelos estão presos em um coque que seguro com auxílio de uma mão, as
asas descem desde o ombro até a altura do quadril, deixando livre toda a linha
da coluna como se tivesse em repouso sobre minha pele, diferente das dele
que se estende por toda parte das costas, mas em posição de voo.
Na época em que a fiz, queria que Mikael entendesse que sempre
estaria ao seu lado, que nunca partiria, pois, sua proteção me deixava serena
para permanecer com ele.
A moldura antiga destaca a imagem em preto e branco. É algo tão
etéreo que mal consigo respirar.
Inconsciente levo minha mão às costas e sinto o relevo quase
imperceptível da tinta sobre a lateral.
Um choque percorre as pontas dos meus dedos como se estivesse
conectando a Lia daquela imagem com a do presente. Sentindo o que ela
sentia. Deixando chegar à superfície o que ela perdeu.
— Mika, meu anjo…
Sem pensar direito.
Sem poder entender bem, deixo a razão, a mulher centrada e
objetiva de lado, corro para a porta fechada que e o separa de mim.
Toco a maçanete fria e meu peito dispara, logo as palavras de July
vem como látego sobre mim: “você precisa deixar de viver nesse idílio que
criou como uma bolha protetora e aprender a viver de verdade, não é só
porque somos fortes e encaramos bem a dor, que temos de continuar
sentindo-a dia após dia.”
A música tocando não permitiu que ele me ouvisse gritar no quarto
nem entrar no banheiro, mas ao fechar a porta, Mikael que estava com a
cabeça erguida contra a água, olha por sobre o ombro.
Seu olhar azul está preso ao meu, não sei o que vê, porque não
tenho coragem de olhar-me no espelho. Sei o que sente, porque ele é um
reflexo do que sou.
— Tem certeza? — Foi a única coisa que perguntou, antes de
estender-me sua mão.
Sorri sem esperar um novo convite. Com gestos rápidos larguei
sobre o piso, minhas roupas e entrei no boxe com ele, seu olhar não percorreu
meu corpo, apenas permaneceu fixo nos meus olhos.
— Oi!
— Oi, meu anjo!
Seu leve arquear de sobrancelha me diz tudo que quero saber e sem
perda de tempo enlaço seu pescoço e o beijo com tanto amor, porque é isso
que estou sentindo.
Amor.
O mesmo louco amor que senti por ele a minha vida toda. As
lágrimas que descem por meus olhos são camufladas pela água do chuveiro,
suas mãos seguram em minha cintura e com manejo e precisão me ergue,
colocando-me na altura certa para envolver minhas pernas em sua cintura.
De certo que não estamos prestes a fazer amor como se espera dos
casais apaixonados, lentamente recheada de juras profundamente
apaixonadas, até porque somos carnais e viscerais demais para se ter tanta
paciência, — pelo menos é o que penso.
Em verdade, não me importo em queimar as etapas das
preliminares ensandecidas, quero-o dentro de mim, me lembrando da forma
mais crua e distinta o quanto gosto de estar com ele, de senti-lo dentro de
mim. Porque, sempre foi ele.
Sempre.
Sua boca me doma, domina, ensoberbece, me busca e permito.
— Lia… — Mikael murmura deslizando os lábios sobre meu rosto,
pescoço, colo e as suas mãos percorrem minhas costas, minhas asas. — Você
achou o meu tesouro.
Não é uma pergunta, mas uma afirmação.
— Sim.
Não preciso de mentir. Ele não faz nenhum comentário, e não farei
perguntas. Às vezes, algumas deduções são tão lógicas que muitas
explicações sobre o fato distorce a emoção do momento.
Ele rugiu de desejo ao apertar o mamilo enrijecido dentro da sua
boca, ele usa a ponta da língua para puxar a argola, a sucção é tão intensa que
dói, arde e depois espalha aquele formigamento prazeroso.
— Quero você… — resmungo e ajeito meu corpo para ser
preenchida.
Mikael não recusa e logo seu pau duro como ferro abre meus lábios
e ganha espaço pelo canal apertado do meu sexo. Nossa excitação permite
que ele deslize e com arremetidas profundas se adequando às paredes
escorregadias, arranhando-me com o piercing que prende à glande, estou tão
sensível que sinto o bombeamento da veia calibrosa inchado com mais
sangue, endurecendo-o ainda mais ao ponto de ele gemer com um pouco de
desconforto ao ser pressionado por meus movimentos.
— Vai me estrangular?
— Vou deixá-lo seco.
Brincamos, volto a serpentear meu corpo em um vaivém descendo
sobre seu pau. As mãos dele estão firmes sobre minhas coxas me permitindo
cavalgá-lo. Mikael segue em direção a parede oposta e sinto o frio do azulejo
contra minha pele aquecida.
— Quero provar você. — ele avisa.
— Já está provando. — rebato.
— Não, quero com a minha boca! — Ele decreta. — Levante os
braços e segura a barra.
— Barra?
Pergunto erguendo meus olhos, percebo que há uma barra afixada
na parede do lado contrário do chuveiro e não tenho ideia do porquê estaria
ali, mas como pede, assim o faço e logo entendo o que é, um cano de cobre
levemente aquecido.
— Tem certeza?
— Faz!
Seguro e logo minhas pernas são erguidas soltando-se da lateral da
cintura para pousar sobre seus ombros.
— Ah, meu Deus!
— Nada de apelo religioso agora, minha anja safada. Só apenas
eu. — Ele pisca e com os dedos pinça por sobre as coxas me fazendo abri-las
e colocando meu sexo molhado bem à sua frente.
Mikael estende sua língua e como se experimentasse uma
casquinha de sorvete lambe de baixo para cima superficialmente.
Meu corpo dá um pinote e sinto as entranhas se revirarem.
— Humm… — meu gemido se espalha no boxe e sua respiração
acelerada me arrepia a pele sensível.
Ele volta a fazer o mesmo movimento, mas desta vez a ponta
enrijecida da língua desliza sobre as fatias meladas e para bem abaixo do meu
clitóris pincelando o outro brinco da mesma forma que fez com o do mamilo.
— Mikael! — Grito e travo os calcanhares sobre as costas, solto
uma das mãos e embrenho os dedos em seus cabelos molhados.
Parece ser o incentivo que ele precisava para me levar a loucura.
Com dentes afiados ele joga com meu sexo pesca entre as pontas duras e
deixa a carne deslizar levemente até soltá-la, para logo fazer isto mais
algumas vezes entremeando com chupões por sobre os lábios, alternando-se.
Sua língua correu por entre os lábios lisos, e encharcados do meu
sexo, indo e vindo causando tremores pelo meu corpo, me fazendo arfar com
espasmos.
Seus dedos brincam no canal roçando o ponto de ebulição,
invadindo, alargando, centímetro a centímetro para ele.
Gemi. E perdi a conta de quantas vezes o fiz, além de praguejar por
estar me torturando ou ovacionando essa boca descarada.
O olhar dele ao encontro do meu me arrepia, o desejo falando mais
alto através das suas pupilas brincam com minha libido.
Os dentes dele raspam sobre meu clitóris e é um pequeno grito sai
pela minha garganta.
Mikael tem aquela risada debochada, sexy e agressiva que me
tortura dia após dia, suas mãos rudes apertam as laterais do meu corpo
erguendo meu quadril ainda mais em direção a sua boca, o ofego e o delírio
rondam em minha mente.
Ele morde os lábios do meu sexo novamente e desta vez sinto a dor
afiada que causa um formigamento, ao ponto de me fazer morder com força
meu lábio. O ruivo desliza os dentes, vez ou outra, causando apreensão e
desejo desmedidamente.
— Abra os olhos e observe, Anjinha. Tem que ver tudo que faço
com essa buceta gostosa, que me rouba o juízo.
— Porra!
— Daqui a pouco vou enchê-la disto, sem pressa.
— Sacana!
— Gostosa! — a mão dele sobre a coxa atiça uma bofetada pela
parte de dentro da carne e seu olhar desvia do meu rosto e recai sobre meu
seio tatuado.
Ele geme e volta a atacar com vontade meu sexo. Não posso mais
fechar meus olhos ao vê-lo fazer minhas coxas se abrirem mais em volta dos
ombros largos e chupar-me com força. Meu clitóris sensível estremece, e o
cretino sabe disso, ele faz de propósito, sua língua afiada me desarma, me
enlouquece.
Me desligo das últimas amarras.
Que se dane amanhã!
— Vou gozar! — aviso, mas nem preciso, vejo na forma como me
degusta que pode sentir no paladar o quanto estou escorrendo de desejo.
Um gozo alucinante toca meu corpo, nas notas ressonantes que ele
cria, de olhos fechados, ouço sua risada, seus gemidos, Mikael desliza meu
corpo sobre o seu e voltamos para os jatos de água que agora parecem vir de
vários lugares.
Sinto o momento exato que substitui sua mão deliciosa me
acalmando a carne tremula por uma investida dura e prazerosa do membro
enrijecido com estocadas tão fortes que se não estivesse segura em seus
braços cairia ao chão.
Travo meus lábios para não falar o que não devo, mas deixo meu
corpo fazê-lo sem restrição.
Não sei quantas arremetidas foram, apenas posso falar da
intensidade delas, meu corpo volta para o ponto de eclosão, ouço palavras
sussurradas em russo ao meu ouvido, o idioma que ele recorre quando perde
completamente a compostura, e isto é no sexo.
Suas mãos seguram com tanta força meus quadris que vou ter
marcas roxas por uma semana. A música que ainda podia ser ouvida foi
abafada pelo som erótico das estocadas, meus seios doloridos se espremem
contra seu peito, perco o fim da minha sanidade sentindo um novo orgasmo
sendo construído e este acompanhado do dele.
Com urro e um beijo firme contra meus lábios, sinto o momento
exato que ele goza, os jatos de sêmen disparam com força dentro do meu
corpo sensível, aquecendo-me e me enchendo.
Me marcando novamente com seu cheiro, com sua essência.
— Moya lyubov' — ele resmunga.
— O que disse? — pergunto no mesmo tom, mas o beijo que me
dá, faz o resto do mundo girar até que nada mais importe.
CAPÍTULO 26

ÍNTIMOS
“E quando penso no que vivemos. Fecho os olhos me perco no tempo”.

LIA

ão tocamos no assunto das molduras, mas admiramos juntos antes de


N
deixarmos o quarto. Mikael, me fez vestir uma camiseta sua, não recusei,
pelo contrário escondi um risinho secreto.
Na cozinha ampla de balcões super limpos e brancos, ele fez uma
bandeja com frutas, iogurte e dois imensos sanduíches de peito de peru,
rúcula e queijo cottage, dois copos de suco de laranja natural e levou tudo
para a estufa, onde não ficamos por muito tempo, mas o suficiente para
conversarmos sobre várias coisas, enquanto o observo cuidar das suas
plantas.
Estremeci com o vento que entrou pelas portas de vidro, sentada
em um banquinho de madeira baixo. Mikael me olhou de esguelha.
— Termine o lanche e poderemos entrar.
— Sim, senhor. — Respondo com sarcasmo e ele geme.
— Adoro subserviência.
De volta à cozinha lavamos junto as louças e me ofereci para
preparar algo mais se tivesse com fome. O prático Promotor me informou que
se sentíssemos fome comeríamos algo no quarto.
Dei de ombros e deixe me guiar por todos os cômodos que não
conhecia. No segundo andar da casa, outra sala de TV está toda equipada,
mais quatro quartos grandes com banheiro sendo dois interligados por portas
de comunicação e uma suíte master, outro escritório e um lavabo. Além de
uma varanda cercando toda a parte frontal da casa com portas de correr em
todos os quartos com saída para o espaço.
— Muito grande para limpar, cuidar e viver sozinho, não acha?
— Concordo. Uma equipe faz a limpeza geral duas vezes ao mês e
no resto me viro.
— Não tem ninguém trabalhando aqui?
— Tinha uma senhora, mas resolvi aposentá-la com um gordo
salário e uma casinha na cidade natal.
— Sério? — meu coração se enternece com o que diz, sem
demonstrar soberba.
— Sim, ela me criou desde sempre, quando nossos pais faleceram,
ela ainda permaneceu comigo por um tempo, mas depois quis deixá-la ir.
— Foi gentil da sua parte, Promotor. — Sussurro ao seu lado, e
deito minha cabeça em seu braço.
— Foi o justo, se pudesse faria mais. No entanto, ela não permitiria
e me daria uma sova por insistir.
Fiquei imaginando onde deveria ser seu estúdio de música, pois
como músico e ainda ativo, Mikael deve ter um lugar dessa imensa mansão
que tem seus instrumentos. Não precisei especular muito, assim que voltamos
ao térreo descobri.
Andei com ele por todos os lados de mãos dadas, conferimos portas
e janelas, Mikael acionou o sistema de alarme e por último me levou até
paramos diante das portas de vidro.
— Aqui é minha sala de música, as paredes e os vidros das portas
são especiais, para acústica. Era onde minha mãe tocava, lia e passava boa
parte do dia.
A voz trai o tom de melancolia, mas os olhos se mantêm vivaz ao
abrir às portas de par em par e me levar para dentro da sala.
— Você comentou sobre os seus instrumentos.
— Do Anjinho! — o corrijo sem perceber olhando a minha volta
estarrecida.
— Sim, do moleque. Bem-vinda ao meu castelinho! — Ele ri e
dedilha o piano de cauda longa para enfatizar isto.
— Jesus, Maria e José!
Coloco a mão sobre os meus lábios e como fiz com o closet,
percorro meus dedos pelos inúmeros instrumentos dependurados nas paredes,
apoiados nos suportes no chão.
Tudo! Existe de tudo dentro desta sala que é tão espaçosa quanto os
quartos. Só não mais que o quarto dele.
— Você toca tudo isto?
— Sim! — sua resposta sincera veio com dar de ombros.
Paro ao lado da bateria e fico encarando-o, como posso conhecê-lo
a vida toda e realmente não saber nada sobre esse homem.
— Mikael? Como aprendeu tudo isto?
Ele ri e me puxa para seu colo sentando-se sobre a banqueta do
piano. Sem resposta, observo suas mãos se posicionando sobre as teclas e
com uma agilidade impressionante começa a dedilhar uma música atrás da
outra, desde clássicos do rock, a uma lista de músicas internacionais, mas a
que me mais aprecio é a nossa canção.
Ele faz uma pausa, ergue a barra da camiseta, desliza a mão sobre
as notas e silenciosamente volta seus dedos ao piano e a melodia vem cheia
de sentimentos, arrebatando-nos.
A voz rouca acompanha cada entonação, meu corpo reage a ele de
forma excitada e cativada, me recosto em seu peito e me concentro no calor,
na batida do coração, na voz, no cheiro do perfume misturado à terra molhada
das flores que manuseou do lugar, da madeira dos instrumentos.
— Tenho ouvido absoluto Lia, sou capaz de aprender uma nota só
de ouvi-la uma vez e reproduzir, assim se quiser aprender qualquer
instrumento, basta ouvi-lo uma única vez e sei que posso tocar.
Assim que o ouço, volvo meu corpo e interrompo a forma que toca.
Não consigo sequer falar, minha respiração está agitada e tenho tremura nos
dedos ao afagar seu rosto, a barba estilizada, os olhos, o formato das
sobrancelhas, as sardas diminutas sob a ponte do nariz.
— Isso é um dom! — afirmo e em pensamento completo: nunca
imaginei que fosse isso o que Anjinho tinha, até essa manhã jurava ser
apenas um dom, mas ele tem o mesmo que o pai. Ele tem ouvido absoluto.
— Pode se dizer que sim. — ele sorri.
— Ah! Mikael, como é especial… — não é um elogio, mas o vejo
corar.
Não consigo manter minhas mãos longe e nem meus lábios. O
beijo e não encontro resistência alguma, nem oposição quando deslizo sua
ereção para fora das calças de moletom que veste, ergo a barra da camiseta
passando-a por sobre minha cabeça, para então abarcá-lo dentro de mim.
— Uma rapidinha? — a voz rouca vem cheia de malícia.
— Todas que quiser. — Delibero e deixo que conduza o sexo.

Saciada e com as pernas bambas voltamos para o quarto; a minha


bolsa foi colocada no closet com sua pasta e ali pendurei minhas roupas para
sair na manhã seguinte.
— Onde tem de ir? — ele pergunta após organizar suas próprias
roupas do dia seguinte.
— Vou ao conservatório de música na Serra.
— Você disse que não colocaria o moleque em aulas, não que
esteja errado, mas ele já tem uma atividade extra. — ele rebateu e senti como
se estivesse sendo criticada.
Mikael se encostou contra o portal e esperou que terminasse.
— Vou me encontrar com uma amiguinha dele, que está faltando
às aulas de equitação. Além disto aulas de músicas os faria muito bem, só não
encontrei aqui um lugar que me deixe segura de matriculá-lo.
— Hum!?
— Quando nos mudamos, Anjinho ganhou um cavalo…
— Lembro-me com precisão da história, ocasião e quem deu… —
Mikael me cortou seguindo em direção à cama.
— Ok! — sussurro seguindo-o.
Ele puxa a colcha com um pouco mais de aspereza do que o
necessário fazendo as almofadas voarem por todos os lados.
Ignoro o ato. — Então, ele tem aulas e essa amiguinha, a Fadinha
faz parte do seu grupo — pego as almofadas e levo para o sofá.
—Eles são tão ligados assim? — ele pergunta dobrando a colcha e
fazendo o mesmo caminho até o sofá.
— Muito! — confesso e volto para ajudar a colocar travesseiros na
cama após puxarmos juntos o lençol. — Ela tem faltado e como trabalha em
um conservatório, resolvi ir vê-la.
— Espera, ela trabalha?
— Sim, — me sento na beirada da cama. — Fadinha é especial, —
diante do seu olhar inquiridor, expliquei. — Ela tem síndrome de Down, é
mais velha que Anjinho.
Esperei algum comentário crítico, mas como sempre ele não me
decepciona.
— Que bom que o moleque tem a oportunidade de fazer amizade
com alguém assim, isso o ensinará a ter respeito e consideração com todos.
Constrói caráter.
— Concordo! — meu peito se enche de orgulho ao ouvi-lo. — Por
isto, vou lá.
— Acredito que sei de qual conservatório esteja falando. — Ele me
chama com dedo e o sigo.
— Fiz uma pesquisa sobre o lugar. O conservatório está precisando
de filantropia, como nosso escritório sempre faz alguma doação, quero
conversar com a responsável.
Mikael balança a cabeça concordando. Entramos no banheiro ele
abre uma das gavetas e me estende uma escova de dentes nova, não recuso
apesar da minha estar na necessaire.
A bancada da pia tem duas cubas elevadas e só agora observo o
ambiente. O banheiro é todo moderno, e deve ter sofrido alguma mudança
severa, o que explica o encanamento de cobre se tornando parte da decoração.
O chão de parquet branco é impecável e as paredes escuras com
iluminação sobreposta dá um ar aconchegante. O box onde tomamos banhos
fica isolado, mas no canto oposto uma banheira ao nível do chão cabe com
perfeição quatro pessoas deitadas.
Ele faz uma rápida observação me mostrando onde encontrar tudo
que precise, para uso do toalete. Continuamos a nossa conversa enquanto
escovamos os dentes e preparamos para nos deitarmos.
— Lia, precisará de mais um sócio para aprovar, são as normas.
— Sei, pensei em chamar um dos rapazes, mas como vou ver algo
pessoal pode acabar demorando, quero ao menos fazer uma proposta e
quando der vamos em grupo. O que acha?
— Hum! — ele pausa e me aponta a louça sanitária, faço sinal
negativo, então pega minha mão e voltamos ao quarto. — Vou com você.
— Você? — pergunto assombrada.
— Sim! Sou sócio, você é a minha mulher, sou músico, o moleque
está preocupado com a amiguinha, e você é a minha mulher!
— Nossa! — não resisto e começo a rir da sua analogia e a forma
séria que quantifica suas proezas.
— Só tem um detalhe…
Aceito sua companhia e acabamos por combinar sobre nossa
viagem, como ele precisa passar no fórum pela manhã decido ir à frente e
fazer turismo enquanto o espero na hora do almoço.
— Por falar no moleque… — Mikael pausa e me leva para a cama
onde nos sentamos. — Não fica preocupada dele viajar assim, sozinho?
Outra crítica?
— Ele não está sozinho.
— Contudo, não está com a mãe!
— Sim, mas está com os…
— Ok! — ele ergue a mão e se joga contra os travesseiros. — Não
tenho nada com isto, mas se você confia.
Ele dá de ombros e me sinto estática sem saber o que dizer.
— Mikael não fala assim. Está tudo bem se preocupar.
Minha língua coça para falar que ele tem o direito de preocupar e
opinar, por ser pai, mas logo desisto. Pois, na sua forma descontraída de
dizer-me que não tem de fazê-lo, e que é só o melhor tio, me desmotiva.
— Deixo isso a seu encargo. Acredito que pouco a pouco como
combinamos, às coisas vão se acertando, mas realmente não posso e não
quero me meter na criação do moleque. — Ele pausa e percebo que tem algo
que não quer falar. — Você é uma ótima mãe Lia, sei que ele está seguro.
— O que quer dizer realmente? — enfatizo erguendo o queixo.
Ele bufa e nega com a cabeça. O assunto mal começa e se encerra,
pois o meu anjo tem outras coisas em mente.
Sua boca vem sobre a minha com fome e sem esperar que me
acostume a ideia de rolar nos lençóis da sua cama, já estou de bruços sobre
ele, sentindo-o se arremeter dentro do meu corpo sem uma trégua da mesma
forma que me dominou na sala de música.

MIKAEL
É surpreendente como posso viver e reviver momentos que nem
mesmo imagino estar na memória.
Por um segundo a letra da música da banda Malta vem a minha
mente, fecho meus olhos e como na letra por um instante me deixo levar. Por
mais que não possa compreender toda essa gama de cores, tons e sons que
parecem revirar meu interior, minha intenção de recomeçar com ela, não
posso deixar de não a querer.
Todas as noites e pelas manhãs ela é a primeira e a última coisa que
vejo deitado em minha cama, e tê-la agora realmente sobre os lençóis, rindo,
arfando, suada, coberta de prazer e das provas de que nós dois passamos
horas fazendo o melhor sexo, conversando sobre coisas bobas e sérias já que
também acabamos falando do seu filho, parece algo inacreditável.
Trazer Lia para pernoitar aqui surpreendeu a mim mesmo pelo
pedido, depois pelo momento de constrangimento quando chegamos, a
confissão sincera que achei necessária ao falar que nunca trouxe ninguém
aqui e agora isto. Ela está apoiada sobre meu bíceps e me olhando entre cílios
quase fechados.
Ela tentou puxar assunto sobre o trabalho, a diligência que tive,
mas compreendeu quando não falei nada relevante sobre o caso.
Esse sempre foi o melhor de nós, não precisa explicação apenas um
olhar e se faz compreender o que deseja. Ao deixá-la no quarto li a
mensagem que Caleb me enviou. Para sorte um dos marginais foi capturado e
confirmou que o outro estava ferido na perna, mas não foi encontrado.
Ainda persiste o medo, mas confio que logo isso terminará.
Por parte de Angélica, não houve nenhuma informação, mas
conhecendo seus métodos como faço, sabemos que se precisasse ela entraria
em contato.
Isto foi o alívio que precisava, para realmente me deixar levar pele
presença da minha mulher ao meu lado e não posso negar está sendo uma
descoberta maravilhosa.
Outra vez a letra da música bate contra a maré de pensamentos e
me prendo ao último refrão. Acrescentando à letra ao meu mantra, mas
fazendo minha própria analogia.
E quanto eu me perco em suas memórias
Vejo um espelho contando histórias
Sei que é difícil de esquecer essa dor
E quando penso no que vivemos
Fecho os olhos me perco no tempo
Para mim não acabou, acabou

Fiz estas coisas. Deixei que partisse. A induzi a ir. Mandei-a


embora, negando a mim, ter a parte mais importante da minha vida, e quando
ela realmente foi, a culpei. Porque não soube viver sem ela, por isso deixei de
viver. Deixei de sentir, mas agora isto não é mais uma opção, não vou deixá-
la, não mais!
— Para mim não acabou!
— Hum? — seu gemido vem manso com a carícia da sua mão.
— Bem, agora suponho que não pode negar que seja minha
namorada! — Sussurro em seu ouvido a provocando e como esperado Lia
salta para vida sentando-se na cama.
— Que namorada? — Ela ergue as mãos e os seios fartos seguem o
fluxo. — Nem começa com está história, se soubesse o tanto de mensagem
que nossas amigas me mandaram, não ousaria a falar neste assunto logo
agora.
A irritação é real e percebo as fagulhas chispando em seus olhos.
— Culpa sua, se concordasse em admitir, não teria tantos
problemas. — Rebato instigando-a.
— Ao inferno com isto Mikael! — Ela se ergue ficando de joelho.
— Não se atreva a dar um de macho arcaico e bater no peito dizendo que sou
sua mulher. Idiota! Anunciando aos quatro ventos algo, quando nem sequer
me pediu.
Não consigo segurar minha gargalhada e só paro quando um
travesseiro me acerta a cara.
— Oh porra! — Esbravejo, mesmo rindo.
— Não se atreva a rir, estou falando sério. Uma coisa é uma coisa
— ela pausa como se estivesse falando consigo mesma. — Outra coisa muito
diferente é minha relação com você.
Pigarreio me erguendo na cama e recostando contra a cabeceira. —
Não vai rolar, Lia. — Digo a sério. — Já fiz isso e não farei de novo. É sério,
se não entendeu o contexto.
— Se para você não vai rolar, tão pouco para mim.
Ela salta para fora da cama e isso me coloca em alerta.
— Hei!? Para onde está indo?
— Beber água, — ela diz entredente. — É isso ou esganá-lo.
— Ok! — Ergo a voz. — Espera, deixa ver se compreendi. Você
quer um pedido de namoro, daqueles de mãozinhas dadas, sentados no sofá,
passeios ao luar, flores, presente de Dia dos Namorados, essas panaquices
todas?
Com os braços cruzados, sob os seios e completamente nua, Lia
não tem ideia da porra que está fazendo com meu cérebro, dobro uma das
pernas e poio meu queixo sobre o joelho a encarando. Ela mantém o olhar
firme, por fim sacode os cabelos e me dá as costas.
— Porra! Eu devia ter colocado de quatro, na banqueta de piano.
— Vai pro inferno, Mikael!
Lia marcha até o frigobar, pega uma garrafa de água, volta e a abre
com força, toma alguns goles e a soca sobre a mesinha molhando a
superfície.
— Você sabe que isso vai me fazer pirar, não sabe? — Pergunto
apontando a bagunça.
— Foda-se! — Ela retruca.
Seguro o riso, com movimento certeiro do corpo me alongo e alço
seu braço a trazendo contra meu corpo segura pelo pulso.
— Você quer que eu peça?
— Se é o que quer de mim, sim! Terá de fazê-lo, Promotor.
— Tudo bem! — Pigarreio e faço minha melhor voz de barítono,
seguro seu rosto, aproximo meus lábios dos seus e toco de leve. — Lia, quer
ser minha namorada?
Ela sorri e se derrete nos meus braços, me beija de leve e se afasta.
— Não! — Sua resposta é tão rápida que por um momento acredito
que não compreendei.
— O quê?
— Eu disse, que não. Não quero ser sua namorada, — ela suspira,
— e não lhe dou o direito de me expor a ninguém sem ter um relacionamento
oficial comigo, entendido Promotor? Quer que eu seja a sua namorada? Me
convença de que este é o seu desejo de verdade, do contrário, a resposta é
não.
— Tá de sacanagem comigo, mulher?
Ela dá de ombros olha entorno e volta a encarar-me.
— Como vamos dormir? — A pergunta fora de contexto em nada
aplaca a fúria que começa a se acender em mim.
Ela fez um puta discurso querendo um pedido e diz não?
— Dormindo! — Respondo de mau-humor.
— Qual lado você prefere?
— Meio.
— Eu também.
— Você já dormiu com alguém na cama?
— Ramon e não foi interessante.
Não preciso contar para ela, que acordei excitado por estar
sonhando com a nossa transa de dias antes, e que tive de ver a bunda do meu
amigo empinada sobre a cama, muito menos que corri para o banheiro
batendo uma gloriosa em sua homenagem.
— Não quero detalhes, só por sua expressão. — Lia dá de ombros.
— Como fazemos então, de que lado quer ficar?
— Estou muito puto agora para imaginar isso, o que você decidir
por mim, está ótimo!
— Ok! — Ela se ergue e aponta meu celular. — Pega o seu celular.
Estranhei o pedido, mas em se tratando de Lia, não faço ideia do
que vem. Porque isso é o detalhe entre nós, enquanto faço às vezes da pedra
insensível, ela é a picareta demolidora. Sempre consegue me quebrar o gênio
com algo impensável.
— O que está fazendo? — Pergunto encarando-a de lado, sem
acreditar que disse a porra de não na minha cara.
— Pesquisando no YouTube, hoje em dia tem tutorial para tanta
coisa, quem sabe não tem um para como dormir junto?
— Correndo o risco de ser repetitivo. — Já não podendo segurar a
gargalhada realmente me estremece o peito. — Tá de sacanagem comigo
mulher?
Lia ergue a cabeça e com uma expressão zombeteira me mostra a
tela do celular. — Não estou, eu disse: tem tutorial para tudo!
De fato, tem vários vídeos de casais ensinando a dormir junto,
pegamos um aleatório, ela se aproximou colocando seu corpo junto ao meu,
afastei o lençol deixando-a entrar debaixo, mantendo-nos cobertos da cintura
para baixo, a cada posição passada mais comentários e risos foram gerados.
Por fim, desistimos do vídeo constrangidos de certa forma, e muito
atormentados para dormir.
— Como pode dois indivíduos, repletos de diplomas não terem o
menor senso comum em como dividir uma cama, que aparentemente caberia
mais uns seis?
— Na minha, cama só cabe você. — Digo possessivo abraçando-a,
e apagando a luz do abajur ao meu lado.
— Ainda bem! — Ela responde sorrindo com um cochicho.
— Que tal nos virarmos e descobrimos como acontece? —
Respondo no mesmo tom.
— Concordo. Mas temos de ter noções básicas. — Ela ainda
cochicha.
— Ok! Posso te acordar quantas vezes para transarmos?
— Depois que eu estiver dormindo? — Ela ri. — Nenhuma!
— Isto é injusto. — Reclamo. — Por que estamos cochichando?
— Não sei, será que é porque estamos no escuro? — Ela esfrega
seu rosto contra meu peito. — Vou vestir a camiseta.
— Nem fodendo, na minha cama só nua.
— Besta.
— E de manhã, sexo de bom dia?
— Olha, por mais que seja super romântico ler isto nos livros,
suponho que em realidade, isto não rola.
— Acha?
— Nunca fiz sexo de manhã de bom dia.
— Gostei!
— Misógino.
— Por que não rola?
— Porque vou acordar com mau hálito, vontade de fazer xixi, com
a cara do primo Itt da família Addams com os cabelos todos revoltos.
Não consigo segurar o riso e acabamos nos sacudindo, Lia estapeia
meu peito e aperta o mamilo com um beliscão.
— Aí caralho! — Grito.
— Não ri, é sério! — Ela eleva a voz. — O único que diz que sou
linda e cheirosa pela manhã é meu filho.
— Vou entrar para o time.
— Veremos! — Ela pausa. — Talvez se você fingir que não me viu
acordar e me deixar ir ao banheiro rapidinho, pode ser que role o sexo de
bom dia.
— Porra! Que horas vai amanhecer mesmo?
Brinco olhando as horas na tela do celular. Com cuidado aperto seu
corpo contra o meu, fazendo-a deitar-se quase completamente sobre meu
peito e acaricio seus cabelos.
O silêncio nos domina e logo a dormência cálida do sono se
aproxima. Minha língua coçou para contar sobre a ligação com Santana, mas
suponho que por hoje nos deixamos levar por muitas coisas, algumas delas
poderiam se tornar cabos de guerra verdadeiro e isto não é minha intenção.
Antes de entrarmos no quarto, Lia conversou com o filho em tom
baixo, juntos parecem que ouviram uma música e depois com todo carinho
disse-lhe boa noite e desejou belos sonhos.
Nesse momento é o que desejo ter belos sonhos e não acordar em
menos de uma hora com um pesadelo horrendo.
— Boa noite Lia. — Sussurro em seu ouvido.
Ela beija meu peito e responde com voz rouca deslizando sua perna
entre a minha e aninhando ainda mais seu corpo ao meu.
Meu último pensamento consciente é ter um início de ereção e um
sorriso besta no rosto.
Ainda me sinto no mesmo turbilhão de água me invadindo,
revirando meu interior como se estivesse me afogando e afogando em
desespero.
Quantas vezes é possível perder a mesma pessoa para se sentir à
beira da morte?
Quantas vezes é preciso se sentir impotente, para sabermos que
não somos Deus, e não pode mudar o destino de tudo?
Quantas vezes vou vê-la por um prisma paralelo ao que desejaria,
por não ser capaz de estar ao seu lado na hora certa, na situação certa?
Quantas vezes ainda em minha vida vou me sentir assim Deus?
Corre em minha mente, milhares de imagens desconexas entre o
passado e o presente, convergindo para um suposto futuro em que posso ter
fracassado e a perdido por simples egoísmo, por usá-la, por ser cretino o
suficiente para ignorar seus sentimentos e colocá-la em perigo.
Tenho consciência que mais uma vez estou sendo acometido de um
pesadelo monstruoso onde revivo toda a violência que Lia viveu nas mãos de
Verônica há meses, mas como em outras vezes não consigo me livrar,
acordar…
O suor brota em meu rosto e a ânsia de vômito me invade. Sinto o
cheiro do bolor de ar parado, ferruginoso do sangue espesso.
Continuo ouvindo-a ameaçando Lia, algo sobre o menino… e do
nada a imagem de Lia com o moleque no colo naquela garagem me assalta,
posso ouvir a voz rouca dele dizendo em meu ouvido MAH.
Depois uma dor absurda me envolve, pois, passo a ouvir a voz de
Lia gemendo, sofrendo e isto me desespera. O som indistinto de antes, de
tantas vezes que não pude identificar, agora é tão perceptível que se torna
real, sinto na lateral do corpo o momento exato da punhalada.
A maldita a esfaqueia, grito de dor, de horror ao receber golpes
cruéis, enfurece minhas juntas e me sinto estatizado. A coragem de Lia em
enfrentar Verônica é o ponto alto dos meus pesadelos.
Entrar na passagem secreta e achá-la de má forma, ela que esteve
linda a noite toda, me faz urrar de tristeza.
A minha mulher, a mesma que não tive coragem para elogiá-la e
pedir perdão por colocá-la em perigo, está estirada ao chão toda
ensanguentada. Nos meus pesadelos esse é o pior momento quando caio de
joelhos ao seu lado e a ergo nos braços para ouvir seus últimos suspiros e
palavras…
— A culpa… É sua… S-sua…
O último suspiro antes de vê-la morrer em meus braços.
— Não! — Respiro. — Lia!
O grito reverbera pelo quarto, o eco dos gritos em lágrimas, quebra
a tranquilidade do ambiente, o suor que escorre pelo meu corpo é como se ao
entrar nesse maldito pesadelo adoecesse. E uma febre inexplicável, surgisse
do nada.
— Mikael? — Mãos frias e delicadas tocam meu rosto, me assusto
e empurro para longe quem está próxima. — Mikael?
Lia?
— Lia? — Minha voz rouca a chama e de imediato a procuro com
minhas mãos.
Seu corpo trêmulo está sob o meu, pela parca claridade que vem da
fresta de luz que ela insistiu em deixar com a porta semiaberta do banheiro,
posso ver seu rosto sulcado de lágrimas, os lábios generosos estão presos
entre os dentes.
— Estou aqui, foi só um pesadelo, já passou.
A voz rouca me banha de uma calma que não consigo explicar,
mas é coisa passageira, pois logo vem os tremores, a necessidade de sair
correndo para não enlouquecer, mas desta vez não posso.
Não consigo me mover, ela percebe minha intenção e rapidamente
suas pernas me envolve, seus braços me seguram com firmeza e a sinto
escorregar seu corpo contra o meu no suor causado pelo pesadelo.
A febre inflama a pele e tudo parece arde entre nós.
— Estou aqui! — Ela continua falando e deixando beijos sobre
meu rosto.
Só então percebo que não é Lia quem está tremendo e balançando
contra mim, sou eu quem está devastado e chorando sobre seu corpo.
— Lia… — a seguro firme contra meu corpo. — Tive tanto medo
de te perder.
— Estou aqui!
— Me perdoa? Por favor?
— Estou viva Mikael, estou aqui. — É só o que ela responde
engolfada pelas lágrimas.
Nunca falamos sobre o acontecido, não nos demos essa
oportunidade e desde então só fomos transportados de cá para lá em
resoluções, acontecimentos e uma enxurrada de coisas que nos fez abafar
isto, mas percebo o quanto ela se consola enquanto faz comigo. Afasto meu
rosto do seu e a vejo, mais uma vez como ela é.
Linda, forte, irritada, ferida, guerreira, mas primeiro, viva e
comigo, na minha vida, na minha cama, para sempre.
— Me perdoa, me perdoa, me perdoa! — Pauso — Só posso pedir
que me perdoe, não sei por qual dos muitos pecados que devo começar a
pedir perdão, mas por favor, me perdoe por deixá-la ser ferida.
— Eu perdoo. — Ela me beija. — Não tenho por que o acusar. Não
me diga que tem pesadelos diariamente, porque não vou suportar se você
também estiver sofrendo assim.
As suas lágrimas e palavras vem com desespero. Lia me abraça e
meu corpo urge a necessidade de estar com ela, de me deixar levar pela
paixão e tê-la em meus braços mais uma vez.
Afasto-me e a beijo com sofreguidão. — Diariamente, no mesmo
horário, revivo aquele momento e isso me apavora Liana.
— Oh, meu Deus! — Ela devolve o beijo. — Por favor não faça
isso, não se deixe enredar. Estou aqui e não irei a lugar algum.
Lia ergue o tronco e retribuiu o beijo, sinto-a enveredar em minha
alma como um torniquete apertado segurando-se em mim. Meu corpo a busca
e ela me recebe com furor. Não pensamos, não falamos, só nos guiamos pelo
instinto e a paixão.
Minhas mãos deslizam por seu corpo, ainda sinto as lágrimas
descendo por meus olhos, é como uma represa que não pode ser contida. Em
outro momento tentarei pensar no que isso representa, mas agora só consigo
sentir sua boca, sua língua deslizando sobre a minha.
Com cuidado deslizo-me para dentro do seu corpo a sentindo
inchada pelas vezes que já transamos, sou gentil ao mesmo tempo que a sinto
me apertar como punho cerrado.
Humm…
Lia solta gemidos suaves, seu peito trepida ao encontro do meu
tentando não soluçar alto envolvida por lágrimas. Beijo suas bochechas e o
sabor salgado molha meus lábios.
Descanso meu rosto contra seu pescoço e aspiro, tão cheirosa como
a primeira vez. Como em todas às vezes que pude senti-la perto de mim!
Consigo dominar minhas emoções e me concentro em saciar seu
corpo, sua alma com toques carinhosos, calorosos.
Lia desliza as solas dos pés por sobre minhas coxas, estamos
deitados de forma invertida sobre a cama e creio que jamais fui tão sereno em
uma foda.
Mas isto não é foda, não é só sexo.
É fazer amor, pois mais que nunca, desejo fazer amor com ela,
como a primeira vez. Como jamais fiz com qualquer mulher em minha vida!
— Liana…
— Mikael…
Meu corpo mergulha literalmente no seu, posso sentir a contração
da sua musculatura me apertando e juntos corremos a borda de um orgasmo
que está completamente fora da nossa realidade.
Me esquecendo de tudo, apagando uma existência de dor, só para
senti-la. Para poder vivenciar a cadência do que ela é para mim.
Porque ela está viva e vou protegê-la custe o que custar!
Moya lyubov', meu amor.
CAPÍTULO 27

IDEM

“Conheço a sensação de renúncia. Sei a dor de ser abandonado e tido

como um pária, quando deveria ser Rei.”

LIA
Um… Dois… Três… braços em posição da oração e dez
respirações profundas… quatro… cinco… seis…

M
inhas pernas ainda permanecem trêmulas, ao ponto de desprender do corpo
enquanto meu sexo se pudesse, sairia correndo. Isso, sem falar na cintura que
está doendo. Será que existe isso de dor de cintura?
Alongue o tronco… e oh! Vejamos quem mais está dolorido!?
Relanceio um olhar para baixo e os meus seios estremecem, se é
que isto existe, eles a aparência de terem sido deliciosamente sugados,
marcados, apertados e comidos por um vampiro. Seguro o riso voltando a me
concentrar nos exercícios matinais da ioga que fazem o meu corpo despertar,
mas não consigo. Por que não posso concatenar todos os acontecimentos das
últimas doze, ou melhor, catorze horas?
Minha cabeça parece estar girando em um loop eterno com tantas
informações, sensações e, tantas primeiras vezes, que não tenho ideia de
como me portar.
Suponho que deveria começar a registrar tudo em um diário, como
se fosse uma adolescente — mal cruza o pensamento em minha mente e
tenho de segurar outro riso.
E aqui vai a primeira observação do tal diário: não sou uma pessoa
que deixo de sorrir, mas que porra está acontecendo com o meu cérebro?
Pareço um fusível desencapado soltando faíscas. Nunca ri tanto e o que dizer
de Mikael? Provavelmente, deve ter deslocado o maxilar de tanto rir e isto é
algo reconhecidamente estranho. Na verdade Lia, se ele deslocou o maxilar,
foi pela quantidade de sexo oral e não por rir.
— Porra! — exclamo em meia voz e levo as minhas mãos aos
lábios pressionando-os. Isto faz o meu corpo sacolejar e os músculos que nem
sabia possuir reagem automaticamente.
Sexo bom, quente, suado e cheio de malabarismos é o que sempre
fizemos, mas nunca em minha vida, fiz tantas vezes e com tanta intensidade.
Meu corpo drenado reage com arrepios de reconhecimento. Um gemido
suave me escapa e fica abafado contra a palma da minha mão.
Sinto o rosto corar em êxtase.
Encaro o meu reflexo no espelho mais uma vez por sobre a pia do
banheiro e me sinto divertida com o que vejo.
— Putz! Realmente estou parecendo o primo Itt da família
Addams.
Pareço, não por acordar revirada, mas por não ter dormido após
acordar com os gritos de Mikael.
Pensar no que houve, quebra um pouco do feitiço de risinhos
envergonhados e me faz estremecer com o reconhecimento. Não imaginava
que ele tivesse pesadelos. Seria possível, ser o mesmo que Anjinho tem, vez
ou outra? A forma desesperada que ele me segurou e como se quebrou diante
de mim, é perturbador. Jamais serei capaz de me esquecer, mesmo que este
seja o desejo dele.
Não foi preciso que Mikael dissesse com todas as palavras, mas
deixou claro em sua forma de agir, que não deseja tocar no assunto à luz do
dia. E mesmo que ele queira, não posso parar para analisar a situação, nem o
forçar a ir além do que já estou fazendo.
A culpa é uma desgraça velada, pois quando adentra em seu peito,
pouco faz para ser extirpada, ao contrário, ela abre os seus tentáculos com
garras pontiagudas e se instala o mais profundamente possível.
Esta é a minha situação!
Sinto-me culpada por não lhe dizer a verdade e, ao mesmo tempo,
culpada por sentir alívio de que ele ainda não saiba, pois a reação do que
possa vir a acontecer, me atormenta enquanto o medo de fazê-lo sofrer, como
vi nesta madrugada, se expande em meu peito como uma dor aguda sem fim.
Não posso e, nem quero, vê-lo assim novamente!
Sobretudo, após a revelação dos pesadelos e da forma que
conduziu o sexo de imediato como escapismo.
Uma primeira vez para algo diferente, cheio de uma necessidade
cálida e abrangente, que nos desconcertou ao final do ápice. Foi notório a
forma como olhamos um ao outro.
Contudo, o que veio a seguir, virou-me do avesso. Se ele queria
provar que estou viva, conseguiu.
— Porém, agora estou em dúvidas! Humm…
Alonguei o corpo, elevando os braços sobre a cabeça, sentindo a
coluna estalar junto ao osso da clavícula.
— Deus! — Impossível não rir e revirar os olhos. —
Não esqueçamos do sexo de bom dia…
Ah! O famigerado sexo de bom dia! Quando imaginei que
finalmente dormiria, o meu anjo mau resolveu dar-me um bom dia.
Espio por sobre o ombro e aguço a minha audição. A ausência de
som provindo do quarto através da porta aberta do banheiro, diz que ele
dormiu, o que é bom. Não sou tão ingênua em não perceber que a maratona
louca de sexo pós-pesadelo-trauma-do-k.c.t, foi a forma que Mikael
encontrou para não dormir e retornar de onde parou.
Sei por experiência própria como isto funciona.
Relaxo os braços movendo-os para baixo e curvo o corpo apoiando
as mãos nos tornozelos com as pernas paralelas por trinta segundos. Em
seguida, alongando a coluna e a parte de trás das coxas e panturrilhas, por
entre a fresta dos membros inferiores e vejo pés enormes tentando se
desenrolar do lençol próximo à cama, tropeçando algumas vezes e deslizando
pelos dois degraus desajeitadamente. Alguns segundos a mais e ouço um
estrondo rouco invadir o banheiro.
— Porra!
Ergo rapidamente e olho para trás entre as mechas do meu cabelo
que se agarram no corpo levemente suado.
Mikael vence a sua guerra contra o tecido enroscado nos pés,
atravessa o marco da porta e choca o seu corpo contra o meu levando-me
junto a ele para frente.
— Nem se atreva a me olhar assim, seu maníaco pervertido! —
Ergo a mão e empurro o seu peito.
— Você não deveria fazer ioga no meu banheiro. E ainda por cima,
nua —, ele ressalta — para começo de conversa. Agora vem aqui!
Mikael entra no box, levando-me com ele. Mal tenho tempo de
respirar, mudando rapidamente a posição das pernas, tentando me afastar.
Mas quem pode com um homem de 100 quilos de puro músculo, quando está
obstinado a fazer algo?
— Estou falando sério, Mikael — grito e estapeio seu ombro —
não vai rolar! Quantas vezes você acredita que vai me dar bom dia?
Ele ri descaradamente e abre a água fria sobre nós.
— AH! Filho da mãe! — Grito novamente, sentindo o choque
perpassar por todo o meu corpo.
— Queria muito te dar bom dia mais uma vez, mas estou atrasado,
porra! — Ele esbraveja e, ao mesmo tempo, troca de lado, me tirando da
água. — Por que não me acordou? — Ele brame e sacode de leve meu corpo
contra o seu, mudando as nossas posições.
— Desde quando eu sou o seu despertador? — Outro tapa e me
afasto, ou pelo menos, tento.
— Se vamos dormir juntos, precisamos manter um ligado. Eu não
posso me atrasar! — Mikael continua a reclamar enquanto me segura e
alcança o sabonete líquido. — É sério Lia, não posso me atrasar, nunca,
jamais.
— E nós vamos? — pergunto meio incrédula.
— Vamos o quê, precisar de um despertador!?
— Não, quer dizer, sim. Espera —, ergo a mão pedindo uma pausa
para organizar os pensamentos — nós estamos mesmo indo nessa onda de
dormir juntos?
Mikael para no ato de ensaboar o corpo e me olha como se
houvesse chifres nascendo em minha cabeça.
— Porra Liana, onde é que você esteve nas últimas dezesseis
horas?
— Dezesseis? — pergunto, assombrada.
Mikael resmunga alguma coisa e deixa de lado a esponja, me
levando direto para o aconchego dos seus braços. Ele deixa um selinho sobre
os meus lábios ao me virar para a ducha fria.
— Acorda mulher, se pensa que vou retroceder, está ficando louca.
— Me solta, está gelada! — Debato o meu corpo contra o seu.
— Gosto assim pela manhã. Vê se não esquece!
Ele beija o meu pescoço lentamente e sorrindo, muda a temperatura
da água antes de começar a deslizar a esponja macia sobre o meu corpo.
— A propósito —, cochicha em meu ouvido — bom dia!

O banho terminou rapidamente e sem mais bom dia, seguimos em


direção ao closet e, assim como na noite passada, agimos em perfeita
sincronia. Da primeira vez, foi algo automático e sem perceber, mas desta
vez, foi proposital. Com o seu auxílio, vestindo-o com um terno de corte
moderno, completo com camisa branca de mangas compridas e gravata azul
em tons de Royal, tudo combinando à perfeição e destacando a barba e o
cabelo ruivo.
— Se apresse Lia, você ainda precisa comer algo.
— Já estou terminando.
Mikael segura sua pasta e a minha bolsa de ombro, mas deixa a
pequena mala que trouxe com duas mudas de roupas.
— Pega essa por favor? — aponto para ela com a cabeça e ele faz
que não.
— Deixa a roupa aqui.
Dou de ombros sem fazer caso, pois estamos atrasados, ou melhor
ele está e, por isso, não vou discutir.
Abotoou o jeans de cintura alta que escolhi para vestir com uma
camisa de seda solta por sobre o corpo. Dei um nó nas pontas e calcei os
meus sapatos forrados de jeans para completar o look. No espelho do closet,
fiz uma maquiagem rápida com base, lápis de olho e boca, aplicando
também, um blush rápido e um gloss para os lábios. Espalho o meu perfume
pelos pontos quentes do corpo.
— Pronta! — entro no quarto e quase derrapo no piso.
Mikael mesmo atrasado, conseguiu algum tempo para arrumar a
cama que está meticulosamente organizada, como se não tivéssemos revirado
a noite toda sobre a coitada.
— Bom menino… — sussurro e sigo em direção a cozinha.
Prefiro não pensar em mais algumas coisas ao seguir pela casa, mas
é difícil manter a concentração ao ver um homem deste porte em toda a sua
glória, com um avental sobre a camisa social, montando uma mesa para um
café da manhã rápido.
— Três lugares? — Pergunto ao sentar-me.
Mikael não responde, mas coloca sobre a mesa, iogurte, frutas,
cereais, leite e duas torradas que acabara de saltar da torradeira, mais duas
canecas fumegantes de café.
— Oi!
— Oi!?
Ele não se aproxima, mas aponta os alimentos para que coma.
Espero que volte em minha direção e quando o faz, bato na mesa à frente.
— Sente-se! — Convido.
— Estou atrasado —, ele bebe café e geme de satisfação — come
Lia.
— Estou esperando que se sente, assim posso comer os cereais com
o iogurte e tudo mais que quiser.
Ele olha o lugar vago na mesa, oposto do que apontei. Com uma
má vontade explícita, Mikael senta-se, não diz nada, comendo a mesma
quantidade que eu.
Os meus olhos, vez ou outra recaem sobre a louça posta no terceiro
lugar onde a xícara permanece de boca para baixo. Sei que tem algo
relacionado à família dele, mas não consigo me lembrar. Recordo vagamente
dos meus pais comentarem algo sobre tia Sarah e… — Oh, puta merda! —
Mikaella.
— Me desculpa! — Falo e nem percebo que foi em voz alta, até
que ele ergue seus olhos por três segundos, antes de desviá-los para o outro
lado. — Mikael, me desculpa mesmo, de verdade pela indelicadeza de
perguntar.
— Está tudo bem, Lia. — Ele pausa. — Depois de anos comendo
com o lugar dela posto, não perdi o costume após os meus pais… — outra
pausa. — Enfim, nós estamos atrasados.
Mikael levanta e faço o mesmo. Ele tinha me oferecido para ficar
mais tempo em sua casa antes de seguir em viagem para a Serra, mas não
quis abusar de sua hospitalidade. Sei que ter alguém andando em sua casa
meticulosamente organizada não é nada que ele goste. E mesmo que o
convite tenha sido sincero, prefiro não o deixar incomodado.
Seguimos para a garagem e na porta percebo os seguranças nos
cumprimentando. Dionísio está do lado de fora conversando com outros dois
que estão segurando capacetes.
— Vamos fazer uma viagem — explica. — E para isto, usaremos
algumas regras diferenciadas. Você pode dirigir, mas dois batedores irão ao
lado. E enquanto Dionísio estará no carro à sua frente, os outros seguranças
vão segui-lo.
— Exagero! — Exclamo estreitando os meus olhos para o meu
guarda-costas.
Se o conheço bem, isso é coisa dele. Como chefe de segurança, ele
tem a mania e o poder de ditar regras das quais não acho a menor graça.
— Eu vou ignorar o que disse — Mikael anunciou. — A ideia me
agradou e, é o que iremos fazer.
— E você pode me dizer quando isso foi providenciado?
— Quando estava falando com o seu filho ontem à noite.
— Hum?
Com um beijo leve sobre os meus lábios, ele me acompanha até o
Range Rover, abre a porta do motorista e me espera tomar assento, se
inclinando e beijando-me com um pouco mais de ímpeto.
— Tome cuidado Lia! E nada de se afastar dos seguranças. Me
envie mensagens de tempo em tempo para saber onde e como está. Ok!?
— Sim, não se preocupe! Antes de subir a Serra, vou passar no
shopping e comprar uma lembrança para a Fadinha.
— Tudo bem! Nos encontramos a uma hora da tarde.
— Não corra na estrada por favor, ou melhor, você deveria aceitar
e ir com os seus seguranças e não usar a moto.
— Se sentirá mais tranquila se eu fizer isto?
— Hu-rum!
— Tudo bem! — Ele sussurra e se aproxima, sua língua desliza
sobre os meus lábios, antes de prende-los em um beijo rápido. — Estou
fodido, atrasado, mas porra, como queria voltar para a cama.
— Até logo, Promotor! — empurro seu peito e tranco a minha
porta, passo o cinto de segurança e ligo o carro, colocando os óculos de sol
que deixei sobre o painel. — Tenha um bom dia de trabalho. E, a propósito,
esta foi a melhor noite que já passei com você.
Aceno dando ré no carro lentamente e breco ao vê-lo se aproximar.
Mikael segura o meu rosto e sussurra palavras doces ao beijar-me com
delicadeza.
— A primeira de muitas! E, o melhor dia da minha vida, foi poder
acordar ao seu lado. Boa viagem! — Ele acena, se afasta e caminha ligeiro
em direção ao SUV.
Estou sem palavras e seguro as lágrimas que repentinamente
preenchem os meus olhos.
Em questão de minutos, estamos percorrendo a pavimentação e na
bifurcação que me levará para longe dele, Mikael faz um sinal e os nossos
carros ficam paralelos por alguns segundos. Apenas acenamos e com um
sorriso, seguimos cada um ao seu destino.
Algumas sensações não podem ser descritas com simples palavras,
da mesma forma que sentimentos não são demonstrados sem atitudes. Como
uma mulher que necessita da verdade e, nada além da verdade para poder me
guiar, o meu coração viciado desta nova sensação aquecida, neste preciso
momento, requer uma admissão verbal da minha mente controladora, para
que ele —, o meu pobre coração, possa se perder nessa inexorável sensação
de tantas primeiras vezes e nunca mais voltar ao limbo da sensação atroz de
não o sentir, bem aqui — toco o centro do peito, sentindo-o queimar.
— Bem aqui, dentro de mim.
SANTIAGO
A sala reservada para parentes no hospital de renome no centro de
Vitória, parecia a sucursal do inferno, quando uma pirralha de cabelos
escuros e enormes olhos verdes entraram correndo fugindo de um séquito de
enfermeiros.
Olívia é o seu nome! E faz jus com a pele de oliva, o sorriso
intrigante e a forma que acabou cativando os seguranças com as suas
risadinhas infantis. Pela idade e por estar tão assustada, preferi que não a
dopassem.
Os anestésicos tendem a criar um estado ilusório chamado: terror
noturno. E para alguém que esteja vivendo um terror real, isto poderia ser
mais do que traumático. No entanto, antes tivessem dado a pestinha um
sossega leão.
Ao chegarmos no local, já tínhamos um relatório prévio das
traquinagens da pequena na ambulância, enquanto a mãe dormia. Além da
curiosidade nata, o idioma castelhano carregado, os dedinhos curiosos foram
em todas as direções disparando aparelhos e colocando os meus agentes e
socorristas enlouquecidos.
Uma das médicas que esperava com a equipe ao serem admitidas,
nos informou que isto era a forma que Olívia encontrara para não pensar em
tudo o que estava acontecendo, principalmente em sua mãe desacordada,
deixando-a à mercê de estranhos. — Suspiro.
A explicação foi plausível e com recomendações suficientes que
provou ser ineficaz para controlar a menina, pois nada a entreteve.
Maristela, a mãe, precisou bem mais do que alguns curativos. A
mulher passou um básico relatório sobre o acontecido e mesmo sabendo que
ela estava ocultando algumas coisas, não me importei, pois, esse não é o meu
foco.
Tirá-las do local, medicar e proteger, sim, mas só. Nada de
envolvimento, sentimentos ou qualquer reminiscência disto. Contudo, o
relatório enviado uma hora após o exame, deixou-me estarrecido. Não pude
sair do maldito hospital, não, antes de vê-la dormindo tranquilamente após
ser tratada e passar por uma microcirurgia.
O estrupo que relatou foi muito mais violento do que pareceu… o
cheiro do local indicava algo assim, caralho! Maristela precisou fazer uma
correção do canal pélvico e desobstruir parte da entrada dilacerada com uma
reconstrução. Havia um inchaço extenso, dando a entender que ela poderia ter
um prolapso vaginal leve, sem a necessidade de uma histerectomia.
Isto, inundou-nos de paz, mesmo que Angélica tivesse muda, após
a nossa discussão. Saber que a mulher não perderia a sua capacidade de
gestar, nos fez cruzar os olhos em um consolo mútuo.
Com o tratamento adequado de pomadas e anéis de hormônio, além
da ginástica kegel[13], logo o seu corpo será reajustado. O trauma físico e
mental do estupro, será trabalhado em outro momento. Diante dessa
realidade, os planos mudaram e, o local onde Maristela e a filha passariam a
internação, avaliação e todo trâmite até serem enviadas a um local seguro,
também. E como a danadinha não poderia mais ser contida, me vi passando a
noite no hospital ao seu lado.
— Porra! — Exclamo deixando a caneca de café sobre a bancada.
— E que ninguém ouse a comentar o fato de a pirralha dormir no meu colo
em vez da cama espaçosa que foi designada apenas para ela.
Retiro do bolso a maria-chiquinha cheia de berloques cor de rosa,
os guizos balançam criando sons de tim… tim… “un regalo para mi papá” —
ela disse e não dei crédito por me chamar de papai, “no me olvides!”
Balanço na palma da mão o pendente de cabelo e guardo no bolso.
Não fiz a promessa de que não a esqueceria, porque provavelmente não irei.

Subi os dois lances de escada que separam o piso térreo do segundo


andar, atravessei o corredor e segui para o quarto do lado direito.
Toc… Toc…
Dois toques e silêncio. Descido bater mais uma vez e esperar até
que ela resolva abrir a porta.
— Mikaella? — Chamo depois de dois minutos.
Bato mais uma vez e a porta se abre. Encaro uma ruivinha irritada
com os cabelos caindo em uma longa trança por sobre o ombro, a boina
escolhida para hoje a deixa com ar infantil, mas os olhos em fendas,
demonstram que a Fada nada tem de inocente, pois demonstra estar mais para
uma tigresa pronta a bater-me com as suas garras.
— Bom dia!
— Se para vo-você é um dia bom, faça bom proveito.
A malcriação na ponta da língua não me surpreende, ao contrário,
me faz cócegas por dentro. Tenho vontade de me encostar no batente e rir
com vontade, mas para evitar que isto se prolongue, cruzo os braços à altura
do peito.
— Para onde foram os seus modos, mocinha?
— Na mala, que vo-vo você quer me… quer… — ela bufa, fecha os
olhos. Respira pausadamente e reabre as esferas acinzentadas para mim
tentando falar mais uma vez. — Minha educação está na mala, onde você
quer me colocar para me mandar embora. Me despachar como… como…
— Mikaella! — A corto e desta vez, não tenho vontade alguma de
sorrir.
Não espero que abra a porta, levo minha mão até a madeira e a
empurro com pouca delicadeza. Mikaella dá passos hesitantes para trás, mas
antes que possa se esconder dentro do seu estúdio, a faço sair.
Odeio quando ela usa algo tão hediondo, como uma arma contra
mim. O fato de ter sido abandonada pelos pais ainda nos primeiros meses de
vida, a deixou marcada e, mesmo que em algum momento tenha explicado a
ela que os pais não tinham estrutura e, por isso, recorreram a medidas
drásticas, soou como uma desculpa fraca demais até para os meus ouvidos.
Crescer em orfanatos, cercada de pessoas com pouco amor e
sedentos do dinheiro que Verônica distribuía para que a mantivesse
escondida, não ajudou em nada a forma como Mikaella encara o possível
retorno ao lar.
Seguro pela mão delicada de dedos curtos e juntos, seguimos em
direção ao meu próprio estúdio, onde uma nova moldura espera o tempo de
secagem, pendurada no cavalete.
Nunca escondi como veio parar aqui, pois além de ser uma criança
com nove para dez anos, a vivência em tantos lugares e ser tratada como um
animal judiado, a fez amadurecer quando ainda deveria querer brincar de
boneca, não pensar em coisas tão terríveis.
Conheço a sensação de renúncia. Sei a dor de ser abandonado,
tido como um pária, quando deveria ser Rei. Meu peito arde e o meu maxilar
trava com força, ao ponto de os dentes rangerem com a contração.
Paramos diante da imagem e vejo os seus olhinhos brilharem como
diamantes com as gotas de suas lágrimas. Ela tenta libertar a sua mão da
minha, mas seguro firme enquanto juntos, contemplamos a obra de arte.
Desde que foi me dada como um presente, Mikaella se tornou parte
de mim, por isto nunca menti para ela. Assim que tinha idade para saber a
verdade, contei em detalhes, tudo, ao menos, tudo que fosse relacionado à sua
vida. E dei a ela a opção de me deixar para voltar a viver com a sua família.
Levei-a para ver Sarah e Niko, e foi um choque para minha
Fadinha ver os pais vivos e sadios carregando nos braços outro menininho
completamente diferente dela. Não era a intenção, pois a sua curiosidade em
vê-los incluindo Mikael era intensa. Sempre que estávamos juntos, pedia
fotos, perguntava se os viu, por isto não quis prolongar a nossa vivência, pois
já sentia crescendo em mim, a intensa vontade de usá-la como uma arma.
Na altura, senti a sua dor e mais uma vez, expliquei que poderia
voltar para casa. A deixei diante dos portões fechados, mas o medo da
rejeição era grande, pois a desgraçada da Verônica, usou os nove anos de
cativeiro para engendrar na mente de Mikaella que foi abandonada por ser
Down, por ser defeituosa.
— Odeio quando diz coisas assim, Fadinha. — digo entredentes.
O café que tomei na cozinha, bateu em minha garganta trazendo a
bílis para a minha boca. Fecho os olhos e me esforço para engolir o bolor
amargo que ameaçava romper meus lábios em um vômito tóxico. As
lembranças e as palavras daquela infeliz ditas a nós dois e o estrago que isto
causou é pavoroso.
Anos de terapia, conversas e provas incontáveis de que Mikaella
não foi abandonada por vontade própria, não ajudaram a mudar a sua mente.
Na sua cabecinha, ela me tem como o seu porto seguro. Seu salvador, amigo,
pai, seu irmão e nos últimos tempos, acrescentou ao hall de motivos, um
amor que não posso aceitar.
— Een-então não me faça falar…
A moldura expressa tudo que ela é para mim. A forma primordial
que em minha mente, a tenho guardada sob sete chaves.
— Já a ensinei a ponderar as suas emoções e dar vazão a elas,
quando não são boas. Deve deixá-las em ponto morto quando sentir que está
perdendo o controle. Isto é para a sua mente e para o seu corpo. Controlar os
sentimentos te proporciona ver com clareza todas as coisas, não apenas um
único ponto de vista.
— Me desculpa!
—Desculpada! E por favor, deixe-me ver um lindo sorriso em seu
rosto, assim como na moldura.
Fadinha ergue seu rosto lentamente, os olhos ainda em fendas, mas
com algumas respirações profundas, vai se acalmando e modificando o
semblante. E como a trouxe para se distrair e não se enfronhar em mais uma
discussão inútil, percebo que faz efeito ver-se retratada em tinta a óleo.
Uma Fada Feérica, retratada com toda a graciosidade que poderia
ousar tentar, mas ainda sinto que não faz jus a tudo que ela representa. Essa
foi a imagem que escolheu e os trajes que posou para pintura ainda estão no
cabideiro próximo à janela, em meio ao ar empoado de tinta, solvente e
madeira, há um aroma persiste no ar das flores que usou nos cabelos e por
este motivo, não a deixei levar embora.
— Tenho mesmo que ir embora?
— Um dia, isto iria acontecer!
Seu silêncio é doloroso, mas percebo nas entrelinhas do seu agir
que gradualmente a ideia vai ganhando espaço em sua mente.
— Vou ter de ir ver aquela pessoa?
— Sim, mas esse não é o melhor momento —, penso na ameaça
que Angel me fez e demonstrar o grande mentiroso e filho da mãe que sou,
levando Mikaella lá agora, só dará a ela motivo para cumprir com a sua
ameaça.
— Será logo? — a voz rouca característica da língua grossa, vem
com cadência aos meus ouvidos. Aproximo o seu corpo ao meu pela lateral,
Fadinha envolve a minha cintura com braços roliços, minhas mãos tão rudes
deslizam por sua pele branca sensível cheia de pequenas sardas.
— Talvez, em breve! E até lá mocinha, as nossas vidas seguirão a
mesma rotina. E isto quer dizer que deve cumprir com as suas obrigações e
cuidar-se, como sempre fizemos.
— Não queria ser malcriada ontem e nem hoje. Eu te amo!
— Idem!
— Estou falando que amo você e não quero te deixar!
— E eu estou dizendo idem para tudo — sorrio e deixo um beijo
casto sobre sua testa. — E justamente porque a amo, não como uma
propriedade, mas como alguém que me manteve vivo durante tantos anos,
estou dizendo que o melhor para você é se preparar para voltar à sua casa.
Mikael precisará da irmãzinha dele.
— Ele terá o Anjinho.
— Ele é tão quebrado como sou, minha Fadinha. Aproximo-me e
com carinho, toco a ponta do nariz redondinho. — Com certeza, precisará de
um pouco da sua magia para curar-se.
— E você?
— Terei isso para os dias sombrios, — aponto para a moldura — e
isto —, toco o meu peito e ergo a minha mão apontando para a cabeça — e
bem aqui, tenho todas as minhas melhores memórias. Todas, escondidas de
todo o horror que vivemos. É aqui na minha mente que a manterei.
— Me deixe escolher quando partir, se tenho de fazer, me permita
escolher quando.
— Posso conceder-lhe isto, mas não pode tardar mais.
Mikaella se afasta e da sua estatura ergue os olhos e dita as suas
regras com um sorriso travesso no rosto.
— Antes, quero que me leve em um parque de diversão. Nós
vamos andar na roda gigante.
— Oh, é mesmo? E você tem altura para isto!? — brinco dando
toques sobre cabeça.
— É claro que sim! — responde batendo em minha mão. —
Também quero que me leve para jantar fora. E depois, que dance comigo em
um baile de gala.
Cruzo os braços e a vontade de sorrir volta. — No estilo Bela e a
Fera?
— Sim! Uaaarr… — ela coloca os dedinhos em garras. — Sou a
Fera.
Não posso impedir de gargalhar. — Então, isso quer dizer que sou
o Belo?
— Sempre!
— Muito bem! Faremos tudo isto. Contudo, prometa-me que não
irá mais perder suas consultas, terapias e nem fugir dos seus seguranças.
— Prometo!
— Ótimo! Por falar em segurança, está voltando a dar aulas?
— Sim, hoje mesmo tenho aulas na parte da manhã e da tarde.
— Fico feliz que faça isto.
— San?
— Sim, minha Fadinha.
— Me abraça?
— Sempre que me pedir. — Sem deixar que se passe um segundo
após o seu singelo pedido, me deixo levar pela emoção e da egoísta
necessidade de sentir o seu doce aroma de flores, o calor dos braços miúdos
ao redor dos meus ombros encurvados e o carinho sincero da minha Fadinha
ao dizer palavras carinhosas ao meu ouvido.
Minha fadinha, minha irmã, minha filha, minha amada menina.

MIKAEL
A equipe jurídica já estava me esperando quando cheguei ao
fórum. Sem perda de tempo, nos encaminhamos à sala de reuniões e, por
duas horas, minha mente foi entorpecida por trabalho e somente isto.
Após o encerramento, Martinha havia deixado dois recados na
caixa postal, para que não deixasse nenhuma brecha no cronômetro apertado
que estamos trabalhando. Segui para o meu gabinete e, por mais duas horas,
trabalhamos intensamente sem interrupções.
Lia foi pontual em suas mensagens, o que me tranquilizou ao ponto
de poder me concentrar.

@Doutora_anjinha: Subindo a Serra. O trânsito está ótimo e


estou sendo conduzida como se fosse a rainha do Nilo por seu séquito.

Outra pessoa que também me deu notícias às dez da manhã, foi


Angélica com uma notificação prévia, mas eficaz.

@guardiam_A. Campus: Tudo estava seguindo o curso


premeditado, pouca variação de tempo e de localização, mas o resultado foi
o que acordamos.
Pouco antes das onze, recebi uma ligação de Staeler querendo falar
sobre o envelope que foi deixado no restaurante.
Meu amigo apareceu constrangido, irritado e um pouco agitado
pela possibilidade de algo importante ter sido extraviado, mas pela minha
experiência com as correspondências sem remetente, algo me diz ser melhor
ter perdido, do que me atormentar com outra coisa.
Não foi bem o que queria ouvir, mas por fim, o convenci de que foi
o melhor. Aproveitei para falar um pouco mais sobre o meu encontro
inusitado com Christian e confirmar um encontro para nosso grupo em dois
dias.
— Terei uma apresentação no Canec’s, minha banda irá tocar e vou
reservar uma mesa próximo ao palco.
— Será ótimo, conseguiu falar com os rapazes?
— Não, estive ocupado — pigarreando, desvio meu olhar para
janela, afastando-me da curiosidade de dona Marta.
Segurei o riso. Até aquele momento, não pensei em nada do que
aconteceu de ontem para hoje após estar com Lia, pois queria saborear cada
uma das lembranças cuidadosamente. Porém, Staeler estava conectado em
cada nuance da minha fala e em algum suspiro que devo ter deixado fluir sem
perceber.
— É impressão minha, ou a foto no grupo de família tem muito
mais por revelar do que apenas um selinho?
— Nem me fale dessa bendita foto! — A irritação cruza, pois, logo
lembro do NÃO redondo que o meu pedido de namoro recebeu.
Ramon não perde tempo com fofocas e suposições, se tem algo que
o argentino faz é pisar no acelerador e passar por cima da arquibancada.
— Intuindo que esteja tendo um relacionamento saudável com Lia,
e por estar desconectado por longas horas desde ontem, o pedido de namoro
deu resultados e agora temos um casal oficial?
— Que pedido de namoro? — resmunguei saindo da sala para
poder ter um pouco de privacidade deixando os demais trabalhando. — O que
foi que o Edu falou?
— Ele está eufórico! — pelo tom de voz, percebo que Ramon está
rindo. — Já está se planejando para o seu noivado e um possível casamento.
— Vocês perderam a porra da mente? — pergunto estacando em
meio ao corredor.
— Não mesmo! Lembre-se, que Juliana só irá se casar após todos
terem se “arrumado”?
— O quê? — Staeler reprisa em palavras uma conversa antiga
entre nós e então me vem à lembrança.
Quando Edu pediu July em casamento, seu moranguinho colocou
apenas uma condição: que todos os amigos estivessem casados. Coitado do
meu amigo! Faz-se dois anos que tem as bolas presas pelo pedido recusado.
Agora, entendo a sensação. Cacete!
— Sinto muito por ele, mas ainda levará um enorme tempo para
que isto aconteça. Talvez, ele consiga casar os filhos antes.
— Não vejo um motivo para isto! Pelo que me recordo, foi você
quem bateu no peito feito Tarzan decretando que estaria disposto a tudo
para…
— Não preciso que me recorde feito um papagaio de pirata,
Ramon. Sei bem o que falei, no entanto, só é possível fazer algo se dois
aceitarem.
— Não entendi!
— Lia disse não. — E eu não faço ideia do porquê te contei isso.
Silêncio
Silêncio com um prenúncio de… uma puta gargalhada.
— Madre de Dios! Espera, acho que estou tendo um AVC!
— Fico honrado por ser o seu palhaço particular! — ironizo.
— Não? — Ele ri. — Ela disse não?
Ramon abafa o telefone ou pensa que faz.

R: “Amor? Amor, corre aqui.”

C: “O que foi?”

R: “Adivinha, a Lia disse não ao pedido do Mikael.”


Silêncio.

C: “Que pedido, amor?”

R: “De namoro, o que Edu falou.”

C: “Sério? Nossa, onde está meu celular preciso mandar uma


mensagem no grupo.”

— Que porra vocês estão fazendo? — esbravejei. — É por isto que


a Lia não aceitou. Certamente, já é difícil fazer isto e, ainda com um bando de
fofoqueiros ao lado…
— Calma, não queremos atrapalhar. — Ele retorna o tom solene.
— Só estamos nos divertindo, vendo o mais puto dos putos, rendido pelo
sentimento mais doce e dominador, chamando amor. Meu caro amigo, desejo
avidamente que possa vivenciar a beleza do lado de fora da prisão que
colocou o seu coração.
Não perdi um segundo a mais naquela ligação e simplesmente
desconectei o celular.
Dei por encerrado o meu dia de trabalho, tirei o paletó, a gravata e
desabotoei as mangas dobrando-as, deixando os antebraços livres. Mais uma
vez me forcei a não pensar até estar confortavelmente no banco de trás do
SUV, indo em direção a Serra. Com uma hora de viagem à frente, deixei a
minha mente vagar por todas as lembranças até as mais vergonhosas.

Há muito tempo que aprendi a dimensionar os meus sentimentos,


quebrar e reagrupar apenas as partes que me fossem detectáveis e úteis para
algo, como se estivesse montando um Lego.
Pecinhas de três pinos, não se encaixam em quatro.
Não sei explicar como se funciona essa didática em meu cérebro,
mas é assim que vejo, em grades as composições de sentimentos, ações e
necessidades, tudo em uma ordem linear para tudo.
As únicas vezes que me deixei transbordar desse sentimento,
precisei renunciar parte de mim e quando fui posto à prova, não soube lidar
com a destruição em massa.
Como disse Ramon, me tornei o puto dos putos. Sexo sem
sentimentos é fácil, é apenas ligar o motor, dar partida, arrancar e ultrapassar
a linha de chegada. Se em algum momento o percurso ficar difícil, redobre o
esforço. O que não se pode ser esquecido com a força do pensamento, uma
porrada de bebida destilada dá um jeito!
Aquilo que as mãos não podem alcançar, as cordas de uma guitarra
suprem. Sexo, bebida, música e no final coroando todo o meu empenho em
não sentir nada, trabalho.
Os piores casos, mais hediondos, os perigosos onde os bandidos
não têm medo de ameaçar o Promotor diante do júri. As horas mais incertas e
exaustivas para estudar, ler e rever documentos maçantes, podem entorpecer
a mente.
E se tudo não der certo, apenas dê gargalhadas. Mesmo que sejam
gargalhadas vazias. Se perca em piadas sujas e seja um cretino. Essa era a
minha forma de sobreviver ao vazio frio escuro em que me coloquei. Onde
aprisionei o meu próprio coração, como diz o meu amigo.
Uma vida de mentiras e máscaras que só após estar trancado dentro
da minha casa e do meu quarto, onde ninguém poderia me ver, era retirada.
Por um tempo, foi assim até Lia voltar.
Vê-la pela primeira vez, logo após a perda dos nossos pais, tão
linda, triste, quebrada e tão cheia de ódio, me fez tirar a camuflagem e deixar
ela ver a minha grade mental, a forma tosca e amarga que realmente era.
Depois daquele encontro com ela, nunca mais usei máscaras. Nunca mais me
escondi.
Talvez, seja exatamente por isso, que tenha sido surpreendente,
novo e assustador o fim de tarde e à noite que passamos juntos. Não apenas o
sexo, mas a conversa, os detalhes em andar de mãos dadas, ir e vir por todo
lado dentro daquela imensa casa fechada há tantos anos para todos. O riso
fácil que pareceu brotar dos nossos lábios com tanta eficácia que me
atordoou.
Ainda o faz. Eu ainda me sinto lesado com tantas coisas que
aconteceram. O meu cérebro parece ter sido embotado de endorfina. Não tem
mais aquele vazio e aquela dor estranha. Pode ser a junção do dia, da
sensação de paz, de dever cumprido, mas no final, foi ela.
Ela que me aguçou os sentidos, que me fez falar de coisas que não
queria, que se entregou de todas as formas e mesmo se exaurindo, ainda
compartilhou tudo na mesma intensidade.
Ela que me consolou no meu maior e mais vergonhoso momento
de fraqueza. Que gentilmente me concedeu o perdão. O mesmo que ainda
retornarei a pedir, mas que de alguma forma, quebrou um padrão dentro de
mim.
Sugou parte daquilo que se fazia de bateria para o meu escudo. Me
fazendo sentir medo, mas também aguçando a minha curiosidade para esse
sentimento tão exaltado como falou Ramon.
Com olhos fechados e a cabeça reclinada contra o encosto do carro,
as sensações do seu corpo vem de encontro às minhas lembranças. O cheiro,
a calidez, o sorriso e isto é o que me faz companhia enquanto seguimos
viagem.
De uma forma estranha, sinto o meu peito acelerar. Levo a palma
da mão à altura do osso esterno e fricciono. Sei que Jairo, como no dia
anterior está de olho, mas não dou crédito a isto, apenas continuo tentando
não me afogar nessa sensação de aperto, como se algo maior estivesse para
acontecer e quem está na minha mente cuidando para que não me perca é
ela… A minha anjinha.
CAPÍTULO 28

IMERSO
“A estranha sensação de déjà-vu me acompanha, mas é o riso suave que me
faz sentir imerso.”

MIKAEL

O
carro contorna a rotatória de pedra em frente a um jardim bem cuidado.
Crianças correm de um lado a outro brincando de pique-pega, no que parece
ser um intervalo de aulas, visto que tem alguns estojos de instrumentos
encostados à sombra de uma frondosa árvore.
— Jairo, pode encostar aqui, não precisa me levar até a porta —
digo rapidamente. Estou cheio de ansiedade e prefiro caminhar os poucos
metros que faltam debaixo do sol.
— Vou acompanhá-lo, senhor Nikolaievitch! Também ficaremos
por perto no estacionamento — o segundo homem retruca.
— Não precisa! Apenas procurem um bom restaurante e façam
uma refeição por minha conta.
— Nós preferimos esperar, senhor! — Jairo retruca.
Dou de ombros e não faço caso para discutir com os meus
seguranças. Após certo tempo convivendo com estranhos em minha cola
servindo de babá, acabei aprendendo a ignorar certos exageros.
Mal espero o veículo parar por completo antes de saltar e me
afastar rapidamente. O carro segue o seu percurso, enquanto inalo o ar
infestado do aroma das flores nos canteiros e os meus olhos observam
espantado toda a atmosfera do lugar.
— Porra, nunca imaginaria um lugar como este aqui.
Confesso que estou impressionado com tudo. Não foi difícil
encontrar o endereço do conservatório como Lia havia garantido. O prédio
para a condição financeira que ela apontou em sua investigação parece muito
bem conservado. O que é estranho, já que esta foi a instituição indicada para
receber o donativo. É claro que há motivos para isso.
Além do fato de ter uma das amiguinhas do moleque como
professora do lugar —, o que não devo me esquecer.
O ar está abafado e muito diferente do que se é esperado na Serra
—, ou faz muito tempo que não se habilita a sair do gabinete para o ar livre,
Promotor — penso. O calor transbordante me faz suar. A gravata ficou junto
ao paletó no carro. Liberando mais duas casas da camisa, tento desgrudar-lhe
do corpo.
Uma das crianças que está do outro lado brincando, saiu disparada
sem olhar por onde corria e por instinto parei, sabendo que o seu destino seria
colidir contra as minhas pernas —, plaft. Dito e feito! O pequeno de sete ou
oito anos, cabelos e olhos castanhos encaracolados, no afã de não voar para
trás de bunda no chão, se agarrou com força nos meus joelhos.
— Me segura tio!
Gargalhei, pois no ato reflexo, foi o que fiz. Segurei o baixinho
pelos ombros e ele deu um sorriso para mim. Logo em seguida, com um
pinote voltou à sua corrida para subir em um banco de ferro do outro lado.
Balancei a cabeça me divertindo ao ver a pirralhada queimando
energia. Contornei o jardim e em vez de subir até os degraus da entrada,
seguindo pela lateral em busca de sombra e um lugar que pudesse falar com
Lia que ainda não chegou.
Franzi o cenho com uma sensação parecida como aquela no carro,
oprimindo o meu peito. Sento-me sobre uma macieira perdida em meio a
algumas árvores que não reconheci. Ao longe posso ouvir várias notas
viajando através das altas janelas com vidros coloridos, derramando-se com
graciosidade por todo terreno.
Com a sensibilidade auditiva, posso captar as notas e até
reconhecer as duas músicas distintas que estão sendo executadas em
diferentes salas. Um sorriso cruza em meu rosto ao perceber que um violão
parou a execução logo após outro ter errado a nota, mas foi apenas por um
segundo antes de retornarem a erguer o muro musical.
Alcancei o aparelho no bolso das calças e fiz a chamada.
Trim… Trim…
O telefone chamou algumas vezes e quando imaginei que não
atenderia, sua voz abafada encheu os meus ouvidos de prazer.
— Oi?
— Oi, onde está?
— Em uma feirinha, acredita? — Lia não esperou minha resposta e
soltou uma enxurrada de palavras ao mesmo tempo. — Não imaginei que
fazer turismo com seguranças fosse tão divertido. A cada bufo que eles dão,
uma nova barraca aparece em minha frente. É praticamente mágico!
A risada contagiante faz os meus lábios curvarem, mas não posso
compactuar com sua brincadeira perigosa.
— Lia, não abuse! Está em um lugar desconhecido, cercada por
pessoas estranhas e eles estão aí para te proteger.
Ouço resmungos e logo a voz de uma vendedora oferecendo
camisas, ou algo assim.
— Olha só quem fala! — Ela se dirige a outra pessoa e pede para
ver tamanhos variados. — Me diz Promotor, está com os seus leões de
chácara ao seu lado?
Sentindo o rosto corar, o que já é inadmissível para um homem
com o meu temperamento, pigarreio desconversando.
— Que horas pretende subir? Já estou aqui no conservatório.
— Não vou demorar mais — pausa. — Estou saindo daqui a vinte
minutos, talvez meia hora, porque até alcançar os carros, tenho um bom
pedaço de chão para caminhar.
Não gosto muito da ideia de que ela possa estar passeando por aí,
no entanto, não gostaria que me regulassem da mesma forma que ela não
gosta, por isso deixo os meus pensamentos guardados só para mim.
— Você avisou que iríamos fazer uma visita, certo? O que digo na
recepção? — pergunto mudando assunto.
— Avisei, mas não disse que estamos à procura da Fadinha. Eu
não quero parecer uma stalker, porque, na verdade —, Lia hesitou um pouco
antes de continuar — ela não me conhece pessoalmente.
O silêncio que recai após a sua revelação é propício. Tento
relembrar o que me disse na noite passada. — Como assim? Sabe que sou um
Promotor de Justiça e não posso me meter com coisas ilícitas — rebato
desconcertado com a situação. — Não posso ser acusado de perseguir uma
professora de música! — digo a sério, mas nos lábios tenho um riso
sarcástico ao ouvir seu bufo.
Posso imaginá-la parando em meio ao caminho e colocando a mão
fechada com o punho cerrado a meio caminho do tronco.
— Não seja um cretino, Mikael. O que poderíamos fazer com ela?
— Ok! Ela não me conhece, porque não está na turma do Anjinho
e sempre que estou com ele no Haras, os nossos horários não batem,
infelizmente, ou sei lá… estranhamente, quem sabe?
Aqui está o ponto relevante que ficou inerte na sua história, tanto
na noite anterior, quanto hoje pela manhã. Se eu for mesmo sincero com a
minha mente aguçada, este é o ponto de inflexão que não está sendo dito
apropriadamente, desde o primeiro momento em que falamos sobre o
moleque —, não que faça caso de saber de tudo agora, mas sempre sinto que
fica algo por dizer, por completar as frases que ela solta sobre o filho.
— O que exatamente o moleque faz no haras? — me ouço
perguntando segundos, após afirmar que não quero saber. Porra. — E não se
atreva a dizer cavalgar.
Pausa e suspiros.
— Anjinho participa de um grupo… — Lia hesita e isto aumenta a
sensação de alerta, tornando a conversa marota em algo estranho e
desconfortável.
Pelo meu instinto e vontade, quero apertá-la para contar, seja lá o
que for. No entanto, conhecendo-a como o faço, uma palavra errada e todo o
trabalho de aproximação entre nós pode ruir.
Lia não é uma mulher que permita entrar em sua privacidade. Ela
não me rechaçaria por fazer perguntas se fossem sobre o trabalho, uma foda
ou o tempo, porém sendo sobre o seu filho, tenho em mim que isto pode
acontecer.
— Lia, quer me contar isso pessoalmente, talvez depois? —
Ofereço a ela uma saída, a qual me faz sentir melhor por tabela.
— Podemos? Realmente quero te falar sobre isto, mas preferiria
que fosse pessoalmente.
— Ok! — me sinto aliviado, não vou negar. — Acredito que vou
entrar e esperá-la do lado de dentro.
Ela não responde de imediato e o silêncio constrangedor se acentua
por alguns minutos enquanto a sua respiração acelerada bate contra os meus
ouvidos.
— Lia?
—Ó-otimo, estou quase chegando no final da feira.
Percebendo o quanto está ofegante, não me impeço de fazer uma
piada suja em voz baixa para quebrar o clima estranho que se instalou entre
nós. Ela pragueja e logo em seguida geme com a ideia em mente.
— Daqui a pouco estarei aí, aproveite para conhecer as salas e
toda a estrutura do prédio. As fotos disponíveis na internet são bem
interessantes, mesmo que não tenha um patrocinador ativo, parecem ter
mantido o lugar de pé com saraus e algumas apresentações.
Assumindo o lado prático e profissional que é um tesão, Lia
discorre sobre a forma de abordagem que iremos adotar.
Geralmente são as instituições que enviam os pedidos para
avaliações e para saberem se estão aptas para receber o nosso patrocínio, mas
neste caso, seremos nós a oferecer ajuda.
Previamente, Lia me informou que ao conversar com a
administradora do local, deixou subentendido que tínhamos interesse em
fazer uma doação pessoal para a instituição.
Contudo, só pelo padrão, a alegria dos alunos na borda do
conservatório e a atmosfera envolvente que tem o lugar, sinto os dedos
coçarem para trazer uma pequena fortuna a este lugar.

Subi os degraus de pedra sabão e entrei no átrio. O clima interno é


completamente diferente do que está lá fora. Há no ar uma eletricidade
dissonante, culpa da melodia que se conflagra bem dentro da abóbada central.
— Este lugar parece mais uma igreja — falo comigo mesmo.
— Deveria ser! — A voz feminina responde do canto direito, onde
há um balcão com uma simples placa branca de informações.
Não vejo claramente quem responde, só uma cabecinha branca
atinando por sobre a borda de madeira envelhecida.
— Mesmo? — replico aproximando-me. — Nunca ouvi falar deste
lugar — sorrio ao ver os olhos perspicazes se arregalaram ao me fitar.
— Sim, foi construída com esse propósito no início do século
passado, porém depois de alguns problemas, acabou sendo fechada e só no
final do século, transformada em um conservatório ou internato. Agora é
apenas uma escola de música.
A voz delicada pertence a uma elegante senhorinha que deve ter,
no máximo, um metro e meio e pesar uns quarenta quilos é muito. Ela mais
parece um elfo com um vestido verde de lapelas redondas criando um babado
sobre os ombros.
Os cachos curtos montados sobre a pequena cabeça, não são
brancos, mas um loiro claríssimo, os olhos verdes são vivazes e os cílios
alongados. Mesmo em idade avançada, a senhora por detrás do balcão é
simplesmente linda.
— Em que posso ajudá-lo senhor…
— Mikael! — respondo estendendo a mão por cima do balcão.
— Ah! O rapaz que vem com a Lia? Ela me disse do seu interesse
em nos ajudar. Onde ela está?
— Chegando! — respondo simplesmente aceitando sua mão
delicada, que logo segurou os meus dedos com força, enquanto a outra mão
foi elevada por cima dos olhos. Ela ergueu a cabeça até conseguir me encarar
e com um semblante sério, soltou uma piadinha infame.
Para a minha completa surpresa diga-se de passagem.
— Poxa vida, se a sua doação for como a sua estatura, estaremos
bem o ano todo! Não há nada pequeno e franzino em você — deu uma
risadinha — Ui! Meus vinte aninhos…
— Eu deveria ficar encabulado? — pergunto surpreendido.
— Duvido que ficaria! Com essa cara de safado? — Ela rebate me
arrancando uma risada — o que me surpreende.
— Tenho uma moto e a garupa é bem grande — pisco de forma
sacana para ela.
Foi a vez da senhorinha piscar coquete com as bochechas coradas.
Imagina o estrago que essa senhora já não fez nesta vida?
— Oh! Finalmente encontrei alguém interessante. — Ela sorriu
ainda mais, bateu em meu braço por sobre o balcão, piscando um dos olhos
verdes em minha direção. — Me chamo Selene Torne e sou a administradora
desta instituição. Desculpe-me as brincadeiras. Só tomei liberdade, porque vi
que o senhor é muito tranquilo e vivaz.
— Como?
— Estive lhe observando pela meia hora que ficou no jardim. O
nosso traquina deixou-lhe marcas pavorosas de poeira e suor nas calças e a
única coisa que fez foi gargalhar.
Não compreendi o que disse até olhar para os meus joelhos e ver as
marcas das mãozinhas impregnadas no tecido caro da alfaiataria Italiana.
Selene deu a volta no balcão, me convidando a acompanhá-la.
Conversando um pouco mais com Selene, descobri, que tem
setenta e cinco anos e é moradora da Vila desde sempre. Ela estudou música
aqui nesta escola, tocou em algumas das orquestras mais famosas em Vitória
e em Filarmônica de grande sucesso dos anos 60. Depois de anos de carreira
e ao ficar viúva, voltou para a cidade de vez, passando a lecionar aqui em sua
antiga escola.
Como esperado, mesmo tendo uma boa aparência, a senhora Selene
mostrou-me algumas salas e instrumentos que precisam de reparos. Paramos
em uma sala de fundo com cadeiras pretas simples, uma iluminação fraca
proporcionada pelos vitrais coloridos que dão um ar histórico ao local. Os
ladrilhos estão bem limpos, o que demonstra o zelo e cuidado com o prédio.
No centro da ampla sala repousa um piano de calda antigo, muito similar ao
que Angélica tem em sua fazenda.
Vê-lo me faz pensar em algo que tenho protelado constantemente.
Pois, foi em um instrumento similar a este que achei a longa mecha de cabelo
ruivo com sangue que pertence a uma mulher que está viva —, ou assim
acho, já que de certa forma, compartilhamos o mesmo DNA.
— Que bela peça! — digo admirado, deixando os pensamentos
sinistros para outro momento.
— Sem dúvida —, Selene expressa a sua admiração. — É uma das
nossas mais raras e caras peças, não só pelo valor, mas pela história que
carrega.
— Um dia quero vir aqui para ouvir cada uma destas histórias —
digo sério e admirado com o entalhe da madeira. Não resisto e deslizo minha
mão sobre a tampa erguida.
— Com toda certeza o esperarei, hum... — Ela fez um som e
caminhou em minha direção pegando a minha mão direita e observando-a
com atenção. — Eu não estou enganada em afirmar que mais do que um
apreciador de boa música, estas mãos são de um pianista meticuloso.
Sorrio e desta vez não apenas por educação. Se fosse um flerte,
essa senhora estaria me ganhando fácil.
Não posso resistir ao convite mudo, com cuidado, testei a banqueta
à frente do piano. Uma vez que é um móvel antigo e frágil, não posso arriscar
com o meu tamanho e peso e acabar por danificá-lo, muito menos, acabar
estirado no chão diante da minha nova admiradora.
Gostaria que Lia estivesse aqui, ela certamente poderia cantar nesta
sala com uma acústica tão gostosa. A voz rouca da minha anja chegaria aos
céus.
— Será que posso mesmo? — pergunto, mas nem espero a
resposta.
Com total atenção, tiro das teclas um clássico acorde de Dó… Ré…
Mi… sem muito esforço. Como esperado, o som que se ergue da caixa de
ressonância flutua pela sala, tornando-a mágica. Não há uma boa iluminação,
mas a acústica do lugar é perfeita. Eu não resisto e começo a tocar River
Flows in You e me deixo levar pelo som.
A execução termina e me sinto elevado pela oportunidade que a
gentil senhora me proporcionou, sem imaginar o quanto isto é curativo para
mim.
Sua risada contagiante e as palmas agitadas me impulsionam. A
música que estava ouvindo antes nos jardins vem à minha mente. Na hora,
nem mesmo senti como algo vindo de uma memória antiga, mas agora parece
tão atrativo que nem percebo o quanto e apenas deslizo os dedos sobre as
teclas mais uma vez.
Dona Selene me acompanha requebrando a cabeça de um lado ao
outro com olhos fechados. A canção romântica traz a sensação nostálgica,
pelas inúmeras vezes em que ouvi a minha mãe tocá-la em seu violino.
Foram poucas às vezes que ela cedeu ao impulso de agradar ao filho, tocando
as músicas dos seus desenhos preferidos e mal acredito que estou fazendo
isto.
A Whole New World Live, o tema de Aladdin ressona por todo
lugar. A sensação é estranha, pois não me lembro de alguma vez tê-la tocado.
Sigo apenas as lembranças da infância e da execução que ouvi enquanto
estava nos jardins.
Acordes tímidos, ressonam em algum lugar do conservatório. Um
violino começou a me acompanhar, deixei-me levar pelo som melodioso, um
arrepio na nuca me faz erguer os olhos. Talvez tenha sido a surpresa nos
olhos de Selene, olhando pela porta aberta para logo em seguida sorrir em
minha direção, ou quem sabe a sensação de lembrança estagnada que me
fazem estremecer.
Minhas mãos travam sobre as teclas do piano e antes mesmo que
possa me conter, meus pés ganham os corredores abrindo uma porta atrás da
outra em busca do que, não faço ideia. Não olho se Selene me acompanha, sei
que ouço o meu nome a distância, mas a locomotiva que me guia está aquém
de um recuo.
Minha percepção grita:
É no final do corredor.
Vire à direita.
Abra a pequena porta.
Diante de uma janela bem abaixo dos raios de sol da tarde, uma
mulher —, criança, está de costas para a entrada da sala. Dou um passo
hesitante e paro a exatos dois metros de onde está. Ela executa a mesma
música que eu estava tocando, sua concentração é tão grande que não percebe
a minha presença.
O corpo é miúdo e uma sensação de pertencimento me invade —
procuro não entender isto, mas continuo a observando. Os braços roliços de
pele clara sustentam o instrumento com afinco, pouco consigo perceber do
seu rosto está de lado, mas sei que tem os olhos fechados, ou não? Há um
jogo de luz e sombra sobre ela, os cabelos estão escondidos por uma boina,
então não sei ao certo quem, ou como ela poderia ser.
O corpo é franzino em estatura, mas a postura é elegante. O vestido
verde que percebo ser um uniforme, parece acentuar a pele clara. Ela me
lembra alguém, a atitude, a música, o cheiro de flores…
Ando meio a esmo, perdido nesses pensamentos em sua direção,
porque na verdade, sabendo que não pode ser a minha mãe, é justamente em
quem penso.
Milhares de pensamentos, conjecturas e motivos para essa reação
cruzam a minha mente. Vejo os flashes do passado embotando os meus
sentidos, da mesma forma que o presente brinca com as minhas sensações.
São coisas demais rondando a minha cabeça, DNA, Verônica, Lia,
ameaças, lembranças do passado, lidar com uma relação que envolve uma
criança que nunca quis conhecer. E agora, justo neste dia, as recordações do
passado e uma saudade estranha que apertou o meu peito.
Desde o momento que me vi confessando para Lia, que ainda
coloco a mesa para Mikaella, como se a minha irmãzinha fosse passar pelo
portal a qualquer momento e assentar à minha frente.
Sentindo saudade, revolta e medo, não me dou conta quando uma
palavra, uma junção de letras enferrujadas deixa os meus lábios em um
sussurro rouco.
Mamochka…
Estou a um passo de tocar o seu ombro, quando de repente ela para,
erguendo o rosto contra o sol e tenho um relance da pele clara e cheia de
pequenas sardas, o meu coração dispara, mas ao abrir seus olhos e me olhar
de lado, percebo meu engano antes de vê-la se voltar para o lado e pôr o
violino sobre o banco.
Afasto-me balançando minha cabeça que parece estar envolta em
água salgada. A menina é de fato jovem e jamais poderia ser a minha mãe.
De onde tirou isso seu, porra louca?
O maldito DNA. — Minha mente responde enquanto sinto um
latejar feroz contra o meu crânio.
— Outro homem enfeitiçado pelo talento da nossa professora.
Mimi é a nossa…
— Selene! — A advertência vem em uma voz grossa de fala
arrastada e percebo ser uma jovem especial.
— Me desculpe por interrompê-la e assustá-la. — Dou outro passo
atrás enquanto sinto a minha garganta se fechando.
A jovem gira seu corpo por completo parando à minha frente.
Posso ver melhor sua forma física, pequena, magra, pés pequenos, mãos com
dedos roliços e curtos, uma longa trança ruiva que me surpreende é o rosto
antes voltado de lado e agora erguido em minha direção revela os traços da
síndrome de Down.
Tento observar, não querendo ser invasivo e me aproximo mais, no
entanto, totalmente ao inverso disto. Desvio o meu olhar para todos os lados,
sou invasivo com minha mente destoando da realidade e vendo coisas sem
sentido. Me afasto e ergo a minha máscara usual para poder me proteger.
De quê?
— Me desculpe, acredito que me empolguei. — Dou de ombros
levando as mãos ao bolso.
A moça se retrai, posso ver na atitude e nos olhos que mantém
meio encobertos com as pálpebras abaixadas. Ela se posiciona de frente a
janela. A luz que entra ofusca seu rosto e o seu afastamento físico grita em
alto: RECUE.
— Eu que pe-eeço desculpas, po-or ter me intrometido na su-ua
música. — Ela sorri.
A estranha sensação de déjà-vu, me acompanha, mas é o riso
suave que me faz sentir imerso.
Minha música? Como ela sabe quem estava tocando?
— Minha querida, este é o Senhor Mikael, o que falei. Ele veio
conhecer o conservatório junto a senhorita Lia — Selene sorri. — Ela foi
apenas se refrescar.
Minha mente registra a informação de que Lia já está aqui, mas
ainda estou com os olhos fixados na menina à minha frente. Observação,
mulher e logo percebo que talvez essa seja a Fadinha, a professora com
síndrome de Down.
— Que bom! — Sua fala é arrastada, mas a cadência é gostosa de se
ouvir. — Fico feliz, espero que nos ajude, senhor!
A jovem é bem tímida e me sinto ainda mais constrangido. A
senhora Selene fala sobre a professora com muito orgulho.
A senhorita Mimi —, o que presumo ser algum diminutivo do seu
nome, começou na escola como aluna, fez faculdade de música e após a
formatura, se voluntariou para ser professora.
Percebo que mantém os olhos baixos e os dedos da mão abrindo e
fechando em um exercício de contenção que conheço bem. A mulher está
incomodada com tanto falatório.
Não se sinta a única querida. Tenho ganas de sair correndo desta
sala.
Ouço os passos ritmados no corredor e sei que Lia está para chegar,
essa é a minha deixa, mesmo que queira levá-la para almoçar e depois fazer o
tal “turismo” com ela, sinto que agora não posso.
Meus olhos recaem mais uma vez sobre a figura miúda e logo em
seguida para a administradora do lugar. A minha cabeça começa a latejar e
percebo escorregar para um limbo que não controlo. A sensação de pânico
cresce a cada segundo — porra.
Sem esperar nenhuma gracinha da senhorinha e sem querer causar
ainda mais mal-estar, peço desculpas à jovem novamente, suponho que foi
isto que eu disse.
Movo-me em direção a Selene e aperto sua mão antes de caminhar
em direção a porta, ao mesmo tempo que Lia entra, desligando o celular.
— Oi! Me desculpa pela demora. — Ela sorri e isso é a única coisa
que o meu cérebro registra. Diz alguma coisa, mas isto não compreendo. —
Pode ser?
— O quê?
— O que houve?
Lia tem uma expressão preocupada no rosto, ela me deixa passar e
no automático, retiro o talão de cheques de dentro da carteira, assino a folha e
destaco erguendo para ela.
— Pegue —, digo colocando a página em sua mão — Dê a elas o
que precisarem urgentemente e depois a firma assume.
— Espera, aonde você vai?
— Lia, tenho que ir!
— Aconteceu algo?
— Preciso sair daqui. — Seguro seu rosto e a beijo rudemente ao
ponto de ela estremecer.
— Mikael?
— Depois!
Quanto antes me afastar, melhor. Não sei explicar e nem quero,
mas me sinto completamente invadido pela presença dessa jovem,
emocionado de uma forma estranha.
Lia tenta me segurar, ouvimos um resmungo acelerado e logo os
nossos olhos se desviam para a jovem que fala ao celular nos olhando
fixamente, então vejo os seus olhos, azuis como o céu.
Estremeço, ou melhor, Lia estremece. Baixo meu olhar em seu
rosto. Os olhos amendoados estão postos sobre a jovem com o mesmo
assombro que tenho.
— Fadinha…
— Preciso sair daqui Liana. — Ela volta a me olhar e, percebo a
sua palidez, mas não faço caso disto, pois, as minhas vistas escurecem e o
suor frio escorre em minhas costas. — Eu Preciso...
— Tudo bem!
Ela me beija e se afasta enquanto desço o corredor sentindo o meu
corpo estremecer. A cada dia que passa, sinto que estou perdendo meu juízo e
as velhas crises de infância estão batendo contra a porta que selei há muito
tempo.

LIA
Se os meus olhos pudessem me pregar uma peça, creio que
estariam fazendo um trabalho minucioso.
Antes de subir a Serra, resolvi atender a chamada telefônica que a
minha mãe fez e por meia hora conversamos a despeito das mensagens
trocadas no dia anterior. Não foi uma conversa branda, tão pouco foi uma
pré-guerra declarada. A dona Maria dos Anjos tem muito em sua conta para
acertar, segundo as suas próprias palavras, mas o seu medo maior é não poder
me salvar caso caia mais uma vez.
Fiz a minha parte como filha e mãe, novamente disse e redisse o
que quero e não vou abrir mão em favor do meu filho e o resultado disto foi
ouvir mais uma vez: “Liana Joaquina, você é toda mulher, só posso desejar-
lhe que Deus seja a sua sorte.”
Em resposta a isso, articulei um amém!
A viagem foi tranquila. Dionísio que parece estar amargando uma
inveja, pouco falou comigo após descermos na feira. Na verdade, deu-me
apenas ordens que é lógico suscitaram a minha veia rebelde, da qual creio
que ele nunca se esquecerá.
Há tempos não faço uma pequena viagem assim e o fato de poder
comprar alguns mimos para Anjinho e, uma longa lista de amigos, me encheu
de energia. Meu corpo ainda reclamava um pouco, mas bastou falar com
Mikael em uma chamada, para me sentir revigorada, até o momento em que
ele fez a pergunta que em breve irei responder.
Não precisaria de muito para perceber o quanto ele ficou curioso
com o assunto. Todavia, a percepção de estar avançando muito no terreno
“filho da Lia”, era tão óbvia que fiz uma prece e me apeguei às palavras de
minha mãe, deixando Deus ser a minha sorte.
Por mais que queira contar tudo, sei que ele não está pronto e
minutos depois, ouvi o suspiro que ele deixou escapar por mudarmos de
assunto. Essa foi a pedra no holocausto dos meus medos.
Assunto encerrado. De volta à minha missão, pouco antes de
chegar ao meu destino, fiz uma ligação para Nina, que me retornou bem no
momento que entrei no prédio. Mal pude observar a beleza do lugar, entretida
com a confirmação dos dados sobre Mikaella. — Porque o nome da Fadinha,
incrivelmente tinha de ser esse? — A falta de uma recepcionista, me fez
caminhar pelo corredor seguindo a música. Foi quando vi Mikael saindo de
uma sala como um vendaval pelo corredor. Ele estava tão tenso que não me
ouviu chamar. Tudo que se seguiu a isto, ficou perdido após encontrá-lo na
porta da sala.
Vendo a Fadinha diante de mim, percebo o porquê do meu Anjo
sair daqui como se houvesse demônios alados em seus calcanhares.

— Ah! Que pena o Mikael ir embora, mas que bom que está aqui,
Lia.
— Mimi, esta é a senhorita que te falei. Eles são o casal interessado
em nos ajudar.
A senhora Selene diz pausadamente, provavelmente para que a
moça visivelmente contrariada, possa compreender.
— Muito prazer, senhorita. — Ela recua. — Selene, vou… vou
embora. Agora!
— Porque, minha querida, não tem mais aulas hoje? Já está na
hora, não quer nos acompanhar, vamos tomar um refresco e conversar.
Não permito nem a mulher e nem a jovem à minha frente
responder. Impulsionada por um assombro gritante, dei um passo adiante
estendendo minha mão.
— Prazer Fadinha — ela me encara, e não vejo surpresa em seus
olhos. — Me chamo Lia dos Anjos e sou a mãe do Anjinho.
A moça olha para as mãos e esfrega as palmas no vestido verde,
aprumou os ombros e ergueu os olhos me encarando com certa ferocidade.
— Sou amiga dele, me chamo Mikaella.
— Sei…
Sei…
Essa não deveria ter sido a resposta, pois teria de explicar como
descobri, no entanto, foi a resposta que assombrou a jovem ao ponto de
começar a gaguejar tão intensamente que me arrependi.

Selene percebendo a sua agitação, levou-nos para uma sala


conjunta com sofás baixos, uma TV de tela plana pendurada na parede e
alguns instrumentos em pedestais, apoiados do outro lado do cômodo.
A senhora baixinha e muito gentil, pediu-me para fazer companhia
para a jovem, enquanto buscava água. Meneei a cabeça e acompanhei os seus
passos ligeiros até sair da sala.
— Me desculpa se de alguma forma a deixamos desconfortável
com a nossa visita, Fadinha.
Procuro manter o seu apelido, pois talvez ela tenha a mesma
resistência com meu nome, assim como o meu pequeno, por motivos
diferentes, mas…
— Não tem problema —, ela pausa — briguei com o meu irmão
pela manhã, estou nervosa.
— Sinto muito!
O silêncio recaiu sobre nós. Pode ser paranoia da minha mente,
aliás é paranoia. Pois, deixar que pensamentos insurgentes como estes que
povoam a minha mente crescer é loucura.
Talvez seja o fato de buscar uma família para o meu filho, e essa
ser a sua única e melhor amiguinha? Por me aproximar permanentemente de
Mikael, e ele ter tido uma irmã com o mesmo nome?
Por ela ser ruiva?
Por gostar de música?
Por… por… por falarmos dela durante o café da manhã?
Ou melhor, dela não, da falecida Mikaella.
Putz! Que loucura está se passando por sua cabeça, Lia?
Perguntas loucas entram e saem da minha mente com uma
velocidade impressionante, no entanto, é o assombro no rosto de Mikael que
prevalece.
— Como está o Anjinho? — a pergunta partindo dela quebra a
tensão.
— Ele está viajando com os padrinhos, mas está bem — respondo.
— Que bom!
— Ele volta amanhã!
—Hum.
— Não tem saudades dele?
— Sim.
— Então por que está faltando às terapias?
— Você veio atrás de mim, ou para ajudar o conservatório?
A sequência de perguntas e respostas é interrompida e me vejo sem
uma saída. Em todos os casos a verdade é sempre a melhor resposta.
— Vim para ver você, mas após descobrir sobre este lugar,
queremos ajudar.
Menciono Mikael e me lembro do cheque em branco que ainda está
em minha mão.
—Hum.
— Por que não tem feito as suas terapias?
— Porque não estou à vontade com algumas coisas.
A forma agressiva que vem e vai em suas respostas, demonstra o
seu desconforto, mas parece que tem algo mais. É como se Mikaella não
gostasse de mim. O que seria estranho, pois nunca nos conhecemos. Qual
motivo ela teria para demonstrar tanta antipatia?
— O que, por exemplo?
— Não gosto que digam o que tenho de fazer, sou capaz de agir
por mim mesma.
Sua resposta é estranha, mas diz muito sobre o seu caráter e o
quanto a Fadinha é consciente de si mesma. Muitas das vezes, pela aparência
do Down, as pessoas tendem a imaginá-los inaptos e de alguma forma
incapazes de ter os seus próprios pensamentos e tomar decisões. Às suas
exceções, tudo depende de variáveis, mas é ridículo tomar por regra geral que
estes são indivíduos fracos e sem opinião própria.
Não tenho respostas para a sua afirmação, só posso concordar com
o meu silêncio e um sorriso sincero. Agora Selene entra com água e um
lanche em uma enorme bandeja. Me ergo para ajudá-la e logo passamos das
perguntas e respostas, para uma conversa agradável.
Em momento algum deixo de observar Mikaella, que ergue os
olhos e volta a atacar-me com a mesma ferocidade que via antes, mas
participa da conversa com mais cuidado, parece pautar o que vai falar.
Os anos como advogada me concederam certos privilégios e a
observação é um dos requerimentos básicos para o meu trabalho, seja de
forma física, no discurso, nos trejeitos e nas frases preparadas de forma a
camuflar a verdade, tudo posso observar e ler nas entrelinhas.
— Estou ansiosa para poder ajudar a instituição, Selene.
— Fico maravilhada. O irmão da professora Mimi, mantém as
nossas portas abertas por longos anos, mas agora não tenho coragem de pedir
mais.
— Besteira! — Mikaella sibila. — Ele faria tudo que pedisse.
— Sei disso, minha linda, mas temos de ter cuidado com a nossa
forma de fazer as coisas. Nós não podemos ser avarentos e nem tão pouco
sobrecarregá-lo. — Selene segura sua mão e logo a jovem se acalma.
Tão parecida com… Pelo amor de Deus Lia!
— Será um prazer ajudar, e sabe como o meu filho ama música,
não é mesmo Fadinha?
— Sim.
Estou pronta a voltar ao assunto que me trouxe aqui e pedir que
volte para a equoterapia, quando uma moça elegante com o mesmo vestido
que as duas mulheres estão trajando, anuncia que o irmão de Mikaella veio
buscá-la.
A jovem nem mesmo pisca, de pronto se ergue despedindo-se, com
um suspiro audível.
— Oh! Que pena, minha linda, mas, estou feliz que tenha voltado
para as suas turmas.
Selene articula algumas coisas a mais, então percebo que a Fadinha
andou afastada de tudo.
Que estanho…
Ela pega o seu estojo com violino que não vi antes e segue
passando pela porta, por instinto me levanto e a acompanho. Os passos curtos
são acelerados e a trança jogada contra as suas costas, balança de um lado a
outro.
O mesmo tom de ruivo do Anjinho e do Mikael. — Outro
pensamento louco bate contra a minha mente.
Conjecturas e novas perguntas brincam comigo. Quantos anos será
que ela tem?
Estou pronta para fazer a pergunta, quando de dois saltos a menina
corre pelas escadas, me precipito a ir atrás, pois temo que caia, porém, logo
braços fortes a cercam envolvendo o seu diminuto corpo pelo abraço.
Fadinha dispara a falar abafadamente.
Ia me… entregar…
Mentiu… mentiu. Para mim?
Não… prometeu…
Ouço o chiado do homem forte de costas e ele acalma a jovem com
o passar moroso das mãos sobre suas costas.
— Fadinha, espere. — Chamo ao descer os degraus. — Por favor,
só gostaria de pedir-lhe um favor.
Ela olha por entre seu ombro e o tórax do seu irmão antes de se
afastar.
— Sinto muito se a deixei desconfortável, lamento de verdade. O
meu filho sente a sua falta e tenho certeza de que os seus amigos também,
volta para équo… — sorrio.
Ela fixa o seu olhar para o irmão ainda de costas, e depois concorda
com um menear de cabeça, só então me volta o rosto em minha direção.
— Ah! Que maravilha, talvez podemos passear e tomar um sorvete.
O que acha?
— Ela irá adorar, não é mesmo minha Fadinha?
A voz grossa do homem me surpreende. Ergo meus olhos e encaro
um par de olhos tão azuis como o céu.
— Christian? — meu assombro é imenso.
Levo a mão aos lábios, pois imaginei jamais vê-lo novamente,
principalmente nesta posição.
— Olá Doutora, Lia dos Anjos — ele saboreia o meu nome com
um sorriso que prefiro não decifrar —, conhece a minha irmãzinha?
— Oh, meu Deus! Sim — respondo.
— Ela é a mãe do Anjinho! — Fadinha anuncia e a sensação da
antipatia volta a me incomodar.
— Você é o San? — pergunto ao mesmo tempo.
— O próprio! O seu filho é uma criança adorável.
— Obrigada —, sinto-me corar e encher de orgulho — que mundo
pequeno, não fazia ideia disto. Aliás, nos conhecemos apenas hoje!
— Também conheci o pai do Anjinho! — a voz arrastada destaca a
palavra pai com tanta força que dou um passo atrás.
— Wou, ele…
— Mesmo? — Christian se adianta. — Que bom! Doutora, foi um
prazer revê-la, mas temos de ir.
— Claro, me desculpa prendê-los. — Suspiro aliviada por não ter
de confirmar nada. — Foi um prazer conhecê-la, Fadinha e revê-lo Christian.
Anjinho, ficará radiante em te ver na próxima sessão.
Ela apenas balançou a cabeça e com a ajuda de Christian, entrou no
carro. De tudo que podia esperar neste encontro com a tal Fadinha, não
imaginei que fosse me assustar, angustiar e perder a porra da minha mente
imaginando coisas sem nexo, até porque jamais conhecemos a irmã de
Mikael. Nenhum de nós chegou a vê-la com vida.
O fato de ter tantas coisas em comum, não pode ser simplesmente
atrelado a uma hipótese louca como esta, mas a sensação estranha, tipo um
sexto sentido apurado, continua espremendo o meu cérebro.
Contudo, esforço para pôr isto de lado ao vê-los contornando a
rotatória florida. Este surpreendente encontro me deixou duas impressões.
A primeira: que esta não será a última vez que nos
encontraremos.
A segunda: que o próximo encontro, pode ser assustador. Se ela
falar com Anjinho que conheceu o pai dele…
CAPÍTULO 29
IMPERCEPTÍVEL

As palavras trocadas e os gritos esganiçados, eram apenas gestos

imperceptíveis do quão o impossível poderia ser real…

MIKAEL

ão tenho muito o que pensar.


N
Não quero pensar e nem vou perder o meu tempo fazendo isso. O
meu foco é manter a minha mulher e o moleque dela em segurança. Viver um
dia após o outro. Só para colocar a Verônica atrás das grades.
Foda-se, se existe a porra de um DNA louco guardado dentro de
um cofre no fundo do meu closet.
Foda-se, se toda mulher ruiva que vejo – raramente e
inevitavelmente – comparo os traços com os meus.
Foda-se, se no lugar mais inusitado a pessoa que jamais poderia
sequer sonhar em conhecer antes da noite passada, é a única…
— Puta que pariu, minha cabeça parece que vai explodir! —
rumino entredentes.
Foda-se!
Mil vezes foda-se, se essa garota, quero dizer… mulher. Se essa
mulher poderia ser a cópia da minha mãe, contudo, com características de
Down.
A cor dos olhos, a pele, as sardas, a voz, mesmo sendo rouca e
engrossada pela língua espessa, os trejeitos e o gosto pelo perfume com
aroma de flores.
Caralho, Mikael, onde a sua mente está indo? Pare de pensar nisso
e tente focar nos problemas reais.
Imagino uma imensa porta em minha mente e meto a porra do
cadeado lacrando tudo. Eu não vou deixar a minha mente vagar sobre isso.
Não posso!
Depois da resolução tomada, meu empenho é não sofrer com o som
do meu estômago sendo revirado. Tento acalmar minha mente e corpo com
respirações pausadas e profundas.
Meu estômago se rebela e regurgita o resto da minha dignidade. O
que não é a porra de algo sexy. Muito menos, quando isso acontece à beira da
estrada com dois seguranças, fazendo o Kevin Costner do filme guarda-costas
parecer um amador.
— Porra! Ele é um amador.
A analogia me faz rir de nervoso. O suor gelado pinga literalmente
pela ponta do nariz e, mais uma vez, as pontadas na cabeça rugem junto as
últimas arcadas de um vômito seco.
Porque não tenho mais porra alguma para jogar fora.
O celular no bolso da calça continua a vibrar com ligações e
mensagens, provavelmente deve ser Lia preocupada. Não tenho a menor
condição de falar com ela no momento e isto me entristece.
O meu humor nos dias bons é uma merda. Nos dias ruins, uma
desgraça. E nestes dias que acontecem coisas que não posso controlar ou
explicar, mexem com a minha concentração e se tornam as portas do inferno
aberto na terra.
Minha mente neste exato momento explode de dor e sofrimento,
apontando diretamente para Lia como a possível culpada por me sentir assim.
Se não tivesse me falado sobre esta viagem, não teria me voluntariado para
vir junto. Sendo assim, não me depararia com essa situação.
Que situação exatamente temos aqui Mikael? — meu lado analítico
interpõe-se sobre as acusações que crescem por parte da minha mesquinharia!
Não faço ideia de que situação seja esta, porém, é algo muito ruim
e muito fantasmagórico.
Uma garrafa de água Healsi Red gaseificada aparece à minha
frente. Arqueei o sobrecenho estranhando, mas como antes, não faço nenhum
pré-julgamento ou comentário sobre a eficiência dos meus seguranças.
— Obrigado!
Agradeço sentindo o gosto amargo da bile em minha boca e a dor
que queima o esôfago e sobe por toda a garganta. Tomo a água gelada com
pequenos goles, me apoio contra a lataria do SUV e espero pacientemente
que isso possa controlar o meu estômago e a dor angustiante em meu crânio.
— Sentindo-se melhor, senhor? — Jairo pergunta repentinamente,
sendo o mais comunicativo dos dois. Olho o relógio em meu pulso. Ele
passou quinze minutos ao meu lado enquanto me desintegrava
vergonhosamente à beira da estrada.
— Sim, muito obrigado. – Torno a agradecer e indico com a cabeça
que ele poderia se afastar, mas o homem parece comprometido com algo.
— Precisa que entre em contato com alguém, talvez a senhorita dos
Anjos?
— Lia? — incrédulo ergo o meu olhar pela primeira vez após gritar
uma ordem desesperada para que parasse o carro. — Olha bem para mim! Vê
se sou do tipo que precisa de uma babá?
Soou um pouco ríspido, mas só de imaginar a mulher que passei
praticamente dezesseis horas fodendo maravilhosamente, servindo de
enfermeira enquanto reviro os meus órgãos internos… — Foda-se –
resmungo. – Eu bem que gostaria disso – penso.
— Sinto muito senhor –, ele não esconde o escárnio —, não é que
pareça, mas acredito que seria bom.
— Esquece! Devo ter comido algo pela manhã que não me fez
bem.
O homem não faz comentário algum, mas Aylton em posição de
sentinela, com seus óculos ray-ban e uma 9 mm em punho apontada
discretamente para baixo, virou sua cabeça em minha direção. Posso não ver
a sua expressão, mas o filho da mãe está literalmente rindo da minha cara.
— Não me torra Kevin! — exclamo. No ato, Jairo pesca a indireta
e debocha.
A descontração me serviu para que desse tempo da água vinda
diretamente de “Portugal” –, como se lê no rótulo –, conseguisse amaciar o
meu estômago. Irônico, meu guarda-costas me ofereceu a portuguesinha, mas
na falta, me viro com a água.
— Tudo em casa!
— Como disse senhor?
— Vamos para casa.
De volta a estrada, sinto o sol se pondo lentamente e refrescando o
dia mais louco dos últimos tempos. Minha cabeça após um Advil e mais uma
garrafa de água, parece começar a ceder para a letargia pós-trauma. E o meu
estômago seguiu o seu exemplo.
O celular em meu bolso tocou mais algumas vezes e não obtendo
resposta alguma, silenciou-se. Porém, em algum trecho do caminho bem
próximo a entrada da cidade, o celular de Jairo recebeu uma nova notificação.
Dionísio, a pedido de Lia, queria saber se estava tudo bem. Como
um bom samaritano, o meu presente homem de confiança encobriu o meu
mal-estar com uma desculpa qualquer.
Ponto para ele!
Me senti culpado por isto, de uma forma que doeu meu peito. O
pensamento ridículo de culpá-la, já foi contido. Na verdade, jamais deveria
sequer ter passado pela minha mente. No entanto, o rosto da jovem ao se
virar, continuou martelando em minhas retinas até o momento que entrei em
casa pela garagem.
Parei na lavanderia e olhei a outra porta que desce ao porão, algo
que poucas vezes fiz na minha vida. Ergui minha mão trêmula para a
maçaneta e a retorci conferindo o que já sabia, trancada.
O suspiro de alívio não pôde ser contido. E me envergonho de tê-lo
deixado sair por entre meus lábios, mas me envergonho ainda mais pela
recusa que o meu cérebro grita desesperadamente: não desce lá.
— Estúpido! — recrimino em voz alta. — Não terá nada mais do
que poeira e mofo.
Dou passos decididos pela cozinha, abandonando essa ideia insana
de invadir o local. Estaco diante da mesa previamente posta. A louça com
desenhos de flores e beija-flores continuam na mesma posição virada de
cabeça para baixo – como há anos –, graças a um folclore antigo que a minha
mãe acreditava: se a louça ofertada àquela pessoa ausente ficasse de ponta
cabeça, ela sentiria fome e voltaria para casa.
Em um desatino de raiva, levei minha mão a xícara e a virei para
cima. Sinto meu maxilar travado de raiva com lembranças de todas as vezes
que ousei tocar nessa maldita louça e recebi olhares de recriminação por parte
do meu pai e palmadas leves, mas ainda assim, palmadas nas costas por parte
da minha mãe.
“Não pode mexer, Mikael, ou a sua irmãzinha não voltará.”
“Você quer que ela continue sozinha?”
“Não pode ser malvado.”
“Não mexa novamente!”
Meu corpo estremece, os olhos ardem e deixo crescer o impulso
raivoso que me aflora. Volto a maldita porta do porão e a arrebento com um
único chute bem-dado.
— Quantos anos essa maldita porta não é aberta? – me pergunto ao
ser envolvido pela brisa morna e espessa que escapa pelo vão.
A última vez –, recordo – foram exatos trinta minutos antes de
levar os meus pais ao aeroporto para sua viagem com os amigos.
Ainda me lembro de ver o meu pai parado diante desta porta,
esperando que mamãe subisse o lance de degraus de madeira, após se
despedirem.
O sorriso que ele lhe deu era tão franco e sincero, que poderia ser
confundido com amor. O beijo sobre seus cabelos, as carícias e as palavras
sussurradas em seu idioma de pátria, colimados em um abraço ninando o
corpo miúdo.
Naquele dia, mamãe estava tão serena, que até a sua voz parecia
ressoar como melodia.
Corta as malditas lembranças, Mikael. — Repreendo-me
mentalmente, pois, não sou capaz de abrir minha boca ou vou perder o resto
de consciência e me entregar ao desespero e aos gritos atormentados que me
espremem a alma.
Toco o interruptor ao lado da porta arrebentada e dou um passo
incerto. O cheiro que sobe pelo vão aberto é de ar estagnado. A poeira coça
em minhas narinas e há um pouco de mofo no ambiente, mesmo com a
calefação e todo o trabalho de circulação de ar que foi criado especialmente
para esse cômodo. Os anos que passou fechado não impediram a ação natural
do tempo e a deterioração.
Um… dois… três… quatro… cinco… seis… sete… pauso… oito…
nove… minha respiração acelera e sinto falta de ar, mesmo com a potente luz
acesa. Os meus olhos quase não podem distinguir as formas.
Só faltam mais três degraus. Desce!
O comando dado ao cérebro é recebido com um baque. Minhas
pernas deslizam por si só sobre as últimas tábuas, criando um ruído na
madeira sendo maltratada sob meu peso e a falta de uso.
Contar.
Contar me acalma da mesma forma que a música. Visualizar o
movimento constante de algo tem o mesmo efeito. Como deixar a minha
mente vagar no Pêndulo de Newton com as suas cinco esferas de prata que
tenho sobre as mesas de trabalho. Nunca entendi qual o padrão que o meu
cérebro cria para se ater aos detalhes que mantém as grades de pensamentos
em ordem, mas desde pequeno descobri que contar passos, números, placas,
as teclas do piano, quantas notas formam uma canção, me fazem reter o que
está por vir.
Me mantém na borda até que possa me controlar.
O cheiro na base da escada é mais forte. Segurando um espirro,
caminho em direção às pequenas janelas que circundam toda a lateral do
cômodo por cerca de quarenta centímetros acima do solo. As luzes do jardim
jogam um brilho esverdeado por entre as lâminas empoeiradas e as lâmpadas
brancas no teto ampliam a minha visão sobre o local. É tão grande quanto o
meu próprio quarto.
O ar fresco invade o ambiente, limpo minhas mãos de forma
automática e permaneço no meio do cômodo olhando, revendo, lembrando e
imaginando.
As peças de mobília branca com o tempo ficaram amareladas, o
jogo cor-de-rosa que forra o pequeno berço e a cama de solteiro tem nódoas
amarelas, poeira e algumas manchas pretas, além do fedor de mofo.
Almofadas, bichinhos e ursos de todos os tamanhos em pelúcia,
recheiam as prateleiras pregadas nas paredes. Uma pequena poltrona de
veludo que um dia foi branca e uma grande parte do chão todo acarpetado em
tons de bege e rosa estão apinhados com os mesmos brinquedos.
Bicicletas em três tamanhos diferentes, para fase infantil até a
adulta estão em outro canto. Caixas imensas de bonecas de todas as cores e
tamanhos, ocupam uma parede. Elas foram empilhadas sobre a parte debaixo
da escada até a porta do banheiro.
Brinquedos que nunca foram usados e um guarda-roupa enorme
abarrotado de roupas de menina em todos os tamanhos, fecham a única
parede que um dia foi livre.
Livros, instrumentos de música, discos, CDs e uma coleção de
filmes infantis antigos e mais algumas coisas que nem posso imaginar, estão
aqui e fazem parte deste passado, desta obsessão e sonho, em meio à dor.
Um santuário.
Um lugar que nunca quis ficar, onde minha mãe passou
praticamente todos os anos de sua vida após perder Mikaella.
Outrora, esse quarto ficava ao lado do meu no segundo andar da
casa, mas por insistência da mamãe, o meu pai transformou o porão em seu
refúgio. Em suas insanas crises psicóticas, ela jurava que o quarto acima era
invadido e que os objetos foram furtados.
Sobre a cômoda branca com alto espelho manchado, repousa o
porta-joias. Nunca o abri e não sei se há algo dentro, pois não importa. O que
atrai aos meus olhos, é a carta que vi mamãe escrevendo e descendo com ela
no mesmo dia em que me entregou uma.
Cada um de nós ao receber a notícia do novo testamento elaborado
por nossos pais –, descobrimos que além das imposições, teríamos novas
regras a serem cumpridas após a perda de um deles, outro assunto
horripilante. Era como se soubessem que estavam próximos da morte –
recebemos cartas.
Sei que algumas foram lidas e relidas por inúmeras vezes durante
os últimos anos após o acidente de avião. No entanto, eu e Mikaella jamais
leremos as nossas.
E isso é um fato.
Aproximei-me do móvel e toquei a borda dourada do papel-de-
carta usado por minha mãe. Sinto um tremor e recuo, meus dedos queimando
com a sensação estranha que me percorre.
— Definitivamente, estou vivenciando a porra de umas das
assombrações que mama acreditava.
Afasto-me da cômoda e volto a olhar todo esse desperdício de
dinheiro, tempo, saúde, sonhos e dor. Quando meus pais faleceram, deveria
ter aberto esse lugar e feito uma doação em massa. Porém, não tive coragem.
Durante anos, ouvi mamãe dizendo que este lugar era a única prova
que poderia dar a Mikaella de que foi amada e jamais esquecida ou renegada.
Na mente doente de Sarah Nikolaievitch, a culpa e o tormento
carcomeram seu cérebro e coração por todos os anos de vida que seguiram
após o dia que ela foi obrigada a abandonar a filha. O pecado que imputou foi
por não ser capaz de cuidar bem do seu bebê.
Contudo, sempre soube que isso não era verdade. E por mais que
falássemos e tentássemos fazê-la entender, ela não aceitava.
Sarah não admitia que discordassem, pois não queria ser consolada.
Por isso, a cada aniversário, festa e a cada ocasião, uma nova lembrança,
roupa, brinquedo ou qualquer coisa era acrescentado ao santuário.
— Eu deveria me livrar de tudo isto. — Mal reconheço minha voz
que permeia no ar que agora está mais fresco. — Um telefonema e, em
menos de uma hora, tudo isto está no lixo. — A raiva volta a me dominar.
Se não fosse pelas loucuras alimentadas pela minha mãe, talvez ela
tivesse vivido mais.
Se não fosse por meu pai permitir que ela idolatrasse sua criança
morta, com tantos bens materiais disponíveis, minha mãe poderia ter vivido
plenamente bem.
Se não fosse por um destino filho da puta, eu poderia ter sido
amado de verdade.
— Poderia ter aprendido o que era amor de pai e mãe e quem
sabe… – as malditas lágrimas arruínam meu pouco controle, bufo e passo as
mãos desgovernadas pelos cabelos. — Quem sabe poderia ter mantido Lia e
–, não haveria outro pai para o moleque. — Penso, pois não tenho coragem
de dar voz a isto.
Com a raiva borbulhando em meu sangue, não me permito a
ponderar. Com determinação, caminho em direção ao guarda-roupas fechado
e abro as portas do meio com força pronto para jogar tudo no chão, levar para
o jardim e fazer uma verdadeira fogueira.
Minhas mãos tocam a madeira fria e empoeirada e com um
solavanco abro as portas de par em par. O grito que sai da minha garganta
assusta-me mais do que se tivesse visto fantasmas pulando para fora do
móvel.
Em vez de roupas na parte central do móvel, o que vejo captura a
minha atenção e os meus joelhos cedem com tudo contra o carpete imundo.
— Mama, o que a senhora fez?
Fotos. Recordações. Inúmeras fotografias coladas, assim como fiz
para Lia, minha mãe fez para Mikaella.
Não precisaria ser um gênio para entender o padrão e a
organização.
A primeira era de um casal de adolescentes em uma praça, na
Rússia, era evidente demais.
A segunda, uma jovem grávida e depois uma longa sucessão de
lugares, pessoas agregadas a família que estava sendo formada ali por amigos
vindos de vários países da Europa.
O tempo contando a história dos Nikolaievitch, passando a
gestação de um bebê carequinha no colo da jovem que tinha um ar mais
amadurecido, o rosto da criança encoberto parcialmente. O sorriso do homem
ao seu lado e a adoração com que as olhava, mas isto foi mudando.
Em outra foto, a criança estava sozinha em um berço de hospital,
protegida por um vidro e depois…
— Puta merda! O que é isso que estou vendo?
A tristeza da jovem. A ausência da criança. Os amigos. Os
nascimentos dos meus amigos, o meu nascimento, mas sem o brilho de luz
que via nas primeiras fotos.
A sequência interminável me mostrou os anos em que crescia,
festas, aquisições de bens, datas comemorativas em família e as formaturas.
Momentos importantes que ela deixou registrado para, de acordo com sua
mente doente, que minha irmã pudesse conhecer a nossa história.
As fotos foram até depois de Lia partir. A mais recente era minha,
sentado na estufa com um violão na mão, alguns meses antes da sua morte.
— Tento respirar pausadamente. Este foi o dia em que compus a nossa
música, após ouvir o pai de Ramon e tio Vasquez conversarem com um
senhor no escritório da empresa, falando sobre a possibilidade de trazê-la
para casa.
Na altura, imaginar reviver todo o passado, tormento e vício que
Lia havia se tornado para mim, me fez sentir revoltado, tão doente de
sentimentos há muito esquecidos que deixei-me levar criando a canção.
Só após rever Lia e realmente embrenhar no mar revolto de agonia,
desejo e desespero de perder tudo e de colocar-me novamente em uma cama
com ela para provar que ela não era a minha âncora, mas sim minha mãe que
me aprisionou, por quem eu ainda chorava a dor da perda –, pois foi ela que
me impediu de ficar com a minha Anja – usei da loucura e da saudade como
coragem para enviar-lhe a canção —, a mesma que ela tem tatuada na coxa.
Tudo na ânsia de talvez, trazê-la de volta ou…
— Ah, mamãe… — lamento tanto tudo o que nos aconteceu.
Todas as coisas.
Meus olhos recaem sobre o meu pai e a notória transformação do
jovem sonhador e feliz, para o infeliz homem que se trancava em seu
escritório, dia após dia. Isso é tão notório, que nem o tempo sobre as imagens
um pouco amareladas podem esconder.
Se houvesse em mim alguma oportunidade de perdoá-lo, poderia
fazer agora vendo como os anos que passou preso a toda essa merda,
acabaram com ele. Entretanto, não carrego esse vínculo para usar com
qualquer um.
Com cuidado, escoro-me na porta e me ergo. Com o celular nas
mãos, acendo a lanterna e passo a olhar de perto as imagens.
A vontade de pôr fogo em tudo isso começa a ceder e, por incrível
que pareça, consigo entender o sentimento que dominava a minha mãe ao
dizer que isto era a prova do quanto a minha irmã foi amada.
— Se realmente estivesse viva, de certo que este lugar
demonstraria isso. — Assumo em voz alta.
A luz do celular recai sobre uma foto da festa de final de ano. Não
tem muitas crianças, só Ramon, um menino loiro de uns cinco anos, talvez ou
mais, meus pais, os tios e…
— Porra! — Outro grito. — Que loucura é essa?
Volto meus olhos novamente desde a primeira foto. Em uma delas,
vejo a sombra de uma mulher loira refletida no espelho do corredor onde os
jovens posaram para a foto. Repasso as imagens e em algumas, a mulher
loira, jovem de olhos azuis, está lá sempre agarrada em Gustavo e
estranhamente o menino?!
Sentada ao lado dos meus pais.
Conversando com meus pais.
Abraçada à minha mãe que tem o rosto virado para o outro lado.
Só mais adiante as posições mudam e tia Anna, a mãe da Aline e
Angel aparecem nas imagens.
— Onde está a loira e o menino?
Procuro um pouco mais e me deparo com todos reunidos, as
gêmeas são pequenas, a foto foi feita na fazenda…
— Puta que pariu, é ele?
Arranco a foto da madeira e na sequência as outras. A mulher nas
fotos é a mesma que me recordei a pouco tempo… —Verônica, a puta!
O nome da mulher sibila em meus lábios. Pego outras fotos e vejo
lugares e situações diversas, onde o menino loiro que já é um rapaz, aparece,
mas está sempre longe com o rosto virado, como se estivesse se escondendo.
— Como não me recordava dele? Caralho, a sensação que tenho é
de ter sofrido uma puta lavagem cerebral.
Dou um passo atrás com as imagens na mão e miro a ordem
cronológica que minha mãe —, uma pessoa considerada doente, criou –
ironizo.
— Será que a senhora, nunca esteve doente, mama? — Um arrepio
percorre o meu corpo, como se o quarto descesse a menos zero graus. — O
quanto de verdade havia nos seus surtos psicóticos?
Outra foto me chama atenção. Esta, parece estar mais estufada na
parte inferior. A ilumino e me surpreendo ao ver Lia. E não só isto, existem
várias fotos pregadas uma por sobre a outra.
Rapidamente arranco da madeira o maço e me surpreendo ao ver
que em todas, ela está em frente à mesma catedral, e sei onde fica: em Lisboa.
Não é possível definir a expressão, mas a posição é a mesma olhando para o
nada, sempre rodeada de neve, a mesma moldura do antigo escritório do seu
pai, porém sem Lia como centro de imagem, e hoje o seu atual local de
trabalho.
Uma foto para cada ano. Para cada ano que ficamos longe. Para
cada ano de dor e solidão. De alguma forma, a pessoa que julgavam doente,
esteve cuidando da mulher que eu… da mulher que eu…
— Mãe…
Sem pensar em nada, apenas agindo pelo impulso de estar dando
voz aos mortos, a minha Mama, me afasto e ergo o celular contra meu
ouvido, após discar um número.
Apenas dois toques.
— Campus!
— Podemos conversar? — Minha voz sai mais firme que esperava.
— Sobre o quê?
— Sobre o DNA que fiz.
Pauso e não quero acreditar que estou sucumbindo à loucura, mas
fui treinado para achar provas e provar a verdade, se não fizer nada, aí sim,
me sentirei como um louco.
— Precisará da minha ajuda?
— Sim!
— Posso fazer o que for preciso, mas com uma condição!?
— Qual?
— Você saberá no momento certo. Estou saindo de Vitória a
trabalho e quando voltar…
— Vou esperar por você.
— Mikael?
— Sim!?
— Conte-me segredos, peça o meu silêncio e ajuda, mas jamais…
nunca, em tempo algum, me diga mentiras!
— Digo o mesmo a você, Angélica.
— Trato feito!
A chamada é encerrada da mesma forma abrupta que se iniciou.
Penso em meus pais, minha irmã, amigos e na desgraça irrefreável
ao qual vivemos por longos anos e ainda estamos emborcados nela, por
último penso em Lia.
Deus, se houvesse uma única oportunidade de voltar no tempo,
teria feito isto, mas não como desejei por todos os anos que se passaram,
onde gostaria de não a ter conhecido, de não ter posto os meus olhos sobre a
menina traquinas que se tornou uma mulher incomparável.
Se pudesse voltar no tempo, seria naquela tarde ensolarada, que
não nos importava em nada, porque estávamos muito concentrados em nos
amar, em fazer os nossos votos de noivado. Onde ela disse sim, e se possível
fosse, queria congelar aquele momento e nada mais depois daquilo, teria nos
deixado destruídos.
Fecho as portas do guarda-roupa com reverência, passeio meus
olhos pelo cômodo e detenho-os na carta sobre a cômoda. Fecho os
basculantes e caminho em direção à escada.
— Se os seus pertences estiveram aqui por estes anos, não há
necessidade de irem a lugar algum, até que eu tenha certeza de que não
pertencem a ninguém — pauso e digo como se realmente transmitisse a um
guardião invisível, o meu mais sincero desejo. — Por hora, tenho muitas
pendências e preciso ter alguém ao meu lado em definitivo para ser a minha
fortaleza, quando tudo vier à tona.
Se você está em algum lugar, vou te encontrar, só espere mais um
pouco.
Apago a luz e com cuidado, fecho a porta arrombada. Esta é a
segunda resolução que tomo neste dia e pelo que sinto, é a única certa.
Enquanto travo a porta da melhor maneira que posso, pensamentos
conflitantes rugem no limbo da mente: seria possível que as palavras
trocadas, os gritos esganiçados, fossem apenas gestos imperceptíveis do
quanto o impossível poderia ser real?
Ergo as imagens presas em meus dedos e tenho certeza de que
preciso falar com os meus amigos às claras, isto após voltar com as minhas
emoções para os trilhos e conseguir falar com Lia.
— A pergunta é: quando?
CAPÍTULO 30

INOCÊNCIA
“Há uma inocência na admiração: é a daquele a quem ainda não
passou pela cabeça que também ele poderia um dia ser admirado.”
Friedrich Nietzsche

SANTIAGO

O
sol refletia com força ainda no céu. A brisa abafada que soprou contra o meu
rosto ao correr pelo chão asfaltado, parecia um prenúncio das portas do
inferno. Enquanto ao longe, havia um derrapar lento de carro, do outro lado
da entrada ladeada de flores, pessoas riam e conversavam tranquilamente,
mas ao me verem passar, seus rostos paralisaram.
Por medo, angústia, ou seja, que inferno tenha visto. Só percebi
que se afastaram. Que bem fizeram, pois na minha mente, não estava ali para
fugir de demônios. Estava ali para caçá-los com todas as minhas forças.
No meu afã de chegar à maldita porta que nunca alcançava, meus
sentidos estavam fixos na carga preciosa em meus braços, mas também
conectados com o entorno. Anos de treinamento sabendo que as minhas
costas sempre serão somente minhas para me proteger, talvez por isso não
pude pedir ajuda. E não quis arriscar mais do que já faço por estes anos.
No entanto, o pavor de perder a quem se ama, nos leva a dar passos
hesitantes em retrocesso.
Me faz admitir que preciso de ajuda, ao menos por ela…
precisaria.
O baque do corpo foi brutal — preciso de ajuda! — Exclamei
enquanto empurrei as portas de vidro do pequeno hospital local. — Por favor,
alguém me ajuda!? — gritei.
“Desespero é um sentimento que apenas os fracos sentem…” —
foi o que ouvi durante toda a minha vida em treinamento.
Me senti um fraco, porque nunca em toda a minha miserável vida,
me senti tão incapacitado como agora.
— Mikaella — chamei-a enquanto escorregava seu corpo frágil
para a maca que um enfermeiro desconhecido deslizou sobre o chão de
linóleo.
Chamei-a novamente, mas os lábios retorcidos por uma crise
convulsiva e os tremores débeis, dominavam a forma desfalecida da minha
Fadinha.
Meus próprios temores foram tantos, ao ponto de outro enfermeiro
vir em minha direção e precisar de mais alguns homens uniformizados para
manter-me longe da sala de emergência.
Isto foi a horas atrás.
Com meu tronco curvado e minha cabeça entre as mãos, olho para
o chão vendo e revendo as incontáveis rachaduras no piso velho de passos
incertos que já passaram por ali na mesma posição em que me encontro,
esperando.
A porta deslizante da sala de emergência se abre, outro enfermeiro
passa em direção ao balcão de recepção. Olho mais uma vez para o enorme
relógio branco pregado na coluna a frente dos bancos de espera e toda a
sensação de que faz segundos que entrei com Mikaella por estas portas,
explodem a porra da minha mente.
Um dos seguranças aparece pela porta de entrada e faz sinal com a
cabeça. Mesmo que este tenha sido o lugar que me aventurei a pedir ajuda,
não posso deixá-la aqui, seja lá o que estiver acontecendo.
Curvo meu tronco novamente, o maldito celular no bolso tocando
constantemente, mas não tenho forças e nem paciência para qualquer outra
coisa. Meu foco é saber como a minha Fadinha está.
Nunca fui um homem de acreditar em premonições ou em deixar a
intuição falar mais alto, por isto ao deixá-la na escola de música, não dei
atenção alguma ao dizer-me que deveria voltar para casa.
Se por um segundo tivesse dito estar sentindo-se mal fisicamente,
não pensaria duas vezes, mas a única coisa que me disse era estar com um
pressentimento ruim. Isto nunca me demoveria do fato de querer vê-la
retornar às suas atividades.
Nas últimas semanas, a pressão psicológica sobre a minha pequena
fada tem sido grande e me sinto culpado por isto e até mesmo irado com os
demais envolvidos. O ódio nunca foi tão bem usado em expressar os meus
sentimentos, como agora.
Estava a meio caminho de Vitória, quando me lembrei do maldito
envelope com a nova identidade de Maristela e Olívia que havia sido
entregue pela manhã por um dos meus homens de confiança.
Na hora, fiz o contorno e voltei para casa e foi exatamente o
momento em que minha fadinha me ligou.
Nunca vou esquecer o tom do seu desespero e a mágoa de se
imaginar traída de forma sórdida.
Me traiu? Você me traiu?
Irá me entregar para eles, sem minha permissão.
Irá me abandonar como se fosse lixo. Quer me pôr em uma caixa
de papelão também… Não vou perdoar… não vou…
A dor presente em sua fala enrolada, nas frases jogadas sem nexo
me deixaram confuso. Tentei argumentar com ela para entender, mas o seu
medo sussurrado era tão invasivo que parei o que estava fazendo e prestei
atenção ao fundo da ligação. Foi a voz de barítono tão angustiada quanto a
dela que me alertou.
Desliguei, mas antes confirmei que estava indo buscá-la. Sem
esperar que confirmasse o que já estava martelando em minha mente, fiz uma
ligação para seus seguranças e confirmei a presença dos visitantes na escola.
Não ponderei em dizer-lhes nada, mas em algum momento, isso vai
acontecer. Os malditos deveriam tê-la tirado da escola, assim que o seu irmão
apontou nos portões do local.
Imerso na urgência de resgatá-la, não pensei se seria reconhecido
mais uma vez, se teríamos um confronto aberto e nem na possibilidade de Lia
me reconhecer. Inferno, não estava me importando na hora e agora nada tem
importância para mim.
Nada!
Acredito que as tais premonições e as coincidências que algumas
pessoas acreditam reger o cosmos é real.
De nossa casa escondida em uma pequena reserva até a escola no
centro da aldeia, são quase vinte minutos e tenho a certeza de que usei menos
de dez para chegar, ao cruzar com o SUV pelos portões, pude ver de relance
Mikael com a cabeça pendendo contra o encosto do carro.
O maldito ódio ferveu, mas a preocupação foi maior.
Resgatar a minha Fadinha foi fácil, driblar Lia nas escadarias, o
mesmo. Manter a serenidade enquanto contornamos o coreto de flores foi
leve e quase pude respirar tranquilamente. Mas, bastou sairmos aos portões
para Mikaella ter um surto que me remeteu ao passado.
A fala arrastada, os gritos, o choro e as suas mãos fechadas em
punho esmurrando o painel do carro com violência. O medo a drenou de toda
a sua capacidade de se controlar. Foi tão assustador vê-la assim que parei o
carro em meio a avenida tentando segurá-la para impedir de se machucar.
Neste pequeno momento de fragilidade, o nosso controle escorregou.
Seu corpo frágil enrijeceu em meus braços, os lindos olhos se
reviraram e a sua cabeça pendeu para trás, a língua mais grossa — uma
característica comum para síndrome de Down. — Ela se dobrou e a
respiração dificultada pelo estremecimento tornou-se nula, amolecendo seu
corpo e ficando inconsciente.
Em questão de segundos, senti a morte espreitando-nos de
mansinho. Uma sensação antiga e miserável.

Quando veio para minha companhia, a criança na altura, precisava


de muitos cuidados médicos, ela possuía muitas debilidades de coordenação
motora e fala, apesar da inteligência.
Na época, não tinha condições de cuidar presentemente de uma
criança, mesmo sendo mais velho e com idade suficiente para fazê-lo, ainda
me faltava maturidade para agir como um pai. De certa forma, era isto que a
criança precisava e só percebi isto ao vê-la ter a sua primeira convulsão. Me
senti totalmente perdido.
Imaginei que a menina morreria em meus braços naquele dia e
entendi que precisaria aprender a cuidá-la e manter sempre bem assistida,
pois na minha falta, alguém poderia socorrê-la e garantir que sobrevivesse.
Faz anos que Mikaella, não se entregava a uma crise tão severa e
tudo causado pelo medo. Um medo real de algo irreal. E por mais que odeie a
cada um destes inúteis filhos da puta, sei que Mikael será um irmão ao menos
digno de cuidá-la.
— Mikaella… — minha voz ressoa na sala vazia.
Ouço passos e ergo meus olhos embaçados, sem perceber que as
lágrimas haviam chegado.
O médico que entrou na sala de emergência logo após me
colocarem para fora, parou à minha frente.
— Senhor Santiago?
— Sim —, me ergo bruscamente — como ela está?
— A paciente está medicada e fora do quadro de risco. Foi uma
crise severa, mas com socorro imediato, poupou-a de qualquer dano mais
grave. — O médico deu um leve sorriso e fez sinal para acompanhá-lo.
Me segurei para não ultrapassar a sua frente e correr em direção ao
quarto que apontou no final do corredor. A porta está encostada e pelo vão
posso ver os longos cabelos ruivos deslizando sobre o travesseiro. O rosto
dela está tão pálido, que as pequenas sardas parecem ter se ampliado sobre a
pele, assim o fazem também os cílios e as sobrancelhas desenhadas que
tomam forma em sua feição.
Os lábios grossos estão pálidos e a respiração é tão lenta que tenho
medo de entrar no quarto, mas o faço, pé ante pé. No braço estão conectados
por IV uma bolsa com hidratação e de certo a medicação. Em seu dedo da
mão miúda repousada sobre a altura do estômago, um pregador preso por um
fio longo, que informa a constância dos batimentos cardíacos no monitor ao
lado da cama.
— O senhor disse que ela estava bem! — Acuso o médico sem dó
diante da visão fantasmagórica da minha Fada sobre a cama.
— Ela está, mas precisará ficar esta noite em observação.
— Mikaella ficou sem respirar, eu vi. — rebato com o homem de
cabelos grisalhos — Tem certeza, absoluta, que ela está bem?
— Sim! Já atendi Mikaella na clínica. Talvez não esteja se
recordando do fato, por estar no mesmo estado de pânico. Isso foi há alguns
anos!
Só a partir da sua informação que penso em olhar para o nome
bordado no jaleco branco. Algo imperdoável que em qualquer outra
circunstância não teria passado despercebido.
— Doutor Rubens!
— O próprio! Faz anos que não a via, mas é impossível esquecê-la.
— Ele ressalta observando-a com admiração. — A paciente Mikaella está
bem, de verdade. Está sedada e deve acordar em algumas horas.
Aproximei-me da cama e segurei sua mão livre. Os dedos
pequenos estão frios e tem as pontas arroxeadas.
— Ela está com frio.
— É o soro.
— Ela sente muito frio. — Resmungo e inconsciente retiro minha
jaqueta e coloco sobre seu corpo a cobrindo até o queixo.
O médico não diz nada, mas posso sentir seu olhar observador.
— O que me preocupa, Santiago é o estado psicológico que
desencadeou esta crise.
— Como assim? — Pergunto virando em sua direção.
Ao ser analisado por seu olhar crítico, meu senso retorna e com
braços cruzados observo-o melhor.
— Ela retomou a consciência por alguns breves minutos, antes de
os remédios fazerem efeito e a sua agitação elevou a pressão arterial forçando
seu corpo em uma leve arritmia. Aconteceu algo? Precisa que uma assistente
venha conversar com ela, ou talvez com você?
Diante do olhar especulativo e as informações que o médico tenta
sutilmente arrancar-me, o que é de praxe, assumo uma postura defensiva.
— Não! Mikaella tem seus próprios especialistas e se ela está fora
de perigo, vou fazer sua transferência agora mesmo para o seu hospital de
costume.
— Não há necessidade, a paciente está bem assistida.
— Não me leve a mal, Doutor Rubens, não estou preocupado com
a eficiência da sua equipe, posso ver por mim mesmo que são bons. No
entanto, se há algo que ela precise além de um socorro imediato, o lugar que
já lhe é familiar seria o melhor, não acha?
Sem contar o fato de ser fortemente seguro.
— Vendo por este lado, sim — ele suspira. — Se realmente julga
necessário, não posso segurá-lo e mantê-la aqui, porém este é um hospital
público e não podemos dispor de…
— Não se preocupe com nada. O transporte e a equipe que irá
acompanhá-la, já está aguardando no estacionamento.
O homem deu uma risada e estendeu a mão, cumprimentando-me,
encarei o gesto com apreço e fiz a minha parte.
— Lhe sou eternamente grato por ter me ajudado, Doutor Rubens.
Farei o máximo para recompensá-lo.
— Percebo que não mudou nada nestes anos, meu jovem. Você
continua tão imperativo e cheio de atitudes decididas como antes.
Não fiz caso do que disse e nem prestei tanta atenção no entra e sai
da equipe se preparando para a transferência da minha Fadinha. Fiquei no
mesmo lugar olhando a minha pequena, percebendo as nuances de toda uma
vida juntos. Percebo que o medo da separação é uma via de mão dupla.
Há alguns anos, Mikaella vem me pedindo para fazer uma viagem,
conhecer lugares diferentes, mas em uma aventura solo — e mesmo cercada
de seguranças, nunca permiti.
Jamais ousaria deixá-la longe da minha proteção, mas creio que
uma viagem possa devolver-lhe a segurança que fará sentir-se forte e capaz.
Pode parecer covarde, mas afastar-nos daquilo que mais tememos,
às vezes nos fortalece para lutar. Sei disso por experiência própria.
Me curvo e antes de permitir que os enfermeiros da minha equipe a
levem, escovo seus cabelos com a mão direita e faço uma nova promessa em
seus ouvidos, deixando que a ideia brote em meio aos seus sonhos embotados
por sedativos.
Pendo meu coração em direção à sua inocência e me permito
encharcar dessa sensação cálida que ela transmite, para que as minhas
decisões sejam puras e altruístas com sinceridade.
— YA pozvolyu tebe raspravit' kryl'ya, moya feya. Skoro ty
smozhesh' letat'. — as palavras em russo deslizam facilmente por meus
lábios. — Vou deixar você abrir suas asas, minha fada. Em breve você
poderá voar.
LIA
Minha cabeça parece ter sido bombardeada por um taco de beisebol
em alta velocidade ou seria a bola?
Não faz sentido, mas é como se tivesse chocado contra a parte de
trás do meu crânio. Tirei a chave da ignição e em vez de subir para o frescor
do meu apartamento e me deixar desfalecer em uma banheira de
hidromassagem, abro minha bolsa e retiro o celular.
Sem ligações, mensagens, e-mail, nada. Como diria July, nem sinal
de fumaça. A saída intempestiva de Mikael pareceu estranha. E a forma como
a Fadinha reagiu a nossa presença, poderia ser colocada na mesma categoria.
No entanto, não a julgo, pois também não sei como lidar com estranhos.
Contudo, poderia levar cada situação como algo normal, nas
possibilidades, se a senhora Selene não tivesse comentado o ocorrido com
Mikael e a criança ao chegar.
No fundo do meu âmago, sei que isto não o deixaria chateado.
Como ele mesmo afirma, é um TIO muito presente e querido, mas sei que
peso a mão na questão de estar sempre falando do meu filho.
— Nosso! Pelo amor de Deus Lia, é o nosso filho —
resmungo irada comigo mesma. Não era a minha intenção falar tanto de uma
única vez sobre Anjinho, mas é tão fácil e natural me enredar por qualquer
assunto que remeta a ele… as semelhanças entre os dois, as manias
inconscientes, os dons com a música que compartilham, tudo é perfeito.
Não queria levá-lo para conhecer a Fadinha, com medo de que em
algum momento pudesse falar algo sobre a semelhança entre eles. Que de
alguma forma pudesse achar algo estranho e fazer perguntas, mas com ele ao
menos é o que penso, a jovem não chegou a dizer nada similar.
Constatei isto ao usar meu talento nos interrogatórios para obter
informações de Selene, sobre o encontro entre os dois. Além de uma inegável
química musical, nada mais foi dito.
A senhorinha com ar sonhador imaginou-os em um palco
encantando com várias apresentações e blá, blá, blá…
Com Mikael, a jovem pode não ter falado nada. Mas o olhar ferino
disparado em minha direção e a afirmação de que conheceu o pai do Anjinho
na presença do irmão, disse muito. Será que Anjinho, poderia comentar algo
sobre o pai, ou melhor, o pinguim? — pergunto e na mesma hora respondo.
Não, de forma alguma! Ele não é capaz de introduzir isso a uma
conversa, teria de ser sondado e…
— Oh, Deus!
Pare Lia, apenas pare. Não é possível que falar um pouco sobre a
criança assustou o homem, que pelos últimos dias tem afirmado
categoricamente que quer algo além de sexo. Não depois da noite que
passaram juntos.
— Por Deus!
Olho mais uma vez o celular e como atraído pelo pensamento, uma
mensagem clica na tela, acendendo o aparelho em minha mão. Quase o
derrubo no chão e se não fosse por estar sentada no confortável banco da
minha Range Rover novinha, estaria com a bunda no concreto, pois senti as
minhas pernas esmoreceram com as palavras secas e sem emoções digitadas
desleixadamente pelo Promotor.

@Promotor_nikolaievitch: me desculpe por não atender às suas


ligações. Estou com algumas pendências, entrarei em contato depois.

Depois? Pendências? Não um: “mais tarde” ou “amanhã”.


Apenas um: depois…
Se isto não for à confirmação sobre os meus maiores temores, o
que mais poderia ser?
Pior do que a sensação de ser afastada por algo que não faço ideia
do que seja, é a sensação de vazio que isto me causa, algo que não desejo
sentir nunca mais.

SANTIAGO
Deixar Mikaella aos cuidados dos seguranças no hospital estava
totalmente contra a minha vontade, mas não poderia deixar de cumprir com o
meu compromisso com a Angélica.
A transferência de Maristela e a filha, acontecerá nesta madrugada
e mesmo que pudesse pôr de lado e deixá-la assumindo, a ligação de
Fernanda pouco depois das dez da noite me deixou incomodado.
— Santiago!
— Olá, não sou de pedir favores, mas sendo direta, porque não
temos tempo —, ela pausou — por favor, poderia seguir com Cristina neste
comboio?
— Boa noite para você também, Fernanda!
— Corta essa! Apesar de ser um lorde quando quer, comigo não
usa de tantas cerimônias.
— Não é cerimônia, é…
— Por favor, ela está estranha e se imaginar que fiz essa ligação,
pode me esfolar viva. Não estamos lidando com amadores e estou
preocupada.
Isto me alertou e muito. Apesar de saber o motivo do
comportamento apático e silencioso, não tiro a razão de Fernanda. Não
estendi a conversa além do necessário, anotando apenas os detalhes
necessários para o encontro.
Montei uma pequena escala de acompanhantes para Fadinha e pedi
ao seu médico que não fosse liberada do hospital, até o meu retorno. A parte
boa de ser um filantropo generoso é manter as portas abertas e cerradas na
medida da minha necessidade.
Com tudo orquestrado, me encaminhei para Vitória. Após deixar o
hospital, mãe e filha foram transferidas para a mansão. A estadia não seria
longa, apesar de não concordar com uma viagem tão rápida, após uma
intervenção cirúrgica, mesmo sendo pequena como Maristela passou, porém,
temos de ser rápidos e realistas.
Os inimigos que estão atrás das duas, não são pessoas de pouca
influência e o seu poder aquisitivo de acordo com uma investigação prévia
que Fernanda nos enviou, arrancou alguns assobios da equipe. Poder de abrir
bocas delatoras.
O entrevero desta missão é o lugar que Angélica escolheu. Nós não
somos conhecidos visualmente pelos responsáveis. Não, com os nossos reais
rostos e nem por nomes de sondagem, por isto, usaremos os nossos disfarces
habituais para esta ocasião e uma equipe exclusiva.
É um desgaste físico a mais, porém, formidável no quesito: passar
despercebido.
Se em algum momento, Angélica ficou surpresa por me ver chegar
após às onze da noite com uma pequena mala e preparado para uma situação,
não fez comentário algum.
Analisei a casa por inteiro e conferi às duas refugiadas. Pelo
silêncio no cômodo, preferi não abrir a porta, mas as sombras se
movimentando pelo vão indicam que ao menos uma está acordada.
De certo, a pirralha imperativa.
Sete homens e duas mulheres além de nós dois farão parte da
escolta armada. Todos devidamente preparados, permaneceram na cozinha
fazendo um último lanche. Passei direto por eles e subi uma escada estreita
lateral nos fundos do cômodo que me levou direto a um quarto separado para
a ala doméstica da casa.
Assim que entrei no quarto, o sensor de luz se ativou. A claridade
das fortes lâmpadas fluorescentes nas calhas de alumínio resplandeceu por
todo lado. Os móveis de madeira escura brilharam como se tivessem sido
polidos, de certo os anos de conservação que mantém essa crosta de cera fixa.
Tirei a jaqueta de couro e joguei sobre a cama de casal no canto do
quarto, junto à mala pequena. Em seguida, o cinto com os dois coldres com
as duas 9mm, o celular no bolso da frente, carteira e chaves.
Alonguei os braços acima da cabeça e volte-os na altura dos
ombros esticando-os com movimentos circulatórios até sentir os ossos
estalarem.
— Porra, não imaginava estar tão tenso!
Constato um fato. Estar sozinho sem precisar manter certas
barreiras e o tempo todo em atenção total é difícil, mas este pequeno prazer
assim que é possível sentir, me esforço por fazê-lo.
Retiro a camisa de malha colada ao corpo e automaticamente meus
olhos recaem sobre as muitas cicatrizes nas costas e do peito. Com tantos
anos convivendo com as malditas, era de se esperar que o simples reflexo das
mesmas não me causasse nenhum efeito. Termino de me despir das calças,
meias e das botas militares. Outro olhar sobre o meu corpo me deixa irritado.
É difícil negar o formidável DNA, braços e pernas musculosas,
caixa torácica expandida e bem definida. O alongamento dos membros
estirados, bem como a altura imponente. Até a porra do meu pau remete a
indulgência do físico de adônis, mas a semelhança física vai só até aí.
— Na verdade, as piores características, não são realmente estas,
não é mesmo? — resmungo olhando uma última vez o meu reflexo.
Para afastar essa sensação, recuo um passo até o banheiro pequeno,
porém, funcional no canto do quarto. Os ladrilhos brancos estão iluminados
por outra calha de uma ponte luz.
Retiro a boxer e entro debaixo do chuveiro tomando uma ducha
rápida. Na prateleira no diminuto box, uso os produtos que já estão à espera
para poder preparar a pele e receber uma leve camada de maquiagem, quase
imperceptível, apenas para disfarçar melhor a cicatriz do rosto.

De banho tomado, seco meu corpo e cabelo. A roupa para ser usada
está sobre a cama, nada diferente da que usei ao chegar, couro, camiseta e
jeans preto.
Enrolado em uma toalha, me sento na banqueta diante da
penteadeira antiga. As gavetas abertas contêm produtos e acessórios que
facilitam essa brincadeira. Ter a facilidade com os pincéis, ajudou-me a criar
ilusões e algumas lições aprendidas com Verônica, que é realmente uma
mestra em disfarces. Ela me ajudou a criar alguns personagens bem
convincentes para circular em meio a todos sem chamar a atenção.
Com cuidado, contorno e tento ao máximo disfarçar a cicatriz que
ainda tem um leve tom rosado, mesmo depois de anos. A correção cirúrgica
poderia ser feita e me dar um menor trabalho para ser coberta, mas é o motivo
e a importância de vê-la para ressaltar na minha mente o meu propósito. Isso
é o que me faz mantê-la.
Pelo uso constante das lentes de contato escuras, meus olhos ardem
ao colocar um novo par. Elevo o vidro a conta-gotas próximo à retina e deixo
cair duas gotas de colírio em cada uma, anestesiando o incômodo crescente.
Encaro as duas esferas amendoadas e irritadas no espelho. Em
segundos a mágica medicamentosa acontece e os vasos sanguíneos dilatados
começam a retroceder.
A tintura que escurece a barba e as sobrancelhas saem quase
completamente pela lavagem constante do rosto e isso ajuda a camuflar
minha identidade no dia a dia, uma vez que os pelos loiros tendem a clarear à
medida que crescem.
Seria mais fácil, não manter a barba, mas é um ponto válido no
meu disfarce, pois retira a evidência da cicatriz no meu rosto que escondo
parcialmente com a ajuda de um lace masculino com a franja alongada.
Aplicar produtos e montar-me em outra pessoa é fácil, porém o
charme da transformação está em dedilhar as cordas vocais como um mestre
e mudar a intensidade e o volume. Quanto mais tempo se passa caracterizado,
mais fácil é se transformar naquilo que idealiza.
Com um sorriso sarcástico, completei meu visual com um par de
óculos. Não irei usá-los essa noite, mas é bom ver por completo o homem
que me transformo ao caracterizar-me.
O celular sobre a cama dispara um jogo de sinais, me ergo e
recolho o aparelho, é MSPG[14] para todos da equipe. Devemos sair em uma
hora, tempo suficiente para conferir como está Mikaella e comer algo.
Jogo novamente o celular sobre a cama, estou prestes a retirar a
toalha e vesti a minha boxer, mas paro ao ver a porta do quarto se abrir
lentamente e uma perna com uma coxa grossa e panturrilha torneada deslizar
dentro do cômodo sem fazer barulho.
Estreito meus olhos e vejo o corpo da mulher vestida com uma
camisa jeans comprida o suficiente para bater nas coxas, mas não o bastante
para manter certo decoro — se me importasse com isto — pés descalços e
cabelos longos castanhos entremeados com mechas em tons de mel caindo
pelas costas.
Cruzo meus braços a altura do peito, ciente de estar nu e estranha,
está quase no mesmo parâmetro. Ela olha mais uma vez para o corredor e
fecha a porta com cuidado, se vira e o grito que engole diz muito das suas
ações, provavelmente não é a pessoa que procura.
— Precisa de algo, senhora?
— Oh, Deus! Me desculpa, pensei ser onde o senhor Christian
estava, me perdoe. Por favor.
O castelhano fluente que desliza pelos lábios de Maristela parece
uma seda quente contra o meu ouvido. O fato de gostar e aprender vários
idiomas, me possibilitaram a comunicar com ela na sua língua materna,
dando-lhe um certo conforto.
— Quem está procurando? — pergunto e só então percebo que a
minha voz está mais suave acompanhando o personagem ao qual me inseri.
— Um amigo! Alguém que me ajudou, ham… perdão… vou sair.
A mulher se vira toda atrapalhada com a maçaneta. Balanço a
cabeça e a franja cai sobre o olho quase tocando o lábio.
— Maristela? — A chamo e ela se vira rapidamente, olhando em
direção a porta do banheiro. — Aqui! — chamo mais uma vez.
Assustada, a mulher arregala os olhos e me mede de cima a baixo.
Talvez, só agora tomando consciência do meu corpo envolto apenas por uma
toalha.
— Jesus Bendito! — Ela fecha os olhos e volta abrir a porta
colocando metade do corpo para fora. — Me desculpe senhor, de verdade.
Eu… só queria agradecer, não sei por que vim aqui e nem… — a mulher
bufa e se recrimina severamente disparando uma rajada de impropérios,
alguns que jamais ouvi falar.
— Maristela —, dou um passo à frente. — O que gostaria de falar?
Ela em meio a sua retirada sem sucesso, ergue seus olhos, focando
em meu rosto.
— Como pode a voz ser do Christian, mas não ser?
Sem realmente respondê-la, caminho até a porta abrindo-a por
completo. Seguro-a por seu pulso e gentilmente a faço entrar levando-a a se
sentar na cadeira diante da penteadeira.
Um breve olhar sobre todo material disposto, responde às suas
perguntas e as que desejar fazer, mas a impeço.
— Primeiro, onde está Olívia e o que faz aqui?
A mulher cora e só então me deixo prestar atenção no rosto, nos
enormes olhos cor de chocolate, as bochechas salientes e os lábios carnudos.
Meus olhos percorrem a blusa jeans vários números acima do seu,
com as mangas dobradas e os três primeiros botões abertos, deixa entrever o
início de um top branco. Provavelmente um dos sutiãs padrões esportivos
que oferecemos para quem não tem nada. O que me faz pensar que a calcinha
é…
Que caralhos estou pensando! — Pigarreio e me afasto da mulher
recolhendo a calça e o boxer seguindo para o banheiro. Deixo a porta aberta e
me escondo no box.
— Fiz uma pergunta Maristela, e quando as faço, quero respostas.
— Me desculpa. Olívia está dormindo.
Me surpreendo com a resposta, mas não comento. A mulher
começa a falar ritmicamente sobre o porquê de ter vindo atrás de mim, após
perguntar à Cristiana onde me encontrar.
Outra surpresa é saber que Angélica não fez caso e passou a mulher
a minha localização com o seguinte lembrete, não deixe os demais ver você
entrar lá, para não termos comentários impróprios.
— Comentários, impróprios? — Falo em português e a castelhana
me fita esperando que traduza, com a mão deixo a questão de lado.
— Uau —, a mulher não consegue abafar sua admiração —
você está muito diferente.
— Porque precisava me agradecer, se ainda está em perigo? — Sou
direto e não dou atenção ao olhar fascinado da mulher.
— Não é apenas isso. — Ela enrubesce e se coloca de pé. — Quero
agradecer por nos salvar, assim como o Promotor, a senhorita Cristina e o
sargento Caleb. Sou grata a todos e ainda mais por cuidar da minha filha. O
que ninguém pensou em fazer, o senhor, sem qualquer obrigação fez.
— Não foi nada! — Sento-me na cama para calçar os sapatos e
observo a mulher a dar passos para longe. Reflexos dos abusos físicos que
sofreu, sem dúvida.
— Não pode dimensionar o meu desespero em deixá-la sozinha. E
o senhor, foi bom.
— O que disse?
— Bom, caridoso, não sei se compreende o que digo, mas Olívia
contou-me o que fez e até que o homenageou.
Ah, sim! O pendente de cabelo!? Vendo a expressão da mulher e
reconhecendo a sinceridade, não contive um esgar incrédulo.
Seu olhar me fez pensar em Friedrich Nietzsche, um filósofo
alemão que tive o prazer de ler nos tempos de faculdade “Há uma inocência
na admiração: é a daquele a quem ainda não passou pela cabeça que
também ele poderia um dia ser admirado.”
De fato, ser admirado por deixar uma pirralha dormir no meu colo
é estranho e, ao mesmo tempo, é impensável.
— Por que essa expressão? — A pergunta da mulher me deixa sem
resposta.
O que me faz sair da pequena bolha que esse quarto me
proporcionou ao chegar, colocando de volta aos trilhos a locomotiva
desenfreada da raiva, rancor, desprezo e ódio. Ainda mais, depois dos
momentos de pavor que vivi mais cedo com minha Fadinha.
— Não crie ilusões ao meu respeito, senhora De La Fuente. Não
sou material para ser admirado. — Me aproximo. — Tenha em mente que
sou pior que aqueles que a capturaram.
A mulher dá outro passo e mais alguns até pôr as costas contra a
porta. As mãos trêmulas seguravam a maçaneta e o seu olhar tão quente de
chocolate no inverno escrutinava o meu rosto, passando por meu peito, se
detendo nas duas linhas desiguais e correndo por meus ombros, se juntando
nas costas.
Não havia pensado nisto, mas ela viu as marcas em minhas costas
quando entrei no banheiro, por isso esse olhar e essas ternas palavras.
Piedade?
— Está se preparando para uma guerra, Christian?
— Guerra?
— Sim. Destas que já vi muitas em minha vida. — Ela pausa e seus
olhos se turvam. — A guerra não perdoa inocentes e culpados. Ela é
dolorosa e cruel.
— Você parece conhecer muito sobre isto.
— Sim, durante anos eu e meu marido servimos como voluntários
da Cruz Vermelha nas fronteiras. Vi muitas coisas, olhares assim, como o
seu.
Me espanta saber que estou diante de uma mulher com tanto
conhecimento. Como não li nada sobre ela após o resgate, me surpreender é o
menor dos meus problemas.
— Onde ele está?
— Morto. Quando fiquei grávida, fui enviada para casa, mas ele
preferiu ficar e esperar o novo médico, mas o hospital de campanha era um
alvo.
— Essa é uma batalha injusta, Maristela.
— A luta dos homens, dos anjos e a guerra que criamos em nós,
também.
— Por que diz isso?
— Porque mesmo com seus olhos cobertos por lentes, posso ver
uma guerra iminente se aproximando e não acredito que deva lutá-la.
— Esta começou faz tempo. E não é nada que deva se preocupar!
A mulher abaixou a cabeça e assentiu levemente. Em seguida,
ergueu o rosto dando um passo em minha direção.
— Agradeço o que fez, por nós, Christian.
— Álvaro!
— Como disse? — Ela arqueou o sobrecenho.
— Para onde vamos, não conhecem o meu rosto e o meu nome.
Eles não sabem quem sou, doravante, me chame de Álvaro. É como a equipe
me conhece.
Respondo dando todas as claras intenções de que o assunto e
qualquer frase piedosa que possa usar para o que pensa ser um consolo, já
estão vetadas.
— Sim.
— Volte para o seu quarto e se prepare. Perdemos um tempo
precioso aqui.
Dei as costas, mas senti sua aproximação e o leve roçar da mão
morna contra o meu antebraço. Não me virei, mas senti o impulso que fez
para ficar nas pontas dos pés.
— O que é isto?
— Entregue isto a Christian, quando ele estiver livre desta
guerra —, a mulher sussurra e sinto seus lábios tocarem rapidamente sobre a
barba na parte de baixo do meu queixo. — Diga-lhe o quanto sou grata por
salvar a mim e a minha filha. — Ela se afasta e faço o mesmo.
— Diga-lhe que espero um dia vê-lo novamente.
Maristela caminha até a porta e por sobre o ombro me acena com
uma despedida.
— Não se esqueça, entregue a ele a minha lembrança.
— Isto não irá acontecer. O Christian, não vai sobreviver a isto.
CAPÍTULO 31

INALAR

“Se você quer, precisa desejar e o que desejar será seu”

Happy Feet II

ANJINHO
njinho, assim que a tia Nina colocar o cinto, podemos voltar a assistir ao
-A filme, tudo bem?
— Hum!
— Amor, você está triste por estarmos voltando para casa?
—Não. Quero a mamãe!
— Então coloca um sorrisão nesse rostinho…
— Humm.
A tia Nina é assim. Ela não tem paciência de esperar as pessoas
sorrirem, mesmo que não entenda o porquê é importante rir toda hora, eu a
faço feliz. Assim que os dedos dela fazem cosquinhas em minha barriga,
começo a rir.
Ela encontrou os nossos assentos enquanto esperamos o tio Gio.
Olho por sobre o ombro da minha tia e o vejo conversando com os dois novos
tios que ficaram tomando conta da gente diariamente durante o nosso passeio.
O tio Giovane é engraçado e muito inteligente e tem mania de
sorrir fácil. Diz coisas que me fazem rir, tem um gatinho que é quase do meu
tamanho e tem nome de Gato. Mas quando fica bravo é de dar medo. Não
gosto de lembrar quando grita.
Escondo meu rosto no ombro da tia Nina. Gosto quando o tio Gio
me pega no colo e me carrega nos ombros. Quando alguém pergunta se é meu
pai, ele diz: é meu afilhado, mais que um filho.
Isso é bom, mas também é triste. Eu até contei para a minha amiga
Fadinha, e ela falou que logo terei um papai só meu.
— Hummm…
— Suponho que tenha alguém com sono, quantos suspiros. Quer
me contar o que está pensando?
— Hum-hum! — Balanço minha cabeça fazendo meu cabelo
colorido balançar. Não quero responder, porque a titia não vai entender o que
sinto aqui dentro de mim, quando penso em ter um papai.
Ela afaga meu rosto e bate o dedo em meu nariz. A tia Nina e tio
Gio são irmãos de papai e mamãe diferentes. Eles me explicaram algumas
coisas nesta viagem, porque já sou grande e posso entender melhor as coisas.
Não aguento isso e meus olhos se reviram, igual da titia loira.
— Anjinho?! — Tia Nina se inclina e ergue meu rosto. — Amor,
tudo bem aqui?
Ela faz aquela pergunta estranha sempre que fica preocupada, mas
acredito ser por revirar os olhos. Faço de novo e ela se agacha à minha frente
com os olhos iguais de uma pomba, arregalados.
— Anjinho!
Acho engraçado e coloco a mão na boca rindo.
— Seu pestinha, quem te ensinou a fazer isto?
Não respondo, só espero enquanto ela guarda a mochila no
quadradinho, acima das nossas cabeças. Outra coisa que meus tios fazem e
que acho muito legal é quando estão inventando uma luta.
A mamãe detesta que a tia Nina me ensine esses golpes, mas as
cambalhotas podemos dar. E fizemos muito disso esses dias.
A tia Nina, passou o cinto na minha cintura e da janelinha posso
ver o asfalto lá fora. Daqui a pouco vou contar as nuvens para dizer à mamãe
quantas vi.
Me dá uma vontade de soltar o ar, e me deitar no colo da titia
quando penso na saudade que sinto da mamãe.
— Hei, meu campeão, olha só o que tirei da mala? — Tio Gio
senta-se no banco ao lado e balança meu Happy para mim.
— Happy! — Digo feliz de verdade. Seguro meu pinguim que o
vovô Fefê me deu e o abraço com todo carinho. — Queeee saudades, Happy.
— Como ele gosta tanto assim de pinguins de repente?
Meu tio se aproxima e me abraça deixando um beijo sobre minha
cabeça, mas só para perguntar a tia Nina em voz baixa. Os adultos são tão
estranhos. Eles acreditam que falando baixinho não vou saber que estão
falando de mim?
— Depois te conto.
Seguro outro riso e coloco a mão apertada na minha boca. Não
consigo entender os adultos.
O que a tia Nina vai contar para o seu irmão é que quero um papai
Pinguim. Foi o que pedi à mamãe. Não quero ser um pintinho, como a
professora da escola disse. Quero ser protegido igual o Mano[15], mesmo que
fosse diferente, ele tinha um papai que o amava.
Abraço com força ao meu Happy e sinto meus olhos arderem.
Tenho vontade de chorar, mesmo sabendo que a mamãe ficou triste com o
meu pedido, não pude deixar de fazer. Ouvi ela chorar várias e várias vezes.
Sei que ela é a melhor mãe do mundo, me ama, brinca comigo e me
abraça quando sinto dor. Quando choro e não consigo explicar com palavras
o aperto ruim dentro de mim, ela entende.
Quando nada faz sentido e tudo à minha volta me assusta, a mamãe
que fica comigo, me pega no colo e diz que me ama, que vai passar e que
sempre vai estar ali comigo.
Ela sempre chora escondida no quarto ouvindo a nossa música,
mas depois me abraça, diz de novo que me ama de tooooodo o seu coração e
que vai me dar tudo que puder.
Não queria fazer a mamãe sofrer, mas seria tão bom ter um Happy
só meu. E se eu tiver um papai, ele vai cuidar de mim e da mamãe. Porque
enquanto ela me pega no colo quando choro, ninguém faz isto por ela.
— Anjinho, está confortável amor, precisa de algo? Quer os seus
fones, vai fazer um barulhinho como da outra vez. — Tia Nina faz várias
perguntas, mas não espera que a responda. Ela ergue sua mão e coloca os
fones no meu ouvido e logo começo a ouvir a voz do MAH.
A mesma voz que ouvi naquele dia na piscina. Minha barriga treme
e meu coraçãozinho faz tum-tum, muito rápido.
Não suporto barulhos altos, eles fazem meu ouvido doer e
atrapalham minha concentração. Meus olhos doem e começam a chover luzes
fazendo as imagens ficarem estranhas. Me sinto sufocar, mas tudo isso de
uma única vez.
O único som que gosto é da música. A melodia me acalma e posso
através do som, ver as notas em minha frente. Consigo imaginar e tocá-las
com meus dedinhos inquietos.
Depois é só levar as notas para um instrumento e a música logo se
cria. Foi assim com o MAH. A voz não machuca meus ouvidos, e as notas
acalmam as estrelinhas agitadas na minha cabeça.
Tia Nina conversa com o tio Gio e depois entrega a ele algo, não
tenho curiosidade, estou pensando na Fadinha.
Sinto saudades da minha amiguinha. Eu não tenho muitos amigos
na minha escolinha. As crianças têm medo de mim e algumas mamães os
proibiram de brincar comigo.
Só tenho ela que também gosta de cavalos e… Ah! Tenho a titia
loira que me deu as canetinhas. Foi ela que me contou a história do ovinho
de pinguim.
Me lembro das caretas dela tentando chamar a minha atenção,
revirando os olhos, é engraçado! Durante vários dias, ela tentou conversar
comigo, mas não via nada interessante para isto até que a titia loira disse uma
coisa engraçada e bateu na aba do meu boné fazendo-o escorregar.
“Esse moleque parece filho de um ovinho mesmo, liso e sem
graça.”
Não entendi nada. Adultos dizem coisas estranhas, mas foi
engraçado. Lembrar disso me faz rir.
— Adoro essa risadinha gostosa. — Tia Nina cheira o meu pescoço
e o tio Gio espana o meu cabelo com a mão, igual ele faz com a cachorrinha
do vovô, a Kika.
Gosto de pessoas inteligentes que tentam entender a minha forma
de pensar. Apesar de ser muito novinho, a minha mente se concentra em
coisas que são complicadas para os coleguinhas da minha idade.
O que é ruim, porque ninguém gosta de brincar comigo. A titia
loira é inteligente e engraçada. Primeiro ela me contou uma historinha que
inventou, mas foi péssimo.
Depois trouxe um livrinho de pinguins, foi então que me apaixonei
— ela quem disse isso. Quando a mamãe me levou no ‘centro comercial’
para comprar novos livros, eu quis um igual aquele da titia loira.
Depois dos livros, ela levou os filmes e me deu canetinhas, me
dizendo ter um amigo e que daria a ele um filme igual.
Não entendi nada, mas é um adulto — dou de ombros.
Eu estava feliz me sentindo um pinguim, até a professora falar que
éramos pintinhos. Foi assim que tive de pedir à mamãe para mudar isto.
Porque a minha mamãe é muito forte. É como a mamãe do pinguim!
Não ouço o barulho, mas sinto o momento que o avião começa a
subir para o céu, logo meus olhos deslizam para a janelinha e não consigo
deixar de contar.
Uma… duas… três… quatro… cinco… ouço uma risadinha.
Minha curiosidade é atraída para o banco ao lado, vejo um papai
com o seu filhinho. Eles estão tirando da mochilinha, vários bonequinhos. O
menino tem uma risadinha igual a do papai dele. Os dois têm os mesmos
olhos, o cabelo de molinhas e a pele de chocolate igual à da tia Nina.
O papai do menino, entrega a mochila para alguém, — que não
consigo ver –, e os dois começam a brincar. Desvio meus olhos, não quero
ver, me sinto estranho. Aperto meus dedinhos com força e meus dentes
seguram as bochechas por dentro.
Minha atenção se volta para as nuvens que passam bem
devagarinho pelo céu. Volto a contar e fico pensando se aqui é o meu lugar.
A mamãe diz que sou o Anjinho — esse não é o meu nome, mas
tudo bem, não ligo. Ela diz que nasci no dia do aniversário de um anjo.
Mamãe sempre fala que sou especial, porque sou um presente de Deus.
Uma forma que Deus encontrou de devolver a felicidade para a
mamãe.
A vovó Maria, diz a mesma coisa, o teeeempo todo. Ela é muito
boa e carinhosa, mas briga muito com a mamãe. Ela vive dizendo que não
suportaria vê-la triste de novo.
Sei que sou especial de uma forma que algumas pessoas não me
entendem e não conseguem me aceitar. Isto me deixa triste e muitas vezes me
faz chorar, mas só porque sou diferente, não quer dizer que não sou um
menino bonzinho que precisa ser amado!
A mamãe e a tia Nina, falam isso diariamente.
Sou autista, reconheço o termo, porque sempre ouço falar disto
indo a fonoaudióloga, fisioterapias e médicos. E a mamãe sempre fala para as
pessoas que me conhecem: autismo não é doença, é uma condição.
Entendi que sou diferente, porque a minha mente pensa diferente.
Mas o que me faz sentir estranho é a forma que outras pessoas me veem, não
como sou.
Sei que vou encontrar muita gente em minha vida que vai me amar
e outras não, mas desde que vi uma pessoa, quer dizer, não vi. A minha
amiga Fadinha que prometeu me dar uma fotografia e que nela, poderia ver
uma pessoa especial que vai me amar.
Uma pena que ela mentiu para mim e não gosto quando isto
acontece. Desde que fez a sua promessa, nunca mais voltou no haras.
Isto me fez chorar.
Na minha cabeça, onde há muitas luzinhas piscando, posso
desenhar alguém como meu Happy, com a voz do MAH e que seja tão
inteligente como a Fadinha disse que ele é. — O ar sai do meu peito e faz
fuuu…
Só quero que o meu papai me ame, assim como faz quando sonho
com ele. Nunca contei para a mamãe sobre isso, mas, agora que tenho cinco
aninhos, já sou grandinho e não quero ficar do tamanho do tio Gio, para ter
um Happy.
Sem querer volto a olhar para as poltronas ao lado e não posso
segurar as lágrimas que se desprendem dos meus olhinhos.
O papai do menino, pegou outro bonequinho e está fazendo-o voar
bem no alto com a mão esticada. O menino está rindo e tentando levar seu
bonequinho tão perto quanto possível do papai.
Sinto meus dedinhos doerem, mas não olho para eles. Me sinto
triste...
— Anjinho, o que foi amor, por que está triste?
— Hum?
— O que foi campeão?
Sei que os meus tios se preocupam comigo, assim como a mamãe,
a vovó Maria, a Fadinha e a titia loira da escolinha, mas eles não podem
fechar esse buraquinho que dói no meu coração.
— Anjinho, está sentindo algo amor? Por favor, fale com a tia
Nina.
Ergo meus olhos e não consigo mais segurar o choro, não quero
sentir a minha cabeça doer e perder o controle. Ver todos à minha volta com
olhos assustados, me deixa muito nervoso, por isso deixo a tia Nina me pôr
em seu colo e me balançar com carinho.
— Shiii… Shiii… Me conta amor, o que houve?
— Dói aqui. — Aponto o meu peito e vejo que não entende.
Adultos nunca entendem!
— Está sentindo dor?
— Um buraquinho.
— Nina? — Tio Gio a chama e aponta a poltrona do lado e como
antes, fala baixinho como se não soubesse o que dizem. — Ele estava
olhando…
— Ah, meu Deus!
Eles não têm nada mais a falar. Abraço com força ao meu Happy e
aumento o volume da minha canção fechando os meus olhos e penso na voz
do MAH que ouvi no celular do tio Gio.
Quero que o avião chegue logo. Sinto vontade de ter um Happy,
mas também tenho saudades da mamãe. Fecho meus olhos e penso no que o
Sven[16] falou para Erik, filho do papai Mano: “Se você quer, precisa desejar
e o que desejar será seu”
Um… dois… três… quatro… quero meu Happy… seis… sete…
quero o MAH…

LIA
Dizem que as mães têm sexto sentido, eu me permito dizer que
tenho até o décimo.
A noite mal dormida em nada me ajudou a concatenar os meus
pensamentos duvidosos.
Me sinto agitada tanto quanto antes e nada parece me acalmar.
Tenho a sensação de que se não alcançar o meu filho o quanto antes, meu
corpo inteiro vai se estalar e quebrar em pedaços.
Saudades. Era assim que a minha mãe falava ao telefone quando
vivia fora. Só posso atribuir isso às saudades.
E o pai dele não está ajudando! Deus...
Sendo assim, me levantei antes das quatro da manhã e sem opções,
terminei de arrumar toda a bagunça em silêncio.
Com fones de ouvido e o celular em mãos entre um novo cômodo
organizado e uma nova playlist selecionada, enviava mensagens para Nina,
querendo saber a cada instante da partida deles de São Paulo para casa.
Quando por fim me respondeu, não tive coragem de comentar nada
do que houve nos últimos dias e sobre o encontro com Fadinha apenas o
mínimo, sobre a promessa da jovem em retornar para as equoterapias.
Às dez da manhã, já estava saturada de suor, cansaço e mau-humor.
Mikael não retornou a nenhuma outra mensagem e nem me ligou. E como
não sou de correr atrás, deixei de lado.
Se ele quer ficar sozinho, seja lá que porcaria esteja acontecendo,
faça bom proveito. Não sou a pessoa mais doce do mundo e não seria tão
melosa ao ponto de mimá-lo, mas sou alguém racional que poderia fazer
algo. Porém, conheço o Promotor e se isolar é seu método de me fazer pisar
no freio — depois de uma noite insone, sinto muito por ele, desta vez não vai
acontecer.
— Dane-se, não tenho paciência!
A casa foi arrumada e um novo conjunto de lençol e edredom com
temas de pinguim foi estendido sobre a cama de Anjinho — sorrio. Meu filho
com sua nova paixão tem me feito rodar como um hamster na roda da vida.
A notificação de Nina pouco antes do embarque acelerou o meu
coração. E como o aeroporto está praticamente do outro lado da cidade, me
adiantei com um banho rápido, deixando a água lavar toda frustração e me
preparando para encontrar o meu maior tesouro.
Vesti um jeans, camiseta e calcei um louboutin preto de salto, meu
delicioso vício. Alcancei bolsa e as chaves, pronta para sair. O celular ficou
no carregador na sala e ao desconectar, percebi novas mensagens no grupo
das “Luluzinhas” e outra em privado por parte de Juliana.
@July_moranguinho: se não aparecer no grupo, vou aparecer
para você �� BOOO

Achei cômica a carinha e o fantasminha, mas sem tempo para


responder e ler as infinitas mensagens conspiratórias, desliguei o celular antes
de deixar o apartamento.

As salas de embarque e desembarque do aeroporto de Vitória


estavam apinhadas de passageiros e familiares em frenesi à espera. Relanceei
os olhos de um lado a outro, ansiosa, não querendo perder um único minuto
do abraço apertado e dos milhares de beijos que darei ao meu filhote quando
o vir.
Ao meu lado, Dionísio permanece como uma estaca pregada ao
chão. Imagine a cena: um homem negro trajando um terno de grife em seu
1,90 de altura, no rosto óculos escuros que escondem uma expressão severa,
que ainda assim, pode atrair mais olhares do que os repelir. Um conjunto
completo de boca, nariz e maxilar apertado em uma carranca. Os braços
cruzados à altura do peito mostrando sua gloriosa musculatura pelo terno
ajustado sobre os bíceps, pernas separadas em posição de ataque. Um deus
ébano e muito cheiroso.
— Pelo amor de Deus, Dionísio, relaxa! — exclamo entredentes.
— Estou a serviço, senhora.
— Dane-se! — Bufo. — Você nunca agiu assim, vale lembrar.
Qual o problema, poderia se portar como uma pessoa normal esperando um
passageiro?
— Creio que o seu namorado não gostaria que o seu guarda-costas
mantivesse uma postura relaxada, senhora.
— Meu o quê? — A inflexão na minha voz, foi tão aguda que
assustou um casal de japoneses ao meu lado. — Do que você está falando,
pelo amor de Deus.
— Senhora!?
— Quer saber? Não precisa explicar nada — praguejo entre dentes
cerrados e já imagino a fogueira que farei com Mikael bem ao centro.
Não posso acreditar no que estou ouvindo. — Dionísio, não tenho
nenhum namorado, ok!? Por favor, o fato de me dar bem com você ao meu
lado o tempo todo é por não ser obtuso.
Ele não responde e ao contrário, se possível, aperta mais os braços
cruzados contra seu corpo.
— Dionísio?
Imaginei que passar a utilizar meu próprio carro depois de alguns
meses me valendo do seu, fosse deixá-lo contrariado, por ter de
inadvertidamente aumentar o seu trabalho. Contudo, não é esse o problema.
Praguejo e dou um passo à frente, ele faz o mesmo e se posiciona
centímetros atrás de mim.
Sinceramente, não imaginava que as cantadas boas seriam algo
real.
— Me desculpe Lia, mas o doutor Mikael, deixou claro os limites
para todos nós. Sou o chefe da equipe, tenho de dar o exemplo.
— Você se tornou o meu amigo. Alguém em que confio para estar
na presença do meu filho. Não preciso te relatar a minha vida — movo meu
olhar em sua direção me sentindo chateada pela situação. — Não dou espaço
para as pessoas cirandarem em minha vida como bem entenderem. Preciso
confiar, mas se vai se portar como uma estaca, nos meus calcanhares, dê a
volta e espere no seu carro.
— Senhora…
— Quanto ao que o doutor Mikael diz, pensa, faz ou dita, é
problema dele, não meu. Porque o Promotor não manda em mim e não tem
poder algum sobre mim. E, pelo amor de Deus, ele não é o meu namorado.
— Ele tem motivos para ser tão meticuloso e como estava dizendo,
sou a favor de que tenha imposto regras. Isso é sinal de que se preocupa.
— Hum!? — Ironizo com uma careta.
Estou pronta para continuar a nossa agradável conversa quando
escuto o indistinguível som que reverbera por todo meu corpo.
Em um salão com milhares de pessoas, se um filho grita
MAMÃE… Essa mãe saberá que seu filho a chama.
— Anjinho! — Exclamo com a mesma emoção esperando que
corra em minha direção. Sem desviar o olhar e respeitando a barreira de
isolamento, ressalto para Dionísio. — Me faz um enorme favor, como
amigo? Esquece esse assunto, nem um pio perto do Anjinho.
— Tranquila, senhora. O ruivinho é meu amiguinho. Não deixaria
que as regras do pai dele mudassem o quanto gosto do garoto.
— O quê?
Não tenho tempo sequer de olhar para Dionísio, pois Anjinho
ultrapassa o mar de pessoas à sua frente e como um tiro certo de canhão pula
em meus braços abertos para recebê-lo.
— Mamãe…
— Meu filho! — Sinto as lágrimas turvarem meus olhos. A
sensação de segurá-lo contra meu corpo é tão intensa que esqueço de tudo.
Tudo que me deixou chateada, irritada e preocupada nas últimas
horas, só de sentir seu cheirinho de bebê, seus bracinhos em volta do meu
pescoço e o retumbar gostoso da sua respiração batendo sobre minha pele,
fazem valer a pena.
— Hum, cheirosa…
— Esse é o amor da mamãe! Como senti falta de ouvir a sua voz,
me dizendo isto.
Assim como o pai faz, ele naturalmente sente prazer em cheirar a
base da nuca no encontro do pescoço, algo tão íntimo como se esse gesto
fosse divino e nos ligasse por toda uma vida.
— Ei, apressado! — Nina exclama sorrindo.
Meus olhos recaem sobre os meus amigos, suas expressões são de
alegria, mas os trejeitos estão tensos.
— Aconteceu algo?
— Que tal irmos? — A voz de Giovane sobressai às muitas risadas,
abraços e comemorações de boas-vindas de outros passageiros.
Tão imersa na minha emoção, sentindo a calidez e o conforto de ter
meu filho em meus braços que só depois dessa demonstração de insegurança
por parte dos dois, me atento àquela sensação angustiante de horas antes.
— Anjinho, amor, como você está? — pergunto tentando ver seu
rostinho.
Ele não cede o agarre que tem em meus ombros e mesmo sendo
sutil, o beliscão que deixa sobre a pele do meu ombro é afiado o suficiente
para sentir sua tensão crescente.
Sem delongas Gio e seus seguranças recolhem toda a bagagem das
esteiras rolantes, — muitas — e em seguida saímos do aeroporto. Anjinho
agarrado ao meu colo, Nina no banco da frente e Giovane dirigindo. Não
houve comentários sobre o novo veículo, nem detalhes da viagem, apenas
silêncio.
Chegar em casa demorou muito mais do que sair. Pelo horário,
trânsito intenso e o esgotamento psicológico de tentar adivinhar o que estava
acontecendo. Se eles não queriam tocar no assunto, provavelmente
aconteceria em algum gatilho emocional em Anjinho.
O estacionamento iluminado é um bálsamo quando a Range segue
e para a vaga destinada. Anjinho ergue a cabeça e vejo que lágrimas delicadas
escorreram dos seus olhos. Beijo a ponta do nariz e faço nosso beijinho de
esquimó. Seu rostinho sonolento cai sobre meu peito, acaricio seus cabelos e
espero que toda bagagem seja transportada para o elevador.
— Vamos? — Giovane abre a porta e com delicadeza, o inverso da
sua expressão e voz e me ajuda a descer.
Sua mão ampara-me à base da coluna enquanto recolhe o pinguim
de pelúcia e uma mochila de anjinho que deixei sobre o banco de trás do
carro.
Sem paciência, ao entrarmos no elevador com Nina ao meu lado,
cruzo meus olhos com ela e indico seu irmão com a cabeça.
— Várias coisas, entre elas, miau… — Nina ergue a mão e faz um
gesto com garras.
Giovane não responde. Dou de ombros e indico Anjinho, então os
dois demostram uma expressão de pesar.
Inferno, será que Anjinho teve uma crise e não me disseram? A
culpa vem de imediato. Enquanto estava me refestelando com o pai dele, o
meu filho estava sofrendo longe de mim, não posso acreditar nisto.
O amargo sabor da insuficiência se espalha pela minha boca.
Giovane destranca a porta do apartamento, nos permite entrar enquanto se
encarrega da bagagem.
Caminho com Nina em meus calcanhares em direção ao quarto do
Anjinho. Sinto o quanto está devastado pela forma que olha seu edredom e
nem se dá conta.
— Ele está medicado? — Pergunto sentindo este sono ser um
pouco aquém do normal.
— Sim, acabou de tomar o remédio minutos antes de
desembarcarmos.
— Por quê?
— Lia —, olho Nina que sacode a cabeça — vamos deixá-lo
dormir um pouquinho?
Me ergo a contragosto e com sua ajuda colocamos um pijama
confortável nele. Caminhamos para o corredor, não posso ir além disto, pois
o meu corpo escorrega pela parede quando estou do lado de fora da porta, ela
se junta a mim e logo Giovane se avulta sobre nós.
— Preciso ir! — Ele anuncia sem muita cerimônia.
— Tudo bem! Obrigada por cuidar dele e…
— Contudo, antes de ir, vamos conversar.
Gio surpreende a nós duas, ao escorregar pela parede oposta e
apoiar sua cabeça contra o gesso olhando para o teto.
— Como foi a viagem? — pergunto tentando quebrar o clima e o
silêncio pesado.
— Foi muito boa! Estou morrendo de calor, enquanto Sampa
choveu por dois dias, aqui parece que o sol está fazendo hora extra. — Nina
responde abraçando-se.
— E você, Giovane?
— Foi o suficiente para o trabalho e me diverti com o meu
afilhado.
— Sei! — Espero por mais e sem respostas suspiro alto. — Vão me
dizer o que aconteceu?
— Anjinho disse que quer um pai! — Gio responde e só então
volta seu olhar em minha direção. —Não qualquer um, mas o dele.
— Você realmente está…
— Aconteceu algo no avião. Ele já estava inquieto há alguns dias,
mas nada muito sério. Pensamos até que o papai ter enchido a casa de
brinquedos novos, como te falei por videoconferências, poderia ser a causa.
— Nina se adiantou, enquanto meus olhos permanecem sobre os de Gio.
— O que aconteceu?
— Ele tem desenhado bastante. Tem se mantido reservado um
pouco mais do que o normal —, ela hesita — porém, no voo nos deparamos
com uma linda família sendo companheiros de poltrona do outro lado do
corredor.
Nina faz um breve relato do que houve e a forma que Anjinho
reagiu vendo a interação entre pai e filho, mas houve algo mais que o fez se
retrair e chorar. Acabou que por um milagre ou por uma profunda dor
externou para Giovane o que o estava incomodando. Pela primeira vez,
Anjinho disse em palavras o que usa metáforas para pedir.
Meu coração dói e sangra por isto. Quando imagino que estamos
caminhando e passando mais um obstáculo, percebo que não cheguei sequer
a sair do lugar.
— Lia, sei que não é da minha conta. Que não tenho de dar a
minha opinião, como nunca fiz, mas ele precisa saber…
— Ele? Qual deles? — Sou ríspida devolvendo o tom afiado do
meu amigo.
Posso entender sua posição, pois é a mesma que me coloco, no
entanto, não cedo a julgamentos. Não cedo a imposições, porque a minha
decisão já foi tomada há muito tempo.
— Você é uma das mulheres mais brilhantes que conheci em
minha vida, Lia. — Ele pausa. — O fato de tê-la colocado ao meu lado para
trabalhar, não foi apenas como pretexto para investigar a morte dos nossos,
mas por gostar de tudo que vi.
Não me decepcionei em momento algum e nem vou. Pois, sei da
decisão que tomou, ninguém precisa falar, está estampado em seu rosto. Só
quero por meu tijolo na sua estrada, para te mostrar que vou estar aqui para
qualquer coisa. Seja apoiá-los ou protegê-los. Eu amo você minha amiga e
amo muito o meu afilhado, como se fosse meu filho.
— Contudo, não é! — Sou rude e não me sinto culpada,
principalmente pela franqueza ao me relembrar sua aproximação de mim.
— Exato! Ele não é, e como Anjinho, desejo muito que o pai dele
assuma esse papel.
— Ele fará! — Afirmo mais para mim, do que para Gio.
Giovane silencia-se, move seu corpo rápido colocando-se sobre
mim, beija o alto da minha cabeça e em seguida a bochecha de Nina.
— Sei que fará, só não sabemos como.
Giovane se ergue e seja lá qual outro assunto o esteja
enlouquecendo, toma conta da sua mente. Com um aceno rápido e outra
despedida, recolhe sua bagagem e deixa o apartamento entrando em uma
ligação agitada.
Nina não demora a levantar e segue para seu quarto em busca de
banho e descanso. Aviso por alto que preparei um almoço tardio, mas ela
dispensa sabendo bem o que desejo.
Ficar sozinha com meu filho.
Ergo-me com cautela e me arrasto para o quarto de Anjinho.
Caixas, sacolas e duas malas enormes estão em um canto. Com cuidado para
não fazer barulho, vou abrindo-as e um sofrimento de pinguins e brinquedos
diversos vão surgindo à minha frente. Roupas novas, calçados, livros. Todos
os mimos que os pais de Gio e Nina sempre fizeram questão de dar a
Anjinho.
Aproximo-me da cama e me deito sobre o colchão aconchegando-o
ao meu peito. Minha mão desliza sobre os fios ruivos cadenciadamente e
novas lágrimas saltam os meus olhos.
Como mãe sou capaz de sentir saudades, de lutar e entender meu
filho como pouquíssimas pessoas irão fazer em suas vidas.
Sei que sua cabecinha está a mil por hora, com pensamentos e
perguntas chegando de ambos os lados e o fato de não poder se expressar
abertamente, magoa a si mesmo. Pois, essa é a diferença entre o autista e o
não autista.
A sua inteligência e os seus sentimentos são os mesmos, mas a
transmissão da ideia não ocorre tão naturalmente.
Saber que sua tristeza e mágoa, vem de uma cena tão linda e
“normal” machuca nós dois. Porém, mais a ele que não expõe o que sente,
por lá no fundo da sua mente saber que não será compreendido.
CAPÍTULO 32

INTIMAÇÃO
“A posse mal administrada, pode arrebentar tudo que vier pela
frente.
Porém, quando dosada com amor é arrebatadora…”

LIA
OIS DIAS... – pausa – dois dias sem nenhuma notícia sua Mikael, o
>>D
que está acontecendo? Não sou a pessoa mais paciente do mundo e
não tenho a intenção de perder o foco fazendo conjecturas sobre seu silêncio.
Então...
>> Quer saber de uma coisa, dane-se. Quando achar que deve, me
procure e se eu estiver disponível, respondo. Só quero lembrá-lo de algo: foi
você quem veio atrás de mim primeiro.
Termino de colocar os lanches na bolsa térmica e torno a olhar para
o celular largado sobre o balcão da cozinha sem qualquer sinal de mensagem.
Ignoro o aparelho e toda a situação que ronda a minha mente.
Durante os últimos dois dias, conjecturar coisas demais sobre o que
acontece em relação a mim e Mikael, assim como a saúde mental do meu
filho que tem sido bombardeada por sua necessidade infantil é algo externo
que foge ao meu conhecimento.
— Lia, estamos ficando atrasadas. — Nina coloca a cabeça pelo
vão da porta.
— Terminei aqui.
Ela acena e deixa próximo ao portal a bolsa de palha com toalhas,
protetor solar e várias bugigangas que levamos para a praia.
Chamo Anjinho algumas vezes, sem resposta caminho em direção
à pequena sala de jantar.
— Meu amor, o que está fazendo? Vem trocar a roupa! — Anjinho
com os seus olhinhos acesos, com uma ansiedade boa ergue seu olhar e sorri.
Caminho até mesa de jantar, canetas, lápis de cor e as tais
canetinhas mágicas, estão espalhadas, mas de uma forma ordenada por cores.
— Um desenho do Anjinho, no avião.
Assim que ouço o que diz, meu peito se oprime, por medo de que o
episódio do que se passou dias atrás, se repita. Porém, olhando por sobre sua
cabeça inclinada contra o caderno de artes, me surpreendo com a imagem.
Um pinguim anjo, com direito a auréola e tudo, voando lindamente
sobre o céu azul cercado de nuvens.
— Anjinho, que lindo amor! Que desenho mais fofo, vamos pôr em
uma moldura?
Ele balança a cabeça recusando.
— É um presente, mamãe.
— Oh, que lindinho. — Me curvo e faço cócegas em meu bebê.
Não faço comentários sobre para quem é o presente, pois é mais do
que notório. Eu tinha me decidido a não dizer nada sobre o meu encontro
com a Fadinha, mas após ver o estado em que chegou em casa e como
acordou, sabia que se falasse com ele sobre a promessa da sua amiguinha em
encontrá-lo no haras, a alegria voltaria para o seu rostinho.
Eu, tinha razão, bastou saber que a sua Fadinha estará na próxima
sessão de equoterapia esperando por ele, para que meu filho resolvesse
resumir toda a sua viagem em lindos desenhos.
Seu entusiasmo foi tão grande, que antes mesmo do sol raiar, ele já
tocou seu piano, colocando uma música, pedindo um lanche especial para
levarmos à praia e feito várias folhas de desenhos incríveis.
Nina voltou à sala e ao ver o novo desenho elogiou com
sinceridade. A caricatura me chama a atenção, por ser um auto reflexo que
transmite uma paz que meu filho está sentindo. — Está muito bonito.
— É igual o Svem, ele voa.
— Ah, verdade! — Outra referência do seu filme preferido
soluciona o mistério. — Que tal terminar depois?
Ele balança a cabeça negativamente. Seguro o riso e dou de
ombros. Nina faz o mesmo ao sentar-se em uma das cadeiras de espaldar alto
e colocar os fones de ouvido.
— Tudo bem, pode terminar, vou me trocar. — Deixo-os na sala e
sigo para meu quarto, para terminar de colorir, ao ponto que se dê por
satisfeito.
Com o celular jogado sobre a cama espero resposta aos áudios que
enviei. Ainda acho terrivelmente perturbador o meu encontro com Mikaella e
não por achá-la tão parecida com Mika e meu filho, mas pela forma que me
tratou, como se tivesse rancor de mim.
Se realmente Nina, estiver correta em sua análise sobre o
comportamento da jovem, devo deixar isso de lado, pois pode ser impressão
minha, ou o fato de invadir o seu espaço pessoal me aproximando sem ser
convidada, pode ter causado essa antipatia gratuita — bufo exasperada —
não posso deixar de concordar sobre esse aspecto, mas… é intrigante.
Apesar de que ainda me incomoda muito a sua última frase:
conheci o pai do Anjinho.
Isto sem falar que Christian é o irmão dela. O tal San que
conseguiu atrair o interesse de Nina, que mundo pequeno.
Amarrei as tiras do biquíni e escolhi um short jeans e uma camiseta
larga para usar sobre a roupa de banho.
— Esquece isso, Lia, você precisa se concentrar em coisas mais
importantes. — resmungo comigo mesma e ouço Nina chamar-me.
Me ergo e deixo o quarto, levando comigo uma bolsa com câmera
fotográfica, óculos, carteira etc.
Anjinho com um sorrisinho enigmático, olha seu próprio desenho,
depois fecha o caderno e o abraça.
— Hummm, para quem será esse presentinho? — Nina arrulha seus
cabelos desordenadamente.
O menino se inclina soltando uma gargalhada gostosa, com carinho
ele nos ajuda a guardar ordenadamente todos os seus objetos antes de
seguirmos para seu quarto.
— Mamãe, Anjinho ama a praia.
— A mamãe adora ir à praia com você, meu amor. — Seguro pela
lateral do seu corpo e faço cócegas sobre a pele suave da sua barriga macia.
Ele se curva com risadinhas.
Em clima de descontração, deixo de lado meus pensamentos
angustiados e as preocupações para passar o dia com meu filho e minha
amiga.
O condômino à beira-mar tem pontos negativos e positivos e, entre
estes, o fato de só atravessar a avenida e colocar os pés na areia morna supera
todos os pontos negativos.
— Ah, que delícia! — Nina exclama se jogando na cadeira da praia
protegida por um imenso guarda-sol.
— Não acredito! — digo rindo da sua bravata. — Você estava
sentada a menos de cinco minutos, vem para a praia e faz o mesmo? Nem
pensar, levanta-se.
Ordeno ao mesmo tempo, segurando em seu antebraço.
— Não! Quero primeiro abastecer as minhas retinas e só então me
lançarei ao mar.
— Nem se atreva Nina, nós vamos mergulhar. Vem. Anjinho,
ajuda a mamãe.
Anjinho segura do outro lado do seu braço e a farra começa. Nina
se contorce fazendo drama, enquanto nós dois nos divertimos bloqueando sua
visão.
— Não, não, não… me deixem aqui apreciando a vista, por favor.
— Ela reclama, enquanto descaradamente morde e lambe os lábios. Sigo seu
olhar e vejo os mesmos rapazes, que dias antes estavam jogando vôlei diante
do apartamento, um pouco mais afastados na areia.
— Você não vai sumir!
— Não mesmo, preciso tomar conta de tudo aqui.
— Quanto a isto, não precisa se preocupar. — respondo com a voz
enfadada.
Ela ergue os olhos e aponto na direção oposta. Três mesas longe de
nós, está Dionísio e mais um segurança com suas camisas de manga dobradas
até os cotovelos e óculos de aviador.
— Pelo amor de Deus! — diz exasperada. — Poderiam ao menos
colocar roupas mais confortáveis.
— Concordo.
Ela se rende ao apelo de Anjinho e juntos corremos para a água.
Passamos um tempo brincando, apesar de o dia ser mais de
mormaço que sol intenso e resolvemos voltar para as nossas cadeiras e
sombras.
Os jogadores de vôlei fizeram alguns comentários, como sempre,
mas nada que dois imensos guarda-costas nos rodeando não pudessem
desestimular para a tristeza de Nina.
— Anjinho, vamos tomar um suco? — Ofereço a ele uma
garrafinha com um canudo, sentado dentro da sua poça de areia remexida.
Meu filho olha com atenção para o mar.
— Nina? — Chamo-a e entrego uma garrafa de suco, enquanto eu
me servia de água.
— Não conseguiu notícias? — Nina pergunta em voz baixa, mas
sem me olhar.
— Não.
A resposta simples diz muito mais do que gostaria de transparecer.
Não gosto de demonstrar fraqueza, ou deixar que vejam esse lado
que mal consigo suprimir quando se trata de Mikael. Assim como no passado
e em qualquer momento das nossas vidas que nos aproximamos demais, ao
menor sinal de distanciamento, sinto-me devastada.
Droga! Isto não era para estar acontecendo tão rápido, não assim.
Deixo de lado a água e volto a me concentrar em meu filho que
atrai minha atenção.
Apesar do adiantado da hora o sol ainda é brando, o que é bom,
pois a pele muito branquinha de Anjinho se queima fácil, mesmo carregando
seu corpo de protetor solar e o mantendo debaixo do guarda-sol. Ele ainda
não tem as sardas espalhadas pelo corpo como o pai, mas sei que ao longo
dos anos elas virão, e serão charmosas. No entanto, me preocupo com a saúde
da sua pele sensível, principalmente o rosto onde elas são mais intensas.
Coloco mais uma camada de protetor sobre o rosto de Anjinho, ele
reclama e tenta fugir, mas o seguro bem, criando uma espécie de brincadeira
para entreter seu interesse.
— Lia, acredito que vou entrar na água e levar Anjinho, quer vir?
— Não, vão vocês, vou tirar fotos. — Digo entusiasmada. —
Depois que voltarem, nós vamos para casa, já está quase na hora do almoço.
— Ok! Está montando um novo álbum? — Nina pergunta soltando
a canga ao ficar de pé.
— Sim — meu sorriso é discreto, mas o olhar perspicaz da mulata
não perde uma deixa.
— Hum! Esse álbum tem alguma foto explícita?
— Não! — Nego rápido demais.
— Mas, terá!
— Nunca, o Anjinho depois vai querer ver.
— Mas as fotos não são para ele. — Ela dá de ombros segurando
Anjinho pela mão que já está assanhado para correr por todo o caminho.
— Você não estava indo mergulhar? — Aceno com a mão
mandando-a embora, enquanto inclino a máquina na mão.
Clic… clic… clic…
Novas fotos são capturadas pelo obturador da máquina. Anjinho
olhando para cima, sorrindo, saltando e correndo em direção a água.
De fato, as fotos, como este álbum não são para ele, mas para
recordar cada mês de sua vida, cada detalhe do que viveu. Pode parecer uma
forma insana de tentar me redimir com Mikael para quando contar-lhe sobre
o filho. Não que tivesse isto em mente quando iniciei minha coleção, mas por
algum motivo — óbvio demais — não posso evitar fazê-lo.
Mordo o canto do lábio com força. Talvez, uma foto de um certo
homem deslumbrante, dormindo despenteado possa aparecer em meio ao
álbum, mas isto não preciso revelar a ninguém.
Isso me faz pensar em Mikael e estupidamente, procuro o celular
na bolsa e não consigo impedir a mim mesma de fazer uma ligação.

A falta de resposta à minha chamada não foi novidade, mas a


tristeza que sinto, sim. Ao longe, meu filho se esbalda ao pular as ondas
abraçado ao corpo de Nina. Meus olhos se enchem de lágrimas, mas elas não
têm a oportunidade de verter.
— Quantos anos ele deve ter?
A voz suave me pega de surpresa e o celular escorrega da minha
mão, direto para o meu colo. Com o canto dos olhos vejo Dionísio se
aproximando lentamente com o olhar fixo na pessoa que faz sombra ao meu
lado.
Sinto o fôlego travado entre meus lábios cerrados, o leve tremor em
meus dedos ao segurar os braços laterais da cadeira são a indicação visual de
como me sinto. Segundos preciosos parecem anos até conseguir me erguer
sobre meus pés.
— Bem, vejamos. Minhas filhas têm seis anos, em breve farão sete.
Pelo tamanho dele —, pausa — não podemos julgar pelo tamanho, pois é
óbvio que os genes são do pai. Claro! Sendo óbvia literalmente… Então,
vejamos, cinco aninhos?
— Você… — consigo me erguer e bloquear a visão de Nina e
Anjinho brincando na água.
— Olá, Lia, a quanto tempo não nos vemos?
— O que está fazendo aqui?
— Eu disse que se não me respondesse, viria até você.
— Juliana...
— A propósito, o seu filho é lindo!

De todas as pessoas que poderiam descobrir sobre a existência do


meu filho, July não seria a minha escolha. Aliás, ninguém, na verdade.
Juliana dá um passo adiante saindo da minha reta e fixando seus
olhos à frente. O vestido fresco rodado esvoaça com a brisa, o coque no alto
da cabeça tem alguns fios soltos. De braços cruzados sob os seios ela tombou
a cabeça de lado apreciando Anjinho se jogando nas ondas com Nina. Os
óculos de sol não têm as lentes totalmente escurecidas e posso ver
nitidamente como arregala os olhos a cada vez que meu filho fica mais em
evidência.
Olho à minha volta em busca de algum lugar em que possa arrastá-
la para longe, antes que diga ou tenha alguma das suas ideias mirabolantes e
me coloque em perigo, ou pior, coloque Anjinho, falando com ele sobre
Mikael.
Dionísio faz um sinal para seu companheiro e percebo a sua
intenção em tirá-la daqui, e isso me deixa ainda mais nervosa. Com gestos
rápidos de cabeça o faço estacar no mesmo lugar, mas o homem parece
pronto ao menor sinal para evacuar a área como um tornado.
— Você tem que sair daqui. — Afirmo segurando em seu
antebraço.
— Não se preocupe, não tenho a intenção de ficar e nem deixar de
fazer o que tinha em mente — ela gentilmente liberta-se e me afasta.
— Quem sabe que está aqui? — tenho a esperança de que ninguém
o faça e imagino que nem minha mãe, ou teria me avisado, não é mesmo?
Um arrependimento me bate neste momento, pois, na minha
estupidez em não ver outras mensagens que se acumularam nos últimos dias,
posso ter perdido essa informação importante.
— Tirando os armários que me acompanham — ela aponta por
sobre o ombro os dois seguranças na linha entre o calçadão e a areia branca
— ninguém. Se está pensando em me matar e dar fim no corpo, já aviso que
nos últimos anos passei a fazer karatê, sou quase uma discípula do Mestre
Miyagi.
— Ô, pelo amor de Deus! Não comece a fazer piadas, Juliana. Vai
embora e, seja lá o que acha ter visto, esqueça.
— Hum!? Não precisa demonstrar que não confia em mim Lia. Eu
não farei nada, se me responder a algumas perguntas.
— Nem pense em falar nada, Juliana. — rebato deixando-a
perplexa com meu tom. — Ele é meu filho, preciso esclarecer algo de fato?
— Não! Quem em sã consciência tentaria fazê-lo?
— Então, o que está sutilmente sugerindo ao dizer que tenho de
responder-lhe algumas perguntas?
— Quanto anos ele tem? Por que está escondendo o seu filho?
Aliás, essa não precisa responder, sabemos bem o motivo. Mikael nunca
escondeu sua aversão em ser pai, o que não concordo. Espera um pouco —
ela pausa — Angélica sabe, pois é a responsável pela segurança. — July
divaga em suposições. — Aline sabe, por que é sua amiga e a cretina nunca
me disse nada!
— July…
— Quem mais sabe, sobre o seu filho?
— Ninguém e se depender de mim, continuará assim.
— Mesmo namorando o pai dele?
— Não tenho namorado e por favor, vá embora.
— Não acredito que vá conseguir manter um segredo tão grande
assim, encoberto por mais tempo.
— Por que, você pretende contar?
— Não sou tão intrometida assim, Lia. — Ela rebate, ofendida. —
O mais longe que Carla levou o dela foi por dezessete anos e… — July fixa
seus olhos sobre os meus olhos pela primeira vez. — Tenho a certeza de que
não fará isto.
— July, por favor. Sei que adora bancar a detetive e tem um
enorme coração querendo sempre ajudar a todos, vi isto com Anderson e
Aline, até mesmo depois da revelação de Carla e Ramon, mas esta história
não é nada do que possa imaginar. Só esquece o que viu aqui, por favor.
— E o que exatamente estou vendo Lia?
— Nem se atreva…
— Nada. Não estou vendo nada, estou apenas informando-a que
tem o meu apoio, no que precisar daqui por diante. — Ela pausa e sorri para
onde Nina brinca com Anjinho.
— Apoio? Sem saber de nenhum detalhe?
— Não gostaria de estar em seu lugar, Lia. Contudo, posso me
deixar levar e imaginar, porque como você —, seu olhar se envolve com o
meu antes de continuar — sou uma mãe feroz e pelos meus filhos, faria
qualquer coisa, até domar feras ou corajosamente fugir delas.
— Ele não é uma fera.
— Não —, ela sorri — soube de fonte segura que no passado você
o chamava de anjo, mas este anjo, minha amiga, é letal. Você não acha?
Arrastar este seu segredo por mais tempo, pode causar feridas irreparáveis.
Tome o exemplo de Carla e Ramon, se não fosse por compartilhar a dor da
perda, talvez jamais pudessem se perdoar.
— Se você sabe disso, pode imaginar porque não contei sobre meu
filho.
— Na verdade, não. No entanto, estarei bem na sua retaguarda com
uma colher de pau nas mãos e nossas amigas também para defendê-la caso
precise.
— Não creio que isto vá ser necessário.
— Se pensa assim é muito ingênua Lia. E me preocupa saber disso.
— Não tenho a intenção de espalhar a notícia, antes da hora. Ele
será o primeiro a saber e isso amortecerá qualquer desentendimento.
— Me perdoa, mas é um pouco tarde para isto. Verônica, usou o
seu filho para chantagear-nos no passado. E pelas minhas contas, pessoas
demais sabem sobre ele. Quanto tempo julga que pode esconder um segredo
tão notório do Mikael?
Engulo em seco, cruzo meus braços e dou um passo adiante
bloqueando sua visão mais uma vez. É doloroso ouvir a verdade e ser
confrontada com ela, injusto não ter argumentos para rebater e perigoso de
uma forma inexplicável.
— Eu já estou remediando isto.
— Deixando-o se tornar o seu namorado?
— Ele não é…
— Oh, por favor, a minha intuição me trouxe aqui. Não vou
permitir que negue algo tão óbvio na minha cara.
— July, tem coisas que você não sabe.
— Se me contasse, de certo que faria bom proveito ajudando-a
solucionar este mistério que envolve a todos, mas me contento com as minhas
parcas abotoações.
Um silêncio tenso recai sobre nós. Juliana estreita seu olhar e me
observa com redobrada atenção.
— Olhando agora, percebo e entendo tudo. A frustração e a tristeza
de Maria que só cresceu no último ano. Sua recusa em estar conosco e deixar-
nos conhecer o seu filho e a inesperada missão romântica que o Promotor se
lançou.
— Não delira, July. Sexo não é namoro.
— Nunca foi só sexo Lia. Se fosse, aquela criança —, ela aponta
Anjinho que está saindo da água com Nina — não estaria aqui.
— O que a leva a pensar assim?
Ela não responde, apenas sorri.
— Juliana, você precisa ir embora.
— Mamãe? — Anjinho corre em nossa direção, mas Nina o
segurou ao ver quem está ao meu lado. Seus olhos se abrem em pares,
rapidamente ela dá meia volta com ele os levando para as marolas que
arrebentam na areia.
— Me desculpa por isto, não…
— Não deveria se desculpar por proteger o seu filho. — July se
afasta, dando às costas para eles. — Nem deve se preocupar em pedir-me
para manter o seu segredo, mas se precisar de reforços, repito. Estamos aqui.
— Obrigada.
— Não me agradeça! Só uma mãe que ficou na rua com duas
crianças, sem ter onde cair morta, entenderia uma mãe, que para proteger seu
filho o ocultaria de tudo e todos.
— Não sei o que dizer.
— Não espero ouvir nada. Vim entregar-lhe isto. — Ela estende a
mão e só então percebo estar o tempo todo segurando um convite de
aniversário infantil. — As gêmeas estão aniversariando e resolvemos fazer
uma festa em casa, vim convidá-los.
— July, agradeço, mas…
— Não me importa como —, ela rebate séria — esteja lá com o seu
filho e a Nina. Será um prazer recebê-los.
— July, não é tão simples.
— Faça-o ser Lia. Se precisar de apoio, me procure e por favor
responda as minhas mensagens. Eu realmente me enfureço quando sou
ignorada.
— Me desculpe, não tenho o hábito de ter tantas atenções sobre
mim.
— Não tem problema. Além de que, atenção sobre você é o
mínimo que terá em pouco tempo, assim que o pai do seu filho se inteirar da
sua existência. Tenho a nítida impressão de que terá alguns holofotes sobre
si.
Ouço novamente os gritos de Anjinho e desta vez Nina não
consegue segurá-lo. July olha por sobre o ombro e sorri.
— O danadinho é a cara do pai! Até o timbre da voz. — Ela
exclama admirada.
Não consigo respondê-la, tudo acontece muito rápido, Anjinho pula
em meu colo enquanto me curvo para pegá-lo e July se afasta a passos largos
sem uma palavra.
Nina esbaforida vem em meu encontro.
— Era a Juliana?
— Sim.
— Ela vai te entregar?
— Não
— Quer ir até ele hoje?
— Preciso. Ela disse algo muito certo.
— O quê?
— Até quando vou me fazer de ingênua? É melhor acelerar as
coisas Nina, ou ele vai descobrir da pior forma possível.

MIKAEL
— Não vai atender ao telefone? — A voz grave interrompe minha
concentração sobre o aparelho que trepida sobre a mesa do restaurante.
— Não.
— Até quando pretende ignorá-la e por qual motivo está fazendo
isto?
— Ramon, o fato de contar as coisas para você, não quer dizer que
pode devolvê-las em perguntas. — respondo entredentes.
— Tudo bem. — Ele se serve de uma taça de vinho e a saboreia. —
Pode então me dizer, por qual motivo marcou um encontro entre nós, mas
resolveu vir me encontrar primeiro?
— Não sei! Realmente ainda não sei o que estou fazendo aqui —
pauso. — E nem por qual motivo não consigo falar com ela.
— Que tal começar, pelo começo? — Meu amigo sorriu, tentando
me encorajar a falar.
Falar. Parece ser algo impossível no momento. A dois dias comi
um espinho que parece ter travado na minha garganta e desde então tem
espetado de uma forma que sinto o gosto ferruginoso do sangue se mesclando
ao meu paladar.
Inconscientemente ergo a taça com água e tomo de um único gole
todo seu conteúdo.
Após deixar Lia passar por aquele momento estranho desde que vi
a moça violinista e até as revelações no porão de casa, tudo se tornou nublado
em minha mente.
Não pude fazer mais do que marcar um encontro com Angel e rugir
algumas coisas inteligíveis para Ramon. Horas depois e mesmo sem entender
nada, meu amigo permaneceu atento ouvindo-me ao telefone.
Para somar a isto, Caleb não me deu nenhuma nova notícia
animadora, ao contrário. Os bandidos presos, estão calados como tumbas. O
que conseguiu escapar, mesmo ferido, ainda não foi encontrado.
Suspirei acompanhando o garçom repor com seu jarro alto a água
na taça, nem mesmo percebi Ramon chamá-lo. Deveria beber algo mais forte,
como um bom uísque, mas embotar os sentidos com álcool não me fará bem
algum.
Sei, pois, foi o que fiz nos dois últimos dias entrando e saindo em
um estado lamentável de semiconsciência alcoólica, para ler e ouvir as
mensagens que Lia me deixou.
Minha secretária, conseguiu-me dias de folga e não faço ideia de
como. Os assistentes assumiram suas tarefas e ao menos isto, pude por certa
ordem, mesmo não estando presente, mas só fui me dar conta de que estava
colocando tudo a perder no pequeno avanço que fiz em meus planos, ao ouvir
os áudios de Lia.
— Lia é uma mulher persistente, quando se trata do seu trabalho e
família, mas não acredito que ser tratada dessa forma irá deixá-la excitada.
Ou vai? — O sarcasmo do argentino esperta em meus ouvidos.
— Você ouviu o áudio. Não se faça de bobo.
— Quem parece estar bancando o bobo aqui é você. Disse que se
sentiu mal no conservatório por recordações antigas e entendo que deva ser
algo fora dos padrões, mas é realmente por este motivo que está se
escondendo?
— Quem está se escondendo aqui, Ramon?
— Bem, eu que não sou.
— Ela vai pensar que estou fugindo devido ao moleque?
— Você está? Realmente está fugindo de algo? O que o levou a
pensar nisso agora?
— Não sei, talvez —, ergo meus olhos irritados — estou na porra
de um interrogatório? Isto era para ser um almoço entre amigos.
— Parece assustador demais estar próximo a eles?
— Ramon!
— Sinto muito, são velhos hábitos. No entanto, parece ser a única
forma de conversarmos desde que chegou aqui, além de rugir feito uma fera
enjaulada e dizer frases desconexas, esta é a primeira vez que está sendo
coerente em algo.
Não posso rebater essa verdade. Ao sair de casa em direção a ilha,
queria poder conversar, ou só passar o dia sentado na praia sem fazer nada,
porém Ramon me convenceu a andar em seus calcanhares como uma sombra
para resolver algumas pendências do restaurante.
Conversamos o que achei plausível, uma vez que estamos rodeados
de outras pessoas, não tive coragem de falar sobre o DNA ainda, mas falei
sobre como me senti encarando a moça no conservatório e o fato de ter
passado dois dias imersos em uma bolha de auto piedade e comiseração.
— Então, é assustador?
— Não sei se assustador seria a palavra —, me rendo às suas
perguntas e dou de ombro — mas, estranho. Estou descobrindo algo que
sempre julguei ridículo em vocês.
— O que seria? — Ramon levou um pedaço do suflê à boca e
mastigou lentamente saboreando a comida refinada de Carla.
— Eu me sinto estranho, possessivo e ciumento. Com raiva? Porra,
não faz o menor sentido isto. Durante todos esses anos, não perdi uma única
oportunidade de comer qualquer buceta que quisesse e o fato de Lia ter
estado com outro homem, jamais me incomodou, — pauso para poder conter
minha voz que vai aumentando de tom — droga, mal consigo falar. —
Sussurro.
— O fato de ter um filho, o incomoda?
— Porra! — Esbravejo alto chamando a atenção de outras pessoas.
— Se me incomoda? Isto arranca o inferno de dentro de mim. Antes, eu
usava este fato para ofendê-la e sabia o que estava fazendo.
— Idiota.
— Foda-se! Eu não dava a mínima, mas agora? Só de pensar nisto
e depois…
Após ver a dedicação da minha mãe em manter a memória de uma
filha, uma irmã que nem conheci viva através de presentes, pertences e até
com as poucas fotos de bebê que encontrei, esse sentimento estranho tornou-
se ainda mais arraigado em minha mente. Quase impossível de controlar.
— Eu nem acredito que estou dizendo isto em voz alta, Ramon,
mas tenho ciúmes. É um absurdo, mas posso jurar que sinto ganas de matar o
desgraçado.
— O pai?
— Óbvio! O moleque parece ser espertinho e pelas coisas que Lia
fala, porra! Como ele abandona assim? E como ela…
— O que faria se o filho fosse seu?
— O que disse?
— Sei que não é o caso, mas o que faria se fosse? Te incomoda ela
ter um filho, OU o fato de ser outro pai?
— O que eu faria? O que me incomoda?
— Isso! — Ele dá de mãos no ar. — Você já analisou o que
realmente tem te deixado chateado na situação?
— Eu não faria porra nenhuma, porque não é. Não sei que droga
faria, não sou o tipo paternal.
— Quando conversamos no escritório, me garantiu que estaria
disposto a ceder espaço para uma criança, e pelo que parece, tem se tornado
algo difícil para você fazer. Imagino que de dez coisas que Lia fale, onze são
sobre o menino.
— Exato!
— Você está se sentindo pressionado por ela.
— Pode ser.
— Contudo, essa pressão não incomoda, verdade?
— Não.
— Então por que acredita que não é paternal?
— Estou no maldito interrogatório de novo? Está embaralhando as
perguntas para me fazer confessar algo, que não sinto, seu idiota?
— Não sente, não sabe que sente, ou tem medo de admitir sentir?
— Ramon, o moleque parece ser alguém especial e o fato de não
querer ser pai, não quer dizer que odeie crianças. Por Deus! Sou um bom tio,
porra!
— Então o que te incomoda é o fato de outro ser o pai?
— Ramon, odeio quando faz isto.
— Quando faço o quê?
— Foda-se!
— Então essa é a razão pela qual está ignorando-a? — Ele bufa,
limpa os lábios com guardanapos de linho e joga ao lado do prato. — Durante
todos os anos em que estive longe — estudando fora do país — muitas coisas
aconteceram e entre essas, o seu namoro com Lia. Quando me contou que
não só ficou com ela, como tirou sua virgindade, lembra do que te disse?
— Claro, acredito que foi a única vez que me deu um soco na cara?
— Exato. O que te disse?
— Que me tornasse a porra de um homem e assumisse minhas
responsabilidades. Fiz isto e você sabe o que houve depois.
— Vou dizer novamente, Mikael. Há pouco tempo você bateu no
peito dizendo que ela era a sua mulher e que não importava o que trouxesse
consigo para esta relação. Assuma isto de uma vez. Não importa o pai
biológico, se você estiver disposto a se tornar um — Ramon cruza os braços
sobre o peito e me encara seriamente. — Carlos Eduardo é o melhor exemplo
que podemos ter.
— Mas…
— Não existe, mas, Nikolaievitch. Não, quando se ama alguém de
todo o coração.
— Amor? — É a minha vez de cruzar os braços e abandonar o
prato intocado.
— Sim, amor! Aqui vai uma lição de alguém que é altamente
dominante. A posse mal administrada, pode arrebentar tudo que vier pela
frente. Porém, quando dosada com amor é arrebatadora.
— Por que acredita que sou capaz disto?
— De amar?
— Sim, de sentir exatamente isto…
Ramon fixa seu olhar sobre mim por um tempo e de repente
começa a rir sem poder se controlar.
— Me diz, alguma vez deixou de amá-la?
CAPÍTULO 33

INVASIVO
O amor é invasivo, quando menos espera ele está lá…

ANGÉLICA

D
iferente de todas às vezes que estivemos em uma missão, essa está sendo a
pior de todas. É difícil controlar meu humor quando a minha vontade é
acertar San com algo duro o bastante para desmontá-lo, mas isto também
colocaria um fim no meu sutil interrogatório.
As nossas passageiras estão descansando em um sono forçado, pois
não podemos arriscar que vejam para onde estão indo, são rotinas de praxe
que usamos ao transferir nossos clientes de um esconderijo ao outro. Por isto
pensei que a conversa com ele seria mais flexível, mas o miserável manteve
boa parte do trajeto em uma constante vigilância enquanto dirigi o SUV.
Bufo e deixo de lado o notebook que vinha trabalhando desde a
última parada. Sinto seu olhar recaindo sobre mim, ignoro, alongo meus
braços à frente do corpo, os cruzou sobre o peito recoberto por um colete a
prova de balas, fecho meus olhos e repouso a cabeça contra o encosto do
banco.
Desde que Mikael o reconheceu a poucos dias, San tem sido
arredio e cauteloso, mas não o bastante para perceber que algo na esfera
pessoal tem perturbado sua mente, e não acredito que seja apenas o
reconhecimento de Mika. Tem algo a ver com pintura e o meu sexto sentido
diz isto.
Me surpreendi ao saber que a mulher no quadro foi pintada por ele,
aliás, a surpresa, foi por não ter percebido a assinatura na borda do quadro.
Bastava juntar as peças e saberia quem era o pintor, mas a preocupação em
saber quem era a mulher tirou o meu foco do principal, os detalhes a minha
frente. Porra! Isto seria motivo para levar uma surra do meu pai. Gustavo
jamais aceitaria um erro de reconhecimento tão importante.
Descobrindo o pintor, o que me resta é saber qual a ligação dele
com uma mulher que estava ao lado do meu pai em uma foto. As joias que
ela está usando não me interessa mais, é fato que foram presentes de Gustavo,
mas com qual intenção e quando?
O pendrive que Santiago deixou cair acidentalmente em seu
apartamento, está muito bem seguro no meu cofre secreto, mas com uma
senha da qual ainda não fui capaz de abrir, se de alguma forma ele quisesse
mesmo mantê-lo escondido, não teria deixado cair bem diante dos meus
olhos, mas sim colocado no bolso ou até mesmo engolido.
Esse é outro mistério que me ronda, sei que ele quer que eu
descubra o que tem ali, mas a senha é algo que ele me dirá ou terei de
arrancar-lhe, da mesma forma que parece aumentar os seus segredos que
esconde de mim?
— Se você soltar outro suspiro, segundo a tradição chinesa uma
desgraça cairá sobre nós, se puder economizar, agradeço.
A voz de barítono invade os meus ouvidos, não abro os olhos, mas
só para provocá-lo solto um novo suspiro tão alto que parece ridículo.
— Tudo bem, vamos lá, me diz o que está te incomodando
patroazinha?
— Me responde o que perguntei e quem sabe, não passe meu
incômodo?
— Não sei exatamente o que quer saber.
— Não se faça e me faça de idiota Santiago. Quero saber sobre a
pintura no restaurante da Carla.
— O que leva a crer que tenho algo a ver com isto?
— Não sei exatamente, talvez a assinatura, — respondo com
petulância perdendo de vez a paciência —, quem sabe a porra da coincidência
do nome na borda do quadro, ou o fato de Ramon dizer que seu “amigo
Álvaro”, amar a pintura. Pode ser também o fato de ter a porra de uma foto
idêntica, nas caixas que recuperei na casa dos meus pais?
O carro que seguia em linha reta, quase breca no meio da pista sem
cortar o fluxo, mas o erro na passagem da marcha me faz abrir os olhos e
olhá-lo com um ar de puro deleite.
— Bingo, seu filho da puta!
Não consigo esconder a sensação de prazer por perturbá-lo da
mesma forma que Mika fez ao reconhecê-lo apenas pelos olhos, o que ainda é
um mistério para mim, como fez isto?
Santiago não diz nenhuma palavra, mas sua expressão está longe
de ser a fria e reservada que ele sempre mantém escondendo seus sentimentos
e emoções.
— O que exatamente tem nestas caixas, Angélica? — Não perco o
tom que usa ao falar meu nome, mas isto está longe de me deixar insegura.
Quando se é o gato e tem a faca e o queijo na mão, o rato por mais
perspicaz que seja, cai na armadilha.
— Tem o que preciso que esteja lá. Agora que tenho a sua atenção.
Pode me responder de uma puta vez, com a verdade de preferência.
— Sua língua anda afiada mocinha, — ele burla com sarcasmo,
mas percebo ser apenas para ganhar tempo.
— Foda-se! Os bons modos. Sou todo ouvidos.
— Pintei o quadro.
— Quem é a mulher?
— Pintei a partir de uma foto.
— Por quê?
— Porque Gustavo pediu.
— Meu pai pediu a você para pintar um quando? Desde quando é
um pintor, ou melhor, reformule sua resposta. O Gustavo que conhecemos,
não deixaria você praticar algo que amasse, analisando a beleza e delicadeza
da pintura, não foi uma ação feita sob disfarce, aquilo é obra de um artista de
verdade.
Ele rumina algo, bate contra o volante e esbraveja, o tom acentuado
das palavras dele agulham minha consciência. San sempre que perde o
controle deixa sua ascendência falar mais alto, talvez por ser acostumada aos
rapazes fazer o mesmo, ou ter sido criada em meio a tantos estrangeiros de
vários lugares, nunca me dei conta de quanto o sotaque dele parece carregado
nos últimos tempos. Como se estivesse treinando constantemente o idioma!?
Sempre achei charmoso demais, mesmo sendo raras às vezes que
isto aconteceu, pois, ele é o catedrático em manter seu controle, suas emoções
bem represadas, no entanto, Santiago parece uma bomba, pronta a explodir.
— Estou esperando uma resposta. — Ergo o sobrecenho e o encaro
deixando-o desconfortável. — Aproveita e refresca a minha memória, por
qual motivo você quer tanto se vingar dos Listradinhos?
— Por quê? — ele grita. — Rá! Só o que me faltava a está altura
do campeonato ter de explicar as regras para você novamente Angélica. Se
precisa disto, então é melhor repensar sua parte nisto, pois deve ter se
esquecido do que passamos, porra! — Sua voz alterada em nada me abala,
mas faz com que nossa passageira mirim remexa no banco de trás.
— Controle-se ou teremos de sedá-la novamente.
— Ok! Pintei o maldito quadro, porque a foto foi rasgada, e ele
queria uma lembrança.
— Você tem a foto inteira? — pergunto surpresa.
San desvia o seu olhar da estrada e me encara fixamente por alguns
instantes.
— Não. Eu apenas me lembro do rosto dela.
— Você pintou um rosto, a partir das suas lembranças? Quem é
essa mulher, Santiago. Por qual motivo meu pai iria querer uma imagem dela,
era para si mesmo?
— Era um presente, Angélica. — Ele bufa e desvia o olhar em
minha direção. — Quem ou o que ela foi, não importa mais. Ela está morta,
assim como ele, fim de papo. Estou dirigindo a porra de um carro em uma
estrada movimentada, se quer mesmo saber mais, vai esperar o momento
certo em que eu possa falar.
— Está me mandando calar a boca?
— Não, mas se precisar vou sedar você, assim como elas.
— Tente, se for capaz.
Ele não respondeu, mas devido a auto preservação não apenas das
nossas vidas, mas de outras inocentes no banco de trás, deixei de lado o
assunto. No entanto, em minha mente um novo motivo está brilhando como
um farol para vasculhar as caixas novamente, uma a uma. E mais, tenho a
sensação de que acabo de descobrir a senha do pendrive. Se essa mulher era
alguém importante para estar gravada no subconsciente de Santiago, talvez
uma das datas que estão no verso e na borda do quadro seja os números que
preciso.
— Hum! — suspiro e desta vez com um riso no canto dos lábios.
— Vamos fazer uma pausa na próxima parada, San. Estou com vontade de
tomar uma enorme caneca de leite quente com canela.
— Louca! — ele resmunga e pisa no acelerador.
— Pode apostar sua vida nisto.
Rebato sem dar atenção, abro meu notebook, conecto os fones sem
fio e clico no filme que estava em pausa, voltando a me deliciar com Happy
Feet, não imaginava que assistir tantas vezes esse filme com o pirralho da Lia
fosse me viciar. Um riso cruza meu rosto. As minhas preocupações com San
e seus segredos foram tão grandes que me esqueci completamente de visitar o
garoto.
O menino é um primor. Especial não pelo autismo, mas por ser
terrivelmente sarcástico como a mãe e nervosinho como o pai de um jeitinho
charmoso.
— Espero que saiba o que está fazendo.
— Assistindo um filme? — respondo olhando de lado e vejo que
ele está com os olhos na tela e um ar estranho. — Você conhece o menino?
— Estou dirigindo.
Minha vontade é de novamente acerta-lhe com algo bem duro na
cabeça, mas me distraio da minha veia assassina e foco no filme, mesmo que
a minha mente por detrás da diversão continue juntando pontinhos, sobre o
que ele não diz, mas posso deduzir.
LIA
De acordo com Marta a assistente da Promotoria, Mikael hoje não
foi trabalhar como nos dois últimos dias. A preocupação com ele só
aumentou após saber disto. Nina e Anjinho resolveram almoçar no quiosque
da praia, o que para mim, foi melhor ainda. Minha amiga foi compreensiva e
agitou o menino para ficar mais tempo com ela na praia enquanto a mamãe
sairia para trabalhar.
Deus que me perdoe por mentir para um anjo.
Deixei os dois aos cuidados de um dos seguranças e com Dionísio
voltei para casa, ofereci a ele para almoçar o lanche que deixei pronto e fui
me arrumar. Dificilmente conseguiria sair de casa sem ser escoltada e
querendo ou não ele, se tornou um amigo.
Ainda não desceu bem a sua afronta no aeroporto, mas se tudo for
levado a ferro e fogo, no fim irei acabar em uma camisa de força, olhando
para paredes estofadas de branco. Essa situação está me exaurindo, me
enlouquecendo.
Enquanto o meu guarda-costas devorava os sanduíches de rosbife e
saladas de batatas na cozinha corri para o meu quarto. A primeira coisa que
fiz foi ler as malditas mensagens acumuladas, entre elas duas de mamãe
avisando que Juliana estava entregando os convites de aniversários das
gêmeas e que possivelmente poderia aparecer sem avisar.
Idiota que fui, por não dar atenção antes.
Me recrimino, mas estou na onda do segue o baile, dane-se o que
está feito, não pode ser desfeito por força da mente. Outras mensagens foram
ouvidas, duas do escritório, Pedro querendo saber se poderia atender um
cliente com sério problema em seu imóvel. Devido à importância e o enorme
rombo que faria em minhas finanças perder este cliente em potencial, enviei
uma mensagem confirmando uma reunião para sexta-feira.
As mensagens do grupo das Luluzinhas pareciam ser as mesmas,
nenhuma menção de July sobre o meu filho, o que me fez ficar calma.
Alguém adicionou Angélica no grupo e ela saiu no mesmo instante, outra
adicionou novamente. Isto parece ser uma constância, por fim creio que ela
tenha desistido, pois, deixou uma mensagem nada agradável como boa tarde,
mas não saiu desta vez.
Pensei em ligar para Mikael, ou um dos rapazes e perguntar sobre
ele, mas seria perda de tempo e só colocaria mais lenha na fogueira, o melhor
mesmo era ir até ele. Correndo o risco de ser enxotada, de uma nova briga e
provavelmente ouvirei o que estou tão temerosa, mas não posso deixar de ir.
Com tudo em mente resolvido, parti para um banho cuidadoso,
para retirar toda areia do cabelo, na verdade, ganhando tempo para montar
uma perfeita estratégia de argumentação e não deixar meu lado indomado ser
invasivo ao ponto de romper a nossa ligação tão tênue.
Conectei o celular com o reprodutor de áudio no quarto, a primeira
música veio como um tiro de adrenalina, para me fazer virar do avesso.
— Não me restam dúvidas, é um sinal dos céus! Como diz July, o
Universo querido, anda conspirando.

Depois do banho Dionísio estava na sacada me aguardando, não


precisei explicar para que lugar iria. Ele mesmo ofereceu para me levar, visto
estar um pouco trêmula, mas preferi guiar meu próprio automóvel.
Olhei mais uma vez no expositor do painel da Ranger, trinta e
cinco minutos cravados e contando. Esse é o tempo que estou estacionada
diante do portão da mansão onde Mikael mora. Os seguranças andam pelo
perímetro interno, vez ou outra posso vê-los percorrendo o jardim através do
portão de grades.
Dionísio deixou-me aqui e informou por mensagem que outro
estaria rendendo-o, não demorou dez minutos e um SUV preto parou atrás do
meu carro. A casa parece silenciosa demais para ter alguém em seu interior, e
de onde estou não é possível ver a estufa, onde imagino que ele esteja.
Olhei no espelho retrovisor, o gloss que havia passado nos lábios já
foi retirado de tantas vezes que mordi os lábios, na verdade, estão levemente
inchados. De resto o lápis de olho, rímel e a camada leve de base estão
intactos.
Meu cabelo secou naturalmente, está solto sobre a camiseta de
algodão e alças finas, a saia jeans na altura da coxa combina com os tênis,
vestir-me casualmente não foi intencional, mas passando um olhar crítico
agora, estou indicando como uma placa luminosa o quanto sinto-me insegura,
feito uma menina com medo de terminar com namoradinho da escola.
— Inferno! Essa definitivamente não sou eu. — Exclamo irritada,
bato a mão contra o volante, arranco o cinto de segurança e me viro para
bolsa que está no banco de trás, ali tinha uma muda de roupas sociais e
sapatos de salto alto Prada, meus xodós. Não tinha a intenção de ficar para
pernoitar, mas fiz uma bolsa com duas mudas de roupa, sem saber o que
encontrar e talvez poderia levá-lo para jantar fora, algo que nos coloque em
um ambiente neutro.
Alcancei os saltos e arranquei os malditos tênis brancos, calcei
meus saltos belíssimos, peguei a bolsa tira colo e achei um batom mate
vermelho. Ergui meus cabelos e fiz um coque frouxo na base da nuca com
fios estrategicamente caídos ao lado do rosto.
— Me olhei no espelho retrovisor e reconheci a mim mesma no
primeiro olhar. Dei partida no motor, fiz o contorno e parei diante do portão,
não precisei esperar, os seguranças correram em direção a entrada e me
permitiram passar.
Desci o vidro da janela e perguntei a Jairo. — Onde ele está?
— Acabou de sair da estufa, entrou pela lateral da casa.
— Ele sabe que estou aqui?
— Não senhora, achei prudente esperar que entrasse.
O olhar do segurança parece reservado, o fato de ser ruivo e ter um
porte similar com Mikael, me incomodou a primeira vez que o vi, mas o
olhar dele demostrou tanta confiança e zelo por meu Promotor, que não dei
mais importância a implicância; agradeci a ele e segui até a garagem.
Estacionei na vaga ao lado da Harley, desliguei o motor, peguei o
celular do suporte e a bolsa, tranquei o carro e em vez de seguir pela porta da
frente resolvi entrar pela porta da área de serviço que vi aberta.
A porta do porão está escorada com uma tábua de passar por baixo
da maçaneta, meneei a cabeça sem dar importância, segui pela cozinha, meus
saltos clicando no parquet frio, a mesa posta também está estranha, a xícara
delicada está virada de boca para cima e suja. O restante da cozinha está
como antes, intacta.
Segui pelo corredor deixando minha bolsa sobre um aparador,
passei pela sala de jantar, sem sinal de Mikael, entrei na sala de estar e nada.
Pelo vão posso ver o corredor de entrada escuro sem sinal de vida.
Passo adiante entrando no corredor longo, passando pela porta do
escritório aberta sem ninguém a vista, sala de TV vazia, dobro a direita e o
seu estúdio de música está às escuras, as portas que dão para o jardim, estão
fechadas com trinco. O último lugar no piso inferior é o seu quarto que ocupa
praticamente metade da parte de trás da casa, mas a porta fechada por tranca
eletrônica não me permite a entrada.
Dou de ombros e volto pelo mesmo caminho, a casa está às
escuras, não acendi as luzes ao entrar, por isto vou tateando as paredes a
procura de um interruptor. Mal chego na entrada da sala de TV, quando sinto
os pelos da nuca se arrepiarem e um movimento rápido por trás das minhas
costas, em seguida sou agarrada por braços fortes em minha cintura, erguida
levemente no ar e tenho meu corpo pressionado, à frente a parede fria de
gesso, por trás um corpo quente, molhado e completamente nu.
— Mikael? — a surpresa em minha voz é ridícula, só ele teria esse
cheiro de homem recém-saído do banho, maravilhoso nesta casa.
— Invasão de propriedade da cerca de um a quatro anos de prisão
com multa, Doutora. — Sua fala sarcástica é arrastada.
Sinto a explosão de excitação percorrer, nada do que planejei, mas
não me engano com reprimendas, pois já compreendia que ele me levaria
para cama em algum momento.
— Sabia que coação sexual, também pode ser qualificada? —
rebato tentando me livrar do seu aperto.
— Está sentindo-se coagida? — ele debocha estocando o pau ereto
com força contra minha bunda.
— Um homem de um metro e noventa, nu, ereto me pressionando
contra uma parede pode dar-se a entender isto.
— Poderia ser de quatro como uma mesa no chão. — Ele rege em
meus ouvidos. — O que está fazendo aqui Liana?
— O que pretende fazer se escondendo Mikael?
— Posso pressupor que veio atrás disto? — outra estocada e uma
das suas mãos atrevidas apertam minha bunda com força, antes de desferir
um tapa audível contra carne protegida pelo jeans.
— Imagino que isto, — rebato, arrebitando meu corpo arrancando
dele um gemido, — nos sirva bem, mas depois de uma boa conversa.
— E se a minha conversa, for uma trepada quente?
Mikael morde sutilmente o lóbulo da minha orelha, respira com
força e aperta o ossinho acima da bacia, cravando seus dedos em um ponto
que faz o sangue correr com força pelo meu corpo e reviro os olhos.
— Contanto que abra a boca, sinta-se servido e me faça gozar. —
Provoco, sentindo o meio das minhas pernas alagarem com fluidos que
escorrem por meu sexo, as palpitações aumentam, meus seios prensados
contra a parede doem, as pontas enrijecidas latejam contra o tecido de
algodão suave.
— Provocadora como um inferno.
— De acordo com todos no escritório, somos uma categoria de
deuses do submundo, então faz sentido, — ele ri, mas não é nada com humor,
mais parece um esgar —, estou com saudades, preocupada e com muita raiva.
Estou me segurando para não gritar com você, faça jus ao meu
esforço e me diga o que está acontecendo. Por que não está indo trabalhar?
— O seu cheiro é tão bom! — ele encosta seu nariz em minha nuca
e aspira. — Quero muito te comer Liana.
Isto me derruba. Gemo extasiada, sinto arrepios pelo meu corpo e o
tesão bate alto dentro de mim, apertando-me em lugares que quero ser
preenchida por ele.
— Não estou fazendo objeção, desde que me responda.
— Diz que está sem calcinha. — Ele pede.
— Estou com a mais cara que tenho. — Rebato
— Vou rasgá-la.
— Tudo bem, desde que me pague outra. Porque não respondeu as
minhas ligações.
Ele não jogou uma resposta de imediato. Sua mão direita sobe pela
minha nuca segurando com firmeza o coque, enquanto com a esquerda
desliza pelo lado do meu corpo até alcançar a barra da saia jeans, sem
qualquer cerimônia ou delicadeza, a fez subir enrolando o tecido grosso em
minha cintura.
— Me responde uma das minhas perguntas, ou esquece minha
boceta.
— Estava com a cabeça cheia. Pensando bem, acredito que quero
seu rabo e não sua boceta. — Ele urra, bate com a mão grande contra minha
bunda, mordo o lábio inferior e devolvo o golpe como posso contra a coxa
grossa roçando em meu corpo.
— Quer mais? — ele pergunta.
Outros dois grandes tapas vêm sem aviso, logo suas mãos deslizam
com carinho aclamando a pele, junto a beijos que ele espalha do meu ombro
até a base da nuca, por cima da tatuagem aparente no decote das costas. Mika
volta as carícias deixando sua língua e subindo novamente pelo meu pescoço.
— De quê. O que está perturbando-o, conversa comigo? O que
aconteceu no conservatório, ou foi antes? Foi algo que falei?
— Não. Você está querendo me negar sua boceta, mas está tão
molhada que as coxas estão úmidas.
— Nunca neguei que me deixa com tesão.
— Não vou ser gentil com a minha invasora. — Ele não responde
minha última pergunta.
A barba grossa arranha minha pele e a boca carnuda desliza pelo
meu pescoço com mordidas afiadas, os dedos dedilhando meu sexo, seguram
o piercing e o puxão afiado me faz soltar um grito de dor e prazer.
— Filho da mãe. Eu te dou algo, mas responde Mikael.
— Estive bebendo Liana, embriagando-me por dois dias e não
queria falar com você.
— Por quê?
Outro puxão, minhas pernas são afastados por sua coxa grossa e
peluda, sinto o pau extremamente rígido se enfiando pelas bandas da minha
bunda por trás, e a cabeça bulbosa sondando a entrada do meu sexo.
— Mika! — tento me afastar, mas a mão presa ao meu cabelo
retém-me sob seu controle.
Sua língua desliza por sobre a base do meu pescoço, o silêncio da
casa é quebrado apenas por meus gemidos; ele desliza seu pau entre minhas
coxas molestando minha entrada com pinceladas da mesma forma que sua
língua sobe e desce pela coluna da minha garganta, passando por meu queixo,
fazendo o contorno dos meus lábios. Com olhos semiabertos, tento vê-lo, mas
o breu não me permite.
— Mika, fala comigo. Por favor!
— Trepa comigo, me faz esquecer, parar de sentir isso que está me
deixando louco e prometo tentar…
Mesmo que seja um pedido, este vem com um tom de dominação,
que puxa a borda do meu lado repreensivo onde não me deixo baixar e
dominar por ele.
Porém, sei que ele não vai ceder com tanta facilidade, sei, pois, a
minha experiência diz que está focando em outra coisa, — sexo — para
coordenar seus pensamentos.
— É só isto que quer de mim? Foder-me para por sua mente no
lugar? — A pergunta não deveria sair com tom de lamento, mas não consigo
refrear. — Então faça seu melhor, Promotor.
Ele não responde, sinto suas mãos esmagarem minha cintura, ele
me faz dar um passo par longe da parede, apenas a parte inferior do corpo,
mesmo que me sinta magoada em parte, o tesão e saudades de tê-lo dentro de
mim, cantam como um feitiço, meu quadril é empinado em sua direção e com
uma estocada forte e certeira, seu pau duro feito uma barra de ferro invade a
abertura do meu sexo e ganha caminho livremente, me arrancando o ar,
ferroando em minhas entranhas até o ponto mais fundo que ele consegue
chegar.
— Ah! — Grito.
— Gostosa pra caralho, adoro sua boceta apertada, me prendendo
assim.
Mikael arremete algumas vezes forte o bastante para doer,
avassaladoramente para me deixar estremecendo em segundos.
— Mikael, assim, mais… — peço e não me arrependo.
Ele me dá mais, estocadas firmes, beijos sob minha nuca, pescoço,
sua mão vem sob meu coque desfeito, segura entre as mexas e faz meu rosto
virar com um puxão suave.
— Me beija. — Ele pede e abocanha meu lábio inferior com
aflição.
O beijo é violento e dominador como suas estocadas, meu sexo
lateja a cada investida, sua mão desliza da cintura para meu clitóris e toca
como se fosse um instrumento afinado, meus olhos soltam lágrimas
represadas, por tudo.
Por mim, por ele, pelo nosso filho. O medo que me agarra a cada
manhã quando acordo, o desespero que me prende cada vez que meu filho
pede por seu pinguim, por cada negação que Mikael dá quando diz que não
quer ser pai. As lágrimas me fazem engolfar, mesmo que os meus gemidos de
prazer estejam preenchendo a boca dele.
Mikael se afasta e seus gemidos bramem em meus ouvidos, as
estocadas perdem intensidade e passam a ser um leve roçar de vaivém no
canal inchado e palpitante.
— Quero mais Liana. — Ele está muito rouco então percebo que
pela segunda vez, desde que voltamos a estar junto, meu Promotor, está
chorando. — Muito mais, mas não consigo expressar. Minha cabeça está um
inferno de bagunça. Ver aquela menina mexeu comigo, não gostei da
sensação estranha, mas também estou me esforçando para entrar em um novo
mundo, algo que não é meu. Que não sei lidar, mas quero.
— O que o deixou assim?
— Lembranças, momentos que vivi com meus pais, coisas ruins
que me aconteceram por conta de uma irmã morta, uma filha idolatrada, mas
que era amada. Lia, eu quero muito isso.
— O que você quer?
— Quero você, quero tudo que tem, tudo que vem com você.
Minha voz falha e gaguejo não acreditando em meus ouvidos.
— An-anjinho?
— Sim, quero conhecer o moleque, mas não agora entende?
Desculpa ser um fraco e doente nesse sentido, não tenho nada contra ele.
JURO PELO QUE QUISER. Quero ser um bom homem para estar ao seu
lado e do menino, mas a minha cabeça é fodida demais Liana, não tive o
melhor exemplo de família. Não fiz as melhores escolhas por um longo
tempo. Estou tentando não pirar com isto. Não quero trazer vocês para o meu
lado e depois vê-los fugirem de mim com medo do que possa fazer.
Ele deixa de se movimentar, meu corpo relaxa contra o seu, mesmo
ainda ligados pelo sexo.
— Nunca o forçaria a isto, mas é importante para mim. É de suma
importância para nós, que nos queira de verdade!
— Quero, minha anja. Quero muito, só preciso de um tempo, ou
vou machucar vocês. Me desculpa foder as coisas assim. Você não é o
estopim para minha loucura, nem mesmo o remendo que vai fechar as
lacunas. Não é uma trepada de alívio, tentei fazer soar assim uma vez e veja
só no que deu, perdemos um ano inteiro com essa idiotice. Liana, você é
alguém que curto, que gosto de ter por perto. É especial, sempre foi. É a
minha mulher.
— Então me deixa ser de verdade essa mulher, Mikael. Quando
estiver em crises, problemas, a inconstância, o medo, me deixa estar aqui.
— Você já tem de se preocupar com seu filho.
— Eu me preocupo com os dois. E se quer mesmo ternos ao seu
lado, não sei em que sentido está falando isto, mas tem que começar a
entender que, estar ao lado também é se preocupar com aquela pessoa, cuidar
dela.
— Quero isto. Porra, eu faço isto! Me preocupo com os dois e me
esforço para mantê-los seguros.
— Então me deixa esforçar e mantê-lo seguro.
Mikael desliza sua boca sobre a minha com delicadeza, o beijo não
é violento como antes, sua língua contorna as comissuras dos meus lábios,
sua língua invade com prazer duelando com a minha, sinto-o brincar com
palato e voltar a penetrações curtas, entremeando beijos.
Essa relutância em demonstrar reações opostas ao que realmente
sentimos um pelo outro, antes foi um falso desprezo para mascarar a ternura e
a ilusão da distância segura para zelar por quem ainda não é seu, mas sempre
a um passo para retomar o controle, justificando com razões questionáveis a
vontade de unir corações machucados.
— Eu me afastei por medo Lia, mas não por seu filho, eu pensei
que fosse e juro que tive vontade de esmagar minha cabeça contra a parede,
mas não é isso. Acredita em mim. De pouco a pouco vamos ficar juntos.
Aqui nesse espaço de tempo roubado, insano de perseguição, crivo
de perguntas e respostas satíricas, espetadas, dominação, sexo rude, e um
quebrantamento de máscaras, nos vejo com outro olhar, talvez seja por
estarmos mais uma vez embalados pela escuridão, nos deixando levar pela
gama de sentimentos, ou talvez por justamente podermos ser reais um com
outro.
— Nunca quis abandoná-lo, e sei que isto dói em você, pois de
alguma forma associou isto a sua vida, como mais uma pessoa deixando-o.
— Sei, de alguma forma, um dia podermos falar sobre isto…
Tudo parece mudar, não faz mais sentindo negar, mesmo que o
cérebro, a ponte que liga a razão ao coração insista em manter o peso do
medo como uma pedra no caminho, para evitar a dor de uma nova separação.
— Mikael, — ele para de me beijar e lentamente volta a me
estocar, engulo a frase tento desfraldar minha boca, ainda com a cabeça
tombada contra seu peito, e sua boca deixando beijos contra meu queixo. Seu
pau novamente dominando meu sexo por trás e as marolas do gozo crescendo
dentro de mim. — Mikael…
— Diz… — ele pede consciente ou não, ele abre a porta para algo
que não vai retroceder.
— Amo você!
— Liana… — não deixo replicar, o medo de que não seja o que
quero ouvir, me faz erguer a cabeça e cobri sua boca, me afogando nos
gemidos, sensações e avalanche de emoções que transbordam meu corpo e
coração.
Eu mais uma vez estou apaixonada, irrefutável amarrada a ele,
através deste louco amor. Que nunca me abandonou, porque o amor é
invasivo, quando menos se espera ele está lá…
CAPÍTULO 34

INTUIÇÃO
“Às vezes é preciso recuar para seguir”
— Happy Feet 2

MIKAEL

epois de alguns dias, trabalhando como um louco para pôr ordem


D
na bagunça, que a minha ausência causou, finalmente consigo encerrar um
caso, para ter uma folga prolongada de final de semana.
O Iphone vibra no meu bolso, retiro o aparelho para ler a
mensagem de confirmação para o encontro com os caras mais tarde. Ramon
confirmou e pediu para encontrá-los na casa de Anderson, para irmos junto.
A ideia de fazer uma excursão de bêbados no final da noite não me
agrada, mas a consciência dita que alguém tem de permanecer sóbrio e
cuidando dos amigos, como o convite partiu de mim e já bebi por um ano
inteiro, aceito a sua proposta.
Guardo as pastas referentes ao processo na bolsa de couro, com a
mente engajada nos planos para o resto do dia, que não percebo aproximação
da Juíza que fez o julgamento.
— Promotor?
Ergo o meu rosto e encaro a elegante mulher de meia-idade com
cabelos escovados e óculos de armação dourada na ponta do nariz. Ela
caminha na minha direção com graciosidade. A toga preta confere um ar
soberbo, mas o sorriso delicado quebra a má impressão.
— Meritíssima. — Meneio a cabeça.
— Fez um excelente argumento, Promotor. É sempre reconfortante
e surpreendente como os seus encerramentos, consegue puxar a amálgama
humana para as nossas reflexões internas. Como disse? — Ela pausa e ergue
o dedo. — “O homem que não pode respeitar o indivíduo, não pode viver em
liberdade, mas aqueles que deveriam fazer valer as leis, contudo fecham os
olhos, defraudam as naus e lançam os remos na correnteza da incerteza
obscura e leviana da falta de caráter?”
— A senhora decorou? — pergunto incrédulo.
— Como não, por favor… — ela pausa e faz um gesto para que
continue.
— Até quando a vítima sofrerá as injustiças do seu algoz e a sua
rentável moléstia? Quem se curva, a lei aos malfeitores ou os maus diante de
lei. A justiça é cega, mas não pode se fazer de surda, é morosa, mas não pode
se emudecer.
Deixar que a vítima seja aviltada, continuamente para o resto da
sua vida, é o maior dos crimes.
Quem estuprou não é mais o culpado?
Quem deflagrou não fez com a intenção?
Quando erguerão as suas cabeças do monturo que se enterraram,
abrirão os vossos olhos e verão que a podre sociedade que prolifera como um
reduto de larvas, é adubada com atitudes nocivas e imputadas como está?
Ontem todas as mulheres foram violadas, enxovalhadas,
machucadas, denegridas, usurpadas do direito de serem protegidas pela
sociedade e a justiça, mas hoje conclamo aos nobres, valentes e irrefutáveis
homens e mulheres que defendem a lei para lutarmos juntos por justiça.
Hoje, senhoras e senhores, caros colegas e bancada julgadora, só
pedimos justiça. A justiça pode ser julgada como cega, mas não incapacitada.
— Bravo! — ela excede na sua comoção ergue as mãos aos olhos,
emociono-me por saber que o meu trabalho não foi prejudicado por minha
fraqueza, e a justiça prevalecerá.
Pois, esse é o dever de todo o homem livre, lutar por justiça.
— Agradeço, mas pauto os meus argumentos na certeza de que a
vítima não tenha de sofrer duas vezes, com a perda e a morosidade
processual.
— Esse é seu diferencial, mas ainda vejo um certo brilho no seu
olhar e é esse brilho que fez o seu discurso vibrar. Ele veio exclusivamente da
necessidade de proteger alguém, não é mesmo?
A Juíza sorri de forma enigmática, como só os sábios fazem.
— Creio que da necessidade autêntica de justiça, meritíssima.
— Irei esperar o convite de casamento, lembro-me perfeitamente
bem de ser apresentada a uma linda jovem no final de ano.
Ah! Era sobre isso a sua especulação?
— Bom, quanto a isto…
— A Doutora dos Anjos, é uma excelente advogada, já fiz alguns
dos seus julgamentos, ela lembra-me Joaquim. Perfeita e determinada.
— Concordo, meritíssima.
Ela de fato, não estava longe da verdade, o riso bobo que anda a
tentar saltar do meu rosto tem a ver com a tal jovem. Sim, a minha conclusão
fez-me pensar nela, em Mikaella e as minhas amigas que são mulheres tão
valorosas e queridas que me mataria se algo as ferisse.
Todavia, preciso confessar que. Lia com a sua declaração
apaixonada roubo-me as palavras, fez-me paralisar e acelerar de uma forma
louca.
Algumas noites atrás, quando imaginei que as minhas fichas
voltaram para a nulidade, a minha anja me surpreendeu a invadir a minha
casa e muito mais. Foi difícil não a agarrar assim que ouvi os seus passos na
cozinha e senti o cheiro do seu perfume.
Por estar suado e sujo de terra, corri para um banho rápido e voltei
a tempo de encontrá-la no corredor ainda escuro. Contudo, não foi
a foda provocativa, que me pegou de jeito pelas bolas. — Suspiro e pigarro
para disfarçar o meu deslize.
Foi a forma como deixou as portas abertas para que eu pudesse
falar livremente das minhas neuras, o oferecimento sincero de estar ao meu
lado e, não me recriminar pelo medo de conhecer o moleque, longe disto. Lia
deixou-me tão confortável que quando dei por mim, já estava chorando feito,
criança, expondo minhas debilidades, me deixando consolar sentindo
de verdade, um afago na alma.
Nunca pensei em ser pai, mas queria uma vida com ela, ainda
quero, muito mais que antes.
Quero dizer com todas as letras o que estou sentindo, e isto vai ser
logo, esse final de semana. — Sorrio e vejo que a senhora a minha frente tem
os olhos estreitados me observando.
Droga, devo ter me desconectado em sua frente, pensando no que
tenho preparado para Lia.
Deixo que a Juíza discorra sobre sua própria experiência com
relação às leis, a vida e a família, enquanto sutilmente término de organizar
minha pasta. Agradeço o reconhecimento, dou uma desculpa qualquer e com
uma saída clássica, me despeço.
A saudade que estou sentindo da minha anja é imensa, não a vejo
desde aquela noite, mas ela está em minha casa quase diariamente a tarde.
Em um destes me surpreendeu com um jantar que deixou pronto para mim,
no fogão e sobre a bancada um envelope endereçado ao Promotor.
As letrinhas tremidas, meio desengonçadas me fizeram saber de
quem era a carta no mesmo instante, senti-me entorpecido, ansioso e mais
ainda ao ver o conteúdo. Um desenho feito a mão pelo seu filho, achei tão
caloroso que preguei a folha de papel A4 na porta da geladeira.
Nunca fiz isto com os meus próprios desenhos na infância, mas
sempre vi na casa de Edu e em seu escritório, folhas e mais folhas com
desenhos de heróis e princesas, enfeitando paredes e os móveis, jamais dei
um significado maior do que a admiração, mas ter o meu próprio desenho
feito exclusivamente para mim, decorando a minha geladeira, me mostrou
que poderia sentir um pouco de inveja dessa simples, boba e tão estranha
intimidade familiar.
Desço o último lance de escadas e entro no estacionamento, Jairo e
seu companheiro acenam, ergo o capacete e caminho para a moto, ligando o
motor enquanto eles dão partida no SUV.
Passo a alça de couro pelo ombro jogando a pasta para a parte de
trás do corpo, confiro as horas e uma vontade louca me invade.
Após colar o desenho mandei uma mensagem para Lia, agradeci o
jantar, deixando claro que queria ela como prato principal, contudo o que
queria mesmo era falar do desenho.
Enviei-lhe uma foto com a mensagem: minha nova aquisição de
arte infantil para a cozinha. Em resposta ela contou-me que falou sobre mim
com o filho, pela primeira vez. Não sei ao certo o que disse, mas pelas
mensagens que trocamos, contou sobre as coisas em comum que gostamos, e
o principal que um dia vamos nos conhecer.
O riso estranho cutuca minha boca de novo. Antes talvez, isto me
deixasse desconfortável e agressivo, mas por algum motivo o pinguim
dançando ao lado de um pinguim com violão, me fez pensar em coisas boas,
até me lembrou de assistir ao filme que a megera indicou.
A memória que me agarra vinte quatro horas por dia, ainda é a da
sua voz rouca, vibrando em minha mente e a minha ao nos despedirmos
naquela noite.
“— Amo você!” — Ela disse.
“— Liana, posso te pedir algo? — ela me olhou e sorriu com ar tão
suave, que me fez querer escondê-la e não deixar ir embora.
— Diz…
— Fale de mim, para ele. Quer dizer… — hesitei. — Da mesma
forma que me faz conhecê-lo, através das coisas que diz, — pigarreio —,
acredita que poderia falar de mim, para o seu filho gradualmente, como tem
feito comigo, talvez possamos…”
O sorriso em seu rosto e o beijo cálido e apertado que depositou
sobre a minha boca, foi uma resposta perfeita que rachou algo dentro de mim.
Com isto em mente, aceno para os seguranças e saímos da
garagem, ainda tenho um tempo e talvez, consiga vê-la antes de me encontrar
com Ramon e os rapazes.
LIA
O esforço que faço para concentrar-me no trânsito parece exaurir-
me mais do que a raiva flamejante que está me sufocando.
Respira pausadamente Lia, — digo a mim mesma.
Com esforço tiro o pé do acelerador, as lágrimas ainda estão
escorrendo por meu rosto, meu cabelo que estava em um coque cai em
mechas pelo meu ombro dolorido, mas nada entre as mazelas físicas, é pior
que o mal-estar que revira o meu estômago.
Quanto ao lado íntimo, psicológico e como mãe, estou destroçada.
Enfurecida. Louca da vida e propensa a fazer uma loucura.
— Lia, desacelera! — a voz de Nina invade a bruma de raiva e me
faz olhar pelo retrovisor, minha visão embaçada pelas lágrimas focam na
cadeirinha atrás do banco do carona.
Ver meu filho tão indefeso, inocente, ser tratado com tanto
desprezo, por pessoas odiosas como aquela puta, me mata lentamente.
Quando penso que não é a primeira vez que passamos por algo assim, meus
pensamentos em mantê-lo longe de todos parece a coisa certa se fazer.
Sei que o melhor é ter amiguinhos, viver em uma sociedade onde
se adapte a todas as pessoas, por isto escolhi uma escola de renome, mas
infelizmente, nem toda criança tem culpa da porra de genitor que a pariu. O
que só me faz chegar a uma conclusão, filhos precisam de limites, não apenas
os “problemáticos como ela disse”.
— Vou matá-la! — estremeço — Não tenha dúvidas disto! — tento
não gritar, mas a força concêntrica que meus dentes fazem rangendo um
contra o outro não permite. Nina suspira e limpa o rosto, os cabelos e a
camiseta esportiva desbeiçada, devido os puxões de Anjinho ao tentarmos
colocá-lo na cadeirinha.
Estava terminando um almoço com um cliente quando Nina me
enviou uma mensagem urgente, nem me despedi, apenas peguei a minha
bolsa e sai do restaurante como uma louca.
Depois de quase um mês de férias, voltei a trabalhar para atender
um cliente especial e uma coisa levou a outra e cá estou engalhada de
trabalho, mas isto não me assusta ou atormenta, ao contrário, é o motivo
perfeito para seguir do escritório até a casa de Mikael e deixar sempre algo
para que possa pensar em nós.
Um conselho sutil de July: Quem quer ser visto, tem de ser notado.
Fiz isto por dias, e ao deixar um desenho do Anjinho finalmente
criei o elo, o que chamou a sua atenção. Um momento realmente bom,
perfeito que me acendeu as esperanças. Estava radiante com isto pela manhã
ao ver Anjinho tocar seu piano com entusiasmo e logo depois sair com seu
caderno de desenhos saltitando pela casa.
Geralmente ele deixa esse caderno em casa, mas no dia anterior a
professora pediu que levassem algo especial e por sua escolha, quis mostrar a
tal tia das canetinhas, o desenho que fez para o pai e a Fadinha.
Meu Deus! Ele fez desenhos lindos para o pai.
Em todo esse tempo, nunca tínhamos falado do pai dele, sempre
que surgiu o assunto era apenas um pedido seu. Anjinho nunca perguntou de
verdade, nada sobre Mikael, então resolvi contar sobre um amigo que
também ama música, que tem muitas coisas em comum.
Gradualmente como Mika pediu-me surpreendendo o meu coração,
passei a contar detalhes sobre nós, nossa infância, falando dos nossos amigos
e dos filhos, as crianças que em breve ele vai conhecer. Anjinho se mostrou
interessado, e tão feliz que por instinto desenhou a si mesmo e ao pai, como
pinguins músicos.
Fiquei tão encantada que fiz uma digitalização do desenho e o colei
em nossa geladeira, como o pai dele fez.
Deus, por favor, acalma o meu coração porque estou perdendo o
controle.
Esmurro o volante e praguejo com força ameaçando matar a filha
da puta, mais uma vez.
— Vai gastar o réu primário? — Nina implica ao relançar o olhar
para Anjinho que se remexe inquieto.
— Porra Nina! Não brinca, estou falando sério. Se aquela loira dos
infernos, mexer com meu filho, vou refazer a plástica dela à base de tapas.
— Não estou brincando. Quero fazer o mesmo que você, mas se
algo der errado, quem vai cuidar dele? — Nina suspira e coloca a mão sobre
o encosto do banco. — Pare de gritar ou vai acordá-lo, e por favor, tira o pé
do acelerador.
Olho pelo retrovisor interno e Anjinho, está com as maçãs do rosto
vermelhas, listras de choro marcam as bochechas gorduchas, os cabelos estão
revoltos, por tentar bater a cabeça contra o vidro do carro, a sua boquinha
com hematoma arroxeado fazendo um biquinho a cada respiração. Cada
arcada de ar que engole, o corpinho sacode com três fungadas sentidas.
— Ahn, ahn, ahn! — ele chora sentido, mesmo dormindo e não
posso segurar minhas lágrimas.
— Que mulher dos infernos é essa, como ela pode falar algo com o
meu filho, se o dela estava errado, me diz? — minha voz falha, dou seta e
ultrapasso um carro indo para outra pista. — Que inferno de escola é essa que
só me liga depois que o circo pega fogo? Se ele é especial, usa a porra do
telefone, me ligue antes de acontecer algo grave, mas a desgraçada chegou lá
a tempo de ver o rebento dela desforrando a sua raiva no meu filho e não fez
nada!
— Estão erradas, concordo e não posso acreditar que deram essa
mancada. — Nina arfa e puxa meu cabelo. — Lia, pelo amor de Deus! Pare
esse carro, eu dirijo, você está muito alterada, pule para o banco de trás.
— Estou bem Nina, o motorista do lado que deveria aprender a
dirigir.
— Jesus amado, segura-nos em suas mãos. — Ela roga uma prece.
— O caderno de desenho é dele, — suspiro. — Não estou
advogando uma causa injusta por ser o meu filho, ele só reagiu ao que o
menino fez, — engulo a bílis e esbravejo.
— Que droga!
— Tem outro caderno em casa, vamos dar um jeito de contornar
isto. — Minha amiga acarinha os cabelos do meu filho e tenta arrumar sua
roupinha com cuidado.
— Isto não importa Nina, ele quer este! — ressalto olhando o
caderno destruído ao meu lado. — Poxa! São os desenhos que ele fez para
Fadinha e para o “meu amigo”, olha isto! — ergo folhas dilaceradas. — Está
tudo destruído.
— Lia…
— Ok! Vou tentar me acalmar, mas hoje não está sendo um dia
bom, não estou me sentindo bem fisicamente, mais isto nem de longe é o que
o meu filho está sentindo. — Não consigo conter as lágrimas e essa nova
mania de chorar desenfreadamente me irrita muito mais.
Passo as mãos pelo rosto limpando-o com um tapa. Coloco às duas
mãos sobre o volante e tento ignorar a sensação de enjoo que está acabando
com meu estômago.
— Não deveria comer frutos-do-mar neste calor.
— Eu não deveria fazer várias coisas, Nina — rebato —, tenho
feito tudo de forma orquestrada para o momento em que eles possam se
encontrar e livrar-me desse peso. Parece que uma avalanche natural de
problemas está se avizinhando. Se Anjinho, entrar em uma das suas crises e
perder o seu centro, não será possível apresentá-los, me compreende?
— Talvez seja o contrário, quem sabe?
Nossos olhares se cruzam e a verdade fica implícita.
— Provavelmente estou sendo muito otimista diante dos fatos, mas
estou pautada naquilo que já temos experiência.
— Ou será que como mãe, estou cometendo um pecado em ser
pessimista?
— Jamais Lia! Se tem algo que não faz é duvidar da capacidade do
seu filho em progredir, sou testemunha disto.
— Sei, mas você se lembra do que passamos no início do ano, ele
não aceitava ver a minha mãe, que é a avó mais amada. Ele regrediu, demos
um passo atrás no tratamento Nina.
— Claro que me lembro, passou dias sem falar comigo.
— É a forma dele se curar. O autista se isola quando está em seu
momento de crise. Para ele o seu centro está desgovernado, e só ele consegue
compreender o momento certo de expor suas necessidades, mesmo que
continuemos estimulando, ele precisa do seu tempo. Cada indivíduo
estabelece o seu próprio ritmo e lentamente volta ao foco.
— Ele usa isto para restaurar sua ordem de controle, de paz, e se
sentir confortável sob sua pele e com outras pessoas a sua volta.
— Exatamente! Essa autoconsciência é que vai determinar se ele,
se exporá para conhecer novas pessoas. Contudo, se isto o afetará de forma
positiva ou negativa, não sabemos só o autista em seu mundinho tem a
resposta.
— Precisamos agir rápido então, desviar o foco dele, não se
esqueça de que tem um relógio fazendo tic-tac, sobre a sua cabeça.
— Como vou esquecer? Ela me manda um bom dia, diariamente,
para me lembrar que mais um dia se passou.
— July, como todos nós, quer o bem dos três…
— Sei, só não preciso da pressão. — Respiro fundo engolindo a
biles. — Nossa, maldita hora que aceitei almoçar com meu cliente, meu
estômago parece bombardeado com a percepção do que está acontecendo.
— Pare o carro, que eu dirijo. —Nina pedi novamente
— Estamos quase chegando Nina, esta tundo bem, vou reduzir a
velocidade, continue segurando a mãozinha dele. Assim que chegarmos em
casa vou cuidar do meu bebê, nada vai me fazer arredar o pé do seu lado.
— Eu sei amiga! Sei que quer manter o foco na direção para não
surtar.
— Me conhece bem.
— Amanhã teremos um encontro com a Fadinha, vamos andar a
cavalo pela manhã e tomar sorvete no “centro comercial”, quer vir?
— Melhor não, deixa ele se divertir com ela, se estiver bem.
Porque, estou com medo Nina, a reação dele ao colocá-lo no carro foi muito
violenta.
— O seu braço ainda está sangrando?
— Não, marcou bem a mordida que ele me deu, mas só está
doendo, vai ficar um roxo, mas isso não é nada, estou preocupada com ele, e
com o que aquela vaca possa fazer.
— Não precisa se preocupar, depois do que deixou explicitamente
claro para direção da escola, duvido que vão se arriscar a tomar um processo.
— Ele reagiu ao ver o garoto tomar o seu caderno.
— Isto, Anjinho só empurrou o menino, a professora conseguiu
impedir que o mordesse. Infelizmente, enquanto ela segurava Anjinho, o
garotinho destruiu o caderno.
— Por um lado, graças a Deus ela conseguiu segurá-lo. Ele não é
violento, você sabe, só mesmo quando o tiram do sério e com algo muito
grave que reage.
Nina balança sua a cabeça e passa a mão sobre o rostinho do
Anjinho. Sorrio. O sinal se fecha e relaxo contra o encosto do banco, conecto
o meu celular no Bluetooth do carro e logo a nossa música invade o veículo.
A voz de Mikael naturalmente enrouquecida alaga aos meus
sentidos com calma. Anjinho em sua cadeirinha, respira fundo, funga e
resmunga, mas volta a dormir tranquilo. Essa é a sua canção de ninar, tem o
efeito relaxante que ele aprecia.
O sinal está para abrir, noto a moto que para ao meu lado, mas não
dou ideia. As luzes mudam e sigo, mas a fila de carros atrasa o trânsito e com
poucos metros outro sinal nos faz parar. Com o vidro fechado, não o
reconheço de imediato, mas o ronco que do motor ao acelerar me coloca em
alerta, logo o celular apita e a ligação entra automaticamente, a voz dele toma
o lugar da canção.
— Oi!
— Oi!? — respondo — Mika?
— Quem mais poderia ser? — ele solta uma risada e acelera ao
lado do meu carro. — Ainda bem que desacelerou, estou te seguindo desde a
ponte, não corre assim Liana, o seu segurança está suando para
acompanhar.
Assim que ouço a reprimenda, tenho ganas de responder, mas me
calo ao ver pelo retrovisor que Dionísio está me chamando na seta.
— Droga, — respiro devagar — me excedi, estou um pouco
irritada.
— Ok! Quer parar em algum lugar e lanchar?
— Não posso, estou levando Nina e… — pauso me dando conta de
algo realmente estrondoso.
Olho pelo retrovisor e Nina tem os olhos abertos como pratos, tento
manter o tom neutro, esse não é o encontro dos sonhos que planejei.
— Meu filho está dormindo na cadeirinha, ele teve um dia
complicado na escolinha.
Me viro e pergunto a Nina movendo os lábios: o que faço?
Ela ergue os ombros: não sei.
— Oh!? Bom então… — a pausa dele me dá gancho perfeito.
— Podemos deixar isto para depois?
— Tenho um encontro com os caras mais tarde e vou ser a babá.
— Mika, eu quero dizer depois, outro dia. Anjinho está dormindo
pesado, e ele hoje está precisando do colo da mamãe. — Não posso deixá-lo
ver o filho assim, seria um choque para os dois. OS TRÊS!
— Hum! — Ele ronrona e arremata com uma gargalhada. — Até eu,
quero o colo da mãe dele.
Não sei o que responder, me sinto envergonhada com Nina
ouvindo suas gracinhas.
— MAH? — A voz rouca cheia de sono e chorosa sussurra.
— Oh! Amorzinho, dormi, shi… shi… shi…
— MAH?
— Opa, — Mika diminui o tom de voz. — Acredito que acordei
ele, me desculpa, está no viva voz?
O sinal abre e ouvimos algumas buzinas.
— MAH! — Anjinho grita meio sonolento e volta a chorar, — anh,
anh, anh… — então me toco que desliguei a música.
— Mika, eu… — Respondo acelerando o carro.
— Lia desliga, vai para casa em segurança, não corre. — Ele
pausa, e volta a falar com carinho. — Diz ao moleque que depois, me
desculpo com ele. Beijo minha anja.
A ligação cai. Anjinho logo se tranquiliza quando a música volta a
tocar, meu enjoo redobra e por fim, encosto no primeiro posto de gasolina
que vejo.
— O que foi isso? — Nina pergunta, mas não tenho tempo de
respondê-la; abro a porta do carro e coloco para fora tudo que tenho no
estômago.
— Ah, inferno! Vou acabar morrendo assim.
— Lia? — ela me chama.
— O quê? — Olho em sua direção, ela estreita os olhos, mas se
recusa a falar. — O que foi?
Nina balança a cabeça em negativa. Encosto a minha cabeça contra
o banco e miro ao entardecer sereno sobre nós, nada parecido com a
tempestade em minha mente.
CAPÍTULO 35

INTUITIVO
“Quando não há interesse em se conhecer a verdade, é fácil se manter à
margem. Contudo, eu quero saber todas as verdades, doa a quem doer.”

Mikael
uando

Q percebi que
o motorista
cortando
outros carros em alta velocidade era Dionísio, senti meu estômago embrulhar
imaginando que algo pudesse estar acontecendo. Sem medir as
consequências, dei seta desviando-me para outra pista acelerando a moto até
conseguir alcançá-la.
Por um longo trecho mantive-me ao seu lado e apesar do carro ser
blindado com vidros escurecidos, é impossível não ver o quanto Lia está
irritada. Por um momento pensei em deixá-la seguir o seu caminho, Pedro no
dia anterior havia enviado uma mensagem, falando sobre o seu retorno ao
trabalho, e que o cliente estava colocando pressão sobre o caso, talvez
pudesse ser esse o motivo. Contudo, um sexto sentido me fez arriscar.
No primeiro sinal em que paramos, avancei entre o corredor de
carros colocando-me na sua lateral. Percebi um movimento no banco traseiro
e deduzi que fosse Nina e o menino. Isto me deixou bem agitado ao ponto de
ligar para ela em meio ao trânsito.
Me arrependo de ter de alguma forma perturbado a criança, pelo
jeito seja lá o que houve na escola, deve ter sido grave. A sensação de
queimação incômoda que senti há alguns dias em meu peito voltou a arder.
Queria poder assegurá-los que tudo ficará bem, mesmo que não saiba como
fazer.
Sinto o seu nervosismo, que a criança esteja gritando, me deixa
ainda mais sem graça e com medo de perturbá-lo. Se alguém me dissesse há
um ano que eu faria uma pesquisa extensiva sobre: como se relacionar e
conquistar o filho da sua namorada.
Sinceramente, eu estaria de mudança para o Polo Norte. Graças a
Deus! Isto não aconteceu. Nunca imaginei que realmente houvesse uma regra
criada para transpassar essas barreiras, que não são apenas dele — se houver,
— mas, em grande parte de mim mesmo.
A primeira regra diz que tenho de manter um afastamento inicial,
até que o nosso relacionamento seja oficial.
Incrivelmente dei o primeiro passo, até pedi-la em namoro fiz, a
questão é convencê-la disto, sem esse passo não é aconselhável me aproximar
da criança, o que por um lado me senti aliviado.
Realmente não tenho cem porcento de certeza de que isto seja uma
boa ideia.
A segunda regra é não competir com a criança, pela atenção da
mãe. Não que pretenda fazer, apesar de ser difícil. Confesso que gostaria
muito de saber o que está acontecendo e fazer o que me dispus ao sair do
tribunal, mas ela foi clara, hoje ele precisa de colo de mãe.
— Mika, eu…
Ouço sua voz transbordar reticências e a terceira regra estala em
minha mente: nunca atue como pai ou mãe da criança, preciso manter-me
neutro e deixar que ela controle e abra espaço para que participe da
situação. O moleque precisa confiar e me respeitar, por se sentir da mesma
forma e não coagido.
— Lia desliga, vai para casa em segurança, não corre, — pauso e
peço com carinho abaixando o tom da voz fazendo valer as tais regras. — Diz
ao moleque que depois, me desculpo com ele. Beijo minha anja.
Encerramos a ligação, Lia segue por mais alguns metros, liga a
seta, sigo-a até perto do posto de gasolina.
A quarta regra diz que devo ser agradável, mas ter cuidado com os
exageros; posso cuidar, o que já faço com a segurança redobrada, ser gentil e
incentivá-lo, contudo não abusar da proximidade. Ou seja, abordá-los em um
lugar público, sendo um estranho está fora de cogitação.
Essa coisa de ser o namorado da mamãe, está sendo muito mais
complicado do que parece. Desvio a moto para pista lateral, Lia encosta no
posto e pelo retrovisor a vejo abrir à porta, porém ela não desce do carro,
acho estranho.
Dou seta parando no acostamento, ergo-me no assento da moto
para poder ver melhor o que está acontecendo, abro a tela do celular
novamente cogitando ligar para ela, mas desisto ao ver que Dionísio
consegue estacionar logo atrás do seu carro. Com o trânsito em horário de
pico, seria mais rápido ir correndo até ela do que dar à volta na pista.
O aparelho em minha mão vibra, a mensagem de Jairo me faz olhar
por sobre o ombro. Confiro no expositor sua pergunta, respondo com menear
de cabeça e volto a olhar para o posto. Dionísio está na porta do carro,
entregando algo a Lia.
— Que seja! Vamos seguindo as regras, é impossível chegar até
ela, ainda mais com a criança alterada. Droga!
Não acredito que esteja conjeturando fazer isto, mas diante da
minha inapetência, é melhor pedir alguns conselhos aos meus amigos.
O tráfego abre uma brecha, aproveito para dar a volta e seguir em
direção oposta.

Depois de um banho e um lanche rápido enviei uma mensagem


para Ramon, confirmei o horário que me encontraria com eles na casa de
Anderson. De acordo com o argentino, hoje eles terão uma noite livre, estão
dispostos e animados a beberem o bastante para me colocar de motorista.
Aproveitando o intervalo de tempo que teria até sair de casa, fiz
uma ligação para Caleb querendo me atualizar sobre as buscas, quando
estamos com a banda evitamos tocar no assunto, mesmo que os outros
membros sejam da corporação e dois advogados, preferimos nos desligar de
tudo para nos dedicarmos ao show.
Caleb lamentou não ter boas notícias. Desde o ocorrido, é como se
os malditos tivessem sidos tragados pela terra, não se tem notícia e nem
pistas.
Angélica mesmo em viagem, me manteve atualizado sobre as
rotinas dos seguranças que moram no mesmo prédio de Lia e me garantiu que
às duas testemunhas, estão bem protegidas.
— Pelo menos, uma boa notícia!
Vesti jeans escuro, camiseta preta e uma jaqueta de couro, em vez
de pegar a moto aceitei a corona com meus seguranças. O trajeto até a casa de
Vasquez está um pouco mais tranquilo, otimizando o tempo de viagem.
Pensei em mandar mensagem para Lia, ainda estou preocupado,
mas voltando às malditas regras, me obrigo a esperar que ela fale comigo.
— Promotor Mikael, se precisar podemos nos dividir e ficar como
motoristas — o Kevin Costner olha por sobre o ombro esperando uma
resposta.
— Está tudo bem, de qualquer forma terá outra equipe de plantão.
Descansem, às vezes precisamos sentir um pouco de liberdade, mesmo que
seja camuflada.
— Compreendemos, senhor. Tenha uma boa noite.
— Obrigado.
Jairo estaciona há alguns metros de onde Ramon estacionou,
cumprimenta outros amigos de trabalho, passando o serviço.
Desço do SUV, me despeço e caminho em direção à onde Edu e
Ramon esperam por Anderson.
Cumprimentamo-nos. Eles parecem muito mais animados do que
geralmente estão ao nos vermos.
Observo-os vestindo jeans, couro e metal em seus pescoços e não
consigo deixar de fazer menção a isto.
— Pretendem fazer alguma apresentação está noite, senhores?
— Claro, — Ramon sorri com malícia, — está com medo da
concorrência?
Rimos, trocamos algumas alfineteadas de costume. — Onde está
Anderson? — pergunto me aproximando do portão.
— Ele está tentando despistar os trigêmeos, — Edu aponta um
canto do pátio com um sorriso de deboche. — Dá uma olhada e me diz, se
realmente aquele não é o autêntico pangaré com sua ninhada.
Sigo com meu olhar em direção ao local apontado e longe do
deboche quase sinto uma pequena inveja branca, posso descrever como o
mesmo sentimento que senti em relação aos desenhos, que os filhos de Edu
fazem, agora que tenho o meu próprio.
Anderson e Aline soltam gargalhadas tentando equilibrar os dois
meninos e Amanda sobre suas costas. Vestido de jeans e couro, o italiano
engatinha de um lado a outro relinchando, fazendo com que as crianças deem
muitas risadas.
Aline parece resplandecer, as bochechas coradas e os fios de cabelo
loiros escorrendo no rosto com um olhar apaixonado em retribuição, meu
amigo faz o mesmo.
Sinto alguém movendo à borda da minha visão. Edu e Ramon se
debruçam na grade.
— O que está pensando, Promotor?
— Nada de mais, só acho interessante vê-lo assim. — Pauso e me
viro para eles. — Aliás os três, nunca imaginei que pudessem ser pais e
babões em tal escala. Aposto que fizeram o mesmo antes de sair de casa.
Desafio aos dois a me contradizer. Edu abaixa a cabeça corando,
mas não resiste e solta uma gargalhada.
— Não andei de cavalinho, mas tive de fazer um “mano a
mano” em uma partida de basquete com João e Anna. Desfilar na passarela
com Annya e pousar de modelo para Jéssica.
Ele ri e se aproxima para ficar debaixo da luz, a iluminação faz
algo brilhar sobre as pálpebras.
— Olha aqui a prova, tentei retirar todo o glitter, mas essas
maquiagens de boneca parecem ter cola.
— Puta merda!
— Por isso o achei tão, iluminado está noite, cunhado. — Ramon
comenta tirando sarro, geralmente ele é o que fica com a chave do carro e
controla a bebida, mas por algum motivo, meu amigo resolveu relaxar de
verdade. — Eu não me maquiei e nem andei de cavalinho, mas deixei minha
mulher me cavalgar, depois que fiz Pérola dormir.
— Vá se ferrar seu filho da mãe, ela é minha irmã! — Edu
esbraveja.
Não seguro o riso, ao menos estamos nos descontraindo antes que a
bomba exploda.
Anderson se despede da família e corre em nossa direção.
— Hei! O que estou perdendo aqui?
— Nada! — Edu faz sinal com a mão para que entremos no carro.
— A noite promete! — Comento dando a volta em direção ao
banco do carona. — Espero que não bebam muito, pois não vou ser a babá de
ninguém, só o motorista.
Os três se olham entre si e tenho um mau pressentimento de que
estão aprontando.
Ramon toma a direção do 4 × 4, logo atrás dois utilitários pretos
nos seguem. Saímos em direção à avenida, a algazarra está controlada por
enquanto, comentamos sobre o dia de trabalho, Edu e Dinho falam do
fechamento que fiz pela manhã no caso.
Eles sempre que podem, acompanham os casos, são como um time
de apoio, só faltam os pompons de torcida organizada.
— Escutem, não sei o que estão pensando em dar às gêmeas de
aniversário, mas por favor, lembrem que não tenho lugar para um cavalo, e
Anna não tem idade para ganhar uma moto. Acredito que isto só pode ser
influência da Naja. A cada dia que passa essa menina se parece ainda mais
com a tia.
Anderson balança a cabeça. — Eu não faço ideia do que Aline
anda comprando, mas creio que você irá precisar construir uma casa de
bonecas tamanho real, — ele dá de ombros e o seu sorriso esmorece um
pouco. — Minha estrelinha, mesmo sabendo que bens materiais, não irão
suprir os anos que passou longe das filhas, insiste em agradá-las com tudo o
que possa imaginar. Já perdi a conta de quantas caixas tenho no escritório.
— Escolhi algo interessante para elas, espero que gostem! Tem
uma nova coleção de livros de autores nacionais que me chamaram à atenção.
Na verdade, comprei para todas as crianças. — Ramon declara com um
sorriso sabichão.
— Nós também compramos presentes para todos. — Dinho
confirma.
— Meu Moranguinho, está fazendo uma lista de compras para
todas as crianças.
— É impressão minha ou estão seguindo o meu exemplo? —
Pergunto olhando de esguelha pelo retrovisor.
Eles dão de ombro. Em todos os anos, desde que me tornei
um tio, nunca deixei de presentear apenas às gêmeas e os meninos da July em
qualquer ocasião possível, isto virou um acontecimento quando chega os
aniversários.
— Já comprei alguns presentes, mas estou em dúvida sobre qual
moto escolher… — comento e Edu soca meu ombro com uma ameaça.
— Não se atreva, do jeito que é louco, não duvido nada que faça
isto.
— Idiota! Sabia que existem motos infantis? Pena que Anna pediu
uma das minhas.
Isto era verdade, July enviou-me uma mensagem a pedido da filha,
a voz enrouquecida da menina me aqueceu. Em algo Edu tem razão, ela é
uma mini megera fofa.
Aproveito o assunto em pauta e tento fazer as perguntas que listei
em mente sobre como agir em relação ao moleque.
— Escutem, — hesito —, rum… sem piadinhas, por favor, preciso
de uma dica, sobre o que comprar para o menino da Lia.
— Oh! Ele já está pensando em ganhar terreno com a namorada!
— Anderson resmunga entredentes.
— Não meu caro, é com o filho da namorada! — Edu ressalta.
— Eu disse, sem piadas, imbecis.
— O que você tem em mente? Já perguntou Lia sobre o que ele
gosta, as suas preferências? — Ramon dá de ombros. — Talvez, ela possa te
dar alguma dica.
— Hum! Não perguntei, não quero criar expectativas, eu não sei
qual será a reação dele comigo e não quero usar algo material para conquistar
a sua atenção.
— Faz muito bem não agir assim, Mika. Digo de experiência
própria.
— Não creio que Aline faça por mal Anderson, — rebato — mas,
entendo a sua preocupação.
— Quando pretende entregar a ele o presente? — Edu pergunta.
— Estou pensando… — prefiro manter em segredo os meus planos
ou eles podem comentar com suas lindas esposas, e estas alertaram à Lia.
O que não será interessante se ainda não tivermos deixado claro o
que temos entre nós, principalmente após sua declaração apaixonada.
Droga! Porque algo que parece fácil aos olhos dos outros, na
prática, é um verdadeiro tormento. A minha intuição me diz que estou no
caminho certo, mas meu cérebro racional, tenta erguer barreiras e frear-me.
— Mika?
— Desculpe, o que disse? — volto minha atenção para Ramon que
me chama.
— Perguntei se tem algo em mente. — Ele repete a pergunta.
— Ah! Sim, o moleque gosta de música, de acordo com Lia ele
tem vários instrumentos, pensei em dar algo relacionado a isto, mas pode ser
que já tenha.
— Ele gosta de cavalos, Aline disse que ele tem sessões de
equitação.
— Está sugerindo, que eu dê a ele um cavalo?
— Não, mas quem sabe algo relacionado ao esporte?
— Não acredito que uma criança de quatro anos pratique isso a
sério como esporte, principalmente sendo Lia uma mãe tão cheia de cuidados.
— O que os meninos da idade dele gostam, Edu? Você é o melhor
para falar disto. — Anderson e eu falamos junto.
— Esperem! — Ramon ergue a mão e me olha de esguelha. —
Quatro anos? O menino da Lia é alguns meses mais novo que as gêmeas.
— Como? Impossível, as gêmeas farão sete anos?!
— Exatamente!
— Não pode ser.
— Poque não?
— Se ele tivesse com cinco anos prestes a fazer seis, eu saberia, na
época em que Aline foi embora, vi a Lia, e posso garantir que ela não estava
grávida.
— Pode garantir porque ela falou, a viu nua ou acha? — Edu
rebate. — Tenho certeza de que o menino nasceu poucos dias antes das
gêmeas fazerem um aninho, tia Maria estava em São Paulo com a filha.
— Mikael, também não estava aqui, lembram? — Dinho comenta.
— Isto mesmo, passei praticamente quase um ano de ponte aérea
fazendo cursos em outros Estados. — Respondo me sentindo aéreo com o
que ouço, eu nunca realmente fiz questão de saber nada sobre a maternidade
dela, tempo, condições, nem mesmo o nome da criança eu sei!
Inferno! Acabo de perceber que estou fazendo uma pesquisa em
vão, se nem mesmo sei o nome da criança. Ela o trata de Anjinho e pelo que
percebo todos fazem o mesmo por tabela.
Anderson e Edu continuam a especular os fatos do passado, em
suas próprias lembranças, enquanto vago nas minhas.
— Depois disto veio a preparação para Promotoria. — Ramon
ressalta.
— Quando soube, que Lia teve a criança? — Edu pergunta. — Não
me lembro.
— Pouco antes da prova, ele ainda estava no escritório. — Dinho
comenta e cutuca Edu. — Para de falar nisto.
— O que foi? É agora ou nunca, quando vamos ouvir Mikael
falando sobre esse assunto novamente?
Se continuarem assim, provavelmente nunca! — penso.
— Não precisam ter receios em comentar sobre isto Dinho, passei
tempo demais fora e me jogando em toda orgia possível. O fato de não querer
ouvir falar dela, e reagir pior do que você ao ouvir o nome de Aline, garantiu
que deixassem o assunto de lado.
— Me desculpa cara, mas na época você entendeu como se ela
estivesse lhe mandando um recado: estou vivendo minha vida, foda-se com a
sua.
Estas foram minhas exatas palavras ao saber que ela teve um filho.
Foi a segunda vez que enlouqueci indo para São Paulo à sua procura, só para
descobrir que ela ainda morava com o mesmo homem. Que hoje sei que é o
primo do Santana!
Porra! Isto me leva a quinta regra da maldita lista, onde diz que
não devo entrar em competição com o genitor, roubar o lugar de pai ou
padrasto; o recomendável é deixar claro os papéis e responsabilidade de cada
um, mas e se o tal for como o Asno, ex-marido de July?
Com certeza vou deixar minha mão bem clara na fuça do
desgraçado.
— O que significaria MAH, para uma criança? — pergunto
aleatoriamente.
— Depende da idade, da circunstância. Pode ser mamadeira,
mamãe, um brinquedo, alguém… — Edu responde.
— Uma criança de cinco anos não usaria isto ao atender o telefone,
ele falaria alô, correto?
Não posso acreditar, mas meu cérebro está tentando achar uma
saída para essa novidade.
— Como disse depende, às vezes MAH, é o nome de alguém e ele
pode associar no timbre de voz. — Edu arremata.
— Porque está perguntando isto, teve a oportunidade de falar com
ele? — Ramon pergunta.
— Digamos que sim. A voz dele é enrouquecida como a dela. —
Solto sem querer uma lembrança íntima que guardei do meu primeiro contato
com Anjinho, e o ocorrido há algumas horas quando interceptei o seu
caminho de volta para casa.
— Bom, não leve para o lado de que a criança tendo idade X tem
de ser igual a outra em comparativo, cada uma tem sua própria essência,
mania e preferências. Estes seres são celestiais, obstinados e com uma
tenacidade imensa para nos encantar com chamego, seja lá o que for,
provavelmente é algo importante.
— Ela disse que o pirralho toca música só de ouvir uma única vez,
tenho certeza de que ele tem ouvido absoluto. — Comento.
— Igual a você?! — Anderson quase grita. Edu e ele trocam
olhares. — Quer dizer, isto não é nada comum, mas poxa, conhecer duas
pessoas com esse dom em uma vida só, é algo surreal.
— Tem algo mais que Lia falou sobre a criança, Mikael? Talvez,
possamos ajudá-lo a pensar em algo mais elaborado. — Ramon de forma
sempre concisa tenta contornar a gafe de Dinho.
Respondo qualquer coisa, volto a olhar para fora da janela e
procuro não deixar pensamentos estranhos invadirem a minha mente.
— Estamos quase chegando. — Ramon sussurra em voz baixa e
percebo que deixaram de falar há algum tempo.
— Olha, não fiquem cheios de culpa por tocarmos no assunto e
verem o quanto sou ignorante em relação ao moleque, em partes por minha
culpa, em partes por ela ser assim, — dou de ombros — Lia gostar de manter
a vida dela em oculto. O que importa é que estou me esforçando para que as
coisas mudem, só não faço ideia do que vai acontecer. — Declaro.
— Seja lá o que for, tenho certeza de que se sairá muito bem
Mikael, — Anderson bate em meu ombro, olho por sobre o ombro e vejo o
seu sorriso sincero. — Para nós, foi um choque também saber que Maria
estava indo viajar às pressas e só depois saber o motivo.
— Lia sempre foi assim…
— Nem sempre… — rebato.
— Já que estamos no assunto, odeio quando ela se recusa a
qualquer convite para entrosarmos com a criança, mas não a culpo. Ela não
tem as melhores lembranças em família. — Edu destaca.
— As circunstâncias, nos impulsiona a fazemos escolhas que
podem nos machucar aqui ou lá na frente, mas não a culpe por fazê-lo. Já
disse isto uma vez. — Ramon fala com cautela. — Digo de experiência
própria.
Um pesado silêncio incide por alguns minutos no carro. Todos
sentimos muito pela história dele e Carla, mesmo que pareça, ainda estamos
levando cada um, o seu tempo para absolver tudo isto.
Recuso-me a continuar está conversa sabendo que não vai me fazer
bem, preciso me concentrar em falar com eles, sobre outro assunto, e minha
cabeça que já está a mil por hora, fazendo uma regressão ao encontro que tive
com Lia na época em que foi advogada de Aline, trazendo à tona as ofensas,
a forma com que encerramos nosso encontro, o sexo que foi mais doloroso
emocionalmente do que satisfatório fisicamente, tudo é como um murro em
meu peito.
Se fosse apenas isto, mas não tem nada ruim que não possa piorar.
O adeus, e logo depois minha derrocada na esbornia, mulheres, bebidas,
festas e o ensejo de ser capa de toda revista de fofoca, apenas para espezinhar
a ferida, mais em mim do que nela, ainda é um espinho na minha garganta.
Cada vez que me lembrava de ter deixado tudo de lado e ido atrás
dela, só para vê-la sentada naquele restaurante com aquele sujeito, meu
sangue fervia de raiva por ser estúpido.
Se ela poderia superar as dificuldades e continuar a sua vida depois
de tantos anos, por que eu não poderia? Bom, pensei que conseguiria, mas
hoje sei, que nunca o fiz.
— Não a culpo, só não sei se posso arcar com a carga. Eu não
saberia lidar na época se tivesse conhecimento da sua gestação, na verdade,
não sei lidar hoje. Estou apendendo.
— Se sairá muito bem, Promotor. Ao menos, pense que agora tem
uma equipe de apoio. Se quiser posso pedir a July que procure saber o que o
menino gosta. — Edu comenta animado.
— Obrigado!
Eles lançam no ar algumas ideias, concordo e me calo. Ainda ouço
outra das suas pontuações em relação ao passado, tentando bramir os fatos
turbulentos, contudo não dou importância, pois outra coisa está brincando de
lusco-fusco em minha mente.
Seria estúpido ao quadrado se não percebesse o que estão
pensando. O que, na verdade, para o meu caso é impossível… impossível!
Não posso sequer crer que ela tenha feito algo assim. Nenhuma das duas
hipóteses, que estão ganhando força em minha mente.
Discretamente retiro o Iphone do bolso da jaqueta, abro a tela e
digito uma mensagem rápida, antes que me arrependa de fazê-lo.

@Promotor_nikolaievitch: Liana, como está o Anjinho?


Precisamos conversar, vamos jantar amanhã. Passo às 19:00 horas para te
pegar.

Deixamos o carro na lateral do estacionamento, o assunto de


minutos atrás ficou de lado, não me sinto confortável em falar mais sobre
isto, e percebo que para meus amigos a situação não está diferente.
Passamos na portaria, indico a eles a mesa a qual vão se assentar,
enquanto me encontro com os integrantes da banda na parte de trás do palco.
Ramon me puxa de lado. — Escute, sei que sem querer podemos
ter colocado algumas coisas na sua mente, mas independentemente do seu
plano, se ainda for o que me falou no escritório no dia em que perdeu a
elegância, serei o seu apoio. Todos nós!
— Obrigado, você sabe mais da minha história com Lia do que
todos eles, compreende o quanto é difícil estar embrenhado em um mundo
novo, com tantas novidades. Isto está além que consigo fazer, não sou tão
receptível com pessoas ou determinadas mudanças bruscas em minha vida,
mas posso me adaptar.
— A questão vai além da adaptação. Vi que enviou uma mensagem
e concluo que deva ser para Lia, espero que possam se acertar, agora, não
estamos mais brincando de charadas com uma mente doentia, e nem
colocando nossas vidas em risco por nada, — ele pausa — tê-los ao seu lado
facilita as coisas em vários âmbitos. Eu disse isto e vou repetir. Edu é o
exemplo de que o amor é um laço intransponível. Se em algum momento
sentir medo, basta olhar o sorriso largo que nosso amigo tem no rosto.
— Realmente, estou agradecido Ramon. Darei o melhor de mim.
— Dê o que tem, e se permita receber o que te ofertarem.
Com estas palavras em mente deixei o argentino a cargo de pedir
bebidas para a mesa e cuidar dos nossos amigos.
Conferi algumas vezes o Iphone para ver se havia alguma resposta.
— Mika, — Ernest me chama ao atravessar o marco da porta, —
como estão as coisas, cara?
Cumprimentamos, com aperto de mãos firme, ele é o baixista da
banda e um advogado bem-conceituado, nos conhecemos há muito tempo.
Souza, Caleb e Johnny fazem o mesmo, trocamos algumas palavras,
conferimos a lista de músicas e nos preparados.
Não quero deixar minha mente estagnada em tudo que está
acontecendo e que tenha previsão futura de ser um novo vendaval. Agora
deixo extravasar toda à minha frustração, dores, alegrias e o período de
tensão.
A música faz isto comigo, ela é meu remédio, alimenta a minha
alma de uma forma que não sei explicar. Sem querer volto meus pensamentos
para Anjinho e compreendo o que ele sente ao ouvir uma música e logo poder
tocá-la em algum instrumento. Isto me faz pensar no presente ideal para o
moleque.
Esse universo de comunhão entre alma, coração, sonoplastia é
mágico. É como se cada vibração da nota pudesse remeter dentro de mim
uma verdade intocada.
Retiro minha jaqueta, deixando-a no canto do palco à vista dos
meus olhos, passo a alça da guitarra sobre o ombro e dou a introdução da
primeira nota, solando Sweet Child O' Mine de Guns N’ Roses, levantando o
público do chão.
Impossível não me deixar levar pela sensação eletrizante do solado
e a letra, porque querendo ou não é ela que me inspira. Lia está em meus
pensamentos, brilhante como um céu azul.
— Boa noite, somos a banda Bad Angel Rock, e estamos muito
contentes de vê-los aqui está noite. Bem-vindos a nossa noite de rock, espero
ver todos cantando junto e se divertindo a valer!
A primeira música leva o público ao delírio, a casa cultural está
abarrotada, não só pelo show seguinte, mas por um público nosso que
construímos.
Uma sequência harmoniosa se segue, revezamos entre o vocal,
cantando juntos ou trocando a introdução.
Edu e os rapazes estão na primeira mesa no canto esquerdo do
palco, portando-se como tantos outros fãs. O que para eles é ótimo, pois
quando o show acabar e contar o que tenho guardado literalmente nas
mangas, será a vez de eles ficarem em choque cogitando mil coisas.
Quando não há interesse em se conhecer a verdade, é fácil se
manter à margem. Contudo, eu quero saber todas as verdades, doa a quem
doer.
CAPÍTULO 36

IMPROVÁVEL
“Dê uma máscara ao homem, e ele mostrará sua verdadeira face.”
Irmãos Grimm

MIKAEL

A
última música de encerramento foi tocada, os fãs da banda se aproximam do
palco querendo fotos, autógrafos e oferecer uma bebida, o que se traduz em
um convite cheio de segundas intenções. Caleb e os rapazes da banda se
deixam levar pelo mar de gente, enquanto me desvio das mais assanhadas,
apanho a jaqueta no canto do palco e sigo em direção à mesa dos meus
amigos.
— Espero que ainda estejam sóbrios, — comento puxando uma
cadeira para juntar-me a eles.
— Estamos, posso jurar que estou vendo quatro dedos em minha
mão. — Edu responde erguendo a mão para mostrar que está consciente.
— Ótimo show, Mika, estava com saudades de ouvi-lo cantar. —
Dinho comenta, ergue o seu copo e brinda.
— Agradeço, — aceito o refrigerante que o barmen coloca sobre a
mesa e tomo um gole, — vamos aproveitar então que ainda estão bem.
— Este é o melhor lugar para falarmos, seja lá, do que for? —
Ramon pergunta, ergue a sua taça de vinho e toma um longo gole.
— Como nos velhos tempos quando tínhamos que falar sobre
alguma merda, gostávamos de bebidas e uma boa agitação. — Dinho
comenta.
— A diferença que antes, as nossas “merdas” não eram nada
relacionadas à nossa sobrevivência. — Edu replica fazendo sinal para o
garçom.
— Aí que está meu caro, creio que sempre houve algo realmente
sério acontecendo às nossas costas, e sinceramente, me sinto um burro a cada
segundo que penso nas coisas que descobri recentemente.
— Edu, triplica o pedido, creio que vamos precisar de uma
anestesia. — Dinho deixa o copo e olha a jaqueta que está sobre à mesa. —
Durante todo o espetáculo, você não tirou seus olhos do canto do palco, tem
algo aqui que deveremos ver?
— Excelente observação meu caro, — sorrio, mas não sinto
felicidade alguma ao abrir o bolso interno da jaqueta. O envelope pardo com
as fotos faz um baque sobre a mesa quando jogo para eles. — Quero
apresentar a vocês o acervo de fotos exclusivas que achei em minha casa.
Ramon abre o envelope e visivelmente se assunta com a primeira
fotografia. — Madre de Dois, ¿que es estou?[17]
— É o que está imaginando, parece que Sarah Nikolaevich, não era
tão louca como imaginávamos.
— Kólasi![18]—Edu passa a mão pelo cabelo desalinhado os fios,
seus olhos se expandem ao reconhecer nas fotos a mesma mulher que
empenha a sua vida em matar-nos.
— Além de aliviar o seu coração, porque sabemos que a alcunha de
louca que Sarah carregava, o machucou durante anos, Mika, em que
exatamente estamos colocando nossos olhos? — Dinho pergunta, erguendo
uma foto. — Quem é esse garoto ao lado da sua mãe?
— Ele está em todas as fotos. — Edu comenta.
— É impressão minha, ou ele está tentando se esconder e Sarah faz
questão de fotografá-lo? — Ramon pergunta erguendo outra foto. —
Estranho, tenho a sensação de conhecê-lo.
— Todos nós o conhecemos, o nome dele é Christian.
— O nome me soa familiar, — Ramon pega outras fotos
comparando-as —, são fotos tiradas da mesma data em especial e anos
diferentes?
— Sim! Creio que seja a reunião que nossos pais faziam para
comemorarem a chegada deles ao Brasil. — Respondo, suspiro sentindo um
embrulho no estômago, falar sobre isto não parecia ser fácil na teoria, na
prática, é pior ainda. — Se lembram do rapaz que andava atrás da Angélica
na fazenda?
— O sobrinho da Lourdes? Aquele rapaz que sempre fugia de nós?
— Espera, — Edu ergue a mão e leva o copo a boca —, começo a
sentir que não vou ficar bem após perguntar isto, está falando da Lourdes, a
irmã da Verônica?
Aceno positivamente para ele, de imediato meu amigo esbraveja e
tão alto que chama a atenção de alguns ocupantes na mesa ao lado.
— Puta que pariu! — Ele passa às duas mãos pelos cabelos. — Eu
não fico bem em pensar nesta mulher, muito menos em saber que tínhamos
por perto mais pessoas da sua família. Pelo amor de Deus! Todas às vezes
que penso que ela esteve dentro da minha casa, perto dos meus filhos, sinto
arrepios e vontade de vomitar.
— Estresse!? — Dinho pergunta.
— Não, — ele responde socando a mesa —, raiva mesmo, pois se
soubesse quem era teria dado fim na maldita.
— Estamos falando então do rapaz da fazenda, ok! Edu se controle,
precisamos ser frios, — Ramon salienta. — Droga! Não deveria ter bebido
tanto.
— Todas as afirmativas estão corretas. — Respondo.
— Esse menino andava atrás da Angel, mas sempre que estávamos
por perto nos evitava. — Edu parece começar a se lembrar dele.
— Nem sempre, me lembro de conversar com ele uma vez, não me
recordo de tudo, mas há algo que ficou gravado em minha memória.
— O que seria? — Ramon pergunta.
— Ele queria ser pintor, — aponto observando as reações dos meus
amigos.
— O que isto tem a ver conosco?
— Ele além de ser alguém, em quem minha mãe tinha uma imensa
curiosidade em retratar, pode estar ligado de alguma forma há tudo que tem
acontecido.
— Sei que vai parecer idiota da minha parte dizer isto, mas —
Dinho dá de ombros, — na época ele não parecia ser um jovem tão esperto
assim, ou alguém diabólico. Ele vivia longe, mal conversava conosco, então o
que o leva a crer que esse rapaz de alguma forma possa ser uma pista para
achar a tal mulher. Porque é isto que está dizendo, não é?
— Sim, precisamente isto que estou tentando falar; o que me leva a
crer nisto, é pela conversa que tivemos na época, que juro, não me lembrava,
contudo, é como se o Universo — como diz July — estivesse conspirando.
Lembrei-me dele, me encontrei com ele poucos dias atrás e curiosamente
trabalhando como um dos seguranças ou independentemente da sua função
ao lado de Angélica.
— Puta merda!
— Porra!
— A loira está nos traindo de novo?
— Não creio que ela esteja nos traindo, mesmo que não tenha dado
muita importância à sua reação, ao ver que reconheci o seu companheiro de
trabalho, percebi o olhar que ela lançou sobre ele ao me ouvir falar dos seus
antigos sonhos.
Quanto a isto, tem algo que está me incomodando e pretendo
confrontar Angel em breve.

Comento com eles a situação na qual acabei por reconhecer


Christian, dou os detalhes, falo sobre a missão e aproveito a deixa, para
contar até mesmo sobre está sendo perseguido e sofrendo ameaças, essa parte
não é novidade, mas acho prudente falar, já que achamos em meio aos
pertences dos bandidos, não apenas fotos de Lia, com o moleque, mas
também dos meus amigos e sua família.
Outra explosão de desaforos se sobressai à música e tento não dar
importância, mas eles não perdoam o fato de ter mantido a seriedade do que
tem acontecido, mesmo que no fim admitam que fariam o mesmo se fosse
para proteger aos seus amigos e a família. O fato de ter tomado uma medida
tão drástica em relação à segurança da Lia e do menino, faz com que me
olhem com desconfiança, contudo não entramos nesse assunto, ainda.
— Que desgrama, a cada nova informação que temos, maior é a
minha vontade de pegar minha família e ir viver com minha mãe na Itália!
— Aline jamais deixaria as gêmeas, — Edu comenta.
— Si! Nem pediria isto a ela, mas compreende meus temores?
— Todos temos pelo que nos preocupar, — Ramon ressalta. —
Nada parece ser tão simples, mas concordo com Mikael, teremos de procurar
esse rapaz.
— Compreendo a situação em que estão e me sinto no mesmo
barco, achar estas fotos no santuário que minha mãe criou para Mikaella…
— Onde achou as fotos? — Os três perguntam espantados.
Ergo minha mão para que se calem, expliquei brevemente sobre o
quarto onde ela deixou tudo que comprou para minha irmã morta durante
todos aqueles nãos.
Nunca tive coragem de contar-lhes sobre o quarto e o fato de
acreditarem que mamãe estava ficando louca, mantinha-os longe na maior
parte do tempo. Como seu filho sendo deixado sempre em segundo plano, me
sentia envergonhado em admitir para os amigos que minha mãe preferia
passar suas horas entre o orquidário onde conversava mais com suas flores do
que comigo ou dentro daquele bendito quarto.
— Ver as fotos suscitaram muitas lembranças, coisas que no
passado não fazia diferença, — dou uma pausa e retiro do outro bolso um
envelope pardo dobrado, mas permaneço com ele nas mãos. — Se lembram
da antiga cozinheira em minha casa? — Todos acenam positivamente. —
Pois bem! Eu era bem novo na época, não me lembro com quantos anos
comecei a ouvir isto, mas era muito moleque, a empregada contava para o
meu pai diariamente, o tempo que mamãe passou na estufa falando sozinha,
conversando em russo, sozinha.
— Eu me lembro disto, — Ramon comenta, — na verdade, não é
bem uma lembrança, é algo que mamãe deixou em um dos diários dela e que
li recentemente.
— No diário? — pergunto.
— Sim. Ela conta que estava muito triste, pois a tal Verônica, em
um jantar na casa dos pais de Edu e Carla, fez um comentário leviano à mesa,
sobre tia Sarah passar tantas horas conversando em um orquidário vazio,
insinuou que fossem os primeiros sinais de esquizofrenia e, — ele pausa, —
que talvez o tio Niko devesse interná-la em um sanatório.
— Puta! — Não consigo controlar a língua, levo à mão ao copo de
uísque que Dinho deixou pela metade, mas paro no meio da ação. — Não
preciso beber, creio que o tanto que bebi nos últimos três dias, foi o suficiente
para uma vida inteira.
Todos nós nos calamos absolvendo as palavras de Ramon, a época
a qual tia Rose se refere, foi uma das piores em nossas vidas, lembro-me que
foi quando as coisas começaram a sair do controle, os gritos não eram mais
suficientes, as agressões começaram a fazer parte do dia a dia, cada vez mais
sentia mamãe se afastar de nós e se isolar. Me sentia deixado de lado,
esquecido de como um trapo velho.
— Sua mãe gostava de música e pintura, não é mesmo, Mika? —
Edu pergunta. — Quem sabe ela não se aproximou do rapaz por isto?
— Pode ser, mas tem algo interessante em tudo isto, eu falei sobre
conversar com ele, foi na noite em que bebemos quase todas as garrafas de
vinho do tio Gustavo. Estava tão chapado, que não conseguia sequer me
escorar direito contra a parede.
— Todos estávamos bêbados. — Ramon ressalta.
— Além da conta, se me lembro bem. Em algum momento da
madrugada, ouvi um barulho e me lembro perfeitamente de um facho de luz
sobre o meu rosto e um resmungo, na época cheguei a me encolher contra a
parede, porque acreditei ser o meu pai que tinha nos encontrados, mas me
surpreendi quando o vi. Christian se sentou ao meu lado, balbuciou algumas
coisas e quis se levantar, mas por curiosidade o segurei ali e ficamos
conversando, — pauso, — como disse, não me recordo do que era o assunto a
não ser a parte da pintura, mas jamais poderia esquecer qual era o idioma que
estava usando para falar comigo?
— Idioma?
— Russo, perfeito, nativo, cadenciado. Tão bem expressado que
poderia supor que ele era um autêntico russo.
— Acredita que sua mãe o ensinou? — Edu pergunta.
— Esperem, — Ramon ergue as mãos, — por maior que seja a
nossa loucura com tantas hipóteses variadas, mas poderia ser esse Christian,
alguém próximo de Sarah? Talvez um parente?
— Começo a pensar como você Staeler! — Dinho exclama. —
Vamos além nas hipóteses. Sarah não me parece uma esquizofrênica diante
destas fotos, e pelo que Mika está falando do santuário e as fotos que têm lá,
além destas, — ele aponta para mesa, — tem as fotos de Lia, sua mãe a
vigiava?
— Não faço ideia.
— Mika, e se Sarah não falava sozinha, mas com esse rapaz? —
Ramon pergunta pegando outra foto, dele, nesta o Christian parece mais
velho, e foi tirada pouco antes dele desaparecer da fazenda. — Seria possível,
que Sarah tenha… não isto é muita loucura, — ele balança a cabeça.
— Tudo é loucura, fala o que está pensando. — Solicito.
— Não é nada, deixe-me ler mais alguns trechos do diário de
mamãe, e então quem sabe faria sentido o que passou em minha mente.
— Ok!
— Vamos ao resumo: temos um homem do passado com ligação
direta com Angel, Verônica e com a tia Sarah, que fala russo fluentemente
como só os seus pais falavam, sumiu e agora está de volta?
— Exatamente!
— Junta a essa analogia Anderson, que estou tendo um déjà vu —
Ramon comenta com outra foto em mãos, ele ergue o Iphone para fotografar
a imagem.
— Pode ficar com ela se for preciso, — comento — não vou
precisar delas, na verdade, quero que cada um de vocês fiquem com uma
destas fotos e me ajudem a caçar esse homem. — Passo para eles uma
descrição física rápida do que me lembro.
— Você não viu o rosto dele?
— Medida de segurança, nem tentei fazê-lo tirar o capuz, mas não
me confundiria se ouvisse a voz, principalmente se estiver usando outro
idioma diferente do português, notei que usa um timbre diferente na
pronúncia.
— Como aquelas pessoas que fazem modulações com a voz? —
Edu pergunta.
— Um ventríloquo?
— Alguém como Verônica, que sabe se disfarçar perfeitamente. —
Ramon ainda com a foto em mãos comenta em voz baixa.
Tenho a sensação de que o argentino tem algo em mente, mas
conheço sua forma de agora, ele não é de soltar qualquer coisa sem provas, e
se não estou enganado, fiz o certo em compartilhar com eles isto.
— Então temos de mudar nosso foco e começar a buscar por ele —
Edu comenta guardando uma das fotos no bolso da jaqueta, — preciso manter
isto longe de July, — ele suspira, — podemos pedir a Álvaro que nos ajude
com a investigação
— Não! — Ramon exclama colocando a foto que pegou para si no
bolso. — Creio que seja melhor, fazermos isto por nós mesmos.
Concordamos, discutimos mais algumas coisas em relação ao
santuário, as perguntas que fazem são normais, e falar sobre isto com eles,
mesmo que doa, me ajuda a externar os demônios que me atormentam.
— Bom, falamos sobre achar o tal Christian, e quanto a este
envelope que está segurando, Mika?
Tomo o restante do refrigerante em meu copo, encosto-me contra o
espaldar da cadeira e deixo um lento sorriso sarcástico aflorar em meus
lábios.
— Meus caros amigos, acredito que precisaremos fazer uma
viagem para a fazenda das gêmeas, eu tenho a sensação de que naquela velha
casa, ainda teremos muitas revelações bombásticas.

— Do que diabos está falando? — Edu segue meu exemplo e os


demais fazem o mesmo, como se o envelope que coloco sobre a mesa à frente
deles, fosse uma bomba prestes a explodir.
O que é uma verdade? Com um resumo breve, trago à nossa
memória a viagem que fizemos, a mesma em que Ramon e Carla finalmente
começaram a acertar os ponteiros. Toleramos a rabugice de Edu com os seus
resmungos.
Eles se surpreendem ao ouvir relatar que não era um bicho morto o
que achei no piano, mas sim uma longa trança de cabelos, com resquícios de
sangue que poderia ser considerado “fresco”.
Relembrar este momento é estranho e me faz sentir em outra
dimensão, contudo de alguma forma sou grato por isto. O silêncio entre nós é
denso, se não fosse as pessoas à nossa volta cantando com outro show que
está em andamento, poderíamos ouvir o retumbar dos nossos corações. Penso
desta forma e levo a mão à base do pescoço, deixo que abram o envelope à
medida que conto sobre o DNA.
Falo sobre o acidente que sofri no dia que fui à clínica, e todas as
merdas que têm me acontecido desde então, até mesmo o fato de ter visto a
moça no conservatório e o que me causou fisicamente e mentalmente.
Ramon segura meu antebraço, ergo os meus olhos em sua direção e
só então percebo que estou chorando.
— Porra! — Exclamo e aceito o lenço que o argentino me entrega.
— Por que não contou antes? Poderíamos estar buscando por ela…
— Edu comenta de forma solicita.
— Não faço ideia se é Mikaella, Edu.
— Mas, se for? — Dinho se ergue e se aproxima colocando o braço
sobre meu ombro e me abraçando. — Porra cara, se for sua irmã?
Ele se afasta, chamamos a atenção, mas não tenho palavras, para
estas demonstrações, dentre todos, Anderson é o que mais tem a necessidade
de tocar e mostrar seu conforto. Edu coloca a minha frente um copo com um
dedo de Vodca.
— Só essa, vira e se não der, pode chorar no me colo.
— Idiota! — Recuso a bebida e aceito a garrafa de água que
Ramon me entrega. — Não sei bem se é Mikaella, ou outra pessoa, mas são
muitas coincidências e todas apontando na mesma direção.
— Qual direção Mika, estou com medo de perguntar, assim como
não quero dar voz aos meus pensamentos mais caóticos. — Anderson
comenta, ainda de pé ao meu lado.
— Esta história começou com o sumiço das joias que minha mãe
trouxe da Rússia. O chamariz que usamos para pegar Verônica, foi com as
joias, está mais que claro que ela tinha algo que perturbava minha mãe, e de
alguma forma controlava o meu pai ou aquele maldito era realmente farinha
do mesmo saco que ela. Minha mãe conversando sozinha, um menino que
estava sempre por perto falando fluentemente nosso idioma, minha irmã
morta, a qual nunca conhecemos, fotos de todos, incluindo de Lia nos anos
que viveu em Portugal, a possibilidade de ter alguém com mesmo DNA que
eu andando por aí…
— Mikael, nem complete a frase, não concordamos com que está
pensando em dizer.
— Tudo é nossa culpa, Edu. Parece que tudo está vindo detrás, ou
através da nossa família, — respiro lentamente e solto o que me consumiu
por dia. — Talvez, a morte dos pais de vocês, tenha sido culpa da minha
família.
Os três começam a falar junto, esbravejar e negar com veemência,
mas nenhum deles pode tirar de mim a dor que sinto só em pensar que de
alguma forma, meus pais tenham sido arrolados em um emaranhado de
crimes brutais e tão severos.
Fizemos um acordo de buscar a verdade e começarmos a investigar
por nossa conta. Talvez confiando na bebedeira alheia, acabei por falar do
meu relacionamento com Lia, e o que isto faz com minha mente.
O fato de que o tio Joaquim foi acusado de roubo, ser preso, sua
carreira manchada e passar por toda aquela humilhação, só me deixa ainda
mais frustrado em relação a ela, não por acreditar que ele pudesse fazer algo
assim, mas por ter a certeza, de que foi uma armadilha e que minha família
tem quase, senão toda a culpa sobre o assunto.

Meus amigos resolvem acabar com suas mágoas e chorar suas


propeliras perdas com bebida, não queria deixá-los se afundarem assim, mas
se pudesse, faria o mesmo. Após beberem bastante, senti que deveria levá-los
para casa, mas não seria possível, pois as suas esposas entrariam em colapso
ao ver o estado deplorável de cada um deles.
No caminho para minha casa, as coisas pioraram e muito. Edu e
Dinho nunca foram os melhores para beber, os vômitos, as cantorias e os
conselhos de boteco que resolveram me dar sobre minha relação com Lia, me
deixaram em dúvidas entre abandoná-los na sarjeta ou na grama do jardim.
— Não vou discutir com vocês dois bêbados assim, — suspiro
perdendo a paciência, — Anderson, seu miserável se sujar o meu chão
novamente…
Ameaço, mas o pangaré está mais para ser carregado do que me
ouvir. Ramon se ergue da poltrona trocando as pernas, não faço ideia de onde
deixou suas roupas, pelo menos manteve a boxer, o argentino segura pelo
braço direito do Anderson e eu o esquerdo.
— No três, — ele diz, — um, dois… Hupp, desculpa, — ele solta o
braço do amigo que escorrega pelo tapete novamente.
— Desisto — exclamo, — vou ver o Edu, antes que se afogue.
Entro no meu quarto, juro que nunca deixaria eles entrarem aqui
sóbrios, mas infelizmente bêbados como estão, não conseguiriam subir um
lance de escadas para o andar de cima.
— Edu? — Entro no banheiro e a cena é deplorável.
Edu está com a camiseta, boxe e as meias debaixo do chuveiro,
após pôr tudo o que tinha para fora no meu gramado, o filho da mãe caiu
desmaiado no meio da sala.
— Mikael, — ele sorri e acena — sente-se aqui comigo, quero falar
sério com você. — Ele escora o corpo contra a parede e apoia as mãos nos
joelhos.
— Não tem como você falar sério, Carlos Eduardo. Vamos sair
deste banho, trouxe umas roupas secas.
— Tenho que falar, depois de tudo que contou, sei que o seu maior
medo, não é esse DNA, nem esse homem, o tal do Christian aparecer, — ele
soluça e para não bater contra o piso seguro-o pelo ombro — estou bem,
estou bem…
— Estou vendo!
— Então como estava falando, seu medo é Lia, não é? Tem medo
de ser o pai do menino…
— Edu…
— Espera, xisto… estou falando! — Ele ergue o dedo e se não
desvio meu rosto a tempo, perderia um olho. — Sei o que se passa nessa sua
cabecinha, meu amigo, pode até dizer que não, mas aqui, — ele bate sobe o
peito — sinto sua dor e entendo agora parte dos seus temores.
— Se entende, sabe que estou muito aquém de ser o ideal dela,
principalmente quando essas coisas forem lançadas sobre a mesa.
— Já ouviu a expressão: “a água fervente que amolece as batatas,
torna o ovo duro.”
— Pelo amor de Deus, já basta a Megera me chamando de Ovinho,
agora querem me cozinhar?
— Idiota, me deixa filosofar!
— Por favor, termine.
— Não são as circunstâncias que mudam as pessoas, Mikael, mas o
que tem dentro delas.
Porra!
— Você pode e deve se jogar de cabeça nesse amor louco que está
revirando sua mente. Perder o medo de ser pai, mesmo que esmurre o peito
por aí, falando que não nasceu para isto, e principalmente, não colocar em
sua mente, que por sua culpa nossos pais morreram.
— Culpa da minha família.
— Que seja! Não foi culpa de nenhum de vocês! Aquela fodida,
filha de uma cobra-cascavel, maldita Verônica, matou nossos pais.
Edu fala com tanta convicção, como se estivesse defendo um caso
no tribunal, não resisto e implico com ele, tentando não dar ideia ao que diz.
— Tem certeza de que está bêbado, Edu?
— Posso ter minhas dúvidas no momento de quantos dedos estou
vendo na sua mão, sei que toda essa merda só piora a situação e posso falar
por minhas experiências, que entendo você.
— Ok! Agradeço, vamos sair daqui.
— Eu também tive medo, não posso negar, — ele suspira, seu
corpo escorrega pela parede até bater com a bunda no piso. — Eu nunca odiei
de verdade as gêmeas do mal por armarem toda aquela confusão. Tive medo
de que Aline não soubesse ser uma boa mãe, porque eu, com certeza seria o
pior pai do mundo. Vê-la abandonar as filhas recém-nascidas nas minhas
mãos então, — ele suspira, — Deus!
— Cara, você é um pai incrível.
— Sou!? Tenho me esforçado, mas só Deus sabe quantas foram às
vezes que chorei sozinho, com medo do que estava por vir. Juro para você,
que quando vi as minhas filhas, soube ser para sempre. Que elas mudariam a
minha vida!
— Sabemos disto, eu jamais ousaria imaginar que poderia ser um
dia, um bom pai e ter a mesma capacidade que você.
— Não seja um idiota Mikael! Tomei uma surra daquelas fedelhas,
estava enlouquecendo, amando, perdendo o senso e a direção, — ele
gargalha, — contudo, graças a você e sua curiosidade nata, conheci July. Ela
mudou a minha vida.
Edu desliza pela parede, seguro-o para não desabar de vez.
— Acho melhor você terminar seu discurso no quarto.
— Cala a boca! Quando os mais velhos falam, os burros abaixam a
orelha.
Perco a esperança de conseguir tirá-lo do banheiro e me sento no
chão ao seu lado.
— July me socorreu, fez-me entender que os meus medos eram
normais. Meu moranguinho me abriu os olhos para um novo mundo, mais
doce, caótico, cheio de brincadeiras, crianças chorando, gritando, fraudas e
mamadeiras.
— Não me lembre disto, porque tenho recordações pavorosas dos
trigêmeos.
— Ah! Por favor, Dinho é um ícone da falta de coordenação. O que
quero te dizer, é que ela abriu caminho para uma paixão louca, um amor
despudorado e me deu a família que sempre desejei.
— Concordo, a July mudou às nossas vidas, — suspiro —, não
tenho medo do moleque, apenas de machucá-lo.
— Se acontecer, você aprenderá a curá-lo. Foi isto que July me
ensinou.
Inspiro e expiro tentando absolver as palavras do meu amigo
bêbado.
— A Lia mudou a sua vida, várias vezes Mikael. Ela ser mãe, não
muda esse fato. Posso garantir, que aceitar o filho dela e se tornar pai, — Edu
se ergue com o corpo em câmera lenta, praticamente se deitando por cima de
mim e cutuca o meu peito, — irá curar você, de dentro para fora, bem aqui.
— Concordamos com ele! — Dinho engatinha para dentro do
banheiro seguido por Ramon que tenta manter o equilíbrio com elegância.
— Estou admirado Carlos Eduardo, — o argentino comenta. —
Hupp… Desculpe-me, estou emocionado e só posso acrescentar uma única
coisa a isto.
— Espero que seja em poucas palavras Ramon, porque acredito
que vou vomitar de novo.
— Vasquez, é melhor não abusar da minha hospitalidade. —
Praguejo entredentes.
— Calem a boca, estou tentando concluir isto! — Ramon escora-se
contra a porta e deixa o corpo deslizar. — Pode parecer difícil, fazer o que
tem em mente, mas estamos aqui, somos a sua família. O seu Quarteto
Listradinho Fantástico.
— Ô merda! — exclamo sentindo as malditas lágrimas empossadas
em meus olhos, deslizarem. — Amo vocês!
INTERLÚDIO II

“Nem as sensações de momentos idos me são saudosas:


o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página
e a história continua, mas não o texto.”

VERÔNICA

lho com desprezo a paisagem a minha frente. Depois de longos meses


O
aprisionada nesta maldita casa, vendo o mar diariamente, sentir o cheiro de
maresia e ter a pele fustigada e grudando de suor e sal não tem nenhum
atrativo.
Jamais imaginei que a morte de Lourdes, pudesse me abalar tanto,
talvez por vê-la ser destroçada por aquele maldito conversível, ou os malditos
herdeiros a perseguindo.
Fiquei realmente abalada, ao ponto de deixar-me ser capturada por
Santiago e aprisionada nesta maldita casa. O que foi no mínimo uma piada de
mal gosto. Ele sabe que odeio esse lugar com todas as minhas forças, mas fez
questão de dizer-me que há anos a comprou especialmente para mim.
— A quem quero enganar, — esbravejo fechando as venezianas
para impedir que o sol descore a mobília gasta no amplo quarto —, nunca
imaginei que Lourdes seria tão fraca de tirar a própria vida. Tudo por que
marido que morreu? E jamais imaginei que o menino que cuidei como um
filho, pudesse ser tão decepcionante.
— Uma mulher não pode se arruinar por um homem, muito menos
tirar a própria vida. Infeliz, isto que ela se tornou, não seguirei os mesmos
passos.
Ah! Estou novamente falando com as paredes. Só o que me falta é
enlouquecer. Posso até perder a minha mente, mas não antes de ter o que
quero e pôr um ponto final nisto.
O ruído no corredor chama a minha atenção, é mais uma das trocas
de guardas. Por instinto toco meu pulso, foi arriscado tentar algo drástico
para ser libertada, mas era preciso. Para a minha infelicidade, os cães
treinados que ele colocou para me vigiar, foram rápidos.
Algo me diz, que Santiago está agindo com seus próprios planos
agora, e não serei beneficiada se ele fizer o que bem-quiser. Durante anos
mantive-o bem dominado sob uma corrente apertada, mesmo que se
machucasse, verdade que vez ou outra ele mordeu minha mão e agiu por si
mesmo, mas agora a mesa virou.
Mesmo que banque minhas ameaças e tenha como mover minhas
fichas deste mausoléu com certa dificuldade e um gasto financeiro imenso,
reconheço que não é o mesmo que antes.
Passos pesados surgem pelo corredor, isto me faz caminhar para a
porta, reconheceria esse andar em qualquer lugar.
— Não acredito! — exclamo excitada correndo para porta, mas
antes olho-me ao espelho, mesmo sendo uma prisioneira contra a minha
vontade, preciso manter a aparência intacta.
Os longos cabelos loiros estão escovados, alguns fios perderam a
cor da última coloração, mas os fios brancos dão um charme platinado. Os
olhos tão azuis como o céu, uma herança de família que brilha com
sagacidade, a maquiagem leve realça a minha aparência, infelizmente meu
amado perfume acabou e San se recusa a trazer-me outro.
— O que importa é o que demonstro, não o que se senti. —
Resmungo adorando a confusão com vozes alteradas do lado de fora da porta
maciça.
A camisola de seda com uma fenda lateral deixa a perna formosa à
mostra, os seios empinados pelo caríssimo silicone despontam como um farol
abaixo da renda. Visto o penhoar e retorno para o canapé de veraneio,
próxima às portas de correr. Apesar da expectativa e a certeza de que este
será meu último dia nesse inferno, quero receber meu salvador com glamour
e sedução.
Deito-me sobre as almofadas macias e espero pacientemente que
meu companheiro, braço direito, que por estes anos esteve as minhas costas,
alimentando os meus desejos e ajudando-me em tudo, entre em minha cela.
Já se faz mais de uma semana que Santiago não aparece,
provavelmente tenha viajado com Angélica em uma das missões bancando o
bom moço, ou rodeando aqueles miseráveis como uma sombra.
A porta se abre com um rompante, ainda ouço gritos e um dos
seguranças tenta impedir que ele entre, mas quem poderia parar um urso
feroz?
O murro dado contra a cara do homem o faz cambalear, a
adrenalina percorre o meu corpo como um rastro de fogo em pólvora virgem
e explode com prazer ao vê-lo.
Nunca me cansarei de ver os cabelos revoltos, mesmo com frisos
grisalhos, o ruivo flamejante acende-me com fogo. As sardas na pele curtida
são chamativas sobre a ponte do nariz com leve côncavo por já ter sido
quebrado algumas vezes, a boca de lábios grossos escondido pela barba
espessa, dá ao seu rosto um charme especial, mas são os olhos tempestuosos,
cinzas da cor de uma tormenta perigosa que me arrepia todo o corpo. O
homem poderoso em seus mais de um metro e oitenta, vestido elegantemente
com um terno cinza chumbo, fecha a porta com um baque forte, os ombros
largos e os braços musculosos retesam no tecido caro.
Com charme ele ergue a mão grossa, com Rolex de ouro brilhando
em seu pulso, passa os dedos pelos cabelos fartos colocando as mechas em
seu devido lugar, só então me encara e o sorriso imperioso que se abre em
seu rosto, me faz retorcer como uma gata languida.
— Zdravstvuy, moya dorogaya![19] — A voz grossa me arrepia ao
ouvi-lo me chamar de querida.

Vê-lo sempre me fará sentir-me viva e com minha ganância


renovada, pois ele é a certeza de que terei o que quero, seja por capricho,
vingança, desejo, porque assim quero e assim será.
O tom das palavras em russo sempre teve esse poder de persuasão
com minha libido. Com um floreio das mãos chamo a meu encontro e o
homenzarrão da passos apressados. Ergo-me levemente e deixo que me
arrebate em seus braços para um beijo aterrador, pecaminoso e intenso.
Sinto meus lábios sendo esmagados por sua fúria e a mordida firme
dos dentes fortes contra minha carne sensível me faz gemer.
— Senti sua falta, meu querido Stravos, por fim está de volta. —
Digo enquanto o sinto me rodear e despejar os beijos eróticos sobre meu
rosto e pescoço.
— Sim, querida, estou de volta e desta vez para que termine o que
começou e depois possamos viver nossa vida tranquilamente longe deste
lugar.
Afasto-me encarando-o. — O que quer dizer com isso? Descobriu
algo sobre as joias? — Minha voz treme.
— Sim, querida, mas antes de falarmos disto, que tal matarmos a
saudade?
— Não seja malvado, espero ansiosa por isto, estremeço com a
possibilidade de uma pista real, das malditas joias que Sarah escondeu.
— Tudo bem, posso esperar. — Ele sorri como um cachorro
adestrado esperando a recompensa, mas só os tolos se enganariam com essa
audiência.
Stravos se afasta e recolhe do chão uma bolsa de lona preta, a joga
sobre a cama e faz um sinal para que o siga.
Meus pés voam em direção a cama larga no canto do quarto, mas
antes que possa pôr as mãos na bolsa o russo afoito me tem de bruços sobre
ela, com suas mãos rodeando meu corpo e mesmo que esteja enlouquecida
para saber o que tem na bolsa, não posso negar dar a ele o que desejo.
Meu corpo se incendeia com sua investida. A fina camisola se
destroça nas mãos afoitas do meu amante, meu sexo pulsa, com a pressão dos
seus dedos rudes sondando a entrada.
— Ah, querido, — reviro-me do avesso aceitando sua pose ousada.
— Sim, assim, mais…
Peço enlouquecida de desejo e ansiedade, ele não me decepciona,
retira o paletó e a gravata, desabotoa suas calças e rapidamente me empala
com fúria.
O sexo é selvagem, cheio de promessas eróticas, dolorido e cruel,
pois quero sentir prazer, mas minha curiosidade faz pouco da minha
resistência. Com investidas rápidas, gozo loucamente sob o comando de
Stravos.

Tomo respirações lentas recuperando o fôlego da longa sessão de


sexo bruto que meu amante exigiu de mim. Depois de meses sem vê-lo sabia
que estaria insaciável, mas não ao ponto de torturar-me.
— Agora que já teve o que queria, deixe ver o que tem nesta bolsa.
— Empurro seu corpo nu para o lado e me ergo sobre a cama desfeita.
— Tenho várias coisas aqui, querida. — Ele sorri audazmente.
Percorro meus dedos pelo couro macio da bolsa, procuro o zíper e
abro com força. Dentro há várias caixas de presentes, algumas de veludo,
outras em papéis caríssimos com filamentos de ouro.
— Stravos? — reconheço minha ansiedade e até estremeço com
medo de realmente ter uma síncope. — Isto…
— Não são as joias que procura, mas algo que trouxe para agradá-
la.
— Maldito, — esbravejo voltando para a cama e desferindo socos
no peito peludo e imenso. — Não ria, cretino, posso matá-lo por isto.
— Disse ter novidades, não que as tinha aqui. — Ele segura meus
pulsos e me joga contra a cama. — Como se tornou prisioneira de um
fedelho, Verônica?
— É uma longa história — recuso a falar sobre meu deslize, mas
para que mentir? Provavelmente ele já sabe de tudo. Stravos é um amante
zeloso, mesmo que não tenhamos contato por um tempo, seus homens estão
por toda a parte, cuidando para que tenha suporte sempre.
— Me preocupo com você, querida. Não quero que perca o rumo
dos seus planos. Isto atrasaria os meus. — Ele sorri, mas vejo a frieza em
seus olhos.
É tão de família essa acentuada característica, mas ainda me
assombro ao vê-la em seus olhos.
Os mesmos olhos de Demétrio, Nikolay, Sarah, Mikaella, Mikael e
o mais novo integrante da família, o fedelho que a maldita Liana pariu.
— Não fique preocupado, Stravos Nikolaievitch, você terá a mim
por completo para sempre, basta conseguir o que quero.
O enorme homem recosta aos travesseiros e a expressão mordaz se
torna branda, suas mãos grandes deslizam pelo meu cabelo com afago.
— Que bom querida, porque a espero a muitos anos, e não quero
mais esperar. Por isso vim para o Brasil, deixei meus negócios com meus
subordinados e vim exclusivamente garantir que consiga o que quer e parta
comigo para Moscou.
— Iremos, confesso que estou cansada do jogo de gato e rato que
sua priminha me colocou.
Ele ergue o sobrecenho em descrença, pois ainda não acredita que
Sarah era um demônio esperto que atrapalhou meus planos, Stravos cruza os
braços por trás da cabeça e aponta com olhar a bolsa.
— Abra os presentes querida, e coloque-os para que veja e sinta.
— Como quiser. — Resigno-me a fazer o que ele pede, não porque
quero, mas para que se sinta agradado e me dê seja lá o que tiver sobre as
joias.
A primeira caixa que abro me surpreende, um colar de diamantes
gigantes repousa contra o veludo, rapidamente retiro a peça fria e prendo em
volta do pescoço. Na sequência percebo ser todo um conjunto, anéis, brincos
e pulseiras, sinto o peso de cada peça em meu corpo nu. Por último uma caixa
de perfumaria, e essa me alegra.
— Meu perfume! — Exclamo e logo borrifo sobre meu corpo a
fragrância de orquídeas especialmente criada para mim.
Um presente de Demétrio Nikolaievitch, o velho era um porco,
assassino, mafioso, estuprador, mas era um homem que sabia cativar suas
presas, com presentes caros e perfumes especiais.
Ergo meus olhos marejados olhando seu sobrinho mais velho,
agindo da mesma forma, a diferença que Stravos, eu realmente amo, e talvez
não tenha coragem de matá-lo como fiz com o pai de Sarah.
— Está pensando nele? — A voz irritadiça me estremece.
— Mesmo que ame a fragrância e me recuse deixar de usá-la é
impossível não me lembrar do meu algoz.
— Conte-me.
— O quê?
— Tudo, desde o começo, quando se tornou a prostituta do meu
tio, se o odiava tanto?
— Já contei esta história mil vezes.
— Conte novamente, quem sabe dou a você o que tenho e que
tanto quer, ao ponto de mal prestar atenção enquanto meu pau estava
agarrado prontamente dentro de você.
— Querido! — Aproximo-me submissa. — Não diga isto, amei
cada minuto.
— Mas, não disse o quanto. Agora Verônica, conte-me!
Stravos me olha com furor. Ele como os homens da família parece
ter alguma necessidade atípica de querer mais do que possam dar, cuidar,
idolatrar e encher de presentes é algo tão fácil para eles, — suspiro e me
rendo a seu pedido, odeio remoer essa história, mas diante do seu olhar, não
tenho outra opção.
O irmão de Nikolay, o único parente consanguíneo de Mikael e
Mikaella, se joga contra os travesseiros de penas de ganso e espera que me
porte como a Sherazade contando-lhe uma história empolgante para
entretenimento.

Lembrar de tantos acontecimentos apenas faz com que meu ódio


por todos que já me machucaram aumente. Stravos sabe disto e vejo o prazer
em seus olhos a cada lembrança que vou soltando dolorosamente. Durante
anos meus pais fizeram parte do escalão de endinheirados russos, um
casamento feliz, cheio de glamour e contatos com os mais poderosos.
Os amigos íntimos faziam parte da remanescente nobreza russa,
mesmo que não governassem, a influência dos sobrenomes, e o dinheiro que
arrotavam de seus bolsos faziam portas abrirem.
Crescer em meio a esta classe me abriu os olhos para o que era
bom. Nunca escondi de meus pais que queria ser associada a um destes
descendentes, mesmo que para eles, fosse amizade, prestígio e fidelidade o
que contava em suas amizades, para mim o que interessava era estar
permanentemente ligada a um destes.
Infelizmente depois do nascimento da terceira filha, mamãe jamais
recuperou a saúde, e infelizmente faleceu. Meu pai sem saber o que fazer,
parecia vagar como uma assombração, pois sua esposa era tudo em sua vida,
talvez, tenha sido dele que Lourdes herdou essa fraqueza.
Petrov, não tinha condições mais de comandar seus negócios, e
rapidamente os amigos que nos cercavam vendo a decadência em que
rapidamente nos colocamos, afastaram.
Na época, era uma moça de dezesseis anos, bonita, corpo feito e a
mente pronta para agarrar minha oportunidade. Foi quando conheci um casal
simpático que estavam prontos para ajudar papai a cuidar de suas filhas
adolescentes e a pequena de colo.
— Meus tios?
— Sim. Eles foram maravilhosos, ajudaram a equilibrar as contas,
pois tínhamos o dinheiro, mas papai não tinha cabeça para comandar seus
negócios. Demétrio, era um homem mais velho e sabia o que fazer. A esposa,
a doce e sempre doente Adélia, só vivia para cuidar da filha, logo percebi que
isto não era importante para Demétrio, o que ele queria além de ajudar meu
pai, era poder ter uma amante jovem e que fosse fácil de manter por perto.
Stravos fecha em carranca o semblante, mas não me incomodo,
pois, foi ele quem quis ouvir essa maldita história, então que aguente.
Apesar de nova, sabia os meios de enlouquecer um homem, não
sabia bem o que poderia acarretar minhas investidas com Demétrio, porque
não me importava pensar. Mas, infelizmente, seduzi-lo e nega-lhe meu corpo,
para obrigá-lo a me fazer sua única mulher não o agradou. Com poucas
palavras, o maldito convenceu meu pai que deveria se mudar para o interior e
deixar-nos a seu cargo que ele cuidara de nós.
Realmente achei de péssimo tom a sua estratégia, mas foi em um
dos muitos encontros que tivemos para que ele e papai discutissem o assunto
em sua residência, que Adélia, contou-me sobre sua linhagem e a sua
belíssima herança que muito em breve ficaria para sua Sarah.
— Os diamantes?
— Sim. Se sabe da maldita história, por que tenho que contá-la?
— Esbravejo erguendo-me da cama. O show de subserviência acabou. —
Não me interrompa mais, se quer me ver falando como um papagaio, cala-se.
— Hum, estou tentado a interrompê-la vez ou outra, para ver o que
fará.
O maldito me provoca, ao ponto de arrancar um anel do dedo e
jogá-lo com força contra seu peito. Caminho com passos duros e ganho o
penhoar que deixei jogado no chão, cubro minha nudez indo ao bar e abrindo
uma garrafa de xerez.
O líquido âmbar desce como fogo por minha garganta. Na época, o
brilho das joias, o valor e tudo o que tinha naquela mansão tomou uma
proporção maior diante dos meus olhos, era tudo o que eu queria, bastava
apenas livrar-me de Adélia, e pelo esforço que Demétrio estava fazendo, não
teria problemas com isto.
Erro. Um erro atrás do outro foi o que cometi. Primeiro cedendo ao
desejo dele, entregando minha virgindade por uma proposta vazia, sem nada
realmente concreto para me assegura que ele me faria sua esposa.
Depois o segundo golpe foi deixar papai descobrir, na época era
um plano simples, assim que o escândalo viesse a público, papai o faria tomar
uma atitude honrada.
Tola! Uma tolice sobre a outra me fez perder, tudo. Demétrio, não
queria mais ao seu lado uma mulher gananciosa, que fez sua delicada Adélia
sofrer. O maldito convenceu ao meu pai de que precisávamos sair da Rússia e
nos mandou direto para este lugar, este país ensolarado. Essa maldita casa
cercada de nada, longe de todas as possibilidades de viver o que queria.
— Foi aqui, neste quarto que tracei todos os meus planos de
vingança contra Demétrio. — Suspiro, preencho o cálice com outra dose e
absorvo lentamente, caminhando em volta do tapete gasto. — Eu queria tudo
e por ser tola, perdi tudo, mas ainda tinha um trunfo na manga.
— Uma criança?
Não respondo. Está é só uma lembrança. Digo a mim mesma, viro
o cálice e busco a garrafa sentando-me no canapé enquanto deslizo um cálice
pós outro dentro da minha boca.
O silêncio incômodo agita Stravos que se senta, esperando que
continue. Percebo o quanto enfurece saber que lembrar do filho de Demétrio
que perdi me perturba. O ciúme é uma arma poderosa.
Ele vai se remoer por não saber se sinto dor com esse fato. Me
alegro por torturá-lo da mesma forma que faz comigo.
Sim! Dói saber que perdi a criança, e mais ainda, que não pude ter
outra. Porque, Demétrio não era um amor, era apenas um cofre. Se não tive
um filho com ele, só gostaria de ter com o único homem que amei, de
verdade, mas isto também não foi possível. Em um ato de extrema fúria,
paguei o melhor cirurgião obstetra dos Estados Unidos para fazer uma
histerectomia e matar definitivamente essa necessidade dentro de mim.
— Continuando. Estar no Brasil foi um inferno. Aqui tínhamos
tudo, éramos riquíssimos, a sociedade beijava os nossos pés, mas não era o
que queria. Os anos se passaram com celeridade, as minhas irmãs tornaram-
se mulheres lindíssimas e muito cobiçadas, mesmo a mais nova, ainda
adolescente já tinha uma fila de pretendentes.
Na época não me importava nem um pouco, pois, meus planos
lentamente caminhavam para o que queria. Adélia que viveu doente por anos,
um dia finalmente morreu e Demétrio, por fim estava só. Fiz meu pai saber
disto e por incrível que pareça, o russo retornou os solenes pêsames com uma
proposta, não de casamento. O maldito queria uma cuidadora para sua filha.
Não era o caminho que imaginei trilhar, mas o fiz, porém, não
imaginava que seria a ama seca da menina de dia, e a prostituta de Demétrio a
noite.
— Ele era cruel, violento, e amava a perversão. Não bastava usar-
me, ainda me oferecia após parcerias de negócios, e só após ser usada como
uma puta cara, descobri os negócios que a sua família tinha.
— Querida, hoje a evolução chegou aos Nikolaievitch, não
fazemos mais tráficos de droga.
— Não meu querido, comercializam coisas mais caras!?
— Estamos apenas dando beleza ao mundo com tantas obras de
arte soltas por aí.
Isto não me interessou na época, mas sim ainda o dinheiro que
podia ganhar, trabalhando com ele, e não sendo só a prostituta em sua cama.
A princípio Demétrio não quis, mas depois que provei ser uma
peça maravilhosa com meus dons especiais, ele adorou a ideia. Rapidamente
fiz uma fortuna que me manteria escondida do maldito para sempre, porém,
eu queria as joias. Pelos anos de abuso, pelos estupros e as surras infindáveis
que ele me dava.
Enquanto fazia meus planos, cuidava de Sarah, a menina tímida,
era, na verdade, muito inteligente e perspicaz, rapidamente entendeu o
relacionamento que tinha com seu pai, os anos ao lado dele me tornou
madura, dura e marcada de formas que não poderia ocultar.
— Você poderia ter deixado tudo e fugido.
— O preço da ganância é uma doença, Stravos. Veja por si mesmo,
entregou seu irmão mais novo de bandeja nas mãos de um mafioso conhecido
por não perdoar nem seus parentes.
— Entreguei, para salvá-la querida. Era você ou ele. E confesso
que entre Niko e minha amada Verônica, preferi o melhor, para mim, claro.
Concordo com meneio de cabeça sinto os efeitos do álcool, claro
que sim, eu não era apenas a melhor, era a sua ponte para a fortuna
inesgotável do tio.
Eu sabia que não tinha muito tempo mais nas mãos de Demétrio, se
continuasse assim com ele, de certo acabaria morrendo.
Nesta época, meu pai adoeceu e pediu para que Demétrio me
enviasse ao Brasil. Aproveitei a viagem para trazer a maior parte da minha
fortuna e escondê-la aqui. No começo, ele não queria deixar, mas se Sarah e
Niko me acompanhassem, tudo bem. E foi nesta viagem, que percebi que
entre os dois primos existia mais do que amizade. Ali continha amor.
Ah, os deuses estavam do meu lado! Eu precisava aproveitar essa
oportunidade e criei o enlace perfeito para que eles ficassem juntos, sem
Sarah em meu caminho, roubar as joias e dar cabo de Demétrio seria fácil.
— Mas os seus planos não deram certo, porque Demétrio descobriu
que a filha e o primo dormiram juntos.
— Claro, os cães que nos vigiavam denunciaram.
— Nikolay era um fraco, deveria enfrentar o problema por si
mesmo.
— Ele não era um fraco, estava protegendo quem amava, pode ser
que tenha se tornado um depois, mas…
— O que importa? Ele está morto.
— Sim, querido, tão morto quanto a maldita Sarah!
— Junto ao seu querido, Gustavo!
As palavras de Stravos me cortam a fala. Meus olhos lacrimejam e
não escondo dele, apenas para que sinta raiva ao ver que sinto dor ao lembrar
do único homem que amei e que está morto.
Conhecer Gustavo foi algo que não estava preparada. O jovem
garboso com fartos cabelos cor de mel e olhos duros era um charme com seu
o sorriso maroto.
Recém-formado em direito, não tinha uma família de renome, mas
a fortuna e o casamento com a minha irmã mais nova, garantiu a ele que de
certa forma às portas se abrissem, vê-lo ao lado de Christina encheu-me de
inveja.
— Até Lourdes estava feliz com o seu fazendeiro, Benjamim a
amava tanto que largou todos seus pequenos bens, para se tornar um caseiro
ao lado dela e informante para mim.
— Todas pareciam resplandecer, enquanto você que tinha tanta
ganância, era esperta, vivia cercada de luxo e renome, era apenas a puta de
um homem psicopata.
Maldito!
— Exato! Por isto, me fiz notar por Gustavo, ele tinha os requisitos
para ser meu agente aqui no Brasil. Eu precisava de um laranja, para
movimentar o meu dinheiro e fazer a minha fortuna crescer. O que não
imaginei era que a ganância fosse algo que ele escondia dentro de si.
— Ganância, mas não tesão por você.
Desgraçado!
Recuso-me a dar a ele o gosto de saber o quanto me enfurece com
suas réplicas. Meu pai realmente estava doente, não demorou muito a morrer
e logo tive de voltar para a Rússia, Sarah e Niko foram separados, mas menos
de um ano depois consegui colocá-los juntos novamente.
Mantendo para mim Sarah como uma aliada, o meu dinheiro sendo
enviado para o Brasil e fazendo meu próprio império por detrás das costas de
Demétrio, foi a vez de me envolver com Stravos.
Nós já tínhamos nos tornados amantes, vez ou outra ele me
agradava com presentes, que sempre eram enviados ao Brasil. Razão da vasta
fortuna que abarrotam os cofres de alguns bancos. Coleções belíssimas de
joias, carros e roupas caras, casas, tudo que o dinheiro pode comprar.
Mas, não era o que eu queria. Ainda faltavam os meus diamantes
de sangue, por eles, entreguei-me ao meu algoz de boa vontade, minha vida,
juventude em um corpo virgem.
— Demétrio andava desconfiado de que Sarah e Niko estavam se
envolvendo novamente, — suspiro. — Tentei dissuadi-lo disto, mas não fazia
ideia de que o medo dele, em que os dois transassem, era por desconfiar que
Niko era o seu filho. Um incesto não era permitido, mesmo que ele fosse um
demônio comigo, não é mesmo? A filha dele tinha de permanecer intacta,
maldito filho da puta.
— Contudo, nós dois sabemos que eles não eram irmãos.
— Não eram, porém, ver Demétrio sucumbir à loucura me
agradava. Tanto que, assim que tive a certeza da gravidez de Sarah, contei a
ele, só para vê-lo morrer com um infarto fulminante, infelizmente não
aconteceu.
— Mas, ele já estava bem envenenado, não é mesmo? Essa sua
mórbida mania de envenenar as pessoas parece ser algo antigo.
— A vingança é um prato que se come frio, querido. — Ressalto.
— E o que é mais frio, que um cadáver morrendo lentamente?
— Pena que Lourdes, não aproveitou essa mórbida lentidão.
— Stravos, seu filho da puta! — grito e o cálice de cristal voa em
direção a cama.
O maldito gargalha e desliza os cacos para o chão.
— Não quero falar nada mais, essa conversa termina por aqui. Já
sabe o que houve, fugimos para o Brasil, fiz Sarah esconder os diamantes e
trazê-los consigo, passamos meses escondidas, mas Demétrio nos encontrou.
Armei uma fuga e por sorte vi no aeroporto um grupo de estrangeiros,
pareciam amigos de vários países, os seguimos, e esperamos para nos
esconder em sua excursão, só não sabia que eles estavam prontos para se
estabelecer.
— Me lembro com perfeição de vê-la fugir naquele hotel em São
Paulo, só queria saber, como conseguiu colocar Sarah com aquelas mulheres.
— Foi ao acaso. A bondade delas é algo que extravasava pelos
poros, por pouco Demétrio não nos pegou. A gravidez de Sarah estava
avançada, mas ainda não era nítida, fiz o máximo para esconder sua barriga,
sempre pequena não foi tão difícil, mas o estresse da fuga fez a criança nascer
antes da hora.
— Devo agradecê-la por ter uma sobrinha problemática?
— Não. Isto é genética, não seja ridículo, agradeça aos genes da
sua família por ela e Mikael serem ferrados. Por ter me deixado ser pega por
Demétrio, para que eles fugissem do hotel com OS MEUS DIAMANTES!
— Por falar em Mikael, passei em sua residência, queria vê-lo, mas
não pude, desde quando há tantos seguranças a sua volta? Curiosamente a
filha de Joaquim estava lá nos jardins, Liana se tornou uma mulher belíssima.
— Inconveniente para meus planos, quer dizer. — Ergui-me,
irritada e com dor de cabeça. — Vamos realmente parar com esse assunto.
— Mas, na melhor parte?
— Podemos continuar depois, querido.
— Quero tanto saber como perturbou Sarah, e ainda não sei como
ela pode enganá-la…
— Em outro momento Stravos, minha cabeça está estourando, —
estico a mão. — Dê-me o que tem aí.
— Não, até que cumpra a sua parte.
Estou pronta a gritar com ele, mas a porta do quarto é jogada contra
parede com força e me assusto caindo sentada sobre o tapete.
— Santiago!
— Vejo que temos visitas! — a voz dele é como pontadas de uma
faca afiada.
— Meu querido filho, a quanto tempo. — Stravos se ergue com um
sorriso congelado.
— Não sou seu filho, e pode ter certeza de que não senti saudades.
O que faz aqui, Stravos?
Stravos alonga o corpo maciço. — Assim que me casar com
Verônica, será considerado meu filho, perdoe-me se me adianto aos fatos, já
o amo como tal.
— Dispenso seu amor e ela, não é minha mãe.
Stravos ri sem humor e fecha uma carranca. — Verônica vem
comigo, Santiago.
San adianta-se em dois passos na direção de Stravos, para e sua
altura ultrapassa o russo, mas a física do mais velho ainda é maior, porém o
menino não se intimida, sinto certo orgulho, pois mesmo que renegue, não
deixa de mostrar a quem herdou suas características.
— Verônica, não vai a lugar algum, mas você sim. O quarto no
andar debaixo está pronto para recebê-lo, entretanto daqui ela não sai.
— Vim para dar a ela o que quer, e depois levá-la embora.
Compreende o que digo, ou preciso falar em português, para que me entenda?
— Não preciso de aulas de idioma, mas você precisa de um
otorrinolaringologista, não me escutou? — San usa seu sarcasmo, e usa
melhor ainda o dialeto da língua russa para expressar-se.
— Prometi apoiá-la e dar-lhe tudo o que quisesse, se para isto tiver
de me meter nos seus assuntos, sinto muito filho, mas farei.
— Dê um passo em minha direção, ouse tirá-la desta casa, sem a
minha permissão, e o próximo presente que dará a ela, serão flores em seu
túmulo.
— Christian! — grito horrorizada. Que me odeie já não esconde, e
tenho minhas ressalvas quanto ao motivo, principalmente por ter me trazido
para esta casa, mas nunca disse que me mataria. — Como ousa?
— Não fale meu nome, Verônica, não permito. — Sua calmaria
não me engana, há dias não tenho notícias suas, mas percebo o olhar cansado
e deturpado por algo mais.
Ele me olha com nojo, percebo que devo estar terrivelmente
desgrenhada, o que me faz sentir ainda mais ódio por todos, Demétrio, Sarah,
Niko, Gustavo e estes imigrantes que me tiraram tudo, minha oportunidade
de liberdade, malditos.
Que queimem no inferno! Fecho o penhoar e ergo meus olhos
tilintando de raiva.
— Sai do meu quarto!
— Ele lhe deu um novo frasco do seu perfume? — San é
sarcástico. — Deu-lhe joias? — Ele ri com ironia. — Foi antes ou depois de
lhe foder?
— Saia!
— Stravos, por favor, siga o meu funcionário, e não o agrida
novamente, ou ela morre.
— Nunca o subestimei moleque, porque sei o sangue que tem. Faça
o mesmo comigo. Disse para o que vim e vou fazer.
— Não perca o seu tempo, aquilo que ela diz ser dela, na verdade,
é meu. E eu, não divido nada com ninguém.
Stravos ri, e o tom é enigmático.
— Depois continuamos a nossa conversa querida, sei que vai amar
o outro presente que trouxe. — Ele dá um passo e se volta. — Ah! Propósito,
descobri um segredinho de minha prima, sem querer, mas interessante, me
agrada saber que mesmo louca, — ele ressalta — Sarah não abandonou por
completo a sua paixão por botânica.
— Stravos, por favor, saia para que Santiago, faça o mesmo.
— Ah, mas ele a acusou de foder em troca de um perfume, não
seria interessante ele saber que Sarah, fez um perfume para a filha de
Joaquim?
— O que disse? — Me ergo lentamente, sentindo o comichão da
inveja perfurar meu peito. — Não acredito nisto, a maldita nunca quis fazer
uma das fragrâncias especiais de orquídea para mim.
Tão pouco recriar a minha, paguei uma fortuna para roubarem a
fórmula para mim.
— Pois ela, não apenas fez, como também abriu uma loja finíssima
em Portugal, tenho certeza de que Liana ainda usa a essência especial, e não
faz ideia de que foi a própria Sarah quem criou. Louca, mas manteve um olho
sobre a norinha, durante todos os anos que você a exilou. E ainda o faz…
— E o que isto me importa agora Stravos? — pergunto irritada e
humilhada.
— Curiosamente são orquídeas negras, a mesma base do seu
perfume, entretanto com uma fórmula única, diferente. A fragrância é criada
e enviada exclusivamente para uma única pessoa de tempos em tempos,
ninguém mais a usa.
— Maldita! — Rujo de fúria
Olho para San e percebo que ele se mantém impassível.
— Você sabia disto? Sabia que Sarah cuidava da Liana, que fez um
perfume para ela?
— Será que ele tinha conhecimento disto? — Stravos provoca.
Acuso-o, San desce o seu olhar até os meus e sem fazer caso
dispara uma ofensa que me deixa endurecida.
— Não apenas sabia, como aprecio muito mais o perfume que
Sarah fez para Liana, do que esse fedor que usa.
— Saiam daqui os dois! — grito e os empurro porta afora.
Assim que a madeira bate no umbral, as tormentosas lembranças
ainda me invadem.
Uma vez me senti tão emocionada visitando o orquidário que a
família de Demétrio cultivava, que me expressei com um prazer imenso. Na
mesma semana, ele me presenteou com frasco de perfume exclusivo, o
mesmo que não existe em lugar algum, é preciso encomendar do boticário
com a fórmula especial.
Está foi a única vez que me senti especial, em toda a minha vida, é
doentio pensar nisto, mas sinto prazer em deixar minha marca por onde
passo, e os homens Nikolaievitch, sempre tiveram uma queda por aromas.
Ainda me lembro de Sarah dizer que desde pequenos todos
aprendem a lidar com orquídeas e manipulá-las para criar a melhor essência.
Por isto, me esforcei durante todos os anos que vivi no Brasil, antes de ser
vendida a Demétrio por meu pai, para criar o veneno perfeito, feito de
orquídeas, a mesma paixão que ele tinha.
— Mesmo depois de morta, ainda zomba de mim sua maldita?
Sim! Fiz com que a fedelha de Joaquim fosse mandada para longe, e por
retaliação, criou um perfume exclusivo para ela? Para tirar de mim a única
sensação de exclusividade?
Irritada, pego sobre a cama o frasco fino de cristal com a essência
especial e o arremesso contra a parede.
— Pois, fique sabendo Sarah, que farei mais do que exilá-la, desta
vez, vou matar a maldita e o seu neto. Vou assistir de camarote o ferrado do
seu filho agonizar em vida.
Corro no closet e apanho o celular descartável, antes que San
confira as câmeras, me tranco no banheiro e faço uma ligação para meus
capangas.
— Senhora.
— Escute com atenção, se desvincule dos bandidos que estão atrás
de Mikael, avise ao chefe deles que a nossa parceria se encerrou. Se causar
problemas já sabe, mate-os.
— Sim, senhora.
— Retire os homens que estão perseguindo-os, não quero mais
vigilância, deixe eles em paz.
— Senhora? Não entendi.
— Quero que eles se sintam felizes, que tenham paz, que se sintam
seguros. Vez ou outra, vocês são apanhados pelos homens de Angélica. Pois,
saiam! Pague aos homens e tire férias.
— Tem certeza?
— Sim, tenho. Quando precisar retornarei ao contato.
O homem em comando não entende nada. Desligo o celular e jogo
o chip no vaso dando descarga.
— Vamos ver o quão felizes eles conseguem ser sem a pressão de
serem perseguidos.
Quanto mais felizes estiverem, melhor será o golpe.
Podem se amar. Liana contar sobre a criança e juntos se tornarem
uma perfeita família.
— Até que um dia o pesadelo torne realidade.
CAPÍTULO 37

IMOLAR
“Eu estava machucado, sozinho, chorando como uma criança…”

LIA

S
oltei o ar que estava preso no peito, me afasto um pouco da cama para
recostar contra o criado mudo.
— Finalmente ele dormiu.
— Deveria fazer o mesmo, passou mal durante toda a noite. Está
quase amanhecendo.
— Ainda não estou bem, mas prefiro continuar aqui.
Nina está sentada no tapete atrás de mim, não pretendia virar a
noite sentada de má posição na beirada da cama do meu filho, queria levá-lo
para dormir em meu quarto, mas se recusou a ficar lá, preferiu o seu
quartinho, o seu lençol cheio de pinguins e seus amiguinhos.
Costumo dizer que quando ele se sente acuado de alguma forma,
triste, prefere se esconder em seu ninho, não o impeço que faça, assim como
ele, gosto de ter um lugar onde me sinto confortável, por isto o entendo.
— Tome um pouco mais de água, — Nina indica o copo na
mesinha do criado mudo, só em vê-lo meu estômago se revira.
— Odeio me sentir intoxicada, — reclamo, mas sem fazer
nenhuma outra objeção tomo um pouco mais de água.
— Sua mãe ligou, está preocupada, não conseguiu falar com você
durante o dia, assim que puder fale com ela.
— Mikael também mandou uma mensagem de texto, mas estava
tão empenhada em cuidar do meu filho que não prestei a atenção, — suspiro
—enviarei uma mensagem para mamãe, preciso conversar com dona Maria,
decidi Nina, chega de procrastinar.
— Que decisão é esta?
— Vou falar com Mikael sobre Anjinho.
— Tenho ouvido isto pelos últimos meses, Lia.
Me volto em direção a minha amiga e olho fixamente em seus
olhos. — Não estou dizendo que vou esperar uma oportunidade, preciso dele,
meu filho precisa dele. Amanhã, ou melhor, hoje, vou contar a ele sobre
nosso filho.
— Oh, meu Deus! Tem certeza disto? Quer dizer, sou totalmente a
favor de que faça algo em relação a isto o mais rápido possível, mas tem
certeza de que ele vai ser o apoio que precisa e não um problema?
— Não tenho certeza de nada, — balanço minha cabeça me
sentindo tonta e muito cansada, — pode ser que ele me odeie com todo o seu
coração, mas terei de correr os riscos. Não sei se é meu subconsciente
querendo me pregar peças, mas Mika parece estar mais interessado em
conhecê-lo do que antes, ainda tem pedido para ir com calma, que precisa de
um tempo para assimilar muitas coisas, mas eu não tenho mais esse tempo.
— Concordo, basta vermos como tem sido cada vez mais difícil
para o nosso menino. — Nina comenta, se ergue senta-se próxima à cama. —
Sou sua amiga Lia, estarei do seu lado seja para qual momento for.
— Obrigada! Se Anjinho estiver bem e quiser se encontrar com a
Fadinha, vou aproveitar o momento para falar com Mikael. O que aconteceu
ontem me deu mais um motivo para acelerar as coisas.
— Concordo, não apenas em relação ao problema na escola do
Anjinho, mas já imaginou o que poderia ter acontecido ontem? Se não
fossem os vidros blindados, ele teria tomado um choque ao ver a criança no
banco de trás.
— Não quero que ele descubra assim, isto irá machucá-lo.
— Em qual sentido?
— Será desconfortável para ele, é um elemento inserido
abruptamente na sua vida.
Nina me olha de esguelha, mas não faz comentários, pelo que sou
grata. Ainda não quero falar tão abertamente sobre como acredito que será a
reação de Mika, pelo simples fato de não querer atrair para nós esse carma,
sou muito racional quando se trata do meu trabalho, mas prefiro acreditar em
ação e reação do Universo, quando o assunto envolve a minha família.
Tomo o restante da água, e espero não por tudo para fora. A náusea
vem, mas com esforço controlo a ânsia.
Permanecemos por um tempo ainda sentadas perto da cama de
Anjinho, meu filho precisou de uma dose extra da medicação, a sua reação
violenta o deixou muito fragilizado. Graças a Deus! Consegui uma consulta
fora do dia agendado com a sua psicóloga para o início da semana, o que me
aliviou.
Nina foi para o seu quarto se deitar um pouco, agradeci por ficar
comigo durante a noite, como sempre minha amiga só fez ressaltar o quanto
ama Anjinho e que por ele faria qualquer coisa.
Anjinho remexeu na cama, gemendo sentido, afaguei os seus
cabelos até sentir que pegou firme no sono. Depois de um tempo conferi a
mensagem de Mika e respondi a ele que sim, aceitaria jantar. A resposta dele
veio imediatamente e nem precisei perguntar por que estava acordado, a foto
anexada de três homens seminus dormindo em sua cama respondeu tudo.
Tocou meu coração a preocupação com Anjinho, não escondi nada
dele, contei sobre a perseguição que o menino tem sofrido e sobre a forma
como a escola se portou. Mikael se enfureceu de tal forma, que chegou a me
ligar, mas assim que atendi desligou.
Segundo ele, preferiria não correr o risco de acordar meu filho,
esse cuidado que ele adotou nos últimos dias em relação a Anjinho aumentou
minha admiração e a certeza de que falar com ele é o certo.
Munida desta coragem confirmei novamente nosso encontro mais
tarde, do mesmo modo que ele externou querer falar algo sério comigo,
ressaltei que também tenho o que falar.
Após mais alguns minutos, desligamos, então foi a vez de mandar
uma imensa mensagem de texto para minha mãe, relatando o que pretendo
fazer e quando. Dona Maria, não é completamente avessa à ideia de que Mika
saiba sobre o filho, o seu único medo é o mesmo que o meu: que ele descubra
ao acaso e de tanto não querer, no fim, acabe querendo tomar-me a criança.
— Além do fato que me odiará para sempre. — Resmungo. —
Deus! — sinto o bolo se formar no estômago e tenho de sair correndo pelo
apartamento até o lavabo.
Me ajoelho no chão e deixo todo meu corpo trepidar com as
arcadas de vômito. Nina entra correndo no banheiro, acende a luz, abre a
torneira da pia e molha uma toalha de rosto.
— Droga Lia, eu sabia! — ela exclama e me encosta contra seu
peito.
— Sabia o quê? — pergunto irritada. — Que beber um litro de
água ia acabar lavando-me até a alma?
— Não! Sabia que voltar a trepar feito uma coelha no cio com
Mikael ia dar nisso.
— O quê? — me afasto e a olho por sobre o ombro. — Do que está
falando?
— Quando foi que menstruou pela última vez?
— Tomo injeção esqueceu?
— Os antibióticos que tomou nos dias que ficou gripada, podem
cortar o efeito da injeção e já estava no meio do mês, não é?
— Sem cabimento, se tivesse cortado, teria sangrado e isso não
aconteceu.
— É mesmo espertinha, e as cólicas que sentiu?
— O que tem as cólicas?
— Liana, acorda! Desde quando você passa mal comendo frutos-
do-mar?
— Deus! Nina, não coloque coisas na minha cabeça, não agora.
— Amor, eu não coloquei nada na sua cabeça, mas tenho quase
certeza de que o Promotor possa ter colocado algo, bem aí dentro.
— Vamos dormir, daqui a pouco Anjinho estará de pé querendo
atenção e se preparando para encontrar com sua amiguinha. — Desconverso.
Nina não faz comentários, com sua ajuda me ergo e tento não
demonstrar o quanto ainda estou me sentindo mal.
Caminho em direção ao meu quarto e assim que fico sozinha,
suspiro lentamente e as lágrimas se formam em meus olhos. Me recuso a dar
ouvidos as loucuras de Nina, basta saber dos meus problemas atuais para me
sentir doente, não preciso brincar com isto, logo agora para piorar minha
situação.

SANTIAGO
Ele dormiu segurando uma garrafa de vinho entre as mãos e
dizendo besteiras. Balancei minha cabeça em discordância, parecia que a
algazarra e a falta de compromisso realmente estavam entranhadas no
sangue destes moleques.
Quer dizer, homens, na idade deles a minha consciência sobre
deveres e obrigações já estava mais que sedimentada, nunca me dei ao luxo
de perder uma noite da minha vida em bebedeiras, que dirá nesse nível.
Empurro o corpo pesado de Mikael para longe, cuidando para não
bater com a cabeça contra o chão de pedra, as lanternas apoiadas em vários
lugares permitiam que aquele buraco sujo e escuro, que Angélica deu a ele
como seu ninho de amor, estivesse iluminado o suficiente para que não se
perdessem ao voltarem aos quartos.
Me ergui lentamente, pulei as pernas de Ramon o mais sensato
entre eles, mas que tinha se rendido a bebedeira, provavelmente por serem
coagidos a aceitar a nova ordem dos pais.
Os planos de Verônica e Gustavo parecem caminhar de vento e
popa, desde que ela se meteu em seus negócios, fazendo com que figurões da
alta sociedade passassem a utilizar os gringos como advogados, sua
influência aumentou muito entre os quatro amigos.
Difícil será dobrar a italiana. Sophia não esconde sua aversão por
Verônica, o que tem feito ela armar ainda mais contra os filhos É uma puta
sociopata, quanto mais se irrita, mais se vinga.
Deixo a adega subindo os degraus de cabeça baixa. Esse é o erro
número um de quem é treinado para estar vigilante.
O soco veio e nem o percebi, quando dei por mim já tinha a
têmpora latejando e pontos de luz piscando dentro dos meus olhos fechados.
— O que pensa estar fazendo? — A agressão foi leve perto do ódio
destacado na voz grave.
— Não fiz nada de errado, senhor. — Nego qualquer acusação por
impulso, cometendo o segundo erro, o de nunca o contestar.
O soco na altura do estômago poderia ter me debilitado, mas veio
com um empurrão que fez bem mais do que isto. O ladrilho da cozinha
jamais sairia da minha mente, essa era a certeza que tinha todas às vezes que
meu rosto bateu contra ele, e os chutes nas costelas me mantinham lá.
O primeiro veio forte, resfoleguei segurando o grito, o segundo
não me acertou, porque Lourdes entrou na frente e empurrou meu algoz.
— Sua vadia! — A voz enrolada era a prova de que ele estava
bêbado.
Me ergui como pude, para tirá-lo dali antes que Angélica ou
qualquer outro dos hóspedes aparecessem.
— Fiz uma pergunta, o que estava falando com Mikael? — Ele
voltou a me atacar, não fui tão rápido, o soco não acertou a têmpora, mas o
lado do meu rosto.
O gosto ferruginoso do sangue marcou minha língua, a dor
pulsante da agressão reverberou pelo meu corpo, mas pior do que as marcas
e dores, é apanhar sem saber o porquê, a violência gratuita é ainda mais
dolorida.
— Responde Christian!
— Nada senhor, ele estava falando sobre os seus sonhos bobos de
ser músico, só isto.
— Mentiroso! — A exclamação veio junto de um novo ataque. Tão
feroz quanto antes, mão fechada em punho, socos potentes, o hálito de uísque
e charuto assinando o momento como uma marca registrada.
Quem diria que daquele momento em diante, teria pavor destes
dois vícios, mas fumaria e beberia, para não me esquecer do filho da puta
que ele era?
— Não estou mentindo, — reajo tentando livrar-me.
Não era pequeno quanto antes, com o corpo bem formado e
treinado já em idade adulta, poderia me defender com força, mas isto me
obrigaria fugir depois, e não podia. Não quando devotei cada dia de inferno
à minha vingança.
Além de quê, não poderia abandonar a patroazinha, ela sozinha
morreria nas mãos desse maldito.
— Não vou perguntar, — ele anuncia e me encurrala contra um
armário — vou buscar Angélica, aí vamos saber o que disse. Ela já está me
devendo mesmo, mandei que se livrasse dos malditos gatos, mas adivinha,
descobri onde escondeu aquelas pestes.
— Estou dizendo a verdade, — respondo sentindo o ar faltar, as
mãos pesadas fechadas contra minha garganta parecem ferro fundido.
— Não faça isto, por favor, — Lourdes recuperada do chute que
recebeu na perna, volta e puxa-o pelo braço, — solte o menino, está
matando-o.
O homem tomado por sua fúria libera uma das mãos e a esbofeteia
com força jogando seu corpo miúdo no chão.
— Não bata nela! — grito furioso, Lourdes chora e segura a face
avermelhada. — Ela perdeu o bebê, por favor! — suplico me odiando por
fazê-lo. — Lourdes estava de repouso, só se levantou para cuidar das suas
visitas.
— Está me recriminando? Está se rebelando, maldito?
Sua fúria vem sobre mim, não percebi que o empurrava pelo peito
com força. Um pensamento cruzou minha mente, eu só precisaria empurrá-
lo, talvez com sorte batesse a cabeça na quina do armário e morresse ali
mesmo.
— Não senhor, — afrouxei os braços, pois sabia que não teria essa
sorte. Rebelar-me só colocaria outras pessoas em perigo. — Juro que não
tinha nada de mais na conversa.
— Eu disse para se manter longe, vigiar de longe, não consegue
entender? — Ele bufa, dá um passo atrás soltando minha garganta dolorida.
— Juro que não fiz nada. A conversa era sobre sonhos, de verdade.
— Não foi o que Verônica insinuou. Por que falaria em russo com
ele se não era segredo?
Então era isto? Por ter me ouvido responder a um menino bêbado,
algumas perguntas bobas?
— Não era nada. Mikael está tão bêbado que não vai se lembrar
de nada.
— Por que em russo? Desde quando eles sabem que tem dupla
nacionalidade?
— Eles não sabem, ninguém tem conhecimento disto — ressalto me
sentindo temeroso, o olhar oblíquo parece um poço fundo cheio de
estratégias malignas. — Mikael está bebendo o bastante para trocar o
idioma, todos eles são bilíngues, em algum momento é natural que façam.
Limpo o meu nariz que não percebi sangrar, só me dei conta pelo
olhar aterrorizado de Lourdes sentada no chão, encolhida aos pés da mesa
de madeira.
— Espero que tenha aproveitado e pego algumas informações.
— O de sempre, não querem assumir os negócios.
— Isto não pode acontecer, temos este plano armado há meses.
Custei a dobrar os malditos gringos, precisamos apertar o cerco sobre a
suspeita contra Joaquim e garantir que aceitem a ideia de unificação.
Ele fala sobre o plano de roubar famílias inteiras como se fosse
algo natural. Sinto nojo e tenho vontade de correr dali. O pior de tudo é a
sensação ruim de estar assistindo de camarote, enquanto sou espancado,
humilhado e tenho de rever estes mesmo planos sendo desenhados por uma
mente maligna.
— Não estou convencido do que está afirmando Christian, estou
percebendo seu olhar de recriminação. Primeiro se uniu a malcriada da
Angélica para dar um esconderijo aos moleques, roubou minha adega para
eles, passou parte da noite conversando como se fossem amigos e agora não
compartilha dos meus planos?
— Não disse nada, falávamos de sonhos de criança.
— Isto não importa mais, sua missão é convencê-los a trabalhar
nos escritórios, comece por Ramon e depois Mikael, tenho certeza de que
tudo sairá conforme o plano. Eles não aguentaram a pressão e os problemas
que estão por surgir, — ele ri com escarnio. — Vão acabar passando para
nós os bens, assim liquefaremos as lembranças de qualquer coisa ou pista
que tenha ficado, e possa nos denunciar antes da hora.
Reclino minha cabeça e disfarço para ele não perceber que me
incomoda ouvi-lo, olho para a minha mão e vejo algo estranho, uma cicatriz
que nunca percebi antes, neste ponto que percebo a diferença entre a
realidade e o pesadelo.
Os sentimentos que me incomoda são antigos, estão enterrados no
passado, a raiva que senti por ser espancado se acumulou em anos de
tortura. Anos, que descontei de uma só vez.
Ele continua falando, já não entendo mais nada o que diz porque
me perco nas suas doentias palavras, encharcadas de uísque, a cada nova
ordem ele me sacode, repreende e volta com suas perguntas. Raramente me
deixei esmorecer ou baixei as minhas barreiras para proteger-me e a quem
tinha vontade de fazê-lo, não sei por que me deixei sentar naquele lugar que
tanto odiava para conversar com Mikael.
Maldita hora que me preocupei com um moleque mimado bêbado,
e daí que caísse no escuro e quebrasse o pescoço?
Foda-se! Não me importaria nada. Mesmo que ele fosse a paquera
boba da Angélica e louco de amores por Lia, a filha de Joaquim. Outra que
não ia demorar a cair nas garras de Verônica.
Se Lia não tivesse afrontado a bruxa, não seria alvo dela, mas por
ser uma pessoa muito inteligente e ter sempre que brigar pelo que quer,
percebi que cedo ou tarde a jovem acabaria desmascarando Verônica.
A risada torpe me fez arrepiar. Percebo que me perdi em
pensamentos.

Olho a minha volta e me surpreendo, não estamos mais na


cozinha?
Busco por Lourdes, mesmo sendo minha carcereira, ainda é
alguém por quem me preocupo, fiquei mortificado por ela se tornar alvo
dele, não deveria ter tentado me proteger.
O soco veio e não vi de onde, novamente a surra começou, e agora
por qual motivo?
— Você disse que ele não se lembraria de você!
— Sim! Eu disse. — A minha voz está mais grossa, o meu corpo é
muito maior. — Como pode ser?
— Você se tornou um homem formado há muito tempo, nunca foi
uma criança, não permitiria que fosse, que perdesse o seu tempo com estas
coisas! — Sua voz é fantasmagórica.
Ergo-me com dificuldade, o tempo é outro, não é mais décadas
atrás, a maldita cozinha está diferente, os ladrilhos que odiava, eu mesmo
quebrei a marretadas, então, porque estou de volta a este mesmo lugar.
— Que inferno é esse!
A mão pesada volta a me atacar, não consigo revidar, o meu corpo
pode e quer, mas a minha consciência não deixa, como se até mesmo aqui,
nesta ilusão maldita eu tivesse de me manter passível.
— Disse que ele não se lembraria.
— Quem não se lembraria e de quê?
— Mikael, Christian, ele se lembrou de você.
Ah, verdade! O maldito Promotor viveu anos ao meu lado e nunca
percebeu que o Álvaro era o mesmo rapaz da adega, mas bastou-me ver sem
o disfarce e soube quem eu era, estupido que fui.
— Você disse…
— Você, está morto pare de repetir o que eu disse! — Esbravejei
colocando-me longe dele.
Seus olhos são os mesmos entorpecidos pelo álcool, pelo ódio,
arrependimento, rancor, ganância.
Enfrento-o e me afasto ainda mais, sou mais forte, ele não pode
mais me tocar, ameaçar ou machucar.
— Está morto!
— Ele virá atrás de você.
— Ele, os outros, ninguém pode fazer nada contra mim!
Afirmo e me afasto. Contudo, o olhar dele se prende ao meu, e
sinto que estou preso em um círculo vicioso, livro-me da sua mão, mas não
posso sair do cômodo maldito.
— Acredito que precisa lembrar a quem deve obedecer.
Ouço a sua voz, mas não o vejo mais, porque agora estou de volta
a adega, como naquele tempo, preso no quarto secreto escuro.
Ali antes de Angélica dar a Mika e Lia como esconderijo
romântico, foi o meu quarto, minha prisão, por anos passei ali dias e noites
intermináveis, por castigo, porque alguém chegou à fazenda e eles não
queriam que eu fosse visto ou simplesmente para treinar-me a vencer meus
próprios demônios.
Frio, úmido, escuro… Escuro demais para minha sanidade, isto
me causa calafrios, arrepios. A porta cerrada não me deixa sair, soco a
madeira, tento sacar a minha arma, mas só tenho um moletom, o peito
desnudo está frio, suado e nada ali pode me aquecer.
— Lourdes, abra essa maldita porta! — Grito. — Benjamin, não
seja covarde, abre isto.
Grito até sentir a dor na garganta, mas só o silêncio. Lágrimas
pulam dos meus olhos e me lembro de que eles realmente não vêm ao meu
encontro. Benjamin está morto, eu dei a ordem. Ele não deveria ter
sequestrado minha Fadinha.
Lourdes está morta, eu sabia dos seus planos de se envenenar e
não a impedi. Minha vingança levou anos, mas no fim eles a buscaram em
mim. Se eles não estão aqui, então estou preso nesse maldito inferno escuro,
mofado e poeirento, sozinho mais uma vez?
Não posso, não, não…
O grito de pânico reverbera nas paredes e me ataca a cabeça,
sento-me em um canto, fecho os olhos com os braços ao redor da minha
cabeça e tento não pensar que estou preso.
— Você disse que ele não se lembraria! — A voz vem do alto como
se houvesse uma caixa de som ligada no inferno, onde ele está,
retransmitindo a mesma ladainha.
— Some daqui, me deixe em paz. Você está morto!
— Nunca morrerei, sempre vou estar na sua cabeça, garanti isto.
— Maldito!
Grito e me arrasto no desespero. Isto é um pesadelo, naquela
época ele me trancou, mas ela voltou sozinha depois que todos foram
embora, de algum jeito a louca conseguiu se livrar dos olhos do marido e
invadiu a fazenda. Ela sempre vinha em meu socorro, a única que conhecia
os meus segredos.
Me lembro tão nitidamente, as mãos pequenas e a voz estridente ao
esmurrar à porta da adega com força.
Ele dera ordens a Lourdes, que me prendesse assim que todos
fossem embora, até o dia do embarque para Londres. Até o dia que
finalmente daria início a minha própria vingança.
Eu estava machucado, sozinho, chorando como uma criança,
mesmo já sendo um homem, mas graças a Deus, ela conseguiu abrir a porta.
Pequena, louca, dopada de remédios para ansiedade e tão valente como uma
chama na tempestade. A luz da lanterna potente me cegou, pisquei algumas
vezes e vi os cabelos flamejantes brilharem.
— Sarah? — Senti um alívio, uma ponta de esperança de que ela
estivesse ali, para me salvar e me fazer sentir culpado, pois sei que não está.
— Sarah…
— Acorde, não precisa ter medo menino. — Ela sorriu daquele
jeito que vejo Fadinha fazer. — Acorde!
Balancei a cabeça em negação, a luz em sua lanterna esmoreceu.
Tentei segurar a sua mão, mas ela não estava perto.
— Sarah!
A voz do maldito soou novamente, a porta bateu e o escuro reinou,
daquela vez, Sarah voltou e me tirou do castigo, cuidou dos ferimentos e até
o seu marido chegar para buscá-la, me deu colo como uma mãe faria, mas
agora estava escuro e estou sozinho.
O desespero voltou a crescer em meu peito, o ar sendo extraído de
mim como se fossem sugados para fora.
— Acorde! Você me prometeu, precisa cumprir com o que me
prometeu Christian, por favor, ainda confio no meu pequeno Katyónak[20]
— Sarah, — me agarro a voz.

Sinto o solavanco em meu corpo como se estivesse caindo da cama


a voz alta em meu ouvido me desperta do pesadelo.
— Acorde, San?
— Fadinha?
Então a luz volta, a lanterna brilha sobre mim, os cabelos ruivos
continuam desgrenhados, não tem mais cheiro de mofo no ar, mas flores. A
voz que parecia ser de Sarah é, na verdade, da minha Fadinha.
Então percebo que foi só um pesadelo, uma recordação.
— Fadinha? Minha garganta… — reclamo ao senti-la doer.
— Você estava gritando. Teve um pesadelo? Está chovendo muito
e a luz apagou.
— O gerador?
— Um dos rapazes disse que deu defeito, não quer ligar. A casa
está às escuras, as luzes de emergência estão sendo ligadas.
— Você está bem? — sinto vergonha por ser acordado em um
pesadelo, ainda mais por ter o rosto coberto de lágrimas, mas para Mikaella,
isto não parece importar.
— Estou bem, — ela sorri e sobe na cama ao meu lado, — vou
ficar aqui com você, estava tendo um sonho ruim?
— Sim!
— Você disse que o meu irmão tem pesadelos diariamente.
— Sim.
— Isto machuca? Não tenho sonhos.
— Machuca, mas não o corpo, — deito-me ao seu lado para que
não perceba o quanto estou tremulo.
— Sinto muito.
— Venha aqui, se não sinta. — A envolvo em meus braços
— Era ele? Foi ele quem veio te machucar de novo?
— Ele não pode fazer isto mais, minha Fadinha. Está morto.
— Mas…
— Shiii, vamos dormir. Amanhã você viaja, precisa descansar.
— Me desculpe por deixá-lo sozinho.
— Não ficarei só, vou passar um tempo com Angélica.
— Ela não vai gostar.
— Pode apostar.
A conversa calma embalada nas risadinhas que ela solta acalma o
meu corpo, minha mente e logo entendo que o pesadelo pode ter vindo pelas
constantes perguntas de Angel, o reencontro com Stravos só atenuou estás
memórias e por ficar no escuro, algo que inconscientemente minha mente
reagiu.
— San?
— O que foi?
— Você viu a minha mãe no sonho?
— Sim, — não vejo motivos para mentir.
— Você vai fazer o que prometeu a ela?
— Tenho feito.
— Não vai te machucar cumprir os desejos da mamãe?
— O que prometi a Sarah, está em curso Fadinha, mas ela sabia o
que eu queria. Agora dorme.
— San?
— Sim?
— Meu irmão não está mais em perigo?
— Ele tem se saído bem, Mikael é esperto.
— Darei um presente para Anjinho.
— O que pretende dá-lo? — pergunto, mas não estranho. Mikaella
se encontrará com a criança para se despedir, tenho medo da sua reação, mas
me preocupo mais com que aconteça ao menino. — O que dará a ele?
— Algo que você não pode tomar.
— Como? — ergo minha cabeça, ela balança a lanterna fazendo
redemoinhos de luz
— Você pegou o envelope com as fotos, mas não pode pegar o
presente de Anjinho, ele é o meu sobrinho. A promessa que fez para mamãe,
também é para ele.
— O que está aprontado Mikaella?
Ela solta uma risadinha, larga a lanterna e se enrosca em mim, beija
o meu ombro e suspira.
— Boa noite San, vamos dormir.
Não vou interrogá-la ou tentar descobrir o que está para fazer,
sinceramente depois de anos sem ter um sonho como este, rever Sarah e ser
acudido por Mikaella, me fez lembrar o que prometi à única pessoa que se
importou de verdade comigo durante todos os anos que vivi às margens dessa
grande família.
— Tudo bem, espero que seja o melhor para ele.
— Será, — ela suspira — San, não deixe mais as lembranças do
Gustavo o machucarem, quando es-estiver longe, se acontecer algo me
chame, eu volto para cuidar de você. Eu te amo!
— Eu te amo, Fadinha. Não se preocupe, ele não pode fazer nada
mais, não vou deixar. Tenha bons sonhos.
Em instantes o seu corpo relaxa e percebo o sono chegar. Olho para
o facho de luz e diferente da minha Fada, mergulho nas lembranças revendo e
orquestrando os meus passos daqui por diante.
Verônica por mais enclausurada que esteja conseguiu uma forma
de se manter em constante movimento e o fato de pensar que não sei disto,
me permitiu descobrir onde estão os seus capangas.
Não quero conectar os meus planos aos seus e nem a deixar fazer o
que quer, falta pouco para conseguir o que quero. Vou aproveitar a brecha de
paz que ela deu para eles para trabalhar em meu favor.
Não vou machucá-los, Sarah, durante anos fiz o que pediu
religiosamente, achei à sua filha e fiz Verônica trazê-la para mim, sem ao
menos saber que era o que eu queria. Cuidei de Lia, enquanto esteve fora,
mantive o seu filho longe das garras da maldita por todo esse tempo, não
permiti que nenhum deles tivessem o mesmo destino que o dos pais. Contudo,
não vou deixar que fiquem com o que é meu.
CAPÍTULO 38

INFÂNCIA
“Ter um lugar para ir é lar.
Ter alguém para amar é família.
Ter os dois é benção.”

FADINHA

O
lugar que escolhi para ver Anjinho serve ao nosso propósito, apesar do San
ter concordado em me deixar fazer uma viagem para a Europa, sei que ele
está me escondendo algo e que vai me enviar para outro lugar.
— Senhorita Mikaella, tem certeza de que este é o endereço? —
Marcus, o segurança que está me acompanhando pergunta pela terceira vez.
— Tenho certeza! Marquei no shop-piping com Anjinho, ele quer
tomar sorvete e ver um filme.
— Tudo bem, vou avisar aos outros para estarem apostos e nos
informar quando a babá e o menino chegarem.
— Faça o que achar melhor, enquanto i-isso, vou ao toalete.
— Ok! Esperarei do lado de fora.
— Lógico, não é Marcus? Não acredito que teria coragem de entrar
no banheiro comigo! — exclamo colocando a mão na cintura.
O segurança olha para o lado, ele é muito mais novo do que eu, e
creio que por ter de tomar conta de uma Down, acredita estar lidando com
uma criança que não tem consciência de nada. O que para os meus planos, é
perfeito.
— Ah, meu Deus! — exclamo levando às mãos a cabeça e
exagerando no drama — Marcus, o presente do meu sobrinho, esqueci no
carro.
— Não precisa ficar nervosa senhorita, — ele se aproxima e vejo
nos seus olhos uma preocupação genuína —, vou pedir a um dos agentes para
trazer aqui, tudo bem?
— N-não! Não está tudo bem, e se eles estragarem o que comprei?
É um violino caríssimo, não posso arriscar, não confio em ninguém, por
favor, — me aproximo dele e me esforço para que tenha um ar choroso, —
por favor, Marcus, busque para mim.
— Não posso deixá-la sozinha.
— Não vou a lugar nenhum, ficarei no banheiro, não tem como sair
de lá.
— Mas…
— Por favor?
— Tudo bem, vou bem rápido, ainda bem que estamos perto do
estacionamento.
— Obrigada Marcus! — sorrio para ele acanhada, e desta vez não é
encenação, coloco um mexa do longo cabelo ruivo atrás da orelha sentindo-
me tímida.
O rapaz cora novamente e acena com a cabeça. Ele é gentil, uma
gracinha, mas tão bobinho. Entro no banheiro e espero alguns minutos, abro à
porta e não vejo nem sinal dele ou qualquer outro segurança.
Os agentes que San designou para cuidarem de mim, terão uma
grande surpresa ao me procurarem. Retiro do bolso do meu vestido o
aparelho telefônico e o meu real presente para Anjinho.
— Alô? Fadinha, onde está? — Nina a babá do meu sobrinho
atende a chamada no segundo toque.
— E-estou quase perto do nosso ponto de encontro.
— Tem certeza de que seu irmão não se importará de passar tanto
tempo conosco?
— Tenho sim, foi minha a ideia do parque de diversão, não
teremos problemas.
— Verdade, — sinto algo estranho em sua voz e me preocupa que
ela tenha ligado para San.
Ainda não entendo o porquê de se aproximar dela, mas quem pode
compreender todos os planos do meu guardião?
— Nina, está tudo bem? — enquanto converso com ela, corro em
direção a saída do shopping, aceno para um táxi que está passando.
Dou o endereço ao motorista, o carro arranca e pelo canto dos
olhos vejo alguns dos meus seguranças passarem pela porta da frente.
Droga! Pensei que teria mais tempo, será que Marcus desconfiou?
— Está sim, na verdade, Anjinho não está muito animado,
aconteceram algumas coisas ontem na escolinha, então hoje ele está um
pouquinho triste, mas louco para vê-la.
— Tenho uma surpresa para ele, tenho certeza de que ele vai ficar
muito feliz!
— Que bom! Então nos vemos daqui a pouco?
— Sim, já estou quase chegando, já posso ver o parque.
— Quer continuar no telefone, até chegar aqui? Estamos no
estacionamento ainda.
— Tudo bem Nina, diz a Anjinho que estou chegando, para pôr um
sorriso ne-esse rostinho lindo.
Desligamos, olho para o envelope de carta que tenho em mãos, sei
que não deveria me meter, mas não sei quando terei uma nova oportunidade
de voltar ao Brasil, por isso quero dar ao meu sobrinho uma oportunidade de
ter uma família completa, o que nunca pude ter.

Durante os anos que passei no orfanato, somente a bruxa me


visitava. O período era aterrorizante quando ela fazia isto, pois sempre que
acontecia eles me trocavam de instituição, então seriam meses sem poder ver
nenhuma outra criança, trancada na minha cela, sem amiguinhos, sem
brincadeiras e muitas destas vezes sem ver a luz do sol.
Depois que passei a entender o que aconteceria quando ela viesse
me ver, passei a tentar fugir, mesmo que recebesse castigos, não me
importava, só queria fugir.
A última vez em que veio, trouxe um homem consigo, ele parecia
ser alguém importante. O que me chamou atenção foram os seus cabelos e os
olhos parecidos com os meus, mas o que tinha de bonito, também tinha de
diabólico. Um verdadeiro demônio.
Um arrepio corta meu corpo e acabo por me agitar no banco do
detrás do carro.
— Está com frio, querida — o motorista, um senhor na casa dos
seus cinquenta e poucos anos sorri pelo retrovisor —, posso desligar o ar.
— Está tudo bem.
— Estamos chegando.
— Obrigada.
O gentil senhor começa uma conversa educada, falando dos netos e
do parque de diversão, mas estou com minha mente longe, mal consigo
prestar atenção nele, me lembrando do homem que acompanhava Verônica.
Ele não aceitou quando ela disse que fariam uma última
transferência, até aquele dia, nunca ouvi falar dos meus pais, o que ouvia era
que fui abandonada, que não me queriam por ser defeituosa entre tantas
outras atrocidades.
Nunca me disseram quem eram e se por acaso ainda gostariam de
ver como estava progredindo mesmo com minhas limitações, eu me sentia
um verdadeiro lixo descartado e acreditava em Verônica e seus auxiliares,
mas aquele homem fez questão de contar-me tudo sobre meus pais.
Através da discussão deles, descobri que todas às vezes que fui
trocada de instituição, era porque uma mulher chamada Sarah descobriu
pistas sobre uma criança especial com minhas características físicas e estava
indo atrás.
Só após conhecer Santiago, descobri que ela era a minha mãe.
— Chegamos senhorita, — o motorista me passa o valor da
corrida, pago com uma nota maior e deixo o troco como gorjeta — mas, isto
é muito senhorita!
— O senhor merece, tome um sorvete com os seus netinhos, —
aceno e deixo o carro o mais rápido que consigo.
Ser Down nunca me frustrou como pessoa, mas às vezes me deixa
um pouco irritada, pela forma como os outros me veem. A tendência é
enxergar apenas o exterior e não imaginar que por detrás da aparência
fragilizada, tem um ser pensante com grande capacidade.
Esse foi o erro de Verônica ao me tirar do orfanato, tentar subjugar
Santiago, usando-me como escudo e me sequestrar.

Caminho lentamente, posso avistar o carro de Nina e antes de nos


encontrarmos, preciso me livrar destas memórias, ou acabarei demostrando
sentimentos que não quero. Avisto uma barraca de balões e bonecos infláveis,
me direciono até à lojinha ganhando tempo para me acalmar.
Após vir para companhia de San, a primeira coisa que ele fez, foi
me contar tudo. Sua vida, seus planos, falou sobre sua família e todas as
desgraças que o cercaram e quem causou tudo isto, contou-me sobre Sarah, a
promessa que fez a ela, e como conseguiu convencer Verônica trazer-me para
casa.
Não posso impedir de sorrir ao imaginar a cara que Verônica faria
se descobrisse, que quem dava pistas para minha mãe sobre onde eu estava
era San, e pior ele mesmo contava a maldita venenosa, que Sarah tinha novas
pistas, fazendo um jogo inteligente e arriscado.
As reais oportunidades de conseguir me resgatar eram baixas, pois
Verônica sempre manteve alguém a postos para sumir comigo caso me
encontrassem.
San não poderia dizer abertamente a Sarah, pois conhecendo a
maldita venenosa como fazemos, ela poderia ter me matado ou pior ter
atingido a Santiago em seu ponto fraco. Por mais espertos que sejamos, não
podemos negar que ela nos manteve por um bom tempo na palma das suas
mãos.
Após passar a viver com San, por várias vezes ele quis me levar
para viver com minha mãe, mas não pude.
Primeiro, não queria chegar do nada e roubar o lugar do menininho
que via com ela, sabendo por alto o histórico de obsessão com a filha morta,
nem tudo San me contava, mas Verônica, fazia questão de falar o quanto
minha mãe era louca.
Segundo ainda pairava sobre minha mente a ameaça daquele
homem…
“No dia em que voltar para casa, você e toda sua família vão
morrer, se duvida de mim, ouse se aproximar deles para ver o que
acontece…”
Eu era apenas uma menina, não entendia o que ele poderia fazer,
mas senti em meus ossos o medo. Não queria acreditar nele, mas fazia e me
arrependo até hoje, por não ter dado ouvidos aos meus medos, talvez por isto
hoje, tenha me armado de uma coragem que não está em mim, apenas para
proteger alguém inocente, como um dia fui.
San insistia tanto para que fossemos vê-los, que aceitei. Ele me
levou na fazenda, a mesma onde deixei uma mexa de cabelo no piano quando
fui sequestrada.
Me lembro perfeitamente do dia em que vi aos meus pais e Mikael
pela segunda vez. Estávamos no carro que San alugou, ele havia pedido para
Angélica, quem ainda não conheço, para levar os amigos em um passeio e
esperar por ele na cachoeira.
No dia anterior, passamos em um galpão que ele de fez quarto, de
lá pude ver o meu irmão andando a cavalo, mamãe sentada no campo com
um xale branco em suas costas e papai penteando os seus cabelos, a cena
ficou gravada em minha memória de tal forma, que pedi a San que pintasse, e
ele com todo talento fez a pintura.
É uma pena que tenha dado para Sarah pouco antes deles
morrerem, não faço ideia de onde está esse quadro dedicado a mim.
— Senhorita qual balão vai querer?
— Wou! Me desculpa, estou um pouco distraída, — noto as
lágrimas escorrendo por meu rosto, minha pele esquenta e com uma passada
rápida das mãos sobre as bochechas as limpo, sorrio para o vendedor de
balões. — Me vê um pinguim.
O rapaz sorri e gentilmente me entrega o boneco inflável. Tomo
fôlego, dou meia volta em direção ao carro de Nina e sigo adiante.

As lembranças parecem ter despertado de uma forma que não


consigo refreá-las, sem pensar volto no passado, no aniversário de quinze
anos das gêmeas, a segunda vez que vi aquele homem ruivo de olhos frios na
mesma estrada onde estávamos aguardando.
Não esperávamos vê-lo, para San foi um choque ver Verônica e
Stravos no mesmo lugar. Não sabíamos que eles estavam na fazenda e nem
como chegaram lá.
Verônica parecia transtornada discutindo com San.
Eu estava com tanto medo, que não conseguia nem me mexer no
banco do carona. Com um boné escondendo os meus cabelos e um blusão
gigante me encolhi ao ver a sombra dele se aproximar.
Os seus olhos ainda me assustam, ele não fez nada, só olhou em
minha direção e sorriu, isto bastou para me lembrar da sua promessa, naquele
momento soube que machucaria alguém.
Tentei chamar San, para irmos embora, mas a discussão do lado de
fora só piorava. Estava em choque com a aparição de Stravos e pior me senti
ao perceber o quanto ele era parecido com os meus pais.
Me causava arrepios tal semelhança.
O homem acenou para mim, calçou luvas de couro, se aproximou
de Verônica e a beijou na têmpora, disse algo para San, que de imediato
avançou em sua direção, mas a maldita o impediu.
Ela fez com ele, o mesmo que fazia comigo, espetando algo em seu
braço. Vi San cair no chão convulsionando, meu desespero foi tão grande,
creio que foi uma das crises mais sérias que tive, passei alguns dias
hospitalizada depois disto. Minha última lembrança é ver um carro preto
antigo — de colecionador, passar diante dos meus olhos e arrancar em alta
velocidade, contra o carro que vinha no sentido oposto.
Dias depois ao voltar aos meus sentidos, descobri que Stravos
tentou matar a meu irmão e os seus amigos que estavam no carro com
Angélica.
Todos se machucaram, mas a que ficou em pior estado foi ela e por
este motivo San, nunca mais foi o mesmo e nem se perdoa, mesmo que eu
diga a ele que a culpa foi minha por querer me aproximar da minha família.

— Fadinha! — A voz de Anjinho me desperta, só então percebo


que ele e Nina estão do lado de fora do carro acenando para mim.
— Meu amor! — Aceno de volta, me agacho e abro os braços para
que ele venha correndo em minha direção.
Anjinho se joga em meus braços e toda a dor das lembranças são
soterradas por seu carinho, seu cheirinho e todo amor que tenho por ele,
mesmo que tenha raiva de Lia por esconder sua existência, a entendo. Ela não
faz ideia de quem sejam os Nikolaevich, mesmo assim o sexto sentindo de
mãe, como diz San, a faz proteger com unhas e dentes ao filho.
Essas sensações que Anjinho me faz sentir é o que Mikael irá
precisar em breve…
— Estava com saudades, — ele ressalta com sua voz cheia de
lamento. — Anjinho tem muita saudade.
— Meu amor, a titia também sentiu saudades.
— Fadinha, como está?
— Estou bem Nina, obrigada por trazê-lo aqui. Este é o meu lugar
preferido.
— Nós que agradecemos, não é meu lindo?
Anjinho como um bom menino acena, entrego a ele o boneco de
pinguim e sua felicidade é imensa.
Cumprimento a Nina, aceito a garrafa de água que me oferece, por
ver-me um pouco ofegante. Tomo alguns goles, enquanto caminhamos para a
entrada do parque.
Acaricio os cabelos de Anjinho e percebo o quanto chamamos a
atenção pelo tom incomum, para hoje deixei os meus longos cabelos livres de
tranças e adornos, ele adora passar as mãozinhas pelos fios.
De mãos dadas, seguimos para a fila de ingressos, Nina conversa
comigo e com Anjinho usando um tom natural, essa forma de compreender
que não difiro de outra pessoa e que posso compreendê-la perfeitamente, é o
que me encantou.
Lia também me tratou com normalidade, eu que fui um pouco
ríspida, talvez por querer o melhor para o meu irmão que vi crescer de longe
e saber o quanto ele necessita de alguém que o ame incondicionalmente.
— Que tal uma volta na xícara? — Nina pergunta.
Anjinho acena com a cabeça, apertando firme meus dedos, sorrio
para eles e seguimos para o brinquedo.
Hoje será um dia feliz, mas com final um pouquinho triste. Como
disse, sei que San está me mandando para um lugar diferente de onde pedi, e
tive certeza disto pelo pesadelo que teve no início desta manhã, isto só
acontece quando aquele homem está por perto e sinto nos meus ossos, que
Stravos está no Brasil. Por isto, Anjinho precisa saber quem é o seu pai,
conhecer o rosto dele e se precisar, fugir para a casa dele.
— Vamos nos divertir muito hoje querido, a titia tem algo muito
importante para te dar.
— O que é? — a voz infantil rouca faz cocegas em meus ouvidos
sensíveis a todo o som.
Me agacho diante dele, enquanto Nina, verifica a idade e altura
para o brinquedo, olho em seus olhos, pego o envelope dentro do meu bolso e
mostro a ele.
— Escute com atenção, este é outro segredinho nosso.
— Um segredo igual você ser a irmã do papai?
— Isto mesmo, ninguém, nem mesmo a sua mamãe pode saber por
enquanto, um dia a titia vai contar para eles e faremos uma grande surpresa.
— Tá bom!
— Muito bem! — pego o envelope e coloco no caderninho de
desenho que ele sempre carrega em sua mochilinha. — Você tem deixado
alguém mexer no seu caderno de desenho?
Anjinho faz uma carinha triste e chora sentido, com seu jeitinho
enrolado me conta sobre o que houve na escolinha.
— O que foi querido? — Nina se aproxima, escondo o envelope no
caderno. — Não chore, ele falou sobre a escolinha?
— Sim! Nina, pode comprar um doce para nós, — pisco um olho e
ela entende que quero falar com ele a sós.
Assim que estamos sozinhos, seguro suas mãozinhas e faço me
olhar, à medida que consiga.
— Anjinho, preste atenção na titia. Dentro do seu caderninho, tem
um envelope, se por acaso um dia o homem mau aparecer, — pauso —
lembra dele?
— Sim, o mesmo que te roubou da sua mamãe.
— Isto amor, amo a sua mente inteligente, é igual ao seu pa-pai. —
Sorrio e abraço seu corpinho. — Se um dia precisar, dentro desse envelope
tem as fotos, o endereço e o dinheiro para levá-lo até o papai. É perigoso
fazer isto, mas se precisar, faça.
— Tá, Fadinha, posso ver o papai? — ele se afasta e seus olhos
com a cor de uma tempestade, me lembram os mesmo de Mikael, no dia em
que ficamos frente a frente no conservatório.
— Quando estiver sozinho, ninguém pode saber, ou vai estragar a
surpresa da sua mamãe, — seguro e sussurro em seu ouvido fazendo
cosquinha — esse é o meu presente para você querido, a titia vai fazer uma
viagem, então quando quiser lembrar de mim e do seu papai, veja o presente.
Anjinho me abraça forte, talvez esteja colocando tudo em risco
fazendo isto, mas não posso deixá-lo desprotegido e nem Lia.
— O papai, vai cuidar de você e da sua mamãe.
— De você também, titxia Mikaella.
— Sim, meu amor… — mas, para isto ele precisara, sobreviver a
Stravos, espero e oro para que San consiga fazer algo a respeito.

O dia no parque foi muito melhor do que esperava, construí


memórias lindas com o meu sobrinho e não pude deixar de me emocionar a
cada segundo que passei com ele.
O celular tocou várias vezes, San desistiu de falar comigo e ligou
para Nina, só pude dar de ombros, mas por fim tive que atendê-lo.
— Só me diz, por que fugir? — Sua voz calma não me enganou.
— Porque fiquei com medo de que me tomasse o presente que dei
a Anjinho.
— Mikaella, ele é um bebê, não pode brincar com a mente dele.
— Não estou brincado, fiz o certo. Passamos por coisas demais e
não vou deixar que ele passe o mesmo! — Exclamo irritada e acabo por
gritar.
— Ao menos com ele tem consciência, o pobre do Marcus está de
joelhos na minha frente pedindo perdão por tê-la perdido.
— Ele não precisa fazer isto, não estou em perigo.
— Arrebatou alguns anos de vida do seu admirador, Fadinha, —
San debocha e ouço a voz do rapaz resmungando.
— Diz a ele que vamos passear muito quando chegarmos ao nosso
destino.
— Não sei se devo deixá-lo ir, não mostrou ser muito esperto, já
que caiu em um punhado de lágrimas falsas.
— Me dê um cré-e-dito San, aprendi com o melhor a fazer uma
cena.
Ele suspirou, — entrei em contato com os seguranças do menino,
eles estão responsáveis por você também, divirta-se o quanto puderem, mas
em casa teremos uma conversa séria sobre responsabilidades.
— Como quiser.
— Como ele reagiu ao presente?
— Muito bem!
— Não contou nada demais para ele, não é? Não se esqueça, ele é
só uma criança.
— Da mesma forma que fomos um dia. Ser autista não o impede de
entender as coisas e nem de ter sentimentos Santiago, o que Anjinho
precisava saber, já falei há muito tempo, não precisa se preocupar, confio
nele, assim como você confiou em mim para contar-me quem é.
— Eu a amo, minha Fadinha.
— Eu o amo, meu guardião.
Encerrei a ligação indo me encontrar com Nina e Anjinho na
barraca de cachorro-quente.
— Que tal vermos um filme — pergunto —, e tenho um em mente
que meu Anjinho vai amar.
CAPÍTULO 39

IMAGINAÇÃO
“Eu a amo…
Era o destino, não pude mais fugir dos sentimentos que um dia neguei.
A reencontrei e ela está me devolvendo a vida que um dia perdi.”

MIKAEL

C
onfiro novamente as horas no relógio de pulso, Lia geralmente não se atrasa,
o que agradeço se não estaria criando um rasgo com meus passos pesados de
um lado a outro sobre o paralelepípedo diante do seu prédio.
Às oito da manhã recebi uma nova mensagem dela, confirmando
nosso jantar, estranhei por não ser o seu habitual e creio que tenha algo sério
para conversar comigo, o que só vai transformar a nossa noite em pura
tensão.
Após deixar meus amigos em casa pela manhã, fui ao apartamento
de Angélica, queria muito conversar e mostrar as fotos que achei, assim como
falar sobre o DNA, mas não encontrei a loira, de acordo com o zelador ela
havia saído bem cedo.
Tentei entrar em contato por telefone e mensagem, mas só
consegui deixar um recado na caixa postal e nenhuma das mensagens foram
lidas. Provavelmente algo relacionado ao seu trabalho deva ter acontecido.
De volta à minha casa, não pude deixar de pensar em tudo o que
meus amigos falaram. Pensando pelo lado positivo de toda essa balburdia que
se tornou as nossas vidas, aos menos tenho mais de um motivo para manter
Lia e o moleque por perto. Mesmo que ela negue ao pedido que tenho para
fazer hoje, jogarei duro e vou contar sobre as ameaças, correndo o enorme
risco de que surte e desapareça com a criança para sempre.
Por volta das duas horas da tarde, não resisti a vontade de ouvir a
sua voz, percebi estar ocupada arrumando a criança para algum passeio e eu
não quis me intrometer, por já estar tranquilo sabendo que estaria com Nina e
cercado de guarda-costas.
Além é claro, da bendita lista das regras de como ser um bom
“namorado da mamãe”.
Ouvi a voz rouca no fundo da ligação, o menino parecia triste pela
perda do caderno de desenho. Por mensagem Lia me contou sobre os
problemas na escola. Não é de todo estranho que haja esse tipo de situação
entre crianças, o que me admira e deixou enfurecido, foi saber que a
responsável pela criança envolvida na confusão, agrediu verbalmente a
Anjinho.
Isto está me consumindo, conhecendo Lia como faço, tenho receio
de que acabe por desnortear-se e acerte literalmente a mulher da próxima vez
e que isto, vá gerar um problema ainda maior.
Segurei a vontade de me intrometer, mas se pudesse opinar sobre a
educação do moleque, já o teria mudado de colégio, denunciado a instituição
por permitir tal coisa no estabelecimento entre várias medidas legais que
tomaria.
Contudo, não posso impor sobre Lia esse tipo de pensamento, nem
sei o que repercutiria para a criança no futuro se de alguma forma tomasse
essa medida como regra de vida: fugir todas às vezes que se sentir acuado,
em vez de lutar e se impor.
Tenho minhas próprias experiências com minhas debilidades e sei
que fugir não é a solução, porém entre querer, saber e fazer o certo há uma
ponte bem estreita.
— Como é complicado, essa coisa de ser pai, — resmungo
olhando para o relógio novamente. — Deus me livre!
— De quê? — a voz dela me estremece, da mesma forma que me
senti ouvindo os resmungos do moleque.
Elevo minha cabeça e olho em direção ao prédio, meu coração
parece que vai saltar pela boca e me sinto ridículo constatando estes
sentimentos e sensações das quais tanto zombei dos meus amigos, parecem
ter se tornado meu habitual.
Lia está radiante. A pele morena reluz, os cabelos longos estão
soltos como gosto, jogados por sobre os ombros, o vestido vermelho é longo
com uma fenda que vai da lateral da coxa ao tornozelo, as pernas torneadas
ressaltam a cada passo que dá, nos pés uma sandália de salto fino deixando à
mostra as unhas esmaltadas em tons claros.
O tecido vermelho parece colar em sua pele do decote
pronunciando nos seios até a cintura, descendo solto pelas pernas, um vestido
de alças finas com um toque sensual e elegante. Os lábios carnudos pintados
de vermelho explanam um riso tímido, ela ergue a mão e coloca por trás da
orelha uma longa mexa de cabelo.
— Uau! Está linda Doutora. — Digo com admiração, faço um
gesto com a mão pedindo para que dê meia volta.
— Hoje é um dia especial, resolvi caprichar. — A voz sensual me
arrepia a nuca, seu perfume domina o ar.
Lia para em minha frente e como pedi, dá meia volta, seguro a
vontade de cobri-la de cima a baixo, nunca concordei com homens que
colocam sua imposição sobre o que uma mulher deva ou não vestir e o que
fazer com seu corpo. Sou completamente avesso a isto, mas pela primeira vez
na vida, senti vontade de retirar meu paletó e jogar sobre os seus ombros.
O decote frontal é perfeito, valoriza o colo, a parte superior dos
seios dá asas à imaginação, mas a parte de trás do vestido, simplesmente não
existe. A pele morena está completamente exposta e ressaltadas pelo tom
vermelho as asas tatuadas parecem querer saltar da sua pele nua.
— Me diz que tem algo a mais por baixo desse vestido.
Toco o meio das suas costas deslizando os meus dedos,
circundando um lado dos traços em relevo, sentindo os arrepios subirem na
pele acompanhando o movimento.
— Isto só descobrirá depois, Promotor, — ela sorri e volta seu
rosto em minha direção — senti a sua falta.
— Sinto diariamente, — desço minha boca sobre a sua e a beijo de
forma cálida. — Está se sentindo melhor, como está o menino? — por
impulso olho para o apartamento às escuras.
— Estou melhor e Anjinho ainda está com Nina e a Fadinha, eles
passaram a tarde no parque de diversões e foram assistir a um filme.
Obrigada por perguntar.
— Não agradeça, estou preocupado com vocês. Eles vão jantar, ou
só comer besteiras?
— Jantar, Nina não deixaria comerem só porcaria, provavelmente
vão parar em algum restaurante no Shopping.
— Ok!
Ela se volta em direção ao carro e sorri. — Nem acreditei quando
disse que não sairíamos de moto, mas confesso que não imaginava que fosse
retirar seu conversível da garagem.
— Sei que minha mulher gosta de velocidade, mas não vamos
correr, não após ver esse pezinho de chumbo em ação.
— Tive motivos… — ela suspira com semblante cabisbaixo
— Podemos falar disto se quiser e estou pronto a ajudar no que
precisar.
— Obrigada, de todo meu coração, ouvir isso de você me deixa
muito feliz.
Sorrio para Lia, deixando-a mais tranquila, não quero que a nossa
noite seja inundada por histórias tristes, se tudo correr como planejado,
pretendo encerrar fazendo amor e sem brigas. Dou a volta no carro, abro a
porta e com floreio indico para que entre, do outro lado da rua em uma
distância segura está o carro com dois seguranças, podemos fingir que está
tudo bem, mas a realidade ainda é viver dentro de uma redoma protetora.

O restaurante escolhido é próximo a minha casa, em vez de um


lugar requintado, preferi que fosse algo familiar, íntimo o bastante para que
pudéssemos aproveitar.
A cantina italiana é um dos meus lugares preferidos para passar um
tempo sozinho, aqui todos me conhecem, mas mantêm distância, aprecio meu
vinho com uma boa massa e pronto, nem mesmo os meus amigos trouxe aqui.
Lia parece encantada com a atmosfera do lugar. Mário o dono do
restaurante é um senhor simpático, filho de imigrantes que há muitos anos
transformou a garagem da sua casa em um delivery, mas a culinária da
esposa e os segredos de família trouxeram uma clientela fiel.
Com passar dos anos a garagem se uniu a sala e quase toda parte
térrea da casa, onde ele distribui as mesas de dois e quatro lugares com
toalhas bancas de xadrez vermelho.
— Mikael, que lugar lindo! — Lia exclama olhando a estrutura de
carvalho e a escadaria na lateral do salão de jantar.
— Adoro comer aqui e como sei que você ama uma massa,
imaginei que comer algo caseiro seria bom.
— Eles fazem a massa de verdade? — ela mal consegue esconder a
apreciação apertando os lábios.
Coloco a mão em suas costas a guiando até minha mesa habitual,
diferente de outros restaurantes, Mário presa pela sensação familiar, como ele
diz: “não há metres em sua casa”.
— Vamos nos sentar, — conduzo-a até uma mesa de canto, outros
clientes já estão jantando, conversando, é inevitável não chamarmos a
atenção ao passarmos.
A mesa escolhida é ao lado de uma grande janela que circunda
basicamente quase a parte lateral da sala, o brilho do lustre pomposo reflete
nos vidros criando uma chuva de luzes como se fossem estrelas sobre as
mesas laterais.
Lia se senta e não consegue manter os olhos em um só lugar, tudo é
rico, desde as cores nas paredes, as pinturas e o aroma maravilhoso que vem
da cozinha.
Mário ao ser informado da minha presença, vem para o salão, o
avental impecável e o gorro sobre os cabelos brancos.
— Mikael! Que prazer em tê-lo aqui! — o homem estende a mão e
aperta com força, me dá palmadas nas costas em sinal de camaradagem, seus
olhos recaem sobre Lia. — Mio Dio! Che bella donna abbiamo qui![21]
— Muito prazer, me chamo Lia, — ela responde em italiano,
conquistando de vez o homem.
— Que prenda rapaz, espero que desta vez… Oooohh! — O
italiano ergue as mãos e faz um dos seus discursos sobre família, fala sobre
os negócios e pergunta sobre os meus casos nos tribunais.
Sinto-me constrangido quando Mário, busca uma pasta de recortes
com entrevistas e mostra a Lia todo cheio de si. Ele é o presidente, socio e
flanelinha do meu fã-clube
A conversa é muito animada, chama a atenção de alguns clientes
que até sorriem ao ver a agitação dele. O garçom, um dos seus filhos, coloca
sobre a mesa os cardápios e a carta de vinhos. Mário se despede e volta para a
cozinha.
Sinto o nervosismo voltar a espetar minha consciência, Lia me olha
fixamente e sinto refletido em seus olhos o mesmo temor.

LIA
— Ele é uma graça, — cochicho enquanto escolho o que comer. —
Espero que meu estômago me dê um tempo, — sussurro tentando manter a
tremedeira nas mãos sobre controle.
— Você disse estar bem, é mentira? — Mikael me assusta ao
perguntar, em vez de olhar para o cardápio, seus olhos estão fixos em mim.
— Estou bem, mas passei o dia quase de jejum.
— Se quiser algo bem leve e que não esteja no cardápio, podemos
ver se Mário faz.
— Não! Quero comer uma massa à carbonara, por favor.
Mikael solta uma gargalhada que chama a atenção de outros
clientes, principalmente das mulheres, mordo o meu lábio para não soltar
fagulhas. Não escondo o meu olhar de admiração ao reparar no homem a
minha frente. Os cabelos estão alinhados, a barba grossa bem desenhada e
aparada, o terno preto de grife feito sob medida veste o corpo com perfeição.
A camisa branca com colarinho aberto dá a ele um ar despojado e muito sexy.
— Está admirando a paisagem?
— Dá melhor forma possível.
Enquanto escolhemos os nossos pratos, observamos um ao outro
trocando olhares. Desde que amanheceu me mantive em alerta, o fato de não
ter pregado os olhos durante a noite só contribuiu para a minha inquietação e
mal-estar, mas pior do que isto foi ver como Anjinho acordou.
Pela manhã temos uma rotina, mesmo aos finais de semana, mas
hoje foi diferente como temia, ele não quis tocar piano, ver o seu filme
preferido e nem mesmo tomar o café da manhã, só depois de muita conversa
consegui fazê-lo comer algo. Nina sugeriu que deixássemos sua música
predileta rolando no play e pela primeira vez, meu filho foi até aparelho e
desconectou o celular da base.
Surpresa com a sua atitude senti ser o momento de falarmos sobre
o que acontecera na escolinha, mesmo correndo o risco de trazer lembranças
que pudessem causar até mesmo uma crise.
Com um novo caderno de desenhos em mãos, sentei-me com ele
em meu colo olhando para o mar da nossa sacada. Durante um tempo ele
ficou calado me ouvindo fazer perguntas e colocar as minhas suposições do
que acontecera para fora, mas ao notar o novo caderno que coloquei ao nosso
lado, a dor de perder o antigo falou mais alto.
Apesar das características autistas onde a criança pode se isolar do
restante do mundo, se trancando dentro de si mesma, em alguns casos
recusando até mesmo o conforto físico, Anjinho se jogou em meus braços,
desconsolado, mantive o controle sobre minhas próprias emoções e o
consolei como pude.
O melhor a fazer será trocá-lo de colégio, não prevejo nada de
bom se encontrar-me com esta mulher novamente…
— Lia? — a voz de Mikael me sobressalta.
— Oi?
— O garçom, — ele pausa — ele quer saber se pode anotar o seu
pedido.
Estranho a jeito como se refere ao rapaz, mas assim que vejo a
forma como o jovem me olha, o entendo. Seguro um riso, o garçom aproveita
a minha atenção para explicar novamente sobre o menu.
O rapaz se afasta dando-nos privacidade, também depois do olhar
que recebeu do Promotor, quem em sã consciência ficaria por perto? Levo a
taça com água gelada aos lábios e sorvo um gole.
Mikael dá início a uma conversa tranquila que nem de longe é
como me sinto, espero que tenha um momento certo, com time perfeito para
falarmos sobre o nosso filho.
Fazer uma escolha que pode mudar a nossa vida drasticamente não
é fácil, mas eu preciso perder o medo de que ele surte e tudo dê errado,
existem coisas que são inevitáveis, o que devemos fazer é assumir as
consequências.
— Não tome tanta água, assim não vai aproveitar o seu jantar. —
Ele comenta ao me ver tomar um pouco mais de água.
— Verdade, acredito que estou com crise de ansiedade, — solto e
espero que ele pergunte o porquê e então me faça falar.
— É compreensível, não tenho noção de como é deixar um filho
diariamente aos cuidados de estranhos, mas imagino que deva ser muito pior
ao saber que algo ruim aconteceu.
A sua compreensão em falar sobre Anjinho só me faz ter a certeza
de que escolhi o momento certo, se não for, só aceitarei as consequências. Ele
me pergunta mais detalhes do que houve, a conversa flui naturalmente entre
nós.
O garçom volta com o nosso pedido, ao servir o vinho em minha
taça levanto a mão para recusar, mas desisto e deixo que preencha a minha
taça. Mikael me olha com curiosidade e espera o rapaz se afastar para me
fazer várias perguntas capciosas.
Armo as minhas mãos contra os lábios e ouvidos rindo da sua
curiosidade exacerbada, o que até me faz pensar nas loucuras que Nina ficou
insinuando durante parte do dia.
— Por favor, não me diz que está é a sua nova forma de abordagem
para me perguntar se estou grávida? — Evidencio o lugar com um giro dos
dedos.
Ele deixa de sorrir e fica sério. — Eu disse que não faria isto.
— Ok! Me sinto muito mais tranquila e feliz por não tornar este
jantar maravilhoso em algo desagradável, — pisco um olho em sua direção e
experimento a massa, não resistindo a um gemido de prazer ao ter a mistura
de sabores explodindo em meu paladar.
Ele sorri e balança a sua cabeça positivamente saboreando seu
espaguete.
— Rum… Apesar de que, fizemos sexo três vezes sem camisinha.
— Ele comenta com tanta naturalidade que quase deixo o garfo cair no prato.
— Três vezes, tem certeza disto? — pergunto mordendo os lábios
para não rir alto.
— Sim, as outras não foram sessões de sexos, mas um
acontecimento inexplicável!
— Ah, Deus! — engasgo com a forma safada com que ressaltam as
palavras, olho a nossa volta para ter certeza de que ninguém está nos
ouvindo. — O Promotor está ficando requintado com a idade, se fosse há um
tempo, só bateria na minha porta de madrugada e perguntaria.
— Você não mora sozinha, não seria tão proveitoso uma visita de
madrugada.
— Que indecente! — exclamo.
Mikael faz piadas com o que aconteceu no passado, mas ele sabe o
quanto isto machucou a nós dois.
— Por falar nisto, a festinha sem camisinha vai acabar. —
Sussurro.
— Sério? Poxa que sacanagem, — ele arrasta a voz se curva sobre
a mesa e me olha com intensidade —, estava adorando trepar no pelo.
— Mikael! — exclamo soltando os talheres erguendo o guardanapo
de linho —, não diz isso assim, pelo amor de Deus!
— O que têm, — ele dá de ombros com ar sacana — o pelo é meu
e bem aparado do jeito que você gosta, já a sua, tsc… — ele estala a língua
—, é lisinha, macia e suculenta, do jeito que eu gosto!
— Meu Deus! — sinto minhas bochechas corarem. — Eu preciso
de um ar-condicionado.
— Posso refrescá-la no banheiro, ainda quero aquela rapidinha
contra uma parede.
— Nem tente, você já teve inúmeras destas. — Aviso com tom
sério
— Ok!
Ele concorda, mas desconfio da sua atitude, ainda mais por fazer
dias que não nos vemos.
Controle-se Lia, mantenha o foco, você tem uma missão
importante para hoje.
Minha mente viaja no ensaio que fiz durante o dia, na forma que
vou abordar o assunto e como falar sobre o passado, sem suscitar as velhas
feridas e tentar não causar novas. Dizer a verdade é libertador, mas para nós,
pode ser o fim de algo que está começando a tomar forma.
— Liana, sem álcool, — ele coloca a sua mão sob a minha e só
então percebo que estou segurando a taça de vinho —, se ainda está passando
mal, não vou terminar a noite limpando chão, de novo.
— É um vinho caro e muito bom. — Rebato não resistindo a fazer
uma careta.
— Pois beba água, faz bem para a pele e os rins.
— Ridículo! — Troco de taças e tomo um gole de água gelada. —
Como foi a noite passada?
— Você não quer saber… — ele bufa se afastando.
— Conte-me.
Peço já que durante a nossa conversa falou apenas do Show e por
alto que nossos amigos resolveram beber todas.
— Vai estragar o seu jantar.
— Hum! Ficaram tão ruins assim?
— Uma verdadeira lástima. Se no futuro eu disser que vou chamá-
los para sairmos, me lembra deste episódio?
— Conte comigo. Quem limpou a sujeira?
— Adivinha? Acredito que desde a época que July chutou Edu,
eles não bebiam daquele jeito.
— Então o Promotor foi generoso deixando que ficassem em sua
casa?
— Generosidade é carma. — Ele suspira. — Se tivesse um
cachorro, colocaria os três na casinha dele.
Não resisto e acabo soltando uma gargalhada atraindo mais
atenção, e sinceramente que se dane. Está é a primeira vez que estamos em
um encontro íntimo a dois, um jantar especial e estou passando meu tempo
entre tensão e medo, quero mais do que isto como memórias para este dia.
Saboreio outro bocado do meu prato, não resisto e deixo outro
gemido de prazer extravasar, Mikael sorri me provocando.
— Está tão bom assim?
— Divino!
Terminamos o jantar, o garçom trouxe o menu de sobremesas, mas
desta vez sequer olhou em minha direção. Seguimos falando sobre
amenidades.
Estou realmente me sentindo ansiosa, por isto peço a Mikael um
momento para ir ao toalete, refresco-me rapidamente e aproveito para ouvir o
clipes de voz que Nina me mandou e enviar outro áudio.
Graças a Deus!
Anjinho parece estar se divertindo, segundo ela Mikaella realmente
conseguiu fazer com que ele comer melhor, conversaram sobre a escolinha e
o meu filho reagiu bem melhor, o que me tranquiliza.

>> Nina: Fique tranquila, estamos bem, aproveite a noite, só volte


quando resolver tudo com ele ��
>> Lia: tenho medo do que possa acontecer, mas estou tentando
aproveitar esse momento, você sabe que pode ser a última vez…
Nina ouve e responde de imediato.
>> Nina: não pense nisto, sabemos que ele vai surtar, mas você é
a mulher que ele afirma ser dele, e como disse, parece que o Promotor está
interessado em se dar bem com Anjinho.
>> Lia: é o que sinto…

Encerramos a conversa, para que ela não perdesse Mikaella e


Anjinho de vista e eu volte a para mesa.

— Espero que esteja tão bom quanto o jantar. — Mikael aponta a


mousse de manga e sinto minha boca salivar.
— Nem parece que acabei de jantar um enorme prato de massa, —
comento aspirando o aroma do doce, — que delícia!
— Está tudo bem com o menino? — ele pergunta me
surpreendendo.
— Sim, como sabe que…
— Estranho seria se não ligasse para obter notícias deles.
— Está tudo bem… — falo rapidamente sobre o dia no parque,
pelo que Nina me passou e sinto Mika se tranquilizar.
Pode ser impressão minha, desejo ou talvez até uma imaginação,
mas posso jurar ouvi-lo suspirar aliviado.
— Mikael, sobre o que queria falar comigo? — pergunto.
— Quer namorar comigo? — sua pergunta é tão tranquila que me
faz erguer a cabeça lentamente em sua direção.
— O que disse?
— Tomei algumas decisões, mas antes, quero uma resposta sua.
— Hum… Você já sabe a minha resposta, Promotor.
— Quer um namorado para andar de mãos dadas, sentar-se no sofá
da sala e fazer todas aquelas coisas melosas, ser fiel e companheiro?
— Um pouco mais…
— Que comemore todas as datas e lhe dê orgasmos múltiplos?
— Mikael!
— Que seja bom para o seu filho. — Ele cruza os braços e sua
expressão é tão séria que me estremece. — Se estes são os quesitos, tenho
ótimas notícias para você…
— Mikael, — ergo minha mão tentando falar, mas ele não permite,
sinto o meu estômago embrulhar e o tremor nas mãos voltam me fazendo
escondê-las por debaixo da mesa.
Nem mesmo dias atrás quando me declarei para ele, tomada por um
impulso louco, me senti tão nervosa e tensa ao ver sua expressão. Essa sem
dúvida é a deixa que esperei toda a noite, mas também pode ser o prego no
caixão se ele disser que ainda tem medo e não deseja ser pai, porque irá
contra o que acabou de falar.
Deus, estou me iludindo? Ele está pronto mesmo, não me deixe
errar no meu julgamento, tudo que tenho está em jogo.
— Eu não acredito em amor…
— É uma pena! — exclamo levando um choque com suas palavras,
ergo minha mão e me preparo para me erguer e sair deste restaurante antes
que termine de falar.
— Liana…
— Nem termine se o que tem a dizer for me machucar, por favor.
Não sou frágil e indefesa, mas hoje não quero…
— Me deixe terminar! — ele não altera a voz, mas a autoridade
empenhada em sua sentença me cala, não por medo, mas por acreditar que
tenha algo realmente que valha a pena ouvir. — Não acredito nesse amor que
apregoam por aí, que nasce hoje e morre amanhã. Não creio que amar uma
pessoa seja um sentimento tão simples. Amor para mim é amar as
imperfeições do outro, ter uma constância em perdoar e reiniciar algo, que
não se pode explicar. Eu já disse essas palavras para você há alguns anos e
mesmo assim foi embora.
— Você poderia ter deixado tudo para trás e ido comigo.
— Concordo, eu fiz minhas escolhas, baseado em amor. Escolhi
minha família, Sarah. Eu sabia que se a deixasse naquela altura ela morreria.
— Não o recrimino por escolher ficar com a sua mãe, foi injusto
colocarem opções de escolha para nós. Escolhi o meu pai em troca de limpar
o nome dele.
— Sei disto, me abandonou em troca de que o meu pai retirasse a
queixa contra o seu.
— E você me abandou horas após pôr um anel em meu dedo, para
atender a um pedido da sua mãe.
— Ela estava nos protegendo.
— Sério?
— Sim, em breve vou poder provar como e quando ela fez isto.
— Tudo bem, me desculpa se não posso acreditar neste momento
que isto tenha acontecido, esquece! — passo a mão pelos cabelos sentindo-
me ao ponto da ruptura. — Combinamos que não iriamos tocar em velhas
feridas, lembra? Acredito que não será bom para ambos se tivermos de
reviver o passado. Sempre teremos motivos para defender nossas atitudes,
sem reconhecermos que erramos.
— Pois reconheço que errei, e peço perdão por ter lhe causado
tanta dor.
Respiro fundo e assopro o ar entre os lábios, para bloquear as
lágrimas. Definitivamente essa não é a conversa que permeava a minha
mente.
— Mikael, o que me pediu não vai ao encontro do que sente, então,
prefiro que encerremos essa noite, antes que…
— Amo você!
Ele me surpreende novamente e desta vez, não posso impedir das
lágrimas escaparem por meu rosto.
— Amo de uma forma inesperada, como algo surreal. Como um
descrente vendo aquilo que é impensado se tornar real. Quero tudo Liana!
Todos os momentos perdidos de volta. Tudo que foi tirado de nós, mas não
retomando de onde paramos, somos outras pessoas, com outros ideais, a
única coisa que ainda reside em nós e é tão antigo quanto o tempo em que
vivemos, é esse amor.
— Mikael, — tento falar, mas mal consigo articular as palavras.
Ele se ergue sem se importar com quem está à nossa volta, se
coloca ao meu lado e agacha ficando da mesma altura que estou sentada.
— Quando digo que não acredito nesse tipo de amor que nasce
hoje e morre amanhã, é porque o que sinto não morreu, nem mesmo com
todo o meu esforço para minar, com todas as loucuras e merdas que fiz, para
apagá-la da minha mente e do meu coração, eu não pude Liana Joaquina dos
Anjos. Esse é o tipo de amor que acredito, o que vai além do tempo, das
circunstâncias. — ele sorri, ergue a sua mão e limpa as lágrimas que
continuam caindo por meu rosto. — Eu Mikael Nikolaevich amo você, quer
namorar comigo?
— Amo você! — Repito.
— Eu amo, a mulher que se tornou. Amo ter o seu corpo junto ao
meu, o seu sorriso, a forma como conduz a sua vida mesmo que me deixe
louco certas coisas, como trabalha e principalmente amo a forma como é
mãe!
— Oh, Deus!
— Por isto, e por tantos outros motivos, quer namorar comigo?
— Sim! — respondo sem esperar que repita, me jogo em seus
braços e o beijo com paixão.
Somos ovacionados por palmas e então me dou conta do
espetáculo, sinto o meu rosto corar e me escondo na curva do seu pescoço.
Ouvimos alguns clientes incentivando-o a me pedir em casamento de uma
vez, mas espero que não faça, pois, seria emoção demais e se ele fez a sua
parte, está na hora de fazer a minha.

MIKAEL
Eu a amo… Era o destino, não pude mais fugir dos sentimentos
que um dia neguei. A reencontrei e ela está me devolvendo a vida que um dia
perdi.
As ondas batendo ao longe, o ar salino, o vento gelado, tudo à
nossa volta cria sensações e aguça os sentidos. Deixamos o restaurante sob
uma chuva de felicitações, Mário queria abrir um champanhe e comemorar,
mas o dissuadi da ideia.
Lia ficou visivelmente emocionada, e não posso negar que me sinto
da mesma forma. Meu desejo era levá-la para minha casa que estava tão
próxima e fazer amor a noite toda para sedimentar minhas palavras com
ações, mas o intuito era dizer a ela o quanto a amo e dar voz a minha
resolução.
Sinto um frio na espinha, o tal medo da rejeição e de receber um
não em resposta voltou a pairar sobre mim desde que deixamos o carro na
avenida e passamos a caminhar à beira-mar. Lia retirou as sandálias, ergueu a
saia do vestido para não molhar e passou a brincar com as marolas que as
ondas fazem indo e vindo em direção ao mar.
Deixei o terno no carro, com chaves e celular, dobrei as mangas da
camisa e retirei meus sapatos para caminhar de mãos dadas com ela.
— Nosso primeiro jantar fora…
— Nossa primeira caminhada de mãos dada…
— Mika…
— Lia…
Falamos ao mesmo tempo e acabamos rindo de nervoso.
— Pode falar, — passo a vez e ela recusa —, estou me sentindo um
adolescente, cacete!
Lia gargalha, sinto a sua mão trêmula na minha, paro e a trago para
o abrigo dos meus braços.
— Por que está nervosa?
— Quero falar com você sobre coisas sérias, — ela respira fundo e
solta lentamente —, sobre o meu filho.
— O meu desejo é o mesmo e agora que oficialmente é a minha
namorada, espero que concorde com o que vou pedir.
— Então fale… — ela sussurra e me sinto mal por estar assim. —
Quero conhecê-lo, na verdade, quero marcar um encontro com ele, estive
estudando em alguns sites para pais solteiros e achei um que tem umas regras
interessantes de “como ser o namorado da mamãe”.
Ela se afasta um pouco, mas ainda envolta por meus braços, a maré
varre nossos pés e a areia que escorre faz cocegas nas solas, Lia me olha e
não consegue esconder sua expressão antes de começar a rir completamente
nervosa.
— Você o quê?
— Estou fazendo um cursinho intensivo para conquistar o coração
do moleque, não ria, estou empenhado.
— Wou! O Promotor é um fofo!
Agora é a minha vez de afastar-me, mas ela me puxa pelo
colarinho se coloca sobre os pés e me beija.
Aceito os seus lábios sobre os meus com fervor, minha língua
devora a sua e minhas mãos deslizam sobre as curvas pegando-a de jeito,
tocando sobre a ereção que está latejando nas calças.
— Quando quer conhecer o meu filho? — sua voz traduz a emoção
que sente.
— No aniversário das gêmeas.
— Daqui a oito dias?
— Exatamente. Será perfeito, ele vai estar relaxado com o
ambiente, teremos nossos amigos que parecem estar empolgados com a nossa
relação e reaproximação.
— A festa? — ela parece um pouco reticente, morde os lábios e se
afasta saindo do aconchego dos meus braços. — Talvez seja um pouco
estressante para ele, não sei.
— Eu também não gosto de festas e sabe disto melhor que
ninguém, mas é um lugar neutro, com muitas pessoas, não quero que ele me
veja como uma ameaça para roubar a sua mamãe, mas como um amigo, e a
ideia veio do desenho que ele fez para mim.
— O desenho?
— Sim! Música, alegria, dança, festa, os pinguins me fizeram
pensar nisto e um filme que vi recentemente.
— Ele ama isto, — Lia toma fôlego, suspira fundo ao fitar meus
olhos —, tem certeza disto, não vai me ligar no sábado e desmarcar? Não vai
fugir, porque assim que eu o preparar para a festa, Anjinho vai ser consumido
por ansiedade e eu vou precisar ter certeza disto. Preciso de segurança!
Ergo minha mão e faço uma pose solene relembrando a cena do
restaurante. — Eu, Mikael Nikolaevich, juro que estarei lá, por ele, — pauso
a beijo brevemente sobre os lábios, — por vocês!
CAPÍTULO 40

INAPTA
Me conte Liana…

LIA

T
enho a sensação de que os meus pés não estão propriamente sobre o chão,
mesmo sentindo a areia da praia deslizando por baixo das solas, fazendo
cócegas, meu corpo inteiro estremece de segundo a segundo com pequenos
choques.
Já não sinto o meu estômago se agitar, pois, o meu coração
sobrepujou todo mal-estar acelerando como um louco.
— Liana, o que me diz?
— A festa…
— Se não me responder o que quero, serei obrigado a persuadi-la
Doutora.
— O quê? — pergunto e mal tenho tempo de refrear suas mãos
descaradas.
Sei que planejei falar sobre o nosso filho, mas definitivamente
Mikael me pegou de surpresa com sua declaração e agora, com a confissão
do seu empenho para que possa se adequar a conhecer o filho, se cercando de
todos os cuidados.
Como farei isto meu Deus, em uma festa? Não só ele mais
qualquer um que colocar os olhos sobre Anjinho vai saber quem é o pai.
Ele está todo sorridente e pronto para receber a minha resposta
afirmativa.
Mika me enlaça pela cintura e projeta seu corpo em minha direção,
a boca de lábios carnudos abatem sobre a minha com voracidade, o beijo de
antes poderia ser considerado como inocente diante da língua tentadora
fazendo movimentos sugestivos sobre a minha.
Ele segura a comissura dos meus lábios entre os dentes, morde
lentamente até me ouvir gemer pela fina dor, depois solta e desliza sua língua
sobre o inchaço acalmando a pele.
No afã de devolver na mesma medida, ergo-me ficando na ponta
dos pés, meus dedos seguram firme contra sua nuca, roço minha cintura
contra seu pau, rebolando escandalosamente.
Mika solta um dos lados da minha cintura e a sua mão viaja até a
lateral do meu seio, estremeço esperando aquele beliscão gostoso contra o
mamilo rígido, mas antes que eu possa me desmanchar em seus braços para
ter um preludio de orgasmo, ele se afasta.
— Caralho! Prometi a mim mesmo que me controlaria, mas só de
pensar em ter você assim, aqui e agora para uma persuasão…
— Nem se atreva, estamos em público e diante da minha casa.
Por instinto ergo os meus olhos e ele faz o mesmo, finco meu olhar
sobre a varanda da sala que tem as luzes acesa, não prestei atenção até então,
a melodia que ouvimos está vindo do meu apartamento.
— Ele está inspirado! — Mikael comenta.
Prefiro não responder sobre isto, pois é estranho a essa hora que o
som esteja tão alto.
— Mika, suponho que terei de ir para casa… — comento me
sentindo perturbada com a sensação aflitiva, talvez uma intuição de mãe.
— Tudo bem!
Ele segura a minha mão e começamos a caminhar em direção ao
calçadão.
O silêncio pelo pequeno trajeto é constrangedor para mim, pois
estou cogitando a melhor forma de falar com ele sobre Anjinho e aceitar o
seu pedido, mas tentar fazer isto em minha casa, um lugar realmente neutro
para que ambos se conheçam, já que não faço ideia de qual será a reação
deles. Contudo, algo estala em minha mente me fazendo estacar no lugar.
— Merda! — exclamo soltando a mão de Mika para coçar minha
nuca.
— O que foi? — ele pergunta olhando-me como se eu fosse uma
louca.
Você é louca, Liana!
Só mesmo alguém desequilibrada acreditaria nas ameaças de
Juliana, ou não? Talvez alguém com muito juízo, saberia que ela estava
falando a sério.
— Mikael, escuta com atenção, aceito a sua proposta, vamos nos
reunir na festa da July, mas antes de estar com todo mundo, preferiria que
conhecesse Anjinho em particular, pode ser? Não sei qual será a reação dos
dois, não quero que nenhum dos dois se sinta desconfortável.
— Não vou me sentir assim, já disse, sou um ótimo tio, até comprei
um presente para ele.
Balanço a cabeça e retorno a caminhada, ele segura a minha mão
firme e juntos atravessamos o asfalto até parar bem abaixo da minha sacada.
— Que bom, mas tem algo sobre Anjinho que precisa saber antes
de qualquer coisa. O motivo pelo qual nunca estive em encontros, festas, ou
levei o meu filho para que pudessem conhecê-lo é que… — pauso, tomo a
coragem para falar o que preciso, — é que…

Um grito agudo interrompe a noite.


Barulho de vidro se partindo.
A voz de Nina e logo outra sucessão aterrorizante de novos gritos
infantis, me fazem correr como louca em direção à portaria do prédio.
Não penso em explicar nada a Mikael, e nem mesmo me preocupo
se ele está me seguindo ou não, passo diante do elevador e corro para as
escadas, abandonando as sandálias que estão em minhas mãos.
Subo os três lances de escadas, não percebo nada a minha frente,
sei que esbarro em alguém saindo do apartamento no segundo andar, ouço
uma troca de palavras e não dou atenção, os passos atrás de mim aumentam,
mas continuo ignorando.
A porta do meu apartamento deveria estar trancada, mas ao
contrário, está escancarada. Meu coração está acelerado, não tenho força para
chamar por Nina, sigo em direção ao som estridente dos gritos e me
estremeço com o que vejo.
Nina está se escorando na parede dentro de uma poça de sangue
que se forma sob os seus pés, enquanto Anjinho se agita de um lado a outro
em uma crise violenta, se debatendo em seus braços.
— Nina!
— Lia graças a Deus, me ajuda. — A mulata tem arranhões pelo
braço e uma mordida forte sobre o ombro que está com pontos sangrentos.
— O que houve?
Pergunto entrando no banheiro, ela grita para que eu pare, então
percebo que o box está estilhaçado, pôr sorte os vidros estão mais para o lado
de dentro do chuveiro.
— Segure-o, — ela joga uma toalha no chão, salto para cima e
pego Anjinho —, vou pegar sua medicação.
— Por favor meu Deus…
— Lia! — A voz de Mikael reverbera pela casa.
Anjinho se agita ainda mais e tenta bater com a cabeça contra a
parede, protejo-o com minhas mãos, Nina me olha vertendo lágrimas, os
passos pesados de Mikael se aproximam e sei que ao ver o filho assim ele não
vai aguentar.
— Deus do céu, amor, por favor fique calmo, — sussurro, Anjinho
se joga contra a parede com mais forma, me arranha e belisca meus braços.
Nina toma uma atitude sem esperar por meu aval. — Vou pegar o
remédio dele, — ela sai e por instinto jogo o meu corpo contra a porta do
banheiro a fechando bem a tempo.
— Lia abre! — Ele bate a mão na porta.
Anjinho grita, o seu corpinho estremece e para evitar que
convulsione, deito ele em meu colo segurando sua cabecinha de forma mais
elevada. Ele morde as bochechas por dentro e cospe sangue com o choque de
dor.
— Por favor… — suplico aos céus.
Meu filho volta a gritar, é tão aterrorizante que me estremeço com
o som de dor e tormento.
— Liana… — a voz de Mikael está tão perto que outro choque me
percorre, sua mão bate contra porta, ele tenta mover a maçaneta sem sucesso
— abre a porta, porque ele está gritando, que sangue é esse?
— Mikael, espera já falo com você, por favor, só…
Anjinho vira o seu rosto e com a minha distração crava seus dentes
no meu antebraço.
Não consigo segurar o grito de surpresa e de dor, mordo os lábios,
olhando a minha volta, procurando por algo que o distraia, ou puxe seu foco.
— Filho por favor, me escute, solte o braço da mamãe… —
sussurro e com muita dificuldade consigo desvencilhar da sua mordia, o
sangue mina na ferida, mas isto é o menor dos meus problemas.
— Liana, abre… — Mikael volta a esmurrar a porta com mais
força e espero estar muito enganada, mas o tom que ele usa, me deixa ainda
mais angustiada.
Anjinho chora, e a cada nova batida e grito do pai, se agita ainda
mais, em momentos de crise o máximo de barulho que ele suporta é a música
que ama, mas nem isto parece acalmá-lo em certas ocasiões.
Ele se contorce e bate a cabeça contra meu peito, nada parece
consolá-lo. Mikael esmurra a porta e grita meu nome com raiva.
— Deus! Eu não posso fazer isso! — choro sentido o meu corpo
estremecer.
— Abre a maldita porta!
O som que vem de fora é diferente e está bem próximo, olho por
sobre o ombro e posso jurar que o martelar constante sobre a madeira é feito
na mesma altura em que se encontra minha cabeça apoiada contra à porta.
— Mika…
— MAH… MAH… MAH… — Anjinho grita ainda mais e o seu
choro sentido vem junto, — FADINHA… FADINHA… FADINHA…
Não faço ideia do que esteja causando essa crise, além dos fatores
já existentes, procuro a minha volta novamente e avisto o celular de Nina
bem abaixo do móvel da pia, abraço ao corpinho frágil dele, me arrasto até lá
com dificuldade, e consigo resgatar o aparelho.
— Liana abre! — As abatidas continuam, a voz rouca estremece.
— Mikael, pare, por favor meu amor, não posso lidar com os dois
assim… — as lágrimas descem por meu rosto.
— Abre… — ele bate com mais força na porta e tenho certeza de
que não é os punhos que está usando. — De novo não, abre a porta…
— Meu amor, eu vou abrir, juro por Deus! Mas, precisa ouvir a
minha voz e se controlar, por favor… — sussurro —, não posso lidar com os
dois ao mesmo tempo, me perdoa, mas não posso.
Ele não responde, posso ouvir a respiração agitada de ambos, pai e
filho se entregando a uma crise violenta.
Deus, por favor, ajude-me!
Quero gritar por Nina, os meus olhos recaem nas manchas de
sangue e só de imaginar o que houve me sinto culpada por não estar aqui.
— Droga!
Consigo conectar o celular e buscar a música preferida do meu
filho.
O áudio começa a rolar, um solado antigo de violão e voz, os
acordes preenchem o banheiro ecoando nas paredes e voltando em nossa
direção. Mikael se cala, Anjinho gradualmente para de se agitar, mas as
lágrimas continuam a escorrer por seu rostinho.
— Fique tranquilo meu amor, — sussurro, para ambos — vai
passar, shiii… shiii…
Anjinho chora novamente e a sensação que tenho é de que ele vai
voltar aos gritos. Mikael reduz as batidas contra porta, mas ainda continua
um batucar com sua cabeça contra a madeira.

O som reconfortante nos acalma, suplico aos céus que isto seja o
suficiente e parece que o mesmo céu está de portas abertas sobre nós.
A voz rouca do lado de fora do banheiro, me embargar com ao
cantar junto a canção, Anjinho ergue a sua cabeça gradualmente sobre seu
corpinho até deitar-se contra meu ombro, ele toca a madeira, fecha os
olhinhos e começa a balançar a si mesmo em um vai e vem constante.
A música toca uma, duas, três vezes, em algum momento Mikael
parou de cantar, e o bater contra a madeira cessou.
— Anjinho? — chamo a criança, mas seu corpinho mole contra o
meu me diz que dormiu e dou graças a Deus.
Percebo que ele está com as roupas molhadas de suor, tento me
erguer, mas as minhas pernas estão dormentes.
Um toque suave na porta chama a minha atenção.
— Abra, por favor… — Nina pede em voz baixa.
Trago ar com força em meus pulmões e me preparo para o que não
queria.
Não foi assim que desejei que pai e filho se conhecessem, não era
com uma experiência tão traumática, mas nem tudo posso controlar.
Me preparo para um confronto aterrador, com muito custo me ergo
ainda sentindo as agulhadas nas pernas, destravo à porta e com cuidado a
abro de olhos fechados, esperando o momento de vê-lo face a face.
Contudo, quem está diante de nós, é Nina. Ela se aproxima e não
espera que saia do banheiro, me abraça forte lamentando o ocorrido.
— Está tudo bem, fique calma Nina. — Tento tranquilizá-la, mas
as suas palavras atropelam as minhas.
— Me desculpa, por favor, vou te ajudar a sair daqui.
Caminho com ela para fora, ela claudica sobre o pé machucado, a
seguro e faço se encostar contra a parede.
— Onde ele está? — pergunto olhando para o final do corredor em
direção a sala.
— Foi embora.
— O quê?
— Ele foi embora, assim que teve certeza de que Anjinho parou de
chorar.
— Meu Deus! Ele não pode dirigir, não naquele estado.
— Um dos seguranças o acompanhou até à porta, acredito que deva
ter levado ele.
Suspiro me sentindo mil vezes pior do que se ele estivesse aqui.
— Vou colocar Anjinho na cama e cuidar de você. Precisa de um
médico, creio que vou levá-lo a emergência também. — Caminho em direção
ao quarto do meu filho. — Preciso chamar Gio…
— Já fiz isto! — Nina deixa o corpo escorregar pela parede e
senta-se ao chão. — Por isto, hesitou tanto em falar com ele, não é?
A pergunta me faz estacar no lugar, meus olhos ardem e para não
tropeçar, me escoro contra a parede oposta olhando em direção a minha
amiga. Ela funga, limpa os olhos e olha em direção à porta do banheiro, onde
uma pequena mancha de sangue se destaca na madeira pintada de branco.
— Oh Deus! Ele se machucou? — pergunto em um sussurro me
debulhando em lágrimas.
— Ele ficou batendo com a cabeça contra a madeira até se acalmar.
Por isto, não contou sobre o Anjinho, porque Mikael também é autista?
Assim como o filho? Por ter medo de não saber lidar?
— Existem muitos fatores, Nina, mas o que mais tenho medo é de
uma velha história voltar à tona. O pior temor dele era que tivesse um filho
como ele, com características idênticas em tudo.
— Meu Deus! Você sabia, quando buscou ajuda para o seu filho,
sabia o que era?
— Não, só confirmei uma suspeita.
— Já lidou com uma crise dele antes?
— Algumas… — sinto-me incomodada por dividir algo tão secreto,
mas não estou mais em posição de manter segredos, não quando tudo está
caminhando para uma catástrofe.
— Ele agora sabe sobre Anjinho, — ela dá de ombros —, eu vi a
forma como olhou para porta ao se levantar.
— Como disse a ele, não teria como lidar com os dois, — acaricio
as costas do meu filho, ele suspira e ressona em meus braços — entretanto,
me esforçarei e de agora em diante, vou cuidar dos dois.
— Acredito, estarei ao seu lado para o que for preciso.
— Obrigada!
Me sentindo miserável, sigo para o quarto, mas peço para que Nina
me conte em detalhes tudo que houve.

Outra noite insone. Após acomodar Anjinho na cama, mudar suas


roupas e banhá-lo com uma tolha umedecida em água morna, foi a vez de
cuidar de Nina.
Enquanto ajudei a trocar as roupas ela contou sobre o dia que teve
com Anjinho e Mikaella. Não notou nada estranho na conversa deles e nem
mesmo fez caso aos momentos de cochichos, sabendo que ambos são como
duas crianças brincando o tempo todo, contundo ao se despedirem, Mikaela
falou sobre fazer uma viagem e que por um tempo ficaria sem ver ao meu
filho.
Nina relatou que na hora ele não pareceu se importar com a notícia,
se despediram e no caminho de volta para casa, ele dormiu, mas acordou um
pouco sobressaltado com algum sonho. Entrou em casa me procurando e por
não me ver, quis ligar o som, mas não queria ouvir a sua música predileta,
queria barulho.
Moramos em um prédio e Anjinho sabe que a partir de certo
horário, não podemos mais ligar som alto, tocar instrumentos etc. Nina
seguiu com o habitual preparando para dar-lhe um banho, meu filho se
trancou no quarto, ela não viu nada de anormal, entrou no banheiro e deixou
as roupas sobre a bancada, mas ouviu o barulho da porta do quarto se
abrindo, logo depois o som estridente da música ecoando pela casa.
Nina correu para desligar o som e ouviu o barulho do elevador
abrindo as portas, se assustou, pois, não ouvimos esse som com nossa porta
fechada, suspeitando de algo foi para a sala e viu Anjinho tentando alcançar o
painel de controle, por sorte os novos elevadores, tem um painel mais alto
para evitar esse acontecimento e fica com a porta aberta por dez segundos
após o último passageiro entrar.
Minha amiga saiu correndo pela casa, e conseguiu alcançá-lo e foi
justamente ao tentar impedi-lo de sair para ir a algum lugar que a crise
começou, de acordo com seu relato, pelo tempo que isto aconteceu, coincidiu
de estar chegando na orla com Mika. Não penso no que teria acontecido se
ele tivesse visto o filho na rua, mas se Anjinho tivesse conseguido sair.
Não faço ideia de onde ele queria ir e nem Nina soube dizer, a
única coisa que ele tinha era dinheiro, outra coisa que nem imagino como
conseguiu.
Gio chegou pouco tempo após, um pouco transtornado, não apenas
pelo acidente, mas algo que não quis contar.
Não pude dar muita atenção a isto, ele ajudou a irmã descer até o
carro e levou-a para emergência. De acordo com a médica do meu filho se ele
não estava ferido e nem apresentando nenhum sintoma de concussão, não
bateu com a cabeça, poderíamos esperar, aproveitei e agendei uma consulta
extra com a psicóloga.

— Lia, tome seu café. — A voz de Nina me faz erguer a cabeça. —


Come algo, ainda está se sentindo mal?
— Não, estou bem. — Melhor não dizer que já vomitei tudo que
tinha no estômago de nervoso, ela parece bem abatida.
— Os pontos estão doendo? Deveria estar deitada.
— Prefiro ficar aqui, estou assombrada. Ainda não sei de onde veio
a ideia de Anjinho de sair sozinho, ele nunca fez nada similar.
— Me encontro do mesmo modo.
Olhamos em direção ao sofá maior, onde Anjinho está deitado
desde que amanheceu, a única coisa que aceitou foi um copo de leite, pegou
seu pinguim de pelúcia, se enrolou em um edredom, pediu para colocar o seu
filme do Happy Feet.
— Ele não quer conversar, não falou nada desde que levantou, —
comento — vou ligar para Mikaella, tenho a sensação de que ela saberia me
dizer o que houve. — Comento em voz baixa.
— Mandei mensagem para San, parece que ela está embarcando
agora pela manhã, a única coisa que ele me disse é que se conseguisse,
ligava, mas estava um pouco confuso por lá.
— Imagino.
— Você, ligou para ele? — Ela se refere a Mikael.
— Mil vezes, sem respostas, nem mensagens lidas.
— Está preocupada, por que não vai até lá?
— Não quero deixá-los sozinhos.
Assim que termino de falar a campainha toca.
— Não vamos ficar sozinhos. — Nina sorri e dá de ombros.
Me ergo da cadeira e abro à porta.
— Bom dia!
— Bom dia! — Cumprimento ao chefe de segurança e dou
permissão para que entre.
A voz entonada de Dionísio despertar a curiosidade de Anjinho, ele
chega até próximo à mesa onde estamos sentadas, olha para o amigo e volta
para o sofá.
— Nina me falou o que houve, vou passar o dia de plantão por
aqui, então fique à vontade para cuidar dos seus afazeres.
Penso em argumentar, mas como na noite anterior, não tenho de
forças e nem condição de fazê-lo. Estou preocupada com Mikael e a falta de
notícias me aterroriza.
Há última vez que vi uma de suas crises, foi no dia em que nos
separamos, aquele dia jamais sairá da minha mente, nem o som das batidas
constantes do seu corpo se chocando contra a parede…
— Aceito, obrigada.
Recuo até a sala, me agacho diante do meu filho e chamo a sua
atenção, os olhinhos azuis estão inchados por tanto chorar, as olheiras no
rostinho infantil, cortam o meu coração.
— Querido, não sei o que aconteceu com você, mas espero que me
conte tudo.
— Anjinho não quer falar.
— Sei, mas precisamos conversar.
— Anjinho quer ir.
— Aonde?
Ele não responde. Observo-o morder os lábios como se houvesse
um segredo que não pode me contar, acaricio os seus cabelos, ele se ergue e
me abraça com carinho. É a sua forma de pedir desculpas, assim imagino.
Na verdade, não há uma consciência real do que fez, mesmo
sabendo que algo estava errado, ele perde o controle das suas emoções em
uma crise.
— A mamãe precisa sair, aquele amigo que te falei, machucou e
preciso ver como ele está.
— Está doendo?
— Está, com certeza, bem mais do que ele vá falar, — sorrio — ele
parece com alguém que conheço.
Aperto o seu corpinho em meus braços e por um momento ficamos
assim.
— Vamos tomar café! — Não ofereço, mas digo como uma
sentença a qual ele não pode se recusar.
Anjinho se levanta e caminha de mãos dadas comigo até à mesa.
Dionísio é um homem de boa conversa e cativante não só com adultos, mas
pelo jeito com crianças também, rapidamente envolve o meu filho em uma
conversa animada e o distrai, o que é bom, assim ele come o suficiente para
me deixar tranquila.
Peço licença e vou ao meu quarto me arrumar. O celular sobre a
cômoda vibra, abro o aplicativo de mensagem e vejo que July está lembrando
ao grupo sobre o aniversário das meninas, uma forma sutil que minha amiga
arranjou de me pressionar.
Não respondo, ao invés disto me preparo depois de um banho
rápido, visto-me casualmente, me despeço do meu filho e meus amigos.

Ir até à casa de Mikael, pode ser algo que vá me arrepender, não sei
o que ele pode fazer, nem como me receberá, mas pior do que não o ver é a
sensação angustiante de que ele está sofrendo.
O tempo todo que dirigi a sua casa, pensei em vários discursos para
contar o que houve na noite passada, mas nada parece ser melhor que a
verdade, nua e crua.
O que me faz pensar que está história de querer ver o filho no
próximo domingo pode não ser mais o seu desejo.
— Inferno! — Exclamo batendo a mão contra o volante. — Dane-
se ele não pode retroceder em sua palavra, nem farei o mesmo.
Dou graças pelos vidros blindados e escuros, assim os seguranças
que fazem a ronda da casa não vão me achar louca por falar e reagir assim
sozinha.
Me aproximo do portão. — Bom dia, pode abrir, por favor?
O rapaz olha para o companheiro e o sorriso amarelo dele me
indica que algo está errado.
— Senhorita Lia, o doutor pediu para que proibisse a entrada de
qualquer um.
— Não vamos discutir, abre o portão, ou terá que atirar em mim,
porque vou pôr abaixo essa muralha com esse bebê aqui, — sorrio, engato a
marcha e dou uma ré até do outro lado da rua, — a decisão é sua! — grito
fechando o vidro e acelerando o motor a toda potência.
Os seguranças se agitam, Jairo vem correndo de dentro da casa
acenando com os braços, ele vai até os rapazes no portão que acionam a
abertura.
Passo por eles com um sorriso que nada tem a ver com minhas
mãos trêmulas e o coração acelerado.
A casa está silenciosa, caminho como tantas outras vezes em
direção ao estúdio e de lá atravesso as portas de vidro indo para a estufa,
onde vejo Mikael andando de um lado a outro regando às suas orquídeas.
Dou dois toques na porta de vidro, ele não se vira, mas caminha até
o registro e fecha a água.
— Você deveria ir embora. — Sua voz enrouquecida parece
cansada.
— Não. — Suspiro, caminho em sua direção parando a dois passos
das suas costas. — Vim aqui para pedir desculpas e ver como está.
— Não tem motivos para isto. Estou bem e quanto às suas
desculpas, esqueça. É a sua casa. O seu filho. Os seus problemas e suas
regras.
— Não é assim, Mikael, por favor, me deixa falar. — Peço
sentindo a direção perigosa desta conversa.
— Isto é algo que ficou claro entre nós, Liana. Eu que devo me
desculpar por invadir à sua casa.
— Não é assim! Por favor, me ouça, eu estou tentando ceder
espaço e quero fazer isto de uma forma saudável para nós três. — Seguro
pelo braço e faço mover o seu corpo em minha direção. — Eu preciso de
ajuda, Mikael, mas não sei como permitir que façam isso por mim.
— Eu gostaria de ajudar, mas eu não posso. — Sua voz de lamento
corta minha alma, e o que mais temia pode estar prestes a acontecer. —
Tentei, mas acabei revivendo cenas na minha mente que me deixaram
aterrorizado, se tivesse aberto aquela porta é possível que me aliviasse do
desespero, mas o provável é que o assustasse ainda mais.
Mikael passa a mão sobre a cabeça e estremece esbravejando, ele
se afasta de mim e se senta em um banco alto que puxa debaixo da bancada
de trabalho.
— Imagina o que aconteceria se machuco a criança com essa
merda que acontece comigo?
— Não faria, tenho certeza que não. Todavia, poderia machucar a
si mesmo.
— Eu não quero me sentir assim…
A voz quebrada, os ombros firmes esmorecendo com tremores dão
vasão a um mar de lamentos engalfinhados por lágrimas, tanto minhas quanto
dele. Isto é o que me desnorteia.
— Por favor, não fale isto e não se sinta assim.
Corro em sua direção e mesmo contra sua vontade o abraço tão
forte quanto posso. Mikael resiste por alguns segundos, mas acaba cedendo
ao conforto que dou a ele, retribuindo o abraço.
— Não posso evitar. Eles estão aqui! — Mikael grita e bate o
punho fechado contra a fronte.
— Não meu amor, por favor.
Ele tomba a sua cabeça contra a junção do meu pescoço, aperto os
seus ombros e passo a afagá-lo com batidas de mão contra suas costas,
querendo consolá-lo de toda a dor, mas como ele diz, é inevitável não viajar
pela porta do passado escancarada e relembrar momentos difíceis que passou,
sozinho, comigo ou reviver momentos marcantes e traumáticos, em que
presenciou as crises que a mãe tinha.
A voz dele não passa de um sussurro cansado com tanta emoção
que me esmorece, ele se afasta e olha em meus olhos, sinto-me pequenina e
incapaz de dar a ele o que precisa.
Inapta.
— Mikael…
— Lia…
Falamos juntos novamente, desta vez permito que ele fale primeiro.
— Sei que não sou o ideal para a criança, mas ainda quero
conhecê-lo, se me deixar vê-lo na festinha… — ele pausa —, quero muito
isto, mais do que nunca.
Suspiro aliviada, agradecendo aos céus em meu coração.
— Que bom, porque quero que o conheça… — minha voz falha,
minhas mãos tremem — mas, antes quero contar tudo sobre ele, começando
por ser autista, você já conhece algumas das suas características, dos seus
gostos e sua aptidão para música, mas quero que saiba sobre tudo.
Mikael engole com dificuldade e se afasta um pouco, ele me olha
nos olhos com profundidade, como se pudesse alcançar minha alma, sinto-me
enrodilhada por essa sensação dominante.
Suas mãos deslizam pela minha cintura subindo por meus braços,
passando levemente pelas mordidas que estão bem inchadas até alcançar meu
pescoço, ele alcança meu rosto com os polegares deslizando sobre minha pele
fazendo carinho, se aproxima até colocar sua testa contra a minha.
— Me conte Liana… — ele se afasta — me conte tudo que você tem
a falar sobre o seu filho, começando pelo nome dele.
CAPÍTULO 41

INVERDADES
“A verdade pode ter vários significados, desde ser o caso,
estar de acordo com os fatos ou a realidade”

MIKAEL

O
s gritos da criança parecem ter sido aprisionados dentro da minha cabeça,
nem mesmo tentando manter o foco em outra coisa, correr duas vezes a
distância costumeira pela orla da praia, dobrar os exercícios, contar minutos e
segundos vendo a hora passar até amanhecer, foi capaz de pará-los.
Eu vi as ligações e mensagens chegarem uma após a outra e não
pude responder, por medo, tristeza, raiva, vergonha e uma mistura de
sentimentos aterrorizantes que sobreveio a mim assim que ouvi o primeiro
grito de menino.
Senti como se a cada passo trôpego que dei atrás de Lia ao subir as
escadas fosse como uma porta do passado se abrindo diante de mim, a
solidão que sentia quando isto acontecia, os tremores e temores, a dor que
não se pode ser consolada.
Um dos seguranças estava na escada e ao me ver, tentou bloquear
minha passagem, o que só piorou a situação, para sorte dele Jairo apareceu e
o retirou do meu caminho.
Hesitei em entrar no apartamento, não pelas malditas regras, mas
sim por eles, por não estar me sentindo bem, por estar revivendo em uma
velocidade aterrorizantes cenas do passado, me vendo como criança e muitas
destas vezes sozinho, sem ninguém ao meu lado para me entender até…
Cacete! Mikael, chega de pensar nisto! — Esbravejo comigo
mesmo pronto a recorrer a outro meio para aliviar o meu tormento, contudo a
minha mente é uma senhora anarquista que não tem dó do corpo que a
carrega.
O que me impulsionou a invadir a casa, nem sei, só posso me
lembrar de estar esmurrando a porta, ouvindo o som dos berros desesperados
do menino e os rogos de Lia para que pudesse ir embora.
Foram tantas coisas acontecendo em simultâneo, a minha mente
girando, a dor de cabeça chegando com uma voracidade que me fez
escorregar pela madeira.
Ver sangue no chão e não saber de onde vinha me fez recordar
cenas pavorosas da infância, vasos de flores destruídos, instrumentos
quebrados e minha mãe em meio a uma poça horrenda vermelha tingindo o
chão, essa é minha única lembrança consciente da aproximação de uma
dessas crises que machucam o corpo, mente e a alma.
A urgência que senti ainda está aqui rondando minha mente,
reverberando por meu corpo com disparos de adrenalina, não sei por que,
mas ouvir uma música que fiz há tantos anos para nós no que parecia ser o
áudio original, mexeu comigo, com as minhas emoções mais soterradas. Só
me dei conta de estar cantando junto ao terminar a faixa e ela se reiniciar,
pela segunda ou terceira vez não fazia ideia.
No exato instante que tomei essa consciência percebi o silêncio que
vinha da criança e a dor aguda na cabeça, tentei me erguer e senti os pontos
de luzes estalando em minha visão, de acordo com Jairo que para meu
espanto, descobri ser um excelente socorrista, minha pressão arterial estava
elevada.
Foi meu segurança que esteve ali ao lado de Nina de prontidão
esperando que eu voltasse ao meu normal, se é que é isso aconteceu, para me
ajudar a sair do apartamento. A vergonha que senti após voltar aos meus
sentidos, foi tão imensa que não quis ser visto, contudo, não foi isto que me
fez ir embora…

Minhas mãos deslizam da sua cintura subindo por seus braços. Eu


vi a mordida no ombro, mas preferi não perguntar, não queria deixá-la
constrangida ou receber uma resposta negativa pela minha intromissão. Evito
encostar em um machucado recente, que não estava no antebraço na noite
anterior, alcanço seu pescoço, sinto a tensão dos músculos e com os dedos
faço uma massagem em sua nunca, deslizo os polegares por sua mandíbula
em círculos, acariciando e dando algum conforto.
Lia suspira, o seu corpo estremece e sinto o reflexo no meu, reclino
minha cabeça e encosto minha testa sobre a sua.
Um… dois… três… inspira… quatro… cinco… seis… expira…
Faço um jogo mental que me acalma, abro os meus olhos e vejo as
lágrimas escorrendo por sua face.
O meu filho é autista…
Deus!
A voz dela parece estar verberando dentro da minha mente como
um sino repicando as badaladas infinitas. A dor que sinto do corte na parte de
trás piora a situação, mas de longe se compara ao que estou sentindo dentro
de mim, a tudo que está me incomodando, socando contra as minhas
barreiras.
Eu ainda me sinto dentro daquele apartamento, cercado por tudo o
que vi, ouvi, senti, mas há algo mais que quero saber, confirmar, descobrir,
investigar, seja lá em qual categoria que se enquadre.
Quero uma verdade e não importa qual seja! A verdade pode ter
vários significados, desde ser o caso, estar de acordo com os fatos ou a
realidade.
— Me conte Liana… — me afasto e com esforço pontuo cada
sentença, mantendo o tom mais pacífico que consiga —, me conte tudo que
você tem a falar sobre o seu filho, começando pelo nome dele.
— Mikael…
— Lia, não me faça exigir, nem implorar. Concordou em deixar-
me vê-lo por um motivo, estou certo? Essa é a sua única oportunidade.
Ela retrocede em seus passos, cruza os braços abaixo do peito
evitando o meu olhar. Arremedo o seu gesto tragando o fôlego com o pulsar
da minha cabeça estalando a cada maldita respiração.
O cansaço parece estar ganhando contra a minha vontade hercúlea
de manter a sanidade no topo, me imagino dentro de um tribunal defendo um
caso, lutando contra uma enorme bancada jurista, tudo para manter no limiar
minhas emoções, razões e fúria que está despertando dentro de mim.
— O nome do meu filho, está tatuado em meu corpo. — A sua voz
não passa de um sussurro, mas as suas palavras são como um tiro de escopeta
em meio ao alvo.
Eu sou este alvo. Isto me faz deslizar nas conjecturas que me estão
apunhalando a mente continuamente.

— Mikael.
— Estou ouvindo você.
Me dou conta de que me perdi em pensamentos, mesmo com Lia
falando sobre a criança.
— O Asperger é uma forma branda do transtorno espectro autista.
No caso do Anjinho ele tem uma condição de introspecção, dificuldade
social, mas não da fala, mas do entrosamento. A crise que presenciou ontem,
não é algo habitual, tem tido maiores reincidências, desde que nos mudamos
para Vitória, mas a sua médica que faz o acompanhamento dele aqui, me
garantiu que essa adaptação vai passar à medida que outros fatores forem
agregados ao seu convívio.
Lia anda de um lado a outro enquanto discorre sobre o filho,
movendo as mãos de forma inquietamente. Foco em prestar atenção em tudo
que diz, e cada detalhe sobre a criança, seu desenvolvimento físico e
psíquico, a forma como ela lida com a situação geralmente.
Permaneço calado, ouvindo e revisando os fatos, imagens e dados
em minha mente montando um quebra-cabeças fascinante.
— Mikael? O nome dele é o mesmo que o meu, por quê? — A
interrompo não suportando mais a espera.
— Porque te amo, e amo ao meu filho. Era uma forma de expressar
isto.
— Quando ele nasceu, onde está o pai da criança para ajudar com
as crises, o quanto a criança sabe sobre o ele, como pode ser a minha música
que o fez serenar?
Jogo as perguntas uma por sobre a outra, Lia para de andar e se
senta em um banco de pedra no centro da estufa.
— A primeira vez que ouvi ele falar MAH ao telefone…
— Você o ouviu? — Lia se ergue.
— Pensei que fosse algo relacionado à brinquedos, os rapazes
disseram que poderia ser mamadeira, chupeta, nem sei ao certo, disseram
tantas coisas…
— Você falou com Anjinho ao telefone? — ela caminha em minha
direção com passos incertos.
— Nunca imaginária, — ergo minha cabeça e não evito que um
riso no canto dos lábios aflore assombrando ainda mais minha anja —, nunca
imaginária que MAH, seria a abreviação da minha assinatura no clipe de
música.
— Quando isto aconteceu? — Ela segura em meu antebraço.
— A criança que está descrevendo é inegavelmente como eu, —
bato em meu peito —, não seria estranho se apegar a um acróstico criado
como título da música, ele conseguiu ler o que escrevi.
Lia dá um passo atrás e suspira.
— Não foi o que planejou não é mesmo, não imaginou que isto
aconteceria desta forma…?
— Mikael…
Ergo-me da banqueta, dou um passo em direção a Lia, não quero
demonstrar tudo que está me consumindo
Lia fecha os olhos brevemente, percebo o tremor em seu corpo,
assim como no meu. Seguro o meu impulso para ampará-la, pois sei que se a
tocar, vou ceder a um lado da minha consciência que está gritando para
apagar da minha mente estas informações, tudo que está me consumindo e
fingir que isto nunca aconteceu.
Ela respira fundo abre os olhos e com firmeza fecha o espaço entre
nós mais uma vez.
— O meu filho, o Mikael, ele… — ela pausa.
O meu coração dispara e a porra do telefone começa a tocar com
insistência.
— Esquece o telefone e continua, antes que eu perca paciência.
— Não existem motivos para perder a paciência, não por isto,
escute tudo com atenção até o fim.
— Então comece a falar Liana… — digo entredentes —, aproveita
essa pequena oportunidade de ser honesta comigo, mesmo que eu concorde
com sua opinião, que sou a porra de um homem que não merece uma
explicação.
— Não fale assim Mikael, por favor! — ela se altera.
— Não seria uma mentira Liana Joaquina, apesar de ter vivido
cercado de inverdades, espero avidamente não ter mais uma vindo de você,
porque eu não sei o que é pior: saber ou não saber.
— A verdade tem três lados, o meu, o seu e o que realmente é de
fato. Não faça julgamentos antes de ouvir tudo, seja lá o que estiver
imaginando, pare aí mesmo. — Ela ergue a mão e sentencia, com sua
habitual força, a mesma que me excita e admiro.
Concordo com a cabeça, é só o que estou fazendo desde o
momento que ela começou a falar, escutando, dando a ela tempo para falar.
O aparelho celular silencia, mas não demora meio minuto e volta a
tocar.
— Inferno!
Explodo pronto a arremessar o celular do outro lado da estufa, mas
vejo o nome na tela e não posso ignorar a chamada.
— Droga, agora não!
— O que foi? — Lia segura meu pulso e puxa minha mão em sua
direção. — Agente Caleb, o que está acontecendo?
— Nada. Continue a falar… — Jairo bate na porta, o homem tão
parecido comigo ergue o seu próprio aparelho, constrangido acena —, parece
que terá mais um dia afinal, Liana.
— Do que está falando? — ela me olha com uma expressão
confusa, seguro o seu braço e a levo com delicadeza até à porta. — Jairo
leve-a para casa em segurança e redobre o número de agentes em volta do
prédio.
— Mikael!?
— Você precisa ir, — seguro em seu rosto e olho dentro dos seus
olhos —, essa conversa não terminou.
Beijo os seus lábios e me afasto deixando-a sem entender nada.
Dou uma ordem para Jairo levá-la. Lia reluta um pouco, mas cede ao que
peço e se deixa levar até o portão. Cambaleio contra a parede de vidro, me
encosto, sentindo uma pressão irritante sobre o peito e a cabeça, as minhas
vistas escurecem.
— Doutor?
— Kevin… — sinto minha cabeça latejar e o ar parece se tornar
rarefeito oprimindo meu peito. — O que Caleb disse?
— Acharam os malditos, estão indo atrás deles.
— Graças a Deus! Prepare os homens, vamos nos unir a eles.
— Senhor é perigoso e não está se sentindo bem.
Não consigo evitar uma gargalhada, ergo o meu corpo e os meus
olhos recaem sobre a bancada onde estive o tempo todo impedindo Lia de ver
o envelope, um pequeno maço de dinheiro, um endereço rabiscado e as fotos
que achei no compartimento interno do elevador na noite anterior ao sair do
seu apartamento.
— Meu caro, você não tem ideia do que realmente é perigoso
agora.
CAPÍTULO 42

IMPIEDADE
“Uma virtude simulada é uma impiedade duplicada: há malícia une-se a
falsidade.”

LIA

A
inda tenho sobre os meus lábios a sensação fugaz do seu último beijo. Olho
para o relógio na parede e as horas parecem brincar de esconde-esconde
comigo, quando penso que mais dez minutos se passaram vejo que ainda
estão no mesmo lugar.
Passo minhas mãos sobre os cabelos irritadamente, lavo o meu
rosto pela enésima vez e me olho no espelho sobre o gabinete da pia em meu
escritório.
Após ser gentilmente escoltada até minha casa, perdi
completamente o rumo de tudo que queria fazer, passei o restante do dia
deitada ao lado de Anjinho fazendo maratona de filmes e desenhos, alheia há
tudo.
A conversa que tive com Mikael, me pareceu surreal e
improdutiva, em um momento estava lá para saber como ele estava e no
outro, ele estava me colocando sobre interrogatório.
Não tenho dúvidas de que algo está se passando por sua mente,
algo como a certeza de que o meu filho é, na verdade, o nosso filho.
Me surpreendi ao ouvir a forma que falou sobre a criança, sobre ter
falado com ele e mais perplexa ainda por não saber. Quando isto aconteceu?
Desde quando Mikael está desconfiado de que tem um filho?
— Por Deus!
Sinto minhas vistas turvarem, escoro no balcão da pia e balanço
minha cabeça, o enjoo passou o que só me faz agradecer, mas essa fraqueza
não é normal. — Estresse Lia, puro e completo. — Comento em voz alta.
Deixo o banheiro no canto da sala, caminho até minha mesa e me
jogo sobre a cadeira, ainda não tive o prazer de celebrar e nem mesmo
agradecer com profusão a Mikael pela reforma que fez. Depois da nossa briga
soube através de Pedro tudo o que aconteceu, me senti tão mal por tê-lo
deixado naquele dia nesta condição, mas se não tivéssemos feito isto, nunca
estaríamos tão próximos e tão…
— A ponto de separar-nos, — lamento deitando minha cabeça
sobre os antebraços. — O que farei?
Graças Deus, Anjinho está bem. Acordou melhor e não se importou
em ir para escolinha, na verdade, parecia até feliz. O que me deixou mais
preocupada. Se ele tivesse se recusado a ir seria o seu habitual.
Quanto ao pai dele, depois da nossa conversa interrompida na
manhã de ontem, não obtive nenhuma notícia. Ele não atende o telefone, não
leu nenhuma das minhas mensagens e nem mesmo os rapazes sabem do seu
paradeiro.
Pensei em pedir a Dionísio que verificasse com os seus seguranças,
mas depois desisti, não quero dar motivos para que fiquem especulando sobre
Mikael e nossa relação.
Lágrimas saltam aos meus olhos e tenho a sensação de que estou
vivendo em meio a um tsunami prestes a varrer tudo a minha volta.

Pela tarde recebi uma ligação de Nina que estaria em uma clínica
próxima ao escritório para poder fazer um curativo no pé ferido, o irmão iria
acompanhá-la, mas depois nos reuniríamos para tomar um café e buscar
Anjinho na escolinha.
Por volta das duas horas, o meu cliente chegou e estava em meio a
reunião quando o celular sobre a mesa começou a tocar, geralmente não
atendo nenhuma ligação enquanto estou acompanhada, mas algo estava me
deixando histérica.
Antes que pudesse atender apropriadamente a chamada, já ouvi o
choro e os gritos de desespero do meu filho, uma urgência gritou dentro de
mim e sem pensar duas vezes me ergui da cadeira a deixando bater contra o
vidro que reveste a parede da sala.
Não me despedi do meu cliente, apenas o informei que algo
aconteceu ao meu filho. Me lembro de esbarrar em Pedro e Álvaro no meio
do corredor e pedir para remarcar com o cliente, adiar os meus compromissos
e chamar Nina e Dionísio.
Se é que, foi isto mesmo que disse!?
Ao escolher uma escola particular bem próxima ao escritório foi à
possibilidade de correr literalmente a pé até ela, de carro seria no mínimo
vinte e cinco minutos por conta da localização, mas correndo cinco minutos
são o suficiente.
Uma verdadeira loucura, uma vez que poderia expor Anjinho a
qualquer situação, ao pai dele, por exemplo. No entanto, visto que já estou
alcançando o portão em menos de cinco minutos e correndo com saltos de
dez centímetros, agradeço a Deus, por tê-lo tão próximo.

O portão de entrada está destrancado o que me deu a oportunidade


de entrar rapidamente e me deparar com uma cena desesperadora para
qualquer mãe.
Não é só pelo fato do meu filho ser autista, mas por ser uma
criança prestes a apanhar literalmente de outro adulto.
O sangue ferveu em minhas veias e o grito que saiu pela minha
garganta queimou-me por dentro, antes que a mão da agressora tocasse o meu
filho me joguei na frente e senti o impacto da palma espalmada nas minhas
costas.
A força aplicada por ela foi tão grande que senti arder a pele e meu
corpo ser projetado para frente, se não fosse por me forçar a manter o
equilíbrio teria me derrubado, imagina o que teria feito com o meu filho?
Tudo em minha frente tornou-se vermelho a fúria agarrou-me com
tanta intensidade que precisei travar meu maxilar para não cair na porrada de
imediato, visando o olhar aterrorizado no rosto de Anjinho.
Aaaaah!
O grito de desespero de Anjinho me congelou por dentro, o arfar de
outras pessoas foi notado assim como das crianças que estão chorando e
presenciando essa baixaria, porém, o único som e gestos que perfuraram a
minha angústia, e me fazem arrepiar todo corpo, são os do meu filho.
Com as mãozinhas tampando os ouvidos e o pé direito batendo
constantemente na lateral do esquerdo, ele balança seu corpinho no mesmo
lugar em um vai e vem, tudo diante de mim se torna vermelho.
Olho em seu rostinho e bem abaixo do olho direito noto a marca
vermelha, e não parece ter sido feito por uma mão infantil.
— Por favor, não diz que isto aconteceu! — exclamo entredentes.
Por mais que tenha corrido, um sentimento de derrota começou a
borbulhar em mim, pois, garantidamente ele sofreu…
Abraço a meu filho com tanta força que fico com medo de
machucá-lo, o ato reflexo dele de se retrair é violento, mas com palavras
doces sussurradas ao seu ouvido, digo que a mamãe está aqui para defendê-
lo. Anjinho balbucia algo e chora sentido.
Eu não vou suportar vê-lo entrar em uma crise pelo terceiro dia
quase que consecutivo. Por alguns segundos de reflexos precisos e ao
constatar que ele está protegido as minhas costas, apesar de muito abalado,
me viro para encarar o demônio disfarçado de ser humano que teve a
coragem de espancar uma criança indefesa, sem pensar nas consequências,
seguro-a pelo cabelo e a arrasto até estar cara a cara comigo.
— O que diabos pensa que está fazendo? — esbravejo alheia ao
meu redor, sacudo sua cabeça, a mulher não se assusta, mas usa de bravata
para se libertar do meu agarre.
— O que estou fazendo? — ela segura o meu pulso e puxa com
força a cabeça, mas não solto a mecha presa entre os meus dedos. — Quem é
você para interferir? Diz ser a mãe, mas duvido que tenha pulso firme. Esse
doente mental mordeu o meu filho, estou apenas ensinando o que os pais
desse monstro não devem ensinar em casa.
As palavras dela foram mais que agressivas em apenas um abrir e
fechar de lábios, ela relegou o meu pequeno a tudo aquilo que mais odeio
ouvir falarem.
O meu sangue ferve em minhas veias me fazendo dar um passo em
sua direção, porém as mãozinhas de Anjinho agarrando-se a minha perna
direita me faz soltá-la e segurá-lo para protegê-lo.
As roupas caras, sapatos, bolsa e acessórios foram registrados em
um único olhar, a cabeleireira loira toda produzida por um salão compõe o
figurino, a escola é para filhos de pessoas com alto poder aquisitivo e o
desprazer de já ter cruzado com essa víbora embrulha meu estômago.
— Retirem as crianças do pátio. — Ordeno a professora que não se
move com medo da maldita socialite dos infernos.
— Não se atreva a tocar em meu bebê! — ela encara a mulher com
olhos ferozes.
— É melhor tirá-lo daqui, pois se foi mulher o suficiente para bater
em meu filho, terá que resolver comigo também!? — Me seguro de verdade
para não assustar as crianças, mas sinto as mãos estremecerem de nervoso.
— Pelo tom e postura, de fato é a mãe deste monstrinho! Duvidei
naquele dia, já que em nada se parecem, mas…
— Modere a sua língua. — Aviso. — Não tem ideia com o filho de
quem está mexendo. Crianças são sagradas, estou por um fio, senhora.
— Ou o quê, vai partir para violência? Deve ser assim que resolve
as coisas com… — com olhar indiscreto para minha mão esquerda ela solta
um riso sarcástico antes de terminar sua sentença — pelo que vejo não é
casada. Talvez, isto explique muito dessa má educação que o seu filho tem.
Suas amigas até então caladas tentam cacarejar à nossa volta, mas
se calam diante do meu olhar.
— O que inferno aconteceu aqui? Por que novamente essa mulher
foi chamada e estou sendo comunicada após a chegada dela? — Altero o tom,
mas ainda mantenho um volume aceitável.
— Ele mordeu o meu menino, veja isto! — Alterada ela puxa com
força o braço da criança ao seu lado, apenas confirmando que não é uma boa
mãe.
— Para tudo há uma explicação, porém nada justifica agredir uma
criança.
— Explicação? — ela ri com escárnio. — Essa escola já foi a
melhor. Hoje pelo visto qualquer um pode se tornar aluno aqui. Já tínhamos
comentado sobre isto professora, porque não tomaram uma atitude. Na sexta-
feira deixei claro que não queria mais esse doente na sala do meu filho.
— Sua filha da puta, modere suas palavras, porque estou me
segurando em respeito às crianças. — Volto meu olhar para a professora. —
Se você não os tirar daqui agora, vou mover um processo contra a sua
negligência e vou garantir que receba a pior pena.
— Senhora Barcelos… — pela primeira vez nestes minutos aqui
ouço a voz da professora ser mais firme, porém pelo visto é só uma tentativa
fútil.
O olhar desferido pela agressora a fez recuar. O que só me dá mais
detalhes sobre a personalidade perturbada desta mulher.
— A senhora não pode sair por aí agredindo a quem quiser, se foi
uma briga de coleguinhas de sala, a educadora responsável agirá e chamará
aos pais, o que não foi feito na sexta-feira, — ressalto —, e nem hoje o que
vou averiguar.
A professora parece finalmente estar compreendendo a situação e
com ajuda de outras professoras, faz com que as crianças voltem para suas
classes, deixando apenas os envolvidos na questão e as amigas da mulher no
pátio.
Nina, aparece e tira o meu filho daqui, — clamo por dentro.
Como que por milagre vejo ela apontar do outro lado do pátio,
mancando apoiada no ombro de Giovane e Dionísio bem atrás.
— Averiguar? Vou destruir a sua carreira de merda e fazer com
que internem essa criança, ele precisa de tratamento. — A mulher grita e
novamente sacode o braço do próprio filho fazendo-o retomar a choradeira.
— Olha bem o braço dessa criança! Hoje teríamos um ensaio fotográfico e
agora está arruinado.
A violência das suas palavras e atitudes assustam as crianças e
Anjinho volta a se estressar e debater contra minhas pernas.
— A senhora está assombrando as crianças, fale baixo por favor!
— A professora volta e tenta acalmar a mulher.
Meu coração está aponto de sair pela boca, uma dor muito aguda
me corta o corpo de cima a baixo, dou um passo adiante e nem percebo que já
estou avançando contra a filha da puta.
— O que está acontecendo aqui? Lá de fora já dá para ouvir as
vozes alteradas. Isto é uma escola e estão diante de duas crianças. — Nina
ressalta, ela segura como pode o meu braço erguido.
— Estou aguentando o suficiente Nina… — desconheço minha voz
alterada.
— Quem é você agora? Ah! Me lembrei, é a outra mãe do
monstrinho. — A mulher debocha.
Agora foi a minha vez de segurar Nina. Minha amiga, mesmo
mancando tentou passar por mim, as crianças gritaram e a confusão explodiu,
porque essa desgraçada não conhece limites.
— O que você disse? Você chamou o nosso menino de monstro,
quer morrer criatura? Onde está a diretora desta escola?
— Ela já está vindo… — A infeliz da professora abre a boca mais
uma vez.
— Quando chegar já vai ser tarde. — Nina replica e com olhar
cego de fúria me encara. — Chama a polícia.
Tudo que eu não queria, era tornar isto público, mas é isto ou
deixar essa mulher magoar o meu filho.
— Agora! — exclamo sacando o celular do bolso.
— É só o que me faltava, passar por essa humilhação por essa
gente sem classe, pois quero ver enfrentarem um Promotor de justiça.

Só pode ser alguma piada de mal gosto, a mulher não satisfeita em


agredir ao meu filho ainda me ameaça com um Promotor, será que essa anta,
sabe exatamente qual a função de um Promotor?
— Lia? — Nina segura meu filho em seus braços e o abraça. —
Cuidarei dele, faz o que tiver de fazer.
— Estou acionando uma equipe jurídica da A&A, e sem dúvida
faremos uma denúncia formal na polícia. — Gio ressalta sacando o telefone
do bolso.
— Por favor, senhor podemos resolver isto, pense nas crianças é
um escândalo que irá marcá-los… — a professora interpõe-se.
— Que crianças? Só vejo o meu filho e esse monstro aqui, o meu
bebê já está traumatizado com a violência desse doente mental. — Ela se
aproxima e me mede de cima a baixo. — Você deveria colocá-lo em um
colégio especial ou então em um hospital para cuidarem dele já que é uma
ameaça, ele agrediu meu filho por um lápis de cor. Isto é um absurdo!
Ao ouvir estas palavras a calma e paciência que não tenho se
esvaem de vez, sinto os meus dentes rasgarem as comissuras da minha boca
antes de ameaçá-la sutilmente. — O seu bebê, rasgou o caderno de desenhos
dele da última vez…
— A senhora, deve ter algum parafuso solto se julga que o que fez
tem justificativa. — Dionísio de braços cruzados encara a mulher.
— É melhor calar a boca, afirmo que se continuar a ofender o meu
filho, vai com certeza descobrir o que é violência.
Olho para Dionísio e com meneio de cabeça peço que leve Anjinho
e Nina para o carro, porque vou reduzir essa mulher a pó triturado. Meu
amigo entende com perfeição, ele se abaixa e segura Anjinho em seus braços,
Nina se apoia em seu ombro e os três caminham em direção ao
estacionamento.
— Abre essa boca imunda e continua a falar merda sobre o meu
filho que vai ganhar uma plástica nova nessa cara.
— Experimenta, pois vou ter o prazer de jogar meus advogados
sobre você, esse monstrinho e está escola.
Ela afirma sacando da bolsa um celular. Se é um processo que ela
quer, no mínimo ela precisa de um bom motivo.

— Senhora Barcelos! — A voz grossa de Henriqueta a diretora do


colégio por fim aparece de algum lugar.
Olhamos à nossa volta e vejo a senhora de meia-idade e corpo
atarracado correndo em nossa direção vinda do estacionamento.
— Até que enfim Henriqueta, como você pode deixar esse…
— Senhora! — Ao erguer as mãos, a diretora a faz se calar.
Com um olhar ferino a maníaca se cala e nos encara. Já a diretora é
precisa, com pedidos de desculpas rápidos, indica a sala de recreação.
Tento controlar minhas emoções a todo custo, não é a primeira vez
que passo por uma experiência infeliz como está, e não será a última vez.
Infelizmente as pessoas tendem a maltratar aqueles que diferem de
si mesmas, para poderem se sentir melhores.
— Eu estava em uma reunião e fui informada rapidamente sobre o
que aconteceu, — ela pausa e olhando diretamente a mulher ao meu lado. —
Fui informada em detalhes do ocorrido na sexta-feira e hoje.
Henriqueta parece mais exasperada que o normal, suas pequenas
mãos flamulam, poderia dizer que tanto quanto as minhas. Ela nos faz
caminhar para uma sala adjunta ao pátio, sou relutante a princípio, pois sei
que não vou me segurar e ter uma conversa saudável, se a maldita continuar
com ofensas, estou no meu limite.
— Senhora Barcelos, como ousou retirar uma criança de dentro da
sala, e se a mãe dele não tivesse chegado a tempo o teria agredido ainda
mais? — A senhorita grita e soca a mesa. — Tem noção da gravidade disto,
senhora? Irei reportar essa atitude ao conselho tutelar, pois não irei permitir
outra reincidência dentro desta escola.
— Aquele… Aquela criança, mordeu meu filho.
— Porque o seu filho o agrediu primeiro! — A voz de Giovane se
sobrepõe a da mulher.
— Nada de fato justifica qualquer atitude de agressão, porém
sabemos que as crianças têm em seu sistema uma defesa contra aquilo que
julgam ser um “perigo” e o seu filho no passado também já agiu assim,
puxando o cabelo, mordendo e até mesmo batendo em outro colega de sala
com brinquedos. Está lembrada? — A professora parece ter tomado um chá
de coragem.
Meus olhos ardem com as lágrimas represadas, eu sabia que o meu
filho não agiria assim, apenas por querer atacar a outra criança, por mais que
haja debilidades em sua forma de socializar, Anjinho é uma criança dócil e
tímida o suficiente para não arrumar estes problemas.
Sinto um gosto ferruginoso na boca e percebo que estou mascando
as bochechas por dentro.
— Creio que a senhora está há tempos demais como diretora desta
instituição de ensino, isto está mimando o seu senso de julgamento, senhora
Henriqueta? — a loira maligna corta o que a diretora está dizendo e olha de
alto a baixo com desprezo
— Irá me ameaçar judicialmente ou pedir ao conselho da escola
para me substituir? O que pretende fazer? — a Diretora é sarcástica.
A mulher se ergue, segura a mão do filho com brutalidade.
— Não posso acreditar que esta escola vai abrigar certos tipos de
crianças que podem colocar em risco a vida e a segurança de outras crianças
normais.
Isto é a gota d'água!
— Cala a porra dessa boca mulher! Professora tire essa criança
daqui. — grito me erguendo.
— O-o que pensa estar fazendo? — pela primeira vez a maldita se
dá conta com quem está lidando.
— Eu ouvi demais, esperei demais, tentei me controlar ao máximo,
mas se abrir sua boca mais uma vez, eu terei a certeza de não deixar um dente
sequer nela. Que raios de monstro é você, que até mesmo o seu filho está
assustado?
A professora segura a criança e sai, Giovane faz as amigas da
maldita saírem sob protestos. Retiro o meu relógio deixando ao lado do
celular sobre a mesa.
Henriqueta permanece calada olhando para um ponto acima da
minha cabeça. Esperta, aquilo que os olhos não vêm, não são evidências, não
serve de testemunho.
— Com que direito ameaça a diretora da escola, e tenta impor a sua
vontade? Quer fazer um escândalo descente? Vamos fazer então, não tenho
medo da justiça, eu a amo. —Ergo as mãos
— Você não passa de uma delinquente. Advogada de porta de
cadeia, não tem noção de quem sou, quem são as minhas conexões.
Solto uma gargalhada seca, me aproximo dela ao ponto de impor a
minha altura sobre a sua.
— Deixe-me lhe contar uma história. Tenho uma amiga, com um
senso de justiça bem arreigado, uma vez ela me disse que uma toalha
molhada endireita qualquer um.
— É uma louca, do que está falando?
— Se eu mostrar, será bem melhor do que explicar com palavras.

Sem que ela espere, seguro em seu braço e a arrasto ouvindo os


seus gritos de protestos em direção ao pequeno banheiro infantil do outro
lado da sala. A mulher tropeça sobre os saltos caros e ao ver que está
encurralada no minúsculo lugar tenta se esconder em uma das cabines.
— Ah! Não querida, volte aqui, deixa-me mostrar como é ser a
mãe de um monstrinho. — Sibilo entredente, puxando a mulher pelo aplique.
— Me solta, sua louca!
Gargalho novamente só para aterrorizá-la, com um puxão retiro a
toalha de mãos do suporte, a jogo na pia e abro a torneira espero o tecido
ficar bem encharcado.
— Espero que a minha amiga tenha razão e você possa sentir com
profundidade, o quanto estou empenhada em demostrar como me sinto ao
ouvi-la, ofender o meu filho.
— Me solta, Henriqueta socorro! Chame a polícia!
— Não precisa, assim que terminar aqui, faço questão de notificar
o ocorrido.
A mulher luta para se soltar. Ela puxa com tanta força sua cabeça
que as mexas ficam presas em meus dedos ao se libertar.
— Ops! — exclamo com deboche. — Arrebentou e agora, quer que
eu cole?
Ergo minhas mãos e faço um coque frouxo com meus cabelos,
pego a toalha dentro pia, o som da água caindo no piso parece de uma cascata
explodindo em meio a um vale seco.
— Este som é reconfortante, acredito que estou começando a
entender a Naja, — comento em voz baixa, elevo os meus olhos e encaro a
desgraçada a minha frente, — isto é por chamar o meu filho de monstro.
Ela não esperava que realmente fosse soltar uma lambada contra as
pernas desnudas. A mulher deu pulo com a dor e gritou.
— Olha só! Não é que a Naja tinha razão, nem fica vermelho.
— Você é louca?
— De novo? Hum!? Louca, monstro, hospício? Espera… — pauso
e ergo minha mão, — você ameaçou usar um Promotor para indiciar ao meu
filho e a mim, — gargalho. — Realmente precisa conhecer o pai dele.
Deixo de lado a falação e desconto toda a minha raiva, uma
lambada nas pernas, na bunda, nas costas, braços e onde pegar; a desgraçada
se revira como uma minhoca no asfalto quente.
— Eu vou acabar com você!
—Ah, que isso. Por que faria algo assim? Dizem que a violência,
gera violência, não é verdade?
Ela tenta se erguer, mas não deixo.
— Você bateu primeiro, mas como sou uma pessoa de espírito
elevado, digamos que: eu estou fazendo um dia de academia e você uma
massagem tailandesa, aguenta o tranco vadia, estou só começando.
Sinto o meu corpo cansar, estamos molhadas de cima a baixo,
porém, me sinto aliviada, me aproximo dela, seguro em seus cabelos e a faço
olhar em meus olhos.
— Ufa, isto é cansativo! Me denúncia, chame a polícia e faça um
grandioso escândalo, eu quero isto! Nunca mais chegue perto do meu filho.
Nunca mais ouse tocar em um fio de cabelo dele, ou vou garantir que não
será com uma toalha molhada que responderei às suas agressões.
Solto a maldita, jogo a toalha na pia cheia de água, sem digitais,
sem marcas, sem provas.
Henriqueta está no mesmo lugar olhando para o alto, seguro o meu
celular, desbloqueio a tela para fazer uma chamada.
— Alô, eu me chamo Liana Joaquina dos Anjos e quero fazer uma
denúncia de abuso e maus tratos que o meu filho de 5 anos sofreu na escola,
por parte de um dos pais de outro aluno, — ouço a interlocução da PM que
me atendeu. — Perfeito! Estou com a agressora aqui e solícito uma viatura…
Recolho os meus pertences e me encaminho para a porta, mas paro
com a mão na maçaneta ao ouvir a voz tremula da diretora.
— Doutora Lia, espero que possa compreender que não temos
realmente participação nestes dois episódios, lamento muitíssimo o que
aconteceu a Mikael. Espero que possa nos perdoar.
— Garanta que isto, não aconteça a mais nenhuma das crianças
nesta instituição, senhora.
— Faremos isto, e… — ela hesita, — por favor ressalte ao
Promotor Nikolaevich que as providências que ele solicitou pela manhã, já
estão sendo tomadas.
— Como? — Olho por sobre o ombro, a mulher parece estar ao
ponto de uma síncope.
— O Promotor me ligou pela manhã e deixou bem claro a sua
posição sobre o que houve com o aluno Mikael dos Anjos na sexta-feira,
realmente sinto muito.
Não consigo esconder o tremor que intensifica em minhas mãos e
pernas, o enjoo retorna com força sacudindo-me por dentro.
Ele sabe…
CAPÍTULO 43

INALTERADO
“Meu único consolo é saber que quando olhei para os
seus olhos e o tive em meus braços pela primeira vez,
imediatamente o meu mundo se transformou…”

LIA

A
ntes mesmo de chegarmos à delegacia, os advogados da maldita já estavam
prontos esperando ao lado do marido que como suspeitei, é um dos clientes
figurões da A&A.
Giovane de imediato recusou falar com os colegas de profissão,
nem em sonhos farei um acordo com essa miserável, perco o réu primário,
mas não perco um dia mais sendo leniente com está mulher.
Prestei queixa contra a senhora Barcelos e não me surpreendi por
ver outras mães chegarem a tempo de fazerem suas próprias queixas. A louca
veio pouco depois para fazer sua própria queixa contra mim, com escândalo e
choro exacerbado, mas de acordo com o seu próprio marido, para ela seria
melhor ficar calada.
Não me importei com as suas ameaças, desde que nunca mais se
aproxime do meu filho. Ao retalhar sua agressão com outra, tenho
consciência do que se procede judicialmente, contudo há um adendo a cada
caso, no meu a legítima defesa — uma medida, ou moderação de atos para
impedir a injusta agressão, — poderia ser punível com um excedente,
contudo tomei cuidado para que isto não acontecesse.
Nunca foi minha intenção agir de modo arbitrário contra a justiça
que amo e prezo e se, de alguma forma tivesse feito algo que merecesse uma
punição exemplar, não teria fugido.
A pior parte foi expor o meu filho para fazer um exame de corpo
delito, essa lembrança monstruosa vai para o hall das coisas que “nunca”
imaginei ou quis vivenciar com ele.
— Nina, por favor leve-o para casa.
— Claro, não precisava nem pedir, não vejo a hora de chegarmos
em casa, graças a Deus, ele dormiu.
— Agradeço por isto e por tudo, cuide dele, não sei o que vai
acontecer daqui por diante, mas por favor, fica com ele.
— Para onde está indo?
Ela pergunta, mas olhando por cima do meu ombro em direção ao
esquadrão de advogados que estão fazendo uma barreira entre mim e o carro
da agressora.
— Sinceramente não faço ideia, mas espero poder ir para casa,
minha cabeça está prestes a explodir.
Me afasto do SUV, Dionísio fecha à porta e aperta com delicadeza
meu antebraço para me dá forças. Limpo os meus olhos mais uma vez e
aceito a garrafa de água que é colocada a minha frente, me despeço
novamente de Nina com acenos olhando fixamente para o vidro sendo
erguido escondendo do mundo o meu bem mais precioso.
— Às vezes me pergunto se tem alguém com uma caneta e um
corretivo nas mãos escrevendo minha história sabia? — pergunto em voz alta
bebericando a água gelada. — Somente isto, poderia explicar as idas e vindas
que a minha vida tem dado dentro dessa roda de fogo, não acha Ramon?
Olho de esguelha para um dos meus solícitos advogados, seus
olhos estão fixos em um ponto sobre minha cabeça, ignorando o que ele e os
outros sem querer acabaram de descobrir
— Você acredita que em algum lugar deste Universo, tem um autor
tentando recriar um caminho sem volta para mim?
— Acredito, que seja lá quem estiver em posse da caneta, deva
querer o melhor para você, o seu filho e… — ele pausa e pela primeira vez
desde o momento que o vi chegar na delegacia me olha de verdade nos olhos,
— não sei o que dizer e se for sincero comigo mesmo, não quero. Tenho a
minha própria experiência quanto a uma situação similar, — ele aponta para
o carro que começa a contornar o pátio em direção a cancela de segurança, —
só posso desejar que sejam felizes ao final de tudo isto.
— Vocês viram o meu filho?
— Não! Tomamos conhecimento do caso e do nome da criança e
os seus dados, somando a tudo que supomos e o que tem acontecido,
preferimos deixar o Santana à frente para lidar com ele no exame.
Não posso evitar deixar que um suspiro de alívio extravase em
meus lábios, após fazer o Boletim de Ocorrência, um dos guardas me pediu
para segui-lo até uma sala para aguardar a Senhora Barcelos ser ouvida.
Uma agente do conselho tutelar veio acompanhar a acareação com
Anjinho, por ainda estar muito alterada e evitar qualquer influência sobre a
criança, ela achou melhor que Nina e um dos advogados estivessem
presentes. O mais justo seria Giovane, por isto não me preocupei no
momento, contudo, após sair da sala e encontrar, Ramon, Carlos Eduardo e
Anderson na sala conversando com o Delegado Soares, meu mundo
precariamente sustentado sobre minhas pernas, desabou.
O medo de que Mikael estivesse ali foi tão grande que senti uma
vertigem e precisei ser amparada pelo policial que me acompanhava. Pelo
que entendi Gio havia ligado para o escritório pedindo que um dos advogados
viesse ao nosso encontro e trouxesse minha bolsa com os documentos, por
um acaso esse mesmo advogado achou prudente comunicar a Edu que
notificou a Anderson e pelo que percebo a Ramon.
— Você está bem? — Ele segura-me pelo antebraço.
— Estou bem, Ramon. Agradeço por sua ajuda.
— Disponha sempre que precisar. — Ramon retira o Iphone do
bolso. — Ele está ligando, o que falo?
— Não é a minha intenção me fazer de sonsa, porque não sou e
nem faz o meu gênero, se é sobre o Mikael que está falando, diga a verdade,
contudo peço que deixe apenas um fato de fora, por enquanto…
— Não vejo propósito algum, não vi o seu filho, portanto não tenho
a intenção de falar nada além do que concerne ao caso, entretanto se me
permite ressaltar como seu amigo, não arraste isto por mais tempo.
— Arrastar… — solto uma risada de escárnio —, não diria que
tenho arrastado algo, Ramon, mas compreendo sua preocupação e sei os
motivos pelo qual está falando. Tomei atitudes e fiz escolhas pautadas no que
vivi com e sem Mikael, antes dele ou até mesmo de mim, vem o meu filho.
— Não estou te julgando, não fiz isto com a minha esposa, e nem
seria capaz de fazer com qualquer pessoa, principalmente sem ter
experimentado o que passaram, mas sei que isto, tem de ser resolvido para o
bem dos três; e quando digo “isto” me refiro ao fato de que tem uma história
inacabada e um ser humano indefeso precisando de ambos os pais para
protegê-lo.
Ele olha novamente para tela do celular e franze a testa com a
mensagem recebida.
— É fácil julgarem o que fiz ou faço, mas quer me julgar, — ergo
os braços voltando-me em direção aos nossos amigos que estão perto o
suficiente para ouvirem a nossa conversa, — é simples, anda sobre os meus
sapatos uma légua e tenta chegar lá na frente de pé, como eu estou. Se acha
fácil ser posto para fora da sua casa, do seu país, de ver o homem que ama e a
sua família lhe dar às costas, e após dez anos ser trazida como
uma mercadoria de volta para prateleira, só para cair nessa loucura aqui, pode
ficar à vontade para viver a minha vida.
— Lia… — Giovane se aproxima.
— Dane-se o que pensam de mim ou acham sobre as minhas
atitudes, não devo nada a vocês! Quem foi o primeiro a dizer que: abominava
a ideia de ter um filho? Foi ele, se tive e não disse nada a ninguém, é pelo
simples fato de que não devo porra nenhuma a ninguém!
— Lia, nós não estamos julgando nada aqui e nem ninguém, o que
Ramon está dizendo… — Edu se aproxima e se coloca a minha frente.
— Entendi o que ele disse Edu. Há coisas que não se diz com
palavras, olhares falam muito mais alto.
— Está enganada Liana, não precisa ficar na defensiva, —
Anderson cruza os braços diante de mim, — estamos aqui para ajudá-la, o
fato de Ramon ter vindo por intermédio do Mikael, só prova que ele está
preocupado com vocês!
— Por falar nisto, como ele soube? — olho para os quatro
cavalheiros de terno à espera de uma resposta. — Como Mikael soube o que
aconteceu?
— Não faço ideia, recebi uma ligação muito alterada dele, pedindo
para que viesse e não fizesse perguntas, apenas cuidasse para que você e
Mikael ficassem bem. — Ele coça a nuca e me encara. — Confesso que não
entendi nada ao ouvir o nome da criança e nem a sua agitação, ele estava para
entrar em audiência, só por isto não veio pessoalmente e acredito que para
não ter um confronto como este aqui.
— Isto não importa, vou descobrir depois, mas suspeito que deva
haver seguranças que ele mesmo solicitou me rondando, só mesmo um idiota
não perceberia isto.
— Sabemos o quanto ama ao seu filho Lia e espero que tudo se
resolva, não o vi, confesso que queria, contudo, sou da mesma opinião do
nosso amigo, tem alguém que merece conhecê-lo primeiro.
Cambaleio novamente e a vertigem me incomoda. Inferno além da
água o que foi que comi desde o café da manhã? Nada.
— Lia?
Os quatro se aproximam e de alguma forma me amparam,
provavelmente, estou uma bagunça emocional, com a roupa meio molhada, a
maquiagem a prova d’água não resistiu ao sabonete que usei na delegacia e
devo ter um borrão preto abaixo dos olhos, me sinto com a aparência
destruída, mas por dentro está bem pior.
— Amar vai muito além dos sorrisos, beijos e abraços, está na
entrega abnegada. Está em cada amanhecer que ouço meu filho dizer: bom
dia, mamãe, — suspiro e as lágrimas escorrem por meu rosto, Ramon, coloca
o celular no bolso do seu terno e me abraça.
— Não deveria se preocupar com o que pensamos Lia e nem outras
pessoas. Isto só interessa a vocês dois. Três!
— Agora tenho certeza de que não vou me importar com o que
falarem de mim! — com a mão em riste espalmou ela sobre o peito e me
afasto. — Sou a mãe dele, posso te assegurar que sou guerreira o suficiente
para desbancar qualquer um e não me importo com que falem ao meu
respeito, só não toquem no meu filho.
— Isto com certeza ninguém em sã consciência faria, — Edu
comenta.
— Óbvio, quem se arriscaria a levar uma surra de toalha molhada?
— Anderson cochicha, mas alto o suficiente para que eles comecem a rir.
— Não tem graça! — exclamo me afastando.
— Pode não ter agora, mas assim que July souber disto…
— Carlos Eduardo, nem se atreva a contar a ela.
— Você aprendeu isso com a Miau, não foi? — Gio pergunta com
sobrecenho franzido.
— Se prepara Santana, um dia a sua gata arisca pode te pegar de
jeito. — Anderson zomba.
Me afasto deles.
— Agradeço por virem. Me deixem a par do que vai acontecer com
o processo, preciso ir para casa, quero ver o meu filho e comer algo.
— Eu a levo, — Gio se oferece e aceito, — não precisa ficar
preocupada, vai ficar tudo bem.
— Será?
Aceito o abraço reconfortante dos meus amigos, Ramon acena e se
afasta caminhando para longe erguendo o telefone, observo-o falar, gesticular
e coçar a nuca em sinal de frustração. Entro no carro de Gio, afivelo o cinto
de segurança, alcanço o celular no bolso da calça para saber se Nina e
Anjinho já estão chegando em casa.
Não é surpresa ter milhares de mensagens e ligações perdidas, das
minhas amigas, no grupo de aplicativo e individuais, mamãe, a diretora da
escola e do escritório, contudo a única mensagem que fito é a dele. O medo
de abri o clipe de voz é tão grande, que me causa mal-estar. Gio vendo minha
indecisão, salta do carro e fecha à porta se afastando, com dedos trêmulos
toco a tela e aciono o clipe de voz.
>> levando em consideração que não terminamos a nossa
conversa, espero que veja a minha intromissão como a de um namorado, um
amigo preocupado com você e Mikael. Provavelmente Staeler vai colocá-la a
par de que estou em uma audiência e não poderia sair no meio do recesso,
por isto não estou ao seu lado, — ele pausa e ouço vozes ao fundo e a
campainha indicando para que entrem na sala novamente, — não faço ideia
de como está se sentindo, mas se o que eu estou sentindo nesse momento for
um décimo disto, Deus que me ajude Liana… Nunca me senti tão inútil como
agora, não vou pedir para vê-lo, nem me meter neste momento com as suas
decisões, vou esperar. Vou lhe dar o tempo suficiente para podermos
terminar nosso assunto, contudo quero pedir um favor...
Outro sinal toca e ele não diz o que tem a pedir, mas algo dentro de
mim, sabe exatamente o que ele quer.

Ao chegarmos em casa, esperei encontrar outra cena como a de


sábado, mas graças aos céus o que vejo é Nina e Anjinho dormindo em seu
quarto tranquilamente.
Sem fazer barulhos deixei o quarto e segui para a cozinha, Nina
mesmo com pé ferido deixou um sanduíche preparado sobre o balcão, nem
mesmo retirei as roupas, ataquei o lanche e enquanto não me senti cheia ao
ponto de estourar, não parei de comer.
Cogitei enviar uma mensagem para Mikael, mas de acordo com o
bom senso, não devo cutucar a onça com a vara curta.
Retirei a roupa na lavanderia mesmo, me enrolei em uma toalha
limpa para tomar um banho, a caminho do meu quarto a campainha tocou e
para não acordar Anjinho corri até a porta, estranhando que não tenha sido
interfonado para avisar de que alguém pudesse estar subindo.
Através do olho mágico vejo uma mão acenando, me afasto e dou
um passo atrás só o que faltava um invasor.
— Abra a porta Pocahontas, — a voz de Angélica me faz dar um
salto.
— O que está fazendo aqui? — pergunto destravando à porta.
A loira está encostada contra o batente, ela me olha de cima a
baixo, faço o mesmo gesto, suas roupas pretas de couro parecem ter sido
confeccionadas sobre a pele. A calça justa realça as pernas torneadas e os
quadris, a camiseta preta por baixo da jaqueta é cavada o suficiente para
deixar o topo dos seios à mostra.
— Está gostando que vê? — ela pergunta retirando os óculos
escuros.
— Pensando, quando é que você tira essa roupa?
— Porque, está interessada em tirá-las? Sorry baby, você é gostosa,
mas não faz o meu tipo.
— Isto é uma piada?
— Não, porque não sou engraçada, — ela pausa e olha para o
relógio de pulso, — vista algo, temos de ir.
— Como assim?
— A briga a deixou surda? Vim buscá-la, a pedido da nossa
querida gordelicious.
— Que tal começar pelo princípio? Não tenho muita facilidade em
adivinhações.
— Pocahontas, não tenho uma explicação plausível, estou aqui
apenas para garantir a minha exclusão daquele grupo maldito que vivem me
adicionando.
— Grupo?
— Você leu alguma das mensagens que elas mandaram?
— Inferno!
— Concordo! — Angel suspira. — A minha irmã, July e Carla
estão lá embaixo, me disseram que rolou um problema com você na escolinha
do seu filho e estamos aqui para ajudá-la.
— Ajudar como? Tirando o fato, de que nem preciso saber como já
estão a par disto.
— Podemos cavar um buraco, você termina o serviço e vamos
garantir que nunca seja pega, sem provas, sem crime.
Angélica fala de forma tão séria que me faz dar um passo atrás, ela
pisca um olho e cai na gargalhada.
— Não seja ingênua Pocahontas, é claro que não preciso fazer nada
disto, já tem alguém trabalhando para ajudá-la, certo?
— Os advogados!
— Foi o que disse, — ela dá de ombros, —vista-se e vamos.
— Angel, eu agradeço, mas acho melhor recusar.
— Como o menino está? — ela deixa de lado a zombaria e enfado,
os seus olhos transmitem o quanto está preocupada.
— Está dormindo, não sei como reagira ao acordar, depois do que
aconteceu, supus que ele fosse ter uma crise violenta. Graças a Deus, Anjinho
ficou tranquilo!
— Sinto muito que tenham passado por isto!
— Obrigada, também sinto muito, — mais do que imagine.
O elevador se abre e nos surpreende, por estar enrolada em uma
toalha meu reflexo é me esconder atrás da porta aberta, mas nem tenho
tempo, July e as Luluzinhas saltam para fora do cubículo, prontas a me
levarem, seja lá para onde for.
A discussão não nos levou a lugar nenhum, a não ser acordar Nina.
Angélica usando da sua adorável simpatia impediu que as amigas entrassem
em meu apartamento, pelo que agradecei.
Tomei um banho rápido, vesti camiseta, jeans e um salto alto,
apanhei minha bolsa e implorei para Nina me ligar em uma hora, me dando
uma desculpa plausível para voltar para casa.

Preferi dirigir o meu próprio veículo, enquanto Aline e Carla


acompanharam July e Angel em com sua moto, não fiz perguntas e nem elas,
prometi segui-las e me surpreendi ao pararmos no estacionamento de um
hotel cinco estrelas no centro de VIX
— O que estamos fazendo aqui? — pergunto assim que me reúno a
July e as outras diante das portas do elevador.
— Estamos criando um universo próprio, onde podemos falar de
tudo com tranquilidade.
— Pelo amor de Deus, isto não é como uma intervenção? — dou
um passo atrás.
— Nunca! — July exclama com um sorrisinho compilatório. —
Vamos extravasar.
As portas do elevador se abrem e nós entramos, olhamos umas às
outras; Aline parece uma princesa com o seu vestido tomara que caia de saia
godê cor-de-rosa. July escolheu um vestido amarelo de saia plissada, jurava
que Edu tivesse queimado ele depois que apareceu no escritório vestindo
apenas isto. Carla é sempre sexy com suas blusas de seda e as calças
elegantes de linho, o colar de pérolas entre os dedos faz um som de atrito
enquanto brinca de frisar as esferas de um lado a outro.
O som da campainha indica que estamos na cobertura, ainda sem
ter o que falar as sigo para o quarto. A suíte é realmente um acontecimento, a
antessala é requintada, com designer moderno, amplas janelas e cortinas que
vão do teto ao chão, os estofados caros, quadros, um lustre gigante que me
lembra ao Copacabana Palace.
— Precisamos mesmo de todo esse desperdício de dinheiro? —
pergunto.
Sem uma resposta desvio o meu olhar do pendente para elas, as
quatro me encaram como se o que disse, fosse um sacrilégio. Dou de ombros,
afinal, nenhum centavo suado sairá do meu bolso para isto.
— Venham comigo, — July animada nos leva para a suíte.
— Oh, meu Deus! — Aline exclama parecendo uma criança em
manhã de Natal, só falta saltar.
— Ok! O que faremos aqui?
— Pocahontas, por mais que concorde com a sua rabugice, cala a
boca e aprecia o nosso rico esforço em promover a você, — Angélica ressalta
enquanto retira a sua jaqueta, — um momento de paz, para poder superar as
merdas que houve e que estão por vir.
— Misericórdia, Angélica!
O grito de Carla representa exatamente o que gostaria de fazer ao
ver as armas enormes que Angélica tem de cada lado do corpo.
— Jesus, Maria e José, tira isso e esconde. — July olha para o
outro lado. — Vou avisar na recepção que estamos prontas para o meu
pedido.
— Ótimo, estou ansiosa! — Aline retira os saltos e se joga na
cama, ela bate no colchão e me chama. — Vem sentar-se aqui.
— Obrigada, — me recuso e caminho para a poltrona, mas Carla
me impede e com a delicadeza de um rinoceronte me faz caminhar para a
cama.
Sem ter outra opção, retiro o salto e imito minhas amigas. July
conversa ao telefone, Angélica parece fazer uma varredura pelo quarto
segurando um aparelho que parece um celular com antenas. Outra coisa que
prefiro não perguntar, provavelmente está procurando escutas, não sei.
O silêncio incide no quarto e só é quebrado pelo toque da
campainha. Angélica faz sinal e vai atender à porta, com uma das armas atrás
das costas enganchada na calça. Ouvimos murmúrios, agradecimentos e ela
retorna empurrando um carinho lotado de garrafas de bebida e pratos de
petiscos.
— Oh Deus! — exclamo saltando da cama. — O que pretendem,
me colocar em coma alcoólico?
— Claro que não! — Aline responde indo em direção ao carrinho,
para pegar uma garrafa de champanhe — Essa é minha.
— Escolhi o que cada uma gosta e espero que não tenha errado. —
July se aproxima de um champanhe vermelho e suspira ao vê-lo.
Percebo Carla seguir adiante e abrir um vinho caro, Angélica
agarra uma garrafa de uísque com cara de nojo, mas coloca na mesinha de
centro.
Ainda há muitas garrafas no carrinho, mas o que me chama a
atenção é uma de Amarula e outra de Vodca Russa, que particularmente
gosto. Não sou de beber, na verdade, tirando Carla que teve um sério
problema com bebidas antes da gravidez de Pérola, nenhuma de nós tem
intimidade com álcool.
— Isto não vai prestar, — resmungo, mas aponho a garrafa de
Vodca.
— Onde estão os seguranças de vocês? — pergunto me lembrando
de ver dois carros atrás do meu.
— Todos espalhados pelo Hotel, estamos seguras. — July afirma
tirando o telefone do gancho.
— Podemos começar, — dou de ombros, me apoio sobre os
antebraços e espero que falem.
— Não estamos aqui para uma inquisição Lia, queremos realmente
te apoiar.
— Sei July, vocês são ótimas e imagino que esse cuidado todo em
me trazer para um lugar neutro é porque querem fazer perguntas, então falem.
— Sabemos sobre o Anjinho, e não é porque July ou alguém
contou, não somos burras, Lia.
— Não vou falar sobre o meu filho com ninguém!
Carla se senta ao meu lado retirando os sapatos de salto e
escorregando até a cabeceira da cama.
— Bastou a primeira recusa em nos mostrar a criança para a
semente da desconfiança nascer, eu tinha minhas dúvidas, mas após voltar
morar aqui, tive certeza. — A cozinheira afirma ignorando o que disse.
— De mim, ela nunca escondeu! — Aline ergue a mão e diz como
se estivesse competindo pelo prêmio de melhor amiga.
— Eu descobri… — Angélica pausa e nos olha dando de ombros
— porque ninguém pode esconder nada de mim, mas confesso que você foi
muito boa em manter segredo.
— Bem, — July senta-se ao nosso lado e se joga de costas na
cama, — eu já desconfiava, fiz minhas investigações e por acaso eu o vi, não
é Lia?
— Ok! Vocês sabem e daí?
— Sentimos muito pelo que houve na escola e muito por vocês
passarem por isto, o que não entendi até agora, foi o motivo.
— Ele é autista Carla. — Sentencio esperando a sua reação. — A
filha da puta bateu nele, o chamou de monstro e disse que deveria internar o
meu filho!
O grito sai sem nem mesmo perceber o quanto estou irritada, aperto
a garrafa em meus dedos e sinto ganas de destruir algo.
— Que vaca dos infernos!
— Maldição!
— Você fez o que com ela?
— Eu teria dado um tiro na cara dela, após arrancar-lhe os braços e
surrar ela com os ossos.
Meus olhos recaem em Angélica, todas nós olhamos. A loira
caminha descalça de volta à mesa de centro e pega a garrafa.
— Angélica, minha irmã, estou chocada! — Aline exclama.
— É melhor bebermos, gordelicious essa foi a sua melhor ideia
desde que a conheci.
— Exatamente! — retiro o lacre do gargalo e viro um gole na boca.
July e Aline estouram os champanhes, Carla seguiu o meu exemplo
e virou a garrafa de vinho com vontade na garganta. Ou será eu seguindo o
seu?
— Zeus! Fazia tempos que não bebia nada tão doce, — ela limpa a
boca com as costas da mão e seu sorriso é aterrorizante.
— Ratinha se contenha, esse olhar viciado não lhe cai bem. —
Angélica ri ao ver a reação da grega.
— Cala a boca! — ela me olha com ar sério. — Me diz, por que
não falou conosco da criança? Poderíamos ter ajudado a cuidar dele, por
acaso estava acreditando que rejeitaríamos o menino?
— Não! Sim! — Agito minhas mãos, me ergo e me coloco a andar
de um lado a outro. — Muitas coisas me impediram, entre elas, que contar
para todo mundo e nunca para o genitor, não seria nada inteligente.
— Isto é verdade, — Aline comenta, — mas, responde a minha
pergunta, o que fez com a mulher?
— Dei uma surra de toalha molhada nela, — pauso e tomo outro
gole, minha cabeça gira e não me importo.
Caminho até a janela esperando os comentários, como não ouço
nada, olho por sobre o ombro e vejo a troca de olhares entre July e Aline,
Carla parece estar em ponto de explodir, mas quem cai na gargalhada é a
Naja.
— Cacete! De onde tirou essa ideia brilhante? — Ela pergunta
como se não soubesse.
— De todas às vezes que ameaçou nos bater, sempre dizia “é uma
surra sem marcas” — dou de ombros, não pude evitar não pensar nisto.
— Ela apanhou pouco, por mim, poderia passar a cara dela, na
frigideira com azeite e ainda de tal modo, não ficaria satisfeita.
Carla se ergue cambaleia até o carrinho, segura outra garrafa e
volta para a cama colocando a garrafa nova entre as coxas.
— Carla, você já bebeu a garrafa inteira? — pergunto caminhando
em sua direção.
— Não, imagina essa é a primeira.
Ela responde com ar estranho olhamos para o carrinho e vemos a
garrafa vazia meio escondida na segunda prateleira.
— Esquece a Ratinha, Pocahontas, — Angélica se aproxima, mas
não se senta na cama, prefere se sentar no criado mudo com as pernas
encolhidas contra o peito, — o que vai fazer com o filhotinho?
— Filhotinho?
— Hum?
Suspiro e me sento na cama ao lado delas, não adianta mais
esconder um segredo que todos sabem, não delas pelo menos, por isso
resolvo contar tudo, ao menos o que posso desde o começo. A parte de me
descobrir grávida, os problemas emocionais que passei, descobrir sobre o
Autismo e todas as coisas que envolve os tratamentos de Anjinho.
Gradualmente elas começaram a entender meu posicionamento em
relação ao meu filho e apresentá-los, deixar que ele se envolva com eles seria
impor sua presença a Mikael, o que nunca esteve em minha mente. A reação
não foi das melhores, provavelmente o álcool soltando as línguas, como
dizem é onde a coragem nasce e morre.
O sabor da bebida poderia ser doce ou amargo não importa, pois, a
única coisa que reverbera por todo meu corpo e alma, é o sabor inalterado da
dor, medo e ressentimento.
Meu único consolo é saber que quando olhei para os seus olhos e o
tive em meus braços pela primeira vez, imediatamente o meu mundo se
transformou.
De repente senti como se a minha vida já não me pertencesse. Senti
a alma cheia de amor e o meu coração fora de mim, batendo suavemente
dando-me paz, é está a sensação que me mantém de pé dia após dia.
O meu filho…
CAPÍTULO 44

IRREFUTÁVEL
“O homem prudente não diz tudo quanto pensa, mas pensa tudo quanto diz.”
Aristóteles

LIA

elembrar menos de um décimo da minha história caótica que vivi com o


R
Promotor anos atrás e o nosso reencontro, foi o suficiente para manterem-se
focadas. Falei sobre outros momentos em que precisamos lutar contra
preconceitos, que não foi a primeira reação negativa que tiveram em relação
ao meu filho, ressaltei que se não tivesse Nina, Gio e os rapazes ao meu lado,
não sei o que teria sido de mim.
— Não precisa exaltar a sua amiga, — Aline arrasta as palavras
meio ébria e só então percebo que enquanto falei sem parar às quatro
beberam o bastante para estarem moles.
— Não acredito que tem ciúmes da Lia, Estrelinha. — Carla se
ergue contra os travesseiros, ou quase isso. — Tem que ser como eu e a Naja,
temos uma amizade sólida, nada nos abala.
— Não torra cozinheira. — Aline revida. — É tão sólida quanto
um bolo solado.
— Recalque…
— Não comecem, estamos aqui para ouvir a Lia, — July a voz da
razão sentencia, — não deveriam disputar amizades na minha frente,
lembrem-se que cheguei depois e me sinto carente em meio a essas histórias
perpétuas.
— Retiro o que pensei, — comento em voz alta, bebendo um gole
da minha garrafa. — Anjinho é o meu bem mais precioso, não vou aceitar
nunca que algo ou alguém faça mal a ele.
— É justo e pode contar conosco para protegê-lo. — Angélica
toma um gole do uísque e faz uma careta. A loira olha para o celular
discretamente e seu olhar parece perder o brilho.
— O que foi? — pergunto me sentindo July com sua curiosidade.
— Nada! Só um imbecil supondo que pode cuidar da minha vida…
— ela sorri, mas não vejo humor em seu rosto.
— Não fique assim Naja, aqui todas nós já fomos fodidas pelo
cupido, mas no fim deu tudo certo! — July ergue a garrafa e faz um brinde.
Eu e Angélica ficamos olhando para às três esposinhas do ano
brindarem alegres.
— Posso atirar nelas?
— Pelo amor de Deus, que psicose é essa de dar tiros? — pergunto
me afastando dela.
Angélica começa a rir, mas não responde, ou comenta nada mais,
apenas olha de vez em quando para o celular, lê as mensagens, só não as
responde.
Imagino que tenha mais mensagens em meu celular, procuro em
minha bolsa, e espero que Nina tenha ligado, mas nada, zero mensagens e
ligações.
Tirando as loucuras ocasionais que elas vão soltando ao longo da
conversa, essa é a primeira vez que realmente me sinto à vontade para falar
do meu filho, dos meus medos pelo que pode vir a acontecer, principalmente
ao contar a Mikael sobre Anjinho.
Cada uma delas tem uma opinião formada sobre isto e lógico, umas
nos fazem rir, mas outras nos faz chorar, e não é por menos.
— Concordo com July e Aline, você deveria contar para ele e
mesmo que reaja mal, será por um tempo. Tudo bem que nosso ruivão em
nada se parece com nenhum dos rapazes, e não fazemos ideia do que se passa
na cabeça dele, mas… — Carla pausa, — sei qual é a dor de ter um filho
tirado de você e sei que depois do que vivemos, nenhum de nós está
preparado para mais perdas.
— Carla, — me aproximo e a abraço, — sabemos disto, me
desculpa por não contar antes.
Choramos, não aguento mais a pressão em meu peito e coloco para
fora todas as minhas lágrimas embebidas com vodca e muita dor reprimida.
July e Aline se aproximam e me abraçam com carinho, desabo de
vez ao ouvir Angélica falando comigo com cuidado, não esperava essa
compreensão da sua parte, sabendo o quanto ela gosta de Mikael, mesmo que
quando mais jovem sentíssemos ciúmes uma da outra, sei que a admiração
dela e amizade são sinceras.
— Não precisa ter medo do Ovinho, ele e o filhote de pinguim vão
se dar bem. — Ela sorri. — No que precisar, conte comigo.
— O que disse? — pergunto limpando os meus olhos. — Filhote
de pinguim, como sabe disto?
Uma suspeita começa a crescer em minha mente, Anjinho vive
falando da titia das canetinhas.
— É você a tia da canetinha? — Salto da cama a acusando.
Angélica ri e dá de ombros tomando outro gole de uísque.
— Do que estão falando, hupp… — July soluça e tenta se erguer.
— Responde Naja! — me irrito com seu silêncio. — Está indo na
escola do meu filho visitá-lo?
— Ele realmente ama desenhar, não é?
— Você falou dessa história de pinguim?
— O que acha? — ela pula do criado mudo, não parece estar
bêbada, mas não confio mais no meu dom de discernimento.
— Angélica? Nós não gostamos da desgraça alheia… — Aline
comenta sentindo que algo não está indo bem.
— Vocês não, mas eu sim! — ela rebate e para a meio centímetro
de encostar o seu corpo ao meu. — Eu não fiz nada de mais, conheci um
grupo de crianças, dei presentes para todos e contei uma história, se um ou
dois ficaram fascinados por isto, foi o destino.
— Sua filha de uma…
— Hei! Temos a mesma mãe. — Aline grita
— Mikaelzinho realmente ama pinguins, não é? Achei o máximo
essa familiaridade, um Ovinho e um filhote de pinguim, tudo a ver.
— Acredito que vou ao banheiro molhar uma toalha. — Bufo
irritada.
— Experimenta, Pocahontas e veremos quem bate melhor.
Fecho a distância entre nós, mas July me segura pela cintura e com
solavanco tombamos sentadas na cama.
— Podem parar por aí, não vamos brigar, estamos aqui para
consolar e alegrar a Lia.
— Bom, fiz a minha parte, já alegrei, contei piadas, bebi e agora
vou embora, espero que faça a sua parte Pocahontas e conte logo ao pai do
seu filho tudo que ele precisa saber.
— Foda-se com seus conselhos! Eu já disse que estou resolvendo,
não se meta na minha vida, você sempre foi assim, não é? Sabe tudo, manda
em todo mundo, ainda não desceu na minha garganta que falou sobre a
herança que não quis receber para Mikael.
— Ah! Bem lembrado, você tem que assinar certo documento,
amanhã mesmo vou enviar para sua casa, — ela pausa, — e, não se faça de
sonsa, que sabe muito bem que quem abriu a boca, foi o idiota do Santana.
— Não enche!
— Sinto muito querida, você caçou sarna para se coçar, aproveite.
Pensa que está certo guardar segredos? Vai em frente.
— Você não tem nenhum segredo não é mesmo, Angélica? — July
cruza os braços e a encara.
— Tenho vários, mas nenhum deles é escondendo uma criança.
— Puta que pariu, valeu amiga! — Carla grita agarrada a sua
segunda ou terceira garrafa de vinho.
— Nunca a apoie esconder nada.
— Angélica é o suprassumo da boa moça, só que não! — Aline
reage jogando um travesseiro na irmã.
— Sinto muito irmãzinha, mas não sou eu que tenho um unicórnio
pronto a sair de mim, a cada vez que abro a boca, não é para falar a verdade?
— Sim, mas…
— Antes que me acusem de não contar as coisas, ressalto que
tenho o bom senso de falar sobre o que não vai ferrar com vida de ninguém,
ok!?
— Você está me chamado de fútil, Sandra Bullock? — Aline berra.
— Qual será o filme que vai estrelar hoje, as Bem Armadas, — ela aponta as
armas na mesinha do outro lado do quarto, — já sei, Miss simpatia dois ou
será, Oito mulheres e um segredo?
Angélica literalmente deixou o queixo cair olhando para a sua irmã
caçula.
— Gente, ela tem garras! — Carla debocha, lambendo o gargalo da
garrafa vazia.
Deplorável.
— Fica na sua aí cozinheira, a conversa ainda não chegou no
fogão! — Aline revida.
— Aline amiga, — July se aproxima e a rodeia com os braços. —
Fica calma, você está muito… hupp — ela soluça —, nervosa, e não são oito
mulheres e um segredo, somos só nós cinco!
— Estou calma July e, na verdade, somos seis, não esqueça da
outra. — Aline me olha e me fuzila. —Nina, a santa amiga que apoiou Lia
nos momentos difíceis.
— Ah, verdade! — Angélica apoia e me encara. — Não vamos
esquecer da vaca!
— Isto mesmo, uhuu! Eu deveria ter dado uma surra de toalha
molhada nela, daquela vez.
— Você tem problemas e pelo visto não é só com o alcoolismo,
Carla! — ressalto e coloco a garrafa sobre a mesinha, nem consigo me virar e
já sinto o primeiro puxão no meu cabelo.
— Para de defender aquela lambisgoia, você é a minha melhor
amiga! — Aline o agarra meu cabelo e o puxa com força.
— Me solta! — me viro e seguro seu rabo de cavalo o puxando.
— Hei! Solta a minha irmã! — Angélica puxa outra mexa do meu
cabelo e eu puxo a trança dela.
— Vocês querem parar? — Carla grita balançado a garrafa na
boca.
— Cala boca seu projeto de barril! — exclamo perdendo a
paciência. — Me soltem vocês duas.
— Não! — Aline berra o que me lembra quando éramos crianças.
— Juliana, faça algo? — grito e perco equilíbrio sentindo a Naja
puxar meu cabelo, rodo minha mão pela trança e puxo.
— Aí, meu Universo querido. — July se ergue com um travesseiro
em mãos e acerta a nós três com tanta força que acabamos nos soltando.
— Loucas, bêbadas e desordenadas, isto que são! — Só observo as
loucas falando de si mesmas e de mim.
— Ah! Me cansei de me chamarem de bêbada.
Isto bastou para a loucura começar, Carla se ergue na cama e
literalmente salta sobre nós. O enrosco de pernas braços e puxões de cabelo
recomeça, desta vez nem sei quem foi que puxou o meu cabelo, mas sinto a
trança em uma das mão e uma massa de cabelos escuros em outro.
July se ergue da cama com o travesseiro e nos espanca como pode,
levando-se em conta que mal consegue localizar-nos no chão para onde
rolamos.
Angélica se solta, pula por sobre nós arranca o travesseio de July
devolvendo as pancadas. Carla para defender a cunhada, salta sobre elas as
tombando na cama.
— Que desgrama! Você é a porra do homem aranha, Ratinha! —
Angélica grita sendo sufocada pela amiga.
Não consigo se quer erguer o meu braço para me defender de
Aline, na verdade, nenhum dos golpes foram fortes o bastante para machucar
e nem faço ideia do porquê estamos brigando, mas não consigo segurar o riso
desenfreado.
Aline e July seguem na mesma direção e Angel após conseguir se
livrar de Carla a acerta algumas vezes com o travesseiro.

Droga! Provavelmente estamos mais que bêbadas, entre risos e


ataques de lágrimas, doloridas e desgrenhadas. De alguma forma voltamos a
estar sobre a cama.
Evitamos falar do nosso maior problema, Verônica, focamos em
pensar em como preparar as crianças para conhecerem Anjinho e na melhor
ambientação para recebê-lo.
— Quero que ele se sinta em casa, confortável, — July comenta
entre soluções, — além de que a avó dele mora lá, então acredito que
podemos começar deixando ele conhecer a casa da avó e se acostumando até
o momento da festa, o que acha? Seremos só nós, depois do que aconteceu
em dezembro, Edu não pode ouvir falar em festa.
— Muito menos eu, — comento —, acho ótima a sua ideia, eu vou
chegar mais cedo com Anjinho.
Concordamos em não discordar da minha decisão tomada.
Angélica sentou-se longe novamente, enquanto nós quatro permanecemos na
cama.
— Hei! — Carla grita. — Pera aí, por que não gritou ou colocou
apelidos na July, Aline?
— Porque ela é a mãe das minhas filhas!
— Olha só, isso é aquele negócio, como chama mesmo Angel? —
Carla estala os dedos ou parece ser isto o que quer fazer ao se erguer em
busca de mais vinho. — Monopólio, não é? Só por interesse.
— Carla, é nepotismo, não monopólio sua louca. — July ri e se
ergue para buscar a cunhada. — Chega de vinho, sente-se aqui.
— Não vou, — ela foge e se esconde atrás do carrinho de bebidas
— não isso de monoteísmo comigo.
Desta vez não pude conter as lágrimas que rolaram, mas de tanto
rir destas loucas.
— Porra Carla! Sente-se aqui, e pelo amor de Deus! Para de trocar
as palavras, é nepotismo! — exclamo e a arrasto para a cama.
Angel nos olha de longe, parece aérea e me sinto mal por ela, por
mim e todas nós. Nenhuma de nós nunca quis esconder nada, mentir ou
enganar, mas somos cercadas por tantas circunstâncias que no final acabamos
colocando barreiras em nossas vidas.
Tentamos realmente abstrair nossas mentes, pelo adiantado da
hora, já deveríamos estar em nossas casas, mas pela condição geral, creio que
nenhuma de nós fará isto.
— Preciso ligar para casa e saber do meu filho. — Comento me
erguendo meio sem jeito para apanhar o celular. — Que droga!
— O que foi, algum problema? — Angel pergunta.
— Nada. Não sei, pedi a Nina para me ligar e me dar uma desculpa
para fugir de vocês, mas ela não ligou.
— Que sem-vergonha, ela ainda nos conta. — Carla debocha
virando-se de lado.
— Prometemos não guardar segredos mais, apesar de não acreditar
muito nisto. — Aline ressalta
— Hum… — gemi ao tragar o último gole de vodca que consigo
beber. — Nossa baby, você exagera às vezes… — a espetei com sarcasmo.
— Prometemos, sim ou não? — Carla pergunta com uma risada
maligna.
— Sempre! — Exclamamos em uníssono.
— Droga! — Reclamo novamente.
— O que foi agora? — July se aproxima.
— Ele também não ligou, não terminou de dizer o que queria, —
fungo e meus olhos enchem de lágrimas, — o que vou fazer se ele
retroceder?
— Fique calma, vai dar tudo certo, — July acaricia os meus
cabelos.
— Aceitei o pedido dele de namoro e planejei falar tudo certinho,
então… Boom, tudo explodiu.
É inevitável rolar uma lamentação e um pouco de carinho extra.
— Porra, odeio o gosto dessa merda. — Angélica reclama e vira
mais um gole do uísque Jack Daniel. — Esse drama está acabando com meu
estoque de bom humor.
— Fica quieta projeto de Naja com gatinha.
— O quê!? — A loira de tranças arrebitou o nariz mais vermelho
que dá rena de papai Noel e tentou enfrentar July.
Antes que elas comecem uma nova troca de apelidos no intuído de
ofensas, alço o meu corpo pelos cotovelos e grito com a voz meio trôpega.
— Calem a boca! Disseram que isto aqui era para me alegrar,
consolar e o caralho a quatro, mas até agora não estou sentindo nada disto.
— Deve ser porque a vaca da Nina não está aqui.
— Yes! Isso aí gêmea! Sente-se Pocahontas, antes que rache a
cabeça no piso.
— Quer saber, vão se lascar, — fungo mais duas vezes, sentindo
aquela maldita queimação nas narinas, quando as lágrimas retornam.
Com olhos ardentes dou um passo para a direita, mas sou puxada
de volta para a cama pelos braços fofinhos de July, logo em seguida Aline, se
deita em minhas pernas e Carla sobre meu abdômen e juntas começamos um
coro de lamentações.
Relanceio os meus olhos para Angel que nos olha com um bico
infantil, ergo minha mão livre e a chamo.
Incrível, este momento vai para os anais da história, pois nunca
mais está cena será repetida. Angélica se joga sobre o meu peito literalmente,
não faz nenhum som, mas sinto as lágrimas quentes escorrendo entre o vale
dos meus seios.
— Não está errada em guardar os seus segredos Angel, sabemos
que é para nos proteger.
— Vocês não sabem pelo que ela passou, — Aline beija às costas
da irmã e minha perna —, você também passou por muita coisa.
Acaricio os cabelos de Carla sentindo o seu corpo estremecer, July
fica em silêncio, mas em todo momento acaricia uma ou outra com afagos.
Olho em seus olhos e reconheço o seu esforço em se unir a nós,
fazer parte da nossa família, mesmo sabendo que está se enfiando em um
lugar perigoso, ela não deixou de lado o homem e as filhas que tanto ama, ao
contrário abraçou a todos nós.
— Obrigada!
Puta que pariu, todas somos fortes e guerreiras, mas dentro deste
quarto somos mulheres que também estão carentes de algo, e agora é uma das
outras.
Me sinto grata e aparada, gradualmente vamos controlando o nosso
choro, quase conseguimos um silêncio religioso e confortável, até a voz da
Angélica esmagada sobre meu peito destruir esse idílio.
— Pocahontas, — sem erguer o rosto, sinto um leve apertão no
peito onde sua mão caiu que me faz arregalar os olhos —, você tem uma
argola no mamilo?
— O quê? — July dá um grito e gargalha.
Angélica ergueu os olhos e a descarada está sorrindo alisando o
meu seio.
— Liana, sua safada! Você tem um piercing no peito?
— Vocês não imaginam onde ela tem outro, — Carla ergue o seu
rosto e solta uma risada conspiratória.
— Estou chocada! — Alguém comenta.
O choro de fato não vai acontecer mais, muito menos essa cena
antropológica. Do riso às insanas gargalhadas de cinco mulheres bêbadas e
muito, muito amigas.

Não tenho certeza de quanto tempo dormi em má posição, mas algo


me despertou, alcei meu corpo pelos cotovelos e vi Angel fora da cama
sentada na poltrona virada para a janela, observando o vazio.
— O que está fazendo, — sussurro.
Carla e as meninas ressonam ao meu lado.
— Fale baixo, volte a dormir.
Não respondo, deslizo entre os lençóis até por meus pés no chão,
sinto o meu corpo reclamar e minha cabeça girar. Apanho uma garrafa de
água e bebo o máximo que posso.
— Come algo, — Angélica se ergue e vem em minha direção com
um pacote de biscoitos de água e sal.
— Obrigada, — mastigo umas bolachas, pego minha bolsa e os
sapatos no chão, não estou realmente sóbria, mas posso me sentir segura de
não bater com a cara no chão.
— O que foi? — ela estranha, mas me acompanha.
— Preciso ir embora, enquanto como, pode pedir a um dos
seguranças para me levar para casa?
— Claro! — Angélica faz uma ligação e resmunga em tom baixo.
Menos de cinco minutos depois ouvimos um bater suave na porta.
Agradeço por conseguir a corona e antes e sair, resolvo dar algo para ela.
— Angélica, não sei qual é o relacionamento entre você e Giovane,
mas se ainda senti ciúmes de Nina por algum motivo, — balanço a cabeça, —
esquece, eles são irmãos!
— O que disse, ainda está bêbeda Lia?
— Escuta com atenção que vou te contar sobre eles, não precisa ter
ciúmes da Nina, por isto, além de irmãos ela foi designada para ser minha
guarda-costas, por meu pai.
Angélica me olha com ar cético, mesmo que tenha ficado irritada
por ela ter ajudado de certa forma a colocar o desejo de conhecer o pai no
coração de Anjinho, estou grata, pois sem esse empurrão, talvez nunca
tivesse coragem de fazê-lo.
Rapidamente relato para Angel tudo que posso, e espero que faça
proveito das informações.
— Caramba! — Ela me olha com ar estupefato, — suponho que
vou lhe devolver o favor.
— Não precisa, já fez muito por mim.
Ela sorri, mas percebo que sua mente maquiavélica já está juntando
pontos, seja lá sobre o que estiver em mente. Me despeço esperando chegar
em casa quanto antes, me sinto exausta e a prova disto é que bastou encostar
minha cabeça contra o apoio do banco traseiro no carro para dormir quase
que imediatamente.
MIKAEL
As luzes continuam desligadas, há dias que o escuro é
reconfortante. Retirei o terno, gravata deixando em algum lugar entre o
corredor de entrada da casa e o quarto de Mikaella. O ar no cômodo parece
mais fresco do que antes.
— Acredito que finalmente estou me rendendo a loucura dos
Nikolaevich, — sussurro.
Não é a primeira vez e duvido que seja a última que recorro às
lembranças e ao mausoléu criado por minha mãe para abafar meus
sentimentos mais caóticos.
Acomodo-me na poltrona, acendo um abajur que está na mesa ao
lado, a lâmpada com luz amarelada é fraca e por incrível que pareça ainda
funciona, de imediato meus olhos recaem sobre alguns ursos de pelúcia
amontoados ao lado, isto me faz pensar no moleque e em todas as coisas que
estou me esforçando para não deixar fluir livremente pela minha mente.
Com algumas das fotos em mãos, a maioria de Lia, repasso as
imagens e percebo as mudanças que foram bem sutis, o rosto de menina se
tornando mulher, o corpo alterando, se tornando cada vez mais torneado,
voluptuoso.
— Caralho! — Deixo as fotografias caírem das minhas mãos,
porque outras imagens começam a se formar em minha mente. Posso ver com
nitidez uma Lia grávida, a barriga volumosa, a tatuagem no seio com o nome
da criança…
O celular no bolso da calça vibra, retiro o aparelho e vejo que a
ligação é de Ramon, não penso duas vezes, atendo a chamada.
— Staeler, como eles estão?
A pergunta salta dos meus lábios antes de qualquer cumprimento
formal, meu coração dispara em meu peito, ainda estou em um limbo
anestesiado com o que houve com Anjinho na noite de sábado, minha própria
reação a tudo isto e a conversa inacabada com Lia. Foram tantos
acontecimentos um após o outro como uma avalanche da qual não se pode
escapar.
— Boa noite, como você está?
— Estou vivo e isto basta. Tem alguma outra informação além do
que me passou está tarde?
— Sim, Liana e o filho, estão bem em casa. Os trâmites legais são
os mesmo que passei, não vou mudar as minhas estratégias. Quanto a outra
parte…
— Marque uma reunião para amanhã mesmo.
— Você tem audiência, não está em um caso importante?
— Estou e não me importo, terei tempo suficiente, já tomei
algumas providências em relação à escola, receberá na parte da manhã uma
documentação por parte da minha assistente.
— Mikael?
— Não! Não vou ceder no que já me decide Ramon, não tenho
certeza de nada e confesso que estou protelando para que isto aconteça, —
esbravejo — porque não sou como você e os nossos amigos, — me ergo
dando passos para fora do porão, preciso de ar fresco, — não tenho tempo
para ficar marinando uma relação que está a um passo de implodir na minha
cara.
— Você precisa me escutar, — Ramon suspira e ouço o
choramingo de Pérola, isto me desconcerta ainda mais.
— Não quero ouvir sua voz do bom senso, estou uma pilha, tem
noção do que está acontecendo? Sobre todos os acontecimentos, — pauso
para abrir a geladeira e retirar uma das garrafas de água portuguesa que
passeia apreciar, — escute com atenção, Ramon, ontem conseguimos dar
perseguição aos malditos traficantes que estavam atrás de mim, mas quem
garante que isto acabou? Hoje o moleque é agredido do nada, — perco a
paciência, bato a porta da geladeira e encaro a folha A4 desenhada, — porra,
ele é uma criança, que culpa tem de ser como é?
— Mikael?
— Como se essa merda não fosse o suficiente para me
enlouquecer, o desgraçado que a Promotoria incriminou resolveu me
ameaçar, — gargalho jogando a garrafa cheia do outro lado da cozinha, — o
que caralhos vou fazer?
Passo a mão pelos cabelos bagunçando-os, Ramon tenta acalentar a
filha do outro lado e uma dor horrenda espalha pelo meu crânio ferroando
bem sobre o corte recente.
— Eu disse que não poderia ter esse tipo de relacionamento! Ter a
desgraçada da Verônica nos ameaçando não basta, eu ainda tenho que lidar
com essas situações no meu trabalho, só que amo fazer o que faço, entende?
Não quero deixar de ser quem sou, mas como vou protegê-los, se não sou
capaz de fazer isto por mim.
— Porra! — Ramon explode do outro lado da linha, — me escuta,
por favor! Sei como está se sentindo é o mesmo que eu e os nossos amigos
passamos, mas não adianta perder a cabeça. A sua maior qualidade é ser
frio, racional, o melhor Promotor por usar o cérebro, as melhores
estratégias e argumentos.
— De que isto me valeria agora? O que fiz por eles ou poderia
fazer para impedir que estas coisas acontecessem, você sabe de onde vem as
debilidades dele?
— Mikael, não preciso que fale isto, já ouvi uma vez e foi o
suficiente, não faça isto meu amigo.
Me aproximo da geladeira e toco a folha com a ponta dos dedos, —
ele é especial, — resmungo mais para mim mesmo do que para que Ramon
ouça.
Um silêncio pesado recai sobre nós, meus olhos turvam com
lágrimas, uma canção vem a minha mente que ilustra o desenho e quase
posso ouvi-la em meus ouvidos.
— Eles estão bem! — Ramon diz em tom baixo.
— Graças a Deus! — Agradeço sinceramente.
— Juliana e as meninas resolveram levar Lia para um hotel, de
acordo com ela, é de um momento de conversa em que possam externas seus
sentimentos, o que ela precisar.
— O moleque?
— Está em casa com Nina e Maria.
— Maria… — bufo com escarnio.
— Não tire conclusões precipitadas, não foi você mesmo quem me
disse isto quando recebi a carta anônima? Não sabemos de tudo e nem você
tem certeza de nada.
— É exatamente o que tenho tentado não fazer, acreditar em
conclusões sem fundamentos, sem provas concretas e irrefutáveis
— Acredito que está se esforçando nisto meu amigo.
Ramon aproveita o meu silêncio sem novos ataques de histerismo e
me diz os motivos pelo qual me ligou. Durante a tarde nos intervalos durante
a audiência, liguei para ele algumas vezes e tentei enviar uma mensagem
concisa para Liana, mas a carga emocional foi além que poderia suportar o
que influiu até mesmo em meu trabalho, por sorte pedi um recesso ao Juiz e
este concedeu.
Ao receber a mensagem de um dos seguranças que trabalham
diretamente comigo, informando que Lia foi chamada na escola e o que
estava acontecendo, só pude imaginar o pior, por isto decidi de forma
imediata notificar a Ramon.
Após ter uma longa e tensa conversa com a Diretora da instituição
e saber que a tal senhora Barcelos, esposa de um cliente importante do
escritório, tem uma longa ficha de queixas contra ela e da sua parte contra
outras crianças.
— Pelo que entendi, vocês pretendem ter uma conversa séria antes
do final de semana, é isto?
— Sim, mas antes quero fazer algo…
— Precisa conversar sobre isto, passar um dia longe de tudo e
todos, estou aqui para ajudar.
— Quero um dia sim, mas sei o que farei neste dia.
— Tudo bem, liguei mais para saber como você está, o fato de não
falar e quando faz explodir, não me deixa tranquilo.
— Não se preocupe, cuide de Pérola, eu vou ficar bem.
— Mikael, algumas lembranças são feridas profundas, você é o
melhor em fingir que elas não estão lá…
— Porque lembranças, não podem ser apagadas, — replico.
— Contudo, elas podem ser mudadas, meu amigo.
Despedimos, prometo a Ramon que qualquer novidade, entrarei em
contato, mas o que quero mesmo é ficar sozinho e pôr a mente em ordem.
Retiro o desenho da geladeira e o levo comigo para o meu quarto,
caminho pelo cômodo silencioso, aciono o home e uma nova seleção de
músicas que Lia criou invade o ambiente.
Abro as portas de correr e no jardim, me sento em um canto com
pouca iluminação, dobro minhas pernas e as abraço contra o peito, ao meu
lado o desenho parece dançar com a brisa que vez ou outra balança a grama.
— Hei, moleque, eu me chamo Mikael… — sussurro — Será que
realmente existem lembranças que podem ser mudadas?
O celular que coloquei no bolso, novamente vibra e desta vez é
uma mensagem de texto.
@guardiam_A. Campus: não sei se estou fazendo o certo, mas
estou te enviando um presente, espero que tudo se acerte. Você ainda é a
minha pessoa preferida, Ovinho.
CAPÍTULO 45

INFINITO
“O menor desvio inicial da verdade multiplica-se ao infinito à medida que
avança.”
Aristóteles

LIA

T
enho a sensação de que não estou em casa, mas isto é o de menos, a brisa
morna percorrendo minha perna me faz imaginar que estou em uma praia,
meu lugar preferido, com sol aquecendo-me, o som das ondas soando
baixinho, — pauso, — estranho que esse som não parece ser do mar…
Gemo e tento me espreguiçar, os lençóis da cama deveriam fazer
um sussurrar mais suave e não parecer um rangido de couro.
A não ser que eu não esteja em minha cama. — Penso.
As lembranças do dia anterior saqueiam a minha mente, — puta
merda que dor de cabeça, — resmungo, — minha boca parece estar cheia de
areia.
O calor gostoso se espalha pelas minhas coxas nuas e um roçar leve
faz cócegas. Levo minha mão até onde sinto a sensação ou imagino fazer, o
meu corpo não responde ao comando, como se não estivesse acordado.
Novas imagens da noite anterior explodem em minha memória,
bebedeira, briga, choro, risos e confissões com minhas amigas em um quarto
de hotel, onde deveria estar dormindo.
Hum…
Deus do céu sinto um formigamento estalar bem no centro do meu
sexo como um tiro.
Esse calor, as sensações me dizem que não estou ao sol em uma
praia… não mesmo, essas mãos deslizando por meu ventre, arrepiando a
minha pele, fazendo os meus seios latejarem até às pontas.
— Não é o hotel, — minha voz quase não sai, minha boca
ressecada cria engulhos horríveis no meu estômago.
O beijo suave bem acima do meu estômago dolorido me desperta
de vez, abro os meus olhos e a primeira imagem me assusta e ao mesmo
tempo me conforta. Uma massa de cabelos ruivos revoltos que brilham com
os raios de sol que atravessam a vidraça.
Olho à minha volta e reconheço a sala em que estou, os móveis, o
sofá de couro, os quadros e assim como o homem que lentamente espalha
beijos por entre os meus seios desnudos e a garganta, Mikael.
Não resisto a soltar outro gemido, sua pele aquecida se acomoda
sobre a minha e as últimas lembranças da madrugada me assaltam.
Após acordar e conversar com Angel, ela me garantiu que estaria
segura indo para meu apartamento, me recordo de adormecer, sentir meu
corpo ser suspenso e vozes em meus ouvidos, depois…
— Oh!?
As lembranças de braços fortes me carregando para dentro de casa
assaltam a minha mente, mas mal entramos e meu estômago resolveu
protestar com o excesso de embriaguez.
— Oh Deus!
— Percebo que se lembra do que aconteceu ontem e nesta
madrugada?
— Mikael, — pauso —, como vim parar aqui e, me desculpa por
ter…
— Vomitado por todo o meu chão e minha cama?
Isto explica o motivo por estarmos dormindo na sala.
Me sinto envergonhada, tento me erguer, mas a cabeça pesa, ele
passa o braço por cima do meu corpo e alcança um copo d’água, aceito e
tomo um gole. Mikael não me olha nos olhos, o lençol que forrou o sofá está
jogado no chão, meu corpo está nu.
Roço minhas pernas e sinto a umidade entre as coxas, mas não por
termos transado e sim por estar me excitando só por tê-lo seminu ao lado.
Pelo amor de Deus, isso é algum caldeirão da libido entornando
dentro de mim?
— Bom dia, — a voz rouca em tom baixo arrepia me causa frisson
— está se sentindo melhor?
— Sim, obrigada.
Ele se afasta o suficiente para deslizar de volta para baixo no sofá
se colocando de joelhos, o deslizar da barba por dentro da minha coxa
esquerda, causa um choque nos meus sentidos, alço o corpo pelos cotovelos,
sentindo-os afundar na maciez do couro que reveste o sofá.
— Como me trouxe, quer dizer… — não consigo formular a frase
— eu…
— Angélica a mandou para mim.
— Ah! Uau, isto me faz sentir como uma entrega de Delivery — só
não tenho a intenção de reclamar.
Talvez, se por um segundo pudessem esquecer tudo e ficar assim,
quem sabe acordo deste pesadelo que a nossa vida está se tornando?
Mikael afasta mais as minhas pernas e a umidade viscosa deslizam
entre os lábios do meu sexo deixando evidente o quanto estou com desejo, e
incrivelmente estou descobrindo que estresse pode acabar com o aparelho
digestivo de alguém e torná-la obcecada por uma foda.
Ele eleva a sua cabeça e me olha fixamente, os seus olhos estão
vermelhos, um pouco inchados como se tivesse passado toda a noite
acordado ou chorado, ver isto machuca o meu coração, iço a minha mão
direta e acaricio o seu rosto, escovo os seus cabelos com carinho.
Mikael fecha os olhos aproveitando o momento de afago, mas ao
abri-los novamente o brilho dominador está lá ocupando toda a sua íris e o
sorriso pecaminoso se alastra no canto da sua boca.
— Oh! Meu Deus! — grito ao sentir seus dedos abrirem meu sexo
e a língua deslizar por inteiro até o fundo.
— Por enquanto, é só o anjo.
Dou um tapa contra o seu ombro, só o que me faltava era receber
castigos por heresias.
— Mikael, — tento falar, mas a mordida próxima a minha virilha
me faz gemer mais alto.
Ele literalmente me come, devora, chupa e não me deixa fechar as
coxas a cada novo puxão que dá sobre meu clitóris. Meus seios bamboleiam
pesadamente a cada movimento, alço mais o meu corpo segurando no
encosto do sofá com uma mão e a outra agarro firme os fios avermelhados
em sua nuca.
Ele geme com a pegada e desforra intensificando as arremetidas da
sua língua contra meu sexo, perfurando o canal, indo e vindo sobre o botão
inchado até prender o brinco de ônix entre os dentes.
Um bip discreto ecoa de algum lugar. Isso parece o alarme do meu
celular. Tento não perder o foco, mas o bip insistente me faz abrir os olhos.
Mikael me fita e faz menção de se afastar, seguro firme contra sua
nuca, — por favor — suplico prestes a gozar.
Ele volta a sugar-me e lamber, posso sentir o fissura do orgasmo
espocar a pele, arrepios eriçam os pelos da nuca e com mais um pouco de
pressão e lá está, a luz no fim do túnel, o meu nirvana orgástico.
Caio contra o estofado sem força, sem fôlego, pronta a retribuir
para ele, contudo o som do celular me faz olhar a bolsa que está na poltrona
do outro lado da sala.
— Que horas são? — pergunto ainda rouca.
— Ainda é cedo… — ele puxa minha perna e engata sua ereção no
meu canal dolorido.
— Cedo? — solto outra pergunta idiota sentindo seu o pau ser
arremessado dentro de mim com uma lanceada única. — Oh, droga!
— Está ruim? — Ele me olha de soslaio e desvia novamente o
olhar.
Mikael segura em minha cintura com força e as suas arremetidas
são fortes o suficiente para me mover pelo estofado.
— Está me castigando? — pergunto entre uma estocada e outa. —
Por que não me olha?
— Se fosse um castigo, não teria duvidas Liana e nem tão pouco
usaria o sexo que amamos fazer com essa finalidade.
— Então… — pauso, ele se curva e me pega pelas axilas me
fazendo erguer e me sentar sobre o seu colo. —Hum… — gemo ao senti-lo
ser enterrado profundamente dentro de mim — me olhe nos olhos, Mikael!
O empurro pelos ombros, o som do bip se interrompe e isto me faz
olhar para fora da vidraça, volto o meu rosto em sua direção e ele está me
encarando, contudo, volta a desviar o seu olhar.
Seguro seu rosto e o faço me olhar. — Está com raiva de mim?
— Quero uma pausa com você.
— O quê? — me alarmo toda ao ouvi-lo, ele trava as investidas
cravando profundamente dentro de mim seu pau, de tal forma que posso
sentir a esfera do piercing pressionar por dentro.
— O que disse ontem no áudio, quero o que pedi.
— Não pediu, cortou a mensagem, o que quer?
O que seria essa pausa? Não tenho coragem de dizer em voz alta,
mas posso sentir os meus olhos arderem e o medo que me dominou por todo
esse tempo parece estar soltando fogos de artifício dentro da minha cabeça.
Ele quer me deixar?
— Quero um dia com você. Quero fingir que nunca estivemos
longe um do outro, um dia só nosso, — ele fala e volta a desviar o seu olhar,
então percebo que como eu, Mikael está na mesma situação.
Cada um sentindo os efeitos de tudo que está acontecendo em
intensidades diferentes, mas com a mesma finalidade, nos machucando.
— Mikael…
— Todavia, antes quero dizer algo e tomar algumas providências,
— agora sou eu quem desvia o olhar e tenho o meu rosto erguido em sua
direção, a sua expressão dolorosa, — sinto muito pelo que houve com ele, me
desculpa. — Ele sussurra
Não… mesmo que não esteja claro, só sendo muito obtusa para
não perceber que ele está se adiantando e colocando a culpa da condição do
filho em si, ou de alguma forma assumindo que o que houve… Deus!
— Não diz isto — o abraço com todas as minhas forças sentindo
seu corpo estremecer — por favor, — espalho beijos por seu rosto, a fronte,
sua testa, a ponta do nariz até tocar sua boca —, por favor, não diz isto!
Volto a beijá-lo sentindo minhas próprias lágrimas deslizarem por
meu rosto. Mikael retribui o abraço, ele nos deita no sofá e volta com
arremetidas suaves que vão se intensificando até estamos arfantes, olhando
fixamente um nos olhos do outro nos perdendo na sensação prazerosa de
voltarmos a fazer amor.
Ele me faz gozar novamente, mordo a comissura dos seus lábios e
o sinto derramar dentro de mim com gozo delirante, não permitindo que
nenhuma outra palavra viesse atrapalhar esse momento, mesmo que nossos
corações estejam sangrando.

Com o corpo languido tenho a sensação de que adormeci


novamente, o bip retorna e desta vez me desprendo do seu corpo tentando
alcançar a bolsa, ele resmunga e com desenvoltura salta para fora do sofá.
Mikael em sua gloriosa nudez, com seu pau a meio mastro, repleto
de veias salientes, caminha pela sala, o piercing cravado no freio, entre a
glande e o caule, brilha pela luz discreta vindo de uma sofisticada luminária
no canto, ele veste a boxer e alcança a minha bolsa.
Retiro o celular e bloqueio o toque do despertador ao conferir as
horas, me assusto.
— Mikael, já são sete horas de manhã, por que não me acordou?
— Se não percebeu, era isto que estava fazendo. — Ele dá de
ombros e segue para a cozinha.
— Cacete! — me sento tentando não me constranger com o
balanço nada sensual dos meus seios, nem com as marcas de sêmen e fluidos
que em algum momento escorreram pelas almofadas de couro e agora são
listras esbranquiçadas.
Puta merda, isso é pior que a caminhada da vergonha… — penso.
— Você precisa comer algo antes de ir. — Ele fala alto da cozinha,
os sons de portas de armário e logo um moedor, indicam que está fazendo o
café. — Tome um banho, suas roupas estão limpas, as lavei, vou tirar da
secadora.
— Jesus…
— Se quiser vestir outra coisa, tem roupas no closet, espero que
goste.
A observação e os movimentos por trás do sofá chamam a minha
atenção. Os músculos abdominais, das costas, bíceps e as coxas musculosas,
criam sombras pecaminosas a cada movimento que faz.
— Roupas?
— Comprei algumas.
— Simples assim, comprou roupas para mim, — não sei se gosto
da ideia, mas a atenção é bem-vinda na atual circunstância.
— Sei que tenho um corpo gostoso, mas tente se controlar minha
anja safada, ou vou esquecer de te alimentar com comida e me servirei da sua
buceta.
Ele ri.
Eu me engasgo.
Ele pisca e me faz erguer e caminhar em direção ao seu quarto.
Ignoro a mancha no meio do colchão, passo direto para o banheiro e tomo um
banho o mais rápido possível. As roupas são bem ao meu estilo, não fico
paparicando todas, mas passo pelo mais discreto conjunto de calça pantalona
e casaco em tons de areia e um boddy preto com cordas trançadas nas costas.
— Ainda bem que resolvi usar saltos na noite passada.
Mikael liga o chuveiro e como fiz, ele toma um banho rápido.
Estou no processo de passar a parte da alça pela cabeça, e na pressa os
cordões que formam os X sobre os seios engancha no piercing em meu
mamilo, grito pela dor, ele larga o que está fazendo e vem me auxiliar.
As mãos estão frias, por isso o arrepio é tão intenso, ele pinça o
mamilo entre os dedos grandes e desenrosca a cordinha, afasta o tecido,
aproxima seu rosto e beija sobre o mamilo dolorido, sopra de leve um ar
morninho e volta a colocar o tecido no lugar me ajudando a vestir.
— Obrigada.
— Se apresse.
Sua voz está mais grave que o normal, apanho o relógio de pulso
sobre o móvel, voltando ao meu estado desesperado de mãe que dormiu fora
de casa sem avisar.
— Vamos tomar café e depois a levarei para casa.
— Agradeço o café, mas tenho que ir! — ressalto com urgência o
acompanhando para fora do quarto.
Mikael joga o terno sobre o sofá que já está limpo das evidências e
segue para a cozinha.
— Você não irá sem comer!
Vou fingir que não ouvi o tom de comandando, — não tenho
tempo! Anjinho vai acordar e se eu não estiver lá, não vai querer ir para
escola.
Agradeço encabulada, coloco a bolsa no ombro já imaginando que
deva ter algum dos seguranças do lado de fora, como não ouço sua resposta
ergo os meus olhos para me despedir.
Mikael me olha com severidade, estranho e dou um passo atrás.
— O moleque não vai para aquela escola!
— O que disse?
— Você não tem problemas de audição, Liana. Termina de se
arrumar e sente-se para tomar o seu café da manhã.
Conto até três para não soltar uma resposta habitual que sempre
tenho em casos como este, onde alguém tenta ditar algo sobre minha vida, e
por este ser um assunto ainda não resolvido, me esforço o dobro.
— Tenho que ir e Anjinho, vai continuar indo para a escola, —
meus olhos marejam —, o meu filho sofreu uma injustiça, ele não tem que
sair de lá, aliás, — pauso —, vou mudá-lo de escola, mas com justiça sendo
feita. Pois vou entrar com um processo contra eles.
— Não precisará fazer isto, é um desgaste desnecessário, dedique-
se a cuidar da criança e apenas dele daqui em diante.
Sei que estou elevando a voz, por este motivo pauso e respiro
fundo.
— Ele, não voltará para aquela escola! — Mikael fala com tanta
tranquilidade como se estivesse cantando um mantra.
— Você enlouqueceu!?
— Ele não vai, Liana, e isto é o fim desta conversa.
Observo suas costas enquanto ele continua passando manteiga de
amendoim em pequenas torradas. Ainda bem, ou veria minha expressão de
completo choque e meu queixo cair completamente perplexa com seu
ultimato.
— Você não pode opinar sobre isto, — rebato com toda a ênfase
que consigo reunir, é injusto dizer isto, mas ele pediu um tempo para
esclarecermos tudo.
Então, até o momento em que fiquemos quites, ainda detenho todos
os direitos únicos sobre as decisões que influenciem na vida do meu filho.
Ele se vira com uma bandeja nas mãos, caminha até a mesa e deixa
sobre o tampo, volta até estar diante de mim, coloca sua mão na base da
minha coluna e me faz andar até uma cadeira já pronta para me sentar.
— Não tenho direitos, — ele pausa — mas, tenho senso de justiça
e a minha raiva está reprimida há alguns anos.
— Mikael…
— Ele não vai para aquela escola, porque estou movendo um
processo contra a instituição.
— Você disse que eu não deveria…
— Eu disse que seria desgastante para você entrar e estar à frente
ao mesmo tempo, não que eu fosse deixar passar. — O seu rosto está a
milímetros do meu, seu olhar escurece sumindo todo tom azul-claro dando
vasão para o cinzento tempestuoso. Só duas coisas causam essa reação, tesão
e fúria. — Jamais deixaria que alguém machucasse o seu filho e ficaria
quieto!
O beijo seguido das suas palavras me esmorece, sinto minhas mãos
tremerem.
— Mikael, eu preciso… — ele me interrompe, silenciando-me com
os dedos sobre meus lábios.
— Tome o seu café. Tenho uma reunião com nossos advogados às
nove horas e pelo que parece, a outra parte, está tentando contatar um
Promotor para ajudá-los.
— O que é um absurdo! — exclamo sem saber o que pensar dessa
atitude dele, somada ao fato de que conversou com Henriqueta.
— Concordo com você, minha anja, — ele pisca, toma um gole do
seu café e arremata com um humor ácido o que tem a dizer —,
principalmente porque o Promotor a quem eles querem pedir ajuda, sou eu.
— Não posso acreditar!
— Acredite, como diz July: nada é por acaso.
Não sei o que responder e nem mesmo se devo. Me rendo aos seus
pedidos e tomo um café reforçado.

Mikael faz questão de me levar em casa, mesmo que isto vá deixá-


lo com seu horário apertado, me despeço e antes de descer do carro, ele me
diz quais são seus planos.
— Amanhã tenho uma reunião com Angélica pela manhã, logo a
tarde tenho uma audiência, se quiser assistir, depois a noite estou livre, e na
quinta-feira vou tirar um dia de folga, quer passar comigo?
— Tenho que levar Anjinho ao médico amanhã, posso encontrá-lo
a tarde e sim, podemos passar o dia juntos, se o meu filho estiver bem.
— Ok!
— Eu já programei com as meninas uma forma de entrosá-lo com
as outras crianças na festa sábado, se você…
— Podemos conversar sobre isto na quinta?
Concordo com meneio de cabeça, revemos nossos horários com as
agendas e Mikael sincroniza nossos compromissos com despertadores. Acho
estranho, mas aprecio ele me incluir em sua agenda como prioridade.
— Por que está fazendo tudo isto?
— Porque tem sentimentos que se tornam infinitos, assim que são
percebidos.
Ele sem querer, joga um pouco de esperança para meu coração que
voltou a acelerar.

A portaria do prédio está vazia, mas posso sentir os olhinhos


cibernéticos se movendo sobre minha cabeça.
— Quando será que ele vai me contar que comprou o prédio? —
penso em voz alta entrando no elevador.
A porta do meu apartamento está trancada e com a trava de
segurança alta o bastante para impedir que Anjinho fuja novamente, por isso
preciso que alguém a abra para mim.
Dou dois toques na campainha, após enviar um sms para Nina, mas
para minha sorte ser completa, quem abre a porta é mamãe, e por seu olhar
deslizando por mim de alto a baixo, boa coisa não há para eu ouvir.
— Bom dia, Liana Joaquina.
— Meu Deus! Mãe, isto é um desejo de bom dia ou o chamado da
inquisição?
Ela cruza os braços e retorna a medir do alto a baixo, — dependerá
de você e suas ações.
Sorrio querendo demonstrar tranquilidade, mas o bendito e perfeito
café da manhã está a um passo de ir para fora do meu estômago.
— Mãe, esse não é um bom momento, me dê cinco minutos, —
passo por ela e ouço os seus passos apressados logo atrás de mim.
— Liana, espere o que houve?
— Agora não dona Maria…
Jogo a bolsa e arranco os sapatos pelo corredor e quase não tenho
tempo de chegar ao banheiro.
— Deus! Eu sabia, quando começo a sonhar e você se envolve com
ele… — ele segura meus cabelos e dá palmadas em minhas costas enquanto
me reviro do avesso. — O que fez Liana?
— Nada mãe, só bebi como uma condenada!
CAPÍTULO 46

INDISSOLÚVEL
“Admirável força indissolúvel das conquistas que, revestida

do auxílio, coroa de intensa beleza a chegada.”


Eli Odara Theodoro

MIKAEL

O
tic-tac do relógio de pêndulo na sala provavelmente deve ter algum efeito
calmante nos clientes que passam certo tempo sentado à espera de ser
atendido, mas no meu caso estou a ponto de arrancá-lo da parede e pedir para
tirarem da minha frente.
Ainda não entendi por qual motivo Angélica marcaria comigo em
uma clínica psiquiátrica, contudo se considerar em como a minha vida virou
de ponta a cabeça, esse é o melhor lugar para se estar.
A porta da sala ao lado se abriu, a Megera passou acompanhada
por outra mulher, a morena trajada com roupas informais não parece ser uma
médica. Porém, ela não me é estranha, ao ver seu rosto de forma nítida a
reconheço do casamento de Ramon e Carla. Está é Márcia, uma das
endroamigas que participa de uma ação social para ajudar mulheres com
endometriose, a mulher segura um criança em seu colo, a Megera a ajuda a
colocar a bolsa azul de bebê no ombro, enquanto arrulha a bochecha gordinha
do menino.
Elas conversam por um tempo, Angélica entrega a ela um envelope
e se despede com um aceno. Lembro-me de Ramon comentar que a loira usa
a clínica que ainda mantém em sociedade com Carla para poder ajudar
mulheres, e que esse grupo faz parte de um dos centros resgate.
Ainda não tenho certeza da extensão do trabalho que a Megera faz
por debaixo dos panos, mas sei ser algo muito sério, importante e perigoso.
Não faz muito tempo que ela apareceu com o braço imobilizado e não é a
primeira vez que ela é ferida em “acidentes”, mas seja o que for, é algo
louvável, se não fosse por ela, talvez teria perdido Lia.
— Mikael — ouço estalos de dedos à minha frente só então
percebo que ela está parada diante de mim com uma das mãos na cintura —
acordou?
Não respondo de imediato, ergo-me da cadeira e cruzo meus braços
à frente do corpo. — Estou bem acordado, posso saber por que este seria um
bom lugar para conversarmos?
— Porque tenho muitos compromissos para hoje e como disse se
quer minha ajuda, precisa fazer algo por mim.
O tom de voz com que fala me alerta, muito provavelmente é só
um reflexo da minha mente jogando sobre ela o que eu aconselharia para
mim mesmo agora. De forma alguma ela está em uma das suas crises, não
posso crer, para não demonstrar que estou realmente preocupado e alarmado
que algo possa estar acontecendo com ela, uso o humor ácido entre nós para
que com sutileza descubra o que está acontecendo.
— Não me diga que precisa de um responsável para sua internação,
— descruzo os braços e me aproximo mais dela —, se for o caso de precisar
de uma camisa de força Megera, pode ficar tranquila que cuidarei para que
usem a mais forte e não se preocupe, cuido do seu gato.
Ela bufa e começa a rir. — O que disse?
— Sei que não é muito fácil lidar com tantas coisas, e se por acaso
estiver precisando de férias, eu posso ajudá-la. Sabe que sempre vai poder
contar comigo, — digo a sério e com carinho retiro uma mecha de cabelo
solto sobre os seus olhos colocando por detrás da sua orelha — se precisar, eu
cuido de você.
— Hei! — Ela bate na minha mão e estreita os olhos.
— Não precisa de ficar agressiva, acredito que seu tamanho é “p”
de pirada? — não resisto, mas seguro o riso ao vê-la arregalar os olhos e
corar.
— Ovinho, parei de ouvir na parte da camisa de força, é uma pena
o seu tamanho não ser “M” de maluco, seria perfeito!
Não consigo segurar e acabo rindo da sua expressão e palavreado
nada elegante para uma mocinha falar.
— Podemos falar a sério, Promotor? — Ela olha em seu relógio de
pulso e suspira. — Não temos muito tempo, que tal um café?
Concordo seguindo-a até o final do corredor e entrando em um
amplo espaço arejado com sofás e cadeiras, alguns vasos de plantas estão
espalhados estrategicamente ao lado das janelas o que torna o ambiente com
cara de hospital mais acolhedor. A clínica tem um bom histórico, não me
lembro se alguma vez minha mãe passou em consulta por aqui.
Angélica segue até o outro lado e empurra a porta de vidro fosco,
uma pequena cafeteria está vazia, a atendente é ligeira ao anotar e
providenciar nossos pedidos.
— Megera, posso saber o que exatamente estamos fazendo aqui?
Qual o interesse em estarmos em uma clínica para que me ouça, se não é para
interná-la? — Estranho a forma que me olha principalmente por não ser
acompanhado de um riso sínico
Sem uma resposta direta, algo começa a borbulhar na minha mente,
não faz muito tempo que ela vem insinuando que eu preciso buscar ajuda.
Não seria exatamente uma surpresa se por detrás desse balcão saltasse meus
amigos com uma intervenção acompanhados de um profissional na área.
Após o lamentável episódio no escritório de Lia onde perdi o
controle de uma forma que não fazia a anos, meus amigos passaram a ser
mais reticentes comigo, às vezes tenho a impressão de que estão me tratando
como uma bomba prestes a explodir.
Isto seria uma mentira, Mikael? — meu subconsciente grita — não
seria uma mentira e por este motivo, tenho que ter muita certeza se quero
mesmo conhecer o filho da Lia, e levar a diante toda essa história prestes a
vir à tona. Será que é o melhor para minha saúde mental? O medo não é por
mim, mas ferir aqueles a quem amo.
— Tenho uma hora marcada com minha psico.
— Quer que lhe compre um pirulito após a consulta?
— Está sendo um paranoico, Ovinho.
— Não sei, com certeza não estou gostando do que estou
imaginando.
— Vamos por partes, antes que se estresse de forma desnecessária,
me passe o que tem em sua pasta, — ela estende a mão com a palma para
cima.
— O quanto você já sabe da minha conversa com os caras?
— Não muito, contudo você mostrou a eles algo e depois
resolveram fechar o bar, — ela sorri — seja lá o que for, tem a ver com o
DNA?
— Tem sim, e só para deixar claro, odeio essa coisa de você estar
de olho em nós o tempo todo. — Coloco a xícara sobre a mesa e aproveito a
deixa para falar exatamente o que penso sobre a sua espionagem, seja ela do
bem ou não.
— Estou farto de ter nossas vidas reviradas de um lado a outro com
todos esses segredos, a escolha dos nossos pais fodeu com tudo, deixou-nos à
mercê de uma psicopata do caralho que já tentou machucar Aline, que se
infiltrou na casa de Edu, que quase matou Lia e ameaçou a vida do Mikael,
porra!
— Faço das suas as minhas palavras, mas nem por um momento
acredite que não estarei de olho em vocês, se não fosse por isto, muito mais
coisas teriam acontecido.
— Então concorda quando digo que você sabe muito mais do que
nos diz?
— O que sei, só interessa a mim, ao menos até que possa fazer algo
real para mudar a situação, no momento só posso garantir a segurança
vigiando, se recorda que contrataram a minha empresa de segurança?
— Recordo, inclusive que anda com Christian a tiracolo como
parceiro de trabalho.
— Mikael, não vamos fugir do tema central da conversa.
— Não estou fugindo de nada! — exclamo jogando sobre a mesa
as fotos que retiro da pasta. — Só quero entender, como o rapaz que
conhecemos como sobrinho da Lourdes, está trabalhando com você e que
porra de ligação ele tinha com minha mãe?
— Ligação com a sua mãe? Nenhuma pelo que eu saiba.
— Quero acreditar que está tentando não me contar o que sabe,
pois, duvido que não tenha essa informação.
— Mikael, eu não tenho a intenção de mentir, já deixei claro o meu
posicionamento em relação a isto, prometi a você que assim que tivesse
qualquer pista de onde ela está, às entregaria.
— Christian fala russo com perfeição, diria até que ele é um nativo.
— Ele não tem nenhum sotaque, e sim é a porra de um poliglota,
russo, alemão, inglês, francês, catalão, espanhol, coreano e acredito que ele
está estudando mandarim se não me engano.
— Sem deboche, Angélica.
— Eu não estou debochando, o homem é culto, o passatempo dele
é estudar. — Ela dá de ombros.
— Porque nunca apareceu, me diz que ele realmente não sabe nada
da Verônica? Que não tem nada a ver com isto?
— Mikael! — Angélica se exaspera e o alarme do seu relógio no
pulso nos interrompe. — Droga, temos mais vinte minutos, escuta com
atenção, em relação a Christian, deixa que investigo qualquer coisa,
principalmente se ele tinha uma relação com Sarah. Isto para mim é
novidade, se reparar nestas fotos, em raras apareço, não tinha permissão para
fazer parte dos eventos, hora por estar de castigo, hora espancada demais para
aparecer em público.
— Porra!
— É uma porra, mas este não é o assunto aqui, não é? O que quer
de mim?
— Quero que descubra qual Nikolaevich está vivo.
Angélica solta as fotos que tem nas mãos, ergue os olhos e os fixa
sobre mim com uma expressão tão perplexa quanto a dos meus amigos.
— O-o que disse? — Ela estremece de forma visível e tenho a
sensação de que algo está se passando na sua cabeça e não é nada bom.
— Angel…
— Está dizendo, que alguém sobreviveu ao acidente?
— Acidente? — Não entendo o que ela diz de primeira, mas logo o
cenário que está se passando em sua mente fica claro. — Angel… — me ergo
e dou a volta na cadeira me colocando à sua frente, a levanto com rapidez e a
abraço, mesmo que ela me force a afastar. — Ele está morto, ok? O seu pai
está morto, dentre todos os corpos o dele foi o que melhor identificação teve,
o maldito está morto.
— E-eu, n-não… — ela pausa e me empurra com mais força e a
libero. — Estou bem, Ovinho! De onde tirou isso sobre parentes, seu pai
sempre disse que não tinham ninguém e realmente não tenho informações
sobre parentes vivos.
Ela pausa estreitando os olhos, recua um passo e passa a mão pela
trança jogada por sobre o ombro.
— É o que quero descobrir, de onde vem isto, sente-se, vou te
contar uma história, em menos de dez minutos.

Se fiz bem ou não em contar tudo a ela, só saberei depois que


começarmos as investigações, mas infelizmente não podemos negar que falar
de algo que remeta a nosso passado nos perturba de formas diferentes.
Sinto muito por Angel ter tantas coisas guardadas dentro de si para
esquecer, lembranças que a machucam, a entendo perfeitamente.
Após nossa conversa entreguei a ela o material que trouxe, já que
são cópias. Angélica tomou outra xícara de café, perguntei se precisava de
mim ainda. A audiência está marcada para o período da tarde, mas por ser um
caso com repercussão na mídia, prefiro chegar ao tribunal com pelo menos
duas horas de antecedência e manter-me recluso na sala da Promotoria para
reler os autos do processo.
— O que acha?
— Voltamos para as tiradas sobre camisa de força, — pauso
recolhendo o capacete sobre a mesa, — quero dizer “colocadas”?
— Muito espirituoso da sua parte, idiota.
Ela se ergue fazendo uma careta, mas logo sorri para alguém que
entra na cafeteria as minhas costas.
— Bom dia, Angélica!
Ao ver a mulher loira trajando um jaleco branco da clínica o meu
palpite inicial é reforçado.
— Megera… — sussurro.
— Doutora Daniele, tudo bem? — Elas se cumprimentam com
apertos de mão. — Este é o Promotor der Justiça, Mikael Nikolaevich.
— Muito prazer, creio já ter visto algumas entrevistas do senhor.
— É um prazer, pode me tratar pelo nome.
A mulher parece ser simpática e muito profissional. Ela nos
convida a seguir para a antessala para uma conversa informal. Espero que às
duas tomem assento em um sofá próximo à báscula com vasos de flores,
enquanto me sento um pouco mais longe em uma cadeira.
— Me disse no telefone que queria me fazer perguntas, e creio que
talvez o seu amigo também tenha esta mesma curiosidade?
— Sim, para a pergunta, quanto a ele…
— Estou acompanhando-a, — ressalto interrompendo a Angélica,
percebendo onde isto está nos levando, a fulmino com os olhos.
— Isto é bom! Então terei de pedir para que nos dê licença, — a
Doutora, mantém o olhar firme e o sorriso brando sem se abalar com minha
intromissão.
— Claro, nos vemos depois Angélica.
Me ergo e dou passos ligeiros em direção à porta de saída.
— Memórias reprimidas… — a voz dela é alta e clara e isto me faz
estacar no lugar.
— Precisam ser tratadas com acompanhamento.
— O que significam?
A médica hesita, talvez por ainda estar parado de costas, mas não
consigo sair do lugar.
— Isso significa que o paciente sofreu um trauma grave e apagou
isso da sua mente, suprimiu a lembrança como uma forma de se proteger
— Ou proteger alguém? — pergunto volvendo meu corpo em
direção elas. — Porque certas lembranças podem vir do nada e causam crises,
— me sinto envergonhado em contar o que realmente aconteceu em
determinados episódios, mas parece que a Doutora Danielle percebe isto.
— Bom, abordar certas recordações de uma forma despreparada,
pode desencadear uma série de acontecimentos.
— Pesadelos, insônia, fúria… — Angélica comenta encarando-me.
— Sim! — A Doutora enumera uma série de informações que só
me deixam ainda mais constrangido e muito desconfortável. — Entre todos
os sintomas, o que está sentindo em reverberação a isto? Seria raiva, ataques
de pânico e ansiedade…
— É melhor deixarmos isto de lado. — Volto meu corpo em
direção a porta, mas Angel é ágil e rapidamente entra na minha frente.
— Você sabe que tem coisas a mais e muito mais sérias para tratar,
não só em relação ao seu passado traumático e todas as merdas que passou
com seus pais. O que houve naquele escritório, o que sei e mais ninguém, as
madrugadas que corremos como loucos pela orla, porque você acorda em
gritos, as crises e… — ela pausa e baixa a cabeça.
— E o que, Angélica?
— O seu futuro, você disse que quer ter um, reconheça que precisa
de ajuda, deixa alguém fazer isto por você.
— Não posso mexer com isto agora.
— Está errado, esse é o momento certo. — Ela se aproxima e baixa
o tom. — Não faça por você, mas pela família que quer.
— Angélica…
— Negue se puder, só não faça isto agora. Além do que, — ela
ergue o envelope —, precisamos das suas memórias, todas elas. Seja por isto,
Lia ou Anjinho.
Aquilo que está escondido dentro de mim me transformou,
adormeceu partes das quais nem mesmo fazia ideia de que ainda estão aqui.
Sinto meus pés e mãos amarrados, é como se estivesse trancado dentro de um
quarto escuro em busca da saída. Como se houvesse perdido no tempo as
lembranças e os desejos de ansiar por algo real…
— Ok! Isto vai ser a porra de uma montanha-russa e não é um
trocadilho.
Existem coisas que são indissolúveis para o ser humano, o que tiver
de ser, será.

LIA
Contorno no semáforo e entro na Avenida Hugo Musso, o GPS vai
triangulando o caminho, já que é a primeira vez que vamos consultar nesta
Clínica Psiquiátrica em Vila Velha. Por ser uma consulta extra de
emergência, a médica que faz o acompanhamento de Anjinho me disse que
estaria aqui pela manhã.
— Tem um Hortifruti por aqui, podemos aproveitar e fazer umas
compras?
Olho pelo retrovisor e Nina ergue o celular pesquisando sobre a
área em volta.
— Podemos, mas depende de como ele vai estar.
Anjinho está com olhinhos focados na paisagem urbana, a avenida
é cheia de prédios altos e alguns chamam a atenção por serem todos
envidraçados refletindo a luz do sol.
— Meu amor, quer ouvir música? — chamo a sua atenção
enquanto sigo lentamente o fluxo de carros após abrir o sinal.
— Anjinho… — ele não me responde, outro daqueles momentos
silenciosos.
O prédio da clínica está logo a frente, estaciono e deixo que Nina
desça para subir as escadarias com Anjinho, enquanto levo o carro mais à
frente para estacionar. Confiro bolsa, documentos, chaves e celular, desligo o
motor do carro e desço, esperando sinceramente que uma consulta o ajude.
O psicólogo que estávamos acostumados, nos indicou essa médica
depois do primeiro episódio de crise séria que meu filho teve após a nossa
mudança, no começo me senti mal e muito preocupada, por ele ter que ver
uma psiquiatra.
Creio que toda mãe e pai, independentemente de seu filho ser ou
não autista, mas que precise do apoio de um profissional de saúde mental, se
sente em algum momento fraco, impotente. Confesso que a minha sensação
foi de ter falhado como mãe, como protetora. Na minha cabeça e mesmo
buscando todas as informações pertinentes em sites e grupos de ajuda para
pais, via esse momento como uma prova cabal da minha maior falha, contudo
aprendo com a Doutora Samira, que isto não é real.
Os sentimentos e medos, vergonha e de falhar, não podem nos
impedir de buscar o melhor para nossos filhos, é procurando ajuda que tudo
se resolve. Somos os super-heróis com capas e os médicos que nos auxiliam
os ajudantes de jaleco.

Deixo de lado minhas refeições, limpo as lágrimas que parecem


estar transbordando em mim nos últimos tempos e subo a rampa de acesso. A
clínica é ampla com as alas infantil e adulta separadas por uma vidraça fosca.
Os vasos de planta nas janelas sempre transmitem uma paz e dá ao ambiente
um ar menos clínico, o que é ótimo.
A sala de recreação entre a cafeteira e a ala adulta está ocupada, o
discreto sinal vermelho na lateral da porta indica que tem alguém em
conversa privada, sigo pelo outro lado e entro na ala infantil.
— Mamãe? Mamãe? Mamãe? — Anjinho me surpreende com sua
agitação, ele segura em minha mão, pisca seus olhinhos de forma frenética.
— O que foi amor?
— MAH… — ele sussurra, ergo os meus olhos e Nina dá de ombros
ao fitá-la.
— O que tem o MAH, quer os fones de ouvido?
Ele balança a cabeça e se joga em meus braços, apertando-me com
força.
— Filho, o que houve, fala com a mamãe.
— O Anjinho, está… oh! — ele coloca sua mãozinha contra meus
lábios e esconde seu rostinho entre meu pescoço e ombro. — MAH…
Ergo minha mão sinalizando para que Nina pegue o celular, mas
paro em meio ao meu pedido prestando atenção em uma conversa um pouco
acalorada vindo da antessala de recreação, contudo o som abafado pelas
paredes grossas, não é muito claro, me esforço para ouvir se tem alguma
música tocando por perto, mas não ouço nada.
— Filho, o que está acontecendo? — afasto seu corpinho, Anjinho
está com os olhinhos apertados, as mãos fechadas em punho e os dentes
cravados sobre o lábio. — Meu amor, o que foi, — levo a mão aos seus
lábios e com carinho vou passando o dedo por sobre a carne aprisionada até
ele abrir, — fala com a mamãe.
Ele balança a cabeça e volta a tampar minha boca, como não sei
que se trata, me ergo com ele em meu colo, me sento em uma poltrona
próxima ao vidro fosco e esperamos que a sua médica o chame.
Anjinho permanece calado, mas dou graças por ele não se recusar a
entrar no consultório com a Doutora Samira.
— O que aconteceu? — pergunto a Nina assim que a porta se
fecha.
— Não faço ideia, subimos, passamos pelo corredor, e como está
fechada a sala demos a volta, mas assim que entramos aqui ele estacou no
meio do caminho e ficou.
— Estanho, não consegui ouvir nada, mas como ele ouve muito
bem, deve ter alguma música ou TV ligada em algo interessante em outra
sala.
— Pode ser, só ouvi barulho vindo de lá, — ela aponta a mesma
sala.
Não entendo por que ele associar algo assim a MAH, já que
descobrimos o que as siglas significam para ele.
— Gio mandou mensagem, já deve estar chegando.
— Você deveria descansar e não ficar se agitando. Cuidado com
estes pontos.
— São alguns pontinhos Lia, relaxa. Tenho uma proposta para
você.
— O que foi?
— Como disse que quer passar o dia amanhã com o seu namorado,
— ela tem prazer ao enfatizar meu novo status, que só agora estou me dando
conta de que aceitei o pedido dele.
— Caramba! — Levo a mão a testa e escovo meus cabelos para
trás, — que proposta é essa?
— Que tal levá-lo para jantar hoje em casa?
— Na nossa casa?
— Hum… — ela sorri com ar malicioso — quem sabe não é um
bom lugar para uma conversa, cercados de boas lembranças.
Me calo diante do que diz e penso no que me proponho.
— De qualquer forma, seria como ele ver algo que deixe
confortável.
— Confesso que pensei nisto, e se ele não quiser e acreditar que
estou pressionando algo, entender como uma chantagem emocional?
— Lia, não começa a pensar demais. Faça um jantar e o convide,
ok? Eu e Anjinho temos planos de pernoitar com tio Gio.
— É mesmo? — pergunto cruzando meus braços.
Ela gargalha e coloca sobre a mesinha de centro o pé enfaixado,
reclamando de estar demorando, conversamos sobre amenidades enquanto
espero os trinta minutos da sensação de Anjinho passarem, para que possa
entrar. Só percebo que alguém está parado ao meu lado quando Nina que está
tagarelando arregala os olhos e encara a pessoa.
Ergo meus olhos e me assusto. — Angélica, o que está fazendo
aqui?
— O que você está fazendo aqui Lia? Dionísio não me disse que
estaria aqui. — Ela parece nervosa, estranho sua atitude e me coloco de pé.
— É uma consulta extra, e hoje Dionísio está de folga na parte da
manhã, só nos veremos após o almoço.
— Está sozinha?
— É óbvio que não, e pelo que percebo tem a agenda de consultas
do meu filho em dia. — Respondo cruzando os braços, só então percebo que
ela está segurando dois capacetes.
— Está com alguém? — pergunto e me permito fingir que não
reconheço de quem é o capacete maior em suas mãos.
— Juro que…
—Ah, está aí… — a voz rouca e um pouco irritada atravessa o
vidro fosco, sinto o meu corpo estremecer. — Preciso sair agora, sabia que
aquele maldito aprontaria algo, mas hoje dou fim nisto. Remarque a consulta
para mim, Doutora Danielle e me desculpa por sair assim.
— Tudo bem Mikael, são ossos do ofício. — Uma voz feminina o
responde.
Meus olhos recaem na porta fechada atrás de mim e se voltam para
Angélica.
— Angel? — Mikael dá dois passos e a vidraça que nos separa fica
a meio milímetro de ser descartada.
A porta as minhas costas se abrem. — Lia, pode entrar, — a voz de
Samira é um bálsamo e um tiro de canhão em meus ouvidos.
Tudo a minha volta parece em câmera lenta, pelo vão aberto vejo
as mãozinhas do meu filho brincando com lápis de cor e colorindo sobre a
mesinha infantil em um caderno de desenho próprio da sua terapia. Movo
meus olhos para o vão que liga as passagens, perco o equilíbrio dando um
passo atrás com olhos tempestuosos presos aos meus.
— Mikael… — minha garganta aperta.
Os olhos dele desviam-se dos meus e vão sobre a mesa onde está
Anjinho. Samira não o conhece, mas seria ridículo se não pudesse associar
aos dois de certa forma. A médica fecha um pouco à porta, Mika arqueia o
sobrecenho e a carranca que faz é mortal.
— Mika…
— Angélica? — a voz dele é inflexível.
Samira entende o momento e fecha à porta. Nina e Angel parecem
não saber para onde olhar, ele se aproxima, envolve os dedos em meus
cabelos na base da nuca e se aproxima de mim. Meu corpo estremece com o
pânico, sinto gotas de suor revestir o meu lábio superior e uma vertigem
embaçar minhas vistas.
— Eu disse quinta, fiz uma promessa e não faria nada impróprio
para uma criança. — Ele olha para o portal fechado, sinto a sua ansiedade no
puxão suave que dá em meus fios presos em seus dedos. — Eles fizeram isto?
O menino precisa de um psiquiatra, por conta do que houve na escola?
— Não é bem assim, mas posso te explicar, claro que muitas coisas
nos trouxeram em uma consulta extra, mas…
— Vou acabar com eles…
— Mikael…
— Me encontre no tribunal. — Ele me beija, seus lábios se
pressionam com força contra meus lábios ao ponto de serem esmagados
contra meus dentes. — Qualquer coisa, me ligue.
Ele se afasta, segura Angélica pelo pulso e quase a arrasta pelo
corredor.
— Nina… — sinto minhas pernas fraquejarem, atrás de mim
Samira me ampara antes que caia no chão.
— Lia, está tudo bem?
Penso em responder, mas ao olhar por sobre o ombro, o que vejo é
Anjinho de pé na porta olhando-me com um sorriso. Um que nunca vi em
toda a sua vida.
— Meu amor…
Só então percebo que ele reconheceu a voz do pai e não foi pela
música, mas sim por ouvi-lo acalentar sua dor na noite de sábado.
Quando o maior desejo que habita em nós é fazer a quem amamos
felizes. Os céus conspiram para que tudo aconteça dá melhor possível, mas
acredito que o destino encarregado desta missão, tem algum senso de humor
negro, meio sarcástico que sem querer, deturpa nossos planos e testa a nossa
capacidade de ficar de pé.
CAPÍTULO 47

INEXPLICÁVEL
“É preciso correr riscos. Só entendemos direito o milagre da vida
quando deixamos que o inesperado aconteça.”
Paulo Coelho

LIA

A
lgumas pessoas não sabem realmente o que elas querem, e outras hesitam
mesmo sabendo o que quer, entretanto, o que diligentemente chamamos de
oportunidade, chega de uma forma inesperada e só os que estão forjados,
conseguem aproveitá-la.
É no mínimo inexplicável as voltas que a vida dá, — essa é a
melhor afirmação que posso usar para descrever o que nos acontece, porque
outro termo eu desconheço.
Conecto o celular ao som do carro e deixo rolar a seleção musical
que compartilhei com ele da última vez que estive em sua casa. As músicas
românticas parecem um deboche para alguém na situação que me encontro.
Me sinto egoísta por me preocupar não apenas com meu filho e a reação de
Mikael, mas também pelo medo de perder o homem que amo.
— Eu não deveria ter voltado, não deveria… Se ele não suportar?
Se não conseguirem se adaptar, se… Droga! — esmurro o volante e esbarro
na buzina sem querer.
Passo a mão pelo rosto limpando as lágrimas, pensando em tudo o
que houve antes e depois desta manhã.
“Deus se está me ouvindo, por favor, me mostra como agir, me dê
as palavras certas. Suplico para que eles não se machuquem.”
Devo ser a pessoa que mais fura a fila das orações na última hora
querendo uma resposta, uma solução. Após ver Mikael sair do consultório,
minha única alternativa seria pegar o meu filho e tentar decifrar aquele
sorriso, entender o que ouviu e viu. Contudo, Anjinho não precisaria ser
interrogado por uma mãe a beira de um colapso nervoso, por este motivo,
simplesmente segui como se nada de mais tivesse acabado de acontecer.
— Só não consigo convencer as minhas pernas e mãos a pararem
de tremer. — comento em voz alta.
De volta ao tráfego pesado procuro manter os meus olhos atentos
em que direção estou guiando. Deixei Nina com Gio e Anjinho e segui para o
escritório, para poder me dedicar nestes próximos dias a meu filho e tudo o
que está por vir, pedi a Pedro para auxiliar minha assistente e reorganizar
minha agenda, que por sorte se manteve bem leve desde meu retorno ao
trabalho.
O que foi bom, para evitar um problema maior, já que a maldita
louca Barcelos, resolveu pedir auxílio aos amigos e tem causado certo
pandemônio com os clientes. Porém, isto é algo que sinceramente, não estou
preocupada, o meu foco é outro e bem mais sério.
De acordo com Samira, meu filho precisa ser afastado
imediatamente destes conflitos que parecem ter se tornando rotineiros, ela já
havia notado e feito observações sobre ele estar desenvolvendo um quadro de
ansiedade, minando o seu tratamento evolutivo.
Ouvir isto me deixou muito preocupada, principalmente pelas
reações que ele passou a ter ao expressar a necessidade da presença do pai.
A psiquiatra me explicou que a presença de Mikael para o filho é
algo positivo, mas que em determinadas ocasiões a criança expressou desejos
contraditórios e não sabemos ao certo por qual motivo, já que mesmo sendo
um autista verbal, ele tem certo grau de introspecção quando o assunto se
refere ao pai.
Por algum motivo, Anjinho passou a se fechar nas sessões ao falar
do assunto, a nossa conclusão é que algo tenha feito com que se reprima, e
este é um dos desencadeadores das crises de ansiedade que o leva a outros
episódios mais severos. Eu nunca o proibi de falar nada, mas a impressão que
temos, é que ele está retendo informação, como se uma carga extra tivesse
sido acrescentada à sua rotina.
O celular no suporte vibra indicando uma nova mensagem. Assim
que estaciono no subsolo, alcanço o aparelho revisando as mensagens de
Nina.

@NiNa_Santana: chegamos à casa, Gio está ajudando a fazer


uma mochila com roupas.
@NiNa_Santana: não se preocupe com nada, Anjinho está de
ótimo bom humor, vamos sair em alguns minutos.
@NiNa_Santana: Ah! Eu disse que estava rolando algo entre meu
irmão e a loira, ouvi eles discutirem por telefone. Acho que se encontraram
em à frente clínica.
@NiNa_Santana: os pontos estão intactos, voltamos para casa
amanhã por volta do meio-dia, Anjinho tem fisioterapia à tarde.
@NiNa_Santana: só mais uma coisa, pare de chorar por
antecipação, você é uma mulher de aço! OK? Te amo, Anjinho está
mandando um beijo, depois mais tarde mandamos um áudio. Boa sorte!

Envio uma resposta para ela, desligo o carro, limpo o meu rosto
refazendo a maquiagem e observo Dionísio descendo do SUV.
— Estamos atrasados Doutora, tem certeza de que quer subir?
O chefe de segurança que passei a considerar como a um amigo
sorri com meu ar decidido, ele faz uma mesura ao me ver saindo do carro, às
vezes ele me lembra papai com todo seu charme português e cheio de
salamaleques.
Subimos pelas escadas para evitar chamarmos a atenção, como
imaginei o corredor está lotado de pessoas esperando o veredito. Sabíamos
que esse caso seria complicado e muito divulgado pela mídia, mas nada
comparado ao que realmente está acontecendo.
Outro motivo para não envolver Mikael e o filho em uma relação
extrema. Não sei como o Promotor aguenta os ataques na mídia. As opiniões
não estão divididas, é fato o CEO é o culpado, contudo sua influência está
causando.
Me encontro contra a parede revestida de granito frio ao lado de
algumas obras de arte cara e espero, Dionísio se encosta ao meu lado e cruza
os pés na altura do tornozelo com uma postura despachada.
— Senhorita? Doutora dos Anjos? — ouço meu nome e ao me
virar o guarda que tenho contato direto, faz sinal.
— Boa tarde, Olavo!
— O Promotor, instrui-me a colocá-la na sala assim que chegasse.
— Prefiro esperar, está em andamento, — olho o relógio de pulso,
— quase no final, na verdade. É melhor não atrapalhar.
— Doutora, isto aqui vai virar um inferno quando o Juiz bater o
martelo, pelo menos do lado de dentro, o Promotor poderá ficar tranquilo.
Cedendo aos apelos do guarda aceito sua oferta e ao entrar na sala,
acabamos por chamar atenção de alguns engravatados, provavelmente
colegas de profissão, ávidos para bajular o réu, se aproximam e Dionísio os
coloca para trás.
— Obrigada! — Gesticulo como os lábios.
Entramos na sala, nos sentamos na última fileira, é impossível não
sentir meu coração disparar ao vê-lo vestindo sua toga, fazendo sua apelação
com tamanha desenvoltura e um brilho no olhar tão intenso que me arrepia
até o alto da cabeça.

Após a leitura o Juiz se dirige à bancada, o advogado não parece


ser daqui, mas por sua postura, acredito que já tenha estado em situação
similar para defender o seu cliente.
— A partir de agora, vamos analisar a validade do mandado de
prisão do suspeito, o senhor Salazar Ramos. Eu já neguei, os senhores
apelaram, o processo está em curso, bom me digam o que mudou, desde
então? — O Juiz informa ao tribunal e dá ao advogado a palavra. —
Advogado, fale, por favor.
— Senhor Juiz, o CEO Salazar Ramos do Grupo Ramos, lidera há
muitos anos. É um dos maiores contribuintes para a economia do nosso país,
e é um respeitável homem de negócios e filantropo…
Mikael mantém a expressão impassível olhando fixamente o
advogado, a princípio tenho a impressão de que faíscas correm pela sala, mas
logo a fama do Promotor se mostra verdadeira, o advogado em sua apelação
titubeia.
— As denúncias contra o CEO Salazar, ainda não foram
confirmadas. Por isto, pedimos que ele permaneça em liberdade enquanto é
investigado.
O Juiz faz uma anotação e cede a palavra para a Promotoria.
— Promotor, fale, por favor.
— Considerando a seriedade deste caso e o risco de fuga ou
espoliação de evidência, alegamos que o suspeito deva permanecer em
custódia, enquanto o investigamos e o processo corre, afinal a justiça
subentende se que aqueles que devem tem de pagar. Ser um homem de
negócios, filantropo e tão bem-sucedido, não dão privilégios para quem está
sob investigação por fraude, sonegação, subornos e possíveis queimas de
arquivo, entre outros crimes. Ah! Deixando claro sua prática mais factual, o
suborno para se livrar de penalidades judiciais e como um homem talhado
para defender a lei e aqueles que foram prejudicados pelo Senhor Ramos,
peço a permanência da prisão preventiva.
O advogado tenta protestar, mas o Juiz nega. Mikael se aproxima
da bancada e faz a apresentação das evidências, provavelmente isto já tenha
sido feito anteriormente, mas ele tem por premissa tornar relevante até a
última das provas, para que todas sejam irrefutáveis ao caso.
O juiz faz outra anotação e toma sua decisão.
— Com base nas provas entregues pela Promotoria, este tribunal
julga que existe uma evidência considerável de que o suspeito, habilmente
suborna em troca de favores, tem um gosto exótico por viagens de luxos em
jatos particulares, o que poderia ser inadequado neste momento,
considerando a seriedade das acusações, e a probabilidade da repetição do
crime e risco de vida das principais testemunhas deste caso, eu confirmo a
ordem de prisão.
O repicar do martelo batendo contra a madeira soa como sinos na
sala. A comoção dos espectadores é gritante, muitos aqui são vítimas, porém
do lado do criminoso há um excesso de pessoas, provavelmente seu séquito
corrupto que protestam contra a decisão, causando uma confusão.
O advogado de defesa, joga as mãos contra a cabeça e bagunça os
cabelos. Mikael permanece sereno, mas um pequeno tremular no canto da
boca é o bastante para saber que ele está satisfeito com o resultado.
O homem sentado na cadeira diante do Juiz é ladeado pelos agentes
responsáveis pelo transporte à prisão, assim que ele percebe o que realmente
está para acontecer, perde o controle, se tornando violento.
Assusto-me dando um salto do banco, meu coração dispara ao vê-
lo se encaminhar em direção a Mikael, os seus gritos ecoam no tribunal, o
juiz bate o martelo pedindo ordem.
Os agentes tentam controlá-lo, mas é preciso que os seguranças do
tribunal intervenham.
Meu coração dispara ainda mais, com as pernas bambas dou passos
incertos, coloco a mão por sobre o peito me sentindo aterrorizada. O homem
consegue liberar um dos braços e aponta o dedo em riste para Mikael
ameaçando abertamente.
— Você me paga, deveria ter aceitado meu acordo. Seus dias estão
contados Promotor!
Mikael ergue o cenho e desta vez ri com escárnio.
— Deus do céu, o que está acontecendo? — sussurro e sinto ser
empurrada por um homem que para na minha frente, o seu olhar turbulento
me assombra ainda mais, contudo desvio a atenção tentando alcançar o caos à
frente.
O advogado de defesa tenta controlar o seu cliente e é afastado por
um dos agentes, a desordem está formada.
Dou outro passos à frente e estaco sentindo um aperto firme em
meu braço.
— Onde pensa estar indo, Doutora? — a voz grossa em meu
ouvido me assusta.
— Dionísio, precisamos fazer algo, estou sentindo alguma coisa
estranha…
— Se colocar em evidência, só vai trazer problemas ao Promotor.
Problemas? Como poderia ser algo assim, se ele está sendo
ameaçado publicamente de morte.
Quero gritar, mas ouvindo a voz da razão fico onde estou
observando o final do bagunça com o suspeito devidamente algemado, pronto
para deixar a sala do tribunal.
Mikael finalmente abandona a postura rígida, e eu solto o ar preso
em meus pulmões, mas ainda sentindo a sensação ruim pairando no ar.
Seus olhos cruzam com os meus e vejo neles, pesar, e então
entendo um pouco mais seus medos, anseios e o que Dionísio acabou de
dizer. Ser pai coloca um alvo em meu filho quando o Promotor está sendo
ameaçado.
Constatar isto me faz enjoar e sem esperar que meu segurança me
escolte corro em direção a saída em busca do toalete mais próximo.

— Está se sentindo melhor? — a pergunta me surpreende, olho em


direção da porta no reservado e vejo Mikael com a toga nas mãos, o terno
preto com risca de giz com corte sob medida está aberto destacando a camisa
social e a gravata vermelha combinando.
— Está elegante, — minha voz está trêmula, lavo as minhas mãos e
passo água sobre meu rosto. — Não deveria estar aqui, precisa dar atenção
aos repórteres e ver a questão da documentação para arquivo.
— Fiz uma pergunta Liana, vai se negar a me responder?
— Estou bem, só fiquei surpresa e me senti sufocada.
— O quanto está se sentindo sufocada? O bastante para retroceder
no que temos a resolver? Abandonar a ideia de me ter por perto, não parece
ruim se considerar que alguns destes filhos da puta, são realmente
persistentes quando resolvem cumprir as suas promessas.
— Nenhuma das suas afirmativas serão levadas em consideração
agora, e este é o banheiro público do tribunal, — pauso — banheiro feminino
no qual o senhor não poderia estar.
— Liana…
— Combinamos algo e hoje pela manhã afirmou isto para mim,
não é?
— Vamos sair daqui.
— Concordo.
Sorrio ao aceitar sua mão estendida, mas um choque me faz
estremecer ao tocar meus dedos sobre os seus. Mikael me abraça firme e
consola da forma que melhor sabe, ele acaricia meus cabelos e não posso
impedir que novas lágrimas saltem aos meus olhos.
— Cheirosa… — a voz rouca e o gesto de aspirar o perfume em
minha nuca me faz soluçar alto, o que me deixa envergonhada.
— Que inferno, devo estar na pior TPM que já passei na vida.
— Hum… — ele geme e afaga as minhas costas. — Me desculpa
por presenciar algo assim, não imaginei essa explosão do criminoso.
— Tudo bem.
— Quanto a TPM, posso fazer brigadeiro com uma carga extra de
chocolate, massagem e… — ele se aproxima sussurrando em meu ouvido, —
te comer de um jeito especial.
— Sim, para todas as afirmativas, — recuo um pouco e encaro seu
rosto, mesmo sorrindo o seu olhar ainda é sombrio. — Mikael…
— Vamos!
Concordo com ele e o acompanho para fora do banheiro, por sorte
a confusão reinante no corredor nos dá uma brecha, contudo não é o
suficiente para passarmos desapercebidos.
— Promotor Nikolaevich?
A voz esganiçada da mulher me parece familiar, o som parece
reverbera por todo o corredor criando uma onda de silêncio e trazendo em
nossa direção muitos olhares.
Para me preservar, Mika me faz dar um passo atrás protegendo-me
parcialmente, alcanço o celular no bolso das calças e o ergo ao meu ouvido,
fingindo uma ligação, com o movimento meus cabelos desabam e cobrem o
meu rosto.
— Promotor, sei que não queria falar comigo e com meu marido
diretamente, mas preciso da sua ajuda com urgência. Sempre tivemos uma
ótima relação profissional e pessoal, o consideramos nosso amigo, por favor
preciso que intervenha com um caso ridículo que está me tirando o sono.
Estranho o silêncio de Mikael, mas à medida que a mulher despeja
suas agruras a voz dela vai se exaltando e se possível afinando como uma
gralha. Meus olhos quase saltam das órbitas ao perceber quem interrompeu o
nosso caminho.
— Senhora Barcelos, desculpe a indelicadeza de interrompê-la, —
sinto o tom irônico que usa, — mas creio que não possa estar tomando
partido a seu favor nesta causa, por vários motivos: o primeiro que nada
justifica uma agressão ao menor. Segundo: a senhora é uma reincidente e
precisa compreender que aqui se faz, aqui se paga, é a lei mais justa que
conheço.
— Promotor, isto tudo é uma mentira, a advogada em questão…
— A advogada em questão que a senhora agrediu, por acaso é a
minha mulher, — Mikael corta a fala da jabiraca e me faz dar um passo à
frente.
Seguro o riso ao ver a expressão da maldita, com elegância jogo os
meus cabelos para trás dos ombros, caindo em ondas, ele me encalça pela
cintura e então volta a olhar para a senhora Barcelos.
— Creio que não esteja lembrada da Doutora Liana dos Anjos,
todavia me recordo de tê-la apresentado em nossa festa de final de ano, até do
elogio que fez pelo conjunto de joias e o anel de noivado.
— Oh, Deus! — a mulher dá um passo atrás.
— Su-sua mulher, então, quer dizer o…
Mikael se aproxima da mulher muito mais baixa que ele, seguro
discretamente a sua mão em minha cintura, já que ele está prestes a me deixar
marcada com aperto firme.
— Senhora Barcelos, não sou um homem de fazer advertências,
prefiro a ação. Sendo assim, preste bastante atenção no que tenho a dizer:
fique longe da minha família ou vou garantir que a senhora passe um longo
tempo longe da sua, — Mikael recua — outra coisa, não é Liana quem a está
processando, se informe melhor com os seus advogados, para que esta
situação inconveniente, não volte a acontecer.
Deixando de lado que as minhas pernas estão moles, o meu coração
acelerado e literalmente emotiva, feliz e em êxtase com sua afirmação, nada
mais poderia me dar maior prazer em meio a tanto tormento do que ver o pai
do meu filho o defendendo.
Mikael me faz caminhar ao seu lado, ainda abraçados, nos
encontramos com Jairo e Dionísio no corredor, descemos os lances de escada,
até o meu carro. Sem qualquer palavra adjacente, nos despedimos dos
seguranças, Mikael entra pelo lado do carona e me permite dirigir.
— Para onde vamos? — O seu tom é tão circunspecto que me
deixa em alerta.
— Para casa, — respondo, ele não retruca, dou partida no carro e
contorno o pavilhão até a cancela de saída.
— Família? — pergunto parando para que o segurança abra a
cancela, Mikael me toma de assalto e me beija com sofreguidão, seguro o seu
rosto com as mãos espalmadas e deixo sua língua deslizar para dentro da
minha dominando tudo, arrasando minha consciência, derrubando minhas
barreiras e me consolando por tudo.

Não esperava que sua reação ao ver que a casa a qual me referia era
a minha. Ele me olhou com ar sério e não fez nenhuma pergunta até me ver
colocar a chave na porta de entrada.
— Espera, — Mikael segura minha mão e me olha fixamente, —
da última vez que estive aqui, não foi muito bom, não me lembro de nada do
lado de dentro, mas tenho a sensação de ter deixado algo destruído e…
— Está se referindo a minha porta que tentou rachar com sua
cabeça dura?
— Hum…
— Está tudo bem, na primeira vez que nos vimos aqui, você
destruiu um aparelho de jantar caríssimo da Aline.
Abstraio a sensação angustiante que me assalta ao ver que ele não
está me permitindo destrancar a porta.
— Anjinho e Nina estão com Giovane, terão uma sessão de cinema
e festa do pijama na casa do padrinho.
— Tinha que ser o Santana o padrinho dele? — Mikael solta minha
mão e dá um passo para o lado.
Não sei se fico feliz ou triste em saber que estava hesitante com
medo de encontrar a criança em casa, ou por vê-lo relaxar e fazer o possível
para esconder o seu alívio de mim.
— Ele é uma ótima pessoa.
— A Megera não concorda com isto.
— Acho que não deveríamos falar deles, não vamos chegar a lugar
algum.
— Ok! Que tal um acordo? Assim que passarmos por esta porta,
seremos só nós dois.
— Concordo, só nós dois. — Queria poder dizer para sempre e
acrescentar um número a mais na equação, mas prometi a ele e tentarei fazer
o que pediu.
A porta se abre e deixo que a folha de madeira se recue até encostar
na parede oposta, toco o apagador central que Aline adaptou depois do que
passou com o susto no galpão, as luzes centrais se acendem.
— Seja bem-vindo a minha casa, namorado. — Sorrio para ele e
sou novamente surpreendida com outro beijo.
Mikael me pega no colo, protesto dando soquinhos em seu ombro e
acabo pôr rir ao sentir para onde está caminhando.
— Sei que tem uma mesa de jantar aqui.
— Se enganou, pervertido. Agora temos instrumentos, um sofá
gigante e uma TV.
Começo a rir ao vê-lo estacar na porta de entrada da sala de estar
que Aline fazia de jantar, por ser de frente para praia.
— Não acredito! — ele me deixa sobre os meus pés e caminha em
direção aos instrumentos organizados metodicamente pelo filho, já que a
minha arrumação não agradou ao pequeno.
— São perfeitos, — ele ergue um violão do gancho e dedilha
fazendo um som límpido repercutir pela casa — Você quem afinou?
— Não, o máximo que sei fazer é dedilhar o piano, nada mais.
— Cantar…
— Muito pouco, a afinação é por conta do Anjinho, ajudo porque
as cordas são afiadas e tenho medo, mas ele mesmo afina os instrumentos, —
toco em meu ouvido e vejo a expressão no rosto de Mikael. — Quer tocar
algo?
— Não sei… — ele deixa o violão no gancho e se afasta, com as
mãos nos bolsos observando tudo à sua volta.
Sinto que estou à beira de me desmanchar em lágrimas, por isto
peço licença e com passos apressados subo ao segundo andar do apartamento
onde fica o meu quarto. Nunca me senti tão feliz deste lugar ser um duplex.
Encosto minha porta como uma covarde, deixo o meu corpo
escorregar pela madeira, meu coração parece que vai saltar do peito e não
posso dimensionar o que ele esteja sentindo, mas o conheço e sei que esse
primeiro momento precisa de espaço, sentir-se seguro dentro da sua
condição.
“Deus, sou eu novamente, esse é o último pedido, da noite,
provavelmente não, mas só me ouça, — elevo meus olhos focando o teto, —
se por acaso ainda tenho algum favor extra sobrando de tantos que me fez,
me ajuda…”

Não sei exatamente o que quero como ajuda, mas seja qual vier
será bem-vinda.
Retiro minha roupa caminhando para o closet e estaco a meio
passo, meu coração retumba ainda mais forte, levo minhas mãos aos lábios e
olho por sobre o ombro mirando a porta fechada, como se pudesse ver algo
através dela.
Um som maravilhoso, um dedilhado suave de piano vindo do
primeiro andar acompanhado da voz rouca e totalmente emocionada do meu
anjo mau, que na verdade, é o melhor anjo que poderia ter em minha vida.
Iço os meus olhos e agradeço, se este é o começo de um milagre
que seja o maior em nossas vidas.
CAPÍTULO 48

INFINITO
“Que seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.”
Vinícius de Moares.

MIKAEL

C
ertamente uma lembrança não pode ser construída a partir dos relatos de
alguém, é preciso sentir, tocar, viver uma emoção derradeira para que ela
possa enfronhar sobre a pele e espalhar-se como uma camada profunda até
atingir o coração.
Protelamos tanto esse momento, deixamos que as circunstâncias
nos guiassem para lados opostos da mesma estrada e sem pensar que isto um
dia pudesse voltar para nós, demos corda ao acaso, é assim que me sinto.
O som da porta sendo fechada com cuidado no andar de cima, não
amenizou a sensação angustiante e sufocante de ser flagrado em meu
momento de descoberta, mesmo que tenha me esforçado para que ela não
percebesse, foi inevitável não hesitar na entrada.
Ao ver o caminho no qual Lia tomou para trazer-nos para casa,
confesso ter sentido o desejo de refutar a sua ideia, me despedir e fugir.
No exato momento em que estacionou na garagem, um pensamento
me ocorreu: de certo que um encontro precipitado não nos fará nada bem,
esqueça isto Mikael, hoje sem querer provou a ela o quanto é inapropriado
para formar essa família.
Contudo, uma coisa é pensar, deixar que a minha mente jogue com
os meus medos e ansiedades, outra completamente diferente é conseguir
negar que algo aqui me atrai… — a cada nova informação sinto-me mais
perto de perder o controle e não quero imaginar ou supor nada além do que
ela tem me permitido fazer, contudo, tenho me forçado a manter a postura e
ser aquilo que garanti.
Olho a minha volta e o brilho do sol ultrapassando as cortinas
parcialmente fechadas criam fachos de luz pelo cômodo, dando um ar
estranhamente familiar. Não consigo evitar pensar neles aqui, apreciando à
vista, ouvindo música, organizando os seus instrumentos.
— Deus! — pigarreio para impedir de me sufocar.
Estar aqui é novo e estranho. Desde o momento em que as luzes se
acenderam tenho a sensação de que algo travou em minha garganta e não
deixa que o ar passe, é como se mãos invisíveis pudessem me sufocar.
Com as mãos nos bolsos da calça, caminho novamente em direção
aos instrumentos emparelhados lado a lado em pedestais e suportes.
Um riso nervoso escapa aos meus lábios, sinto o meu rosto
esquentar como se fosse um adolescente pego em flagrante. De todas as
reações que poderia ter neste apartamento, jamais imaginaria que correria
como uma criança empolgada ao ver brinquedos dentro de uma loja.
Me senti tão feliz em ver com meus olhos, o quanto o moleque
gosta de música, que não pude me conter, saber que ele mesmo cuida da
afinação é surreal, mas como suspeitava ao ouvir Lia descrevendo suas
aspirações, a criança é alguém especial.
— Especial por muitos motivos, — sem perceber ergo minha mão
direita e sinto sobre o tato a madeira polida do piano, — especial… — repito
como se isto pudesse explicar o que estou sentindo.
Não tenho como elucidar em palavras e talvez seja essa sensação
atordoante da qual meus amigos tanto se gabam sentir, que me faz
empreender uma busca minuciosa por vestígios, por migalhas.
— Graças a Deus! Ele tem uma mãe, está cercado de amor e
carinho.
Com um toque sutil sobre a tecla permito-me ser invadido
completamente pela sensação que está espedaçando meu peito, não quero que
ela me veja assim. Com a palma da mão retiro as lágrimas do meu rosto, mas
é impossível não resfolegar, não sentir o desespero se abater sobre mim.
Deslizo a mão sobre as teclas imaginando a criança escorregar os
dedinhos diminutos por elas. Sento-me no banco à frente do instrumento,
com as mãos sobre o teclado dedilho as notas que estão gravadas na coxa de
Lia, a música é como um bálsamo para a alma, me sinto transportado para um
lugar irreal.
As lágrimas persistentes se vertem em meus olhos, me sinto
envolvido pela sensação única de estar tocando algo dele, tão real e tão
vívido… e isto, me faz pensar nas mãos pequeninas que vi através da porta
aberta, colorindo tranquilamente, alheio a tudo a sua volta.
Não sei bem o que senti pela aproximação, ele precisaria só se
inclina um pouquinho e então essa angustia poderia ser extirpada para sempre
ou não.
Porque tenho a sensação de que ser ou não… alguém… na vida
dele, mudará tudo, é isto que mais me aterroriza.
Por instinto, os meus olhos focam nas escadas, eu não quero
perder, nunca mais quero perder a ninguém que tenha amado mais que a mim
mesmo, não quero perdê-la e não quero machucar a criança.
Minha mente gira com mil conjecturas, me deixo levar pela
melodia e canto, mesmo com a voz enrouquecida, o travo na garganta, sinto-
me em paz, não posso deixar de ver cada detalhe a cada estrofe executada.
Certa vez li um texto, onde dizia que deveríamos pausar por um
momento, tudo e observar em torno os detalhes, pois eles podem me contar
uma história muito mais interessante do que os fatos apresentados.
Creio que a autora estava certa. Sobre o tampo de uma mesa baixa
tem um maço de folhas coloridas repletas de desenhos, chamam a minha
atenção e me faz pensar no carinho que colocou no desenhou que fez para
mim.
Que me leva a outra lembrança: o envelope que achei no elevador.
O aroma adocicado com notas envolventes me atrai, Lia está
sentada nos últimos degraus da escada me observando, os olhos vermelhos
indicam estar chorando, os cabelos molhados jogados por sobre o ombro
cobrem parte da camiseta.
Me recordo vivamente das suas lágrimas e a dor estampada em seu
rosto ao contar-me sobre o autismo; do meu descontrole e na maldita
agressão que sofreu na escola e a possibilidade de tantas outras que tenha
passado.
Praguejo sentindo a raiva crescer dentro de mim. Tomo um fôlego
para que a minha mente entre em ordem.
Lia ergue as mãos e as passa pelo rosto, sorri e encosta a sua
cabeça contra a madeira do corrimão, retribuo o sorriso tocando a nossa
música.
A nossa música, que ela deu para a criança…

— Gostou do show particular?


Deslizo a mão sobre o teclado guardando uma última sensação
calorosa, com cuidado abaixo a tampa e espero que ela responda.
Discretamente limpo o rosto, aproveito para retirar a gravata e desabotoar os
primeiros botões da camisa e das mangas.
— Amei, — a voz enrouquecida me faz erguer a cabeça. Ela
caminha em minha direção sem hesitar, viro o meu corpo para que se sente
sobre minhas pernas. — Sempre amo quando toca, canta, até mesmo quando
recitava as composições como se fossem um poema.
— Essa não é uma música que fale de amor.
— Entretanto é aquilo que sentiu.
— Talvez tenha sido um pouco injusto, — pauso —, você brincou
comigo? Quis me deixar, me fazer sofrer?
— Não! Porém, não o culpo por se magoar, e a letra me diz o
quanto sentiu minha falta.
— Tão pouco quis deixá-la ir Liana, jamais. Era a escolha que me
deram, mas sabemos que aquilo nunca foi uma escolha. Eu sempre sentirei a
sua falta.
— Vou chorar. — Ela assopra para longe os fios de cabelo sobre o
seu rosto e não consegue evitar as lágrimas.
— Não chore, por hoje não vamos falar de nada que possa nos ferir
e nem suscitar mágoas, — pauso —, desde que pedi perdão a você tenho
vivido a cada dia empenhado para que seja real, que isto fique no passado,
mesmo que demore, um dia conseguiremos.
— Eu o amo tanto, Mikael.
— Shiii… eu a amo anjinha, muito mais do que imagina, — do que
imaginei que ainda pudesse amar.
— Então voltamos ao acordo? — ela sorri enlaçando-me pelo
pescoço.
— Completamente no acordo, desde que comece a me beijar.
Lia dá uma risada gostosa, estreita seu corpo ao meu, sem esperar
por minha iniciativa ela me beija como gostamos. Seus lábios deslizam suave
sobre minha boca e a língua atrevida pede passagem.
Minhas mãos a envolve pela cintura, o aperto firme a faz gemer e
se contorcer em meu colo criando um atrito sobre o meu pau já maltratado
pela calça ajustada. Ela se alça e vira ficando de frente para mim, volta a se
sentar cruzando as pernas em minha cintura. A boca carnuda desliza entrem
meus dentes, minhas mãos sobem pela lateral do seu corpo até tocar os seios
por debaixo da camiseta fina.
— Hum, adoro quando não usa nada por baixo da roupa… —
comento deslizando a boca por seu pescoço.
— Digo o mesmo Promotor. — A risada dela é excitante.
Levanto os seus cabelos molhados e mergulho na fragrância que
ela sempre coloca na nuca, só para me enlouquecer. A beijo novamente, os
movimentos restritos pelo espaço me fazem bater com o braço contra o piano,
isto reverbera em minha mente como um choque.
Cenas de sexo quente e desprovido de pudor na banqueta do meu
piano, sobre o tampo dele, Lia provocando uma onda sonora ao se apoiar nas
teclas enquanto a comia por trás me desperta para algo muito sério.
— Pare! — seguro a sua mão atrevida apertando minha ereção com
vontade. — Porra! Não faz isso, minha anja… — tomo uma respiração
pesada. Lia me olha com ar excitado, as bochechas coradas, mascando o lábio
inferior, ela rebola sobre minhas coxas com ar sacana. — Aqui não…
— O quê? Por quê? Como não?
Não consigo conter uma risada, ela se afasta e soca meu ombro.
— Hei! — reclamo segurando sua outra mão que vem sobre meu
peito. — Aqui não, é o piano dele. Por Deus, você é uma devassa, não quero
macular o instrumento de um inocente.
— OH! — Ela cora e salta do meu colo com a mesma rapidez que
se sentou. — Sou uma devassa? Quem é que está de pau em riste, Promotor?
Não respondo e sou obrigado a saltar para longe da banqueta, como
ela. É inevitável não nos olharmos como dois adolescentes pegos no ato
ilícito, mas desta vez pela minha consciência moral.
Se quem escreveu aquele maldito manual do “Namorado da
mamãe”, soubesse desses picos de consciência que tenho, de certo agregaria
mais uma cláusula restritiva.
— Sabe que acho fofo isso em você? — Lia comenta vindo em
minha direção e nos guiando para o sofá.
— Liana, — percebo sua intenção e os meus olhos recaem sobre os
desenhos do menino na mesinha —, que tal jantar, brigadeiro, massagem,
filme e sexo — pauso — em outro lugar?
Não acredito que disse isto, com certeza a porra da minha mente
está com algum problema, já que o meu corpo parece em ponto de bala e
rugindo de vontade de transar com ela.
— Tenho certeza de que a mesa de jantar deve ser interessante.
— Não tenho louças chiques para quebrar, e ainda nem paguei a
Aline pelas últimas.
— Não por isto, no casamento deles comprei louça inglesa pintada
à mão, pode ter certeza de que o preço compensou qualquer infortúnio.
— O quê? A cretina ainda me cobra, acredita?
Fico em silêncio, não acredito que estou constrangido. — Que tal
uma música?
— Tudo bem! — Ela se afasta com suspiro, abre as portas
deslizantes da varanda, a brisa do mar refresca o ambiente e liga o aparelho
de som sobre o móvel. — Se quiser tomar um banho, pode ser nesse banheiro
daqui debaixo, ou do meu quarto. Não tenho roupas que te sirvam, mas tolhas
e roupões não faltam.
— É o suficiente! — exclamo apreciando a playlist de músicas dos
anos 90, um rock romântico. — É a playlist que adicionou em casa.
— Sim, algum problema? Quer trocar? — ela coloca uma mexa de
cabelo por detrás da orelha, faço um gesto de negação.
— Ok! O que quer comer, — suas bochechas coram — quero
dizer, que tal massa, espaguete? — Ela limpa as mãos sobre o short
jeans, demonstrando o quanto está nervosa
— Hum… — me aproximo e a seguro em meus braços —, que tal
uma pizza?
Lia concorda com menear de cabeça, dou um beijo cálido por sobre
os seus lábios, a libero e sigo em direção ao banheiro no andar debaixo.

LIA
— Deus do céu!
Existe um momento mais constrangedor do que este?
Resmungo comigo mesma seguindo em direção à cozinha, retiro da
bolsa o celular, disco o número da pizzaria que estou acostumada a pedir.
Meu rosto está tão aquecido que preciso lavá-lo com água corrente da pia.
Essa não será uma noite como outra qualquer, disto já sabia, mas
de longe imaginei que as sensações e os sentimentos estivessem tão à flor da
pele em nós dois. Descer as escadas depois de um banho rápido, me deixou
sem ação.
A única coisa que pude fazer foi sentar-me no degrau e observá-lo
tocar. Vi seus olhos marejados e percebi quando limpou o rosto
discretamente. Não faço ideia do que esteja se passando na mente de Mikael,
mas seja o que for, espero que pese em seu julgamento o amor que
declaramos um ao outro, e principalmente o amor e carinho que percebo já
ser algo natural em relação ao filho.
Mesmo que não tenha a confirmação por minha boca, ele
desconfia, sabe que Anjinho é seu filho.
Essa certeza me causa ansiedade, minha vontade real é de pegar
meu filho e sair correndo para longe, apenas para não o ouvir me culpar, ou
de alguma forma, se afastar por sentir-se inadequado.
Contudo, as atitudes dele, que ainda foram poucas, mas tão ferozes
e impressionantes. Como o que fez hoje no tribunal ao deixar claro que está
disposto a proteger a sua família, me dá a esperança que tanto necessito.
Suspiro sentindo-me um pouco mais controlada. Nunca me enganei
e nem ele se fez de rogado ao admitir que o sexo é uma válvula de escape
para ambos, talvez tenha aprendido a abrandar meus desejos com a nossa
separação por tantos anos e o fato de não ter tanta experiência, com o tempo
isso ajudou-me a passar por esse isolamento físico, contudo estar com ele
desencadeou tudo novamente.
Eu o quero, de todas as formas possíveis, e ver ele ter tanto cuidado
com o lugar do Anjinho, só redobra esse desejo. Não sei qual será a reação
dele ao andar pelo restante da casa, se irá querer ver o quarto do filho, ou
como vai entender a decoração do meu quarto que me segue há anos.
— Surpreso? — pergunto em voz alta.
Talvez Mikael se sinta da mesma forma que o fiz em relação às
fotos dependuradas na parede sobre sua cama.
Me afasto do balcão voltando para sala, aproveito que ele está no
banho para conversar brevemente com Nina e saber como Anjinho está.
Graças a Deus! O seu retorno é positivo. Ela me envia uma foto dele sentado
com Giovane sobre o tapete da sala acariciando o gato.
Não posso evitar sorrir com as sequências de fotos que vão
chegando e um clipe de voz com Nina tentando fazer com que o meu filho dê
atenção para a gravação, sem sucesso.
Não me importo que isto aconteça, desde que esteja se divertindo e
sua distração tenha um bom motivo, como acariciar um gato que é
praticamente do tamanho dele.
— O que é engraçado? — sigo com olhar em direção a sua voz e os
travo no homem seminu com uma tolha em volta da cintura e outra sobre os
ombros enxugando com movimentos fluidos os cabelos.
— Nina disse que Anjinho está se divertindo com o gato do
padrinho.
— Ele gosta de animais?
— Adora!
— Vou colocar na área de serviço.
— Pode deixar, eu faço isto. — Estico o braço e esbarro no copo na
beirada da pia.
— Cuidado! — Mikael é rápido me segurando.
Nossos olhos se cruzam, agradeço sentindo os comichões andarem
por meu corpo e somos salvos pelo gongo ou não…

A pizza chegou rápido demais, e não tive tempo de arrumar uma


mesa, apesar de que para nós isto seria um pouco de exagero. Mikael pegou
as caixas e os guardanapos de sobre o balcão, o segui levando um jarro de
suco.
— Sem refrigerantes em casa, duas mulheres que vivem de dieta e
uma criança que não gosta de bebidas gasosas, a não ser que queira vinho.
— Sem problemas, — ele bate no tapete ao seu lado —, vem
comer.
Sentamos e o cheiro das pizzas sobre à mesinha de centro, faz o
meu estômago protestar alto. Rimos pelo novo constrangimento, que parece
ser o aperitivo principal da noite que começa a cair sobre o litoral.
O ar fresco se renova a cada lufada nova de brisa, comemos e
conversamos sobre amenidades, cada um falando de si. Mikael comenta
sobre a banda, os shows e um convite para tocar em uma casa noturna de São
Paulo no próximo mês. Sinto-me orgulhosa quando fala dos amigos que
motivados pela imposição dos nossos pais, acabaram por estudar direito e
tem carreiras bem estabelecidas na área.
Comento um pouco do meu dia a dia, nos últimos tempos, sempre
que conversamos, tenho me empenhado para que fique sabendo de tudo nos
mínimos detalhes sobre minha rotina com Anjinho, as novidades que vão
surgindo dia a dia, algo que disse, um desenho novo, uma nova palavra que
passou a usar ao conversar conosco. Mesmo que tenhamos dito que seriamos
só nós, ele acaba por fazer perguntas e entusiasmada me deixo levar.
A hora passa, a noite está no auge do lado de fora, o céu estrelado é
uma paisagem romântica vista pelas portas abertas da varanda, suspiro
encantada pela proximidade e por estar com ele assim.
Creio ser a primeira vez que realmente me sinto sua namorada,
nem mesmo quando éramos adolescentes pudemos fazer algo tão simples e
confortável, livres do medo de sermos pegos, ou depois já maiores, sempre
houve algo nos rondando negativamente.
Digo isto, porque não considero de forma alguma, que lhe contar
que é o pai de Anjinho como algo terrível. Não mais, só estou dando a nós
dois um tempo ao qual desejamos muito. Estamos criando lembranças, para
que possamos nos agarrar no futuro.
Relaxamos ouvindo música, me aconchego em seu peito, vez ou
outra nos beijamos, cantamos junto as letras das canções, ele me afaga e
retribuo.
Mikael comenta algo que me faz pensar nas ameaças que recebeu
hoje no tribunal e o que disse ao me seguir até o banheiro. Tentei tocar no
assunto, mas fui cortada antes mesmo que pudesse expressar os meus temores
e a opressão ruim que ficou em meu peito depois do que presenciei.
— Será que vou conseguir fazê-la relaxar, Doutora? — ele
resmunga me fazendo cócegas.
Não resisto as espetadas e os arrepios que percorrem o meu corpo e
explodo em gargalhadas.
— Eu me rendo! Pare, por favor!
Mikael rindo se afasta, se ergue e recolhe as caixas de pizzas. —
Vou limpar a bagunça, procure o filme, enquanto faço o brigadeiro. — Ele
pisca um olho, deixa um selinho em meus lábios antes de se dirigir para a
cozinha.
— O que deseja ver? — pergunto, ligo a TV e o filme do Happy
Feet está congelado, é impossível não sorrir ao ver que a cena predileta do
Anjinho, é o papai pinguim e seu filhote saindo do ovinho.
Não posso reprimir outra risada, lembrando das palhaças de
Angélica na madrugada que bebemos todas. Ela sabe ser espirituosa e
sarcástica quando se trata de apelidar a alguém.
— O que disse? — Mikael se aproxima com uma embalagem de
leite condensado. — Podemos ver esse filme.
Ele comenta animado, olho por sobre o ombro arregalando os
olhos.
— O que foi? Eu gosto, Angélica me indicou, na época não dei
importância, mas uns dias atrás assisti e gostei.
— Só pode ser brincadeira!
— Estou falando sério, — ele ri de forma encabulada —, já volto
com seu doce.
— Tudo bem! Quer mesmo ver este? Se quer ver este, veremos.
Mikael concorda comigo, me ofereço para ajudar com o brigadeiro,
mas sou relegada a me sentar e esperar boazinha no sofá.
— Essa toalha na cintura não está ajudando o meu juízo. —
Comento em voz alta, ele gargalha e o interfone toca me surpreendendo ao
saber que é Jairo.

Troco de lugar com ele por um instante, após atender ao segurança


na porta da frente e trocar algumas palavras em voz baixa, Mika volta a entrar
na cozinha e deixa sobre a mesa o capacete com as chaves da moto.
— Você pediu para que lhe trouxessem roupas?
— Sim!
Não consigo parar de rir ao vê-lo mostrar a mochila de couro preta
dependurada no ombro.
— Pode me dizer o porquê?
— Primeiro: porque sou fresco e não visto roupas sujas…
— Uau! Um homem sincero.
— Segundo: que já imaginava sua libido insaciável me secando a
cada segundo…
— A recíproca é verdadeira.
— Terceiro: preciso de roupas limpas amanhã.
— Eu poderia ter lavado a que tirou.
— Meu terno italiano feito sob medida?
— Está duvidando da minha capacidade?
— Amor, eu acredito que possa fazer qualquer coisa, mas aquele
terno é como se fosse o terno de 2 Bilhões de Dólares do Jackie Chan.[22]
Não consigo deixar de rir, mesmo que esteja me esforçando para
fazer uma carraca ofendida.
— Quero tacar essa colher de pau na sua cabeça! Assim como a
July fez com o Asno, contudo o Promotor será salvo por não ter um meio-
pau.
Ele sequer disfarça a cara de pau em exibir o meu objeto de estudo,
se gabando. Continuo a mexer o doce enquanto Mikael segue pelo corredor
para se trocar no banheiro.
Aproveito para lavar os copos e guardar o restante do jantar em um
recipiente plástico. Ele volta para cozinha, vestindo calças de moletom largas
que gosta e uma camiseta regata. Não faço comentários, mesmo que ainda
não tenha convidado oficialmente para dormir comigo, ele sabe que sem
Anjinho aqui, a noite é nossa.
Aliás como se precisasse de um convite, a mochila de roupas é
mais do que evidente que ele pretende passar a noite.
Mikael desde que me lembre, sempre teve esse cuidado de fazer
brigadeiro para mim em minhas crises de humor, épocas de prova ou TPM,
não sei quantos anos fazem que não como o doce de colher feio por ele, é
algo tão bobo, mas que está me deixando emocionada.
— Gosto desta música, — ele comenta parando de mexer a panela
e ensaiando uns passos de dança na frente do fogão.
— Vou aumentar o som.
— E os seus vizinhos? — dou de ombros, a resposta está na ponta
da língua para confrontá-lo sobre comprar o prédio e enchê-lo de guarda-
costas, o que é a minha desconfiança, mas prefiro deixar passar, por
enquanto. — Eles são bons vizinhos, não reclamam de nada.
— Você fica conversando com os seus vizinhos?
— Claro! — seguro o controle remoto e da porta da cozinha
aumento o som. — Não sou uma pessoa antipática, Promotor.
Ele estreita os olhos e morde o lábio inferior, sem comentários
volta a mexer a panela acompanhando o ritmo da música. O doce fica pronto,
ele despeja em um recipiente, o cheiro convidativo me faz roubar uma
provinha ainda quente.
— Hum… — gemo de satisfação — está muito gostoso.
— Sou melhor. — Ele se gaba sem qualquer modéstia.
Implicamos um com outro, tento fazer um novo furto, mas ele
retira o pote da minha frente e o ergue acima da cabeça.
— Deixe esfriar, faz mal comer tão quente.
— Não faz, me dá. — Pulo para alcançar, mas ele me enlaça pela
cintura e acaba com minha tentativa ninja de conseguir o meu doce.
— Dança comigo?
— Dançar? Não sei fazer isto Promotor, se me pedir para ajudar a
montar um caso, sou ótima, mas dançar?
— Dançar é como transar, precisa seguir o ritmo do parceiro.
Não faço comentários, me deixo ser guiada para a sala. Ele coloca
o recipiente sobre a mesinha, os seus braços me rodeiam, o enlaço pelo
pescoço.
— O que vamos dançar?
— Que tal essa… — ele segura o controle e passa as músicas.
— OH! Não vamos quebrar nada desta vez… — não consigo
deixar de rir, sendo embalada ao som de Crazy.
Aerosmith é uma das nossas bandas preferidas que ouvíamos
muito, nossa última dança ainda reverbera em mim…
Sigo os passos lentos, a sua voz rouca em meu ouvido cantando a
letra me faz sentir que posso ser capaz de enlouquecer com tudo que estou
experimentando.

I go crazy, crazy baby, I go crazy


You turn it on
Then you're gone
Yeah, you drive me crazy
Crazy, crazy for you baby

— Crazy, crazy for you baby…


— Com certeza, você me deixa louco Liana.
A boca dele desce sobre a minha, o desejo que protelamos antes
retorna com intensidade, me deixo levar por ele. Mikael absorve os
sentimentos que vão sendo liberados dentro de mim, assim como armazeno
os seus. A música acaba e outra se inicia, ainda temos tempo, um momento
só nosso para fazermos o que quisermos.
— Quero que isto se torne um poema, uma composição nova… —
sussurro.
— “Que seja imortal, posto que é chama…” — ele cita Vinícius de
Moares.
— “Mas que seja infinito enquanto dure…”
CAPÍTULO 49

IMPREVISÍVEL
“A vida é imprevisível. Por isso podemos fazer planos, mas segui-los à risca
é bem mais complicado do que divertido”.
As 7 Regras do amor

MIKAEL

E
la resistiu a ideia de assistimos ao filme, mas ver suas risadas e como está
confortável deitada comigo no sofá valeu por toda a insistência. Prefiro
segurar um segundo round de bolas azuis, do que perder cada nuance desta
noite mágica.
Não que todas que passamos juntos desde que voltamos a nos ver
com regularidade, não tenham sido. Todavia, hoje as sensações estão
ampliadas diferentemente, é como se ondas elétricas me percorressem de alto
a baixo e bombardeasse todo o meu sistema, meticulosamente preso sob
rédeas curtas.
O banho frio me ajudou, mas só até perceber que o bastidor vazio
do box, é a lembrança dolorida da noite caótica em que invade o seu
apartamento após ouvirmos os gritos.
A sensação de estar dentro daquele cômodo, onde não pude entrar,
mesmo sem poder explicar a percepção ruim que senti me trouxe um gosto
amargo na boca; senti-me tão desesperado, despreparado e de repente,
aprisionado, mesmo tendo a chave da cela em mãos.
Julgo muito minhas ações e me cobro muito desde que me entendo
por gente, tudo para me obrigar a me manter em linha, não perder o foco, não
me deixar dominar por medo de que algo possa me ferir, mas percebo que o
meu maior medo, nunca foi esse, e sim de ver alguém a quem amo ferido.
A gargalhada dela me faz desviar os meus pensamentos, a abraço
mais apertado, com a cabeça apoiada sobre o meu braço dobrado, Lia
continua a lamber o doce da colher com olhos fixos na tela da TV.
— Anjinho vê esse filme diariamente, mas não me canso de
assistir. — Ela olha por sobre o ombro apoiando a colher sobre o lábio —
Hum… são momentos de risos e lágrimas, acredito ser um vício?!
— Não sei, deve ser, — beijo sua fronte e voltamos a prestar
atenção na cena —, eu me identifico com ele!?
— Quem?
— Mano, o pinguim. — respondo olhando para a tela e não
percebo que Lia está me encarando, até que ela se levanta. — O que foi?
— Por que se identifica com ele?
— Não sei, por ser diferente e ter lutado comigo mesmo para me
adaptar ao mundo externo, mas ainda bem que não fiz isto por um longo
tempo. A primeira visão que tenho dele e do pai também, me identifiquei,
sempre tentando me enquadrar para agradar e querer ser protegido, ou queria
ao menos em partes, — dou de ombros, me sinto inibido com a forma
penetrante que está me olhando, tento trazê-la para meus braços, mas Lia
resiste. — O que foi?
— Você, tem noção do que está dizendo?
— Acredito que não perdi a minha capacidade de raciocínio ainda.
— O maior desejo do meu filho é ser o Mano e ter um… — ela
hesita e tão claro como água o que está se contendo em que diz.
— Liana… — me alço, quero tanto dizer as palavras, mas tenho
tantos receios.
Porque habilmente estou elevando as expectativas, mesmo que elas
sejam assombrosas, de que o moleque é… meu…, mas se não for? E se for, e
não souber lidar?
— Não faço ideia do que queira ouvir Lia, do que possa falar, mas
seja lá o que ele deseje, tenho certeza de que terá. — Aponto a cena
desenrolando, onde o pequeno pinguim sapateia loucamente sobre o pico de
neve e gradualmente contagia a todos. — Mikael será capaz de derrubar
qualquer barreira, sendo ele mesmo.
Ela se aproxima de mim, as suas mãos deslizam sobre a barba, os
seus olhos estão cravados nos meus e o comichão da excitação cresce
novamente e desta vez, não tenho a intenção de parar, a envolvo pela cintura
sentindo o seu corpo se aconchegar ao meu.
Os lábios adocicados resvalam nos meus e me permito ver a sua
expressão, nos beijamos com olhos postos um sobre o outro.
— Ambos serão capazes, Mikael! — sua voz aponta às suas
emoções.
Não tenho o que falar a não ser demonstrar o quanto estas palavras
são importantes, mesmo que não compreenda como um simples comentário
sobre um filme infantil, possa fazê-la se sentir assim. Voltamos a nos beijar,
Lia desliza suas pernas em volta de mim, enganchando o seu corpo ao meu.
— Creio que fizemos todos os itens da nossa lista, — comento
distribuindo beijos ao longo do seu pescoço, deixando marcas de mordidas
como uma trilha de migalhas, só para voltar deslizando minha língua por
elas.
— Quase todas… — ela resmunga e rebola sobre meu colo, sua
língua atrevida invade a minha boca, minhas mãos sobem pela lateral do seu
corpo até alcançar os seios.
— O que falta? — pergunto mesmo sabendo do que se trata.
Seguro o seio empinado e aperto o mamilo com piercing entre meus dedos
rolando a joia de um lado a outro.
Lia solta um gemido alto, suas mãos se agarram aos meus ombros
como se o choque da carícia mais apimentada a conecte em caldeirão de
sensações.
— A massagem, Promotor. Me prometeu, lembra?
— Quem disse que esqueci? — ela gargalha e geme ao sentir meus
dentes tomarem o lugar dos dedos, por cima da camiseta, sugo o mamilo até
senti-lo rígido em meus lábios, retorno o caminho entre os seios com beijos
até me afundar em sua boca, Lia geme se entregando.
Me afasto, pego o controle remoto desligando a TV. A seguro
firme em meus braços, ela entende a deixa enrosca melhor as pernas em meu
corpo e alcança os celulares que ficaram sobre o encosto do sofá.
— Música?
— Todas que quiser, — ela sorri e liga o seu aparelho por via
Bluetooth no andar superior, a playlist que estávamos ouvindo antes volta a
tocar.
Alço nossos corpos do sofá, retomo os beijos excitantes seguindo
em direção das escadas, subimos os degraus em amassos eróticos até alcançar
a porta que ela indica.
— Espera, — ela pede ofegante —, não sei o que o futuro nos
reserva, mas depois que passar por esta porta, nada mais terá volta, tudo
bem?
— Tudo bem! — respondo sem hesitar.
Ela me abraça e deita a sua cabeça em meu ombro, beijo a lateral
do seu rosto e abro à porta só para estacar ao me surpreender.
Tirando a área da sacada fechada por portas de correr com cortinas
finas de organza branca, as paredes do quarto são todas revestidas por papel
de parede marrom com rajadas claras que imitam um granito, o que contrasta
muito com a cabeceira da cama cinza clara e o baú de capitonê, o jogo de
cama mais minimalista, os travesseiros brancos e em tons escuros que se
compõe com as almofadas espalhadas sobre a colcha cinza escuro.
Os criados mudos têm um designer moderno, as luminárias, os
quadros na parede lateral, a porta do lado ao contrário a que entramos, que dê
certo leva ao banheiro e closet, tudo é perfeito. O quarto parece ser tirado de
uma destas revistas de decoração, contudo, os meus olhos mesmo captando
tantos detalhes se focam em duas coisas.
— Caralho! — a seguro com mais firmeza, ela afunda ainda mais o
seu rosto entre meu pescoço e ombro, sinto o toque suave dos seus lábios
com beijos sendo espalhados por minha pele. — Lia, isto são as minhas asas?
— minha voz quase não sai pela emoção que sinto apertando o meu peito.
A luz do abajur está ligada e o brilho da obra de arte em metalão
folheado em tons de ouro branco, Rose Gold e amarelo me fizeram estacar, o
formato da escultura imensa dependurada como um quadro sobre a sua cama
deve ter no mínimo um metro e meio de extensão do arco da asa até as pontas
de cada lado.
— As tenho, já faz alguns anos.
— Como?
— Mandei esculpir antes de voltar para o Brasil, no apartamento
que morei em Portugal tenho outro par idêntico, — ela ergue o seu rosto e
olha em direção as asas de ouro abertas que tomam toda a largura da cama
king size, — sempre quis ter o meu anjo da guarda por perto.
— Creio que conseguiu seu intento. — Respondo, ela se volta e
não seguro mais o meu desejo de tê-la por completo — Dá pra mim?

O sexo entre nós não requer explicações, basta que deixemos rolar,
vai fluir com desejo, apego e muita excitação. Ela desliza as suas pernas nuas
por sobre minhas coxas, abrindo passagem para que volte arremeter com
prazer em seu corpo.
Como prometido estou garantindo que receba sua massagem,
minhas mãos a seguram pelo quadril, para encaixá-la melhor sobre meu colo,
espalmo seu sexo encharcado e dedilho o clitóris.
— Amo quando faz assim, — ela morde o lábio inferior, os seus
olhos reviram nas órbitas. Seus gemidos me excitam desço minha boca sobre
o seio, capturo o mamilo e arrasto meus dentes sobre o broto rígido. —
Mikael!
Seu corpo estremece e o segundo orgasmo a faz estremecer em
meus braços, sinto meu pau ser esmagado por seu sexo, arremeto novamente
dentro dela e me deixo levar.
Elevo meus olhos, meus dedos estão segurando firme o seio com a
joia no bico, a argola brilha molhada pela minha saliva, mas são as letras
tatuadas na carne que me prendem. Nossos olhos se cruzam, inclino-me um
pouco e deslizo minha língua por sobre a tatuagem, o nome de um anjo...
Lia se arrepia, meu corpo continua a arremeter esporrando dentro
da sua buceta, meu orgasmo se prolonga na medida que ela estremece com a
carícia.
— Delícia sentir você me apertar assim… — me inclino sobre ela
deixando beijos sobre seu rosto.
Lia está ofegante e o resvalar da sua respiração aquecida contra
meu pescoço, me arrepia, — porra — mesmo que tenhamos acabado de
gozar, meu pau ainda está meio duro, sinto os espasmos do pós gozo, a
sensação do líquido quente se esparramando para fora a cada investida lenta é
erótica.
Sem tirar meu pau de dentro da sua buceta encharcada e ainda
pulsando a beijo no canto dos lábios. O suor escorre por nossos rostos, por
minhas costas e bíceps. Lia estica as pernas por sobre meu quadril e coxas e
espreme meu corpo com espreguiçar languido, como se eu fosse a porra de
um travesseiro gigante para se aconchegar.
— Adoro fazer sexo com você. — minha voz rouca percute no
quarto.
— Posso fazer da sua declaração a minha?
Ela sorri e novamente se estica toda, mas desta vez reclamando do
meu peso sobre seu corpo.
Com uma das mãos sobre suas costas e outra debaixo da sua bunda,
alço seu corpo sobre a cama, faço uma alavanca com um tombo perfeito para
o outro lado mantendo-a presa a mim por nossos sexos ligados.
— Não vai me soltar?
— Nem por um segundo.
Ela arqueia o sobrecenho e sua careta não passa despercebida.
— O que foi, não está gostando? — pergunto agarrando seu quadril
com força e enterrando meu pau um pouco mais, a fazendo sentir minha
ereção voltando a crescer.
— Deus! — ela exclama e esconde o rosto contra meu peito.
Não seguro um riso por sua timidez pós foda, Lia sempre tem essa
reação, nem de longe lembra a mulher desinibida que gosta de ouvir
sacanagem enquanto é fodida.
— Está dolorida, a machuquei?
— Não me machucou, dolorida por ser virada do avesso? Talvez.
Assada, com certeza ficarei.
Ela ergue o seu rosto, cruza as mãos por debaixo do queixo
apoiando os cotovelos sobre meu tórax.
—Ficará, — faço-me de desentendido, para sua insinuação.
—Pretendo... — seu sussurro vem acompanhado de um gemido
gutural.
Os dentes brancos perfeitamente alinhados, mordisca o lábio
inferior, marcando-os com pequenas linhas ao soltar a carne polpuda
lentamente.
Subo minhas mãos para sua cintura fina, passeio os dedos pela pele
suave, indo e vindo até repousar no osso da bacia. Lia continua na mesma
posição com a parte superior do corpo, já da cintura para baixo ela crava os
joelhos contra o colchão e começa um suave rebolado.
— Lia…
A bunda empinada, com ancas largas se ergue e desce lentamente
sobre meu pau. Os lábios macios da sua buceta depilada deslizam sobre o
caule grosso como um beijo apaixonado.
— Você me deixa louco com isto!
Quem está ofegante agora, sou eu. Ela sorri, mas não é qualquer
sorriso, seus lábios se abrem em espasmos, o gozo anterior escorre em
profusão entre nós facilitando os seus movimentos. O cheiro de sexo, suor, do
seu perfume intoxica o ar, puxo arfadas grandes inundando o meu olfato com
as partículas sabotadoras.
— Desta forma vou gozar em minutos, — reclamo sentindo que
uma vez não foi o suficiente, meu corpo está preparado para mais.
— Quero em segundos, Promotor. Dá pra mim?
Ela usa a mesma expressão que usei ao derrubá-la nesta cama, e se
isto não for o ponto de ebulição que me fará gozar mais uma vez, como um
adolescente descontrolado, provavelmente o beijo doce que ela me dá o fará.

A madrugada abriu caminho para o quase amanhecer. Após


tomarmos uma ducha, nos deitamos com as cortinas abertas para vermos o
céu se tingir em tons de cinza-claro e começar ganhar matizes rosados. A
aconcheguei mais em meu peito, minha mão direita está repousada sobre a
coxa tatuada que apoiei sobre minha cintura, com a outra mão acaricio os
cabelos longos deixando-os cair em cascata.
Lia boceja pela terceira vez, balanço minha cabeça sentindo o sono
chegar.
— Amo fazer amor com você…
Sussurro, ela se sobressalta, mas não deixo que responda, às vezes
uma declaração sincera não precisa réplicas vocais, apenas um olhar
apaixonado basta.
— É melhor eu pegar a minhas coisas e ir para casa enquanto é
cedo, podemos nos encontrar para o almoço, o que acha?
— Acho que é malvado demais, isto sim, o mínimo que poderia
fazer é me servir de travesseiro um pouco.
— Nunca disse que sou bonzinho, essa coisa não combina comigo.
— Você gosta de me provocar… — ela reclama e belisca meu
mamilo.
— Gosto mesmo é de provocar arrepios no seu corpo, — seguro
sua mão e beijo o pulso, — de sentir sua carne tilintar pelo medo e a
ansiedade que a minha presença causa, — brinco deslizando a língua por sua
palma.
— Não se atreva, Promotor.
Ignoro o seu aviso, resvalo minha mão por suas costas nua e a trago
para cima do meu peito. — Gosto de deslizar a minha boca sobre a sua e te
marcar como minha.
— Humm…
Baixo o tom de voz e cochicho em seu ouvido.
— Sei que me quer atravessado bem fundo dentro de você, sentindo
meu peso sobre o seu corpo, deixando suas garras afundarem na minha
carne com a mesma intensidade que meu pau arremete no seu. Sei que reluta
em admitir e, ao mesmo tempo, pensa que me tem em rédeas curtas.
— Só devolvo o que me dá, meu amor!
— Prefiro assim! Gosto de olhar nos seus olhos enquanto deslizo
em uma trilha quente em direção ao ponto máximo de prazer, de ver como
reage enquanto minha língua afiada desliza entre os lábios lisos e molhados
do seu sexo colhendo a prova da sua excitação.
— Você está me enlouquecendo! — ela se ergue parcialmente e me
encara. — Dorme um pouco, não vai embora, Anjinho e Nina só vão voltar
depois do meio-dia.
— Não sei se vou conseguir dormir, estou me sentindo ansioso, —
confesso, mesmo que esteja me rendendo gradualmente ao cansaço. — Posso
fazer uma pergunta?
— Sim, óbvio. — Lia se ergue e senta-se de frente para mim, ela
fica visivelmente nervosa, sigo seu exemplo e me sento.
— Porque não tem porta-retratos espalhados pela casa? Não tinha
quando você morava com Aline e me disse que era por estar tudo em um
depósito, mas agora, é por minha causa?
— Não! Mikael, por favor não pense isto. — Ela se aproxima. —
Tivemos problemas com Anjinho após vir morar aqui, aquela crise que
presenciou, não foi a primeira e os porta-retratos passaram a ser um perigo
constante.
Ela engole em seco, pigarreia e me encara fixamente. — Estão
todos no meu closet, se quiser ver.
As mãos trêmulas se reúnem no colo, não gosto da sensação de
desconforto que ela está sentindo, isto piora meu estado psicológico, é
horrível, tenho a sensação de impotência, por tocar no assunto que esteve me
incomodando a noite toda, enquanto estive na sala, após fazermos amor e
poder voltar a observar o seu quarto.
Às vezes é bom arriscar e experimentar o improvável, aquilo que
não estava em nossa lista de “coisas a fazer”, contudo me conheço e sei que
sair do que está estabelecido em minha mente, pode pôr tudo ladeira a baixo.
— Não precisa, em outro momento, assim que ele estiver melhor e
você voltar a decorar a sua casa com eles. — Prefiro assim, senão tudo fica
meio mecânico e sem graça.
Não demonstro que percebo o seu suspiro de alívio, devemos estar
abertos a pequenos desvios em nossos roteiros pré-determinados. Me rendo
aos seus pedidos, programamos os celulares para despertar às onze horas, é
tempo suficiente para um banho e sair antes que o menino chegue,
principalmente por termos em mente que hoje, eu e ela teremos uma conversa
definitiva e prefiro que seja longe dos ouvidos aguçados dele.
ANJINHO
Hum… humm… hu, hu, hu…
O tio Gio, bagunça o meu cabelo, beija minha bochecha e faz um
comentário.
— Tem alguém que ficou de bom humor!
— Graças a Deus! Depois do que houve na escolinha, confesso que
estávamos com medo.
— Ele não comentou nada após ter saído da clínica?
— Shiii… Não, só ficou assim cantarolando.
Os adultos sempre serão engraçados para mim. Será que não
percebem que falar baixinho não adianta? Ainda estou ouvindo tudo, mesmo
que não entenda?
As portas do elevador se abrem e uma moça vestida toda de preto
sai de lá com um capacete de moto na mão. A tia Nina coloca a minha
mochilinha nos meus ombros e recua para ela passar.
— Boa tarde, — tia Nina a cumprimenta, a moça responde e a voz
dela me faz olhar em seu rosto.
— Titxia? — A tia da canetinha veio me ver.
— Oi? Filhote de pinguim, como estão indo os desenhos?
— Fiz os desenhos.
— Sim, e são lindos! — Ela passa por mim e faz como o tio Gio
bagunçando o meu cabelo.
Quero mostrar a ela os desenhos novos no meu caderninho, mas
algo parece errado, o tio Gio a cerca e fala baixinho, desta vez realmente não
ouço. A tia Nina segura minha mão e nos afastamos.
A tia loira olha em minha direção e faz igual à mamãe quando quer
gritar, mas segura porque estou por perto. Ela balança a cabeça, o tio Gio não
parece feliz, ele segura a sua mão e ela pisa no pé dele.
— OH! Riririri…— Coloco a minha mãozinha na boca rindo, a tia
Nina me olha e depois por sobre o ombro e vê o tio Gio morder a mão para
não falar uma palavra feia.
A luz do elevador se acende, as portas se abrem e nós entramos. O
tio Gio se aproxima da tia loira e diz algo em seu ouvido.
— A tia loira…
— Da tchau para ela querido, Gio? — ergo minha mãozinha e
aceno, o tio entra no elevador.
Balanço minha cabeça, adultos são muito engraçados, mas nem
tudo é engraçado. A tia loira parece que vai chorar, isso faz meus olhinhos
arderem e o tio Gio está com cara de bravo e triste.
Não gosto de ficar assim, ainda estou muito triste porque o Yuri
rasgou meu caderninho e brigou comigo, não gosto quando ele puxa o meu
cabelo, me chama de esquisito, mas gosto quando diz que os meus desenhos
são bonitos e agora que sei como a mamãe dele é malvada. Entendo por que
ele tem medo dela. Ainda me dá vontade de chorar quando lembro que ela me
bateu. Contudo, a titxia Mikaella prometeu que o papai vai me proteger.
Os botões piscam, os números parecem tão bonitos, levo minha
mão ao painel para apertar, mas tia Nina e o Tio Gio não deixa.
— Sem comunicação com elevadores, seu danadinho! — ela ri e
faz cosquinhas em minha barriguinha e me fazendo rir.
— Hum…
Antes que as portas se fechem, olho para fora e vejo a tia loira
abrindo entrando em seu apartamento. Eu não sabia que ela morava aqui e
nem que o tio Gio a conhecia, agora quando ficar com saudades ou quiser
mostrar meus desenhos novos, é só pedir para ver ela.
O elevador faz um som engraçado, não é igual da minha casa, mas
não é difícil de aprender como funciona se ficar prestando a atenção; isto me
deixa com vontade de chorar, no dia que a mãe do Yuri foi malvada, eu
queria ver o papai, porque a mamãe estava muito triste, e tinha se machucado,
por isso peguei o presente que a Fadinha me deu e entrei no elevador, mas
não deu certo.
— Anjinho, vamos agilizar rapidinho com o banho quando
chegarmos em casa para podermos sair com a mãe e depois vamos ao Haras.
— O Haras?
— Sim, meu amor, hoje temos equoterapia, é dia de vermos
Ventania tomar banho.
— A Fadinha?
Se a titxia estiver lá, ela pode me dar outro endereço do papai.
— Não meu amor, a Fadinha foi fazer uma viagem, para estudar
violino, lembra?
Hum…
— Hei! Campeão, que carinha é essa? — Tio Gio me pega no colo,
tia Nina passa à nossa frente e vai pulando igual um coelhinho até alcançar o
carro. — Porque está triste, logo a sua amiguinha volta, ela não disse que
seria uma viagem rápida?
Tio Gio afasta o cabelo que está cobrindo os meus olhos para poder
me ver melhor. Não posso falar da titxia, por isto fico fazendo Shiiiii, na
minha cabeça, como ela me ensinou.
— Anjinho não quer ir ao Haras? — a tia Nina entra no carro e o
tio Gio me coloca na cadeirinha.
— Vamos conversar com a mamãe, tudo bem? — Ela sorri, segura
minha mãozinha e a beija, — agora dê um sorrisão para mim.
Hum… Aquela mania de sorrir toda hora voltou.

Hum… humm… hu, hu, hu…


A tia Nina me ajuda a guardar meu caderninho na mochila, o tio
segura a bolsa com nossas roupas. Nem percebi o caminho até aqui, hoje não
quero ficar olhando para nada, meu coração não está feliz.
Seguro meu Happy bem apertado, tio Gio nos deixa na porta do
elevador de onde moramos.
— Engraçado, ela não está atendendo o telefone.
— Deve ter saído para um almoço de trabalho, com aquela pessoa.
— Pode ser, avisei que chegaríamos após o meio-dia.
— Já são uma da tarde. Vou levá-los até lá em cima.
— Não precisa, está com pressa.
Tio Gio resmunga algo, enquanto esperamos o elevador, conto os
carros que ficam na garagem, um ao lado do outro: um… dois… três…
quatro…
Hum? No lugar do carro cinco, tem uma moto, daquelas bem
grandes, igual que a mamãe gosta. Quem será que tem uma moto assim?
Vrum…Vrum…
O tio Gio entra no elevador e não consigo mais ver a moto, uma
pena. A viagem é muito curta, às portas se abrem, a tia Nina vai pulando de
coelhinho até a outra por onde tentei sair.
— Happy… — abraço ao meu amiguinho bem apertado, olho para
dentro de casa, mas não ouço ou vejo nada.
Queria que conseguisse ouvir a voz do MAH de novo.
A Fadinha diz as memória felizes fazem a gente feliz. A doutora
que cuida da minha cabecinha, falou com a mamãe que as memórias são
alimentadas por sentimentos.
Tudo que elas falaram parece ser muito confuso; para mim tudo é
apenas pecinhas de quebra-cabeça que fazem o coração do Anjinho fazer
tum-tum.
É como no dia que ouvi no celular do tio Gio, a voz do voz do
MAH, o meu coração quase fez BOOM!
Isto me deixou tão feliz, igual quando vi as fotos do papai, mas foi
muito, muito melhor ouvir a voz do MAH bem pertinho de mim que o
Anjinho estava tão triste.
O meu coração só faz um tum-tum acelerado quando penso na
promessa da mamãe; nas fotos que a tia Mikaella me deu e que perdi; e agora
sempre quando ouço a voz do MAH tão pertinho de mim.
E lá no fundinho, eu e o Happy, achamos que o MAH é o papai…
Shiiii… segredinho.

— Preciso ir Nina, se cuida e faz o repouso, mas se precisar de


ajuda e Lia não estiver me chama.
— Fique tranquilo que damos conta do recado, não é Anjinho?
— Ok! — Tio Gio olha de novo no relógio e começo a pensar que
tem algo especial ali. — Preciso mesmo ir.
— Está indo se encontrar, ou melhor, correr atrás dela?
— Não se meta nisto!
— Qual é Gio, estou preocupada, ela quase te mata só com um
olhar a cada vez que se encontram, — acho que estão falando da tia loira, a
tia Nina se aproxima falando baixinho, — você já conseguiu o que queria, ao
menos está quase lá…
— Nina!
— Estou dizendo alguma mentira? Sua missão era recuperar o
Testamento, e isto foi feito, para eles, agora que tem a informação que
faltava, tenho certeza de que você já pode rastrear a segunda parte do
documento sozinho. Porque continuar indo atrás de uma mulher que está
colecionando ordens de despejo, que vive brigando com você, que…
— Campeão é melhor ir brincar, porque sua tia Nina, hoje resolveu
falar pelos cotovelos. Te amo!
— Hum…
Tio Gio beija o meu rosto e abraça forte, ele me coloca no chão,
entro em casa, mas ouço tia Nina fazer um barulhinho e volto para ver se está
chorando.
— Não me diga que está realmente apaixonado por ela.
— Nina, não estou conversando sobre isto.
— Tenho muito medo pelos dois. A Lia vive falando que Angélica
não suporta que mintam para ela, e a própria já falou isto com você. Os dois
podem sair machucados disto. Esquece isto, nós não vamos recuperar o que
perdemos.
— Vem aqui, — tio Gio a abraça e fala algo em seu ouvido que a
faz chorar de verdade, mas não sei o que é.
—Hum…Happy, os adultos são tão complicados. — falo baixinho.
Quando volto para casa gosto de ver o Mano e tocar o meu piano,
por isto vou até à sala de música, coloco o Happy no sofá, pego o controle e
ligo a TV.
Engraçado, alguém tirou o Mano e o papai pinguim de onde estava,
coloco o controle onde a mamãe diz que tem de ficar, mas no lugar está um
pote com duas colheres de doce.
— Hum!
Que engraçado! Pego o Happy no colo para colocar ao meu lado no
piano, entretanto não faço isso, porque alguém mexeu no meu piano e baixou
a tampa, o banco está diferente.
— Hum!! Não gosto! — Minhas orelhas esquentam, alguém mexeu
no meu piano. — Oh! O desenho do papai?!
Meu coração faz tum-tum tão forte que dói na minha garganta, os
desenhos estão na mesinha, mas alguém mexeu aqui também. E, não foi a
mamãe ela sabe que não gosto. Abraço o Happy com força, olho para todos
os lugares procurando se tem algo mais fora do lugar.
— Anjinho, pega água para tia Nina, amor? — o tio Gio entra na
sala com a tia Nina no colo, ele caminha até o sofá e a senta falando coisas de
adulto que não entendo.
— Hum… — corro na cozinha para pegar a água. — Oh! — Coloco
a minha mãozinha sobre a minha boca e ando devagarinho até a mesa, — é da
moto, Happy.
Sobre a mesa tem uma chave e um capacete, igual da tia loira. Bem
devagarinho levanto o meu dedinho e quase consigo encostar, mas o tio Gio
me chama. Coloco o Happy na mesa, abro a geladeira, tiro uma garrafinha de
água que a mamãe deixa eu beber e a levo para tia Nina.
— Anjinho vai na mamãe!
— Ela não está em casa querido! — a tia Nina funga e toma um
golinho de água.
— Tsc… Anjinho vai na mamãe!
— No quarto da mamãe? Tudo bem! Desde que não abra porta da
varanda, ok?
— Hum!
A tia Nina sorri para mim, o tio Gio bagunça os meus cabelos indo
em direção à porta da sala. Corro para a cozinha, seguro o Happy com um
abraço apertado e fico olhando mais uma vez para o capacete.
Uma das fotos do papai, que a titxia Mikaella me deu, ele estava
sentado em uma moto grande com um capacete na cabeça, igual esse.
— Happy, será que a mamãe trouxe o meu pinguim? — Falo
baixinho com meu amiguinho e sinto os meus olhinhos arderem e aquele
tum-tum bater ainda mais rápido no meu peito, tão rápido que preciso pôr a
mãozinha sobre ele para segurar no lugar.
Volto para a sala e subo as escadas bem devagar, minhas
mãozinhas estão ficando molhadas, a minha garganta está doendo e os meus
olhinhos ficam embaçados.
A porta está fechada, seguro na maçaneta e abro sem pressa, entro
e tenho que colocar a mãozinha em meu rosto para esconder os meus
olhinhos do sol.
— A mamãe deixou a cortina aberta, por isto não consigo ver
direto? — falo baixinho no ouvido do Happy.
Com olhos fechados dou mais alguns passos até encostar na cama
dela, esfrego os meus olhinhos que estão doendo um pouco com a claridade,
abro um e depois o outro e me assusto.
Meu coração nunca fez um tum-tum tão forte, parece que vai
explodir, posso sentir na minha garganta, ele batendo acelerado igual um
bumbo de bateria.
A mamãe está deitada de costas para à porta da varanda. Atrás dela
tem um corpo bem grandão a escondendo do sol. Dou a volta na cama, o
lençol está todo bagunçado, mas consigo ver às asas da mamãe e as asas dele,
igual à da parede.
Ele é o anjo da mamãe?
Chego mais perto da cama e sinto minha barriguinha tremer, ao ver
de perto o seu rosto, o cabelo, a barba grandona…
— Happy, olha quem está aqui, é o papai!
CAPÍTULO 50

INDECIFRÁVEL
“… colorindo as asas do meu… papai!”

LIA
Hum… humm… hu, hu, hu…

A
melodia infantil perfura o bloqueio do meu sono, não sei se é um sonho, ou se
realmente Anjinho já está acordado. Geralmente ele se levanta bem cedo,
sobe até ao meu quarto para ficar colorindo com suas canetinhas em seu
caderno de desenho ao meu lado.
Meu corpo reage lentamente, mas o conforto dos braços fortes me
rodeando são tentadores demais ao ponto de me fazer navegar pelo sono
pesado. Provavelmente é o meu subconsciente tentando me acordar movido
pela rotina.
Anjinho não está em casa, volte a dormir Lia, hoje é o papai anjo
quem está te fazendo companhia.
Me aconchego melhor contra o corpo musculoso, sinto os músculos
do braço sobre minha cintura se retesar, roço o meu rosto contra o outro
braço por baixo da minha cabeça. Mikael se retraí ao ponto de estremecer por
inteiro, movida pelo medo que seja um pesadelo o acaricio, ao menos é o que
pretendo fazer, mas realmente o sono me vence e sinto que vou voltar para o
limbo.
Hummm… Hum... hu, hu, hu…
A musiquinha é realmente a que Anjinho adora ficar cantarolando,
posso sentir meus lábios se retraindo, não há nada mais precioso do que
acordar com o seu filho te fazendo carinho, dizendo que te ama com um
beijinho de esquimó.
Bocejo incomodada com se tivesse alguém me observando, reviro
o meu corpo tentando me virar, mas sinto a pressão na cintura me impedindo,
Mika me abraça mais apertado até os meus seios estarem esmagados contra
seu peito.
— Hum… te amo…— resmungo ou é o que penso fazer.
Mikael sutilmente aperta minha cintura, as batidas do seu coração
parecem tão aceleradas e tão… humm… tão, que sono.

ANJINHO
Hum… humm… hu, hu, hu…
Coloco minha mão sobre a boca para não rir alto, o Happy está
soltando uma gargalhada por mim, a mamãe parece engraçada quando fala
dormindo, não entendo nada do que diz, só a parte do te amo.
O anjo grande continua a dormir, me aproximo da cama, colo o
Happy bem pertinho dele, tiro a mochilinha das minhas costas, colocando
com meu amiguinho. Me sento no chão, tiro o tênis que a tia Nina me calçou,
a mamãe não gosta que suba com sapatos na cama dela.
O sol está muito forte, quase não consigo ver no quarto, por isso
faço igual à mamãe, caminho até à porta e puxo a cortina para fechar.
Uffa! Assim fica bem melhor para ver, bato um dedinho no outro.
— Happy, é ele? — falo bem baixinho com o meu amiguinho, o
meu coração continua fazendo tum-tum muito forte.
Tão forte que está doendo, ainda quero chorar e não sei por que,
mas quero muito chorar, entretanto, se eu fizer isto, a mamãe vai acordar e
ficar triste. Ela não gosta quando choro.
Devagarinho coloco um pezinho na frente do outro e dou passinhos
até chegar na beirada da cama, seguro com às duas mãos no colchão e pulo
para subir, é muito alto, mas o Anjinho consegue.
Coloco minha mão na perna dele para me segurar e não cair, o anjo
da mamãe não acorda, — riririri — ele dormiu igual o Anjinho.
— Happy, me ajuda? — seguro o meu amiguinho e engatinho na
cama até chegar bem pertinho do anjo gigante, ele tem os cabelos da mesma
cor que o meu e a da Fadinha, coloco o meu rostinho bem pertinho do seu
pescoço, — hum, cheiroso…— ele tem um cheiro bom.
Me sento bem pertinho das suas costas, ainda não consegui ver o
seu rosto direito, mas posso ver o desenho na pele dele, e as várias pintinhas,
a mamãe disse que se chamam sardas, eu tenho no meu rostinho, ainda não
tenho nos meus ombros, será que vou ficar igual ao papai?
Eu amo as tatuagens que a mamãe tem, as asas, a nossa música e o
meu nome, por isso não resisto e coloco o meu dedinho sobre as asas do anjo
gigante.
— Happy, olha tem algumas penas que estão quebradas, o que
será que aconteceu? — com cuidado coloco minha mãozinha sobre elas, bem
no ombro onde são abertas tem um risco alto, cheio de risquinhos, — parece
com aquilo que a tia Nina tem no pé, ela disse que vai ficar com uma
cicatriz, Happy. Que peninha, o meu coração está doendo, será que alguém
machucou o anjo da mamãe?
Não quero chorar e faço um biquinho segurando forte a vontade,
mas meus olhinhos não são obedientes, eles choram sozinhos.
— Tadinho! — fico com tanta dó que deito a minha cabecinha no
seu ombro.
É tão triste machucar. Toco o meu rostinho onde a mamãe do Yuri
bateu, ainda está dói, mas dentro do meu coração. A mamãe disse que são as
lembranças que fazem doer, porque é uma mágoa. Será que anjo gigante
também sente dor?
— O Anjinho vai consertar as suas asas…

Hum… humm… hu, hu, hu…


Me sento com minhas perninhas cruzadas, o Happy vai me ajudar
ficando ao lado do papai, — não quero ficar pensando ser o papai, mas não
consigo. Na minha cabecinha ele é o meu pinguim, a mamãe prometeu que o
traria para mim, e sei que ela não mente para o Anjinho, então — riririri, —
ele é o meu papai anjo, meu pinguim.
Abro minha mochilinha, retiro as canetinhas que a tia loira me deu
e arrumo uma ao lado da outra na minha frente, coloco o meu caderninho de
desenho do outro lado bem retinho, é uma pena ter perdido o presente da
Fadinha, eu poderia mostrar a ele que sempre estive procurando.
— Oh! Não pode Anjinho, shiii… — A titxia disse que não pode
falar.
Hum! adultos são complicados!

Hum… humm… hu, hu, hu…


Destampo uma das minhas cores prediletas, o azul, coloco minha
mãozinha no ombro dele para poder me apoiar e cantarolando começo a
colorir a asa quebrada. A pele dele é bem quente e dura, não é macia como a
da mamãe. Riririri — que engraçado, quando passo a canetinha aparece um
monte de bolinha igual quando estou com frio depois do banho.
—Hum!
Coloco a tampa na canetinha, seguro em seu braço forte e puxo o
lençol que está muito bagunçado até cobrir os braços dele.
— Shiii… shiii… — dou tampinhas em suas costas, como a tia Nina
faz comigo, — Shiii… — Dorme, meu amor!

Hum… humm… hu, hu, hu…


Volto a me sentar bem pertinho dele, o seu rosto está mais virado
para cima e posso ver melhor, o seu nariz, a sua boca, a sobrancelha e várias
sardas sobre as bochechas onde a barbona não escondeu.
Não consigo conter a minha felicidade, dou uma abração no Happy
e nós dois abraçamos ao anjo gigante.
— Happy, é o papai!
MIKAEL
Deveria ter me levantado quando o celular despertou a primeira
vez, tenho certeza de que deixei em modo soneca e que em dez minutos no
máximo ele despertaria, contudo, não consegui me levantar. Estar com Lia
em meus braços é viciante.
Pude sentir no meu subconsciente, o exato momento em que
alguém parou diante da porta do quarto, agucei os ouvidos e no andar
debaixo um barulho de porta se fechando me despertou. Abri aos meus olhos
para poder acordar Lia e me esgueirar sutilmente da cama, provavelmente
Nina e o moleque teriam voltado, se eu não queria traumatizar a criança com
uma das minhas crises, o meu jeito tosco, imagina me pegar nu com sua mãe
na cama?
Porra!
Isto é algo que realmente não queria que acontecesse, contudo, não
tive tempo, antes mesmo de que pudesse me mover a porta abriu, a única
coisa que consegui, foi puxar o lençol meio embolado e cobrir mais ou menos
a nossa nudez, isto se Liana parasse quieta.
Meu coração disparou como se estivesse prestes a descer em um
precipício sem fim, senti minhas mãos tremerem e os pelos do corpo se
eriçarem, a ansiedade chegou de modo avassalador com arrepios que me
fizeram retesar por inteiro.
O sol as minhas costas, não foi capaz de manter-me aquecido,
minha cabeça começou a girar e a sensação pulsante de angústia, medo e algo
mais cravou suas garras em minha garganta apertando até sentir-me sufocado
e tudo, por ouvir a voz rouca sussurrando algo para alguém, Happy?!
De imediato, liguei o nome ao filme, Lia comentou que ele ama os
personagens, tentei abrir meus olhos e pela fresta só pude ver a camisa azul
clara, alças de mochila nos pequenos ombros e um pinguim de pelúcia
agarrado em um abraço.
Deus, ele é tão pequeno…
A criança caminhou até a cama, fechei os meus olhos e passei
aprestar a atenção nos seus movimentos e ouvir a sua voz enrouquecida.
Jamais esperaria que a minha alma fosse ser deflagada assim, nua e indefesa
por uma criança de seis anos de idade, contudo, eu fui abatido do alto da
minha giganteza como ele me intitulou, em sua declaração tão próxima a
mim.
O que para ele pode ser um sussurro, está reverberando como sinos
alados dos sete céus dentro da minha cabeça.
A frase que mais temi em toda minha vida.
O meu maior medo.
Aquilo que me deixou estático nos últimos dias, que de uma forma
indecifrável passou a ser o meu maior desejo e temor de não poder
compartilhar com ela um dia. Veio de forma indecifrável através dos lábios
inocentes de um Anjinho.
— Happy, olha é o papai…
Não pude evitar que lágrimas tombassem em meus olhos. Engoli
em seco e continuei quieto. A criança percorreu a lateral da cama, Lia se
remexeu e começou a balbuciar sobre Anjinho vir colorir em seu quarto,
tentei acordá-la sutilmente, mas depois da maratona de sexo e passarmos o
restante da noite acordados conversando sobre tantas coisas, ela se entregou
ao sono pesado.
O menino colocou algo sobre a cama, fechou as cortinas e tudo
sempre conversando com o seu amiguinho, isto só alimentou minhas
lágrimas, a dor em meu peito, o sufocamento tão grande.
Se eu fosse corajoso, abriria os meus olhos e o encontraria face a
face, seria o sensato e certo, mas o medo me paralisou. Hipoteticamente, se
ao seu ver, ele entender que não sou o que procura, que não posso dar a ele o
que quer?
Deus, por que me fez assim? Porque me deixou deficiente de tantos
sentimentos, como vou poder dizer estas palavras, assumir essa
responsabilidade, se sou quebrado se não tenho conserto?
Nunca fui um homem devoto de orações, mesmo crescendo
ouvindo constantemente tia Maria falar de fé, do poder das orações, dos
desejos que são entregues a um ser superior que rege todo o Universo, nunca
me dediquei a isto e pela primeira vez, creio que todo meu ceticismo está
sendo derrubado a duros golpes de marreta.
Lia roça o seu rosto contra meu braço dobrado, com um gemido
dengoso, continuo a segurá-la firme, para esconder os seios nu. A criança as
minhas costas, ri e meu estômago dá cambalhotas de nervoso, pareço ter
câimbras em meus dedos dos pés e mãos, reações que só tenho em picos
extremos de estresse, e agora descubro que pode ocorrer em completa
euforia. Sinto em meu corpo o toque mais ardente e penetrante de toda a
minha vida.
Com a mãozinha apoiada na minha perna, ele conseguiu subir na
cama e como se fosse a coisa mais natural do mundo percorreu todo o
caminho até tocar meus os ombros.
Senti o seu corpinho se dobrando sobre o meu, na cabecinha
inocente não tem noção de que estou acordado, que tocar-me ou falar tão
próximo poderia me acordar, muito provavelmente é por já ter se
acostumando com sua mãe que tem o sono pesado.
Ele se debruçou sobre o meu ombro e não pude mais racionalizar
nada, apenas segurar muito para não chorar, não explodir de alguma forma
bruta que pudesse machucar a criança ou Lia.
Liana, por Deus do céu, acorda!
O que vou fazer? Os pensamentos em minha mente estão tão
congestionados, meu coração quer uma coisa, mas a racionalidade quer outra,
me sinto enganado, traído, mas também reconheço que ela quis proteger a
criança do monstro que posso me tornar, daquilo que fugi a minha vida toda.
É imprescindível saber que quando um homem ama a uma mulher,
ele não ama apenas o corpo, mas também a sua mente, sua sagacidade, as
suas excentricidades, os seus segredos e a obscuridade que todos carregamos
escondido em nosso interior.
Quando a ouço dizer que me ama, sei ser um sentimento recíproco
e que ela ama meus defeitos assim como qualidades e que pode lidar com
isto, mas e a criança?

— Happy, olha tem algumas penas que estão quebradas, o que


aconteceu?
Ele dedilha com cuidado a minha tatuagem, algo que só a sua mãe
fez, nunca nenhuma outra mulher ou um dos meus amigos, ninguém tocou
minhas costas. Mesmo que tenha transado com outras, foi apenas sexo, não
era amor, não houve zelo ou sentimentos reais que me permitissem dar a elas
mais do que apenas orgasmos.
Ele é a segunda e única pessoa que poderá tocar-me com tanta
intimidade.
A criança continua balbuciando com seu pinguim de pelúcia, e não
faz ideia do que está acontecendo dentro de mim, a sua voz está remoendo
memórias antigas, momentos angustiantes que me chocam e me desesperam,
está é a maior prova de fogo que poderia ter na frente dele.
Em momento algum da minha vida adulta separado de Lia, voltei a
pensar no dia em que nos separamos, na noite em que coloquei um anel de
noivado em seu dedo e ela o retirou deixando-o jogado sobre a cama, nosso
último lugar…
Anjinho costura com os dedos as linhas da tatuagem e por cima da
cicatriz ele os detém, sua voz desce um tom ao ponto de perceber que ele está
se esforçando para não chorar ou já estaria?
— Happy meu coração está doendo… será que alguém machucou
o anjo da mamãe?
A dor, as lágrimas, a falta de ar, o peso no peito o tremor nas mãos
e novamente a quase certeza de que não irei suportar continuar aqui, quieto
deixando que o meu… Deus do céu, que a criança sinta algo com tamanha
empatia, sem ao menos saber quem sou.
Me preparo para acordar Lia e deixar que ela lide com ele, preciso
pensar em algo, em encará-lo como um adulto forte e não um homem
quebrado, que está ao ponto de desabar, por sentir que uma criança está se
apiedando por algo que não tem noção.
Se fosse Liana a fazê-lo, eu entenderia, mas a proibi de tocar no
assunto. Pedi que deixássemos para o futuro, não me sinto preparado para
voltar no passado sem ter uma crise horrenda. Ela conheceu a minha alma,
conhece as minhas feridas e entende meu caminhar, por isso acredito que
poderemos fazer isto um dia, mas não agora…
Estou tão quebrado, como ele pode deitar a sua cabeça em meu
ombro e me confortar? Deus me ajuda, preciso…
Travo a respiração ao ouvi-lo tão perto, sua voz infantil levemente
enrouquecida acariciando-me por dentro e por fora provocando meus
sentidos, serenando parte da minha alma e inflamando uma combustão
inexplicável.
— O Anjinho vai consertar as suas asas…
Ouço nitidamente o barulho de zíper, canetas, sua risada que me
faz contrair os lábios com vontade de rir junto, mas é impossível não sentir a
emoção desmedida que o toque infantil causa, a inocência de um anjo
querendo consertar alguém como eu, simbolicamente através de uma
tatuagem danificada.
Ao primeiro toque da canetinha com movimentos precisos subindo
e descendo sobre minha pele me arrepiam. Logo lembranças inundam a
minha mente em retrocesso volto a um dia muito similar a este.

Deitado com Lia em meus braços não pude me desviar do primeiro


estalar do cinto em minhas costas, meu pai já havia deixado claro para que
me afastasse dela, ou as consequências seriam as piores. Contudo, jamais
poderia fazer o que me ordenou, por isto naquele dia, prometi a ela, não
apenas amá-la para sempre, como a tornaria minha esposa e a levaria
embora.
Mesmo que isto nos custasse os nossos sonhos, aquele seria o
último dia que passaríamos escondidos, pois o resto de nossas vidas
seriamos livres. Uma liberdade que nunca chegou, os eventos que sucederam
ao despertar violento, mascado de dor, sangue, ofensas e despedidas, não
poderia ser mais traumático e maculador.

A distorção da realidade mexe com minha cabeça, quero erguer


minha mão e pressionar a fronte latejando, mas a delicadeza da criança em
achar que estou com frio e me cobrir parcialmente me faz querer vê-lo.
Foda-se os medos, há dias que devemos ser nossos próprios
heróis, e isto requer coragem, ao mesmo tempo, insanidade.
Viro o meu rosto em sua direção, entreabro os meus olhos e só vejo
o corpinho diminuto quase caindo por sobre minhas coxas, a cabecinha baixa,
não me dá visão alguma. Lia retorce em meus braços e faz uma careta
tentando se libertar, por instinto a seguro firme.
A criança volta, fecho os meus olhos, ele me acalenta como se
fosse um pai com o seu filho e não ao contrário, me esmoreço de tal forma
que deixo meu coração falar por mim, mesmo sem entender absolutamente
nada sobre essa nova ânsia, um novo desejo que brota segundo a segundo que
Mikael se dedica a me “consertar”.
Não posso lidar, essa é a verdade.
Colora-me criança, me deixe novo em folha e me perdoe se não for
bom o bastante para você, mas juro que cada novo traço que está criando em
mim, estão sendo enraizados no mais profundo desse coração quebrado.
Colora-me, meu… filho!

Hummm… Hum... hu, hu, hu…


Reconheço a canção que ele continua a cantarolar, e se possível for
me emociono ainda mais, o que aumenta a gama de dor e revolta que está
espetando o meu peito.
Perdi completamente a noção de tempo, sinto os meus dedos
dormentes por mantê-los pressionados na palma da mão. Lia volta a se
remexer.
— Hum … amor, está quente… hum…
Riririri
— Anjinho, desce amorzinho estamos ficando atrasados!
O grito no andar de baixo, não é tão alto, Nina deve estar aos pés
da escada?
A criança continua na sua função, colorindo-me com destreza,
cantando e dedicando cuidado no tato ao dar batidinhas com a sua mãozinha
morna sobre meu braço, se fosse realmente em outra ocasião poderia me
entregar ao sono e me deixar tranquilizar.
— Anjinho, desce! — Nina está um pouco mais acima nos degraus.
— A mamãe não está respondendo, vamos ter de sair antes. Anjinho!?
— Hum! — A criança aperta meu braço. — Não!
Ouço os pulos desajeitados de Nina nos degraus da escada, Lia por
fim começa a despertar de vez, fecho bem os olhos e espero com o coração
aos saltos o inevitável momento em que nada mais poderá ficar oculto.

LIA
Deus do céu! Como estou sentindo calor e enjoo, mas Mikael
resolveu me trancar dentro do seu abraço de polvo de tal forma que não
consigo me mexer.
— Anjinho! — A voz de Nina perfura o meu sono, meu corpo
desperta e desta vez tenho certeza de que estou bem acordada.
Hummm… Hum... hu, hu, hu…
A musiquinha cantarolada está tão próxima aos meus ouvidos que
não tem como ser um sonho ou imaginação.
— Anjinho desce!
— Anjinho? — pergunto meio atordoada, abro os meus olhos e
vejo o rosto másculo e bonito do meu namorado, sorrio e travo em meio a
ação.
— Sangue de Cristo! — Nina exclama da porta, dando um passo
atrás enquanto tento me erguer, mas Mikael que está acordado me segura,
escondendo minha nudez, ergo minha cabeça e encaro com olhos bem
abertos ao meu filho, sentado às costas do pai com sua mãozinha apoiada no
ombro avantajado e a sua cabecinha tão próxima a ele que mal posso ver o
seu rostinho.
— Nina? — sussurro, olhando por sobre o meu ombro, minha
amiga aparece engatinhando na porta e faz sinal de forca, — me ajuda — ela
balança a cabeça em negação, olha para os lados e se arrasta até onde
deixamos nossas roupas caídas.
“Segura” — ela gesticula e joga a camiseta que Mika vestiu sobre a
cama, depois volta para à porta e a encosta sem fechar.
Trago com força sentindo minha garganta seca, minha boca parece
minar areia em vez de saliva, o enjoo que estava sentindo se tornou dor, e o
calor, calafrios apavorantes. Nunca imaginei tal cena, nem mesmo em meus
sonhos, foi o que projetei, isto não parece se quer algo que aconteça em
romances, quanto mais dirá na realidade.
— Anjinho, filho o que está fazendo? — pergunto, já que ele não
me olha em nenhum momento.
— O Anjinho está consertando.
— Você precisa descer com a Nina.
— Hum! Não!
— Anjinho, não pode teimar com a mamãe.
— O Anjinho está… — ele ergue a sua cabeça e mais uma vez me
surpreende com aquele sorriso enigmático que nunca vi, ele eleva uma
canetinha cor de rosa e a balança, — colorindo as asas do meu… papai!
Estremeço com força e olho diretamente para Mikael, olhos
penetrantes em um azul celestial com tons cinzas matizando suas írises me
encaram. A sua expressão é indecifrável como o sorriso do filho, transcorro
meu olhar de um ao outro, solto o meu braço e cubro minha boca para tentar
conter o fluxo de sensações que querem extravasar de mim.
Vê-los assim é uma imagem que está sendo marcada a ferro e fogo
em minha memória, jamais conseguirei esquecer da primeira vez em que vejo
pai e filho juntos, com os seus olhos idênticos, cabelos em um mesmo tom, as
sardas espalhadas da mesma forma sobre o rosto, lábios carnudos encarando-
me ao mesmo tempo, juntos.
Não sei dizer se com julgamentos, com pedidos de explicação ou
apenas esperando uma palavra de confirmação.
O que digo meu Deus?
Para meu filho: — Sim, filho é o seu pai?
Para Mikael: — Não amor, não é bem assim, posso me explicar.
Mikael diante do meu silêncio e das lágrimas que começam a cair
em meu rosto relaxa seu agarre, tateio atrás de mim até sentir a malha da
camiseta em meus dedos e com movimentos frenéticos, me visto.
Nina não está mais na porta do quarto e nem faço ideia de quando
se foi, também não a culparia e nem exigiria que me ajudasse, este momento
é só nosso seja ele bom ou ruim.
— Querido! — Minha voz tremula, — desce para tomar um banho
e lancharmos, a mamãe vai acordar ele.
— Não!
— Anjinho! — Tento ser mais enérgica, mas o olhar conciso de
Mikael me encarando, só me deixa nervosa. — O que faço? — a pergunta
está direcionada a ele e sou uma covarde por deixar a decisão em suas mãos.
Ele me olha pela última vez e fecha os seus olhos, soluço com
desespero ao ver que lágrimas correm por seu rosto em profusão e não sei se
é por medo do que possa ver ou por se negar a ver.
— Anjinho, — seguro o choro e a voz embargada chamando à
atenção do meu filho.
— Ele está dodói? — ele debruça sobre o pai e tenta me alcançar.
Aproveito a deixa e o pego no colo, ficando de joelhos sobre a
cama, abraço seu corpinho sentindo minhas forças serem carregadas. Meu
filho ergue meus cabelos e cheira-me a nuca como habitual.
— Cheirosa…
Isto é o ponto máximo que posso suportar, abro os meus olhos,
estendo minha mão para tocar o rosto de Mikael, limpando suas lágrimas,
sem que Anjinho veja. Meu anjo eleva a sua mão tremula e segura a minha
com força.
Lentamente ele abre os seus olhos e encara as costas do filho do
alto da cabeça até os pés, seu corpo estremece, os seus dedos estreitam o
aperto sobre minha palma, mordo os meus lábios com tanta força que sinto o
gosto ferruginoso do sangue.
Anjinho percebe algo, porque só isto explicaria o que vem a seguir.
Algo surreal, improvável, mas tão celestial que somente os anjos
poderiam viver. Esta não foi a revelação que planejei. Entretanto, pedi ajuda
ao único ser que poderia tornar tudo isso possível e mesmo que haja
consequências dolorosas para este momento, tudo se tornou perfeito.

Este seria o FIM


As cenas que se passaram diante dos meus olhos foram mágicas. E
assim como visto em um cinema mudo, me tornei espectadora do momento,
apreciando a interação entre pai e filho pela primeira vez.
Mikael trava ao ver o filho saltar do meu colo e jogar todo o seu
corpinho na sua direção, fecha os olhos e espera. O pequeno solta uma de
suas gargalhadas infantis e cola sua testa sobre a do pai encostando a
pontinha do nariz balançando sua cabeça de um lado a outro. As mãozinhas
cheias de riscos coloridos de tinta emolduram a face rubra e entorpecida do
homem aquém devotei todo o meu amor.
— Beijinho de esquimó —, o menino sussurra com alegria.
Mikael abre os olhos e as lágrimas percorrem em profusão pelas
laterais do rosto.
— Oi! — ele diz com a voz rouca.
— Oi! — Anjinho mantém os seus olhos sobre os do pai com
firmeza.
— Sou o Anjinho! — o nosso filho ri e novamente balança seu
rosto sobre o do pai, esperando que ele retribua o beijo.
— Sou o Mikael, — o homem curtido pela dor, quebrado e cheio de
cicatrizes tortuosas, segura com as mãos trêmulas o rosto da criança, ergue
a sua cabeça e esfrega o nariz contra o dele com um carinho velado, posso
sentir em mim a sensação perpétua do toque singelo arrebatando-me a alma.
É perceptível o estremecimento do seu corpo, na voz rouca, nas
mãos e no peito com a sua respiração acelerada. Mika se afasta, me olha de
relance, não há pedidos de consentimento, apenas posse, ele volta a encarar
o filho.
— Eu sou seu pai!
Está não foi a forma que planejei — repito.
Quando perguntei por que usar o quebra-cabeças para simbolizar
o autismo, me contaram uma história maravilhosa e engenhosa sobre a
criação de um brinquedo que mudou a história de muitas crianças, contudo o
que me tocou foi a conclusão: o usam para simbolizar a ideia de que pessoas
autistas são difíceis de compreender (como um quebra-cabeça) e que a
“cura” para o autismo é a peça que falta.
Anjinho é a peça que faltava para Mikael. O meu anjo mau, é a
peça que compõe o quebra-cabeça do próprio filho, tornando-os em um, o
meu anjo bom e mau. Os amores da minha vida.
Confiei que Deus pudesse me mostrar a melhor forma de dizer ao
homem que amo, que ele é o pai do meu filho, porém, não há ninguém
melhor para fazer isso do que o nosso Anjinho.
O nosso Anjo bom!
EPÍLOGO

LIVRO II

MIKAEL

ilósofos, poetas, romancistas e diversas conversas ouvidas entre os meus


amigos, jamais traduzirá a emoção e a grandeza do que é ser nominado como
F
pai.
Muito provavelmente os meus sentimentos ainda não sejam
notórios para se tornar um verso expressivo para os grandes imortais da
literatura, todavia é perfeito para uma canção nova que começou a nascer
dentro de mim, ao primeiro toque do meu filho.
Um nascimento inverso…
Não fui eu a tocá-lo ao nascer
Mas foi ele quem me tirou do útero de pedra em que estava…
Não fui eu que olhou em seus olhos a primeira vez e me declarei como o seu pai
Mas foi ele que com a sua doce voz declarou-se meu filho…
Em segundos de oco, estéril e vazio, me tornei alguém almejando
viver insanamente cada nuance do que ele possa me mostrar, com seu jeito
único, suas poucas palavras, mas que em min soa como um acorde perfeito.
Ele se mostra e me faz ser pego em flagrante olhando-o fixamente.

Será que o cheiro de bebê que os pais sentem quando os filhos nascem
É como o dele, que lembra nuvens, céu azul, algodão, paraíso?
Será que a primeira risada de um bebê pode ser tão encantadora como a sua
Que me faz rir com ele, mesmo em meio as lágrimas?
A pele suave, os olhos, cabelos, as mãozinhas, os dedinhos dos pés
descalços deixando marcas no parquet de madeira polida…

Será que os pais se sentem assim com o coração a ponto de rugir


Quando o seu filho engatinha e dá os primeiros passos?

Não sei ao certo o que estes pais sentem, mas posso dizer que pelo
meu filho morreria. Daria meu tudo, minha vida, não sei quantas horas se
fazem que o conheci, mas posso afirmar que jamais, amei alguém assim.

A conversa com Lia, não foi a das melhores e nem poderia ser com
o nosso filho tão próximo e com tantos sentimentos gritando em nós. Deixei-
me anestesiar pela emoção de estar com ele, sentindo a sua agitação e
contornando com carinho o estresse de ter de deixá-lo. Contudo, não posso
negar a minha natureza, nem mesmo as minhas próprias debilidades, o meu
filho é o meu soro da força e controle, mas ela é o cataclisma que aciona os
meus gatilhos.
O equilíbrio, nunca foi algo tão almejado por mim.
Eu disse que sempre fui o melhor tio, por conseguir compreender
as crianças e saber dar atenção, só não saberia jamais que fazer isto com o
meu filho, colocaria a mim mesmo em estado de alerta constante.
Meu filho, — mal posso pronunciar a sentença sem que uma
enxurrada de sentimentos e lágrimas queiram cair dos meus olhos.
Deixar Lia sozinha em seu quarto me doeu, principalmente por vê-
la visivelmente debilidade com seus medos e anseios, mas eu também
precisava respirar. Sentar-me ao piano com o meu filho e dedilhar algumas
canções, formar uma memória em mim.
Percebi Nina passar lentamente e deixar o apartamento, não queria
que a moça saísse, mas agradeço sua descrição.
O celular no bolso da calça começou a vibrar pouco tempo após
descer, olhei a primeira mensagem de Ramon e não precisei ver o restante.
Provavelmente Lia conversou com as meninas e já é pública a
informação de que Mikael, o homem que nunca quis ser pai, tem um filho.
Não a culpo, imagino que tenha um grupo de mulheres prontas a
defendê-la, caso eu tome alguma providência.
Eis aí a questão, o que disse, é o que sinto e farei, mas
sinceramente não sei como executar, sem causar algum dano no caminho.
O tribunal da moral, dos julgamentos, dos porquês, já foi aberto há
anos, ambos fomos julgados, sentenciados e condenados a vivermos dez anos
longe um do outro.
Ela ainda nem sabe das fotos e do que tenho em poder sobre o
nosso passado, por este motivo, prefiro não me focar em nada mais, a não ser
em meu filho. De resto resolveremos depois.
— Papai, quero ver o Mano.
Anjinho salta do meu colo onde esteve o tempo todo, corre para o
controle e liga a TV. Não digo que estou me preparando para ir embora, até
porque Lia ainda não desceu e imagino que esteja me dando um tempo com
nosso filho, contudo, não temos esse prazo todo.
Ergo os meus olhos para a escada, tiro o celular do bolso para
enviar-lhe uma mensagem, vejo que uma nova chamada perdida de um
número privado. Ignoro e dou um toque para ela.
O aparelho vibra em minha mão, abro a caixa de mensagens
imaginando ser ela, porém é do número privado, assim imagino, não há texto
no corpo da mensagem, apenas um “S”.
A campainha toca e o som chama a atenção de Anjinho que se
levanta correndo, mas para ao ver a mãe descendo.
— Não pode abrir à porta, — ela avisa.
— Quem poderia ser, o interfone não tocou, — comento me
erguendo e caminhando à sua frente.
— Pode deixar, provavelmente é o zelador com a correspondência.
Às vezes ele faz essa gentileza.
— Eu abro! — exclamo olhando para o menino, Lia segura em sua
mão e se afasta.
Pelo olho mágico vejo a visitante do outro lado, não seria estranho
que Lia falasse com ela, mas se deslocar até aqui, só me faz sentir-me ainda
mais desconfortável com a situação, pois ela com certeza sabe dos meus
problemas de controle.
Não foi uma ou duas vezes que presenciou coisas em minha casa e
comigo, para se tornar receosa quando o assunto envolve a sua filha, — olho
sobre os meus ombros, — muito menos o seu neto.
A campainha toca novamente e desta vez ela bate na porta
insistentemente.
— Lia, pega o meu capacete e a mochila, por favor — ao
descermos, aproveitei para trocar as minhas roupas.
Na mochila Jairo adicionou um jeans, camiseta preta de malha e
botas.
— Quem é? — ela sussurra indo ao sofá, pegar os objetos.
Não respondo, aceito-os em minhas mãos sob o olhar atento de
Anjinho, dou a ela um meio sorriso, a seguro em meus braços e beijo os seus
lábios. Me agacho bagunçando o cabelo do meu filho o abraçando.
— Eu volto, combinado?
Ele não gosta, mas já havíamos conversado antes sobre minha
partida. Com aceno Anjinho se joga em meus braços mais uma vez, dando-
me o que ele chama de: upaaa
— Lia, está em casa? — a voz de Maria faz com minha anja de um
passo atrás.
— Deus!
— Não somos mais adolescentes, somos pais! — dito isto a
barreira entre o passado e nosso futuro, para o completo assombro e pavor da
minha amada Maria, que mesmo me tratando bem, ajudou tirar a mulher que
amo de mim é revelado.
— Boa tarde tia Maria!
— Mikael!?
Os seus olhos recaem sobre o neto que vem correndo em sua
direção, aproveito este momento para dar passos em direção ao elevador. Lia
passa pela mãe e me segura pelo braço. Os olhos marejados traduzem o que
sente, mas assim como ela, preciso de um momento para extravasar o que
estou segurando.
— Por favor, tome cuidado e volte…
— Voltarei, — as portas do elevador se abrem, sinto o celular
vibrar novamente com insistência, — Liana, a amo! — declaro em tom
baixo, por sobre seu ombro, vejo Maira com olhos cheios de lágrimas
segurando o neto dando-nos às costas. — Amo vocês!
Ela estremece e aperta-me como se receasse me perder, sinto em
mim a mesma emoção, o mesmo temor arrepia-me e tudo parece mais
dramático e piora ao sentir o aparelho telefônico vibrar em meu bolso como
um presságio.
— Volte para mim, para nós, promete? — Sua voz trepida, sua pele
fria se cobre de gotículas de suor gelado.
Me afasto, entro no elevador e contemplo sua visão emoldurada,
ouvindo a voz enrouquecida do meu Mikael vindo do apartamento, algo
nunca imaginado, nunca esperado, mas que jamais poderei abrir mão.
— Mikael? — ela dá um passo colando algo dobrado em minhas
mãos antes de se afastar.
— Eu sempre cumpro minhas promessas… —as portas se fecham
— mesmo que neste momento dentro de mim tudo que um dia acreditei ser o
certo esteja se desmoronando e se reconstruindo como peças de um quebra-
cabeça, que de tal modo jamais imaginei possuir.

EM ALGUM LUGAR DO CENTRO DE VITÓRIA…


—Olá minha querida Sarah, há quanto tempo, como tem sido todos
estes anos à espera dos seus filhos? Espero que tenham sido solitários e
tortuosos, mas não se preocupe, muito em breve os trarei aqui para fazerem
companhia aos pais, — o riso sarcástico reverberou por todo o cômodo,
rachando o silêncio sepulcral, — o que me diz querido irmão, gostaria de
conhecer ao seu neto?
Continua…
AGRADECIMENOS
NOTA DE AUTORA FINAL

Olá queridos leitores, com muito amor, carinho, orgulho e aquela


lágrima escrevo este texto após o término do primeiro volume deste livro.
Quero contar para vocês que muitas das cenas, os acontecimentos aqui
relatados, são experiências minhas, de amigas, conhecidos e relatos de
profissionais da área de saúde mental que ao longo dos últimos quatro anos
tem me acompanhado.
Lucas, Júlia, Pietro, Letícia, Caíque, Romulo e Sandra. Crianças e
adultos importantes para mim, alguns filhos de amigas, outros da família e
meu filho, me ajudaram a construir Anjinho.
Eu sou mãe de um anjo!
Em 2018 o meu filho foi diagnosticado com depressão severa,
transtorno de Ansiedade Grave com pré-disposição ao suicídio. Pensem em
minha mente dando um nó.
Até então suspeitava que ele tivesse algo como autismo e a busca
era grande por médicos e especialistas que pudessem me ajudar a entender o
meu anjo, contudo, quando viam a depressão no quadro, deixavam passar
batido, alegando trauma passado como causa.
Apenas em 2019 a Doutora Samira entrou nas nossas vidas e fez a
diferença. Ela não só identificou o autismo do Lucas, como o meu, algo que
nunca foi tratado, — não por negligência familiar, durante a minha infância,
os médicos neurologistas por quem passei, diziam que a criança (eu) estava
acima da média: elétrica, agitada, inteligente, autodidata, mas nada
relacionado ao Asperger, contudo eis-me aqui.
Graças a Deus e muito feliz com quem sou!
A partir deste diagnóstico e outros, as nossas vidas mudaram,
completamente. Escrever Meu Anjo Bom e Mau, passou a ser um laboratório
de como eu e meu filho éramos. Como ele reagia as suas emoções, aos
conflitos, as falas, trejeitos e a necessidade que eu como mãe via nele de ser
completo.
Foquei nisto, Anjinho que já era uma criança especial em busca do
seu pinguim, o seu pai especial, e que já estavam enraizados em mim bem
antes disto, explodiu em minha mente ao ponto de causar uma reviravolta no
livro e eu mudar tudo!
Mas é aquilo: Deus escreve certo por linhas tortas!
Meu mundo azul era tão fortemente inserido nisto, que não foi um
choque às novas informações, mas sim respostas para o livro e para a nossa
vida. E, detalhe quantas leitoras no Wattpad se identificaram e me ajudaram
a construir algo perfeito, que no meu íntimo me consolou e confortou. A
vocês, muito obrigada.
Emoção! Tenho muita emoção em fechar essa primeira parte
bombástica com uma cena tão linda, sabendo que o segundo vem para nos
deixar acelerados.
Sim! Pode preparar o coração, pois estamos em meio a busca da
verdade, não é mesmo?
Contudo nesta vida aprendi e continuo a aprender, que existe
momento para tudo, até para dar um ponto de (quase) final em uma história,
para você que leu até aqui, meus sinceros agradecimentos.
Espere pacientemente, em breve, em um estalar de dedos estou de
volta com o fechamento que você nem imagina!
Este é o momento mais esperado, poder agradecer a Deus e a
todos aqueles que estiveram ao meu lado em cada dia desta longa
caminhada.
Agradeço a cada um dos meus leitores, amigos e familiares por
fazerem dos meus sonhos uma realidade!
Agradeço as minhas colaboradoras das madrugadas e as loucas
aventuras ao me ouvirem e enlouquecerem comigo, Mônica, Drica, Ivy e
Nanda, vocês são demais!
Agradeço a minha família pelo apoio nos dias corridos, nas
madrugadas, debruçada sobre o teclado, as horas ausente e momentos de
loucura total.
À Deus, seja dada toda a honra, glória e louvor!
BIOGRAFIA

QUEM SOU
Jo Magrini, mineira natural de Juiz de Fora, nascida em 4 de
fevereiro é casada, mãe de dois lindos meninos, artesã. Formada em Téc. RH,
ADM e secretariado.
Durante a infância e adolescência ler e escrever suas próprias
histórias a levaram participar de concursos de literatura, entre eles da Ed.
Nova Cultural nos anos 90, e ser ganhadora com um conto “Dia das mães”.
Em 2015 a convite de amigas leitoras do Wattpad, iniciou a
publicação da Série Quarteto Listradinho Fantástico e desde então não parou
mais. Participou de antologias, parceiras de escrita e lançando livros no
Wattpad e Amazon com gêneros variados.
Publicações: (2015) Meu Amigo Patrão. Só Um Motivo Para Dizer
Sim, com participação especial de Lara Smith. Um Encontro Inesperado.
Prazer, sou Destino. (2016) Meu Amor e Ódio. (2018) O Sheik de Agrobã 0.5
–Trilogia Reis do Deserto. (2019/20) Meu Pequeno Cowboy.
EM BREVE:
MEU ANJO BOM E MAU — Livro 2
Resumo: Sou doce, me ame!
*•.¸ ♡ Beijo doce
Autora Jo Magrini ♡ ¸.•*
REDES SOCIAIS

Facebook: https://bit.ly/33otNbC
Instagram: https://bit.ly/2GXyZJN
Wattpad: https://w.tt/2Ry2B7T
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E-mail: autora.jomagrini@outlook.com
IG: @autora.jomagrini⠀
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Série Quarteto Listradinho Fantásticos


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Pode o Universo conspirar e criar uma linda história de amor?


Descubra tornando-se parte da primeira história de uma série
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Juliana Guimarães, uma mulher fora dos padrões de beleza
estipulados pela sociedade, divorciada com dois filhos pequenos para criar, se
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Carlos Eduardo Santorini, pai solteiro advogado bem-conceituado,
desejado por todas as mulheres. Um homem marcado por segredos de
família, mas que neste momento, está pronto para se apaixonar.
Juntos, em uma relação de amizade, entre patrão e empregada, tudo
o que eles não imaginam, pode acontecer, até mesmo uma luz no fim do túnel
para abrilhantar ainda mais essa história e propiciar a essa família um novo
recomeço.
"— Moranguinho, o que você está aprontando, hein?
Hum... Esse jeito mandão dele me faz virar a cabeça, mas eu ainda
tenho uma missão!
Liguei o som e começou a tocar a nossa seleção especial de
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meu vestido e para essa ocasião em especial, escolhi um espartilho sexy
vermelho de poá preto, um verdadeiro Moranguinho a altura como ele diz
que sou."
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quando, dentro de nós, existe apenas o Ódio?
Anderson Vasques é um advogado exemplar. Defensor devotado e
apaixonado pela sua carreira e amigos, não deixa em sua vida espaço para
relacionamentos. Para ele, as mulheres são nomes e corpos desconhecidos
com quem ele apenas se satisfaz em breves encontros. Na regras de sua vida,
sexo e amor não resultam em casos de sucesso.
Um dia, Anderson amou uma mulher. Alguém que ele se sentiu
preso desde o instante que a viu. Mas uma traição transformou o que sentia
em um ódio que nunca imaginou possuir. Algo que o move todos os dias.
O que ele nunca imaginaria é que um dia Aline estaria de volta à
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O tempo é uma prova de amor?
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Ramon Staeler
Eu amei de forma imensurável uma única mulher.
Os nossos segredos comprometedores serão expostos. Os nossos
desejos proibidos e as descobertas escandalosas, assim como a luxúria, o
prazer e a fúria... Serão revelados.
A mim, cabe à resignação de aceitar o que estiver por vir. Não
posso fazê-la ver o óbvio, mas um dia, ela se resignará ao seu Destino. Sou
um homem que a Domina sem possuir... que possui ao dominar...
E por isso, não volto atrás em minha palavra dada. Ela sempre será
o Meu Começo e Fim.

Carla Santorini
Mesmo quando me forcei a não ceder, a esperar e a cuidar do nosso
segredo... Dos meus segredos... Nada
poderia me afastar do único homem que amei mais do que a mim
mesma. E mesmo assim, eu fugi.
Gravei o seu nome sob a minha pele, em meu coração e na essência
da minha alma. Porque as escolhas que
fiz, me afastaram dele, mas a força do seu amor me trouxe de volta.
Porque ele sempre será o Meu Começo e Fim.
*Este é o Livro 3 da Série Quarteto Listradinho Fantástico.
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Para quem acompanha a série Quarteto Listradinho Fantástico,


sabe que a Angélica, vulgo Naja/Miau, é a nossa vilã mais queridinha do
mundo. Isto, porque quando menos se espera, a nossa Guardian abre a sua
casca e não deixa ver o que realmente se esconde em seu interior.
Meu Natal Secreto é a história que ninguém viu, o momento que
ninguém ouviu, o milagre de Natal que jamais esqueceremos!
Descubra os mistérios deste Natal e de fato onde tudo começou,
prepare o seu coração, este é apenas o Prequel do que 2021 tem reservado
para nós!
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Tudo o que Helena queria, era ter uma enorme família!


Ela sonhou com um perfeito amor, mas recebeu em troca um
coração partido e teve, o seu bem mais precioso, cruelmente roubado.
Poderia os sonhos perdidos de quem só queria ser amada,
renascerem das cinzas com a chegada repentina de um cowboy misterioso
com um bebê em sua mala?
Prepare o seu coração para uma história de amor, superação, feno e
muita diversão entre um brutamontes, uma mulher com um passado brutal e
um bebê babão!
Da mesma autora da série Quarteto Listradinho Fantástico.
OBS.: O TEXTO CONTÉM UMA LINGUAGEM MINEIRA,
COM GÍRIAS E ABREVIAÇÕES DE PALAVRAS, MAS DE UMA
FORMA CLARA PARA O ENTENDIMENTO DE TODOS. USEI DA
LIBERDADE DE EXPRESSÃO, PARA QUE OS DIÁLOGOS ENTRE
OS PERSONAGENS, FICASSEM PRÓXIMOS À REALIDADE, A
QUAL FUI CRIADA.
Este livro é o início de uma série mensal prevista para 2021.
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O ALPHA E A CAÇADORA

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May foi criada com um único propósito, ser a caçadora mãe que
levaria o legado do clã adiante, mas algo flamejava em seu íntimo. Um
segredo que borbulhava a superfície e poderia libertar uma verdade, há muito
tempo escondido.
Um encontro acidental com um lobo em meio a congelada floresta
siberiana, mudaria isto. Haidem Ankor, o poderoso Alpha das Tundras
congeladas, selaria o seu destino.
Onde o sol não brilha e o lado escuro da lua reflete a dura realidade
das sombras, eles correm com a liberdade selvagem da natureza que os
dominam, e é nas sombras que o perigo espreita na veloz flecha de uma
caçadora.
Era uma vez...
Uma história que mudará o mundo que conhecemos através do
vínculo
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COMEÇOU!
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O SHEIK DE AGROBÃ 0.5

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Onde houver poder, haverá cobiça, traições, guerras e um povo


pronto para guerrear liderados por seu Rei. Em toda história, a mão do
destino é implacável. E esta, jamais poderá ser detida!
Agrobã ficará marcada pelo amor do seu Rei à sua Rainha, por seus
filhos e súditos. E este é o princípio
dos sonhos, magia e paixão. Uma terra cercada por inúmeras
riquezas, tesouros escondidos e conquistas.
Vocês estão prontos para se encantar?
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Ele é um renomado Chef de cozinha, que após sofrer um acidente


automobilístico, perde temporariamente os seus sentidos, olfativos e paladar;
próximo à um concurso renomado que decidirá o futuro da sua carreira,
Fabian precisa confiar em uma estranha, indo contra a sua natureza
desconfiada.
Anete é uma Chef recém formada, cresceu dentro de uma cozinha
famosa comandada pelos avós, após perdas terríveis, ela se vê em uma
situação difícil. A sua única saída é assinar um contrato, este pode mudar a
sua vida, mas talvez mais do que ela esperava.
O amor à primeira vista, pode vir pelo sabor.
A bientôt mes lecteurs...
LANÇAMENTO UM PEDIDO DE NATAL

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Heitor Aguiar abdicou dos sonhos pais para viver o seu, O


proprietário de uma charmosa cafeteira em Buenos Aires, batalhou muito
para formar o seu legado, mas ele não esteve sozinho em toda a caminhada.
Há alguns anos, foi surpreendido por uma dessas engenhosas
maquinações do destino, onde conheceu Larissa, um encontro encantador em
véspera de Natal. Deste encontro surgiu uma forte amizade e um desejo de
Natal a se realizar…
Contagiada pelo seu espírito empreendedor e instigada pela
sensação de liberdade que o amigo vivia, Larissa aceitou sua proposta de
tornar-se não só a sua melhor amiga, mas como o braço direto na Coffee and
Love.
Como melhores amigos, um sempre esteve disposto a tudo um pelo
outro, até mesmo aceitar uma proposta clichê com consequências. O Natal
está chegando, Heitor tem um pedido a fazer, será que Larissa está pronta
para aceitar?
Um conto especial, com gostinho de quero mais.
PRENDA UMA MAMÃE, É NATAL

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THOMAS DAWSON
De homem da lei cobiçado a pai do ano abandonado. Este é o
comentário geral no pequeno Condado de Bandera. Após Thomas ter sido
abandonado no altar, com um bebê recém-nascido nos braços, o Sheriff se vê
em uma grande dificuldade em coordenar o seu trabalho com a criação do seu
filho. Não tem sido fácil, mas o amor incondicional que o pequeno bebê
trouxe para o seu coração quebrado, valeria cada noite mal dormida, fraldas
sujas, muitas mamadeiras, choros e bolhinhas de baba.
Com a expectativa do primeiro Natal como pai solteiro, entre uma
mamadeira e uma ronda, Thomas decide que a cidade precisa urgentemente
de um subdelegado, mas será que ele está preparado para o presente de Natal
que será deixado em sua porta?

MELISSA BOLTON
As festas de Natal não têm mais o mesmo sentido, brilho e calor,
após a perda do seu esposo e companheiro de equipe, a detetive de crimes
graves da Divisão Texas Ranger em uma medida desesperada resolve voltar
para sua cidade do interior, e assumir a vaga aberta na pequena delegacia do
condado.
O que ela não esperava, era que a sua fuga da cidade grande, as
luzes de Natal e a pressão familiar, a fizesse cair em uma adorável prisão
cercada pelo gugú dadá de um bebê fofinho à espera de uma mamãe e um
Sheriff, mais do que disposto a prendê-la.

Melissa e Thomas não se sentiam preparados para se apaixonarem,


muito menos reencontrarem um antigo amor, contudo os milagres de Natal
acontecem, e estes podem vir com bochechas rosadas e cheirinho de bebê.
Prenda uma mamãe, é Natal, é um conto cheio de amor, comédia,
drama e superações.

Conheça mais títulos clicando aqui.

[1] [1] Durante atos formais da Justiça, como julgamentos e sessões solenes, os operadores do Direito — Ministros de Tribunais,
Juízes, Promotores e Advogados — usam as chamadas “vestes talares”. Elas são uma espécie de túnica de cor preta, amarrada na
cintura por uma faixa ou cinto de tecido. Chamam-se talares porque, em geral, são compridas e chegam até os calcanhares.
“Talar” significa “calcanhar”, em latim. Fonte MPPR
[2] Expressão francesa para bem-humorado.
[2]
Alguém te enganou/ ferrou.
[3]
Mamãe
[4]
o mesmo que mandar “pra casa do caralho.”
[5]
Palavra ofensiva, puta
[6]
Desculpe/ uma forma de se desculpar.
[7]
[1] ('Afe' vem da palavra “afeto” e 'fobia' do Grego φόβος “medo”) é o medo exagerado de ser
tocado de qualquer modo, geralmente expressando um enorme desconforto, repúdio ou pavor.

[8]
abdômen
[9]
Gíria local, se refere a lanche servido em barracas e lanchonetes
[10]
Fuzil AK-47 Avtomát Kaláshnikova), também conhecida como Kalashnikov, é um fuzil de assalto
de calibre 7,62x39mm criado em 1947 por Mikhail Kalashnikov e produzido na União Soviética pela
indústria estatal IZH. É a arma de fogo originária da família de fuzis Kalashnikov (ou "AK"). O
trabalho de design na AK-47 começou em 1945.

[11]
O Código Morse é um sistema de representação de letras, algarismos e sinais de pontuação através
de um sinal codificado enviado intermitentemente.
[12]
Aparelho para leitura de livros eletrônicos — Kindle
[13]
Os exercícios de kegel são um tipo específico de exercícios que ajuda a fortalecer os músculos da
região pélvica, sendo muito importantes para combater a incontinência urinária, além de aumentar a
circulação de sangue no local.
[14]
Mensagem sistêmica padrão, Guardiãs.
[15]
Referência ao pinguim do filme Happy Feet.
[16]
Essa é uma das mensagens importantes do filme “Happy Feet 2”. O filhote Erik ouve essa lição de
um pinguim meio esquisito chamado Sven e que, ao contrário de todos os pinguins que existem, pode
voar!
[17]
Mãe de Deus, o que é isto?
[18]
Inferno!
[19]
Olá minha querida!
[20]
gatinho
[21]
Meu Deus! Que bela mulher temos aqui!

[22]
Referência ao filme O Terno de 2 Bilhões de Dólares lançados em 2002.

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